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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CATIVA NO HÁREM / Anne e Serge Golon
CATIVA NO HÁREM / Anne e Serge Golon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

No final do século XVII, enquanto franceses e ingleses disputam o Ocidente, no Oriente o Império Otomano, o maior dos Estados muçulmanos, ainda é uma presença ameaçadora em torno do Mediterrâneo, embora já dê sinais de decadência. Sem o brilho alcançado no século anterior, com Solimào II, seus domínios mantêm-se no norte da Africa, entre os reinos da Tripolitânia íatual Líbia), Tunísia, Argélia e Marrocos, salvo enclaves cristãos como Malta e a espanhola Ceuta.

Nesses reinos berberes, de costumes considerados "bárbaros" pelos ocidentais, sustentados pela indústria da guerra e da pirataria, que lhes Fornecem o comércio de escravos, o sultão é a autoridade absoluta. Divino representante de Alá na Terra e guardião-mor da fé islâmica, detém o direito de vida e morte sobre seus súditos e sua autoridade é garantida pela terrível guarda de elite dos janízaros. Numa das alas de seu palácio, o sultão mantém um harém particular, onde centenas de mulheres, escolhidas entre as mais belas do mundo, estão a sua espera, guardadas por eunucos e disputando entre si a honra de ser a favorita.

O que Angélica, grande dama da França, faz ali, entre lúbricos e fanáticos? Valerá o sonho de um amor a degradação num dos locais mais deserdados da Terra?

"Se for dócil e agradar ao sultão", promete o Grão-Eunuco marroquino, "você terá tudo que uma mulher pode desejar: poder, volúpia, riqueza..."

Como uma imensa serpente, a caravana estirava-se pelo deserto marroquino, ondulando- através da paisagem avermelhada, sob um céu azul-escuro. Acomodada no dorso de um camelo, Angélica seguia desolada. Cair prisioneira, quando se julgava tão próxima de encontrar seu grande amor, o Conde Joffrey de Peyrac, era desgraça demais!

O que seria de^ nas mãos de cruéis muçulmanos, separada do mundo, encerrada num harém como uma odalisca, uma oferenda à voluptuosidade de um déspota impiedoso?

Diante do pressentimento da ruína total, a intuição da presença próxima do conde, que durante alguns dias sentira como uma certeza, não passava de um engodo. Ela se deixara capturar por "nada"! Atirara-se de cabeça ao destino absurdo e dramático, com frequência reservado aos imprudentes.

Iria render-se? A mulher que enlouquecera o Terror do Mediterrâneo; que sensibilizara o grão-mestre da Ordem de Malta; que escapara ao invencível Rescator; que insultara o sanguinário pirata Mezzo Morte; enfim, a primeira mulher que enganara o infalível Grão-Eunuco do sultão do Marrocos?

Por que, afinal de contas, não seria também a única escrava do mundo a conseguir fugir de um harém?

Informada na ilha de Malta sobre o paradeiro de seu marido por um muçulmano que se apresentara como Mohammed Raki, antigo criado do Conde Joffrey de Peyrac, Angélica partira na primeira galera maltesa que zarpava na direção do Bône,' enclave espanhol no norte da África. Emboscada, no entanto, a embarcação na ilha de Cam por piratas berberes a serviço do sanguinário Mezzo Morte, a Marquesa dos Anjos fora levada prisioneira para Argel, último reduto da pirataria barbaresca no Mediterrâneo. Com ela foram capturados seu criado e fiel amigo, o velho Savary, e os cavaleiros de Malta, destinados ao suplício: o-Barão de Nesselhood, comandante da galera, a quem Mezzo Morte jurara mandar esquartejar no mar, e Henrique de Roguier, seu imediato.

 

 

 

 

O GRAO-EUNUCO

CAPÍTULO I

Amanhecer em Argel, a Branca

Argel, a Branca, desperta. O sol doura as duas velhas torres espanholas, vestígios da ocupação ibérica, que no século XVI teve de ceder lugar ao turco asiático. A luz atinge a ponta dos minaretes de um verde ou de^um cinza muito suaveSj altos minaretes quadrangulares, ossudos e obstinados, que não se assemelham aos enormes círios do Oriente. Sali Hassan, paxá da Sublime Porta, pensa mais uma vez que não gosta daqueles minaretes de Argel. São a imagens dos argelinos angulosos, sempre à beira da dissidência, e mais ainda daqueles rases renegados, que trazem para a ociosidade, cara aos orientais, o ardor, a atividade, a avidez pelo ganho dos cristãos e das raças setentrionais. Malditos sejam Endj'Ali, o calabrês, Ali Bitchin, o veneziano, Uver, o flamengo, Solimã, o francês, Simon Dantsat e Eric Jansen, dinamarqueses, Sanson e Edward, ingleses, e, o pior de todos, Mezzo Morte, também natural da Calábria, na Itália. Foram eles, os renegados, que fizeram de indolentes muçulmanos as águias marítimas rapaces e infatigáveis e que transmitiram o vírus da pirataria aos janízaros. Pouco faltara, no ano anterior, para que Sali Hassan, paxá de Argel, fosse assassinado pelas suas próprias tropas, porque as encorajara a contentar-se com seu soldo. Fora preciso ceder e deixá-los embarcar como voluntários para arriscar a sorte.

O Paxá Sali Hassan, delegado do grande divã turco naquela fortaleza selvagem de Argel, consola-se dizendo a si mesmo que também toram eles, os renegados, que fizeram de Argel o grande centro de piratas dos mares. E um oitavo das riquezas capturadas não cabe, por direito, ao paxá? Ele comprara seu paxalik, seu cargo, por meio de custosos presentes. Precisa reembolsar-se e fazer fortuna no curto período de três anos que lhe fora concedido. Se não for assassinado ou envenenado daqui até lá, retornará a Constantinopla e a seu luxo indolente. Mezzo Morte tem toda a razão de incessantemente armar os rases, encorajá-los, treinar-lhes as tropas e os marinheiros. A cidade vive apenas deles e por eles. Em Argel não existe indústria nem comércio. Se a pirataria terminasse, a população literalmente morreria de fome. O paxá, privado da mais importante de suas rendas, não poderia sequer pagar o soldo mensal dos janízaros; o motim rebentaria e culminaria com o assassinato do vice-rei soberano e de seus conselheiros, a derrubada do divã. A manutenção da ordem e a existência de uma população de cem mil almas dependem da pirataria, desde a subsistência do mais miserável felá até a do chefe supremo do Estado. Para isso é preciso capturar de novo, capturar sempre. O dia que se levanta trará ao porto outros navios vitoriosos?

O paxá Sali Hassan lambe os beiços ao pensar no grande galeão de Nápoles que Mezzo Morte capturou na semana anterior. Carregado de trigo, de dez mil caixas de brocatel, setenta e seis canhões, dez mil balas e cento e trinta cativos, dentre os quais inúmeros de qualidade, que vão render resgates enormes. Mas essa boa fortuna não acontece todos os dias. Em todo caso, sempre se pode esperar por ela. É a sutil atração da pirataria, a sorte, o lance de dados.

O paxá instala-se diante da janela de seu palácio, que domina o mar. E, enquanto seus pajens se põem a enrolar à volta de sua augusta cabeça alnas e alnas de musselina verde, ele pede sua luneta marítima, de ébano e ouro, e espreita o horizonte.

O sol desceu da ponta dos minaretes, onde os muezins entoam a prece matinal até os telhados chatos que se dispõem em prateleiras, de terraço em terraço. Vêem-se ali, então, suaves formas brancas a espreguiçar-se. As mulheres dormiam ali, expulsas de seus apartamentos pelo calor sufocante. Deitaram-se de face para as estrelas, ouvindo com curiosidade os rumores da cidade e os do mar, o latido dos cães magros e os gritos das rixas que vêm da prisão de escravos cristãos. Agora é dia. Os vigilantes eunucos apressam suas administradas para que voltem ao redil, ou seja, que retornem às profundezas gradeadas e sombreadas do harém, no interior das ricas moradias dos cidadãos de Argel.

Essas habitações agrupam-se perto do mar, na parte ocidental da cidade. É o bairro da Marinha, feudo da poderosa corporação de rases, a taífe, que o paxá residente de Constantinopla examina não sem inquietação do alto da colina. Ali vivem o almirante de Argel e os grandes rases, aqueles que ainda saem para o mar e aqueles que se aposentaram, depois de feita a fortuna. Têm como vizinhos e vassalos suas tripulações e também toda aquela população que vive do mar: cordoeiros, construtores de navios, fabricantes de alcatrão e de breu, mercadores de biscoitos e peixes salgados e, um pouco adiante, os mercadores de escravos e aqueles que traficam com as cargas apreendidas, e os judeus, trocadores de dinheiro, acocorados à turca diante de suas mesinhas sobre as quais têm paras, piastras, patacões, escudos de ouro empilhados.

Um raio de luz infiítrou-se pelas estreitas aberturas da senzala do paxá, ou de Ali-Rami, ou de Corlourlis, ou do Beilik, atrás da caserna dos janízaros,ou de Ali Arabadji, perto da mesquita. Sobre esteiras de junco ou leitos de madeira grosseira, os escravos acordam. Sonharam com o céu cinzento da Inglaterra ou da Normandia, com a terra vermelha espanhola, com as oliveiras da Itália. Abrem os olhos e vêem o cómodo frio e nu da senzala. De início todos o?escràvos eram trancafiados na construção isolada reservada ao banho; mais tarde, porém, como os particulares não possuíam um banheiro suficientemente grande para abrigar suas centenas de escravos, construíram-se cómodos especiais. Ficou o nome: bagne, em francês, de bano, em espanhol. O interior da senzala, ou bagne, parece-se com o de todas as casas de Argel: um pátio interno cercado de uma galeria sobre a qual há um andar. Os quartos são divididos por tabiques, e cada quarto pode abrigar de quinze a vinte pessoas. Nenhuma mobília além das esteiras e das camas fabricadas pelos próprios cativos, algumas escudelas e jarros de terracota destinados a guardar água e a preparar os alimentos. O patrão ocupa-se pouco da nutrição do escravo, que tem duas horas por dia para encontrar o que comer.

O bachi apressa os escravos a partir para- o trabalho. Esse útil funcionário geralmente é um renegado que fala todas as línguas. O cargo é muito procurado, pois é lucrativo e pouco fatigante. Alguns auxiliares o assistem. Seu papel limita-se à manutenção de certa ordem dentro da senzala, a exigir que os quartos e as galerias sejam limpos e caiados uma vez por semana e a certificar-se de que todos os cativos voltaram na hora do toque de recolher. E também ele quem, no momento de se formarem as equipes de pirataria, divide os forçados em pelotões e designa a cada um o lugar que deverá ocupar a bordo, com bogavant, postice ou tercerol. Vai inspecioná-los cuidadosamente para verificar se nenhum deles contraiu alguma doença contagiosa, e antes da partida faz que se lavem e raspem completamente. Ao mesmo tempo distribui-lhes cinco alnas de pano para que fabriquem uma calça e uma camisa de galera: é a única ocasião em que o patrão se digna ocupar-se do vestuário de seus escravos.

Nas senzalas de Argel, encontra-se de tudo: o italiano delicado e astuto ao lado do moscovita brutal e duro; o espanhol altivo e vingativo despreza o inglês, que se deixa facilmente dominar pela melancolia; católicos, luteranos, calvinistas, puritanos, cismáticos e nicolaítas, todas as proliferações da árvore cristã reúnem-se ali; príncipes e criados, militares e mercadores; e as boinas de lã e as calças alcatroadas e amarrotadas misturam-se às sotainas e aos buréis, aos boleros bordados e aos trajes multicoloridos da Itália ou da Albânia.

A claridade do dia penetra cada vez mais no coração da cidade. Ronda perto da Porta Bah-Azum e descobre um alto muro. Ao longo desse muro estão afixados enormes ganchos em forma de anzol, com a ponta voltada para cima. E o muro de suplício favorito dos argelinos. Do alto da muralha a vítima é atirada sobre esses ganchos, que a trespassam ao acaso, numa parte qualquer do corpo. Nesta manhã clara, dois corgos agonizam, suspensos pelas axilas e com o ventre atravessado. E a terceira manhã que derrama sobre eles o ardor do sol e lhes traz o lento volteio das gaivotas vorazes e gritadoras que já lhes vazaram os olhos.

CAPITULO II

A velha escrava, Mireille, a Provençal

Para as galeras que vinham de alto-mar, houve de início um silêncio súbito. Só se ouvia o ruído da roda de proa numa água que pouco a pouco se acalmava.

Angélica esticou o pescoço adormecido. Viuque o Barão de Nes-selhood tinha o rosto virado para a popa.

- Argel - murmurou ele.

E de repente começaram a ouvir a cidade, que lhes enviava seu bulício sussuriginte, sua voz feita de mil vozes.

Entre dois molhes alinhados de torres, ela apareceu, branca, árida.

A galera capitânia penetrou no porto, arrastando atrás de si, sobre as ondas, a bandeira da Ordem de São João de Jerusalém.

O pavilhão de lamé dourado do Rás Ali Hadji, no topo do mastro, juntava-se às múltiplas bandeirolas que esvoaçavam ao vento. O estandarte vermelho com a cabeça branca e o pavilhão verde com crescentes estavam desfraldados. A primeira galera disparou um tiro de canhão, ao qual responderam os canhões dós fortes de Argel. A multidão reuniu-se no cais, soltando agudos gritos de alegria.

Os cativos foram desembarcados, os dois cavaleiros de Malta na frente, em suas cotas de malha vermelha, de combate, depois os marinheiros e os soldados, por último os passageiros. Angélica foi isolada do grupo por janízaros em armas.

Os outros, acorrentados dois a dois e escoltados pela triunfante tripulação de bárbaros, foram empurrados pela rampa da Marinha e encaminhados para o jemina, a residência do paxá, a quem deviam ser apresentados antes de mais nada, a fim de que ele pudesse fazer suas escolhas.

A multidão continuava a pressiona-los de todos os lados. Um clamor agudo, lancinante, irrompia daquela massa de espectros brancos com rostos ocres em que giravam olhos terríveis. Misturavam-se a eles rostos pálidos de escravos cristãos, barbudos e esfarrapados, que berravam em todas as línguas. Gritavam o próprio nome com a esperança de que na nova tripulação capturada houvesse compatriotas que lhes pudessem dar notícias da família.

— Sou João Paraguz, de Collioure... Conhecem minha gente?

— Sou Roberto Toutain, de Sete...

Os janízaros turcos, de pálpebras pesadas e sbakos emplumados, brandiam chicotes de nervo de boi cujos golpes caíam ao acaso, enquanto sobre Argel, a Barbaresca, o sol da Africa terminava de estender sua tenda de seda dourada.

Assim que chegaram ao batistan, Angélica foi conduzida ao andar superior, a um pequeno cómodo escuro, branqueado a cal. Encolheu-se num canto, ouvindo os ruídos enlouquecidos que vinham de fora.

Pouco depois, a cortina ergueu-se e surgiu uma velha muçulmana, morena e enrugada como uma nêspera.

-        Meu nome é Fátima - disse, com um belo e simpático sorriso -, mas os cativos me chamam de Mireille, a Provençal.

Trazia dois pães de mel, água avinagrada e levemente açucarada e um pedaço de renda para que Angélica cobrisse o rosto e não se queimasse. Precaução que chegava um pouco tarde. Angélica sentía-se cozida pelo sol, e a sensação de queimadura ardia-lhe na testa. Também queria lavar-se. Seu vestido estava todo salpicado de água salgada e de alcatrão derretido das pranchas do convés.

-        Eu a levarei aos banhos depois da venda dos outros escravos - disse a velha. - E preciso aguardar um pouco, pois isso não pode acontecer antes da prece de Ed Dohor.

Ela íalava franco, a mistura de espanhol, italiano, francês, turco e árabe que falavam os escravos.

Mas pouco a pouco o francês, que fora sua língua materna, voltou-lhe. Contou que nascera perto de Aix-en-Provence. Aos dezesseis anos começara a trabalhar para uma grande dama marselhesa. Fora enquanto acompanhava essa dama, que ia ao encontro do marido em Nápoles, que Fátima caíra nas mãos dos berberes. Criadinha sem atrativos, fora vendida por alguns cequins a um muçulmano pobre, enquanto a grande dama era guardada para um harém principesco.

Mireille-Fátima, velha e viúva agora, ganhava algumas piastras indo ao batistan ocupar-se das novas cativas. Os mercadores, preocupados em expor uma mercadoria atraente, solicitavam-lhe os serviços. Ela lavava, penteava, reconfortava as infelizes, com frequência indispostas por causa de uma travessia mèHonha e pelo terror de sua nova condição. 

-        Como estou orgulhosa - exclamou - por ter sido designada para me ocupar de você! E a francesa que o pirata Rescator comprou por trinta e cinco mil piastras e que logo fugiu. Mezzo Morte havia jurado que a capturaria antes que seu rival lhe colocasse a mão em cima de novo.

Angélica olhou-a, horrorizada.

— Não é possível - gaguejou. - Como Mezzo Morte podia saber onde eu estava?

— Oh, ele sabe tudo! Tem, espiões em toda a parte. Com Osman Ferradji, o grãq-eunuco do sultão do Marrocos, que veio à costa procurar mulheres brancas, eles fretaram uma expedição para capturá-la.

— Mas por quê?

— Porque você tem a reputação de ser a mais bela cativa branca do Mediterrâneo.

— Oh, quisera ser horrível! - exclamou Angélica, torcendo as mãos. - Disforme, assustadora, uma megera...

— Como eu - disse a velha provençal. - Quando me capturaram, eu só tinha a meu favor os meus dezoito anos e um peito grande. Mancava um pouco. Aquele que me comprou, meu marido, era um bravo artesão, um ceramista, que foi pobre a vida toda e nunca teve com que pagar uma concubina. Trabalhei como uma mula, mas preferia assim. Nós, as cristãs, não gostamos de compartilhar nossos bens.

Angélica passou a mão sobre a testa dolorida.

— Não entendo. Como puderam armar essa cilada?

— Ouvi dizer que Mezzo Morte enviou a você, em Malta, seu conselheiro favorito, Amar-Abbas, a fim de convencê-la a embarcar para um porto onde a pudessem surpreender.

Angélica balançou a cabeça, com medo de compreender.

-        Não... Não recebi ninguém.... Apenas um antigo criado de meu marido, chamado Mohammed Raki...

— Era ele, Amar-Abbas.

— Não, impossível!

— O homem que você recebeu não era um berbere, com uma barbinha descorada?...

Angélica foi incapaz de articular uma palavra.

-        Espere - continuou a velha escrava -, tenho uma ideia. Há pouco vi Amar-Abbas conversando na praça interior do batistan com o Paxá Sadi Hassan. Vou ver se ainda está lá e mostro-o a você.

Voltou alguns instantes depois, trazendo um grande véu nos braços.

-Envolva-se nisto. Cubra o rosto. Mostre apenas os olhos.

Guiou-a pela galeria coberta que dava a volta no andar. Dali olharam o pátio quadrado do batistan.

A venda iniciara-se. Os novos escravos estavam nus. Os corpos pálidos e peludos de europeus amontoados destacavam-se da reunião de djellabas brancas, cafetãs alaranjados, rosa-velho ou verde-nilo, turbantes creme que emolduravam as medalhas de bronze dos rostos mouriscos^ e amplas abóboras de musselina sobre o rosto moreno dos turcos. A direita, viam-se sentados em almofadas sun-tuosas os chefes da milícia dos chauchs e da taífe, e também todos os antigos corsários mouros ou renegados enriquecidos por expedições felizes e que agora gozavam de sua fortuna em seus haréns incessantemente renovados por novas cativas, em suas casas de campo onde centenas de escravos plantavam oliveiras, laranjeiras e loureiros-rosa.

Rodeado de negrinhos que o abanavam languidamente com grandes leques de cabo comprido, um dos favoritos do paxá, seu ulík, ou encarregado de negócios, tomara assento. Com os grandes burgueses e os oficiais da taífé, representava os senhores do mercado.

-        Olhe - disse a velha Mireille -, o homem ao lado dele e que fala...

Angélica inclinou-se e reconheceu Mohammed Raki.

— E ele - disse.

— Sim, é Amar-Abbas, o conselheiro de Mezzo Morte.

— Não, não - gritou Angélica, desesperada -, ele me mostrou o topázio e a carta!

Permaneceu prostrada o dia inteiro, tentando entender o que acontecera. Savary não tivera razão de desconfiar do mensageiro berbere? Onde estava Savary? Ela não pensara em procurá-lo entre a massa miserável de escravos à venda. Sabia apenas que não distinguira os dois cavaleiros.

Pouco a pouco os rumores do batistan se acalmaram. Os compradores haviam partido para casa, levando consigo os novos escravos. O banqueiro holandês aprenderia esta noite a girar a nora do poço no pátio de algum felá?...

A noite caía sobre Argel, a Branca.

No silêncio noturno do Islã, apenas um lugar continuou vermelho, ruidoso, sonoro. Ouviam-se seus clamores até no batistan.

Fátima-Mireille deitara-se em sua esteira, junto ao divã onde Angélica tentava conciliar o sono. Ergueu a cabeça enrugada e disse:

- É a Taberna da Senzala.

Para acalentar a prisioneira, falou-lhe longamente daquele lugar único, a Taberna da Senzala de Argel, onde o vinho e a aguardente corriam livremente. Ali os escravos iam trocar o que haviam roubado por uma pequena porção de comida; ali os doentes ou feridos iam se tratar.

E, quando, ao alvorecer, os candeeiros de óleo começavam a fumegar e a faiscar, era ali que se ouviam as mais belas histórias do mundo. Os dinamarqueses e os hamburgueses cantavam da pesca à baleia, na Groenlândia, em que época o sol aparece na Islândia e quando termina a noite de seis meses; os holandeses falavam das índias Orientais, do Japão e da China; os espanhóis sonhavam com as delícias do México e com as riquezas do Peru; e os franceses descreviam a Terra Nova, o Canadá ou a Virgínia. Pois quase todos os escravos são marujos.

CAPITULO III

A gargalhada de Mezzo Morte

No dia seguinte fizeram Angélica sair de novo e levaram-na ao molhe de embarque. Ela se viu diante do rás-bachi, Ali Hadji, rodeado de uma nuvem de rapazinhos vestidos apenas com uma tanga de seda amarela, em cujo nó havia uma faca enfiada. Na cabeça tinham todos um turbante da mesma cor. A maioria eram mouros ou negros, mas alguns deviam a pele morena apenas ao sol e um, no rosto cor de pão dourado, exibia olhos azuis de nórdico.

Pareceram examinar a cativa com um ar onde o desprezo disputava com a arrogância e um ódio gelado. Ela teve a impressão de estar cercada de filhotes de leão, ou melhor, de jovens tigres ferozes, ao lado de quem o corsário árabe, na força da idade, parecia ameno e simpático.

Ao pé do molhe, um caíque balançava. Dez forçados acorrentados, louros e ruivos, russos sem dúvida, seguravam os remos, e um chauch turco com um grande chicote na mão esperava, impassível, cruzando os braços fortes e musculosos. Um dos garotos pulou com volteio para a popa e tomou o leme.

Angélica instalou-se sob os olhares insolentes dos meninos armados de faca, que se empoleiravam como alcatrazes na borda.

Aonde ia aquele caíque? Não para o cais. Dirigiu-se para o largo, contornou o molhe, depois disparou à força de todos os remos para fora de Argel, rumo a um promontório montanhoso. De lá ouviam-se tiros surdos de mosquetes, aos quais respondiam os estalidos mais nasalados de pistolas.

- Aonde vamos? - perguntou ela.

Ninguém respondeu. Um dos rapazes cuspiu em sua direção, sem atingi-la, e zombou abertamente quando o rás lhe dirigiu uma observação ameaçadora. Aqueles garotos não pareciam temer ninguém. Ouviu-se o estampido de alguns tiros de fuzil, ricocheteando nas ondas.

Angélica fez um gesto nervoso e examinou um a um os ocupantes do caíque. O rás-bachi sequer estrefnecera;"mas, vendo o olhar interrogativo de sua cativa, sua boca estirou-se num sorriso suave e ele fez um gesto solícito, como se a convidasse a assistir a um espetáculo especial.

Dois grupos apareceram à volta do promontório. Um falucho de dois mastros, tripulado por cristãos barbudos, armados de sabres e fuzis, e um enxame de jovens nadadores de turbante amarelo, que se haviam atirado de alguns barcos muito afastados, chegaram ao falucho a nado e tentavam abordá-lo. Mergulhavam, passando por sob o barco, para reaparecerem num local menos defendido, subiam como macacos, cortavam os cordames e lutavam de mãos nuas contra os escravos, esquivando-se aos golpes dados com a parte chata do sabre, para finalmente acabarem numa luta corpo a corpo.

Do alto do tombadilho, um homem em djellaba curta e um turbante amarelo na cabeça, ladeado por dois pajens muito coloridos, acompanhava com atenção o combate simulado, que ele dirigia. De vez em quando pegava o alto-falante e vomitava uma enxurrada de injúrias em árabe, franco e italiano, destinada aos cadetes desajeitados que se deixavam lançar na água ou aos que, feridos e exaustos, hesitavam em voltar ao ataque.

A escolta de jovens leões do caíque entrou em transe à vista do combate. Com pressa de voltar a participar do exercício, pularam como uma nuvem de rãs e nadaram rapidamente para o navio. Os remadores, distraídos com o espetáculo, diminuíram o ritmo. Uma chicotada chamou-os de volta à ordem. O caíque saltou para a frente e aproximou-se da popa do navio.

- Eu sou Mezzo Morte - disse o homem num francês com forte sotaque italiano.

Inflou o torso sob a djellaba de cetim vermelho, que o fazia parecer um burguês medieval. As longas babuchas de couro gravado em ouro e prata completavam a semelhança. Era-bem gordo, e as inúmeras jóias que lhe cobriam as mãos, os diamantes que cintilavam sob seu turbante não lhe ocultavam as origens. Vindo de muito baixo, adivinhava-se sob os trajes de príncipe das Mil e uma noites o pobre pescador calabrês, rústico, esfomeado, ávido, que fora na juventude.

Mas os olhos eram negros, perspicazes, com uma chama de ironia mordaz. De seu tempo de pescador calabrês pobre, conservava uma pequena argola de ouro na orelha. Angélica lembrou-se a tempo de que tinha a sua frente o grande almirante de Argel, chefe da taí/e e da frota corsária mais temida do Mediterrâneo. Ele podia ditar ordens ao paxá, e a cidade inteira dependia dele. Ela esboçou uma reverência, o que pareceu encher de prazer a eminente personagem. Examinou-a com um ar de profunda satisfação e, dirigindo-se ao Rás Ali Hadji, falou-lhe prolixamente. Angélica adivinhou pela mímica e pelas poucas palavras árabes que entendia que ele o cumprimentava por haver realizado tão perfeitamente a missão. Ela se sentia angustiada, pois aquelas piscadelas de cumplicidade lhe pareciam mais carregadas de ameaças do que o olhar de conhecedor com que um mercador de escravos julga uma cativa nova.

-       Almirante - disse ela, dando-lhe o título que a própria cristandade lhe reconhecia -, teria a bondade de tranqiiilizar-me acerca de meu destino? Considere que não tentei enganar sua gente com um nome de empréstimo nem ocultar-lhe que possuo uma fortuna na França e que realizei esta viagem para encontrar meu marido, que reside em Bône e poderá responsabilizar-se por meu resgate.

Mezzo Morte a ouviu meneando a cabeça afirmativamente. Seus olhos se pregueavam cada vez mais, e Angélica ficou espantada de vê-lo engasgar e sufocar num acesso de riso silencioso.

-        É muito justo, senhora - disse ele, recobrando o fôlego. - E uma grande satisfação para mim saber que nos bastará ir até Bône para as conversações acerca de seu resgate. Mas está bem certa do que afirma?

Angélica afirmou com energia que não mentia e que de todo modo não teria nenhuma vantagem com isso. Se duvidavam dela, podiam interrogar o muçulmano Mohammed Raki, que estava com ela na galera de Malta. Era um mensageiro que seu marido enviara de Bône.

-        Sei, sei - resmungou Mezzo Morte, enquanto o terrível clarão irónico de seu olhar assumia uma intensidade quase cruel.

Conheceria meu marido? - perguntou Angélica. - No Islã ele tomou o nome de Jeffa-al-Khaldun.

O renegado sacudiu a cabeça num gesto que não significava nem sim nem não. Depois rebentou de rir novamente. Seus dois pajens, cobertos de seda verde-pistácio e framboesa, fizeram coro. Ele atirou-lhes uma ordem lacónica. Os. dos rapazinhos correram para trazer uma caixinha cheia de rabat-lukum. Mezzo Morte encheu a boca e depois, com um rosto impenetrável, voltou a observar o combate, que continuava a desenrolar-se no convés, sempre mascando doces. Era um capricho que ele compartilhava com seu colega de frente, o grande almirante da frota francesa, o Duque de Vivonne.

-        Almirante - insistiu Angélica, cheia de esperança -, suplico-lhe, diga-me a verdade! Conhece meu marido?.

Mezzo Morte cravou-lhe seu olhar negro.

-        Não! - disse brutalmente. - E não me fale nesse tom! Você é uma cativa, não esqueça! Nós a encontramos numa galera de Malta, a pior nação inimigado Islã, é comandada por meu pior inimi

go, o Barão de Nesselhoód, que me afundou mil e cinquenta barcos, trinta e uma galeras, onze vasos, onze mil tripulantes, e libertou quinze mil cativos. Mas este é um belo dia para inim. Com uma cajadada matamos dois coelhos. E assim que se diz em francês, suponho.

Apesar do forte sotaque, seu francês era rico e fluente. Ela encontrava dificuldade em acompanhá-lo.

Protestou com veemência que se se encontrava em Malta era porque fora recolhida por uma galera da Religião no momento em que estava prestes a naufragar num barco infeliz que vinha de Cândia.

— Vinha de Cândia? O que fazia lá?

— Mais ou menos o mesmo que aqui - disse Angélica, amarga. - Fui capturada por um pirata cristão e vendida como escrava. Mas consegui fugir - concluiu, encarando-o, desafiadora.

— Então é mesmo você a escrava francesa que o Rescator adquiriu pelo extravagante preço de duas galeras e que lhe fugiu na mesma noite?

— Sim, sou eu mesma.

Bruscamente um riso homérico agitou Mezzo Morte. Ele saltitava e se dava palmadas nas coxas, acompanhado nessa dança exuberante pelos dois garotos que soltavam gritos agudos.

Acalmando-se um pouco, perguntou como ela fizera para escapar ao Mago do Mediterrâneo.

— Pus fogo no porto - respondeu Angélica, quase sem exagero.

— Então é verdade esse incêndio de que todos se lamentam? Os olhos de Mezzo Morte cintilavam de uma alegria interior

dificilmente contida. Perguntou ainda se era exato que o Rescator a "roubara" ao sultão de Constantinopla e à Ordem de Malta, a qual levara os lances até vinte e cinco mil piastras.

— E por que não ficou para degustar as delícias desse maldito mago? Ele não acabava de provar-lhe que a cobriria de riquezas?

— Não corro atrás de riquezas - respondeu Angélica. - Não me lancei ao Mediterrâneo para brincar de odalisca com piratas cristãos ou muçulmanos, mas para encontrar meu marido, de quem estou separada há dez anos e que durante muito tempo acreditei morto.

Mezzo Morte torceu-se de rir novamente, e Angélica sehtiu-se invadida de raiva. Aquele homem era louco? Ou era ela quem estava ficando?

O renegado não se acalmava: chorava de rir. De vez em quando sua hilaridade se acalmava, depois ele parecia lembrar-se de um detalhe particularmente cómico do que acabara de ouvir e recomeçava a gargalhar.

-        E a mesma - arquejou ele -, está ouvindo, Ali Hadji, é a mesma!

O rás árabe, embora com mais discrição, também ria.

Angélica, com paciência, repetiu o que já dissera e que poderia, esperava ela, reconduzi-los à razão: tinha dinheiro, poderia mandar vir dinheiro da França para pagar o resgate. Mezzo Morte seria largamente compensado pelos gastos com a expedição de emboscada organizada por ele na ilha de Cam...

O riso do italiano cessou de repente, sua voz se fez incisiva.

-        Pois julga que foi uma cilada?

Angélica fez um sinal afirmativo. Mezzo Morte levantou o dedo e disse que, em sua longa carreira de marinheiro e captor, ela era a única mulher que ele encontrara com um julgamento seguro e que o conservava apesar da perturbação do cativeiro.

-        E bem a mesma, Ali Hadji. A francesa que enlouqueceu aquele idiota do D'Escrainvílle, que ao que parece não conseguiu nada com ela, e por quem o Rescator pagou um preço que jamais se viu pagar por uma escrava, e para perdê-la em seguida... porque ela ateou fogo ao porto. Ah, ah, ah!

Observou Angélica com acuidade, detalhando-lhe a silhueta no vestido gasto, o rosto avermelhado pelo sol, os cabelos que ela não pudera pentear e que o vento embaraçava. Ela sustentou-lhe o olhar com firmeza. Mezzó Morte era um rústico, mas recebera um dom do céu, junto com um infalível faro de marinheiro: o de sentir os seres - coisa que bem rapidamente o levara a dominá-los. A lamentável aparência da cativa não o' enganou. Seus olhos de bandido calabrês puseram-se a brilhar como azeviche e um ricto feroz e sardónico descobriu-lhe os dentes brancos.

-        Agora compreendo - disse a meia voz. - É bem a mesma, Ali Hadji, a mesma mulher da carta, e a que ele comprou em Cândia. De fato, é ótimo, é inesperado! Agora eu o tenho, ao Rescator, agora ele terá que se humilhar, se curvar. Encontrei a falha na couraça, a de todos os imbecis: a mulher. Ah, ele nos dominava! Ah, ele se divertia-em nos desorganizar o tráfico de escravos! Ah, ele já se imaginava q~patrão,'com sua prata inesgotável! Semele, eu já seria grande almirante do -sultão, mas sei que ele me difamou junto ao Grão-Senhor. Ele deslizava'por toda a parte, e do Marrocos a Constantmopla, com as mãos cheias de ouro e prata, tinha apenas aliados. Mas agora o reduzirei à minha mercê. Terá de deixar o Mediterrâneo, ouviu, Ali Hadji? Ele deixará o Mediterrâneo e jamais voltará!

Estendeu os braços como que em êxtase.

— E então eu serei o patrão! Terei vencido meu pior inimigo, o Rescator... Meu pior inimigo.

— Tem muitos "piores inimigos", ao que me parece - disse Angélica, não podendo dissimular a ironia.

O tom ferino cortou de imediato o delírio do renegado.

-        Sim, muitos, de fato - lançou ele, glacial -, e logo verá como os trato. Per Bacco, começo a entender como foi que por pouco você não enlouqueceu aquele pobre D'Escrainville, que já não tem a cabeça muito sólida. Sente-se.

Angélica mais se deixou cair do que sentou no colchão de veludo verde que ele apontava. Já não via com clareza. O almirante de Argel acocorou-se à turca junto dela e,"pégando a caixinha de rabat-lukum, estendeu-lhe. Em seu estado de fraqueza e inanição, Angélica recebeu com alegria as guloseimas à base de algas que em Cândia lhe haviam desagradado muito. Avançou a mão, mas

logo a retirou, sentindo uma dor forte. Quatro longos arranhões em sua pele sangravam. As unhas vermelhas de um dos meninos do almirante a haviam ferido com crueldade. O incidente devolveu o bom humor a Mezzo Morte.

-        Ah! Ah! Os cordeirinhos - disse ele, com um riso untuoso.

- Você provocou o ciúme deles. Não estão habituados a me ver tão interessado por uma mulher, a ponto de compartilhar com ela os doces que lhes são reservados. E verdade que a coisa é inabitual. Nada de mulheres! É o princípio que faz a potência dos grandes chefes e dos grandes eunucos. A mulher á a desordem, a fraqueza, as ideias perturbadas, a cabeça virada e finalmente a causa das maiores tolices que pode cometer um homem que, não fosse isso, teria tudo para triunfar. Mas o método dos eunucos para se preservar desse perigo me parece radical demais. Tenho outros gostos.

Riu novamente, acariciou a cabeça encaracolada de seu feroz favorito, um jovem negro maquilado até os olhos. O outro favorito, também maquilado, era um branco de olhos negros. Certamente um espanholzinho. Aquelas crianças capturadas nas costas mediterrâneas estavam destinadas a tornar-se renegadas, voluntariamente ou à força. Utilizando ora carícias, ora ameaças, seu amo acabava sempre por obter-lhes a adesão, pois esse consentimento era uma necessidade: ninguém podia ser circuncidado antes de pronunciar a fórmula sacramental: "Não há Deus senão Alá, e Maomé é o seu profeta". Depois disso os novos crentes podiam tornar-se os Narcisos e os Palas dos grandes rases e dos paxás.

-        As crianças são fanáticas. Pode-se contar com elas de corpo e alma. Se eu lhes desse a ordem, meus meninos a despedaçariam como lobos. Veja os olhares que lhe lançam. Quando abordarem um barco cristão, beberão o sangue dos cristãos. Não têm direito ao vinho, que você quer!

Angélica estava cansada demais para demonstrar sua repugnância. Mezzo Morte mediu-a com um olhar pesado. Ela o ofendera mortalmente há pouco, e ele não era homem de perdoar.

-        Você é orgulhosa - disse. - Detesto orgulho nas mulheres, assim como o detesto nos cristãos. Eles não são dignos de orgulho.

De repente pôs-se a rir novamente, um riso feroz que não terminava.

— Por que está rindo? - perguntou Angélica.

— Porque você é orgulhosa, arrogante, e porque apenas eu sei j que vai acontecer-lhe. E isso o que me faz rir, entende?

— Confesso que não.

— Que importa? Você logo compreenderá.

CAPÍTULO IV

O suplício do cavaleiro de Malta

Naquela noite Angélica dormiu a bordo de uma galera de Mez-zo Morte, atracada no porto.

Fátima-Mireille apareceu para servi-la.

Angélica deu-lhe um de seus braceletes e pediu-lhe que passasse a noite com ela. A presença odiosa e ciumenta dos garotos de turbante amarelo que guardavam o navio a atemorizava. A velha instalou-se sobre uma esteira, atravessada junto à porta. Angélica dormiu pesadamente, extenuada. No dia seguinte a velha teve de ir à terra e só voltou ao anoitecer, muito excitada. A cidade estava em júbilo. De manhã viram-se surgir vinte vasos redondos que se imaginavam perdidos para sempre sob as ondas. Era o que restava da enorme frota que deixara Argel dois anos antes, para uma expedição ao maior dos mares, aquele que se atingia passando sob o fogo dos espanhóis entre Ceuta e Gibraltar. Nas distâncias do oceano imenso, os berberes foram engolidos e agora voltavam, os olhos cheios de visões estranhas, de um país de névoas que se abria sobre montanhas de gelo. Descreviam o mundo imóvel e gelado onde três sóis giram em halos azuis e rosa ao longo de uma noite sem fim. Inúmeros navios tinham perecido em tempestades demoníacas em que todos os djins dos ventos se reúnem para quebrar os navios como se fossem nozes. Os que escaparam, porém, traziam consigo oitocentos escravos, toda a colónia islandesa instalada lá pelo rei da Dinamarca.

Argel inteira desfilava para contemplar aquelas criaturas do Setentrião, brancas como a neve, com cabelos de uma lourice de lua. As mulheres reunidas nuas no cais, com suas cabeleiras irreais flutuando sobre o azul do mar, pareciam sereias exiladas. Mas a velha provençal meneou a cabeça: elas tinham o nariz esborrachado, não tinham cílios nem sobrancelhas, olhos remelosos que não pareciam suportar a claridade do sol da Africa, e a viagem medonha que acabavam de enfrentar reduzira-as ao estado de esqueletos. Passado o primeiro momento de curiosidade, não se venderiam por cem patagons cada uma. Não se imaginava um daqueles bons muçulmanos um tanto supersticiosos colocando de bom grado na própria cama uma daquelas larvas geladas e apalermadas. Os homens do Islã precisavam é de mulheres carnudas, de sangue quente, músculos macios, temperamento esfomeado e jamais cansado do amor, tudo o que ela mesma, Fátima, fora na juventude. E Alá podia testemunhar que seu marido tivera tanto trabalho para contentá-la que perdera a vontade de correr atrás de outras concubinas. Ela conhecia bem os homens do Islã. Eram ávidos por mulheres brancas e louras, mas não brancas e louras demais. Angélica correspondia exatamente ao ideal deles. Era por isso, sem dúvida, que fora beneficiada com um tratamento especial, que quase criara uma revolta entre o divã turco e a taífe argelina. Mas a chegada dos intrépidos navegadores da Islândia desviara a atenção. A velha Fátima perguijtava-se a que alta personalidade Mezzo Morte reservava Angélica.

— Não serei vendida, pois devo pagar resgate - afirmou Angélica.

— Uma coisa não impede a outra - disse, sentenciosa, a velha renegada.

Argel se preparava para uma grande festa no dia seguinte. A cativa de honra talvez pudesse presenciá-la? Angélica impacientava-se, pois não revira o grande almirante de Argel e gostaria de saber detalhes acerca de seu destino. No navio-palácio, estava na verdade mais isolada e vigiada do que numa prisão terrestre. Mezzo Morte gabara-se de que aquele navio era de concepção pessoal sua, com algo da galeota veneziana pela densidade de armamentos e a força de sua artilharia; da galera antiga, pelos oito pares de remos; e do xaveco argelino, pela linha engrossada e baixa sobre a água, apesar de seus dois mastros.

Bem mais que um palácio flutuante, era um potentíssimo navio de guerra, acompanhado de um falucho de exercício. Os dois barcos tinham dia e noite uma guarda dobrada de ferozes cadetes de janízaros, de turbante amarelo. Mantinham-se em permanente estado de alerta e prestes a zarpar a qualquer momento, no caso de um levante na cidade: uma revolta de criados era sempre previsível, considerando os trinta mil escravos cristãos, ou um golpe da taífe, o sindicato dos rases de Argel, no dia em que o-grande almirante deixasse de agradar-lhes. Ou ainda uma rebelião dos janízaros turcos em guarnição de ocupação, aqueles terríveis joldaks que inúmeras vezes já haviam assassinado o dei ou o paxá ou o rás-almirante, a fim de obter um aumento do soldo ou o direito de partilha das presas.

Mezzo Morte reinava sobre um vulcão e sabia disso. Era por isso, de resto, que reinava. Pois previra tudo. A bacia das docas construída pelo célebre Barbarroxa no século XVI, que protegia o porto, estava minada por obra de Mezzo Morte, e na eventualidade de um alerta extremo os espiões sob suas ordens tinham a missão de explodir tudo, enquanto Mezzo Morte, a bordo de seus navios carregados de riquezas, zarparia para outro destino.

O outro lado da tenaz fechada sobre Angélica era a península da Marinha, com suas muralhas cheias de canhões e guarnições, uma península montanhosa que formava uma única fortaleza, onde, naquela manhã, via-se reinar grande atividade.

Filas de escravos, acompanhados de ckauchs, arrastavam vigas, mastros e pranchas e instalavam uma espécie de tribuna, como se, do alto das muralhas, se fosse assistir a regatas na bacia mesma do porto de Argel.

A bordo de sua prisão, também notou uma agitação, prelúdio da festa. Todos os rapazes tinham vestido o traje de parada: turbante de seda dourada e calça sarual da mesma cor, casaco verde, babuchas vermelhas e punhais ou sabres em lugar da simples faca. Os mais velhos armavam-se de mosquetes de coronha incrustada de ouro e prata.

Alguns dos jovens guerreiros trocavam graçolas apontando dois pequenos batelões que acabavam de ancorar no meio da bacia do porto e sobre cada um dos quais um mastro se ligava ao outro por uma longa vara. Aquilo representava a estrutura de um pórtico ou arco de triunfo flutuante, sob o qual três barcas poderiam passar de frente, mas não um falucho. Angélica se perguntou a quem se ia receber numa equipagem tão modesta. Os olhares dos jovens não lhe pareciam tranquilizadores. Por fim viu chegar a velha escrava, que subiu alegremente a escada da coberta. Seus olhos cintilavam de excitação acima de seu véu negro. Conforme adivinhara, a "cativa de honra" também devia ser levada ao espetácu-lo. Aliás, todos os cativos estavam convidados, inclusive os da prisão subterrânea, a masmorra, alguns dos quais iam rever a luz do dia pela primeira vez em anos.

Dois escravos seguiam a velha, carregando um grande volume. Ali Angélica encontrou seus vestidos.compfados em Malta e vários outros, ainda mais belos, provenientes de diversas rapinas marítimas.

Um pouco mais tarde viu-se instalada numa das bancadas atape-tadas que vira construir de manhã no topo da fortaleza, ao lado de um negro gigantesco, vestido como um rei, um verdadeiro mago de iluminura. Uma longa toga de pele^de camelo, tecida e bordada de desenhos geométricos em cores escuras em que predominavam o vermelho, o verde e o negro sobre uma trama branca, e que tombava em dobras antigas sobre os largos ombros do negro. Aquela capa estranha, uma maravilha de bom gosto e sobriedade, abria-se sobre um cafetã encarnado abotoado com inúmeros botõezinhos até a gola e bordado de arabescos em fios de ouro. A cor fazia pascer mais escuro o negro azulado do rosto, emoldurado por nm turbante de seda branca cujas pregas passavam sob o queixo antes de formar uma coifa alta, a que uma faixa de lamé dourado dava a aparência de diadema. Ao olhar de Angélica, hipnotizada pelo suntuoso vizinho, o negro respondeu levantando-se e incíinando-se profundamente. Tinha o nariz aquilino dos semitas, as maçãs do rosto ligeiramente cavadas sobre uma ossatura delicada.

-        Admira minha capa, creio - disse.

Ela teve um sobressalto, surpresa de ouvi-lo falar um francês hesitante; mas a voz agradável, de timbre um pouco alto, provocou na jovem uma impressão tranquilizadora.

-        Sim - disse ela. - Parece o estandarte dos cruzados.

O rosto erudito do negro alto se contraiu, um sorriso aflorou-lhe na boca sinuosa. Sentou-se de novo, com as pernas cruzadas à turca sobre as almofadas, e começou, com um ar afável:

-        Faz muito tempo que não falo francês e você me desculpará, nobre senhora... Exatamente desde a morte infeliz de meu professor, um jesuíta de grande renome e de grande ciência, que Alá colocou em meu caminho para o benefício de meu espírito...

Preferimos os cristãos franceses aos espanhóis fanáticos. O espírito dos franceses está mais próximo da sorridente sabedoria desejada por Alá... Um estandarte dos cruzados, dizia você acerca de minha pobre djellaba} Foi minha venerada mãe quem a teceu, no alto Nilo, no Sudão. Teceu o primeiro fio oito dias após meu nascimento e deu início à capa que eu deveria usar quando atingisse a idade adulta. E estes desenhos são os que todas as mulheres su-danesas executam desde os tempos mais remotos. De fato, seus cruzados cristãos os copiaram em seus estandartes, seduzidos que foram pela sua grande beleza. ..•

Angélica inclinou a cabeça. Não estava em condições de iniciar uma polemica sobre a origem das tapeçarias ocidentais e orientais, mas a personalidade do negro a atraía. Não era particularmente bonito nem feio. Tinha o olhar franco, suave e principalmente imbuído de uma profunda sabedoria e de uma espécie de benevolência não isenta de uma ponta de humor. Ela não quis desagradar-lhe e limitou-se a cumprimentá-lo pela maneira como falava francês.

-        Sempre tive prazer em conversar com os franceses - afirmou ele. - São pessoas agradáveis e sem arrogância, mas têm o grande defeito de serem cristãos.

Angélica respondeu que os cristãos estavam convencidos de que os pagãos, os judeus e os muçulmanos tinham o grande defeito de não serem cristãos, mas que ela era mulher e sabia que o domínio religioso não era de sua alçada.

O mago aprovou a demonstração de modéstia. A ciência de Deus não é um domínio por onde os espíritos frágeis das mulheres possam aventurar-se levianamente.

— Minha ambição era ser sacerdote - confessou ele -, mas Alá decidiu de modo diferente. E colocou-me nas mãos um rebanho menos fácil de levar do que os carneiros que eu guardava na infância.

— Você é pastor?

— Sim, bela Firuzê.

Angélica estremeceu. O negro seria clarividente? Como adivinhava que outrora um príncipe persa a chamara de Firuzê: Turquesa? Essa lembrança, despertando a de Versalhes e a do ciúme que o rei sentira pelo ministro do xá da Pérsia, deu a Angélica a dimensão do abismo que a separava de uma existência ainda tão próxima. Entre os escravos que se reuniam ali nos cais de Argel, quantos podiam fazer a mesma comparação? A multidão branca e ruiva, pontilhada de rostos negros, subia e inchava como a maré na atmosfera ardente, precedida da linha clara dos cativos em ouropel, alguns arrastando as cadeias. Os telhados das casas estavam enfeitados, assim como as canhoneiras nas ameias da fortaleza.

Fez-se silêncio. Um pussah mouro, -homem gordo e disforme, suntuosamente vestido, tomava lugar nas bancadas, depois de sair com dificuldade de uma cadeirinha. Escoltavam-no dois homens, sumariamente cobertos com um sudário vermelho e trazendo como único adorno um longo cordão negro a tiracolo.

— É Sua Excelência, o dei de Argel - disse o grande negro, inclinando-se com familiaridade para Angélica. - É parente do sultão de Constantinopla e possui a honra insigne de ter em sua guarda dois "mudos do serralho", da famosa legião de estrangu-ladores.

— Por que estrangujadores? O que fazem eles?

— Estrangulam--- disse o, negro com um sorrisinho -, pois essa é a sua razão de ser.

— Quem são suas. vítimas?

— Ninguém sabe, porque eles são mudos. Arrancaram-lhes a língua. São servidores^iteis. Meu amo também possui alguns.

Angélica pensou que ele devia estar aludindo a algum alto diplomata bárbaro, talvez um embaixador daquele Sudão que mencionara. O dei o saudou^profundamente, e Mezzo Morte fez o mesmo, levando a mão ao turbante quando apareceu precedendo o Paxá Sali Hassan, a quem a insolência do almirante provocava caretas de raiva.

Os três senhores de Argel instalaram-se entre as companhias de joldaks em casacos e turbantes escarlates, as milícias da cidade, os chauchs de Argel e seus oficiais. Os grandes burgueses, honestos mercadores de escravos, os rases mais reputados, tomaram assento por sua vez.

Correu um clamor súbito como um furacão. Os olhares voltaram-se para o fundo da enseada, onde apareceu uma escolta de cavaleiros turcos precedidos de um grupo de guardas turcos mais semelhantes a carregadores, com o torso e as pernas nus, e o crânio raspado coberto por um solidéu vermelho. No centro deles vinha um prisioneiro cristão, nu e carregado de correntes.

Um arrepio violento sacudiu Angélica, enquanto uma horrível apreensão a invadia. Apesar da distância, tinha certeza de que reconhecera naquele miserável acorrentado o Cavaleiro de Nessel-hood, almirante da Religião.

Sob o cais, um grande caíque engoliu o prisioneiro, seus quatro carcereiros, a escolta e outros dois forçados, carregados de rolos de corda. O caíque rumou para as duas barcaças no centro da baía, onde seus ocupantes desembarcaram.

Simultaneamente, quatro galeras deixaram as fileiras da frota ancorada ao longo dos cais, e lentamente deslizando sobre as ondas aproximaram-se das barcaças, como esquilos espreitando a presa. Então Angélica se lembrou das palavras que o cavaleiro germânico lançara um dia: "Mezzo Morte jurou esquartejar-me com quatro galeras" e "Lembre-se, irmão, de que a verdadeira morte de um cavaleiro é o martírio".

De repente aquelas palavras ganharam um significado aterrador. E também as de Mezzo Morte: "Em breve lhe mostrarei como trato meus inimigos".

Angélica voltou os olhos horrorizados para o renegado. Este a fitava com um olhar onde reluzia uma satisfação demoníaca. Ela estava ali para assistir a um dos suplícios mais terríveis, na pessoa de um ser a quem estimava e que representava um dos grandes nomes do mundo cristão. Enrijeceu-se, jurando a si mesma que não daria um espetáculo àqueles infiéis. Queria gritar de horror e fugir, mas estava guardada por todos os lados e colocada de tal maneira que nenhum detalhe do que ia ocorrer no centro da arena azul poderia escapar-lhe.

Numa manobra complicada mas impecável, as quatro galeras puseram-se de lado a fim de colocar a popa em direção às barcaças e pararam a umas trinta toesas.

Agora o Cavaleiro de Nesselhood estava suspenso como um títere humano no centro da viga. Um cinto de couro o ligava a uma extremidade de corda, e de seus punhos e tornozelos partiam, como uma teia de aranha, os cabos que o atavam à popa de cada uma das quatro galeras.

O público arquejava num fôlego só - uma multidão histérica sob o olho redondo dos canhões assestados da fortaleza.

- La ília Ha Ma la!...

O clamor agudo ergueu-se sob o céu de fogo.

Angélica cobriu o rosto com as mãos.

O ulular das mulheres e crianças que batiam na boca em cadência perfurava o ar em mil lugares diferentes.

-        O coro das cigarras do inferno - disse a voz do grande ma

  1. Ele sorria.

A loucura dominava os espectadores, fazendo-os erguer-se, descontrolados. Mais do que a um suplício, era a uma competição que assistiam, ao triunfo da primeira, galera que conseguiria arrancar um membro do corpo ofegante e dominar a força das outras.

Os comitres a bordo corriam como zangões enfurecidos, berrando, descendo o chicote sobre o dorso nu e sangrento dos forçados. Naquela noite se contariam os mortos aòs remos.

O clamor imenso não cessava, encobrindo p grito rouco do supliciado.

— Deus! Deus! Misericórdia!...

— La ília Ha Ma la!...

— Meu Deus - suplicava Angélica -, meu Deus, você que criou os homens!  

Vinda de muito longe, uma voz perguntou:

-        A crença dos cristãos não concede o paraíso aos que morrem pela fé?

O grande mago era o único a permanecer impassível entre a torrente de violência que devastava e contorcia as pessoas a sua volta. Com olhos sagazes, examinava a dura luta das galeras, depois manifestava um discreto interesse pela cativa cristã a seu lado. Ela não tremia, não desmaiava, mas tudo o que ele via era sua vasta cabeleira, espalhada, cobrindo-lhe os ombros, e a testa inclinada na atitude daquelas pranteadeiras bíblicas que os cristãos idólatras pintam em seus livros de orações, os missais, de que o jesuíta lhe dera um exemplar como recordação.

Mas quando um clamor de triunfo estrondeou, seguido de outro, ele a viu erguer a cabeça e, à vista de todos os infiéis, persignar-se. Dois cadetes de Mezzo Morte notaram e pularam como lobos espumejando. Mas o grande negro se ergueu em toda a sua estatura e, sacando o punhal, os olhos faiscando, obrigou-os imperiosamente a permanecerem quietos.

Angélica não percebeu a rápida cena. Pela silêncio sombrio e como que extenuado que recaía sobre a multidão, entendeu que acabara. Quatro galeras disparavam para alto-mar, arrastando em sua esteira ensanguentada os pedaços do corpo do cavaleiro-mártir. Fariam uma espécie de volta triunfal na direção do sol nascente, onde fica Meca, peregrinação dos crentes, e retornariam na hora em que a prece do muezim, do alto do minarete, faz o Islã prosternar-se.

Mezzo Morte, o renegado, postou-se diante de Angélica. Ela recusava-se a vê-lo, olhando as galeras afastarem-se aó longe. Estava pálida, mas ele se enfureceu de não encontrá-la mais transtornada e abatida. Um ricto feroz torceu-lhe a boca.

- Agora, a sua vez - disse ele.

CAPITULO V

Mezzo Morte revela sua armadilha - Angélica foge por Argel

Um pequeno cortejo subia pelo caminho que, do quarteirão da Marinha, levava a ama das portas da cidade. O caminho era margeado de um lado pelas; muralhas, do outro por casebres separados por ruelas estreitar como abismos, onde o crepúsculo já se adensava. Angélica andava, às vezes tropeçando em pedras pontudas, precedida de Meezo Morte, que era escoltado pela guarda habitual. Na Porta Bab-Azum, pararam. Os oficiais das guardas vieram inclinar-se diante do grande almirante, que frequentemente realizava inspeções do género. Esta noite, porém, seu objetivo não era esse. Ele parecia esperar alguém. Pouco depois desembocou de uma rua um cavaleiro seguido de uma guarda negra, armada de lanças. Pela capa multicolorida, Angélica reconheceu seu vizinho negro do espetáculo das galeras. Ele apeou e saudou Mezzo Morte, que lhe retribuiu a saudação numa reverência ainda mais profunda.

O temível italiano parecia ter grande consideração pelo príncipe escuro, três cabeças mais alto do que ele. Trocaram salamaleques e inúmeros protestos de amizade em árabe. Depois, num mesmo movimento, voltaram-se para a cativa. De mãos estendidas, as palmas voltadas para o céu, o negro cumprimentou-a de novo. Os olhos de Mezzo Morte cintilavam com um prazer sardónico. 

- Esquecia-me - exclamou -, esquecia-me dos bons costumes da corte do rei da França! Não a apresentei, senhora, meu amigo, Sua Excelência Osman Ferradji, grão-eunuco de Sua Majestade, o sultão do Marrocos, Mulay Ismael.

Angélica lançou ao negro gigantesco um olhar mais surpreso do que aterrorizado. Eunuco? Pensando bem, sim, ela poderia ter-se dado conta. Atribuíra à raça semita a feminilidade dos traços e a voz demasiado harmoniosa. O queixo imberbe nao podia servir de sinal revelador, pois a maioria dos negros só tem barba em idade avançada. A alta estatura enganava pela impressão de vigor e majestade que inspirava, e ele parecia menos gordo do que geralmente são os eunucos, a quem bochechas e queixo costumam dar à fisionomia o aspecto desagradável de mulheres quarentonas. Era esse o aspecto dos seis negros de sua guarda particular.

Então era ele, Osman Ferradji, aquele grão-eunuco do sultão do Marrocos.

Ela ouvira falar muito dele, mas já não sabia onde nem por quem. Estava tão cansada que já não conseguia fazer-se perguntas.

-        Ainda esperamos alguém - preveniu-a Mezzo Morte.

Ele regozijava-se, parecendo divertir-se muito com a encenação de uma excelente comédia, onde cada ator representaria o papel designado por ele.

-        Ah, ei-lo!

Era Mohammed Raki, a quem Angélica não revira desde o combate da ilha de Cam. O árabe não lhe deu sequer uma olhada, mas prosternou-se servilmente diante do almirante de Argel.

-. Vamos agora.

Saíram da cidade e, fora das muralhas, receberam no rosto o clarão vermelho de um sol que se punha atrás das colinas arruivadas e malva. A senda, mal e mal traçada por entre os calhaus, seguia a muralha para a esquerda, margeando à direita uma ladeira bastante íngreme que logo dava numa fenda a pico, a qual, cheia das sombras púrpuras do poente, assemelhava-se a um abismo do inferno. O local tinha um aspecto maldito, acentuado pelo vôo incessante e rodopiante das gaivotas, dos corvos e dos abutres. Seus gritos desolados enchiam o céu e o arrepio do medo crescia junto com a escuridão da noite.

-        Ali!

Mezzo Morte apontava uma fenda, num nível inferior, um montículo de pedras e seixos. Angélica olhou sem entender.

-        Ali! - insistiu o renegado.

Então, entre um amontoado de ferragens, ela percebeu uma mão humana, uma mão branca.

-        Ali jaz o segundo cavaleiro que comandava sua galera, um francês como você, Henrique de Roguier. Os tagarins e os anda luzes o levaram para lá para apedrejá-lo na hora da prece Al Dharoc.

Angélica persignou-se.

-        Pare com suas momices - berrou o renegado. - Vai atrair azar para a cidade.

Ele retomou a marcha e evitou mostrar-lhe mais adiante um segundo monte de pedras brancas. AH se encontrava o corpo mutilado do jovem espanhol, outro passageiro da galera. Mezzo Morte não era completamente responsável por aquelas execuções, devidas ao furor dos mouros espanhóis que, acabando de ser informados de um auto-de-fé da Inquisição, em Granada, em que seis famílias muçulmanas foram queimadas vivas, reclamaram vingança. Entregaram-lhes duas vítimas: um espanhole um cavaleiro de Malta. Então, para Henrique de Roguier, antigo pajem da corte da França, despreocupado filho caçula, e para o estudante espanhol, iniciara-se um doloroso calvário- através" da cidade.

Precedidos pelos amos que os haviam comprado na véspera e que, ao som de uma musica bárbara, faziam uma coleta para serem indenizados, seguidos pela multidão aos urros, os infelizes, nus até a cintura, com as mãos amarradas às costas, encaminharam-se lentamente, sob os insultos e os golpes de mulheres e crianças, até o local situado fofa da Porta Bab-al-Ued. Quando ali chegaram, já não tinham rosto humano. Os cabelos arrancados aos punhados, o rosto ferido dè pisadas e coberto de lama e lixo, o corpo eriçado de pedacinhos de caniços pontudos que as crianças se divertiam em cravar-lhes na carne, ofereciam o aspecto lamentável de desafortunados entregues a uma multidão bestial que se embriagava com a própria ferocidade. A lapidação pusera fim à tortura.

Angélica não sabia disso tudo, mas adivinhava. Era em direção ao próprio cadáver que se encaminhava?

Finalmente a escolta parou diante de um alto muro da cidadela. Ganchos em forma de anzol estavam fincados a intervalos irregulares de alto a baixo da muralha. Eram os ganchos onde os supliciados, atirados da muralha, empalavam-se_ na queda e depois agonizavam durante longos dias. Dois corpos pendurados e semi-devorados pelas aves de rapina ainda pendiam ali, farrapos horríveis, destacando sua sombra supliciada, sobre a muralha'que o sol poente patinava de dourado.

Exausta de horrores por aquele dia, Angélica desviou os olhos. Então Mezzo Morte insistiu numa voz adocicada:

— Olhe-os bem!

— Por quê? E a sorte que me está reservando?

— Não - disse o renegado, rindo -, isso seria uma pena. Não sou um grande conhecedor, mas uma mulher como você deve servir a outra coisa que não decorar os muros de Argel unicamente para a satisfação de corvos e alcatrazes. Ainda assim, olhe bem. Você conhece um deles!

Angélica foi invadida por uma dúvida horrível: Savary? Apesar da repugnância, olhou na direção da muralha e viu que eram dois mouros.

— Perdoe-me - disse, irónica -, mas não tenho, como você, o hábito de contemplar cadáveres. Estes não me trazem nenhuma recordação à mente.

— Digo-lhe, então, o nome deles. A esquerda, Ali Mektub, o ourives árabe de Cândia a quem você confiou uma carta para seu marido... Ah, vejo que "meus" cadáveres começam a interessar-lhe! Está curiosa por saber o nome do outro?

Ela o olhou intensamente. Brincava com ela como um gato com um camundongo. Mais um pouco e ele lamberia os beiços.

-        O outro? Pois bem, é Mohammed Raki, o sobrinho.

Angélica soltou uma exclamação e voltou-se para o homem que se apresentara a ela no albergue de Malta.

-        Entendo o que pensa - disse Mezzo Morte -, mas o fenômeno é simples, simplíssimo. Este é um espião que lhe enviei, meu conselheiro Amar-Abbas. Um falso Mohammed Raki. O verdadeiro está ali em cima.

Angélica disse apenas:

— Por quê?

— Como as mulheres são curiosas! Você quer explicações? Sou bom rapaz, eu as dou. Não percamos tempo com as circunstâncias que me colocaram nas mãos aquela carta de Ali Mektub... Eu a leio. Fico sabendo que uma grande dama francesa está à procura do esposo desaparecido há longos anos, que está disposta a tudo e a ir a qualquer lugar para encontrá-lo. A ideia me germina no cérebro. Interrogo Ali Mektub: a mulher é bela, rica? Sim. Minha decisão está tomada. Vou capturá-la. Há que atraí-la a uma emboscada, e o marido servirá de isca. Interrogo o sobrinho, Mohammed Raki. Ele conheceu o marido, serviu-o muitos anos em Tetuã, onde fora comprado por um velho sábio alquimista antes de tornar-se seu auxiliar e quase herdeiro. A descrição é fácil de gravar: o rosto coberto de cicatrizes, alto, magro e moreno. E, para cúmulo da sorte, deu ao fiel servidor Mohammed Raki uma jóia especial pessoal que a esposa não poderia deixar de reconhecer. Meu espião escuta e guarda a jóia. Em seguida, o mais difícil é encontrar a mulher, que talvez tenha sido vendida em Cândia nesse meio tempo. Mas logo me informam. Ela está em Malta, depois de ter fugido do Rescator, que a comprou por trinta e cinco mil piastras...

— Eu imaginava ter sido eu a informá-lo desse detalhe que ignorava.

— Não, eu não o ignorava. Mas divertiu-me muito ouvi-la contar... Ah, muito! Depois, tudo foi fácil.-Enviei meu espião para Malta sob o nome de Mohammed Raki e preparamos a emboscada da ilha de Cam, que funcionou muito bem, graças aos cúmplices que meu espião fez a-bofdo.-Entre outros, um jovem grumete muçulmano. Assim qué eu soube, por pombo-correio, do êxito da cilada, mandei executar Ali Mektub e o sobrinho.

— Por quê? - disse Angélica outra vez, nurrta voz incolor.

— Só os mortas nao falam - respondeu Mezzo Morte com um sorriso cínico.

Angélica estremeceu. Desprezava-o e odiava-o tanto que ele já nem lhe provocava medo".

-        Você é ignóbil - disse ela -, mas é principalmente um mentiroso! Sua história não convence! - gritou. - É a mim que quer fazer crer que, para capturar uma mulher que nunca viu e cujo resgate não pode avaliar por antecipação, mobiliza uma frota de seis galeras e trinta faluchos e caíques e sacrifica no mínimo o valor de duas tripulações no combate de Cam? Sem contar a munição, vinte mil piastras, o conserto das galeras, dez mil piastras, os rases que contratou e pagou para essa única expedição que não lhes renderia quase nada, cinquenta mil piastras. Uma despesa de no mínimo cem mil piastras por uma única cativa! Posso muito bem acreditar em sua cupidez, mas não em-sua estupidez!

Mezzo Morte a ouvia com atenção, de olhos semicerrados.

— Como soube esses números?

— Sei calcular, é tudo.

— Você daria uma boa armadora.

— Eu sou armadora! Possuo um navio que comercia com as índias Ocidentais. Oh, rogo-lhe, ouça-me - continuou ela, com ardor. - Sou muito rica e posso, sim... posso, não sem dificuldade, pagar-lhe um resgate exorbitante. Que pode pedir mais de minha captura, que talvez tenha sido um erro de sua parte e que já deve lamentar?

— Não - disse Mezzo Morte, meneando a cabeça -, não foi um erro e não lamento nada... Pelo contrário, felicito-me.

— Repito que não creio em você! - gritou de novo Angélica, dominada pela cólera. - Mesmo que tenha conseguido a morte de dois cavaleiros de Malta, seus piores inimigos, isso não justifica todas as suas astúcias no que se refere a mim. Nem tinha certeza de que eu embarcaria numa galera de Malta. E por que não ter pensado em pôr-se em contato com meu marido para rematar sua cilada? Foi preciso que eu fosse tola o bastante para contentar-me com as frágeis provas que seu espião me levou. Eu poderia ter duvidado, exigido uma prova escrita desse chamado de meu marido.

— Pensei nisso, mas foi impossível.

— Por quê?

— Porque ele morreu - disse Mezzo Morte surdamente. - Sim, seu marido, ou suposto marido, morreu de peste há três anos. Houve mais de dez mil vítimas em Tetuã. O amo de Mohammed Ra-ki, aquele sábio cristão chamado Jeffa-al-Khaldun, perdeu a vida nessa ocasião.

— Não acredito - disse ela -, não acredito. Não acredito.

Ela gritava-lhe no rosto para erguer uma barreira entre sua esperança e o desalento que aquelas palavras acabavam de causar-lhe. "Se choro agora, estou perdida", pensou.

Os cadetes do grande almirante, que jamais tinham visto alguém falar naquele tom a seu chefe, rosnavam e se excitavam, com a mão no cabo do punhal. Os eunucos, enérgicos e serenos, interpunham-se entre eles, e era um espetáculo singular aquela mulher gritando no centro do bale formado pela guarda negra dos eunucos e pelos turbantes amarelos, enquanto uma sombra azul-índigo, vinda do mar, chegava até o topo da muralha sinistra, onde alguns clarões vermelhos ainda se demoravam.

— Você não me disse tudo!

— E possível, mas não lhe direi mais nada.

— Liberte-me... Pagarei o resgate.

— Não! Nem por todo o ouro do mundo, está ouvindo, nem por todo o ouro do mundo! Também eu quero mais do que riqueza: quero poder. E você é um meio de eu o obter. É por isso que sua captura não tinha preço... Você não precisa compreender.

Angélica ergueu os olhos para a muralha. A noite apagava os detalhes, afogava na escuridão os ganchos e sua carga macabra. Aquele Mohammed Raki, joalheiro árabe, sobrinho de Ali Mek-tub, era o único homem de quem ela tinha*certeza que conhecera Joffrey de Peyrac em sua segunda existência. E agora ele não falaria mais!

"Se eu fosse a Tetuã, talvez encontrasse pessoas que o conheceram... Mas para isso preciso de minha liberdade..."

-        Eis qual será seu destino - dizia Mezzo Morte. - Como sua beleza é tão grande quanto deixava prever sua reputação, vou incluí-la entre os presentes que envio por intermédio de Sua Excelência Osman Ferradji a meu caríssimo amigo, o Sultão Mulay Ismael. Entrego-lhe a Sua Excelência. Você aprenderá a ser menos orgulhosa sob seus cuidados. Não há como os eunucos para domar as mulheres. Está aí uma instituição que faz muita falta na Europa...

Angélica mal o ouvira. Só compreendeu ao vê-lo afastar-se seguido de sua escolta, enquanto a mão negra do grão-eunuco lhe pousava no ombro.

-        Siga-me, nobre dama...

"Se choro agora, estou perdida... Se grito, debato-me, estou perdida... trancada num harém..."

Não disse palavra, não fez um gesto: calma e dócil seguiu os negros que retornaram em direção à Porta Bab-al-Ued.

"Em alguns segundos será noite... será o momento... Se eu deixar escapar esse momento, estarei perdida..."

Sob a abóbada da Porta Bab-al-Ued os candeeiros ainda não tinham sido acesos. A escuridão de um túnel engoliu o grupo.

Angélica deslizou como uma enguia, pulou, enfiou-se por uma ruela tão escura quanto a abóbada. Correu sem sentir o chão sob os pés. De uma ruela quase deserta, desembocou numa artéria maior e mais movimentada; teve de diminuir a marcha, esgueirando-se entre djellabas de lã, os pacotes brancos e móveis que eram as mulheres veladas, os burricos carregados de cestos de mercadorias. Por enquanto o escuro da hora a protegia, mas não tardariam a notar aquela cativa de rosto descoberto e olhar desvairado. Virou à esquerda em outra viela estreita e parou para recuperar o fôlego. Para onde poderia ir? Pedir socorro a quem? Repetira, com êxito, a evasão de Cândia, mas aqui não havia nenhuma cumplicidade preparada. Ignorava o que podia ter acontecido com Savary. De repente teve a impressão de ouvir clamores que se aproximavam. Perseguiam-na. Ela lançou-se em corrida desesperada. A ruela descia em degraus até o mar. Era um beco ladeado de paredes lisas onde, a raros intervalos, notava-se uma portinha preta em forma de ferradura. Uma dessas portas abriu-se. Angélica deu um encontrão num escravo que saía com uma moringa ao ombro. A moringa caiu no chão e partiu-se em mil pedaços. Angélica ouviu um retumbante "Maldição!", seguido de uma torrente de palavrões que não deixariam nada a dever a um valente soldado de Sua Majestade Luís XVI. Angélica fez meia-volta.

-        Cavalheiro - disse, ofegante -, você é francês? Cavalheiro, pelo amor de Deus, salve-me!

O clamor aproximava-se. Com um gesto quase instintivo, o escravo empurrou-a pelo vão da porta, que ele fechou. Uma correria de pés descalços e babuchas passou num turbilhão de imprecações. Angélica segurava os ombros do escravo. Sua testa tombou contra o peito largo, vestido de uma bata infame. Ela teve um rápido desmaio. O alarido dos demónios lançados em sua perseguição pelas ruas de Argel diminuiu.

Ela respirou um pouco.

— Acabou - murmurou -, eles passaram.

— Mas o que você fez, minha pobre pequena! Tentou fugir?

— Sim.

— Infeliz! Será chicoteada até sangrar e talvez estropiada para o resto da vida...

— Mas eles não poderão pegar-me. Você me esconderá. Você me salvará!

Ela falava, agarrada, numa escuridão total, a um desconhecido de quem ignorava tudo, mas que sabia ser de sua raça e que adivinhava jovem e simpático, da mesma maneira que ele, pelas formas do corpo que se estreitava contra o dele, sentia que aquela mulher era jovem e bela.

-        Não vai abandonar-me?

O jovem soltou um profundo suspiro.

-        A situação é terrível! Você está na casa de meu patrão, Mohammed Celibi Oigat, um mercador de Argel. Estamos rodeados de muçulmanos. Por que fugiu?

— Por quê?... Mas não quero ser encerrada num harém!

— Infelizmente é o destino de todas as cativas.

— Parece-lhe, então, uma coisa tão simples que eu deva resignar-me?

— O destino dos homens não é melhor. Acredita que há cinco anos eu me divirto, eu, Conde de Loménie^que carrego moringas de água e feixes de espinhos para a cozinha de minha patroa? Tenho as mãos num estado! O que diria a minha delicada amante parisiense, a bela Susana de Raigneau, que infelizmente já deve ter-me substituído há muito tempo?

— O Conde de Loménie? Conheço um de seus parentes, o Sr. de Brienne.

— Oh, que feliz casualidade! Onde o conheceu?

— Na corte.

— É mesmo? Posso saber seu nome, senhora?

— Sou a Marquesa du Plessis-Bellière - disse Angélica após um instante de hesitação (lembrou-se de que reivindicar seu título de Condessa de Peyrac jião lhe trouxera sorte).

Loménie buscou em suas recordações.

-        Não tive o pjazer de encontrá-la em Versalhes, mas já faz cinco anos que padeço minha dura escravidão, e as coisas devem ter mudado bastante. Não tem importância! Você conhece meu parente e talvez possa dâr-me alguma razão para explicar o silêncio de minha família. Foi em vão que*enviei o pedido de meu resgate. Confiei minha última carta aos padres redentoristas que vieram a Argel no mês passado. Esperemos que finalmente atinja seu objetivo. Mas o que vou fazer por você? Ah, creio que tenho uma ideia... Atenção, vem gente.

O halo de uma lamparina avançava do fundo do pátio profundo, onde pairava o ranço de gordura de carneiro e de sêmola morna.

O Conde de Loménie passou Angélica para trás de si e escondeu-se enquanto esperava para reconhecer quem se aproximava.

-        E minha patroa - murmurou, com alívio. - Uma mulher corajosa e decente. Acho que podemos pedir-lhe auxílio. Ela tem certo fraco por mim...

A muçulmana ergueu a lâmpada a óleo para distinguir as silhuetas que murmuravam sob o pórtico. Como estava em casa, não usava véu e mostrava um rosto de mulher madura e gorda, com grandes olhos delineados com kohl. Não era difícil entender o papel que desempenhava a seu lado o escravo cristão, belo rapaz, amável e vigoroso, sobre quem ela lançara as vistas no batistan.

O pequeno mercador Mohammed Celibi Oigat não tinha meios para comprar um eunuco que lhe guardasse as três ou quatro mulheres. Deixava à primeira esposa o cuidado de administrar-lhe a casa e compreendia a necessidade de um escravo cristão para as tarefas mais árduas, sem fazer outras indagações.

A mulher notara Angélica. O Conde de Loménie, em voz baixa, começou a lhe falar em árabe. A mulher balançava a cabeça, fazia muxoxo, erguia os ombros. Toda a sua mímica exprimia que, em sua opinião, o caso de Angélica não tinha esperança e que seria melhor atirá-la de volta imediatamente às trevas do lado de fora. Mas acabou deixando-se convencer pelos argumentos de seu favorito e afastou-se para retornar um instante depois com um véu, que estendeu a Angélica fazendo-lhe sinal para que se cobrisse. Ela mesma prendeu o haík, que é o tchabek, o véu das mouras, depois abriu a porta, espiou a ruela, acenou ao escravo e à cativa foragida para que saíssem. No momento em que atravessaram a soleira, ela de repente despejou uma enxurrada de imprecações.

— Que está acontecendo? - cochichou Angélica. - Ela vai mudar de ideia e nos entregar?

— Não, mas percebeu os cacos da moringa e não me esconde o que pensa. Aliás, devo confessar que nunca fui muito jeitoso e que lhe consumo um bocado da louça. Bah! Sei como mimá-la e daqui a pouco me ocuparei disso. Não vamos longe.

Com algumas passadas chegaram a outra portinha de ferro, e o jovem deu duas ou três batidas de reconhecimento. Uma luz infiltrou-se por sob a porta, uma voz cochichou:

— E o senhor, conde?

— Sou eu, Lucas.

A porta abriu-se, e a mão de Angélica crispou-se sobre a do companheiro ao ver um árabe envolto numa djellaba e de turbante à cabeça. Segurava uma vela no alto.

-        Não tenha medo - disse o conde, empurrando a jovem para o interior -, é Lucas, meu antigo criado de quarto. Foi capturado ao mesmo tempo que eu no navio de guerra que me levava a meu novo posto militar em Génova. Mas como, trabalhando para mim, já fizera seu treino como finório ladrão, os cortesãos de Argel apreciaram-lhe as qualidades, e seu amo apressou-se em torná-lo muçulmano, a fim de poder confiar-lhe os negócios; e aqui está ele, hoje um graúdo da especulação.

O antigo criado, sob o turbante mal enrolado, arregalava olhos desconfiados. Tinha o nariz arrebitado e o rosto sardento.

— O que está me trazendo, senhor conde?

— Uma compatriota, Lucas. Uma cativa francesa que acaba de fugir de seu comprador.

Lucas teve a mesma reação que o ex-patrão.

-        Senhor! Por que ela fez isso?

O Conde de Loménie estalou os dedos, desenvolto.

— Capricho de mulher, Lucas. Agora o fato está consumado. Você vai escondê-la.

— Eu, senhor conde?

— Sim, você! Bem sabe que não passo de um pobre escravo que tem de dividir a esteira de junco com dois cães da casa e que não tem sequer um cantado pátio para si. Quanto a você, é um homem bem-sucedídb. Não- corre riscos.

— A não ser a fogueira, a cruz, a estaca, as flechas, os ganchos, o sepultamento em vida ou o apedrejamento! Há toda uma escolha para os convertidos que escondem cristãos.

— Você recusa?

— Sim, recuso!

— Mando dar-lhe umas bordoadas!

O outro envolveu-se-com dignidade na djellaba.

— O senhor conde esquece que um escravo cristão não tem o direito de erguer a mão contra um muçulmano?

— Espere que retornemos à pátria! Meto-lhe o pé no rabo e faço-o queimar vivo como herege pelo Santo Ofício... Lucas, não separou algumas coisinhas para mim? Desde a manhã que só comi um punhado de tâmaras e tomei um copo de água. E não sei se esta senhora se nutriu de outra coisa além de emoções hoje.

— Sim, senhor conde, eu tinha previsto sua visita e preparei-lhe... ah, adivinhe... o senhor gostava disso antigamente... Um vol-au-vent.

— Um vol-au-ventl - exclamou o pobre escravo, os olhos brilhando de gula.  '

,- Psiu!. Instalem-se. Desembaraço-me de meu cliente, fecho a loja e volto num instante.

Pousou a vela e retornou pouco depois com um frasco de vinho e uma pequena panela de prata de onde saía um odor delicioso.

— Eu mesmo fiz a massa, senhor conde, com manteiga de canela, e o molho, com leite de jumenta. Não é a mesma coisa que o 'bom leite e a boa manteiga de vaca, mas há que usar o que se tem. Não havia almôndegas de solha nem cogumelos, mas creio que os lagostins e o palmito que utilizei satisfarão. Se a senhora marquesa quiser dar-se ao trabalho de servir-se...

— Este Lucas - disse o conde, enternecido - é um mestre-cuca excepcional. Sabe fazer tudo. Excelente o seu vol-au-vent Mando dar-lhe cem escudos, meu rapaz, quando retornarmos.

— O senhor conde é muito generoso.

— Sem Lucas eu estaria morto, minha cara. Não que meu patrão, Mohammed Celibi Oigat, seja um homem malvado, minha patroa menos ainda, mas ela é um tantinho avarenta, e os dois se alimentam de um nada. Não é suficiente para um homem de quem se exigem trabalhos de força. E não falo apenas de carregar água e madeira... Mas as muçulmanas gostam demais dos cristãos. O Corão devia ter previsto isso... Por outro lado, isso pode conferir algumas vantagens.

Angélica devorava. O antigo criado de quarto desarrolhou a garrafa.

-        Malvasia! Tirei algumas gotas do carregamento de barris que Osman Ferradji veio adquirir para o harém do sultão do Marrocos. Quando se pensa, senhor conde, que nós dois somos originários da Touraine e que queriam nos forçar a matar a sede com água ou chá de hortelã, que decadência! Espero que nossa pequena libação não me traga aborrecimentos com o grão-eunuco. Tem um olho, aquele homem! Enfim, quando falo em homem é uma maneira de dizer... Não consigo habituar-me a esse género de indivíduos que pululam nesta parte do mundo. Quando ele fala comigo, acontece de eu chamá-lo de senhora! Mas tem um olho! Não é a ele que se deve querer enganar com a quantidade e a qualidade da mercadoria.

O nome de Osman Ferradji tirara o apetite de Angélica. Ela pousou o pequeno copo de prata. A angústia voltava. O Conde de Loménie levantou-se, dizendo que a patroa ia impacientar-se. Sua bata imunda e em farrapos contrastava com o perfil de jovem galante que ele conservara apesar dos rigores do cativeiro e do sol da África. Voltou-se para Angélica e, vendo-a melhor à luz da vela, exclamou:

-        Mas como você é encantadora!

Suavemente afastou-lhe da testa uma mecha loura.

-        Pobre pequena! - murmurou, anuviado.

Angélica lhe disse que era preciso tentar encontrar seu amigo Savary. Era um cidadão habilidoso e cheio de experiência, que certamente teria uma ideia. Ela o descreveu, bem como os passageiros da galera de Malta: o banqueiro holandês, os dois franceses traficantes de coral e o jovem espanhol. O conde desapareceu, curvando-se por antecipação às admoestações de sua patroa irascí-vel e exigente.

-        Que a senhora marquesa fique à vontade - disse Lucas, retirando os pratos.

Angélica saboreou a breve descontração que lhe proporcionava a presença de um criado elegante que a chamava de "senhora marquesa". Lavou as mãos e o rosto na água perfumada que ele lhe apresentava junto com uma toalha e estendeu-se sobre as almofadas.

Lucas ia e vinha, arrastando as babuchas e embaraçando-se na longa djellaba árâbé.

— Ah, minha pobre senhora! - suspirou ele. - Há o que ver quando se navega! Por que diabos meu amo e eu tivemos a ideia absurda de colocar os pés naquela galera?

— Sim, por quê?*- suspirou Angélica igualmente, que pensava na própria inconsequência.

Tomara por exageros meridionais as advertências de Melchior Pannassave, que, em Marselha, predissera que ela acabaria no harém do Grão-Turco! Agora a previsão se tornava uma sinistra realidade, e talvez o Grão-Turco ainda fosse preferível a Mulay Ismael, o selvagem soberano do reino marroquino.

— Veja, senhora, aonde isso me trouxe. Um bravo sujeito como eu, que sempre me entendi bem com a Santa Virgem e com os santos, um renegado!... Claro, eu não queria, mas quando o espancam, quando lhe queimam a sola dos pés, quando o ameaçam de esfolar vivo, de lhe cortar certas partes e de enterrá-lo na areia para lhe esmagar a cabeça a pedradas, o que queria? Só se tem uma vida... Enfim, a senhora me compreende. Como fez para fugir? Nunca mais se vêem de novo as mulheres vendidas para os grandes haréns, e pela sua aparência não seria de admirar se tivesse sido comprada para alguma alta personalidade.

— Para o sultão do Marrocos - disse Angélica.

E de repente isso lhe pareceu tão engraçado que ela se pôs a rir. A malvasia começava a fazer efeito.

— Hein? - disse Lucas, que não achou a informação engraçada. - Estaria dizendo que fazia parte dos mil e um presentes que Mezzo Morte pretende enviar a Miquenez, para ganhar as boas graças do sultão Mulay Ismael?

— Alguma coisa assim, pelo que entendi.

— Como fez para fugir? - repetiu Lucas.

Angélica contou-lhe como aproveitara um canto escuro e a desatenção dos eunucos da guarda de Osman Ferradji.

— E é esse indivíduo que a senhora tem ao encalço? Misericórdia!

— Você tem negócios com ele?

— E necessário, mas que calvário! Tentei passar-lhe alguns jarros de óleo estragado, como se faz numa grande encomenda de quinhentos jarros. Pois sim! Voltou aqui com escravos carregando exatamente os dez jarros em questão e por pouco não me cortou a cabeça. Aliás, foi o que ele fez a um de meus colegas que lhe vendera sêmola um pouco carunchada demais.

— Estaremos falando do mesmo homem? - disse Angélica, sonhadora. - Tomei-o por uma alta personalidade, e ele me pareceu afável e cortês, quase tímido.

— É uma alta personalidade, senhora, e é afável e cortês, é verdade. Isso não o impede de cortar cabeças... cortesmente. Há que compreender que essa gente não tem entranhas. Para eles, tanto faz olhar uma mulher nua quanto cortá-la em pedaços. E por isso que são perigosos. Quando penso que lhe pregou essa peça, sob o nariz dele!

Agora Angélica se lembrava de quem lhe falara de Osman Ferradji. Fora o Marquês d'Escrainville, que dissera: "Um grande homem, em todos os sentidos: genial, felino, feroz. Foi ele que ajudou Mulay Ismael a conquistar seu reino..."

— O que faria ele se me recuperasse?

— Minha pobre senhora, seria melhor para sua pessoa que engolisse imediatamente uma bolinha de veneno. Ao lado dos marroquinos, estes argelinos são cordeiros. Mas não se inquiete em demasia. Vamos tentar tirá-la daqui. Embora eu não saiba muito bem como!

O Conde de Loménie voltou no dia seguinte, deixando a carga de lenha num canto do pátio de seu antigo criado. Não encontrara vestígio de Savary. Os mercadores de coral, que se encontravam na prisão de Jemine como escravos de resgate, não sabiam nada sobre o velhinho.

-        Deve ter sido comprado por camponeses e levado para o interior...

Em compensação, Loménie ouvira falar da fuga de uma magnífica cativa francesa, reservada ao harém do sultão do Marrocos. Cinco negros da guarda do grão-eunuço, responsáveis pela evasão, tinham sido executados, e o sexto beneficiara-se da circunstância atenuante de ter sido contratado há pouco por Osman Ferradji. Mezzo Morte, furioso com a afronta feita ao hóspede, ordenara buscas por sua vez, e os janízaros vasculhavam as casas, acompanhados do eunuco, que, meticuloso, desvendava cada mulher.

— Podem desconfiar de você, Lucas?

— Não sei. Infelizmente estou no bairro onde se suspeita que a fugitiva tenha encontrado refúgio. Nossa patroa saberia calar-se, senhor conde?

— Enquanto seu ciúme não for espicaçado pelo interesse que demonstrei por minha; compatriota..

A angústia dos dois franceses não era fingida. Angélica ouvia-os falar a meia voz. A última viagem dos padres redentoristas, os ousados religiosos que nãg> hesitavam em enfrentar as piores dificuldades para resgatar cativos, ocorrera no mês anterior. Seu pequeno grupo partira còm uma leva de quarenta escravos, se tanto. E de resto a intervenção deles .não seria de auxílio algum para Angélica, pois não se tratava de uma questão de resgate. Deveriam tentar embarcá-la no navio mercante francês livre? Era uma ideia que muitos outros cativos tinham quando a vela de um navio livre de sua nação oscilava no porto. Alguns se atiravam a nado, outros amarravam-se a pranchas de madeira e remavam com as mãos, tentando alcançar o asilo inviolável. Mas os argelinos mantinham uma guarda severa, a Marinha e o molhe ficavam cobertos de sentinelas, e os faluchos cruzavam incessantemente. Antes da partida do navio, revistavam-no de alto a baixo, de modo que as "fugas a bordo" se tornaram quase impossíveis.

Mais impossível ainda era a fuga por terra. Atingir Orã, outro enclave espanhol, o local mais próximo onde se encontravam tropas cristãs, representava semanas de caminhada por uma região desconhecida, hostil e desértica, correndo o risco de perder-se ou ser devorado pelas feras. Nenhum dos que às vezes tentavam a aventura alcançara êxito.

Traziam-nos de volta para serem espancados, mutilados e torturados, caso a evasão tivesse sido acompanhada da menor violência contra os guardas.

Loménie falou dos maiorquinos. De fato, as ilhas Baleares não estavam muito longe. A rigor, uma pequena embarcação de mastro único podia fazer o trajeto numas vinte e quatro horas, e os audaciosos ilhéus, em quase dois séculos de atividades, tiveram tempo de organizar uma próspera empresa de libertação de escravos. Tinham embarcações leves, fretadas quase exclusivamente para essa finalidade. Na maioria dos casos, eles próprios tinham sido cativos, e conheciam perfeitamente os locais.

Os empreiteiros de evasões corriam muitos riscos. Sendo pegos, eram queimados vivos. Mas a indústria era lucrativa, e a maioria dos arrojados marinheiros que a empreendiam tinha no sangue o ódio pelos muçulmanos, vizinhos próximos demais de suas ilhotas católicas. Assim, sempre se encontravam tripulações dispostas a enfrentar todos os perigos para arrancar aos argelinos alguns de seus cativos cristãos.

Por meio de espiões, fazia-se contato com um grupo de cativos decididos a fugir e que tivessem reunido a soma necessária. Mar-cavam-se dia e hora. Escolhia-se uma noite sem lua e combinavam-se um sinal e uma senha. Quando chegava o momento, o navio salvador, que, durante o dia, arreara a mastreação e permanecera bem afastado da costa para não ser visto, aproximava-se com precaução do local designado. Enquanto isso, os cativos, que haviam tido o cuidado de empregar-se na cultura dos jardins situados fora da cidade, emboscavam-se silenciosamente na margem e aguardavam impacientes a hora da partida. Finalmente, um barco chegava sem ruído, movido por remos engraxados e guarnecidos de estopa. Trocava-se a senha, embarcava-se, silenciosa e rapidamente, e imediatamente se ganhava o largo. Mas quantos perigos! Ficava-se à mercê de um barco de pesca atrasado, da insónia de um ribeirinho, do latido de um cão de guarda. Logo ecoava o grito: "Os cristãos! Os cristãos!" Os postos de guarda da cidade davam o alarme, as galeras de guarda, sempre armadas e prontas, zarpavam às pressas do cais. Ainda mais agora, quando a construção recente de fortes na costa tornava ainda mais perigosa a aproximação do litoral! Os cativos tentavam se desembaraçar sozinhos.

Lucas lembrou a odisseia de Yossef, o Cretense, que partira num barquinho de caniços e tela encerada, construído por ele próprio. E os cinco ingleses que chegaram a Maiorca em seu esquife de tela à vela. E os dois aventureiros de Brest, que conseguiram desviar o falucho em que estavam empregados como marinheiros para levá-lo a Civitavecchia. Mas façanhas desse género jestavam fora de questão para uma jovem senhora. Aliás, nunca se vira uma mulher fugir.

Finalmente, o Conde de Loménie se levantou, dizendo que procuraria avistar-se com Alferez, o Maiorquino, o rendeiro da taberna da senzala, que gostava tanto de Argel que não queria mais voltar para casa, mas que ainda assim conservava alguns contatos com os compatriotas.

O conde retornou à noite, desta vez mais encorajador. Estivera com Alferez, e este, enrgrande segredo, confiara-lhe que se preparava uma evasão e que um novo cativo seria bem recebido na expedição, pois um dos que deveriam participar da fuga acabava de morrer.   

-        Não disse que se tratava de uma mulher nem de você - explicou Loménie -, pois sua fuga já provocou muito estardalhaço e prometeram uma grande recompensa a quem denuncie o local onde você se esconde. Mas dê-me um sinal e conseguirei o local e a data do encontro, para levá-la até lá.

Angélica deu-lhe braceletes e escudos de ouro, que guardava num bolso interno da ampla saia.

-        Mas e você, Sr. de Loménie, por que não aproveita essas informações para fugir também?

O gentil-homem pareceu surpreso. Jamais pensara em enfrentar os riscos de uma evasão.

Naquela noite Angélica pôde dormir no esconderijo sufocante que Lucas lhe destinara. Como muitos cativos a quem o calor e o céu sereno demais da África fatigavam, ela sonhou com uma noite de neve, uma noite de Natal, fria e acolchoada. Chegava a uma igreja cujos sinos repicavam, e pensava que jamais ouvira nada mais agradável do que o carrilhão daqueles sinos católicos. Havia um presépio na igreja, com imagens bem alinhadas sobre o musgo: a Santa Virgem, São José, o Menino Jesus, os pastores e os Reis Magos. O Rei Baltazar tinha um manto curioso e um alto turbante de ouro, semelhante a um diadema.

Angélica mexeu-se e teve a impressão de despertar. Mas já fazia alguns segundos que estava de olhos abertos e o via.

Osman Ferradji, o grão-eunuco, estava a sua frente!

CAPITULO VI

O grão-eunuco e a cativa francesa

Fazia o silêncio da noite. E sobre o chão, invadido de luar, a grade da janela projetava-uma renda negra. No ar flutuava um perfume de hortelã e chá verdg. Angélica saiu de sua prostração e ergueu-se. Fazia silêncio, por vezes rompido por um grito longo e longínquo. Ela sabia quem dava- aquele grito de animal tombado na armadilha: uma das duas islandesas que o grão-eunuco levava na bagagem, como presente para seu amo.

Ela, Angélica, não grftara. Deixara-se levar, segura por dois eunucos que a colocaram num palanquim escoltado de uma guarda de dez eunucos. O que não a impedira de surpreender, de passagem, os berros do pobre Conde de Loménie, cujo patrão, Moham-med Celibi Oigat, mandara vergastar vigorosamente. Ela ignorava o que acontecera ao criado Lucas e quem os traíra. O comerciante talvez, ou a muçulmana ciumenta?... Agora isso já não tinha importância. Estava separada do mundo, "encerrada num harém", e a solidão em que a deixaram depois de sua recaptura não pressagiava nada de bom. Era menos o medo que a dominava do que um sentimento de derrota total. Ao desenredar sua tortuosa armadilha, Mezzo Morte lhe tirara até o gosto de debater-se. Nada era verdade naquilo que a sustentara e que lhe dera toda a coragem. A presença próxima de marido, que durante alguns dias sentira como uma certeza, não passava de um engodo. Por trás daquilo não havia nada. Ele não estava em Bône, "hão estava em parte alguma! Talvez estivesse morto, talvez vivo, mas Mohammed Raki certamente estava morto. E a inapreensível lembrança do forasteiro francês se perdia, diluía-se. E Angélica se deixara capturar por "nada". Atirara-se de cabeça ao destino absurdo e dramático, com frequência reservado às viajantes imprudentes da época.

A ratoeira estava fechada. Caíra a portinhola de deliciosos arabescos de ferro forjado. Como em inúmeras ocasiões em que sua impulsividade a lançara em situações sem saída, ela voltava sua cólera contra si mesma, e a ideia do que diria à Sra. de Montespan, caso viesse a saber do destino reservado à rival, queimava-a como um ferro em brasa. "A Sra. du Plessis-Bellière... Já sabia! Ah, ah, ah! Capturada pelos berberes!... Ah, ah, ah! Dizem que o grande almirante de Argel ofereceu-a como presente ao sultão do Marrocos. Ah, ah, ah! Que engraçado! A coitadinha!..."

O riso zombeteiro da bela Atenaís ressoou-lhe nos ouvidos. Angélica levantou-se, procurando alguma coisa para quebrar. Não havia nada. Estava numa cela nua, cujo revestimento de cal a tornaria monástica, não fosse pela opulência do divã guarnecido de almofadas sobre o qual a haviam atirado como um pacote. Não havia janelas, e a única abertura era aquela maldita grade de ferro forjado! Angélica arremessou-se contra a grade para sacudi-la. E teve a surpresa de senti-la ceder ao primeiro esforço. Hesitando de início, depois com rapidez, enfiou-se pela galeria que se abria a sua frente. A silhueta escura de um eunuco ergueu-se, saiu da penumbra e seguiu-a. Outro, de alabarda, encontrava-se no topo da escada. Esticou o braço para barrar-lhe a passagem. Angélica sentia em si a força de uma torrente. Afastou o homem com um golpe de ombro. Ele agarrou-a pelo pulso. Todo o domínio da taberneira da Máscara Vermelha, que atirava os bêbados à rua, voltou-lhe: Angélica esbofeteou as faces flácidas do guarda, segurou-o pela gola e lançou-o ao chão. Os dois eunucos puseram-se a guinchar como macacos, enquanto Angélica disparava pelas escadas, para encontrar embaixo três negros, também berrando, e contra os quais ela se debateu em vão. As vozes de falsete entrecruzavam-se acima dela. Debatia-se como uma tigresa, mas logo foi imobilizada. Aproximou-se um pussah brandindo o chicote, um cabo de aço cheio de nós. Osman Ferradji, que tinham ido buscar com toda a urgência, acalmou-o com um sinal. Ele não estava usando o grande manto nem o turbante de gala, usava apenas uma espécie de colete de cetim carmesim sem mangas e uma longa calça bufante, presa por um cinto de metal precioso. O turbante, preso por um penacho, prendia-se-lhe firmemente à cabeça fina. Naquele traje descontraído, percebia-se-lhe melhor a ambiguidade do sexo. Seus braços lisos e roliços, enfeitados de braceletes, e as mãos aneladas poderiam ser os de uma belíssima negra.

Pousou um olhar sereno sobre Angélica, descabelada, e disse em francês, com sua voz harmoniosa:

— Quer tomar chá? Xarope de limão, talvez? Quer que lhe traga carneiro assado? Guisado de pombo na canela? Ou doces de amêndoa? Deve estar com fome e sede!

— Quero ar livre! - gritou Angélica. - Quero ver o céu, quero sair desta prisão.

— Só isso? - disse suavemente o grão-eunuco. - Siga-me, por favor.

Se o oferecimento era liberal, nem por isso os guardas deixaram a jovem, que se tornara seu terror, desde que sua fuga provocara a execução de cinco deles.

Ela teve de subir de novo a escada estreita e outra logo em seguida. De repente viu-se sobre um terraço de telhado, com toda a imensa abóbada estrelada do céu acima dela. O luar impregnava a bruma fresca exalada- do mar e que ganhava um tom azulado claro, envolvendo tudo- e dando um aspecto vaporoso até à pesada cúpula de uma mesquita próxima. O alto minarete parecia transparente, permeável aos raios da lua, causando vertigem naquela névoa de luz azul, tãc# grande parecia, tão imaterial e leve.

Intermitentemente, latidos de cães cortavam o silêncio, trazidos na tepidez pesada da noite com o suspiro da ressaca. Os clamores da Taberna da Senzala não chegavam até aquele quarteirão rodeado de belos jardins, onde os aristocratas de Argel tinham seus serralhos. Era o silêncio das noites muçulmanas, tão apaixonadas e férteis quanto o dia, e talvez mais ainda, pois é de noite que se tramam as intrigas, executam-se os complôs, os mudos estrangulam e as mulheres apaixonadas têm o direito de ir sonhar diante da imensidão do mundo proibido. Adivinhavam-se-lhes as formas brancas de telhado em telhado, enroscadas sobre divãs e almofadas, ou movendo-se em lentos passeios. Estavam finalmente de rosto descoberto e saboreavam a brisa e o sal que vinha do mar. Ao murmúrio das ondas respondia o murmúrio de suas vozes, pairando com risos discretos, por entre o retinir de taças de prata e o odor fresco de chá de hortelã e doces.

De vez em quando um dos guardas eunucos levantava-se e fazia sua ronda, seguindo a beirada estreita dos telhados e os pátios das casas. Negros e lentos sob o céu enluarado, passavam de olhos desconfiados, perscrutando o oco das ruelas onde o amante audacioso poderia esconder-se, mas mostrando-se indulgentes aos risos e saudações entre vizinhas.

Os guardas tinham soltado Angélica. Ela voltou-se e descobriu o mar, imensa esteira de ametista,- estriada de prata. Era difícil imaginar que do outro lado daquele cenário estivessem as costas europeias e as altas casas de pedras castanhas ou cinzentas, abertas com inúmeras janelas curiosas, mas fechadas para o céu.

Angélica sentou-se à beira da muralha. Naquele terraço onde se encontrava, havia outras mulheres, sentadas sobre almofadas, mas que permaneciam em silêncio. Até as criadas que lhes serviam o chá e passavam as bandejas de doces pareciam tímidas, pois eram todas escravas adquiridas pelo grão-eunuco ou ofertadas por Mezzo Morte, e ainda não se conheciam.

Osman Ferradji observava Angélica com grande atenção. Como que tomado de súbita inspiração, disse:

- Quer café turco?

As narinas de Angélica palpitaram. De repente sentiu que o que mais lhe fazia falta, desde que chegara a Argel, era o café turco!

Sem esperar-lhe a aprovação, Osman Ferradji bateu palmas e deu ordens breves. Em alguns instantes se desenrolou um tapete, amontoaram-se almofadas, trouxe-se uma mesa baixa, e o flagrante vapor do café preto elevou-se no ar. Osman Ferradji fez sinal às criadas para que se afastassem. Sentado sobre o tapete, as longas pernas cruzadas, fez questão de ele próprio servir a cativa francesa. Estendeu-lhe o açúcar e ofereceu-lhe pimenta socada e licor de abricó, mas ela recusou. Tomou o café com um nada de açúcar. Seus olhos fecharam-se sob o efeito de uma violenta nostalgia.

"O odor do café me lembra Cândia... a sala das vendas, onde seu perfume se misturava tão forte ao da fumaça de tabaco... e eu gostaria de retornar a Cândia, àquele momento em que uma mão me ergueu a cabeça... o café cheirava bem. Fui feliz em Cândia..."

Tomou três goles e se pôs a chorar, a garganta convulsa por soluços veementes que em vão ela tentava reter. Não desejava aquela fraqueza, aquela derrota diante dos olhos do grão-eunuco, tanto mais que o absurdo de seu sentimento lhe parecia total. Em Cândia ela não passava de uma infeliz escrava brutalizada, que fora colocada à venda no batistan. Mas em Cândia ainda tinha esperança de sobra, tinha um objetivo! Tinha também seu velho amigo, o diligente Savary, para encorajá-la, animá-la, guiá-la, para lhe passar cartas a assinar pelas grades de sua masmorra, ou fazer-lhe sinais cabalísticos sob seus farrapos de mendigo. Onde se encontraria ele, o pobre Savary? Talvez lhe tivessem perfurado os olhos para girar a nora do poço em lugar de um asno... Ou o teriam lançado ao mar ou aos cães? Eram bem capazes disso!

— Não compreendo - disse a voz suave de Osman Ferradji - que chore, que grite, que se debata e se enerve assim...

— Ah, de fato! - disse Angélica, entre dois soluços. - Não compreende que uma mulher que é separada dos seus e aprisionada possa chorar! Parece-me que não sou a única. Escute a outra, lá embaixo, que urra.

— Mas você! Não é a mesma coisa.

Ergueu a mão, abrindo em leque os longos dedos cheios de anéis e de unhas vermelhas, e contou:

-        A mulher que enlouqueceu o Marquês d'Escrainville, o Terror do Mediterrâneo, que levou Dom José de Almada, o mais prudente comerciante que-coriheço, a elevar um lance até vinte e cinco mil piastras; que escapou ao invencível Rescator; que falou na cara de Mezzo Morte num tom insultante que nenhum de seus próprios inimigos jamais ousou. E eu acrescentaria:-a primeira mulher que fugiu das mãos df Grão-Eunuco Osman Ferradji! Isso é uma grande referência. Quando se é essa mulher, senhora, não se chora nem se tem crises de nervos!

Angélica procurou o lenço e engoliu de uma vez a xícara de café, que esfriava. O relato de seus feitos que Osman Ferradji lhe apresentava não deixou de impressioná-la com seus próprios recursos e despertou-lhe a combatividade. Ela pensou: "Por que, no final das contas, não seria eu também a primeira mulher a conseguir fugir de um harém?"

Seus olhos verdes pousaram sobre o grão-eunuco, a sua frente. Ela reencontrava o sentimento de simpatia e deferência que ele espontaneamente lhe inspirara quando ela se sentara a seu lado, no dia do suplício do cavaleiro alemão. Iluminado pela lua, aque--le rosto parecia de um bronze delicado, de sombras cheias e cinzeladas demais para um homem, mas as sobrancelhas baixas davam-lhe um ar de gravidade severa quando ele não sorria. Mas o grão-eunuco sorriu. Pensava que os olhos verdes daquela mulher podiam assemelhar-se aos de uma pantera. Ela era da mesma raça da pantera, e suas lágrimas não significavam nada além do despeito de se ter deixado vencer. Ele saberia cativar-lhe a ambição.

-        Não - disse, meneando a cabeça -, enquanto eu for vivo, você não fugirá! Quer pistáceos? Vêm de Constantinopla. São bons, pelo menos?

Angélica trincou com a ponta dos dentes e disse que já comera melhores.

-        Onde? - perguntou Osman Ferradji, subitamente muito ansioso. - Lembra-se do nome e do endereço do mercador?

Acrescentou que era uma preocupação para ele satisfazer a gulodice das centenas de mulheres de Mulay Ismael. Esperavam mundos e fundos de sua viagem a Argel, onde estivera para se abastecer de vinhos gregos e doces do Oriente. Os haréns de Mulay Ismael eram os mais bem providos da Barbaria, graças a seus cuidados. Quando estivesse em Miquenez, ela veria...

Angélica ergueu-se, com todas as garras à mostra.

— Não irei nunca a Miquenez. Quero minha liberdade.

— Para fazer o quê?

Foi uma pergunta tão suavemente impregnada de surpresa que a revolta de Angélica murchou como um balão furado. Poderia gritar que queria retornar a sua gente, rever seu país, mas de repente já não sabia, e sua existência lhe pareceu uma zombaria. Já não tinha vínculos, exceto os dois filhos, e até a eles ela já não arrastara na confusão de seus projetos insensatos?

— Aqui ou ali - murmurou o grão-eunuco -, onde Alá nos quiser, desfrutemos dos sabores da vida. As mulheres têm uma grande capacidade de adaptação. Você tem medo porque temos a pele negra ou marrom e porque desconhece nossa língua. Mas o que há entre nossos costumes que lhe possa causar tanto receio?

— Você acredita que um pequeno espetáculo como a execução do cavaleiro de Malta, a que assistimos outro dia, me predisponha a achar agradáveis os costumes muçulmanos?

Osman Ferradji pareceu sinceramente surpreso.

— Em seu país não há execuções em que os homens são esquartejados por quatro cavalos? Os franceses com quem conversei falaram-me disso.

— E verdade - anuiu Angélica. - Mas... não todos os dias. Esse suplício só é aplicado aos regicidas.

— O do cavaleiro de Malta também foi um acontecimento raro. Tratá-lo assim é reconhecer o valor de um inimigo, o medo que ele inspira e o mal que infligiu. Foi uma grande honra para ele. Tem medo, minha cara, porque, assim como todos os cristãos que não querem saber o que é o Islã, você é ignorante. Imaginam que somos selvagens. Você verá nossas cidades do Maghreb, do país do poente supremo, Marrocos, que é rosa como uma fogueira aos pés das montanhas Atlas, onde a neve cintila como pontas de diamante. Fez, cujo nome quer dizer "ouro", e Miquenez, a capital do sultão, que parece construída de marfim. Nossas cidades são mais belas e ricas do que as suas.

-        Não, é impossível. Você não sabe o que diz. Não pode com parar Paris a esse amontoado de cubos brancos...

Fez um gesto em direção a Argel, adormecida a seus pés, e deteve-se. Era um mundo inimaginável, fora do tempo, como um sonho.

Ali, a seus pés, uma cidade construída pela magia da lua, numa porcelana translúcida, à beira de um mar de ametista; um sonho, e sob os ouropéis berrantes da cidade dos piratas, a revelação da alma lenta e meditativa do Islã.

— Você não foi de fnodo algum feita para o medo - dizia Os-man Ferradji, balançando a cabeça. - Seja dócil, e ele não lhe fará mal algum. Dar-lhe-ei tempo para se habituar a nossos costumes islamitas.

— Não sei se algum dia me habituarei a esse desprezo que têm pela vida humana.

— A vida humana merece tanta inquietação? É verdade, de fato, que os cristãos têm um medo terrível da morte e da tortura. Seu culto parece prepará-los mal para suportar a visão de Deus.

— Mezzo Morte já me disse algo no género.

— Esse não passa de um renegado, um "turco de profissão" - disse o grão-eunuco sem ocultar o desdém -, no entanto prefiro crer que ele não tenha sido atraído para nós apenas pelo espírito de lucro e ambição, mas também por essa liberdade de crença que dá o gosto de viver e o gosto de morrer, e não o medo de uma coisa e outra, como entre os cristãos.

— É realmente lamentável que você não possa ser sacerdote, Os-man Ferradji. Você prega bem. Imagina que conseguirá converter-me?     

— Não terá escolha. Você se tornará muçulmana ao ser uma das mulheres de nosso grande senhor, Mulay Ismael.

Angélica comprimiu os lábios para não responder. Pensou, com irreverência: "Pois pode contar com isso!"

Felizmente o bicho-papão marroquino que lhe reservavam por amo estava longe! Nesse meio tempo, ela teria de encontrar a possibilidade de fugir E encontraria. Osman Ferradji tivera razão ao faze-la tomar cate!...

CAPITULO VII

Savary e seu elefante - Osman Ferradji e suas preocupações comerciais

E logo de começo reencontrou Mestre Savary. Sinal seguro de que o céu velava por .ela.

O caravançará ondelos marroquinos recebiam a hospitalidade de Argel era uma construção maior do que o batistan de Cândia, e, como este, funcionava como hotel e como entreposto. A mesma planta geral: um imenso retângulo, como uma moldura de quadro, com dois andares de quartos que se abriam para um grande pátio interno com colunas, o qual por sua vez cercava um pátio-jardim com três fontes, loureiros-rosa, limoeiros e laranjeiras.

Só se podia entrar por uma porta, guardada por um corpo de guardas armados. Nenhuma janela dava para a rua. Todas as paredes para o exterior eram cegas, os telhados eram chatos, com beiradas e ameias em forma de seteiras, onde permanentemente se postavam sentinelas.

Os quarenta ou sessenta aposentos da imponente construção, verdadeira fortaleza no coração de Argel, estavam entupidos de gente e de animais. Embaixo, vários cómodos serviam de estrebaria, de estábulo para os fogosos cavalos de sela, os asnos, os camelos. Foi por ali que Angélica viu aparecer um curioso animal, de pescoço comprido, sinuoso e malhado, no alto do qual havia uma cabeça minúscula com dois grandes olhos ternos e orelhas minúsculas. O animal não parecia mau, contentando-se em espichar o pescoço por sobre as colunas do pátio a fim de atingir as folhas de um loureiro-rosa. Angélica o observava com espanto, quando uma voz francesa informou:

-        É uma girafa.

Um monte de palha moveu-se para deixar aparecer a silhueta encurvada e cada vez mais andrajosa de seu amigo, o velho boticário.

— Savary! Oh, meu caro Savary! - murmurou ela, sufocando um grito de alegria. - Como é possível que você esteja aqui?

— Quando soube que estava nas mãos do Grão-Eunuco Osman Ferradji, não sosseguei até chegar junto de você. O acaso ajudou-me. Fui comprado por um carregador turco, encarregado de varrer a caserna dos janízaros. Mas a importância desse indispensável funcionário o obrigava a ter um escravo para empurrar a vassoura em seu lugar. O guarda deste estábulo é amigo dele. Eu soube que o elefante estava doente. Ofereci-me e consegui curá-lo. O guarda me comprou do carregador, e aqui estou eu.

— Savary, o que será de nós? Querem levar-me para o Marrocos, para o harém de Mulay Ismael.

— Não se desespere. O Marrocos é um país muito interessante, e faz muito tempo que desejava a oportunidade de retornar até lá. Deixei conhecidos naquele país.

— Outro filho? - perguntou Angélica, com um pálido sorriso.

— Não, dois! Um é filho de uma judia. Não há como esses vínculos de sangue para criar cumplicidades sinceras. Devo confessar que para meu grande pesar não tenho herdeiro em Argel. Isso torna extremamente difícil qualquer possibilidade de evasão. Você viu por si mesma o que pôs em risco ao tentar fugir...

— Ouviu falar de minha fuga?

— As notícias correm aqui. Uma escrava francesa, fugida e inencontrável: só podia ser você. Não foi castigada com excesso de severidade?

— Não. Osman Ferradji mostrou-se cheio de atenções comigo.

— Isso é bastante singular, mas regozije-se.

— Tenho bastante liberdade, até. Deixam-me ir e vir na casa, e até sair do apartamento das mulheres. Ainda não é o harém, Savary. O mar fica próximo. Não seria o momento de tentar outra fuga?

Savary suspirou, pegou uma escova de um balde e se pôs a esfregar vigorosamente a girafa. Depois de algum tempo perguntou o que acontecera com Mohammed Raki. Angélica contou-lhe as revelações de Mezzo Morte. Para ela não restava esperança. Só desejava uma coisa: fugir, retornar à França.

-        Sempre se quer fugir - constatou Savary -, e depois vem o arrependimento. É essa a magia do Islã. Você verá. Mas comecemos fugindo, pois os primeiros sintomas da doença sempre se apresentam assim.

A noite Osman Ferradji foi ao encontro de Angélica e perguntou-Ihe cortesmente se o velho escravo cristão que limpava os estábulos era seu pai, tio ou algum parente. Angélica corou ante esse testemunho de uma vigilância da qual ela se considerava livre. Respondeu, veemente, que o homem era um companheiro de viagem por quem tinha amizade e que além disso era um grande sábio, mas que os muçulmanos o tinham posto a varrer esterco, pois era essa a maneira deles de humilhar os cristãos, colocando o criado no lugar do amo e os grandes espíritos na imundície. Osman Ferradji balançou a cabeça diante daquela explosão de menininha revoltada.

-        Você está enganada, como todos os cristãos. Pois o Corão disse: "No dia do Juíztf, a tinta do sábio pesará mais na balança do que a pólvora do gtferreiro". Aquele digno ancião é médico?

Ante a resposta afirmativa, o rosto do "grão-eunuco iluminou-se. A islandesa estava doente, assim como o elefante, dois preciosos presentes do almirante de Argel para o sultão, e era lamentável que esses présente*estivessem danificados antes mesmo de deixarem a cidade.

Savary representou o papel de bom grado, e conseguiu diminuir a febre de ambos os doentes, graças a um remédio de composição sua. Angélica surpreendia-se de que ele pudesse conservar, em meio a todas as vicissitudes e no fundo dos bolsos cada vez mais esburacados, pós, pastilhas e ervas cujo segredo conhecia. O grão-eunuco mandou dar-lhe uma djellaba decente e tomou-o a seu serviço.

-        Aí está - concluiu Savary. - Sempre começam por querer lançar-me ao mar ou aos cães, e bem depressa já não podem passar sem mim.

Agora Angélica se sentia menos só. A velha escrava cristã, Fátima, com seu francês infantil, também contribuía para lhe desvendar a língua e os costumes daquele mundo estranho.

Quando pediu autorização ao grão-eunuco para tomar a seu serviço a velha Fátima, Osman Ferradji dissera que duvidava de que ela concordasse em ir para o reino do Marrocos, onde não havia proprietários particulares de escravos:, só o rei era proprietário de todos os escravos cristãos, quase quarenta mil! Ora, a velha Fátima era livre em todo o Islã, embora teimasse em se considerar escrava, e certamente teria medo de partir para a terra de árabes com outro sotaque e a quem os argelinos, apesar de todas as reverências, consideravam selvagens.

Contra toda expectativa, porém, Fátima declarara que sentia que já não tinha muitos anos de vida e que, estando sozinha em Argel agora, preferia morrer sob a proteção de uma compatriota que era marquesa como sua primeira ama, no tempo em que ela se chamava Mireille.

- E a prova - comentou Osman Ferradji - de que a velha feiticeira a vê rodeada de presságios felizes e de que "a sombra de Mulay Ismael recairá sobre você", para chamá-la ao grandíssimo favor que sua beleza e inteligência merecem.

Angélica preferiu não desiludi-lo. Dizia a si mesma que o chefe do harém representava para ela a única esperança de alguma humanidade, em comparação com os outros poderosos, desde o dia em que acostara naquele país hostil: Mezzo Morte e os jovens lobos, o dei de Argel e seus "mudos" do serralho, os rases e sua taífe, todas as associações de piratas e bandoleiros. O negro, porém, demonstrara por ela uma indulgência que não lhe era habitual, pois para ele a disciplina e a ordem vinham antes de tudo. Porque apareceu sem véu no pátio do andar, no momento em que havia cameleiros embaixo, a pequena circassiana Matriamti fora chicoteada por ordem do grão-eunuco. Angélica, em compensação, que se permitia descer até aquele mesmo pátio, não apenas sem véu, como em seus "indecentes" trajes europeus, não recebera nenhuma admoestação. Ele só lhe pediu que se velasse para acompanhá-lo duas ou três vezes à rua, a estabelecimentos comerciais.

Desde a estada no palácio flutuante de Mezzo Morte, Angélica sentia um medo terrível das crianças muçulmanas. Além dos cadetes de turbante amarelo, havia aqueles bandos de crianças que atiravam cacos de garrafas pelas aberturas das masmorras ou que enfiavam espinhos nas costas de forçados cristãos acorrentados. Bem se podia imaginar a sorte de uma escrava perseguida quando se dava o alarma. Portanto, ela escapara ao pior! Constatava agora uma inquietante invasão de crianças em seu caravançará. Eram centenas, espalhadas pelos gramados e em torno dos chafarizes, e pareciam não ter outra coisa a fazer senão roer avelãs e comer filhoses e doces.

Foi informar-se com o Bei Osman.

- Elas fazem parte dos presentes que meu ilustre senhor, o rei do Marrocos, digna-se aceitar desses cães argelinos. O rei adora a juventude que vem de todos os cantos do mundo: do longínquo Cáucaso assim como do Egito, da Turquia como do sul da Africa, da Grécia ou da Itália. Formará pajens para suas tropas de assalto. Pois não é para nenhuma finalidade luxuriosa que Mulay Ismael gosta de garotos, mas porque são guerreiros em potencial. Não esqueça que ele é chamado de Espada do Islã. Ele sabe o que deve a Alá. Entre nós, o Ramada, o grande jejum, dura dois meses, e não apenas um, como entre esses moleirões argelinos. É preciso que soframos duplamente para compensar atepidez religiosa dos ditos muçulmanos daqui. Claro, batem-se bastante bem contra os cristãos, mas são desonestos demais nos negócios e abominam o trabalho. Onde estão suas construções? Entre nós, no Marrocos, constrói-se muito. Sugeri ao sultão que formasse falanges de conquistadores, guerreiros e construtores ao mesmo tempo. Quinze mil crianças negras aprendem primeiro a construir e a fazer tijolos. Isso dura dois ano£ Depois, durante outros dois anos, montam a cavalo e guardam os rebanhos. Aos dezesseis anos, fazem seu aprendizado de armas e participam dos combates.

A companhia do grão*eunuco e sua conversa nunca careciam de interesse. Ele parecia ter pela cativa francesa uma estima singular, o que não deixava delisonjeá-la, embora ela se colocasse na defensiva. Perguntavá-se em que medida aquele negro de inteligência fria poderia tornar-se aliado seu. No momento, dependia inteiramente dele. As outras mulheres, escravas cristãs, às quais se misturavam umas dez belas cabilas e negras etíopes, temiam-no muito. Assim que a alta estatura de Osman Ferradji projetava sua sombra sobre o lajeado, elas se petrificavam, sufocavam as risadas e assumiam ar de alunas internas surpreendidas em falta. O olho majestoso do grande negro vagava sobre aquela tropa indócil e matreira. Falava-lhes sem violência, mas nenhum detalhe lhe escapava.

Naquele dia ele parecia preocupado. Acabou confessando-lhe sua confusão. A nobre cativa francesa que ele tinha a honra de conduzir ao serralho do rei do Marrocos não falara.um dia do comércio que fazia por conta própria? Costumes estranhos esses de grandes damas se ocuparem de um tráfico considerado vil. Erroneamente, aliás, pois o próprio Maomé, em sua grande sabedoria, que recebia de Deus em pessoa, não deixara de lembrar que todos os ofícios eram nobres para um verdadeiro crente, e que, dentre os quarenta apóstolos reconhecidos pelo Islã, Adão não fora agricultor, Jesus, carpinteiro, Jó, mendigo, Salomão, rei, e vários outros, mercadores? Portanto, a francesa não tinha de que se envergonhar por, outrora, haver-se dedicado aos negócios, sem dúvida antes de obter o elevado título de marquesa. Sendo assim, ela devia conhecer tecidos, aquela lã pura tão especificamente cristã, mas cuja qualidade um bom muçulmano não sabe reconhecer bem. A inestimável Turquesa ainda saberia reconhecê-la?

Angélica escutara com boa vontade âlonga queixa comercial do grão-eunuco. Concordou em segui-lo até um fardo cuja embalagem deixava ver lã verde e lã escarlate. Não era nenhuma especialidade sua, mas lamúrias de Colbert a tinham iniciado um dia nas flutuações daquela moeda de troca que era a mais corrente com os países muçulmanos.

Apalpou uma ponta amarrotada e olhou-a à luz.

— Não valem grande coisa... O vermelho é feito de lã, concordo, mas de lã "morta", quer dizer, de pêlo de carneiro perdido e recolhido dos espinheiros, e não tosquiado, como deveria. Além disso, foi tingido não com garancina, mas com alguma outra coisa que não sei. Eu ficaria surpresa se não desbotasse ao sol.

— E o outro fardo? - perguntou Osman Ferradji, cuja serenidade habitual cedia a uma ansiedade que ele encontrava dificuldade em dissimular.

Angélica apalpou o tecido verde, duro demais.

-        É o pior refugo! A aparência da lã é melhor, sim, mas está misturada e engomada demais; se molhado, vai amarrotar, enco

lher e só pesará a metade.

O grão-eunuco ficou cinza. Com voz insegura, pediu à cativa que examinasse mais dois rolos de lã. Angélica afirmou que esses dois eram da melhor qualidade possível. E acrescentou, após um momento de reflexão:

-        Suponho que foram estes dois rolos que lhe enviaram como amostra, para encorajá-lo a fazer uma encomenda maior?

O rosto de Osman Ferradji iluminou-se.

-        Adivinhou corretamente, Sra. Firuzê. Foi Alá quem a enviou a mim. Senão eu correria o risco de perder a dignidade diante do reino do Marrocos e das regências de Argel e Túnis. E a rainha, tão difícil, a Sultana Leila Aícha, teria facilmente me desacreditado junto a meu amo. Ah, realmente, foi mesmo Alá que me deteve o braço quando, em minha cólera com sua fuga, resolvi torturá-la sob os olhos das escravas, para que sua execução lhes servisse de lição. E depois cortar-lhe a cabeça com meu sabre, que mandei amolar especialmente para isso. Mas a sabedoria segurou-me o braço, e meu mais belo sabre está reduzido a guarnecer-se de ignóbeis manchas de ferrugem neste buraco de ratos que é Argel, ninho de imundos mercadores enganadores. Ah, mê~u sabre, console-se! Chegou a hora de arrancá-lo a essa penosa inação para uma obra útil e de justiça.

A última frase foi proferida em árabe, mas Angélica compreendeu-lhe o sentido sem dificuldade ao ver o imenso Os-man Ferradji sacar da cimitarra com um gesto teatral e fazê-la cintilar ao sol. Criadas vieram correndo cobrir a cativa com um amplo baík de seda, colocaram-na numa cadeirinha escoltada por guardas armados, e ela se viu ao lado do grão-eunuco na loja do mercador fraudulento.

O homem já estavacom a jesta colada no chão. O marroquino, muito calmo, pediu a Angélica que repetisse a opinião que dera sobre a qualidade das lãs-. Os fardos de tecido tinham sido levados e desenrolados. Um escravo francês, caixeiro do mercador, traduziu gaguejando um pouco e olhando de soslaio para o sabre que o grão-eunuco empunh#va.

0 negociante argelino protestou sonoramente sua boa-fé. Era evidente que havia um mal-entendido. Jamais, em sã consciência, ele enganaria o enviado do grande sultão do Marrocos. Ele ia pessoalmente a seu depósito verificar todas as peças da encomenda do venerado e ilustre vizir do Rei Mulay Ismael. Todo encurvado, desapareceu em seu antro escuro.

Osman Ferradji olhou Angélica com um sorriso satisfeito. Seus olhos brilhavam e se franziam como os de um gato que se prepara para saltar sobre um camundongo. Deu uma piscadela na direção do fundo da loja. Ouviram-se gritos terríveis, e o mercador reapareceu, solidamente seguro por três guardas negros que o haviam agarrado no momento em que tentava escapar por trás.

Fizeram-no ajoelhar-se e pousar a cabeça sobre um dos fardos de lã.

— Não, não vai cortar-lhe a cabeça?! - exclamou Angélica. A voz francesa deteve o braço já erguido do grão-eunuco.

— Não é um dever eliminar um animal fedorento? - perguntou.

— Não, realmente não - protestou a jovem, horrorizada.

O sentido de sua intervenção escapava totalmente ao chefe do serralho de Mulay Ismael. Mas ele tinha seus motivos para querer levar em conta a sensibilidade da cativa francesa. Suspirando, cancelou a execução do mercador, que por pouco não o desonrara, a ele, o mais judicioso intendente da enorme casa do rei do Marrocos. Cortar-lhe-ia apenas a mão, como os ladrões. E fez isso imediatamente, com um golpe seco, como se banalmente cortasse um pedaço de cana-de-açúcar.

-        É mais do que tempo de deixarmos esta cidade e este país de ladrões! - dizia alguns dias depois Osman Ferradji.

Angélica teve um sobressalto. Não o ouvira aproximar-se. Três negrinhos o seguiam: um trazia café; o segundo, um livro grosso, um rolo de papel, tinta e um estilete de caniço; e o terceiro, um tição em brasa e uma braçada de espinhos.

Angélica continuou expectante. Com aquela estranha personagem, era preciso estar preparada para qualquer coisa. Não seria aquilo o equipamento para um suplício especial e refinado?

O grão-eunuco sorria. Puxou da djellaba um grande lenço xadrez vermelho e preto, desfez-lhe o nó e tirou um anel.

— Este é um presente pessoal para você: um anel. Naturalmente é pequeno, pois, embora eu seja muito rico, devo deixar ao rei, meu amo, o privilégio únipo de dar-lhe presentes de grande valor. Ofereço-lhe este como sinal de aliança. E agora vou começar a ensinar-lhe árabe.

— Mas... esse fogo? - perguntou Angélica.

— É para purificar o ar em torno do Corão que você vai começar a estudar. Não se esqueça de que ainda é cristã, portanto polui tudo o que a cerca. Por todo lugar onde passar durante a viagem, serei obrigado a purificar o ar com ritos e, frequentemente, com fogo. É bastante incómodo, pode acreditar...

Ele se revelou um professor dedicado, paciente e culto. Angélica não demorou muito a sentir prazer com as aulas. Distraíam-na. Aprender só lhe poderia ser útil e a ajudaria a criar cumplicidade e a fugir um dia.

Como? Quando? E onde? Disso ela não tinha a menor ideia. Repetia a si mesma apenas que, se continuasse viva e na posse da própria razão, conseguiria fugir!

Entre as coisas que precisava aprender, estava que a noção de tempo não existe no Oriente. Assim, quando o grão-eunuco lhe repetiu algumas vezes que "partiriam sem demora" para o Marrocos, Angélica de início tomou a afirmação ao pé da letra. Imaginava-se todos os dias empoleirada no camelo de uma caravana. Mas os dias passavam. Osman Ferradji não parava de criticar os preguiçosos e ladrões argelinos - "mais ladrões do que eles, só judeus e cristãos" -, mas era visível que não havia nenhuma previsão para a partida.

Por outro lado, um dia trazia à francesa um corte de veludo veneziano para pedir-lhe a opinião; outra vez consultava-a sobre a escolha de um couro de Córdova destinado a fabricar selas.

Avisou-a de que aguardava um carregamento de certo almíscar da Arábia, assim como pistácios e abricós da Pérsia, e também giaze persa, aquele nuga perto do qual o de Argel e o do Cairo não passavam de uma infecta imitação.

Levada, malgrado seu, por essas confidências domésticas, Angélica permitiu-se confiarílhe que o bei persa Bakhtiari lhe dera a receita exata do nuga original, feito de mel misturado com pasta de amêndoas e certas farinhas, uma das quais não era outra senão o famoso maná do deseíto, aqueles cristais de açúcar que, exsuda-dos por arbustos em grande quantidade, formavam flocos que, soprados pelo vento, empilhavam-se em verdadeiras dunas nevosas. A mistura era endurecida com os pés em cubas de mármore e recheada de pistácios e avelãs.

O austero negro bateu palmas como uma criança e logo tratou de mandar vir aquele maná, especialidade dos desertos bíblicos. Isso prometia um indefinido prolongamento da estada. Angélica não sabia se devia contentar-se com isso. Enquanto permanecesse diante do mar, conservaria a ilusão da possibilidade de uma evasão. No entanto, a servidão de milhares de escravos, alguns dos quais estavam ali há vinte anos, desmentia essa esperança. Argel era uma cidade da qual não se fugia. A certa altura Angélica imaginou que a caravana fariaparte do trajeto por mar. Durante uma noite inteira convenceu-se de que 'os navios marroquinos não poderiam deixar de ser detidos por cavaleiros de Malta ou piratas cristãos, e essa certeza iluminava-lhe o rosto quando o grão-eunuco, numa das aulas de árabe, disse como se concluísse uma conversa sobre o assunto:

- Se no mar não houvesse essa maldita frota de Malta, em menos de vinte dias eu teria o privilégio de apresentá-la a meu amo, o poderoso comandante dos crentes, Mulay Ismael.

Contraiu os olhos de negro semita quase até fechá-los, reduzindo-os a uma fenda dourada, que reluzia intensamente.

A jovem já sabia que aquela era a maneira dele de solicitar-lhe uma apreciação, quase um conselho disfarçado, e também, às vezes, de mostrar-lhe que lhe adivinhava os pensamentos.

Agora o chefe do serralho parecia ter dado o último retoque a sua imponente caravana. Todo dia a partida era iminente. Mas todo dia, por motivos misteriosos - talvez não houvesse nenhum -, a ordem de partida era cancelada, e Osman Ferradji voltava a aguardar algum novo sinal invisível, certamente imprevisível.

Uma das causas do atraso, entre outras, foi a preocupação com a saúde do elefante anão. Não se podia arrastar por rotas de montanhas e desertos um animal tão precioso quanto raro e que Sua Majestade receberia entusiasmado. Mulay Ismael era louco por animais. Tinha mil cavalos em suas estrebarias e quarenta gatos em seus jardins, e todos atendiam pelo nome. Era preciso esperar que o elefante se recuperasse. Todos os dias o médico, o velho escravo Savary, era longamente consultado.

Depois foi preciso esperar a captura pelos tripolitanos de um navio que se sabia estar carregado do melhor vinho de malvasia. Nessa ocasião Angélica teve de suportar um atento interrogatório. O que pensar dos vinhos doces franceses, portugueses, espanhóis e italianos? Eram licores para servir às damas do harém ou devia-se considerá-los vinhos inebriantes e, assim, proibidos pela religião do Islã?

Angélica sugeriu, com uma ponta de ironia, que se consultassem os talhes, ou doutores corânicos, para que esclarecessem a espinhosa questão, e o eunuco ficou encantado com a resposta que demonstrava a sabedoria de sua aluna e a compreensão da lição que lhe dera, ensinando que "Islã" significa "submisso a Deus".

A malvasia foi aceita por Maomé e esperou-se pela sua captura. O grão-eunuco teria ficado muito pesaroso de retornar a seu país sem levar uma bebida rara e saborosa para lisonjear a gulodice daquelas damas sempre à espera de novidades por trás das grades de seu harém. No início de sua estada em Argel, comprara várias barricas de um vinho que lhe disseram ser famoso, mas Angélica lhe revelara que se tratava de uma zurrapa detestável, e mais uma vez ele se vira prestes a ser desonrado. Desta vez nada impediu seu sabre vingador de abater-se sobre o pescoço do velhaco que lhe vendera as tais barricas e que ainda por cima ousava gabar-se de sua condição de ex-peregrino de Meca e de seu título de Hadj!

Angélica ouvia com paciência essas tagarelices que se pareciam muito com comadrices de mulher. Às vezes se surpreendia de, um dia, haver tomado aquele negro como um autêntico descendente dos Reis Magos. Dizia-se que ele era mesquinho como uma comadre, tão tagarela quanto uma mulher e até -mais cheio de caprichos. Tinha-se a impressão de que ele sempre sapateava e se recompunha com dificuldade. '

- Não se engane, senhora - disse-lhe o velho Savary, meneando a cabeça quando ela lhe confiava suas dúvidas. - Esse Osman Ferradji foi quem fez de Mulay Ismael o sultão do Marrocos, e neste momento procura instituí-lo como comandante de todo o Islã e talvez da Europa. Maneje-o, senhora, e rogue a Deus para que nos ajude a escapar de suas mãos, poissó Deus pode nos ajudar.

Angélica dava de ombros. Savary falava como aquele louco do Marquês d'Escrainyille.íEstaria começando a ceder? Certamente que tinha motivos, corrr todas àquelas aventuras. Para que o velho boticário, sempre engenhoso, e tramando complôs secretos, de repente se entregasse ao céu, era preciso que já não estivesse em seu estado normal! Ou que considerasse a situação particularmente grave... ;. . 0

Savary era livre para circular pela cidade, em sua qualidade de mukanga, "médico" ou "feiticeiro" em sudanês. Assim, vasculhava tendas e bazares à procura" de ervas ou produtos químicos necessários a seus medicamentos, mas trazia sobretudo uma colheita de novidades ouvidas de escravos capturados mais recentemente. Em Argel, que reunia gente de todos os pontos da Europa, sabiam-se as novas talvez melhor do que os reis da França, Inglaterra ou Espanha. Já se sabia que Racoczi se tornara rei da Hungria e que Luís XIV se lançara numa guerra contra a Holanda.

Para Angélica as informações pareciam ridículas e irreais. Aquele rei da França que entrava em guerra com a Europa era o mesmo que a tivera nos braços, suplicando-lhe baixinho que não fosse cruel com ele? E, se ela o chamasse em seu socorro, será que ele troaria seus canhões para libertá-la? Ainda não pensara nisso, e rejeitava o pensamento, pois para ela seria uma derrota. Escravos incontáveis, provenientes do mundo inteiro, não falavam nunca de um homem desfigurado e coxo, chamado Joffrey de Peyrac. Ela pudera determinar com certeza que ele viera para o Mediterrâneo, mas seu rastro parecia já haver desaparecido há vários anos. Deveria aceitar a versão de Mezzo Morte, segundo quem o conde morrera de peste há muito tempo? Quando, pouco a pouco, essa ideia se impôs, Angélica sentiu uma espécie de alívio. Ás vezes a incerteza é a pior das torturas. Melhor que a chaga seja aberta. "Já corri demais atrás de minha esperança..."

Por vezes achava que compreendia Savary melhor. Durante anos ele vivera ardentemente em função de sua "múmia mineral". Seu ato de bravura, o incêndio de Cândia, não passara de uma experiência científica. Agora ele tateava..O esqueleto do elefante anão e os cuidados dedicados a seu descendente vivo não pareciam material suficiente para o cérebro do sábio. Assim como ela, ele era arrastado por um destino cego. No fundo, a vida toda não é apenas um caminhar sem finalidade? Não, ela não queria deixar-se amolecer pelo calor e pelo claustro dourado que a cercavam. Queria fugir, e isso já era uma finalidade!

Com novo ardor, inclinou-se sobre o pergaminho onde desenhava sinais. E estremeceu, porque o olhar de Osman Ferradji a fixava. Esquecera-se da presença dele. Parecia-lhe que ele sempre estivera ali, hierático e misterioso, com as longas pernas cruzadas sob as dobras da djellaba de lã branca. Estava «om um cafetã cinza-pomba e uma alta boina preta, cujos bordados eram do mesmo vermelho que suas unhas.

-        A vontade é uma arma mágica e perigosa - observou ele.

Angélica encarou-o, agitada por uma cólera brusca, como toda vez em que se sentia lida por ele.

— Quer dizer que é preferível deixar-se levar pela vida e pelos acontecimentos, como um cão morto ao sabor das ondas?

— Nosso destino não está em nossas mãos, e o que está escrito está escrito.

— Quer dizer que nunca se pode alterar a sorte?

— Sim, pode-se - disse ele, grave. - Todos os seres humanos possuem uma ínfima possibilidade de contrariar a sorte. Isso só se consegue com força de vontade. É por isso que digo que a vontade é uma forma de magia, já que força a natureza. E que é perigosa, gois o resultado custa muito caro e acarreta as provações da vida. É por isso que os cristãos que empregam a vontade pessoal a cada passo e para atingir objetivos mesquinhos estão sempre em desacordo com o próprio destino e cobertos de males, dos quais se queixam com tanta frequência.

Angélica meneou a cabeça.

__ Não posso compreendê-lo, Bei Osman. Pertencemos a dois mundos diferentes.

-        Não se pode adquirir a sabedoria num dia, sobretudo quando se foi criado entre a loucura e a incoerência. E como você é sábia e bela, previno-a contra os males que hão de atormentá-la caso se obstine em forçar o destino na dir-eção que deseja, ignorando os caminhos e os fins que Alá lhe reserva.

Angélica quis desviar os olhos: e replicar com altivez que não se podia comparar a educação corânica com as riquezas da civilização greco-latina. Mas não conseguiu sentir-se irritada. Tinha a tranquilizadora impressão de ser "seguida" e protegida para além de si mesma por um espírito lúcido e sereno que tinha o dom de projetar ousados clarões nas trevas ainda espessas de seu destino.

-        Bei Osman, você é um mago?

O sorriso que errou pelos lábios do grão-eunuco não careceu de bondade.

-        Não, sou apenas-unrser humano despojado das paixões que toldam a clarividência^E gostaria principalmente de lembrá-la disto, Firuzê: Alá sempre concede aquilo que se deseja, desde que a prece seja justa e cotidiana!

CAPÍTULO VIII

A caravana

Como uma imensa lagarta, a caravana estirava-se, ondulando através da paisagem avermelhada, sob um céu índigo-escuro, num lento e irresistível assédio aos montes Uarsenis do Médio Atlas argelino.

O safari compreendia duzentos camelos, o mesmo número de cavalos e trezentos burricos, sem contar o elefante anão e a girafa.

Um grande contingente de cavaleiros armados, na maioria negros, marchava na dianteira; outro formava a retaguarda; e havia ainda grupos de defensores guardando os flancos.

Uma centena de pedestres caminhava em grupos, divididos em pequenas filas ao longo da enorme caravana, "a mais importante nos últimos cinquenta anos", como observava, não sem orgulho, seu chefe, o Grão-Eunuco Osman Ferradji.

Da vanguarda destacavam-se constantemente cameleiros ou cavaleiros, que se lançavam para a frente, acelerando a velocidade toda vez que a aproximação de uma garganta ou de um desfiladeiro fazia recear uma emboscada perigosa. Os vigias se colocavam sobre o pico de montanhas, de onde os saqueadores podiam ser avistados, e indicavam-lhes a proximidade com tiros de fuzil, enquanto outros detalhes eram indicados com sinais de espelho ao sol.

Angélica se instalara num palanquim entre as corcovas de um camelo. Para ela, foi uma grande honra, pois muitas mulheres, mesmo as reservadas ao harém, iam a pé ou montadas em asnos.

A viagem progredia através de montanhas ora nuas, ora cobertas de cedros ou acácias. Os carregadores eram principalmente árabes, mas todos os negros, inclusive as crianças de dez anos, seguiam a cavalo e armados. As mesmas crianças que, em Argel, se mostravam indolentes, gulosas e dissimuladas, na estrada revelavam-se Je repente cavaleiros infatigáveis, sorridentes, sóbrios e disciplinados, e a única restrição que parecia incomodá-las era não poderem lançar-se o tempo todo em perseguição dos bandidos e não poderem realizar contínuas proezas equestres, como a de dispararem a galope, decapitando com o sabre galhos de árvores.

Contrastando com essa juventude turbulenta, caminhavam, hieráticos e de traços imóveis, os negros adultos da escolta, ainda mais ricamente armados, com fuzis e lanças, vestindo um uniforme de turbante vermelho e sarual de seda vermelha. Eram os terríveis buaques da Costa do Marfim, que faziam parte do corpo de elite do sultão do Marrocos. Ao lado deles, os batalhões de janízaros turcos que o paxá de Argel e Mezzo Morte enviaram como escolta da caravana de seu ilustríssimo hóspede durante a travessia do Médio Atlas faziam figura de parentes pobres.

Osman Ferradji era ó pastor incontestado daquele rebanho que avançava lentamente numa nuvem de poeira dourada.

Montado em seu cavalo branco, inspecionava o tempo todo a coluna, mantinha coiítato com-os oficiais, vigiava a exuberância dos cadetes, preocupava-se em mandar levar com frequência refrescos às mais interessantes de suas cativas.

Estava envolto em sfta capa sudanesa de cores vivas, e seu turbante alto de lamé dourado faiscava ao sol quando ele se erguia sobre o cavalo, perscrutando a distância ou voltando-se para lançar uma ordem com sua harmoniosa voz feminina, que contrastava de modo muito curioso com sua austera aparência de gigante.

Era ele quem entrava em negociações com os chefes dos bandidos quando uma escaramuça ameaçava degenerar em combate sério. Os ladrões eram tão numerosos que massacrá-los todos exigiria um excepcional consumo de munição. Em inúmeras circunstâncias era melhor acertar o direito de pedágio com alguns sacos de ouro e de trigo. Na maioria dos casos esses bandoleiros eram berberes, cabilas vestidos de azul, de pele quase branca, tribos de montanheses ou agricultores, cuja existência miserável impelia ao ataque de caravanas.

Armados de arco e flecha, não estavam à-altura de enfrentar os mosquetes do rei do Marrocos.

- Essa é bem a imagem da desordem que as regências de Argel e da Tunísia deixam dominar - dizia Osman Ferradji, com desprezo. - Está aí o que custa ao Islã deixar-se dirigir por renegados ocidentais que pensam apenas no lucro imediato. Isso vai mudar, você verá, quando chegarmos ao Marrocos. Os chefes das aldeias respondem com a própria cabeça caso se roube o menor objeto pertencente a um viajante a quem dêem abrigo. Assim, as estradas são mais seguras do que em qualquer outro país do mundo!

Osman Ferradji tinha pressa em atingir as fronteiras de seu reino favorito. O tamanho da caravana e as riquezas que transportava atraíam os bandidos como o mel atrai as moscas. Fátima descrevera minuciosamente os presentes que o almirante de Argel enviava a seu muito poderoso soberano, Mulay Ismael.

Um trono de ouro coruscante de pedrarias que tinha sua história. Mezzo Morte o capturara de uma galera de Veneza, que o tomara de um corsário procedente de Beirute, onde o trono fora roubado ao xá da Pérsia, durante uma viagem de inspeção que este fizera a suas tribos xiitas e ismaelitas. Só em peso de ouro, o trono valia oitenta mil piastras.

Havia também exemplares do Corão incrustados de gemas preciosas.

Uma cortina ricamente bordada da Porta de Casbá.

Três sabres guarnecidos de pedrarias, um lavabo com setenta e nove peças de ouro, mil peças de musselina para turbante, dois carregamentos de seda da Pérsia, da mais fina, e quinhentas cargas mais comuns de seda de Veneza.

Cem meninos, vinte eunucos negros da Somália, da Líbia e do Sudão, dez etíopes negros e sete brancos, da raça dita caldeia, sessenta cavalos árabes, dos quais os sete primeiros tinham sela. Além disso, arreios guarnecidos de ouro, capas bordadas com pérolas, o elefante anão do Sudão recoberto de escarlate, a girafa de Bahr-al-Ghazel, no Alto Nilo, e vinte e cinco carregamentos de fuzis drusos. E vinte mulheres, dentre as mais belas de todas as raças...

Há inventários que uma pessoa habituada ao luxo não pode deixar de apreciar. Impressionada, Angélica avaliou aquele tesouro nuns dois milhões de libras, o que aumentava singularmente o prestígio do calabrês renegado a quem tratara com tanta altivez. Sim, Mezzo Morte era poderoso! Mas ela o enfrentara. E também enfrentaria aquele Mulay Ismael, por mais temível que fosse! Angélica começava a arrepiar-se e a sair do torpor em que a mergulharam os longos dias de balanço nauseante de sua montaria.

Era de noite que as tendas se erguiam e a fumaça dos acampamentos começava a turvar a limpidez de um céu mais fresco, cor de laranja ou limão. Para distrair as mulheres do harém, Osman Ferradji enviava-lhes alguns prestidigitadores, um encantador de serpentes com uma flauta angustiada e lancinante, um dervixe que engolia escorpiões, vermes esmagados e cactos, um dançarino que ao som de um tamborim guarnecido de medalhas executava saltos prodigiosos. Havia ainda um cantor cego, que arranhava uma guitarra minúscula. Acocorado diante da tenda e erguendo para o céu o rosto arroxeado, entoava intermináveis melopeias à glória de Mulay Ismael, e o árabe agora era uma língua bastante acessível a Angélica para que ela acompanhasse o desenrolar do lamento:

"Ele é belo e jovem e de uma força incomum. Muda de cor com frequência, dependendo da paixão que o domine. A alegria o torna quase branco. A cólera deixa-o negro, e seus olhos ficam vermelhos de sangue. Tem o espírito vivo e atento. Prevê os pensamentos dos que se dirigem a ele. É astuto e sempre sabe como atingir seu objetivo. Prevê os perigos e está sempre na defensiva. É intrépido exorajoso.quando em perigo, e de uma constância e firmeza maravilhosas, no infortúnio... E mais orgulhoso que o falecido Califa Harum- Al-Rachtd, e mais humilde que o último dos mendigos sarnentos. É grande em tudo, pois nele é o Profeta que vê".

Angélica ouvia maquinalmente, embalada pela voz gritada e monótona. Estava -à entrada da tenda confortável e cheia de almofadas macias que dividia eorn uma adolescente circassiana, belíssima e triste, que não parava de chorar pensando em seu país e nos pais.

A marcha em dorso de camelo obrigara Angélica ao uso dos trajes das mulheres turcas, que por acaso ela vestira em Cândia: sarual longo de tecido leve, camisa de musselina de mangas compridas, bolero solto enfeitado com bordados. A vida de caravana no deserto não se prestava à rigidez das anquinhas, dos espartilhos e dos peitilhos.

Angélica mordiscava pistácios passados no açúcar grosso e fritos em gordura de carneiro, dizendo-se que, para completar suas infelicidades, ela fatalmente ficaria obesa...

O cantor continuava:

"Ele venceu seus inimigos e reina sozinho. Quantos infiéis, à noite, tiveram a cabeça separada do tronco! Quantos agonizam ainda ao serem arrastados pelo chão! A quantas gargantas nossas lanças servem de colar! Quantas pontas de azagaia se cravaram em peitos inimigos! Quantos cativos, quantos mortos jazem por terra! Quantos feridos cujo sangue escorre! As aves de rapina passam e se saciam. A noite toda os chacais se nutrem deles. Os chacais e os abutres dizem: 'Mulay Ismael passou por aqui'. De manhã suas tropas estavam bêbadas, inebriadas, sem terem tomado bebidas fermentadas. Seu lugar-tenente, Ahmet, enviou-lhe de Tafila-let seis mil cabeças cortadas, em dois carros. Chegando a Miquenez, faltavam dez. Mulay Ismael tomou o sabre e cortou a cabeça dos dez guardas negligentes..."

A grande altura de Osman Ferradji curvou-se ao lado de Angélica e o grão-eunuco perguntou, amável:

— Compreende árabe o suficiente para acompanhar as palavras do poeta?

— Sim, o suficiente para ter pesadelos. Seu Mulay Ismael me parece sobretudo um selvagem sedento de sangue!

Osman Ferradji não respondeu de imediato. Tomou entre três dedos a pequena xícara em que um escravo lhe servia café fervente.

— Que império não é construído sobre o assassínio, as guerras e o sangue? - disse. - Mulay Ismael mal acaba de pôr termo à sua grande luta com o irmão, Mulay Archy. Descende de Maomé pelo pai. A mãe era uma negra sudanesa.

— Osman Ferradji, não pensa a sério em me apresentar a seu soberano para ser uma de suas inumeráveis concubinas?

-        Não, mas para ser a terceira esposa e a favorita titular.

Angélica resolveu empregar um estratagema ao qual nenhuma mulher do mundo se resigna de boa vontade. Decidira acrescentar, cinco... não, sete... dez anos a sua idade real.

Confessou então ao chefe do serralho que logo faria quarenta anos. Como podia ele pensar, ele, o provedor dos prazeres de um soberano tão difícil, em apresentar como favorita uma mulher em seu declínio, quando ele próprio lhe confiara recentemente as preocupações que lhe causava a manutenção das concubinas abandonadas, que ele tinha de alojar em alguma casbá remota, enquanto o harém se renovava sem cessar, com jovens frescas entre quinze e vinte anos?

Osman Ferradji a ouvia com um sorriso zombeteiro no canto dos lábios.

— Assim, você é bem idosa - disse.

— Sim, muito - confirmou Angélica.

— Isso não desagradará a meu amo. Ele é muito capaz de apreciar o espírito, a sabedoria e a experiência de uma mulher mais velha, sobretudo quando esse espírito se oculta sob um corpo que conservou todas as seduções da juventude. Encarou-a, um pouco trocista.

-        Um corpo de jovem, um olhar de mulher madura, a força, o langor, a ciência amorosa e talvez a perversidade de uma mulher no auge do desabrochar. Há disso tudo em você, e esses contrastes picantes não desagradarão a meu amo. Ele próprio os adivinhará ao primeiro olhar que pousar sobre você, pois é verdade que adivinha os outros de modo penetrante, apesar da-juventude e do temperamento freneticamente voluptuoso, que a filiação negra contribuiu para conservar. Ele poderia perder-se com a chama de seus sentidos ardendo de um fogo sempre avivado pela variedade de seduções que lhe apresentam. Poderia perder tempo e forças numa luta desgastante pela satisfação de seus apetites. Mas já se revela como homem de génio. Mostra-se física e moralmente superior à tentação, assim como a fadiga. Sem negligenciar os atrativos de suas concubinas, ou melhor, sabendo negligenciá-los a tempo, ele é capaz de ligar-se a uma única mulher, caso reconheça realmente nela o reflexo de sua própria força moral. Sabe que idade tem sua primeira mulher, sua favorita, para junto da qual vai em busca de conselho? No mínimo quarenta anos... e quarenta anos bem reais. Ela é enorme e tão alta que o ultrapassa de uma cabeça, a ele, que já tem uma bela altura... E negra como o fundo de um caldeirão. Ao vê-la, é possível perguntar-se como ela ganhou de tal forma o coração do rei, sobre cujo espírito exerce um poder muito grande.

"Em compensação, sua segunda esposa não deve ter mais de vinte anos. É uma inglesa, que os corsários de Sale capturaram enquanto ela se dirigia com a mãe para Tânger, onde o pai estava, na guarnição. É loura e rosada, e de uma graça extraordinária. Poderia ter dominado o espírito de Mulay Ismael, mas..."

— Mas?

— Mas Leila Aícha, a primeira esposa, tomou-a sob seu domínio, e ela não faz nada sem consultá-la e obedecer-lhe. Foi em vão que tentei formar-lhe o espírito e libertá-la dessa influência. A pequena Daisy, que chamamos Valina desde que se tornou muçulmana, não é tola, em absoluto, mas a Sultana Leila Aícha não a deixa escapar.

— Você não é o fiel servidor de sua soberana, Leila Aícha? - perguntou Angélica.

O grão-eunuco curvou-se várias vezes, levando a mão ao ombro e à testa e protestando sonoramente sua dedicação à sultana das sultanas.

-        E a terceira mulher?

Os olhos de Osman Ferradji encolheram-se, em sua mímica habitual.

— A terceira mulher terá o cérebro sólido e ambicioso de Leila Aícha e o corpo de neve e ouro da inglesa. Nela meu amo saboreará todas as volúpias, a ponto de não existirem outras mulheres a seus olhos.

— E ela seguirá cegamente e em tudo os conselhos do grão-eunuco, chefe do serralho?

— E se dará muito bem assim, como meu amo e o reino do Marrocos também.

— Foi por isso que não me mandou cortar a cabeça em Argel?

— Sem dúvida.

— Por que não me mandou chicotear até sangrar, como todos me garantiram que faria?

— Você nunca me perdoará! Nenhuma palavra, nenhuma promessa, nenhuma atenção poderão apagar seu ressentimento, não é mesmo, pequena Firuzê?

Enquanto falavam, a noite caía e as fogueiras se acendiam aqui e acolá, no centro da caravana reunida em meio a um vozerio confuso, sons de flautas agudas e tamborins. Às vezes rompiam os gritos medonhos dos camelos, o relincho dos cavalos, o balir dos carneiros, de que havia um rebanho inteiro, para sacrificar um todo anoitecer.

Em cada fogueira via-se erguer-se nos caldeirões o coração gorduroso da sêmola de trigo duro. Árabes, carregadores, guerreiros e escravos também comprimiam-se, engolindo em pequenos goles a sopa fervente, perfumada de coriandro, condimentada com uma espécie de óleo, suave como creme. Os pratos de quebab circulavam, oferecendo os pedaços de carne picada, enrolada sobre a coxa e frita em gordura de carneiro. A carne era reservada apenas aos amos, mas os escravos tinham direito aos legumes cozidos, generosamente cobertos de pimenta.

O calor já não vinha do céu, mas exalava-se da terra, envolvendo seres e coisas num bafo de forno onde se mesclavam odores de suarda e frituras, dominados pelo aroma de uma excelente hortelã fresca.

A voz de um cantor elevou-se, poderosa, apagando os sons monocórdios e agudos da música muçulmana. Era um escravo napolitano, a quem o céu estrelado e o conforto do acampamento, no silêncio do deserto, devolviam- a alegria ao coração. Ele esquecia a servidão. De repente sentia-se unido aos ejicantos daquela vida errante, a própria imagem da liberdade para aquele que caminha acorrentado.     ;

E como Angélica se sentia deslizar rumo a uma tentação semelhante, a de consentir no cativeiro, disse com vivacidade:

-        Não conte comigo, Osman Ferradji! Meu destino não é o de tornar-me .odalisca de um sultão meio negro.

O grão-eunuco não se abalou.

-        O que é que você sabe? A vida que deixou para trás vale a pena ser lamentada?...;

"Onde gostaria.de viver, afinal? Para que mundo você foi criada, minha irmã?", dizia-lhé Raimundo, seu irmão, olhando-a com seus olhos penetrantes de jesuíta. "

-- No harém do grande Sultão Ismael, você terá tudo o que uma mulher pode desejar: poder, volúpia, riqueza..-.

-        O rei da França em pessoa colocou a meus pés todas as suas riquezas e seu.poder, e eu recusei!

Agora conseguira surpreendê-lo.

— E possível? Você sé recusou a seu soberano, quando ele lhe suplicava? Seria você, então, uma mulher insensível aos prazeres do amor? É impossível. Em você há toda uma liberdade, um caminhar de mulher que se sente à vontade entre os homens. Você possui o impulso vital, a astúcia do sorriso e do olhar das cortesãs natas. Não posso me enganar...

— Mas é assim - insistiu Angélica, encantada por vê-lo preocupado. - Decepcionei todos os meus amantes, e depois de viúva preferi levar uma vida tranquila e despojada desses aborrecimentos que as intrigas amorosas causam. Minha frieza desesperou o Rei Luís XIV, é verdade, mas o que posso fazer? Bem depressa eu o teria desapontado também, e ele me teria feito pagar caro, pois para um monarca certos desdéns são insultos. Seu Mulay Ismael lhe será grato por lhe colocar na cama uma amante indiferente?

Osman Ferradji ergueu-se, imenso, e, perplexo, esfregou as longas mãos principescas. Tinha dificuldade em dissimular a profunda contrariedade que aquelas revelações lhe causavam. Era um obstáculo (e de porte!) na engrenagem bem oleada de seu plano. O que fazer de uma escrava de beleza surpreendente, cuja aparência prometia levar o ardor de seu temperamento para satisfazer os apetites do entediado Mulay Ismael e que entre os braços dele se mostraria de uma desajeitada passividade? Lamentável visão! Só de imaginar, Osman Ferradji já tinha calafrios. Já imaginava os berros de Mulay Ismael.

O monarca não se queixara da lassidão que lhe causava um excesso de virgens insípidas, belas, mas senhoras apenas da decepcionante canhestrice da inexperiência? Quando eram mais experientes, as mulheres já eram fanadas. O grão-eunuco realizara uma longa e difícil viagem aos confins das grandes florestas do coração da Africa, onde sabia que encontraria, nas seitas dos tchi-combi, virgens iniciadas pelos feiticeiros. Mas Mulay Ismael fizera um muxoxo. Estava cansado de negras. Queria brancas. O grão-eunuco partira para Argel. Com exceção de Angélica, o que levava agora não era do tipo a satisfazer a priori o sultão. O grão-eunuco examinara um número incalculável de escravas, conservara algumas belíssimas, mas sem dúvida verdes demais. A islandesa com cabelos de lua e olhos de peixe frito só serviria a título de curiosidade. Nada a arrancava a seu torpor, e de resto ela morreria logo.

Ele, então, apostara tudo naquela mulher de olhos turquesa, de bruscos sobressaltos de tigresa ardente, de imprevisíveis alegrias infantis. O Mediterrâneo falara dela. Fora pela pressão do grão-eunuco que Mezzo Morte resolvera capturá-la, e, ao contrário do que Angélica pensava, ela não fazia parte dos presentes: Osman Ferradji a comprara em ouro ao renegado calabrês, pois ele sozinho financiara toda a expedição da ilha.

E agora ela lhe confessava uma enfermidade imperdoável numa cortesã que ele queria ver elevada à categoria de favorita, despertando a paixão de Mulay Ismael com todas as seduções da inteligência e dos sentidos.

De repente ficou inquieto, pois de fato notara, deixando-a ir e vir livremente pelo caravançará, que ela não tentava nunca atrair a atenção dos homens. Não se perturbava com os olhares ousados dos cameleiros ou dos guerreiros, e nunca dava aquelas olhadas dissimuladas de mulher para as pernas musculosas ou os rins de um belo homem.

Ele sabia que as cristãs ocidentais são frígidas com frequência, muito pouco instruídas nas artes do amor, ao qual parecem te-mer e considerar com vergonha. Ele traiu sua confusão ao exclamar alto, em árabe: _ Que vou fazer de você? Angélica entendeu e percebeu a inesperada ocasião de ganhar

tempo.

__ Não precisa apresentar-me a Mulay Ismael. Nesse harém onde você diz que há quase oitocentas mulheres, poderei muito bem ficar de lado, misturada com as criadas. Evitarei todas as ocasiões de me ver face a face com o sultão. Usarei um véu sempre, e você pode dizer que sou uma infeliz, desfigurada por uma doença de pele...

Osman Ferradji deteve-lhe o devaneio com um gesto aborrecido. Disse que ia pensar. Com ironia, Angélica viu-o afastar-se. No fundo sentia algum remorso por havê-lo entristecido tanto.

CAPITULO IX

A dança do amor

A chegada ao Marrocos foi assinalada por uma mudança imediata. Os bandidos desapareceram do horizonte. Em lugar deles surgiram as casbás de pedras grosseiras, baixas e largas, que Mulay Ismael fazia suas legiões construírem em todos os cantos do reino. A guarnição composta de negros de turbante vermelho galopava na dianteira da caravana. Acampavam nos arredores das aldeias, cujo chefe apressava-se em enviar aves, leite e carneiros. Após a partida da caravana, mandava queimar feixes de espinhos brancos e folhas, a fim de purificar a terra da passagem de escravos cristãos. Estava-se num país sério e muito religioso. Chegaram notícias. Mulay Ismael estava em guerra contra um dos sobrinhos, Abd-al-Malek, que sublevara tribos e estava encerrado em Fez. Mas já se celebrava a vitória do grande sultão. Um mensageiro deu a Osman Ferradji as boas-vindas do soberano, feliz por rever o melhor amigo e conselheiro. Fez acabava de cair-lhe nas mãos, e os buaques negros passavam pelo fio da cimitarra todos os que encontravam de armas em punho.

A caravana estava agora a dois dias de Fez, acampada aos pés de uma alta fortaleza de torres quadradas e ameaçadas. O Alcaide Alizin, que a governava, resolveu oferecer grandes homenagens em honra dos triunfos do sultão e da visita do grão-eunuco e grão-vizir Osman Ferradji.

Em meio ao estrondo dos longos fuzis disparando por entre as flechas arremessadas para o céu e os albornozes amarelos, verdes e vermelhos que voavam pelos ares, magníficos cavalos brancos e negros exibiram uma fantasia, uma diffa.

Angélica foi convidada ao banquete do alcaide. Não ousara recusar o convite que assumira a rigidez de uma ordem nos lábios do grão-eunuco, bastante sombrio há alguns dias. A tenda fora erguida junto da cidadela. Era imensa, feita de pele de camelo e tapetes, e os panos erguidos deixavam perceber a multidão de curiosos, iluminados pelo sol.

Os pratos se sucederam até o anoitecer: carneiros assados, guisado de carneiro acompanhado de favas e amêndoas, massas folhadas, tudo realçado pela pimenta, que incendiava a boca.

À noite, chegou o momento das danças e dos cantos. Dois grandes braseiros substituíram a luz do sol, iluminando ao longe a falésia vermelha do muro da casbá.

Aos sons débeis das flautas e da batida dos tamborins, as dançarinas se erguiam, tomavam seus lugares, envoltas em saias de cores superpostas, tilintando braceletes dé ouro. Tinham o rosto descoberto, marcado de sinais azuis. Formavam um semicírculo, estreitamente dispostas umas contra as outras. Atrás delas reuniam-se os homens, depois os cavaleiros.

Começou a dança. Era a dança.do amor, o ahidu: Pouco a pouco adivinhava-se, por trás do véu espesso das saias superpostas, o estremecimento espasmódico dos ventres, enquanto os músicos, correndo de um lado para o outro como demónios, excitavam com seus instrumentos a encarnação febril. Durou muito tempo, o ritmo acelerando-se sempre. As dançarinas estavam encharcadas de suor.

De olhos fechados e lábios entreabertos, o rosto de cada uma revelava uma volúpia secreta. Sem um único toque físico, atingiam o paroxismo do prazer, e sob os olhos devoradores dos homens tensos, ávidos, exibiam o rosto misterioso da mulher saciada, onde se refletia ora alegria, ora dor, ofa êxtase, ora, ainda, medo. Como que atingidas pelo raio invisível que a dança desenvolvera nelas, desfaleciam, mantendo-se em pé apenas pela firmeza da pressão de ombro contra ombro. Chegaria o momento em que se atirariam ao chão, oferecendo-se.

A sensualidade que emanava daquela multidão era tão opressiva que Angélica baixou os olhos. Sentia-se invadir pelo contágio daquela febre de amor.

A alguns passos, um árabe fixava-lhe o rosto sem véu. Era um dos oficiais do alcaide, seu sobrinho Abd-al-Kharam. Angélica notara-lhe a beleza de estátua, a tez de palissandro, onde reluziam olhos escuros e uma dentadura branca, quando ele sorrira aos cumprimentos de Osman Ferradji.

Agora já não sorria. Não desgrudava os olhos da cativa francesa, cujo rosto branco e surpreendente cintilava na penumbra.

Angélica acabou sendo atraída e voltou a cabeça. Estremeceu ao receber o apelo daqueles grandes olhos negros, exigentes e apaixonados. Via-lhe os lábios fortes fremirem, e o queixo glabro dividido por uma covinha, que tinha a beleza plena dos bronzes romanos. Angélica procurou Osman Ferradji a sua volta. O grão-eunuco teria notado a atenção de que sua cativa era alvo? - Mas ele acabava de afastar-se, e fora talvez essa ausência que dera ao jovem príncipe a audácia de fitá-la assim.

As chamas extinguiam-se, projetando sombras gigantescas no muro, cuja mancha púrpura pouco a pouco sumia nas trevas.

Os sobressaltos das chamas pareciam acompanhar os dos corpos e das vozes que se elevavam para se extinguir, passando de um grito rouco para um murmúrio surdo, a um estertor não formulado, alçando-se de novo... caindo...

Nasciam silêncios nos pontos onde se ouvia o roçar na areia dos pés infatigáveis das dançarinas. Quando o pisoteio cessasse, quando o último tição se apagasse, o grupo de homens e o de mulheres seriam impelidos um para o outro.

Irresistivelmente, os olhos de Angélica voltavam para aquele rosto imóvel e como que fascinado do jovem príncipe. Outros também a olhavam, mas aquele a desejava com um ardor quase assustador, assim como a desejara Naker-Ali. Insinuou-se nela a vontade de responder àquele desejo. Reconheceu a fome que de repente faz sentir um vazio nas entranhas, sentiu-se fraca, tomada de vertigem. Quis baixar os olhos, mas fitou-o de novo. Ela devia estar com uma expressão eloquente, pois um sorriso triunfante estirou os lábios do jovem, que fez um sinal.

Angélica desviou a cabeça bruscamente e recobriu o rosto com o véu.

A noite adensava-se. Na escuridão cúmplice, o movimento das dançarinas diminuía. Tombavam uma a uma, e era na direção delas que, da fileira dos homens, havia avanços furtivos, saltos silenciosos de caçador sobre a presa de há muito espreitada.

Após a espera infinita das danças e dos ritos, vinha o instante do clímax, do rito supremo.

Os instrumentos musicais se calaram. O fogo lançava um último clarão.

Escoltada pelos eunucos, a cativa foi reconduzida à tenda através das trevas. Foi atirada em seu divã de sedas, e o pano da entrada, fechado. Chamou a companheira, a circassiana, que não estava ali naquela noite. 'Angélica viu-se diante de sua solidão e de sua perturbação devoradora.

Do lado de, fora, os eunucos, indiferentes à febre erótica que invadia o acampamento, retomavam a guarda das mulheres reservadas.

- Angélica respirava com dificuldade. A noite estava pesada. Todos os ruídos pareciam haver-se calado, exceto os que revelavam o imenso acasalamento que se desencadeava no exterior, no chão mesmo, repetindo-se sempre, incansável.

Sentia-se doente e envergonhada de sua febre, os nervos à flor da pele.       :

Não percebeu o-levelranger de um punhal rasgando o tecido, no fundo da tenda, nern o deslizar para o interior de um corpo ágil. Foi só quando unia mão fresca e firme lhe pousou na carne ardente que ela teve um sobressalto, mortalmente assustada.

Uma claridade difusa permitiu-lhe reconhecero rosto triunfante e alterado que se inclinava sobre ela.

-        Você está louco!

Através da mussehna_ da blusa, ela sentia que ele a acariciava e a procurava, enquanto b sorriso do- Príncipe Abd-al-Kharam assemelhava-se ao brilho da lua acima dela.

Num átimo ela se pôs de joelhos sobre as almofadas. As palavras árabes escapavam-lhe da memória. Ainda assim, conseguiu compor uma frase:

-        Vá-se! Vá embora! Está arriscando-se à morte!

Ele respondeu:

-Eu sei. Mas que importa! É preciso... É a noite do amor.

Ele também estava de joelhos junto dela. Seus braços musculo sos rodearam-lhe a cintura num círculo de aço.

Então ela percebeu que ele viera seminu, vestido apenas de uma tanga, pronto para o amor. A carne lisa, de odor apimentado, colou-se à dela. Angélica tentou afastá-lo sem ruído, mas ele já a dobrava sob a força selvagem de seu desejo. Ele>a dominava lentamente, e ela desfalecia, entregue àquela posse desconhecida, irresistível e violenta.

A ameaça de morte que pairava sobre ambos aumentava-lhe a tensão do corpo.

O silêncio temível acompanhava-lhes os gestos, ao mesmo tempo medidos e apaixonados, e tornava mais saborosa, como um fruto proibido, a entrega ao prazer.

De repente os eunucos estavam ali, cercando-os. Entraram, negros e furtivos como demónios. Angélica adivinhou-os antes do amante, mergulhado nas delícias de sua volúpia. Soltou um grito agudo...

Agarraram o homem, separaram-nos e arrástaram-no para fora...

De manhã, a caravana passou sob as muralhas vermelhas da fortaleza. Angélica ia a cavalo. Nos galhos de uma velha oliveira prateada, percebeu um corpo supliciado. O homem estava suspenso pelos pés. No chão, sob ele, fumegavam os restos de uma fogueira que lhe havia calcinado cabeça e ombros. Angélica puxou os freios. Não conseguia desviar os olhos do medonho espe-táculo. Tinha a certeza de que aquele corpo era o do belo deus bronzeado que a visitara de noite. O cavalo branco do grão-eunuco emparelhou-se com o dela. Lentamente Angélica voltou-se para ele.

-        Você fez de propósito, Bei Osman - disse ela, numa voz entrecortada. - Fez de propósito, não foi? Foi por isso que a círcassiana não estava na tenda. Você sabia que ele tentaria ir ao meu encontro... Deixou que ele se introduzisse, que chegasse até mim. Sinto ódio por você, Bei Osman... ódio!

Ao olhar selvagem de Angélica, Osman Ferradji oferecia o espelho impenetrável de seus vastos olhos egípcios. Respondeu, com um sorriso:

— Sabe o que ele falou antes de morrer? Disse que você era ardente e fogosa, e que a morte não era nada para um homem que provara do prazer entre seus braços... Você mentiu para mim, Fi-ruzê! Você não é indiferente ao amor nem inexperiente.

— Odeio-o - repetiu Angélica.

Mas também sentia medo. Começava a compreender que não teria força contra ele.

Nos arredores de Fez os vestígios das batalhas que se haviam desenrolado ali apareceram. Cavalos mortos, cadáveres deita

dos nas irregularidades do solo rosa e cinza. Uma nuvem rodopiante de abutres lançava sua sombra sobre a cidade. Nas mu

ralhas douradas, mil cabeças sangravam, presas aos ganchos de ferro previstos para essas exibições macabras, e umas vinte cruzes de madeira, Cravadas de três em três, onde agonizavam corpos mutilados, davam às colinas circundantes um ar de Gólgota.        

O mau cheiro das ossadas era tal que Osman Ferradji não quis entrar na cidade e foi acampar a distância. .

No dia seguinte apareceram mensageiros, trazendo ao grão-eunuco bons votos do rei e o feliz comunicado de que o sobrinho traidor, Abd-al-Malek, fora capturado e estava sendo trazido vivo por regimentos de janízaros. Mulay Ismael vinha em pessoa à frente do vencido, com dois mil cavalos e mil soldados de infantaria, quarenta escravos cristãos:que carregavam um grande caldeirão, um quintal de alcatrão e a mesma quantidade de óleo e de sebo. Eram seguidos de uma carroça cheia de madeira e de seis magarefes, todos de faca na mão-. ~r

Estavam próximos de Miquenez. A caravana dividiu-se: alguns grupos encaminharam-se para a cidade, outros armaram o acampamento, enquanto Osman Ferradji levava consigo um grupo de ginetes, os garotos de Mezzo Morte a cavalo, três das mulheres mais. belas, que ele instalou, uma sobre um camelo branco, outra sobre um camelo cinzento e a terceira sobre um camelo ruço. Carregadores e escravos iam atrás, levando alguns dos mais belos presentes do almirante de Argel. O grão-eunuco aproximou-se de Angélica, que se mantinha a distância sobre seu cavalo.

- Envolva-se bem em seu hatk de lã se não quer que Mulay Ismael a conheça hoje - recomendou secamente.

A jovem não esperou que lhe dissesse duas vezes. Fátima, sua acompanhante, ajudou-a a transformar-se em casulo, o que não a deixava à vontade para conduzir o cavalo. Teria preferido que o chefe do serralho a deixasse no acampamento ou a enviasse para a cidade, mas o amo insistia em que ek estivesse presente. Três eunucos, aos quais o chefe do serralho fizera recomendações especiais de silêncio, escoltavam a cativa francesa e estavam incumbidos de desestimular toda curiosidade que se manifestasse por ela.

Ela devia ver sem ser vista. Em todo caso, bem depressa ficou claro que a multidão que se reunia sob o céu de fogo presenciaria um espetaculo que a tornaria indiferente a qualquer outra curiosidade.

CAPÍTULO X

Mulay Ismael

Desembocando na beira de um pequeno platô rochoso, Angélica descobriu a cavalaria de Mulay Ismael em plena fantasia. Cavalos admiráveis parèclani voar sem densidade na luz incandescente; cavaleiros - cujos albornozes o vento e a arremetida inflavam - e cavalos pareciam uni único corpo. Percorriam a planície esgue-delhando crinas e caudas, esvoaçando, disparando, parando bruscamente, frementes.

Contrastando com esse quadro exuberante de cores e vivacidade, vinha à esquerda um grupo de escravos cristãos, cobertos de suor e pó, barba e cabelos hirsutos, e calções esfarrapados enrolados até o alto das coxas, mostrando pernas estriadas de chicotadas. Ofegando, traziam um enorme caldeirão de ferro fundido, que se diria roubado às cozinhas do inferno. Mais prosaicamente, esse vasto caldeirão, onde se poderiam cozer dois homens inteiros como se fossem frangos, destinara-se às destilarias de rum dos americanos, mas os corsários de Sale haviam-no dado de presente a seu soberano.

Os escravos o transportaram por quatro léguas, desde Mique-nez, e perguntavam-se com angústia se se teria a intenção de prolongar por muito tempo o passeio. Chegavam a uma encruzilhada onde, à beira de um poço, cresciam palmeiras indolentes. A carroça com os carrascos e a madeira acabava "de chegar. Perto deles, sentada, as pernas cruzadas sobre um quadrado de púrpura, havia uma personagem vestida de amarelo que dois negrinhos abanavam. Foi na direção dela que Osman Ferradji, desmontado, encaminhou-se, dobrando-se em inúmeras saudações até se prosternar e tocar o chão com a testa.

A personagem de amarelo, sem dúvida um alcaide de alta posição, respondeu tocando com a mão a própria testa e o ombro, e depois colocando-a na cabeça de Osman Ferradji. Depois levantou-se, e o grão-eunuco o imitou. Perto deste último, todo homem parecia baixo. O alcaide, mais alto do que a média, atingia-lhe o ombro. Sua roupa era simples: uma túnica ampla, cujas mangas ele erguera para desnudar os braços, e um albornoz de um açafrão mais escuro que a túnica, com um capuz que terminava num tufo preto. Na cabeça usava um turbante de musselina creme, bastante volumoso. Como ele se aproximava, Angélica viu que se tratava de um jovem de traços negróides, cuja tez escura mostrava zonas claras - cintilações de madeira clara nas maçãs do rosto, na testa, nas narinas. Uma curta barba negra guarnecia-lhe o queixo bem modelado. Ele se pôs a rir alegremente, ao ver sete dos caravanei-ros de Osman Ferradji avançarem em sua direção, cada um puxando pela rédea os esplêndidos cavalos selados que Mezzo Morte enviava ao sultão do Marrocos. Os negros prosternaram-se, colando a testa ao chão.

Angélica inclinou-se para um dos eunucos, o pussah Rafai, e cochichou em árabe:

-        Quem é esse homem?

Os olhos do negro brilharam.

-        É ele... Mulay Ismael, nosso soberano...

E acrescentou, revirando as córneas brancas como ágata:

-       Está rindo, mas precisamos ter cuidado. Ele está de amarelo, a cor de sua cólera.

Enquanto isso, os cativos, desabando sob o peso da carga, iniciaram um concerto de gemidos.

-        Que fazemos do caldeirão, senhor? Que fazemos do caldeirão?

Mulay Ismael mandou depositá-lo sobre uma vasta fogueira que

ícabavam de acender. Derramaram pez, óleo e sebo. As horas se-;uintes passaram-se com a apresentação dos jovens argelinos.

No caldeirão, o alcatrão começava a fumegar quando um ruído .nsurdecedor de tamborins, salvas de mosquetes e gritos lancinantes inundou a chegada do rebelde vencido.

O sobrinho do sultão, Abd-al-Malek, era da mesma idade do tio que combatera, ou seja, muito jovem. Vinha montado numa mula, com os punhos atados às costas. Seu lugar-tenente, Mohammed-al-Hamet, o seguia, igualmente amarrado sobre uma mula, e toda a sua smala, a família, era empurrada na frente pelos janízaros, que os haviam alcançado na fuga. As mulheres rasgavam o rosto com as unhas e soltavam urros selvagens.

Com um sinal, Mulay Ismael fez avançar seu cavalo negro e saltou sobre a sela. De repente pareceu transformar-se, crescer, inflar-se estranhamente no vôo de seu albornoz cor do sol, enquanto fazia a montaria de olhos de fogo corcoyear várias vezes. Sob o esmalte azul do céu, seu rosto adquiriu reflexos de bronze, as nuanças móveis de aço em fusão, atravessado de clarões« de zonas escuras. Sob o arco das sobrancelhas de carvão, seu olhar tornou-se penetrante e temível. Brandiu a azagaia e lançou-se num curto galope, parando bruscamente a alguns passos de seus inimigos acorrentados.

Abd-al-Malek apeou da mula, atirou-se ao chão e prosternou-se várias vezes. O rei apoiou-lhe a lança no estômago. O príncipe infeliz dava olhadas na^direção do caldeirão onde fervia o pez e na direção dos magarefes armados de facas. O medo o invadia. Não temia a morte, mas Múlay Ismael era famoso pela. crueldade dos suplícios que infligia aos inimigos. Abd-ál-Malek e Mulay Ismael tinham sido criados juntos, no mesmo harém. Fizeram parte do mesmo grupo temível que representava a descendência de um grande xerife, tropa de lobinhos cruéis a quem ninguém ousava corrigir e cuja distração mais inocente consistia em crivar de flechas os escravos cristãos trabalhando. Fora- no mesmo dia que puseram os pés pela primeira vez nos estribos de uma sela que mataram os primeiros leões a lança, e juntos participaram das investidas para submeter o Tafilalet. Amavam-se como irmãos, até o dia em que as tribos do sul e das montanhas Atlas se dirigiram a Abd-al-Malek para dizer-lhe que seu direito ao trono do Marrocos era mais certo do que o do filho de uma concubina sudanesa. Abd-al-Malek, de raça pura, mouro de ascendência cabila, respondera ao chamado de seu povo. De início suas chances ultrapassavam de longe as do tio. Mas a tenacidade, o sentido da guerra, o poder imperioso que Mulay Ismael exercia sobre as pessoas acabaram por garantir a vitória ao soberano.

Abd-al-Malek exclamou:

— Por amor de Alá, não se esqueça de que sou seu parente!

— Você esqueceu disso, cão!

— Lembre-se de que fomos como irmãos, Mulay Ismael!

— De meus irmãos, matei seis com as próprias mãos e mandei eliminar outros dez. Que importância tem você, um sobrinho?

— Por amor de Maomé, perdoe-me!

O rei não respondeu. Fez sinal para que pegassem o príncipe e o colocassem na carroça. Dois guardas agarraram-no. Seguraram-lhe o braço direito, um pelo cotovelo, o outro pela mão, e apoiâram-lhe o pulso sobre um cepo.

O rei chamou um dos magarefes e ordenou a execução. O mouro hesitava. Era um daqueles que secretamente desejaram a vitória de Abd-al-Malek. O jovem príncipe concentrara todas as aspirações das tribos, ávidas de que se fundasse uma dinastia de nobre extração, como a dos almorávidas ou a dos almóadas. Com sua morte, o sonho desaparecia. O obscuro açougueiro-carrasco dissimulara seus sentimentos, mas Mulay Ismael devia tê-los adivinhado. O homem subiu, parou e, dando um passo para trás, disse que jamais cortaria a mão de um homem de tão nobre estirpe, o próprio sobrinho de seu soberano; que preferia que lhe cortassem a cabeça.

-        Que assim se faça! - gritou Mulay Ismael, e sacando do sabre decapitou-o com um único golpe preciso, que revelava um longo hábito desse cruel exercício.

O homem desabou, a cabeça rolou, o sangue espalhou-se pela areia ardente.

Outro magarefe escolhido, intimidado pelo exemplo, subiu hesitante na carroça. Enquanto subia, o rei mandou aproximarem-se os filhos, as mulheres e os parentes de Abd-al-Malek e disse-lhes:

-        Venham ver cortarem a mão desse cornudo que ousou pegar em armas contra seu rei e vejam cortarem-lhe o pé que ousou marchar contra ele!

Berros desesperados ergueram-se no ar quentíssimo e cobriram o grito do príncipe, cuja mão o magarefe acabava de cortar. Em seguida cortaram-lhe o pé. O sultão aproximou-se e disse:

-        E então, reconhece-me agora como seu rei? Não me conhecia antes?

Abd-al-Malek não respondeu, vendo escorrer o sangue de suas artérias. Mulay Ismael pôs-se a andar em círculos, erguendo ao céu um rosto terrível, dominado por uma agitação que gelava de terror todos os que o olhavam. De súbito levantou a lança e matou corn um golpe no coração o açougueiro que executara a mutilação.

Vendo isso, seu antigo rival, caído sobre o próprio sangue, gritou:

_ Olhem o valente, vejam que bravura! Mata a quem lhe obedece, mata a quem não lhe obedece. Tudo o que ele faz é vão. Alá é justo! Alá é grande! 

Mulay Ismael se pôs a rugir para cobrir a voz de sua vítima. Berrava que mandara trazer o caldeirão para que o traidor conhecesse o suplício supremo, mas, como era grande e magnânimo, o pez serviria para salvá-lo; que agira como um rei ultrajado devia agir, mas que deixaria a Alá o cuidado de decidir se Abd-al-Malek devia viver ou morrer. Assim não diriam que ele matara o irmão, pois muitas coisas os uniam, e naquele dia ele sentia a maior dor de sua vida. Tamhém aí ele a faca do açougueiro cortara a mão e o pé. No entanto, Abçí-al-Malék não passava de um traidor que, tivesse triunfado, teria estrangulado o rei.com.as próprias mãos. Ele sabia disso. Mas agraciava-o!

Ordenou que enfiassem o braço e a perna do sobrinho no alcatrão fervente, a fim de estancar o sangue.

Depois ordenou uma salva geral de seus mosquetes e encarregou quatro alcaides de levar o sobrinho vivo até Miquenez.

Os oficiais perguntaram do destino reservado ao lugar-tenente Mohammed-al-Hamet.

Mulay Ismael o entregou a seus lobinhos, negrinhos entre doze e quinze anos, que arrastaram o xeque sob os muros da cidade. Não se sabe o que lhe fizeram, mas quando o trouxeram de volta, ao anoitecer, o homem estava morto e nenhum dos seus conseguiu reconhecê-lo...

Mulay Ismael e sua escolta, bem como a caravana marrom e multicolorida de Osman Ferradji, chegaram a Miquenez ao pôr-do-sol, na hora em que as bandeiras subiam às bolas de ouro dos minaretes e que o chamado imperioso e queixoso dos muezins planava sobre a cidade cor de marfim, estirada sobre um esporão rochoso no ardor de um céu escarlate.

A goela negra da maciça porta de guerra engolia as silhuetas for-migantes, engolia sua ração de guerreiros e cavaleiros, de escravos e de príncipes, camelos e asnos, antes de deixar o deserto entregue à noite. A cidade encerrava por trás de suas muralhas todos os ruídos humanos, os gritos e os prantos, a febre e as paixões.

Ao passar sob a Porta Nova, Angélica desviou os olhos.

Um escravo nu e que lhe pareceu gigantesco estava pregado pelas duas mãos ao batente. Sua cabeça loura e esguedelhada tombava para a frente, como a de um Cristo morto.

CAPITULO XI

O harém de Miquenez - A negra e a inglesa

Angélica tapou os ouvidos. Do fundo do palácio, os gritos histéricos das mulheres de Abd-al-Malek subiam, agudos, prolongando-se há horas numa "melopeia entrecortada de soluços.

Uma enxaqueca lancinante martelava-lhe as têmporas. Os arrepios faziam-na estremecer.

Fátima oferecia-lhe em vão alguma bebida quente ou gelada, frutas ou doces. O simples fato de ver aquele conforto açucarado e glutão das odaliscas a repugnava, como se todos aqueles montes de massas rosadas e verdes, os perfumes escolhidos, os unguentos adocicados com que as servas mouriscas a haviam massageado para repousá-la das fadigas da viagem lhe lembrassem incessantemente sua terrível condição: encerrada no harém do príncipe mais cruel que o universo gerara.

- Estou com medo. Quero ir embora daqui - repetia ela numa voz incerta, infantil.

A velha escrava provençal não compreendia os motivos daquela súbita depressão, quando se chegara ao cabo de uma longa viagem durante a qual a ama dera provas de coragem e de uma edificante resignação. Fátima-Mireille já achava que não podia encontrar coisa melhor do que aquele imenso caravançará onde o pulso de ferro do grao-eunuco fazia reinar uma tranquilizadora disciplina. Apesar da desordem dos acontecimentos recentes, a efervescência em que se encontrava a cidade, a apreensão que fazia pesar sobre todos a fúria de Mulay Ismael, ridicularizado pelo sobrinho, e embora o grão-eunuco tivesse sido imediatamente retido pelo rei para entretê-lo e aconselhá-lo depois de longa ausência, as recém-chegadas e todos os membros da caravana encontraram uma acolhida opulenta e eficaz.

Os banhos das sultanas estavam prontos, o vapor fumegava nos hammans de mosaicos verdes e azuis, onde se aglomerava um exército de jovens eunucos e de criadas. A velha Mireille logo descobrira que três negras tinham sido colocadas sob suas ordens, bem como quantos negrinhos e negrinhas de que precisassem para mandar procurar as coisas incontáveis que necessariamente faltavam em toda habitação nova, ainda que real. As cozinhas enviavam sem cessar bandejas de aromáticas vitualhas. Cada nova cortesã encontrara seu apartamento particular preparado segundo seu valor; os garotos, grandes dormitórios onde mestres de régua na mão já começavam a disciplinar aquela juventude turbulenta, enquanto os malabaristas eram enviados para distraí-los nesse primeiro período de sua adaptação. Os cavalos foram levados para o estábulo magnífico, para serem tratados e adornados. Era do conhecimento comum que Mulay Ismael era ainda mais apaixonado por seus cavalos do que por suas mulheres. O elefante anão devorava uma montanha de capim seco e odorífero; a girafa, toda uma sebe de bananeiras; e os avestruzes tinham a alegria de, num viveiro modelo, restabelecer agradáveis relações com seus congéneres procedentes do longínquo sul.

O serralho do grão-eunuco era uma casa bem administrada. Fátima alegrava-se de sentir-lhe a proteção fechando-se sobre ela, depois dos anos difíceis que vivera na casbá fedorenta de Argel, velhota sem raízes, alimentada de um punhado de figos e um gole de água. Ali havia centenas de velhas, cheias de experiência e de mexericos a trocar em todas as línguas antigas, escravas alçadas à categoria de servas ou de governantas ou, ao contrário, antigas concubinas do rei e de seu predecessor; estas, sem direito à dourada aposentadoria das sultanas preferidas, em longínquas fortalezas, traziam seu fel e seu gosto pelas intrigas para o nível da criadagem.

Responsáveis por cada uma das cortesãs ou das favoritas, por seus trajes, seus adornos, sua beleza, tinham muito que fazer, ocupadas em maquilá-las, depilá-las, penteá-las, aconselhá-las, satisfazer-Ihes os caprichos, passar-lhes preciosas receitas de amor para conservar os favores de seu senhor e amo. Fátima sentia-se forte. Já lhe tinham falado de uma acompanhante da Sultana Leila Aícha, muito apreciada pela ama e que também era marselhesa. Depois, era um harém onde os eunucos de maneira geral se mostravam muito polidos. Não era assim em todos os haréns. Mas Osman Ferradji não subestimava a influência das velhas servas sobre suas pensionistas e sabia conquistá-las para fazer delas carcereiras excelentes.

Quanto mais pensava no assunto, mais qualidades Fátima encontrava naquele serralho. Não estava longe de achar que nem mesmo o do grande sultão de Constantinopla poderia ultrapassá-lo em opulência e refinamento. A única sombra era o comportamento da cativa francesa. Parecia prestes a se pôr a chorar, a berrar e a arranhar o rosto, como as mulheres nativas de Abd-al-Malek, no aposento vizinho, ou como a pequena circassiana prometida ao leito real já naquela noite e que, urrando de terror, os eunucos tinham conduzido pelo labirinto de corredores e pátios. Quando as mulheres começam a se enervar, quando há mais de mil reunidas, pode-se prever uma grande algazarra e lamentáveis excessos. Em Argel, Fátima vira cativas atirarem-se do alto dos balcões e partir o crânio nas lajes-dos pátios. Estranhas nostalgias invadem às vezes as estrangeiras: Angélica pârecia-lhe a ponto de ceder a um desses humores perigosos e sombrios. Fátima já não sabia o que fazer. Precisava livrar-se da responsabilidade. Solicitou a orientação do segundo entre os eunucos, o braço direito de Osman Ferradji, o gordo Rafai, que lhe prescreveu um calmante. Já o haviam preparado para a circassiana.

Apalermada, ó olhar esgazeado, a cabeça sacudida por movimentos dolorosos, Angélica os fitava como a figuras de pesadelo, odiando a presença da velha renegada, a dos ingénuos negrinhos de olhos arregalados e mais ainda a do sorrateiro Rafai, com seu falso ar de boa babá magoada. Era sempre ele quem ordenava a flagelação das mulheres indóceis. Não se separava nunca do chicotinho. Ela odiava a todos... O odor penetrante dos painéis de cedro aumentava-lhe a enxaqueca. Os gritos agudos mas distantes de repente a faziam sofrer menos do que os risos femininos que vinham de uma ala gradeada, junto com o perfume de hortelã e chá verde.

Angélica mergulhou num sono nauseado, para, despertando à noite, encontrar outro rosto negro inclinado sobre ela, que de imediato pensou tratar-se de um eunuco. Mas, pela maneira como estava velada e pelo sinal azul de Fátima, a filha de Maomé, que lhe marcava a testa, Angélica compreendeu que era uma mulher alta e enorme, envolvendo nas dobras de musselina azul-escura seu peito amplo de negra saciada do leite gordo das camelas.

Inclinava sobre Angélica o rosto beiçudo, de olhar penetrante e sagaz, segurando uma lâmpada a óleo, que envolvia num halo de luz amarela sua aparição noturna e a outra, a seu lado, clara como uma aurora, de um anjo de tez rosada, cabelos de mel sob a musselina vaporosa. As duas, a branca e a negra, falavam a meia voz, em árabe.

— Ela é bonita - dizia o anjo rosado.

— Bonita demais - dizia o demónio negro.

— Acredita que ela o cativará?

— Tem todo o necessário para isso. Maldito seja o Bei Osman, esse tigre dissimulado!

— O que você vai fazer, Leila?

— Esperar. Talvez ela não agrade ao rei. Talvez não seja bastante hábil para retê-lo.

— Nesse caso?

— Será uma das minhas.

— E se ela for de Osman Ferradji?

— Existem sais e ácidos para destruir os rostos belos demais e cordõezinhos de seda para sufocar as que são brilhantes em excesso.

Angélica soltou um grito lancinante, um grito de muçulmana em transe, como os que se continuavam a ouvir nas profundezas do palácio.

O anjo e o demónio fundiram-se na noite.

Angélica levantou-se, ardendo, devorada por um fogo que lhe dava uma força de demente. Gritava sem parar.

Enlouquecida, Fátima, bem como as criadas e os negrinhos, corria de um lado para o outro, tropeçava nas almofadas, enquanto a velha se punha a acender todas as lâmpadas, a fim de clarear a situação.

Osman Ferradji apareceu. Sua sombra gigantesca alongou-se sobre o lajeado, e, como da outra vez, a simples aparição dessa sombra acalmou Angélica. Ele era alto e sereno, implacável, e sua inteligência era vasta como o mundo. Ela não estava encerrada entre demónios, já que havia aquele homem no harém. Tombou de joelhos, enfiou o rosto entre as pregas da djellaba do rei mago e soluçou, repetindo:

-        Estou com medo! Estou com medo!

O grão-eunuco curvou-se para pousar-lhe a mão nos cabelos.

__ De que é que você pode estar com medo, Firuzê, você que não temeu a cólera de Mezzo Morte nem receou fugir por Argel?

__ Tenho medo desse bruto sanguinário, seu Mulay Ismael, tenho medo dessas mulheres que vieram e que querem me estrangular.

_ Você está queimando de febre, Firuzê. Quando a febre pas-sar nao sentira mais medo.

Deu ordens para que a recolocassem na cama, que a cobrissem bem e que trouxessem caldos febrífugos.

Angélica ofegava, apoiada nas almofadas. O cansaço da viagem, o ardor do sol, o horror dos espetáculos a que tivera que assistir e também as exalações malsãs das ossadas haviam provocado um novo acesso daquela febre mediterrânea que a acometera enquanto era prisioneira no veleiro de D'Escrainville.

O grão-eunuco agachou-se junto ao leito. Ela gemeu:

-        Bei Osman, por que me infligiu esta prova?

Ele não perguntou qualr Admitia muito bem que Angélica, diante do espetáculo de Mulay Ismael fazendo justiça, tivesse reações extremas, pois já notara que as cristãs das nações ocidentais são mais inclinadas a emocionar-se com a vista de sangue dô que as mouras ou as cristãs de origem oriental. Ainda não concluíra se se tratava de hipocrisia ou de repulsa sincera. Toda mulher, no fundo, não é uma pantera adormecida que lambe os beiços até gozar ao ver o sofrimento? Suas pensionistas, tanto as silenciosas moscovitas quanto as sorridentes negrinhas, não preferiam todas, às acrobacias, danças e festins que ele organizava para distraí-las, a recompensa de assistir ao martírio de cristãos? Mas a inglesa Daisy-Vanila, há dez anos muçulmana e muito apaixonada pelo rei, continuava a manter o véu diante dos olhos ou a olhar por entre os dedos, quando certos espetáculos se tornavam sangrentos demais.

Era preciso ter paciência. Esta, mais inteligente, se livraria logo de sensibilidades estéreis. Vira-a reagir com firmeza diante do cadáver daquele que por um breve instante fora seu amante. E surpreendia-se de encontrá-la agora mais profundamente perturbada com a execução de um príncipe como Abd-al-Malek, que não representava nada para ela e a quem ela jamais vira antes.

Murmurou, perplexo:

-        Achei necessário que conhecesse em sua força e em sua glória o amo que escolhi para você... e que deve subjugar.

Angélica rebentou num riso nervoso, que interrompeu levando as mãos às têmporas. Todo sobressalto a fazia sofrer.

Subjugar Mulay Ismael! Ela o revia num turbilhão, inflado de raiva e dor em sua capa amarela, a cor de sua cólera, e cortando com um único golpe a cabeça do magarefe negro."

— Não sei se você compreende o sentido da palavra que acabou de dizer. Subjugar, Bei Osman? Seu Mulay Ismael não me parece de estofo tão mole que uma mulher possa conduzi-lo pelo nariz.

— Mulay Ismael é príncipe de uma força esmagadora. Vê claro e longe. Age prontamente e na hora certa. Mas é um touro insaciável. Precisa de mulheres e corre o risco permanente de cair sob a influência de um cérebro frágil e mesquinho. Necessita de uma mulher junto de si para disciplinar-lhe os caprichos do espírito inquieto... para preencher-lhe a solidão do coração... para exaltar-lhe os sonhos de conquistador. Então será um grande príncipe. Poderá aspirar ao título de emir-al-mumeunine, comandante dos crentes...

O grão-eunuco falava lentamente e não sem hesitação. Aquela mulher a quem procurara muito e que finalmente encontrara, que o ajudara a passar para Mulay Ismael suas próprias ambições, ele ainda não tinha muita confiança nela. Via-a abatida, mas de. repente sentia-a escorregar-lhe por entre os dedos, para longe dele, embora, infantilmente, se tivesse agarrado a sua túnica.

As mulheres são seres difíceis. Suas piores fraquezas ocultam implacáveis despertares.

Mais uma vez Osman Ferradji, grão-eunuco do serralho de Sua Majestade, o sultão do Marrocos, agradeceu ao Altíssimo que o destino e a mão hábil de um feiticeiro sudanês o tivessem colocado a distância, desde a juventude, das servidões naturais que às vezes levam um homem de espírito elevado a transformar-se em brinquedo grotesco daquelas bonecas caprichosas.

— Não o achou belo e jovem? - perguntou, suavemente.

— E mais carregado de crimes do que de anos, sem dúvida. Em quanto se avalia o número de assassinatos que cometeu com as próprias mãos?

— Mas a quantos atentados não escapou? Já lhe disse, Firuzê: todos os grandes impérios se constroem sobre o crime. É a lei da Terra. Inch Allah! Eu gostaria, Firuzê, ouça-me, pois é essa a minha vontade, eu gostaria que você instilasse em Mulay Ismael esse veneno sutil que apenas você possui, que põe no coração dos homens um langor, uma sede de sua pessoa da qual não conseguem curar-se, como aquele títere do D'Escrainville, mas também como seu grande soberano, o rei dos francos, que você feriu para sempre- Você bem sabe que seu rei dos francos não pôde esquecê-la. Deixou que fugisse e agorase conspme. Quero que você use de seu poder sobre Mulay Ismael. Quero que lhe crave no coração o dardo de sua beleza... Mas eu não a deixarei fugir - acrescentou, mais baixo. De olhos fechados, Angélica ouvia aquela voz clara e jovem como a de uma amiga, que falava francês com um sotaque um tanto infantil, e espantou-se, ao erguer as pálpebras doloridas, em descobrir um rosto tão negro, com a expressão austera e marcada da sabedoria secular dos grandes povos africanos.

-        Ouça-me, Firuzê. Tranquilize-se, também. Deixarei que sua febre e seu medo passem, darei à sua razão o tempo para compreender, ao seu cerporo tempo para desejar. Esperarei para fazer menção de você junto ao soberano. Ele a ignorará até o dia em que, com seu. consentimento-, revelá-la-ei a ele.

Subitamente Angélica sentiu aliviar-se seu mal-estar. Havia ganho a primeira rodada!

Ficaria mais escondida naquele amontoado de cortesãs do que uma agulha em palheiro, e contava utilizar esse tempo para se libertar e fugir. Perguntou:

— Não vão tagarelar? Não haverá o "risco de uma indiscrição me revelar a Mulay Ismael?

— Darei ordens. Minhas ordens vêm antes de tudo no serralho, mesmo antes do rei. Todos devem obedecer a elas... inclusive Lei-la Aícha, a rainha. Ela se calará, vendo vantagem nisso, pois não tardará a temê-la.

— Ela já quer me envenenar e me estrangular - murmurou Angélica. - É um começo.

Osman Ferradji descartou com um gesto indulgente essas ameaças banais:

-        Todas as mulheres que cobiçam os favores de um único amo se odeiam e se combatem. As cristãs são diferentes? Você nunca conheceu rivalidades em torno do rei dós francos?

Angélica engoliu em seco.

-        Naturalmente - disse, vendo passar num relâmpago azul a invencível Montespan.

Aqui ou ali, a vida era apenas luta, sonhos truncados, ilusões fanadas. Ela estava exausta.

Osman Ferradji observava-lhe o rosto pálido, encovado pela febre. Longe de ver naquela máscara esgotada o início da derrota, descobria o que a vivacidade da expressão de Angélica e suas face;s habitualmente cheias por vezes dissimulavam: a ossatura harmoniosa, que traía uma vontade feroz. Lia-se a base de um caráter indomável, traçado sob a suavidade da carne. Foi como se ele a visse como ela seria mais tarde, na velhice. Ela não se abateria, não teria bochechas nem inchaços, mas afinaria. A carne se retrairia, retesada sobre o admirável desenho dos ossos. Envelheceria como o marfim, enobrecendo-se como as mulheres voluntariosas, de personalidade forte, que surgem finalmente em sua plenitude depois das ilusões da juventude. Durante muito tempo ela seria belíssima, mesmo marcada de rugas, mesmo sob uma coroa de cabelos brancos. O brilho de seus olhos só se extinguiria com o extinguir da vida. O crepúsculo dos anos empalideceria, clarearia mais a turquesa daqueles olhos e lhes daria uma limpidez insondável, um poder magnético.

Era aquela mulher que era preciso ter junto de Mulay Ismael, pois, se ela o quisesse, ele a reclamaria sempre para perto de si. Osman Ferradji conhecia as dúvidas que às vezes acometiam o tirano. Seus turbilhões de fúria, ceifando cabeças a golpes de sabre, costumavam ser a expressão de uma vertigem que o dominava diante da tolice dos homens, diante da imensidão da tarefa a realizar, e a consciência de sua própria fraqueza ou das emboscadas que o aguardavam. Nesses momentos era invadido pela demoníaca necessidade de provar a si mesmo e aos outros o próprio poder.

Se encontrasse refúgio numa mulher sensual e atenta, jamais se cansaria dela!

Ela seria a enseada, o ponto de apoio de onde ele se lançaria para conquistar o universo sob as dobras do estandarte verde do profeta.

Murmurou, em árabe:

- Você, você pode tudo...

Angélica ouviu-o num quase sono. Com frequência dava aos outros essa impressão de ser invencível. E sentia-se tão fraca! "Você pode tudo", dizia-lhe Savary, quando lhe pedia que tomasse de Luís XIV a múmia mineral. E ela o conseguira. Como estava longe aquele tempo! Lamentava-o? A Sra. de Montespan quisera enyenená-la, exatamente como Leila Aícha e a inglesa...

__ Quer que mande vir para junto de você aquele velho escravo nue conhece inúmeros medicamentos e com quem você gosta de conversar? - perguntou Osman Ferradji.

— Oh, sim! Oh, gostaria tanto de rever meu velho Savary! Você deixará que ele penetre no harém?

— Ele pode, com minha alta permissão. Sua idade, sua grande ciência e suas virtudes o autorizam. Ninguém se escandalizará de vê-lo, pois tem todas as qualidades e o aspecto de um santon. Se não fosse cristão, eu me sentiria tentado a tomá-lo por um desses seres a quem veneramos como imbuídos do espírito de Alá. Durante a viagem ele pareceu entregar-se a trabalhos de magia, pois saíam vapores estranhos do caldeirão onde ele cozia seus bilongos, e vi dois negros que ficaram aturdidos e alucinados por haverem respirado os vapores.

— Ele revelou-lhe os segredos de sua magia? - interrogou o grão-eunuco com interesse.

Angélica balariçõu.a cabeça.

-        Sou apenas umí mulher - disse, sabendo que essa modesta resposta aumentaria a estima de Osmán Ferradji pela sabedoria e a ciência misteriosa de Savary.

CAPÍTULO XII

Savary encontrou sua "múmia" e prepara uma segunda evasão

Ela teve alguma dificuldade em reconhecê-lo. Tingira a barba de vermelhd-amarronzado, o que lhe dava a aparência de um eremita marroquino, aparência acentuada por uma djellaba ferrugem, de pêlo de camelo, na qual seu corpo franzino se perdia. Parecia em boa forma física, embora magro como um velho sarmento e moreno como uma noz. Ela o reconheceu pelos óculos grossos, atrás dos quais os olhos dele cintilavam.

— Vai tudo bem - sussurrou ele, cruzando as pernas para se sentar junto dela -, eu nunca teria imaginado que os acontecimentos se encaixariam de modo tão maravilhoso. Alá... hum! quero dizer, Deus nos guiou pela mão.

— Encontrou cúmplices, um meio de fugir?

— Fugir?... Ah, sim, sim, no devido tempo, não se impaciente. Mas olhe.

Das dobras da capa expôs uma espécie de bolso de pano e, com um sorriso de orelha a orelha, começou a tirar dali fragmentos de um material negro e pegajoso.

De olhos cansados pela febre, Angélica disse com lassidão que não via o que ele lhe mostrava.

-       Pois se não vê, sinta - disse Savary, colocando-lhe sob o nariz a coisa sem nome.

O odor causou um sobressalto em Angélica, que, malgrado seu, sorriu.

— Oh, Savary... A múmia!

— Sim, a múmia - disse Savary, jubilante. - A múmia mineral, a mesma que corre das rochas sagradas da Pérsia, mas desta vez em estado sólido.

-        Mas... como é possível?...

_- Conto-lhe tudo - disse o velho boticário, aproximando-se mais.

Com olhares furtivos e tons de profeta1 fez o relato da descoberta. Acontecera durante a longa caminhada da caravana, atravessando a região dos lagos salgados, os chotts Naama, nos confins da Argélia e do Marrocos.

— Está lembrada daquelas longas extensões áridas de sal refletindo-se ao sol? Aquela paisagem desolada não parece encerrar nada de precioso. E foi então... adivinhou o que aconteceu?

— Um milagre, sem dúvida - disse Angélica, tocada por toda aquela fé ingénua.

— Sim, um milagre, você o disse, cara marquesa! - exclamou Savary, exaltado. - Se eu fosse um fanático, falaria do "milagre do camelo"... Escutei..

Ele notara, contou, um camelo escamoso, semelhante a um velho rochedo de musgo amarelo, que a sarna pelara em parte. Uma noite, durante a parada, o camelo se pusera a farejar o chão. Seguiu o rastro e se enfiou no deserto, farejando, de vez em quando, o solo das dunas. Savary, que não dormia, seguiu-o, querendo trazer de volta ó animal para o cameleiro, que recompensaria o escravo com uma ração suplementar de sêmola. Ou talvez levado por uma premonição, o dedo de Alá... hum... de Deus. As sentinelas, que frequentemente o confundiam com um árabe ou judeu, mal lhe prestaram atenção. Quase todas cochilavam. Não havia nada a temer quanto a ataques de bandidos e menos ainda de fugas de escravos cristãos, naquelas zonas onde se podia andar dias a fio sem encontrar vestígio de alimento e água potável.

O camelo caminhou por longo tempo, ultrapassando as dunas, onde Savary por pouco não foi engolido por areias movediças, depois chegou a um espaço mais sólido, de terra e sal aglutinado. Com suas patas estranhas, que não são cascos, mas uma espécie de sola elástica, o camelo se pôs a afastar os blocos daquela crosta, depois a arrancar pedaços com o focinho e abrir um buraco.

-        Um camelo que abria um buraco com as patas que não podem suportar o contato de pedregulhos, com os joelhos, com os dentes, foi isso que vi. Não me acredita? - indagou Savary, olhando Angélica com uma súbita desconfiança.

— Claro que sim...

— Imagina que sonhei?

— Certamente que não.

— Bom, o animal desencavou essa terra marrom, que você mesma logo reconheceu. Depois tirou grandes pazadas com a boca, alinhou-as na beirada do buraco, formando metodicamente um colchão, sobre o qual rolou e esfregou todo o corpo.

— E a sarna sumiu miraculosamente?

— Sumiu, mas você devia saber que não há nada de miraculoso nisso - corrigiu Savary. - Assim como eu, você já constatou o feliz efeito medicinal da múmia sobre as doenças da pele. Mas, enquanto me abastecia daqueles pedaços de terra, ainda não havia notado a analogia com o divino licor persa, e pretendia utilizá-los como unguento para meus doentes. Mas então a reconheci! E ao mesmo tempo fiz uma prodigiosa descoberta científica!

— Ah! Qual?

— Esta, senhora. O sal acompanha a múmia mineral. É exata-mente como na Pérsia. De resto, já não preciso ir à Pérsia. Sei que, retornando ao sul argelino, encontrarei jazidas talvez imensas da substância preciosa e que têm, pelo menos, o mérito de não ser vigiadas como as jazidas persas, reservadas ao xá. Posso voltar lá livremente.

Angélica suspirou.

-        Talvez as jazidas não sejam vigiadas como na Pérsia, você é que o é no Marrocos, meu caro Savary. Isso modifica muito o seu destino?

Ela se censurou pelo ceticismo para com o único amigo que tinha e, mudando de atitude, cumprimentou calorosamente Savary, que se derreteu de gratidão, logo propondo mandar vir uma braçada de espinhos e um prato de cobre ou de terra.

— Para fazer o quê, bom Deus?

— Para lhe destilar este produto. Fiz a experiência de queimá-lo num pote de argila, e ele explodiu como um tiro de canhão.

Angélica o dissuadiu de realizar novamente a experiência, em pleno harém. Sua dor de cabeça passava sob a ação das tisanas que o grão-eunuco a fizera beber. Um suor abundante começava a molhar-lhe o corpo.

__ A febre está passando - disse Savary, dando uma olhada profissional por cima dos óculos.

Angélica, de fato, se tornava mais lúcida.

__ Acredita que sua múmia poderá nos servir outra vez para alguma coisa em nossa fuga?

— Você continua, então, pensando em fugir? - perguntou Savary num tom neutro, recolocando com" cuidado os pedaços de-areia betuminosa no bolso.

— Mais do que nunca! - exclamou Angélica, soerguendo-se num sobressalto indignado.

— Eu também - disse Savary. - Não lhe escondo que agora tenho pressa de retornar a Paris para mé entregar aos trabalhos que minha recente descoberta exige. Só lá, no meu laboratório, tenho os alambiques de destilação e as retortas que servem à continuação do estudo científico deste combustível mineral que, eu o sinto, levará a humanidade inteira para a frente...

Ele não pôde conter-se: pegou de novo um fragmento de terra e o examinou com uma pequena lupa de tartaruga e ébano. Uma das artes do velho Savary era possuir, no mais completo despojamento, os objetos mais variados que ele parecia criar para as necessidades da.ocasião, com uma habilidade de prestidigitador. Angélica perguntou onde conseguira a lupa.

— Meu genro me deu de presente.

— Nunca â tinha visto antes.

— Só a possuo há algumas horas. Meu genro, aquele rapaz encantador, vendo minha cobiça, deu-me a lupa como sinal de boas-vindas.

— Mas... quem é seu genro? - perguntou Angélica, certa de que o ancião divagava.

Savary dobrou a minúscula lupa e a enfiou por entre as pregas da roupa.

— Um judeu do mellab de Miquenez - murmurou -, um cambista de metais preciosos, assim como o pai, antes dele. E verdade, não tive oportunidade de dizer-lhe, mas empreguei muito bem as poucas horas que se passaram desde que chegamos a esta boa cidade de Miquenez. Mudou muito desde o tempo de Mulay Archy. Mulay Ismael constrói por toda a parte; circula-se por entre andaimes, como em Versalhes.

— Mas... e seu genro?

— Já chego lá. Eu lhe tinha dito que tive duas agradáveis aventuras marroquinas no tempo de minha primeira escravidão.

— E dois filhos.

— Isso, só que minhas lembranças eram um pouco vagas, pois de Rebeca Maimoran tive, parece, a alegria de ter uma-filha e não um filho. Foi então a essa filha que encontrei hoje, na flor da idade e casada com Samuel Cayan, o cambista que teve a amabilidade de dar-me esta lupa...

— ...como sinal de boas-vindas. Oh, Savary - disse Angélica, não podendo conter um débil riso. - Você é tão francês que me faz bem escutá-lo. Quando você pronuncia as palavras "Paris" ou "Versalhes", parece-me que escapo a este cheiro estranho de cedro, de sândalo, de hortelã e que sou novamente a Marquesa du Plessis-Bellière.

— Quer realmente voltar a sê-lo? Quer realmente fugir? - insistiu Savary.

— Mas já lhe disse e repeti! - exclamou Angélica, com um brusco movimento de cólera. - Por que tenho de repetir-lhe isso cem vezes?

— Porque é preciso que saiba a que se expõe. Você terá ocasião de morrer cinquenta vezes antes de sequer sair do serralho, de morrer vinte vezes antes de atravessar as portas da alcáçova, o palácio de Mulay Ismael, de morrer dez vezes antes de deixar Miquenez, de morrer quinze vezes antes de atingir Ceuta ou Saint-Croix, de morrer três vezes antes de penetrar num ou noutro dos bastiões cristãos...

— De modo que você me deixa apenas duas chances em cem de ter êxito em tal empreitada?

— Exatamente.

— Ainda assim, terei êxito, Mestre Savary!

O velho boticário balançou a cabeça, preocupado.

— Às vezes me pergunto se você não é cabeçuda demais. Forçar o destino nessa medida não é saudável.

— Oh, você fala agora como Osman Ferradji! - disse Angélica, com voz sufocada.

— Lembre-se: em Argel você queria absolutamente tentar uma evasão que nem os mais antigos escravos, entediados por quinze, vinte anos de cativeiro, ousariam tentar. Tive bastante dificuldade em fazê-la ter paciência. Pois bem, veja, não fomos recompensados?... Achei a múmia nos caminhos do deserto e da escravidão!

Então, às vezes penso que, se este serralho principesco lhe tivesse parecido conveniente, se a... personalidade do grande Mulay Ismael não a tivesse desagradado em excesso... seria mais simples... Oh eu não disse nada, console-se!

Pegara-lhe a mão e dava-lhe tapinhas suaves. Por nada no mundo queria fazer chorar aquela grande dama, que sempre se mostrara uma amiga sem par, ouvindo-Ine com paciência as elucubrações de ancião e que recebera para ele, das mãos de Luís XIV, a garrafa do precioso líquido persa.

Por que aquela jovem que tudo podia não-se tornara amante do rei? Ah, sim, havia a história daquele marido, de que Mezzo Morte se servira como isca para atraí-la a uma armadilha. Seria mais razoável que ela não pensasse mais nisso.

- Nós fugiremos - disse ele, indulgente -,-fugiremos, está combinado!

Explicou-lhe que em Miquenez, no final das comas, as chances de êxito para um feito desses eram maiores do que em Argel. Os cativos, todos nas mãos do rer, formavam úma espécie de casta, que começava a organizar-se. Tinham um chefe eleito, um normando de Sairít-Valéry-en-Caux, chamado Colin Paturel, escravo há doze anos e"que adquirira grande ascendência sobre os companheiros de infortúnio. Pela primeira vez na história da escravidão, os cristãos de diferentes .credos paravam de odiar-se e entredevorar-se, pois ele formara uma espécie de conselho no qual um moscovita e um cretense representavam os ortodoxos, um inglês e um holandês, os protestantes, um espanhol e um italiano, os católicos. Ele, o francês, fazia justiça e resolvia as diferenças.

Ele tinha todas as astúcias para se dirigir a Mulay Ismael, a quem bem poucos ousavam abordar, pois arriscavam a vida, e não se sabia por que persuasão ou habilidade ele conseguira fazer-se ouvir pelo tirano. A partir daí, a situação dos escravos, que na aparência continuava terrível e sem esperanças, melhorava. Um tesouro comum, fundado sobre o montante da fortuna de cada um, permitia pagar cumplicidades. Peccinio, o Veneziano, ex-empregado de banco, controlava as contas desse tesouro secreto. Mouros atraídos por um lucro vultoso aceitavam servir de guias aos fugitivos. Chamavam-lhes metadores. Com o auxílio deles, haviam-se tentado seis fugas no mês anterior. Uma lograra êxito. O rei dos cativos, Colin Paturel, responsabilizado, fora condenado a ser pregado, no mesmo dia, pelas duas mãos à porta da cidade e ali ficar suspenso até morrer. A revolta se manifestara entre os cativos diante daquela condenação que os privara do chefe. A bastonadas e logo a lançadas, os guardas negros faziam os escravos recuar, quando se viu Colin Paturel reaparecer, acalmando os irmãos.

Depois de doze horas de suplício, suas mãos rasgaram-se e ele caiu vivo no chão. Em vez de fugir, entrou tranquilamente na cidade e pediu para falar ao rei.

Mulay Ismael não estava longe de considerá-lo um protegido de Alá. Temia e estimava o hércules normando e se distraía conversando com ele.

— Tudo isto, senhora, para lhe explicar que é infinitamente preferível ser escravo no reino do Marrocos a sê-lo naquele ninho podre de Argel. Aqui se vive intensamente, compreende?

— E morre-se de modo semelhante!

O velho Savary teve uma tirada soberba:

-        E a mesma coisa. Para um escravo, senhora, o principal é poder lutar, e, quando um homem enfrenta tormentos suficientes para, toda noite, felicitar-se por ainda estar vivo, isso o mantém em boa saúde. O rei do Marrocos formou para si um povo de escravos para construir-lhe os palácios, mas isso em breve se transformará numa chaga em seu flanco. Murmura-se que o normando acaba de reclamar sonoramente ao rei que mande chamar os padres da Trindade para o resgate dos cativos, como nos outros Estados berberes. Pensei numa coisa. Se uma missão chegasse de fato a Miquenez, por que não lhe confiaria uma missiva a Sua Majestade, o rei da França, expondo-lhe sua triste condição?

Angélica corou e sentiu a febre latejar-lhe nas têmporas novamente.

— Acredita que o rei da França ergueria legiões para vir em meu socorro?

— E possível que a intervenção e as reclamações dele não sejam indiferentes a Mulay Ismael. Ele professa uma grande admiração pelo monarca francês, a quem deseja imitar em tudo, principalmente na ambição de construtor.

— Não tenho tanta certeza de que Sua Majestade esteja realmente preocupado em me tirar desta situação.

— Quem sabe?!...

O velho boticário falava a voz da sabedoria, mas Angélica preferiria mil mortes a uma humilhação desse género. Tudo se embaralhava em sua cabeça. A voz de Savary tornou-se longínqua, e ela adormeceu profundamente, enquanto um novo alvorecer raiava sobre Miquenez.

CAPÍTULO XIII

O espetáculo da fossa dos leões

— Vamos ao espetáculo! Vamos ao espetáculo!... - pipilavam as cortesãs, retinindo os braceletes.

— Vejamos, senhoras, um pouco de calma - recomendou Os-man Ferradji, solene.

Passou por entre as duas fileiras de silhuetas veladas, verificando severamente o traje e o luxo de cada uma delas e os hatks de seda ou musselina, que só deixavam à mostra olhos ora escuros, ora claros, mas todos reluzindo de excitação.

Todas aquelas mulheres enfeitadas para o passeio se pareciam, oferecendo o mesmo ar de montes de tecido, em forma de pêra, apoiados sobre minúsculas babuchas de couro amarelo ou vermelho. Ali só estava a primeira centena das favoritas do harém, aquelas entre as quais Mulay Ismael gostava de ir fazer sua escolha, trazendo na mão o lenço que deixava cair diante da eleita do dia, ou melhor, da noite. Haviam-lhe dito que era assim que procedia o grão-senhor de Constantinopla em seu serralho.

Quando uma mulher passava muito tempo despercebida pelo rei, Osman Ferradji a retirava do círculo e a enviava para outros andares e a outras tarefas. Era o pior dos banimentos não estar mais entre as "apresentadas". Perdia-se dali em diante a esperança de ser admitida para compartilhar dos prazeres do sultão. Era o começo do esquecimento, da velhice, um exílio cruel a alguns passos do lugar de felicidades. O grão-eunuco, senhor dessas demissões ou promoções, sabia manter a ameaça suspensa sobre a cabeça das indóceis. Quando não se estava mais entre as "apresentadas", era-se privada de inúmeras diversões, por exemplo, dos passeios, dos

espetáculos, das múltiplas viagens e vilegiaturas em que Osman Ferradji não hesitava em levar a parte mais importante do harém.

Naquele dia, as desprezadas, que ouviam os tiros de fuzil e o urnor da multidão anunciando a festa, rebentaram em soluços e lamentos desesperados.

Osman Ferradji foi pessoalmente recomendar-lhes que se acalmassem. O rei estava cansado de ouvir queixumes no serralho. Queriam sofrer a sorte das mulheres e filhas de Abd-al-Amed? E o exemplo era recente. Quando Abd-al-Amed morreu, oito dias depois da execução, em consequência de gangrena, suas mulheres se puseram a chorar e gritar novamente, de modo que o rei fora obrigado a ameaçar de morte todas as que ele ouvisse chorar. Durante vários dias, enquanto o rei se encontrava na alcáçova, elas contiveram os suspiros, mas assim que ele saiu os lamentos recomeçaram. Então o rei mandou estrangular quatro delas, na sua frente.   

Com esse salutar lembrete, as abandonadas fizeram um silêncio exemplar e trataram de encontrar uma saída, uma ameia por onde subir aos terraços e tentar ver alguma coisa do espetáculo.

Ao voltar, o grão-eunuco passou pelos aposentos de Angélica. Suas servas acabavam de envolvê-la em véus. Não seria ela quem choraria por ser deixada no redil, mas o chefe do serralho queria multiplicar para a futura favorita todas as ocasiões de ver o futuro amo sem que este a "notasse.

Angélica devia, então, juntar-se sempre aos grupos de mulheres que escoltavam o sultão em seus passeios ou distrações em público. Se o tirano, voltando-se para as cortesãs, lançava um olhar um pouco penetrante demais ao conjunto de casulos brancos, rosa ou verdes que o escoltavam, três eunucos à espreita estavam incumbidos de dissimular a jovem ou de fazê-la desaparecer. Osman Ferradji pensava, com razão aliás, que, para vencer as reticências de Angélica e iniciá-la em suas responsabilidades, não havia coisa melhor do que familiarizá-la com a presença e o caráter de Mulay Ismael. Claro que a violência do soberano ainda podia chocá-la. Mas ela se habituaria pouco a pouco. Pois era em plena consciência que ela devia aceitar o amo e o papel que o chefe do serralho lhe destinara.

Angélica teve, pois, de unir-se ao grupo de mulheres que desciam para os jardins. A inglesa de tez rosada apareceu sem véu, trazendo pela mão duas adoráveis mulatinhas de cabelo louro e pele ambarina, as gémeas que tivera do sultão e cujo nascimento a removera da posição de primeira esposa, deixando o título a Leila Aícha, que era mãe de um príncipe.

Para destacar sua posição, Leila Aícha foi a última a aparecer, também sem véu, e vindo de seus aposentos por outra escada," não pela escada comum. Tinha sua guarda pessoal de eunucos e fazia uma criada carregar à frente o sabre do poder. Sua estatura imponente envolvia-se em véus vermelhos e multicoloridos. Pelos rostos nus, as duas mulheres mostravam a Osman Ferradji que não se sentiam obrigadas a observar-lhe obediência estrita. Leila Aícha planejava há muito tempo elevar à categoria de grão-eunuco do serralho o chefe de seus guardas, Raminan, dedicada criatura sua, um eunuco de antracito, com as têmporas pontilhadas dos grãos azuis de uma tatuagem, a tatuagem da família dos Loudais, enquanto Osman Ferradji era um Harrar. A pequena guerra que se travava nos segredos do harém não era outra senão a continuação, sob fogo coberto, de seculares rivalidades africanas.

O Principezinho Zidan seguia a mãe. Devia à dupla ascendência negróide um rosto redondo de chocolate, enfiado em turbantes de musselina creme, envolto em cetim cor de avelã e seda pistácio ou framboesa. Angélica, a quem ele divertia, chamava-o de Príncipe Bala, embora o caráter dele não confirmasse promessas tão doces. Do alto de seus seis anos, naquele dia, ele contemplava o sabre de aço verdadeiro que o pai acabava de dar-lhe. Finalmente não era mais um sabre de madeira, e ele poderia cortar a cabeça de Mateus e a de João Badiguet, os dois pequenos escravos franceses que brincavam com ele. Tentaria naquele dia mesmo depois do espetáculo.

As duas favoritas velaram-se apenas ao atravessarem a última porta, que dava para os jardins do palácio, onde havia o risco de encontrarem escravos desde que Mulay Ismael construía ali uma mesquita, uma casa de banhos, um anfiteatro e um lago. Mas os canteiros de obras estavam desertos: as ferramentas, as escadas e as pedras de alvenaria jaziam por entre o esboço das paredes erguidas, por entre o reflexo prateado das oliveiras.

Um rumor distante e estrondejante chegava do outro lado dos primeiros muros da alcáçova. Não se acabava nunca de passar de um compartimento a outro do imenso palácio que Mulay Ismael estava edificando para alojar-se em sua imperiosa magnificência com suas mulheres, cortesãs e escravos. Apenas o prédio principal que encerrava quarenta e cinco pavilhões, cada um com sua fonte no pátio, estava concluído, assim como as colossais e sun-tuosas estrebarias para doze mil cavalos. Em seguida estendia-se um enorme labirinto de pátios, paióis de munição, mesquitas, jardins, alguns bem próximos dos muros, outros confundindo-se com os subúrbios da cidade. Era de lá que vinha o rumor, e também do acampamento dos escravos, onde cada unrtinha sua cabana de terra batida e caniços, cada nação, seu bairro, sob a direção de um chefe e de um conselho.

O grupo de mulheres, rodeado de perto pelos eunucos, passou a cargo da guarda montada do rei. Toparam com o cortejo real, que chegava, Mulay Ismael andando a pé sob,um guarda-sol seguro por dois negrinhos. Seus principais alcaides o cercavam, bem como seus conselheiros preferidos, o judeu Samuel Baidoran, o renegado espanhol João de Àfero, chamado Sidi Muhady desde que apostatara, e o outro; renegado francês, Romain de Montfleur, chamado Rodani, que controlava os arsenais de guerra.

O sultão fez grandes demonstrações ao ver Osman Ferradji, que tomou lugar entre os notáveis.

A multidão árabe fervilhava na atmosfera ardente, e gritos violentos afogavam os ritornelos de flautas e as batidas de tamborins que tentavam fazer-se ouvir em meio ao tumulto.

Os que davam aqueles gritos apareceram de repente, quando o cortejo desembocou ha praça central de Miquenez. A multidão de albornozes brancos, afastada, deixou"a descoberto na esplanada uma massa cinzenta e desbotada, uma agitação de farrapos e de rostos pálidos e barbudos, gritando ferozmente.

Semelhantes aos danados do inferno de Dante, os cativos cristãos, mantidos sob controle pelos negros de bastão ou chicote erguido, estendiam as mãos na direção de Mulay Ismael. Daqueles gritos em todas as línguas da Europa, um nome sobressaía:

- O Normando! O Normando! Graça para Colin, o Normando!

Mulay Ismael estacou com um sorriso nos lábios como se se deleitasse com aqueles gritos e súplicas, qual aplauso. Não avançou mais, conservando-se a certa distância da agitada multidão de escravos. Depois subiu num pequeno estrado com seu séquito. Suas mulheres foram instaladas em bom lugar. Angélica viu então o que separava o rei e seu cortejo da massa de escravos.

Era, no centro da praça, um buraco retangular, largo e profundo, com mais ou menos vinte pés. O fundo estava coberto de areia branca. Rochedos e algumas plantas do deserto davam-lhe o aspecto de um jardinzinho. Um odor acre de feras exalava-se do buraco para o ar superaquecido: o fosso dos leões! Restos de carcaças pelos cantos. Ao fundo, dois alçapões fechados por batentes de madeira dissimulavam o orifício dos corredores que levavam às jaulas das feras.

Mulay Ismael ergueu a mão. Uma das dobradiças foi acionada invisivelmente e deslizou para abrir uma entrada.

Os escravos avançaram com um movimento irresistível que por pouco não lançou no fosso os que estavam nas primeiras fileiras. Caíram de joelhos, agarrando-se com as duas mãos às beiradas, o pescoço estendido para o retângulo negro que a abertura escancarada desenhava na luz.

Uma forma moveu-se e lentamente apareceu. Um escravo com as mãos e os pés carregados de pesadas correntes. Atrás dele a portinhola se fechou. O escravo piscou, para se acostumar ao brilho do sol. Do estrado podia-se distinguir um homem de altura e vigor pouco comuns. A camisa e a calça curta, o traje dos escravos, descobriam-lhe os braços e as pernas musculosas, um peito largo como um escudo, peludo como o de um urso, onde cintilava uma medalha santa. A barba e os cabelos rebeldes eram louros. No matagal cor de palha que lhe cobria as faces, distinguia-se apenas o clarão de dois olhinhos azuis e astutos. De perto se teria visto que a cabeleira de viking tinha toques prateados nas têmporas e que a barba grisalhava. Era um homem .de quarenta anos, escravo há doze. Correu um murmúrio, que novamente degenerou em clamores:

-        Colin! Colin Paturel! Colin, o Normando!

Um rapaz magro e ruivo, inclinado na direção dele, gritou em francês:

-        Colin, companheiro, lute. Mate, espanque, mas não morra, não morra!

O escravo no fosso dos leões levantou as duas mãos maciças num gesto apaziguador. Nesse instante Angélica viu os furos sangrentos nas palmas e lembrou-se de que era aquele o homem que fora crucificado na Porta Nova. Com passo tranquilo, gingando levemente, avançou até o centro do fosso e ergueu a cabeça na direção de Mulay Ismael.

__ Eu o saúdo, senhor - disse, em árabe, numa voz de bom timbre e que não tremia. - Como está passando?

— Melhor do que você, cão - respondeu o sultão. - Entendeu afinal que chegou o dia de pagar pelas insolências com que me satura há anos? Ainda ontem você ousou esquentar-me as orelhas com o seu pedido para mandar chamar os pappas, os padres, ao meu reino, para vender-lhes meus próprios-escravos... Mas não quero vender meus escravos - gritou Mulay Ismael, erguendo-se em sua túnica branca. - Meus escravos me pertencem. Não sou de Argel nem de Túnis, não tenho de imitar aqueles mercadores podres que esquecem o que devem a Alá para lembrar-se apenas dos próprios interesses... Você acabou com a minha paciência. Não no sentido que esperava. Você imaginava ontem, quando o cobri de carícias e promessas ao despedi-lo, que hoje estaria no fosso dos leões? Ah, ah, ah! Pensava?

— Não, senhor - respondeu o normando em tom humilde.

— Ah, ah, ah! E-vocêlse alegrava e se gabava junto aos seus de me levar para onde queria. Cohn Paturel, você vai morrer.

— Sim, senhor.,

Mulay Ismael sentou-se de novo, com ar sombrio. Os gritos voltaram a rebentar entre os escravos, e os guardas negros ergueram os mosquetes na.direção deles. O sultão também olhou nessa di-reção. Sua expressão anuviou-se mais.

— Não me agrada condená-lo à morte, Colin Paturel. Já me resignei a isso várias vezes e* depois me felicitei por vê-lo retornar são e salvo dos tormentos nos quais lhe quis fazer perecer. Mas desta vez fique certo, não deixarei aos demónios a possibilidade de lhe socorrerem. Só deixarei a praça quando seu último osso estiver roído. Mas desagrada-me tanto vê-lo morrer! Pensar, principalmente, que você morre na cegueira de suas crenças e que estará danado. Ainda posso agraciá-lo. Faça-se mouro!

— É impossível, senhor.

— Que impossibilidade - rugiu Mulay Ismael - existe, para um homem que sabe árabe, de pronunciar estas palavras: "O único Deus é Alá e Maomé é seu profeta"?

— Se eu as pronunciasse, seria mouro. E então o senhor ficaria bem pesaroso. Pois por que lhe desagradarvêr-me morrer e deseja conservar-me a vida? Simplesmente porque sou o chefe de seus cativos de Miquenez, porque graças a mim eles têm mais ânimo e obediência para construir seus palácios e mesquitas, e porque o senhor precisa que eu continue entre eles. Mas, se me faço mouro, torno-me renegado, e que teria a fazer então entre os escravos cristãos?... Usarei turbante, irei à mesquita e não terei mais de manejar a colher de pedreiro trabalhando para o senhor. Renegado, perde-me pela sua mercê; cristão, perde-me para seus leões.

-        Cão, sua língua bifurcada já me girou a cabeça que baste. Morra, pois!

Um pesado silêncio caíra sobre a multidão, que, enquanto o escravo ainda falava, vira erguer-se atrás dele o segundo alçapão. Lentamente, um soberbo leão da Núbia saiu da escuridão. Balançava a pesada cabeça coroada de uma juba negra e avançava com o passo ao mesmo tempo macio e pesado das feras. Atrás dele apareceu uma leoa, mais delgada, depois outro leão do Atlas de pelagem cor de areia e juba quase ruiva. Silenciosos, deram algumas passadas e pararam perto do escravo, que não se movera. O leão da Núbia se pôs a chicotear nervosamente os flancos, mas era muito mais a presença das cabeças ávidas, debruçadas lá em cima, o que parecia irritá-lo do que a presença do homem imóvel em seu antro. Rosnou, passeando um olhar impávido pela multidão, depois, de repente, rugiu várias vezes seguidas, com as costas distendidas.

Angélica escondeu o rosto no haík. Ouviu a multidão murmurar e olhou de novo. O leão, completamente enfastiado com a curiosidade malsã de que era objeto, fora deitar-se à sombra de uma rocha, passando perto do cativo com total indiferença. Mais um pouco e lhe teria roçado nas pernas, como um gato grande.

A multidão árabe, frustrada em sua expectativa, pôs-se a dar gritos histéricos, a atirar pedras e punhados de terra para excitar as feras. Os animais rugiram em coro, deram uma volta em torno e foram deitar-se diante dos alçapões fechados, manifestando assim o desejo de continuar a sesta num lugar mais tranquilo.

Os olhos de Mulay Ismael saíam-lhe das órbitas.

-        Ele tem a baraka - arquejou ele várias vezes -, tem a baraka.

Levantou-se e, em sua excitação, aproximou-se bem da borda do fosso.

— Colin Paturel, os leões não querem fazer-lhe mal. Qual é seu segredo? Diga e lhe concedo a vida.

— Conceda-me primeiro a vida e lhe direi meu segredo.

— Que seja! Que seja! - disse o rei com impaciência.

Fez um sinal, e os encarregados das jaulas ergueram os alçapões.

Bocejando, os leões voltaram para a escuridão e desapareceram, enquanto as portinholas caíam de novo.

Uma aclamação imensa irrompeu do peito oprimido dos escravos. Os cristãos atiravam-se uns nos braços dos outros, chorando. O chefe estava salvo!

— Fale! Fale! - gritou Mulay Ismael, impaciente.

— Mais uma graça, senhor. Permita que es padres da Trindade venham até Miquenez para tratar do resgate de escravos.

— Esse cão jurou dar-me a própria pele! Dêem-me meu mosquete que o abato com minhas próprias mãos!

— Levarei meu segredo comigo.

— Pois bem, que seja! Mande vir seus benditos pappas. Veremos que presentes me trazem e se lhes devo alguma coisa em troca. Saia daí, Colin Paturel.

Com agilidade, apesar das correntes pesadas, o hércules escalou os degraus de pedra incrustados num lado do fosso. Surgiu entre os árabes rancorosos e. desapontados, que, no entanto, não ousaram tocá-lo nem insul.rá-lo. Diante do trono de Mulay Ismael, o escravo cristão prostefinou-se, tocando a. terra com a testa. Os lábios grossos do tirano tiveram como que uma crispação, uma espécie de sorriso indefinível, e ele apoiou- a babucha sobre o dorso nodoso.

-        Erga-se, cão maldito!

O normando ergueu-se em toda a sua estatura. Angélica não pôde deixar de observar com intensidade as duas personagens que se enfrentavam. Estava tão perto deles que não ousava mover-se, e mal respirava.

Um detinha todos os poderes, o outro estava carregado de cadeias, mas rei e escravo, muçulmano e cristão reconheciam um adversário comum: Azrael, o anjo da morte.

Diante de homens daquela espécie, Azrael recuava, assustado. Ia colher vidas emaciadas, ceifar ervas moles e lânguidas... Seria preciso que um dia tirasse a vida a ambos, a Mulay Ismael, apesar da cota de malhas que usava sempre sob o albornoz, e a Colin Paturel, apesar de sua astúcia, mas a luta que travariam com o anjo seria encarniçada, e ainda não seria no dia seguinte que Azrael triunfaria. Bastava olhar um e outro!..7

— Fale, afinal - disse Ismael. - De que magia se serve para apaziguar os leões?

— Não se trata de magia, senhor. Mas ao ordenar para mim este suplício o senhor esqueceu que durante muito tempo trabalhei nas jaulas e que com frequência ainda ajudo os tratadores? Portanto, os leões me conhecem. Já penetrei em suas jaulas impunemente. Ainda ontem me ofereci para substituir os criados que levavam a comida das feras e servi-lhes ração dupla. Dupla!'... que estou dizendo! Tripla! Esses três animais que o senhor escolheu entre os mais ferozes para me devorar entraram no fosso entupidos até a goela, como um canhão. Dizer que não estavam com fome é dizer pouco. A simples visão de um pedaço de carne, em pé ou sangrando, lhes viraria o estômago, ainda mais que misturei à comida uma erva que predispõe à sonolência. Mulay Ismael estava ficando negro de raiva.

-        Cão impudente! Você tem a audácia de dizer diante de meu povo que zombou de mim! Corto-lhe a cabeça.

Ergueu-se e sacou do sabre. O rei dos cativos protestou:

— Confiei-lhe meu segredo, senhor. Cumpri minha promessa. O senhor tem a reputação de ser um príncipe que cumpre as suas. Deve-me a vida por hoje, e prometeu mandar chamar os padres da Trindade para nosso resgate.

— Não me apoquente as orelhas de novo! - urrou o tirano, rodopiando a cimitarra.

Mas embainhou-a novamente, rosnando:

-        Por hoje! Sim, por hoje!...

O desfile de criados trazendo numa grande bandeja de cobre a refeição do rei desviou as atenções. Mulay Ismael ordenara que lhe servissem o jantar ali, pois previa que o apetite dos leões excitaria o seu.

Os criados por pouco não caíram de costas ao ver o "repasto dos leões" em pé junto do amo.

O rei sentou em seu colchão de almofadas e reuniu a sua volta os notáveis, que compartilhariam do jantar.

Perguntou ainda:

-        Como pôde adivinhar que eu me preparava para mandar atirá-lo no fosso dos leões? Eu não disse nada a ninguém antes do canto do galo. Pelo contrário: o que correu pelo palácio foi que eu o havia escutado favoravelmente.

Os olhos azuis do cativo contraíram-se.

— Eu o conheço, senhor, eu o conheço!

— Quer dizer que minhas astúcias são grosseiras e que não sei enganar a quem se aproxima de mim?

— O senhor é hábil como uma raposa, mas eu sou normando.

Os dentes brancos do sultão lançaram um clarão sobre seu rosto tenebroso. Ele ria.

Coisa que desencadeou a hilaridade dos escravos, entre os quais corria o "segredo" de Colin Paturel.

— Gosto dos normandos - disse Mulay Ismael, bonacheirão. _ Vou dar ordens aos corsários de Sale para irem navegar dos lados de Honfleur e do Havre, para me trazerem montes de normandos. Há apenas uma coisa que me desagrada em você, Colin Paturel. Você é realmente alto demais. Você me ultrapassa em altura, e isso é uma insolência que não posso suportar.

— O senhor tem vários meios de remediar isso. Pode cortar-me a cabeça. Ou mandar-me sentar a seu lado. Assim ficará mais alto do que eu, com seu turbante:

— Que seja - disse o rei após um momento de reflexão, em que decidiu não se aborrecer. - Sente-se.

O escravo dobrou as longaspernas e sentou sobre as sedas sun-tuosas, perto do temido sultão, que lhe estendeu um pombinho.

Os alcaides e as grandes personalidades do séquito real, e até as duas rainhas, Leila Aícha e Daisy-Valina, murmuraram, indignados.

Mulay Ismael correu os olhos à volta.

-        Do que é que resmungam? Não lhes serviram carnes também?

Um dos vizires, Sidi Acmeth, renegado espanhol, respondeu com mau humor:

-        Não é da comida que nos queixamos, senhor, mas de ver um escravo fedendo assim a seu lado.

Os olhos do rei faiscaram.

-        E por que sou obrigado a tratar de igual para igual com um escravo fedorento? - interrogou. - Vou dizer-lhe. Porque nenhum dos meus ministros quer se sujar falando em nome deles. Se os escravos querem me pedir alguma coisa, têm de se dirigir diretamente a mim, e isso me força a puni-los pela insolência, e assim, a cada vez, perco um escravo por sua culpa. Não caberia a você intermediar entre mim e eles, sobretudo a você, Sidi Acmeth Muchady, e a você Rodani, que foram cristãos outrora? Por que não foi você, Acmeth, que se incumbiu de me pedir que mandasse chamar os pappas? Não tem piedade de seus antigos irmãos?

Mulay Ismael acalorava-se à medida que falava. O espanhol não se perturbou. Conhecia a solidez de sua posição. Era o principal tenente do rei nas campanhas contra as tribos rebeldes. Oficial de Sua Majestade Filipe IV, dirigiam-se para a América do Sul rom tropas de conquista quando fora capturado pelos berberes. O sultão tivera ocasião de constatar-lhe as qualidades de estrategista durante uma retirada no Médio Atlas, onde João de Afero, que partira como escravo, retornara à testa de uma companhia de janízaros. Mulay Ismael, que queria retê-lo, soubera convencê-lo, por meio de torturas, a abraçar a fé de Maomé.

Ás veementes censuras do sultão, respondeu, lançando um olhar desdenhoso aos cativos cristãos:

- Reneguei o Amo. Não vejo por que me ocuparia dos criados.

CAPÍTULO XIV

Colin Paturel, rei dos cativos

-Posso comer, senhor? - perguntou humildemente Colin Paturel, que esperava, segurando o pombo. Sofria um suplício digno dos que Mulay Ismael gostava de inventar, pois seu estômago subalimentado há anosVhão conhecia quitute igual há muito tempo.

A pergunta lançou o rei em nova fúria. Percebeu que os alcaides haviam começado a comer sem esperá-lo e explodiu em imprecações.

-        Coma! - berrou ao normando. - E vocês outros, glutões, parem de se empanturrar como se fossem vocês os escravos alimentados a pãò e água, e não ricos com todo o ouro que me roubam.

Ordenou aos negros que não os servissem e que levassem imediatamente o que restava para os cativos. Os alcaides quiseram pelo menos retirar o prato, dizendo que os cristãos eram indignos de comer no mesmo prato que o rei. Mas este mandou a bandeja tal como estava, cheia de frangos, pombos e arroz com açafrão.

Os escravos lançaram-se sobre a ração real, e foi uma verdadeira batalha de cães enraivecidos em torno da manjedoura.

Angélica olhava com piedade aqueles infelizes, envilecidos por um cativeiro rigoroso e sem esperança. Certamente que entre eles havia nobres, grandes nomes, eclesiásticos, gente de categoria, mas a miséria os revestia todos do mesmo cinzento uniforme, os mesmos andrajos. Observou-lhes a magreza" e pensou em Mestre Sa-vary, cujos dedos lhe pareceram secos e duros como varetas. Na verdade o pobre homem morria de fome, e ela jamais pensara em dar-lhe sequer um maçapão!

De seu lugar, ouvira o diálogo entre o rei e o normando e compreendera quase tudo. Notou que a personalidade violenta, permanentemente em movimento, de Mulay Ismael, a atraía e repelia ao mesmo tempo. Domar um homem daquela espécie era domesticar uma fera que seria sempre uma fera, conservando a descon-tração selvagem, o gosto pelo sangue.

A pequena circassiana, velada de verde, apoiava-se contra o ombro de Angélica. Seus olhos não se desviavam do perfil do sultão. Fizera confidências hesitantes, num árabe tão canhestro quanto o da companheira, mas seus gestos e a mímica langorosa reforçavam a eloquência.

-        Sabe, ele não é terrível... Tentou fazer-me rir para me secar as lágrimas... Deu-me um bracelete. Tinha a mão suave em meu ombro... Seu peito é como um escudo de prata... Eu não era mulher, agora sou... E a cada noite aprendo novos prazeres.

"Mulay Ismael gosta da circassiana", dissera Osman Ferradji. "Ela o distrai e o cativa como uma gatinha. Está bem assim. Dá-me tempo de preparar-lhe a tigresa."

Angélica dava de ombros. Dizia não, mas a cada dia era com mais dificuldade que enfrentava uma luta insidiosa, recheada de pasta de amêndoas e doces, cuidados de beleza e confidências eróticas que cochichavam umas com as outras as cortesãs, ávidas por comprovarem as atenções do amo. No harém, todos os sentidos eram exaltados, cuidadosamente nutridos, e giravam apenas em torno da pessoa onipotente e invisível de Mulay Ismael. Ele estava presente em toda a parte. Virava uma obsessão. Angélica despertava sobressaltada, à noite, certa de vê-lo surgir do escuro.

Ficava satisfeita quando tinha a oportunidade, como agora, de vê-lo de fato, em carne e osso. Ele recuperava forma e densidade, um homem com seus limites, não um mito abstrato, quase religioso. Angélica jamais perdera a razão diante de um homem. Avaliaria a este como aos outros, depois... veriam.

— Quando mandará vir nossos padres? - perguntou Colin Pa-turel, sempre devorando a grandes dentadas. Investia contra o alvo com a tenacidade de um touro selvagem.

— Podem vir quando quiserem, com toda a segurança. Informe-os de que estou disposto a tratar com eles.

O normando sugeriu escrever duas cartas imediatamente. Uma da parte do rei ao Alcaide Ali, filho de Abdalla, que sediava Ceuta, a cidade espanhola, a fim de que este iniciasse a negociação. A outra aos padres da Trindade, que a receberiam por intermédio de mercadores franceses de Cádiz.

Ambos expeditos em negócios, na hora Mulay Ismael fez seu talbe empunhar da pena, enquanto Colin Paturel mandava aproximar-se seu escritor, o ruivo magro que há pouco o encorajara: "Mate. Não morra!" Chamavam-no Jeãn-Jean de Paris. Era um dos raros cativos procedentes da capital da França. Ex-tabelião de magistrado, acompanhara o patrão até a Inglaterra para um negócio. Tomado pela tempestade, o navio fora à deriva, inúmeras vezes quase se chocara contra a costa da Bretanha, e finalmente chegara ao golfo da Gasconha, onde corsários berberes o perseguiram e capturaram.

Colin Paturel ditou-lhe uma carta endereçada ao reverendíssimo superior, rogando-lhe que organizasse uma missão de resgate dos cativos de Miquenez, até então, em relação aos da Inglaterra e aos de Túnis, abandonados. Recomendou que trouxessem ricos presentes para agradar ap rei, sobretudo relógios de pêndulo, bem grandes, com o pendulo de ouro" representando o sol. Os olhos do sultão brilharam. De repente sentiu muita urgência em despachar os mensageiros.

Piccinino, o Veneziano, banqueiro dos escravos, tirou da caixa comum quatro ducados para o talbe que escrevera a carta ao Alcaide Ali. A mis.siva for borrifada comareia, lacrada e encerrada num estojo, que o mensageiro levaria sob a axila. Uma preocupação ainda obscurecia o rosto de Ismael.

— Os pappas se chamam padres da Trindade, você disse?

— Sim, senhor. São devotados religiosos que percorrem nossos campos e coletam esmolas de pessoas piedosas, a fim de também poderem resgatar os cativos sem fortuna.

A preocupação do sultão era de outro tipo.

— A Trindade? Não é aquele dogma que professam, o de que Deus se divide em três pessoas? Isso não é verdade. O único deus é Deus. Não quero no meu reino infiéis que enaltecem uma crença tão insultante.

— Pois bem, enviemos minha carta aos padres da Redenção - disse o normando, mandando corrigir o endereço.

O mensageiro apareceu finalmente, numa nuvem de poeira vermelha, e Mulay Ismael continuou com seu interrogatório:

-        Vocês, cristãos, dizem que há o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Insultam a Deus. Acredito que Jesus era o Verbo de Deus. Creio que foi um dos maiores dentre os profetas, pois o Corao disse: "Todo homem que nasce do ventre da mãe é esbofeteado por Satã, exceto Jesus e sua Mãe". Mas não creio que fosse Deus. em pessoa, pois se acreditasse... se acreditasse mandaria queimar todos os judeus que se encontram em meu reino - rugiu, estendendo o dedo na direção de Samuel Baidoran.

O ministro judeu curvou-se imediatamente. O coração de Mu-lay Ismael era um matagal de violentos rancores religiosos, que o invadiam até o sufocamento. A maioria de seus atos advinha do sentimento de um Deus frustrado, escarnecido, aviltado pela tolice dos infiéis, a quem ele, comandante dos crentes, devia fazer respeitar.

O sultão respirou profundamente.

— Gostaria de discutir a Lei com você, Colin Paturel. Como um homem de bom senso pode comprazer-se no mal que acarreta a danação?

— Não sou bom teólogo - respondeu Colin Paturel, roendo uma asa de pombo -, mas a que chama de bem e mal, senhor? Para nós, matar o semelhante representa um crime.

— Imbecis! Imbecis, que misturam pormenores terrestres com as grandes verdades. O mal... O único mal imperdoável é recusar a própria salvação, recusar a Verdade. E é o crime que vocês cometem todos os dias, vocês, cristãos, e do qual são culpados; mais ainda os judeus, que receberam primeiro a Verdade... Os judeus e os cristãos poluíram nossos livros santos, o Livro de Moisés, os Salmos de Davi, os Evangelhos... e fizeram-nos dizer o que jamais disseram. Como você pode viver dessa maneira no erro? Viver assim no pecado? Responda, cão bastardo!

— Não posso responder-lhe. Não passo de um pobre marinheiro normando, nativo de Saint-Valéry-en-Caux. Mas enviar-lhe-ei Reinaldo de Marmondin, um cavaleiro de Malta, que é muito versado na ciência de Deus.

— Onde está esse seu cavaleiro? Traga-o aqui.

— Não se encontra em Miquenez. Partiu de madrugada com a coluna que foi a Ued-Zem buscar cestos de cascalho para argamassa.

Estas palavras arrancaram Mulay Ismael de súbito às suas preocupações metafísicas. Seu sangue de construtor ferveu ao perceber que uma parte de seus escravos repousava há três horas.

__ O que fazem aqui esses cães a se empanturrar com os restos de minha mesa? - berrou ele. - Convidei-os a assistir a seu suplício e não para se divertir com a humilhação que você me impôs. Fora da minha vista, porco infame! Concedo-lhe graça por hoje. Ivlas amanhã... Cuidado... Amanhã!...

E mandou dar cem bastonadas em todos os franceses cativos que, naquela manhã, tinham faltado ao trabalho para ver morrer Colin Paturel!      

CAPITULO XV

Os jardins de Miquenez - A escrava torturada

Os jardins de Miquenez eram maravilhosos. Angélica os visitava com frequência, num grupo de mulheres ou levada numa cadeira com duas rodas, puxada por duas mulas. As portinholas cerradas a dissimulavam dos olhares, mas ela podia ver e gozar da beleza das flores e das árvores, exaltada pela luz ardente do sol. As vezes antevia com apreensão esses passeios, receosa de que a diplomacia do grão-eunuco tivesse previsto um encontro com o amo na curva de uma aléia.

Era frequente isso acontecer. Mulay Ismael tinha pelo passeio nos jardins um gosto que o aparentava a seu longínquo exemplo de soberano, Luís XIV. Queria ver, também ele em pessoa, o progresso das obras. Mas a hora era favorável a abordá-lo. Sobretudo quando ele carregava nos braços um de seus filhos recém-nascidos ou um de seus gatos, percorrendo a passos medidos as aléias en-sombrecidas, seguido de algumas altas personalidades da corte. Todos sabiam que esse era o momento de apresentar-lhe uma solicitação difícil. Mulay Ismael não se aborrecia nunca nos jardins, com medo de perturbar a pequena boneca marrom que levava no colo ou o gato opulento que acariciava. Pelos bebes e pelos animais tinha uma paixão que surpreendia a todos os que se aproximavam dele, tanto quanto espantava a brutalidade selvagem que demonstrava para com seus semelhantes. Os jardins e os palácios estavam repletos de animais raros. Gatos de todas as raças, cuidados por um exército de criados, apareciam em toda a parte: nas árvores, nos pátios, nos gramados, sob as flores, com sua opulenta pelagem cinza, branca, preta ou malhada. Os olhos verde-azulados, as pupilas de ouro fluido seguiam longamente jps pas-seantes ao longo das aléias. Eram múltiplas presenças invisíveis e aveludadas, que assombravam os jardins como djins protetores, dando-lhes uma alma sonhadora e secreta.

Os gatos não eram ensinados a vigiar os escravos ou os tesouros, como no Oriente. Mimavam-nospor eles mesmos, o que os tornava meigos e satisfeitos. Os animais vivíam felizes na casa de Mulay Ismael. Os cavalos, animais que adorava, junto com os gatos, tinham estrebarias esplêndidas, com abóbadas de mármore, fontes e bebedouros de mosaicos verdes e azuis, colocados a intervalos entre as duas galerias.

A beira de um lago, flamingos rosados, íbis e pelicanos brincavam sem medo.

Em certos trechos o verde era tão denso, o alinhamento das oliveiras e altos eucaliptos tão perfeito que a perspectiva de um grande bosque se oferecia à vista, fazendo esquecer a prisão das muralhas de ameias que os eercavam,

Geralmente os eunucos acompanhavam as mulheres em seus passeios, pois, apesar das muralhas da alcáçova, havia muitas idas e vindas suspeitas no interior da imensa fortaleza, devido às obras. De acesso livre havia apenas os pequenos pátios internos, com seus chafarizes e moitas de loureiro-rosa.

Naquela manhã Angélica pensava visitar o elefante anão. Também esperava encontrar Savary, que era o primeiro médico do precioso animal. A pequena circassiana e duas outras concubinas de Mulay Ismael juntaram-se a ela: uma etíope alta e alegre, Muíra, e uma peul de rosto impassível e muito claro, cor de limoeiro.

Tomaram a direção dos estábulos, sob a proteção de três eunucos, entre os quais Ramidan, chefe da guarda da rainha, que levava ao braço o pequeno Príncipe Zidan. A criança ouvira falar do elefante e reclamara a plenos pulmões que o levassem para vê-lo.

As previsões de Angélica revelaram-se corretas. Encontraram Savary armado de uma enorme seringa de chumbo, preparando-se, com o auxílio de mais dois escravos, para administrar um clister ao paciente. O elefante comera goiabas demais. Imediatamente o principezinho quis oferecer-lhe mais. O médico não se deu ao trabalho de opor-se ao capricho. Algumas goiabas a mais ou a menos não fariam diferença alguma para a indisposição do paquiderme, e era melhor não incorrer na cólera do negrinho real.

Angélica aproveitou para passar a Savary dois pãezinhos que trazia sob os véus. O pussah Rafai viu, mas não disse nada. Tinha ordens muito precisas acerca da cativa francesa. Nada de desafiá-la com uma disciplina muito rigorosa.

Angélica murmurou:

-        Você prevê algum plano para a nossa fuga?

O velho boticário lançou um olhar inquieto e respondeu entre dentes:

— Meu genro, o judeu Samuel Cayan, aquele rapaz encantador, está disposto a me adiantar uma soma vultosa para pagar os meta-dores que nos serviriam de guias. Colin Paturel conhece alguns que já tiveram êxito em fugas anteriores.

— São de confiança?

— Ele garante que sim.

— E por que ele próprio ainda não fugiu?

— Está sempre acorrentado... A fuga dele é no mínimo tão difícil quanto a sua. Disse, que nunca uma mulher tentou fugir... Ou, se tentou, ninguém jamais o soube. Na minha opinião, você deve esperar a vinda dos padres da Redenção e pedir a intervenção de Sua Majestade, o rei da França.

Angélica quis replicar com veemência, mas um grunhido de Rafai fê-la entender que o diálogo secreto, do qual o eunuco não podia compreender uma palavra sequer, já durara demais.

Os guardas se puseram a insistir com as mulheres para voltarem. Tiveram mais dificuldades em convencer o príncipe. Ramidan precisou segurá-lo no colo. A cólera do principezinho acalmou-se quando ele encontrou na curva de uma aléia um velho escravo semicalvo, João Batista Caloens, um flamengo, que recolhia folhas caídas. A criança gritou que queria cortar-lhe a cabeça, porque ele era careca e não servia para mais nada. Fez uma cena medonha, de modo que os eunucos aconselharam o escravo a cair assim que fosse atingido. O príncipe ergueu a cimitarra miniatura e desferiu o golpe com toda a força. O velho caiu no chão e fez-se de morto. Estava com um grande corte no braço. Ao ver o sangue, a "simpática" criança acalmou-se e continuou alegremente o passeio.

Passaram perto de um jardim muito denso, cheio de trevos para os cavalos do palácio. Mais adiante toparam com um pequeno bosque de laranjeiras e roseiras. Era o local mais encantador da alcáçova, cuja planta fora traçada por um jardineiro espanhol e que casava não só as cores das árvores verde-azuladas, de onde pendiam laranjas grandes como lanternas, com as cores das massas de rosas ao pé das árvores, como também os perfumes delicados de frutos e flores. Havia dois escravos trabalhando. Ao passar, Angélica ouviu-os falar em francês. Voltou-se para olhá-los. Um deles, belo latagão de ar esperto, de boa raça, facilmente imaginável de peruca e peitilho de renda, deu-lhe uma alegre piscada. E preciso que um francês esteja bem derrotado pelo jugo da escravidão para não sorrir à passagem de misteriosas beldades veladas, ainda que com o risco de perder a vida. A jovem circassiana exclamou na hora:

-        Quero aquela laranja tão bonita, lá em cima! Digam aos escravos que a colham para mim.

Na verdade ela notara o belo rapaz e queria parar para examiná-lo. A experiência do amor nos braços do voluptuoso Ismael fizera da menininha ignorante uma mulher curiosa e desejosa de exercer seus encantos sobre-outros.homens. Estes, apesar do corpo mal nutrido e dos farrapos miseráveis, eram os primeiros que ela encontrava além do rei. desde que este lhe revelara as primeiras regras do jogo sutil e violento que desde que o mundo é mundo opõe e aproxima Eva e Adão.

Seus olhos magníficos acima do véu de musselina examinavam avidamente os escravos de pele branca. Eram realmente muito musculosos e peludos..." -

Mas o rapaz alto, com sorriso de anjo, tinha pêlos louros e sedosos. Devia ser estranho ver-se nua entre os braços dele. Como se comportavam os cristãos no amor?... Diziam que não eram circuncidados...

-        Quero que me colham aquela bela laranja lá de cima - insistiu ela.

O gordo Rafai observou com severidade que ela não tinha o direito de pedir frutas que pertenciam todas exclusivamente ao rei. A jovem se enfureceu e replicou que o que pertencia ao rei pertencia a ela também. Pois doravante ele se encontrava sob o poder dela. Ele próprio lhe garantira isso. E ela se queixaria ao rei da insolência dos eunucos, que seriam castigados.

Os dois escravos acompanhavam a discussão com o rabo do olho. O jovem louro, que era o Marquês de Vaucluse, cativo há alguns meses, sorria com indulgência, feliz por ouvir uma voz feminina e caprichosa, mas o companheiro, um bretão, Yan Le Goen, velho conhecedor da escravidão com seus vinte anos de Marrocos, aconselhou-o vivamente a desviar o olhar e a se absorver na tarefa, pois os escravos eram proibidos de olhar as mulheres do rei sob pena de morte. O marquês deu de ombros. Era bonita a garota, pelo menos o que se adivinhava dela. O que queria exatamente?

— Quer que lhe colham uma laranja - traduziu o bretão.

— Pode-se recusar isso a uma moça tão bonita? - disse o Marquês de Vaucluse, que, largando a podadeira, ergueu o torso elegante enfiado num gibão desbotado para estender a mão até a laranjeira.

Colheu a fruta e, inclinando-se diante da circassiana como teria feito diante da Sra. de Montespan, entregou-lhe a laranja.

O que desabou sobre eles em seguida veio com a velocidade do furacão.

Alguma coisa sibilou no ar e a ponta de uma azagaia, atirada quase à queima-roupa, trespassou o peito do marquês, que caiu.

A beira de um caminho coberto de erva, aparecia Mulay Ismael, em seu cavalo branco, o rosto convulsionado de fúria. Aguilhou o animal com as esporas para se aproximar, arrancou a lança do cadáver e voltou-se para o outro escravo, para também trespassá-lo. Mas o bretão, lançando-se para a frente, se atirara entre as patas do cavalo, gritando lamentavelmente em árabe:

-        Graça, senhor, graça pela santidade de seu cavalo sagrado, pe

regrino de Meca.

Mulay Ismael tentava atingi-lo sob o ventre do cavalo, mas o cativo, correndo o risco de ser esmagado pelos cascos do animal inquieto, não deixava o abrigo. Alguns dos cavalos de Mulay Ismael tinham a reputação de ser sagrados, particularmente os que haviam estado em Meca e que eram hadj. Yan Le Goèn reconhecera a tempo um desses animais, o mais admirado e amado pelo sultão. Este acabou cedendo, por amor a Lanilor.

-       Muito bem - disse ao escravo -, pelo menos conhece nossos costumes sagrados. Mas afaste-se de minha vista, verme imundo, e que nunca mais eu ouça falar de você!

O bretão disparou de sob o cavalo, agarrou o corpo do companheiro morto e enfiou-se a toda pelo bosquezinho florido e perfumado.

Mulay Ismael voltou-se, de lança erguida. Procurava entre os eunucos aquele a quem acertaria primeiro para puni-los pela negligência. Mas Ramidan, por sua vez, encontrou o meio de enternecê-lo, estendendo para ele o pequeno Zidan, que estava encantado com o espetáculo.

-        Pela graça de seu filho, senhor, pela graça de seu filho!

Fluente, o eunuco explicou que a circassiana se gabara de mandar o amo puni-los, quando o soberano sempre tivera inteira confiança em seus eunucos para domar as-indóceis. Ela queria uma laranja! Pretendia que o que pertencia ao rei também lhe pertencia!

Mulay Ismael tornou-se sombrio;como a noite, depois um sorriso sardónico descobriu-lhe os dentes.

-        Tudo aqui pertence apenas a mim. Você aprenderá às suas custas, Marryamti - disse ele, em tom pesado.

Dando meia-volta com a montaria, partiu a galope.

As mulheres foram reconduzidas ao harém. O dia inteiro pesou uma atmosfera angustiada sobre os apartamentos e os pátios, onde as cortesãs languidamente tomavam chá, cochichando.

A jovem circassiânã es"tava pálida. Seus olhos imensos vagavam sobre o rosto das companheiras, tentando ler ali o segredo de sua condenação. Mulay Ismael ia torturá-la. Não havia dúvida quanto ao horrível veredicto.

Ao ser informada por Ramidan do incidente, a negra Leila Aí-cha preparara pessoalmente sobre um braseiro uma bebida de ervas que só ela conhecia e mandara duas criadas levá-la à circassiana. Que a criança a tomasse imediatamente; adormeceria sem dor na morte! Assim escaparia às torturas atrozes que o amo lhe preparava para castigá-la por sua insolência.

Quando a circassiana finalmente entendeu o que lhe recomendavam, soltou um grito de horror e afastou a tigela com a bebida, que virou. Leila Aícha fez um muxoxo de macaca amuada. Agira por pura bondade, disse. Agora, pouco importava! Que o destino agisse...

Enquanto isso, um dos gatos que lambera o líquido derramado morreu na hora. Apavoradas, as mulheres o enterraram em segredo. Só faltava que o rei ficasse sabendo da morte de um de seus queridos animais.

A circassiana refugiara-se nos braços de Angélica. Não chorava. Tremia como um animal encurralado pela matilha de caça. No entanto, tudo era silêncio. O perfume das flores exalava-se na noite que estendia suavemente sobre os pátios um céu de -jade. O espírito do caçador sádico e invisível pairava sobre a presa escolhida e dispersava para a obscuridade dos apartamentos as criaturas mudas e angustiadas.

Angélica acariciava os cabelos azuis como a noite de Marryamti. Reunia algumas palavras em árabe para tranquilizá-la.

-        Por uma laranja!... Não é possível que ele a puna com tanta crueldade... Talvez mande chicoteá-la. Mas já teria dado a ordem... Não vai acontecer nada. Acalme-se!

Mas ela mesma não conseguia acalmar-se. Sentia bater, agitado, o coração da infeliz.

De súbito a circassiana soltou um berro.

Do fundo da galeria, os eunucos avançavam. A frente deles marchava Osman Ferradji. Vinham de braços cruzados sobre o colete de cetim vermelho. Um sarual do mesmo vermelho era apertado à cintura por uma faixa preta, de onde pendia a cimitarra. Não usavam turbante e via-se-lhes o crânio raspado, com uma única mecha de cabelos trançada sobre o occipício. Avançavam, soturnos e calados, sem nenhuma expressão nos rostos gordos.

As mulheres fugiram. Tinham reconhecido o traje das execuções.

A jovem girou sobre si mesma, como um animal enlouquecido à procura de uma saída. Depois atirou-se de novo aos joelhos de Angélica, agarrando-se a eles com todas as suas forças. Não gritava, mas seu olhar patético pedia socorro desesperadamente.

-        O que vão fazer-lhe? - interrogou Angélica, ofegante, em francês. - Não é possível que possam fazer-lhe mal... por uma laranja!

Impassível, o grão-eunuco não se dignou responder. Entregou a vítima a dois guardas, que a arrastaram. Ela agora gritava, em sua língua materna, chamando pelo pai e pela mãe, que os turcos haviam matado, suplicando aos santos ícones da Santa Virgem de Tíflis que a salvassem.

O terror decuplicava-lhe as forças. Tiveram de arrastá-la sobre o lajeado. Assim a tinham levado para o Amor. Assim, essa noite, levavam-na para a Morte.

Angélica ficou sozinha, os nervos à flor da pele. Vivia um pesadelo, e o suave murmúrio do chafariz, em sua perfeição, causou-lhe um terror animal, como um objeto monstruoso em sua inconsciência. Viu a etíope que, da galeria de cima, lhe fazia sinal com um grande sorriso para que subisse. Angélica foi ao encontro de um grupo de mulheres inclinadas sobre a balaustrada.

-        Daqui se ouve tudo!

Um longo grito subiu agudo, depois outros, e outros.

Angélica tapou os ouvidos e se afastou como de uma tentação. Por aqueles berros de agonia e dor desumanas que um tirano sádico arrancava ao corpo de urna pequena escrava, culpada apenas de haver colhido uma laranja, ela sentia uma espécie de fascínio horrível, algo que jamais sentira desde a infância. Reviu a babá, uma chama em seus olhos de mourisca, contando a ela e aos irmãos os tormentos que Gilles de Retz infligia aos inocentes que ele raptava para Satã...

Vagou pelas galerias.

-        É preciso fazer algo! Não se pode deixar que façam isso!

Mas ela não passava de uma escrava encerrada num harém, cuja vida também estava em jogo.

Notou uma mulher que se inclinava, a orelha atenta na direção dos aposentos do rei. Suas longas tranças louras pendiam para a frente. Era a ingle*sái Djisy. Angélica aproximou-se. Entre as orientais, as espanholas e aj italianas, morenas demais, sentia a inglesa como se pertencesse ã sua raça". Era a única loura, com a pobre islandesa, inutilizável e que tardava em morrer.

Nunca se tinham falado antes. Mas, quando Angélica se aproximou, a inglesa passou-lhe um braço em torno dos ombros. Estava com a mão gelada..

Também dali se "ouvia".

A um gemido mais inumano, Angélica respondeu com um gemido surdo. A inglesa estreitou-a contra si. Murmurou em francês:

-        Oh, por quê, por que ela não tomou a bebida que Leila Aícha lhe enviou? Não consigo me habituar a essas coisas!

Falava francês com um sotaque forte, mas bastante fluente, pois estudava línguas para se distrair, não conseguindo ceder à preguiça intelectual das outras cortesãs. Durante longo tempo Osman Ferradji apostara naquela cristã nórdica, sem paixões, mas Leila Aícha a tomara dele.

Os olhos claros procuraram o rosto de Angélica.

— Ele lhe dá medo, não é? No entanto, você é uma mulher dura como a areia. Quando Leila Aícha .a olha, diz que você tem facas nos olhos... A circassiana estava no lugar que Osman Ferradji lhe reserva... E você treme pelo suplício dela?

— Mas, afinal, o que fazem com ela?

— Oh, a imaginação do senhor não tem limites para inventar suplícios refinados. Sabe como matou Mina Varadoff, a bela moscovita que lhe falou com insolência? Cortando-lhe os seios com a tampa de um cofre sobre o qual mandou subir dois carrascos. E não foi a única mulher a quem torturou assim... Olhe minhas pernas.

Levantou a barra do sarual. Os pés e os tornozelos apresentavam os vestígios rosados e inchados de queimaduras assustadoras.

— Mergulharam-me os pés em óleo fervente, para me fazer apos-tatar. Eu tinha apenas quinze anos. Cedi... E dir-se-ia que ele me amava duplamente pela resistência que lhe opus. Conheci prazeres maravilhosos entre seus braços...

— E daquele monstro que está falando?

— Ele tem necessidade de fazer sofrer. Nele é uma forma de luxúria... Psiu! Leila Aícha está nos observando.

A negra enorme estava em pé à soleira de uma porta.

-        A única mulher que ele ama - cochichou Daisy, com um misto de rancor e admiração. - E preciso estar do lado dela, para que não lhe aconteça nada de desagradável... Mas desconfie do grão-eunuco, esse tigre açucarado e implacável...

Angélica desapareceu, seguida pelo olhar das duas mulheres. Refugiou-se em seu apartamento. Foi em vão que Fátima e as criadas lhe serviram doces e cafés. Ela as mandava o tempo todo informar-se: a circassiana morrera?

Não. Mulay Ismael não se fartava com suas torturas e tomavam-se as piores precauções para que a morte não ocorresse muito rápido.

— Oh, que raios partam esse demónio! - dizia Angélica.

— Mas ela não era sua filha nem sua irmã! - espantavam-se as servas.

Angélica acabou atirando-se sobre o divã, com as mãos sobre as orelhas, almofadas por sobre a cabeça. Quando se descobriu, a lua se erguia. Reinava o silêncio. Teve a impressão de ver passar pela galeria o grão-eunuco em sua ronda. Correu e desceu ao encontro dele.

-        Ela morreu, não é? - gritou. - Ah, pelo amor do céu, diga-me que ela morreu!

Osman Ferradji olhou com perplexidade aquelas mãos suplicantes, aquele rosto transtornado pela angústia.

-        Sim, morreu. Acaba de expirar...

Angélica soltou um suspiro de alívio, que pareceu um soluço.

-        Por uma laranja! Por uma laranja! E é esse o destino que você me reserva, Bei Osman. Gostaria que eu me tornasse favorita dele para que ele me faça morrer assim, sob tortura, pelo menor gesto.

— Não, isso não lhe acontecerá. Eu a protegerei.

— Você não pode nada contra a vontade desse tirano!

— Posso muito... Quase tudo.

— Então, por que não a protegeu? Por" que não a defendeu? Uma pesarosa surpresa apareceu no rosto do grão-eunuco.

-        Mas... ela quase não era interessante, Firuzê. Era um cérebro

minúsculo. Um belo corpo, claro, um conhecimento instintivo do amor e já pervertida. Foi por esse lado que1 atraiu Mulay Ismael. Ele começava até a gostar demais dela. Ele o sabia e lhe queria mal por isso mesmo. Sua cólera foi boa conselheira. A execução

de hoje o desembaraçou de uma obsessão que o aviltava... e deixa o lugar livre para você!

Angélica recuou, as costas da mão sobre os lábios.

-        Você é um .monstro - disse a meia voz. - Vocês todos são monstruosos. Causam-mê horror!

E atirou-se sobre as almofadas,.agitada por um tremor convulsivo.

Pouco depois, Fátima-Mireille apareceu com uma tisana calmante, que o grão-eunuco a encarregara de levar. Com o chá, trazia das cozinhas detalhes fresquinhos sobre os diversos suplícios que á cir-cassiana sofrera, e ardia por relatá-los à ama. Mas às primeiras palavras Angélica desferiu-lhe uma bofetada e teve uma crise de nervos que a velha provençal teve uma dificuldade e tanto para acalmar.

CAPÍTULO XVI

A noite no harém

Ela escutava a noite. No interior do harém, os ruídos se abafavam. Cada mulher devia retornar a seu pavilhão ou a seu apartamento. Bastante livres para ir e vir de um pátio a outro durante o dia, e para se visitarem, à noite ficavam todas em seus aposentos, sob a guarda de um eunuco e das criadas negras. Quem ousaria infringir essas ordens? De noite a pantera Alchadi era posta em liberdade. A imprudente que por acaso conseguisse escapar à vigilância dos guardas arriscava-se a de repente dar de cara com o felino, que fora treinado para saltar sobre silhuetas femininas.

Quantas criadinhas mouras, enviadas pelas amas às cozinhas para buscar esta ou aquela gulodice que desejavam imediatamente, foram massacradas assim! De manhã, dois eunucos, que tinham criado a pantera, corriam pelo palácio a sua procura. Quando finalmente a agarravam, faziam soar uma espécie de trompa: "Alchadi está acorrentada". Só então as mulheres respiravam, e o harém começava a animar-se.

Uma única mulher encontrava mercê diante da pantera: Leila Aícha, a maga. A negra enorme não temia feras, rei ou rivais. Temia apenas a Osman Ferradji, o grão-eunuco. Era em vão que convocava contra ele seus feiticeiros e os fazia preparar encantos. O grão-eunuco escapava, pois também ele possuía a ciência do invisível.

De seu balcão, Angélica olhava a chama escura dos ciprestes que se erguiam contra a brancura dos muros. Dardejavam do patiozi-nho interior, de onde subia seu perfume, o aroma das rosas e o ruído do chafariz.

Doravante aquele pátio fechado seria todo o seu horizonte! Do outro lado, onde estava a vida e a liberdade, os muros eram lisos. Eram os muros de uma prisão. E ela chegava a invejar os escravos, homens sem dúvida famintos e derreados de trabalho, mas que podiam ir e vir, podiam sair para o outro lado. Já eles se queixavam de serem forçados e da impossibilidade de sair de Mique-nez e ganhar o deserto.

A Angélica, porém, parecia que, se conseguisse atravessar aquele muro fechado do harém, o resto da evasão seria facílimo. Primeiro havia a impossibilidade de obter cumplicidades do lado de fora. Era um milagre que, graças à calculadíssima indulgência do grão-eunuco, ela tivesse podido falar duas vezes com Savary.

Ele podia organizar a evasão de fora, mas do harém cabia a ela sozinha escapar. E seu espírito inventivo lhe falhava, chocava-se com um excesso de obstáculos dissimulados. De início tudo parecia fácil, quando na verdade tudo era duro e cruel.

A noite, a pantera: A noite e de dia, os eunucos, impassíveis, em pé junto às portas ao luar, com suas lanças, ou fazendo a ronda no alto dos terraços,, o iatagã na mão. Inalteráveis! Implacáveis!

As criadas? Angélica tinha dúvidas. A velha Fátima gostava bastante dela e lhe éra profundamente dedicada. Mas essa dedicação não iria até o ponto de ajudar a ama numa aventura em que, se fracassasse, corria risco de morte e que ela considerava imbecil. Um dia Angélica lhe pedira que fizesse chegar a Savary um papelzinho. A velha se esquivara o melhor que pudera. Se a surpreendessem com um papel enviado por uma concubina do rei a um escravo cristão, ela seria atirada ao fogo como um pedaço de lenha. No mínimo! Quanto ao escravo cristão, não se ousava imaginar qual seria o destino dele. Receando por Savary, Angélica não insistiu.

Mas já não sabia o que fazer. As vezes, para recobrar coragem, lembrava-se de seus dois garotinhos cristãos, tão distantes: Flori-mond e Carlos Henrique. Mas isso já não lhe bastava para estimular a vontade. Ela não podia vencer tantos obstáculos para ir ao encontro deles!

Pensava que o odor das rosas era soberbo e que a tímida melodia de um ukele, que uma pequena escrava moura tocava um pouco afastada para adormecer a ama, parecia a própria voz daquela noite límpida. Por que lutar? Amanhã haveria bestila, aquele bolo folhado, fino como renda, ocultando a surpresa de um guisado de pombo onde a pimenta luta com a canela e o açúcar.:. E ela também estava morrendo de vontade de tomar uma xícara de café. Sabia que bastava bater palmas para que a velha provençal ou a negra que a assistia reanimasse as brasas de um aquecedor de cobre e fervesse a água sempre pronta numa cintilante' chaleira.

O aroma da beberagem preta lhe dissiparia a angústia e lhe traria de volta, como um sonho tranquilizante, a lembrança de uma hora estranha que ela passara em Cândia.

Então Angélica cruzou os braços sob a cabeça e sonhou...

Sobre o mar azul, havia um navio branco, inclinado como uma gaivota sob o vento... Um homem que a comprara ao preço de um navio! Aquele homem que a quisera loucamente, onde estaria? Lembrar-se-ia ainda da bela cativa que lhe fugira? Por que fugira?, perguntava-se ela agora. Claro, era um pirata, mas era também um homem de sua raça. Claro, era um homem inquietante, talvez medonho sob a máscara, mas não lhe inspirava receio algum... A partir do instante em que aquele olhar escuro e magnético captara o seu, ela soube que ele não viera para tomá-la, mas para salvá-la. Sabia agora de quê: de sua própria loucura imprudente. Loucura ingénua de haver imaginado que no Mediterrâneo uma mulher sozinha podia ser senhora de seu destino. Não era livre sequer de escolher o próprio amo. E, como recusara aquele, ela caíra entre as mãos de outro, muito mais implacável.

Angélica derramou lágrimas amargas, sentindo pesar sua dupla escravidão de mulher e de cativa.

- Tome um café - cochichou a provençal -, você se sentirá melhor. Amanhã lhe trarei a bestila bem quentinha. Os ajudantes já estão fazendo a massa nas cozinhas...

O céu verdejava acima da ponta negra dos ciprestes. Levada pela aurora, do alto dos minaretes, a voz queixosa dos muezins chamava os fiéis à oração, e pelos corredores do harém os eunucos corriam, chamando Alchadi, a pantera.

CAPITULO XVII

A praça dos escravos - Chegada dos redentoristas

Um dia, bem perto de Seu apartamento, mas dissimulada por uma reentrância da parede., Angélica olhou por uma seteira da fachada que dava para o lado da cidade.

Era uma abertura em forma de fechadura, estreita demais para que ela pudesse debruçar-se, alta demais para que p.udesse chamar quem quer que fosse, mas que dava para uma grande praça onde passava muita gente.

Daquele dia emdiante ficava longas horas ali. Via os escravos cristãos esfalfanda-se nas obras incessantes de Mulay Ismael. Ele construía, construía. Aparentemente, apenas pela satisfação de demolir e reconstruir. Seus métodos permitiam uma grande rapidez de execução. Mandava fazer a argamassa com uma terra saibrosa, cal e um pouco de água, que eram batidos com força entre duas pranchas afastadas na largura da muralha a erguer-se. Tijolos e pedras só eram utilizados nas pilastras e nas vergas das portas. . Logo o espetáculo desses canteiros de obras, de que Angélica só via um canto na praça, tornou-se familiar para ela. Os chauchs negros o tempo todo com bastões erguidos sobre o dorso dos cativos, estes realizando suas tarefas sem parar sob o sol implacável. E com frequência Mulay Ismael aparecia, a cavalo ou a pé, sob um guarda-sol, seguido de seus alcaides. _

Então o quadro melancólico ganhava vida. Angélica deixava-se cair na armadilha de sua curiosidade de ociosa forçada.

Mulay Ismael surgia, e imediatamente alguma coisa acontecia.

Era Colin Paturel que ia pedir-lhe para celebrar a Páscoa no dia seguinte não trabalhando, e o sultão que lhe mandava aplicar na hora cem bastonadas. Era um escravo que ele abatia com um tiro de mosquete porque descansava um pouco e não o percebera, e que o sultão mandava atirar do alto da muralha de trinta pés. Eram dois ou três guardas negros que o soberano decapitava com a própria mão porque eram responsáveis pela lentidão das obras.

Angélica não ouvia vozes nem palavras. O teatro da pequena ameia levava para ela cenas breves, trágicas até o burlesco em sua mímica silenciosa. Fantoches que tombavam, fugiam, rogavam, batiam, que subiam pelas escadas e andaimes, que não paravam nunca até o cair da noite.

Nessa hora a praça branca via os muçulmanos prosternarem-se, tocando o chão com a testa, voltados para Meca, a cidade do túmulo do Profeta.

Os escravos retornavam a seus bairros ou às masmorras.

Angélica acabou por reconhecer alguns. Sem saber-lhes os nomes, distinguia-lhes a raça: os franceses, que podiam receber uma bastonada com um sorriso e frequentemente se punham a conversar com os carcereiros negros até que estes, sem dúvida exaustos com os argumentos, deixavam-nos fazer o que queriam - descansar um pouco, fumar um cachimbo à sombra da muralha.

Os italianos, que sabiam cantar. Cantar em meio à poeira áspera da cal viva e das pedras. Via-se bem que cantavam, porque os companheiros paravam para ouvi-los. Os italianos também tinham acessos de ira, arriscando a própria vida.

Os espanhóis se faziam notar pela condescendência altiva com que manejavam a colher de pedreiro; não se queixavam nunca do ardor do sol, da fome, da sede. Os holandeses realizavam sua tarefa com cuidado, não se envolviam em disputas e viviam sempre próximos uns dos outros. Reconheciam-se os protestantes exata-mente por essa serenidade severa. Católicos e cismáticos odiavam-se cordialmente, e entregavam-se a verdadeiras batalhas de cães enraivecidos que os bastões dos guardas encontravam dificuldade em separar. Com frequência os guardas se viam obrigados a procurar Colin Paturel, cuja autoridade logo restabelecia a calma.

O normando estava sempre carregado de correntes. Era frequente ter os braços e as costas cobertos de chagas sangrentas, devido às bastonadas que sua audácia em reclamar justiça provocava. Nem por isso deixava de carregar sobre o dorso hercúleo pesados sacos de cal, subindo assim, com as correntes oscilando, pelas escadas até o topo das construções. Pegava a carga dos mais fracos, e ninguém se atrevia a dizer-lhe coisa alguma. Um dia, segurando com uma mão as correntes dos pulsos, atacou um dos negros que castigava o doentio Jean-Jean de Paris. Os guardas acorreram de sabre em riste, mas recuaram: era Colin, o Normando. Só o rei tinha o direito de puni-lo.

Quando o monarca, ao cair datarde, foi díhar os trabalhos dos escravos, como era de hábito, pousou a lança no peito do francês.

Angélica teve a impressão de ouvir o fatídico:

- Mouro! Faça-se mouro!

Colin Paturel meneou a cabeça, negativamente. Ia cair ali, expirar finalmente o invencível gigante louro, alvo há anos de uma perseguição de que já poderia ter morrido cem vezes? Azrael ia finalmente agarrar a presa?

Angélica mordia os punhos. Tinha vontade de lhe gritar, em francês, que apostatasse, e não compreendia aquela obstinação que mantinha o homem diante de^, seu carrasco, com a morte sobre o coração.       T -

Mulay Ismael atirou-a lança de lado, encolerizado. Mais tarde Angélica soube que ele dissera: "Este cão deseja a danação!"

A teimosia de Colin Paturel em querer arder entre os demónios e recusar o paraíso dos crentes causava ao rei do Marrocos uma amargura próxima à mágoa.

Angélica suspirou "de alívio por trás de seus muros e foi tomar uma xícara de café para se recompor. Com espanto, interrogava-se sobre aqueles milhares de cativos, pessoas comuns, marinheiros de todos os países do mundo, que encontravam a coragem de enfrentar a morte ou anos de cativeiro por um Deus com quem, quando eram livres, talvez não se preocupassem. Se um daqueles miseráveis famintos, torturados e desesperados apostatava, imediatamente tinha o que comer. Uma vida confortável, um cargo respeitável e tantas mulheres quantas Maomé permitia a seus fiéis.

E naturalmente havia muitos renegados em Miquenez e na Barbaria, mas poucos em comparação às centenas de milhares de cativos que há gerações passavam pelas mãos dos sultões.

O que Angélica contemplava do alto de sua seteira era o que um homem pode tirar de melhor de sua pobre carcaça tentada. Eles próprios não o sabiam. Trabalhavam, sofriam, esperavam...

Angélica viu passar um comboio de novos cativos, enviados ao rei pelos corsários de Sale. Não comiam há oito dias. Suas roupas sujas e amarrotadas não haviam tido ainda o tempo de assemelhar-se aos uniformes esfarrapados dos escravos. Distinguiam-se os dou-rados do grão-senhor e o colete listrado do marinheiro. Logo seriam todos irmãos: cristãos cativos na Barbaria. E alguns tinham tido que carregar a cabeça dos camaradas mortos a caminho, pois os guardas receavam ser recusados de tê-los vendido por conta própria.

Também ali, no centro daquela praça onde o sol de fogo proje-tava sombras índigo, um lugar para criar miragens, Angélica notou uma manhã a figura mais espantosa e incongruente que poderia imaginar: um homem bem vestido e de peruca. Os saltos altos e os sapatos de fivela não davam conta de uma longa caminhada, e tinha os punhos limpos.

Foi preciso que um alcaide se aproximasse dele com três saudações para que Angélica se convencesse de que não estava sonhando.

Então, correu para dentro, para mandar uma criada perguntar de quem se tratava. Depois refletiu que o gesto trairia seu posto de observação. Teve, portanto, de esperar que a notícia corresse sozinha... o que foi rápido.

O enviado extraordinário, de peruca, não era outro senão um honesto mercador francês de Sale, o Síeur Bertrand, que, na qualidade de antigo residente no litoral do Marrocos, encarregara-se de vir anunciar em Miquenez a tão reclamada chegada dos padres redentoristas.

Bom cristão, desejoso de ir em auxílio de seus infelizes irmãos, o mercador colocara sua experiência do país e dos marroquinos a serviço dos redentoristas, que desembarcavam pela primeira vez no reino ciumentamente fechado de Mulay Ismael.

Os religiosos chegavam com seus presentes e cartas de recomendação, viajando em pequenas etapas no lombo de asnos.

Logo os cativos estavam como que fervilhando. Os marujos, alguns dos quais já tinham sofrido vários cativeiros em Argel ou em Túnis e só saíram graças à intervenção dos padres, gostavam daqueles religiosos, a quem também chamavam de padres dos asnos, pois estavam habituados a vê-los enfiarem-se corajosamente terra adentro, até as aldeias mais remotas, para resgatar cativos. Mas fazia quinze anos que o acesso ao Marrocos lhes fora proibido.

Não fora pequena a vitória que Colin Paturel obtivera ao conseguir que o instável humor do rei cedesse nesse ponto.

Eles chegavam. O velho Caloèns, o deão dos cativos, com setenta anos de idade e vinte de senzala, caiu de joelhos e agradeceu ao céu. Finalmente vislumbrava a liberdade! Seus companheiros se surpreenderam, pois o velho, jardineiro do rei, cujos relvados ele cuidava com amor, sempre parecera feliz com o próprio destino. Ele explicou que era verdade e que não partiria do Marrocos sem chorar, mas tinha de partir porque estava ficando careca. O rei não gostava de carecas. Quando percebia um, caía-lhe em cima e rachava-lhe o crânio com o castão de cobre de sua grossa bengala. O velho Caloéns, por velho que fosse, não queria morrer ainda, sobretudo daquela maneira.

Os padres dos asnos chegavam. O rei deixou que todos os escravos lhes fossem ao encontro, carregando palmas verdes em sinal de boas-vindas.

Angélica não aguentou mais. Pela primeira vez pediu ao grão-eunuco que lhe concede sse-umiavor: o de assistir à audiência que Mulay Ismael concederia aos religiosos franceses. Osman Ferradji semicerrou os oblíquos olhos de gato, pareceu calcular o que o pedido poderia ocultar e cedeu.

Foi preciso esperar muito tempo. A missão alojou-se no bairro judeu e lá ficou encerrada uma semana, sob o pretexto de que os padres não tinham permissão de fazer visita alguma antes de serem recebidos pelo rei.-

Os alcaides, os ministros, os renegados em altos cargos foram ver os presentes dos pobres padres e sondar sobre o dinheiro que poderiam obter deles.

Uma manhã, afinal, a cativa francesa recebeu aviso de se preparar para o passeio. Osman Ferradji conduziu-a até a cadeirinha de cortinas vermelhas atrelada a uma mula e solidamente escoltada. O veículo atravessou várias muralhas. A porta que dava para a esplanada da alcáçova, o grão-eunuco mandou parar a cadeirinha. Angélica podia ver através do vão das cortinas.

O rei já estava instalado, sentado no chão com as pernas nuas cruzadas, calçado de babuchas amarelas. Naquele dia sua roupa e seu turbante eram verdes, sinal de seu excelente humor. Cobria a boca com uma aba do albornoz, o que lhe dava um brilho imenso ao olhar. Também ele estava curioso por ver de perto os padres cristãos e ávido por contemplar os presentes que lhe haviam trazido. O renegado Rodani lhe afirmara que havia dois relógios.

Mas Mulay Ismael se concentrava sobretudo para desferir um ataque que lhe era muito caro. Se pudesse arrancar a impiedade ao coração daqueles pappas, os imãs das religiões cristãs, que vitória para Alá! Preparara muito bem seu discurso; sentia-se cheio de ardor e convicção.

Só quisera à sua volta trinta guardas negros, armados de longos mosquetes com coronha de prata. Atrás dele, postavam-se dois negrinhos, um dos quais movia o leque enquanto o outro segurava o guarda-sol.

Alcaides e renegados em traje de gala, com turbantes adornados e túnicas bordadas, rodeavam-no também, sentados sobre os calcanhares.

Os padres da Redenção chegaram do fundo da praça, seguidos de doze escravos que carregavam os presentes. Foram apresentados pelo renegado francês Rodani, pelo judeu Zacarias e pelo Alcaide Ben Messaud.

Para aquela missão extraordinária e que em vão tentavam obter há anos, os redentoristas haviam escolhido com cuidado seus representantes. Eram seis, dos quais três falavam o árabe comum e todos, o espanhol; cada um tinha realizado no mínimo três missões de resgate em Argel e em Túnis, e eram conhecidos pela grande experiência que tinham do mundo muçulmano. Seu superior era o Reverendo de Valombreuze, filho mais novo de uma grande família do Berry, doutor pela Sorbonne. Trazia às conversações su-tilezas de camponês e uma dignidade de grão-senhor. Não se poderia encontrar homem mais preparado para enfrentar Mulay Ismael.

Os hábitos religiosos, brancos com uma cruz vermelha na frente, bem como as barbas dos padres causaram boa impressão ao rei. Assemelhavam-se aos piedosos eremitas a quem os muçulmanos chamavam santons e a quem tanto reverenciavam.

O rei falou primeiro, começando pela saudação de boas-vindas e louvando o zelo e a caridade dos padres que se fizeram ir procurar tão longe pelos irmãos. Louvou em seguida o grande rei da França. O Reverendo de Valombreuze pôde dar-lhe a réplica e garantir que Luís XIV representava, por sua magnificência e pelo valor de seus atos, o maior rei da cristandade.

Mulay Ismael aprovou, para logo entabular o elogio a seu grande Profeta e sua Lei.

Distante, Angélica não podia acompanhar o longo discurso, mas via Mulay Ismael animar-se cada vez mais. O rosto resplandecia-lhe como as nuvens de tempestade que o sol atravessa por instantes. Curiosamente, com o jogo de luz, o rei ora ficava negro, ora dourado. Estendia os punhos cerrados como duas maçãs, instando os interlocutores a reconhecerem seus erros e a finalmente verem com clareza que a religião de Maomé era a única verdadeira, a única pura, designada e definida pelos profetas desde Adão. Claro, não lhes ordenava que abjurassem, pois"tinham vindo como embaixadores e não como escravos, mas exortava-os a fazerem isso para não terem de responder perante Deus por não o terem feito.

Era um grande sofrimento para ele ter em seu território seres tão limitados e mergulhados no erro. Felizmente não pertenciam ao dogma sacrílego da Trindade, que ousa afirmar que há três deuses em Deus!

- ...claro que Deus é o único, e bem acima da qualidade de ter um filho. Jesus é semelhante a Adão, a quem ele criou com barro. É apenas o enviado de Deus, e seu Verbo é um espírito que Ele projetou sobre Maria, filha.de Amram. Jesus não foi esbofeteado por Satã, nem ela. Acreditem, pois,, em Deus e em seu Profeta, e não digam que Deus-tem trêspessoas...

Os corajosos padres redentoristas suportaram com paciência a longa pregação, que os punia por todas as que eles próprios haviam infligido a outros.

Tiveram o cuidado de não revelar ao rei que sua ordem era a dos padres da Trindade, que ocasionalmente usava também o título de padres da Redenção. Na carta que lhes enviara, Colin Pa-turel frisara com insistência que eles se apresentassem sob o segundo nome, e agora entendiam por quê.

Agradeceram ao rei pelo cuidado que demonstrava em querer santificá-los, e que era exatamente com esse objetivo, segundo as máximas do cristianismo, que vinham de tão longe para libertar seus irmãos, e que, apesar do desejo que sentiam de agradar-lhe, não podiam apostatar, pois só haviam efetuado a penosa viagem para resgatar cativos cristãos.

O rei cedeu aos argumentos e esforçou-se por não demonstrar sua decepção.

Os escravos haviam desamarrado as cordas-das caixas que continham os presentes e retirado as tampas. Õs religiosos ofereceram ao rei várias peças de ricos tecidos de Cambrai e da Bretanha, guardadas em estojos adamascados de ouro. Também ofertaram, sem invólucro, três anéis e três colares. Mulay Ismael colocou os anéis nos dedos e os colares no chão, a seu lado. De vez em quando os pegava e examinava. Finalmente desembalaram os relógios. Os mostradores não tinham sofrido muito com a viagem. O maior tinha um pêndulo de ouro, representando o sol, e os números eram de esmalte azul, separados com lâminas de ouro. "

Ao vê-los, Ismael encheu-se de uma alegria infantil. Garantiu que ouviria favoravelmente o pedido dos padres e que lhes entregaria duzentos escravos. Jamais se ousara esperar um número desses!

Naquela noite mesma, para demonstrar sua alegria e agradecer ao rei, os escravos foram para junto do canal da alcáçova e deram um grande espetáculo de fogos de artifício. João Davias, de Pouli-guen, e José Thomas, de Saintonge, eram hábeis pirotécnicos e organizaram um espetáculo como os mouros jamais tinham visto antes.

Um navio de fogo, uma galera e uma árvore vogavam no canal, e um pássaro, volteando no ar, fazia arder todos esses elementos com o fogo que lhe saía do bico.

Do alto de seu terraço, Mulay Ismael contemplava essas maravilhas. Estava muito emocionado. Disse que só os escravos o amavam de fato, pois, quando concedia benefícios aos seus ou a seu povo, estes, em vez de lhe agradecerem, pediam mais, enquanto os cativos cristãos o encantavam com sua alegria.

Naquele mesmo dia mandara fazer um traje de um tecido verde da Bretanha, que achara particularmente bonito.

CAPITULO XVIII

A mensagem de Angélica a Luís XIV

Angélica e as companheiras também tinham contemplado, de longe, os fogos de artifício. Depois de muito hesitar, vendo que o clima era de indulgência, pediu ao grão-eunuco permissão para uma entrevista com um dos padres da missão. Necessitava do socorro de sua religiãoí Osman Ferradji achou que não lhe devia recusar o encontro.

Dois eunucos foram enviados à casa dos judeus, onde os padres aguardavam o "resultado das negociações em curso e recebiam o tempo todo visitas de cativos, cada um deles vindo suplicar para ser incluído na lista de,duzentos franceses resgatados.

O Reverendo de Valombreuze foi solicitado a seguir os guardas negros: uma das mulheres de Mulay Ismael desejava falar-lhe. A entrada do harém, vendaram-lhe os olhos. Pouco depois ele se viu diante de uma grade de ferro forjado, por trás da qual estava uma mulher muito velada, e não foi sem espanto que a ouviu falar francês.

-        Creio que está satisfeito de sua missão, padre? - perguntou Angélica.

Prudente, o padre observou que nem tudo estava resolvido. O humor do rei podia mudar. Os relatos que lhe faziam a toda hora os cativos que iam vê-lo não eram tranquilizadores. Com que pressa desejava retornar a Cádiz em companhia de seus pobres cativos, cuja alma se encontrava em tão grande perigo sob a tutela daquele rei sanguinário.

-        E como você mesma foi cristã... sua língua não me permite duvidar disso... eu lhe rogaria que intercedesse junto ao rei, seu senhor, para que suas indulgências e boa disposição para conosco se conservem.

-        Mas não sou renegada - protestou Angélica. - Sou cristã.

O Padre de Valombreuze acariciou a longa barba, embaraçado.

Ouvira dizer que todas as mulheres ou concubinas do sultão eram consideradas muçulmanas e tinham de seguir abertamente a religião de Maomé. Tinham uma mesquita apenas para si, construída no interior da alcáçova.

— Fui capturada - repetiu Angélica -, não é porque quero que estou aqui.

— Não duvido, minha criança - murmurou o padre, conciliador.

— Também minha alma se encontra em grande perigo - disse Angélica, agarrando-se à grade em súbito desespero -, mas isso lhe é indiferente. Ninguém tentará salvar-me, ninguém tentará resgatar-me. Porque não passo de uma mulher...

Não conseguia exprimir-se, dizer que começava a temer mais que as torturas aquela vaga de sensualidade dourada que acolchoava o harém, a lenta desagregação de sua alma, pouco a pouco invadida pelas plantas venenosas da preguiça, da volúpia e da crueldade. Era isso o que Osman Ferradji quisera. Ele conhecia o eterno feminino adormecido e os meios de despertá-lo. O religioso ouviu a mulher velada chorar. Meneou a cabeça com compaixão.

-        Encare seu destino com paciência, minha filha. Pelo menos não tem de padecer a fome e a fadiga dos trabalhos que subjugam seus irmãos.

Mesmo aos olhos do bom padre, a perda da alma de uma mulher parecia menos importante do que a de um homem. Menos por desdém do que pela crença de que a compleição e a irresponsabilidade femininas mereceriam alguma indulgência da parte de Deus.

Angélica se recompôs. Tirou do dedo um dos anéis, um diamante enorme que continha no interior a divisa e o nome dos Plessis-Bellière. Hesitou, embaraçada pela presença do grão-eunuco, que a vigiava. Refletira muito. Sabia que agora já se contava o tempo até o momento em que Osman Ferradji a conduziria aos aposentos de Mulay Ismael. Dera-lhe a possibilidade de entender que devia seguir-lhe as orientações. Ela perderia o apoio dele caso o decepcionasse, ela hostilizaria o rei se o enfrentasse, deixaria a vida ali e pereceria em meio a torturas.

E chegava a perguntar-se, aterrorizada, se não estaria impaciente para que soasse a hora de sua derrota, em vez de nutrir-se de esperanças falsas. Ninguém podia ajudá-la, nem dentro nem fora. O engenhoso Savary não passava de um pobre e velho escravo, que superestimara as próprias forças. Não se pregava uma peça qualquer ao Sultão Mulay Ismael. E, sè os cativos cristãos se lançavam numa daquelas evasões impossíveis que alguns audaciosos cogitavam, não iriam carregar uma-mulher consigo. "Não se foge de um harém." Pelo menos ela podia tentar não terminar ali os dias. Via apenas um ser que podia erguer-se e subjugar o intratável Ismael até fazê-lo devolver uma de suas presas.

Estendeu a jóia por entre os florões da grade.

-        Meu padre, suplico-lhe... Rogo-lhe que vá a Versalhes assim que retornar à França. Pedirá uma audiência ao rei, entregar-lhe-á este anel. Ele verá meu nome gravado nele. Então lhe contará tudo, que fui capturada, qíie estou prisioneira. O senhor lhe dirá...

Baixou a voz e concluiu sufocada:

-        ...dirá que lhe peço; perdão e que o chamo em meu socorro.

Infelizmente as negociações ainda não haviam terminado quando Mulay Ismael soube por um renegado francês que o nome Padres da Redenção ocultava a Ordem dos Padres da Trindade.

Sua cólera foi terrível.

-        Enganou-me outra vez com sua língua bifurcada, normando astucioso - disse a Colin Paturel. - Mas desta vez não terá tem

po para levar a cabo o seu gracejo.

Ordenou que lhe enchessem a barba, o nariz e as orelhas de pólvora de canhão, com a intenção de atear-lhe fogo. Depois mudou de ideia. Ainda não mataria Colin Paturel. Contentou-se em mandar atá-lo a uma cruz e expô-lo nu, ao sol ardente da praça, com dois negros armados de mosquete, para atirar nos abutres que tentavam furar os olhos do infeliz. Um dos guardas atirou canhestra-mente e feriu o cristão no ombro. O rei soube e foi pessoalmente decapitar o guarda com um golpe de sabre.

Trémula, Angélica, de olho grudado à fenda estreita da seteira, não conseguia desviar o olhar do patíbuloJierrível. As vezes via os músculos do cativo contorcerem-se, tentando endireitar-se para libertar os músculos tumeficados pelas cordas. A grande cabeça loura, de longos cabelos, pendia para a-frente. Mas bem depressa ele se erguia. Virava lentamente o rosto da direita para a esquerda, olhava para o céu. Movia-se o tempo todo, como que para impedir que a circulação diminuísse em seus membros torturados.

Sua prodigiosa compleição levou a melhor sobre o suplício. Quando, à noite, foi descido, não apenas não estava morto, como também, depois de tomar o caldo de especiarias que o rei lhe enviara, ergueu-se, e seus companheiros, que já o choravam, viram-no chegar, caminhando de cabeça levantada, apesar do sangue dos ferimentos.

As notícias circulavam muito depressa, e vivia-se numa tensão tempestuosa. Em sua cólera, o rei cuspira sobre os presentes dos padres. Dera os colares e os anéis a seus negrinhos. Rasgara o traje de pano verde. Mas não chegou a ponto de quebrar os relógios.

Os padres, que receberam a ordem de sair imediatamente de Mi-quenez, sob pena de serem queimados vivos em sua casa, estavam consternadíssimos.

Consultaram-se sobre o que deviam fazer. Com muita coragem, os dois mercadores de Sale, os senhores Bertrand e Chappe-de-Laine, que não estavam incluídos na ordem de partida, disseram que pediriam uma audiência ao rei e solicitariam explicações, enquanto os religiosos, para se pouparem ao humor intratável e extravagante do soberano, reuniam suas coisas e montavam em seus asnos.

Mas Colin Paturel, prevendo os obstáculos, acendera um con-trafogo moral que a lamentável situação desencadeou. Nos dias que precederam a chegada dos padres, visitara todas as famílias mouras que tinham cativos nas galeras da França e despertara nelas a esperança de que se negociaria uma troca que logo lhes permitiria regressar.

Agora, vendo que por causa do humor do rei os negociadores partiam sem que nada tivesse sido tratado, os mouros se precipitaram às multidões para a alcáçova, ora injuriando, ora suplicando ao rei que não deixasse passar a oportunidade que tinham pela primeira vez de resgatar os cativos muçulmanos em poder dos cristãos.

Mulay Ismael foi obrigado a ceder. Seus guardas galoparam atrás dos padres e ordenaram que voltassem para Miquenez, sob pena de serem decapitados.

As negociações se reiniciaram e foram tempestuosas. Duraram três semanas.

Finalmente os padres obtiveram doze cativos, em lugar dos duzentos prometidos. Cada um seria trocado por três mouros e trezentas piastras. Os padres os levariam até Ceuta, onde aguardariam pela troca.

O rei escolheu pessoalmente os doze escravos, entre os mais velhos e os mais fracos. Passou-os em revista, e, naturalmente, todos caminharam com o ar mais lamentável que puderam exibir. Mulay Ismael esfregava as mãos e dizia com satisfação:

— São todos, realmente, uns misçráveis"lnfelizes... O guarda aprovou:

— Bem o diz, senhor.

Para maior certeza, o rei voltou-se para seu talbe e perguntou-lhe o que pensava. O talbe aprovou:

-        Disse bem, senhor, ao afirmar que são uns miseráveis infelizes.

Iam registrá-los, quando um cativo coxo se apresentou de repente e declarou que o velho Caloéns não era francês, pois fora aprisionado sob a bandeira da Inglaterra. O caso datava de vinte anos e não se tinha tempo para verificar. O velho Caloèns se encontrava à porta-do pátio„como se estivesse diante da porta do paraíso. O coxo tomóu-lhe.o lugar.

Os padres apressaram a partida, vendo qua a cada dia lhes impunham novas afrontas. A inveja e a mágoa amarguravam os cativos, que os perseguiam com suas queixas. Era preciso pagar e cobrir de presentes todos aqueles alcaides e renegados que pretendiam haver-lhes prestado serviços.

Deixaram Miquenez sob vaias e pedras, tanto de muçulmanos quanto de cristãos, que doravante já hão anteviam fim para seu sofrimento.

O velho Caloèns chorava.

-        Ah, quando voltarão os padres dos asnos!... Estou perdido!

Já sentia sobre a cabeça calva o castão da bengala do rei. Dirigiu-se ao palmeiral e estava prestes a enforcar-se quando Colin Paturel apareceu, a tempo de salvá-lo.

-        Não perca a esperança, avô - disse -, tentamos tudo para melhorar nosso destino. Agora ainda resta uma saída: a fuga. Tenho de partir. Meus dias estão contados. Reinaldo de Marmondin, o cavaleiro, tomará meu lugar. Se não se sente velho demais, você virá conosco.

Não foi sem motivos que Colin, o Normando, insistira com os padres para que levassem pêndulos. Ao cabo de quinze dias, os relógios não funcionavam mais. Um relojoeiro genebrino, Martinho Camisart, propôs-se consertá-los. Precisava apenas de uma infinidade de pequenos instrumentos, de tenazes, limas, pinças... Alguns desses instrumentos desapareceram, não se sabe como, e, quando os relógios recomeçaram a tiquetaquear, o genebrino havia separado uma quantidade suficiente de ferramentas para romper as correntes de Colin Paturel e libertá-lo no dia seguinte.

Também partiria as cadeias de Jean-Jean de Paris, o talhe dos cativos. Com aqueles dois, inseparáveis há dez anos, haveria também Piccinino, o Veneziano, o Marquês de Kermoeur, cavalheiro bretão, Francisco Bargus, apelidado de Arlesiano, natural de Mar-tigues, e João d'Harrostegui, um basco de Hendaye.

Os cabeças fortes da senzala, todos loucos o suficiente para arriscar cem vezes a morte antes de se verem em território cristão. A eles se uniria o pobre Caloèns, o careca condenado, e o velho boticário chamado Savary, que soubera apresentar-lhes, ideia após ideia, as mil maneiras mais absurdas de escapar de Mulay Ismael e convencê-los afinal de que o impossível se tornara possível.

CAPÍTULO XIX

O velho Savary vítima do cruel sultão

Como seria o rosto de Mulay Ismael quando se inclinava sobre uma mulher desejada? Aquele rosto bronze-dourado, inquietante como o de um ídolo" africano, talhado com dureza e ainda assim liso, modelado pelo polegar audacioso de um escultor antigo. Lábios e narinas de negro, pupilasde felino, não as do tigre, mas Ias do leão, que olha o sol de frente e vê para além das aparências. Qual seria a expressão do conquistador ao consumar a con-Angélica sentia a armadilha fechar-se. Era impossível não se indagar a respeito de Mulay Ismael, e quando passeava pelas aléias dos deliciosos jardins pouco a pouco a vertigem a envolvia, e ela se punha a considerar a natureza do amo que criara aqueles jardins, o torvelinho de um ser oscilando entre os extremos das paixões.

Lançava cativos no poço dos leões, inventava crueldades tão apavorantes que o suicídio, para escapar a elas, era o mais doce recurso; mas amava as flores raras, a água sussurrante, as aves e os animais, e acreditava em Alá misericordioso com toda a alma. Herdeiro do Profeta, de quem tinha a bravura fria e ilimitada, ele poderia confessar como Maomé: "Sempre amei as mulheres, os perfumes e a prece. Mas apenas a prece me satisfazia a alma..."

A volta de Angélica, as cortesãs cochichavam, sonhavam, faziam intrigas. Todas aquelas fêmeas, confortáveis na tepidez das almofadas, entregavam-se à animalidade de seus belos corpos dedicados ao amor.

Macias e suaves, perfumadas, adornadas, eram feitas, com suas curvas sinuosas, para o abraço de um amo imperioso. Não tinham outra razão de existir e viviam na expectativa do prazer que ele lhes daria, enraivecidas pela ociosidade e pela continência forçada. Pois, dentre aquelas centenas de mulheres, eram muito poucas as que recebiam as homenagens do príncipe.

As ardentes huris, reservadas à volúpia de um único homem, passavam o tempo em conspirações dissimuladas. Tinham ciúme de Daisy, a inglesa, e da sombria Leila Aícha, as únicas que pareciam haver descoberto e conservado os segredos do estranho coração do amo. Elas o serviam às refeições, ele às vezes as consultava. Mas nenhuma se esquecia de que o Corão só autoriza ao crente quatro mulheres legítimas.

Quem, então, seria a terceira?

A velha Fátima sentia-se envergonhada de que sua ama, a quem embelezava todos os dias, ainda não tivesse sido apresentada ao rei e ainda não se tivesse tornado favorita. Isso não podia deixar de acontecer. Bastaria que o rei a visse. Não havia no harém mulher mais bela do que a francesa. Preservada pela penumbra dos apartamentos, sua tez recuperara a pureza. Na carnação calorosa, os olhos cintilavam com um brilho que não parecia natural. Fátima escurecera-lhe os cílios e sobrancelhas com hena azul misturada ao leite de cal, que lhes dava a doçura de um veludo escuro. Por outro lado, clareara a abundante cabeleira com banhos de plantas especiais, e cada mecha estava macia e reluzente como seda. A pele era de nácar, tratada a banhos de óleo de amêndoas ou de extrato de nenúfares.

Na opinião de Fátima, ela estava pronta.

O que é que se esperava, então?

A provençal participava a Angélica suas dúvidas e impaciências. Acabava por comunicar-lhe seus rancores de artista que vê a própria obra negligenciada. Para que ser tão bela? O momento era propício para impor-se ao tirano e tornar-se a terceira esposa. Depois disso ela não teria mais de temer a velhice nem ser relegada a um remoto caravançará de província, ou pior: ser enviada às cozinhas, para levar uma vida de criada até o fim de seus dias.

O grão-eunuco deixava-as revolver-se numa espera que talvez fosse propícia a seus desígnios, mas que talvez não fosse calculada. Mais uma vez ele parecia aguardar um sinal e observava, sonhador, a nova odalisca que criara, bela como as ímpias imagens dos pintores da Itália. Balançava demoradamente a cabeça. "Vi nos astros...", murmurava. O que vira e não dizia o punha indeciso.

Passava longas noites no topo da torre quadrada do alcácer a interrogar o céu com seus instrumentos ópticos. Os que possuía eram os mais belos e aperfeiçoados do mundo civilizado. O grão-eunuco tinha fraquezas de colecionador. Assim como os instrumentos ópticos, para cuja aquisição estivera não apenas em Veneza e Verona, mas até em Saxe, onde as vidrarias começavam a se tornar célebres pelas suas lentes de precisão, ele também colecio-nava tinteiros persas, de nácar e esmalte, de que tinha os mais raros.

Gostava ainda de tartarugas. Criava-as de todas as espécies nos jardins das vilas de montanha, onde Mulay Ismael alojava suas concubinas abandonadas. As coitadas não só eram afastadas para sempre de Miquenez, como tinham de terminar os dias na companhia daquela multidão de monstros amáveis, as lentas tartarugas, gigantes ou minúsculas, que ainda por cima ocasionavam frequentes visitas do temido grão-eunuco.

Osman Ferradji parecia ter o dom da ubiquidade. Para as pensionistas do harém, ele estava sempre ali, bem no momento em que o preferiam em outro lugar. Mulay Ismael o tinha a seu lado toda vez que uma súbita inspiração o fazia desejar o conselho imediato de seu grão-eunuco.

Visitava com frequência cada ministro, recebia diariamente o relatório de inúmeros espiões, realizava viagens incontáveis e no entanto parecia passar os dias a meditar sobre a perfeição dos esmaltes persas e as noites com o olho colado a uma luneta.

O que não o impedia de cumprir religiosamente os ritos muçulmanos das cinco preces com a testa encostada ao chão.

-        O Profeta disse: "Trabalhe para este mundo como se fosse viver nele sempre, e para o outro como se fosse morrer amanhã"- gostava ele de repetir.

Seu pensamento parecia permanecer em comunicação invisível com aqueles e aquelas que tinha sob sua jurisdição. Qual aranha à espreita, tecia de si para eles uma teia da qual não se soltavam nunca.

-        Você não se impacienta, Firuzê? - perguntou um dia. - Não se impacienta pelo feliz delírio da volúpia? Faz muito tempo que não recebe homem...

Angélica desviou os olhos. Antes se deixaria retalhar a machado do que confessar a febre que lhe agitava as noites e a despertava exacerbada, desejando baixinho: urn homem! qualquer homem! Osman Ferradji insistiu:

-        Seu corpo de mulher, que não teme o homem em absoluto, que tem amizade e gosto por ele e não lhe receia a violência, como tantas moças novas demais, não arde por reencontrá-lo? Mulay Ismael a saciará... Esqueça seus pensamentos e sonhe apenas com seu prazer... Quer que a apresente a ele, finalmente?

Estava sentado perto dela, num escabelo. A atenção de Angélica foi atraída. Contemplou-o com ar sonhador, àquele grande exilado do amor... Inspirava-lhe sentimentos complexos de repulsa e estima, e não podia conter uma estranha tristeza quando distinguia naquele homem os sinais de seu estado: a curva pesada do queixo, os braços lisos e bonitos demais e, sob o colete de cetim, a forma dos seios que, às vezes, na maturidade, os eunucos adquirem.

-        Bei Osman - disse, à queima-roupa -, como pode falar dessas coisas? Nunca lamentou não ter direito a elas?

Osman Ferradji ergueu as sobrancelhas; teve um sorriso indulgente e quase alegre.

-        Não se lamenta o que não se conheceu, Firuzê! Você inveja o louco que atravessa a rua rindo aos fantasmas de seu espírito débil? No entanto, à sua maneira, ele é feliz, sua visão lhe satisfaz. Contudo, você não gostaria de compartilhar em nada o que o contenta, e agradece a Alá por não estar em seu lugar. Assim me parece o comportamento que acarreta a imperiosa servidão do desejo e que pode fazer de um homem cheio de bom senso um bode balindo atrás da mais estúpida das cabras. E agradeço a Alá por não me haver sujeitado a isso. Não deixo de admitir a realidade dessa força primeira e trabalho por orientá-la na direção do objetivo que persigo, que é a grandeza do reino do Marrocos e a purificação do Islã!

Angélica soergueu-se, sentindo a exaltação de um estrategista re-manejando o mundo à sua vontade.

-        Bei Osman, dizem que você conduziu Mulay Ismael ao poder, que para conseguir isso indicou a ele a quem matar ou mandar matar. Mas há um assassinato que você ainda não cometeu: o dele próprio! Por que conservar no trono do Marrocos esse louco sádico? Não seria você melhor do que ele? Sem você ele não passaria de um aventureiro rodeado de inimigos. Você é a astúcia dele, sua sabedoria e proteçào oculta. Por que não lhe tomar o lugar?... Você poderia. Outrora não coroaram eunucos imperadores de Bizâncio? O grão-eunuco continuava sorrindo.

— Fico-lhe grato, Firuzê, pela alta opinião que você tem de mim. Mas eu não mataria Mulay Ismael. Eleestá muito bem no trono do Marrocos! Tem exatamente o ardor dos conquistadores. O que pode criar aquele que não possui a s_eiva da fecundação? O sangue de Mulay Ismael é uma lava ardente. O meu é gelado como o de uma fonte à sombra. E está bem assim! Ele é a espada de Deus. Eu lhe transmiti minha astúcia e minha sabedoria. Criei-o e eduquei-o desde que ele não era mais que um pequeno xerife, perdido entre os cento e cinquenta filhos de Mulay Archy, que pouco se preocupava com a educação deles. Ocupou-se .apenas de Mulay Hamet e de Abd-al-Ahmed. Eu, porém, ocupava-me de Mulay Ismael. E ele venceu os outros dois. Mulay Ismael é mais meu filho do que de Mulay Archy, quê o* gerou.... Portanto, não posso destruí-lo. Ele não é um louco sádico, conforme.você o julga em seu espírito estreito de cristã. E à espada de Deus! Não ouviu dizer que Deus fez chover fogo sobre as cidades culpadas de Sodoma e Gomorra? Mulay Ismael reprime os vícios vergonhosos praticados por tantos argelinos e tuhisianos. Nunca tomou uma mulher que tivesse marido vivo, pois o adultério é proibido pela Lei, e ele prolonga por uma lua inteira o jejum do Romadã... Quando você for sua terceira esposa, acalmará os excessos de sua natureza exaltada... Minha obra estará completada. Quer que a anuncie a Mulay Ismael?

— Não - disse ela, agitada -, não... ainda não.

— Que aja o destino, pois!

O cutelo do destino tombou numa manhã fresca em que Angélica se fez conduzir em sua cadeirinha cortinada, puxada por duas mulas, até o palmeiral. Recebera um bilhete de Savary, que Fátima lhe entregara não sem hesitações, pedindo-lhe que fosse ao palmeiral, perto da cabana reservada aos jardineiros. A mulher de um deles, uma escrava francesa, Sra. Badiguet, lhe diria onde encontrar o velho amigo.

Sob a queda mole das palmas, luzia o âmbar das tâmaras, que escravos colhiam. Na cabana dos jardineiros, a Sra. Badiguet se aproximou da cadeirinha, cujas cortinas Angélica entreabriu um mínimo. A escrava fora capturada enquanto se dirigia com o marido para Cádiz, onde se radicariam. Suas duas irmãs, capturadas com ela, tinham sido colocadas no harém de Abd-al-Ahmed, mas ela tivera o direito de ficar com o marido, pois Mulay Ismael praticava a lei que proíbe o adultério e jamais separaria uma mulher do marido. Tivera quatro filhos, todos nascidos escravos, companheiros de folguedos do pequeno Príncipe Zidan.

Deu um olhar furtivo à volta e cochichou que o velho Savary estava trabalhando ali perto. Ele colhia as tâmaras caídas, que constituíam um acréscimo ao pão rançoso dos escravos. A terceira aléia, à esquerda... Angélica estava segura quanto aos dois eunucos que conduziam as mulas? Sim. Felizmente eram dois jovens guardas que sabiam só uma coisa: que Osman Ferradji recomendara que não contrariassem a cativa francesa.

Mandou então que a cadeirinha seguisse para a aléia designada e não demorou a perceber Savary, um pequeno gnomo castanho, coletando alegremente os frutos, sob os reflexos esmeralda e ouro das palmeiras. O local estava deserto. Ouvia-se apenas o zumbido incessante das moscas em torno dos cachos açucarados.

Savary aproximou-se. Os eunucos quiseram interpôr-se.

— Para trás, meus gorduchos bebes! - disse amavelmente o ancião. - Deixem-me apresentar meus cumprimentos a essa senhora.

— É meu pai - interveio Angélica -, vocês bem sabem que Bei Osman me deixa encontrá-lo às vezes...

Eles não insistiram.

— Vai tudo bem - sussurrou Savary, os olhos brilhando por trás dos óculos.

— Encontrou outra jazida de múmia mineral? - perguntou Angélica com um pálido sorriso.

Olhava-o com ternura. Parecia-se cada vez mais com os duendes barbudos e maliciosos que iam dançar em torno das mesas de pedra erguidas nos campos do Poitou. Não estava longe de crer que Savary fosse um dos velhos génios de sua infância que durante tanto tempo ela espreitara na erva úmida de orvalho e que a seguia fielmente para protegê-la.

-        Seis escravos vão arriscar uma fuga. O plano é perfeito. Não vão unir-se aos metadores, que com frequência traem aqueles a quem devem levar até território cristão. Colheram informações de escravos fugidos que foram recapturados. Traçaram a rota até Ceuta, os caminhos a seguir e os caminhos a evitar.

— O momento adequado à fuga será dentro de um ou dois meses. E a estação dos equinócios, e os mouros não dormem mais no campo, pois não há trigo nem frutas para vigiar. Só se deve viajar à noite. Convenci-os a levar uma mulher. Não queriam. Nunca se viu uma mulher fugir, uma mulher fugitiva. Observei que precisamente a sua presença os protegeria, pois se se notar uma mulher entre eles, pensarão que se trata de mercadores e não de cativos cristãos. Angélica apertou-lhe a mão com efusão.

— Oh, meu caro Savary! E eu qye o acusava de me abandonar à minha triste sorte!

— Estava tecendo minha teia - disse o velho boticário -, mas ainda não disse tudo. Você tem que sair da fortaleza. Estudei todas as saídas do harém que se abrem para fora da alcáçova. Do lado norte, sobre uma das fachadas que dá para uma colina de imundícies, não longe do cemitério dos judeus, há uma portinha que não é sempre vigiada. Informei-me com as criadas. Dá para um pátio chamado "pátio do segredo", a dois passos de uma escada que se comunica cóni o "harém. E por ali que poderá sair. Um dos conjurados a aguardará;do lado de fora, uma noite. Agora, é preciso saber que essa portinha só se abre do exterior e que apenas duas pessoas possuem a chave: o grão-eunuco e Leila Aícha. Isso lhes permite regressar de repente, depois que todo mundo os vê sair com toda a pompa pela frente... Você conseguirá surrupiar-lhes essa chave é entregá-la a um de nós, que irá abrir a porta...

— Savary - suspirou Angélica -, você tem de tal maneira o hábito de erguer montanhas que tudo lhe parece simples. Surru-piar uma chave ao grão-eunuco, enfrentar a pantera!...

— Você não tem uma criada em quem possa confiar?

— Quer dizer... não sei...

Subitamente Mestre Savary pousou um dedo sobre os lábios. Afastou-se com uma vivacidade de furão, carregando a cesta quase cheia de tâmaras embaixo do braço.

Angélica ouviu um cavalo a galope aproximando-se. Mulay Ismael surgiu de uma aléia transversal, o albornoz amarelo flutuando ao vento, seguido de dois alcaides. Parou ao perceber entre as árvores a cadeirinha com cortinas vermelhas.

Savary virou o cesto no meio da aléia.e. se pôs a lamuriar-se.

A atenção do sultão voltou-se para ele. Foi devagar em sua direção. A canhestrice e o terror fingido do velho escravo excitavam-lhe a imperiosa necessidade de atormentar.

-        Ora, não é o pequeno santon cristão de Osman Ferradji? Contam maravilhas a seu respeito, velho feiticeiro. Você cuida admiravelmente de meu elefante e de minha girafa.

— Agradecido pela sua bondade, senhor - disse Savary com voz trémula e prosternando-se.

— Levante-se. Não é bom que um santon, que é um ser sagrado através de quem Deus fala, se mantenha em posturas humilhantes.

Savary ergueu-se e pegou o cesto.

— Espere!... Não gosto que atribuam o título de santon a você, que permanece no erro de suas crenças infames. Se possui segredos mágicos, só podem advir de Satã. Faça-se mouro e o tomarei a meu serviço para traduzir meus sonhos.

— Pensarei nisso, senhor - afirmou Savary.

Mas Mulay Ismael estava de mau humor. Ergueu a lança e preparou a estocada.

-        Faça-se mouro -^ repetiu, ameaçador. - Mouro! Mouro!

O escravo fez que não entendia. O rei atingiu-o uma primeira vez.

O velho Savary caiu e levou os dedos ao lado do corpo, de onde corria sangue. Com a outra mão, trémula, ajeitou os óculos e alçou para o sultão um olhar brilhante de indignação.

— Mouro?... Um homem como eu! Por quem me toma, senhor?

— Você insulta a religião de Alá! - rugiu Mulay Ismael, cravando-lhe a lança outra vez, agora no ventre.

Savary arrancou o ferro e tentou erguer-se para fugir. Conseguiu dar uns passos vacilantes, mas Mulay Ismael o seguiu a cavalo, repetindo:

-        Mouro? Mouro? -, e a cada vez o trespassava com a lança.

O ancião tombou de novo.

Horrorizada, Angélica assistia à cena medonha por entre as cortinas. Mordia os dedos para não gritar. Não, não podia deixar que seu velho amigo fosse massacrado assim! Lançou-se para fora da cadeirinha e correu como uma louca a agarrar-se ao arção de Mulay Ismael.

-        Pare, senhor, pare! - suplicou em árabe. - Piedade, é meu pai!...

O sultão ficou com a lança no ar, estupefato com a aparição daquela mulher esplêndida e desconhecida, cujos cabelos soltos se espalhavam como uma nuvem sob um raio de sol. Baixou o braço.

Desvairada, Angélica precipitou-se para Savary. Ergueu o velhinho, tão leve que não lhe sentiu o peso, e ajrrastou-o até uma árvore para apoiá-lo.

A velha túnica estava toda manchada de sangue. Os óculos estavam quebrados. Ela os tirou suavemente. As manchas vermelhas aumentavam, invadindo o tecido gasto, e Angélica via com medo a tez do ancião branca como sebo, sobre a qual se destacava a barbicha ruiva, tingida com hena.

-        Oh, Savary! - disse, a voz entrecortada pelas batidas de seu coração. - Oh, meu caro Savary, rogo-lhe, não morra!

A Sra. Badiguet, que assistira ao drama de longe, correu para casa, à procura de um remédio.

A mão de Savary tafeou para encontrar numa dobra da roupa um pedacinho de terra preta e viscosa. Seus olhos turvos perceberam Angélica.

-        A múmia! - disse ele. - Que pena! Senhora, ninguém conhecerá o segredo da terra... Só eu sabia... e estou partindo... estou partindo...-.

Suas pálpebras adquiriram uma coloração plúmbea.

A mulher do jardineiro chegava, trazendo uma beberagem de grão de tamarindo com canela e pimenta.

Angélica levou-a aos lábios do velho. Ele pareceu aspirar o vapor ardente. Esboçou um sorriso.

-        Ah, as especiarias! - murmurou. - O odor das viagens felizes... Jesus, Maria, recebam-me!...

Foi com essas palavras que o velho boticário da Rue du Bourg-Tibourg expirou. A cabeça encanecida pendeu, e ele entregou a alma.

Angélica segurava aquelas mãos inertes e frias.

-        Não é possível - repetia, fora de si -, não é possível!

Não era o ágil e invencível Savary quejazia ali como um lamentável boneco quebrado à luz esmeralda do palmeiral! Era um pesadelo! Uma de suas brincadeiras de génio traquinas!... Ele ia reaparecer, cochichar-lhe: "Vai tudo bem, senhora".

Mas estava morto, trespassado de lançadas.

Angélica sentiu então um peso terrível, o peso de um olhar que a fixava. Percebeu perto dela, na areia, os cascos de um cavalo parado e levantou a cabeça.

Mulay Ismael a cobria com sua sombra...

CAPITULO XX

Apresentação de Angélica a Mulay Ismael

Osman Ferradji entrou no hamman onde as servas ajudavam Angélica a sair da grande piscina de mármore, à qual se descia por grandes degraus de mosaicos.-'

Mosaicos azuis, verdes e dourados, floridos de arabescos, também compunham as abóbadas do hamman, que diziam imitado dos banhos turcos de Constantinopla. Um arquiteto cristão cismático, que trabalhara na Turquia, construíra aquela delicada maravilha para o conforto das mulheres de Mulay Ismael.

O vapor, perfumado de benjoim e rosas, acolchoava o contorno das colunas, engastadas de ouro e criava a aparência de um palácio de sonho, entrevisto por entre as fantasmagorias de um conto oriental.

Ao ver o grao-eunuco, Angélica procurou rapidamente um véu para cobrir-se. Nunca se habituara com essa participação dos eunucos na intimidade feminina, e menos ainda suportava a presença do chefe do serralho.

Osman Ferradji tinha uma expressão impenetrável. Dois jovens eunucos de faces salientes o seguiam, carregando uma pilha de mus-selinas rosa irisadas, finamente rebordadas de prata.

Com um tom seco, Osman Ferradji mandou as criadas desenrolá-las uma a uma.

— Os sete véus estão aí? 

— Sim, amo.

Com o olho crítico, examinou o corpo harmonioso de Angélica. Foi a única vez em sua vida que ela sofreu por ser mulher e bela. Sentiu-se como um objeto de arte, cujas qualidades e onginalidades um colecionador aprecia, estimando-lhe o calor e comparando. Era um sentimento odioso, revoltante, como se lhe tivessem tirado a alma!

A velha Fátima, com mãos respeitosas, prendeu ao redor das ancas da jovem um primeiro véu, que caía até os tornozelos e permitia adivinhar sob a transparência as pernas torneadas, com reflexos lisos de porcelana, os quadris desabrochados e as sombras modeladas do ventre. Dois outros véus cobriram com o mesmo pudor indiscreto os ombros e o busto. Qutro, mais vasto, envolveu os braços. O quinto tinha o comprimento de uma capa. Em seguida cobriu-se a cabeleira, envolta num vastíssimo véu, maior que todos os outros. O último era o haík, que em breve lhe prenderiam diante do rosto, deixando visíveis apenas os olhos verdes, aos quais os sentimentos contidos que a agitavam davam um brilho particular.

Angélica foi reconduzida a seu apartamento. Osman Ferradji foi-lhe ao encontro. A Angélica pareceu que naquele dia a negra pele dele tinha um reflexo de ardósia azul. Também ela devia estar um pouco pálida sob a maquilagem. Encarou-o.

— Qual é a cerimónia propiciatória para a qual me prepara assim, Bei Osman? - perguntou, numa voz controlada.

— Você sabe muito bem, Firuzê. Dentro em pouco devo apresentá-la a Mulay Ismael.

— Não - disse Angélica -, isso não acontecerá!

Suas narinas finas palpitavam, e ela precisava erguer a cabeça para olhar no rosto o grão-eunuco.

As pupilas dele retraíram-se, tornaram-se afiadas e luzidias como uma lâmina.

-        Você se mostrou a ele, Firuzê... Ele a viu! Tive alguma dificuldade para explicar-lhe por que a escondo há tanto tempo.

Deixou-se convencer. Mas agora quer conhecer tudo de sua beleza, que o fascinou.

Sua voz tornava-se baixa e distante.

-        Mas nunca você esteve tão bela, Firuzê! Você o seduzirá, não tenha receio algum. Para você ele será apenas atenções e desejo. Você tem tudo para agradar-lhe. Sua brancura, seus cabelos dourados, seu olhar! Até seu orgulho excitará seu espírito, habituado que está a um excesso de fraquezas. Seu pudor, tão estranho numa mulher que já conheceu o amor e do qual não pode defender-

se nem na minha frente, surpreendê-lo-á e lhe abrandará o coracão. Eu o conheço. Conheço a sede que o atormenta. Você pode ser a fonte para ele. É aquela que pode ensinar-lhe a dor. É aquela que pode ensinar-lhe o medo... Pode agarrar-lhe o destino entre suas mãos frágeis... você pode tudo, Firuzê! Angélica deixou-se cair no divã.

-        Não - disse -, isso não acontecerá!,

Assumiu uma atitude tão desenvolta quanto lhe permitiam os inúmeros véus que a envolviam.;

-        Você nunca teve francesas em sua coleção, Osman Ferradji?

Vai aprender às suas custas de que estofo são feitas.

Viu-se então o solene Osman Ferradji levar as mãos às têmporas e se pôr a gemer, balançando-se como uma mulher aflita.

— Ai, ai! Oh, mas que foi que fiz a Alá para ter de responder por uma cabeça de mula como esta? -      *

— O que você tem?

— Mas, infeliz,, vpcê não entende então que está fora de questão que se recuse a Mufay Ismael? Mostre-se enfadada um pouco, se quiser, no começo... Uma pequena resistência não há de desagradar-lhe. Mas você deve aceitá-lo como amo. Caso contrário ele a matará, e-em meio a torturas.

— Pois bem,-tanto pior! - disse Angélica. - Morrerei. E em meio a torturas!

O grão-eunuco ergueu os braços ao céu. Depois mudou de tática e inclinou-se para ela.

-        Firuzê, como é que você não está ávida por sentir os braços de um homem em torno de seu belo corpo? O calor do desejo a atormenta... Você não ignora que Mulay Ismael é um homem excepcional. Foi feito para o amor, assim como foi feito para a caça e para a guerra, pois tem sangue negro... Pode contentar uma mulher sete vezes numa noite... Farei com que você beba licores que exaltarão a febre amorosa... Você conhecerá gozos tais que só viverá na expectativa de senti-los renovar-se...

Com o rosto inflamado, Angélica afastou-se. Levantou-se e caminhou até o fundo da galeria. Ele a seguiu como um felino paciente, intrigado por encontrá-la em contemplação diante de uma pequena seteira que dava para a praça onde trabalhavam os escravos. E perguntou-se que espetáculo trouxera aquela expressão de paz à fisionomia atormentada por desejos femininos.

-        Todo dia, em Miquenez - murmurou Angélica -, cativos cristãos morrem, mártires de sua fé. Para lhe serem fiéis, aceitam o trabalho, a fome, as bastonadas, as torturas... E na maioria não passam de simples marujos, rudes e sem instrução. E eu, Angélica de Sancé de Monteloup, que tenho reis e cruzados em minha ascendência, não seria capaz de imitar-lhes a constância? Naturalmente não me apoiaram uma lança ao pescoço, dizendo: "Mouro?" Em compensação, dizem-me: "Você se entregará a Mulay Ismael, o torturador de cristãos, o que massacrou meu velho Savary!" E isso representa exatamente a mesma coisa que me pedirem que renegue minha fé. Não renegarei minha fé, Osman Ferradji!

— Você morrerá em meio às mais atrozes torturas!

— Pois bem, tanto pior! Deus e meus ancestrais me assistirão! Osman Ferradji suspirou. No momento carecia de argumentos.

Sabia que acabaria fazendo-a ceder. Quando lhe mostrasse os instrumentos do carrasco e descrevesse alguns dos suplícios que Mulay Ismael reservava a suas mulheres, todo aquele ardor se atenuaria! Mas o tempo urgia, o sultão esperava, impaciente.

-        Escute - disse, em francês. - Não me mostrei seu amigo? Não faltei em nada à minha palavra, e sem sua própria imprudência Mulay Ismael não a reclamaria hoje. Por consideração para comigo, você não pode aceitar pelo menos ser apresentada? Mulay Ismael nos aguarda. Não posso encontrar mais nenhuma desculpa para mantê-la oculta. Até a mim ele cortará a cabeça. Mas a apresentação não a compromete a nada... Quem sabe? Talvez até lhe desagrade... Não seria a melhor solução? Preveni o sultão de que você era muito arisca. Saberá fazê-lo ter paciência por mais algum tempo.

Tempo de quê? De ter medo? De enfraquecer? Mas, pensou Angélica, talvez também o tempo de fugir...

-        Aceito... por sua causa.

Mas recusou encolerizada a escolta de dez eunucos.

-        Não quero ser conduzida como uma prisioneira ou um carneiro que se vai abater!

Osman Ferradji cedeu, decididamente disposto a todas as conciliações. Ele a acompanharia sozinho, junto com um pequeno eunuco que lhe seguraria os véus, os quais o chefe do serralho retiraria um a um.

Mulay Ismael aguardava num aposento estreito, onde gostava de ficar sozinho e meditar.

Em defumadores de cobre queimavam perfumes que inundavam a sala.

Angélica teve a impressão de estar pela primeira vez na presença dele. Já não estava separada dele pelas barreiras do desconhecido. A fera a via hoje. E ergueu-se, quando ela entrou.

O grão-eunuco e seu pequeno acólito prosternaram-se até tocar o solo com a testa. Depois Osman Ferradji se ergueu, passou para trás de Angélica e tomou-a pelos ombros para levá-la suavemente diante do sultão.

O monarca se retesou, ardoroso, na direção da silhueta velada. Os olhos dourados do rei e os de Angélica se encontraram. Ela baixou as pálpebras. Pela primeira vez em meses um homem a olhava como mulher desejável. A aparição de seu rosto, que o grão-eunuco acabava de descobrir, ela sabia que ele manifestaria aquele encantamento surpreso que a vista de seus traços perfeitos, sua boca carnuda, séria e um pouco trocista despertara em tantos olhares de homem. Sabia que as grandes narinas de Mulay Ismael palpitariam ao ver aquela cabeleira tão. rara derramar-se como seda dourada sobre seus ombros, r* •

As mãos de Osman Ferradji a foçavam, e, de pálpebras obstinadamente baixas, ela não via, não queria ver nada além da dança daquelas longas mãos negras de unhas vermelhas e anéis de rubis e diamantes. Curioso! Nunca notara que as palmas das mãos do eunuco eram tão claras, como que desbotadas, e de uma cor de rosa seca...

Esforçava-se por pensar em outra coisa para suportar o suplício da exibição sob o olhar do amo intratável a quem estava destinada. Mas não conseguiu deixar de crispar-se quando sentiu os braços despidos. As mãos de Osman Ferradji fizeram-lhe uma rápida pressão, lembrando-lhe os perigos... Ele elevou a mão ao sexto véu, que lhe desnudaria os seios e revelaria a cintura fina, o dorso longo e macio como o de uma jovenzinha.

A voz do rei disse, em árabe:

-        Deixe... Não a importune. Adivinho que ela é belíssima.

Levantou-se do divã e foi até ela.

-        Mulher - disse em francês, com sua voz rouca que sabia ser tão selvagem - , mulher... mostre-me... seus olhos!

Disse isso num tom que não permitia resistência, e ela fixou as pupilas naquele rosto temível. Viu-lhe um sinal tatuado perto dos lábios e a textura da pele, curiosamente amarela e preta.

Um lento sorriso repuxou-lhe os lábios espessos.

-        Nunca vi olhos parecidos! - disse em árabe â Osman Ferradji. - Não deve haver outros no mundo.

-        O senhor está dizendo - disse o grão-eunuco.

Recolheu os inúmeros véus à volta de Angélica e, a meia voz, aconselhou em francês:

-        Incline-se diante do rei. Ele ficará satisfeito.

Angélica não se moveu. Mulay Ismael, se compreendia pouco o francês, de que só possuía alguns rudimentos, era bastante inteligente para compreender a mímica. Sorriu de novo, e seus olhos cintilaram com um brilho alegre e selvagem. Por aquela mulher, uma surpresa inédita e maravilhosa que o grão-eunuco lhe reservara, ele já se sentia cheio de paciência e interesse por antecipação. Trazia em si tantas promessas que ele sequer sentia a pressa de descobri-las logo. Era como um país desconhecido, onde lentamente se descobre um horizonte, um lugar inimigo a conquistar, um adversário a penetrar. Uma cidade fechada cuja fraqueza é preciso encontrar. Ele teria de interrogar o grão-eunuco, que a conhecia bem. Aquela mulher era sensível à atração dos presentes, à suavidade ou à brutalidade? Tinha gosto pelo amor? Sim. A água límpida de seus olhos confessava-lhe a perturbação, o calor dos impulsos que ela dissimulava sob a frieza de seu corpo de neve. Não era de medo que tremia. Era de uma raça inacessível ao me: do, mas, sob o olhar pesado do rei, seu rosto, que tentava esquivar-se, já assumia a expressão esgotada e vencida que ela devia ter após o amor. Ela não aguentava mais! Queria fugir, e, como um pássaro fascinado, procurava com os olhos uma saída, paralisada entre aqueles dois homens cruéis e atentos a sua inquietação.

Mulay Ismael sorriu novamente.

CAPÍTULO XXI

A armadilha da volúpia

Angélica foi transferida para outro apartamento, maior e mais rico do que o que ocupara até então.

- Por que não me-levam para meu quarto?

Os eunucos e as criadas não lhe respondiam. Fátima, de rosto imóvel para dissimular a própria satisfação, serviu-lhe a refeição, mas ela não conseguiu tocar em nada. Esperava com ansiedade que Osman Ferradji reaparecesse, para falar com ele. O grão-eunuco não veio. Ela mandou chamá-lo. O eunuco disse que o chefe do serralho viria, mas ^s horas passaram em vão. Queixou-se de que o odor penetrante das madeiras preciosas que guarneciam o apartamento dava-lhe dor de cabeça. Fátima queimou grãos de incenso, e o odor se tornou ainda mais sedutor. Entorpecida, Angélica sentia a noite aproximar-se. A luz das lamparinas acesas, o rosto da velha escrava assemelhava-se ao da feiticeira Melusina, que outrora, na floresta de Nieul, queimava ervas para invocar o Diabo. A bruxa Melusina era daquelas mulheres do Poitou a quem uma gota de sangue árabe dá olhos negros e selvagens.

Como avançara, outrora, a vaga de conquistadores com sabres curvos e auriflamas verdes!

Angélica enfiou o rosto nas almofadas, atormentada pela vergonha que a perseguia desde que o olhar de Mulay Ismael despertara nela o apelo eterno. Ele a retivera com õ olhar assim como a reteria com os braços, esperando talvez, alerta, que ela se oferecesse por si mesma. Ela não poderia resistir ao contato daquele corpo exigente.

"Não tenho forças", pensou ela, "oh, sou apenas uma mulher... Que posso fazer?"

Adormeceu em meio às lágrimas, como uma criança. O sono foi agitado. O calor do desejo a perseguia. Ouvia a voz rouca e ardente de Mulay Ismael: "Mulher! Mulher!..." Uma invocação! Uma prece!

Ele estava ali, inclinado sobre ela por entre os vapores do incenso, com seus lábios de ídolo africano e suas pupilas imensas, insondáveis como o deserto. Ela sentiu-lhe a suavidade da boca sobre o ombro e o peso do corpo sobre o seu. Sentiu a deliciosa compressão do abraço que a erguia, soldando-a ao peito liso e musculoso. Então, desfalecendo, atirou os braços em torno daquele corpo cuja realidade pouco a pouco emergia de seu sonho.

Seus dedos deslizaram pela pele ambarina, perfumada de almíscar, acariciaram o flanco duro, a cintura de aço. E seus dedos encontraram a forma angulosa e fria de um pequeno objeto: o cabo de um punhal. Sua mão crispou-se sobre a arma, e foi como uma recordação vinda dos recônditos de uma vida antiga: Marquesa dos Anjos! Marquesa dos Anjos! Lembre-se do punhal de Rodoguno, o Egípcio, que empunhava quando esfolou o Grande Coésre de Paris?... Como sabia segurar bem aquele punhal!

E ela o segurava agora. Seus dedos apertavam-se sobre ele, e a frieza do metal a penetrava, arrancava-a ao torpor. Com toda a força, ela puxou a arma e desferiu o golpe...

Foram os músculos de aço de Mulay Ismael que o salvaram. A agilidade que o projetou para trás no momento em que ele sentiu a lâmina roçar-lhe a garganta foi a de um tigre com reflexos fulminantes.

Permaneceu curvado para a frente, os olhos arregalados num enorme estupor. Sentia o sangue correr-lhe pelo peito, percebia que, um segundo a mais, e sua carótida teria sido rasgada...

Sem desviar o olhar dela - mas agora ela já não podia fazer nada -, dirigiu-se até o gongo e tocou-o.

Osman Ferradji, que não devia estar longe, irrompeu quase imediatamente. Bastou-lhe uma olhada para compreender a cena. Angélica soerguida na cama, o punhal na mão. Mulay Ismael sangrando, louco de raiva, os olhos saltando das órbitas, incapaz de falar.

O grão-eunuco fez um sinal. Quatro negros entraram correndo, agarraram a jovem pelos punhos, arrancaram-na da cama e lançaram-na aos pés do sultão, a testa contra as lajes...

O rei explodiu finalmente, mugindo como um touro. Sem a pro-teção de Alá ele agora estaria morto, a garganta aberta por aquela cristã maldita, que quisera matá-lo com seu próprio punhal. Fá-la-ia morrer com tormentos horripilantes. E imediatamente... Imediatamente!... Que fossem buscar os cativos, os rebeldes! Sobretudo os francos. Veriam supliciar uma mulher de sua própria raça. Veriam como deve morrer a audaciosa que ousa levantar a mão contra a pessoa sagrada do comandante dos crentes...

CAPÍTULO XXII

Angélica torturada - O grão-eunuco lê seu destino

Agora tudo ia rápido, tudo fora desencadeado. Não havia mais perguntas a fazer. Amarraram os pulsos de Angélica, levantaram-nos, para atá-los a uma das colunas da sala.

Despiram-lhe o dorso. Ela começou a sentir as chicotadas como o toque de chamas rápidas, que se precipitavam, tornavam-se uma queimadura intensa. Pensou: "Eu via isto antigamente, nas belas imagens do meu livro sobre os santos mártires da Igreja..." Agora-era ela quem estava amarrada à estaca. As costas ardiam cada vez mais. Sentiu o sangue morno escorrer-lhe pelas pernas. E pensou: "Não é tão terrível..."

Mas viria mais!... Que importava! Tudo se desencadeara, e ela não podia fazer cessar nada. Era seixo levado de roldão pelas águas da torrente. Reviu as enxurradas turbilhonantes dos Pireneus, que conhecera no tempo do primeiro casamento. Começava a sentir muita sede, e a visão embaçava-lhe...

As chicotadas cessaram, e de repente a dor se irradiou e se tornou insuportável.

Desataram-lhe os pulsos, mas apenas para colocá-la de frente para a sala e amarrá-la de novo.

Através da bruma que lhe tremia diante dos olhos, percebeu o algoz com seu braseiro, onde avermelhavam carvões em brasa e instrumentos apavorantes que ele colocava sobre uma pequena prancha. Era um eunuco muito gordo, com cara de gorila. Outros eunucos o cercavam. Não tinham tido tempo de vestir o traje das execuções. Haviam apenas tirado o turbante...

Mulay Ismael estava sentado à esquerda. Recusara que lhe fizessem um curativo. O ferimento era superficial. Queria que vissem o sangue que já coagulava. Queria que, ao ver-lhe o sangue, todos tomassem consciência do sacrilégio.

E no fundo da peça estavam reunidos uns vinte escravos franceses. Colin Paturel e suas correntes, Jean-Jean de Paris, o ruivinho, com uma expressão angustiada, o Marquês de Kermoeur, e outros, todos olhando aterrados, boquiabertos, aquela mulher tão branca, seminua, que torturavam. Guardas de sabre e chicote em punho conservavam-nos em silêncio.

Osman Ferradji inclinou-se para Angélica. Falou em árabe, muito lentamente:

-        Ouça. O grande rei do Marrocos está disposto a perdoar seu ato insensato. Consinta em obedecê-lo, ele lhe agracia. Consente?

O rosto negro de Osman Ferradji dançava, impreciso. Angélica pensou que seria o último rosto que veria neste mundo. E estava bem... Osman Ferradji.era tão grande! E a maioria dos seres é tão pequena, tão mesquinha. Depois foi a face rude e loura de Colin Paturel, ao lado da do'grão-eunuco.

-        Minha pobre pequena... Ele me pede que lhe ordene, na nossa língua, que consinta... Não vá deixar-se massacrar assim... Minha pobre pequena!...

"Por que se deixou crucificar, Colin Paturel?", teve ela vontade de indagar. , Mas seus lábios só podiam entreabrir-se para uma palavra:

— Não!

— Vão arrancar-lhe os seios! Vão mutilá-la com tenazes em brasas - disse Osman Ferradji.

As pálpebras de Angélica fecharam-se. Queria ficar sozinha consigo e com sua dor. Os seres se apagavam. Já estavam muito longe...

Duraria muito?...

Ouviu os cativos resmungarem no fundo da sala, e arrepiou-se. O que estaria preparando o carrasco?

Em seguida houve uma espera interminável. Depois suas mãos foram desatadas, e ela escorregou ao longo da coluna, muito longe, muito longe, durante muito tempo.

Quando recuperou a consciência, com a face sobre uma almofada de seda, estava deitada de lado, e .as mãos de Osman Ferradji, imóveis, pareciam próximas.

Angélica lembrou-se. Àquelas mãos delgadas, de unhas mais vermelhas do que os rubis dos anéis, ela se agarrara em seu delírio.

Voltou-se um pouco. A memória voltou-lhe completamente, e ela foi invadida pela alegria singular que sentira no momento em que seus filhos acabavam de nascer e quando ela compreendia que as' dores tinham acabado e que ela realizara algo maravilhoso.

— Está terminado? - perguntou. - Fui martirizada? Resisti bem?

— Estou morta? - arremedou-a Osman Ferradji, zombeteiro. - Rebeldezinha tola! Alá foi bem pouco misericordioso quando a colocou em meu caminho. Informo-lhe que se você ainda está viva e sem outro mal além das costas um pouco flageladas foi porque eu disse a Mulay Ismael que você consentia. Mas, como você não se encontrava em estado de provar imediatamente sua docilidade, ele houve por bem deixar que a trouxessem e tratassem. Faz três dias que você se debate em febre, e só estará apresentável de novo na próxima lua.

Os olhos de Angélica encheram-se de lágrimas.

— Então vai tudo recomeçar? Oh, por que você fez isso, Osman Ferradji? Por que não me deixou morrer desta vez? Não terei coragem para repetir tudo.

— Cederá?

— Não! Você bem sabe que não!

— Então, não chore, Firuzê. Você tem até a próxima lua para se preparar para seu novo martírio - disse o grão-eunuco com ironia.

Voltou ao anoitecer para revê-la. Ela recuperava forças e podia encostar-se parcialmente nas almofadas, o dorso coberto de emplastros.

-        Você roubou-me minha morte, Osman Ferradji. Mas não ganhará nada com esperar. Jamais serei a terceira esposa nem a favorita de Mulay Ismael, e dir-lhe-ei isso na cara assim que surja a oportunidade... E... começará tudo de novo! Não tenho medo. E verdade que Deus envia sua graça aos mártires. No final das contas esta flagelação não foi tão terrível.

O grão-eunuco atirou a cabeça para trás e permitiu-se rir, o que raramente acontecia.

-        Tenho minhas dúvidas - disse. - Você sabe pelo menos, imbecil, que existem várias maneiras de chicotear? Golpes aplicados de determinada maneira arrancam pedaços de carne, outros mal roçam a superfície da pele, o suficiente para fazê-la sangrar e oferecer o espetáculo impressionante do outro dia. Também há chicotes cujas correias são embebidas em narcóticos e cujo roçar adormece a chaga e dá à vítima um benéfico aturdimento. Não foi tão terrível?... Pois sim! Eu havia dado ordens para que você fosse poupada!

Angélica passou por sentimentos diversos, e sua surpresa acabou dominando o embaraço por ter sido lograda.

— Oh, por que você fez isso por mim, Bei Osman? - perguntou, séria. - Eu o decepcionei. Esperava que eu mudasse de ideia? Não. Jamais mudarei de ideia. Não. Não cederei nunca. Bem sabe que é impossível!

— Sei, certamente - disse o grão-eunuco, amargo.

Seus traços hieráticos acabrunháram-se, e ele teve, fugidia, aquela expressão de macaco triste dos negros subjugados pelo destino.

— Experimentei a força do seu caráter... você é como o diamante. Nada a quebrará.

— Então, por quê?»..-"Por que não me abandonar à minha triste sorte?

Ele se pôs a menear a cabeça de modo cada vez mais rápido.

-        Não posso... Jamais poderia ver Ismael massacrá-la. A você, a mais bela e a mais perfeita das mulheres. Não creio que Alá tenha criado com. frequência um ser semelhante a você. Na verdade, você é A Mulher. Finalmente a encontrei, após tantas buscas pelos mercados do mundo! Não deixarei que Mulay Ismael a destrua!

Angélica mordia os lábios, perplexa. Ele viu-lhe o olhar incerto e disse, sorrindo:

-       Vindas de mim, essas palavras lhe soam estranhas. De fato, não posso desejá-la, mas posso admirá-la. E talvez você me tenha enternecido o coração...

Um coração? Ele, que suspendera o Xeque Abd-al-Kharam sobre a fogueira e que sem pestanejar conduzira a pequena circassia-na ao suplício?...

Pôs-se a falar numa voz lenta e meditativa:

-        É assim. Amo a harmonia da sua beleza com seu espírito... A perfeição com que seu corpo reflete sua alma. Você é um ser nobre e fantástico... Conhece as artimanhas da mulher, tem-lhe a crueldade e as unhas afiadas, no entanto soube conservar a ternura das mães... É cambiante como o horizonte e imutável como sol Parece adaptar-se a tudo, e no entanto continua ingenuamente latina em sua vontade assestada sobre um objetivo... Assemelha-se a todas as mulheres e não se assemelha a nenhuma... Amo as promessas que ainda não desabrocharam por trás de sua fronte sábia, as promessas de sua velhice... Também amo que tenha podido desejar loucamente Mulay Ismael, impudica como Jezebel, e que tenha tentado matá-lo, como Judite matou Holofernes. Você é o jarro precioso onde o Criador parece ter vertido os tesouros universais da feminilidade... Concluiu:

-        Não posso deixar que a destruam. Deus me puniria!

Angélica o ouvira com um débil sorriso nos lábios empalidecidos.

"Se um dia", pensou, "perguntarem qual foi a mais bela declaração de amor que recebi na vida, responderei: 'Foi a do Grão-Eunuco Osman Ferradji, guardião do harém de Sua Majestade, o sultão do Marrocos'." Uma esperança imensa a invadia. Esteve a ponto de pedir-lhe que a ajudasse a fugir. Uma prudência instintiva a reteve. Já conhecia muitíssimo bem as leis implacáveis do serralho para saber que a cumplicidade do grão-eunuco era uma utopia. Era preciso ser ingenuamente latina, conforme ele dizia, para pensar nisso.

-        O que vai acontecer então? - perguntou.

Os olhos do negro fitavam a distância, através da muralha.

— Ainda faltam três semanas até a lua nova.

— O que pode acontecer antes da lua nova?

— Como você é impaciente! Não podem acontecer milhares de coisas em três semanas, quando Alá, com um sinal, pode destruir o mundo no instante que se seguirá às nossas palavras?... Firuzê, gostaria de respirar o ar fresco da noite no alto da Torre Maza-greb?... Sim. Então, venha comigo, vou mostrar-lhe as estrelas.

O observatório do grão-eunuco ficava no topo da Torre Maza-greb, mais baixa do que os minaretes, mas mais alta do que as muralhas. Entre os merlões pontiagudos, via-se cintilar o deserto, pontilhado pela rama escura de algumas oliveiras e, mais adiante, nu e pedregoso sob o luar.

A potente luneta de astrónomo, o sextante, os compassos, os globos e todos os belos instrumentos de precisão retinham em seu cobre e seu verniz o reflexo da lua e o das estrelas particularmente brilhantes num céu que nenhum vapor alterava.

Um sábio turco que Osman Ferradji trouxera de Constantinopla, velhinho frágil esmagado pelo peso do turbante e com óculos enormes assentados no nariz, servia de assistente. Quando praticava a astrologia, Osman Ferradji gostava de usar o manto suda-nês e o turbante de lamé dourado. Ganhando mais estatura dessa forma, ele se instalava sob a cúpula imensa do firmamento pontilhado de estrelas, e apenas um risco prateado destacava-lhe da noite o negro perfil. Tornava-se um pouco imaterial.

Intimidada, Angélica sentou-se em almofadas, a distância. O topo da Torre Mazagreb tinha o aspecto de um santuário do espírito. "Nenhuma mulher já deve ter penetrado aqui", pensou ela. Mas o grão-eunuco não tinha pela inteligência das mulheres o mesmo desdém que os homens autênticos. Protegido contra o ofuscamento dos sentidos, ele as julgava com exatidão, com uma atenta objetividade. Afastava~a tola, mas aproximava-se daquela cujo espírito parecia digno de interesse e com quem ele próprio pudesse instruir-se de maneira agradável. Angélica lhe ensinara muito, não apenas sobre a lã francesa e o nuga persa, mas sobre o caráter dos ocidentais e o dò grande Rei Luís XIV. Todas as informações que obtivera seriam "preciosas na altura em que Mulay Ismael enviasse uma embaixada ao potentado de Versalhes.

Seria simples demais afirmar que Osman Ferradji renunciara de uma vez por todas à ver Angélica como a terceira esposa de Mulay Ismael. O mirífico projeto apenas se distanciava, fugia no espaço como aqueles planetas caprichosos que só se viam uma vez na vida, mas que nem por isso deixavam de estar suspensos acima dos destinos humanos. As conjunções e quadraturas misteriosas ainda não se haviam pronunciado. As nebulosas se juntavam ou se dividiam?... Aos olhos de um latino a situação não tinha saída que não fosse trágica. Mas Osman Ferradji esperava... Os astros estavam lá e antes de ninguém lhe revelaram que ele ia ao encontro de um amargo infortúnio. O destino da francesa encontrava-se apenas brevemente com o de Mulay Ismael. Ela se afastava, como a estrela cadente. Mas seria na morte? ---.. Os sinais pressentidos lhe fizeram arrepiar a nuca, e desde então se sentia oprimido, como se Azrael tivesse passado perto. A tal ponto que seus dedos agora só tocavam com apreensão o frio metal da luneta. Esta noite, em que desejava arrancar ao céu segredos mais profundos, trouxera a mulher sobre quem interrogava o Destino, a fim de reforçar o magnetismo que dos seres humanos une-se as correntes naturais que emanam dos objetos da Criação.

A força invisível que Angélica possuía era de natureza muito particular. Ele a subestimara de início. Hoje confessava a si mesmo que ela fora um dos raros seres cujo fluido real ele não soubera avaliar de imediato. Erro grave, que ele só explicava pelo mistério de sua feminilidade, envolvendo como um disfarce enganador uma Força Invencível. Ele tinha de render-se à evidência de que sua beleza de mulher velava um caráter inesperado e um destino excepcional, do qual ela própria não tinha consciência.

Ajustando o mecanismo de seu instrumento de observação, ele se perguntava se não teria sido logrado.

Angélica olhava as estrelas. Preferia vê-las pequenas e iluminadas de reflexos, como jóias sobre um veludo negro, a vê-las aumentadas na extremidade de uma luneta.

O que estaria Osman Ferradji procurando naquele conjunto de mundos imensos?

Angélica não sentia a própria inteligência à altura de uma ciência tão hermética. E, como estar assim reclinada no topo de uma torre, sob um céu estrelado, lembrava-lhe as longínquas noites de Toulouse, ela se recordou de que o marido, o sábio Conde de Pey-rac, também a introduzira algumas vezes em seu laboratório e se dera ao trabalho de explicar-lhe um pouco do que fazia. Agora ele certamente a acharia estúpida. Era mesmo melhor que ele nunca a tivesse revisto! Tinha a alma tão fatigada e tão cruelmente desiludida... Sua vida a reconduzira ao nível comum de onde era inútil querer elevar-se: uma simples mulher.

Uma mulher que não tinha escolha senão ceder a Mulay Ismael, ou morrer bestialmente, por obstinação. Dar-se ao rei da França ou ser banida? Vender-se para não ser vendida? Atacar para não ser esmagada?... Seria impossível viver? Viver!... Atirou a cabeça para trás, contemplando a liberdade imensa do céu. Viver, Senhor!... Não sufocar sempre entre o aviltamento e a morte!...

Se ao menos os cativos pudessem ajudá-la a fugir... Mas, agora que Savary não estava mais ali, não iriam preocupar-se com ela e sobrecarregar-se com uma mulher. No entanto, se conseguisse pôr as mãos na chave da portinha e sair da primeira muralha do harém, Colin Paturel se recusaria a levá-la?... Ela suplicaria de joelhos.

Como se apoderar daquela chave que apenas o grão-eunuco e Leila Aícha possuíam?...

-        Por que você fugiu?

Angélica estremeceu. Esquecera-se da preseííça do grão-eunuco e de seu inquietante poder de ler pensamentos. Abriu a boca e não disse nada, pois ele não a olhava. Falara como se a si mesmo, os olhos perdidos na direção das estrelas.

-        Por que fugiu de Cândia?

Ele segurou o queixo num gesto de meditação e fechou os olhos.

-        Por que deixou aquele pirata cristão que acabava de comprá-la, o Rescator?

A voz dele estava tão.estranha, tão perturbada, que Angélica, estupefata, procurou emfvão por uma resposta.

-        Fale! Por que fugiu?-Nãp sentiu que o destino desse homem e o seu se encontravam?-'Responda!... Não sentiu?

Agora ele a fitava, e a voz se tornava imperiosa. Ela balbuciou humildemente:

— Sim, senti.

— Oh, Firuzê - exclamou ele, quase dolorosamente -, lembra-se do que lhe disse? "Não se deve forçar o destino, e, quando os sinais previnem, não se deve ignorá-los." O signo desse homem cruza o seu caminho e... não posso ver tudo, Firuzê. Teria de fazer cálculos infinitos para discernir nos astros a história estranha que tenho a impressão de ler neles. O que sei é que esse homem é da mesma raça que você...

— Quer dizer que é francês? - perguntou ela timidamente. - Diziam que era espanhol ou mesmo marroquino...

— Ignoro... Quero dizer... Ele é de uma raça que ainda não foi criada, como você...

Suas mãos desenharam sinais misteriosos no espaço.

-        Uma espiral independente... unindo-se a outra e que...

Pôs-se a falar rápido em árabe. O velho efêndi escrevia, balançando o pesado turbante de musselina verde. Angélica, completamente desorientada, tentava entender o sentido da discussão dos dois e ler-lhes no rosto e no movimento dos compassos que manejavam e dos globos que consultavam o significado de^um veredicto do qual sua vida dependia.

Há pouco ela estava longe de pensar no Rescator, imagem já esfumada e que a violência do conflito que a opusera a Mulay Ismael lançara completamente a outro plano. E de súbito a lembrança da aparição de máscara negra a agarrava pela garganta.

Vendo Osman Ferradji assestar novamente para o céu o instrumento óptico, ousou interromper:

-        Você o conheceu, Bei Osman? Não é um mago, como você?

Ele meneou a cabeça lentamente.

— Talvez, mas sua magia vem de outra fonte... mas conheci esse cristão, sim. Fala árabe e várias línguas, más suas palavras têm dificuldade em atingir-me o pensamento. Sinto-me diante dele como um homem do passado perante um viajante vindo do horizonte, carregado dos suprimentos para os tempos futuros. Quem, então, pode recebê-lo? Quem pode entendê-lo? Na verdade, ninguém pode entendê-lo ainda.

— Mas é um pirata vulgar! - exclamou ela, indignada. - Um vil traficante de prata...

— Ele procura seu caminho num mundo que o rejeita. Caminhará assim até o dia em que encontrar seu lugar. Você não pode compreender isso, você que já viveu tantos destinos contrários.e que tenta em vão revelar seu rosto verdadeiro?

Angélica se pôs a tremer da cabeça aos pés. Não! Não era verdade! O grão-eunuco não podia conhecer sua vida. Não podia ter lido nos astros... Com medo, sondou o céu noturno. A noite estava límpida e perfumada. Vinda do deserto, a brisa arrastava, ao passar, o incenso exalado pelos jardins fechados de Miquenez. Era uma noite como todas as noites, mas no topo da Torre Mazagreb ela se carregava de eflúvios inquietantes. Angélica quis sumir, deixar ali, entre seus estranhos instrumentos, o mago negro e seu escriba de óculos que rabiscava números cabalísticos como um inseto azafamado.

Não queria saber mais nada! Estava cansada. Mas permanecia imóvel, incapaz de desviar o olhar do lento movimento da objeti-a assestada em direção ao firmamento.

A ciência de Osman Ferradji erguia uma ponta da cortina cerrada sobre o Invisível. O que anunciaria ainda?... Imaginou ver-lhe aquela cor de ardósia, que era sua maneira de empalidecer, e de repente ele cravou-lhe os olhos com uma expressão quase de horror, como se contemplasse a seus pés um desastre que ele próprio teria desencadeado.

__ Bei Osman - exclamou ela -, oh, o que foi que leu nos astros?!

Fez-se um longo silêncio. O grão-eunuco havia baixado as pálpebras.

-        Por que fugiu do Rescator? - murmurou afinal. - Ele teria sido o único homem forte o bastante para se aliar a você... talvez Mulay Ismael também, mas... não sei agora se o risco não teria sido pior! Os homens que se apegam a você... você lhes traz a morte... É isso!

Angélica soltou um grito de agonia e suplicou, de mãos postas:

-        Não, Bei Osman, não, não diga isso!

Era como se ele a acusasse de haver trucidado com as próprias mãos o marido a quem amava. Baixou a cabeça como uma ré e fechou os olhos com força, para rechaçar a visão de outros rostos que surgiam do passada. - -'

— Você lhes traz a rfiorte, ou a derrota, ou a dificuldade que lhes destrói o gosto de viver. Há que ser de uma força excepcional para escapar a isso. Tudo isso porque você teima .em ir aonde ninguém pode segui-la... Os que são fracos demais, você os deixa no caminho. A força que o Criador pôs em você não lhe permitirá parar até que encontre o lugar onde deve estar.

— Que lugar -é esse, Bei Osman?

— Não sei. Mas, enquanto não o atingir, devastará tudo à sua passagem, até sua própria vida... Eu quis captar essa força e me iludi, pois não é das que se podem domar. Você mesma a ignora em grande parte... Nem por isso você é menos temível...

Angélica se pôs a chorar, nervosíssima.

-        Oh, Bei Osman, vejo agora que lamenta não haver deixado que eu morresse sob as torturas de Mulay Ismael. Oh, por que olhou as estrelas esta noite? Por quê?... Você era meu amigo e agora me diz coisas horríveis!

A voz do grão-eunuco abrandou-se. Mas ela continuou alterada e dominada por uma funda ansiedade.

-        Não chore, Firuzê! A culpa não é sua._Você não tem controle. Não traz infelicidade, traz a felicidade. Mas há certos seres que são fracos demais para suportar o peso de determinadas riquezas. Azar deles! Sim, continuo sendo seu amigo. E azar meu! Não é sem riscos que se pode assumir a responsabilidade de sua morte, e ao evitá-la também quis poupar Mulay Ismael de sanções invisíveis. Mas agora será preciso que eu realize algo de terrível, algo de sobre-humano: lutar contra o que está escrito. Lutar contra o destino, a fim de que você não seja mais forte do que eu.

CAPÍTULO XXIII

Angélica alia-se a Leila Aícha - Escapa da pantera e do grão-eunuco

Um grupo de mulheres atravessou o pátio onde pombas esvoaçavam. O escravo que consertava o mecanismo do chafariz disse a meia voz:

-        Francesa?

Angélica ouviu e diminuiu o passo, deixando as companheiras adiantarem-se. Como se encontravam em seu pátio interno, não estavam acompanhadas de eunucos. Como um escravo francês podia trabalhar ali'impunemente? Se um eunuco o visse, ele seria morto.

Inclinado sobre a canalização que desparafusava, sussurrou:

— E você a cativa francesa?

— Sim, mas cuidado. É proibido aos homens entrar neste recinto.

— Não se preocupe comigo - resmungou ele. - Tenho o direito de circular à vontade no harém. Faça como se estivesse interessada nas pombas enquanto lhe falo... Colin Paturel me enviou.

— Sim?

— Continua decidida a fugir?

— Sim.

— Mulay Ismael poupou-a porque lhe cedeu?

Angélica não tinha tempo para explicar a astúcia do grão-eunuco.

— Não cedi, não cederei nunca. Quero fugir. Ajude-me!

— Nós o faremos por causa do velho Savary, que enfiou na cabeça que a arrancaria daqui. Era seu pai, acho. Não podemos deixá-la para trás, embora levar uma mulher represente um risco suplementar. Enfim... Uma noite, cuja data será marcada, Colin Paturei ou outro a esperará junto à portinha do norte que dá para um monturo. Se houver uma sentinela, ele a matará, abrirá a porta com a chave, pois ela só se abre do exterior, você estará atrás dela e virá com ele. Sua parte é obter essa chave.

— Parece que o grão-eunuco tem uma e a negra Leila Aícha, outra.

— Hum! Nada cómodo. Em todo caso, sem essa chave nào vemos outro jeito. Procure, pense em alguma coisa. Você está aqui, pode pagar criadas. Quando a tiver, dá-la-á a mim. Estou sempre rondando por aqui. Comecei a vistoriar todos os chafarizes dos pátios do harém. Amanhã estarei trabalhando no da Sultana Abe-chi. É uma senhora corajosa e amável e que me conhece bem. Ela nos deixará conversar sem problemas.

— Como conseguirei essa chave?

— Encontre um jeito, minha pequena! De toda maneira, você tem alguns dias pela frente. Aguardaremos as noites sem lua para a evasão. Boa sorte! Quando quiser ver-me mande chamar Esprit Cavaillac, de Frontignan, o engenheiro de Sua Majestade...

Reuniu as ferramentas e cumprimentou-a com um sorrisinho encorajador. Mais tarde Angélica ficaria sabendo de sua história pela Sultana Abechi, muito tagarela. Para fazê-lo apostatar, Mu-lay Ismael lhe impusera suplícios particularmente odiosos. Mandara amarrar uma corda àquilo a que não se ousa citar pelo nome e arrancar com um puxão de seu próprio cavalo. Esprit Cavaillac fora tratado pelos companheiros e sobrevivera a seus horríveis ferimentos. Graças à mutilação, tinha livre acesso ao interior do serralho, e poderia servir de mensageiro entre Angélica e os conjurados.

O encontro despertou a coragem da jovem. Então não a esqueciam! Ainda pensavam nela! Ainda consideravam possível sua fuga!... Pois bem, seria assim! Osman Ferradji não dissera que ela possuía a força de um vulcão? No momento em que ouvira essas palavras, sentia-se tão fraca, doente, as costas maceradas, que elas lhe pareceram ridículas. Agora lhe voltava à mente tudo o que ousara e realizara em alguns anos, e não via - não, não via - por que não teria êxito nessa coisa insensata: fugir do harém!

Com vivacidade, contornou o pátio, enfiou-se com passo célere por uma longa galeria, atravessou um jardim onde duas figueiras derramavam sobre uma fonte sua sombra bíblica, penetrou em outro pátio e, dali, sob os arcos que precediam os pórticos escuros dos apartamentos. Raminan, o chefe dos guardas da Sultana Leila Aícha, apareceu a sua frente.

- Gostaria de ver sua ama - disse Angélica.

O olho frio do negro a encarava, hesitante. O que desejava a inquietante rival, a criatura do grão-eunuco, para quem Leila Aícha e Daisy Valina invocavam há oito dias os encantos maléficos de seus feiticeiros? A imperiosa sudanesa dà'tribo de Loubé não se enganara acerca da flagelação sofrida por Angélica. Ao resistir, ela adotara o meio mais seguro de fazer Mulay Ismael ligar-se a ela. A ponta do punhal que a revoltada lhe encostara no pescoço aguilhoava-lhe o desejo. Ele ardia por domar a tigresa, fazê-la arrulhar como uma pomba. Confiara isso à própria Leila Aícha. Dizia que aquela mulher não podia resistir ao amor. Sem a imprudência de ter conservado o punhal na cintura, a francesa já estaria derretida em seus braços. Ele a manteria sob a dependência da volúpia. Adormecer-lhe-ia o espírito e cativaria seu corpo. Pela primeira vez Mulay Ismael ~se permitia a inverossímil ambição de ligar-se a uma mulher, disposto a tudo para arrancar-lhe um sorriso e um único gesto de abandono.

A lúcida negra estava muito sensível a essa mudança. Sentia-se invadir pela cólera e pelo medo. Por pouco hábil que fosse, a francesa controlaria õ tirano de maneira infalível; ela o levaria na coleira como um leopardo aprisionado, exatamente como Leila Aícha fazia com a pantera Akhadi.

Diabólico, Osman Ferradji fazia o jogo da estrangeira. Deixava correr o boato de que a francesa estava moribunda. O sultão pedia notícias sem cessar. Queria ir vê-la. O grão-eunuco opunha-se. A doente ainda estava aterrorizada, e a presença de seu senhor e amo poderia fazer a febre voltar. Mas ela sorrira ao receber o presente que Mulay Ismael mandara entregar-lhe: um colar de esmeraldas, apreendido numa galera veneziana. Então a francesa gostava de jóias!... Imediatamente o sultão convocou os ourives da cidade, para examinar à lupa as peças mais belas.

Todas essas loucuras agitavam Leila Aícha e Daisy. Haviam considerado todas as soluções, primeiro a mais simples, já que a inquietante rival agonizava: auxiliar com tisanas bem preparadas uma obra tão bem começada. Mas as criadas mais hábeis e os feiticeiros mais astutos, encarregados de levar o remédio, haviam esbarrado na vigilância reforçada dos guardas de Osman Ferradji.

E agora a francesa estava ali, em excelente saúde ao que parecia, pedindo para ver aquela que a perseguia com suas imprecações e seu ódio. Depois de refletir, Raminan pediu-lhe que esperasse. O Príncipe Zidan, de turbante framboesa e túnica branca, brincava ali perto de cortar cabeças com o sabre de madeira. Haviam-lhe tirado o sabre de aço, que causara muitos ferimentos a sua volta.

O eunuco retornou e com um gesto introduziu Angélica no aposento onde a negra enorme tinha seu trono, por entre um amontoado de braseiros, aquecedores e defumadores de cobre onde ardiam ervas odoríferas. Daisy Valina estava junto dela. Duas mesinhas baixas sustentavam taças cinzeladas de vidro da Boémia, nas quais as sultanas tomavam chá de hortelã, e um grande número de caixas de cobre, contendo chá, confeitos e tabaco.

A primeira esposa de Mulay Ismael tirou dos lábios o longo cachimbo e soltou uma baforada na direção do teto de cedro. Era seu vício secreto, pois o sultão reprovava sonoramente o fumo, assim como a bebida, proibidos por Maomé. Ele mesmo só bebia água, e jamais levara aos lábios,a piteira de um narguilé, como fazem aqueles turcos corrompidos que gozam a vida sem se preocupar com a grandeza de Deus.

Leila Aícha obtinha tabaco e aguardente dos escravos cristãos, os únicos que podiam comprá-los e consumi-los.

Angélica avançou e ajoelhou-se com humildade sobre os sun-tuosos tapetes. Ficou assim, de cabeça baixa, diante das duas mulheres que a observavam em silêncio.

Depois tirou do dedo o anel de turquesa que um dia o embaixador persa, Bei Bakhtiari, lhe dera e colocou-o diante de Leila Aícha.

-        Eis meu presente - disse em árabe. - Não posso oferecer-lhe nada melhor, pois não possuo mais nada.

Os olhos da negra flamejaram.

-        Recuso seu presente! E você é uma mentirosa. Também possui o colar de esmeraldas que o sultão lhe deu.

Angélica balançou a cabeça e disse em francês à inglesa:

-        Recusei o colar de esmeraldas. Não quero ser a favorita de Mulay Ismael e não serei nunca... se me ajudarem.

A inglesa traduziu, e a negra de repente se inclinou na direção de Angélica, com um movimento ávido e atento.

— O que quer dizer?

— Que vocês podem fazer melhor para me eliminar que envenenar-me ou desfigurar-me com ácido: ajudem-me a fugir.

Falaram baixinho e durante muito tempo, próximas e cúmplices. Angélica transformara a seu favor o ódio que lhe tinham as rivais. No fundo, que risco corriam elas com a aventura? Ou bem Angélica teria êxito na evasão e jamais tornariam a vê-la ou bem seria recapturada e, dessa vez, destinada a uma morte horrível. De qualquer maneira, não se poderia responsabilizar as duas primeiras sultanas por seu desaparecimento; como seria o caso se a encontrassem morta por envenenamento. Elas não eram de modo algum responsáveis pelo harém. A fuga de uma concubina não podia ser-lhes imputada.

-        Jamais uma mulher fugiu do harém - disse Leila Aícha. -O grão-eunuco será decapitado!

As pupilas amareladas e congestionadas brilharam com um fogo vermelho.

-        Entendo. Tudo se encaixa... meu astrólogo bem que leu nos astros que você seria a causa da morte de Osman Ferradji...

Um longo arrepio correu pela espinha de Angélica.

"Também ele leu IssO, com certeza", pensou. "Foi por isso que me olhou com aquele;ar estranho. "Agora terei de lutar contra o destino, Firuzê, para"que você hão seja mais forte do que eu!'..."

A angústia que sentira no topo da Torre Mazagreb invadiu-a de novo. O odor das ervas, do chá e do tabaco a sufocava, e ela sentia o suor molhar-lhe as têmporas. Empenhou-se com uma tenacidade desgastante por obter de Leila Aícha a chave da porta norte. A sultana deu-lhe a chave afinal. Opusera resistência apenas por hábito e por gosto dás longas discussões. Na verdade, desde as primeiras palavras de Angélica, aliara-se ao plano. O projeto a desembaraçaria da perigosa rival e ao mesmo tempo acarretaria a perda de seu inimigo, o grão-eunuco; colocava-a ao abrigo da cólera de Mulay Ismael, que não lhe perdoaria qualquer mal que fizesse à nova paixão, e daria um jeito de saber de Angélica o plano dos fugitivos e mandar recapturá-los, o que confirmaria seu prestígio e seus dons de adivinhação junto ao amo. Ficou entendido que, na noite da fuga, Leila Aícha em pessoa acompanharia Angélica e a guiaria através do harém até a escadinha que dava para o Pátio do Segredo, onde se abria a porta oculta. Assim poderia evitar que fosse atacada pela pantera, emboscada em.algum canto. Conhecia a linguagem do animal e levaria gulodices para amansá-lo. Também os guardas deixariam passar a sultana das sultanas, de que temiam a vingança e o mau-olhado. .

-        Só é preciso desconfiar do grão-eunuco - objetou Daisy. - Só ele é de se temer. O que vai contar se ele lhe perguntar por que você veio nos visitar?

-        Direi que fiquei sabendo de sua cólera por mim e que quis enganá-las com uma aparente docilidade.

As duas mulheres menearam a cabeça, aprovando.

-        Pode ser que ele acredite. Sim, em você acreditará!

A tarde Angélica foi visitar a Sultana Abechi, gorda muçulmana de origem espanhola, a quem o rei ainda prodigalizava algumas homenagens. Por pouco não fizera dela sua terceira esposa.

Angélica viu Esprit Cavaillac e passou-lhe a chave.

-        Você! - exclamou ele, estupefato. - Não se pode dizer que não tenha sido rápida! Bem disse o velho Savary que você era astuta e corajosa e que se podia contar com você como com um homem. Antes saber disso do que levar uma desajeitada. Bom, agora só lhe resta esperar. Informo-a do dia combinado.

Essa espera foi o que Angélica conheceu de mais cruel e angustiante. A mercê de duas mulheres venenosas e dissimuladas, sob o olho de adivinho do grão-eunuco, tinha de fingir e acalmar até a impaciência dos próprios pensamentos.

Suas costas saravam. Ela se submetia com docilidade aos cuidados da velha Fátima. Esta tinha muita esperança de que a ama deixasse de ser cabeça-dura. Todos os aborrecimentos que sentia agora, com os unguentos e medicamentos, e a pele arrancada e estragada, bem lhe demonstravam que ela não seria a mais forte. Então, por que obstinar-se?

Nesse ínterim correu o boato de que o grão-eunuco ia viajar. Ia ver suas tartarugas e as velhas sultanas. Sua ausência não passaria de um mês, mas, ao ser informada, Angélica soltou um grande suspiro de alívio.

Era absolutamente necessário aproveitar aquela ausência para fugir. As coisas ficariam facilitadas, e, ausente, o grão-eunuco não poderia ser decapitado. Ela não queria acreditar nessa eventualidade, considerando que, mesmo pela evasão de uma escrava, o negro estava bem demais na corte para ser alvo da cólera de Ismael. Mas não conseguia deixar de pensar nas predições do astrólogo de Leila Aícha: "Ele leu nos astros que você será a causa da morte de Osman Ferradji..."

Havia que evitar isso a todo custo! A ocasião se apresentava: ele partia.

O grão-eunuco foi despedir-se dela e recomendar-lhe muita prudência. Era voz corrente e aceita que ela ainda estava muito te e aterrorizada; portanto, Mulay Ismael esperaria. Era um ir Que ela, então, não estragasse tudo envolvendo-se com Leila Aí-cha, que só queria prejudicá-la! Dentro de um mês ele regressaria, e aí as coisas se arranjariam. Ela podia confiar nele.

- Tenho confiança em você, Bei Osmarí?

Depois que ele se foi, Angélica, por intermédio de Esprit Cavaillac, resolveu convencer os cativos a antecipar o dia da partida. Colin Paturel mandou responder que era preciso aguardar as noites sem lua. Mas aí havia o risco de o grão-eunuco talvez já ter regressado. Ela mordia os dedos de impaciência. Conseguiria fazer aqueles cristãos bárbaros entenderem que ela corria contra o relógio, contra a marcha inexorável do destino? Uma luta monstruosa contra o oráculo que queria que ela fosse a causa da morte de Osman Ferradji! Uni combate titânico contra os astros! E em seus pesadelos via -o eéu estrelado desabar rodopiando sobre ela e esmagá-la.

Finalmente Esprit Çavaillac lhe disse que o rei dos cativos se rendia às razões dela. Era melhor para ela que sua fuga ocorresse na ausência do chefe do serralho. Para os outros o luar acrescentaria um risco suplementar, mas tanto pior! Livre das correntes, Colin Paturel daria a volta à alcáçova, matando as sentinelas para penetrar na segunda e depois na terceira muralha. Ela teria de atravessar os bosquezinhos de laranjeiras e um p"átio que levava até a porta. Só restava rogar a Deus que naquela noite houvesse nuvens para velar o último quarto da lua, ainda indiscreto demais. Marcou-se a data.

Na noite prevista, Leila Aícha enviou-lhe pós para que Angélica misturasse à bebida de suas criadas e guardiãs.

Angélica ofereceu café a Rafai, que foi informar-se de sua saúde. Na ausência do grão-eunuco, era ele o responsável pelo serralho. O pussah gostava de assumir, em relação às pensionistas, os ares entre familiares e protetores do grã-eunuco. Essa atitude, tão natural à personalidade principesca de Osman Ferradji, não combinava em absoluto com o gordo Rafai. Provocava zombarias, de modo que ele gostou de ver Angélica humanizar-se e tomou até o fundo a xícara de café que ela lhe ofereceu. Depois -do quê, foi unir seus roncos aos das criadas.

Angélica esperou um tempo que lhe pareceu infinito. Quando ouviu o chamado de uma ave noturna, desceu pe ante pe ate o pátio. Leila Aícha estava lá, ladeada pela sdhueta frágd de Daisy. A inglesa carregava uma lâmpada a óleo. No momento a luz era desnecessária, pois infelizmente a lua brilhava como uma vela latina vogando no oceano da noite, num céu absolutamente sem nuvens.

As três mulheres atravessaram o jardinzinho e enfiaram-se por uma comprida galeria abobadada. De vez em quando Leila Aícha emitia um som estranho, uma espécie de arrulho rouco, e Angélica entendeu que ela chamava a pantera.

Chegaram sem obstáculos ao fim da passagem abobadada. Tomaram outras galerias com colunas que cercavam outro jardim com uma doce fragrância de rosas. De repente a negra estacou.

-        Ela está aqui! - cochichou Daisy, crispando a mão sobre o braço de Angélica.

O animal saiu das moitas, focinho no chão, rins para cima, na postura de um gato enorme que vai pular sobre um camundongo.

A sultana negra estendeu-lhe uma carcaça de pombo, continuando com seu arrulho selvagem. A pantera pareceu acalmar-se. Aproximou-se, e Leila Aícha passou-lhe uma corrente pela coleira.

-        Fiquem dois passos atrás de mim - disse às duas brancas.

Reiniciaram a marcha. Angélica espantava-se de não encontrar eunucos com mais frequência, mas Leila Aícha escolhera para passar a ala das ex-concubinas, as abandonadas, que nunca eram vigiadas com rigor excessivo. Na ausência do chefe do serralho, a disciplina relaxava-se ainda mais, pois os eunucos preferiam reunir-se para jogar intermináveis partidas de xadrez.

Criadas sonolentas viram-nas passar e curvaram-se diante da sultana das sultanas.

Subiram uma escada que levava às muralhas. Era o ponto mais difícil de atravessar. Seguiram o caminho da ronda, que dominava de um lado o abismo escuro dos jardins à volta da mesquita, cuja cúpula de telhas verdes se via cintilar, e do outro uma praça de areia deserta, onde às vezes se erguia o mercado interno da alcáçova, verdadeira cidade fortificada. Mulay Ismael construíra um palácio dentro do qual poderia resistir durante meses às possíveis revoltas da cidade que o rodeava.

Ao cabo do caminho da ronda havia um guarda, em pé sobre um dos merlòes, de costas, vigiando a praça, a lança erguida para as estrelas.

As três mulheres se aproximaram, deslizando no escuro dos merlòes. A alguns passos do eunuco imóvel, Leila Aícha fez um gesto brusco. Atirou na direção dele a carcaça de pombo que ainda não dera à pantera.

A fera deu um pulo para a frente para agarrar seu bocado. O guarda voltou-se, viu o animal sobre ele, soltou um grito de terror, vacilou e caiu no vazio. Ouvíu-se o ruído surdo de seu corpo esmagando-se ao pé das muralhas.

As mulheres esperaram, retendo o fôlego. Outros guardas seriam atraídos pelos gritos do companheiro? Nada aconteceu.

Leila Aícha repetiu a estratégia para acalmar a pantera e depois segurou de novo a extremidade da corrente.

Em seguida penetraram em outro prédio, agora desabitado. Ia-se começar a derrubá-lo para erguer outra construção.

As sultanas levaram Angélica até o alto de uma escadinha íngreme que mergulhava na escuridão de. um patiozinhp profundo como um poço.     

-        É ali - disse a negra. - Você descerá! Verá o pátio e a porta aberta. Se não estiver aberta, esperará. Seu cúmplice não pode demorar. Você lhe dirá que coloque a chave numa pequena fresta do muro, à direita. Amanhã mandarei Raminan buscá-la. Agora, vá!

Angélica começou a descer, ergueu a cabeça, sentiu-se obrigada a agradecer e pensou que nunca vira nada de mais singular do que aquelas duas mulheres que, inclinadas lado a lado, viam-na afastar-se: a loura inglesa, segurando alto a lâmpada a óleo, e a negra sombria, retendo pela corrente a pantera Alchadi.

Desceu. A claridade do candeeiro já não a seguia. Tropeçou um pouco nos últimos degraus, mas imediatamente percebeu o desenho da porta em forma de ferradura que se destacava, iluminada pelo luar. Aberta!... Já! O cativo estava adiantado...

Angélica aproximou-se hesitante e, apesar de si mesma, angustiada no momento de dar os últimos passos.

Ela chamou a meia voz, em francês:

-        É você?

Uma silhueta humana curvou-se para passar pela estreita abertura, obstruindo-a e ao mesmo tempo vedando a claridade, de modo que Angélica não pôde distinguir quem entrava. Reconheceu-o apenas quando ele se ergueu e um raio de lua fez-lhe cintilar o alto turbante de lamé dourado. A sua frente estava o Grão-Eunuco Osman Ferradji.

-        Aonde vai, Firuzê? - perguntou ele com sua voz suave.

Aturdida, Angélica apoiou-se ao muro. Se pudesse, desapareceria dentro do muro. Imaginou que estivesse tendo um pesadelo.

-        Aonde vai, Firuzê?

Era preciso admitir: ele estava ali. Ela se pôs a tremer, já sem forças.

-        Por que você está aqui, oh, por que está aqui? - disse ela.-Estava viajando.

-        Retornei há dois dias, mas não me pareceu necessário espalhar a notícia.

Diabólico Osman Ferradji! Tigre açucarado e implacável. Estava parado entre ela e a porta que seria sua salvação. Ela torceu as mãos postas, num gesto desesperado.

-        Deixe-me fugir - suplicou, ofegante. - Oh, deixe-me fugir, Bei Osman. Apenas você o pode. É todo-poderoso. Deixe-me fugir!

A expressão do grão-eunuco foi de ultraje, como se tivesse ouvido um sacrilégio.

-        Jamais uma mulher fugiu de harém cujo guardião fosse eu -afirmou, feroz.

— Então não diga que quer salvar-me! - gritou Angélica, encolerizada. - Não diga que é meu amigo. Bem sabe que aqui não tenho outro destino senão a morte!

— Não lhe pedi que confiasse em mim?... Oh, Firuzê, por que sempre quer forçar o destino?... Escute, rebeldezinha, não foi para ir ver as tartarugas que parti, mas para tentar encontrar seu antigo amo.

— Meu antigo amo? - repetiu Angélica, sem entender nada.

— O Rescator, aquele pirata cristão que a comprou por trinta e cinco mil piastras em Cândia.

O mundo começou a girar em torno de Angélica. Como a cada vez que se lançava esse nome diante dela, sentia a mesma perturbação feita de esperança e remorsos, e já não sabia o que pensar.

-        Consegui alcançar um dos navios dele que fazia escala em Agadir, e, como o capitão me informou onde ele se encontrava, pude corresponder-me com ele com duas mensagens de pombos-correios... Ele vem... Vem para buscá-la!

-        Vem para me buscar? - repetiu ela, incrédula.

E pouco a pouco o peso que lhe oprimia o peito aliviou-se. Ele vinha buscá-la... _

Sem dúvida que era um pirata, mas pelo menos era um homem de sua raça. Não lhe inspirara o menor receio. Bastaria que aparecesse, negro e magro, pousasse a mão sobre sua cabeça tão humilhada agora, para que o calor da vida lhe voltasse. Ela o seguiria e lhe perguntaria: "Por que me comprou por trinta e cinco mil piastras em Cândia? Achou-me tão bela ou leu nos astros, como Osman Ferradji, que fomos feitos para nos unir?"

O que responderia ele? Ela lembrava-se de sua voz difícil e rouca, que lhe causara um arrepio. No entanto, era um desconhecido. Ainda assim, ela sè,via chorando contra o peito dele quando a tivesse levado para longe dali, bem longe. Quem era ele? Era o viajante que vinha do-horizonte carregado de suprimentos para os tempos futuros. Ele a levaria...

-        É impossível, Bei Osman. É loucura de sua parte! Como se Mulay Ismael pudesse consentir nisso! Ele não- é desses que soltam facilmente apresa. O Rescator terá de me comprar novamente pelo preço de um navio?

O grão-eunuco balançou a cabeça. Começou a sorrir, e ela viu-lhe aparecer nos olhos aquele olhar cheio de serenidade e bondade que ela imaginara perceber na primeira vez em que o vira, quando o tomara por um mago.

-        Não faça mais perguntas, Sra. Turquesa - disse ele, feliz. - Fique sabendo apenas que as estrelas não mentiram. Mulay Ismael terá mais de um motivo para aquiescer ao pedido do Rescator. Eles se conhecem e devem inúmeras obrigações um ao outro. O tesouro do reino não poderia passar sem o pirata cristão, que o alimenta de prata em troca da bandeira do Marrocos. E há mais. Nosso sultão, tão respeitoso das leis, só poderá inclinar-se. Pois é aí que o dedo de Alá intervém, Firuzê. Ouça. Esse homem, outrora, era...

Ele parou e soltou uma espécie de soluço.

Angélica, que o fitava, viu-lhe os olhos arregalarem-se, encherem-se da expressão atónita e horrorizada que ele assumira naquela noite no topo da Torre Mazagreb.

Soltou outro soluço. De repente um fluxo de sangue jorrou-lhe" da boca, salpicando a roupa de Angélica, e ele caiu de borco, com os braços em cruz e o rosto contra o solo.

Atrás dele apareceu um gigante louro e barbudo, vestido de andrajo, e cuja mão-segurava o punhal com que acabara de estocar.

- Pronta, pequena? - perguntou Colin Paturel.

CAPÍTULO XXIV

Nos jardins do renegado

Atarantada, Angélica passou por sobre o cadáver do grão-eunuco. Atravessou a porta, jjue o cativo fechou cuidadosamente, como se fosse o guardar.

Permaneceram imóveis por um .instante, à sombra da muralha, tendo à frente o rasgão branco da praça qúe tinham de cruzar. A mão de Colin Paturel agarrou o braço da jovem por sob a roupa e com um pulso que não permitia réplicas conduziu-a como se estivessem ambos atirando-se na água. Com algumas passadas chegaram ao outro lado, de novo protegidos pela escuridão. Esperaram. Nenhum ruído. O único guarda que poderia tê-los notado era aquele que há pouco caíra do alto da muralha.

Franquearam a porta abobadada. Angélica tropeçou em algo mole: um corpo estendido. O de outra sentinela que o punhal do cativo executara ao penetrar na última fortaleza. Depois sentiram um odor nauseabundo. Um monte de imundícies formava uma colina nas proximidades da alcáçova. Angélica teve de enfiar-se por ali, seguindo o guia, que resmungou:

- Nada de melhor para embaralhar as pistas... confundir os odores, para o caso de amanhã soltarem os cães...

Angélica não pedia explicações. Aceitando fugir, já aceitara tudo por antecipação.

Colin Paturel deslizou para as canàletas- viscosas, onde a água corria com a louvável intenção de levar os detritos, mas sem consegui-lo. Era preferível não ver nada. Com dificuldade, aturdidos pelo odor, patinharam, avançando às apalpadelas. Angélica escorregava, agarrava-se aos farrapos do cativo, que, com uma pressão, a recolocava em pé. Quando ele a amparava, ela se sentia tão leve quanto uma palha. Lembrou-se de que a força do rei dos cativos era lendária. Algumas mulheres do harém tinham-no visto, um dia, torcer o pescoço de um touro, num singular combate em que Mulay Ismael o fizera enfrentar a fera a mão.

— E aqui, acho - murmurou ele. Desapareceu na noite, e ela se viu sozinha.

— Onde você está? - gritou.

— Aqui em cima. Estenda a mão.

Angélica levantou o braço e sentiu-se erguida, alçada no ar e equilibrada sobre o galho de uma grande árvore.

-        Outro bom método para embaralhar as pistas, hein, pequena? Agora, atenção!

Executou uma difícil manobra na qual Angélica desempenhou papel bastante incómodo de pacote que se iça e que se balança sobre a beirada de um muro. Um pouco arranhada, ela se descobriu sobre um monte de mato fresco. Colin Paturel pulara ao lado dela.

— Alguma dor, pequena?

— Não. Onde estamos?

— Nos jardins de Sidi Rodani.

— E um de seus cúmplices?

— Não, pelo contrário. Mas conheço o lugar. Construí a residência de Rodani. As luzes que se vêem brilhar por entre as folhas são do terraço. Passando pelos jardins dele, não se tem de atravessar meia cidade.

O coração de Angélica sentiu-se oprimido por uma náusea que vinha do odor de esgoto que lhe impregnava a roupa. Silenciosíssimos, insinuaram-se por sob a folhagem das oliveiras que acompanhavam o muro do fundo.

De repente ouviram-se sonoros latidos vindos da casa. Colin Paturel estacou. Os latidos redobraram. Os cães excitavam-se, tinham farejado os intrusos.

Através dos galhos não se podiam ver os movimentos que o alerta dos cães provocava ao redor da casa, mas percebiam-se novas luzes, tochas que os criados traziam, vozes árabes que chamavam.

— Dir-se-ia... dir-se-ia que organizam uma batida no jardim - murmurou Angélica.

— Era de se prever.

— Oh! Que vamos fazer?

— Não receie nada, pequena.

Foi nesse instante que Angélica entendeu a ascendência que o normando assumira durante doze anos sobre os milhares, de cativos de todas as nações e de todas as origens que enchiam a senzala de Miquenez. Sua voz! Sua voz persuasiva e pausada, com uma entonação um pouco áspera, uma voz que não temia nada e que refletia exatamente sua natureza física'. Era um homem que não conhecia o pânico, a perturbação interior que torce os intestinos e retesa os nervos.      ;

Ele não tinha de dominar-se. Não podia tremer. As batidas de seu coração conservavam sempre o mesmo ritmo regular em seu peito vasto. Raramente o sangue se lhe acelerava. E era esse extraordinário equilíbrio da carne servida por um espírito modesto e corajoso que acabava por desconcertar- a própria morte. Nele a comparação com a rocha que nada abala ganhava vida.

Mas a situação era trágica. Os criados traziam na correia os dois shloughis pretos que haviam dado o alarma. Seguidos do dono da casa e de inúmeros servos que carregavam tochas, percorriam as aléias. Os cães iam direto para o local onde estavam os fugitivos.

Ouviam-se as vozes áproximarem-se, ouvia-se até o estalido das tochas de resina.. A claridade fluida, numa nuvem de faíscas, tremulava por entre as.ramas.

— Estamos perdidos! - sussurrou Angélica.

— Não tema nada, pequena. Coloque o véu sobre o rosto e, aconteça o que acontecer, não diga nada. Obedeça.

Ele a ergueu nos braços e, com muita autoridade e suavidade, deitou-a na grama. A massa do corpo dele ocultou-lhe a brusca claridade que as tochas projetavam para dentro do pequeno bosque, e a surpreendente sensação ao contato daquele peito musculoso a esmagá-la e daquele rosto barbudo contra o seu dispensou Angélica de outras emoções. Colin Paturel abraçou-a com mais força. Entre seus braços nodosos, ela não passava de um passarinho, que ele poderia sufocar com uma única pressão. Ela perdeu o fôlego, lançando a cabeça para trás para respirar, e não pôde conter um gemido.

Acima deles as exclamações em árabe se entrecruzavam. Imprecações do amo, zombarias dos criados.

O amo se pôs a dar pontapés em Colin Paturel, que resolveu soerguer-se, com um ar matreiro.

-        Oh, José Gaillard - exclamou em francês -, você não será indulgente com dois pobres namorados? Deus sabe que não tenho dez mulheres como você.

Sidi Rodani, que não era outro senão José Gaillard, o renegado francês dos arsenais de guerra, passava por todas as cores. Em sua raiva, estendeu o punho.

— Rumi libidinoso! Vou lhe ensinar a vir fornicar em meus jardins! Quando é que vai pagar por esse seu topete, Colin Paturel? Você esquece que é um escravo, um...

— Sou um homem como os outros e francês como você, ora!... - disse o normando, bonacheirão. - Vamos, vamos, amigo, não vai criar-me um caso por uma garota de não sei que cor que encontrei para abocanhar, eu, um pobre escravo!

— Hei de queixar-me ao rei amanhã mesmo.

— Quer então que meus guardiães sejam decapitados? A mim o rei não dará mais de vinte bastonadas. Ele me conhece. Concede-me algumas regalias e, quando lhe faço um bom trabalho, sabe que não pode recompensar-me melhor do que mandando-me uma de suas mouras efe refugo. Eu não poderia fazer-me de difícil. Não concorda?...

— Mas por que nos meus jardins? - disse Sidi Rodani, indignado.

— A grama é macia aqui, e além disso os companheiros não ficam com inveja.

O renegado ergueu os ombros.

— Os companheiros! Você quer fazer-me acreditar que conservaram o gosto pelas mulheres, mal alimentados e sobrecarregados de trabalho como são? E preciso que seja você, o indestrutível, para se meter em aventuras.

— Bem o disse, amigo. O cura de minha aldeia já me prevenia quando eu tinha dezesseis anos: "Colin, meu filho, é a galanteria que o perderá!" Lembre-se, Gaillard, do passeio que demos ao arribar em Cádiz, quando...

— Não, não me lembro - berrou o renegado -, e quero que suma daqui. Nos meus jardins... Por onde entrou?

— Pela portinha do fundo. A fechadura não tem segredos para mim. Fui eu que a coloquei.

— Bandido! Mando trocá-la amanhã!

Sob uma saraivada de bastonadas, Colin Paturel e Angélica foram acompanhados até a portinha do fundo. Estava fechada, mas os criados, aborrecidos com o incidente que punha em dúvida sua vigilância, não tentaram elucidar o mistério. Abriram. O cativo e a companheira foram atirados para fora sem nenhuma cerimónia. A rua estava escura. Colin Paturel caminhou na frente, ela o seguiu a alguns passos. Atravessaram outro emaranhado de ruelas estreitas que lembravam a Angélica o labirinto em que se perdera em Argel. Seu guia avançava com passo seguro. Mas o labirinto não parecia acabar nunca.

— Quando vamos sair da cidade? - murmurou ela.

— Não vamos sair da cidade.

Ele parou e bateu a uma porta, perto de uma janela com grades pintadas de vermelho, iluminada por uma lanterna.

Depois de lhes falar por um postigo, alguém abriu. Um homem de levita, com grandes olhos aveludados sob o solidéu negro.

-        E Samuel Maimoran, genro do velho Savary - apresentou Colin Paturel. - Estamos no meilah, o bairro judeu. Estamos em segurança.

Os outros fugitivos esperavam no cómodo contíguo. A luz de curiosas lâmpadas venezianas, com yidros coloridos que acentuavam o aspecto pouco atraente dos rostos pálidos e barbudos, Pic-cinino, o Veneziano, o Marquês de Kermoeur, Francisco, o Arlesiano, João d'Harrostegui, o velho Caloéns e Jean-Jean de Paris pareceram a Angélica entes da última espécie humana. Tinha dificuldade em admitir que eles falavam francês. Ficou apoiada junto à porta enquanto o normando relatava a expedição aos companheiros. Ouviu-os gargalharem quando ele contou o incidente nos jardins de Sidi Rodani.

-        Quando perceberem que você estava raptando a favorita titular de Mulay Ismael!... Mais tarde você poderá queixar-se de que só recebe refugo, Colin Paturel!...

Voltaram os rostos risonhos para Angélica, e a expressão deles imobilizou-se. Jean-Jean de Paris exclamou:

-        Ah, ah! Alguma coisa vai mal! Ela está ferida?

-        Não. O sangue é do grande demónio que esfaqueei por trás.

Abaixando os olhos sobre si mesma, Angélica viu-se manchada de sangue e lama.

Uma jovem judia entrou, com o belo rosto descoberto entre as jóias que lhe pendiam do penteado. Tomou Angélica pela mão e levOu-a para outro cómodo. Uma tina de água quente fumegava. Angélica começou a se desembaraçar da roupa. A judia quis ajudá-la, mas ela recusou. Sentia-se esgotada. Suas mãos cingiram o pano maculado, apertando-o com força contra o peito. Revia o imenso corpo sem vida do mago.

"Não faça mais perguntas, Sra. Turquesa. Fique sabendo apenas que as estrelas não mentiram!..."

Seus nervos não resistiram mais. Ela rebentou em soluços, e as lágrimas correram, inesgotáveis, enquanto Angélica apagava sobre o véu o sangue do Grão-Eunuco Osman Ferradji.

A FUGA

CAPÍTULO XXV

A espera do mellah de Miquenez

A astúcia de Colin Paturel era audaciosa, a mais perigosa que se teria imaginado. Enquanto os guardas se lançavam em perseguição dos fugitivos alnorte e á, oeste, os escravos ficariam entoca-dos três dias, a algumf passos 'de seus torturadores, nas entranhas do mellah. Em.seguida partiriam para.o sul.

Uma cumplicidade de minoria perseguida aproximava judeus e cristãos. O velho Savary criara a ligação. A vontade na obscuridade do mellah, onde seu genro, "aquele rapaz encantador", Samuel Maimoran, colocava com a ponta da pinça esmeraldas e rubis em sua balança de joalheiro, à vontade no pútrido interior das masmorras ou no "acampamento dos escravos, por onde passava, aza-famado e engenhoso, Savary soubera aproximar interesses pecuniários, ambições iguais e atrair infalíveis devotamentos. Colocara em contato Piccinino, o Veneziano, com o pai de seu genro, aquele Maimoran tãp bem na corte, que Mulay Ismael o consultava todos os dias. Maimoran fora o provedor de todas as expedições guerreiras do rei. O árabe, imprevidente por natureza, submetido a impulsos de generosidade passionais, não podia subsistir sem os emprestadores e os cambistas. A cidade muçulmana não teria sobrevivido sem a outra aglomeração erguida contra seu flanco, detestada como um tumor: o mellah, inesgotável reservatório de géneros e de dinheiro vivo, quando a fome e a ruína ameaçavam o povo. Não cessava de "haver indagações sobre o mistério que encerrava cigarras e formigas dentro das mesmas muralhas.

O árabe sabia que o mundo lhe pertencia. A conquista e a pilhagem lhe encheriam os cofres quando estivessem vazios. O judeu não tinha esperança senão a poupança, e o pressentimento de maus dias o levava a prever, prever sempre. Às primitivas transações comerciais de troca praticadas pelos africanos, ele opunha seu conhecimento de cotações em bolsas, e com viagens incessantes se mantinha a par das flutuações comerciais do mundo inteiro.

Entre um e outro daqueles dois mundos opostos e soldados pela força da necessidade havia um combate intenso, um conflito de poder, surdo, terrível e inevitável. O drama se exacerbava. Um dia tudo explodia. Os muçulmanos, de cimitarra em punho, invadiam o mellah. A força do sabre triunfava sobre a do dinheiro... e tudo recomeçava.

Não era prudente para um judeu estar na cidade árabe depois de caída a noite. Também não era bòm que um muçulmano se retardasse no mellah.

Refugiados ali, os sete cristãos se achavam protegidos pelas comportas de vários séculos de ódio e lutas ferozes. Os judeus de Mi-quenez estavam naquele ponto, atingido uma ou duas vezes por geração, em que triunfavam, tendo nas mãos as maiores fortunas da cidade, retendo Mulay Ismael pelos fios emaranhados de obrigações diversas. Chegavam a sonhar que podiam permitir-se tudo, até cometer, em relação ao rei, atos tão loucos quanto o de dar asilo a escravos fugitivos - uma satisfação interior que a alta personalidade Zacarias Maimoran saboreava em silêncio, ao se dirigir à alcáçova e se prosternar diante do sultão espumejando de raiva, e ouvindo-o falar de Colin Paturel e dos outros desaparecidos. Mas ele enviara guardas em todas as direções. Seriam trazidos de volta a ferros e morreriam em meio a suplícios atrozes. Zacarias Maimoran acariciava a longa barba e meneava a cabeça.

- Fará bem, senhor! Compreendo sua cólera.

Mulay Ismael tinha um olhar penetrante e quase adivinho, mas sabia que jamais penetraria os pensamentos daquele judeu, que já fizera a fortuna de seu pai, Mulay Archy. Para ele era causa de mal-estar, de cólera contida, que inchava no fundo de sua alma tumultuosa como germe de tragédia. "Um dia!", prometia-se ele, encarando os muros fechados do mellah, "um dia!..."

Na residência do filho de Zacarias, Samuel, passaram-se três dias lentos e pesados para os cativos. Na noite do segundo dia houve um alvoroço na ruela, cavalgadas e coices chocando-se na estreiteza das paredes. A mulher de Samuel, Raquel, erguendo-se para olhar pela grade vermelha, murmurou num jargão meio francês, meio árabe:

-        São dois guardas do sultão, negros. Vão à casa de Jacó e Aarão, os salgadores de cabeças...

Os guardas iam avisar aos cuidadosos artesãos que preparassem seus tonéis de salmoura. O rei, em sua cólera pela evasão dos cativos, decapitara com a própria mão mais de vinte guardas. Só parara quando se vira sem forças. As cabeças seriam expostas nos cruzamentos da cidade, depois de serem mergulhadas no sal pelos cuidados de Jacó e Aarão Leion ou de algum outro confrade.

Vil tarefa, entregue apenas aos judeus, donde o nome do bairro onde se realizava a salga impura: mellah, da palavra "mehl", "sal".

Um vizinho veio trazer as notícias, aos sussurros. Os soldados lançados no encalço dos fugitivos ainda não tinham retornado. Sem dúvida tremiam por terejn de voltar com as mãos vazias. E, segundo tudo indicava, ainda nlo correra a notícia da fuga de uma escrava do harém e do assassinato do grão-eunuco. Até onde irá a cólera do rei!... Mais trabalho em perspectiva para jacó e Aarão Leion.

Angélica aguardava, sentada perto de judias tagarelas, enfeitadas como cofres com suas jóias de ouro puro incrustadas de gemas e seus cetins verde-maçã, vermelhos, laranja ou limão, seus véus listrados, entre os quais seus olhos negros e sua tez ambarina tinham a mesma cintilação de riqueza. Perto dos homens, com ar de gatos magros em suas levitas pretas, elas eram o brilho, a opulência, assim como as crianças, belíssimas e delicadas, também elas vestidas de todas as cores. Sarah, a mãe, Raquel, Ruth, as filhas, Agar, a nora, o pequeno Joas, Josué e a boneca maravilhosa, Abigail.

Com Angélica, ela dividia o pão ázimo, o arroz com açafrão, o bacalhau português e os pepinos salgados. Mas os pepinos e o bacalhau não lhe desciam pela garganta. A atenção de Angélica concentrava-se nas exclamações da rua, no ranger da carroça que trazia as cabeças.

-        Belek! Belek! Fissa! Atenção! Atenção! Depressa!

Os próprios guardas não gostavam de demorar-se no mellah. Finalmente se afastaram, para voltar no dia seguinte com outras cabeças...

Raquel pousou uma mão tranquilizadora sobre a de Angélica e sorriu-lhe. Por que aqueles homens e mulheres aceitavam tais riscos?, perguntava-se ela. Pois a espada suspensa sobre sua cabeça também pendia sobre a dos shudi, os judeus, sobre o solidéu preto do pacífico joalheiro, sobre a. cabeleira encaracolada da pequena Abigail, adormecida entre os joelhos da mãe, com os discos de ouro de seus brincos a acariciar-lhe as faces redondas de bebe de dois anos.

-        Vai tudo bem - dizia Raquel.

Aquelas eram quase as únicas palavras francesas que sabia. E, quando as dizia, a luz alegre de seu olhar e seu sorriso muito fino lembravam de imediato a Angélica que aquela mulher estrangeira era filha do velho Savary.

Na verdade ela não tivera tempo de chorar muito pelo velho Savary. Percebia que ainda o esperava. Não se imaginava pelas estradas sem ele caminhando a passos curtos e apressados, infatigável, prodigalizando-lhe conselhos e farejando no vento "o odor das viagens felizes".

— Maldito seja Mulay Ismael! - exclamou ela em árabe.

— Maldito! Cem vezes seja maldito Mulay Ismael! - responderam as judias num murmúrio de oração.

Na segunda noite veio o artesão Cavaillac, acompanhado de outro cativo, um cavaleiro de Malta, o Sr. de Méricourt. Contaram que Miquenez inteira vivia como que esmagada pelo peso de uma tempestade. Tivera-se afinal a revelação do escândalo inverossímil: uma cativa fugira do harém do sultão! Descobriram o corpo do grão-eunuco assassinado. O que dizia, o que fazia Mulay Ismael? Permanecia prostrado, a testa colada no chão.

-        Eu tinha apenas dois amigos próximos ao meu coração - repetia ele: - Osman Ferradji e Colin, o Normando. Num único dia perdi a ambos!

Não falava da mulher. Seu pudor de árabe opunha-se a isso. Mas ninguém duvidava de que o despertar de sua dor seria terrível. Que gestos, que massacres poderiam consolar o desespero daquele estranho coração?...

-        É preciso ficar aqui mais um dia - disse Colin Paturel.

Os outros tinham a testa úmida de suor. Já não podiam aguentar, esperando assim horas a fio no silêncio do mellah. Mulay Ismael acabaria por senti-los através das paredes.

-        Mais um só dia - repetiu o normando com sua voz tranquila.

E a calma restabeleceu-se no espírito dos fugitivos. A força do normando confundia os eflúvios reveladores, assim como o sangue-frio do judeu Maimoran, seu autodomínio excepcional neutralizavam o faro do amo sanguinário. Ele os procurava nas estradas do deserto que levava a Mazagran e enviava mensageiros para prevenir os xeques das aldeias de que se os fugitivos não lhe fossem devolvidos em breve os xeques responderiam por isso com a própria cabeça.

Angélica ouviu em seguida o rei dos cativos dialogar com o cavaleiro de Malta, o Sr. de Méricourt. Depois da fuga de Colin Pa-turel, o cavaleiro, um homem de uns cinquenta anos, ficaria encarregado de executar entre os cativos a tarefa do normando: manter a ordem, fazer justiça, acertar as disputas.

-        Pode contar com este - dizia Colin Paturel -, mas desconfie daquele. Nunca deixe católicos e cismáticos lado a lado...

Depois, Cavaillac e o Sr. de Méricourt se foram, de volta ao acampamento dos escravos.- Tinham conseguido que os incumbissem de uma missão no bairro judeu-, mas não podiam demorar-se para não atrair suspeitas. Prometeram retornar para dar notícias no dia marcado para a partida.

Passou-se mais um dia. Na manhã seguinte, Angélica estava só no quarto das mulheres quando um de seus futuros companheiros de evasão, o Marquês de Kermoeur, foi pedir-lhe que pusesse um pouco de água fervente do samovar numa tigela. Ele aproveitava o lazer forçado para se barbear, cuidado que muito raramente pudera ter e sempre a golpes de caco de garrafa, durante os seis anos de cativeiro.

-        Feliz é você, cara criança, de não conhecer preocupações como essa! - disse ele, roçando-lhe a face com um dedo. - Meu Deus, como sua pele é macia!

Angélica lhe pediu que segurasse a tigela com as duas mãos, para não correr o risco de queimar-se enquanto ela derramava água. O cavalheiro bretão a olhava com interesse.

-        Que delícia contemplar finalmente um rosto francês tão belo! Ah, minha bela, não é por prazer que você me vê em traje tão lamentável! Mas, paciência! Assim que estivermos em Paris, mando fazer uma rhingrave de cetim vermelho, que me persegue os sonhos de pobre cativo!

Angélica caiu na risada.

— Faz muito tempo, cavalheiro, que os elegantes não usam o iaiote da rhingrave.

— Ah, não? E o que usam?

— O calção apertado um pouco acima do joelho e o casaco desando ao mesmo comprimento e com muita roda.-

— Explique-me direito - suplicou o marquês, sentando-se perto dela no colchão de almofadas.

De boa vontade ela lhe deu alguns detalhes. Com uma peruca, ele se pareceria com o Duque de Lauzun. Um Lauzun vestido com a camisa dos forçados e cuja espinha conhecera com frequência as bastonadas dos chauchs.

-        Dê-me sua mão, minha pequena - disse ele, de repente.

Ela estendeu-lhe a mão, que ele beijou. Depois olhou a jovem com espanto.

— Mas sem dúvida alguma você esteve na corte! - exclamou. - E preciso ter-se o hábito dos mil beija-mãos da Grande Galeria para fazer esse gesto com tanta leveza. Eu até apostaria que você foi apresentada ao rei. Não é verdade?

— Senhor, que importa!

— Misteriosa beldade, como você se chama? Por que estranho acaso caiu nas mãos destes piratas?

— E você, cavalheiro?

— Marquês!

A voz de Colin Paturel interrompeu-os. O gigante estava na soleira da porta, perscrutando a penumbra com seus olhos azuis, claridade incisiva sob suas sobrancelhas espessas.

Kermoeur respondeu:

-        Sim, Majestade.

Sem ironia. Os cativos haviam adquirido o hábito de chamar assim aquele que durante anos fizera reinar a ordem em seu mundo heterogéneo e feroz. Com um tom de afeição entre os que o admiravam, e de receio entre os que o temiam, o título lhes era familiar. Tinham necessidade de sentir-se comandados, sustentados, e Deus sabia a audácia de Colin Paturel como porta-voz de seus irmãos cativos! Conseguira para eles um lazareto onde os médicos cuidavam dos doentes, melhores rações de comida, vinho, aguardente, tabaco e folga nas quatro grandes festas cristãs... e quando viessem os padres redentoristas. Esta última iniciativa fora um fracasso parcial, mas abria a porta para outras negociações. O Marquês de Kermceur admirava com sinceridade Colin Paturel e sentia um prazer singular em obedecer-lhe, pois em sua opinião era um chefe inteligente, coisa que nem sempre encontrara em sua carreira de oficial da marinha real. Jovem oficial de vinte e dois anos ao ser capturado, "servira" sob as ordens do rei dos cativos como guarda-costas, pois aquele espadachim de raça manejava a espada e o espadagão como nenhum outro'em toda a senzala, e Colin obtivera para ele o direito de portar a espada sobre os andrajos de escravo. Ao saber que o chefe tentaria a fuga pela terceira vez, o marquês juntara-se a ele. Colin, o Normando, partia com todo o seu estado-maior. Voltando-se para a outra sala, chamou:

-        Companheiros, venham até aqui!

Os cativos entraram e se alinharam a sua frente. Kermceur tomou seu lugar entre eles.

-        Companheiros, amanhã à noite nos poremos a caminho. Mais tarde lhes darei as últimas .recomendações, mas antes há uma coi

sa que gostaria de dizer-lhes. Seremos sete fugitivos, seis homens... e uma mulher. Essa. mulher é sobretudo um embaraço para nós, mas no final das contas ela bem que mereceu que a ajudemos a recobrar a liberdade. Mas, atenção: se queremos chegar a bom porto, temos de estar preparados. Vamos forçosamente passar fome, sede, cansaço, enfrentar o sol do deserto e o medo. Que pelo menos não tenhamos de enfrentar o ódio entre nós... O ódio daqueles que são obrigados a viver juntos" e que cobiçam o mesmo objeto... Creio que me compreenderam... Nada disso, meus amigos, ou estaremos todos perdidos! Esta mulher - disse ele, apontando Angélica - não é para nenhum de nós, não pertence a ninguém... Está arriscando a sorte exatamente como nós, é tudo.

A nossos olhos não é uma mulher, é um companheiro. O primeiro que se der ares de fazer-lhe a corte ou que lhe falte com o respeito levará uma lição, e vocês sabem como - disse, mostrando os punhos nodosos. - E, se reincidir, nós o julgaremos segundo nossas leis, e ele servirá de pasto aos abutres do deserto...

"Como fala bem e como é duro!", pensou Angélica.

Tanto observara Colin Paturel do alto da ameia que o conhecia melhor do que ele a ela. Era-lhe familiar, mas, ao vê-lo de perto, arrepiava-se e sentia medo dos vestígios do martírio inscritos em sua carne, os sulcos negros e profundos de queimaduras nas pernas e nos braços, chagas mal cicatrizadas nos pulsos e nos tornozelos lacerados pelos ferros, e principalmente aquelas, emocionantes, que lhe marcavam as palmas e o dorso das mãos, rasgadas nos pregos da Porta Nova. Ainda não tinha quarenta anos, mas suas têmporas já grisalhavam, único sinal de fraqueza traído por aquele temperamento de rocha.

-        Estão de acordo? - perguntou ele, depois de deixar um instante para reflexão.

— Estamos de acordo - responderam todos em coro. O marquês, porém, colocou uma restrição:

— Até que estejamos em território cristão.

— Isso é evidente, garoto! - exclamou Colin, jovial, dando-lhe uma palmada no ombro. - Depois disso, cada um por si, viva a liberdade, todas as liberdades! Ah, meus amigos, que farra vamos fazer!

— Eu vou comer três dias seguidos - disse Jean-Jean de Paris com os olhos arregalados.

E saíram, dizendo uns aos outros o que fariam na primeira hora em que se vissem ao abrigo das muralhas portuguesas de Maza-gran ou das espanholas de Ceuta.

Colin Paturel permaneceu no aposento e aproximou-se de Angélica.

— Ouviu o que eu disse? Também está de acordo?

— Certamente. Agradeço-lhe, senhor.

— Não foi apenas por você que falei. Por nós também. É uma catástrofe se a discórdià-se infiltra numa expedição como a nossa. E quem tem o pomo da discórdia desde que o mundo é mundo?... A mulher! Como dizia o meu cura de Saint-Valéry-en-Caux, "a mulher é de chama, o homem* de estopa, e o diabo sopra". Eu não estava de acordo em levá-la. Vamos levá-la por causa do velho Savary. Os judeus nem por dinheiro fariam alguma coisa sem você. São difíceis de se abrir, mas quando adotam alguém consideram-no como um dos seus. O velho Savary era assim. Os judeus o adotaram, e ele queria a todo custo que a tirássemos do harém, portanto foi preciso executar-lhe a vontade suprema... Agora estou de acordo. Eu gostava dele, do velho Savary... Um homenzinho maravilhoso. E que. sabia das coisas! Mil e cem vezes mais do que nós todos reunidos! Bom, nós a levaremos. Mas a você devo pedir que se mantenha em seu lugar. Você é uma mulher, e uma mulher que viveu. Isso se vê pela sua maneira de estar com os homens. Então, não se esqueça de que os sujeitos que se encontram aqui estão quase privados de mulheres há anos. Não vale a pena lembrar-lhe o que eles perderam. Fique no seu canto e conserve o véu sobre o rosto, à maneira moura. A moda não é tão tola assim... Entendido?

Angélica estava embaraçada. Ao mesmo tempo que reconhecia que ele tinha razão, no fundo, o tomem que a prevenia não lhe agradava. Estaria imaginando que ela achava muito inspiradores aqueles cristãos barbudos, pálidos e fedorentos? Nem por uma fortuna quereria um deles! Como lhe pediam que mantivesse distância, ela manteria, de bom grado. Respondeu, um tanto irónica:

-        Sim, Majestade.

O normando semicerrou os olhos.

— Já não é preciso chamar-me assim, pequena. Depus a coroa e cedi-a ao Cavaleiro de Méricourt. Doravante sou Colin Paturel, natural de Saint-Valéry-en-Caux. E você, como se chama?

— Angélica.      

Um sorriso iluminou o rosto hirsuto do chefe dos cativos, e ele a examinou com atenção.

-        Ah, é?... Pois continue assim!

O Cavaleiro de Méricourt retornara.

-        Creio que ã hora é boa para vocês - explicou. - Por acaso ou imaginação,"avistaram escravos fugitivos na estrada de Santa Cruz. Todas as.atenções se voltam para lá. É o momento de agir.

A mão de Colin Paturel coçou a guedelha loura, e uma expressão de pânico crispou-lhe o rosto rude.

— E que, de repente, me pergunto se devo... Oh, cavaleiro, quando penso em todos esses pobres coitados que permanecerão escravos e que estou abandonando...

— Não se censure de nada, meu irmão - disse suavemente o Cavaleiro de Méricourt -, era tempo de você partir, caso contrário seria a morte que o levaria de seus companheiros.

— Quando estiver em território cristão - disse Colin Paturel - , informarei sua situação aos cavaleiros de Malta, a fim de que o resgatem.

— Não, é inútil. 

— O que está dizendo?

— Não faço questão de deixar Miquenez. Sou monge e padre, e sei que meu lugar é aqui, cativo dos infiéis.

— Você acabará na estaca.

— Talvez. Mas ensinam-nos em nossa ordem que o martírio é a única morte digna de um cavaleiro. E agora, adeus, caríssimo irmão...

— Adeus, senhor cavaleiro.

Os dois homens abraçaram-se. Depois o Sr. de Méficourt abraçou cada um dos seis outros cativos que iam tentar a difícil aventura da evasão. Dizia-lhes os nomes a meia voz, como para gravá-los no coração.

-        Piccinino, o Veneziano, Jean-Jean de Paris, Francisco, o Arlesiano, o Marquês de Kermoeur, Calqèns, o Flamengo, João d'Harrostegui, o Basco.

Diante de Angélica, inclinou-se em silêncio. E todos saíram para a ruela escura.

CAPITULO XXVI

Primeira etapa - O lago de caniços

Os cristãos cobriram a parte inferior do rosto com as abas do albornoz. Estavam todos vestidos à mourisca, com o rosto barbeado e esfregado com extratõ de-nozes para escurecê-lo. Só Jean-Jean de Paris, o ruivo, usava uma levita e um solidéu negro de judeu. Angélica, envolta èm tantos véus quantos eram necessários, com o haík bem apertado abaixo dos olhos, bendizia o exclusivo ciúme dos mouros, que lhe permitia dissimular-se assim.

- E baixe os olhos o mais possível - recomendara-lhe Colin Paturel. - Mouras com olhos como os seus não se encontram pelas esquinas!       

Não lhe dissera que Mulay Ismael lançara um comando especial à caça da mulher "de olhos verdes". Ele próprio já tinha embaraços suficientes com seus olhos azuis e a estatura. Em todo o Marrocos, era comum citar-se que apenas dois homens possuíam a altura imponente de seis pés e doze polegadas: Osman Ferradji, o grão-eunuco, e Colin Paturel, o rei dos cativos.

Assim, ele resolvera passar por um comerciante que possuía alguns bens e por isso podia viajar de camelo. Angélica, sua mulher, seguiria de mula. Os outros, criados, e Jean-Jean de Paris, seu intendente judeu, iam a pé, carregando lanças, arcos e flechas, que compunham o armamento de uma pequena caravana numa época em que os mosquetes eram raros e reservados ao rei e seu exército.

Numa escuridão profunda, iluminada apenas por uma lanterna, todos tomaram seus lugares. Maimoran murmurava as últimas recomendações. Em Fez, Rabi, seu irmão, os aguardaria perto do riacho Cebon. Repousariam em sua casa, e ele lhes daria um guia seguro para prosseguir o trajeto até Xeuen, onde seriam confiados a outro metadore, cuja atividade permitia que entrasse com frequência em Ceuta para fazer negócios. Esse metadore os faria atravessar o acampamento dos mouros que sediavam a cidade, escondê-los-ia nos rochedos e iria avisar o governador da cidade, que enviaria chalupas ou uma escolta de soldados para buscá-los. Recomendou-lhes ainda que não se descuidassem da própria conduta, que não esquecessem de se prosternar vinte vezes na direção de Meca e principalmente, quando tivessem de atender aos apelos da natureza, que não "vertessem água" em pé, pois isso bastaria, para quem os observasse de longe, para denunciá-los como cristãos. Pequenos detalhes que tinham uma grande importância. Felizmente todos os fugitivos falavam árabe perfeitamente e conheciam os usos da terra. Angélica, na qualidade de moura, só precisava calar-se, calar-se sempre.

O camelo avançou a grandes passadas bruscas. Seguiram pelo estreito túnel das ruas num silêncio tão espesso quanto a noite.

"Se a noite pudesse durar para sempre!", pensava Angélica.

Um sopro de ar mais fresco pareceu trazer na direção deles um odor acre de fumaça. Ela notou que as paredes lisas do mellah pareciam ter-se apagado, substituídas pelas choupanas de bambu e caniços. As portas estavam abertas, deixando ver a flor vermelha de um pequeno fogo cuja fumaça escapava através das folhas secas dos telhados. Em torno do fogo havia formas acocoradas. Cães começaram a latir atrás dos fugitivos. Estes sabiam que agora atravessavam as duas ou três mil cabanas da guarda negra do rei, que formavam daquele lado, à saída do mellah, uma espécie de subúrbio.

Vozes murmurando roucamente ergueram-se, e sombras aproximaram-se. Mas não havia luz alguma, e os negros se orientavam facilmente na escuridão. Jean-Jean de Paris explicou que seu amo, Si Mohammed Rachid, comerciante em Fez, retornava a casa, viajando de noite para evitar os ardores do sol. O corajoso ta-beliãozinho imitava até o sotaque particular dos judeus, e os negros se deixaram lograr.

O camelo ia numa lentidão desesperadora, enquanto os cães lhe latiam nos cascos.

Cabanas e mais cabanas!... E o odor penetrante do esterco queimado e do peixe seco grelhado no óleo das panelas...

Finalmente, ultrapassado o primeiro perigo, viram-se sobre um caminho bem traçado, por onde avançaram por todo o resto da noite. O dia amanheceu, e Angélica olhou com angústia o céu clarear e adquirir matizes maravilhosos de .nácar, ora verdes, ora rosa. Atravessavam uma paisagem pontilhada de oliveiras, mas que parecia seguir para regiões mais desérticas.

Uma cabana, um fonduk, apareceu numa curva do caminho. Angélica não ousava pedir informação alguma. Sua angústia aumentava com o fato de não saber onde se encontrava e de não poder antecipar os obstáculos que os aguardavam e as perspectivas de êxito que se apresentavam. De natureza ativa, enervava-se por estar reduzida ao estado de fardo transportado sobre uma mula. Se o fracasso ou a morte se aproximavam, ela queria ao menos dar-se conta disso. Estavam longe de Fez, onde um judeu devia fornecer-lhes um guia?... A caravana-continuava a avançar. Colin Paturel não vira a cabana? Quanjdo um árabe saiu dela, Angélica precisou de todo o autocoritrolerpara conter um grito.

Mas o homem aproximou-se deles. O chefe fez o camelo ajoelhar e desmontou.

-        Desça, pequena - disse o velho Caloéns a Angélica.

Ela apeou. Os sacos xle víveres foram distribuídos entre eles. Angélica recebeu um saco tão pesado quanto os demais. O Marquês de Kermceur não pôde impedir-se de protestar:

— Carregar assim os ombros de uma frágil mulher!... Isso me choca, Majestade!...

— Haveria algo de mais suspeito aos olhos de um muçulmano do que uma mulher passeando de mãos vazias atrás de guerreiros carregados como asnos? - respondeu Colin Paturel. - Não podemos nos permitir essas tolices. Ainda podemos ser reconhecidos.

E ele próprio acomodou a carga sobre QS ombros da jovem.

-        É preciso desculpar-nos, pequena. Mas não vamos longe. Vamos nos esconder de dia e viajar à noiter

O árabe pegara camelo e mula pelas rédeas e os fizera entrar no fonduk. Piccinino entregou-lhe uma soma em dinheiro; depois os fugitivos retomaram a marcha por um atalho traçado por entre os eixos. Pouco depois, atrás de um montículo, apareceu uma vasta extensão de caniços, rodeando as margens de um rio.

-        Vamos nos esconder o dia todo nos charcos - explicou Colin Paturel. - Cada um se colocará num canto, para que a nossa presença não seja revelada por uma área muito extensa de caniços esmagados. A noite darei o grito do torcaz como sinal e nos en

contraremos à entrada do bosque, acolá. Todos têm um pouco de água e de provisões... Até a noite!

Enfiaram-se por entre os altos talos sedosos e cortantes. O solo era ora esponjoso, ora rachado pela seca. Angélica achou um canto coberto por um pouco de musgo. Deitou-se ali. O dia seria longo. Um calor sufocante reinava naquele pantanal; insetos e mosquitos não paravam de rodopiar à volta dela. Felizmente seus inúmeros véus a protegiam. Tomou um pouco de água e comeu um pão. Acima dela o céu parecia aquecido até tornar-se branco, e as longas folhas agudas dos caniços projetavam sombras negras.

Angélica adormeceu. Quando despertou, ouviu vozes e pensou que os companheiros a procuravam. No entanto, ainda não era noite. O céu continuava cegante como aço ao fogo. De repente ela viu, a dois passos, surgir dos caniços um busto envolto numa djellaba branca. A figura marrom não olhava em sua direção, e ela não lhe distinguia os traços.

"O arlesiano ou o veneziano?", perguntou-se ela.

O homem voltou-se ligeiramente. A tez de pão queimado não devia nada ao extrato de nozes. Era um mouro!

O coração de Angélica parou. O mouro ainda não a notara. Falava a um companheiro que ela não via.

-        Por aqui os caniços não são bonitos - dizia ele. - Há muitos que foram esmagados por algum animal passando. Vamos até a outra margem, e, se não encontrarmos melhores, voltaremos.

Ela os ouviu afastarem-se, sem poder acreditar em tamanha sorte. De repente arrepiou-se toda. Outra voz se erguia, não longe dali. E ela a reconheceu. Era Francisco, o Arlesiano, que se pusera a cantar.

"Imbecil!", pensou ela, fora de si. Ia alertar os mouros, que retornariam. Angélica não ousava correr para fazê-lo calar-se. Finalmente, como não se ouvia nada, decidiu-se a se insinuar suavemente até o lugar onde devia estar o imprudente provençal.

-Quem vem lá? - perguntou ele. - Ah, é você, encantadora Angélica!

Ela tremia de cólera e nervosismo.

-        Está louco de cantar assim? Há mouros que vieram cortar caniços. E um milagre que não o tenham ouvido.

O alegre rapaz empalideceu.

— Maldição! Nem pensei nisso! Senti-melão feliz de repente por estar livre pela primeira vez em oito anos que velhos re-frões da minha terra me vieram à éabeça. Acredita que me ouviram?

— Esperemos que não. E não nos movamos mais!

— Em todo caso, se eram apenas dois... -disse o arlesiano entre dentes.

Tirou a faca da cintura para verificar-lhe o fio. Conservando-a na mão, pôs-se a devanear de noVo.

— Eu tinha uma prometida perto de Aries. Acredita que ela me tenha esperado?  

— Duvido muito - disse Angélica secamente. - Oito anos é muito tempo... Ela agofa deve ter uma enfiada de filhos... de outro homem.

— Ah, acha mesmo? - disse ele, desapontado.

Pelo menos não cantaria mais para exprimir a alegria de seu coração. Calaram-sê, escutando o farfalhar dos caniços. Angélica ergueu os olhos e susteve um suspiro de aljvio. O céu ficava rosado, finalmente. A noite logo cairia, dando-lhes a escuridão cúmplice, com suas estrelas para guiá-los.

— Em que direção caminharemos? - perguntou ela.

— Sul.

— O que está dizendo?

— A única direção na qual Mulay Ismael não se arrisca a estender suas buscas. Quais são os escravos que fogem para o sul, para o deserto? Em seguida dobraremos para o leste, depois subiremos para o norte, passaremos ao largo de Miquenez e Fez, e continuaremos, guiados por um metadore, para Ceuta ou Melville. Naturalmente esse itinerário aumenta a duração da viagem, mas diminui os riscos. O camundongo usa de astúcia contra o gatão. Enquanto ele nos espreita a norte e a oeste, estamos no sul e no leste. Quando retomarmos a direção certa, esperemos que ele tenha se cansado. De qualquer maneira, os que tomam a rota direta nunca chegam ao fim. Podemos, então, tentar o contrário... Não se deve esquecer que os chefes das aldeias respondem com a própria cabeça pela passagem dos cativos cristãos fugidos. Assim, rogo-lhe que creia que eles mantêm uma boa vigilância. Treinaram lebreiros para procurar cristãos. - Psiu! - fez ela. - Não ouviu o chamado?

CAPITULO XXVII

O combate com a águia

As sombras se estenderam, violeta e impregnadas das exalações dos pauis. O suave chamado do torcaz soou várias vezes. Com precauções infinitas, os fugitivos saíram dos esconderijos. Reuniram-se em silêncio, verificarairfse todos estavam presentes e reiniciaram a marcha.

Andaram a noite toda, metade por um bosque, metade por grandes espaços pedregosos onde era difícil orientar-se. Queriam evitar as aldeias e contavam com o canto dos galos e os latidos dos cães para afastar-se delas. As noites eram frescas, mas muitos mouros ainda dormiam no campo, para guardar as colheitas ceifadas ou não recolhidas. O nariz dé Piccinino, o -Veneziano, captava o mais sutil odor de fumaça, e o finíssimo ouvido do Marquês de Ker-moeur, o menor ruído suspeito. Com frequência colava a orelha ao chão. Tiveram de esconder-se num cerrado para deixar passar dois cavaleiros, felizmente não acompanhados de cães.

De manhã, dissimularam-se num bosque e passaram outro dia de espera. A sede começava a atormentá-los, pois a provisão de água esgotara-se. Procuraram no bosque, e pelo coaxar de uma rã encontraram uma poça d'água estagnada, cheia de insetos, mas que beberam, filtrando num pano. Angélica se deitara em seu canto, não longe dos homens, reunidos entre si. Sonhava com o banho das sultanas, com sua transparente água perfumada de rosas e as criadas solícitas. Ah, banhar-se, livrar-se daquela roupa que lhe colava no corpo suado! E aquele torturador de Colin Paturel que ainda a obrigava a manter um véu sobre o rosto!

Angélica entregou-se a meditações profundas sobre o triste destino da mulher muçulmana de pobre condição. Compreendia afinal que o acesso à vida acolchoada do harém representava para ela o êxito máximo, como para a velha Fátima-Mireille. Estava com muita fome. Um estômago acostumado a fartar-se de doces e confeitos não se resigna de um dia para o outro ao pedaço de pão de trigo duro que o chefe distribuía com parcimônia.

Os cativos sofriam menos do que ela. A dieta não era muito diferente da senzala, e poderiam viver com menos ainda. Haviam aprendido com os amos, os árabes, o dom da sobriedade dos herdeiros do deserto, que se contentam com um pouco de farinha de cevada e três tâmaras.

Angélica os ouvia conversar.

— Lembra-se - dizia o basco João d'Harrostegui - daquele dia em que você fez o Paxá Ibrahim, vindo de visita de Sale, comer um pedaço de nosso pão podre? O turco dava-se ares de quem censurava Mulay Ismael. Que lengalenga fizeram por isso!

— Por pouco não estourou uma guerra entre a Sublime Porta e o reino do Marrocos, tudo por causa dos escravos.

— Os turcos não podem mais nada com essa gente - disse Co-lin Paturel. - Com todo o imenso império que têm, chegam a ponto de temer apenas ao nosso fanático Ismael. Quem sabe se ele não fará Constantinopla tremer?

— Nem por isso você deixou de conseguir cuscuz para nós, e principalmente aguardente e vinho.

— Expliquei-lhe que os cristãos não podem trabalhar bebendo água. E como ele fazia questão de ver a mesquita acabada depressa...

Angélica os ouviu rir.

"Quem sabe", pensou Angélica, "se esses homens algum dia terão melhores recordações do que o tempo de cativeiro entre os bárbaros?"

Caída a noite, puseram-se novamente a caminho. A lua começava a mostrar-se, um crescente de prata entre as estrelas. Pela meia-noite, aproximaram-se de uma aldeia, cujos cães latiram. Colin Paturel parou.

— Temos de passar por aqui, senão nos perderemos.

— Vamos pelo bosque à esquerda - propôs o Marquês de Kermceur.

Após deliberarem, entraram no bosque, mas o matagal era tão espesso que, depois de haverem percorrido uma meia légua através de moitas de espinhos, foram obrigados a retornar, com as mãos em sangue e as roupas rasgadas. Angélica perdera a sandália e nào ousava dizê-lo. Os cativos viram-se novamente diante da aldeia. Era preciso tomar uma decisão.

-        Passemos - disse Colin Paturel -, e que Deus nos ajude!

Tào rapidamente quanto puderam e silenciosos como fantasmas, mergulharam pelas ruelas estreitas entre as cabanas de lama. Os cães se esganiçavam, mas ninguém apareceu, exceto nas últimas casas, de onde um homem saiu gritando. Colin Paturel respondeu sem se deter. Disse que iam ver o santon famoso, milagroso, a uma légua dali, Adur Smali, mas que tinham pressa porque ele lhes recomendara que chegassem antes do nascer do sol, caso contrário nào responderia pela eficácia de seus encantos. O mouro não insistiu.

Passado o alerta, os cativos continuaram sem parar, tomando um caminho transversal, para o caso de os habitantes da aldeia, mudando de ideia," resolverem persegui-los. Mas a gente da região não estava acostumada a ver passar para o sul cativos evadidos, e seus cães não eram treinados ã persegui-los.

Puderam parar aos primeiros alvores da aurora.. Angélica deixou-se cair, esgotada. Movida pela apreensão, caminhara como que hipnotizada, e percebia agora que seu pé descalço fora dilacerado pelas pedras pontudas do caminho e começava a doer de maneira intolerável. .

-        Alguma coisa errada, pequena? - perguntou Colin Paturel.

-        Perdi uma sandália - respondeu ela, prestes a rebentar em lágrimas diante de tal catástrofe.

O normando não pareceu perturbar-se. Pousou no chão o saco que carregava e tirou dele outro par de sandálias de mulher.

-        Pedi a Ruth, a mulher de Samuel, que me desse outro par para você, prevendo um incidente desse tipo. A rigor, nós poderíamos caminhar descalços, mas para você era preciso ser previdente.

Ajoelhou-se diante dela com um frasco na mão e, com um tampão de tela, embebeu-lhe as chagas com um bálsamo.

— Por que não me disse antes - perguntou -, em vez de esperar até que o pé ficasse nesse estado?

— Era preciso atravessar a aldeia. Não senti nada. Estava com tanto medo!

O pé machucado na grande mão do normando parecia um objeto frágil e delicado. Ele lhe fez um curativo com pedaços de linho, depois cravou-lhe os olhos azuis, atento.

-        Estava com medo e caminhou assim mesmo? Muito bem, minha amiga. Você é um bom companheiro!

"Compreendo por que o chamaram rei", pensou ela um pouco mais tarde. "Ele assusta e tranquiliza ao mesmo tempo."

Angélica tinha a certeza profunda de que Colin Paturel não podia ser vencido. Sob a proteção dele, ela chegaria a território cristão! Veria o fim daquela viagem, fossem quais fossem os sofrimentos a enfrentar ainda. A paisagem inóspita, o povo selvagem e hostil que a habitava, o perigo no qual avançavam, tão ameaçados quanto um equilibrista na corda bamba, rodeado de vazio - tudo isso se apagaria. Ela desembocaria finalmente ao ar livre. A força de Colin Paturel a levaria a território cristão. Dissimulada por seixos ardentes, adormeceu, o rosto contra a terra tentando encontrar um frescor impossível. Os vestígios do deserto se faziam notar através da imensa extensão salpicada com algumas palmeiras. Mas já não se via nenhum curso de água ou lago. Nos baixios somente reluziam grossas placas de sal, detritos de natrão de um branco de neve. Colin Paturel recolheu alguns pedaços e colocou-os no saco, prevendo as grandes caçadas que contava fazer quando subissem para o norte. Matariam gazelas e javalis, haviam de assá-los num bom fogo, depois de esfregá-los com sal, timo e pimenta selvagem, e os devorariam regados com a água clara dos regatos.

Bom Deus! Onde estava essa água clara? A sede colava-lhes a língua ao palato.

A sede despertou Angélica. Tinha o rosto queimado pelo sol, pois o véu escorregara durante o sono. Sua pele devia estar tão vermelha quanto a carapaça de uma lagosta cozida. Não podia tocá-la, tão sensível estava. Por trás do rochedo que a escondia, ouviu batidas surdas. Era Colin Paturel que, indiferente à sede e ao cansaço, aproveitara a parada para se dedicar a trabalhos pesados. Havia desenraizado um cepo de árvore, talhara-o, polira-o e fizera um porrete enorme, que seu punho se incumbiria de transformar numa arma temível. Agora o experimentava, batendo-o contra o rochedo.

-        Eis uma arma à altura da espada do Sr. de Kermceur - disse ele, triunfante. - Claro, não há quem seja mais hábil do que ele para transpassar uma pança, mas, para fazer entrar ideias sadias na cabeça de um mouro, acho que o meu pedaço de madeira servirá.

O crepúsculo desdobrava-se em véus de fogo. Os fugitivos lançaram um olhar mortiço para as colinas cuja secura o anoitecer esfumava. Um veludo azul acolchoava o fundo dos vales e tinha-se a impressão de ver rios cintilando ali.

— Colin, estamos com sede!...

— Tenham paciência, companheiros! As montanhas que vamos atravessar têm ravinas profundas, onde a sombra preserva as nascentes. Antes de amanhã à noite,; encontraremos com que matar a sede.

A promessa pareceu longínqua demais aos sedentos, mas, na falta de coisa melhor, contentaram-se com ela. Colin Paturel .deu a cada um um pedaço de uma noz que cresce'no coração da Africa e que os guardas negros de Mulay Ismael gostavam de mascar quando tinham longas caminhadas a fazer. .O gosto era amargo. Era preciso conservá-la na boca o máximo de tempo possível, pois dava forças e acalmava a fome e a sede.

Quando anoiteceu completamente, recolocaram-se em marcha. Logo começou a escalada pelos rochedos, dificultada pela escuridão quase total. A luaera insuficiente para realmente orientá-los e revelar as melhores passagens. Em certos momentos precisaram içar-se com os braços, acomodando-se um a um sobre uma mesa rochosa, para depois içarem-se de novo e prosseguirem com extrema lentidão .'Seus pés deslocavam pedaços de pedra que ouviam rolar e ecoar sonoramente no fundo de precipícios remotos. O ar tornava-se gelado, secando-lhes o suor na testa e fazendo-os arrepiarem-se nas roupas úmidas. Em diversas ocasiões, para se nortear, Colin Paturel, que ia na frente, bateu o acendedor. Mas era perigoso, pois os árabes da planície podiam perceber a insólita claridade em meio às rochas inacessíveis e ficar intrigados.

Angélica avançava, surpresa com a própria resistência, certamente resultante dos benefícios da noz de cola. Os albornozes claros dos companheiros destacavam-se no flanco da montanha, e ela conseguia manter-se a distância não muito grande deles. De súbito ouviu como que o ruído de uma avalancha. Alguma coisa passou a seu lado, foi engolida pela escuridão, depois houve um grito bestial, e o eco de um choque surdo subiu das profundezas invisíveis.

Agarrada a um esporão rochoso, Angélica ali ficou, sem ousar avançar nem recuar.

O basco gritou:

-        Paturel, alguém caiu!

— Quem?

— Não sei.

— A pequena?

Angélica batia os dentes, incapaz de articular um único som.

— Angélica? - gritou o chefe, convencido de que a jovem, menos experiente, levara uma queda mortal. Imbecil que fora ele por não ter pensado em colocá-la sob a guarda de Caloéns, alerta como uma cabra com cria. Tinham deixado que ela se virasse sozinha, e agora...

— Angélica! - trovejou ele, como se os ecos de sua voz pudessem vencer a catástrofe consumada.

O milagre ocorreu.

— Estou aqui - conseguiu ela dizer, finalmente.

— Bom, não se mova. João, o Basco?

— Presente!

— Jean-Jean de Paris?

— Presente!

— Francisco, o Arlesiano? Nenhuma resposta...

— Francisco, o Arlesiano?... Piccinino?

— Presente!

— Marquês? Caloèns?

— Presentes!

-        Então foi o arlesiano - disse Colin Paturel, descendo ao encontro deles com precaução.

Agruparam-se, interrogando-se. sobre as circunstâncias do drama. O arlesiano devia estar um pouco acima de Angélica. Ela disse que o ouvira rolar por entre os seixos depois de um passo em falso, em seguida, após um grito rouco e um instante de silêncio, o som oco de um corpo esmagando-se no abismo.

-        Temos de esperar amanhecer - decidiu o normando.

Esperaram, tremendo de frio, entorpecidos pela postura desconfortável nos vãos das rochas. A aurora foi rápida e muito clara. As montanhas apareceram arruivadas, sob um céu cor de limão onde planava uma águia de asas enormes. Contra a luz do sol nascente, a ave temível parecia um belo escudo do Santo Império forjado em bronze. Suavemente descia em círculos concêntricos sobre uma ravina.

O normando acompanhou com o olhar o majestoso vôo da águia.

-        Deve ser ali! - resmungou.

Assim que clareou, ele examinou os que o cercavam, esperando, contra toda probabilidade, descobrir os olhos negros e a barba encaracolada do arlesiano. Mas o alegre provençal desaparecera...

Finalmente o viram, no fundo do precipício, uma nódoa branca no meio de rochas negras e pontiagudas.

— Talvez só esteja ferido...

— Kermoeur, passe-me a corda!

A corda foi atada solidamente a uma rocha, e Colin Paturel passou-lhe a outra extremidade em torno da cintura, com a habilidade do marujo cujos dedos amarram e manejam o tempo todo cabos e cordames. No momento de descer no vazio, deu uma olhada ao vôo ameaçador da águia e disse:

-        Passe-me a maça.

Prendeu-a à cintura. O peso devia dificultar-lhe a descida, mas ele se safou com agilidade.

Inclinados sobre o abismo, seus companheiros, ofegantes, seguiam-lhe cada unvdos movimentos. Viram-no tomar pé sobre a cornija onde jazia o corpo, debruçasse sobre ele e virá-lo. Depois viram-no pousar os dedos sobre as pálpebras do arlesiano e persignar-se.

-        O arlesiano!... Oh, o arlesiano! - murmurou Jean-Jean de Paris, condoído.

Sabiam o que desaparecia com ele. Recordações imperecíveis de trabalhos, de torturas, de esperanças e risos no mundo maldito dos escravos, e daquelas canções que o arlesiano lançava ao véu estrelado da Africa, quando a brisa das noites frescas balançava a sombra das palmeiras acima do sofrimento deles. Angélica sentiu-lhes a dor, coletiva, profunda. Teve vontade de apertar-lhes as mãos, tanta era a humanidade que de repente havia naqueles rostos enegrecidos e cadavéricos.

-        Atenção, Colin! A águia!... - berrou de súbito o Marquês de Kermceur.

A ave, que se alçara como que renunciando à presa, bruscamente arremetia do céu com a rapidez de um relâmpago. O grupo ouviu, à passagem da ave, a batida de velas das asas estendidas, que num átimo lhes ocultaram Colin Paturel. Durante alguns instantes não puderam acompanhar o combate que se desenrolava entre o homem e a fera, até que conseguiram ver de novo o rei dos cativos a rodopiar sua maça em golpes terríveis.

Colin não estava bem equilibrado sobre a estreita cornija, mas combatia com tanto sangue-frio e vigor como se dispusesse do espaço necessário para recuar. Colocara-se na beirada do precipício e não contra a parede, que lhe teria dificultado os movimentos. O menor passo em falso ou um impulso mal calculado o faria despencar no vazio. Atingia o adversário sem retomar fôlego, mas a águia não desistia. Afastou-se várias vezes, uma das asas, quebrada, pendia ao vento, mas voltava sempre, os olhos malignos, as garras para a frente.

Finalmente Colin Paturel conseguiu agarrá-la pelo pescoço com uma mão. Largou o porrete, sacou da faca e degolou a fera antes de atirá-la no abismo, onde a rainha dos ares caiu rodopiando entre suas plumas.

-        Senhor! Virgem Maria! - murmurou o velho Caloêns.

Todos estavam pálidos e gotejando de suor.

— E então, homens, puxam-me ou não? O que é que esperam aí em cima?

— Claro, Majestade, num instante!

Colin Paturel carregava o cadáver do arlesiano atravessado sobre o ombro. Com o peso suplementar, a subida foi longa e difícil. Ao tocar o solo, o normando ficou um instante curvado, de joelhos, recobrando o fôlego com dificuldade. O sangue escorria-lhe do peito através das tiras de seu albornoz, rasgado pelas garras da ave.

-        Eu poderia ter deixado o camarada lá embaixo - disse, arquejando -, mas não tive coragem. O arlesiano não merecia que o deixássemos para ser comido pelos abutres.,

-        Tem razão, Colin! Vamos dar-lhe uma sepultura cristã.

Enquanto eles afastavam os pedregulhos para tentar abrir uma cova, Angélica aproximou-se de Colin Paturel, sentado sobre uma rocha.

— Deixe-me cuidar de você, como cuidou de mim ontem, Colin.

— Não recuso, minha amiga. A águia me machucou a sério. Pegue a garrafa de aguardente no meu saco e passe-a com gosto!

Ele não pestanejou enquanto ela impregnava de álcool os sulcos profundos que as unhas de aço da águia haviam aberto em seu peito. Ao tocá-lo, Angélica não podia deixar de sentir aumentar o respeito por ele. Um homem construído daquela maneira honrava seu Criador.

Mas Colin Paturel já não pensava no combate com a águia Pensava em Francisco o Arlesiano, e o coração doía-lhe muito mais do que o peito dilacerado...

CAPITULO XXVIII

A sede e os leões

Assim erraram durante três dias por entre os rochedos ardentes e desertos. A sede recomeçava a atormentá-los. Já não caminhavam à noite, a fim de não correrem o risco de acidentes terríveis nas trevas. A região era pouco frequentada. No entanto, no segundo dia dois pastores mouros que apascentavam seus carneiros no flanco de uma ravina coberta de erva chamaram-nos do outro lado. Examinavam com desconfiança aquele bando esfarrapado entre o qual se entrevia uma mulher e a levita preta de um judeu.

Colin Paturel respondeu que se dirigiam a Meld'jani. Os pastores soltaram exclamações indignadas. Quem ia a Meld'jani passando pela montanha, quando o caminho mais curto fora aberto no vale, e muito bem aberto, desde que Mulay Ismael enviara seus negros para trabalhar lá?... Eram estrangeiros mal informados? Ou bandidos? Ou, quem sabe, cristãos fugidos?... Os dois pastores haviam lançado a última suposição em tom de zombaria, mas mudaram subitamente de expressão. Consultaram-se em voz baixa, lançando olhares penetrantes na direção dos viajantes.

- Passe-me seu arco, João d'Harrostegui - disse Colin Paturel -, e você, Piccinino, coloque-se na minha frente para que eles não vejam o que estou preparando.

Os mouros de repente se puseram a guinchar e dispararam na corrida. Mas as flechas do normando os atingiram nas costas e, trespassados, rolaram pelo declive, enquanto os carneiros se punham a correr, uma maré marrom, balindo e quebrando as patas nos barrancos.

-        Já não vão dar alarma. Teríamos encontrado todos os aldeões à nossa espera na passagem do desfiladeiro.

ficaram em alerta até lá. Viam a estrada da qual os pastores haviam falado. Mas ir por ali estava fora de questão. As roupas rasgadas, o aspecto cansado e inquietante os trairiam ao primeiro passante.

Era preciso continuar a avançar por sobre as pedras cortantes, sob o sol de fogo e o céu índigo, pesado e vertiginoso, que dava às pedras um ofuscante aspecto de ossadas, a língua inchada pela sede, os pés ensanguentados. Ao entardecer, viram os reflexos da água salvadora à beira de um precipício, e, apesar da ingremidade das paredes, começaram a descer. Já se aproximavam, porém, quando ouviram um rugido, reproduzido pelo eco.

-        Leões!

Ficaram colados ao flanco da falésia, enquanto as feras, irritadas pelos pedaços de rocha; que eles haviam deslocado, punham-se a rugir sonoramente. Repercutindo pelas falésias, o ruído tornava-se ensurdecedor, terrível e assustador. Angélica via as formas alouradas das grandes feras agitando-se a alguns pés abaixo dela. Agarrou-se a um tufo de zimbro, com a horrível impressão de que as raízes iam soltar-se.

O normando, que se encontrava um pouco acima dela, viu-a empalidecer, enquanto as pupilas verdes se enchiam de pânico.

-        Angélica! - chamou.

Quando ele comandava, sua voz, habitualmente lenta e calma, mudava. Não se conseguia escapar ao domínio daquele tom baixo e breve.

-        Angélica, não olhe para baixo, pequena! Não se mova. Estenda-me a mão.

Ele a ergueu como a um pacote, e ela se deixou ir, para esconder o rosto contra aquele ombro maciço e escapar ao pesadelo da visão dantesca. Ele esperou com paciência até que, ela parasse de tremer e depois, aproveitando-se de um momento de calmaria no ronco tempestuoso dos clamores, gritou:

— Vamos subir de novo, homens! Não vale a pena insistir...

— E a água? E a água? - gemeu Jean-Jean de Paris.

— Vá até lá se quiser!

Naquela noite Angélica foi sentar-se a distância, enquanto os cativos instalavam um pequeno acampamento em torno de uma fogueira tímida que ousaram acender para cozer os tubérculos selvagens sob as cinzas.

Apoiou a testa a uma pedra e ficou ali, assombrada até a tortura de visões de sorvetes, bebidas geladas e transparentes, água cintilando sob palmeiras.

-        Lavar-me! Beber! Não posso mais. Não posso prosseguir!

Uma mão pousou-lhe sobre a cabeça. Mão tão grande só podia ser do normando. Como ela não tinha forças para mover-se, ele a puxou ligeiramente pelos cabelos para forçá-la a erguer a testa, e Angélica viu uma cabaça de pele que ele lhe estendia com o equivalente a uma xícara de água no fundo. O olhar dela vacilou, interrogativo.

-        E para você - disse ele. - Foi guardada para você. Cada um deu a última gota de seu cantil.

Ela bebeu a água morna como se fosse néctar. A ideia de que aqueles homens rudes se haviam privado por ela devolveu-lhe a coragem.

— Obrigada, amanhã estarei melhor - disse, tentando um sorriso com os lábios gretados.

— Com certeza! Se há alguém que vai ficar pelo caminho, certamente não será você! - retrucou ele com uma convicção tão íntima que ela se sentiu tocada.

"Os homens sempre me acham muito mais forte do que sou", pensou, deitando-se um pouco reconfortada sobre o duro leito de pedra.

Sentia-se extremamente solitária, envolta em sua fadiga, seu sofrimento e seu medo como uma redoma que a isolasse do mundo inteiro. Será que Dante, quando desceu aos círculos infernais para ouvir latir o Cérbero de três cabeças, teria tido a mesma impressão? O inferno seria aquilo?... Sem dúvida, mas sem o gesto de um companheiro estendendo o último copo de água. Sem a esperança. Pois a esperança subsistia. "Um dia veremos os campanários de uma cidade cristã sob o céu estrelado, um dia respiraremos, beberemos..."

CAPITULO XXIX

A fonte do oásis

No dia seguinte desceram para á planície. Viram leões novamente, devorando os restos de um cavalo, o que os fez pensar que não deviam estar longe de uma-aldeia. Chegaram-lhes latidos de cães, e eles enviesaram de novo rumo à montanha. A vista de um poço levou-os para a perigosa proximidade das regiões habitadas. Felizmente não havia ninguém nos arredores. Às pressas, ataram uma corda em torno do mais magro, Jean-Jean de Paris, que desceu com duas cabaças ate o fundo do poço. Ouviram-no soltar um grito, chafurdar, e alçararft-no depressa.

O pobre rapaz vomitava até a alma. Pousara os pés sobre a carcaça de um animal que obstruía o fundo do poço. Levado pela sede, não pudera impedir-se de inclinar-se para beber, mas a água que tirara do ventre do animal morto estava tão infecta que ele sentiu que morria ali mesmo. Passou o resto do dia agitado por mal-estares, arrastando-se com dificuldade. Os gases venenosos acumulados no poço haviam-no como que intoxicado.

Foi mais um dia desgastante, e só pelo entardecer a salvação pareceu tremeluzir aos olhos deles, na forma de uma água azul num valezinho sombreado por figueiras e romàzeiras, acima das quais oscilava o alto penacho de tamareiras. Sem poder crer naquela miragem, eles se lançaram encosta abaixo. O velho Caloéns chegou primeiro e correu pela prainha de cascalho branco. Estava a pouco passos da água maravilhosa, quando se ouviu um ruído surdo e a silhueta de uma leoa cruzou o espaço e se abateu sobre o ancião.

Colin, o Normando, deu um pulo e desferiu uma saraivada de golpes de maça na fera. Arrebentou-lhe a cabeça e quebrou-lhe as vértebras. A leoa caiu de lado, debatendo-se em violentas convulsões de agonia. O grito do Marquês de Kermceur se confundiu com outro rugido.

-        Cuidado, Paturel!

E, de espada erguida, lançou-se entre o normando, que se voltava, e o bote de um leão de crina marrom, surgido das moitas. A espada varou o animal na altura do coração, mas antes de expirar as garras terríveis rasgaram o ventre do gentiJ-homem bretão, cujas entranhas se espalharam sobre a areia...

Assim, em alguns instantes, o oásis encantador oferecia uma cena de carnificina, onde o sangue dos homens e das feras corria até a água límpida.

Em pé, a maça avermelhada na mão, Colin Paturel espreitava o aparecimento de outros animais. Mas o lugar estava tranqiiilo outra vez. A chegada dos escravos devia ter perturbado um casal isolado na época de acasalamento.

— Vigiem à direita e à esquerda com as lanças! Debruçou-se sobre o Marquês de Kermceur.

— Meu companheiro, você me salvou a vida! O olhar vítreo do marquês tentava distingui-lo.

— Sim, Majestade - balbuciou.

Sua visão turvava-se, outras reminiscências sobrepunham-se.

-        Majestade... será que em Versalhes... Versalhes...

Morreu com aquela palavra distante e prestigiosa nos lábios.

Caloèns ainda respirava. O ombro fora-Ihe arrancado, viam-se-lhe os ossos.

-        Água - murmurou ele com avidez -, água!

Colin foi buscar numa cabaça a água adquirida a preço tão alto e deu-lhe de beber.

Era tal sua ascendência sobre os companheiros que, apesar da sede torturante, os outros, estupidificados, sequer pensavam em se aproximar da nas:ente.

-        Bebam, imbecis! - gritou-lhes ele, encolerizado.

Era a segunda vez que precisava fechar os olhos a um dos companheiros a quem jurara levar vivos para a liberdade. E podia pressentir que em breve executaria pela terceira vez esse triste rito...

Descobriram sob uma latada de lianas brancas o antro das feras e o cadáver parcialmente devorado de uma gazela. Levaram para ali o ferido e deitaram-no sobre um leito de ervas secas. Colin esvaziara-lhe sobre as chagas o frasco de aguardente e pensara-o da melhor maneira que pudera. Mas era preciso esperar para saber como reagiria o velho. Sararia? Era bem capaz disso... Mas quanto tempo poderiam demorar-se naquelas paragens, para onde a água atraía os animais e os homens?

O chefe calculou nos dedos o número de dias de que dispunham antes do encontro no riacho de Cebon. Ainda que retomassem a caminhada naquela mesma noite, estariam com dois dias de atraso! E era impossível, com o velho Caloèns moribundo. Decidiu que passariam a noite ali mesmo. Tinham de enterrar o Marquês de Kermoeur e refletir sobre a situação. Todos necessitavam de repouso. No dia seguinte tomariam providências.

Quando anoiteceu, Angélica insinuou-se para fora da gruta. Nem o temor dos leões nem a angústia que pairava sobre eles com o arquejo do ancião faziam-na esquecer o desejo excessivo que sentia de mergulhar na água. Um após outro, os cativos haviam gozado das delícias dcum banho, mas ela permanecera à cabeceira do ferido.     

Caloèns a reclamava- com aquela súbita exigência dos homens que na dor se voltam para a mulher maternal, criadora de doçura, que compreende as queixas e as ouve com paciência.

— Pequena, sêgure-me a mão. Pequena, não se afaste.

— Estou aqui, avô.

— Dê-me um pouco mais dessa água deliciosa.

Lavara-lhe o rosto, procurando instalá-lo o melhor possível sobre o leito de ervas. De minuto a minuto ele respirava de maneira mais atroz.

Colin Paturel distribuiu os últimos pedaços de pão. Restava uma provisão de lentilhas. Mas o chefe se opôs a que acendessem fogo.

Agora Angélica avançava na escuridão cúmplice. O luar atravessava discretamente o bosque, onde se acendia e apagava, intermitente, a fagulha de ouro dos pirilampos dançantes. A nascente apareceu, calmo espelho, agitado apenas junto à rocha escura de onde a água jorrava com um leve ruído. O coaxar de uma rã, o cricrilar contínuo dos grilos integravam-se ao silêncio.

A jovem tirou a roupa coberta de poeira e impregnada da transpiração daqueles longos dias de fadiga desumana. Soltou um suspiro de alívio ao deslizar para dentro da água fresca. Nunca experimentara, pensou, uma sensação tão maravilhosa. Depois de se molhar abundantemente, lavou a roupa, separando apenas o albornoz em que se envolveria, aguardando que a brisa noturna secasse as outras peças. Lavou também os longos cabelos, cheios de areia e baços; com volúpia, sentiu-os ressuscitar sob seus dedos.

A luz deslizou atrás de uma palmeira e revelou o longo filete de prata da nascente que corria ao longo da falésia negra. Angélica subiu a uma pedra e entregou os ombros ao jorro quase gelado da ducha. Decididamente a água era a mais bela invenção do Criador! Ela se lembrou do aguadeiro, gritando pelas ruas de Paris: "Quem quer água pura e saudável?... E um dos quatro elementos..."

De rosto erguido, olhou com simpatia as estrelas piscando por entre o leque escuro das palmeiras. A água escorria sobre seu corpo nu, brilhava ao luar, e ela adivinhou seu próprio reflexo, tremulo, de uma brancura de mármore, nas trevas da bacia.

-        Estou viva - disse a meia voz. - Estou viva!

Cada instante que passava apagava nela os vestígios da luta desgastante. Permaneceu por longo tempo assim, até o momento em que um estalido de graveto, seco como um tiro, a alertou.

Então sentiu medo de novo. Lembrou-se das feras à espreita e dos mouros hostis. A suave paisagem transformou-se novamente naquela armadilha em que se debatiam há dias intermináveis. Angélica deslizou na água para retornar à margem. Agora tinha certeza de que havia alguém que a observava, oculto nas moitas. Vivendo como animal perseguido, adquirira-lhe o instinto. Sentia o perigo à flor da pele. Uma fera ou um mouro?... Embrulhou-se no albornoz e saiu correndo, descalça, através do emaranhado de lianas e agaves pontudas que a feriam. Chocou-se com violência contra o duro obstáculo de uma presença humana atravessada no atalho, soltou um grito débil e pensou em dar meia-volta, numa vertigem de terror, quando reconheceu, à luz esbranquiçada da lua, a barba loura de Colin Paturel. Uma centelha brilhava no fundo das órbitas do gigante normando, profundas como duas cavernas escuras. Mas sua voz soou calma, quando disse:

-        Você está louca? Foi tomar banho sozinha?... E os leões que podem vir beber, e os leopardos, e os mouros, quem sabe, que podem estar à ronda...

Angélica teve vontade de atirar-se contra aquele peito largo para acalmar o terror que sentia, tanto mais violento por havê-la dominado depois de um momento de paz, de alegria rara e quase sobrenatural. Havia de lembrar-se sempre da fonte do oásis! A bea-titude do paraíso devia ser assim...

Agora reencontrava os homens e a dura luta para preservar a própria vida.

— Os mouros? - disse ela, com voz trémula. - Acho que estão por aqui. Há pouco havia alguém que me olhava, tenho certeza...

— Era eu. Sai à sua procura, vendo que sua ausência se prolongava anormalmente... Agora, venha. E nao repita imprudências parecidas, ou sou capaz de estrangulá-la com as próprias mãos.

Uma nuança de ironia atenuou a ameaça do tom. Mas ele não estava brincando. Angélica sentiu que ele realmente tinha vontade de estrangulá-la ou, no mínimo, de espancá-la.

O sangue de Colin Paturel gelara-lhe nas veias quando ele notara que a companheira se afastara e nãç retornava. "Mais um drama", pensara, "mais uma cova a abrir!... Deus, que é justo, vai abandonar os seus?..." Sem ruído, seguira pela margem do riacho, como escravo que" era, habituado a rondar e a deslizar na noite.

E ela lhe aparecera, erguida sob o filete prateado da fonte, os longos cabelos de náiade cobrindo-lhc os ombros, e o corpo de neve refletindo-se na água noturna.  :

Angélica entendeu de súbito que ele devia tê-la visto enquanto se banhava. Picou perturbada. Depois disse a si mesma que não tinha importância. Aquele homem era um bruto e só sentia por ela a condescendência desdenhosa do forte pelo fraco, pela criatura incomoda de quem precisara encarregar-se contra a vontade. Ela continha com dificuldade certo rancor que sentia por ele, pois Paturel era o responsável pela quarentena em que ela corajosamente se mantinha em relação aos outros cativos, aproximando-se deles apenas quando era preciso cuidar dos feridos. E era mais difícil suportar tanto sofrimento a distância, sozinha e mal-amada. Talvez ele não estivesse errado, mas era duro, intransigente, e continuava a impressioná-la até a timidez. O equilíbrio moral e físico do hércules normando parecia um desafio a tudo o que ela sentia tremer em si de incerteza, de fraqueza, de fragilidade feminina, de nervosismo e de emotivo. Parecia-lhe. que aquele olhar azul, que num relance trespassante lhe registrava o cansaço ou o medo ou lhe constatava as imprudências, desprezava-a um pouco. "Ele sente por mim o desdém do cão pastor pela ovelha estúpida", disse-se ela.

Sentou-se à cabeceira de Caloéns, mas seu olhar pousava sempre, a sua revelia, no perfil hirsuto do chefe, iluminado por uma lanterna opaca. Colin Paturel desenhava na areia com uma vareta um mapa da rota a seguir e comentava com o veneziano, Jean-Jean de Paris e o basco, debruçados perto dele:

— Vocês vão parar na extremidade do bosque. Se virem um lenço vermelho num galho do segundo carvalho, avançarão e darão o grito do corvo noturno. Então o judeu Rabi sairá das moitas...

— Pequena, você está aí? - disse a voz fraca do velho Caloéns. - Dê-me a mão. Eu tinha uma filhinha de dez anos que acenava com a boina quando embarquei, há vinte anos. Deve ser parecida com você agora. Chama-se Mariejke.

— Você a reverá, avô.

— Não. Não creio. A morte vai me levar. E é melhor assim. O que faria Mariejke com um velho pai marinheiro que volta da escravidão depois de vinte anos para lhe sujar o chão da cozinha e repetir histórias de um país ensolarado? E melhor assim... Estou feliz por repousar na terra do Marrocos. Vou lhe dizer, pequena... Começo a sentir falta de meus jardins de Miquenez e de ver Mulay Ismael galopando por ali como a cólera de Deus... Eu teria feito melhor se esperasse que ele me partisse a cabeça com a bengala...

CAPÍTULO XXX

O vôo dos abutres

Os três homens - o veneziano, o parisiense e o basco - partiram ao alvorecer. Colin Paturel fizera sinal a Angélica para que se aproximasse.

— Vou ficar perto dó velho - disse -, não se pode levá-lo, mas também não se pode deixá-lo. É preciso esperar! Os outros vão continuar, para não faltar ao encontro com o Rabi Maimoran. Vão preveni-lo e resolver o melhor a fazer. Que quer você, partir com eles ou ir depois?

— Farei o que você me ordenar.

— Acho preferível que fique. Os outros irão mais depressa sem você, e o tempo urge.

Angélica baixou a cabeça e fez menção de se afastar para o leito do velho. Colin Paturel a reteve, parecendo arrepender-se de sua falta de amenidade.

— Também acho - disse - que o velho Caloéns necessita de você para morrer em paz. Mas se preferir partir...

— Ficarei!

Dividiram-se as provisões e a reserva de flechas. Colin Paturel ficou com um arco, uma aljava, sua maça, uma bússola e a espada do Marquês de Kermoeur.

Assim que anoiteceu, os três homens partiram, depois de pararem um instante junto ao túmulo do gentil-homem bretão. Não se disse nada ao velho Caloéns, que enfraquecia cada vez mais. Delirava em flamengo. Agarrava-se à mão de Angélica com o vigor dos moribundos, e toda a força daquele velho corpo resistente lhe voltou quando, após lutar mais uma noite e um dia, ele se ergueu sobre o leito. Foi preciso que Colin Paturel o segurasse com energia, e o ferido lutou contra ele como lutava contra a morte, com uma força selvagem.

-        Você não me vencerá! - dizia ele. - Não me vencerá!

De repente pareceu reconhecer o rosto a sua frente.

-        Ah, Colin, meu rapaz! - exclamou com voz suave. - E hora, então, de partir, não acha?

-        Sim, companheiro, é hora. Vá! - ordenou a voz lenta do rei.

E o velho Caloens morreu nos braços do normando, com uma confiança de criança.

Angélica, perturbada pela agonia terrível, pôs-se a chorar contemplando-os, o magro ancião, de cabeça branca, quase calva, apoiado contra o peito do homem como o de um filho. Colin Paturel fechou-lhe os olhos e cruzou-lhe as mãos.

-        Ajude-me a transportá-lo - disse. - A cova já está aberta.

Temos de agir depressa. Depois, partiremos!

Deitaram-no ao lado do Marquês de Kermoeur e às pressas encheram a sepultura de terra. Angélica quis fazer duas cruzes.

-        Nada de cruzes! - disse o normando. - Mouros que aparecessem por aqui compreenderiam que cristãos foram enterrados recentemente e se lançariam em perseguição a nós.

E foi novamente a marcha exaustiva através da paisagem que a lua cheia semeava de arestas metálicas. Descansada pelos dois dias de parada, Angélica prometera a si mesma que Colin Paturel não poderia censurá-la por lentidão, mas era em vão que tentava acompanhar-lhe o ritmo das longas passadas e enervava-se de vê-lo esperá-la, ereto como uma estátua, a maça ao ombro. Tinha pressa de encontrar os outros, que pelo menos resmungando, blasfemando e penando caminhavam como simples mortais e não como heróis de mitologia, inacessíveis a toda fadiga terrestre.

Aquele diabo de Colin Paturel não se cansava nunca? Nunca sentia medo? Era inacessível a todos os sofrimentos, do corpo e do coração?

No fundo, era um bruto. Ela já pensara nisso, mas aquela caminhada que fez sozinha com ele confirmou-lhe a convicção. Ainda assim, andaram tanto que ao anoitecer do dia seguinte chegaram à extremidade do bosque de carvalhos onde se encontrariam com o judeu. Acima deles percebiam o cruzamento de caminhos abertos na areia onde os sobreiros enfiavam as fundas raízes.

Colin Paturel estacou. Franziu os olhos, e ela ficou surpresa de ver que ele olhava para o céu. Olhou na mesma direção, e de repente o sol lhe pareceu obscurecido por uma nuvem de abutres que se elevava lentamente das árvores. Os recém-chegados deviam tê-los perturbado. Depois de alguns volteios, desceram de novo, os pescoços pelados estendidos, e pousaram à volta de um grande carvalho que estendia os galhos sobre o cruzamento. Angélica viu afinal o que atraía as aves.     ;

-        Há dois enforcados - disse ela, numa voz abafada.

O homem já os vira.

-        São dois judeus. Reconheço as levitas pretas. Fique aqui. Vou aproximar-me de rastros e contornando o bosque. Aconteça o que acontecer, não faça um único movimento!

CAPÍTULO XXXI

Colin Paturel fica só com Angélica - A picada da serpente

A espera foi interminável, mortificante. Os abutres batiam as asas, traindo pelo voo e pelos gritos agudos a aproximação do importuno, mas Angélica não podia vê-lo.

De repente ele reapareceu, sem ruído, atrás dela.

— E então?...

— Um é um judeu que não conheço, provavelmente Rabi Mai-moran. O outro é... Jean-Jean de Paris.

-        Meu Deus! - exclamou ela, ocultando o rosto entre as mãos.

Era demais! Delineava-se, inevitável, o fracasso total da evasão.

Chegando ao ponto de encontro, os cristãos haviam caído numa armadilha.

— Avistei uma aldeia à direita. A aldeia dos mouros que os enforcaram. Talvez o veneziano e João d'Harrostegui ainda estejam lá, acorrentados... Vou até lá.

— É loucura!

— E preciso tentar tudo! Notei uma gruta um pouco acima, na montanha. Vá esconder-se e espere-me.

Ela jamais ousaria discutir-lhe as ordens. Mas sabia que era loucura. Ele não retornaria.

Aquela gruta, cuja entrada se dissimulava por trás de tufos de giestas, seria seu túmulo. Ela esperaria em vão pelo retorno dos companheiros mortos.

Colin Paturel instalou-a com todas as provisões, a última cabaça de água. Deixou até a maça, conservando consigo apenas o punhal na cintura. Tirou as sandálias para ficar mais à vontade. Deu também a Angélica a isca e a pedra de fuzil. Se aparecesse algum animal, bastaria que ela acendesse um pequeno fogo de ervas secas para afugentá-lo.

Sem mais uma palavra, deslizou para fora da gruta e distanciou-se.

E ela começou a aguardar. Chegou a noite, com os gritos confusos de feras distantes nas moitas. Roçados e raspões pareciam encher a caverna por todos os lados. De tempos em tempos, não aguentando mais, ela batia o isqueiro e passeava a luz à volta, tranquilizada por ver apenas as paredes rochosas. Na abóbada, descobriu curiosos saquinhos de veludo, pendurados uns contra os outros, e entendeu: morcegos!

Era dali que vinham os roçados, os gritos agudos que lhe causavam sobressaltos.

De olhos abertos na escuridão, Angélica se esforçava por não pensar mais e por suportar a angustiante lentidão do tempo que se escoava. Um estalido do lado de fora encheu-a de esperança. Seria o normando que já regressava com Piccinino, o Veneziano, e João d'Harrostegui?;Cõmo seria bom estarem todos reunidos!... Mas logo depois, e befn perto, élevou-se' um lúgubre ulular. Uma hiena rondava. Sua gargalhada triste e como que desesperada diminuiu. Ela descia para o cruzamento, onde o corpo de Jean-Jean de Paris balançava. Estava morto o alegre tabelião, o amigo preferido de Colin Paturel e seu talbe titular, e os abutres já lhe deviam ter furado os olhos zombeteiros. Estava morto, assim como estavam mortos e arlesiano, o gentil-homem bretão e o velho pescador flamengo. Assim como todos morreriam, um após o outro... O reino do Marrocos não devolve seus cativos!... Mulay Ismael triunfava.

Que aconteceria com ela, se ninguém voltasse? Sequer sabia onde se encontrava. O que aconteceria quando, acossada pela fome e pela incerteza, ela deixasse o refúgio? Não podia contar com cumplicidade alguma dos mouros nem mesmo de suas mulheres, criaturas submissas e aterrorizadas. Seria descoberta e levada de volta ao sultão. E Osman Ferradji não estaria mais lá para protegê-la.

Um suspiro subiu-lhe aos lábios:

- Oh, Osman Ferradji, se sua grande ajma vagueia pelo paraíso de Maomé...

A aurora foi anunciada pelos guinchos dos abutres que reiniciavam a ronda em torno dos enforcados. Um nevoeiro leitoso invadia a gruta. Angélica moveu-se, entorpecida pela imobilidade que mantivera durante todas aquelas longas horas, e pensou que vivia a mais dura provação de sua existência. Aguentar, não poder agir nem gritar, queixar-se ou tentar fazer alguma coisa!... Entocava-se, o coração batendo como o de uma lebre assustada, e não saía do lugar porque Colin Paturel lhe ordenara isso. E o sol já subia.

Os cativos não voltavam... Não voltariam mais...

Continuou aguardando, recobrando esperança porque não queria que o destino fosse assim inelutável, mas para logo se desencorajar. Quando a maciça silhueta de Colin Paturel obstruiu a entrada da caverna, ela sentiu um alívio tão grande, tamanha alegria que se atirou na direção dele, agarrando-se a seu braço para se convencer bem de que finalmente ele estava ali!

-        Você voltou! Oh, você voltou!

Ele não parecia vê-la nem sentir os dedos que ela inconscientemente lhe cravava na carne, e seu estranho mutismo acabou alarmando Angélica.

— E os outros - perguntou -, você os viu?

— Sim, vi. Já não tinham aparência humana. Sofreram todas as torturas antes de serem empalados diante da casbá... Não sei, jamais saberei quem nos traiu, mas Mulay Ismael foi informado do que fizemos. Ouvi os comentários dos mouros... A cólera do sultão desencadeou-se sobre Miquenez. O mellah agora não passa de um ossário. Todos os judeus foram massacrados.

Todos os judeus!... E a pequena AbigailL. e Ruth, e Samuel, aquele "rapaz encantador"...

-        Aqui eles estavam prevenidos, o rabino serviu de isca. Tinham ordem de enforcá-los e de executar os cristãos sem demora. Enforcaram Jean-Jean porque acharam que também fosse judeu. Acabei de retirá-lo da árvore e de trazer... enfim, o que os abutres deixaram. Vou enterrar o que resta...

Sentou-se, olhou à volta com uma espécie de espanto as rochas estriadas de vermelho que o reflexo da manhã tornava púrpura e disse pesadamente:

-        Todos os meus companheiros estão mortos!...

Ficou ali por um longo momento, o queixo apoiado no punho. Com esforço, levantou-se e saiu. Ela ouviu o ruído contra os calhaus da grande colher de pedreiro de que ele se servia para abrir as outras covas e saiu por sua vez para ajudá-lo na penosa tarefa de sepultamento.

Mas ele gritou-lhe, rudemente:

— Fique aí, não se aproxime! Isto não é para você... Vamos, isto não é bonito de se ver...

Gelada, ela permaneceu a distância. Estava de mãos postas, mas, apesar da vontade, não conseguia rezar.

Com grandes gestos de homem habituado aos rudes trabalhos de terraplenagem, o normando entregou-se a tarefa de coveiro. Quando a terra foi amontoada num pequeno túmulo, ela o viu, tomando uma súbita decisão, partir dois pedaços de madeira e fazer uma cruz. Plantou-a sobre o túmulo com um gesto de desafio.

- Coloco a cruz - disse ele -, desta vez coloco a cruz!

Depois voltou a sentar-se no interior da caverna, na mesma atitude de sombria meditação.

Angélica tentou falar-lhe, mas ele não a ouvia. Pelo meio-dia, pegou um punhado de tâmaras e, colocando-as sobre uma folha de figueira, levou-as para ele.

Colin Paturel levantou a cabeça. Seus punhos fortes deixavam marcas brancas no couro marrom de sua testa. Fixou com estupor a jovem que se inclinava para ele e que lhe deu claramente no olhar o desapontamento e o rancor. "Pois é,.esta ainda está aqui!"

Comeu em silêncio. Desde que ele lhe lançara aquele olhar estranho, mal desperto, Angélica se sentia paralisada, invadida por um medo novo que não queria reconhecer. Tinha de vigiar, ficar de olhos abertos... Mas não conseguiu resistir ao cansaço que lhe tornava as pálpebras pesadas. Caminhara uma noite e um dia quase sem descansar e na noite anterior não pudera fechar os olhos um instante sequer.

Finalmente adormeceu, enrodilhada num canto da gruta.

Quando acordou, estava sozinha. Habituara-se àqueles despertares solitários, pois sempre se afastava dos outros para dormir. Mas desta vez o silêncio lhe pareceu insólito. Correu os olhos a sua volta e pouco a pouco a verdade se lhe impôs. O último pão e a provisão de lentilhas estavam cuidadosamente colocados sobre uma pedra, assim como a cabaça de água, ao lado de uma aljava e de uma colher de pedreiro. Mas o arca, as flechas e a maça de Colin, o Normando, haviam desaparecido. Portanto, ele partira. Abandonara-a!

Angélica ficou por um longo tempo chorando baixinho, aniquilada, a cabeça entre os braços.

"Oh, você fez isso!", dizia-se a meia voz, magoada. "É maldade. Deus o punirá."

No entanto, não tinha certeza se Deus não daria razão a Colin Paturel, que fora crucificado em nome dele. Ela não passava de uma mulher, carregada do pecado original e responsável pelas infelicidades da humanidade, um objeto desprezível, que se pega ou larga.

-        E então, o que é que há, pequena? Um acesso de melancolia?

A voz do normando ressoando sob as abóbadas causou o efeito

de um trovão. Estava ali, diante dela, trazendo sobre os ombros um filhote de javali com o focinho manchado de sangue.

— Eu... eu achei que você tinha partido! - balbuciou ela, mal refeita da emoção.

— Partido!... Pois sim! Disse a mim mesmo que precisávamos comer alguma coisa, e tive a sorte de encontrar um porquinho selvagem. E encontro-a chorando...

— Achei que me tinha abandonado.

Os olhos do homem se arregalaram, e suas sobrancelhas se ergueram como se ele ouvisse a coisa mais estupidificante da vida.

-        Ah, pois muito bem! Pois muito bem! E preciso que me tome por um bom tratante! Abandoná-la, eu... abandoná-la, eu, que...

Sua tez obscureceu-se com um negro furor.

-        ...eu, que antes morreria sobre seu corpo - rosnou ele, com uma violência selvagem.

Atirou a caça no chão e foi catar pedaços de madeira seca, que juntou no centro da gruta, tudo isso com gestos de cólera contida. Seu isqueiro recusou-se a funcionar, e ele blasfemou como um templário.

Angélica foi ajoelhar-se perto dele e pousou a mão sobre a dele.

— Perdoe-me, Colin. Sou uma tola. É verdade que eu devia ter lembrado que você arriscou a vida inúmeras vezes por seus irmãos. Mas eu não era um deles e sou apenas uma mulher.

— Mais uma razão - resmungou ele.

Consentiu em levantar os olhos e encará-la, e a dureza de seu olhar suavizou-se enquanto lhe segurava o queixo.

-        Ouça-me bem, pequena, e de uma vez por todas. Você é como nós, cativa cristã na Barbaria. Você foi atada à coluna e torturada e não cedeu. Suportou a sede e o medo sem se queixar nunca. Uma mulher tão corajosa como você nunca conheci, mesmo viajando por todos os portos do mundo. Você vale todas as outras juntas, e se os companheiros caminharam como caminharam, sem se desencorajarem, foi porque você estava conosco, com sua coragem, e eles não iam ceder na sua frente. Agora estamos sozinhos, você e eu. Estamos ligados à vida e à morte. Ganharemos a liberdade juntos. Mas, se você morrer, morrerei a seu lado, é um juramento!

-. Não deve dizer isso - murmurou çla, qua~se assustada. - Sozinho, Colin, você teria toda a chance de ser bem sucedido.

-        Você também, minha amiga. Você é feita de aço, do belo aço macio da espada do caro Kermoeur. Acho que agora a conheço bem.

A luz azul de seu olhar, muito compenetrado, velou-se de um sentimento não articulado, e sua testa rude franziu-se sob o esforço do pensamento.

-        Você e eu, juntos... somos invencíveis!

Angélica estremeceu. Quem já lhe dissera isso? Outro rei: Luís XIV! E na ocasião a luz dos olhos dele penetrara-a da mesma maneira. Pensando bem, nãoVhavia entre o normando, astuto, de inteligência penetrante, de um vigor excepcional, e o grande soberano da França analogias de caráter e de temperamento? Os povos reconhecem os que são feitos para reinar, e, na servidão, Colin se impusera como rei à maneira antiga, pela generosidade, pela sabedoria e pela força iísica.

Angélica sorriu-lhe.

-        Você me devolveu a confiança, Cohn. Confiança em você e em mim mesma. Acredito que devemos ser salvos.

Um arrepio a percorreu.

— Tem de ser assim. Eu jamais teria coragem para ser torturada outra vez. Aceitaria qualquer coisa...

— Basta! Você terá coragem. Sempre se tem coragem. Uma segunda, uma terceira vez, e cada vez achando que é a última... Acredite-me!

Examinou com um meio sorriso irónico as cicatrizes das mãos.

-        É uma coisa boa não querer morrer - disse. - Contanto que não se tenha medo de morrer. A morte faz parte do nosso jogo, nós, os vivos. Sempre achei que era preciso considerá-la uma boa companhia, ligada a nossos passos. Assim, caminhamos com a vida e com a morte como companheiras. Ambas têm os mesmos direitos sobre nós. Não se deve transformá-las em espantalho. Nem a uma nem a outra. E assim, e é o jogo. O importante é que o espírito não fique pelo caminho... Chega de conversa, pequena. Vamos nos oferecer um festim de Baltazar. Olhe esse bom fogo que nos alegra o coração. O primeiro que contemplamos desde há muito tempo...

— Não é perigoso? E se os mouros notarem a fumaça?

— Eles estão dormindo sobre os louros. Acham que estamos todos mortos. O veneziano e o basco... sujeitos corajosos!... tiveram a ideia de dizer-lhes que os outros tinham sido devorados pelos leões, que só restavam eles. Perguntaram o que aconteceu com a mulher. Morreu na montanha, picada por uma serpente. A notícia foi levada a Mulay Ismael. Assim, está tudo em ordem. Portanto, azar. Acendamos uma fogueira. Precisamos erguer o moral. Não acha?

-        Já me sinto melhor! - disse ela, olhando-o com afeição.

A estima de Colin Paturel reanimava-lhe as forças. Era a melhor recompensa à constância de que ela dera provas até então.

— Agora que sei que você é meu amigo, não terei mais medo. A vida é simples para você, Colin Paturel.

— Claro! - exclamou ele, anuviando-se subitamente. - Às vezes penso que talvez não tenha conhecido o pior. Basta! Não serve para nada ferir-se por antecipação.

Depois de esfregar o filhote de javali em natrão, timo e bagas de zimbro, assaram-no usando a espada do pobre marquês como espeto. Durante uma hora, toda a sua atenção concentrou-se na preparação do festim. O odor delicioso da carne grelhada os fazia arder de impaciência, e foi com voracidade que comeram os primeiros bocados, contendo com dificuldade os suspiros de satisfação.

— É bem o momento de fazer belos discursos sobre a eternidade - disse finalmente o normando, trocista. - É sempre a barriga que fala em primeiro lugar. Bendito porquinho, eu lamberia os dedos até o cotovelo!

— Nunca comi nada tão bom - afirmou Angélica, convicta.

— No entanto, parece que as sultanas são alimentadas a verde-lhas. O que é que se comia no harém? Conte-me, para diversificar um pouco o cardápio!

— Não, não quero lembrar-me do harém.

Calaram-se. Alimentados, refrescados pela água límpida que corria ao pé da montanha e com que o normando enchera a cabaça, ao retornar da caça, deixavam-se invadir pelo prazer do repouso.

-        Colin, onde você adquiriu tanta ciência profunda? Suas palavras abrem a porta a vastas meditações, notei com frequência. Quem o ensinou?

-        O mar. E o deserto... e a escravidão. Pequena, tudo aquilo com que se topa contém ensinamentos da mesma forma que os livros. Não vejo por que o que se tem aqui dentro - disse, batendo na cabeça - não serviria para refletir de vez em quando.

De repente pôs-se a rir. Quando ria, o brilho de seus dentes brancos, entre a barba hirsuta, o rejuvenescia, e seus olhos, geralmente graves e duros, cintilavam de malícia.

— Vastas meditações!... - repetiu ele. - Você tem cada uma! Porque eu disse que a vida e a morte nos fazem companhia? Não lhe parece evidente?... Como é que você vive, então?

— Não sei - disse Angélica, balançando a cabeça. - Acho que no fundo sou muito tola e superficial e que nunca refleti sobre nada.

Calou-se, suas pupilas dilataram-se, e ela leu no rosto do interlocutor a mesma expressão de inquietação. Ele a segurou pelo pulso. Esperaram, contendo o fôlego.

O ruído que os alertara repetiu-se. Relinchos de cavalos do lado de fora!      

O homem se levantou e aproximou-se silenciosamente da entrada da gruta. Angélica foi atrás. Ao pé da colina, havia quatro cavaleiros árabes que erguiam a cabeça para os rochedos de onde tinham visto sair a. fumaça suspeita.

Os capacetespontudos, brilhando acima dos albornozes de um branco imaculado, revelavam soldados do exército do Rif, incumbido de sitiar as cidades espanholas da costa e de que havia alguns regimentos acantonados no interior. Um dos mouros portava um mosquete, os outros estavam armados de lanças.

Três desmontaram e começaram a escalar a colina, enquanto o árabe de mosquete continuou montado, vigiando os cavalos.

-        Passe-me o arco - disse Colin Paturel a meia voz. - Quantas flechas restam na aljava?

— ires.

— Eles são quatro! Tanto pior! Daremos um jeito. Sempre de olhos fixos nos mouros que avançavam, ele tomou

a arma, pousou o pé sobre uma rocha a sua frente a fim de se equilibrar bem e assestou a flecha. Os gestos eram seguros, mais lentos do que de hábito. Atirou. O cavaleiro do mosquete caiu atravessado sobre a sela, e seu grito perdeu-se entre os relinchos dos cavalos assustados. Os árabes que subiam não entenderam de imediato o que acontecia.

Uma segunda flecha, em pleno coração, abateu outro.

Os dois restantes avançaram correndo.

Colin Paturel ajustou a terceira flecha e trespassou quase à queima-roupa o primeiro mouro que chegava. O outro teve um movimento de hesitação e de recuo. Bruscamente, virou as costas e disparou colina abaixo, na direção dos cavalos.

Mas o normando havia atirado ao chão o arco inútil. Pegando da maça, com alguns saltos alcançou o adversário, que o enfrentou, sacando da cimitarra. Giraram um diante do outro, observando-se, cautelosos como feras a ponto de dar o bote. Depois a maça de Colin Paturel entrou em ação.

Em poucos instantes, apesar do capacete, o árabe jazia com o rosto esmagado, a nuca partida. O normando continuou a golpeá-lo até ter certeza de que estava morto.

Em seguida aproximou-se do mosqueteiro. Estava morto. Nenhuma das flechas errara o alvo.

-        Era a minha arma quando eu caçava às escondidas nos bosques da minha Normandia, quando era jovem - confiou, sorridente, a Angélica, que o alcançara e acalmava os cavalos nervosos.

O horror de consumados atos mortíferos já fazia de há muito parte de sua vida ameaçada para que se detivessem neles. Nem a jovem teve mais do que um breve olhar na direção dos quatro corpos abatidos entre os tufos de zimbro.

-        Vamos pegar os cavalos. Montaremos dois e levaremos os outros. Vamos esconder os corpos na caverna, o que retardará as buscas. Como os cavalos não vão retornar sem cavaleiro à casbá, não vão dar o alerta logo, e só hão de dar-se conta da ausência deles muito mais tarde.

Os dois colocaram os capacetes pontudos, envolveram-se nos albornozes, presos por correias, e, depois de apagar os vestígios do massacre, dispararam a galope pela estrada.

Os habitantes da aldeia contariam, três dias mais tarde, aos alcaides lançados em busca dos soldados desaparecidos, que tinham visto passar dois cavaleiros, voando como andorinhas e levando, cada um, um cavalo de troca. Evitaram chamá-los ou pará-los, pois um pobre felá pode permitir-se tal gesto para com nobres guerreiros?

Os cavalos foram encontrados aos pés das montanhas do Rif. Acusaram-se os bandidos cujos atos perturbavam a região e enviaram-se para seus esconderijos expedições punitivas.

Colin Paturel e Angélica abandonaram os cavalos assim que chegaram aos primeiros aclives da montanha, onde apenas as mulas podiam viajar.

Era a etapa mais dura, mas a última. Ultrapassados os áridos contrafortes do Rif, apareceria o mar. Além disso, o normando, no início do cativeiro, residira dois anos na misteriosa cidade santa de Mechauane (Xauen) e conhecia muito bem "a região por onde deviam embrenhar-se. Conhecia-lhe as asperezas, os incontáveis perigos, mas também os atalhos mais curtos, e sabia que, quanto mais subissem, mais tranquilos estariam, ao abrigo de qualquer encontro perigoso. Seus únicos inimigos seriam a montanha, o frio das noites, o sol ardente do dia, a fome e a sede, mas os homens os deixariam em paz, e os leões seriam menos numerosos. Ainda precisariam ter cuidado _com~o.s javalis. Macacos, gazelas e porcos-espinhos não assustavam e forneceriam caça.

O normando conservara o mosquete e a munição, os víveres dos soldados, tirados das bolsas da sela, e os albornozes grossos e quentes que os protegeriam.

— Mais alguns dias e avistaremos Ceuta.

— Quantos dias? - perguntava Angélica.

Desconfiado, Colin se recusava a precisar. Como saber?... Com sorte, quinze dias... Sem sorte...

O azar surgiu uma tarde em que se esfalfavam através de rochas ardentes. Angélica aproveitara uma curva que a ocultava do companheiro para sentar-se numa pedra. Não queria que ele a visse fraquejar. Tanto repetira que a considerava infatigável! Mas ela estava longe de igualar-lhe a resistência. Ele nunca se cansava. Sem ela, certamente teria caminhado dia e noite, sem parar mais de uma hora.

Angélica recobrava o fôlego, sentada sobre sua pedra, quando sentiu uma dor violenta no tornozelo. Inclinando-se, teve tempo de perceber o brilho rápido de um réptil, desaparecendo sob as pedras.

-        Fui picada por uma serpente.

A lembrança de algo de inelutável enevoou-lhe o espírito. "A mulher morreu, picada por uma serpente", disseram o veneziano e o basco antes de morrer. O passado antecipara o presente, mas o tempo não existia, e o que está escrito está escrito!...

Ainda assim, teve o reflexo de desatar o cinto e amarrá-lo acima do joelho. Ficou ali, gelada, os pensamentos entrechocando-se na cabeça.

"O que dirá Colin Paturel? Jamais me perdoará isto!... Não posso mais andar... Vou morrer..."

A grande figura do companheiro reapareceu. Como não a via, ele fizera meia-volta.

-        O que há?

Angélica tentou sorrir.

-        Espero que não seja grave, mas... acho que fui mordida por uma cobra.

Ele se aproximou e ajoelhou-se para examinar a perna, que começava a escurecer e a inchar. Depois puxou a faca, experimentou o fio da lâmina no dedo, acendeu rapidamente alguns gravetos e aqueceu a lâmina até deixá-la vermelha.

-        Que vai fazer? - perguntou a jovem, assustada.

Ele não respondeu. Pegou-lhe a perna com firmeza e vigorosamente cortou-lhe um pedaço de carne no local da picada, ao mesmo tempo que cauterizava a ferida com a lâmina incandescente.

Sob a dor atroz, Angélica soltou um berro e desmaiou.

Quando voltou a si, o crepúsculo tombava sobre a montanha. Estava estendida sob um dos albornozes que lhes serviam de coberta, e Colin Paturel a fazia tomar uma xícara de chá de hortelã, borbulhante e fortíssimo.

-        Você está melhor, garota. O pior já passou.

E quando ela recobrou a lucidez:

— Tive de estragar-lhe a bela perna. Que pena! Você não poderá mais erguer o saiote para dançar a bourrée, minha amiga!... Mas tive de fazê-lo. Sem isso você não teria durado mais de uma hora!...

— Agradeço-lhe - disse ela, debilmente.

Sentia o ardor do ferimento, que ele pensara depois de haver aplicado folhas refrescantes. "As mais belas pernas de Versalhes..." Também ela, assim como os outros, levaria no corpo os vestígios do cativeiro na Barbaria. Vestígios gloriosos, sobre os quais se enterneceria ou faria uma careta ao enfiar com um suspiro as meias de seda com filetes de ouro... mais tarde. Ele a viu sorrir.

-        Bravo! A coragem continua aí. Vamos em frente.

Ela o olhou, um pouco espantada, mas já pronta a obedecer-lhe.

— Acha que vou poder andar?

— De modo algum. Não vai botar o pé no chão antes de oito dias, caso contrário a ferida pode infeccionar. Não tema nada. Eu a carregarei.

CAPÍTULO XXXII

O amor sob os cedros

Foi assim que continuaram a subida. O hércules normando mal se dobrava sob o novo peso e caminhava com o mesmo passo medido. Tivera de'abandonar a maça, que estorvava demais. Levava o mosquete e o saco de víveres pendurados a um ombro. A jovem ia-lhe às costas, com os braços passados à volta do pescoço dele. Colin sentia-lhe o perfume da cabeleira quando, às vezes, cansada, ela tombava a testa contra a nuca maciça de seu carregador. Isso era o mais duro, o mais difícil. Pior que a fadiga, que a marcha pesada, interminável, sob o olho frio da lua que os seguia através da paisagem desértica, projetando uma única sombra irregular no solo cinéreo.

Carregá-la, sentir aquele peso suave e opressivo sobre ele, sentir-Ihe a cintura entre as mãos que a seguravam...

Angélica censurava-se pela fadiga que impunha ao companheiro. Censurava-se por sentir-se bem demais, carregada assim como uma criança por aquele dorso vigoroso. Na verdade, os rudes ombros de Colin Paturel se haviam habituado a cargas mais esmagadoras durante os doze anos de escravidão. Famoso por sua força, fora submetido a tarefas sobre-humanas. Seus músculos, seu coração mesmo, exercitados para além das possibilidades humanas, tinham adquirido uma resistência extraordinária. Mal diminuía a marcha, seu fôlego tornava-se um nada mais rouco, elevando-se no silêncio da noite e dos vastos espaços, branco; sob o luar.

Fascinada e acreditando sonhar, Angélica olhava a beleza da paisagem que se desdobrava a sua vista. Caminhara noite após noite atenta apenas ao objetivo de não se distanciar. Agora notava que o céu possuía profundezas azuis intensas, e as estrelas, reflexos dourados. Um céu de iluminura, sobre ó qual se destacavam, desenhados por um fino pincel embebido em branco e prata, o perfil dos montes longínquos à esquerda e a orla dos riachos no fundo dos vales.

Hoje escapara mais uma vez à morte. O sangue cantava-lhe de novo nas veias o canto vitorioso: "Estou viva! Viva!"

Devia ter adormecido, pois de repente o céu se desdobrou a sua frente, rosa e vermelho. O homem continuava andando, em seu passo lento e metódico. Angélica teve um súbito impulso de ternura e veneração, e por pouco não beijou aquela carne tostada, tão próxima de seus lábios.

-        Colin - pediu -, oh, por favor, pare, descanse, você deve estar exausto.

Ele obedeceu em silêncio. Déixbu-a deslizar até o chão e foi sentar-se longe, enfiando a tesía entre os joelhos. Ela via-lhe os ombros largos moverem-se com a respiração acelerada.

"É demais", pensou ela. "Nem um homem com a resistência dele pode executar tal façanha!"

Se ao menos pudesse andar um pouco! Sentia-se descansada, cheia de forças e coragem. Mas, assim que tentou firmar o pé no chão, sentiu dores lancinantes que a fizeram entender que, se insistisse, poderia arruinar o ferimento e agravar seu estado. Manquejou até o saco de víveres, apanhou um punhado de tâmaras e figos secos e levou-os a Colin Paturel, junto com a cabaça de água.

O normando levantou a cabeça. Tinha os traços repuxados e o olhar vago. Fitou o alimento sem parecer vê-lo.

— Deixe disso - disse, rude. - Não se preocupe.

— Você não aguenta mais, Colin, e a culpa é minha. Oh, sinto muitíssimo!

— Deixe disso - repetiu ele, quase feroz.

Balançou a cabeleira de viking como um leão importunado.

-        Não se preocupe. Com uma hora de sono estará tudo bem.

Desabou pesadamente a testa sobre os joelhos. Ela se afastou, e depois de comer alguns frutos secos repousou também. O ar estava fresco e a léguas à volta não se via nenhuma aldeia, nenhum vestígio de vida humana. Era maravilhoso!

Como não tinha coisa melhor a fazer, adormeceu de novo. Quando reabriu os olhos, Colin Paturel retornava da caça, com um cabrito atravessado sobre os ombros.

-        Colin, você está louco! - exclamou Angélica. - Devia estar moído de cansaço!

O normando deu de ombros.

-        Por quem me toma, pequena? Por um alfenim da sua espécie?

Ele estava tristonho, taciturno, evitando encará-la. Angélica inquietou-se, receando que ele lhe ocultasse um novo perigo.

— Os mouros poderiam surpreender-nos aqui, Colin?

— Não creio. Para termos mais segurança, acenderemos o fogo na ravina.

A perna de Angélica tinha melhorado tanto que, com precaução, ela pôde descer até o riacho.

Foi ali que toparam com a última fera. Perceberam-na tarde demais, do outro lado do córrego. Era uma leoa, agachada na postura de um grande gato à espreita. Bastaria que desse um pulo para alcançá-los.

Colin Paturel imobilizou-se como uma estátua de pedra. Cravou os olhos na leoa e se pôs a falar lentamente. Alguns instantes depois, perplexo, o animal afastou-se em surdina. Viram-se-lhe os olhos reluzirem por trás de uma moita, depois o movimento das ervas a assinalar-lhe o caminho da retirada.

O normando soltou um suspiro de fazer girar todos os moinhos da Holanda. Passou o braço em torno dos ombros de Angélica e apertou-a contra si.

— Acho que o céu está do nosso lado. O que será que passou pelo cérebro desse animal para que nos deixasse em paz?

— Você lhe falou em árabe. Que foi que lhe disse?

— E eu sei? Nem me dei conta da língua em que falava. Só pensei que podia tentar me comunicar com ela, que entre mim e ela havia um meio de nos entendermos. Com um mouro isso seria impossível.

Meneou a cabeça.

-        Eu me entendia bem com os leões de Miquenez.

-        Eu me lembro - disse Angélica, tentando sorrir -, não quiseram comê-lo...

O homem pousou o olhar no rosto recomposto da jovem.

-        Você não deu um grito? Não fez um gesto?... Muito bem, minha amiga.

As cores voltavam à face de Angélica. O braço de Colin Paturel era uma fortaleza inviolável. Ela sentia-lhe o aperto como uma fonte de forças. Erguendo os olhos, sorriu-lhe com confiança.

-        Perto de você, não posso sentir medo algum.

Os maxilares do normando crisparam-se, e novamente seu rosto anuviou-se.

-        Vamos sair daqui - resmungou. - Não se deve brincar com o destino. Vamos para mais longe.

Encheram as cabaças, no riacho e procuraram um vão nas rochas, afastado da margem, para acender o fogo. Mas a única satisfação que lhes provocou a refeição foi mitigar a fome. A atmosfera continuava pesada. Calin Paturel, a testa vincada e preocupada, não descerrava os dentes. Angélica, depois de tentar inutilmente preencher o silêncio, deixava-se invadir por uma perturbação su-til que não conseguia definir e que lhe punha os nervos à flor da pele. Por que Colin Paturel estava tão sombrio e inquieto? Estaria irritado com ela-por se terem atrasado devido ao ferimento? Que perigo pressentia a ròndá-los, e o que significava aquele olhar rápido que às vezes lhe lançava por sob as louras sobrancelhas espessas?

O vento do anoitecer passou sobre eles como uma asa aveludada. A claridade extinta deixava frios matizes azuis, tons pastel escuros e suaves salpicavam as montanhas, o céu e os vales, adensando-se pouco a pouco. Na escuridão que avançava, Angélica voltou para Colin Paturel o rosto branco e angustiado.

-        Acho... acho que esta noite poderei andar - disse.

Ele meneou a cabeça.

-        Não, pequena, não poderá. Não tema nada. Eu a carregarei.

Sua voz soava impregnada de uma espécie de tristeza. "Oh, Colin!", por pouco ela não exclamou, chorando. "Que está acontecendo? Vamos os dois em direção à morte?"

Nas costas dele, com os braços à volta de seu pescoço, ela não sentia a paz da outra noite. A respiração do homem repercutia nela com as batidas surdas de seu coração e lembrava-lhe as tocantes confissões de volúpia que tantos homens arquejantes lhe haviam feito entre seus frágeis braços de mulher. Era ela, então, quem parecia carregá-los, e agora, na sonolência que a dominava, a testa enfiada na nuca úmida e musculosa do rude companheiro, ela sentia que soltava sobre ele o peso de sua invencível feminilidade.

O ar das montanhas descia até eles, quase gelado e carregado de odores penetrantes, de um perfume rico e misterioso, evocando beleza e suntuosidade.

O sol levante mostrou-lhes os cedros que cobriam o flanco da montanha com seus longos galhos que se abriam como tendas escuras à volta de troncos curtos e vigorosos. A sombra cobria um leve gramado, salpicado de flores brancas em forma de estrela, e por toda a parte pairava o odor único do bosque, bálsamo trazido em cada sopro de vento.

Colin Paturel vadeou uma corrente que descia em borbotões brancos, subiu mais um pouco e descobriu a entrada de uma caverna, pequena, atapetada de areia branca.

-        Paremos aqui - disse. - Parece que não é habitada por nenhum animal. Talvez possamos acender o fogo sem riscos.

Falava entre dentes, e sua voz estava muito rouca. Seria de esgotamento?... Angélica o seguia com os olhos, ansiosa. Havia algo de estranho nele, e ela não suportava mais não saber o que era. Estaria doente? Estaria gravemente doente? Nunca lhe ocorrera a ideia de que também ele pudesse ceder. Seria terrível! Mas ela não o abandonaria! Cuidaria dele, haveria de reanimá-lo, como ele a reanimara.

Ele se esquivava à interrogação muda dos grandes olhos verdes que o fixavam.

-        Vou dormir - disse, lacónico.

Saiu. Angélica suspirou. O lugar era encantador, fazia-a sonhar. Contanto que ele não estivesse ocultando alguma armadilha atroz que ainda viria abater-se sobre eles!

Dispôs sobre um pão chato os escassos víveres: figos secos, fatias do assado da véspera. As cabaças estavam vazias. O murmúrio da correnteza embaixo a atraiu. Desceu até lá sem muita dificuldade, lembrou-se em tempo de olhar à volta com precaução, mas ha,via apenas algumas aves de plumagem furta-cor esbatendo-se nas margens.

Angélica encheu as cabaças, depois lavou-se cuidadosamente na água muito fria. Sentia o sangue correr-lhe vivo sob a pele. Debruçou-se sobre uma bacia de água parada, no oco de uma rocha, e de repente viu-se como num espelho. Por pouco não soltou um grito de surpresa.        

A mulher que se refletia ali, loura, sob o índigo do céu, parecia ter vinte anos. Os traços afilados, os olhos aumentados por olheiras malva, habituados a espreitar o horizonte e que interrogavam com uma espécie de candor novo, a curva da boca sem pintura, gretada e descolorida, já não eram os de uma mulher com amargas experiências, mas os de uma garota sem afetação, que ainda se ignora e se entregassem disfarces. O vento áspero, o sol implacável, o esquecimentcde todo coquetismo nas angústias que a oprimiram haviam devolvido a-seu rosto, habilmente valorizado outrora, uma espécie-de virgindade. Sua tez estava horrível, claro: morena como a de uma cigana-, mas em contraste os cabelos pareciam louros como um raio de luar sobre a afeia. A magreza de seu corpo frágil, perdido nas dobras do albornoz de lã, a cabeleira solta, os pés descalços eram os de uma selvagem.

Desatou a bandagem da perna. A queimadura estava curada, mas a cicatriz seria' muito feia. Tanto pior! Filosoficamente, a jovem refez o curativo. Banhando-se há pouco, sentira a fineza da cintura, vira as próprias pernas torneadas e ágeis, pernas que haviam perdido o excesso de gordura ganho no harém. No final das contas, ela até que se saíra bem.

Debruçou-se mais uma vez sobre o espelho improvisado e sorriu a si mesma.

- Acho que ainda estou apresentável - disse às aves que a olhavam sem receio.

Enquanto subia o aclive, cantarolava. De repente interrompeu-se. Acabara de notar Colin Paturel, deitado sobre a grama entre as florzinhas brancas.

Estava com um braço sob a cabeça e não se movia.

A inquietação que ela sentia em relação a ele voltou a domina-la, e ela se aproximou silenciosamente para observá-lo.

O normando dormia. A respiração calma e regular erguia-lhe o largo peito peludo que o albornoz entreaberto descobria. Não, não estava doente. A pele tostada, a serenidade de seus lábios fechados, altivos no sono, até a postura de abandono, o rosto um pouco virado sobre o braço, um joelho levantado eram os de um homem em plena saúde, reparando as forças após um árduo trabalho. E, contemplando-o assim, adormecido sob os cedros, ela achou que ele se parecia com Adão. Havia muito de perfeição primitiva naquele corpo imenso e vigoroso, naquele homem simples, caçador errante, justiceiro, pastor de seu povo.

Ela se ajoelhou, atraída por ele. O vento fazia dançar uma mecha sobre a testa burilada, que ela tocou e afastou, suavemente.

Colin Paturel abriu os olhos. O olhar que cravou nela pareceu-lhe estranho. Instintivamente, ela recuou. O normando parecia em dificuldade para recobrar a lucidez.

— O que foi? - balbuciou ele, numa voz rouca. - Os mouros?

— Não, está tudo calmo. Eu o olhava dormir. Oh, Colin, não me olhe assim - gritou ela de súbito, fora de si -, dá-me medo! O que há com você há já alguns dias? Que está acontecendo? Se há algum perigo nos ameaçando, diga-me. Sou capaz de compartilhar suas preocupações, mas não posso suportar seu... sim, é isso, seu rancor por mim. Em certos momentos é como se me quisesse mal, como se me detestasse... Por quê? Por ter sido picada pela serpente e ter atrasado nossa marcha? Não entendo mais nada. Você era tão generoso! Eu achava... Colin, pelo amor de Deus, se você tem algo a me censurar, diga, mas não posso mais suportar... Se me odeia, o que será de mim?...

Lágrimas brotaram-lhe nos olhos. Perder o único e último amigo parecia-lhe a pior provação. Em pé agora, ele a examinava, de tal forma impassível que ela teria acreditado que ele não a ouvira. Seu olhar intenso pesava sobre ela, e Angélica pensou que Os cativos julgados pelo soberano, na senzala de Miquenez, não deviam se sentir à vontade.

-        O que lhe censuro? - disse ele, afinal. - É você ser o que é: uma mulher.

O cenho franziu-se, endurecendo as pupilas azuis, enegrecendo-as e tornando-as más.

-        Não sou um santo, minha bela. Você estaria enganada se imaginasse isso. Sou um marujo, um ex-flibusteiro. Matar, pilhar, correr os portos, andar atrás das garotas, era isso minha vida. E mesmo no cativeiro não mudei de gostos. Sempre precisei de mulher. Agarrava as que podia. Não podia fazer-me de difícil. Quando queria recompensar-me, Mulay Ismael me enviava uma de suas negras. A boa sorte era rara. Em doze anos, predominou jejum e abstinência!... Então, ao cabo de doze anos, quando de repente se passa a viver ao lado de uma mulher... Ele se animou, dissimulando o embaraço sob a cólera.

-        Será que não entende?... Será que não viveu antes de ser vendida a Mulay Ismael? No entanto, você tem os olhos bastante atrevidos para que se acredite nisso... Nunca se perguntou se, para um sujeito como eu, era suportável viver assim, dia e noite, com uma mulher... E que mulher!...

Suas pálpebras fecharam-se. Sua rude fisionomia iluminou-se com uma ingénua expressão de êxtase.

-        A mais bela quê já vi!

E continuou a falir, a meia-voz, para si mesmo:

-        Seus olhos, como o fundo do mar... e que me olham, e que me suplicam... Sua mão sobre a minha, seu odor, seu sorriso... Se pelo menos eu não soubesse como você é! Mas eu a vi... quando estava atada à coluna e os demónios negros aproximavam de você a tenaz incandescente..; Eu a vi na outra noite, quando você se banhava na cascata... E agora ainda tenho de carregá-la às costas...

Sua fúria explodiu de novo:

-        Não... não é suportável... O que Santo Antão suportou não é nada comparado com isto. Há dias em que eu preferiria, sim, preferiria estar preso à cruz, com os abutres a estalar o bico à volta da minha cabeça, ou pregado à Porta Nova... E você ainda me

pergunta por que me encolerizo!

Ergueu os punhos, tomando o céu como testemunha de seus tormentos. Depois, blasfemando, afastou-se a grandes passadas em di-reção à caverna.

A explosão deixou Angélica estupefata.

"Oh, então era só isso!", disse consigo.

Um sorriso aflorou-lhe aos lábios. A seu redor, um vento leve movia a vasta galhagem dos cedros e espalhava-lhes o odor penetrante. Os cabelos de Angélica acariciavam-lhe as faces e os ombros, seminus sob o albornoz de la que escorregara. Há pouco, na bacia de água, vira-se conforme Colin Paturel a via, com o oval afilado do rosto dourado onde os grandes olhos tinham transparências misteriosas. Lembrou-se de que tivera vontade de pousar os lábios sobre a nuca curvada do homem e de que, quando a noite caía, trazendo a angústia daquelas paragens selvagens, era dominada pela necessidade perdida de procurar refúgio contra a tepidez daquele peito vasto. Premissas não formuladas de um desejo mais profundo que lhe dormia na carne e que ela não quisera de modo algum despertar.

Agora que ele falara, o impulso eterno estirava-se nela como um pássaro. Seus membros repousados sentiam a vida circular-lhes nas veias. A vida!... Colheu uma florzinha branca, flor frágil das montanhas, perfeita e frágil, e levou-a aos lábios.

O peito dilatou-se. Respirou várias vezes profundamente. O medo recuara para trás do horizonte. O céu estava límpido, o ar, cândido e perfumado.

O mundo estava deserto.

Angélica ergueu-se. Descalça sobre o gramado macio, correu para a caverna.

Colin Paturel estava perto da entrada, apoiado à rocha. De braços cruzados, contemplava as distâncias amareladas e verde-claras que se estendiam desde os pés das montanhas, mas seus pensamentos deviam seguir outro curso, e seu dorso era o de um homem extremamente embaraçado, que pergunta a si mesmo como se safar da enrascada em que cometeu a tolice de se enfiar.

Não a ouviu chegar, e ela parou, olhando-o com ternura.

Caro Colin! Caro e valente coração! Indomável e modesto. Como era grande e largo!... Os braços dela nunca lhe dariam a volta...

Ela se insinuou para o lado dele, que só a viu quando ela apoiou a face em seu braço.

Ele estremeceu violentamente e se soltou.

— Então você não entendeu o que lhe disse há pouco, pequena? - disse ele, arrogante.

— Sim, acho que entendi - murmurou ela.

Suas mãos subiram suavemente pelo peito de Colin Paturel, em direção aos largos ombros. Ele recuou de novo e ficou vermelho.

-        Ah, não! - exclamou. - Não é isso!... Não, não entendeu. Não, não lhe pedi nada. Minha pequena! Minha menina!... O que é que você vai pensar?

Segurou-lhe as duas mãos, para mantê-la afastada. Se ela o tocasse, se ele sentisse outra vez aquela acariciante aproximação, sucumbiria, perderia a cabeça.

-        O que é que você vai pensar! Eu, que me esforcei tanto para que você não percebesse nada... Jamais teria aberto a boca, você jamais teria sabido de nada se não me tivesse pego desprevenido... quando eu despertava... de meu sono cheio de sonhos a seu respeito... Esqueça minhas palavras!... Eu me detestaria. Bem, eu sei... Não confio em mim! Você conheceu a escravidão das mulheres, que não é menos pior do que a dos homens. Já lhe basta ter sido vendida, passada de um amo a outro. Não se dirá que serei um amo a mais a tomá-la à; força.

Os olhos de Angélica-enchiam-se de luz. As mãos de Colin Pa-turel passavam-lhe seu calor, e o rosto rude dele parecia-lhe tocante em seu embaraço'. Ela nunca notara que seus lábios eram tão carnudos e frescos por entre a barba loura. Claro, ele era forte o suficiente para mantê-la afastada, mas não conhecia o poder do olhar de Angélica. E èla se aproximou de novo, erguendo os braços para ele.

— Pequena -.murmurou ele -, vai-se embora... Sou apenas um homem...

— E eu - disse ela, com um riso trémulo - sou apenas uma mulher... Oh, Colin, caro Colin! Já não temos coisas suficientes a suportar, coisas acima de nossas forças?... Creio que esta nos é dada para nos consolar.

E pousou a testa no peito dele, como obscuramente tivera vontade de fazer durante aquela dura viagem. E ela se inebriava com o vigor dele, com o perfume masculino que finalmente ousava saborear, tocando com os lábios, em beijinhos tímidos, aquela carne vigorosa.

O normando recebeu aquela confissão muda como uma árvore recebe o raio: com um estremecimento que o abalou inteiro. Inclinou-se. Uma surpresa sem limites o invadia. Aquela criatura, um pouco orgulhosa demais, um pouco inteligente demais para ele, pensava às vezes, que o destino lhe dera como companheira naquela cruel odisseia, eis que a descobria mulher, como as outrás, meiga e insistente, como aquelas, nos portos, que se penduram aos belos rapazes de barba loura.

Colada a ele, ela não podia ignorar a paixão que o possuía e a que ela respondia com um movimento imperceptível de todo o seu corpo tentado, tímido por pudor, mas já delirante, chamando-o em silêncio com aquele movimento de garganta das pombas apaixonadas que têm certas mulheres deprimidas pelo desejo.

Desvairado, ele a ergueu contra si para olhá-la no rosto.

-        Será possível! - murmurou.

Como única resposta, ela se deixou cair sobre o ombro dele.

Então ele a levou nos braços. Tremia. Levou-a até o fundo da caverna, como se tivesse medo de ver à luz a própria felicidade ofuscante. Levou-a para onde as sombras eram profundas, e a areia, fria e macia.

O impulso mais instintivo do mundo, passando pelo sangue de um Colin Paturel, tinha a intensidade de uma torrente, desvas-tando tudo a sua passagem, até a defesa que seu espírito delicado durante tanto tempo opusera à violência de seus desejos.

Libertado, ele só podia abandonar-se selvagemente, ébrio do poder que ela lhe concedera. Devorava-a como um esfomeado, não se cansando daquela nudez macia, de senti-la contra si, de sentir-lhe a pele de mulher, os cabelos fluidos, a surpresa exaltante e voluptuosa daqueles seios tenros sob suas mãos.

Tão ávido e impaciente, depois de tantos tormentos secretos, que quase a violentava, exigindo incansavelmente a entrega daquele corpo, expirando sobre ela e permanecendo ali, silencioso, fulminado, os braços nodosos estreitando-a ciumentamente como ao mais precioso tesouro.

A escuridão era densa quando Angélica abriu os olhos. Lá fora o crepúsculo devia estar extinguindo-se.

A jovem moveu-se um pouco, entorpecida por aquele duro círculo de aço a sua volta: os braços de Colin Paturel. Ele sussurrou:

— Está dormindo?

— Não. Dormi.

— Não me quer mal?

— Bem sabe que não.

— Sou um brutamontes, hein, minha bela, diga... Mas diga!

— Não... Não sentiu que me fazia feliz?

— Verdade?... Então agora me deve amizade.

— Se você quiser... Colin, não acha que já é noite e que devemos partir?

— Sim, meu carneirinho.

Caminhavam alegremente sobre o duro atalho, ele carregando-a, ela repousando a cabeça contra a nuca sólida. Mais nada os separava. Haviam selado a aliança de suas vidas ameaçadas, e os perigos e sofrimentos já não viriam deles mesmos.

Colin Paturel não andaria mais com os nervos tensos, atormentado pelo fogo do inferno como um danado, o espírito obcecado pelo medo de se trair. Angélica não teria mais de se assustar com os olhares maldosos e a selvageria dele. Não tremeria mais de solidão. Quando tivesse vontade, poderia pousar os lábios naquela cicatriz rugosa que ele tinha no pescoço desde que Mulay Ismael lhe impusera durante dez dias uma coleira cheia de pontas.

-       Calma, pequena - dizia ele,, rindo -, fique tranquila. Ainda temos estrada a vencer.

Morria de vontade de puxá-la para ele, tomar-lhe os lábios, deitá-la na areia, sob a lua, para reencontrar a embriaguez que saboreara junto dela. Dominou-se. Ainda tinham estrada a percorrer, sim, e a pequena estava cansada. Não devia esquecer que ela passava fome e que fora mordida por uma daquelas cobras imundas! Por um instante esquecera completamente isso. Bruto que era!... Nunca pensara muito em ter atenções com urna mulher, mas, com esta, aprenderia.

Se ele pudesse cumulá-la de satisfações, poupar-lhe toda dificuldade! Se pudesse fazer surgir diante dela uma mesa coberta de pratos deliciosos, oferecer-lhe o abrigo "daquele grande leito quadrado, coberto de almofadas brancas... com ramos de pervinca nos quatro cantos", de que fala uma velha canção de sua terra... Em Ceuta tomariam juntos a água da fonte com que Ulisses se deleitou durante sete anos, enquanto fora prisioneiro dos olhos de Calip-so, a filha de Atlante. É o que contam os marinheiros...

Ele caminhava, sonhando acordado. Ela dormia recostada a ele, cansada. Ele não estava cansado! Carregava às costas toda a alegria do mundo.   

Ao alvorecer, pararam. Deitaram-se numa pradaria de erva baixa. Já não procuravam refúgios, certos agora de estarem sozinhos. Seus olhos interrogaram-se mutuamente. Agora ele já não tinha medo dela. Queria saber tudo dela, e pôde contemplar-lhe o rosto de moribunda feliz, inclinado sobre a cascata de belos cabelos. Maravilhado, ele se extasiou.

— Como você gosta do amor!... Eu não teria imaginado.

— Também gosto de você, Colin.

— Psiu! Nada de dizer essas palavras... Ainda não. Sente-se bem agora?

— Sim.

— E verdade que lhe dei prazer?

— Oh, sim, muito!

— Durma, meu carneirinho.

Privados de tudo, gozavam, esfomeados, do amor. O impulso que os levava a unir-se era tão poderoso quanto o que os teria levado para uma fonte, para dali extraírem a força de sobreviver. De seus abraços jorrava o esquecimento de todas as dores e a vingança contra o destino, levando-os sobre as águas vivas da esperança, e eles saboreavam nos lábios um do outro a sublime descoberta de que o amor foi criado para o consolo do primeiro homem e da primeira mulher e para lhes dar a coragem de levar a bom termo a dura peregrinação terrestre.

Angélica nunca estivera entre os braços de um homem tão alto e forte. Gostava de sentar-se sobre os joelhos dele, encolher-se contra aquela estrutura maciça, e, enquanto as vigorosas mãos dele a acariciavam, eles se beijavam, de olhos fechados, durante longo tempo, religiosamente.

— Lembra-se do que ordenei aos pobres companheiros? - murmurou ele. - "El? não é para nenhum de vocês e não pertence a ninguém..." E eis que a tomei e que é meu tesouro. Sou um perjuro!...

— Fui eu quem o quis.

— Eu disse aquilo para me defender de você. Quando a apertei nos braços no jardim de Rodani, o sangue já me fervia. Então impus as barreiras. Assim, eu me dizia: "Colin, você será forçado a resistir..."

— Você tinha um ar tão severo, tão rude!

— E você não dizia nada, nunca. Suportou tudo com humildade e como que desculpando-se por estar ali. Sei de todas as vezes em que teve medo, as vezes em que não aguentava mais. Já tinha vontade de carregá-la. Mas havia o pacto com os camaradas.

— Foi melhor assim. Você tinha razão, Majestade.

— Às vezes, quando a observavam, você sorria. Seu sorriso é o mais belo de tudo o que gosto em você. Você me sorriu quando a serpente lhe picou e me esperava no caminho... Como se tivesse medo de mim, mais do que da morte... Bom Deus! Eu não sabia o que era a dor ate aquele instante em que imaginei que você estava perdida. Se você morresse, eu me teria deitado a seu lado e nunca mais me levantaria!

- Não me ame tanto, Colin, não me ame tanto! Mas beije-me outra vez.

CAPÍTULO XXXIII

A última etapa

Passo a passo, seixo após seixo, avançavam. O Rif em torno deles mudara. Os cedros e as vertentes verdejantes haviam desaparecido. Com isso, a caça se tornara rara, assim como as nascentes. A fome e a sede recomeçaram a atenazar os fugitivos. Mas a perna de Angélica sarara de todo, e ela acabara convencendo o companheiro a deixá-la andar um pouco. Avançando tranquilamente, andavam de dia e de noite, por pequenas etapas, galgando lentamente os desfiladeiros e as gargantas, entre as falésias escuras e as urzes monótonas.

Angélica já não ousava perguntar se ainda estavam longe. O objetivo parecia recuar indefinidamente com a tela avermelhada das montanhas. Era preciso andar, andar sempre!

Angélica parou.

"Desta vez, vou morrer", pensou.

A fraqueza dominou-a, tornou-se imensa. Em seus ouvidos nascia um zumbido confuso, um carrilhão de igreja, e esse sinal premonitório encheu-a de medo.

-        Desta vez, é a morte...

Caiu de joelhos, soltando um grito débil. Colin Paturel, que já estava quase no cume de uma falésia cuja aresta se desenhava duramente sobre o céu implacável, desceu até ela.

Ajoelhou-se, ergueu-a contra si. Ela soluçava, sem lágrimas.

-        O que foi, meu bem? Vamos, um pouco mais de coragem...

Acariciava-lhe a face e beijava-lhe os lábios ressecados como que para insuflar-lhe sua força inesgotável.

-        Levante-se, vou carregá-la um pouco.

Mas ela balançou a cabeça, desesperada.

-        Oh, não, Cohn... Desta vez é tarde demais. Vou morrer. Já ouço sinos de igrejas que dobram por mim.

— Tolices! Coragem. Além daquela falésia... Ele parou, o olhar vagamente fixo; atento.

— Que foi, Colin? Os mouros?

— Não, mas eu... eu também ouço...

Ergueu-se bruscamente e gritou numa voz embargada:

-        Estou ouvindo os sinos!

Como louco, pôs-se a correr para o topo da falésia. Ela o viu agitar os braços e berrar alguma coisa que não ouviu. Mas, esquecendo toda a fadiga e sem se preocupar com as pedras pontudas que a feriam, ergueu-se e apressou-se.

-        O mar!!!

Era isso o que gritava o normando. Como ela chegava, ele agarrou-a pelo braço, puxou-a contra si, abraçou-a desvairadamente, e ficaram ambos ali,'fascinados, não podendo acreditar nos próprios olhos. Diante deles estendiam-se o mar com ondas douradas e à esquerda uma cidade pontilhada de campanários, bem encerrada dentro de suas muralhas.

Ceuta! Ceuta, a Católica. Eram os sinos da Catedral de Saint-Ange, tocando ò ângelus, que eles tinham ouvido e tomado por uma alucinação-de seu espírito esgotado.

-        Ceuta! - murmurou o normando. - Ceuta!

Depois se recompôs, recobrando a mente prudente e desconfiada. Pois Ceuta também era a cidade sitiada pelos mouros!... Um longínguo tiro de canhão fez ressoar os contrafortes do monte Acho, e uma nuvem de fumaça floresceu junto às muralhas para se evaporar suavemente no tranquilo crepúsculo.

-        Vamos por ali - disse entre dentes Colin Paturel, levando a companheira para o abrigo dos rochedos. Enquanto ela descansava, ele subiu, sorrateiro.

Voltou, depois de avistar o acampamento dos mouros e suas mil tendas empenachadas de auriflamas verdes, bem ao pé da falésia. Por pouco, em sua caminhada arrojada, os dois não tinham topado com as sentinelas.      

Agora era necessário esperar pela noite. Ele tinha um plano! Antes que a lua subisse no céu, desceriam até o sopé da montanha e ganhariam a praia. De rochedo em rochedo, tentariam atingir o istmo sobre o qual a cidade era construída. Eles se arrastariam até a base da muralha e procurariam fazer-se reconhecer pelas sentinelas espanholas.

Quando a escuridão estava suficientemente densa, deixaram armas e bagagens para trás e desceram, retendo o fôlego, temendo até a queda de um pedregulho. Ao atingirem a praia, ouviram trote de cavalos. Três árabes passaram, retornando ao acampamento. Por sorte seus ferozes lebreiros não os acompanhavam.

Assim que' os cavaleiros se distanciaram, Colin Paturel e Angélica atravessaram a praia correndo e se atiraram por entre os rochedos da margem. Meio submersos, começaram a avançar, de saliência em saliência. Tateavam, esfolando-se nas asperezas das conchas, de vez em quando tropeçando num buraco, içando-se novamente, sempre tomando cuidado para não se erguerem, pois aos poucos a claridade da lua se espalhava a sua volta. A massa alta da cidade parecia próxima, com suas ameias prateadas, seus do-mos e seus campanários erguidos contra o céu estrelado.

A visão com que haviam sonhado tanto decuplicava-lhes a coragem.

Já não estavam longe da primeira torre, erguida numa saliência fortificada, quando o ruído de vozes árabes, mesclando-se ao leve sopro da ressaca, os imobilizou, colados à rocha viscosa, querendo fundir-se com ela. Apareceu um grupo de cavaleiros mouros. Os capacetes pontudos brilhavam ao luar. Desmontaram e se instalaram na praia, onde acenderam uma grande fogueira.

A apenas alguns passos dos fugitivos, que, encharcados, se agarravam às pedras, eles se instalavam para a vigília. Colin Paturel ouviu-os conversar. Não gostavam, diziam, da tarefa que o alcaide lhes impunha: vigiar bem embaixo das muralhas de Ceuta. Uma boa posição para, logo que amanhecesse, levar uma flecha no coração, disparada por um daqueles malditos arqueiros espanhóis. Mas o Alcaide Ali dizia que aquele lugar tinha de ser guardado de noite, pois era por ali que os metadores faziam passar os cristãos fugidos.

- Eles partirão ao amanhecer - cochichou o normando para Angélica. - Temos de aguentar.

Aguentar, meio submersos na água fria, o sal sobre as feridas, batidos pela ressaca, lutando contra o cansaço e contra o sono para não se soltarem...

Finalmente, pouco antes da aurora, os mouros se agitaram, selaram os cavalos, e assim que o sol avermelhou o horizonte saltaram para a sela e galoparam para o acampamento.

Quase sem forças, Colin Paturel e Angélica içaram-se para fora da água e se arrastaram de joelhos, ébrios de cansaço. Quando retomavam fôlego, outro grupo de cavaleiros mouros apareceu detrás da montanha e avistou-os. Soltaram exclamações roucas e fizeram meia-volta, indo na direção deles.

-        Venha - disse Colin Paturel a Angélica.

O espaço que se estendia diante deles até a cidade pareceu-lhes imenso como o deserto. De mãos dadas, corriam, voavam, não sentindo mais os pés descalços dilacerados, animados por um único pensamento: correr, correr, chegar à porta.

Os árabes que os perseguiam estavam armados de mosquetes, arma mais difícil de manejar a galope. Um arcabuz não teria errado o alvo que eles ofereciam, a descoberto, sobre o terrapleno arenoso. Mas as balas ricocheteavam de ambos os lados deles.

De repente Angélira teve_ a impressão de que a sua frente surgiam outros cavaleiros";

-        Desta vez está acabado... Estamos cercados.

Seu coração explodiu, rompeu-se. Ela tropeçou, rolou por entre os cascos dos cavalos. A massa do normando abateu-se sobre ela, que desmaiou, levando o eco da voz dele, entrecortada, arquejante:

-        Cristãos!... Cativos cristãos... Em nome de Cristo, amigos!...Em nome de Cristo!...

CAPITULO XXXIV

Ceuta, a Católica, e o Marquês de Breteuil

-Por que você pôs tanta pimenta no chocolate, David? Já lhe disse cem vezes: menos pimenta, menos, canela. Nada de fabricar aquela horrível mistura espanhola...

Angélica debatia-se e não via por que tinha de recomeçar o desgastante trabalho de impor o chocolate aos parisienses. Entendia que jamais conseguiria isso enquanto aquele estúpido David teimasse em colocar pimenta em grão e doses nauseantes de canela. Era para despertar um morto, mas de náusea! Ela afastou a xícara com violência, sentiu o líquido queimá-la e ouviu uma pequena exclamação desolada.

Abriu os olhos com esforço. Estava num leito de lençóis brancos inteiramente manchados pelo horrível chocolate negro que acabava de virar. Uma mulher, cuja mantilha emoldurava um belo rosto de morena, tentava limpar o desastre.

-        Sinto muitíssimo - balbuciou Angélica.

Imediatamente a mulher pareceu encantada. Pôs-se a falar loquazmente em espanhol, apertou com efusão as mãos da jovem e acabou colocando-se de joelhos diante de uma imagem da Virgem vestida de ouro e coroada de diamantes, sob a lâmpada a óleo de um pequeno oratório.

Angélica entendeu que sua anfitriã agradecia a Nossa Senhora por finalmente haver devolvido a saúde à pobre francesa que não cessava de delirar há três dias, consumida pela febre. Depois, a espanhola chamou uma criada moura, e ambas trocaram com presteza os lençóis, substituindo-os por outros, imaculados, bordados com flores e cheirando a violeta.

Era uma sensação indescritível estar deitada assim entre lençóis, sob o baldaquino de um leito enorme com colunas de madeira dourada. A enferma virou a cabeça com cuidado. Ainda tinha a nuca entorpecida e dolorida. Os olhos ardiam, desabituados à penumbra. Por uma janela gradeada com arabescos de ferro forjado, a ofuscante claridade do exterior lançava parcimoniosos raios dourados, desenhando sobre o lajeado de mármore negro o reflexo da grade. Mas o resto do aposento^ onde se amontoavam móveis e bibelôs espanhóis, dois pequenos lebreiros pretos e até um anão de lábios grossos, disfarçado de pajem, conservava o mistério en-sombrecido do harém. Às vezes surdas detonações repercutiam até aquele refúgio acolchoado da cidadela, e Angélica se lembrou: os canhões de Ceuta!...

Ceuta, ponta extrema da Espanha, -agarrada a seu rochedo ardente e fazendo retinir seus sinos na terra de Maomé. Os carrilhões da catedral cem vezes atingida e lascada pelas balas e pela metralha ainda se mesclavam ao eco surdo das peças de artilharia,        

Ajoelhada diante do oratório, a espanhola se persignava e recitava o ângelus, Para ela o momento era muito tranquilo, o eco dos canhões,, um. ruído muito familiar. Seu filho nascera em Ceuta, e agora o muchacho de seis anos era o primeiro a correr sobre as muralhas, com as outras crianças da guarnição, para insultar os mouros. O ódio ao mouro tstava no sangue do espanhol, cuja alma e olhar voltavam-se muito mais para a Africa do que para a Europa. O andaluz lembrava-se do opressor árabe que lhe legara a tez queimada e os dentes brancos, e o castelhano recordava-se do inimigo, expulso passo a passo durante séculos. A arte da guerrilha, sob um céu de fogo, era inerente às duas raças. A audácia dos espanhóis sitiados levava-os com frequência a deixar o abrigo dos muros para dar caça às tropas do Alcaide Ali.

Um grupo de caballeros, de capacetes de aço negro, a grande lança em riste, retornava de uma expedição noturna contra os mouros quando notou dois escravos cristãos fugitivos, correndo para a cidadela. Intervieram, colocando-se diante Hos árabes que os perseguiam, e fora entre eles que Colin Paturel e a companheira caíram.

Ocorreu uma violenta escaramuça. Por fim o grupo de espanhóis se retirara para dentro das cidades, levando consigo os dois cativos.

Angélica conhecia espanhol o suficiente para acompanhar o essencial do longo relato que lhe fazia a senhora, entrecortando a narrativa com olhadas para o céu.

A memória voltava-lhe, despertando uma a uma as dores lancinantes de seu corpo. Sentia os pés mortificados, cobertos de bolhas e cortes, a pele do rosto áspera e descascada, a magreza do corpo entre as almofadas, e via as próprias mãos, morenas como pão doce, com as unhas quebradas.

-        Santa Maria! Hm que estado se encontrava a pobre dama! Com a roupa encharcada, os belos pés em sangue, os cabelos soltos cheios de areia e água do mar! Mas foi coisa tão rara receber uma cativa fugida, que foram imediatamente procurar o Sr. de Breteuil, o enviado do rei da França.

Angélica estremeceu. Sr. de Breteuil? O nome não lhe era desconhecido. Encontrara o diplomata em Versalhes. Dona Inês de Los Cobos y Perrández exclamou com vivacidade:

-        Si, si!

O Sr. de Breteuil estava em Ceuta numa missão especial. Acabava de aportar no bergantim La Royale, a serviço de Luís XIV, vindo em socorro de uma grande dama que, dizia-se, caíra nas mãos de Mulay Ismael, durante uma perigosa viagem.

Angélica fechou os olhos, e seu coração esgotado acelerou-se. Então a mensagem confiada ao Padre de Valombreuze chegara ao destinatário! O soberano ouvira o apelo da trânsfuga. O Sr. de Breteuil, dotado de plenos poderes e carregado de presentes sun-tuosos para cativar o senhor berbere, devia tentar ir a Miquenez e negociar, custasse o que custasse, a libertação da imprudente marquesa.

O comunicado de que uma mulher semimorta, fugida dos haréns marroquinos, encontrava-se dentro das muralhas de Ceuta fora transmitido ao diplomata francês, que logo se dirigira ao pequeno convento dos padres redentoristas, para onde haviam levado os infelizes.

O gentil-homem tivera um gesto de recuo e de dúvida diante daquelas duas criaturas que, parecia, haviam atingido o último grau da privação... Não, aquela escrava miserável não podia ser a bela Marquesa du Plessis-Bellière.

A mão de Angélica deslizou suavemente sobre o lençol. Procurava alguma coisa, outra mão, calejada e boa, na qual fundir a sua. Onde estava o companheiro? Que fora feito dele? A angústia começou a pesar-lhe sobre o coração como uma pedra que não conseguia erguer. Não ousava perguntar nada. De resto, não tinha forças para falar. Lembrava-se de que' ele caíra com ela, entre os cascos dos cavalos espanhóis...

Agora o Sr. de Breteuil se encontrava diante dela, a sua cabeceira. Os cachos de sua peruca caíam cuidadosamente alinhados sobre o traje de seda bordado em ouro. Com o chapéu sob o braço, saudou-a, arqueando o pé, o salto vermelho numa bela postura.

— Senhora, trouxeram-me as mais felizes notícias acerca de sua saúde e apressei-me em vir vê-la.

— Agradeço-lhe, cavalheiro -7- disse Angélica.

Devia ter adormecido enquanto a espanhola falava, há pouco. A menos que tivesse sido ontem... Sentia-se completamente descansada. Com os olhos procurou Dona Inês. Mas esta se retirara; não aprovava a visita de um homem no apartamento íntimo das mulheres. Esses franceses têm costumes tão livres e levianos!...

O Sr. de Breteuil sentou-se num tamborete de ébano, tirou dentre as abas da roupa uma caixinha, ofereceu a Angélica e se pôs a chupar balas. Regozijava-se, dizia, de que sua missão tivesse conhecido sucesso tão rápido e completo. Graças - reconhecia - à coragem da Sra. du Plessis-Bellière, que escapara sozinha à servidão a que a arrastaram sua audácia inconsciente e seu desdém pelas ordens do rei, ele não teria de entregar os presentes previstos para Mulay Ismael. Ele perorava, um nadinha desdenhoso e superior. Deus sabia que a cólera do rei fora enorme ao descobrir a inqualificável conduta da Marechala du Plessis. O Sr. de la Rey-nie, responsável pela presença dela em Paris, fora seriamente repreendido, e pouco faltara para que o digno e alto magistrado não fosse privado de seu cargo de tenente de polícia, devido à negligência de seus serviços. A corte e a polícia indagaram-se longamente acerca dos meios utilizados pela encantadora foragida para sair de Paris. Dizia-se que seduzira um policial de alto posto, que a fizera passar, disfarçada em beleguim... Mas o mais engraçado fora a ingénua satisfação do Cavaleiro de Rochebrune, gabando-se diante do rei de haver recebido a Sra. du PJessis-Bellière em Malta. Não entendera em absoluto a frieza de que foi alvo depois disso.

O Sr. de Breteuil riu por trás dos punhos. Seu olho curioso - "o olho redondo e tolo de um galo", dizia-se ela - perscrutava a jovem deitada. Ele lambia os beiços antegozando as confidências que ela lhe faria e que ele seria o primeiro a ouvir. Ainda parecia cansada e como que ausente, mas sem dúvida recuperaria o espírito. Já se transformara, e ele tinha-dificuldade em reconhecer nela o tocante frangalho humano que vira poucos dias antes. Ele contou. Vira-a seminua em andrajos encharcados, os pés sangrando, pálida como cera, os olhos fechados marcados de olheiras roxas. Ela largada nos braços de uma espécie de gigante hirsuto que tentava introduzir-lhe entre os dentes a tigela de tisana ao rum preparada pelo irmão enfermeiro do lazareto. A que estado o cativeiro entre aqueles berberes cruéis pode reduzir seres civilizados!...

Senhor! Era possível? Seria aquela a soberba marquesa que ele vira dançar em Versalhes e que o rei levava pela mão ao longo do tapete verde?...

Ele não conseguia acreditar nos próprios olhos. Não, não fora para aquela mulher que Sua Majestade lhe pedira que fretasse um navio e utilizasse todos os seus talentos de diplomata junto de Mulay Ismael. No entanto, alguma coisa naquela miserável criatura, talvez os cabelos e a fineza dos traços, o fazia hesitar.

Então, indagado, o cativo que a acompanhava dissera que não sabia o sobrenome daquela mulher, mas que sabia que se chamava Angélica.

Então era ela mesma! Angélica du Plessis-Bellière! A bem-amada do Rei Luís XIV! A esposa dò grande marechal morto pelo inimigo! A rival da Sra. de Montespan e o adorno de Versalhes!...

Imediatamente fora levada para a casa do governador do lugar, Don Los Cobos y Perrández, cuja mulher se desvelara em cuidados por ela.

Angélica engoliu a saliva com dificuldade. A fome e a sede haviam-lhe criado reflexos estranhos. A vista de um simples alimento, ainda que algumas balas, a fazia desfalecer, mas, assim que comia, sentia-se mal.

- E meu companheiro, o que aconteceu com ele? - perguntou.

O Sr. de Breteuil ignorava. Os padres redentoristas deviam ter-se ocupado dele, alimentando-o e véstindo-o decentemente. O gentil-homem levantou-se e despediu-se. Desejava que a Sra. duPlessis se restabelecesse prontamente. Devia compreender que ele não queria demorar-se naquela fortaleza sitiada. Ainda aquela manhã uma bala de pedra viera rolar-lhe aos pés enquanto ele tomava a fresca sobre as muralhas. Era preciso ser espanhol, tão selvagem e ascético quanto o mouro, para se agarrar assim. Ele suspirou, varreu o chão com as plumas do chapéu e beijou-lhe a mão. :

Assim que ele saiu, Angélica pensou que tivera a impressão de ler-lhe no olhar uma ironia maldosa cuja causa não entendia.

A noite, Dona Inês íjudou-a a,Jevantar-se e a dar alguns passos. Na manhã seguinte, vestiu-se com trajes franceses que o Sr. de Breteuil trouxera na bagagem. A dama espanhola, "enterrada em an-quinhas e merinaques "à infanta", olhou com admiração e inveja os cetins suaves-preguearem-se à volta da delgada cintura da grande dama francesa. Angélica pediu-lhe cremes para tratar da pele. Escovou longamente os cabelos diante" de um espelho emoldurado com anjinhos que lhe lembrou uma bacia d'água sombreada pelo céu no oco de uma rocha. Via agora, como então, a cabeleira quase branca à força de ser descolorida pelo sol, à volta de um patético rosto de jovenzinha, nova e ansiosa. Com a mão sobre o peito, onde uma linha dourada sublinhava no decote a fronteira entre o bronzeado e a pele mais clara, ela se interrogava. Estava marcada, sim, profundamente. No entanto, não envelhecera. Era outra! Pôs um colar de ouro para dissimular a desgraciosa transição.

O espartilho a mantinha ereta. Não era sem prazer que sentia outra vez aquela peça contra o corpo, fyjas às vezes tinha gestos instintivos, à procura das dobras do albornoz, para puxá-lo sobre os ombros nus.

Em seguida examinou o apartamento, onde as negras tapeçarias suspensas não conseguiam dissimular as pedras da fortaleza.

Meio casbá, meio fortificação, o palácio, assim como todas as casas de Ceuta, assemelhava-se às construções mouriscas. Paredes lisas, voltadas para a rua, abriam-se para pátios internos, plantados de magros ciprestes e de onde as pombas haviam fugido, assustadas com a metralha. Apenas algumas cegonhas ainda pousavam na beira das muralhas, por hábito ancestral.

Mas, perto do apartamento de Angélica, uma galeria permitia observar as idas e vindas da ruela estreita que descia para o porto. Viam-se os mastros e as vergas reunidos no estuário fortificado, o mar muito azul e, ao longe, a linha rosa da Espanha.

Debruçada, com o leque na mão, ela olhava vagamente naquela direçao, para a costa da Europa, quando viu passar dois marujos pela casa, dirigindo-se ao porto. Iam descalços, boinas de lã vermelha na cabeça, os grandes sacos ao ombro. Um deles tinha argolas de ouro nas orelhas. A silhueta do outro pareceu familiar a Angélica. O que lhe lembravam aqueles ombros largos sob o traje azul dos marinheiros, amarrado à cintura por um cinto listrado de branco e vermelho? Foi só no momento em que ele passou sob a porta abobadada que precedia a escada do porto e que a claridade crua recortou em negro a alta estatura que ela o reconheceu.

-        Colin! Colin Paturel!

O homem voltou-se. A barba loura aparada, apertado naquela roupa de tecido grosso que substituíra a camisa e a calça esfarrapada do escravo, era mesmo ele.

Ela lhe fez sinais veementes. Tinha a garganta tão contraída que não conseguia chamar. Ele hesitou, depois voltou sobre os próprios passos, de olhos fixos na mulher bem vestida debruçada na galeria. Ela finalmente conseguiu gritar:

-        A porta está aberta. Suba, depressa!

As mãos tinham gelado sobre o leque. Quando se virou, ele já estava ali, à porta, rápido e silencioso na escada.

Tão diferente da visão que ela guardara, com a boina, a roupa pesada, os olhos duros e frios, que ela foi obrigada a olhar as tocantes cicatrizes dos pregos nas mãos dele para reconhecê-lo.

Alguma coisa ia morrer! Ela não sabia o quê, mas já sabia que não podia mais tratá-lo com a antiga intimidade.

-        Como está, Colin? - perguntou, com doçura.

-        Bem... e você também, pelo que vejo.

Ele a fitava com aqueles olhos azuis cuja luz incisiva, sob as arcadas das espessas sobrancelhas, ela conhecia: Colin Paturel, o rei dos cativos!

E ele a via com o cordão de ouro ao pescoço, a cabeleira bem penteada, as amplas saias rodadas e o leque na mão.

— Aonde vai com esse saco ao ombro? - perguntou ela, para romper o silêncio.   

— Descia para o porto. Embarco daqui a pouco no Bonnaventure, um navio de comércio que zarpa para as índias Orientais.

Angélica sentiu-se empalidecer até nos lábios. Soltou um grito:

-        Você partia... Partia sem me dizer adeus!...

Colin Paturel respirou profundamente, enquanto seu olhar endurecia ainda mais.

— Sou Colin Paturel, de Saint-Valéry-en-Caux - disse. - E você... você é uma grande dárna, ao que parece uma marquesa!... Uma mulher de marechal... Ep rei da França envia um navio para lhe buscar... Não é verdade?'

— Sim, é verdade - balbuciou ela -, mas isso não é razão para partir sem me dizer adeus.

— Poderia ser Uma razão - disse ele, sombrio.

Desviou os olhos e pareceu distanciar-se dela, deixar a penumbra do aposento onde pairava um perfume de incenso.

-        Às vezes, quando você dormia - murmurou ele -, eu a olhava e me dizia: essa pequena, não sei nada sobre ela, e ela quase nada sabe a meu respeito tampouco. Cristãos cativos na Barbaria, eis tudo o que nos aproxima um do outro... Mas... eu a sinto igual a mim. Ela sofreu, foi humilhada, aviltada... mas sabe erguer a cabeça como ninguém. Ela viajou, abriu os olhos sobre o vasto mundo. Sinto-a da minha raça... E, por isso, eu me dizia: um dia, mais tarde, quando tivermos saído deste inferno e desembarcarmos num porto de verdade, no nosso país... com o céu cinzento e a chuva caindo, então vou fazê-la falar um pouco... E se for sozinha no mundo... e, se quiser, então a levarei para a minha terra, para Saint-Valéry-en-Caux. Tenho uma choupana lá. Nada de grande, mas,

agradável, um teto de sapé e três macieiras. Também tenho um pé-de-meia escondido sob a pedra da lareira. Talvez, se o lugar lhe agradar, eu pare de navegar... ela parará de vagar por aí... Compraremos duas vacas...

Parou. O maxilar travou-se e, recompondo-se, ele assumiu aquele olhar altivo e temível com que enfrentava o cruel Mulay Ismael.

-        Aí está! Você não é para mim. E tudo!

A cólera o invadia. Ele rosnou:

-        Eu teria perdoado tudo... Teria aceitado tudo de seu passado. Mas isso não!... Se eu tivesse sabido, não a teria tocado nem com pinças. Nunca suportei gente da nobreza!

Angélica soltou um grito indignado:

-        Colin, não é verdade!... Você está mentindo. E o Cavaleiro de Méricourt... e o Marquês de Kermceur?...

Ele deu uma olhada furtiva na direção da janela, como se procurasse para além das muralhas de Ceuta, a Católica, os muros de Míquenez.

-        Isso era lá... era diferente... Éramos todos cristãos, escravos infelizes...

De repente baixou a cabeça, como que subjugado, como se ainda carregasse sobre os ombros as pedras enormes com que os chauchs de Mulay Ismael o esmagavam.

-        Poderei esquecer as torturas - disse com voz pesada -, poderei esquecer a cruz. Mas isso não poderei esquecer nunca... Você me feriu, Angélica. Você me feriu...

E ela sabia com que peso lhe feria o coração e que doravante ele levaria consigo a lembrança de duas vozes murmurando no silêncio do deserto.

"- Também gosto de você, Colin.

"- Psiu! Nada de dizer essas palavras... Ainda não. Sente-se bem agora?

"- Sim.

"- E verdade que lhe dei prazer?

"- Oh, sim, muito!

"- Dorme, meu carneirinho..."

Os cantos da boca de Angélica começaram a tremer, e a grande estatura de Colin Paturel esfumou-se, pareceu distanciar-se por detrás da névoa de suas lágrimas.

Ele se abaixou. Pegou o saco, lançou-o sobre o ombro e, levantando a boina de lã, resmungou:

-        Adeus, Angélica! Boa viagem!

E se foi.

- Não, não assim. Não com esse olhar hostil e revoltado. Colin! Colin, meu irmão!...

Ela se precipitou para a galeria, debruçou-se sobre a escada. Mas ele já estava embaixo. Será que, alçando os olhos, viu-lhe as lágrimas pelas faces? Será que as levaria consigo, como um bálsamo, para pensar os ferimentos?

Ela não saberia nunca! Ficou imóvel, o peito sacudido por soluços doloridos.

Depois foi caminhar sobre as muralhas. Não.podia mais permanecer trancada. Os tetos baixos, as paredes pesavam como os de uma prisão. Queria respirar o vento do mar para livrar-se da opressão. Ao largo passavam barcos berberes. Os canhões do porto defendiam a partida dos navios. Um se afastava, as velas estendidas, de um branco de giz contra o azul do céu. Seria o que levava Colin Paturel, o rei dos cativos, o pobre marinheiro normando e seu sofrimento? "Corao-a vida é imbecil!", pensava Angélica. E chorou baixinho, os olhos ofuscados pelo brilho das pequenas ondas que vinham quebrar ao pé da cidadela. .

0 Mediterrâneo! Nostra maré! Mater nostra!

Nossa mãe. Berço azul, vasto seio amargo da humanidade, levando todas as raças; embalando todos os sonhos.

Mediterrâneo,;.caldeirão de bruxa, agitando todas as paixões!

Angélica embarcara sobre ondas enganadoras e abandonara os farrapos de seu sonho e de sua esperança a miragens azuis e douradas...

Parecia que só realizara aquela viagem para apagar a imagem excessivamente tenaz do marido e, partindo para ressuscitá-lo, descobrir então que até a lembrança dele acabara por dispersar-se. Sobre aquelas costas que tinham visto ruir tantos impérios, tudo retornava ao pó!...

Cansada, pensou que sacrificara o bastante a um objetivo impossível, a uma quimera cruel. Como o pequeno Cantor, primeira vítima, gritando "Meu pai! Meu pai!", antes de desaparecer sob as ondas, ela gritara "Meu | amor!", mas ninguém lhe respondera.

Os fantasmas, as utopias dispersavam-se rio lento movimento das velas no horizonte, no odor do café, no nome de cidades misteriosas ou apaixonadas: Cândia, a Pirata; Miquenez, onde os es-t. cravos expiram nos jardins do paraíso; Argel, a Branca.

No momento chorava menos pelo próprio fracasso e decepção do que pelas imperecíveis recordações de rostos que tinham nome: Osman Ferradji, o grão-eunuco, Colin Paturel, o crucificado, e até o estranho Mulay Ismael, que elevava a prece ao nível das volúpias.

E até aquela personagem magra e sombria, o Mefisto dos mares, o Rescator, de quem o mago lhe dissera:

- Por que você fugiu dele? As estrelas contam a sua história e a dele, a história mais extraordinária do mundo!

A distância, a voz demente de D'Escrainville urrava: "É para você que ela mostrará seu rosto de amante, maldito Mago do Mediterrâneo..."

Mas nem isso era verdade. Mais uma vez o vento enganador em-baralhara todos os destinos, e seu rosto de amante ela só o oferecera a um pobre marinheiro que doravante o levaria como um tesouro roubado durante a mais incrível das aventuras.

Estava tudo embaralhado, tudo confuso. No entanto, Angélica começava a perceber uma verdade nesse caos. A mulher que contemplara na bacia, a que se lavara na nascente do oásis e que erguera ao luar o corpo rejuvenescido não tinha mais nada em comum com aquela que, menos de um ano antes, enfrentava a Sra. de Mon-tespan sob os painéis de Versalhes.

Aquela era uma mulher já tocada pela corrupção, ávida, finória, farejando intriga, à vontade entre águas turvas. Seu espírito obscurecera-se à força de comprometer-se com tanta gente repugnante.

A simples lembrança lhe dava náusea, vontade de vomitar. Nunca, pensou, nunca conseguiria viver entre eles! Lavara-se e purificara-se respirando o ar perfumado pelos cedros. O sol do deserto queimara as ervas venenosas.

Agora os veria sempre como eram. Não poderia suportar mais a estupidez vaidosa inscrita no rosto de um Breteuil e esforçar-se por responder com polidez.

Claro, ia buscar Florimond e Carlos Henrique. Mas depois partiria. Sim, iria embora!...

Para onde?...

Senhor, não se poderia criar nesta terra um mundo onde um Breteuil não tivesse o direito de desprezar um Colin Paturel, onde um Colin Paturel não tivesse que se sentir humilhado por seu amor inacessível por uma grande dama da corte?...

Um novo mundo, onde aqueles que tivessem bondade, coragem, inteligência seriam colocados no alto, onde ficariam embaixo aqueles que fossem desprovidos dessas qualidades?

Não haveria uma terra virgem para receber os homens de boa vontade? Onde, Senhor?... Em que terra?...

Retornou, meditando. Falaria naquela noite com o Sr. de Bre-teuil. O rei enviara um navio para buscá-k. Num momento de pânico e para escapar de uma situação sem saída, ela apelara a ele. Ele não se furtara. Mas Angélica^ não queria ver cerrar-se sobre ela as tenazes de uma armadilha antiga. Estava comprometida em relação ao rei? Concluiu que nesse sentido ainda não se formulara nada. Com poucas diferenças, as peças sobre o tabuleiro podiam estar nas mesmas posições que no ano anterior.

Sem mais esperar, naquela noite mesma, preveniu o diplomata francês de que achava que não devia retê-lo mais tempo em Ceuta. Ela prolongaria a estada, visto que sua saúde ainda era instável, mas o Sr. de Breteíiil^poderia, retornar à França e participar ao rei o bom êxito de su> missão. Mesmo que ele não tivesse precisado desembolsar as-despesas previstas, já que ela fugira sozinha de Mulay Ismael, nem por isso ela estava menos reconhecida a Sua Majestade pela inacreditável bondade que tivera para com ela.

O diplomatadeu-um sorrisinho e a olhou, regozijando-se com uma alegria maldosa. Jamais gostara dela. Lembrava-se da missão do Bei Bakhtiari, quando ela lograra êxito onde ele e seus colegas haviam fracassado, e o rei não perdera a ocasião de tratá-los de incompetentes.

Disse que a Sra. du Plessis-Bellière se equivocava. Imaginava que Sua Majestade não concebera um profundo rancor por ela? Era raro o exemplo de uma desobediência tão declarada, e não fazia parte dos hábitos do rei deixar passar uma maneira de agir próxima da rebelião. A Sra. du Plessis-Bellière, por sua influência, suas inúmeras relações, seu lugar de primeiro plano na corte, era uma personalidade importante demais para que seus atos não acarretassem reflexos desastrosos. Rira-se à socapa da "peça" pregada ao rei, e os panfletários de Paris se fartaram de pôr em versos a misteriosa evasão da bela amazona. Tantas contrariedades que o rej não estava disposto a perdoar facilmente...

Se sua incrível generosidade naturalmente o motivara a ir em socorro daquela que se colocara em situação tão triste, não convinha a sua dignidade de soberano passar facilmente a esponja sobre isso. E a prudência lhe aconselhava desconfiar de uma pessoa que repetia, infelizmente, o escandaloso comportamento das frondeu-ses, as rebeldes de outrora... Indignada, Angélica interrompeu a descompostura:

— Pois bem, mais uma razão para não abusar da generosidade de Sua Majestade. Retorne à França, senhor. Eu retornarei por meus próprios meios.

— Isso está fora de questão, senhora.

— E por quê?

— Porque tenho ordem de prendê-la, senhora, em nome do rei.

 

O cativeiro parecia não ter mais fim para Angélica. Quando pensara que alcançara finalmente a liberdade, depois da terrível odisseia através do deserto marroquino, tornando-se a única mulher a escapar de um harém, a infeliz Marquesa dos Anjos era agora prisioneira de Luís XIV.

"Como a vida é imbecil", pensava ela havia pouco, sonhadora, chorando a perda do último amor, o marinheiro normando Colin Paturel, o rei dos cativos. Fitando-se ao espelho, reconhecia-se uma nova mulher. Marcada, sim, profundamente. No entanto, não envelhecera. Era outra!

O grande amor de sua vida, o Conde Joffrey de Peyrac, escapara-lhe como areia entre os dedos, mais fugidio que uma miragem no deserta Que restava então por que lutar?

Em Angélica, Rebelde Guerreira, a indomável ninfa dos campos de Monteloup enfrentará a cólera do Rei- Sol numa França dividida pelo rancor religioso. Encerrada nos domínios de sua terra natal, ela irá aglutinar as forças protestantes contra os esbirros de um poder exagerado.

 

 

                                                                                                    Anne e Serge Golon

 

 

 

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