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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CATARINA DE ARAGÃO / Philippa Gregory
CATARINA DE ARAGÃO / Philippa Gregory

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Princesa de Gales
Granada, 1491
Ouviu-se um grito, seguido do crepitante estrépito do fogo que envolvia as cortinas de seda, e um crescendo de gritos e pânico que se espalhou de uma tenda para a outra seguindo as chamas, saltando de um estandarte de seda para outro, subindo por cordas e irrompendo por portas de musselina. Os cavalos relincharam aterrorizados e os homens gritaram para os acalmar, mas o terror das vozes piorava tudo, até que a planície se iluminou com milhares de chamas enraivecidas, e a noite se contorceu com o fumo e se encheu de uivos e gritos.
A menina, que saía da cama com medo, chamava a mãe, em espanhol, e gritava:
– São os mouros? Os mouros vieram-nos buscar?
– Meu Deus, salva-nos, estão a incendiar o acampamento! – gritava a ama. – Virgem Maria, vão violar-me e trespassar-vos com os alfanges.
– Mãe! – chamava a criança, esforçando-se por sair da cama. – Onde está a minha mãe?
Correu para fora, com a camisa de dormir a bater-lhe nas pernas, as cortinas da tenda agora iluminadas e em chamas num inferno de pânico. Milhares de tendas do acampamento incendiadas, com faúlhas lançadas para o escuro céu nocturno como fontes de fogo, que se alastravam como uma nuvem de pirilampos para propagar o desastre.
– Mãe! – gritava por ajuda.
Das chamas surgiram dois cavalos pretos, enormes, como bestas míticas gigantes que se moviam como uma só, de um negro intenso, contra a claridade do fogo. Em cima, mais alto do que alguém imaginaria, a mãe da criança inclinou-se para falar com a filha que tremia e cuja cabeça não atingia a altura do ombro do cavalo.
– Fica com a ama e porta-te bem – ordenou a mulher, sem vestígios de medo na voz. – Eu e o pai temos de sair a cavalo e mostrar-nos.
– Deixai-me ir convosco! Mãe! Vou ficar queimada. Deixai-me ir! Os mouros vão apanhar-me! – A menina levantava os braços na direcção da mãe.
A luz do fogo cintilava de modo misterioso na armadura e nas grevas ornamentadas das pernas, como se fosse uma mulher de metal, uma mulher de prata e dourado, enquanto se inclinava para a frente e ordenava:
– Se os homens não me virem, vão desertar – afirmou asperamente. – Não queres que isso aconteça.
– Não quero saber! – A criança choramingava em pânico. – Não me interessa mais nada além de vós! Pegai-me!
– O exército está em primeiro lugar. – A mulher, montada no alto do cavalo negro, anunciou: – Tenho de ir.
Virou a cabeça do cavalo no sentido contrário ao da filha apavorada.
– Volto para te vir buscar – disse, por cima do ombro. – Espera aqui. Agora tenho de fazer isto.
Indefesa, a criança observou o pai e a mãe cavalgarem para longe.
– Mãe! – protestava. – Mãe! Por favor! – No entanto, a mulher não voltou.
– Vamos ser queimadas vivas! – Madilla, a ama, gritava atrás de si. – Correi, correi e escondei-vos!
– Podeis calar-vos! – A criança voltou-se com um súbito rancor irritado. – Se eu, a princesa de Gales, posso ser deixada num acampamento a arder, então vós, que não passais de uma mourisca, podeis aguentar.

 


 


Observou os dois cavalos a andar de trás para a frente entre as tendas queimadas. Pelos sítios onde passavam os gritos eram acalmados e a disciplina regressava ao acampamento aterrorizado. Os homens formavam filas, transportando baldes até ao canal de irrigação, passando do terror à ordem. O general corria entre os homens, batendo-lhes com o copo da espada, obrigando os que há pouco fugiam a formar um batalhão alinhado, e mandou-os colocar em formação de defesa, na planície, para o caso de os mouros terem reparado no pilar de fogo, através das seteiras negras, e resolverem sair para atacar e tomar o acampamento durante o caos. Mas nenhum mouro apareceu nessa noite; mantiveram-se atrás das altas muralhas do castelo, interrogando-se quais seriam as novas maldades que os loucos cristãos inventariam na escuridão, demasiado receosos para surgirem no meio do inferno que os cristãos criaram, suspeitando que se trataria de uma armadilha dos infiéis.

A criança de cinco anos observou a determinação da mãe vencer fogo, a sua certeza de rainha extinguir o pânico, a fé no êxito sobrepor-se à realidade do desastre e da derrota. A menina, sentada numa das arcas do tesouro, prendeu a camisa de dormir em volta dos pés descalços, e esperou que o acampamento se acalmasse.

Quando a mãe voltou para junto da filha, encontrou-a de olhos secos e calma.

– Catarina, estás bem? – Isabel de Espanha desmontou do cavalo e voltou-se para a filha mais nova e mais preciosa, controlando-se para não se ajoelhar e abraçar a pequenina. A ternura não educaria esta criança como uma guerreira de Cristo, a fraqueza não deve ser incentivada numa princesa.

A criança era tão dura quanto a mãe.

– Eu estou bem agora – afirmou.

– Não tiveste medo?

– Nenhum.

A mulher inclinou a cabeça em sinal de aprovação.

– Isso é bom – asseverou. – É o que espero de uma princesa de Espanha.

– E princesa de Gales – acrescentou a filha.

Esta sou eu, a menina de cinco anos, sentada em cima da arca do tesouro, de rosto branco como mármore e olhos azuis abertos de medo, recusando tremer, a morder os lábios para não chorar. Esta sou eu, concebida num acampamento por pais que são rivais e amantes, nascida num momento intercalado entre duas batalhas, num Inverno de cheias torrenciais, educada por uma mulher forte que usava armadura, em campanha durante a minha infância, destinada a lutar pelo meu lugar no mundo, lutar pela minha fé contra outra, lutar pela minha palavra contra a de outro: nascida para lutar pelo meu nome, pela minha fé e pelo meu trono. Sou Catarina, princesa de Espanha, filha dos dois maiores monarcas que o mundo alguma vez conheceu: Isabel de Castela e Fernando de Aragão. Os seus nomes são temidos do Cairo a Bagdade, a Constantinopla e à Índia e mais além, por todos os mouros, em todas as nações: turcos, indianos, chineses; os nossos rivais, admiradores, inimigos até à morte. Os nomes dos meus pais são abençoados pelo papa como os mais importantes reis a defenderem a fé contra o poder do Islão, são os mais importantes cruzados da Cristandade, assim como os primeiros reis de Espanha; e eu sou a filha mais nova, Catarina, princesa de Gales, e serei rainha de Inglaterra.

Desde os três anos estou prometida em casamento ao príncipe Artur, filho do rei Henrique de Inglaterra, e quando fizer quinze navegarei para o seu país num belo navio, com o meu estandarte desfraldado no mastro, e serei sua mulher e depois sua rainha. O seu país é rico e fértil – repleto de fontes e o som de água a correr, cheio de frutas mornas e perfumado por flores; e será o meu país, tomarei conta dele. Tudo foi acordado desde o meu nascimento, sempre soube que seria assim; e apesar de lamentar deixar a minha mãe e a minha casa, afinal, nasci princesa, destinada a ser rainha, e sei qual é o meu dever.

Sou uma criança de convicções absolutas, sei que serei rainha de Inglaterra porque é a vontade de Deus, e a ordem da minha mãe. E acredito, como toda a gente no meu mundo, que Deus e a minha mãe são da mesma opinião; e a sua vontade concretiza-se sempre.

De manhã, o acampamento fora de Granada era uma confusão húmida de cortinas chamuscadas, tendas destruídas, pilhas de forragem fumegantes, tudo destruído por uma vela colocada sem cuidado. Não havia alternativa senão a retirada. O exército espanhol cavalgara com orgulho para montar cerco ao último reino dos mouros em Espanha, e tudo fora destruído pelo fogo. Teria de voltar para trás, para se reagrupar.

– Não, não vamos recuar – ordenou Isabel de Espanha.

Os generais, convocados para uma reunião de emergência sob um toldo queimado, afastavam as moscas que esvoaçavam em redor do acampamento, a banquetearem-se com os destroços.

– Vossa Majestade, por esta estação, perdemos – disse-lhe um dos generais. – Não é uma questão de orgulho nem de força de vontade. Não temos tendas, ou abrigo, fomos destruídos pela má sorte. Temos de abastecer-nos, voltar a montar o cerco. O vosso marido – acenou para o homem moreno e bonito que estava à parte do grupo, a ouvir – sabe que é assim. Todos sabemos. Montaremos o cerco, não nos derrotarão. Mas um bom general sabe quando é preciso retirar-se.

Os homens assentiram. O senso comum ditava que nada poderia ser feito além de libertar os mouros de Granada do cerco durante a estação. A batalha continuaria. Já durava há sete séculos. Cada ano vira gerações de reis cristãos aumentar as suas terras, em detrimento dos mouros. Cada batalha fizera-os recuar um pouco mais para sul, durante muito tempo, o respeitado domínio muçulmano de al-Andalus. Mais um ano, não faria diferença. A menina, encostada a um poste húmido de uma tenda que cheirava a cinza molhada, observava a expressão serena da mãe. Nunca se alterou.

– De facto, é uma questão de orgulho – corrigiu-o. – Estamos a lutar contra um inimigo que conhece o orgulho como nenhum outro. Se fugirmos nas roupas chamuscadas, com as carpetes queimadas enroladas debaixo do braço, vão rir-se até ao al-Yanna, o seu paraíso. Não posso permiti-lo. Mas, acima de tudo: é a vontade de Deus que combatamos os mouros, é a vontade de Deus que avancemos. Não é a vontade de Deus que recuemos. Por isso, temos de avançar.

O pai da criança voltou a cabeça com um sorriso espantado, mas não manifestou opinião contrária. Quando os generais o olharam, fez um pequeno gesto com a mão.

– A rainha tem razão – afirmou. – A rainha tem sempre razão.

– Mas não temos tendas, não temos acampamento!

Pôs a questão à rainha.

– O que pensais?

– Construímos um acampamento – decidiu.

– Vossa Majestade, destruímos tudo o que existia nos quilómetros circundantes. Atrevo-me a dizer que nem um kamiz conseguiríamos costurar para a princesa de Gales. Não temos tecido. Não temos tela. Não há cursos de água, não há colheitas nos campos. Rebentámos os canais e colhemos as culturas. Acabámos com tudo; mas somos nós que estamos destruídos.

– Construímos em pedra. Presumo que tenhamos pedra?

O rei disfarçou uma gargalhada com um som de quem limpava a garganta.

– Estamos rodeados por uma planície de rochas áridas, meu amor – afirmou. – Se há algo que temos, é pedra.

– Então, construiremos, não um acampamento, mas uma cidade de pedra.

– Não é possível fazê-lo.

Ela voltou-se para o marido.

– Vai ser feito – ordenou. – É a vontade de Deus e a minha.

Ele acenou.

– Vai ser feito! – Lançou-lhe um sorriso cúmplice. – É meu dever velar para que a vontade de Deus seja satisfeita; e meu prazer reforçar a vossa.

O exército, derrotado pelo fogo, recorreu aos elementos terra e água. Trabalharam como escravos sob o calor do sol e o frio das noites. Cultivaram, como lavradores, os campos onde pensaram que avançariam triunfantes. Esperava-se que todos, cavalaria, oficiais, generais, os grandes senhores do país, os primos do rei, trabalhassem sob o calor do sol e se deitassem no chão duro e frio à noite. Os mouros, observando das ameias altas e impenetráveis do forte vermelho construído na colina, sobre Granada, admitiram que os cristãos tinham coragem. Ninguém podia dizer que não eram determinados. E sabiam que estavam condenados. Nenhuma força conquistaria o forte vermelho de Granada, nunca caíra em dois séculos. Fora construído no alto de um rochedo, sobre uma planície ampla e alva. Não podia ser surpreendida por um ataque sub-reptício. O rochedo de rocha vermelha que ascendia da planície transformava-se nas paredes de pedra vermelha do castelo, elevando-se cada vez mais alto; não havia escadas que atingissem o cimo, ninguém conseguiria escalar uma encosta tão abrupta.

Talvez pudesse ser denunciado por um traidor; mas quem seria louco ao ponto de abandonar o poder firme e sereno dos mouros, com o mundo conhecido atrás de si, com uma fé inegável a apoiá-los, para se juntar à loucura raivosa do exército cristão cujos reis possuíam apenas alguns hectares montanhosos da Europa e que estavam divididos? Quem abandonaria al-Yanna, o jardim, que era a imagem do Paraíso, dentro das muralhas do mais bonito palácio de Espanha, o mais belo palácio da Europa, pela anarquia rude dos castelos e fortalezas de Castela e Aragão?

De África, chegariam reforços para os mouros, tinham amigos e aliados, de Marrocos ao Senegal. O apoio viria de Bagdade, de Constantinopla. Granada podia parecer pequena, comparada com as conquistas de Fernando e Isabel, mas, por trás de Granada, estava o maior império do mundo – o império do Profeta, louvado seja o Seu nome.

Mas, dia após dia, semana após semana, aos poucos, combatendo o calor dos dias de Primavera e o frio das noites, os cristãos fizeram o impossível. Primeiro, uma capela em círculo, como uma mesquita, uma vez que era o que os construtores locais conseguiam fazer; depois, uma pequena casa, de telhado plano dentro de um pátio árabe, para o rei Fernando, a rainha Isabel e a família real: o infante, o precioso filho e herdeiro, as três filhas mais velhas: Isabel, Maria, Joana e Catarina, a bebé. A rainha pediu um telhado e paredes, há anos que participava na guerra, não esperava luxos. Depois, havia uma dúzia de abrigos em pedra, em volta, que os grandes senhores aceitaram relutantes como aposentos. Em seguida, porque a rainha era uma mulher dura, estábulos para os cavalos e armazéns protegidos para a pólvora e os preciosos explosivos, comprados em Veneza, pelos quais penhorou as jóias; então, e só então, foram construídas as casernas e cozinhas, armazéns e outros edifícios. Assim, surgiu uma pequena cidade, construída em pedra, onde existira um pequeno acampamento. Ninguém pensou que seria factível; mas, parabéns!, foi feito. Chamaram-lhe Santa Fé, e Isabel triunfou sobre o azar. O amaldiçoado cerco de Granada, levado a cabo pelos determinados e loucos reis cristãos, continuaria.

Catarina, princesa de Gales, deparou com um dos grandes senhores do acampamento espanhol em conversa sussurrada com os amigos.

– Que estais a fazer, don Hernán? – perguntou com a confiança precoce de uma criança de cinco anos que nunca estivera longe da mãe, cujo pai não era capaz de lhe negar nada.

– Nada, infanta – respondeu Hernán Pérez del Pulgar com um sorriso que lhe indicava que podia voltar a perguntar.

– Estais sim.

– É segredo.

– Eu não digo nada.

– Princesa! Iríeis contar. É um segredo tão grande! Um segredo demasiado grande para uma menina pequenina.

– Eu não conto nada! A sério que não conto! – Pensou. – Prometo por Gales.

– Por Gales! Pelo vosso país?

– Por Inglaterra?

– Por Inglaterra? A vossa herança?

Ela assentiu.

– Por Gales e por Inglaterra e pela Espanha.

– Bem, então. Se fazeis uma promessa tão sagrada, vou contar-vos. Jurais que não contais à vossa mãe?

Ela fez sinal com a cabeça, com os olhos azuis muito abertos.

– Vamos entrar em Alhambra. Conheço uma porta, uma portinha secreta, que não é bem vigiada, onde podemos forçar a entrada. Vamos entrar, e adivinhai?

Ela abanou a cabeça, o rabo-de-cavalo castanho a oscilar sob o véu, como uma cauda grossa de um cachorro.

– Vamos dizer as nossas orações na sua mesquita. E vou deixar uma Ave-Maria gravada num papel que fixarei ao chão com um punhal. O que vos parece?

Era demasiado jovem para perceber que se dirigiam para uma morte certa. Não fazia ideia das sentinelas em cada porta, da raiva impiedosa dos mouros. Os olhos brilhavam de entusiasmo.

– Ides?

– Não é um plano maravilhoso?

– Quando ides?

– Esta noite! Hoje mesmo!

– Não vou adormecer até voltarem!

– Tendes de rezar por mim, e depois ir dormir, e, de manhã, voltarei, princesa, e contarei tudo, a vós e à vossa mãe.

Jurou que nunca adormeceria e manteve-se acordada, rígida na cama-berço, enquanto a ama se virava de um lado para o outro sobre o tapete junto da porta. As suas pupilas descaíram até as pestanas repousarem nas bochechas redondas, as mãozinhas descaídas, relaxadas e Catarina adormeceu.

Mas, de manhã, ele não apareceu, o cavalo não estava nos estábulos e os amigos desaparecidos. Pela primeira vez na vida, a menina tomou consciência do perigo que correra – perigo mortal, e por nada, além da glória, e para ser tema de uma canção.

– Onde está ele? – perguntou. – Onde está Hernán?

O silêncio da ama, Madilla, avisou-a.

– Vai aparecer? – inquiriu, desconfiada. – Ele vai voltar?

Apercebo-me de que ele talvez não volte, que a vida não é uma balada, onde uma vã esperança triunfa sempre e um homem bonito nunca perde a vida na juventude. Mas se ele falha e morre, o meu pai também pode morrer? A minha mãe pode morrer? E eu, posso? Até eu? A pequena Catarina, infanta de Espanha e princesa de Gales?

Ajoelho-me no espaço circular sagrado da recém-construída capela da minha mãe; mas não rezo. Reflicto neste mundo estranho que se abre diante de mim. Se estivermos certos – e tenho a certeza de que estamos; se estes homens jovens e bonitos têm razão – e tenho a certeza de que têm – se nós e a nossa causa estamos sob a mão especial de Deus, então, como podemos falhar?

Mas se percebi alguma coisa mal, então, algo está errado, e somos de facto mortais, talvez possamos falhar, mesmo o belo Hernán Pérez del Pulgar e os amigos risonhos, a minha mãe e o meu pai podem falhar. Se Hernán pode morrer, o mesmo pode acontecer à minha mãe e ao meu pai. E se é assim, que segurança existe no mundo? Se a mãe pode morrer, como um soldado, como uma mula a puxar uma carroça de equipagem, como tenho visto homens e mulas morrerem, como pode o mundo continuar? Como pode existir um Deus?

Chegara a altura da audição da mãe aos que pretendiam apresentar pedidos e aos amigos, e de súbito ali estava ele, nos seus melhores trajos, de barba penteada, os olhos a dançar, e a história contada: como se vestiram com roupas árabes, para passarem por habitantes locais no meio da escuridão, entrado sub-repticiamente pela porta das traseiras, corrido até à mesquita, como se haviam ajoelhado e sussurrado uma Ave-Maria e fixado com um punhal a oração, no chão da mesquita, e, ao serem surpreendidos por guardas, haviam lutado para escapar, cara a cara, investindo e defendendo-se, as lâminas reluzindo à luz da Lua; recuado pela rua estreita, saído pela porta que forçaram momentos antes, e escapado para a noite, antes de ser dado o alarme. Sem um arranhão, sem perder homem algum. Um triunfo para eles e uma bofetada no rosto de Granada.

Era uma grande partida pregada aos mouros, era engraçado gravar uma oração cristã em pleno coração do seu lugar sagrado. O gesto mais maravilhoso para os insultar. A rainha estava encantada, tal como o rei, a princesa e as irmãs olhavam para o seu guerreiro, Hernán Pérez del Pulgar, como se fosse um herói dos romances, um cavaleiro da época de Artur de Camelot. Catarina batia as palmas deliciada com a história, e pedia-lhe que a contasse e recontasse, vezes sem conta. Mas no íntimo, bem no fundo, recordava o arrepio que sentira ao pensar que ele não voltaria.

A seguir, aguardaram a resposta dos mouros. Era certo que viria. Sabiam que o inimigo encararia a aventura como o desafio que era, haveria resposta. Não tardou muito.

A rainha e os filhos visitavam Zubia, uma aldeia perto de Granada, para que Sua Majestade visse, por si mesma, as paredes inexpugnáveis do forte. Cavalgaram com uma guarda ligeira e o comandante estava lívido de terror quando correu na sua direcção, na praça da aldeia, e gritou que os portões do forte vermelho se haviam aberto, e os mouros saíam disparados, o exército completo, armados para atacar. Não houve tempo para voltar ao acampamento, a rainha e as três princesas não conseguiriam cavalgar mais depressa do que os cavaleiros mouros, que montavam garanhões árabes, não havia lugar para se esconderem, nem para pararem.

Numa corrida desesperada, a rainha Isabel subiu para o terraço da casa mais próxima, puxando a princesinha pela mão, pelas escadas que se desfaziam, com as irmãs a correrem atrás.

– Tenho de ver! Tenho de ver! – exclamava.

– Mãe, estais a magoar-me!

– Silêncio, filha. Temos de ver o que pretendem.

– Vêm buscar-nos? – choramingava a criança, com a vozinha abafada pela mão rechonchuda.

– Podem vir. Tenho de ver.

Era um grupo de atacantes, não a cavalaria completa. Eram chefiados pelo defensor, um gigante, escuro como mogno, de sorriso reluzente sob o elmo, montado num enorme cavalo negro, como se fosse a Noite, cavalgando para os surpreender. O cavalo rosnava como um cão para o guarda de vigia, com os dentes de fora.

– Mãe, quem é aquele homem? – perguntava num sussurro a princesa de Gales, observando do ponto protegido no terraço da casa.

– É o mouro que se chama Yarfe, e temo que venha buscar o teu amigo, Hernán.

– O cavalo é tão assustador, parece que quer morder.

– Cortou-lhe os lábios para que rosne para nós. Mas não nos assustamos com estas coisas. Não somos crianças assustadiças.

– Não devíamos fugir? – interrogou a criança assustada.

A mãe, observando o desfile dos mouros, nem ouvia os murmúrios da filha.

– Não ides deixá-lo magoar Hernán, pois não, mãe? – choramingava a criança.

– Hernán lançou o desafio. Yarfe responde. Teremos de lutar – disse, calma. – Yarfe é um cavaleiro, um homem de honra. Não pode ignorar o desafio.

– Como pode ser um homem de honra, se é um herege? Um mouro?

– São homens muito honrados, Catarina, apesar de não serem crentes. E Yarfe é um herói para eles.

– Que ides fazer, mãe? Como nos salvamos? Este homem é grande como um gigante.

– Vou rezar – afirmou Isabel. – E o meu defensor, Garallosco de la Vega, vai responder a Yarfe, por Hernán.

Tão calmamente como se estivesse na capela em Córdova, Isabel ajoelhou-se no terraço da casa, e indicou por gestos às filhas que fizessem o mesmo. Contrariada, a irmã mais velha de Catarina, Joana, pôs-se de joelhos, as princesas Isabel e Maria, as duas outras irmãs, imitaram-na. Catarina viu, espreitando por entre as mãos cerradas, enquanto se ajoelhava em oração, que Maria tremia de medo, e que Isabel, no vestido de viúva, estava pálida de medo.

– Pai Nosso que estais no Céu, rezamos pela nossa segurança, da nossa causa e do nosso exército – a rainha Isabel ergueu o olhar para o céu azul brilhante –, rezamos pela vitória do Nosso Defensor, Garallosco de la Vega, neste seu momento de provação.

– Amém – disseram as raparigas, seguindo a direcção do olhar da mãe para onde as fileiras da guarda espanhola se formavam, atentas e silenciosas.

– Se Deus o proteger... – começou Catarina.

– Silêncio – pediu a mãe gentilmente. – Deixa-o fazer o seu trabalho, deixa Deus fazer o Seu, e deixa-me fazer o meu. – Fechou os olhos em oração.

Catarina voltou-se para a irmã mais velha, puxando-lhe a manga.

– Isabel, se Deus o protege, então, como está em perigo?

Isabel olhou para a irmã mais nova.

– Deus não facilita o caminho daqueles que ama – explicou num murmúrio seco. – Envia-lhes provações para os pôr à prova. Os que Deus mais ama, são os que mais sofrem. Eu sei. Eu, que perdi o único homem que amarei. Tu sabes. Pensa em Job, Catarina.

– Então, como venceremos? – perguntou a rapariguinha. – Se Deus ama a mãe, não vai enviar-lhe as piores provações? E se for assim, como venceremos?

– Silêncio – pediu a mãe. – Vejam. Vejam e rezem com fé.

O seu pequeno exército e o grupo atacante dos mouros estavam frente a frente, prontos para a batalha. Yarfe avançou no grande cavalo negro. Uma coisa branca oscilava junto ao chão, preso à cauda negra brilhante do cavalo. Ouviu-se um grito sufocado, enquanto os soldados na fila da frente reconheciam o que transportava. Era o papel com a Ave-Maria que Hernán fixara com um punhal no chão da mesquita. O mouro amarrara-o à cauda do cavalo, como um insulto calculado, e andava com a enorme criatura para a frente e para trás, diante das fileiras de cristãos, sorrindo ao ouvir os gritos de raiva.

– Herege – sussurrou a rainha Isabel. – Um homem amaldiçoado com o inferno. Que Deus o fira de morte e castigue o pecado.

O defensor da rainha, De la Vega, voltou o cavalo e cavalgou na direcção da casa onde os guardas reais rodeavam o pátio, a minúscula oliveira e a porta da entrada. Parou o cavalo ao lado da oliveira e retirou o elmo, olhando para cima, para a sua rainha e princesas, que estavam no terraço. O cabelo escuro encaracolado e suado devido ao calor, os olhos escuros faiscavam de raiva.

– Vossa Alteza, tenho a vossa permissão para responder a este desafio?

– Sim – respondeu a rainha, nunca hesitando. – Ide com Deus, Garallosco de la Vega.

– Aquele homem gigante vai matá-lo – afirmou Catarina, puxando a manga da mãe. – Dizei-lhe que não pode ir. Yarfe é muito maior. Vai matar De la Vega!

– Será feita a vontade de Deus – manteve Isabel, fechando os olhos em oração.

– Mãe! Vossa Majestade! Ele é um gigante. Vai matar o nosso defensor.

A mãe abriu os olhos azuis e olhou para a filha, vendo que o seu rosto estava vermelho de aflição e os olhos cheios de lágrimas.

– Será feita a vontade de Deus – repetiu com firmeza. – Tens de ter fé de que cumpres a vontade de Deus. Por vezes, não compreenderás, às vezes duvidarás, mas, se cumprires a vontade de Deus, ele não te enganará, nem tu te enganas. Lembra-te disso, Catarina. Se ganhamos este desafio ou se o perdemos, é indiferente. Somos soldados de Cristo. És um soldado de Cristo. Não importa se sobrevivemos ou morremos. Morreremos pela fé, é tudo o que importa. Esta é a batalha de Deus, Ele enviar-nos-á uma vitória, se não for hoje, será amanhã. E seja quem for a vencer hoje, não duvidamos de que Deus vencerá e de que venceremos no fim.

– Mas De la Vega... – Catarina protestou, com o lábio inferior a tremer.

– Talvez Deus o leve para junto de Si, esta tarde – respondeu a mãe decidida. – Devíamos rezar por ele.

Joana fez uma careta para a irmã mais nova, mas quando a mãe se ajoelhou de novo, as duas meninas deram as mãos para se confortarem. Isabel ajoelhou-se ao seu lado, com Maria junto de si. Olhavam de soslaio, por entre as pálpebras cerradas, para a planície onde o cavalo baio de batalha de De la Vega se afastava da linha dos espanhóis, e o cavalo negro do mouro trotava orgulhosamente diante dos sarracenos.

A rainha manteve os olhos fechados até terminar as orações, nem ouviu o rugido, enquanto os dois homens ocupavam as suas posições, baixavam as viseiras, e seguravam as lanças.

Catarina pôs-se de pé, inclinando-se no parapeito, para ver o defensor espanhol. O cavalo partiu disparado na direcção do outro, mal se distinguindo as pernas, o cavalo negro surgiu à mesma velocidade da direcção oposta. O choque das duas lanças a bater contra as sólidas armaduras ouvia-se no terraço da pequena casa, enquanto os dois homens eram empurrados para fora das selas pela força do impacte, as lanças esmagadas, as protecções do peito amolgadas. Não se assemelhava nada aos duelos ritualizados da corte. Era um confronto selvagem, concebido para partir um pescoço ou parar um coração.

– Ele caiu! Está morto! – gritou Catarina.

– Está atordoado – corrigiu-a a mãe. – Vês, está a levantar-se.

O cavaleiro espanhol pôs-se de pé, desequilibrado como se estivesse alcoolizado, devido à forte pancada recebida no peito. O homem maior já levantado, pôs de lado o capacete e a pesada protecção do peito, e dirigia-se a ele com uma alfange gigante em posição, a luz a reflectir na lâmina afiada. De la Vega desembainhou a arma de grande porte. Ouvia-se um ruído tremendo, à medida que as espadas batiam uma na outra e, depois, os dois homens cruzaram as lâminas e lutaram, cada um tentando forçar o outro a pousar a sua. Andaram em círculos, aos tropeções devido ao peso da armadura e à agitação; mas não havia dúvida de que o mouro era o mais forte. Os observadores viam que De la Vega cedia, sob a pressão. Tentou saltar para trás e libertar-se; mas o peso do mouro estava sobre si, e ele tropeçou e caiu. De imediato, o cavaleiro negro estava em cima dele, empurrando-o para o chão. A mão de De la Vega cerrava a longa espada, mas não a conseguiu levantar. O mouro ergueu a espada para a garganta da vítima, pronto a desferir-lhe o golpe fatal, o rosto uma máscara negra de concentração, os dentes rangiam. De repente, gritou e caiu para trás. De la Vega rebolou, debatendo-se para se pôr de pé, gatinhando, como um cão que se levanta.

O mouro estava no chão, agarrado ao peito, com a enorme espada caída ao lado. A mão esquerda de De la Vega segurava um pequeno punhal manchado de sangue, uma arma escondida, utilizada numa riposta desesperada. Com um esforço sobre-humano, o mouro pôs-se de pé, virou-se de costas para o cristão e caminhou aos tropeções até às suas fileiras.

– Estou perdido – disse para os homens que corriam para a frente para o apanhar. – Perdemos.

Após um sinal dissimulado, os enormes portões do forte vermelho abriram-se e os soldados surgiram em grande número. Joana pôs-se de pé.

– Mãe, temos de fugir! – gritou. – Eles vêm aí! Vêm aos milhares!

Isabel manteve-se de joelhos, mesmo quando a filha correu pelo terraço e pelas escadas.

– Joana, volta aqui – ordenou num tom de voz semelhante a uma chicotada. – Meninas, rezem.

Levantou-se e foi ao parapeito. Primeiro, olhou para o comando do seu exército, viu que os oficiais colocavam os homens em formação, prontos para a carga, quando o exército muçulmano, aterrorizador no seu avanço, surgiu em número elevado. Olhou para baixo, para ver Joana, num ataque de pânico, a espreitar em volta do muro do jardim, não sabendo se devia correr para o cavalo ou voltar para junto da mãe.

Isabel, que amava a filha, não pronunciou uma palavra. Voltou para junto das outras e ajoelhou-se com elas.

– Vamos rezar – ordenou, e fechou os olhos.

– Ela nem olhou! – repetia Joana incrédula nessa noite, quando estavam no quarto, a lavar as mãos e a trocar as roupas sujas. O rosto de Joana, marcado pelas lágrimas, estava limpo.

– Ali estávamos nós, no meio de uma batalha, e ela fecha os olhos!

– Ela sabia que seria mais útil apelar para que Deus intercedesse do que desatar a correr aos gritos – afirmou Isabel incisiva. – E vê-la, ajoelhada, à vista de todos, transmitiu mais coragem ao exército do que qualquer outra coisa.

– E se fosse atingida por uma seta ou uma espada?

– Não foi. Não fomos. E vencemos a batalha. E tu, Joana, portaste-te como um camponês semilouco. Senti vergonha de ti. Não sei o que se passa contigo. És louca ou apenas má?

– Quem se importa com o que pensas, sua viúva estúpida?

6 de Janeiro de 1492

 

Com o passar dos dias, os mouros perderam a coragem. A escaramuça da rainha foi a sua última batalha. O líder estava morto, a cidade cercada, morriam à fome nas terras que os seus antepassados tornaram férteis. Pior, o apoio prometido de África falhou, os turcos haviam jurado amizade, mas os janíçaros não chegaram, o rei enlouquecera, o filho refém dos cristãos, e diante deles os príncipes de Espanha, Isabel e Fernando, com o poder da Cristandade atrás de si, com uma guerra santa declarada e uma cruzada cristã que ganhava forma com o odor do êxito. Alguns dias após o confronto dos líderes, Boabdil, o rei de Granada, acordara as condições de paz, e dias depois, numa cerimónia planeada com toda a graça típica dos mouros de Espanha, desceu a pé até aos portões de ferro da cidade, com as chaves do Palácio de Alhambra numa almofada de seda e entregou-as ao rei e à rainha de Espanha, numa rendição total.

Granada, o forte vermelho que fica sobre a cidade para a proteger e o lindíssimo palácio escondido dentro das muralhas – o Alhambra – foram entregues a Fernando e a Isabel.

Vestidos com as maravilhosas sedas do inimigo derrotado, turbantes, chinelos, gloriosos como califas, a família real espanhola, brilhando com o espólio de Espanha, assumiu o controlo de Granada. Nessa tarde, Catarina, a princesa de Gales, percorreu com os pais o caminho íngreme e as curvas das sombras das árvores altas, até ao mais belo palácio da Europa. Dormiu essa noite no harém coberto de ladrilhos maravilhosos e acordou ao som da água ondulante das fontes de mármore e imaginou-se uma princesa muçulmana, nascida para o luxo e a beleza, assim como princesa de Gales.

E esta é a minha vida, desde este dia da vitória. Nascera como uma criança de acampamento, seguindo o exército, de cercos para batalhas, observando coisas que nenhuma criança devesse observar sentindo os receios dos adultos todos os dias. Passara por cadáveres de soldados que apodreciam ao sol da Primavera, porque não havia tempo para os enterrar, cavalgara atrás de mulas chicoteadas para passarem por cima de corpos manchados de sangue, puxando as armas do meu pai pelas passagens altas da sierra. Vira a minha mãe esbofetear um homem que chorava de exaustão. Ouvi crianças da minha idade chorarem pelos pais, queimados na fogueira, por heresia; mas neste momento, quando nos vestimos de sedas bordadas e entramos no forte vermelho de Granada e passamos os portões para encontrar a pérola branca que é o Palácio de Alhambra, neste momento, tornei-me princesa, pela primeira vez.

Tornei-me uma menina educada no mais belo palácio da Cristandade, protegida por um forte impenetrável, abençoada por Deus entre todas as outras, tornei-me uma menina de uma confiança imensa e inabalável no Deus que nos conduziu à vitória, e no meu destino como a Sua filha preferida e a filha predilecta da minha mãe.

O Alhambra provou-me, de uma vez por todas, que fui favorecida por Deus, tal como a minha mãe. Eu fui a sua filha escolhida, educada no mais belo palácio da Cristandade, e destinada às coisas mais elevadas.

A família espanhola com os oficiais na dianteira e a guarda real atrás, gloriosos como sultões, entrou no forte pela enorme torre quadrada, conhecida como Porta da Justiça. Quando a sombra do primeiro arco da torre incidiu no rosto voltado para cima de Isabel, os trombeteiros tocaram um grito de desafio, tal como Josué diante dos muros de Jericó, como se afastassem assim os demónios do infiel que aí permaneciam. De imediato ouviu-se um eco da explosão de som, um suspiro de todos os que estavam reunidos depois da porta de entrada, empurrados contra as paredes douradas, as mulheres semiveladas nas túnicas, os homens de pé orgulhosos e em silêncio, observando, na expectativa do que os conquistadores fariam. Catarina olhou por cima do mar de cabeças e avistou as formas fluidas da escrita árabe gravadas nas paredes resplandecentes.

– O que diz? – perguntou a Madilla, a sua ama.

Madilla olhou de soslaio para cima.

– Não sei – afirmou mal-humorada. Negava sempre as suas raízes muçulmanas. Sempre fingira que não sabia nada sobre os mouros ou as suas vidas, apesar de ter nascido e ser criada como moura e de só se ter convertido, segundo Joana, por conveniência.

– Dizei-nos, ou beliscamos-vos – propôs Joana com doçura.

A jovem mulher franziu o sobrolho na direcção das duas irmãs.

– Diz: «Deus permita que a justiça do Islão prevaleça aqui dentro.»

Catarina hesitou, ouvindo a aura orgulhosa da certeza, uma determinação para imitar a voz da mãe.

– Bem, Ele não permitiu – comentou Joana de modo inteligente. – Alá desertou de Alhambra e Isabel chegou. E se vocês, mouros, conhecessem Isabel como nós, saberiam que o maior poder está a chegar e o poder menor a sair.

– Deus abençoe a rainha – respondeu Madilla. – Eu conheço bem a rainha Isabel.

Enquanto falava, as grandes portas à sua frente, de madeira negra enfeitada com pregos negros, abriram-se nas dobradiças negras, e com mais um toque de trompetas, o rei e a rainha entraram a passos largos no pátio interior.

Como bailarinos que tivessem ensaiado até obter uma coreografia perfeita, a guarda espanhola dividiu-se entre o lado direito e esquerdo, dentro das muralhas da cidade, verificando se o local era seguro, e se não haveria soldados desesperados a preparar uma última emboscada. O grande forte de Alcazaba, construído como a proa de um navio, projectando-se sobre a planície de Granada, ficava à esquerda, e os homens afluíram aí, correndo pela praça da parada, rodeando as muralhas, subindo e descendo às torres, a correr. Por fim, Isabel, a rainha, levantou o olhar para o céu, protegeu os olhos com a mão onde tilintavam as pulseiras de ouro muçulmanas, e riu-se alto ao ver o estandarte sagrado de Santiago e a cruz prateada da cruzada a esvoaçar, onde estivera o crescente.

Voltou-se para ver os empregados domésticos do palácio aproximando-se, de cabeça inclinada. Eram chefiados pelo grão-vizir, cuja altura era enfatizada pelas roupas fluidas, os olhos negros penetrantes encontraram os seus, observando o rei Fernando a seu lado, e a família real atrás: o príncipe e as quatro princesas. O rei e o príncipe vestidos ao estilo faustoso dos sultões, com túnicas ricamente bordadas por cima das calças, a rainha e as princesas as túnicas kamiz tradicionais, fabricadas com as melhores sedas, por cima de calças de linho brancas, com véus na cabeça, presos atrás por filetes de ouro.

– Vossa Alteza Real, é minha honra e dever dar-vos as boas-vindas ao Palácio de Alhambra – afirmou o grão-vizir, como se fosse a coisa mais natural do mundo entregar o mais belo palácio da Cristandade a invasores armados.

A rainha e o marido trocaram um breve olhar.

– Podeis levar-nos para dentro – indicou.

O grão-vizir fez uma vénia e indicou o caminho. A rainha olhou para trás, para os filhos.

– Venham, meninos – disse e foi à sua frente, passando pelos jardins que rodeavam o palácio, descendo alguns degraus e passando pela discreta porta de entrada.

– Esta é a entrada principal? – Hesitava em frente da pequena porta, aberta numa parede disfarçada.

O homem fez uma vénia.

– É sim, Vossa Alteza.

Isabel não disse nada, mas Catarina viu-a levantar as sobrancelhas como se não gostasse muito da ideia, e entraram.

Mas a pequena porta de entrada é como um buraco de fechadura que dá para uma arca do tesouro formada por caixas, uma abrindo-se a partir da outra. O homem conduz-nos através delas, como um escravo abrindo portas para um tesouro. Os nomes são um poema: a Sala Dourada, o Pátio dos Mirtilos, a Sala dos Embaixadores, o Pátio dos Leões ou a Sala das Duas Irmãs. Levaremos semanas a encontrar o caminho de uma sala decorada com ladrilhos sofisticados para outra. Demoraremos meses a deixar de nos maravilhar com o prazer do som da água a correr pelos regos de mármore nos quartos, fluindo para uma fonte de mármore que transborda, com a mais límpida e fresca água das montanhas. E nunca me cansarei de olhar através do rendilhado de estuque branco para a planície ao longe, as montanhas, o céu azul e as colinas douradas. Cada janela é como uma moldura de um quadro, foram concebidas para nos obrigar a parar, observar e maravilharmo-nos. As molduras das janelas são como bordados de renda branca – o estuque é tão fino, tão delicado, como trabalho de açúcar feito por pasteleiros, não se parece a nada que seja real.

Passamos ao harém por ser uma das salas mais cómodas e convenientes para mim e as minhas irmãs, e os servos do harém acendem as brasas nas noites frias, e espalham as ervas de cheiros, como se fôssemos as sultanas que viveram reclusas por detrás dos biombos, durante tanto tempo. Sempre usámos roupas mouras em casa e, por vezes, em grandes ocasiões de Estado, por isso, ainda se ouve um murmúrio de sedas e o bater dos chinelos no chão de mármore, como se nada se tivesse alterado. Agora, estudamos onde as escravas liam, passeamos nos jardins plantados para deleitar as favoritas do sultão. Comemos os seus frutos, adoramos o sabor dos sorvetes, prendemos as flores em guirlandas para enfeitar as cabeças, e corremos pelas suas alamedas onde o forte perfume a rosas e a madressilvas é doce pela frescura da manhã.

Banhamo-nos no hammam, ficando imóveis como estátuas, enquanto os criados nos ensaboam o corpo com um sabão rico, de cheiro a flores. Depois, vertem jarros dourados de água quente, um a seguir ao outro, molhando-nos dos pés à cabeça, para nos lavar. Somos hidratadas com óleo de rosas, embrulhadas em finos lençóis e deitamo-nos, semiembriagadas de tanto prazer sensual, na mesa morna de mármore que domina a sala, sob o tecto dourado cujas aberturas, em forma de estrela, deixam passar os raios estonteantes de Sol para a sombreada paz do lugar. Uma rapariga arranja-nos as unhas dos pés, enquanto outra as nossas mãos, limando-nos as unhas e pintando padrões delicados de henna. Deixamos a mulher mais velha acertar-nos as sobrancelhas e pintar-nos as pálpebras. Somos servidas como se fôssemos sultanas, com todas as riquezas de Espanha e todos os luxos do Oriente, e rendemo-nos ao prazer do palácio. Cativa-nos, somos submetidos; os denominados vitoriosos.

Mesmo Isabel, que chora a morte do marido, recomeça a sorrir. Joana, por norma tão mal-humorada e rabugenta, está em paz. E torno-me a mascote da corte, a preferida dos jardineiros, que me deixam apanhar os pêssegos das árvores, a querida do harém onde me ensinam a brincar, a dançar e a cantar, e a favorita da cozinha, onde me deixam vê-los a preparar os bolos e pratos doces com mel e amêndoas da Arábia.

O meu pai reúne-se com emissários estrangeiros na Sala dos Embaixadores, leva-os para a sala dos banhos para manterem conversações, como qualquer sultão ocioso. A minha mãe senta-se de pernas cruzadas no trono dos Nasrid que reinaram por várias gerações, os pés nus, metidos em chinelos de pele macia, o tecido do kamiz caindo em volta. Ouve os emissários do papa, numa sala de audiências onde as paredes estão revestidas de ladrilhos coloridos e oscila uma luz pagã. Para ela, é como estar em casa, pois foi criada no Alcazar de Sevilha, outro palácio mouro. Passeamos nos jardins, banhamo-nos no seu hammam, calçamos os chinelos de pele macia perfumados e vivemos uma vida mais refinada e luxuosa do que podiam sonhar em Paris, Londres ou Roma. Vivemos graciosamente. Vivemos, tal como sempre aspirámos viver, como mouros. Os nossos compatriotas cristãos criam cabras nas montanhas, rezam à Nossa Senhora em monumentos à beira da estrada, vivem aterrorizados pelas superstições e cheios de doenças, no meio da sujidade e morrem novos. Nós somos ensinados pelos professores muçulmanos, examinados pelos seus médicos, estudamos as estrelas no céu, a que deram nome, contamos pelos seus números que começam no zero mágico, comemos os frutos doces e deleitamo-nos nas águas que correm pelos seus aquedutos. A arquitectura agrada-nos, a cada virar de esquina sabemos que vivemos no meio da beleza. Agora, o seu poder protege-nos; o Alcazaba é de facto, invulnerável a ataques. Aprendemos a sua poesia, rimo-nos dos jogos, deliciamo-nos nos jardins, com os frutos, tomamos banho nas águas que fizeram fluir. Somos os vitoriosos, mas ensinaram-nos como reinar. Por vezes, penso que somos os bárbaros, como os que vieram depois dos romanos ou dos gregos, que podiam invadir os palácios e capturar os aquedutos e, depois, sentar-se como macacos num trono, brincando com a beleza sem a compreender.

Pelo menos, não mudámos de fé. Os criados do palácio têm de respeitar os credos da única Igreja Verdadeira. As cornetas da mesquita foram silenciadas, não haverá chamamentos para as orações aos ouvidos da minha mãe. E se alguém discordar, pode partir para África de imediato, converter-se de imediato, ou encarar as fogueiras da Inquisição. Não amolecemos com os espólios da guerra, nunca nos esquecemos de que somos os vitoriosos e de que conquistámos a nossa vitória, pela força das armas e pela vontade de Deus. Fizemos uma promessa solene ao pobre rei Boabdil, de que o seu povo, os muçulmanos, ficariam tão seguros sob o nosso governo como os cristãos estavam sob o seu. Prometemos a «convivência» – um modo de vivermos em conjunto – e acreditam que construiremos uma Espanha onde qualquer pessoa, mouro, cristão ou judeu, possa viver tranquilo e com amor-próprio, uma vez que somos «Povos do Livro». O seu erro foi que pretendiam essas tréguas, e confiaram nelas, e nós – como se verificou – não.

Traímos a nossa palavra em três meses, expulsando os judeus e ameaçando os muçulmanos. Todos têm de se converter à Fé Verdadeira e, se houver alguma sombra de dúvida, ou qualquer suspeição contra eles, a sua fé será testada pela Santa Inquisição. É a única forma de construir uma nação: através de uma fé. É a única forma de criar um povo a partir da grande diversidade que fora al-Andalus. A minha mãe mandou construir uma capela na sala do conselho e, onde estava escrito: «Entrai e perguntai. Não temais procurar a justiça, porque aqui a encontrareis», na bela escrita árabe, reza a um Deus mais inflexível e intolerante do que Alá; e já ninguém vem procurar justiça.

Mas nada pode mudar a natureza do palácio. Nem o som dos pés dos nossos soldados a marcharem sobre o chão de mármore ameaça a secular sensação de paz. Pedi a Madilla que me ensinasse o que dizem as inscrições fluidas em todas as divisões, e a minha preferida não é a que se refere à promessa de justiça, mas as palavras escritas no Pátio das Duas Irmãs, que diz: «Alguma vez haveis observado tão belo jardim?», e depois respondem a si mesmas: «Nunca vimos um jardim com tal abundância de fruta, tão doce nem tão perfumada.»

Não é um palácio, nem como os que conhecemos em Córdova ou Toledo. Não é um castelo, nem um forte. Foi construído como um jardim, com salas de um luxo sofisticado, para que fosse possível viver ao ar livre. É uma série de pátios concebidos tanto para flores como para pessoas. É um sonho de beleza: paredes, azulejos, pilares fundindo-se com flores, escadas, fruta e vegetação. Os mouros acreditam que um jardim é um paraíso na Terra e gastaram fortunas, ao longo dos séculos para conceber este al-Yanna: a palavra que significa jardim, lugar secreto e paraíso.

Sei que o adoro. Apesar de ser uma criança, sei que é um local excepcional; que nunca encontrarei um lugar tão bonito. E mesmo sendo criança, sei que não posso ficar aqui. É a vontade de Deus e a vontade da minha mãe que deixe al-Yanna, o meu lugar secreto, o meu jardim, o meu paraíso. Seria meu destino encontrar o lugar mais belo do mundo quando tenho seis anos, e, depois, deixá-lo quando atingisse quinze; com tantas saudades de casa como Boabdil; como se a felicidade e a paz não passassem de um breve período na minha vida.


Palácio de Dogmersfield, Hampshire, Outono de 1501

–Estou a dizer-vos que não podeis entrar! Mesmo que fôsseis o rei de Inglaterra, não poderíeis entrar.

– Eu sou o rei de Inglaterra – afirmou Henrique Tudor, pouco contente. – E ou ela sai já, ou eu entro e o meu filho a seguir.

– A infanta já avisou o rei de que não pode vê-lo – disse a aia secamente. – Os nobres da sua corte foram ter com o rei para lhe explicar que se encontra em reclusão, como senhora de Espanha. Achais que o rei de Inglaterra cavalgaria pela rua abaixo, quando a infanta se recusou a recebê-lo? Que tipo de homem pensais que é?

– Tal como este – asseverou e lançou o punho com o enorme anel de ouro na direcção do seu rosto. O conde de Cabra entrou no vestíbulo apressado, reconhecendo o homem magro de quarenta anos que ameaçava a aia da infanta com um punho cerrado, com alguns criados assustados e gritou:

– O rei!

Ao mesmo tempo, a aia reconheceu a nova insígnia de Inglaterra, as rosas combinadas de York e Lancaster, e retraiu-se. O conde deteve-se e fez uma grande vénia.

– É o rei – sussurrou, com a voz abafada por falar com a cabeça entre as pernas. A aia soltou um suspiro de horror e mergulhou numa profunda reverência.

– Levantai-vos – ordenou o rei com brusquidão. – E ide buscá-la.

– Mas ela é a princesa de Espanha, Vossa Graça – respondeu a mulher levantando-se, mas com a cabeça inclinada. – Deve permanecer em reclusão. Não pode ser vista por vós antes do dia do casamento. É a tradição. Os seus nobres foram explicar-vos ....

– É a vossa tradição. Não é a minha tradição. E uma vez que é minha nora no meu país, sob as minhas leis, vai obedecer à minha tradição.

– Ela recebeu uma educação bastante cuidada, modesta e adequada...

– Então, ficará muito chocada quando encontrar um homem furioso no quarto. Minha senhora, sugiro-vos que a tragais de imediato.

– Não o farei, Vossa Graça. Recebo ordens da rainha de Espanha, e ela encarregou-me de me certificar de que era prestado todo o respeito à infanta e de que o seu comportamento era sempre...

– Minha senhora, ou aceitais as minhas ordens, ou recebereis a minha ordem de dispensa. Não me interessa. Agora, trazei a rapariga ou juro pela minha coroa que entro e, se a apanho despida na cama, não será a primeira mulher que vi em situação semelhante. Mas é melhor ela rezar para ser a mais bonita.

A aia espanhola empalideceu com o insulto.

– Escolhei – disse o rei com frieza.

– Não posso ir buscar a infanta – respondeu com teimosia.

– Deus meu! Está decidido! Dizei-lhe que vou entrar, agora.

Ela andou para trás como uma vaca furiosa, o rosto branco de choque. Henrique deu-lhe uns momentos para se preparar e, em seguida, enganou-a, entrando atrás dela.

O quarto estava iluminado apenas por velas e pela luz da lareira. Os cobertores da cama puxados para trás, como se a rapariga se tivesse levantado à pressa. Henrique teve a noção da intimidade, de estar no seu quarto, com os lençóis ainda quentes, o cheiro que permanecera no espaço fechado, antes de olhar para ela. Estava de pé, ao lado da cama, uma mãozinha pálida em cima do pilar de madeira gravada. Tinha uma capa azul-escura sobre os ombros, e a camisa de dormir branca enfeitada por renda valiosa espreitava pela abertura. O seu forte cabelo castanho, entrançado para dormir, caía-lhe pelas costas, mas o seu rosto estava protegido por uma mantilha de renda preta, colocada à pressa.

Doña Elvira colocou-se entre a rapariga e o rei.

– Esta é a infanta – apresentou. – Usará o véu até ao dia do casamento.

– Não com o meu dinheiro – retorquiu Henrique Tudor com amargura. – Quero ver o que comprei, obrigado.

Deu um passo em frente. A ama desesperada quase se pôs de joelhos.

– A sua modéstia...

– Ela tem alguma marca horrível? – perguntou, dando voz aos seus receios mais profundos. – Alguma cicatriz? Ficou marcada da varíola e não me disseram?

– Juro que não!

Silenciosamente, a rapariga estendeu a mão pálida e retirou a bainha ornamental de renda do véu. A ama suspirou em protesto, mas não pôde fazer nada para impedir a princesa de levantar o véu, e de o lançar para trás. Os olhos azul-claros fixaram o rosto enrugado e irritado de Henrique Tudor sem hesitações. O rei analisou-a e suspirou de alívio pela aparência.

Era muito bonita: um rosto suave, redondo, um nariz direito e longo, uma boca cheia, carnuda, sensual. Observou que o queixo estava levantado; o olhar era desafiador. Não era uma dama a tremer, temendo ser violada. Era uma princesa lutadora, cheia de dignidade, mesmo no mais assustador momento de embaraço.

Ele fez uma vénia.

– Sou Henrique Tudor, rei de Inglaterra – afirmou.

Ela fez uma reverência.

O rei deu um passo em frente e apercebeu-se de que ela estava a controlar-se para não recuar. Segurou-a com firmeza pelos ombros, e beijou-lhe uma face morna e macia, e depois a outra. O perfume do cabelo e o odor quente do corpo invadiram-no, e sentiu o desejo a pulsar na virilha e têmporas. De imediato, recuou e largou-a.

– Sede bem-vinda a Inglaterra – saudou. Pigarreou. – Perdoareis a minha impaciência em ver-vos. O meu filho também vem a caminho, para vos visitar.

– Perdoai-me – disse, falando num francês perfeito. – Só fui informada de que Vossa Graça insistia na honra desta visita inesperada há momentos.

Henrique conteve-se perante a chicotada de mau humor por ela demonstrado.

– Tenho o direito...

Ela encolheu os ombros, um gesto espanhol.

– Claro. Tendes todos os direitos sobre mim.

Perante as palavras ambíguas e provocadoras, tomava consciência da sua proximidade: da intimidade do pequeno quarto, a cabeceira da cama enfeitada com ricos tecidos, os lençóis empurrados para trás, a almofada que ainda tinha a marca da cabeça. Era um cenário de violação, não de saudações reais. Voltou a sentir um fluxo secreto de desejo.

– Vejo-vos lá fora – retorquiu abruptamente, como se fosse culpa dela o facto de não conseguir livrar-se daquela imagem, de como seria possuir aquela beleza imaculada que comprara. Como seria se comprasse para si, em vez de ser para o filho?

– Com todo o prazer – respondeu com frieza.

O rei saiu do quarto, e quase foi contra o príncipe Artur, que andava, ansioso, de um lado para o outro, diante da porta.

– Louca – comentou.

O príncipe Artur, pálido de nervos, afastou a franja loura do rosto e permaneceu imóvel, sem dizer nada.

– Assim que puder, mando aquela aia embora – afirmou o rei. – E os outros. Ela não pode criar uma Espanha pequena em Inglaterra, meu filho. O país não tolera, e eu também não aceitarei.

– As pessoas não se opõem. Os aldeões parecem adorar a princesa – sugeriu Artur, com suavidade. – A escolta dela diz...

– Porque usa um chapéu ridículo. Porque é estranha: espanhola, invulgar. Porque é jovem e – resumiu – bonita.

– É? – suspirou. – Quer dizer: é bonita?

– Não entrei para me certificar? Mas nenhum inglês vai tolerar disparates espanhóis, quando deixar de ser novidade. Nem eu. Este é um casamento para fortalecer uma aliança; não para adular a sua vaidade. Quer lhes agrade, quer não, vai casar convosco. Quer vos agrade quer não, ela vai casar convosco. Quer lhe agrade quer não, ela vai casar convosco. E é bom que venha já ou não vou gostar dela, e isso é a única coisa que pode fazer diferença.

Tenho de sair, consegui apenas o mais breve dos adiamentos da pena e sei que me espera do outro lado da porta e já demonstrou, de modo persuasivo, que se não for ter consigo, a montanha virá a Maomé, e serei de novo envergonhada.

Afasto doña Elvira, como aia não me pode proteger neste momento, e vou para a porta do quarto. Os meus criados estão petrificados, como escravos enfeitiçados num conto de fadas, por este comportamento extraordinário vindo de um rei. O coração pulsa-me nos ouvidos e conheço o embaraço de uma rapariga, por ter de se apresentar em público, mas também o desejo de um soldado de deixar que a batalha comece, a avidez de conhecer o pior, mas mais de encarar o perigo do que de lhe escapar.

Henrique de Inglaterra quer que conheça o filho, perante o seu grupo de acompanhantes, sem cerimónias, sem dignidade, como se não passássemos de camponeses. Assim seja. Não vai encontrar uma princesa de Espanha a recuar por medo. Cerro os dentes, e sorrio como a minha mãe me ensinou.

Aceno para o meu arauto, que está tão espantado como o resto dos meus companheiros.

– Anunciai-me – ordeno-lhe.

Com o rosto branco de susto, ele abre a porta.

– A infanta Catarina, princesa de Espanha e princesa de Gales – grita.

Esta sou eu. Este é o meu momento. Este é o meu grito de guerra.

Dou um passo em frente.

A infanta espanhola – de rosto exposto ao olhar de todos os homens – permaneceu na ombreira escurecida da porta e depois entrou na sala, apenas um ardor de cor nas faces denunciava a provação.

Ao lado do pai, o príncipe Artur engolia em seco. Era bastante mais bonita do que imaginara, e um milhão de vezes mais altiva. Estava vestida com um roupão de veludo negro, que se abria para revelar uma camisa de dormir cor de pele, com um decote quadrado e profundo, cobrindo os seios fartos, ao pescoço, várias fiadas de pérolas. O cabelo castanho, libertado da trança, caía-lhe pelas costas numa onda vermelho-dourada. Na cabeça, uma mantilha de renda preta. Esboçou uma grande reverência e voltou a levantar-se, de cabeça bem erguida, graciosa como uma bailarina.

– Peço perdão por não estar preparada para vos saudar – disse em francês. – Se soubesse que viríeis, estaria preparada.

– Surpreende-me que não tenhais ouvido o barulho – respondeu o rei. – Eu estava a discutir à vossa porta, há quase dez minutos.

– Julguei que fossem duas sentinelas a gritar – replicou com frieza.

Artur conteve um suspiro de horror perante a impertinência; mas o pai observava-a com um sorriso, como se se tratasse de uma nova potra que revelasse um espírito prometedor.

– Não. Era eu; a ameaçar a vossa dama de companhia. Lamento ter sido obrigado a forçar a entrada.

Ela inclinou a cabeça.

– Era a minha aia, doña Elvira. Lamento se foi desagradável convosco. O seu inglês não é muito bom. Não deve ter percebido o que pretendíeis.

– Eu queria ver a minha nora e o meu filho a noiva, e espero que uma princesa inglesa se porte como uma princesa inglesa, e não como uma maldita rapariga confinada a um harém. Pensei que os vossos pais haviam derrotado os mouros. Não esperei vê-los transformados em vossos modelos.

Catarina ignorou o insulto com um leve rodar de cabeça.

– Tenho a certeza de que me ensinareis boas maneiras inglesas – precisou. – Quem podia ser melhor para me aconselhar? – Voltou-se para o príncipe Artur e fez-lhe uma reverência real. – Meu senhor.

Ele hesitou na vénia que devolveu, espantado com a serenidade que ela transmitia neste momento embaraçoso. Procurou o presente no casaco, brincou com a pequena bolsa de jóias, deixou-a cair, voltou a apanhá-la e entregou-lha, sentindo-se ridículo.

Ela pegou nas jóias e inclinou a cabeça em agradecimento, mas não as abriu.

– Já haveis jantado, Vossa Graça?

– Comeremos aqui – respondeu. – Já pedi o jantar.

– Posso oferecer-vos uma bebida? Ou um lugar para vos lavardes e trocardes de roupa antes de jantar? – Observou a sua altura e magreza de modo avaliador, desde a lama que salpicava o rosto pálido e enrugado às botas empoeiradas. Os ingleses formavam uma nação prodigiosamente suja, nem uma casa enorme como esta possuía um hammam adequado ou água canalizada. – Ou talvez não queirais lavar-vos?

O rei soltou uma gargalhada áspera.

– Podeis pedir-me uma cerveja e ordenar que me enviem roupa lavada e água quente ao melhor quarto, e trocarei de roupa antes do jantar. – Levantou uma mão. – Não tendes de interpretar isto como um cumprimento a vós. Eu lavo-me sempre antes de jantar.

Artur viu-a morder o lábio inferior com pequenos dentes brancos, como se se controlasse para não responder.

– Sim, Vossa Graça – acedeu. – Como desejardes. – Chamou a dama de companhia e transmitiu-lhe ordens em espanhol, em voz baixa e rápida. A mulher fez uma reverência e conduziu o rei para fora da sala.

A princesa voltou-se para o príncipe Artur.

– Et tu? – perguntou em latim. – E vós?

– Eu? O quê? – gaguejou.

Sentiu que ela estava a tentar não suspirar de impaciência.

– Também gostaríeis de vos lavar e trocar de casaco?

– Eu lavei-me – afirmou. Mal as palavras lhe saíram da boca, podia ter mordido a língua. Parecia uma criança que recebia uma reprimenda de uma ama, pensou. – Eu lavei-me, mesmo. – O que ia fazer a seguir? Mostrar as mãos com as palmas viradas, para ela poder ver que era bem-comportado?

– Então, desejais beber uma caneca de vinho? Ou de cerveja?

Catarina voltou-se para a mesa, onde os criados pousavam canecas e jarros.

– Vinho.

Levantou um copo e um jarro e os dois brindaram uma vez e depois outra. Espantado, apercebeu-se de que as mãos dela tremiam.

Ela verteu o vinho e estendeu-lho. O seu olhar passou da mão e da superfície borbulhante do vinho para o rosto pálido.

Verificou que ela não lhe sorria. Não estava à vontade com ele. A indelicadeza do pai sobressaíra o orgulho nela, mas, sozinha com ele, não passava de uma menina, alguns meses mais velha do que ele, mas uma menina. A filha dos dois mais admiráveis monarcas da Europa; mas não deixava de ser uma menina, com as mãos a tremer.

– Não precisais de estar assustada – disse, com muita calma. – Lamento o que aconteceu.

O que queria dizer era – a tua tentativa falhada para evitar este encontro, a informalidade brusca do meu pai, a minha incapacidade para o deter ou acalmar, e, sobretudo, a infelicidade que isto deve representar para ti: vir para longe de casa, para o meio de estranhos, para conheceres o teu marido, e seres arrancada da cama contra a tua vontade.

Ela baixou o olhar. Ele observou a palidez perfeita da pele, as pestanas louras e as sobrancelhas claras.

Depois, olhou para ele.

– Não faz mal – disse. – Já vi pior do que isto, já estive em lugares bem piores, e conheci homens piores do que o vosso pai. Não receeis por mim. Não tenho medo de nada.

Nunca ninguém saberá o quanto me custou sorrir, ficar diante do teu pai e não tremer. Ainda nem tenho dezasseis anos, estou longe da minha mãe, num país estranho cuja língua não falo e onde não conheço ninguém. Não tenho amigos, com a excepção do grupo de damas de companhia e de criados que trouxe, e estes esperam que eu os proteja. Nem pensam em ajudar-me.

Sei o que tenho de fazer. Tenho de ser uma princesa espanhola para os ingleses e uma princesa inglesa para os espanhóis. Tenho de mostrar que estou à vontade quando não estou, e parecer segura quando sinto medo. Podes ser meu marido, mas mal te conheço, não tenho nenhuma ideia a teu respeito. Não tenho tempo para te analisar, estou concentrada em ser a princesa que o teu pai comprou, a princesa que a minha mãe enviou, a princesa que cumprirá o negócio e garantirá um tratado entre Inglaterra e Espanha.

Nunca ninguém saberá que tenho de fingir estar à vontade, ser segura, ser graciosa. Claro que tenho medo. Mas nunca, nunca o mostrarei. E, quando chamarem pelo meu nome, darei sempre um passo em frente.

O rei, depois de ter feito a higiene e bebido alguns copos de vinho antes de jantar, tratava a jovem princesa com afabilidade, determinado em fazer esquecer a sua apresentação. Por uma ou duas vezes, apanhou-o a observá-la de soslaio, como se a avaliasse, e voltou-se para o olhar, com uma sobrancelha franzida, como a interrogá-lo.

– Sim? – perguntou.

– Peço desculpa – disse serena. – Pensei que Vossa Graça necessitava de alguma coisa. Olháveis para mim.

– Estava a pensar que não sois muito semelhante ao vosso retrato – afirmou.

Ela corou um pouco. Os retratos são concebidos para favorecer o que posa, e quando este é uma princesa real, à procura de marido, ainda mais.

– Sois mais bem-parecida – replicou Henrique com relutância, para a acalmar. – Mais jovem, mais agradável e mais bonita.

Ela não se deixou amolecer pelo elogio, como ele esperava. Limitou-se a fazer um sinal com a cabeça, como se se tratasse de uma observação interessante.

– Tivestes uma má viagem – observou Henrique.

– Muito má – respondeu. Voltou-se para o príncipe Artur. – Tivemos de voltar para trás, quando partimos da Corunha em Agosto e de esperar que as tempestades passassem. Quando largámos, o tempo continuava bastante adverso, e então fomos forçados a atracar em Plymouth. Não conseguíamos chegar até Southampton de forma alguma. Tínhamos a certeza de que naufragaríamos.

– Bem, não podíeis ter vindo por terra – afirmou Henrique, pensando no perigoso estado de França e na hostilidade do rei francês. – Seríeis uma refém preciosa para um rei que seria cruel o suficiente para vos sequestrar. Graças a Deus que nunca caístes em mãos inimigas.

Ela olhou-o pensativa.

– Deus queira que nunca caia.

– Mas agora os vossos problemas terminaram – concluiu Henrique. – O próximo barco que apanhareis será a barcaça real, quando descerdes o Tamisa. Agrada-vos ser princesa de Gales?

– Eu sou a princesa de Gales desde os três anos – corrigiu. – Sempre me trataram por Catarina, a infanta, princesa de Gales. Eu sabia que seria esse o meu destino. – Olhou para Artur, que permanecia sentado, em silêncio, a observar a mesa. – Toda a vida soube que nos casaríamos. Foi simpático da vossa parte escrever-me com tanta frequência. Fez-me sentir que não éramos estranhos.

Ele corou.

– Ordenaram-me que vos escrevesse – comentou desajeitado. – Fazia parte dos meus estudos. Mas eu gostava de receber as vossas respostas.

– Meu Deus, rapaz, não és lá muito brilhante, pois não? – inquiriu o pai em tom crítico.

O rosto de Artur tornou-se escarlate.

– Não precisavas de lhe dizer que te tinham mandado escrever-lhe – ralhou o pai. – Era melhor deixá-la pensar que escrevias por tua iniciativa.

– Não me importo – retrucou Catarina, tranquila. – A mim também me mandavam responder. E, a propósito, gostaria que disséssemos sempre a verdade um ao outro.

O rei soltou uma gargalhada.

– Daqui a um ano, já não querereis – previu. – Nessa altura, preferireis a mentira correcta. A grande salvação de um casamento é a ignorância mútua.

Artur assentiu, mas Catarina limitou-se a sorrir, como se as observações do rei fossem interessantes, mas não verdadeiras. Henrique deu por si a sentir-se melindrado com a rapariga, mas provocado pela sua beleza.

– Atrevo-me a afirmar que o vosso pai não conta à vossa mãe cada pensamento que tem – afirmou, tentando fazer com que ela olhasse para si.

Conseguiu. Ela deitou-lhe um olhar prolongado, lento e avaliador com os olhos azuis.

– Talvez não conte – admitiu. – Não sei. Não é apropriado que saiba. Mas, quer lhe conte, quer não, a minha mãe sabe sempre de tudo.

Ele riu-se. A sua dignidade era bastante agradável numa rapariga cuja cabeça mal lhe chegava ao peito.

– A vossa mãe é uma visionária? Tem o dom da Vidência?

Ela não retribuiu o sorriso.

– Ela é sábia – replicou. – É a mais sábia monarca da Europa.

O rei pensou que seria um disparate refrear a devoção de uma rapariga pela mãe, e deselegante apontar que a mãe podia ter unificado os reinos de Castela e Aragão, mas que estava longe de conseguir criar uma Espanha pacífica e unida. A capacidade táctica de Isabel e Fernando forjara um único país a partir dos reinos muçulmanos, ainda tinham de conseguir que todos aceitassem a sua paz. A viagem de Catarina para Londres fora perturbada por rebeliões dos mouros e judeus, que não suportavam a tirania dos reis espanhóis. Mudou de assunto.

– Porque não nos mostrais uma dança? – pediu, pensando que gostava de a ver mover-se. – Ou também não é permitido em Espanha?

– Uma vez que sou uma princesa inglesa, tenho de aprender os vossos costumes – disse. – Uma princesa inglesa levantar-se-ia a meio da noite e dançaria para o rei, depois de este ter forçado a entrada nos seus aposentos?

Henrique riu-se.

– Se tivesse alguma consciência, dançaria.

Ela esboçou um sorriso, pequeno e reservado.

– Então, dançarei com as minhas aias – decidiu, levantando-se da cadeira da mesa principal e indo para o meio do salão. Chamou uma pelo nome, Henrique reparou, María de Salinas, uma rapariga bonita, de cabelo escuro, que se colocou ao lado de Catarina. Outras três jovens, fingindo timidez, mas ansiosas por se exibirem, avançaram.

Henrique analisou-as. Pedira a Suas Majestades de Espanha que as acompanhantes da filha fossem bonitas, e estava satisfeito por verificar que, por muito que o pedido lhes parecesse insensível e inapropriado, haviam acedido a satisfazê-lo. As raparigas eram todas bonitas, mas nenhuma ofuscava a princesa que permaneceu composta e levantou as mãos e bateu palmas, para ordenar aos músicos que tocassem.

Reparou de imediato que se movia como uma mulher sensual. A dança era uma pavana, uma dança lenta e cerimonial, e ela movia-se abanando as ancas e de olhos fechados, com um leve sorriso nos lábios. Fora bem ensinada, qualquer princesa seria ensinada a dançar no mundo da corte, onde dançar, cantar, a música e a poesia eram mais importantes do que qualquer outra coisa; mas ela dançava como uma mulher que permitia que a música a conduzisse, e Henrique, que tinha alguma experiência, acreditava que as mulheres que se deixavam invadir pela música eram as que melhor respondiam aos ritmos do desejo.

Passou do prazer de a observar para uma sensação de irritação, ao pensar que esta peça sofisticada seria colocada na cama fria de Artur. Não conseguia ver aquele rapaz sensato e estudioso a brincar e a provocar a paixão nesta rapariga, prestes a tornar-se mulher. Imaginava que Artur seria desajeitado e que talvez a magoasse, e ela cerraria os dentes e cumpriria o seu dever como mulher e rainha, e, depois, o mais provável seria morrer ao dar à luz; e o esforço de encontrar uma noiva para Artur teria de ser repetido, sem benefícios para si próprio, excepto este desejo irritado e frustrado que ela parecia inspirar-lhe. Era bom que fosse desejável, uma vez que iria ser um ornamento na corte; mas era uma perturbação o facto de ser tão desejável aos seus olhos.

Henrique afastou os olhos da dança e consolou-se com a ideia do dote, que lhe traria grandes e duradouros benefícios e lhe seria entregue, ao contrário desta noiva que parecia decidida a perturbá-lo, e teria de ir, por muito que fosse errado, para o filho. Assim que estivessem casados, o seu tesoureiro entregaria o primeiro pagamento do dote: em ouro sólido. Um ano depois, a segunda parte em ouro e com as pratas e jóias. Tendo lutado para chegar ao trono com pouco dinheiro e crédito incerto, Henrique acreditava mais no poder do dinheiro do que em qualquer outra coisa na vida; ainda mais do que no trono, porque sabia que podia comprar um trono com dinheiro, e ainda mais do que nas mulheres, porque essas compram-se facilmente; e mais, bastante mais do que na alegria do sorriso de uma princesa virgem, que interrompera a sua dança, lhe fizera uma reverência e se dirigia a ele sorrindo.

– Agradei-vos? – perguntou corada e ofegante.

– O suficiente – respondeu, determinado em que ela nunca soubesse o quanto. – Mas agora é tarde e devíeis voltar à cama. Cavalgaremos um pouco convosco de manhã, antes de partirmos para Londres.

Ficou surpreendida pela brusquidão da resposta. Olhou para Artur como se ele pudesse contrariar os planos do pai; talvez ficar junto dela durante o resto da viagem, uma vez que o pai se gabara da informalidade. Mas o rapaz nada disse.

– Como desejardes, Vossa Graça – respondeu.

O rei assentiu e levantou-se. A corte mergulhou em reverências e vénias profundas, enquanto ela passava, dirigindo-se ao quarto.

Não é assim tão informal, pensava Catarina ao observar o rei de Inglaterra a circular pela corte, de cabeça erguida. Pode gabar-se de ser um soldado com os modos de um acampamento, mas insiste na obediência e na exibição da deferência. Tal como devia, acrescentou a filha de Isabel para si mesma.

Artur seguiu o pai com um rápido «boa noite» para a princesa ao sair. Num instante, os homens do seu séquito tinham saído, e a princesa estava sozinha com as aias.

– Que homem extraordinário – observou para a sua preferida, María de Salinas.

– Ele gostou de vós – afirmou a jovem. – Olhava-vos muito, gostou de vós.

– E por que não gostaria? – inquiriu com a arrogância instintiva de uma rapariga nascida no maior reino da Europa. – E mesmo que não gostasse, já está acordado, e não pode haver alterações. Esteve acordado a minha vida inteira.

Ele não é o que esperava, este rei que lutou para chegar ao trono e apanhou a coroa do meio da lama, num campo de batalha. Esperava que fosse mais como um defensor, um grande soldado, talvez como o meu pai. Mas tem um olhar de mercador, um homem que procura o lucro dentro de casa, não um homem que conquistou o reino e a mulher na ponta da espada.

Creio que esperava encontrar um homem como don Hernán, um herói a quem pudesse admirar, um homem a quem teria orgulho em chamar pai. Mas este rei é magro e pálido como um clérigo, em nada semelhante aos cavaleiros dos romances.

Pensava que a corte fosse mais grandiosa, esperava um grande desfile e um encontro formal com longas apresentações e discursos elegantes, como faríamos no Alhambra. Mas é abrupto; na minha opinião, é mal-educado. Terei de me habituar a estes modos do Norte, esta pressa em fazer as coisas, estas ordens bruscas. Não posso esperar que sejam bem feitas ou correctas. Terei de ignorar muita coisa até ser rainha e poder mudá-las.

Mas pouco me importa se gosto do rei ou se ele gosta de mim. Assinou este tratado com o meu pai e fui prometida ao filho. Pouco interessa o que penso dele, ou o que pensa de mim. Não que tenhamos de tratar de muitas questões em comum. Eu viverei e governarei Gales e ele viverá e governará Inglaterra, e quando morrer, será o meu marido a ocupar o trono, o meu filho será o próximo príncipe de Gales, e serei rainha.

Quanto ao meu futuro marido, deixou-me uma primeira impressão bastante diferente. É tão bonito! Não esperava que fosse tão bonita. É tão louro e pequeno, é como um pajem dos romances antigos. Imagino-o acordado à noite, em vigília, ou cantando para uma janela do castelo. Tem uma pele pálida, quase prateada, cabelo dourado e fino, e é mais alto do que eu, magro e forte como um rapaz prestes a tornar-se homem.

Tem um sorriso invulgar, que surge e depois se abre. E é simpático. Isso é muito importante num marido. Foi simpático quando aceitou o copo de vinho que lhe estendi, percebeu que estava a tremer, e tentou confortar-me.

O que pensará de mim? Gostava tanto de saber o que pensa de mim.

Tal como o rei decidira, ele e Artur regressaram a Windsor na manhã seguinte e a comitiva de Catarina, com a bagagem transportada por mulas, o enxoval dentro de enormes arcas de viagem, as damas de companhia, os criados espanhóis e os guardas do tesouro do dote, percorreu as estradas lamacentas até Londres, a um ritmo bastante mais lento.

Não voltou a ver o príncipe até ao dia do casamento, mas quando chegou à aldeia de Kingston-upon-Thames a comitiva parou, para se encontrar com o homem mais importante do reino, o jovem Eduardo Stafford, duque de Buckingham, e Henrique, duque de York, o segundo filho do rei, que foram designados para a acompanhar até ao Palácio de Lambeth.

– Eu saio – disse Catarina à pressa, abandonando a liteira, passando pelos cavalos que esperavam, não querendo ter mais nenhuma discussão com a estrita aia sobre jovens damas conhecerem homens antes do dia do casamento. – Doña Elvira, não digais nada. O rapaz é uma criança de dez anos. Não tem importância. Nem a minha mãe pensaria que teria importância.

– Pelo menos, colocai o véu! – implorou a mulher. – O duque de Buck... Buck... seja qual for o nome, também cá está. Colocai o véu antes de aparecer à frente dele, pela vossa reputação, infanta.

– Buckingham – corrigiu Catarina. – O duque de Buckingham. E tratai-me por princesa de Gales. E vós sabeis que não posso usar o véu, porque deve ter-lhe sido ordenado que contasse tudo ao rei. Vós sabeis o que a minha mãe disse: que é o protegido da mãe do rei, recuperado para os destinos da família, e deve ser-lhe prestado o maior respeito.

A mulher mais velha abanou a cabeça, mas Catarina partiu, de rosto destapado, sentindo-se ao mesmo tempo temerosa e irresponsável pela ousadia, e viu os homens do duque, em formação, na estrada, e, diante deles, um rapazinho: sem elmo, de cabelo claro brilhando ao sol.

O seu primeiro pensamento foi que era diferente do irmão. Enquanto Artur era louro, pequeno e de ar sério, de compleição pálida e olhos castanhos calorosos, este era um rapaz alegre que aparentava nunca ter tido um pensamento sério. Não herdara o rosto magro do pai, tinha a aparência de um rapaz para quem a vida era fácil. O cabelo era vermelho-dourado, o rosto redondo ainda de bebé, o sorriso, quando a viu pela primeira vez, foi amigável e inteligente, e os olhos azuis brilhavam como se estivesse habituado a ver um mundo muito agradável.

– Irmã! – saudou calorosamente, saltando do cavalo, ouvindo-se o impacte da armadura, e fez-lhe uma pequena vénia.

– Irmão Henrique – disse, devolvendo a reverência à altura correcta, tendo em conta que ele era apenas um segundo filho de Inglaterra e que ela era a infanta de Espanha.

– Tenho tanto prazer em conhecer-vos – afirmou, num latim rápido, com forte sotaque inglês. – Desejava tanto que Sua Majestade permitisse que eu viesse conhecer-vos, antes de vos levar para Londres, no dia do casamento. Pensei que seria tão estranho entrar na igreja convosco e entregar-vos a Artur, se nem tivéssemos falado.

– Também tenho todo o prazer em conhecer-vos, irmão Henrique – retorquiu Catarina educada, um pouco surpreendida pelo seu entusiasmo.

– Tendes prazer? Deveríeis estar a dançar de alegria! – exclamou alegre. – Porque o pai disse que eu poderia trazer-vos o cavalo que devia ser um dos presentes do dia do casamento, e poderemos cavalgar juntos até Lambeth. Artur disse que deveríeis esperar pelo dia do casamento, mas eu perguntei, porquê esperar? Não vai montar no dia do casamento. Vai estar demasiado ocupada a casar-se. Mas, se lho levar agora, pode montá-lo já.

– Foi simpático da vossa parte.

– Oh, eu nunca ligo nenhuma ao que o Artur diz – afirmou Henrique animado.

Catarina teve de se controlar para não soltar uma gargalhada.

– Não?

Ele fez uma careta e abanou a cabeça.

– Sério – disse. – Ficareis espantada de quão sério é. E estudioso, claro, mas não dotado. Todos dizem que sou muito dotado, para línguas principalmente, mas também para a música. Podemos falar francês, se desejardes, sou fluente para a minha idade. Sou considerado um músico bastante bom. E, é claro, sou um desportista. Caçais?

– Não – respondeu Catarina, um pouco assombrada. – Pelo menos, só acompanho as caçadas quando perseguimos javalis ou lobos.

– Lobos? Gostaria de caçar lobos. Têm mesmo ursos?

– Sim, nos montes.

– Gostaria muito de caçar um urso. Caçais os lobos a pé, como os javalis?

– Não, a cavalo – replicou. – São muito rápidos, temos de levar cães muito rápidos para os cansar. É uma caça horrível.

– Eu não me importaria – declarou. – Não me importo com nada disso. Dizem que sou corajoso em relação a coisas desse género.

– Tenho a certeza que sim – replicou ela sorrindo.

Um homem bonito com vinte e poucos anos avançou e fez uma vénia.

– Oh, este é Eduardo Stafford, o duque de Buckingham – comentou Henrique. – Posso apresentar-vos?

Catarina estendeu a mão e o homem fez uma vénia sobre ela. O seu rosto inteligente e belo acendeu-se com um sorriso.

– Que sejais bem-vinda ao vosso país! – saudou num castelhano irrepreensível. – Espero que tudo tenha corrido ao vosso agrado durante a viagem. Há alguma coisa que possa fazer para vos ajudar?

– Na verdade, fui muito bem tratada – declarou Catarina, corando de prazer por ser saudada na sua língua. – E o acolhimento que recebi do povo, durante a viagem, foi muito simpático.

– Olhai, aqui tendes o vosso cavalo – interrompeu Henrique, enquanto o criado chegava com uma maravilhosa égua negra. – Deveis estar habituada a ter bons cavalos, é óbvio. Tendes sempre cavalos da Barbária?

– A minha mãe insiste em que os utilizemos para a cavalaria – respondeu.

– Oh! – suspirou. – Por serem muito rápidos?

– Podem ser treinados como cavalos de batalha – explicou, avançando e estendendo a mão, com a palma voltada para cima, para que a égua cheirasse e lambesse os dedos, com a boca macia e meiga.

– Cavalos de batalha? – continuou ele.

– Os sarracenos têm cavalos que combatem como os donos, e os cavalos da Barbária também podem ser treinados para o fazer – disse ela. – Levantam-se nas patas traseiras e batem num soldado com as da frente, e também dão coices. Os turcos têm cavalos que apanham uma espada do chão e devolvem-na ao cavaleiro. A minha mãe afirma que um bom cavalo vale por dez homens, numa batalha.

– Gostava tanto de ter um cavalo desses – retrucou Henrique com um ar sonhador. – Como poderei conseguir um?

Fez uma pausa, mas ela não mordeu o isco.

– Se alguém me desse um cavalo desses, podia aprender a montá-lo – afirmou. – Talvez no meu aniversário, ou na próxima semana, uma vez que não sou eu que me vou casar, e não vou receber presentes de casamento. Uma vez que fui um pouco posto à margem e negligenciado.

– Talvez – comentou Catarina, que já uma vez vira o irmão obter o que pretendia, com o mesmo tipo de comentário.

– Devia ser treinado para montar correctamente – avança. – O pai prometeu-me que, apesar de ir para a igreja, serei autorizado a montar na quintana. Mas Sua Alteza, a Mãe do Rei, diz que não posso combater. É muito injusto. Devia poder combater. Se tivesse um cavalo apropriado, podia combater, tenho a certeza de que derrotaria toda a gente.

– Tenho a certeza que sim – asseverou ela.

– Bem, vamos embora? – perguntou, vendo que não lhe ofereceria um cavalo, só por lho pedir.

– Eu não posso ir a cavalo, as minhas roupas de montar estão na mala.

Ele hesitou.

– Não podeis ir assim vestida?

Catarina riu-se.

– Isto é de veludo e de seda. Não posso montar com estas roupas. E além disso, não posso andar a galopar pela Inglaterra, com este ar de pantomineiro.

– Oh – pronunciou. – Sendo assim, ireis na vossa liteira? Não nos vai atrasar muito?

– Lamento, mas recebi ordens para viajar numa liteira – afirmou. – Com as cortinas corridas. Imagino que nem o vosso pai quereria que andasse pelo país a montar de saias levantadas.

– É evidente que a princesa não pode montar hoje – decidiu o duque de Buckingham. – Como vos disse. Tem de ir na liteira.

Henrique encolheu os ombros.

– Bem, não sabia. Ninguém me disse o que iríeis vestir. Então, posso ir à frente? Os meus cavalos serão muito mais rápidos do que as mulas.

– Podeis ir à frente, mas não desaparecer de vista – decidiu Catarina. – Já que devíeis escoltar-me, deveis estar comigo.

– Tal como eu disse – observou o duque de Buckingham tranquilo, trocando um pequeno sorriso com a princesa.

– Esperarei em todos os cruzamentos – prometeu Henrique. – Vou escoltar-vos, não vos esqueçais. E no dia do vosso casamento, irei escoltar-vos. Tenho um fato branco com costuras douradas.

– Que bonito que ides estar – disse ela, vendo-o corar de prazer.

– Oh, não sei...

– Tenho a certeza de que todos repararão no belo rapaz que sois – elogiou, enquanto ele parecia satisfeito.

– Todos gritam sempre mais alto por mim – confidenciou. – E agrada-me saber que as pessoas gostam de mim. O pai diz que a única forma de manter um trono é ser amado pelo povo. Foi o erro do rei Ricardo, diz o pai.

– A minha mãe diz que a única forma de mantermos o trono é fazermos a obra de Deus.

– Oh – suspirou ele, pouco impressionado. – Bem, países diferentes, calculo.

– Devemos, então, viajar juntos – disse ela. – Vou dizer aos que me acompanham que estamos prontos para seguir.

– Eu digo-lhes – insistiu ele. – Sou eu quem vos escolta. Eu darei as ordens e vós deveis descansar na liteira. – Lançou-lhe um olhar rápido de soslaio. – Quando chegarmos a Lambeth, devereis permanecer na liteira, até vos chamar. Abrirei as cortinas e levar-vos-ei para dentro, e vós devereis segurar a minha mão.

– Gostaria muito – garantiu-lhe e voltou a ver o seu rosto enrubescer.

Voltou-se bruscamente e o duque fez-lhe uma vénia, sorrindo.

– É um rapaz muito inteligente, muito impaciente – afirmou. – Tendes de perdoar o seu entusiasmo. Foi muito mimado.

– É o preferido da mãe? – perguntou, pensando na adoração que a mãe sentia pelo único filho.

– Pior ainda – respondeu o duque com um sorriso. – A mãe adora-o de forma adequada; mas é o menino absoluto dos olhos da avó, e é ela quem manda na corte. Felizmente é um bom rapaz e tem bons modos. Tem uma natureza demasiado boa para se deixar estragar com mimos, e a mãe do rei equilibra os seus favores com reprimendas.

– É uma mulher indulgente? – inquiriu ela.

Ele deu uma gargalhada.

– Só com o filho – afirmou. – Os restantes consideram-na mais majestática do que mãe.

– Podemos falar em Lambeth? – pediu Catarina, tentada a saber mais sobre esta família de que iria fazer parte.

– Em Lambeth e Londres, terei todo o orgulho em servir-vos – disse o jovem, com os olhos calorosos de admiração. – Tendes de me dar as ordens que entenderdes. Serei vosso amigo em Inglaterra, podeis contar comigo.

Tenho de ter coragem, sou filha de uma mulher audaz e preparei-me para isto toda a vida. Quando o jovem duque falou comigo, daquela forma tão simpática, não devia ter sentido vontade de chorar; foi um disparate. Tenho de me controlar e sorrir. A minha mãe disse-me que, se sorrir, ninguém saberá que sinto saudades de casa ou medo, vou sorrir e sorrir, por muito adversa que a situação se apresente.

E apesar de esta Inglaterra me parecer estranha, habituar-me-ei. Aprenderei os costumes e sentir-me-ei em casa. Os seus modos diferentes tornar-se-ão os meus modos, e as piores coisas – as que não suporto mesmo – mudá-las-ei, quando for rainha. E de qualquer modo, será melhor para mim do que para Isabel, a minha irmã. Só esteve casada alguns meses e teve de voltar para casa, viúva. Será melhor para mim do que para Maria, que seguiu Isabel para Portugal, melhor para mim do que para Joana, que está doente de amor pelo marido, Filipe. Terá de ser melhor para mim do que foi para João, o meu pobre irmão, que morreu tão cedo após encontrar a felicidade. E será sempre melhor para mim do que para a minha mãe, cuja infância foi passada no fio da navalha.

É claro que a minha história não será como a dela. Eu nasci numa época muito menos emocionante. Espero entender-me com o meu marido Artur e com o estranho e estridente pai; e com o pequeno irmão, doce e fanfarrão. Esperarei que a mãe e a avó me amem ou que, ao menos, me ensinem como ser uma princesa de Gales, uma rainha de Inglaterra. Não terei de cavalgar em ataques desesperados durante a noite, de uma fortaleza cercada para outra, como a minha mãe. Não empenharei as minhas jóias para pagar a soldados mercenários, como ela. Não partirei a cavalo de armadura para unir as tropas. Não serei ameaçada pelos cruéis franceses, de um lado, e pelos hereges mouros, do outro, como a minha mãe. Casarei com Artur, e quando o pai morrer – que deverá acontecer em breve, porque é velho e mal-humorado – seremos rei e rainha de Inglaterra e a minha mãe reinará em Espanha, enquanto eu reino em Inglaterra e ver-me-á manter a Inglaterra na aliança com a Espanha, como lhe prometi, vai ver-me a manter o meu país num tratado inquebrável com o seu, verá que estarei em segurança para sempre.

Londres, 14 de Novembro de 1501

 

Na manhã do dia do casamento, Catarina foi acordada cedo; mas estava desperta há horas, revolvendo-se na cama, mal o sol frio e invernal começara a iluminar o céu pálido. Prepararam-lhe uma banheira enorme – as aias contaram-lhe que os ingleses estavam admirados por tomar banho antes do dia do casamento e que a maior parte pensava que estava a colocar a vida em risco. Catarina, educada no Alhambra, onde os banhos eram o mais bonito conjunto de salas do palácio, centro de coscuvilhice, risos e águas perfumadas, também ficou espantada por saber que os ingleses consideravam adequado tomar banho ocasionalmente, e por os pobres tomarem banho uma vez por ano.

Já se apercebera de que o cheiro a almíscar e a âmbar-cinzento que acompanhara o rei e o príncipe Artur possuía traços de suor e de cheiro a cavalo, e de que viveria o resto da vida entre pessoas que não mudavam de roupa interior durante um ano. Encarara-o como mais um aspecto que teria de suportar, como um anjo do céu as privações terrenas. Ela viera de al-Yanna – o jardim, o paraíso – para o mundo normal. Viera do Palácio de Alhambra para Inglaterra, previra algumas mudanças desagradáveis.

– Presumo que esteja sempre tanto frio que não faça diferença – comentou pensativa para doña Elvira.

– Faz-nos diferença a nós – respondeu a ama. – E vós deveis banhar-vos como uma infanta de Espanha, apesar de os cozinheiros do palácio terem de interromper o que faziam para aquecer água.

Doña Elvira pedira que trouxessem da cozinha, onde se preparava a carne, um enorme pote que era utilizado para escaldar as carcaças dos animais, mandou três criados da cozinha esfregá-lo, revestiu-o com lençóis de linho e encheu-o até cima de água quente, com pétalas de rosa, e perfumou-a com óleo de rosas, que trouxera de Espanha. Supervisionou com carinho a lavagem dos membros longos e pálidos de Catarina, a pedicura, a manicura, a escovagem dos dentes e por fim a lavagem, com três passagens por água, do cabelo. Uma e outra vez, as incrédulas criadas inglesas corriam para a porta, para receberem mais um jarro de água quente das mãos de pajens exaustos, e deitavam-no na banheira, para manter a água do banho quente.

– Se pelo menos tivéssemos uma casa de banho como deve ser – lamentou-se doña Elvira. – Com vapor, um tepidário e um chão de mármore limpo! Água quente na torneira e um lugar para vos sentardes e serdes bem esfregada.

– Não vos preocupeis – disse Catarina com ar sonhador enquanto a ajudavam a sair do banho e lhe limpavam o corpo com toalhas perfumadas. Uma criada pegou-lhe no cabelo, espremeu a água e esfregou-o com cuidado com seda vermelha ensopada em óleo, para lhe dar brilho e cor.

– A vossa mãe teria tanto orgulho em vós – afirmou doña Elvira, quando conduziam a infanta para o quarto de vestir e a vestiam, com camadas e camadas de combinações e vestidos. – Aperta mais aquela renda, rapariga, para que a saia fique direita. É o dia dela, assim como o vosso, Catarina. Ela disse que casaríeis com ele, custasse o que lhe custasse.

Sim, mas não pagou o preço mais elevado. Eu sei que pagaram este casamento com um resgate ao rei pelo meu dote, e sei que suportaram longas e difíceis negociações, e eu sobrevivi à pior viagem que alguém alguma vez empreendeu, mas houve outro preço pago que nunca mencionamos, não é verdade? E a ideia desse preço está hoje na minha mente, como esteve na viagem, como esteve desde que ouvi falar nele.

Havia um homem de vinte e quatro anos, Eduardo Plantageneta, duque de Warwick e filho dos reis de Inglaterra, com – verdade seja dita – mais direitos ao trono de Inglaterra do que o meu sogro. Era príncipe, sobrinho do rei; e de sangue real. Não cometeu nenhum crime, não fez nada de mal, mas foi preso por minha causa, foi levado para a Torre para meu benefício, e morto, decapitado no cepo, em meu proveito, para que os meus pais tivessem a certeza de que não existiam pretendentes ao trono que compraram para mim.

O meu pai disse ao rei Henrique que não me enviaria para a Inglaterra enquanto o duque de Warwick fosse vivo, e, assim, eu sou como a Morte, transportando a foice. Quando encomendaram o barco para eu viajar para a Inglaterra, Warwick passou a ser um homem morto.

Dizem que era um tolo. Não percebeu que estava preso, pensou que fora instalado na Torre, como se lhe fosse concedida uma honra. Sabia que era o último dos príncipes Plantageneta, e que a Torre sempre fora um aposento real, mas também uma prisão. Quando encerraram um pretendente, um homem inteligente que tentava fazer-se passar por príncipe real, na sala ao lado da do pobre Warwick, pensou que era para lhe fazer companhia. Quando o outro homem lhe propôs que fugisse com ele, pensou que seria uma atitude inteligente, e, como era ingénuo, falou dos planos em situações em que os guardas ouviam. Isso deu-lhes a desculpa de que precisavam para o acusarem de traição. Enganaram-no, degolaram-no e ninguém protestou.

O país procura a paz e a segurança de um rei inquestionado. O país fechará os olhos a um ou dois pretendentes assassinados. Também esperam que eu os feche. Sobretudo por ser para minha vantagem. Tudo foi feito a pedido do meu pai; por minha causa. Para facilitar o meu caminho.

Quando me disseram que estava morto, não disse nada, porque sou uma infanta de Espanha. Acima de tudo, sou filha da minha mãe. Não choro como uma menina pequena nem conto a todos cada um dos meus pensamentos. Mas quando estava sozinha nos jardins do Alhambra, ao fim da tarde, quando o Sol se punha e deixava o mundo frio e doce, eu caminhava ao longo de um vasto canal de águas tranquilas, escondida pelas árvores, e pensei que não voltaria a caminhar à sombra das árvores, nem apreciaria os raios quentes do Sol passando pela verde folhagem, sem pensar que Eduardo, o duque de Warwick, nunca mais verá o Sol, para que eu possa viver no meio da riqueza e do luxo. Rezei, para ser perdoada pela morte de um inocente.

A minha mãe e o meu pai lutaram ao longo de Castela e Aragão, cavalgaram por Espanha para levar a justiça a todas as aldeias, às povoações mais pequenas – para que nenhum espanhol perdesse a vida por um capricho de outro. Nem os maiores senhores podem assassinar um camponês; têm de cumprir a lei. Mas, quando se tratou de Inglaterra e de mim, esqueceram-se disso. Esqueceram-se de que vivemos num palácio onde a promessa «Entrai e perguntai. Não temais procurar a justiça, pois aqui a encontrareis» está gravada numa parede. Apenas escreveram ao rei Henrique e disseram que não me enviariam enquanto Warwick não estivesse morto e, momentos depois de terem expressado tal desejo, Warwick foi morto.

E por vezes, quando não me lembro de ser a infanta de Espanha nem a princesa de Gales, mas apenas a Catarina que transpôs, atrás da mãe, a enorme porta de entrada no Palácio de Alhambra, e percebeu que a mãe era a maior potência que o mundo alguma vez conhecera; por vezes, pergunto-me se a minha mãe não cometeu um grande erro? Se não levou a vontade de Deus longe de mais? Ainda mais longe do que Deus desejaria? Porque este casamento é iniciado sobre sangue, e navega num mar de sangue inocente. Como pode um matrimónio assim ser o prelúdio de um bom casamento? Não terá de ser – tal como a noite se segue ao pôr do Sol – trágico e sangrento? Como advirá daqui alguma felicidade para o príncipe Artur e para mim, à custa de um preço tão terrível? E se conseguíssemos ser felizes, não seria uma felicidade pecaminosa e egoísta?

O príncipe Henrique, o duque de York, de dez anos, estava tão orgulhoso do seu fato de tafetá branco que mal olhou para Catarina até estarem diante das portas orientais da Catedral de São Paulo e, então, voltou-se para a observar, tentando ver-lhe o rosto através da sofisticada renda da mantilha branca. À sua frente, estendia-se uma passagem elevada, coberta com uma passadeira vermelha, fixada com pregos dourados; a passagem seguia, à altura da cabeça, da grande porta da entrada da igreja, onde os cidadãos de Londres se amontoavam para conseguir uma boa vista, e continuava ao longo da comprida ala ao altar, onde o príncipe Artur permanecia, pálido com os nervos, a seiscentos passos cerimoniais de distância.

Catarina sorriu para o rapazinho a seu lado, e ele riu de contentamento. A sua mão segurava o braço que lhe oferecera. Ele fez uma pausa por alguns momentos, até que todos, na igreja enorme, percebessem que a noiva e o príncipe estavam à porta, à espera para fazer a sua entrada; fez-se silêncio, todos se esticaram para ver a noiva, e depois, no momento mais teatral, ele conduziu-a.

Catarina ouvia os sussurros da assistência enquanto passava, no alto do palco que o rei Henrique mandara construir para que pudessem ver a flor de Espanha encontrar-se com o botão de Rosa de Inglaterra. O príncipe voltou-se quando ela chegou perto dele, mas ficou cego de irritação ao ver o irmão, que conduzia a princesa como se fosse o noivo, olhando em volta quando passava, agradecendo os cumprimentos com o chapéu e os murmúrios das reverências com o seu sorrisinho altivo, como se fosse a ele que tivessem vindo ver.

Ficavam ambos ao lado de Artur e Henrique, embora relutante, teve de recuar, enquanto a princesa e o príncipe se voltavam para o arcebispo e se ajoelhavam, ao mesmo tempo, nas almofadas de tafetá branco bordadas.

Nunca um casal esteve mais casado, pensava o rei Henrique, de pé, diante do banco real, ao pé da mãe e da mulher. Os pais confiam tanto em mim como numa serpente, e a minha opinião sobre o pai dela sempre foi a de que não passa de um traficante semimouro. Foram prometidos nove vezes. Será um casamento que nada poderá quebrar. O pai não pode fugir dele, por muitas dúvidas que tenha. Agora, vai proteger-me de França; esta é a herança da filha. A ideia da nossa aliança assustará os franceses e convencê-los-á a manter a paz, e nós temos de ter paz.

Olhou de relance para a mulher ao seu lado. Tinha os olhos marejados de lágrimas, ao observar o filho e a noiva, enquanto o arcebispo levantava as mãos dadas e as envolvia com a estola sagrada. O seu rosto, embevecido pela emoção, não o comovia. Quem adivinharia os seus pensamentos, por detrás daquela bela máscara? Pensaria no seu casamento, a união das casas de York e Lancaster que a colocou, como esposa do rei, num trono que podia reivindicar de seu por direito? Ou pensaria no homem que preferiria ter tido como marido? O rei franziu o sobrolho. Nunca se sentiu seguro da mulher, Isabel. Em geral, preferia não pensar muito nela.

Por trás dela, a mãe, de rosto fechado, Margarida Beaufort, observava o jovem casal com um sorriso contido. Era o triunfo de Inglaterra, o do filho, mas muito mais do que isso, era o seu triunfo – ter arrancado esta família bastarda e ilegítima do desastre, desafiar o poder da casa de York, derrotar um rei reinante, conquistar o trono de Inglaterra, vencendo todos os obstáculos. Isto era obra sua. O plano consistira em trazer o filho de França, no momento certo para reivindicar o trono. Eles foram os seus aliados que forneceram ao filho os soldados para a batalha. Fora o seu plano de batalha que deixara o usurpador Ricardo a desesperar em Bosworth, e foi uma vitória sua, que celebrava durante os dias da sua vida. E este era o casamento que constituía o culminar dessa árdua luta. Esta noiva dar-lhe-ia um neto, um rei Tudor-espanhol para Inglaterra, e um filho a seguir a esse, e outro ainda, a seguir: construindo uma dinastia Tudor que seria interminável.

Catarina repetiu as palavras dos votos matrimoniais, sentiu o peso de uma aliança fria no dedo, voltou o rosto para o marido e sentiu, aturdida, o seu beijo frio. Quando voltou a percorrer aquele absurdo passadiço e viu os rostos sorridentes que se estendiam até às paredes da catedral, percebeu que estava concluído. E, quando saíram do frio escuro da catedral para a luz do Sol, clara e invernal do exterior e ouviu o clamor da multidão por Artur e a sua noiva, o príncipe e a princesa de Gales, percebeu que, por fim, cumprira o seu dever. Fora prometida a Artur na infância, e agora estavam casados. Fora intitulada princesa de Gales aos três anos e, agora, assumira o seu nome, assim como o seu lugar no mundo. Olhou para cima e sorriu, e a multidão, maravilhada com o vinho gratuito, com a beleza da rapariga, com a promessa de protecção contra uma guerra civil que só poderia advir da garantia de sucessão real, gritava a sua aprovação.

Eram marido e mulher, mas trocaram apenas algumas palavras durante o resto do longo dia. Houve um banquete formal e, apesar de estarem sentados lado a lado, havia brindes, discursos a que deveriam estar atentos e músicos a tocar. Após o longo jantar, onde foram servidos imensos pratos, houve entretenimento com poesia, cantores e uma representação. Nunca ninguém vira tanto dinheiro ser gasto num único acontecimento. Era uma celebração muito maior do que a do casamento do rei, ainda maior do que a sua coroação. Era uma redefinição do estado real inglês e dizia ao mundo que este casamento da rosa dos Tudor com a princesa espanhola era um dos eventos mais importantes da nova era. Duas novas dinastias proclamavam-se através desta união: Fernando e Isabel do novo país que forjam, do al-Andalus, e os Tudor, que se apoderam de Inglaterra.

Os músicos tocaram uma dança de Espanha e a rainha Isabel, após um aceno da sogra, inclinou-se e disse a Catarina:

– Seria um enorme prazer para nós se dançásseis.

Catarina, bastante composta, levantou-se da cadeira e encaminhou-se para o centro do enorme salão, enquanto as aias se reuniam à sua volta, formando um círculo e dando as mãos. Dançaram a pavana, a mesma dança a que Henrique assistira em Dogmersfield, e este observou a nora com bastante atenção. Era a jovem mais desejável da sala. Era uma pena, porque um atado como Artur não conseguiria ensinar-lhe os prazeres que se alcançava debaixo dos lençóis. Se os deixasse ir para o Castelo de Ludlow, ela morreria de aborrecimento ou tornar-se-ia frígida. Por outro lado, se a mantivesse ao seu lado, ele deleitaria os olhos, podia vê-la dançar e iluminar a corte. Suspirou. Pensou que não tinha coragem.

– Ela é maravilhosa – observou a rainha.

– Esperemos que sim – disse ele com amargura.

– Senhor?

Ele sorriu perante o olhar interrogativo e de surpresa que ela lhe lançou.

– Não, não é nada. Tendes razão, é maravilhosa. E parece ser saudável, não parece? Pelo que podemos ver?

– Tenho a certeza que é, e a mãe garantiu-me que é regular nos seus hábitos.

Ele acenou.

– Aquela mulher diria qualquer coisa.

– Mas de certeza que não afirmaria nada para nos enganar? Não num assunto de tamanha importância! – sugeriu.

Ele assentiu e esqueceu o assunto. A doçura da natureza da mulher e a sua fé nos outros eram algo que não podia mudar. Desde que não tivessem influência na política, as opiniões dela não interessavam.

– E Artur? – perguntou ele. – Parece-vos estar a crescer e a tornar-se forte? Gostaria tanto que tivesse o espírito do irmão.

Ambos olharam para o jovem Henrique que observava as bailarinas, de pé, com a cara enrubescida de emoção, de olhos brilhantes.

– Oh, Henrique – disse a mãe indulgentemente. – Mas nunca houve um príncipe mais bonito e divertido do que Henrique.

A dança espanhola terminou e o rei bateu palmas.

– Agora, Henrique e a irmã – ordenou. Não queria obrigar Artur a dançar perante a noiva. O rapaz dançava como um clérigo, com pernas bamboleantes e muito concentrado. Mas Henrique estava cheio de vontade de dançar e, num instante, estava no meio da sala com a irmã, a princesa Margarida. Os músicos conheciam os gostos musicais dos jovens da família real e tocaram uma galharda animada. Henrique atirou com o casaco e lançou-se à dança, em mangas de camisa, como um camponês.

Ouviu-se um suspiro dos nobres espanhóis perante o comportamento chocante do jovem príncipe, mas a corte inglesa e os pais sorriam da sua energia e entusiasmo. Quando chegaram ao fim das voltas e saltos, todos aplaudiram, rindo. Todos, excepto o príncipe Artur, que fixava um ponto longínquo, determinado em não observar a dança do irmão. Surpreendeu-se quando a mãe lhe pousou a mão no braço.

– Deus seja louvado por estar a sonhar acordado com a noite de núpcias – observou o pai para lady Margarida, a sua mãe. – Apesar de ter as minhas dúvidas.

Ela deu uma gargalhada aguda.

– Não posso dizer que tenha boa impressão da noiva – disse em tom crítico.

– Não tendes? – perguntou. – Mas vistes o tratado.

– Gosto do preço, mas o artigo não é do meu agrado – afirmou com o habitual sentido de humor apurado. – Ela é uma coisinha pequena e bonita, não é?

– Preferiríeis uma criada maltrapilha?

– Gostaria de uma rapariga com anca, para nos dar filhos – afirmou secamente. – Uma creche de filhos.

– Para mim, parece adequada – decidiu. Sabia que nunca seria capaz de dizer como lhe parecia bem. Mesmo para si próprio, nunca devia pensar nisso.

Catarina foi colocada no leito nupcial pelas aias, María de Salinas deu-lhe um beijo de boas-noites, e doña Elvira a bênção de uma mãe; mas Artur tinha de passar por uma série de pancadinhas nas costas e humor grosseiro, antes de os amigos e companheiros o escoltarem até à sua porta. Colocaram-no na cama, ao lado da princesa, que estava imóvel e em silêncio, enquanto homens estranhos se riam e lhes desejavam boa noite, e depois veio o arcebispo para salpicar os lençóis com água benta e rezar pelo jovem casal. Só teria sido um acto mais público se abrissem as portas para os cidadãos de Londres verem os jovens, lado a lado, desajeitados como travesseiros, no leito matrimonial. Pareceu a ambos que várias horas passaram até que as portas se fecharam sobre os rostos sorridentes e curiosos, e os dois ficarem sozinhos, sentados muito direitos encostados às almofadas, paralisados como um par de bonecas tímidas.

Fez-se silêncio.

– Quereis um copo de cerveja? – sugeriu Artur numa voz fina, devido aos nervos.

– Não gosto muito de cerveja – respondeu Catarina.

– Esta é diferente. Chamam-lhe cerveja matrimonial, é adoçada com mel e especiarias. É para nos dar coragem.

– Precisamos de coragem?

Sentiu-se encorajado pelo sorriso dela e saiu da cama para lhe ir buscar um copo.

– Penso que sim – replicou. – Sois uma estranha numa terra nova, e eu nunca conheci nenhuma rapariga, além das minhas irmãs. Ambos temos muito para aprender.

Ela tirou-lhe o copo de cerveja quente da mão e experimentou a bebida, bastante forte.

– Oh, isto é bom.

Artur engoliu um copo e bebeu outro. Depois, voltou para a cama. Levantar os cobertores e deitar-se ao seu lado parecia-lhe uma imposição; a ideia de lhe levantar a camisa e de se pôr em cima dela era algo que estava além das suas forças.

– Vou apagar a vela – anunciou.

A escuridão repentina envolveu-os, apenas as cinzas da lareira produziam uma luz vermelha.

– Estais muito cansada? – interrogou, desejando que ela respondesse que estava demasiado cansada para cumprir o seu dever.

– Nada – respondeu ela educada, com uma voz irreal saída da escuridão. – Vós estais?

– Não. Quereis dormir já? – inquiriu ele.

– Eu sei o que temos de fazer – afirmou ela. – As minhas irmãs já se casaram. Sei tudo sobre esse assunto.

– Eu também sei – retorquiu ele, magoado.

– Não queria dizer que não sabíeis, queria dizer que não tendes de ter medo de começar. Eu sei o que temos de fazer.

– Eu não tenho medo, é só que...

Para seu horror absoluto sentiu-a levantar-lhe a camisa de dormir e tocar-lhe a pele nua da barriga.

– Não queria assustar-vos – disse, com a voz tremente, sentindo-se invadido pelo desejo, apesar de morrer de medo de ser incompetente.

– Eu não tenho medo – garantiu a filha de Isabel. – Nunca tive medo de nada.

No silêncio e na escuridão sentiu-a agarrá-lo e segurá-lo. Com o seu toque, ele sentia o desejo a aumentar com tanta intensidade que temia ejacular na sua mão. Com um longo suspiro, pôs-se em cima dela e descobriu que se despira até à cintura, tendo tirado a camisa de dormir. Apalpou-a desajeitadamente e sentiu-a retrair-se quando se empurrava contra ela. O processo parecia impossível, não havia forma de saber o que deveria um homem fazer, nada para o ajudar ou orientar, nenhum conhecimento da geografia misteriosa do corpo dela, e depois ela soltou um pequeno grito de dor, abafado com a mão, e ele soube que o fizera. O alívio foi tão grande que ejaculou de imediato, um impulso semidoloroso, semiaprazível que lhe indicou que, apesar da ideia do pai a seu respeito, do que Henrique pensava sobre si, a tarefa estava cumprida e ele era um homem e um marido: e a princesa era a sua mulher e já não uma virgem intocada.

Catarina esperou até ele adormecer e, depois, levantou-se e lavou-se, nos aposentos privados. Sangrava, mas sabia que pararia em breve, a dor não era pior do que esperava, Isabel, a irmã, dissera-lhe que não era tão doloroso como cair de um cavalo, e tinha razão. Margarida, a cunhada, dissera-lhe que era o paraíso; mas Catarina não conseguia imaginar como tão profundo embaraço e desconforto podiam ser divinais – e concluiu que Margarida exagerava, como de costume.

Catarina voltou para o quarto. Mas não para a cama. Sentou-se perto da lareira, abraçando os joelhos e observando as cinzas.

Não foi um dia mau, digo para mim mesma e sorrio; é uma frase da minha mãe. Quero tanto ouvir a sua voz que pronuncio as suas palavras para mim mesma. Muitas vezes, quando era pouco mais do que um bebé, e ela passara um longo dia em cima da sela, inspeccionando os grupos de exploradores avançados, cavalgando para dar ânimo à comitiva mais lenta, entrava na tenda, descalçava as botas, deitava-se nos ricos tapetes e almofadas mouros, ao lado da braseira de bronze, e dizia: «Não foi um dia mau.»

– Alguma vez tendes um dia mau? – perguntei-lhe uma vez.

– Não, quando fazemos o trabalho de Deus – respondeu gravemente. – Há dias em que é fácil e há dias em que é difícil. Mas, se fazemos o trabalho de Deus, nunca há dias maus.

Nem por um momento duvido que dormir com Artur, apesar da minha ousadia em ser eu a tocar-lhe e a puxá-lo para mim, seja o trabalho de Deus. É obra de Deus que exista uma aliança inquebrável entre a Espanha e a Inglaterra. Só tendo Inglaterra como aliado fiável é que Espanha pode desafiar a expansão de França. Apenas com a riqueza de Inglaterra, e sobretudo os navios ingleses, podemos nós, espanhóis, levar a guerra contra a crueldade até ao coração dos impérios muçulmanos em África e na Turquia. Os príncipes italianos são uma confusão de ambições rivais, os franceses são um perigo para qualquer vizinho, tem de ser Inglaterra a aderir à Cruzada com a Espanha, para manter a defesa da Cristandade contra o poder aterrorizador dos mouros; quer sejam mouros negros de África, o papão da minha infância, ou mouros de pele clara, do temível Império Otomano. E, quando forem derrotados, os Cruzados têm de prosseguir, para a Índia, para o Oriente, até onde tiverem de ir, para desafiar e derrotar a crueldade que é a religião dos mouros. O meu grande receio é que os remos sarracenos se estendam interminavelmente, até ao fim do mundo e nem Cristóvão Colombo sabe onde fica tal lugar.

– E se não tiverem fim? – perguntei uma vez à minha mãe, quando nos debruçávamos nas paredes aquecidas pelo sol do forte e observávamos a partida de um novo grupo de mouros que abandonava a cidade de Granada, com a bagagem nas mulas, as mulheres a chorar, os homens de cabeça vergada, a bandeira de Santiago a esvoaçar, então, no forte vermelho, onde o crescente ondulara durante sete séculos, os sinos a tocar para a missa, onde outrora as cornetas soaram para as rezas hereges. – E se agora, que derrotámos estes, regressam a África e voltam no próximo ano?

– É por isso que tens de ser corajosa, minha princesa de Gales – respondera a minha mãe na altura. – É por isso que tens de estar pronta para combatê-los sempre que vierem, para onde vierem. Isto é uma guerra até ao fim do mundo, até ao fim dos tempos, quando Deus lhe puser um fim. Vai assumir muitas formas. Nunca cessará. Vão voltar uma e outra vez, e terás de estar preparada, em Gales, assim como nós estaremos preparados em Espanha. Concebi-te para seres uma princesa lutadora, assim como eu sou uma princesa militante. Eu e o teu pai pusemos-te em Inglaterra como Maria foi posta em Portugal, como Joana foi colocada junto dos Habsburgos, na Holanda. Vocês estão lá para defender as terras dos vossos maridos, e manter as alianças connosco. É a tua tarefa deixar Inglaterra preparada e mantê-la segura. Certifica-te de que nunca desapontarás o teu país, assim como as tuas irmãs não podem desapontar os delas, como eu nunca desapontei o meu.

Catarina foi acordada bastante cedo por Artur, que exercia uma pressão suave entre as suas pernas. Ela permitiu, ressentida, sabendo que era a forma de conceber um filho e de tornar a aliança segura. Algumas princesas, como a mãe, tinham de combater em guerra aberta para proteger o reino. A maioria das princesas, como ela, tinha de suportar provações dolorosas em privado. Não demorou muito, e, depois, ele adormeceu. Catarina ficou imóvel como uma pedra congelada, para não voltar a acordá-lo.

Só acordou ao nascer do dia, quando os criados de quarto bateram à porta. Ele levantou-se dizendo-lhe um «Bom dia» embaraçado e saiu. Receberam-no com saudações e levaram-no triunfalmente para os seus aposentos, Catarina ouviu-o comentar, em tom vulgar, gabando-se:

– Cavalheiros, esta noite estive em Espanha – e ouviu a gargalhada que aplaudiu a piada. As aias entraram com o seu roupão e ouviram os risos dos homens. Doña Elvira levantou as sobrancelhas finas para o céu, pelos modos dos ingleses.

– Não sei o que a vossa mãe diria – observou doña Elvira.

– Diria que as palavras são menos importantes do que a vontade de Deus, e a vontade de Deus foi cumprida – asseverou Catarina com firmeza.

Com a minha mãe não foi assim. Ela apaixonou-se pelo meu pai assim que o viu e casou com grande felicidade. Depois de crescer, compreendi que nutriam um desejo autêntico um pelo outro – não era apenas uma parceria poderosa de um grande rei e uma grande rainha. O meu pai podia ter outras mulheres como amantes; mas necessitava da mulher, não era feliz sem ela. E a minha mãe não conseguia estar com outro homem. Não tinha olhos para mais ninguém a não ser o meu pai. Espanha era a única, de todas as cortes da Europa, que não tinha tradição de jogos amorosos ou de namoriscos, de adoração da rainha, na prática do amor cortesão. Seria uma perda de tempo. A minha mãe não reparava noutros homens e, quando suspiravam por ela, e diziam que os seus olhos eram tão azuis como o céu, ela limitava-se a sorrir e dizia: «Que disparate.» E tudo acabava aí.

Quando os meus pais tinham de estar separados, escreviam-se todos os dias, ele não dava um passo sem lhe dizer, sem lhe pedir a opinião. Quando ele estava em perigo, ela não conseguia dormir.

Ele nunca conseguiria atravessar a serra Nevada se ela não lhe enviasse homens e equipas de escavadores para abrir a estrada. Mais ninguém conseguiria abrir uma estrada nesse local. Ele não confiara em mais ninguém para o apoiar, para manter o reino unido, à medida que avançava. Ela não podia conquistar as montanhas para mais ninguém, ele era o único que conseguia atrair o seu apoio. O que parecia uma união admirável de dois jogadores previdentes, era enganador – era a sua paixão que jogavam no palco político. Ela era uma grande rainha, porque era assim que conseguia suscitar o seu desejo. Ele era um grande general para estar à sua altura. Era o seu amor o seu desejo, que os movia; quase tanto como Deus.

Somos uma família passional. Quando Isabel, a minha irmã, agora com Deus, voltou viúva de Portugal, jurou que amara tanto o marido que nunca casaria com outro homem. Estivera com ele apenas seis meses, mas afirmou que, sem ele, a vida não tinha sentido. Joana, a minha segunda irmã, está tão apaixonada pelo marido, Filipe, que não suporta perdê-lo de vista, quando sabe que está interessado por outra mulher, jura que envenenará a rival, é louca de amor por ele. E o meu irmão... o meu querido irmão, João... morreu de amor. Ele e a bonita mulher, Margarida, eram tão apaixonados, tão cegos um pelo outro, que a sua saúde fraquejou, morreu seis meses depois do casamento. Haverá algo mais trágico do que um jovem morrer seis meses após o casamento? Eu venho de uma família passional, e eu? Alguma vez me apaixonarei?

Não por este rapaz desajeitado. A minha primeira impressão positiva a seu respeito desvaneceu-se. É demasiado tímido para falar comigo, murmura e finge não pensar nas palavras. Obrigou-me a liderar no quarto, e tenho vergonha de ter tido de ser eu a tomar a iniciativa. Transforma-me numa mulher sem vergonha, uma mulher vulgar, quando quero ser adorada como uma dama de um romance. E se eu não o tivesse convidado, que poderia ele ter feito? Agora, sinto-me uma tola, e culpo-o pelo meu embaraço. «Em Espanha», de facto! Nem se teria aproximado das Índias se eu não lhe mostrasse como fazê-lo. Que cachorrinho estúpido!

Quando o vi pela primeira vez, pensei que era tão bonito como um cavaleiro dos romances, um trovador, um poeta. Pensei que podia ser como uma dama numa torre e ele podia cantar sob a minha janela e persuadir-me a amá-lo. Mas, apesar de ter a aparência de um poeta, falta-lhe a inteligência. Nunca consigo arrancar-lhe mais de duas palavras, e sinto que me rebaixo ao tentar agradar-lhe.

É evidente que nunca esquecerei que é meu dever suportar este jovem, este Artur. A minha esperança é sempre a de um filho, e o meu destino é manter Inglaterra protegida dos mouros. Fá-lo-ei; aconteça o que acontecer, serei rainha de Inglaterra e protegerei os meus dois países: Espanha do meu nascimento e Inglaterra do meu casamento.


Londres, Inverno de 1501

Artur e Catarina, de pé, hirtos, lado a lado, na barcaça real, mas não trocando uma só palavra, lideravam uma grande frota de barcaças que descia o rio em direcção ao Castelo de Baynard, que seria a sua residência em Londres, nas semanas seguintes. Era um palácio enorme e rectangular, num edifício sobre o rio, com jardins que se estendiam até à beira da água. O mayor de Londres, os conselheiros e a corte seguiam a barcaça real; e os músicos tocavam, enquanto os herdeiros do trono ocupavam a sua residência no centro da cidade.

Catarina reparou que os enviados escoceses compareceram em grande número, para negociar o casamento da cunhada, a princesa Margarida. O rei Henrique usava os filhos como peões no jogo de poder, como os reis têm de fazer. Artur estabelecera a ligação vital com Espanha, Margarida, apesar de ter doze anos, transformaria a Escócia em amiga, em vez da inimiga que fora durante gerações. A princesa Maria também se casaria, quando chegasse a altura, com o maior inimigo que o país enfrentava ou com o maior amigo, que queriam manter. Catarina sentia-se feliz por ter sabido desde a infância que seria a próxima rainha de Inglaterra. Não aconteceram mudanças na política nem alterações nas alianças. Fora a próxima rainha de Inglaterra quase desde o nascimento. Isso tornou muito mais fácil a separação de casa e família.

Reparou que Artur estava contido nos cumprimentos, quando se encontrou com os lordes escoceses ao jantar, no Palácio de Westminster.

– Os escoceses são os nossos inimigos mais perigosos – disse a Catarina Eduardo Stafford, duque de Buckingham, num castelhano murmurado, quando se encontravam ao fundo da sala, aguardando que a companhia ocupasse os seus lugares. – O rei e o príncipe esperam que este casamento os torne nossos amigos eternos, que ligue os escoceses a nós. Mas é difícil, para qualquer um de nós, esquecer como nos perseguiram. Fomos educados sabendo que temos um inimigo constante e cruel a norte.

– Com certeza não passam de um reino pobre e pequeno – interrogou ela. – Que mal nos podem fazer?

– Aliam-se sempre a França – explicou. – Sempre que entramos numa guerra com França, estabelecem alianças e invadem as nossas fronteiras a norte. E podem ser pequenos e pobres, mas representam a porta de entrada para o perigo terrível de França nos invadir do Norte. Penso que Vossa Graça sabe desde a vossa infância que, mesmo um pequeno país na fronteira, pode ser um perigo.

– Bem, os mouros, no fim, só tinham um pequeno reino – observou. – O meu pai sempre disse que os mouros eram como uma doença. Podiam ser uma pequena irritação, mas estavam sempre lá.

– Os escoceses são a nossa praga – concordou ele. – Uma vez de três em três anos, mais ou menos, invadem-nos e fazem uma pequena guerra, e perdemos meio hectare de terra ou recuperamo-lo. E nos Verões assediam as regiões da fronteira e roubam o que não conseguem cultivar ou produzir. Nenhum camponês do Norte esteve a salvo deles. O rei está determinado em ter paz.

– Vão tratar bem a princesa Margarida?

– À sua maneira rude – sorriu. – Não como vós fostes recebida, infanta.

Catarina devolveu o sorriso. Sabia que tivera um acolhimento caloroso em Inglaterra. Os habitantes de Londres abriram os corações à princesa espanhola, apreciavam o glamour ostentador da comitiva, a estranheza das roupas e gostavam da forma como a princesa sorria para a multidão. Catarina aprendera com a mãe que as pessoas são um poder superior a um exército de mercenários, e nunca voltou a cabeça a uma saudação. Acenava sempre, sorria sempre e, se lançassem aplausos estrondosos, ela encenaria uma bonita reverência.

Olhou de relance para o local onde a princesa Margarida, uma rapariga frívola e precoce, alisava o vestido e colocava o toucado, antes de entrar no salão.

– Em breve ireis casar-vos e partireis para longe, como eu – observou Catarina divertida, em francês. – Espero sinceramente que vos traga felicidade.

A rapariga mais nova olhou para ela com ar seguro.

– Não foi como vós, porque vós viestes para o melhor reino da Europa, enquanto eu tenho de ir para longe, para o exílio – afirmou.

– Inglaterra pode ser excelente para vós, mas para mim é um país estranho – respondeu Catarina, tentando não provocar os maus modos da rapariga. – E se tivésseis visto a minha casa em Espanha, ficaríeis surpreendida por constatar quão fabuloso é o nosso palácio.

– Não há nenhum lugar melhor do que Inglaterra – disse Margarida com a convicção serena de uma das crianças mimadas Tudor. – Mas vai ser bom ser rainha. Enquanto vós sois apenas uma princesa, eu serei rainha. Serei igual à minha mãe. – Pensou por um momento. – Na verdade, serei igual à vossa mãe.

A cor subiu ao rosto de Catarina.

– Nunca seríeis igual à minha mãe – respondeu. – Sois uma tola só de o mencionar.

Margarida arfou.

– Vá lá, Vossa Alteza Real – interrompeu o duque. – O vosso pai está pronto para ocupar o lugar. Podeis segui-lo até ao salão?

Margarida voltou-se e, num rompante, afastou-se de Catarina.

– Ela é muito nova – afirmou o duque apaziguador. – E, apesar de não o admitir, tem medo de deixar o pai e a mãe para ir para tão longe.

– Tem muito para aprender – ripostou Catarina entredentes. – Devia aprender os modos de uma rainha, se o vai ser. – Voltou-se para Artur que estava a seu lado, pronto para a conduzir para dentro do salão, atrás dos pais.

A família real ocupou os seus lugares. O rei e os dois filhos sentaram-se na mesa mais alta, sob a cobertura de dossel do Estado, voltada para o salão; à sua direita estavam a rainha e as princesas. Sua Alteza, a Mãe do Rei, Margarida Beaufort, estava sentada ao lado do rei, entre este e a mulher.

– Margarida e Catarina tiveram uma discussão quando entravam – contou-lhe com uma satisfação sarcástica. – Calculei que a infanta irritaria a nossa princesa Margarida, não suporta ver demasiada atenção ser dada a outra, e todos fazem tanto alarido em volta de Catarina.

– Margarida vai partir em breve – disse Henrique. – Então, poderá ter a sua corte, e a sua lua-de-mel.

– Catarina tornou-se o centro da corte – queixou-se a mãe do rei. – O palácio está cheio de pessoas que a observam a jantar. Todos querem vê-la.

– Não passa de uma novidade, uma maravilha com sete dias. E, de qualquer forma, quero que as pessoas a vejam.

– Tem algum encanto – reparou a mulher idosa. O criado que trazia o jarro apresentou uma taça dourada cheia de água perfumada e lady Margarida mergulhou as pontas dos dedos, limpando-as ao guardanapo.

– Eu acho-a muito agradável – afirmou Henrique enquanto limpava as mãos. – Passou pelo casamento sem dar um passo em falso, e as pessoas gostam dela.

A mãe fez um gesto pequeno de rejeição.

– Está doente com a vaidade, não foi educada da forma como educaria uma filha minha. A sua vontade não foi contrariada para a obrigar a obedecer. Considera-se algo de especial.

Henrique olhou para a princesa que estava do outro lado. Inclinara a cabeça para ouvir algo que estava a ser dito pela mais nova princesa Tudor, a princesa Maria; viu-a sorrir e responder.

– Sabeis? Eu penso que é algo de especial – replicou.

As celebrações continuaram durante vários dias e, depois, a corte mudou-se para o recém-construído e glamoroso Palácio de Richmond, edificado num bonito e grande parque. Para Catarina, numa espiral de rostos estranhos e apresentações, foi como um combate e uma festa num só, consigo no centro, uma rainha tão celebrada como qualquer sultana, com um país dedicado à sua diversão. Mas, uma semana depois, a festa foi concluída com o rei a dizer-lhe que era chegada a altura de as aias espanholas voltarem para casa.

Catarina sempre soubera que a pequena corte que a acompanhara através de tempestades e de um naufrágio iminente, para a entregar ao marido, a deixaria quando o casamento se consumasse e a primeira metade do dote paga; mas foram dias tristes, em que fizeram as malas e se despediram da princesa. Ficaria com o pequeno grupo de criados domésticos, as damas de companhia, o camareiro, o tesoureiro e os criados directos, mas o resto do séquito teria de partir. Mesmo sabendo, como sabia, que a vida era assim, que o grupo de convidados para o casamento partia sempre após o mesmo, não a fazia sentir-se menos despojada. Enviou-os com mensagens para Espanha e com uma carta para a mãe.

 

Da filha, Catarina, princesa de Gales,

para Sua Alteza Real de Castela e Aragão, e a mais querida mãe,

Oh, mãe!

Tal como estas damas e cavalheiros vos dirão, o príncipe e eu dispomos de uma boa casa perto do rio. Chama-se Castelo de Baynard apesar de não ser um castelo, mas um palácio recém-construído. Não há casas de banho, nem para mulheres nem para homens. Sei o que estais a pensar. Nem podeis imaginar.

Doña Elvira mandou o ferreiro fazer-me um grande caldeirão que aquecem na lareira da cozinha, e seis criados trazem-no para o meu quarto, para tomar banho. Por outro lado, não existem jardins lúdicos com flores, nem regatos, nem fontes, é bastante invulgar. Tudo parece estar por finalizar. Na melhor das hipóteses, têm um pátio a que chamam jardim dos nós, onde dou voltas e voltas até ficar tonta. A comida não é boa e o vinho é azedo. Só comem frutas de conserva e penso que nunca ouviram falar de legumes.

Não deveis pensar que me queixo, queria que soubésseis que, mesmo com estas pequenas dificuldades, estou contente por ser a princesa. O príncipe Artur é simpático e atencioso comigo, quando estamos juntos, que é ao jantar. Ofereceu-me uma égua muito bela de raça da Barbária, misturada com inglesa, e eu monto-a todos os dias. Os nobres da corte combatem (mas não os príncipes); o meu defensor é o duque de Buckingham, que é muito simpático, aconselha-me em matérias relacionadas com a corte, e diz-me como avançar. Com frequência, jantamos juntos, ao estilo inglês. As mulheres têm os seus aposentos, mas as visitas masculinas ou os criados entram e saem como se fossem públicos, não há reclusão das mulheres. O único lugar onde tenho a certeza de estar sozinha é se me trancar nos sanitários – caso contrário, há gente por todo o lado.

A rainha Isabel, apesar de ser muito calada, é simpática comigo quando nos encontramos, e agrada-me estar na sua companhia. Sua Alteza, a Mãe do Rei é muito fria; mas penso que é assim com todos, excepto com o rei e com os príncipes. Centra as atenções no filho e nos netos. Dirige a corte como se fosse rainha. É muito devota e séria. Tenho a certeza de que é admirável em todos os sentidos.

Devereis querer saber se estou grávida. Ainda não há sinais. Gostareis de saber que leio a Bíblia ou os meus livros sagrados durante duas horas, todos os dias, como me aconselhou, que vou à missa três vezes por dia e comungo todos os domingos. O padre Alessandro Geraldini está bem, é um guia espiritual tão importante em Inglaterra como era em Espanha, e confio nele e em Deus para me manterem forte na fé, para cumprir a obra de Deus em Inglaterra, tal como a mãe faz em Espanha. Doña Elvira mantém as minhas aias em ordem e obedeço-lhe como vos obedeceria a vós. A María de Salinas é a minha melhor amiga, aqui como em casa, apesar de nada aqui ser como Espanha, e eu não suporto que ela fale de casa.

Serei a princesa que queríeis que fosse. Não vos desiludirei, nem a Deus. Serei rainha e defenderei a Inglaterra dos mouros.

Por favor, escrevei-me em breve, e dizei-me como estais. Parecestes-me tão triste e deprimida quando parti, espero que estejais melhor. Espero que a escuridão que vistes na vossa mãe passe por vós, e não se instale na vossa vida como se instalou na dela. Deus não vos infligiria tamanha tristeza, a vós, que sempre fostes a Sua favorita? Rezo por vós e pelo pai todos os dias. Ouço a vossa voz na minha cabeça, a aconselhar-me a todo o momento. Por favor, escrevei em breve à vossa filha que vos ama tanto.

 

Catarina

 

P. S. Apesar de estar feliz por me ter casado, e por ter sido chamada a cumprir o meu dever por Espanha e por Deus, tenho muitas saudades vossas. Sei que antes de mãe sois rainha, mas ficaria tão feliz por receber uma carta vossa. C.

A corte organizou uma despedida alegre para os espanhóis, mas para Catarina era difícil sorrir e acenar. Depois de partirem, dirigiu-se à beira-rio para ver a última das barcaças tornar-se mais pequena e desaparecer no horizonte e foi aí que o rei Henrique a encontrou, uma figura solitária, no embarcadouro, a olhar para a água que corria, como se também desejasse partir.

O rei conhecia demasiado bem as mulheres para lhe perguntar qual era o problema: solidão e saudades de casa, algo natural numa jovem de quase dezasseis anos. Ele fora um exilado de Inglaterra durante quase toda a vida, conhecia bem os altos e baixos da nostalgia que surge com um odor inesperado, a mudança de estações, uma despedida. Pedir-lhe uma explicação só desencadearia um rio de lágrimas e não teria utilidade. Prendeu a sua pequena mão gelada sob o braço e disse que ela tinha de ver a biblioteca que reunira no palácio e de onde podia levar livros emprestados, para ler. Deu uma ordem por cima do ombro a um dos pajens, enquanto conduzia a princesa para a biblioteca e lhe mostrava as bonitas prateleiras, indicando-lhe não apenas os autores clássicos e as histórias do seu interesse, mas também as de romance e heroísmo que considerava mais apropriadas para a divertir.

Ela não se queixou e limpou os olhos quando o vira caminhar até si. Fora educada numa escola rígida. Isabel de Espanha, além de mulher de um soldado e ela própria um, não educara as filhas para se permitirem ser indulgentes consigo mesmas. Pensou que não existia uma jovem em Inglaterra que se comparasse, que tivesse o autocontrolo desta rapariga. Mas havia sombras sob os olhos azuis da princesa e, apesar de aceitar os volumes que lhe indicara com um agradecimento, continuava a não sorrir.

– E gostais de mapas? – perguntou-lhe.

Ela assentiu.

– Claro – disse. – Na biblioteca do meu pai temos mapas do mundo inteiro, e Cristóvão Colombo desenhou-lhe um para lhe mostrar as Américas.

– O vosso pai tem uma grande biblioteca? – inquiriu, enciumado da sua reputação como estudioso.

A sua hesitação educada, antes de lhe responder, disse tudo, disse-lhe que aquela biblioteca, de que estava tão orgulhoso, não era nada, comparada com o conhecimento dos mouros de Espanha.

– É claro que o meu pai herdou muitos livros, não são todos da sua colecção pessoal – acrescentou Catarina com tacto. – Muitos são de autores mouros, de estudiosos mouros. Sabeis que os árabes traduziram os autores gregos, antes de serem traduzidos para francês, italiano ou inglês? Os árabes dominavam as ciências e matemáticas quando foram esquecidas na Cristandade. Ele possui todas as traduções mouras de Aristóteles, Sófocles e restantes.

Ele sentia o anseio por uma nova aprendizagem como uma fome.

– Ele tem muitos livros?

– Milhares de volumes – respondeu ela. – Em hebraico e árabe, latim e em todas as línguas cristãs. Mas não os lê todos, tem estudiosos árabes para os analisar.

– E os mapas? – interrogou.

– É aconselhado sobretudo por navegadores e cartógrafos árabes – respondeu ela. – Percorrem distâncias tão grandes, que aprenderam a traçar a rota através das estrelas. As viagens por mar são o equivalente a uma viagem pelo meio do deserto. Dizem que uma extensão de água é o mesmo que uma planície de areia, utilizam as estrelas e a Lua para medirem a viagem, em ambas as situações.

– E o vosso pai pensa que retirará muito proveito das novas descobertas? – perguntou o rei com curiosidade. – Ouvimos falar das grandes viagens de Cristóvão Colombo e dos tesouros que trouxe consigo.

Admirou a forma como as pestanas se baixaram para ocultar o brilho.

– Oh, não poderia dizê-lo. – Evitou a pergunta de uma forma inteligente. – Com certeza, a minha mãe pensa que existem muitas almas a salvar para Jesus.

Henrique abriu a enorme pasta que continha a sua colecção de mapas e abriu-os. Nos cantos, surgiam monstros marinhos, em belas iluminuras. Mostrou-lhe a costa de Inglaterra, as fronteiras do Sacro Império Romano, o conjunto de regiões de França, as novas fronteiras alargadas do seu país, Espanha, e as terras papais na Itália.

– Percebeis agora por que eu e o vosso pai temos de ser amigos? – disse-lhe. – Ambos enfrentamos o poder de França à nossa porta. Nem podemos negociar um com o outro, se não mantivermos a França longe dos mares estreitos.

– Se o filho de Joana herdar as terras dos Habsburgos, terá dois remos – indicou ela. – Espanha e também a Holanda.

– E o vosso filho terá a Inglaterra, uma aliança com a Escócia e as nossas terras em França – afirmou, passando com a palma da mão aberta por cima do mapa. – Serão dois primos poderosos.

Ela sorriu com a ideia, e Henrique detectou nela a ambição.

– Gostaríeis de ter um filho que governasse metade da Cristandade?

– Que mulher não gostaria? – perguntou. – E o meu filho e o de Joana conseguiriam derrotar os mouros, podiam obrigá-los a recuar muito além do mar Mediterrâneo?

– Ou talvez encontrassem uma forma de viverem em paz – sugeriu ele. – Só porque um homem Lhe chama Alá e outro Lhe chama Deus, não há motivos para os crentes serem inimigos, certo?

Catarina abanou a cabeça.

– Creio que esta terá de ser uma guerra eterna. A minha mãe diz que esta é a grande batalha entre Deus e o Mal, que se prolongará até ao fim dos tempos.

– Então, estareis em perigo eternamente – contestou, quando se ouviu uma pancada na enorme porta de madeira da biblioteca. Era o pajem a quem Henrique ordenara que saísse, e que trazia um ourives, que esperava há vários dias para apresentar o seu trabalho ao rei e estava surpreendido por ter sido chamado de repente.

– Agora – disse Henrique à nora – tenho uma surpresa para vós.

Ela levantou o olhar.

Deus me valha, pensou. Só um homem de pedra não desejaria ter esta florzinha na cama. Juro que conseguiria fazê-la sorrir, e de qualquer forma, adoraria tentar.

– Tendes?

Henrique fez um gesto para o homem que retirou um pedaço de veludo cor de vinho do bolso, e despejou o conteúdo do saco sobre o fundo escarlate. Uma confusão de jóias, diamantes, esmeraldas, rubis, pérolas, correntes, cadeados, brincos e broches foi espalhada diante dos olhos deslumbrados de Catarina.

– Podeis escolher – incitou Henrique, num tom caloroso e íntimo. – É o meu presente privado, para devolver o sorriso ao vosso rosto bonito.

Assim que o ouviu, num instante estava sentada à mesa, diante do ourives que lhe mostrava artigos valiosos uns a seguir aos outros. Henrique observou-a com indulgência. Podia ser uma princesa com uma linhagem pura de aristocratas de Castela, enquanto ele era neto de um trabalhador; mas era uma rapariga que se deixava comprar, como qualquer outra. E ele dispunha dos meios para lhe agradar.

– Prata? – perguntou.

Ela olhou-o com um rosto sorridente

– Prata, não – respondeu.

Henrique recordou que esta era uma rapariga que vira o tesouro dos Incas ser deposto aos seus pés.

– Ouro, então?

– Sim, prefiro ouro.

– Pérolas?

Esboçou um trejeito com a boca.

Meu Deus, ela tem uma boca que apetece beijar, pensou.

– Não quereis pérolas? – inquiriu em voz alta.

– Não são as minhas preferidas – afiançou. Sorriu para ele. – Qual é a vossa pedra favorita?

Ela está a provocar-me, disse para si mesmo, espantado com a ideia. Está a brincar comigo, como faria com um tio indulgente. Está a lançar-me um isco como a um peixe.

– Esmeraldas?

Ela sorriu.

– Não. Isto – disse ela apenas.

Escolhera, num ápice, a peça mais valiosa do joalheiro, um colar de safiras do azul mais profundo, que fazia conjunto com uns brincos. Graciosamente, colocou o colar sobre a face macia para que ele pudesse olhar para os seus olhos e para as jóias. Deu um passo para se aproximar, para que sentisse o cheiro do cabelo, a água de flor de laranjeira dos jardins do Alhambra. Cheirava como uma flor exótica.

– Combinam com os meus olhos? – perguntou-lhe. – Os meus olhos são tão azuis como as safiras?

Ele respirou fundo, surpreendido com a violência da sua reacção.

– São. Serão vossos – respondeu, quase sufocando no desejo que sentia por ela. – Tereis estes e o que desejardes. Só tereis de dizer qual é o vosso... vosso... desejo.

O olhar que ela lhe lançou foi de felicidade pura.

– E as minhas damas de companhia, também?

– Chamai as vossas damas de companhia, elas que escolham.

Riu-se de prazer e correu para a porta. Ele deixou-a ir. Não confiava em si para ficar sozinho com ela na sala. À pressa, retirou-se para a sala e encontrou a mãe, que voltava da missa.

Ajoelhou-se e ela pousou-lhe os dedos na cabeça em sinal de bênção.

– Meu filho.

– Senhora, minha mãe.

Levantou-se. Ela apercebeu-se do rubor na sua face e da energia contida.

– Alguma coisa vos perturbou?

– Não!

Ela suspirou.

– É a rainha? É Isabel? – perguntou sem paciência. – Está a queixar-se do casamento de Margarida com o escocês?

– Não – respondeu ele. – Ainda não a vi hoje.

– Vai ter de se acostumar – proferiu. – Uma princesa não escolhe com quem se casa e quando sai de casa. Isabel sabê-lo-ia, se tivesse sido bem educada. Mas não foi.

Ele esboçou um sorriso cínico.

– Mas isso não é sua culpa.

O desdém da mãe era evidente.

– Nenhum bem poderia advir-lhe da mãe – retorquiu secamente. – Má linhagem, os Woodville.

Henrique encolheu os ombros e não disse nada. Nunca defendera a mulher perante a mãe – a sua malícia era tão permanente e tão impenetrável, que seria uma perda de tempo tentar fazê-la mudar de ideias. Nunca defendera a mãe perante a mulher; nunca teve de o fazer. A rainha Isabel nunca teceu nenhum comentário a respeito da difícil sogra ou do exigente marido. Aceitou-o, à mãe, ao governo autocrático, como se fossem riscos naturais, tão desagradáveis e inevitáveis como o mau tempo.

– Não deveis permitir que vos perturbe – avisou-o a mãe.

– Ela nunca me perturbou – respondeu ele, pensando na princesa que o perturbava.

Agora, tenho a certeza de que o rei gosta de mim, muito mais do que das filhas, e isso deixa-me feliz. Estou habituada a ser a filha preferida, o bebé da família. Agrada-me quando sou a favorita do rei, gosto de sentir que sou especial.

Quando percebeu que estava triste, por o meu séquito voltar para Espanha e por me deixarem em Inglaterra, passou a tarde comigo, mostrando-me a biblioteca, falando sobre os mapas, e por fim, oferecendo-me um requintado colar de safiras. Deixou-me escolher o que eu queria, da colecção do joalheiro, e disse que as safiras eram da cor dos meus olhos.

A princípio, não gostei muito dele, mas estou a habituar-me ao seu discurso abrupto e aos modos bruscos. É um homem cuja palavra é lei nesta corte, e nesta terra, e não deve agradecimentos a ninguém, excepto talvez à senhora sua mãe. Não tem amigos próximos, nem íntimos, à excepção dela e dos soldados que combateram com ele, que são agora os grandes senhores da sua corte. Não é meigo com a mulher, nem caloroso com as filhas, mas agrada-me que me dê atenção. Talvez venha a gostar dele, como uma filha. Já fico contente por reparar em mim. Numa corte como esta, que tudo gira em volta da sua aprovação, faz-me sentir uma princesa, quando me elogia, ou passa tempo comigo.

Se não fosse ele, julgo que me sentiria mais solitária. O príncipe, meu marido, trata-me como se fosse uma mesa ou uma cadeira. Nunca fala comigo, nunca me sorri, nunca inicia uma conversa, limita-se a responder. Penso que fui uma tola quando pensei que parecia um trovador. Parece efeminado, e essa é a verdade. Nunca levanta a voz mais do que um murmúrio, nunca diz nada que tenha interesse. Até pode falar francês e latim e uma dúzia de línguas, mas, se não tem nada para dizer, para que servem? Vivemos como estranhos e se não viesse ao meu quarto à noite, uma vez por semana, como se cumprisse uma obrigação, não me aperceberia de que estou casada.

Mostrei as safiras à irmã, a princesa Margarida, e ela roeu-se de inveja. Tenho de confessar ter cometido o pecado da vaidade e do orgulho. Não é correcto estar a exibi-las a ela; mas se alguma vez tivesse sido simpática, por palavras ou actos, não lhas mostraria. Quero que saiba que o pai me aprecia, mesmo que ela, a avó e o irmão não o façam. Mas tudo o que consegui foi aborrecê-la e a portar-me mal, e terei de confessar e de cumprir uma penitência.

O pior é que não me portei com a dignidade que uma princesa de Espanha deve demonstrar. Se não fosse tão vulgar, eu poderia ser melhor. Esta corte dança em volta do rei como se, no mundo, nada fosse mais importante do que o seu favor, e eu não devia adoptar o mesmo tipo de atitude. No mínimo, não devia estar a comparar-me com uma rapariga que é quatro anos mais nova do que eu e apenas uma princesa de Inglaterra, mesmo que se autodenomine rainha da Escócia em todas as oportunidades.

Os jovens príncipe e princesa de Gales terminaram a visita a Richmond e começaram a constituir a sua residência real no Castelo de Baynard. Catarina tinha os seus aposentos na parte de trás da casa, voltados para o jardim e o rio, com os criados, as damas de companhia espanholas, o capelão espanhol e a ama, e os aposentos de Artur estavam voltados para a cidade, com os criados, o capelão e o tutor. Encontravam-se, uma vez por dia, para jantar, enquanto os dois séquitos permaneciam em lados opostos do salão e se entreolhavam com desconfiança mútua, mais como inimigos, no meio de tréguas forçadas, do que como membros de um lar unido.

O castelo era gerido de acordo com as ordens de lady Margarida, a mãe do rei. Os dias de festa e de jejum, os entretenimentos e o horário diário, eram comandados por ela. Mesmo as noites em que Artur devia visitar a mulher, no quarto, foram designadas por ela. Não queria que o jovem casal ficasse exausto, mas também não pretendia que negligenciassem os seus deveres. Por isso, uma vez por semana, os criados e os amigos do príncipe escoltavam-no ao quarto da princesa e deixavam-no passar lá a noite. Para os dois jovens, a experiência era uma provação e um embaraço. Artur não se tornara mais habilidoso, Catarina aguentava a sua determinação silenciosa, o mais educada que conseguia. Mas um dia, no início de Dezembro, Catarina estava menstruada e disse-o a doña Elvira. A ama transmitiu ao criado de quarto do príncipe que este não podia visitar a cama da princesa durante uma semana; a infanta estava indisposta. Meia hora depois, todos, desde o rei, em Whitehall, ao criado da escarradeira do Castelo de Baynard, sabiam que a princesa de Gales estava com o período e que nenhuma criança fora concebida, e todos, do rei ao criado da escarradeira, se interrogaram, se a rapariga era ardente e forte e uma vez que tinha os períodos, claro que era fértil, se Artur seria capaz de cumprir a sua parte da obrigação.

Em meados de Dezembro, quando a corte se preparava para a grande festa de doze dias do Natal, Artur foi chamado pelo pai, sendo-lhe ordenado que se preparasse para partir para o Castelo de Ludlow.

– Presumo que pretendais levar a vossa mulher convosco – afirmou o rei, sorrindo para o filho, esforçando-se por parecer despreocupado.

– Como desejardes, senhor – respondeu Artur cuidadoso.

– O que desejais vós?

Depois de aguentar uma semana em que não lhe foi permitido aproximar-se da cama de Catarina, com toda a gente a comentar que não fora concebida uma criança – mas, para ter a certeza, ainda era cedo, e podia não ser culpa de nenhum dos dois –, Artur sentia-se embaraçado e desencorajado. Não voltara ao seu quarto, e ela não enviara nenhuma mensagem convidando-o. Não podia esperar por uma mensagem, sabia que era ridículo, uma princesa de Espanha não podia chamar o príncipe de Inglaterra; mas ela não sorrira nem o incentivara de forma alguma. Não recebera nenhuma mensagem a dizer-lhe para retomar as visitas, e não fazia ideia de quanto tempo duravam estes mistérios. Não havia ninguém a quem pudesse perguntar, e não sabia o que devia fazer.

– Ela não parece muito feliz – observou Artur.

– Tem saudades de casa – disse o pai. – Cabe-vos distraí-la. Levai-a convosco para o Castelo de Ludlow. Comprai-lhe presentes. É uma rapariga igual às outras. Elogiai-lhe a beleza. Contai-lhe piadas. Namoriscai-a.

Artur parecia desorientado.

– Em latim?

O pai lançou uma gargalhada ruidosa.

– Rapaz. Podeis fazê-lo em galês, se os vossos olhos sorrirem e estiverdes com uma erecção. Ela perceberá o que quereis dizer. Juro. É uma rapariga que sabe bem o que significa um homem.

Não houve alegria na resposta do filho.

– Sim, senhor.

– Se não a quereis junto de vós, não sois obrigado a levá-la este ano, sabeis. Devíeis casar e passar o primeiro ano separados.

– Isso era quando tinha catorze anos.

– Foi há um ano.

– Sim, mas...

– Então, quereis que vá convosco?

O filho corou. O pai olhava para o rapaz com pena.

– Vós desejai-la, mas tendes medo de que ela troce de vós? – sugeriu.

A cabeça loura inclinou-se e assentiu.

– E pensais que, se vós e ela estiverdes longe da corte e de mim, ela vai atormentar-vos.

Mais um sinal afirmativo.

– E as aias. E a ama.

– E o tempo vai custar a passar.

O rapaz ergueu o olhar, o rosto era um retrato da infelicidade.

– E vai aborrecer-se e ficar triste e transformar a vossa pequena corte em Ludlow numa prisão miserável para ambos.

– Se ela não gostar de mim... – disse, num tom de voz muito baixo.

Henrique pousou a mão pesada no ombro do filho.

– Oh, meu filho. Não importa o que pensa de vós – explicou. – Talvez a vossa mãe não fosse uma escolha minha, talvez eu não tenha sido a dela. Quando um trono está envolvido, o coração vem sempre em segundo lugar, se tem alguma importância. Ela sabe o que tem de fazer; e isso é a única coisa que importa.

– Oh, ela sabe tudo sobre isso! – rebentou o rapaz ressentido. – Ela não tem...

– Não tem... o quê?

– Vergonha nenhuma.

Henrique ficou sem ar.

– Ela é desavergonhada? É apaixonada? – Tentou disfarçar o desejo na voz, com uma repentina imagem lasciva da nora, nua e atrevida, em mente.

– Não! Ela porta-se como um homem que domina um cavalo – confessou Artur, com ar infeliz. – Como se fosse uma tarefa a cumprir.

Henrique controlou-se para não se rir às gargalhadas.

– Mas, pelo menos, fá-lo – afirmou. – Não tendes de lhe implorar, ou de a convencer. Ela sabe o que tem de fazer.

Artur voltou-se para a janela e observou o rio Tamisa gelado através da abertura em forma de seta.

– Não me parece que goste de mim. Só gosta dos amigos espanhóis, e de Maria, e talvez de Henrique. Vi-a rir-se e dançar com eles, como se se sentisse feliz na sua companhia. Conversa com os seus, é educada com todos os que encontra. Tem um sorriso para toda a gente. Eu raramente a vejo, e também não a quero ver.

Henrique deixou cair a mão no ombro do filho.

– Meu filho, ela não sabe o que pensa a vosso respeito – assegurou-lhe. – Está ocupada no seu pequeno mundo de vestidos e jóias e aquelas malditas espanholas coscuvilheiras. Quanto mais depressa vós e ela estiverdes sozinhos, mais depressa se entenderão. Podeis levá-la convosco para Ludlow e conhecer-vos.

O rapaz assentiu, mas não parecia convencido.

– Se é esse o vosso desejo, senhor – proferiu.

– Pergunto-lhe se ela quer ir?

A cor invadiu a face do jovem.

– E se ela disser que não?

O pai riu-se.

– Não vai dizer – prometeu. – Vereis.

Henrique estava certo. Catarina era demasiado princesa, para responder sim ou não a um rei. Quando este lhe perguntou se queria ir para Ludlow com o príncipe, ela respondeu que faria tudo o que o rei desejasse.

– Lady Margarida Pole ainda vive no castelo? – perguntou, com uma voz um pouco nervosa.

Ele franziu o sobrolho. Lady Margarida estava agora casada com sir Richard Pole, um dos sólidos cavaleiros Tudor e guardião do Castelo de Ludlow. Mas lady Margarida nascera Margarida Plantageneta, filha amada do duque de Clarence, prima do rei Eduardo e irmã de Eduardo de Warwick, cujo direito ao trono era muito superior ao do rei.

– Qual é o problema?

– Nenhum – respondeu apressada.

– Não tendes motivos para a evitar – disse ele com brusquidão. – O que foi feito, foi-o em meu nome, por ordens minhas. Não tendes culpa.

Ela corou como se falassem de um assunto vergonhoso.

– Eu sei.

– Não posso admitir que ninguém conteste o meu direito ao trono – declarou abruptamente. – Há demasiados a tentá-lo, dos York e Beaufort, e também dos Lancaster, e uma série interminável que tentam a sorte como pretendentes. Não conheceis este país. Somos casados dentro das mesmas famílias como muitos coelhos, dentro de uma coelheira. – Fez uma pausa para ver se se ria, mas ela franzia o sobrolho, seguindo o seu rápido francês. – Não admito que alguém reivindique, por pretensão de direitos, o que conquistei pela guerra – finalizou. – E também não admito que ninguém tente conquistá-lo.

– Pensei que fôsseis o rei legítimo – afirmou Catarina hesitante.

– Sou agora – replicou Henrique Tudor. – E é a única coisa que interessa.

– Fostes sagrado?

– Sou agora – repetiu com um sorriso amarelo.

– Mas sois de linhagem real?

– Tenho sangue real nas veias – retorquiu, numa voz dura. – Não é preciso medir se é muito ou pouco. Recolhi a coroa do meio do campo de batalha, estava aos meus pés, no meio da lama. Por isso, soube; todos souberam... todos viram que Deus me concedeu a vitória, porque eu era o rei que Ele escolheu. O arcebispo ungiu-me, porque também o sabia. Sou tão rei como qualquer outro da Cristandade, e muito mais do que a maioria, porque não me limitei a herdar, quando era bebé, o fruto da luta de outro homem. Deus concedeu-me o meu reino quando era um homem. É a minha justa recompensa.

– Mas tivestes de a reclamar...

– Eu reclamei o que era meu – disse por fim. – Conquistei o que era meu. Deus concedeu-me o que era meu. E fim de conversa.

Ela inclinou a cabeça perante a energia das palavras.

– Eu sei, senhor.

A sua submissão, e o orgulho que escondia, fascinavam-no. Pensou que nunca conhecera nenhuma jovem cujo rosto suave ocultasse as ideias como esta.

– Quereis ficar comigo? – perguntou Henrique com doçura, sabendo que não devia pedir-lhe tal coisa, rezando, mal as palavras lhe saíram da boca, para que respondesse «não» e silenciasse o seu desejo secreto por ela.

– Eu desejo o que Vossa Majestade desejar – respondeu com frieza.

– Presumo que quereis estar com Artur? – inquiriu, desafiando-a a negar.

– Como desejardes, senhor – replicou com firmeza.

– Dizei-me! Preferis ir para Ludlow com Artur, ou ficar comigo?

Ela sorriu, e não se deixava comprometer.

– Vós sois o rei – contestou calma. – Tenho de proceder como me ordenardes.

Henrique sabia que não devia mantê-la na corte, mas não resistia a brincar com a ideia. Consultou os conselheiros espanhóis, e percebeu que estavam divididos, e que discutiam entre si. O embaixador espanhol, que trabalhara tão arduamente para conseguir o difícil contrato de casamento, insistia que a princesa devia ir com o marido, e que devia ser vista como uma mulher casada, em qualquer circunstância. O confessor, que parecia ser o único a nutrir alguma ternura pela pequena princesa, defendeu que se devia permitir que o jovem casal permanecesse junto. A ama, a temível e difícil doña Elvira, preferia não sair de Londres. Ouvira dizer que Gales ficava a cerca de cento e sessenta quilómetros de distância, e que era uma terra de montanhas e rochedos. Se Catarina ficasse no Castelo de Baynard, e a casa se visse livre de Artur, podiam formar um pequeno enclave espanhol no centro da cidade, e o poder da ama seria inquestionável, podia dominar a princesa e a miniatura de corte espanhola.

A rainha ofereceu a sua opinião de que Catarina consideraria Ludlow demasiado frio e solitário, em meados de Dezembro, e sugeriu que talvez o jovem casal ficasse junto, em Londres, até à Primavera.

– Só quereis ter Artur junto de vós, mas tem de partir – disse-lhe Henrique com brusquidão. – Tem de aprender a reinar e não há melhor forma de aprender a governar Inglaterra do que governando o principado.

– Ainda é muito jovem, e é tímido com ela.

– Também tem de aprender a ser um marido.

– Vão ter de aprender a entender-se um com o outro.

– Então, é melhor que o aprendam em privado.

Por fim, foi a mãe do rei a dar a opinião decisiva.

– Mandai-a ir – disse para o filho. – Precisamos de um filho. Não vai fazê-lo, em Londres, sozinha. Mandai-a ir, com Artur, para Ludlow.

Sorriu.

– Deus sabe que lá não haverá mais nada para fazer.

– A Isabel teme que se sinta triste e só – observou o rei. – E o Artur tem medo que não se entendam.

– O que interessa isso? – questionou a mãe. – Que diferença faz? São casados e têm de viver juntos e conceber um herdeiro.

Ele dirigiu-lhe um sorriso rápido.

– Ela só tem dezasseis anos – continuou ele – e é o bebé da família, ainda tem saudades da mãe. Não fazeis concessões perante a sua juventude, pois não?

– Eu casei-me aos doze, e vós nascestes no mesmo ano – respondeu. – Ninguém me fez qualquer tipo de concessão. E, no entanto, sobrevivi.

– Duvido que fôsseis feliz.

– Não fui. Duvido que ela seja. Mas, de certeza, esse é o aspecto menos importante.

Doña Elvira disse-me que tenho de me recusar a ir para Ludlow. O padre Geraldini argumentou que era meu dever acompanhar o meu marido. O doutor de Puebla afirmou que a minha mãe desejaria que vivesse com o meu marido, que fizesse tudo para mostrar que o casamento é pleno, em palavras e actos. Artur, o imprestável suporte de feijoeiro, não disse nada, e o pai parece querer que seja eu a decidir; mas é um rei e eu não confio nele.

Tudo o que queria era voltar para casa, para Espanha. Quer estejamos em Londres ou a viver em Ludlow, vai fazer frio e vai chover sempre, o ar é húmido, não encontro nada de agradável para comer, e não percebo uma palavra do que as pessoas dizem.

Eu sei que sou a princesa de Gales e que serei rainha de Inglaterra. Isso é verdade, e será verdade. Mas, hoje, não consigo sentir-me muito feliz por isso.

– Devemos partir para o meu castelo em Ludlow – afirmou Artur desajeitadamente para Catarina. Estavam sentados lado a lado à mesa de jantar, o salão por baixo e a galeria por cima, e as largas portas repletas de pessoas que vieram da cidade para o entretenimento gratuito de assistir ao jantar da corte. A maioria das pessoas observava o príncipe de Gales e a jovem noiva.

Ela fez uma vénia com a cabeça, mas não olhou para ele.

– São essas as ordens do vosso pai? – perguntou.

– Sim.

– Então terei todo o gosto em ir – respondeu.

– Estaremos sozinhos, à excepção do guardião do castelo e da mulher. – Artur prosseguiu. Queria dizer que esperava que ela não se importasse, que desejava que não se aborrecesse nem ficasse triste ou, o pior de tudo, zangada com ele.

Ela olhou-o sem sorrir.

– E então?

– Espero que fiqueis satisfeita – gaguejou.

– Tudo o que o vosso pai desejar – replicou, sem hesitações, como que a lembrar-lhe que não eram mais do que o príncipe e a princesa, e não tinham direitos, nem poder.

Ele tossiu.

– Esta noite, vou visitar-vos no vosso quarto – afirmou.

Ela lançou-lhe um olhar tão azul e duro como as safiras que trazia à volta do pescoço.

– Como desejardes – retorquiu no mesmo tom neutro.

Ele chegou quando já estava deitada e doña Elvira deixou-o entrar no quarto, com um rosto de pedra, transmitindo a desaprovação em cada gesto. Catarina sentou-se na cama e observou enquanto o criado de quarto lhe tirava o roupão dos ombros e saía rapidamente, fechando a porta atrás de si.

– Vinho? – perguntou Artur. Temia que a voz tremesse.

– Não, obrigada – declinou ela.

O jovem chegou à cama, puxou os lençóis para trás, e deitou-se ao seu lado. Ela voltou-se para o olhar, e ele soube que corava sob o olhar inquiridor. Apagou a vela para ela não ver o seu pouco à-vontade. Uma ténue luz da tocha da sentinela, no exterior, entrava pelas ranhuras das venezianas, e depois desapareceu, à medida que o guarda se movia. Artur sentiu a cama mexer-se enquanto ela se deitava de costas e levantava a camisa de dormir. Sentiu-se como se fosse uma coisa para ela, um objecto sem importância, algo que tinha de suportar, para ser rainha de Inglaterra.

Atirou os cobertores para trás e saltou da cama.

– Não fico aqui. Vou para o meu quarto – disse com brusquidão.

– O quê?

– Não vou ficar aqui. Não sou desejado...

– Não sois desejado? Nunca disse que não éreis...

– É óbvio. Pelo vosso ar...

– Está escuro como breu! Como sabeis qual é o meu ar? E, já agora, vós também estais com ar de quem foi forçado a vir para aqui!

– Eu? Não fui eu quem enviou uma mensagem, que metade da corte leu, a dizer para não vir para a vossa cama.

Ouviu o suspiro dela.

– Não vos disse para não virdes. Precisava de lhes dizer para vos informarem... – exclamou embaraçada. – Estava naquela altura... tínheis de saber...

– A vossa ama disse ao meu criado que eu não podia vir para a vossa cama. Como achais que isso me fez sentir? O que pensais que pareceu aos olhos de todos?

– De que outra forma poderia dizer-vos? – perguntou ela.

– Dizíeis-me vós! – respondeu furioso. – Sem que todos ficassem a saber.

– Como podia? Como podia dizer uma coisa dessas? Ficaria muito envergonhada!

– Em vez disso, fiz uma figura ridícula!

Catarina saiu da cama e acalmou-se, pousando a mão no pilar gravado da cama.

– Meu senhor, peço desculpa se vos ofendi, não sei como estas coisas se fazem aqui... No futuro farei como desejardes...

Ele não disse nada.

Ela esperou.

– Vou-me embora – anunciou ele e bateu na porta, chamando o criado.

– Não! – O grito foi-lhe arrancado.

– O quê? – Ele voltou-se.

– Todos ficarão a saber – disse desesperada. – Vão saber que há alguma coisa errada entre nós. Saberão que viestes ter comigo. Se sairdes, vão pensar...

– Eu não vou ficar aqui! – gritou.

O seu orgulho veio ao de cima.

– Ides envergonhar-nos a ambos – berrou ela. – O que quereis que as pessoas pensem? Que vos desagrado, ou que sois impotente?

– Por que não? Se ambas são verdade? – Bateu à porta com mais força.

Ela arfou aterrorizada e caiu contra os pés da cama.

– Vossa Graça? – Ouviu-se um grito da sala exterior e a porta abriu-se para revelar o criado de quarto e dois pajens e, atrás, doña Elvira e uma dama de companhia.

Catarina cambaleou até à janela, de costas voltadas. Inseguro, Artur hesitou, olhando para trás, num pedido de ajuda, à espera de um sinal de que, afinal, podia ficar.

– Que vergonha! – exclamou doña Elvira, passando por Artur a correr, para cobrir os ombros de Catarina com um roupão. Quando estava ao seu lado, rodeando-a com o braço, olhando-o, Artur não podia voltar para a noiva; passou o limiar da porta e dirigiu-se aos seus aposentos.

Não o suporto. Não suporto este país. Não consigo viver aqui o resto da minha vida. Dizer-me que lhe desagrado! Atrever-se a falar comigo dessa maneira! Terá enlouquecido como um dos cães nojentos que andam por todo o lado? Esqueceu-se de quem eu sou? Esqueceu-se de quem é?

Estou tão furiosa com ele que me apetecia pegar numa cimitarra e cortar-lhe aquela estúpida cabeça. Se pensasse por um momento, saberia que todos no palácio, todos em Londres, todos neste país vulgar, se vão rir de nós. Dirão que sou feia e que não consigo agradar-lhe.

Choro de raiva, não de sofrimento. Enfio a cabeça na almofada da minha cama, para ninguém me ouvir e dizer a toda a gente que a princesa adormeceu a chorar, porque o marido não quis dormir com ela. Sufoco com as lágrimas e a raiva, estou tão zangada com ele!

Pouco depois paro, limpo o rosto e sento-me. Sou uma princesa por nascimento e por casamento, não devo desistir. Terei dignidade, mesmo que ele não a tenha. Ele é jovem, um jovem inglês, como saber como se portar? Penso na minha casa sob o luar, de como as paredes e os rendilhados resplandecem de branco e a pedra amarela está tingida de creme. Aquele é um palácio, onde as pessoas sabem como se portar, com graça e dignidade. Desejava de todo o coração ainda lá estar.

Recordo-me que observava uma grande lua amarela reflectida na água do jardim da sultana. Como uma tola, sonhava que era casada.

Oxford, Natal de 1501

 

Partiram alguns dias antes do Natal. Falavam um com o outro, em público, com toda a cortesia, e ignoravam-se, quando ninguém via. A rainha pediu que ficassem, pelo menos, para a festa dos doze dias, mas Sua Alteza, a Mãe do Rei decidira que deviam passar o Natal em Oxford, concederia uma oportunidade ao país de ver o príncipe e a nova princesa de Gales, e a palavra da mãe do rei era lei.

Catarina viajou em liteira, abanada por solavancos impiedosos, por estradas congeladas, com as mulas a esforçarem-se para atravessar baixios, gelada até aos ossos, por mais tapetes e peles em que se embrulhasse. A mãe do rei decidira que não devia montar, para evitar que sofresse uma queda. A esperança não confessada era que Catarina estivesse grávida. Catarina não disse nada para confirmar nem para negar a esperança. Artur era o retrato do silêncio.

Ficaram em quartos separados durante a viagem até Oxford, e em quartos separados no Magdalene College, quando chegaram. Os coristas estavam prontos, as cozinhas preparadas, a rica hospitalidade de Oxford pronta para fazer a recepção; mas o príncipe e a princesa de Gales estavam tão frios e apáticos como o tempo.

Jantaram juntos, sentados na enorme mesa voltados para o salão, e o número máximo de habitantes de Oxford que conseguiu entrar na galeria ocupou os seus lugares, e observou a princesa colocar pequenos pedaços de comida na boca e voltar as costas ao marido, enquanto ele procurava companhia e alguém com quem pudesse conversar, como se jantasse sozinho.

Mandaram entrar os bailarinos e os acrobatas, os mímicos e os actores. A princesa sorriu de forma agradável, mas nunca soltou uma gargalhada, oferecia pequenas bolsas com moedas espanholas aos artistas, agradeceu-lhes pela sua presença; mas não se voltou uma única vez para o marido, para o questionar se estava a gostar da noite. O príncipe andava pela sala, tratando afavelmente e com simpatia os grandes senhores da cidade. Falou em inglês, e a noiva de língua espanhola teve de esperar que alguém falasse com ela em francês ou latim, se o fizessem. Mas, em vez disso, reuniam-se à volta do príncipe, conversando e contando piadas e rindo-se, quase como se rissem dela e não quisessem que percebesse a anedota. A princesa sentou-se sozinha, rígida, na cadeira de madeira maciça gravada, de cabeça erguida e um leve sorriso desafiador nos lábios.

Por fim, chegou a meia-noite e a longa noite terminava. Catarina levantou-se da cadeira e observou a corte a mergulhar em vénias e reverências. Dirigiu uma pequena reverência espanhola ao marido, enquanto a ama permanecia atrás dela, com um rosto de pedra.

– Desejo-vos boa noite, Vossa Graça – disse a princesa em latim, numa voz clara e numa pronúncia perfeita.

– Eu irei ao vosso quarto – disse ele. Ouviu-se um murmúrio de aprovação; a corte queria um príncipe ardente.

A cor aflorou ao seu rosto perante o anúncio público. Não havia nada que pudesse dizer. Não podia recusá-lo; mas a forma como se levantou e saiu da sala não lhe augurava uma recepção calorosa, quando estivessem a sós. As aias fizeram reverências e seguiram-na, num acesso ofendido, seguindo-a como se fosse um véu multicolor que arrastava. A corte sorriu perante o mau feitio da princesa.

Artur foi ter com ela, meia hora depois, estimulado pela bebida e ressentimento. Encontrou-a vestida, à espera, junto à lareira, com a ama ao lado, o quarto iluminado por velas, as aias conversavam e jogavam às cartas, como se estivessem a meio da tarde. Ela não era uma jovem que fazia tenções de se deitar.

– Meu senhor, boa noite – saudou, levantando-se e fazendo uma reverência quando ele entrou.

Artur teve de corrigir o passo que dera, ao retirar-se no primeiro encontro. Estava pronto para ir para a cama, de camisa de dormir, apenas com um roupão por cima dos ombros. Tinha consciência dos pés descalços. Catarina estava resplandecente, com o melhor vestido de noite. As aias voltaram-se e olharam-no, com expressão pouco amigável. Ele tinha consciência da camisa de dormir, das pernas nuas e de uma gargalhada mal disfarçada de um dos homens atrás de si.

– Pensava que estivésseis deitada – disse.

– Claro, posso ir para a cama – respondeu ela com cortesia gelada. – Eu ia para a cama. Já é tarde. Mas, quando anunciastes publicamente que viríeis visitar-me, julguei que estivésseis a pensar trazer a corte convosco. Considerei que estivésseis a convidar todos para vir aos meus aposentos. Por que motivo o anunciaríeis em voz alta, para ouvirem?

– Não o anunciei em voz alta!

Ela franziu a sobrancelha, num sinal silencioso de contradição.

– Vou passar aqui a noite – afirmou teimoso. Foi para porta do quarto. – Estas senhoras podem-se retirar, já é tarde. – Fez sinal aos seus homens. – Deixem-nos. – Entrou no quarto fechando a porta atrás de si.

Ela seguiu-o e também fechou a porta, deixando para trás os rostos brancos e escandalizados das aias. De costas para a porta, observou-o a despir o roupão e camisa para ficar nu, e subir para a cama. Aconchegou as almofadas e encostou-se, de braços cruzados contra o peito, como um homem que aguardava pelo entretenimento.

Chegou a vez de ela se sentir desconfortável.

– Vossa Graça...

– E melhor despirdes-vos – ameaçou-a. – Como dizeis, é muito tarde.

Ela voltou-se para um lado e depois para o outro.

– Vou chamar doña Elvira.

– Ide. E chamai seja quem for que vos despe. Não vos preocupeis comigo, por favor.

Catarina mordeu o lábio. Ele conseguiu perceber a sua insegurança. Não suportava ficar nua diante dele. Voltou-se e saiu do quarto.

Ouviu-se um tagarelar irritante em espanhol no quarto ao lado. Artur sorriu, calculou que devia estar a desimpedir o quarto das aias e a despir-se aí. Quando voltou, verificou que estava certo. Trazia uma camisa branca enfeitada com renda sofisticada e o cabelo preso numa longa trança, que lhe caía pelas costas. Parecia mais uma menina do que a princesa altiva que fora há alguns momentos, e sentiu o desejo invadi-lo, com outro sentimento: ternura.

Ela olhou para ele, com ar irritado.

– Tenho de dizer as minhas orações – disse. Foi para o oratório e ajoelhou-se. Ele observou-a a baixar a cabeça sobre as mãos unidas e murmurar. Pela primeira vez, a irritação abandonou-o e pensou no quão difícil devia ser para ela. O seu pouco à-vontade e receio não eram nada quando comparados com os dela: sozinha numa terra estranha, à mercê de um rapaz, alguns meses mais novo, sem amigos e sem família, muito longe de tudo e de todos que conhecia.

A cama estava quente. O vinho que bebera, para lhe dar coragem, fazia-lhe sono. Recostou-se na almofada. As orações estavam a demorar muito tempo, mas era bom para um homem ter uma mulher espiritual. Fechou os olhos ao pensar nisso. Quando voltasse para a cama, pensou que iria possuí-la de forma confiante, mas com gentileza. Era Natal, devia tratá-la bem. Sentia-se só e com medo. Seria generoso. Pensou calorosamente em como seria amoroso, e no quão grata lhe ficaria. Talvez aprendessem a dar prazer um ao outro, talvez ele a fizesse feliz. A sua respiração tornou-se mais intensa, e começou a ressonar alto. Adormeceu.

Catarina olhou em volta, no meio das orações e sorriu em triunfo. Em seguida, em silêncio absoluto, subiu para a cama, deitando-se ao seu lado e, compondo-se para que nem a bainha da camisa de dormir lhe tocasse, preparou-se para dormir.

Pensavas que me embaraçarias à frente das minhas aias e da corte. Pensaste que me envergonhavas e dominavas. Mas eu sou uma princesa de Espanha, conheci e vi coisas que tu, neste país pequeno e seguro, neste minúsculo refúgio presunçoso, nunca sonharias. Sou a infanta, a filha dos dois monarcas mais poderosos da Cristandade que, sozinhos, derrotaram a maior ameaça que alguma vez marchou contra ela. Durante setecentos anos os mouros ocuparam Espanha, um império muito mais poderoso do que o dos romanos, e quem os repeliu? A minha mãe! O meu pai! Por isso, não penses que tenho medo de ti, seu príncipe pétala de rosa, ou seja lá o que for que te chamam. Nunca me rebaixarei ao ponto de fazer algo que uma princesa de Espanha não devesse fazer. Nunca serei subordinada nem vingativa. Mas, se me desafiares, derrotar-te-ei.

De manhã, Artur não lhe dirigiu a palavra, o seu orgulho de rapaz estava profundamente ferido. Ela envergonhara-o na corte do pai, recusando admiti-lo nos aposentos, e agora em privado. Sentia que lhe preparara uma armadilha, o fizera passar por idiota e que se estaria a rir dele. Levantou-se e saiu, num silêncio taciturno. Foi à missa e não a olhou nos olhos, foi à caça e esteve fora o dia todo. Não falou com ela à noite. Assistiram a uma peça, sentados lado a lado, sem trocar uma palavra. Permaneceram uma semana em Oxford e não trocaram mais de doze palavras em cada dia. Ele fez uma promessa amarga a si mesmo, a de que nunca mais voltaria a falar com ela. Teria um filho, se pudesse, humilhá-la-ia de todas as formas possíveis, mas nunca mais lhe daria uma palavra, e nunca, nunca mais dormiria na sua cama.

Quando chegou a manhã em que deviam mudar-se para Ludlow, o céu estava carregado de nuvens cinzentas, pesadas, indiciando neve. Catarina passou a porta do College e encolheu-se, ao sentir o ar gelado e húmido bater-lhe no rosto. Artur ignorou-a.

Saiu para o pátio onde a comitiva preparada a aguardava. Hesitou frente à liteira. Ele pensou que era como uma prisioneira, hesitando perante uma carroça. Não tinha outra opção.

– Não vai estar muito frio? – perguntou.

Ele olhou para ela de rosto sério.

– Tereis de vos habituar ao frio, não estais em Espanha.

– Com certeza.

Fechou as cortinas da liteira. Lá dentro, havia mantas onde se podia embrulhar e almofadas para se recostar, mas não tinha um ar acolhedor.

– Vai ficar bastante pior do que está agora – disse ele, alegre. – Muito mais frio, chove ou saraiva ou neva, e fica mais escuro. Em Fevereiro, só temos algumas horas de luz do dia, e depois há os nevoeiros gelados, que transformam o dia em noite, por isso está sempre cinzento.

Ela voltou-se e olhou-o.

– Não podemos partir noutro dia?

– Concordastes vir – censurou-a. – Eu ficaria contente por vos deixar em Greenwich.

– Fiz o que me ordenaram.

– E aqui estais. A seguir a viagem, como nos foi ordenado.

– Vós, pelo menos, podeis mexer-vos e manter-vos quente – comentou, queixando-se. – Não posso ir a cavalo?

– Sua Alteza, a Mãe do Rei, disse que não.

Ela fez uma expressão de desagrado, mas não discutiu.

– A escolha é vossa. Quereis que vos deixe aqui? – perguntou-lhe com brusquidão, como se tivesse pouco tempo para aquelas incertezas.

– Não – respondeu ela. – Claro que não. – Subiu para a liteira, puxando as mantas para cobrir os pés e colocando-as em volta dos ombros.

Artur ia à frente, quando saíram de Oxford, fazendo vénias e sorrindo para as pessoas que vieram para o saudar. Catarina fechou as cortinas da liteira, para se proteger do vento frio e dos olhares curiosos, e não queria mostrar o rosto.

Pararam para almoçar numa casa enorme, a meio do caminho, e Artur foi comer sem esperar para a ajudar a sair da liteira. A dona da casa, baralhada, saiu e dirigiu-se à liteira, encontrando Catarina com dificuldade em sair, pálida e com os olhos vermelhos.

– Princesa, estais bem? – inquiriu a mulher.

– Tenho frio – replicou Catarina, com ar infeliz. – Estou gelada. Acho que nunca senti tanto frio.

Quase não comeu, não conseguiram convencê-la a beber vinho. Parecia estar prestes a cair de exaustão; mas, logo que acabaram de comer, Artur continuou viagem, ainda tinham de percorrer trinta e dois quilómetros, antes de cair a noite, que no Inverno chegava cedo.

– Não podeis recusar? – perguntou-lhe María de Salinas num sussurro apressado.

– Não – respondeu a princesa. Levantou-se da cadeira sem dizer mais nada. Mas quando abriram a porta de madeira, para saírem para o pátio, pequenos flocos de neve esvoaçaram na sua direcção.

– Não podemos viajar com este tempo, em breve será noite e perdemo-nos no caminho! – exclamou Catarina.

– Eu não perco o caminho – exclamou Artur, e recomeçou a andar no cavalo. – Vós deveis seguir-me!

A dona da casa mandou que um criado fosse, de imediato, buscar uma pedra aquecida para colocar sob os pés de Catarina, na liteira. A princesa subiu, embrulhou as mantas à volta dos ombros e escondeu as mãos.

– Tenho a certeza de que está impaciente por ir para Ludlow para vos mostrar o castelo – assegurou a mulher, tentando dar a melhor interpretação a uma situação deplorável.

– Está impaciente por me mostrar o seu desprezo – desabafou Catarina; mas teve o cuidado de o dizer em espanhol.

Deixaram o calor e as luzes da casa grande e ouviram as portas a bater atrás de si, enquanto voltavam as cabeças dos cavalos para ocidente, e para o Sol pálido que mergulhava no horizonte. Passavam duas horas do meio-dia, mas o céu estava tão carregado de nuvens de neve que caía uma luz cinzenta, sinistra, sobre a paisagem irregular. A estrada serpenteava à frente da comitiva, estradas castanhas sobre campos castanhos, ambos brancos sob a neblina provocada pela queda de neve. Artur cavalgava à frente, cantando, feliz, a liteira de Catarina avançava atrás. A cada passo, as mulas inclinavam a liteira e ela tinha de manter uma mão de fora, para se segurar, e os dedos ficaram gelados, depois, com cãibras, roxos devido ao frio. As cortinas protegiam-na dos flocos de neve, mas não dos insistentes e penetrantes pingos. Se afastasse as cortinas para observar os campos, veria uma espiral de brancura, à medida que os flocos de neve dançavam e rodeavam a estrada, o céu cada vez mais cinzento, a cada minuto que passava.

O Sol brilhava contra um céu branco e o mundo ficava mais sombrio. A neve e as nuvens densificavam-se sobre o pequeno grupo que cavalgava abrindo caminho, com dificuldade, por uma terra alva sob um céu cinzento.

O cavalo de Artur seguia à frente, o príncipe montava com facilidade na sela, com uma mão numa luva a segurar as rédeas, a outra, o chicote. Vestia roupa interior resistente de lã, por baixo da jaqueta de pele espessa, e botas quentes de pele macia. Catarina observava-o, a montar, à frente. Sentia demasiado frio e tristeza para ficar ressentida. Mais do que qualquer outra coisa, desejava que lhe dissesse que a viagem estava quase a terminar, que tinham chegado.

Passou uma hora, as mulas continuavam pela estrada, de cabeças vergadas, para se protegerem do vento que lhes atirava flocos de neve contra as orelhas, e para dentro da liteira. A neve tornava-se mais espessa, enchendo o ar e esvoaçando para as marcas deixadas pelas carroças. Catarina estava encolhida sob os cobertores, deitada como uma criança, com a pedra que arrefecia sobre o estômago, de joelhos dobrados, com as mãos geladas, de rosto voltado para baixo, envolvida nas peles e mantas. Sentia os pés gelados, havia uma abertura nos cobertores, nas costas, e de vez em quando tremia, ao sentir uma corrente de ar gelado.

À volta, do lado de fora da liteira, ouvia os homens a conversar e a rir do frio, jurando que comeriam bem, quando o séquito chegasse a Burford. As vozes pareciam vir de muito longe; Catarina adormeceu devido ao frio e à exaustão.

Acordou tonta quando a liteira foi pousada no chão e as cortinas se abriram. Uma corrente de ar gelado percorreu-a, e baixou a cabeça, gritando de desconforto.

– Infanta? – chamou doña Elvira. A ama cavalgara na mula, o exercício mantivera-a quente. – Infanta? Graças a Deus, chegámos.

Catarina não queria levantar a cabeça.

– Infanta, esperam-vos para vos saudar.

Mas Catarina não queria levantar a cabeça.

– O que é isto? – Era a voz de Artur, vira a liteira ser pousada no chão e a ama a inclinar-se para dentro. Percebeu que sob a pilha de cobertores não se vislumbrava qualquer movimento. Assustado, pensou que a princesa adoecera. María de Salinas lançou-lhe um olhar reprovador.

– Que se passa?

– Não é nada. – Doña Elvira endireitou-se e colocou-se entre o príncipe e a sua jovem mulher, protegendo Catarina, enquanto ele saltava do cavalo e se encaminhava para junto dela.

– A princesa esteve a dormir, está a arranjar-se.

– Vou vê-la – replicou. Afastou a mulher para o lado com uma mão firme e ajoelhou-se ao lado da liteira.

– Catarina? – perguntou calmo.

– Estou gelada de frio – disse ela numa voz fina. Levantou a cabeça e ele verificou que estava branca como a neve e tinha os lábios roxos.

– Tenho tanto f... frio que morrerei e depois ficareis feliz. Podeis s... sepultar-me neste país horrível e c... casar com uma estúpida e gorda mulher inglesa. E eu nunca verei... – começou a soluçar.

– Catarina? – Ele estava baralhado.

– Nunca mais vou voltar a ver a minha m... mãe. Mas ela saberá que me matastes com o vosso país miserável e a vossa crueldade.

– Eu não fui cruel – reagiu de imediato, cego à multidão de cortesãos que se juntavam à sua volta. – Por Deus, Catarina, não fui eu!

– Fostes cruel. – Ela levantou a cara dos cobertores. – Fostes cruel porque...

Foi o seu rosto triste, pálido, coberto de lágrimas que lhe tocou mais do que as palavras alguma vez podiam fazê-lo. Parecia uma das irmãs, quando a avó as repreendia. Não parecia uma princesa de Espanha irritante e insultuosa, mas uma rapariga que fora provocada até às lágrimas, e percebeu que fora ele quem a provocara, a fizera chorar, e a deixara na liteira gelada, toda a tarde, enquanto cavalgava, deliciado com a ideia de ela estar desconfortável.

Debruçou-se sobre os cobertores e puxou a sua mão gelada. Os dedos estavam entorpecidos pelo frio. Ele sabia que procedera mal. Levou os dedos roxos dela à boca e beijou-os, depois encostou-os aos lábios e soprou ar quente para cima deles.

– Deus me perdoe – disse. – Esqueci-me de que era marido. Não sabia que tinha de ser um marido. Não percebi que vos podia fazer chorar. Nunca mais o farei.

Ela pestanejou, com os olhos azuis cheios de lágrimas por chorar.

– O quê?

– Eu procedi mal. Estava zangado, mas errado. Deixai-me levar-vos para dentro e vou dizer-vos como lamento e nunca mais voltarei a ser indelicado convosco.

De imediato ela tentou libertar-se das mantas e Artur retirou-as das suas pernas. Estava com tantas cãibras e tão gelada que tropeçou, quando tentou pôr-se de pé. Ignorando os protestos murmurados da ama, ele pegou-lhe em braços e levou-a como a uma noiva, para o salão.

Pousou-a, com cuidado, diante das chamas da lareira, gentilmente retirou-lhe o capuz, desapertou-lhe a capa, esfregou-lhe as mãos. Com um gesto, mandou embora as criadas que viriam despir-lhe a capa e ofereceu-lhe vinho. Criou um pequeno círculo de paz e silêncio ao seu redor, e observou a cor a voltar à sua face pálida.

– Desculpai-me – pediu, com sinceridade. – Eu estava muito, muito zangado convosco, mas nunca devia ter-vos trazido até tão longe com um tempo tão mau e nunca ter-vos deixado apanhar frio. Foi muito mau da minha parte.

– Eu perdoo-vos – murmurou ela, com um sorriso a iluminar-lhe o rosto.

– Não sabia que tinha de tomar conta de vós. Não sabia. Tenho-me portado como uma criança, uma criança desagradável. Mas agora sei, Catarina. Nunca mais voltarei a ser desagradável convosco.

Ela assentiu.

– Oh, por favor. E vós também tendes de me perdoar. Tenho sido antipática para convosco.

– Tendes?

– Em Oxford – murmurou ela, muito baixinho.

Ele fez um sinal afirmativo.

– E o que tendes a dizer-me?

Ela ergueu os olhos e olhou-o. Ele não se mostrava ofendido. Ainda era um rapaz, com o sentido apurado de justiça de um rapaz. Precisava de um pedido de desculpas apropriado.

– Peço imensa, imensa desculpa – replicou, pronunciando apenas a verdade. – Não me portei bem, e de manhã arrependi-me, mas não vos podia dizer.

– Vamos para a cama, agora? – sussurrou-lhe, com a boca muito perto do ouvido dela.

– Podemos?

– Se eu disser que estais doente!

Ela aceitou e não disse mais nada.

– A princesa não se sente bem devido ao frio – anunciou Artur. – Doña Elvira vai levá-la para o quarto, e janto lá, sozinho com ela, mais tarde.

– Mas as pessoas vieram para vos ver, Vossa Graça... – interveio o anfitrião. – Organizaram entretenimentos, e alguns diálogos que gostavam que ouvísseis...

– Eu vejo-os, agora, no salão, e amanhã também cá ficamos. Mas a princesa tem de ir já para os seus aposentos.

– Com certeza.

Houve um corrupio em volta da princesa, enquanto as damas de companhia, conduzidas por doña Elvira, a escoltavam ao quarto. Catarina olhou para trás, para Artur.

– Por favor, vinde jantar aos meus aposentos – disse de forma clara para a ouvirem. – Quero ver-vos, Vossa Graça.

Era tudo para ele: ouvi-la admitir em público o seu desejo por ele. Fez uma vénia perante o elogio e encaminhou-se para o grande salão, pedindo uma caneca de cerveja e recebendo, com simpatia, a meia dúzia de homens que se reuniram para o ver, e depois, pedindo desculpas, saiu e foi para o quarto dela.

Catarina esperava-o, sozinha, ao pé da lareira. Mandara embora as damas de companhia, as criadas, não havia ninguém para os servir, estavam sozinhos. Ele quase se retraiu ao ver o quarto vazio; os príncipes e princesas Tudor nunca eram deixados a sós. Mas ela banira os criados que serviriam à mesa, dispensara as damas de companhia que jantariam com eles. Até mandara embora a ama. Não havia ninguém para ver o que fizera com os aposentos, nem como pusera a mesa.

Cobrira a mobília de madeira maciça com faixas de tecido de cores vivas, cortara tiras de tecido das tapeçarias para cobrir as paredes geladas, para que o quarto se assemelhasse a uma tenda magnificamente decorada.

Ordenara-lhes que serrassem as longas pernas da mesa, para que esta ficasse da altura de um escabelo, uma peça de mobiliário ridícula. Colocara grandes almofadas em ambas as pontas, como se se fossem reclinar como selvagens para comer. O jantar estava na mesa, próximo do calor dos troncos que ardiam, como se fosse uma festa bárbara, havia velas por todo o lado e um forte cheiro a incenso, tão pesado como o de uma igreja num dia de festa.

Artur ia começar a queixar-se da extravagância selvagem de serrar a mobília; mas fez uma pausa. Talvez não fosse uma loucura infantil; ela tentava mostrar-lhe alguma coisa.

Estava vestida de modo extraordinário. Na cabeça, um cordão entrançado, feito com as melhores sedas, torcidas e amarradas como um diadema, com uma ponta caída atrás, que prendera ao acaso, num dos lados do toucado, como se fosse puxá-lo para a cara, como um véu. Em vez de um vestido decente, uma simples camisa da melhor e mais leve seda, em tom azul-fumado, tão fina que quase vislumbrava, através do tecido, a palidez da sua pele. Sentiu as batidas do coração a acelerar quando percebeu que estava nua, sob a camada de seda. Por baixo da camisa, usava meias – como as meias de homem – mas nada semelhantes às meias de homem, porque eram onduladas e partiam das ancas magras, onde eram apertadas com um fio dourado, indo até aos pés, onde apertavam de novo, deixando-lhe os pés semidescalços nuns elegantes chinelos carmins, trabalhados com fio dourado. Olhou-a de cima a baixo, do turbante bárbaro aos chinelos turcos, e ficou sem fala.

– Não gostas das minhas roupas? – perguntou Catarina, sem rodeios, e ele era demasiado inexperiente para reconhecer a dimensão do embaraço que ela quase sentia.

– Nunca vi nada assim antes – gaguejou ele. – São roupas árabes? Mostra-me!

Ela voltou-se, olhando-o por cima do ombro, voltando-se para o mirar de frente.

– Usamo-las em Espanha – disse. – A minha mãe também. São mais confortáveis do que os vestidos, e mais higiénicas. Podem ser lavadas, ao contrário dos veludos e do damasco.

Ele assentiu, sentindo, então, um leve odor a água de rosas que emanava da seda.

– E são frescas quando faz calor, durante o dia – acrescentou.

– São... lindas. – Quase disse «bárbaras» e ficou satisfeito por não o proferir, quando os olhos dela se iluminaram.

– Achas?

– Sim.

Ela levantou os braços e deu uma volta para lhe mostrar a sensação das meias e a leveza da camisa.

– Costumas usá-las para dormir?

Ela riu-se.

– Usamo-las quase sempre. A minha mãe usa-as debaixo da armadura, são mais confortáveis do que qualquer outra coisa, e ela não podia usar vestidos, debaixo daquele ferro.

– Pois não...

– Quando recebemos embaixadores cristãos, ou em grandes ocasiões de Estado, ou quando a corte está em festa, usamos vestidos no Natal, quando está frio. Mas nos nossos aposentos, e sempre, no Verão, quando partimos em campanha, vestimos roupas mouriscas. São fáceis de fazer e de lavar, fáceis de transportar e mais confortáveis para vestir.

– Aqui, não as podes usar – observou Artur. – Lamento. Mas a Sua Alteza, a Mãe do Rei, opor-se-ia, se soubesse que as tens.

Ela fez um sinal com a cabeça.

– Eu sei. A minha mãe opôs-se a que as trouxesse. Mas queria alguma coisa que me lembrasse a minha casa e pensei que podia guardá-las no armário sem dizer nada a ninguém. E esta noite, pensei que tas podia mostrar. Mostrar-me a ti, e como costumava ser.

Catarina afastou-se para o lado e chamou-o para a mesa com um gesto. Ele sentiu-se demasiado grande, demasiado desajeitado, e parou e tirou as botas de montar e caminhou descalço sobre os ricos tapetes. Ela fez um gesto de aprovação e pediu-lhe que se sentasse. Ele instalou-se numa das almofadas bordadas a ouro.

Sentou-se em frente a ele e passou-lhe uma taça de água perfumada, com um guardanapo branco. Ele mergulhou os dedos e limpou-os. Ela sorriu e ofereceu-lhe uma travessa dourada com comida. Era um prato da sua infância, pernas de frango assadas, rins apimentados, com fatias de pão branco; um jantar inglês. Mas ela fizera-os servir doses pequenas, em pratos individuais, em cubos apetitosos, muito bem dispostos. Cortara rodelas de maçã que servira com a carne e adicionara algumas carnes preciosamente condimentadas, ao lado de rodelas de ameixas doces. Fizera os possíveis para lhe servir uma refeição espanhola, com as delícias e luxos do gosto mouro.

Artur foi perdendo os preconceitos.

– Isto está... lindo – afirmou, procurando uma palavra para o descrever. – É... como um quadro. Tu és como... – Não conseguia lembrar-se de nada que alguma vez tivesse visto que se assemelhasse a ela. Depois, ocorreu-lhe uma imagem. – És como uma pintura que uma vez vi numa travessa – disse. – Um tesouro da minha mãe, que veio da Pérsia. És igual. Estranha e muito amorosa.

Ela sorriu com os elogios.

– Quero que percebas – replicou, falando em latim. – Quero que percebas o que eu sou. Cuiusmodi sum.

– O que tu és?

– Sou a tua esposa – assegurou-lhe. – Sou a princesa de Gales, serei a rainha de Inglaterra. Serei uma mulher inglesa. Esse é o meu destino, mas também sou a infanta de Espanha, do al-Andalus.

– Eu sei.

– Tu sabes, mas não sabes. Não sabes nada sobre Espanha, não sabes nada sobre mim. Quero explicar-me. Quero que saibas como é Espanha. Sou uma princesa de Espanha. A favorita do meu pai. Quando jantamos a sós, comemos assim. Quando estamos em campanha, vivemos em tendas e sentamo-nos diante de braseiros como estes, e andámos em campanha durante os anos da minha vida, até aos meus sete anos.

– Mas sois uma corte cristã – protestou ele. – Sois uma potência da Cristandade. Tendes cadeiras, cadeiras normais, deveis comer sentados a mesas normais.

– Só nos banquetes de Estado – respondeu ela. – Quando estamos nos aposentos privados, vivemos assim, como mouros. Oh, damos as graças, agradecemos ao Deus único na divisão do pão. Mas não vivemos como vocês em Inglaterra. Temos bonitos jardins repletos de fontes e de água corrente. Temos salas nos palácios com embutidos de pedras preciosas e inscrições em letras de ouro contando belas verdades, através de poemas. Temos casas de banho com água quente para nos lavarmos e com vapor espesso para encher a sala perfumada, temos casas de gelo que são abastecidas, no Inverno, com neve da serra, para que a nossa fruta e as bebidas estejam frescas no Verão.

As palavras eram tão sedutoras como as imagens.

– Tu fazes-te soar tão estranha – disse ele, relutante. – É como um conto de fadas.

– Estou a aperceber-me de quão estranhos somos um para o outro – afirmou Catarina. – Pensei que o teu país fosse como o meu, mas é bastante diferente. Penso que somos mais parecidos com os persas do que com os alemães. Somos mais árabes do que visigodos. Talvez pensasses que eu seria uma princesa como as tuas irmãs, mas sou muito, muito diferente.

Ele acenou.

– Vou ter de aprender os teus costumes – propôs de forma hesitante. – Como tu vais ter de aprender os meus.

– Eu serei rainha de Inglaterra, terei de me tornar inglesa. Mas quero que conheças o que eu era, quando criança.

Artur anuiu.

– Tiveste muito frio hoje? – perguntou. Estava a ser invadido por um sentimento novo, estranho, como um peso no estômago. Percebeu que era desconforto, pela ideia de ela se sentir infeliz.

Ela olhou-o nos olhos, sem rodeios.

– Sim – respondeu. – Tive muito frio. E, depois, pensei que fui desagradável contigo e senti-me muito infeliz. E, então, pensei que estava longe de casa, do calor, do sol e da minha mãe e que sentia muitas saudades de casa. Hoje foi um dia horrível. Hoje tive um dia horroroso.

Ele procurou a mão dela.

– Posso confortar-te?

Os seus dedos encontraram os dele.

– Tu confortaste – disse. – Quando me trouxeste para a lareira e me pediste desculpa. Tu confortas-me. Vou acreditar que o vais fazer sempre.

Ele puxou-a para si; as almofadas eram macias e confortáveis, deitou-a a seu lado e puxou com cuidado a seda que enrolara à volta da cabeça. Esta desapertou-se e os ricos entrançados vermelhos soltaram-se. Ele tocou-lhes com os lábios, em seguida, na boca doce que tremia, nos olhos, de pestanas cor de areia, nas sobrancelhas claras, nas veias azuis das têmporas, nos lóbulos das orelhas. Depois, sentindo o desejo invadi-lo, beijou-lhe a cavidade na base do pescoço, os ossos delicados das clavículas, a carne quente e sedutora do pescoço até ao ombro, a concavidade do cotovelo, o calor das palmas da mãos, as axilas de odor forte e erótico, tirou-lhe a camisa, e ela ficou nua, nos seus braços, e era sua mulher e, de facto, uma mulher amorosa, por fim.

Amo-o. Não pensei que fosse possível, mas amo-o. Apaixonei-me por ele. Olho-me ao espelho, em admiração, como se estivesse mudada, como se tudo tivesse mudado. Sou uma mulher nova, apaixonada pelo meu marido. Estou apaixonada pelo príncipe de Gales. Eu, Catarina de Espanha, estou apaixonada. Queria este amor, pensei que fosse impossível, e tenho-o. Estou apaixonada pelo meu marido e vamos ser rei e rainha de Inglaterra. Quem duvida que fui escolhida por Deus para me conceder o Seu especial favor? Levou-me dos perigos da guerra para a segurança e a paz do Palácio de Alhambra e, agora, concedeu-me Inglaterra e o amor de um homem novo, que irá ser o seu rei.

Emocionada, junto as mãos e rezo: «Oh, meu Deus, deixai-me amá-lo para sempre, não nos afasteis, como João foi afastado de Margarida, nos primeiros meses de felicidade. Deixai-nos envelhecer juntos, permiti que nos amemos para sempre.»

Castelo de Ludlow, Janeiro de 1502

 

O Sol de Inverno brilhava baixo e vermelho sobre as colinas redondas enquanto transpunham o enorme portão que perfurava a muralha de pedra, em volta de Ludlow. Artur, que cavalgara ao lado da liteira, gritou para Catarina, para se fazer ouvir sobre o estrépito dos cascos a bater no empedrado.

– Por fim, chegámos a Ludlow.

À sua frente, os soldados gritaram: «Abri alas para Artur! Príncipe de Gales!», as portas abriram-se de par em par, e as pessoas saíram das casas para ver o cortejo passar.

Catarina viu uma cidade tão bela como uma tapeçaria. Os segundos andares revestidos de madeira dos edifícios apinhados de gente projectavam-se sobre as ruas empedradas, com pequenas e prósperas lojas e pátios de trabalho entre ambos, com ar acolhedor, no rés-do-chão. As mulheres dos lojistas saltaram das bancas, no exterior das lojas, para lhe acenar e Catarina sorria, e retribuía a saudação. Dos andares superiores, as raparigas das fábricas de luvas e os aprendizes de sapateiro, os rapazes dos ourives e as fiandeiras inclinavam-se e chamavam-na pelo nome. Catarina ria-se, e susteve a respiração, quando um dos rapazes pareceu desequilibrar-se, mas foi puxado por um dos companheiros.

Passaram por uma grande praça de touros, com uma estalagem de madeira escura, enquanto os sinos da igreja da meia dúzia de casas religiosas, universidade, capelas e no Hospital de Ludlow começaram a repicar, para dar as boas-vindas a casa, ao príncipe e à noiva.

Catarina inclinou-se para ver o seu castelo, e notou a barreira inquestionável da muralha exterior. O portão estava aberto, entraram e encontraram os homens mais importantes da cidade, o mayor, os presbíteros da igreja, os chefes das afluentes guildas de comerciantes, reunidos para os receber.

Artur desmontou e ouviu com educação um longo discurso em galês e depois em inglês.

– Quando comemos? – murmurou-lhe Catarina ao ouvido em latim e viu-lhe os lábios a tremer, como se retivesse um sorriso. – Quando vamos para a cama? – suspirou ela, e teve a satisfação de ver a mão que segurava as rédeas tremer de desejo. Ofereceu-lhe um sorriso e dobrou-se para entrar na liteira até os intermináveis discursos de boas-vindas estarem concluídos e a comitiva real seguir o caminho e transpor o enorme portão do castelo, para o pátio interior.

Era um castelo admirável, tão seguro como qualquer castelo de fronteira em Espanha. A muralha exterior que rodeava o pátio interior era elevada e resistente, construída numa pedra de cor rosada que tornava as poderosas muralhas mais calorosas e domésticas.

O olho de Catarina, apurado pela formação, passou das espessas muralhas para o fosso na muralha exterior e para o da muralha interior, admirando-se como uma área protegida conduzia à outra, e pensou que um cerco podia ser suportado vários anos. Mas era pequeno, era como um castelo de brincar, algo que o pai construiria para proteger uma passagem sobre um rio ou uma estrada vulnerável. Algo a que um nobre insignificante de Espanha se orgulharia em chamar casa.

– É isto? – perguntou confusa, pensando na cidade albergada no interior das muralhas de sua casa, nos jardins e terraços, na colina e na vista, na vida fervilhante do centro da cidade, dentro de muralhas protegidas. Da longa volta dos guardas: se dessem a volta completa às ameias, estariam ausentes mais de uma hora. Em Ludlow, a sentinela concluiria a volta em alguns minutos. – É isto?

Ele ficou assustado.

– Estavas à espera de mais? O que esperavas?

Ela teria acariciado o rosto ansioso, se não houvesse centenas de pessoas a assistir. Obrigou-se a manter as mãos quietas.

– Oh, estava a ser tola. Pensava em Richmond. – Nada no mundo a faria admitir que pensara no Alhambra.

Ele sorriu, confortado.

– Oh, meu amor. Richmond foi recém-construído, é o grande orgulho e a alegria do meu pai. Londres é uma das maiores cidades da Cristandade, e o palácio equivale à sua dimensão. Mas Ludlow é uma cidade, uma grande cidade nas Marcas, mas não passa de uma cidade. Mas é rica, vais ver, a caça é boa e as pessoas são hospitaleiras. Vais ser feliz.

– Tenho a certeza disso – retorquiu Catarina sorrindo, afastando a ideia de um palácio construído para ser bonito, onde os construtores pensaram primeiro onde incidiria a luz e quais os reflexos que originaria nos tranquilos lagos de mármore.

Olhou à volta e viu, no centro do pátio interior, um curioso edifício circular semelhante a uma torre de esconderijo.

– O que é aquilo? – perguntou, esforçando-se por sair da liteira, enquanto Artur lhe segurava na mão.

Ele olhou de relance por cima do ombro.

– É a nossa capela redonda – respondeu negligente.

– Uma capela redonda?

– Sim, como a de Jerusalém.

Com alegria, ela reconheceu o formato tradicional de uma mesquita – desenhada e construída em círculo, para que nenhum crente ficasse em posição privilegiada em relação aos outros, porque Alá é venerado tanto pelos pobres como pelos ricos.

– É linda.

Artur olhou-a surpreendido. Para ele não passava de uma torre redonda, construída com a bonita pedra cor de ameixa regional, mas viu que brilhava sob a luz da tarde, e irradiava uma sensação de paz.

– Sim – assentiu, mal reparando na capela. – Agora este – apontou para o grande edifício à frente, com um belo lanço de escadas que subiam até à porta aberta –, este é o grande salão. À esquerda, ficam os paços do concelho de Gales e, por cima, os meus aposentos. À direita, ficam os quartos de hóspedes e os aposentos do guardião do castelo e da mulher: sir Richard e lady Margarida Pole. Os teus são por cima, no andar superior.

Viu a sua expressão alterada.

– Ela está aqui?

– De momento, está ausente do castelo.

Ela abanou a cabeça.

– Há edifícios por trás da grande muralha?

– Não. Está encostada à muralha exterior. Isto é tudo.

Catarina obrigou-se a manter um rosto sorridente e satisfeito.

– Temos mais quartos de hóspedes no pátio exterior – acrescentou ele na defensiva. – E uma hospedaria. É um lugar movimentado, alegre. Vais gostar.

– Tenho a certeza que sim. – Ela sorriu. – E quais são os meus aposentos?

Ele apontou para as janelas mais altas.

– Estás a ver, ali em cima? Do lado direito, iguais aos meus, mas do lado oposto da ala.

Ela pareceu desmotivada.

– Mas como vais para os meus aposentos? – perguntou tranquilamente.

Pegou-lhe na mão e conduziu-a, sorrindo à direita e à esquerda, até às grandes escadas de pedra e às portas duplas do grande salão. Ouviu-se uma onda de aplausos e os companheiros ficaram para trás.

– Tal como Sua Alteza, a Mãe do Rei me ordenou, virei ao teu quarto quatro vezes por mês, em procissão formal, passando pelo grande salão – explicou. Levou-a pelas escadas acima.

– Oh! – exclamou ela.

Olhou para baixo, para ela, e sorriu.

– E, todas as outras, virei ter contigo pelas ameias – murmurou. – Há uma porta secreta que liga os teus aposentos às ameias que circundam o castelo. Os meus aposentos também dão para aí. Podes ir dos teus aposentos aos meus, sempre que quiseres, e ninguém saberá se estamos juntos ou não. Nem em que quarto estaremos.

Adorou a forma como o rosto dela se iluminou.

– Podemos estar juntos sempre que quisermos?

– Vamos ser felizes aqui.

Sim, serei; eu serei feliz aqui. Não vou chorar de desgosto pelos belos pátios de casa e declarar que não existe mais nenhum lugar adequado para viver. Não direi que estas montanhas são um deserto sem oásis, como um berbere com saudades dos direitos de nascimento. Vou habituar-me a Ludlow, e aprenderei a viver na fronteira, e mais tarde em Inglaterra. A minha mãe não é apenas uma rainha, é um soldado, e educou-me para saber qual era o meu dever e para o cumprir. É meu dever aprender a ser feliz aqui; e viver neste lugar, sem me queixar.

Posso nunca usar armadura como ela, posso nunca lutar pelo meu país, como ela fez; mas há muitas formas de servir um reino, e ser uma rainha alegre, honesta e determinada é uma delas. Se Deus não me chamar às armas, pode chamar-me para o servir como legisladora, como a que traz justiça. Quer defenda o meu povo, combatendo por ele contra um inimigo, quer lute pela sua liberdade perante a lei; serei a sua rainha, de alma e coração, a rainha de Inglaterra.

Era de noite, já passava da meia-noite. Catarina resplandecia à luz da lareira. Estavam na cama, ensonados, mas sentiam demasiado desejo um pelo outro para adormecerem.

– Conta-me uma história.

– Já te contei dezenas de histórias.

– Conta-me outra. Conta-me a de Boabdil a entregar o Palácio de Alhambra e a chave dourada em cima de uma almofada de seda, e ir-se embora a chorar.

– Essa, já sabes. Contei-ta ontem à noite.

– Então conta-me a história de Yarfa e o seu cavalo que rangia os dentes aos cristãos.

– És uma criança. E o nome dele era Yarfe.

– Mas viste-o ser assassinado?

– Eu estava lá; mas não o vi a morrer.

– Como não viste?

– Bem, porque estava a rezar, como a minha mãe me ordenou, e porque era uma menina e não um rapaz monstruoso e sedento de sangue.

Artur atirou-lhe uma almofada bordada à cabeça. Ela apanhou-a e atirou-lha também.

– Bem, então conta-me a história da tua mãe a empenhar as jóias para pagar a Cruzada.

Ela riu-se e sacudiu a cabeça, fazendo o cabelo castanho dançar.

– Vou contar-te uma história sobre a minha casa – propôs-lhe.

– Está bem. – Ele aconchegou o cobertor púrpura em volta de ambos e esperou.

– Quando se atravessa a primeira porta do Alhambra, parece uma divisão muito pequena. O teu pai não desceria ao ponto de entrar num palácio daqueles.

– Não é grandioso?

– É do tamanho de um pequeno salão de mercadores desta cidade. É um bom salão para uma casa pequena de Ludlow, nada mais que isso.

– E depois?

– E depois entra-se num pátio e, daí, passa-se a um salão dourado.

– Um pouco melhor?

– Está repleto de cor, mas não é muito maior. As paredes são decoradas com azulejos coloridos e folheado a ouro, e existe uma varanda alta, mas não deixa de ser um espaço pequeno.

– E, depois, onde vamos hoje?

– Hoje, vamos virar à direita e entramos no Pátio dos Mirtilos.

Ele fechou os olhos, tentando lembrar-se das suas descrições.

– Um pátio em forma de rectângulo, rodeado por edifícios altos, de ouro.

– Com uma porta enorme, de madeira escura, com uma soleira de belos azulejos, ao fundo.

– E um lago, um lago com a forma de um rectângulo, e, de cada lado, uma sebe de mirtilos, de aroma doce.

– Não uma sebe como vocês usam – continuou com ar sério, pensando nos arbustos irregulares dos campos galeses, na sua confusão de espinhos e ervas daninhas.

– Então, como são? – inquiriu ele, abrindo os olhos.

– Uma sebe como um muro – respondeu ela. – Aparada geometricamente, como um bloco de mármore verde, como uma estátua viva, verde e de fragrância adocicada. E o portão ao fundo reflecte-se na água, como o arco à sua volta, e o edifício. De forma que o conjunto seja reflectido em ondas, aos teus pés. E as paredes são perfuradas com alvas janelas de estuque, tão leves como papel, como se fosse bordado branco. E os pássaros...

– Os pássaros? – perguntou ele, surpreendido, porque não lhe falara deles antes.

Ela fez uma pausa enquanto procurava a palavra.

– Apodes? – disse em latim.

– Apodes? Gaivões?

Ela assentiu.

– Voam como um rio turbulento de pássaros mesmo por cima das nossas cabeças, dando voltas e mais voltas no estreito pátio, gritando enquanto voam, rápidos como uma carga de cavalaria, movem-se como o vento, dão voltas e voltas, desde que o Sol brilhe na água, voam em círculo, todo o dia. E à noite...

– À noite?

Ela fez um gesto com as mãos, como uma feiticeira.

– À noite desaparecem, nunca os vês descansar ou fazer ninho. Desaparecem, partem com o Sol, mas quando amanhece, voltam, como um rio, como uma enchente. – Fez uma pausa. – É difícil de descrever – concluiu num tom de voz muito ténue. – Mas via-os a toda a hora.

– Tens saudades? – quis saber ele. – Por muito feliz que te faça, terás sempre saudades da tua casa.

Ela esboçou um gesto.

– Claro. É normal. Mas nunca me esqueço de quem sou. Do que nasci para ser.

Artur esperou.

Ela sorriu para ele, o rosto tornou-se mais caloroso pelo sorriso e pelos olhos azuis que brilhavam.

– Princesa de Gales – afirmou. – Desde a infância que o sabia. Sempre me chamaram princesa de Gales. E, assim, rainha de Inglaterra, como me foi destinado por Deus. Catarina, infanta de Espanha, princesa de Gales.

Ele retribuiu-lhe o sorriso e puxou-a para perto, deitaram-se, ela com a cabeça no seu ombro, o cabelo castanho-avermelhado-escuro dela espalhado. Como um véu, no peito dele.

– Eu sabia que casaria contigo, quase desde que nasci – disse ele pensativo. – Não me consigo lembrar de um tempo em que não te estivesse prometido. Não recordo nenhuma época em que não te escrevesse cartas e não as levasse ao meu tutor, para que as corrigisse.

– Ainda bem que te agrado, agora que estou aqui.

Ele colocou-lhe o dedo sob o queixo e levantou-lhe o rosto para a beijar.

– O que ainda é melhor, é que eu te agrado a ti – replicou ele.

– De qualquer forma, eu teria sido uma boa esposa – insistiu ela. – Mesmo sem isto...

Ele pegou-lhe na mão sob os lençóis de seda, para que ela voltasse a acariciar-lhe o membro, de novo erecto.

– Queres dizer, sem isto?

– Sem esta... alegria – respondeu ela e fechou os olhos e deitou-se para trás, à espera das carícias dele.

Os criados acordaram-nos ao amanhecer e Artur foi escoltado cerimoniosamente da sua cama. Voltaram a ver-se na missa, mas estavam sentados em lados opostos da capela, cada um com o respectivo séquito, e não puderam falar.

A missa devia ser o momento mais importante do meu dia, e trazer-me conforto, sei-o. Mas sinto-me sozinha durante a missa. Rezo a Deus e agradeço-Lhe pela Sua atenção especial comigo, mas só o facto de estar nesta capela – com o formato de uma pequena mesquita – lembra-me tanto a minha mãe! O cheiro a incenso é tão evocador como se fosse o seu perfume. Não acredito que não estou ajoelhada ao seu lado, como fiz quatro vezes por dia, durante quase todos os dias da minha existência. Quando digo «Ave Maria, cheia de graça», é o rosto redondo, sorridente e determinado da minha mãe que vejo. E quando rezo a pedir coragem para cumprir o meu dever, nesta terra estranha, com este povo severo e reservado, é da força da minha mãe que necessito.

Devia dar graças por Artur mas nem me atrevo a pensar nele quando me ajoelho ante Deus. Não consigo pensar nele sem cometer o pecado do desejo. A sua simples imagem na minha mente é um segredo profundo, um prazer pagão. Tenho a certeza de que não se trata da alegria sagrada do matrimónio. Um prazer tão intenso tem de ser pecado. Um desejo e uma satisfação tão obscuros e profundos não podem ser a concepção de um pequeno príncipe, principal objectivo e a finalidade deste casamento. Fomos postos na cama por um arcebispo, mas a nossa união apaixonada é tão animal como duas serpentes aquecidas pelo sol, enroladas uma na outra para seu prazer. Eu mantenho os meus sentimentos por Artur como um segredo de todos, até mesmo de Deus.

Não podia confiar em ninguém, mesmo que quisesse. É-nos proibido estarmos juntos as vezes que desejarmos. A avó, Sua Alteza, a Mãe do Rei ordenou que assim fosse, tal como ordena tudo, mesmo tudo aqui nas Marcas Galesas. Decretou que ele devia vir ter comigo ao quarto uma vez por semana, excepto durante as regras, chegaria antes das dez horas e saía antes das seis da manhã. Nós obedecemos-lhe, claro, todos lhe obedecem. Uma vez por semana, como ela ordenou, ele atravessa o salão grande, como um homem obediente, e de manhã deixa-me em silêncio e vai-se embora como um jovem que cumpriu o seu dever, não como alguém que esteve acordado toda a noite num delírio ofegante. Nunca se gaba de ter tido prazer, quando o vêm buscar aos meus aposentos, não diz nada, ninguém sabe o prazer que temos na paixão um do outro. Nunca saberão que estamos juntos todas as noites. Encontramo-nos nas ameias que vão dos seus aposentos aos meus, na parte mais alta do castelo, com o céu azul-acinzentado fechando-se sobre nós, e passamos tempo juntos em segredo, como amantes, escondidos pela noite, vamos para o meu quarto ou para o dele, e criamos um mundo privado, cheio de uma felicidade secreta. Mesmo neste pequeno castelo, cheio de gente, de bisbilhoteiros e de espiões da mãe do rei, ninguém sabe que estamos juntos, e ninguém sabe o quanto nos amamos.

Depois da missa o casal real foi quebrar o jejum, separados, nos respectivos aposentos, apesar de preferirem fazê-lo juntos. O Castelo de Ludlow era uma pequena reprodução da formalidade da corte do rei. A mãe do rei ordenara que, a seguir ao pequeno-almoço, Artur teria de trabalhar com o tutor nos livros e desportos, conforme o tempo; e Catarina de trabalhar com o seu tutor, costurar, ler ou passear no jardim.

– Um jardim! – murmurou Catarina, na pequena extensão verde com o banco de turfa encharcado de um dos lados de uma sebe fina, num canto das muralhas do castelo. – Pergunto-me se ela alguma vez terá visto um jardim a sério?

De tarde, podiam montar juntos a cavalo, para caçar nos bosques que rodeavam o castelo. Era uma zona rural rica, o rio corria por um amplo vale de arvoredos espessos nas encostas das colinas. Catarina pensou que acabaria por amar as pastagens em volta do rio Teme e, no horizonte, a forma como a escuridão dos montes dava lugar ao céu. Mas, com o clima do meio do Inverno, era uma paisagem de cinzento e branco, apenas a geada ou a neve traziam claridade à negrura dos bosques gelados. O tempo mostrava-se demasiado invernoso para a princesa sair. Ela detestava o nevoeiro húmido ou quando caía saraiva e chuva gelada. Artur saía muitas vezes sozinho a cavalo.

– Mesmo que eu ficasse para trás, não podia ir contigo – lamentava-se ele. – A minha avó estipularia que fizesse outra coisa qualquer.

– Então, vai – disse ela, sorrindo, apesar de lhe parecer que faltava muito, muito tempo até ao jantar e de não ter mais nada para fazer, além de esperar que a caça terminasse e ele voltasse para casa.

Iam à cidade uma vez por semana, assistir à missa na Igreja de São Lourenço, ou para visitarem a capela ao lado da muralha do castelo, para comparecerem num jantar organizado por uma das guildas, ou para assistirem a uma luta de galos, uma pega de touros, ou a representações. Catarina sentia-se impressionada com a beleza irrepreensível da cidade; o lugar escapara à violência das guerras entre os York e os Lancaster a que Henrique Tudor pusera fim.

– A paz é tudo para um reino – comentou com Artur.

– Agora, a única coisa que constitui uma ameaça para nós são os escoceses – disse ele. – A linhagem de York são os meus antepassados, assim como a dos Lancaster, por isso, a rivalidade termina comigo. Tudo o que temos a fazer é manter o Norte protegido.

– E o teu pai pensa que conseguiu isso com o casamento da princesa Margarida?

– Deus permita que esteja certo, mas são um grupo de infiéis. Quando for rei, manterei a fronteira forte. Tu aconselhar-me-ás, saímos juntos e certificamo-nos de que os castelos da fronteira são reparados.

– Gostarei de o fazer – replicou ela.

– Claro, passaste a infância com um exército a combater pelas terras de fronteira, deves saber melhor do que eu o que procurar.

Ela sorriu.

– Fico contente por uma qualidade minha que te pode ser útil. O meu pai sempre se queixou de que a minha mãe criava amazonas e não princesas.

Jantaram ao anoitecer e felizmente a noite chegava cedo naquelas frias noites de Inverno. Por fim, podiam estar perto, sentados lado a lado, na mesa alta, voltada para o salão do castelo, em baixo, a grande lareira com troncos amontoados, junto da parede lateral. Artur sentava sempre Catarina à sua esquerda, mais perto do fogo, e ela vestia uma capa forrada com pele, e várias camadas de camisas de linho, sob o vestido ornamentado. Mesmo assim, continuava a sentir frio quando descia as escadas geladas, vinda dos aposentos aquecidos para o salão repleto de fumo. As aias espanholas, María de Salinas, a ama doña Elvira e outras sentavam-se numa mesa. As damas inglesas, que deviam ser as suas damas de companhia, e o séquito de criados espanhóis noutra. Os grandes lordes do conselho de Artur, o camareiro, sir Richard Pole, guardião do castelo, o bispo William Smith of Lincoln, o médico, o doutor Bereworth, o tesoureiro, sir Henry Vernon, o mordomo dos seus aposentos, sir Richard Croft, o criado dos aposentos privados, sir William Thomas of Carmarthen, e os dirigentes do principado, estavam sentados no salão. Atrás e na galeria, qualquer coscuvilheiro ou intrometido de Gales podia erguer-se, para ver a princesa espanhola jantar, e especular se agradava ao príncipe ou não.

Não se conseguia adivinhar. A maioria pensava que ele não dormia com ela. Tinha de ser analisado! A infanta sentava-se como uma boneca rígida e era raro inclinar-se para o marido. O príncipe de Gales falava com ela quase mecanicamente, de dez em dez minutos. Eram como exemplos de bom comportamento, e quase nem se olhavam. Comentava-se que ele a visitava nos aposentos, tal como lhe fora ordenado, mas só uma vez por semana e nunca por sua iniciativa. Talvez não apreciassem a companhia mútua. Eram jovens, talvez demasiado jovens para o casamento.

Ninguém adivinharia que as mãos de Catarina estavam apertadas no colo, para se impedir de tocar no marido, embora ele a olhasse de vez em quando, parecendo indiferente, e murmurasse tão baixinho que só ela ouvia: «Quero-te imediatamente.»

Depois do jantar havia danças e talvez mímica ou um contador de histórias, um bardo galês ou actores itinerantes para ver. Por vezes os poetas viriam dos montes e contariam contos antigos, estranhos, na sua língua, que Artur seguia com dificuldade, mas que tentava traduzir para Catarina.

 

Quando o longo e amarelo Verão chegar e a vitória for nossa,

E a expansão das velas da Britânia,

E quando o calor vier e quando a febre começar a subir

Há prenúncios de que a vitória nos será concedida.

 

– Qual é o assunto deste poema? – perguntou-lhe ela.

– O Longo e Amarelo Verão é quando o meu pai invadiu a partir da Britânia. O percurso levou-o até Bosworth e à vitória.

Ela acenou.

– Fazia calor, nesse ano, e as tropas voltaram com a Doença do Suor, uma doença nova, que agora ameaça Inglaterra e a Europa, com o calor do Verão.

Ela voltou a assentir. Um novo poeta apresentou-se, tocava uma corda da sua harpa e cantava.

– E este?

– Fala de um dragão vermelho que sobrevoa o principado – respondeu ele. – Mata o javali.

– O que significa? – interrogou Catarina.

– O dragão representa os Tudor: nós – explicou. – Deves ter visto o dragão vermelho no nosso estandarte. O javali é o usurpador, Ricardo. É um elogio ao meu pai, baseado num conto antigo. Todas as canções deles são antigas. Foram cantadas na arca. – Ele sorriu. – Canções de Noé.

– As pessoas acreditam que os Tudor sobreviveram ao dilúvio? Noé era um Tudor?

– Se calhar. A minha avó assumiria a responsabilidade pelo jardim do Éden – retorquiu. – Esta é a fronteira de Gales, nós vimos de Owen ap Tudor, de Glendover, ficamos felizes por assumir a responsabilidade de tudo.

Como Artur previra, quando a lareira começou a apagar-se, começariam a cantar antigas canções galesas sobre feitiçarias nos bosques escuros que ninguém conhecia. E falariam de batalhas e de vitórias gloriosas conquistadas pela perícia e coragem. Na sua estranha língua, contariam histórias sobre Artur e Camelot, Merlim, o príncipe, e Guinevere: a rainha que traiu o marido por um amor culpado.

– Eu morria se tivesses um amante – sussurrou-lhe ao ouvido, enquanto um pajem os tapava do resto do salão e lhes servia vinho.

– Não consigo olhar para mais ninguém, quando estás aqui – asseverou-lhe ela. – Só te vejo a ti.

Todas as noites havia música ou outro entretenimento para a corte de Ludlow. A mãe do rei ordenara que o príncipe dispusesse de uma casa alegre – era uma recompensa pela lealdade de Gales, que pusera o filho Henrique Tudor num trono incerto. O neto devia recompensar os homens que vieram dos montes para combater pelos Tudor e lembrar-lhes que era um príncipe galês, e que continuaria a contar com o seu apoio para governar os ingleses, com quem ninguém poderia contar. Os galeses deviam unir-se à Inglaterra e, juntos, podiam repelir os escoceses e dominar os irlandeses.

Quando os músicos tocavam as lentas danças formais de Espanha, Catarina dançava com uma das aias, consciente do olhar de Artur fixo nela, mantendo um rosto pudico, como uma máscara de respeitabilidade de um mímico; apesar de ter vontade de rodopiar e de abanar as ancas, como uma mulher no serralho, como uma escrava moura dançando para um sultão. Mas os espiões de Sua Alteza, a Mãe do Rei observavam tudo, mesmo em Ludlow, e comunicar-lhe-iam de seguida algum comportamento indiscreto da jovem princesa. Por vezes, Catarina olhava de relance para o marido e via os seus olhos pregados em si, o olhar era o de um homem apaixonado. Ela estalava os dedos como se fizesse parte da dança, mas era para o avisar de que estava a observá-la de um modo que a avó não aprovaria; e ele voltava-se para o lado e falava com alguém, afastando o olhar.

Depois de a música terminar e de os artistas partirem, o jovem casal não podia ficar a sós. Havia sempre homens que pediam para falar com Artur, que pretendiam pedir favores, terras ou influências, e aproximavam-se, falando em voz baixa, em inglês, que Catarina ainda não percebia bem, ou em galês, que ela achava que ninguém compreenderia. O estado de direito não existia nas terras fronteiriças, cada proprietário de terras era como um senhor da guerra no seu domínio. Nas zonas mais remotas da montanha havia pessoas que pensavam que quem ocupava o trono era Ricardo, que não sabiam que o mundo se alterara, que não falavam inglês, que não obedeciam a nenhumas leis.

Artur discutia, elogiava e sugeria que os feudos deviam ser perdoados, que as violações do direito de propriedade deviam ser validadas, que os chefes dos galeses deviam trabalhar em conjunto para tornar a terra tão próspera como a da vizinha Inglaterra, em vez de perderem o tempo com invejas. Os vales e terras costeiras eram dominados por uma dúzia de lordes insignificantes, e, nas altas montanhas, os homens viviam em clãs como tribos selvagens. Aos poucos, Artur estava determinado a fazer com que a lei fosse aplicada em todo o território.

– Os homens têm de saber que a lei é superior ao seu senhor – disse Catarina. – Foi o que os mouros fizeram em Espanha, e a minha mãe e o meu pai seguiram-lhes o exemplo. Os mouros não se preocupavam em mudar as religiões das pessoas nem as línguas, só traziam a paz e a prosperidade e impunham o estado de direito.

– Metade dos meus lordes pensaria que isso era uma heresia – provocou-a ele. – E a tua mãe e o teu pai impõem a sua religião, já expulsaram os judeus, os mouros vão ser os próximos.

Ela franziu o sobrolho.

– Eu sei – respondeu. – E sofrem muito. Mas a intenção era permitir que as pessoas praticassem a sua religião. Quando conquistaram Granada, foi a promessa que fizeram.

– Não achas que, para construir um país, as pessoas têm de ter todas a mesma religião? – perguntou ele.

– Os hereges podem viver assim – replicou decidida. – Em al-Andalus, mouros, cristãos e judeus viviam em paz e amizade, ao lado uns dos outros. Mas, quando se é um rei cristão, é nosso dever conduzir os súbditos para Deus.

Catarina observava Artur enquanto ele falava com um homem e depois com outro, e então, ao perceber um sinal de doña Elvira, fazia uma reverência e retirava-se do salão. Lia as orações da noite, vestia as roupas de dormir, sentava-se na companhia das aias, ia para o quarto e esperava, esperava e esperava.

– Podeis ir, vou dormir sozinha esta noite – disse para doña Elvira.

– Outra vez? – A ama franzia o sobrolho. – Não tivestes companheira de quarto desde que viemos para o castelo. E se acordais durante a noite e precisardes de alguma coisa?

– Eu durmo melhor sem ninguém no quarto – retorquia Catarina – Agora, podeis ir.

A ama e as aias davam-lhe as boas-noites e saíam, as criadas entravam e desabotoavam-lhe o corpete, retiravam os ganchos do toucado, desapertavam-lhe os sapatos e tiravam-lhe as meias. Entregavam-lhe a camisa de dormir de linho aquecida e ela pedia a capa e informava que iria sentar-se uns momentos à lareira, dispensando-as.

No silêncio, enquanto o castelo se preparava para a noite, ela esperava-o. Depois, por fim, ouvia o som tranquilo dos seus passos, à porta do quarto que dava para o exterior, onde comunicava com as ameias que iam de uma torre à outra. Ela corria para a porta e destrancava-a, o rosto dele estaria rosado do frio, traria a capa por cima da camisa de dormir enquanto entrava aos tropeções, o vento gelado a acompanhá-lo, enquanto ela se lançava nos seus braços.

– Conta-me uma história.

– Que história queres ouvir hoje?

– Sobre a tua família.

– Queres que te conte uma sobre a minha mãe, quando era pequena?

– Sim. Era uma princesa de Castela, como tu?

Catarina abanou a cabeça.

– Não, de maneira nenhuma. Ela não era protegida, nem vivia em segurança. Vivia na corte do irmão, o pai tinha morrido, e o irmão não a amava como devia. Sabia que ela era a sua única herdeira legítima. Ele favorecia a filha; mas toda a gente sabia que era uma bastarda, que lhe foi impingida pela rainha. Até lhe deram, como alcunha, o nome do amante da rainha. Chamavam-lhe A Beltraneja, por causa do pai. Consegues imaginar algo mais vergonhoso?

Artur abanou a cabeça.

– Nada.

– A minha mãe não passava de prisioneira na corte do irmão; a rainha odiava-a, os membros da corte tratavam-na mal e o irmão planeava deserdá-la. Nem a mãe conseguia chamá-lo à razão.

– Por que não? – perguntou ele, e pegou-lhe na mão quando percebeu que o seu rosto se tornou mais sombrio. – Amor, desculpa. O que se passa?

– A mãe estava doente – explicou. – Doente de tristeza. Não sei muito bem porquê, ou por que era tão grave. Mas quase não conseguia falar nem mover-se. Só chorava.

– E a tua mãe não tinha protector?

– Não, e depois, o rei, o irmão, ordenou que fosse prometida a don Pedro Girón – respondeu sentando-se e apertando os joelhos com as mãos. – Diziam que vendera a alma ao Diabo, era um homem muito cruel. A minha mãe jurou que ofereceria a sua alma a Deus e este salvá-la-ia, virgem, desse destino. Ela dizia que nenhum Deus misericordioso aceitaria uma rapariga como ela, uma princesa que sobrevivera a uma das piores cortes da Europa, para a atirar para os braços de um homem que queria a sua ruína, que só a desejava porque era jovem e intocada, que desejava espoliá-la.

Artur escondeu um sorriso, pelo tom romântico da história.

– Tens muito jeito para isto – aprovou ele. – Espero que tenha um fim feliz.

Catarina levantou a mão como um trovador, a pedir silêncio.

– A sua maior amiga e dama de companhia, Beatriz, tinha uma faca e jurou que mataria don Pedro, antes de pôr as mãos em Isabel; mas a minha mãe ajoelhou-se no oratório, durante três dias e três noites, e rezou, para ser poupada àquela violação. Ele estava em viagem, para vir ao seu encontro, chegaria no dia seguinte. Comeu e bebeu bem, anunciando aos companheiros que no próximo dia estaria na cama da virgem mais notável de Castela. Mas morreu nessa noite. – A voz de Catarina transformou-se num murmúrio assustador. – Morreu antes de terminar o vinho do jantar. Caiu morto, como se Deus descesse dos Céus para lhe roubar a vida, como um jardineiro esmaga um pulgão verde.

– Com veneno? – inquiriu Artur, que sabia alguma coisa sobre os métodos de alguns reis, e que considerava Isabel de Castela capaz de cometer assassínio.

– Foi a vontade de Deus – replicou Catarina séria. – Don Pedro descobriu, como toda a gente, que a vontade de Deus e os desejos da minha mãe estão em consonância. E, se conhecesses Deus e a minha mãe tão bem como eu, saberias que a vontade deles se concretiza sempre.

Ele levantou o copo e fez-lhe um brinde.

– Essa é uma boa história – acedeu. – Gostava que pudesses contá-la no salão.

– E é tudo verdade – relembrou-lhe ela. – Eu sei que é. Foi a minha mãe que ma contou.

– Então, ela também lutou pelo trono – concluiu ele, pensativo.

– Primeiro pelo trono, e depois para construir o reino de Espanha.

Ele sorriu.

– Apesar de nos dizerem que somos de sangue real, ambos provimos de uma linhagem de guerreiros. Obtivemos os nossos tronos por conquista.

Ela franziu as sobrancelhas.

– Eu sou de sangue real – afirmou. – A minha mãe herdou o trono por direito legítimo.

– Sim. Mas, se não lutasse pelo seu lugar no mundo, seria doña fosse lá qual fosse o nome dele.

– Girón.

– Girón. E tu nascerias como uma insignificante.

Catarina abanou a cabeça. A ideia era impossível de aceitar.

– Seria a filha da irmã do rei, apesar do que acontecesse. Teria sempre sangue real nas veias.

– Não serias ninguém – cortou ele com frieza. – Uma insignificante com sangue real. Tal como eu, se o meu pai não tivesse lutado pelo trono. Descendemos de famílias que lutam pelo que é seu.

– Sim – acedeu ela com relutância.

– Ambos somos filhos de pais que reivindicam o que era de outras pessoas por direito – continuou.

Ela ergueu a cabeça.

– Isso não é verdade. Pelo menos no que diz respeito à minha mãe. Ela era a herdeira legítima.

Artur discordou.

– O irmão nomeou a filha sua herdeira, reconheceu-a. A tua mãe auferiu o reino por conquista. Como o meu pai conquistou o dele.

Catarina enrubesceu.

– Ela não fez nada disso – insistiu. – É a herdeira legítima do trono. O que fez foi defender o direito de uma pretendente.

– Não percebes? – interrogou ele. – Somos pretendentes até vencermos. Quando vencemos, reescrevemos a História e as árvores genealógicas, e executamos os rivais, ou prendemo-los, até podermos alegar que houve sempre um único herdeiro legítimo: nós. Mas, antes, somos um entre muitos pretendentes. E nem sempre somos o melhor pretendente, com o direito mais forte.

Ela franziu a testa.

– O que dizes? – perguntou. – Dizes que não a sou a princesa legítima? Que tu não és o herdeiro legítimo de Inglaterra?

Ele pegou-lhe na mão.

– Não, não. Não te zangues comigo – acalmou-a. – Estou a dizer que nós temos e mantemos o que é nosso por direito. Afirmo que somos nós quem faz a nossa herança. Reclamamos o que queremos, dizemos que somos príncipe de Gales, rainha de Inglaterra. Que decidimos o nome e o título pelo qual somos conhecidos. Como toda a gente faz.

– Estás errado – cortou ela. – Eu nasci infanta de Espanha e vou morrer rainha de Inglaterra. Não é uma questão de escolha, é o meu destino.

Ele pegou-lhe na mão e beijou-a. Percebeu que não valia a pena continuar com a sua crença de que um homem ou uma mulher podiam fazer o seu destino através das suas convicções. Ele podia ter as suas dúvidas; mas, para ela, a tarefa estava concluída. Estava convencida de que o seu destino estava traçado. Ele não tinha dúvidas de que o defenderia até à morte. O seu título, o seu orgulho, o seu sentido de personalidade eram um só.

– Catarina, rainha de Inglaterra – disse ele, beijando-lhe os dedos, e vendo o sorriso voltar ao seu rosto.

Amo-o tão profundamente, não sabia que alguma vez amaria alguém. Sinto que estou a crescer em paciência e sabedoria, só pelo meu amor por ele. Afasto-me da irritabilidade e da impaciência, até suporto as saudades de casa sem me queixar. Sinto que estou a tornar-me uma mulher melhor, uma esposa melhor, à medida que tento agradar-lhe e torná-lo orgulhoso de mim. Quero que se sinta sempre feliz por ter casado comigo. Quero que sejamos sempre tão felizes como hoje. Não existem palavras para o descrever... não existem palavras.

Chegou um mensageiro da corte do rei trazendo presentes para os recém-casados: dois veados da floresta de Windsor, uma caixa com livros para Catarina, cartas de Isabel, a rainha, e ordens de Sua Alteza, a Mãe do Rei que soubera, não se sabia através de quem, que a caçada do príncipe destruíra algumas vedações, e que ordenava a Artur que as mandasse reparar e que indemnizasse o proprietário das terras.

Ele levou a carta para o quarto de Catarina, quando foi ter com ela à noite.

– Como consegue saber tudo? – perguntou ele.

– O homem deve ter-lhe escrito – respondeu ela, lamentando.

– Por que não veio falar comigo?

– Talvez a conheça? É um feudatário dela?

– Pode ser – respondeu ele. – Ela tem uma rede de alianças, semelhante a uma teia de aranha, por todo o país.

– Devias ir falar com ele – decidiu Catarina. – Podíamos ir os dois. Levávamos-lhe um presente, alguma carne ou algo parecido, e pagávamos-lhe o que lhe devemos.

Artur abanou a cabeça perante o poder da sua avó.

– Sim, podemos fazer isso. Mas como consegue saber tudo?

– É assim que vocês governam – respondeu ela. – Não é? Certificam-se de que sabem de tudo e de que alguém que tenha um problema vem falar convosco. Depois, eles habituam-se a obedecer, e vocês a ordenar.

Ele riu-se.

– Estou a ver que casei com outra Margarida Beaufort – disse. – Deus me valha para não ter mais nenhuma na família.

Catarina sorriu.

– Devo avisar-te – admitiu. – Sou filha de uma mulher forte. Até o meu pai faz aquilo que ela lhe diz.

Ele pousou a carta e puxou-a para junto de si.

– Desejei-te o dia inteiro – disse com a boca encostada à sua nuca quente.

Ela desapertou a parte da frente da camisa de dormir dele, para poder encostar a cara à sua pele, que tinha um odor doce.

– Oh, meu amor.

Num gesto dirigiram-se para a cama.

– Oh, meu amor.

– Conta-me uma história.

– Que história queres que te conte hoje?

– Conta-me como o teu pai e a tua mãe se casaram. Foi tudo combinado, assim como foi connosco?

– Não! – exclamou ela. – De maneira nenhuma. Ela estava bastante sozinha no mundo e, apesar de Deus a ter salvado de don Pedro, ainda não estava segura. Sabia que o irmão a casaria com qualquer um que garantisse impedi-la de herdar o trono.

«Foram anos difíceis para ela. Contou-me que, quando apelava à mãe, era a mesma coisa que estar a falar com os mortos. A minha avó estava perdida no mundo do seu sofrimento, não podia fazer nada para ajudar a filha.

«O primo da minha mãe, a sua única esperança, era o herdeiro do trono vizinho: Fernando de Aragão. Veio ter com ela, disfarçado. Sem quaisquer criados e sem soldados, cavalgou a noite inteira e foi ao castelo onde ela lutava para sobreviver. Arranjou forma de entrar, e atirou a capa e o chapéu para o lado, para que ela o visse e conhecesse de imediato.

Artur estava extasiado.

– A sério?

Catarina sorriu.

– Não é como um romance? Ela contou-me que se apaixonou logo por ele, à primeira vista, como uma princesa de um poema. Ele propôs-lhe, logo ali, casamento e ela aceitou-o de imediato. Ele apaixonou-se por ela nessa noite, à primeira vista, que é algo que nenhuma princesa pode esperar. A minha mãe e o meu pai foram abençoados por Deus. Fez com que se apaixonassem e os corações de ambos seguiram os seus interesses.

– Deus toma conta dos reis de Espanha – observou Artur, gracejando.

Ela assentiu com a cabeça.

– O teu pai tem razão em procurar a nossa amizade. Estamos a construir o nosso reino a partir do al-Andalus, as terras dos príncipes mouros. Temos Castela e Aragão, agora temos Granada, e teremos mais. O coração do meu pai estipulou que seria Navarra, e ele não vai parar por aí. Sei que está determinado em conquistar Nápoles. Não me parece que vá ficar satisfeito até todas as regiões do Sul e o Ocidente de França serem nossas. Vais ver. Ele ainda não conseguiu as fronteiras que deseja para a Espanha.

– Eles casaram-se em segredo? – perguntou ele, ainda deslumbrado com este casal real que moldara as suas vidas com as mãos e traçara o seu destino.

Ela estava com um ar submisso.

– Ele disse-lhe que tinha uma dispensa que não estava assinada. Creio que a enganou.

Ele franziu a testa.

– O teu maravilhoso pai mentiu à sua santa esposa?

Ela esboçou um sorriso triste.

– É verdade, ele é capaz de fazer tudo para conseguir o que quer. Apercebes-te disso quando falas com ele. Ele está sempre mais à frente, dois, talvez três passos mais à frente. Ele sabia que a minha mãe era devota, e que não casaria sem a dispensa e olé!... lá estava uma dispensa na mão dela.

– Mas depois emendaram a situação?

– Sim, e, apesar de isso desagradar ao pai dele e ao irmão dela, era a atitude correcta a tomar.

– Como poderia ser a atitude correcta? Desafiar a família? Desobedecer ao pai? Isso é pecado. É infringir um mandamento. É um pecado mortal. Nenhum papa poderia abençoar um casamento como esse.

– Era a vontade de Deus – disse ela confiante. – Nenhum deles sabia que era a vontade de Deus. Mas a minha mãe sabia. Ela conhece sempre as vontades de Deus.

– Como pode ela ter tanta certeza? Como podia ter tanta certeza naquela altura, quando era apenas uma menina?

Ela riu-se.

– Deus e a minha mãe sempre pensaram em consonância.

Ele riu-se e esticou um caracol do cabelo dela.

– Mas tomou a atitude correcta ao enviar-te para junto de mim.

– Pois tomou – respondeu Catarina. – E nós iremos fazer o que está certo pelo país.

– Sim – disse ele. – Tenho tantos planos para nós, quando chegarmos ao trono.

– O que vamos fazer?

Artur hesitou.

– Vais pensar que sou uma criança, com a cabeça cheia de histórias dos livros.

– Não vou nada, diz-me.

– Gostava de criar um conselho, como o primeiro que Artur fez. Não como o do meu pai, que está cheio de amigos que lutaram por ele, mas um conselho como deve ser, com representantes de todo o reino. Um conselho de cavaleiros, um de cada condado. Não escolhidos por mim por gostar da sua companhia, mas escolhidos pelo seu condado... como os melhores homens para os representar. E gostava que se sentassem à mesa e que cada um soubesse o que se passa no seu condado, e relatar-mo. E, assim, se uma colheita não vai correr bem e se vai haver fome, saberíamos atempadamente e enviaríamos alimentos.

Catarina sentou-se, interessada.

– Seriam nossos conselheiros. Os nossos olhos e os nossos ouvidos.

– Sim. E eu gostava que cada um fosse responsável pela construção de defesas, no Norte e no litoral.

– E para passar revista às tropas uma vez por ano, para estarmos prontos para o ataque – acrescentou ela. – Eles virão, tu sabes.

– Os mouros?

Ela assentiu.

– Estão a ser derrotados em Espanha por enquanto, mas estão mais fortes do que nunca em África, na Terra Santa, na Turquia e nas terras além dessas. Quando precisarem de mais terras, invadirão a Cristandade. Uma vez por ano, na Primavera, o sultão otomano vai para a guerra, como os outros homens cultivam as terras. Eles atacar-nos-ão. Não sabemos quando, mas temos a certeza de que o farão.

– Quero defesas ao longo da costa sul com França, e contra os mouros – disse Artur. – Uma série de castelos, e de faróis, para que, quando formos atacados, por exemplo, em Kent, o saibamos em Londres, e que as pessoas possam ser avisadas.

– Terás de construir navios – advertiu ela. – A minha mãe encomendou navios de guerra aos estaleiros de Veneza.

– Nós temos os nossos estaleiros – respondeu. – Podemos construir os nossos navios.

– Como angariamos dinheiro para esses castelos e navios? – a filha de Isabel fez a pergunta prática.

– Uma parte, cobrando impostos ao povo – retorquiu ele. – A outra parte, cobrando impostos aos mercadores e às pessoas que utilizam os portos. É para sua segurança, devem pagar. Sei que as pessoas detestam impostos, mas é porque não vêem o que é feito com esse dinheiro.

– Vamos precisar de cobradores de impostos honestos – proferiu Catarina. – O meu pai diz que cobrar os impostos que são devidos e não perder metade pelo caminho, é melhor do que ter um regimento de cavalaria.

– Sim, mas como se encontra homens em quem confiar? – Artur pensou em voz alta. – Neste momento, qualquer homem que queira fazer fortuna arranja trabalho como cobrador de impostos. Deviam trabalhar para nós, não para eles. Deviam receber um salário e não cobrar por sua conta.

– Nunca ninguém o conseguiu, a não ser os mouros – afirmou ela. – Os mouros, em al-Andalus, criaram escolas e universidades para os filhos dos pobres, para terem funcionários em quem confiassem. E os grandes ofícios da corte são executados pelos jovens estudantes, por vezes, os filhos mais novos do rei.

– Se calhar devia arranjar cem mulheres, para obter mil funcionários para o trono? – brincou com ela.

– Nem mais uma.

– Mas temos de encontrar homens de confiança – continuou com ar pensativo. – Precisas de ter funcionários leais na corte, os que devem o salário e obediência à coroa. Caso contrário, trabalham para eles, aceitam subornos e as famílias tornam-se poderosas.

– A Igreja podia ensiná-los – sugeriu Catarina. – Tal como os imãs ensinam os rapazes para os mouros. Se cada paróquia da Igreja fosse tão erudita como uma mesquita, com uma escola, se cada padre soubesse que tem de ensinar a ler e a escrever, então fundaríamos novos colégios nas universidades, para que os rapazes progredissem e aprendessem mais.

– Isso é possível? – perguntou ele. – Não é um sonho?

Ela assentiu.

– Podia ser real. Fazer um país é a obra mais real que alguém pode fazer. Criaremos um reino de que nos possamos orgulhar, tal como a minha mãe e o meu pai fizeram em Espanha. Decidiremos como deve ser, e faremos com que aconteça.

– Camelot – disse ele apenas.

– Camelot – repetiu ela.


Castelo de Ludlow, Primavera de 1502

Nevou durante uma semana em Fevereiro, e depois chegou o gelo, a neve derreteu e agora chove outra vez. Não posso passear no jardim, montar a cavalo nem ir à cidade de mula. Nunca vi tanta chuva na vida. Não é como a nossa chuva que cai sobre a terra quente e liberta um odor rico e morno, à medida que o pó assenta e as plantas bebem a água. É uma chuva fria que cai numa terra gelada, e não tem perfume, apenas poças de água cobertas de gelo escuro, como uma pele gelada.

Sofro com saudades de casa, nestes dias frios e escuros. Quando conto histórias a Artur sobre Espanha e o Alhambra, invade-me o desejo de que os pudesse ver com seus olhos, e conhecesse a minha mãe e o meu pai. Quero que o vejam, e que conheçam a nossa felicidade. Pergunto-me se o pai não o deixaria sair de Inglaterra... mas sei que sonho. Nenhum rei deixaria o precioso filho e herdeiro sair das suas terras.

Depois congemino se poderei ir a casa sozinha, numa visita breve. Não suporto estar sem Artur nem por uma noite, mas penso que, a não ser que vá a Espanha sozinha, nunca mais voltarei a ver a minha mãe, e essa ideia, de nunca mais sentir o toque da sua mão no meu cabelo ou de nunca mais a ver a sorrir-me, não sei como suportar nunca mais voltar a vê-la.

Sinto-me feliz e orgulhosa de ser princesa de Gales e futura rainha de Inglaterra, mas nunca pensei, não tinha consciência – Sei que é um disparate da minha parte! – mas não percebi que viveria aqui para sempre, que nunca voltaria a casa. Apesar de saber que casaria com o príncipe de Gales e que um dia seria rainha de Inglaterra, não compreendi que esta seria a minha casa, e para sempre; e que posso não voltar a ver a minha mãe, o meu pai ou a minha casa.

Pelo menos esperava que nos escrevêssemos, pensei que teria notícias. Mas foi como se portou com a Isabel, com a Maria, com a Joana; envia instruções através do embaixador, eu recebo as minhas ordens, como uma princesa de Espanha. Mas como uma mãe para a filha, raramente tenho notícias.

Não sei como suportá-lo. Nunca pensei que me acontecesse uma coisa assim. A minha irmã Isabel voltou para casa, após enviuvar; apesar de ter casado e de partir mais uma vez. E Joana escreve-me dizendo que vai a casa, de visita, com o marido. Não é justo que vá e eu não seja autorizada a fazê-lo. Só tenho dezasseis anos. Não estou preparada para viver sem os conselhos da minha mãe. Não sou crescida o suficiente para viver sem uma mãe. Procuro-a, para que me diga o que devo fazer, e não está aqui.

A mãe do meu marido, a rainha Isabel, é insignificante na sua casa. Não pode ser uma mãe para mim, nem decide como ocupar o seu tempo, como me pode aconselhar? É a mãe do rei, lady Margarida, que decide tudo; e é uma mulher considerada e dura. Não pode ser uma mãe para mim, nunca podia ser uma mãe para ninguém. Venera o filho porque, graças a ele, é a mãe do rei; mas não o ama, não sente ternura por ele. Nem ama Artur; e uma mulher que não é capaz de o amar, é porque não tem coração. Estou convencida de que não gosta de mim, apesar de não saber porquê.

E tenho a certeza de que a minha mãe tem tantas saudades minhas como eu dela. Em breve, vai escrever ao rei e pedir-lhe para me deixar ir a casa, de visita. Antes de ficar muito frio aqui. E já faz um frio e uma humidade terríveis. Tenho a certeza de que não vou conseguir passar aqui o longo Inverno. Tenho a certeza de que vou adoecer. Estou convicta de que deve querer que eu vá a casa...

Catarina, sentada à mesa, frente à janela, tentando apanhar a luz fraca de uma tarde cinzenta de Fevereiro, pegou na carta, onde perguntava à mãe se podia ir visitá-la, a Espanha, e rasgou-a ao meio, e em dois, e atirou os pedaços para a lareira. Não era a primeira carta que escrevia à mãe a pedir para ir a casa, mas – tal como as outras – não seria enviada. Não trairia a formação que a mãe lhe facultara, fugindo dos céus cinzentos, da chuva gelada e das pessoas cuja língua ninguém entendia e de que as alegrias e tristezas eram um mistério.

Não sabia que, mesmo que a enviasse para o embaixador espanhol em Londres, esse diplomata astuto tê-la-ia aberto e lido, e seria ele a rasgá-la, e transmitiria o teor da mesma ao rei de Inglaterra. Rodrigo Gonsalvi de Puebla sabia, apesar de Catarina não o perceber, que o seu casamento forjara uma aliança entre o poder emergente de Espanha e o de Inglaterra, contra o de França. Não seria permitido que uma princesa com saudades de casa e da mãe causasse instabilidade.

– Conta-me uma história.

– Sou como a Xerazade, queres que te conte mil histórias.

– Oh, sim! – respondeu ele. – Quero ouvir mil e uma histórias. Quantas já me contaste?

– Contei-te uma todas as noites, desde que estamos juntos, desde a primeira noite, em Burford – disse ela.

– Quarenta e nove dias – contou.

– Apenas quarenta e nove histórias. Se fosse a Xerazade, ainda me faltariam novecentas e cinquenta e duas.

Ele sorriu.

– Sabes, Catarina, sou mais feliz nestes quarenta e nove dias do que alguma vez fui.

Ela pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios.

– E nas noites!

Os olhos escureceram de desejo.

– Sim, as noites – retorquiu calma.

– Desejo cada uma das novecentas e cinquenta e duas, ainda mais – afirmou ele. – E depois, mais mil, a seguir a essas.

– E outras mil a seguir a essas?

– E mais mil a seguir a essas, para sempre, até morrermos.

Ela sorriu.

– Deus permita que tenhamos longos anos juntos – desejou ternamente.

– Então, o que vais contar-me esta noite?

Ela pensou.

– Vou dizer-te um poema mouro.

Artur encostou-se às almofadas, enquanto ela se inclinava para a frente e fixava os olhos azuis nas cortinas da cama, como se visse além destas.

– Ele nasceu nos desertos da Arábia – explicou. – Por isso, quando foi para Espanha, sentia saudades da terra natal. Escreveu este poema.

 

Existe uma palmeira no meio de Rusafa,

Nascida no Ocidente, longe da terra das palmeiras.

Disse-lhe: és tão parecida comigo, distante e no exílio

Há tanto tempo separada da tua família e amigos.

Cresceste num solo onde és uma estranha

E eu, como tu, estou longe de casa.

 

Ele ficou em silêncio, assimilando a simplicidade do poema.

– Não é como a nossa poesia – afirmou.

– Não – respondeu tranquila. – São um povo com grande amor pelas palavras, adoram dizer uma verdade de forma simples.

Abriu os braços e ela encostou-se e ficaram deitados, com as pernas unidas. Tocou-lhe no rosto, ela tinha as faces molhadas.

– Oh, meu amor! Estás a chorar?

Não disse nada.

– Sei que tens saudades de casa – disse-lhe com ternura, pegando-lhe na mão e beijando-lhe as pontas dos dedos. – Mas vais habituar-te à tua vida aqui, aos teus mil, milhares de dias aqui.

– Sou feliz contigo – respondeu Catarina. – Só que... – A voz arrastou-se. – A minha mãe – continuou, muito baixinho. – Tenho saudades. E preocupo-me. Porque... sou a mais nova, percebes? E manteve-me junto a si o máximo de tempo que pôde.

– Sabia que terias de partir.

– Já passou... por muito. Perdeu o filho, o meu irmão João, e era o nosso único herdeiro. É horrível perder um príncipe, não podes imaginar quanto. Não é apenas a sua perda, mas a impossibilidade do que podia ter sido. A sua vida desapareceu, mas o seu reino e o seu futuro também deixaram de existir. A mulher já não será rainha, tudo o que esperou não acontecerá. E o herdeiro seguinte, o pequeno Miguel, morreu com dois anos. Era tudo o que nos restava da minha irmã Isabel, a mãe, e foi vontade de Deus levá-lo para o Seu seio. A pobre da Maria morreu longe, em Portugal, onde foi para casar e não voltámos a vê-la. Era natural que a minha mãe me mantivesse perto, para seu conforto. Fui o último dos filhos a sair de casa. E agora não sei como estará sem mim.

Artur pôs-lhe o braço em volta dos ombros e puxou-a para si.

– Deus confortá-la-á.

– Deve sentir-se tão só – murmurou.

– De certeza que ela, mais do que outra mulher no mundo, sente o conforto de Deus.

– Não me parece que isso aconteça sempre – afirmou Catarina. – A mãe foi atormentada pela tristeza, sabes. Muitas das mulheres da família podem ficar doentes, devido à tristeza. Sei que a minha mãe teme afundar-se na tristeza, como a mãe: uma mulher que via as coisas de forma tão obscura que preferia ser cega. Sei que receia nunca mais voltar a ser feliz. Eu sei que gostaria de me ter junto a si, para a fazer feliz. Dizia que eu era uma criança nascida com predisposição para a alegria, que adivinhava que seria sempre feliz.

– O teu pai não a conforta?

– Sim – respondeu. – Mas está muitas vezes longe. E eu gostava de estar com ela. Mas deves saber como me sinto. Não sentiste saudades da tua mãe, quando foste para longe pela primeira vez? E do teu pai, das tuas irmãs e do teu irmão?

– Tenho saudades das minhas irmãs, mas não do meu irmão – replicou, de um modo tão decidido que ela não conseguiu deixar de rir.

– Por que não? Achei-o tão divertido.

– É um gabarolas – retorquiu Artur irritado. – Está sempre a evidenciar-se. Pensa no nosso casamento, sempre no centro do palco, lembra-te da festa, teve de dançar para que as atenções estivessem concentradas nele. A puxar a Margarida para dançar e a fazer uma representação daquelas.

– Oh, não! Foi só porque o teu pai lhe disse para dançar, e estava feliz. É um rapazinho.

– Quer ser um homem. Tenta ser um homem e faz-nos fazer figura ridícula, sempre que o tenta. E ninguém lhe diz nada! Viste como te olhava?

– Não vi nada – respondeu com sinceridade. – Para mim foi tudo disperso.

– Fantasiou que está apaixonado por ti e sonhou que era ele quem te levava ao altar.

Ela riu-se.

– Oh, que disparate!

– Sempre foi assim – continuou ressentido. – E porque é o preferido de todos, permitem que faça e diga tudo o que lhe apetece. Eu tenho de estudar direito e línguas, viver aqui e preparar-me para assumir a coroa; mas o Henrique fica em Greenwich ou em Whitehall, na corte, como se fosse um embaixador e não um herdeiro que devia receber formação. Tem de ter um cavalo quando tenho um, apesar de ter tido o mesmo palafrém anos. Ele teve um falcão quando me deram o meu, ninguém o obriga a treinar um francelho ou um açor, e tem o mesmo tutor que eu, e tenta ultrapassar-me, tenta ser melhor do que eu, sempre que pode, e obtém sempre o melhor.

Catarina percebeu que estava irritado.

– Mas é apenas o segundo filho – comentou.

– É o favorito de todos – disse Artur mal-humorado. – Tem tudo o que pede e tudo é fácil para ele.

– Não é o príncipe de Gales – observou ela. – Pode ser apreciado, mas não é importante. Fica na corte porque não é importante para ser enviado para aqui. Não tem o seu principado. O teu pai terá planos para ele. Casará e será enviado para longe. Um segundo filho tem tanta importância como uma filha.

– Ele vai para a Igreja – informou. – Vai ser padre. Quem casaria com ele? Vai ficar em Inglaterra. Sou capaz de adivinhar que vou ter de o suportar como arcebispo, se não conseguir tornar-se papa.

Catarina riu-se ante a ideia de o rapaz louro, de rosto rosado e inteligente, vir a ser papa.

– Vamos ser importantes quando formos adultos – afirmou. – Tu e eu, rei e rainha de Inglaterra, e Henrique, arcebispo; talvez até cardeal.

– O Henrique nunca crescerá – insistiu. – Será sempre um rapaz egoísta. E porque a minha avó e o meu pai sempre lhe deram o que quis, bastava pedir, vai ser uma pessoa gananciosa e difícil.

– Talvez mude – disse ela. – Quando a minha irmã mais velha, a pobre da Isabel, foi para Portugal pela primeira vez, era a rapariga mais vaidosa e mundana que possas imaginar. Mas quando o marido morreu e voltou para casa, não lhe interessava mais nada a não ser ir para um convento. Ficou com o coração despedaçado.

– Ninguém partirá o coração de Henrique – afirmou o irmão mais velho. – Ele não tem.

– Pensarias o mesmo de Isabel – argumentou Catarina. – Mas apaixonou-se pelo marido no dia do casamento e disse que nunca mais voltaria a amar. Casou pela segunda vez, claro. Mas contrariada.

– E tu? – perguntou, mudando de repente de estado de espírito.

– E eu, o quê? Se casei contrariada?

– Não! Se te apaixonaste pelo teu marido no dia do casamento?

– No dia do casamento não foi, de certeza – retorquiu. – Por falar em gabarolas! O Henrique não é nada, comparado contigo! Ouvi-te dizer, na manhã seguinte, que ter uma mulher era um excelente desporto.

Artur teve a delicadeza de ficar envergonhado.

– Posso ter dito algo na brincadeira.

– Que estiveras em Espanha toda a noite?

– Oh, Catarina, perdoa-me. Eu não sabia nada. Tens razão, era uma criança. Mas agora sou um homem, o teu marido. E tu apaixonaste-te pelo teu marido. Por isso, não negues.

– Mas demorou algum tempo – respondeu. – Não foi amor à primeira vista.

– Eu sei quando aconteceu, por isso não me enganas. Foi naquela noite, em Burford, quando estiveste a chorar e eu te beijei a sério pela primeira vez, e enxuguei-te as lágrimas com as mangas. E, nessa noite, fui ter contigo, e a casa estava tão silenciosa que era como se fôssemos as únicas pessoas vivas, no mundo.

Ela enroscou-se mais nos seus braços.

– E contei-te a minha primeira história – disse. – Lembras-te qual foi?

– Foi a do incêndio em Santa Fé – replicou. – A única vez que a sorte esteve contra os espanhóis.

Ela assentiu.

– Normalmente, éramos nós que levávamos o fogo e a espada. O meu pai tem fama de ser impiedoso.

– O teu pai era impiedoso? Apesar de ser terra que reivindicava para si? Como esperava convencer as pessoas da sua vontade?

– Através do medo – retorquiu com simplicidade. – E não era a sua vontade. Era a vontade de Deus, e por vezes Deus não tem misericórdia. Aquela não era uma guerra normal, era uma cruzada. As cruzadas são cruéis.

Ele acenou.

– Escreveram uma canção sobre o avanço do meu pai. Os mouros tinham uma canção.

Inclinou a cabeça e numa voz sinistra e baixa, traduzindo as palavras para francês, cantou:

 

Cavaleiros atravessam a galope a porta Elvira, sobem até ao Alhambra,

Trazem notícias temerosas, o rei,

Fernando lidera um exército, a flor de Espanha,

Ao longo das margens do Jenil; com ele traz

Isabel, rainha que tem um coração de homem.

 

Artur ficou encantado.

– Canta outra vez!

Ela riu-se e voltou a cantar.

– E chamavam-lhe assim: «rainha que tem um coração de homem»?

– O meu pai diz que, quando estava num acampamento, era melhor do que dois batalhões, para dar forças às tropas e assustar os mouros. Em todas as batalhas que travaram, nunca foi derrotada. O exército nunca perdeu uma batalha quando estava presente.

– Ser um rei desses! Haver pessoas a escrever canções sobre nós.

– Eu sei – respondeu Catarina. – Ter uma mãe que é uma lenda! Não admira que sinta saudades. Naquele tempo, ela não tinha medo de nada. Nem quando as chamas quase nos destruíram teve medo. Nem das chamas durante a noite, nem da derrota. Quando o meu pai e os conselheiros concordaram que teríamos de recuar para Toledo, rearmarmo-nos e voltar no ano seguinte, a minha mãe disse que não.

– Ela discute com ele em público? – perguntou Artur fascinado pela ideia de uma mulher que não era submissa.

– Não discute, propriamente – retorquiu ela, com ar pensativo. – Nunca o contradiria ou desrespeitaria. Mas ele sabe muito bem quando ela não está de acordo. E, a maior parte das vezes, fazem o que quer.

Ele abanou a cabeça.

– Sei o que pensas, uma mulher deve obedecer. Ela própria o diria. Mas a dificuldade é que tem sempre razão – afirmou Catarina. – Das vezes que me lembro, sempre que se punha a questão de o exército dever ou não avançar, ou de haver alguma coisa a ser feita, é como se Deus a aconselhasse, é mesmo assim; ela sabia melhor o que devia ser feito. Até o meu pai tem noção de que ela sabe melhor.

– Deve ser uma mulher extraordinária.

– É a rainha – respondeu Catarina apenas. – Rainha de pleno direito. Não é uma mera rainha por casamento, nem uma plebeia educada para ser rainha. Nasceu princesa de Espanha como eu. Nasceu para ser rainha. Foi salva por Deus dos mais terríveis perigos para ser rainha de Espanha. Que mais podia fazer senão comandar o reino?

Nessa noite, sonho que sou um grande pássaro, uma andorinha, um gaivão, sobrevoando alto e destemido o reino da nova Castela, para sul de Toledo, sobre Córdova, para sul, para o reino de Granada; o terreno sob mim, estendido como uma tapeçaria escura, tecida com a lã dourada das ovelhas dos berberes, a terra de latão perfurada por penhascos de bronze, os montes tão altos que nem as oliveiras se fixam nas encostas íngremes. E continuo a voar; com o meu pequeno coração de pássaro tremente, até avistar as paredes rosadas do Alcazar, o grande forte que rodeia o Palácio de Alhambra, e voando mais baixo e rápido, toco ao de leve na esquadria da torre de vigia, onde a bandeira da lua crescente em tempos se ergueu, para descer em direcção ao Pátio dos Mirtilos e esvoaçar; em círculos, no ar quente, rodeado de edifícios delicados de estuque e azulejos, olhando para baixo, para o reflexo na água, e vendo, por fim, a que procuro: a minha mãe, Isabel de Espanha, a passear no ar morno da noite, pensando na filha, em Inglaterra distante.

Castelo de Ludlow, Março de 1502

 

– Quero pedir-vos que conheçais uma senhora que é muito minha amiga e que quer ser vossa amiga – disse Artur, escolhendo cuidadosamente as palavras.

As damas de companhia de Catarina, aborrecidas, numa tarde fria sem distracções, inclinaram-se, para ouvirem, tentando parecer concentradas nos trabalhos de costura.

Ela ficou branca como o linho que bordava.

– Meu senhor? – perguntou ansiosa. Ele não mencionara nada, de manhã, quando acordaram e fizeram amor. Não esperava vê-lo antes do jantar. O facto de aparecer, nos seus aposentos, indicava que algo acontecera. Estava preocupada, à espera de saber o que se passava.

– Uma senhora? Quem é?

– Deveis ter ouvido as outras falar dela, mas suplico-vos que vos lembreis que está disposta a ser vossa amiga, e sempre foi uma boa amiga minha.

Catarina levantou a cabeça num rompante e respirou fundo. Por momentos, por um momento terrível, pensou que apresentava uma antiga amante na corte, suplicando por um lugar entre as damas de companhia para alguma mulher que fora sua amante, para continuarem a ligação.

Se é isso que ele está a fazer, sei qual é o meu papel. Via minha mãe ser assombrada pelas raparigas bonitas a quem o meu pai, Deus lhe perdoe, não resistia. Vezes sem conta, víamo-lo prestar atenção a algum rosto novo na corte. A minha mãe portava-se como se não tivesse visto nada, oferecia um dote elevado à rapariga, casava-a com um membro da corte e incentivava-o a levar a nova mulher para longe, para muito longe. Era tão frequente, que se tornou uma anedota: se uma rapariga quisesse fazer um bom casamento, com a bênção da rainha, e viajar para uma província longínqua, tudo o que tinha de fazer era captar as atenções do rei, e ver-se-ia a sair do Alhambra, num excelente cavalo, com roupas novas.

Sei que uma mulher sensata olha para o outro lado e suporta a sua dor e humilhação, quando o marido decide levar outra mulher para a cama. O que não deve fazer é portar-se como a minha irmã Joana, que se envergonha a si mesma e a nós gritando, chorando histericamente e ameaçando vingar-se.

– Não resolve nada – disse-me uma vez a minha mãe, quando um dos embaixadores nos contou uma cena terrível na corte de Filipe, na Holanda. Joana ameaçara cortar o cabelo da mulher, atacando-a com uma tesoura e jurando que se esfaquearia. – Queixar-se só agrava a situação. Se um marido se afasta, temos de trazê-lo para a nossa vida e para a nossa cama, apesar do que tenha feito; não há escapatória ao casamento. Se fores rainha e ele rei, têm de tratar de assuntos em conjunto. Se se esquecer do seu dever para contigo, isso não é motivo para te esqueceres do teu para com ele. Por muito doloroso que seja, continuas a ser a sua rainha e ele não deixa de ser teu marido.

– Apesar do que fizer? – perguntei-lhe. – Seja qual for o seu comportamento? Ele é livre, apesar de eu estar presa?

Ela encolheu os ombros.

– Seja o que for que faça, não pode quebrar o vínculo matrimonial. Foram casados perante Deus: será sempre o teu marido, e tu serás sempre a sua rainha. O que Deus uniu, ninguém pode separar. Por muito sofrimento que o teu marido te traga, continua a ser teu marido. Pode ser um mau marido; mas não deixa de ser o teu marido.

– E se desejar outra? – interroguei com a minha curiosidade infantil aguçada.

– Se desejar outra, pode tê-la ou ela pode recusá-lo, é entre eles. É um problema dela e da sua consciência – explicara a minha mãe. – O que não deve mudar és tu. Seja o que for que disser, seja o que for que ela quiser, continuas a ser sua mulher e sua rainha.

Catarina recordou estes conselhos e encarou o jovem marido.

– Fico sempre contente por conhecer uma amiga vossa, meu senhor – disse num tom uniforme, esperando que a voz não lhe tremesse. – Mas, como sabeis, tenho um séquito reduzido. O vosso pai foi explícito em dizer que não podia ter mais damas de companhia do que as que disponho actualmente. Como é do vosso conhecimento, não me paga mesada. Não tenho dinheiro para pagar a mais uma dama pelos seus serviços. Resumindo, não posso ter mais nenhuma dama, mesmo que seja uma amiga especial vossa, na minha corte.

Artur vacilou ao lembrar-se da discussão feroz com o pai devido à sua comitiva.

– Oh, não, não estais a perceber. Não é uma amiga que quer um lugar. Não quer ser vossa dama de companhia – explicou. – É lady Margarida Pole, que espera para vos conhecer. Por fim regressou a casa.

Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós. Isto é pior do que se fosse uma amante. Sabia que teria de encará-la um dia. É a sua casa, mas estava fora quando cheguei e pensei que me menosprezara, afastando-se e mantendo-se longe. Considerei que me evitava por ódio, como eu a evitaria por vergonha. Lady Margarida Pole é irmã daquele pobre rapaz, o duque de Warwick, decapitado para tornar a sucessão segura para mim, e para a minha linhagem. Temo o momento em que a conhecerei. Tenho rezado aos santos para que permaneça longe, odiando-me, culpando-me, mas mantendo a distância.

Artur viu a sua fugaz expressão de rejeição, mas não encontrara uma forma de a preparar para isto.

– Por favor – disse apressado. – Tem estado longe a tomar conta dos filhos ou teria cá vindo com o marido dar-vos as boas-vindas ao castelo, assim que chegámos. Disse-vos que voltaria. Quer cumprimentar-vos agora. Temos de viver aqui em harmonia. Sir Richard é um amigo de confiança do meu pai, lorde do meu conselho e o guardião deste castelo. Teremos de viver juntos.

Catarina estendeu-lhe uma mão a tremer e ele aproximou-se, ignorando a atenção fascinada das damas de companhia.

– Não posso encontrar-me com ela – sussurrou. – Sinceramente, não sou capaz. Sei que o irmão foi executado por minha causa. Sei que os meus pais insistiram nisso, antes de me enviarem para Inglaterra. Sei que estava inocente, como uma flor, e que foi detido na Torre pelo teu pai, para que os homens não se juntassem à sua volta e reivindicassem o trono em seu nome. Podia ter vivido aqui em segurança toda a vida, se os meus pais não exigissem a sua execução. Deve odiar-me.

– Não te odeia – respondeu ele com sinceridade. – Acredita em mim, Catarina, não te exporia à crueldade de ninguém. Não te odeia, não me odeia, nem odeia o meu pai, que ordenou a execução. Sabe que estas coisas acontecem. É uma princesa, sabe tão bem como tu que não são as escolhas, mas a política, quem nos governa. Não foi uma escolha tua, nem minha. Sabe que o teu pai e a tua mãe tinham de se assegurar de que não havia príncipes rivais a reivindicar o trono, que o meu pai desimpediria o meu caminho, custasse o que custasse. Está resignada.

– Resignada? – suspirou incrédula. – Como pode uma mulher resignar-se com o assassínio do irmão, do herdeiro da família? Como pode receber-me com amizade, quando morreu para minha conveniência? Quando perdemos o meu irmão, o nosso mundo acabou, as nossas esperanças morreram com ele. O nosso futuro foi enterrado com ele. A minha mãe, que é uma santa viva, ainda não o suporta. Nunca mais voltou a ser feliz desde o dia da sua morte. É-lhe insuportável. Se fosse executado por algum estranho, juro que cobraria uma vida em troca. Como pode lady Margarida perder o irmão e suportar? Como me suporta?

– Está resignada – comentou ele apenas. – É uma mulher espiritual e, se procurava uma recompensa, encontrou-a no facto de estar casada com sir Richard Pole, um homem em que o meu pai confia, e vive aqui na maior das considerações, é minha amiga e espero que também seja tua.

Pegou-lhe na mão e sentiu-a a tremer.

– Vamos, Catarina, isto nem parece teu. Sê corajosa, meu amor. Não te vai culpar.

– Deve culpar-me – replicou num murmúrio angustiado. – Os meus pais insistiram em que não devia haver dúvidas quanto à tua herança. Eu sei que o fizeram. O teu pai prometeu que não haveria príncipes rivais. Sabiam o que pretendia fazer. Não lhe disseram para preservar a vida de um homem inocente. Permitiram que o fizesse. Queriam que o fizesse. O sangue de Eduardo Plantageneta está na minha cabeça. O nosso casamento está amaldiçoado pela sua morte.

Artur recuou, nunca a vira tão perturbada.

– Meu Deus, Catarina, não podes dizer que estamos amaldiçoados.

Ela acenou com tristeza.

– Nunca falaste disso.

– Não suportava dizê-lo.

– Mas pensaste nisso?

– Desde o dia em que me disseram que fora executado por minha causa.

– Meu amor, não podes estar convencida de que estamos amaldiçoados?

– Neste caso.

Tentou rir-se da intensidade das palavras.

– Não. Tens de pensar que fomos abençoados. – Puxou-a para si e disse muito baixinho, para que ninguém ouvisse: – De manhã, quando acordas nos meus braços, sentes-te amaldiçoada?

– Não – respondeu, contrariada. – Não, não sinto.

– De noite, quando vou ter contigo, sentes a sombra do pecado sobre ti?

– Não – admitiu.

– Não fomos amaldiçoados – respondeu com firmeza. – Fomos abençoados com o favor de Deus. Catarina, meu amor, confia em mim. Ela perdoou o meu pai, nunca te culparia. Juro-te, é uma mulher com um coração do tamanho de uma catedral. Quer conhecer-te. Vem comigo e deixa-me apresentar-ta.

– Então, sozinha – pediu, ainda temendo uma cena terrível.

– Sozinha. Está nos aposentos do guardião do castelo. Se vieres agora, deixamo-las aqui e vamos sozinhos falar com ela.

Levantou-se da cadeira e pôs a mão no cotovelo dele.

– Vou sozinho com a princesa – comunicou Artur às damas de companhia dela. – Podeis ficar.

Ficaram surpreendidas por serem excluídas, e algumas desapontadas. Catarina passou por elas sem erguer o olhar.

Depois de transpor a porta, ele seguiu à frente pelas escadas estreitas em espiral, com uma das mãos pousada no corrimão central de pedra, outra na parede. Catarina seguiu-o, demorando-se em cada janela em forma de seteira, olhando para o vale onde o Teme ultrapassara as margens e parecia um lago prateado sobre os prados alagados. Estava frio, mesmo para Março, nas Marcas, e Catarina sentiu um arrepio, como se alguém a desejasse morta.

– Meu amor – disse ele, olhando de baixo para cima, nas escadas estreitas, para onde ela se encontrava. – Coragem. A tua mãe seria corajosa.

– Foi ela que ordenou isto – respondeu de mau humor. – Pensou que era para meu bem. Mas um homem morreu por causa da sua ambição, e agora tenho de encarar a irmã.

– Ela fê-lo por ti – relembrou-lhe. – E ninguém te culpa.

Chegaram ao andar por baixo dos aposentos da princesa e, sem hesitação, Artur bateu à porta de madeira maciça dos apartamentos do guardião e entrou.

A sala quadrada, que dava para o vale, era semelhante à sala de estar de Catarina no andar de cima, revestida a madeira e decorada com tapeçarias de cores vivas. Estava lá uma senhora à espera, sentada perto da lareira, e, quando a porta se abriu, levantou-se. Usava um vestido cinzento-claro e um toucado cinzento. Tinha mais ou menos trinta anos; olhou para Catarina com um interesse amigável e fez uma grande e respeitosa reverência.

Desobedecendo ao aperto de dedos da noiva, Artur retirou o braço e recuou até à porta. Catarina olhou para trás, com ar reprovador, e dirigiu uma pequena reverência à mulher mais velha. Levantaram-se ao mesmo tempo.

– Muito prazer em conhecer-vos – saudou lady Pole, com ar doce. – E peço desculpa por não ter cá estado, para vos receber. Mas um dos meus filhos estava doente e fui certificar-me de que estava a ser bem tratado.

– O vosso marido tem sido muito simpático – conseguiu dizer Catarina.

– Espero que sim, deixei-lhe uma longa lista de indicações; queria muito que os vossos aposentos estivessem quentes e confortáveis. Tereis de me dizer se houver alguma coisa que desejardes. Não conheço Espanha, por isso não sei o que vos agradaria.

– Não! Está tudo... absolutamente.

A mulher mais velha olhou para a princesa.

– Então, espero que sejais muito feliz aqui connosco – replicou.

– Espero que... – Catarina respirou fundo. – Mas eu... Eu...

– Sim?

– Fiquei muito triste por saber da morte do vosso irmão. – Catarina foi directa. O seu rosto, que estivera branco de desconforto, passara a escarlate. Sentia as orelhas a arder e, para seu horror, ouvia a voz a tremer. – A sério, fiquei com muita pena. Muita...

– Foi uma grande perda para mim, e para os meus – respondeu a mulher com firmeza. – Mas o mundo é assim.

– Temo que a minha vinda...

– Nunca pensei que fosse uma escolha vossa ou vossa culpa, princesa. Quando o nosso querido príncipe Artur foi prometido em casamento, o pai tinha de se certificar de que a herança estava segura. Eu sei que o meu irmão nunca ameaçaria a paz dos Tudor, mas eles não o sabiam. E foi mal aconselhado por um jovem perverso, arrastado para uma conspiração disparatada... – Começou a chorar e a voz tremia; mas recompôs-se. – Perdoai-me. Ainda é difícil. O meu irmão estava inocente. A conspiração ridícula era a prova da sua inocência, não da sua culpa. Não tenho dúvida de que se encontra junto de Deus, com todos os inocentes.

Sorriu para a princesa.

– Neste mundo, nós, mulheres, chegamos à conclusão de que não temos poder sobre os actos dos homens. Tenho a certeza de que não desejaríeis nenhum mal ao meu irmão e a certeza de que ele não vos enfrentaria, nem ao nosso querido príncipe. Porém, as coisas são assim e por vezes tomadas medidas cruéis. O meu pai fez algumas más escolhas na vida, e Deus sabe que pagou por elas. O filho, apesar de inocente, seguiu os passos do pai. Se saísse a outra face da moeda, tudo podia ter sido diferente. Creio que uma mulher tem de aprender a viver com as probabilidades, mesmo que lhe sejam desfavoráveis.

Catarina ouviu-a atentamente.

– Sei que a minha mãe e o meu pai queriam ter a certeza de que a linhagem dos Tudor não era contestada – suspirou. – Sei que o disseram ao rei.

Sentia que tinha de garantir que aquela mulher conhecesse a profundidade da sua culpa.

– Como eu poderia ter feito, se estivesse no seu lugar – afirmou lady Margarida. – Princesa, não vos culpo, nem à vossa mãe, nem ao vosso pai. Não culpo o nosso grande rei. Se fosse um deles, podia ter a mesma atitude, e só daria explicações a Deus. Tudo o que tenho a fazer, uma vez que não sou uma dessas pessoas importantes, mas uma humilde esposa de um grande homem, é preocupar-me com o meu comportamento e com a forma como me explicarei perante Deus.

– Sinto que vim para este país com a sua morte na consciência – admitiu Catarina num repente.

A mulher mais velha abanou a cabeça.

– A sua morte não deve estar na vossa consciência – retorquiu com firmeza. – E é errado que vos culpeis pelos actos de outros. Penso que o vosso confessor vos diria: é uma forma de orgulho. Esse deve ser o único pecado que deveis confessar, não tendes de assumir a culpa pelos pecados de outros.

Catarina ergueu o olhar pela primeira vez, para deparar com o olhar fixo de lady Pole, e viu-a sorrir. Recatadamente, retribuiu-lhe o sorriso, e a mulher mais velha estendeu a mão, como um homem ofereceria um aperto de mão num negócio.

– Sabeis – disse brincando –, eu também fui uma princesa real. Fui a última princesa Plantageneta, educada pelo rei Ricardo, na creche, com o filho. De todas as mulheres do mundo, eu sei que há muitas coisas na vida que uma mulher não controla. Existe a vontade do nosso marido, dos pais, do nosso rei e de Deus. Ninguém pode culpar uma princesa pelos actos de um rei. Como alguém pode pôr isso em causa? Ou fazer diferença? A nossa atitude deve ser a de obediência.

Catarina envolvida no caloroso e firme aperto de mão, sentiu-se reconfortada.

– Receio nem sempre ser muito obediente – confessou.

A mulher mais velha riu-se.

– Oh, sim, seríamos tolas se não pensássemos por nós – admitiu. – A verdadeira obediência só acontece quando estamos convencidas de que temos razão, e escolhemos baixar a cabeça. Tudo o que seja menos que isso não passa de acordo, e qualquer tolinha de companhia está de acordo. Não pensais?

E Catarina, gracejando, pela primeira vez, com uma mulher inglesa, riu-se alto e afirmou:

– Nunca quis ser uma tolinha de companhia.

– Nem eu – declarou Margarida Pole, que fora uma Plantageneta, princesa real e agora uma simples esposa, escondida na solidez das fronteiras Tudor.

– Sempre soube que era eu própria, no meu coração, seja qual for o título que me for atribuído.

Estou surpreendida por descobrir que a mulher cuja presença temi está a fazer o Castelo de Ludlow parecer-se com uma casa. Lady Margarida Pole é uma companhia e uma amiga para me consolar pela perda da minha mãe e irmãs. Percebo que sempre vivi num mundo dominado por mulheres: a rainha minha mãe, as minhas irmãs, as nossas damas de companhia, e as criadas do serralho. No Alhambra vivíamos quase à parte dos homens, em divisões concebidas para o prazer e o conforto das mulheres. Vivíamos em reclusão, na privacidade das salas frescas, e corríamos pelos pátios, reclinando-nos nas varandas, seguras na convicção de que metade do palácio era propriedade nossa.

Comparecíamos na corte, com o meu pai; não estávamos escondidas; mas o desejo natural das mulheres por privacidade era respeitado e enfatizado pela planta do Alhambra, onde as salas mais belas e os melhores jardins nos estavam reservados.

É estranho chegar a Inglaterra e encontrar um mundo dominado por homens. É evidente que tenho os meus aposentos e as minhas damas de companhia, mas pode aparecer um homem e pedir para ser recebido, a qualquer momento. Sir Richard Pole ou qualquer outro dos membros do séquito de Artur pode entrar nos meus aposentos sem avisar e pensar que me agrada. Os ingleses consideram normal que os homens e as mulheres se misturem. Ainda não vi nenhuma casa com salas exclusivas para mulheres, e mulher alguma usa véu, como por vezes fazíamos em Espanha, nem quando viajam, nem no meio de estranhos.

Até a família real está aberta a toda a gente. Homens, mesmo estranhos, podem passear pelos palácios reais, desde que sejam inteligentes para fazer com que os guardas os deixem entrar. Podem esperar na antecâmara da rainha e vê-la quando passar, olhando-a como se fizessem parte da família. O grande salão, a capela, os aposentos públicos da rainha estão abertos a quem tenha um bom chapéu e uma capa e se faça passar por nobre. Os ingleses tratam as mulheres como se fossem rapazes ou criados, podem ir a qualquer lado, podem ser observadas por qualquer pessoa. Durante algum tempo pensei que era uma grande liberdade, e congratulei-me; depois, percebi que as mulheres inglesas podem mostrar os rostos, mas não são ousadas como os homens, não são livres como os rapazes; continuam a permanecer em silêncio e obedecer.

Agora que lady Margarida Pole voltou aos aposentos do guardião, parece que este castelo voltou a ser governado por mulheres. As noites no salão são menos pesadas, até a comida ao jantar é diferente. Os trovadores cantam canções sobre amor e menos sobre batalhas, fala-se mais francês e menos galês.

Os meus aposentos são no andar de cima, e os dela no de baixo, e passamos o dia a subir e a descer as escadas, para estarmos juntas. Quando Artur e sir Richard saem para caçar, a guardiã do castelo está em casa e já não parece vazia. De certa forma, transforma-o num castelo feminino, só pela sua presença. Quando Artur está fora, a vida do castelo não é silenciosa, à espera que regresse. É um lugar caloroso, feliz e movimentado nas rotinas diárias.

Sentia falta de ter uma mulher mais velha como amiga. María de Salinas é uma rapariga tão nova e tola como eu, é uma companhia, não uma mentora. Doña Elvira foi nomeada pela minha mãe, a rainha, para a substituir; mas não é uma mulher com quem possa estabelecer uma relação afectiva, apesar de ter tentado gostar dela. É rígida, tem ciúmes da influência que María de Salinas tem sobre mim, ambiciosa por gerir a corte. Ela e o marido, que chefia o meu séquito, querem dominar a minha vida. Desde a primeira noite em Dogmersfield, quando contradisse o rei; tenho dúvidas em relação ao seu bom senso. Mesmo agora, está sempre a avisar-me para ter cuidado, para não me tornar demasiado próxima de Artur; como se fosse errado amar um marido, como se eu conseguisse resistir-lhe! Pretende criar uma pequena Espanha em Inglaterra, quer que continue a ser a infanta. Mas estou certa de que o caminho que tenho pela frente em Inglaterra é tornar-me inglesa.

Doña Elvira não quer aprender inglês. Finge não perceber francês, quando é falado com pronúncia inglesa. Trata os galeses com desprezo, como se fossem bárbaros no limiar da civilização, o que não é agradável para mim, quando visitamos os habitantes de Ludlow. Para ser honesta, por vezes, tem um comportamento mais altivo do que qualquer outra mulher que conheço, é mais orgulhosa do que a minha mãe. É mais altiva do que eu. Tenho de admirá-la, mas não consigo amá-la.

Mas Margarida Pole foi educada como sobrinha de um rei e é tão fluente em latim como eu. Falamos francês com facilidade, está a ensinar-me inglês, e quando encontramos uma palavra que não conhecemos, numa das línguas que partilhamos, fazemos mímicas que nos fazem rir às gargalhadas. Fi-la chorar a rir quando tentei mostrar-lhe o que significava indigestão, e os guardas vieram a correr, pensando que estávamos a ser atacadas, quando ela recorreu às aias da corte e às criadas, para me demonstrar o protocolo correcto para uma caçada inglesa no campo.

Com Margarida, Catarina pensou que podia colocar a questão do seu futuro, e do sogro, em relação a quem se sentia muito ansiosa.

– Ficou zangado antes de virmos embora – contou. – Foi a questão do dote.

– Ai sim? – respondeu Margarida. As duas mulheres estavam sentadas junto à janela, esperando que os homens voltassem da caça. Estava muito frio e húmido e nenhuma quisera sair. Margarida achou melhor não dizer nada sobre o incómodo tema do dote de Catarina; já soubera pelo marido que o rei de Espanha era perfeito na arte das negociações dúbias. Acordara um dote substancial pela infanta, mas, depois, enviou-a para a Inglaterra apenas com metade da quantia. O resto, sugeriu, podia ser completado com a baixela e o tesouro que trouxera, como bens para a casa. Escandalizado, o rei Henrique reclamara a quantia total. Graciosamente, Fernando de Espanha respondeu que o séquito da princesa fora abastecido com tudo do melhor, Henrique poderia escolher.

Era uma péssima maneira de começar um casamento que, no fundo, era baseado em ganância e ambição, e num receio partilhado de França. Catarina foi apanhada entre a determinação de dois homens frios. Margarida adivinhou que uma das razões por que Catarina fora enviada para o Castelo de Ludlow com o marido era obrigá-la a usar os bens para diminuir o valor. Se o rei Henrique a mantivesse em Windsor, Greenwich ou Westminster, comeria nos seus pratos e o pai argumentaria que a baixela espanhola era nova e teria de ser aceite como dote. Mas comiam todas as noites nos pratos em ouro de Catarina e cada risco de uma faca usada com menos cuidado reduzia o valor. Quando chegasse a altura de pagar a segunda parte do dote, o rei de Espanha descobriria que teria de o fazer em dinheiro. O rei Fernando podia ser um homem duro e um negociante astuto, mas encontrara um igual em Henrique Tudor.

– Ele disse que devia ser como uma filha para ele – relatou Catarina. – Mas não posso obedecer-lhe como uma filha, se tenho de obedecer ao meu pai. O meu pai disse-me para não usar a minha baixela e para a entregar ao rei. Mas não a aceita. E uma vez que o dote está por pagar, o rei enviou-me para aqui sem provisões, nem me paga a mesada.

– O embaixador espanhol não vos aconselha?

Catarina fez uma careta.

– Ele é um aliado do rei – respondeu. – Não me ajuda nada. Não gosto dele. É judeu, mas convertido. Um homem que se adapta com facilidade. É espanhol, mas vive cá há muitos anos. Tornou-se um homem que serve os Tudor, não Aragão. Tenho de contar ao meu pai que é mal representado pelo doutor de Puebla, mas não recebo bons conselhos, e, no meu séquito, doña Elvira e o meu tesoureiro estão sempre a discutir. Ela diz que os meus bens e o meu tesouro têm de ser entregues a joalheiros para obtermos dinheiro, ele afirma que não permitirá que saiam da sua vista até serem pagos ao rei.

– E não perguntastes ao príncipe o que deveis fazer?

Catarina hesitou.

– É um assunto entre o meu pai e o dele – disse com precaução. – Não quero que nos perturbe. Ele pagou as minhas despesas de viagem até aqui. Vai pagar os salários das aias até ao solstício do Verão e vou precisar de vestidos novos. Não quero pedir-lhe dinheiro. Não quero que pense que sou gananciosa.

– Vós amai-lo, não amais? – inquiriu Margarida, sorrindo, e observou o rosto da jovem animar-se.

– Oh, sim. – A rapariga respirou fundo. – Amo-o muito.

A mulher mais velha sorriu.

– Sois abençoada – retorquiu gentil. – Ser uma princesa e encontrar o amor com o marido com quem vos obrigaram a casar. Sois abençoada, Catarina.

– Eu sei. Penso que é um sinal do favor especial de Deus para comigo.

A mulher mais velha fez uma pausa diante da grandiosidade da afirmação, mas não a corrigiu. A confiança da juventude desvanecer-se-ia em breve, sem necessidade de avisos.

– E tendes alguns indícios?

Catarina pareceu baralhada.

– De uma criança vir a caminho? Sabeis o que procurar?

A jovem corou.

– Sei. A minha mãe disse-me. Ainda não há indícios.

– Ainda é cedo – assegurou lady Margarida, com ar confortador. – Mas, se houvesse uma criança a caminho, julgo que não haveria problemas em relação ao dote. Creio que nada seria demasiado bom para vós, se estivésseis à espera do próximo príncipe Tudor.

– Deveria receber a minha mesada, quer estivesse à espera de um filho ou não – observou Catarina. – Sou a princesa de Gales, devia receber mesada para me sustentar.

– Sim – respondeu Margarida secamente. – Mas quem convence o rei disso?

– Conta-me uma história.

Estavam mergulhados na luz dourada da vela e da lareira. Era meia-noite e o castelo estava silencioso, o único som que se ouvia era o das suas vozes falando baixinho, as luzes estavam apagadas, à excepção da lareira dos aposentos de Catarina, onde os dois jovens amantes resistiam ao sono.

– Que história queres que te conte?

– Conta-me uma sobre os mouros.

Reflectiu por instantes, colocando um xaile sobre os ombros nus para se proteger do frio. Artur estava esticado na cama, mas, quando ela se mexeu, puxou-a para si, de forma a que a sua cabeça repousasse no peito nu. Passou-lhe a mão pelo cabelo forte e vermelho e apanhou-o com a mão.

– Vou contar-te uma história sobre uma das sultanas – disse. – Não é uma história. É verdade. Ela estava no harém; sabes que as mulheres vivem à parte dos homens nos seus aposentos?

Ele acenou, observando a luz da vela tremeluzente que incidia no pescoço dela, na concavidade da clavícula.

– Ela olhava pela janela, e a maré do rio, debaixo da janela, estava baixa. As crianças pobres da cidade brincavam na água. Estavam na rampa dos barcos e tinham espalhado lama por todo o lado e escorregavam e deslizavam na lama. Ria-se enquanto os observava e dizia para as aias que gostava de poder brincar assim.

– Mas não podia sair?

– Não, nunca podia sair. As aias disseram aos eunucos que guardavam o harém, os eunucos contaram ao grão-vizir e ele transmitiu ao sultão, e quando ela se afastou da janela e foi para a sala de estar, adivinha o que aconteceu?

Ele abanou a cabeça, sorrindo.

– O que foi?

– A sala de estar era um grande salão de mármore. O chão era de mármore com veios rosados. O sultão ordenara que trouxessem grandes jarros de óleos perfumados e que os espalhassem no chão. Foi ordenado aos perfumistas da cidade que trouxessem óleo de rosas para o palácio. Trouxeram pétalas de rosa e ervas de cheiro doce e fizeram uma massa espessa de óleo, de pétalas de rosas e de ervas e espalharam-na, numa camada com alguns centímetros pelo chão da sala de estar. A sultana e as aias despiram as camisas e escorregaram e brincaram na lama, atiraram água de rosas e pétalas e brincaram toda a tarde como os miúdos na lama.

Ele estava abismado.

– Fantástico.

Ela sorriu-lhe.

– Agora é a tua vez. Conta-me uma história.

– Não tenho histórias dessas. São só sobre combates e vitórias.

– Essas são as que gostas mais que eu conte – lembrou-lhe.

– Pois são. E agora o teu pai vai entrar em guerra.

– Vai?

– Não sabias?

Catarina abanou a cabeça.

– O embaixador espanhol, por vezes, envia-me uma carta com notícias, mas não me disse nada. É uma cruzada?

– És um soldado de Cristo sedento de sangue. Pensar-se-ia que os infiéis tremem nas sandálias. Não, não é uma cruzada. É uma causa muito menos heróica. O teu pai, surpreendentemente para nós, fez uma aliança com o rei Luís de França. Parece que planeiam invadir Itália e partilhar o espólio.

– O rei Luís? – perguntou, surpreendida. – Nunca! Pensei que seriam inimigos até à morte.

– Bem, parece que o rei francês não se preocupa a quem se alia. Primeiro os turcos e agora o teu pai.

– Bem, mais vale o rei Luís fazer alianças com o meu pai do que com os turcos – disse ela. – Qualquer coisa é melhor do que serem convidados a entrar.

– Mas por que o teu pai se uniria ao nosso inimigo?

– Sempre desejou Nápoles – confessou-lhe. – Nápoles e Navarra. De uma forma ou de outra, tê-las-á. O rei Luís pode julgar que tem um aliado, mas existe um preço elevado a pagar. Eu conheço-o. Joga um jogo demorado, mas por norma obtém o que quer. Quem te contou?

– O meu pai. Penso que está irritado por não fazer parte do conselho. Os únicos que receia mais do que os escoceses são os franceses. É uma desilusão que o teu pai se alie a eles, seja para o que for.

– Pelo contrário, o teu pai devia ficar satisfeito por o meu manter França ocupada no Sul. O meu pai está a fazer-lhe um favor.

Ele riu-se.

– Tu és uma grande ajuda.

– O teu pai não vai juntar-se a eles?

Artur abanou a cabeça.

– Talvez, mas o seu maior desejo é manter Inglaterra em paz. A guerra é algo terrível para um país. És filha de um soldado e devias sabê-lo. O meu pai diz que ver um país em guerra é terrível.

– O teu pai só travou uma grande batalha – argumentou ela. – Às vezes é preciso lutar. Às vezes é preciso derrotar o inimigo.

– Eu não lutaria para ganhar terras – declarou ele. – Mas lutaria para defender as fronteiras. E julgo que teremos de lutar contra os escoceses, a não ser que a minha irmã modifique a sua natureza.

– E o teu pai está preparado para a guerra?

– Ele tem a família Howard para lhe proteger o Norte – respondeu. – E a confiança dos senhores das terras do Norte. Reforçou os castelos e mantém a grande estrada do Norte aberta, para levar para lá os soldados, se necessário.

Catarina parecia pensativa.

– Se tem de combater, seria melhor invadi-los – aconselhou. – Deste modo, pode escolher a data e o local para combater e não ser obrigado a defender-se.

– Essa é a melhor forma?

Ela acenou.

– O meu pai diria que sim. Ter o exército a avançar confiante é tudo. Tens a riqueza do país à frente, para teu abastecimento; tens o movimento de progresso: os soldados gostam de sentir que fazem progressos. Não há nada pior do que ser forçado a voltar e a lutar.

– És uma estratega – elogiou. – Deus tivesse permitido que eu tivesse tido a tua infância e que soubesse as coisas que sabes.

– Mas tu tens – afirmou ela com doçura. – Porque tudo o que eu sei é teu, e tudo o que sou também. E se tu e o teu país precisarem de mim, para lutar por vocês, estarei lá.

Está a ficar cada vez mais frio e a longa semana de chuva transformou-se em aguaceiros de granizo e, agora, de neve. Mas não está um tempo claro e frio de Inverno, mas um nevoeiro baixo e húmido, com nuvens que passam rápidas e ventos que trazem lama que se agarra às árvores e torreões e se aloja no rio como algodão-doce.

Quando Artur vem ao meu quarto, desliza ao longo das ameias como um patinador e de manhã, quando voltava para o seu quarto, estávamos certos de que seríamos descobertos, porque escorregou no gelo, caiu e praguejou tão alto que a sentinela da torre a seguir pôs a cabeça de fora e gritou: «Quem está aí?», e respondi que era eu, que dava de comer aos pássaros de Inverno. Então, Artur assobiou-me, e declarei que era o canto de um pintarroxo; ambos nos rimos tanto que mal nos aguentávamos de pé. Tenho a certeza de que a sentinela sabia, mas fazia tanto frio que nem veio cá fora.

Hoje, Artur saiu a cavalo com o conselho, que pretende procurar uma localização para um novo moinho de milho, enquanto o rio está cheio e bloqueado pela neve e pelo gelo, e eu e lady Margarida ficámos em casa a jogar às cartas.

Está frio e cinzento, está sempre tudo molhado, até as paredes do castelo choram com a humidade gelada, mas estou feliz. Amo-o, viveria com ele em qualquer lado, e a Primavera virá, e depois o Verão. Sei que, então, também seremos felizes.

A batida na porta surgiu a horas tardias da noite. Ela abriu-a.

– Ah, amor, meu amor! Onde estiveste?

Ele entrou no quarto e beijou-a. Sentiu o odor a vinho no seu hálito.

– Nunca mais se iam embora – disse. – Pelo menos há três horas que tento escapar-me, para vir ter contigo.

Pegou-lhe ao colo e levou-a para a cama.

– Mas, Artur, não queres...?

– Quero-te a ti. Conta-me uma história.

– Não estás com sono?

– Não. Quero que me cantes a canção sobre os mouros, quando perderam a batalha de Málaga.

Catarina riu-se.

– Foi a batalha de Alhama. Vou cantar-te alguns versos; mas nunca mais acaba.

– Canta-mos todos.

– Levaria toda a noite – protestou ela.

– Temos a noite toda, graças a Deus – respondeu, com alegria na voz. – Temos a noite inteira e todas as noites, para o resto das vidas, graças a Deus.

– É uma canção proibida – avisou. – Foi proibida pela minha mãe.

– Então, como a aprendeste? – perguntou Artur, de súbito divertido.

– Foram os criados – replicou despreocupada. – Tinha uma aia mourisca e esquecia-se de quem eu era, e de quem era, e cantava para mim.

– O que é um mourisco? E por que a canção foi proibida? – inquiriu com curiosidade.

– Um mourisco quer dizer um pequeno mouro, em espanhol – explicou. – É o que chamamos aos mouros que vivem em Espanha. Não são mouros como os de África. Por isso chamamos-lhes mouriscos ou moros. Quando me vim embora, autodenominaram-se mudajjan: a quem era permitido ficar.

– Os a quem era permitido ficar? – interrogou ele. – Na sua terra?

– A terra não é deles – cortou de imediato. – É nossa. É terra espanhola.

– Foi deles durante setecentos anos – assinalou ele. – Quando vocês, espanhóis, não faziam mais do que criar cabras nas montanhas, eles construíam estradas, castelos e universidades. Foste tu quem mo disse.

– Bem, mas agora é nossa – concluiu secamente.

Ele bateu as palmas, como um sultão.

– Canta a canção, Xerazade. E em francês, mulher bárbara, para que eu perceba.

Catarina uniu as mãos, imitando uma mulher que se preparava para rezar e fez-lhe uma pronunciada vénia.

– Assim é que deve ser – elogiou Artur, divertido. – Aprendeste no harém?

Ela sorriu, levantou a cabeça e cantou:

 

Um idoso grita para o rei: – Porquê este chamamento repentino? – Ai de mim! Alhama!

Ai de mim, meus amigos, os cristãos conquistaram Alhama – Ai de mim! Alhama!

Um imã de barba branca responde: – Isto é o que haveis merecido, oh rei! – Ai de mim! Alhama!

Numa hora amaldiçoada Vós haveis matado os abencerragens, flor de Granada – Ai de mim! Alhama!

Nem Granada, nem o reino, nem a vossa vida durará muito – Ai de mim! Alhama!

 

Ela ficou em silêncio.

– E era verdade – disse. – O pobre Boabdil saiu do Palácio de Alhambra, do forte vermelho, que disseram que nunca cairia, com as chaves numa almofada de seda, fez uma vénia e entregou-as à minha mãe e ao meu pai, e partiu a cavalo. Dizem que, quando passou na montanha, olhou para trás, para o seu reino, o seu belo reino, e chorou, e a mãe disse-lhe que chorasse, como uma mulher, por aquilo que não conseguia manter como um homem.

Artur soltou uma gargalhada infantil.

– Ela disse o quê?

Catarina olhou para cima, com uma expressão grave.

– Foi muito trágico.

– É mesmo o tipo de observações que a minha avó faria – disse deliciado. – Graças a Deus que o meu pai conquistou a coroa. A minha avó seria tão doce como a mãe de Boabdil, perante a derrota. Deus me valha: «Chora como uma mulher, por aquilo que não consegues manter como homem.» Que coisa para se dizer a um homem que é obrigado a partir, após uma derrota.

Catarina também se riu.

– Nunca vi as coisas desse modo – respondeu. – Não é muito consolador.

– Imagina que partes para o exílio com a tua mãe, e ela está muito zangada contigo.

– Imagina o que é perder o Alhambra, nunca mais poder voltar.

Ele puxou-a para junto de si e beijou-lhe o rosto.

– Sem remorsos! – pediu.

Ela sorriu de imediato.

– Então, distrai-me – ordenou. – Conta-me sobre a tua mãe e o teu pai.

Ficou pensativo.

– O meu pai nasceu como herdeiro dos Tudor, mas havia dúzias, na linha para o trono, antes dele – relatou. – O pai queria que se chamasse Owen, Owen Tudor, um bom nome galês, mas morreu antes de ele nascer, na guerra. A minha avó era uma criança de doze anos quando ele nasceu, mas levou a sua avante, e chamou-lhe Henrique, um nome real. Imagina qual era a sua ideia, já nessa altura, apesar de ser pouco mais do que uma criança, e de o marido ter morrido. Os destinos do meu pai subiam e desciam, a cada batalha da guerra civil. Uma vez era o filho da família reinante, na outra estavam em fuga. O tio, Jasper Tudor... lembras-te dele... manteve a fé no meu pai e na causa dos Tudor, mas houve uma batalha final e a nossa causa foi perdida, e o nosso rei executado. Eduardo subiu ao trono e o meu pai era o último da linhagem. Estava em tão grande perigo que o tio Jasper saiu do castelo onde foram detidos e fugiu com ele para fora do país, para a Bretanha.

– Para um lugar seguro?

– Mais ou menos. Uma vez disse-me que acordava de manhã à espera de ser entregue a Eduardo. E uma vez, o rei Eduardo disse que devia voltar para casa, que seria recebido como um rei e que lhe arranjariam um casamento. O meu pai fingiu adoecer durante a viagem e fugiu. Seria morto se voltasse a casa.

Catarina pestanejou.

– Então, na sua época, também foi um pretendente ao trono.

Ele sorriu.

– Como disse. É por isso que os teme tanto. Sabe muito bem o que um pretendente pode fazer, se a sorte estiver do seu lado. Se o tivessem apanhado, trá-lo-iam para casa para ser executado na Torre. Tal como fez a Warwick. O meu pai seria assassinado, assim que Eduardo o apanhasse. Mas fingiu estar doente e escapou, pela fronteira com França.

– E não o entregaram?

Artur riu-se.

– Apoiaram-no. Ele era o maior desafio para a paz de Inglaterra, é evidente que o incentivaram. Convinha aos franceses apoiarem-no: enquanto não era rei, mas apenas um pretendente ao trono.

Ela acenou, era filha de um príncipe elogiado por Maquiavel. Qualquer filha de Fernando nascera conhecendo a arte de enganar.

– E depois?

– Eduardo morreu novo, no auge da vida, apenas com um filho pequeno como herdeiro. O irmão, Ricardo, ocupou o trono como regente e, depois, reivindicou-o para si e pôs os sobrinhos, os filhos de Eduardo, os pequenos príncipes, na Torre de Londres.

Ela acenou, esta história fora-lhe contada em Espanha, e a história maior – da rivalidade mortal por um trono – era um tema comum aos dois jovens.

– Foram para a Torre e nunca mais saíram – frisou Artur com frieza. – Deus abençoe as suas almas, pobres rapazes, ninguém sabe o que lhes aconteceu. O povo revoltou-se contra Ricardo, e pediu ao meu pai que voltasse de França.

– A sério?

– A minha avó reuniu os grandes lordes, era uma arquiconspiradora. Ela e o duque de Buckingham juntaram-se e prepararam os nobres do reino. É por isso que o meu pai a respeita tanto: deve-lhe o trono. E esperou até enviar uma mensagem à minha mãe, a dizer-lhe que casaria com ela, se subisse ao trono.

– Porque a amava? – perguntou Catarina esperançada. – É tão bonita.

– Ele, não. Nem a tinha visto. Não te esqueças de que viveu quase toda a vida no exílio. Foi um casamento arranjado, porque a mãe sabia que, se os casasse, todos veriam que a herdeira da Casa de York casara com o herdeiro da Casa de Lancaster e a guerra terminaria. E a mãe dela viu o casamento como a única forma de obter segurança. As duas mães fizeram o acordo entre si, como duas velhas à volta de um caldeirão. São duas mulheres que não deves contrariar.

– Ele não a amava? – Estava desapontada.

Artur sorriu.

– Não, não é um romance. E ela não o amava. Mas sabiam o que tinham de fazer. Quando o meu pai avançou, derrotou Ricardo e apanhou a coroa de Inglaterra por entre os cadáveres e os destroços do campo de batalha, sabia que casaria com a princesa, subiria ao trono e fundaria uma nova linhagem.

– Mas ela não era a seguinte na linha de sucessão ao trono? – perguntou baralhada. – Uma vez que o pai fora o rei Eduardo? E se o tio morreu na batalha, e os irmãos estavam mortos?

Ele confirmou.

– Era a princesa mais velha.

– Então, por que não reivindicou o trono?

– Ah, és uma rebelde! – exclamou ele. Agarrou num punhado de cabelos e puxou-lhe o rosto para junto do seu. Beijou-lhe a boca, a saber a vinho e a frutas cristalizadas.

– Uma rebelde de York, o que ainda é pior.

– Só achei que devia ter reclamado o trono.

– Não neste país – afirmou Artur. – Não temos rainhas regentes nesta Inglaterra. As mulheres não podem herdar. Não podem herdar o trono.

– E se um rei só tivesse uma filha?

Ele encolheu os ombros.

– Seria uma tragédia para o país. Tens de me dar um rapaz, meu amor. Mais nada serve.

– E se só tivéssemos uma rapariga?

– Casaria com um príncipe e ele seria rei consorte de Inglaterra, e reinaria com ela. Como a tua mãe fez. Ela reina com o marido.

– Em Aragão, sim, mas, em Castela, ele governa com ela. Castela é o país dela e Aragão o dele.

– Nunca o admitiríamos em Inglaterra – disse Artur.

Ela afastou-se indignada. Fingia.

– Vou dizer-te uma coisa, se só tivermos uma filha e se for uma rapariga, será uma rainha tão eficiente como qualquer homem que possa ser rei.

– Bem, vai ser uma inovadora – replicou ele. – Não acreditamos que uma mulher seja capaz de defender o país, como um rei tem de fazer.

– Uma mulher sabe combater – afirmou. – Devias ver a minha mãe de armadura. Até eu era capaz de defender o país. Assisti a guerras, que é mais do que tu fizeste. Podia ser uma rainha tão eficaz como qualquer homem.

Ele sorriu-lhe, abanando a cabeça.

– Não se o país fosse invadido. Não serias capaz de comandar um exército.

– Eu podia comandar um exército. Por que não?

– Nenhum exército inglês seria comandado por uma mulher. Não aceitariam ordens de uma mulher.

– Aceitariam receber ordens do seu comandante – disparou ela. – E se não o fizerem, é porque não são bons soldados, e têm de ser treinados.

Ele riu-se.

– Nenhum inglês obedeceria a uma mulher – afirmou. Viu pela sua expressão obstinada que não estava convencida.

– O que interessa é que venças a batalha – disse ela. – O importante é que o país esteja defendido. Não interessa quem lidera o exército, desde que os soldados obedeçam.

– Bem, a minha mãe não tinha intenções de reivindicar o trono. Nunca sonharia com uma coisa dessas. Casou com o meu pai e tornou-se rainha de Inglaterra pelo casamento. E por ser a princesa de York e por ele ser o herdeiro da Casa de Lancaster, os planos da minha avó foram bem-sucedidos. O meu pai pode ter conseguido o trono pela conquista e por reconhecimento; mas nós tê-lo-emos por herança.

Catarina acenou.

– A minha mãe dizia que não havia nada de mal num homem que conquista o trono. O que é importante não é consegui-lo, mas mantê-lo.

– Nós vamos mantê-lo – disse ele de forma decidida. – Tu e eu vamos construir um grande país. Construiremos estradas e mercados, igrejas e escolas. Colocaremos um círculo de fortes em volta da linha costeira e construiremos navios.

– Criaremos tribunais de justiça, como o meu pai e a minha mãe fizeram em Espanha – continuou ela, agradada com o prazer de planear um futuro em que estivessem de acordo –, para que nenhum homem seja tratado cruelmente por outro. Para que os homens saibam que podem dirigir-se ao tribunal e fazer com que o seu caso seja ouvido.

Ele levantou o copo para ela.

– Devíamos começar a tomar nota destas ideias – sugeriu. – E começar a planear como será feito.

– Ainda faltam muitos anos para chegarmos ao trono.

– Nunca se sabe. Não o desejo. Deus sabe que honro o meu pai e a minha mãe e não quero nada antes do tempo. Mas nunca se sabe. Sou o príncipe de Gales, tu és a princesa. Mas seremos rei e rainha de Inglaterra. Devíamos saber quem vamos ter na corte, conhecer os conselheiros que escolhermos, saber como tornar este país grande. Se for um sonho, então falaremos dele à noite, como fazemos. Mas se for um plano, devíamos escrevê-lo durante o dia, aceitar conselhos, pensar como faremos o que pretendemos.

O rosto dela iluminou-se.

– Quando terminarmos as lições do dia, talvez pudéssemos fazê-lo. Talvez o teu tutor nos ajude, e o meu confessor.

– E os meus conselheiros – acrescentou ele. – E podíamos começar aqui. Em Gales. Posso fazer o que quiser, desde que seja racional. Podíamos criar uma universidade e construir escolas. Mandar construir um navio. Existem estaleiros em Gales, podíamos construir o nosso primeiro navio de defesa.

Ela bateu palmas como a menina que ainda era.

– Podíamos começar o nosso reinado! – exclamou.

– Salve rainha Catarina! Rainha de Inglaterra! – saudou Artur, em tom de brincadeira, mas, ao pronunciar as palavras, parou e olhou-a com mais gravidade. – Sabes, vais ouvi-los dizer, meu amor. Vivat! Vivat! Catarina Regina, rainha Catarina, rainha de Inglaterra.

É como uma aventura, imaginar o tipo de país que poderemos criar, que tipo de rei e rainha seremos. É natural que pensemos em Camelot. Era o meu livro preferido da biblioteca da minha mãe e encontrei uma cópia de Artur, com marcas de dedadas, na biblioteca do pai.

Sei que Camelot é uma história, um ideal, tão irreal como o amor de um trovador, ou um castelo de conto de fadas ou lendas sobre ladrões, tesouros e génios. Mas existe algo na ideia de governar um reino com justiça, com o consentimento do povo, que é mais do que um conto de fadas.

Eu e Artur herdaremos um grande poder, o pai providenciou que assim fosse. Julgo que herdaremos um trono forte e um grande tesouro. Herdaremos com a boa vontade do povo; o rei não é amado, mas é respeitado, e ninguém deseja um regresso às batalhas intermináveis. Estes ingleses têm horror a guerras civis. Se subirmos ao trono com este poder, esta riqueza, e a boa vontade, não tenho dúvidas de que criaremos um grande país.

E será um grande país em aliança com Espanha. O herdeiro dos meus pais é o filho de Joana, Carlos. Será o sacro-imperador romano e rei de Espanha. Será meu sobrinho e teremos a amizade de parentes. Como será poderosa esta aliança: o grande Sacro-Império Romano e Inglaterra. Ninguém conseguirá opor-se a nós, poderemos dividir França, e a maior parte da Europa. Depois, levantar-nos-emos, o Império e Inglaterra, contra os mouros, venceremos e o Oriente, a Pérsia, os otomanos, a Índia, até a China ficarão abertos para nós.

A rotina do castelo mudou. Quando os dias começavam a ficar mais quentes e mais claros, os jovens príncipes transferiram os escritórios para os aposentos dela, arrastaram uma mesa enorme para junto da janela, para apanharem a luz da tarde, e penduraram mapas do principado nos painéis revestidos de linho.

– Parece que planeiam uma campanha – disse lady Margarida, gracejando.

– A princesa devia estar a descansar – observou doña Elvira, com ar ressentido, sem se dirigir a ninguém em particular.

– Estais indisposta? – perguntou lady Margarida muito depressa.

Catarina sorriu e abanou a cabeça, começava a ficar habituada ao interesse obsessivo pela sua saúde. Até dizer que trazia no útero o herdeiro de Inglaterra, não teria paz, as pessoas não deixariam de lhe perguntar como se sentia.

– Não preciso de descansar – frisou. – E, amanhã, se me levardes, gostava de ir ver os campos.

– Os campos? – perguntou lady Margarida, bastante surpreendida. – Em Março? Só serão cultivados daqui a uma semana ou mais, não há nada para ver.

– Tenho de aprender – afirmou Catarina. – De onde vim, ficava tudo tão seco no Verão que tínhamos de abrir valas nos campos, até à raiz de cada árvore, para canalizar a água para as plantas, para nos certificarmos de que bebiam e sobreviviam. A primeira vez que cavalgámos por esta região e vi os regos nos campos, era tão ignorante que pensei que eram para trazer água. – Riu-se alto ao lembrar-se. – E, depois, o príncipe disse-me que eram valas, para escoar a água. Não podia acreditar! Por isso, é melhor darmos um passeio e tendes de me explicar tudo.

– Uma rainha não precisa de saber nada sobre os campos – afirmou doña Elvira, do seu canto, num tom desaprovador. – Para que precisais de saber o que os agricultores cultivam?

– É claro que uma rainha precisa de saber – respondeu Catarina, irritada. – Devia saber tudo sobre o seu país. De que outra forma poderá governar?

– Tenho a certeza de que sereis uma excelente rainha de Inglaterra – replicou lady Margarida, apaziguadora.

Catarina sorriu.

– Eu serei a melhor rainha de Inglaterra que puder – anunciou. – Tomarei conta dos pobres e ajudarei a Igreja e, se estivermos em guerra, partirei e combaterei por Inglaterra, tal como a minha mãe fez por Espanha.

Ao planear o futuro com Artur esqueço as saudades de Espanha. Todos os dias pensamos num melhoramento que poderemos trazer, numa lei que deveríamos alterar. Lemos juntos, livros de filosofia e de política, falamos sobre se será possível confiar nas pessoas ao ponto de lhes conceder liberdade, se um rei deve ser um bom tirano ou se deve afastar-se do poder. Falamos da minha casa: da convicção dos meus pais de que se constrói um país com base numa só igreja, numa língua e numa lei. Ou se seria possível fazê-lo como os mouros: criar um país com uma lei, mas com muitas fés e muitas línguas, e partir do princípio de que as pessoas são inteligentes para fazer a melhor escolha.

Discutimos, conversamos. Por vezes, rimo-nos às gargalhadas, por vezes discordamos. Artur é sempre o meu amante, o meu marido inegavelmente. E agora está a tornar-se meu amigo.

Catarina estava no pequeno jardim do Castelo de Ludlow, que se estendia ao longo da muralha oriental, conversando animada com um dos jardineiros do castelo. Em canteiros impecáveis, à sua volta, encontravam-se as ervas que os cozinheiros utilizavam, e algumas ervas e flores, com propriedades medicinais, cultivadas por lady Margarida. Artur, ao ver Catarina quando voltava da confissão na capela redonda, olhou para cima, para a grande muralha, para se certificar de que ninguém o impediria, e fugiu, para estar com ela. Enquanto se aproximava, ela gesticulava, tentando descrever algo. Artur sorriu.

– Princesa – proferiu, saudando-a.

Ela fez-lhe uma reverência, mas os olhos tinham uma expressão calorosa de prazer, ao vê-lo.

– Senhor.

O jardineiro ajoelhara-se na lama, ao ver o príncipe chegar.

– Podeis levantar-vos – disse Artur, brincando. – Não me parece que ireis encontrar flores bonitas, nesta altura do ano, princesa.

– Tentava falar com ele sobre cultivar legumes para saladas – explicou. – Mas ele fala galês e inglês e eu tentei latim e francês e não nos entendemos.

– Penso que estou como ele. Também não percebo. O que é uma salada?

Ela reflectiu por um momento. Acetaria.

– Acetaria? – perguntou.

– Sim, salada.

– O que é, exactamente?

– São legumes que crescem da terra e que se comem sem ser cozinhados – explicou. – Perguntava-lhe se podia plantar alguns para mim.

– Comei-los crus? Sem os ferver?

– Sim, por que não?

– Porque ficareis doente, se comerdes alimentos não cozinhados neste país.

– São como a fruta, como as maçãs. Comem-se crus.

Ele não estava convencido.

– Como-as mais vezes cozinhadas, ou em conserva ou secas. E é uma fruta e não folhas. Mas que tipo de legumes quereis?

– Lactuca – disse ela.

– Lactuca? – repetiu ele. – Nunca ouvi falar nisso.

Ela suspirou.

– Eu sei. Nenhum parece saber nada sobre legumes. A lactuca é como... – Procurou na mente o nome do legume horrível que fora obrigada a comer, cozido e em papa, num jantar, em Greenwich. – Perrexil – continuou. – A coisa mais parecida que vós tendes com a lactuca é o perrexil. Mas a lactuca come-se sem ser cozinhada e é estaladiça e doce.

– Um legume? Estaladiço?

– Sim – respondeu paciente.

– E vós comei-lo em Espanha?

Quase se riu da sua expressão horrorizada.

– Sim. Vós gostaríeis.

– E podemos cultivá-lo aqui?

– Julgo que me está a dizer que não. Nunca ouviu falar de tal coisa. Não tem sementes. Não sabe onde poderemos encontrar essas sementes. Acha que não se desenvolveriam. – Olhou para cima, para o céu azul, com as nuvens de chuva que eram como um escudo. – Talvez tenha razão – continuou, com um pouco de enfado na voz. – Tenho a certeza de que necessitam de muito sol.

Artur dirigiu-se ao jardineiro.

– Alguma vez ouvistes falar de uma planta chamada lactuca?

– Não, Vossa Graça – respondeu o homem, com a cabeça baixa. – Lamento, Vossa Graça. Talvez seja uma planta espanhola. Soa a algo bárbaro. Sua Alteza Real diz que lá comem erva? Como as ovelhas?

O lábio de Artur tremeu.

– Não, é um legume, penso eu. Vou perguntar-lhe.

Voltou-se para Catarina, pegou-lhe na mão e pô-la debaixo do braço.

– Sabeis, às vezes, no Verão, faz muito sol e fica muito calor aqui. A sério. Iríeis achar o sol do meio-dia demasiado quente. Teríeis de vos sentar à sombra.

Ela parecia não acreditar, devido à lama fria e às nuvens, cada vez mais pesadas.

– Agora não, eu sei; mas no Verão. Já me encostei a esta parede e achei que estava quente de mais para lhe tocarmos. Sabeis que cultivamos morangos, framboesas e pêssegos? Todas as frutas que cultivais em Espanha.

– E laranjas?

– Bem, laranjas talvez não – admitiu.

– Limões? Azeitonas?

Ele empertigou-se.

– Sim, temos.

Olhou-o desconfiada.

– Tâmaras?

– Na Cornualha – afirmou. – Claro que na Cornualha faz mais calor.

– Cana-de-açúcar? Arroz? Ananás?

Ele tentou dizer que sim, mas não conseguia reprimir as gargalhadas e ela desatou a rir e caiu em cima dele.

Quando se voltaram a acalmar, ele olhou em volta para o pátio interior e disse:

– Vem, ninguém vai sentir a nossa falta por alguns minutos – e levou-a pelas escadas, até à pequena porta de saída, que lhes permitia sair pela porta secreta.

Um pequeno caminho levava-os à colina cuja encosta íngreme descia do castelo até ao rio. Algumas ovelhas fugiram quando se aproximaram, com um rapaz a correr atrás delas. Artur colocou-lhe o braço em volta da cintura e ela deixou-se conduzir.

– Nós cultivamos pêssegos – assegurou-lhe. – As outras coisas não, claro. Mas tenho a certeza de que podemos plantar a tua lactuca, seja lá o que isso for. Só precisamos de um jardineiro que traga as sementes e que já tenha cultivado o que queres. Por que não escreves ao jardineiro do Alhambra e lhe pedes para te enviar algumas?

– Posso mandar vir um jardineiro? – perguntou incrédula.

– Meu amor, vais ser rainha de Inglaterra. Podes mandar vir um regimento de jardineiros.

– A sério?

Artur riu-se pela felicidade que surgia no seu rosto.

– De imediato. Não sabias?

– Não! Mas onde vai plantar? Não há espaço encostado à muralha do castelo, e se vamos cultivar fruta e legumes...

– És a princesa de Gales! Podes plantar o teu jardim onde te apetecer. Se quiseres, tens o condado de Kent, minha querida.

– Kent?

– Cultivamos lá maçãs e lúpulo, penso que podemos tentar plantar lá lactuca.

Catarina riu-se com ele.

– Nem pensei nisso. Nunca sonharia em mandar vir um jardineiro. Se tivesse trazido logo um comigo. Tenho aquelas damas de companhia inúteis e não tenho um jardineiro.

– Podias trocá-lo por doña Elvira.

Ela deu uma gargalhada.

– Ah, meu Deus, somos abençoados – disse ele. – Por nos termos um ao outro e pelas nossas vidas. Terás sempre o que quiseres, sempre. Juro-te. Queres escrever à tua mãe? Ela pode enviar dois homens bons e vou mandar arar um pedaço de terra.

– Vou escrever à Joana – decidiu. – Para a Holanda. Está na parte norte da Cristandade, como eu. Deve saber o que se pode plantar num clima destes. Vou escrever-lhe e saber o que ela fez.

– E comeremos lactuca! – exclamou ele, beijando-lhe os dedos. – Todos os dias. Não comeremos mais nada além da lactuca, como as ovelhas que pastam relva, seja lá o que isso for.

– Conta-me uma história.

– Não, conta-me tu qualquer coisa.

– Se me contares sobre a queda de Granada, mais uma vez.

– Eu conto, mas tens de me explicar uma coisa.

Artur esticou-se e puxou-a de modo que ficasse atravessada na cama, com a cabeça no ombro. Sentia o seu peito macio a subir e a descer, enquanto respirava, assim como o bater suave do coração, constante como o amor.

– Vou explicar tudo.

Ela ouvia o sorriso na voz.

– Hoje estou extraordinariamente sábio. Devias ter-me ouvido, depois do jantar, a ministrar a justiça.

– Tu és muito justo – admitiu ela. – Eu gosto muito quando proferes uma sentença.

– Sou um Salomão – disse ele. – Chamar-me-ão Artur, o Bom.

– Artur, o Sábio – sugeriu ela.

– Artur, o Magnífico.

Catarina riu-se.

– Mas quero que me expliques uma coisa que ouvi sobre a tua mãe.

– Ai sim?

– Uma das damas de companhia inglesas disse-me que fora prometida ao tirano Ricardo. Pensei que percebi mal. Falávamos francês e pensei que percebi mal.

– Oh, essa história – suspirou, voltando a cabeça.

– Não é verdade? Espero não te ter ofendido.

– Não, não ofendeste nada. É uma história recorrente.

– Não é verdade?

– Quem sabe? Só a minha mãe e o tirano Ricardo sabem o que aconteceu. E um está morto e a outra silenciosa como um túmulo.

– Contas-me? – pediu experimentando-o. – Ou não devíamos falar sobre isso?

Ele encolheu os ombros.

– Há duas histórias. A mais conhecida e a sombra dessa. A história que se conhece é que a minha mãe fugiu para um santuário, com a mãe e as irmãs, estavam escondidas numa igreja. Sabiam que, se saíssem, seriam detidas por Ricardo, o Usurpador, e desapareceriam na Torre, como os irmãos mais novos. Ninguém sabia se os príncipes estavam vivos ou mortos, mas ninguém os vira, todos temiam que estivessem mortos. A minha mãe escreveu uma carta ao meu pai... bem, foi-lhe ordenado pela mãe... e disse-lhe que, se viesse para a Inglaterra, um Tudor da linhagem de Lancaster, ela, uma princesa de York, casaria com ele, e a antiga rivalidade entre as duas famílias terminaria. Disse-lhe que viesse, que a salvasse, e que conhecesse o seu amor. Ele recebeu a carta, juntou um exército, veio à procura da princesa, casou com ela e trouxe a paz a Inglaterra.

– Isso foi o que me contaste. É uma história muito boa.

Artur assentiu.

– E a que não me contaste?

Ele riu-se contra vontade.

– É escandalosa. Dizem que não estava em nenhum santuário. Que abandonou o santuário, a mãe e as irmãs. Que foi para a corte. A mulher do rei Ricardo tinha morrido e ele procurava outra. Ela aceitou a proposta do rei Ricardo. Teria casado com o tio, o tirano, o homem que matou os irmãos.

Catarina tapou a boca com a mão para abafar a expressão de choque, com os olhos muito abertos.

– Não!

– É o que dizem.

– A rainha, a tua mãe?

– Ela mesma – respondeu. – Na verdade, dizem pior. Que ela e Ricardo foram prometidos, quando a mulher dele ainda estava no leito de morte. É por isso que existe uma inimizade tão grande entre ela e a minha avó. A minha avó não confia nela; mas recusa-se a dizer porquê.

– Como foi capaz?

– Como podia não ser? – interrogou ele. – Se analisares a situação do ponto de vista da minha mãe, ela era princesa de York, o pai estava morto, a mãe era inimiga do rei, presa num santuário, tão encarcerada como se estivesse na Torre. Se queria viver, teria de encontrar uma forma de obter os favores do rei. Se quisesse ser reconhecida como princesa, teria de ter o seu reconhecimento. Se queria ser rainha de Inglaterra, tinha de casar com ele.

– Mas podia, decerto, tu... – começou, calando-se em seguida.

– Não – ele abanou a cabeça. – Percebes? Era uma princesa, não tinha grande escolha. Se quisesse viver, teria de obedecer ao rei. Se quisesse ser rainha, teria de casar com ele.

– Podia ter reunido o seu exército.

– Não em Inglaterra – lembrou-lhe. – Casar com o rei de Inglaterra para ser a sua rainha, era a única saída.

Catarina ficou em silêncio por momentos.

– Graças a Deus que tive de casar contigo para ser rainha, que o meu destino me trouxe para aqui.

Ele sorriu.

– Graças a Deus que somos felizes com o nosso destino. Porque teríamos casado, e serias rainha de Inglaterra, quer gostasses de mim, quer não. Não é?

– Sim – disse ela. – Uma princesa nunca tem escolha.

Ele acenou.

– Mas a tua avó, Sua Alteza, a Mãe do Rei, deve ter planeado o casamento da tua mãe com o teu pai. Por que não lhe perdoa? Ela fazia parte do plano.

– Aquelas duas mulheres poderosas, a mãe do meu pai e a mãe da minha mãe, combinaram entre elas, como duas lavadeiras a vender linhos roubados.

Ela deu um gritinho de choque.

Artur riu-se, apercebendo-se do quanto gostava de a surpreender.

– É terrível, não é? – respondeu. – A mãe da minha mãe foi a mulher mais odiada de Inglaterra, em certa altura.

– E onde está agora?

Ele encolheu os ombros.

– Durante algum tempo viveu na corte, mas Sua Alteza, a Mãe do Rei, detestava-a tanto que se livrou dela. A sua beleza era famosa, sabes, e era uma conspiradora. A minha avó acusou-a de conspirar contra o meu pai e ele acreditou nela.

– Ainda não morreu? Nunca a executaram?

– Não. Ele pô-la num convento e nunca vem à corte.

Ela estava assombrada.

– A tua avó mandou prender a mãe da rainha num convento?

Ele acenou, com um ar grave.

– A sério. Ficas avisada com esta história, meu amor. A minha avó não recebe bem na corte quem constitua uma ameaça ao seu poder. Assegura-te de que não a contrarias.

Catarina abanou a cabeça.

– Nunca o faria. Tenho pavor absoluto dela.

– E eu também! – Riu-se. – Mas conheço-a, e estou a avisar-te. Nada a deterá para manter o poder do filho, e da família. Nada a afasta dessa ideia. Não ama ninguém, além dele. Nem a mim, nem aos maridos, ninguém, senão ele.

– Nem a ti?

Abanou a cabeça.

– Nem o ama, da forma que tu entendes o amor. Ele é o rapaz que ela decidiu que nasceu para ser rei. Mandou-o embora, quando era pouco mais do que um bebé, para o proteger. Viu-o sobreviver à infância. Depois, ordenou-lhe que enfrentasse um perigo terrível, para reivindicar o trono. Ela só podia amar um rei.

Ela acenou.

– Ele é o seu pretendente.

– Exacto. Ela reivindicou o trono para ele. Fez dele rei. Ele é rei.

Observou a sua expressão séria.

– Agora, basta deste assunto. Tens de me cantar a tua cantiga.

– Qual?

– Há mais alguma sobre a queda de Granada?

– Acho que deve haver dúzias.

– Canta-me uma – pediu. Empilhou mais duas almofadas atrás da cabeça, e ela ajoelhou-se à sua frente, atirou para trás a cabeleira avermelhada e começou a cantar numa voz baixa e doce:

 

Ouviam-se gritos em Granada quando o Sol se estava a pôr

Alguns chamavam pela Trindade, outros clamavam por Maomé,

Aqui desapareceu o Corão e ali nasceu a Cruz,

E aqui se ouviu o sino cristão e ali a corneta moura.

Te Deum Laudamus! Cantou-se, lá em cima, em Alcalá:

Do alto dos minaretes do Alhambra foram arremessados os crescentes

A partir daí serão exibidas as armas de Aragão, com as de Castela

Um rei chega triunfante, outro parte chorando.

 

Ele ficou em silêncio durante longos minutos. Ela esticou-se para trás ao lado dele, deitando-se de costas, olhando, sem ver, o dossel bordado da cama, por cima das cabeças.

– É sempre assim, não é? – observou. – A ascensão de um é a queda de outro. Eu serei rei, mas só depois da morte do meu pai. E após a minha morte, o meu filho reinará.

– Vamos chamar-lhe Artur? – perguntou ela. – Ou Henrique, como o teu pai?

– Artur é um bom nome – respondeu. – Um bom nome para uma nova família real em Inglaterra. Artur por Camelot, e Artur por mim. Não queremos mais um Henrique; o meu irmão já é suficiente. Vamos dar-lhe o nome de Artur, e a irmã mais velha Maria.

– Maria? Eu queria chamar-lhe Isabel, como a minha mãe.

– Podes pôr o nome Isabel à próxima rapariga. Mas quero que a nossa primogénita se chame Maria.

– O Artur tem de ser o primeiro.

Ele abanou a cabeça.

– Primeiro, teremos a Maria, para aprendermos a fazer tudo com uma rapariga.

– Como fazer tudo?

Ele gesticulou.

– O baptismo, o puerpério, o nascimento, essas confusões e preocupações, a ama-de-leite, as embaladeiras, as aias. A minha avó escreveu um livro gigantesco para indicar como deve ser feito. É complicado. Mas, se tivermos primeiro a nossa Maria, o quarto da criança estará pronto, e no teu puerpério seguinte colocaremos o nosso filho e herdeiro no berço.

Ela levantou-se e voltou-se para ele, fingindo-se indignada.

– E ias praticar a paternidade com a minha filha! – exclamou.

– Não quererias começar com o meu filho – protestou ele. – Vai ser a rosa das rosas de Inglaterra. É o que me chamam, lembra-te: A Rosa de Inglaterra. Penso que devias tratar o meu pequeno botão de rosa, a minha florzinha, com grande respeito.

– Então, vai ser Isabel – estipulou Catarina. – Se nascer primeiro, será Isabel.

– Maria, como a rainha dos Céus.

– Isabel, como a rainha de Espanha.

– Maria, para dar graças por teres vindo para junto mim. O presente mais doce que o céu me podia ter oferecido.

Catarina aninhou-se nos seus braços.

– Isabel – disse, enquanto ele a beijava.

– Maria – sussurrou ao seu ouvido. – E vamos fazê-la agora.

É de manhã. Estou deitada, acordada, é de madrugada e ouço os pássaros que começam a cantar. O Sol sobe e pela gelosia da janela vislumbro o céu azul. Talvez vá ser um dia quente, talvez o Verão esteja a chegar.

Ao meu lado, Artur respira tranquila e regularmente. Sinto o meu coração inchado de amor por ele, passo a mão pelos caracóis louros da cabeça e pergunto-me se alguma mulher terá amado um homem como eu o amo.

Mexo-me e pouso a outra mão no meu ventre redondo e morno. Será possível que tenhamos concebido uma criança, a noite passada? Já estará, protegido no meu ventre, um bebé que se chamará Maria, princesa Maria, que será a rosa da Rosa de Inglaterra?

Ouço os passos da criada na minha antecâmara, trazendo lenha para a lareira, juntando as brasas. Artur continua sem se mexer. Ponho-lhe a mão no ombro.

– Acorda, dorminhoco – digo-lhe num tom caloroso de amor. – As criadas estão lá fora, tens de ir embora.

Está encharcado em suor; a pele do ombro fria e pegajosa.

– Meu amor? – pergunto. – Estás bem?

Abre os olhos e sorri para mim.

– Não me digas que já é de manhã. Estou tão cansado que era capaz de dormir mais um dia.

– Já é de manhã.

– Oh, por que não me acordaste mais cedo? Gosto tanto de ti de manhã e agora só te posso ter à noite.

Encosto o rosto ao seu peito.

– Não digas isso. Também adormeci. Estivemos acordados até tarde. E agora tens de ir embora.

Artur abraça-me, como se não suportasse ter de me deixar; mas eu ouço o criado de quarto abrir a porta, para trazer água quente. Afasto-me. É como arrancar uma camada da minha pele. Não suporto estar longe dele.

De repente, apercebo-me da temperatura do seu corpo, do calor dos lençóis emaranhados à nossa volta.

– Estás tão quente!

– É de desejo – responde, sorrindo. – Tenho de ir à missa para me acalmar.

Sai da cama e põe o roupão sobre os ombros. Tropeça.

– Amor, estás bem? – pergunto-lhe.

– Um pouco tonto, nada de especial – responde. – Cego de desejo, e a culpa é tua. Vejo-te na capela. Reza por mim, minha querida.

Levanto-me da cama, e destranco a porta que dá para as ameias, para o deixar sair. Desequilibra-se ao subir os degraus de pedra, depois, vejo-o endireitar os ombros para respirar o ar puro. Fecho a porta, e volto para a cama. Olho em volta do quarto, ninguém pode saber que cá esteve. Alguns momentos depois, doña Elvira bate à porta e entra com a dama de companhia e atrás algumas criadas que trazem o jarro com água quente, e a minha roupa para esse dia.

– Dormistes até tarde, deveis estar muito cansada – diz doña Elvira com ar reprovador; mas estou tão tranquila e feliz que nem me dou ao trabalho de responder.

Na capela não podiam fazer mais do que trocar sorrisos disfarçados. Depois da missa, Artur foi passear a cavalo e Catarina foi quebrar o jejum. Após o pequeno-almoço, era altura de estudar com o capelão e Catarina sentou-se com ele na mesa junto da janela, com os livros à frente, e estudou as Cartas de São Paulo.

Margarida Pole entrou quando Catarina fechava o livro.

– O príncipe pede a vossa presença nos seus aposentos – informou.

Catarina levantou-se.

– Aconteceu alguma coisa?

– Penso que não se sente bem. Mandou todos embora, à excepção do criado particular e dos criados.

Catarina saiu, seguida por doña Elvira e lady Margarida. Os aposentos do príncipe estavam apinhados pelos frequentadores habituais da pequena corte: homens que procuravam favores ou atenção, que faziam pedidos e procuravam justiça, os curiosos que observavam, e o séquito de criados menos importantes e funcionários. Catarina passou por eles dirigindo-se para as portas duplas dos aposentos privados de Artur, e entrou.

Estava sentado numa cadeira junto à lareira, com o rosto muito pálido. Doña Elvira e lady Margarida esperaram à porta, enquanto Catarina se aproximou dele.

– Estás doente, meu amor? – perguntou ansiosa.

Conseguiu sorrir, mas ela percebeu que fazia um esforço.

– Acho que apanhei uma constipação – respondeu. – Não te aproximes. Não ta quero pegar.

– Tens febre? – interrogou receosa, pensando na Doença do Suor que surgia como uma febre e deixava um cadáver.

– Não, tenho frio.

– Bem, não me espanta, neste país onde ou neva ou chove constantemente.

Ele conseguiu esboçar outro sorriso.

Catarina olhou em volta e viu lady Margarida.

– Lady Margarida, temos de chamar o médico do príncipe.

– Já mandei os meus criados chamá-lo – respondeu, aproximando-se.

– Não quero que façam grande alarido – disse Artur irritado. – Só queria dizer-vos, princesa, que não posso ir jantar.

Os seus olhos fixaram-se nos dele.

«Que podemos fazer para ficarmos a sós?», era a pergunta que não pronunciou.

– Posso jantar nos vossos aposentos? – perguntou ela. – Podemos jantar a sós, em privado, uma vez que estais doente?

– Sim, vamos fazer isso – assentiu ele.

– Primeiro, consultai o médico – aconselhou lady Margarida. – Se Vossa Graça permitir. Ele poderá aconselhar-vos o que podeis comer, e se é seguro para a princesa estar convosco.

– Ele não tem nenhuma doença – insistiu Catarina. – Diz que só se sente cansado. É do ar frio ou da humidade. Ontem estava frio e saiu a cavalo meio dia.

Alguém bateu à porta e uma voz anunciou:

– O doutor Bereworth está aqui, Vossa Graça.

Artur levantou a mão, fazendo sinal para o deixarem entrar, doña Elvira abriu a porta e o homem entrou no quarto.

– O príncipe sente frio e cansaço. – Catarina aproximou-se de imediato, falando depressa, em francês. – Está doente? Creio que não está doente. Que achais?

O médico dirigiu-lhe uma vénia, assim como ao príncipe. Fez mais duas vénias a lady Margarida e a doña Elvira.

– Peço desculpa, não percebo – disse, pouco à vontade, em inglês, para lady Margarida. – O que a princesa diz?

Catarina bateu as palmas em sinal de frustração.

– O príncipe... – começou a dizer em inglês.

Margarida Pole pôs-se a seu lado.

– Sua Graça não se sente bem – explicou.

– Posso falar com Sua Graça a sós? – perguntou ele.

Artur acenou. Tentou levantar-se da cadeira, mas quase cambaleou. O médico correu para junto dele, apoiando-o e conduzindo-o para o quarto de dormir.

– Não pode estar doente. – Catarina voltou-se para doña Elvira, falando-lhe em espanhol. – Estava bem, ontem à noite. Só hoje de manhã estava com febre. Mas disse que estava cansado. Agora, quase não se segura em pé. Não pode estar doente.

– Quem sabe as doenças que se apanha com esta chuva e este nevoeiro? – replicou a aia com severidade. – Admira-me como vós não estais também doente. Não sei como conseguimos aguentar isto.

– Ele não está doente – disse Catarina. – Só está cansado. Andou a montar muito tempo, ontem. E estava frio, fazia um vento muito frio. Eu reparei.

– Um vento desses pode matar um homem – comentou doña Elvira sombria. – É tão frio e húmido!

– Parai com isso! – ordenou Catarina, tapando os ouvidos. – Não quero ouvir nem mais uma palavra. Está apenas cansado, exausto. E talvez tenha apanhado uma constipação. Não há necessidade de se falar em ventos e humidades mortais.

Lady Margarida avançou e pegou com carinho nas mãos de Catarina.

– Tendes de ser paciente, princesa – aconselhou. – O doutor Bereworth é um excelente médico e conhece o príncipe desde a infância. O príncipe é um homem forte e tem uma boa saúde. Não deve ser nada de cuidado. Se o doutor Bereworth estiver preocupado, mandamos vir de Londres o médico do rei. Em breve voltará a estar junto de nós.

Catarina assentiu e voltou-se para se sentar perto da janela, a olhar lá para fora. O céu cobrira-se de nuvens, o Sol desaparecera. Chovia, as gotas da chuva escorriam pelos vidros da janela. Catarina observava-as. Tentava não pensar na morte do irmão que amara tanto a mulher, que esperava ansiosa o nascimento do filho de ambos. João morrera alguns dias após adoecer, e ninguém soubera o que lhe acontecera.

– Não vou pensar nele, não no pobre João – murmurou Catarina para si mesma. – São casos diferentes. João sempre foi magro, pequeno; mas Artur é forte.

O médico parecia estar a demorar e, quando saiu do quarto de dormir, Artur não o acompanhava. Catarina, que se levantara da cadeira mal a porta se abrira, espreitou, e viu Artur deitado na cama, semidespido, meio a dormir.

– Penso que os criados particulares o devem preparar para se deitar – disse o médico. – Está muito fraco. É melhor descansar. Se tiverem cuidado, metem-no na cama sem o acordar.

– Está doente? – perguntou Catarina, falando devagar, em latim. – Aegrotat? Está muito doente?

O médico abriu os braços.

– Tem febre – respondeu com cuidado, num francês lento. – Posso dar-lhe uma bebida para lhe fazer baixar a febre.

– Sabe o que tem? – inquiriu lady Margarida, sussurrando. – Não é a Doença do Suor, pois não?

– Deus queira que não. E não há mais casos na cidade, tanto quanto sei. Mas deve ficar sossegado e deixá-lo descansar. Vou preparar-lhe a bebida e já volto.

O inglês, falado em voz baixa, era incompreensível para Catarina.

– Que está a dizer? Que disse? – perguntou a lady Margarida.

– Nada mais do que ouvistes – assegurou-lhe a mulher mais velha. – Tem febre e precisa de descansar. Vou pedir aos criados que o dispam e o metam na cama. Se esta noite estiver melhor, podeis jantar com ele. Sei que gostaria.

– Onde vai? – gritou Catarina enquanto o médico fazia uma vénia e saía. – Tem de ficar aqui e observar o príncipe!

– Vai fazer um medicamento para lhe baixar a febre. Volta já. O príncipe receberá o melhor tratamento, Vossa Graça. Nós amamo-lo tanto como vós. Não o negligenciaremos.

– Sei que não o fariam... É só porque... O médico demora muito?

– Vai ser o mais rápido que puder. E vede, o príncipe dorme. O sono vai ser o melhor remédio. Pode descansar e fortalecer-se e jantar convosco esta noite.

– Pensais que estará melhor logo à noite?

– Se for apenas um pouco de febre e cansaço, daqui a alguns dias estará melhor – respondeu lady Margarida.

– Vou velar o seu sono – afirmou Catarina.

Lady Margarida abriu a porta e chamou o séquito do príncipe. Deu-lhe as ordens e levou a princesa através da multidão para os seus aposentos.

– Vinde, Vossa Graça – pediu. – Vinde dar um passeio no pátio comigo e depois volto aos aposentos do príncipe e vejo se está confortável.

– Vou lá voltar agora – respondeu Catarina. – Vou velá-lo enquanto dorme.

Margarida olhou para doña Elvira.

– Devíeis manter-vos afastada dos seus aposentos, no caso de ter uma febre – disse, falando devagar e em francês, para que a aia compreendesse. – A vossa saúde é importante, princesa. Não me perdoaria se alguma coisa acontecesse a algum de vós.

Doña Elvira aproximou-se e apertou os lábios. Lady Margarida sabia que podia confiar nela para manter a princesa longe de perigo.

– Mas vós dissestes que só tinha uma febre ligeira. Posso ir vê-lo?

– Vamos esperar e ver o que o médico tem para dizer. – Lady Margarida baixou a voz. – Se estiverdes à espera de uma criança, querida princesa, não quereríamos que apanhásseis esta febre.

– Mas vou jantar com ele.

– Se estiver melhor.

– Mas vai querer ver-me!

– Depende. – Lady Margarida sorriu. – Quando a febre baixar e estiver melhor, esta noite, e se sentar para jantar, vai querer ver-vos. Tendes de ser paciente.

Catarina acenou.

– Se me for embora, jurais que ficareis junto dele?

– Volto para lá agora, se fordes passear e depois para o vosso quarto ler, estudar ou coser.

– Eu vou! – respondeu Catarina, de súbito obediente. – Vou para os meus aposentos, se ficardes com ele.

– De imediato – prometeu lady Margarida.

Este pequeno jardim é como um pátio de uma prisão, dou voltas e mais voltas no jardim das ervas, e a chuva cai, como lágrimas. Os meus aposentos não são melhores, o meu quarto é como uma cela, não suporto ter ninguém junto de mim, mas também não suporto estar sozinha. Mandei as damas sentarem-se na sala de estar, as suas conversas intermináveis fazem-me querer gritar de irritação. Mas, quando estou só no quarto, apetece-me ter companhia. Quero que alguém me dê a mão e me diga que ficará tudo bem.

Desço as estreitas escadas de pedra e atravesso o caminho empedrado para ir à capela redonda. Existe uma cruz, num altar de pedra incorporado na parede redonda, e uma vela a arder. É um lugar de paz; mas não a encontro. Enfio as mãos geladas nas mangas, abraço-me e ando em volta da parede circular, são trinta passos até à porta, e volto a percorrer o círculo, como um burro num moinho. Rezo; mas não tenho fé de ser ouvida.

Sou Catarina, princesa de Espanha e de Gales, relembro-me. Sou Catarina, amada por Deus, favorecida por Deus. Nada me pode correr mal. Nada de tão mau como isto me pode acontecer. Foi vontade de Deus que casasse com Artur e unisse os reinos de Espanha e de Inglaterra. Deus não permitirá que algo aconteça a Artur ou a mim. Sei que Ele favorece a minha mãe, e a mim. Este temor deve ter-me sido enviado para me pôr à prova. Mas não terei medo, porque sei que nunca nada me correrá mal.

Catarina aguardou nos seus aposentos, mandando as damas, de hora a hora, perguntar como estava o marido. Nas primeiras horas, disseram-lhe que ainda dormia, o médico preparara o medicamento e estava de pé, junto à cama dele, esperando que acordasse.

Depois, às três da tarde, informaram que acordara, mas que estava muito quente e febril. Tomara o medicamento e esperavam, para ver se a febre baixava. Às quatro, estava pior, não melhorara, e o médico preparava um medicamento diferente.

Não jantaria, beberia apenas cerveja gelada e os remédios do médico para a febre.

– Ide perguntar-lhe se deseja ver-me – ordenou Catarina a uma das aias inglesas. – Não vos esqueçais de falar com lady Margarida. Ela prometeu-me que podia jantar com ele. Relembrai-lho.

A mulher saiu e voltou com um rosto sério.

– Princesa, estão muito ansiosos – informou. – Mandaram chamar um médico de Londres. O doutor Bereworth, que tem estado a observá-lo, não sabe por que a febre não baixa. Lady Margarida está lá, sir Richard Pole, sir William Thomas, sir Henry Vernon e sir Richard Croft, estão à espera, à porta do quarto, e vós não podeis entrar. Dizem que sofre de alucinações.

– Tenho de ir para a capela. Tenho de rezar – disse Catarina.

Cobriu a cabeça com um véu e voltou à capela redonda. Para sua consternação, o confessor do príncipe estava no altar, de cabeça vergada, em súplica, alguns dos homens mais importantes da cidade e do castelo sentados à sua volta, de cabeças baixas. Catarina entrou e ajoelhou-se.

Apoiou o queixo nas mãos e analisou as costas arqueadas do padre, tentando vislumbrar algum sinal de que as suas preces eram atendidas. Não havia forma de adivinhar. Fechou os olhos.

Meu Deus, poupai o meu querido marido, Artur. Ainda é um menino, e eu sou apenas uma menina, não tivemos tempo para estar juntos. Vós sabeis o tipo de reino que construiremos, se for poupado. Conheceis os planos que temos para este país, o castelo sagrado em que transformaremos esta terra, como derrotaremos os mouros, defenderemos este reino dos escoceses. Querido Deus, na Vossa misericórdia, poupai Artur e permiti que volte para mim. Queremos ter os nossos filhos; Maria, que vai ser a rosa da rosa, e o nosso filho Artur, que será o terceiro rei Tudor sagrado católico romano de Inglaterra. Deixai-nos fazer o que prometemos. Oh, meu Senhor, sede misericordioso e poupai-o! Minha Nossa Senhora, intercedei por nós e poupai-o. Querido Jesus, poupai-o. Sou eu, Catarina, quem Vos pede, e peço-o em nome da minha mãe, a rainha Isabel, que trabalhou toda a sua vida ao Vosso serviço, que é a rainha mais cristã, que prestou serviço nas Vossas cruzadas. Ela é amada por Vós, eu sou amada por Vós. Suplico-Vos que não me desaponteis.

Escureceu enquanto Catarina rezava, mas nem reparou. Já era tarde quando doña Elvira lhe tocou no ombro e disse:

– Infanta, deveis comer e ir-vos deitar.

Catarina voltou um rosto pálido para a aia.

– Quais são as notícias? – perguntou.

– Dizem que está pior.

Querido Jesus, salvai-o, salvai-me, querido Jesus, poupai a Inglaterra. Dizei que Artur não está pior.

De manhã, disseram que passara bem a noite, mas, entre os criados, comentava-se que piorava. A febre subira tanto que sofria de alucinações, por vezes, pensava que estava no seu quarto de criança com as irmãs e o irmão, outras, pensava que estava no casamento, vestido com um fato de cetim branco brilhante, e outras, o que era mais estranho, que estava num palácio fantástico. Falava de um pátio de mirtilos, de um rectângulo de água que reflectia, como um espelho, um edifício de ouro, e um movimento circular de bandos de gaivões, que davam voltas e voltas, voando, todo o dia ensolarado.

– Vou vê-lo – anunciou Catarina para lady Margarida ao meio-dia.

– Princesa, ele pode ter a Doença do Suor – respondeu a dama de companhia com frieza. – Não posso permitir que vos aproximeis. Não posso permitir que fiqueis infectada. Não cumpriria o meu dever, se vos deixasse aproximar dele.

– O vosso dever é para comigo! – respondeu Catarina asperamente.

A mulher, também uma princesa, não vacilou.

– O meu dever é para com a Inglaterra – replicou. – E se vós estais à espera de um herdeiro Tudor, então, o meu dever é para com essa criança, e para convosco. Por favor, não discutais comigo, princesa. Não posso permitir que vos aproximeis mais do que dos pés da cama.

– Deixai-me ir lá, então – pediu Catarina, como uma menina pequena. – Por favor, deixai-me apenas vê-lo.

Lady Margarida inclinou a cabeça e conduziu-a aos aposentos reais. As multidões na antecâmara aumentaram, e corria a notícia na cidade de que o príncipe lutava pela vida; mas permaneciam em silêncio, como uma multidão em luto. Esperavam e rezavam pela Rosa de Inglaterra. Alguns homens viram Catarina, de rosto coberto pela mantilha de renda, e pediram uma bênção para ela, depois, um homem aproximou-se e ajoelhou-se.

– Deus vos abençoe, princesa de Gales – disse. – E que o príncipe se levante da cama e volte a ser feliz convosco.

– Amém – respondeu Catarina através dos lábios gelados, e seguiu.

As portas duplas do quarto estavam abertas e Catarina entrou. Fora montada uma espécie de laboratório farmacêutico nos aposentos do príncipe, uma mesa sobre cavaletes com grandes frascos de vidro contendo ingredientes, um pilão e um almofariz, uma tábua de cortar, e meia dúzia de homens com batas de médico reunidos. Catarina fez uma pausa, procurando o doutor Bereworth.

– Doutor?

Veio ter com ela e ajoelhou-se. Tinha uma expressão grave.

– Princesa.

– Quais são as notícias sobre o meu marido? – perguntou, falando devagar e em francês.

– Lamento, não está melhor.

– Mas também não piorou – sugeriu. – Está a melhorar...

Ele abanou a cabeça.

– Il est très malade – retorquiu.

Catarina ouviu as palavras, mas foi como se tivesse esquecido a língua. Não as conseguia traduzir. Voltou-se para lady Margarida.

– Está a dizer que ele está melhor? – inquiriu.

Lady Margarida abanou a cabeça.

– Informa que está pior – replicou, com honestidade.

– Mas devem ter algo para lhe dar? – Virou-se para o médico. – Vous avez un médicament?

Apontou para a mesa atrás de si, para o farmacêutico.

– Oh, se ao menos tivéssemos um médico mouro! – gritou Catarina. – São os mais competentes, não há ninguém como eles. Tinham as melhores universidades de farmácia antes... Se ao menos eu tivesse trazido um médico comigo! A medicina árabe é a melhor do mundo!

– Fazemos tudo o que podemos – disse o médico rigidamente.

Catarina tentou sorrir.

– Tenho a certeza que sim – respondeu. – Só queria... Bem, posso vê-lo?

Uma troca rápida de olhares entre lady Margarida e o médico revelou que este assunto fora tema de discussões ansiosas.

– Vou ver se está acordado – respondeu, e saiu.

Catarina esperou. Não podia acreditar que no dia anterior, de manhã, Artur saíra da sua cama, queixando-se de que não o acordara cedo para fazerem amor. Agora, estava tão doente que nem lhe podia tocar na mão.

O médico abriu a porta.

– Podeis vir até à ombreira da porta, princesa – convidou. – Mas pela vossa saúde, e pela de qualquer criança que possais ter dentro de vós, não vos aproximeis.

Catarina foi para a porta. Lady Margarida colocou-lhe na mão uma caixa com cravinhos e ervas medicinais. Catarina levou-a ao nariz. O cheiro ácido encheu-lhe os olhos de lágrimas, enquanto espreitava para o quarto escurecido.

Artur estava estendido na cama, com a camisa de dormir puxada para baixo, por decência, a face enrubescida devido à febre. O cabelo louro escuro devido ao suor, o rosto macilento. Parecia muito mais velho do que os seus quinze anos. Os olhos encovados nas faces, tinha a pele sob os olhos manchada de castanho.

– A vossa mulher está aqui – comunicou-lhe o médico.

Os olhos de Artur abriram-se e ela viu-os fecharem-se, enquanto tentava olhar para a entrada iluminada e para Catarina, que estava de pé à sua frente, com o rosto branco do choque.

– Meu amor – disse ele. – Amo-te.

– Amo-te – sussurrou ela. – Dizem que não me posso aproximar.

– Não te aproximes – pediu com a voz a tremer. – Eu amo-te.

– Eu também te amo! – A voz saía com esforço por entre as lágrimas. – Vais ficar bom?

Ele abanou a cabeça, demasiado fraco para falar.

– Artur? – chamou ela, exigente. – Vais ficar bom?

Ele encostou a cabeça para trás na almofada quente, para recuperar as forças.

– Vou tentar, meu amor. Vou tentar muito. Por ti. Por nós.

– Há alguma coisa que queiras? – perguntou. – Alguma coisa que possa fazer por ti? – Olhou em volta. Não havia nada que pudesse fazer por ele. Não havia nada que pudesse ajudar. Se trouxesse um médico mouro consigo, se os pais não tivessem destruído o ensino das universidades árabes, se a Igreja permitisse o estudo da medicina, e não denominassem o conhecimento de heresia...

– Tudo o que quero é viver contigo – respondeu ele, num fio de voz.

Ela soltou um pequeno soluço.

– E eu contigo.

– O príncipe tem de descansar, e vós não deveis ficar aqui. – O médico aproximou-se.

– Por favor, deixai-me ficar! – suplicou em voz baixa. – Por favor, permiti que fique. Suplico-vos. Deixai-me estar com ele.

Lady Margarida pôs-lhe o braço em volta da cintura e puxou-a.

– Vireis cá outra vez, se sairdes agora – prometeu. – O príncipe precisa de descansar.

– Eu vou voltar – disse Catarina para ele, e viu o gesto da sua mão, que lhe indicou que a ouvira. – Não te falharei.

Catarina foi para a capela rezar por ele, mas não foi capaz. Só conseguia pensar nele, no rosto branco sobre as almofadas brancas. Só sentia a vibração do desejo por ele. Estavam casados há cento e quarenta dias, eram amantes apaixonados há noventa e quatro noites. Tinham prometido que passariam a vida juntos, não podia acreditar que, naquele momento, estava ajoelhada a rezar pela sua vida.

Isto não está a acontecer, ainda ontem estava bem. Isto é um pesadelo terrível e, daqui a alguns momentos, vou acordar e vai beijar-me e chamar-me tola. Ninguém pode ficar doente de repente, ninguém passa da vitalidade e da beleza para um estado doentio num período tão curto. Daqui a pouco, vou acordar. Isto não está a acontecer. Não consigo rezar, mas não importa que não consiga rezar, porque isto não está a acontecer. Uma prece em sonhos não significaria nada. Uma doença em sonhos não significa nada. Não sou uma ateia supersticiosa, para temer os sonhos. Daqui a pouco vou acordar e riremos dos meus medos.

À hora do jantar, levantou-se, mergulhou o dedo em água benta, benzeu-se e, com a água ainda húmida na testa, dirigiu-se aos aposentos dele, com doña Elvira seguindo-a.

As multidões nas salas, fora dos aposentos, e na antecâmara eram cada vez mais numerosas, mulheres e homens, silenciosos, numa dor muda. Abriram caminho para a princesa sem uma palavra, além de um murmúrio de bênçãos. Catarina passou, sem olhar para a direita nem para a esquerda, atravessando a antecâmara, a mesa do farmacêutico, até à porta do quarto de dormir.

O guarda afastou-se. Catarina bateu à porta e empurrou-a, para a abrir.

Alguém estava debruçado sobre ele. Catarina ouviu-o tossir, uma tosse áspera, como se a garganta estivesse cheia de água.

– Madre de Dios – disse com suavidade. – Santa Mãe de Deus, mantende Artur em segurança.

O médico voltou-se ao ouvir os sussurros. O rosto estava pálido.

– Não vos aproximeis! – exclamou, aflito. – É a Doença do Suor.

Ao ouvir a palavra mais receada, doña Elvira recuou e puxou o vestido de Catarina, como se a arrastasse para longe do perigo.

– Deixai-me! – Catarina deu uma palmada e puxou o vestido das mãos da ama. – Não me aproximo mais, mas tenho de falar com ele – disse com firmeza.

O médico sentiu a resolução na sua voz.

– Princesa, está demasiado fraco.

– Deixai-nos – ordenou.

– Princesa.

– Tenho de falar com ele. São assuntos do reino.

Uma olhadela à sua expressão determinada disse-lhe que não aceitaria ser contrariada. Passou por ela, de cabeça baixa, e o assistente seguiu-o. Catarina fez um gesto com a mão, e doña Elvira retirou-se. Catarina passou o limiar da porta e fechou-a.

Viu Artur mexer-se, em protesto.

– Eu não me aproximo mais – assegurou-lhe. – Juro. Mas tenho de estar contigo. Não suporto... – Começou a chorar.

O rosto dele, quando o voltou, estava brilhante devido ao suor, o cabelo tão molhado como quando regressava de uma caçada à chuva. A face jovem e redonda esgotada, à medida que a doença lhe sugava a vida.

– Amo-te – disse através dos lábios gretados e escuros devido à febre.

– Amo-te – respondeu ela.

– Estou a morrer – concluiu tristemente.

Catarina não o interrompeu nem o contradisse. Viu-a endireitar-se, como se fosse atingida por um golpe mortal.

Ele respirou fundo.

– Mas tu tens de ser a rainha de Inglaterra.

– O quê?

Respirou ofegante.

– Amor, obedece-me. Tu juraste obedecer-me.

– Farei qualquer coisa.

– Casa com Henrique. Sê rainha. Tem os nossos filhos.

– O quê? – Sentia-se tonta com o choque. Quase não ouvia o que ele dizia.

– A Inglaterra precisa de uma grande rainha – continuou ele. – Sobretudo com ele. Não está preparado para governar. Tens de ensiná-lo. Constrói os meus fortes. Constrói a minha marinha. Defende-nos dos escoceses. Tem a minha filha, Maria. Tem o meu filho, Artur. Deixa-me viver através de ti.

– Meu amor...

– Deixa-me fazê-lo – suspirou. – Deixa-me manter Inglaterra em segurança através de ti. Deixa-me viver através de ti.

– Sou tua mulher – replicou furiosa. – Não dele.

Ele acenou.

– Diz-lhes que não és.

Ela cambaleou ao ouvi-lo, e procurou a porta para se apoiar.

– Conta-lhes que não fui capaz. – Um indício de um sorriso assomou ao rosto esgotado. – Diz-lhes que não era homem. E depois casa com Henrique.

– Tu detestas o Henrique! – explodiu. – Não podes querer que case com ele. É uma criança. E eu amo-te.

– Ele vai ser rei – proferiu desesperado. – E tu vais ser rainha. Casa com ele. Por favor. Querida. Por mim.

A porta atrás dela abriu-se e lady Margarida disse:

– Não deveis cansá-lo, princesa.

– Tenho de ir embora – despediu-se Catarina, para a figura imóvel na cama.

– Promete-me...

– Eu volto. Vais ficar melhor.

– Por favor.

Lady Margarida abriu mais a porta e pegou na mão de Catarina.

– Para o bem dele – disse. – Tendes de o deixar.

Catarina voltou-se para sair do quarto, olhou por cima do ombro. Artur levantou uma mão a alguns centímetros da colcha trabalhada.

– Eu prometo – saiu da sua boca.

A mão dele caiu, ouviu-o soltar um suspiro de alívio. Foram as últimas palavras que trocaram.

Castelo de Ludlow, 2 de Abril de 1502

 

Às seis horas, hora das Vésperas, o confessor de Artur, o doutor Eldenham, administrou-lhe a extrema-unção e Artur morreu pouco depois. Catarina ajoelhou-se na soleira da porta, enquanto o padre ungia o marido com o óleo e inclinou a cabeça para a bênção. Não se levantou dessa posição até lhe dizerem que o marido-menino morrera e que era uma viúva de dezasseis anos.

Lady Margarida de um lado e doña Elvira do outro transportaram e quase arrastaram Catarina para o quarto de dormir. Catarina deitou-se entre os lençóis gelados da cama, sabendo que, por muito que esperasse, não ouviria os passos tranquilos de Artur nas ameias, do lado de fora do quarto, nem o bater na porta. Nunca mais lhe abriria a porta para correr para os seus braços. Nunca mais voltaria a pegar-lhe ao colo e a levá-la para a cama, depois de ter desejado estar nos seus braços durante o dia.

– Não posso acreditar – proferiu entrecortadamente.

– Bebei isto – disse lady Margarida. – O médico deixou-o para vós. É um remédio para dormir. Eu acordar-vos-ei ao meio-dia.

– Não posso acreditar.

– Princesa, bebei.

Catarina bebeu, ignorando o sabor amargo. Mais do que qualquer coisa, queria adormecer e não voltar a acordar.

Nessa noite sonhei que estava no cimo do maior portão do forte vermelho que protege e rodeia o Palácio de Alhambra. Por cima da minha cabeça, os estandartes de Castela e Aragão esvoaçavam, como velas dos navios de Cristóvão Colombo. Protegendo os olhos do sol de Outono, olhando para a grande planície de Granada, observo a beleza simples e familiar da terra, o solo amarelo-acastanhado atravessado por mil pequenos canais que levam a água de um campo para outro, sob mim a cidade de muros brancos de Granada, ainda agora, dez anos depois da nossa conquista, uma cidade moura: as casas dispostas em volta de terraços com sombra, uma fonte a jorrar sedutoramente no meio, com jardins enriquecidos pelo perfume das roseiras temporãs, e as copas das árvores pesadas com os frutos.

Alguém chamava por mim.

– Onde está a infanta?

E, no meu sonho, respondia:

– Sou Catarina, rainha de Inglaterra. Esse é o meu nome agora.

Sepultaram Artur, príncipe de Gales, no dia de São Jorge, este primeiro príncipe de toda Inglaterra, após uma viagem de pesadelo, de Ludlow a Worcester, em que a chuva era tão forte que mal conseguiam avançar. Os caminhos inundados, os prados alagados com água por altura do joelho e o Teme extravasara as margens e não conseguiam atravessar os baixios. Tiveram de utilizar carros de bois para o cortejo fúnebre, os cavalos não avançavam pelo lamaçal das estradas, e as plumagens e tecidos negros ensopados, quando chegaram a Worcester.

Compareceram centenas de pessoas para ver o cortejo infeliz atravessar as ruas até à catedral. Centenas de pessoas choraram a perda da Rosa de Inglaterra. Depois de descerem o caixão para a câmara mortuária, sob o coro, os criados dos seus aposentos quebraram os bastões-insígnia e atiraram-nos para dentro da sepultura, com o seu senhor. Para eles, terminara. Tudo o que esperaram ao serviço de um príncipe tão jovem e tão promissor acabara. Estava terminado para Artur. Parecia que tudo terminara e não podia ser reparado.

Não, não, não.

No primeiro mês de luto, Catarina encerrou-se nos seus aposentos. Lady Margarida e doña Elvira informaram que estava doente, mas não em perigo. Na verdade, receavam pelas suas faculdades mentais. Ela não se enraiveceu, nem chorou, não se revoltou contra o destino nem chorou pelo consolo da mãe, manteve-se em silêncio absoluto, o rosto voltado para a parede. A tendência da sua família para o desespero tentava-a como um pecado. Sabia que não podia ceder ao choro nem à loucura, porque se perdesse o controlo nunca mais pararia. Durante esse longo mês de reclusão, Catarina cerrava os dentes e necessitou de toda a força de vontade e de todas as energias para se impedir de gritar de dor.

Quando a acordavam, de manhã, dizia que estava cansada. Não sabiam que mal se atrevia a mexer-se, com receio de começar a gemer em voz alta. Depois de a vestirem, sentava-se na cadeira, como uma pedra. Assim que lho permitiam, voltava para a cama, deitava-se de costas, e olhava para cima, para o dossel de cores vivas que observara com os olhos semicerrados pela paixão, e sabia que Artur nunca mais voltaria a puxá-la para que se aninhasse nos seus braços.

Chamaram o médico, o doutor Bereworth, mas, quando o viu, a boca tremeu e os olhos encheram-se de lágrimas. Virou-lhe a cara e foi para o quarto de dormir, fechando a porta. Não suportava vê-lo, o médico que deixara Artur morrer, os amigos que viram a desgraça acontecer. Não aguentava falar com ele. Sentia uma raiva homicida, assim que via o médico que não conseguira salvar o rapaz. Desejava que fosse ele a morrer, e não Artur.

– Receio que a sua mente esteja afectada – disse lady Margarida para o médico quando ouviram o trinco da porta dos aposentos privados fechar-se. – Não fala, nem chora por ele.

– E come?

– Se lhe pusermos a comida à frente, e se lhe dissermos para comer.

– Chamem alguém, alguém que lhe seja familiar, talvez o confessor, que leia para ela. Palavras encorajadoras.

– Ela não quer ver ninguém.

– Será que está grávida? – murmurou. Era o único assunto que interessava naquele momento.

– Não sei – respondeu. – Não disse nada.

– Está a fazer o luto por ele – observou. – Faz o luto como uma mulher nova, pelo marido jovem que perdeu. Devíamos deixá-la em paz. Deixai-a sofrer. Em breve, terá de se recompor. Vai voltar à corte?

– Foi o que o rei ordenou – replicou lady Margarida. – A rainha vai enviar a liteira.

– Bem, então, quando chegar, terá de modificar o comportamento – disse. – É muito nova. Vai recuperar. Os jovens têm corações fortes. E vai ser bom sair daqui, de onde guarda memórias tão tristes. Se precisardes de conselhos, chamai-me. Mas não vou impor-lhe a minha presença, pobre criança.

Não, não, não.

Mas Catarina não se parecia com uma pobre criança, pensou lady Margarida. E sim uma estátua, uma princesa de pedra esculpida na dor. Doña Elvira vestira-lhe as roupas novas e escuras de luto e convencera-a a sentar-se à janela, onde podia ver as árvores verdes e os ramos de cor creme, com as flores de Maio, o sol ou os campos, e ouvir o chilrear dos pássaros. O Verão chegara, tal como Artur prometera, estava calor como jurara; mas ela não passeava à beira-rio com ele, cumprimentando os gaivões, à medida que chegavam de Espanha. Não plantava os legumes para salada nos jardins do castelo e não o convencia a comê-los. O Verão chegara, o Sol viera, Catarina estava lá, mas Artur jazia frio na escura câmara mortuária da Catedral de Worcester.

Catarina sentou-se em silêncio, com as mãos cruzadas sobre a seda negra do vestido, os olhos voltados para fora da janela, mas não via nada, os lábios apertados, os dentes cerrados, como se se controlasse para não pronunciar uma tempestade de palavras.

– Princesa – chamou lady Margarida hesitante.

A cabeça sob o pesado toucado preto voltou-se para ela.

– Sim, lady Margarida? – A sua voz estava rouca.

– Gostaria de falar convosco.

Catarina inclinou a cabeça.

Doña Elvira recuou e saiu em silêncio do quarto.

– Tenho de vos perguntar sobre a viagem para Londres. A liteira real chegou e tendes de partir.

Não houve indícios de entusiasmo nos olhos azuis profundos de Catarina. Acenou, como se falassem do transporte de uma encomenda.

– Não sei se estais forte para viajar.

– Não posso ficar aqui? – perguntou Catarina.

– Sei que o rei mandou buscar-vos. Peço desculpa. Escreveram, dizendo que podeis ficar aqui até vos sentirdes bem para viajar.

– Porquê, o que me vai acontecer? – interrogou Catarina, como se lhe fosse indiferente. – Quando chegar a Londres?

– Não sei. – A antiga princesa não fingiu que uma rapariga de uma família real podia escolher o seu futuro. – Lamento. Não sei o que está planeado. Não disseram nada ao meu marido, a não ser para vos preparar para a viagem até Londres.

– O que pensais que acontecerá? Quando o marido da minha irmã morreu, mandaram-na para junto de nós, de Portugal. Voltou para Espanha.

– Penso que vos mandarão para casa – disse lady Margarida.

Catarina voltou a cabeça. Olhava por uma das janelas, mas os olhos não viam nada. Lady Margarida esperou, perguntava-se se a princesa diria mais alguma coisa.

– Uma princesa de Gales tem uma casa em Londres, como aqui? – perguntou. – Vou voltar para o Castelo de Baynard?

– Não sois a princesa de Gales – respondeu lady Margarida. Ia explicar, mas o olhar que Catarina lhe lançou era tão irado que a fez hesitar. – Peço desculpa – continuou. – Creio que não haveis percebido...

– Percebido o quê? – O rosto pálido de Catarina tornava-se rosado de raiva.

– Princesa?

– Princesa de quê? – retorquiu Catarina asperamente.

Lady Margarida fez uma reverência e manteve-se curvada.

– Princesa de quê? – berrou Catarina. A porta abriu-se e doña Elvira entrou no quarto, detendo-se ao ver Catarina de pé, com o rosto vermelho de fúria, e lady Margarida de joelhos. Saiu, sem pronunciar uma palavra.

– Princesa de Espanha – disse lady Margarida.

Fez-se um silêncio profundo.

– Sou a princesa de Gales – afirmou Catarina. – Toda a vida fui a princesa de Gales.

Lady Margarida levantou-se e encarou-a.

– Agora sois a princesa viúva.

Catarina tapou a boca para reter um grito de dor.

– Lamento, princesa.

Catarina abanou a cabeça, sem palavras, com o punho na boca, para abafar o choro de dor. A expressão de lady Margarida era inflexível.

– Irão chamar-vos princesa viúva.

– Nunca responderei por esse nome.

– É um título de respeito. É apenas a expressão utilizada para referir uma mulher que perdeu um marido que era príncipe.

Catarina cerrou os dentes e voltou as costas à amiga, para olhar pela janela.

– Podeis levantar-vos – ordenou entredentes. – Não tendes de vos ajoelhar perante mim.

A mulher mais velha levantou-se e hesitou.

– A rainha escreveu-me. Desejam saber como está a vossa saúde. Não apenas se vos sentis bem, e forte para viajar; necessitam de saber se estareis à espera de uma criança.

Catarina apertou as mãos e voltou o rosto, para que lady Margarida não visse a sua raiva.

– Se estiverdes à espera de uma criança, e se for um rapaz, será o príncipe de Gales, e depois rei de Inglaterra, e vós sereis Sua Alteza, a Mãe do Rei – relembrou-lhe lady Margarida tranquila.

– E se não estiver à espera de uma criança?

– Então, sois a princesa viúva, e o príncipe Henrique é príncipe de Gales.

– E quando o rei morrer?

– O príncipe Henrique será rei.

– E eu?

Lady Margarida encolheu os ombros em silêncio. «Quase nada», dizia o gesto. Em voz alta disse:

– Continuais a ser a infanta. – Lady Margarida tentou sorrir. – Como sereis sempre.

– E a próxima rainha de Inglaterra?

– Será a mulher do príncipe Henrique.

A raiva de Catarina explodiu e foi até à lareira, apoiando-se na parte superior para se acalmar. As pequenas chamas não emitiam calor que sentisse através da espessa saia preta do vestido de luto. Olhou para as chamas como se pudesse compreender o que lhe acontecera.

– Tornei-me o que era, quando tinha três anos – proferiu lentamente. – A infanta de Espanha, não a princesa de Gales. Um bebé. Sem importância.

Lady Margarida, cujo sangue real fora esbatido por um casamento abaixo da sua condição, para que não constituísse uma ameaça para o trono Tudor de Inglaterra, acenou.

– Princesa, assumis a posição do vosso marido. Para as mulheres, é sempre assim. Se não tiverdes marido nem filho, não tendes posição. Apenas a com que nascestes.

– Se voltar para Espanha viúva, e me casarem com um arquiduque, serei a arquiduquesa Catarina, e não uma princesa. Não serei princesa de Gales, e nunca serei rainha de Inglaterra.

Lady Margarida assentiu.

– Como eu – afirmou.

Catarina voltou a cabeça.

– Vós?

– Eu era uma princesa Plantageneta, sobrinha do rei Eduardo, irmã de Eduardo de Warwick, o herdeiro do trono do rei Ricardo. Se o rei Henrique perdesse a batalha no Campo de Bosworth, seria o rei Ricardo a ocupar o trono, o meu irmão, seu herdeiro e príncipe de Gales, e eu seria a princesa Margarida, tal como nasci para ser.

– Em vez disso, sois lady Margarida, esposa do guardião de um pequeno castelo, que nem é dele, na fronteira de Inglaterra.

A mulher mais velha confirmou a fria descrição da sua condição.

– Por que não recusastes? – inquiriu Catarina com rudeza.

Lady Margarida olhou para trás de si, para se certificar de que a porta estava fechada e que nenhuma das damas de companhia de Catarina a ouvia.

– Como podia recusar? – perguntou. – O meu irmão estava na Torre de Londres, por ter nascido príncipe. Se recusasse casar com sir Richard, juntava-me a ele. O meu irmão teve de pousar a cabeça no cepo, por ter o nome que tinha. Sendo rapariga, tive oportunidade de mudar o nome. E foi o que fiz.

– Tínheis hipótese de ser rainha de Inglaterra! – protestou Catarina.

Lady Margarida distanciou-se da energia da jovem mulher.

– Foi a vontade de Deus – retorquiu. – A minha oportunidade desapareceu. A vossa também. Tereis de encontrar uma forma de viver o resto da vida sem vos lamentardes, infanta.

Catarina não disse nada, mas o rosto que ofereceu à amiga era fechado e frio.

– Encontrarei uma forma de concretizar o meu destino – afirmou. – Ar... – Interrompeu-se, não era capaz de pronunciar o seu nome, nem com a amiga. – Uma vez tive uma conversa sobre reivindicar o que é nosso – explicou. – Agora compreendo-a. Terei de ser a minha pretendente. Insistirei no que é meu. Sei qual é o meu dever e o que tenho de fazer. Cumprirei a vontade de Deus, sejam quais forem as dificuldades que tenha de enfrentar.

A mulher mais velha acenou.

– Talvez a vontade de Deus seja que aceiteis o vosso destino. Talvez seja a vontade de Deus que vos resigneis – sugeriu.

– Não é – respondeu Catarina com firmeza.

Não contarei a ninguém o que prometi. Não contarei a ninguém que, no meu coração, continuo a ser a princesa de Gales, serei sempre a princesa de Gales até assistir ao casamento do meu filho e ver a minha nora ser coroada. Não revelarei a ninguém que compreendo o que Artur me disse: que, mesmo sendo uma princesa por nascimento, posso ter de reivindicar o meu título.

Não disse a ninguém se estou, ou não, à espera de um filho. Mas eu sei. Tive as minhas regras em Abril, não tenho nenhum bebé. Não existe a princesa Maria, ou um príncipe Artur. O meu amor, o meu único amor está morto e não resta nada, nem o seu filho por nascer.

Não direi nada, apesar de as pessoas estarem constantemente a intrometer-se e a quererem sempre saber. Tenho de pensar no que devo fazer, e como vou reclamar o trono que Artur queria que fosse meu. Preciso de pensar como vou cumprir a promessa, como vou contar a mentira que desejava que anunciasse. Como poderei torná-la convincente, enganar o rei, e a mãe inteligente e de olhar duro.

Mas fiz uma promessa, não retiro a minha palavra. Suplicou-me que lhe prometesse e ditou a mentira que tenho de contar; e respondi que sim. Não o desiludirei. Foi a última coisa que me pediu, e fá-lo-ei. Vou fazê-lo por ele, e pelo nosso amor.

Oh, meu amor, se soubesses a vontade que tenho de te ver.

Catarina viajou para Londres com as cortinas da liteira, debruadas a preto, fechadas, impedindo-a de admirar a beleza do campo, que atingia o seu esplendor. Não viu as pessoas retirarem os chapéus ou fazerem reverências, enquanto o cortejo atravessava as pequenas aldeias inglesas. Não ouviu os homens e mulheres gritarem: «Deus vos abençoe, princesa!», enquanto a liteira avançava pelas ruas das aldeias. Não soube que cada mulher jovem da região se benzeu e rezou para não ter a má sorte da bela princesa espanhola, que viera de tão longe por amor, e perdera o seu amor, cinco meses depois.

Mal se deu conta da verdura da região, da protuberância fértil das colheitas nos campos e do gado robusto nos prados alagados. Quando o caminho rumou através de florestas densas, reparou na frescura da sombra verde, e na espessa folhagem das copas das árvores, entrelaçando-se por cima da estrada. Manadas de veados desapareciam nas manchas de sombra e ouvia o canto de um cuco e o matraquear de um pica-pau. Era uma terra bonita, uma terra rica, uma excelente herança para um casal jovem. Pensou no desejo de Artur de protegê-la dos escoceses, dos mouros. Da sua vontade de reinar, de uma forma melhor e mais justa do que alguma vez se fizera.

Não falou com os anfitriões ao longo da viagem, que atribuíram o silêncio ao sofrimento, e se apiedaram por isso. Não trocou uma palavra com as aias, nem com María, que permanecia ao seu lado, numa compaixão silenciosa, nem com doña Elvira que, nesta crise espanhola, organizava tudo; o marido as casas onde se alojariam ao longo do percurso, ela as refeições da princesa, o leito, as damas de companhia, a dieta. Catarina não falava, e deixava que fizessem o que lhes aprouvesse.

Alguns dos anfitriões consideraram que estava tão afundada na dor que não era capaz de pronunciar uma palavra, e rezavam para que recuperasse as forças, que voltasse a Espanha e fizesse novo casamento, que lhe trouxesse um marido, para substituir o antigo. O que não sabiam era que Catarina guardava a dor pela perda do marido num lugar escondido, no mais profundo de si mesma. Atrasou o luto até ter a certeza de que se podia dedicar a ele. Durante a atribulada viagem na liteira, não chorava por Artur, esforçava-se por encontrar uma forma de concretizar o sonho do marido. Perguntava-se como podia obedecer-lhe, tal como lho pedira. Questionava-se como seria possível cumprir a promessa que fizera, no seu leito de morte, ao único jovem que alguma vez amara.

Terei de ser inteligente. Mais astuciosa do que o rei Henrique Tudor, mais determinada do que a mãe. Diante deles, não sei se conseguirei o que pretendo. Mas tenho de conseguir. Fiz a promessa, vou contar a mentira. Inglaterra será governada como Artur desejava. A rosa viverá de novo, construirei a Inglaterra que queria.

Quem me dera ter trazido lady Margarida, para me aconselhar, sinto falta da sua amizade, da sua sabedoria experiente. Gostava de fixar o seu olhar franco e ouvir os seus conselhos para me resignar, para me vergar ao meu destino, para me entregar à vontade de Deus. Não seguiria os seus conselhos, mas gostava de poder ouvi-los.


Verão de 1502

Croydon, Maio de 1502

 

A princesa e a comitiva chegaram ao Palácio de Croydon e doña Elvira levou Catarina para os aposentos privados. Desta vez, a rapariga não foi para o quarto de dormir, nem fechou a porta, ficou na sumptuosa antecâmara, olhando.

– Uma sala adequada a uma princesa – disse.

– Mas não é a vossa – respondeu doña Elvira, preocupada pelo estatuto da sua protegida. – Não vos foi concedida. É apenas para que a utilizeis.

A jovem acenou.

– É adequada – afirmou.

– O embaixador espanhol aguarda-vos – comunicou-lhe doña Elvira. – Quereis que diga que não o recebereis?

– Eu recebo-o – replicou Catarina. – Dizei-lhe que entre.

– Não tendes de...

– Pode trazer notícias da minha mãe – retrucou. – Gostava de receber os seus conselhos.

A ama fez uma vénia e saiu, para chamar o embaixador. Este conversava animadamente na galeria exterior à antecâmara da princesa, com o padre Alessandro Geraldini, o capelão da princesa. Doña Elvira olhou-os com desagrado. O capelão era um homem alto, bonito, a sua compleição morena contrastava com a do acompanhante. O embaixador, o doutor de Puebla, parecia pequeno ao seu lado, e estava encostado a uma cadeira para suportar a coluna deformada, a perna aleijada entalada atrás da outra, o rosto claro animado de emoção.

– Está à espera de uma criança? – confirmou o embaixador num murmúrio. – Tendes a certeza?

– Rezo a Deus para que esteja. Ela espera que assim seja – confidenciou o confessor.

– Doutor de Puebla! – chamou a ama, incomodada com o ar de secretismo entre os dois. – Vou conduzir-vos à princesa agora.

– Com certeza, doña Elvira – respondeu, com o mesmo ar. – Já.

De Puebla entrou no quarto a coxear, com o chapéu preto ricamente orlado na mão, o rosto emoldurado num sorriso pouco convincente. Inclinou-se numa vénia com um floreio, e levantou-se analisando a princesa.

Ficou surpreendido pelo quanto mudara em tão pouco tempo. Viera para a Inglaterra ainda menina, com o optimismo de uma menina. Considerara-a uma criança mimada, que fora protegida das dificuldades da vida real. No palácio de contos de fadas do Alhambra, fora a filha mais nova e mais mimada dos poderosos monarcas da Cristandade. A viagem para Inglaterra a primeira contrariedade que fora obrigada a suportar, e queixara-se com amargura, como se ele pudesse alterar as condições climáticas. No dia do casamento, ao lado de Artur e ao ouvir as saudações, fora a primeira vez que estivera em segundo lugar em relação a alguém que não fossem os heróicos pais.

Mas, diante de si, estava agora uma rapariga arrastada pela infelicidade a tornar-se madura. Esta Catarina era mais magra e mais pálida, mas com uma nova beleza espiritual, moldada pelas dificuldades. Susteve a respiração. Esta Catarina era uma jovem com presença de uma rainha. Através da dor, tornara-se não apenas a viúva de Artur, mas a filha da sua mãe. Era uma princesa da linhagem que derrotara o inimigo mais poderoso da Cristandade. Era o osso do osso e sangue do sangue de Isabel de Castela. Era fria, dura. Desejava que não fosse ser difícil lidar com ela.

De Puebla lançou-lhe um sorriso que pretendia ser reconfortante, e viu-a analisá-lo sem lhe retribuir a expressão calorosa. Estendeu-lhe a mão e sentou-se na cadeira de madeira de costas direitas, diante da lareira.

– Podeis sentar-vos – disse-lhe, apontando para uma cadeira mais baixa, a alguma distância.

Ele fez mais uma vénia e sentou-se.

– Tendes alguma mensagem para mim?

– De condolências, do rei e da rainha Isabel, e de Sua Alteza, a Mãe do Rei, e minha, claro. Vão convidar-vos a comparecer na corte, quando estiverdes recomposta da vossa viagem e concluído o luto.

– Quanto tempo deverei guardar o luto? – perguntou Catarina.

– Sua Alteza, a Mãe do Rei, afirmou que devíeis ficar em reclusão um mês após o funeral. Mas, como não estivestes na corte durante esse tempo, decidiu que permanecereis aqui, até vos ordenar que regresseis a Londres. Está preocupada com a vossa saúde...

Fez uma pausa, esperando que ela dissesse se estava, ou não, à espera de uma criança, mas a princesa prolongou o silêncio.

Pensou que devia perguntar-lhe.

– Infanta...

– Deveríeis chamar-me princesa – interrompeu-o. – Sou a princesa de Gales.

Ele hesitou, sem saber o que fazer.

– Princesa viúva – corrigiu-a calmo.

– Com certeza. Já percebi. Tendes alguma carta de Espanha?

Ele fez uma vénia e entregou-lhe a carta que trazia no bolso da manga. Ela não lha arrancou das mãos, como uma criança, para a abrir. Acenou em sinal de agradecimento e pegou-lhe.

– Quereis abri-la? Não quereis responder?

– Quando escrever a resposta, mando chamar-vos – respondeu, afirmando o seu poder sobre ele. – Mandarei chamar-vos, quando precisar de vós.

– Com certeza, Vossa Graça. – Passou a mão pelo veludo dos calções pretos para esconder a irritação, mas no seu íntimo considerou uma impertinência o facto de a infanta, neste momento uma viúva, dar ordens, em situações em que, enquanto princesa de Gales, pedia com educação. Pensou que, afinal, talvez não lhe agradasse esta nova e refinada Catarina.

– Tivestes notícias de Espanha, de Suas Majestades? – perguntou. – Aconselharam-vos, indicando quais seriam os seus desejos?

– Sim – respondeu ele, perguntando-se o que lhe devia contar. – Claro. A rainha Isabel está preocupada que vós não estejais bem. Pediu-me que me informasse da vossa saúde e que lho transmitisse.

Uma sombra secreta atravessou o rosto de Catarina.

– Escreverei à rainha, minha mãe e dar-lhe-ei notícias – disse.

– Ela estava ansiosa por saber... – começou ele, tentando obter a resposta à principal questão: «Havia um herdeiro? A princesa esperava um filho?»

– Não confiarei em mais ninguém, além da minha mãe.

– Não podemos continuar a tratar da vossa herança, com as negociações, até sabermos – respondeu com frieza. – Faz toda a diferença.

Ela não se exaltou como pensara que aconteceria. Inclinou a cabeça, controlando-se.

– Escreverei à minha mãe – repetiu, como se os seus conselhos não tivessem importância.

Percebeu que não obteria mais informação. Mas, pelo menos, o capelão dissera-lhe que podia estar à espera de uma criança, ele devia saber. O rei ficaria feliz por saber que havia a possibilidade de existir um herdeiro. De qualquer forma, ela não o negara. Podia tirar-se algum partido do seu silêncio.

– Então, deixar-vos-ei, para que possais ler a vossa carta. – Fez uma vénia.

Ela esboçou um gesto casual, indicando que podia sair, e voltou-se para olhar para as chamas da pequena lareira de Verão. Ele voltou a fazer uma vénia e, quando já não olhava para ele, analisou a silhueta. Não apresentava sinais de gravidez, mas algumas mulheres passavam mal nos primeiros meses. A palidez podia ser provocada pelos enjoos matinais. Era impossível para um homem adivinhar. Teria de confiar na opinião do seu confessor, e transmiti-la com precaução.

Abro a carta da minha mãe com as mãos a tremer tanto que quase não consigo quebrar o lacre. A primeira coisa que observo é a brevidade da carta, apenas uma página.

– Oh, mãe – suspiro. – Só isto?

Talvez fosse escrita à pressa; mas sinto-me muito magoada por ver que escreveu tão pouco! Se soubesse o quanto desejo ouvir a sua voz, ter-me-ia escrito o dobro. Deus é minha testemunha de que penso que não serei capaz de fazer isto sem ela; só tenho dezasseis anos e meio, preciso da minha mãe.

Leio a breve carta de uma vez, e depois, quase incrédula, volto a lê-la.

Não é uma carta de uma mãe extremosa para a filha. Não é uma carta de uma mulher para a filha preferida, quando essa filha está no limiar do desespero. Fria, poderosamente, escreveu-me uma carta de uma rainha para uma princesa. Escreve apenas sobre o negócio. Podíamos ser dois mercadores que negoceiam uma transacção.

Afirma que devo ficar em qualquer casa que me seja disponibilizada, até ao meu próximo período e saber que não estou grávida. Se for esse o caso, devo ordenar ao doutor de Puebla que solicite as minhas arras, na qualidade de princesa viúva de Gales e, assim que tenha recebido o dinheiro, e não antes (sublinhado para que não haja enganos), devo embarcar num navio para Espanha.

Se, por outro lado, Deus for gracioso, e esperar uma criança, então, devo assegurar ao doutor de Puebla que o montante do meu dote seja pago em dinheiro e de imediato, ele deve garantir-me a minha mesada como princesa viúva de Gales, e eu devo descansar e esperar ter um rapaz.

Devo escrever-lhe e dizer-lhe se penso que espero uma criança. Devo escrever-lhe, assim que tiver a certeza, de uma coisa ou da outra, e devo confiar no doutor de Puebla, e manter-me sob a protecção de doña Elvira.

Dobro a carta, juntando as extremidades, como se o aprumo fosse de extrema importância. Penso que se soubesse do desespero que rodeia os meus pensamentos, como um rio de escuridão, ter-me-ia escrito num tom mais simpático. Se soubesse como me sinto só, desesperada e as saudades que sinto dele, não me falaria de acordos, pensões ou títulos. Se soubesse quanto o amava e como é difícil viver sem ele, escrever-me-ia e dir-me-ia que me ama, que devo voltar para casa, para junto de si, sem esperar mais.

Meto a carta no bolso da cintura, e ponho-me de pé, como se me apresentasse para o meu dever. Já não sou nenhuma criança. Não vou chorar pela minha mãe. Vejo que não estou nas graças especiais de Deus, uma vez que deixou Artur morrer. Vejo que não estou nas graças especiais da minha mãe, visto que me deixou sozinha, numa terra estranha.

Não é apenas mãe, é a rainha de Espanha, e tem de se certificar de que tem um neto, ou, se não tiver um neto, quer um tratado perfeito. Não sou apenas uma jovem que perdeu o homem que ama. Sou a princesa de Espanha e tenho de gerar um neto, ou, se não for possível, um tratado perfeito. E estou vinculada por uma promessa. Prometi que voltaria a ser princesa de Gales, e rainha de Inglaterra. Prometi-o ao jovem a quem prometi tudo. Cumpri-la-ei por ele, e não por vontade alheia.

O embaixador espanhol não entrou logo em contacto com Suas Majestades de Espanha. Fazendo o seu habitual jogo duplo, transmitiu a opinião do capelão ao rei de Inglaterra.

– O confessor afirma que espera uma criança – alegou.

Pela primeira vez em muitos dias, o rei Henrique sentiu o coração tornar-se mais leve.

– Óptimo. Meu Deus, se fosse verdade, mudava tudo.

– Deus permita que assim seja. Eu congratular-me-ia – concordou de Puebla. – Mas não posso garanti-lo. Não mostra sinais nesse sentido.

– Pode ser cedo – concordou Henrique. – E sabe Deus, e eu sei que uma criança no berço não equivale a ter um príncipe no trono. Há um longo caminho até chegar à coroa. Mas seria um grande conforto, se esperasse uma criança, assim como para a rainha – acrescentou como uma reflexão.

– Então, terá de ficar em Inglaterra até termos a certeza – concluiu o embaixador. – E se não estiver grávida, acertaremos as contas, vós e eu, e ela regressará a casa. A mãe pede que regresse, assim que possível.

– Esperemos para ver – disse Henrique, não admitindo nada. – A mãe terá de esperar, como nós. E se estiver ansiosa para ter a filha, é melhor que pague o resto do dote.

– Não atrasaríeis a devolução da princesa à mãe por uma questão de dinheiro – sugeriu o embaixador.

– Quanto mais depressa tudo se resolver, melhor – afirmou Henrique. – Se esperar uma criança, então, é nossa filha e a mãe do nosso herdeiro; nada seria demasiado bom para ela. Se não se verificar, pode voltar a casa, para junto da mãe, assim que o dote esteja pago.

Eu sei que não há nenhuma Maria a desenvolver-se no meu útero, não há nenhum Artur; mas não direi nada até saber o que fazer. Atrevo-me a não dizer nada, até ter a certeza do que devo fazer. A minha mãe e o meu pai estarão a fazer planos do que será melhor para Espanha, o rei Henrique a planear o melhor para Inglaterra. Sozinha, terei de encontrar uma forma de cumprir a minha promessa. Ninguém me ajudará. Ninguém pode saber o que estou a fazer. Só Artur, no céu, compreenderá o que faço e sinto-me longe, muito longe dele. É tão doloroso, é uma dor que não conseguia imaginar. Nunca precisei tanto dele como agora, agora que está morto, e só ele me pode aconselhar como cumprir a promessa que lhe fiz.

Catarina passara menos de um mês em reclusão no Palácio de Croydon quando o capelão do rei veio dizer-lhe que a Casa de Durham, na Strand, fora preparada e que podia mudar-se quando quisesse.

– É aí a residência habitual de uma princesa de Gales? – perguntou Catarina a de Puebla, que fora chamado de imediato aos seus aposentos privados. – Seria na Casa de Durham que uma princesa moraria? Por que não posso voltar a viver no Castelo de Baynard?

– A Casa de Durham é adequada – insistiu ele, retraindo-se pelo seu fervor. – E o vosso séquito não foi reduzido. O rei não mandou despedir ninguém. Tereis uma corte adequada. E vai pagar-vos uma mesada.

– As minhas arras, como viúva do príncipe?

Ele evitou o olhar dela.

– Por enquanto, será uma mesada. Não vos esqueçais de que ainda não recebeu o vosso dote, por isso, não vai pagar-vos as vossas arras. Mas vai dar-vos uma boa quantia, que vai permitir-vos manter a vossa condição.

– Eu devia receber as minhas arras.

Ele abanou a cabeça.

– O rei não vos pagará as arras até receber o dote completo. Mas é uma boa mesada, mantereis um bom nível de vida.

Percebeu que estava muitíssimo aliviada.

– Princesa, não há dúvida de que o rei respeita a vossa posição – indicou. – Não deveis ter receios em relação a esse aspecto. Claro, se tivesse certezas do vosso estado de saúde...

Mais uma vez, a expressão fechada desceu sobre o rosto de Catarina.

– Não sei a que vos referis – disse com secura. – Eu estou bem. Podeis dizer-lhe que estou bem. Nada mais.

Estou a ganhar tempo, deixando-os pensar que espero uma criança. É uma agonia tão grande, saber que o meu período chegou e partiu, que estou pronta para a semente de Artur, mas ele está frio e partiu e não voltará à minha cama, e nunca faremos a sua filha, Maria, nem o filho, Artur.

Não suporto dizer-lhes a verdade; não fui fecundada, não tenho um bebé para educar por ele. E enquanto não digo nada, eles também têm de esperar. Não me vão enviar para Espanha, enquanto albergarem esperanças de que ainda possa ser Sua Alteza, a Mãe do príncipe de Gales. Têm de esperar.

E, enquanto esperam, planeio o que direi e o que farei. Tenho de ser esperta, como a minha mãe seria, e matreira, como a raposa, o meu pai. Ser determinada como ela, e dissimulada como ele. Pensar como e quando começarei a contar esta mentira, a grande mentira do príncipe Artur. Se conseguir contá-la de forma a convencer todos, se conseguir colocar-me numa posição em que possa cumprir o meu destino, então Artur, querido Artur, pode fazer como desejava. Pode governar a Inglaterra através de mim, posso casar com o irmão e tornar-me rainha. Artur viverá através do filho que conceber com o irmão, podemos construir a Inglaterra que ele jurou que construiríamos, apesar do infortúnio, apesar da loucura do irmão, apesar do meu desespero.

Não vou entregar-me ao desgosto, entregar-me-ei a Inglaterra. Cumprirei a minha promessa. Serei fiel ao meu marido e ao meu destino. Planearei, conspirarei e analisarei como dominarei esta infelicidade e ser o que nasci para ser. Como serei a pretendente ao trono que se torna rainha.

Londres, Junho de 1502

 

A pequena corte mudou-se para a Casa de Durham nos fins de Junho e o resto do séquito de Catarina chegou aos poucos, do Castelo de Ludlow, falando de uma cidade em silêncio e de um castelo em luto. Catarina não parecia entusiasmada com a mudança de cenário, apesar de a Casa de Durham ser um palácio bonito, com jardins agradáveis, que se estendiam até ao rio, com as escadas e um molhe para os barcos. O embaixador visitou-a e encontrou-a na galeria em frente de casa, que dava para o pátio de entrada e, em baixo, a Ivy Lane.

Deixou-o apresentar-se.

– Vossa Graça, a rainha vossa mãe enviará um emissário para vos escoltar a casa, assim que as vossas arras de viúva sejam pagas. Uma vez que não nos haveis dito que esperais uma criança, está a tratar dos preparativos para a vossa viagem.

De Puebla viu os lábios cerrados, como se refreassem uma resposta apressada.

– Quanto o rei tem de me pagar, como viúva do filho?

– Tem de pagar-vos um terço das receitas de Gales, da Cornualha e de Chester – informou. – E os vossos pais solicitam que, além disso, o rei Henrique devolva a totalidade do vosso dote.

Catarina pareceu consternada.

– Ele nunca o fará – replicou com frieza. – Nenhum emissário será capaz de o convencer. O rei Henrique nunca pagará um valor desses por mim. Nem me pagava a mesada quando o filho era vivo. Por que haverá de me devolver o dote e pagar-me as minhas arras, se não ganha nada com isso?

O embaixador encolheu os ombros.

– Está no contrato.

– Assim como a minha mesada, e não conseguistes obrigá-lo a pagar-ma – retorquiu cortante.

– Devíeis ter entregado a vossa baixela, assim que chegastes.

– E comia com quê? – perguntou irritada.

De modo insolente, manteve-se de pé perante ela. Ele sabia, o que ela ainda não compreendera, que não tinha poder. A cada dia que passava sem que anunciasse que esperava um filho, a sua importância diminuía. Ele tinha a certeza de que não estava grávida. Considerava-a uma louca; conseguira ganhar tempo graças à sua discrição, mas para quê? O facto de não gostar dele tinha muito pouca importância; em breve teria desaparecido. Podia ficar enfurecida, mas nada mudaria.

– Por que concordastes com um contrato destes? Devíeis saber que ele não o honraria.

Encolheu os ombros. A conversa não fazia sentido.

– Como poderíamos imaginar que algo de tão trágico aconteceria? Quem imaginaria que o príncipe morreria, mal entrasse na idade adulta? É tão triste.

– Sim, sim – retorquiu Catarina. Prometera a si mesma que não choraria por Artur em frente de ninguém. As lágrimas precisavam de ser controladas. – Mas, graças a este contrato, o rei está endividado para comigo. Tem de devolver o dote que lhe foi pago, não pode ficar com a minha baixela, e deve-me as minhas arras. Embaixador, sabeis que nunca pagará tudo isso. E é evidente que jamais me entregará as rendas de... onde?, Gales e, e Cornualha? Nunca.

– Só até voltardes a casar – observou ele. – Tem de pagar-vos as vossas arras até voltardes a casar. E temos de pressupor que voltareis a casar em breve. Suas Majestades quererão que regresseis a casa, para vos arranjar um novo casamento. Estou convencido de que o emissário vem buscar-vos, por esse motivo. Já devem ter um novo contrato de casamento elaborado. Talvez já estejais prometida.

Por um momento, de Puebla viu o choque no seu rosto, depois, voltou-lhe as costas para olhar pela janela, para o pátio à frente do palácio e os portões abertos para as movimentadas ruas no exterior.

Observou os ombros contraídos e a tensa curva do pescoço, surpreendido por a sua alusão a um segundo casamento a atingir tão violentamente. Por que ficaria tão chocada com a menção do casamento? Com certeza, saberia que só voltaria a casa para se casar de novo.

Catarina permitiu que o silêncio se prolongasse enquanto observava a rua para lá do portão da Casa de Durham. Era tão diferente da sua casa. Não havia homens morenos com belas túnicas, não havia mulheres com véus. Não havia vendedores de rua com ricas pilhas de especiarias, nem vendedores de flores, a cambalear sob pequenas montanhas de flores. Não existiam ervanários, físicos ou astrónomos, dedicando-se ao seu ofício, como se o conhecimento estivesse disponível, de graça, para todos. Não havia movimentações silenciosas para a mesquita para as orações, cinco vezes por dia, não se ouvia o ruído constante das fontes. Mas havia a azáfama de uma das maiores cidades do mundo, o implacável, imparável burburinho da prosperidade e do comércio, e o repicar dos sinos de centenas de igrejas. Esta era uma cidade a rebentar de confiança, rica no seu comércio, exuberantemente rica.

– Agora, esta é a minha terra – concluiu. Pusera de parte as imagens no pensamento de uma cidade mais quente, de uma comunidade mais pequena, de um mundo mais tranquilo e mais exótico. – O rei não deve pensar que voltarei para casa e casar, como se nada disto tivesse acontecido. Os meus pais não devem pensar que mudam o meu destino. Fui educada para ser a princesa de Gales e rainha de Inglaterra. Não serei afastada como uma dívida não saldada.

O embaixador, que pertencia a uma raça que conhecera o desapontamento, bastante mais velho e sábio do que a rapariga que estava, de pé, junto da janela, sorriu nas suas costas.

– Claro que tudo será como desejais – mentiu com facilidade. – Escreverei ao vosso pai e à vossa mãe e dir-lhes-ei que preferis aguardar, em Inglaterra, enquanto o vosso futuro se decide.

Catarina contra-atacou.

– Não, eu decidirei o meu futuro.

Teve de se refrear para esconder o sorriso.

– Claro que decidireis, infanta.

– Princesa viúva.

– Princesa viúva.

Ela respirou fundo; mas quando a voz saiu era firme.

– Podeis comunicar ao meu pai e à minha mãe, e direis ao rei, que não espero nenhuma criança.

– Com certeza – suspirou. – Obrigado por nos informar. Isso torna tudo muito mais claro.

– De que forma?

– O rei libertar-vos-á. Podeis voltar a casa. Não terá qualquer reivindicação a fazer a vosso respeito, nenhum interesse em vós. Não há motivo para ficardes. Tratarei dos preparativos, mas as vossas arras podem ir depois de vós. Podeis partir de imediato.

– Não – respondeu ela com frieza.

De Puebla ficou surpreendido.

– Princesa viúva, podeis ser libertada deste fracasso. Voltar para casa. Sois livre para partir.

– Quereis dizer que os ingleses pensam que já não sirvo para nada?

Ele encolheu os ombros, como se perguntando: Para que serviria, visto já não ser donzela, nem mãe?

– Que mais podereis fazer? O vosso tempo aqui acabou.

Ainda não estava preparada para lhe apresentar o plano completo.

– Escreverei à minha mãe – foi tudo o que respondeu. – Mas não deveis tratar de quaisquer preparativos para a minha partida. Pode muito bem acontecer que fique em Inglaterra mais tempo. Se tenho de voltar a casar, posso fazê-lo em Inglaterra.

– Com quem? – perguntou.

Ela desviou o olhar.

– Como posso saber? Devem ser os meus pais e o rei a decidir.

Tenho de descobrir uma forma de colocar o meu casamento com Henrique na cabeça do rei. Agora que sabe que não espero um filho, vai ocorrer-lhe que a solução dos nossos problemas será casar-me com Henrique?

Se confiasse mais no doutor de Puebla, pedir-lhe-ia para sugerir ao rei que podia ser prometida a Henrique. Mas não confio nele. Fez uma grande confusão com o contrato do meu primeiro casamento, não quero que faça o mesmo com o outro.

Se conseguisse enviar uma carta à minha mãe, sem que de Puebla a visse, contar-lhe-ia o meu plano, o plano de Artur.

Mas não posso. Estou sozinha. Sinto-me tão temerosamente sozinha.

– Vão nomear Henrique como o novo príncipe de Gales – informou doña Elvira a princesa, enquanto lhe escovava o cabelo, na última semana de Junho. – Vai ser o príncipe Henrique, príncipe de Gales.

Esperava que a rapariga desatasse a chorar com este último corte das ligações ao passado, mas Catarina não fez nada senão olhar em volta do quarto.

– Deixai-nos – disse com secura para as criadas que preparavam a camisa de dormir e abriam a cama.

Saíram, fechando a porta. Catarina atirou o cabelo para trás e fixou os olhos de doña Elvira no espelho. Devolveu-lhe a escova e fez-lhe um gesto com a cabeça, para que continuasse.

– Quero que escrevais aos meus pais e lhes conteis que o meu casamento com o príncipe Artur não foi consumado – anunciou, com suavidade. – Sou virgem, tal como era quando saí de Espanha.

Doña Elvira ficou espantada, suspendendo a escova no ar, de boca aberta.

– Vós dormistes juntos diante da corte – disse ela.

– Ele era impotente – afirmou Catarina, com uma expressão tão dura como um diamante.

– Estivestes juntos uma vez por semana.

– Sem qualquer efeito – retorquiu, sem vacilar. – Era uma grande tristeza para ele, e para mim.

– Infanta, nunca dissestes nada. Por que não me haveis contado?

Os olhos de Catarina encheram-se de lágrimas.

– O que podia dizer? Tínhamos acabado de nos casar. Ele era muito jovem. Pensei que tudo se comporia com o tempo.

Doña Elvira nem fingiu acreditar.

– Princesa, não necessitais de dizer uma coisa dessas. Só porque fostes esposa, não precisais de estragar o vosso futuro. Ser viúva não é obstáculo para um bom casamento. Encontrarão alguém para vós. Encontrarão um bom companheiro para vós, não tendes de fingir...

– Não quero «alguém» – respondeu Catarina ferozmente. – Deveis sabê-lo tão bem como eu. Eu nasci para ser princesa de Gales e rainha de Inglaterra. O maior desejo de Artur era que fosse rainha de Inglaterra. – Impediu-se de pensar nele, ou de acrescentar algo mais. Mordeu o lábio; não devia ter tentado dizer o seu nome. Retraiu as lágrimas e respirou fundo. – Sou uma virgem intocada, agora, tal como era em Espanha. Deveis dizer-lhes isso.

– Mas não precisamos de dizer nada, podemos voltar para Espanha – relembrou-lhe a mulher mais velha.

– Vão casar-me com um lorde qualquer, talvez um arquiduque – disse Catarina. – Não quero que me mandem embora. Quereis administrar o meu séquito num pequeno castelo espanhol? Ou na Áustria? Ou num sítio pior? Tereis de vir comigo, não vos esqueçais. Quereis acabar na Holanda, ou na Alemanha?

Os olhos de doña Elvira afastaram-se, pensava furiosa.

– Ninguém acreditaria em nós, se dissésseis que sois virgem.

– Acreditariam, sim. Tendes de lhes dizer. Ninguém se atreveria a perguntar-mo. Podeis dizer-lhes. Tendes de ser vós a contar-lhes. Acreditarão em vós, porque me sois próxima, como uma mãe.

– Eu não disse nada até agora.

– E procedestes bem. Mas direis agora. Doña Elvira, se fingirdes não saber, ou se disserdes uma coisa e eu outra, saberão que não sois da minha confiança, que não cuidastes de mim como deveríeis. Pensarão que sois negligente com os meus interesses, que perdestes o meu apoio. Penso que a minha mãe vos desacreditaria se pensasse que era virgem e que vós nem soubésseis. Nunca voltaríeis a prestar serviços numa corte real, se pensassem que me havíeis negligenciado.

– Todos perceberam que estava apaixonado por vós.

– Não, não perceberam. Viram que estávamos juntos, como príncipe e princesa. Observavam que vinha ao meu quarto, como lhe fora ordenado. Não passou disso. Ninguém sabe o que se passou além da porta do quarto. Ninguém, além de mim. E afirmo que era impotente. Quem sois vós para o negar? Atreveis-vos a chamar-me mentirosa?

A mulher mais velha inclinou a cabeça para ganhar tempo.

– Se o afirmais – falou com cuidado. – O que quer que digais, infanta.

– Princesa.

– Princesa – repetiu a mulher.

– E afirmo-o. É o caminho que tenho diante de mim. É o vosso também. Fazemos esta afirmação e permanecemos em Inglaterra; ou regressamos a Espanha, de luto, e tornamo-nos insignificantes.

– Claro, posso dizer-lhes o que quiserdes. Se desejais anunciar que o vosso marido era impotente e que sois uma donzela, posso dizê-lo. Mas como fará de vós rainha?

– Uma vez que o casamento não foi consumado, não haverá objecção ao facto de casar com o irmão do príncipe Artur, o príncipe Henrique – afirmou Catarina num tom duro e determinado.

Doña Elvira soltou um suspiro, chocada ao ouvir a fase seguinte.

Catarina prosseguiu.

– Quando este novo emissário chegar de Espanha, podeis informá-lo de que é a vontade de Deus, e meu desejo, que volte a ser princesa de Gales, como sempre fui. Deverá falar com o rei. Negociará, não as minhas arras de viúva, mas o meu casamento.

Doña Elvira estava boquiaberta.

– Não podeis decidir o vosso casamento.

– Posso – replicou Catarina agressiva. – Vou fazê-lo e vós ireis ajudar-me.

– Não podeis pensar que permitirão que o príncipe Henrique se case convosco?

– Por que não permitiriam? O casamento com o irmão não foi consumado. Sou virgem. Metade do dote foi pago. Ficará com a metade que recebeu e entregamos-lhe o resto. Não precisa de pagar as minhas arras. O contrato foi assinado e selado, só têm de mudar os nomes, e aqui estou eu, em Inglaterra. É a melhor solução. Sem ela, torno-me insignificante; vós sois insignificante. A vossa ambição, a do vosso marido, tudo terminará. Mas se conseguirmos convencê-lo, vós sereis a ama de uma casa real e eu serei o que devo ser: princesa de Gales e rainha de Inglaterra.

– Não nos deixarão! – suspirou doña Elvira, aterrada pela ambição da protegida.

– Vão deixar-nos – afirmou Catarina ferozmente. – Temos de lutar por isso. Temos de ser o que deveríamos ser, nada menos.


Princesa à Espera


Inverno de 1503

O rei Henrique e a rainha, motivados pela perda do filho, esperavam outra criança, e Catarina, esperando receber o seu apoio, costurava um requintado enxoval de recém-nascido, à frente de uma pequena lareira, na sala mais pequena do Palácio de Durham, nos primeiros dias de Fevereiro de 1503. As aias, fazendo as bainhas conforme as habilidades, sentadas a alguma distância; doña Elvira podia falar com privacidade.

– Este devia ser o enxoval do vosso bebé – afirmou a ama, ressentida. – Viúva há um ano e ainda não há progressos. Que vai ser de vós?

Catarina ergueu o olhar do trabalho delicado, com fio preto.

– Calma, doña Elvira – disse. – Será como Deus e os meus pais decidirem.

– Já tendes dezassete anos – vincou doña Elvira, insistindo no mesmo assunto, de cabeça baixa. – Quanto tempo ficaremos neste maldito país, sem serdes noiva nem esposa? Sem ser ninguém na corte, nem em parte nenhuma? Com contas a acumularem-se e as arras por pagar?

– Doña Elvira, se soubésseis o quanto as vossas palavras me magoam, não me parece que as dissésseis – advertiu Catarina. – Só porque as murmurais para a vossa costura, como um egípcio a rogar pragas, não significa que não as ouça. Se soubesse o que irá acontecer, seria eu a dizer-vos. Não ficareis a saber mais, só por murmurar os vossos receios.

A mulher levantou a cabeça e fixou os olhos nos de Catarina.

– É em vós que penso – respondeu com frieza. – Mesmo que mais ninguém o faça. Mesmo que aquele ridículo embaixador e o idiota do emissário não o façam. Se o rei não ordenar que caseis com o príncipe, o que vai ser de vós? Se não vos deixar partir, se os vossos pais não insistirem no vosso regresso, o que acontecerá? Vai manter-vos aqui para sempre? Sois uma princesa ou uma prisioneira? Já passou quase um ano. Sois refém, em nome da aliança com Espanha? Quanto tempo podeis esperar? Tendes dezassete anos, quanto tempo mais podeis esperar?

– Estou à espera – retorquiu Catarina com tranquilidade. – Pacientemente. Até estar tudo resolvido.

A ama não disse mais nada, Catarina não tinha energia para discutir. Sabia que, durante aquele ano de luto por Artur, fora empurrada para as margens da vida da corte. A sua alegação de ser virgem não dera lugar a um novo compromisso, como pensara; tornara-a ainda mais irrelevante. Só era convocada para comparecer na corte em grandes ocasiões, e estava dependente da simpatia da rainha Isabel.

A mãe do rei, lady Margarida, não tinha interesse na empobrecida princesa espanhola. Não provara ser fértil, agora dizia que nunca tivera relações sexuais, era viúva e não trouxera dinheiro para o tesouro real. Não tinha qualquer utilidade para a Casa Tudor, excepto como uma base de licitação, na eterna luta com Espanha. Podia ficar na sua casa na Strand, em vez de ser chamada para a corte. Além disso, Sua Alteza, a Mãe do Rei, não gostava da forma como o novo príncipe de Gales olhava para a cunhada viúva.

Sempre que o príncipe Henrique a encontrava, cravava os olhos nela, com a devoção de um cachorrinho. Sua Alteza, a Mãe do Rei, decidira em privado que os manteria afastados. Considerava que o sorriso da princesa para o jovem príncipe era demasiado caloroso, que incentivava a sua adoração juvenil para alimentar a sua vaidade. Sua Alteza, a Mãe do Rei, ressentia-se da influência de qualquer pessoa sobre o único filho e herdeiro sobrevivente. Por outro lado, não confiava em Catarina. Por que a jovem viúva daria atenção a um cunhado que era quase seis anos mais novo? O que esperava obter desta amizade? Com certeza sabia que era mantido vigiado como uma criança: dormia no quarto do pai, tinha companhia dia e noite, e estava sempre sob supervisão? O que esperava a viúva espanhola conseguir, enviando-lhe livros, ensinando-lhe espanhol, rindo da sua pronúncia e observando-o a montar na quintana, como se treinasse para ser o seu cavaleiro andante?

Não ganharia nada. Não podia ganhar nada. Mas Sua Alteza, a Mãe do Rei, não permitira que ninguém se tornasse íntimo de Henrique, além de si mesma, e ordenou que as visitas de Catarina à corte fossem raras e breves.

O rei era simpático para Catarina quando a via, mas sentia-o olhá-la como se fosse uma espécie de tesouro que tivesse roubado. Com ele, sentia-se como uma espécie de troféu, não uma mulher jovem de dezassete anos, dependente da sua honra, filha por casamento.

Se conseguisse falar de Artur com a sogra ou com o rei, talvez a procurassem para partilhar a sua dor. Mas não podia servir-se do nome do marido para obter o seu apoio. Mesmo passado um ano da sua morte, não conseguia pensar nele sem sentir um aperto no peito, tão grande que pensava que não ia conseguir respirar, de tanto sofrimento. Continuava a não pronunciar o seu nome em voz alta. E não podia contar com a sua dor para obter os favores da corte.

– Mas, o que vai acontecer? – continuou doña Elvira.

Catarina voltou a cabeça para o outro lado.

– Não sei – respondeu secamente.

– Talvez, se a rainha tiver outro filho, com este bebé, pode ser que o rei nos mande regressar a Espanha – constatou a ama.

Catarina acenou.

– Talvez.

A ama conhecia-a bem, para detectar a determinação silenciosa de Catarina.

– O vosso problema é que continuais a não querer partir – sussurrou. – O rei pode manter-vos como refém com o pretexto do dote, os vossos pais deixar-vos ficar; mas se insistísseis, voltaríeis para casa. Pensais que conseguireis convencê-los a casar-vos com Henrique; mas se tivesse de acontecer, já estaríeis prometida. Tendes de desistir. Já estamos aqui há um ano e não fizestes progressos. Ireis manter-nos aqui encurraladas, ao serdes derrotada.

As pestanas cor de areia de Catarina fecharam-se para lhe tapar os olhos.

– Oh, não – disse. – Não me parece.

Ouviu-se bater à porta.

– Mensagem urgente para a princesa viúva de Gales! – gritou a voz.

Catarina deixou cair as peças que costurava e levantou-se. As aias também se puseram de pé. Era tão invulgar acontecer alguma coisa na tranquila corte da Casa de Durham, que ficaram muito agitadas.

– Bem, deixai-o entrar! – exclamou Catarina.

María de Salinas abriu a porta e um dos criados reais entrou e ajoelhou-se diante da princesa.

– Más notícias – disse. – A rainha teve um filho, um príncipe, que faleceu. Sua Graça, a rainha, também morreu. Deus reze por Sua Graça, o rei, no seu sofrimento real.

– O quê? – perguntou doña Elvira, tentando absorver a sequência voraz dos acontecimentos.

– Deus proteja a sua alma – respondeu Catarina. – Deus salve o rei.

Pai Nosso, levai a Vossa filha Isabel para junto de Vós. Tendes de a amar, era uma mulher de grande gentileza e graça.

Sento-me nos calcanhares e acabo a minha prece. Penso que a vida da rainha, que terminou de um modo tão trágico, foi triste. Se a versão de Artur do escândalo for verdade, então, fora preparada para casar com o rei Ricardo, por muito desprezível e tirano que fosse. Quisera casar-se com ele e ser sua rainha. A mãe e Sua Alteza, a Mãe do Rei, e a vitória de Bosworth haviam-na forçado a aceitar o rei Henrique. Nascera para ser rainha de Inglaterra, e casara com o homem que podia dar-lhe o trono.

Pensei que, se fosse capaz de lhe contar a promessa que fizera, saberia a dor que me corta como gelo, sempre que penso em Artur, e que lhe prometi que casaria com Henrique. Penso que compreenderia que, quando nascemos para ser rainha de Inglaterra, temos de ser rainha de Inglaterra, seja quem for o rei. Quem quer que tenha de ser o nosso marido.

Sem a sua presença tranquila na corte, sinto que me encontro em perigo, mais longe do meu objectivo. Era atenciosa comigo, era uma mulher amorosa. Eu esperava que passasse o meu ano de luto e acreditava que me ajudaria a casar com Henrique, porque seria um refúgio para mim, e porque seria uma boa esposa. Estava confiante de que sabia que uma pessoa pode casar com um homem por quem sente indiferença e, mesmo assim, ser uma boa esposa.

Mas, agora, a corte será chefiada por Sua Alteza, a Mãe do Rei, e é uma mulher terrível, não é amiga de ninguém, à excepção da sua causa, sem afecto por ninguém, além do filho, Henrique, e do seu filho, o príncipe Henrique.

Não ajuda ninguém, mas defende os interesses da família em primeiro lugar. Considerar-me-á apenas mais uma candidata, entre muitas, à mão dele. Deus lhe perdoe, pode procurar-lhe uma noiva francesa e, então, terei falhado, não só com Artur, mas com a minha mãe e o meu pai, que precisam de mim, para manter a aliança entre Inglaterra e Espanha e a inimizade entre Inglaterra e França.

Este ano foi difícil, previra um ano de luto, seguido de um compromisso; cada vez me sinto mais ansiosa, uma vez que ninguém parece planear nada. E agora receio que vá piorar. E se o rei Henrique devolver a segunda parte do dote e me enviar para casa? E se prometerem Henrique, aquele miúdo disparatado, a outra pessoa? E se se esquecerem de mim? Se me mantiverem como refém, para garantir o bom comportamento de Espanha, e me negligenciarem? E se me deixarem na Casa de Durham, como uma princesa sombra numa corte sombra, enquanto o mundo real continua noutro lugar?

Detesto esta altura do ano em Inglaterra, o modo como o Inverno se arrasta interminavelmente, com nevoeiros frios e céus cinzentos. No Alhambra, a água dos canais descongelará e começará a fluir, gelada, correndo profunda, com água derretida das neves da sierra. A terra aquecerá nos jardins, os homens plantarão flores e árvores, o Sol será quente de manhã e as cortinas espessas retiradas das janelas, para que as brisas mornas corram pelo palácio.

Os pássaros do Verão voltarão às colinas e as oliveiras tremeluzirão com folhas em tons de verde e cinzento. Por todo o lado, os agricultores revolverão o solo vermelho, e sentir-se-á o odor da vida e do crescimento.

Tenho saudades de casa; mas não abandonarei o meu posto. Não sou um soldado que se esquece do seu dever, sou uma sentinela que fica de vigília toda a noite. Não desapontarei o meu amor. Eu disse «Prometo», e não o esqueço. Ser-lhe-ei fiel. O jardim que representa a vida imortal, al-Yanna, esperará por mim, a rosa esperará por mim em al-Yanna, Artur esperará por mim. Vou ser rainha de Inglaterra como nasci para ser, como lhe prometi que seria. A rosa florescerá em Inglaterra, assim como no céu.

Foi organizado um grande funeral de estado para a rainha Isabel, e Catarina estava de luto. Através da renda preta da mantilha, observava as ordens de precedência, as disposições para a cerimónia, via como tudo era disposto, segundo as orientações do enorme livro da mãe do rei. Até o seu lugar fora estipulado, atrás das princesas, mas à frente das outras damas da corte.

Lady Margarida, a mãe do rei, indicara os procedimentos a seguir na corte Tudor, desde o quarto do nascimento até à forma como o corpo seria exposto, para que o filho e as gerações, que ela rezava para que viessem a seguir a ele, estivessem preparados para as ocasiões, para que cada uma fosse semelhante à anterior, e para que todas as ocasiões, embora distantes no futuro, fossem comandadas por ela.

Assim, a primeira cerimónia fúnebre, pela nora de quem não gostava, correu com a ordem e a elegância de um bem planeado baile de máscaras na corte, e como grande organizadora da celebração, subiu, visível e inquestionavelmente, para o seu lugar, como a mais importante dama da corte.

2 de Abril de 1503

 

Fazia um ano que Artur morrera e Catarina passou o dia sozinha, na capela da Casa de Durham. O padre Geraldini rezou uma missa em memória do jovem príncipe, de madrugada, e Catarina ficou na igreja, sem quebrar o jejum, sem beber um pequeno copo de cerveja.

Durante algum tempo, esteve ajoelhada diante do altar, com os lábios a moverem-se em preces silenciosas, lutando contra a sua perda, contra uma dor que era tão aguda e tão real, como no dia em que ficara de pé, no limiar da porta do seu quarto, e soube que não era possível salvá-lo, que morreria, que viveria sem ele.

Por algumas das longas horas, andou em volta da capela vazia, parando para admirar as imagens de devoção nas paredes ou as gravuras sofisticadas das extremidades dos bancos e do anteparo do crucifixo. O seu horror era que começava a esquecê-lo. Havia manhãs em que acordava e tentava ver o seu rosto, e descobria que não era capaz de ver nada sob as pálpebras fechadas, ou pior, o que conseguia vislumbrar era uma imagem vaga, uma fraca semelhança: o simulacro e não o autêntico. Nessas manhãs, sentava-se, apertava os joelhos contra o estômago, e abraçava-se com força, para não ceder ao agonizante sentido de perda.

Depois, durante o dia, conversava com as damas de companhia, costurava ou passeava à beira-rio, e alguém lhe diria qualquer coisa, ou veria o sol a bater na água e, de repente, ele estaria ali, tão nítido como se estivesse vivo, a iluminar a tarde. Ficava parada, sem se mexer, por momentos, absorvendo-o em silêncio, e continuava a conversar, ou a passear, sabendo que nunca o esqueceria. Os seus olhos traziam a imagem dele nas pálpebras, o seu corpo possuía o toque dele na pele, ela era dele, até à morte: não – como acabou por acontecer – até à morte dele; mas até à dela. Só quando os dois partissem desta vida, terminaria o seu casamento neste mundo.

Mas naquele dia, no aniversário da sua morte, Catarina prometera a si mesma que ficaria sozinha, não se permitira a indulgência do luto, ou de se revoltar com Deus por o levar.

«Sabeis, nunca compreenderei qual era o Vosso objectivo», digo para a estátua de Cristo crucificado, pendurado pelas palmas das mãos, manchadas de sangue, por cima do altar. «Podeis dar-me um sinal? Não podeis mostrar-me o que devo fazer?»

Espero, mas Ele não diz nada. Tenho de me perguntar se o Deus que falava com tanta clareza com a minha mãe está adormecido ou se desapareceu. Por que lhe dava instruções a ela, e comigo fica em silêncio? Por que eu, educada como uma criança fervorosamente cristã, uma filha apaixonada da Igreja Católica Romana, não tenho a sensação de ser ouvida, enquanto rezo com a minha dor profunda? Por que Deus me abandonaria, quando preciso tanto Dele?

Volto para o banco bordado, diante do altar, mas não me ajoelho em posição de prece, volto-o ao contrário e sento-me, como se estivesse em casa, uma almofada puxada para perto de uma braseira quente, pronta para falar; preparada para ouvir. Mas, agora, ninguém fala comigo. Nem sequer o meu Deus.

«Sei que é Vossa vontade que eu seja rainha», digo pensativa, como se Ele pudesse responder, como se de repente contestasse num tom tão razoável como o meu. «Sei que é essa a vontade da minha mãe. Sei-o, meu querido» – interrompo o fim da frase. Mesmo agora, um ano depois, não corro o risco de pronunciar o nome de Artur, nem numa capela vazia, mesmo para Deus. Ainda receio um ataque de choro, entrar em histeria e loucura. Para além do meu controlo, está uma paixão por Artur; como o lago profundo de um moinho, por trás de uma comporta. Não me atrevo a deixar passar nem uma gota. Haveria uma inundação de dor, uma torrente.

«Sei que desejava que eu fosse rainha. No seu leito de morte, pediu-me que lhe fizesse uma promessa. Diante de Vós, fiz-lhe essa promessa. Em Vosso nome, fi-la. Foi sincera. Jurei que seria rainha. Mas como vou fazê-lo? Se é a Vossa vontade, assim como a dele, como acredito, então, Deus: ouvi-me. Fiquei sem estratégias. Tendes de ser vós. Tendes de me mostrar a forma de o fazer.»

Há um ano que faço este pedido a Deus, cada vez com mais urgência; enquanto as negociações intermináveis sobre a devolução do dote e o pagamento das minhas arras se arrastam. Sem uma palavra clara da minha mãe, penso que joga o mesmo jogo que eu. Sem dúvida, sei que o meu pai terá uma estratégia táctica, a longo prazo, em mente. Se pelo menos me dissessem o que devo fazer! No seu silêncio discreto, tenho de adivinhar que me deixam aqui, como isco para o rei. Deixam-me aqui até o rei ver, como eu, como Artur viu, que a melhor resolução para esta dificuldade seria casar-me com o príncipe Henrique.

O problema é que, a cada mês que passa, a estatura e importância de Henrique na corte aumenta: torna-se um pretendente cada vez mais atractivo. O rei francês far-lhe-á uma proposta, as centenas de principezinhos da Europa, com as filhas bonitas, farão ofertas, até o sacro-imperador romano tem uma filha solteira, Margarida, que podia ser apropriada. Temos de decidir este assunto, neste mês de Abril, quando termina o meu primeiro ano de viuvez. Agora que estou livre do meu ano de espera. Mas o equilíbrio do poder mudou. O rei Henrique não tem pressa, o herdeiro é jovem, um rapaz com onze anos. Mas eu tenho dezassete. Já devia estar casada. Já era altura de ser princesa de Gales.

Suas Majestades de Espanha pedem a Lua: a restituição total do investimento e a devolução da filha, as arras completas da viúva, a serem pagas por um período indefinido. O elevado preço disto foi pensado para convencer o rei de Inglaterra a encontrar outra forma. A paciência dos meus pais com a negociação permite que Inglaterra me mantenha, assim como ao dinheiro. Demonstram que não esperam a minha devolução, nem da do dinheiro. Esperam que o rei de Inglaterra perceba que não tem de me devolver, nem ao dinheiro.

Mas estão a subestimá-lo. O rei Henrique não precisa que lhe dêem sugestões. Deve ter percebido muito bem. Uma vez que não avança, deve estar a resistir aos pedidos. E por que não devia fazê-lo? É ele quem tem o poder. Tem metade do dote, e tem-me a mim.

E não é nenhum tolo. A calma do novo emissário, don Gutierre Gomez de Fuensalida, e a lentidão das negociações, alertou este rei astuto para o facto de a minha mãe e o meu pai estarem contentes por me deixarem nas suas mãos, em Inglaterra. Não é preciso ser-se Maquiavel para concluir que os meus pais esperam outro casamento inglês – tal como quando Isabel ficou viúva, e a enviaram para Portugal, para casar com o cunhado. Estas coisas acontecem. Mas só se todos estiverem de acordo. Em Inglaterra, onde o rei acabou de subir ao trono e é bastante ambicioso, pode ser necessária mais perícia do que aquela de que somos capazes, para fazer com que aconteça.

A minha mãe escreve-me para me informar que tem um plano, mas que demorará algum tempo a dar frutos. Entretanto, diz-me para ser paciente e nunca fazer nada que ofenda o rei ou a mãe.

«Sou a princesa de Gales», respondo-lhe. «Nasci para ser princesa de Gales e rainha de Inglaterra. Educastes-me com esses títulos. Não vou negar as minhas origens? Posso ser princesa de Gales e rainha de Inglaterra?»

«Sê paciente», escreve-me, num bilhete manchado pela viagem, que demora semanas a chegar e que foi aberto; qualquer pessoa pode tê-lo lido. «Concordo que o teu destino é ser rainha de Inglaterra. É o teu destino, a vontade de Deus, e o meu desejo. Sê paciente.»

«Quanto tempo terei de ser paciente?», pergunto a Deus, ajoelhada diante Dele na Sua capela, no aniversário da morte de Artur. «Se é a Vossa vontade, por que não o fazeis de uma vez? Se não é essa a Vossa vontade, por que não me destruístes com Artur? Se me estais a ouvir neste momento, por que me sinto tão sozinha?»

A uma hora tardia da noite foi anunciada uma visita rara na tranquila antecâmara da Casa de Durham.

– Lady Margarida Pole – anunciou o guarda à porta. Catarina pousou a Bíblia e voltou o rosto pálido para ver a amiga, hesitando timidamente à entrada.

– Lady Margarida!

– Princesa Viúva! – Fez uma reverência e Catarina atravessou a sala na sua direcção, ergueu-a e abraçou-a.

– Não choreis – disse-lhe lady Margarida baixinho ao ouvido. – Não choreis, ou juro que farei o mesmo.

– Não choro, não choro, prometo que não. – Catarina virou-se para as damas de companhia. – Deixai-nos – ordenou.

Saíram contrariadas, uma visita era uma novidade na casa calma, e as lareiras estavam apagadas nas outras salas. Lady Margarida olhou em volta da sala, em mau estado.

– O que é isto?

Catarina encolheu os ombros e tentou sorrir.

– Receio não ser boa gestora. E doña Elvira não ajuda. Para dizer a verdade, só tenho o dinheiro que o rei me dá. E não é muito.

– Era o que eu temia – replicou a mulher mais velha. Catarina puxou-a para perto da lareira e sentou-a na sua cadeira.

– Pensei que estáveis em Ludlow?

– Estávamos. Temos estado. Uma vez que nem o rei, nem o príncipe vão a Gales, tudo caiu em cima dos ombros do meu marido. Pensaríeis que voltei a ser princesa, se vísseis a minha pequena corte.

Catarina tentou sorrir.

– Sois importante?

– Bastante. E sobretudo falando galês. Sobretudo a cantar.

– Posso imaginar.

– Viemos para o funeral da rainha. Deus a abençoe, e depois desejei ficar um pouco mais, e o meu marido sugeriu que podia visitar-vos. Hoje pensei em vós, todo o dia.

– Estive na capela – explicou Catarina inconsequentemente. – Nem parece que já passou um ano.

– Não parece, pois não? – concordou lady Margarida, apesar de, em privado, pensar que a rapariga envelhecera muito mais do que um ano. A dor refinara a beleza de menina, tinha o aspecto claro e decidido de uma mulher que vira as esperanças destruídas. – Estais bem?

Catarina fez uma careta.

– Estou bem. E vós? E as crianças?

Lady Margarida sorriu.

– Graças a Deus, estamos. Mas sabeis quais são os planos do rei para vós? Ides...? – Hesitou. – Tendes de voltar para a Espanha? Ou ficais aqui?

Catarina aproximou-se dela.

– Estão a falar, sobre o meu dote, sobre o regresso. Mas não se faz nada. E não se decide nada. O rei está a segurar-me assim como o meu dote, e os meus pais permitem que o faça.

Lady Margarida parecia preocupada.

– Soube que consideraram a hipótese de vos prometer ao príncipe Henrique – disse. – Não sabia.

– É a escolha óbvia. Mas não parece óbvia para o rei – cortou Catarina com secura. – O que pensais? Pensais que é homem para ignorar a solução óbvia?

– Não – respondeu lady Margarida, cuja vida fora posta em risco pela consciência, do rei, de que o direito da sua família ao trono era um facto óbvio.

– Então, suponho que considerou esta escolha e espera para ver se é a melhor que pode fazer – afirmou Catarina. Suspirou. – Meu Deus, é um trabalho cansativo, esperar.

– Agora, o vosso luto terminou, não há dúvida de que tratará dos preparativos – comentou a amiga esperançosa.

– Sem dúvida – retorquiu Catarina.

Após ter passado várias semanas sozinho, de luto pela mulher, o rei voltou à corte no Palácio de Whitehall, e Catarina convidada para jantar com a família real e sentada ao lado da princesa Maria e das damas da corte. O jovem Henrique, príncipe de Gales, colocado em segurança, entre o pai e a avó. A viagem fria até ao Castelo de Ludlow e a formação rigorosa de um príncipe à espera, não eram para este príncipe. Lady Margarida decidira que este príncipe, o único herdeiro sobrevivente, seria educado sob o seu controlo, com à-vontade e conforto. Não seria mandado embora, seria permanentemente vigiado. Nem lhe era permitido participar em desportos violentos, torneios ou combates, apesar de ter vontade de participar, e de ser um rapaz que adorava a actividade e a emoção. A avó decidira que era demasiado precioso, para o colocar em risco.

Sorriu para Catarina e ela lançou-lhe um olhar que esperava ser caloroso. Mas não houve oportunidade para trocarem uma única palavra. Foi colocada mais ao fundo da mesa e mal o via, graças a Sua Alteza, a Mãe do Rei, que o mimava com os melhores pedaços do prato, e colocava o ombro largo entre ele e as damas.

Catarina pensou que era como Artur dissera, que o rapaz era estragado com atenções. A avó encostou-se alguns momentos, para falar com um dos indicadores de lugares, e Catarina viu o olhar de Henrique pousar sobre si. Sorriu e baixou os olhos. Quando ergueu o olhar, continuava a fixá-la e enrubesceu ao ser apanhado.

É uma criança, ofereceu-lhe um sorriso disfarçado, apesar de o criticar em silêncio. Uma criança de onze anos, um gabarolas e envergonhado. E por que foi este rapaz gorducho e mimado poupado quando Artur..., interrompeu o pensamento. Comparar Artur com o irmão era desejar a morte deste rapazinho, e não o faria. Pensar em Artur em público era correr o risco de começar a chorar, e nunca o faria.

Uma mulher pode mandar num rapaz como aquele, pensou. Uma mulher podia ser uma grande rainha, se fosse casada com um rapaz assim. Nos primeiros dez anos não saberia nada, e nessa altura, talvez já tivesse adquirido o hábito de obedecer, a ponto de permitir que a mulher desse as ordens. Ou podia ser, como Artur me disse, um preguiçoso. Um jovem desperdiçado. Ser tão preguiçoso que podia divertir-se com jogos e caça, desportos e entretenimentos, para que o reino fosse governado pela sua mulher.

Catarina nunca esqueceu que Artur lhe dissera que o rapaz fantasiava estar apaixonado por ela.

Se lhe dão tudo o que ele quer, talvez seja ele quem escolhe a noiva, cogitou. Têm o hábito de o mimar. Talvez suplique para casar comigo e sentir-se-ão obrigados a dizer que «sim»!

Viu-o corar mais, até as orelhas ficarem cor-de-rosa. Fixou os olhos nos dele, inspirou e abriu os lábios como se fosse sussurrar-lhe uma palavra. Viu os olhos azuis centrarem-se na sua boca e escurecer de desejo, e depois, calculando o efeito, ela baixou o olhar.

Que rapaz tão estúpido, concluiu.

O rei levantou-se da mesa e os homens e mulheres sentados nos bancos apinhados do salão também, e fizeram uma vénia com as cabeças.

– Agradeço-vos por me virem cumprimentar – afirmou o rei Henrique. – Camaradas em guerra e amigos em paz. Mas perdoai-me, porque desejo estar sozinho.

Acenou para Henrique, estendeu a mão à mãe, e a família real saiu pela pequena porta ao fundo do grande salão, dirigindo-se aos aposentos privados.

– Devíeis ter ficado mais tempo – observou a mãe do rei, enquanto se sentavam em cadeiras perto da lareira e o criado com o jarro lhes trazia vinho. – Parece mal, sair tão cedo. Havíeis dito ao mestre do cavalo que ficaríeis, e que iam cantar.

– Estava exausto – respondeu o rei Henrique. Olhou para onde Catarina e a princesa Margarida estavam sentadas. A mulher mais nova tinha os olhos vermelhos, a perda da mãe atingira-a bastante. Catarina era, como de costume, fria como aço. Pensou que possuía um grande poder de autocontrolo. Nem esta perda da única amiga na corte, a última amiga em Inglaterra, parecia perturbá-la.

– Ela pode voltar para a Casa de Durham amanhã – observou a mãe, seguindo a direcção do seu olhar. – Não lhe faz bem nenhum vir para a corte. Não conquistou o seu lugar através de um herdeiro, e não pagou a sua posição com o dote.

– Ela é determinada – disse ele. – É determinada nas suas atenções para convosco e para comigo.

– Determinada como uma praga – retorquiu a mãe.

– Sois muito dura com ela.

– O mundo é duro – respondeu. – Sou apenas justa. Porque não a mandamos para casa?

– Não a admirais mesmo?

Ela ficou surpreendida com a pergunta.

– O que há nela que seja digno de admiração?

– A coragem, a dignidade. É bonita, claro, mas também tem encanto. É educada, é graciosa. Penso que, noutras circunstâncias, podia ter sido feliz. E aguentou-se, sob esta desilusão, como uma rainha.

– Não tem utilidade para nós – cortou ela. – Era a nossa princesa de Gales; mas o nosso menino morreu. Agora, não nos serve de nada, por muito encantadora que pareça.

Catarina ergueu os olhos e viu-os observarem-na. Esboçou um sorriso controlado e inclinou a cabeça. Henrique levantou-se, foi sozinho à soleira da janela, e chamou-a com o dedo. Não foi a correr ter com ele, como qualquer uma das mulheres da corte faria. Olhou-o, ergueu uma sobrancelha, como se pensasse se devia ou não obedecer, e depois pôs-se de pé, graciosamente, e foi ao seu encontro.

Meu Deus, ela é desejável, pensou para si mesmo. Só tem dezassete anos. Sob o meu poder, e, no entanto, anda pela sala como se fosse a rainha de Inglaterra coroada.

– Atrevo-me a dizer que sentireis saudades da rainha – disse em francês quando chegou perto dele.

– Sim, vou sentir – respondeu. – Sofro por vós, pela perda da vossa esposa. Tenho a certeza de que o meu pai e a minha mãe queriam que vos transmitisse os seus sentimentos.

Ele acenou, sem desviar os olhos do seu rosto.

– Agora partilhamos uma dor – observou. – Perdestes o vosso companheiro na vida e eu a minha.

Notou os seus olhos a estreitarem-se.

– É verdade – replicou ela. – Partilhamos.

Ele perguntou-se se tentaria descobrir o que ele queria dizer. Se aquela mente rápida trabalhava por trás daquele rosto bonito e claro, não havia sinais disso.

– Tendes de me ensinar o segredo da vossa resignação – afirmou.

– Oh, não penso que me resigno.

Henrique estava intrigado.

– Não?

– Não. Creio que confio em Deus e no facto de Ele saber o que está certo para nós, e a Sua vontade cumprir-se-á.

– Mesmo quando os meios são ocultos, e nós, pecadores, temos de tropeçar no escuro?

– Sei qual é o meu destino – afirmou Catarina. – Ele foi gracioso ao ponto de mo revelar.

– Então, sois uma das muito poucas – retrucou ele, pensando fazer com que ela se risse de si mesma.

– Eu sei – respondeu, sem indícios de um sorriso. Percebeu que ela confiava na sua crença de que Deus lhe revelara o futuro. – Sou abençoada.

– E qual é esse grande destino que Deus tem para vós? – inquiriu ele sarcasticamente. Desejava que ela dissesse que devia ser rainha de Inglaterra, e podia pedir-lhe, ou aproximar-se, ou deixá-la perceber o que tinha em mente.

– Fazer a vontade de Deus, claro, e trazer o Seu Reino para a Terra – respondeu com inteligência, e evitando-o mais uma vez.

Falo com muita confiança na vontade de Deus, e relembro ao rei que fui educada para ser a princesa de Gales, mas Deus está silencioso para comigo. Desde o dia da morte de Artur, não tenho uma convicção autêntica de ser abençoada. Como posso dizer que sou abençoada, se perdi a única coisa que completava a minha vida? Como posso ser abençoada, se penso que não voltarei a ser feliz? Mas vivemos num mundo de crentes, preciso de reforçar que me encontro sob a protecção especial de Deus, necessito de transmitir a ideia de que estou segura do meu destino. Sou filha de Isabel de Espanha. A minha herança é a certeza.

Mas, na realidade, estou cada vez mais só. Sinto-me cada vez mais solitária. Não há nada entre mim e o desespero, excepto a minha promessa a Artur, e a linha ténue, como um fio de ouro num tapete, da minha determinação.

Maio de 1503

 

O rei Henrique não se aproximou de Catarina durante um mês, em nome da decência, mas, quando se livrou do casaco negro, fez-lhe uma visita formal na Casa de Durham. O séquito fora avisado de que viria, e envergavam as melhores roupas. Ele viu os sinais do desgaste nas cortinas, tapetes e decorações, e sorriu para dentro. Se ela tivesse o bom senso que considerava que tinha, ficaria satisfeita por encontrar uma resolução para a situação desconfortável. Felicitou-se por não lhe ter facilitado a vida no ano que decorrera. A esta altura, já devia perceber que estava sob o seu poder, e os pais nada podiam fazer para a libertar.

O arauto abriu as portas duplas da antecâmara e gritou:

– Sua Graça, o rei Henrique de Inglaterra...

Henrique fez-lhe um gesto para que omitisse os restantes títulos e entrou, dirigindo-se à nora.

Trazia um vestido escuro com cordões azuis nas mangas, um peitilho ricamente bordado e um toucado azul-escuro. O conjunto salientava o tom âmbar do cabelo e o azul dos olhos, e ele sorriu de prazer ao vê-la, enquanto se inclinava numa reverência formal e se levantava.

– Vossa Graça – cumprimentou, agradável. – Isto é de facto uma honra.

Ele teve de se forçar a não olhar para a linha creme do seu pescoço, para o rosto suave e liso que olhava para ele. Vivera toda a vida com uma mulher bonita da sua idade; agora estava uma rapariga com idade para ser sua filha, que mantinha o odor rico do apogeu da juventude, e seios cheios e firmes. Estava pronta para o casamento, estava mais do que pronta. Aquela era uma rapariga que devia ter companhia na cama. Voltou a controlar-se e concluiu que era em parte devasso e em parte amante, para olhar para a noiva do malogrado filho com tanto desejo.

– Posso oferecer-vos um refresco? – ofereceu. Havia um sorriso ao fundo dos seus olhos.

Ele pensou que se fosse uma mulher mais velha, mais sofisticada, assumiria que o provocava, de uma forma tão conhecedora como um pescador que apanha um salmão.

– Obrigado. Aceito um copo de vinho.

E foi dessa forma que o apanhou.

– Receio não ter nada adequado para vos oferecer – replicou. – Já não tenho nada na cave, e não tenho dinheiro para comprar vinhos bons.

Henrique não revelou sinal de que percebera que ela lhe preparara uma armadilha, para lhe falar das dificuldades financeiras.

– Lamento, vou ordenar que vos enviem alguns barris – afirmou. – A vossa governanta deve ser muito descuidada.

– É muito rigorosa – respondeu ela. – Aceitais uma caneca de cerveja? Fazemos a nossa cerveja e fica muito barato.

– Obrigado – respondeu ele, mordendo o lábio para esconder um sorriso. Não imaginara que tinha tanta autoconfiança. O ano de luto avivara-lhe a coragem, pensou. Sozinha numa terra estranha, não se fora abaixo como aconteceria com outras raparigas, reunira forças e tornara-se mais forte.

– Sua Alteza, a Mãe do Rei, encontra-se de boa saúde e a princesa Maria está bem? – perguntou, com tanta confiança como se o recebesse no salão dourado do Alhambra.

– Sim, graças a Deus – replicou ele. – E vós?

Ela sorriu e inclinou a cabeça.

– E nem é preciso perguntar como vai a vossa saúde – comentou. – Estais sempre igual.

– Ai sim?

– Desde a primeira vez que nos vimos – continuou. – Quando acabara de chegar a Inglaterra e vós cavalgastes ao meu encontro, no meu percurso para Londres. – Era difícil para Catarina não pensar em como estava Artur, naquela noite, aterrorizado pela rudeza do pai, a tentar falar com ela num tom submisso, olhando-a às escondidas.

Com determinação afastou o jovem amante da mente e sorriu para o pai, dizendo:

– Fiquei tão surpreendida com a vossa visita, e tão assustada convosco.

Ele riu-se. Percebeu que ela invocara a imagem de quando a vira pela primeira vez, uma virgem ao lado do leito, com uma camisa branca e uma capa azul, o cabelo apanhado numa trança que lhe caía pelas costas, e de como pensara na altura que lhe aparecera como um violador, que forçara a entrada no seu quarto de dormir e que também a podia ter forçado.

Voltou-se e puxou uma cadeira, para esconder os pensamentos, indicando-lhe por gestos que devia sentar-se. A ama, a mesma mula espanhola, de expressão azeda, reparou irritado, permanecia ao fundo da sala com outras duas damas.

Catarina sentou-se composta, os dedos brancos entrelaçados no colo, de costas direitas, todos os modos eram os de uma jovem segura do poder de atracção. O rei Henrique não disse nada e olhou-a por momentos. De certeza que sabia o que provocava nele ao relembrar-lhe a primeira vez que a vira? E, no entanto, a filha de Isabel de Espanha e viúva do filho não podia estar conscientemente a provocá-lo.

Uma criada entrou trazendo duas canecas de cerveja. O rei foi servido primeiro e depois Catarina tirou uma caneca. Deu um gole e pousou-a.

– Continuais a não gostar de cerveja? – Estava espantado com a intimidade da sua voz. De certeza que, para Deus, não havia problema em perguntar à nora o que gostava de beber.

– Só bebo quando tenho muita sede – respondeu. – Mas não aprecio o gosto que deixa na boca. – Pôs a mão na boca e tocou no lábio inferior. Fascinado, observou o dedo tocar na ponta da língua. Fez um trejeito. – Acho que nunca vai ser uma das minhas bebidas preferidas – concluiu.

– O que bebíeis em Espanha? – Descobriu que quase não conseguia falar. Olhava para a boca macia, brilhando no sítio onde passara a língua.

– A água podia-se beber – explicou. – No Alhambra, os mouros canalizaram água doce das montanhas ao palácio. Bebíamos água de nascentes das montanhas, nas fontes, e ainda estava fria. E sumos de frutas, claro, tínhamos frutas maravilhosas no Verão, gelados e sorvetes, e também vinhos.

– Se partirdes em viagem comigo este Verão, podemos visitar lugares onde a água é potável – anunciou. Pensou que parecia um rapaz estúpido, prometendo-lhe que podia beber água, como se fosse um prémio. Persistiu, obstinado. – Se vierdes comigo, podemos caçar, ir a Hampshire, e mais longe, a New Forest. Lembrais-vos da região em volta? Perto de onde nos vimos pela primeira vez?

– Gostaria tanto – disse ela. – Se ainda cá estiver, claro.

– Se ainda cá estiverdes? – Ficou assustado, quase se esquecera de que era sua refém, devia regressar a casa no Verão. – Duvido que eu e o vosso pai tenhamos chegado a acordo em relação às condições, nessa altura.

– Porquê, por que demora tanto tempo? – interrogou, com os olhos azuis abertos de surpresa assumida. – De certeza que conseguimos chegar a um acordo? – Hesitou. – Entre amigos? Se não conseguirmos chegar a acordo relativamente ao valor da dívida, deve haver outra forma? Qualquer outro acordo que possamos fazer? Uma vez que já fizemos um acordo?

Aquilo aproximava-se tanto do que pensara que o fez levantar-se, desconcertado. Ela também se levantou. A parte de cima do belo toucado azul-escuro só lhe chegava aos ombros, pensou que teria de inclinar a cabeça para a beijar, e que se estivesse debaixo dele na cama, teria de ter cuidado para não a magoar. Sentiu a cara arder, só de pensar nisso.

– Vinde cá – disse-lhe com brusquidão e levou-a até ao vão da janela onde as damas não os podiam ouvir. – Tenho andado a pensar no tipo de acordo que podemos fazer – disse. – O mais fácil seria que ficásseis cá. Eu gostaria que ficásseis.

Catarina não ergueu os olhos para ele. Se o fizesse, ele assumi-la-ia como garantida. Mas continuou a olhar para o chão, com o rosto baixo.

– Oh, claro, se os meus pais concordarem – replicou, tão baixo que ele quase não conseguiu ouvir.

Sentiu-se encurralado. Acreditava que não seria capaz de continuar, enquanto mantivesse a cabeça inclinada de uma forma tão delicada, e lhe mostrasse apenas a curva do pescoço e as pálpebras, e no entanto não fora capaz de recuar, quando lhe perguntara se não havia outra forma de resolver o conflito entre ele e os pais.

– Deveis achar-me demasiado velho – disse.

Os olhos azuis dela fixaram-no e baixaram.

– De forma alguma – replicou.

– Tenho idade para ser vosso pai – afirmou ele, esperando que discordasse.

Ao contrário, ela olhou-o.

– Nunca penso em vós desse modo – declarou.

Henrique ficou em silêncio. Sentia-se perdido por esta jovem elegante que, num momento, parecia tão deliciosamente encorajadora, e noutro opaca.

– Que gostaríeis de fazer? – perguntou-lhe.

Por fim, ergueu a cabeça e sorriu-lhe, os lábios curvando-se, mas os olhos não transmitiam calor.

– O que decidirdes – respondeu. – Acima de tudo, gostaria de vos obedecer, Vossa Graça.

O que quer dizer? O que está a fazer? Pensei que me ofereceria Henrique e responderia que «sim», quando proclamou que devia achá-lo muito velho, com idade para ser meu pai. E é claro que é, de facto, parece bem mais velho do que o meu pai; é por isso que nunca penso nele como um pai; talvez como um avô, ou um padre idoso. O meu pai é bonito; um mulherengo terrível; um soldado valente; um herói no campo de batalha. Este rei lutou numa única batalha indiferente e aniquilou uma dúzia de revoltas pouco heróicas de homens pobres, fartos do seu reinado. Por isso, não é como o meu pai; e eu só disse a verdade, quando respondi que nunca o vira desse modo.

Mas depois olhou-me como se eu dissesse algo muito interessante, e perguntou-me o que eu queria. Não consegui dizer-lhe que queria que esquecesse o meu casamento com o filho mais velho, e me voltasse a casar com o mais novo. Por isso, disse que lhe queria obedecer. Não pode haver nada de mal nisso. Mas não era o que ele queria. E não me levou onde eu pretendia.

Não faço ideia do que quer. Nem de reverter a situação a meu favor.

Henrique voltou para o Palácio de Whitehall, com o rosto a arder e o coração em sobressalto, dividido entre a frustração e o cálculo. Se conseguisse convencer os pais de Catarina a autorizar o casamento, reivindicaria o restante do seu dote substancial, livrava-se do pagamento das arras, reforçava a aliança com Espanha, no momento em que procurava garantir novas alianças com a Escócia e a França, e talvez, com uma mulher tão nova, ter mais um filho e herdeiro. Uma filha no trono da Escócia, uma filha no trono de França deviam assegurar a paz às duas nações durante uma vida. A princesa de Espanha, no trono de Inglaterra, prenderia os reis mais cristãos de Espanha a uma aliança. Uniria os grandes poderes da Cristandade numa aliança pacífica com Inglaterra, não por uma geração, mas por várias gerações futuras. Teriam herdeiros comuns; estariam seguros. Inglaterra estaria segura. Melhor ainda, os filhos de Inglaterra herdariam os tronos de França, Escócia e Espanha. A Inglaterra poderia conceber o seu caminho para a paz e a grandeza.

Fazia sentido ficar com Catarina; tentou concentrar-se nas vantagens políticas e não pensar na linha do seu pescoço, nem na curva da sua cintura. Tentou acalmar-se, pensando na pequena fortuna que pouparia, ao não ter de lhe entregar as arras a que tinha direito, nem de lhe pagar as despesas de manutenção, por não enviar um navio, se calhar vários navios, para a escoltar para casa. Mas a única coisa em que pensava era que ela tocara na boca macia com o dedo, e lhe dissera que não gostava do prolongado sabor a cerveja. Ao pensar na ponta da língua encostada ao lábio, gemeu em voz alta e o criado que segurava no cavalo para que desmontasse olhou para cima e disse:

– Senhor?

– É a bílis – respondeu com amargura.

O que o afligia parecia ser o preço demasiado alto, decidiu, enquanto caminhava em direcção aos seus aposentos privados, com os cortesãos afastando-se à sua passagem com sorrisos bajuladores. Pensou que não podia esquecer-se de que era pouco mais do que uma criança, era sua nora. Se desse ouvidos ao bom senso que o levara longe, devia prometer pagar as arras, devolvê-la aos pais e, depois, adiar o pagamento até a casarem com outro louco real, noutro sítio qualquer, e sairia da situação sem ter de pagar nada.

Mas a simples ideia dela casada com outro homem obrigou-o a parar e a encostar a mão aos painéis de madeira, para se apoiar.

– Vossa Graça? – alguém perguntou. – Estais doente?

– É a bílis – repetiu o rei. – Alguma coisa que comi.

O criado privado aproximou-se.

– Desejais que chame o vosso médico, Vossa Graça?

– Não – respondeu o rei. – Mas enviai alguns barris do melhor vinho para a princesa viúva. Não tem nada na adega, e, quando a visito, gostava de beber vinho e não cerveja.

– Sim, Vossa Graça – replicou o homem, fazendo uma vénia e saindo. Henrique endireitou-se e foi para os seus aposentos. Como de costume, estavam cheios de gente: peticionistas, cortesãos, pessoas que procuravam obter favores, caçadores de fortunas, alguns amigos, alguns membros da pequena nobreza, nobres que lhe prestavam assistência, a troco de amor ou de dinheiro. Henrique olhou-os com amargura. Quando era apenas Henrique Tudor, em fuga na Bretanha, não era abençoado com tantos amigos.

– Onde está a minha mãe? – perguntou a um.

– Nos aposentos dela, Vossa Graça – retorquiu o homem.

– Vou falar com ela – afirmou. – Comunicai-lhe.

Deu-lhe alguns momentos para se aprontar, e entrou nos seus aposentos. Após a morte da nora, mudara-se para o apartamento que era atribuído à rainha. Encomendara novas tapeçarias e mobílias, e o local estava mobilado com mais opulência do que alguma rainha alguma vez tivera.

– Eu anuncio-me – disse o rei para o guarda que estava à porta, e entrou sem cerimónias.

Lady Margarida estava sentada a uma mesa junto à janela, com as contas da casa espalhadas à frente, inspeccionando os custos da corte real, como se se tratasse de uma quinta bem gerida. Havia pouco desperdício e não eram permitidas extravagâncias na corte gerida por lady Margarida, e os criados reais que julgaram que alguns dos pagamentos que lhes passavam pelas mãos podiam deixar algo no seu bolso, ficaram desiludidos.

Henrique acenou, em sinal de aprovação, ao ver a supervisão que a mãe fazia à empresa real. Nunca se livrara da ansiedade de que a riqueza ostentativa do trono de Inglaterra acabasse por não passar de mera aparência. Financiara uma campanha para o trono com base em dívidas e favores; não queria voltar a pedir empréstimos.

Ela olhou-o enquanto entrava.

– Meu filho.

Ajoelhou-se para pedir a bênção, como fazia sempre, quando a cumprimentava pela primeira vez, e sentiu os dedos tocarem no alto da sua cabeça.

– Pareceis perturbado – observou.

– E estou – respondeu. – Fui falar com a princesa viúva.

– Ai sim? – Uma expressão fingida de desdém atravessou-lhe o rosto. – O que estão a pedir agora?

– Nós – interrompeu ele e recomeçou. – Temos de decidir o que vai ser dela. Falou em regressar a Espanha.

– Quando nos pagarem o que nos devem – disse de imediato. – Sabem que têm de pagar o resto do dote, antes de se ir embora.

– Sim, ela sabe disso.

Fez-se um breve silêncio.

– Perguntou se não podemos fazer outro acordo – disse ele. – Uma resolução.

– Ah, estava à espera disto – disse lady Margarida exultante. – Sabia que andavam atrás disto. Só me surpreende que esperassem tanto. Suponho que pensaram que deviam esperar até sair do luto.

– Atrás de quê?

– Vão querer que fique cá – respondeu ela.

Henrique sentiu um sorriso a aflorar-lhe no rosto e fechou a expressão.

– Achais?

– Tenho estado à espera que mostrem o seu jogo. Sabia que esperavam que déssemos o primeiro passo. Ah! Fizemo-los declararem-se primeiro!

Ele ergueu as sobrancelhas, desejando que ela pusesse em palavras o que ele queria ouvir.

– À espera de quê?

– De uma proposta nossa, claro – replicou. – Sabiam que nunca deixaríamos passar uma oportunidade destas. Ela era o par perfeito, na altura, e é-o agora. Fizemos um bom negócio antes, e continua a sê-lo. Principalmente se pagarem a totalidade. E, agora, é mais rentável do que nunca.

Enrubesceu ao perguntar-lhe:

– Pensais que sim?

– Claro. Está aqui, metade do dote está pago, só temos de cobrar o resto. Já nos livrámos da escolta, a aliança funciona a nosso favor, nunca teríamos o respeito dos franceses se não temessem os seus pais, os escoceses também nos receiam, ela continua a ser o melhor negócio da Cristandade para nós.

A sua sensação de alívio era assombrosa. Se a mãe não se opusesse ao plano, então, podia levá-lo avante. Era a sua melhor e mais segura conselheira há tanto tempo, que não agiria contra a sua vontade.

– E a diferença de idades?

Ela encolheu os ombros.

– Qual é? Cinco, quase seis anos? Isso não é nada para um príncipe.

Ele encolheu-se como se ela o esbofeteasse.

– Seis anos? – repetiu.

– E o Henrique é alto e forte para a idade. Não ficarão mal juntos.

– Não – cortou secamente. – Não. Não é o Henrique. Não falava de Henrique!

A fúria na sua voz alertou-a.

– O quê?

– Não. Não. Não é o Henrique. Maldição! O Henrique, não!

– O quê? O que dizeis?

– E óbvio! De certeza que é óbvio!

O olhar dela atravessou-lhe o rosto, interpretando-o, como só ela era capaz.

– Não estáveis a falar de Henrique?

– Pensei que falásseis de mim.

– De vós? – Ela reavaliou a conversa. – De vós, para a infanta? – perguntou incrédula.

Ele sentiu-se corar.

– Sim.

– A viúva de Artur? A vossa nora?

– Sim. Por que não?

Lady Margarida olhou para ele alarmada. Nem precisava de enumerar os obstáculos.

– Ele era muito novo. Não foi consumado – afirmou, repetindo as palavras que o embaixador espanhol ouvira de doña Elvira, e que foram espalhadas pela Cristandade.

Ela estava com um ar céptico.

– É o que diz. É o que a ama diz. É o que dizem os espanhóis. É o que dizem.

– E acreditais? – interrogou com frieza.

– Ele era impotente.

– Bem... – Era típico não dizer nada enquanto pensava. Olhou para ele, reparando na cor da sua face e na perturbação do seu rosto. – Mentem. Vimo-los casar e deitarem-se juntos e, na altura, não houve indício de que não se concretizara.

– Isso é um assunto deles. Se contam a mesma mentira e se a mantêm, é o mesmo que dizer a verdade.

– Só se o aceitarmos.

– Nós aceitamos – decidiu ele.

Ela ergueu as sobrancelhas.

– É esse o vosso desejo?

– Não é uma questão de desejo. Preciso de uma mulher – replicou Henrique sereno, como se pudesse ser qualquer pessoa. – E, convenientemente, ela está aqui, como vós haveis dito.

– Ela seria adequada pelo nascimento – concordou a mãe –, mas não pela relação que tem convosco. É vossa nora, mesmo que o casamento não tenha sido consumado. E é muito nova.

– Tem dezassete anos – contestou ele. – Uma boa idade para uma mulher. E é viúva. Está pronta para um segundo casamento.

– Ou é virgem, ou não é – comentou lady Margarida irritada. É melhor chegarmos a acordo.

– Ela tem dezassete anos – corrigiu-se. – Uma boa idade para se casar. Está pronta para um casamento completo.

– As pessoas não vão gostar – observou ela. – Irão lembrar-se do casamento com Artur, demos um espectáculo enorme. As pessoas gostam dela. Gostavam dos dois. A romã e a rosa. Ela conquistou-os com a sua mantilha de renda.

– Bem, mas ele está morto – atirou ele. – E ela tem de casar com alguém.

– As pessoas acharão estranho.

Ele encolheu os ombros.

– Ficarão alegres, se me der um filho.

– Oh, sim, se o conseguir. Mas não conseguiu ser fecundada por Artur.

– Como acordámos, o Artur era impotente. O casamento não foi consumado.

Ela cerrou os lábios, mas não disse nada.

– Assim, conseguimos o dote e não teremos de pagar-lhe as arras – assinalou ele.

Ela assentiu. Adorava a ideia da fortuna que Catarina lhes traria.

– E já cá está.

– Uma presença muito determinada – comentou com amargura.

– Uma princesa determinada. – Ele sorriu.

– Pensais que os pais aceitarão? Suas Majestades de Espanha?

– É uma forma de resolver o dilema, assim como o nosso. E mantém a aliança. – Reparou que ela sorria, e tentou manter uma expressão séria, como de costume. – Ela pensaria que é o seu destino. Acredita que nasceu para ser rainha de Inglaterra.

– Bem, então, é uma louca – observou a mãe inteligentemente.

– Foi educada para ser rainha, desde criança.

– Mas vai ser uma rainha estéril. Nenhum dos filhos servirá para nada. Nunca poderá ser rei. Se chegar a ter um, virá a seguir a Henrique – relembrou-lhe. – Virá mesmo a seguir aos filhos de Henrique. É uma união muito mais fraca para ela do que o casamento com um príncipe de Gales. Os espanhóis não vão gostar.

– Oh, o Henrique é uma criança. Os seus filhos estão muito longe. A anos de distância.

– Mesmo assim. Isso pesará para os pais. Preferirão Henrique. Desse modo, ela será rainha e o filho que tiver será rei, a seguir a ela. Por que concordariam com menos?

O rei Henrique hesitou. Não havia nada que pudesse argumentar para contrapor ao raciocínio dela, excepto que não desejava segui-lo.

– Oh, estou a perceber. Vós desejai-la – concluiu secamente, quando o silêncio se prolongou tanto que tomou consciência de que havia algo que ele não era capaz de dizer. – É uma questão do vosso desejo.

Ele aproveitou a deixa.

– Sim – confirmou.

Lady Margarida olhou-o de forma calculada. Por medida de segurança, fora afastado quando não passava de um bebé. Desde então, sempre o vira como um pretendente, um potencial herdeiro do trono, como o seu passaporte para a grandeza. Mal o conhecera como bebé, nunca o amara na infância. Planeara o seu futuro como homem, defendera os seus direitos como rei, organizara a campanha como uma ameaça à Casa de York – mas nunca sentira ternura por ele. Não aprendia a ser indulgente com ele, nesta fase tão tardia da vida; jamais era indulgente com quem quer que fosse, nem consigo mesma.

– Isso é muito chocante – disse ela. – Pensei que falávamos num casamento de interesses. Ela é como uma filha para vós. Este desejo é um pecado carnal.

– Não é nada e não é minha filha – atirou ele. – Não há nada de mal com o amor honrado. Não é minha filha. É a viúva dele. E o casamento não foi consumado.

– Precisareis de uma dispensa papal, é um pecado.

– Ele nem esteve com ela! – exclamou.

– A corte deitou-os na cama – observou.

– Ele era demasiado novo. Era impotente. E morreu, pobre rapaz, poucos meses depois.

Ela acenou.

– Isso é o que ela diz agora.

– Mas não me aconselhais o contrário – disse ele.

– É um pecado – repetiu. – Mas se conseguirdes obter a dispensa e se os pais concordarem, então... – Fez uma expressão amarga. – Bem, suporto que mais vale que seja ela do que outras – afirmou contrariada. – E pode viver na corte sob a minha atenção. Posso tomar conta dela e controlá-la com mais facilidade do que faria com uma rapariga mais velha, e sabemos que sabe portar-se. É obediente. Aprenderá os seus deveres comigo. E as pessoas gostam dela.

– Falarei com o embaixador espanhol hoje.

Ela pensou que nunca vira uma alegria tão evidente no seu rosto.

– Presumo que conseguirei ensiná-la. – Apontou para os livros que tinha à frente. – Tem muito para aprender.

– Direi ao embaixador que o proponha a Suas Majestades de Espanha, e falarei com ela amanhã.

– Ireis visitá-la, tão depressa? – inquiriu curiosa.

Henrique assentiu. Não lhe diria que, mesmo esperar até ao dia seguinte, lhe parecia demasiado. Se fosse livre de o fazer, partiria para lhe pedir que casasse com ele nessa mesma noite, como se fosse um humilde escudeiro e ela uma dama, e não o rei de Inglaterra e a princesa de Espanha; pai e nora.

Henrique providenciou para que o doutor de Puebla, o embaixador espanhol, fosse convidado para o Palácio de Whitehall a tempo do jantar, para que lhe fosse oferecido um lugar numa das mesas altas, e para que lhe fosse servido o melhor vinho, em grande quantidade. Carne de veado, que fora defumada até atingir o ponto perfeito para ser comida, e cozinhada com molho de brande e vinho, foi trazida para a mesa do rei, que se serviu de uma pequena porção e enviou a travessa ao embaixador espanhol. De Puebla, que nunca fora alvo de tais atenções, desde a primeira vez que negociara o contrato de casamento da infanta, encheu o prato com uma colher pesada e mergulhou o melhor pão no molho, satisfeito por comer bem na corte, interrogando-se, por trás do seu silêncio ávido, o que significaria.

A mãe do rei fez-lhe um sinal com a cabeça, e de Puebla levantou-se do seu lugar para lhe fazer uma vénia.

Muito agradecido, observou para si mesmo, enquanto se voltava a sentar. Extremamente. Excepcional.

Não era palerma, sabia que lhe iam pedir algo, em troca destas atenções públicas. Mas dado o pesadelo que fora o ano anterior – em que as esperanças de Espanha foram sepultadas sob a nave da Catedral de Worcester – pelo menos era um bom indício. Era evidente que o rei Henrique descobrira uma nova função para lhe atribuir, além da de bode expiatório do incumprimento do pagamento das dívidas dos soberanos espanhóis.

De Puebla tentara defender Suas Majestades de Espanha perante um rei inglês cada vez mais irritado. Explicara-lhes em cartas longas e pormenorizadas que era inútil reclamar as arras de viúva de Catarina, se não pretendiam pagar o resto do dote. Tentou explicar a Catarina que não podia obrigar o rei inglês a pagar-lhe uma mesada mais generosa para manutenção da sua residência, nem persuadir o rei espanhol a prestar apoio financeiro à filha. Ambos os reis eram teimosos, e determinados em empurrar o outro para uma posição mais frágil. Nenhum parecia preocupar-se com o facto de, entretanto, Catarina, com apenas dezassete anos ser forçada a sustentar uma casa com um séquito extravagante, numa terra estranha, sem dinheiro. Nenhum dos reis daria o primeiro passo, nem assumiria ser responsável pelo seu sustento, temendo que tal o obrigasse a sustentá-la, assim como ao séquito, para sempre.

De Puebla sorriu para o rei, que estava sentado no trono, sob o dossel do Estado. Gostava genuinamente do rei Henrique, admirava a sua coragem pela forma como conquistara e mantivera o trono, agradava-lhe o bom senso do homem. E mais do que isso, de Puebla gostava de viver em Inglaterra, estava habituado à boa casa em Londres, à importância que lhe era concedida por representar a mais recente e poderosa casa dirigente da Europa. Era-lhe aprazível o facto de as origens judaicas e a recém-conversão serem ignoradas em Inglaterra, uma vez que na corte todos vieram do nada e alteraram os nomes ou as filiações, pelo menos uma vez. Inglaterra interessava a de Puebla, e ele faria os possíveis para aí ficar. Se implicasse servir melhor o rei de Inglaterra do que o rei de Espanha, considerava que seria uma pequena concessão a fazer.

O rei Henrique levantou-se do trono e fez um sinal, indicando aos criados que podiam levantar os pratos. Estes limparam a mesa e retiraram as de apoio; Henrique passeou pelos convivas, parando, aqui e ali, para trocar algumas palavras, como um comandante entre os seus homens. Os favoritos da corte Tudor eram os que tinham arriscado, que colocaram as espadas atrás das palavras e invadiram Inglaterra com Henrique. Sabiam o quão valiosos eram, e ele conhecia a dimensão da sua importância para eles. Continuava a ser mais um acampamento de vitoriosos do que uma calma corte de civis.

Por fim, Henrique concluiu o seu percurso, e encaminhou-se à mesa de de Puebla.

– Embaixador – saudou-o.

De Puebla fez uma profunda vénia.

– Agradeço a vossa oferta do prato de carne de veado – afirmou. – Estava delicioso.

O rei acenou.

– Gostava de falar convosco.

– Com certeza.

– Em privado.

Os dois homens afastaram-se para um canto tranquilo do salão, enquanto os músicos da galeria afinaram o tom e começaram a tocar.

– Tenho uma proposta para resolver a questão da princesa viúva – disse Henrique, o mais seco possível.

– A sério?

– Podeis considerar a minha sugestão invulgar, mas julgo que é recomendável.

Por fim, pensou de Puebla. Vai propor o casamento com Henrique. Pensei que ia deixá-la afundar-se mais, antes de tomar a decisão. Julguei que a ia deixar chegar tão baixo, que nos cobraria o dobro, por uma segunda tentativa em Gales. Mas, que seja. Deus é misericordioso.

– Ah, sim? – perguntou de Puebla em voz alta.

– Sugiro que esqueçamos o problema do dote – começou Henrique. – Os bens ficarão na minha casa. Pagar-lhe-ei uma mesada apropriada, como fazia com a falecida rainha Isabel... Deus a abençoe. Eu casarei com a infanta.

De Puebla estava tão chocado que não conseguia falar.

– Vós?

– Eu. Há algum motivo em contrário?

O embaixador engoliu em seco, respirou fundo e disse:

– Não, não, pelo menos... Suponho que possa haver objecção, com base na afinidade.

– Vou solicitar uma dispensa papal. Presumo que tendes a certeza de que o casamento não foi consumado?

– A certeza – respondeu de Puebla numa voz entrecortada.

– Haveis-mo garantido, com base na palavra dela?

– A ama disse...

– Então, não foi nada – decidiu o rei. – Foram pouco mais do que prometidos. Não foram marido e mulher.

– Terei de colocar a questão a Suas Majestades de Espanha – concluiu de Puebla, tentando pôr em ordem o torvelinho de pensamentos que o assaltava, esforçando-se por não mostrar quão chocado ficara.

– O Conselho Privado está de acordo? – perguntou, tentando ganhar tempo. – O arcebispo da Cantuária?

– Por enquanto, é uma questão entre nós – afirmou Henrique com ar pretensioso. – Ainda é cedo para mim, como viúvo. Quero garantir a Suas Majestades que a filha será bem tratada. Foi um ano difícil para ela.

– Se tivesse podido regressar a casa...

– Agora, não é necessário regressar a casa. A sua casa é em Inglaterra. Este é o seu país – retrucou Henrique. – Será rainha aqui, como foi educada.

De Puebla mal conseguia falar, de tão chocado que estava com a sugestão daquele homem velho, que acabara de sepultar a mulher, casar com a noiva do desditoso filho.

– Claro. Então, devo dizer a Suas Majestades que estais determinado neste sentido? Não há outro acordo que possamos analisar? – De Puebla dava voltas à cabeça para encontrar uma forma de mencionar o nome do príncipe Henrique, que era um futuro marido mais apropriado para Catarina. Por fim, foi directo. – O vosso filho, por exemplo?

– O meu filho é demasiado novo para ser considerado apto para casar. – Henrique rejeitou a sugestão. – Tem onze anos e é um rapaz forte e desenvolvido, mas a avó insiste em que não façamos planos para ele, nos próximos quatro anos. E, nessa altura, a princesa viúva terá vinte e um.

– Ainda será jovem – proferiu entrecortadamente de Puebla. – Continuará a ser uma mulher nova e com uma idade próxima da dele.

– Não me parece que Suas Majestades queiram que a filha fique em Inglaterra mais quatro anos, sem marido ou casa própria – atirou Henrique numa ameaça aberta. – De certeza que não querem que espere pela maioridade de Henrique. O que faria esses anos? Onde viveria? Propõem comprar-lhe um palácio e organizar o séquito? Estão preparados para lhe enviar uma renda? Uma corte, apropriada à sua posição? Durante quatro anos?

– Se regressasse a Espanha para esperar? – arriscou de Puebla.

– Pode partir já, se pagar a totalidade do dote e procurar a sua sorte em outro lugar. Pensais que obterá uma proposta melhor do que a de ser rainha de Inglaterra? Se pensais, levai-a!

Era o impasse a que chegaram vezes sem conta no ano antecedente. De Puebla sabia que fora derrotado.

– Vou escrever a Suas Majestades esta noite – concluiu.

Sonhei que era um gaivão, voando sobre os montes dourados da Sierra Nevada. Mas voava para norte, o sol quente da tarde estava do meu lado esquerdo, à minha frente via um agregado de nuvens frias. Depois, a nuvem ganhou forma, era o Castelo de Ludlow, e o meu coração de pássaro batia descompassado ao vê-lo e, ao pensar na noite que chegaria, que ele me abraçaria, se deitaria sobre mim e eu me fundiria de desejo por ele.

Depois vi que não era Ludlow, mas que as grandes paredes cinzentas eram as do Castelo de Windsor, a curva do rio era o extenso espelho cinzento do rio Tamisa, o tráfego que ia e vinha, os grandes navios fundeados, eram a riqueza e o movimento dos ingleses. Sabia que estava longe de casa e, no entanto, estava em casa. Esta seria a minha casa, construiria um ninho na pedra cinzenta destas torres, tal como faria em Espanha. E aqui chamar-me-iam gaivão; um pássaro que voa tão velozmente que nunca ninguém o viu pousar, um pássaro que voa tão alto, que julgam que não toca no chão. Não serei Catarina, a infanta de Espanha. Serei Catarina de Aragão, rainha de Inglaterra, tal como Artur me chamou: Catarina, rainha de Inglaterra.

– O rei está cá – anunciou doña Elvira, olhando pela janela. – Veio a cavalo com dois homens. Nem trouxe um porta-estandarte ou um guarda – fungou. A informalidade generalizada dos ingleses era má, mas este rei tinha os modos de um criado dos estábulos.

Catarina correu para a janela e olhou para fora.

– Que quererá? – perguntou. – Dizei aos criados que decantem vinho, do que enviou.

Doña Elvira saiu da sala. No instante seguinte, Henrique entrou, sem se fazer anunciar.

– Pensei em visitar-vos – disse.

Catarina baixou-se numa grande reverência.

– Vossa Graça, honrais-me muito – proferiu ela. – E agora, posso oferecer-vos um copo de bom vinho.

Henrique sorriu e esperou. Os dois ficaram de pé, enquanto doña Elvira voltava com uma dama de companhia que trazia um tabuleiro mourisco, de latão, com dois copos de vidro veneziano, contendo vinho tinto. Henrique reparou na delicadeza do trabalhado e calculou que faria parte do dote que os espanhóis retiveram.

– À vossa saúde – saudou, levantando o copo na direcção da princesa.

Para sua surpresa, ela não se limitou a erguer o copo, mas também os olhos, lançando-lhe um olhar prolongado, atencioso. Sentiu um formigueiro, como um menino, quando os seus olhos encontraram os dela.

– Princesa? – chamou baixinho.

– Vossa Graça?

Ambos olharam para doña Elvira, que estava de pé, a uma distância pouco confortável, a observar em silêncio as tábuas do soalho, sob os sapatos gastos.

– Podeis deixar-nos – dispensou o rei.

A mulher olhou para a princesa, esperando as suas ordens, e não fez movimento para sair.

– Quero falar em particular com a minha nora – proferiu o rei Henrique. – Podeis sair.

Doña Elvira fez uma reverência e saiu, e o resto das damas de companhia atrás dela.

Catarina sorriu para o rei.

– Como desejardes – declarou.

Ele sentiu as pulsações a aumentar com o seu sorriso.

– De facto, preciso de falar convosco em privado. Tenho uma proposta a fazer-vos. Falei com o embaixador espanhol e ele escreveu aos vossos pais.

Finalmente. É agora. Por fim, pensou Catarina. Veio propor que Henrique case comigo. Graças a Deus, que me trouxe até este dia. Artur, meu amor, hoje verás que serei fiel à promessa que te fiz.

– Tenho de voltar a casar – anunciou Henrique. – Ainda sou novo. – Pensou que não diria que a sua idade era de quarenta e seis anos. – Ainda posso ter mais um ou dois filhos.

Catarina assentiu, mas quase não ouvia. Esperava que lhe pedisse para casar com o príncipe Henrique.

– Tenho andado a pensar nas princesas da Europa que podiam ser companheiras adequadas para mim – disse.

A princesa continuou em silêncio.

– Não encontro ninguém que escolhesse.

Ela abriu os olhos, para indicar que ouvia atentamente.

Henrique continuou.

– A minha escolha incidiu sobre vós – continuou –, pelos seguintes motivos. Vós estais em Londres, já vos habituastes a viver aqui. Fostes educada para ser rainha de Inglaterra, e sereis rainha, como minha mulher. As dificuldades com o dote podem ser postas de lado. Recebereis a mesma mesada que pagava à rainha Isabel. A minha mãe concorda.

Por fim, as palavras dele penetraram na sua mente. Estava tão chocada que quase não conseguia falar. Só olhava para ele.

– Eu?

– Existe uma pequena objecção, com base na afinidade, mas pedirei ao papa para conceder uma dispensa – prosseguiu. – Sei que o vosso casamento com o príncipe Artur não foi consumado. Por isso, não existe uma objecção verdadeira.

– Não foi consumado. – Catarina repetiu as palavras de cor, como se não as compreendesse. A grande mentira fizera parte de uma conspiração para a levar ao altar com o príncipe Henrique, não com o pai. Agora, não podia retirá-la. A sua mente estava tão atordoada que era a única coisa a que se podia agarrar. – Não foi consumado.

– Então, não deve haver obstáculos – disse o rei. – Depreendo que não vos opondes?

Apercebeu-se de que quase não respirava, enquanto aguardava a sua resposta. Qualquer ideia de que ela estivesse a enganá-lo, a provocá-lo até àquele momento, evaporou-se, quando olhou para o seu rosto lívido e chocado.

Pegou-lhe na mão.

– Não façais um ar tão assustado – proferiu, num tom de voz baixo e terno. – Não vou magoar-vos. Isto é para resolver os vossos problemas. Serei um bom marido. Tomarei conta de vós. – Esforçava-se por dizer alguma coisa que lhe agradasse. – Comprar-vos-ei coisas bonitas – afirmou. – Como aquelas safiras de que gostastes tanto. Tereis um armário cheio de coisas bonitas, Catarina.

Ela sabia que tinha de responder.

– Estou tão surpreendida – falou.

– De certeza que havíeis percebido que vos desejava?

Sufoquei o meu grito de negação. Queria dizer que era evidente que não percebera. Mas não era verdade. Eu percebera, como qualquer mulher nova perceberia, pela forma como me olhava, pelo modo como eu lhe respondera. Desde o primeiro momento que o vira, houve esta subcorrente entre nós. Eu ignorei-a. Fingi que era algo mais natural do que era, desenvolvi-a. A culpa foi minha.

Na minha vaidade, pensei que incentivava um homem mais velho a pensar em mim de uma forma agradável, que podia envolvê-lo, agradar-lhe, até namoriscar com ele, primeiro como sogro dedicado e depois para o convencer a casar-me com Henrique. Queria agradar-lhe como filha, queria que me admirasse, que me mimasse. Queria que me adorasse.

Isto é um pecado, um pecado. Um pecado de vaidade e de orgulho. Suscitei a sua lascívia e o seu desejo. Levei-o a pecar, através da minha loucura. Não me admira que Deus me tenha voltado o rosto e que a minha mãe nunca me escreva. Eu estou errada.

Querido Deus, sou uma tola, e uma louca infantil e vaidosa por o fazer. Não atraí o rei para uma armadilha, para minha satisfação, apenas preparei o isco para que caísse na minha armadilha. A minha vaidade e orgulho fizeram-me pensar que podia levá-lo a fazer o que eu quisesse. Ao contrário, só consegui despertar o seu desejo, e agora fará o que quer. E é a mim que quer. E a culpa é estupidamente minha.

– Deveis ter percebido. – Henrique sorriu para ela com ar confiante. – Deveis ter percebido, quando vim visitar-vos ontem, e quando vos enviei o vinho de qualidade?

Catarina acenou. Percebera que algo – tola como era –, percebera que algo estava a acontecer; e orgulhou-se das suas habilidades diplomáticas, por ser tão inteligente ao ponto de dominar o rei de Inglaterra. Considerara-se uma mulher do mundo e o embaixador um idiota, por não obter este resultado de um rei que era fácil de manipular. Pensara que tinha o rei de Inglaterra na mão, quando, de facto, ele tinha o seu plano em mente.

– Desejei-vos desde o primeiro momento que vos vi – confidenciou-lhe, muito baixinho.

Ela olhou para cima.

– A sério?

– Sim. Quando entrei no vosso quarto de dormir em Dogmersfield.

Ela recordava um homem velho, sujo da viagem e magro, o pai do homem com quem ia casar. Lembrava-se do odor masculino a suor quando forçara a entrada no quarto, e de ter ficado de pé à sua frente, pensando: que palhaço, que soldado rude, a forçar a entrada num lugar onde não é desejado. E, depois, chegou Artur, com o cabelo louro desgrenhado, e o brilho do seu sorriso tímido.

– Oh, sim – disse ela. De algum lugar, lá bem no fundo da sua decisão, arrancou um sorriso. – Eu lembro-me. Eu dancei para vós.

Henrique puxou-a para mais perto de si e colocou-lhe um braço em volta da cintura. Catarina obrigou-se a não se afastar.

– Eu observei-vos – retorquiu. – E desejei-vos.

– Mas éreis casado – objectou Catarina.

– E agora sou viúvo e vós também – respondeu ele. Sentiu a rigidez do seu corpo através do tecido e soltou-a. Teria de cortejá-la aos poucos, pensou. Podia ter namoriscado com ele, mas estava assustada pela mudança que surgira. Era fruto de uma educação absurdamente protectora e os meses inocentes que passara com Artur não lhe abriram os olhos. Levaria as coisas com calma. Aguardaria até ela receber a permissão de Espanha, deixaria o embaixador contar-lhe da riqueza que poderia dirigir, deixaria as damas de companhia convencê-la dos benefícios da união. Era uma mulher nova, por natureza e experiência, devia ser uma tola. Teria de lhe dar tempo.

– Agora, vou deixar-vos – anunciou. – Voltarei amanhã.

Ela acenou e acompanhou-o à porta dos seus aposentos privados. Nessa altura, hesitou:

– Faláveis verdade? – perguntou-lhe, com os olhos azuis ansiosos. – Pretendíeis que fosse uma proposta de casamento e não um estratagema numa negociação? Quereis mesmo casar comigo? Serei rainha?

Ele acenou.

– Sim. – Apercebeu-se da ambição dela e sorriu ao descobrir uma forma de se aproximar. – Quereis assim tanto ser rainha?

Catarina assentiu.

– Fui educada para sê-lo – respondeu. – Não desejo mais nada. – Hesitou, quase lhe revelou que fora o último pensamento do filho, mas a sua paixão por Artur era demasiado grande para ser partilhada com quem quer que fosse, mesmo com o pai. E, além disso, Artur planeara que devia casar com Henrique.

O rei sorria.

– Então, não tendes desejo, mas ambição – observou com frieza.

– É apenas o meu dever – replicou ela. – Eu nasci para ser rainha.

Pegou-lhe na mão e inclinou-se sobre ela. Beijou-lhe os dedos; e impediu-se de os lamber. Calma! Avisou-se a si mesmo. É uma menina, e deve ser virgem; não é uma prostituta. Endireitou-se.

– Farei de vós, Catarina de Aragão, rainha de Inglaterra – prometeu-lhe, e viu os olhos azuis escurecerem de desejo ao ouvir o título. – Podemos casar assim que tenhamos a dispensa do papa.

Pensa! Pensa!, digo-me com urgência. Não foste educada por uma idiota para seres uma idiota, foste educada por uma rainha para seres uma rainha. Se é um estratagema, devias ser capaz de o adivinhar. Se for mesmo uma proposta, devias revertê-la a teu favor.

Não é o cumprimento da promessa que fiz ao meu amado, mas assemelha-se-lhe. Queria que fosse rainha de Inglaterra e que tivesse os filhos que me teria dado. E qual é o problema de serem seus meios-irmãos, em vez de sobrinha e sobrinho? Não faz diferença.

Encolho-me só de pensar em casar com aquele homem velho, com idade para ser meu pai. A pele do pescoço é fina e flácida, como a de uma tartaruga. Não me imagino na cama com ele. O hálito é azedo, o hálito de um velho; e é magro, e deve ser ossudo nas ancas e nos ombros. Mas também me encolho ao imaginar-me na cama com aquela criança, o Henrique. O rosto é tão macio e arredondado como o de uma menina. Para dizer a verdade, não suporto a ideia de ser a mulher de outra pessoa que não Artur; e essa parte da minha vida desapareceu.

Pensa! Pensa! Esta pode ser a atitude certa a tomar!

Oh, Deus, meu amado, gostava que estivésseis aqui para me dizer. Gostava de poder visitar-vos no jardim para que me dissésseis o que devo fazer. Tenho só dezassete anos, não posso ser mais astuta do que um homem com idade para ser meu pai, um rei com faro para detectar os pretendentes ao trono.

Pensa!

Não vou ter a ajuda de ninguém. Tenho de pensar sozinha.

Doña Elvira esperou até à hora de a princesa se deitar e que as damas de companhia, as aias e os criados do quarto de dormir se retirassem. Fechou a porta e voltou-se para a princesa, sentada na cama, com o cabelo numa trança, e as almofadas empilhadas atrás de si.

– O que queria o rei? – perguntou sem cerimónias.

– Fazer-me uma proposta de casamento – respondeu Catarina com brusquidão. – Com ele.

Por momentos a ama ficou demasiado espantada para falar, depois benzeu-se, como uma mulher que via algo impuro.

– Deus nos salve – foi tudo o que disse. Depois: – Deus lhe perdoe por pensar nisso.

– Deus vos perdoe – replicou Catarina. – Estou a considerar a hipótese.

– Ele é vosso sogro, e com idade para ser vosso pai.

– A idade não é importante – disse Catarina com sinceridade. – Se voltar para Espanha, não irão procurar-me um marido novo, mas um que lhes traga benefícios.

– Mas é o pai do vosso marido.

Catarina apertou os lábios.

– Do meu falecido marido – comentou triste. – E o casamento não foi consumado.

Doña Elvira engoliu a mentira; mas os seus olhos piscaram, só uma vez.

– Como recordais – disse Catarina com suavidade.

– Mesmo assim! É contranatura!

– Não é contranatura – afirmou Catarina. – Não houve consumação do casamento, não houve filhos. Por isso, não é pecado contra a natureza. E, de qualquer modo, podemos obter uma dispensa.

Doña Elvira hesitou.

– Podeis?

– Ele diz que sim.

– Princesa, não desejais uma coisa destas?

O rosto da princesa estava triste.

– Não vai prometer-me ao príncipe Henrique – explicou. – Diz que o rapaz é muito novo. Não posso esperar quatro anos até crescer. Que mais posso fazer, senão casar com o rei? Nasci para ser rainha de Inglaterra e mãe do próximo rei de Inglaterra. Tenho de cumprir o meu destino, foi o destino atribuído por Deus. Pensei que teria de me forçar a aceitar o príncipe Henrique. Agora, parece que terei de me obrigar a aceitar o rei. Talvez Deus esteja a testar-me. Mas tenho força de vontade. Serei rainha de Inglaterra, e a mãe do rei. Transformarei este país numa fortaleza contra os mouros, como prometi à minha mãe, farei um país de justiça e de honestidade, protegido dos escoceses, como prometi a Artur.

– Não sei o que irá pensar a vossa mãe – comentou a ama. – Se soubesse, não vos teria deixado sozinha com ele.

Catarina acenou.

– Não volteis a deixar-nos a sós. – Fez uma pausa. – A não ser que vos faça sinal com a cabeça – pediu. – Posso fazer-vos um sinal para partirdes, e então, tendes de sair.

A ama estava chocada.

– Ele nem vos devia ver, antes do dia do casamento. Direi ao embaixador que tem de dizer ao rei que, agora, não pode visitar-vos.

Catarina abanou a cabeça.

– Não estamos em Espanha – disse agressiva. – Ainda não percebestes? Não podemos deixar isto nas mãos do embaixador, nem a minha mãe poderá adivinhar o que acontecerá. Eu tenho de fazer com que isto aconteça. Sozinha trouxe as coisas até aqui, e sozinha farei com que aconteça.

Esperei sonhar contigo, mas não sonhei com nada. É como se tivesses partido, para muito, muito longe. Não recebi carta da minha mãe, por isso, não sei o que pensará da vontade do rei. Rezo, mas não obtenho respostas de Deus. Falo com coragem do meu destino e da vontade de Deus, mas estão confundidos. Se Deus não me fizer rainha de Inglaterra, então, não sei como poderei acreditar n’Ele. Se não for rainha de Inglaterra, então, não sei o que sou.

Catarina esperou que o rei a visitasse como prometera. Não veio no dia seguinte, mas Catarina estava certa de que viria no dia a seguir. Passados três dias, foi passear sozinha para a beira-rio, aquecendo as mãos debaixo da capa. Tinha tanta certeza de que voltaria, que se preparara para o manter interessado, mas sob o seu controlo. Planeara aliciá-lo, mantê-lo sob o seu domínio. Quando não veio, percebeu que estava ansiosa para o ver. Não de desejo – pensava que nunca mais voltaria a sentir desejo – mas porque era a sua única via para subir ao trono de Inglaterra. Quando viu que não vinha, sentiu um receio de morte de que se tivesse arrependido e que nunca mais voltasse.

Por que não vem?, pergunto às ondas do rio, que batem contra as margens enquanto um barco a remos passa. Por que veio um dia, tão apaixonado e sincero, e depois não voltou a aparecer?

Tenho tanto medo da mãe dele, nunca gostou de mim, e se me virar a cara, não sei se irá em frente. Mas depois lembro-me que me dissera que a mãe dera a sua permissão. Depois, temo que o embaixador espanhol possa ter objectado alguma coisa contra o casamento – mas não posso acreditar que de Puebla comentasse algo que contrariasse o rei; mesmo se fosse contra os meus interesses.

Então, por que não vem?, pergunto a mim mesma. Se me cortejava à moda inglesa, cheio de pressas e informalidades, não devia cá vir todos os dias?

Mais um dia passou, e depois outro. Por fim, Catarina cedeu à ansiedade e enviou uma mensagem ao rei, para a corte, dizendo que esperava que se encontrasse bem.

Doña Elvira não disse nada, mas, nessa noite, a sua postura rígida, enquanto supervisionava a escovagem e a limpeza do vestido de Catarina, falava por si.

– Sei o que estais a pensar – disse Catarina, enquanto a ama fazia um gesto à criada de quarto, para que escovasse o cabelo de Catarina. – Mas não me posso arriscar a perder esta oportunidade.

– Não estou a pensar nada – respondeu com frieza a mulher mais velha. – Estes são os hábitos ingleses. Como me haveis dito, não podemos reger-nos pelas regras de decência espanholas. E por isso, não estou habilitada a falar. É evidente que os meus conselhos não são aceites. Sou um saco roto.

Catarina estava demasiado preocupada para confortar a mulher mais velha.

– Não me importa o que sois – proferiu distraidamente. – Talvez venha amanhã.

Henrique, ao perceber que a ambição dela era a forma de se aproximar, dera à rapariga alguns dias para analisar a sua posição. Pensou que podia comparar a vida que levava na casa de Durham, em reclusão com a pequena corte espanhola, com a mobília a ficar cada vez mais gasta e sem vestidos novos, com a vida que levaria como jovem rainha no trono de uma das cortes mais ricas da Europa. Pensou que tinha o bom senso suficiente para analisar tudo a sós. Quando recebeu o seu bilhete, perguntando como estava a sua saúde, soube que estava certo; e no dia seguinte, cavalgou até à Strand para a visitar.

A sentinela que guardava o portão informou que a princesa estava no jardim, a passear com as aias, à beira-rio. Henrique entrou pela porta traseira do palácio, para o terraço, e desceu as escadas até ao jardim. Viu-a à beira do rio, a passear sozinha, à frente das aias, a cabeça inclinada, pensando, e sentiu uma sensação antiga e familiar no âmago, ao ver uma mulher que desejava. Fê-lo sentir-se jovem, aquela sensação profunda de desejo, e sorriu para si mesmo, por sentir paixão de um homem novo, por conhecer o delírio de um jovem.

O pajem, que corria à sua frente, anunciou-o e viu-a levantar a cabeça ao ouvir o seu nome, olhar para o outro lado do pátio e vê-lo. Ele sorriu, esperava o momento de reconhecimento, entre uma mulher e um homem que a ama – o momento em que os olhos se encontram e ambos conhecem esse instante de alegria intensa, essa situação em que os olhos dizem: «Ah, és tu!» e isso é tudo.

Mas, como uma pancada seca, percebeu que não havia palpitação do seu coração ao avistá-lo. Ele sorria timidamente, com o rosto iluminado pela ansiedade; mas ela, num primeiro momento de surpresa, ficou admirada. Ao ser apanhada de surpresa, não fingiu emoção, não tinha o ar de uma mulher apaixonada. Olhou para cima, viu-o – e ele adivinhou logo que ela não o amava. Não houve choque de prazer. Pelo contrário, friamente, observou uma expressão de cálculo atravessar-lhe o rosto. Era uma rapariga apanhada numa situação imprevista, interrogando-se se obteria o que pretendia. Era o ar de um vendedor, que avaliava um tolo, pronto para o espoliar. Henrique, pai de duas raparigas egoístas, reconheceu-o num ápice, e soube que o que quer que a princesa dissesse, por muito doce que fosse, seria um casamento de conveniência para ela, apesar do que significasse para ele.

E, mais do que isso, sabia que decidira aceitá-lo.

Caminhou sobre a relva cortada rente, para ir ter com ela, e pegou-lhe na mão.

– Bom dia, princesa.

Catarina fez uma reverência.

– Vossa Graça.

Ela voltou a cabeça para as damas de companhia.

– Podeis ir para dentro. – A doña Elvira disse: – Preparai refrescos para Sua Graça, quando voltarmos para dentro. Depois voltou-se para ele. – Quereis caminhar, senhor?

– Sereis uma rainha muito elegante – disse com um sorriso. – Dais as ordens com muita suavidade.

Viu-a abrandar o andar e a tensão abandonar o corpo magro e jovem, enquanto exalava.

– Então, era verdade. – Respirou fundo. – Quereis mesmo casar comigo.

– Quero – afirmou. – Sereis uma rainha de Inglaterra muito bonita.

Ela ficou radiante com a ideia.

– Ainda tenho de aprender muitos hábitos ingleses.

– A minha mãe ensinar-vos-á – informou. – Ireis viver na corte, nos seus aposentos e sob a sua supervisão.

Catarina abrandou o passo.

– Com certeza terei os meus aposentos, os aposentos da rainha?

– A minha mãe ocupa os aposentos da rainha – disse ele. – Mudou-se, após a morte da malograda rainha, Deus a abençoe. E vós juntar-vos-ei a ela. Pensa que sois demasiado nova para terdes os vossos aposentos e uma corte à parte. Podeis viver nos aposentos da minha mãe, com as damas de companhia dela e pode ensinar-vos como devem ser feitas as coisas.

Percebeu que estava perturbada, mas esforçava-se para não o demonstrar.

– Penso que sei como devem ser feitas as coisas num palácio real – afirmou Catarina, tentando sorrir.

– Um palácio inglês – sublinhou ele. – Felizmente, a minha mãe tem gerido os meus palácios e castelos e conseguiu reunir uma fortuna, desde que subi ao trono. Ensinar-vos-á como se faz.

Catarina silenciou a sua discórdia.

– Quando pensais que teremos notícias do papa? – perguntou.

– Enviei um emissário a Roma para saber – explicou Henrique. – Teremos de apresentar o pedido em conjunto, os vossos pais e eu. Mas deve ficar resolvido com rapidez. Se estivermos de acordo, não haverá grandes objecções.

– Sim – concordou ela.

– E estamos de acordo em relação ao casamento? – procurou confirmar.

– Sim – repetiu ela.

Ele pegou-lhe na mão e prendeu-a debaixo do braço. Catarina aproximou-se e deixou a cabeça encostada ao seu ombro. Não usava toucado, apenas o carapuço da capa lhe cobria o cabelo, e o movimento empurrou-o para trás. Ele sentia a essência de rosas no cabelo, o calor da cabeça encostada ao seu ombro. Teve de se controlar para não a abraçar. Parou e ela manteve-se perto dele; conseguia sentir o seu calor, por todo o seu corpo.

– Catarina – proferiu, numa voz muito baixa e muito grossa.

Olhou-o de relance, viu o desejo no seu rosto, e não se afastou. Pelo contrário, aproximou-se um pouco.

– Sim, Vossa Graça? – sussurrou.

Os olhos estavam baixados, mas lentamente, no silêncio, ergueu-os. Quando o seu rosto estava levantado para olhar o dele, ele não resistiu ao convite velado, inclinou-se e beijou-lhe os lábios.

Não se retraiu, aceitou o beijo, a sua boca entregou-se, ele sentia o seu gosto, os braços rodearam-na, apertou-a contra si, sentia o desejo por ela percorrê-lo com tanto fulgor que teve de a soltar, nesse minuto, ou desgraçar-se-ia.

Soltou-a e ficou a tremer com um desejo tão forte que não acreditava no seu poder, à medida que o invadia. Catarina puxou o carapuço para a frente, como se quisesse colocar um véu entre si e ele, como se fosse uma rapariga num harém com um véu a tapar-lhe a face, só mostrando os olhos escuros e promissores, por cima da máscara. Aquele gesto, tão estranho, tão secreto, fê-lo desejar empurrar-lhe o capuz e beijá-la de novo. Puxou-a para si.

– Podem ver-nos – avisou ela, e afastou-se. – Podem ver-nos de casa, e qualquer pessoa pode passar no rio.

Henrique soltou-a. Não conseguia dizer nada, porque sabia que a sua voz tremeria. Em silêncio, ofereceu-lhe de novo o braço, e ela aceitou-o calada. Adaptaram o ritmo um ao outro, ele atrasando o passo longo, para acompanhar o dela. Caminharam em silêncio alguns instantes.

– Os nossos filhos serão vossos herdeiros? – quis saber ela, num tom de voz frio e firme, seguindo uma linha de pensamento muito distante do torvelinho de sensações que o invadia.

Ele pigarreou.

– Sim, sim, claro.

– É essa a tradição inglesa?

– Sim.

– Estarão à frente dos outros filhos?

– O nosso filho estará à frente da princesa Margarida e de Maria – disse. – Mas as nossas filhas virão depois delas.

Ela franziu as sobrancelhas.

– Como? Por que não vêm primeiro?

– Primeiro dá-se prioridade ao sexo, depois à idade – explicou. – O primeiro rapaz a nascer é o herdeiro, depois os outros rapazes, e, a seguir, as raparigas, por idade. Deus permita que exista sempre um príncipe para herdar. A Inglaterra não tem tradição de rainhas que governem.

– Uma rainha pode governar tão bem como um homem – afirmou a filha de Isabel de Castela.

– Não em Inglaterra – disse Henrique Tudor.

Ela não insistiu.

– Mas o nosso filho mais velho seria rei, quando morrerdes – prosseguiu.

– Deus permita que tenha mais alguns anos para viver – cortou secamente.

Ela tinha dezassete anos, não possuía sensibilidade em relação à idade.

– Claro. Mas, quando morrerdes, se tivéssemos um filho, seria o herdeiro?

– Não. O rei a seguir a mim será o príncipe Henrique, o príncipe de Gales.

Ela franziu a testa.

– Pensei que pudésseis nomear um herdeiro? Não podeis nomear o nosso filho?

Ele abanou a cabeça.

– Henrique é o príncipe de Gales. Será rei a seguir a mim.

– Pensei que estivesse destinado à Igreja?

– Já não.

– E se tivermos um filho? Não podeis designar Henrique rei dos domínios franceses ou da Irlanda, e o nosso filho rei de Inglaterra?

Henrique sorriu.

– Não. Porque isso implicaria destruir o meu reino, que me custou muito a conquistar e a manter unido. Será de Henrique por direito. – Viu como ela estava perturbada. – Catarina, vós sereis rainha de Inglaterra, um dos mais importantes reinos da Europa, o lugar que a vossa mãe e o vosso pai escolheram para vós. Os vossos filhos e filhas serão príncipes e princesas de Inglaterra. Que mais podeis querer?

– Quero que o meu filho seja rei – respondeu-lhe com franqueza.

Ele encolheu os ombros.

– Não pode ser.

Voltou-se, apenas a mão dele, a apertar a sua, a mantinha perto.

Ele tentou desanuviar o ambiente, rindo-se:

– Catarina, ainda nem estamos casados. Podeis nem vir a ter um filho. Não precisamos de estragar o nosso noivado devido a uma criança que nem foi concebida.

– Então, qual seria o objectivo do casamento? – interrogou ela, directa na sua auto-absorção.

Ele podia ter respondido «o desejo».

– O destino, para que sejais rainha.

Ela não desistia.

– Pensei ser rainha de Inglaterra e ver o meu filho no trono – repetiu. – Pensei ser poderosa na corte, como a vossa mãe. Julguei que havia castelos para construir e uma armada para planear, escolas e universidades a fundar. Quero defender o país dos escoceses nas nossas fronteiras, a norte, e dos mouros, nas nossas costas. Quero ser uma rainha governante em Inglaterra, foi o que planeei e esperei. Fui nomeada como a próxima rainha de Inglaterra, desde o berço, pensei no reino em que iria reinar, fiz planos. Há muitas coisas que quero fazer.

Ele não aguentou, riu-se às gargalhadas do raciocínio da rapariga, aquela criança, pretendendo fazer planos para governar o seu reino.

– Descobrireis que eu estou acima de vós – retorquiu com frieza. – Este reino será governado como o rei decidir. Este reino é governado como eu decido. Não lutei para alcançar a coroa, para a entregar a uma rapariga com idade para ser minha filha. A vossa tarefa será a de encher o quarto das crianças e o vosso mundo começará e terminará aí.

– Mas a vossa mãe...

– Vereis que a minha mãe protege as suas coisas e eu as minhas – replicou ele, ainda a rir ante a ideia de aquela criança planear o futuro na sua corte. – Ela dar-vos-á ordens, como se fôsseis uma filha, e vós obedecereis. Não vos enganeis, Catarina. Vireis para a minha corte e obedecer-me-eis, vivereis nos aposentos da minha mãe e obedecer-lhe-eis. Sereis rainha de Inglaterra e tereis a coroa na cabeça. Mas sereis minha mulher, e terei uma mulher obediente, como sempre.

Interrompeu-se, não queria assustá-la, mas o seu desejo não era maior do que a determinação em manter o reino pelo qual lutara tão arduamente para conquistar.

– Não sou uma criança como Artur – disse-lhe, pensando que o filho, um rapaz meigo, podia ter feito várias promessas a uma mulher nova e determinada. – Não governareis ao meu lado. Sereis uma noiva-criança para mim. Amar-vos-ei e far-vos-ei feliz. Juro que ficareis feliz por casardes comigo. Serei meigo convosco. Serei generoso convosco. Dar-vos-ei tudo o que desejardes. Mas não farei de vós uma governante. Mesmo depois da minha morte, não governareis o meu país.

Nessa noite sonhei que era rainha numa corte, com um ceptro numa das mãos e um bastão na outra, e uma coroa na cabeça. Levantei o ceptro e descobri que se transformava na minha mão, era um ramo de uma árvore, o pé de uma flor, não tinha valor. A minha outra mão já não sentia o globo pesado do bastão, estava com pétalas de rosa. Sentia o seu aroma. Levantei a mão para tocar na coroa e senti uma de flores. A sala do trono desapareceu e eu encontrava-me no jardim da sultana, no Alhambra, com as minhas irmãs a fazerem coroas de margaridas, para porem nas cabeças umas das outras.

– Onde está a rainha de Inglaterra? – alguém chamou do terraço por baixo do jardim.

Levantei-me do tapete de flores de camomila e senti o aroma do perfume agridoce da relva, enquanto tentava correr, passando pela fonte, até ao arco, no fundo do jardim.

– Estou aqui! – tentei responder, mas não consegui erguer a voz acima do ruído da água a cair na taça de mármore.

– Onde está a rainha de Inglaterra? – ouvi chamarem.

– Estou aqui! – respondi silenciosamente.

– Onde está a rainha Catarina de Inglaterra?

– Aqui! Aqui! Aqui!

O embaixador, que foi chamado ao romper do dia para ir de imediato à Casa de Durham, não se preocupou em chegar antes das nove da manhã. Encontrou Catarina à sua espera, nos aposentos privados, apenas na companhia de doña Elvira.

– Mandei chamar-vos há várias horas – disse a princesa irritada.

– Estava a tratar de assuntos para o vosso pai, e não pude vir mais cedo – respondeu, ignorando a expressão irada do seu rosto. – Há algum problema?

– Ontem falei com o rei e repetiu a proposta de casamento – anunciou Catarina, com um tom orgulhoso na voz.

– De facto.

– Mas disse-me que viveria na corte, nos aposentos da mãe.

– Oh! – O embaixador assentiu.

– E também que os meus filhos só herdariam a seguir ao príncipe Henrique.

O embaixador assentiu de novo.

– Não podemos convencê-lo a esquecer o príncipe Henrique? Não podemos elaborar um contrato de casamento, para o afastar, em favor do meu filho?

O embaixador abanou a cabeça.

– Não é possível.

– Um homem não pode escolher o seu herdeiro?

– Não. Não no caso de um rei estar há tão pouco tempo no trono. Não um rei inglês. E mesmo que pudesse, não o faria.

Ela levantou-se e foi à janela.

– O meu filho será o neto dos reis de Espanha! – exclamou. – Com séculos de realeza. O príncipe Henrique não é mais do que o filho de Isabel de York e de um pretendente ao trono bem-sucedido.

De Puebla soltou um assobio horrorizado perante o seu descaramento e olhou para a porta.

– É melhor que nunca lhe chameis isso. Ele é o rei de Inglaterra.

Ela acenou, aceitando a reprimenda.

– Mas não tem a minha linhagem – prosseguiu. – O príncipe Henrique não seria o rei que o meu filho viria a ser.

– A questão não é essa – observou o embaixador. – É uma questão de tempo e de prática. O filho mais velho do rei é sempre o príncipe de Gales. É sempre ele que herda o trono. O rei, de entre todos os reis do mundo, não vai transformar o herdeiro legítimo num pretendente ao trono. Ele foi perseguido por pretendentes. Não vai criar um.

Como sempre, Catarina retraiu-se ao pensar no último pretendente, Eduardo de Warwick, degolado para desimpedir o seu caminho.

– Além disso – continuou o embaixador –, qualquer rei prefere ter um filho robusto de onze anos como herdeiro do que um recém-nascido no berço. Vivemos tempos perigosos. Um homem quer ter outro homem para lhe suceder, não uma criança.

– Se o meu filho não vai ser rei, então, qual é o objectivo do meu casamento com um rei? – perguntou Catarina.

– Seríeis rainha – assinalou o embaixador.

– Que tipo de rainha seria com Sua Alteza, a Mãe do Rei, a tomar as decisões? O rei não me permite governar o reino, e ela não me deixaria gerir a corte como desejo.

– Sois muito nova – comentou ele, tentando acalmá-la.

– Tenho idade suficiente para saber o que quero – afirmou Catarina. – E quero ser tão rainha na prática, como de nome. Mas nunca mo permitirá, pois não?

– Não – admitiu de Puebla. – Nunca dareis ordens, enquanto for vivo.

– E quando morrer? – interrogou sem se retrair.

– Então, sereis a rainha viúva – respondeu de Puebla.

– E os meus pais poderão casar-me com outra pessoa, e eu poderia sair de Inglaterra, de qualquer forma! – terminou, exasperada.

– É possível – admitiu ele.

– E a mulher de Henrique seria princesa de Gales e a nova rainha. Estaria acima de mim, governaria em meu lugar, e o meu sacrifício não valeria de nada. E os filhos dela seriam os reis de Inglaterra.

– Isso é verdade.

Catarina atirou-se para cima da cadeira.

– Então, tenho de ser mulher do príncipe Henrique – anunciou. – Tenho de ser.

De Puebla estava horrorizado.

– Pelo que sei, concordastes em casar com o rei! Ele levou-me a acreditar que estáveis de acordo.

– Concordei em ser rainha – disse ela, pálida de determinação. – Não em ser um objecto. Sabeis o que me chamou? Disse que seria a sua noiva-criança, e que viveria nos aposentos da mãe, como se fosse uma das damas de companhia.

– A rainha anterior...

– A rainha anterior era uma santa, para aturar uma sogra daquelas. Toda a vida recuou. Eu não o posso fazer. Não é o que quero, não é o que a minha mãe quer, e não é o que Deus quer.

– Mas se haveis concordado...

– E desde quando algum acordo foi cumprido neste país? – perguntou Catarina ferozmente. – Vamos quebrar este e fazer outro. Quebraremos esta promessa e faremos outra. Não casarei com o rei. Casarei com outro.

– Com quem? – inquiriu ele insensível.

– Com o príncipe Henrique, o príncipe de Gales – afirmou. – Para que quando o rei Henrique morrer eu seja rainha de facto, assim como de nome.

Instalou-se um breve silêncio.

– Se assim o desejais – disse de Puebla. – Talvez. Mas quem dirá ao rei?

Deus, se estais aí, dizei-me que estou a tomar a atitude certa. Se estais aí, ajudai-me. Se esta é a Vossa vontade, que seja rainha de Inglaterra, precisarei de ajuda para o conseguir. Correu tudo mal, e se foi enviado para me testar, então, vede! Estou de joelhos e tremo de ansiedade. Se fui abençoada por Vós, destinada por Vós, escolhida por Vós, e preferida por Vós, então, por que me sinto tão sozinha?

O embaixador de Puebla encontrou-se na posição desconfortável de levar as más notícias a um dos mais poderosos e irascíveis reis da Cristandade. Levava na mão cartas firmes de recusa de Suas Majestades de Espanha, tinha a determinação de Catarina em ser princesa de Gales, e a sua coragem retraída ao limite, para este encontro espinhoso.

O rei decidira recebê-lo no pátio dos estábulos do Palácio de Whitehall, observava uma nova encomenda de cavalos da Barbária que foram adquiridos para melhorar a raça inglesa. De Puebla pensou em fazer uma referência graciosa ao facto de o sangue estrangeiro refrescar as raças nativas, e de a reprodução ser mais produtiva entre animais jovens, mas viu o rosto sombrio de Henrique e percebeu que não haveria uma saída fácil para este dilema.

– Vossa Graça – cumprimentou com uma vénia.

– De Puebla – disse o rei com secura.

– Recebi uma resposta de Suas Majestades de Espanha à vossa honrosa proposta; mas talvez deva falar convosco num momento mais oportuno.

– Aqui serve bem. Imagino a resposta, pelos vossos paninhos quentes.

– A verdade é... – De Puebla preparava-se para mentir. – Querem que a filha volte para casa, e não põem a hipótese do casamento convosco. A rainha é veemente na sua recusa.

– Porquê? – perguntou o rei.

– Porque quer ver a filha, a sua filha mais nova e mais doce, casada com um príncipe da sua idade. É um capricho de uma mulher. – O diplomata fez uma expressão de desprezo. – Apenas um capricho de mulher. Mas temos de reconhecer os desejos de uma mãe, não temos? Vossa Graça?

– Não – retorquiu o rei contrariado. – Mas o que diz a princesa viúva? Pensei que tivéssemos chegado a acordo. Pode informar a mãe sobre a sua preferência. – Os olhos do rei estavam cravados no garanhão árabe, que andava de cabeça erguida pelo pátio, com as orelhas a oscilar para a frente e para trás, a cauda levantada, o pescoço curvado como um arco. – Presumo que possa dizer o que pretende.

– Ela diz que vos obedecerá, como sempre, Vossa Graça – resmoneou de Puebla com tacto.

– E?

– Mas tem de obedecer à mãe. – Recuou com o olhar duro que o rei lhe lançou de repente. – É uma boa filha, Vossa Graça. É uma filha que obedece à mãe.

– Eu propus-lhe casamento e indicou-me que aceitaria.

– Nunca recusaria um rei como vós. Como o podia fazer? Mas se os pais não consentem, não apresentarão o pedido de dispensa. Sem uma dispensa do papa, não há casamento.

– Pelo que sei, o casamento não foi consumado. Não precisamos de uma dispensa. É uma cortesia, uma formalidade.

– Sabemos que não foi consumado – confirmou de Puebla. – A princesa ainda é uma donzela, está apta para o casamento. Mas o papa teria de conceder uma dispensa. Se Suas Majestades de Espanha não apresentarem o pedido de dispensa, o que podemos fazer?

O rei deitou um olhar sombrio e duro ao embaixador espanhol.

– Agora, não sei. Pensei que sabíamos o que íamos fazer. Mas estou confundido. Dizei-me vós. O que podemos fazer?

O embaixador apoiou-se na coragem resistente da sua raça, as suas origens judaicas, onde se agarrava nos momentos mais difíceis da vida. Sabia que ele e o seu povo, de alguma forma, sobreviveriam sempre.

– Não há nada a fazer – afirmou. Tentou esboçar um sorriso de compaixão e sentiu que sorria com ar afectado. Afivelou no rosto a expressão mais séria. – Se a rainha de Espanha não apresentar o pedido de dispensa, não podemos fazer nada. E está irredutível.

– Não sou um dos vizinhos de Espanha, para ser dominado numa campanha de Primavera – respondeu o rei. – Não sou Granada. Não sou Navarra. Não receio o seu descontentamento.

– E é por isso que pretendem a aliança convosco – afirmou de Puebla.

– Uma aliança como? – perguntou o rei com frieza. – Pensei que me rejeitavam.

– Talvez possamos evitar estes problemas celebrando um outro casamento – falou o diplomata, observando o rosto sombrio de Henrique. – Um novo casamento. Para criar a aliança que desejamos.

– Com quem?

Diante da raiva acumulada no rosto do rei, o embaixador ficou sem palavras.

– Senhor... Eu...

– Com quem querem casá-la? Agora que o meu filho, a Rosa, está morto e sepultado? Neste momento, é uma viúva pobre, com metade do dote pago, que vive da minha caridade.

– Com o príncipe – atirou de Puebla. – Ela veio para o reino para ser princesa de Gales. Veio para ser a mulher do príncipe, e mais tarde, muito mais tarde, se Deus quiser, ser rainha. Talvez seja esse o seu destino, Vossa Graça. Pelo menos, é assim que pensa.

– Ela pensa! – exclamou o rei. – Ela pensa tanto como aquela poldra! Nada que vá além do próximo minuto!

– Ela é nova – disse o embaixador. – Mas aprenderá. E o príncipe é novo, aprenderão juntos.

– E nós, homens mais velhos, ficamos para trás? Não vos falou de uma preferência, de nenhuma vontade em especial por mim? Apesar de me dar a entender que queria casar comigo? Não dá sinais de sentir remorsos por esta reviravolta? Não se sente tentada a desafiar os pais e manter a palavra que me deu voluntariamente, de que casaria comigo?

O embaixador sentiu a amargura na voz do homem mais velho.

– Não lhe é permitido escolher – lembrou ao rei. – Tem de fazer o que lhe é ordenado pelos pais. Penso que, da sua parte, havia uma atracção, talvez uma atracção forte. Mas sabe que tem de fazer o que lhe ordenam.

– Eu pensei em casar com ela! Tê-la-ia feito rainha! Seria rainha de Inglaterra. – Quase sufocava ao pronunciar o título, toda a vida o considerara a maior honra que uma mulher podia imaginar, tal como o seu título era o mais importante na sua imaginação.

O embaixador fez uma pausa, para permitir que o rei se recompusesse.

– Sabeis, há outras jovens também belas na família – sugeriu com cautela. – A jovem rainha de Nápoles está viúva. Como sobrinha do rei Fernando, traria um bom dote e tem os traços da família. – Hesitou. – Diz-se que é muito bonita e... – Fez uma pausa. – Amorosa.

– Ela deu-me a entender que me amava. Devo pensar que é fingida?

O embaixador sentiu um suor frio ser expelido por cada poro do corpo, ao ouvir aquela palavra terrível.

– Não é fingida – afirmou, com um sorriso forçado. – Uma nora amorosa, uma rapariga afectuosa...

Instalou-se um silêncio gelado.

– Sabeis como proliferam os pretendentes neste país – avisou o rei.

– Sim! Mas...

– Se está a brincar comigo, irá arrepender-se.

– Não está a brincar nem a fingir! Não é nada disso!

O rei deixou o embaixador sofrer, tremendo de ansiedade.

– Pensei em acabar com esta história do dote e das arras – observou Henrique, por fim.

– E é o que pode acontecer. Quando a princesa for prometida ao príncipe, Espanha pagará a segunda metade do dote, e as arras da viúva não terão de ser pagas – garantiu-lhe de Puebla. Apercebeu-se de que falava demasiado depressa, respirou fundo, e abrandou. – As dificuldades terminam. Suas Majestades de Espanha ficarão satisfeitas por apresentar o pedido de dispensa para que a filha case com o príncipe Henrique. Seria um bom casamento para ela, e fará o que lhe ordenarem. Isso permite-vos procurar uma mulher para vós, Vossa Graça, e deixa livres as receitas da Cornualha, Gales e Chester para vós.

O rei Henrique encolheu os ombros e afastou-se do rinque de treino e do cavalo.

– Então, acabou? – questionou com frieza. – Ela não me deseja, como pensei. Confundi as suas atenções para comigo. Pretendia apenas ser filial? – Riu-se do beijo que lhe dera à beira-rio. – Tenho de esquecer o meu desejo por ela?

– Ela tem de obedecer aos pais como princesa de Espanha – relembrou-lhe de Puebla. – Pela sua parte, sei que havia uma preferência. Ela mesma mo disse. – Pensou que o jogo de Catarina podia ser encoberto. – Está desapontada, para vos falar a verdade. Mas a mãe é irredutível. Não posso ir contra a vontade da rainha de Castela. Está determinada a que a filha regresse a Espanha, ou que case com o príncipe Henrique. E não apresenta mais nenhuma sugestão.

– Que assim seja – acedeu o rei, numa voz gelada. – Tive apenas um sonho ridículo, um desejo. Pode ficar por aqui.

Voltou-se e afastou-se do pátio dos estábulos, deixando de sentir prazer em cuidar dos cavalos.

– Espero que não guardeis ressentimentos? – acrescentou o embaixador, coxeando atrás dele.

– Nenhum – afirmou o rei por cima do ombro. – De maneira nenhuma.

– E o noivado com o príncipe Henrique? Posso assegurar a Suas Majestades católicas que avançará?

– Oh, de imediato. Farei disso a minha primeira e mais importante obrigação.

– Espero que não tenhais ficado ofendido! – sugeriu o embaixador ao rei, que estava de costas e se retirava.

O rei deu meia volta e encarou o embaixador espanhol, com os punhos cerrados nas ancas, os ombros rígidos.

– Ela tentou fazer de mim parvo – disparou pelos lábios cerrados. – Não lhe agradeço. Os pais tentaram fazer de mim o que queriam. Penso que descobrirão que enfrentam um dragão, e não um dos seus touros domesticados. Não me esquecerei. Vós, espanhóis, também não o esquecereis. E ela irá arrepender-se do dia em que me tentou enganar, como se fosse um rapazinho apaixonado, tal como me arrependo agora.

– Está acordado – respondeu de Puebla a Catarina. Estava de pé à sua frente. Como um moço de recados!, pensou indignado, enquanto ela arrancava painéis de veludo de um vestido para o remodelar.

– Vou casar com o príncipe Henrique – disse num tom tão aborrecido como o dele. – Ele assinou alguma coisa?

– Concordou. Tem de esperar pela dispensa. Mas concordou.

Ela ergueu o olhar para ele.

– Ficou muito zangado?

– Penso que ficou mais zangado do que me demonstrou. E o que mostrou foi mau.

– O que vai fazer? – perguntou ela.

Ele analisou o rosto pálido. Estava branca, mas não receosa. Os olhos azuis fechados como os do pai quando planeava algo. Não parecia uma donzela em apuros, tinha o ar de uma mulher que tentava ser mais inteligente do que um adversário bastante perigoso. Não era enternecedora, como o seria uma mulher em lágrimas, pensou. Era formidável, mas não agradável.

– Não sei o que fará – confessou ele. – É de natureza vingativa. Mas não lhe devemos dar vantagem. Temos de pagar o dote de imediato. Temos de cumprir a nossa parte do contrato, para o obrigar a cumprir a dele.

– A baixela perdeu o valor – proferiu ela. – Está gasta pelo uso. E vendi uma parte.

Ele soltou um gemido.

– Vendestes? Mas é propriedade do rei!

Ela encolheu os ombros.

– Tenho de comer, doutor de Puebla. Não podemos ir para a corte, sem sermos convidados, e sentarmo-nos na mesa. Não vivo bem, mas tenho de viver. E não tenho fonte de rendimentos, além dos meus bens.

– Devíeis tê-los preservado intactos.

Ela encolheu os ombros.

– Nunca devia ser reduzida a isto. Tive de empenhar a minha baixela para sobreviver. Se há alguém responsável, não sou eu.

– O vosso pai terá de pagar o dote, e de vos pagar uma mesada – disse ele impiedosamente. – Não lhes podemos dar nenhuma desculpa para recuarem. Se o vosso dote não for pago, não vos casará com o príncipe. Infanta, devo avisar-vos, vai congratular-se com as vossas dificuldades. Prolongá-las-á.

Catarina acenou.

– Então, também é meu inimigo.

– Receio que sim.

– Vai acontecer, sabeis – afirmou ela.

– O quê?

– Casarei com Henrique. Serei rainha.

– Infanta, esse é o meu maior desejo.

– Princesa – respondeu.

Whitehall, Junho de 1503

 

– Sereis prometido a Catarina de Aragão – disse o rei ao filho, pensando no filho que partira.

O rapaz louro corou como uma rapariga.

– Sim, senhor.

Fora treinado pela avó. Estava preparado para tudo, excepto a vida real.

– Não penseis que o casamento acontecerá – avisou-o o rei. Os olhos do rapaz voltaram-se para cima, surpresos, e desceram.

– Não?

– Não. Roubaram-nos e enganaram-nos, tentaram dar-nos a volta, como uma prostituta numa taberna. Tentaram iludir-nos e prometeram-nos uma coisa atrás da outra, como uma provocação sob a forma de bebida. Dizem que... – Interrompeu-se, o seu olhar espantado lembrava-lhe que falara de homem para homem, e ele era apenas um miúdo. Por outro lado, não devia demonstrar o ressentimento, por muito forte que fosse. – Aproveitaram-se da nossa amizade – resumiu. – E agora vamos aproveitar-nos da sua fraqueza.

– Mas vamos continuar a ser amigos?

Henrique fez uma careta, pensando em quão vigarista fora Fernando, e na filha, a beleza fria que o recusara.

– Oh, sim – respondeu. – Amigos leais.

– Então, vou ficar noivo e mais tarde, quando tiver quinze anos, casaremos?

O rapaz não percebera nada. Que fosse.

– Digamos que aos dezasseis.

– O Artur tinha quinze.

Henrique engoliu a resposta de que servira a Artur. Além disso, era indiferente, uma vez que nunca iria acontecer.

– Oh, sim – acedeu. – Então, aos quinze.

O rapaz sabia que algo estava mal. A sua testa macia estava franzida.

– Fazemos tenções de cumprir este acordo, não fazemos, pai? Não queria enganar uma princesa como esta. É um juramento muito solene, o que vou fazer?

– Oh, sim – afirmou o rei.

Na noite anterior ao meu noivado com o príncipe Henrique, tenho um sonho tão maravilhoso que não quero acordar. Estou no jardim do Alhambra, a passear de mãos dadas com Artur, rindo-me para ele e mostrando-lhe a beleza à nossa volta: a grande muralha de grés que rodeia o forte, a cidade de Granada por baixo e as montanhas cobertas de neve prateada, no horizonte.

– Ganhei – digo-lhe. – Fiz o que querias, tudo o que planeámos. Serei princesa, como me fizeste. Serei rainha, como querias que fosse. Os desejos da minha mãe foram cumpridos, o meu destino ter-se-á cumprido, o teu desejo e a vontade de Deus. Estás feliz agora, meu amor?

Ele sorri para mim, os olhos são calorosos, o rosto meigo, um sorriso que só tem para mim.

– Eu tomarei conta de ti – murmura. – Sempre. Aqui em al-Yanna.

Hesito ao ouvir o som estranho da palavra nos seus lábios, e depois percebo que utilizou a palavra moura: al-Yanna, que significa ao mesmo tempo céu, cemitério e um jardim. Para os mouros, o céu é um jardim, um jardim eterno.

– Virei ter contigo um dia – sussurro, quando a força com que a mão que agarra a minha diminuiu, e depois desaparece, apesar de a tentar agarrar. – Voltarei a estar contigo, meu amor. Encontrar-te-ei no jardim.

– Eu sei – diz ele, e o seu rosto esfuma-se como a névoa da manhã, como uma miragem no ar quente da sierra. – Sei que voltaremos a estar juntos, Catarina, minha Catarina, meu amor.

25 de Junho de 1503

 

Era um dia claro e quente de Junho. Catarina trajava um vestido novo, azul, com um capuz azul, o rapaz de onze anos à sua frente, radiante de emoção, vestia um fato de tecido dourado.

Estavam perante o bispo de Salisbury com uma pequena corte presente: o rei, a mãe, a princesa Maria, e algumas testemunhas. Catarina pousou a mão fria na palma quente do príncipe e sentiu as formas rechonchudas da infância sob os dedos.

Catarina olhou, além do rapaz enrubescido, para o rosto sério do pai. O rei envelhecera nos meses após a morte da mulher, e as rugas da face tornaram-se mais profundas, os olhos encovados. Os homens da corte diziam que estava doente, com uma doença que lhe enfraquecia o sangue e o esgotava. Outros que estava amargurado com a desilusão: pela perda do herdeiro, da mulher e por ver os planos frustrados. Alguns que estava apaixonado, que fora enganado por uma mulher. Só algo desse género podia tê-lo desanimado tão amargamente.

Catarina sorriu para ele, mas não obteve uma reacção calorosa do homem que seria seu sogro, pela segunda vez, mas que a desejara para si. Por momentos, a sua confiança diminuiu. Permitira-se esperar que o rei se rendesse à sua determinação, às ordens da mãe, à vontade de Deus. Agora, notando o seu olhar frio, viveu um momento de medo de que talvez a cerimónia – mesmo algo tão sério e sagrado como um noivado – pudesse não ser mais do que uma vingança de um dos reis mais astutos.

Arrepiada, virou-lhe as costas, para ouvir o bispo recitar as palavras da missa do casamento e repetiu a sua parte, certificando-se de não lembrar a última vez que as proferira, há um ano, quando a sua mão estivera tão fria, agarrando a do homem mais bonito que alguma vez vira, quando o noivo lhe lançara um sorriso tímido de relance, quando cravara os olhos nele através do véu da mantilha e se apercebera dos milhares de rostos que a observaram, em baixo, em silêncio.

O jovem príncipe, que ficara deslumbrado com a beleza da noiva, sua cunhada, era agora o noivo. O ar radiante era o de um rapaz gabarolas que se encontra na presença de uma mulher bonita e mais velha. Fora a noiva do irmão mais velho, era a jovem que se orgulhara de escoltar, no dia do casamento. Suplicara-lhe para lhe oferecer de presente, pelo décimo aniversário, um cavalo da Barbária. Olhara-a durante a festa e, nessa noite, rezara para que, também ele, pudesse ter uma noiva espanhola tal como ela.

Quando abandonara a corte com Artur, ele sonhara com ela, escrevera poemas e cantigas de amor, dedicando-lhas em segredo. Recebera a notícia da morte de Artur com uma alegria radiante e arrebatada, por ela estar livre.

Agora, quando nem tinham decorrido dois anos, estava à sua frente, com o cabelo solto, em tons de bronze e dourado, batendo nos ombros, indicando o estado virginal, a mantilha de renda azul a cobrir-lhe o rosto. A mão dela estava na sua, os olhos azuis encontravam os seus, o sorriso era só para ele.

O coração infantil e fanfarrão de Henrique estava tão inchado no peito que quase não conseguia repetir a sua parte da missa. Artur partira, e era o príncipe de Gales; Artur partira, e era o favorito do pai, a roseira de Inglaterra. Artur partira, e a noiva era sua esposa. Manteve-se direito e orgulhoso, repetindo os juramentos num tom de voz claro e agudo. Artur partira, e só havia um príncipe de Gales e uma princesa: o príncipe Henrique e a princesa Catarina.


Novamente Princesa


1504

Posso pensar que ganhei; mas, na realidade, não ganhei. Devia ter ganho; mas não ganhei. Henrique faz doze anos e proclamaram-no príncipe de Gales, mas não me vêm buscar, não anunciam o noivado nem me investem como princesa. Mando chamar o embaixador. Não vem de manhã, nem sequer nesse dia. Vem no dia seguinte, como se os meus problemas não fossem urgentes e nem pede desculpa pelo atraso. Pergunto-lhe por que não fui investida como princesa de Gales, ao mesmo tempo que Henrique, mas não sabe. Sugere que esperam o pagamento do meu dote e que, sem isso, nada pode ser feito. Mas sabe, eu sei e o rei Henrique sabe que já não possuo a minha baixela para lhes dar e que, se o meu pai não enviar a sua parte, não há nada que possa fazer.

A minha mãe, a rainha, deve imaginar que estou desolada, mas raramente tenho notícias. Sinto-me como se fosse um dos seus exploradores, um Cristóvão Colombo solitário, sem companheiros ou mapas. Enviou-me por esse mundo fora e, se eu cair borda fora ou me perder no mar, ninguém pode fazer nada.

Não tem nada para me dizer. Receio que tenha vergonha de mim por estar na corte, como uma pedinte, à espera que o príncipe honre a promessa. Em Novembro tenho um pressentimento tão forte de que está doente ou triste, que lhe escrevo e suplico-lhe que me responda, que me escreva, nem que seja uma só palavra. Mas isto acontece no dia em que morreu e nunca recebeu a minha carta e não tive resposta. Abandona-me na morte como me abandonara em vida; no meio do silêncio e de uma sensação de ausência.

Intuía que sentiria a sua falta, quando deixei a minha casa. Mas confortava-me saber que o Sol brilhava nos jardins do Alhambra e que ela lá estava, junto ao tanque bordejado de verde. Não fazia ideia do quanto a sua perda iria piorar a minha situação em Inglaterra. O meu pai, que há muito tempo se recusava a pagar a segunda metade do meu dote, o que fazia parte do seu jogo com o rei de Inglaterra, acaba por compreender que a sua jogada se transformou numa amarga verdade, não pode pagar. Passou a vida, e gastou a sua fortuna, numa cruzada incessante contra os mouros e não sobrou dinheiro. Os enormes rendimentos de Castela são agora pagos a Joana, a herdeira da minha mãe, e o meu pai não tem nada, no tesouro de Aragão, para o meu casamento. Nesta altura, não é mais do que um dos muitos reis de Espanha. Joana é a grande herdeira de Castela e, a acreditar nos rumores, a ficar louca como um cão raivoso, atormentada até à insanidade pelo amor e pelo marido. Quem olhar para mim, já não vê uma princesa vinda de uma Espanha unida, uma das mais cobiçadas noivas da Cristandade; vê uma viúva empobrecida, com sangue mau. As fortunas da família desmoronam-se como um castelo de cartas, sem a mão firme da minha mãe e o seu olhar atento. Nada resta ao meu pai a não ser desespero; e é o único dote que me pode dar.

Tenho apenas dezanove anos. Será que a minha vida acabou?


1509

E, então, esperei. Esperei, ao todo, seis anos. Seis anos em que me transformei de uma noiva com dezassete anos numa mulher de vinte e três. Compreendi que a raiva do rei Henrique contra mim era amarga, efectiva e duradoura. Nunca uma princesa, em nenhuma parte do mundo, fora obrigada a esperar tanto, tratada tão duramente ou deixada em tal desespero. Não exagero; como faria um trovador para enriquecer uma história – que poderia ter-te contado, meu amor; nas escuras horas da noite. Não, não era como uma história, nem era uma vida. Era como uma pena de prisão, como um refém que não tem hipótese de redenção, era solidão, e o lento reconhecimento de que falhara.

Desiludi a minha mãe e não obtive a aliança com Inglaterra para a qual eu nascera e fora educada. Sentia vergonha pelo meu falhanço. Sem o pagamento do dote, de Espanha, não podia forçar os ingleses a honrar o noivado. Com tal inimizade por parte do rei, não podia obrigá-los a fazer nada. Henrique era uma criança de treze anos e eu raramente o via. Também não podia apelar para que fizesse valer a sua promessa. Eu não tinha poder; negligenciada pela corte e a cair numa vergonhosa pobreza.

Então, Henrique fez catorze anos e o nosso noivado continuou a não se transformar em casamento; e esse casamento não foi celebrado. Esperei um ano, cumpriu quinze anos e ninguém me procurou. Henrique chegou ao décimo sexto, ao décimo sétimo aniversário e nada aconteceu. Os anos passaram. Envelheci. Esperei. Fui persistente. Era a única coisa que podia ser.

Virei as golas dos vestidos e vendi as jóias para comprar comida. Tive de vender a minha preciosa baixela, uma peça de cada vez. Sabia que era propriedade do rei, quando chamei os ourives. Sabia que, cada vez que penhorava uma peça, atrasava o meu casamento mais um dia. Mas precisava de comer, os meus criados precisavam de comer. Não lhes podia pagar os salários. Não os podia mandar pedir para mim, nem abandoná-los à sua sorte, esfomeados.

Já não tinha amigos. Descobri que doña Elvira fazia intrigas contra o meu pai, a favor de Joana e do marido, Filipe, e despedi-a, furiosa, mandei-a embora. Não me preocupei em saber se dizia mal de mim ou se me chamava mentirosa. Não quis saber se afirmara, ou não, que Artur e eu fôramos amantes. Descobri que traíra o meu pai; pensaria que me aliaria à minha irmã contra o rei de Aragão? Fiquei tão irada que nem pensei no que a sua inimizade me podia custar.

Por outro lado, uma vez que não sou idiota, calculei que ninguém acreditaria na palavra dela contra a minha. Fugiu para junto de Filipe e Joana, para a Holanda, e nunca mais ouvi falar dela, nem lamentei a perda.

Fiquei sem o meu embaixador, o doutor de Puebla. Por várias vezes me queixara ao meu pai; por considerar a sua lealdade dividida, da sua falta de respeito e das concessões que fazia à corte inglesa. Mas, quando foi chamado a Espanha, percebi que sabia mais do que eu pensava, que usara a sua amizade com o rei em meu favor e que descobrira a melhor maneira de se mover dentro desta corte tão complicada. Ele fora mais meu amigo do que eu pensara e era eu quem ficava mais pobre ao perdê-lo. Devido à minha arrogância, perdi um amigo e um aliado; e lamentava a sua ausência. O substituto: o emissário que viera para me levar para casa, don Gutierre Gomez de Fuensalida, era um tolo arrogante, que considerava a sua presença uma honra para os ingleses. Estes troçavam mesmo à sua frente, riam-se nas suas costas e eu não passava de uma princesa esfarrapada, com um embaixador extasiado com a sua importância.

Perdi o meu querido pai em Cristo, o confessor em quem confiava, que fora escolhido pela minha mãe para me guiar, e tive de procurar outro, por minha iniciativa. Fiquei sem as damas da minha pequena corte, que não estavam dispostas a viver com dificuldades nem na pobreza e não podia pagar a mais ninguém para me servir. Por dedicação, María de Salinas ficou a meu lado durante estes anos de sofrimento, mas as outras damas quiseram partir. Por fim, fiquei sem a minha casa, a minha bela casa na Strand, a que fora o meu lar, um pequeno lugar seguro, neste país que me era tão estranho.

O rei prometeu-me aposentos na corte e pensei que me perdoara. Pensei que me propunha ir para a corte, para viver em aposentos dignos de uma princesa e para ver Henrique. Mas, quando me mudei, descobri que me deram os piores aposentos, quase não tinha criados atribuídos nem hipótese de ver o príncipe, a não ser nas cerimónias de estado mais formais. Num dia terrível, a corte saiu em viagem sem nos avisar e tivemos de correr atrás deles, tentando encontrar o caminho, ao longo de veredas campestres, sem indicação, tão indesejados e irrelevantes como uma carroça carregada de velhas mercadorias. Quando os alcançámos, ninguém dera pela nossa falta e tive de aceitar os únicos aposentos livres; por cima dos estábulos, como uma serviçal.

O rei deixou de me pagar a mesada e a mãe não o pressionou a meu favor. Não tinha um cêntimo que fosse meu. Vivia desprezada, nas orlas da corte, com espanhóis que apenas me serviam porque não tinham hipótese de partir. Estavam, como eu, encurralados, vendo os anos passar, envelhecendo, cada vez mais ressentidos. Acabei por me sentir como a princesa adormecida do conto de fadas, acreditando que nunca mais acordaria.

Perdi a vaidade, a sensação orgulhosa de que conseguia ser mais esperta do que a velha raposa que era o meu sogro e do que a raposa matreira que era a mãe. Vim a saber que me prometera ao filho, o príncipe Henrique, não por gostar de mim ou por me ter perdoado, mas porque era a forma mais inteligente e mais cruel de me castigar. Já que não me podia ter, podia certificar-se de que mais ninguém me teria. Foi bem amargo, o dia em o que percebi.

Por essa altura, Filipe morreu, e a minha irmã Joana ficou viúva, como eu. O rei Henrique elaborou, então, um plano para casar com ela, a minha pobre irmã – que perdera o juízo com a morte do marido – e colocá-la no trono de Inglaterra, onde vissem que estava louca, que partilhava comigo o mesmo sangue mau, num lugar onde compreendessem que a fizera rainha e me desprezara. Era um plano cruel, destinado a envergonhar-me e a ferir-me, bem como a Joana. Fá-lo-ia, se pudesse, e obrigou-me a ser sua cúmplice – forçou-me a recomendá-lo ao meu pai. Por ordem do meu pai, falei ao rei da beleza de Joana; sob ordens do rei, aconselhei o meu pai a aceitar a proposta, tendo noção de que traía a minha consciência. Perdi a capacidade de dizer que não ao rei Henrique, o meu perseguidor, meu sogro e pretenso sedutor. Tinha medo de lhe dizer «não». Estava fragilizada, nessa altura.

Perdi a vaidade no meu poder de sedução, perdi a confiança na minha inteligência e nas minhas capacidades; mas nunca a vontade de viver. Não era igual à minha mãe, não era como Joana, não virava o rosto para a parede, esperando que a dor se fosse embora. Não me afundava para a mágoa dilacerante da loucura, nem me fechava na suave escuridão da apatia. Cerrava os dentes, sou a princesa determinada, não desisto quando todos o fazem. Segui em frente. Esperei. Mesmo que não pudesse fazer outra coisa, podia ficar à espera. Por isso, esperei.

Não foram os anos da minha derrota; mas os anos que cresci, e foi um amadurecimento amargo. De uma rapariguinha de dezasseis anos, pronta para o amor, tornei-me, aos vinte e três, uma viúva semiórfã e solitária. Foram tempos em que, para resistir, me agarrei à felicidade da minha infância no Alhambra e ao amor pelo meu marido e jurei que, fossem quais fossem os obstáculos, seria rainha de Inglaterra. Foram os anos em que a minha mãe, embora morta, voltou a viver através de mim. Encontrei a sua determinação no meu íntimo, descobri a sua coragem no meu íntimo, descobri o amor e o optimismo de Artur no meu interior. Foram os anos em que, apesar de nada me restar: marido, mãe, amigos, fortuna ou perspectivas, jurei que, por mais desprezada, mais pobre que fosse, por mais improvável que se apresentasse, viria a ser rainha de Inglaterra.

As notícias, sempre demoradas em chegar ao conhecimento dos andrajosos espanhóis que viviam nas orlas da corte real, deram conta que a irmã de Henrique, a princesa Maria, iria casar, com grande pompa, com o príncipe Carlos, filho do rei Filipe e da rainha Joana, e neto do imperador Maximiliano e do rei Fernando. Espantosamente, nesse momento, o rei Fernando conseguira dinheiro para o dote de Catarina e enviara-o para Londres.

– Meu Deus, estamos livres! Pode haver um casamento duplo. Posso casar com ele – disse Catarina, com grande emoção, ao emissário espanhol, don Gutierre Gomez de Fuensalida.

Ele estava pálido de preocupação, os dentes amarelos mordiam os lábios:

– Infanta, não sei como dizer-vos. Mesmo com esta aliança, apesar do dinheiro do dote... Deus meu, receio que seja tarde de mais. Temo que não nos possa ajudar.

– Como é possível? O noivado da princesa Maria aprofunda a aliança com a minha família.

– E se... – começou, e calou-se. Mal conseguia falar do perigo que previa. – Princesa, os ingleses sabem que vem o dinheiro do dote, mas ninguém fala do vosso casamento. Ah, princesa, e se planeassem uma aliança que não inclua Espanha? E se planearem uma aliança entre o imperador e o rei Henrique? E se o objectivo dessa aliança for entrarem os dois em guerra com Espanha?

Ela voltou a cabeça:

– Não pode ser.

– E se for?

– Contra o avô do rapaz? – perguntou.

– Seria apenas um avô, o imperador, contra outro, o vosso pai.

– Não ousariam – disse ela com determinação.

– São capazes de o fazer.

– O rei Henrique não seria tão desonesto.

– Princesa, sabeis bem que seria.

Hesitou:

– O que se passa? – interrogou, irritada – Há mais qualquer coisa. Algo que não me estais a contar. O que é?

Ele calou-se, com uma mentira na ponta da língua, mas acabou por lhe dizer a verdade.

– Tenho medo, tenho muito receio que queiram casar o príncipe Henrique com a princesa Leonor, irmã de Carlos.

– Não podem, foi-me prometido.

– Podem conduzir o assunto dessa maneira, como parte de um grande tratado. A vossa irmã, Joana, casa com o rei, o vosso sobrinho, Carlos, com a princesa Maria e a vossa sobrinha, Leonor, com o príncipe Henrique.

– Então, e eu? Agora que o dinheiro do meu dote vem a caminho?

Ficou em silêncio. Era dolorosamente visível que Catarina fora excluída destas alianças, e que nada fora decidido em relação a ela.

– Um verdadeiro príncipe deve honrar a sua promessa – argumentou com paixão. – Fomos prometidos por um bispo, diante de testemunhas, é um voto solene.

O embaixador encolheu os ombros, hesitou. Não era capaz de lhe transmitir a pior notícia de todas.

– Vossa Graça, princesa, tendes de ser forte. Desconfio que anule o juramento.

– Ele não pode fazer isso.

Fuensalida continuou:

– De facto, receio que já tenha sido anulado. O príncipe pode ter feito isso há alguns anos.

– O quê? – perguntou com frieza. – Como?

– Um rumor, não tenho a certeza de que aconteceu. Mas temo... – O embaixador calou-se.

– Teme o quê?

– Temo que o príncipe possa ter sido libertado da promessa de casamento convosco. – Hesitou, ao notar a súbita alteração no seu rosto. – Pode não ter sido decisão dele – acrescentou. – O pai está determinado em afrontar-nos.

– Como foi capaz? Como se pode fazer uma coisa dessas?

– Pode ter feito outro juramento, dizendo que na altura era demasiado novo, que o fizera sob ameaça. Pode ter declarado que não queria casar convosco. De facto, parece-me que foi o que fez.

– Ele não estava sob ameaça! – Catarina exclamou. – Estava entusiasmado. Há anos que está apaixonado por mim e tenho a certeza de que ainda está. Ele queria casar comigo.

– Um juramento feito perante um bispo, dizendo que na altura não agia por sua livre vontade, seria o suficiente para lhe assegurar a libertação dessa promessa.

– Isso quer dizer que durante estes anos em que estive comprometida com ele e em que agi de acordo com isso, todos esses anos em que esperei, aguardei e aguentei... – Não conseguia terminar. – Estais a dizer-me que durante estes anos em que acreditei que tínhamos os ingleses manietados, presos por um contrato, obrigados, ele era livre?

O embaixador concordou; o rosto dela estava tão rígido e tão chocado que ele quase não conseguia falar.

– Isto é... uma traição – continuou –, uma terrível traição. – Engasgou-se com as palavras. – Esta é a pior de todas as traições.

Ele concordou de novo.

Seguiu-se um longo e penoso silêncio.

– Estou perdida – concluiu. – Agora reconheço-o. Há anos que estou perdida, sem o saber. Tenho travado uma batalha sem exército, sem ajuda. E, na verdade, sem causa. Estais a dizer-me que tenho defendido uma causa há muito perdida. Lutei pelo meu noivado, mas já não estava noiva. Estive sempre sozinha, todo este tempo. E só agora sei.

Mesmo assim, não chorou, embora os olhos azuis estivessem horrorizados.

– Eu fiz uma promessa – disse com voz áspera –, uma promessa solene e vinculadora.

– A do vosso noivado?

Ela fez um gesto com a mão.

– Não é essa. Fiz uma promessa ajuramentada. Uma promessa feita a alguém que estava a morrer. E, agora, dizeis-me que foi em vão.

– Princesa, permanecestes no vosso posto, como a vossa mãe quereria que tivésseis feito.

– Eles têm estado a rir-se à minha custa! – conseguiu arrancar, das profundezas do seu choque. – Tenho lutado pelo cumprimento de um voto, sem saber que esse voto havia, há muito, sido quebrado.

Ele não era capaz de dizer nada, a dor dela era demasiado crua para qualquer palavra de conforto.

Momentos depois ergueu a cabeça:

– Todos sabem disto, menos eu? – perguntou.

Ele abanou a cabeça.

– Tenho a certeza de que foi mantido no maior segredo.

– Sua Alteza, a Mãe do Rei – vaticinou com amargura –, deve ter sabido. Deve ter sido decisão sua. E o rei, o príncipe e, se sabia, então, a princesa Maria também sabe, deve ter-lhe contado. E os companheiros mais chegados... – Ergueu a cabeça. – As damas de companhia da mãe do rei, as damas de companhia da princesa. O bispo perante quem fez o juramento, uma testemunha ou duas. Metade da corte, imagino. – Fez uma pausa. – Pensava que, pelo menos alguns, eram meus amigos.

O embaixador encolheu os ombros:

– Na corte não há amigos, apenas cortesãos.

– O meu pai vai defender-me desta... crueldade! – exclamou. – Deviam ter pensado nisso antes de me tratarem desta maneira! Não haverá mais tratados com Espanha para Inglaterra, quando souber o que se passa. Irá vingar-se pela forma como me trataram.

Ele não respondeu mas, no rosto inexpressivo, ela reconheceu a pior das verdades.

– Não – proferiu –, ele, não! Ele também, não! O meu pai, não! Ele não sabia. Ele ama-me, nunca faria nada que me magoasse. Nunca me abandonaria aqui.

Nem nesse momento o embaixador foi capaz de lhe contar. Viu-a respirar fundo.

– Ah! Ah, estou a perceber. Vejo tudo no vosso silêncio. Obviamente. Ele sabe, claro que sabe, não é verdade? O meu pai? O dinheiro do dote é apenas mais um truque. Tem conhecimento do plano para casar o príncipe Henrique com a princesa Leonor. Ele tem iludido o rei, para que pense que se pode casar com Joana. Ordenou-me que incentivasse o rei a casar com Joana. Deve ter concordado com a nova proposta de casamento para o príncipe Henrique. E, nesse caso, sabe que o príncipe quebrou o juramento para comigo? Que está livre para se casar?

– Princesa, não me disse nada. Acho que deve saber. Mas talvez tenha planos para...

O gesto dela fê-lo parar.

– Ele desistiu de mim, estou a compreender. Desiludi-o e pôs-me de lado. Estou sozinha.

– Assim sendo, devo tentar arranjar maneira de voltarmos para casa? – perguntou Fuensalida. Estava convencido de que seria o ponto culminante para as suas ambições. Se levasse esta princesa amaldiçoada para casa, para junto do pai infeliz e da irmã, a nova rainha de Castela, que cada vez se encontrava mais desequilibrada, demonstraria que fizera o melhor possível numa situação desesperada. Ninguém casaria com Catarina, que era filha de um reino dividido. Podia-se verificar que a loucura que lhe corria no sangue transparecia na irmã. Nem Henrique de Inglaterra podia fingir que Joana estava em condições de casar, quando prosseguia a desvairada travessia de Espanha, acompanhada pelo caixão do falecido marido. A ardilosa diplomacia de Fernando voltara-se contra ele e, na Europa, todos eram inimigos, com dois dos homens mais poderosos da Europa aliados para lhe declarar guerra. Fernando estava perdido e soçobrava. O máximo que esta malfadada princesa podia esperar era um casamento com algum Grande de Espanha e uma retirada para o campo, onde tivesse hipótese de escapar à guerra iminente. O pior seria ficar presa e na miséria, em Inglaterra, uma refém abandonada, por quem ninguém pagaria um resgate. Uma prisioneira que seria esquecida, até pelos carcereiros.

– Que devo fazer? – por fim aceitava o perigo. Notou que começava a aperceber-se da situação. Por fim, compreendera que perdera. Viu que ela, uma rainha de corpo e alma, percebera a profundidade da derrota. – Tenho de saber o que devo fazer, ou ficarei refém num país inimigo, sem ninguém que me defenda.

Ele não disse que era assim que a via, desde que chegara.

– Vamos partir – disse ele com firmeza –, se a guerra começar, manter-vos-ão refém e ficarão com o vosso dote. Que Deus não permita que o dinheiro, que está a chegar, possa ser usado para pagar a guerra contra Espanha.

– Não posso partir – afirmou convicta –, se me for embora, não posso voltar.

– Está tudo acabado! – gritou ele, numa fúria repentina. – Vós já o percebestes. Perdemos. Fomos derrotados. Está acabado entre vós e Inglaterra. Haveis suportado e enfrentado a humilhação e a pobreza como uma princesa, como uma rainha, como uma santa. A vossa mãe não daria mostras de uma coragem maior. Mas fomos derrotados, infanta. Perdestes. Temos de voltar para casa o mais depressa possível, temos de correr, antes que nos apanhem.

– Nos apanhem?

– Podem mandar-nos prender, como espiões inimigos e pedir um resgate por ambos – proclamou. – Podem apropriar-se do que resta do vosso dote e tomar conta do restante, quando chegar. Deus sabe que vos podem acusar de algo e executar-vos, se tiverem interesse nisso.

– Não se atrevem a tocar-me! Sou uma princesa de sangue real – retrucou com desdém. – Por muito que me possam tirar, isso não tirarão nunca. Sou infanta de Espanha, mesmo que não seja mais nada! Mesmo que não chegue a ser rainha de Inglaterra, serei sempre infanta de Espanha.

– Já houve príncipes de sangue real levados para a Torre de Londres e que não voltaram a sair – referiu o embaixador com frieza. – Príncipes com sangue real inglês, que viram aquelas grades fecharem-se e que nunca mais voltaram a ver a luz do dia. Pode acusar-vos de serdes pretendente ao trono. E sabeis o que acontece, em Inglaterra, aos pretendentes ao trono. Temos de partir.

Catarina fez uma vénia diante de Sua Alteza, a Mãe do Rei, mas não recebeu nem um aceno de cabeça. Assumiu uma atitude rígida. Os dois séquitos encontraram-se a caminho da missa; atrás da velha senhora, estava a neta, a princesa Maria, e meia dúzia de damas. Voltaram-se com um ar gélido para a mulher que devia ser a noiva do príncipe de Gales, mas que há anos era negligenciada.

– Vossa Alteza. – Catarina colocou-se à frente da mulher, esperando que reparasse em si.

A mãe do rei olhou para a jovem com nítido desagrado.

– Ouvi dizer que há algumas dificuldades relacionadas com o noivado da princesa Maria – disse Catarina.

Catarina olhou para a princesa Maria e a rapariga, escondida atrás da avó, fez-lhe uma careta e desmanchou-se num súbito ataque de riso.

– Não sabia de nada – continuou Catarina.

– Podeis não saber, mas o vosso pai sabe com certeza – declarou a velha senhora irritada. – Numa das cartas que lhe escreveis, poderíeis dizer-lhe que não ajuda em nada a causa dele ou a vossa, se perturbar os planos da nossa família.

– Tenho a certeza absoluta de que ele não... – começou Catarina a dizer.

– E estou convicta de que sim, e vós faríeis bem em avisá-lo para não se atravessar no nosso caminho – interrompeu-a com dureza a velha senhora, continuando a caminhar com um ar majestoso.

– O meu noivado... – começou Catarina.

– O vosso noivado? – A mãe do rei repetiu as palavras, como se nunca tivesse ouvido falar no assunto. – O vosso noivado? – De repente desatou a rir, atirando a cabeça para trás, com a boca escancarada. Atrás dela, a princesa riu também e, depois, as damas riram às gargalhadas só de pensar naquela princesa sem vintém, que falava do noivado com o mais cobiçado príncipe da Cristandade.

– O meu pai vai enviar o meu dote! – gritou Catarina.

– Demasiado tarde! Já é tarde de mais para vós! – respondeu a mãe do rei com uma voz estridente, agarrando-se ao braço da amiga.

Catarina, confrontada com uma dúzia de rostos trocistas que riam, imaginando a princesa remendada a oferecer os restos da baixela e do ouro, baixou a cabeça, abriu caminho e foi-se embora.

Nessa noite, o embaixador de Espanha e um mercador italiano de considerável riqueza e grande discrição encontravam-se num cais sombrio, num recatado canto das docas de Londres, observando o discreto carregamento de mercadorias espanholas para um navio que partiria para Bruges.

– Ela não deu autorização para isto? – murmurou o mercador, a face escura iluminada pela trémula luz de uma tocha. – Mas então estamos a roubar o seu dote! O que acontecerá se os ingleses disserem que o casamento se realizará e nós tivermos esvaziado a sala do tesouro da princesa? E se descobrem que o dote veio de Espanha, mas nunca entrou na sala do tesouro? Irão chamar-nos ladrões! Seremos considerados ladrões!

– Nunca dirão que o casamento se vai realizar – disse o embaixador. – Vão é apoderar-se das suas coisas e metê-la na prisão, na altura em que declararem guerra a Espanha. E podem fazê-lo a qualquer momento. Não me atrevo a permitir que o dinheiro do rei Fernando vá parar às mãos dos ingleses. Eles são nossos inimigos, não são nossos aliados.

– O que irá fazer? Esvaziámos o seu tesouro. Não ficou nada no cofre-forte, a não ser caixas vazias. Deixámo-la na miséria.

O embaixador encolheu os ombros:

– Já está arruinada. Se ficar aqui, enquanto a Inglaterra estiver em guerra com Espanha, será considerada uma refém inimiga e levada para a prisão. Se fugir comigo, não terá nenhuma recepção calorosa quando chegar a casa. A mãe já morreu, a família está arruinada e ela também. Não me surpreenderia se se atirasse ao Tamisa e se afogasse. A sua vida acabou. Não imagino o que lhe irá acontecer no futuro. Eu posso salvar o dinheiro dela, se o levardes embora no vosso barco. Mas a ela, não posso salvar.

Sei que tenho de sair de Inglaterra; Artur não quereria que ficasse para enfrentar tal perigo. Tenho pavor da Torre e do cepo, que só seria apropriado se fosse traidora e não uma princesa que nunca fez nada de mal, a não ser contar uma grande mentira. E foi por uma boa causa. Seria a maior graça, se eu pusesse a cabeça, e morresse, no mesmo cepo em que Warwick foi morto. Eu, uma pretendente espanhola ao trono pelo qual morreu, por ser um Plantageneta.

Isso não pode acontecer. Reconheço que já não tenho poder. Não sou doida, a ponto de pensar que posso dar ordens. Já nem rezo. Já nem peço pelo meu destino. Mas posso fugir. E parece-me que é chegado o momento de o fazer.

– Fizestes o quê? – perguntou Catarina ao embaixador. O inventário tremia na sua mão.

– Tomei a liberdade de levar o tesouro do vosso pai para fora do país. Não podia arriscar...

– O meu dote. – Ela levantou a voz.

– Vossa Graça, sabemos que o tesouro não será necessário para um casamento. O príncipe nunca casará convosco. Eles apoderar-se-iam do vosso dote e ele não casaria convosco.

– Era o meu trunfo! – gritou – Eu tenho esperança! Mesmo que mais ninguém a tenha! Quase não como, deixei a minha casa, para não ter de empenhar esse tesouro. Quando faço uma promessa, cumpro-a, custe o que custar!

– O rei iria usá-lo para pagar aos soldados, para que lutassem contra o vosso pai. Ele lutaria contra Espanha, com o ouro do vosso pai! – exclamou tristemente Fuensalida. – Eu não podia permitir que tal acontecesse.

– E por isso, haveis-me roubado!

Ele debateu-se com as palavras:

– Levei o vosso tesouro para um lugar seguro, na esperança de...

– Ide-vos embora! – ordenou ela.

– Princesa?

– Traístes-me, como doña Elvira, como todos me têm traído – replicou com amargura. – Podeis ir embora. Nunca mais vos voltarei a chamar. Nunca. Podeis ter a certeza de que nunca mais falarei convosco. Mas vou contar ao meu pai o que fizestes. Vou escrever-lhe de imediato e anunciar-lhe que haveis roubado os valores do meu dote, que sois um ladrão. Nunca mais sereis recebido na corte, em Espanha.

Ele fez uma vénia, tremendo de emoção, e voltou-se para sair da sala, demasiado orgulhoso para se defender.

– Não passais de um traidor! – gritou Catarina, no momento em que chegava à porta. – Se fosse rainha, e tivesse os poderes de uma rainha, mandava-vos enforcar por traição.

O embaixador ficou parado, voltou-se para ela e fez uma nova vénia. Quando voltou a falar, a sua voz parecia de gelo.

– Por favor, infanta, não vos ridicularizeis, insultando-me desse modo. Estais enganada. Foi o vosso pai quem me ordenou que devolvesse o vosso dote. Eu apenas obedecia a uma ordem directa. O vosso pai quis que fosse retirado do tesouro tudo que tivesse valor. Foi ele quem decidiu fazer de vós uma pedinte. Ele quis que o dinheiro do dote fosse devolvido, porque já perdeu a esperança no vosso casamento. Quis que o dinheiro ficasse bem guardado e que fosse levado em segurança para fora de Inglaterra.

«Mas devo dizer-vos – acrescentou com calculada malícia – que não deu ordens para que me certificasse de que ficáveis em segurança. Não me deu ordens para que vos levasse em segurança para fora de Inglaterra. Pensou no tesouro, mas não em vós, apenas deu ordem para garantirmos a segurança dos bens. Nem mencionou o vosso nome. Parece-me que perdeu a esperança, em relação a vós.

Mal as palavras lhe saíram da boca, o embaixador desejou nunca as ter pronunciado. O ar de sofrimento no rosto dela foi a pior coisa que vira na vida.

– O meu pai mandou-vos devolver o ouro, mas ordenou-vos que me deixasse ficar para trás? Sem nada?

– Estou seguro de que...

Às cegas, ela virou-lhe as costas e foi à janela, de maneira a que não visse o tremendo terror espelhado na sua face.

– Ide – ela repetiu. – Ide embora.

Eu sou a princesa adormecida da história, uma princesa de neve, abandonada num país frio e que já se esqueceu do que é sentir o Sol. O Inverno tem sido longo, mesmo para Inglaterra. Ainda agora, que estamos em Abril, a relva, de manhã, está tão coberta de geada, que, quando me levanto e vejo o gelo nas janelas do quarto, a luz que deixam passar é tão branca, que parece que nevou toda a noite. A água da bacia ao lado da cama está congelada à meia-noite e não temos dinheiro para manter a lareira acesa durante a noite. Quando vou caminhar sobre a relva gelada, ouço-a estalar debaixo dos meus pés e sinto-lhe o frio através das finas solas das botas. E, este Verão, eu sei, vai ter a suave doçura de um Verão inglês, mas tenho imensas saudades do calor escaldante da Espanha. Quero que o calor faça evaporar de mim o desespero. Sinto-me como se estivesse enregelada durante sete anos e creio que, se nada vier para me aquecer, acabarei por morrer, derretida pela chuva ou levada pelo vento, como a neblina que se ergue de um rio. Se o rei estiver a morrer, como dizem os rumores da corte, e o príncipe Henrique aceder ao trono e casar com Leonor, pedirei autorização ao meu pai para tomar o véu e retirar-me-ei para um convento. Não pode ser pior do que viver aqui. Não pode ser mais humilde, mais frio ou mais solitário. O meu pai esqueceu o seu amor por mim e desistiu de me ajudar, como se tivesse morrido ao mesmo tempo que Artur.

Jurei que nunca desesperaria, as mulheres da minha família dissolvem-se no desespero como melaço em água. Mas este gelo no meu coração não se parece com desespero. É como se a minha determinação inabalável em ser rainha me transformasse em pedra. Não penso que esteja a deixar-me avassalar pelos sentimentos, como Joana; só sinto que os coloquei no sítio errado. Transformei-me num bloco, num pingente de gelo, na princesa das neves eternas.

Tento rezar a Deus, mas não consigo ouvi-l’O. Receio que Ele se tenha esquecido de mim, como fizeram todos. Perdi a noção da Sua presença, perdi o medo da Sua vontade e a alegria na Sua bênção. Não sinto nada por Ele. Já não penso que sou a Sua filha dilecta, escolhida para ser abençoada. Já não me consolo com a ideia de ser a Sua filha preferida, a que foi escolhida para ser posta à prova. Ele afastou o Seu rosto de mim. Não sei por que razão, mas se o meu pai terreno me esquece, se esqueceu, que eu era a filha mais querida, suponho então que o meu Pai Celeste me pode também esquecer.

Descobri que, no mundo, só restam duas coisas que me interessam; sinto o meu amor por Artur, como um coração ainda quente e a bater, num pequeno pássaro caído de um céu gelado, paralisado pelo frio. E tenho saudades de Espanha, do Palácio de Alhambra, do al-Yanna, o jardim, o lugar secreto, o paraíso.

Só suporto a minha vida porque não lhe posso escapar. Todos os anos tenho esperança de que a minha sorte mude; em cada ano, quando chega o aniversário de Henrique e o nosso noivado não se transforma em casamento, percebo que mais um ano da minha vida fértil chegou e partiu. Todos os anos, nos meados do Verão, no dia em que se vence o prazo para a chegada do meu dote e o meu pai não dá notícias, sinto vergonha. É como se uma doença me atacasse o ventre. E, doze vezes por ano, durante sete anos, o que perfaz oitenta e quatro vezes, as minhas regras vieram e partiram. Cada vez que sangro, penso que se desperdiçou uma oportunidade de gerar um príncipe para Inglaterra. Aprendi a afligir-me com a mancha na roupa interior, como se fosse a de uma criança que eu perdesse. Oitenta e quatro possibilidades de ter um filho, no fulgor da minha juventude – oitenta e quatro oportunidades perdidas. Começo a perceber o que significa um aborto. Aprendo o que é a mágoa de perder uma criança.

Todos os dias, quando rezo, olho para Cristo crucificado e digo – «Seja feita a Vossa vontade.» Isto acontece há sete anos, ou seja, duas mil, quinhentas e cinquenta e seis vezes. É esta, a aritmética da minha dor. Digo – «Seja feita a Vossa vontade», mas o que quero dizer é – «Exercei a Vossa vontade contra estes cruéis conselheiros ingleses e o seu desprezível e impiedoso rei inglês, e contra a velha bruxa, a sua mãe. Concedei-me os meus direitos. Fazei de mim rainha. Tenho de ser rainha, tenho de ter um filho ou, então, transformar-me-ei numa princesa de neve.»

21 de Abril de 1509

 

«O rei morreu», escreveu o embaixador Fuensalida, na breve nota que enviou a Catarina, sabendo que não o receberia, sabendo que nunca lhe perdoaria por lhe ter roubado o dote e por lhe chamar pretendente ao trono, por lhe ter dito que o pai a abandonara. «Sei que não me recebereis, mas tenho de cumprir o meu dever, e avisar-vos de que, no seu leito de morte, o rei disse ao filho que era livre de se casar com quem quisesse. Se desejardes que alugue um barco que vos leve para Espanha, disponho de fundos pessoais para o fazer. Não vejo o que podereis ganhar, ficando neste país, além de insultos, ignominia e, talvez, perigo.»

– Morto – disse Catarina.

– Como? – perguntou uma das aias.

Catarina amarrotou a carta na mão. Actualmente, não confiava nada a ninguém.

– Nada – comentou –, vou dar um passeio.

María de Salinas levantou-se e colocou a capa remendada de Catarina nos seus ombros. Era a mesma capa que usara, enrolada, no frio do Inverno, quando ela e Artur partiram de Londres para Ludlow, sete anos antes.

– Quereis que vos acompanhemos? – ofereceu a aia, sem entusiasmo, dando uma olhadela ao céu cinzento do outro lado das janelas.

– Não.

Caminho ao longo do rio, com o chão de cascalho a ferir-me as plantas dos pés através do cabedal fino, como se tentasse fugir da esperança. Será que existe alguma hipótese de que a minha sorte mude, de que possa estar a mudar? O rei que me queria, e que depois me odiou por eu o recusar, está morto. Dizia-se que estava doente, mas Deus sabe que não enfraquecia. Achava que iria reinar para sempre. Mas está morto. Agora, desapareceu. Será o príncipe a decidir.

Não me atrevo a ter esperança. Depois destes anos de jejum, temo que a confiança me embriague, se colocar nem que seja uma gota nos lábios. Mas tenho esperança num pequenino gosto a optimismo, só um gostinho, que não faz parte da minha dieta habitual de profundo desespero.

Porque conheço o rapaz, Henrique. Juro que o conheço. Tenho-o observado, e avaliado, como um falcoeiro vigia uma ave cansada. Observo, avalio e comparo o meu julgamento com o seu comportamento, vezes sem conta. Sou capaz de ler nele, como se estudasse o catecismo. Conheço as suas forças e as suas fraquezas, e creio que tenho uma débil, muito débil razão para ter esperança.

Henrique é vaidoso, um pecado de um rapaz jovem e não o censuro, mas tem-no em grande quantidade. Por um lado, pode fazer com que queira casar comigo, pois quererá que o vejam a fazer o que é correcto – a honrar a promessa, ou a salvar-me. Só de pensar em ser salva por Henrique, tenho de interromper o meu passeio e de cravar as unhas nas palmas das mãos. Também posso aprender a suportar essa humilhação. Henrique pode querer salvar-me e serei obrigada a ficar-lhe grata. Artur morreria de vergonha só de imaginar o seu jactancioso irmão mais novo a salvar-me; mas Artur morreu precocemente, a minha mãe também e tenho de suportar tudo sozinha.

Mas a sua vaidade pode, também, funcionar contra mim. Se enfatizarem a riqueza da princesa Leonor, a influência da família Habsburgo, a glória da ligação com o sacro-imperador romano – pode ser seduzido. A avó dirá mal de mim e as suas palavras têm sido a sua lei. Ela aconselhá-lo-á a casar com a princesa Leonor e ele sentir-se-á atraído – como qualquer jovem pateta – pela ideia de uma beldade desconhecida.

Mas mesmo que queira casar com ela, terá sempre a dificuldade de decidir o que fazer comigo. Ficaria malvisto se me mandasse embora, e não pode ter o descaramento de casar com outra mulher, comigo na corte, à espera. Sei que Henrique seria capaz de fazer qualquer coisa para não parecer ridículo. Se conseguir arranjar maneira de ficar aqui até que tenham de pensar a sério no seu casamento, ficarei, de facto, numa posição forte.

Caminho mais devagar, olho em volta para o rio gelado e para os barqueiros que passam, encolhidos nas capas de Inverno, protegendo-se do frio. «Deus vos abençoe, princesa!», diz alto um dos homens, ao reconhecer-me. Ergo a mão, em resposta. As pessoas deste estranho e mal-humorado país gostaram de mim, desde o dia em que se acotovelaram, para me verem, no pequeno porto de Plymouth. Isso também contará a meu favor; com um príncipe recém-chegado ao trono e ansioso por afecto.

Henrique não é avarento. Ainda não tem idade para conhecer o valor do dinheiro e sempre lhe deram tudo o que queria. Não discutirá por um dote ou as minhas arras, tenho a certeza. Preferirá tomar uma atitude magnânima. Vou certificar-me de que Fuensalida e o meu pai não propõem o meu regresso, como forma de abrir caminho para a nova noiva. Há muito que Fuensalida perdeu a esperança na nossa causa, mas agora tenho fé. Terei de resistir ao seu pânico e aos meus receios. Tenho de ficar aqui, para me manter em campo. Não posso retirar-me agora.

Henrique sentiu-se atraído por mim, em tempos, eu sei. Foi Artur quem me falou nisso pela primeira vez e me disse que o rapazinho tinha gostado de me levar ao altar; no meu casamento, além de ter sonhado que ele era o noivo e eu a noiva. Continuei a alimentar a sua paixão, e cada vez que o encontro, presto-lhe uma atenção particular. Quando a irmã se ri dele e não lhe dá atenção, eu olho para ele, peço-lhe que cante para mim e observo-o com admiração, quando dança. Nas raras ocasiões em que consegui ter uns momentos a sós com ele, pedia-lhe para me ler e discutíamos as nossas ideias sobre grandes escritores. Procuro certificar-me de que saiba que o acho brilhante. É um rapaz esperto e não é sacrifício conversar com ele.

O meu problema é que todos o admiram tanto, que o meu modesto carinho quase não tem peso para ele. Quando a avó, Sua Alteza, Mãe do Rei, declara que é o mais belo príncipe da Cristandade, o mais instruído, o mais promissor, que posso eu dizer-lhe que se compare? Como se pode elogiar um rapaz que já é adulado até à extrema vaidade, que já acredita ser o mais importante príncipe que o mundo conheceu?

Estas são as minhas vantagens. Mas, contra elas, há o facto de me ter sido prometido seis anos antes e de que talvez me veja como uma escolha do pai, uma escolha aborrecida para ele. Que tenha jurado perante um bispo que não fui escolhida por ele, para noiva, e que não quer casar comigo. Pode decidir manter esse juramento, declarar que nunca me quis e negar o voto dos nossos esponsais. Ao imaginar Henrique a anunciar ao mundo que lhe fora imposta e que se sentia feliz por se ver livre de mim, hesito. Mas isso também consigo suportar.

Estes anos não têm sido bondosos para comigo. Ele nunca me viu rir com alegria, nunca me viu a sorrir ou descontraída. Só me tem visto vestida pobremente e preocupada com a minha aparência. Nunca fui chamada para dançar à sua frente ou para lhe cantar. Quando a corte vai caçar, o meu cavalo é sempre dos mais fracos e não os consigo acompanhar. Tenho sempre um ar cansado e estou sempre ansiosa. Ele é jovem e frívolo e adora o luxo e o requinte do vestuário. A minha imagem na sua mente pode ser a de uma mulher pobre, um aborrecimento para a família, uma viúva pálida, um fantasma que surgiu no meio da festa. Sendo um rapaz habituado a viver bem, pode escusar-se a cumprir o dever. É frívolo e volúvel e mandar-me embora pode ser-lhe indiferente.

Mas tenho de ficar. Se me for embora, esquece-se de mim. Disso, pelo menos, tenho a certeza. Tenho de ficar.

Fuensalida, chamado ao conselho real, entrou de cabeça erguida, tentando não parecer oprimido, seguro de que o chamaram para lhe dizer que partisse e levasse a indesejada infanta. O vincado orgulho espanhol, que tanto, e tantas vezes no passado, os ofendera, acompanhou-o ao atravessar a porta e enquanto se dirigia à mesa do Conselho Privado. Os novos ministros do rei estavam sentados em volta da mesa e deixaram-lhe um lugar vago, no centro. Sentiu-se como um miúdo, chamado à presença dos tutores, para ouvir uma reprimenda.

– Talvez possa começar por explicar a condição da princesa de Gales – disse ele em tom de desafio. – O dote está guardado em segurança, fora do país, e pode ser entregue em...

– O dote não tem importância – proferiu um dos conselheiros.

– O dote? – Fuensalida quase perdeu a fala. – Mas, e a baixela da princesa?

– O rei tem a intenção de ser generoso para com a sua noiva.

O embaixador ficou petrificado.

– A sua noiva?

– O assunto mais importante, neste momento, é o poderio do rei de França e o perigo das suas ambições em relação à Europa. Tem sido assim, desde Azincourt. O nosso rei está interessado em restaurar a glória de Inglaterra. E agora temos um rei, tão poderoso como o era Henrique, preparado para fazer de Inglaterra um país grandioso. A segurança de Inglaterra depende de uma aliança tripartida entre Espanha, Inglaterra e o imperador. O jovem rei acredita que o casamento com a infanta irá assegurar o apoio do rei de Aragão a esta grande causa. Presumo que seja este o caso?

– Com certeza – concordou Fuensalida atordoado. – Mas a baixela...

– A baixela não importa – repetiu um dos conselheiros.

– Pensava que os bens da princesa...

– Não têm importância.

– Terei de informá-la desta... mudança... no seu destino.

O Conselho Privado pôs-se em pé.

– Fazei-o, por favor.

– Voltarei aqui quando tiver... quer dizer... quando tiver falado com ela.

Não fazia sentido, pensou Fuensalida, dizer-lhes que ficara tão zangada com ele por aquilo que considerara uma traição, que não tinha a certeza de que o recebesse. Não valia a pena revelar que, na última vez que a vira, lhe dissera que estava perdida, que a sua causa estava perdida e que todos o sabiam há vários anos.

Caminhou, cambaleando, para fora da sala e quase esbarrou com o jovem príncipe. O jovem, que ainda não fizera dezoito anos, estava radiante.

– Embaixador!

Fuensalida deu um salto e pousou um joelho no chão.

– Vossa Graça! Devo... apresentar as minhas condolências pela morte do...

– Sim, sim. – Afastou a compaixão com um gesto. Não era capaz de se apresentar com um ar grave. Todo ele era sorrisos, e estava mais alto que nunca. – Fazei o favor de dizer à princesa que proponho que o nosso casamento se realize o mais depressa possível.

Fuensalida gaguejou, sentindo a boca seca.

– Com certeza, senhor!

– Vou enviar à princesa uma mensagem a interceder por vós – disse o jovem com generosidade. Riu-se. – Sei que não estais nas suas boas graças. Sei que recusou receber-vos, mas tenho a certeza de que irá fazê-lo, atendendo ao meu pedido.

– Fico-vos muito agradecido! – proferiu o embaixador.

O príncipe despediu-o com um gesto da mão. Fuensalida ergueu-se da sua vénia, e encaminhou-se para os aposentos da princesa. Percebeu que seria difícil para os espanhóis adaptarem-se às benesses deste novo rei inglês. A sua generosidade, a sua ostentosa generosidade, era esmagadora.

Catarina fez o embaixador esperar, mas recebeu-o ao fim de uma hora. Ele teve de admirar o autodomínio por ela demonstrado e que a fez vigiar o relógio, enquanto o homem que trazia as notícias sobre o seu destino ficava à espera para lhas dar.

– Emissário – cumprimentou.

Ele fez uma vénia. O debrum do vestido estava esfarrapado. Distinguia os pontos pequenos e perfeitos, nos sítios em que fora remendado e esgaçado, devido ao uso. Teve uma sensação de grande alívio ao pensar que, apesar do que lhe pudesse acontecer depois deste inesperado casamento, ela nunca mais teria de usar um vestido velho.

– Princesa viúva, fui chamado ao Conselho Privado. Os nossos infortúnios chegaram ao fim. Ele quer casar convosco.

Fuensalida imaginara que iria gritar de alegria, que se lançaria nos seus braços ou que cairia de joelhos, agradecendo a Deus. Mas não teve nenhuma dessas atitudes, apenas inclinou a cabeça. A folha de ouro manchado na touca brilhou com a luz.

– Fico feliz por sabê-lo! – foi tudo o que disse.

– Disseram que o dote não é problema! – Não conseguia impedir que o júbilo transparecesse na sua voz.

Ela voltou a acenar.

– O dote terá de ser pago. Vou providenciar para que o enviem de Bruges. Tem estado num local seguro, Vossa Graça. Tenho-o mantido em segurança, para vós. – A sua voz fraquejou, não conseguia evitá-lo.

Mais uma vez, ela concordou, com um aceno.

Ele colocou um joelho no chão.

– Princesa, alegrai-vos! Sereis rainha de Inglaterra.

Quando se voltou para ele, os olhos azuis eram duros, como as safiras que há muito vendera.

– Emissário, eu sempre soube que seria rainha de Inglaterra.

Consegui. Meu Deus, consegui. Ao fim de sete intermináveis anos de espera, depois das dificuldades e da humilhação, consegui. Vou para o meu quarto e ajoelho-me diante do meu oratório, fechando os olhos. Mas é com Artur que falo, não com o Senhor ressuscitado.

«Consegui», digo-lhe. «Henrique vai casar comigo, fiz o que querias que fizesse.»

Por um instante vejo o seu sorriso, como o via tantas vezes quando olhava para ele de lado, à mesa do jantar, e o apanhava a sorrir para alguém ao fundo da sala. À minha frente surge o brilho do seu rosto, a escuridão dos seus olhos, a linha definida do perfil. E mais do que qualquer outra coisa, sinto o seu cheiro, a verdadeira essência do meu desejo.

Ajoelhada diante do crucifixo, dou um suspiro de saudade. «Artur, meu adorado, meu único amor. Casarei com o teu irmão, mas serei sempre tua.» Por momentos, recordei o aroma da sua pele, de manhã, ainda nítido, como o sabor que nos fica, ao provar as primeiras cerejas do ano. Ergo o rosto, e consigo sentir o seu peito contra a minha face quando se inclina para mim e me abraça com força. «Artur», digo num murmúrio. «Sou, e serei tua, para todo o sempre.»

Catarina teve de vencer uma prova. Quando se dirigia para o jantar, com um vestido novo feito à pressa, um colar de ouro no pescoço e brincos de pérolas, foi conduzida para uma mesa diferente, colocada na parte principal do salão; fez uma vénia ao futuro marido e respondeu-lhe com o olhar reptiliano de lady Margarida Beaufort.

– Sois afortunada – disse a velha dama, quando os músicos começaram a tocar e as mesas foram retiradas.

– Sou? – inquiriu Catarina, de forma seca.

– Casastes com um grande príncipe de Inglaterra e perdeste-lo; agora, parece que casareis com outro.

– Isso não é nada surpreendente – observou Catarina num francês perfeito –, uma vez que há seis anos que estou comprometida com ele. Vossa Alteza, não creio que alguma vez duvidastes de que este dia chegaria. Não é possível que pensásseis que um príncipe tão honrado quebraria a sua promessa sagrada.

A velha senhora disfarçou bem a sua derrota.

– Nunca duvidei das nossas intenções – retorquiu. – Nós mantemos a nossa palavra. Mas quando retirastes o dote e o vosso pai renegou os pagamentos, fiquei sem perceber quais eram as intenções. E tive dúvidas sobre a honra de Espanha.

– Então foi muito bondoso da vossa parte não dizer nada ao rei que o perturbasse – disse Catarina muito docemente. – Porque acreditou em mim, eu sei. E nunca duvidei do vosso desejo de me ter como neta. E, vede! Agora vou ser vossa neta, serei rainha de Inglaterra, o dote está pago e tudo está como deve ser.

Catarina deixou a velha senhora sem palavras – e poucos tinham capacidade para o fazer.

– Bem, em todo o caso, teremos de esperar que sejais fértil – concluiu com azedume.

– E por que não seria? A minha mãe teve seis filhos – disse Catarina com doçura. – Vamos ter esperança de que o meu marido e eu possamos ser abençoados com a fertilidade de Espanha. A minha divisa é a romã, um fruto espanhol, cheio de vida.

Sua Alteza, a Avó do Rei, desapareceu, deixando Catarina sozinha. Esta fez uma vénia, quando já lhe virara as costas e levantou-se, de cabeça erguida. Não fazia diferença o que lady Margarida pensasse ou dissesse, o importante era o que podia fazer. Catarina não achava que tivesse capacidade para impedir o casamento, e era o que lhe importava.

Palácio de Greenwich, 11 de Junho de 1509

 

Estava com receio do casamento, do momento em que teria de proferir as palavras dos votos matrimoniais, as mesmas que dissera a Artur. Mas, afinal, a cerimónia foi tão diferente daquele dia glorioso na Catedral de São Paulo que passei por ela com Henrique em frente a mim, e Artur bem escondido, na parte mais remota da minha mente. Fazia isto por Artur, era o que me ordenara, a única coisa em que insistira e não podia arriscar-me a pensar nele.

Não havia grande multidão numa catedral, nem embaixadores a assistir, nem fontes que jorrassem vinho. Fomos casados dentro das paredes do Palácio de Greenwich, na igreja dos Frades Observantes, com três testemunhas, e meia dúzia de pessoas presentes.

Não houve nenhuma celebração sumptuosa, música ou dança, não houve, na corte, pessoas embriagadas nem confusão. Ninguém nos acompanhou à cama. Eu temera esse momento – o ritual de ficarem no quarto até nos deitarmos e de mostrar ao público os lençóis manchados de sangue, na manhã seguinte; mas o príncipe – o rei, agora tenho de lhe chamar assim – é tão tímido como eu, e jantamos com os membros da corte e retiramo-nos. Eles bebem, brindando à nossa saúde, e deixam-nos ir. A avó está presente, o rosto parece uma máscara, os olhos frios. Demonstro-lhe toda a cortesia, já não me incomodo com o que pensa. Já não pode fazer nada. Não há sinal de que vá viver nos seus aposentos, sob a sua supervisão. Pelo contrário, mudou-se, deixando-me os aposentos. Estou casada com Henrique, sou rainha de Inglaterra e ela não passa da avó de um rei.

As minhas damas despem-me em silêncio. Este é também o seu triunfo, a sua salvação da pobreza, da mesma forma que o é para mim. Ninguém quer recordar a noite em Oxford, a noite em Burford, as noites em Ludlow. A sua sorte, como a minha, depende do êxito desta grande falsidade. Se lhes pedisse, negariam a existência de Artur.

Já se passou tudo há tanto tempo, sete longos anos. Quem, a não ser eu, se lembra do que aconteceu num tempo tão longínquo? Quem, a não ser eu, alguma vez conheceu a felicidade de esperar por Artur, com a luz da lareira a atravessar as coloridas cortinas da cama e a luz das velas a iluminar os nossos membros entrelaçados? Os sussurros ensonados, nas primeiras horas da manhã: «Conta-me uma história!»

Vestem-me uma das minhas doze requintadas camisas de dormir novas, e retiram-se em silêncio. Eu espero por Henrique, como, há muito tempo, esperava por Artur. A única diferença é a total ausência de alegria.

Os homens de armas e os nobres do quarto de dormir trouxeram o jovem rei até à porta do quarto da rainha, bateram e fizeram-no entrar nos seus aposentos. Catarina estava de camisa de noite, sentada à lareira, com um xaile ricamente bordado pelos ombros. A divisão estava quente, acolhedora. Ela ergueu-se quando ele entrou, e fez uma vénia.

Henrique levantou-a, com um toque no cotovelo. Reparou que ele estava corado de embaraço e sentiu a sua mão tremer.

– Quereis beber uma taça de cerveja nupcial? – convidou, enquanto tentava não recordar Artur a trazer-lhe um copo, dizendo que era para lhe dar coragem.

– Sim, quero – disse. A voz, ainda tão jovem, era insegura no registo. Ela virou-lhe as costas, para verter a cerveja no copo, de modo a que não a visse sorrir.

Ergueram os copos e brindaram um ao outro.

– Espero que este dia não vos tenha parecido demasiado calmo para o vosso gosto – proferiu inseguro. – Pensei que, com a morte tão recente do meu pai, não deveríamos ter um casamento demasiado alegre. Não quis perturbar Sua Alteza, a mãe dele.

Ela concordou, mas não disse nada.

– Espero que não estejais desiludida – continuou. – O vosso primeiro casamento foi tão grandioso.

Catarina sorriu.

– Mal me recordo, já foi há tanto tempo.

Ele pareceu contente com a resposta, notou Catarina.

– Foi, não foi? Nós éramos pouco mais do que crianças.

– Sim – concordou ela –, demasiado jovens para nos casarmos.

Ele mexeu-se na cadeira. Ela sabia que os cortesãos que preferiam o ouro dos Habsburgos deviam ter falado contra ela. Os inimigos de Espanha deviam ter dito coisas contra si. A avó avisara-o contra este casamento. Este jovem transparente ainda se sentia ansioso em relação à decisão que tomara, por mais ousado que se quisesse mostrar.

– Não tão jovens assim, vós já tínheis quinze – recordou ele. – Uma jovem mulher.

– E Artur a mesma idade – disse ela, atrevendo-se a dizer o seu nome. – Mas nunca foi muito forte, penso. Não conseguia ser um marido para mim.

Henrique emudeceu, e ela receou ter ido longe de mais. Mas depois viu o lampejo de esperança no seu rosto.

– É então verdade que o casamento nunca foi consumado? – inquiriu, corando de embaraço. – Lamento... não tinha a certeza... sei que dizem isso... mas talvez...

– Nunca – afirmou. – Ele tentou, uma ou duas vezes, mas deveis lembrar-vos que não era forte. Até se pode ter gabado de o ter feito, mas, pobre Artur, isso não significava nada.

Farei isto por ti, digo corajosamente ao meu amado em pensamento. Tu querias esta mentira. Eu levá-la-ei até ao fim. Se tem de ser feito, sê-lo-á. Será feito com coragem, convicção e não posso voltar atrás.

Em voz alta, Catarina disse:

– Casámos em Novembro, estais recordado? Em Dezembro, passámos a maior parte do tempo em viagem, para Ludlow, e viajámos separados. Já não estava bem a seguir ao Natal, e morreu em Abril. Tive muita pena.

– Nunca foi vosso amante? – perguntou Henrique, ansioso por ter a certeza.

– Como podia ter sido? – Ela sacudiu os ombros com ar suplicante, o que fez com que a camisa de noite escorregasse, deixando descoberta uma pequena parte do seu ombro macio. Viu os seus olhos serem atraídos para a pele exposta e reparou que engolia em seco. – Ele não era forte. A vossa mãe era da opinião que devia ter voltado para Ludlow, durante o primeiro ano. Quem me dera que tivesse sido assim. A mim, não me faria diferença e podia ser que se tivesse salvado. Foi um estranho para mim, o tempo que durou o casamento. Vivíamos como crianças, num infantário real. Quase nem éramos companheiros.

O rei suspirou, como se o libertassem de um fardo, e o rosto que voltou para ela era alegre.

– Não podia deixar de sentir medo – confessou. – A minha avó dizia...

– Ah, as mulheres velhas andam sempre a coscuvilhar pelos cantos – retrucou, sorrindo, ignorando os olhos muito abertos, perante a falta de respeito casual. – Graças a Deus que somos jovens e não temos de nos preocupar.

– Então, eram mexericos – afirmou, adoptando o tom despreocupado dela. – Coscuvilhice de mulheres velhas.

– Nós não temos de lhe dar ouvidos – proferiu, desafiando-o a continuar. – Vós sois o rei, eu sou rainha e tomaremos as nossas decisões. Não precisamos dos seus conselhos. Porquê? Foram os conselhos dela que nos mantiveram separados, quando poderíamos estar juntos.

Ele nunca se apercebera.

– De facto – disse, enquanto o rosto endurecia. – Ambos fomos privados. E sempre insinuou que vós éreis a mulher de Artur, no casamento e na cama, e que eu devia procurar outra pessoa.

– Eu sou virgem, tal como era quando cheguei a Inglaterra – afirmou arrojadamente. – Podeis perguntá-lo à minha ama ou a qualquer uma das aias. Todas sabiam, e a minha mãe também. Sou uma virgem que nunca foi tocada.

Ele deu um suspiro como se se libertasse de uma preocupação.

– É bondade vossa dizer-mo – agradeceu. – É preferível que tais assuntos fiquem claros, para que saibamos, para que ambos saibamos. Para que ninguém tenha dúvidas. Seria terrível cometer um pecado.

– Somos jovens – disse ela. – Podemos falar destas questões entre nós. Ser honestos e destemidos um com o outro. Não temos de temer rumores ou calúnias. Não precisamos de recear o pecado.

– Também vai ser a minha primeira vez – admitiu envergonhado. – Espero que não fiqueis com má impressão a meu respeito.

– É claro que não – falou ela com ternura. – Quando vos permitiram sair daqui? A vossa avó e o vosso pai mantiveram-vos aprisionado como um falcão precioso. Estou feliz por estarmos juntos, por ser a primeira vez, para ambos, ao mesmo tempo.

Henrique levantou-se e estendeu a mão:

– Então, vamos ter de aprender juntos – declarou. – Teremos de ser pacientes. Eu não vos quero magoar, Catarina. Deveis dizer-me, se alguma coisa vos magoar.

Sem dificuldade, aninhou-se nos seus braços e sentiu aquele corpo a tornar-se hirto, com o seu toque. Com graciosidade, deu um passo atrás, como se movida por modéstia, mas manteve a mão pousada no ombro dele, para o encorajar a avançar, até ter a cama atrás de si. Nessa altura, deixou-se cair para trás até ficar deitada sobre as almofadas, sorrindo-lhe, vendo os olhos azuis escurecer de desejo.

– Desejei-vos desde que vos vi pela primeira vez – confessou, ofegante. Acariciou-lhe o cabelo, o pescoço e o ombro nu, com movimentos apressados, querendo tudo o que havia nela, de uma vez.

Ela sorriu.

– E eu, a vós.

– A sério?

Ela assentiu.

– Sonhei que era eu quem casava convosco, naquele dia. – Ele estava corado, ofegante.

Catarina soltou as fitas da camisa de dormir, deixando o algodão acetinado deslizar para os lados, de maneira a que lhe visse o pescoço, os seios firmes e redondos, a cintura, a sombra negra entre as pernas.

Henrique soltou um pequeno gemido de desejo ao vê-la.

– Já devia ter acontecido há tanto tempo! – sussurrou ela. – Nunca tive outro homem. E agora, estamos casados.

– Ah, Deus, pois estamos – disse ele veementemente. – Estamos casados, por fim.

Mergulhou o rosto no calor do pescoço dela, e sentia-lhe a respiração, rápida e urgente, no cabelo, e o corpo a exercer pressão contra o seu. Catarina sentiu-se reagir. Recordou o toque de Artur e mordeu a ponta da língua, para não esquecer que nunca podia dizer o nome dele em voz alta. Deixou que Henrique se apertasse contra ela, a forçasse e, de repente, estava dentro dela. Soltou um pequeno grito de dor simulada, mas percebeu, com um baque de terror, que não fora suficiente. Não gritara o que devia, o corpo não lhe resistira o suficiente. Fora demasiado calorosa, demasiado acolhedora. Fora fácil de mais. Não tinha grandes conhecimentos, este rapaz inexperiente, mas percebeu que não fora difícil.

Mesmo dominado pelo desejo, quis confirmar. Sabia que alguma coisa não correra como devia. Olhou para baixo, para ela:

– Sois virgem – disse pouco seguro. – Espero não vos estar a magoar muito.

Mas percebeu que não o era. No seu íntimo, compreendeu que ela não era virgem. Não sabia grande coisa, este rapaz superprotegido, mas isso, sabia. Em algum ponto da sua mente, compreendeu que ela mentia.

Ela olhou para cima, para ele:

– Eu era virgem até este momento – proferiu, com um sorriso controlado –, mas a vossa força conseguiu vencer-me. Sois tão forte. Deslumbrastes-me.

O rosto dele continuava perturbado, mas o desejo não lhe permitia esperar. Começou a mover-se, não conseguia resistir ao prazer.

– Fui dominada por vós – encorajou-o ela –, sois o meu marido, haveis tomado o que vos pertence. – Reparou que esquecia a desconfiança, à medida que o desejo ia aumentando. – Vós haveis conseguido o que Artur não foi capaz de fazer – murmurou.

Foram as palavras certas para lhe desencadear o desejo. O jovem soltou um gemido de prazer e caiu sobre Catarina, a sua semente jorrando dentro dela, o acto consumado.

Não me volta a fazer a mesma pergunta. Quer tanto acreditar em mim, que não me volta a perguntar, com receio de obter uma resposta que não lhe agrade. Nisto, é cobarde. Está habituado a receber as respostas que quer ouvir e prefere uma mentira agradável a uma verdade desagradável.

Em parte, é o seu desejo de me possuir, e quer-me como eu era quando me viu pela primeira vez. Uma virgem vestida de branco. Por outro lado, quer provar aos que o avisaram contra a armadilha que lhe preparara que estavam errados. Mas, acima de tudo, odiava e invejava o meu adorado Artur e só me quer porque fui a noiva do irmão, que Deus lhe perdoe por ser um segundo filho, rancoroso e invejoso. Quer que lhe diga que é capaz de fazer algo que Artur não conseguia, que pode ter qualquer coisa que o irmão não conseguiu. Apesar de o meu adorado marido estar já frio e sepultado sob a nave da Catedral de Worcester, a criança que usa a sua coroa continua a querer triunfar sobre ele. A maior mentira não está em afirmar a Henrique que sou virgem, mas em convencê-lo de que é um homem melhor, muito mais homem do que o irmão. E também fui capaz de o fazer.

De madrugada, enquanto dorme, pego no canivete e faço um corte na planta do pé, num local onde não repare na cicatriz, e deixo pingar o sangue no lençol em que nos tínhamos deitado, o suficiente para passar como prova numa inspecção de Sua Alteza, a Avó do Rei, ou qualquer outro inimigo desconfiado, que procure criar-me problemas. Não haverá exposição dos lençóis de um rei e da sua noiva, mas sei que irão fazer perguntas e será melhor que as aias possam afirmar que viram a mancha de sangue, e que me queixo de dores.

De manhã, faço o que se esperaria de uma noiva. Digo que estou fatigada e fico a descansar toda a manhã. Sorrio, olhando o chão, como se descobrisse um doce segredo. Caminho com alguma dificuldade e recuso-me a sair a cavalo para caçar durante uma semana. Faço tudo para dar a ideia de que sou uma jovem mulher que perdeu a virgindade. Convenço toda a gente. Mas, também, ninguém quer acreditar numa versão diferente.

O corte no pé dói-me durante muito, muito tempo e incomoda-me, cada vez que tenho de calçar os sapatos novos, os de grandes fivelas de diamantes. É como uma lembrança da mentira que prometi a Artur que contaria. A grande mentira, com que terei de viver durante o resto da vida. Não me aflige a pequena pontada de dor que sinto, quando enfio o pé direito dentro do sapato. Isso não é nada, comparado com a dor que sinto no mais profundo do meu ser, quando sorrio para o rapaz que é rei, sem o merecer, e lhe chamo «marido», com o meu novo tom de voz adulador.

Verão de 1509

 

Henrique acordou durante a noite e a sua imobilidade silenciosa despertou Catarina.

– Meu senhor? – perguntou.

– Continuai a dormir – disse ele –, ainda não é de dia.

Ela saiu da cama e acendeu uma pequena vela nas cinzas avermelhadas da lareira, e em seguida acendeu uma candeia. Deixou que a visse, com a camisa de noite meio aberta, as ancas macias apenas parcialmente tapadas pela roupa.

– Gostaríeis de beber um copo de cerveja? Ou de vinho?

– Um copo de vinho – pediu – e um para vós, também.

Ela colocou a candeia no suporte de prata e voltou para a cama, para junto dele, com os copos de vinho na mão. Não conseguia decifrar o que lhe ia na mente, mas controlou o acesso de irritação, pois, fosse o que fosse, tinha de se manter acordada, perguntar-lhe o que o incomodava, de lhe demonstrar a sua preocupação. Com Artur, num segundo, seria capaz de descobrir o que queria, no que pensava. Mas qualquer coisa era suficiente para distrair Henrique, uma canção, um sonho, um papel lançado pela multidão. Qualquer coisa podia perturbá-lo. Fora educado e habituado a partilhar os pensamentos, habituado a ser guiado. Necessitava de ter pessoas à sua volta, amigos e admiradores, tutores, mentores, os pais. Gostava de ter com quem conversar. Catarina tinha de fazer o papel de todos.

– Tenho estado a pensar na guerra – contou.

– Ah.

– O rei Luís pensa que nos pode evitar, mas vamos obrigá-lo a entrar em guerra. Dizem-me que quer a paz, mas não aceitarei isso. Sou o rei de Inglaterra, o vencedor de Azincourt. Vai perceber que sou uma força com que terá de se confrontar.

Ela concordou, o pai fora bem claro, ao dizer-lhe que Henrique devia ser encorajado nas ambições de fazer guerra ao rei de França. Escrevera-lhe, em termos muito carinhosos, chamando-lhe a sua filha mais querida, e aconselhou que, qualquer guerra entre Inglaterra e França, fosse iniciada, não na costa norte – o local onde os ingleses começavam a invasão –, mas na fronteira, entre França e Espanha. Sugeria que os ingleses reconquistassem a região da Aquitânia, que ficaria muito feliz por se libertar de França e que pegaria nas armas, em apoio dos invasores. Espanha daria o seu apoio, seria uma campanha fácil e gloriosa.

– De manhã vou mandar fazer uma nova cota de armas – disse Henrique. – Não um fato para torneios, quero uma armadura pesada, para o campo de batalha.

Ela esteve quase a dizer-lhe que não devia ir para a guerra, com tanta coisa para fazer no país. No momento em que o exército inglês partisse para França, os escoceses, apesar de terem uma noiva inglesa no trono, iam aproveitar a oportunidade para invadir o Norte. O sistema de impostos estava crivado de ganância e injustiça e precisava de ser reformado, havia novos planos para escolas, para um conselho real, para fortalezas e uma armada de navios que defendesse a costa. Eram os planos de Artur para Inglaterra, deviam ter prioridade em relação à vontade de Henrique de entrar em guerra.

– Nomearei a minha avó regente, quando for para a guerra – declarou Henrique. – Ela sabe o que deve ser feito.

Catarina hesitou, pondo em ordem os seus pensamentos.

– Sim, de facto – concordou –, mas a pobre senhora já está tão velha! Já fez tanto, talvez seja um fardo demasiado pesado.

Ele sorriu.

– Não para ela! Sempre controlou tudo. É ela que trata das contas reais, sabe o que há a fazer. Penso que nada será demasiado para ela, desde que nos mantenha a nós, os Tudor, no poder.

– Sim – proferiu Catarina, abordando o ressentimento dele –, e reparai como vos controlou tão bem! Nunca vos deixou sair de perto dela, nem por um minuto. Na verdade, não me parece que vos deixasse sair, se o pudesse evitar. Quando éreis um rapazinho, não vos deixava entrar em lutas, não vos deixava jogar, nunca permitiu que tivésseis amigos. Dedicou-se à vossa segurança e bem-estar. Não vos podia ter mais preso, se fôsseis uma princesa. – Riu-se. – Parece-me que pensou que éreis uma princesa, e não um rapaz robusto. Não será altura de descansar um pouco? E de vós terdes alguma liberdade?

O olhar dele, vivo e sombrio, disse-lhe que ganhava esta luta.

– Além disso – continuou, com um sorriso –, se lhe for dado poder sobre o país, vai, de certeza, dizer ao conselho que tereis de voltar para casa, porque a guerra é demasiado perigosa para vós.

– Dificilmente podia impedir-me de ir para a guerra – disse ele, endireitando-se. – Eu sou o rei!

Catarina franziu as sobrancelhas.

– Fazei o que quiserdes, meu amor, mas penso que vos cortará os fundos, se a guerra correr mal. Se ela e o Conselho Privado não confiarem na vossa maneira de conduzir a guerra, não precisam de fazer nada a não ser ficar de braços cruzados, não recolhendo os impostos para o exército. Podereis ser traído pelo vosso país, traído pelo amor dela, quero dizer, enquanto estiverdes a ser atacado no estrangeiro. Podereis descobrir que as pessoas do costume vos impedem de fazer o que quereis. Como sempre tentam fazer.

Ele estava consternado.

– Nunca faria nada contra a minha vontade.

– De propósito, não – Catarina concordou. – Ela pensaria que defendia os vossos interesses. Só que...

– O quê?

– Ela irá pensar que sabe muito mais do que vós. Para ela, sereis sempre um rapazinho.

Reparou que corava, incomodado.

– Para ela, sereis sempre um segundo filho, o que veio depois de Artur. Não o verdadeiro herdeiro. O que não tem capacidades para ocupar o trono. As pessoas de idade não mudam de ideias, nem vêem que tudo está diferente. E realmente, como pode confiar nas vossas decisões, se passou a vida a controlar-vos? Para ela, sereis sempre o príncipe mais novo, o bebé.

– Não me deixarei controlar por uma velha mulher – jurou ele.

– O vosso tempo chegou – concordou Catarina.

– Sabeis o que farei? – perguntou. – Far-vos-ei regente, quando for para a guerra! Governareis o país, enquanto estiver fora. Comandareis as nossas forças dentro do país. Não confiaria em mais ninguém, governaremos juntos. E vós tereis de me apoiar, de acordo com as minhas ordens. Credes que sereis capaz de o fazer?

Ela sorriu-lhe.

– Sei que sou. Não falharei – disse. – Nasci para governar Inglaterra. Manterei o país em segurança enquanto estiverdes ausente.

– É do que preciso – proferiu Henrique. – E a vossa mãe foi uma grande comandante, não foi? Apoiava o marido. Sempre ouvi dizer que ele comandava as tropas, mas ela é que angariava o dinheiro e formava o exército.

– É verdade – respondeu, um pouco surpreendida pelo seu interesse –, ela estava sempre lá, por trás das linhas, planeando as campanhas, certificando-se de que tinha as forças de que necessitava, angariando fundos e soldados; por vezes esteve na frente das batalhas. Tinha a sua armadura e cavalgava com o exército.

– Falai-me dela – pediu, recostando-se nas almofadas –, falai-me de Espanha, de como era, quando éreis uma rapariguinha nos palácios de Espanha. Como era viver em, como se chamava, Alhambra?

Era demasiado parecido com o que acontecera antes, como se uma sombra se espalhasse sobre o seu coração.

– Ah, quase já não me lembro de tudo – referiu, sorrindo para o seu rosto ansioso. – Não há nada para contar.

– Vá lá, contai-me uma história sobre esse lugar.

– Não, não vos posso dizer nada. Sabeis que há muito tempo que sou uma princesa inglesa. Não vos podia contar nada sobre esse assunto.

De manhã Henrique estava cheio de energia, entusiasmado com a ideia de mandar fazer a cota de armas, à procura de uma razão para declarar guerra. Acordou-a com beijos e deitou-se em cima dela, como uma criança ansiosa, enquanto ela acordava. Apertou-o contra si, deixou-o ter o seu prazer rápido e egoísta e sorriu quando se levantou e saiu da cama num salto, batendo com força na porta, chamando os guardas aos gritos, para que o levassem para os seus aposentos.

– Hoje, quero andar a cavalo antes da missa – disse. – Está um dia tão bonito. Quereis vir comigo?

– Encontrar-me-ei convosco na missa – prometeu Catarina. – E depois podeis tomar o pequeno-almoço comigo, se quiserdes.

– Tomaremos o pequeno-almoço no salão – decidiu. – E depois vamos caçar. O tempo está demasiado agradável para não levar os cães a passear. Vireis comigo, não é verdade?

– Irei – garantiu ela, sorrindo pela sua exuberância. – E podíamos fazer um piquenique.

– Sois a melhor das esposas! – exclamou. – Um piquenique seria maravilhoso. Dizei-lhes que tragam músicos, para dançarmos? E trazei as damas, trazei todas as damas, e dançaremos todos.

Ela conseguiu alcançá-lo antes de ele sair pela porta.

– Henrique, posso chamar lady Margarida Pole? Vós gostais dela, não é? Posso tê-la como dama de companhia?

Ele entrou no quarto, abraçou-a e beijou-a apaixonadamente.

– Podeis escolher quem quiserdes para vos servir. Sempre, quem vós quiserdes. Mandai chamá-la, sei que é uma verdadeira senhora. E escolhei também lady Isabel Bolena, está na corte, após o seu afastamento. Teve outra rapariga.

– Que nome lhe vai dar? – perguntou Catarina, divertida.

– Maria, creio, ou Ana. Não me lembro. Agora, quanto à nossa dança...

Ela sorriu-lhe.

– Vou arranjar um grupo de músicos e bailarinos e, se descobrir zéfiros com voz suave, também os levarei.

Riu-se da felicidade patente no rosto dele. Já ouvia os passos da guarda real a chegar à porta.

– Encontramo-nos na missa.

Casei com ele por causa de Artur, pela minha mãe, por Deus, pela nossa causa e por mim mesma. Mas, pouco tempo depois, comecei a amá-lo. É impossível não amar um rapaz tão bondoso, enérgico e bem-humorado como Henrique, nestes primeiros anos do reinado. Nunca conheceu nada que não fosse admiração e bondade, não espera menos do que isso. Acorda alegre, todas as manhãs, cheio de confiança e expectativa num dia feliz. E, uma vez que é o rei, e que está rodeado de cortesãos e bajuladores, tem sempre um dia feliz. Quando o trabalho o preocupa ou algumas pessoas se aproximam com queixas desagradáveis, olha em volta, à procura de alguém que o liberte daquele aborrecimento. Nas primeiras semanas, era a avó que governava; aos poucos, assegurei-me de que era a mim a quem confiava o fardo de governar o reino.

O Conselho Privado aprendeu a vir ter comigo para averiguar o que o rei pensaria. É-lhes mais fácil apresentar uma carta ou uma sugestão, se eu já o tiver preparado antecipadamente. Em pouco tempo, os cortesãos percebem que qualquer coisa que o leve a afastar-se de mim, qualquer atitude que faça o país afastar-se da aliança com Espanha, me desagradará, e que Henrique não gosta de me ver franzir o sobrolho. Homens que procuram uma situação melhor, defensores pedindo ajuda, suplicantes que pedem justiça, já compreenderam que o caminho mais rápido para obterem uma solução justa e expedita é visitar, em primeiro lugar, os aposentos da rainha, e esperar que os apresente.

Nunca tenho de pedir a ninguém que se dirija a ele com tacto. Sabem que qualquer pedido lhe deve chegar às mãos como se fosse original, feito pela primeira vez. Sabem que a auto-estima num jovem é algo muito recente, muito vivo, que nunca deve ser ensombrado. Têm um bom exemplo na pessoa da avó que está, gentil mas implacavelmente, a ver-se posta de lado, porque não se coíbe de o aconselhar perante todos, por tomar decisões sem o consultar porque uma vez – de forma insensata – o repreendeu. Henrique é um rei tão despreocupado que seria capaz de entregar as chaves do reino a qualquer pessoa em quem confiasse. O meu estratagema é fazer com que confie apenas em mim.

Tenho a preocupação de nunca o culpar por não ser Artur. Durante os sete anos da minha viuvez, ensinei a mim mesma que a vontade de Deus se cumpriu, quando levou Artur para longe de mim, e não faz sentido culpar os que sobreviveram, só porque o melhor príncipe morreu. Artur morreu, levando consigo a minha promessa, e posso considerar-me, de facto, afortunada, por o casamento com o irmão não ser uma promessa que tenha de suportar, mas uma promessa que me faz feliz.

Gosto de ser rainha. Gosto de possuir coisas bonitas, jóias valiosas, um cão de regaço e um grupo de aias cuja companhia é um prazer. Agrada-me pagar a María de Salinas a longa dívida que tinha para com ela, vê-la encomendar uma dúzia de vestidos novos e apaixonar-se. Fico feliz por escrever a lady Margarida Pole, chamando-a para a minha corte, por cair nos seus braços, chorando de alegria por tornar a vê-la, com a promessa que me faz de ficar a meu lado. Agrada-me ter a certeza de que a sua discrição é absoluta; nunca diz uma única palavra sobre Artur. Mas fico feliz por ela saber quanto me custou aceitar este casamento, e a razão por que o fiz. Gosto que me veja construir a Inglaterra de Artur; mesmo que seja Henrique quem está no trono.

O primeiro mês do nosso casamento não é, para Henrique, mais do que uma sequência de festas, celebrações, caçadas, passeios, viagens de lazer, passeios de barco, espectáculos de teatro e torneios. Parece um rapazinho que esteve fechado numa sala de aulas muito tempo e a quem foram concedidas férias de Verão. O mundo, para ele, está tão cheio de divertimento, que a mais pequena experiência lhe dá o maior prazer. Adora caçar – nunca o autorizaram a ter um cavalo veloz. Adora participar em torneios, mas o pai e a avó nem permitiam que o seu nome aparecesse nas listas. Aprecia a companhia de homens experientes que, cuidadosamente, adaptam as conversas e os divertimentos ao gosto dele. Adora a companhia das mulheres, mas – graças a Deus – a devoção infantil que tem por mim faz com que me seja fiel. Gosta de conversar com mulheres bonitas, jogar cartas com elas, de as ver dançar e de as recompensar com valiosos prémios por coisas insignificantes – mas olha sempre para mim, para se certificar que aprovo a sua atitude. Está sempre a meu lado, olhando-me, do alto da sua grande estatura física, com um ar de tão grande devoção, que me torna impossível deixar de ser carinhosa com ele, por tudo o que me proporciona; dentro de pouco tempo acabarei por amá-lo, pela pessoa que é.

Rodeou-se de uma corte de homens e mulheres novos, que são um contraste tão grande com a corte do pai que, só com a sua presença, já demonstram como tudo mudou. A corte do pai estava repleta de homens velhos, homens que passaram juntos por tempos difíceis, alguns, endurecidos pelas batalhas; todos, pelo menos uma vez, haviam perdido e reconquistado as suas terras. A corte de Henrique está recheada de homens que nunca conheceram dificuldades, que nunca foram postos à prova.

Fiz questão de nunca dizer fosse o que fosse para o criticar, ou ao grupo de jovens irreverentes que se juntam à sua volta. Designam-se os Minions, os Favoritos, e incentivam-se com apostas loucas e disparates, durante o dia e – segundo as más-línguas – também metade da noite. Henrique foi mantido tão sossegado e isolado durante a sua infância que me parece natural que queira sentir-se livre e que aprecie estes jovens que se vangloriam de grandes bebedeiras e lutas, de perseguições e de ataques, das raparigas que seduzem e dos pais, que os perseguem com bastões. O seu melhor amigo é William Compton; andam os dois por aí metade do dia, com o braço por cima do ombro um do outro, como se se preparassem para dançar ou entrar numa luta. Não há malícia em William, é apenas tão tolo como o resto da corte. Adora Henrique, como um bom camarada e finge uma tão grande adoração por mim que nos faz rir. Metade dos Favoritos finge estar apaixonada por mim e permito-lhes dedicarem-me versos e cantarem-me canções, mas tomo as providências necessárias para que Henrique saiba que as suas canções e os seus poemas são os melhores.

Os membros mais idosos da corte desaprovam e fazem críticas severas aos amigos turbulentos do rei, mas não digo nada. Quando os conselheiros vêm ter comigo com queixas, lembro-lhes que o rei é um jovem e que é próprio da sua juventude. Não há nada de perigoso em nenhum dos companheiros; quando não bebem, são jovens adoráveis. Um ou dois, como o duque de Buckingham, que há já muito tempo me recebera, ou o jovem Tomás Howard, são jovens óptimos, que seriam apreciados em qualquer corte. A minha mãe teria gostado deles. Mas quando os rapazes estão bem bebidos, tornam-se barulhentos e brigões, facilmente excitáveis como todos os jovens; quando estão sóbrios, só dizem patetices. Olho para eles com os olhos da minha mãe e percebo que são os rapazes que virão a ser os oficiais do nosso exército. Quando entrarmos em guerra, a sua coragem e energia serão as qualidades de que iremos necessitar. Os jovens mais ruidosos e os que provocam mais confusão em tempo de paz são os chefes de que vou necessitar em tempo de guerra.

Depois de ter enterrado um marido ou dois, a nora, um neto e, por fim, o seu querido príncipe, lady Margarida, a avó do rei, estava cansada de lutar pelo seu lugar no mundo e Catarina tinha muito cuidado para não provocar a velha inimiga e criar uma guerra aberta. Graças à discrição de Catarina, a rivalidade entre as duas mulheres não era um espectáculo público – qualquer pessoa que esperasse ver lady Margarida tratar mal a mulher do neto, como havia insultado a mulher do filho, ficaria desapontada. Catarina furtava-se aos conflitos.

Uma vez, lady Margarida tentou reclamar o seu direito de precedência, querendo chegar ao salão de jantar alguns passos à frente de Catarina, mas esta, uma princesa de sangue, infanta de Espanha e, agora, rainha de Inglaterra, recuou e deixou-a passar primeiro, com um ar tão generoso que todos repararam no belo gesto da nova rainha. Catarina fez com que a mulher mais velha seguisse à sua frente, de uma forma que contrariava as regras de precedência e que, de certa forma, enfatizava a tosca correria de lady Margarida para chegar à mesa principal, antes da neta. Também viram Catarina recuar subtilmente, e comentaram a graça e a bondade da mulher mais nova.

A morte do filho de lady Margarida, o rei Henrique, abalara a velha senhora. Não era tanto por ter perdido um filho adorado, mas por ter perdido uma causa. Sem ele, não tinha forças para obrigar o Conselho Privado a informá-la dos assuntos, antes de se dirigir aos aposentos do rei. A despreocupação com que Henrique perdoara aos devedores do pai e libertara os prisioneiros fora um insulto à memória de Henrique e à sua governação. A súbita mudança na corte, agora cheia de juventude, liberdade e divertimento, fazia com que se sentisse velha e mal-humorada. Ela, que em tempos fora o comandante da corte e a ditadora das regras, fora posta de lado. A sua opinião não tinha peso. O grande livro, pelo qual os acontecimentos da corte deviam ser geridos, fora escrito por ela; mas, de repente, surgiam festividades que não estavam previstas no livro, inventavam-se passatempos e actividades, sem que alguém a consultasse.

Culpava Catarina pelas mudanças que lhe desagradavam e Catarina sorria com doçura, incentivando o jovem rei a ir à caça, a dançar e a deitar-se tarde. A velha senhora resmungava com as aias, afirmando que a rainha era irreflectida e frívola e que levaria o príncipe à desgraça. De maneira insultuosa, chegou a afirmar que não se admirava que Artur tivesse morrido, se era desta forma que a rapariga espanhola considerava que uma casa real devia ser conduzida.

Lady Margarida Pole discutia com a sua antiga amiga com o maior tacto.

– Alteza, a rainha tem uma corte alegre, mas é incapaz de agir contra a dignidade do trono. Aliás, sem ela, a corte seria mais indomável. É o rei quem insiste num prazer atrás do outro. A rainha é que controla o comportamento da corte. Os rapazes adoram-na e ninguém bebe ou se porta indignamente, diante dela.

– Mas é a rainha quem considero culpada – disse, zangada, a velha mulher. – A princesa Leonor nunca se portaria desta maneira. Ficaria alojada nos meus aposentos, e a corte seria conduzida de acordo com as minhas regras.

Catarina não sabia de nada, nem quando as pessoas vinham ter com ela e lhe repetiam as calúnias. Ignorava a avó do marido e a torrente constante das críticas. Não podia ter feito nada que a irritasse mais.

Era o horário tardio que a corte agora observava o que provocava mais queixas da velha senhora. Tinha de esperar cada vez mais tempo para que o jantar fosse servido. Queixava-se que era tão tarde que seria impossível que os criados acabassem de servir o jantar antes da madrugada, e retirava-se para os seus aposentos, mesmo que a corte ainda não tivesse acabado de comer.

– Deitais-vos muito tarde – disse ela a Henrique. – É um disparate, precisais de dormir. Ainda sois um rapazinho, não devíeis passar toda a noite a divertir-vos. Não aguento este horário e é um desperdício de velas.

– Sim, senhora minha avó, mas vós tendes quase setenta anos – proferiu paciente –, e precisais do vosso repouso. Deveis retirar-vos quando quiserdes. Catarina e eu somos jovens, é natural que queiramos ficar acordados até tarde. Gostamos de nos divertir.

– Ela devia estar a descansar, tem de conceber um herdeiro! – exclamou lady Margarida irritada. – Não o conseguirá, andando a abanar-se numa dança com um bando de imbecis. Mascaradas, todas as noites! Quem ouviu falar de tal coisa? E quem vai pagar?

– Estamos casados há menos de um mês! – bradou ele, já irritado. – Estes são os festejos do nosso casamento. Parece-me que nos podemos divertir com passatempos agradáveis e ter uma corte alegre. Gosto de dançar.

– Agis como se o dinheiro não tivesse fim – cortou ela. – Quanto vos custou este jantar? E o da noite passada? Só as ervas aromáticas devem custar uma fortuna. E os músicos? Este país tem de amealhar a sua riqueza, não se pode dar ao luxo de ter um rei esbanjador. Não faz parte dos hábitos ingleses ter um peralvilho no trono e uma corte de mascarados.

Henrique corou e preparava-se para dar uma resposta dura.

– O rei não é um esbanjador – interrompeu Catarina. – Isto apenas faz parte dos festejos do casamento. O vosso filho, o falecido rei, sempre pensou que a corte devia ser alegre, que as pessoas deviam saber que a corte era rica e animada. O rei Henrique está a seguir as pisadas do seu sensato pai.

– O pai não era um jovem tolo, controlado pela esposa estrangeira! – retrucou a velha senhora com desdém.

Os olhos de Catarina abriram-se e colocou a mão na manga de Henrique, para evitar que ele falasse.

– Eu sou a sua parceira e ajudante, como Deus me exige! – falou com suavidade. – Tal como vós gostaríeis que fosse, tenho a certeza.

A velha senhora resmungou.

– Ouvi dizer que vos gabais de ser mais do que isso – começou a dizer.

Os dois jovens aguardaram. Catarina sentia a agitação de Henrique, sob a leve pressão da sua mão.

– Ouvi dizer que o vosso pai vai retirar o embaixador. Estou certa? – Olhou para ambos com um olhar feroz. – Com certeza, já não precisa de um embaixador. A mulher do rei de Inglaterra está ao serviço de Espanha, ela será o embaixador de Espanha. Como é possível?

– Senhora, minha avó... – explodiu Henrique, mas Catarina manteve-se muito calma.

– Eu sou uma princesa de Espanha, seria capaz de representar o meu país de nascimento junto do meu país por casamento. Tenho orgulho em desempenhar essa tarefa. E claro que direi a meu pai que o seu adorado filho, meu marido, está bem, que o país é próspero. Obviamente, direi a meu marido que o meu querido pai o quer ajudar, tanto na paz como na guerra.

– Quando entrarmos em guerra... – começou Henrique a dizer.

– Guerra? – perguntou a velha senhora com expressão sombria. – Por que haveríamos de entrar em guerra? Não temos desentendimentos com França. Só o pai dela está interessado na guerra com a França, mais ninguém. Dizei-me que nem vós seríeis tão louco ao ponto de nos levar para a guerra, para lutar por Espanha! O que sois vós agora? O moço de recados? Seu vassalo?

– O rei de França é um perigo para todos! – disse Henrique. – E a glória de Inglaterra tem sido sempre...

– Tenho a certeza de que Sua Alteza, a vossa avó não pretendia discordar da vossa opinião, senhor – falou Catarina com suavidade. – São tempos de mudança e não esperamos que as pessoas de idade compreendam, quando as coisas mudam tão depressa.

– Ainda não estou senil! – exclamou colérica. – E sei reconhecer o perigo, quando o vejo. E reconheço interesses divididos quando os vejo. E identifico uma espia espanhola...

– Vós sois um valiosa conselheira – assegurou-lhe Catarina – e o senhor, meu rei, e eu, sentimo-nos muito felizes com os vossos conselhos. Não é, Henrique?

Ele ainda estava zangado.

– Azincourt foi...

– Estou cansada – anunciou a velha senhora – e vós distorceis tudo, vezes sem conta. Vou para o meu quarto.

Catarina fez-lhe uma profunda e respeitosa vénia, Henrique apenas inclinou a cabeça, num mínimo de delicadeza. Quando Catarina se ergueu, a velha senhora já tinha desaparecido.

– Como pode dizer tais coisas? – perguntou Henrique. – Como suportais ouvi-la, quando diz coisas destas? Faz-me vontade de berrar, como um urso apanhado numa armadilha! Não compreende nada, e insulta-vos! E vós ficais parada a ouvi-la!

Catarina riu-se, tomou a sua cara zangada entre as mãos e beijou-o nos lábios.

– Ah, Henrique, quem se importa com o que pensa quando não pode fazer nada? Já ninguém presta atenção ao que diz.

– Vou declarar guerra a França, apesar do que pense – prometeu ele.

– É evidente que sim, quando chegar a altura.

Disfarço a minha vitória sobre ela, mas saboreio o seu gosto, e é doce. Penso para mim que, um dia destes, as outras pessoas que atormentaram a minha viuvez, as princesas, irmãs de Henrique, também conhecerão o meu poder. Mas posso esperar.

Lady Margarida pode ser idosa, mas nem as pessoas mais velhas da corte reúne ao seu redor. Conhecem-na desde sempre, os vínculos de parentesco, de tutoria, a rivalidade e as contendas, correm no seu seio como veios no mármore sujo. Nunca gostaram dela, nem como mulher nem como mãe do rei. Era descendente de uma das grandes famílias do país mas, quando subiu de posição, depois de Bosworth, ostentou a sua importância. Apesar de gozar de uma reputação considerável como mulher erudita e santa, não é estimada. Sempre fez questão de evidenciar a sua posição social como mãe do rei, acabando por criar um fosso entre si e os outros membros da corte.

À medida que se afastam dela, tornam-se meus amigos: lady Margarida Pole, obviamente, o duque de Buckingham e as irmãs, Elizabeth e Anne, Tomás Howard e os filhos, sir Thomas e lady Isabel Bolena, o mais querido de todos, William Warham, arcebispo da Cantuária, George Talbot e sir Henry Vernon, que já conhecia de Gales. Todos sabem que, apesar de Henrique negligenciar os assuntos do reino, eu estou aqui, para tomar conta de tudo.

Consulto-os para saber a sua opinião, partilho com eles as esperanças que eu e Artur tínhamos. Com os homens do Conselho Privado, transformo o reino num país poderoso e pacífico. Começamos a pensar no que devemos fazer para que as leis sejam observadas de costa a costa, de igual modo, ao longo dos baldios, das montanhas e das florestas. Trabalhamos nas linhas de defesa da costa. Iniciamos uma investigação, para saber que barcos podem ser integrados numa força naval e a criar listas de homens que formarão um exército. Tomei as rédeas do reino nas minhas mãos e descobri que sei o que devo fazer.

Política de Estado é o trabalho da minha família. Costumava sentar-me aos pés da minha mãe, na sala do trono do Palácio de Alhambra e ouvia o meu pai, na dourada e lindíssima Sala dos Embaixadores. Aprendi, no mesmo sítio e nas mesmas lições, a arte e a capacidade de reinar, a conhecer o que é belo, a música e a arte da construção. O meu gosto por belos mosaicos, por delicados rendilhados de estuque iluminados pela brilhante luz do Sol e o meu interesse pelo poder foram adquiridos ao mesmo tempo. Tornar-me rainha regente foi como se voltasse a casa. Sinto-me feliz como rainha de Inglaterra. Ocupo a posição para a qual nasci e fui educada.

A avó do rei estava deitada no leito ornamentado, cujas espessas cortinas estavam corridas para que a sombra a protegesse. Aos pés da cama uma das damas de companhia segurava, sem se queixar, uma custódia, para que visse o Corpo de Cristo na sua branca pureza, através do vidro lapidado em forma de diamante. A moribunda fixou os olhos nele e, de vez em quando, olhava para o crucifixo de marfim na parede junto à cama, ignorando o suave murmúrio das orações à sua volta.

Catarina ajoelhou-se ao fundo da cama, com a cabeça inclinada e um rosário de coral nas mãos, rezando silenciosamente. Lady Margarida, confiante num bem merecido lugar no Céu, deslizava para fora do seu lugar na Terra.

Do lado de fora, na antecâmara, Henrique esperava que lhe dissessem que a avó morrera. O último elo da infância subjugada quebrar-se-ia com a sua morte. Os anos em que fora o segundo filho, esforçando-se para que reparassem nele, sorrindo, tentando parecer o mais esperto, seriam passado. Dali em diante, os que viessem a conhecê-lo, vê-lo-iam como o membro mais velho da família, o mais importante da sua linhagem. Já não existiria nenhuma velha dama Tudor, faladora e mordaz, para vigiar este ingénuo príncipe, para o rebaixar com uma só palavra, no momento em que começava a desabrochar. Quando morresse, ele podia ser um homem, e fazer o que entendesse. Já não haveria ninguém que visse nele uma criança. Embora, por fora, exibisse um ar devoto, enquanto esperava a notícia da sua morte, por dentro, ansiava que lhe dissessem que partira, que se tornara independente, por fim um homem e um rei. Não fazia ideia de que necessitava, desesperadamente, dos seus conselhos.

– Ele não deve entrar em guerra – disse, da cama, com voz rouca, a avó do rei.

A dama de companhia susteve a respiração, admirada com a súbita clareza de discurso da sua senhora. Catarina levantou-se.

– Que haveis dito, Alteza?

– Ele não deve entrar em guerra – repetiu. – O que devemos fazer é manter-nos afastados das guerras intermináveis da Europa, ficarmos deste lado dos mares, em segurança, longe daquelas rixas entre príncipes. O que devemos fazer é manter o reino em paz.

– Não – disse Catarina com firmeza. – O que devemos fazer é levar a cruzada ao coração da Cristandade e mais além. É fazer de Inglaterra o principal país a levar a Igreja à Europa, à Terra Santa, a África, aos turcos, aos sarracenos, até ao fim do mundo.

– Os escoceses...

– Eu derrotarei os escoceses – proferiu Catarina com firmeza. – Estou bem ciente desse perigo.

– Não lhe permiti que casasse convosco para o conduzirdes para a guerra. – Os olhos negros flamejavam de ressentimento.

– Vossa Alteza não permitiu que casasse comigo. Sempre se opôs, desde o princípio – declarou Catarina arrojada. – E eu casei com ele, para que organizasse uma grande cruzada.

Catarina ignorou o pequeno soluço da aia, para quem uma mulher que estava às portas da morte não devia ser contrariada.

– Tendes de me prometer que não o deixareis entrar em guerra – pediu a velha senhora, num murmúrio. – A promessa feita a uma moribunda, no meu leito de morte. Exijo-o de vós, no meu leito de morte, como um dever sagrado.

– Não – Catarina negou. – Eu não, outra vez, não. Já fiz uma promessa a um moribundo e transformou a minha vida num inferno. Não farei outra, muito menos a vós. Vivestes a vossa vida e construístes o vosso mundo como quisestes. Agora é a minha vez. Hei-de ver um filho meu ser rei de Inglaterra e, talvez, rei de Espanha. Verei o meu marido comandar uma cruzada gloriosa contra os mouros e os turcos. Quero ver o meu país, Inglaterra, ocupar o seu lugar no mundo, o lugar a que tem direito. Verei Inglaterra no coração da Europa, como chefe da Europa. E serei eu quem o vai defender e manter seguro. Eu vou ser a rainha de Inglaterra, como vós nunca fostes.

– Não... – disse a velha senhora num suspiro.

– Sim – jurou Catarina intransigente. – Agora sou a rainha de Inglaterra e serei até morrer.

A velha senhora ergueu-se, lutando para respirar.

– Rezai por mim! – ordenou à jovem, como se lhe lançasse uma maldição. – Cumpri o meu dever para com Inglaterra, para com os Tudor. Fazei com que o meu nome seja lembrado como o de uma rainha.

Catarina hesitou. Se aquela mulher não lutasse por si própria, pelo filho e pelo país, os Tudor não estariam no trono.

– Rezarei por vós – acedeu de má vontade –, e sempre que houver uma missa cantada em Inglaterra, enquanto a Santa Igreja Católica Romana existir em Inglaterra, o vosso nome será lembrado.

– Para sempre! – disse a velha senhora, feliz, acreditando que algumas coisas nunca mudariam.

– Para sempre – concordou Catarina.

Menos de uma hora depois, morreu, e tornei-me rainha, uma rainha governante, com inegável poder, sem rival, mesmo antes da coroação. Ninguém na corte sabe o que fazer, não há ninguém que dê uma ordem coerente. Henrique nunca organizou um funeral real, como saberia por onde começar? Como podia avaliar a amplitude das celebrações dedicadas à avô? Quantas pessoas deviam ser convidadas para o funeral? Quanto tempo de luto se decretaria? Onde ser enterrada? Como devia ser conduzida a cerimónia?

Mando chamar o meu mais antigo amigo em Inglaterra, o duque de Buckingham, que me recebera, anos antes, quando cheguei e que é o mestre-de-cerimónias, e peço-lhe que mande lady Margarida Pole vir à minha presença. As aias trazem-me o enorme volume do cerimonial, O Livro Real, escrito pela avó do rei e dou início à tarefa de organizar o meu primeiro evento público em Inglaterra.

Tenho sorte, pois, escondidas na capa do livro, encontro três páginas com instruções, escritas à mão. A vaidosa senhora determinara a ordem do cortejo que queria para o funeral. Lady Margarida e eu ficamos espantadas com o número de bispos cuja presença determinava, o número de pessoas que deviam transportar o caixão, as que deviam segui-lo em silêncio, as carpideiras, as decorações nas ruas, a duração do período de luto.

Mostrei-as ao duque de Buckingham, em tempos seu defensor, que não diz uma palavra mas que, num discreto silêncio, apenas sorri, abanando a cabeça. Escondendo a minha indigna sensação de triunfo, pego numa pena, mergulho-a em tinta preta, corto pela metade e, então, começo a dar ordens.

Foi uma cerimónia tranquila, com suave dignidade, e todos ficaram a saber que fora dirigida e encomendada pela noiva espanhola. Os que ainda não o sabiam compreenderam que a rapariga que esperara sete anos para subir ao trono de Inglaterra não desperdiçara o seu tempo. Conhecia o temperamento dos ingleses, sabia como organizar um espectáculo que apreciassem. Conhecia as tendências da corte, o que consideravam elegante, o que definiam como indigno. E, tendo nascido princesa, sabia como governar. Naqueles dias, antes da coroação, Catarina estabeleceu-se como rainha inquestionável, e os que a haviam ignorado, durante os anos de pobreza, descobriam um enorme afecto e respeito pela princesa.

Aceitava essa admiração, do mesmo modo que aceitara o seu desinteresse, com uma tranquila delicadeza. Percebeu que, ao organizar o funeral da avó do rei, se transformara na mulher mais importante da nova corte, o árbitro das decisões relacionadas com a vida da corte. Com este desempenho único e brilhante, tornara-se o mais avançado chefe de Inglaterra, segura de que, depois deste triunfo, ninguém seria capaz de a suplantar.

Decidimos não cancelar a cerimónia da nossa coroação, apesar de ser precedida pelo funeral de Sua Alteza, a Avó do Rei. Já está tudo preparado e consideramos que não devemos fazer nada que impeça a alegria da cidade ou do povo, que veio de todas as partes do país, para ver o jovem Henrique receber a coroa que pertencera ao pai. Dizem que alguns fizeram o caminho de Plymouth, os mesmos que me viram desembarcar, uma rapariguinba assustada e enjoada, há tantos anos. Não lhes diremos que a grande celebração pela ascensão de Henrique ao trono e pela minha coroação foi cancelada, só porque uma velha e amarga senhora decidiu morrer numa altura inconveniente. Concordamos que o povo espera uma grande festa, e que não lha podemos negar.

Para ser sincera, é Henrique quem não suporta um contratempo. Prometera a si próprio um grande momento de glória e não iria perdê-lo, por nada neste mundo. E de certeza que não o faria devido à morte desta velha mulher, que passara os últimos anos da vida a impedi-lo de fazer o que queria.

Concordo com ele. Na minha opinião, a avó conquistou o poder e gozou a sua vida; agora é a nossa vez. Sei que é da vontade do povo e da corte celebrar a subida de Henrique ao trono, comigo a seu lado. Para alguns, os que sempre se interessaram por mim, é uma grande alegria ver que eu, por fim, vou ser coroada. Decido, e não há ninguém que o possa fazer, que vamos em frente. E é isso que fazemos.

Sei que a dor de Henrique pela morte da avó é superficial; o seu luto é só para os outros verem. Vi-o, quando saí do quarto da avó, e percebeu, uma vez que eu abandonara a sua cabeceira, que devia ter morrido. Os ombros alargaram e ergueram-se, como se se libertasse do fardo do seu controlo, como se a sua mão magra, carinhosa e manchada pela idade fosse um peso enorme no seu pescoço. Reparei no seu breve sorriso, na sua felicidade por estar vivo, jovem e cheio de energia, e por ela ter desaparecido. Depois, vi-o compor uma expressão convencional de tristeza, encaminhei-me para ele, com uma expressão grave, e disse-lhe, numa voz baixa e triste, que morrera, ao que ele me respondeu no mesmo tom.

Ainda bem que descobri que ele também sabe ser hipócrita. A sala da corte, no Palácio de Alhambra, tem muitas portas; o meu pai disse-me que um rei deve poder sair por uma porta e entrar por outra, sem que as pessoas saibam o que lhe vai na mente. Sei que para governar é necessário ser prudente. Henrique é um rapaz, por agora, mas um dia será um homem e terá de tomar as suas decisões e ser sensato. Não me posso esquecer de que pode dizer uma coisa e pensar outra.

Mas aprendi algo mais a seu respeito. Quando vi que não chorara, nem uma lágrima verdadeira, pela avó, percebi que este rei, o nosso Henrique dourado, tem um coração frio em que ninguém pode confiar. Fora como uma mãe para ele, a figura dominante da sua infância. Tratara dele, tomara conta dele, ela mesma o ensinara. Supervisionara os seus momentos despertos e protegera-o de tudo o que pudesse ser desagradável; mantivera-o afastado de tutores que lhe ensinassem coisas mundanas e só o deixava passear em jardins criados por ela. Passara horas de joelhos, rezando por ele, e insistira para que aprendesse as regras e o poder da Igreja. Mas, quando se atravessou no seu caminho, negando-lhe certos prazeres, passou a vê-la como inimiga. Não é capaz de perdoar a alguém que lhe recuse algo que deseje. Por isto, sei que este rapaz, este rapaz amoroso, tornar-se-á um homem cujo egoísmo constituirá um perigo para ele mesmo e para os que estão à sua volta. Um dia, poderemos desejar que a avó o educasse melhor.

24 de Junho de 1509

 

Catarina foi transportada da Torre para Westminster como uma princesa inglesa. Viajou numa liteira feita de pano de ouro, transportada no alto de quatro palafréns brancos, para que todos a vissem. Envergava um vestido de cetim branco e uma tiara enfeitada de pérolas, o cabelo penteado para trás, caído sobre os ombros. Henrique foi coroado primeiro e, em seguida, Catarina baixou a cabeça e recebeu o óleo sagrado da coroação, na cabeça e no peito; depois, estendeu a mão para segurar o ceptro e a vara de marfim, tomando consciência de que era uma rainha, como a mãe. Uma rainha ungida, um ser superior para os meros mortais, um passo mais perto dos anjos, escolhida por Deus para governar o Seu país, sob a Sua protecção especial. Sabia que, por fim, cumprira o destino para o qual nascera, ocupara o seu lugar como prometera. Sentou-se num trono um pouco mais baixo do que o do rei Henrique e a multidão que aclamava o jovem e belo rei que subia ao trono também a ovacionou, a princesa espanhola, que fora determinada contra as adversidades e que fora coroada rainha Catarina de Inglaterra.

Esperei tanto tempo por este dia que, quando chega, parece um sonho, os sonhos que tivera com os meus maiores desejos. Revejo a cerimónia da coroação; o meu lugar no cortejo, a minha cadeira do trono, a leveza da vara de marfim na mão, a outra segurando o pesado ceptro, o aroma intenso e profundo do óleo sagrado na testa e peito, como se fosse mais um sonho em que sinto a falta de Artur.

Mas desta vez é real.

Quando saímos da abadia e ouço a multidão ovacioná-lo e a mim, volto-me para olhar o meu marido que está ao meu lado. Fico chocada, com um choque súbito, como quando acordamos de repente no meio de um sonho, por não ser Artur. Não é o meu amor. Esperara ser coroada com Artur, subirmos ao trono ao mesmo tempo. Mas, no lugar do rosto belo e pensativo do meu marido, está o semblante redondo e corado de Henrique. Em vez da graça tímida e juvenil do meu marido, tenho a meu lado a insolência exuberante de Henrique.

Apercebo-me nesse momento de que Artur está mesmo morto, que me abandonou de vez. Cumpro a minha parte da promessa, casando com o rei de Inglaterra, apesar de ser Henrique. Queira Deus que Artur cumpra a sua parte, tomando conta de mim, no al-Yanna, e que me espere. Um dia, quando a minha tarefa estiver cumprida e puder ir ter com o meu amado, viverei com ele para sempre.

– Estais feliz? – pergunta-me o rapaz, gritando para se fazer ouvir acima do repicar dos sinos e das ovações da multidão. – Estais feliz, Catarina? Estais contente por ter casado convosco? Por serdes rainha de Inglaterra, por vos ter dado esta coroa?

– Estou muito feliz – assegurei-lhe. – Eu sou rainha de Inglaterra – digo eu, recordando Artur quando disse as mesmas palavras. – Sou a rainha Catarina de Inglaterra.

– Muito bem! – exclamou ele. – É fantástico, seremos o rei Henrique e a rainha Catarina.

Este é o rei, mas não é Artur, é Henrique. Eu sou a rainha Catarina, uma verdadeira inglesa e não a rapariguinha que, em tempos, esteve tão apaixonada pelo príncipe de Gales.


Catarina, rainha de Inglaterra


Verão de 1509

A corte, embriagada de felicidade, deliciando-se na sua juventude, com liberdade, passou o Verão a divertir-se. As viagens de uma casa bonita e acolhedora para outra duraram dois meses, enquanto Henrique e Catarina caçavam, jantavam nos bosques verdejantes, dançavam até à meia-noite e gastavam dinheiro como água. As grandes carroças de carga da casa real seguiam pelas veredas poeirentas de Inglaterra para que a próxima brilhasse com o ouro e as tapeçarias, de modo a que o leito real, que partilhavam todas as noites, fosse preparado com as melhores roupas e as peles mais macias.

Henrique não tratava de nenhum assunto. Escreveu uma vez ao sogro, para lhe contar que era muito feliz, mas o resto do trabalho da responsabilidade do rei seguia-o dentro de caixas, de um castelo ou de uma mansão, no meio de um belíssimo parque, para outro. As caixas eram abertas e a correspondência lida apenas por Catarina, rainha de Inglaterra, que mandava os escriturários escrever as suas ordens para o Conselho Privado, e que depois eram mandadas por ela ao rei, para assinar.

Só em meados de Setembro a corte voltou para Richmond, mas Henrique declarou que a festa devia continuar. Por que haviam de deixar de se divertir? O tempo estava bom, podiam caçar e passear de barco, fazer torneios de tiro com arco ou de ténis, festas e bailes de máscaras. Os nobres e os fidalgos afluíam a Richmond, para se juntarem à festa que não tinha fim: as famílias cujo poder e nome eram mais antigos do que os Tudor, e os novos, cuja riqueza e nome emergiam com a subida da maré Tudor, flutuando com a fortuna dos Tudor. Os vitoriosos de Bosworth, que arriscaram as vidas e corrido grandes riscos pela coragem dos Tudor, encontravam-se ao lado de arrivistas que faziam fortuna com nada mais do que os divertimentos dos Tudor.

Henrique recebia todos com despreocupada alegria; qualquer um que fosse divertido e bem-educado, encantador ou bom desportista, podia ter um lugar na corte. Catarina sorria para todos, nunca descansava, nunca recusava um desafio ou um convite, e tomou a seu cargo manter o marido adolescente entretido durante o dia. Devagar, mas com firmeza, foi tomando nas mãos a gestão dos entretenimentos, da casa real, dos negócios do rei e, depois, do reino.

A rainha Catarina tinha as contas da casa real espalhadas à frente, um escrivão de um lado, um registador de contas, com o enorme livro, do outro, os homens que trabalhavam como tesoureiros da família, atrás. Verificava os livros dos grandes departamentos da corte: a cozinha, a adega, o guarda-roupa, os criados, os pagamentos de serviços, os estábulos, os músicos. Cada departamento da corte compilava as despesas mensais e enviava ao tesoureiro da rainha, como faziam com Sua Alteza, a Mãe do Rei, para que aprovasse os negócios. Se tivessem gasto de mais, podiam contar com uma visita de um dos tesoureiros do Fundo Privado, para lhes perguntar se eram capazes de explicar a razão por que os custos aumentaram.

As cortes da Europa estavam envolvidas na luta pelo controlo dos custos de manutenção das populosas casas reais feudais, atendendo às manifestações de riqueza e exibicionismo que se tornaram moda. Os reis queriam ter muita gente à volta, como senhores feudais; mas agora queriam cultura, riqueza, arquitectura e grande ostentação. Inglaterra era mais bem gerida do que qualquer outra corte europeia. A rainha Catarina aprendera a gerir a sua casa da forma mais difícil, quando gerira a Casa de Durham como achava que uma casa real devia ser, mas sem rendimentos. Sabia até ao cêntimo qual era o preço do pão, conhecia a diferença entre o peixe salgado e o fresco, sabia o preço do vinho barato importado de Espanha e do caro trazido de França. Ainda mais rigoroso do que o de Sua Alteza, a Avó do Rei, o escrutínio que a rainha Catarina fazia aos livros da casa real obrigava os cozinheiros a discutir com os fornecedores às portas da cozinha, para conseguirem os melhores preços para uma corte extravagantemente consumista.

Uma vez por semana, a rainha Catarina supervisionava as despesas dos diferentes departamentos da corte, e todos os dias, ao alvorecer, enquanto o rei caçava, lia as cartas que chegavam e escrevia um rascunho das respostas.

Era um trabalho constante e implacável, manter a corte a funcionar como um bem ordenado centro do país, e os assuntos do rei sob controlo apertado. A rainha Catarina, decidida a compreender o novo país, não lamentava as horas que passava a ler cartas, a ouvir os conselhos do Conselho Privado, as suas objecções e aceitando as suas opiniões. Vira a mãe dominar um país pela persuasão. Por intermédio de acordos, Isabel de Espanha libertara o país de um ajuntamento de reinos e senhorios rivais, oferecendo-lhes uma administração central, livre de problemas e barata, um sistema nacional de justiça, o fim da corrupção e do banditismo e um infalível sistema de defesa. A filha percebeu que estas vantagens podiam ser usadas em Inglaterra.

Mas seguia os passos do sogro Tudor, e quanto mais trabalhava com os papéis dele e lia as suas cartas, mais admirava a firmeza do seu julgamento. Sentia que gostaria de o ter conhecido como governante, pois beneficiaria com os seus conselhos. Através dos registos, verificava como equilibrara o desejo de independência dos senhores ingleses, em relação às terras, com a necessidade de os vincular à coroa. Astutamente, concedera aos senhores do Norte maior liberdade, mais riqueza e estatuto do que a quaisquer outros, uma vez que constituíam o seu baluarte contra os escoceses. Catarina tinha mapas das terras nortenhas pendurados pela sala do conselho e percebeu que a fronteira com a Escócia não era mais do que uma mão-cheia de territórios disputados numa zona difícil. Uma fronteira como aquela nunca se tornaria segura contra um vizinho ameaçador. Para ela, os escoceses eram os mouros de Inglaterra: o país não podia ser dividido com eles. Teriam de ser derrotados.

Partilhava os receios do sogro em relação aos superpoderosos senhores da corte inglesa e aprendeu com ele a sentir inveja da riqueza e poder que detinham. Quando Henrique, num momento de exuberância, pensou em atribuir a um determinado homem uma pensão elevada, foi Catarina que lhe fez notar que já era um homem rico, não havendo necessidade de tornar a sua posição mais forte. Henrique queria ser um rei conhecido pela generosidade, amado pela súbita catadupa dos seus presentes. Catarina sabia que o poder seguia a riqueza e que os reis recém-chegados ao trono tinham de acumular riqueza e poder.

– O vosso pai nunca vos avisou em relação aos Howard? – perguntou, enquanto estavam os dois sós a observar um concurso de tiro com arco. Henrique, em mangas de camisa, com o arco na mão, obtivera a segunda pontuação mais alta e esperava pela sua vez para voltar ao torneio.

– Não – respondeu. – Devia tê-lo feito?

– Ah, não – replicou ela. – Não queria sugerir que vos traíssem, são o amor e a lealdade em pessoa; Tomás Howard tem sido um grande amigo da nossa família, mantido o Norte seguro ao vosso serviço e Eduardo é o meu cavaleiro, o mais querido de todos. Só que a sua riqueza tem aumentado tanto e as suas alianças familiares são tão fortes que fiquei a pensar qual seria a opinião que o vosso pai teria sobre eles.

– Não faço ideia! – exclamou com ligeireza. – Nunca lhe faria essa pergunta. De qualquer forma, também não me diria nada.

– Nem mesmo sabendo que vós iríeis ser o próximo rei?

Ele abanou a cabeça.

– Pensava que não iria ser rei tão cedo – disse ele. – Ainda não tinha concluído a minha educação. Considerava que não estava preparado para enfrentar o mundo.

Ela abanou a cabeça.

– Quando tivermos um filho, teremos de nos certificar de que começará a estar preparado para o seu reinado desde cedo.

Henrique colocou as mãos em volta da sua cintura.

– Achais que vai ser em breve? – perguntou ele.

– Por favor, meu Deus – disse com suavidade, reprimindo uma secreta esperança. – Sabeis de uma coisa? Tenho pensado no nome que lhe daremos.

– A sério, minha querida? E que pensais de Fernando, como o vosso pai?

– Se assim o quiserdes, mas julgo que podia ser Artur – falou com cuidado.

– Como o meu irmão? – O seu rosto endureceu.

– Não, como Artur de Inglaterra! – afirmou. – Quando olho para vós, penso que sois parecido com o rei Artur da Távola Redonda e que estamos em Camelot. Estamos a criar uma corte mais bonita e mágica do que a de Camelot.

– É isso que pensais, minha pequena sonhadora?

– Penso que vós podereis ser o mais importante rei que Inglaterra já conheceu, desde Artur de Camelot – respondeu ela.

– Então, será Artur! – acedeu, apaziguado pelo elogio. – Artur Henrique!

– Sim.

Chamaram-no ao alvo, pois era a sua vez de atirar e tinha de obter uma pontuação elevada. E lá foi, atirando-lhe um beijo com um gesto. Catarina teve o cuidado o observar enquanto disparava a seta e, quando olhou para ela, como sempre, constatou que a sua atenção estava concentrada nele. Os músculos das costas magras retesaram-se quando puxou a seta para trás, parecia uma estátua, equilibrada, e depois, como um bailarino, soltou a corda, e a seta voou – mais rápida do que a visão – para o centro do alvo.

– Em cheio, no alvo!

– Venceu!

– Vitória para o rei!

O prémio era uma seta de ouro e Henrique, radiante de felicidade, veio ajoelhar-se aos pés dela, para que se inclinasse e o beijasse em ambas as faces, e de seguida, amorosamente, na boca.

– Ganhei-a para vós! – proclamou. – Apenas para vós. Dais-me sorte e nunca falho quando me observais. Ficareis com a seta do vencedor.

– É a seta de Cupido – respondeu ela –, e guardá-la-ei para me recordar a outra que está no meu coração.

– Ela ama-me.

Ele ergueu-se, voltou-se para a corte e ouviu-se uma enorme explosão de aplausos e risos. Triunfante, gritou:

– Ela ama-me!

– Quem poderia não vos amar? – exclamou com arrojo lady Isabel Bolena, uma das damas de companhia.

Henrique olhou para ela e depois, da sua grande estatura, baixou os olhos para a sua pequena esposa.

– Quem pode não a amar? – perguntou, sorrindo para Catarina.

Nessa noite ajoelho-me no meu oratório e coloco as mãos sobre o ventre. É o segundo mês em que não me vem o período, e tenho quase a certeza de que estou grávida.

«Artur», digo num murmúrio, de olhos fechados. Quase o vejo como era, nu, à luz das velas, no nosso quarto em Ludlow. «Artur, meu amor, ele diz que posso dar a esta criança o nome de Artur Henrique. Assim, será realidade a nossa esperança, dar-te um filho chamado Artur. Embora saiba que não gostavas do teu irmão, terei por ele o respeito que lhe devo. É um bom rapaz e rezo para que se torne um bom homem. Darei ao meu filho o nome de Artur Henrique, em homenagem aos dois.

Não sinto culpa pelo meu crescente afecto por este jovem, Henrique, embora nunca possa ocupar o lugar do irmão, Artur. É correcto que ame o meu marido, e Henrique é um jovem enternecedor. O conhecimento que tenho dele, por o observar durante tantos anos, de tão perto, como se fosse um inimigo, deu-me plena consciência do tipo de rapaz que é. É egoísta como uma criança, mas tem a generosidade e a ternura simples de um menino. Para dizer a verdade, é vaidoso e ambicioso, presumido como um actor de uma troupe, mas ri-se e chora com facilidade, está sempre pronto a mostrar a sua compaixão e a suavizar as dificuldades. Será um bom homem, se for bem guiado, se o ensinarem a refrear os seus desejos e se aprender quais são as obrigações para com o país e com Deus. Tem sido muito mimado pelas pessoas que o deviam ter ensinado, mas não é tarde para o transformar num homem bom. É tarefa minha e meu dever evitar que se deixe levar pelo egoísmo. Como qualquer jovem, pode transformar-se num tirano. Uma boa mãe tê-lo-ia disciplinado, talvez uma boa esposa o possa refrear. Se eu o puder amar e fazer com que me ame, consigo fazer dele um grande rei. E Inglaterra precisa de um grande rei.

Talvez este seja um dos serviços que posso prestar a Inglaterra; guiá-lo, com suavidade, mas com firmeza, para longe da infância mimada e conduzi-lo a uma idade adulta, responsável. O pai e a avó trataram-no como se fosse uma criança; talvez seja tarefa minha ajudá-lo a transformar-se num homem adulto.

«Artur, meu adorado Artur», digo baixinho, enquanto me levanto e me encaminho para a cama. E desta vez estou a falar para ambos, o marido por quem me apaixonei pela primeira vez e a criança que, lenta e calmamente, cresce dentro de mim.


Outono de 1509

Numa noite de Outubro, depois de Catarina se ter recusado, durante as três últimas semanas, a dançar depois da meia-noite, insistindo em ficar apenas a ver Henrique dançar com as damas, disse-lhe que esperava um filho, e obrigou-o a jurar que manteria segredo.

– Quero contar a todos! – exclamou ele.

Henrique viera ao seu quarto, em camisa de noite, e sentaram-se um de cada lado, ao calor da braseira, antes de irem para a cama.

– Podereis escrever ao meu pai, no próximo mês – determinou –, mas não quero que saibam, para já. Dentro de pouco tempo, irão perceber.

– Tendes de descansar! – disse ele. – E precisais de comer comidas diferentes? Sentis desejos de algo em especial? Posso mandar alguém buscar seja o que for, podem acordar os cozinheiros. Dizei, meu amor, o que quereis?

– Nada! Nada! – replicou rindo-se. – Reparai, temos biscoitos e vinho. Alguma vez como outras coisas a estas horas da noite?

– Ah, por norma não! Mas agora é diferente!

– De manhã perguntarei ao médico – declarou –, mas agora não preciso de nada. A sério, meu amor.

– Quero ir buscar-vos qualquer coisa – proferiu. – Quero tomar conta de vós.

– Já o fazeis – assegurou-lhe. – E estou bem alimentada, sinto-me muito bem.

– Não vos sentis enjoada? É sinal de que é um rapaz, tenho a certeza.

– Tenho-me sentido um pouco enjoada, de manhã – confirmou Catarina, observando o seu ar de felicidade. – Tenho a certeza de que é um rapaz. Espero que seja o nosso Artur Henrique.

– Ah, já pensáveis nele quando falastes comigo no torneio de tiro com arco.

– Sim, pensava. Mas ainda não tinha a certeza e não vos quis dizer cedo de mais.

– Quando credes que vai nascer?

– No princípio do Verão, acho.

– Não pode demorar assim tanto tempo! – exclamou ele.

– Meu querido, parece-me bem que sim!

– Vou escrever ao vosso pai, amanhã – disse. – Dir-lhe-ei que aguarde grandes notícias para o Verão. Talvez nessa altura já tenhamos regressado de uma grande campanha contra os franceses. Talvez traga uma vitória para vos oferecer e vós tereis um filho para me dar.

Henrique mandou chamar o seu médico pessoal, o homem mais competente de Londres, para me observar. O homem fica de pé de um lado do quarto, e estou sentada numa cadeira, no outro. Não me pode examinar, obviamente – o corpo de uma rainha não pode ser tocado por ninguém, a não ser pelo rei. Não me pode perguntar se as minhas regras e os meus intestinos são regulares – também são sagrados. Está paralisado com o embaraço de ser chamado para me ver e mantém os olhos fixos no chão e só me faz perguntas breves, numa voz baixa e entrecortada. Fala em inglês e tenho de me esforçar para o ouvir e perceber o que diz.

Pergunta-me se tenho comido bem, se sinto enjoos. Digo-lhe que tenho comido bem, mas que fico enjoada com o cheiro e quando olho para carnes cozinhadas. Sinto falta da fruta e dos legumes que faziam parte da minha dieta diária, em Espanha, tenho grandes desejos de bolinhos de baklava, feitos com mel, ou de um tagine, preparado com legumes e arroz. Ele responde que isso não tem importância, uma vez que comer legumes ou fruta não tem benefício para os humanos e que me desaconselhava de comer produtos crus durante a gravidez.

Pergunta-me se sei quando fiquei grávida. Respondo-lhe que não sei precisar, mas sei em que altura tive as últimas regras. Ele sorri, como um sábio que ri de um ignorante, e diz-me que não é grande ajuda, para se saber quando a criança nascerá. Eu já tinha visto médicos mouros calcularem a data do nascimento de um bebé com a ajuda de um ábaco especial. Ele afirma que nunca ouviu falar de tais coisas e que esses objectos pagãos deviam ser contra a natureza e não usados no tratamento de uma criança cristã.

Sugere-me que descanse. Pede-me para o mandar chamar sempre que não me sentir bem, pois virá para me aplicar sanguessugas. Confessa que é um grande adepto de que se façam, com frequência, sangrias às mulheres, para evitar que aqueçam demasiado. Em seguida, faz uma vénia e vai embora.

Olho espantada para María de Salinas que está de pé, ao canto do quarto, a assistir a esta imitação de consulta.

– É este, o melhor médico de Inglaterra? – pergunto-lhe. – O melhor que têm?

Ela abana a cabeça, perplexa.

– Será que podemos mandar vir alguém de Espanha? – digo, pensando alto.

– O vosso pai e a vossa mãe fizeram com que os homens sábios desaparecessem de Espanha – replica, e nesse momento quase sinto vergonha deles.

– Os seus conhecimentos eram heréticos – afirmo na defensiva.

Ela encolhe os ombros.

– Bem, a Inquisição prendeu a maior parte e os outros fugiram.

– Para onde foram? – interrogo.

– Para onde vão todos. Os judeus, para Portugal, e depois para Itália, Turquia, por toda a Europa, creio eu. Suponho que os mouros foram para a África e para o Oriente.

– Não será possível encontrar alguém da Turquia? – sugiro. – Não um pagão. Mas alguém que tenha estudado com um médico mouro? Devem existir médicos cristãos que saibam alguma coisa, que saibam mais do que este.

– Vou perguntar ao embaixador – assegurou.

– Tem de ser um cristão – estipulo. – Sei que vou precisar de um médico melhor do que este tímido ignorante, mas não quero ir contra a autoridade da minha mãe e da Santa Igreja. Se dizem que tal ciência é pecado, então, terei de aceitar a ignorância. É o meu dever. Não sou uma estudiosa e será melhor que me guie pelas leis da Santa Igreja. Mas será que Deus deseja que neguemos o conhecimento? E se essa ignorância me custar o filho e herdeiro de Inglaterra?

Catarina não reduziu o trabalho, dirigindo os secretários do rei, ouvindo petições dos que precisavam de justiça real, discutindo as notícias do reino com o Conselho Privado. Mas escreveu para Espanha, sugerindo ao pai que talvez fosse bom enviar um embaixador para representar os interesses espanhóis, principalmente porque Henrique estava determinado em declarar guerra a França, aliado a Espanha, logo que começasse a época de guerra, na Primavera, pelo que haveria muita correspondência entre os dois países.

«Ele está muito determinado em relação à vossa proposta», escreveu Catarina ao pai, traduzindo cada palavra para o complexo código que ambos usavam. «Tem consciência de que nunca esteve numa guerra e está ansioso para que tudo corra bem com um exército anglo-espanhol. Estou muito preocupada, de facto, receando que se exponha ao perigo. Não tem um herdeiro, mas mesmo que tivesse, este é um país difícil para herdeiros menores de idade. Quando for para a guerra convosco, confiá-lo-ei à vossa protecção. Mas deverá sentir que experimenta o que é a guerra, deverá aprender convosco a maneira de preparar as campanhas. Mas terei de confiar em vós para que o mantenhais afastado do perigo real. Não me interpreteis mal neste ponto» escreveu, com decisão. «Ele tem de sentir que está no centro da guerra, tem de aprender como se ganham as batalhas; mas não deverá, nunca, enfrentar um perigo real. Além disso», acrescentou, «nunca deverá perceber que o protegemos.»

O rei Fernando, de novo na posse de Castela e de Aragão, governava como regente, em vez de Joana, de quem se comentava que não tinha hipótese de subir ao trono, perdida no seu mundo de dor e loucura. Em resposta à filha mais nova, garantiu-lhe que não precisava de se preocupar com a segurança do marido durante a guerra, pois tomaria as devidas precauções para que Henrique não ficasse exposto a mais nada, além da excitação. «E não deves deixar que os teus receios de esposa o afastem do seu dever», recordou-lhe o pai. «Em todos os anos que viveu comigo, a tua mãe nunca se esquivou ao perigo. Tens de ser a rainha que gostaria que fosses. É uma guerra que tem de ser feita, para segurança e proveito de todos e o jovem rei tem de desempenhar o seu papel, ao lado do velho rei e do velho imperador. É uma aliança entre dois velhos cavalos de guerra e um jovem potro: e vai querer fazer parte dela.» Deixou um espaço em branco na carta, como se pensasse, e acrescentou uma nota. «É claro que nós os dois nos certificaremos de que, para ele, vai ser como uma brincadeira. E é obvio que nunca o saberá.»

Fernando tinha razão. Henrique estava desesperado por fazer parte de uma aliança que derrotasse França. O Conselho Privado, os sensatos conselheiros do prudente reinado do pai, ficaram assombrados, ao perceber que o jovem estava convencido de que, para ser rei, tinha de partir para a guerra e não imaginava uma maneira melhor de demonstrar que herdara o trono. Os jovens ávidos e altaneiros que formavam a nova corte, ansiosos por mostrar a sua coragem, pressionavam Henrique para que entrasse em guerra. Os franceses eram odiados há muito e parecia incrível que alguma vez se tivesse declarado tréguas e que a paz durasse tanto. Parecia fora do normal, estar em paz com França, o estado normal de guerra devia ser retomado, assim que se pudesse dar a vitória como certa. E a vitória, com um novo e jovem rei e uma nova corte formada por jovens, era agora mais do que uma certeza.

Nada do que Catarina contrapusesse apaziguaria a febre da guerra, e Henrique foi tão belicoso com o embaixador de França no primeiro encontro que o espantado representante relatou ao seu amo que o novo e jovem rei estava fora de si com tanta cólera, negando ter escrito ao rei de França uma carta pacífica, que o Conselho Privado enviara na sua ausência. Felizmente, o encontro seguinte correu melhor, pois Catarina fez questão de estar presente.

– Cumprimentai-o com delicadeza – recomendou Catarina a Henrique, quando viu o homem aproximar-se.

– Não vou fingir bondade, quando penso em guerra.

– Tendes de ser hábil – disse baixinho –, deveis aprender a dizer uma coisa e a pensar outra.

– Nunca fingirei. Nunca negarei o meu justo orgulho.

– Não, não tereis de fingir. Mas deixai-o, na sua ignorância, compreender-vos mal. Há mais do que uma forma de ganhar a guerra e o importante é ganhá-la, não fazer ameaças. Se acreditar que sois seu amigo, podemos apanhá-los desprevenidos. Por que haveríamos de os avisar do ataque?

Henrique ficou perturbado e olhou para ela, franzindo a testa.

– Eu não sou mentiroso.

– Pois não, da última vez, dissestes-lhe que as vãs ambições do seu rei iriam ser corrigidas por vós. Não podemos deixar os franceses capturar Veneza. Temos uma velha aliança com Veneza...

– Temos?

– Oh, sim – proferiu Catarina com firmeza. – Inglaterra tem uma antiga aliança com Veneza e é a primeira muralha da Cristandade contra os turcos. Atacando Veneza, os franceses ficarão à beira de deixar os infiéis entrar em Itália. Deviam ter vergonha. Mas da última vez que falastes com ele, haveis avisado o embaixador francês. Não poderíeis ter sido mais claro. Por isso, deveis cumprimentá-lo, com um sorriso. Não necessitais de lhe falar da vossa campanha. Guardaremos as nossas intenções para nós, não as devemos partilhar com pessoas como ele.

– Já lhe disse tudo uma vez, não preciso de lho dizer. Eu não me repito! – falou Henrique, irritado com a ideia.

– Não devemos gabar-nos da nossa força – advertiu ela. – Sabemos o que podemos fazer, e o que vamos fazer. Poderão descobrir, quando for do nosso interesse.

– De facto! – disse Henrique, descendo do pequeno estrado para cumprimentar com grande amabilidade o embaixador francês. Foi para Henrique uma recompensa ver o homem fazer uma desajeitada vénia e gaguejar, quando se dirigiu a ele.

– Enganei-o! – exclamou, radiante, para Catarina.

– Um verdadeiro mestre! – assegurou-lhe.

Se fosse imbecil, eu teria de engolir a minha impaciência e controlar o meu temperamento com mais frequência. Mas não é estúpido, é inteligente e esperto, talvez até tão vivo como Artur. Enquanto Artur fora formado para pensar, educado desde o berço para ser rei, este segundo filho fora deixado apetrechado com o seu encanto e uma resposta pronta. Achavam-no simpático e não o incentivavam a ser mais do que agradável. Henrique tem uma boa cabeça e sabe ler, debater e pensar com clareza, mas só se o tópico lhe despertar interesse e, mesmo assim, por pouco tempo. Ensinaram-no a estudar, mas como um meio de demonstrar a sua esperteza. É preguiçoso, muitíssimo preguiçoso, não se importa que seja outra pessoa a fazer o trabalho pormenorizado em seu lugar, e é uma grave falha num rei, pois coloca-o à mercê dos escrivães. Um rei que não trabalhe estará sempre nas mãos dos conselheiros. É a receita para produzir conselheiros com demasiado poder.

Quando discutimos os termos do contrato entre Espanha e Inglaterra pede-me para o redigir, não gosta de ser ele a fazê-lo, gosta de ditar e de ter um escrivão que o faça como deve ser. Nunca irá preocupar-se em aprender o código, o que significa que as cartas entre ele e o imperador, entre ele e o meu pai, terão de ser escritas ou traduzidas por mim. Vejo-me envolvida no meio dos planos emergentes para a guerra, quer queira, quer não. Não tenho outro remédio senão tornar-me a responsável pela tomada de decisões, no seio desta aliança, porque Henrique põe-se de parte.

É claro que não sinto relutância em cumprir o meu dever. Nenhuma verdadeira filha da minha mãe se escusaria ao esforço que conduzia à guerra com os inimigos de Espanha. Fomos educados para saber que ser rei é uma vocação, não é um presente. Ser rei significa governar, e governar é um trabalho exigente. Nenhum verdadeiro filho do meu pai resistiria a estar no centro de decisão e planeamento, preparando-se para a guerra. Não há ninguém na corte inglesa mais preparada do que eu para levar o nosso país para a guerra.

Não sou tola. Percebi, desde o princípio, que o meu pai tencionava usar as tropas inglesas contra os franceses e, enquanto os entretemos na hora e no local de sua escolha, aposto que tenciona invadir o reino de Navarra. Devo tê-lo ouvido dizer uma dúzia de vezes à minha mãe que, se conseguisse conquistar Navarra, podia completar a fronteira norte de Aragão; e Navarra é uma região rica que produz uvas e trigo. O meu pai cobiça-a desde que subiu ao trono de Aragão. Sei que, se tiver uma oportunidade em relação a Navarra, conseguirá conquistá-la, e, se conseguir que os ingleses façam o trabalho por ele, melhor ainda.

Mas não vou entrar nesta guerra para agradar ao meu pai, embora o deixe pensar que sim. Não irá usar-me como instrumento. Vou usá-lo como o meu. Desejo esta guerra por causa de Inglaterra e de Deus. O papa determinou que os franceses não deviam invadir Veneza, e coloca o seu santo exército em campo, contra os franceses. Nenhum filho ou filha da Igreja precisa de uma causa maior do que esta: saber que o Santo Padre pede ajuda.

E, para mim, há outra razão, ainda mais forte. Nunca esqueço o aviso da minha mãe, de que os mouros voltarão a atacar a Cristandade e de que devia estar tão preparada para isso em Inglaterra, como sempre o esteve em Espanha. Se os franceses derrotarem os exércitos do papa e tomarem Veneza, quem pode duvidar que os mouros verão nisso a sua oportunidade para, por sua vez, roubarem Veneza aos franceses? E mal os mouros tenham, de novo, uma base de apoio no coração da Cristandade, a guerra da minha mãe terá de ser feita mais uma vez, desde o princípio. Atacarão a partir do Oriente, de Veneza, e a Europa cristã ficará à sua mercê. O meu pai disse-me que Veneza, com o seu comércio, o seu arsenal e os seus poderosos estaleiros navais, nunca poderá ser tomada pelos mouros, nunca deveremos permitir que conquistem uma cidade onde podem construir barcos de guerra numa semana, armá-los em dias e guarnecê-los numa manhã. Se tiverem os estaleiros e os construtores navais, perderemos os mares. Eu sei que este dever me foi imposto, pela minha mãe e por Deus, enviar ingleses para o serviço do papa, para defenderem Veneza de qualquer invasor. É fácil persuadir Henrique a pensar do mesmo modo.

Mas também não esqueço a Escócia. Nunca me esqueço do medo que Artur tinha da Escócia. O Conselho Privado tem espiões ao longo da fronteira, e Tomás Howard, o velho conde de Surrey, foi lá colocado de propósito, creio eu, pelo velho rei. O rei Henrique, meu sogro, deu grandes propriedades no Norte a Tomás Howard, para que ele, entre tantos outros, mantivesse a fronteira segura. O velho rei não era nenhum idiota, não deixava que outras pessoas tratassem dos assuntos nem confiava nas suas capacidades. Amarrava-as ao seu êxito. Se os escoceses invadirem Inglaterra, terão de passar através das terras dos Howard, e Tomás Howard está tão interessado como eu em que isso não aconteça. Assegurou-me que os escoceses não nos atacarão este Verão, pelo menos em maior número do que costumam, nas habituais incursões de bandidos. As informações que obtemos de mercadores ingleses na Escócia ou de viajantes preparados para manterem os olhos bem abertos confirmam a opinião do conde. Pelo menos durante este Verão, estaremos seguros. Posso aproveitar a ocasião para enviar o exército inglês para a guerra contra os franceses. Henrique pode marchar para fora do país em segurança e aprender a ser um soldado.

Catarina observava as danças durante os festejos de Natal, aplaudia o marido quando fazia girar outras senhoras em volta da sala, ria com os mascarados e autorizava, com a sua assinatura, as contas da corte, com enormes quantias para vinho, cerveja, carne de vaca e tudo o que havia de mais raro e requintado. Oferecera a Henrique uma belíssima sela embutida, como prenda de Natal, e algumas camisas que ela mesma tinha costurado e bordado com um belo ponto, típico de Espanha.

– Quero que as minhas camisas sejam feitas por vós – disse ele, encostando a bonita peça de roupa à face. – Não quero usar nada que outra mulher tenha tocado. Apenas as vossas mãos poderão fazer as minhas camisas.

Catarina sorriu e puxou-lhe o ombro para baixo, até ficar à sua altura. Ele inclinou-se para a frente, como uma criança grande e ela beijou-lhe a testa.

– Sempre – prometeu-lhe. – Costurarei sempre as vossas camisas.

– E agora, a minha prenda para vós – disse ele.

Empurrou uma grande caixa de couro para junto de Catarina, que a abriu. Lá dentro estava um enorme conjunto de jóias magníficas, um diadema, um colar, dois braceletes e brincos a condizer.

– Oh, Henrique!

– Gostais delas?

– Adoro-as! – exclamou.

– Quereis usá-las esta noite?

– Vou usá-las esta noite e na festa da Décima Segunda Noite – prometeu.

A jovem rainha estava radiante de felicidade, neste primeiro Natal do seu reinado. As saias rodadas do vestido já não escondiam a curva do ventre. Para qualquer lado que fosse, o jovem rei ordenava que lhe levassem uma cadeira, pois não devia estar de pé, nem se podia cansar. Compôs-lhe canções especiais, que eram tocadas pelos seus músicos; danças e espectáculos de mímica foram criados em sua honra. A corte, encantada com a fertilidade da jovem rainha, com a saúde e energia do jovem rei, consigo própria, divertiu-se até bastante tarde na noite e Catarina ficou sentada no trono, os pés afastados para acomodar a curva do ventre, sorrindo de felicidade.

Palácio de Westminster, Janeiro de 1510

 

Acordo durante a noite com dores e uma sensação estranha. Sonhei que a maré subia no rio Tamisa e que uma frota de barcos, com velas negras, também. Penso que devem ser os mouros, que me vêm buscar, mas depois parece-me que é uma frota espanhola, uma armada, mas estranha e perturbadoramente, minha inimiga, inimiga de Inglaterra. Na minha aflição reviro-me na cama e acordo com uma sensação de terror, descobrindo que é algo mais grave que o sonho, os meus lençóis estão empapados de sangue e a dor no ventre é bem real.

Dou um grito, aterrorizada, e o meu grito acorda María de Salinas, que dormia junto de mim.

«O que aconteceu?», pergunta. Depois, repara na minha expressão e chama, ansiosa, pela criada aos pés da cama e manda-a ir a correr chamar as aias e as parteiras, mas, num recanto da minha mente, já percebi que não há nada que possam fazer. Arrasto-me para a cadeira, com a camisa manchada de sangue e sinto a dor, às voltas na barriga.

Quando chegam, saídas apressadas da cama e atarantadas com sono, estou ajoelhada no chão, como um cão doente, rezando para a dor passar e para que me deixe intacta. Já sei que não adianta rezar pela salvação do meu filho. Já sei que o perdi. Tenho a sensação de que alguma coisa se rompe dentro de mim, à medida que vai saindo.

Ao fim de um longo e amargo dia, em que Henrique vem à porta do quarto, vezes sem conta, e eu o mando embora com voz alegre, para lhe dar confiança, embora tenha de morder as palmas das mãos para não começar a gritar, a criança nasce, morta. A parteira mostra-ma, uma menina, uma coisinha branca e frágil, pobre bebé, meu pobre bebé. O meu único conforto é que não era o rapaz que prometera a Artur. É uma menina, uma menina morta, mas depois o meu rosto contorce-se de desgosto, quando me lembro que, em primeiro lugar, ele gostaria de ter tido uma filha e que se devia chamar Maria.

Não consigo falar com o desgosto, não consigo enfrentar Henrique e dizer-lhe. Não suporto pensar no anúncio que tem de ser feito à corte e não sou capaz de escrever ao meu pai para lhe dizer que falhei para com Inglaterra, com Henrique, com Espanha e, pior que tudo, mas isto nunca podia dizer fosse a quem fosse, falhei para com Artur.

Fico no quarto, fecho a porta a todos os rostos ansiosos, às parteiras que me querem obrigar a beber tisanas de folha de morangueiro, às damas que me querem contar que também tiveram nados-mortos, como as suas mães, mas que acabaram por ter fins felizes; afasto-as e ajoelho-me ao fundo da cama, comprimindo a cara contra as cobertas. Murmuro entre soluços, muito baixinho, para que ninguém, a não ser ele, ouça. «Perdoa-me, perdoa-me, meu amor. Tenho tanta pena de não ter sido capaz de ter o teu filho. Não sei porquê, não sei por que razão havia o nosso bom Deus de me dar um desgosto tão grande. Tenho tanta pena, meu amor. Se tiver outra oportunidade, farei tudo que puder, o máximo que puder, para ter o teu filho, para o manter em segurança até nascer e depois. Fá-lo-ei; juro que sim. Tentei, desta vez, Deus sabe, daria tudo para ter o teu filho e para lhe dar o nome de Artur, por tua causa, meu amor.» Tento acalmar-me, quando as palavras começam a sair, em turbilhão, da minha boca, sinto que perco o controlo, que os soluços me sufocam.

«Espera por mim», digo eu. «Espera aí por mim. Espera por mim junto às calmas águas do jardim, onde caem as pétalas das rosas brancas e vermelhas. Espera por mim e, quando eu tiver o teu filho Artur e a tua filha Maria, quando cumprir o meu dever aqui, irei ter contigo. Espera por mim no jardim e não te desiludirei. Irei ter contigo, amor. Meu amor.

O médico do rei foi ter com ele, quando saiu dos aposentos da rainha.

– Vossa Graça, tenho boas notícias para vós.

Henrique virou a face amargurada, como a de uma criança a quem roubaram a alegria.

– Tendes?

– Na verdade, tenho.

– A rainha está melhor? Tem menos dores? Vai ficar bem?

– Vai ficar melhor que bem – disse o médico. – Embora tenha perdido uma criança, ficou com outra. Estava grávida de gémeos, Vossa Graça. Perdeu uma criança, mas o seu ventre ainda está dilatado e continua grávida.

Por momentos o jovem não compreendeu as palavras.

– Ainda está grávida?

– Sim, Vossa Graça – constatou o médico, sorrindo.

Foi como se lhe suspendessem a execução. Henrique sentiu o coração dar um salto, cheio de esperança.

– Como é possível?

O médico estava confiante.

– Sou capaz de o dizer, por vários motivos. O seu ventre continua firme, a hemorragia parou. Estou certo de que ficou outra criança.

Henrique benzeu-se.

– Deus está do nosso lado – disse contente. – Isto é o sinal da Sua Graça.

Fez uma pausa.

– Posso vê-la?

– Sim, está tão feliz como vós, com estas notícias.

Henrique subiu as escadas até aos aposentos de Catarina. A sua antecâmara estava vazia, mas os visitantes menos informados, a corte e metade da cidade sabiam que estava de cama e que não recebia ninguém. Henrique passou pelo meio da multidão que, num murmúrio, o abençoava e à rainha, passou pelos salões privados, onde as aias costuravam e bateu à porta do seu quarto.

María de Salinas abriu-a e afastou-se, para deixar passar o rei. A rainha estava fora da cama, sentada no banco da janela, com o livro de orações virado para a luz.

– Meu amor! – exclamou ele. – O doutor Fielding veio ter comigo para me dar a melhor das notícias.

O rosto dela estava radiante.

– Eu ordenei-lhe que vos dissesse em privado.

– Foi o que fez. Mais ninguém sabe. Meu amor, estou tão contente!

Os olhos dela estavam cheios de lágrimas.

– É como uma redenção – disse ela. – Sinto-me como se uma cruz fosse tirada dos meus ombros.

– Irei a Walsingham, no momento em que o nosso filho nascer, para agradecer a Nossa Senhora pela graça concedida – prometeu. – Dotarei o santuário com uma fortuna, se for um rapaz.

– Por favor, meu Deus, que seja essa a Vossa vontade – murmurou ela.

– E por que não seria? – perguntou Henrique. – Se é o nosso desejo, se é bom para Inglaterra e se o pedimos como bons filhos da Igreja?

– Amém! – exclamou ela muito depressa. – Se for essa a vontade de Deus.

Ele agitou a mão, como se desse uma chicotada no ar.

– É claro que deve ser essa a Sua vontade – disse ele. – Agora tendes de ter cuidado e descansar.

Catarina sorriu.

– Como vedes.

– Tem mesmo de ser assim, e tudo o que quiserdes, tereis.

– Eu digo aos cozinheiros, se quiser alguma coisa.

– E as parteiras deverão estar ao vosso serviço dia e noite, para terem a certeza de que estais bem.

– Está bem – concordou –, e, se Deus quiser, teremos um filho.

Foi María de Salinas, a minha verdadeira amiga que viera comigo de Espanha e ficara comigo durante os nossos meses bons e os anos difíceis, que descobriu o mouro. Estava ao serviço de um rico mercador que viajava de Génova para Paris. Chamaram-no a Londres para avaliar artigos de ouro e María soube da sua presença, por uma mulher que oferecera cem libras a Nossa Senhora de Walsingham, na esperança de ter um filho.

– Dizem que consegue fazer mulheres estéreis ter filhos – diz-me baixinho, certificando-se de que nenhuma das damas estava perto para ouvir.

Benzo-me, como se afastasse uma tentação.

– Então, deve usar magia negra.

– Princesa, é considerado um grande médico, treinado por mestres que ensinavam na Universidade de Toledo.

– Não o quero receber.

– Só porque achais que usa magia negra?

– Porque é inimigo e inimigo da minha mãe. Ela sabia que os conhecimentos dos mouros eram adquiridos ilegalmente, vindos do Diabo e não da verdade revelada por Deus. Expulsou os mouros e as suas artes mágicas de Espanha.

– Vossa Graça, pode ser o único médico em Inglaterra que sabe alguma coisa sobre as mulheres.

– Não o vou receber.

María aceitou a minha recusa e deixou passar algumas semanas até que uma noite acordei com uma dor muito forte e senti o sangue a sair. Apressou-se a chamar as criadas, que vieram com toalhas e um jarro de água para me lavar. Quando voltei para a cama e percebemos que não era nada mais do que o meu período que regressava, colocou-se à cabeceira da cama.

– Vossa Graça, por favor; recebei este médico.

– Ele é um mouro.

– Sim, mas penso que é o único homem neste país que será capaz de descobrir o que vos está a acontecer. Como podeis ter as regras, estando grávida? Podeis estar a perder esta segunda criança. Tendes de receber um médico em quem possamos confiar.

– María, ele é meu inimigo, um inimigo da minha mãe. Ela passou a sua vida a expulsar o povo dele de Espanha.

– Com eles, perdemos a sua sabedoria – replica María. – Há quase uma década que não viveis em Espanha, não sabeis como as coisas estão por lá, agora. Quando me escreve, o meu irmão conta-me que as pessoas adoecem e não há hospitais que os curem. As freiras e os monges fazem o que podem, mas não têm conhecimentos. Se uma pessoa tiver um tumor, é extraído por um médico de cavalos; se alguém partir um braço, ou uma perna, é o ferreiro que trata da pessoa. Os barbeiros são cirurgiões, os tira-dentes trabalham no mercado e partem os maxilares dos doentes. As parteiras fazem de tudo, desde enterrar um homem coberto de chagas, até chegarem aos partos, e são tantas as crianças que perdem, como as que ajudam a nascer. As técnicas usadas pelos médicos mouros, com o conhecimento que têm do corpo, as ervas que aliviam as dores, os instrumentos de cirurgia e a insistência na limpeza, tudo isto se perdeu.

– Se era uma ciência pecaminosa, é melhor que tenha desaparecido – digo com teimosia.

– Por que havia Deus de estar do lado da ignorância, da sujidade e da doença? – perguntou destemida. – Perdoai-me, Vossa Graça, mas não faz sentido. E estais a esquecer o que a vossa mãe queria. Sempre disse que as universidades deviam ser reabertas para ensinar o conhecimento cristão. Mas, por essa altura, já matara ou banira os professores que sabiam alguma coisa.

– A rainha não quer ser consultada por um herege – cortou lady Margarida com firmeza –, nenhuma dama inglesa consultaria um mouro.

María volta-se para mim.

– Por favor, Vossa Graça.

Tenho tantas dores que não suporto uma discussão.

– Podem sair as duas – ordeno. – Deixai-me dormir.

Lady Margarida sai do quarto, mas María pára, para fechar as portadas, para eu ficar na penumbra.

– Oh, deixai-o vir, então – concedo –, mas não, enquanto eu estiver assim. Pode vir na próxima semana.

Ela trá-lo pela escadaria secreta que vem desde a adega, através de uma passagem para os criados, até aos aposentos privados da rainha, no Palácio de Richmond. Eu estou cansada, vestindo-me para o jantar; e deixo-o entrar no quarto, antes de me apertarem os laços, apenas com uma camisa e uma capa curta por cima. Faço uma careta, só de pensar no que diria a minha mãe, se soubesse que um homem entrara no meu quarto. Mas sei, dentro do meu coração, que tenho de ser vista por um médico que me saiba dizer como posso dar um filho a Inglaterra. E sei, se for honesta, que há qualquer coisa de errado com esta criança que dizem que tenho dentro de mim.

Reconheço nele um pagão, no momento em que o vejo. É negro como o ébano, os olhos escuros como azeviche, a boca grande e sensual, o rosto alegre e compadecido, tudo ao mesmo tempo. As costas das mãos são negras, escuras como a face, tem dedos longos e unhas rosadas, as palmas das mãos castanhas com linhas profundamente vincadas com a sua cor. Se soubesse ler a sina, poderia traçar a sua linha de vida naquelas mãos africanas, onde os vincos pareciam sulcos de carroças num campo de terracota. Percebo que é um mouro e um núbio e apetece-me mandá-lo sair dos meus aposentos. Mas também reconheço que é capaz de ser o único médico neste país que possui a sabedoria de que preciso.

O povo deste homem, infiéis e pecadores que viraram os negros rostos a Deus, tem medicamentos que não temos. Por alguma razão, Deus e os anjos não nos revelaram a ciência que estas pessoas procuraram e encontraram. Leram em grego tudo o que os médicos gregos pensavam e exploraram por si próprios, com instrumentos proibidos, estudando o corpo humano, como se fosse o de um animal, sem medo ou respeito. Inventam teorias fantásticas com pensamentos proibidos e experimentam-nas, sem superstição. Estão preparados para pensar seja no que for, reflectir sobre qualquer coisa, nada é tabu. Estas pessoas são educadas, enquanto nós somos ignorantes, eu sou uma ignorante. Podia olhar para ele com superioridade, como se viesse de uma raça de selvagens, como um infiel, condenado ao Inferno, mas preciso de ter noção do que sabe.

Se ele me disser.

– Eu sou Catarina, infanta de Espanha e rainha Catarina de Inglaterra! – apresento-me com rudeza, para que saiba que fala com uma rainha, a filha de uma rainha que derrotou o seu povo.

Inclina a cabeça, orgulhoso como um barão.

– Eu sou Yusuf, filho de Ismail – diz ele.

– É um escravo?

– Sou filho de um escravo, mas sou um homem livre.

– A minha mãe não permitia a escravatura – replico-lhe. – Dizia que não era permitida pela nossa religião, a nossa religião cristã.

– Apesar disso, mandou o meu povo para a escravidão – retorquiu ele. – Talvez devesse ter tido em consideração que os grandes princípios e as grandes intenções morrem na fronteira.

– Já que o seu povo não quer aceitar a salvação de Deus, não importa o que possa acontecer aos seus corpos mortais.

O rosto iluminou-se, divertido, e soltou uma deliciosa e irreprimível risada.

– Para nós, importa, acho eu – discorda. – A minha nação admite a escravatura, mas não a justificamos desse modo. E o mais importante, não se pode herdar a escravidão. Quando nascemos, seja qual for a condição da nossa mãe, nascemos livres. Essa é a lei, e eu penso que é muito boa.

– Bem, não interessa o que pensa – corto com rudeza –, porque não tem razão!

Ele riu alto, de novo, divertido, como se eu dissesse alguma coisa engraçada.

– Como deve ser bom ter sempre a certeza de que se tem razão – observa ele. – É possível que vós tenhais sempre a certeza da vossa razão. Mas gostaria de vos sugerir, Catarina de Espanha e Catarina de Inglaterra, que, por vezes, é preferível saber as perguntas do que as respostas.

Depois disto, hesito.

– Mas só preciso das suas respostas – informo. – Sabe de medicina? Se uma mulher é capaz de conceber um filho ou não? Se está grávida?

– Por vezes pode saber-se – explica. – Outras vezes, está nas mãos de Alá, louvado seja o Seu santo nome, e, às vezes, não sabemos o suficiente para termos a certeza.

Ao ouvir o nome de Alá, benzo-me, tão depressa como uma velha que cospe numa sombra. Ele sorri com o meu gesto, sem se perturbar.

– Que quereis saber? – pergunta, com a sua voz repleta de bondade. – O que quereis tanto saber, para terdes necessidade de mandar chamar um infiel para vos aconselhar? Pobre rainha, deveis estar muito só, se necessitais da ajuda de um inimigo.

Os meus olhos começam a encher-se de lágrimas, com a simpatia que há na sua voz, e faço-as desaparecer com a mão.

– Perdi um filho – resumo. – Uma filha. O meu médico diz que era um de dois gémeos, e que ainda há outra criança dentro de mim, que haverá um novo parto.

– Então, por que me mandaram chamar?

– Eu quero ter a certeza – digo. – Se há outra criança, terei um novo parto, com todos a observar. Quero saber se a criança que está dentro de mim ainda está viva, se é um rapaz, e se nascerá.

– Por que duvidais da opinião do vosso médico?

Afasto os olhos do seu olhar inquiridor e honesto.

– Não sei – respondo de forma evasiva.

– Infanta, penso que sabeis.

– Como posso saber?

– Com o instinto, próprio de uma mulher.

– Não o tenho.

Ele sorri com a minha teimosia.

– Bom, nesse caso, mulher sem instintos, o que vos diz a vossa inteligência, já que decidistes negar o que o vosso corpo vos diz?

– Como sei o que devo pensar? – interrogo. – A minha mãe morreu. O meu melhor amigo em Inglaterra... – interrompo-me, antes que diga o nome de Artur. – Não tenho ninguém em quem possa confiar. Uma parteira diz uma coisa, outra uma coisa diferente. O médico tem a certeza... mas ele quer ter a certeza. O rei só o recompensa se as notícias forem boas. Como posso saber a verdade?

– Era capaz de jurar que sabeis, mesmo que não o queirais reconhecer – insistiu ele, com gentileza. – O vosso corpo irá dizer-vos. Suponho que as vossas regras não tenham voltado a surgir.

– Não, já sangrei – admito sem querer – na semana passada.

– Com dor?

– Sim.

– Os vossos seios estão sensíveis?

– Estavam.

– Estão maiores do que o normal?

– Não.

– Sentis a criança? Ela move-se dentro de vós?

– Não consigo sentir nada, desde que perdi a menina.

– Sentis dores, agora?

– Já não. Sinto...

– Sim?

– Nada, não sinto nada.

Ele não diz nada, fica sentado, respirando com tanta suavidade que parece um gato preto, deitado ao meu lado, dormindo tranquilamente. Olha para María.

– Posso tocar-lhe?

– Não! – exclama ela. – Ela é uma rainha. Ninguém pode tocar-lhe.

Ele encolhe os ombros.

– É uma mulher, como outra qualquer. Quer ter um filho, como qualquer outra. Por que não posso tocar-lhe o ventre, como faria com outra mulher?

– Ela é a rainha! – repete María. – Não pode ser tocada. Tem um corpo consagrado.

Ele sorri, como se a verdade sagrada fosse divertida.

– Bem, espero que alguém lhe tenha tocado, se não, não pode existir uma criança – responde.

– O marido, um rei consagrado – replica María com frieza. – E tende cuidado com a maneira como falais. Estes são assuntos sagrados.

– Se não a posso examinar, terei de dizer o que penso, baseando-me apenas no que vejo. Se não pode ser examinada, terá de se contentar com suposições.

Vira-se para mim.

– Se fôsseis uma mulher normal, e não uma rainha, tomaria as vossas mãos nas minhas.

– Porquê?

– Porque é duro, o que tenho para vos dizer.

Devagarinho, estendi as mãos, com os dedos cheios de valiosos anéis. Ele segura-as com delicadeza nas suas mãos escuras, macias como a pele de uma criança. Os olhos negros olham os meus sem receio, a sua expressão é terna, comovida.

– Se tendes o período, o mais provável é que o vosso útero esteja vazio – diz. – Não há criança nenhuma. Se os vossos seios não estão cheios, então é porque não se enchem de leite, o vosso corpo não se prepara para alimentar uma criança. Se não sentis a criança mexer dentro de vós, no sexto mês, ou a criança está morta, ou não está aí nenhuma criança. Se não sentis nada, então o mais provável é que não haja nada para sentir.

– O meu ventre continua inchado – afasto a capa e mostro-lhe a curva da barriga, por baixo da camisa. – Está duro, e não sou gorda, estou como estava antes de perder a primeira criança.

– Pode ser uma infecção – comenta pensativo. – Ou, que Alá não o permita, pode ser um inchaço, um tumor. Ou pode ser um aborto que ainda não foi expelido.

Retirei as minhas mãos das dele.

– Estais a rogar-me uma praga!

– Nunca! – exclama. – Para mim, aqui e agora, vós não sois Catarina, infanta de Espanha, mas apenas uma mulher que me pediu ajuda. Tenho pena, por vós.

– Que grande ajuda! – María de Salinas interrompe-o zangada. – Que grande ajuda que nos destes!

– De qualquer maneira, eu não acredito nisso – digo eu. – Essa é a sua opinião, o doutor Fielding tem uma diferente. Por que acreditaria mais em si do que num bom cristão?

Olha para mim durante longo tempo, com um ar terno.

– Gostaria de vos poder dar uma opinião melhor – conclui –, mas imagino que haja muitas pessoas que possam dizer mentiras agradáveis. Penso que se deve dizer a verdade. Rezarei por vós.

– Não quero as suas preces pagãs! – atiro rudemente. – Pode ir embora, e leve a sua opinião negativa e as suas heresias consigo.

– Ficai com Deus, infanta! – saúda com dignidade, como se não o tivesse insultado, fazendo uma vénia. – E uma vez que não quereis as minhas preces ao meu Deus, louvado seja o Seu santo nome, espero então que, quando chegar a vossa hora de aflição, o vosso médico esteja certo, e que o vosso Deus esteja convosco.

Deixo-o partir, silencioso como um gato negro, pela escadaria secreta, e não digo nada. Ouço o ruído das sandálias nos degraus de pedra, igual ao das passadas abafadas dos criados na minha casa. Ouço o sussurro da longa túnica, tão diferente do áspero rogaçar dos tecidos ingleses. Sinto o ar a perder o aroma dele, o odor quente e picante da minha terra.

E quando se foi embora de vez, a porta do andar de baixo foi fechada e ouço María de Salinas rodar a chave na fechadura, para a trancar, nessa altura, percebo que só me apetece chorar, não apenas porque ele me deu tão más notícias, mas porque uma das poucas pessoas no mundo que alguma vez me disse a verdade se foi embora.


Primavera de 1510

Catarina não disse nada ao jovem marido sobre a visita do médico mouro, nem sobre a opinião negativa que ele, tão honestamente, lhe dera. Não mencionou a visita a ninguém, nem a lady Margarida Pole. Agarrou-se à sua percepção de destino, ao orgulho e à esperança de que Deus ainda lhe concedia graças especiais, e prosseguiu com a gravidez, não admitindo qualquer dúvida, nem a si mesma.

Tinha boas razões para o fazer. O médico inglês, o doutor Fielding, continuava confiante, as parteiras não o contradiziam, a corte portava-se como se Catarina fosse ter uma criança em Março ou Abril. Por isso, Catarina atravessou a Primavera, observando os jardins, que ficavam cada vez mais verdes e as árvores que se cobriam de folhas, com um sorriso sereno e a mão pousada sobre o ventre redondo.

Henrique andava entusiasmado com o iminente nascimento do filho; planeava um grande torneio que se realizaria em Greenwich, mal a criança nascesse. O facto de ter perdido a filha, não o tornara mais cuidadoso e gabava-se, diante de toda a corte, de que uma criança saudável nasceria, em breve. Só o aconselharam a não dizer que era um rapaz. Dizia a todos que não se importava que o primeiro filho fosse príncipe ou princesa, que amaria esta criança por ser o primogénito, e por ter surgido, para ele e para a rainha, no auge da sua felicidade.

Catarina sufocou as dúvidas e nem a María de Salinas foi capaz de dizer que não sentira os pontapés do bebé, que se sentia cada vez mais fria, que cada dia se sentia mais distante de tudo. Cada vez passava mais tempo de joelhos, na sua capela, mas Deus não falava com ela; mesmo a voz da mãe parecia ter-se silenciado. Percebeu que sentia saudades de Artur, não com o apaixonado desejo de uma jovem viúva, mas porque fora o seu amigo mais querido em Inglaterra e o único a quem confiaria as suas dúvidas naquele momento.

Em Fevereiro, assistiu aos grandes festejos da Terça-Feira de Entrudo, brilhando e rindo para a corte. Todos notaram a acentuada curva do ventre e viram a sua confiança, enquanto celebravam o início da Quaresma. Mudaram-se para Greenwich, convencidos de que a criança nasceria a seguir à Páscoa.

Vamos para Greenwich para que o meu filho nasça lá. Os quartos estão a ser preparados de acordo com as instruções do Livro Real, de Sua Alteza, a Avó do Rei, revestidos com tapeçarias com cenas agradáveis e encorajadoras, o chão é coberto com tapetes onde espalharam ervas aromáticas. Hesito, quando chego à porta e, por trás de mim, os meus amigos erguem os copos de vinho com especiarias. É aqui que cumprirei o meu maior dever para com Inglaterra, é o momento do meu destino. Foi para isto que nasci e fui criada. Respiro fundo e entro. A porta fecha-se atrás de mim. Não voltarei a ver os meus amigos, o duque de Buckingham, o meu querido cavaleiro Eduardo Howard, o meu confessor, o embaixador espanhol, até o meu filho nascer.

As minhas aias entram comigo. Lady Isabel Bolena coloca um incensário com um odor doce na mesa-de-cabeceira, lady Elizabeth e lady Anne, irmãs do duque de Buckingham, endireitam uma tapeçaria, uma de cada lado, rindo, enquanto tentam perceber se está mais inclinada para um lado ou para o outro. María de Salinas sorri, ao lado da cama, onde penduraram cortinas novas e escuras. Lady Margarida Pole prepara o berço para o bebé, aos pés da cama. Ergue os olhos e ri-se para mim quando entro e lembro-me de que também é mãe, saberá o que deve ser feito.

– Quero que fiqueis encarregada do infantário real – disse-lhe. A minha afeição por ela e a minha sensação de precisar dos conselhos e do carinho de uma mulher mais velha são demasiado fortes para mim.

Noto uma leve agitação e algum divertimento entre as aias. Sabem que sou bastante formal e que este tipo de escolha devia surgir através do chefe da minha casa, depois de dezenas de pessoas terem sido consultadas.

Lady Margarida sorri-me.

– Eu sabia que isso ia acontecer – diz ela, falando num tom tão familiar como o meu. – Já estava a contar com isso.

– Sem um convite real? – brinca lady Isabel Bolena. – Que vergonha, lady Margarida! Insinuar-se dessa maneira!

Isto faz-nos rir a todas, com o ridículo de imaginar lady Margarida, uma mulher tão digna, a tentar obter qualquer benefício.

– Sei que olhareis por ele, como se fosse vosso filho – sussurro-lhe.

Ela pega-me na mão e ajuda-me a deitar. Sinto-me pesada e deselegante e tenho esta dor constante na barriga, que tento esconder.

– Se Deus quiser – diz ela.

Henrique vem despedir-se. O rosto está corado de emoção e a boca treme-lhe; parece mais um rapazinho do que um rei. Pego-lhe nas mãos e beijo-o ternamente na boca.

– Meu amor – peço –, rezai por mim. Tenho a certeza de que vai correr bem para nós.

– Irei à Nossa Senhora de Walsingham para agradecer – informa. – Escrevi para o convento das freiras e prometi-lhes grandes recompensas se intercederem por vós, junto de Nossa Senhora. Elas estão a rezar por vós, meu amor. Prometeram-me que estariam sempre a rezar.

– Deus é bom – afirmo. Penso por momentos no médico mouro que me disse que não estava grávida e afasto a sua loucura pagã da minha mente. – Este é o meu destino, o desejo da minha mãe e a vontade de Deus.

– Gostaria tanto que a vossa mãe pudesse estar aqui! – exclama Henrique desajeitado.

Não deixo que me veja vacilar.

– Com certeza – profiro com suavidade –, mas tenho a certeza de que está a tomar conta de mim, lá do al-Yanna – calo-me, antes de conseguir dizer as palavras –, do Paraíso – acrescento doce –, do Céu.

– Posso trazer-vos alguma coisa? – pergunta. – Antes de ir embora, posso ir buscar-vos alguma coisa?

Não me rio, ao pensar em Henrique, que nunca sabe onde está nada, a fazer-me recados, nesta altura.

– Tenho tudo de que necessito – asseguro-lhe –, e as minhas aias cuidarão de mim.

Ele endireita-se, numa pose de rei, e olha em volta para elas.

– Sirvam bem a vossa ama – ordena com firmeza, voltando-se para lady Margarida. – Por favor, mandai-me chamar de imediato, se houver notícias, a qualquer hora, de dia ou de noite.

Depois, despede-se com carinho de mim, com um beijo e, quando sai, fecham a porta e fico sozinha com as minhas aias, no retiro para o meu parto.

Estou contente por estar em retiro. O quarto, sossegado e sem muita luz, será o meu porto de abrigo, posso descansar algum tempo, na companhia familiar das aias. Posso parar de representar o papel de uma rainha fértil e confiante, e ser eu mesma. Ponho de lado as dúvidas. Não quero pensar, nem preocupar-me. Vou esperar, pacientemente, até que o meu filho chegue e então, dá-lo-ei à luz, sem medo e sem gritar. Quero acreditar que esta criança, que sobreviveu à perda do gémeo, será um bebé forte. E eu, que sobrevivi à perda do meu primeiro filho, serei uma mãe corajosa. Talvez seja verdade que tenhamos conseguido superar a dor e a perda juntos, esta criança e eu.

Espero. Espero durante todo o mês de Março e peço-lhes que tirem a tapeçaria que cobre a janela, para que sinta o cheiro da Primavera que anda no ar e ouvir as gaivotas, quando gritam por cima das grandes marés, no rio.

Nada parece estar a acontecer, nem com o meu bebé, nem comigo. As parteiras perguntam se tenho dores, e não tenho. Nada, além daquela dor maçadora que já tenho há muito tempo. Perguntam se a criança tem dado pontapés, se a sinto dar-me pontapés, mas, para dizer a verdade, não compreendo o que querem dizer. Olham umas para as outras e afirmam muito alto, com grande ênfase, que é um bom sinal, que um bebé calmo é um bebé forte, que deve estar a descansar.

Afasto de mim a preocupação que tenho sentido desde o início desta segunda gravidez. Não quero pensar no aviso do médico mouro, nem na compaixão do seu rosto. Estou decidida a não me deixar dominar pelo medo, a não correr atrás da desgraça. Mas Abril chega, e ouço o tamborilar da chuva nas janelas, depois sinto o calor do Sol, e continua a não acontecer nada.

Os meus vestidos, que me estavam tão apertados na barriga durante o Inverno, estão muito mais largos em Abril e vão-me ficando cada vez mais largos. Mando sair as aias excepto María, desaperto o vestido, mostro-lhe a barriga e pergunto-lhe se acha que estou a perder cintura.

– Não sei – diz ela, mas posso ver pela aflição do seu rosto que a minha barriga está mais pequena, que é óbvio que não há lá dentro qualquer criança, pronta para nascer.

Ao fim de mais uma semana, torna-se evidente para todos que a minha barriga está a diminuir, que fico magra. As parteiras tentam dizer-me que, por vezes, a barriga das mulheres diminui, pouco antes do parto, uma vez que a criança desce, para nascer, ou outra teoria do género. Olho com frieza para elas, e sinto que gostaria de mandar chamar um médico decente, que me diga a verdade.

– A minha barriga está mais pequena e as minhas regras voltaram, hoje mesmo – digo-lhes sem preconceitos. – Estou a perder sangue. Como sabem, tenho sangrado todos os meses, desde que perdi a menina. Como posso estar grávida?

Torcem as mãos e não falam nada. Não sabem. Dizem-me que devo fazer estas perguntas ao respeitável médico do meu marido. Fora ele a dizer, em primeiro lugar, que eu tinha outra criança, não elas. Nunca afirmaram que estava grávida, foram chamadas apenas para me assistir no parto. Não haviam sido elas quem dissera que esperava uma criança.

– Mas o que pensaram, quando disse que havia um gémeo? – pergunto. – Não é verdade que concordaram, quando afirmou que perdera uma criança mas que mantivera a outra?

As mulheres abanaram a cabeça, não sabiam.

– Devem ter pensado alguma coisa! – exclamo com impaciência. – Viram-me perder o bebé, viram a minha barriga continuar grande. O que pode ter causado isso, a não ser outra criança?

– A vontade de Deus! – replica uma delas, desanimada.

– Amém! – digo eu, e custa-me bastante dizê-lo.

– Quero falar outra vez com aquele médico – disse Catarina a María de Salinas.

– Vossa Graça, pode dar-se o caso de não estar em Londres. Ele viaja com o séquito de um conde francês. Pode ter partido.

– Tentai descobrir se ainda está em Londres, ou quando esperam que regresse – disse a rainha. – Não deveis dizer a ninguém que fui eu que perguntei por ele.

María de Salinas olhou com simpatia para a sua ama.

– Quereis que vos aconselhe sobre o que deveis fazer para terdes um filho? – perguntou em voz baixa.

– Não há nenhuma universidade em Inglaterra onde se estude a medicina! – replicou Catarina com amargura. – Não há uma única que ensine línguas. Nenhuma ensina astronomia ou matemática, geometria, geografia, cosmografia, nem o estudo dos animais ou das plantas. As universidades de Inglaterra têm tanta utilidade como um mosteiro, cheio de monges que passam o tempo a colorir as margens dos textos sagrados.

María de Salinas deu um suspiro, chocada com a audácia de Catarina.

– A Igreja diz...

– A Igreja não precisa de médicos competentes. A Igreja não precisa de saber como se concebem os filhos – interrompeu Catarina. – A Igreja pode continuar com as revelações dos santos, não precisa de nada, além de escrituras. A Igreja é formada por homens que não estão preocupados com as doenças e as dificuldades das mulheres. Mas para os que estão a fazer a sua peregrinação, hoje, os que vivem no mundo, em especial as mulheres, é preciso um pouco mais.

– Mas vós haveis dito que não aceitaríeis sabedoria pagã. Disseste-lo mesmo, ao médico, e que a vossa mãe tivera razão ao fechar as universidades dos infiéis.

– A minha mãe teve seis filhos – respondeu Catarina zangada. – Mas eu digo-vos, se ela encontrasse um médico que salvasse o meu irmão, chamá-lo-ia, nem que tivesse sido ensinado no Inferno. Ela errou ao voltar as costas à sabedoria dos mouros. Estava enganada. Nunca pensei que fosse perfeita, mas, agora, a minha consideração por ela diminuiu. Cometeu um grande erro ao expulsar os sábios professores mouros, com as suas heresias.

– A Igreja disse que os seus ensinamentos são uma heresia – fez María notar. – Como existiria uma coisa sem a outra?

– Tenho a certeza de que não sabeis nada sobre o assunto – disse a filha de Isabel, quando se sentiu encurralada. – Não é um tema que deva ser discutido por vós e, além disso, já vos disse o que quero que façais.

O mouro, Yusuf, não se encontra em Londres, mas as pessoas da casa onde se aloja dizem que já reservou aposentos, pois regressará dentro de uma semana. Tenho de ter paciência. Vou esperar, no meu retiro, e tentar ser paciente.

É muito conhecido, informa a criada de María. As suas idas e vindas são um acontecimento naquela rua. Os africanos são tão raros em Inglaterra que se transformam num espectáculo, e ele é um homem bonito, generoso, sempre a dar pequenas moedas, por serviços insignificantes. Contaram à criada de María que exige sempre água limpa no quarto, para se lavar, que se lava todos os dias, várias vezes ao dia, e que, maravilha das maravilhas, toma banho, três ou quatro vezes por semana, usando sabão e toalhas, espalhando água pelo chão todo, uma grande inconveniência para as criadas da casa e um perigo para a saúde.

Não consigo deixar de rir quando imagino aquele mouro, alto e fastidioso, dobrando-se para entrar numa banheira, ansioso por um banho de vapor, um banho tépido, uma massagem, um chuveiro frio e, depois, um longo e meditativo descanso, fumando o cachimbo de água, enquanto bebe um chá de menta, forte e doce. Faz-me recordar o meu horror, quando cheguei a Inglaterra e descobri que os ingleses quase nunca tomam banho e só lavam as pontas dos dedos, antes de comer. Parece-me que foi mais inteligente do que eu, trouxe consigo o amor pela sua terra, e reconstrói a sua «casa», em qualquer lugar onde esteja. Na minha ânsia de ser a rainha Catarina de Inglaterra, desisti de ser Catarina de Espanha.

Trouxeram o mouro, a coberto da escuridão, até ao quarto onde Catarina estava em retiro. À hora combinada, mandou sair as aias, dizendo que queria ficar só. Estava sentada na cadeira, junto à janela de onde retiraram as tapeçarias para deixar entrar o ar. Quando entrou, a primeira coisa que viu, quando ela se levantou, foi a sua esguia silhueta, iluminada pela luz das velas, contrastando com a escuridão da janela. Ela notou o gesto de simpatia no seu rosto.

– Não havia criança nenhuma.

– Não – confirmou ela. – Amanhã vou sair do retiro.

– Tendes dores?

– Nenhuma.

– Bem, fico contente por isso. Estais a sangrar?

– Tive o meu período normal, na semana passada.

Ele assentiu.

– Nesse caso, deveis ter tido uma doença que já passou – concluiu. – Deveis estar em condições de conceber outra criança. Não deveis perder a esperança.

– Eu não desespero – disse ela secamente. – Nunca perco a esperança. Foi por isso que o mandei chamar.

– Quereis conceber uma criança, o mais depressa possível – calculou ele.

– Sim.

Ele ficou a pensar durante alguns momentos.

– Bem, infanta, uma vez que já houve uma criança, mesmo que não a tenhais levado até ao termo, sabemos que vós e o vosso marido são férteis. Isso já é bom.

– Sim – disse ela, surpreendida com a ideia. Ficara tão deprimida com o aborto, que nem se lembrara que a sua fertilidade ficara provada. – Mas por que razão falais da fertilidade do meu marido?

O mouro sorriu.

– É preciso um homem e uma mulher para conceber uma criança.

– Aqui, em Inglaterra, pensam que é só a mulher.

– Pois, mas nisto, como em tantas outras coisas, estão errados. O bebé necessita de duas partes: o sopro da vida que vem do homem e a dádiva da mãe, a carne.

– Dizem que, quando se perde uma criança, a culpa é da mulher, que talvez tenha cometido um grande pecado.

Ele franziu a testa.

– É possível – anuiu – mas pouco provável. Por essa ordem de ideias, como as assassinas poderiam dar à luz? Por que animais inocentes têm abortos? Penso que, daqui a algum tempo, será possível descobrir que há humores e infecções que provocam o aborto. Não culpo as mulheres, não faz sentido para mim.

– Também dizem que, se uma mulher é estéril, é porque o seu casamento não foi abençoado por Deus.

– Falais do vosso Deus – respondeu ele, racionalmente. – Credes que Ele seria capaz de tornar uma mulher infeliz, só para provar que é Ele quem decide?

Catarina não respondeu.

– Irão culpar-me, se não conseguir dar à luz uma criança viva – observou ela, muito baixinho.

– Eu sei – disse ele –, mas a verdade é esta: tendo tido uma criança, mesmo que se tenha perdido, há todos os motivos para pensar que podeis ter outra. E creio que não deve existir razão para que não possais conceber.

– Tenho de conseguir levar a próxima criança até ao fim do tempo.

– Se pudesse examinar-vos, podia saber mais.

Ela abanou a cabeça.

– Não é possível.

O olhar que ele lhe lançou era alegre.

– Ah, vocês, que selvagens! – exclamou.

Divertida, ela soltou um suspiro como se tivesse ficado chocada.

– Esquece-se de quem é!

– Nesse caso, mandai-me embora.

Isto fê-la parar.

– Podeis ficar – acedeu –, mas é claro que não me podeis observar.

– Nesse caso, vamos pensar no que vos ajudará a conceber e a ter uma criança – disse. – O vosso corpo precisa de estar forte. Costumais andar a cavalo?

– Sim.

– Podeis cavalgar à vontade antes de conceber, mas, depois, deveis usar uma liteira. Caminhai todos os dias, nadai, se possível. Podereis conceber uma criança, cerca de duas semanas após o fim das vossas regras. Descansai, nesses dias, e fazei os possíveis por estardes com o vosso marido, nessa altura. Tentai comer moderadamente em cada refeição e bebei o mínimo possível daquela maldita cerveja.

Catarina sorriu, por ver nele o reflexo dos seus preconceitos.

– Conheceis Espanha?

– Nasci lá. Os meus pais fugiram de Málaga quando a vossa mãe trouxe a Inquisição e compreenderam que seriam torturados até à morte.

– Lamento – proferiu, sentindo-se pouco à vontade.

– Mas voltaremos, está escrito – disse ele num tom seguro e despreocupado.

– Devo avisá-lo de que não acontecerá.

– Eu sei que vai. Eu vi a profecia.

Ficaram ambos calados.

– Devo dizer-vos o que aconselho? Ou é melhor ir embora? – perguntou ele, como se a resposta lhe fosse indiferente.

– Dizei – pediu – e depois pagar-vos-ei, e podeis partir. Nascemos para ser inimigos, não o devia ter mandado chamar.

– Somos ambos espanhóis, ambos amamos o nosso país. Ambos servimos a Deus. Talvez tenhamos nascido para ser amigos.

Ela teve de se controlar para não lhe dar a mão.

– Talvez – comentou com aspereza, virando a cabeça –, mas fui ensinada a odiar o vosso povo e a vossa fé.

– A mim, ensinaram-me a não odiar ninguém – replicou gentil. – Talvez seja a primeira coisa que eu vos deva ensinar, antes de tudo.

– Ensinai-me apenas o que fazer para ter um filho – repetiu.

– Muito bem. Bebei apenas água fervida, deveis comer toda a fruta e os legumes que puderdes encontrar. Tendes aqui legumes para fazer saladas?

Por momentos volto ao jardim de Ludlow e ele olha para mim com os seus olhos brilhantes.

– Acetaria?

– Sim, salada!

– Que é isso?

Ele reparou no brilho da face da rainha.

– Em que pensais?

– No meu primeiro marido. Disse-me que podia mandar vir jardineiros que plantassem legumes para salada, mas nunca o fiz.

– Eu tenho sementes – disse o mouro. – Posso dar-vos algumas e podereis cultivar os legumes de que necessitais.

– Tendes sementes?

– Sim, tenho.

– E seríeis capaz de mas dar... de mas vender?

– Sim, seria capaz de vos dar as sementes.

Por instantes emudeceu, perante a sua generosidade.

– É muito bondoso – agradeceu, por fim.

Ele sorriu.

– Somos ambos espanhóis e estamos longe de casa. Será que não é mais importante do que o facto de eu ser negro e vós serdes branca? De que eu adore o meu Deus virado para Meca e de vós adorardes o vosso voltado para o Ocidente?

– Eu sou filha da religião verdadeira e vós sois um infiel – falou Catarina com menos convicção do que habitualmente.

– Somos ambos pessoas de fé – afirmou. – Os nossos inimigos deviam ser os que não têm fé, nem em Deus, nem nos outros, nem neles próprios. As pessoas que deviam enfrentar a nossa cruzada são as que enchem o mundo de crueldade, sem outro motivo, a não ser quererem alcançar o poder para si mesmos. Há suficiente pecado e maldade contra que lutar; não há razão para se pegar em armas contra povos que crêem num Deus misericordioso e que tentam levar uma vida boa.

Catarina não sabia o que responder. Por um lado, estavam os ensinamentos da mãe, por outro, estava a bondade que irradiava daquele homem.

– Não sei! – exclamou, e foi como se as palavras a libertassem. – Não sei, teria de colocar a Deus essa questão, teria de Lhe pedir que me guiasse. Não quero fingir que sei.

– Ora, esse é o verdadeiro princípio da sabedoria – disse ele, com gentileza. – Disso, pelo menos, tenho a certeza. Reconhecer que não sabemos é perguntar com humildade, não é responder com arrogância. Este é o princípio da sabedoria. Agora, vamos ao que é importante. Vou para casa, e farei uma lista com as coisas que não deveis comer e enviarei medicamentos para fortificar os vossos humores. Não permitais que vos coloquem ventosas, não deixeis que usem sanguessugas e não permitais que vos convençam a tomar venenos ou poções. Sois uma mulher jovem que tem um marido jovem. O bebé há-de chegar.

Foi como uma bênção.

– Estais seguro? – perguntou.

– Tenho a certeza – respondeu ele. – E muito em breve.

Palácio de Greenwich, Maio de 1510

 

Mando chamar Henrique, devo ser eu a dizer-lhe. Ele vem sem vontade. Encheram-no de receios em relação aos segredos das mulheres, das coisas que só dizem respeito às mulheres e não gosta de entrar num quarto que foi preparado para um parto. Mas há mais qualquer coisa: uma falta de carinho, que noto no seu rosto, voltado para outro lado. É o modo com que evita o meu olhar. Mas não posso confrontá-lo em relação à sua frieza para comigo, quando tenho tão más notícias para lhe dar. Lady Margarida deixa-nos a sós, fechando a porta. Sei que impedirá que alguém fique lá fora, a tentar ouvir. Todos irão saber em breve.

– Meu esposo, lamento, mas tenho tristes notícias para vos dar – digo eu.

Encara-me com um ar preocupado.

– Percebi que não devia ser nada de bom, quando lady Margarida me foi chamar.

Não resolve nada ficar irritada, terei de me controlar, assim como a ele.

– Não estou grávida – declaro. – O médico deve ter-se enganado. Só havia uma criança, e essa, perdi-a. Este retiro foi um erro. Amanhã, regresso à corte.

– Como se pode enganar numa coisa assim?

Encolho os ombros. Apetecia-me dizer porque ele é um ignorante e um vaidoso e trabalha para vós. E vós rodeais-vos de pessoas que só vos dão as notícias boas, pois têm medo de vos dar as más. Mas digo numa voz neutra: «Deve ter-se enganado.»

– Vou fazer figura de idiota! – explodiu. – Estivestes fora da corte quase três meses, e não há nada para o justificar.

Durante alguns momentos não consegui dizer nada. Não adiantava desejar estar casada com um homem que se preocupasse com mais alguma coisa, além da sua aparência, um homem que pensasse em mim, em primeiro lugar.

– Ninguém vai pensar nada – profiro com firmeza. – Se disserem alguma coisa será que sou uma idiota, por não saber se estava ou não grávida. Mas, pelo menos, tivemos um bebé, o que significa que poderemos ter outro.

– A sério? – pergunta, já esperançado. – Mas por que a perdemos? Deus está desagradado connosco? Teremos cometido algum pecado? Isto é um sinal de que Deus está zangado.

Mordo o lábio inferior para não lhe repetir a pergunta do mouro: «Será que Deus é tão vingativo ao ponto de matar uma criança inocente para castigar os pais por um pecado tão venial, que nem sabiam que tinham cometido?»

– A minha consciência está tranquila – digo com firmeza.

– A minha também! – exclama rapidamente, depressa de mais.

Mas a minha consciência não está tranquila. Nessa noite, ajoelho-me em frente da imagem do senhor crucificado e, ao menos desta vez, rezo a sério, não sonho com Artur nem recorro à memória que tenho da minha mãe. Fecho os olhos e rezo.

«Senhor, foi uma promessa feita a um moribundo», digo. «Ele pediu-mo. Era para o bem de Inglaterra. Para guiar o reino e o novo rei nos caminhos da Igreja. Era para proteger a Inglaterra dos mouros e do pecado. Sei que me trouxe riqueza e o trono, mas não o fiz por interesse. Se é um pecado, então, mostrai-mo agora, Senhor. Se não devo ser sua mulher, dizei-mo agora. Porque julgo que procedi bem, penso que estou a fazer o que é certo. E acredito que não me iríeis tirar o meu filho, só para me castigar por isso. Creio que sois um Deus de misericórdia e penso que fiz o que é certo, por Artur, por Henrique, por Inglaterra e por mim.»

Sento-me nos calcanhares e espero bastante tempo, uma hora, talvez mais, para o caso de o meu Deus, o Deus da minha mãe, querer falar comigo, na Sua raiva.

Mas Ele não fala.

Por isso, continuarei a assumir que faço o que é certo. Artur tinha razão quando me exigiu a promessa, eu estava certa quando disse a mentira, a minha mãe estava certa quando me disse que seria rainha de Inglaterra, por vontade de Deus e, aconteça o que acontecer, nada mudará isso.

Lady Margarida Pole vem para junto de mim, esta noite, a minha última noite no retiro, e senta-se no banco, do outro lado da braseira, perto o suficiente para que não nos ouçam.

– Tenho uma coisa para vos dizer – diz.

Olho para ela, e o seu rosto está tão calmo, que percebo que alguma coisa má aconteceu.

– Dizei – peço.

Faz um gesto de desgosto.

– Lamento trazer-vos o diz-que-diz da corte.

– Muito bem, falai.

– É sobre a irmã do duque de Buckingham.

– Elizabeth? – pergunto-lhe, pensando na bela jovem que viera ter comigo quando soube que ia ser rainha e me pediu para ser minha dama de companhia.

– Não, Anne.

Aceno. É a irmã mais nova de Elizabeth, uma rapariga de olhos negros, com um jeito brincalhão e que adora a companhia masculina. É muito popular na corte, entre os rapazes mas, pelo menos quando estou presente, porta-se com toda a graça recatada de uma jovem das melhores famílias do país, ao serviço da rainha.

– O que se passa com ela?

– Anda com William Compton, sem dizer a ninguém. Têm encontros. O irmão está muito aborrecido. Contou ao marido e ele ficou furioso por estar a pôr em risco a sua reputação e o nome dele, num namorico com o amigo do rei.

Penso no assunto por alguns momentos. William Compton é um dos mais insensatos amigos de Henrique e os dois são inseparáveis.

– William só deve estar a divertir-se – replico. – É um quebra-corações.

– Acontece que deram por falta dela durante um espectáculo de máscaras, uma vez, um jantar e, outra vez, todo o dia, quando a corte caçava.

Abano a cabeça, em concordância. Isto já é muito mais sério.

– Há algum indício de que sejam amantes?

Ela encolhe os ombros.

– O irmão, Eduardo Stafford, está furioso, naturalmente. Foi queixar-se a Compton e houve uma discussão. O rei defendeu Compton.

Aperto os lábios para não deixar escapar uma crítica, de tão irritada que fico. O duque de Buckingham é um dos mais antigos amigos da família Tudor, com extensas propriedades e muitos criados. Foi ele que me recebeu, com o príncipe Henrique, há tantos anos, e, agora, é considerado pelo rei como o homem mais importante do país. Tem sido um bom amigo para mim desde essa época. Mesmo quando fui desprezada, recebia sempre dele um sorriso e uma palavra bondosa. Todos os anos, no Verão, me fazia uma oferta de caça e havia semanas em que era a única carne que víamos. Henrique não pode discutir com ele, como se fosse um comerciante e Henrique um rude lavrador. Falamos do rei e do mais importante homem de Estado de Inglaterra. O velho rei Henrique não teria conseguido conquistar o trono, sem a ajuda de Buckingham. Um desentendimento entre os dois não é um assunto privado, é um desastre nacional. Se Henrique tivesse o mínimo de bom senso não se teria envolvido nessa discussão entre os seus insignificantes cortesãos. Lady Margarida acena-me, não preciso de lhe dizer nada, compreendeu que desaprovo.

– Será que não posso deixar a corte por um momento sem que as minhas aias saltem pelas janelas dos quartos para correr atrás de homens?

Ela inclina-se para a frente e dá-me uma pequena palmada na mão.

– Parece que não. É uma corte jovem e insensata, Vossa Graça, e precisam de vós para os controlar. O rei disse palavras muito desagradáveis ao duque, e este está muito ofendido. William Compton diz que não falará do assunto com ninguém, por isso pensam o pior. Anne foi aprisionada pelo marido, sir George, e nenhuma de nós a viu hoje. Desconfio que quando sairdes do vosso retiro não a vai deixar continuar ao vosso serviço e, aí, a vossa honra também será envolvida. – Faz uma pausa. – Achei que devíeis saber, em vez de serdes surpreendida por isto, amanhã de manhã. Embora seja contra o meu feitio ser portadora deste tipo de histórias.

– É ridículo! – exclamo. – Tratarei do assunto amanhã quando sair do retiro. Mas, de facto, o que estão a pensar? Que isto é o recreio de uma escola? William devia ter vergonha e surpreende-me que Anne tenha esquecido a sua posição para andar atrás dele. E quem o marido pensa que é? Algum cavaleiro de Camelot, para a prender numa torre?

A rainha Catarina saiu do retiro sem aviso e regressou aos seus aposentos habituais no Palácio de Greenwich. Não haveria cerimónias religiosas para assinalar o seu regresso à vida normal, uma vez que nenhuma criança nascera. Não haveria um baptizado, pois não existia criança para baptizar. Catarina abandonou o quarto escuro sem que se comentasse, como se ela tivesse tido alguma doença secreta e vergonhosa e agiam como se tivesse estado fora algumas horas, em vez dos quase três meses de ausência.

As damas de companhia, que se habituaram a uma vida descansada, durante o retiro da rainha, apareceram relativamente depressa nos seus aposentos e as criadas apressaram-se a espalhar ervas frescas e a colocar velas novas.

Catarina detectou vários olhares furtivos entre as damas e presumiu que, também, tinham a consciência pesada devido a maus comportamentos durante a sua ausência, mas depois notou que as conversas sussurradas paravam sempre que erguia a cabeça. Era claro que algo se passara, mais grave do que o problema de Anne, e tornava-se evidente que ninguém lhe queria dizer nada.

Fez sinal a uma das aias, lady Madge, para que se aproximasse.

– Lady Elizabeth não vem ter connosco esta manhã? – perguntou, quando reparou que não havia sinal da mais velha das irmãs Stafford.

A rapariga corou até às orelhas.

– Eu não sei – gaguejou. – Penso que não.

– Onde está? – interrogou Catarina.

A rapariga olhou em volta, à procura de ajuda, mas as outras damas na sala ficaram, de súbito, muito interessadas na costura, nos bordados ou nos livros. Isabel Bolena dava as cartas, prestando enorme atenção ao que fazia, como se tivesse apostado uma fortuna naquele jogo.

– Não sei onde está – confessou a rapariga.

– Talvez na casa de banho? – sugeriu Catarina. – Nos aposentos do duque de Buckingham?

– Parece-me que se foi embora – disse a rapariga com rudeza. Ouviu-se um ligeiro arfar e depois ficou tudo em silêncio.

– Foi-se embora? – Catarina olhou em volta. – Alguém me informa do que se passa? – inquiriu, num tom alto. – Para onde foi lady Elizabeth? E como saiu sem a minha autorização?

A rapariga deu um passo atrás. Nesse momento, lady Margarida Pole entrou na sala.

– Lady Margarida – saudou Catarina alegre –, Madge diz-me que lady Elizabeth deixou a corte sem a minha autorização e sem se despedir de mim. O que se passa?

Catarina sentiu o seu sorriso divertido gelar no rosto quando a velha amiga abanou a cabeça e Madge, aliviada, voltou para o seu lugar.

– O que se passa? – perguntou Catarina, de uma maneira mais calma.

Embora parecesse que não se tinham movido, as damas inclinaram-se para a frente, para ouvirem o que lady Margarida tinha para dizer sobre os últimos acontecimentos.

– Creio que o rei e o duque de Buckingham tiveram uma acesa discussão – informou lady Margarida. – O duque abandonou a corte e levou as irmãs.

– Mas são minhas damas de companhia, estão ao meu serviço. Não podem ir embora sem minha autorização.

– Foi um grave erro, da parte delas, de facto – anuiu Margarida. Alguma coisa, na maneira como torcia as mãos no regaço e no olhar, tão fixo e calmo, avisaram Catarina de que não devia insistir.

– Então o que têm feito durante a minha ausência? – inquiriu Catarina, voltando-se para as damas, na tentativa de aliviar o ambiente da sala.

De repente, ficaram com um ar submisso.

– Aprenderam canções novas? Dançaram em algum baile de máscaras? – interrogou Catarina.

– Eu aprendi uma canção nova – informou uma das raparigas. – Quereis que a cante?

Catarina concordou e uma das outras mulheres pegou num alaúde. Parecia que tinham pressa em distraí-la. Catarina sorriu e foi marcando o ritmo com a mão, no braço da cadeira. Percebia, como mulher nascida e criada numa corte de conspiradores, que havia, de certeza, qualquer coisa de muito errado.

Ouviu-se o ruído de pessoas que se aproximavam e os guardas de Catarina abriram a porta para o rei e a sua corte passarem. As damas levantaram-se, sacudiram as saias e morderam os lábios, para os tornar vermelhos, brilhando de ansiedade. Alguém riu sem motivo. Henrique entrou, com as roupas de montar, rodeado pelos amigos, de braço dado com William Compton.

Catarina reparou, mais uma vez, que havia alterações no comportamento do marido. Quando entrou, não a abraçou, nem a beijou na cara. Não veio até ao centro da sala para lhe fazer uma vénia. Entrou, agarrado ao melhor amigo, parecendo que se escondiam um atrás do outro, como rapazinhos apanhados a fazer uma asneira: meio envergonhados, meio fanfarrões. Vendo o olhar crítico de Catarina, Compton afastou-se atrapalhado, e Henrique cumprimentou a esposa sem entusiasmo, com olhos baixos, pegando-lhe na mão e beijando-a na face, não na boca.

– Já estais bem, agora? – perguntou.

– Sim – disse. – Estou muito bem. E vós, como estais, senhor?

– Oh! – exclamou despreocupado. – Estou bem. Tivemos uma grande caçada esta manhã. Gostaria que pudésseis ter estado connosco. Parece-me que chegámos até metade do caminho para Sussex.

– Amanhã irei – prometeu-lhe Catarina.

– Será que já estais em condições de o fazer?

– Estou bem – repetiu.

Ele pareceu aliviado.

– Pensei que iríeis ficar doente durante muitos meses – deixou escapar.

Sorrindo, abanou a cabeça, tentando imaginar quem lhe teria dito aquilo.

– Vamos quebrar o jejum – disse. – Estou esfomeado.

Pegou-lhe na mão e conduziu-a para o salão principal. A corte seguiu, informalmente, atrás. Catarina ouvia o zunzum muito excitado dos sussurros. Inclinou a cabeça para o lado de Henrique para que ninguém ouvisse as suas palavras:

– Ouvi dizer que tem havido algumas discussões na corte.

– Oh, já vos falaram da nossa pequena tempestade? – inquiriu. Falava alto de mais e estava demasiado jovial. Representava o papel de um homem sem qualquer peso na consciência. Lançou uma gargalhada por cima dos ombros e procurou alguém que se juntasse ao seu divertimento forçado. Meia dúzia de homens e mulheres sorriram, ansiosos por partilhar o seu bom humor. – É importante, mas, ao mesmo tempo, não tem importância. Tive uma discussão com o vosso grande amigo, o duque de Buckingham. Ele deixou a corte, num acesso de fúria! – Voltou a rir-se, com mais vontade, olhando de lado para ela, para ver se se ria, tentando avaliar se já saberia de tudo.

– A sério? – perguntou com frieza.

– Ele insultou-me – afirmou Henrique, mostrando um ar ofendido. – Pode ficar longe, até estar preparado para me pedir desculpa. É um homem tão vaidoso, vós sabeis. Acha sempre que sabe tudo. E a irritante irmã, Elizabeth, também pode ir.

– Ela é uma boa dama de companhia e uma amiga generosa para mim – observou Catarina. – Esperava que me viesse cumprimentar hoje. Não tenho problema com ela nem com a irmã, Anne. Penso que vós também não!

– Em todo o caso, estou desagradado com o irmão – proferiu Henrique. – Podem ir embora.

Catarina calou-se e respirou fundo:

– Ela e a irmã fazem parte do meu séquito – observou. – Tenho o direito de escolher e despedir as minhas aias.

Ela viu um rápido clarão do seu temperamento infantil.

– Deveis fazer-me o favor de as mandar embora do vosso séquito! Sejam quais forem os vossos direitos. Espero não ter de discutir direitos convosco!

Atrás deles, a corte ficou em silêncio. Queriam ouvir a primeira discussão real.

Catarina soltou a mão e deu a volta à mesa principal, para ocupar o seu lugar. Isso deu-lhe uns minutos para se lembrar que devia acalmar-se. Quando ele veio para o seu lugar, ao seu lado, respirou fundo e sorriu-lhe:

– Como quiserdes – disse serena. – Não tenho grandes preferências nesse assunto. Mas, como posso organizar uma corte, se despeço jovens mulheres de boas famílias que não fizeram nada de mal?

– Não tendes estado aqui, por isso não fazeis ideia do que fez ou não!

Henrique andava à procura de um motivo para se queixar, e descobriu um. Fez um gesto com a mão, autorizando a corte a sentar-se, e deixou-se cair na cadeira:

– Vós haveis decidido encerrar-vos, longe daqui, durante meses. Que podia fazer sem vós? Como quereis que os assuntos possam ser bem geridos se vos ides embora, deixando tudo para trás?

Catarina abanou a cabeça, mantendo uma expressão serena. Tinha completa noção de que os olhos da corte estavam postos nela, como vidro a arder sobre papel fino:

– Não estive fora por divertimento – observou.

– Tem sido muito desagradável para mim – continuou, pegando nas palavras dela –, muito desagradável. Está tudo muito bem para vós, ficar de cama durante semanas a fio, mas como pode a corte ser dirigida sem uma rainha? As vossas damas ficaram sem disciplina, ninguém sabia como se deviam fazer as coisas, eu não vos podia ver, tive de dormir só... – Calou-se.

Catarina compreendeu que a sua jactância escondia uma genuína sensação de sofrimento. No seu egoísmo, transformara o longo período de dor e receio que ela tivera de suportar numa dificuldade para si mesmo. Chegara à conclusão de que o seu retiro, sem resultado visível, fora uma forma voluntária de o abandonar, de o deixar sozinho a chefiar uma corte desequilibrada; aos olhos dele, ela deixara-o e desapontara-o.

– Parece-me que, no mínimo, deveis fazer o que vos peço – concluiu rabugento. – Já tive problemas suficientes, nestes últimos meses. Isto tem um mau reflexo na minha pessoa, obrigando-me a fazer papel de idiota. E vós não me ajudastes em nada.

– Muito bem – disse Catarina concordando. – Mandarei Elizabeth embora, com a irmã, Anne, já que mo pedis. Com certeza.

Henrique recuperou o sorriso, como se o Sol aparecesse por detrás das nuvens.

– Está bem, e agora que vós regressastes, tudo pode voltar ao normal.

Nem uma palavra para mim, nenhuma palavra de conforto, nenhuma compreensão. Eu podia ter morrido, a tentar trazer aquela criança ao mundo, sem esta criança tenho de enfrentar a tristeza, a pena e um assombroso medo do pecado. Mas ele nem pensa em mim.

Tenho sempre um sorriso, para responder ao dele. Já sabia, quando casei, que era um rapaz egoísta e sabia que se tornaria um homem egoísta. Impus a mim mesma a tarefa de o guiar e de o ajudar a ser um homem melhor, o melhor que consiga ser. É natural que surjam ocasiões em que pense que não é o homem que devia ser. E quando esses momentos surgem, como agora, tenho de reconhecê-lo como um erro meu, por não o ter sabido guiar. Tenho de lhe perdoar.

Sem o meu perdão, se não esticar a minha paciência até ao limite, o nosso casamento será mais pobre. Está sempre pronto a queixar-se de uma mulher que se preocupe com ele, aprendeu com a avó. E eu, que Deus me perdoe, penso mais depressa no marido que perdi, do que no que tenho. Ele não é o homem que Artur era, e nunca será o rei que Artur seria, mas é o meu marido e o meu rei e devo respeitá-lo.

Na verdade: respeitá-lo-ei, quer mereça quer não.

A corte estava subjugada durante o pequeno-almoço, e poucos conseguiam afastar os olhos da mesa principal onde, por baixo do grande dossel do poder, sentados nos tronos, o rei e a rainha conversavam, parecendo reconciliados.

– Mas será que ela já sabe? – segredava um cortesão a uma das damas de Catarina.

– E quem seria capaz de lhe contar? – perguntou. – Se María de Salinas e lady Margarida ainda não lhe disseram, então não sabe. Era capaz de apostar os meus brincos em como não sabe.

– Apostado – disse ele. – Aposto dez xelins em como descobre.

– Até quando?

– Amanhã – replicou ele.

Juntei mais uma peça ao puzzle, quando verifiquei as contas relativas às semanas em que estivera em retiro. Nos primeiros dias de ausência, não houvera despesas extraordinárias. Mas, depois, as contas dos divertimentos começaram a crescer. Havia contas de cantores e actores que ensaiavam as celebrações em honra do bebé que ia nascer, contas para pagar ao organista, aos elementos do coro, de cortinados e tecido para fazer flâmulas e estandartes, criadas extra para polir a pia baptismal, de ouro. Depois, pagamentos de fatos, em verde Lincoln, para disfarces, a cantores que deviam cantar debaixo da janela de lady Anne, a um escrivão que escreveu a letra da nova canção do rei, ensaios para um novo espectáculo com baile, a realizar no Dia de Maio, e fatos de cena para três damas que actuariam, uma das quais lady Anne, que representaria o papel de Beleza Inatingível.

Levantei-me da mesa onde estivera às voltas com os papéis e fui à janela, olhar para baixo, para o jardim. Fora montada uma arena para a luta, e os jovens da corte estavam em mangas de camisa. Henrique e Charles Brandon presos nos braços um do outro, como ferreiros numa feira. Enquanto olhava, Henrique fez o amigo cair, atirou-o ao chão e deixou cair o seu peso em cima dele, para o manter no chão. A princesa Maria aplaudiu e a corte ovacionou-o.

Afastei-me da janela. Comecei a pensar se lady Anne teria provado que era inatingível. Imaginar quão felizes teriam estado na manhã do Dia de Maio, enquanto eu acordava sozinha, triste, no meio do silêncio, sem ninguém a cantar debaixo da minha janela. E por que razão haveria a corte de pagar aos cantores, contratados por Compton, para seduzir a sua nova amante?

O rei mandou chamar a rainha aos seus aposentos, da parte da tarde. Tinham chegado algumas mensagens do papa e queria o seu conselho. Catarina sentou-se junto dele, ouviu o relato do mensageiro e esticou-se para segredar ao ouvido do marido.

Ele concordou, abanando a cabeça.

– A rainha faz-me recordar a nossa famosa aliança com Veneza – disse ele – e, na verdade, não precisa de mo recordar. Não me esqueço de uma coisa assim. Podeis contar com a nossa determinação para proteger Veneza, e a Itália, das ambições do rei francês.

Os embaixadores acenaram, respeitosamente.

– Enviar-vos-ei uma carta sobre este assunto – continuou Henrique num tom majestoso.

Fizeram uma vénia e retiraram-se.

– Importais-vos de lhes escrever? – pediu a Catarina.

Ela concordou.

– Claro – prontificou-se. – Penso que haveis tratado muito bem deste assunto.

Ele sorriu pela aprovação dela.

– É tudo muito melhor quando estais aqui – replicou. – Nada corre bem quando estais ausente.

– Bem, agora já voltei! – exclamou, pousando uma das mãos no seu ombro. Sentia a força dos seus músculos na mão. Henrique, agora, era um homem, com a força de um homem.

– Meu querido, lamento tanto a vossa discussão com o duque de Buckingham!

Debaixo da mão, sentiu o seu ombro contrair-se para se livrar da mão dela.

– Não tem importância – anunciou. – Terá de me pedir perdão, e tudo será esquecido.

– Mas talvez pudesse voltar para a corte – disse ela – sem as irmãs, já que não as quereis ver...

Inexplicavelmente, ele soltou uma enorme gargalhada:

– Oh, trazei-os de volta, por favor – disse ele. – Se esse é o vosso real desejo, se achais que vos faz feliz. Nunca deveríeis ter entrado em retiro, não havia criança nenhuma, qualquer pessoa percebia que não havia criança.

Ela ficou tão chocada que mal conseguia falar.

– Isto tem alguma coisa que ver com o meu retiro?

– Nunca teria acontecido sem ele. Mas todos perceberam que não haveria qualquer criança. Foi tempo perdido.

– O vosso médico...

– Que sabia? Só sabe o que vós lhe dizeis.

– Ele garantiu-me...

– Os médicos não sabem nada! – exclamou com violência. – São sempre levados pela mulher, todos sabem disso. E uma mulher pode dizer o que lhe apetecer. Existe um bebé, não existe? Será que é virgem, não é virgem? Só a mulher sabe a resposta e nós somos enganados.

Catarina sentiu o seu pensamento a correr, tentando descobrir o que o ofendera, o que lhe podia dizer.

– Eu confiei no vosso médico – retorquiu. – Ele tinha a certeza. Assegurou-me de que estava grávida e por isso me retirei. Da próxima vez, já saberei o que fazer. Lamento muito, meu amor. Tem sido um grande sofrimento, para mim.

– Só me fez parecer um completo idiota! – lamuriou-se. – Não admira que eu...

– Que vós, o quê?

– Nada – disse Henrique amuado.

«Está uma tarde tão bonita, vamos dar um passeio», digo alegre para as aias. «Lady Margarida far-me-á companhia.»

Saímos, trazem-me a capa, colocam-ma pelos ombros e calçam-me as luvas. O caminho que desce até ao rio está molhado e escorregadio e lady Margarida dá-me o braço e descemos as escadas. As primaveras abundam e parecem manteiga desnatada nas sebes, o Sol brilha. Há cisnes brancos no rio, mas, quando passam as barcas ou os botes, as aves afastam-se do seu caminho, como que por magia. Respiro fundo, é tão bom sair daquele quarto pequeno e voltar a sentir o sol no rosto que quase não me apetece voltar ao assunto de lady Anne.

– Sabeis, de certeza, o que aconteceu! – digo-lhe com secura.

– Ouvi alguns rumores – confirma. – Nada de concreto.

– O que irritou tanto o rei? – pergunto. – Está aborrecido com o meu retiro e zangado comigo. O que o preocupa? De certeza que não é o namorico da rapariga Stafford com Compton!

O rosto de lady Margarida fica sério.

– O rei é muito ligado a William Compton – comentou – e não gostou que o insultassem.

– Parece-me que a parte insultada foi a outra – corto –, pois lady Anne e o marido foram desonrados. Seria de esperar que o rei ficasse zangado com William. Lady Anne não é uma rapariga que se possa derrubar atrás de uma parede. Há que ter em consideração a família e a família do marido. Obviamente, o rei devia ter dito a Compton que se comportasse.

Lady Margarida encolhe os ombros.

– Eu não sei – afirma. – Nenhuma das raparigas quer falar comigo. Estão tão silenciosas, que o assunto deve ser grave.

– Mas, porquê, se não passou de um namoro sem importância? Juventude atrai juventude, na Primavera, não é verdade?

Ela abana a cabeça.

– De facto, não sei. Poderíamos pensar que foi apenas isso, mas, se foi só uma paixão sem importância, por que ficaria o duque tão ofendido? Porquê discutir com o rei? Por que será que as outras raparigas não se riem de Anne por ser descoberta?

– E há ainda outra coisa... – digo eu.

Ela espera.

– Por que teria o rei pago o namoro de Compton? A verba para os cantores foi incluída nas contas da corte.

Ela franziu a testa:

– Por que razão haveria de incentivar essa situação? O rei sabia que o duque se sentiria ofendido.

– E Compton continua a ser considerado um amigo?

– São inseparáveis.

Traduzo em palavras o pensamento que me gela o coração:

– Portanto, achais que Compton é apenas o escudo e que o romance é entre o rei, meu esposo, e lady Anne?

A expressão severa de lady Margarida diz-me que a minha suspeita é o seu receio.

– Eu não sei – afirma, honesta como sempre. – Como vos disse, as raparigas não me contam nada e não fiz essa pergunta a ninguém.

– Porque tendes receio de não gostar da resposta?

Ela acena. Viro-me, e voltamos para trás, ao longo do rio, em silêncio.

Catarina e Henrique seguiram à frente da corte para o jantar no salão principal e sentaram-se lado a dado debaixo do dossel de estado, feito de ouro, como sempre. Havia um grupo de cantores especiais que vieram da corte francesa para Inglaterra e que cantavam sem instrumentos, muito afinados, e com várias partes diferentes. Era complicado e belo e Henrique estava encantado com a música. Quando os músicos pararam, aplaudiu e pediu-lhes para repetirem a canção. Eles sorriram com o entusiasmo, e cantaram outra vez. Ele voltou a pedir, e depois ele mesmo lhes cantou a parte de tenor da melodia, no tom certo.

Foi a vez de o aplaudirem, e convidaram-no a cantar com eles a parte que aprendera tão depressa. Catarina, sentada no trono, inclinou-se para a frente e sorriu, enquanto o belo e jovem esposo cantava, com a sua voz límpida e jovem e as damas da corte batiam palmas de apreço.

Quando entraram outros músicos e a corte começou a dançar, Catarina desceu do estrado onde se encontrava a mesa principal e dançou com Henrique, com uma cara radiante de felicidade, um sorriso terno. Henrique, incentivado, dançou como um italiano, com passos rápidos e elegantes e grandes saltos. Catarina batia palmas, encantada, e pediu uma nova dança, como se nunca tivesse tido qualquer problema na vida. Uma das damas inclinou-se para o cortesão que aceitara a aposta de que Catarina não descobriria o que se passara.

– Parece-me que não vou ficar sem os meus brincos – disse ela. – Ele enganou-a. Fê-la passar por idiota e agora está livre para qualquer uma de nós. Ela perdeu o controlo sobre ele.

Espero até ficarmos a sós, espero até me ter amado com uma alegria ansiosa e depois saio da cama e trago-lhe uma taça de cerveja.

– Agora dizei-me a verdade, Henrique – peço-lhe. – Qual é a verdade sobre a discussão entre vós e o duque de Buckingham, e o que tendes andado a fazer com a irmã?

O seu rápido olhar de soslaio diz-me mais do que quaisquer palavras. Prepara-se para me mentir. Ouço as palavras que me diz: uma história sobre um disfarce, com eles mascarados, as damas a dançar, Compton e Anne a dançarem, e eu sei que mente.

É uma experiência mais dolorosa do que podia esperar ter com ele. Estamos casados há quase um ano, vai fazer um ano no próximo mês, e sempre me olhou de frente, com a juventude e honestidade no olhar. Nunca ouvi nada a não ser a verdade na sua voz: presunção, a arrogância de um homem jovem, mas nunca a fala a tremer deste modo inseguro e decepcionante. Mente-me, e quase preferia ouvir uma crua confissão de infidelidade do que vê-lo olhar para mim, com olhos azuis e a doçura de um rapazinho, e um saco de mentiras na boca.

Interrompo-o, não suporto ouvi-lo.

– Basta! – digo. – Sei o suficiente para, pelo menos, saber que não é verdade. Era vossa amante, não era? E Compton o vosso amigo e o vosso escudo?

O seu rosto está alterado.

– Catarina...

– Dizei-me a verdade.

A sua boca treme. Não consegue admitir o que fez.

– Eu não queria...

– Eu sei que não – acedo. – Tenho a certeza de que fostes excessivamente tentado.

– Estivestes longe durante tanto tempo...

– Eu sei.

Cai um terrível silêncio. Calculara que me mentiria e que o apanharia na mentira, que iria confrontá-lo com as mentiras e com o adultério, que seria uma rainha guerreira cheia de merecida fúria. Mas sinto apenas tristeza e uma sensação de derrota. Se Henrique não consegue manter-se fiel enquanto estou em retiro, esperando o nascimento de um filho, o nosso filho, que tanto desejamos, então como poderá ser-me fiel até à morte? Como poderá obedecer à promessa de renegar as outras, quando é distraído com tanta facilidade? Que posso fazer, o que pode uma mulher fazer quando o marido é tolo para desejar uma mulher por uns momentos, em vez da mulher à qual prometeu unir-se para a eternidade?

– Querido esposo, foi um grande erro – anuncio triste.

– Foi só porque tinha tantas dúvidas. Por momentos pensei que não éramos casados – confessou.

– Esquecestes-vos de que éramos casados? – pergunto incrédula.

– Não! – Ergue a cabeça, os olhos azuis, repletos de lágrimas, o rosto coberto de arrependimento. – Pensei que, já que o nosso casamento não era válido, não teria de o respeitar.

Fico espantada.

– O nosso casamento? E por que não havia de ser válido?

Ele abana a cabeça, demasiado envergonhado para falar. Eu pressiono-o.

– Por que não?

Ajoelha-se junto da cama e esconde a cara nos lençóis.

– Eu gostei dela, desejei-a e disse algumas coisas que me fizeram sentir...

– Sentir o quê?

– Levou-me a pensar...

– Pensar o quê?

– E se vós não fôsseis virgem, quando casei convosco?

Fico alerta, como um criminoso na cena do crime, como um assassino, quando um cadáver sangra na sua presença.

– Que quereis dizer com isso?

– Ela era virgem...

– Anne?

– Sim. Sir George é impotente. Toda a gente sabe.

– Sabem?

– Sabem. Por isso era virgem. E não era... – Ele esfrega o rosto nos lençóis da nossa cama. – Ela não era como vós. Ela... – Tropeça nas palavras. – Ela gritou de dor. Sangrou, fiquei com medo quando vi tanto sangue, muito mesmo... – Volta a calar-se. – Ela não pôde continuar, na primeira vez. Tive de parar. Chorava e abracei-a. Era virgem. É o que acontece quando nos deitamos com uma virgem, pela primeira vez. Eu fui o primeiro amante. Percebi isso. O seu primeiro amor.

Há um longo e frio silêncio.

– Ela enganou-vos – replico cruelmente, destruindo a sua reputação e o carinho que ele sentia por ela, tudo ao mesmo tempo, fazendo dela uma prostituta e dele um idiota, mas os fins justificam os meios.

Ele levanta a cabeça, chocado:

– Enganou?

– Não estava assim tão dorida, fingia. – Abano a cabeça, ao pensar nos pecados que as jovens são capazes de cometer. – É um velho truque. Devia ter uma bolsa com sangue na mão, e rasgou-a, para vos mostrar que havia sangue. Deve ter gritado muito. Deve ter soluçado e dito que não era capaz de suportar a dor, desde o início.

Henrique estava estarrecido.

– Foi isso que ela fez.

– Ela queria que sentísseis pena dela.

– E senti.

– É claro que sim. Quis fazer-vos crer que lhe havíeis tirado a virgindade, a honra, e portanto teríeis de a proteger.

– Foi isso que disse!

– Ela armou-vos uma armadilha – proferi. – Não era virgem, representava, como se fosse. Eu era virgem, quando entrei na vossa cama e, na primeira noite que nos tornámos amantes, tudo foi simples e doce. Recordais?

– Sim – disse ele.

– Não houve choros nem gritos, como os dos actores, num palco. Foi tudo tranquilo e carinhoso. Esse deve ser o vosso ponto de comparação – continuo. – Eu era uma virgem verdadeira. Fomos o primeiro amante um do outro. Não houve necessidade de representações ou exageros. Deveis ser fiel à verdade do nosso amor, Henrique. Vós fostes enganado por uma impostora.

– Ela disse... – começou ele.

– Ela disse o quê? – Não tenho medo. Estou decidida a não deixar Anne Stafford destruir o que Deus e a minha mãe juntaram.

– Ela afirmou que vós devíeis ter sido amante de Artur. – Hesita ao ver a minha cara, pálida de fúria. – Que vos deitastes com Artur e que...

– Não é verdade.

– Eu não sabia.

– Não é verdade.

– Oh, está bem.

– O meu casamento com Artur não foi consumado. Era virgem quando casei convosco, vós fostes o meu primeiro amante. Há alguém que se atreva a afirmar o contrário?

– Não – diz ele. – Não. Ninguém dirá o contrário do que vós dizeis.

– Nem do que vós dizeis.

– Nem do que eu digo.

– Alguém será capaz de dizer na minha frente que eu não sou o vosso primeiro amor, uma virgem intocada, a vossa verdadeira esposa e a rainha de Inglaterra?

– Não – repetiu ele, mais uma vez.

– Nem mesmo vós.

– Não.

– Querem desonrar-me – atiro furiosa. – E quando vai parar a maledicência? Será que também vão sugerir que vós não podeis reclamar o trono, porque a vossa mãe não era virgem no dia do casamento?

Fica petrificado com o choque.

– A minha mãe? Que dizem da minha mãe?

– Dizem que ela era amante do tio, Ricardo, o Usurpador – sibilo com frieza. – Imaginai! E que foi amante do vosso pai antes de se casarem, antes de estarem noivos. Dizem que estava longe de ser virgem no dia do casamento, embora tenha levado o cabelo solto e se tenha vestido de branco. Dizem que foi duplamente desonrada, pouco mais do que uma prostituta que subia ao trono. Podemos permitir que se digam tais coisas sobre uma rainha? Deveis ser impedido de subir ao trono por causa de tais mexericos? E eu também? E o nosso filho?

Henrique fica sem respiração, com este choque. Adorava a mãe e nunca pensara nela como um ser sexuado.

– Ela nunca teria... Era muitíssimo... Como podem...

– Compreendeis? É o que acontece se permitirmos que as pessoas digam mal dos seus superiores. – Crio a lei que me irá proteger. – Se permitirdes que alguém me desonre, o escândalo não terá fim. Será um insulto para mim, mas é uma ameaça para vós. Quem sabe onde isto irá parar, depois de começar? A maledicência contra uma rainha abala o trono. Tende cuidado, Henrique.

– Ela disse-o! – exclamou. – Anne disse que não estaria a pecar, ao deitar-me com ela, porque eu não era casado!

– Ela mentiu-vos – digo eu. – Fingiu a sua virgindade e caluniou-me.

O seu rosto estava vermelho de fúria. É para ele um alívio, poder entregar-se à raiva.

– Que prostituta! – exclama com crueldade. – Que prostituta, enganou-me para me levar a pensar... Que truque de mulher mais vil!

– Não se pode confiar em raparigas novinhas – profiro com calma. – Agora, que sois rei de Inglaterra, deveis ter cuidado, meu amor. Vão andar a correr atrás de vós, e tentarão enfeitiçar-vos e seduzir-vos, mas deveis ser-me fiel. Eu fui a vossa noiva virgem. Fui o vosso primeiro amor. Não me renegueis.

Ele toma-me nos seus braços.

– Perdoai-me! – murmura, entre soluços.

– Nunca mais voltaremos a falar deste assunto – repito com solenidade. – Não o tolerarei e não permitirei que ninguém desonre a minha pessoa, nem a da vossa mãe.

– Não – afirma com fervor. – Diante de Deus. Nunca mais falaremos disto nem permitiremos que outra pessoa volte a falar.

Na manhã seguinte Henrique e Catarina acordaram juntos e foram para a missa na capela do rei. Catarina foi ter com o confessor e ajoelhou-se para confessar os pecados. Não demorou muito, observou Henrique, não devia ter grandes pecados para confessar. Ainda o fez sentir pior ver que a confissão fora curta e que voltava com uma expressão tão serena. Sabia que era uma mulher de sagrada pureza, como a mãe. Arrependido, com o rosto entre as mãos, concluiu que Catarina não só nunca fora infiel à palavra dada, como nunca devia ter dito uma mentira em toda a vida.

Saio com a corte para caçar, vestida com um fato de veludo vermelho, decidida a mostrar que estou bem, que voltei para a corte, que tudo vai ser como era. Temos de fazer uma longa e difícil cavalgada, correndo atrás de um belo veado que foge por um caminho cheio de curvas, à volta do parque grande. Os cães conseguem levá-lo para o ribeiro e Henrique entra na água, rindo, para lhe cortar a garganta. A água do rio fica tingida de vermelho e mancha-lhe as roupas e as mãos. Eu rio, com a corte, mas a visão do sangue faz-me ficar maldisposta.

Voltamos para casa devagar, a cavalo, e mantenho o sorriso no rosto, tentando esconder o cansaço e as dores nas coxas, na barriga e nas costas. Lady Margarida traz o seu cavalo para o lado do meu e olha-me de relance.

– Seria melhor ficardes a descansar esta tarde.

– Não posso – afirmo.

Não tem necessidade de perguntar porquê. É uma princesa, sabe que uma rainha tem de ser vista, apesar do que sente.

– Já sei a história, se quereis ter a maçada de ouvir uma coisa destas.

– Sois uma boa amiga – digo. – Podeis contar-ma em poucas palavras. Penso que já conheço a parte pior.

– Depois de partimos para o vosso retiro para o parto, o rei e os jovens começaram a ir para o Centro da Cidade, à noite.

– Com guardas?

– Não, sozinhos e disfarçados.

Reprimo um suspiro.

– Ninguém tentou impedi-los?

– O conde de Surrey, Deus o abençoe. Mas os filhos faziam parte do grupo e era apenas uma brincadeira, e vós sabeis que o rei não gosta que lhe neguem os seus passatempos.

Aceno.

– Uma noite entraram disfarçados na corte, fingindo ser mercadores de Londres. As damas dançaram com eles e foi tudo muito divertido. Eu não me encontrava, nessa noite, estava convosco no retiro, mas alguém me contou no dia seguinte. Não dei grande importância ao assunto, mas, segundo parece, um dos mercadores escolheu lady Anne, e dançou com ela toda a noite.

– Henrique! – exclamo, e percebo a amargura no meu sussurro.

– Sim, mas julgavam que era William Compton. São mais ou menos da mesma altura e usavam barbas postiças e chapéus. Vós sabeis o que costumam fazer?

– Sim, sei – digo.

– Parece que marcaram um encontro e, enquanto o duque pensava que a irmã estava junto de vós, escapava-se e encontrava-se com o rei. Quando esteve desaparecida durante uma noite, a irmã não aguentou. Elizabeth foi falar com o irmão, e avisou-o do que Anne andava a fazer. Ele contou ao marido e os três confrontaram Anne, e exigiram saber com quem se encontrava, mas ela afirmou que era com Compton. Mas, de outra vez que desapareceu, pensaram que estava com Compton, até que se encontraram com ele. Nessa altura perceberam que não era Compton, era o rei.

Abano a cabeça.

– Lamento muito, minha querida! – diz-me lady Margarida com gentileza. – Ele é jovem. Penso que não deve ser mais do que vaidade e irresponsabilidade.

Concordo, sem dizer nada. Verifico o que se passa com o meu cavalo, que bate com a cabeça contra as minhas mãos, porque tenho as rédeas muito curtas. Penso em Anne, gritando de dor, na altura em que o hímen foi rasgado.

– E o marido, sir George, é impotente? – pergunto. – Até agora, era virgem?

– É o que dizem! – exclama lady Margarida secamente. – Quem sabe o que se passa dentro de um quarto?

– Sabemos o que se passa no quarto do rei – replico com amargura. – Não foram discretos.

– O mundo é assim – exprime. – E quando vós estiverdes em retiro, é natural que arranje uma amante.

Volto a concordar. É a pura verdade. O que me surpreende é sentir uma dor tão grande.

– O duque deve ter ficado muito ofendido – continuo, pensando na dignidade do homem, aquele que ajudara a colocar os Tudor no trono.

– Sim – começa, hesitante. Qualquer coisa na sua voz me diz que há algo mais, e que não sabe se deve, ou não, dizer-me.

– O que se passa, Margarida? – pergunto. – Conheço-vos bem, para perceber que há mais alguma coisa.

– É uma coisa que Elizabeth disse a uma das raparigas, antes de partir – diz ela.

– Oh!

– Elizabeth diz que a irmã não achava que fosse um romance sem consequências, que só duraria enquanto vós estivésseis em retiro e esquecido depois.

– Que mais podia ser?

– Ela achava que a irmã tinha certas ambições.

– Ambições em relação a quê?

– Ela achava que conseguiria que o rei se apaixonasse por ela, para o manter preso.

– Durante uma estação do ano! – exclamo com desprezo.

– Não, por mais tempo – anuncia. – Ele falou em amor. É um jovem romântico. Prometeu ser dela até morrer. – Reparando no meu ar, interrompe o discurso. – Perdoai-me, não vos devia ter dito nada disto.

Penso em Anne Stafford, gritando de dor, dizendo-lhe que é virgem, uma virgem verdadeira, e que, por isso, não pode continuar. Que ele foi o seu primeiro amor, o seu único amor. Sei quanto isso lhe deve ter agradado.

Olho para o meu cavalo, que morde o freio.

– Que quereis dizer com isso de ter ambições?

– Parece-me que pensou que, dada a posição da família, e o amor que havia entre ela e o rei, podia vir a ser a mulher mais importante da corte inglesa.

Fecho os olhos.

– E eu seria o quê?

– Deve ter pensado que, com o tempo, ele se afastaria de vós e ficaria com ela. Penso que devia ter esperanças de vos suplantar, no seu amor.

Concordo.

– E se eu morresse ao ter a criança, talvez pensasse que podia anular o casamento não consumado, para casar com ele.

– Esse seria o ponto mais alto para a sua ambição – diz lady Margarida. – E já aconteceram coisas mais estranhas. Isabel Woodville chegou ao trono de Inglaterra só por ser bonita.

– Anne Stafford era minha dama de companhia – replico –, e escolhi-a, entre muitas outras, pela sua honra. Não tinha deveres para comigo? Não me tinha amizade? Será que nunca pensou em mim? Se estivesse ao meu serviço, teríamos vivido juntas, de dia e de noite...

Calo-me. Não há maneira de explicar a segurança e o afecto do harém a uma mulher que passou a vida a recear o olhar dos homens.

Lady Margarida abana a cabeça.

– As mulheres são sempre rivais – afirma com simplicidade –, mas, até agora, todos achavam que o rei só tinha olhos para vós. Agora, sabem que não é bem assim. Não há nenhuma rapariga bonita no país que não ache que a coroa está ao seu alcance.

– Ainda é a minha coroa! – sublinho eu.

– Mas as raparigas terão esperanças de a conseguir – replica. – O mundo é assim!

– Vão ter de esperar pela minha morte! – exclamo com secura. – Pode ser uma espera muito longa, mesmo para a rapariga mais ambiciosa.

Lady Margarida concorda. Faço-lhe um sinal e olha para trás. As damas de companhia estão espalhadas pelo meio dos caçadores e dos cortesãos, cavalgando, rindo e namoriscando. Henrique tem a princesa Maria de um lado e uma das suas damas do outro. É uma rapariga nova na corte, jovem e bonita. Uma virgem, sem dúvida, outra virgem bonita.

– E qual destas vai ser a seguinte? – pergunto com azedume. – Da próxima vez que for para um retiro, e não as puder vigiar como um falcão agressivo? Será uma Percy ou uma Seymour? Uma Howard? Uma Neville? Qual será a próxima rapariga a aproximar-se do rei, para, através do seu encanto, encontrar o caminho para a cama dele e para o meu lugar?

– Algumas das vossas damas gostam muito de vós – retorque.

– E algumas usarão a sua posição a meu lado para se aproximarem do rei – digo eu. – Como já viram que é possível, ficarão à espera da sua oportunidade. Vão perceber que o caminho mais fácil para chegar ao rei é entrarem nos meus aposentos, fingir que são minhas amigas, oferecer-me os seus serviços. A princípio mostrará amizade e lealdade para comigo, mas vai estar sempre à espreita de uma oportunidade. Já sei que uma o fará, só não sei qual será.

Lady Margarida inclina-se e acaricia o pescoço do seu cavalo, com um semblante sério.

– Sim – concorda.

– E uma delas, uma de muitas, será esperta o suficiente para virar a cabeça ao rei – concluo com amargura. – É jovem e vaidoso e fácil de enganar. Mais tarde ou mais cedo, uma irá voltá-lo contra mim e quererá ficar com o meu lugar.

Lady Margarida endireita-se e olha-me de frente, os olhos cinzentos mais honestos que nunca.

– Tudo isto pode ser verdade, mas parece-me que não podereis fazer nada para o evitar.

– Eu sei – digo triste.

– Tenho boas notícias para vós – disse Catarina a Henrique.

Tinham aberto as janelas do seu quarto, de par em par, para deixar entrar o fresco ar da noite. Era uma noite quente de Maio e, por uma vez, Henrique decidira ir para a cama cedo.

– Dai-me boas notícias – pediu. – Hoje o meu cavalo começou a coxear e não posso montá-lo amanhã. Seria bom receber boas notícias.

– Creio que estou à espera de um filho.

Ele deu um salto na cama.

– Estais?

– Penso que sim – afirmou sorrindo.

– Queira Deus! Estais mesmo?

– Tenho a certeza.

– Deus seja louvado! Irei a Walsingham no momento em que derdes à luz o nosso filho. Irei a Walsingham de joelhos! Irei de rastos, ao longo da estrada! Vestirei um fato branco. Oferecerei pérolas a Nossa Senhora.

– Nossa Senhora tem sido bondosa connosco, na verdade.

– Agora ficarão a saber como sou potente! Saída do retiro na primeira semana de Maio e grávida no fim do mês. Vão ver! Isso provará que eu sou um marido como deve ser.

– Provará, com certeza – disse ela, concordando.

– Ainda não é demasiado cedo para ter a certeza?

– Não tive o período e sinto enjoos de manhã. Dizem-me que é um sinal seguro.

– E vós, estais segura? – Não tinha tacto para expressar a ansiedade através de palavras delicadas. – Tendes a certeza, desta vez? Tendes a certeza de que não há engano?

Ela acenou.

– Tenho a certeza. Tenho todos os sintomas.

– Deus seja louvado. Sabia que isto ia acontecer. Sabia que um casamento feito no céu teria de ser abençoado.

Catarina concordou, sorrindo.

– Teremos de ir devagar nas nossas viagens, não deveis caçar. Iremos de barco durante parte do caminho, em barcaças.

– Creio que não devo viajar de maneira nenhuma, se vós o permitirdes – afirmou. – Quero ficar sossegada num só lugar este Verão, nem pretendo andar de liteira.

– Bem, seguirei em viagem com a corte, mas depois volto para casa, para vós – anunciou. – E que grande festa teremos quando nascer o nosso filho. Quando vai ser?

– Depois do Natal – disse Catarina. – No Ano Novo.


Inverno de 1510

Eu devia ter sido adivinho, já que mostrei a minha capacidade de previsão, mesmo sem um ábaco mourisco. Celebramos a festa do Natal em Richmond e a corte está alegre com a minha felicidade. O bebé está grande na minha barriga e dá pontapés com tanta força que, quando Henrique coloca a mão em mim, sente o pequeno calcanhar a fazer pressão contra a sua mão. Não há dúvida que está vivo e forte, e a sua vitalidade alegra a corte. Quando estou sentada no Conselho, por vezes estremeço com a estranha sensação de o sentir mexer dentro de mim e a pressão do seu corpo contra o meu; alguns dos conselheiros mais velhos – que já viram as mulheres na mesma situação – riem-se com a alegria de saberem que, por fim, surgirá um herdeiro para Inglaterra e para Espanha.

Rezo para que seja rapaz, mas não conto com isso. Um filho para a Inglaterra, um filho para Artur, é tudo o que quero. Se for a filha que queria, dar-lhe-ei o nome de Maria, como pediu.

O desejo de ter um filho, e o seu amor por mim, fizeram com que Henrique se tornasse, por fim, mais atencioso. Preocupa-se comigo, como nunca acontecera. Parece-me que está a ficar adulto, o rapaz egoísta transforma-se, afinal, num homem bom e o receio que me persegue desde o seu romance com a rapariga Stafford está a diminuir. É possível que tenha amantes, como os reis têm, mas pode ser que evite apaixonar-se por elas e fazer-lhes as promessas loucas que qualquer homem faz, mas que um rei não deve fazer. Talvez adquirira o bom senso que tantos homens parecem aprender divertindo-se com uma outra mulher, mas mantendo-se fiéis, no coração, à esposa. Se continuar a ter este bom feitio, vai, de certeza, ser um bom pai. Imagino-o a ensinar o nosso filho a andar a cavalo, a caçar e a lutar. Nenhum rapaz podia ter melhor pai, para lhe ensinar desportos e passatempos, do que um filho de Henrique. Nem mesmo Artur seria um pai tão companheiro. A educação do nosso filho, as técnicas da vida na corte, a sua formação como cristão, a aprendizagem como governante, ficará a meu cargo. Aprenderá a ter a coragem da minha mãe e os conhecimentos do meu pai. E de mim, penso que poderá aprender o que é constância e determinação. São estes os meus dons.

Penso que entre os dois, Henrique e eu, seremos capazes de educar um príncipe que deixará a marca na Europa, que manterá Inglaterra a salvo dos mouros, dos franceses, dos escoceses e de todos os nossos inimigos.

Terei de entrar em retiro, mas adio-o o mais tarde possível. Henrique jura-me que não haverá outra, enquanto estiver fora, que é meu, só meu. Adio a minha ida até à noite da festa de Natal. Nessa altura, bebo o vinho com especiarias junto dos membros da corte, desejo-lhes um Natal feliz, enquanto me desejam um parto rápido e volto mais uma vez para a tranquilidade do meu quarto.

Não me importo de perder o baile e as bebedeiras. Estou cansada e é difícil carregar este bebé. Levanto-me e deito-me com o sol de Inverno, raramente acordo antes das nove horas da manhã e, às cinco da tarde, já estou pronta para dormir. Passo muito tempo a rezar por um parto bem-sucedido e pela saúde da criança que se mexe com tanta energia, dentro de mim.

Henrique vem ver-me, em privado, quase todos os dias. O Livro Real é bem explícito ao dizer que a rainha deve estar em isolamento absoluto antes do nascimento do filho; mas o Livro Real foi escrito pela avó de Henrique e sugiro que devemos fazer conforme nos apetecer. Não vejo por que me daria ordens, do túmulo, quando foi uma mentora tão pouco cooperativa, em vida. Além disso, a usar a franqueza de uma aragonesa, não confio em Henrique sozinho com a corte. Na véspera de Ano Novo janta comigo, antes de ir para a festa no salão principal, e oferece-me um colar de rubis, com pedras tão grandes como o tesouro de Cristóvão Colombo. Coloco-as ao pescoço e reparo nos seus olhos, brilhantes de desejo, enquanto incidem na brancura e no volume dos meus seios.

– Agora já não falta muito – digo a sorrir. Sei no que está a pensar.

– Irei a Walsingham mal a criança nasça e, quando regressar, haverá uma cerimónia religiosa em vossa honra – anuncia.

– E, a seguir, parece-me que pensais em fazer uma nova criança – insinuo com fingida preocupação.

– E vou fazer – responde, o rosto resplandecente de riso.

Despede-se de mim com um beijo, deseja-me felicidade para o novo ano, regressa aos seus aposentos pela porta secreta que há no meu quarto e, de lá, segue para a festa. Peço às criadas para me trazerem a água fervida que continuo a beber, obedecendo aos conselhos do mouro e sento-me à lareira, a costurar um pequenino fato para o meu bebé, enquanto María de Salinas lê em voz alta, em espanhol.

De repente, parece que a minha barriga se vira do avesso, como se caísse de uma grande altura. A dor é tão intensa, tão diferente de qualquer outra que senti antes, que deixo cair a costura das mãos, agarro-me aos braços da cadeira e solto um gemido, antes de conseguir falar. Percebo que o bebé está para chegar. Receara não saber o que acontecia; temera sentir apenas uma dor como a que senti quando perdi a minha pobre menina. Mas isto é como a enorme força de um rio profundo, a sensação de algo poderoso e maravilhoso que começa a fluir. Fico cheia de alegria e de um temor sagrado. Sei que o bebé vem a caminho e que é forte, que sou jovem, e que tudo correrá bem.

Assim que digo às minhas aias, a câmara enche-se de confusão. Sua Alteza, a Mãe do Rei, pode ter determinado que tudo devia ser feito com sobriedade e calma, a preparação do berço e a das duas camas para a mãe, uma para o parto e a outra para o repouso; mas, na vida real, as aias correm por todo o lado como galinhas numa capoeira, cacarejando alarmadas. As parteiras são chamadas da festa, para onde se tinham ido divertir, na esperança de não serem necessárias na véspera de Ano Novo. Uma está embriagada e María de Salinas expulsa-a do quarto, antes que caia e parta alguma coisa. Não há maneira de encontrar o médico e os pajens são despachados pelo palácio, à sua procura.

As únicas pessoas que estão calmas e determinadas são lady Margarida, María de Salinas e eu. María, porque é calma por natureza, lady Margarida, porque está confiante desde o início deste retiro, e eu, porque sinto que nada impedirá este bebé de nascer; com uma das mãos agarro a corda e com a outra a minha relíquia da Virgem Maria, fixo os olhos no pequeno altar, ao canto da sala, e rezo a Santa Margarida de Antioquia para que me conceda um parto rápido e fácil e uma criança saudável.

Inacreditavelmente, dura pouco mais que seis horas, embora cada uma pareça que dura um dia, e, então, sinto um empurrão e algo a escorregar e a parteira murmura baixinho: «Que Deus seja louvado»; depois, ouve-se um choro alto e irritado, quase um grito, e compreendo que há uma nova voz dentro do quarto, a do meu bebé.

– É um rapaz, Deus seja louvado, um rapaz – anuncia a parteira, e María olha para cima, para mim, e vê-me radiante de felicidade.

– A sério? – pergunto. – Deixem-me vê-lo!

Cortam o cordão e passam-me o bebé, ainda nu e coberto de sangue, a pequena boca muito aberta para gritar, os olhos muito apertados, com a fúria. É o filho de Henrique.

– Meu filho – digo baixinho.

– Filho de Inglaterra – profere a parteira. – Deus seja louvado.

Encosto a cara à cabecinha quente, ainda pegajosa, e cheiro-o, como uma gata a sua ninhada. «Este é o nosso filho», murmuro para Artur, que sinto tão perto como se estivesse a meu lado, olhando por cima do meu ombro para este pequeno milagre que vira a cabeça e a esfrega no meu peito, com a boquinha aberta. «Oh, Artur, meu amor, este é o rapaz que te prometi dar e à Inglaterra. Este é o filho que oferecemos à Inglaterra e vai ser rei.»


Primavera de 1511

1 de Janeiro de 1511

 

A Inglaterra enlouqueceu quando soube, no dia de Ano Novo, que nascera um rapaz. Todos lhe chamaram príncipe Henrique, não havia outro nome possível. Nas ruas, assaram bois e embebedaram-se até ficarem inconscientes. Nas aldeias, tocaram os sinos das igrejas e levaram a cerveja para a igreja, para brindar à saúde do herdeiro Tudor, o rapaz que manteria Inglaterra em paz, aliada com Espanha, e a protegeria dos inimigos e que derrotaria os escoceses, de uma vez por todas.

Henrique veio ver o filho, desobedecendo às regras do retiro, entrando em bicos de pés, como se as passadas pudessem abanar a sala. Espreitou para o berço, quase com medo de respirar perto do menino adormecido.

– É tão pequenino! – exclama. – Como pode ser tão pequeno?

– A parteira diz que é grande e forte – corrigiu-o Catarina, em defesa do bebé.

– Decerto! Só que as mãos dele são... e vede, tem unhas! Unhas a sério!

– E nos pés também – disse ela.

Ficaram os dois lado a lado, a olhar, maravilhados, para a perfeição que tinham feito, em conjunto.

– Tem pezinhos gorduchos e os dedinhos mais pequeninos que possais imaginar.

– Mostrai-me – pediu.

Com cuidado, tirou os pequenos sapatinhos de seda que o bebé tinha calçados.

– Vede – disse, com uma voz cheia de ternura. – Agora tenho de lhos calçar, para não apanhar frio.

Henrique inclinou-se por cima do berço e segurou carinhosamente o pequeno pé na mão enorme.

– Meu filho – pronunciou maravilhado. – Deus seja louvado, tenho um filho.

Fico na cama, como a mãe do velho rei determinava no Livro Real, e recebo os convidados de honra. Tenho de esconder um sorriso quando penso na minha mãe a dar-me à luz durante uma campanha, numa tenda, como uma amante de soldado. Mas esta é a maneira inglesa de fazer as coisas, e sou uma rainha inglesa, e este bebé será rei de Inglaterra.

Nunca senti uma alegria tão simples. Quando durmo, acordo com o coração cheio de felicidade, mesmo antes de me lembrar porquê. Depois, lembro-me. Tenho um filho para oferecer a Inglaterra, a Artur e a Henrique; sorrio e viro a cabeça, e a pessoa que está a tomar conta de mim, seja quem for, responde à pergunta, mesmo antes de eu a formular: «Sim, o vosso filho está bem, Vossa Graça.»

Henrique anda demasiado ocupado com os assuntos do nosso filho. Entra e sai para me ver mais do que vinte vezes ao dia, fazendo perguntas e trazendo notícias dos preparativos que está a organizar. Já escolheu um grupo de não menos de quarenta pessoas para servirem este minúsculo bebé, e também escolheu as salas, no Palácio de Westminster, onde ficará a sua Sala do Conselho, quando for jovem. Eu sorrio e não digo nada. Henrique planeia o maior baptizado que alguma vez foi visto em Inglaterra, nada é bom de mais para este Henrique, que será Henrique IX. Por vezes, quando estou sentada na cama, supostamente a escrever cartas, desenho o seu monograma. Henrique IX? O meu filho, rei de Inglaterra.

Os protectores são escolhidos com critério: a filha do imperador, Margarida da Áustria e o rei Luís XII de França. Pelo que se vê, já está a trabalhar, este pequeno Tudor para encobrir as suspeitas francesas em relação a nós e manter a nossa aliança com a família Habsburgo. Quando mo trazem e coloco o dedo na palma da pequenina mão, os seus dedos enrolam-se à volta do meu, como se quisesse agarrar-se a mim. Como se me desse a mão. Como se me devolvesse o meu amor por ele. Deixo-me estar tranquila, vendo-o dormir com o meu dedo na mão e a outra segurando a cabecinha macia, onde sinto uma forte pulsação a palpitar.

Os padrinhos são o arcebispo Warham, o meu querido e leal amigo Tomás Howard, o conde de Surrey e o conde e a condessa de Devon. A minha queridíssima lady Margarida vai chefiar o seu berçário, em Richmond. É o mais recente e o mais limpo de todos os palácios que ficam perto de Londres e, do local onde estivermos a viver, Whitehall, Greenwich ou Westminster, ser-me-á fácil ir visitá-lo.

Quase não consigo suportar ter de o deixar ir embora, mas é melhor para ele estar no campo do que na cidade. E hei-de vê-lo, no mínimo, uma vez por semana, Henrique prometeu-me que o irei visitar, todas as semanas.

Henrique foi ao santuário de Nossa Senhora de Walsingham, como prometera, e Catarina pediu-lhe para dizer às freiras que tomavam conta do santuário que iria lá quando ficasse outra vez grávida. Quando o próximo bebé estivesse no ventre da rainha, ela daria graças pelo nascimento feliz do primeiro e rezaria para que o segundo nascesse sem problemas. Pediu ao rei que dissesse às freiras que as iria visitar, de cada vez que ficasse grávida e que esperava poder lá ir muitas vezes.

Entregou-lhe um pesado saco de ouro.

– Podeis dar-lhes isto, como prenda minha, e pedir as suas orações?

Ele pegou no saco.

– Para elas, rezar pela rainha de Inglaterra é um dever – afirmou.

– Só queria recordar-lhes.

Henrique regressou à corte, para o maior torneio a que Inglaterra já assistira, e Catarina levantou-se e saiu da cama, para o organizar. Ele mandara fazer uma armadura nova, antes de partir, e ela encarregou o seu favorito, Eduardo Howard, o talentoso filho mais novo da casa Howard, de se certificar de que a armadura ficaria com as medidas exactas do esbelto corpo do rei e de que o trabalho ficasse perfeito. Mandou fazer bandeiras, pendurar tapeçarias, preparar máscaras com temas gloriosos, ouro por todo o lado; bandeiras e cortinas de tecido de ouro, fitas, pratos e taças de ouro, ponteiras de ouro para as lanças ornamentais, escudos embutidos de ouro, ouro até na sela do rei.

– Vai ser o maior torneio que a Inglaterra já viu – disse-lhe Eduardo Howard. – A dignidade inglesa e a elegância espanhola. Será uma ocasião belíssima.

– É a maior celebração que já tivemos – proferiu sorrindo. – E é pelo melhor dos motivos.

Sei que preparei uma exibição extraordinária para Henrique mas, quando entra a cavalo no recinto onde estavam montadas as tendas, sustenho a respiração. Segundo a tradição, os cavaleiros que participam no torneio têm de escolher um lema: por vezes, compõem um poema ou representam uma cena de uma peça de teatro antes de montarem. Henrique manteve o seu lema em segredo e não me disse o que seria. Mandou fazer o seu galhardete e as damas, cheias de risinhos, esconderam-no de mim, enquanto bordavam, na seda verde Tudor, as palavras que escolhera. Na verdade, não fazia ideia do que lá estaria escrito, até ao momento em que se curva numa vénia, à minha frente, no camarote real, o galhardete se desenrola e o arauto proclama o título para o torneio: Sir Coração Fiel.

Levanto-me e tapo a cara com as mãos, para esconder o tremor da minha boca. Os meus olhos enchem-se de lágrimas, não consigo evitá-lo. Designou-se a si próprio como Sir Coração Fiel – desta forma, declarou ao mundo a renovação da devoção e do amor por mim. As minhas damas afastam-se para que possa ver o dossel que mandara pendurar, a toda a volta do camarote real. Mandara decorá-lo com pequenos emblemas de ouro em que aparecia um H e um C, entrelaçados. Para qualquer lado que olhasse, qualquer canto do relvado do torneio, qualquer bandeira, qualquer poste, havia um C e um H, unidos. Usou este torneio, o mais bonito e majestoso que a Inglaterra já viu, para dizer ao mundo que me ama, que é meu, que o seu coração me pertence e me é fiel.

Olho em volta para as minhas damas, sentindo-me triunfante. Se pudesse dizer o que sinto, dir-lhes-ia: «Aí está! Vejam-no como um aviso. Não é o homem que imaginavam. Não é homem que se afaste da legítima esposa. Não é um homem que possam seduzir; por mais inteligentes que sejam os vossos truques, por mais insidiosas que sejam as vossas intrigas contra mim. Entregou-me o seu coração, e tem um coração fiel. Passo os olhos por elas, as raparigas mais bonitas, pertencentes às melhores famílias de Inglaterra, e percebo que cada uma, secretamente, pensa que podia ocupar o meu lugar. Se tivesse sorte, se conseguisse seduzir o rei, se eu morresse, podia ocupar o meu trono.

Mas o galhardete diz-lhes: «Não é assim.» O galhardete diz-lhes, os C e H dizem-lhes, o pregão do arauto diz-lhes que será apenas meu, para sempre. O desejo da minha mãe, a promessa que fiz a Artur, o destino dado por Deus a Inglaterra trouxeram-me aqui: um filho e herdeiro no berço de Inglaterra, o rei de Inglaterra declarando publicamente a sua paixão por mim e a minha inicial, em ouro, entrelaçada com a dele, por todo o lado para onde olhe.

Toco os lábios com a mão e estendo-a para ele. A viseira está levantada, os olhos azuis ardem de paixão por mim. O seu amor por mim aquece-me como o sol quente da minha infância. Sou uma mulher abençoada por Deus, favorecida por Ele, de facto. Sobrevivi à viuvez e ao desespero de perder Artur. O namoro do velho rei não me seduziu, a sua inimizade não me derrotou, o ódio da mãe não me destruiu. O amor de Henrique faz-me feliz, mas não me redime. Com a especial protecção de Deus, consegui salvar-me, por mim mesma. Por mim consegui sair da escuridão da pobreza e chegar ao brilho da luz. Sozinha, lutei contra a terrível queda no puro desespero. Obriguei-me a transformar-me numa mulher capaz de enfrentar a morte e a vida, capaz de suportar ambas.

Lembro-me de uma cena de quando era apenas uma rapariguinha: a minha mãe estava ajoelhada a rezar, antes de uma batalha, depois levantou-se, beijou a pequena cruz de marfim, voltou a colocá-la no lugar e acenou à dama de companhia para lhe trazer a couraça e para lha apertar.

Eu corri para ela e supliquei-lhe que não fosse, perguntando-lhe por que tinha de sair a cavalo se Deus nos dera a Sua bênção. Se fomos abençoados por Deus, por que razão temos de lutar? Ele não pode afastar os mouros para longe de nós?

«Fui abençoada, porque fui escolhida para O servir.» Ajoelhou-se e pôs um braço à minha volta. «O que querias dizer era, por que não deixar o problema nas mãos de Deus, pode ser que Ele envie uma tempestade para cima dos mouros cruéis?»

Eu assenti.

«Eu sou a tempestade», afirmou sorrindo. «Sou a tempestade de Deus que irá expulsá-los. Hoje, Ele não escolheu uma tempestade, escolheu-me a mim. E nem eu, nem as nuvens negras podemos recusar o nosso dever.»

Sorrio para Henrique, enquanto baixa a viseira e afasta o cavalo do camarote real. Compreendo o que a minha mãe queria dizer com a tempestade de Deus. Deus chamou-me para ser o Seu sol em Inglaterra. É meu dever, divinamente imposto, trazer felicidade, prosperidade e segurança a Inglaterra. Faço-o, aconselhando o rei a tomar decisões certas, garantindo a sua sucessão e protegendo a segurança das fronteiras. Sou a rainha de Inglaterra, escolhida por Deus e sorrio para Henrique enquanto o enorme e brilhante cavalo negro trota até ao fim da liça, sorrio para o povo de Londres que chama por mim e grita: «Deus abençoe a rainha Catarina!» E sorrio para mim mesma, porque faço como a minha mãe queria, como Deus decidiu e Artur está à minha espera no al-Yanna, o jardim.

22 de Fevereiro de 1511

 

Dez dias mais tarde, quando estava no auge da felicidade, trouxeram à rainha Catarina as piores notícias da sua vida.

Ainda é pior do que a morte do meu marido, Artur. Nunca pensei que haveria algo pior do que isso; mas já percebi que sim. É pior do que os meus anos de viuvez e de espera. Pior do que ter notícias de Espanha, dizendo que a minha mãe morrera, que falecera no dia em que lhe escrevi, pedindo-lhe que me desse notícias.

Pior do que os piores dias que já vivi.

O meu bebé morreu. Mais do que isto, não sou capaz de dizer, não consigo ouvir. Parece-me que Henrique está comigo, algum tempo, e María de Salinas. Penso que lady Margarida Pole está aqui e vejo o rosto abatido de Tomás Howard junto do ombro de Henrique; William Compton agarra desesperadamente o ombro de Henrique; mas as faces parecem nadar diante dos meus olhos e não tenho a certeza de nada.

Vou para o quarto e mando fechar as portadas e trancar as portas. Mas é demasiado tarde. Já me deram a pior notícia da minha vida: fechar a porta não impedirá que chegue até mim. Não suporto a luz. Não suporto o som da vida normal que não pode parar. Ouço um pequeno pajem a rir no jardim, perto da janela, e não compreendo como pode ter sobrado alguma felicidade e alegria no mundo, agora que o meu bebé partiu.

A coragem a que me agarrei durante toda a vida acaba por ser apenas uma quimera, uma teia de aranha, o nada. A minha forte convicção de estar a seguir o caminho de Deus e de que Ele me protege não é mais do que uma ilusão, um conto de fadas infantil. Nas sombras do quarto, mergulho até ao fundo na escuridão que a minha mãe conheceu quando perdeu o filho, a escuridão a que Joana não escapou quando perdeu o marido, a mesma que foi a maldição da minha avó e que atinge as mulheres da minha família como uma veia envenenada. Afinal, não sou diferente. Não sou uma mulher que sobrevive ao amor e à perda, como pensara. O que acontece é que, até agora, nunca perdera ninguém que fosse mais importante para mim do que a própria vida. Quando Artur morreu, o meu coração ficou despedaçado. Mas, agora, que o meu bebé morreu, não quero nada, só gostaria que o meu coração parasse de bater.

Não encontro uma razão para continuar a viver, e para que aquela criança inocente e sem pecado me tenha sido tirada. Não vejo razão para isso. Não compreendo um Deus que seja capaz de mo tirar. Não posso compreender um mundo tão cruel. No momento em que me disseram: «Alteza, deveis ter coragem, temos más notícias do príncipe», perdi a fé em Deus. Perdi a vontade de viver. Perdi até a vontade de governar Inglaterra e de manter o meu país em segurança.

Ele tinha olhos azuis e umas mãozinhas pequeninas e muito perfeitas. Tinha unhas que pareciam pequenas conchas. Os seus pezinhos... Os seus pezinhos...

Lady Margarida Pole, que fora a responsável pelo berçário da criança morta, entrou no quarto sem bater à porta, sem qualquer convite, e ajoelhou-se diante da rainha Catarina, que estava sentada na cadeira à lareira, no meio das damas, não vendo, nem ouvindo fosse o que fosse.

– Vim pedir o vosso perdão, embora não tenha feito nada de errado – disse ela corajosamente.

Catarina levantou a cabeça:

– O quê?

– O vosso bebé morreu ao meu cuidado. Vim pedir o vosso perdão. Não fui descuidada, juro. Mas está morto. Lamento, princesa!

– Estais sempre aqui – replicou Catarina com calmo desprezo – nos meus momentos mais negros, sempre ao meu lado, como a má sorte.

A mulher mais velha vacilou.

– É um facto, mas não é esse o meu desejo.

– E não me chameis «princesa».

– Esqueci-me.

Pela primeira vez em várias semanas, Catarina levantou-se e olhou para o rosto de outra pessoa, olhou-a nos olhos, viu as novas linhas em redor da boca dela e compreendeu que a perda do bebé não era uma dor apenas sua.

– Oh, meu Deus, Margarida! – exclamou inclinando-se para a frente.

Margarida Pole agarrou-a e abraçou-a.

– Meu Deus, Catarina – disse junto ao cabelo da rainha.

– Como pudemos perdê-lo?

– Vontade de Deus. É a vontade de Deus. Temos de acreditar nisso. Temos de nos curvar perante isso.

– Mas, porquê?

– Princesa, ninguém sabe por que razão uns são levados e outros são poupados. Lembrais-vos?

Sentiu, pelo estremeção, que a mulher recordava a morte do marido através desta, a do seu filho.

– Nunca esqueço. Lembro-me todos os dias. Mas, porquê?

– É a vontade de Deus – repetiu lady Margarida.

– Creio que não consigo suportar isto. – Catarina falou tão baixinho que nenhuma das aias ouviu. Ergueu o rosto manchado de lágrimas do ombro da amiga.

– Perder Artur foi uma tortura, mas perder o meu filho é como uma morte. Não me parece que o suporte, Margarida.

O sorriso da mulher mais velha era paciente.

– Oh, Catarina. Aprendereis a suportá-lo. Não há mais nada a fazer, senão aguentar. Podeis encher-vos de raiva ou podeis chorar mas aprendereis a suportar.

Catarina sentou-se na cadeira; Margarida permaneceu, muito calma, ajoelhada no chão aos seus pés, segurando as mãos da amiga.

– Tereis de me ensinar a ter coragem, mais uma vez – murmurou Catarina.

A mulher mais velha sacudiu a cabeça:

– Só é preciso aprender uma vez – afirmou –, e vós já sabeis, já aprendestes em Ludlow. Não sois uma mulher que se deixe destruir pelo sofrimento. Sofrereis, mas vivereis, tereis de enfrentar o mundo de novo. Amareis. Concebereis uma nova criança, essa criança há-de viver, aprendereis outra vez a ser feliz.

– Não sou capaz de prever uma coisa dessas – disse Catarina desolada.

– Esse tempo há-de chegar.

A batalha por que Catarina esperara tanto tempo surgiu quando ainda estava ensombrada pela dor da morte do filho. Mas nada penetrava a sua tristeza.

«Grandes notícias, as melhores notícias do mundo!», escreveu o pai. Sem entusiasmo, Catarina traduziu o código para espanhol e, depois, para inglês. «Vou comandar uma cruzada contra os mouros, em África. A sua existência é um perigo para a Cristandade, os ataques aterrorizam o Mediterrâneo e colocam em perigo a navegação, da Grécia ao Atlântico. Enviai-me os vossos melhores cavaleiros – já que dizeis viver na nova Camelot. Mandai-me os vossos chefes mais corajosos, à frente dos vossos homens mais valentes, e eu levá-los-ei até a África e destruiremos os remos infiéis como sagrados reis cristãos.»

Sem forças, Catarina levou a Henrique a carta traduzida. Ele saía do campo de ténis, com um lenço enrolado à volta do pescoço e o rosto corado. Sorriu quando a viu, mas o ar alegre desapareceu-lhe do rosto e foi substituído por um esgar de culpa, como o de um rapazinho apanhado numa brincadeira secreta. Por aquela expressão passageira, por aquele breve mas revelador momento, percebeu que esquecera que o filho tinha morrido. Jogava ténis com os amigos, tinha ganho, viu a mulher que ainda amava, estava feliz. A alegria surgia com tanta facilidade para os homens da sua família como o sofrimento para as mulheres da sua. Sentiu-se invadir por uma onda de ódio tão forte que quase conseguia sentir na boca o sabor. Ele conseguia esquecer, nem que fosse por um momento, que o filhinho morrera. Pensou que nunca lhe perdoaria, nunca.

– Recebi uma carta do meu pai – disse, tentando transmitir algum interesse, através da sua voz áspera.

– Oh? – mostrou-se preocupado. Chegou junto dela e deu-lhe o braço. Teve de cerrar os dentes para não lhe gritar: «Não me toqueis!»

– Disse-vos que devíeis ter coragem? Escreveu-vos palavras de conforto?

A falta de habilidade do jovem era insuportável. Conseguiu mostrar o seu melhor sorriso.

– Não. Não é uma carta pessoal. Sabeis que raramente me escreve nesses termos. É uma carta sobre uma cruzada. Convida os nossos nobres e senhores a levarem os regimentos, e a irem com ele combater os mouros.

– Convida? De verdade? Que sorte!

– Não para vós – proferiu, cortando rente qualquer ideia que Henrique pudesse ter de partir para a guerra sem terem um filho. – É só uma pequena expedição. Mas o meu pai gostaria que os ingleses participassem, e penso que deviam ir.

– Sim, também me parece que gostaria.

Henrique voltou-se e gritou para os amigos que se tinham deixado ficar para trás, como garotos de escola que se sentiam culpados por estarem a divertir-se. Não se sentiam bem junto de Catarina desde que se tornara tão pálida e calada. Gostavam dela quando era a rainha do torneio e Henrique, Sir Coração Fiel. Fazia-os sentir pouco à vontade, quando aparecia para jantar como um fantasma, não comia e partia cedo.

– Alguém quer ir para a guerra com os mouros?

Um coro de gritos entusiasmados respondeu ao chamamento. Catarina pensou que não valiam nada, que não passavam de uma ninhada de cachorros excitados, com lorde Thomas Darcy e Eduardo Howard à cabeça.

– Eu quero ir.

– E eu, também.

– Mostrem-lhes como lutam os ingleses! – incitou-os Henrique. – Eu pagarei os custos da expedição.

– Vou escrever ao meu pai, informando-o de que tendes voluntários, ansiosos por partir – disse Catarina. – Vou fazê-lo agora.

Voltou-lhes as costas e encaminhou-se para a porta que dava para as escadas que conduziam ao seu quarto. Sentia que não aguentava ficar junto deles, nem mais um minuto. Eram os homens que teriam ensinado o filho a andar a cavalo. Os homens que seriam seus estadistas, o seu Conselho Privado. Seriam responsáveis por ele, na primeira comunhão, suas testemunhas quando se comprometesse em casamento, padrinhos dos seus filhos. E ali estavam, rindo, clamando por guerra, competindo entre si, em altos berros, pela aprovação de Henrique, como se o seu filho não tivesse nascido, não tivesse morrido. Como se o mundo continuasse a ser o mesmo de sempre; mas Catarina sabia que mudara.

Ele tinha olhos azuis. E os pezinhos mais pequeninos e mais perfeitos.

Mas a grande cruzada não existiu. Os cavaleiros ingleses chegaram a Cádis, mas a cruzada nunca se fez ao mar em direcção à Terra Santa, nunca enfrentou uma cimitarra afiada, brandida por um infiel com um coração negro. Catarina traduziu as cartas entre Henrique e o pai, onde o pai explicava que não conseguira juntar as tropas, que não estava preparado para partir. E então, um dia, foi ter com Henrique, com uma carta na mão e um rosto chocado, diferente do ar triste habitual.

– O meu pai enviou-me as mais terríveis notícias.

– O que está a acontecer? – perguntou Henrique, preocupado. – Vede, acabei de receber uma carta de um mercador inglês que está em Itália, e não consigo perceber nada. Diz que os franceses e o papa estão em guerra. – Henrique estendeu-lhe a carta. – Como é possível? Não compreendo.

– É verdade. Esta carta é do meu pai. Diz que o papa determinou que os exércitos franceses deviam sair da Itália – explicou Catarina. – E o Santo Padre colocou as suas tropas em campo, contra os franceses. O rei Luís declarou que o papa não continuará a ser papa.

– Como se atreve? – perguntou Henrique chocado.

– O meu pai diz que devemos esquecer a cruzada e ir em auxílio do papa. Vai tentar negociar uma aliança entre nós e o sacro-imperador romano. Temos de formar uma aliança contra França. Não podemos permitir que o rei Luís tome Roma. Não pode avançar para Itália.

– Deve estar louco para pensar que eu o permitiria! – exclamou Henrique. – Alguma vez deixaria que os franceses tomassem Roma? Julga que aceitaria um papa francês que não passasse de uma marioneta? Será que já se esqueceu do que pode fazer um exército inglês? Quererá uma nova Azincourt?

– Devo dizer a meu pai que nos uniremos a ele contra França? – interrogou Catarina. – Podia responder-lhe.

Pegou-lhe na mão e beijou-a. Desta vez ela não a retirou e ele puxou-a para perto de si, e colocou o braço em volta da sua cintura.

– Ficarei convosco enquanto escreveis e ambos assinaremos a carta. O vosso pai deve ficar a saber que a filha espanhola e o filho inglês estão unidos para o ajudar. Graças a Deus que as nossas tropas já estão em Cádis – exclamou Henrique quando deu conta da sua boa sorte.

Catarina hesitou, enquanto um pensamento se formulava na sua cabeça.

– É... fortuito.

– É uma sorte – disse Henrique alegre. – Fomos abençoados por Deus.

– O meu pai vai querer tirar qualquer benefício para Espanha. – Catarina abordou a sua suspeita, enquanto se encaminhavam para os seus aposentos. Henrique diminuía as passadas, para acompanhar o seu passo. – Nunca dá um passo sem ter já tudo bem planeado.

– É natural, mas vós protegereis os nossos interesses, como sempre fazeis – disse confiante. – Eu confio em vós, meu amor, como confio nele. Agora é o único pai que tenho, não é?


Verão de 1511

À medida que os dias ficam mais quentes e o Sol se parece mais com o de Espanha, começo também a aquecer, e a ficar mais parecida com a rapariga espanhola que fui outrora. Não consigo reconciliar-me com a morte do meu filho, acho que nunca aceitarei a sua perda, mas percebo que ninguém é culpado pela sua morte. Não houve falta de cuidado, nem negligência, morreu como um passarinho no seu ninho quente, e tenho de me convencer de que nunca irei saber o motivo por que aconteceu.

Agora sei que foi um disparate culpar-me. Não cometi nenhum crime, nenhum pecado tão grave que levasse Deus, o misericordioso Deus das minhas orações de criança, a punir-me com um desgosto tão grande como este. Não pode existir nenhum Deus bom que leve um bebé tão meigo, tão perfeito, com olhos azuis como aqueles, apenas como exercício da Sua divina vontade. Dentro do meu coração, reconheço que tal não é possível, que um Deus assim não pode existir. Mesmo que nos piores momentos de expressão da minha dor me tenha sentido culpada e O tenha considerado culpado, sei agora que não foi um castigo por qualquer pecado. Sei que cumpri a minha promessa, a promessa de Artur, pelos motivos mais nobres; e que Deus me tem à Sua guarda.

O facto terrível, paralisante e tenebroso da perda do meu bebé parece estar a regredir com a horrível e fria escuridão do Inverno inglês. Uma manhã, o bobo veio para junto de mim e fez algumas brincadeiras, e ri-me alto. Foi como se uma porta, há muito trancada, se abrisse. Percebi que consigo rir-me, que é possível ser feliz, que o riso e a esperança podem voltar e que, talvez, conceba uma outra criança e volte a sentir aquela ternura avassaladora.

Começo a sentir que estou outra vez viva, que sou uma mulher com esperança e perspectivas, a mulher em que aquela rapariguinha de Espanha se transformou. Descubro a sensação de estar viva, parada a meio do percurso, entre o meu futuro e o meu passado.

É como se verificasse se está tudo bem comigo, como um cavaleiro após uma queda perigosa, apalpando os braços e as pernas, o meu corpo frágil, à procura de lesões permanentes. A minha fé em Deus regressa, inabalada e firme como sempre. Só me parece ter havido uma grande alteração: a confiança que depositava na minha mãe e no meu pai foi afectada. Pela primeira vez na vida, penso que podiam estar enganados.

Recordo a bondade do médico mouro para comigo, e vejo-me forçada a emendar a minha opinião sobre o seu povo. Ninguém que tenha visto uma inimiga numa situação tão extrema, como me viu, e que tenha conseguido olhar para ela com tanta compaixão, pode ser chamado de bárbaro, de selvagem. Pode ser um herege – pleno de equívocos – mas tem direito a tirar as conclusões, a partir dos seus motivos. E, pelo que conheço dos homens, deve ter muito boas razões.

Gostava de enviar um padre bondoso que lutasse pela sua alma, mas não posso dizer, como a minha mãe afirmaria, que está morto espiritualmente, que não merece nada a não ser a morte. Pegou-me nas mãos para me dar más notícias, e vi a ternura de Nossa Senhora nos seus olhos. Não posso continuar a desprezar os mouros, a considerá-los hereges ou inimigos. Tenho de os ver como homens e mulheres, falíveis como nós, fiéis ao seu credo, como somos ao nosso.

E, por sua vez, isto leva-me a duvidar da sabedoria da minha mãe. Antes, seria capaz de jurar que sabia tudo, que o que dizia devia ser lei em toda a parte. Mas agora tenho idade suficiente para a analisar com mais sensatez. Vivi na pobreza durante a minha viuvez, porque o contrato que assinou fora formulado sem salvaguarda. Fui abandonada, sozinha num país estrangeiro, porque, embora me tenha dito para voltar para casa com uma urgência aparente, na realidade, não passara de encenação; ela não queria, de maneira alguma, que voltasse para Espanha. Endureceu o coração a meu desfavor, desligou-se dos planos que fizera para mim, e deixou-me, a filha, ao abandono.

E, por fim, fui obrigada a procurar um médico em segredo e a consultá-lo às escondidas, porque ela cumprira o seu papel, expulsando da Cristandade os melhores médicos, os melhores cientistas e as mentes mais brilhantes do mundo. Considerara a sua sabedoria um pecado, e o resto da Europa deixou-se levar pelas suas ideias. Expulsou de Espanha os judeus, a sua técnica e a sua coragem, expulsou os mouros com a sua instrução e os seus dons. Ela, uma mulher que apreciava o conhecimento, baniu aqueles a que chamam Os Povos do Livro. Ela, que lutara pela justiça, fora injusta.

Não prevejo o que este afastamento signifique para mim. A minha mãe já morreu e não posso criticá-la, nem discutir com ela, a não ser no meu pensamento. Mas sei que estes meses produziram em mim uma mudança profunda e duradoura. Adquiri uma compreensão do meu mundo que não tem nada a ver com a compreensão que tinha do dela. Não apoio uma cruzada contra os mouros, ou contra seja quem for. Não concordo com a perseguição ou a crueldade contra eles pela cor da pele ou pelas crenças que os seus corações defendem. Sei que a minha mãe não é infalível, já não me parece que ela e Deus pensem da mesma maneira. Embora ainda ame a minha mãe, já não a venero. Parece-me que me torno adulta.

Aos poucos, a rainha foi emergindo da sua dor e começou a interessar-se pela gestão da corte e do país. Londres fervilhava de notícias segundo as quais corsários escoceses atacaram um navio mercante inglês. Todos sabiam o nome do corsário: era Andrew Barton, que navegava com cartas de autorização concedidas pelo rei Jaime da Escócia. Barton era impiedoso com os navios ingleses e a crença geral, nas docas de Londres, era de que Jaime autorizara o pirata a pilhar os navios ingleses, como se os dois países estivessem em guerra.

– Temos de o fazer parar – disse Catarina a Henrique.

– Ele não se atreve a desafiar-me! – exclamou Henrique. – Jaime só manda salteadores de fronteira e piratas contra mim, porque não se atreve a enfrentar-me. Jaime é um cobarde e não cumpre os juramentos que faz.

– Sim – concordou Catarina. – Mas o mais importante em relação a esse pirata, Barton, é que não constitui um perigo apenas para o nosso comércio, é um precursor de coisas piores, que se seguirão. Se deixarmos os escoceses tomar conta dos mares, estaremos a deixá-los controlar o nosso país. Inglaterra é uma ilha e os mares devem pertencer-nos, da mesma forma que o território, se não, não teremos segurança.

– Os meus navios estão prontos e partiremos ao meio-dia. Vou capturá-lo vivo – prometeu Eduardo Howard, o almirante da frota, a Catarina, quando foi despedir-se. Ela achou que parecia muito jovem, tão imberbe como Henrique; mas a sua inteligência e coragem eram inquestionáveis. Herdara a capacidade táctica do pai, mas aplicara-a à recém-criada marinha. Por tradição, aos Howard era atribuído o posto de Lorde Almirante, mas Eduardo revelava-se excepcional. – Se não o conseguir capturar com vida, afundarei o seu navio e trá-lo-ei morto.

– Que vergonha para vós! Um inimigo cristão! – exclamou a brincar, estendendo a mão para que a beijasse.

Ele olhou para ela, com um ar sério.

– Garanto-vos, Vossa Graça, que os escoceses constituem um perigo maior para a paz e a riqueza deste país do que os mouros.

Ele reparou no seu sorriso pensativo.

– Não sois o primeiro inglês a dizer-mo – disse ela. – E cheguei a essa conclusão nos últimos anos.

– E tendes de estar certa – concordou. – Em Espanha, o vosso pai e a vossa mãe não descansaram enquanto não expulsaram os mouros das montanhas. Para nós, em Inglaterra, o inimigo mais próximo são os escoceses. São eles que estão nas nossas montanhas, são eles que devem ser reprimidos e subjugados, se quisermos viver em paz. O meu pai passou a vida a defender as fronteiras do Norte e, agora, eu vou lutar contra o mesmo inimigo, mas no mar.

– Voltai, são e salvo – pediu.

– Tenho de correr riscos – replicou, despreocupado. – Não sou homem de ficar em casa.

– Ninguém duvida da vossa bravura e a minha frota precisa de um almirante – encorajou-o ela. – Quero ter o mesmo almirante por muitos anos. Preciso do meu campeão, no próximo torneio, preciso do meu par, para dançar comigo. Voltai para casa são e salvo, Eduardo Howard!

O rei estava apreensivo por ver o amigo Eduardo Howard fazer-se ao mar contra os escoceses, mesmo que fosse um corsário escocês. Esperara que a aliança que o pai fizera com a Escócia, reforçada pelo casamento da princesa inglesa, garantisse a paz.

– Jaime é um hipócrita, prometendo paz e casando com Margarida, por um lado, e a autorizar estes ataques por outro. Vou escrever a Margarida e pedir-lhe para avisar o marido de que não podemos aceitar ataques aos nossos navios. Além disso, deviam manter-se dentro das suas fronteiras.

– Se calhar, não lhe vai dar atenção – alvitrou Catarina.

– Ela não pode ser criticada por isso – cortou ele. – Nunca se devia ter casado com ele. Era demasiado jovem e ele estava determinado em fazer o que queria, e é um homem de guerra. Mas, se puder, vai fazer com que haja paz, sabia que esse era o desejo do meu pai e sabe que temos de viver em paz. Somos da mesma família, somos vizinhos.

Mas os senhores da fronteira, os Percy e os Neville, relataram que os escoceses se haviam tornado mais arrojados nos ataques às terras nortenhas. Era inquestionável que Jaime se preparava para a guerra, era indubitável que tinha intenção de tomar terras em Northumberland e declará-las suas. A qualquer momento, podia marchar para sul, tomar Berwick e continuar até Newcastle.

– Como se atreve? – perguntou Henrique. – Como se atreve a marchar por aqui dentro, a tomar o que é nosso e a perturbar o nosso povo? Não sabe que posso reunir um exército e usá-lo contra ele amanhã?

– Seria uma campanha difícil – fez notar Catarina, pensando nas terras bravias da fronteira e no longo percurso para lá chegar. Os escoceses teriam tudo a seu favor, com as terras ricas do Sul espalhadas à sua frente, e os soldados ingleses nunca queriam lutar quando estavam longe das suas aldeias.

– Seria fácil – contrapôs Henrique. – Todos sabem que os escoceses não conseguem manter um exército em campo. Não passam de um bando de salteadores. Se eu levasse um grande exército inglês, equipado e ordenado, acabaria com eles num só dia.

– Claro que sim. – Catarina sorriu. – Mas não vos esqueçais de que temos de reunir o exército para lutar contra os franceses. De certeza que preferis ganhar as vossas esporas contra os franceses, num campo de bravura que ficará na história, do que numa reles querela de fronteira.

Catarina conversou com Tomás Howard, conde de Surrey, pai de Eduardo Howard, no fim da reunião do Conselho Privado, na altura em que os homens saíram dos aposentos do rei.

– Senhor? Tendes notícias de Eduardo? Sinto falta do meu jovem Chevalier.

O velho senhor sorriu-lhe.

– Recebemos hoje um relatório. O rei vos dirá. Sabia que ficaríeis contente por tomardes conhecimento de que o vosso favorito conseguiu uma vitória.

– Conseguiu?

– Capturou o pirata Andrew Barton e dois dos seus navios. – O orgulho transparecia sob a falsa modéstia. – Limitou-se a fazer o que qualquer rapaz Howard tem obrigação de fazer.

– Ele é um herói! – exclamou Catarina entusiasmada. – A Inglaterra precisa tanto de grandes marinheiros como de soldados. O futuro da Cristandade está no domínio dos mares. Temos de dominar os mares, como os sarracenos dominam os desertos. Temos de expulsar os piratas dos mares e transformar os navios ingleses numa presença constante. E que mais? Já iniciou a volta?

– Vai trazer os navios até Londres e o pirata acorrentado. Vamos julgá-lo e enforcá-lo na beira do cais, mas o rei Jaime não vai gostar.

– Julgais que o rei dos escoceses quer a guerra? – perguntou-lhe Catarina sem rodeios. – Seria capaz de entrar em guerra por uma causa como esta? Estará o país em perigo?

– De todas as que já assisti na vida, esta é a situação de maior perigo para a paz do reino – disse o velho senhor honestamente. – Subjugámos os galeses e trouxemos a paz às fronteiras a ocidente, agora teremos de dominar os escoceses. Depois, teremos de resolver o problema dos irlandeses.

– É um país independente, com os seus reis e as suas leis – objectou Catarina.

– Também os galeses eram, até os derrotarmos – sublinhou. – Este território é demasiado pequeno para três reinos. Os escoceses terão de ser subjugados e ficar sob o vosso domínio.

– Talvez lhes pudéssemos oferecer um príncipe – pensou Catarina em voz alta. – Como fizeram com os galeses. O segundo filho poderia ser o príncipe da Escócia, da mesma forma que o primogénito é o príncipe de Gales. Teríamos um reino governado pelo rei inglês.

Ele ficou surpreendido com a ideia.

– É verdade – concordou. – Essa seria a melhor maneira de o conseguir. Atingi-los em cheio e, depois, oferecer-lhes uma paz honrosa. De outra forma, vamos tê-los a morder-nos os calcanhares para sempre.

– O rei pensa que o seu exército deve ser pequeno e fácil de derrotar – observou Catarina.

Howard conseguiu dominar uma gargalhada.

– Sua Majestade nunca esteve na Escócia – proferiu. – Nunca esteve na guerra. Os escoceses são um inimigo formidável, quer em batalha campal, quer em ataques de passagem. São um inimigo muito pior do que a cavalaria francesa da imaginação dele. Não respeitam as leis de cavalaria, lutam para ganhar e até à morte. Temos de enviar uma força poderosa, sob as ordens de um comandante experiente.

– Seríeis capaz de o fazer?

– Posso tentar – respondeu. – Neste momento, sou a melhor arma que tendes à mão, Vossa Graça.

– Julgais que o rei seria capaz de o fazer? – perguntou baixinho.

Ele sorriu:

– É um jovem – disse – e não lhe falta coragem. Ninguém que o tenha visto num torneio pode duvidar da sua coragem. E é habilidoso, a cavalo. Mas uma guerra não é um torneio, e ainda não percebeu isso. Precisa de cavalgar à frente de um exército arrojado, de ficar calejado por algumas batalhas, antes de travar a grande guerra da sua vida, a guerra pelo seu reino. Não se põe um potro numa carga de cavalaria a primeira vez que sai do estábulo. Tem de aprender. O rei, mesmo sendo um rei, tem de aprender.

– Não lhe ensinaram nada sobre táctica de guerra – observou ela. – Não teve de estudar outras batalhas. Não faz ideia de como se observa o tipo de terreno e como se devem posicionar as forças. Não sabe nada de abastecimentos e de manter um exército em movimento. O pai não lhe ensinou nada.

– O pai não sabia quase nada – retorquiu o conde muito baixo, de maneira a que só ela ouvisse. – A sua primeira batalha foi Bosworth e ganhou-a, em parte, por sorte, e, em parte, devido aos aliados que a mãe pôs em campo para o ajudar. Era bastante corajoso, mas não era nenhum general.

– Mas por que não fez com que Henrique aprendesse a táctica de guerra? – interrogou a filha de Fernando, que fora criada num acampamento e aprendera o que era um plano de campanha, mesmo antes de aprender a costurar.

– Quem pensaria que teria necessidade de saber essas coisas? – perguntou-lhe o velho conde. – Todos pensávamos que seria Artur.

Ela fez um esforço para que o seu rosto não deixasse transparecer a súbita aguilhoada de dor, perante a menção inesperada daquele nome.

– Tendes razão – declarou. – É óbvio que pensavam. Esquecera-me. Mas é claro que pensavam.

– Neste momento, seria um grande comandante. Interessava-se pelos empreendimentos guerreiros, lia, estudava, conversava com o pai, massacrava-me com perguntas. Estava ciente do perigo que os escoceses representavam e tinha uma grande noção do modo de comandar os homens. Fazia-me perguntas sobre as terras da fronteira, onde se situavam os castelos, que tipo de terreno era. Podia ter conduzido um exército contra os escoceses com alguma esperança de êxito. O jovem Henrique será um grande rei, quando aprender a táctica. Mas Artur já sabia. Estava-lhe no sangue.

Catarina nem se permitiu o prazer de falar sobre ele.

– Talvez – foi tudo o que disse. – Entretanto, o que podemos fazer para limitar os ataques dos escoceses? Pensais que os senhores das fronteiras deviam receber reforços?

– Penso que sim, mas é uma fronteira muito extensa, e difícil de defender. O rei Jaime não tem medo de um exército inglês liderado pelo rei. E não teme os senhores da fronteira.

– Como não tem medo de nós?

Ele encolheu os ombros, demasiado cortês para dizer qualquer palavra que o atraiçoasse.

– Bem, Jaime é um velho guerreiro, há duas gerações que se prepara para a luta.

– Quem poderia fazer com que Jaime nos receasse, de maneira a que permanecesse na Escócia, enquanto reforçamos a fronteira e nos preparamos para a guerra? O que o faria adiar o ataque, permitindo-nos ganhar tempo?

– Nada – declarou, abanando a cabeça. – Não há ninguém que consiga detê-lo, se estiver decidido a atacar. Excepto, talvez, o papa, se assim lho ordenasse. Mas quem convenceria Sua Santidade a intrometer-se entre dois monarcas cristãos que discutem devido a um ataque de piratas e um pedaço de terra? E o papa tem os seus problemas, com o avanço dos franceses. Além disso, uma queixa nossa só provocaria um contra-ataque da Escócia. Por que haveria Sua Santidade de intervir a nosso favor?

– Não sei – disse Catarina. – Não sei o que faria com que o papa tomasse o nosso partido. Se ao menos conhecesse o nosso problema! Se usasse os seus poderes para nos defender!

Richard Bainbridge, o cardeal arcebispo de York está, por acaso, em Roma, e é um bom amigo. Escrevo-lhe nessa mesma noite, uma carta informal, como a que se escreve a um conhecido que está longe de casa, contando-lhe as novidades sobre Londres, o clima, as perspectivas para as colheitas e o preço da lã. Depois, falo-lhe na inimizade do rei escocês, do seu pecaminoso orgulho, do apoio cruel aos ataques aos nossos navios e, pior do que tudo, das suas constantes incursões nas nossas terras do Norte. Digo-lhe que receio que o rei se veja forçado a defender as terras do Norte e que, por isso, não tenha possibilidade de ir em auxílio do Santo Padre, na sua luta contra o rei francês. Seria uma tragédia, escrevo, se o papa se visse atacado e nós não tivéssemos possibilidade de ir em seu auxílio devido à crueldade dos escoceses. Temos planos para nos juntarmos à aliança do meu pai e defender o papa; mas será difícil aliarmo-nos ao papa, se o nosso país não estiver em segurança. Se o conseguir convencer, nada afastará o meu marido da aliança com o meu pai, com o imperador e com o papa, mas que posso eu, uma pobre mulher, fazer? Uma pobre mulher, cuja fronteira indefesa está sob ameaça constante?

O que poderia ser mais natural do que Richard, meu irmão em Cristo, decidir levar a carta, em mãos, a Sua Santidade, o papa, e falar-lhe na minha grande perturbação, causada pela ameaça que o rei Jaime da Escócia representava para a paz do meu país? E de como a aliança para salvar a Cidade Eterna podia estar ameaçada por esta má vizinhança?

O papa, ao ler a carta que escrevi a Richard, compreende o que está implícito e escreve ao rei Jaime, ameaçando excomungá-lo, se não respeitar a paz e as fronteiras acordadas de um outro rei cristão. Afirma-se chocado pelo facto de Jaime querer perturbar a paz da Cristandade. Considera a sua conduta muito grave e ameaça-o com grandes sanções. O rei Jaime, obrigado a aceder aos desejos do papa, forçado a pedir desculpa pelas suas incursões, escreve uma carta agreste a Henrique, dizendo-lhe que não devia ter contactado o papa, que aquilo fora uma querela entre os dois e que não houvera motivo para Henrique ir a correr fazer queixa ao Santo Padre, nas suas costas.

– Não sei do que está a falar! – queixou-se Henrique a Catarina, ao encontrá-la no jardim, jogando à apanhada com as damas de companhia. Estava demasiado perturbado para entrar no jogo, como costumava fazer; apanhava a bola no ar, atirava-a com força contra a rapariga que estivesse mais perto e desatava aos gritos, todo contente. Estava preocupado de mais para jogar com elas. – O que está a dizer? Nunca apelei para o papa, não lhe contei nada, não sou queixinhas!

– Pois claro que não, e deveis dizer-lho – afirmou Catarina serena, enfiando o seu braço no dele, afastando-se das outras mulheres.

– E vou dizer! Não contei nada ao papa, e posso prová-lo.

– É possível que eu tenha mencionado as minhas preocupações ao arcebispo e que as tenha feito chegar aos seus superiores – sugeriu Catarina. – Mas vós não podeis ser acusado só porque a vossa esposa diz ao seu conselheiro espiritual que está preocupada.

– Exacto – concordou Henrique. – É o que lhe vou dizer. E vós não precisais de vos preocupar, nem um bocadinho.

– Eu sei, e o mais importante é que Jaime saiba que não nos pode atacar impunemente. Sua Santidade assim o determinou.

Henrique hesitou.

– Não era vossa intenção que Bainbridge fosse contar ao papa, pois não?

Ela lançou-lhe um pequeno sorriso.

– Claro – disse ela –, mas não fostes vós quem se queixou de Jaime, ao papa.

O seu abraço apertou-se em volta da cintura dela.

– Sois um adversário temível. Espero que nunca tenhamos de estar em campos opostos. Eu perderia, de certeza.

– Nunca estaremos – afirmou com doçura –, pois nunca serei outra coisa que não seja a vossa esposa leal e fiel e rainha.

– Consigo reunir um exército num instante, vós sabeis – recordou-lhe Henrique. – Não tendes de recear Jaime. Não necessitais de fingir que tendes medo. Sou capaz de exterminar os escoceses. Posso fazê-lo tão bem como outro qualquer, e vós sabeis.

– É claro, claro que sei. E, graças a Deus, agora não precisais de o fazer.


Outono de 1511

Eduardo Howard trouxe os corsários escoceses para Londres, acorrentados, e foi recebido como um herói inglês. A sua popularidade deixou Henrique – sempre preocupado com a aprovação do povo – bastante invejoso. Cada vez falava mais numa guerra contra os escoceses e o Conselho Privado, embora receoso pelo custo dessa guerra e, em particular, duvidando das capacidades militares de Henrique, não podia negar que a Escócia era uma ameaça sempre presente para a paz e a segurança de Inglaterra.

Foi a rainha que fez com que Henrique esquecesse a sua inveja de Eduardo Howard e era também a rainha que lhe recordava que a primeira experiência guerreira devia ter lugar, sem dúvida, nos importantes campos da Europa e não numas montanhas semiescondidas na fronteira. Quando Henrique de Inglaterra partisse para a batalha seria contra o rei francês, aliado aos dois mais importantes reis da Cristandade. Henrique, inspirado desde criança pelas histórias sobre Crécy e Azincourt, deixou-se seduzir por ideias de glória contra a França.


Primavera de 1512

Foi difícil para Henrique não embarcar, quando a armada partiu para se juntar ao rei Fernando, na campanha contra os franceses. Foi uma partida gloriosa: os navios fizeram-se ao mar, exibindo os estandartes da maior parte das mais importantes famílias de Inglaterra e eram a força mais bem equipada e guarnecida que partira de Inglaterra nos últimos anos. Catarina estivera bastante ocupada, supervisionando a tarefa interminável de aprovisionar os navios, abastecê-los de armamento e equipar os soldados. Recordava-se do trabalho constante da mãe quando o pai estava em guerra, e aprendera a grande lição da sua infância – que uma batalha só podia ser ganha se tivesse sido preparada de modo exaustivo e fiável.

Enviou uma frota expedicionária que estava mais bem organizada do que qualquer outra que alguma vez partira de Inglaterra, e estava convencida de que, sob o comando do pai, os ingleses defenderiam o papa, derrotariam os franceses, conquistariam territórios em França e, com isso, tornariam os ingleses, mais uma vez, os maiores proprietários de terras em França. Os que, no Conselho Privado, defendiam a paz, estavam preocupados, como era seu hábito, pois temiam que Inglaterra se visse arrastada para outra guerra interminável; mas Henrique e Catarina estavam convencidos, influenciados pelas previsões confiantes de Fernando, de que a vitória seria rápida e que daí surgiriam importantes benefícios para Inglaterra.

Durante a minha infância vi o meu pai comandar uma campanha atrás de outra. Nunca o vi perder. Entrar em guerra é reviver a minha infância. A cor, os sons e a excitação de um país em guerra são para mim uma profunda alegria. Desta vez, o facto de estar aliada ao meu pai como parceiro igual, de ter a possibilidade de lhe enviar a força do exército inglês, faz-me sentir como se entrasse na idade adulta. Era o que esperava de mim, é o ponto culminante da minha vida como sua filha. Foi para isto que suportei os longos anos de espera pelo trono inglês. É este o meu destino. Por fim, sou um comandante, como o meu pai e a minha mãe. Sou uma rainha militante e, nesta manhã cheia de sol em que vejo a armada partir, não tenho dúvida de que serei uma rainha triunfante.

De acordo com o plano, o exército inglês iria encontrar-se com o exército espanhol para invadirem o Sudoeste de França: Guienne e o ducado de Aquitânia. Na mente de Catarina não existiam dúvidas de que o pai quereria receber o seu quinhão dos despojos de guerra, mas acreditava que respeitaria a promessa de marchar com os ingleses para Aquitânia, que voltaria a pertencer a Inglaterra. Pensava que o plano secreto do pai consistia na divisão de França em fragmentos, o que faria com que aquele país superpoderoso voltasse a ser o aglomerado de pequenos reinos e ducados que fora, esmagando as suas ambições por uma geração. De facto, Catarina sabia que o pai considerava que seria mais seguro para a Cristandade se França fosse reduzida. Não era um país em que se confiasse, com o poder e a riqueza que lhe advinham daquela união.

Maio de 1512

 

Foi um entretenimento tão agradável como qualquer outro da corte, observar os navios a atravessarem a barra e fazerem-se ao mar, empurrados por um vento forte, num dia de sol; e Henrique e Catarina regressaram a Windsor cheios de confiança, uma vez que os exércitos eram os mais fortes da Cristandade e não podiam falhar.

Catarina aproveitou o momento e o entusiasmo de Henrique pelos navios para lhe perguntar se não achava que deviam mandar construir galés, navios de guerra movidos a remos. Artur percebera ao que se referia quando lhe falara em galés; já vira desenhos e lido textos sobre a maneira como podiam ser utilizadas. Henrique nunca vira uma batalha no mar, nem uma galé virar de rumo num instante, sem que houvesse vento, e atacar um navio de guerra imobilizado por falta de vento. Catarina tentou explicar-lhe, mas Henrique, inspirado pela visão da armada com as velas desfraldadas, afirmou que só queria barcos à vela, navios grandes, conduzidos por tripulações livres, destinados à glória.

A corte concordou com ele, e Catarina percebeu que não adiantava fazer frente a uma corte que se deixava levar pela última moda. Motivados pelo belo efeito produzido pela armada ao fazer-se ao mar, os jovens queriam ser almirantes, como Eduardo Howard, da mesma forma que no Verão anterior desejaram ser cruzados. Não adiantava discutir as debilidades de um grande barco à vela, em combate cerrado – todos queriam navegar com as velas ao vento. Todos queriam ter o seu navio. Henrique passava dias com mestres e construtores navais e Eduardo Howard lutava por ter uma frota cada vez maior.

Catarina concordava que a frota era muito boa, que os marinheiros de Inglaterra eram os melhores do mundo, mas lembrava que talvez fosse melhor escrever para o arsenal de Veneza, perguntando qual era o preço de uma galé, se podiam construí-la por encomenda, ou se concordariam em enviar as peças e os planos para Inglaterra, para que fosse montada por construtores ingleses, nos estaleiros ingleses.

– Nós não precisamos de galés – disse Henrique desinteressado. – As galés só servem para ataques nas praias. Não somos piratas. Queremos navios grandes que transportem os nossos soldados. Queremos navios fortes que ataquem os navios franceses em alto mar. O navio é uma plataforma a partir da qual lançamos o ataque. Quanto maior for a plataforma, mais soldados poderemos levar. Tem de ser um navio grande, próprio para uma batalha marítima.

– Estou certa de que tendes razão – assegurou ela. – Mas não devemos esquecer os outros inimigos. Os mares são uma fronteira e temos de dominá-los com navios grandes e pequenos. Mas a nossa outra fronteira também tem de se tornar segura.

– Estais a referir-vos aos escoceses? Já receberam um aviso do papa. Penso que não teremos de nos incomodar com eles.

Ela sorriu. Nunca discordaria dele.

– Com certeza – anuiu. – O arcebispo garantiu-nos algum espaço para respirarmos. Mas no próximo ano, ou no ano seguinte, teremos de ir contra os escoceses.


Verão de 1512

Depois, não havia nada para Catarina fazer, a não ser esperar. Parecia que esperavam. O exército inglês estava em Fuenterrabia, esperando que os espanhóis se lhes juntassem para invadirem o Sul de França. O calor do Verão desceu sobre eles durante aquele tempo de espera em que comiam mal e bebiam como loucos sedentos. Dos que faziam parte do Conselho de Henrique, apenas Catarina sabia que o calor do meio do Verão em Espanha podia matar um exército que não tinha nada para fazer, a não ser esperar por ordens. Escondia de Henrique os seus receios, e do Conselho, mas, em privado, escreveu ao pai, perguntando-lhe quais eram os seus planos, e abordou o embaixador, querendo saber o que esperava o pai que o exército inglês fizesse e quando devia prosseguir.

O pai, que cavalgava com o seu exército, em movimento, não respondeu; e o embaixador não sabia.

O Verão chegou ao fim e Catarina não voltou a escrever. Num momento de amargura, que nem para si quis reconhecer, percebeu que, afinal, não era uma aliada do pai no tabuleiro de xadrez da Europa, concluiu que, nos planos dele, não passava de um mero peão. Nem foi preciso perguntar qual era a estratégia; apesar de ter o exército inglês a postos, não o utilizou, e isso fez com que adivinhasse.

O tempo arrefeceu em Inglaterra, mas em Espanha ainda estava calor. Por fim, Fernando precisou dos aliados, mas, quando os mandou chamar e lhes ordenou que passassem o Inverno em campanha, recusaram-se a atender ao chamamento. Amotinaram-se contra os comandantes e exigiram voltar para casa.


Inverno de 1512

Não foi surpresa para Catarina, nem para os cínicos do Conselho, quando o exército inglês voltou para casa, em Dezembro, vestindo farrapos desonrosos. Lorde Dorset, perdendo a esperança de chegar a receber ordens e reforços do rei Fernando, confrontado pelas tropas esfomeadas e cansadas, com a morte de dois mil homens por doença, voltou para casa em desgraça, quando os levara para a guerra com tanta glória.

– O que pode ter corrido mal? – Henrique correu para os aposentos de Catarina e fez um gesto às damas de companhia para que saíssem. Estava quase a chorar de raiva, envergonhado pela derrota. Não queria acreditar que as suas forças, que partiram com tanta bravura, regressassem em tal estado. Recebera cartas do sogro, queixando-se do comportamento dos aliados ingleses, ficara malvisto em Espanha e desprestigiado face ao inimigo, a França. Fugiu para junto de Catarina, a única pessoa no mundo com quem podia partilhar o choque e desalento. Quase gaguejava, com tanta preocupação. Era primeira vez no seu reinado que algo correra mal e ele pensara – como uma criança – que nunca nada lhe correria mal.

Pego-lhe nas mãos. Tenho esperado isto desde o primeiro momento, no Verão, quando não havia um plano de batalha para as tropas inglesas. Quando lá chegaram e não foram solicitados, percebi que fôramos enganados. Pior, compreendi que fôramos enganados pelo meu pai.

Não sou imbecil. Conheço o meu pai como comandante e como homem. Ao ver que não lançara os ingleses na batalha no dia em que chegaram, percebi que tinha outros planos para eles, e que esse plano fora escondido de nós. O meu pai nunca deixaria homens valentes num acampamento, a fazerem intrigas, a embebedarem-se e a adoecerem. Eu estive em campanha com o meu pai durante a maior parte da minha infância e nunca o vi deixar os homens sem nada para fazer. Obriga-os a manterem-se sempre em movimento, a trabalhar e longe de confusões. Não há, nos estábulos do meu pai, nenhum cavalo que tenha um quilo de gordura a mais: os soldados são tratados do mesmo modo.

Se os ingleses foram deixados a apodrecer no acampamento foi porque precisava deles no sítio onde estavam, acampados. Não quis saber se adoeciam e se tornavam preguiçosos. Isto fez-me estudar o mapa, e percebi o que fazia. Estava a servir-se deles como contrapeso, como manobra de diversão inactiva. Li os relatórios dos nossos comandantes, assim que chegaram, queixando-se da imobilidade sem sentido, dos exercícios que faziam na fronteira, onde avistavam o exército francês e eram avistados por ele, mas sem receberem ordens para o confrontar; e percebi que estava certa. O meu pai manteve as tropas inglesas a passear no local, em Fuenterrabia, para que os franceses, alarmados por terem uma força tão poderosa no flanco, colocassem o exército em defesa. Enquanto estavam de guarda aos ingleses não atacavam o meu pai que, orgulhosamente só e sem estorvos, marchou à cabeça das tropas em direcção ao desprotegido reino de Navarra, conseguindo, desta maneira, alcançar aquilo por que ansiava há tanto tempo, sem problemas e sem perigo para si próprio.

– Meu querido, os vossos soldados não foram considerados culpados – digo ao meu marido jovem e desesperado. – Não está em causa a coragem dos ingleses. Não há dúvidas a esse respeito.

– Ele diz... – Acena-me com a carta.

– O que diz é indiferente – replico paciente –, tendes de olhar para o que ele faz.

O rosto que volta para mim é tão sofrido que não sou capaz de lhe dizer que o meu pai o usou, que o fez passar por idiota, que usou o seu exército, que me usou, até a mim, para conseguir conquistar Navarra.

– O meu pai recebeu a sua paga antes de fazer o trabalho, é tudo – explico com veemência. – Agora só temos de o obrigar a fazer o trabalho.

– Que quereis dizer com isso? – Henrique estava baralhado.

– Que Deus me perdoe por dizer isto, mas o meu pai é um mestre a enganar as pessoas. Se vamos assinar tratados, temos de aprender a ser tão espertos como ele. Fez um tratado connosco e prometeu ser nosso parceiro na guerra contra França, mas a única coisa que fizemos foi garantir-lhe Navarra, ao enviar-lhe o exército e ao mandá-lo regressar.

– Foram envergonhados. Eu fui envergonhado.

Não compreende o que estou a tentar dizer-lhe.

– O vosso exército fez o que o meu pai queria que fizesse. Nesse sentido, foi uma campanha muito bem-sucedida.

– Não fizeram nada! Ele queixou-se, dizendo que não serviam para nada!

– Com esse nada, mantiveram os franceses imobilizados. Pensai nisso! Os franceses perderam Navarra.

– Quero levar Dorset a tribunal marcial!

– Sim, podemos fazer isso, se o desejardes. Mas o mais importante é que continuamos a ter o nosso exército, só perdemos dois mil homens e o meu pai é nosso aliado. Este ano, ele ficou em dívida para connosco. No próximo ano, podeis voltar a França e, dessa vez, terá de ser ele a lutar por nós; e não nós por ele.

– Afirma que vai conquistar a Guienne para mim, e di-lo como se eu não fosse capaz de o fazer! Fala comigo como se eu fosse um fraco, com um exército de inúteis!

– Óptimo – digo, para sua surpresa. – Deixai-o conquistar Guienne para nós.

– Quer que lhe paguemos.

– E pagaremos. O que importa, desde que o meu pai esteja do nosso lado quando entrarmos em guerra com os franceses? Se conquistar Guienne para nós, o interesse será nosso; se não o fizer, e se conseguir manter os franceses distraídos enquanto invadimos o Norte, através de Calais, também será bom para nós.

Por momentos olha para mim, com a cabeça a andar à roda. Depois percebe o que queria dizer.

– Mantém os franceses imobilizados enquanto nós avançamos, como fizemos com ele?

– Precisamente.

– Vamos usá-lo, do mesmo modo que nos usou?

– Sim.

Ele fica espantado.

– O vosso pai ensinou-vos a fazer estas coisas, a planear, como se uma campanha fosse um tabuleiro de xadrez e vós tivésseis de mover as peças?

Abano a cabeça.

– Não o fez de propósito. Mas não se pode viver com um homem como o meu pai sem se aprender a arte da diplomacia. Sabeis que Maquiavel lhe chamou o príncipe perfeito? Não se podia viver na corte do meu pai, como vivi, ou estar em campanha, como estive, sem perceber que passa a vida a procurar obter vantagens. Ensinava-me todos os dias, e eu não podia deixar de aprender, bastava-me observá-lo. Sei como a sua mente funciona. Sei como pensa um general.

– Mas o que vos leva a querer invadir por Calais?

– Oh, meu querido, por onde mais Inglaterra poderia invadir França? O meu pai pode combater no Sul, por nós, e veremos se é capaz de conquistar a Guienne. Podeis estar certo de que o fará, se for do seu interesse. E, enquanto estiver a fazê-lo, os franceses não poderão defender a Normandia.

A confiança de Henrique regressa num instante.

– Eu mesmo irei – declara. – Irei para o campo de batalha. O vosso pai não poderá criticar o comando do exército inglês, se for eu a comandá-lo.

Hesito, por momentos. Brincar às guerras é um jogo perigoso e, enquanto não tivermos um herdeiro, Henrique é precioso de mais. Sem ele, a segurança de Inglaterra ficará desfeita entre uma centena de pretendentes. Mas nunca serei capaz de manter a minha influência sobre ele se o tentar prender, como fizera a avó. Henrique terá de aprender a natureza da guerra e sei que estará muito mais seguro numa campanha comandada pelo meu pai, que tem tanto interesse em que eu permaneça no trono como eu; e estará, de longe, muito mais seguro com os cavalheirescos franceses do que com os bárbaros escoceses. Tenho um plano secreto que requer que esteja fora do país.

– Ireis, com certeza – afirmo. – E tereis a melhor armadura, o cavalo mais forte e a melhor guarda, entre todos os reis que estiverem em campo.

– Tomás Howard diz que devíamos abandonar a nossa luta contra França, até que os escoceses estejam subjugados.

Abano a cabeça.

– Ireis lutar em França com a aliança dos três reis – asseguro-lhe. – Será uma guerra poderosa, uma guerra que irão recordar Os escoceses são um perigo menor, podem esperar, no máximo, lançarão um ataque insignificante na fronteira. E se invadirem o Norte enquanto estiverdes na guerra, são tão pouco importantes que até eu podia comandar uma expedição contra eles, enquanto vós estiverdes na verdadeira guerra, em França.

– Vós? – pergunta.

– E por que não? Não somos um rei e uma rainha jovens, que subimos ao trono na flor da idade? Quem pode negá-lo?

– Ninguém! Não deixarei que me façam mudar de opinião – afirma Henrique. – Vou conquistar França, e vós protegereis o nosso país dos escoceses.

– Fá-lo-ei! – prometo-lhe. É isto que quero.


Primavera de 1513

Durante o Inverno, Henrique não falou de outra coisa a não ser da guerra e, na Primavera, Catarina reuniu um grande número de homens e grandes quantidades de material para a invasão do Norte de França. O tratado com Fernando acordava que ele invadiria a Guienne, em nome de Inglaterra, ao mesmo tempo que as tropas inglesas tomavam a Normandia. O sacro-imperador romano, Maximiliano, juntar-se-ia ao exército inglês na batalha, no Norte. Era um plano infalível, se as três partes atacassem ao mesmo tempo, se tivessem plena confiança uns nos outros.

Para mim, não foi nenhuma surpresa descobrir que o meu pai andava a negociar a paz com França, na mesma altura em que eu pedira a Tomás Wolsey, o meu braço direito, o oficial da Casa Real encarregado de distribuir esmolas aos pobres, que escrevesse para as cidades de Inglaterra, perguntando quantos homens poderiam disponibilizar para o serviço do rei, quando partíssemos para a guerra em França. Eu sabia que o meu pai só pensava na sobrevivência de Espanha: Espanha acima de tudo. Não o censuro. Agora que sou uma rainha, compreendo um pouco melhor o que significa amarmos um país com tal paixão, que somos capazes de trair seja quem for, até um filho, como está a fazer, para o manter em segurança. O meu pai, antevendo, por um lado, a perspectiva de uma guerra problemática e com poucos dividendos e, pelo outro, uma hipótese de paz, em que lhe interessava apostar, escolhe a paz e França como amigo. Traiu-nos, em absoluto segredo, e até a mim conseguiu enganar.

Quando a enorme perfídia se torna pública, atribui as culpas ao embaixador e a hipotéticas cartas que se teriam perdido. É uma fraca desculpa, mas não me queixo. O meu pai irá juntar-se a nós, mal lhe pareça que vamos ganhar. O importante, agora, é fazer com que Henrique parta para a campanha em França e me deixe só, para lidar com os escoceses.

– Ele tem de aprender a comandar os homens numa batalha – diz-me Tomás Howard. – Não são um grupo de rapazes que visitam um lupanar, perdoai-me, Vossa Graça.

– Eu sei! – respondo. – Ele tem de ganhar as suas esporas. Mas é tão arriscado.

O velho soldado coloca a mão sobre a minha.

– Muito poucos reis morrem em batalha – afirma. – Não deveis pensar no rei Ricardo, porque ele correu para as espadas. Percebeu que o traíram. A maior parte das vezes, os reis são libertados através de um resgate. Não tem nem metade do perigo, comparado com o que vós correreis se equipardes um exército e o enviardes pelo estreito para França e tentardes combater os escoceses, com o que sobrar.

Fico calada algum tempo. Não me tinha apercebido de que ele adivinhara o que eu planeava fazer.

– Quem pensa que vou fazer?

– Apenas eu.

– Haveis falado disso a alguém?

– Não – responde estoicamente. – O meu primeiro dever é para com Inglaterra, e penso que tendes razão. Temos de acabar com os escoceses, de uma vez por todas, e será melhor que aconteça enquanto o rei estiver a salvo, do outro lado do mar.

– Vejo que não vos preocupa demasiado a minha segurança! – observo.

Ele encolhe os ombros e sorri.

– Vós sois uma rainha – replica –, muito querida, talvez. Mas é sempre possível arranjar outra rainha. Não temos é mais nenhum rei Tudor.

– Eu sei – digo eu. – É uma verdade clara, como água. Posso ser substituída, mas Henrique não. Enquanto não tiver um filho Tudor.

Tomás Howard adivinhou o meu plano. Não tenho dúvida em relação aos meus deveres. Foi o que Artur me ensinou, o maior perigo para a segurança de Inglaterra vem do Norte, dos escoceses e, por isso, é para norte que tenho de marchar. Henrique tem de ser encorajado a vestir a mais bela armadura para ir, com os seus amigos mais queridos, participar numa espécie de grande torneio contra os franceses. Mas a guerra na fronteira norte vai ser sanguinária; se conseguirmos uma vitória, ficaremos em segurança durante gerações. Se quiser fazer de Inglaterra um país seguro, para mim e para o meu filho por nascer, e para os reis que vierem depois de mim, tenho de derrotar os escoceses.

Mesmo que nunca tenha um filho, mesmo que nunca chegue a ir a Walsingham agradecer a Nossa Senhora pelo filho que me deu, terei cumprido o meu primeiro e maior dever, minha adorada Inglaterra, meu país, se derrotar os escoceses. Mesmo que morra ao fazê-lo.

Sustento a decisão de Henrique, não o deixo perder a paciência, nem a vontade. Luto contra o Conselho Privado, que prefere ver na impossibilidade de se poder confiar no meu pai um novo sinal de que não devemos entrar em guerra. Em parte, concordo com eles. Parece-me que não temos motivo forte contra França e que os ganhos não vão ser muitos. Mas sei que Henrique está louco por ir para a guerra, e pensa que França é sua inimiga e o rei Luís seu rival. Quero Henrique fora do meu caminho este Verão, a altura em que tenciono destruir os escoceses. Sei que a única coisa que o pode distrair é uma guerra gloriosa. Quero que haja guerra, não porque esteja zangada com os franceses ou porque queira mostrar a nossa capacidade bélica ao meu pai; quero a guerra porque temos os franceses a sul e os escoceses a norte, e tenho de enfrentar seriamente um destes inimigos e brincar com o outro, para manter Inglaterra segura.

Passo horas ajoelhada na capela real; mas é com Artur que falo, em longos e silenciosos devaneios. «Tenho a certeza de que estou certa, meu amor», murmuro para dentro das minhas mãos unidas. «Estou certa de que tinhas razão quando me avisaste sobre o perigo que os escoceses representavam. Temos de os dominar ou não possuiremos um reino onde se durma em paz. Se conseguir fazer o que quero, este será o ano em que se decidirá o destino de Inglaterra. Se conseguir, enviarei Henrique contra os franceses, irei contra os escoceses e o nosso destino ficará traçado. Sei que os escoceses são o perigo maior. Todos pensam que são os franceses, o teu irmão não pensa em mais nada, além dos franceses, mas são homens que não conhecem nada da realidade da guerra. O inimigo que está do outro lado do mar, por muito que o detestemos, é um inimigo muito mais fraco do que o que pode marchar pela nossa fronteira numa noite.»

Quase consigo vê-lo na escuridão sombria, dos meus olhos fechados. «Oh, sim», digo-lhe com um sorriso. «Pensas que uma mulher não consegue usar uma armadura. Mas eu sei mais sobre guerra do que a maioria dos homens desta corte pacífica. É uma corte dedicada aos torneios, os jovens pensam que a guerra é um jogo. Mas eu sei o que é a guerra. Já a vi. Este é o ano em que me verás partir a cavalo, como fazia a minha mãe, o ano em que me verás enfrentar o nosso inimigo, o único que tem importância. Este é, agora, o meu país, tu fizeste dele o meu país. E vou defendê-lo por ti, por mim e pelos nossos herdeiros.

Os preparativos dos ingleses para a guerra contra França avançaram. Catarina e Tomás Wolsey, o seu fiel ajudante, trabalhavam todos os dias, preparando as listas de convocatórias para as diferentes cidades, no aprovisionamento de mantimentos para o exército, na forja de novas armaduras e na instrução dos voluntários, que tinham de aprender a marchar, a preparar-se para atacar ou para retroceder, de acordo com as vozes de comando. Wolsey notou que Catarina tinha duas listas de convocatórias, quase como se preparasse dois exércitos.

– Estais a pensar que teremos de lutar contra os escoceses e os franceses, ao mesmo tempo? – perguntou-lhe.

– Tenho a certeza que sim.

– Os escoceses irão atirar-se a nós, mal as nossas tropas partam para França – disse ele. – Teremos de reforçar as fronteiras.

– Espero fazer mais do que isso – foi tudo que acrescentou.

– Sua Graça, o rei, não se deixará demover da sua guerra contra a França – avisou ele.

Catarina não confiava nele, como ele gostaria.

– Eu sei. Temos de nos assegurar de que dispõe de um grande exército para levar para Calais. Não deverá preocupar-se com mais nada.

– Vamos ter de deixar ficar alguns homens para trás, para nos defenderem dos escoceses, é mais que certo que nos atacarão – avisou-a.

– Guardas de fronteira – replicou, para finalizar a conversa.

O belo e jovem Eduardo Howard, com a sua capa nova em tom azul-marinho, veio despedir-se de Catarina, quando a frota se preparava para partir, com ordens de bloquear os franceses no porto ou de se confrontar com eles, se possível, em alto mar.

– Deus vos abençoe! – exclamou a rainha, sentindo a voz tremer um pouco de emoção. – Que Deus vos abençoe, Eduardo Howard, e que a vossa sorte vos acompanhe, como sempre.

Ele fez uma profunda vénia.

– Tenho a sorte de um homem protegido por uma grande rainha que serve um grande país – proferiu ele. – É uma honra servir o meu país, o rei... – baixou a voz para um sussurro íntimo – e a vós, minha rainha!

Catarina sorriu. Os amigos de Henrique tinham tendência para se imaginarem como protagonistas das páginas de um romance. Camelot nunca andava distante dos seus pensamentos. Desde que se tornara rainha, viam em Catarina a personagem da dama do mito cortês. De todos os jovens, era de Eduardo Howard que mais gostava. A sua alegria genuína, a afectuosidade exuberante, faziam com que todos gostassem dele e a sua paixão pela marinha e pelos navios que estavam sob o seu comando aproximaram-no de Catarina, que acreditava que a segurança de Inglaterra só podia ser assegurada com o controlo dos mares.

– Vós sois o meu cavaleiro e confio-vos a tarefa de conquistar a glória, em vosso nome e em meu – disse-lhe ela, reparando no brilho de satisfação nos seus olhos, quando baixou a cabeça escura para lhe beijar a mão.

– Vou trazer-vos alguns navios franceses – prometeu. – Já vos trouxe piratas escoceses, agora, tereis galeões franceses.

– E bem preciso deles – respondeu ela com sinceridade.

– Ireis tê-los, nem que eu morra a tentá-lo.

Ela ergueu o dedo.

– Nada de mortes! – avisou. – Também preciso de vós.

Estendeu-lhe a outra mão.

– Pensarei em vós todos os dias, e nas minhas orações – prometeu ela.

Ele ergueu-se e, rodando a nova capa, retirou-se.

Estamos na festa de São Jorge, ainda sem notícias da frota inglesa, quando entra um mensageiro com um ar grave. Henrique está a meu lado quando o rapaz nos relata o que se passara na batalha naval que Eduardo tinha tanta certeza de ganhar e onde confiávamos para provar a supremacia dos nossos navios sobre os dos franceses. Com o pai a meu lado, tomei conhecimento do destino de Eduardo, o meu cavaleiro, Eduardo, que tinha absoluta certeza de que traria um galeão francês para o porto de Londres.

Eduardo imobilizara a armada francesa em Brest, e os franceses não se atreveram a sair do porto. Estava demasiado impaciente para esperar que dessem o primeiro passo, era demasiado jovem para jogar um jogo longo. Era um louco, um louco amoroso, como metade da corte, com a certeza de que são invencíveis. Foi para a batalha como um rapazinho que não tem medo da morte, que não sabe o que é a morte, que não tem o bom senso de recear a morte. Como os Grandes de Espanha da minha infância, acreditava que o medo era uma doença que nunca contrairia. Pensava que Deus o protegia mais do que a qualquer outro, e que nada lhe aconteceria.

Com a armada inglesa impossibilitada de prosseguir e com os franceses encurralados dentro do porto, pegou numa mão-cheia de barcos a remos e mandou-os avançar, expostos às armas francesas. Foi um desperdício, um terrível desperdício de homens e de si mesmo e tudo apenas porque era demasiado impaciente para esperar, jovem de mais para raciocinar. Arrependo-me por o enviarmos, querido Eduardo, meu jovem louco querido, para a morte. Mas recordo que o meu marido não é mais velho e que não é mais ajuizado, tendo até menos experiência do que é o mundo da guerra; percebo que, até eu, uma mulher de vinte e sete anos, casada com um jovem que acabou de atingir a maioridade, posso cometer o erro de julgar que nunca falharei.

Eduardo comandou o grupo de barcos no ataque ao navio do almirante francês – um acto de extrema bravura – e, quase de imediato, os seus homens deixaram de o apoiar, que Deus lhes perdoe, pedindo-lhe que se retirasse, quando a batalha se tornou demasiado perigosa. Saltaram do convés do navio francês para os barcos a remos, tendo alguns saltado para o mar, na ânsia de fugir; enquanto os tiros troavam à volta como pedras de granizo. Abandonaram-no, deixando-o ficar a lutar como um louco, de costas voltadas para o mastro, agitando a espada, enfrentando sozinho vários inimigos. Deu uma corrida para um dos lados do navio e, se algum dos barcos lá estivesse, podia ter saltado lá para dentro. Mas já haviam desaparecido. Arrancou do pescoço o apito de ouro, que era a sua insígnia, atirou-o para longe, para o mar, para que os franceses não o apanhassem e, depois, voltou para trás, para lutar. Tombou, sempre a lutar, foi ferido por várias espadas, mas continuava a lutar quando escorregou e caiu, defendendo-se com um braço, a espada em constante movimento. Então, uma lâmina esfomeada decepou-lhe o braço que segurava a espada e deixou de lutar. Os franceses podiam ter recuado, em honra da sua coragem, mas não o fizeram. Continuaram a atacá-lo, lançando-se sobre ele como cães esfaimados sobre uma carcaça no mercado de Smithfield. Morreu, após ter recebido mais de cem punhaladas.

Atiraram o corpo ao mar, não valia nada para eles, aqueles soldados franceses que se dizem cristãos. Portaram-se como selvagens, como mouros, pela caridade cristã que demonstraram. Nem se lembraram de lhe dar a extrema-unção, de rezar uma oração pelos mortos, não se preocuparam em dar-lhe uma sepultura cristã, embora um padre o tenha visto morrer. Atiraram-no ao mar, como se não fosse mais do que comida estragada para servir de alimento aos peixes.

Mais tarde, perceberam que se tratava de Eduardo Howard, o meu Eduardo Howard, o almirante da marinha inglesa, o filho de um dos mais importantes homens de Inglaterra, e arrependeram-se de o atirarem borda fora como se fosse um cão morto. Não por motivos dignos – quem? Eles? Nada disso! – mas porque podiam pedir resgate por ele à família, e Deus sabe que teríamos pago o que fosse preciso para que nos devolvessem o nosso adorado Eduardo. Enviaram os marinheiros em barcos, à sua procura, com ganchos, para o içarem da água. Mandaram-nos ir à pesca do seu pobre corpo morto, como se fosse um mero destroço de um naufrágio. Esventraram o corpo como se fosse uma carpa, arrancaram-lhe o coração e salgaram-no como se fosse bacalhau, roubaram as roupas como troféu, e enviaram-nas para a corte francesa. O que sobrou do corpo retalhado foi enviado para cá, para o pai e para mim.

Esta história de selvajaria faz-me lembrar Hernán Pérez del Pulgar, que comandou o ataque audacioso ao Alhambra. Se o apanhassem, tê-lo-iam morto, mas penso que nem os mouros arrancariam o seu coração, só por divertimento. Tê-lo-iam reconhecido como um inimigo valente, um homem que devia ser respeitado. Devolveriam o corpo, num dos seus grandes gestos de cavalheirismo. Sabe Deus se, ao fim de uma semana, não comporiam uma canção sobre ele, se, em quinze dias, não a estaríamos a cantar por toda a Espanha ou se, passado um mês, não teriam já construído uma fonte que comemorasse a sua beleza. Eram mouros, mas possuíam a delicadeza de que estes cristãos são desprovidos. Quando penso nestes franceses fico envergonhada por chamar «bárbaros» aos mouros.

Henrique está muito abalado com esta história e com a nossa derrota; e o pai de Eduardo envelhece dez anos nos dez minutos que o mensageiro demora a dizer-lhe que o corpo do filho está lá em baixo, numa carroça, mas que as roupas foram levadas como despojos e entregues a madame Cláudia, a filha do rei de França, e que o coração foi dado, como recordação, ao almirante francês. Não consigo confortar nenhum dos dois, o meu choque é demasiado grande. Vou para a capela e entrego a minha dor a Nossa Senhora, que sabe bem o que significa amar um jovem e vê-Lo partir ao encontro da morte. E enquanto estou ajoelhada, juro que os franceses irão lamentar o dia em que abateram o meu defensor. Terão de prestar contas por este acto indigno. Nunca terão o meu perdão.


Verão de 1513

A morte de Eduardo Howard fez com que Catarina trabalhasse ainda mais na preparação do exército inglês que partiria para Calais. Henrique podia até ir para uma guerra teatral, mas usaria munições verdadeiras, canhões, espadas e setas e ela queria que tudo fosse bem fabricado e que a pontaria estivesse afinada. Toda a vida conhecera a realidade da guerra, mas, com a morte de Eduardo Howard, Henrique percebeu, pela primeira vez, que a guerra não era como diziam os livros de histórias, não era como um torneio. Um jovem cheio de qualidades, brilhante como Eduardo, podia sair de casa num dia cheio de sol e regressar, esquartejado, em cima de uma carroça. Honra lhe seja feita, Henrique não perdeu a coragem, quando se deparou com esta realidade, quando viu o jovem Tomás Howard oferecer-se para ocupar o lugar do irmão, ao ver o pai de Eduardo reunir os lugares-tenentes e chamá-los a cumprir as suas obrigações de fornecerem tropas para vingar o filho.

Em Maio, enviaram a primeira parte do exército para Calais, e Henrique preparou-se para os seguir, em Junho, com a segunda leva de tropas. Andava mais sombrio do que alguma vez estivera.

Catarina e Henrique viajaram por Inglaterra, de Greenwich a Dover, onde embarcaria. As cidades começaram a festejá-los e a oferecer os seus homens, à medida que seguiam o seu caminho. Henrique e Catarina tinham grandes cavalos brancos iguais; Catarina cavalgava como um homem, com uma perna para cada lado do cavalo, com o longo vestido azul espalhado à sua volta. Henrique, cavalgando ao seu lado, tinha um ar majestoso, mais alto do que qualquer outro homem nas fileiras, mais forte do que a maior parte, com o cabelo dourado e sorrindo para todos.

De manhã, quando saíam de uma cidade, ambos usavam armadura; fatos iguais em prata dourada. Catarina apenas com um peitoral e elmo, feitos de um metal finamente forjado, enfeitado com motivos em ouro. Henrique uma armadura completa que o cobria dos dedos dos pés à ponta dos dedos das mãos, apesar da temperatura que fizesse. Seguia com a viseira levantada, os olhos azuis dançando e um pequeno disco de ouro em volta do elmo. Os porta-estandartes, levando o emblema de Catarina de um lado e o de Henrique do outro, seguiam ao lado de cada um e quando o povo via a romã de Catarina e a rosa de Henrique, gritava «Deus abençoe o rei!» e «Deus abençoe a rainha!». Quando saíam de uma cidade, com as tropas a marchar atrás de si e os archeiros à frente, o povo aglomerava-se aos lados da estrada, por mais de um quilómetro, para os ver, atirando pétalas e botões de rosa para o caminho onde os cavalos passariam. Os homens marchavam com uma rosa na lapela ou no chapéu e cantavam, à medida que seguiam, canções jocosas da velha Inglaterra, mas também algumas baladas, compostas por Henrique.

Levaram quase duas semanas a chegar a Dover, mas não foi tempo desperdiçado, pois reuniram mais mantimentos e novos recrutas em todas as aldeias. Todos os homens do país queriam fazer parte do exército, para defenderem Inglaterra de França. As raparigas queriam dizer que o seu homem partira para ser soldado. O país inteiro estava unido, no desejo de vingança contra os franceses. E o país estava confiante de que, com o jovem rei à cabeça do exército, isso seria possível.

Sinto-me mais feliz, muito mais feliz, do que alguma vez me senti desde a morte do meu filho. Estou mais feliz do que imaginara possível. Henrique deita-se na minha cama, todas as noites, durante a marcha até à costa; há festejos e bailes e fico com a certeza de que me pertence, em pensamentos, palavras e obras. Vai partir numa campanha organizada por mim, está em segurança, afastado da guerra verdadeira que travarei, e nunca tem um pensamento ou uma palavra que não partilhe comigo. Rezo, para que numa destas noites de marcha, cavalgando juntos para sul, em direcção à costa, com a elevada tensão provocada pela guerra, possamos gerar outra criança, outro rapaz, uma nova rosa para Inglaterra, tal como era Artur.

Graças a Catarina e a Tomás Wolsey, os preparativos para o embarque foram programados na perfeição. Nesta armada inglesa não havia lugar para os habituais atrasos, enquanto eram dadas ordens de última hora e se procurava encontrar bens essenciais que haviam sido esquecidos. Os navios de Henrique – quatrocentos – pintados de cores brilhantes, com os pendões a esvoaçar e as velas armadas – aguardavam, para levar as tropas até França. O navio de Henrique, reluzindo de folha de ouro, com o dragão vermelho esvoaçando à popa, balanceava na doca. A guarda real, treinada, nos novos uniformes em verde Tudor e branco com lantejoulas brilhantes, permanecia em formação no cais. As duas armaduras de Henrique, com embutidos em ouro, foram guardadas a bordo e os dois cavalos brancos, especialmente treinados, já estavam nas baias. Os preparativos foram tão meticulosos como os da mais elaborada festa de máscaras da corte, e Catarina sabia que muitos daqueles rapazes ansiavam tanto pela guerra como por um divertimento da corte.

Estava tudo pronto para Henrique embarcar e partir para França quando, numa cerimónia simples, na praia de Dover, ele pegou no grande sinete de Estado e, diante de todos, investiu Catarina como regente durante a sua ausência, Governador do Reino e capitão-general das forças inglesas que ficavam a defender o território.

Esforço-me por apresentar um ar grave e solene quando me nomeia regente de Inglaterra; beijo-lhe a mão e, depois, na boca, para lhe desejar boa sorte. Mas, à medida que o navio vai sendo levado, rebocado pelas barcaças, atravessa a barra do porto, abre as velas para apanhar o vento e parte para França, só me apetece cantar de alegria. Não verto lágrimas pelo marido que parte, pois deixou-me com tudo que sempre quis. Sou mais do que princesa de Gales, sou mais do que rainha de Inglaterra, sou o governador do Reino, sou o capitão-general do exército, este é na verdade o meu país, e eu sou o seu único governante.

E a primeira coisa que farei – na verdade, talvez a única coisa que farei com o poder que me foi investido, a única coisa que terei de fazer com esta oportunidade que me foi dada por Deus – é derrotar os escoceses.

Mal chegou ao Palácio de Richmnond, Catarina deu ordens a Tomás Howard, o irmão mais novo de Eduardo, para levar os canhões que estavam na armaria da Torre, e partir com a armada inglesa para Newcastle, por mar, para defender as fronteiras dos escoceses. Não era o almirante que o irmão fora, mas era um jovem sensato e Catarina considerava que podia confiar nele para cumprir a tarefa de levar as armas vitais para o Norte do país.

Todos os dias, Catarina recebia notícias de França, por mensageiros que colocara ao longo do percurso. Wolsey tinha instruções precisas para enviar à rainha o relatório do desenvolvimento da guerra. Ela exigia-lhe uma análise exacta, pois sabia que Henrique só lhe enviaria uma perspectiva muito optimista. Nem tudo eram boas notícias. O exército inglês chegara a França, e houvera grande excitação em Calais, com festejos e celebrações. Houve desfiles e exibições e Henrique fora muito elogiado pela bela armadura e pelas suas tropas elegantes. Mas o imperador Maximiliano não conseguira formar o exército para apoiar os ingleses. Alegando falta de dinheiro, mas fazendo juramento do entusiasmo pela causa, veio ao encontro do jovem príncipe para oferecer a sua espada e os seus serviços.

Foi um momento importante para Henrique, que em toda a vida nunca ouvira o som de um tiro disparado com raiva, ter à frente o sacro-imperador romano oferecendo os seus préstimos, submetendo-se à autoridade do glamoroso jovem príncipe.

Catarina franziu a testa, ao ler esta parte do relatório de Wolsey, calculando que Henrique tivesse de contratar o imperador por uma quantia inflacionada, pagando, a um aliado que prometera vir às suas expensas, para que arranjasse um exército de mercenários. Reconheceu o jogo duplo que, desde o início, caracterizara esta campanha. Mas, pelo menos, significava que o imperador estaria com Henrique na primeira batalha, e Catarina sabia que podia confiar naquele homem, experiente e mais velho, para manter o impulsivo jovem rei fora de perigo.

Por conselho de Maximiliano, o exército inglês montou cerco a Thérouanne – uma cidade que o sacro-imperador romano há muito cobiçava, mas sem valor táctico para a Inglaterra – e Henrique, a uma distância segura das armas de curto alcance montadas nas muralhas da pequena cidade, atravessou sozinho o acampamento, à meia-noite, deixando palavras de conforto aos soldados de vigia, e teve a oportunidade de disparar um canhão, pela primeira vez.

Os escoceses, que só esperavam que Inglaterra ficasse indefesa, com o rei e o exército em França, declararam guerra aos ingleses, e iniciaram a marcha, para sul. Wolsey escreveu a Catarina, alarmado, perguntando-lhe se queria que algumas das tropas de Henrique regressassem, para fazer frente a esta nova ameaça. Catarina respondeu-lhe, dizendo que pensava ser capaz de se defender de uma escaramuça de fronteira, e deu início a uma nova convocação de tropas vindas de todas as cidades do país, usando as listas que preparara.

Ordenou a convocação da milícia de Londres e, vestida com a armadura e montada no cavalo branco, foi inspeccioná-la, antes do início da marcha para norte.

Olho-me ao espelho, enquanto as aias apertam o peitoral e a minha criada segura no elmo. Vejo a tristeza nos seus rostos, a maneira como a tola criada segura no elmo, como se fosse demasiado pesado, como se nada disto devesse acontecer, como se eu não tivesse nascido para este momento: o presente. O momento do meu destino.

Deixo escapar um suspiro silencioso. Fico tão parecida com a minha mãe, de armadura, que podia ser o seu reflexo no espelho, tão calma e orgulhosa, com o cabelo puxado para trás, e os olhos a brilhar como o ouro polido do peitoral; entusiasmada com a perspectiva da batalha, luzindo de alegria, com confiança na vitória.

– Não tendes receio? – pergunta-me María de Salinas.

– Não. – E digo a verdade. – Passei a minha vida à espera deste momento. Sou uma rainha, filha de uma rainha que lutou pelo seu país. Cheguei a este país, o meu, no momento em que precisa de mim. Não estamos em tempos de ter uma rainha que queira sentar-se no trono, para entregar os prémios dos torneios. Precisamos de uma rainha que tenha a valentia e a coragem de um homem. Eu sou essa rainha. Partirei, à frente do meu exército.

Há uma manifestação de constrangimento.

– Partir à frente do exército? Mas não para norte? Talvez passar revista à parada, mas por certo não pensais seguir com eles? Mas não será perigoso?

Pego no elmo.

– Cavalgarei para norte, ao encontro dos escoceses. E se atacarem, vou combatê-los. E quando começarmos a lutar, estarei lá, até os derrotar.

– E que fazemos, nós?

Sorrio para as mulheres.

– Três de vós irão comigo, para me fazerem companhia e o resto ficará aqui – replico com firmeza. – As que ficam, continuarão a fazer bandeiras e a preparar ligaduras, que me devem enviar. E devem comportar-se! – digo com ar duro. – As que vêm comigo terão de se portar como soldados em campo. Não permitirei lamúrias.

Há um novo acesso de aflição que evito, caminhando para a porta.

– María e Margarida, vinde comigo, imediatamente – digo.

As tropas estão reunidas em frente ao palácio. Passo a cavalo, por entre as fileiras, pousando os olhos num rosto e depois noutro. Vira o meu pai fazer isso, e a minha mãe também. O meu pai dizia-me que cada soldado devia saber que era importante, devia perceber que fora reconhecido como um ser individual no meio da parada, devia sentir que era uma parte essencial dentro do grupo que formava o exército. Quero que cada um fique com a certeza de que os vi todos, um por um, de que os conheço a todos. Quero que me conheçam. Depois de passar em revista cada um dos quinhentos soldados, dirijo-me para a sua frente e tiro o elmo, para que me vejam o rosto. Agora, já não sou a princesa espanhola, com o cabelo escondido e a cara coberta por um véu. Sou a rainha inglesa, de cabeça e cara descobertas. Levanto a voz, para que me ouçam.

– Homens de Inglaterra! – incito. – Vós e eu marcharemos para lutar contra os escoceses, e nenhum pode hesitar nem falhar. Não regressaremos enquanto não recuarem. Não descansaremos até que estejam mortos. Juntos, vamos derrotá-los, pois estamos ao serviço do Céu. Não é uma escaramuça provocada por nós; é uma invasão cruel perpetrada por Jaime da Escócia que, desta forma, quebra o tratado e insulta a sua esposa inglesa. É uma invasão indigna, condenada pelo papa, uma invasão contrária à ordem de Deus. Há anos que a planeia. Esteve à espera, como um cobarde, pensando que nos encontraria enfraquecidos. Mas está enganado, porque, neste momento, somos poderosos. Vamos derrotá-lo, esse rei herege. Nós venceremos. Posso garantir-vos, pois sei qual é a vontade de Deus. Ele está connosco. E podeis estar certos de que a mão de Deus protege sempre os homens que lutam pelos seus lares.

Ouve-se um grande rugido de aprovação e volto-me e sorrio para um lado e depois para o outro, para que todos constatem a minha alegria pela sua coragem. Para que todos vejam que não tenho medo.

– Óptimo! Em frente, marchar! – digo para o comandante que está a meu lado e o exército vira e marcha para fora da parada.

Enquanto o primeiro batalhão de defesa de Catarina marchava para norte, sob o comando do conde de Surrey, reunindo mais homens à medida que prosseguiam, os mensageiros corriam para sul, para Londres, para lhe trazerem as notícias por que esperava. O exército de Jaime atravessara a fronteira escocesa e avançava pelo relevo acidentado da região fronteiriça, recrutando soldados e roubando comida pelo caminho.

– Um ataque de fronteira? – perguntou Catarina, sabendo que não devia ser isso.

O homem abanou a cabeça.

– O meu amo ordenou-me que vos dissesse que o rei francês prometeu ao rei escocês que o reconheceria, se ganhasse esta batalha contra vós.

– Que o reconheceria? Como quê?

– Como rei de Inglaterra.

Ele esperava que ela gritasse de indignação ou de receio, mas apenas sacudiu a cabeça, como se houvesse mais qualquer coisa a considerar.

– Quantos homens? – inquiriu Catarina ao mensageiro.

Ele abanou a cabeça.

– Não posso dizer ao certo.

– Quantos, na vossa opinião?

Olhou para a rainha, viu a ansiedade nos seus olhos, e hesitou.

– Dizei-me a verdade!

– Receio que sejam uns sessenta mil, Vossa Graça, talvez mais.

– Quantos mais? Mais ou menos?

Ele hesitou. Levantou-se da cadeira e foi à janela.

– Por favor, dizei-me o que pensais – pediu. – Não me ajudais se, por vossa causa, ao tentar poupar-me de aflições, eu e o meu exército tivermos de nos deparar com um inimigo em maior número do que esperava.

– Cem mil, calculo eu – disse baixinho.

Esperava que se mostrasse horrorizada mas, quando olhou para ela, reparou que sorria.

– Oh, não tenho medo deles.

– Não tendes receio de cem mil escoceses? – interrogou ele.

– Já vi coisas piores! – exclamou ela.

Agora sei que estou preparada. Os escoceses surgem por todos os lados, pela fronteira, em toda a sua força. Capturaram os castelos do Norte com uma irrisória facilidade, uma vez que a fina flor do comando inglês e os melhores homens se encontram do outro lado do mar em França. O rei francês pensa que nos derrotará, através dos escoceses, no nosso território, enquanto o exército de fachada anda às voltas, no Norte de França, preocupado em fazer evoluções elegantes. Este é o meu momento. Agora é comigo e com os homens que me sobraram. Mando tirar os estandartes reais e as bandeiras do grande guarda-roupa. Desfraldado à frente do exército, o estandarte real mostra que o rei de Inglaterra está presente no campo de batalha. E serei eu.

– Não seríeis capaz de cavalgar com o estandarte real, pois não? – pergunta uma das damas.

– Quem mais podia ser?

– Devia ser o rei.

– O rei está a lutar contra os franceses. Eu lutarei contra os escoceses.

– Vossa Graça, uma rainha não pode pegar no estandarte do rei e sair para a luta.

Sorrio-lhe, não finjo que tenho confiança, tenho a firme convicção de que este é o momento por que esperei toda a minha vida. Prometi a Artur que seria uma rainha guerreira; e agora sou-o.

– Uma rainha pode usar o estandarte do rei, se estiver convencida de que é capaz de vencer.

Mando chamar as restantes tropas; este será o meu exército. Tenciono mandá-los formar em ordem de batalha, mas há mais comentários.

– Não estais a pensar em cavalgar à sua frente, pois não?

– Onde quereríeis vós que me colocasse?

– Vossa Graça, talvez não devêsseis ir.

– Eu sou o comandante supremo – afirmo. – Não deveis ver-me como uma rainha que fica em casa, que influencia a política secretamente, e que passa a vida a maltratar os seus filhos. Sou uma rainha que governa, como a minha mãe. Quando o meu país está em perigo, eu estou em perigo. Quando o meu país triunfa, como acontecerá, será o meu triunfo.

– Mas, e se...? – A dama de companhia cala-se, com o meu duro olhar.

– Eu não sou louca, previ a hipótese de sermos derrotados – digo-lhe. – Um bom comandante fala sempre em vitória, mas tem um plano, em caso de derrota. Sei onde terei de retroceder, onde poderei reagrupar, em que ponto deverei retomar a batalha e, se falhar, sei onde poderei reagrupar. Não esperei tantos anos por este trono, para agora deixar que o rei da Escócia e aquela tola da Margarida mo tirem.

Os homens de Catarina, quarenta mil, seguiram ao longo da estrada, atrás da guarda real, carregados com as armas e os sacos de comida, ao calor do sol do fim do Verão. Catarina, à frente da comitiva, montava o cavalo branco, de modo a que todos a vissem, com o estandarte real por cima da cabeça, para que os homens a reconhecessem, agora, durante a marcha e depois, mais tarde, durante a batalha. Duas vezes por dia, percorria a extensão da fileira com uma palavra de encorajamento para os que lutavam contra as suas forças, à retaguarda, mal conseguindo respirar, devido ao pó levantado pelas carroças que seguiam à frente. Observava um horário monástico, levantando-se de madrugada para ouvir a missa, comungando ao meio-dia e deitando-se ao anoitecer, acordando à meia-noite, para rezar pela segurança do seu reino, pela do rei e pela sua.

Os mensageiros moviam-se entre o exército de Catarina e a força comandada por Tomás Howard, conde de Surrey. De acordo com o plano que traçaram, Surrey devia confrontar-se com os escoceses mal tivesse oportunidade para o fazer, na tentativa de deter o seu avanço célere e destruidor em direcção ao Sul. Se Surrey fosse derrotado, os escoceses continuariam o seu caminho e Catarina iria ao seu encontro, com as suas tropas, atacando-os, em defesa dos condados do Sul de Inglaterra. Se os escoceses passassem por eles, Catarina e Surrey haviam elaborado um plano final, para a defesa de Londres. Deviam reagrupar-se, convocariam um exército formado por cidadãos que iriam erigir fortificações feitas de terra, em volta da Cidade e, se tudo falhasse, retirariam para a Torre, que podia ser defendida por bastante tempo, até que Henrique lhes enviasse reforços, de França.

Surrey está apreensivo por lhe ordenar que conduzisse o primeiro ataque contra os escoceses, preferia esperar que as minhas tropas se juntassem às dele; mas insisto em que o ataque seja feito de acordo com o que foi planeado. Seria mais seguro unir os dois exércitos, mas estou a fazer uma campanha defensiva. Tenho de manter um exército de reserva, para impedir os escoceses de progredirem para sul, no caso de ganharem a primeira batalha. Não estamos a travar uma batalha única. É uma guerra que destruirá a ameaça dos escoceses por uma geração, talvez para sempre.

Também me sinto tentada a ordenar-lhe que espere por mim, tal é a minha vontade de participar na batalha; não sinto medo, só uma espécie de alegria selvagem, como se fosse um falcão aprisionado por demasiado tempo e de súbito libertado. Mas não lançarei os meus preciosos homens numa batalha que deixaria aberto o caminho para Londres, no caso de perdermos. Surrey acredita que, se unirmos as duas forças, ganharemos com toda a certeza, mas eu sei que na guerra não há certezas, que qualquer coisa pode correr mal. Um bom comandante tem de estar preparado para o pior, e não me vou arriscar a que os escoceses nos vençam numa única batalha, e depois avancem pela Grande Estrada do Norte até à minha capital e que protagonizem uma coroação, com o apoio dos franceses. Não passei tantas dificuldades para subir ao trono, para o perder numa luta precipitada. Tenho um plano de batalha para Surrey, e outro para mim, uma posição para onde retroceder, e mais uma série de posições subsequentes. Podem ganhar uma batalha, podem até ganhar mais do que uma, mas nunca me hão-de tirar o trono.

Estamos a cem quilómetros de Londres, em Buckingham. É uma boa velocidade para um exército em marcha, mas dizem-me que é uma velocidade tremenda para um exército inglês; os ingleses são conhecidos por perderem tempo na estrada com ninharias. Estou cansada, mas não exausta. A agitação e, para ser honesta, o medo do dia seguinte fazem-me sentir como um cão de caça, preso por uma trela, sempre agitado, lutando para seguir em frente e começar a caçada.

E agora tenho um segredo. Todas as tardes, quando desmonto do cavalo, salto da sela e a primeira coisa que faço, antes de mais nada, é ir aos sanitários, à tenda, ou a qualquer lugar onde possa estar só, levanto as saias e verifico a roupa interior. Estou à espera do período, e já é o segundo mês em que não aparece. A minha esperança, uma forte e doce esperança, é que Henrique me tenha deixado grávida quando partiu para França.

Não vou dizer nada a ninguém, nem mesmo às minhas damas. Imagino a confusão que seria, se soubessem que passava o dia a andar a cavalo e me preparava para uma batalha estando grávida ou até apenas imaginando que podia estar. Não me atrevo a contar-lhes, pois não me atrevo a fazer nada que ameace o equilíbrio desta campanha em nosso desfavor. É evidente que nada seria mais importante do que um filho para Inglaterra – excepto isto; garantir que exista uma Inglaterra para esse filho herdar. Cerro os dentes pelo risco que corro, e aceito-o, de qualquer maneira.

Os homens sabem que sigo à sua frente e que lhes prometi uma vitória. Marcham bem e hão-de lutar bem porque depositaram a sua fé em mim. Os homens de Surrey, que estão mais perto do inimigo do que nós, sabem que por trás deles, para os apoiar de forma fiável, está o meu exército. Sabem que sou eu quem comanda os reforços. Esta situação já provocou muitos comentários pelo país e sentem-se orgulhosos por terem uma rainha que se alistou por sua causa. Se lhes virasse a cara, voltasse para Londres e lhes ordenasse que avançassem sem mim, por ter um trabalho de mulher para fazer, também regressariam a casa, é tão simples como isto. Pensariam que perdera a confiança, que não tinha fé neles ou que previa uma derrota. Já correm rumores suficientes sobre um exército imparável de escoceses – cem mil homens furiosos das Terras Altas – sem que eu aumente os seus receios.

Além disso, se eu não conseguir salvar o meu reino para o meu filho, não fará sentido ter esse filho. Preciso de derrotar os escoceses e de ser um grande general. Quando esse dever estiver cumprido, voltarei a ser, de novo, uma mulher.

À noite, recebo notícias de Surrey, dizendo que os escoceses estão acampados numa densa serrania, em posição de batalha, num local chamado Flodden. Envia-me um plano do local, mostrando os escoceses acampados num terreno elevado, de onde podem controlar tudo o que se passa a sul. Uma olhadela ao mapa diz-me que os ingleses não devem atacar subindo o monte ao encontro dos escoceses, que estão fortemente armados. Os archeiros escoceses dispararão para baixo e, depois, os homens das Terras Altas descerão a encosta para atacar os nossos homens. Nenhum exército resistirá a um ataque deste género.

– Dizei ao vosso chefe que deve enviar espiões para tentarem descobrir um caminho que permita chegar à retaguarda dos escoceses, de forma a que possam ser atacados pelo Norte – digo ao mensageiro, enquanto observo o mapa. – Informai-o que o aconselho a usar um estratagema, que deixe bastantes homens na frente dos escoceses, para os manter no local, mas que leve os outros embora, como se fosse para norte. Se tiver sorte, pode ser que o persigam e tê-los-eis em campo aberto. Se não tiver sorte, terá de conseguir atingi-los pelo Norte. O terreno é seguro? Ele desenhou um curso de água neste esboço.

– É terreno pantanoso – confirmou o homem. – Podemos não conseguir atravessá-lo.

Mordo o lábio.

– É o único caminho que vejo – afirmo. – Dizei-lhe que este é o meu conselho, mas não são as minhas ordens. Ele é o comandante em campo, terá de avaliar a situação por si. Mas deveis dizer-lhe que estou certa de que tem de tirar os escoceses daquele monte, que não pode atacá-los subindo a encosta. Terá de ir em volta e surpreendê-los pela retaguarda ou, então, atraí-los para baixo, para longe da encosta.

O homem faz uma vénia e parte. Queira Deus que consiga fazer passar a minha mensagem para Surrey. Se ele pensa que pode lutar com um exército de escoceses na encosta do monte, está perdido. Uma das damas vem ter comigo, na altura em que o mensageiro sai da tenda e treme de fadiga e medo.

– Que vamos fazer, agora?

– Avançamos para norte – replico.

– Mas eles podem começar a lutar, em qualquer altura!

– É verdade, e se ganharem, podemos ir para casa. Mas se perderem, estaremos entre os escoceses e Londres.

– E fazemos o quê? – murmura ela.

– Derrotamo-los! – exclamo.

10 de Setembro de 1513

 

– Vossa Graça! – Um jovem pajem entrou a correr na tenda de Catarina, fazendo uma vénia atrapalhada. – Chegou um mensageiro com notícias da batalha! Um mensageiro da parte de lorde Surrey.

Catarina deu uma volta, com a alça da cota de malha ainda por apertar.

– Mandai-o entrar!

O homem já estava dentro da sala, coberto pela sujidade da batalha, mas com o sorriso de alguém que traz boas notícias, notícias fantásticas.

– Sim? – perguntou Catarina, quase sem respirar, devido à emoção.

– Vossa Graça venceu! – exclamou. – O rei da Escócia morreu, com vinte grandes senhores, bispos, condes e padres, também. É uma derrota da qual nunca hão-de recuperar. Metade dos homens mais importantes morreu num só dia.

Reparou que a cor fugia do seu rosto, mas, depois, ficou muito corada.

– Ganhámos?

– Vós ganhastes! – confirmou. – O conde ordenou-me que vos dissesse que os vossos homens, criados, treinados e armados por vós, fizeram o que lhes haveis ordenado. A vitória é vossa, e haveis salvado a Inglaterra.

A mão dela foi para o ventre, por baixo da curva de metal do peitoral.

– Estamos salvos – disse ela.

Ele concordou, com a cabeça.

– Ele enviou-vos isto...

Estendeu-lhe um manto, rasgado, cheio de golpes e manchado de sangue.

– Isto é o quê?

– O manto do rei da Escócia. Retirámo-lo do cadáver, como prova. O corpo está na nossa posse. Está a ser embalsamado. Está morto e os escoceses foram derrotados. Fizestes o que nenhum rei inglês conseguiu desde o tempo de Eduardo I. Haveis libertado a Inglaterra da invasão escocesa.

– Deveis entregar-me um relatório por escrito – decidiu. – Ditai-o para o escrivão. Tudo o que sabeis e tudo o que lorde Surrey disse. Tenho de escrever ao rei.

– Lorde Surrey perguntou...

– Sim?

– Perguntou se devia avançar para a Escócia e destruir tudo? Ele crê que haverá pouca ou nenhuma resistência. Esta é a nossa oportunidade. Poderíamos destruí-los, estão à nossa mercê.

– Claro! – exclamou, calando-se em seguida. Seria a resposta que qualquer rei da Europa daria. Um vizinho arruaceiro, um inimigo inveterado estava enfraquecido. Qualquer rei da Cristandade avançaria para tirar a sua desforra.

– Não. Não, esperai um momento!

Voltou-lhe as costas e foi à entrada da tenda. Lá fora, os homens preparavam-se para mais uma noite na estrada, longe das suas casas. Havia pequenas fogueiras para cozinhar pelo campo, tochas a arder e os odores de comida, estrume e suor pairavam no ar. Era o mesmo cheiro da infância de Catarina, uma infância passada, durante os primeiros sete anos, num estado de guerra permanente contra um inimigo que foi obrigado a recuar cada vez mais, até à escravatura, ao exílio e à morte.

Pensa, digo a mim mesma ferozmente. Não penses com o coração, pensa com a cabeça fria, pensa como um soldado. Não penses como uma mulher que espera um filho, uma mulher que sabe que esta noite muitas mulheres ficaram viúvas na Escócia, pensa como uma rainha. O meu inimigo foi derrotado, o seu país está aberto à minha frente, o seu rei morto, a sua rainha é uma jovem tola, uma cunhada minha. Posso cortar este país aos bocados, posso retalhá-lo. Qualquer comandante com experiência podia destruí-los e deixá-los desfeitos para uma geração. O meu pai não hesitaria, a minha mãe já teria dado a ordem.

Detenho-me. Eles estavam enganados, a minha mãe e o meu pai. Consigo dizer o indizível, o impensável. Estavam errados, o meu pai e a minha mãe. Podem ter sido soldados geniais, estavam convencidos disso, eram chamados de reis cristãos – mas estavam errados. Demorei a vida toda para o perceber.

Um estado constante de guerra é uma espada de dois gumes, fere tanto o vencedor como o vencido. Se perseguirmos os escoceses neste momento, destroçamos o seu país, podemos destruí-los por várias gerações vindouras. Mas as únicas coisas que nascem no meio da destruição são ratazanas e pestilência. Ao fim de algum tempo, iriam recompor-se e voltariam a atacar-nos. Os seus filhos atacariam os nossos e a batalha cruel seria travada de novo. O ódio gera mais ódio. O meu pai e a minha mãe expulsaram os mouros para lá do mar, mas sabem que, ao fazê-lo, apenas ganharam uma batalha, numa guerra que só terminará quando cristãos e muçulmanos estiverem preparados para viver lado a lado, em paz e harmonia. Isabel e Fernando destroçaram os mouros, mas os seus filhos, e os filhos dos seus filhos, terão de enfrentar uma jihad, uma guerra santa, em resposta às cruzadas. A guerra não é a resposta para a guerra, uma guerra não termina outra guerra. A única solução para acabar com ela é a paz.

– Tragam-me um novo mensageiro – ordenou Catarina por cima do ombro, e esperou que o homem aparecesse. – Deveis ir ter com lorde Surrey e dizer-lhe que lhe agradeço pelas óptimas notícias desta vitória maravilhosa. Dizei-lhe que deve ordenar aos escoceses que entreguem as armas e que os mande embora, em paz. Eu escreverei à rainha dos escoceses, prometendo-lhe paz, se se tornar uma boa irmã e uma boa vizinha. Nós vencemos, devemos ser misericordiosos. Transformaremos esta vitória numa paz duradoura, não numa batalha furtiva e numa desculpa para a selvajaria.

O homem fez uma vénia e partiu. Catarina voltou-se para o outro soldado.

– Podeis ir, e comei qualquer coisa – disse. – Podeis dizer a todos que ganhámos uma grande batalha e que voltaremos para as nossas casas, sabendo que viveremos em paz.

Encaminhou-se para a mesinha e puxou para si a caixa com os utensílios de escrita. A tinta estava guardada dentro de uma pequena garrafa de vidro, tapada com um rolha de cortiça, a pena, aparada para caber na pequena caixa. O papel e o lacre para selar à mão. Catarina colocou uma folha de papel à frente e hesitou. Escreveu uma saudação ao marido e disse-lhe que lhe estava a enviar o manto do falecido rei dos escoceses.

 

Deste modo, Vossa Graça poderá comprovar que cumpro as minhas promessas, enviando-vos, com o estandarte, o manto de um rei. Pensei em enviar-vos o rei, mas os nossos corações ingleses não o suportariam.

Faço uma pausa. Com esta grande vitória regresso a Londres, para descansar e preparar-me para o nascimento da criança, de que, tenho a certeza, estou à espera. Gostaria de dizer a Henrique que estou grávida; mas quero que seja o único a saber. Esta carta, como todas que lhe escrevo, será semipública. Ele nunca abre as cartas, tem sempre um escrivão para lhas abrir e ler e raras vezes escreve as respostas. Então, recordo-me de lhe ter dito que, se Nossa Senhora me abençoasse com outra criança, iria ao seu santuário de Walsingham, para lhe agradecer. Se se lembrar, pode servir como um código só nosso. Qualquer pessoa poderá ler-lhe a carta, mas irá perceber o que quero dizer, que lhe contei o segredo de que vamos ter um filho, talvez um rapaz. Sorrio e começo a escrever, com a certeza de que me vai entender e sabendo a alegria que esta carta lhe vai dar.

 

Vou terminar, pedindo a Deus que vos mande para casa dentro de pouco tempo, pois, sem isso, não pode haver alegria, e também rezo por ela, a caminho de Nossa Senhora de Walsingham, que há tanto tempo prometi visitar.

A vossa humilde esposa e fiel serva,

Catarina

Walsingham, Outono de 1513

 

Catarina estava de joelhos, no santuário de Nossa Senhora de Walsingham, com os olhos postos na estátua sorridente da Mãe de Cristo, mas sem ver nada.

Meu querido, meu querido, consegui. Enviei a Henrique o manto do rei escocês e fiz questão de enfatizar que é uma vitória dele, não minha. Mas é tua. É tua, porque quando vim para ti e para o teu país, com a cabeça cheia de receios dos mouros, foste tu que me ensinaste que, aqui, o perigo vinha dos escoceses. Depois, a vida ensinou-me uma lição mais dura, meu amor; é melhor perdoar a um inimigo do que destruí-lo. Se tivéssemos médicos, astrónomos e matemáticos mouros neste país, estaríamos muito melhor. Pode vir o tempo em que também precisaremos da coragem e dos conhecimentos dos escoceses. Pode ser que, com a minha proposta de paz, nos perdoem pela batalha de Flodden.

Já tenho o que sempre quis, excepto tu. Consegui, para este reino, uma vitória que o manterá seguro durante a próxima geração. Concebi uma criança, e tenho a certeza de que este bebé sobreviverá. Se for rapaz, dar-lhe-ei o nome de Artur, como tu. Se for uma menina, vou chamar-lhe Maria. Sou a rainha de Inglaterra, tenho o amor do povo e Henrique será um bom marido e um bom homem.

Sento-me nos calcanhares e fecho os olhos, para que as lágrimas não escorram pelo meu rosto. «A única coisa de que sinto falta é de ti; meu amado. Será sempre de ti. Sempre.»

– Vossa Graça, não vos sentis bem? – A voz calma da freira chama-me à realidade, e abro os olhos. As pernas estão entorpecidas, por ter estado tanto tempo de joelhos. – Não vos quisemos perturbar, mas já passaram algumas horas.

– Oh, sim – digo eu, tentando sorrir-lhe. – Já vou. Deixai-me só, agora.

Volto para o meu sonho com Artur, mas ele já lá não está.

– Espera por mim no jardim – murmuro-lhe. – Irei ter contigo. Irei um dia destes, em breve. No jardim, quando o meu trabalho aqui estiver concluído.


Blackfriars Hall O Legado Papal está reunido em tribunal para julgar o Importante Caso do Rei, Junho de 1529

As palavras têm peso, o que foi dito não pode ser retirado, o seu significado é como uma pedra que cai num lago; as ondas espalham-se e não se sabe em que margem se vão desfazer.

Eu afirmei uma vez: «Amo-te, sempre te amarei» a um jovem, durante a noite. Uma vez, disse: «Prometo.» Essa promessa, feita há vinte e sete anos para consolar um rapaz moribundo, para cumprir a vontade de Deus, para fazer a vontade à minha mãe e – para dizer a verdade – satisfazer a minha ambição, essa palavra regressa para mim, como pequenas ondas que vão à beira de uma taça de mármore e que, no refluxo, regressam ao centro.

Eu sabia que responderia pelas minhas mentiras perante Deus. Nunca pensei que tivesse de responder perante o mundo. Nunca pensei que o mundo me interrogasse por algo que prometera por amor, algo sussurrado em segredo. E, assim, nunca respondi por isso. Em vez de o fazer, mantive-me fiel a essa promessa.

Acredito que qualquer mulher na minha situação faria o mesmo.

A nova amante de Henrique, a filha de Isabel Bolena, minha dama de companhia, acabou por ser aquela que eu sabia que devia temer: a que tem uma ambição ainda maior do que a minha. Na verdade, é ainda mais insaciável do que o rei. A sua ambição é a maior que alguma vez observei num homem ou numa mulher. Ela não deseja Henrique como homem – vejo as amantes chegar e partir, e aprendi a lê-las como a um livro de histórias acessível. Esta não deseja o meu marido, quer o meu trono.

Tem tido muito trabalho para o conseguir, mas é persistente e determinada. Penso que percebi, a partir do momento em que lhe começou a dar ouvidos, a contar-lhe os segredos e a confiar nela, que ela havia, com o tempo, de descobrir o caminho – como uma doninha que sente o cheiro de sangue numa coelheira – até ao meu lugar. E que quando o encontrasse, faria um festim.

O arauto proclama «Catarina de Aragão, rainha de Inglaterra, apresentai-vos perante o tribunal!», e faz-se um enorme silêncio, pois não esperam resposta. Não há, ali, advogados à espera para me ajudarem e não tenho defesa preparada. Já tornei muito claro que não reconheço competência a este tribunal. Estão à espera de continuar sem mim. De facto, o arauto está prestes a chamar a próxima testemunha...

Mas eu respondo.

Os meus homens abrem, de par em par, as portas duplas do salão que conheço tão bem, e entro, de cabeça bem erguida, destemida como sempre fui, toda a vida. O dossel real, de ouro, está colocado no outro extremo do salão e o meu falso, mentiroso, traidor e infiel marido, com a sua imerecida coroa, sentado por baixo, no trono.

Num estrado, abaixo do dele, estão dois cardeais, sob um dossel em tecido de ouro, sentados em cadeiras douradas, com almofadas douradas. Wolsey, aquele escravo traidor, de rosto enrubescido, nas vestes vermelhas de cardeal, não me consegue olhar nos olhos, e é bom que não o faça; e aquele falso amigo, Campeggio. Os três rostos, o do rei e os dos procuradores, são espelhos da sua grande inquietação.

Pensavam que me perturbaram e confundiram tanto, separando-me dos meus amigos, destruindo-me, que não teria coragem para aparecer. Estavam convictos de que iria afundar-me no desespero, como a minha mãe, ou na loucura, como a minha irmã. Apostam no facto de me assustarem e ameaçarem, de me terem tirado a minha filha e de fazerem tudo o que podiam para me partir o coração. Nunca sonharam que teria a coragem de aparecer, altivamente, à sua frente, de ficar à frente deles, tremendo de honradez, de os enfrentar.

Loucos, esquecem-se de quem sou. Foram aconselhados pela tal Bolena, que nunca me viu de armadura, levados por ela, que nunca conheceu a minha mãe, que nunca viu o meu pai. Conhece-me como Catarina, a velha rainha de Inglaterra, devota, gorda, aborrecida. Não faz ideia de que, por dentro, continuo a ser Catarina, a jovem infanta de Espanha. Sou uma princesa, nascida e treinada para lutar. Sou uma mulher que lutou por tudo aquilo em que acredita, e continuarei a lutar e a acreditar e vencerei.

Não foram capazes de prever o que faria para me proteger, a mim e à herança da minha filha. Chama-se Maria, a minha Maria, o nome escolhido por Artur; a minha adorada filha, Maria. Alguma vez permitiria que fosse posta de parte, em favor de um bastardo concebido por essa tal Bolena?

Este é o seu primeiro erro.

Ignoro os cardeais. Ignoro os amanuenses, sentados em bancos, à sua frente e os escribas, com os longos rolos de pergaminho, escrevendo o relatório oficial desta mascarada. Ignoro o tribunal, a cidade, e até o povo, que sussurra o meu nome com carinho. Não olho para ninguém, a não ser para Henrique.

Conheço Henrique, conheço-o melhor do que qualquer pessoa no mundo. Conheço-o melhor do que a sua favorita alguma vez conhecerá, pois vi-o como rapaz e como homem. Observei-o quando era um rapaz, uma criança de dez anos, que veio ter comigo e tentou convencer-me a oferecer-lhe um cavalo da Barbária. Conheci-o nessa altura, quando era um rapaz que era conquistado com palavras meigas e com presentes. Vi-o através dos olhos do irmão, que dizia – acertadamente – que era uma criança demasiado mimada, tratada com demasiada indulgência e que, por esse motivo, seria um homem egoísta, um perigo para todos. Conheci-o quando era um adolescente e cheguei ao trono alimentando a sua vaidade. Eu era o melhor prémio que poderia desejar, e permiti que me conquistasse. Conheci-o como homem, vaidoso e ambicioso como um pavão, quando lhe cedi os créditos da minha guerra, a maior vitória alguma vez conseguida por Inglaterra.

A pedido de Artur, disse a maior mentira que uma mulher pode dizer, e hei-de repeti-la até ao túmulo. Sou uma infanta de Espanha, não faço promessas que não cumpro. Artur, o meu amado, pediu-me, no seu leito de morte, que fizesse um juramento, e eu fi-lo. Pediu-me para dizer que nunca fôramos amantes e ordenou-me que casasse com o irmão, e que fosse rainha. Fiz o que lhe prometi, fui fiel à minha promessa. Nada, em todos estes anos, abalou a minha fé de que é vontade de Deus que seja rainha de Inglaterra, e que o seja até morrer. Ninguém salvaria Inglaterra dos escoceses, a não ser eu – Henrique era demasiado jovem e inexperiente para comandar um exército em campo. Proporia um duelo, arriscaria qualquer esperança fugaz, perderia a batalha e morreria em Flodden, e a irmã, Margarida, seria rainha de Inglaterra em meu lugar.

Isso não aconteceu, porque não permiti. Era desejo da minha mãe e vontade de Deus que fosse rainha de Inglaterra, e hei-de ser rainha de Inglaterra até morrer.

Não me arrependo da mentira. Acreditei nela, e fiz com que todos acreditassem, apesar das dúvidas que tivessem. À medida que Henrique foi aprendendo mais sobre as mulheres, e me foi conhecendo melhor, percebeu, como, de certeza, percebera na nossa noite de núpcias, que era mentira, que não era virgem quando casei com ele. Mas, durante os vinte anos de casamento em que estivemos juntos, só uma vez teve coragem para me desafiar, logo no início; e entro no tribunal, convencida de que nunca terá coragem para me desafiar, nem agora.

Entro no tribunal, com o meu processo alicerçado sobre a sua fraqueza. Tenho a certeza de que, quando estiver à sua frente e for obrigado a olhar-me nos olhos, não se atreverá a afirmar que não era virgem quando casei com ele, que fora mulher de Artur e amante de Artur, antes de lhe pertencer. A sua vaidade não lhe permitirá dizer que eu amava Artur com uma paixão verdadeira e que ele me amava. Que, em verdade, viverei e morrerei como mulher e amante de Artur, e que, assim, o casamento de Henrique comigo pode ser dissolvido, de acordo com a lei.

Não me parece que possua a minha coragem. Acredito que, se conseguir manter-me firme e repetir mais uma vez a grande mentira, não se atreverá a levantar-se para anunciar a verdade.

«Catarina de Aragão, rainha de Inglaterra, apresentai-vos perante o tribunal!», repete o arauto, enquanto o eco das portas a bater atrás de mim se repercute pela sala do tribunal, que está em choque, e vêem que já estou lá dentro, de pé, diante do trono, como um valente lutador.

É a mim que chamam por este título. Foi esperança do meu marido, na hora da sua morte, desejo da minha mãe e vontade de Deus, que fosse rainha de Inglaterra e, por eles e pelo país, serei rainha de Inglaterra até morrer.

«Catarina de Aragão, rainha de Inglaterra, apresentai-vos perante o tribunal!»

Sou eu. Este é o meu momento. Este é o meu grito de batalha.

Dou um passo em frente.

 

 

                                                   Philippa Gregory         

 

 

 

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