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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CATARINA DE ARAGÃO - P.2 / Philippa Gregoy
CATARINA DE ARAGÃO - P.2 / Philippa Gregoy

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

O embaixador, que foi chamado ao romper do dia para ir de imediato à Casa de Durham, não se preocupou em chegar das nove da manhã. Encontrou Catarina à sua espera, nos seus aposentos privados, apenas na companhia de Dona Elvira.

- Mandei chamar-vos há várias horas - disse a princesa irritada.

- Estava a tratar de assuntos para o vosso pai, e não pude vir mais cedo - respondeu suavemente, ignorando a expressão irada do rosto dela. - Há algum problema?

- Ontem falei com o rei e ele repetiu a proposta de casamento - disse Catarina, com um tom orgulhoso na voz.

- De facto.

- Mas ele disse-me que eu viveria na corte, nos aposentos da mãe dele.

-Oh! - o embaixador acenou com a cabeça.

- E disse que os meus filhos só herdariam a seguir ao príncipe Henrique.

O embaixador assentiu novamente com a cabeça.

- Não podemos convencê-lo a esquecer o príncipe Henrique? Não podemos elaborar um contrato de casamento, para o afastar, em favor do meu filho?

 

 

 

 

O embaixador abanou a cabeça.

Não é possível.

Um homem deve poder escolher o seu herdeiro?

- Não. Não no caso de um rei estar há tão pouco tempo no trono. Não um rei inglês. E mesmo que pudesse, não o faria.

Ela levantou-se da cadeira e dirigiu-se à janela.

- O meu filho será o neto dos reis da Espanha! - exclamou. -Com séculos de realeza. O príncipe Henrique não é mais do que o filho de Isabel de York e de um pretendente ao trono bem-sucedido.

De Puebla soltou um pequeno assobio de horror perante o seu descaramento e olhou para a porta.

- É melhor que nunca lhe chameis isso. Ele é o Rei da Inglaterra.

Ela acenou com a cabeça, aceitando a reprimenda.

- Mas ele não tem a minha linhagem - prosseguiu. - O príncipe Henrique não seria o rei que o meu filho viria a ser.

- A questão não é essa - observou o embaixador. - É uma questão de tempo e de prática. O filho mais velho do rei é sempre o Príncipe de Gales. É sempre ele que herda o trono. O rei, de todos os reis do mundo, não vai transformar o seu herdeiro legítimo num mero pretendente ao trono. Ele foi perseguido por pretendentes. Não vai criar mais um.

Como sempre, Catarina retraiu-se ao pensar no último pretende, Edward de Warwick, degolado para desimpedir o caminho dela.

Além disso - continuou o embaixador -. qualquer rei preferiria ter um filho robusto de onze anos como herdeiro do que recém-nascido no berço. Vivemos tempos perigosos. Um homem quer ter outro homem para lhe suceder, não uma criança.

Se o meu filho não vai ser rei, então, qual é o objectiva meu casamento com um rei? - perguntou Catarina.

Seríeis rainha - assinalou o embaixador.

Que tipo de rainha iria ser com Sua Alteza, a Mãe do Rei tomar todas as decisões? O rei não me permite governar o reino ela não me deixaria gerir a corte como pretendo.

Sois muito jovem - comentou ele, tentando acalmá-la.

Tenho idade suficiente para saber o que quero - afirmou Catarina. - E quero ser tão rainha na prática, como sou de nome Mas ele nunca mo permitirá, pois não?

Não - admitiu de Puebla. - Nunca dareis ordens, enquanto ele for vivo.

E quando morrer? - perguntou sem se retrair.

Então, sereis a Rainha Viúva - respondeu de Puebla.

E os meus pais poderão casar-me novamente com outra pes­soa qualquer, e eu poderia ter de sair da Inglaterra, de qualquer forma! - terminou ela, bastante exasperada.

É possível - admitiu ele.

E a mulher de Henrique seria Princesa de Gales e a nova rainha. Estaria à minha frente, governaria em meu lugar, e todo o m sacrifício não teria valido de nada. E os filhos dela seriam os Reis Inglaterra.

Isso é verdade.

Catarina atirou-se para cima da cadeira.

- Então, tenho de ser mulher do príncipe Henrique - disse ele.

- Tenho de ser.

De Puebla estava bastante horrorizado.

Pelo que sei, concordastes casar com o rei! Ele fez-me acreditar que estáveis de acordo.

Concordei em ser rainha - disse ela, pálida de determinação.

- Não em ser um objecto. Sabeis o que me chamou? Disse que seria a sua noiva-criança. e que viveria nos aposentos da mãe de como se fosse uma das suas damas de companhia.

A rainha anterior...

A rainha anterior era uma santa, para aturar uma sogra daquelas. Toda a vida recuou. Eu não posso fazê-lo. Não é isso que eu quero, não é o que a minha mãe quer, e não é o que Deus quer.

_ Mas se haveis concordado...

_ Quando é que algum acordo foi cumprido neste país? – perguntou Catarina ferozmente. - Vamos quebrar este acordo e fazer outro. Quebraremos esta promessa e faremos outra. Não casarei como rei. Casarei com outro.

_ Com quem? - perguntou ele insensivelmente.

- Com o príncipe Henrique, o Príncipe de Gales - disse ela. -Para que quando o rei Henrique morrer eu seja rainha de facto, assim como de nome.

Instalou-se um breve silêncio.

- Se o assim o desejais - disse de Puebla lentamente. - Talvez. Mas quem é que vai dizer ao rei?

Deus, se estais aí, dizei-me que estou a tomar a atitude certa. Se estais aí, ajudai-me. Se esta é a Vossa vontade, que eu seja Rainha da Inglaterra, precisarei de ajuda para o conseguir. Correu tudo mal. e se isto me foi enviado para me testar, então, vede! Estou de joe­lhos e tremo de ansiedade. Se fui realmente abençoada por Vós, des­tinada por Vós, escolhida por Vós, e preferida por Vós, então, porque me sinto tão desesperadamente só?

O embaixador de Puebla encontrou-se na posição desconfor­tável de ter de levar as más notícias a um dos mais poderosos e irascíveis reis da Cristandade. Levava na mão cartas firmes de recusa de Suas Majestades da Espanha, tinha a determinação de Catarina em sei Princesa de Gales, e tinha a sua própria coragem retraída até ao limite, para este encontro embaraçoso.

O rei decidira recebê-lo no pátio dos estabulos do Palácio de Whitehall, estava a observar uma nova encomenda de cavalos da Barbária que haviam sido adquiridos para melhorar a raça inglesa. De Puebla pensou em fazer uma referência graciosa ao facto de o sangue estrangeiro refrescar as raças nativas, e de a reprodução ser mais produtiva entre animais jovens, mas viu o rosto sombrio de Henrique e percebeu que não haveria uma saída fácil para este dilema.

Vossa Graça - cumprimentou com uma vénia.

De Puebla - disse o rei secamente.

Recebi uma resposta de Suas Majestades da Espanha à v honrosa proposta; mas talvez deva falar convosco num momento mais oportuno.

Aqui serve muito bem. Posso imaginar a resposta deles, pelos vossos paninhos quentes.

A verdade é... - de Puebla preparava-se para mentir Querem que a filha volte para casa, e não conseguem pôr a hipótese do casamento dela convosco. A rainha é particularmente v mente na sua recusa.

Porquê? - perguntou o rei.

Porque quer ver a filha, a sua filha mais nova e mais dc casada com um príncipe da idade dela. É um capricho de uma mulher. - O diplomata fez uma expressão de desprezo. - Apenas um capricho de mulher. Mas temos de reconhecer os desejos de uma mãe, não temos? Vossa Graça?

Não necessariamente - disse o rei contrariado. - Mas o que diz a Princesa Viúva? Pensei que tivéssemos chegado a acordo. Ela pode dizer à mãe qual é a sua preferência. - Os olhos do rei esta­vam cravados no garanhão árabe, que andava de cabeça erguida pelo pátio, com as orelhas a oscilar para a frente e para trás. a cauda levantada, o pescoço curvado como um arco. - Presumo que ela possa dizer o que pretende.

Ela diz que vos obedecerá, como sempre. Vossa Graça - disse de Puebla com tacto.

E?

Mas ela tem de obedecer à mãe. - Recuou com o olhar duro que o rei lhe lançou repentinamente. – Ela é uma boa filha. Vossa Graça. É uma filha que obedece a mãe.

Eu propus-lhe casamento e ela indicou-me que iria aceitar.

Nunca recusaria um rei como vós. Como poderia fazê-lo? Mas se os pais não consentem, não apresentarão o pedido de dispensa. Sem uma dispensa do Papa, não pode haver casamento.

- Pelo que sei, o casamento dela não foi consumado. Praticamente não precisamos de uma dispensa. É uma cortesia, uma formalidade.

- Todos sabemos que não foi consumado - confirmou apressadamente de Puebla. - A princesa ainda é uma donzela, esta apta para o casamento. Mas, ainda assim, o Papa teria de conceder u dispensa. Se Suas Majestades da Espanha não apresentarem o pedido de dispensa, o que podemos fazer?

O rei dirigiu um olhar sombrio e duro ao embaixador espanhol.

- Agora, não sei. Pensei que sabíamos o que íamos fazer. Mas estou confundido. Dizei-me vós. O que podemos fazer?

O embaixador apoiou-se na coragem resistente da sua raça. as suas origens judaicas, às quais se agarrava nos momentos mais difíceis da sua vida. Sabia que ele e o seu povo, de alguma forma, sobreviveriam sempre.

_ Não há nada a fazer - afirmou. Tentou esboçar um sorriso de compaixão e sentiu que estava a sorrir com ar afectado. Compôs o rosto com a expressão mais séria. - Se a Rainha da Espanha não apresentar o pedido de dispensa, não podemos fazer nada. E ela está irredutível.

Não sou um dos vizinhos da Espanha, para ser dominado numa campanha de Primavera - respondeu o rei secamente. - Não sou Granada. Não sou Navarra. Não receio o seu descontenta­mento.

E é por isso que eles pretendem a aliança convosco - afir­mou de Puebla suavemente.

Uma aliança como? - perguntou o rei friamente. - Pensei que me estavam a rejeitar.

Talvez possamos evitar todos estes problemas celebrando um outro casamento - disse o diplomata cuidadosamente, observando o rosto sombrio de Henrique. - Um novo casamento. Para criar a aliança que todos pretendemos.

- Com quem?

Diante da raiva acumulada no rosto do rei, o embaixador ficou sem palavras.

- Senhor... Eu...

Com quem querem casá-la agora? Agora que o meu filho, a rosa, está morto e sepultado? Neste momento, ela é uma viúva pobre, com apenas metade do dote pago, que vive da minha cari­dade.

Com o príncipe - atirou de Puebla. - Ela foi trazida para o reino, para ser Princesa Gales. Veio para cá para ser a mulher do Príncipe, e mais tarde - muito mais tarde, se Deus quiser - ser rainha. Talvez seja esse o destino dela. Vossa Graça. Pelo menos, é assim que ela pensa.

- Ela pensa! - exclamou o rei. - Ela pensa tanto como aquela poldra! Nada que vá além do próximo minuto!

- Ela é jovem - disse o embaixador. - Mas aprenderá. E o príncipe ainda é novo, aprenderão juntos.

-E nós. homens mais velhos, temos de ficar para trás? Ela vos falou de uma preferência, de nenhuma vontade em especial por mim? Apesar de me ter dado claramente a entender que quereria casar comigo? Não dá sinais de sentir remorsos por esta reviravolta? Não se sente tentada a desafiar os pais e manter a palavra que me deu voluntariamente, de que casaria comigo?

O embaixador sentiu a amargura na voz do homem mais velho

Não lhe é permitido escolher - lembrou ao rei. - Tem de fazer o que lhe é ordenado pelos pais. Penso que, da parte dela havia uma atracção, talvez uma atracção forte. Mas sabe que tem de fazer o que lhe ordenam.

Eu pensei em casar com ela! Tê-la-ia feito rainha! Teria sido Rainha da Inglaterra - quase sufocava ao pronunciar o título, toda a vida o considerara a maior honra que uma mulher poderia ima­ginar, tal como o seu título era o mais importante na sua imagina­ção.

O embaixador fez uma pausa por instantes, para permitir que o rei se recompusesse.

Sabeis, há outras jovens igualmente belas na família dela -sugeriu com cautela. - A jovem Rainha de Nápoles está viúva. Como sobrinha do rei Fernando, traria um bom dote e tem os traços da família. - Hesitou. - Diz-se que é muito bonita e... - fez uma pausa. - Amorosa.

Ela deu-me a entender que me amava. Devo pensar que é uma fingida?

O embaixador sentiu um suor frio ser expelido por cada poro do seu corpo, ao ouvir aquela palavra terrível.

- Não é fingida - disse ele. com um sorriso ligeiramente força­do. - Uma nora amorosa, uma rapariga afectuosa...

Instalou-se um silêncio gelado.

- Sabeis como proliferam os pretendentes neste país - disse o rei rigidamente.

Sim! Mas...

Se está a brincar comigo, vai arrepender-se.

- Ela não está a brincar nem a fingir! Não é nada disso!

O rei deixou o embaixador sofrer, tremendo ligeiramente de ansiedade.  

- Pensei em acabar com toda esta história do dote e do quinhão. - observou Henrique, por fim.

- E é o que pode acontecer. Quando a princesa for prometida ao príncipe, a Espanha pagará a segunda metade do dote e o quinhão da viúva não terá de ser pago - garantiu-lhe de Puebla.

Apercebeu-se de que estava a falar demasiado depressa, respirou fundo, e abrandou. - Todas as dificuldades terminam. Suas Majestades da Espanha ficarão satisfeitas por apresentar o pedido apenas para que a filha case com o príncipe Henrique. Seria um bom casamento para ela, e ela fará o que lhe ordenarem. Isso per­mite-vos procurar uma mulher para vós, Vossa Graça, e deixa livres receitas da Cornualha, Gales e Chester para vós novamente.

O rei Henrique encolheu os ombros e afastou-se do ringue de treino e do cavalo.

- Então, acabou? - perguntou friamente. - Ela não me dese­ja como pensei que desejava. Confundi as suas atenções para comigo. Pretendia apenas ser filial? - riu-se amargamente do beijo que lhe dera à beira-rio. - Tenho de esquecer o meu desejo por ela?

Ela tem de obedecer aos pais como Princesa da Espanha -relembrou-lhe de Puebla. - Pela parte dela, sei que havia uma pre­ferência. Ela própria mo disse. - Pensou que o jogo de Catarina podia ser encoberto por aquilo. - Está desapontada, para vos dizer a verdade. Mas a mãe é irredutível. Não posso ir contra a vontade da Rainha de Castela. Ela está completamente determinada em que a filha regresse a Espanha, ou que case com o príncipe Henrique. E não apresenta mais nenhuma sugestão.

Que assim seja - disse o rei, numa voz gelada. - Tive ape­nas um sonho ridículo, um desejo. Pode ficar tudo por aqui.

Voltou-se e afastou-se do pátio dos estábulos, tendo deixado de sentir prazer em cuidar dos cavalos.

Espero que não guardeis ressentimentos? - acrescentou o embaixador, coxeando rapidamente atrás dele.

Nenhum - disse o rei por cima do ombro. - De maneira nenhuma.

E o noivado com o príncipe Henrique? Posso assegurar a Suas Majestades católicas que irá avançar?

- Oh, de imediato. Farei disso a minha primeira e mais impor­tante obrigação.

- Espero que não tenhais ficado ofendido! - disse o embaixador ao rei, que estava de costas e se retirava.

O rei deu meia volta e encarou o embaixador espanhol, com punhos cerrados nas ancas, os ombros rígidos.

- Ela tentou fazer de mim um parvo - disse através dos lábios cerrados. – Não lhe agradeço por isso. Os pais tentaram fazer de mim o que queriam. Penso que descobrirão que enfrentam um dragão, e não um dos seus touros domesticados. Não me vou esquecer disto.

Vós, Espanhóis, também não o esquecerão. E ela vai arrepender-se do dia em que me tentou enganar, como se eu fosse um rapazinho apaixonado, assim como eu me arrependo agora.

- Está acordado - respondeu de Puebla categoricamente a Catarina. Estava de pé em frente dela. "Como um moço de reca­dos!", pensou indignado, enquanto ela estava a arrancar painéis de veludo de um vestido para o remodelar.

- Vou casar com o príncipe Henrique - disse num tom tão aborrecido como o dele. - Ele assinou alguma coisa?

Concordou. Tem de esperar pela dispensa. Mas concordou. Ela levantou o olhar para ele.

Ficou muito zangado?

Penso que ficou ainda mais zangado do que me mostrou. E o que mostrou foi mau.

O que vai ele fazer? - perguntou ela.

Ele analisou o seu rosto pálido. Estava branca, mas não receo­sa. Os seus olhos azuis estavam fechados como os do pai quando planeava alguma coisa. Não parecia uma donzela em apuros, tinha o ar de uma mulher que tentava ser mais inteligente do que um pro­tagonista bastante perigoso. Não era enternecedora. como o teria sido uma mulher em lágrimas, pensou. Era formidável, mas não agradável.

- Não sei o que fará - disse ele. - E de natureza vingativa. Mas não lhe devemos dar nenhuma vantagem, temos de pagar o dote de imediato. Temos de cumprir a nossa parte do contrato, para o obrigar a cumprir a dele.

- A baixela perdeu o valor - disse ela categoricamente. -gasta pelo uso. E eu vendi uma parte.

Ele soltou um gemido.

- Vendestes? Mas é propriedade do rei!

Ela encolheu os ombros.

- Tenho de comer, Dr. de Puebla. Não podemos ir todos para a corte, sem sermos convidados, e sentarmo-nos na mesa dos comuns. Não vivo bem. mas tenho de viver. E não tenho nenhuma

fonte de rendimentos, além dos meus bens - Devíeis tê-los preservado intactos. Ela encolheu os ombros.

_ Nunca deveria ter sido reduzida a isto. Tive de empenhar a minha própria baixela para sobreviver. Se há alguém responsável, não sou eu.

_ O vosso pai terá de pagar o dote, e de vos pagar uma mesa-I, _ disse ele impiedosamente. - Não lhes podemos dar nenhuma desculpa para recuarem. Se o vosso dote não for pago, ele não vos casará com o príncipe. Infanta, devo avisar-vos, ele vai congratular-se com as vossas dificuldades. Prolongá-las-á. Catarina acenou com a cabeça.

Então, também é meu inimigo.

Receio que sim.

Vai acontecer sabeis - disse ela inconsequentemente.

O quê?

Casarei com Henrique. Serei rainha.

Infanta, esse é o meu maior desejo.

Princesa - respondeu ela.

 

                           Whitehatt, Junho de 1503

- Ireis ser prometido a Catarina de Aragão - disse o rei ao filho, pensando no filho que partira antes.

O rapaz loiro corou como uma rapariga.

- Sim. senhor.

Fora perfeitamente treinado pela avó. Estava preparado para tudo, excepto a vida real.

- Não penseis que o casamento vai acontecer - avisou-o o rei. Os olhos do rapaz voltaram-se para cima, surpresos e desce­ram novamente.

- Não?

- Não. Roubaram-nos e enganaram-nos em todas as situações, tentaram dar-nos a volta, como uma prostituta numa taberna. tentaram iludir-nos e prometeram-nos uma coisa atrás da outra, como uma provocação sob a forma de bebida. Dizem que... – interrompeu-se, o seu olhar espantado lembrava-lhe que falara de homem para homem e ele era apenas um miúdo. Por outro lado, não devia demonstrar o seu ressentimento, por muito forte que fosse.

- aproveitaram-se de da nossa amizade - resumiu. - E agora vamos aproveitar-nos da fraqueza deles.

- Mas vamos continuar a ser amigos?

Henrique fez uma careta, pensando em quão vigarista fora Fernando, e na filha, a beleza fria que o recusara.

Oh. sim - respondeu. - Amigos leais.

Então, vou ficar noivo e mais tarde, quando tiver quinze anos, casaremos?

O rapaz não percebera nada. Que fosse

Digamos que aos dezasseis.

O Artur tinha quinze.

Henrique engoliu a resposta de que servira de muito a Artur

Além disso, era indiferente, uma vez que nunca iria acontecer.

- Oh, sim - disse. - Então, aos quinze.

O rapaz sabia que alguma coisa estava errada. A sua testa macia estava franzida.

- Fazemos tenções de cumprir este acordo, não fazemos, Pai? Não quereria enganar uma princesa como esta. É um juramento muito solene, o que vou fazer?

- Oh, sim - disse novamente o rei.

Na noite antes do meu noivado com o príncipe Henrique, tenho um sonho tão maravilhoso que não quero acordar, listou no jardim do Alhambra, a passear de mãos dadas com Artur rindo-me para ele. e mostrando-lhe a beleza em nosso redor, a grande muralha de grés que rodeia o forte, a cidade de Granada por baixo de nós e as montanhas cobertas de neve prateada, no horizonte.

- Ganhei - digo-lhe. - Fiz tudo o que querias, tudo o que planeámos. Serei princesa, como me fizeste. Serei rainha, como querias que fosse. Os desejos da minha mãe foram cumpridos, o meu próprio destino ter-se-á cumprido, o teu desejo e a vontade de Deus. Estás feliz agora, meu amor?

Ele sorri para mim, os seus olhos são calorosos, o seu rosto meigo, um sorriso que só tem para mim.

- Eu tornarei conta de li - murmura. - Sempre. Aqui em al-Yanna.

Eu hesito ao ouvir o som estranho da palavra nas seus lábios e depois percebo que utilizou a palavra moura:   "al-Yanna", que significa ao mesmo tempo céu. cemitério e um jardim. Para Mouros, o céu é um jardim, um jardim eterno.

-Virei ter contigo um dia - sussurro, mesmo quando a força

com que a sua mão agarra a minha vai diminuindo, e depois desaparece apesar de eu a tentar agarrar.

_ Voltarei a estar contigo, meu amor. Encontrar-te-ei aqui no jardim

_ Eu sei - diz ele. e agora o seu rosto esfuma-se conto a névoa da manhã, como uma miragem no ar quente da sierra.

- Sei que voltaremos a estar juntos, Catarina, minha Catarina, meu amor.

 

                         25 de Junho de 1503

Era um dia claro e quente de Junho. Catarina trazia um vestido novo. azul. com um capuz azul, o rapaz de onze anos em fren­te a ela. radiante de emoção, vestia um fato de tecido dourado.

Estavam diante do Bispo de Salisbury com uma pequena corte presente: o rei, a mãe, a Princesa Mary, e algumas testemunhas. Catarina pousou a sua mão fria na palma quente do príncipe e sen­tiu a rechonchudez da infância sob os dedos.

Catarina olhou, para além do rapaz enrubescido, para o rosto sério do pai. O rei envelhecera nos meses após a morte da mulher, e as rugas da sua face haviam-se tornando mais profundas, os olhos encovados. Os homens da corte diziam que estava doente, com uma doença que estava a enfraquecer-lhe o sangue e a esgotá-lo. Outros diziam que estava amargurado com a desilusão: pela perda do seu herdeiro, da mulher e por ver os seus planos frustrados. Alguns diziam que estava apaixonado, que fora enganado por uma mulher. Só algo desse género poderia tê-lo desanimado tão amargamente.

Catarina sorriu timidamente para ele, mas não obteve uma reação calorosa do homem que iria ser seu sogro, pela segunda vez, mas que havia desejado para si. Por momentos, a sua confiança diminuiu. Permitira-se esperar que o rei se tivesse rendido à

Permitira-se esperar que o rei se tivesse rendido à sua determinação, às ordens da sua mãe, à vontade de Deus. Agora, vendo o seu olhar frio. viveu um momento de medo de que talvez aquela cerimônia - mesmo algo tão sério e sagrado como um noivado- pudesse não ser mais do que uma vingança de um dos reis mais astutos.

Arrepiada, virou-lhe as costas, para ouvir o bispo recitar as palavras da missa do casamento e repetiu a sua parte, certificando-

-se de não recordar a última vez que as proferira, há apenas um a quando a sua mão estivera tão fria, agarrando a do homem bonito que alguma vez vira, quando o seu noivo lhe lançara uni g riso tímido de relance, quando cravara os olhos nele através do v-da mantilha e se apercebera dos milhares de rostos que a observaram, lá em baixo, em silêncio.

O jovem príncipe, que ficara deslumbrado com a beleza noiva, sua cunhada, era agora o noivo. O seu ar radiante era o & um rapaz gabarolas que se encontra na presença de uma mulher bonita e mais velha. Ela fora a noiva do seu irmão mais velho, era a jovem que se orgulhara de escoltar, no dia do casamento Suplicara-lhe para lhe oferecer de presente, pelo seu décimo ani­versário, um cavalo da Barbaria. Olhara-a durante a festa de casa­mento e. nessa noite, rezara para que. também ele, pudesse ter uma noiva espanhola tal como ela.

Quando ela abandonara a corte com Artur, ele sonhara com ela, escrevera poemas e cantigas de amor, dedicando-lhas em segre­do. Recebera a notícia da morte de Artur com uma alegria radiante e arrebatada, por ela estar livre.

Agora, quando ainda nem tinham transcorrido dois anos, ela estava à sua frente, com o cabelo solto, em tons de bronze e dou­rado, batendo nos ombros, indicando o seu estado virginal, a man­tilha de renda azul a cobrir-lhe o rosto. A mão dela estava na sua, os olhos azuis encontravam os seus, o sorriso dela era só para ele.

O coração infantil e fanfarrão de Henrique estava tão inchado no seu peito que ele quase não conseguia repetir a sua parte da missa. Artur partira, e ele era o Príncipe de Gales; Artur partira, e ele era o favorito do pai, a roseira da Inglaterra. Artur partira, e a noiva dele era sua esposa

Manteve-se direito e orgulhoso, repetindo os juramentos num tom de voz claro e agudo. Artur partira, e só havia um Príncipe de Gales e uma princesa: o Príncipe Henrique e a Princesa Catarina.

 

                             1504

Posso pensar que ganhei; mas, de facto, não ganhei. Devia ter ganho; mas não ganhei. Henrique faz doze anos e declaram-no Príncipe de Gales, mas não me vêm buscar, não anunciam o nosso noivado nem me investem como princesa. Mando chamar o embai­xador. Ele não vem da parte da manhã, nem sequer nesse dia. Vem no dia seguinte, como se os meus problemas não fossem urgentes e nem pede desculpa pelo atraso. Pergunto-lhe porque não fui investi­da como Princesa de Gales, ao mesmo tempo que Henrique, mas ele não sabe. Sugere que estejam à espera do pagamento do meu dote e que. sem isso, nada pode ser feito. Mas ele sabe, eu sei e o rei Henrique sabe que já não tenho a minha baixela para lhes dar e que, se o meu pai não enviar a sua parte, não há nada que eu possa fazer.

A minha mãe, a rainha, deve saber que estou desolada, mas raramente tenho notícias dela. Sinto-me como se fosse um dos seus exploradores, um Cristóvão Colombo solitário, sem companheiros ou mapas. Enviou-me por esse mundo fora e, se eu cair borda fora ou

perder no mar, ninguém pode fazer nada. Não tem nada para me dizer. Receio que tenha vergonha de

de mim por estar na corte, como uma pedinte, à espera que o príncipe honre a sua promessa. Em Novembro tenho um pressentimento tão forte de que ela está doente ou triste, que lhe escrevo e suplico-lhe que me responda, que me escreva, nem que seja uma só palavra. Mas isto acontece exactamente no dia em que ela morreu e, portanto, nunca chegou a receber a minha carta e eu nunca tive resposta. Abandona-me na morte como me abandonara em vida-, no meio do silêncio e de uma sensação de ausência.

Intuía que iria sentir a sua falta, quando deixei a minha casa Mas confortava-me saber que o sol ainda brilhava nos jardins do Alhambra e que ela ainda lá estava, junto ao tanque bordejado de verde. Não jazia ideia do quanto a sua perda iria piorara minha situação na Inglaterra. O meu pai, que já há muito tempo se recu­sava a pagar a segunda metade do meu dote, o que fazia parte do seu jogo com o rei da Inglaterra, acaba agora por compreender que a sua jogada se transformou numa amarga verdade - não pode pagar. Passou a vida, e gastou a sua fortuna, numa cruzada incessante contra os Mouros e não sobrou dinheiro para ninguém. Os enormes rendimentos de Castela são agora pagos a Joana, a herdeira da minha mãe, e o meu pai não tem nada. no tesouro de Aragão, para o meu casamento. Nesta altura, ele não é mais do que um dos muitos reis da Espanha. Joana é a grande herdeira de Castela e, a acreditar nos rumores, está a ficar louca como um cão raivoso, atormentada até à insanidade pelo amor e pelo marido. Quem olhar para mim agora, já não vê uma princesa vinda de uma Espanha unida, uma das mais cobiçadas noivas da Cristandade; vê apenas uma viúva empobrecida, com sangue mau. As fortunas da nossa família estão a desmoronar-se como um castelo de cartas, sem a mão firme, da minha mãe e o seu olhar alento. Nada resta ao meu pai a não ser desespero; e esse é o único dote que ele me pode dar.

Tenho apenas dezanove anos. Será que a minha vida já acabou?

E, então, esperei. Incrivelmente, esperei, ao todo, seis anos. Seis anos em que me transformei de uma noiva com dezassete anos numa mulher de vinte e três. Compreendi que a raiva do rei Henrique contra mim era amarga, efectiva e duradoura. Nunca uma princesa, em nenhuma parte do mundo, fora obrigada a espe­rar tanto tempo, tratada tão duramente ou deixada em tal desespe­ro. Não estou a exagerar, como faria um trovador para enriquecer uma história - que poderia ter-te contado, meu amor, nas escuras horas da noite. Não, não era como uma história, nem sequer era '"na vida. Era como uma pena de prisão, como um refém que não tem hipótese de redenção, era solidão, e o lento reconhecimento de que falhara.

Desiludi a minha mãe e não consegui obter a aliança com a Inglaterra para a qual eu nascera e fora educada. Sentia vergonha telo meu falhanço. Sem o pagamento do meu dote, por parte da Espanha, não podia forçar os Ingleses a honrar o noivado. Com tal inimizade por parte do rei, não podia obrigá-los a fazer nada. H enrique era uma criança de treze anos e eu raramente o via. Também não podia apelar para que fizesse valer a sua promessa. Eu não tinha qualquer poder, negligenciada pela corte e a cair numa vergonhosa pobreza.

Então, Henrique fez catorze anos e o nosso noivado continuou a não se transformar em casamento; e esse casamento não foi celebrado. Esperei um ano. ele cumpriu quinze anos e ninguém me procurou. Henrique chegou ao décimo sexto, ao décimo sétimo aniversário e nada aconteceu. Os anos passaram. Envelheci. Esperei Fui persistente. Era a única coisa que podia ser.Virei as golas dos meus vestidos e vendi as minhas jóias para comprar comida. Tive de vender a minha preciosa baixela, uma peça de ouro de cada vez. Sabia que era propriedade do rei, quando mandei chamar os ourives. Sabia que. cada vez que penhorava uma peça. atrasava o meu casamento mais um dia. Mas tinha de comer, os meus criados tinham de comer. Não lhes podia pagar os salários. Não os podia mandar pedir para mim. nem abandonados à sua sorte, esfomeados.

Já não tinha amigos. Descobri que Dona Elvira andava a fazer intrigas contra o meu pai. em favor de Joana e do marido, Filipe, e despedi-a, furiosa, mandei-a embora. Não me preocupei em saber se dizia mal de mim ou se me chamava mentirosa. Não quis saber se afirmara, ou não, que Artur e eu havíamos sido amantes. Descobri que traíra o meu pai; será que pensava realmente que eu me aliaria à minha irmã contra o Rei de Aragão? Fiquei tão irada que nem pensei no que a sua inimizade me poderia custar.

Por outro lado, uma vez que não sou idiota, calculei acertada­mente que ninguém iria acreditar na palavra dela contra a minha. Ela fugiu para junto de Filipe e Joana, para a Holanda, e nunca mais ouvi falar dela, nem lamentei a minha perda.

Fiquei sem o meu embaixador, Dr. de Puebla. Por várias vezes me queixara dele ao meu pai, por considerar a sua lealdade um pouco dividida, da sua falta de respeito e das concessões que fazia à corte inglesa. Mas quando ele foi chamado de volta à Espanha, percebi que ele sabia mais do que eu pensava, que usara a sua amiza­de com o rei em meu favor e que descobrira a melhor maneira de se mover dentro desta corte tão complicada. Ele fora bem mais meu amigo do que eu pensara e era eu quem ficava mais pobre ao perdê-lo. Por causa da minha arrogância, perdi um amigo e um aliado e lamentava a sua ausência. O seu substituto: o emissário que viera para me levar de volta a casa. Don Gutierre Gomez de Fuensalida, era um tolo arrogante, que considerava a sua presença uma honra para os Ingleses. Estes troçavam dele mesmo á sua frente, riam-se suas costas e eu não era mais do que uma princesa esfarrapa^ com um embaixador extasiado com a sua própria importância

Perdi o meu querido pai em Cristo, o confessor em quem confiava, que fora escolhido pela minha mãe para me guiar e tive de procurar outro, por minha própria iniciativa. Fiquei sem as damas da minha pequena corte, que não estavam dispostas a viver com

dificuldade nem na pobreza e eu não podia pagara mais ninguém para me servir. Por dedicação, Maria de Salinas ficou a meu lado durante todos estes anos de sofrimento, mas as outras damas quise­ram partir. Por fim. fiquei sem a minha casa. a minha bela casa na Strand, a que havia sido o meu lar. um pequeno lugar seguro, neste país que me era tão estranho.

O rei prometeu-me aposentos na corte e pensei que, finalmen­te, me perdoara. Pensei que me propunha ir para a corte, para viver em aposentos dignos de uma princesa e para poder ver Henrique. Mas, quando me mudei para lá, descobri que me tinham dado os piores aposentos, quase não tinha criados atribuídos e não tinha hipótese de ver o príncipe, a não ser nas cerimónias de estado mais formais. Num dia terrível, a corte saiu em viagem sem nos avisar e tivemos de correr atrás deles, tentando encontrar o caminho, ao longo de veredas campestres, sem qualquer indicação, tão indeseja­dos e irrelevantes como uma carroça carregada de velhas mercado­rias. Quando conseguimos alcançá-los, ninguém dera pela nossa falta e tive de aceitar os únicos aposentos ainda livres: por cima dos estábulos, como uma serviçal.

O rei deixou de pagar a minha mesada e a mãe não o pressio­nou em meu favor. Não tinha um cêntimo que fosse meu.' Vivia des­prezada, nas orlas da corte, com espanhóis que apenas me serviam porque não tinham hipótese de partir. Estavam, como eu, encurra­lados, vendo os anos passar, envelhecendo, cada vez mais ressenti­dos. Acabei por me sentir como a princesa adormecida do conto de fadas, acreditando que nunca mais iria acordar.

Perdi a vaidade - a sensação orgulhosa de que conseguia ser '"ais esperta do que aquela relha raposa que era o meu sogro e do que a raposa matreira que era a mãe. Vim a saber que ele me pro­metera ao filho, o príncipe Henrique, não por gostar de mim ou por me ter perdoado, mas porque esta era a forma mais inteligente e mais cruel de me castigar. Já que não me podia ter, podia, pelo menos, certificar-se de que mais ninguém me teria. Foi bem amargo, o dia em o que percebi.

Por essa altura, Filipe morreu, e a minha irmã Joana ficou uva, como eu. O rei Henrique elaborou, então, um plano para casar com ela, a minha pobre irmã - que perdera o juízo com a morte do marido e colocá-la. em vez de mim, no trono da Inglaterra, onde toda a gente pudesse ver que estava louca, onde todos vissem que partilhava comigo o mesmo sangue mau, num lugar onde percebessem que ele a fizera rainha e me desprezara completamente. Era um plano cruel, destinado a envergonhar-me e

a ferir-me. bem como a Joana. Tê-lo-ia feito, se pudesse. e fez de mim sua cúmplice- forçou-me a recomenda-lo ao meu pai. Por ordem da meu pai, falei ao rei da beleza de Joana; sob ordens do rei aconselhei vivamente o meu pai a aceitar a sua proposta, tendo completa noção de que estava a trair a minha própria consciência. Perdi capacidade de dizer que não ao rei Henrique, o meu perseguidor, meu sogro e pretenso sedutor iniba medo de lhe dizer não". Estava muito fragilizada, nessa altura.

Perdi a vaidade no meu poder de sedução, perdi a confiança na minha inteligência e nas minhas capacidades, mas nunca perdi a vontade de viver. Não era igual à minha mãe. não era como Joana, não virava o rosto para uma parede, a espera que a dor se fosse embora. Não me deixava deslizar para a mágoa dilacerante da loucura, nem me fechava na suave escuridão da apatia. Cerrava os dentes, sou a princesa determinada, não desisto quan­do todos os outros o Jazem. Segui em frente. Esperei. Mesmo que não pudesse fazer mais nada. podia sempre ficar à espera. Por isso, esperei

Estes não foram os anos da minha derrota: foram os anos em que cresci, e foi um amadurecimento bem amargo. De uma rapariguinha de dezasseis anos. pronta para o amor. tornei-me. aos vinte e três, uma viúva semiórfã e solitária. Foram tempos em que, para conseguir resistir, me agarrei à felicidade da minha infância no Alhambra e ao amor pelo meu marido e jurei que. fossem quais fos­sem os obstáculos, seria Rainha da Inglaterra. Foram os anos em que a minha mãe. embora morta, voltou a viver através de mim. Encontrei a sua determinação no meu íntimo, descobri a sua cora­gem dentro de mim. achei o amor e o optimismo de Artur no meu interior. Foram os anos em que. apesar de nada me restar: marido, mãe. amigos, fortuna ou perspectivas, furei que. por mais despreza­da, mais pobre que fosse, por mais improvável que isso se apresen­tasse, ainda riria a ser Rainha da Inglaterra.

As notícias, sempre demoradas em chegar ao conhecimento dos andrajosos espanhóis que viviam nas orlas da corte real, deram a saber que a irmã de Henrique, a Princesa Mary iria casar com grande pompa, com o príncipe Carlos, filho do rei Filipe e da rainha Joana, e neto do imperador Maximiliano e do rei Fernando

Espantosamente, nesse preciso momento, o rei Fernando conseguira por fim, dinheiro para o dote de Catarina e enviara-o para Londres.

- Meu Deus. estamos livres! Pode haver um casamento duplo. Eu posso casar com ele - disse Catarina, com grande emoção, ao emissário espanhol, Don Gutierre Gomez de Fuensalida.

Ele estava pálido de preocupação, os seus dentes amarelos mordiam os lábios:

Infanta, eu quase não sei como dizer-vos. Mesmo com esta aliança, mesmo com o dinheiro do dote - Deus meu, receio que seja tarde de mais. Temo que não nos possa ajudar em nada.

Como é que é possível? O noivado da princesa Mary só vai aprofundar a aliança com a minha família.

E se... - começou ele, e calou-se. Mal conseguia falar do perigo que previa. - Princesa, todos os Ingleses sabem que vem aí o dinheiro do dote, mas ninguém fala do vosso casamento. Ah, Princesa, e se eles estiverem a planear uma aliança que não inclua a Espanha? F se estiverem a planear uma aliança entre o Imperador e o Rei Henrique? E se o objectivo dessa aliança for entrarem os dois em guerra contra a Espanha?

Ela voltou a cabeça:

Não pode ser.

F se for?

Contra o próprio avô do rapaz? - perguntou ela.

Seria apenas um avô, o Imperador, contra outro, o vosso pai.

Eles não fariam isso - disse ela com determinação.

São bem capazes de o fazer.

-O rei Henrique não seria tão desonesto.

- Princesa, sabeis muito bem que seria. Ela hesitou:

- O que se passa? - perguntou, subitamente, cheia de irritação - Há mais qualquer coisa. Alguma coisa que não me estais a dizer. O que é?

Ele calou-se, com uma mentira na ponta da língua, mas depois disse-lhe a verdade.

- Tenho medo. tenho muito medo que eles queiram casar o príncipe Henrique com a princesa Eleanor, irmã de Carlos.

- Não podem, ele foi-me prometido a mim.

- Podem planear o assunto dessa maneira, como parte de um grande tratado. A vossa irmã, Joana, casa com o rei, o vosso sobrinho, Carlos, casa com a princesa Mary e a vossa sobrinha, Eleanor, casa com o príncipe Henrique.

- Então, e eu? Agora que o dinheiro do meu dote vem finalmente a caminho?

Ele ficou em silêncio. Era dolorosamente visível que Catarina fora excluída destas alianças, e que nada tinha sido decidido e relação a ela.

- Um verdadeiro príncipe deve honrar a sua promessa - diz ela com paixão. - Nós fomos prometidos um ao outro por um bis diante de testemunhas, é um voto solene.

O embaixador encolheu os ombros, hesitou. Não era capaz d lhe transmitir a pior notícia de todas.

-Vossa Graça, Princesa, tendes de ser forte. Desconfio que possa vir a anular o juramento.

- Ele não pode fazer isso. Fuensalida continuou:

De facto, receio que ele já tenha sido anulado. O príncipe pode já ter feito isso há alguns anos.

O quê? - perguntou ela friamente. - Como?

Um rumor, não posso ter a certeza de que aconteceu. M temo... - O embaixador calou-se.

Teme o quê?

Temo que o príncipe possa já ter sido libertado da sua promessa de casamento convosco. - Hesitou, ao notar a súbita alteração no rosto dela - Pode nem ter sido decisão dele - acrescent rapidamente. - O pai é que está determinado em afrontar-nos.

Como é que ele foi capaz? Como é que se pode fazer uma coisa dessas?

Ele pode ter feito outro juramento, dizendo que na altura e demasiado novo, que o tinha feito sob ameaça. Pode ter declarado que não queria casar convosco. De facto, parece-me que foi o que ele fez.

Ele não estava sob ameaça! - Catarina exclamou. - Ele estava verdadeiramente entusiasmado. Há anos que está apaixonado por mim e tenho a certeza de que ainda está. Ele queria, realmente, casar comigo.

Um juramento feito perante um bispo, dizendo que na não estava a agir por sua livre vontade, seria o suficiente lhe assegurar a libertação dessa promessa.

Isso quer dizer que durante todos estes anos em que eu venho comprometida com ele e em que agi de acordo com esse f todos esses anos em que eu esperei, esperei e aguentei... - não C seguia terminar. - listais a dizer-me que durante lodos estes anos c que acreditei que tínhamos os ingleses manietados, presos por contrato, obrigados, ele era livre?

O embaixador concordou com a cabeça; o rosto dela estava tão Agido e tão chocado que ele quase não conseguia falar.

_ isto é ... uma traição - disse ela -. uma terrível traição. -Engasgou-se com as palavras. - Esta é a pior de todas as traições.

Ele concordou de novo com a cabeça.

Seguiu-se um longo e penoso silêncio.

- Estou perdida - disse simplesmente. - Agora reconheço-o. Há anos que estou perdida, sem o saber. Tenho estado a travar uma batalha sem exército, sem ajuda. E, na verdade - sem causa. Estais a dizer-me que tenho estado a defender uma causa que há muito tempo esta perdida. Eu lutei pelo meu noivado, mas, na verdade, já não estava noiva. Estive sempre sozinha, todo este tempo. E só agora é que fico a saber.

Mesmo assim, não chorou, embora os seus olhos azuis estives­sem horrorizados.

- Eu fiz uma promessa - disse com uma voz áspera -, uma pro­messa solene e vinculadora.

- A do vosso noivado?

Ela fez um pequeno gesto com a mão.

Não é essa. Fiz uma promessa juramentada. Uma promessa feita a alguém que estava a morrer. E, agora, vós dizeis-me que tudo foi em vão.

Princesa, permanecestes no vosso posto, como a vossa mãe quereria que tivésseis feito.

Eles têm estado a rir-se à minha custa! - conseguiu ela arran­car, das profundezas cio seu choque. - Tenho lutado pelo cumpri­mento de um voto, sem saber que esse voto havia, há muito, sido quebrado.

Ele não era capaz de dizer nada. a dor dela era demasiado crua P;ira qualquer palavra de conforto.

Momentos depois ela ergueu a cabeça:

Todos sabem disto, menos eu? - perguntou friamente. Fie abanou a cabeça.

Tenho a certeza de que foi tudo mantido no maior segredo.

- Sua Alteza, a Mãe do Rei - vaticinou amargamente -, deve ter sabido. Deve ter sido decisão sua. F o rei. o próprio príncipe e, se ele sabia, então, a princesa Mary também sabe - ele deve ter-lhe contado. E os seus companheiros mais chegados... - Ergueu a cabeça- As damas de companhia da mãe do rei, as damas de companhia da princesa. O bispo diante de quem ele fez o juramento, uma testemunha ou duas. Metade da corte, imagino eu - fez uma pausa.

- Pensava que, pelo menos alguns deles, eram meus amigos.

O embaixador encolheu os ombros:

- Na corte não há amigos, apenas cortesãos.

O meu pai vai defender-me desta... crueldade! - exclamou - Eles deviam ter pensado nisso antes de me tratarem desta manei ra! Não haverá mais tratados com a Espanha para a Inglaterra, quan­do ele souber do que se passa. Vai vingar-se pela maneira como me trataram.

Ele não respondeu mas, no seu rosto inexpressivo, ela reco­nheceu a pior das verdades.

- Não - disse ela apenas -, ele, não! Ele também, não! O meu pai, não! Ele não sabia. Ele ama-me, nunca faria nada que me magoasse. Ele nunca me abandonaria aqui.

Nem nesse momento o embaixador foi capaz de lhe contar. Viu-a respirar bem fundo.

Ah! Ah, estou a perceber. Vejo tudo no vosso silêncio. Obviamente. Ele sabe, claro que sabe, não é verdade? O meu pai? O dinheiro do dote é apenas mais um truque. Ele tem conheci­mento do plano para casar o príncipe Henrique com a princesa Eleanor. Ele tem estado a iludir o rei, para que este pense que se pode casar com Joana. Ordenou-me que incentivasse o rei a casar com Joana. Deve ter concordado com esta nova proposta de casa­mento para o príncipe Henrique. E, nesse caso, também sabe que o príncipe quebrou o seu juramento para comigo? Que está livre para se casar?

Princesa, ele não me disse nada. Eu acho que ele deve saber. Mas talvez ele tenha planos para...

O gesto dela, fê-lo parar.

Ele desistiu de mim, estou a compreender. Eu desiludi-o e ele pôs-me de lado. Estou, na verdade, sozinha.

Assim sendo, devo então tentar arranjar maneira de voltar­mos para casa? - perguntou Fuensalida calmamente. Estava deveras convencido de que esse seria o ponto culminante para as suas ambições. Se conseguisse levar esta princesa amaldiçoada de volta a casa, para junto do seu pai infeliz e da irmã, a nova Rainha de Castela, que cada vez estava mais desequilibrada, demonstraria que tinha feito o melhor possível numa situação tão desesperada. Ninguém iria casar com Catarina, agora, que era filha de um reino dividido. Todos podiam ver que a loucura que lhe corria no san­gue, estava a transparecer na irmã. Nem mesmo Henrique da Inglaterra podia fingir que Joana se encontrava em condições de se casar, quando ela prosseguia a sua desvairada travessia da Espanha, acompanhada pelo caixão do falecido marido. A ardilosa diplomacia de Fernando voltara-se contra ele e agora, na Europa, todos eram seus inimigos, com dois dos homens mais poderosos da Europa aliados para lhe declarar guerra. Fernando estava perdido e soçobrava. O máximo que esta azarada princesa podia esperar era um casamento arranjado com algum Grande da Espanha e uma retirada para o campo, onde tivesse hipótese de escapar à guerra que estava para vir. O pior seria ficar presa e na miséria, na Inglaterra, uma refém abandonada, por quem ninguém pagaria um resgate. Uma prisioneira que depressa seria esquecida, até pelos seus carcereiros.

- Que devo fazer? - finalmente aceitava o perigo. Ele reparou que ela começava a aperceber-se da situação. Por fim, compreen­dera que havia perdido. Viu que ela, uma rainha de corpo inteiro, percebera a profundidade da sua derrota. - Tenho de saber o que devo fazer, ou ficarei refém num país inimigo, sem ninguém que me defenda.

Ele não disse que era assim que a via. desde que chegara.

Vamos partir - disse ele com firmeza -, se a guerra começar, manter-vos-ão como refém e ficarão com o vosso dote. Que Deus não permita que o dinheiro, que finalmente está a chegar, possa ser usado para pagar a guerra contra a Espanha.

Eu não posso partir - disse ela convictamente -, se me for embora, nunca mais poderei voltar.

Está tudo acabado! - gritou ele, numa fúria repentina. - Vós já o percebestes, por fim. Perdemos. Fomos derrotados. Está tudo acabado entre vós e a Inglaterra. Haveis suportado e enfrentado a humilhação e a pobreza como uma princesa, como uma rainha, como uma santa. A vossa própria mãe não teria dado mostras de uma coragem maior. Mas fomos derrotados, Infanta. Perdestes. Temos de voltar para casa o mais depressa possível, temos de cor­rer, antes que nos apanhem.

- Nos apanhem?

Podem mandar-nos prender, como espiões inimigos e pedir um resgate por ambos - disse ele. - Podem apropriar-se daquilo que resta do vosso dote e tomar conta do restante, quando chegar. Deus sabe que vos podem acusar de qualquer coisa e executar-vos, se tiverem suficiente interesse nisso.

Não se atrevem a tocar-me! Sou uma princesa de sangue real, - disse ela com desdém. - Por muito que me possam tirar, isso não tirarão nunca. Sou Infanta da Espanha, mesmo que não seja mais nada! Mesmo que nunca chegue a ser Rainha da Inglaterra, serei Sempre, pelo menos. Infanta da Espanha.

- Já houve príncipes de sangue real que foram levados para a Torre de Londres e que não voltaram a sair de lá. - disse o embaixador friamente. - Príncipes com sangue real inglês, que viram aquelas grades fechar-se nas suas costas e que nunca mais voltaram a ver a luz do dia. Ele pode acusar-vos de serdes pretendente ao trono. E sabeis o que acontece, na Inglaterra, aos pretendentes ao trono. Temos de partir.

Catarina fez uma vénia diante de Sua Alteza, a Mãe do Rei, mas em troca, não recebeu, sequer, um aceno de cabeça. Assumiu uma atitude rígida. Os dois séquitos haviam-se encontrado a caminho da missa; atrás da velha senhora, estava a sua neta, a princesa Mary, e meia dúzia de damas. Todas se voltaram com um ar gélido para a jovem mulher que devia ser a noiva do Príncipe de Gales, mas que há tantos anos era negligenciada.

- Vossa Alteza - Catarina colocou-se à frente da mulher, espe­rando que ela reparasse em si.

A mãe do rei olhou para a jovem com nítido desagrado.

-Ouvi dizer que há algumas dificuldades relacionadas com o noivado da princesa Mary - disse Catarina.

Catarina olhou para a princesa Mary e a rapariga, escondida atrás da avó, fez-lhe uma careta feia e desmanchou-se num súbito ataque de riso.

Não sabia de nada - continuou Catarina.

Podeis não saber, mas o vosso pai sabe com certeza - disse a velha senhora com irritação. - Numa das cartas que lhe escrevei constantemente, poderíeis dizer-lhe que não estará a ajudar em nada a causa dele ou a vossa, se tentar perturbar os planos da nossa família.

Tenho a certeza absoluta de que ele não... - começou Catarina a dizer.    

- E eu estou absolutamente convicta de que sim, e vós faríeis   bem em avisá-lo para não se atravessar no nosso caminho - interrompeu-a duramente a velha senhora, continuando a caminhar um ar majestoso.

- O meu próprio noivado... - começou Catarina, como se nunca tivesse ouvido falar no assunto antes - O vosso noivado? - a mãe do rei repetiu as palavras, como se nunca tivesse ouvido falar no assunto antes - O vosso noivado?

De repente começou a rir. atirando a cabeça para trás, com a boca escancarada. Atrás dela, a princesa riu também e, depois, todas as damas começaram a rir às gargalhadas só de pensar naquela prin­cesa sem vintém, que falava assim do seu noivado com o mais cobi­çado príncipe da Cristandade.

_ O meu pai vai enviar o meu dote! - gritou Catarina.

- Demasiado tarde! Já é tarde de mais para vós! - respondeu a mãe do rei com uma voz estridente, agarrando-se ao braço da amiga.

Catarina, confrontada com uma dúzia de rostos trocistas que riam histericamente, imaginando aquela princesa remendada a ofe­recer os restos da sua baixela e do seu ouro, baixou a cabeça, abriu caminho pelo meio delas e foi-se embora.

Nessa mesma noite, o embaixador da Espanha e um mercador italiano de considerável riqueza e grande discrição, encontravam-se lado a lado num cais sombrio, num recatado canto das docas de Londres, observando o discreto carregamento de mercadorias espa­nholas para um navio que ia partir para Bruges.

Ela não deu autorização para isto? - murmurou o mercador, a face escura iluminada pela trémula luz de uma tocha. - Mas então estamos a roubar o seu dote! O que vai acontecer se os Ingleses, de repente, disserem que o casamento se vai realizar e nós tivermos esvaziado a sala do tesouro da princesa? E se eles descobrem que o dote chegou finalmente a vir da Espanha, mas nunca entrou na sala do tesouro? Irão chamar-nos ladrões! Seremos considerados ladrões!

Eles nunca irão dizer que o casamento se vai realizar — disse simplesmente o embaixador. - Vão é apoderar-se das coisas dela e metê-la na prisão, na altura em que declararem guerra à Espanha. E podem fazê-lo a qualquer momento. Não me atrevo a permitir que o dinheiro do rei Fernando vá parar às mãos dos Ingleses. Eles são nossos inimigos, não são nossos aliados.

- o que irá ela fazer? Nós esvaziamos o seu tesouro. Não ficou no cofre-forte, a não ser caixas vazias. Deixámo-la na miséria.

O embaixador encolheu os ombros:

- Ela já está arruinada de qualquer forma. Se ficar aqui, enquanto a Inglaterra estiver em guerra com a Espanha, será considerada uma refém inimiga e levada para a prisão. Se fugir comigo, não irá ter nenhuma recepção calorosa quando chegar a casa. A mãe já morreu, a família está arruinada e ela também. Não me surpreenderia se ela se atirasse ao Tamisa e se afogasse. A vida dela acabou. Não consigo imaginar o que lhe vai acontecer no futuro. Eu posso salvar o dinheiro dela, se o levardes embora daqui, no vosso barco Mas a ela, não posso salvar.

Sei que tenho de sair da Inglaterra-, Artur não quereria que eu ficasse para enfrentar tal perigo. Tenho pavor da Torre e do cepo que só seria apropriado se eu fosse uma traidora e não uma prince­sa que nunca fez nada de errado, a não ser dizer uma grande men­tira. E mesmo isso foi por uma boa causa. Seria a maior graça de todos os tempos, se eu tivesse de pousar a cabeça, e morrer, no mesmo cepo em que Warwick foi morto. Eu, uma pretendente espanhola ao trono pelo qual ele morreu, por ser um Plantageneta.

Isso não pode acontecer. Reconheço que já não tenho qualquer poder. Não sou doida, a ponto de pensar que ainda posso dar ordens. Já nem sequer rezo. Já nem peço pelo meu destino. Mas posso fugir. E parece-me que é chegado o momento de o jazer.

Fizestes o quê? - perguntou Catarina ao embaixador. O inven­tário tremia na sua mão.

Eu tomei a liberdade de levar o tesouro do vosso pai para fora do país. Não podia arriscar...

- O meu dote. - Ela levantou a voz.

Vossa Graça, ambos sabemos que o tesouro não vai ser necessário para um casamento. O príncipe nunca irá casar convosco. Eles apoderar-se-iam do vosso dote e. mesmo assim, ele nao casaria convosco.     ,

Era o meu trunfo! - gritou ela - Eu ainda tenho esperança-Mesmo que mais ninguém a tenha! Tenho deixado de comer, derxe a minha própria casa, para não ter de empenhar esse tesouro. Quando faço uma promessa, cumpro-a, custe o que custar!

- O rei iria usá-lo para pagar aos soldados, para que lutassem contra o vosso pai. Ele iria lutar contra a Espanha, com o ouro do vosso pai!- - exclamou tristemente Fuensalida. - Eu não podia permitir que tal acontecesse.

- E por isso, haveis-me roubado! Ele debateu-se com as palavras:

Eu levei o vosso tesouro para um lugar seguro, na esperança de ...

Ide-vos embora! - ordenou ela abruptamente.

Princesa?

Traístes-me, como Dona Elvira, como todos os outros me têm traído - disse ela com amargura. - Podeis ir embora. Nunca mais vos voltarei a chamar. Nunca. Podeis ter a certeza de que nunca mais falarei convosco. Mas vou contar ao meu pai o que fizestes. Vou escrever-lhe imediatamente e anunciar-lhe que haveis roubado os valores do meu dote, que sois um ladrão. Nunca mais sereis rece­bido na corte, na Espanha.  

Ele fez uma vénia, tremendo de emoção, e depois voltou-se para sair da sala, demasiado orgulhoso para se defender.

- Não passais de um traidor! - gritou Catarina, no momento em que ele estava a chegar à porta. - Se eu fosse rainha, e tivesse os poderes de uma rainha, mandava-vos enforcar por traição.

O embaixador ficou parado, voltou-se para ela e fez uma nova vénia. Quando voltou a falar, a sua voz parecia de gelo.

- Por favor, Infanta, não vos ridicularizeis, insultando-me desse modo. Estais redondamente enganada. Foi o vosso pai quem me ordenou que devolvesse o vosso dote. Eu estava apenas a obedecer a uma ordem directa. O vosso próprio pai quis que fosse retirado do tesouro tudo que tivesse valor. Foi ele quem decidiu fazer de vós uma pedinte. Ele quis que o dinheiro do dote fosse devolvido, porque já perdeu qualquer esperança no vosso casamento. Quis que o dinheiro ficasse bem guardado e que fosse levado em segurança para fora da Inglaterra. 

- Mas devo dizer-vos - acrescentou com calculada malícia -que ele que não deu ordens para que eu me certificasse de que ficáveis em segurança. Não me deu ordens para que vos levasse em segurança para fora da Inglaterra. Pensou no tesouro, mas não Pensou em vós, apenas deu ordem para garantirmos a segurança dos bens. Nem sequer mencionou o vosso nome. Parece-me que já deve ter perdido definitivamente a esperança, em relação a vós. Mal as palavras lhe saíram da boca. o embaixador desejou nunca as ter pronunciado. O ar de sofrimento no rosto dela foi a pior coisa que vira em toda a sua vida.

- O meu pai mandou-vos devolver o ouro, mas disse-vos que me deixasse ficar para trás? Sem nada?

- Estou seguro de que...

Às cegas, ela virou-lhe as costas e dirigiu-se para a janela de maneira a que ele não pudesse ver o tremendo horror espelhado na

sua face.

- Ide - ela repetiu. - Ide embora.

 

Eu sou a princesa adormecida da história, uma princesa de neve, abandonada num país frio e que já se esqueceu do que é sen­tir o sol. O Inverno tem sido longo, mesmo para a Inglaterra. Ainda agora, que já estamos em Abril, a relva, pela manhã, está tão cober­ta de geada, que, quando me levanto e vejo o gelo nas janelas do meu quarto, a luz que deixam passar é tão branca, que parece que esteve a nevar toda a noite. A água da bacia que está ao lado da minha cama já está congelada quando é meia-noite e não temos dinheiro para manter a lareira acesa pela noite fora. Quando vou lã para fora caminhar sobre a relva gelada, ouço-a estalar ruidosa­mente debaixo dos meus pés e posso sentir-lhe o frio através das finas solas das minhas botas. E, este Verão, eu sei, vai ter toda a suave doçura de um Verão inglês, mas tenho imensas saudades do calor escaldante da Espanha. Quero que o calor, mais uma vez, faça eva­porar de mim todo o desespero. Sinto-me como se tivesse estado enre­gelada durante sete anos e creio que, se nada vier para me aquecer, acabarei simplesmente por morrer assim, derretida pela chuva ou levada pelo vento, como a neblina que se ergue de um rio. Se o rei estiver realmente a morrer, como dizem os rumores da corte, e o príncipe Henrique aceder ao trono e casar com Eleonor, pedirei autorização ao meu pai para tomar o véu e retirar-me-ei para um convento. Não pode ser pior do que viver aqui. Não pode ser mats humilde, mais frio ou mais solitário. O meu pai esqueceu claramen­te o seu amor por mim e desistiu de me ajudar, como se eu tivesse morrido ao mesmo tempo que Artur.

Jurei que nunca desesperaria - as mulheres da minha família dissolvem-se no desespero como melaço em água. Mas este gelo no meu coração não se parece com desespero. É como se a minha determinação inabalável em ser rainha me tivesse transformado pedra. Não penso que esteja a deixar-me avassalar pelos sentimentos, como Joana; só sinto que os coloquei no lugar errado, Transfransformei-me num bloco, num pingente de gelo, na princesa das neves eternas.

Tento rezar a Deus, mas não consigo ouvi-l'O. Receio que Ele se tenha esquecido de mim, como fizeram todos. Perdi toda a noção da Sua presença, perdi o medo da Sua vontade e a alegria na Sua bênção, Não consigo sentir nada por Ele. Já não penso que sou a Sua filha dilecta, escolhida para ser abençoada. Já não me consolo com a ideia de ser a Sua filha preferida, a que foi escolhida para ser posta à prova Ele afastou o Seu rosto de mim. Não sei por que razão, mas se o meu pai terreno me consegue esquecer, se esqueceu, como o fez, que eu era a sua filha mais querida, suponho então que o meu Pai Celeste me pode também esquecer.

Descobri que, no mundo inteiro, só restam agora duas coisas que ainda me interessam; ainda consigo sentir o meu amor por Artur, como um coração ainda quente e a bater, num pequeno pássaro caído de um céu gelado, paralisado pelo frio. E ainda tenho saudades da Espanha, do Palácio de Alhambra, do al-Yanna, o jardim, o lugar secreto, o paraíso.

Só suporto a minha vida porque não lhe posso escapar. Todos os anos tenho esperança de que a minha sorte mude; em cada ano, quando chega o aniversário de Henrique e o nosso noivado não se transforma em casamento, percebo que mais um ano da minha vida fértil chegou e partiu. Todos os anos, em meados do Verão, no dia, em que se vence o prazo para a chegada do meu dote e o meu pai não dá notícias, sinto vergonha. É como se uma doença me ata­casse o ventre. E, doze vezes por ano, durante sete anos, o que per­faz oitenta e quatro vezes, as minhas regras vieram e partiram. Cada vez que sangro, penso que se desperdiçou mais uma oportunidade de eu poder gerar um príncipe para a Inglaterra. Aprendi a afligir-me com a mancha na minha roupa interior, como se tra­tasse de uma criança que eu tivesse perdido. Oitenta e quatro possi­bilidades de eu ter um filho, em todo o fulgor da minha juventude-oitenta e quatro oportunidades perdidas. Começo a perceber o que significa um aborto. Estou a aprender o que é a mágoa de perder uma criança.

Iodos os dias, quando vou rezar, olho para o Cristo crucificado e digo - Seja feita a Vossa vontade". Isto acontece há sete anos, seja, duas mil, quinhentas e cinquenta e seis vezes. É esta, a aritmética da minha dor. Digo - Seja feita a Vossa vontade", mas o que quero dizer é - " Exercei a Vossa vontade contra estes cruéis conselheiros ingleses e o seu desprezível e impiedoso rei inglês, e contra a

velha bruxa, a mãe dele. Concedei-me os meus direitos. Faze mim rainha. Eu lenho de ser rainha, tenho de ter um filho ou transformar-me-ei numa princesa de neve".

 

                                 21 deMarço de 1509

"O rei morreu", escreveu o embaixador Fuensalida, na nota que enviou a Catarina, sabendo que cia nào o receberia pes­soalmente, sabendo que nunca iria perdoar-lhe por ter roubado o dote e por lhe ter chamado pretendente ao trono, por lhe ter dito que o pai a abandonara. "Sei que nào me recebereis, mas tenho de cumprir o meu dever, e avisar-vos de que, no seu leito de morte, o rei disse ao filho que era livre de se casar com quem quisesse. Se desejardes que eu alugue um barco que vos leve de volta a Espanha, disponho de fundos pessoais para o lazer. Pessoalmente, nào vejo o que podereis ganhar, ficando neste país. para além de insultos, igno­mínia e. talvez, perigo."

Morto - disse Catarina.

Como? - perguntou uma das suas aias.

Catarina amarrotou a carta na mão. Actualmente, nào confiava

nada a ninguém.

- Nada - disse -, vou dar um passeio. Maria de Salinas levantou-se e colocou a capa remendada

Catarina nos seus ombros. Era a mesma capa que ela usara, enrola­da em volta de si, no frio cio Inverno, quando cia e Artur partiram de Londres para Ludlovv, sete anos antes

- Quereis que vos acompanhemos:'' - ofereceu a aia, sem entu­siasmo?* dando uma olhadela ao céu cinzento do outro lado janelas.

-Não.

Caminho ao longo do rio. com o chão de cascalho a ferir-me plantas dos pés através do cabedal fino, como se estivesse a ten fugir da própria esperança. Será que há alguma hipótese de que minha sorte mude, de que já possa estar a mudar? O rei que me desejou e que depois me odiou por eu o ter recusado, está morto. Dizia-ç0 que estava doente, mas Deus sabe que ele nunca enfraquecia. Achava que ele iria reinar para sempre. Mas agora está morto. Agora, desapareceu. Será o príncipe a decidir.

São me atrevo a ter esperança. Depois de todos estes anos de jejum, temo que a esperança me embriague, se eu colocar nem que seja apenas uma gota nos lábios. Mas tenho esperança num peque­nino gosto a optimismo, só um pouquinho do sabor, que não faz parte da minha dieta habitual de profundo desespero.

Porque eu conheço o rapaz, Henrique. Juro que o conheço. Tenho-o observado, e avaliado, como um falcoeiro vigia uma ave cansada. Tenho observado, avaliado e comparado o meu julgamen­to com o seu comportamento, vezes sem conta. Sou capaz de ler nele. como se estivesse a estudar o catecismo. Conheço as suas forças e as suas fraquezas, e creio que tenho uma débil, muito débil razão, pura ter esperança.

Henrique é vaidoso, um pecado de um rapaz jovem e não o censuro por isso, mas tem-no em grande quantidade. Por um lado. isso pode fazer com que queira casar comigo, pois vai querer que o vejam a fazer o que é correcto - a honrar a sua promessa, ou até. a salvar-me. Só de pensar em ser salva por Henrique, tenho de inter-romper o meu passeio e de cravar as unhas nas palmas das mãos. por baixo da minha capa. Também posso aprender a suportar mais essa humilhação. Henrique pode querer salvar-me e eu serei obriga­da a ficar-lhe grata. Artur teria morrido de vergonha só de imagi­nar o seu jactancioso irmão mais novo a salvar-me; mas Artur mor­reu precocemente, a minha mãe morreu precocemente e eu terei de suportar tudo sozinha.

Mas a sua vaidade pode, de igual modo, funcionar contra mim. Se enfatizarem a riqueza da princesa Eleanor, a influência da sua família Habsburgo, a glória da ligação com o Sagrado operador Romano - ele pode ser seduzido. A avó irá certamente dizer mal de mim e as palavras dela têm sido a sua lei. Ela aconselhá-lo-á a casar com a princesa Eleanor e ele vai sentir-se atraído como qualquer jovem pateta - pela ideia de uma beldade desconhecida.

Mas mesmo que queira casar com ela, terá sempre a dificuldade de decidir o que fazer comigo. Ficaria mal visto se me mandasse embora, e não pode seguramente ter o descaramento de casar com outra mulher, comigo ainda na corte, à espera. Sei que Henrique seria capaz de fazer qualquer coisa para não parecer ridículo. Se eu conseguir arranjar maneira de permanecer aqui até que tenham de pensar a sério no seu casamento, ficarei, de facto, numa posição forte.

Começo a caminhar mais lentamente, olho em volta para o rio gelado e para os barqueiros que passam, escolhidos nas suas capas de Inverno, protegendo-se do frio. "Deus vos abençoe. Princesa!" diz alto um dos homens, ao reconhecer-me. Eu ergo a mão. em resposta As pessoas deste estranho e mal-humorado país gostaram de mim desde o dia em que se acotovelaram, para me poderem ver, no pequeno porto de Plymouth. Isso também vai contar a meu favor, com um príncipe recém-chegado ao trono e ansioso por afecto.

Henrique não é avarento. Ainda não tem idade suficiente para conhecer o valor do dinheiro e sempre lhe deram tudo o que queria, Não irá discutir por causa do dote ou do meu quinhão, tenho a cer­teza. Preferirá tomar uma atitude magnânima. Vou ter de me certi­ficar de que Fuensalida e o meu pai não propõem o meu regresso a casa, como maneira de abrir caminho para a nova noiva. Já há muito que Fuensalida perdeu a esperança na nossa causa, mas eu agora tenho fé. Terei de resistir ao seu pânico e aos meus receios. Tenho de ficar aqui, para me manter em campo. Não posso retirar--me agora.

Henrique sentiu-se atraído por mim, em tempos, eu sei. Foi Artur quem me falou nisso pela primeira vez e me disse que o rapa­zinho tinha gostado de me levar ao altar, no meu casamento, para além de ter ficado a sonhar que ele é que era o noivo e eu a sua noiva. Tenho continuado a alimentar a sua paixão, e cada vez que o encontro, presto-lhe uma atenção particular. Quando a irmã se ri dele e não lhe dá atenção, eu olho para ele, peço-lhe que cante para mim e fico a observá-lo com admiração, quando está a dançar. Nas raras ocasiões em que consegui ter uns momentos a sós com ele. pedia-lhe para me ler qualquer coisa e discutíamos as nossas ideias acerca de grandes escritores. Procuro certificar-me de que saiba que o acho brilhante. É um rapaz esperto e não é nenhum sacrifício con­versar com ele.

O meu problema é que todos o admiram tanto, que o meu modesto carinho quase não tem peso para ele. Quando a avó. Sua Alteza, Mãe do Rei, declara que ele é o mais belo príncipe da Cristandade, o mais instruído, o mais promissor, que posso eu dizer--lhe que se compare? Como é que alguém pode elogiar um rapaz que já é adulado até à extrema vaidade, que já acredita ser o mais importante príncipe que o mundo conheceu?

Estas são as minhas vantagens. Mas, contra elas. há o facto de ele me ter sido prometido seis anos atites e de que talvez me veja como uma escolha do pai, uma escolha bastante aborrecida para ele.

Que tenha jurado perante um bispo que eu não fui escolhida por ele para sua noiva, e que não quer casar comigo. Pode decidir manter esse juramento, declarar que nunca me quis e negar o roto dos nossos esponsais. Ao imaginar Henrique a anunciar ao mundo que eu lhe fora imposta e que agora se sentia feliz por se ver Urre de mim, hesito novamente. Mas isso, eu também consigo suportar,

Estes anos não têm sido bondosos para comigo. Ele nunca me viu rir com alegria, nunca me viu a sorrir ou descontraída. Só me tem visto vestida pobremente e preocupada com a minha aparência. Nunca fui chamada para dançar á sua frente ou para cantar para ele. Quando a corte vai caçar, o meu cavalo é sempre dos mais fra­cos e eu não consigo acompanhá-los. Tenho sempre um ar cansado e estou sempre ansiosa. Ele é jovem e frívolo e adora o luxo e o requinte do vestuário. A minha imagem na sua mente pode ser a de uma mulher pobre, uma maçada para a sua família, uma viúva pálida, um fantasma que surgiu no meio da festa. Sendo um rapaz habituado a viver bem, pode escusar-se a cumprir o seu dever. É frí­volo e volúvel e mandar-me embora pode ser-lhe indiferente.

Mas eu tenho de ficar. Se me for embora, ele esquece-se de mim num instante. Disso, pelo menos, tenho a certeza. Tenho de ficar.

Fuensalida, chamado ao conselho real, entrou de cabeça bem erguida, tentando não parecer oprimido, seguro de que o haviam chamado para lhe dizer que partisse e levasse a indesejada Infanta consigo. O seu vincado orgulho espanhol, que tanto, e tantas vezes n° passado, os ofendera, acompanhou-o ao atravessar a porta e enquanto se dirigia até à mesa do Conselho Privado. Os novos ministros do rei estavam sentados em volta da mesa e tinham-lhe dado um lugar vago, exactamente no centro. Sentiu-se como um miLido, chamado à presença dos seus tutores, para ouvir uma repri­menda.

- Talvez eu possa começar por explicar a condição da Princesa de Gales - disse ele em tom de desafio. - O dote está guardado em segurança, fora do país, e pode ser entregue em...

- O dote não tem importância - disse um cios conselheiros.

- O dote? - Fuensalida quase perdeu a fala. — Mas, e a baixela da princesa?

- O rei tem a intenção de ser generoso para com a sua noiva.

O embaixador ficou petrificado.

A sua noiva?

O assunto mais importante, neste momento, é o poderio do Rei da França e o perigo das suas ambições em relação à Europa Tem sido assim, desde Agincourt. O nosso rei está muito interessado em restaurar a glória da Inglaterra. E agora temos um rei, tão pode roso como o era Henrique, preparado para fazer da Inglaterra um país novamente grandioso. A segurança da Inglaterra depende de uma aliança tripartida entre a Espanha, a Inglaterra e o Imperador o jovem rei acredita que o seu casamento com a Infanta irá assegurar o apoio do Rei de Aragão a esta grande causa. Presumo que seja este o caso?

Certamente - disse Fuensalida completamente atordoado. -Mas a baixela...

A baixela não importa - repetiu um dos conselheiros.

Pensava que os bens da princesa...

Não têm importância.

Terei de informá-la desta... mudança... no seu destino. Todo o Conselho Privado se pôs em pé.

Fazei-o, por favor.

-      Voltarei aqui quando tiver... quer dizer... quando tiver fala­do com ela.

Não fazia sentido, pensou Fuensalida, dizer-lhes que ela ficara tão zangada com ele por aquilo que considerara uma traição, que não tinha a certeza de que o recebesse. Não valia a pena revelar que, na última vez que a vira, lhe dissera que estava perdida, que a causa dela estava perdida e que todos o sabiam há vários anos.

Caminhou, cambaleando, para fora da sala e quase esbarrou com o jovem príncipe. O jovem, que ainda não fizera dezoito anos. estava radiante.

- Embaixador!

Fuensalida deu um salto para trás e pousou um joelho no chão.

- Vossa Graça! Devo... apresentar as minhas condolências pela

morte do...

- Sim, sim. - ele afastou a compaixão com um gesto. Não era capaz de se apresentar com um ar grave. Todo ele era sorrisos, e estava mais alto que nunca. - Fazei o favor de dizer á princesa que proponho que o nosso casamento se realize o mais depressa possível.

Fuensalida gaguejou, sentindo a boca completamente seca.

- Com certeza,senhor!

- Vou enviar à princesa uma mensagem a interceder por si -disse o jovem com generosidade. Riu-se. - Sei que não estais nas boas graças dela. Sei que recusou receber-vos, mas tenho a certeza de que irá fazê-lo, atendendo ao meu pedido.

- Fico-vos muito agradecido! - disse o embaixador.

O príncipe despediu-o com um gesto da mão. Fuensalida ergueu-se da sua vénia, e dirigiu-se para os aposentos da princesa, percebeu que seria difícil para os Espanhóis adaptarem-se às benes­ses deste novo rei inglês. A sua generosidade, a sua ostentosa gene­rosidade, era esmagadora.

Catarina fez o embaixador esperar, mas recebeu-o ao fim de uma hora. Ele teve de admirar o autodomínio por ela demonstrado e que a fez estar a vigiar o relógio, enquanto o homem que trazia as notícias sobre o seu destino ficava cá fora, à espera para lhas dar.

- Emissário - disse ela serenamente.

Ele fez uma vénia. O debrum do seu vestido estava esfarrapa­do. Conseguia distinguir os pontos pequenos e perfeitos, nos sítios em que ele fora remendado e novamente esgaçado, devido ao uso. Teve uma sensação de grande alívio ao pensar que, independente­mente do que lhe pudesse vir a acontecer depois deste inesperado casamento, ela nunca mais teria de usar um vestido velho.

- Princesa Viúva, fui chamado ao Conselho Privado. Os nossos infortúnios chegaram ao fim. Ele quer casar convosco.

Fuensalida imaginara que ela iria gritar de alegria, que se lan­çaria nos braços dele ou que iria cair de joelhos, agradecendo a Deus. Mas ela não teve nenhuma dessas atitudes, apenas inclinou a cabeça, lentamente. A folha de ouro manchado na sua touca brilhou com a luz.

- Fico feliz por sabê-lo! - foi tudo o que disse.

- Disseram que o dote não é problema! - não conseguia impe­dir que o júbilo transparecesse na sua voz.

Ela voltou a acenar com a cabeça.

- O dote terá de ser pago. Vou providenciar para que o enviem volta de Bruges. Tem estado num local seguro, Vossa Graça.

Tenho-o mantido em segurança, para vós. - a sua voz fraquejou, não conseguia evitá-lo.

Mais uma vez, ela concordou, com um aceno de cabeça.

Ele colocou um joelho no chão.

- Princesa, alegrai-vos! Sereis Rainha da Inglaterra.

Quando se voltou para ele. os seus olhos azuis eram duros como as safiras que há muito vendera.

- Emissário, eu sempre soube que seria Rainha da Inglaterra.

Consegui. Meu Deus. consegui. Ao fim de sete intermináveis anos de espera, depois das dificuldades e da humilhação, consegui Vou para o meu quarto de dormir e ajoelho-me diante do meu ora­tório, fechando os olhos. Mas é com Artur que falo. não com o Senhor

ressuscitado.

"Consegui", digo-lhe. "Henrique vai casar comigo, fiz tudo o que querias que eu fizesse."

Por um momento consigo ver o seu sorriso, vejo-o como o ria tantas vezes quando olhava para ele de lado. à mesa do jantar, e o apanhava a sorrir para alguém que estava no fundo da sala. À minha frente surge novamente o brilho do seu rosto, a escuridão dos seus olhos, a linha definida do seu perfil. E mais do que qual­quer outra coisa, sinto o seu cheiro, a verdadeira essência do meu desejo.

Mesmo ajoelhada diante do crucifixo, dou um pequeno suspiro de saudade. "Artur, meu adorado, meu único amor. Casarei com o teu irmão, mas serei sempre tua." Por momentos, recordei o aroma da sua pele. pela manhã, ainda tão nítido, como o sabor que nos fica, ao provar as primeiras cerejas do ano. Ergo o rosto, e parece que consigo sentir o seu peito contra a minha face quando se incli­na para mim e me abraça com força. Artur", digo eu num mur­múrio. Sou, e serei sua, para todo o sempre.

Catarina teve de vencer uma prova. Quando se dirigia para ° jantar, com um vestido novo feito à pressa, um colar de ouro no péscoço e brincos de pérolas, foi conduzida para uma mesa diferente, colocada na parte principal do salão; fez uma vénia ao seu futuro marido e ele i respondeu-lhe com um largo sorriso, mas, depois voltou-se para a sogra e deparou-se com o olhar de basilisco2 de Lady Margaret Beaufort.

_ Sois afortunada - disse a velha dama, quando os músicos começaram a tocar e as mesas foram retiradas.

- Sou? - respondeu Catarina, de forma deliberadamente seca. _ Casastes com um grande príncipe da Inglaterra e perdeste-lo;

agora, parece que ireis casar com outro.

_ isso não é nada surpreendente - observou Catarina num francês perfeito uma vez que há seis anos que estou comprometida com ele. Seguramente, Vossa Alteza, não creio que tenhais alguma vez duvidado de que este dia chegaria. Não é possível que pensás­seis que um príncipe tão honrado poderia quebrar a sua promessa sagrada.

A velha senhora disfarçou bem a sua derrota.

Eu nunca duvidei das nossas intenções - retorquiu ela. - Nós mantemos a nossa palavra. Mas quando retirastes o vosso dote e o vosso pai renegou os pagamentos, fiquei sem perceber quais eram as vossas intenções. E tive dúvidas acerca da honra da Espanha.

Então foi muito bondoso da vossa parte, não dizer nada ao rei que o pudesse perturbar - disse Catarina muito docemente. -Porque ele acreditou em mim, eu sei. E eu nunca duvidei do vosso desejo de me ter como neta. E, vede! Agora vou ser vossa neta, serei Rainha da Inglaterra, o dote está pago e tudo está como deve ser.

Catarina deixou a velha senhora sem palavras - e poucos tinham capacidade para o fazer.

Bem, em todo o caso, teremos de esperar que sejais fértil -concluiu com azedume.

E porque não seria? A minha mãe teve seis filhos. - Disse Catarina docemente. - Vamos ter esperança de que o meu marido e eu possamos ser abençoados com a fertilidade da Espanha. A minha divisa é a romã - um fruto espanhol, cheio de vicia.

Sua Alteza, a Avó do Rei, desapareceu, deixando Catarina sozinha. Catarina fez uma vénia, quando ela já lhe tinha virado as costas e levantou-se, de cabeça bem erguida. Não fazia diferença o que Lady Margaret pudesse pensar ou dizer, o importante era o que Poderia fazer. Catarina não achava que ela tivesse capacidade para pedir o casamento, e era apenas isso que lhe importava.

 

Basilisco - sáurio fabuloso, cujo olhar tinha o poder de matar. (N. da T.)

 

               Palácio de Greenwich, 11 de Junho de 1509

Estava com receio do casamento, do momento em que iria ter de proferir as palavras dos votos matrimoniais, as mesmas que, anteriormente, dissera a Artur. Mas, afinal, a cerimônia foi tão diferen­te daquele dia glorioso na Catedral de S. Paulo que eu consegui pas­sar por ela com Henrique em frente a mim. e Artur bem escondido na parte mais remota da minha mente. Estava afazer isto por Artur era exactamente o que me ordenara, a única coisa em que insistira - e não podia arriscar-me a pensar nele.

Não havia uma grande multidão numa catedral, não havia embaixadores a assistir, nem fontes que jorrassem vinho. Fomos casados dentro das paredes do Palácio de Greenwich, na igreja dos Frades Observantes, com apenas três testemunhas, e meia dúzia de pessoas presentes.

Não houve nenhuma celebração sumptuosa, música ou dança, não houve, na corte, pessoas embriagadas nem confusão. Ninguém nos foi acompanhar até á cama. Eu temera esse momento - o ritual de permanecerem no quarto até nos deitarmos e de mostrar ao público os lençóis manchados de sangue, na manhã seguinte; mas o príncipe - o rei. agora tenho de lhe chamar assim - é tão tímido como eu e. assim, jantamos calmamente com os membros da corte e retiramo-nos juntos. Eles bebem, brindando à nossa saúde, e dei­xam-nos ir embora. A avó dele está presente, o seu rosto parece uma máscara, os olhos frios. Eu demonstro-lhe toda a cortesia, já não me importo com o que ela pensa. Já não pode fazer nada. Não há sinal de que eu vá viver nos seus aposentos, sob a sua supervisão. Pelo con­trário, ela mudou-se, deixando os aposentos para mim. Estou casada com Henrique, sou Rainha da Inglaterra e ela não é mais do que a avó de um rei.

As minhas damas despem-me em silêncio. Este e também o seu triunfo, a sua salvação da pobreza, da mesma maneira que o é mim. Ninguém quer recordar a noite em Oxford, a noite em Burford, as noites em Ludlow. A sorte delas, bem como a minha

depende do sucesso desta grande falsidade. Se eu lhes pedisse, negariam a própria existência de Artur.   

Além disso, já se passou tudo há tanto tempo, sete longos anos. Quem, a não ser eu, se recorda do que aconteceu num tempo tão longínquo? Quem, a não ser eu, alguma vez conheceu a felicidade de esperar por Artur, com a luz da lareira a atravessar as coloridas cortinas da cama e a luz das velas a iluminar os nossos membros entrelaçados? Os sussurros ensoñados, nas primeiras horas da manhã: "Conta-me uma história!"

Vestem-me uma das minhas doze requintadas camisas de dormir novas, e retiram-se em silêncio. Eu espero por Henrique, como, há muito tempo, costumava esperar por Artur. A única diferença é a total ausência de alegria.

Os homens de armas e os nobres do quarto de dormir trouxe­ram o jovem rei até à porta do quarto da rainha, bateram e fizeram--no entrar nos aposentos dela. Catarina estava de camisa de noite, sentada junto da lareira, com um xaile ricamente bordado pelos ombros. A divisão estava quente, acolhedora. Ela ergueu-se quando ele entrou, e fez uma vénia.

Henrique levantou-a, com um toque no cotovelo. Ela reparou imediatamente que ele estava corado de embaraço e sentiu a mão dele a tremer.

Quereis beber uma taça de cerveja nupcial? - convidou ela, enquanto tentava não recordar Artur a trazer-lhe um copo, dizendo que era para lhe dar coragem.

Sim, quero - disse ele. A sua voz, ainda tão jovem, era inse­gura no seu registro. Ela virou-lhe as costas, para verter a cerveja no copo, de modo a que ele não a visse sorrir.

Ergueram os copos e brindaram um ao outro.

- Espero que este dia não vos tenha parecido demasiado calmo Para o vosso gosto - disse ele inseguro. - Pensei que, com a morte tão recente do meu pai, não deveríamos ter um casamento demasiado alegre. Eu não quis perturbar Sua Alteza, a mãe dele.

Ela concordou com a cabeça, mas não disse nada.

-Espero que não estejais desiludida - continuou ele. - O vosso primeiro casamento foi tão grandioso.

Catarina sorriu.

- Mal me recordo dele, já foi há tanto tempo. Ele pareceu contente com a resposta, reparou Catarina. - Foi, não foi? Nos éramos todos pouco mais do que crianças. - Sim - disse ela -, demasiado jovens para nos casarmos.

Ele mexeu-se, na cadeira. Ela sabia que os cortesãos que preferiam o ouro dos Habsburgos deviam ter falado contra ela. Os inimigos da Espanha deviam ter dito coisas contra si. A própria avó avisara-o contra este casamento. Este jovem transparente ainda se sentia ansioso relativamente à decisão que tomara, por mais ousado que se quisesse mostrar.

Não tão jovens assim, vós já tínheis quinze - recordou ele Uma jovem mulher.

E Artur tinha a mesma idade - disse ela. atrevendo-se a dizer o seu nome. - Mas ele nunca foi muito forte, penso eu. Ele não con­seguia ser um marido para mim.

Henrique emudeceu, e ela receou ter ido longe de mais. Mas depois viu o lampejo de esperança no rosto dele.

É então, de facto, verdade que o casamento nunca foi con­sumado? - perguntou ele, corando de embaraço. - Lamento... eu não tinha a certeza... sei que dizem isso... mas talvez...

Nunca - disse ela calmamente. - Ele tentou, uma ou duas vezes, mas deveis lembrar-vos que ele não era forte. Até se pode ter gabado de o ter feito, mas, pobre Artur, isso não significava nada.

"Farei isto por ti", digo eu corajosamente ao meu amado em pensamento. "Tu querias esta mentira. Eu levá-la-ei até ao fim. Se isto tem de ser feito, sê-lo-á, completamente. Terá de ser feito com

coragem, convicção e nunca poderei voltar atrás."

Em voz alta, Catarina disse:

- Casamos em Novembro, estais recordado? Em Dezembro, passamos a maior parte do tempo em viagem, para Ludlow, e viajamos separados. Ele já não estava bem a seguir ao Natal e. depois.

morreu, em Abril. Tive muita pena dele.

- Ele nunca foi vosso amante? - perguntou Henrique, ansioso

por ter a certeza.

- Como poderia ter sido? - ela sacudiu ligeiramente os ombros com ar suplicante, o que fez com que a sua camisa de noite escorregasse

deixando descoberta uma pequena parte do seu ombro macio.Viu os olhos dele serem atraídos para a pele exposta e repa­rou que engolia em seco. - Ele não era forte. A vossa própria mãe dera ela opinião que ele deveria ter voltado sozinho para Ludlow, durante o primeiro ano. Quem me dera que tivesse sido assim. A mim. não me teria feito qualquer diferença e podia ser que se tivesse salvado. Foi como um estranho para mim, todo o tempo que durou o nosso casamento. Vivíamos como crianças, num infantário real- Quase nem éramos companheiros.

O rei suspirou, como se o tivessem libertado de um fardo, e o rosto que voltou para ela, era alegre.

Eu não podia deixar de sentir medo - disse ele. - A minha avó dizia...

Ah, as mulheres velhas andam sempre a coseuvilhar pelos cantos - disse ela, sorrindo, ignorando os seus olhos muito abertos, perante aquela falta de respeito casual. - Graças a Deus que somos jovens e não temos de nos preocupar com isso.

Então, eram apenas mexericos - disse ele, adoptando o tom despreocupado dela. - Coscuvilhice de mulheres velhas.

- Nós não temos de lhe dar ouvidos - disse ela, desafiando-o a continuar. - Vós sois o rei, eu sou rainha e tomaremos as nossas decisões. Não precisamos dos seus conselhos. Porquê? - Foram os conselhos dela que nos mantiveram separados, quando poderíamos ter estado juntos.

Ele nunca se apercebera daquilo.

-      De facto - disse, enquanto o seu rosto endurecia. - Ambos fomos privados disso. E ela sempre insinuou que vós éreis a mulher de Artur, no casamento e na cama, e que eu deveria procurar outra Pessoa.

. - Eu sou virgem, tal como era quando vim para a Inglaterra -afirmou ela arrojadamente. - Podeis perguntá-lo à minha ama ou a qualquer uma das minhas aias. Todas sabiam, e a minha mãe tam­bém. Sou uma virgem que nunca foi tocada.

Ele deu um pequeno suspiro como se tivesse libertado de uma preocupação.

É bondade vossa dizer-mo - disse. - É preferível que tais assun­tos fiquem claros, para que saibamos, para que ambos saibamos. Para que ninguém tenha dúvidas. Seria terrível cometer um pecado.

Somos jovens - disse ela. - Podemos falar destas questões entre nós. Podemos ser honestos e destemidos um com o outro. Não temos de temer rumores ou calúnias. Não precisamos de recear o pecado.

Também vai ser a minha primeira vez - admitiu ele envergonhado. - Espero que não fiqueis com má impressão a meu peito.

É claro que não - disse ela com ternura. - Quando é que vos permitiram sair daqui? A vossa avó e o vosso pai mantiveram-vos aprisionado como um falcão precioso. Estou feliz por irmos estar juntos, por ser a primeira vez, para ambos, ao mesmo tempo.

Henrique levantou-se e estendeu a mão:

- Então, vamos ter de aprender juntos - disse. - Teremos de ser pacientes um com o outro. Eu não vos quero magoar, Catarina

Deveis dizer-me, se alguma coisa vos magoar.

Sem dificuldade, aninhou-se nos braços dele e sentiu todo aquele corpo a tornar-se hino. com o seu toque. Com graciosidade deu um passo para trás. como se movida por modéstia, mas mante­ve a mão pousada no ombro dele. para o encorajar a avançar, até ter a cama atrás de si. Nessa altura, deixou-se cair para trás até ficar deitada sobre as almofadas, sorrindo-lhe, vendo os seus olhos azuis escurecer de desejo.

- Eu desejei-vos desde que vos vi pela primeira vez - disse ele, ofegante. Acariciou-lhe o cabelo, o pescoço e o ombro nu, com movi­mentos apressados, querendo tudo o que havia nela. de uma vez.

Ela sorriu.

E eu, a vós.

A sério?

Ela assentiu, com a cabeça.

- Sonhei que era eu quem casava convosco, naquele dia. - Ele estava corado, ofegante.

Lentamente, Catarina soltou as fitas da camisa de dormir, dei­xando o algodão acetinado deslizar para os lados, cie maneira a que ele lhe pudesse ver o pescoço, os seios firmes e redondos, a cintu­ra, a sombra negra entre as suas pernas.

Henrique soltou um pequeno gemido de desejo ao vê-la.

- Já devia ter acontecido há tanto tempo! - sussurrou ela -Nunca tive outro homem. E agora, finalmente, estamos casados.

- Ah, Deus, pois estamos - disse ele veementemente. Estamos casados, por fim.

Mergulhou o rosto no calor do pescoço dela. que podia senttf--lhe a respiração, rápida e urgente, no cabelo, e o corpo a exerce pressão contra o seu. Catarina sentiu-se reagir. Recordou o toque u Artur e mordeu ligeiramente a ponta da língua, para não esquece que nunca deveria dizer o nome dele em voz alta. Deixou que Henrique se apertasse contra ela, a forçasse e, de repente, ele estava dentro dela. Soltou um pequeno grito de dor simulada, mas percebeu imediatamente, com um baque de terror, que não fora suficiente Não gritara o suficiente, o seu corpo não lhe resistira o suficiente Fora demasiado calorosa, demasiado acolhedora. Fora fácil mais. Não tinha grandes conhecimentos, este rapaz inexperiente, mas percebeu que não tinha sido suficientemente difícil.

Mesmo dominado pelo desejo, quis confirmar. Sabia que alguma coisa não correra como deveria. Olhou para baixo, para ela:

- Sois virgem - disse ele pouco seguro. - Espero não vos estar a molestar muito.

Mas percebeu que ela não o era. No seu íntimo, compreendeu que ela não era virgem. Não sabia grande coisa, este rapaz super­protegido, mas isso, sabia. Em algum ponto da sua mente, com­preendeu que ela estava a mentir.

Ela olhou para cima, para ele:

- Eu era virgem até este momento - disse, com um sorriso con­trolado -. mas a vossa força conseguiu vencer-me. Sois tão forte. Deslumbrastes-me.

O rosto dele continuava perturbado, mas o desejo não lhe per­mitia esperar. Começou a mover-se, novamente, não conseguia resistir ao prazer.

Fui dominada por vós - encorajou-o ela -, sois o meu mari­do, haveis tomado aquilo que vos pertence. - Reparou que ele começava a esquecer a desconfiança, à medida que o seu desejo ia aumentando.

Vós haveis conseguido aquilo que Artur não foi capaz de fazer - murmurou ela.

Foram as palavras certas para lhe despoletar o desejo. O jovem soltou um gemido de prazer e caiu sobre Catarina, a sua semente jorrando dentro dela, o acto inegavelmente consumado.

Não me volta a fazer a mesma pergunta. Quer tanto acreditar em mim. que não me volta a perguntar nada, com receio de obter uma resposta que não lhe agrade. Nisto, é cobarde. Está habituado a receber as respostas que quer ouvir e prefere uma mentira agradável a uma verdade desagradável.

Em parte, é o seu desejo de me possuir, e quer-me como eu era quando me viu pela primeira vez:, uma virgem vestida de branco.

Por outro lado. quer provar que todos os que o avisaram contra a armadilha que eu lhe preparara estavam errados. Mas acima de tudo, odiava e invejava o meu adorado Artur e só me quer porque eu fui a noiva do irmão - que Deus lhe perdoe por ser um segundo filho, rancoroso e invejoso. Quer que eu lhe diga que é capaz de Jazer algo que Artur não conseguia, que pode ler qualquer coisa que o irmão não conseguiu. Apesar de o meu adorado mando estar -frio e sepultado sob a nave da Catedral de Worcester, a criança que agora usa a sua coroa, continua a querer triunfar sobre ele. A maior mentira de todas não está em dizer a Henrique que sou virgem, mas em convencê-lo de que é um homem melhor, muito mais homem do que o irmão. E também fui capaz de o fazer.

De madrugada, enquanto ainda dorme, pego no meu canivete e faço um corte na planta do pé, num local onde ele não possa repa­rar na cicatriz, e deixo pingar o sangue no lençol em que nos tínhamos deitado, o suficiente para passar como prova numa inspecção de Sua Alteza, a Avó do Rei. ou qualquer outro inimigo mal--humorado e desconfiado, que ainda procure criar-me problemas. Não haverá exposição dos lençóis de um rei e da sua noiva, mas sei que todos irão fazer perguntas e será melhor que as minhas aias pos­sam dizer que todas viram a mancha de sangue, e que eu me quei­xo de dores.

De manhã, faço tudo o que se esperaria de uma noiva. Digo que estou fatigada e fico a descansar toda a manhã. Sorrio, olhando o chão, como se tivesse descoberto um doce segredo. Caminho com alguma dificuldade e recuso-me a sair a cavalo para caçar, durante uma semana. Faço tudo, para dar a ideia de que sou uma jovem mulher que perdeu a virgindade. Consigo convencer toda a gente. Mas, também, ninguém quer acreditar numa versão diferente.

O corte no pé fica a doer-me durante muito, muito tempo e incomoda-me. cada vez que tenho de calçar os sapatos novos, aque­les com grandes fivelas de diamantes. É como uma lembrança da mentira que eu prometi a Artur que contaria. A grande mentira, com a qual terei de viver durante o resto da minha vida. Não me aflige a pequena pontada de dor que sinto, quando enfio o pé direi to dentro do sapato. Isso não é nada, comparado com a dor que sinto no mais profundo do meu ser, quando sorrio para o rapaz que e rei, sem o merecer, e lhe chamo "marido", com o meu novo tom de voz adulador.

Henrique acordou durante a noite e a sua imobilidade silêncio osa despertou Catarina. - Meu senhor? - perguntou.

_ Continuai a dormir - disse ele - ainda não é de dia.

Ela saiu da cama e acendeu uma pequena vela nas cinzas avermelhadas da lareira, e em seguida acendeu uma candeia. Deixou que ele a visse, com a camisa de noite meia aberta, as suas ancas macias apenas parcialmente tapadas pela roupa.

Gostaríeis de beber um copo de cerveja? Ou de vinho?

Um copo de vinho - disse ele - e um para vós, também. Ela colocou a candeia no suporte de prata e voltou para a

cama, para junto dele, com os copos de vinho na mão. Não conseguia decifrar o que lhe ia na mente, mas controlou o seu acesso de irritação, pois, fosse o que fosse, ela tinha de se manter acordada, perguntar-lhe o que estava a incomodá-lo, tinha de lhe demonstrar a sua preocupação. Com Artur, num segundo, seria capaz de des­cobrir o que queria, no que estava a pensar. Mas qualquer coisa era suficiente para distrair Henrique, uma canção, um sonho, um papel lançado pela multidão. Qualquer coisa podia perturbá-lo. Fora edu­cado e habituado a partilhar os seus pensamentos, habituado a ser guiado. Necessitava de ter pessoas à sua volta, amigos c admiradores, tutores, mentores, os pais. Gostava de ter sempre com quem conversar. Catarina tinha de fazer o papel de todos eles.

Tenho estado a pensar na guerra - disse ele.

Ah.

- O rei Luís pensa que nos pode evitar, mas nós vamos obrigá-lo a entrar em guerra. Dizem-me que quer a paz, mas não acei­tarei isso. Sou o Rei da Inglaterra, o vencedor de Agincourt. Vai per­ceber que eu sou uma força com que terá de se confrontar.

Ela concordou. O pai fora bem claro, ao dizer-lhe que Henrique devia ser encorajado nas suas ambições de fazer guerra contra o Rei da França. Escrevera-lhe, em termos muito carinhosos, chamando-lhe a sua filha mais querida, e aconselhou que, qualquer guerra entre a Inglaterra e a França, fosse iniciada, não na costa norte - o local onde os Ingleses geralmente começavam a invasão -, mas na fronteira, entre a França e a Espanha. Sugeria que os Ingleses reconquistassem a região da Aquitânia, que ficaria muito feliz por se libertar da França e que pegaria nas armas, em apoio dos invasores. A Espanha daria todo o seu apoio, seria uma campanha fácil e gloriosa.

- De manhã vou mandar fazer uma nova cota de armas - disse Henrique. - Não um fato para torneios, quero uma armadura pesada, para o campo de batalha.

Ela esteve quase a dizer-lhe que não deveria ir para a guerra com tanta coisa para fazer no país. No momento em que o exército inglês partisse para a Franca, os Escoceses, mesmo tendo uma inglesa no trono, iam certamente aproveitar a oportunidade para invadir o Norte. Todo o sistema de impostos estava crivado de ganância e injustiça e tinha de ser reformado, havia novos planos, para escolas, para um conselho real, para fortalezas e uma armada de navios que defendesse a costa. Estes eram os planos de Artur para a Inglaterra, deviam ter prioridade em relação à vontade de Henrique de entrar em guerra.

- Nomearei a minha avó regente, quando for para a guerra -disse Henrique. - Ela sabe o que deve ser feito.

Catarina hesitou, pondo em ordem os seus pensamentos.

- Sim, de facto - disse -, mas a pobre senhora já está tão velha' Já fez. tanto, talvez seja um fardo demasiado pesado para ela.

Ele sorriu.

Não para ela! Sempre controlou tudo. É ela que trata das con­tas reais, sabe o que há a fazer. Penso que nada será demasiado para ela, desde que nos mantenha a nós, os Tudor, no poder.

Sim - disse Catarina, abordando o ressentimento dele -, e reparai como ela vos controlou tão bem! Nunca vos deixou sair de perto dela, nem por um minuto. Na verdade, não' me parece que vos deixasse sair, mesmo agora, se o pudesse evitar. Quando éreis um rapazinho, nunca vos deixava entrar em lutas, não vos deixava jogar, nunca permitiu que tivésseis amigos. Dedicou-se â vossa segurança e bem-estar. Não vos poderia ter mais preso, se fôsseis uma prince­sa - riu-se. - Parece-me que ela pensou que éreis uma princesa, e não um rapaz robusto. Não será já altura de descansar um pouco? E de vós terdes alguma liberdade?

O olhar dele. vivo e sombrio, disse-lhe que estava a ganhar esta luta.

- Além do mais - continuou, com um sorriso -, se lhe for dado algum poder sobre o país, vai, de certeza, dizer ao conselho que vos tereis de voltar para casa. porque a guerra é demasiado perigosa para vós.

- Dificilmente poderia impedir-me de ir para a guerra - disse

ele. endireitando-se. - Eu sou o Rei! Catarina franziu as sobrancelhas.

- Fazei o que quiserdes, meu amor, mas penso que ela vos cortar os fundos, se a guerra começar a correr mal. Se ela e o Conselho Privado não confiarem da vossa maneira de conduzir guerra, não precisam de fazer nada a não ser ficar de braços cruzados não recolhendo os impostos necessários para o vosso exército. podereis vir a ser traído pelo vosso país - traído pelo amor dela, eu dizer - enquanto estiverdes a ser atacado no estrangeiro. podereis vir a descobrir que as pessoas do costume vos impedem de fizer o que quereis. Como sempre tentam fazer. Ele estava consternado.

- Ela nunca faria nada contra a minha vontade.

- Deliberadamente, não — Catarina concordou. - Ela iria sem­pre pensar que estava a defender os vossos interesses. Só que...

- O quê?

- Ela irá sempre pensar que sabe muito mais do que vós. Para ela. sereis sempre um rapazinho.

Reparou que ele corava, incomodado.

- Para ela, sereis sempre um segundo filho, o que veio depois de Artur. Não o verdadeiro herdeiro. O que não tem capacidades para ocupar o trono. As pessoas de idade não conseguem mudar de ideias, nem ver que tudo está diferente, agora. E realmente, como é que ela pode confiar nas vossa decisões, se passou a vida toda a controlar-vos? Para ela. sereis sempre o príncipe mais novo, o bebé.

Não me deixarei controlar por uma velha mulher - jurou ele.

O vosso tempo chegou - concordou Catarina.

- Sabeis o que farei? - perguntou. - Far-vos-ei regente, quando for para a guerra! Ireis governar o país, enquanto eu estiver fora. Comandareis as nossas forças dentro do país. Não confiaria em mais ninguém, governaremos juntos. E vós tereis de me apoiar, de acor­do com as minhas ordens. Credes que sereis capaz de o fazer?

Ela sorriu para ele.

Sei que sou. Não falharei - disse. - Nasci para governar a Inglaterra. Manterei o país em segurança enquanto estiverdes ausente.

É do que eu preciso - disse Henrique. - E a vossa mãe foi uma grande comandante, não foi? Apoiava o marido. Sempre ouvi dizer que ele comandava as tropas, mas ela é que angariava o dinheiro e formava o exército.

E verdade - respondeu, um pouco surpreendida pelo inte-"esse dele -, ela estava sempre lá. por trás das linhas, planeando as campanhas, certificando-se de que ele tinha as forças de que necessitava. angariando fundos e soldados; por vezes esteve mesmo na frente das batalhas. Tinha a sua própria armadura e cavalgava juntamente com o exército.

Falai-me dela - pediu ele, recostando-se nas almofadas -, falai- me da Espanha, de como era, quando éreis uma rapariguinha nos palácios da Espanha. Como era viver em. como é que se xmava, Alhambra?

Era demasiado parecido com o que acontecera antes, como uma sombra se tivesse espalhado sobre o seu coração.

- Ah, quase já não me lembro de tudo aquilo - disse ela s rindo para o seu rosto ansioso. - Não há nada para contar.

- Vá lá, contai-me uma história acerca desse lugar.

- Não, não vos posso dizer nada. Sabeis bem que há muito tempo que sou uma princesa inglesa. Não vos poderia contar abso­lutamente nada sobre esse assunto.

De manhã Henrique estava cheio de energia, entusiasmado com a ideia de mandar fazer a sua cota de armas, à procura de uma razão para declarar guerra imediatamente. Acordou-a com beijos e deitou-se em cima dela, como uma criança ansiosa, enquanto ela acordava. Ela apertou-o contra si, deixou-o ter o seu prazer rápido e egoísta e sorriu quando ele se levantou e saiu da cama num salto, batendo com força na porta, chamando os seus guardas aos gritos, para que o levassem para os seus aposentos.

Hoje, quero ir andar a cavalo antes da missa - disse. -um dia tão bonito. Quereis vir comigo?

Encontrar-me-ei convosco na missa - prometeu Catarina. - E depois podeis tomar o pequeno-almoço comigo, se quiserdes.

Tomaremos o pequeno-almoço no salão - decidiu ele. - E depois temos de ir caçar. O tempo está demasiado agradável para não levar os cães a passear. Vireis comigo, não é verdade?

Irei - prometeu ela, sorrindo pela sua exuberância. - E podía­mos fazer um piquenique.

Sois a melhor das esposas! - exclamou ele. - Um piquenique seria maravilhoso. Podeis dizer-lhes que tragam alguns músicos, para podermos dançar? E trazei as damas, trazei todas as damas, e dançaremos todos.

Ela conseguiu alcançá-lo antes de ele sair pela porta.

- Henrique, posso mandar chamar Lady Margaret Pole? Vós gostais dela, não é verdade? Posso tê-la como minha dama de com­panhia?

Ele entrou novamente no quarto, abraçou-a e beijou-a apaixonadamente.

_ Podeis escolher quem quiserdes para vos servir. Sempre, quem vós quiserdes. Mandai chamá-la imediatamente, sei que ela é verdadeira senhora. E escolhei também Lady Isabel Bolena, ela está de volta à corte, depois do seu afastamento. Teve outra rapariga.

Que nome lhe vai dar? - perguntou Catarina, divertida.

Maria, creio, ou Ana. Não me recordo. Agora, quanto à nossa dança...

Ela sorriu para ele.

_ Vou arranjar um grupo de músicos e bailarinos e, se conse­guir descobrir zéfiros com voz suave, também os levarei.

Riu-se da felicidade patente no rosto dele. Já conseguia ouvir os passos da guarda real a chegar à porta.

- Encontramo-nos na Missa.

Casei com ele por causa de Artur, pela minha mãe, por Deus, pela nossa causa e, por mim mesma. Mas, pouco tempo depois, comecei a amado. É impossível não amar um rapaz tão bondoso, enérgico e bem-humorado como Henrique, nestes primeiros anos do seu reinado. Nunca conheceu nada que não fosse admiração e bondade, não espera menos do que isso. Acorda alegre, todas as manhãs, cheio de confiança e expectativa num dia feliz. E, uma vez que é o rei, e que está rodeado de cortesãos e bajuladores, tem sempre um dia feliz. Quando o trabalho o preocupa ou algumas pessoas se aproximam dele com queixas desagradáveis, olha em volta, à procura de alguém que o liberte daquele aborrecimento. Nas primeiras semanas, era a avó que governava; aos poucos, fui-ine assegurando de que era a mim a quem confiava o fardo de governar o Reino.

O Conselho Privado aprendeu a vir ter comigo para averiguar 0 que o rei poderia pensar. É-lhes mais fácil apresentar uma carta °u uma sugestão, se eu já o tiver preparado antecipadamente. Em Pouco tempo, os cortesãos percebem que qualquer coisa que o leve a aJastar-se de mim, qualquer atitude que faça o país afastar-se da Espanha, me desagradará, e que Henrique não gosta e me ver franzir o sobrolho. Homens que procuram uma situação elhor, defensores pedindo ajuda, suplicantes que pedem justiça, já c°s compreenderam que o caminho mais rápido para obterem uma solução justa e expedita, é visitar, em primeiro lugar ()S sentas da rainha, e esperar, depois, que eu os apresente.

Nunca tenho de pedir a ninguém que se dirigia a ele com tact Todos sabem que qualquer pedido lhe deve chegar às mãos com fosse original, feito pela primeira vez. Sabem que a auto-estima num jovem é algo muito recente, muito vivo. que nunca deve ser ensombrado. Têm um bom exemplo na pessoa da avo dele que está co gentileza, mas implacavelmente, a ver-se posta de lado, porque não se coíbe de o aconselhar diante de toda a gente, por tomar decisões sem o consultar, porque uma vez - insensatamente - o repreendeu Henrique é um rei tão despreocupado que seria capaz de entregaras chaves do seu reino a qualquer pessoa em quem confiasse. O meu estratagema é fazer com que confie só em mim.

Tenho a preocupação de nunca o culpar por não ser Artur. Durante os sete anos da minha viuvez, ensinei a mim mesma que a vontade de Deus se cumpriu, quando levou Artur para longe de mim e, não faz sentido culpar os que sobreviveram, só porque o melhor príncipe morreu. Artur morreu, levando consigo a minha promessa, e posso considerar-me. de Jacto, muito afortunada, poro casamento com o seu irmão não ser uma promessa que eu tenha de suportar, mas uma promessa que me faz feliz.

Gosto de ser rainha. Gosto de possuir coisas bonitas, jóias valio­sas, um cão de regaço e um grupo de aias cuja companhia é um pra­zer. Agrada-me poder pagar a Maria de Salinas a longa dívida que tinha para com ela, vê-la encomendar uma dúzia de vestidos novos e apaixonar-se. Tico feliz por poder escrever a Lady Margaret Pole, chamando-a para a minha corte, por cair nos seus braços, choran­do de alegria por voltar a vê-la, com a promessa que me faz, de ficar sempre a meu lado. Agrada-me ter a certeza de que a sua discrição é absoluta; nunca diz uma única palavra acerca de Artur. Mas fico feliz por ela saber quanto me custou aceitar este casamento, e a razão porque o fiz. Gosto que me veja construir a Inglaterra de Artur, mesmo que seja Henrique quem está no trono.

O primeiro mês do nosso casamento não é. para Henrique, mais do que uma sequência de festas, celebrações, caçadas, passeios, via­gens de lazer, passeios de barco, espectáculos de teatro e torneios. Parece um rapazinho que esteve fechado numa sala de aulas dema­siado tempo e a quem foram subitamente concedidas férias de Verão. O mundo, para ele, está tão cheio de divertimento, que a minha experiência lhe dá o maior prazer. Adora caçar- nunca o tinham autorizado a ter um cavalo veloz. Adora [yarticipar em torneios, mas o pai e a avó nem sequer permitiam que o seu nome aparecesse nas listas. Aprecia a companhia de homens experientes que. cuidadosamente, adaptam as suas conversas e os seus divertimentos ao gosto dele. Adora a companhia das mulheres, mas - graças a Deus - a devoção infantil que tem por mim faz com que me seja fiel. Gosta de conversar com mulheres bonitas, jogar cartas com elas, de as ver dançar e de as recompensar com valiosos prémios por coisas insignificantes - mas olha sempre para mim, para se certificar de que aprovo a sua atitude. Está sempre a meu lado. olhando-me, do alto da sua grande estatura física, com um ar de tão grande devoção, que me torna impossível deixar de ser carinhosa com ele, por tudo aquilo que me proporciona; dentro de pouco tempo acabarei certa­mente por amá-lo, pela pessoa que é.

Rodeou-se de uma corte de homens e mulheres jovens, que são um contraste tão grande com a corte do pai que, só com a sua presença, já demonstram quanto tudo mudou. A corte do pai estava repleta de homens velhos, homens que tinham passado juntos por tempos difíceis, alguns deles, endurecidos pelas batalhas; todos eles, pelo menos uma vez, haviam perdido e reconquistado as suas terras. A corte de Henrique está recheada de homens que nunca conhece­ram dificuldades, que nunca foram postos à prova.

Fiz questão de nunca dizer fosse o que fosse para o criticar, ou ao grupo de jovens irreverentes que se juntam ã sua volta. Designam-se a si próprios como os "Minions", os Favoritos, e incentivam-se mutuamente com apostas loucas e disparates, durante todo o dia e - segundo as más-línguas - também metade da noite. Henrique foi mantido tão sossegado e isolado durante toda a sua infância que me parece natural que queira agora sentir-se livre e que aprecie estes jovens que se vangloriam de grandes bebedeiras e brigas, de perseguições e de ataques, das raparigas que seduzem e dos pais delas, que os perseguem com bastões. O seu melhor amigo é William Compton; andam os dois por aí, durante metade do dia, com o braço por cima do ombro um do outro, como se estivessem a preparar-se para dançar ou para entrar numa luta. Não há malícia em William, é apenas tão tonto como o resto da corte. Adora Henrique, como um bom camarada e finge uma tão grande adoração por mim que nos faz rir a todos. Metade dos Favoritos finge estar apaixonada por mim e eu deixo-os dedicarem-me versos e cantarem-me canções, mas tomo as providências necessárias para que Henrique saiba sempre que as suas canções e os seus poemas são os melhores.

Os membros mais idosos da corte desaprovam e têm jeito críti­cas severas aos amigos turbulentos do rei, mas eu não digo nada.

Quando os conselheiros vêm ter comigo com queixas, digo-lhe o rei é um jovem e que tudo isto é próprio da sua juventude. Não há nada de perigoso em nenhum dos seus companheiros; quando bebem, são jovens adoráveis.Um ou dois, como o Duque de Buckingham, que há já muito tempo me recebera, ou como o jovem Thomas Howard. são jovens óptimos, que seriam apreciados qualquer corte. A minha mãe teria gostado deles. Mas quando os rapazes estão bem bebidos, tornam-se barulhentos e brigões, facilmente excitáveis, como todos os jovens; quando estão sóbrios só dizem patetices. Olho para eles com os olhos da minha mãe e percebo que estes são os rapazes que virão a ser os oficiais do nosso exército. Quando entrarmos em guerra, a sua coragem e energia serão exactamente as qualidades de que iremos necessitar. Os jovens mais ruidosos e os que provocam mais confusão em tempo de paz são exactamente os chefes de que vou precisar em tempo de guerra.

Depois de ter enterrado um marido ou dois, a nora, um neio por fim, o seu querido príncipe. Lady Margaret. a avó do rei, estava um pouco cansada de lutar pelo seu lugar no mundo e Catarina tinha muito cuidado para não provocar a sua velha inimiga e criar uma guerra aberta. Cracas à discrição de Catarina, a rivalidade entre as duas mulheres não era um espectáculo publico -- qualquer pes­soa que esperasse ver Lady Margaret tratar mal a mulher do seu neto, como havia anteriormente insultado a mulher do seu filho, ficaria desapontada. Catarina esquivava-se aos conflitos.

Uma vez, Lady Margaret tentou reclamar o seu direito de pre­cedência, querendo chegar ao salão de jantar alguns passos a fren­te de Catarina, mas esta, uma Princesa por Sangue. Infanta da Espanha e, agora, Rainha da Inglaterra, recuou imediatamente e deixou-a passar primeiro, com um ar tão generoso que toda a gente reparou no belo gesto da nova rainha. Catarina fez com que mulher mais velha seguisse à sua frente, de um modo que contrariava todas as regras de precedência e que, de certa forma, enfatizava a tosca correria de Lady Margaret para conseguir chegar à mesa principal, antes da neta. Também viram Catarina recuar subtiltumente, e todos comentaram a graça e a bondade da mulher jovem.

A morte do filho de Lady Margaret, o rei Henrique, abalara duramente a velha senhora. Não era tanto por ter perdido um filho adorado, mas mais por ter perdido uma causa. Sem ele, não conseguia ter forças para obrigar o Conselho Privado a informá-la dos assuntos, antes de se dirigir aos aposentos do rei. A despreocupação com que Henrique perdoara aos devedores do pai e libertara os seus prisio­neiros fora. para ela, um insulto à memória de Henrique e à sua própria governação. A súbita mudança na corte, agora cheia de juventude liberdade e divertimento, fazia com que se sentisse velha e mal-humorada. Ela, que em tempos fora o comandante da corte e a dita­dora das suas regras, fora posta de lado. A sua opinião já não tinha qualquer peso. O grande livro, pelo qual todos os acontecimentos da corte deveriam ser geridos, tinha sido escrito por ela; mas, de repen­te, surgiam festividades que não estavam previstas no livro, inventa­vam-se passatempos e actividades, sem que alguém a consultasse.

Culpava Catarina por todas as mudanças que lhe desagradavam e Catarina sorria docemente, continuando a incentivar o jovem rei a ir à caca. a dançar e a deitar-se tarde. A velha senhora resmungava com as suas aias. dizendo que a rainha era irreflectida e frívola e que acabaria por levar o príncipe á desgraça. De maneira insultuo­sa, chegou mesmo a afirmar que não se admirava que Artur tivesse morrido, se era deste modo que a rapariga espanhola considerava que uma casa real devia ser conduzida.

Lady Margaret Pole discutia com a sua antiga amiga com o maior tacto.

Alteza, a rainha tem uma corte alegre, mas é incapaz de agir contra a dignidade do trono. Aliás, sem ela, a corte seria bem mais indomável. É o rei quem insiste num prazer atrás do outro. A rainha e que controla o comportamento da corte. Os rapazes adoram-na e ninguém bebe ou se comporta indignamente, diante dela.

Mas é a rainha quem eu considero culpada - disse, zangada, a velha mulher. - A princesa Eleanor nunca se teria comportado esta maneira. Teria ficado alojada nos meus aposentos, e a corte ena conduzida de acordo com as minhas regras.

Tacticamente. Catarina não sabia de nada. nem mesmo quando as pessoas vinham ter com ela e lhe repetiam as calúnias

Ignorava, simplesmente, a avó do marido e a torrente constante das suas criticas. Não poderia ter feito nada que a irritasse mais.

Era o horário tardio que a corte agora observava o que provocava -mais queixas da velha senhora. Tinha de esperar cada vez mais tempo para que o jantar fosse servido. Queixava-se que já era tão tarde seria impossível que os criados acabassem de servir o jan­tar antes que fosse madrugada, e retirava-se para os seus aposentos mesmo que a corte ainda não tivesse acabado de comer.

Deitais-vos muito tarde - disse ela a Henrique. - É um disparate, precisais de dormir. Ainda sois um rapazinho, não devíeis passar toda a noite a divertir-vos. Eu não consigo aguentar este horário e é um desperdício de velas.

Sim. senhora minha avó. mas vós já tendes quase setenta anos - disse ele pacientemente -. certamente que precisais do vosso repouso. Deveis retirar-vos quando quiserdes. Catarina e eu somos jovens, é natural que queiramos ficar acordados até tarde. Gostamos de nos divertir.

Ela devia estar a descansar, tem de conceber um herdeiro! -disse Lady Margaret com irritação. - Não irá consegui-lo. andando a abanar-se numa dança com um bando de imbecis. Mascaradas, todas as noites! Quem ouviu falar de tal coisa? E quem vai pagar tudo isto?

Estamos casados há menos de um mês! - exclamou ele, já um pouco irritado. - Estes são os festejos do nosso casamento. Parece - me que nos podemos divertir com passatempos agradáveis e ter uma corte alegre. Gosto de dançar.

Agis como se o dinheiro não tivesse fim - cortou ela. -Quanto vos custou este jantar? E o da noite passada? Só as ervas aro­máticas devem custar uma fortuna. E os músicos? Este país tem de amealhar a sua riqueza, não se pode dar ao luxo de ter um rei esbanjador. Não faz parte dos hábitos ingleses ter um peralvilho no trono e uma corte de mascarados.

Henrique corou e preparava-se para dar uma resposta dura.

O rei não é um esbanjador - interrompeu Catarina rapida­mente. - Isto apenas faz parte dos festejos do casamento. O vosso filho, o falecido rei, sempre pensou que a corte devia ser alegre, que as pessoas deviam saber que a corte era rica e animada. O rei Henrique está apenas a seguir as pisadas do seu sensato pai.

O pai dele não era um jovem tolo, controlado pela sua espo­sa estrangeira! - disse a velha senhora com desdém.

Os olhos de Catarina abriram-se ligeiramente e ela colocou a mão na manga de Henrique, para evitar que ele falasse.

- Eu sou a sua parceira e sua ajudante, como Deus me exige-- disse ela suavemente. - Exactamente como vós gostaríeis que fosse, tenho a certeza.

A velha senhora resmungou.

- Ouvi dizer que vos gabais de ser mais do que isso - começou ela a dizer.

Os dois jovens aguardaram. Catarina podia sentir a agitação de Henrique, sob a leve pressão da sua mão.

_ Ouvi dizer que o vosso pai vai retirar o seu embaixador. Estou certa? - olhou para ambos com um olhar feroz. -provavelmente, já não precisa de um embaixador. A própria mulher do Rei da Inglaterra está ao serviço da Espanha, ela é que vai ser o embaixador da Espanha. Como é isto possível?

Senhora, minha avó ... - explodiu Henrique, mas Catarina manteve-se muito calma.

Eu sou uma princesa da Espanha, certamente seria capaz de representar o meu país de nascimento junto do meu país por casa­mento. Tenho orgulho em poder desempenhar essa tarefa. É claro que direi a meu pai que o seu adorado filho, meu marido, está bem. que o país é próspero. Obviamente, direi a meu marido que o meu querido pai o quer ajudar, tanto na paz como na guerra.

Quando entrarmos em guerra... - começou Henrique a dizer.

Guerra? - perguntou a velha senhora com expressão sombria - Porque haveríamos de entrar em guerra? Nós não temos desen­tendimentos com a França. Só o pai dela está interessado na guerra com a França, mais ninguém. Dizei-me que nem vós seríeis tão louco ao ponto de nos levar para a guerra, para lutar pela Espanha! O que sois vós agora? O moco de recados deles? Seu vassalo?

O rei da Franca é um perigo para todos nós! - disse Henrique intempestivamente. - E a glória da Inglaterra tem sido sempre...

Tenho a certeza de que Sua Alteza, a vossa avó não preten­dia discordar da vossa opinião, senhor - disse Catarina com suavi­dade. - Estes são tempos de mudança e não podemos esperar que as pessoas de idade compreendam sempre, quando as coisas mudam tão depressa.

Ainda não estou senil! - disse ela com cólera. - E sei reco­nhecer o perigo, quando o vejo. E reconheço interesses divididos Quando os vejo. E reconheço uma espia espanhola...

Vós sois um valiosa conselheira - assegurou-lhe Catarina – e o senhor, meu rei, e eu, sentimo-nos muito felizes com os vossos conselhos. Não é verdade, Henrique?

Ele ainda estava zangado.

Agincourt foi...

Estou cansada - disse a velha senhora - e vós distorceis tudo, vezes sem conta. Vou para o meu quarto.

Catarina fez-lhe uma profunda e respeitosa vênia. Henrique apenas inclinou a cabeça, num mínimo de delicadeza. Quando Catarina se voltou a erguer, a velha senhora já tinha desaparecido.

- Como pode ela dizer tais coisas? - perguntou Henrique Como é que suportais ouvi-la, quando diz coisas destas? Ela faz-me ter vontade de berrar, como um urso apanhado numa armadilha. Não compreende nada, e insulta-vos! E vós ficais parada a ouvi-la

Catarina riu-se, tomou a sua cara zangada entre as mãos, e beijou-o nos lábios.

Ah, Henrique, quem se importa com o que ela pensa quan­do não pode fazer nada? Já ninguém presta atenção ao que ela diz

Vou declarar guerra á França, independentemente do que ela pensa - prometeu ele.

-E evidente que sim, quando chegar a altura própria.

Disfarço a minha vitória sobre ela mas saboreio o seu gosto, e é doce. Penso comigo mesma que. um dia destes, as outras pessoas que atormentaram a minha viuvez, as princesas, irmãs de Henrique, também irão ficar a conhecer o meu poder. Mas posso esperar.

Lady Margaret pode ser idosa, mas nem as pessoas mais velhas da corte consegue reunirá sua volta. Conhecem-na desde sempre, os vínculos de parentesco, de tutoria, a rivalidade e as contendas, correm pelo meio deles como veios no mármore sujo. Nunca gostaram dela, nem como mulher, nem como mãe do rei. Era descendente de uma das grandes famílias do país mas, quando conseguiu subir tão alto. depois de Bosworth. começou a ostentar a sua importância. Apesar de gozar de uma reputação considerável como mulher eru­dita e santa, não é estimada. Sempre fez questão de evidenciar a sua posição social como mãe do rei, acabando por criar um fosso entre si e os outros membros da corte.

À medida que se vão afastando dela. tornam-se meus amigos: Lady Margaret Pole. obviamente, o Duque de Buckingham e as suas irmãs, Isabel e Ana. Thomas Howard e os seus filhos. Sir Thomas e Lady Isabel Bolena, o mais querido de todos, William Warham, Arcebispo da Cantuária. George Talbot e Sir Henry Vernon. que eu já conhecia de Gales. Todos eles sabem que, apesar de Henrique negligenciar os assuntos do reino, eu estou aqui, para tomar conta de tudo.

Consulto-os para saber a sua opinião, partilho com eles as esperanças que eu e Artur tínhamos. Em conjunto com os homens Conselho Privado, estou a transformar o reino num país poderoso e pacífico. Estamos a começar a pensar no que devemos fazer para que as leis sejam observadas de costa a costa, de igual modo. ao longo dos baldios, das montanhas e das florestas. Começámos a tra­balhar nas linhas de defesa da costa. Estamos afazer uma investi­gação, para saber que barcos podem ser integrados numa força naval e a criar listas de homens que irão formar um exército. Eu tomei as rédeas do reino nas minhas mãos e descobri que sei o que devo fazer.

Política de Estado é o trabalho da minha família. Costumava sentar-me aos pés da minha mãe. na sala do trono do Palácio de Alhambra e ouvia o meu pai, na dourada e lindíssima Sala dos Embaixadores. Aprendi, no mesmo sítio e nas mesmas lições, a arte e a capacidade de reinar, a conhecer o que é belo, a música e a arte da construção. O meu gosto por belos mosaicos, por delicados ren­dilhados de estuque iluminados pela brilhante luz do sol e o meu interesse pelo poder, foram adquiridos ao mesmo tempo. Tornar-me Rainha Regente foi conto se tivesse voltado a casa. Sinto-me feliz como Rainha da Inglaterra. Ocupo a posição para a qual nasci e fui educada.

A avó do rei estava deitada no seu leito ornamentado, cujas espessas cortinas estavam corridas para que a sombra a protegesse. Aos pés cia cama uma das damas de companhia segurava, sem se queixar, uma custódia, para que ela pudesse ver o Corpo de Cristo na sua branca pureza, através do vidro lapidado em forma de dia­mante. A moribunda fixou os olhos nele e, de vez em quando, olha­va para o crucifixo de marfim que estava na parede junto à cama, 'gnorando o suave murmúrio das orações à sua volta.

Catarina ajoelhou-se ao fundo da cama. com a cabeça inclina­da para a frente e um rosário de coral nas mãos, rezando silencio­samente. Lady Margaret, confiante num bem merecido lugar no Céu, deslizava lentamente, para fora do seu lugar na Terra.

Do lado de fora, na antecâmara, Henrique esperava que lhe dissessem que a avó tinha morrido. O último elo da sua infância subjugada quebrar-se-ia com a morte dela. Os anos em que fora Penas o segundo filho - esforçando-se um pouco mais para con-eguir que reparassem nele. sorrindo mais alegremente, tentando Parecer o mais esperto - seriam passado. Dali em diante, todos os qtie viessem a conhecê-lo, vê-lo-iam apenas como o membro mais velho da família, o mais importante da sua linhagem. |á não ria mais nenhuma velha dama Tudor, faladora e mordaz, para v' este ingénuo príncipe, para o rebaixar com uma m> palavra, no ciso momento em que ele começava a desabrochar. Quando eh morresse, ele poderia ser um homem, e fazer o que entendesse nào haveria ninguém que visse nele uma criança. Embora, por fQ exibisse um ar devoto, enquanto esperava a notícia da sua mo por dentro, ansiava que lhe dissessem que ela já tinha partido q ele   se   tornara   verdadeiramente   independente,   finalmente um homem e um rei. Não fazia ideia de que necessitava ainda, deses­peradamente, dos seus conselhos.

-Ele não deve entrar em guerra - disse, da cama, com voz rouca, a avó do rei.

A dama de companhia susteve a respiração, admirada cora súbita clareza de discurso da sua patroa. Catarina levantou-se.

Que haveis dito. Alteza?

Ele nào deve entrar em guerra - repetiu. - O que deve fazer é manter-nos afastados das guerras intermináveis da Eur ficarmos para cá dos mares, em segurança, longe de todas aq rixas entre príncipes. O que devemos fazer é manter o reino em paz.

Nào - disse Catarina com firmeza - O que devemos fazer é levar a cruzada até ao coração cia Cristandade e mais além. É fazer da Inglaterra o principal país a levar a Igreja a toda a Europa, à Terra Santa, à Africa, aos Turcos, aos Sarracenos, ate ao fim do mundo.

Os Escoceses ...

Eu derrotarei os Escoceses - disse Catarina com firmeza. Estou bem ciente desse perigo.

Nào lhe permiti que casasse convosco para vós o levar para a guerra. - Os olhos negros flamejavam de ressentimento.

Vossa Alteza nem sequer permitiu que ele casasse comic Sempre se opôs. desde o princípio - disse Catarina arrojadamen - E eu casei com ele, precisamente para que ele organizasse uma grande cruzada.

Catarina ignorou o pequeno soluço da aia para quem uflM mulher que estava quase a morrer nào deveria ser contrariada.

- Tendes de me prometer que nào o deixareis entrar cm ra - disse a velha senhora, num murmúrio. - A promessa feita a moribunda, feita no meu leito de morte. Exijo-o de vós, no meu de morte, como um dever sagrado.

-      Nào - Catarina negou com a cabeça. - Eu nào, outra vez, Eu já fiz uma promessa a um moribundo e isso transformou a m vida num inferno. Nào farei outra, muito menos a vós. Vives

vossa vida e construístes o vosso mundo como quisestes. Agora é a minha vez. Hei-de ver um filho meu ser Rei da Inglaterra e, talvez,

da Espanha. Hei-de ver o meu marido comandar uma cruzada gloriosa contra os Mouros e os Turcos. Quero ver o meu país, Inglaterra, ocupar o seu lugar no mundo, o lugar a que tem direito. Verei a Inglaterra no coração da Europa, como líder da Europa. E serei eu quem o vai defender e manter seguro. Eu é que vou ser a Rainha da Inglaterra, como vós nunca fostes.

- Não... - disse a velha senhora num suspiro.

- Sim - jurou Catarina intransigente. - Agora sou eu a Rainha da Inglaterra e hei-de sê-lo até morrer.

A velha senhora ergueu-se, lutando para conseguir respirar.

- Rezai por mim! - ordenou à jovem, quase como se lhe lan­çasse uma maldição. - Cumpri o meu dever para com a Inglaterra, para com os Tudor. Fazei com que o meu nome seja lembrado como o de uma rainha.

Catarina hesitou. Se aquela mulher não tivesse lutado por si própria, pelo seu filho e pelo seu país, os Tudor não estariam no trono.

Rezarei por vós - concordou de má vontade -, e sempre que houver uma missa cantada na Inglaterra, enquanto a Santa Igreja Católica Romana existir na Inglaterra, o vosso nome será lembrado.

Para sempre! - disse a velha senhora feliz, acreditando que algumas coisas nunca iriam mudar.

- Para sempre - concordou Catarina.

Menos de uma hora depois, morreu, e eu tornei-me rainha, uma rainba governante, com inegável poder, sem rival, mesmo antes da coroação. Ninguem, na corte sabe o que fazer não há ninguém que saiba dar um ordem coerente. Henrique nunca teve de organizar um funeral real, como poderia saber por onde começar? Como poderia avaliar a amplitude das celebrações que deveriam ser dedicadas á sua avó? Quantas pessoas deviam ser convidadas para o funeral Quanto tempo de luto se deveria decretar? Onde deveria enterrada? Como deveria ser conduzida toda a cerimónia? Mando, chamar o meu mais antigo amigo na Inglaterra, o Duque de Buckingham. que me recebera, anos antes, quando cá Mestre-de-Cerimónias, e peço-lhe que

mande Lady Margaret Pole rir à minha presença. As minhas aias

trazem-me o enorme volume do cerimonial. "O Livro Real' pela própria avó do rei falecida e dou início à tarefa de organizar' meu primeiro evento público na Inglaterra.

Tenho sorte, pois, escondidas na capa do livro, encontro três páginas com instruções, escritas a mão. A vaidosa senhora tinha determinado a ordem do cortejo que queria para o seu funeral. Lady Margaret e eu ficámos espantadas com o numero de bispos cuja presença ela determinava, o número de pessoas que deveriam trans portar o caixão, as pessoas que deviam segui-lo em silêncio, as carpideiras, as decorações nas ruas, a duração do período de luto. Mostrei-as ao Duque de Buckingham, em tempos seu defensor, que não diz uma palavra mas que, num discreto silêncio, apenas sorri, abanando a cabeça. Escondendo a minha indigna sensação triunfo, pego numa pena, mergulho-a em tinta preta, corto quase tudo pela metade e. então, começo a dar ordens.

Foi uma cerimónia tranquila, com suave dignidade, e toda gente ficou a saber que tinha sido dirigida e encomendada noiva espanhola. Os que ainda não o sabiam compreenderam ago que a rapariga que esperara sete anos para chegar ao trono Inglaterra não tinha desperdiçado o seu tempo. Conhecia o temperamento dos Ingleses, sabia como organizar um espectáculo que apreciassem. Conhecia as tendências da corte, o que considerava elegante, o que definiam como indigno. E, tendo nascido princesa sabia como governar. Naqueles dias. antes da sua coroação. Cata estabeleceu-se como rainha inquestionável e, aqueles que a havia ignorado, durante os seus anos de pobreza, descobriam agora dentro de si mesmos, um enorme afecto e respeito pela princesa.

Aceitava essa admiração, do mesmo modo que aceitara o seu desinteresse, com uma tranquila delicadeza. Percebeu que, ao organizar o funeral da avó do rei, se transformara na mulher mais importante da nova corte, o árbitro de todas as decisões relacionadas c a vida da corte. Com este desempenho único e brilhante, tornara-o mais avançado líder da Inglaterra, segura de que, depois de triunfo, nunca ninguém seria capaz de a suplantar.

Decidimos não cancelar a cerimónia da nossa coroação, ape­sar de ela ter sido precedida pelo funeral de Sua Alteza, a Avó do Rei. já está tudo preparado e consideramos que não devemos fazer nada que impeça a alegria da cidade ou do povo, que veio de todas as par­tes d< > pais. para ver o jovem Henrique receber a coroa que tinha per­tencido ao seu pai. Dizem que alguns fizeram todo o caminho desde Plymouth. os mesmos que me viram desembarcar, uma raparigui­nha assustada e enjoada, há tantos anos. Não lhes vamos dizer que a grande celebração pela ascensão de Henrique ao trono e pela minha coroação foi cancelada, só porque uma velha e amarga senhora decidiu morrer numa altura Inconveniente. Concordamos no facto de que o povo está à espera de uma grande festa, e que não lha podemos negar.

Vara dizer a verdade, é Henrique, quem não suporta um contratempo. 'linha prometido a si próprio um grande momento de gló­ria e não iria perdê-lo, por nada neste mundo. E. de certeza que não o faria por causa da morte desta velha mulher, que passara os últi­mos anos da sua vida a impedi-lo. em tudo, de fazer o que queria.

Concordo com ele. Na minha opinião, a avó dele conquistou o poder e gozou a sua vida; agora é a nossa vez. Sei que é da vontade do povo e da corte celebrar a subida de Henrique ao trono, comigo a seu lodo. Ma realidade, para alguns, aqueles que sempre se inte­ressaram por mim, é uma grande alegria ver que eu. finalmente, vou ser coroada. Decido - e não há mais ninguém que o possa fazer - que vamos em frente. E é isso que fazemos.

Sei que a dor de Henrique pela morte da avó é apenas superficial; o seu luto é só para os outros verem. Vi-o, quando saí do quarto da avó e ele percebeu, uma vez que eu tinha abandonado a cabeceira dela, que devia ter morrido. Os seus ombros alargaram e ergueram-se, como se subitamente se tivesse libertado do fardo do controlo dela, como se a sua mão magra, carinhosa e manchada idade, tivesse sido um peso enorme, no seu pescoço. Reparei no breve sorriso – na sua felicidade por estar vivo, jovem e cheio de energia e por ela ter desaparecido. Depois, vi-o compor, cuidadosamente, uma expressão convencional de tristeza, dirigi-me a ele, também com uma expressão grave, e disse-lhe, numa voz baixa e triste, que ela tinha morrido, o que ele me respondeu no mesmo tom. A sala da corte, no Palácio de Alhambra, tem muitas portas; o meu pai disse-me que um rei deve poder sair por uma porta e entrar por outra, sem que as pessoas saibam o que lhe vai na mente. Sei que para governar é necessário ser prudente. Henrique é um rapaz por agora, mas um dia será um homem e terá de tomar as suas decisões e ser sensato. Não me posso esquecer de que ele pode dizer uma coisa e pensar outra.

Mas aprendi algo mais a respeito dele. Ainda bem que descobri que ele também sabe ser hipócrita

Quando vi que não cho rara, nem uma lágrima verdadeira, pela avo. percebi que este rei o nosso Henrique dourado, tem um coração frio em que ninguém pode confiar. Ela fora como uma mãe para ele, a figura dominan­te da sua infância. Tratara dele. tomara couta dele. ela própria o ensinara. Supervisionara todos os seus momentos despertos e protegera-o de tudo o que pudesse ser desagradável; mantivera-o afasta­do de tutores que lhe pudessem ensinar coisas mundanas e só o dei­xava passear em jardins criados por ela. Passara horas de joelhos, rezando por ele e insistira para que aprendesse as regras e o poder da igreja. Mas, quando se atravessou no seu caminho, negando-lhe certos prazeres, ele passou a vê-la como uma inimiga. São é capaz de perdoar a alguém que lhe recuse algo que deseje. Por isto, sei que este rapaz, este rapaz amoroso, tornar-se-á um homem cujo egoís­mo irá constituir um perigo para ele mesmo e para os outros à sua volta. Um dia, todos poderemos desejar que a avo o tivesse educado melhor.

 

                             24 de Junho de 1509

Catarina foi transportada da Torre para Westminster como uma princesa inglesa. Viajou numa liteira feita de pano de ouro, trans­portada no alto de quatro palafréns brancos, para que todos a pudessem ver. Levava um vestido de cetim branco e uma tiara enfei tada de pérolas, o cabelo penteado para trás. caído sobre os ombros. Henrique foi coroado em primeiro lugar e, em seguida. Catarina bai xou a cabeça e recebeu o óleo sagrado da coroação, na cabeça e no peito; depois, estendeu a mão para segurar o ceptro e a vara de marfim, tomando consciência de que. finalmente, era uma rainha, como a sua mãe. Uma rainha ungida, um ser superior aos meros mortais, um passo mais perto dos anjos, escolhida por Deus para governar o Seu país, sob a Sua proteção especial. Sabia que, por fim, cumprira destino para o qual nascera, ocupara o seu lugar como prometera fazer. Ocupou um trono um pouco mais baixo do que o do Henrique e a multidão que aclamava o jovem e belo rei que ascendia ao trono, também a ovacionou, a princesa espanhola, que foi determinada contra as adversidades e que, por fim, fora coroa­da Rainha Catarina da Inglaterra.

Esperei tanto tempo por este dia que, quando ele chega, parece um sonho, os sonhos que tivera com os meus maiores desejos. Revejo a cerimónia da coroação; o meu lugar no cortejo, a minha cadeira do trono, a leveza da vara de marfim na minha mão, a minha outra mão agarrando firmemente o pesado ceptro, o aroma intenso e profundo do óleo sagrado na minha testa e peito, tudo como se fosse mais um sonho em que sinto a falta de Artur.

Mas desta vez é real.

Quando saímos da Abadia e ouço a multidão ovacionado e a mim, volto-me para olhar o meu marido que está ao meu lado. Fico chocada nessa altura, com um choque súbito, como quando acor­damos de repente no meio de um sonho- por não ser Artur. Não é o meu amor. Esperara ser coroada juntamente com Artur, acedermos ao trono ao mesmo tempo. Mas, no lugar do rosto belo e pensativo do meu marido está o semblante redondo e corado de Henrique. Em vez da graça tímida e juvenil do meu marido, tenho a meu lado a insolência exuberante de Henrique.

Apercebo-me nesse momento de que Artur está realmente morto, que me abandonou de vez. Estou a cumprir a minha parte da nossa promessa, casando com o Rei da Inglaterra, apesar de se tratar de Henrique. Queira Deus que Artur esteja a cumprir a sua Parte, tomando conta de mim, lã no al-Yanna, e à minha espera.

dia. quando a minha tarefa estiver cumprida e eu puder ir ter com o meu amado, viverei com ele para sempre.

- Estais feliz? - pergunta-me o rapaz, gritando para se fazer ouvir acima to repicar dos sinos e das ovações da multidão. – Estais feliz, Catarina? Estais contente por eu ter casado convosco? Por serdes Rainha da Inglaterra, por eu vos ter dado esta coroa?

- Estou muito feliz - assegurei-lhe.

Eu sou Rainha da Inglaterra - diga eu. recordando Artur,quando disse as mesmas palavras - Sou a Rainha Catarina da Inglaterra.

Muito bem! - exclamou ele. - É fantástico, seremos o Rei Henrique e a Rainha Catarina.

Este é o rei. mas não é Artur, é Henrique. Eu sou a rainha Catarina - uma verdadeira inglesa e não a rapariguinha que em tempos, esteve tão apaixonada pelo Príncipe de Gales.

 

                       Verão de 1509

A corte, embriagada de felicidade, comprazendo-se na sua pró­pria juventude, com liberdade, passou o Verão a divertir-se. As via­gens de uma casa bonita e acolhedora para outra duraram dois lon­gos meses, enquanto Henrique e Catarina caçavam, jantavam nos bosques verdejantes, dançavam até à meia-noite e gastavam dinhei­ro como água. As grandes carroças de carga da casa real seguiam pelas veredas poeirentas da Inglaterra para que a próxima casa pudesse brilhar com o ouro e as tapeçarias, de modo a que o leito real - que compartilhavam todas as noites - pudesse ser preparado com as melhores roupas e as peles mais macias.

Henrique não tratava de nenhum assunto. Escreveu uma vez ao sogro, para lhe contar que era muito feliz, mas o resto do traba­lho da responsabilidade do rei, seguia-o dentro de caixas, de um castelo ou de uma mansão, situados no meio de um belíssimo par­que, para outro. As caixas eram abertas e a correspondência lida apenas por Catarina, Rainha da Inglaterra, que mandava os escritu­rários escrever as suas ordens para o Conselho Privado, e que depois eram mandadas por ela ao rei, para assinar.

Só em meados de Setembro é que a corte voltou para Richmond, mas Henrique declarou imediatamente que a festa devia continuar. Porque haviam de deixar de se divertir? O tempo estava bom, podiam caçar e passear de barco, fazer torneios de tiro com arco ou dg ténis, festas e bailes de máscaras. Os nobres e os fidalgos afluíam a Richmond, para se juntarem à festa que não tinha fim: as famílias cujo poder e nome eram mais antigos do que os Tudor e os novos, cuja riqueza e nome iam emergindo juntamente com a subida da maré Tudor, flutuando com a fortuna dos Tudor Os vitoriosos de Bosworth, que haviam arriscado as suas vidas e corrido grandes riscos pela coragem dos Tudor, encontravam-se agora ao lado de arrivistas que faziam fortuna com nada mais do que os divertimentos dos Tudor.

Henrique recebia toda a gente com despreocupada alegria qualquer um que fosse divertido e bem-educado, encantador ou' bom desportista, podia ter um lugar na corte. Catarina sorria para toda aquela gente, nunca descansava, nunca recusava um desafio ou um convite, e tomou a seu cargo manter o seu marido adolescente entretido durante todo o dia. Devagar, mas com firmeza, foi toman­do nas suas mãos a gestão dos entretenimentos, da casa real, dos negócios do rei e, depois, do próprio reino.

A Rainha Catarina tinha as contas da casa real espalhadas à sua frente, um escrivão de um lado, um registador de contas, com o seu enorme livro, do outro, os homens que trabalhavam como tesourei­ros da família, por trás dela. Estava a verificar os livros dos grandes departamentos da corte: a cozinha, a adega, o guarda-roupa, os cria­dos, os pagamentos de serviços, os estábulos, os músicos. Cada departamento da corte tinha de compilar as suas despesas mensais e enviá-las ao tesoureiro da rainha - exactamente como faziam antes com Sua Alteza, a Mãe do Rei, para que ela aprovasse os seus negó­cios. Se tivessem gasto de mais, podiam contar com uma visita de um dos tesoureiros do Fundo Privado, para lhes perguntar directa­mente se eram capazes de explicar a razão por que os custos tinham aumentado tão subitamente.

Todas as cortes da Europa estavam envolvidas na luta pelo controlo dos custos de manutenção das populosas casa reais feudais, atendendo às manifestações de riqueza e exibicionismo que haviam tornado moda. Todos os reis queriam ter muita gente a volta, como senhores medievais: mas agora queriam cultura, riqueza. arquitectura e também grande ostentação. A Inglaterra era mais bem gerida do que qualquer outra corte europeia. A Rainha Catarina aprendera a gerir a sua casa da forma mais difícil, quando tentara gerir Durham House como achava que uma casa real devia ser gerida, mas sem rendimentos. Sabia até ao cêntimo qual era o preço do pão, conhecia a diferença que existia entre o peixe salgado e peixe fresco, sabia o preço do vinho barato importado da Espanha e do vinho caro que era trazido da França. Ainda mais rigoroso do que o de Sua Senhoria, a Avó do Rei, o escrutínio que Rainha Catarina fazia aos livros da casa real, obrigava os cozi­nheiros a discutir com os fornecedores às portas da cozinha, para conseguirem os melhores preços para uma corte extravagante­mente consumista.

Uma vez por semana, a rainha Catarina supervisionava as des­pesas dos diferentes departamentos da corte, e todos os dias, ao alvorecer, enquanto o rei ia caçar, lia as cartas que chegavam para ele e escrevia um rascunho das respostas.

Era um trabalho constante e implacável, manter a corte a fun­cionar como um bem ordenado centro do país, e manter os assun­tos do rei sob controlo apertado. A Rainha Catarina, decidida a com­preender o seu novo país, não lamentava as horas que passava a ler cartas, a ouvir os conselhos do Conselho Privado, as suas objecções e aceitando as suas opiniões. Tinha visto a sua própria mãe domi­nar um país através da persuasão. Por intermédio de acordos, Isabel da Espanha conseguira libertar o seu país de uma colecção de rei­nos e senhorios rivais, oferecendo-lhes uma administração central, livre de problemas e barata, um sistema nacional de justiça, o fim da corrupção e do banditismo e um infalível sistema de defesa. A filha percebeu imediatamente que estas vantagens podiam ser trans­feridas para a Inglaterra.

Mas estava igualmente a seguir as passadas do seu sogro Tudor, e quanto mais trabalhava com os papéis dele e lia as suas cartas, mais admirava a firmeza do seu julgamento. Estranhamente, sentia agora que gostaria de o ter conhecido como governante, Pois teria certamente beneficiado com os seus conselhos. Através "os seus registros, podia ver como ele equilibrara o desejo de inde­pendência dos senhores ingleses, em relação às suas terras, com a sua própria necessidade de os vincular à coroa. Astutamente, con­cedera aos senhores do Norte, maior liberdade, mais riqueza e status do que a quaisquer outros, uma vez que eles constituíam o seu aluarte contra os Escoceses. Catarina tinha mapas das terras nortenhas dependurados por toda a sala do conselho e percebeu que a fronteira com a Escócia não era mais do que uma mão-cheia de territórios disputados numa zona difícil. Uma fronteira como a que nunca poderia vir a tornar-se segura contra um vizinho ameaçador. Os escoceses eram os Mouros da Inglaterra: o país

nunca poderia ser dividido com eles. Teriam de ser completam^ derrotados.

Compartilhava os receios do sogro em relação aos superpode rosos senhores da corte inglesa e aprendeu com ele a sentir inveja da riqueza e poder que detinham. Quando Henrique, num monien to de exuberância, pensou em atribuir a um determinado homem uma pensão elevada, foi Catarina quem lhe fez notar que ele já era um homem rico. não havendo necessidade de tornar a sua posição ainda mais forte. Henrique queria ser um rei conhecido pela sua generosidade, amado pela súbita catadupa dos seus presentes Catarina sabia que o poder seguia a riqueza e que os reis recém--chegados ao trono tinham de acumular riqueza e poder.

O vosso pai nunca vos avisou em relação aos Howard? - per­guntou, enquanto estavam os dois sós a observar um concurso de tiro com arco. Henrique, em mangas de camisa, com o arco na mão, tinha obtido a segunda pontuação mais alta e esperava pela sua vez para voltar ao torneio.

Não - respondeu. - Devia tê-lo feito?

Ah, não - respondeu ela rapidamente. - Ku não queria suge­rir que eles vos pudessem trair, são o amor e a lealdade em pessoa; Thomas Howard tem sido um grande amigo da nossa família, tem mantido o Norte seguro ao vosso serviço e Edward é o meu cava­leiro, o mais querido de todos. Só que a riqueza deles tem aumen­tado tanto e as suas alianças familiares são tão fortes que fiquei a pensar qual seria a opinião que o vosso pai teria sobre eles.

Não faço ideia! - disse ele com ligeireza. - Nunca lhe faria essa pergunta. De qualquer forma, ele também nunca me iria dizer nada.

- Nem mesmo sabendo que vós iríeis ser o próximo rei? Ele abanou a cabeça.

- Ele pensava que eu não iria ser rei tão cedo - disse el Ainda não tinha concluído a minha educação. Considerava que eu

ainda não estava preparado para enfrentar o mundo. Ela abanou a cabeça.

- Quando tivermos um filho, teremos de nos certificar de que começará a estar preparado para o seu reinado desde muito cedo.

Imediatamente, Henrique colocou as mãos em volta da sua cintura.

- Achais que vai ser em breve? - perguntou ele.

- Por favor, meu Deus. - disse ela com suavidade, reprimindo uma secreta esperança. - Sabeis de uma coisa? Tenho pensado nome que lhe iremos dar.

A sério, minha querida? E que pensais de Fernando, como o vosso pai?

Se assim o quiserdes, mas eu julgo que poderia ser Artur -disse cuidadosamente.

Como o meu irmão? - o seu rosto endureceu imediatamente.

Não, como Artur da Inglaterra! - disse ela rapidamente. -Quando olho para vós, penso que sois parecido com o Rei Artur da Távola Redonda e que estamos em Camelot. Nós estamos a criar uma corte mais bonita e mágica do que a de Camelot.

É isso que pensais, minha pequena sonhadora?

Penso que vós podereis ser o mais importante rei que a Inglaterra já conheceu, desde Artur de Camelot - respondeu ela.

Então, será Artur! - disse ele, apaziguado pelo elogio. - Artur Henrique!

Sim.

Chamaram-no ao alvo, pois era a sua vez de atirar e tinha de obter uma pontuação elevada. E lá foi, atirando-lhe um beijo com um gesto. Catarina teve o cuidado de ficar a observá-lo enquanto ele disparava a seta e, quando olhou para ela, como sempre fazia, pôde constatar que a sua atenção estava completamente concen­trada nele. Os músculos das suas costas magras retesaram-se quando puxou a seta para trás, parecia uma estátua, perfeitamente equilibrada, e depois, como um bailarino, soltou a corda, e a seta voou - mais rápida do que a visão - exactamente para o centro do alvo.

Em cheio, no alvo!

Venceu!

Vitória para o Rei!

O prémio era uma seta de ouro e Henrique, radiante de felici­dade, veio ajoelhar-se aos pés dela, para que se inclinasse e o bei­jasse em ambas as faces, e de seguida, amorosamente, na boca.

Ganhei-a para vós! - disse ele. - Apenas para vós. Dais-me sorte e eu nunca falho quando estais a observar-me. Ficareis com a seta do vencedor.

É a seta de Cupido - respondeu ela -, e guardá-la-ei para me recordar a outra que está dentro do meu coração.

Ela ama-me.

Ele ergueu-se, voltou-se para a corte e ouviu-se uma enorme explosão de aplausos e risos. Triunfantemente, gritou:

- Ela ama-me!

-Quem poderia não vos amar? - exclamou com arrojo Lady Babel Bolena, uma das clamas de companhia.

Henrique olhou para ela e depois, da sua grande estarjá ceu os olhos para a sua pequena esposa.

- Quem pode não a amar? - perguntou, sorrindo para Catarina.

Nessa noite ajoelho-me diante do meu oratório e coloco as mm sobre o ventre. É o segundo mês em que não me vem o período e lenho quase a certeza de que estou grávida.

"Artur", digo num murmúrio, de olhos fechados. Quase o con­sigo ver como ele era. nu. á luz das velas, no nosso quarto em l.udlow. "Artur meu amor. ele diz que posso dar a esta criança o nome de Artur Henrique. Assim, será realidade a nossa esperança-dar-te um filho chamado Artur, fim hora eu saiba que não gostaras do teu irmão, terei por ele o respeito que lhe devo. li um bom rapaz e rezo para que se torne um bom homem. Darei ao meu filho o nome de Artur Henrique, em homenagem aos dois.

Não sinto qualquer culpa pelo meu crescente afecto por este jovem, Henrique, embora ele nunca possa vir a ocupar o lugar do irmão, Artur. É correcto que eu ame o meu marido, e Henrique é um jovem enternecedor. O conhecimento que tenho dele. por o ter obser­vado durante tantos anos. de tão perlo, como se fosse um inimigo, deu-me plena consciência do tipo de rapaz que c. li egoísta como uma criança, mas tem a generosidade e a ternura simples de um menino. Para dizer a verdade, é vaidoso e ambicioso, tão presumi­do como um actor de uma troupe, mas ri-se e chora com facilidade, está sempre pronto a mostrar a sua compaixão e a suavizar as dificuldades. Será um bom homem, se for bem guiado, se o ensinarem a refrear os seus desejos e se aprender cptais são as suas obrigações para com o seu país e para com Deus. Tem sido muito mimado pelas pessoas que o deviam ter ensinado, mas ainda não é tarde para o transformar num homem bom. É tarefa minha e meu dever evita que se deixe levar pelo egoísmo. Como qualquer jovem, pode vi transformar-se num tirano. Uma boa mãe tê-lo-ia disciplinado, vez uma boa esposa o possa refrear. Se eu o puder amar e fazer com que me ame, consigo fazer dele um grande rei. E a Inglaterra precisa de um grande rei.

Talvez este seja um dos serviços que posso prestar à Inglaterra ,guiá-lo, com suavidade, mas com firmeza, para longe da sua infância mimada e conduzi-lo a uma idade adulta, responsável. Opai ea avó trataram-no sempre como se fosse uma criança: talvez seja tarefa minha ajudá-lo a transformar-se num homem adulto.

Artur, meu adorado Artur", digo baixinho, enquanto me levanto e me dirijo para a cama. E desta vez estou a falar para ambos - o marido por quem me apaixonei pela primeira vez e a criança que, lenta e calmamente, vai crescendo dentro de mim.

 

                         Outono de 1509

Numa noite de Outubro, depois de Catarina se ter recusado, durante as três últimas semanas, a dançar depois da meia-noite, insistindo em ficar apenas a ver Henrique dançar com as suas damas, disse-lhe que esperava um filho, e obrigou-o a jurar que manteria segredo.

-Quero contar a toda a gente! - exclamou ele.

Henrique tinha vindo para o quarto dela. em camisa de noite, e tinham-se sentado um de cada lado. ao calor da braseira, antes de irem para a cama.

Podereis escrever ao meu pai. no próximo mês - determinou ela -, mas não quero que todos saibam, para já. Dentro de pouco tempo, irão perceber.

Tendes de descansar! - disse ele imediatamente. - E preci­sais de comer comidas diferentes? Sentis desejos de algo em espe­cial? Posso mandar alguém ir buscar seja o que for. imediatam te, podem ir acordar os cozinheiros. Dizei, meu amor. o que qu reis?

Nada! Nada! - disse ela rindo-se. - Reparai, temos biscoitos vinho. Alguma vez como outras coisas a estas horas da noite.

Ah, normalmente não! Mas agora é tudo diferente!

De manhã perguntarei ao médico - disse ela -. mas ag não preciso de nada. A sério, meu amor.

Eu quero ir buscar-vos qualquer coisa - disse ele. Quero tomar conta de vós.

- Já o fazeis - assegurou-lhe ela. - E eu estou bem alimentada,sinto-me bem.

- Não vos sentis enjoada? Isso é sinal de que é um rapaz, tenho a certeza.

-Tenho-me sentido um pouco enjoada, pela manhã – disse Catarina, observando o seu ar de felicidade. Tenho a certeza de que é um rapaz. Espero que seja o nosso Artur Henrique.

- Ah. já pensáveis nele quando falastes comigo no torneio de tiro com arco.

- Sim, estava. Mas nessa altura ainda não tinha a certeza e não vos quis dizer cedo de mais.

Quando credes que vai nascer?

-No princípio do Verão, creio eu.

Não pode demorar assim tanto tempo! - exclamou ele.

Meu querido, parece-me bem que sim!

- Vou escrever ao vosso pai, amanhã - disse ele. - Dir-lhe-ei que aguarde grandes notícias para o Verão. Talvez nessa altura já tenhamos regressado de uma grande campanha contra os Franceses. Talvez eu traga uma vitória para vos oferecer e vós tereis um filho para me dar.

Henrique mandou chamar o seu médico pessoal, o homem mais competente de Londres, para me observar. O homem fica de pé de um lado do quarto, e eu estou sentada numa cadeira, no outro lado. Não me pode examinar, obviamente - o corpo de uma rainha não pode ser tocado por ninguém, a não ser pelo rei. Não pode perguntar se as minhas regras e os meus intestinos são regulares. - também são sagrados. Está tão paralisado com o emba-raço de ter sido chamado para me ver, que mantêm os olhos fixos chão e só me faz perguntas curtas, numa voz baixa e entrecortada. Fala em inglês e tenho de me esforçar para o ouvir e perceber o que diz. Pergunta-me se tenho comido bem, se tenho tido enjoos. Digo- lhe que tenho comido bastante bem. mas que fico enjoada com o cheiro e quando olho para as carnes cozinhadas. Sinto falta da da fruta e dos legumes que jaziam parte da minha dieta diária, na Espanha, tenho enormes desejos de bolinhos de baklava, feitos com mel, ou de um tagine, preparado com legumes e arroz. Ele responde que isso não tem importância, uma vez que comer legumes ou fruta não tem qualquer benefício para os humanos e que, na verdade, me desaconselhava de comer produtos crus durante a minha gravidez.

Pergunta-me se sei quando fiquei grávida. Respondo-lhe não sei dizer com certeza, mas sei em que altura tive as últimas regras. Ele sorri, conto um sábio que ri de um ignorante, e diz-me que isso não é grande ajuda, para se saber quando a criança vai nascer. Eu já tinha visto médicos mouros calcularem a data do nas cimento de um bebé com a ajuda de um ábaco especial. Ele diz que nunca ouviu falar de tais coisas e que esses objectos pagãos deviam ser contra a natureza e não deveriam ser usados no tratamento de uma criança cristã.

Sugere-me que descanse. Pede-me para o mandar chamar sem­pre que não me sentir bem, pois virá imediatamente, para me ai car sanguessugas. Confessa que é um grande adepto de que s façam, com frequência, sangrias ás mulheres, para evitar que aque­çam demasiado. Em seguida, faz uma vénia e vai embora.

Eu olho espantada para Maria de Salinas que está de pé. ao canto do quarto, a assistir a esta imitação de consulta.

- É este, o melhor médico da Inglaterra? — pergunto-lhe. -melhor que eles têm?

Ela abana a cabeça, perplexa.

Será que podemos mandar vir alguém da Espanha?- digo pensando alto.

O vosso pai e a vossa mãe fizeram com que todos os homens sábios desaparecessem da Espanha - diz ela. e nesse momento quase que sinto vergonha deles.

- Os seus conhecimentos eram heréticos - digo eu na defensiva, ela encolhe os ombros.

- Bem. a Inquisição prendeu a maior parte deles e os outros fugiram.

- Para onde foram? - pergunto.

- Para onde vão todos. Os judeus, para Portugal, e depois para a Itália, a Turquia, para toda a Europa, creio eu. Suponho que os mouros foram para a África e para o Oriente.

-     Não será possível encontrar alguém da Turquia?- sugiro eu. Não um pagão, certamente. Mas alguém que tenha estudado com um médico mouro? Devem existir médicos cristãos que saibam algu ma coisa, que saibam mais do que este.

-     Vou perguntar ao embaixador- disse ela.

-     Tem de ser um cristão - estipulo eu. - Sei que vou precisar um médico melhor do que este tímido ignorante, mas não quero ir contra a autoridade do minha mãe e da Santa Igreja. Se dizem que uma tal ciência é pecado, então, terei certamente de aceitar a igno­rância. Éo meu dever. Não sou uma estudiosa e será melhor que me guie pelas leis da Santa Igreja. Mas será que Deus deseja realmente que neguemos o conhecimento? E se essa ignorância me custar o filho e herdeiro da Inglaterra?

Catarina não reduziu o seu trabalho, dirigindo os secretários do rei, ouvindo petições dos que precisavam de justiça real, discutindo as notícias do reino com o Conselho Privado. Mas escreveu para a Espanha, sugerindo ao pai que talvez fosse bom ele enviar um embaixador para representar os interesses espanhóis, principalmen­te porque Henrique estava determinado em declarar guerra à Franca, aliado à Espanha, logo que começasse a época de guerra, na Primavera, pelo que iria haver muita correspondência entre os dois países.

"Ele está muito determinado em relação á vossa proposta", escreveu Catarina ao pai, traduzindo cuidadosamente cada palavra para o complexo código que ambos usavam. "Tem consciência de que nunca esteve numa guerra e está ansioso para que tudo corra bem com um exército anglo-espanhol. Estou muito preocupada, de facto, receando que ele se exponha ao perigo. Não tem um herdei­ro, mas mesmo que tivesse, este é um país difícil para herdeiros menores de idade. Quando ele for para a guerra convosco, confiá-lo-ei a vossa protecção. Por certo, de deverá sentir que está a expe­rimentar plenamente o que é a guerra, deverá aprender convosco a maneira de preparar as campanhas. Mas terei de confiar em vós para que o mantenhais afastado de qualquer perigo real. Não me inter­preteis mal neste ponto" escreveu ela, com decisão. "Ele tem de sentir que esta no centro da guerra, tem de aprender como se ganham as batalhas; mas não deverá, nunca, ter de enfrentar um perigo real.

Para além disso", acrescentou "nunca deverá perceber que nós o Protegemos."

O rei Fernando, de novo na posse de Castela e de Aragão govirava como regente, em vez de Joana, de quem se dizia que não tinha qualquer hipótese de subir ao trono, perdida no seu mundo de dor e loucura. Em resposta à filha mais nova, garantiu-lhe tranquilamente que não precisava de se preocupar com a segu­rança do seu marido durante a guerra, pois ele iria tomar as devi precauções para que Henrique não ficasse exposto a mais nada para alem da excitação. "E não deves deixar que os teus receios deesposa o afastem do seu dever", recordou-lhe o pai. "Em todos anos que viveu comigo, a tua mãe nunca se esquivou ao perigos. Tens de ser a rainha que ela gostaria que fosses. Esta e uma guerra que tem de ser feita, para segurança e proveito de todos nós e o jovem rei tem de desempenhar o seu papel, ao lado do velho rei e do velho imperador. É uma aliança entre dois velhos cavalos de guerra e um jovem potro: e ele vai querer fazer parte dela." Deixou um espaço em branco na carta, como se estivesse a pensar, e depois acrescentou uma nota. "É claro que nós os dois nos certificaremos de que, para ele, vai ser como uma brincadeira. E é obvio que nunca o irá saber.''

Fernando tinha razão. Henrique estava desesperado por fazer parte de uma aliança que pudesse derrotar a França. O Conselho Privado, os sensatos conselheiros do prudente reinado do seu pai, ficaram assombrados, ao perceber que o jovem estava plenamente convencido de que, para ser rei, tinha de ir para a guerra e não con­seguia imaginar uma maneira melhor de demonstrar que tinha her­dado o trono. Os jovens ávidos e jactanciosos que formavam a nova corte, ansiosos por mostrar a sua própria coragem, pressionavam Henrique para que entrasse em guerra. Os Franceses eram odiados há tanto tempo, que parecia incrível que alguma vez se tivesse declarado tréguas e que a paz tivesse durado tanto. Parecia fora do normal, estar em paz com a França - o estado normal de guena devia ser retomado, logo que se pudesse dar uma vitória como certa. E a vitória, com um novo e jovem rei e uma nova corte for­mada por jovens, era agora mais do que uma certeza.

Nada do que Catarina contrapusesse calmamente poderia apa­ziguar a febre da guerra, e Henrique foi tão belicoso com o embai­xador da França no seu primeiro encontro que o espantado repre­sentante relatou ao seu amo que o novo e jovem rei estava fora de si com tanta cólera, negando ter alguma vez. escrito ao Rei da França uma carta pacífica, que o Conselho Privado enviara na sua ausência. Felizmente, o encontro seguinte correu melhor, pois Catarina fez questão de estar presente.

Cumprimentai-o delicadamente - recomendou Catarina a Henrique, quando viu o homem aproximar-se.

Não vou fingir bondade, quando estou a pensar em guerra.

Tendes de ser hábil - disse ela baixinho -, deveis aprender dizer uma coisa e a pensar outra.

_ Nunca fingirei. Nunca irei negar o meu justo orgulho. _ Não. não tereis exactamente de fingir. Mas deixai-o, na sua ignorância. compreender-vos mal. Há mais do que uma forma de fazer guerra e o importante é ganhá-la, não é fazer ameaças. Se acreditar que sois seu amigo, poderemos apanhá-los despreve­nidos Porque haveríamos de os avisar do ataque?

Henrique ficou perturbado e olhou para ela, franzindo a testa. _ Eu não sou um mentiroso.

_ Pois não, da última vez, dissestes-lhe que as vãs ambições do seu rei iriam ser corrigidas por vós. Não podemos deixar os Franceses capturar Veneza. Temos uma velha aliança com Veneza...

- Temos?

- Oh, sim - disse Catarina com firmeza. - A Inglaterra tem uma antiga aliança com Veneza e. para mais, Veneza é a primeira mura­lha da Cristandade contra os Turcos. Atacando Veneza, os Franceses vão ficar à beira de deixar os infiéis entrar na Itália. Deviam ter ver­gonha de si próprios. Mas da última vez que falastes com ele, haveis avisado o embaixador francês. Não poderíeis ter sido mais claro. Por isso. deveis cumprimentá-lo, agora, com um sorriso. Não necessitais de lhe falar da vossa campanha. Guardaremos as nossas intenções só para nós, não as devemos compartilhar com pessoas como ele.

-Já lhe disse tudo uma vez, não preciso de lho dizer nova­mente. Eu não me repito! - disse Henrique, irritado com a ideia.

Não devemos gabar-nos da nossa forca - disse ela. - Sabemos o que podemos fazer, e sabemos o que vamos fazer. Poderão des­cobrir por si próprios, quando isso for do nosso interesse.

De tacto! - disse Henrique, descendo do pequeno estrado Para cumprimentar com grande amabilidade o embaixador francês. Foi para Henrique uma recompensa, ver o homem fazer uma desa­bitada vénia e gaguejar, quando se dirigiu a ele.

Enganei-o completamente! - disse ele. radiante, para Catarina.

Um verdadeiro mestre! - assegurou-lhe ela.

Se ele fosse um imbecil, eu teria de engolir a minha impaciência e controlar o meu temperamento com mais frequência do que o que faço. Mas ele não e estúpido, é inteligente e esperto, taivez até tão vivo quanto Artur. Enquanto Artur fora formado para pensar, educado desde o berço para ser rei. este segundo filho fora deixado ape­trechado apenas com o seu encanto e uma resposta pronta Achavam-no simpático e não o incentivavam a ser mais do que agradável. Henrique tem uma boa cabeça e sabe ler, debater e pensar com clareza - mas apenas se o tópico lhe despertar interesse e mesmo assim, é por pouco tempo. Ensinaram-no a estudar, mas ape­nas como um meio de demonstrar a sua esperteza. É preguiçoso, tremendamente preguiçoso - não se importa nada que seja outra pes­soa a fazer o trabalho detalhado em seu lugar, e isto é uma grave falha num rei. pois coloca-o ã mercê dos seus escrivães. Um rei que não trabalhe estará sempre nas mãos dos seus conselheiros. É a receita para produzir conselheiros com demasiado poder.

Quando começamos a discutir os termos do contrato entre a Espanha e a Inglaterra pede-me para o redigir por ele, não gosta de ser ele a fazê-lo, gosta de ditar e de ter um escrivão que o faça como deve ser. Nunca irá preocupar-se em aprender o código, o que signi­fica que todas as cartas entre ele e o imperador, entre ele e o meu pai, terão de ser escritas ou traduzidas por mim. Vejo-me envolvida no meio dos planos emergentes para a guerra, quer queira, quer não. Não tenho outro remédio senão tornar-me a responsável pela tomada de decisões, no seio desta aliança, porque Henrique põe-se de parte.

É claro que não sinto relutância em cumprir o meu dever. Nenhuma verdadeira filha da minha mãe se escusaria alguma vez ao esforço, especialmente a este, que conduzia ã guerra com os ini­migos da Espanha. Fomos todos educados para saber que ser rei é uma vocação, não é um presente. Ser rei significa governar, e gover­nar ê sempre um trabalho exigente. Nenhum verdadeiro filho do meu pai teria resistido a estar no centro de decisão e planeamento, preparando-se para a guerra. Não há ninguém na corte inglesa mais preparada do que eu para levar o nosso país para a guerra.

Não sou tola. Percebi, desde o princípio que o meu pai tencionava usar as nossas tropas inglesas contra os Franceses e. enquanto os entretemos na hora e no local de sua escolha, aposto que tenciona invadir o reino de Navarra. Devo tê-lo ouvido dizer uma dúzia de vezes à minha mãe que, se conseguisse conquistar Navarra, poderia completar a fronteira norte de Aragão; além do mais, Navarra é uma região rica que produz uvas e trigo. O meu pai tem-na cobiçado desde que subiu ao trono de Aragão. Sei que se ele tiver uma oportunidade em relação a Navarra, conseguirá conquistá-la. e, se conseguir que os Ingleses façam o trabalho por ele. melhor ainda.

Mas não vou entrar nesta guerra para agradar ao meu pai embora o deixe pensar que sim. Não irá usar-me como seu instrumento. Eu é que vou usá-lo como o meu. Desejo esta guerra

causa da Inglaterra e de Deus. O próprio Papa determinou que os Franceses não deviam invadir Veneza, e está a colocar o seu santo exército em campo, contra os Franceses. Nenhum verdadeiro filho ou filha da Igreja precisa de uma causa maior do que esta: saber que o Santo Padre está a pedir ajuda.

E, para mim, há outra razão, ainda mais forte. Nunca esque­ço o aviso da minha mãe, de que os Mouros voltarão a atacar a Cristandade e de que eu devia estar tão preparada para isso na Inglaterra, como ela sempre o esteve na Espanha. Se os Franceses derrotarem os exércitos do Papa e tomarem Veneza, quem pode duvidar que os Mouros irão ver nisso a sua oportunidade para, por sua vez, roubarem Veneza aos Franceses? E mal os Mouros tenham, de novo, uma base de apoio no coração da Cristandade, a guerra da minha mãe, terá de ser feita mais uma vez, desde o princípio. Eles atacarão a partir do Oriente, de Veneza, e a Europa Cristã ficará à sua mercê. O meu próprio pai disse-me que Veneza, com todo o seu comércio, o seu arsenal e os seus poderosos estaleiros navais, nunca poderá ser tomada pelos Mouros, nunca deveremos permitir que eles conquistem uma cidade onde podem construir barcos de guerra numa semana, armá-los em dias e guarnecê-los numa manhã. Se tiverem os estaleiros e os construtores navais, perderemos os mares. Eu sei que este dever me foi imposto, imposto pela minha mãe e por Deus - enviar ingleses para o serviço do Papa, para defenderem Veneza de qualquer invasor. É fácil persuadir Henrique a pensar do mesmo modo.

Mas também não esqueço a Escócia. Nunca me esqueço do medo que Artur tinha da Escócia. O Conselho Privado tem espiões ao longo da fronteira, e Thomas Howard, o velho conde de Surrey, foi lá colocado deliberadamente, creio eu, pelo velho rei. O rei Henrique, meu sogro, deu grandes propriedades no Norte a Thomas Howard, para que ele, entre tantos outros, mantivesse a fronteira segura. O velho rei não era nenhum idiota, não deixava que outras pessoas tratassem dos seus assuntos nem confiava nas suas capaci­dades. Amarrava-as ao seu sucesso. Se os Escoceses invadirem a Inglaterra, terão de passar através das terras dos Howard, e Thomas Howard está tão interessado como eu em que isso não aconteça. Assegurou-me que os Escoceses não nos atacarão este Verão, pelo menos em maior número do que costumam vir, nas habituais incursões de bandidos. Todas as informações que conseguimos obter de mercadores ingleses na Escócia ou de viajantes preparados para manterem os olhos bem abertos confirmam a opinião do conde. Pelo menos durante este Verão, estaremos seguros. Posso aproveitar a ocasião para enviar o exército inglês para a guerra contra Franceses. Henrique pode marchar para fora do país em segura os e aprender a ser um soldado.

Catarina observava as danças durante os festejos de Natal aplaudia o marido quando ele fazia girar outras senhoras em volta da sala, ria com os mascarados e autorizava, com a sua assinatura as contas da corte, com enormes quantias para vinho, cerveja, carne de vaca e tudo o que havia de mais raro e requintado. Oferecera a Henrique uma belíssima sela embutida, como prenda de Natal, e algumas camisas que ela mesma tinha costurado e bordado com um belo ponto, típico da Espanha.

-Quero que todas as minhas camisas sejam feitas por vós -disse ele, encostando a bonita peça de roupa à sua face. - Não quero usar nada que outra mulher tenha tocado. Apenas as vossas mãos poderão fazer as minhas camisas.

Catarina sorriu e puxou-lhe o ombro para baixo, até ele ficar à sua altura. Ele inclinou-se para a frente, como uma criança grande e ela beijou-lhe a testa.

- Sempre - prometeu-lhe. - Costurarei sempre as vossas ca­misas.

- E agora, a minha prenda para vós - disse ele. Empurrou uma grande caixa de couro para junto de Catarina,

que a abriu. Lá dentro estava um enorme conjunto de jóias magní­ficas, um diadema, um colar, dois braceletes e brincos a condizer.

Oh, Henrique!

Gostais delas?

Adoro-as! - disse ela.

Quereis usá-las esta noite?

Vou usá-las esta noite e na festa da Décima Segunda Noite - prometeu ela.

A jovem rainha estava radiante de felicidade, neste primeiro Natal do seu reinado. As saias rodadas do seu vestido já não conseguiam esconder a curva do seu ventre. Para qualquer lado que fosse, o jovem rei ordenava que lhe levassem uma cadeira, pois ela não devia estar nunca de pé. nem se podia cansar. Compôs para ela canções especiais, que eram tocadas pelos seus músicos; danças espectáculos de mímica foram criados em sua honra. A corte, encantada.

com a fertilidade da jovem rainha, com a saúde e energia cio em rei. consigo própria, divertiu-se até bastante tarde na noite e Catarina ficou sentada no seu trono, os pés ligeiramente afastados

para acomodar a curva do seu ventre, sorrindo de felicidade.

 

             Palácio de Westminster, Janeiro de 1510

Acordo durante a noite com dores e uma sensação estranha. Sonhei que a maré estava a subir no rio Tamisa e que uma frota de barcos, com velas negras, subia o rio. Pois o que devem ser os Mouros, que me vêm buscar, mas depois parece-me que é uma frota espanhola - uma armada, mas estranha e perturbadora meu te. minha inimiga, inimiga da Inglaterra. Na minha aflição reviro-me na cama e acordo com uma sensação de horror, descobrindo que é algo mais grave que o sonho, os meus lençóis estão empapados de sangue e a dor no meu ventre é bem real.

Dou um grito, aterrorizada, e o meu grito acorda Maria de Salinas, que dormia junto de mim.

"O que aconteceu?" pergunta. Depois, repara na minha expressão e chama, ansiosa, pela criada que está aos pés da cama e manda-a ir a correr chamar as minhas aias e as parteiras, mas, num canto qualquer da minha mente, já percebi que não há nada que possam fazer. Arrasto-me para a minha cadeira, com a minha camisa toda manchada de sangue e sinto a dor, às voltas na minha barriga.

Quando elas chegam, saídas à pressa da cama e todas ataran­tadas com sono, eu estou ajoelhada no chão, como um cão doente, rezando para a dor passar e para que me deixe intacta. Já sei que não adianta rezar pela salvação do meu filho. Já sei que o perdi, lenho a sensação de que alguma coisa se está a romper dentro de mini. à medida que ele vai saindo, lentamente.

Ao fim de um longo e amargo dia, em que Henrique vem à porta do meu quarto, vezes sem conta, e eu o mando embora com alegre, para lhe dar confiança, embora tenha de morder as Palmas das minhas mãos para não começar a gritar, a criança nasce, morta. A parteira mostra-ma, uma menina, uma coisinha pequena e frágil: pobre bebé, meu pobre bebé. O meu único conforto é que não era o rapaz que eu prometera a Artur. É uma menina uma menina morta, mas depois o meu rosto contorce-se de desgosto quando me lembro que. em primeiro lugar, ele gostaria de ter tido unta filha e que ela se deveria chamar Maria.

Não consigo falar com o desgosto, não consigo enfrentar Henrique e dizer-lhe eu mesma. Não suporto sequer pensar no anúncio que tem de ser feito ã corte e não sou capaz de escrever ao meu pai para lhe dizer que falhei para com a Inglaterra, com Henrique com a Espanha e, pior que tudo- mas isto nunca poderia dizer fosse a quem fosse-falhei para com Artur.

Fico no meu quarto, fecho a porta a todos aqueles rostos ansio­sos, às parteiras que me querem obrigar a beber tisanas de folha de morangueiro, às minhas damas que me querem contar que também tiveram nados-mortos, como as mães delas, mas que acabaram por ter finais felizes; afasto-as de mim e ajoelho-me ao fundo da cama. comprimindo a cara contra as cobertas. Murmuro entre soluços, muito baixinho, para que ninguém, a não ser ele. possa ouvir. Perdoa-me, perdoa-me, meu amor. Tenho tanta pena de não ler sido capaz de ler o leu filho. Não sei porquê, tido sei por que razão haveria o nosso bom Deus de me dar um desgosto tão grande lenho tanta pena, meu amor. Se alguma vez tiver outra oportunidade, farei tudo que puder, o máximo que puder, para ter o teu filho, para o manter em segurança até ele nascer e depois. Fá-lo-ei. juro quê sim. Tentei, desta vez. Deus sabe. eu daria tudo para ter o teu filho e para lhe ter dado o nome de Artur por tua causa, meu amor. lento acalmar-me, quando as palavras começam a sair, em turbilhão, da minha boca. sinto que estou a perder o controlo, sinto que os soluços me começam a sufocar.

Espera por mim", digo eu mansamente. "Espera aí por mim. Espera por mim junto às quietas águas do jardim, onde caem a pétalas das rosas brancas e vermelhas. Espera por mim e, quando e eu tiver tido o teu filho Artur e a tua filha Maria, quando tiver cumprido o meu dever aqui, irei ter contigo. Espera por mim no jardim e eu não mais te desiludirei. Irei ter contigo, amor. Meu amor.

O médico do rei foi imediatamente ter com ele, quando saiu dos aposentos da rainha.

- Vossa Graça, tenho boas notícias paia vós.

Henrique virou para ele a sua face amargurada, como a de uma criança a quem roubaram a alegria.

Tendes?

Na verdade, tenho.

A rainha está melhor? Tem menos dores? Vai ficar bem?

- Vai ficar melhor que bem - disse o medico. - Embora tenha perdido uma criança, ficou com outra. Ela estava grávida de gémeos, Vossa Graça. Perdeu uma criança, mas o seu ventre ainda esta dilatado e ela continua grávida.

Por momentos o jovem não compreendeu aquelas palavras.

Ainda está grávida?

Sim. Vossa Graça - clisse o médico, sorrindo.

Foi como se lhe tivessem suspendido a execução. Henrique sentiu o coração dar uma volta, cheio de esperança.

- Como é possível?

0 médico estava confiante.

- Sou capaz de o dizer, por vários motivos. O seu ventre ainda continua firme, a hemorragia parou. Estou certo de que ainda ficou outra criança.

Henrique benzeu-se.

- Deus está do nosso lado - disse ele contente. - Isto é o sinal da Sua Graça.

Fez um pausa...

- Posso vê-la?

- Sim, ela está tão feliz quanto vós, com estas notícias. Henrique subiu as escadas até aos aposentos de Catarina. A sua

antecâmara estava vazia, mas os visitantes menos informados, a corte e metade da cidade sabiam que ela estava de cama e que não receberia ninguém. Henrique passou pelo meio da multidão que, num murmúrio, o abençoava e â rainha, passou pelos seus salões privados, onde as suas aias costuravam e bateu â porta do quarto dela.

Maria de Salinas abriu-a e afastou-se, para deixar passar o rei. A rainha estava fora da cama. sentada no banco da janela, com o livro de orações virado para a luz.

- Meu amor - exclamou ele. - O Dr. Fielding veio ter comigo para me dar a melhor das notícias.

O rosto dela estava radiante.

- Eu ordenei-lhe que vos dissesse em privado.

- Foi isso que ele fez. Mais ninguém sabe. Meu amor. estou tão contente!

Os olhos dela estavam cheios de lágrimas.

É como uma redenção - disse ela. - Sinto-me como se u cruz tivesse sido tirada dos meus ombros.

Irei a Walsingham, no momento em que o nosso filho nas para agradecer a Nossa Senhora pela graça concedida - promet ele. — Dotarei o santuário com uma fortuna, se for um rapaz

Por favor, meu Deus, que seja essa a Vossa vontade - murmurou ela.

E porque não seria? - perguntou Henrique. - Se é esse nosso desejo, se é bom para a Inglaterra e se nós o pedimos como

bons filhos da Igreja?

- Amém! - disse ela muito depressa. - Se for essa a vontade Deus.

Ele agitou a mão, como se desse uma chicotada no ar.

- E claro que deve ser essa a Sua vontade - disse ele. - Age tendes de ter cuidado e descansar.

Catarina sorriu.

Como vedes.

Tem mesmo de ser assim, e tudo o que quiserdes, tereis.

Eu digo aos cozinheiros, se quiser alguma coisa.

E as parteiras deverão estar ao vosso serviço dia e noite, para terem a certeza de que estais bem.

Está bem - concordou ela -. e. se Deus quiser, teremos um

filho.

Foi Maria de Salinas, a minha verdadeira amiga que comigo da Espanha e ficara comigo durante os nossos meses pobres os anos difíceis, que descobriu o mouro. Estava ao serviço de um rico mercador que viajava de Génova para Paris. Tinham-no chamado a Londres para avaliar artigos de ouro e Maria soube da sua precinco. através de uma mulher que oferecera cem libras a N Senhora de Walsingham, na esperança de ter um filho.

- Dizem que consegue fazer mulheres estéreis ter filhos - diz-ela baixinho, certificando-se de que nenhuma das outras da estava suficientemente perto fiara ouvir

Eu benzo-me, como se estivesse a afastar uma tentação.

Então, deve usar magia negra.

Princesa, ele é considerado um grande médico, treinado

mestres que ensinavam na Universidade de Toledo.

- Não o quero receber.

$ó porque achais que ele usa magia negra?

- Porque ele é um inimigo e inimigo da minha mãe. Ela sabia conhecimentos dos Mouros eram adquiridos ilegalmente, vindos do Diabo e não da verdade revelada por Deus. Expulsou os Mouros e as suas artes mágicas da Espanha.

- Vossa Graça, ele pode ser o único doutor na Inglaterra que sabe alguma coisa acerca das mulheres. - Não o vou receber.

Maria aceitou a minha recusa e deixou passar algumas sema­nas até que uma noite acordei com uma dor muito forte e senti o sangue a sair lentamente. Apressou-se a chamaras criadas, que vie­ram com toalhas e um jarro de agua para me lavar. Quando voltei para a cama e percebemos que não era nada mais do que o meu período que regressava, ela veio calmamente, colocar-se à cabeceira da minha cama.

Vossa Graça, por favor, recebei este médico.

Ele é um mouro.

Sim, mas eu penso que ele é o único homem neste país que será capaz de descobrir o que vos está a acontecer. Como podeis ter as vossas regras, estando grávida? Podeis estar a perder esta segunda criança. Pendes de receber um médico em quem possa­mos confiar.

Mana. ele é meu inimigo, um inimigo da minha mãe. Ela passou a sua vida a expulsar o povo dele da Espanha.

-     Com eles, perdemos a sua sabedoria - diz Maria suavemente. Há quase uma década que não viveis na Espanha, não sabeis como as coisas estão por lá. agora. Quando me escreve, o meu irmão conta-me que as pessoas adoecem e não há hospitais que os possam curar. As freiras e os monges fazem o que podem, mas não têm conhecimentos. Se uma pessoa tiver um tumor, ele tem de ser extraído por um medico de cavalos; se alguém partir um braço, ou uma perna , é o ferreiro que trata da pessoa. Os barbeiros são cirurgiões, os tira dentes trabalham no mercado e partem os maxilares dos doentes. As parteiras fazem de tudo, desde enterrar um homem o de chagas, até chegarem aos partos, e são tantas as crianças que perdem, como aquelas que ajudam a nascer. As técnicas usadas pelos médicos mouros, com o conhecimento que têm do corpo, as ervas que aliviam as dores, os seus instrumentos de cirurgia e a sua insistência na limpeza - tudo isto se perdeu.

Se era uma ciência pecaminosa, é melhor que tenha desaparecido- digo com teimosia.

Porque haveria Deus de estar do lado da ignorância da sujidade e da doença   perguntou ela destemidamente - Perdoai -me. Vossa Graça, mas não faz sentido. E estais a esquecer o que vossa mãe queria. Sempre disse que as universidades deviam ser reabertas para ensinar o conhecimento cristão. Mas, por essa altura, já matara ou banira todos os professores que sabiam alguma coisa.

A rainha não quer ser consultada por um herege - disse Lady Margaret com firmeza - nenhuma dama inglesa consultaria um mouro.

Maria volta-se para mim.

- Por favor, Vossa Graça.

tenho tantas dores que não suporto uma discussão.

- Podem sair as duas - digo eu. - Deixai-me dormir. Lady Margaret sai do quarto, mas Maria pára. para fechar as

portadas, para eu ficar na penumbra.

- Oh. deixai-o vir, então - digo eu -, mas não. enquanto eu estiver assim. Pode vir na próxima semana.

Ela terá pela escadaria secreta que vem desde a adega, atra­vés de uma passagem para os criados, até aos aposentos privados da rainha, no Palácio de Reymond. Eu estou cansada, vestindo-me para o jantar, e deixo-o entrar no meu quarto, antes de me aperta­rem os laços, apenas com uma camisa e uma capa curta por cima. Faço uma careta, só de pensar no que diria a minha mãe. se sou­besse que um homem tinha entrado no meu quarto Mas sei. dentro do meu coração, que tenho de ser vista por um medico que me saiba dizer como posso dar um filho à Inglaterra. E sei, se quiser ser hones­ta, que há qualquer coisa de errado com esta criança que eles diz? que tenho dentro de mim.

Reconheço nele um pagão, no momento em que o vejo. É negro conto o ébano, os seus olhos são escuros como azeviche, a sua é grande e sensual, o seu rosto é alegre e compadecido, tudo mesmo tempo. As costas das suas mãos são negras, escuras como a sua face, tem dedos longos e unhas rosadas, as palmas das mãos são castanhas com linhas profundamente vincadas com a sua cor. Se eu soubesse ler a sina. poderia traçar a sua linha de vida naquelas mãos africanas, onde os vincos pareciam sulcos de carroças num campo de terracota. Percebo imediatamente que é um mouro e um núbio e apetece-me mandado sair dos meus aposentos. Mas, ao mesmo tempo- também reconheço que ele é capaz de ser o único médico neste país que possui a sabedoria de que eu preciso.

O poro deste homem, infiéis e pecadores que viraram os seus negros rostos a Deus. tem medicamentos que nós não lemos. Por alguma razão. Deus e os anjos não nos revelaram a ciência que estas pessoas procuraram e encontraram. Eles leram em grego tudo o que os médicos gregos pensavam e depois exploraram por si pró­prios, com instrumentos proibidos, estudando o corpo humano, como se fosse o de um animal, sem medo ou respeito. Inventam teo­rias fantásticas com pensamentos proibidos e experimentam-nas, sem superstição. Estão preparados para pensar seja no que for reflectir sobre qualquer coisa, nada para eles é tabu. Estas pessoas são educadas, enquanto nós santos uns ignorantes, eu sou uma ignorante. Poderia olhar para ele com superioridade, como se pro­viesse de uma raça de selvagens, como um infiel, condenado ao Inferno, mas preciso de ter noção do que ele sabe. Se ele me disser.

-Eu sou Catarina, Infanta da Espanha e Rainha Catarina da Inglaterra'- digo eu rudemente, para que ele saiba que está a falar com uma rainha, a filha de uma rainha que derrotou o seu povo.

Ele inclina a cabeça, orgulhoso como um barão.

Eu sou Yusuf filho de Ismail - diz ele.

É um escravo?

Sou filho de um escravo, mas sou um homem livre.

A minha mãe não permitia a escravatura - digo-lhe. - Dizia que não era permitida pela nossa religião, a nossa religião cristã.

Apesar disso, mandou o meu povo para a escravidão - retor­quiu ele. - Talvez devesse ter tido em consideração que os grandes Princípios e as grandes intenções morrem na fronteira.

-Já que o seu povo não quer aceitar a salvação de Deus, não "'porta o que possa acontecer aos seus corpos mortais

O rosto dele iluminou-se. divertido, e soltou uma deliciosa e irreprimível risada.

- Para nós, importa, acho eu - diz ele. - A minha nação admite a escravatura, mas não a justificamos desse modo. E o mais importante de tudo, não se pode herdara a escravidão. Quando nas­cemos, seja qual for a condição da nossa mãe, nascemos livres. Essa é a lei, penso que é muito boa.

- Bem. não interessa o que pensa - digo eu rudemente - porque não tem razão!

Ele riu alto, de novo, verdadeiramente divertido, como se tivesse dito alguma coisa engraçada.

-Como deve ser bom ter sempre a certeza de que se tem razão - diz ele. - É possível que vós tenhais sempre a certeza da vossa razão. Mas eu gostaria de vos sugerir, Catarina da Espanha e Catarina da Inglaterra, que por vezes, é preferível saber as pergun­tas do que as respostas

Depois disto, hesito.

- Mas eu só preciso das suas respostas - digo - Sabe de medi­cina.'' Se uma mulher é capaz de conceber um filho ou não? Se ela está gravida?

- Por vezes pode saber-se- diz ele. - Outras vezes, está nas mãos de Alá. louvado seja o Seu santo nome, e às vezes, ainda não sabe­mos o suficiente para termos a certeza.

Ao ouvir o nome de Alá. benzo-me. tão depressa como uma velha que cospe numa sombra. Ele sorri com o meu gesto, sem se per­turbar minimamente.

- Que quereis saber? - pergunta ele, com a sua voz repleta de bondade. - O que quereis tanto saber, para terdes necessidade de mandar chamar um infiel para vos aconselhar? Pobre rainha, dei eis estar muito só. se necessitais da ajuda de um inimigo.

Os meus olhos começam rapidamente a encher-se de lágrimas, com a simpatia que há na sua voz. e eu faço-as desaparecer com a mão.

Perdi um filho - resumo eu. - uma filha. O meu médico diz que ela era um de dois gémeos, e que ainda há outra criança den­tro de mim. que haverá um novo parto.

Então, porque me mandaram chamar?

Eu quero ter a certeza - digo eu. - Se há outra criança, terei um novo parto, com toda a gente a observar-me. Quero saber se a criança que está dentro de mim. ainda está viva. se é um rapaz, e se irá nascer.

Por que motivo duvidais da opinião do vosso médico? Afasto os olhos do seu olhar inquiridor e honesto.

Não sei - digo deforma evasiva.

Infanta, penso que sabeis.

Como posso saber'-'

Com o instinto, próprio de uma mulher.

_ Não o tenho.

Ele sorri com a minha teimosia.

Bom. nesse caso, mulher sem instintos, o que vos diz a vossa inteligência, já que decidistes negar o que o vosso corpo vos diz?

Como é que eu sei o que devo pensar? - pergunto eu. - A minha mãe morreu. O meu melhor amigo na Inglaterra... - inter­rompo-me, antes que diga o nome de Artur. - Não tenho ninguém ciit quem possa confiar. Uma parteira diz uma coisa, outra diz uma coisa diferente. O médico tem a certeza... mas ele quer ter a certe-zci. O rei só o recompensa se as notícias forem boas. Como posso saber a verdade?

Era capaz de jurar que sabeis, mesmo que não o queirais reconhecer - insistiu ele. com gentileza. - O vosso corpo irá dizer--vos. Suponho que as vossa regras não tenham voltado a surgir.

Não, já sangrei - admito sem querer- na semana passada.

Com dor?

Sim.

Os vossos seios estão sensíveis'

Estavam.

Estão maiores do que o normal?

Não.

Sentis a criança? Ela move-se dentro de vós?

Não consigo sentir nada, desde que perdi a menina.

Sentis dores, agora? —Já não. Sinto...

Sim?

Nada, nao sinto nada.

Ele não diz nada, fica sentado calmamente, respirando com tanta suavidade que parece um gato preto, deitado ao meu lado, dormindo tranquilamente. Olha para Maria.

Posso tocar-lhe?

Não!— diz ela. - Ela é uma rainha. Ninguém pode tocar-lhe. Ele encolhe os ombros.

Ela é uma mulher, como outra qualquer. Quer ter um filho, como qualquer outra. Porque é que não posso tocar-lhe o ventre, como faria com outra mulher?

Ela é a rainha! - repete Maria. - Não pode ser tocada. Tem um corpo consagrado.

Ele sorri, como se a verdade sagrada fosse divertida.

-Bem, espero que alguém lhe tenha tocado, se não, não pode existir qualquer criança - responde ele.

-O marido, um rei consagrado - diz Maria com frieza. - Etende cuidado com a maneira como falais. Estes são assuntos sagrados.

- Se não a posso examinar, terei de dizer o que penso, basean-do-me apenas naquilo que vejo. Se ela não pode ser examinada, terá de se contentar com suposições.

Ele tira-se para mim.

- Se fosseis uma mulher normal, e não uma rainha, eu tomaria as vossas mãos nas minhas- Porquê?

- Porque é duro, o que tenho para vos dizer. Devagarinho, estendi as minhas mãos, com os dedos cheios de

valiosos anéis. Ele segura-as com delicadeza nas suas mãos escuras, macias como a pele de uma criança. Os seus olhos negros olham os meus sem receio, a sua expressão é terna, comovida.

Se tendes o período, o mais provável é que o vosso útero este­ja vazio - diz ele. - Não há criança nenhuma. Se os vossos seios não estão cheios, então é porque não se estão a encher de leite, o vosso corpo não se está a preparar para alimentar uma criança. Se não sentis a criança mexer dentro de vós, no sexto mês, ou a criança está morta, ou não está aí nenhuma criança. Se não sentis nada, então o mais provável é que não haja nada para sentir.

O meu ventre continua inchado - afasto a minha capa e mos­tro-lhe a curva da minha barriga, por baixo da camisa. - Está duro, e eu não sou gorda, estou como estava antes de perder a primeira criança.

Pode ser uma infecção - diz ele pensativo. - Ou - que Alá não o permita - pode ser um inchaço, um tumor. Ou pode ser um

aborto que ainda não foi expelido.

Eu retirei as minhas mãos das dele.

Estais a rogar-me uma praga!

Nunca! - diz ele. - Para mim, aqui e agora, vós não sois Catarina, Infanta da Espanha, mas apenas uma mulher que me pediu ajuda. Tenho pena, por vós.

Que grande ajuda! - Maria de Salinas interrompe-o zanga­da. - Que grande ajuda que nos destes!

De qualquer maneira, eu não acredito nisso - digo eu. - Essa é a sua opinião, o Dr. Fielding tem uma diferente. Porque haveria de acreditar mais em si. do que num bom cristão?

Ele olha para mim durante longo tempo, com um ar terno.

- Gostaria de vos poder dar uma opinião melhor - diz ele mas imagino que haja muitas pessoas que lhe possam dizer mentiras agradáveis. Penso que se deve dizer a verdade. Rezarei por vós.

-Não quero as suas preces pagãs - digo eu rudemente. - Pode ir embora, e leve a sua opinião negativa e as suas heresias consigo.

-Ficai com Deus. Infanta!- diz ele com dignidade, como se eu não o tivesse insultado, fazendo uma vénia. - E uma vez que não quereis as minhas preces ao meu Deus, louvado seja o Seu santo nome, espero, então que, quando chegar a vossa hora de aflição, o vosso médico esteja certo, e que o vosso Deus esteja convosco.

Eu deixo-o partir, silencioso como um gato negro, pela escadaria secreta, e não digo nada. Consigo ouvir o ruído das suas sandálias nos degraus de pedra, igual ao das passadas abafadas dos criados na minha casa. Ouço o sussurro da sua longa túnica, tão diferente do áspero roçar dos tecidos ingleses. Sinto o ar a perder gradualmente o aroma dele. o odor quente e picante da minha terra.

E quando se foi embora de vez, a porta do andar de baixo foi fechada e ouço Maria de Salinas rodar a chave na fechadura, para a trancar, nessa altura, percebo que só me apetece chorar- não ape­nas porque ele me deu tão más notícias, mas porque uma das poucas pessoas no mundo que alguma vez me disse a verdade se foi embora.

 

                             Primavera de 1510

Catarina não disse nada ao seu jovem marido acerca da visita do médico mouro, nem sobre a opinião negativa que ele. tão hones­tamente, lhe dera. Não mencionou a visita dele a ninguém, nem mesmo a Lady Margaret Fole. Agarrou-se à sua percepção de desti­no, ao orgulho e à esperança de que Deus ainda lhe concedia gra­ças especiais, e prosseguiu com a sua gravide/, não admitindo qual­quer dúvida, nem sequer a si própria.

Tinha boas razões para o fazer. O médico inglês. Dr. Fielding, continuava confiante, as parteiras não o contradiziam, a corte com­portava-se como se Catarina fosse ter uma criança em Março ou Abril. For isso, Catarina atravessou a Primavera, observando os jar­dins, que ficavam cada vez mais verdes e as árvores que se cobriam de folhas, com um sorriso sereno e a mão pousada suavemente sobre o ventre redondo.

Henrique andava entusiasmado com o iminente nascimento d° seu filho; planeava um grande torneio que se realizaria em Greenwich, mal a criança nascesse. O facto de ter perdido a filha, não o tornara mais cuidadoso e gabava-se. diante de toda a corte, de que uma criança saudável iria nascer, em breve. Só o tinham aconselhado a não dizer que ia ser um rapaz Dizia a toda a gente que não se importava que o seu primeiro filho fosse príncipe ou princesa - que iria amar esta criança por ser o primogénito, e p° ter surgido, para ele e para a rainha, no auge da sua felicidade

Catarina sufocou as suas dúvidas e. nem sequer a Maria de Salinas foi capaz de dizer que não sentira os pontapés do bebé, que sentia cada vez mais fria, que cada dia se sentia mais distante de tudo. Cada vez passava mais tempo de joelhos, na sua capela, mas peus não falava com ela; mesmo a voz da mãe parecia ter-se silen­ciado. Percebeu que sentia saudades de Artur - não com o apaixo­nado desejo de uma jovem viúva, mas porque ele fora o seu amigo mais querido na Inglaterra e o único a quem ela teria confiado as suas dúvidas naquele momento.

Em Fevereiro, assistiu aos grandes festejos da Terça-Feira de Entrudo, brilhando e rindo para toda a corte. Todos notaram a acen­tuada curva do seu ventre e viram a sua confiança, enquanto cele­bravam o início da Quaresma. Mudaram-se para Greenwich, con­vencidos de que a criança iria nascer logo a seguir à Páscoa.

Vamos para Greenwich para que o meu filho nasça lá. Os quartos estão a ser preparados de acordo com as instruções do "Livro Real", de Sua Alteza, a Avó do Rei - revestidos com tapeçarias com cenas agradáveis e encorajadoras, o chão é coberto com tapetes sobre os quais espalharam ervas aromáticas. Hesito, quando chego à porta e, por trás de mim, os meus amigos erguem os copos de vinho com especiarias. É aqui que cumprirei o meu maior dever para com a Inglaterra, é o momento do meu destino. Foi para isto que nasci e fui criada. Respiro fundo e entro. A porta fecha-se atrás de mim. Não voltarei a ver os meus amigos, o Duque de Buckingham, o meu que­rido cavaleiro Edward Howard, o meu confessor, o embaixador espanhol, até o meu filho nascer.

As minhas aias entram comigo. Lady Isabel Bolena coloca um incensário com um odor doce na minha mesa-de-cabeceira, Lady Isabel e Lady Ana, irmãs do duque de Buckingham, endireitam "ma tapeçaria, uma de cada lado, rindo, enquanto tentam descobrir se ela está mais inclinada para um lado ou para o outro. Maria de Salinas sorri, ao lado da cama, onde penduraram cortinas "oras e escuras. Lady Margaret Pole está a preparar o berço para o bebe. aos pés da cama. Ergue os olhos e ri-se para mim quando entro e eu lembro-me de que ela também é mãe, saberá o que deve ter feito.

- Quero que fiqueis encarregada do infantário real- disse-lhe a impiamente. A minha afeição por ela e a minha sensação de precisar dos conselhos e do carinho de uma mulher mais velha são demasiado fortes para mim.

Noto uma leve agitação e algum divertimento entre as minhas aias. Sabem que normalmente sou bastante formal e que este tipo de escolha devia surgir através do chefe da minha casa. depois de dezenas de pessoas terem sido consultadas.

Lady Margaret sorri para mim.

Eu sabia que isso ia acontecer- diz ela. falando num tom tão familiar como o meu. -Já estava a contar com isso.

Sem um convite real?- brinca. Lady Isabel Bolena. - Que vergonha, Lady Margaret! Insinuar-se dessa maneira!

Isto faz-nos rir a todas, com o ridículo de imaginar Lady Margaret, uma mulher tão digna, a tentar obter qtialcpier beneficio

-      Sei que olhareis por ele, como se fosse vosso filho - digo-lhe baixinho.

Ela pega na minha indo e ajuda-me a deitar. Sinto-me pesada e deselegante e tenho esta dor constante na barriga, que tento

esconder.

-      Se Deus quiser- diz ela calmamente.

Henrique vem despedir-se. O seu rosto está corado de emoção e a boca treme-lhe; parece mais um rapazinho do que um rei. Pego--lhe nas mãos e beijo-o ternamente na boca.

Meu amor - digo - rezai por mim. Tenho a certeza de que tudo vai correr bem para nós.

Irei á Nossa Senhora de Walsingham para agradecer- diz-me novamente. - Escrevi para convento das freiras e prometi-lhes grandes recompensas se elas intercederem por vós. junto de Nossa Senhora. Elas estão a rezar por vós, meu amor. Prometeram-me que iriam estar sempre a rezar.

Deus é bom - digo eu. Penso por momentos no médico mouro que me disse que não estava grávida e afasto a sua loucura pagã da minha mente. - Este é o meu destino, o desejo da minha mãe e a vontade de Deus.

Gostaria tanto que a vossa mãe pudesse estar aqui! - diz Henrique desajeitadamente.

Não deixo que me veja vacilar.    

Certamente - digo suavemente -, mas tenho a certeza de que ela está a tomar conta de mim. lá do al-Yanna - calo-me. antes de conseguir dizer as palavras -, do Paraíso - digo docemente do Céu.

Posso trazer-vos alguma coisa? - pergunta. - Antes ir embora, posso ir buscar-vos alguma coisa?

- Não me rio, ao pensar Henrique- que nunca sabe onde está nada - a fazer-me recados, nesta altura.

- Tenho tudo de que necessito - asseguro-lhe -, e as minhas aias cuidarão de mim.

Ele endireita-se, numa pose de rei, e olha em volta para elas.

- Sirvam bem a vossa ama - diz com firmeza, voltando-se depois para Lady Margaret. - Por favor, mandai-me chamar ime­diatamente, se houver notícias, a qualquer hora. de dia ou de noite.

Depois, despede-se muito carinhosamente de mim. com um beijo e. quando sai. elas fecham a porta e eu fico sozinha com as minhas aias. no retiro para o meu parto.

listou contente por estar em retiro. O quarto, sossegado e sem muita luz. será o meu porto de abrigo, posso descansar durante algum tempo, na companhia familiar das minhas aias. Posso parar de representar o papel de uma rainha fértil e confiante, e ser eu mesma. Ponho de lado todas as dúvidas. Não quero pensar, nem preocupar-me. Vou esperar, pacientemente, até que o meu filho che­gue e então, dá-lo-ei à luz. sem medo e sem gritar. Quero acreditar que esta criança, que sobreviveu ã perda do seu gémeo, será um bebé forte, li eu, que sobrevivi à perda do meu primeiro filho, serei uniu mãe corajosa. Talvez seja verdade que tenhamos conseguido superar a dor e a perda juntos, esta criança e eu.

Espero. Espero durante todo o mês de Março e peço-lhes que tirem a tapeçaria que cobre a janela, para que eu possa sentir o cheiro da Primavera que anda no ar e ouvir as gaivotas, quando elas gritam por cima das grandes marés, no rio.

Nada parece estar a acontecer, nem com o meu bebé, nem comigo. As parteiras perguntam se lenho dores, e eu não tenho. Nada, para além daquela dor maçadora que já tenho há muito tempo. Perguntam se a criança tem dado pontapés, se a sinto dar-me pontapés, mas. j>ara dizer a verdade, não compreendo o que onerem dizer, lilás olham umas para as outras e dizem muito alio. com grande ênfase, que isso é um bom sinal, que um bebé calmo e "'" oebé forte, que ele deve estar a descansar.

Afasto imediatamente de mim a preocupação que tenho sentido desde o início desta segunda gravidez. Não quero pensar no aviso do médico mouro, nem na compaixão do seu rosto. Estou decidida a não me deixar dominar pelo medo, a não correr atrás da desgraça. Mas Abril chega, e eu consigo ouvir o tamborilar da chuva nas janelas,' depois sinto o calor do sol, e continua a não acontecer nada. Os meus vestidos, que me estavam tão apertados na barriga durante o Inverno, estão muito mais largos em Abril e vão-me ficando cada vez mais largos. Mando sair todas as aias excepto Maria - desaperto o vestido, mostro-lhe a minha barriga e pergunto-lhe se acha que estou a perder cintura.

- Não sei - diz ela, mas posso ver pela aflição do seu rosto que a minha barriga está mais pequena, que é óbvio que não há lá detj tro qualquer criança, pronta para nascer.

Ao fim de mais uma semana, torna-se evidente para toda a gente que a minha barriga está a diminuir, que estou a ficar novamente magra. As parteiras tentam dizer-me que. por vezes, a barri­ga das mulheres diminui, pouco antes do parto, uma vez que a criança desce, para poder nascer, ou qualquer outra teoria do géne­ro. Olho friamente para elas, e sinto que gostaria de poder mandar chamar um médico decente, que me possa dizer a verdade.

- A minha barriga está mais pequena e as minhas regras voltaram, hoje mesmo - digo-lhes sem preconceitos. - Estou a perder sangue. Como vocês sabem, tenho sangrado todos os meses, desde que perdi a menina. Como é que posso estar grávida?    

Elas torcem as mãos e não conseguem dizer nada. Não sabem. Dizem-me que devo fazer estas perguntas ao respeitável médico do meu marido. Eora ele a dizer, em primeiro lugar, que eu tinha outra criança, não elas. Elas nunca haviam dito que eu estava grá­vida, haviam sido chamadas apenas para me assistir no parto. Não haviam sido elas quem dissera que eu estava à espera de tuna criança.

- Mas o que é que pensaram, quando ele disse que havia um gémeo? - pergunto. - Não é verdade que concordaram, quando ele disse que eu tinha perdido uma criança mas que mantivera a outra!1

As mulheres abanaram a cabeça, não sabiam.

- Devem ter pensado alguma coisa! - digo com impaciência. -Viram-me perder o bebé, viram a minha barriga continuar grande. O que pode ter causado isso, a não ser outra criança?

- A vontade de Deus! - diz uma delas, desanimadamente.

-Amém!- digo eu, e custa-me bastante dizê-lo.

-Quero falar outra vez com aquele médico - disse Catar calmamente, a Maria de Salinas.

Vossa Graça, pode dar-se o caso de não estar em Londres, viaja com o séquito de um conde francês. Pode já ter partido.

_ Tentai descobrir se ele ainda está em Londres, ou quando esperam que regresse - disse a rainha. - Não deveis dizer a nin­guém que fui eu que perguntei por ele.

Maria de Salinas olhou com simpatia para a sua ama.

- Quereis que ele vos aconselhe sobre o que deveis fazer para terdes um filho? - perguntou em voz baixa.

- Não há nenhuma universidade na Inglaterra onde se estude a medicina! - disse Catarina com amargura. - Não há uma única que ensine línguas. Nenhuma ensina astronomia ou matemática, geo­metria, geografia, cosmografia, nem sequer há o estudo dos animais ou das plantas. As universidades da Inglaterra têm tanta utilidade como um mosteiro, cheio de monges que passam o seu tempo a colorir as margens dos textos sagrados.

Maria de Salinas deu um pequeno suspiro, chocada com a audácia de Catarina.

- A Igreja diz...

A Igreja não precisa de médicos competentes. A Igreja não precisa de saber como se concebem os filhos - interrompeu Catarina. - A Igreja pode continuar com as revelações dos santos, não precisa de nada, para além de escrituras. A Igreja é formada por homens que não estão preocupados com as doenças e as dificulda­des das mulheres. Mas para aqueles que estão a fazer a sua pere­grinação, hoje, aqueles que vivem no mundo, especialmente as mulheres - é preciso um pouco mais.

Mas vós haveis dito que não aceitaríeis sabedoria pagã. Disseste-lo mesmo, ao próprio médico, e ainda, que a vossa mãe tivera razão ao fechar as universidades dos infiéis.

A minha mãe teve seis filhos - respondeu Catarina zangada. - Mas eu digo-vos, se ela tivesse encontrado um médico que pudes­se salvar o meu irmão, tê-lo-ia chamado, nem que ele tivesse sido ensinado no próprio Inferno. Ela errou ao voltar as costas à sabe­doria dos Mouros. Estava enganada. Nunca pensei que ela fosse per­feita, mas agora, a minha consideração por ela diminuiu. Cometeu um grande erro ao expulsar os sábios professores mouros, junta­mente com as suas heresias.

A própria Igreja disse que os seus ensinamentos são uma heresia - fez Maria notar. - Como poderia existir uma coisa sem a outra?

Tenho a certeza de que não sabeis nada sobre o assunto -disse a filha de Isabel, quando se sentiu encurralada. - Não é um tema que deva ser discutido por vós e, além disso, já vos disse o que quero que façais.

O mouro. Yusuf não se encontra em Londres, mas as pessoas da casa onde se costuma alojar dizem que já reservou aposentos pois vai regressar dentro de uma semana. Tenho de ter paciência Vou esperar, no meu retiro, e tentar ser paciente.

Ele é muito conhecido, informa a criada de Maria. As suas i e vindas são um acontecimento naquela rua. Os africanos são raros na Inglaterra que se transformam num espectáculo - e ele é um homem bonito, generoso, sempre a dar pequenas moedas, por serviços insignificantes. Contaram à criada de Maria que ele exige sempre água limpa no quarto, para se lavar, que se lava todos os dias, várias vezes ao dia, e que - maravilha, das maravilhas - toma banho, três ou quatro vezes por semana, usando sabão e toalhas, espalhando água pelo chão todo, uma grande inconveniência para, as criadas da casa e um perigo para a sua própria saúde.

Não consigo deixar de rir quando imagino aquele mouro, alto e fastidioso, dobrando-se todo para entrar numa banheira, ansioso por um banho de vapor, um banho tépido, uma massagem, um chuveiro frio e depois, um longo e meditativo descanso, fumando o seu cachimbo de água, enquanto bebe um chá de menta, forte e doce. Faz-me recordar o meu horror, quando cheguei a Inglaterra e descobri que os Ingleses quase nunca tomam banho e só lavam as pontas dos dedos, antes de comer. Parece-me que ele foi mais inteligen­te do que eu - trouxe consigo o amor pela sua terra, e reconstrói sua "casa", em qualquer lugar onde esteja. Na minha ânsia de ser Rainha Catarina da Inglaterra, desisti de ser Catarina da Espanha.

Trouxeram o mouro, a coberto da escuridão, até ao quarto no qual Catarina estava em retiro. À hora combinada, ela mandou sair as aias, dizendo que queria ficar só. Estava sentada na sua cadeira junto da janela de onde tinham retirado as tapeçarias para deixar entrar o ar. Quando entrou, a primeira coisa que ele viu, quando ela se levantou, foi a sua esguia silhueta, iluminada pela luz das velas contrastando com a escuridão da janela. Ela notou o pequeno gesto de simpatia no rosto dele.

Não havia criança nenhuma.

Não - disse ela. - Amanhã vou sair do meu retiro.

Tendes dores?

Nenhuma.

Bem, fico contente por isso. Estais a sangrar?

Tive o meu período normal, na semana passada. Ele assentiu com a cabeça.

Nesse caso, deveis ter tido uma doença que já passou – disse ele, - Deveis estar em condições de conceber outra criança. Não deveis perder a esperança.

Eu não desespero - disse ela secamente. - Nunca perco a esperança. Foi por isso que o mandei chamar.

Quereis conceber uma criança, o mais depressa possível -calculou ele.

Sim.

Ele ficou a pensar durante alguns momentos.

Bem. Infanta, uma vez que já houve uma criança, mesmo que não a tenhais conseguido levar até ao termo, sabemos que vós e o vosso marido são férteis. Isso já é bom.

Sim - disse ela, surpreendida com a ideia. Ficara tão depri­mida com o aborto, que nem se lembrara que a sua fertilidade tinha ficado comprovada. - Mas por que razão falais da fertilidade do meu marido?

O mouro sorriu.

É preciso um homem e uma mulher para conceber uma criança.

Aqui, na Inglaterra, pensam que é só a mulher.

Pois. mas nisto, como em tantas outras coisas, estão errados. Todo o bebé necessita de duas partes: o sopro da vida que vem do homem e a dádiva da mãe, a carne.

Dizem que. quando se perde uma criança, a culpa é da mulher, que talvez ela tenha cometido um grande pecado.

Fie franziu a testa.

E possível - anuiu - mas pouco provável. Por essa ordem de ideias, como é que as assassinas poderiam alguma vez dar à luz? Porque teriam animais inocentes de ter abortos? Penso que, daqui a algum tempo, vai ser possível descobrir que há humores e infecções que provocam o aborto. Eu não culpo as mulheres, isso não faz qualquer sentido para mim.

Também dizem que se uma mulher é estéril, é porque o seu casamento não foi abençoado por Deus.

- Falais do vosso Deus — respondeu ele, racionalmente. -

Credes que Ele seria capaz de tornar uma mulher infeliz, só para

provar que é Ele quem decide? Catarina não respondeu.

Todos me irão culpar, se eu não conseguir dar à luz urna criança viva - observou ela, muito baixinho.

Eu sei - disse ele -, mas a verdade é esta: tendo tido urna criança, mesmo que se tenha perdido, há todos os motivos para pensar que podeis ter outra. E creio que não deve existir qualquer razão para que não possais conceber novamente.

Tenho de conseguir levar a próxima criança até ao fim do tempo.

Se pudesse examinar-vos, poderia saber mais. Ela abanou a cabeça.

Não é possível.

O olhar que ele lhe lançou era alegre.

-Ah, vocês, que selvagens! - disse suavemente. Divertida, ela soltou um pequeno suspiro como se tivesse fie

do chocada.

Esquece-se de quem é!

Nesse caso. mandar-me embora. Isto fê-la parar.

Pode ficar - disse ela -, mas é claro que não me pode observar.

- Nesse caso, vamos pensar no que vos poderá ajudar a con­ceber e a ter uma criança - disse. - O vosso corpo precisa de estar

forte. Costumais andar a cavalo?

Sim.

Podeis cavalgar á vontade antes de conceber, mas depois, deveis usar uma liteira. Caminhai todos os dias, nadai, se possível. Podereis conceber uma criança, cerca de duas semanas após o fim das vossas regras. Descansai, nesses dias, e fazei os possíveis por estardes com o vosso marido, nessa altura. Tentai comer moderada­mente em cada refeição e tentai beber o mínimo possível daquela maldita cerveja.

Catarina sorriu, por ver nele o reflexo dos seus próprios pre­conceitos.

Conhece a Espanha?

Nasci lá. Os meus pais fugiram de Málaga quando a vossa mãe trouxe a Inquisição e compreenderam que iriam ser tortura

até à morte.

Lamento - disse ela, sentindo-se pouco à vontade.

Mas, voltaremos, está escrito - disse ele num tom seguro despreocupado.

Devo avisá-lo de que isso não vai acontecer.

Eu sei que vai. Eu próprio vi a profecia. Ficaram ambos calados.

- Devo dizer-vos o que aconselho? Ou é melhor ir já embora? perguntou ele, como se a resposta lhe fosse indiferente.

- Diga - disse ela - e depois vou pagar-lhe, e pode ir embora. Nascemos para ser inimigos, não o deveria ter mandado chamar.

-     Somos ambos espanhóis, ambos amamos o nosso país. Ambos servimos a Deus. Talvez tenhamos nascido para ser amigos.

Ela teve de se controlar para não lhe dar a mão.

Talvez - disse com aspereza, virando a cabeça -, mas fui ensinada a odiar o seu povo e a sua fé.

A mim, ensinaram-me a não odiar ninguém - disse ele gen­tilmente. - Talvez seja essa a primeira coisa que eu vos deva ensi­nar, antes de tudo.

Ensine-me apenas o que fazer para ter um filho - repetiu.

Muito bem. Bebei apenas água que tenha sido fervida, deveis comer toda a fruta e os legumes que puderdes encontrar. Tendes aqui legumes para fazer saladas?

Por momentos volto ao jardim de Ludlow e ele olha para mim. com os seus olhos brilhantes.

Acetaria?

Sim, salada!

Que é isso, exactamente?

Ele reparou no brilho da face da rainha.

- Em que estais a pensar?

- No meu primeiro marido. Disse-me que eu podia mandar vir Jardineiros que plantassem legumes para salada, mas nunca o fiz.

- Eu tenho sementes - disse surpreendentemente o mouro. - Posso dar-vos algumas e podereis cultivar os legumes de que necessitais.

-Tem sementes?

Sim, tenho.

E seria capaz de mas dar... de mas vender?

Sim, seria capaz de vos dar as sementes. Por instantes emudeceu, perante a generosidade dele.

É muito bondoso - disse, por fim. Ele sorriu.

Somos ambos espanhóis e estamos muito longe de casa. Será que isso não é mais importante do que o facto de eu ser negro e vós serdes branca? De que eu adore o meu Deus virado para Meca e de vós adorardes o vosso voltada para o Ocidente?

Eu sou filha da religião verdadeira e vos sois um infiel - disse Catarina com menos convicção do que habitualmente.

Somos ambos pessoas de fé - disse ele calmamente. - Os nossos inimigos deveriam ser aqueles que não têm fé, nem em Deus. nem nos outros, nem neles próprios. As pessoas que deve­riam ter de enfrentar a nossa cruzada, são aqueles que enchem o mundo de crueldade, sem outro motivo, a não ser quererem alcan­çar o poder para si mesmos. Há suficiente pecado e maldade contra que lutar; não há razão para se pegar em armas contra povos que crêem num Deus misericordioso e que tentam levar uma vida boa.

Catarina não sabia o que responder. Por um lado, estavam os ensinamentos da sua mãe, por outro, estava a bondade simples que irradiava daquele homem.

Não sei! - disse, finalmente, e foi como se as próprias palavras a tivessem libertado. - Não sei, teria de colocar a Deus essa questão, teria de Lhe pedir que me guiasse. Não quero fingir que sei.

Ora, esse é o verdadeiro princípio da sabedoria - disse ele, com gentileza. - Disso, pelo menos, tenho a certeza. Reconhecer que não sabemos é perguntar com humildade, não é responder com arrogância. Este é o princípio da sabedoria. Agora, vamos ao que e importante. Vou para casa, e farei uma lista com as coisas que não deveis comer e enviarei alguns medicamentos para fortificar os vos­sos humores. Não permitais que vos coloquem ventosas, não deixeis que usem sanguessugas e não permitais que vos convençam a tomar quaisquer venenos ou poções. Sois uma mulher jovem que tem um marido jovem. O bebé há-de chegar.

Foi como uma bênção.

Está seguro? - disse ela.

Tenho a certeza - respondeu ele. - E muito em breve.

 

                     Palácio de Greenwich, Maio de 1510

Mando chamar Henrique, devo ser eu a dizer-lhe. Ele vem sem grande vontade. Encheram-no de receios em relação aos segredos das mulheres, das coisas que só dizem respeito às mulheres e não gosta de entrar num quarto que foi preparado para um parto. Mas, há mais qualquer coisa: uma falta de carinho, que noto no seu rosto, voltado para outro lado. É o modo com que evita o meu olhar. Mas não posso estar a confrontá-lo em relação à sua frieza para comigo, quando tenho tão más notícias para lhe dar antes. Lady Margaret deixa-nos a sós, fechando a porta atrás de si. Sei que vai impedir que alguém fique lá fora, a tentar ouvir. Todos irão saber, em breve.

- Meu esposo, lamento, mas tenho tristes notícias para vos, dar - digo eu.

Encara-me com um ar preocupado.

- Percebi que não devia ser nada de bom, quando Lady Margaret me foi chamar.

Não resolve nada ficar irritada, terei de me controlar, bem como a ele.

Não estou grávida - digo eu abruptamente. - O médico deve ter-se enganado. Só havia uma criança, e essa, perdi-a. Este retiro foi um erro. Amanhã, regresso ã corte.

Como é que ele se pode enganar numa coisa destas?

Eu encolho ligeiramente os ombros. Apetecia-me dizer: porque ele e um ignorante e um vaidoso e trabalha para vós. E vós rodeais--vos de pessoas que só vos dão as notícias boas, pois têm medo de vos dar cts más. Mas, em vez disso, digo numa voz neidra: "Deve ter-se enganado".

-Vou fazer figura de idiota.'- explodiu ele. - Estivestes fora da coite durante quase três meses, e não há nada para o justificar.

Durante alguns momentos não consegui dizer nada. Não adiantava desejar estar casada com um homem que se preocupasse com mais alguma coisa, para além da sua aparência, um homem que pudesse pensar em mim, em primeiro lugar.

~ Ninguém vai pensar absolutamente nada - digo eu com fir­meza. - Se disserem alguma coisa vai ser que eu é que sou uma idiota. Por não saber se estava ou não grávida. Mas, pelo menos, tivemos um bebé, o que significa que poderemos ter outro.

- A sério?- pergunta, já esperançado. - Mas porque será que a perdemos? Deus está desagradado connosco? Teremos cometido algum pecado? Isto é um sinal de que Deus está zangado.

Mordo o lábio inferior para não lhe repetir a pergunta do mouro: "Será que Deus é tão vingativo ao ponto de matar uma criança inocente para castigar os pais por um pecado tão venial que eles nem sabiam que tinham cometido?"

A minha consciência está tranquila - digo com firmeza

A minha também! - diz ele rapidamente, depressa de mais

Mas a minha consciência não está tranquila. Nessa noite, ajoelho-me em frente da imagem do senhor crucificado e. ao menos desta vez, rezo a sério, não sonho com Artur nem recorro ã memória que tenho da minha mãe. Fecho os olhos e rezo.

"Senhor, foi uma promessa feita a um moribundo", digo lenta­mente. "Ele pediu-mo. Era para o bem da Inglaterra. Para guiar o reino e o novo rei nos cantinhos da Igreja. Era para proteger a Inglaterra dos Mouros e do pecado. Sei que me trouxe riqueza e o trono, mas não o fiz por interesse. Se é um pecado, então, mostrai--mo agora, Senhor. Se eu não devo ser sua mulher, dizei-mo agora. Porque eu creio que procedi bem, julgo que estou a fazer o que é certo. E acredito que não me iríeis tirar o meu filho, só para me cas­tigar por isso. Creio que sois um Deus de misericórdia e penso que fiz o que é certo, por Artur, por Henrique, pela Inglaterra e por mim."

Sento-me nos calcanhares e espero durante bastante tempo, uma hora. talvez mais. para o caso de o meu Deus, o Deus da minha mãe, querer falar comigo, na Sua raiva.

Mas Ele não fala.

Por isso, vou continuar a assumir que estou a fazer o que é certo. Artur tinha razão quando me exigiu a promessa, eu estava certa quando disse a mentira, a minha mãe estava certa quando me disse que eu seria Rainha da Inglaterra, por vontade de Deus e,

aconteça o que acontecer, nada mudará isso.

Lady Margaret Pole vem sentar-se junto de mim. esta noite, a minha última noite no retiro, e senta-se no banco, do outro lado da mrttseira, suficientemente perto para que não nos possam ouvir.

- Tenho uma coisa para vos dizer- diz ela.

Olho para ela, e o seu rosto está tão calmo, que percebo ime­diatamente que alguma coisa má aconteceu

- Dizei - digo imediatamente.

Ela faz um pequeno gesto de desgosto.

Lamento trazer-vos o diz-que-diz da corte.

Muito bem, falai.

É sobre a irmã do Duque de Buckingham.

- Isabel? - pergunto-lhe, pensando na bela jovem que viera ter comigo quando soube que eu ia ser rainha e me pediu para ser minha dama de companhia.

- São, Ana.

Aceno que sim, com a cabeça. É a irmã mais nova de Isabel, uma rapariga de olhos negros, com uni jeito brincalhão e que adora a companhia masculina. É muito popular na corte, entre os rapazes mas - pelo menos quando estou presente - comporta-se com toda a graça recatada de uma jovem das melhores famílias do país, ao ser­viço da rainha.

- O que se passa com ela?

- Tem andado com William Compton, sem dizer a ninguém. Têm tido encontros. O irmão dela está muito aborrecido. Contou ao marido dela e ele ficou furioso por ela estar a pôr em risco a sua reputação e o nome dele, num namorico com o amigo do rei.

Penso no assunto por alguns momentos. William Compton é um dos mais insensatos amigos de Henrique e os dois são insepa­ráveis.

William só deve estar a divertir-se - digo eu. - É um quebra--coraçòes.

Acontece que deram por falta dela durante um espectáculo de "lascaras, uma vez, durante o jantar e outra vez, o dia inteiro. Viando a corte estava a caçar.

Abano a cabeça, em concordância. Isto já é muito mais sério.

-Há algum indício de que eles sejam amantes? Bia encolhe os ombros.

~O irmão dela. Edward Stafford, está furioso, naturalmente. Foi queixar-se a Compton e houve uma discussão. O rei defendeu Compton.

Aperto os lábios para não deixar escapar uma crítica, de tão irritada que fico. O Duque de Buckingham é um dos mais antigos amigos tia família Tudor, com enormes propriedades e muitos cria dos. Foi ele que me recebeu, juntamente com o príncipe Henrique ha tantos anos, e agora, é considerado pelo rei. como o homem mais importante do país. Tem sido um bom amigo para mim desde essa época. Mesmo quando eu tinha sido desprezada, recebia sempre dele um sorriso e uma palavra bondosa. Todos os anos. no Verão, me fazia uma oferta de caça e havia semanas em que essa era a única carne que víamos. Henrique não pode discutir com ele. como se ele fosse um comerciante e Henrique um rude lavrador. Estamos a falar do rei e do mais importante homem de estado da Inglaterra. O velho rei Henrique não teria sequer conseguido conquistar o trono, sem a ajuda de Buckingham. Um desentendimento entre os dois não é um assunto privado, é um desastre nacional. Se Henrique tivesse um mínimo de bom senso não se teria envolvido nessa discussão entre os seus insignificantes cortesãos. Lady Margaret acena-me com a cabeça, não preciso de lhe dizer nada, compreendeu que desaprovo.

- Será que não posso deixar a corte por um momento sem que as minhas aias saltem pelas janelas dos seus quartos para correr atrás de homens?

Ela inclina-se para a frente e dá-me uma pequena palmada na mão.

Parece que não. É uma corte jovem e insensata, Vossa Graça, e precisam de vós para os controlar. O rei disse palavras muito desa­gradáveis ao Duque, e este está muito ofendido. William Compton diz que não falará do assunto com ninguém, por isso todos pensam o pior. Ana foi praticamente aprisionada pelo marido, Sir George, e nenhuma de nós a viu hoje. Desconfio que quando sairdes do vosso retiro ele não a vai deixar continuar ao vosso serviço e aí. a vossa honra também será envolvida - faz uma pausa. - Achei que devíeis saber agora, em vez de serdes surpreendida por tudo isto, amanhã de manhã. Embora seja contra o meu feitio ser a portadora deste tipo de histórias.

É ridículo! - digo eu. - Tratarei do assunto amanhã quando sair do retiro. Mas, de facto, o que estão eles todos a pensar? Que isto é o recreio duma escola? William devia ter vergonha e surpreende--me que Ana tenha esquecido a sua posição para andar atrás dele. E quem é que o marido dela pensa que é? Algum cavaleiro de Camelot, para a prender numa torre?

A rainha Catarina saiu do seu retiro sem aviso e regressou aos seus aposentos habituais no Palácio de Greenwich. Não poderia haver cerimónias religiosas para assinalar o seu regresso á vida normal, uma vez que nenhuma criança tinha nascido. Não iria haver um baptizado, pois não havia qualquer criança para baptizar. Catarina abandonou o seu quarto escuro sem que se comentasse, como se ela tivesse tido alguma doença secreta e vergonhosa e todos agiam como se ela tivesse estado fora apenas algumas horas, em vez dos quase três meses de ausência.

As suas damas de companhia, que se tinham habituado a uma vida descansada, durante o retiro da rainha, apareceram relativa­mente depressa nos seus aposentos e as criadas apressaram-se a espalhar ervas frescas e a colocar velas novas.

Catarina detectou vários olhares furtivos entre as suas damas e presumiu que, também elas, tinham a consciência pesada devido a maus comportamentos durante a sua ausência, mas depois reparou que as conversas sussurradas paravam sempre que levantava a cabeça. Era claro que alguma coisa se passara, mais grave do que o problema de Ana, e tornava-se ainda mais evidente que ninguém lhe queria dizer nada.

Fez sinal a uma das aias. Lady Madge, para que se aproximasse.

- Lady Isabel não vem ter connosco esta manhã? - perguntou, quando reparou que não havia sinal da mais velha das irmãs Stafford.

A rapariga corou até às orelhas.

- Eu não sei - gaguejou. - Penso que não.

- Onde é que ela está? - perguntou Catarina. A rapariga olhou desesperadamente em volta, à procura de

ajuda, mas todas as outras damas na sala ficaram, subitamente, muito interessadas na costura, nos seus bordados ou nos seus livros. Isabel Bolena dava as cartas, prestando enorme atenção ao que fazia, como se tivesse apostado uma fortuna naquele jogo.

Não sei onde ela está - confessou a rapariga.

Talvez na casa de banho? - sugeriu Catarina. - Nos aposentos do Duque de Buckingham?

Parece-me que ela se foi embora - disse a rapariga rudemente. Ouviu-se um ligeiro arfar e depois ficou tudo em silêncio.

- Foi-se embora? - Catarina olhou em volta. - Alguém me pode dizer o que se passa? - perguntou, num tom razoavelmente alto. - Para Onde foi Lady Isabel? E como é que saiu sem a minha autorização?

A rapariga deu um passo atrás. Nesse momento, Lady Margaret Pole entrou na sala.

- Lady Margaret - disse Catarina alegremente -, Madge está dizer-me que Lady Isabel deixou a corte sem a minha autorização sem se despedir de mim. O que se passa?

Catarina sentiu o seu sorriso divertido gelar no seu rosto quan do a sua velha amiga abanou ligeiramente a cabeça e Madge ali viada, voltou para o seu lugar.

- O que se passa? - perguntou Catarina, de uma maneira mais calma.

Embora parecesse que não se tinham movido, todas as damas se inclinaram para a frente, para ouvirem o que Lady Margaret tinha para dizer, acerca dos últimos acontecimentos.

Creio que o rei e o Duque de Buckingham tiveram uma forte discussão - disse Lady Margaret suavemente. - O Duque abandonou a corte e levou ambas as irmãs com ele.

Mas elas são minhas damas de companhia, estão ao meu ser­viço. Não podem ir embora sem minha autorização.

Foi um grave erro, da parte delas, de facto - disse Margaret. Alguma coisa, na maneira como ela torcia as mãos no regaço e no seu olhar, tão fixo e calmo, avisaram Catarina de que não devia insistir.

Então o que têm feito durante a minha ausência? - pergun­tou Catarina, voltando-se para as damas, na tentativa de aliviar o ambiente da sala.

De repente, ficaram todas com um ar submisso.

Aprenderam canções novas? Dançaram em algum baile de máscaras? - perguntou Catarina.

Eu aprendi uma canção nova - informou uma das raparigas. - Quereis que a cante?

Catarina concordou e imediatamente uma das outras mulheres pegou num alaúde. Parecia que todas tinham pressa em distraí-la. Catarina sorriu e foi marcando o ritmo com a mão. no braço da cadeira. Percebia, como mulher nascida e criada numa corte de cons­piradores, que havia, de certeza, qualquer coisa de muito errado.

Ouviu-se o ruído de pessoas que se aproximavam e os guardas de Catarina abriram a porta para o rei e a sua corte passarem. As damas levantaram-se, sacudiram as saias e morderam os lábios, para os tornar vermelhos, brilhando de ansiedade. Alguém riu alegre­mente sem motivo. Henrique entrou, ainda com as roupas de mon tar, rodeado pelos amigos, de braço dado com William Compton.

Catarina reparou, mais uma vez, que havia alterações no com­portamento do marido. Quando entrou, não a abraçou, nem a e jou na cara. Não veio até ao centro da sala para lhe fazer uma vénia, ­entrou, agarrado ao seu melhor amigo, parecendo que se escon­diam um atrás do outro, como rapazinhos apanhados a fazer uma asneira: meio envergonhados, meio fanfarrões. Vendo o olhar críti­co de Catarina, Compton afastou-se atrapalhado, e Henrique cum­primentou a esposa sem entusiasmo, com olhos baixos, pegando--lhe na mão e beijando-a na face, não na boca. -Já estais bem, agora? - perguntou ele.

Sim - disse calmamente. - Estou muito bem. E vós, como estais, senhor?

Oh! - disse ele despreocupadamente. - Estou bem. Tivemos uma grande caçada esta manhã. Gostaria que pudésseis ter estado connosco. Parece-me que chegamos até metade do caminho para Sussex.

Amanhã irei - prometeu-lhe Catarina.

Será que já estais em condições de o fazer?

- Estou perfeitamente bem - repetiu. Ele pareceu aliviado.

-Pensei que iríeis ficar doente durante muitos meses - deixou ele escapar.

Sorrindo, ela abanou a cabeça, tentando imaginar quem lhe teria dito aquilo.

- Vamos quebrar o jejum - disse ele. - Estou esfomeado. Pegou na mão dela e conduziu-a para o salão principal. A corte

seguiu, informalmente, atrás deles. Catarina podia ouvir o zunzum muito excitado dos sussurros. Inclinou a cabeça para o lado de Henrique para que ninguém ouvisse as suas palavras:

- Ouvi dizer que tem havido algumas discussões na corte.

- Oh, já vos falaram da nossa pequena tempestade? - disse ele. Falava alto de mais e estava demasiado jovial. Estava a repre­sentar o papel de um homem que não tinha qualquer peso na consciência. Lançou uma risada por cima dos ombros e procurou alguém que se juntasse ao seu divertimento forçado. Meia dúzia de homens e mulheres começaram a sorrir, ansiosos por compartilhar o seu bom humor. - É importante, mas, ao mesmo tempo, não tem importância nenhuma. Tive uma discussão com o vosso grande amigo. o Duque de Buckingham. Ele deixou a corte, num acesso

€ fúria! - Voltou a rir-se, ainda com mais vontade, olhando de lado para ela. para ver se ela se ria, tentando avaliar se já saberia de tudo.

- A sério? - perguntou ela friamente.

- Ele insultou-me - disse Henrique, mostrando um ar ofendido. Pode ficar longe, até estar preparado para me pedir desculpa.

É um homem tão vaidoso, vós sabeis. Acha sempre que sabe tudo E a sua irritante irmã. Isabel, também pode ir.

Ela é uma boa clama de companhia e uma amiga generosa para mim - observou Catarina. - Estava à espera que me viesse cumprimentar hoje. Não tenho qualquer problema com ela nem com a irmã, Ana. Penso que vós também não!

Em todo o caso, estou muito desagradado com o irmão delas — disse Henrique. - Podem ir todos embora.

Catarina calou-se e respirou fundo:

- Ela e a irmã fazem parte do meu séquito - observou. - tenho o direito de escolher e despedir as minhas próprias aias.

Ela viu um rápido clarão do seu temperamento infantil.

- Deveis fazer-me o favor de as mandar embora do vosso séquito! Sejam quais forem os vossos direitos. Espero não ter de dis­cutir direitos convosco!

Por trás deles, a corte ficou imediatamente em silêncio. Todos queriam ouvir a primeira discussão real.

Catarina soltou a mão e deu a volta à mesa principal, para ocu­par o seu lugar. Isso deu-lhe uns minutos para se lembrar que devia acalmar-se. Quando ele veio para o seu lugar, junto do dela, ela res­pirou fundo e sorriu para ele:

Como quiserdes - disse serenamente. - Não tenho grandes preferências nesse assunto. Mas, como posso organizar uma corte como deve ser, se despeço jovens mulheres de boas famílias que não fizeram nada de errado?

Não tendes estado aqui, por isso não fazeis ideia do que ela fez ou não! - Henrique andava à procura de um motivo para se queixar, e descobriu um. Fez um gesto com a mão, autorizando a corte a sentar-se, e deixou-se cair na sua cadeira:

- Vós haveis decidido encerrar-vos, longe daqui, durante meses. Que podia eu fazer sem vós? Como é que quereis que os assuntos possam ser bem geridos se vos ides embora, deixando tudo para trás?

Catarina abanou a cabeça, mantendo uma expressão abso­lutamente serena. Tinha completa noção de que os olhos de toda a corte estavam postos nela, como vidro a arder sobre papel fino:

- Não estive fora por divertimento - observou ela.

- Tem sido muito desagradável para mim - disse ele, pegando nas palavras dela -, muito desagradável. Está tudo muito bem para vós, ficar de cama durante semanas a fio, mas como pode a corte ser dirigida sem uma rainha? As vossas damas ficaram sem disciplina, ninguém sabia como se deviam fazer as coisas, eu não vos podia ver tive de dormir só... - calou-se.

Catarina compreendeu, tardiamente, que a jactância dele escondia uma genuína sensação de sofrimento. No seu egoísmo, transformara o longo período de dor e receio que ela tivera de suportar numa dificuldade para si próprio. Chegara à conclusão de que o retiro dela, sem resultado visível, fora uma forma voluntária de o abandonar, de o deixar sozinho a dirigir uma corte desequili­brada; aos olhos dele, ela deixara-o e desapontara-o.

Parece-me que, no mínimo, deveis fazer o que vos peço — disse ele rabugento. - Já tive problemas suficientes, nestes últimos meses. Tudo isto tem um mau reflexo na minha pessoa, obrigando--me a fazer papel de idiota. E vós não me ajudastes em nada.

Muito bem - disse Catarina concordando. - Mandarei Isabel embora, juntamente com a irmã dela, Ana, já que mo pedis. Com certeza.

Henrique recuperou o sorriso, como se o sol estivesse a apa­recer por detrás das nuvens.

- Está bem, e agora que vós regressastes, tudo pode voltar ao normal.

Nem uma palavra para mim, nenhuma palavra de conforto, nenhuma compreensão. Eu podia ter morrido, a tentar trazer aque­la criança ao mundo, sem esta criança tenho de enfrentar a triste­za, a pena e um assombroso medo do pecado. Mas ele nem sequer pensa em mim.

Tenho sempre um sorriso, para responder ao dele. fã sabia, quando casei, que ele era um rapaz egoísta e também sabia que se iria tornar um homem egoísta. Impus a mim mesma a tarefa de o guiar e de o ajudar a ser um homem melhor, o melhor que ele con­siga ser. E natural que surjam ocasiões em que eu pense que ele não e o homem que devia ser. E quando essas ocasiões surgem, como agora, tenho de reconhecê-lo como um erro meu, por não o ter sabi­do guiar. Tenho de lhe perdoar.

Sem o meu perdão, se eu não esticar a minha paciência até ao limite, o nosso casamento será mais pobre. Está sempre pronto a apaixonar-se de uma mulher que se preocupe com ele -, aprendeu isso com a avó. E eu, que Deus me perdoe, penso mais depressa no mari­do que perdi, do que naquele que tenho. Ele não é o homem que

Artur era, e nunca será o rei que Artur teria sido, mas é o meu mari do e o meu rei e devo respeitá-lo.

Na verdade: respeitá-lo-ei, quer ele mereça quer não.

A corte estava subjugada durante o pequeno-almoço, e poucos conseguiam afastar os olhos da mesa principal onde, por baixo d grande dossel do poder, sentados nos seus tronos, o rei e a rainha

conversavam, parecendo já reconciliados.

Mas será que ela já sabe? - segredava um cortesão a uma damas de Catarina.

E quem seria capaz de lhe contar? - respondeu ela. - Se Ma de Salinas e Lady Margaret ainda não lhe disseram, então não sabe. Era capaz de apostar os meus brincos em como não sabe.

Apostado - disse ele. - Aposto dez xelins em como ela de cobre.

Até quando?

Amanhã - disse ele.

Juntei mais uma peça ao puzzle, quando fui verificar as co tas relativas às semanas em que estivera em retiro. Nos primeiros dias em que estive ausente, não houvera despesas extraordinárias Mas depois, as contas dos divertimentos haviam começado a crescer. Havia contas de cantores e actores que ensaiavam as celebrações em honra do bebé que ia nascer, contas para pagar organista, aos elementos do coro. de cortinados e tecido para fazer flâmulas e estandartes, criadas extra para polir a pia baptismal. de ouro. Depois, havia pagamentos de fatos, em verde Lincoln, para disfarces, a cantores que deviam cantar debaixo da janela de Lady Ana, a um escrivão que escreveu a letra da no canção do rei, ensaios para um novo espectáculo com baile,a realizar no Dia de Maio, e fatos de cena para três damas que iriam actuar, uma das quais Lady Ana, que representaria o papel de Beleza Inatingível.

Levantei-me da mesa onde tinha estado às voltas com os papéis e fui até à janela, olhar para baixo, para o jardim. Pinha sido monta da uma arena para a luta, e os jovens da corte estavam apenas em mangas de camisa. Henrique e Charles Brandan estavam presos nos braços um do outro, como ferreiros numa feira. Enquanto eu esta­va a olhar, Henrique fez o amigo cair, atirou-o ao chão e deixou cair todo o seu peso em cima dele, para o manter no chão. A prin­cesa Mary aplaudiu e a corte ovacionou-o.

Afastei-me da janela. Comecei a pensar se Lady Ana teria pro­vado que era realmente inatingível. Fiquei a imaginar quão felizes é que eles teriam estado na manhã do Dia de Maio, enquanto eu acordava sozinha, triste, no meio do silêncio, sem ninguém a can­tar debaixo da minha janela. E por que razão haveria a corte de pagar aos cantores, contratados por Compton, para seduzir a sua nova amante?

O rei mandou chamar a rainha aos seus aposentos, da parte da tarde. Tinham chegado algumas mensagens do Papa e ele queria o seu conselho. Catarina sentou-se junto dele. ouviu o relato do men­sageiro e esticou-se para segredar ao ouvido do marido.

Ele concordou, abanando a cabeça

- A rainha faz-me recordar a nossa famosa aliança com Veneza, - diz ele pomposamente - e, na verdade, ela não precisa de mo recordar. Não me esqueço de uma coisa dessas. Podeis contar com a nossa determinação para proteger Veneza, e toda a Itália, das ambições do rei francês.

Os embaixadores acenaram com a cabeça, respeitosamente.

-Enviar-vos-ei uma carta sobre este assunto - disse Henrique num tom majestoso.

Eles fizeram uma vénia e retiraram-se

- Importais-vos de lhes escrever? - pediu ele a Catarina. Ela concordou.

- Certamente - disse ela. - Penso que haveis tratado muito bem deste assunto.

Ele sorriu pela aprovação dela.

É tudo muito melhor quando estais aqui - disse ele. - Nada Corre bem quando estais ausente.

Bem, agora já voltei! - disse ela, pousando uma das mãos n(> ombro dele. Podia sentir a força dos seus músculos na sua mão. Henrique, agora, já era um homem, com a forca de um homem.

-      Meu querido, lamento tanto a vossa discussão com o n de Buckingham!

Debaixo da sua mão, sentiu o ombro dele contrair-se livrar da mão dela.

disse ela

Não tem importância - disse ele. - Ele terá de pedir-m dão, e tudo será esquecido.

Mas talvez ele pudesse apenas voltar para a cone - sem as irmãs, já que não as quereis ver...

Inexplicavelmente, ele soltou uma enorme gargalhada:

-      Oh, trazei-os todos de volta, por favor - disse ele. - Se esse é o vosso real desejo, se achais que isso vos faz. feliz. Nunca deve ríeis ter entrado em retiro, não havia criança nenhuma, qualquer pessoa podia perceber que não havia qualquer criança.

Ela ficou tão chocada que mal conseguia falar.

Isto tem alguma coisa que ver com o meu retiro?

Nunca teria acontecido sem ele. Mas toda a gente pôde perceber que não haveria qualquer criança. Foi tempo perdido.

O vosso próprio médico...

Que é que ele sabia? Só sabe o que vós lhe dizeis.

Ele garantiu-me...

Os médicos não sabem nada! - disse ele com violência. - São sempre levados pela mulher, todos sabem disso. E uma mulher pode dizer o que lhe apetecer. Existe um bebé. não existe? Será que ela é virgem, não é virgem? Só a própria mulher sabe a resposta e nós somos todos enganados.

Catarina sentiu o seu pensamento a correr, tentando descobrir o que o tinha ofendido, o que lhe poderia dizer.

Eu confiei no vosso médico - disse ela. - Ele tinha a certe Assegurou-me de que eu estava grávida e por isso me retirei, próxima vez, já saberei o que fazer. Lamento muito, meu amor. Tem sido um grande sofrimento, para mim.

Só me fez parecer um completo idiota! - lamuriou-se. - Nao admira que eu...

Que vós, o quê?

Nada - disse Henrique amuado.

"Está uma tarde tão bonita, vamos dar um passeio . digo alegremente para as minhas aias. lady Margaret far-me-á

companhia."

Saímos, trazem-me a minha capa. colocam-ma pelos ombros e calçam-me as luvas. O caminho que desce até ao rio está molhado e escorregadio e Lady Margaret dá-me o braço e descemos as escadas juntas. As primaveras abundam por todo o lado e parecem manteiga desnatada nas sebes, o sol brilha. Há cisnes brancos no rio, mas quando passam as barcas ou os botes, as aves afastam-se do seu cantinho- como que por magia. Respiro fundo, é tão bom sair daquele quarto pequeno e voltar a sentir o sol no rosto que quase não me apetece voltar ao assunto de Lady Ana.

- Sabeis, de certeza, o que aconteceu! - digo-lhe secamente.

Ouvi alguns rumores — diz ela pausadamente. - Nada de concreto.

O que irritou tanto o rei? - pergunto eu. - Ele está aborrecido com o meu retiro e está zangado comigo. O que é que o preocupa? De certeza que não é o namorico da rapariga Stafford com Compton!

O rosto de Lady Margaret fica sério.

O rei é muito ligado a William Compton - disse ela - e não gostou que o insultassem.

Parece-me que a parte insultada, foi a outra - digo eu -, pois Lady Ana e o marido é que foram desonrados. Seria de esperar que o rei tivesse ficado zangado com William. Lady Ana não é uma rapariga que se possa derrubar atrás de uma parede. Há que ter em consideração a sua família e a família do marido. Obviamente, o rei devia ter dito a Compton que se comportasse.

Lady Margaret encolhe os ombros:

Eu não sei - diz ela. - Nenhuma das raparigas quer falar comigo. Estão tão silenciosas, que o assunto deve ser grave.

Mas. porquê, se não passou de um namoro sem importância? Juventude atrai juventude, na Primavera, não é verdade?

Ela abana a cabeça.

- De facto, não sei. Poderíamos pensar que foi apenas isso, mas se foi só uma paixão sem importância, porque ficaria o duque tão ofendido? Para quê discutir com o rei? Porque será que as outras raparigas não estão a rir-se de Ana por ter sido descoberta?

- E há ainda outra coisa... - digo eu.

Ela fica à espera.

- Porque teria o rei pago o namoro de Compton? A verba para os cantores foi incluída nas contas da corte. Ela franziu a testa:- Por que razão haveria ele de incentivar essa situação? O rei sabia, certamente, que o duque se sentiria bastante ofendido.

Por que razão O rei haveria ele de incentivar essa situação? Certamente, que o duque se sentiria bastante ofendido.

 

E Compton continua a ser considerado um amigo?

São inseparáveis.

Traduzo em palavras o pensamento que me gela o coração:

- Portanto, achais que Compton é apenas o escudo e que o romance é entre o rei. meu esposo, e Lady Ana?

A expressão severa de Lady Margaret diz-me que a minha sus­peita é o seu próprio receio.

- Eu não sei - diz ela, honesta como sempre. - Como vos disse as raparigas não me contam nada e eu não fiz essa pergunta a ninguém.

- Porque tendes receio de não gostar da resposta? Ela acena que sim. com a cabeça. Viro-me lentamente, e rol.

mos para trás, ao longo do rio, em silêncio.

Catarina e Henrique seguiram à frente da corte, para o jantar no salão principal e sentaram-se lado a dado debaixo do dossel de estado, feito de ouro, como sempre faziam. Havia um grupo de can­tores especiais que tinham vindo da corte francesa para a Inglaterra e que cantavam sem instrumentos, muito afinados, e com várias par­tes diferentes. Era complicado e belo e Henrique estava encantado com a música. Quando os músicos pararam, ele aplaudiu e pediu--lhes para repetirem a canção. Eles sorriram com o seu entusiasmo, e cantaram outra vez. Ele voltou a pedir, novamente, e depois, de mesmo lhes cantou a parte de tenor da melodia, no tom certo.

Foi a vez de o aplaudirem, e convidaram-no a cantar com eles a parte que aprendera tão depressa. Catarina, sentada no trono, inclinou-se para a frente e sorriu, enquanto o seu belo e jovem esposo cantava, com a sua voz límpida e jovem e as damas da corte batiam palmas de apreço.

Quando entraram outros músicos e a corte começou a dançar, Catarina desceu do estrado sobre o qual se encontrava a mesa prin­cipal e dançou com Henrique, com uma cara radiante de felicidade, um sorriso terno. Henrique, incentivado por ela, dançou como um italiano, com passos rápidos e elegantes e grandes saltos. Catarina batia palmas, encantada, e pediu uma nova dança, como se nunca tivesse tido qualquer problema em toda a sua vida. Uma das sua damas inclinou-se para o cortesão que tinha aceitado a aposta te que Catarina não iria descobrir o que se passara.

- Parece-me que não vou ficar sem os meus brincos — disse ela. Ele conseguiu enganá-la. Fê-la passar por idiota e agora está livre ira qualquer uma de nós. Ela perdeu o controlo sobre ele.

Espero até ficarmos a sós. espero até ele me ter amado com uma alegrici ansiosa e depois saio da cama e tragodbe uma taça de cerveja.

- Agora dizei-me a verdade, Henrique - cligodbe simplesmente. - Qual é a verdade acerca da discussão entre vós e o Duque de Buckingham, e o que é que tendes andado afazer com a irmã dele?

O seu rápido olhar de soslaio, diz-me mais do que quaisquer palavras. Está a preparar-se para me mentir. Ouço as palavras que me diz: uma história sobre um disfarce, com todos eles mascarados, as damas a dançar com eles, Compton e Ana a dançarem um com o outro, e eu sei que ele está a mentir.

É uma experiência mais dolorosa do que eu poderia esperar ter com ele. Estamos casados há quase um ano, vai fazer um ano no próximo mês, e ele sempre olhou para mim de frente, com toda a sua juventude e honestidade no olhar. Nunca ouvi nada a não ser a verdade na sua voz: presunção, certamente, a arrogância de um homem jovem, mas nunca a fala a tremer deste modo insegu­ro e decepcionante. Está a mentir-me, e eu quase preferia ouvir uma crua confissão de infidelidade do que vê-lo olhar para mim, com olhos azuis e a doçura de um rapazinho, e um saco de men­tiras na boca.

Interrompo-o, na verdade não suporto ouvi-lo.

- Basta! - digo. - Sei o suficiente para, pelo menos, saber que isso não é verdade. Ela era vossa amante, não era? E Compton o vosso amigo e o vosso escudo?

O seu rosto está alterado.

Catarina...

Dizei-me apenas a verdade.

A boca dele treme. Não consegue admitir aquilo que fez.

- Eu não queria...

-Eu sei que não - digo eu. - Tenho a certeza de que fostes excessivamente tentado.

Estivestes longe durante tanto tempo...

Eu sei.

Cai um terrível silêncio. Calculara que ele me iria mentir e que c'" iria apanhá-lo na mentira, que iria confrontá-lo com as suas

mentiras e com o adultério, que sería uma rainha guerreira cheia de merecida fúria. Mas sinto apenas tristeza e uma sensação de derta. Se Henrique não consegue manter-se fiel enquanto eu estou em retiro, esperando o nascimento de um filho, o nosso filho, que tanto desejamos, então como poderá ser-me fiel até à morte, corno poderá obedecer à promessa de renegar todas as outras, quando pode ser distraído com tanta facilidade? Que posso eu fazei; o que pode unia mulher fazer quando o marido é suficientemente tonto para desejar uma mulher por uns momentos, em vez da mulher à qual prometeu unir-se para toda a eternidade?

- Querido esposo, foi um grande erro - digo tristemente.

- Foi só porque eu tinha tantas dúvidas. Por alguns momentos pensei que nós não éramos casados - confessou.

- Esquecestes-vos de que éramos casados?-pergunto incrédula.

- Não!- ele ergue a cabeça, os olhos azuis, repletos de lágrimas, o rosto coberto de arrependimento. - Pensei que, já que o nosso casa­mento não era válido, não teria de o respeitar.

Fico completamente espantada.

- O nosso casamento? F porque não haveria de ser válido? Ele abana a cabeça, demasiado envergonhado para falar. Eu

pressiono-o:

- Porque não?

Ele ajoelha-se junto da minha cama e esconde a cara nos lençóis:

Eu gostei dela, desejei-a e ela disse algumas coisas que me fizeram sentir...

Sentir o quê?

Levou-me a pensar...

Pensar o quê?

E se vós não fósseis virgem, quando casei convosco?

Fico imediatamente alerta, como um criminoso junto da cena do crime, como um assassino, quando um cadáver sangra na sua presença.

Que quereis dizer com isso?

Ela era virgem...

Ana?

Sim. Sir George é impotente. Toda a gente sabe.

Sabem?

Sabem. Por isso ela era virgem. E não era... - ele esfrega o rosto nos lençóis da nossa cama. - Ela não era como vós. Ela... tropeça nas palavras. - Ela gritou de dor. Sangrou, fiquei com medo quando vi tanto sangue, muito mesmo... - volta a calar-se. - Ela não pôde continuar, na primeira vez. Tive de parar. Ela chorava e eu abracei-a. Ela era virgem. É isso que acontece quando nos deitamos com uma virgem, pela primeira vez. Eu fui o seu primeiro amante, percebi isso. O seu primeiro amor. Há um longo e frio silêncio.

-      Ela enganou-vos - digo eu cruelmente, destruindo a reputa­ção dela e o carinho que ele sentia por ela. tudo ao mesmo tempo, fazendo dela uma prostituta e dele um idiota, mas os fins justificam os meios.

Ele levanta a cabeça, chocado:

Enganou?

Ela não estava assim tão dorida, estava a fingir - abano a cabeça, ao pensar nos pecados que as jovens são capazes de come­ter. - É um velho truque. Ela devia ter uma bolsa com sangue na mão. e rasgou-a, para vos mostrar que havia sangue. Deve ter grita­do muito. Deve ter soluçado e dito que não era capaz de suportar a dor, desde o início.

Henrique estava estarrecido.

Foi isso que ela fez.

Ela queria que sentísseis pena dela.

E senti.

É claro que sim. Ela quis fazer-vos crer que lhe havíeis tirado a virgindade, a sua honra, e portanto teríeis de a proteger.

Foi isso que ela disse!

Ela armou-vos uma cilada - disse eu. - Não era virgem, esta­va a representar, como se fosse. Eu era virgem, quando entrei na vossa cama e, na primeira noite que nos tornámos amantes, tudo foi simples e doce. Recordais?

Sim - disse ele.

Não houve choros nem gritos, como os dos actores, num palco. Epi tudo tranquilo e carinhoso. Esse deve ser o vosso ponto de com­paração - digo eu. - Eu era uma virgem verdadeira. Fomos o pri­meiro amante um do outro. Não houve necessidade de representações ou exageros. Deveis ser fiel ã verdade do nosso amor, Henrique. Vós fostes enganado por uma impostora.

Ela disse... — começou ele.

Ela disse o quê?- Não tenho medo. Estou decidida a não dei­xar Ana Stafford destruir o que Deus e a minha mãe juntaram.

Ela disse que vós devíeis ter sido amante de Artur- ele hesita ao ver a minha cara, pálida de fúria. - Que vos deitastes com Artur e que...

Não é verdade.

Eu não sabia.

Não é verdade.

Oh. está bem.

O meu casamento com Artur não foi consumado. Era vit quando casei convosco, vós fostes o meu primeiro amante Ha alguém que se atreva a dizer o contrario?

Não - diz ele rapidamente. - Não. Ninguém dirá o contrário

do que vós dizeis.

Nem do que vós dizeis.

Nem do que eu digo.

Alguém será capaz de dizer na minha frente que eu não s o vosso primeiro amor, uma virgem intocada, a vossa verdadeira esposa e a Rainha da Inglaterra?

Não - repetiu ele. mais uma vez.

Nem mesmo vós.

Não.

Querem desonrar-me - digo furiosa. - E quando c que parar a maledicência? Será que também vão sugerir que vós não podeis reclamar o trono, porque a vossa mãe não era virgem no dia do casamento?

Ele fica petrificado com o choque.

A minha mãe? Que dizem eles da minha mãe?

Dizem que ela era amante do tio. Ricardo, o usurpador- digo friamente. - Imaginai.' E dizem que foi amante do vosso pai antes de se casarem, mesmo antes de estarem noivos. Dizem que ela estava longe de ser virgem no dia do casamento, embora tenha levado o cabelo solto e se tenha vestido de branco. Dizem que foi duplamente desonrada, pouco mais do que uma prostituta que subia ao trono. Podemos permitir que se digam tais coisas solve uma rainha'' Deveis ser impedido de subir ao trono por causa de tais mexericos' E eu também? E o nosso filho?

Henrique fica sem respiração, com este choque. Adorava a mãe c nunca pensara nela como um ser sexuado.

Ela nunca teria... Era muitíssimo... Como podem ...

Compreendeis? Isto é o que acontece se permitirmos qu4 pessoas digam mal dos seus superiores. - Crio a lei que me irá p teger. - Se permitirdes que alguém me desonre, o escândalo jamais terá fim. Será um insulto para mim. mas é uma ameaça para vos. Quem sabe onde isto irá parar, depois de começar? A maledicência contra uma rainha abala o próprio trono. Tende cuidado, Henrique.

Ela disse-o! - exclamou. - Ana disse que eu não estaria i pecar, ao deitar-me com ela, porque eu não era realmente casado!

-Ela mentiu-vos- digo eu. - Fingiu a sua virgindade e caluniou-me.

O rosto dele estava vermelho de fúria. É para ele um alivio, poder entregar-se à raiva.

Que prostituta! - exclama com crueldade. - Que prostituta, enganou-me para me levara pensar... Que truque de mulher mais vil!

Não se pode confiar em raparigas novinhas - digo calmamente. - Agora, que sois Rei da Inglaterra, deveis ter cuidado, meu amor. Elas vão andar a correr atrás de vós, e tentarão enfeitiçar-vos e seduzir-vos, mas deveis ser-me fiel. Eu fui a vossa noiva virgem. Fui o vosso primeiro amor. Não me renegueis.

Ele toma-me nos seus braços.

-Perdoai-me! - murmura, entre soluços.

Nunca mais voltaremos a falar deste assunto - digo com sole­nidade. - Não o tolerarei e não permitirei que ninguém desonre a minha pessoa, nem a da vossa mãe.

Não - diz ele com fervor. - Diante de Deus. Nunca mais fala­remos disto nem permitiremos que qualquer outra pessoa volte a falar.

Na manhã seguinte Henrique e Catarina acordaram juntos e foram calmamente para a missa na capela do rei. Catarina foi ter com o seu confessor e ajoelhou-se para confessar os seus pecados. Não demorou muito, observou Henrique, não devia ter grandes pecados para confessar. Ainda o fez sentir pior ver que a confissão dela tinha sido curta e que voltava com uma expressão tão serena. Sabia que ela era uma mulher de sagrada pureza, como a mãe dele. Arrependido, com o rosto entre as mãos, concluiu que Catarina não só nunca fora infiel à palavra dada, como nunca devia ter dito uma mentira em toda a sua vida.

Saio com a corte para caçar, vestida com um fato de veludo vermelho, decidida a mostrar que estou bem. que voltei para a corte, que tudo vai ser como era antes. Temos de fazer uma longa e difícil cavalgada, correndo atrás de um belo veado que foge por um caminho cheio de curvas, á volta do parque grande. Os cães conseguem levá-lo para o ribeiro e o próprio Henrique entra n água, rindo, para lhe cortar a garganta. A água do rio fica toda tingida de vermelho á sua volta e mancha-lhe as roupas e as màos Eu rio, juntamente com a corte, mas a visão do sangue faz-me ficar

maldísposta.

Voltamos para casa devagar, a cavalo, e eu mantenho o sorri­so no meu rosto, tentando esconder o cansaço e as dores nas coxas na barriga e nas costas. Lady Margaret! traz o seu cavalo para o lado do meu e olha-me de relance:

Seria melhor ficardes a descansar esta tarde.

Não posso - digo imediatamente.

Ela não tem necessidade de perguntar porquê. É uma princesa sabe que uma rainha tem de ser vista, independentemente daquilo que sente.

-Já sei a história, se é que quereis ter a maçada de ouvir uma coisa destas.

Sois uma boa amiga - digo. - Podeis coutar-ma em poucas palavras. Penso que já conheço a parte pior.

Depois que partimos para o vosso retiro para o parto, o rei e os jovens, começaram a ir para o centro da Cidade, à noite.

Com guardas?

Não, sozinhos e disfarçados. Reprimo um suspiro.

Ninguém tentou impedi-los?

-O Conde de Surrey. Deus o abençoe. Mas os filhos dele faziam parle do grupo e era apenas uma brincadeira, e vós sabeis (pie o rei não gosta (pie lhe neguem os seus passatempos.

Aceno com a cabeça.

Uma noite entraram disfarçados na corte, fingindo ser mer­cadores de Londres. As damas dançaram com eles e foi tudo muito divertido. Eu não estava aqui, nessa noite, eslava convosco no reti­ro, mas alguém me contou no dia seguinte. Não dei grande impor­tância ao assunto, mas. segundo parece, um dos mercadores esco­lheu Lady Ana, e dançou com ela toda a noite.

Henrique!- digo eu. e consigo perceber a amargura no meu sussurro.

Sim. mas todos julgavam que era William Comptoir Eles são mais ou menos da mesma altura e lodos usavam barbas postiças e chapéus. Vós sabéis o que costumam fazer?

- Sim sei - digo.

- Aparentemente, marcaram um encontro e. enquanto o Duque pensava (pie a irmã eslava junto de vós, ela andara a esca­par. e a encontrar-se com o rei. Quando esteve desaparecida durante uma noite inteira, a irmã dela não aguentou. Isabel foi falar com o irmão, e avisou-o do que Ana andava a fazer. Ele contou ao marido dela e os três confrontaram Ana, e exigiram saber com quem andava a encontrar-se, mas ela disse que era com Compton. Mas, de outra vez que ela desapareceu, pensaram que estava com Compton, até que se encontraram com ele. Nessa altura perceberam que não era Compton, era o rei. Abano a cabeça.

- Lamento muito, minha querida!- diz-me Lady Margaret com gentitileza. - Ele é jovem. Penso que não deve ser mais do que vaida­de e irresponsabilidade.

Concordo, sem dizer nada. Verifico o que se passa com o meu cavalo, que está a bater com a cabeça contra as minhas mãos. porque eu tenho as rédeas muito curtas. Estou a pensar em Ana, gritando de dor, na altura em que o seu hímen foi rasgado.

E o marido dela, Sir George, é impotente? - pergunto eu. - Até agora, ela era virgem?

É o que dizem!- diz Lady Margaret secamente. - Quem sabe o que se passa dentro de um quarto?

Sabemos o que se passa no quarto do rei - digo amargamente. - Eles não foram nada discretos.O mundo é assim - diz ela calmamente. — E quando vós estiverdes em retiro, é natural que ele arranje uma amante.

Volto a concordar. É a pura verdade. O que me surpreende é sentir uma dor tão grande.

O Duque deve ter ficado muito ofendido - digo eu. pensando na dignidade do homem, precisamente aquele que ajudara a colo­car os Tudor no trono.

Sim - diz, hesitante. Qualquer coisa na sua voz me diz que há algo mais. e que ela não sabe se deve, ou não. dizer-me.

O que se passa, Margaret? - pergunto. - Conheço-vos sufi­cientemente bem. para perceber que há mais alguma coisa.

E uma coisa que Isabel disse a uma das raparigas, antes de partir- diz ela.

-Oh!

-Isabel diz que a irmã não achava que fosse um romance sem consequências, que só duraria enquanto vós estivésseis em retiro e esquecido depois.

Que mais poderia ser?

Ela achava que a irmã tinha certas ambições.

Ambições em relação a quê?

Ela achava que conseguiria que o rei se apaixonasse por eia para o manter preso.

Durante uma estação do ano!- digo com desprezo.

Não. por mais tempo - diz ela. - Ele falou em amor. É um jovem romântico. Prometeu ser dela até morrer- reparando no meu ar, inter rompe o discurso. - Perdoai-me, não vos devia ter dito nada disto

Penso em Ana Stafford. gritando de dor. dizendo-lhe que é virgem, uma virgem verdadeira, e que. por isso. não pode continuar Que ele foi o seu primeiro amor. o seu único amor. Sei quanto isso lhe deve ter agradado.

Olho novamente para o meu cavalo, (pie está a morder o freio

Que quereis dizer com isso de ela ter ambições!'

Parece-me que ela pensou que, dada a posição da sua famí­lia, e o amor que havia entre ela e o rei, poderia vir a ser a mulher mais importante da corte inglesa.

Fecho os olhos.

E eu seria o quê?

Deve ter pensado que, com o tempo, ele poderia afastar-se de vós e ficar com ela. Penso que devia ter esperanças de vos suplantar.

no amor dele.

Concordo, acenando a cabeça.

E se eu morresse ao ter a criança, talvez pensasse que poderia anular o seu casamento não consumado, para casar com ele.

Esse seria o ponto mais alto para a sua ambição - diz Lady Margaret. - E já aconteceram coisas mais estranhas. Elizabeth Woodville chegou ao trono da Inglaterra só por ser bonita.

Ana Stafford era minha dama de companhia - digo eu - e escolhi-a. entre muitas outras, pela sua honra. Não tinha deveres para comigo? Não me tinha amizade? Será que nunca pensou em mim? Se estivesse ao meu serviço, na Espanha, teríamos vivido jun­tas, de dia e de noite...

Calo-me. Não há maneira de explicara segurança e o afecto do harém a uma mulher que passou a sua vida a recear o olhar dos homens.

Lady Margaret abana a cabeça.

As mulheres são sempre rivais - diz com simplicidade-, mas até agora, todos achavam que o rei só tinha olhos para vós. Agora, todos sabem que não é bem assim. Não há agora nenhuma rapari­ga bonita no país que não ache que a coroa está ao seu alcance.

Ainda é a minha coroa!- sublinho eu.

Mas as raparigas terão esperanças de a conseguir- diz ela. O mundo é assim!

- Vão ter de esperar pela minha morte! — digo secamente. — pode ser uma espera muito longa, mesmo para a rapariga mais ambiciosa.

Lady Margaret concorda. Faço-lhe um sinal e ela olha para trás. As damas de companhia estão espalhadas pelo meio dos caça­dores e dos cortesãos, cavalgando, rindo e namoriscando. Henrique tem a princesa Mary de um lado e uma das damas dela do outro. É uma rapariga nova na corte, jovem e bonita. Uma virgem, sem dúvi­da, outra virgem bonita.

E qual destas vai ser a seguinte?-pergunto com azedume. — Da próxima vez que tiver de ir para um retiro, e não as puder vigiar como um falcão agressivo? Será uma Percy ou uma Seymour? Uma Howard? Uma Neville? Qual será a próxima rapariga a aproximar-se do rei, para, através do seu encanto, conseguir encontrar o cami­nho para a cama dele e para o meu lugar?

Algumas das vossas damas gostam muito de vós - diz ela.

E algumas delas usarão a sua posição a meu lado para se aproximarem do rei - digo eu. - Como já viram que é possível, fica­rão ã espera da sua oportunidade. Vão perceber que o caminho mais fácil para chegar ao rei é entrarem nos meus aposentos, fingir que são minhas amigas, oferecer-me os seus serviços. A princípio irá mostrar amizade e lealdade para comigo, mas vai estar sempre ã espreita de uma oportunidade. Já sei que uma delas irá fazê-lo, só não sei qual será.

Lady Margaret inclina-se para a frente e acaricia o pescoço do seu cavalo, com um semblante sério.

Sim - concorda.

E uma delas, uma de muitas, será suficientemente esperta para virar a cabeça ao rei - digo amargamente. — É jovem e vaido­so e fácil de enganar. Mais tarde ou mais cedo, uma delas irá volta­do contra mim e vai querer ficar com o meu lugar.

Lady Margaret endireita-se e olha-me de frente, os seus olhos cinzentos mais honestos que nunca.

Tudo isto pode ser verdade, mas parece-me que não podereis fazer nada para o evitar.

Eu sei - digo tristemente.

-Tenho boas notícias para vós - disse Catarina a HenriqUe Tinham aberto as janelas do quarto dela. de par em par

deixar entrar o fresco ar da noite. Kra uma noite quente de Maío^ por uma vez, Henrique decidira ir para a cama cedo.

- Dai-me boas notícias - disse ele. - Hoje o meu cavalo cortie eou a coxear e não posso montá-lo amanhã. Seria bom receber boas notícias.

Creio que estou à espera de um filho. Ele deu um salto na cama.

Estais?

Penso que sim - disse ela sorrindo.

Queira Deus! Estais mesmo?

Tenho a certeza.

Deus seja louvado! Irei a Walsingham no momento em que derdes à luz o nosso filho. Irei a Walsingham de joelhos! Irei de ras­tos, ao longo da estrada! Vestirei um fato toclo branco. Oferecerei pérolas à Nossa Senhora.

Nossa Senhora tem sido bondosa connosco, na verdade.

Agora todos vão ficar a saber como sou potente! Saída do retiro na primeira semana de Maio e grávida no final do mês. lies vão ver! Isso vai provar que eu sou um marido como deve ser.

Provará, certamente - disse ela, concordando.

Ainda não é demasiado cedo para ter a certeza?

Não tive o período e sinto enjoos pela manhã. Dizem-me que é um sinal seguro.

E vós, estais segura? - não tinha tacto para expressar a sua ansiedade através de palavras delicadas. - Tendes a certeza, desta vez? Tendes a certeza de que não há qualquer engano?

Ela acenou que sim.

Tenho a certeza. Tenho todos os sintomas.

Deus seja louvado. Sabia que isto ia acontecer. Sabia que um casamento feito no céu teria de ser abençoado.

Catarina concordou, sorrindo.

Teremos de ir devagar nas nossas viagens, não deveis caçar. Iremos de barco durante parte do caminho, em barcaças.

Creio que não devo viajar de maneira nenhuma, se vós o per­mitirdes - disse ela. - Quero ficar sossegada num só lugar este Verão, nem sequer pretendo andar de liteira.

Bem, eu seguirei em viagem com a corte, mas depois volto para casa, para vós - disse ele. - E que grande festa vamos ter quan­do nascer o nosso filho. Quando vai ser?

Depois do Natal - disse Catarina. - No Ano Novo.

 

                       Inverno de 1510

Eu devia ter sido adivinho, já que mostrei a minha capacidade de previsão, mesmo sem um ábaco mourisco. Estamos a celebrar a festa do Natal em Richmond e a corte está alegre com a minha felicidade. O bebé está grande na minha barriga e dá pontapés com tanta força que, quando Henrique coloca a mão em mim, consegue sentir o pequeno calcanhar a fazer pressão contra a mão dele. Não há dúvida que ele está vivo e forte, e a sua vitalidade alegra toda a corte. Quando estou sentada no Conselho, por vezes estremeço com a estranha sensação de o sentir mexer dentro de mim e a pressão do seu corpo contra o meu; alguns dos conselheiros mais velhos - que já viram as suas próprias mulheres na mesma situação - riem-se com a alegria de saberem que, finalmente, vai surgir um herdeiro para a Inglaterra e para a Espanha.

Rezo para que seja rapaz, mas não estou a contar com isso. Um filho para a Inglaterra, um filho para Artur, é tudo o que quero. Se for a filha que ele queria, dar-lhe-ei o nome de Maria, como pediu.

O desejo de ter um filho, e o seu amor por mim, fizeram com que Henrique se tivesse tornado, por fim. mais atencioso. Preocupa-se comigo, como nunca acontecera antes. Parece-me que está a ficar adulto, o rapaz egoísta está a transformar-se, afinal, num homem bom e o receio que me tem perseguido desde o seu romance com a rapariga Stafford está a diminuir. É possível que tenha amantes, como os reis têm sempre, mas pode ser que evite apaixonar-se por elas e fazer-lhes as promessas loucas que qualquer homem faz, mas que um rei não deve fazer. Talvez ainda venha a adquirir o bom senso que tantos homens parecem aprender, divertindo-se com uma outra mulher, mas mantendo-se fiéis, no coração, à sua esposa Se continuar a ter este bom feitio, vai. de certeza, ser um bom pai Imagino-o a ensinar o nosso filho a andar a cavalo, a caçar e a lidar Nenhum rapaz poderia ter melhor pai. para lhe ensinar des­portos e passatempos, do que um filho de Henrique. Nem mesmo Artur teria sido um pai tão companheiro. A educação do nosso filho as técnicas da vida na corte, a sua formação como cristão, a sua aprendizagem como governante, ficará a meu cargo. Aprenderá a ter a coragem da minha mãe e os conhecimentos do meu pai. E de mim - penso que poderá aprender o que é constância e determina­ção. São estes os meus dons.

Penso que entre os dois. Henrique e eu. seremos capazes de educar um príncipe que deixará a sua marca na Europa, que manterá a Inglaterra a salvo dos Mouros, dos Franceses, dos Escoceses e de todos os nossos inimigos.

Terei de entrai- novamente em retiro, mas adio-o para o mais tarde possível. Henrique jura-me que não haverá outra, enquanto eu estiver fora, que é meu, só meu. Adio a minha ida até à noite da festa de Natal. Nessa altura, bebo o meu vinho com especiarias junto dos membros da corte, desejo-lhes um Natal feliz, enquanto me dese­jam um parto rápido e volto mais uma vez para a tranquilidade do meu quarto.

Na verdade, não me importo de perder o baile e as bebedeira Estou cansada e é difícil carregar este bebe. Levanto-me e deito com o sol de Inverno, raramente acordo antes das nove horas da manhã e, às cinco da tarde, já estou pronta para dormir. Passo muito tempo a rezar por um parto bem sucedido e pela saúde da criança que se mexe com tanta energia, dentro de mim.

Henrique vem ver-me, em privado, quase todos os dias. O "Livro Real'' é bem explícito ao dizer que a rainha deve estar em isolamen­to absoluto antes do nascimento do seu filho: mas o "Livro Real foi escrito pela avó de Henrique e eu sugiro que devemos fazer conforme nos apetecer. Não vejo porque haveria ela de me dar ordens, lá do seu túmulo, quando foi uma mentora tão pouco cooperativa, em vida. Além do mais, para usar a franqueza de uma aragonesa, não cofio em Henrique sozinho com a sua corte. Na véspera de Ano Novo janta comigo, antes de ir para a festa no salão principal, e oferece-me um colar de rubis, com pedras tão grandes como o tesouro de Crist Colombo. Coloco-as no pescoço e reparo nos seus olhos, brilhantes desejo, enquanto Incidem na brancura e no volume dos meus sei

Agora já não falta muito - digo a sorrir. Sei exactamente n que está a pensar.

Irei a Walsingham mal a criança nasça e quando regressa, haverá uma cerimónia religiosa em vossa honra - diz ele.

- E, a seguir, parece-me que pensais em fazer uma nova criança - digo eu com fingida preocupação

- E vou fazer! - responde ele, o rosto resplandecente de riso. Despede-se de mim com um beijo, deseja-me felicidade para o novo ano, regressa aos seus aposentos através da porta secreta que há no meu quarto e, de lá, segue para a festa. Peço às criadas para me trazerem a água fervida que continuo a beber, obedecendo ao. conselhos do mouro e sento-me junto da lareira, a costurar um pequenino fato para o meu bebé, enquanto Maria de Salinas lê em voz alta, em espanhol.

De repente, parece que a minha barriga se vira do avesso, como se eu estivesse a cair de uma grande altura. A dor é tão intensa, não diferente de qualquer outra que tenha sentido antes, que deixo cair a costura das mãos, agarro-me aos braços da cadeira e solto um gemido, antes de conseguir falar. Percebo imediatamente que o bebé está para chegar. Receara não saber o que estava a acontecer, temera sentir apenas um dor como a que senti quando perdi a minha pobre menina. Mas isto é como a enorme força de um rio profundo, a sensação de algo poderoso e maravilhoso que começa a fluir. Fico cheia de alegria e de um temor sagrado. Sei que o bebé vem a cami­nho e que é forte, que sou jovem, e que tudo vai correr bem.

Assim que digo às minhas aias, a câmara enche-se de confusão. Sua Alteza, a Mãe do Rei, pode ter determinado que tudo deve­ria ser feito com sobriedade e calma, a preparação do berço e a das duas camas para a mãe, uma para o parto e a outra para o repou­so; mas. na vida real, as aias correm por todo o lado como galinhas numa capoeira, cacarejando alarmadas. As parteiras são chama­das da festa, para onde todas se tinham ido divertir, na esperança de não serem necessárias na véspera de Ano Novo. Uma delas está completamente embriagada e Maria de Salinas expulsa-a do quarto, antes que caia e parta alguma coisa. Não há maneira de encontrar o médico e os pajens são despachados por todo o palácio, à procura dele.

As únicas pessoas que estão tranquilas e determinadas são Lady Margaret, Maria de Salinas e eu. Maria, porque já é calma por natureza, Lady Margaret, porque tem estado confiante desde o inicio deste retiro, e eu, porque sinto que nada impedirá este bebé de nascer; com uma tias mãos agarro a corda e com a outra seguro a minha relíquia da Virgem Maria, fixo os olhos no meu pequeno altar, ao canto da sala. e rezo a Santa Margarida de Antioquiapara que me conceda um parto rápido e fácil e uma criança saudarei

Inacreditavelmente. dura pouco mais que seis horas - embora cada uma delas pareça que dura um dia - e. então, sinto um empurrão e qualquer coisa a escorregar e a parteira murmura bai­xinho: Que Deus seja louvado": depois. ouve-se um choro alto e irri­tado, quase um grito, e compreendo que há uma nova voz dentro do quarto, a do meu bebé.

- É um rapaz, Deus seja louvado, um rapaz! - diz a parteira e Maria olha para cima, para mim. e vê-me radiante de felicidade.

- A sério?V pergunto. - Deixem-me vê-lo!

Elas cortam o cordão e passam-me o bebé. ainda nu e coberto de sangue, a pequena boca muito aberta jxira gritar, os olhos muito apertados, com a fúria. É o filho de Henrique.

- Meu filho - digo baixinho.

- Filho da Inglaterra - diz a parteira. - Deus seja louvado. Encosto a cara à sua cabecinha quente, ainda pegajosa, e cheiro-o

como uma gata cheira a sua ninhada. "Este é o nosso filho", murmuro para Artur, que sinto tão perto como se estivesse a meu lado. olhando por cima do meu ombro fiara este pequeno milagre que vira a cabeça e a esfrega no meu peito, com a boquinha aberta. "Oh, Artur, meu amor, este é o rapaz que te prometi dar e à Inglaterra. Este é o filho que oferecemos à Inglaterra e vai ser rei."

 

 

                       1 de Janeiro de 1511

A Inglaterra inteira enlouqueceu quando soube, no dia de Ano Novo. que tinha nascido um rapaz. Todos lhe chamaram imediatamente Príncipe Henrique, não havia outro nome possível. Nas ruas. assaram bois e embebedaram até ficarem inconscientes. Nas aldeias, tocaram os sinos das igrejas e levaram a cerveja para a igre­ja, para brindar à saúde do herdeiro Tudor, o rapaz que manteria a Inglaterra em paz, aliada com a Espanha, e a protegeria dos seus inimigos e que derrotaria os Escoceses, de uma vez por todas.

Henrique veio ver o filho, desobedecendo às regras do retiro, entrando cuidadosamente em bicos de pés, como se as suas passa­das pudessem abanar a sala. Espreitou para o berço, quase com medo de respirar perto do menino adormecido.

- É tão pequenino! - diz. ele. - Como pode ser tão pequeno?

A parteira diz que é grande e forte - corrigiu-o Catarina, ime­diatamente, em defesa do seu bebé.

Decerto! Só que as mãos dele são... e vede, tem unhas! Unhas a sério!

- E nos pés também - disse ela.

Ficaram os dois lado a lado. a olhar, maravilhados, para a perfeição que tinham feito, em conjunto.

- Tem pezinhos gorduchos e os dedinhos mais pequeninos que possais imaginar.

-Mostrai-me - disse ele.


Com cuidado, ela tirou os pequenos sapatinhos de seda que o bebé tinha calçados.

- Vede - disse, com uma voz cheia de ternura. - Agora tenho de lhos calçar outra vez, para não apanhar frio.

Henrique inclinou-se por cima do berço e segurou carinhosa mente o pequeno pé na sua mão enorme.

- Meu filho - disse maravilhado. - Deus seja louvado, eu tenho um filho.

Fico na cama, como a mãe do velho rei determinava no "Livro Real", e recebo os convidados de honra. Tenho de esconder um sorriso riso quando penso na minha mãe a dar-me à luz durante uma campanha, numa tenda, como qualquer amante de soldado. Mas esta é a maneira inglesa de fazer as coisas, e eu sou uma rainha inglesa, e este bebé há-de ser Rei da Inglaterra.

Nunca senti uma alegria tão simples. Quando durmo, acordo com o coração cheio de felicidade, mesmo antes de me lembrar por­quê. Depois, lembro-me. Tenho um filho para oferecer à Inglaterra, a Artur e a Henrique; sorrio e viro a cabeça, e a pessoa que está a tomar conta de mim, seja ela quem for, responde à pergunta, mesmo antes de eu a fazer, "Sim, o vosso filho está bem, Vossa Graça."

Henrique anda demasiado ocupado com os assuntos do nosso filho. Entra e sai para me ver mais do que vinte vezes ao dia. fazen­do perguntas e trazendo notícias dos preparativos que está a organizar. Já escolheu um grupo de não menos de quarenta pessoas para servirem este minúsculo bebé, e também escolheu as salas, no palácio de Westminster, onde ficará a sua Sala do Conselho, quando for jovem. Eu sorrio e não digo nada. Henrique está a planear o maior baptizado que alguma vez foi visto na Inglaterra, nada é bom de mais para este Henrique, que será Henrique IX. Por vezes, quando estou sentada na cama, supostamente a escrever carias, desenho o seu monograma. Henrique IX: o meu filho. Rei da Inglaterra.

Os seus protectores são escolhidos cuidadosamente: a filha do Imperador, Margarida da Áustria e o Rei Luís XII da França. Pelo que se vê, ele já está a trabalhar, este pequeno Tudor, para encobrir as suspeitas francesas em relação a nós e para manterá nossa alian­ça com a família Habsburgo. Quando mo trazem e coloco o meu dedo na palma da sua pequenina mão, os dedos dele enrolam-se a volta do meu, como se quisesse agarrar-se a mim. Como se me esti­vesse a dar a mão. Como se estivesse a devolver-me o meu amor por ele. Deixo-me estar tranquila, vendo-o dormir, com o meu dedo na sua mão e a outra mão segurando a sua cabecinha macia, onde consigo sentir uma forte pulsação a palpitar.

Os seus padrinhos são o Arcebispo Warham, o meu querido e leal amigo Thomas Hotvard, o Conde de Surrey e o Conde e a Condessa de Devon. A minha queridíssima Lady Margaret vai dirigir o seu berçário, em Richmond. É o mais recente e o mais limpo de todos os palácios que ficam perto de Londres e, independentemente do local onde estivermos a viver, Whitehall, Greenwich ou Westminster, ser-me-á fácil ir visitá-lo.

Quase não consigo suportar ter de o deixar ir embora, mas é melhor para ele estar no campo do que na cidade. E hei-de ir vê-lo, no mínimo, uma vez por semana, Henrique prometeu-me que o irei visitar, todas as semanas.

Henrique foi ao santuário de Nossa Senhora de Walsingham, como prometera, e Catarina pediu-lhe para dizer às freiras que tomavam conta do santuário que iria lá quando ficasse novamente grávida. Quando o próximo bebé estivesse no ventre da rainha, ela iria dar graças pelo nascimento feliz do primeiro e rezar para que o segundo nascesse sem problemas. Pediu ao rei que dissesse às frei­ras que as iria visitar, de cada vez que ficasse grávida e que espe­rava poder lá ir muitas vezes.

Entregou-lhe um pesado saco de ouro.

-Podeis dar-lhes isto, como prenda minha, e pedir as suas orações?

Ele pegou no saco.

- Para elas, rezar pela Rainha da Inglaterra, é um dever -disse ele.

-Só queria recordar-lhes.

Henrique regressou à corte, para o maior torneio a que Inglaterra já assistira, e Catarina levantou-se e saiu da cama, para o organizar para ele. Ele mandara fazer uma armadura nova, antes de Partir, e ela encarregou o seu favorito, Edward Howard, o talentoso filho mais novo da casa Howard, de se certificar de que a armadu­ra ficaria com as medidas exactas do esbelto corpo do rei e de que o trabalho ficasse perfeito. Ela mandou fazer bandeiras, pendurar tapeçarias, preparar máscaras com temas gloriosos, ouro por todo lado; bandeiras e cortinas feitas com tecido de ouro, fitas, pratos taças de ouro, ponteiras de ouro para as lanças ornamentais, escu­dos embutidos de ouro. ouro até na sela do rei.

Vai ser o maior torneio que a Inglaterra já viu - disse-lhe Edward Howard. - A dignidade inglesa e a elegância espanhola Será uma ocasião belíssima.

É a maior celebração que já tivemos - disse ela sorrindo. - £ é pelo melhor dos motivos.

Sei que preparei uma exibição extraordinária para Henrique mas, quando ele entra a cavalo no recinto onde estavam montadas as tendas, sustenho a respiração. Segundo a tradição, os cavaleiros que participam no torneio têm de escolher um lema-, por vezes, com­põem um poema ou representam uma cena de uma peça de teatro antes de montarem. Henrique manteve o seu lema em segredo e não me disse o que ia ser Ele mesmo mandou fazer o seu galhardete e as damas, cheias de risinhos, esconderam-no de mim. enquanto bor­davam, na seda verde Tudor, as palavras que escolhera. Na verda­de, não fazia ideia do que lã estaria escrito, até ao momento em que ele se curva numa vénia, à minha frente, no camarote real. Ú galhardete se desenrola e o arauto proclama o título dele para o tor­neio. "Sir Coração Fiel".

Levanto-me e tapo a cara com as mãos, para esconder o tremor da minha boca. Os meus olhos enchem-se de lágrimas, não consigo evitá-lo. Designou-se a si próprio como "Sir Coração Fiel" - desta forma, declarou ao mundo a renovação da sua devoção e do seu amor por mim. As minhas damas afastam-se para que eu possa ver o dossel que ele mandara pendurar, a toda a volta do camarote real Mandara decorá-lo todo com pequenos emblemas de ouro em que aparecia um H e um C, entrelaçados. Para qualquer lado que eu olhasse, qualquer canto do relvado do torneio, qualquer bandeira, qualquer poste, havia um Ce um H, unidos. Usou este torneio, o mais bonito e majestoso que a Inglaterra já viu, para dizer ao mundo que me ama, que é meu, que o seu coração me pertence e me e fiel.

Olho em volta para as minhas damas, sentindo-me completa­mente triunfante. Se pudesse dizer livremente o que sinto, dir-lhes-ia "Aí está! Vejam-no como um aviso. Fie não é o homem que imagina­vam. Não é homem que se afaste da sua legítima esposa. Não é um homem que fossam seduzir, por mais inteligentes que sejam os nossos truques, por mais insidiosas que sejam as vossas intrigas contra mim. Ele entregou-me o seu coração, e tem um coração fiel. "Passo os olhos por elas, as raparigas mais bonitas, pertencentes às melhores famílias da Inglaterra, e percebo que cada uma delas, secretamente, pensa que poderia ocupar o meu lugar. Se tivesse sorte, se conseguisse sedu­zir o rei, se eu morresse, poderia ocupar o meu trono.

Mas o galhardete dele diz-lhes: "Não é assim ". O galhardete dele diz-lhes. os C e H dizem-lhes, o pregão do arauto diz lhes que ele será apenas meu, para sempre. O desejo da minha mãe, a promessa que fiz a Artur, o destino dado por Deus à Inglaterra trouxeram-me finalmente até aqui: um filho e herdeiro no berço da Inglaterra, o Rei da Inglaterra declarando publicamente a sua paixão por mim e a minha inicial, em ouro, entrelaçada com a dele, por todo o lado para onde eu olhe.

Toco os lábios com a mão e estendo-a para ele. A sua viseira está levantada, os olhos azuis ardem de paixão por mim. O seu amor por mim aquece-me como o sol quente da minha infância Sou unta mulher abençoada por Deus, especialmente favorecida por Ele. de facto. Sobrevivi à viuvez e ao desespero de ter perdido Artur O namoro do velho rei não me seduziu, a sua inimizade não me derrotou, o ódio da sua mãe não me conseguiu destruir. O amor de Henrique faz-me feliz, mas não me redime. Com a especial protecção de Deus, consegui salvar-me, por mim mesma. Por mim mesma consegui sair da escuridão da pobreza e chegar ao brilho da luz Sozinha, lutei contra a terrível queda no puro desespero. Obriguei -me a transformar-me numa mulher capaz de enfrentar a morte, a vida, capaz de suportar ambas.

Lembro-me de uma cena de quando era apenas uma rapariguinha: a minha mãe estava ajoelhada a rezar, antes de uma batalha, depois levantou-se, beijou a pequena cruz de marfim, voltou a colocá-la no lugar e acenou â sua dama de companhia para lhe trazer a couraça e para lha apertar.

Eu corri para ela e supliquei-lhe que não fosse, perguntando -lhe porque tinha de sair a cavalo se Deus nos dera a Sua bênção. S fomos abençoados por Deus, por que razão temos também de lutai Ele não pode simplesmente afastar os Mouros para longe de nós?

"Fui abençoada, porque fui escolhida para O servir. Ajoelhou-se e pôs um braço em volta de mim. "O que querias dizer, era, por que não deixar o problema nas mãos de Deus, pode ser que Ele envie uma tempestade para cima dos Mouros cruéis?"

Eu assenti com a cabeça. Eu sou a tempestade " disse ela sorrindo. "Sou a tempestade de Deus que irá expulsados. Hoje. Ele não escolheu uma tempestade escolheu-me a mim. E nem eu. nem as nuvens negras podemos recu­sar o nosso dever."

Sorrio para Henrique, enquanto ele baixa a viseira e afasta q cavalo do camarote real. Compreendo agora o que a minha mãe queria dizer com a tempestade de Deus. Deus chamou-me para ser o Seu sol na Inglaterra. E meu dever, divinamente imposto, trazer felicidade, prosperidade e segurança à Inglaterra. Faço-o. aconse­lhando o rei a tomar decisões certas, garantindo a sua sucessão e protegendo a segurança das fronteiras. Sou a Rainha da Inglaterra, escolhida por Deus e sorrio para Henrique enquanto o seu enorme e brilhante cavalo negro trota lentamente até ao fim da liça. sorrio para o povo de Londres que chama por mim e grita Deus abençoe a Rainha Catarina/". E sorrio para mim mesma, porque estou a Jazer como a minha mãe queria, como Deus decidiu e Artur está à minha espera no al-Yanna. o jardim.

 

                       22 de fevereiro de 1511

Dez dias mais tarde, quando estava no auge da felicidade trouxeram à Rainha Catarina as piores notícias da sua vida.

Ainda é pior do que a mor/e do meu marido. Artur. Nunca pensei que poderia haver algo pior do que isso; mas já percebi que sim. É pior do que os meus anos de viuvez e de espera. Pior do que ter notícias da Espanha, dizendo que a minha mãe morrera, que fale­cera no dia em que lhe escrevi, pedindo-lhe que me desse noticias. Pior do que os piores dias que já vivi.

O meu bebe morreu. Mais do que isto, não sou capaz de dizer, não consigo sequer ouvir. Parece-me que Henrique está comigo, durante algum tempo, e Maria de Salinas. Penso que l.ady Margaret Pole está aqui e vejo o rosto abatido de Thomas Howard junto do ombro de Henrique; William Compton agarra desesperadamente o ombro de Henrique; mas as faces parecem nadar diante dos meus olhos e não tenho a certeza de nada.

Vou para o meu quarto e mando fechar as portadas e trancar as portas. Mas já é demasiado tarde, já me deram a pior noticia da minha vida: fechar a porta não vai impedir que chegue até mim. Não suporto a luz. Não suporto o som da vida normal que não pode parar. Ouço um pequeno pajem a rir no jardim, perto da minha janela, e não consigo compreender conto pode ler sobrado alguma felicidade e alegria no mundo, agora que o meu bebé partiu.

A coragem a que me agarrei durante toda a vida acaba por ser apenas uma quimera, uma teia de aranha, o nada. A minha forte convicção de estar a seguir o caminho de Deus e de que Ele me protege não é mais do que uma ilusão, um conto de fadas infantil. Nas sombras do meu quarto, mergulho até ao fundo na escuridão que a minha mãe conheceu quando perdeu o filho, a escuridão a que Joana não conseguiu escapar quando perdeu o marido, a mesma que foi a maldição da minha avó e que atinge todas as mulheres da minha família como uma veia envenenada. Afinal, não sou diferente. Não sou uma mulher que consegue sobreviver ao amor e ã perda, como tinha pensado. O que acontece e que, até agora, nunca tinha perdido ninguém que fosse mais importante para mim do que a própria vida. Quando Artur morreu, o meu coração ficou despe­daçado. Mas, agora, que o meu bebé morreu, não quero nada. só gostaria que o meu coração parasse de bater.

Não consigo encontrar uma razão para continuar a viver, e para que aquela criança inocente e sem pecado, me tenha sido tirada. Não vejo qualquer razão para isso. Não consigo compreender um Deus que seja capaz de mo tirar. Não posso compreender um mundo que pode ser tão cruel. No momento em que me disseram: "Alteza, deveis ter coragem, temos más notícias do príncipe", perdi a minha fé em Deus. Perdi a vontade de viver. Perdi até a vontade de governar a Inglaterra e de manter o meu país em segurança.

Ele tinha olhos azuis e umas mãozinhas pequeninas e muito perfeitas. Tinha unhas que pareciam pequenas conchas. Os seus pezinhos... Os seus pezinhos...


Lady Margaret Pole. que tinha sido a responsável pelo berçári da criança morta, entrou no quarto sem bater à porta, sem qualquer convite, e ajoelhou-se diante da Rainha Catarina, que estava senta­da na sua cadeira junto da lareira, no meio das suas damas, não vendo, nem ouvindo tosse o que fosse.

-Vim pedir o vosso perdão, embora não tenha feito nada ele errade) - disse ela corajosamente.

Catarina levante)u a cabeça:

- O quê?

O vosso bebé morreu ao meu cuidado. Vim pedir o vosso perdão. Não fui descuidada, juro. Mas ele está morto. Lamento. Princesa!

Estais sempre aqui - disse Catarina com calma e desprezo - nos meus momentos mais negros, sempre está a meu lado, como a má sorte.

A mulher mais velha vacilou.

É um facto, mas não é esse o meu desejo.

E não me chameis "Princesa".

Esqueci-me.

Pela primeira vez em várias semanas, Catarina levantou-se e olhou para o rejste) de outra pessoa, olhou-a nos olhos, viu as novas linhas em redor da boca dela e compreendeu que a perda do seu bebé não era uma dor apenas sua.

Oh, meu Deus, Margaret! - disse ela inclinando-se para a frente. Margaret Pole agarrou-a e abraçou-a.

Meu Deus, Catarina - disse ela junto ao cabeio da rainha.

Como é que pudemos perdê-lo?

- Vontade de Deus. É a vontade de Deus, temos de acreditar nisso. Temos de nos curvar perante isso.

- Mas, porquê?

- Princesa, ninguém sabe por que razão uns são levados e outros são pempados. Lembrais-vos?

Sentiu, pelo estremeção, que a mulher rece)rdava a morte do marido através clesta, a do seu filho.

Nunca esqueço. Lembro-me todos os dias. Mas. porquê?

É a vemtacle de Deus - repetiu Lady Margaret.

Creio que não consigo suportar isto - Catarina falou tão bai­xinho que nenhuma das aias conseguiu ouvir. Ergueu o rosto man­chado de lágrimas do e)mbro da amiga.

Perder Artur foi como uma tortura, mas perder o meu filho é como uma. morte. Não me parece que consiga suporta Margaret.

O sorriso da mulher mais velha era infinitamente paciente.

- Oh, Catarina. Aprendereis a suportá-lo. Nâo há mais nada a lazer, senão aguentar. Podeis encher-vos de raiva ou podeis chorai mas, no fim. aprendereis a suportar.

Lentamente, Catarina sentou-se de novo na cadeira; Margarel permaneceu, muito calma, ajoelhada no chão aos seus pés, segu­rando as mãos da amiga.

- Tereis de me ensinar a ter coragem, mais uma vez - murmu­rou Catarina.

A mulher mais velha sacudiu a cabeça:

Sé) é preciso aprender uma vez - disse ela -, e vós já sabeis já aprendestes em Ludlow. Não sois uma mulher que se deixe des­truir pelo sofrimento. Sofrereis, mas vivereis, tereis de enfrentar c mundo de novo. Amareis. Concebereis uma nova criança, esss criança há-de viver, aprendereis outra vez a ser feliz.

Não sou capaz de prever uma coisa dessas - disse Catariní desoladamente.

Esse tempo há-de chegar.

A batalha por que Catarina esperara tanto tempo surgiu quan do ainda estava ensombrada pela dor da morte do filho. Mas nad; conseguia penetrar a sua tristeza.

''Grandes notícias, as melhores notícias do mundo!" escreveu ( pai. Sem entusiasmo, Catarina traduziu o código para espanhol e depois, para inglês. "Vou comandar uma cruzada contra os Mouros na África. A sua existência é um perigo para a Cristandade, os seu ataques aterrorizam todo o Mediterrâneo e colocam em perigo ; navegação, da Grécia ao Atlântico. Enviai-me os vossos melhore cavaleiros - já que dizeis viver na nova Camelot. Enviai-me os vos sos chefes mais corajosos, à frente dos vossos homens mais valen tes, e eu levá-los-ei até à África e destruiremos os reinos infieis como sagrados reis cristãos."

Sem forças, Catarina levou a Henrique a carta traduzida. El estava a sair cio campo de ténis, com um lenço enrolado em volt do pescoço e o rosto corado. Sorriu quando a viu, mas o ar alegr desapareceu rapidamente do seu rosto e foi substituído por ur esgar de culpa, como o de um rapazinho apanhado numa brinca cleira secreta. Por aquela expressão passageira, por aquele brev mas revciadoi' momento, percebeu que cie esquecera que o filh tinha morrido. Estava a jogar ténis com os amigos, tinha ganho, viu a mulher que ainda amava, estava feliz. A alegria surgia com tanta facilidade para os homens da família dele como o sofrimento para as mulheres da sua. Sentiu-se invadir por uma onda de ódio tão forte que quase conseguia sentir na boca o sabor. Ele conseguia esquecer, nem que fosse por um momento, que o seu filhinho mor­rera. Pensou que nunca lhe iria perdoar, nunca.

Recebi uma carta do meu pai - disse, tentando transmitir algum interesse, através da sua voz áspera.

Oh? - mostrou-se preocupado. Chegou junto dela e deu-lhe o braço. Ela teve de cerrar os dentes para não lhe gritar "Não me toqueis!"

Disse-vos que devíeis ter coragem? Escreveu-vos palavras de conforto?

A falta de habilidade do jovem era insuportável. Ela conseguiu mostrar o seu melhor sorriso.

- Não. Não é uma carta pessoal. Sabeis que raramente me escreve nesses termos. É uma carta acerca de uma cruzada. Convida os nossos nobres e senhores a levarem os seus regimentos, e a irem com ele combater os Mouros.

- Convida? De verdade? Que sorte!

- Não para vós - disse ela, cortando rente qualquer ideia que Henrique pudesse ter de partir para a guerra sem terem um filho. -É só uma pequena expedição. Mas o meu pai gostaria que os ingle­ses participassem, e eu penso que deveriam ir.

- Sim, também me parece que ele gostaria.

Henrique voltou-se e gritou para os amigos que se tinham dei­xado ficar para trás, como garotos de escola que se sentiam culpa­dos por terem estado a divertir-se. Não se sentiam bem junto de Catarina desde que ela se tornara tão pálida e calada. Gostavam dela quando era a rainha do torneio e Henrique, "Sir Coração Fiel". Ela fazia-os sentir pouco à vontade, quando aparecia para jantar como um fantasma, não comia nada e ia embora cedo.

- Alguém quer ir para a guerra com os Mouros?

Um coro de gritos entusiasmados respondeu ao seu chamado. Catarina pensou que não valiam nada, que não passavam de uma ninhada de cachorros excitados, com Lord Thomas Darcy e Edward Howard à cabeça. - Eu quero ir.

- E eu, também.

- Mostrem-lhes como lutam os Ingleses! - incitou-os Henrique - Eu próprio pagarei os custos da expedição.

- Vou escrever ao meu pai, informando-o de que tendes volun­tários, ansiosos por partir - disse Catarina calmamente. - Vou fazê-lo agora mesmo.

Voltou-lhes as costas e dirigiu-se rapidamente para a porta que dava para as escadas que conduziam ao seu quarto. Sentia que não aguentava ficar junto deles, nem mais um minuto Aqueles eram os homens que teriam ensinado o seu filho a andai a cavalo. Os homens que teriam sido seus estadistas, o sei Conselho Privado. Teriam sido responsáveis por ele, na sua pri­meira comunhão, teriam sido suas testemunhas quando se com prometesse em casamento, teriam sido padrinhos dos filhos dele E ali estavam, rindo, clamando por guerra, competindo entre si em altos berros, pela aprovação de Henrique, como se o filho deli não tivesse nascido, não tivesse morrido. Como se o mundo continuasse a ser o mesmo de sempre; mas Catarina sabia que mudara completamente.

Ele tinha olhos azuis. E os pezinhos mais pequeninos e mai perfeitos.

Mas, na verdade, a grande cruzada, não chegou a existir. O cavaleiros ingleses chegaram a Cádis, mas a cruzada nunca se fez ao mar em direcção à Terra Santa, nunca enfrentou uma cimitarra afiada, brandida por um infiel com um coração negro. Catarina traduziu as cartas entre Henrique e o seu pai, nas quais o pai explica va que ainda não conseguira juntar as tropas, que ainda não estava preparado para partir. E então, um dia, foi ter com Henrique, com uma carta na mão e um rosto chocado, diferente do seu ar trist habitual.

- O meu pai enviou-me as mais terríveis notícias.

- O que está a suceder? - perguntou Henrique, preocupado. Vede, acabei de receber uma carta de um mercador inglês que esi na Itália, e não consigo perceber nada. Diz que os Franceses e Papa estão em guerra. - Henrique estendeu-lhe a carta. - Como isso possível? Não consigo compreender.

É verdade. Esta carta é do meu pai. Diz que o Papa determi­nou que os exércitos franceses deviam sair da Itália - explicou Catarina. - E o Santo Padre colocou as suas próprias tropas em campo, contra os Franceses. O rei Luís declarou que o Papa não irá continuar a ser Papa.

Como é que se atreve? - perguntou Henrique extremamente chocado.

O meu pai diz que devemos esquecer a cruzada e ir imedia­tamente em auxílio do Papa. Vai tentar negociar uma aliança entre nós e o Sagrado Imperador Romano. Temos de formar uma aliança contra a França. Não podemos permitir que o rei Luís tome Roma. Não pode avançar para a Itália.

Deve estar louco para pensar que eu o permitiria! - exclamou Henrique. - Alguma vez deixaria que os Franceses tomassem Roma? Julga que eu aceitaria um Papa francês que não passasse de uma marioneta? Será que já se esqueceu do que pode fazer um exército inglês? Quererá uma nova Agincourt?

Devo dizer a meu pai que nos uniremos a ele contra a França? - perguntou Catarina. - Podia responder-lhe imediatamente.

Ele pegou na mão dela e beijou-a. Desta vez ela não a retirou e ele puxou-a para perto de si, e colocou o braço em volta da sua cintura.

- Ficarei convosco enquanto escreveis e ambos assinaremos a carta. O vosso pai deve ficar a saber que a sua filha espanhola e o seu filho inglês estão absolutamente unidos para o ajudar. Graças a Deus que as nossas tropas já estão em Cádis - exclamou Henrique quando deu conta da sua boa sorte.

Catarina hesitou, enquanto um pensamento se formulava len­tamente na sua cabeça.

E... fortuito.

É uma sorte - disse Henrique alegremente. - Fomos aben­çoados por Deus.

O meu pai vai querer tirar daqui qualquer benefício para a Espanha - Catarina abordou cuidadosamente a sua suspeita, enquanto se dirigiam para os seus aposentos. Henrique diminuía as suas passadas, para acompanhar o passo dela. - Nunca dá um passo sem ter já tudo bem planeado.

É natural, mas vós protegereis os nossos interesses, como sempre fazeis - disse ele confiante. - Eu confio em vós, meu amor, como confio nele. Agora ele é o único pai que tenho, não é?

 

                    Verão de 1511

Lentamente, à medida que os dias vão ficando mais quentes e o sol se parece mais com o da Espanha, começo também a aquecer, e a ficar mais parecida com a rapariga espanhola que fui outrora. Não consigo reconciliar-me com a morte do meu filho, acho que nunca aceitarei a sua perda, mas consigo perceber que ninguém é culpado pela sua morte. Não houve falta de cuidado, nem negligên­cia, morreu como um passarinho no seu ninho quente, e tenho de me convencer de que nunca irei saber o motivo pelo qual isso acon­teceu.

Agora sei que foi um disparate culpar-me a mim mesma. Não cometi nenhum crime, nenhum pecado tão grave que levasse Deus, o misericordioso Deus das minhas orações de criança, a punir-me com um desgosto tão grande como este. Não pode existir nenhum Deus bom que leve um bebé tão meigo, tão perfeito, com olhos azuis conto aqueles, apenas como exercício da Sua divina vontade. Dentro do meu coração, reconheço que tal não é possível, que um Deus assim não pode existir. Mesmo que nos piores momentos de expressão da minha dor me tenha sentido culpada e O tenha consi­derado culpado, sei agora que não foi um castigo por qualquer pecado. Sei que cumpri a minha promessa, a promessa de Artur pelos motivos mais nobres; e que Deus me tem ã Sua guarda.

O facto terrível, paralisante e tenebroso da perda do meu bebé parece estar a regredir com a horrível e fria escuridão do Inverno inglês. Uma manhã, o bobo veio para junto de mim e fez algumas pequenas brincadeiras, e eu ri-me alto. Foi como se uma porta, há muito trancada, se tivesse aberto. Percebi que consigo rir-me, que é possível ser feliz, que o riso e a esperança podem voltar para mim que. talvez, eu consiga conceber uma outra criança e voltar a sentir aquela ternura avassaladora.

Começo a sentir que estou viva de novo, que sou uma mulher com esperança e perspectivas, a mulher em que aquela raparigui­nha da Espanha se transformou. Descubro a sensação de estar viva, parada a meio do percurso, entre o meu futuro e o meu passado.

É como se estivesse a verificar se está tudo bem comigo, como um cavaleiro depois de uma queda perigosa, apalpando os braços e as pernas, todo o meu corpo frágil, ã procura de qualquer lesão permanente. A minha fé em Deus regressa, absolutamente inabalada firme como sempre foi. Só me parece ter havido uma grande altera­ção: a confiança que depositava na minha mãe e no meu pai foi afectada. Pela primeira vez na minha vida, penso que, na verdade, podiam estar enganados.

Recordo a bondade do médico mouro para comigo, e vejo-me forçada a emendar a minha opinião sobre o seu povo. Ninguém que tenha visto uma inimiga numa situação tão extrema, como ele me viu, e que tenha conseguido olhar para ela com tanta compaixão, pode ser apelidado de bárbaro, de selvagem. Pode ser um herege -Impregnado de equívocos - mas tem certamente direito a tirar as suas próprias conclusões, a partir dos seus motivos. E, pelo que conheço dos homens, deve ter muito boas razões.

Gostaria de poder enviar um padre bondoso que lutasse pela alma dele, mas não posso dizer, como a minha mãe teria dito, que está morto espiritualmente, que não merece nada a não ser a morte. Ele pegou nas minhas mãos para me dar más notícias, e eu vi a ternura de Nossa Senhora nos seus olhos. Não posso continuar a desprezar os Mouros, a considerá-los hereges ou inimigos. Tenho de vê-los como homens e mulheres, falíveis como nós, fiéis ao seu credo, como nós somos ao nosso.

E, por sua vez, isto leva-me a duvidar da sabedoria da minha mãe. Antes, seria capaz de jurar que ela sabia tudo, que o que dizia devia ser lei em toda a parte. Mas agora tenho idade suficiente para a analisar com mais sensatez. Vivi na pobreza durante a minha viuvez, porque o contrato que assinou fora formulado sem qualquer salvaguarda. Fui abandonada, sozinha num país estrangeiro, porque - embora me tenha dito para voltar para casa com uma urgência aparente - na realidade, tudo não passara de uma ence­nação; ela não queria, de forma alguma, que eu voltasse para a Espanha. Endureceu o seu coração contra mim. desligou-se dos planos que fizera para mim, e deixou-me. a sua própria filha, ao abandono.

E, por fim, fui obrigada a procurar um médico em segredo e a consultado às escondidas, porque ela cumprira o seu papel, expul­sando da Cristandade os melhores médicos, os melhores cientistas e as mentes mais brilhantes do mundo. Considerara a sabedoria deles um pecado, e o resto da Europa deixou-se levar pelas suas ideias. Expulsou da Espanha os judeus, a sua técnica e a sua coragem, expulsou os Mouros com a sua instrução e os seus dons. Ela, uma mulher que apreciava o conhecimento, baniu aqueles a que cha­mam "Os Povos do Livro". Ela, que lutara pela justiça, tinha sido injusta.

Não consigo prever o que este afastamento possa vir a signi­ficar para mim. A minha mãe já morreu e não posso criticá-la, nem discutir com ela, a não ser na minha imaginação. Mas sei que estes meses produziram em mim uma mudança profunda e duradoura. Adquiri uma compreensão do meu mundo que não tem nada que ver com a compreensão que ela tinha do dela. Não apoio uma cruzada contra os Mouros, ou contra seja quem for. Não concordo com a perseguição ou a crueldade contra eles pela cor da sua pele ou pelas crenças que os seus corações defendem Sei que a minha mãe não é infalível, já não me parece que ela e Deus pensem da mesma maneira. Embora ainda ame a minha mãe, já não a venero. Parece-me que, finalmente, estou a tornar-me adulta.

Aos poucos, a rainha foi emergindo da sua dor e começou a interessar-se novamente pela gestão da corte e do país. Londres fervilhava de notícias segundo as quais corsários escoceses haviam ata­cado um navio mercante inglês. Todos sabiam o nome do corsário era Andrew Barton, que navegava com cartas de autorização con­cedidas pelo rei Jaime da Escócia. Barton era impiedoso com os barcos ingleses e a crença geral, nas docas de Londres, era de que Jaime autorizara deliberadamente o pirata a pilhar os barcos ingle­ses, como se os dois países já estivessem em guerra.

- Temos de o fazer parar - disse Catarina a Henrique.

Ele não se atreve a desafiar-me! - exclamou Henrique. Jaime só manda salteadores de fronteira e piratas contra mim. por que não se atreve a enfrentar-me ele mesmo. Jaime é um cobarde e não cumpre os juramentos que faz.

Sim - concordou Catarina. - Mas o mais importante em rela­ção a esse pirata. Barton, é que ele não constitui um perigo apenas para o nosso comércio, é um precursor de coisas piores, que se seguirão. Se deixarmos os Escoceses tomar conta dos mares, estare­mos a deixá-los controlar o nosso país. A Inglaterra é uma ilha e os mares devem pertencer-nos. da mesma forma que o território, senão, não teremos qualquer segurança.

Os meus barcos estão prontos e vamos partir ao meio-dia. Vou capturá-lo vivo - prometeu Edward Howard, o almirante da frota, a Catarina, quando foi despedir-se dela. Ela achou que ele parecia muito jovem, tão imberbe quanto Henrique; mas a sua inte­ligência e a sua coragem eram inquestionáveis. Herdara toda a capa­cidade táctica do pai, mas aplicara-a à recém-criada marinha. Por tradição, aos Howard era atribuído o posto de Lorde Almirante, mas Edward estava a revelar-se excepcional. - Se não o conseguir cap­turar com vida, afundarei o seu navio e trá-lo-ei morto.

Que vergonha para vós! Um inimigo cristão! - disse ela a brincar, estendendo a mão para que ele a beijasse.

Ele olhou para ela, com um ar sério.

- Garanto-vos, Vossa Graça, que os Escoceses constituem um perigo maior para a paz e a riqueza deste país do que os próprios Mouros.

Ele reparou no seu sorriso pensativo.

Não sois o primeiro inglês a dizer-mo - disse ela. - Eu pró­pria cheguei a essa conclusão nos últimos anos.

E tendes de estar cena - disse ele. - Na Espanha, o vosso pai e a vossa mãe não descansaram enquanto não expulsaram os Mouros das montanhas. Para nós, na Inglaterra, o inimigo mais próximo são os Escoceses. São eles que estão nas nossas montanhas, são eles que devem ser reprimidos e subjugados, se alguma vez quisermos viver em paz. O meu pai passou a vida a defender as fronteiras do Norte e, agora, eu vou lutar contra o mesmo inimigo, mas no mar.

Voltai, são e salvo - pediu ela.

Tenho de correr riscos - disse ele, despreocupado. - Não sou homem de ficar em casa.

Ninguém duvida da vossa bravura e a minha frota precisa de um almirante - disse-lhe ela. - Quero ter o mesmo almirante por muitos anos. Preciso do meu campeão, no próximo torneio, preciso do meu par. para dançar comigo. Voltai para casa são e salvo, Edward Howard!

O rei estava apreensivo por ver o seu amigo Edward Howard fazer-se ao mar contra os Escoceses, mesmo que fosse apenas um corsário escocês. Esperara que a aliança que o seu pai fizera com a Escócia, reforçada pelo casamento da princesa inglesa, pudesse garantir a paz.

- Jaime é um hipócrita, prometendo paz e casando com Margaret, por um lado, e a autorizar estes ataques por outro. Vou escrever a Margaret e pedir-lhe para avisar o marido de que não podemos aceitar ataques aos nossos barcos. Além disso, deviam manter-se dentro das suas fronteiras.

- Se calhar, ele não lhe vai dar atenção - alvitrou Catarina.

- Ela não pode ser criticada por isso - disse ele rapidamente. - Nunca se devia ter casado com ele. Era demasiado jovem e ele estava muito determinado em fazer o que queria, e é um homem de guerra. Mas se ela puder, vai fazer com que haja paz, sabia que esse era o desejo do meu pai e sabe que temos de viver em paz. Agora somos da mesma família, somos vizinhos.

Mas os senhores da fronteira, os Percy e os Neville, relataram que os Escoceses, recentemente, se haviam tornado mais arrojados nos seus ataques às terras nortenhas. Era inquestionável que Jaime se estava a preparar para a guerra, era indubitável que tinha inten­ção de tomar terras em Northhumberland e declará-las suas. A qual­quer momento, poderia marchar para sul, tornar Berwick e conti­nuar até Newcastle.

Como se atreve? - perguntou Henrique. - Como se atreve a marchar por aqui dentro, a tomar o que é nosso e a perturbar o nosso povo? Não sabe que eu posso reunir um exército e usá-lo contra ele amanhã?

Seria uma campanha difícil - fez notar Catarina, pensando nas terras bravias da fronteira e no longo percurso para lá chegar. Os Escoceses teriam tudo a seu favor, com as terras ricas do Sul espalhadas à sua frente, e os soldados ingleses nunca queriam lutar quando estavam longe das suas aldeias.

Seria fácil - contrapôs Henrique. - Toda a gente sabe que os Escoceses não conseguem manter um exército em campo. Não pas­sam de um bando de salteadores. Se eu levasse um grande exérci­to inglês, devidamente equipado e ordenado, acabaria com eles num só dia.

- Certamente que sim - Catarina sorriu. - Mas não vos esqueçais de que temos de reunir o nosso exército para lutar contra os Franceses. De certeza que preteris ganhar as vossas esporas contra os Franceses, num campo de bravura que ficará na história, do que numa reles querela de fronteira.

Catarina conversou com Thomas Howard, Conde de Surrey, pai de Edward Howard. no final da reunião do Conselho Privado, na altura em que os homens saíram dos aposentos do rei.

-Senhor? Tendes notícias de Edward? Sinto falta do meu jovem Chevalier.

O velho senhor sorriu para ela.

Recebemos hoje um relatório. O próprio rei vos dirá. Sabia que ficaríeis contente por tomardes conhecimento de que o vosso favorito conseguiu uma vitória.

Conseguiu?

Capturou o pirata Andrew Barton e dois dos seus barcos - o orgulho transparecia sob a sua falsa modéstia. - Limitou-se a fazer o que qualquer rapaz Howard tem obrigação de fazer.

Ele é um herói! - disse Catarina entusiasmada. - A Inglaterra precisa tanto de grandes marinheiros como de soldados. O futuro da Cristandade está no domínio dos mares. Temos de dominar os mares, como os Sarracenos dominam os desertos. Temos de expul­sar os piratas dos mares e transformar os barcos ingleses numa presença constante. E que mais? Já iniciou o caminho de volta?

Vai trazer os seus barcos até Londres e o pirata acorrentados Vamos julgá-lo e enforcá-lo na beira do cais, mas o rei Jaime não vai gostar.

-Julgais que o rei dos Escoceses quer a guerra? - perguntou--lhe Catarina sem rodeios. - Seria capaz de entrar em guerra por uma causa como esta? Estará o país em perigo?

- De todas as que já assisti na minha vida, esta é a situação de maior perigo para a paz do reino - disse o velho senhor honesta­mente. - Conseguimos subjugar os Galeses e trazer a paz ás nossas fronteiras a ocidente, agora teremos de dominar os Escoceses. Depois disso, teremos de resolver o problema dos Irlandeses.

É um país independente, com os seus próprios reis e as suas leis - objectou Catarina.

Também os Galeses eram, até os derrotarmos - sublinhou ele. - Este território é demasiado pequeno para três reinos. Os Escoceses terão de ser subjugados e ficar sob o vosso domínio.

Talvez lhes pudéssemos oferecer um príncipe - pensou Catarina em voz alta. - Como fizeram com os Galeses. O segundo filho poderia ser o Príncipe da Escócia, da mesma forma que o pri­mogénito e o Príncipe de Gales. Teríamos um reino governado pelo rei inglês.

Ele ficou surpreendido com a ideia.

-      É verdade - disse ele. - Essa seria a melhor maneira de o conseguir. Atingi-los em cheio e. depois, oferecer-lhes uma paz hon­rosa. De outra forma, vamos tê-los a morder-nos os calcanhares para sempre.

- O rei pensa que o exército deles deve ser pequeno e fácil de derrotar - observou Catarina.

Howarcl conseguiu dominar uma gargalhada.

Sua Majestade nunca esteve na Escócia - disse. - Nunca este­ve na guerra. Os Escoceses são um inimigo formidável, quer em batalha campal, quer em ataques de passagem. São um inimigo muito pior do que a cavalaria francesa da imaginação dele. Não respeitam as leis de cavalaria, lutam para ganhar e lutam até à morte Temos de enviar uma forca poderosa, sob as ordens de um comandante experiente.

Seríeis capaz de o fazer?

Posso tentar - respondeu ele honestamente. - Neste momento, sou a melhor arma que tendes à mão, Vossa Graça.

-Julgais que o rei seria capaz de o fazer? - perguntou ela baixinho.

Ele sorriu:

- É um jovem - disse ele - e não lhe falta coragem. Ninguém que o tenha visto num torneio pode duvidar da sua coragem. E habilidoso, a cavalo. Mas uma guerra, não é um torneio, e ele ainda não percebeu isso. Precisa de cavalgar à frente de um exército arranjado. de ficar calejado por algumas batalhas, antes de travar a grande guerra da sua vida - a guerra pelo seu próprio reino. Não põe um potro numa carga de cavalaria a primeira vez que sai c estabulo. Tem de aprender O rei. mesmo sendo um rei. tem i aprender.

-      Não lhe ensinaram nada sobre táctica de guerra - disse e - Não teve de estudar outras batalhas. Não faz ideia de como observa o tipo de terreno e como se devem posicionar as forças Não sabe nada de abastecimentos e de como manter um exercito em movimento. O pai não lhe ensinou nada.

O pai não sabia quase nada - disse o conde muito baixo, de maneira a que só ela ouvisse. - A sua primeira batalha foi Boswonh e ele ganhou-a. em parte, por sorte, e, em parte, devido aos aliados que a mãe conseguiu pôr em campo para o ajudar. Era bastante corajoso, mas não era nenhum general.

Mas. porque é que ele não fez com que Henrique apre desse a táctica de guerra? - perguntou a filha de Fernando, qu fora criada num acampamento e aprendera o que era um plano campanha, mesmo antes de aprender a costurar.

Quem haveria de pensar que ele teria necessidade de saber essas coisas? - perguntou-lhe o velho conde. - Todos pensávamos que seria Artur.

Ela fez um esforço para que o seu rosto não deixasse transpa­recer a súbita aguilhoada de dor, perante a menção inesperada daquele nome.

- Tendes razão - disse ela. - É óbvio que pensavam. Tinha-esquecido. Mas é claro que pensavam.

- Neste momento, ele teria sido um grande comandant Interessava-se pelos empreendimentos guerreiros, lia. Estudava, conversava com o pai. massacrava-me com perguntas, listava bem cie te do perigo que os Escoceses representavam e tinha uma grande noção do modo de comandar os homens. Costumava fazer-me per­guntas sobre as terras da fronteira, onde se situavam os castelos, que tipo de terreno era. Fodia ter conduzido um exército contra os Escoceses com alguma esperança de sucesso. O jovem Henrique será um grande rei. quando aprender a táctica. Mas Artur já sabia tudo isso. Estava-lhe no sangue.

Catarina nem sequer se permitiu o prazer de falar sobre ele.

-      Talvez - foi tudo o que disse. - Entretanto, o que podemos fazer para limitar os ataques dos Escoceses? Pensais que os senh res das fronteiras deviam receber reforços?

- Penso que sim, mas é uma fronteira muito extensa, e difícil de defender. O rei Jaime não tem medo de um exército inglês lide­rado pelo rei. E não teme os senhores da fronteira.

- Como é que ele não tem medo de nós?

Ele encolheu os ombros, demasiado cortês para dizer qualquer palavra que o atraiçoasse.

- Bem, Jaime é um velho guerreiro, há duas gerações que t esta a preparar para a luta.

- Quem é que poderia fazer com que Jaime nos receasse, de maneira a que permanecesse na Escócia, enquanto reforçamos a fronteira e nos preparamos para a guerra? O que o faria adiar o ata­que, permitindo-nos ganhar tempo?

Nada - declarou ele, abanando a cabeça. - Não há ninguém que consiga detê-lo, se estiver decidido a atacar. Excepto, talvez, o Papa, se assim lho ordenasse. Mas quem iria convencer Sua Santidade a intrometer-se entre dois monarcas cristãos que discutem por causa de um ataque de piratas e um pedaço de terra? E o Papa tem os seus próprios problemas, com o avanço dos Franceses. Além do mais, uma queixa nossa só iria provocar um contra-ataque da Escócia. Porque haveria Sua Santidade de intervir em nosso favor?

Não sei - disse Catarina. - Não sei o que poderia fazer com que o Papa tomasse o nosso partido. Se ao menos conhecesse o nosso problema! Se usasse os seus poderes para nos defender!

Richard Bainbridge, o Cardeal Arcebispo de York, está, por acaso, em Roma, e é um bom amigo meu. Escrevo-lhe nessa mesma noite, uma carta informal, como a que se escreve a um conhecido que está longe de casa, contando-lhe as novidades sobre Londres, sobre o clima, as perspectivas para as colheitas e o preço da lã. Depois, falo-lhe na inimizade do rei escocês, do seu pecaminoso orgulho, do seu apoio cruel aos ataques aos nossos barcos e- pior do que tudo - das suas constantes incursões nas nossas terras do Norte. Digo-lhe que receio bastante que o rei se veja forçado a defender as suas terras do Norte e que, por isso, não tenha possibilidade de ir em auxílio do Santo Padre, na sua luta contra o rei francês. Seria uma grande tragédia, escrevo eu, se o Papa se visse atacado e nós não tivéssemos possibilidade de ir em seu auxílio por causa da cruelda­de dos Escoceses. Temos planos para nos juntarmos à aliança do meu pai e defender o Papa; mas será difícil juntarmo-nos ao Papa, se o nosso país não estiver em segurança. Se eu conseguir convencê-lo, nada afastara o meu marido da sua aliança com o meu pai, com o Imperador e com o Papa, mas que posso eu, uma pobre mulher, fazer? Uma pobre mulher, cuja fronteira indefesa está sob ameaça constante?

O que poderia ser mais natural do que Richard, meu irmão em Cristo, ter decidido levara carta, em mãos, a Sua Santidade, o Papa, e falar-lhe na minha grande perturbação, causada pela ameaça que o rei Jaime da Escócia representava para a paz do meu país? E de como toda a aliança para salvar a Cidade Eterna poderia estar ameaçada por esta má vizinhança?

O Papa, ao ler a carta que escrevi a Richard, compreende o que está implícito e escreve imediatamente ao rei Jaime, ameaçando excomungá -lo, se ele não respeitar a paz e as fronteiras justamente acordadas de um outro rei cristão. Afirma-se chocado pelo jacto de Jaime querer perturbar a paz da Cristandade. Considera a sua conduta muito grave e ameaça-o com grandes sanções. O rei Jaime obrigada a aceder aos desejos do Papa, obrigado a pedir desculpa pelas suas incursões, escreve uma carta agreste a Henrique, dizendo-lhe que não devia ter contactado unilateralmente o Papa, que aquilo fora apenas uma querela entre os dois e que não houvera motivo para Henrique ir a correr fazer queixa ao Santo Padre, nas suas costas.

-Não sei do que está ele a falar! - queixou-se Henrique a Catarina, ao encontrá-la no jardim, jogando à apanhada com as suas damas de companhia. Estaca demasiado perturbado para entrar no jogo, como costumava fazer: apanhava a bola no ar, atirava-a com força contra a rapariga que estivesse mais perto e desatava aos gri­tos, todo contente. Estava preocupado de mais para jogar com elas. - O que é que ele está a dizer? Eu nunca apelei para o Papa, não lhe contei nada, não sou nenhum queixinhas!

Pois claro que não, e deveis dizer-lho - disse Catarina sere­namente, enfiando o seu braço no dele, afastando-se das outras mulheres.

- E vou dizer! Não contei nada ao Papa, e posso prová-lo.

É possível que eu tenha mencionado as minhas preocupações ao arcebispo e que ele as tenha feito chegar aos seus superio­res - disse Catarina casualmente. - Mas vós não podeis ser acusado só porque a vossa esposa diz ao seu conselheiro espiritual que esta preocupada.

Exactamente - disse Henrique. - É o que lhe vou dizer. E vos não precisais de vos preocupar, nem um bocadinho.

- Eu sei, e o mais importante é que Jaime saiba que não nos pode atacar impunemente. Sua Santidade assim o determinou. Henrique hesitou.

- Não era vossa intenção que Bainbridge tosse contar ao Papa, pois não?

Ela lançou-lhe um pequeno sorriso

- Claro - disse ela -, mas mesmo assim, não tostes vós quem se queixou de Jaime, ao Papa.

O abraço dele apertou-se em volta da cintura dela.

Sois um adversário temível. Espero que nunca tenhamos de estar em campos opostos. Eu perderia, de certeza.

Nunca estaremos - disse ela docemente -. pois eu nunca serei outra coisa que não seja a vossa esposa leal e fiel e rainha.

Consigo reunir um exercito num instante, vós sabeis - recor­dou-lhe Henrique. - Não tendes de recear Jaime. Não necessitais sequer de tingir que tendes medo. Sou capaz de exterminar Escoceses. Posso fazê-lo tão bem como outro qualquer, e vós sabeis.

É claro, claro que sei. E, graças a Deus. agora não precisai; de o fazer.

 

                           Outono de 1511

Edward Howard trouxe os corsários escoceses para Londres acorrentados, e foi recebido como um herói inglês. A sua popularidade deixou Henrique - sempre preocupado com a aprovação do povo - bastante invejoso. Cada vez falava mais numa guerra contra os Escoceses e o Conselho Privado, embora receoso pelo custo dessa guerra e, em particular, duvidando das capacidades militares de 1 [enrique, não podia negar que a Escócia era uma ameaça sem­pre presente para a paz e a segurança da Inglaterra.

Foi a rainha que fez com que Henrique esquecesse a sua inve­ja de Edward Howard e era também a rainha que lhe recordava constantemente que a sua primeira experiência guerreira deveria ter lugar, sem qualquer dúvida, nos importantes campos da Europa e não numas montanhas semiescondidas na fronteira. Quando Henrique da Inglaterra partisse para a batalha teria de ser contra o rei francês, aliado aos dois mais importantes reis da Cristandade. Henrique, inspirado desde criança pelas histórias acerca de Crécy e Agincourt. deixou-se seduzir facilmente por ideias de glória contra a França.

 

                     Primavera de 1512

Foi difícil para Henrique não embarcar pessoalmente, quando a armada partiu para se juntar ao rei Fernando, na sua campanha contra os Franceses. Foi uma partida gloriosa: os barcos fizeram-se ao mar, exibindo os estandartes da maior parte das mais importantes. famílias da Inglaterra e eram a força mais bem equipada e guarnecida que partira da Inglaterra nos últimos anos. Catarina estiver; bastante ocupada, supervisionando a tarefa interminável de aprovisionar os barcos, abastecê-los de armamento e equipar os soldados Recordava-se do trabalho constante da mãe quando o pai estava em guerra, e aprendera a grande lição da sua infância - que um batalha só podia ser ganha se tivesse sido preparada de modo exaustivo -e fiável.

Enviou uma frota expedicionária que estava mais bem organizada do que qualquer outra que alguma vez partira da Inglaterra, ela estava convencida de que, sob o comando do seu pai. o Ingleses poderiam defender o Papa, derrotar os Franceses, conquistar territórios na França e, com isso, tornar os Ingleses, mais um vez, os maiores proprietários de terras na França. Os que, n Conselho Privado, defendiam a paz, estavam preocupados, com era seu hábito, pois temiam que a Inglaterra se visse arrastada par outra guerra interminável; mas Henrique e Catarina estavam cor vencidos, influenciados pelas previsões confiantes de Fernando, d que a vitória seria rápida e que daí surgiriam importantes beneficie para a Inglaterra.

Durante toda a minha infância vi o meu pai comandar uma campanha atrás de outra. Nunca o vi perder. Entrar em guerra e revivera minha infância. A cor os sons e a excitação de um país em guerra são para mim uma profunda alegria. Desta vez, o facto de estar aliada ao meu pai, como parceiro igual, de ter a possibilidade de lhe enviar a força do exército inglês, faz-me sentir como se esti­vesse a entrar na idade adulta. Era o que esperava de mim, é o ponto culminante da minha vida como filha dele. Foi para isto que supor­tei os longos anos de espera pelo trono inglês. É este o meu destino. Finalmente, sou um comandante, como o meu pai e como a minha mãe. Sou uma rainha militante e, nesta manhã cheia de sol em que vejo a armada partir, não tenho qualquer diívida de que serei uma rainha triunfante.

De acordo com o plano, o exército inglês iria encontrar-se com o exército espanhol para invadirem o Sudoeste da Franca: Guienne e o Ducado de Aquitânia. Na mente de Catarina não existiam dúvidas de que o pai iria querer receber o seu quinhão dos despojos de guerra, mas acreditava que ele respeitaria a promessa de marchar juntamente com os ingleses para a Aquitânia. que voltaria a pertencer à Inglaterra. Pensava que o plano secreto do pai consistia na divisão da França em fragmentos, o que faria com que aquele país superpoderoso voltasse a ser o aglomerado de pequenos reinos e ducados que fora anteriormente, esmagando assim as suas ambições por uma geração. De facto, Catarina sabia que ò pai considerava que seria mais seguro para a Cristandade se a França fosse reduzida. Não era um país em que se pudesse confiar, com o poder e a riqueza que lhe advinham daquela união.

 

                                     Maio de 1512

Foi um entretenimento tão agradável como qualquer outro da corte, observar os barcos a atravessarem a barra e fazerem-se ao mar, empurrados por um vento forte, num dia de sol; e Henrique e Catarina regressaram a Windsor cheios de confiança, uma vez que os seus exércitos eram os mais fortes da Cristandade e não podiam falhar.

Catarina aproveitou o momento e o entusiasmo de Henrique pelos barcos para lhe perguntar se não achava que deviam mandar construir galés, barcos de guerra movidos a remos. Artur percebera imediatamente ao que ela se referia quando lhe falara em galés; já tinha visto desenhos e lido textos sobre a maneira como podiam ser utilizadas. Henrique nunca vira uma batalha no mar. nem uma galé virar de rumo num instante, sem que houvesse vento, e atacar um navio de guerra imobilizado por falta de vento. Catarina tentou explicar-lhe, mas Henrique, inspirado pela visão da armada com as velas desfraldadas, afirmou que só queria barcos à vela, barcos grandes, conduzidos por tripulações livres, destinados à glória.

Toda a corte concordou com ele, e Catarina percebeu que não adiantava fazer frente a uma corte que se deixava sempre levar pela última moda. Motivados pelo belo efeito produzido pela armada ao fazer-se ao mar, todos os jovens queriam ser almirantes, como Edward Howard, da mesma maneira que no Verão anterior haviam desejado ser cruzados. Não adiantava discutir as debilidades de um grande barco à vela, em combate cerrado - todos queriam navegar com todas as velas ao vento. Todos queriam ter o seu próprio barco. Henrique passava dias inteiros com mestres e construtores navais e Edward Howard lutava por ter uma frota cada vez maior.

Catarina concordava que a frota era muito boa, que os mari­nheiros da Inglaterra eram os melhores do mundo, mas lembrava que talvez fosse melhor escrever para o arsenal de Veneza, pergun­tando qual era o preço de uma galé, se poderiam construí-la por encomenda, ou se concordariam em enviar as peças e os planos para a Inglaterra, para que fosse montada por construtores ingleses, nos estaleiros ingleses.

- Nós não precisamos de galés - disse Henrique desinteressado. - As galés só servem para ataques nas praias. Não somos pira­tas. Queremos barcos grandes que possam transportar os nossos soldados. Queremos barcos fortes que possam atacar os barcos fran­ceses em alto mar. O barco é uma plataforma a partir da qual lan­çamos o ataque. Quanto maior for a plataforma, mais soldados poderemos levar. Tem de ser um barco grande, próprio para uma batalha marítima.

Estou segura de que tendes razão - disse ela. - Mas não devemos esquecer os nossos outros inimigos. Os mares são uma fronteira e temos de dominá-los com barcos grandes e pequenos Mas a nossa outra fronteira também tem de se tornar segura.

Estais a referir-vos aos Escoceses? Já receberam um aviso do Papa. Penso que não teremos de nos incomodar com eles.

Ela sorriu. Nunca discordaria dele abertamente.

-Com certeza - disse ela. - O arcebispo garantiu-nos algum espaço para respirarmos. Mas no próximo ano, ou no ano seguinte, teremos de ir contra os Escoceses.

 

                                 Verão de 1512

Depois, não havia nada para Catarina fazer, a não ser esperar. Parecia que todos estavam à espera. O exército inglês estava em Fuenterrabia, esperando que os Espanhóis se lhes juntassem para invadirem o Sul da França. O calor do Verão desceu sobre eles durante todo aquele tempo de espera em que comiam mal e bebiam como loucos sedentos. De todos os que faziam parte do Conselho de Henrique, apenas Catarina sabia que o calor do meio do Verão na Espanha podia matar um exército que não tinha nada para fazer, a não ser esperar por ordens. Escondia de Henrique os seus receios, e do Conselho, mas, em privado, escreveu ao pai. perguntando-lhe quais eram os seus planos, e abordou o embaixador dele, queren­do saber o que esperava o pai que o exército inglês fizesse e quan­do é que deveria prosseguir.

O pai, que cavalgava com o seu próprio exército, em movi­mento, não respondeu: e o embaixador não sabia.

O Verão chegou ao fim e Catarina não voltou a escrever. Num momento de amargura, que nem para si mesma quis reconhecer, percebeu que, afinal, não era uma aliada do pai no tabuleiro de xadrez da Europa - chegou à conclusão de que, nos planos dele, não passava de um mero peão. Nem foi preciso perguntar qual era a estratégia dele; apesar de ter o exército inglês a postos, não o uti­lizou, e isso fez com que ela adivinhasse.

O tempo arrefeceu na Inglaterra, mas na Espanha ainda estava calor. Por fim, Fernando precisou dos seus aliados, mas. quando os mandou chamar e lhes ordenou que passassem o Inverno em cam­panha, eles recusaram-se a atender ao chamado. Amotinaram-se contra os seus comandantes e exigiram voltar para casa.

 

                     Inverno de 1512

Não foi nenhuma surpresa para Catarina, nem para os cínicos do Conselho, quando o exército inglês voltou para casa, em Dezembro, vestindo farrapos desonrosos. Lorde Dorset, perdendo a esperança de alguma vez chegar a receber ordens e reforços do rei Fernando, confrontado pelas tropas esfomeadas e cansadas, com a morte de dois mil homens por doença, voltou para casa em des­graça, quando os tinha levado para a guerra com tanta glória.

- O que é que pode ter corrido mal? - Henrique correu para os aposentos de Catarina e fez um gesto às damas de companhia para que saíssem. Estava quase a chorar de raiva, envergonhado por aquela derrota. Não queria acreditar que as suas forças, que haviam partido com tanta bravura, pudessem ter regressado em tal estado. Recebera cartas do sogro, queixando-se do comportamento dos alia­dos ingleses, ficara mal visto na Espanha e completamente despres­tigiado face ao seu inimigo, a França. Fugiu para junto de Catarina, a única pessoa no mundo com quem poderia partilhar o seu cho­que e desalento. Quase gaguejava, com tanta preocupação. Era a primeira vez no seu reinado que alguma coisa tinha corrido mal e ele pensara - como uma criança - que nunca nada lhe correria mal.

Pego-lhe nas mãos. Tenho estado à espera disto desde o primeiro momento, no Verão, quando ainda não havia um plano de batalha para as tropas inglesas. Quando lá chegaram e não foram solicitados, percebi que tínhamos sido enganados. Pior, compreendi que tínhamos sido enganados pelo meu pai.

São sou nenhuma imbecil. Conheço o meu pai como coman­dante e como homem. Ao ver que não tinha lançado os ingleses na batalha no dia em que lá chegaram, percebi que tinha outros pla­nos para eles, e que esse plano tinha sido escondido de nós. O meu pai nunca deixaria homens valentes num acampamento, a fazerem intrigas, a embebedar-se e a adoecer. Eu estive em campanha com o meu pai durante a maior parte da minha infância e nunca o vi deixar os homens sem nada para fazer. Obriga-os a manterem-se sempre em movimento, a trabalhar e longe de confusões. Não há, nos estábulos do meu pai, nenhum cavalo que tenha um quilo de gordura a mais: os seus soldados são tratados do mesmo modo.

Se os ingleses foram deixados a apodrecer no acampamento foi porque ele precisava deles exactamente no sítio onde estavam - acampados. Não quis saber se estavam a adoecer e a tornar-se preguiçosos. Isto fez-me estudar novamente o mapa, e percebi o que estava a fazer. Estava a servir-se deles como contrapeso, como uma manobra de diversão inactiva. Li os relatórios dos nossos comandantes, assim que foram chegando, queixando-se daquela imobilidade sem sentido, dos exercícios que faziam na fronteira, durante os quais podiam avistar o exército francês e ser avistados por ele, mas sem receberem ordens para o confrontar; e percebi que estava certa. O meu pai manteve as tropas inglesas a passear no local, em Fuenterrabia, para que os franceses, alarmados por terem uma força tão poderosa no seu flanco, colocassem o seu exército em defesa. Enquanto estavam de guarda aos ingleses não podiam atacar o meu pai que, orgulhosamente só e sem estorvos, marchou à cabeça das suas tropas em direcção ao desprotegido reino de Navarra, conseguindo, desta maneira, alcançar aquilo por que ansiava há tanto tempo, sem problemas e sem perigo para si próprio.

- Meu querido, os vossos soldados não foram considerados culpados - digo ao meu marido jovem e desesperado. - Não esta em causa a coragem dos ingleses. Não pode haver dúvidas a esse respeito.

Ele diz... — acena-me com a carta.

O que diz é indiferente - digo eu pacientemente -, tendes de olhar para o que ele faz.

O rosto que volta para mim é tão sofrido que eu não sou capaz de lhe dizer que o meu pai o usou. que o fez passar por idiota, que usou o seu exército, que me usou. até a mim. para conseguir con­quistar Navarra.

O meu pai recebeu a sua paga antes de fazer o trabalho, é tudo - digo eu com veemência. - Agora só temos de o obrigar a fazer o trabalho.

Que quereis dizer com isso? - Henrique estava ainda bara­lhado.

Que Deus me perdoe por dizer isto, mas o meu pai é um mes­tre a enganar as pessoas. Se vamos assinar tratados com ele, temos de aprender a ser tão espertos como ele. Ele fez um tratado connos­co e prometeu ser nosso parceiro na guerra contra a França, mas a única coisa que fizemos foi garantir-lhe Navarra, ao enviar-lhe o nosso exército e ao mandá-lo regressar.

Eles foram envergonhados. Eu fui envergonhado.

Não consegue compreender o que estou a tentar dizer-lhe.

O vosso exército fez precisamente o que o meu pai queria que fizesse. Nesse sentido, foi uma campanha muito bem sucedida.

Eles não fizeram nada! Ele queixou-se, dizendo que não ser­viam para nada!

-      Com esse nada, mantiveram os franceses imobilizados. Pensai nisso! Os Franceses perderam Navarra.

- Quero levar Dorset a tribunal marcial!

Sim. podemos fazer isso. se o desejardes. Mas o mais importante é que continuamos a ter o nosso exército, só perdemos dois mil homens e o meu pai é nosso aliado. Este ano, ele ficou em dívida para connosco. No próximo ano, podeis voltar a França e, dessa vez. terá de ser ele a lutar por nós; e não nós por ele.

Ele diz que vai conquistar a Guienne para mim, e di-lo como se eu não fosse capaz de o fazer por mim próprio! Pala contigo conto se eu fosse um fraco, com um exército de inúteis!

Óptimo! - digo eu. para sua surpresa. - Deixai-o conquistar Guienne para nós.

- Ele quer que lhe paguemos.

- E pagaremos. O que importa isso. desde que o meu pai esteja do nosso lado quando entrarmos em guerra com os Franceses? Se ele conquistar Guien ne para nós, o interesse será nosso: se não o fizer, e se apenas conseguir manter os Franceses distraídos enquanto nós invadimos o Sorte, através de Calais, também será bom para nós.

Por momentos fica a olhar para mim, com a cabeça a andar à roda. Depois percebe o que eu queria dizer.

Ele mantém os Franceses imobilizados enquanto nos avança­mos, como fizemos com ele?

Precisamente.

Vamos usá-lo, do mesmo modo que ele nos usou?

Sim.

Pie fica espantado.

- O vosso pai ensinou-vos a fazer estas coisas - a planear ante» cipadatnente, como se uma campanha fosse um tabuleiro de xadrez e vós tivésseis de mover as peças?

Eu abano a cabota.

Não o fez propositadamente. Mas não se pode viver com um homem como o meu pai sem se aprender a arte da diplomacia. Sabeis que o próprio Maquiavel lhe chamou o príncipe perfeito' Não se podia viver na corte do meu pai, como eu vivi. ou estar em cam­panha com ele. como eu estive, sem perceber que ele passa a vida a procurar obter vantagens. Ele ensinava-me todos os dias. e eu não podia deixar de aprender, bastava-me observá-lo. Sei como a mente dele funciona. Sei como pensa um general.

Mas o que vos leva a querer invadir por Calais'

Oh, meu querido, por onde mais é que a Inglaterra poderia invadir a França? O meu pai pode combater no Sul, por nós. e vere­mos se é capaz de conquistar a Guienne. Podeis estar certo de que o fará, se for do seu interesse. E. de qualquer forma, enquanto estiver a fazê-lo, os Franceses não poderão defender a Normandia.

A confiança de Henrique regressa num instante.

- Eu mesmo irei - declara. - Eu próprio irei para o campo de batalha. O vosso pai não poderá criticar o comando do exército inglês, se for eu a comandá-lo.

Hesito, por momentos. Brincar às guerras já é um jogo perigoso e, enquanto não tivermos um herdeiro. Henrique é precioso de mais. Sem ele. a segurança da Inglaterra ficará completamente desfeita entre uma centena de pretendentes. Mas nunca serei capaz de man­ter a minha influencia sobre e/e se o tentar prender, como fizera a avó. Henrique terá de aprender a natureza da guerra e eu sei que estará muito mais seguro numa campanha comandada pelo meu pai, que tem tanto interesse em que eu permaneça no trono quanto eu: e estará, de longe, muito mais seguro com os cavalheirescos fran­ceses do que com os bárbaros escoceses. Tenho um plano secreto que requer que ele esteja fora do pais

Ireis, com certeza — digo eu. - E tereis a melhor armadura, o cavalo mais forte e a melhor guarda, entre todos os reis que estive­rem em campo.

Thomas Howard diz que devíamos abandonar a nossa luta contra a Trança, até que os Escoceses estejam subjugados.

Abano a cabeça.

-Ireis lutar na França com a aliança dos três reis - asseguro--Ihe eu. - Será uma guerra poderosa, uma guerra que todos irão recordar. Os Escoceses são um perigo menor, podem esperar, no máximo, lançarão um ataque insignificante na fronteira. Ese inva­direm o Norte enquanto estiverdes na guerra, são tão pouco impor­tantes que até eu poderia comandar uma expedição contra eles, enquanto vós estiverdes na verdadeira guerra, na França.

-Vós? - pergunta ele.

E porque não? Não somos um rei e uma rainha jovens, que subimos ao trono na flor da idade? Quem pode negá-lo?

Ninguém! Não deixarei que me façam mudar de opinião -afirma Henrique. - Vou conquistar, na França, e vós protegereis o nosso país dos Escoceses.

- Fá-lo-ei! - prometo-lhe. É precisamente isto que eu quero.

 

                           Primavera de 1511

Durante todo o Inverno, Henrique não falou de outra coisa a não ser da guerra e, na Primavera, Catarina começou a reunir um grande número de homens e grandes quantidades de material para a invasão do Norte da França. O tratado com Fernando acordava que ele deveria invadir a Guienne, em nome da Inglaterra, ao mesmo tempo que as tropas inglesas tomavam a Normandia. O Sagrado Imperador Romano, Maximiliano, iria juntar-se ao exército inglês na batalha, no Norte. Era um plano infalível, se as três partes atacassem ao mesmo tempo, se tivessem plena confiança uns nos outros.

Para mim, não foi nenhuma surpresa descobrir que o meu pai andava a negociar a paz com a França, precisamente na mesma altura em que eu tinha pedido a Thomas Wolsey, o meu braço direi­to, o oficial da Casa Real encarregado de distribuir esmolas aos pobres, que escrevesse para todas as cidades da Inglaterra, pergun­tando quantos homens poderiam disponibilizar para o serviço do rei, quando partíssemos para a guerra na França. Eu sabia que o meu pai só pensava na sobrevivência da Espanha: a Espanha acima de tudo. Não o censuro por isso. Agora que sou uma rainha, compreendo um pouco melhor o que significa amarmos um pais com tal paixão, que somos capazes de trair seja quem for - até um filho nosso, como ele está a fazer- para o manter em segurança. O meu pai, antevendo, por um lado, a perspectiva de uma guerra proble­mática e com poucos dividendos e, pelo outro, uma hipótese de paz, em que lhe interessava apostar, escolhe a paz e a França como amigo. Ele traiu-nos, em absoluto segredo, e até a mim conseguiu enganar.

Quando a sua enorme perfídia se torna pública, atribui todas as culpas ao seu embaixador e a hipotéticas cartas que se teriam perdido. É uma fraca desculpa, mas eu não me queixo. O meu pai irá juntar-se a nós, mal lhe pareça que vamos ganhar. O importante para mim, agora, é fazer com que Henrique parta para a sua campanha na França e me deixe só, para lidar com os Escoceses.

Ele tem de aprender a comandar os homens numa batalha -diz-me Thomas Howard. - Não são propriamente um grupo de rapa­zes que visitam um lupanar-perdoai-me, Vossa Graça.

Eu sei! - respondo eu. - Ele tem de ganhar as suas esporas. Mas é tão arriscado.

O velho soldado coloca a sua mão sobre a minha.

- Muito poucos reis morrem em batalha - diz ele. - Não deveis pensar no rei Ricardo, porque ele é que correu para as espadas. Ele percebeu que o tinham traído. A maior parte das vezes, os reis são libertados através de um resgate. Não tem nem metade do perigo, comparado com aquele que vós correreis se equipardes um exército e o enviardes através do estreito para a França e tentardes comba­ter os Escoceses, com o que cã sobrar.

Fico calada durante algum tempo. Não me tinha apercebido de que ele adivinhara o que eu planeava fazer.

Quem é que pensa que é que vou fazer?

Apenas eu.

Haveis falado disso a alguém?

- Não - diz ele estoicamente. - O meu primeiro dever é para com a Inglaterra, e penso que tendes razão. Temos de acabar com os Escoceses, de uma vez por todas, e será melhor que isso aconteça enquanto o rei estiver a salvo, do outro lado do mar.

- Vejo que não vos preocupa demasiado a minha própria segurança!- observo.

Ele encolhe os ombros e sorri.

-Vós sois uma rainha — diz ele — muito querida, talvez. Mas é sempre possível arranjar uma outra rainha. Não temos é mais nenhum rei Tudor.

- Eu sei- digo eu. - E unia verdade clara, como água. Eu posso ser substituída, mas Henrique não. Enquanto eu não tiver um filho Tudor.

Thomas Haward adivinhou o meu plano. Não tenho qualquer duvida em relação aos meus deveres. Foi isso que Artur me ensinou - o maior perigo para a segurança da Inglaterra vem do Norte, dos Escoceses e, por isso. é para norte que tenho de marchar. Henrique tem de ser encorajado a vestir a sua mais bela armadura para ir, com os seus amigos mais queridos, participar numa espécie de gran­de torneio contra os Franceses. Mas a guerra na fronteira norte vai ser sanguinária; se conseguirmos aí uma vitória, ficaremos em segurança durante várias gerações. Se quiser fazer da Inglaterra um país seguro, para mim e para o meu filho por nascer, e para os reis que vierem depois de mim, tenho de derrotar os Escoceses.

Mesmo que eu nunca venha a ter um filho, mesmo que nunca chegue a ir a Walsingham agradecer a Nossa Senhora pelo filho que ela me tenha dado, terei sempre cumprido o meu primeiro e maior dever, minha adorada Inglaterra, meu país, se derrotar os Escoceses. Mesmo que morra ao fazê-lo.

Sustento a decisão de Henrique, não o deixo perder a paciência, nem a vontade. Luto contra o Conselho Privado, que prefere ver na impossibilidade de se poder confiar no meu pai um novo sinal de que não devemos entrar em guerra. Em parte, concordo com eles. Parece--me que não temos nenhum motivo forte contra a França e que os ganhos não vão ser muitos. Mas sei que Henrique está louco por ir para a guerra, e pensei que a França é sua inimiga e o rei Luís seu rival. Quero Henrique fora do meu caminho este Verão, a altura em que tenciono destruir os Escoceses. Sei que a única coisa que o pode distrair é uma guerra gloriosa. Eu quero que haja guerra, não porque esteja zan­gada com os Franceses ou porque queira mostrar a nossa capacidade bélica ao meu pai; quero a guerra porque temos os Franceses a sul e os Escoceses a norte, e tenho ele enfrentar seriamente um destes inimigos e brincar com o outro, para manter a Inglaterra segurei.

Passo horas ajoelhada na capela real; mas é com Artur que falo. em longos e silenciosos devaneios. "Tenho a certeza de que estou certa, meu amor", murmuro para dentro das minhas mãos mudas. Estou certa ele que tínheis razão quando me avisaste acer­ca do perigo que os Escoceses representavam, lemos de dominei-los ou nunca teremos um reino onde se possa dormir em paz. Se conse­guir fazer o que quero, este será o ano em que se decidirá o destino da Inglaterra. Se conseguir, enviarei Henrique contra os Franceses, irei contra os Escoceses e o nosso destino poderá ficar traçado. Sei que os Escoceses são o perigo maior. Todos pensam que são os Franceses - o teu irmão não pensa em mais nada, para além dos Franceses - mas são homens que não conhecem nada da realidade da guerra. O inimigo que está do outro lado do mar, por muito que o detestemos, é um inimigo muito mais fraco do que aquele que pode marchar através da nossa fronteira numa noite."

Quase consigo vedo na escuridão sombria, por trás dos meus olhos fechados. "Oh, sim", digodbe com um sorriso. "Podes pensar que uma mulher não consegue usar uma armadura. Mas eu sei mais sobre guerra do que a maioria dos homens desta corte pacífica. É uma corte dedicada aos torneios, todos os jovens pensam que a guer­ra é um jogo. Mas eu sei o que é a guerra, fá a vi. Este é o ano em que me verás partir a cavalo, como fazia a minha mãe, o ano em que me verás enfrentar o nosso inimigo - o único que tem realmente impor­tância. Este é, agora, o meu país, tu mesmo fizeste dele o meu país. E eu vou defendê-lo por ti, por mim e pelos nossos herdeiros.

Os preparativos cios Ingleses para a guerra contra a França avançaram rapidamente. Catarina e Thomas Wolsey, o seu fiel aju­dante, trabalhavam todos os dias, preparando as listas de convoca­tórias para as diferentes cidades, no aprovisionamento de manti­mentos para o exército, na forja de novas armaduras e na instrução cios voluntários, que tinham que aprender a marchar, a preparar-se para atacar ou para retroceder, de acordo com as vozes de coman­do. Wolsey reparou que Catarina tinha duas listas de convocatórias, quase como se estivesse a preparar dois exércitos.

- Estais a pensar que teremos de lutar contra os Escoceses e os franceses, ao mesmo tempo? - perguntou-lhe.

- Tenho a certeza que sim.

- Os Escoceses vão atirar-se a nós, mal as nossas tropas par­tam para França - disse ele. - Teremos de reforçar as fronteiras.

- Espero fazer mais do que isso - foi tudo que ela disse.

- Sua Graça, o rei, não se deixará demover da sua guerra con­tra a França - avisou ele.

Catarina não confiava nele, como ele gostaria.

- Eu sei. Temos de nos assegurar de que ele dispõe de um grande exército para levar para Calais. Não deverá ter de se preo­cupar com mais nada.

Vamos ter de deixar ficar alguns homens para trás, para nos defenderem dos Escoceses, é mais que certo que vão atacar-nos -avisou-a ele.

Guardas de fronteira - disse ela, para finalizar a conversa.

O belo e jovem Edward Howard, com a sua capa nova em tom azul-marinho, veio despedir-se de Catarina, quando a frota se pre­parava para partir, com ordens de bloquear os Franceses no porto ou de se confrontar com eles, se possível, em alto mar.

-     Deus vos abençoe! - disse a rainha, sentindo a sua voz tre­mer um pouco de emoção - que Deus vos abençoe, Edward Howard, e que a vossa sorte vos acompanhe, como sempre.

Ele fez uma profunda vénia.

- Tenho a sorte de um homem protegido por uma grande rai­nha que serve um grande país - disse ele. - É uma honra servir o meu país, o rei... - baixou a voz para um sussurro íntimo - e a vós, minha rainha!

Catarina sorriu. Todos os amigos de Henrique tinham tendên­cia para se imaginarem como protagonistas das páginas de um romance. Camelot nunca andava muito distante dos seus pensa­mentos. Desde que se tornara rainha, viam em Catarina a persona­gem da dama do mito cortês. De entre todos os jovens, era de Edward Howard que ela mais gostava. A sua alegria genuína, a sua afectuosidade exuberante, faziam com que todos gostassem dele e a sua paixão pela marinha e pelos barcos que estavam sob o seu comando haviam-no aproximado de Catarina, que acreditava que a segurança da Inglaterra só poderia ser assegurada com o controlo dos mares.

Vós sois o meu cavaleiro e eu confio-vos a tarefa de con­quistar a glória, em vosso nome e em meu - disse-lhe ela, reparan­do no brilho de satisfação nos seus olhos, quando ele baixou a cabeça escura para lhe beijar a mão.

Vou trazer-vos alguns barcos franceses - prometeu ele. - Já vos trouxe piratas escoceses, agora, tereis galeões franceses.

E bem preciso deles - respondeu ela com sinceridade.

Ireis tê-los, nem que eu morra a tentá-lo. Ela ergueu o dedo.

Nada de mortes! - avisou ela. - Também preciso de vós. Estendeu-lhe a outra mão.

- Pensarei em vós todos os dias, e nas minhas orações - pro­meteu ela.

Ele ergueu-se e, rodando a sua nova capa, retirou-se.

Estamos na festa de S.Jorge, ainda sem notícias da frota ingle­sa, quando entra um mensageiro com um ar grave. Henrique está a meu lado quando o rapaz nos relata, finalmente, o que se passava na batalha naval que Edward tinha tanta certeza de ganhar e na qual nós confiávamos para provar a supremacia dos nossos barcos sobre os dos Franceses. Com o pai dele a meu lado, tomei conheci­mento do destino de Edward, o meu cavaleiro, Edward, que tinha absoluta certeza de que traria um galeão francês para o porto de Londres.

Edward imobilizara a armada francesa em Brest, e os Franceses não se atreveram a sair do porto. Estava demasiado impaciente para esperar que eles dessem o primeiro passo, era demasiado jovem para jogar um jogo longo. Era um louco, um louco amoroso, como meta­de da corte, com a certeza de que são invencíveis. Foi para a batalha como um rapazinho que não tem medo da morte, que não sabe o que é a morte, que não tem, sequer, o bom senso de recear a sua própria morte. Como os Grandes da Espanha da minha infância, acreditava que o medo era uma doença que nunca contrairia. Pensava que Deus o protegia mais do que a qualquer outro, e que nada lhe pode­ria acontecer.

Com a armada inglesa impossibilitada de prosseguir e com os Franceses encurralados dentro do porto, pegou numa mão-cheia de barcos a remos e mandou-os avançar, expostos às armas francesas. Foi um desperdício, um terrível desperdício de homens e de si mesmo - e tudo isto apenas porque era demasiado impaciente para esperar, jovem de mais para raciocinar. Arrependo-me por o termos enviado, querido Fdward, meu jovem louco querido, para a sua própria morte. Mas então, recordo que o meu marido não é mais velho do que ele e que não é, certamente, mais ajuizado, tendo até menos experiência daquilo que é o mundo da guerra; percebo que, até eu, uma mulher de vinte e sete anos, casada com um jovem que acabou de atingir a maioridade, posso cometer o erro de julgar que nunca falharei.

O próprio Edward comandou o grupo de barcos no ataque ao navio do almirante francês - um acto de extrema bravura - e, quase de imediato, os seus homens deixaram de o apoiar, que Deus lhes perdoe, pedindo-lhe que se retirasse, quando a batalha se tornou demasiado perigosa para eles. Saltaram do convés do barco francês para os seus barcos a remos, lendo alguns saltado mesmo para o mar, na sua ânsia de fugir dali. enquanto os tiros soavam à sua volta como pedras de granizo. Abandonaram-no, deixando-o ficar a lutar como um louco, de costas voltadas para o mastro, agitando a espada em volta de si mesmo, enfrentando sozinho vários inimigos. Deu uma corrida para um dos lados1 do navio e, se algum dos seus barcos lá tivesse estado, poderia ter saltado lá para dentro. Mas eles já tinham desaparecido. Arrancou do pescoço o apito de ouro, que era a sua insígnia, atirou-o para longe, para o mar, para que os franceses não pudessem apanhá-lo e, depois, voltou para trás, para lutar novamente. Tombou, sempre a lutar, foi ferido por várias espadas, mas continuava a lutar quando escorregou e caiu, defen­dendo-se apenas com um braço, a espada em constante movimento. Então, uma lâmina esfomeada decepou-lhe o braço que segurava a espada e ele deixou de lutar. Os franceses podiam ter recuado, em honra da sua coragem-, mas não o fizeram. Continuaram a ataca-lo, lançando-se sobre ele como cães esfaimados sobre uma carcaça no mercado de Smithfield. Morreu, depois de ter recebido mais de cem punhaladas.

Atiraram o seu corpo ao mar, não valia nada para eles, aque­les soldados franceses que se dizem cristãos. Portaram-se como sel­vagens, como mouros, pela caridade cristã que demonstraram. Nem se lembraram de lhe dar a Extrema-Unção, de rezar uma oração pelos mortos, não se preocuparam em dar-lhe uma sepultura cristã, embora um padre o tenha visto morrer. Atiraram-no ao mar, como se não fosse mais do que comida estragada para servir de alimento aos peixes.

Mais tarde, perceberam que se tratava de Edward Howard, o meu Edward Howard, o almirante da marinha inglesa, o filho de um dos mais importantes homens da Inglaterra, e arrependeram-se de o terem atirado, borda fora como se fosse um cão morto. Não por motivos dignos- quem? Eles? Nada disso!- mas porque poderiam ter pedido resgate por ele ã família, e Deus sabe que teríamos pago o que fosse preciso para que nos devolvessem o nosso adorado Edward. Mandaram os marinheiros em barcos, à procura dele, com ganchos, para o içarem para fora da água. Mandaram-nos ir à pesca do seu pobre corpo morto, como se ele fosse um mero destroço de um nau­frágio. Esventraram o seu corpo como se fosse uma carpa, arranca­ram-lhe o coração e salgaram-no como se fosse bacalhau, roubaram as suas roupas como troféu, e enviaram-nas para a corte francesa. O que sobrou do seu corpo estraçalhado foi enviado para cá, para o pai epara mim.

Esta historia de selvajaria faz-me lembrar Hernán Pérez del Pulgar, que comandou o ataque desesperadamente audacioso ao Alhambra. Se o tivessem apanhado, tê-lo-iam morto, mas penso que nem os Mouros teriam arrancado o seu coração, só por divertimen­to. Tê-lo-iam reconhecido como um inimigo valente, um homem que devia ser respeitado. Teriam devolvido o seu corpo, num dos seus grandes gestos de cavalheirismo. Sabe Deus se. ao fim de uma sema­na, não teriam composto uma canção sobre ele, se em quinze dias. não a estaríamos todos a cantar em toda a Espanha ou se, passado um mês, não teriam já construído uma fonte que comemorasse a sua beleza. Eram Mouros, mas tinham a delicadeza da qual estes cristãos são totalmente desprovidos. Quando penso nestes franceses fico envergonhada por chamar bárbaros' aos Mouros.

Henrique está muito abalado com esta história e com a nossa derrota; e o pai de Edward envelhece dez anos nos dez minutos que o mensageiro demora a dizer-lhe que o corpo do filho está lá em baixo, numa carroça, mas que as suas roupas foram levadas como despojos e entregues a Madame Claude, a filha do rei da Erança, e t/ue o seu coração foi dado, como recordação, ao ai mirante francês. Não consigo confortar nenhum dos dois. o meu jiróprio choque é demasiado grande. Vou para a capela e entrego a minha dor a Nossa Senhora, que sabe bem o que significa amar um jovem e vê--Lo partir ao encontro da morte. E enquanto estou ajoelhada, juro que os Franceses irão lamentar o dia em que abateram o meu defen­sor. Terão de prestar contas por este acto indigno. Nunca terão o meu perdão.

 

                         Verão de 1513

A morte de Edward Howard fez com que Catarina trabalhasse ainda mais na preparação do exército inglês que ia partir para Calais. Henrique podia até ir para uma guerra teatral, mas teria de usar munições verdadeiras, canhões, espadas e setas e ela queria que tudo isso fosse bem fabricado e que a pontaria estivesse afina­da. Toda a vida conhecera a realidade da guerra, mas com a morte de Edward Howard, Henrique pôde perceber, pela primeira vez, que a guerra não era como diziam os livros de histórias, não era como um torneio. Um jovem cheio de qualidades, brilhante como Edward, podia sair de casa num dia cheio de sol e regressar, esquartejado, em cima de uma carroça. Honra lhe seja feita, Henrique não perdeu a coragem, quando teve de se deparar com esta realidade, quando viu o jovem Thomas Howard oferecer-se para ocupar o lugar do irmão, ao ver o pai de Edward reunir os seus lugares-tenen-tes e chamá-los a cumprir as suas obrigações de fornecerem tropas para vingar o filho.

Em Maio. enviaram a primeira parte do exército para Calais, e Henrique preparou-se para os seguir, em Junho, com a segunda leva de tropas. Andava mais sombrio do que alguma vez estivera.

Catarina e Henrique viajaram lentamente, através da Inglaterra, de Greenwich até Dover, onde ele iria embarcar. As cidades come­çaram a festejá-los e a oferecer os seus homens, à medida que iam prosseguindo o seu caminho. Henrique e Catarina tinham grandes cavalos brancos iguais; Catarina cavalgava como um homem, com uma perna para cada lado do cavalo, com o seu longo vestido azul espalhado à sua volta. Henrique, cavalgando ao lado dela. tinha um ar majestoso, mais alto do que qualquer outro homem nas fileiras, mais forte do que a maior parte deles, com o seu cabelo dourado e sorrindo para todos.

De manhã, quando saíam de uma cidade, ambos usavam arma­dura; fatos iguais em prata dourada. Catarina usava apenas um pei­toral e um elmo, feitos de um metal finamente forjado, enfeitado com motivos em ouro. Henrique usava, todos os dias, uma arma­dura completa que o cobria dos dedos dos pés até à ponta dos dedos das mãos, independentemente da temperatura que fizesse. Seguia com a viseira levantada, os olhos azuis dançando e um pequeno disco de ouro em volta do elmo. Os porta-estandartes, levando o emblema de Catarina de um lado e o de Henrique elo outro, seguiam ao lado de cada um deles e quando o povo via a romã de Catarina e a rosa ele Henrique, gritava "Deus abençoe o Rei!" e "Deus abençoe a Rainha!". Quando saíam ele uma cidade, com as tropas a marchar atrás ele si e os archeiros à sua frente, o povo aglomerava-se aos lados da estrada, por mais de uma milha, para os ver, atirando pétalas e botões de rosa para o caminho onde os cavalos iam passar. Todos os homens marchavam com uma rosa na lapela ou no chapéu e cantavam, à medida que iam prosseguindo, canções jocosas da velha Inglaterra, mas também algumas baladas, compostas por Henrique.

Levaram quase duas semanas a chegar a Dover, mas não foi tempo desperdiçado, pois conseguiram reunir mais mantimentos e novos recrutas em todas as aldeias. Todos os homens do país queriam fazer parte do exército, para defenderem a Inglaterra da França. Todas as raparigas queriam poder dizer que o seu rapaz tinha partido para ser soldado. O país inteiro estava unido, no desejo de vingança contra os Franceses. E todo o país estava con­fiante de que, com o jovem rei à cabeça do exército, isso seria possível.

Sinto-me mais feliz, decididamente mais feliz, do que alguma vez me senti desde a morte do meu filho. Estou mais feliz do que imaginara possível. Henrique deita-se na minha cama, todas as noites, durante a marcha até à costa: há festejos e bailes e eu fico com a certeza de que ele me pertence, em pensamentos, palavras e obras. Vai partir numa campanha organizada por mim. está em segurança, afastado da guerra verdadeira que vou ter de travar, e nunca tem um pensamento ou uma palavra que não partilhe comigo. Rezo. para que numa destas noites de marcha, cavalgando juntos para sul, em direcção à costa, com a elevada tensão provocada pela guerra, possamos gerar uma outra criança, outro rapaz, uma nova rosa para a Inglaterra, tal como era Artur.

Graças a Catarina e a Thomas Wolsey, os preparativos para o embarque haviam sido programados na perfeição. Nesta armada inglesa não havia lugar para os habituais atrasos, enquanto eram dadas ordens de última hora e se procurava, desesperadamente, encontrar bens essenciais que haviam sido esquecidos. Os navios de Henrique - quatrocentos - pintados de cores brilhantes, com os seus pendões a esvoaçar e as velas correctamente armadas - aguarda­vam, para levar as tropas até à França. O próprio barco de Henrique, reluzindo de folha de ouro, com o dragão vermelho esvoaçando à popa, balanceava na doca. A sua guarda real, perfeitamente treina­da, nos seus novos uniformes em verde Tudor e branco com lante­joulas brilhantes, permanecia em formação no cais. As duas arma­duras de Henrique, com embutidos em ouro, foram guardadas a bordo e os seus dois cavalos brancos, especialmente treinados, já estavam nas baias. Os preparativos haviam sido tão meticulosos como os da mais elaborada festa de máscaras da corte, e Catarina sabia que muitos daqueles rapazes ansiavam tanto pela guerra como por um divertimento da corte.

Estava tudo pronto para Henrique embarcar e partir para a França quando, numa cerimónia simples, na praia de Dover, ele pegou no grande sinete de estado e, diante de todos, investiu Catarina como regente durante a sua ausência, Governador do Reino e Capitão General das forças inglesas que ficavam a defender o território.

boca, para lhe desejar boa sorte. Mas, à medida que o barco dele vai sendo levado, rebocado pelas barcaças, atravessa a barra do porto, abre as velas a todo o pano para apanhar o vento e parte para França, só me apetece cantar de alegria. Não verto lágrimas pelo marido que se vai embora, pois ele deixou-me com tudo que eu sem­pre quis. Sou mais do que Princesa de Gales, sou mais do que Rainha da Inglaterra, sou o Governador do Reino, sou o Capitão General do exército, este é na verdade o meu país, e eu sou o seu único governante.

E a primeira coisa que farei na verdade, talvez a única coisa que farei com o poder que me foi investido, a única coisa que terei de fazer com esta oportunidade que me foi dada por Deus - é der­rotar os Escoceses.

Mal chegou ao Palácio de Richmnond, Catarina deu ordens a Thomas Howard, o irmão mais novo de Edward, para levar os canhões que estavam na armaria da Torre, e partir com toda a armada inglesa para Newcastle, por mar, para defender as frontei­ras dos Escoceses. Ele não era o almirante que o irmão tinha sido, mas era um jovem sensato e Catarina considerava que podia con­fiar nele para cumprir a tarefa de levar as armas vitais para o Norte do país.

Todos os dias, Catarina recebia notícias da França, através de mensageiros que colocara ao longo do percurso. Wolsey tinha ins­truções precisas para enviar à rainha o relatório do desenvolvimen­to da guerra. Ela exigia-lhe uma análise exacta, pois sabia que Henrique só lhe enviaria uma perspectiva muito optimista. Nem tudo eram boas notícias. O exército inglês tinha chegado à França, e houvera grande excitação em Calais, com festejos e celebrações. Houve desfiles e exibições e Henrique fora muito elogiado pela sua bela armadura e pelas suas tropas elegantes. Mas o Imperador Maximiliano não havia conseguido formar o seu próprio exército para apoiar os Ingleses. Em vez disso, alegando falta de dinheiro, mas fazendo juramento do seu entusiasmo pela causa, veio ao encontro do jovem príncipe para oferecer a sua espada e os seus serviços.

Foi, nitidamente, um momento importante para Henrique, que em toda a sua vida nunca tinha ouvido o som de um tiro dispara­do com raiva, ter à sua frente o Sagrado Imperador Romano ofere­cendo os seus préstimos, submetendo-se a autoridade do glamoroso jovem príncipe.

Catarina franziu a testa, ao ler esta parte do relatório de Wolsey. calculando que Henrique tivesse de contratar o Imperador por uma quantia inflacionada, pagando, assim, a um aliado que prometera vir às suas custas, para que ele arranjasse um exército de mercenários. Reconheceu imediatamente o jogo duplo que, desde o início, carac­terizara esta campanha. Mas, pelo menos, isso significava que o imperador iria estar com Henrique na sua primeira batalha, e Catarina sabia que podia confiar naquele homem, experiente e mais velho, para manter o impulsivo jovem rei fora de perigo.

Por conselho de Maximiliano, o exército inglês montou cerco a Therouanne - uma cidade que o Sagrado Imperador Romano há muito cobiçava, mas sem valor táctico para a Inglaterra - e Henrique, a uma distância segura das armas de curto alcance mon­tadas nas muralhas da pequena cidade, atravessou sozinho o seu acampamento, à meia-noite, deixando palavras de conforto aos seus soldados de vigia, e teve a oportunidade de disparar um canhão, pela primeira vez.

Os Escoceses, que só tinham estado à espera que a Inglaterra ficasse indefesa, com o rei e o exército na França, declararam guer­ra aos Ingleses, e iniciaram a sua própria marcha, para sul. Wolsey escreveu a Catarina, alarmado, perguntando-lhe se queria que algu­mas das tropas de Henrique regressassem, para fazer frente a esta nova ameaça. Catarina respondeu-lhe, dizendo que pensava ser capaz de se defender de uma escaramuça de fronteira, e deu início a uma nova convocação de tropas vindas de todas as cidades do país, usando as listas que preparara anteriormente.

Ordenou a convocação da milícia de Londres e, vestida com a armadura e montada no seu cavalo branco, foi inspeccioná-la, antes do início da marcha para norte.

Olho-me ao espelho, enquanto as minhas aias apertam o meu peitoral e a minha criada segura no elmo. Vejo a tristeza nos seus rostos, a maneira como a tonta criada segura no elmo, como se fosse demasiado pesado para ela, como se nada disto devesse estará acon­tecer, como se eu não tivesse nascido para este momento: o presente. O momento do meu destino.

Deixo escapar um suspiro silencioso. Fico tão parecida com a minha mãe, de armadura, que poderia ser o seu reflexo no espe­lho, tão calma e orgulhosa, com o seu cabelo puxado para trás. e os olhos a brilhar como o ouro polido do seu [reitoral: entusiasmada com a perspectiva da batalha, luzindo de alegria, com confiança na vitória.

Não tendes receio? - pergunta-me Maria de Salinas suave­mente.

Não!- e digo a verdade. - Passei toda a minha vida à espera deste momento. Sou uma rainha, filha de uma rainha que teve de lutar pelo seu país. Cheguei a este país. o meu, no exacto momento em que ele precisa de mim. Não estamos em tempos de ter uma rai­nha que queira apenas sentar-se no trono, para entregar os prémios dos torneios. Precisamos de uma rainha que tenha a valentia e a coragem de um homem. Eu sou essa rainha. Irei partir, ã frente do meu exército.

Há uma manifestação de constrangimento.

- Partir ã frente do exército? Mas não para norte? Talvez pas­sar revista ã parada, mas por certo não pensais seguir com eles? Mas, não será perigoso?

Pego no meu elmo.

- Irei cavalgar com eles para norte, ao encontro dos Escoceses. E se os Escoceses atacarem, vou combatê-los. E quando começarmos a lutar, estarei lá, até os derrotar.

- E que fazemos, nós? Sorrio para as mulheres.

- Três de vós irão comigo, para me fazerem companhia e o resto ficará aqui - digo com firmeza. - As que ficam, continuarão a fazer bandeiras e a preparar ligaduras, que me devem enviar. E devem comportar-se!- digo com ar duro. - As que vêm comigo terão de se comportar como soldados em campo. Não permitirei qualquer lamúria.

Há um novo acesso de aflição que eu evito, dirigindo-me para a porta

- Maria e Margaret, vinde comigo, imediatamente - digo.

As tropas estão reunidas em frente ao palácio. Passo lentamen­te, a cavalo, por entre as fileiras, pousando os meus olhos num rosto e depois noutro. Tinha visto o meu pai fazer isso. e a minha mãe também. O meu pai dizia-me que cada soldado devia saber que era importante, deveria perceber que tinha sido reconhecido como um ser individual no meio da parada, deveria sentir cine era uma parte essencial dentro do grupo que formava o exército. Quero que cada um deles fique com a certeza de que os vi todos, um por um, de que os conheço a todos. Quero que me conheçam. Depois de ter passado em revista cada um dos quinhentos soldados, dirijo-me para a sua frente e tiro o elmo, para que me possam ver o rosto. Agora, já não sou a Princesa Espanhola, com o cabelo escondido e a cara coberta por um véu. Sou a Rainha Inglesa, de cabeça e cara descobertas. Levanto a voz, para que todos me possam ouvir.

- Homens da Inglaterra!- digo. - Vós e eu marcharemos jun­tos para lutar contra os Escoceses, e nenhum de nós pode hesitar nem falhar. Não regressaremos enquanto não recuarem. Não des­cansaremos até que estejam mortos. Juntos, vamos derrotá-los, pois estamos ao serviço do céu. Esta não é uma briga provocada por nós; é uma invasão cruel perpetrada por Jaime da Escócia que, desta forma, quebra o seu próprio tratado e insulta a sua esposa inglesa. É uma invasão indigna, condenada pelo próprio Papa, uma inva­são contrária à ordem de Deus. Há anos que ele estava a planeá-la. Esteve ã espera, como um cobarde, pensando que nos iria encontrar enfraquecidos. Mas está enganado, porque, neste momento, somos poderosos. Vamos derrotá-lo, esse rei herege. Nós venceremos. Posso garantir-vos, pois sei qual é a vontade de Deus, nesta matéria. Ele está connosco. E podeis estar seguros de que a mão de Deus protege sempre os homens que lutam pelos seus lares.

Ouve-se um grande bramido de aprovação e eu volto-me e sor­rio para um lado e depois para o outro, para que todos possam cons­tatar a minha alegria pela sua coragem. Para que todos possam ver que não tenho medo.

- Óptimo! Em frente, marchar! - digo simplesmente para o comandante que está a meu lado e o exército vira e marcha para fora da parada.

Enquanto o primeiro batalhão de defesa de Catarina marchava para norte, sob o comando do Conde de Surrey, reunindo mais homens à medida que prosseguiam, os mensageiros corriam deses­peradamente para sul, para Londres, para lhe trazerem as notícias por que ela esperava. O exército de Jaime tinha atravessado a fron­teira escocesa e avançava pelo relevo acidentado da região fronteiriça, recrutando soldados e roubando comida pelo caminho.

- Um ataque de fronteira? - perguntou Catarina, sabendo que não devia ser isso.

O homem abanou a cabeça.

O meu amo ordenou-me que vos dissesse que o rei francês prometeu ao rei escocês que o reconheceria, se ele ganhasse esta batalha contra vós.

Que o reconheceria? Como quê?

Como Rei da Inglaterra.

Ele estava à espera que ela gritasse de indignação ou de receio, mas ela apenas sacudiu a cabeça, como se houvesse mais qualquer coisa a considerar.

Quantos homens? - perguntou Catarina ao mensageiro. Ele abanou a cabeça.

Não posso dizer ao certo.

Quantos, na vossa opinião?

Ele olhou para a rainha, viu a forte ansiedade nos seus olhos, e hesitou.

Dizei-me a verdade!

Receio que sejam uns sessenta mil, Vossa Graça, talvez mais.

Quantos mais? Aproximadamente?

Ele hesitou novamente. Ela levantou-se da cadeira e foi até à janela.

- Por favor, dizei-me o que pensais - disse ela. - Não me aju­dais se, por vossa causa, ao tentar poupar-me de aflições, eu e o meu exército tivermos de nos deparar com um inimigo em maior número do que eu esperaria.

- Cem mil, calculo eu - disse ele baixinho.

Esperava que se mostrasse horrorizada mas, quando olhou para ela, reparou que estava a sorrir.

- Oh, não tenho medo deles.

- Não tendes receio de cem mil escoceses? - perguntou ele. -Já vi coisas piores! — disse ela.

Agora sei que estou preparada. Os Escoceses estão a surgir por todos os lados, através da fronteira, em toda a sua força. Capturaram os castelos do Norte com uma irrisória facilidade, uma vez que a fina flor do comando inglês e os melhores homens se encontram do outro lado do mar, na França. O rei francês pensa que nos vai derrotar, através dos Escoceses, no nosso próprio territó­rio, enquanto o nosso exército de fachada anda às voltas, no Norte da França, preocupado em fazer evoluções elegantes. Este é o meu momento. Agora é comigo e com os homens que me sobraram. Mando tirar os estandartes reais e as bandeiras do grande guar­da-roupa. Desfraldado à frente do exército, o estandarte real mos­tra que o Rei da Inglaterra está presente no campo de batalha. E serei eu.

Não serieis capaz de cavalgar com o estandarte real, pois não?- pergunta uma das damas.

Quem mais poderia ser?

Devia ser o rei.

O rei está a lidar contra os Franceses. Eu lutarei contra os Escoceses.

Vossa Graça, uma rainha não pode pegar no estandarte do rei e sair para a luta.

Sorrio para ela, não estou a fingir que tenho confiança, tenho a firme convicção de que este é o momento pelo qual esperei toda a minha vida. Prometi a Artur que seria uma rainha guerreira; e agora sou-o.

-Uma rainha pode usar o estandarte do rei, se estiver conven­cida de que é capaz de vencer.

Mando chamar as restantes tropas; este será o meu exército. Tenciono mandá-los formar em ordem de batalha, mas há mais comentários.

Não estais a pensar em cavalgar à frente deles, pois não?

Onde quereríeis vós que eu me colocasse?

Vossa Graça, talvez não devêsseis, sequer, ir.

Eu sou o Comandante Supremo - digo simplesmente. - Não deveis ver-me como uma rainha que fica em casa, que influencia a política secretamente, e que passa a vida a maltratar os seus filhos. Sou uma rainha que governa, como a minha mãe. Quando o meu país está em perigo, eu estou em perigo. Quando o meu país triunfa, como vai acontecer, será o meu triunfo.

Mas, e se...? - A dama de companhia cala-se, com o meu duro olhar.

Eu não sou louca, previ a hipótese de sermos derrotados -digo-lhe. - Um bom comandante fala sempre em vitória, mas tem um plano, em caso de derrota. Sei exactamente onde terei de retro­ceder, onde poderei reagrupar, em que ponto deverei retomar a batalha e, se falhar aí, sei onde poderei reagrupar novamente. Não esperei tantos anos por este trono, para agora deixar que o rei da Escócia e aquela tonta da Margaret mo tirem.

Os homens de Catarina, quarenta mil, seguiram ao longo da estrada, atrás da guarda real, carregados com as armas e os sacos de comida, ao calor do sol do fim do Verão. Catarina, à frente da comi­tiva, montava o seu cavalo branco, de modo a que todos a pudes­sem ver, com o estandarte real por cima da cabeça, para que os seus homens a pudessem reconhecer, agora, durante a marcha e depois, mais tarde, durante a batalha. Duas vezes por dia, percorria toda a extensão da fileira com uma palavra de encorajamento para todos aqueles que lutavam contra as suas forças, à retaguarda, mal conse­guindo respirar, por causa do pó levantado pelas carroças que seguiam à frente. Observava um horário monástico, levantando-se de madrugada para Ouvir a missa, comungando ao meio-dia e deitando-se ao anoitecer, acordando à meia-noite, para rezar pela segu­rança do seu reino, pela do rei e pela sua.

Os mensageiros moviam-se constantemente entre o exército de Catarina e a força comandada por Thomas Howard, Conde de Surrey. De acordo com o plano que tinham traçado, Surrey deveria confrontar-se com os Escoceses mal tivesse oportunidade para o fazer, na tentativa de deter o seu avanço célere e destruidor em direcção ao Sul. Se Surrey fosse derrotado, os Escoceses continua­riam o seu caminho e Catarina iria ao encontro deles, com as suas tropas, atacando-os, em defesa dos condados do Sul da Inglaterra. Se os Escoceses conseguissem passar por eles, Catarina e Surrey tinham elaborado um plano final, para a defesa de Londres. Deveriam reagrupar-se, convocariam um exército formado por cida­dãos que iriam erigir fortificações feitas de terra, em volta da Cidade e, se tudo o resto falhasse, retirariam para a Torre, que poderia ser defendida por bastante tempo, até que Henrique lhes enviasse refor­ços, a partir da França.

Surrey está apreensivo por eu lhe ter ordenado que conduzisse o primeiro ataque contra os Escoceses, preferia esperar que as minhas tropas se juntassem às dele; mas eu insisto em que o ataque seja feito de acordo com o que foi planeado. Seria mais seguro unir os nossos dois exércitos, mas estou afazer uma campanha defensi­va. Tenho de manter um exército de reserva, para impedir os Escoceses de progredirem para sul, no caso de ganharem a primeira batalha. Não estamos a travar uma batalha única. É uma guerra que destruirá a ameaça dos Escoceses por uma geração, talvez até para sempre.

Também me sinto tentada a ordenar-lhe que espere por mim. tal é a minha vontade de participar na batalha: não sinto qualquer medo. só uma espécie de alegria selvagem, como se fosse um falcão aprisionado por demasiado tempo e subitamente libertado. Mas não vou lançar os meus preciosos homens numa batalha que deixaria aberto o caminho para Londres, no caso de perdermos. Surrey acredita que, se unirmos as duas forças, ganharemos com toda a certe­za, mas eu sei que na guerra não há certezas, que qualquer coisa pode correr mal. Um bom comandante tem de estar preparado para o pior. e eu não me vou arriscar a que os Escoceses nos vençam numa única batalha, e depois avancem pela Grande Estrada do Norte até à minha capital e que protagonizem uma coroação, com o apoio dos Franceses. Não passei tantas dificuldades para alcançar o trono, para agora o perder numa luta precipitada. Tenho um plano de batalha para Surrey, e outro para mim, uma posição para onde retroceder, e mais uma série de posições subsequentes. Eles podem ganhar uma batalha, podem até ganhar mais do que uma, mas nunca me hão-de tirar o trono.

listamos a sessenta milhas de distância de Londres, em Buckingbam. É uma boa velocidade para um exército em marcha, mas dizem-me que é uma velocidade tremenda para um exército inglês; os Ingleses são conhecidos por perderem tempo na estrada com ninharias. Estou cansada, mas não estou exausta. A agitação e - para ser honesta - o medo do dia seguinte, fazem-me sentir como um cão de caça, preso por uma trela, sempre agitado, lutando para seguir em frente e começar a caçada.

E agora tenho um segredo. Todas as tardes, quando desmonto do meu cavalo, salto da sela e a primeira coisa que faço, antes de mais nada. é ir aos sanitários, à tenda, ou a qualquer lugar onde possa estar só, levanto as minhas saias e verifico a minha roupa interior. Estou à espera do período, e já é segundo mês em que não apa­rece. A minha esperança, uma forte e doce esperança, é que Henrique me lenha deixado grávida quando partiu para Franca.

Não vou dizer nada a ninguém, nem mesmo ás minhas damas. Imagino a confusão que seria, se soubessem que passava o dia a andar a cavalo e me preparava para uma batalha estando grávida ou até apenas imaginando que podia estar. Não me atrevo a contar-lhes, pois, na verdade, não me atrevo a fazer nada que possa ameaçar o equilíbrio desta campanha em nosso desfavor. É evidente que nada poderia ser mais importante do que um filho para Inglaterra - excepto isto: garantir que haja uma Inglaterra para esse filho herdar. Tenho de cerrar os dentes pelo risco que estou a correr, e aceitá-lo. de qualquer maneira.

Os homens sabem que sigo à sua frente e que lhes prometi uma vitória. Marcham bem e hão-de lutar bem porque depositaram a sua fé em mim. Os homens de Surrey, que estão mais perto elo inimigo do que nós, sabem que por trás deles, para os apoiar de formei fiá­vel, está o meu exército. Sabem que sou eu, pessoalmente, quem está a comandar os seus reforços. Esta situação já provocou muitos comentários em todo o país e sentem-se orgulhosos por terem uma retinha que se alistou por causa deles. Se lhes virasse a cara, voltas­se para Londres e lhes ordenasse que avançassem sem mim, por ter um trabalho próprio de mulher para fazer, também regressariam a casa - é tão simples quanto isto. Pensariam que eu perdera a con­fiança, que não tinha fé neles ou que já estava a prever uma derro­tei, já correm rumores suficientes acerca ele um exército imparável ele escoceses - cem mil homens furiosos elas Terras Altas — sem que eu faça aumentar os seus temores.

Além disso, se eu não conseguir salvar o meu reino para o meu filho, não fará grande sentido ter esse filho. Tenho de derrotar os Escoceses, tenho de ser um grande general. Quando esse dever esti­ver cumprido, poderei voltara ser. novamente, uma mulher.

À noite, recebo notícias de Surrey, dizendo que os Escoceses esteio acampados numa densa serrania, em posição de batalha, num local chamado Flodden. Envia-me um plano do local, mos­trando os Escoceses acampados num terreno elevado, de onde podem controlar tudo o que se passa a sul. Uma olhadela ao mapa diz-me que os Ingleses não devem atacar subindo o monte ao encon­tro dos Escoceses, que esteio fortemente armados. Os archeiros esco­ceses dispararão cá para baixo e, depois, os homens das Terras Altas descerão a encosta para atacar os nossos homens. Nenhum exército consegue resistir a um ataque deste gênero.

- Dizei ao vosso chefe que deverá enviar espiões para tenta­rem descobrir um caminho quale permita chegar à retaguarda dos Escoceses, de maneira a que possam ser atacados pelo Norte - digo eu ao mensageiro, enquanto observo o mapa. - Dizei-lhe que o aconselho a usar um estratagema, que deixe bastantes homens na frente dos Escoceses, para os manter no local, mas que leve os outros embora, como se dirigisse para norte. Se tiver sorte, pode ser que o persigam e tê-los-eis em campo aberto. Se não tiver sorte, terá de conseguir atingi-los pelo Norte. O terreno é seguro? Ele desenhou um curso de água neste esboço.

- É terreno pantanoso - confirmou o homem. - Podemos não conseguir atravessá-lo.

Mordo o lábio.

- É o único caminho que consigo ver— digo eu. - Dizei-lhe que este e o meu conselho, mas não são as minhas ordens. Ele é que é o comandante em campo, terá de avaliar a situação por si. Mas déreis dizer-lhe que estou certa de que ele tem de conseguir tirar os Escoceses daquele monte, que não pode atacá-los subindo a encosta. Terá de ir em coita e surpreendê-los pela retaguarda ou, então, atraí-los cá para baixo, para longe da encosta.

O homem faz uma vénia e vai embora. Queira Deus que ele consiga fazer passar a minha mensagem para Surrey. Se ele pensa que pode lutar com um exército de Escoceses na encosta do monte, esta perdido. Uma das damas vem ter comigo, na altura em que o mensageiro sai da minha tenda e treme de fadiga e medo.

Que vamos fazer, agora?

Avançamos para norte - digo eu.

Mas eles podem começar a lutar, em qualquer altura!

- É verdade, e se ganharem, poderemos ir para casa. Mas se perderem, estaremos entre os Escoceses e Londres.

E fazemos o quê?— murmura ela.

Derrotamo-los! - digo simplesmente.

 

                         10 de Setembro de 1513

- Vossa Graça! - um jovem pajem entrou a correr na tenda de Catarina, fazendo uma vénia bastante atrapalhada. - Chegou um mensageiro com notícias da batalha! Um mensageiro da parte de Lorde Surrey.

Catarina deu uma volta, com a alça da sua cota de malha ainda por apertar.

- Mandai-o entrar!

O homem já estava dentro da sala. ainda coberto pela sujidade da batalha, mas com o sorriso de alguém que traz boas notícias, noticias fantásticas.

Sim? - perguntou Catarina, quase sem respirar, devido à emoção.

Vossa Graça venceu! - disse ele. - O rei da Escócia morreu, juntamente com vinte grandes senhores, bispos, condes e padres, também. É uma derrota da qual nunca hão-de recuperar. Metade dos seus homens mais importantes morreu num só dia.

Reparou que a cor fugia do rosto dela. mas, depois, ficou subi­tamente muito corada.

Ganhamos?

Vós ganhastes! - confirmou ele. - O conde ordenou-me que vos dissesse que os vossos homens, criados, treinados e armados por vós, fizeram o que lhes haveis ordenado, A vitória é vossa, e haveis salvado a Inglaterra.

A mão dela dirigiu-se imediatamente para o ventre, por baixo da curva de metal do seu peitoral. - Estamos salvos - disse ela. Ele concordou, com a cabeça.

- Ele enviou-vos isto...

Estendeu-lhe um manto, terrivelmente rasgado, cheio de gol­pes e manchado de sangue.

Isto é o quê?

O manto do rei da Escócia. Retirámo-lo do seu cadáver, como prova. O corpo dele está na nossa posse. Está a ser embalsamado. Ele está morto e os Escoceses foram derrotados. Fizestes o que nenhum rei inglês conseguiu fazer desde o tempo de Eduardo I. Haveis libertado a Inglaterra da invasão escocesa.

Deveis entregar-me um relatório por escrito - disse ela com ar decidido. - Ditai-o para o escrivão. Tudo o que sabeis e tudo o que o Lorde Surrey disse. Tenho de escrever ao rei.

Lorde Surrey perguntou...

Sim?

Perguntou se deveria avançar para a Escócia e destruir tudo? Ele crê que haverá pouca ou nenhuma resistência. Esta é a nossa oportunidade. Poderíamos destruí-los, estão completamente á nossa mercê.

- Claro! - disse ela imediatamente, calando-se em seguida. Seria a resposta que qualquer rei da Europa teria dado. Um vizinho arruaceiro, um inimigo inveterado estava enfraquecido. Qualquer rei da Cristandade teria avançado para tirar a sua desforra.

- Não. Não, esperai um momento!

Voltou-lhe as costas e foi ate a entrada da tenda. Lá fora, os homens preparavam-se para mais uma noite na estrada, longe das suas casas. Havia pequenas fogueiras para cozinhar por todo o campo, tochas a arder e os odores de comida, estrume e suor pai­ravam no ar. Era o mesmo cheiro da infância de Catarina, uma infân­cia passada, durante os seus primeiros sete anos. num estado de guerra permanente contra um inimigo que foi obrigado a recuar cada vez mais, até à escravatura, ao exílio e à morte.

Pensa, digo a mim mesma ferozmente. Não penses com o cora­ção, pensa com a cabeça fria, pensa como um soldado. Não penses como uma mulher que espera um filho, uma mulher que sabe que esta noite muitas mulheres ficaram ruivas na Escócia, pensa como uma rainha. O meu inimigo foi derrotado, o seu país está aberto à minha frente, o seu rei está morto, a sua rainha é uma jovem tonta, uma cunhada minha. Posso cortar este país aos bocados, posso reta­lhá-lo. Qualquer comandante com alguma experiência poderia agora destruí-los e deixá-los desfeitos para toda uma geração. O meu pai não hesitaria, a minha mãe já teria dado a ordem.

Detenbo-me. Eles estavam enganados, a minha mãe e o meu pai. Consigo, finalmente, dizer o indizível, o impensável. Eles estavam errados, o meu pai e a minha mãe. Podem ter sido soldados geniais, estavam certamente convencidos disso, eram apelidados de reis cristãos- mas estavam errados. Demorei a vida toda para percebê-lo.

Um estado constante de guerra é uma espada de dois gumes, fere tanto o vencedor como o vencido. Se perseguirmos os Escoceses neste momento, poderemos destroçar completamente o seu país. podemos destruí-los por varias gerações vindouras. Mas as únicas coisas que nascem no meio da destruição são ratazanas e pestilência. Ao fim de algum tempo, iriam recompor-se e voltariam a atacar--nos. Os seus filhos atacariam os nossos filhos e a batalha cruel teria de ser travada de novo. O ódio gera mais ódio. O meu pai e a minha mãe expulsaram os Mouros para lá do mar, mas todos sabem que. ao fazê-lo, apenas ganharam uma batalha, numa guerra que só terminará quando cristãos e muçulmanos estiverem preparados para viver lado a lado, em paz e harmonia. Isabel e Fernando destroçaram os Mouros, mas os seus filhos, e os filhos dos seus filhos, terão de enfrentar uma jihad, uma guerra santa, em resposta às cruzadas. A guerra não é a resposta para a guerra, uma guerra não termina outra guerra. A única solução para acabar com ela é a paz.

-Tragam-me um novo mensageiro - disse Catarina por cima do ombro, e ficou à espera que o homem aparecesse. - Deveis ir ter com Lorde Surrey e dizer-lhe que lhe agradeço pelas óptimas notícias desta vitória maravilhosa. Dizei-lhe que deve ordenar aos Escoceses que entreguem as suas armas e que os mande embora, em paz. Eu mesma escreverei à rainha dos Escoceses, prometendo--lhe paz, se tornar uma boa irmã e uma boa vizinha. Nós vence­mos, devemos ser misericordiosos. Transformaremos esta vitória numa paz duradoura, não numa batalha furtiva e numa desculpa para a selvajaria.

O homem fez uma vénia e partiu. Catarina voltou-se para o outro soldado.

-     Podeis ir, e comei qualquer coisa - disse ela. - Podeis dizer a toda a gente que ganhámos uma grande batalha e que vamos vol­tar para as nossas casas, sabendo que poderemos viver em paz.

Dirigiu-se à sua mesinha e puxou para si a caixa com os seus utensílios de escrita. A tinta estava guardada dentro de uma peque­na garrafa de vidro, tapada com um rolha de cortiça, a pena, fora especialmente aparada para caber na pequena caixa. O papel e o lacre para selar estavam à mão. Catarina colocou uma folha de papel à sua frente e hesitou. Escreveu uma saudação ao marido e disse-lhe que lhe estava a enviar o manto do falecido rei dos Escoceses

Deste modo, Vossa Graça poderá comprovar que eu cumpro as minhas promes­sas, enviando-vos, como estandarte, o manto de um rei. Pensei em enviar-vos o próprio rei, mas os nossos corações ingleses não o suportariam.

Faço uma pausa. Com esta grande vitória posso regressar a Londres, descansar e preparar-me para o nascimento da criança, de que, tenho a certeza, estou à espera. Gostaria de dizer a Henrique que estou outra vez grávida; mas quero que seja o único a saber. Esta caria - como todas que lhe escrevo - será semipública. Ele nunca abre as suas próprias cartas, tem sempre um escrivão para lhas abrir e ler e raras vezes escreve pessoalmente as suas respostas.

Então, recordo-me de lhe ter dito que, se Nossa Senhora me abençoasse com outra criança, iria imediatamente ao seu santuário de Walsingham, para lhe agradecer. Se ele se lembrar disso, pode servir como um código só nosso. Qualquer pessoa poderá ler-lhe a carta, mas ele vai perceber o que quero dizer, que lhe contei o segredo de que vamos ter um filho, talvez um rapaz. Sorrio e começo a escrever, com a certeza de que ele me vai entender e sabendo a alegria que esta carta lhe vai dar.

 

Vou terminar, pedindo a Deus que vos mande de volta a casa dentro de pouco tempo, pois, sem isso, não pode haver alegria, e também rezo por ela, a caminho da Nossa Senhora de Walsingham, que há tanto tempo prometi visitar. A vossa humilde esposa e fiel serva, Catarina

 

                     Walsingham, Outono de 1513

Catarina estava de joelhos, no santuário de Nossa Senhora de Walsingham, com os olhos postos na estátua sorridente da Mãe de Cristo, mas sem ver nada.

Meu querido, meu querido, consegui. Enviei a Henrique o manto do rei escocês e fiz questão de enfatizar que é uma vitória dele, não minha. Mas é tua. É tua. porque quando vim para ti e para o teu país, com a cabeça cheia de receios dos Mouros, foste tu que me ensinaste que, aqui. o perigo vinha dos Escoceses Depois, a vida ensinou-me uma lição mais dura, meu amor; é melhor perdoar a um inimigo do que destruí-lo. Se nós tivéssemos médicos, astrónomos e matemáticos mouros neste país, estaríamos muito melhor Pode vir o tempo em que também iremos precisar da coragem e dos conhecimentos dos Escoceses. Pode ser que, com a minha proposta de paz, nos perdoem pela batalha de Flodden.

Já tenho tudo o que sempre quis - excepto tu. Consegui, para este reino, uma vitória que o irá manter seguro durante a próxima geração. Concebi uma criança, e tenho a certeza de que este bebé vai sobreviver. Se for rapaz, dar-lhe-ei o nome de Artur, como tu. Se for uma menina, vou chamar-lhe Maria. Sou a Rainha da Inglaterra, tenho o amor do povo e Henrique vai ser um bom marido e um bom homem.

Sento-me nos calcanhares e fecho os olhos, para que as lágri­mas não escorram pelo meu rosto. "A única coisa de que sinto falta é de ti, meu amado. Será sempre de ti. Sempre."

Vossa Graça, não vos sentis bem? - a voz calma da freira chama-me à realidade, e eu abro os olhos. As minhas pernas estão entorpecidas, por ter estado tanto tempo de joelhos. - Não vos quise­mos perturbar, mas já passaram algumas horas.

Oh, sim - digo eu, tentando sorrir-lhe. - já vou. Deixai-me só, agora.

Volto para o meu sonho com Artur, mas ele já lá não está.

-Espera por mim no jardim - murmuro-lhe. - Irei ter contigo. Irei um dia destes, em breve. No jardim, quando o meu trabalho aqui estiver concluído.

Blackfriars Hall O Legado Papal está reunido em tribunal para julgar o Importante Caso do Rei, Junho de 1529

As palavras têm peso, o que foi dito não pode ser retirado, o seu significado é como uma pedra que cai num lago; as ondas espa­lham-se e não se pode saber em que margem se vão desfazer.

Eu disse uma vez: "Amo-te, sempre te amarei" a um jovem, durante a noite. Uma vez, disse: "Prometo". Essa promessa, feita há vinte e sete anos para consolar um rapaz moribundo, para cumprir a vontade de Deus, para fazer a vontade à minha mete e - para dizer a verdade - satisfazer a minha ambição, essa palavra volta para mim, como pequenas ondas que vão até à beira de uma taça de mármore e que, no refluxo, regressam ao centro.

Eu sabia que teria de responder pelas minhas mentiras diante de Deus. Nunca pensei que tivesse de responder perante o mundo. Nunca pensei que o mundo me pudesse interrogar por algo que eu prometera por amor, algo sussurrado em segredo. E, assim, orgulhosamente, nunca respondi por isso. Em vez de o fazer, mantive-me fiel a essa promessa.

Acredito que qualquer mulher na minha situação teria feito o mesmo.

A nova amante de Henrique, a filha de Isabel Bolena, minha dama de companhia, acabou por ser aquela que eu sabia que devia temer: aquela que tem uma ambição ainda maior do que a minha. Na verdade, ela é ainda mais insaciável do que o rei. A sua ambi­ção é a maior que eu alguma vez vi, tanto num homem como numa mulher. Ela não deseja Henrique como homem - tenho visto as suas amantes chegar e partir, e aprendi a lê-las como a um livro de histórias acessível. Esta não deseja o meu marido, quer o meu trono. Tem tido muito trabalho para o conseguir mas é persistente e determinada. Penso que percebi, a partir do momento em que ele lhe começou a dar ouvidos, a contar-lhe os seus segredos e a confiar nela, que ela havia, com o tempo, de descobrir o caminho - como uma doninha que sente o cheiro de sangue numa coelheira - até ao meu lugar. E que quando o encontrasse, iria fazer um festim.

O arauto proclama "Catarina de Aragão, Rainha da Inglaterra, apresentai-vos perante o tribunal!", e faz-se um enorme silên­cio, pois não esperam ter resposta. Não há, ali, advogados à espera para me ajudarem e eu não tenho qualquer defesa preparada. Já tornei muito claro que não reconheço competência a este tribunal. Estão à espera de poder continuar sem mim. De facto, o arauto está prestes a chamar a próxima testemunha...

Mas eu respondo.

Os meus homens abrem, de par em par, as portas duplas do salão que conheço tão bem, e eu entro, de cabeça bem erguida, destemida como sempre fui. toda a minha vida. O dossel real, de ouro, está colocado no outro extremo do salão e o meu falso, mentiroso, traidor e infiel marido, com a sua imerecida coroa, está sentado por baixo, no seu trono.

Num estrado, abaixo do dele, estão dois cardeais, igualmente sob um dossel em tecido de ouro, sentados em cadeiras douradas, com almofadas douradas. Wolsey, aquele escravo traidor, de rosto enrubescido, nas suas vestes vermelhas de cardeal, não consegue olhar-me nos olhos, e é bom que não o faça; e aquele falso amigo. Campeggio. Os seus três rostos, o do rei e os dos seus procuradores, são espelhos da sua grande inquietação.

Pensavam que me haviam perturbado e confundido tanto, separando-me dos meus amigos, destruindo-me, que eu não teria coragem para aparecer. Estavam convictos de que eu iria afundar--me no desespero, como a minha mãe, ou na loucura, como a minha irmã. Estão a apostar no facto de me terem assustado e ameaçado, de me terem tirado a minha filha e de terem feito tudo o que podiam para me partirem o coração. Nunca sonharam que eu teria a coragem de aparecer, altivamente, á frente deles, de ficar à frente deles, tremendo de honradez, de os enfrentar a todos.

Loucos, esquecem-se de quem eu sou. Foram aconselhados pela tal Bolena, que nunca me viu de armadura, levados por ela. que nunca conheceu a minha mãe, que nunca viu o meu pai. Ela conhece-me como Catarina, a velha Rainha da Inglaterra, devota, gorda, aborrecida, Não faz ideia de que, por dentro, continuo a ser Catarina, a jovem Infanta da Espanha. Sou anta princesa, nascida e treinada para lutar. Sou uma mulher que teve de lutar por tudo aquilo em que acredita, e continuarei a lutar e a acreditar e hei-de vencer.

Não foram capazes de prever o que eu faria para me proteger a mim e à herança da minha filha. Ela chama-se Maria, a minha Maria, o nome escolhido por Artur: a minha adorada filha. Maria. Alguma vez eu permitiria que ela fosse posta de lado. em favor de um bastardo qualquer concebido por essa tal Bolena?

Este é o seu primeiro erro.

Ignoro completamente os cardeais. Ignoro os amanuenses, sen­tados em bancos, à frente deles e os escribas, com os seus longos rolos de pergaminho, escrevendo o relatório oficial desta mascarada. Ignoro o tribunal, a cidade, e até o povo. que sussurra o meu nome com carinho. Não olho para ninguém, a não ser para Henrique.

Conheço Henrique, conheço-o melhor do que qualquer pessoa no mundo inteiro. Conheço-o melhor do que a sua favorita alguma vez conhecerá, pois vi-o como rapaz e como homem. Observei-o quan­do era um rapaz, uma criança de dez anos, que veio ter contigo e ten­tou convencer-me a oferecer-lhe um cavalo da Barbaria. Conheci-o nessa altura, quando era um rapaz que podia ser conquistado com palavras meigas e com presentes. Vi-o através dos olhos do irmão, que dizia - acertadamente - que ele era uma criança excessivamente mimada, tratada com demasiada indulgência e que. por esse motivo, viria a ser um homem egoísta, um perigo para todos nós. Conheci-o quando era um adolescente e consegui chegar ao trono alimentando a sua vaidade. Eu era o melhor prémio que ele poderia desejar, e permiti que me conquistasse. Conheci-o como homem, vaidoso e ambicioso como um pavão, quando lhe cedi os créditos da minha guerra; a maior vitória alguma vez conseguida pela Inglaterra.

A pedido de Artur, disse a maior mentira que uma mulher pode dizer, e hei-de repeti-la até ao túmulo. Sou uma Infanta da Espanha, não faço promessas que não cumpro. Artur, o meu amado, pediu--me. no seu leito de morte, que fizesse um juramento, e eu fi-lo. Pediu-me para dizer que nunca havíamos sido amantes e ordenou--me que casasse com o irmão, e que fosse rainha. Fiz tudo o que lhe prometi, fui fiel ã minha promessa. Nada, em todos estes anos. aba­lou a minha fé de que é vontade de Deus que eu seja Rainha da Inglaterra, e que o seja até morrer. Ninguém poderia ter salvo a Inglaterra dos Escoceses, a não ser eu - Henrique era demasiado /orem e inexperiente para comandar um exército em campo. leria proposto um duelo, leria arriscado qualquer esperança fugaz, teria perdido a batalha e morrido em Flodden, e a sua irmã. Margaret. leria sido Rainha da Inglaterra em meu lugar.

Isso não aconteceu, porque eu não permiti. Era desejo da minha mãe e vontade de Deus que eu fosse Rainha da Inglaterra, e hei-de ser Rainha da Inglaterra até morrer.

Não me arrependo da mentira. Acreditei nela. e fiz com que todos acreditassem, independentemente das dúvidas que pudessem ter. A medida que Henrique foi aprendendo mais sobre as mulheres, e me foi conhecendo melhor, percebeu, como. de certeza, percebera na nossa noite de núpcias, que era mentira, eu já não era virgem quan­do casei com ele. Mas durante os vinte anos de casamento em que esti­vemos juntos, só uma vez teve coragem para me desafiar, logo no iní­cio: e eu entro no tribunal, totalmente convencida de que ele nunca vai ter coragem para me desafiar novamente, nem mesmo agora.

Entro no tribunal, com lodo o meu processo alicerçado sobre a sua fraqueza. Tenho a certeza de que, quando eu estivera sua fren­te e ele for obrigado a olhar-me nos olhos, não se vai atrever a dizer que eu já não era virgem quando casei com ele, que eu já tinha sido mulher de Artur e amante de Artur, antes de lhe pertencer. A sua vaidade não lhe vai permitir dizer que eu amava Artur com uma paixão verdadeira e que ele me amava. Que, em verdade, eu viverei e morrerei como mulher e amante de Artur, e que. assim, o casa­mento de Henrique comigo pode ser dissolvido, de acordo com a lei.

Não me parece que ele tenha a minha coragem. Acredito que, se eu conseguir manter-me firme e repetir mais uma vez a grande incutira, ele não se atreverá a levantar-se para dizer a verdade.

"Catarina de Aragão. Rainha da Inglaterra, apresentai-vos perante o tribuna/.'" repete estupidamente o arauto, enquanto o eco das portas a bater atrás de mim se repercute por toda a sala do tri­bunal, que está em choque, e todos podem cerque eu já estou lá den­tro, de pé, diante do trono, como um valente lutador.

É a mim que chamam por este título. Foi esperança do meu marido, na hora da sua morte, desejo da minha mãe e vontade de Deus. que eu fosse Rainha da Inglaterra e. por eles e pelo país, serei Rainha da Inglaterra até morrer.

"Catarina de Aragão, Rainha da Inglaterra, apresentai-vos perante o tribunal'"

Sou eu. Este é o meu momento. Este é o meu grito de batalha.

Dou um passo em frente. 

 

                                                                                Philippa Gregoy

 

 

                      

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