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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAUSA MORTIS / Patricia Cornwell
CAUSA MORTIS / Patricia Cornwell

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CAUSA MORTIS

 

Na última madrugada do ano mais sangrento na Virgínia desde a Guerra de Secessão, acendi o fogo na lareira e sentei-me de frente para a janela escura através da qual eu veria o mar assim que amanhecesse. De robe, ao lado da luminária de leitura, revisava as estatísticas anuais do meu departamento. Acidentes de carro, estrangulamentos, espancamentos, tiroteios, punhaladas. De repente, o telefone tocou. Cinco e meia.

"Droga", resmunguei, pois atender os telefonemas para o dr. Philip Mant já não me entusiasmava tanto. "Já vou, já vou."

O chalé dele, fustigado pelas intempéries, erguia-se atrás de uma duna, num trecho desolado da costa da Virgínia conhecido como Sandbridge. O local ficava entre a base anfíbia da Marinha dos Estados Unidos e a reserva de vida selvagem de Back Bay. Mant era o legista encarregado do distrito de Tidewater, e infelizmente sua mãe falecera na semana anterior, na véspera do Natal. Em circunstâncias normais, seu retorno a Londres para resolver questões familiares não seria uma emergência para o sistema médico legal na Virgínia. No entanto, sua patologista forense assistente já estava de licença-maternidade e o supervisor do necrotério pedira demissão recentemente.

"Alô?", respondi, enquanto o vento açoitava os pinheiros escuros, do outro lado da janela.

"Aqui é o policial Young, da polícia de Chesapeake", disse uma voz que parecia ser de um homem branco nascido e criado no Sul. "Gostaria de falar com o doutor Mant."

"Ele viajou", respondi. "Posso ajudar?"

"É a senhora Mant?"

"Sou a doutora Kay Scarpetta, legista-chefe do Estado. Estou substituindo o doutor Mant."

A voz hesitou um pouco, antes de prosseguir. "Recebemos uma informação a respeito de uma morte. Um telefonema anônimo."

"Sabe onde essa suposta morte ocorreu?", perguntei, enquanto pegava o bloco de anotações.

"Ao que consta, dentro da água, no estaleiro de navios desativados da Marinha."

"Como é?" Ergui os olhos.

Ele repetiu o que havia dito.

"O que temos? Um mergulhador da Marinha desaparecido? Um seal?" Fiquei surpresa, pois sabia que apenas os membros da seal em treinamento podiam mergulhar no cemitério de navios da Marinha.

"Não temos certeza, mas é possível que o elemento estivesse procurando relíquias da Guerra de Secessão."

"De noite?"

"Senhora, a área é restrita. Só se pode entrar com autorização. No entanto, isso nunca impediu a entrada de curiosos. Eles chegam de barco, depois que escurece, para ninguém ver."

"Foi isso que o informante anônimo sugeriu?"

"Mais ou menos."

"Muito interessante."

"Também achei."

"E o corpo ainda não foi localizado", falei, sempre tentando entender o que levara aquele policial a ligar de madrugada para o legista, sem ao menos saber com certeza se havia um corpo ou mesmo uma pessoa desaparecida.

"Estamos procurando agora. A Marinha vai enviar mergulhadores. Temos tudo sob controle, caso seja mesmo verdade. De todo modo, queria que vocês estivessem a par do caso. E, por favor, transmita meus pêsames ao doutor Mant."

"Como assim?" Desconfiei mais ainda. Se sabia a respeito da morte da mãe do dr. Mant, por que telefonara pedindo para falar com o médico?

"Me contaram que a mãe dele faleceu."

Aproximei a ponta da caneta da folha de papel. "Poderia me dar seu nome completo e um número de telefone no qual eu possa contatá-lo, por gentileza?"

"S. T. Young." Ele me deu o telefone e desligou.

Olhei para o fogo fraco, sentindo desconforto e solidão ao levantar para apanhar mais lenha. Preferia estar em Richmond, em minha casa, com velas acesas e um pinheiro Fraser cheio de enfeites dos natais passados. Queria Mozart e Handel no lugar de vento a sibilar no telhado. Arrependia-me de ter aceito a gentil oferta de Mant para ficar em sua casa em vez de me hospedar num hotel. Retomei a leitura dos relatórios estatísticos, mas não conseguia me concentrar. Imaginei a água turva do rio Elizabeth, que naquela época do ano estaria com temperatura abaixo de quinze graus e uma visibilidade de no máximo meio metro.

No inverno, tudo bem vestir um traje de mergulho para descer atrás de ostras na baía de Chesapeake ou navegar trinta milhas pelo oceano Atlântico para explorar um porta-aviões ou um submarino alemão afundado e outras maravilhas. Mas no rio Elizabeth, onde a Marinha guardava navios fora de serviço, não havia nada de interessante em nenhuma época do ano, pelo que eu sabia. Não conseguia imaginar alguém capaz de mergulhar lá sozinho em pleno inverno, no escuro, em busca de relíquias ou qualquer outra coisa. Apostava que o tal telefonema não passava de delírio.

Levantei-me da espreguiçadeira e fui até o quarto principal, onde meus pertences estavam espalhados por todos os cantos do cubículo gelado. Despi-me apressadamente e tomei uma ducha rápida, pois descobrira, logo no primeiro dia, os limites da água quente. Na verdade, não gostava da casa do dr. Mant, com seu vento e seu revestimento de pinho cor de âmbar cheio de nós, ou do piso marrom-escuro que denunciava qualquer partícula de pó. Meu chefe local britânico parecia viver sob o domínio tenebroso do vento gelado, e eu sempre sentia frio naquela casa esparsamente mobiliada. Os ruídos inesperados por vezes me faziam sentar na cama no meio da noite, de arma em punho.

Vestindo um robe, com a toalha enrolada na cabeça, chequei o quarto e o banheiro de hóspedes para me assegurar de que tudo estava em ordem. Lucy, minha sobrinha, chegaria naquele dia. Fui em seguida até a cozinha, lamentável se comparada à que eu tinha em casa. Acreditava não ter me esquecido de nada na véspera, quando fui fazer compras em Virgínia Beach, de carro. Teria, porém, de me virar sem espremedor de alho, máquina de macarrão, processador de alimentos e forno de microondas. Começava a duvidar seriamente que Mant comesse ou mesmo que morasse ali. Felizmente eu havia trazido facas e panelas, e enquanto tivesse utensílios e onde cozinhar daria um jeito de preparar qualquer coisa.

Li um pouco mais e peguei no sono sob a luz da luminária flexível. O telefone me assustou outra vez. Ergui o aparelho enquanto os olhos se ajustavam à luz do sol que banhava meu rosto.

"Aqui é o detetive C. T. Roche, de Chesapeake", disse outra voz masculina desconhecida. "Soube que a senhora está substituindo o doutor Mant e precisamos de sua autorização imediata. Creio que temos um mergulhador morto no cemitério de navios da Marinha. Precisamos prosseguir com a operação de retirada do corpo."

"Suponho que seja o caso a respeito do qual um de seus investigadores ligou antes."

A longa pausa foi seguida de um comentário um tanto defensivo. "Pelo que sei, sou o primeiro a notificar o caso."

"Um policial chamado Young ligou às cinco e meia da manhã. Um momento." Conferi minhas anotações. "Iniciais S de Sam, T de Tom."

Mais uma pausa e outra resposta no mesmo tom. "Bem, não.sei de quem está falando, pois não temos ninguém aqui comesse nome."

A adrenalina subia enquanto eu tomava nota. Hora, nove e treze minutos. O que ele acabara de dizer me intrigou. Se o primeiro sujeito que ligou não era da polícia, então quem era ele, por que telefonara e como conhecia Mant?

"A que horas o corpo foi encontrado?", perguntei a Roche.

"Por volta das seis horas um guarda de segurança do estaleiro notou um bote ancorado atrás de um dos navios. Havia uma mangueira comprida dentro da água, como se alguém estivesse mergulhando. Como ninguém apareceu, uma hora depois ele nos chamou. Um mergulhador desceu e, como eu já falei, encontrou um corpo."

"Temos a identificação?"

"Achamos uma carteira no bote. A carteira de motorista pertence a um sujeito branco chamado Theodore Andrew Eddings."

"O repórter?", perguntei, incrédula. "Aquele jornalista? Ted Eddings?"

"Trinta e dois anos, cabelos castanhos, olhos azuis, a julgar pela foto. Mora na West Grace Street, em Richmond."

O Ted Eddings que eu conhecia era um repórter premiado por matérias investigativas. Trabalhava para a Associated Press e dificilmente passava mais de uma semana sem me telefonar para esclarecer dúvidas. Por um momento não consegui raciocinar direito.

"Além disso, encontramos uma pistola nove milímetros no bote", ele disse.

Ao falar novamente, eu já mostrava muita firmeza na voz. "A identificação não deve ser divulgada à imprensa ou a qualquer outra pessoa até que seja confirmada."

"Já disse isso a todos. Não se preocupe."

"Ótimo. Alguém faz idéia do motivo que levou esse indivíduo a mergulhar no cemitério de navios da Marinha?", perguntei.

"Ele devia estar procurando material da Guerra de Secessão."

"Em que você baseia sua especulação?"

"Muita gente gosta de procurar balas de canhão e outras relíquias", ele disse. "Bem, vamos tirá-lo de lá, para que não fique dentro da água mais do que o necessário."

"Não quero que toquem nele. Deixá-lo na água por mais algum tempo não vai mudar nada."

"O que pretende fazer?" Seu tom de voz tornou-se defensivo novamente.

"Só saberei quando chegar aí."

"Bem, não acho necessário que venha até aqui..."

"Detetive Roche", interrompi, "se minha presença é necessária e o que vou fazer aí não é da sua alçada."

"É que temos um monte de gente esperando, e parece que vai nevar esta tarde. Ninguém pretende passar o resto do dia aqui no cais."

"De acordo com o Código da Virgínia, o corpo está sob minha jurisdição. Nem a polícia, local ou não, nem os bombeiros, nem as equipes de resgate, nem a funerária têm qualquer autoridade. Ninguém toca no corpo sem minha autorização." Falei com veemência suficiente para que ele percebesse minha disposição para enfrentá-lo, se fosse preciso.

"Como eu falei, vou ter de dizer ao pessoal do resgate e do estaleiro para esperar. Ninguém vai gostar. A Marinha já está fazendo pressão para a gente sair daqui antes que a imprensa apareça."

"Esse caso não pertence à Marinha."

"Por que não diz isso a eles? Os navios pertencem à Marinha."

"Terei o maior prazer em dizer isso a eles. Nesse meio tempo, apenas diga a todos que estou a caminho", ordenei, antes de desligar.

Como eu talvez só voltasse ao chalé dali a várias horas, colei um recado cifrado na porta da frente, instruindo Lucy a entrar se chegasse antes de mim. Escondi a chave num lugar que só ela saberia. Coloquei a maleta médica e o equipamento de mergulho no porta-malas do Mercedes preto. A temperatura subira para quatro graus e minhas tentativas de contatar o capitão Pete Marino em Richmond foram frustradas.

"Graças a Deus", resmunguei, quando o telefone do carro finalmente tocou.

Atendi imediatamente. "Scarpetta."

"Oi."

"Você estava com o pager ligado. Que surpresa", falei.

"Se acha isso tão surpreendente, então por que diabos ligou?", ele parecia contente em conversar comigo. "O que houve?"

"Sabe aquele repórter com quem você não simpatiza?" Preocupei-me em não divulgar detalhes, pois a conversa poderia estar sendo monitorada.

"Qual deles?"

"Aquele da ap que sempre passa pelo meu departamento."

Ele pensou por um momento, depois disse: "Sei. Qual é o problema? Vai se encontrar com ele?".

"Lamentavelmente, temo que seja isso mesmo. Estou a caminho do rio Elizabeth. A polícia de Chesapeake acabou de ligar."

"Espere um pouco. Está falando daquele tipo de encontro?" Seu tom era sinistro.

"Infelizmente."

"Puta merda."

"Temos apenas uma carteira de motorista. Ainda não sabemos com certeza. Preciso descer para dar uma espiada antes de tirá-lo de lá."

"Ei, espere um minuto", ele disse. "Para que é que você precisa fazer isso? Não dá para deixar por conta do resto do pessoal?"

"Preciso vê-lo antes que o corpo seja removido", expliquei.

Marino ficou contrariado porque era superprotetor. Não precisava pronunciar nem uma palavra. Eu já havia entendido.

"Imaginei que você ia querer passar pela casa dele em Richmond", sugeri.

"Claro. Pode deixar que eu vou."

"Não sei o que vamos encontrar."

"Bem, eu só queria que você deixasse o pessoal descobrir primeiro."

Chegando em Chesapeake segui pela saída para o rio Elizabeth, virando à esquerda na High Street. Passei por igrejas de tijolos, trailers e lojas de carros usados instaladas nos terrenos vagos. Para lá da cadeia municipal e da delegacia, os alojamentos da Marinha se perdiam na vastidão deprimente da paisagem. O ferro-velho de material naval era rodeado de cerca alambrada enferrujada com arame farpado no alto. No meio de uma ampla área coberta de metal e mato ralo havia um gerador que, ao que parecia, queimava lixo e carvão para fornecer energia ao estaleiro. A atividade, porém, era esporádica e vagarosa. Esteiras e chaminés estavam quietas naquele dia, os guindastes das docas secas todos imóveis. Afinal de contas, era véspera de Ano Novo.

Segui na direção da sede de bloco aparente pintado de bege. Depois do prédio, estendiam-se os longos píeres pavimentados. No portão de entrada, um rapaz à paisana e chapéu saiu da guarita. Abaixei o vidro da janela enquanto as nuvens corriam no céu fechado, empurradas pelo vento.

"Esta área é proibida." Seu rosto era completamente desprovido de expressão.

"Sou a doutora Kay Scarpetta, legista-chefe", identifiquei-me, mostrando o distintivo de latão que simbolizava minha autoridade sobre qualquer morte súbita, inesperada, inexplicável ou violenta no estado da Virgínia.

Debruçado, ele examinou minhas credenciais. Olhou para mim e para o carro várias vezes.

"Então a senhora é a legista?", perguntou. "Por que não veio com o rabecão?"

Já tinha ouvido aquilo antes e respondi com toda a paciência: "Agentes funerários usam carros fúnebres. Eu não trabalho para a funerária. Sou médica-legista".

"Preciso ver algum documento seu."

Mostrei-lhe a carteira de motorista e não tive dúvida de que interferências do gênero só aumentariam depois que ele me deixasse prosseguir. Ele se afastou do carro, levando o rádio portátil aos lábios.

"Unidade onze para unidade dois." Ele se afastou de mim, como se estivesse a ponto de revelar um segredo.

"Dois", foi a resposta.

"Tem uma tal de doutora Scaylatta aqui." Ele entendeu meu nome errado, mais do que a maioria.

"Dez-quatro. Estamos esperando."'

"Dona", o segurança disse, "siga em frente e pode estacionar à direita." Ele apontou. "A senhora deixa o carro lá e anda até o Píer 2, onde está o capitão Green. É com ele que a senhora vai falar."

"E onde posso encontrar o detetive Roche?", perguntei.

"A senhora deve falar com o capitão Green", ele repetiu.

Ergui o vidro da janela enquanto ele abria o portão cheio de avisos. Eu estava a ponto de entrar numa área industrial, na qual se realizava pintura com compressor. Equipamento de segurança era obrigatório. Eu ia estacionar por minha conta e risco. Ao longe, cinzentos navios de carga e transportes de tanques, caça-minas, fragatas e aerobarcos intimidavam o horizonte gelado. No segundo cais havia veículos de emergência, carros de polícia e um pequeno grupo de homens reunidos.

Parei o carro no local indicado pelo guarda e caminhei na direção deles, que me encaravam. Deixara a maleta médica e o equipamento de mergulho no carro, de modo que seguia de mãos vazias, uma mulher de meia-idade de botas, calça comprida de lã e casaco Schoffel verde-oliva, um pouco mais claro que o do exército. No instante em que pus os pés no píer um homem grisalho distinto e fardado interceptou-me, como se eu estivesse invadindo o local. Sem sorrir, bloqueou minha passagem.

"Posso ajudar?", disse num tom que significava pare. O vento agitava seu cabelo e corava seu rosto.

Expliquei novamente quem eu era.

"Muito bem." Ele não parecia nem um pouco satisfeito. "Sou o capitão Green, do nis, o Serviço de Investigação da Marinha. Precisamos andar logo com isso. Vamos lá", ele disse, dirigindo-se a um dos presentes, "precisamos liberar os pcs logo..."

"Um momento. É do nis?", cortei-o, pois queria esclarecer tudo imediatamente. "Fui informada de que este estaleiro não é propriedade da Marinha. Se for, eu não deveria nem ter vindo para cá. O caso seria responsabilidade da Marinha, e a autópsia problema dos legistas de lá."

"Minha senhora", ele disse, como se eu estivesse testando sua paciência, "este estaleiro é uma instalação tocada por uma empreiteira, e portanto não se trata de propriedade da Marinha. Mas temos um óbvio interesse pelo caso, pois parece que alguém estava mergulhando em volta dos nossos navios sem autorização."

"Tem idéia do motivo que levaria alguém a fazer uma coisa dessas?", perguntei, olhando em torno.

"Alguns caçadores de tesouros acreditam que podem achar balas de canhão, sinos de navios antigos e sabe-se lá mais o que nestas águas."

Estávamos parados entre o cargueiro El Paso e o submarino Exploiter, ambos foscos e rígidos no rio. A água mais parecia um capuccino; concluí que a visibilidade seria ainda menor do que temia. Havia uma plataforma de mergulho perto do submarino. Não vi, porém, sinal algum da vítima ou dos encarregados de recuperar o corpo e dos policiais supostamente encarregados do caso. Perguntei a Green o que estava havendo enquanto o vento vindo da água entorpecia meu rosto. Sua resposta foi me dar as costas mais uma vez.

"Ei, não posso passar o dia aqui esperando Stu", ele disse, dirigindo-se a um homem de macacão e jaqueta de náilon imunda.

"Então a gente podia chamar Bo para ajudar, capitão", foi a resposta.

"Nem pensar, José", Green disse, parecendo bem familiarizado com o pessoal do estaleiro. "Não adianta chamar aquele cara."

"Droga", disse outro sujeito, de barba desgrenhada e comprida. "Todo mundo sabe que ele não vai estar sóbrio a esta hora. Já é tarde."

"Olha o roto falando do esfarrapado", Green disse, e todos riram.

A pele do barbudo parecia um hambúrguer cru. Ele me olhou de esguelha enquanto acendia um cigarro, protegendo a chama do vento forte com as mãos ásperas desprotegidas.

"Não bebi nada desde ontem. Nem mesmo água", ele jurou, enquanto os colegas continuavam a rir. "Droga, estou mais gelado do que um pingüim." Ele se encolheu. "Devia ter vindo com um casaco mais quente."

"Aposto que o cara lá no fundo, está passando muito mais frio", outro trabalhador disse, e seus dentes batiam enquanto falava a respeito do sujeito morto, pelo que deduzi. "Ele sim, está frio."

"Só que ele não sente mais nada."

Controlei a irritação crescente, dizendo a Green: "Sei que está ansioso para começar e isso vale para mim também. Mas não vejo ninguém da equipe de resgate nem da polícia.

Não vi o bote nem a área do rio em que o corpo supostamente se encontra".

Senti meia dúzia de pares de olhos fixos em mim e examinei os rostos rudes do que poderia facilmente ser um bando de piratas trajando roupas modernas. Eu não era bem-vinda no clube fechado deles e me lembrei do início da minha carreira, do tempo em que atitudes grosseiras e isolamento ainda me faziam chorar.

Green finalmente respondeu. "A polícia está lá dentro, usando o telefone. No prédio principal, ali adiante. Aquele com a âncora grande na frente. Os mergulhadores provavelmente foram para dentro também, para fugir do frio. A equipe de resgate está no embarcadouro do outro lado do rio, esperando sua chegada. Talvez se interesse em saber que foi lá que a polícia achou uma caminhonete e um trailer que acreditam pertencer ao morto. Acompanhe-me", ele disse, começando a andar. "Mostrarei o local que a interessa. Soube que pretende descer com os mergulhadores."

"Isso mesmo." Andei ao lado dele, no píer.

"Não faço a menor idéia do que espera ver por lá."

"Faz muito tempo que aprendi a não esperar nada, capitão Green."

Passamos por navios velhos, combalidos. Notei vários fios metálicos que saíam das embarcações e desciam até a água. "O que são?", perguntei.

"pcs: protetores catódicos", ele respondeu. "Eletricamente carregados para reduzir a corrosão."

"Espero que tenham desligado tudo."

"Um eletricista está a caminho, Ele vai desligar a luz do píer inteiro."

"Então o mergulhador pode ter esbarrado nos protetores. Aposto que não conseguiria vê-los direito."

"Não faria diferença. A carga é muito fraca", ele disse, como se todo mundo soubesse disso. "Seria igual a tomar um choque de uma bateria de nove volts. Ele não morreu por causa dos pcs. Pode ir tirando isso da sua lista."

Paramos no final do píer, onde a popa de um submarino parcialmente submerso estava à vista. Ancorado a menos de dez metros do submarino estava o bote de alumínio verde-escuro com a mangueira preta e comprida que saía do compressor instalado no lado do passageiro. No chão do bote havia ferramentas, equipamento de mergulho e outros objetos que alguém revirara com a maior displicência, segundo minhas suspeitas. Senti um aperto no peito, mas não demonstrei minha raiva.

"Provavelmente ele se afogou, foi só isso", Green dizia. "Quase todas as mortes de mergulhadores que eu vi foram causadas por afogamento. A gente pode morrer até num lugar raso como este, e isso vai ficar comprovado, sem dúvida."

"O equipamento dele não é dos mais comuns", falei, ignorando seus comentários médicos impertinentes.

Ele olhou para o bote que balançava de leve na correnteza. "Um narguilé. Realmente não é normal por aqui."

"O compressor estava funcionando quando o bote foi encontrado?"

"A gasolina tinha acabado."

"Sabe algo a respeito desse tipo de equipamento? É feito em casa?"

"Comprado", ele disse. "Compressor de cinco hp a gasolina para bombear o ar da superfície por uma mangueira de baixa pressão ligada a um regulador. Ele poderia passar quatro ou cinco horas lá no fundo, enquanto durasse o combustível." Ele continuava a olhar para o outro lado.

"Quatro ou cinco horas? Para quê?" Olhei para ele. "Só teria razão para ficar tanto se estivesse pegando lagosta ou mariscos."

Ele ficou quieto.

"O que há lá no fundo?", perguntei. "E não me fale em relíquias da Guerra de Secessão porque nós dois sabemos que não seria possível encontrá-las aqui."

"Na verdade, não tem droga nenhuma lá no fundo."

"Bem", falei, "ele achava que tinha."

"Infelizmente para ele, porque achou errado. Olhe para aquelas nuvens. Vai nevar, sem dúvida nenhuma." Ele ergueu o casaco para proteger a orelha. "Suponho que você seja mergulhadora habilitada."

"Há muitos anos."

"Preciso ver seu certificado."

Olhei para o bote e para o submarino ao lado dele, pensando em quantos empecilhos aquela gente pretendia criar para mim.

"Vai precisar do certificado se quiser mergulhar", ele disse. "Pensei que você soubesse disso."

"Eu não achei que a Marinha fosse responsável pelo estaleiro."

"Conheço as regras daqui. Não interessa quem é o responsável." Ele me encarou.

"Entendi." Encarei-o também. "Imagino que seja preciso uma autorização para estacionar o carro no píer para que eu não tenha de carregar meu equipamento por um quilômetro."

"Realmente é preciso ter permissão para estacionar no píer."

"Bem, eu não tenho a permissão. Não trouxe meu cartão do fadj de mergulhadora profissional especializada em resgates, nem o registro de descidas. Também não trouxe minha licença para exercer a medicina nos estados de Virgínia, Maryland e Flórida."

Falei suavemente, sem erguer a voz. Como ele não conseguia me intimidar, ficava cada vez mais contrariado. Piscou várias vezes, e pude sentir seu ódio.

"Pela última vez, vou pedir que me deixe fazer meu serviço sossegada", prossegui. "Temos uma morte não natural aqui e isso é minha responsabilidade. Se prefere não cooperar, chamarei a polícia, o promotor público, o fbi. Pode escolher. Creio que posso conseguir alguém dentro de vinte minutos. Estou com o celular bem aqui, no meu bolso." Bati no bolso.

"Se quer mergulhar", ele disse, dando de ombros, "vá em frente. Mas terá de assinar um termo de compromisso, eximindo o estaleiro de qualquer responsabilidade caso ocorra um infortúnio. Mas duvido que haja um formulário desses por aqui."

"Entendi. Agora terei de assinar um papel que você não tem."

"Correto."

"Não tem problema", falei. "Posso preparar um para você."

"Só um advogado pode fazer isso, e hoje é feriado."

"Sou advogada e trabalho nos feriados."

Ele retesou os músculos cio maxilar e eu concluí que não exigiria mais o tal documento, uma vez que seria possível consegui-lo. Começamos a caminhar de volta e meu estômago se contraiu de preocupação. Não fazia a menor questão de mergulhar e não gostava das pessoas que havia encontrado ali. Sem dúvida, já me envolvera no arame farpado da burocracia antes, em casos que envolviam governo ou grandes empresas. No entanto, aquilo era diferente.

"Diga uma coisa", Green falou, sempre em tom de menosprezo, "o legista-chefe sempre sai atrás dos defuntos pessoalmente?"

"Raramente."

"Explique por que considera isso necessário desta vez."

"A cena da morte será destruída no momento em que o corpo for removido. Creio que as circunstâncias são inusitadas o bastante para valer a pena dar uma olhada por lá enquanto isso é possível. Além disso, estou temporariamente cobrindo as férias de meu colega do distrito de Tidewater, e por acaso estou pessoalmente encarregada de atender chamados como este."

Ele fez uma pausa e depois me irritou, dizendo: "Fiquei consternado quando soube da morte da mãe do doutor Mant. Quando ele vai voltar ao posto?".

Tentei me lembrar do telefonema daquela manhã, feito por um sujeito chamado Young, com exagerado sotaque sulista. Green não parecia ser do Sul, e eu tampouco era, mas isso não significava que não poderíamos imitar a fala arrastada dos sulistas.

"Não tenho certeza de quando ele vai voltar", respondi, atenta. "Estou curiosa em saber como o conheceu."

"Os casos às vezes se misturam, seja isso certo ou não."

Eu não entendi direito a insinuação.

"O doutor Mant compreende a importância de não interferir", Green prosseguiu. "É bom trabalhar com gente como ele."

"Capitão Green, ele compreende a importância de não interferir em quê?"

"Se o caso for da Marinha, por exemplo. Quando a jurisdição pode ser de um ou de outro. As pessoas podem interferir de diversas maneiras. Isso sempre dá problema e pode ser perigoso. Veja o mergulhador, por exemplo. Ele foi se meter onde não era chamado e acabou se dando mal."

Parei de andar e o encarei, incrédula. "Deve ser minha imaginação", falei, "mas acho que você está me ameaçando."

"Pegue sua tralha. Pode parar mais perto, perto daquela cerca", ele disse, afastando-se.

 

Muito depois de ele desaparecer dentro do prédio com a âncora na fachada, eu continuava lutando, sentada no píer, para vestir um traje de mergulho grosso por cima da roupa de mergulhador. A pouca distância, a equipe de resgate preparava um bote de fundo chato que estava preso a uma estaca. Trabalhadores da doca perambulavam por ali, curiosos. Na plataforma de mergulho, dois homens de traje de neoprene azul royal testavam o equipamento de comunicação e verificavam compenetrados o equipamento de mergulho - o meu, inclusive.

Observei os mergulhadores, que conversavam, mas não consegui entender uma única palavra do que diziam enquanto desenroscavam mangueiras e prendiam pesos aos cintos. Ocasionalmente olhavam na minha direção, e surpreendi-me quando um deles resolveu subir a escada que conduzia ao píer. Ele andou até onde eu estava e sentou-se a meu lado, no chão frio.

"Tem alguém sentado aqui?" Era um rapaz formidável, negro, com corpo de atleta olímpico.

"Tem um monte de gente louca para sentar aqui, mas não faço idéia de onde estejam." Continuei pelejando com o traje de mergulho. "Puxa, como eu odeio essa roupa."

"Imagine que você está enfiando uma câmara num pneu."

"Isso ajuda muito..."

"Precisamos conversar a respeito do equipamento de comunicação subaquática. Já teve oportunidade de usá-lo?"

Ergui os olhos para encarar seu rosto sério e disse: "Você faz parte da equipe de resgate?".

"Não. Sou apenas um marujo. Não sei quanto a você, mas com certeza eu não pretendia passar o Ano Novo aqui. Não conheço ninguém disposto a mergulhar neste rio, a não ser que tenha a fantasia de ser um girino cego numa poça de lama. Talvez você tenha deficiência de ferro no sangue e acredite que a ferrugem vai curar sua anemia."

"A única coisa que essa ferrugem toda pode dar na gente é tétano", falei, olhando em torno. "Quem mais é da Marinha, e não da equipe de resgate?"

"Os dois que estão no bote são da equipe de resgate. Ki Soo, ali adiante, na plataforma de mergulho, é o único que pertence à Marinha, com exceção do intrépido investigador do nis. Ki é legal. Meu companheiro de mergulho."

Ele fez um sinal para Ki Soo, que retribuiu com um gesto. Achei aquilo tudo muito interessante, muito diferente do tratamento que recebera até o momento.

"Bem, agora preste atenção." Meu novo colega falava como se trabalhasse comigo há anos. "Este equipamento de comunicação é meio complicado para quem nunca usou. Pode ser até perigoso." Sua expressão sincera me cativou.

"Estou familiarizada com ele", respondi, mostrando mais segurança do que realmente tinha.

"Bem, estar familiarizada não basta. Você precisa dominar bem o uso, pois isso pode salvar sua vida e a de seu companheiro de mergulho." Ele fez uma pausa. "Mas também pode matá-la."

Eu havia usado equipamento de comunicação subaquática apenas uma vez e ainda me sentia nervosa por trocar o regulador por uma máscara selada que não tinha válvula para expelir a água, apenas o bocal. Temia que a máscara se enchesse de água, o que me obrigaria a tirá-la e a buscar freneticamente o suprimento alternativo de ar conhecido como polvo. Mas eu não ia mencionar isso naquele momento.

"Vou dar um jeito", falei.

"Ótimo. Soube que você é mergulhadora profissional", ele disse. "Bem, meu nome é Jerod, e já sei quem é você." Sentado com as pernas cruzadas à moda dos índios, ele atirava pedrinhas na água e parecia fascinado com os círculos que se formavam lentamente. "Ouvi falar muito bem de você. Na verdade, quando minha esposa souber que a conheci, vai morrer de ciúme."

Eu não entendi como um mergulhador da Marinha podia ter ouvido falar em mim, exceto pela minha exposição esporádica no noticiário, que nem sempre era favorável. De todo modo, suas palavras foram um bálsamo para meu péssimo humor, e eu estava a ponto de mostrar isso a ele quando o rapaz consultou o relógio e olhou para a plataforma, estabelecendo contato visual com Ki Soo.

"Doutora Scarpetta", Jerod disse, levantando-se, "creio que estamos prontos para a diversão. Você também?"

"Pronta para o que der e vier", falei, enquanto me erguia também. "Qual é a melhor maneira de chegar lá?"

"A melhor, ou a única, na verdade, é seguir a mangueira até o fundo."

Seguimos juntos até a borda do cais e ele apontou para o bote.

"Já desci uma vez e vi que seria impossível encontrá-lo, a não ser seguindo a mangueira do narguilé. Já mergulhou num esgoto no escuro?"

"Ainda não."

"Bem, não dá para ver merda nenhuma. Aqui é a mesma coisa."

"Você sabe se alguém mexeu no corpo?"

"Ninguém chegou perto do corpo, além de mim."

Ele me observou enquanto eu apanhava o colete de controle de flutuação, ou cf, e guardava a lanterna no bolso.

"Eu não levaria a lanterna. Nas condições atuais, ela só iria atrapalhar."

Eu pretendia levá-la, porém, pois queria ter todos os recursos disponíveis à mão. Jerod e eu descemos a escada até a plataforma de mergulho para terminar os preparativos. Ignorei os olhares do pessoal do estaleiro enquanto passava condicionador no cabelo e punha o capuz de neoprene. Prendi a faca na parte interna da perna e atei rapidamente o cinto de chumbo com sete quilos na cintura, segurando-o pelas pontas. Conferi o fecho de segurança e calcei as luvas.

"Estou pronta", avisei a Ki Soo.

Ele se aproximou com o equipamento de comunicação e a válvula.

"Vou prender o tubo de ar à máscara de mergulho." Ele falava sem sotaque. "Soube que você já usou equipamento de comunicação similar antes."

"Correto", falei.

Ele se agachou a meu lado e falou em voz baixa, como se conspirasse. "Você, Jerod e eu manteremos contato constante através dos fones das máscaras."

Elas pareciam máscaras vermelhas contra gás, com cinco tiras para firmá-las na posição, na parte posterior. Jerod posicionou-se atrás de mim e me ajudou a vestir o cf e o tanque de ar enquanto seu companheiro continuava falando.

"Como sabe", Ki Soo dizia, "você deve respirar normalmente e usar o botão do bocal quando quiser falar. Basta apertá-lo." Ele mostrou como fazer. "Agora você vai prender isso por cima do capuz, bem firme. Depois prenda o cabelo que ficou para fora e me deixe ver se está tudo em ordem nas costas."

Eu odiava o equipamento de comunicação, principalmente quando me encontrava fora da água, pois era difícil respirar com ele. Aspirei o ar da melhor maneira possível enquanto olhava através do visor de plástico para os dois mergulhadores aos quais confiara minha vida.

"Dois membros da equipe de resgate permanecerão no bote, monitorando nossas conversas por um transmissor mergulhado na água. Tudo o que dissermos será ouvido por quem quer que esteja na superfície, compreende?" Ki Soo olhou para mim e percebi que estava me dando um aviso.

Assenti, ouvindo o ruído da respiração difícil penetrar em meus ouvidos.

"Quer pôr as nadadeiras agora?"

Fiz que não e apontei para a água.

"Então vá primeiro. Nós as jogaremos para você."

Pelo menos quarenta quilos mais pesada do que na chegada, aproximei-me cautelosamente da beira da plataforma de mergulho, conferindo mais uma vez se a máscara estava bem presa ao capuz. Os protetores catódicos pareciam bigodes de bagre saindo da boca dos imensos navios imóveis e sumindo na água encrespada pelo vento. Tomei coragem para dar a passada mais assustadora de minha vida.

O frio foi um choque, no início, e meu corpo precisou de um tempo para aquecer a água que entrava pelo traje de borracha enquanto eu calçava as nadadeiras. Mas o pior era que eu não conseguia ver o console do computador nem a bússola que ele continha. Nem a mão na frente do rosto. Entendi por que seria inútil usar a lanterna. O sedimento em suspensão absorvia a luz como se fosse um mata-borrão, obrigando-me a pôr a cabeça para fora a intervalos freqüentes para me orientar enquanto nadava para o ponto no qual a mangueira saía do bote e desaparecia nas profundezas do rio.

"Todos dez-quatro?" A voz de Ki Soo ecoou no receptor apertado contra meu crânio.

"Dez-quatro", falei, tentando relaxar enquanto batia os pés, pouco abaixo da superfície.

"Chegou na mangueira?" Foi Jerod quem falou dessa vez.

"Estou com as mãos nela agora." Parecia estranhamente tensa, e procurei puxá-la o mínimo possível.

"Siga a mangueira até o fim. Cerca de dez metros. Ele deve estar flutuando pouco acima do fundo."

Iniciei a descida, parando a intervalos para compensar a pressão nos ouvidos e não entrar em pânico. Meu coração batia com força enquanto eu tentava relaxar, respirando fundo. Parei e por um momento deixei que o corpo flutuasse; cerrei os olhos e inspirei lentamente. Retomei a descida e o pânico bateu mais uma vez quando me choquei com um cabo grosso enferrujado que se materializou repentinamente à minha frente.

Tentei passar por baixo dele, mas não conseguia descobrir de onde vinha e para onde ia. Eu estava mais leve do que o necessário, deveria ter posto mais pesos no cinto ou no bolso do colete de controle de flutuação. O cabo bateu em mim por trás, pressionando a válvula K com força. Tive a impressão de que alguém puxava o regulador por trás, com força, e o tanque, meio solto, deslizava pelas minhas costas, puxando-me com ele. Soltei as tiras de velcro do meu cf e rapidamente o tirei, tentando não pensar em nada, exceto no treinamento que recebera para situações daquele tipo.

"Tudo em ordem?" A voz de Ki Soo soou dentro da minha máscara.

"Problemas técnicos", respondi.

Manobrei o tanque por entre as pernas, de modo a flutuar sobre ele, como se cavalgasse um foguete no espaço sideral barrento e frio. Reajustei as tiras do colete e tentei manter a calma.

"Precisa de ajuda?"

"Negativo. Tome cuidado com os cabos", falei.

"Aqui a gente precisa tomar cuidado com tudo", a voz respondeu.

Passou pela minha cabeça que havia muitas maneiras de morrer ali, enquanto enfiava os braços por dentro do colete novamente. Virando de costas, prendi as tiras.

"Dez-quatro?" Ouvi a voz de Ki Soo mais uma vez.

"Dez-quatro. Mas não estou escutando direito."

"Muita interferência. Navios demais. Estamos bem atrás de você. Quer que a gente se aproxime mais?"

"Por enquanto, não", falei.

Eles se mantinham a uma distância prudente, pois sabiam que eu queria ver o corpo sem interferência ou distração. Não precisávamos nos meter uns nos caminhos dos outros. Lentamente, avancei em direção ao fundo. Concluí que a mangueira enroscara em algum lugar, e por isso estava tão retesada. Não sabia para que lado deveria me mexer, e tentei seguir alguns metros para a esquerda quando senti algo se esfregar em mim. Virei-me e dei de cara com o morto. Seu corpo pulou e balançou quando, involuntariamente, tentei me afastar.      Languidamente, ele balançava os braços estendidos como um sonâmbulo, enquanto eu sentia o medo ir embora conforme passava o susto. Era como se estivesse tentando chamar a minha atenção ou quisesse dançar comigo na escuridão infernal do rio que o engolira. Mantive a flutuação normal, mal movendo as nadadeiras, pois não queria mexer o fundo nem me cortar nos detritos afiados e enferrujados do estaleiro.

"Encontrei-o. Ou, melhor dizendo, ele me encontrou." Apertei o botão para falar. "Estão ouvindo?"

"Muito mal. Estamos uns três metros acima. Esperando."

"Esperem mais alguns minutos e então vamos tirá-lo."

Tentei a lanterna pela última vez, por via das dúvidas, mas ela era mesmo inútil. Percebi que seria forçada a fazer o exame com as mãos. Guardei a lanterna no cf e levantei o console do computador até quase tocar a máscara. Mal consegui ler que estava a dez metros de profundidade, com mais de meio tanque de ar. Comecei a apalpar o rosto do morto, e naquela água barrenta mal distinguia as feições e o cabelo que flutuava para fora do capuz.

Segurando-o pelo ombro, apalpei delicadamente o peito, acompanhando a mangueira. Ela estava embaraçada no cinto de chumbo. Passei a segui-la para tentar descobrir onde havia enroscado. A menos de três metros uma hélice

enorme surgiu diante de meus olhos. Toquei o metal de um casco coberto de craca, equilibrando o corpo para não me aproximar demais. Não queria escorregar para baixo de um vaso de guerra do tamanho de um campo de futebol e tatear de volta enquanto o suprimento de ar se esgotava.

Acompanhei o trajeto da mangueira enroscada para ver se fora torcida ou espremida de modo a cortar o suprimento de ar, mas não encontrei nenhum sinal capaz de confirmar a hipótese. Na verdade, quando tentei soltá-la da hélice, consegui fazê-lo sem muito esforço. Não havia impedimento para que o mergulhador mesmo a desenroscasse, o que me levou a suspeitar que a mangueira se prendera ali depois da morte do sujeito.

"A mangueira de ar dele estava enroscada", avisei pelo rádio. "Em um dos navios. Não sei qual deles."

"Precisa de ajuda?", Jerod falou.

"Não. Já o peguei. Podem começar a puxar."

Senti que a mangueira se movia.

"Certo. Vou guiá-lo para cima", falei. "Continuem pu- .-xando, bem devagar."

Passei os braços por baixo do corpo, por trás, e comecei a bater os pés, pois era difícil mexer as pernas naquele espaço.

"Calma", alertei pelo microfone, pois o ritmo de subida deveria ser inferior a trinta centímetros por segundo. "Devagar. Bem devagar."

Periodicamente, eu olhava pára cima. Mas só consegui saber onde estava quando chegamos na superfície. De repente, o céu se encheu de nuvens cor de ardósia e o barco de resgate balançava adiante. Inflei o cf do morto e o meu, virei-o de barriga para cima e soltei o cinto de chumbo, que quase perdi, pois era muito pesado. Consegui entregá-lo a um dos mergulhadores da equipe de resgate. Usando trajes de borracha, eles pareciam conhecer bem o serviço a bordo do barco de fundo chato.

Jerod, Ki Soo e eu não pudemos tirar as máscaras, pois teríamos de nadar de volta para a plataforma. Por isso, continuamos a conversar pelo rádio e a respirar o ar dos tanques enquanto instalávamos o corpo num cesto de tela de arame. Nós o empurramos até o barco e ajudamos a equipe de resgate a içar a carga, enquanto a água escorria por todos os lados.

"Precisamos tirar a máscara dele", falei, acenando para o pessoal do resgate.

Eles pareciam confusos. O rádio poderia estar em qualquer lugar, mas certamente não estava ali com eles. Não escutavam uma única palavra do que eu dizia.

"Precisa de ajuda para tirar a máscara?", um deles gritou para mim, aproximando-se.

Afastei-o com um gesto e balancei a cabeça. Apoiada na lateral do barco, ergui o corpo o suficiente para alcançar o cesto. Arranquei a máscara do morto, escorri a água e a coloquei ao lado da cabeça encapuzada da qual saíam algumas longas mechas molhadas. Reconheci-o, apesar da marca profunda oval em torno dos olhos. Conhecia o nariz reto e o bigode preto que emoldurava a boca carnuda. Pertenciam ao repórter que sempre me tratara de modo ético.

"Tudo bem?", um dos mergulhadores perguntou.

Fiz sinal de que estava tudo bem, sabendo que eles não poderiam compreender a importância daquela providência. Agi por compaixão, pois quanto mais tempo a máscara pressionasse a pele paulatinamente desprovida de elasticidade, menor seria a chance de que a marca desaparecesse. Isso não tinha muita importância para os investigadores e paramédicos, mas significava muito para os entes queridos de Ted Eddings que logo veriam seu rosto.

"Estão me ouvindo?", perguntei a Ki Soo e Jerod quando voltei para a água.

"Muito bem. O que pretende fazer com a mangueira?", Jerod perguntou.

"Corte cerca de três metros a partir do corpo e lacre a ponta cortada", falei.

"Depois guarde o pedaço de mangueira e a válvula reguladora num saco plástico."

"Tenho um saco de salvagem aqui no bolso do colete", Ki Soo ofereceu.

"Ótimo. Vai servir."

Fizemos o que foi possível e paramos para descansar por um momento flutuando e olhando para a extensão de água barrenta que nos separava do bote e do narguilé. A partir da posição em que me encontrava concluí que a hélice na qual a mangueira de Eddings enroscara pertencia ao Exploiter. O submarino parecia ser posterior à Segunda Guerra Mundial, talvez do tempo da Guerra da Coréia. Calculei que os equipamentos valiosos haviam sido removidos e que o casco acabaria vendido como sucata. Eddings talvez estivesse mergulhanq0 ali por algum motivo, ou então seu corpo, à deriva, apenas encostou ali.

O barco de resgate estava a meio caminho do atracadouro do outro lado do rio, onde a ambulância aguardava para transportar o corpo até o necrotério. Jerod fez um sinal de tudo bem e eu acenei de volta, embora achasse que não estava nada bem, o ar sibilou quando desinflamos nossos cfs e mergulhamos novamente na água cor de cobre velho.

 

Havia uma escada que ia do rio até a plataforma de mergulho e depois outra até o píer. Senti as pernas trêmulas ao subir, pois não era tão forte quanto Jerod e Ki Soo, que carregavam o equipamento como se não pesasse mais que a pele. Mas saí de meu cf por minha própria conta. Não quis pedir ajuda a ninguém. Uma viatura policial passou perto do meu carro, e alguém estava rebocando o bote de Eddings para o atracadouro da outra margem do rio. Seria preciso, confirmar a identidade, mas quanto a isso eu não tinha nenhuma dúvida

"Então, o que você acha?", uma voz soou acima de minha cabeça, de repente.

Olhei para o alto e vi o capitão Green em pé ao lado de um sujeito alto e magro, no píer. Pelo jeito, Green resolvera se mostrar caridoso, e estendeu a mão para me ajudar. "Passe o tanque para cá", disse.

"Não posso adiantar nada antes de examinar o corpo", falei ao passar o tanque e o restante do equipamento. "Obrigada. O bote, a mangueira e o restante do equipamento devem seguir direto para o necrotério", acrescentei.

"Sério mesmo? E o que pretende fazer com tudo isso?", ele perguntou.

"O narguilé vai entrar no relatório da autópsia, também."

"Acho melhor caprichar na lavagem da sua tralha", disse o sujeito magro, como se entendesse mais do assunto que Jacques Cousteau. Sua voz era familiar. "Tem muito óleo e ferrugem aqui."

"Sem dúvida", concordei, subindo para o píer.

"Sou o detetive Roche", ele disse. Usava uma inusitada combinação de calça jeans e jaqueta de faculdade. "Ouvi você dizer que a mangueira estava presa em algum lugar?"

"Correto. Só não sei quando você me ouviu dizer isso." Eu estava no píer, sem a menor disposição para carregar o equipamento imundo e molhado de volta para o carro.

"Monitoramos a recuperação do corpo, claro." Foi Green quem resolveu falar. "O detetive Roche e eu estávamos dentro do prédio, ouvindo as transmissões."

Lembrei-me do aviso de Ki Soo e olhei de relance para a plataforma inferior, na qual ele e Jerod cuidavam de seu equipamento.

"A mangueira ficou enroscada", respondi. "Mas não dá para saber quando isso ocorreu. Pode ter sido antes ou depois da morte."

Roche não parecia nem um pouco interessado, mas continuou a me encarar de um modo constrangedor. Era jovem, quase bonito, com feições delicadas, lábios cheios e cabelo preto curto e ondulado. Mas não gostei de seus olhos, que achei invasivos e presunçosos. Removi o capuz e passei os dedos pelo cabelo liso. Ele me observou enquanto eu abria o zíper do traje de mergulho e baixava a parte de cima até a altura dos quadris. Só restava a roupa de borracha colada ao corpo, e a água que penetrara esfriava rapidamente. Em pouco tempo eu não agüentaria mais o frio. Minhas unhas já estavam azuis.

"Um dos caras do resgate disse que o rosto dele está muito vermelho", o capitão falou enquanto eu prendia as mangas do traje de mergulho na cintura. "Isso deve significar alguma coisa."

"Frigidez cadavérica."

Ele me olhava, esperando mais.

"Corpos expostos ao frio adquirem uma coloração rosada", expliquei, já começando a tremer.

"Entendo. Então isso não..."

"Não", cortei-o, pois o desconforto acabara com minha paciência para escutá-lo. "Não quer dizer necessariamente algo. Há um vestiário feminino no qual eu possa trocar de roupa?" Olhei em volta, sem ver nada promissor.

"Ali adiante." Green apontou para um pequeno trailer, perto do prédio da administração. "Gostaria que o detetive Roche a acompanhasse e mostrasse onde estão as coisas?"

"Isso não será necessário."

"Felizmente, não está trancado", Green acrescentou.

Só me faltava essa, pensei. Não estava mesmo trancado, mas era terrível, apenas uma privada e uma pia que não eram limpas há muito tempo. A porta que conduzia ao banheiro masculino, do outro lado, estava presa com uma corrente grossa e cadeado, como se um dos sexos temesse a invasão de sua privacidade.

Não havia aquecimento. Tirei a roupa e descobri que tampouco havia água quente. Lavei-me o melhor que pude e vesti um agasalho grosso, botas e boné. Passava da uma e meia, Lucy provavelmente já chegara à casa de Mant. Eu nem havia começado a preparar o molho de tomate. Exausta, ansiava desesperadamente por uma ducha quente e demorada ou por uma banheira.

Não consegui me livrar de Green, que foi comigo até o carro e ajudou a guardar o equipamento no porta-malas. O bote já fora içado para a traseira de uma caminhonete e logo estaria a caminho do necrotério, em Norfolk. Não vira mais Jerod nem Ki Soo, e lamentei não ter podido me despedir deles.

"Vai fazer a autópsia quando?", Green perguntou.

Olhei para ele. Era o típico fraco que se escondia atrás de seu poder ou posto. Fizera o possível para me afugentar. Depois de fracassar, decidira que seríamos amigos.

"Agora." Liguei o motor e o aquecimento no máximo.

Ele se surpreendeu. "O departamento está aberto hoje?"

"Acabei de abrir", falei.

Eu ainda não havia fechado a porta e ele apoiou o braço na capota, olhando fixo para mim. Estava tão perto que eu via os vasos sangüíneos rompidos no rosto e nas asas do nariz, e as mudanças de pigmentação causadas pelo sol.

"Me ligue quando tiver q resultado."

"Após determinar a causa e o modo da morte discutirei o assunto com você, certamente."

"Modo?", ele franziu o cenho. "Está insinuando que pode haver alguma dúvida de que não foi uma morte acidental?"

"Pode haver dúvidas, capitão Green. Sempre há dúvidas. Meu serviço é esclarecê-las."

"Bem, se encontrar uma bala ou faca nas costas dele espero que eu seja o primeiro a saber", ele disse com ironia contida, enquanto me entregava seu cartão.

Afastei-me, procurando o número do assistente de Mant no necrotério. Esperava encontrá-lo em casa. Dei sorte.

"Danny, aqui é a doutora Scarpetta."

"Ah, sim, senhora", ele disse, surpreso.

Ouvi ao fundo canções de natal e vozes de pessoas discutindo. Danny Webster tinha vinte e poucos anos. Ainda morava com a família.

"Lamento incomodá-lo na véspera do Ano Novo", falei. "Mas temos um caso e preciso realizar a autópsia sem demora. Estou a caminho do necrotério."

"Precisa de mim?", ele soava receptivo à idéia.

"Se pudesse me ajudar, eu nem saberia como agradecer. Há um bote e um corpo a caminho do necrotério neste momento."

"Não tem problema, doutora Scarpetta", ele disse, animado. "Vou já pra lá."

Tentei falar com minha casa, mas Lucy não atendeu o telefone. Usando meu código, peguei as mensagens na secretária eletrônica. Havia duas de condolências, ambas deixadas por amigos de Mant. A neve caía do céu cinzento sobre a rodovia interestadual cheia de gente dirigindo mais depressa do que seria seguro. Não sabia se minha sobrinha se atrasara por algum motivo, nem o que a impedira de me telefonar. Lucy, aos vinte e três anos, formara-se recentemente pela academia do fbi. Eu ainda me preocupava com ela, como se precisasse de minha proteção.

A sede de meu departamento no distrito de Tidewater localizava-se num anexo pequeno e lotado do Hospital-Geral de Sentara Norfolk. Dividíamos o prédio com o Departamento de Saúde, que infelizmente era o responsável pela área de vigilância sanitária de frutos do mar. Situado entre o fedor dos corpos em decomposição e peixes podres, o estacionamento não era um lugar dos mais agradáveis em nenhuma época ou dia do ano. O Toyota velho de Danny já estava lá, e quando destranquei a porta do molhe fiquei contente em ver que o bote me aguardava.

Baixei a porta e dei a volta no bote, examinando tudo. A longa mangueira de baixa pressão fora cuidadosamente enrolada e, conforme meu pedido, a ponta presa à válvula reguladora de pressão guardada dentro de um saco plástico.

A outra ponta continuava ligada ao pequeno compressor preso ao bote. Ao lado havia uma lata de gasolina e a esperada miscelânea de equipamentos marítimos e de mergulho: pesos extras, um tanque contendo três mil libras de ar comprimido por polegada quadrada, um remo, salva-vidas, lanterna, cobertor e pistola sinalizadora.

Eddings instalara também um motor extra de cinco cavalos, obviamente usado pára entrar na área proibida onde morrera. O motor principal, de trinta e cinco cavalos, estava levantado e preso no barco, deixando a hélice fora da água. Lembrei-me de ter visto o bote nessa posição, no local. O que mais me interessava, porém, era uma valise de plástico rígido aberta no fundo do bote. Sobre o forro de espuma havia vários acessórios para câmeras e caixas de filme Kodak de cem asas. Não vi a máquina fotográfica ou o flash, calculando que haviam sido perdidos para sempre no fundo do rio Elizabeth.

Subi a rampa e destranquei outra porta. No corredor revestido de azulejos brancos, Ted Eddings jazia dentro de um saco, em cima de uma maça encostada perto da sala de raios X. Os braços enrijecidos projetavam-se no vinil negro, como se ele tentasse se libertar. A água pingava no chão, lentamente. Pensei em procurar Danny quando ele surgiu mancando, carregando uma pilha de toalhas, com o joelho direito protegido por uma joelheira vermelha, ainda se recuperando de uma contusão, durante uma partida de futebol, que exigira a reconstrução dos ligamentos.

"Precisamos levá-lo para a sala de autópsia", falei. "Você sabe o que eu acho de deixar corpos largados no corredor."

"Temi que alguém pudesse escorregar", ele disse, limpando a água com as toalhas.

"Bem, as únicas pessoas aqui somos você e eu." Sorri para ele. "Agradeço a gentileza, no que me diz respeito. E não gostaria que você caísse. Como está o joelho?"

"Às vezes acho que não vai melhorar nunca. Já faz mais de três meses e não consigo descer uma escada direito."

"Paciência. Faça bastante fisioterapia e ele vai melhorar logo", falei, repetindo o que já dissera várias vezes. "Já tirou as chapas do cadáver?"

Danny já trabalhara com cadáveres de mergulhadores antes. Sabia que seria altamente improvável encontrarmos projéteis ou ossos fraturados, mas os raios X poderiam revelar pneumotórax ou alteração mediastinal causada por vazamento de ar dos pulmões, em conseqüência de trauma barométrico.

"Sim, senhora. O filme está no revelador." Ele fez uma pausa, fechando a cara. "E o detetive Roche, da polícia de Chesapeake, está a caminho. Quer presenciar a necropsia."

Embora eu encorajasse policiais a acompanhar as autópsias dos casos, a presença de Roche no necrotério não me entusiasmava nem um pouco.

"Já o conhece?", perguntei.

"Andou circulando por aqui antes. Você poderá julgá-lo por si mesma."

Ele se levantou e prendeu o cabelo novamente, num rabo-de-cavalo, pois algumas mechas haviam escapado e caíam sobre os olhos. Ágil e gracioso, mais parecia um jovem cherokee sorridente. Com freqüência eu me perguntava por que aceitara trabalhar no necrotério. Ajudei-o a empurrar o corpo até a sala de autópsia. Enquanto ele o pesava e media fui para o vestiário tomar uma ducha. Quando vestia o traje cirúrgico, Marino ligou para meu pager.

"Novidades?", perguntei, quando ele atendeu o telefone,

"É mesmo quem imaginávamos?", perguntou.

"Creio que sim."

"Está fazendo a autópsia agora?"

"Vou começar daqui a pouco", falei.

"Espere quinze minutos. Vou chegar logo."

"Está vindo para cá?", falei, perplexa.

"Estou no telefone do carro, a caminho. Quando chegar, conversamos. Não demoro."

O motivo de sua vinda me intrigava. Deduzi que Marino descobrira algo em Richmond. Caso contrário, sua vinda a Norfolk não faria o menor sentido. A morte de Ted Eddings não era problema de Marino, a não ser que o fbi já estivesse envolvido na investigação, o que também não fazia sentido.

Marino e eu éramos consultores no Bureau de Análise de Investigação Criminal, mais conhecido como unidade de perfis psicológicos. O grupo se especializara em ajudar a polícia a esclarecer homicídios hediondos e de difícil solução. Rotineiramente trabalhávamos em casos ocorridos fora de nossa jurisdição, mas apenas quando éramos convidados. Era cedo demais para que a polícia de Chesapeake tivesse acionado o fbi, por qualquer razão.

O detetive Roche chegou antes de Marino, carregando um saco de papel. Insistiu para que eu lhe fornecesse avental, luvas, máscara, gorro e proteção para o sapato. Enquanto estava no vestiário, lidando com sua armadura contra contaminação biológica, Danny e eu começamos a tirar fotos e a olhar para Eddings exatamente da maneira como chegara até nós, ou seja, usando o traje de mergulho que continuava a pingar água no chão.

"Ele está morto já faz algum tempo", falei. "Tenho a impressão de que morreu pouco depois de mergulhar no rio, qualquer que tenha sido a razão."

"Sabemos quando isso ocorreu?", Danny perguntou, instalando lâminas novas nos cabos dos bisturis.

"Suponho que tenha sido após o anoitecer."

"Ele não me parece muito velho."

"Trinta e dois anos."

Ele fixou o olhar no rosto de Eddings, e parecia triste. "Fico mal quando vejo jovens aqui. Ou aquele jogador de basquete que caiu duro no meio do jogo, na semana passada." Ele olhou para mim. "Isso nunca acontece com você?"

"Não posso permitir que aconteça, pois eles precisam que eu faça um bom trabalho", falei, enquanto tomava notas.

"E depois que acaba?", ele ergueu a cabeça.

"Nunca acaba, Danny", falei. "Ficamos entristecidos pelo resto da vida. Nunca acabamos, no que diz respeito às pessoas que passam por aqui."

"Porque não conseguimos esquecê-las." Ele forrou um balde com o saco para vísceras e o colocou perto de mim, no chão. "Eu, pelo menos, não consigo."

"Se conseguíssemos esquecê-los, aí sim haveria algo errado conosco", comentei.

Roche saiu do vestiário parecendo um astronauta descartável, com seu traje de papel e máscara. Manteve-se distante da maça, mas se aproximou de mim o quanto pôde.

Falei: "Já olhei dentro do bote. Quais foram os itens removidos por vocês?".

"Pistola e carteira. Tenho os dois aqui comigo", ele respondeu. "Estão ali, num saco plástico. Quantos pares de luvas você está usando?"

"Não acharam câmera, filme, algo do gênero?"

"Só tem o que estava no bote. Estou vendo que usa várias luvas." Ele se debruçou, pressionando meu ombro com o dele.

"Uso duas", falei, afastando-me.

"Acho melhor eu pegar mais um par."

Puxei o zíper da bota de mergulho ensopada de Eddings e falei: "Estão ali, naquele armário".

Com o bisturi, abri o traje de mergulho e a roupa de borracha nas costuras, pois seria muito difícil remover tudo de um cadáver em estado de rigor adiantado. Ao libertá-lo da capa de neoprene pude ver que estava uniformemente rosado, em função do frio. Também tirei a sunga azul. Danny e eu o levamos até a mesa de autópsia, onde quebramos a rigidez dos braços e tiramos mais fotografias.

Eddings não tinha ferimentos, exceto várias cicatrizes antigas, a maior parte nos joelhos. Mas a genética o golpeara desde o início, pois sofria de hipospadia, ou seja, a abertura da uretra ficava na face ventral do pênis, e não na ponta. Esse pequeno defeito pode ter sido responsável por muita ansiedade, principalmente na infância. Adulto, a vergonha talvez tenha sido suficiente para levá-lo a evitar o sexo.

Nos contatos profissionais ele não demonstrava timidez ou hesitação, disso eu tinha certeza. Na verdade, ele me parecia um sujeito seguro e interessante, e logo para uma pessoa como eu, que raramente se encantava por alguém, principalmente jornalistas. De todo modo, eu sabia muito bem que as aparências não significavam nada na hora em que duas pessoas ficavam sozinhas, e fiz um esforço para interromper as fantasias naquele ponto.

Não queria me lembrar dele vivo, enquanto registrava dados e medidas nos diagramas da folha presa na prancheta. Uma parte da mente, porém, rejeitou minha vontade e voltei à última ocasião em que o encontrara. Fora na semana antes do Natal, eu estava em minha sala, em Richmond, de costas para a porta, colocando slides num projetor. Só percebi sua presença atrás de mim quando ele falou. Assim que me virei, vi que ele estava na porta, com um vaso de pimenteira natalina cheia de frutos vermelhos brilhantes.

"Posso entrar?", perguntou. "Ou prefere que eu volte para o carro com isso?"

Dei boa tarde, enquanto pensava com indignação nos funcionários da recepção. Eles sabiam que não se permitia a presença de repórteres além da divisória trancada e à prova de balas que havia no saguão. Só entravam com autorização minha. Mas as recepcionistas gostavam muito de Eddings. Até demais. Ele entrou e depositou o vaso no carpete, ao lado da minha mesa. Seu sorriso enchia o rosto inteiro.

"Só achei que este lugar precisava de algo vivo e feliz, para variar." Seus olhos azuis se fixaram nos meus.

"Espero que não seja uma indireta para mim", falei, sem conseguir evitar o riso.

"Está pronta para virá-lo?"

O diagrama do corpo na prancheta entrou em foco e me dei conta de que Danny falava comigo.

"Desculpe-me", murmurei.

Ele me olhava, preocupado, enquanto Roche perambulava pelo local como se nunca tivesse entrado num necrotério, espiando dentro dos armários envidraçados, lançando olhares periódicos em minha direção.

"Está tudo bem com você?", Danny perguntou, sempre sensível.

"Podemos virá-lo agora", falei.

Meu espírito tremeu por dentro, como uma pequena chama intensa. Eddings usava calça caqui desbotada e pulôver preto esportivo naquele dia, e eu tentava me lembrar da expressão de seus olhos. Perguntava-me se poderia haver algo neles capaz de antecipar o que aconteceria.

Resfriado pelo rio, o corpo se mostrava frio ao toque. Comecei a descobrir outros detalhes nele que fugiam ao familiar, o que me incomodou ainda mais. A ausência dos primeiros molares indicava ortodontia. Tinha diversas coroas de porcelana muito caras, lentes de contato coloridas que destacavam seus olhos vistosos. Curiosamente, a lente direita não havia sido removida pela água quando a máscara fora inundada, e o olhar fixo era assimétrico, como se dois mortos diferentes espiassem pelas pálpebras sonolentas.

Eu já havia praticamente encerrado o exame externo, mas ainda restava a parte invasiva, pois em qualquer morte não natural era necessário investigar as práticas sexuais do paciente. Raramente eu encontrava sinais óbvios, como uma tatuagem indicando sua inclinação sexual. Normalmente nenhuma pessoa próxima ao morto se apresentava para dar informações. No fundo, não importava o que me diziam ou não. Eu sempre conferia a possibilidade de relação anal.

"O que está procurando?" Roche voltou para perto da mesa, quase encostando em mim.

"Proctite, pequenas fissuras anais, espessamento do epitélio por trauma", respondi, enquanto trabalhava.

"Então está pensando que ele era bicha." Ele espiou por cima do meu ombro.

O rosto de Danny ficou vermelho, e seus olhos faiscaram de raiva.

"Orifício anal e epitélio normais", falei, tomando nota. "Em outras palavras, nenhum sinal compatível com práticas homossexuais sistemáticas. Detetive Roche, por favor, preciso de mais espaço para trabalhar."

Sentia sua respiração em minha nuca.

"Sabe, ele andava muito por aqui, fazendo entrevistas."

"Que tipo de entrevistas?", perguntei. Ele estava começando a me dar nos nervos.

"Sei lá."

"Quem ele entrevistou?"

"No outono passado fez uma matéria sobre o cemitério dos navios. O capitão Green pode lhe contar tudo."

"Estive com o capitão Green há pouco e ele não me disse nada a respeito."

"A reportagem foi publicada no Virginian Pilot, em outubro, creio. Nada muito espetacular. Só uma matéria comum", disse. "Na minha opinião, ele resolveu voltar para levantar uma história mais quente." .

"Por exemplo?"

"Não me pergunte. Não sou repórter." Ele olhou para Danny, do outro lado da mesa. "Pessoalmente, odeio jornalistas. Eles inventam teorias malucas e fazem qualquer coisa para prová-las. Bem, esse cara ficou meio famoso por aqui, sendo repórter da ap e tudo o mais. Falavam que ele saia com algumas moças só de fachada, para manter as aparências. Se a gente olhar fundo, não vê nada, se é que você me entende." Ele exibia um sorriso cruel no rosto e era difícil acreditar que eu pudesse detestar tanto um sujeito que conhecera naquele dia.

"Onde conseguiu essa informação?", perguntei.

"Ouvi falar por aí."

"Danny, vamos colher as amostras de unhas e cabelo", falei.

"Sabe, gasto um bom tempo conversando com as pessoas na rua", Roche disse, esbarrando nos meus quadris.

"Quer uma amostra do bigode, também?" Danny apanhou uma pinça e alguns envelopes num carrinho cirúrgico.

"Pode ser."

"Aposto que vai fazer o teste de hiv nele", Roche disse, esbarrando em mim novamente.

"Isso mesmo", respondi.

"Quer dizer, acha que ele devia ser bicha."

Interrompi o que estava fazendo, pois aquela havia sido a gota d'água. "Detetive Roche", falei asperamente, dando meia-volta para encará-lo, "se pretende permanecer no necrotério, vai ter de me dar espaço para trabalhar. Vai parar de esbarrar em mim e vai tratar meus pacientes com respeito. Este homem não pediu para estar aqui, morto e despido em cima da mesa de autópsia. E eu não gosto da palavra bicha."

"Bem, independentemente do nome que se use, a preferência sexual dele pode ter importância." Ele não se abalou; parecia até estranhamente satisfeito com minha irritação.

"Eu não posso afirmar se este homem era homossexual ou não", falei. "Mas posso garantir que ele não morreu de AIDS."

Apanhei um bisturi no carrinho cirúrgico e seus modos mudaram subitamente. Ele recuou, subitamente incomodado, pois eu ia começar a cortar. Mais um problema para eu cuidar.

"Já viu uma autópsia?", perguntei a ele.

"Algumas." Parecia a ponto de vomitar.

"Porque não se senta ali um pouco?", sugeri sem gentileza, pensando na razão que levara a polícia de Chesapeake a encarregá-lo daquele caso ou de qualquer outro. "Ou vá tomar um pouco de ar."

"Aqui está muito quente, só isso."

"Se enjoar, corra até a lata de lixo", Danny falou, segurando o riso com dificuldade.

"Vou me sentar ali um pouco." Roche encaminhou-se para a mesa perto da porta.

Rapidamente, fiz a incisão em Y, A lâmina desceu do esterno até a pélvis. Assim que o sangue foi exposto ao ar, tive a impressão de sentir um odor que me fez interromper o trabalho.

"Sabe, a Lipshaw lançou um afiador ótimo, que eu gostaria muito de poder testar", Danny dizia. "Funciona à base de água, basta a gente deixar as facas lá que ele faz o serviço."

O odor que eu sentia era inconfundível, mas eu não podia acreditar.

"Andei olhando o novo catálogo", ele prosseguiu. "Fico louco vendo tantas coisas boas que a gente não pode comprar."

Não era possível.

"Danny, abra as portas", disse num tom de urgência contida que o assustou.

"O que foi?", ele perguntou, alarmado.

"Precisamos de bastante ar fresco aqui. Agora", falei.

Ele se moveu depressa, para quem estava com o joelho machucado, e abriu as duas portas que davam para o corredor.

"O que aconteceu?" Roche ficou ereto na cadeira.

"Esse homem tem um odor peculiar." Eu preferia não revelar minhas suspeitas ali, especialmente para ele.

"Não sinto cheiro de nada." Ele se levantou e olhou em torno, como se o odor misterioso fosse algo que se pudesse ver.

O sangue de Eddings tinha cheiro de amêndoa amarga, e não me surpreendia que nem Roche nem Danny fossem capazes de senti-lo. A capacidade de sentir o cheiro de cianureto é uma característica feminina recessiva herdada por menos de trinta por cento da população. Eu fazia parte dos raros afortunados.

"Acredite em mim." Comecei a afastar a pele das costelas, com cuidado para não perfurar os músculos intercostais. "Este cheiro é muito estranho."

"E o que isso significa?", Roche queria saber.

"Só poderei responder depois que os exames forem concluídos", falei. "Nesse meio tempo, vamos verificar minuciosamente todo o equipamento dele, para ter certeza de que tudo estava funcionando direito e que ele não respirou fumaça do escapamento pela mangueira, por exemplo."

"Sabe alguma coisa a respeito de narguilés?", Danny perguntou, já de volta à mesa para ajudar.

"Nunca usei equipamento desse tipo."

Afrouxei lateralmente a incisão torácica mediai. Recuando o tecido, formei uma bolsa de pele, que Danny encheu de água. Em seguida, enfiei a mão e introduzi o bisturi entre duas costelas. Procurava ver se havia formação de bolhas, indicando um trauma durante o mergulho, capaz de provocar vazamento de ar para a cavidade torácica. Mas não havia nada.

"Vamos pegar o narguilé e a mangueira no barco e traze-los para dentro", decidi. "Seria bom se conseguíssemos localizar um consultor de mergulho para confirmar minhas constatações. Conhece alguém por aqui que poderíamos convocar num feriado?"

"Há uma loja de equipamento de mergulho em Hampton Roacls. O doutor Mant costuma chamar o pessoal de lá."

Ele pegou o número e telefonou, mas a loja estava fechada naquela véspera de Ano Novo cheia de neve. O dono do estabelecimento não estava em casa. Danny foi até o depósito e voltou logo depois. Ouvi uma voz familiar falando alto com ele, e passos pesados no corredor.

"Eles não deixariam, se você fosse um tira", a voz de Pete Marino ecoou na sala de autópsia.

"Sei disso, mas não consigo compreender o motivo", Danny disse.

"Bem, vou lhe dar um motivo bom pra cacete. Cabelo comprido como o seu dá aos vagabundos mais um lugar para agarrar, sacou? Se eu fosse você, cortaria bem curto. Além do mais, as moças iam adorar.":

Ele havia chegado a tempo para ajudar a carregar o narguilé e o rolo de mangueira, aproveitando a chance para passar um sermão em Danny. Nunca tive dificuldade para entender as razões dos problemas que Marino tinha com o filho, mesmo depois de adulto.

"Sabe algo a respeito de narguilés?", perguntei a Marino assim que entrou. Primeiro, ele olhou para o cadáver, impassível. "O quê? Ele tem alguma doença rara?"

"Essa coisa que você está carregando chama-se narguilé", expliquei.

Ele e Danny colocaram o equipamento em cima de uma mesa de aço, perto da minha.

"Parece que as lojas de mergulho ficarão fechadas por alguns dias", acrescentei. "Mas o compressor parece bem simples... uma bomba acionada por um motor de cinco cavalos que injeta ar pela válvula interna de entrada. O ar segue pela mangueira de baixa pressão, ligada ao regulador do segundo estágio, que fica com o mergulhador. O filtro parece em ordem. A mangueira de combustível está intacta. E só o que posso dizer."

"O tanque está vazio", Marino disse.

"Creio que a gasolina acabou depois da morte dele."

"Por quê?" Roche veio andando até onde estávamos e olhou intensamente para mim e para a frente do meu avental, como se fôssemos as duas únicas pessoas na sala. "Como sabe que ele não perdeu a noção do tempo e ficou sem combustível?"

"Mesmo que o suprimento de ar acabasse, ele teria tempo suficiente para subir à superfície. Estava a apenas dez metros de profundidade", falei.

"É bastante, principalmente se a mangueira se enroscar em algum ponto."

"Talvez. Mas, nessa hipótese, ele teria tirado o cinto de chumbo."

"O cheiro já passou?", ele perguntou.

"Não, mas não é mais tão intenso."

"Que cheiro?", Marino quis saber.

"O sangue tinha um odor estranho."

"Quer dizer, álcool?"

"Não, nada disso."

Ele ergueu o nariz como se farejasse e depois deu de ombros, enquanto Roche passava por mim desviando os olhos do cadáver sobre a mesa. Mal pude acreditar que ele se esfregou em mim novamente, embora houvesse espaço suficiente e tivesse sido avisado. Marino, grande, calvo, vestido com um capote de lã forrado, o seguiu com os olhos.

"Ei, quem é esse cara?", ele me perguntou.

"Bem, creio que vocês ainda não se conhecem", falei. "Detetive Roche, de Chesapeake. Detetive Marino, de Richmond."

Roche examinava o narguilé de perto, e o som de Danny abrindo espaço através das costelas com a cortadeira, na mesa ao lado, o perturbava. Ficou branco como cera novamente, com a boca pendente.

Marino acendeu um cigarro. Observei sua fisionomia e pude notar que chegara a uma conclusão a respeito de Roche, estando a ponto de comunicá-la ao sujeito.

"Quanto a você, não sei", ele falou, dirigindo-se ao outro detetive, "mas assim que entrei nesse negócio percebi uma coisa. Depois de freqüentar um necrotério, a gente nunca mais consegue encarar um fígado. Vai ver." Ele enfiou o isqueiro no bolso da camisa. "Sabe, eu adorava fígado acebolado." Soltando a fumaça, prosseguiu: "Agora, não como nem morto".

Roche aproximou o rosto do narguilé, quase enterrando a cara lá, como se o cheiro de borracha e gasolina fosse o antídoto de que precisava. Retomei o trabalho.

"Ei, Danny", Marino disse, "você continuou comendo porcarias como rim e moela depois que começou a trabalhar aqui?"

"Nunca comi essas coisas na vida", ele disse, retirando os músculos peitorais. "Mas entendo como se sente. Quando as pessoas pedem aqueles bifes de fígado enormes, no restaurante, tenho vontade de ir embora. Principalmente quando eles são servidos sangrentos, malpassados."

O odor se intensificou quando os órgãos foram expostos, e eu recuei.

"Está sentindo o cheiro?", Danny perguntou.

"Com certeza", respondi.

Roche retirou-se para o canto mais afastado. Marino, que já se divertira o bastante, aproximou-se e parou ao meu lado.

"Acha que ele se afogou?", Marino perguntou, rápido.

"No momento, não estou acreditando nisso. Mas, sem dúvida, vou procurar indícios de afogamento."

"O que você pode fazer para saber se ele morreu afogado ou não?"

Marino não estava muito familiarizado com afogamentos, uma vez que raramente se cometia assassinato dessa maneira. Demonstrava uma curiosidade enorme, queria entender tudo o que eu estava fazendo.

"Na verdade, estou fazendo uma série de coisas", expliquei, enquanto trabalhava. "Preparei uma bolsa de pele na lateral do peito e a enchi de água antes de inserir uma lâmina no tórax para ver se o ar escapava, formando bolhas. Vou encher o pericárdio com água e inserir uma agulha no coração, também para checar a formação de bolhas. E vou procurar hemorragias petequiais no cérebro, além de examinar o tecido mole do mediastino para verificar se há ar extra-alveolar."

"O que isso vai provar?"

"Possível pneumotórax ou embolia, que pode ocorrer a menos de cinco metros de profundidade, se o mergulhador estiver respirando inadequadamente. O problema é que a pressão excessiva nos pulmões pode resultar em pequenas fissuras nas paredes alveolares, provocando hemorragias e vazamentos de ar em uma ou nas duas cavidades pleurais."

"Presumo que isso seja fatal", ele disse.

"Exato", falei. "Isso pode matar."

"E quando a gente desce ou sobe muito depressa?", ele passou para o outro lado da mesa, para ver melhor.

"Mudanças de pressão - ou trauma barométrico - causadas por descida ou ascensão súbitas não seriam prováveis na profundidade em que ele estava. Como pode ver, os tecidos não estão esponjosos, como seria de esperar em caso de morte por trauma barométrico. Quer algum tipo de proteção?"

"Para ficar parecendo que trabalho numa dedetizadora?", Marino disse, olhando na direção de Roche.

"Espero que não pegue aids", Roche disse de longe, debilmente.

Marino vestiu o avental e as luvas enquanto eu explicava o que era necessário examinar para descartar também morte por descompressão e afogamento. Quando inseri uma agulha dezoito na traquéia em busca de uma amostra de ar para exame de cianureto, Roche resolveu se retirar. Ele atravessou a sala rapidamente, recolhendo seu saco de provas de cima de um balcão e fazendo muito barulho com a papelada que carregava.

"Quer dizer, não saberemos de nada até saírem os resultados dos exames", ele disse, da porta.

"Isso mesmo. Por enquanto, causa e modo da morte estão pendentes." Parei, olhando para ele. "Você receberá uma cópia do meu relatório quando estiver pronto. E eu gostaria de examinar os objetos pessoais do morto antes de você ir embora."

Ele não pretendia se aproximar, e minhas mãos estavam ensangüentadas.

Olhei para Marino. "Você poderia?"

"Será um prazer."

Ele se aproximou de Roche, pegou o saco e disse, asperamente: "Vamos logo. A gente pode resolver isso no corredor, enquanto você toma um pouco de ar".

Eles saíram e eu continuei trabalhando. Ouvi mais farfalhar de papel e Marino retirar o pente da pistola, abrir a culatra e reclamar em voz alta que a arma não estava travada.

"Não acredito que você saiu por aí com a pistola carregada", a voz de Marino ecoou. "Minha nossa! Sabe, isso não é um sanduíche num saquinho."

"As digitais ainda não foram verificadas."

"Bem, você podia ter posto uma luva e tirado as balas, como eu acabei de fazer. E depois esvaziar a câmara, como eu fiz. Onde você estudou? Na Loucademia de Polícia, onde lhe ensinaram também esses modos de bacana?"

Marino não parou aí, e ficou claro para mim por que levara Roche até o corredor. Nada a ver com tomar ar. Danny olhou para mim, cio outro lado da mesa, e sorriu.

Marino voltou pouco depois, balançando a cabeça, sem Roche. Estava aliviado e fazia questão de demonstrar isso.

"Meu Deus", falei. "Qual é o problema dele?"

"Ele pensa com a cabeça que Deus lhe deu", Marino disse. "A que está no meio das pernas."

"Como eu falei", Danny disse, "ele esteve aqui algumas vezes, perturbando o doutor Mant com perguntas. Mas eu não contei que ele sempre conversava com o doutor lá em cima. Nunca desceu para a sala de autópsia."

"Estou atônito", Marino disse.

"Ouvi dizer que ele alegou doença no dia em que a turma veio aqui acompanhar uma autópsia, quando cursava a academia de polícia", Danny prosseguiu. "Além disso, acabou de ser transferido da delegacia de crimes juvenis. Tornou-se detetive da homicídios há menos de dois meses."

"Puxa, que beleza", Marino disse. "Exatamente o tipo de pessoa que precisávamos num caso como este."

Perguntei a ele: "Você sente cheiro de cianureto?".

"Não. No momento, só sinto o cheiro do meu cigarro, que é exatamente o que eu quero."

"Danny?"

"Não, senhora." Ele parecia desapontado.

"Até agora não encontrei sinais de que se trata de morte em conseqüência do mergulho. Não há bolhas no coração nem no tórax. Nada de enfisema subcutâneo. Não há água no pulmão nem no estômago. Não sei se houve congestão." Cortei outra seção do coração. "Bem, ele sofreu congestão no coração, mas isso se deve à paralisação do órgão - em outras palavras, foi conseqüência da morte, creio. E ele apresenta vermelhidão no estômago, o que é típico do cianureto."

"Doutora", Marino disse, "conhecia bem o sujeito?"

"Pessoalmente, quase nada."

"Bem, vou contar o que havia no saco das provas. Roche não faz a menor idéia, pois não sabia o que estava vendo e eu não lhe disse nada."

Ele tirou o casaco e procurou um lugar seguro para pendurá-lo, escolhendo as costas de uma cadeira. Acendeu outro cigarro.

"Droga, esse piso acaba com meus pés", queixou-se enquanto se dirigia à mesa sobre a qual estavam o narguilé e a mangueira. Apoiando-se nela, disse a Danny: "E deve ser de matar, para o seu joelho".

"Sem dúvida nenhuma."

"Eddings tinha uma pistola Browning nove milímetros com acabamento marrom-claro Birdsong", Marino disse.

"E o que é Birdsong?", Danny quis saber, colocando o baço na balança suspensa.

"O Rembrandt dos acabamentos de pistolas. O senhor. Birdsong cuida da arma para quem deseja uma boa impermeabilização e pintura camuflada", Marino respondeu. "No fundo, ele a desmonta, lixa e pulveriza com teflon, para depois levá-la ao forno. Todas as pistolas do hrt têm acabamento Birdsong."

O hrt era o Grupo de Resgate de Reféns do fbi. Eu tinha certeza de que Eddings, em conseqüência das reportagens policiais que costumava fazer, mantinha contato com a Academia do fbi, em Quantico, e conhecia os agentes mais bem treinados.

"Pelo jeito, um seal da Marinha também gostaria de uma dessas", Danny sugeriu.

"Sem dúvida. Assim como as equipes da swat, pessoal do combate ao terrorismo e policiais comuns como eu." Marino examinava a mangueira de combustível e as válvulas do narguilé. "E a maioria de nós tem miras Novak como a que ele usa, também. Só não usamos munição ktw capaz de furar placas de aço, também conhecidas como cop killers, matadoras de tiras."

"Ele usava munição revestida de teflon?", perguntei, levantando a cabeça.

"Dezessete balas, mais uma na câmara. Todas com laça vermelha em volta da espoleta, para ficar à prova d'água."

"Bem, ele não comprou munição antiblindagem por aqui. Pelo menos, não fez isso legalmente, pois sua vencia foi proibida na Virgínia há anos. Quanto ao acabamento, tem certeza de que é Birdsong, o mesmo tipo usado pelo fbi?"

"Para mim parece o toque mágico que só Birdsong tem", Marino respondeu. "Mas, claro, há outros especialistas que fazem um serviço parecido."

Abri o estômago do cadáver, enquanto o meu se fechava como um punho. Eddings parecia um admirador da polícia. Ouvi dizer que costumava acompanhar policiais em diligências, além de freqüentar seus piqueniques e festas. Nunca me deu a impressão de ser fanático por armas, e fiquei muito surpresa de saber que portava uma pistola com munição ilegal, notória por seu uso contra indivíduos que supostamente eram suas fontes e talvez amigos.

"Conteúdo gástrico é apenas uma pequena quantidade de líquido marrom", continuei. "Ele não se alimentou perto da hora da morte. Bem, eu não esperava isso, já que pretendia mergulhar."

"Alguma chance de os gases do escapamento terem sido aspirados por ele? Sabe, dependendo da direção do vento." Marino continuava estudando o narguilé. "Isso não o deixaria cor-de-rosa, também?"

"Certamente. Vamos procurar monóxido de carbono durante os exames. Mas isso não explica o cheiro."

"E você tem certeza quanto ao cheiro?"

"Sei muito bem qual foi o odor que senti", falei.

"Acha que foi homicídio, não é?", Danny disse, olhando para mim.

"Ninguém vai comentar isso", falei, puxando um cabo pendurado no alto para ligar a serra Stryker. "Nem mesmo para a polícia de Chesapeake. Não comentem com ninguém, até que os exames estejam prontos e eu possa divulgar o resultado oficial. Não sei o que está acontecendo por aqui. Não sei o que houve no local. Portanto, devemos agir com mais cautela do que de costume."

Marino olhava para Danny. "Há quanto tempo está neste emprego?", perguntou.

"Oito meses."

"Entendeu o que a doutora acabou de dizer, não é?"

Danny ergueu os olhos, surpreso com a mudança de tom de Marino.

"Sabe ficar de bico fechado, não sabe?", Marino insistiu. "Isso quer dizer que você não vai contar nada para seus colegas nem tentar impressionar a namorada ou a família. Entendeu bem?"

Danny controlou a raiva, enquanto fazia a incisão na nuca, de orelha a orelha.

"Bem, se alguma coisa vazar, a doutora e eu vamos saber quem foi", Marino disse, insistindo num ataque que parecia totalmente gratuito.

Danny ergueu o couro cabeludo, dobrando-o por cima dos olhos para expor o crânio, e o rosto de Eddings se desmanchou, frouxo e triste, como se ele soubesse o que estava acontecendo e lamentasse. Liguei a serra e a sala se encheu com o som agudo da lâmina cortando ossos.

 

Por volta das três e meia o sol já havia se posto atrás de um véu cinzento; a neve formava uma camada com vários centímetros de profundidade e pairava no ar feito fumaça. Marino e eu seguimos as pegadas de Danny no estacionamento, pois o rapaz havia saído primeiro. Eu me sentia péssima em relação a ele.

"Marino", falei, "você não pode falar com as pessoas daquele jeito. A equipe que trabalha comigo sabe ser discreta. Danny não fez nada para merecer um tratamento tão rude de sua parte e eu não gostei nem um pouco de seus modos."

"Ele é um moleque", ele disse. "Se você o educar direito, saberá tomar conta de você. Mas é preciso acreditar na disciplina."

"Disciplinar minha equipe não é sua responsabilidade. E jamais tive problemas com ele."

"Sério mesmo? Talvez este seja o momento no qual você não possa se dar ao luxo de ter um problema com ele", Marino retrucou.

"Ficaria muito grata se você não tentasse gerenciar o meu departamento,"

Eu estava cansada e irritada. Lucy ainda não havia atendido o telefone na casa de Mant. Marino estacionara ao lado do meu carro. Destranquei a porta do motorista.

"Então, o que Lucy vai fazer no Ano Novo?", ele perguntou, como se percebesse minha preocupação.

"Ficar comigo, espero. Mas ainda não consegui falar com ela." Entrei no carro.

"A neve começou a cair no norte. Quer dizer que nevou em Quantico primeiro", ele disse. "Talvez tenha tido problemas. Sabe como a 95 fica quando neva."

"Ela tem telefone no carro. Além disso, está vindo de Charlottesville."

"Como assim?"

"A Academia decidiu mandá-la de volta para a uva, fazer outro curso de pós-graduação."

"Em quê? Estudos avançados de mísseis?"

"Pelo que sei, ela está fazendo uma pesquisa sobre realidade virtual."

"Talvez tenha ficado presa em algum ponto entre Charlottesville e sua casa." Ele não queria que eu fosse embora.

"Ela poderia ter deixado um recado na secretária."

Ele olhou para o estacionamento. O único automóvel ali era o rabecão azul-escuro cio necrotério, coberto de neve. Os flocos grudavam em seu cabelo ralo e ele devia sentir frio na careca, embora aparentemente não se importasse com isso.

"Quais são seus planos para o Ano Novo?", perguntei, ligando o carro e os limpadores, para remover a neve do pára-brisa.

"Eu ia jogar pôquer com uns amigos e comer chili."

"Acho que vai se divertir." Olhei para o seu rosto enorme, corado, enquanto ele continuava fitando o horizonte.

"Doutora, dei uma espiada no apartamento de Eddings em Richmond, mas não queria contar nada na frente de Danny. Acho que você vai querer dar uma checada lá, também."

Marino queria conversar. Ele não queria ficar com os amigos nem sozinho. Queria estar comigo, mas nunca admitiria tal coisa. Nesses anos todos de convivência com ele aprendera que Marino jamais confessaria seus sentimentos por mim, por mais que fossem óbvios.

"Não posso competir com um jogo de pôquer", falei, prendendo o cinto de segurança. "Mas pretendia fazer lasanha esta noite. E, pelo jeito, Lucy não vai estar aqui para saboreá-la. Então, se você quiser..."

"Acho que voltar depois da meia-noite, de carro, não é uma boa idéia", ele me interrompeu, olhando para o asfalto coberto de neve.

"Tenho quarto de hóspedes", insisti.

Ele consultou o relógio e concluiu que estava na hora de fumar.

"Na verdade, voltar agora de carro já não seria uma boa idéia", ressaltei. "Além disso, acho bom a gente conversar um pouco."

"É, acho que tem razão", ele disse.

O que nenhum de nós dois esperava, enquanto ele me seguia lentamente até Sandbridge, era ver fumaça saindo da chaminé quando chegamos. O velho Suburban verde de Lucy estava estacionado na frente da casa, coberto de neve. Concluí que ela já estava em casa havia algum tempo.

"Não compreendo", falei a Marino quando fechava a porta do carro. "Liguei três vezes."

"Acho melhor eu ir embora." Ele parou ao lado do Ford dele, sem saber direito como proceder.

"Isso é ridículo. Vamos entrar. Daremos um jeito. Você pode ficar no sofá. Além disso, Lucy vai adorar revê-lo."

"Você está com a tralha de mergulho?", ele disse.

"No porta-malas."

Carregamos o equipamento juntos até a casa do dr. Mant, que parecia ainda menor e mais deprimente com aquele tempo ruim. Nos fundos havia uma varanda fechada, e entramos por lá para deixar o equipamento no chão. Lucy abriu a porta da cozinha e fomos atingidos pelo aroma de tomate e alho. Ela ficou surpresa ao ver Marino e o equipamento de mergulho.

"Mas que droga está acontecendo?"

Sua contrariedade era indisfarçável. Havíamos combinado de passar aquela noite sozinhas, e ocasiões especiais como essa não eram freqüentes em nossa vida agitada.

"É uma longa história", falei, encarando-a.

Seguimos Lucy até a cozinha, onde um caldeirão fervia sobre o fogão. No balcão mais próximo vi a tábua de cortar. Lucy devia estar picando pimentão e cebola quando chegamos. Usava agasalho esportivo do fbi, meias de esquiador e parecia impecavelmente saudável. No entanto, tive a impressão de que não andava dormindo o suficiente.

"Tem uma mangueira na despensa. Na varanda, ao lado da torneira, uma lata de lixo vazia. Se enchê-la, poderemos lavar o equipamento", falei a Marino.

"Vou ajudar", Lucy disse.

"Você não vai fazer nada agora", falei, enquanto a abraçava. "Primeiro, vamos conversar um pouco."

Esperamos até que Marino saísse. Acompanhei-a até o fogão e levantei a tampa da panela. Um perfume delicioso encheu o ambiente e eu me senti feliz.

"Mal posso acreditar", falei. "Que Deus a abençoe."

"Você estava demorando. Passava das quatro. Achei melhor preparar o molho. Caso contrário, não comeríamos lasanha esta noite."

"Acho que precisa de um pouco mais de vinho tinto. E um tiquinho de manjerona e sal. Eu pretendia usar alcachofra no lugar da carne, embora Marino não goste muito. Ele pode comer presunto. O que acha?" Tampei a panela novamente.

"Tia Kay, por que ele veio aqui?"

"Você recebeu meu recado?"

"Claro. Assim que entrei. Mas só dizia que você tinha ido até o local de uma ocorrência."

"Lamento. Liguei várias vezes."

"Eu não ia atender o telefone na casa dos outros", ela falou. "E você não deixou recado."

"Claro, eu não poderia imaginar que você estava aqui. Por isso convidei Marino. Não queria que voltasse guiando para Richmond, na neve."

O desapontamento brilhou em seus olhos verdes profundos. "Não tem problema. Desde que eu não seja obrigada a dormir no mesmo quarto que ele", comentou, secamente. "Mas eu não entendo o que ele estava fazendo em Tidewater."

"Como já falei, trata-se de uma longa história", respondi. "O caso tem ramificações em Richmond."

Saímos para a varanda gelada e lavamos nadadeiras, traje de mergulho e outras coisas na água fria. Levamos tudo para o sótão, depois, porque o equipamento não congelaria lá, e o cobrimos com toalhas. Tomei uma ducha demorada pensando no quanto era irreal a presença de Lucy, Marino e eu naquele chalé minúsculo à beira-mar, na véspera de Ano Novo, debaixo de neve.

Saí do quarto e encontrei os dois na cozinha, tomando cerveja italiana e lendo uma receita de pão.

"Tudo bem", falei. "Agora chega. Podem deixar tudo por minha conta."

"Como quiser", Lucy disse.

Fiz com que ficassem fora do meu caminho e comecei a medir farinha de glúten, fermento, um pouco de açúcar e azeite de oliva, misturando tudo numa bacia. Acendi o forno em fogo baixo e abri uma garrafa de Cote Rôtie, para estimular a cozinheira a iniciar o trabalho mais sério. Com a refeição, planejava servir um Chianti.

"Você examinou a carteira de Eddings?", Marino perguntou enquanto eu cortava cogumelos porcini.

"Quem é Eddings?", Lucy perguntou.

Ela estava sentada no balcão, tomando Peroni. Do outro lado da janela, atrás dela, a neve riscava a escuridão progressiva. Expliquei o que havia acontecido durante o dia e ela não fez mais perguntas enquanto Marino e eu conversávamos.

"Não notei nada de mais", ele disse. "Um MasterCard, um Visa, um AmEx, cartão de seguro. O de sempre, mais um par de notas fiscais. Parecem ser de restaurantes. Vamos checar. Posso tomar outra?", ele jogou a lata vazia no lixo e abriu a porta da geladeira. "Deixa eu ver o que mais." Barulho de vidro. "Ele não tinha muito dinheiro. Vinte e sete paus."

"E quanto a fotos?", perguntei, sovando a massa numa tábua polvilhada de farinha.

. "Nenhuma." Ele fechou a geladeira. "Como deve saber, ele não era casado."

"Não sabemos se mantinha uma relação estável com alguém ou não", falei.

"Talvez seja verdade. Afinal de contas, não sabemos quase nada a respeito dele." Marino olhou para Lucy. "Sabe o que é Birdsong?"

"Minha Sig tem acabamento Birdsong." Ela olhou para mim. "E a Browning da tia Kay também."

"Bem, esse cara, o tal dè Eddings, tinha uma Browning nove milímetros igual à da sua tia, com acabamento marrom-claro Birdsong. Além de munição com revestimento de teflon com laça vermelha na espoleta. Quer dizer, capaz de varar doze listas telefônicas no meio da chuva."

Ela se assustou. "Por que um jornalista andaria com uma arma assim?"

"Algumas pessoas simplesmente adoram armas e munições", falei. "Muito embora nunca tivesse sabido que esse era o caso de Eddings. Ele nunca mencionou isso para mim. Também, não tinha nenhuma obrigação."

"Nunca na vida vi ktw em Richmond", Marino disse, referindo-se a uma marca de balas revestidas com teflon. "Nem legais, nem clandestinas."

"Ele poderia ter conseguido a munição numa feira de armamentos?", perguntei.

"Poderia. Uma coisa é certa: o sujeito freqüentava eventos do gênero. Ainda não falei sobre o apartamento."

Cobri a massa com um pano úmido e levei a fôrma ao forno, que estava no mínimo.

"Não vou entrar em detalhes", ele prosseguiu. "Ficarei nas partes mais importantes, a começar pelo local onde ele preparava sua própria munição, recarregando os cartuchos.

Agora, em que lugar ele dava tantos tiros, vai saber! Mas ele possuía um vasto arsenal. Poderia escolher entre diversas pistolas e revólveres, um ak-47, um mp5 e uma Ml6. Ninguém usa armas assim para caçar ladrões de galinhas. Além disso ele assinava revistas militaristas, como Soldier of Fortune, U. S. Cavalry Magazine e Brigade Quartermaster. E, para encerrar", Marino tomou outro gole de cerveja, "encontramos fitas que ensinam como ser um franco-atirador. Sabe, treinamento de forças especiais e essa merda toda."

Misturei os ovos com queijo parmesão e ricota. "Alguma pista do tipo de atividade em que ele estava envolvido?", perguntei, sentindo que o mistério daquela morte se aprofundava e me incomodava cada vez mais.

"Não. Mas está na cara que andava metido em alguma encrenca."

"Ou alguém o perseguia", comentei.

"Ele estava apavorado", Lucy disse, como se tivesse certeza. "Ninguém vai mergulhar depois de escurecer, levando uma nove milímetros à prova d'água carregada com munição para furar blindagem, se não estiver com medo. Esse é o comportamento de alguém que acredita estar marcado para morrer."

Foi então que resolvi contar a eles a respeito do estranho telefonema do tal policial Young, que pelo jeito nem existia. Citei o capitão Green e comentei seu comportamento.

"Se foi ele, por que telefonaria?" Marino franziu o cenho.

"Obviamente, ele não me queria no local", falei. "Talvez, se eu tivesse informações suficientes da polícia, apenas esperaria que o corpo fosse levado ao necrotério, como de costume."

"Bem, eu tenho a impressão de que tentaram intimidá-la", Lucy disse.

"Creio que essa foi a intenção, no geral", concordei.

"Tentou ligar para o número que o inexistente policial Young lhe forneceu?", ela perguntou.

"Não", falei.

"Onde está?"

Apanhei o papel e ela discou.

"É o número da previsão do tempo", ela disse, desligando.

Marino puxou uma cadeira da mesa de café da manhã, coberta com uma toalha xadrez, e sentou-se ao contrário, apoiando os braços no encosto. Ninguém falou, por algum tempo, enquanto meditávamos sobre dados que, a cada minuto, pareciam mais bizarros.

"Bem, doutora", Marino disse, estalando os dedos. "Eu preciso mesmo fumar. Vai me deixar ou serei obrigado a sair?"

"Lá fora", Lucy disse, apontando para a porta com o polegar, aparentando um mau humor que eu sabia não ser verdadeiro.

"E se eu cair dentro de uma falha do terreno coberta pela neve, sua pestinha?", ele disse.

"Tem apenas dez centímetros de neve lá fora. E a única coisa que pode falhar aqui é a sua cabeça."

"Amanhã vamos até a praia praticar tiro ao alvo em latas", ele disse. "De vez em quando alguém precisa lhe dar uma lição de humildade, agente especial Lucy."

"Vocês estão proibidos de praticar tiro nesta praia", falei para os dois.

"Acho que podemos deixar Pete fumar se ele abrir a janela e soprar a fumaça para fora", Lucy disse. "Só para mostrar o quanto você é viciado."

"Desde que você fume rápido", falei. "Esta casa já é fria demais."

A janela era teimosa, mas perdia para Marino, que conseguiu abri-la depois de um violento confronto. Encostou a cadeira na janela e fumou, soprando a fumaça através da tela. Lucy e eu pusemos a mesa na sala, imaginando que, seria melhor comer na frente da lareira do que na cozinha ou na sala de jantar, onde ventava.

"Você nem me contou ainda como vai", falei para minha sobrinha enquanto preparávamos o fogo na lareira.

"Estou ótima.'

As fagulhas saltaram na direção da chaminé negra de fuligem quando ela jogou mais algumas achas. As veias saltaram em suas mãos, os músculos de suas costas se flexionaram. Sua especialidade era ciência da computação e, mais recentemente, robótica, que estudara no mit. Seu campo de trabalho a tornou muito atraente para o Grupo de Resgate de Reféns do fbi, mas a expectativa em relação a ela era mental, e não física. Nenhuma mulher conseguira passar nas provas rigorosas do hrt e eu temia que ela se negasse a aceitar seus próprios limites.

"Você anda malhando muito?", perguntei.

"Um bocado", ela disse, repondo a tela antes de se sentar e me encarar.

"Se a quantidade de gordura de seu corpo estiver baixa demais, prejudicará sua saúde."

"Estou muito saudável, e na verdade acho que minha taxa de gordura corporal está bastante alta."

"Se estiver ficando anoréxica, não pretendo fingir que não percebo, Lucy. Sei que distúrbios alimentares podem ser fatais. Já vi várias vítimas."

"Não tenho nenhum distúrbio alimentar."

Aproximei-me e sentei do lado dela, na proteção da lareira, sentindo o calor nas costas.

"Acho que vou ter de aceitar sua palavra quanto a isso."

"Acho bom mesmo."

"Sabe", falei, tocando sua coxa, "você foi convocada pelo hrt como consultora técnica. Ninguém espera que você desça por uma corda presa ao helicóptero ou dispute uma corrida de meio-fundo junto com os rapazes."

Ela me fulminou com o olhar. "Olhe só quem vem falar em limites. Nunca soube que o fato de ser mulher a tivesse impedido de fazer algo."

"Conheço meus limites, claramente", discordei. "E tento superá-los com a inteligência. Assim, consigo sobreviver."

"Sabe", ela disse, emocionada, "ando cansada de programar computadores e robôs. Quando acontece alguma coisa importante - como a bomba em Oklahoma City - os rapazes seguem direto para a base aérea de Andrews e eu fico para trás. Ou, se por acaso for com eles, fico trancada numa salinha como se não passasse de uma viciada em computadores. Sou mais do que isso. Não quero ser um agente de escritório."

Seus olhos se encheram de lágrimas subitamente, e ela virou o rosto para o outro lado. "Posso enfrentar qualquer pista de treinamento, qualquer obstáculo. Sou franco-atiradora, sei escalar e mergulhar. E, o que é mais importante, seguro o tranco quando eles se atrapalham. Sabe, nem todos gostam de minha presença."

Quanto a isso, eu não tinha a menor dúvida. Lucy sempre fora uma pessoa extremamente polarizadora, pois era brilhante, mas muito difícil. Além de ser linda, com uma beleza exótica e enérgica. Francamente, não tinha idéia de como conseguia sobreviver no meio de uma equipe de agentes especiais composta por cinqüenta homens. E não saía com nenhum deles.

"Como vai Janet?", perguntei.

"Eles a transferiram para o escritório de Washington, para cuidar de crimes de colarinho branco. Pelo menos, não está muito longe."

"Isso é coisa recente", falei, intrigada.

"Bem recente." Lucy apoiou o cotovelo no joelho.

"E onde ela vai passar a noite de hoje?"

"A família tem um apartamento em Aspen."

Meu silêncio fez a pergunta, e sua voz traía irritação quando respondeu: "Não, ninguém me convidou. E não foi só porque Janet e eu não estamos nos entendendo. Não seria uma boa idéia".

"Entendo." Hesitei, antes de prosseguir. "Quer dizer que os pais dela ainda não sabem."

"Cacete, e quem pode saber? Acha que a gente não esconde, no trabalho? Saímos juntas, e uma fica vendo a outra sendo cantada pelos homens. É ótimo", ela disse, com amargura.

"Sei como é, no trabalho", falei. "Não poderia ser diferente, como eu mesma avisei. No entanto, estou mais interessada na família de Janet."

Lucy fixou os olhos nas mãos. "O problema é com a mãe dela. Para dizer a verdade, acho que o pai nem se importaria. Ele não vai achar que é por causa de alguma coisa que ele fez de errado, como faz minha mãe. Só que ela acha que é por causa de alguma coisa que você fez de errado, uma vez que você praticamente me criou, e é minha mãe de fato, segundo ela."

De nada adiantaria eu me defender da ignorância de minha única irmã, Dorothy, que lamentavelmente era a mãe de Lucy.

"Minha mãe tem outra teoria, também. Ela disse que você foi a primeira mulher pela qual me apaixonei, e isso, sei lá como, explica tudo." Lucy prosseguiu, em tom irônico: "Não importa que isso seja considerado incesto, nem que você seja heterossexual. Não se esqueça, ela escreve histórias infantis cheias de sentimento e se considera especialista em psicologia. Isso a torna terapeuta sexual, também".

"Lamento que você tenha de passar por tudo isso", falei, comovida. Nunca soube direito como agir, quando tínhamos essas conversas. Ainda eram novidade para mim, e me davam medo.

"Sabe", ela disse, levantando-se ao perceber que Mari-no entrara na sala, "certas coisas a gente tem de agüentar e pronto."

"Ei, tenho novidades para vocês", Marino anunciou. "Segundo a previsão do tempo, a neve vai derreter. Amanhã de manhã todos nós poderemos sair daqui."

"Amanhã é o primeiro dia do ano", Lucy disse. "Só para saber, por que a pressa em sair daqui?"

"Sua tia precisa dar uma olhada no apartamento de Eddings." Ele fez uma pausa, antes de acrescentar: "E Benton quer enfiar seu nariz por lá, também".

Tentei esconder minha reação. Benton Wesley era chefe do programa no Bureau de Análise de Investigação Criminal, e eu contava que não o veria durante as festas de fim de ano.

"O que está querendo dizer com isso?", perguntei, cautelosa.

Ele se sentou no sofá e me encarou pensativo. Após uma longa pausa, respondeu minha pergunta com outra. ' "Fiquei curioso a respeito de uma coisa, doutora. Como se envenena alguém debaixo d'água?"

"Talvez não tenha sido debaixo d'água", Lucy sugeriu. "Ele pode ter ingerido cianureto antes de mergulhar."

"Não. Isso não pode ter ocorrido", falei. "Cianureto é muito corrosivo. Se o tivesse tomado por via oral, eu teria notado danos consideráveis no estômago. No esôfago e na boca também, possivelmente."

"Então, o que pode ter acontecido?", Marino indagou.

"Creio que ele inalou cianureto gasoso."

Ele se surpreendeu. "Como? Pela mangueira?"

"O compressor puxa o ar através da válvula, que é protegida por um filtro", expliquei. "Alguém poderia misturar ácido clorídrico com um tablete de cianureto e simplesmente aproximar o frasco da válvula de entrada. O gás seria aspirado sem dificuldade."

"Se Eddings inalou cianureto gasoso enquanto estava no fundo, o que aconteceu?"

"Convulsão e morte em poucos segundos."

Pensei na mangueira enroscada e fiquei curiosa em saber se Eddings estava perto da hélice do Exploiter quando subitamente inalou cianureto gasoso pelo tubo do narguilé. Isso explicaria a posição em que estava quando o encontrei.

"Pode testar o narguilé para ver se há traços de cianureto?", Lucy perguntou.

"Bem, podemos tentar", falei. "Mas não espero encontrar nada, a não ser que o tablete de cianureto tenha sido colocado diretamente sobre o filtro da válvula. Mesmo assim, o equipamento pode ter sido alterado antes de minha chegada. Talvez tenhamos mais sorte com o pedaço de mangueira mais próximo do corpo. Iniciarei os exames toxicológicos amanhã, se conseguir alguém para trabalhar no laboratório em pleno feriado."

Minha sobrinha aproximou-se da janela e olhou para fora. "Ainda neva muito. É impressionante como ela clareia a noite. Dá para ver o oceano, parece um muro negro", disse, em tom meditativo.

"Ora, o que você está vendo é mesmo um muro", disse Marino. "Tem um muro de tijolo no fundo do quintal."

Ela permaneceu algum tempo sem falar, enquanto eu pensava na falta que sentia de Lucy. Pouco a via enquanto estudava na itva, é verdade. Mas agora eram raras as oportunidades de nos encontrarmos. Mesmo quando um caso me levava a Quantico não dava para garantir que haveria tempo para visitá-la. Entristecida, via que sua infância se fora. E um lado meu desejava que ela tivesse escolhido uma carreira menos exigente.

Ela refletiu em voz alta, ainda olhando pela janela. "Então, temos um repórter fanático por armamentos e alguém que o envenenou com cianureto gasoso enquanto ele mergulhava num cemitério de navios, em uma área restrita, à noite."

"O envenenamento não passa de uma conjetura", lembrei. "O caso está pendente. Muito cuidado para não se esquecer disso."

Ela se virou. "Onde se pode conseguir cianureto para envenenar alguém? É difícil?"

"É possível adquirir o produto de vários fornecedores especializados", informei.

"Por exemplo?"

"Bem, o cianureto é usado para extrair ouro de minérios. Tem aplicação também em folhação de metais, serve para fumigação e para obter ácido fosfórico a partir de ossos. Em outras palavras, qualquer joalheiro, operário da indústria química ou dedetizador tem acesso a cianureto. Já o ácido clorídrico é vendido em qualquer loja de produtos químicos e está presente na maioria dos laboratórios."

"Bem", Marino falou, "se alguém envenenou Eddings, sabia que ele estaria lá com o barco. Sabia quando e onde."

"Alguém sabia muitas coisas", concordei. "Por exemplo, o assassino teria de saber o tipo de equipamento de mergulho que Eddings pretendia usar. Se ele estivesse mergulhando com tanque, em vez de usar narguilé, o modo de agir teria de ser totalmente diferente."

"Eu gostaria muito de saber que diabos ele foi fazer lá embaixo", Marino disse, afastando a proteção da lareira para cuidar do fogo.

"De todo modo", falei, "sua atividade envolvia fotografia. E, a julgar pelo equipamento fotográfico encontrado, era coisa séria."

"Contudo, não acharam a câmera submarina", Lucy disse.

"Não", falei. "A correnteza pode ter carregado a máquina, ou ela caiu e sumiu no lodo do fundo. Infelizmente, parece que o tipo de equipamento usado por ele não flutuava."

"Eu daria qualquer coisa para botar as mãos no filme." Ela continuava a olhar para a neve noturna, e imaginei se estaria pensando em Aspen.

"Uma coisa é certa: ele não estava fotografando peixes." Marino jogou lenha ainda verde no fogo. "Portanto, o que resta são os navios. Aposto que estava fazendo uma reportagem que incomodou alguém."

"Ele talvez estivesse fazendo uma reportagem", concordei. "Mas sua morte não está obrigatoriamente relacionada à matéria. Alguém pode ter considerado o mergulho uma boa oportunidade para matá-lo por outro motivo."

"Onde você guarda os gravetos e lascas?", ele desistiu de lutar contra o fogo.

"Lá fora, debaixo da lona", respondi. "O doutor Mant não permitia lascas de madeira dentro de casa. Morria de medo de cupins."

"Neste barraco, ele devia ficar com medo de incêndios e ventanias."

"Nos fundos, perto da varanda. Obrigada, Marino."

Ele calçou as luvas, mas não o capote. Saiu enquanto a lenha da lareira soltava fumaça e o vento sibilava, emitindo uivos fantasmagóricos na chaminé de tijolo. Observei minha sobrinha, ainda à janela.

"Acho melhor cuidar do jantar, não acha?", falei a ela.

"O que ele foi fazer?", ela disse, de costas para mim.

"Marino?"

"É. Aquele tonto se perdeu. Olhe, ele está lá perto do muro. Espere um pouco. Não consigo vê-lo mais. Acendeu a lanterna. Muito estranho."

Suas palavras me deram um arrepio na nuca. Levantei-me num pulo. Corri para o quarto e peguei a pistola no criado-mudo. Lucy veio atrás de mim.

"O que foi?", ela gritou.

"Ele não tem lanterna", falei, e saí correndo.

 

Ao chegar na cozinha abri a porta que dava para a varanda e trombei com Marino. Quase caímos.

"Mas que merda...?", ele gritou, atrás de uma pilha de lenha.

"Alguém entrou", falei em voz baixa, tensa.

A madeira caiu estrepitosamente no chão de tábua e ele saiu correndo para o quintal, já com a pistola na mão. Lucy também saiu, armada. Estávamos prontos para enfrentar uma invasão.

"Cheque o perímetro da casa", Marino ordenou. "Eu vou até ali."

Examinei os fundos, atenta para a luz da lanterna. Lucy , e eu demos algumas voltas no chalé, apurando olhos e ouvidos, mas os únicos sons e visões eram os rangidos e as marcas de nossos sapatos na neve, conforme caminhávamos. Ouvi Marino travar a pistola quando nos reunimos no escuro, perto da varanda.

"Há pegadas perto do muro", ele disse, e seu hálito era branco. "Muito estranho. Elas conduzem à praia, e somem perto do mar." Ele olhou em volta. "Conhece seus vizinhos? Eles costumam sair para dar uma volta?"

"Não conheço os vizinhos do doutor Mant", respondi. "Mas ninguém deveria entrar no quintal. Além disso, quem em seu juízo perfeito sairia para passear num tempo desses?"

"Qual o trajeto das pegadas, dentro da propriedade?"

"Creio que ele pulou o muro e avançou cerca de dois metros no quintal, antes de recuar", Marino respondeu.

Pensei em Lucy parada na janela, iluminada por trás pelo fogo e pela luz acesa. Talvez o invasor a tenha visto e ficado com medo.

Então, pensei em outra coisa. "Como sabemos que a pessoa é homem?"

"Se não for, sinto pena de uma mulher com pés daquele tamanho", Marino disse. "O sapato é quase do tamanho do meu."

"Sapato ou bota?", perguntei, seguindo na direção da parede.

"Não sei. A sola tem um padrão de linhas cruzadas." Ele me seguiu.

As pegadas que vi me deixaram ainda mais alarmada. Não eram de botas comuns ou calçados esportivos.

"Meu Deus", falei. "Acho que a pessoa usava botas de mergulho, ou um calçado tipo mocassim semelhante a botas de mergulho. Olhem."

Mostrei a pegada a Lucy e Marino. Eles estavam a meu lado, abaixados, vendo a pegada iluminada obliquamente pela lanterna.

"Não tem arco", Lucy notou. "Realmente, para mim parece ser de bota de mergulho ou algo assim. Que negócio mais esquisito."

Levantei-me e olhei por cima do muro, para a água escura, pulsante. Parecia inconcebível que alguém tivesse vindo do mar.

"Dá para tirar fotos disso?", perguntei a Marino.

"Claro. Mas não tenho nada para fazer moldes."

Em seguida, voltamos para dentro de casa. Ele apanhou a lenha e a levou para a sala, enquanto Lucy e eu voltávamos a cuidar do jantar, que eu nem sabia mais se iria comer, de tão tensa que estava. Servi outra taça de vinho e tentei descartar o invasor como uma coincidência, uma distração inofensiva de alguém que gostava de caminhar ou de mergulhar à noite.

No fundo, sabia que não era nada disso. Mantive a arma ao alcance da mão e freqüentemente olhava pela janela. Meu estado de espírito era pesado, quando pus a lasanha no forno. Tirei o queijo parmesão da geladeira e comecei a ralar. Arrumei figo e melão nos pratos, acrescentando bastante presunto cru para Marino. Lucy preparou a salada, e por um tempo trabalhamos em silêncio.

Quando ela resolveu falar, revelou sua contrariedade. "Você se meteu em encrenca de novo, tia Kay. Por que isso sempre acontece?"

"Não vamos deixar a imaginação nos levar longe demais", falei.

"Você veio se meter aqui neste fim de mundo, sem alarme contra ladrão, protegida por fechaduras tão fortes quanto uma tampa de latinha..."

"Já colocou o champanhe para gelar?", interrompi. "Não demora e será meia-noite. A lasanha ficará pronta em dez ou quinze minutos, a não ser que o forno do doutor Mant seja precário como todo o resto. Aí talvez demore até o ano que vem. Nunca entendi por que as pessoas cozinham a lasanha durante horas. Depois, não entendem como ficou dura."

Lucy me olhava, segurando a faca de descascar legumes ao lado da tigela de salada. Ela havia cortado aipo e cenoura suficiente para alimentar um exército.

"Um dia farei lasagne coi carciofí para você. Leva alcachofra, só que uso molho bechamel em vez de marinara.

"Tia Kay", ela me cortou, impaciente. "Odeio quando você faz isso. Não vou permitir mais. Não estou dando a mínima para a lasanha, no momento. O que interessa é o telefonema estranho que recebeu esta manhã. Depois, houve uma morte muito suspeita, e as pessoas a trataram com muita desconfiança, no local. Agora um sujeito entra no quintal, usando uma roupa de mergulho."

"Não creio que essa pessoa pretenda voltar. Seja lá quem for. A não ser que tope enfrentar nós três."

"Tia Kay, você não pode mais ficar aqui", ela disse.

"Preciso cobrir o distrito do doutor Mant, e não posso fazer isso de Richmond", expliquei, olhando novamente pela janela de cima da pia. "Onde está Marino? Ainda tirando fotos?"

"Ele entrou faz pouco tempo." Sua frustração era palpável como a tempestade que se armava.

Entrei na sala e encontrei Marino dormindo no sofá, ao clarão do fogo. Meus olhos seguiram na direção da janela pela qual Lucy havia espiado, e resolvi ir até lá. Para lá do vidro gelado o quintal coberto de neve brilhava tenuemente, como se houvesse uma lua fraca, todo pontilhado pelas sombras elípticas deixadas por nossos pés. O muro de tijolo estava escuro, e eu não via nada para lá do muro, onde a areia grossa brigava com o mar.

"Lucy tem razão", disse a voz sonolenta de Marino, nas minhas costas.

Virei-me. "Pensei que você já tinha apagado."

"Ouço e vejo tudo, mesmo quando estou apagado", ele disse. Não pude evitar um sorriso.

"Caia fora daqui. Este é o meu voto." Ele sentou. "Eu não pretendo ficar nesta droga, perdido no meio do nada. Se acontecer alguma coisa, ninguém vai ouvir seus gritos." Seus olhos se fixaram em mim. "Quando alguém a encontrar, vai estar congelada. Isso, se um furacão não empurrar você para o mar antes."

"Chega", falei.

Ele apanhou a arma na mesinha de centro e a guardou na cintura, nas costas. "Você pode pedir a um dos médicos que venha para cá e cuide de Tidewater."

"Sou a única que não tem família. É mais fácil para mim mudar, especialmente nesta época do ano."

"Quanta bobagem, minha nossa! Você não precisa se punir por ser divorciada e não ter tido filhos."

"Não estou me punindo."

"Além disso, você não vai pedir para ninguém passar seis meses aqui. Diacho, você é o chefe. Deveria ordenar a transferência dos outros, com família ou sem família. E ficar em sua própria casa."

"Na verdade, eu não achava que passar um tempo aqui seria desagradável", falei. "Tem gente que paga uma fortuna para passar férias num chalé à beira-mar."

Ele se espreguiçou. "Tem alguma bebida americana para a gente tomar, aqui?"

"Leite."

"Eu estava pensando numa Miller, para dizer a verdade."

"Quero saber por que você chamou Benton. Pessoalmente, creio que ainda é muito cedo para envolver o Bureau."

"Pessoalmente, creio que você não está em condições de ser objetiva em relação a ele."

"Não me provoque", avisei. "Já é tarde e estou muito cansada."

"Fui sincero com você, apenas." Puxou um Marlboro do maço e o levou aos lábios. "E ele virá a Richmondl. Não tenho a menor dúvida. Não costuma viajar com a mulher nos feriados. Aposto que está doidinho para sair a serviço, no momento. E aqui ele vai ter serviço de sobra."

Não pude suportar seu olhar, e me ressentia por ele saber o motivo.

"Além do mais", Marino prosseguiu, "no momento, não é a polícia de Chesapeake que está pedindo ajuda ao fbi. Sou eu, e tenho o direito. Caso tenha esquecido, comando o distrito onde o apartamento de Eddings fica. No que me diz respeito, trata-se de uma investigação com várias jurisdições."

"O caso é de Chesapeake, e não de Richmond", declarei. "O corpo foi encontrado em Chesapeake. Você não pode atropelar a área deles, e sabe disso. Não pode convidar o fbi em nome deles."

"Sabe", ele insistiu, "depois de entrar no apartamento de Eddings e encontrar aquelas coisas..."

Eu o interrompi. "Encontrar que coisas? Você não pára de se referir às coisas que viu lá. Está falando do arsenal dele?"

"Disso e de muito mais. Vi coisas piores lá. Ainda não chegamos nesta parte." Ele me olhou e tirou o cigarro da boca.. "A questão é que Richmond tem motivos para se interessar pelo caso. Portanto, considere-se convidada."

"Sinto muito, mas fui convidada no momento em que Eddings morreu no estado da Virgínia."

"Não me parece que você tenha se sentido bem-vinda esta manhã, quando esteve no estaleiro."

Não falei nada, pois ele estava certo.

"Talvez tenha recebido uma visita em seu quintal esta noite, para se dar conta do quanto não é bem-vinda aqui", ele prosseguiu. "Quero o fbi no caso agora, pois a história vai muito além do sujeito que saiu de bote e teve de ser pescado por você dentro do rio."

"O que mais você achou no apartamento de Eddings?", perguntei.

Notei sua relutância quando ele desviou os olhos, e não a compreendi.

"Vou servir o jantar agora. Depois, vamos nos sentar e conversar", falei.

"Se pudesse esperar até amanhã seria melhor." Ele olhou de relance para a cozinha, como se temesse que Lucy nos ouvisse.

"Marino, desde quando você se preocupa com as coisas que tem para me contar?"

"Isso é diferente." Ele esfregou o rosto com as mãos. "Creio que Eddings andava envolvido com os neo-sionistas."

A lasanha ficou divina, pois eu havia secado a mussarela em panos de prato para que não soltasse muita água no forno e, claro, usado massa fresca. Servi o prato apenas aquecido, e não borbulhante e gratinado. Bastou polvilhar a travessa com parmesão, na mesa, para tornar aquela lasanha perfeita.

Marino comeu praticamente todo o pão, com muita manteiga, presunto cru e molho de tomate. Lucy só beliscou a pequena porção de lasanha em seu prato. A neve caía com mais força e Marino nos contou a respeito da bíblia dos neo-sionistas que ele havia encontrado, enquanto os fogos de artifício espocavam em Sandbridge.

Afastei a cadeira. "É meia-noite. Vamos abrir o champanhe."

Fiquei mais perturbada do que supunha ser possível, pois o que Marino contou era pior do que eu podia imaginar. Ao longo dos anos, ouvira falar um bocado de Joel Hand e seu grupo fascista, cujos membros se auto-intitulavam neo-sionistas. Eles pretendiam criar uma nova ordem, uma terra ideal. Sempre temi que a calma por trás das muralhas de sua sede na Virgínia se devesse ao fato de que preparavam um atentado.

"O negócio era invadir a fazenda dos filhos da mãe", Marino disse, levantando-se da mesa. "Isso já deveria ter sido feito há muito tempo, aliás."

"E qual seria a justificativa?", Lucy perguntou.

"Se quer saber minha opinião, com malucos que nem ele a gente não precisa de desculpa nenhuma."

"Sei. Boa idéia. Deveria sugerir isso a Gradecki", ela disse com ironia, referindo-se à ministra da Justiça.

"Sabe, conheço uns caras em Suffolk, onde Hand mora, e os vizinhos acham que lá acontecem coisas estranhas pra cacete."

"Vizinhos sempre acham que acontecem coisas estranhas pra cacete na casa dos outros", ela disse.

Marino tirou o champanhe da geladeira, enquanto eu apanhava os copos.

"Que tipo de coisas estranhas?", perguntei.

"Barcaças subindo o rio Nansemond, para descarregar engradados tão pesados que eles precisam usar guindastes. Ninguém sabe o que se passa lá dentro, mas alguns pilotos viram fogueiras à noite, como se realizassem rituais macabros. A população local jura que eles dão tiros aos montes e que muita gente foi assassinada naquela fazenda."

Segui para a sala, pois pretendíamos lavar a louça depois.

Eu disse: "Acompanho os homicídios neste estado, e nunca ouvi falar que os neo-sionistas estivessem envolvidos num deles, ou em qualquer outro crime. Jamais soube de práticas ocultistas, tampouco. O negócio deles é política racista e extremismo delirante. Pelo que sei, odeiam os Estados Unidos e provavelmente seriam felizes se pudessem ter um país só deles em algum lugar, no qual Hand fosse o rei. Ou Deus. Ou o que quer que ele seja para aquela gente".

"Quer que eu estoure esta coisa?", Marino disse, erguendo a garrafa de champanhe.

"O Ano Novo não vai ficar mais novo do que isso", falei. "Mas eu queria entender uma coisa." Acomodei-me no sofá. "Eddings tinha algum vínculo com os neo-sionistas?"

"Só a posse de uma bíblia deles, como já contei", Marino disse. "Encontrei o livro quando revistava a casa."

"Era isso que não queria me mostrar?" Olhei para ele, intrigada.

"Esta noite, não queria", ele disse. "Estou preocupado. Não queria que ela visse isso, se quer mesmo saber." Ele olhou para Lucy.

"Pete", minha sobrinha falou, sensata, "você não precisa mais cuidar de mim, embora eu fique lisonjeada com sua atenção."

Ele permaneceu em silêncio.

"Que tipo de bíblia é?"

"Não é do tipo que a gente leva na missa."

"Satânica?"

"Não, duvido que se possa considerá-la satânica. Pelo menos, não é como as outras que vi, não prega a adoração do demônio e não usa o tipo de simbologia associada a esses cultos. De todo modo, não é uma boa leitura para antes de dormir." Ele olhou para Lucy de novo.

"Onde está?", eu quis saber.

Marino tirou o papel laminado que protegia a rolha e o arame. A rolha saltou com um estalo alto e ele serviu o champanhe como servia cerveja, inclinando bem as taças para evitar a formação do colarinho.

"Lucy, por favor, pegue minha valise, lá na cozinha", ele disse, e olhou para mim quando ela saiu da sala, dizendo em voz baixa, "eu não teria trazido isso, se soubesse que ia encontrá-la aqui."

"Trata-se de uma mulher adulta. Puxa vida, Marino, ela é agente do FBI."

"Sei disso. Mas ela pira de vez em quando, e você sabe muito bem disso. Não lhe faria nenhum bem ler um livro cavernoso como este. Estou avisando. Só li porque precisava, e me senti muito mal. Senti como se tivesse de ir à missa. Já me ouviu falar isso alguma vez?" Seu semblante era grave.

Realmente, ele nunca havia falado daquele jeito antes, o que me deixou inquieta. Lucy passara por momentos difíceis, e me assustara muito. Mostrara um lado destrutivo e instável.

"Minha função não é protegê-la", falei, quando Lucy voltou à sala.

"Espero que não estejam falando a meu respeito", ela disse, entregando a valise a Marino.

"Pois é, estávamos falando de você, sim, senhora", ele disse. "Preferia que não estivesse aqui vendo isso."

A maleta se abriu com um estalo.

"O caso é seu." Os olhos dela transmitiam calma, quando se fixaram em mim. "Mas ele me interessa, e gostaria de ajudar no que fosse possível. Se desejar, porém, posso sair da sala."

Curiosamente, aquela foi uma das decisões mais difíceis que já tomei, pois ao permitir que examinasse o material que preferia ocultar dela estaria reconhecendo sua capacidade profissional. O vento sacudia as janelas e sibilava no telhado, soando como uma alma penada. Cheguei para o canto do sofá.

"Sente-se ao meu lado, Lucy", falei. "Vamos ver isso juntas."

A bíblia dos neo-sionistas ostentava o título de Livro de Hand, pois o autor recebera inspiração direta de Deus e modestamente batizara a obra com seu nome. Escrito à mão, em estilo renascentista sobre papel-bíblia, era encadernado em couro preto trabalhado, já gasto, no qual constava um nome desconhecido. Por mais de uma hora, Lucy deitou-se em meu ombro e lemos, enquanto Marino andava de um lado para outro, apanhando mais lenha, fumando, numa agitação tão perceptível quanto as chamas da lareira.

Assim como a Bíblia cristã, grande parte do que o manuscrito tinha a dizer era transmitido em parábolas, profecias e provérbios, tornando o texto ilustrativo e humano. Essa era uma das muitas razões que tornavam a leitura tão difícil. As páginas estavam cheias de pessoas e imagens que penetravam nas camadas mais profundas da mente. O Livro, como passamos a chamá-lo naquele início de ano, ensinava com detalhes escabrosos como matar, aleijar, assustar, enlouquecer e torturar. A seção explícita sobre a necessidade de pogroms, ilustrada, me fez tremer.

A violência me lembrou a Inquisição, e de fato explicava que os neo-sionistas pretendiam promover uma espécie de nova Inquisição no planeta.

"Chegamos à era na qual os incorretos devem ser expurgados de nosso meio", Hand escreveu, "e devemos ser óbvios e ruidosos como címbalos ao fazer isso. Devemos sentir seu sangue fraco gelar em nossa pele nua quando nos banharmos em sua aniquilação. Devemos seguir o Uno no rumo da glória, e mesmo na morte."

Li outras maldições e malefícios, acompanhei estranhas elucubrações com fusão e combustíveis que poderiam ser usados para sacudir o equilíbrio do mundo. No final do Livro, uma terrível escuridão parecia haver engolfado o chalé completamente. Eu me sentia acabrunhada, enojada pela noção de que havia entre nós pessoas pensando daquele jeito.

Lucy finalmente falou, quebrando o silêncio que já durava mais de uma hora. "Ele fala do Uno e da lealdade a ele", ela disse. "Trata-se de uma pessoa ou de uma divindade?"

"É o próprio Hand, que provavelmente se acha o novo Jesus Cristo", Marino disse, servindo mais champanhe. "Lembra-se de quando o vimos no tribunal?", ele ergueu os olhos para mim.

"Duvido que eu consiga esquecer aquilo tão cedo", respondi.

"Ele chegou acompanhado de uma corte, incluindo-se aí um advogado de Washington que usava relógio de algibeira de ouro e bengala encastoada em prata", contou a Lucy. "Hand usava um terno extravagante, de algum costureiro famoso, e o cabelo comprido louro preso num rabo-de-cavalo. As mulheres se aglomeraram na frente do fórum só para dar uma espiada nele, como se fosse Michael Bolton. Dá para acreditar?"

"O que ele foi fazer no tribunal?" Lucy olhou para mim.

"Ele entrou com uma petição de acesso, recusada pelo procurador público. O caso foi parar na mão do juiz."

"O que ele queria?", ela perguntou.

"Basicamente, tentava me forçar a entregar cópias do relatório da morte do senador Len Cooper."

"Por quê?"

"Ele alegava que o falecido senador havia sido envenenado por inimigos políticos. Na verdade, Cooper morreu de hemorragia aguda de um tumor no cérebro. O juiz não entregou nada a Hand." "Aposto que Joel Hand não vai muito com a sua cara", ela disse. 

"Tomara que não." Olhei para o Livro sobre a mesa de centro e perguntei a Marino: "Este nome na capa. Você sabe quem é Dwain Shapiro?".

"Eu já ia chegar nisso", ele disse. "Conseguimos alguma coisa no computador. Ele viveu na comunidade neo-sionista de Suffolk até o outono passado, quando resolveu cair fora. Um mês depois morreu, vítima de um assalto no semáforo, em Maryland."

Ficamos em silêncio por um momento. As janelas escuras do chalé eram como imensos olhos negros e quadrados.

Então perguntei: "Suspeitos ou testemunhas?".

"Não que se saiba."

"Como Eddings conseguiu a bíblia de Shapiro?", Lucy disse.

"Obviamente, esta é a resposta premiada", Marino falou. "Talvez Eddings tenha conversado com ele alguma vez, ou com seus seguidores. Não se trata de fotocópia, e diz logo no início que o dono não pode deixar o Livro cair nas mãos de ninguém. E se você for apanhado com o Livro de outro, pode dizer adeus à porcaria do mundo cruel."

"Foi exatamente o que aconteceu a Eddings", Lucy comentou.

Eu não queria aquele livro perto de nós. Sentia vontade de atirá-lo ao fogo. "Não gosto disso", falei. "Não estou gostando nem um pouco de tudo isso."

Lucy me olhou, curiosa. "Você não virou supersticiosa de uma hora para outra, não é?"

"Essa gente se dedica ao mal", falei. "Considero que existe muito mal no mundo, e que não se pode facilitar. Em que local da casa de Eddings você encontrou esse livro maldito, exatamente?", perguntei a Marino.

"Debaixo da cama", ele disse.

"Sério?"

"Estou falando sério, claro."

"Você sabe se Eddings morava sozinho?", perguntei.

"Pelo jeito, morava."

"E quanto à família?"

"O pai já faleceu. O irmão mora no Maine e a mãe em Richmond. Perto de onde você mora, pra dizer a verdade."

"Já conversou com ela?", perguntei.

"Dei uma passada por lá para dar a má notícia e perguntei se poderia fazer uma busca mais minuciosa na casa do filho, o que acontecerá amanhã." Ele consultou o relógio. "Quero dizer, hoje."

Lucy se levantou e aproximou-se da lareira. Apoiou o cotovelo no joelho e a cabeça nas mãos em concha. Atrás dela, as brasas brilhavam cobertas por uma grossa camada de cinzas.

"Como sabe que esta bíblia se originou mesmo dos neo-sionistas?", ela disse. "Pelo jeito, tudo que você tem veio de Shapiro, e como podemos ter certeza de onde ele a conseguiu?"

Marino disse: "Shapiro era neo-sionista até três meses atrás. Ouvi dizer que Hand não é muito compreensivo quando as pessoas tentam deixar a seita. Gostaria de saber uma coisa. Quantos neo-sionistas você conhece?".

Lucy não soube dizer. Eu tampouco saberia.

"Ele tem seguidores há pelo menos dez anos. E nunca ouvimos falar que alguém deixou o grupo, certo?", ele prosseguiu. "Como saber se há ou não um monte de gente enterrada naquela fazenda?"

"E como eu nunca ouvi falar nele?", ela quis saber.

Marino levantou-se para acabar com o champanhe.

"Porque não lecionam temas como este no mit ou na uva", ele respondeu.

 

De madrugada, deitada na cama, olhei para o quintal de Mant. A neve estava bem alta, acumulada perto do muro, e para lá da duna o sol polia o mar. Fechei os olhos por algum tempo, pensando em Benton Wesley. Queria saber o que diria a respeito do local onde eu estava morando no momento, e no que diríamos um ao outro quando nos encontrássemos mais tarde, naquele dia. Não nos falávamos desde a segunda semana de dezembro, quando decidimos de comum acordo que nosso relacionamento precisava acabar.

Virei de lado e puxei as cobertas até a orelha, quando ouvi passos. Logo senti a presença de Lucy, sentada na beirada da minha cama.

"Bom dia, sobrinha mais querida do mundo", murmurei.

"Sou sua única sobrinha do mundo", ela respondeu, como sempre o fizera. "E como sabia que era eu?"

"Ainda bem que era você. Outra pessoa poderia se dar mal."

"Trouxe café", ela disse.

"Você é um anjo."

"'Uau', como diz Marino. Todo mundo acha isso de mim."

"Eu só estava tentando ser gentil", falei, bocejando.

Ela se abaixou para me abraçar; senti o perfume do sabonete inglês que eu havia posto em seu banheiro. Senti sua firmeza e sua força, e me senti velha.

"Você faz com que eu me sinta um caco." Virei de costas, cruzando as mãos atrás da nuca.

"Por que está dizendo isso?", ela usava pijama de flane-la bem folgado, e parecia intrigada.

"Porque eu acho que nunca vou conseguir percorrer a estrada de tijolos amarelos outra vez", falei, mencionando o apelido da pista de obstáculos da Academia.

"Ninguém nunca disse que era fácil."

"Para você, é."

Ela hesitou. "Bem, agora é. Mas você não precisa trabalhar como hrt."

"E dou graças a Deus por não precisar."

Ela parou, acrescentando com um suspiro: "Sabe, no início fiquei furiosa, quando a Academia resolveu me mandar de volta para a uva, por um mês. Mas acho que isso pode ser um alívio. Posso trabalhar no laboratório, andar de bicicleta e correr pelo campus como uma pessoa normal".

Lucy não era uma pessoa normal, jamais o seria. Eu havia chegado à conclusão, depois de várias experiências penosas, que indivíduos com qi muito alto, como ela, são tão diferentes dos outros quanto os deficientes mentais. Ela olhava a neve cada vez mais clara, através da janela. O cabelo era dourado, com toques rosados graças à luz suave da manhã. Espantava-me ser parente de uma pessoa tão linda.

"Também ficarei aliviada de não estar em Quantico no momento." Ela fez uma pausa, e seu rosto estava muito sério quando voltou a me encarar. "Tia Kay, preciso lhe contar uma coisa. Na verdade, nem sei se vai gostar de ouvir isso. Talvez tudo fosse mais fácil se você não soubesse. Eu pretendia contar ontem; teria contado, se Marino não estivesse aqui."

"Pode falar." Fiquei tensa, instantaneamente.

Ela fez uma nova pausa. "Como vai encontrar Wesley hoje, acho melhor você saber. Tem o direito de saber, na minha opinião. Andam comentando no Bureau que ele e Connie estão separados."

Eu não sabia o que dizer.

"Obviamente, não posso verificar se isso é verdade", ela continuou. "Mas ouvi muitos comentários. Alguns dizem respeito a você."

"E por que dizem respeito a mim?", perguntei, depressa demais.

"Não me venha com essa", ela disse, olhando direto para mim. "O pessoal anda desconfiado desde que você começou a trabalhar em tantos casos dele. Alguns agentes acham que a única razão para você ter concordado em ser consultora do Bureau foi a oportunidade de ficar com ele, viajar com ele, essas coisas."

"Isso é uma mentira deslavada", falei, furiosa, sentando na cama. "Concordei em ser consultora de patologia forense porque o diretor pediu a Benton, que me convidou. Eu não me ofereci. Colaborei em vários casos, prestando um serviço ao fbi, e..."

"Tia Kay", ela me interrompeu. "Você não precisa se justificar."

Mas eu não conseguia parar. "Acho o fim do mundo alguém dizer um insulto desses. Jamais permiti que minhas amizades interferissem em minha integridade profissional."

Lucy ficou quieta. Depois de algum tempo, falou novamente. "Não estamos falando de uma mera amizade."

"Benton e eu somos bons amigos."

"Vocês são mais do que amigos."

"No momento, somos só-amigos. E essa história não é da sua conta."

Ela se levantou da cama, impaciente. "Você não tem o direito de ficar brava comigo por causa dele."

Ela olhava para mim, mas eu não consegui falar mais nada. Estava a ponto de chorar.

"Estou apenas contando o que ouvi, para evitar que você fique sabendo por terceiros", ela disse.

Continuei muda, e ela fez menção de se afastar.

Segurei-a pela mão. "Não estou brava com você. Por favor, tente entender. Uma reação assim é inevitável, quando a gente ouve uma coisa dessas. Aposto que você faria o mesmo."

Ela puxou a mão e se afastou de mim. "O que a faz pensar que não reagi, quando me contaram?"

Observei, frustrada, sua saída do quarto. Pensei que era a pessoa mais difícil que eu já havia conhecido. Passamos a vida inteira brigando. Ela nunca desistia, até achar que eu havia sofrido tudo que merecia, até confirmar o quanto eu me importava com ela. Uma injustiça, pensei, enquanto descia da cama.

Passei os dedos no cabelo enquanto criava coragem para me levantar e enfrentar aquele dia. Sentia o espírito pesado, obscurecido por sonhos que eram agora pouco claros, mas que haviam me impressionado de uma forma estranha. Creio que sonhei com água e pessoas cruéis; agi com incompetência, senti medo. Entrei no banheiro para tomar uma ducha, depois peguei o roupão no gancho atrás da porta e calcei o chinelo. Marino e minha sobrinha estavam sentados na cozinha quando finalmente resolvi aparecer.

"Bom dia", falei, como se Lucy e eu não tivéssemos conversado antes.

"Uau", Marino disse. "Muito bom, mesmo." Ele parecia ter passado a noite em claro; sua aparência era péssima.

Puxei uma cadeira e me uni a eles na mesinha de café. O sol já estava alto, a neve em brasa.

"O que foi?", perguntei, sentindo a tensão nervosa aumentar.

"Lembra-se daquelas pegadas perto do muro, na noite passada?" Seu rosto estava vermelho.

"Claro."

"Bem, temos outras." Ele colocou a caneca em cima da mesa. "Só que da segunda vez foram feitas em volta dos nossos carros, e são botas comuns, com sola Vibram. Portanto, doutora, adivinhe?", ele perguntou, e não esperou pela resposta que, infelizmente, eu já sabia. "Nenhum de nós três vai sair de casa. Vamos ter de esperar pelo guincho."

Permaneci em silêncio.

"Furaram os pneus." Lucy não moveu um músculo do rosto. "Todos os pneus, pombas. Pelo que pude concluir, usaram uma lâmina larga. Faca ou facão."

"A moral da história é que não era nenhum vizinho perdido ou mergulhador noturno na casa", Marino prosseguiu. "Estamos lidando com um sujeito que veio cumprir uma missão. Conseguimos espantá-lo da primeira vez, mas ele voltou. Ou mandou alguém."

Levantei-me para pegar café. "Quanto tempo para arrumar os carros?"

"Duvido que Lucy ou você consigam pneus hoje", ele disse.

"Tem de haver um meio", retruquei, objetivamente. "Precisamos sair daqui, Marino. Precisamos examinar a casa de Eddings. Além do mais, esta casa não me parece muito segura, no momento."

"Para dizer o mínimo", Lucy concordou.

Aproximei-me da janela perto da pia e pude ver claramente nossos veículos sobre pneus que pareciam poças de borracha na neve.

"Eles cortaram os pneus lateralmente. Não dá para consertar", Marino ressaltou.

"E o que vamos fazer?", perguntei.

"Richmond tem acordo de reciprocidade com outros departamentos de polícia. Já falei com o pessoal de Virgínia Beach. Estão a caminho."

O carro dele precisava de pneus especiais para viaturas policiais. Meu carro e o de Lucy precisavam de pneus Goodyear e Michelin, pois estávamos visando nossos automóveis particulares. Lembrei-o deste detalhe.

"Chamei um caminhão para levar os carros de vocês", ele disse, enquanto eu me sentava novamente. "Nas próximas horas, seu Benz e a lata velha de Lucy serão transportados para a borracharia Bell, em Virgínia Beach Boulevard."

"Meu carro não é uma lata velha", Lucy disse.

"Caramba, por que você foi comprar um carro cor de merda de papagaio? Teve uma recaída no estilo Miami, por acaso?"

"Não, recaída no orçamento apertado. Paguei novecentos dólares por ele."

"E o que fazemos, neste meio tempo?", perguntei. "Você sabe que um serviço desses vai demorar. Hoje é primeiro de janeiro."

"Tem razão", ele disse. "Mas dá para resolver de um modo simples, doutora. Se quiser ir a Richmond, pode pegar uma carona comigo."

"Tudo bem." Eu não pretendia discutir com ele. "Então vamos fazer o que for preciso e ir embora logo."

"Acho bom fazer as malas", ele sugeriu. "Na minha opinião, você devia dar o fora daqui de uma vez por todas."

"Não me resta outra escolha senão ficar até que o doutor Mant volte de Londres."

Mesmo assim, fiz as malas como quem não pretendia voltar ao chalé nunca mais na vida. Em seguida, bancamos a polícia técnica da melhor maneira possível. Afinal, furar pneus era apenas uma contravenção penal, e sabíamos que a polícia local não iria se mobilizar com o nosso caso. Na falta de equipamentos e materiais para fazer moldes das pegadas, tiramos fotografias para registrar as marcas em volta dos carros, embora eu suspeitasse que só poderíamos deduzir com elas que o suspeito era grande e calçava bota ou sapato comum, com a marca Vibram no arco da sola rugosa.

Quando um jovem policial chamado Sanders e o caminhão vermelho do reboque chegaram, no meio da manhã, escolhi dois pneus radiais danificados e os tranquei no porta-malas do carro de Marino. Depois, fiquei observando os homens de macacão e jaqueta de náilon forrada trocando pneus com uma velocidade estonteante, enquanto o guin-cho mantinha o Ford de Marino com a frente erguida, como se estivesse para decolar. O policial Sanders, de Virgínia Beach, perguntou se minha posição como legista-chefe poderia ter alguma relação com os estragos feitos em nossos veículos. Respondi que não acreditava na possibilidade.

"Quem reside aqui é um de meus assistentes", expliquei. "O doutor Philip Mant. Ele foi para Londres, passar um mês. Estou aqui como substituta."

"E ninguém sabe que está hospedada aqui?", perguntou Sanders, que não era nenhum idiota.

"Certamente, várias pessoas sabem disso. Cuido dos casos dele."

"Mesmo assim, a senhora não acha que a ocorrência possa ter relação com sua profissão e seu exercício nesta área," Ele estava anotando tudo.

"Até o momento, não temos indícios de que haja uma ligação", respondi. "Na verdade, não podemos descartar a hipótese de que o causador tenha sido um moleque que resolveu aprontar um pouco na véspera do Ano Novo."

Sanders não tirava os olhos de Lucy, que conversava com Marino, perto dos carros. "Quem é a moça?", perguntou.

"Minha sobrinha. Agente do fbi", respondi, declarando a seguir seu nome.

Enquanto ele conversava com ela, fiz uma última viagem até o chalé, entrando pela porta da frente. O sol aquecera o ar e clareara com sua luz a mobília. Ainda dava para sentir o cheiro de alho da refeição da noite anterior. No meu quarto, olhei em volta mais uma vez, abrindo gavetas e examinando as roupas do armário embutido, triste pela decepção. No início, pensei que ia gostar de ficar ali.

Atravessei o corredor e olhei o quarto no qual Lucy dormira, depois passei para a sala, onde ficamos lendo o Livro de Hand madrugada adentro. A lembrança me desacertou, como o sonho; a pele dos meus braços ficou toda arrepiada. Senti o sangue gelar de medo, e de repente não consegui mais permanecer dentro da casa de meu colega um momento sequer. Corri para o fundo, passei pela porta de tela e fui para o quintal. Sob o sol senti voltar a segurança. Olhei para o oceano e interessei-me pelo muro novamente.

A neve chegava ao cano da bota quando me aproximei do muro. Das pegadas da noite anterior, nem sinal. O intruso, cuja lanterna fora avistada por Lucy, pulara o muro e fugira correndo. No entanto, deve ter voltado depois, ou mandado alguém em seu lugar, pois as pegadas em volta do carro foram deixadas depois que a neve parou de cair, e não eram de sapatos de mergulho ou surfe. Olhei por cima do muro, para lá da duna, para a praia. A neve parecia algodão-doce, formando montes nos quais o mato despontava como penas serrilhadas. A água escura e azulada estava encrespada. Não vi viva alma, até onde a vista alcançava, dos dois lados da praia.

Fiquei ali, observando, por um longo tempo, completamente absorta em minhas preocupações e especulações. Quando dei meia-volta para retornar, levei um susto. O detetive Roche estava parado tão perto que poderia ter me agarrado.

"Puxa vida", falei, agitada. "Nunca mais se aproxime de mim deste jeito."

"Andei sobre suas pegadas. Por isso não me ouviu chegar." Ele mascava chiclete e mantinha as mãos nos bolsos do casaco de couro. "Entrar furtivamente é uma das minhas especialidades. Quando quero, claro."

Olhei para ele, e minha antipatia se aprofundou consideravelmente. Usava calça e bota escuras. Eu não podia ver seus olhos, ocultos por trás dos óculos espelhados. Não fazia diferença, entretanto. Eu sabia muito bem quais eram as intenções do detetive Roche. Conhecia o tipo.

"Soube a respeito do ato de vandalismo e passei para ver se precisa de ajuda", ele disse.

"Eu não sabia que a polícia de Chesapeake havia sido notificada", comentei.

"Virgínia Beach e Chesapeake têm um canal de ajuda mútua, e ouvi a respeito de seu problema por lá", disse. "Devo confessar que a primeira coisa que me passou pela cabeça foi que deveria haver uma ligação."

"Uma ligação com o quê?"

"Com nosso caso." Ele se aproximou. "Parece que alguém realmente fez um estrago nos carros de vocês. Pode ser um aviso. Sabe, talvez você esteja metendo o nariz onde não é chamada."

Meus olhos desceram até os pés dele, vendo botas Gore-Tex de amarrar, de couro cor de fígado. Notei as marcas que deixaram na neve. Roche tinha pés e mãos grandes, e usava botas com sola Vibram. Fitei novamente o rosto que poderia ser bonito, não fosse o espírito por dentro dele tão feio e mesquinho. Não falei nada, por algum tempo, mas quando abri a boca fui direto ao ponto.

"Você fala como o capitão Green. Seja claro. Está me ameaçando, também?"

"Estou só comentando o caso."

Ele se aproximou mais ainda, e fiquei encurralada junto à parede. Um pouco de neve do alto do muro caiu e desceu pela gola cio meu casaco enquanto o sangue me subia à cabeça.

"E então", ele disse, aproximando-se ainda mais, "quais são as novidades do caso?"

"Afaste-se", falei.

"Não sei, acho que você não está me contando tudo. Aposto que tem uma boa idéia do que aconteceu com Ted Eddings, mas resolveu sonegar informações."

"No momento, não estou disposta a discutir este caso, ou qualquer outro."

"Está vendo? Isso me deixa numa situação ruim, pois preciso prestar contas à chefia." Ele chegou ao cúmulo de levar a mão ao meu ombro, para dizer: "Sei que você não vai -querer criar nenhum problema para mim".

"Não me toque", avisei. "Suma da minha frente."

"Creio que eu e você precisamos nos conhecer melhor, para superar esta dificuldade de comunicação." Ele deixou a mão onde estava. "A gente podia jantar num lugar tranqüilo, bem afastado. Gosta de frutos do mar? Conheço um lugar bem discreto, no Sound."

Permaneci em silêncio, pensando em atingir a garganta dele com o dedo.

"Não seja tímida. Confie em mim. Está tudo bem. Aqui não é nenhuma Richmond, a Capital dos Confederados, cheia de esnobes falidos que cuidam da vida alheia. Aqui a gente vive e deixa viver. Entende o que estou querendo dizer?"

Tentei passar por ele, mas Roche segurou meu braço.

"Estou falando com você." Ele estava perdendo a calma. "Não vá embora quando eu estiver falando com você."

"Largue meu braço", ordenei.

Tentei puxar o braço. Mas ele era surpreendentemente forte.

"Não adianta você ter um monte de diplomas bacanas, não é páreo para mim", ele disse, entre dentes, com seu hálito de bala de hortelã.

Olhei direto para seus olhos de Ray-Ban.

"Tire as mãos de mim agora mesmo", falei em voz alta, com toda a dureza. "Agora!", exclamei, como se pudesse matá-lo instantaneamente.

Roche me soltou subitamente, e eu saí andando decidida pela neve, enquanto meu coração disparava por conta própria. Ao chegar na frente da casa parei, sem fôlego, atônita.

"Há pegadas nos fundos que precisam ser fotografadas", falei a todos. "Pegadas do detetive Roche. Ele estava lá agora. E quero todos os meus pertences fora desta casa."

"Como assim? O que quer dizer com isso? Como ele poderia estar lá agora?", Marino disse.

"Acabamos de conversar."

"Como ele foi lá sem que o víssemos?"

Olhei para a rua e não vi nenhum carro que pudesse pertencer a Roche. "Não sei como ele chegou lá", falei. "Acho que entrou pelo quintal do vizinho. Ou veio pela praia."

Lucy não sabia o que pensar, e só olhava para mim. "Você não pretende voltar para cá?", ela perguntou.

"Nunca mais?"

"Não", falei. "Nunca mais porei os pés nesta casa, se depender de mim."

Ela me ajudou a pegar o resto das minhas coisas. Só contei o que acontecera no quintal quando estávamos no carro de Marino, seguindo a toda velocidade pela 64 West, no rumo de Richmond.

"Merda", ele disse. "O filho da puta pegou você de jeito. Puxa vida. Por que não gritou?".

"Creio que a missão dele era me assustar. Mas agia a mando de alguém", falei.

"Não me interessa qual era a missão dele. Foi assédio sexual. Acho melhor dar parte."

"O que ele fez não é crime."

"Ele a agarrou."

"Como poderia acusá-lo de segurar meu braço?"

"Ele não tinha o direito de tocar em você." Marino estava furioso, ao volante. "Você ordenou que largasse, e ele não obedeceu. Isso é rapto. Ou, pelo menos, agressão. Droga, este carro está fora de alinhamento."

"Você precisa relatar o caso ao pessoal dos Assuntos Internos", Lucy disse, no banco da frente, lidando com o rádio, pois não conseguia ficar com as mãos paradas.

"Ei, Pete, a sintonia não está boa", disse. "E não dá para ouvir nada no canal três. É o Terceiro Distrito, certo?"

"O que espera? Estamos muito perto de Williamsburg. Esta viatura não é da polícia rodoviária, sabia?"

"Não, mas se quiser falar com eles, posso dar um jeito."

"Aposto que seria capaz de falar com uma estação orbital", ele disse, irritado.

"Se puder mesmo", falei, "peça para eles me arranjarem um lugar por lá."

 

Chegamos a Richmond às duas e meia. O vigia ergueu a cancela na entrada do condomínio fechado para onde eu havia mudado recentemente. Como era típico daquela parte da Virgínia, não nevara. A água pingava profusamente das árvores, pois a chuva congelara durante a noite e agora a temperatura estava subindo.

A casa com fachada de pedra na qual eu residia ficava afastada da rua, numa elevação que dava vista para uma curva do rio James, entremeada de pedras. Uma cerca de ferro protegia o terreno arborizado, impedindo que as crianças da redondeza entrassem. Eu não conhecia os vizinhos, nem tinha a menor intenção de fazê-lo.

Eu não havia sido capaz de antecipar os problemas ao decidir, pela primeira vez na vida, construir uma casa. O telhado de ardósia, o pavimento de acesso em tijolo ou a cor da porta da frente, qualquer coisa servia como motivo para as críticas e restrições do pessoal do condomínio. Quando cheguei ao ponto de ser interrompida no necrotério pelas ligações desesperadas do empreiteiro, ameacei a associação de moradores com um processo. Desnecessário dizer, convites para festas no condomínio eram raríssimos.

"Aposto que os vizinhos vão adorar saber que você está em casa", minha sobrinha disse secamente, quando descemos do carro.

"Não creio que eles prestem muita atenção em mim, atualmente." Comecei a procurar a chave.

"Duvido", Marino disse. "Você é a única por aqui que passa o dia nas cenas dos crimes ou cortando cadáveres. Eles provavelmente passam o tempo inteiro na janela, quando você está em casa. Aposto que o guarda do portão liga para todo mundo, avisando que você chegou."

"Muito obrigada", falei, abrindo a porta da frente. "Era o que eu precisava ouvir, agora que estava começando a me acostumar a viver aqui."

O alarme contra ladrão emitiu um zumbido, avisando que eu precisava teclar imediatamente a combinação correta. Olhei em torno, como sempre costumava fazer, pois minha casa ainda era um lugar estranho para mim. Temia goteiras no telhado, queda do forro ou de outras partes. Quando relaxava e via que estava tudo bem, sentia-me imensamente gratificada com a obra. O sobrado era amplo, claro, as janelas haviam sido posicionadas de modo a capturar cada partícula de luz. A sala tinha uma parede de vidro através da qual se .' via uma grande extensão do James e, no final do dia, o sol se ;. pondo atrás das árvores na margem do rio.

Ao lado do meu quarto ficava o escritório, finalmente grande o bastante para que eu trabalhasse lá dentro. Verifiquei se havia algum fax. Quatro.

"Alguma coisa importante?", perguntou Lucy, que me seguira enquanto Marino descarregava caixas e malas.

"Na verdade, são todos de sua mãe", falei, entregando as mensagens a ela.

Ela franziu a testa. "Por que ela mandaria um fax para cá?"

"Eu não lhe disse que estaria residindo temporariamente em Sandbridge. Você contou?"

"Não. Mas a vovó sabe, certo?", Lucy disse.

"Claro. Mas minha mãe e a sua nem sempre conseguem se entender." Olhei para o texto que ela estava lendo. "Está tudo bem?"

"Ela é louca. Sabe, instalei um modem e um cd-rom no computador dela. Ensinei-a a usar o equipamento. Idéia infeliz. Agora, ela vive fazendo perguntas. Todas as mensagens são dúvidas sobre o uso do computador." Irritada, ela examinou as folhas.

Também fiquei furiosa com Dorothy, a mãe dela. Era minha irmã, minha única irmã, e não se dava ao trabalho de desejar feliz Ano Novo à filha.

"Ela mandou este hoje", minha sobrinha prosseguiu. "É feriado, e continua escrevendo aqueles livros infantis idiotas."

"Sejamos justas", falei. "Os livros dela não são idiotas."

"Vá lá. Só não sei onde ela fez a pesquisa, mas não foi na casa em que eu cresci."

"Como eu gostaria que vocês duas se entendessem!" Repeti o comentário que vinha fazendo desde a infância de Lucy. "Um dia, você terá de se reconciliar com ela. Nem que seja quando ela morrer."

"Você só pensa em morte."

"Penso muito, pois conheço a morte. É o outro lado da vida. Você não pode ignorá-la, assim como não pode ignorar a noite. Você vai ter de lidar com Dorothy, mais dia, menos dia."

"Nunca." Sentada, ela girou a poltrona de couro para me encarar. "Não adianta. Ela não me entende nem vai entender, nunca."

Isso era verdade.

"Pode usar meu computador, se quiser", falei.

"Vai ser só um minuto."

"Marino vem buscar a gente às quatro", falei.

"Eu nem sabia que ele já tinha ido embora."

"Volta logo."

Fui para meu quarto escutando o ruído do teclado. Comecei a desfazer as malas e fazer planos. Precisava de um carro, e pensei em alugar um. Precisava trocar de roupa, mas não sabia bem o que vestir. Incomodei-me ao perceber que pensar em Wesley ainda me levava a pensar no que vestir. Conforme os minutos passavam, meu medo de encontrá-lo crescia.

Marino passou para nos apanhar no horário combinado. Ele deu um jeito de encher o tanque, num posto com lava-rápido que encontrou aberto, no caminho. Seguimos para o lado leste da cidade, pela Monument Street, até um bairro conhecido como Fan, no qual mansões elegantes ladeavam avenidas históricas. Os estudantes universitários ocupavam muitas casas antigas, transformadas em repúblicas. Chegando à estátua de Robert E. Lee ele entrou na Grace Street, onde Ted Eddings vivera num sobrado branco estilo espanhol com uma flâmula natalina balançando na viga da varanda de madeira. A fita amarela do cordão de isolamento ia de lado a lado, numa paródia mórbida de presente de Natal. Dizeres em letras negras proibiam curiosos de ultrapassar a faixa.

"Nas atuais circunstâncias, eu não queria ninguém entrando na casa, e não sabia quem poderia ter a chave", Marino explicou, destrancando a porta da frente. "A última coisa que eu precisava era o dono da casa andando por aí para ver se estava tudo em bom estado."

Não vi sinal de Wesley, concluindo que não ia aparecer. De repente, escutei o ronco da bmw prateada. Ele estacionou na rua. Observei a antena retrátil sendo recolhida depois que o motor foi desligado.

"Doutora, posso esperar por ele, se preferir entrar logo", Marino disse.

"Preciso conversar com ele." Lucy desceu os degraus.

"Vou entrando", falei, calçando as luvas de algodão, como se nem conhecesse Wesley.

No vestíbulo da casa a presença de Eddings se impôs avassaladora, instantaneamente. Para onde quer que olhasse, eu o via. Senti sua personalidade meticulosa na mobília mínima, nos tapetes indígenas e no chão encerado. Vi seu lado caloroso nas paredes amarelas e solares forradas de gravuras em monotipo. A poeira formara uma camada fina, perturbada apenas nos locais mexidos pela polícia, que abrira gavetas e portas de armários. Begônias, fícus, trepadeiras e ciclâmens pareciam sentir falta do dono, e resolvi procurar o regador. Encontrei um na área de serviço, que enchi de água para molhar as plantas, pois não via sentido em deixar que morressem. Não percebi quando Benton Wesley entrou.

"Kay?" Sua voz soou baixa, atrás de mim.

Dei meia-volta e ele notou em minha expressão uma dor que eu não pretendia mostrar.

"O que está fazendo?", ele ficou olhando, enquanto eu punha água num vaso.

"Exatamente o que você está vendo."

Ele ficou quieto, com os olhos fixos nos meus.

"Eu o conhecia. Conhecia Ted", falei. "Não muito, mas conhecia. Ele era popular no meu departamento. Entrevistou-me muitas vezes, eu o respeitava... Bem..." Minha mente foi para longe dali.

Wesley era magro, o que tornava seus traços ainda mais angulosos. O cabelo já estava totalmente branco, embora não fosse muito mais velho do que eu. Aparentava cansaço, mas todo mundo que eu conhecia andava cansado. Contudo, ele não parecia separado. Não parecia arrasado por estar longe da esposa ou de mim.

"Pete me falou sobre os carros", ele disse.

"Difícil de acreditar, não é?", falei, sem parar de regar.

"E o tal detetive? Qual é o nome dele? Roche? Preciso falar com o chefe dele, de qualquer maneira. Estamos brincando de esconde-esconde ao telefone, mas quando conseguir, vou falar disso." . -

"Não precisa."

"Faço questão", ele disse.

"Prefiro que não fale nada."

"Como quiser." Ergueu as mãos, em sinal de rendição, e olhou em volta da sala. "Ele tinha dinheiro, mas não ficava muito em casa", disse.

"Alguém cuidava das plantas", retruquei.

"Com que freqüência?", perguntou, olhando para os vasos.              "As que não dão flores, pelo menos uma vez por semana. O resto, dia sim, dia não, acho. Depende do calor que faz aqui."

"Quer dizer que elas não são regadas há uma semana?"

"Ou mais", falei.

Naquele momento, Lucy e Marino entraram na casa e seguiram pelo corredor.

"Quero ver a cozinha", acrescentei, deixando de lado o regador.

"Boa idéia."

Era pequena e dava a impressão de não passar por uma reforma desde os anos 60. No armário encontrei panelas velhas e dúzias de latas de comida, do tipo atum e sopa. Havia também pacotes de salgadinhos. Eddings usava a geladeira principalmente para guardar cerveja. Interessei-me, porém, por uma garrafa de Louis Roederer Cristal Champanhe enfeitada com um enorme laço vermelho.

"Encontrou algo?" Wesley estava espiando debaixo da pia.

"Talvez." Continuei a examinar o refrigerador. "Uma garrafa dessas pode custar até cento e cinqüenta dólares num restaurante. Vale uns cento e vinte, no supermercado."

"Sabemos quanto o rapaz ganhava?"

"Não. Mas desconfio que não era muito."

"Ele tem um monte de graxa de sapato e produtos de limpeza aqui, mais nada", Wesley disse, levantando-se.

Virei a garrafa e li a etiqueta com o preço.

"Centro e trinta dólares, e não foi comprada por aqui. Pelo que sei, em Richmond não existe nenhuma loja chamada The Wine Merchant."

"Talvez tenha sido um presente. Isso explicaria o laço."

"E quanto a Washington?"

"Não sei. Raramente compro vinho na capital", ele disse.

Fechei a porta da geladeira, secretamente satisfeita, pois ele e eu gostávamos de tomar vinho. Costumávamos nos divertir escolhendo, comprando e bebendo vinho no sofá ou na cama.

"Ele não ia muito às compras", falei. "Não encontrei indícios de que costumava fazer as refeições em casa."

"Para mim, parece que nem vinha aqui", ele disse.

Senti sua proximidade quando passou por mim. Quase insuportável. Perfume sempre sutil, a evocar canela e bosques. Sempre que o sentia, em qualquer lugar, perdia por um instante a noção de tudo. Como agora.

"Você está bem?", ele perguntou parado na porta, num tom de voz mais íntimo, que reservava apenas para mim.

"Não", confessei. "Isso tudo é horrível." Fechei a porta do armário com força excessiva.

Ele deu um passo na direção do corredor. "Bem, precisamos dar uma boa olhada na situação financeira dele, descobrir onde conseguia dinheiro para comer fora e comprar champanhe tão cara."

Os papéis estavam no escritório dele, e a polícia não os examinara porque oficialmente não havia crime. Apesar de minhas suspeitas quanto à causa da morte de Eddings e os estranhos acontecimentos que a rodeavam, naquela altura ainda não tínhamos um homicídio, legalmente falando.

"Alguém checou o computador?", perguntei a Lucy, que olhava para um micro que estava em cima da mesa.

"Não", Marino falou, consultando as pastas de um arquivo verde de metal. "Um dos caras disse que estava trancado."

Ela tocou o mouse e o pedido de senha surgiu na tela.

"Tudo bem", ela disse. "Ele usa senha, o que não é comum. Acho estranho, no entanto, que não haja disco para backup no drive. Ei, Pete? Vocês encontraram disquetes por aqui?"

"Sim, tem uma caixa cheia, ali." Ele apontou para uma estante cheia de romances sobre a Guerra Civil e uma enciclopédia luxuosa, encadernada em couro.

Lucy pegou a caixa e a abriu.

"Não. Esses são os discos para instalação do WordPerfect." Ela olhou para nós. "Só estou ressaltando que a maioria das pessoas faz backup do trabalho. Presumi que ele estivesse trabalhando em alguma coisa, em casa."

Ninguém sabia se isso era verdade. Só sabíamos que Eddings tinha um emprego na ap e usava o escritório da agência noticiosa na Fourth Street. Não tínhamos como saber o que ele fazia em casa. Lucy reiniciou o computador, deu um jeito mágico e conseguiu entrar nos arquivos de programas. Desabilitou o protetor de tela com senha e passou a consultar os diretórios do WordPerfect. Todos vazios. Eddings não tinha um único arquivo de trabalho.

"Merda", ela disse. "Isso é realmente bizarro. Parece que ele nunca usou o computador."

"Não dá para acreditar", falei. "Mesmo que ele trabalhasse no centro, mantinha o escritório em casa por alguma razão."

Ela teclou um pouco mais. Marino e Wesley examinaram extratos bancários de Eddings, que os mantinha numa cesta dentro da gaveta do arquivo.

"Espero que ele não tenha apagado o subdiretório inteiro", Lucy disse, acessando o sistema operacional. "Não posso recuperar os arquivos sem os discos de backup, que aparentemente não existem."

Observei-a digitar o comando undelete*. * e apertar a tecla enter. Milagrosamente, um arquivo chamado kill-drug.old apareceu, e depois que ela confirmou a recuperação, outro nome de arquivo apareceu. Quando terminou, ela havia recuperado vinte e seis arquivos, para nosso assombro.

"Essa é uma das coisas boas do dos 6", ela disse simplesmente, enquanto mandava imprimir o material.

"Pode dizer quando foram deletados?", Wesley perguntou.

"A data e a hora dos arquivos é a mesma", ela respon-> deu. "Droga. Trinta e um de dezembro, entre meia-noite e um e uma e trinta e cinco da manhã. Eu era capaz de apostar que ele estava morto, a esta altura."

"Isso depende da hora em que foi para Chesapeake", falei. "O barco só foi encontrado às seis da manhã."

"De todo modo, o relógio do computador está certo. Portanto, a hora indicada deve ser verdadeira", ela acrescentou.

"É preciso mais de meia hora para apagar todos os arquivos?", perguntei.

"Não. Pode ser feito em alguns minutos."

"Então alguém poderia estar, lendo o material, antes de deletar", falei.

"Muita gente faz isso, na verdade. Precisamos de mais papel na impressora. Vamos pegar algumas folhas na máquina de fax."

"Por falar nisso", lembrei-me, "seria possível conseguir um relatório de envio e recebimento de fax?"

"Claro."

Ela conseguiu uma lista de diagnósticos e números telefônicos que não me diziam nada. Mais tarde, eu poderia checá-los. Mas, pelo menos, sabíamos com certeza que alguém mexera no computador e apagara os arquivos de trabalho de Eddings, mais ou menos na hora de sua morte. O responsável não era muito sofisticado, Lucy explicou, pois um especialista teria apagado o subdiretório dos arquivos também, inutilizando o comando undelete.

"Isso não faz sentido", falei. "Um escritor costuma fazer cópia de seu trabalho, e está claro que ele não era descuidado. E quanto ao cofre onde guardava a arma?", perguntei a Marino. "Encontrou disquetes lá dentro?"

"Nenhum."

"Alguém pode ter entrado na casa e aberto o cofre", falei.

"Se entrou, conhecia a combinação do cofre e o código para o sistema de alarme contra ladrão."

"São os mesmos números?"

"Sim. Ele usa a data de nascimento para tudo." -

"E como descobriu isso?"

"A mãe me disse", ele explicou.

"E quanto às chaves?", falei. "Não havia nenhuma com o corpo. Ele precisava de chave para o carro."

"Roche disse que não encontrou nenhuma", Marino falou. Achei aquilo muito estranho.

Wesley observava as páginas dos arquivos recuperados que saíam da impressora. "Pelo jeito, são reportagens para jornais", ele disse.

"Publicadas?", perguntei.

"Algumas devem ter sido, pois parecem bem antigas. O avião que caiu na Casa Branca, por exemplo. E o suicídio de Vince Foster."

"Talvez Eddíngs estivesse apenas limpando o disco", Lucy sugeriu.

"Ei, agora sim", Marino disse, lendo um extrato bancário. "No dia dez de dezembro, três mil dólares foram depositados em sua conta." Ele abriu outro envelope e leu um pouco mais. "A mesma coisa em novembro."

Os depósitos também haviam sido feitos em outubro e durante o resto do ano. Com base nas informações anteriores, realmente Eddings necessitava suplementar sua renda. O pagamento das prestações da casa era de mil dólares mensais. O total do cartão de crédito quase igual. No entanto, o salário anual girava em torno de quarenta e cinco mil dólares.

"Cacete! Com tanto dinheiro extra entrando, ele faturava quase oitenta mil por ano. Nada mal", Marino disse.

Wesley afastou-se da impressora e andou até onde eu estava. Calmamente, colocou uma folha em minha mão.

"Eis o obituário de Dwain Shapiro", disse. "Saiu no Washington Post de dezesseis de outubro do ano passado."

O artigo era curto e dizia apenas que Shapiro trabalhara como mecânico numa concessionária Ford da capital, antes de ser morto a tiros quando voltava para casa de um bar, tarde da noite, de carro. Não deixara parentes na região da Virgínia e os neo-sionistas não eram mencionados.

"Eddings não escreveu isso", falei. "Um repórter do Post fez o texto."

"Então, como ele conseguiu o Livro?", Marino disse. "E por que diabos estava debaixo da cama dele?"

"Provavelmente estava lendo", falei, pois seria a resposta mais simples. "E não queria que ninguém o visse - a faxineira, por exemplo."

"Agora temos algumas anotações." Lucy estava concentrada na tela, abrindo um arquivo atrás do outro, imprimindo tudo. "Bem, chegamos na parte que interessa. Droga." Ela se excitava, conforme o texto rolava pela tela e a LaserJet zumbia e clicava. "Que loucura." Ela parou o que fazia e virou-se para Wesley. "Ele guardou um monte de material sobre a Coréia do Norte, junto com informação a respeito de Joel Hand e dos neo-sionistas."

"A respeito da Coréia do Norte?" Ele lia as páginas enquanto Marino revistava mais uma gaveta.

"Sobre o problema que nosso governo teve com eles quando tentaram preparar plutônio para uso em armas nucleares numa de suas usinas atômicas, há alguns anos."

"Supostamente, Hand interessa-se muito por fusão, energia, coisas do gênero", falei. "Há uma alusão a isso no Livro."

"Certo", Wesley disse. "Então, talvez isso seja apenas um perfil detalhado do sujeito. Ou, melhor dizendo, o rascunho de um artigo sobre ele."

"Por que Eddings deletaria o arquivo contendo uma reportagem enorme inacabada?", perguntei. "E não acham muita coincidência ele ter feito isso na noite de sua morte?"

"Seria coerente para alguém que pretendesse cometer suicídio", Wesley disse. "Ainda não podemos descartar essa possibilidade."

"Concordo", Lucy disse. "Ele apagou seu trabalho inteiro, para que ninguém visse algo que preferia manter em segredo. Depois encenou sua morte, para que parecesse acidental. Talvez fosse muito importante para ele que as pessoas não pensassem que cometeu suicídio."

"Eis uma possibilidade que não podemos descartar", Wesley concordou. "Ele poderia estar envolvido em uma jogada da qual não podia mais sair. Isso explicaria o dinheiro depositado em sua conta mensalmente. Talvez sofresse de depressão, ou por causa de uma perda pessoal dolorosa que ignoramos."

"Alguém pode ter apagado os arquivos e levado embora disquetes e impressões", falei. "Alguém pode ter feito isso após sua morte."

"Então essa pessoa tinha a chave, conhecia os códigos do alarme e a combinação do cofre", ele disse. "Sabia que Eddings não estava em casa e que não ia voltar." Ele olhou para mim.

"Isso mesmo", falei.

"O que torna tudo muito mais complicado."

"Este caso é muito complicado", falei. "Mas posso garantir uma coisa: se Eddings foi envenenado debaixo d'água com gás cianureto, não conseguiria fazer isso sozinho. E eu gostaria muito de saber por que ele tinha tantas armas. Por que ele levava no bote uma pistola com revestimento Birdsong, carregada com munição ktw."

Wesley olhou para mim novamente, e sua atitude imperturbável me abalava profundamente. "Seria lógico considerar as tendências militaristas dele como sinal de instabilidade", ele disse.

"Ou medo de assassinato", retruquei.

Depois, entramos no outro quarto. Havia submetralhadoras numa prateleira. No cofre Browning que a polícia abrira naquela manhã encontramos pistolas, revólveres e munição. Ted Eddings equipara o quartinho com prensa, balança de precisão digital, buchas, cartuchos vazios e o que mais fosse necessário para preparar sua própria munição. Cartuchos de cobre e espoletas ficavam numa gaveta. A pólvora, numa antiga caixa de munições do exército. Ele gostava também de miras a laser e lunetas.

"Creio que tudo isso indica uma mente perturbada." Lucy resolveu dar sua opinião, agachada ao lado do cofre, abrindo as caixas de plástico rígido das pistolas. "Eu diria que isso é mais do que paranóia. Dá a impressão de que ele esperava o ataque de um exército."

"Paranóia é muito saudável, se alguém estiver atrás de você", falei.

"Estou começando a achar que o cara era pirado", Marino disse.

Não me importava com as teorias deles. "Senti cheiro de cianureto no necrotério", falei, percebendo que estava a ponto de perder a paciência. "Ele não inalou o gás antes de entrar no rio, ou estaria morto ao tocar na água."

"Você sentiu o cheiro de cianureto", Wesley disse, sem rodeios. "Ninguém mais sentiu, e ainda não temos os resultados dos exames toxicológicos."

"O que está sugerindo? Que ele se afogou de propósito?" Olhei para ele, incrédula.

"Não sei ainda."

"Não encontrei sinais de afogamento", falei.

"Você sempre encontra sinais de afogamento?", ele perguntou, razoável. "Pensei que afogamentos fossem difíceis de determinar. Por isso, especialistas do sul da Flórida são freqüentemente convocados a vir testemunhar em casos assim."

"Comecei minha carreira no sul da Flórida e sou considerada especialista em afogamentos", retruquei acidamente.

Continuamos a discutir do lado de fora, ao lado do carro dele, pois eu queria que ele me levasse para casa, assim poderíamos continuar nossa briga. O luar era fraco, a próxima luz na rua ficava a meia quadra de distância. Mal podíamos ver um ao outro.

"Pelo amor de Deus, Kay, não quis insinuar que você não sabe o que está fazendo."

"Mas foi isso mesmo que você acabou de fazer." Eu estava parada perto da porta do motorista, como se o carro me pertencesse e eu estivesse a ponto de ir embora. "Você está me provocando. Agindo feito um idiota."

"Estamos investigando uma morte", ele disse, com seu tom inabalável. "Não é o momento nem o local para levar as coisas para o lado pessoal."

"Sabe, Benton, eu queria dizer uma coisa. As pessoas não são máquinas. Elas levam as coisas para o lado pessoal."

"Então a questão, no fundo, era essa." Ele se aproximou de mim e destrancou a porta do carro. "Você está agindo assim por minha causa. Não sei se é uma boa idéia." A porta se abriu. "Talvez eu nem devesse ter vindo aqui hoje." Ele se instalou no banco do motorista. "No entanto, achei que era importante. Estava tentando agir da melhor maneira, e pensei que você ia fazer o mesmo."

Dei a volta no automóvel e entrei, pensando que ele não abrira a porta para mim, como sempre fazia. De repente, senti muita fraqueza e medo de começar a chorar.

"Era importante, e você agiu da melhor maneira", falei. "Um homem morreu. Não só acredito que foi assassinado, como penso que ele topou com algo importante e provavelmente muito sério e ruim. Não acho que ele apagou os arquivos do computador e deu fim nos backups, pois isso indicaria que ele sabia que ia morrer."

"Sim. Indicaria suicídio."

Trocamos olhares na escuridão.

"Creio que alguém entrou na casa dele na noite em que morreu. Bem tarde."

"Alguém que ele conhecia."

"Ou alguém que conhecia alguém que tinha acesso à casa. Como um colega, amigo ou namorada. As chaves sumiram, não se esqueça."

"E você acha que tudo isso tem a ver com os neo-sionistas." Ele estava começando a relaxar.

"Infelizmente. E alguém quer me afastar da pista."

"Isso colocaria a polícia de Chesapeake sob suspeita."

"O departamento inteiro, dificilmente. Talvez apenas Roche."

"Se o que estiver dizendo for verdade, ele é secundário no caso. Uma figura externa, distante do centro. O interesse dele em você é uma questão à parte, acho."

"Seu único interesse é me intimidar, me afastar da investigação", falei. "Portanto, suspeito que haja uma ligação."

Wesley ficou quieto, olhando pelo pára-brisa. Por um momento, deixei as defesas de lado e olhei para ele.

Benton se voltou para mim. "Kay, o doutor Mant alguma vez mencionou alguma ameaça?"

"Não para mim. Mas não tenho como saber se ele diria algo. Principalmente se estivesse com medo."

"Com medo do quê? É isso que sinto dificuldade em imaginar", ele disse, dando partida no carro. "Se Eddings estivesse ligado aos neo-sionistas, como ele poderia estar ligado ao doutor Mant?"

Eu não sabia, e fiquei quieta enquanto ele seguia pela rua.

Wesley falou novamente. "Alguma possibilidade de que seu colega britânico tenha fugido da cidade? Você confirmou a morte da mãe dele?"

Pensei no supervisor do necrotério de Tidewater, que pedira demissão antes do Natal, sem justificativa e sem cumprir o aviso prévio. Logo depois, Mant foi embora repentinamente.

"Só sei o que ele me contou", falei. "Mas não tenho motivos para achar que estava mentindo."

"E quando a assistente vai voltar? A tal que saiu em licença-maternidade?"

"Ela acabou de ter o bebê."

"Bem, isso é meio difícil de fingir", ele disse.

Viramos na Malvern, e a chuva fina caía.como agulhas no vidro do carro. Dentro de mim revolviam as palavras que eu não podia dizer, e quando entramos na Cary Street comecei a ficar desesperada. Queria falar a Wesley que havíamos tomado a decisão correta, mas terminar um relacionamento não significa acabar com os sentimentos. Eu queria perguntar a respeito de Connie, a mulher dele. Queria convidá-lo a ir até minha casa, como fizera no passado, e perguntar por que não me telefonara nunca mais. Seguimos por Old Locke Lane, que não estava iluminada, na direção do rio. Ele ia devagar, em marcha reduzida.

"Vai voltar a Fredericksburg esta noite?", perguntei.

Ele ficou um tempo em silêncio, depois disse: "Connie e eu vamos nos divorciar".

Não comentei.

"É uma longa história, e provavelmente será uma separação longa e desagradável. Graças a Deus as crianças já estão grandes." Ele abaixou o vidro e o guarda fez sinal para que entrássemos.

"Benton, eu lamento muito", falei. A bmw parecia barulhenta na minha rua deserta e úmida.

"Bem, acho que se pode dizer que eu tive o que merecia. Ela está saindo com outro faz quase um ano e eu nem desconfiei. Que belo especialista em perfis psicológicos eu sou, hein?"

"Quem é ele?"

"Um empreiteiro de Fredericksburg. Estava fazendo a reforma da nossa casa."

"Ela sabe a nosso respeito?" Quase não tive coragem de perguntar, pois sempre gostara de Connie e tinha certeza de que a verdade faria com que ela me odiasse.

Ele entrou no acesso e não respondeu até parar o carro na porta de minha casa.

"Não sei." Respirou fundo e olhou para as mãos no volante. "Provavelmente ouviu boatos, mas ela não costuma dar ouvido a mexericos, e muito menos acreditar neles." Ele parou. "Ela sabe que passamos muito tempo juntos, viajamos juntos, essas coisas. Mas pensa que é só por causa do trabalho, acho."

"Eu me sinto horrível por causa disso.".

Ele não disse nada.

"Ainda está em casa?", perguntei.

"Ela preferiu sair", ele respondeu. "Mudou-se para um apartamento onde pode se encontrar com Doug sempre que tiver vontade."

"Então o tal empreiteiro se chama Doug."

Seu rosto endureceu e ele olhou fixo através do pára-: brisa. Estendi o braço e peguei sua mão, com carinho.

"Sabe", falei com voz calorosa, "quero ajudar em tudo que puder. Mas você precisa me dizer o que posso fazer."

Ele olhou para mim, e por um instante seus olhos brilharam com as lágrimas que eu acreditava derramadas por causa dela. Ainda amava a esposa, e embora compreendesse, não queria testemunhar isso.

"Não posso permitir que faça muito por mim", ele disse, limpando a garganta. "Principalmente agora. E no ano que vem, pelo menos. O sujeito que está com ela gosta de dinheiro e sabe que eu tenho algum, da família. Não quero perder tudo."

"Não vejo como isso possa acontecer, tendo em vista o que ela fez."

"Tudo é muito complicado. Preciso tomar cuidado. Quero que meus filhos me amem e respeitem." Ele olhou para mim e tirou a mão. "Sabe como eu me sinto. Por favor, vamos deixar as coisas como estão."

"Sabia disso em dezembro, quando resolvemos parar..."

Ele me interrompeu. "Sim, eu sabia."

"Entendo." Minha voz saiu com dificuldade. "Preferia que tivesse me contado. Tornaria tudo mais fácil."

"Não creio que nada pudesse tornar as coisas mais fáceis."

"Boa noite, Benton", falei, saindo do carro. Não olhei para trás, não queria vê-lo ir embora.

Dentro de casa, Lucy ouvia Melissa Etheridge. Alegrei-me ao perceber que minha sobrinha estava lá e que havia música. Tentei tirar os pensamentos a respeito dele da cabeça. Lucy estava na cozinha. Tirei o casaco e coloquei a bolsa em cima do balcão.

"Tudo bem?", ela fechou a geladeira com o ombro e levou os ovos até a pia.

"Para dizer a verdade, tudo péssimo."

"Então precisa comer alguma coisa. Deu sorte, vou cozinhar."

"Lucy", falei, encostando no balcão. "Se alguém está tentando fazer com que a morte de Eddings pareça acidente ou suicídio, posso entender as ameaças e intrigas referentes ao departamento de Norfolk. Fazem sentido. Mas por que ameaçaram pessoas de minha equipe antes do crime? Você é ótima em dedução. Me ajude."

Ela estava batendo as claras numa travessa, enquanto o bagel descongelava no forno de microondas. Seu regime isento de gorduras era deprimente, e eu não entendia como ela conseguia agüentar.

"Você não sabe se alguém foi ameaçado anteriormente", ela disse, factual.

"Me dei conta que não sei, pelo menos ainda não." Comecei a preparar um café vienense. "Mas estou tentando entender a coisa toda. Procuro um motivo e saio de mãos vazias. Por que não põe um pouco de cebola, salsa e pimenta? Uma pitada de sal não vai matá-la, tampouco."

"Quer que eu prepare um para você?", Lucy perguntou, batendo as claras.

"Não estou com muita fome. Acho que vou tomar apenas uma sopa, mais tarde."

Ela ergueu os olhos. "Lamento que esteja tudo tão difícil."

Eu sabia que se referia a Wesley, e ela sabia que eu não ia discutir isso.

"A mãe de Eddings mora perto daqui", falei. "Acha que eu devo conversar com ela?"

"Esta noite? Assim, de repente?" O batedor tilintava de leve, ao bater nas paredes da tigela.

"Ela é bem capaz de querer conversar, mesmo que eu não tenha marcado a visita com antecedência. O filho morreu, mas não lhe disseram mais nada."

"É bem capaz", Lucy resmungou. "Feliz Ano Novo."

 

Não precisei pedir a ninguém uma lista residencial ou número telefônico. A mãe do repórter morto era a única Eddings residente em Windsor Farms. Segundo o catálogo telefônico da cidade, ela morava na adorável e arborizada Sulgrave Street, conhecida pelas imensas propriedades e mansões do século XVI que ostentavam nomes como Virgínia House e Agecroft, despachadas da Inglaterra em caixotes nos anos 20. A noite mal havia caído quando liguei, mas a voz dela ao atender era sonolenta.

"Senhora Eddings?", perguntei, e me identifiquei.

"Creio que cochilei um pouco", ela disse, parecendo assustada. "Estava na sala, vendo televisão. Minha nossa, nem sei o que está passando agora. Eu estava vendo My Brilliant Career, na pbs. Conhece o programa?"

"Senhora Eddings", falei novamente, "tenho algumas perguntas a fazer sobre seu filho, Ted. Sou a legista encarregada do caso. Gostaria de conversar com a senhora. Moro a poucas quadras de sua casa."

"Alguém já me contou isso." Seu forte sotaque sulista ficou ainda mais arrastado com as lágrimas. "Que você morava por aqui."

"E eu poderia passar aí agora?", perguntei, depois de uma pausa.

"Bem, eu gostaria muito. Meu nome é Elizabeth Glenn", ela disse, e começou a chorar.

Liguei para Marino, que estava em casa, com o som da tevê tão alto que eu não sabia como conseguia ouvir qualquer outra coisa. Ele estava falando com alguém na outra linha, e pelo jeito não queria deixar quem quer que fosse esperando.

"Sei. Vou ver o que dá para descobrir", disse, quando contei o que estava a ponto de fazer. "Mas estou até aqui de problemas, agora. Deu uma confusão dos diabos em Mosby Court. É capaz de acabar em confronto."

"Era só o que faltava", falei.

"Estou indo para lá. Se não fosse por isso, iria com você."

Desligamos e eu vesti uma roupa mais quente, pois estava sem carro. Lucy falava ao telefone, no meu escritório. Com Janet, desconfiei, com base no tom emocionado e na voz baixa. Acenei do corredor, e apontando para o relógio informei que voltaria dentro de uma hora. Conforme eu caminhava pela rua escura, fria é úmida, meu espírito se encolheu dentro de mim como uma criatura tentando se esconder numa toca. Lidar com as pessoas que sofriam perdas nas tragédias seria sempre uma das características mais penosas de minha profissão.

Com o passar dos anos, eu havia enfrentado uma série de reações, desde ser usada como bode expiatório até famílias implorando para que eu fizesse algo capaz de anular a morte. Vira gente chorar, uivar, gritar, xingar e não reagir. Agira sempre como médica, adequadamente impassível e gentil, conforme o treinamento que me deram.

Guardava as reações pessoais para meus momentos de solidão. Ninguém as via, nem mesmo quando eu estava casada, quando me tornei especialista em disfarçar sentimentos e chorar no chuveiro. Lembro-me de ter tido urticária certa vez. Disse a Tony que era alergia a plantas, frutos do mar, sulfito do vinho tinto. Meu ex-marido era fácil de enganar, pois ele não queria saber de nada.

Silêncio e imobilidade assustadores cobriam Windsor Farms, quando entrei no bairro pelo lado do rio. A neblina turvava os postes vitorianos que lembravam a Inglaterra, e embora as janelas estivessem iluminadas na maioria das mansões, não vi ninguém na rua. As folhas eram papel encharcado na calçada, a garoa começava a congelar nas poças. Dei-me conta de que saíra de casa sem guarda-chuva, como uma idiota.

Quando cheguei ao endereço, na Sulgrave, percebi que conhecia o local. Ela morava ao lado de um juiz amigo meu, que sempre me convidava para suas festas. Com três andares, de tijolo aparente, a casa de Eddings fora construída no estilo federalista, com chaminés emparelhadas, janelas em arco e bandeira elíptica sobre a porta da frente, de madeira almofadada. A esquerda do pórtico, o mesmo leão de pedra guardava a entrada havia muitos anos. Subi os degraus escorregadios e toquei a campainha duas vezes antes que uma voz se fizesse ouvir fracamente, do outro lado da madeira grossa.

"É a doutora Scarpetta", falei, e a porta se abriu lentamente.

"Imaginava que fosse você." Um rosto ansioso espiou pela fresta, que se alargou um pouco. "Por favor, entre e se aqueça. Está uma noite terrível."

"Esfriou demais", falei ao entrar.

A sra. Eddings era uma mulher atraente, do tipo aristocrático e bem-cuidado. Traços finos, cabelos brancos presos em coque e testa alta. Usava conjunto preto Black Watch e pulôver de caxemira de gola alta, como se tivesse passado o dia recebendo visitas de pêsames, corajosamente. Mas os olhos não conseguiam ocultar a perda irreparável. Seu passo não era muito firme, notei, enquanto a acompanhava até a sala de visitas. Talvez tivesse bebido um pouco.

"É uma bela casa", falei, ao tirar o casaco. "Já passei muitas vezes aqui em frente, sem saber quem morava aqui."

"E você, onde mora?"

"Um pouco adiante. Logo depois de Windsor Farms", apontei. "Minha casa é nova. Na verdade, mudei para lá no outono passado."

"Sim, sei onde você mora." Ela fechou a porta do armário embutido e seguiu pelo corredor. "Conheço bastante gente por lá."

A sala de visitas era um museu de tapetes persas, luminárias Tiffany e mobília em teixo maciço, estilo Biedermeier. Sentei-me num sofá preto magnífico, embora duro. Imaginava se o relacionamento entre mãe e filho era bom. A decoração das duas casas indicava pessoas teimosas e desligadas uma da outra.

"Seu filho me entrevistou várias vezes", iniciei a conversa, quando nos sentamos.

"Ah, é mesmo?", ela disse, tentando sorrir sem êxito.

"Lamento. Sei o quanto tudo isso é difícil", falei em tom solidário, enquanto ela tentava se recompor, sentada numa poltrona de couro vermelho. "Eu gostava muito de Ted. Minha equipe o adorava, também."

"Todos gostam de Ted", ela disse. "Desde seu nascimento, encantou a todos. Recordo-me da primeira entrevista importante que conseguiu em Richmond." Ela olhava para o fogo, com as mãos ligeiramente entrelaçadas. "Ele entrevistou o governador Meadows. Com certeza lembra-se dele. Ted conseguiu fazer com que falasse, quando ninguém arrancava uma única palavra dele. Isso foi na época em que diziam que o governador usava drogas e andava com mulheres imorais."

"Sei, sei", falei, como se algo assim jamais tivesse sido dito a respeito de outros governadores.

Ela olhava para o vazio, com ar melancólico. A mão tremia, quando a ergueu para ajeitar o cabelo. "Como uma coisas dessas pôde acontecer? Meu Deus, como ele foi se afogar?"

"Senhora Eddings, duvido que ele tenha se afogado."

Surpresa, ela me encarou, arregalando os olhos. "O que houve, então?"

"Ainda não sei. Estamos fazendo exames."

"O que mais poderia ter acontecido?", ela enxugava as lágrimas com um lenço. "O policial que passou por aqui me disse que tudo aconteceu debaixo d'água. Ted estava mergulhando no rio, com aquele equipamento."

"Há uma série de causas possíveis", respondi. "Falha no equipamento de mergulho que ele estava usando, por exemplo. Ele pode ter aspirado gases tóxicos. No momento, ainda não sei dizer com certeza."

"Bem que eu lhe disse para não usar aquele negócio. Você não pode imaginar quantas vezes eu implorei para que ele não mergulhasse com aquele equipamento."

"Então ele o usou antes?"

"Ele adorava mergulhar em busca de relíquias da Guerra de Secessão. Ia a mil lugares, usando detetor de metais. Creio que achou balas de canhão no James, no ano passado. Estou surpresa que você não saiba disso. Ele escreveu vários artigos sobre suas aventuras."

"Em geral, os mergulhadores descem com alguém. Um companheiro. Sabe quem costumava ir com ele?"

"Bem, talvez ele levasse alguém para fazer companhia, de vez em quando. No entanto, não sei quem, pois ele quase não me falava a respeito dos amigos."

"Ele disse alguma coisa a respeito de mergulhar no rio Elizabeth em busca de relíquias da Guerra de Secessão?", perguntei.

"Não sei de nada, no que se refere à ida de Ted ao rio. Ele nunca me falou nada. Achei que ele viria me visitar, hoje." Ela fechou os olhos, franziu a sobrancelha. O colo se ergueu e desceu como se não houvesse ar suficiente na sala.

"E quanto às relíquias da guerra recolhidas por ele?", prosseguiu. "Sabe onde as guardava?"

Ela não respondeu.

"Senhora Eddings", falei, "não encontramos nada do gênero no apartamento dele. Nem um botão, fivela de cinto ou bala de espingarda. Tampouco havia detetor de metais."

Ela estava em silêncio, com as mãos trêmulas agarradas ao lenço, que apertava com força.

"Seria muito importante determinar o que seu filho estava fazendo no estaleiro desativado de Chesapeake", insisti. "Ele mergulhava numa área proibida, próximo a navios da Marinha, e ninguém sabe a razão. É difícil acreditar que estivesse procurando relíquias da Guerra de Secessão por ali."

Ela manteve os olhos fixos no fogo, e uma voz distante respondeu: "Ted tinha suas fases. Uma vez, começou a colecionar borboletas. Tinha dez anos. Depois, deu todas e começou a colecionar pedras preciosas. Lembro-me de que foi garimpar ouro nos locais mais inusitados. Arrancava granadas do asfalto, na beira da estrada, com alicate. Depois passou para moedas, e acabou gastando tudo nas máquinas de Coca-Cola, pois elas não distinguem um quarto de dólar de prata pura do comum. Cartões de beisebol, selos, moças. Seu interesse nunca durava muito tempo. Ele me disse que gostava de jornalismo porque era dinâmico".

Ouvi as trágicas reminiscências em silêncio.

"Sabe, acho que ele trocaria até a mãe por outra, se houvesse possibilidade." Uma lágrima escorreu por seu rosto. "Acho que eu o entediava terrivelmente."

"O bastante para rejeitar a ajuda financeira que a senhora poderia dar?", perguntei, delicadamente.

Ela ergueu o queixo. "Acho que você está entrando num terreno meio pessoal."

"Sim, sei disso. Lamento que tenha de ser assim. Mas sou médica, e no momento seu filho é meu paciente. Meu papel é fazer o máximo possível para determinar o que aconteceu a ele."

Ela respirou fundo, tremendo, e ajeitou o botão de cima do casaco. Esperei enquanto lutava contra as lágrimas.

"Eu mandava dinheiro para ele todos os meses. Você sabe como são os impostos sobre herança, e Ted estava acostumado a viver bem. Gastava mais do que ganhava. Suponho que seja culpa minha e do pai dele." Ela sentia dificuldade em prosseguir. "A vida não foi suficientemente dura com meus filhos. E acho que a vida também me poupou muito, até que Arthur faleceu."

"O que seu marido fazia?"

"Ele trabalhava com tabaco. Conhecemo-nos durante a guerra, quando a maior parte dos cigarros do mundo era feita aqui. Era difícil conseguir um, assim como meias."

As reminiscências a consolavam; não a interrompi.

"Certa noite, fui a uma festa do Clube dos Oficiais, no hotel Jefferson. Arthur era capitão de uma unidade do Exército chamada Richmond Grays, e sabia dançar." Ela sorriu. "Ah, ele dançava como se respirasse música, tinha isso nas veias. Notei-o na hora. Nossos olhos se cruzaram apenas uma vez, e depois disso nunca mais nos afastamos."

Ela olhava para a lareira, sem ver. O fogo crepitava como se tivesse algo importante a dizer.

"Claro, isso era parte do problema", ela prosseguiu. "Arthur e eu jamais deixamos de viver um para o outro. Creio que os meninos achavam que estavam atrapalhando." Ela me encarou diretamente. "Nem perguntei se você quer um chá, ou talvez algo mais forte."

"Obrigada, não é preciso. Ted era muito ligado ao irmão?"

"Já dei o número de Jeff à polícia. Qual era o nome do detetive? Martino ou algo assim. Um sujeito meio rude. Sabe, um pouco de Goldschlager faz bem, numa noite como essa."

"Não, obrigada."

"Descobri isso com Ted", ela disse, e as lágrimas subitamente escorreram. "Ele descobriu a bebida quando foi esquiar no oeste e trouxe uma garrafa para mim. Tem gosto de fogo líquido com um toque de canela. Foi o que disse, ao me entregar a garrafa. Ele vivia me trazendo pequenas coisas."

"Alguma vez trouxe champanhe?"

Ela assoou o nariz delicadamente.

"Disse que ele pretendia visitá-la hoje", lembrei.

"Ia almoçar comigo", ela disse.

"Há uma garrafa de ótimo champanhe na geladeira dele. Com um laço de fita. Imaginei que fosse trazê-la para cá, quando viesse almoçar, hoje."

"Ah, minha nossa." Sua voz fraquejou. "Ele devia estar planejando outra comemoração. Não tomo champanhe. Me dá dor de cabeça."

"Estamos procurando disquetes de computador de Ted", falei. "E anotações referentes ao seu trabalho mais recente. Ele alguma vez lhe pediu para guardar algo aqui?"

"O equipamento de ginástica dele está no sótao, mas é velho como Matusalém." Sua voz recobrou a firmeza e ela limpou a garganta. "E papelada da escola."

"Sabe se ele tinha um cofre no banco, ou algo assim?"

"Não." Ela balançou a cabeça.

"E quanto a algum amigo a quem pudesse confiar segredos?"

"Não sei nada sobre os amigos dele", ela repetiu, enquanto a chuva gelada batia na vidraça.

"Ele nunca mencionou estar interessado em alguém? Está dizendo que ele não tinha namorada?"

Ela mordeu os lábios.

"Por favor, me diga. Será que entendi algo errado?"

"Ele trouxe uma moça aqui,,faz alguns meses. Acho que foi no verão. Pelo jeito, ela era cientista ou algo assim." Ela fez uma pausa. "Eles se conheceram quando Ted fazia uma reportagem. Tivemos uma pequena discussão a respeito."

"Por quê?"

"Ela era atraente. Tipo acadêmico. Professora, provavelmente. Uma estrangeira qualquer."

Esperei, mas ela não tinha mais nada a dizer.

"E por que discutiram?", perguntei.

"Percebi, no minuto em que a vi, que não tinha o menor caráter. Não permiti sua presença em minha casa", a sra. Eddings respondeu.

"Ela morava na região?"

"Calculo que sim. Mas não sei onde está."

"Mas ele poderia ter continuado a se encontrar com ela."

"Não tenho a menor idéia de quem Ted encontrava ou não", ela disse, mas percebi que mentia.

"Senhora Eddings", falei, "a julgar pelo que havia no apartamento, seu filho não passava muito tempo em casa."

Ela apenas olhou para mim.

"Ele tinha empregada? Por exemplo, alguém que cuidava das plantas?"

"Eu mandava a minha empregada quando era necessário", ela disse. "Corian. Ela costumava levar comida para ele, às vezes. Ted nunca se deu ao trabalho de cozinhar."

"Quando sua empregada esteve lá pela última vez?"

"Não sei", disse, e pude notar que estava cansada de tantas perguntas. "Pouco antes do Natal, suponho, pois ela estava com gripe."

"Corian alguma vez comentou com a senhora como era a casa dele?"

"Refere-se às armas, suponho", ela disse. "Mais uma de suas coleções, só isso. Começou há cerca de um ano. Era só o que desejava, de presente de aniversário - um vale para compras numa das lojas de armas da região. Como se uma mulher ousasse entrar num lugar daqueles."

Seria infrutífero prosseguir, pois ela só pensava em seu desejo de que o filho estivesse vivo. Fora disso, qualquer atividade ou questionamento era uma invasão que procurava evitar. Voltei para casa por volta das dez; quase caí duas vezes na rua deserta, onde faltava iluminação. A noite, de um frio cortante, amplificava os sons úmidos do gelo ao cobrir as árvores e envernizar o chão.

Senti desânimo: ninguém parecia conhecer Eddings profundamente; só me contavam como ele era na superfície ou no passado. Já sabia que colecionara moedas e borboletas e sempre fora encantador. Um repórter ambicioso que concentrava a atenção em temas específicos. Pensei no quanto era estranho andar por um bairro antigo, com um tempo horrível daqueles, para conversar sobre Eddings. Imaginei o que ele diria se eu pudesse lhe contar, e me senti muito triste.

Não pretendia bater papo com ninguém, ao voltar para casa. Fui direto para o quarto. Quando estava aquecendo as mãos na água quente e lavando o rosto, Lucy pôs a cara na porta. Percebi instantaneamente que estava de mau humor.

"Comeu bem?", falei, olhando para ela pelo espelho em cima da pia.

"Nunca como bem", ela respondeu, irritada. "Alguém chamado Danny, do necrotério de Norfolk, telefonou para você. Disse que receberam uma ligação a respeito dos carros."

Por um momento, minha mente não funcionou. Logo, porém, lembrei-me. "Dei o número do departamento para o pessoal do guincho." Enxuguei o rosto com uma toalha. "Quem estava de plantão deve ter ligado para a casa de Danny."

"Bem possível. Ele pediu para você ligar." Ela me olhou no espelho, como se eu tivesse feito algo condenável.

"O que foi?" Encarei-a também.

"Preciso ir embora daqui."

"Tentarei conseguir que consertem os carros para amanhã", falei, magoada. Saí do banheiro, e ela me seguiu.

"Preciso voltar para a uva."

"Sei disso, Lucy."

"Você não está entendendo. Tenho muito a fazer."

"Não sabia que o tal estudo independente ou seja lá o que for já tinha começado." Fui para o bar da sala de visitas.

"Não interessa se já começou ou não. Preciso preparar muitas coisas. E não sei como vai fazer para trazer os carros para cá. Talvez Marino possa me levar até lá, para eu pegar o meu."

"Marino está muito ocupado, e meu plano é simples", falei. "Danny levará meu carro até Richmond. Ele tem um amigo de confiança, que guiará seu Suburban. Depois, Danny e o amigo pegarão um ônibus para retornar a Norfolk."

"A que horas?"

"Este é o único problema. Não posso permitir que Danny faça isso no horário de serviço, pois seria errado cuidar do meu carro pessoal durante o expediente." Abri uma garrafa de Chardonnay.

"Merda", Lucy disse, impaciente. "Quer dizer que vou ficar sem carro amanhã, também?"

"Infelizmente, nós duas estaremos a pé."

"E o que pretende fazer a respeito?"

Servi um cálice de vinho para ela. "Vou passar o dia no escritório, pendurada no telefone, provavelmente. Você não arranjaria algo para fazer no escritório local do fbi?"

Ela deu de ombros. "Conheço alguns agentes que freqüentaram a Academia comigo."

Pelo menos assim ela encontraria outros agentes e poderia malhar um pouco no ginásio, para ver se o mau humor passava, eu ia dizendo, mas me contive a tempo.

"Não quero vinho." Ela pôs o copo em cima do balcão do bar. "Acho que vou beber cerveja."

"Por que está tão irritada?"

"Não estou irritada." Ela tirou uma Beck's Light do frigobar e abriu a garrafa.

"Quer sentar?"

"Não", ela disse. "Por falar nisso, estou com o Livro. Não se assuste, se não o encontrar em sua maleta."

"Como assim? Você pegou o Livro?" Olhei para ela, preocupada.

"Estava lendo um pouco, enquanto você conversava com a sra. Eddings." Ela tomou um gole de cerveja. "Achei que seria uma boa idéia repassar o texto, para o caso de haver algo que passou despercebido."

"Acho que você já leu o bastante", falei, em tom neutro. "Na verdade, acho que todos nós já lemos até demais."

"Há muita coisa no estilo do Antigo Testamento. Sabe, não tem nada de satânico, no fundo."

Observei-a em silêncio, tentando imaginar o que se passava naquele cérebro incrivelmente complicado.

"Se quer saber, achei o Livro muito interessante. Creio que ele só tem poder se a gente permitir. Eu não permito, e por isso ele não me incomoda", ela disse.

Baixei o copo. "Mas algo a incomoda, pelo que vejo."

"A única coisa que me incomoda é estar tensa e cansada. Por isso, acho melhor ir para a cama. Boa noite, durma bem."

Não dormi. Fiquei ali, na frente da lareira, preocupada com ela. Provavelmente, conhecia minha sobrinha melhor do que ninguém. Talvez ela e Janet tenham brigado, e Lucy pretendia fazer as pazes pessoalmente, na manhã seguinte. Talvez realmente tivesse muito serviço e não poder retornar a Charlottesville fosse um problema mais sério do que eu calculava.

Apaguei o fogo e conferi o alarme contra ladrão mais uma vez, para ter certeza de que havia sido ligado. Voltei para meu quarto e fechei a porta. Mesmo assim, não consegui dormir. Acendi o abajur e fiquei ouvindo o barulho da chuva, enquanto analisava o relatório impresso pelo aparelho de fax de Eddings. Nas últimas duas semanas ele ligara para dezoito números diferentes. Todos eram interessantes, indicavam que ele passava parte do tempo em casa e que estava fazendo algo no escritório.

Uma coisa chamou minha atenção de imediato: se estivesse trabalhando em casa, seria normal haver diversas transmissões para o escritório da ap no centro. Mas não era o caso. Desde meados de dezembro ele só havia enviado dois faxes para a redação, usando o aparelho que encontramos em sua casa, pelo menos. Isso foi fácil de determinar, pois ele havia usado o sistema de discagem rápida e identificado os números com siglas. Por isso, na relação dos números discados aparecia "ap red", além de combinações menos óbvias, como "nvse", "drms", "cpt" e "lm". Três números eram de Tidewater e da região central ou norte da Virgínia. O código de discagem para drms era Memphis, Tennessee.

Tentei dormir, mas as informações desfilavam diante dos meus olhos e as interrogações se insinuavam em minha mente. Não consegui afugentá-las. Queria saber quem Eddings contatara nos diferentes locais e se isso fazia diferença. Mas eu não conseguia tirar da cabeça o local onde ele havia morrido. Ainda via o corpo suspenso na água turva do rio, atado a uma mangueira inútil enroscada numa hélice enferrujada. Senti sua rigidez ao tomá-lo nos braços e levá-lo para a superfície. Sabia, muito antes de tirá-lo da água, que estava morto havia muitas horas.

Sentei-me na cama às três da madrugada, fitando a escuridão. A casa permanecia silenciosa, exceto pelos ruídos noturnos habituais. Eu não conseguia desligar minha mente consciente. Relutante, pus os pés no chão com o coração batendo pesadamente, como se estivesse espantado com meus movimentos àquela hora. No escritório, fechei a porta e escrevi o seguinte comunicado breve:

 

A QUEM POSSA INTERESSAR

Sei que se trata de um número de fax, por isso não estou telefonando pessoalmente. Preciso saber sua identificação, se for possível, pois este número surgiu no decorrer de uma investigação da morte recente de um indivíduo, no aparelho de fax dele. Por favor, entre em contato o mais depressa possível. Se houver necessidade de verificar a autenticidade deste comunicado, favor entrar em contato com o capitão Pete Marino, do Departamento de Polícia de Richmond.

 

Dei meus telefones e assinei, colocando meu nome e título. Mandei o recado pelo fax para todos os números programados para discagem automática listados no relatório de Eddings, com exceção da redação da Associated Press, claro. Passei um tempo sentada na frente da máquina, com os olhos vidrados, como se meu fax fosse começar a resolver o caso imediatamente. Mas ele permaneceu em silêncio enquanto eu lia e aguardava. Esperei uma hora mais razoável - seis da manhã - para chamar Marino.

"Estou vendo que não houve nenhum confronto", falei depois que o telefone foi derrubado e apanhado novamente. "Você está acordado, né? Ótimo."

"Que horas são?", ele perguntou, saindo lentamente do estupor.

"Hora de levantar e ir trabalhar."

"Prendemos uns cinco sujeitos. Os outros ficaram calminhos, depois disso, e voltaram para dentro. O que está fazendo acordada?"

"Estou sempre acordada. Preciso de carona para ir trabalhar, hoje, e também fazer compras."

"Bom, então acho melhor passar um café", ele disse. "Estou a caminho."

 

Quando Marino chegou Lucy ainda estava na cama e eu fazia café. Abri a porta e desanimei ao ver a rua. Durante a noite, Richmond ganhara uma camada de vidro. Ouvi no rádio que árvores e troncos caídos haviam derrubado fios elétricos em diversos bairros da cidade.

"Teve algum problema?", perguntei, fechando a porta da frente.

"Depende do que você quer dizer com isso." Marino depositou as compras em cima da mesa, tirou o capote e o entregou a mim.

"Para dirigir."

"Tenho correntes. Mas fiquei na rua até de madrugada. Estou morto de cansaço."

"Venha. Vamos tomar café."

"Não quero aquela porcaria descafeinada."

"Este é da Guatemala. Juro que tem cafeína até demais."

"Cadê a moça?"

"Dormindo."

"Uau. Deve ser uma delícia." Ele se espreguiçou de novo.

Preparei uma salada de frutas frescas na minha cozinha que esbanjava janelas. Do outro lado, o rio cor de estanho corria lento. As pedras pareciam envernizadas, os bosques começavam a brilhar, ainda debilmente sob a fraca luz matinal. Marino mesmo se serviu de café, enchendo a xícara de açúcar e creme.

"Quer um pouco?", ele perguntou.

"Preto", falei.

"A esta altura, acho que você nem precisa mais dizer isso."

"Nunca suponho nada", falei, tirando os pratos do armário. "Principalmente quando se trata de homens, que parecem sofrer de um defeito hereditário que os impede de lembrar detalhes importantes para as mulheres."

"Sei. Mas eu podia fazer uma lista das coisas de que Doris nunca se lembrava, como usar minhas ferramentas e nunca guardá-las novamente na caixa", ele disse, referindo-se à ex-mulher.

Enquanto eu trabalhava na pia ele olhava em volta, como se quisesse fumar. Eu não pretendia permitir.

"Aposto que Tony nunca fez café para você", ele disse.

"Tony nunca fez nada para mim, exceto tentar me engravidar."

"Nem isso fez direito. Ou você não queria ter filhos?"

"Com ele, não queria mesmo."

"E agora?"

"Ainda não quero, com ele. Pronto." Entreguei o prato a Marino. "Vamos sentar."

"Espere um pouco. É só isto?"

"O que esperava?"

"Porra, doutora. Isto aqui não é comida. E que negócio verde pintadinho de preto é esse?"

"Esse é o kiwi que eu mandei você comprar. Aposto que já comeu isso antes", falei, paciente. "Tem bagel no freezer."

"Ah, melhorou. Com requeijão. Tem semente de papoula?"

"Se você fizer um exame antidoping hoje vai dar positivo para morfina."

"E não me dê nada dessas coisas diet. É como comer cola."

"Não, não é", eu disse.

"Cola é melhor."

Não servi a manteiga, decidida a fazê-lo viver mais um pouco. Naquela altura, Marino e eu já éramos mais do que colegas de trabalho ou amigos. Dependíamos um do outro de um modo que ninguém conseguiria explicar.

"Então, conte o que você andou fazendo", ele disse, quando já estávamos sentados na mesa de café da manhã, na frente de uma vidraça grande. "Sei que passou a noite toda acordada, fazendo algo." Ele mordeu um naco enorme de bagele esticou o braço para pegar o suco.

Relatei minha visita à sra. Eddings e falei sobre a mensagem que escrevi e enviei aos números desconhecidos.

"Estranho ele mandar fax para tudo quanto é lugar, menos seu escritório."

"Ele mandou duas mensagens para a redação", corrigi.

"Preciso interrogar essa gente."

"Boa sorte. Não se esqueça, eles são repórteres."

"É disso que eu tenho medo. Para aqueles caras, Eddings não passa de outra reportagem. Eles só estão interessados no que podem fazer com as informações. Quanto pior a morte, mais eles gostam."

"Bem, isso eu não sei. Mas tenho a impressão de que qualquer pessoa que o conheça naquela redação vai medir muito bem suas palavras. Nem sei se posso condená-los. Uma investigação de morte é apavorante para as pessoas que não pediram para ser convidadas."

"E os resultados dos exames toxicológicos?", Marino perguntou.

"Saem hoje, espero."

"Tomara. Caso sua teoria de envenenamento por cianureto seja comprovada, poderemos trabalhar no caso como se deve. No momento, sou forçado a justificar minhas superstições ao comandante do distrito. E não sei o que fazer a respeito do pessoal da Loucademia de Polícia de Chesapeake. Falei a Wesley que era homicídio, e ele pediu provas, porque também está na linha de fogo."

A simples menção do nome dele me perturbava. Olhei pela janela, para a água revolta a correr por entre pedras enormes e escuras naquele trecho não navegável do rio. O sol clareava nuvens escuras na parte leste do firmamente Ouvi o chuveiro na parte da casa em que Lucy estava dormindo.

"Pelo jeito a Bela Adormecida acordou", Marino disse. "Ela precisa de carona?"

"Creio que pretende passar no escritório local do fbi hoje. Acho melhor irmos embora." Tinha pressa, pois a reunião com a equipe era sempre às oito e meia.

Ele me ajudou a tirar a mesa e pôr os pratos na pia. Minutos depois eu já havia vestido o casaco e apanhado a pasta de documentos e a maleta médica. Minha sobrinha apareceu no vestíbulo, com o cabelo molhado e o roupão colado ao corpo.

"Tive um sonho", ela disse, com voz deprimida. "Alguém atirou em nós quando dormíamos. Nove milímetros, tiro na nuca. Para parecer que foi um latrocínio."

"É mesmo?", Marino perguntou, calçando as luvas forradas de pele de coelho. "E onde andava este seu criado? Se eu estivesse por aqui, uma coisa dessas jamais aconteceria."

"Você não estava."

Ele a olhou de esguelha, percebendo que falava sério. "O que andou comendo ontem à noite, afinal?"

"Foi como num filme. Durou horas." Ela olhou para mim, com os olhos congestionados e cansados.

"Quer ir comigo para o departamento?", perguntei.

"Não, tudo bem. Vou ficar. A última coisa de que preciso no momento é um monte de cadáveres."

"Você vai encontrar os agentes daqui que já conhece?", perguntei, apreensiva.

"Sei lá. íamos trabalhar com equipamento de respiração de circuito fechado. Mas não me sinto disposta a vestir um traje de mergulho e entrar numa piscina coberta fedendo a cloro. Acho que vou esperar meu carro e ir embora."

Marino e eu não conversamos muito no caminho do centro. Os pneus com correntes mordiam as ruas congeladas como se fossem dentes de aço. Percebi que se preocupava com Lucy. Costumava criticá-la asperamente, mas se alguém tentasse fazer o mesmo, Marino liquidaria a pessoa com as enormes mãos nuas. Ele conhecia Lucy desde que ela tinha dez anos. Marino a ensinara a dirigir picapes com tração nas quatro rodas e também a atirar.

"Doutora, preciso perguntar uma coisa", ele disse finalmente, quando o barulho das correntes diminuiu um pouco, no pedágio. "Acha que Lucy está bem?"

"Todo mundo tem pesadelos", falei.

"Ei, Bonita", ele disse à moça do pedágio ao entregar o passe policial pela janela, "quando é que você vai dar um jeito neste tempo?"

"Não me venha com essa, capitão." Ela devolveu a identidade e a cancela foi levantada. "Você é o maioral, aqui."

Sua voz jovial nos seguiu estrada afora. Pensei que era triste viver numa época em que até funcionários do pedágio usavam luvas plásticas, por medo de contato com a pele alheia. Talvez chegue o dia em que as pessoas viverão em bolhas, para não morrer de doenças como o vírus Ebola e a aids.

"Acho que ela anda meio esquisita", Marino prosseguiu assim que ergueu o vidro. Depois de uma pausa, perguntou: "E onde está Janet?".

"Com a família em Aspen, creio."

Ele olhou direto para a frente e continuou a dirigir.

"Depois do que aconteceu na casa do doutor Mant, não condeno Lucy por estar um pouco abalada", acrescentei.

"Diacho, em geral é ela quem procura encrenca", ele disse. "Não se intimida facilmente. Por isso o Bureau permite que ande com a turma do hrt. Não dá para fazer onda quando o negócio é enfrentar brancos racistas e terroristas. Não é porque teve um pesadelo que vai se retirar por doença."

Marino, ao sair da via expressa, seguiu pela Seventh Street até as estreitas ruas de pedras de Shockoe Slip, depois seguiu para o norte pela Fourteenth, onde eu trabalhava diariamente quando estava na cidade. A sede do Departamento de Medicina Legal da Virgínia, o ocme, era um edifício baixo de alvenaria com janelas minúsculas que me faziam lembrar olhos desconfiados, desagradáveis. Elas davam para os cortiços da zona leste e o centro bancário, a oeste. O horizonte era cortado por viadutos com trilhos de trens e vias expressas.

Marino entrou no estacionamento dos fundos, onde havia um número impressionante de veículos, levando-se em conta a condição das ruas. Desci na frente do portão e usei minha chave para abrir a porta lateral. Subi a rampa das maças para entrar no necrotério, já escutando o ruído das pessoas que trabalhavam no final do corredor. A sala de autópsia ficava depois da câmara fria conhecida como geladeira, e estava com as portas escancaradas. Entrei enquanto Fielding, meu principal assistente, removia tubos diversos e um cateter do corpo de uma mulher ainda jovem, na segunda mesa.

"Você veio esquiando?", ele perguntou, embora não demonstrasse surpresa por me ver ali.

"Praticamente. Talvez eu precise da perua hoje. No momento, estou a pé."

Ele se debruçou sobre a paciente, franzindo um pouco a testa enquanto estudava a tatuagem de uma cascavel enrodilhada em torno do seio esquerdo da falecida, com a boca aberta ameaçadoramente voltada para o mamilo.

"Gostaria de saber por que alguém faz uma coisa dessas", Fielding disse.

"Eu diria que o tatuador se divertiu um bocado", falei. "Verifique a parte interna do lábio inferior. Provavelmente ela tem uma tatuagem ali, também."

Ele puxou o lábio inferior, e na parte interna, em letras grandes, estava escrito vai se foder.

Fielding olhou para mim, atônito. "Como sabia disso?"

"As tatuagens são caseiras, ela faz o gênero motoqueira e aposto que já esteve na cadeia."

"Positivo em todos os aspectos." Ele apanhou uma toalha limpa e enxugou a face.

Meu parceiro puxador de ferro dava sempre a impressão de que ia rasgar a roupa, e transpirava enquanto o resto de nós mal conseguia se aquecer. Mas era um patologista forense competente. Agradável, carinhoso e, na minha opinião, muito leal.

"Possível overdose", ele explicou, copiando a tatuagem numa prancheta. "Aposto que o Ano Novo dela foi uma farra daquelas."

"Jack", falei para ele, "você já teve muito contato com a polícia de Chesapeake?"

Ele continuou a desenhar. "Poucas vezes."

"Alguma coisa recente?", perguntei.

"Creio que não. Por quê?", ele ergueu os olhos para mim.

"Tive um encontro meio estranho com um detetive de lá."

"Algo a ver com o caso Eddings?", ele começou a lavar o corpo, e o cabelo escuro longo se espalhou pelo aço brilhante.

"Isso mesmo."

"Sabe, é esquisito, mas Eddings tinha telefonado para mim. Um dia ou dois antes de morrer", Fielding disse, movendo a mangueira.

"O que ele queria?", perguntei.

"Eu estava aqui, fazendo uma autópsia. Não cheguei a falar com ele. Agora, gostaria de ter falado." Ele subiu na escadinha e passou a tirar fotos com uma máquina Polaroid. "Vai ficar muito tempo na cidade?"

"Não sei", falei.

"Bem, se precisar de ajuda em Tidewater, posso dar um jeito." O flash espocou e ele esperou a saída da foto. "Não sei se já lhe disse, mas Ginny está grávida de novo e vai adorar sair de casa uns dias. Ela adora o mar. Diga o nome do detetive que a incomodou, e dou um jeito nele."

"Gostaria mesmo que alguém fizesse isso", falei.

O flash brilhou novamente. Pensei no chalé de Mant e não consegui nem imaginar Fielding lá com a mulher.

"Faz mais sentido se você ficar por aqui, de todo modo", acrescentou. "Espero que o doutor Mant não fique na Inglaterra para sempre."

"Obrigada", falei, emocionada. "Talvez você possa ir até lá algumas vezes por semana, apenas."

"Nenhum problema. Pode me passar a Nikon?"

"Qual delas?"

"Hã... a N-50, com lentes single-reflex. Creio que está no armário, ali." Ele apontou para o local.

"Vamos dar um jeito nos plantões", falei, entregando a câmera para ele. "Mas Ginny e você não precisam ficar na casa do doutor Mant. Você vai ter de confiar em mim e seguir meu conselho, neste aspecto."

"Algum problema?", ele tirou outra foto e parou.

"Marino, Lucy e eu começamos o ano com os pneus cortados."

Ele abaixou a câmera e olhou para mim, chocado. "Que merda! Você acha que foi um ataque casual?"

"Não, não acho", falei.

Peguei o elevador para o andar superior e abri a porta da minha sala. A visão da pimenteira natalina de Eddings foi um golpe. Eu não podia deixá-la no armário, por isso a peguei. Aí, não sabia para onde levá-la. Por algum tempo, andei de um lado para outro, confusa e perturbada, até finalmente recolocá-la onde estava, pois não podia jogá-la no lixo nem submeter outras pessoas de minha equipe às lembranças que evocava.

Olhei para a sala de Rose e sua ausência não me surpreendeu. Minha secretária, já idosa, não gostava de guiar até o centro, mesmo nos dias de tempo bom. Pendurei meu casaco e olhei em torno, minuciosamente, satisfeita por encontrar tudo em ordem, com exceção da faxina feita pela firma de limpeza que mandava alguém depois do expediente. Compreensivelmente, nenhum dos faxineiros, gostava de trabalhar naquele prédio. Raros duravam muito tempo, nenhum descia até o andar de baixo.

Eu havia herdado a sala do chefe anterior, mas nada, com exceção dos lambris de madeira, lembrava os tempos enfumaçados de charuto em que médicos como Cagney tomavam bourbon com policiais e agentes funerários enquanto examinavam cadáveres com as mãos nuas. Meu predecessor não se preocupava com fontes de luz alternativas nem dna.

Recordo-me da primeira vez em que vi sua sala, depois que ele morreu. Eu estava sendo entrevistada para a vaga. Observei as recordações machistas que ele exibia orgulhosamente, e quando vi que uma delas era um implante de silicone para o seio, de uma mulher que fora seqüestrada e violentada, fiquei tentada a voltar para Miami.

Dificilmente o antigo chefe gostaria da sala como estava agora. Era proibido fumar, falar obscenidades e fazer brincadeiras de mau gosto. A mobília de carvalho não fora fornecida pelo governo, mas adquirida por mim. Escondi o piso com um tapete devocional Sarouk, feito por máquina mas muito bonito. Havia plantas e um arbusto de fícus, mas nada de obras de arte. Como um psiquiatra, eu evitava elementos chamativos nas paredes. E, francamente, precisava de todo o espaço para estantes de livros e armários. Quanto a troféus, Cagney não se impressionaria com os carrinhos, caminhões e trens de brinquedo que eu usava para ajudar os encarregados das investigações na reconstrução de acidentes.

Precisei de alguns minutos para verificar as pendências da caixa de entrada, cheia de atestados de óbito com borda vermelha para os casos em que se exigia autópsia e borda verde para os demais. Outros relatórios aguardavam minha assinatura, e uma mensagem na tela do computador dizia para eu verificar o correio eletrônico. Tudo isso podia esperar, pensei, retornando ao corredor para ver quem mais estava por lá. Só Cleta, descobri ao chegar à sala da frente. De todo modo, era ela quem eu precisava ver.

"Doutora Scarpetta", ela disse, surpresa. "Não sabia que estava aqui."

"Pensei que seria uma boa idéia voltar a Richmond", falei, puxando uma cadeira para me sentar perto da mesa dela. "O doutor Fielding e eu vamos nos revezar para cobrir Tidewater."

Cleta vinha de Florence, na Carolina do Sul, usava muita maquiagem e saia curta porque acreditava que a felicidade estava em ser bonita, algo acima de suas possibilidades. Sentava-se ereta na cadeira, separando fotos macabras conforme os números dos casos, com uma lente de aumento na mão e óculos bifocais no rosto. A seu lado havia um pão com salsicha que provavelmente comprara na lanchonete vizinha, e comia tomando Tab.

"Sabe, as ruas estão começando a descongelar", ela informou.

"Ótimo." Sorri. "Fico contente em ver que você está aqui."

Ela irradiava felicidade enquanto pegava as fotos na caixa rasa.

"Cleta", falei, "lembra-se de Ted Eddings, não é?"

"Mas é claro, doutora." Subitamente, parecia que ela ia chorar. "Ele era sempre tão gentil, quando vinha aqui. Mal posso acreditar no que aconteceu." Ela mordeu o lábio inferior.

"O doutor Fielding disse que Eddings ligou para cá no final da semana passada", falei. "Gostaria muito de saber se você se recorda disso."

Ela fez que sim. "Claro, doutora. Com certeza. Na verdade, não consigo parar de pensar nisso."

"Ele conversou com você?"

"Conversou."

"Lembra-se do que ele disse?"

"Bem, ele queria conversar com o doutor Fielding, mas o ramal estava ocupado. Perguntei se queria deixar recado, e ficamos batendo papo. Sabe como ele era." Seus olhos se encheram de lágrimas e a voz tremeu. "Ele me perguntou se eu continuava tomando muito mel, pois era a única explicação para uma voz tão doce. E perguntou se eu queria sair com ele."

Eu ouvia, enquanto seu rosto ficava vermelho.

"Claro, não estava falando sério. Sempre dizia isso, sabe. 'Quando é que vamos sair juntos?' Mas era só de brincadeira."

"Não haveria problema, se fosse verdade."

"É que ele já tinha namorada."

"Como sabe disso?", perguntei.

"Ele disse que ia trazê-la aqui qualquer dia, e tive a impressão de que era um namoro sério. Acho que o nome da moça é Loren, mas não sei nada a respeito dela."

Imaginei Eddings batendo papo com meus funcionários. Cada vez me surpreendia menos com a facilidade de acesso que ele tinha, em comparação a outros repórteres que me procuravam. Não pude deixar de pensar que esse talento provocara sua morte. Era capaz de apostar nisso.

"Ele mencionou em algum momento o que pretendia discutir com o doutor Fielding?" Levantei-me ao perguntar isso.

Ela ficou pensativa por um momento, remexendo distraída as fotos que o mundo jamais veria. "Espere um minuto. Ah, já sei! Algo a respeito de radiação. Quais seriam as indicações, se alguém morresse disso."

"Que tipo de radiação?", perguntei.

"Bem, achei que ele estava fazendo uma matéria sobre máquinas de raios X. Andam falando muito disso, no jornal, porque as pessoas morrem de medo de coisas como cartas bombas."

Não me recordava de nada, nas pistas encontradas na casa de Eddings, capaz de sugerir que ele andava pesquisando o tema para uma matéria. Voltei ao meu escritório e fiquei trabalhando na papelada atrasada. Depois, liguei para quem linha deixado recado. Horas depois, quando tomava um lanche na minha mesa, Marino chegou.

"Como vão indo as coisas?", falei, surpresa por vê-lo ali. "Gostaria de metade de um sanduíche de atum?"

Depois de fechar as duas portas, sem tirar o capote, ele me olhou com uma expressão de dar medo. "Você já falou com Lucy?", perguntou.

"Desde que saí de casa, não."

Coloquei o sanduíche na mesa. "Porquê?"

"Ela me ligou", ele consultou o relógio, "faz mais ou menos uma hora. Queria saber como entrar em contato com Danny, para falar a respeito do carro dela. Pela voz, estava bêbada."

Fiquei em silêncio por um tempo, olhando para ele. Depois, desviei a vista. Não perguntei se tinha certeza, pois Marino era especialista nestas coisas, e conhecia muito bem o passado de Lucy.

"Acha melhor eu ir para casa?", perguntei, com voz sumida.

"Não. Creio que ela está de mau humor, e resolveu beber um pouco para esquecer. Pelo menos, não vai poder dirigir."

Respirei fundo.

"Quero dizer, no momento ela está em segurança. Mas achei melhor contar, doutora."

"Obrigada", falei, desanimada.

Esperava que a tendência para o abuso do álcool de minha sobrinha já tivesse sido deixada para trás. Não via sinais preocupantes desde o tempo em que, ainda jovem, agira de modo destrutivo, pegando o carro embriagada. Quase morrera num acidente. No mínimo, seu comportamento peculiar em casa, naquela manhã, somado ao que Marino acabara de dizer, indicava que havia algo muito errado. Eu não sabia o que fazer.

"Mais uma coisa", ele acrescentou, levantando-se, "você não ia querer que ela voltasse para a Academia desse jeito."

"Não", falei. "Claro que não."

Ele se foi, e por algum tempo fiquei ali, atrás das portas fechadas, deprimida, com meus pensamentos fluindo lentamente, como o rio atrás de minha casa. Não sabia se estava furiosa ou apavorada. Mas lembrei-me das vezes em que ofereci vinho ou cerveja a Lucy, e me senti traída. Em seguida, quase sucumbi ao desespero, pensando em tudo o que ela havia conquistado, no que tinha a perder, e subitamente outras imagens vieram à minha mente. Vi cenas terríveis, escritas por um sujeito que queria ser Deus, e soube que minha sobrinha, apesar de brilhante, não compreendia a força daquele poder sombrio. Ela não entendia o mal, ao contrário do que ocorria comigo.

Vesti o casaco e calcei as luvas, pois sabia para onde devia ir. Estava a ponto de avisar a recepção que ia sair quando o telefone tocou. Atendi, pois poderia ser Lucy. Era o chefe de polícia de Chesapeake, que se identificou como Steels e disse que acabara de ser transferido de Chicago para lá.

"Lamento as circunstâncias nas quais estamos nos conhecendo", ele disse, e parecia sincero. "Mas preciso conversar a respeito de um detetive meu chamado Roche."

"E eu também preciso conversar a respeito", falei. "Talvez o senhor possa me explicar exatamente qual é o problema dele."

"Segundo ele, o problema é com a senhora."

"Isso é ridículo", falei, incapaz de refrear a raiva. "Para ser sincera, chefe Steels, seu detetive é mal-educado, pouco profissional e um empecilho para esta investigação. Ele está proibido de entrar no meu necrotério."

"A senhora deve ter consciência de que o pessoal dos Assuntos Internos vai investigar o caso a fundo", ele disse. "Provavelmente, será preciso que venha até aqui para conversarmos."

"Qual é a acusação dele, exatamente?"

"Assédio sexual."

"Certamente, trata-se de algo muito popular, no momento", falei em tom irônico. "Contudo, eu não sabia que tinha autoridade sobre ele, uma vez que o sujeito trabalha para o senhor, e não para mim. E, por definição, assédio sexual diz respeito a abuso de poder. De todo modo, trata-se de uma discussão inútil. Os papéis foram invertidos, na versão dele. Na verdade, seu detetive é que foi responsável por avanços de cunho sexual. Como não houve encorajamento, seu comportamento tornou-se abusivo."

Steels disse, após uma pausa: "Bem, pelo jeito parece que é a sua palavra contra a dele".

"Não, parece que isso tudo é um amontoado de besteiras. Se ele me tocar mais uma vez, conseguirei um mandado e providenciarei para que seja detido."

Ele ficou em silêncio.

"Chefe Steels", prossegui. "Creio que deve se preocupar, no momento, com uma questão da maior importância. Há uma situação preocupante em sua jurisdição. Podemos conversar a respeito de Ted Eddings por um momento?"

Ele limpou a garganta. "Certamente."

"Está familiarizado com o caso?"

"Totalmente. Acompanhei tudo de perto, conheço os detalhes."

"Ótimo. Então concorda que o caso deve ser investigado até seu completo esclarecimento."

"Bem, creio que devemos investigar todas as mortes, mas no caso de Eddings a resposta me parece óbvia."

Ouvi, cada vez mais furiosa.

"Talvez saiba que ele gostava de relíquias da Guerra Civil, pnha coleção, até. Ao que consta, ocorreram batalhas em locais próximos do ponto em que ele mergulhava. Provavelmente, procurava balas de canhão e coisas do gênero."

Concluí que Roche havia conversado com a sra. Eddings, ou talvez o chefe de polícia tivesse visto artigos de Eddings no jornal, falando da caça a tesouros submersos. Eu não era historiadora, mas conhecia o assunto o suficiente para ver as falhas naquela teoria estúpida.

Respondi a Steels: "A maior batalha naval travada na área foi entre o Merrimace o Monitor. A vários quilômetros de distância, em Hampton Roads. Nunca ouvi falar em batalhas naquele trecho do rio Elizabeth em que se situa o estaleiro".

"Ora, doutora Scarpetta, isso nós não podemos saber, concorda?", ele disse, em tom pensativo. "Talvez tenha havido algum disparo por ali. Ou jogaram lixo fora, ou mataram alguém. Sabe, não havia câmeras de televisão e uma multidão de repórteres. Só Mathew Brady. E, por falar nisso, sou fã de história e li muito a respeito da Guerra Civil. Pessoalmente, acredito que este elemento, Eddings, invadiu o estaleiro para mergulhar e procurar relíquias no fundo do rio. Ele inalou gases tóxicos emitidos por seu próprio equipamento e morreu. O que tinha consigo - como um detetor de metais - se perdeu no lodo do fundo."

"Estou tratando este caso como um possível homicídio", falei com firmeza.

"Não concordo, com base no que surgiu até o momento."

"Espero que a promotora concorde comigo, quando eu falar com ela."

O chefe de polícia não comentou essa frase.

"Presumo que não pretenda convocar o Bureau de Análise de Investigação Criminal do fbi para o caso", completei. "Uma vez que já decidiu que se trata de acidente."

"A esta altura, não vejo razão para incomodar o fbi. Já disse isso a eles."

"Bem, eu vejo razões de sobra", falei, e precisei me controlar para não bater o telefone na cara dele.

"Droga, droga, droga!", falei ao desligar. Peguei minhas coisas, furiosa, e saí marchando pela porta.

No escritório do necrotério, no andar de baixo, peguei o molho de chaves pendurado na parede e fui para o estacionamento. Destranquei a porta do motorista da perua azul que usávamos para transportar cadáveres ocasionalmente. Não era chamativa como um carro de defunto, mas ninguém guardava um veículo desses na garagem. Imensa, a perua tinha janelas pintadas de preto e persianas do tipo usado pelas funerárias. Em vez de bancos, atrás havia um piso de madeira compensada com ganchos, para impedir que as maças escorregassem durante o transporte. O supervisor do necrotério havia pendurado vários desodorizadores no espelho retrovisor. O cheiro de cedro era sufocante.

Abri a janela durante parte do trajeto, seguindo pela Main Street, contente porque as ruas estavam apenas molhadas, e o trânsito até que não estava ruim, para a hora do rush. O vento úmido e frio batia em meu rosto, agradável, e eu sabia o que precisava fazer. Não parava na igreja no caminho de casa havia algum tempo, pois só pensava nisso quando ocorria uma crise, quando a vida me levava ao limite. Na Three Chop Road, esquina com a Grove Avenue, entrei no estacionamento da Saint Bridget, uma igreja feita de tijolo, com telhado de ardósia, que não deixava mais a porta destrancada à noite por causa do jeito que o mundo era agora. No entanto, o pessoal dos Alcoólicos Anônimos se reunia naquela hora. Eu sabia que podia entrar sem ser incomodada.

Usei uma porta lateral, benzi-me com água benta e penetrei no santuário. As imagens dos santos guardavam a cruz, e havia cenas da paixão de Cristo nos vitrais vistosos. Escolhi o último banco. Gostaria que houvesse velas para acender, mas esse ritual acabara por ali depois do Vaticano li. Ajoelhada, rezei por Marino e Wesley. Rezei por minha sobrinha, fazendo por ela um apelo do fundo da alma. Depois sentei-me em silêncio, de olhos fechados, e senti que a tensão começava a diminuir.

Estava a ponto de ir embora, às seis da tarde, quando parei no nártex e vi a porta iluminada da biblioteca, no final do corredor. Não sei bem o que me levou naquela direção, mas me passou pela cabeça que um livro maligno poderia ser anulado por um sagrado. Alguns momentos com o cate-cismo, seria o conselho de um padre. Ao entrar encontrei uma senhora idosa, guardando livros nas estantes.

"Doutora Scarpetta?", ela perguntou, demonstrando simultaneamente surpresa e contentamento.

"Boa noite." Senti vergonha por não me lembrar do nome dela.

"Sou a senhora Edwards."

Lembrei-me de que ela se encarregava dos assuntos sociais da igreja e ensinava a religião católica aos convertidos, grupo ao qual eu poderia pertencer, de tão pouco que ia à missa. Baixa, um tanto rechonchuda, ela nunca se recolhera ao convento. Mas inspirava em mim a mesma culpa que eu sentia ao encontrar freiras bondosas, quando era criança.

"Não costumo vê-la por aqui a esta hora", ela comentou.

"Só dei uma passada", falei. "Depois do serviço. Infelizmente, perdi a reza da tarde."

"Foi no domingo."

"Claro."

"Bem, fico contente em tê-la visto ao sair." Seus olhos se detiveram em meu rosto, e percebi que ela intuíra minha necessidade.

Olhei para as prateleiras.

"Posso ajudá-la a encontrar algo?", ela perguntou.

"Um catecismo", falei.

Ela atravessou o salão para pegar um exemplar na estante, que entregou a mim. Era volumoso, e pensei se havia tomado a decisão correta, pois estava muito cansada e duvidava que Lucy estivesse em condições de ler.

"Talvez haja algo específico em que eu possa ajudar", ela disse. Sua voz era gentil.

"Seria ótimo se eu pudesse conversar com o padre por um momento", falei.

"O padre O'Connor está fora, visitando doentes no hospital." Seus olhos indicavam curiosidade. "Há algo que eu possa fazer?"

"Talvez."

"Vamos sentar ali", ela sugeriu.

Puxamos duas cadeiras para a frente de uma mesa de tábua que me lembrou as existentes na escola paroquial que eu freqüentava quando era criança, em Miami. Recordei-me subitamente das maravilhas que me aguardavam nas páginas daqueles livros, pois o que eu mais gostava era de aprender, e qualquer escapada de casa valia a pena. A sra. Edwards e eu sentamos de frente, como amigas, mas as palavras saíram com dificuldade, pois era raro eu poder falar com tanta franqueza.

"Não posso entrar em detalhes, pois minha dificuldade tem a ver com o caso no qual estou trabalhando", expliquei.

"Compreendo."

"Mas seria o suficiente dizer que tive contato com uma bíblia satânica. Não era adoração do demônio, mas era muito ruim."

Ela não reagiu. Continuou olhando direto para mim.

"E Lucy também. Minha sobrinha de vinte e três anos. Ela também leu o tal livro."

"Houve problemas, em conseqüência disso?", perguntou a sra. Edwards.

Respirei fundo. Eu me sentia uma idiota. "Sei que isso soa meio maluco."

"Claro que não", ela disse. "Jamais devemos subestimar os poderes do mal. Precisamos evitar o contato, sempre que possível."

"Nem sempre é possível, para mim", falei. "Os pacientes que chegam à minha porta em geral são vítimas do mal. Raramente, porém, sou obrigada a ler documentos como esse. Tive sonhos perturbadores, e minha sobrinha se comporta de modo estranho. Ela passou muito tempo com o Livro. Acima de tudo, preocupo-me com ela. Por isso vim até aqui."

'"E tu continuarás voltado para as coisas que aprendestes e confirmastes"', ela citou. "No fundo, é isso. Muito simples."

"Não sei se entendi direito", confessei.

"Doutora Scarpetta, não há remédio para o problema que me trouxe. Não posso estender as mãos e dissipar as trevas ou afugentar os sonhos ruins. O padre O'Connor também não pode. Não temos uma cerimônia ou ritual que funcione. Só podemos rezar por você, e certamente o faremos. Mas você e Lucy precisam retornar para a fé. Precisam recuperar o que lhes deu força no passado."

"Por isso vim aqui hoje", repeti.

"Muito bem. Diga a Lucy para retornar à comunidade dos fiéis e orar. Ela precisa vir à igreja."

Essa é boa, pensei, quando voltava para casa. Senti que os medos aumentavam conforme eu me aproximava da porta da frente. Mal passava das sete da noite e Lucy já estava na cama.

"Está dormindo?" Sentei-me a seu lado na escuridão e toquei suas costas. "Lucy?"

Ela não respondeu, e fiquei contente por saber que os carros ainda não haviam chegado. Temia que ela tentasse voltar a Charlottesville guiando. Temia que estivesse a ponto de repetir a maior besteira que já havia feito na vida.

"Lucy?", insisti. ,

Ela virou de lado, lentamente. "O que foi?"

"Só queria saber se está tudo bem com você", falei.

Quando enxugou os olhos, percebi que não estivera. dormindo, mas sim chorando.

"O que foi?", falei.

"Nada."

"Sei que aconteceu alguma coisa. Está na hora de conversarmos. Você anda esquisita, e eu quero ajudar."

Ela não respondeu.

"Lucy, vou ficar aqui até você conversar comigo."

Depois de passar mais algum tempo em silêncio, ela abriu os olhos e ficou olhando para o teto. "Janet disse tudo para eles", falou. "Contou para os pais. Eles discutiram com ela, como se conhecessem mais seus sentimentos do que ela própria. Como se pudesse estar errada a respeito de si mesma."

Havia raiva na voz, e Lucy se ajeitou na cama, sentando-se depois de apoiar as costas com os travesseiros.

"Eles querem que faça terapia", ela acrescentou.

"Lamento", falei. "Não sei bem o que dizer. Mas o problema está neles, e não em vocês duas."

"Não sei o que ela vai fazer. Já não chega nosso medo de que o fbi descubra."

"Vocês devem ser fortes e verdadeiras consigo mesmas."

"E o que nós somos? Tem dias que eu nem sei." Ela ficou mais brava ainda. "Odeio tudo isso. É tão duro. Tão injusto." Ela se deitou no meu ombro. "Por que eu não posso ser como você? Por que não pode ser fácil?"

"Não sei se você ia querer ser como eu", falei. "E minha vida não é nada fácil. Na verdade, o que importa geralmente não é fácil. Você e Janet podem dar um jeito em tudo, se estiverem decididas. E se o amor que sentem for verdadeiro."

Ela respirou fundo e soltou o ar lentamente.

"Chega de comportamento destrutivo", falei ao levantar da cama, envolta pelas sombras do quarto. "Onde está o Livro?"

"Em cima da escrivaninha", ela disse.

"Do meu escritório?"

"Sim. Eu o coloquei lá."

Trocamos olhares, e os olhos dela brilharam. Ela fungou alto e assoou o nariz.

"Você entende por que não é bom remoer essas coisas?", perguntei.

"Mas olha o que você tem de remoer o tempo inteiro. Faz parte."

"Não", falei. "O que faz parte é saber onde pisar e onde não pisar. A gente deve respeitar o poder do inimigo, tanto quanto desprezá-lo. Caso contrário, você será derrotada, Lucy. Acho bom aprender isso desde já."

"Compreendo", ela disse em voz baixa, estendendo a mão para o catecismo que eu havia deixado no pé da cama. "O que é isso? Um livro para eu ler à noite?"

"Um livro que eu peguei emprestado na igreja. Achei que ia ser bom para você dar uma olhada."

"Esqueça a igreja", ela disse.

"Por quê?"

"Porque a igreja me abomina. Acha que pessoas como eu não passam de aberrações. Como se eu merecesse ir para a cadeia ou para o inferno, pelo que sou. É nisso que ando pensando. Você não sabe como é se sentir isolada."

"Lucy, passei a maior parte da vida isolada. Você nem imagina o que é discriminação. Eu fui uma das três mulheres da classe, no curso de medicina. No curso de direito, os homens não emprestam as anotações, se você estiver doente ou faltar por qualquer motivo. Por isso não fico doente. Por isso não encho a cara e me enfio na cama." Falei de modo duro, pois sabia que isso era necessário.

"É diferente", ela disse.

"Acho que você quer acreditar que é diferente, para arranjar desculpas para sentir pena de si mesma", falei. "Parece que quem está esquecendo e rejeitando é você. Não é a igreja. Não é a sociedade. Não são nem mesmo os pais de Janet, que apenas não compreendem. Pensei que você fosse forte."

"Sou forte."

"Bem, não o bastante", falei. "Para mim, já chega. Não quero que venha para minha casa, encha a cara e cubra a cabeça com a coberta, fazendo com que eu passe o dia preocupada. E, quando tento ajudar, você me expulsa, como faz com todo mundo."             Ela ficou em silêncio, depois olhou para mim. Finalmente, disse: "Você foi realmente à igreja por minha causa?".

"Fui por minha causa", falei. "Mas você foi o assunto dominante na conversa."

Ela arrancou as cobertas. '"A principal meta de uma pessoa é glorificar e adorar a Deus para sempre'", ela disse, levantando-se.

Parei, na porta do quarto.

"Catecismo. Usando inclusive a linguagem. Tive um curso de religião na uva. Vamos jantar?"

"O que gostaria de comer?", perguntei.

"O que for mais fácil." Ela se aproximou e me abraçou. "Tia Kay, sinto muito", disse.

Na cozinha, abri o freezer. Nada do que havia lá dentro me inspirou. Em seguida, examinei a geladeira. Mas meu apetite se fora, junto com a paz de espírito. Comi uma banana e preparei um bule de café. As oito e meia o rádio em cima do balcão me deu um susto.

"Unidade seiscentos para base um", ouvi a voz de Marino dizer.

Apanhei o microfone e respondi. "Base um falando."

"Você poderia ligar para mim?"

"Diga o número." Tive um pressentimento ruim.

Era possível monitorar a freqüência de rádio usada por meu departamento. Sempre que tínhamos um caso especialmente delicado, os detetives procuravam evitar comentários pelo rádio. Marino me deu o número de uma cabine telefônica.

Ele atendeu, dizendo: "Me desculpe. Eu estava sem troco".

"O que aconteceu?" Não perdi tempo.

"Preferi falar com você primeiro, e não com o legista de plantão. Achei que ia preferir assim."

"O que aconteceu?"

"Uma merda, doutora. Lamento muito. Estamos com o Danny."

"Danny?", falei, confusa.

"Danny Webster. Do seu departamento, em Norfolk."

"O que está querendo dizer? Como assim, está com ele?" Fiquei assustada. "O que ele fez?" Imaginei que tinha sido preso, guiando meu carro. Ou sofrido um acidente.

"Doutora, ele está morto", Marino disse.

O silêncio durou um bom tempo, dos dois lados da linha.

"Meu Deus." Apoiei-me no balcão e fechei os olhos. "Minha nossa. O que aconteceu?"

"Bem, acho que a melhor coisa seria que você viesse para cá."

"Onde você está?"

"Sugar Bottom, perto do antigo túnel do trem. Seu carro está a cerca de uma quadra, no Libby Hill Park."

Não perguntei mais nada. Disse a Lucy que precisava sair e que provavelmente só voltaria muito tarde. Peguei a maleta médica e a arma, pois conhecia bem aquela parte da cidade onde se situava o túnel. Não conseguia imaginar o que teria atraído Danny a um bairro tão perigoso. Ele e o tal amigo deviam pegar o meu carro e o Suburban de Lucy, e levá-los até meu escritório, onde o administrador os esperava nos fundos, para levá-los à rodoviária. Church Hill não ficava longe do ocme, mas eu não podia imaginar o que levaria Danny a qualquer lugar, com o meu Mercedes, fora do percurso estabelecido. Ele não parecia ser do tipo capaz de abusar da minha confiança.

Segui rapidamente pela West Cary Street, passando pelas mansões de tijolo com seus telhados de cobre ou ardósia. As entradas eram protegidas por imensos portões de ferro fundido. Era surreal percorrer aquela parte elegante da cidade num carro funerário, para encontrar o cadáver de um de meus funcionários, preocupada por deixar Lucy sozinha outra vez. Não me lembrava de ter acionado o sistema de alarme e desligado os sensores de movimento, ao sair. Minhas mãos tremiam. Gostaria de poder fumar.

Libby Hill Park, uma das sete colinas de Richmond, situava-se numa região que a especulação imobiliária valorizara muito. Fileiras de casas antigas e neoclássicas haviam sido restauradas por pessoas ousadas, capazes de retomar uma parte histórica da cidade das garras da decadência e do crime. Para muitos residentes, o risco acabou compensando.

Mas eu jamais moraria perto de conjuntos habitacionais e áreas deterioradas, nas quais a principal atividade econômica era o tráfico de drogas. Não queria cuidar de casos na vizinhança de casa.

Viaturas policiais, com suas luzes azuis e vermelhas, ocupavam os dois lados da Franklin Street. A noite estava muito escura, e eu mal distinguia a base octogonal ou o soldado de bronze no alto de seu pedestal de granito a olhar para o James. Avistei meu Mercedes, rodeado de policiais e equipes de televisão. As pessoas se aglomeravam nos pórticos amplos, para espiar. Quando passei, bem devagar, reparei que meu carro não havia sido danificado. A porta do motorista estava aberta, e o interior iluminado.

No rumo leste, passando a 29" Street, a ladeira conduzia a um local de má reputação, conhecido como Sugar Bottom, "doce traseiro", assim chamado por causa das prostitutas que ali viviam antigamente, sustentadas por cavalheiros ricos da Virgínia, ou por vender bebida ilegal. Não tinha certeza. As mansões restauradas davam lugar abruptamente a cortiços e barracos. A meio caminho do fundo da ladeira havia um matagal denso, no qual o túnel da c&o desabara, na década de 20.

Recordei-me de ter sobrevoado a área num helicóptero da polícia estadual certa vez. A boca negra do túnel olhava para mim, lá de baixo. Os trilhos do trem eram cicatrizes barrentas que seguiam até o rio. Pensei nos vagões e pessoas que ficaram presas lá dentro e que continuavam lá até então, diziam. Não conseguia imaginar Danny indo até ali de livre e espontânea vontade. No mínimo, estaria preocupado com o joelho machucado. Estacionei o mais perto possível do Ford de Marino, e instantaneamente fui reconhecida pelos repórteres.

"Doutora Scarpetta, é mesmo o seu carro, no alto da ladeira?", perguntou uma repórter, caminhando a meu lado. "Sei que o Mercedes está registrado em seu nome. Qual é a cor? Preto?", ela insistiu, mas eu não respondi.

"Pode explicar como ele foi parar lá?" Um sujeito enfiou um microfone na minha cara.

"Ele foi roubado? A vítima o roubou da senhora? Acha que tem a ver com drogas?"

As vozes se misturavam, pois ninguém esperava a vez. Mas eu não dizia nada. Quando os policiais perceberam minha chegada, interferiram com energia.

"Para trás."

"Ei, fora daqui."

"Abram caminho para a doutora passar."

"Por aqui. A cena do crime é logo adiante. Espero que esteja tudo bem com a senhora."

Marino surgiu do nada e segurou meu braço. "Bando de idiotas", ele disse, olhando para os repórteres. "Veja bem onde pisa. Vamos andar o caminho todo pelo mato praticamente até o túnel. Que tipo de sapato você está usando?"

"Pode deixar. Não tem problema."

Havia uma trilha longa, que descia abruptamente, afastando-se da rua. Instalaram luzes para iluminar o caminho, e fizeram um desvio num trecho perigoso. Nas margens, a mata se dissolvia na escuridão, movendo-se lentamente sob o vento sutil.

"Tome cuidado", ele insistiu. "Tem lama e porcaria para tudo quanto é lado."

"Que tipo de porcaria?", perguntei.

Acendi a lanterna e dirigi o facho para baixo, iluminando a trilha estreita cheia de vidro quebrado, papel podre e sapatos velhos que brilhavam esbranquiçados entre os galhos e troncos das árvores peladas pelo inverno.

"Os moradores estão tentando transformar o local em depósito de lixo", ele disse.

"Ele não teria conseguido descer a trilha com o joelho machucado", falei. "Qual é a melhor maneira de descer?"

"Segurando no meu braço."

"Não. Preciso verificar tudo sozinha."

"Bem, você não vai descer lá desacompanhada. Talvez alguém ainda esteja lá, escondido."

"Tem sangue ali." Apontei a lanterna e um monte de pingos gordos brilharam sobre as folhas mortas, a uns dois metros de distância.

"E tem muito mais espalhado por aí."

"E na rua, lá em cima?"

"Não. Ao que tudo indica, começou por aqui. E encontramos mais sangue na trilha que desce até onde ele está."

"Está certo. Vamos embora." Olhei em torno e comecei a descer, cuidadosamente, ouvindo as passadas pesadas de Marino atrás de mim.

A polícia passara a fita amarela de árvore em árvore, e o cordão de isolamento cobria o máximo possível da área, pois não sabíamos ainda até onde ia a cena do crime. Só consegui ver o corpo quando saí do mato, chegando a uma clareira formada pelos antigos trilhos que seguiam até o rio, ao sul, e sumiam na boca aberta do túnel, a oeste. Danny Webster estava meio de costas, meio de lado, com pés e mãos entrelaçados. Sob sua cabeça vi uma poça grande de sangue. Explorei seu corpo lentamente, com a lanterna. Notei terra e mato no suéter e na calça jeans, além de pedaços de folhas e gravetos no cabelo ensangüentado.

"Ele rolou morro abaixo", falei, notando que várias tiras da atadura vermelha estavam soltas. Havia sujeira no velcro. "Ele estava morto ou moribundo quando parou, nesta posição."

"Isso mesmo. Acho que está claro que levou um tiro lá em cima", Marino disse. "Minha dúvida é se sangrou tentando escapar, chegando até certo ponto antes de cair e rolar o resto do caminho."

"Talvez estivesse pensando que teria uma chance de escapar." A emoção tomou conta da minha voz. "Está vendo a joelheira? Tem idéia da dificuldade de movimento, se ele tentasse descer esta encosta? Sabe como é avançar aos poucos, penosamente, por causa de uma perna machucada?"

"É como pescar num aquário", Marino disse.

Não respondi. Dirigi o facho da lanterna para o mato e o lixo, no rumo da rua. Gotas de sangue brilharam na escuridão, escuras, numa embalagem de leite achatada e descorada pelo tempo.

"E quanto à carteira dele?", perguntei.

"Estava no bolso traseiro. Onze paus e cartões de crédito no lugar", Marino disse, sem parar de olhar para todos os lados.

Tirei fotos. Quando me ajoelhei ao lado do corpo e o virei para poder dar uma olhada melhor na nuca da cabeça destroçada de Danny, toquei o pescoço e senti que ainda estava quente. O sangue começava a coagular. Abri a maleta médica.

"Aqui." Desdobrei um plástico grande e o entreguei a Marino. "Segure isso enquanto tiro a temperatura."

Ele protegeu o corpo de vistas curiosas enquanto eu examinava a calça e a cueca, vendo que estavam sujas. Embora não fosse incomum que as pessoas urinassem e defecassem no instante da morte, em muitas ocasiões essas eram reações corporais típicas frente ao terror.

"Tem alguma idéia se ele andava envolvido com drogas?", Marino perguntou.

"Não tenho motivos para pensar isso", falei. "No entanto, não posso garantir nada."

"Por exemplo, ele algum dia deu a impressão de viver acima de suas posses? Quanto ele ganhava, afinal?"

"Seu salário estava em torno de vinte e um mil dólares anuais. Não sei se gastava mais do que ganhava. Ainda morava com os pais."

A temperatura corporal era 34,72 graus centígrados. Posicionei o termômetro em cima da maleta para obter a temperatura ambiente. Movi braços e pernas, o rigor mortis havia começado apenas nos músculos menores, como os dos dedos e olhos. No geral, Danny ainda estava quente e macio como fora em vida. Quando me aproximei dele senti perfume que costumava usar. Reconheceria aquele odor em qualquer lugar, sempre. Garanti que o lençol estivesse totalmente aberto debaixo dele e o virei de costas. Mais sangue espirrou, quando comecei a procurar outros ferimentos.

"A que horas você foi chamado?", perguntei a Marino, que andava de um lado para outro perto do túnel, lentamente, examinando o mato emaranhado com a lanterna.

"Um vizinho ouviu o tiro e ligou para a polícia às sete e cinto da noite. Encontramos o carro e o corpo quinze minutos depois. Portanto, faz umas duas horas. Combina com o que você verificou?"

"A temperatura ambiente é próxima a zero. Ele estava bem agasalhado. Perdeu cerca de quatro graus. Sim, está batendo. Por favor, me passe aquela sacola. Sabemos o que aconteceu com o amigo que ia levar o Suburban de Lucy?"

Cobri as mãos dele com sacos pardos e as prendi na altura do pulso com elásticos para preservar indícios frágeis, como resíduos de disparos, fibras ou carne sob a unha, conseqüência de possível luta corporal com o atacante. Disso, porém, eu duvidava. Em minha opinião, Danny fizera exatamente como lhe ordenaram, qualquer que houvesse sido a situação.

"Até o presente momento não sabemos quem é o tal amigo", Marino disse. "Posso mandar uma viatura até seu departamento, para averiguar."

"Acho que é uma boa idéia. Não sabemos se o amigo está envolvido nisso ou não."

"Cem", Marino disse no rádio portátil, enquanto eu recomeçava a tirar fotos.

"Cem", o operador de rádio respondeu.

"Dez-cinco todas as unidades na área do necrotério, na Fourteenth com a Franklin."

Danny levara um tiro na nuca, praticamente à queima-roupa. Ia perguntar a Marino a respeito de cápsulas deflagradas quando ouvi um som bem familiar.

"Ah, não", falei, quando o barulho aumentou. "Marino, não deixe que eles cheguem mais perto."

Mas já era tarde demais. Olhamos para cima e um helicóptero da televisão surgiu, sobrevoando a área em círculos baixos. O farol parou no túnel e no trecho de solo gelado no qual eu estava de joelhos, com as mãos cheias de sangue e miolos. Protegi os olhos contra o clarão cegante enquanto folhas e detritos voavam e as árvores vergavam. Não conseguia ouvir o que Marino estava gritando enquanto gesticulava furiosamente com a lanterna apontada para o céu. Protegi o cadáver da melhor maneira possível.

Cobri a cabeça de Danny com um saco plástico e o corpo com um lençol, enquanto a equipe de reportagem do Canal 7 destruía a cena do crime, por ignorância, descaso ou provavelmente as duas coisas. A porta do passageiro do helicóptero havia sido removida, e o câmera se debruçava na noite para aproveitar a luz em cima de mim. Depois de gravar a cena para o noticiário das onze, o aparelho iniciou sua tempestuosa retirada.

"Filho-da-puta-do-cacete", Marino gritava, erguendo o punho cerrado. "Eu devia derrubar vocês a tiros!"

 

Enquanto um carro estava a caminho, fechei o zíper do saco contendo o corpo e, quando me levantei, senti tontura. Por um instante, precisei me apoiar. Meu rosto gelou, eu não conseguia ver nada.

"O pessoal já pode vir", falei a Marino. "Será que alguém não poderia se encarregar de manter as malditas câmeras longe daqui?"

As luzes intensas flutuavam como satélites na rua escura, enquanto esperavam que voltássemos. Ele me olhou, franzindo a testa, pois ambos sabíamos que ninguém poderia fazer nada a respeito dos repórteres e dos equipamentos usados para as filmagens. Desde que não interfiram com a cena do crime, podem fazer o que quiserem. Especialmente no caso dos helicópteros, que não tínhamos como deter ou alcançar.

"Pretende levá-lo você mesma?", ele me perguntou.

"Não. Já tem uma equipe lá", falei. "E precisamos de ajuda para subi-lo de volta. Diga-lhes que venham logo."

Ele voltou ao rádio, enquanto nossas lanternas seguiam iluminando o lixo, folhas e poças cheias de água barrenta.

Marino virou-se para mim e disse: "Vou deixar alguns guardas por aqui, dando uma busca. A não ser que o assassino tenha levado a cápsula detonada, ela está por aí, em algum lugar". Ele olhou para o alto da encosta. "O problema é que tem berro que atira o cartucho muito longe, e a merda do helicóptero lançou sujeira para tudo quanto é lado."

Em alguns minutos os paramédicos chegaram com a maça, esmagando vidro quebrado com os pés, batendo metal. Esperamos até que levassem o corpo para cima. Em seguida, examinei o local onde o cadáver estivera. Olhei para a boca negra do túnel que havia muito tempo fora cavado numa face da montanha instável demais para suportá-lo. Aproximei-me até a entrada. Uma parede o selava, um pouco adiante, e os tijolos caiados brilharam à luz da lanterna. Cravos enferrujados se projetavam dos dormentes podres cobertos de lama. Havia, por toda parte, garrafas e pneus velhos.

"Doutora, não tem nada aí dentro", Marino disse, logo atrás de mim. "Merda." Ele quase caiu. "Já olhamos tudo."

"Bem, obviamente ele não poderia escapar por aqui", falei, enquanto a luz focalizava pedras e plantas mortas. "E ninguém poderia se esconder aqui. As pessoas comuns nem conhecem este lugar, aliás."

"Vamos." A voz de Marino, gentil mas firme, reforçou o toque em meu braço.

"Este lugar não foi escolhido ao acaso. Muita gente nem sabe que existe." A luz iluminou o terreno mais um pouco. "Alguém sabia exatamente o que estava fazendo."

"Doutora", ele disse, enquanto a água caía. "Aqui não é seguro."

"Duvido que Danny conhecesse este lugar. Foi um crime premeditado, a sangue-frio." Minha voz ecoou nas paredes antigas, escuras.

Marino puxou meu braço, e eu não resisti. "Você já fez o que podia por aqui. Vamos embora."

A lama prendia minhas botas e cobria os coturnos pretos dele, enquanto seguíamos de volta o leito podre do trilho de trem, no meio da escuridão. Subimos pela encosta íngreme cheia de lixo, com cuidado para não pisar no sangue que saíra do corpo de Danny quando o jogaram lá de cima feito um saco de lixo. Boa parte das pistas haviam sido destruídas pela violenta ventania do helicóptero, e isso poderia fazer diferença um dia, se a defesa resolvesse que era importante. Desviei o rosto das câmeras e refletores. Marino e eu nos afastamos, sem falar mais nada.

"Quero ver meu carro", disse a ele, que atendia o chamado no rádio portátil.

"Cem", respondeu, segurando o rádio perto da boca.

"Pode falar, um-dezessete", o operador disse, a outra pessoa.

"Chequei o local, frente e fundos, capitão", disse alguém da unidade 117 a Marino. "Nenhum sinal do veículo descrito."

"Dez-quatro." Marino baixou o rádio, preocupado. "O Suburban de Lucy não está no necrotério. Não entendi", ele me disse. "Esta história não faz sentido."

Começamos a voltar para Libby Hill Park a pé, pois não ficava longe e nós queríamos conversar.

"Para mim, está parecendo que Danny pegou alguém no caminho", Marino disse, acendendo um cigarro.

"Dá a impressão de que tinha a ver com drogas."

"Ele não faria nada disso enquanto dirigia meu carro", falei, embora sabendo que soava ingênuo.

"Ele não pegaria ninguém."

Marino virou-se para mim.

"Espere aí", ele disse. "Isso, você não pode garantir."

"Nunca tive razões para suspeitar que fosse irresponsável, viciado em drogas ou qualquer outra coisa."

"Bem, parece que é óbvio. Ele levava uma vida dupla, como dizem."

"Não sei de nada a respeito." Aquela conversa já estava me cansando.

"Acho melhor descobrir, pois tem um bocado de sangue em você."

"Hoje em dia me preocupo com isso independentemente de quem seja a vítima."

"Bem, eu só estou dizendo que as pessoas podem nos desapontar", ele prosseguiu, conforme as luzes da cidade se espalhavam lá embaixo, à distância. "Muitas vezes, as pessoas que a gente conhece superficialmente são piores do que alguém que a gente nunca viu. Você confiou em Danny porque gostava dele e achava que era um rapaz competente. Mas fora dali ele podia ser qualquer coisa, e você não teria como saber."

Não respondi. Ele dizia a verdade.

"Ele é um rapaz bonitinho, boa pinta. De repente, põe as mãos num carrão desses. Talvez tenha resolvido dar uma voltinha, antes de entregar a máquina para o chefe. Ou, quem sabe, aproveitou para ir buscar droga."

Eu estava mais inclinada a achar que Danny havia sido vítima de um assalto, por causa do carro. Ressaltei que os assaltos a motoristas haviam aumentado, tanto no centro quanto naquela região.

"Pode ser", Marino disse quando avistamos meu carro. "Mas seu carro ainda está aqui. Por que o ladrão obrigou o motorista a andar pela rua, deu um tiro nele e depois largou o carro onde estava? Por que não o levou? Acho melhor pensar num crime relacionado a homossexualismo. Qual a sua opinião?"

Chegamos ao Mercedes. Os repórteres tiraram novas fotos e fizeram mais perguntas, como se aquele fosse o crime do século. Ignoramos a todos e abrimos a porta do passageiro para examinar o interior do meu S-320. Verifiquei os apoios para o braço, cinzeiros, painel e estofamento de couro. Não notei nada de anormal, nenhum sinal de luta. Contudo, o tapete do lado do passageiro estava sujo. Percebi um sinal leve, deixado por uma sola de sapato.

"O carro foi encontrado assim?", perguntei. "E quanto à porta? Estava aberta?"

"Abrimos a porta. Estava destravada", Marino explicou.

"Ninguém entrou no veículo?"

"Não."

"Isso não estava aí antes", falei, apontando para o tapete.

"O quê?", Marino perguntou.

"Vê aquela marca de sapato no tapete?", falei baixo, evitando que os repórteres me escutassem. "Não deveria haver ninguém no banco do passageiro. Nem quando o carro foi consertado em Virginia Beach, nem quando Danny o pegou."

"E quanto a Lucy?"

"Não. Ela não andou no carro, recentemente. Duvido que alguém tenha andado, desde a última lavagem."

"Não se preocupe, vamos recolher todos os indícios com o aspirador." Ele desviou os olhos e acrescentou, relutante: "Sabe que vamos ter de levar o carro para fazer a perícia, doutora".

"É compreensível", falei, começando a andar na direção da rua próxima ao túnel, onde havíamos estacionado.

"Fiquei pensando se Danny conhecia bem Richmond", Marino disse.

"Ele esteve em meu escritório", respondi, sentindo um peso no peito. "Na verdade, foi contratado aqui e passou uma semana conosco, fazendo o treinamento. Não me lembro do local onde ficou hospedado, mas creio que foi no Comfort Inn da Broad Street."

Caminhamos em silêncio por um momento; depois, eu disse: "Obviamente, ele conhecia a área próxima ao necrotério".

"Sei. E isso inclui este trecho, pois seu escritório fica a apenas quinze quadras."

Algo me ocorreu. "E se por acaso ele passou por aqui pensando em comprar alguma coisa para.comer, antes de pegar o ônibus para casa? E se ele estivesse fazendo algo bem comum?"

Nossos carros estavam perto de algumas viaturas e uma perua da polícia técnica. Os repórteres já haviam ido embora. Destravei a porta da perua e entrei. Marino ficou parado, com a mão no bolso e uma expressão desconfiada, pois me conhecia bem demais.

"Você não vai fazer a autópsia esta noite, vai?", ele disse.

"Não." Era desnecessário e eu não teria forças para tanto.

"E você não quer ir para casa, pelo que estou vendo."

"Preciso fazer uma coisa", falei. "E quanto mais demorar, mais difícil vai ser."

"Por onde pretende começar?", ele perguntou, pois sabia como era ver alguém com quem você trabalhava ser assassinado.

"Bem, conheço vários bares e restaurantes por aqui. Millie's, por exemplo."

"Negativo. Muito grã-fino. O mesmo vale para Patrick Henry's e a maior parte dos bares entre Slip e Shockoe Bottom. Lembre-se, Danny não tinha muito dinheiro, a não ser que conseguisse mais em lugares que a gente não conhece."

"Vamos supor que ele não tirava nada por fora", falei. "Vamos supor que ele queria algo bem nas proximidades de meu escritório. Por isso, foi seguindo pela Broad Street."

"Poe's não fica na Broad, mas é perto de Libby Hill Park. E, claro, tem o Hill Café", ele disse.

"Era o que eu ia dizer", concordei.

Quando entramos no Poe's, o gerente estava fechando a conta do último cliente daquela noite. Esperamos um pouco, pareceu muito tempo, só para descobrir que o movimento havia sido fraco e que ninguém parecido com Danny aparecera por lá. Voltamos a nossos carros e seguimos para leste pela Broad, até o Hill Café na 28"' Street. Meu coração disparou quando me dei conta de que o lugar ficava a uma quadra do ponto em que meu Mercedes fora encontrado.

Famoso pelos bloody-marys e pelo chili, o café ficava numa esquina. Havia muitos anos era freqüentado por policiais. Por isso, eu passara por ali várias vezes, em geral na companhia de Marino. Era um típico bar de bairro, e naquela hora as mesas ainda estavam cheias. A fumaça era visível no ar pesado, a televisão no máximo exibia clipes antigos de Howie Long na esfn. Daigo enxugava copos atrás do balcão quando viu Marino e abriu um sorriso amplo.

"Puxa, o que veio fazer aqui tão tarde?", ela disse, como se isso jamais houvesse acontecido antes. "Onde estava antes, quando o negócio estava pegando fogo?"

"Eu só queria saber", Marino disse, "como foi o movimento hoje no boteco que faz o melhor sanduíche de filé da cidade?", ele se aproximou, para que os outros não ouvissem o que tinha a dizer.

Daigo era negra e usava cabelo comprido. Olhava para mim como se já me conhecesse de algum outro lugar. "Veio gente de tudo quanto é lado, um pouco mais cedo", ela disse. "Pensei que você fosse aparecer também. Você e sua amiga vão beber alguma coisa, capitão?"

"Pode ser", ele disse. "Conhece a doutora, não é?"

Ela franziu a testa e um lampejo de reconhecimento passou por seus olhos. "Eu sabia que já tinha visto você antes. Com ele. Vocês dois já resolveram casar?", ela riu, como se aquela fosse a coisa mais engraçada que já havia dito na vida.

"Sabe, Daigo", Marino prosseguiu, "a gente precisava saber se um rapaz passou aqui hoje. Branco, magro, cabelo escuro comprido, muito bonito. Usava casaco de couro, calça jeans, suéter, tênis e uma joelheira vermelha chamativa. Cerca de vinte e cinco anos, pilotando um Mercedes-Benz preto, novo, com várias antenas."

Os olhos se estreitaram e o rosto ficou sério, enquanto Marino continuava a falar. O pano de prato permaneceu imóvel em sua mão. Suspeitei que a polícia já havia feito perguntas no passado, a respeito de outros assuntos desagradáveis. Por sua fisionomia concluí que desprezava tipos vadios e ruins, que arruinavam a vida de pessoas decentes impiedosamente.

"Sei exatamente de quem está falando", ela disse.

Suas palavras provocaram o efeito de um disparo de rifle. Ela capturou nossa total atenção, deixando os dois atônitos.

"Ele entrou aqui por volta das cinco horas, ainda era cedo", disse. "Bem, havia alguns fregueses tomando cerveja, como sempre. Mas quase ninguém para jantar, claro. Ele se sentou ali."

Ela apontou para uma mesa vazia sob uma trepadeira, no fundo do salão, onde havia um galo pintado na parede branca de tijolo. Olhei para a mesa na qual Danny comera pela última vez naquela cidade, por minha causa, e o vi com a força da imaginação. Vivo e solícito, com seu rosto bem desenhado e cabelo longo reluzente. Mas logo o vi ensangüentado na lama, num barranco cheio de lixo e lama. Meu peito doeu, e por um momento precisei desviar a vista. Precisava ocupar meus olhos com outra coisa.

Quando me recompus, voltei-me para Daigo e disse: "Ele trabalhava para mim no Departamento de Medicina Legal. Seu nome era Danny Webster".

Ela me olhou por muito tempo. Havia entendido tudo muito bem. "Sei", ela disse, em voz baixa. "Então, era ele. Oh, meu Jesus! Não dá para acreditar. Deu na televisão, as pessoas comentaram o caso a noite inteira, pois foi logo ali, nesta rua."

"Isso mesmo", falei.

Ela olhou para Marino, como se suplicasse. "Ele era apenas um rapaz. Veio aqui numa boa, sem criar caso com ninguém. Sentou ali, comeu um sanduíche e depois alguém o matou! Vou dizer uma coisa", ela começou a limpar o balcão, nervosamente, "tem muita maldade nesta droga de mundo. Maldade demais. Estou cansada disso, entende? As pessoas matam como se isso não fosse nada."

Vários fregueses escutaram nossa conversa, mas continuaram a comer sem olhar para nós ou dar palpite. Marino estava de farda. Era o mandachuva, e deixava isso bem claro. As pessoas preferiam cuidar de suas próprias vidas a se meter com ele. Esperamos até que Daigo terminasse de verbalizar sua revolta e fomos todos para uma mesa discreta, no canto do salão. Ela chamou uma garçonete para vir nos atender.

"O que vai querer, meu bem?", Daigo perguntou para mim.

Eu achava que nunca mais seria capaz de comer algo novamente. Pedi apenas um chá de ervas, mas ela não quis nem saber.

"Acho melhor trazer para a doutora uma porção do pudim de pão com molho Jack Daniels. Não se preocupe, o uísque foi fervido e o álcool evaporou", ela disse, bancando a médica. "E uma xícara de café forte, não é, capitão?" Ela olhou para Marino. "E o de sempre, certo, querido? Ahã", disse, antes que ele pudesse responder. "Traga um sanduíche de filé malpassado com cebola e bastante batata frita. E ele gosta completo, ketchup, mostarda e maionese. Sem sobremesa. Queremos que continue vivo."

"Importa-se?", Marino disse, puxando um cigarro, como se nesse dia precisasse de mais alguma coisa capaz de matá-lo.

Daigo acendeu um cigarro, também, e nos contou tudo que se lembrava, o que não era pouco. O Hill Café era o tipo de lugar onde as pessoas reparavam em estranhos. Danny ficou menos de uma hora. Entrou sozinho, e pelo jeito não havia marcado encontro com ninguém. Parecia preocupado com a hora, pois consultava o relógio repetidamente. Pedira um sanduíche com fritas e uma Pepsi. A última refeição de Danny Webster custara cinco dólares e vinte e sete centavos. A garçonete se chamava Cissy, e ganhou um dólar de gorjeta.

"E você não viu ninguém suspeito rondando o pedaço? Hoje, a qualquer hora?", Marino perguntou.

Daigo balançou a cabeça. "Não, senhor. Mas isso não quer dizer que não havia algum filho da puta de tocaia em algum lugar na rua. Eles vivem circulando por aí. A gente não precisa ir muito longe para encontrar um. Mas, se havia alguém, eu não vi. E ninguém reclamou de ter encontrado algum pilantra aí fora, hoje."

"Bem, precisamos checar com os fregueses", Marino disse. "O maior número possível. Talvez alguém tenha visto um carro passar, na hora em que Danny saiu."

"Temos os recibos dos cartões." Ela passava a mão no cabelo, que estava todo eriçado. "A maioria das pessoas que esteve aqui a gente mais ou menos conhece."

Já estávamos de saída quando me lembrei de perguntar mais uma coisa. "Daigo", falei, "ele pediu alguma coisa para viagem?"

Ela me olhou perplexa e levantou-se da mesa. "Deixa eu ver."

Marino apagou outro cigarro. Seu rosto estava vermelho.

"Está tudo bem?", perguntei.

Ele enxugou o rosto com um guardanapo. "Faz um calor dos infernos aqui."

"Ele levou a batata frita", Daigo anunciou ao voltar. "Cissy disse que ele comeu o sanduíche e a salada, mas levou a maior parte da batata embrulhada. Quando passou pelo caixa, comprou um chiclete."

"De que tipo?", perguntei.

"Ela tem quase certeza de que foi Dentyne."

Quando saímos Marino desabotoou o colarinho da camisa branca da farda e arrancou a gravata. "Minha nossa, às vezes eu me arrependo de ter saído do esquadrão A", ele disse, pois quando comandava a equipe de investigadores andava à paisana. "Dane-se se alguém estiver olhando", resmungou. "Estou morrendo."

"Diga se está falando sério, por favor."

"Calma. Ainda não estou pronto para o seu bisturi. Como demais, só isso."

"Não tenha dúvida", falei. "E fuma demais, também. É isso que prepara as pessoas para a droga do meu bisturi. Mas nem pense em morrer. Não agüento mais tanta morte."

Chegamos aonde estava a perua. Marino me encarava, procurando algo que eu talvez não quisesse que ele visse. "Tudo bem com você?"

"O que acha? Danny trabalhava para mim." Minha mão tremia, impedindo que eu encontrasse a chave. "Ele parecia ser um rapaz decente e dedicado. Sempre tentando fazer tudo direito. Dirigiu meu carro de Virginia Beach até aqui porque eu pedi. Agora, falta um pedaço da cabeça dele. Como acha que estou me sentindo?"

"Parece que você se considera culpada pelo que aconteceu."

"E acho que sou culpada, mesmo."

Ficamos parados no escuro, olhando um para o outro.

"Não é, de jeito nenhum", ele disse. "É culpa do filho da mãe que puxou o gatilho. Você não teve absolutamente nada a ver com isso. Mas se eu estivesse no seu lugar sentiria a mesma coisa."

"Minha nossa", falei, subitamente.

"O que foi?", ele se assustou, olhando em volta como se eu tivesse visto alguma coisa.

"O saco de batata. O que aconteceu com ele? Não estava dentro do meu carro. Não havia nada lã, pelo que sei. Nem mesmo a embalagem do chiclete", falei.

"Merda, você tem razão. E não vi nada na rua, no local em que o Mercedes estava estacionado. E não havia nada junto ao corpo, ou perto dele."

Só restava um lugar onde ninguém havia procurado, bem ali onde estávamos, na rua, perto do restaurante. Marino e eu acendemos as lanternas e iniciamos a busca. Percorremos aquele trecho da Broad Street olhando tudo. Mas foi na 28"', perto da guia, que encontramos um saco branco pequeno. Um cachorro começou a latir, num quintal. A localização do saco sugeria que Danny havia estacionado meu carro o mais perto possível do café, numa área onde os prédios e árvores faziam muita sombra na rua e as luzes eram escassas.

"Tem lápis ou canetas na bolsa?" Marino agachou-se ao lado do que suspeitava ser o resto do jantar de Danny.

Encontrei uma caneta e um pente de cabo longo, que dei a ele. Usando esses instrumentos simples, ele abriu o saco sem tocá-lo, para examinar o conteúdo. Dentro havia batatas fritas frias embrulhadas e uma embalagem de chiclete Dentyne. A visão era assustadora e contava uma história terrível. Danny fora abordado ao sair do café, no caminho até o carro. Alguém deve ter surgido das sombras e apontado uma arma para Danny enquanto ele destrancava a porta. Não sabíamos, mas era provável que tivesse sido obrigado a dirigir o carro até a outra rua, antes de o forçarem a caminhar até o barranco do matagal, onde o mataram.

"Esse maldito cachorro bem que podia calar a boca", Marino disse, levantando-se. "Não saia daqui. Eu já volto."

Ele atravessou a rua, foi até seu carro e abriu o porta-malas. Voltou carregando o saco de papel pardo que a polícia usa para guardar provas. Eu o mantive aberto enquanto ele lidava com o pente e a caneta para colocar lá dentro os restos do jantar de Danny.

"Eu deveria levar isso para a sala das provas, mas eles odeiam comida lá. Além disso, não temos geladeira." O papel estalou quando ele fechou a aba, lacrando a prova.

Nossos pés provocavam ruídos ásperos na calçada, enquanto caminhávamos.

"Puxa, aqui está fazendo mais frio do que em qualquer geladeira", ele disse. "Se conseguirmos alguma digital, provavelmente será dele. Mas precisamos mandar isso para o laboratório, de qualquer jeito."

Ele guardou o saco no porta-malas, onde pusera provas tantas vezes. A relutância de Marino em relação às regras do departamento ia muito além da farda.

Olhei em volta, para a rua escura cheia de automóveis. "O que quer que tenha ocorrido, começou aqui", falei.

Marino olhou em volta, silencioso. Depois, perguntou: "Acha que foi por causa do Mercedes? Acha que foi o motivo?".

"Não sei", falei.

"Bem, pode ter sido um assalto. O carro o fez parecer rico, mesmo não sendo."

A culpa tomou conta de mim novamente.

"Contudo, ainda penso que ele deve ter encontrado algum conhecido."

"Talvez seja mais fácil se descobrirmos que ele agia erradamente", falei. "Seria mais fácil para todos nós, pois poderíamos culpá-lo por ter sido morto."

Marino ficou algum tempo em silêncio, depois olhou para mim. "Vá para casa, durma um pouco. Quer que eu a siga?"

"Obrigada, não é preciso. Estou bem."

Mas eu não estava, claro. O caminho era mais longo e escuro do que eu me lembrava. Eu me sentia desajeitada em tudo que tentava fazer. Até mesmo abrir a janela e pegar o dinheiro foi difícil, no pedágio. Aí errei o local de depositar a ficha e quando alguém atrás de mim buzinou, dei um pulo. Estava tão abalada que não conseguia pensar em nada capaz de me acalmar, nem mesmo um uísque. Cheguei ao meu bairro à uma da manhã. O guarda que abriu o portão para mim estava sério. Creio que tinha visto o jornal, sabia quem eu era e onde estivera. Quando estacionei em casa, assustei-me por ver o Suburban de Lucy parado na porta.

Ela estava acordada e parecia bem, deitada no sofá da sala de visitas. Acendera a lareira e pusera um cobertor nas pernas. Robin Williams fazia palhaçadas na tela da tevê.

"O que houve?" Sentei-me na poltrona mais próxima. "Como o carro chegou aqui?"

De óculos, ela lia um manual publicado pelo fbi. "O pessoal da portaria do seu departamento ligou", ela disse. "O sujeito que estava dirigindo meu carro chegou no necrotério, no centro, disseram. Mas o seu assistente não apareceu. Como é mesmo o nome dele? Danny? Aí o cara que trouxe meu carro ligou para cá e eu mandei que viesse trazer o carro. Eu o encontrei no portão de entrada."

"Mas, o que aconteceu?", perguntei novamente. "Nem mesmo sei o nome dessa pessoa. Supostamente, Danny o conhecia bem. Danny estava dirigindo o meu carro. Eles deviam deixar os dois veículos no estacionamento do meu escritório." Parei, e fiquei olhando para ela. "Lucy, você tem alguma idéia do que está acontecendo? Sabe por que estou chegando tão tarde em casa?"

Ela pegou o controle remoto e desligou a televisão. "Só sei que você foi chamada para atender um caso. Foi o que me disse, antes de sair."

Então, eu lhe contei tudo. Disse quem era Danny e que ele havia morrido. Expliquei todos os detalhes referentes ao caso e ao meu carro.

"Lucy, você tem alguma idéia de quem é a pessoa que veio entregar seu carro?", falei.

"Sei lá." Ela estava sentada. "Um tal de Rick, com jeito de hispânico. Usava brinco, cabelo curto e tinha uns vinte e dois ou vinte e três anos. Era muito educado, um cara legal."

"Onde está ele agora?", perguntei. "Você não pegou o carro, e pronto."

"Claro que não. Eu o levei até a rodoviária. George me ensinou o caminho."

"George?"

"O guarda que estava de serviço. No portão. Creio que foi por volta das nove."

"E Rick voltou para Norfolk."

"Não sei o que ele fez", ela disse. "Ele me falou, no caminho, que tinha certeza de que Danny ia aparecer logo. Provavelmente, não tem idéia do que houve."

"Meu Deus. Vamos esperar que não, a menos que tenha ouvido a notícia no rádio. Vamos torcer para que não tenha estado lá", falei.

Pensar que Lucy andara de carro com um desconhecido me encheu de terror, e me veio à mente a cabeça de Danny. Senti os ossos esmagados sob meus dedos escorregadios por causa de seu sangue.

"Rick é considerado suspeito?", ela estava surpresa.

"No momento, tão suspeito quanto qualquer outra pessoa."

Peguei o telefone do bar. Marino acabara de entrar em casa e antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, foi anunciando: "Encontramos o cartucho".

"Ótimo", falei, aliviada. "Onde?"

"Se olharmos para o túnel, da rua, o local fica a cerca de três metros à direita da trilha onde encontramos sangue. Estava no meio das moitas."

"Um ejetor à direita", falei.

"Tudo indica que sim. A não ser que Danny e o assassino estivessem descendo o morro de costas. E o filho da mãe não estava para brincadeiras. Usava uma quarenta e cinco. A munição é Winchester."

"Precaução", falei.

"Exatamente. Alguém queria ter certeza absoluta de que ele estava morto."

"Marino", falei, "Lucy encontrou o amigo de Danny esta noite."

"Você se refere ao cara que dirigia o carro dela?"

"Sim", confirmei, explicando o que eu sabia.

"Acho que esta história está começando a fazer sentido", ele disse. "Os dois se separaram na estrada, mas na cabeça de Danny isso não fazia diferença, pois dera ao colega as indicações de como chegar e o número do telefone."

"Será que alguém poderia descobrir quem é o tal de Rick, antes que ele desapareça? Interceptá-lo quando descer do ônibus, por exemplo?", perguntei.

"Vou ligar para a polícia de Norfolk. Preciso mesmo fazer isso, pois alguém tem de dar um pulo na casa de Danny e notificar a família antes que ouçam a notícia no rádio ou na televisão."

"A família dele mora em Chesapeake", contei-lhe, dando a má notícia, e sabendo que teria de falar com os parentes, também.

"Merda", Marino disse.

"Não fale a respeito disso com o detetive Roche. Não quero que ele chegue perto da família de Danny."

"Não se preocupe. Acho melhor você tentar localizar o doutor Mant."

Tentei o número do apartamento da mãe dele em Londres, mas ninguém atendeu. Deixei um recado, dizendo que era urgente. Precisava fazer muitas ligações, mas estava esgotada. Sentei-me ao lado de Lucy, no sofá.

"E você, como vai?", perguntei.

"Bem, dei uma olhada no catecismo. Mas ainda não estou disposta a ser crismada."

"Espero que um dia esteja."

"Estou com dor de cabeça. Não quer passar de jeito nenhum."

"Você mereceu."

"Tem toda a razão." Ela esfregou as têmporas.

"Por que você precisa fazer essas coisas, depois de tudo que já passou?" Não pude evitar a questão.

"Não sei direito o porquê. Talvez tenha a ver com a obrigação de manter tudo sob controle, sempre. Acontece a mesma coisa com muitos agentes. Corremos e pulamos e fazemos tudo direitinho. Na sexta-feira à noite, descarregamos um pouco da pressão."

"Bem, pelo menos desta vez você estava num lugar seguro."

"Você nunca se descontrola?" Ela me encarou. "Pelo menos, eu nunca vi."

"Nunca permiti que você visse", falei. "Você já vê descontrole demais na sua mãe. Precisava de alguém com quem se sentisse segura."

"Você não respondeu minha pergunta", ela insistiu, olhando fixo para mim.

"Qual? Se eu já me embriaguei?"

Ela fez que sim.

"Não é uma coisa para a gente se orgulhar. Vou para a cama." Levantei-me.

"Mais de uma vez?" Sua voz me acompanhou, quando me retirei.

Parei na porta e olhei para ela. "Lucy, durante minha longa e dura vida, não há muita coisa que eu não tenha feito. E jamais a julguei pelo que fez. Só me preocupo quando acho que seu comportamento a expõe a riscos desnecessários." Usei eufemismos, como sempre.

"Está preocupada comigo agora?"

Sorri de leve. "Vou me preocupar com você pelo resto da vida."

Fui para meu quarto e fechei a porta. Deixei a Browning ao lado da cama e tomei um Benadryl, porque sem isso não conseguiria dormir as poucas horas que restavam da noite. Quando acordei, ao amanhecer, estava sentada na cama, com a luz acesa e a última edição do Journal of the American Bar Association ainda no colo. Levantei-me e fui até o corredor. Surpresa, vi a porta do quarto de Lucy aberta e a cama desarrumada. Ela não estava na sala de visitas. Corri para a sala de jantar, na parte da frente da casa. Olhei pela janela, para o terreno vazio, com o passeio de tijolos e a grama congelados. Obviamente, o Suburban já havia ido embora fazia algum tempo.

"Lucy", murmurei, como se ela pudesse me ouvir, "puxa vida, Lucy. Que droga!"

 

Cheguei dez minutos atrasada para a reunião da equipe, o que não era normal. No entanto, não ouvi comentários. Ninguém parecia se importar. O assassinato de Danny Webster pairava na atmosfera pesada, como se fosse chover tragédia em cima de todos nós, de repente. Meus colegas moviam-se lentamente, apalermados. Não conseguiam raciocinar direito. Depois de tantos anos, Rose me trouxera café com leite esquecendo-se de que eu só o.tomava preto.

A sala de reuniões, que havia sido lustrada recentemente, parecia aconchegante com o tapete azul-escuro, a mesa comprida nova e os lambris de madeira escura. Mas os modelos anatômicos sobre as mesas e o esqueleto humano protegido por uma mortalha plástica não nos deixavam esquecer as duras realidades ali discutidas. Claro, não havia janelas, e as obras de arte resumiam-se aos retratos dos antigos chefes, homens sisudos que nos encaravam das paredes.

Sentados a meu lado, naquela manhã, estavam meus dois assistentes principais e o chefe do setor de toxicologia da Divisão de Ciência Forense do andar de cima. Fielding, à minha esquerda, comia iogurte natural com uma colher plástica. A seu lado estava o segundo assistente e a nova estagiária.

"Sei que já ouviram as terríveis notícias a respeito de Danny Webster", abri a reunião em tom sombrio, sentada à cabeceira da mesa, como de costume. "Nem preciso dizer que é impossível descrever como uma morte sem sentido como esta afeta cada um de nós."

"Doutora Scarpetta", disse o segundo assistente, "alguma novidade?"

"No momento, o que sabemos é o seguinte", falei, repetindo tudo o que sabia. "Na cena do crime, ontem à noite, verifiquei que ele tinha pelo menos um ferimento de tiro na parte de trás da cabeça", concluí.

"E quanto a cápsulas deflagradas?", Fielding perguntou.

"A polícia encontrou um cartucho, perto da rua."

"Então ele levou o tiro em Sugar Bottom, e não no carro."

"Pelo que sabemos, o tiro contra ele não foi disparado dentro do carro, ou próximo a ele."

"Dentro do carro de quem?", perguntou a estagiária, que freqüentara a faculdade de medicina já adulta e levava tudo muito a sério.

"Dentro do meu carro. O Mercedes."

A estagiária ficou muito confusa, até que expliquei novamente a situação. Em seguida, ela fez um comentário saliente: "Alguma possibilidade de que a senhora fosse o alvo?".

"Meu Deus." Fielding deixou de lado o iogurte, irritado. "Você não devia nem dizer uma coisa dessas."

"A realidade nem sempre é agradável", disse a estagiária, que era tão inteligente quanto tediosa. "Estou apenas sugerindo que o carro da doutora Scarpetta estava parado perto de um restaurante ao qual ela havia ido várias vezes. Talvez alguém a esperasse, e tenha se assustado. Talvez alguém a estivesse seguindo e não soubesse que não era ela dentro do carro, uma vez que já estava escuro quando Dan-ny chegou aqui."

"Vamos passar para os outros casos desta manhã", falei, tomando um gole do café que Rose servira, adoçado com sacarina e cheio de imitação de creme de leite.

Fielding pegou a lista de chamados e repassou os nomes com seu sotaque nortista impaciente. Além de Danny havia três autópsias a fazer. Uma vítima de incêndio, um presidiário com histórico de doença coronária e uma senhora de setenta anos com defibrilador e marca-passo.

"Ela tem histórico de depressão, em parte por causa dos problemas no coração", Fielding explicou. "Por volta das três da madrugada de hoje o marido a ouviu levantar-se. Pelo que sabemos, ela foi até o escritório e deu um tiro no peito."

Os casos seguintes diziam respeito a pessoas mortas por infarto do miocãrdio e acidentes automobilísticos. Eliminei uma senhora idosa que morrera em conseqüência de um câncer e um indigente vítima de ataque cardíaco. Finalmente, empurramos as cadeiras para trás e descemos. Minha equipe respeitava meus sentimentos, e não me bombardeou com perguntas. Ninguém falou no elevador. Eu fiquei olhando fixo para a porta fechada. No vestiário, enquanto colocávamos os trajes cirúrgicos e luvas, Fielding se aproximou e falou, perto do meu ouvido:

"Por que não me deixa cuidar dele?" Seus olhos solidários se fixaram em mim.

"Pode deixar por minha conta", falei. "De todo modo, muito obrigada."

"Doutora Scarpetta, não se obrigue a fazer isso. Eu nem estava aqui quando ele fez o treinamento. Não cheguei a conhecê-lo."

"Tudo bem, Jack", falei, e me afastei.

Não era a primeira vez que eu realizava uma autópsia num conhecido. A maioria dos policiais, e muitos médicos, não entendiam. Eles argumentavam que as conclusões seriam mais objetivas se outra pessoa cuidasse do exame, mas isso não era verdade, desde que houvesse testemunhas. Eu não conhecia Danny intimamente, nem havia muito tempo. Mas ele trabalhava para mim, e de certa forma morrera por mim. Faria por ele o máximo possível.

Ele estava numa maça parada ao lado da mesa um, na qual eu normalmente trabalhava. Vê-lo ali, naquela manhã, foi pior ainda e me atingiu com uma violência perturbadora. Frio, em pleno rigor mortis, dava a impressão de que tudo de humano nele se fora durante a noite, depois que eu o deixei. Sangue seco no rosto, lábios partidos como se tivesse tentado falar quando a vida o abandonou. Seus olhos fixos de morto fitavam o vazio. Vi a joelheira vermelha e me lembrei dele lavando o chão. Lembrei-me de seu entusiasmo, do olhar tristonho quando falava de Ted Eddings e de outros jovens que partiram subitamente.

"Jack." Fiz um gesto, chamando Fielding.

Ele praticamente pulou para o meu lado. "Sim, doutora", disse.

"Acho que vou aceitar sua oferta." Comecei a rotular os tubos de ensaio no carrinho cirúrgico. "Sua ajuda será preciosa, se puder colaborar."

"O que deseja que eu faça?"

"Vamos realizar a autópsia juntos."

"Sem problemas. Quer que eu me encarregue das anotações?"

"Vamos fotografá-lo como ele está. Antes, porém, cubra a mesa com um lençol."

O número do caso de Danny era me-3096. Significava que era o trigésimo caso no distrito central da Virgínia no ano novo. Após várias horas de geladeira ele estava rígido e quando o pusemos na mesa braços e pernas bateram ruidosamente no aço inoxidável, como se protestassem contra o que estávamos a ponto de fazer. Removemos a terra e as roupas sujas de sangue. Os braços não queriam passar pelas mangas da camisa, a calça jeans justa era teimosa. Enfiei as mãos nos bolsos, tirando vinte e sete centavos em moedas, um Chap Stick e um chaveiro.

"Isso é muito estranho", falei, dobrando as roupas para colocá-las em cima do carrinho coberto com uma toalha descartável. "O que aconteceu com a chave do meu carro?"

"Seria do tipo com controle remoto?"

"Isso mesmo." O velcro estalou quando removi a joelheira.

"Obviamente, não estava no local em que o corpo foi encontrado."

"Não achamos nada. Como não estava na ignição, presumi que estaria com Danny." Tirei a meia esportiva grossa.

"Bem, se o assassino não a pegou, ela se perdeu."

Pensei na confusão provocada pelo helicóptero. Marino havia aparecido no noticiário, erguendo um punho ameaçador e gritando palavrões que o mundo inteiro escutou. Eu estava a seu lado.

"Ele tem tatuagens." Fielding pegou a prancheta.

Danny tinha um par de dados tatuados no peito do pé.

"Um e um, olhos de cobra", Fielding disse. "Aii, deve ter doído."

Identifiquei uma cicatriz antiga de apendicectomia e outra no joelho esquerdo de Danny, provavelmente de um acidente na infância. No joelho direito, as cicatrizes da recente cirurgia artroscópica estavam arroxeadas. Os músculos daquela perna mostravam um mínimo de atrofia. Recolhi amostras dos cabelos e das unhas, mas não pude notar sinais visíveis de luta. Nada conduzia à conclusão de que ele resistira a quem o abordara na saída do Hill Café, quando perdera o saco de batata frita.

"Vamos virá-lo", falei.

Fielding segurou as pernas enquanto eu segurava o corpo com as mãos, pelas axilas. Nós o pusemos de barriga para baixo e usamos uma lupa e uma luz forte para examinar a parte posterior da cabeça. O cabelo preto comprido se misturava ao sangue seco e à sujeira. Apalpei o crânio um pouco mais.

"Preciso cortar o cabelo aqui, para ter certeza. Mas tenho a impressão de que há um ferimento de arma de fogo, provocado por tiro à queima-roupa, atrás da orelha direita. Onde estão as radiografias?"

"Devem estar prontas." Fielding olhou em torno.

"Precisamos reconstruir isso "Merda." Ele me ajudou a manter unidas as partes de um ferimento em forma de estrela, profundo, que mais parecia de saída de bala, de tão imenso.

"Definitivamente, trata-se de um ferimento de entrada", disse, usando a lâmina do bisturi para remover os cabelos daquela área da cabeça. "Veja, temos uma leve marca do cano aqui. Muito fraca. Veja, bem aqui." Mostrei-a com o dedo enluvado cheio de sangue. "Muito destrutivo. Parece estrago de rifle."

"Quarenta e cinco?"

"Buraco de um centímetro e meio", disse, quase para mim mesma, depois de medi-lo com a régua. "Sim, sem dúvida combina com um disparo de quarenta e cinco."

Removi o crânio em partes, para examinar o cérebro. Um técnico em autópsia apareceu e instalou as chapas na caixa de luz mais próxima. A silhueta branca brilhante da bala era visível, alojada no seio perinasal, a oito centímetros do alto da cabeça.

"Meu Deus", falei, olhando para a radiografia.

"Afinal, o que é isso?", Fielding perguntou, e nós dois nos afastamos da mesa para examinar a radiografia de perto.

A bala deformada era enorme, com pétalas afiadas retorcidas como garras.

"Hydra-Shok não faz isso", meu assistente falou.

"Não, de jeito nenhum. Trata-se de um tipo especial de munição de alta performance."

"Como Starfire ou Golden Sabre?"

"Algo do gênero, sim", respondi. Eu nunca tinha visto aquele tipo de munição no necrotério. "Estou pensando em Black Talon, pois o cartucho recuperado não é pmc nem Remington. É Winchester. E a Winchester produziu a Black Talon, até que foi tirada do mercado."

"A Winchester faz Silver Tip."

"Não se trata de Silver Tip, definitivamente", retruquei. "Você já viu uma Black Talon?"

"Só em revistas."

"Recebe um banho de tinta preta, tem cápsula de latão e uma ponta oca que se abre como uma flor. Veja os pontos." Mostrei-os na chapa. "Inacreditavelmente destrutiva. Segue por dentro da pessoa como se fosse uma furadeira. Ótima para as forças de segurança, um pesadelo em mãos erradas."

"Meu Deus", disse Fielding, boquiaberto. "Parece um polvo."

Tirei a luva de látex e calcei outro par, de tecido especial grosso, pois munição como Black Talon era perigosa também no necrotério. Uma ameaça mais temida que uma agulha. Eu não sabia se Danny tinha hepatite ou aids. Não queria me cortar nas farpas metálicas que o mataram, pois o atacante poderia acabar com dois coelhos num golpe só.

Fielding calçou um par de luvas Nitrile, mais resistentes que as de látex, embora não o suficiente.

"Você pode usá-las enquanto estiver anotando", falei. "E mais nada."

"Acha que é assim tão perigoso?"

"Sim", disse, apanhando a serra de autópsia. "Se você mexer nisso com essa luva, vai acabar se cortando."

"Isso não está parecendo um assalto qualquer. Pelo jeito, alguém queria pegá-lo de jeito."

"Vá por mim", falei, levantando a voz acima do ruído da serra, "não daria para pegá-lo mais de jeito do que isso."

A história contada pelo que havia sob o couro cabeludo só piorava tudo. O projétil atingira vários ossos do crânio: o temporal, o occipital, o parietal e o frontal. Na verdade, se não tivesse perdido a força na região cartilaginosa, a garra retorcida teria saído, e nós teríamos perdido uma prova material da maior importância. O estrago feito por Black Talon no cérebro era terrível. A explosão de gás e estilhaços de cobre e chumbo abria uma trilha medonha na miraculosa substância que fizera de Danny o que ele era. Lavei o projétil e o limpei com uma solução fraca de Clorox, pois os fluidos corporais podem ser infecciosos e costumam oxidar provas metálicas.

Perto do meio-dia guardei a bala em um envelope plástico duplo e a levei para o laboratório de balística, no andar de cima, no qual armas de todos os tipos eram etiquetadas e guardadas em armários ou embrulhadas em sacos pardos. Havia facas aguardando exame de vestígios de sangue, sub-metralhadoras e até uma espada. Henry Frost, novo em Richmond mas famoso em sua especialidade, mantinha os olhos fixos numa tela de computador.

"Marino passou por aqui?", perguntei a ele, ao entrar.

Frost ergueu a vista, forçando os olhos cor de avelã, como se tivesse acabado de chegar de um lugar distante que eu desconhecia. "Faz umas duas horas", disse, sem parar de teclar.

"Então ele lhe entregou um cartucho vazio", falei, aproximando-me de sua cadeira.

"Estou trabalhando nisso agora", ele disse. "Recebi instruções para dar prioridade absoluta a este caso."

Frost, calculei, teria a minha idade. Já passara por dois divórcios, pelo menos. Era atraente e atlético, com feições bem proporcionadas e cabelo preto curto. De acordo com as lendas que sempre correm entre colegas, ele competia em maratonas, era craque em descer corredeiras de bote, conseguia acertar uma mosca no dorso de um elefante a cem passos. O que eu sabia, por observação pessoal, era que ele gostava do que fazia, mais do que de qualquer mulher, e não havia nada melhor no mundo, para ele, do que falar a respeito de armamentos.

"Você já começou o estudo da cápsula de quarenta e cinco?", perguntei.

"Não foi comprovado que o cartucho está ligado ao crime, certo?", ele me olhou de lado.

"Não", falei. "Isso ainda não foi confirmado." Vi uma poltrona com rodinhas ali perto, e a puxei. "A cápsula deflagrada foi encontrada a cerca de três metros do local onde acreditamos que levou o tiro. No mato. Está limpa. Parece nova. E temos agora isto aqui." Enfiei a mão no bolso do jaleco e tirei o envelope contendo a bala Black Talon. "Uau!", ele disse.

"Pode ser de uma Winchester quarenta e cinco?" "Quem diria. Sempre há uma primeira vez." Ele abriu o envelope, subitamente excitado. "Vou medir sulcos e saliências. Direi num minuto se é de uma quarenta e cinco."

Ele passou para o microscópio de comparação e usou o método Air Gap para prender a bala na lâmina com cera, para não deixar nenhuma marca adicional no metal.

"Muito bem", ele disse, sem olhar para cima. "O desvio é para a esquerda. E temos seis saliências e sulcos." Ele começou a medir partes com o micrômetro. "Marcas de saliência têm ponto zero-sete-quatro. Sulcos, ponto um-cinco-três. Vou dar entrada nos dados no grc", ele disse, referindo-se ao sistema computadorizado do fbi para identificação de armas. "Vamos determinar o calibre,, agora", disse distraidamente, sem parar de teclar.

Enquanto o computador vasculhava os bancos de dados, Frost mediu a bala com um nônio. Como era de se esperar, ele confirmou que o calibre da Black Talon era .45, e logo em seguida o grc forneceu uma lista de doze modelos de armas que poderiam ter disparado aquele projétil. Todos, exceto Sig Sauer e alguns Colts, eram pistolas das Forças Armadas.

"E quanto ao cartucho?", falei. "Sabemos algo a respeito?" "Tenho tudo em vídeo, mas ainda não chequei." Ele voltou à cadeira que ocupava quando cheguei ao laboratório e começou a digitar numa estação de trabalho conectada por modem ao sistema de visualização de armas de fogo ligadas a crimes, conhecido como drugfire. O aplicativo fazia parte de uma imensa rede de informação para análise de delitos conhecida como cain, desenvolvida por Lucy para relacionar crimes cometidos com armas de fogo. Em resumo, eu queria saber se a arma usada para matar Danny já havia matado ou ferido alguém antes, principalmente porque o tipo de munição sugeria que o assassino não era nenhum novato.

A estação de trabalho era simples, um pc 486 turbo ligado a uma câmera de vídeo e um microscópio para comparação que permitia capturar imagens coloridas em tempo real, numa tela de vinte polegadas. Frost passou a outro menu, e a tela de repente se encheu de discos prateados enfileirados, representando outros cartuchos de .45, cada um deles com sua impressão inimitável. O fundo do cartucho Winchester .45 referente ao meu caso estava no alto, lado esquerdo, e eu podia ver cada marca feita pelo bloco da culatra, percussor, ejetor e outras partes metálicas da arma que disparara o tiro na cabeça de Danny. .

"A sua amostra tem um desvio grande para a esquerda", Frost mostrou, apontando para uma marca parecida com um rabo, que saía da marca circular deixada pelo cão. "E temos outra marca aqui, também para a esquerda." Ele tocou a tela com o dedo.

"Ejetor?", perguntei.

"Não. Diria que é da rebatida do percussor."

"Anormal?"

"Diria que é exclusiva desta arma específica", ele retrucou, de olhos fixos na imagem. "Podemos verificar isso, se desejar."

"Vamos lá."

Ele chamou outra tela e forneceu as informações disponíveis, como a marca hemisférica que o cão deixara no metal mole da espoleta, e a direção do desvio e as estrias paralelas das características microscópicas do bloco da culatra. Não incluímos nenhum dado a respeito do projétil retirado do cérebro de Danny, pois não podíamos provar que a Black Talon e o cartucho vazio estavam relacionados, por mais que suspeitássemos disso. O exame dos dois itens seria desvinculado, pois saliências e sulcos diferem tanto das marcas do percussor quanto impressões digitais de pegadas. Só se pode esperar que as histórias contadas pelas testemunhas sejam as mesmas.

Surpreendentemente, neste caso eram as mesmas. Quando Frost realizou a busca, precisamos esperar apenas alguns minutos para obter de drugfire a lista de candidatos que poderiam combinar com o cilindro vazio revestido de níquel encontrado a três metros do sangue de Danny.

"Vamos ver o que temos aqui", Frost falou para si, posicionando o topo da lista na tela. "Este é o nosso premiado." Ele tocou o monitor com o dedo. "Sem dúvida. Este está muito na frente do resto."

"Uma Sig quarenta e cinco P220", falei, olhando para ele, atônita. "A cápsula deflagrada combina com uma arma, e não com outro cartucho?"

"Isso mesmo. Claro que sim. Minha nossa."

"Deixe-me ver se entendi direito." Eu mal podia crer no que via. "Você não teria as características de uma arma listadas no drugfire se ela não tivesse sido analisada por algum laboratório de balística. Ou seja, pela polícia, e por alguma razão."

"É assim que o sistema funciona", Frost concordou, iniciando a impressão. "A Sig quarenta e cinco que está no computador deve ser a mesma arma que detonou o cartucho encontrado perto do corpo de Danny. É o que sabemos, neste momento. Agora precisamos examinar o cartucho usado no teste de disparo feito quando analisamos a arma em questão." Ele levantou.

Não me mexi, não tirei os olhos da listagem de drugfire, com seus símbolos e abreviaturas que nos contavam a história da pistola. Ela deixava marcas do cão e da ejeção em todos os cartuchos que disparava. Pensei no corpo duro de Ted Eddings nas águas geladas do rio Elizabeth. Pensei em Danny, morto perto de um túnel que não conduzia a lugar algum.

"Então esta arma voltou às ruas, de algum modo", falei.

Frost mordiscava os lábios enquanto abria as gavetas do arquivo. "Parece que sim. Mas o que ainda não sei em detalhes é por que ela foi incluída no sistema." Enquanto procurava, ele disse: "Creio que o departamento de polícia que entregou a arma para análise, originalmente, foi o de Henrico County. Vamos ver, onde está cva5471? Não temos espaço para mais nada, aqui dentro".

"Foi submetida a exame no outono passado", notei a data na tela do computador. "Vinte e nove de setembro."

"Certo. Esta é a data em que o formulário foi preenchido."

"Sabe por que a polícia mandou esta arma para a perícia?"

"Você vai precisar ligar para eles para descobrir", Frost disse.

"Vamos chamar Marino."

"Boa idéia."

Liguei para o pager de Marino, enquanto Frost pegava uma pasta. Dentro dela havia o conhecido envelope plástico do tipo que usávamos para guardar os milhares de cartuchos e cápsulas que passavam pelos laboratórios da Virgínia todos os anos.

"Lá vamos nós", ele disse.

"Você tem alguma Sig P220 aqui?" Levantei-me, também.

"Uma. Deve estar na estante, com as outras automáticas quarenta e cinco."

Enquanto ele montava o cartucho de teste no microscópio, entrei numa sala que se podia considerar uma câmara de horrores ou uma loja de brinquedos, dependendo do ponto de vista. As paredes estavam cobertas de ganchos com pistolas, revólveres, Tec-1 ls e Tec-9s. Era deprimente pensar em quantas mortes estavam representadas pelas armas daquela sala apertada, e quantos casos haviam sido examinados por mim. A Sig Sauer P220 era preta e muito parecida com a pistola nove milímetros usada pela polícia de Richmond. Assim, de primeira, era difícil distingui-las. De perto, porém, a .45 era maior, e eu achava que a mira era diferente.

"Cadê a tinta?", perguntei a Frost enquanto ele se debruçava no microscópio e alinhava os cartuchos para compará-los fisicamente, lado a lado.

"Na gaveta de cima da escrivaninha", ele disse, quando o telefone tocou. "No fundo."

Achei a latinha de tinta para impressões digitais e desdobrei um pano branco limpo de sarja, que coloquei em cima de uma base plástica macia e fina. Frost atendeu o telefone.

"Ei, cara, temos uma identificação do drugfire", ele disse, e percebi que conversava com Marino. "Pode dar uma checada para a gente?"

Ele contou o que sabia a Marino. Assim que desligou, Frost me disse: "Ele vai checar com o pessoal de Henrico agora mesmo".

"Ótimo", falei distraidamente, passando o cano da pistola na tinta e depois no pano.

"Sem dúvida, essas marcas são muito específicas", falei, no instante em que comecei a estudar as várias marcas enegrecidas da boca, que mostravam claramente a mira, a guia do recuo e a forma do cursor.

"Acha que poderemos identificar o tipo específico da pistola?", ele perguntou, olhando novamente no microscópio.

"Num ferimento de contato, sim, teoricamente", falei. "O problema óbvio é que uma quarenta e cinco carregada com munição de alta performance é tão destrutiva que dificilmente encontramos um padrão reconhecível, principalmente na cabeça."

Essa era a situação, no caso de Danny, mesmo depois que eu conjurei minhas habilidades em cirurgia plástica para reconstruir a entrada o melhor possível. Ao comparar o pano com os diagramas e fotos feitos lá em baixo no necrotério não encontrei nada incompatível com o fato de a arma do crime ser a Sig P220. Na verdade, achei que tinha identificado uma marca da mira na margem do orifício de entrada.

"Eis nossa confirmação", Frost disse, ajustando o foco enquanto continuava observando a imagem no microscópio de comparação.

O som de alguém correndo no corredor fez com que nós dois virássemos a cabeça.

"Quer ver?", ele perguntou.

"Sim, eu quero", respondi, enquanto outra pessoa passava, com um molho de chaves tilintando loucamente.

"Que diabos está acontecendo?" Frost levantou-se, franzindo a testa, e seguiu na direção da porta.

O volume das vozes aumentou, no saguão de entrada. As pessoas estavam correndo para o outro lado, agora. Frost e eu paramos na porta do laboratório no momento em que diversos guardas de segurança passaram, a caminho da guarita. Os cientistas, de guarda-pós, abriam as portas dos laboratórios para espiar. Todos perguntavam o que estava acontecendo, quando repentinamente o alarme contra incêndio disparou e as luzes vermelhas do teto acenderam.

"O que está havendo? Exercício de incêndio?", Frost gritou.

"Não há nenhum programado", falei, levando as mãos aos ouvidos, enquanto as pessoas corriam.

"Quer dizer que temos um incêndio?", ele parecia chocado.

Olhei para as pontas dos sprinklers no teto e disse: "Precisamos sair daqui".

Corri para baixo. Mal abri a porta do corredor do meu andar quando uma tempestade branca de gás halon gelado caiu do teto. Eu me sentia rodeada por pratos de bateria percutidos alucinadamente por um milhão de baquetas ao correr de uma sala para outra. Fielding desaparecera, e todas as salas que eu chequei haviam sido evacuadas tão depressa que algumas gavetas ainda estavam abertas, projetores de slides ligados e microscópios acesos. Nuvens frias rolavam à minha volta, dando a surreal sensação de mergulhar num furacão no meio de um ataque aéreo. Corri para a biblioteca, passei pelos banheiros e quando me dei por satisfeita, constatando que todos haviam saído, atravessei o corredor e saí pela porta da frente. Parei por um momento, para recuperar o fôlego e deixar que o coração recuperasse seu ritmo normal.

O procedimento para alarmes e simulações era rigidamente estruturado, como a maioria das rotinas do serviço público. Eu sabia que encontraria meu pessoal reunido no segundo pavimento do estacionamento da Monroe Tower, do outro lado da Franklin Street. Naquela altura, todos os empregados dos laboratórios estariam aguardando nos locais designados, com exceção dos chefes de seção e diretores de departamento, dos quais, pelo jeito, eu havia sido a última a sair antes do diretor de serviços gerais, responsável pelo edifício. Ele atravessava a rua com passos bruscos, levando um capacete de segurança debaixo do braço. Quando gritei seu nome ele deu meia-volta e forçou a vista, como se não me conhecesse.

"O que está acontecendo, afinal de contas?", perguntei ao alcançá-lo, já perto da calçada.

"O que está acontecendo é que você não vai poder pedir nada extra no orçamento deste ano." Ele era um senhor idoso, sempre bem vestido e desagradável. Naquele dia, estava furioso.

Olhei para o prédio e não vi fumaça alguma. Os carros de bombeiros ainda estavam a várias quadras, aproximando-se com as sirenes ligadas.

"Algum cretino acionou o sistema de combate a incêndio, que só pára quando todos os produtos químicos terminam de ser despejados." Ele me olhou, como se aquilo fosse minha culpa. "Mandei ajustar o maldito equipamento para ação retardada exatamente para evitar uma ocorrência como esta."

"O que não ia ajudar em nada se houvesse um incêndio de origem química ou uma explosão num dos laboratórios." Não pude resistir a apontar o fato, uma vez que suas decisões, em geral, eram equivocadas.

"A gente não quer um tempo de espera de trinta segundos quando uma coisa dessas acontece."

"Bem, uma coisa dessas não aconteceu. Você faz idéia de quanto essa história vai custar?"

Pensei na papelada sobre minha mesa e outros itens importantes, espalhados por vários locais, possivelmente danificados. "Por que alguém acionaria o sistema?", perguntei.

"No momento, sei tanto quanto você."

"Mas milhares de litros de produtos químicos foram despejados sobre meu departamento, sujando o necrotério e a divisão de anatomia." Subimos as escadas, e eu não conseguia conter minha frustração.

"Você nem vai perceber que isso ocorreu." Ele descartou o comentário com um gesto rude. "Aquilo desaparece feito vapor."

"Os produtos químicos foram despejados sobre os corpos que estavam sendo examinados. Vamos torcer para que nenhum advogado de defesa leve isso ao tribunal."

"Você deve torcer é para podermos pagar isso, de algum modo. Reabastecer os tanques de halon significa gastar centenas de milhares de dólares. É isso que devia fazer você perder o sono."

O segundo piso do estacionamento estava lotado, com centenas de funcionários públicos numa folga inesperada. Normalmente, treinamentos contra fogo ou alarmes falsos eram um convite à folia, e as pessoas esbanjavam bom humor, desde que o tempo estivesse bom. Ninguém relaxou naquele dia frio e nublado. As pessoas conversavam excitadas. O diretor afastou-se repentinamente para conversar com um de seus assessores, e eu olhei em torno. Assim que vi meu pessoal, senti que alguém segurava meu braço.

"Puxa, o que aconteceu aqui?" Marino perguntou, quando pulei de susto. "Você está sofrendo de síndrome de stress pós-trauma?"

"Sem dúvida", falei. "Você também estava no prédio?"

"Não, aqui perto. Ouvi o alerta de incêndio no rádio e achei melhor vir para cá conferir."

Ele ajeitou o cinto policial, cheio de penduricalhos pesados, e observou a multidão. "Importa-se em me dizer que diabos está havendo? Vocês finalmente tiveram um caso de combustão espontânea?"

"Não sei exatamente o que está havendo. Soube que alguém acionou o alarme, ligando o sistema contra incêndio do prédio todo. Por que veio aqui?"

"Estou vendo Fielding lá adiante", Marino disse, apontando. "E Rose. Eles estão todos juntos. Você deve estar morrendo de frio."

"Você estava só passando?", perguntei, pois quando ele se mostrava evasivo, a coisa era séria.

"Dava para ouvir a droga cio alarme por toda a Broad Street", ele disse.

Como se obedecesse a um sinal, a sirene do outro lado da rua parou de tocar. Aproximei-me do parapeito do estacionamento e olhei por cima, preocupada com o que iríamos encontrar quando pudéssemos voltar ao prédio. Cinco caminhões roncavam no estacionamento. Bombeiros com equipamento de proteção entravam por portas diferentes.

"Quando soube o que estava acontecendo", ele acrescentou, "deduzi que você estaria aqui. Então, achei melhor vir também."

"Você achou certo", falei. Minhas unhas estavam azuladas. "Sabe algo a respeito do caso de Henrico, cio cartucho de quarenta e cinco que parece ter sido disparado pela mesma Sig P220 que matou Danny?", perguntei, ainda encostada no parapeito de concreto frio, olhando a cidade.

"O que a faz pensar que eu resolveria isso tão depressa?"

"Todo mundo morre de medo de você."

"É isso aí. Ainda bem, aliás."

Marino aproximou-se de mim. Encostou na parede, mas virado para o outro lado, pois não gostava de dar as costas para as pessoas, por motivos que não tinham nada a ver com boas maneiras. Ele ajustou o cinto novamente e cruzou os braços na altura do peito. Evitava meus olhos, e percebi que estava bravo.

"No dia onze de dezembro", ele disse, "a polícia de Henrico montou uma barreira na 64 com Mechanicsville Turnpike. Quando o policial de Henrico aproximou-se de um carro, o elemento saiu correndo. O policial o perseguiu a pé, de noite." Ele apanhou um cigarro. "A perseguição cruzou a divisa das comarcas. Eles entraram na cidade e foram até Whitcomb Court." Ele acendeu o isqueiro. "Ninguém sabe direito o que aconteceu, mas em algum momento da perseguição o policial perdeu a arma."

Precisei de algum tempo para me lembrar de que a polícia de Henrico County trocara as nove milímetros por pistolas Sig Sauer P220 calibre .45.

"E esta é a pistola em questão?", perguntei, inquieta.

"Isso mesmo." Ele inalou a fumaça. "A polícia de Henrico adota esta conduta. Todas as armas são registradas no drugfire, para o caso de algo do gênero acontecer."

"Eu não sabia disso."

"Pois é. Policiais perdem a arma ou são roubados, como qualquer pessoa. Por isso, não é má idéia poder saber o que houve com elas depois que sumiram, caso sejam usadas para cometer algum crime."

"Portanto, a arma que matou Danny é a mesma que o policial de Henrico perdeu." Eu queria ter certeza.

"Tudo indica que sim."

"E ela foi perdida na periferia, faz um mês, mais ou menos", prossegui. "Agora, foi usada num assassinato. Contra Danny."

Marino voltou-se para mim e bateu a cinza. "Felizmente não era você no carro, perto do Hill Café."

Não havia nada para eu dizer.

"Aquela área não fica muito longe de Whitcomb Court e outros bairros pesados", ele disse. "Ou seja, foi mesmo um assalto."

"Não." Eu não conseguia aceitara idéia. "Meu carro não foi roubado."

"Algo pode ter acontecido, fazendo com que o assaltante mudasse de idéia." '

Não respondi.

"Pode ter sido qualquer coisa. Um morador acende a luz. Uma sirene toca ao longe. O alarme contra ladrão de alguém dispara sozinho. Talvez ele tenha ficado com medo, depois de atirar em Danny, e perdido a coragem de terminar o serviço."

"Ele não precisaria atirar em Danny." Observei o trânsito lento na rua, lá embaixo. "Poderia simplesmente ter roubado o Mercedes na porta do café. Por que fazê-lo andar, descer o barranco e entrar no mato?" Minha voz endureceu. "Por que fazer tanta coisa por um carro e acabar indo embora sem ele?"

"Sei lá", ele disse. "Acontece tanta coisa esquisita."

"E quanto ao estacionamento em Virginia Beach?", indaguei. "Alguém verificou?"

"Danny pegou o carro às três e meia, horário em que a entrega havia sido prometida a você."

"Como assim, prometida a mim?"

"O horário que eles deram quando você ligou."

Olhei para ele e disse: "Não liguei".

Ele bateu a cinza. "Falaram que você ligou."

"Não liguei." Balancei a cabeça. "Danny ligou. Era tarefa dele. Ligou, combinou tudo com eles e avisou a recepção do departamento."

"Bem, alguém dizendo ser a doutora Scarpetta ligou. Pode ter sido Lucy?"

"Duvido muito que ela seja capaz de telefonar usando meu nome. A pessoa que ligou era mulher?"

Ele hesitou. "Boa pergunta. Mas acho melhor perguntar a Lucy, só para garantir que não foi ela."

Os bombeiros estavam saindo do prédio, e eu soube que logo teríamos autorização para retornar às nossas salas.

Passaríamos o resto do dia checando tudo, especulando e reclamando, além de torcer para que não surgissem novos casos.

"A munição é a parte que mais me intriga", Marino disse.

"Frost vai voltar para o laboratório dele em uma hora", falei, mas Marino não parecia se importar.

"Telefonarei para ele. Não vou entrar lá com toda essa confusão."

Percebi que ele não queria ir embora e se afastar de mim. Algo o incomodava, e não tinha a ver com o caso.

"Algo o perturba", falei.

"Claro, doutora. Sempre tem alguma coisa."

"O que foi, desta vez?"

Ele pegou o maço de Marlboro novamente, e pensei em minha mãe, cujo companheiro constante atualmente era um tanque de oxigênio, pois ela fumava tanto quanto ele.

"Não me olhe assim", ele disse, procurando o isqueiro novamente.

"Não quero que você morra. E, pelo jeito, hoje você resolveu se esforçar."

"Todo mundo morre."

"Atenção", retumbou o alto-falante do caminhão dos bombeiros. "Somos do Corpo de Bombeiros de Richmond. A emergência terminou. Todos já podem retornar ao edifício." Era uma gravação pontilhada por bips repetitivos, metálica. "Atenção. A emergência terminou. Todos já podem retornar ao edifício."

"Quanto a mim", Marino disse, imperturbável no meio daquela comoção toda, "prefiro morrer enchendo a cara de cerveja, comendo nachos com chili, tomando sorvete, fumando, tomando um trago de Black Jack, vendo um jogo na tevê."

"Você podia aproveitar e fazer sexo junto com tudo isso." Não ri, pois não achava a menor graça.nos riscos a que ele expunha sua saúde.

"Doris me curou dessa história de sexo", Marino disse, também sério, referindo-se à mulher com quem passara a maior parte da vida casado.

"Teve notícias dela ultimamente?", perguntei, percebendo que ela devia ser a razão de seu mau humor.

Ele se afastou da parede e alisou o cabelo ralo. Ajeitou o cinto novamente, como se odiasse os equipamentos da profissão e as camadas de gordura que se acumularam rudemente em sua vida. Eu havia visto fotos dele quando era policial em Nova York, montado numa motocicleta ou num cavalo, quando era forte e esguio, com fartos cabelos negros e bota de couro de cano alto. Doris, num tempo distante, deve ter considerado Pete Marino um sujeito atraente.

"Na noite passada. Sabe, ela liga de vez em quando. No geral, para falar de Rocky", disse, referindo-se ao filho deles.

Marino observava os grupos de funcionários públicos que começavam a seguir na direção da escada. Esticou dedos e braços, depois respirou bem fundo. Esfregou a nuca enquanto as pessoas saíam do estacionamento, em sua maioria sofrendo com o frio, irritadas e tentando resgatar o que fosse possível do dia arruinado pelo falso alarme.

"O que ela queria com você?", senti-me na obrigação de perguntar.

Ele olhou em volta, por mais um tempo. "Bem, pelo que parece, ela se casou", ele disse. "Era a novidade do dia."

Fiquei muito surpresa. "Marino", falei com carinho, "sinto muito."

"Ele é o cara que tem o carrão com banco de couro. Não acha o máximo? Ela vai embora. Depois quer voltar. Aí Molly desiste de mim. Aí Doris se casa. Tudo de uma vez."

"Lamento muito", falei com sinceridade.

"Acho melhor você voltar antes que pegue uma pneumonia", ele disse. "Preciso ir até a delegacia e contar para Wesley o que está acontecendo. Ele vai querer saber tudo a respeito da arma, e para ser honesto com você", ele olhou de soslaio para mim, enquanto caminhávamos, "sei o que o Bureau vai dizer."

"Eles vão dizer que a morte de Danny foi casual", falei.

"E não tenho certeza de que estejam errados. Mais parece que Danny estava a fim de descolar um pouco de crack ou algo assim, e topou com o cara errado, que tinha arranjado uma pistola da polícia."

"Não consigo acreditar nisso", falei.

Atravessamos a Franklin Street. Olhei para o norte, onde a imponente estação ferroviária de tijolo vermelho em estilo gótico, com sua torre de relógio, bloqueava a visão de Church Hill. Danny se desviara pouco da área na qual deveria estar na noite anterior, para entregar meu carro. Não encontrei nenhum indício de que pretendia usar drogas. Nem sinais de uso de substâncias proibidas nos exames iniciais. Claro, os relatórios toxicológicos ainda não estavam prontos, embora eu já soubesse que não havia bebido.

"Por falar nisso", Marino disse, destrancando a porta do Ford, "parei na perícia, na Seventh com Duval. Você terá seu Mercedes de volta esta tarde."

"Eles já terminaram?"

"Claro. Cuidamos disso na noite passada, e já tínhamos tudo pronto quando o laboratório abriu esta manhã, pois deixei muito claro que ninguém ia ficar enrolando neste caso. O resto foi para o fim da fila."

"O que descobriu?", perguntei. Pensar no meu carro e no que ocorrera lá era quase insuportável.

"Impressões digitais. Não sabemos de quem. E alguma coisa no aspirador. Mais nada." Ele entrou no carro, deixando a porta aberta. "De qualquer modo, vou mandar trazer seu carro para cá. Assim terá como voltar para casa."

Agradeci, mas ao entrar no prédio já sabia que não conseguiria dirigir aquele carro. Nunca mais poderia usá-lo. Duvidava até que fosse capaz de destravar a porta e entrar lá novamente.

 

Cleta passava pano no chão enquanto a recepcionista limpava a mobília com toalhas. Tentei explicar a elas que isso não era necessário. A vantagem de um gás inerte como o halon, expliquei pacientemente, era não causar danos a papéis ou instrumentos sensíveis.

"Ele vai evaporar sem deixar resíduo", prometi. "Não precisa limpar nada. Basta endireitar os quadros das paredes. E a mesa de Megan está uma bagunça."

Na recepção, formulários para doações de órgãos e outros procedimentos estavam espalhados pelo chão.

"Ainda acho que tem um cheiro estranho", Megan disse.

"Claro, são as revistas, elas estão cheirando, sua tonta", Cleta disse. "Elas sempre cheiram mal." E, para mim: "Como ficam os computadores?".

"Eles não devem ter sido afetados em nada", falei. "O que mais me preocupa é o piso que vocês molharam. Acho bom secar tudo, para evitar que alguém escorregue."

Sentindo um desânimo crescente, caminhei cuidadosamente pelo piso úmido, enquanto elas continuavam a lavar e esfregar. Quando vi minha sala, diminuí o ritmo e parei na porta. Minha secretária já estava trabalhando lá dentro.

"Muito bem", falei a Rose, "quais foram os estragos?"

"Nenhum problema, exceto que sua papelada saiu voando pela sala. Já dei um jeito nas plantas." Ela era uma mulher autoritária, com idade bastante para se aposentar, e me olhou por cima dos óculos. "Você sempre quis limpar os escaninhos de entrada e saída. Pois é, conseguiu."

Para qualquer lado que eu olhasse, via atestados de óbito, planilhas e relatórios de autópsias espalhados como folhas no outono. Eles estavam no chão, nas estantes, nos galhos do pé de fícus.

"Acho que a gente não deve concluir que algo é inócuo só porque não pode ser visto. Prefiro deixar que a papelada seque bem. Vou fazer um varal com os clipes." Ela trabalhava falando, e o cabelo grisalho escapava pelo lenço na cabeça.

"Não será preciso fazer nada disso", falei, retomando o mesmo discurso. "O halon desaparece ao secar."

"Notei que você nem tirou o capacete de segurança da prateleira."

"Não deu tempo", falei.

"Uma pena que a gente não tenha janelas", Rose disse, como fazia semanalmente.

"Bem, seria mais importante dar um jeito nas coisas", falei. "Vocês são paranóicos, todos vocês."

"Alguém já esguichou esse gás em você antes?"

"Não", falei.

"Sei", ela disse, colocando uma pilha de toalhas ao alcance da mão. "Então acho melhor tomar cuidado."

Sentei-me e abri a gaveta de cima de minha mesa, da qual tirei algumas caixas de clipes para papel. O desespero me oprimia o peito, e temi dissolver ali mesmo. A secretária me conhecia melhor do que minha própria mãe e notou cada expressão, mas não parou de trabalhar.

Após um longo silêncio, ela disse: "Doutora Scarpetta, por que a senhora não vai para casa? Pode deixar que eu cuido de tudo".

"Rose, vamos dar um jeito nisso juntas", respondi, teimosa. -

"Não posso acreditar que o guarda de segurança tenha sido tão estúpido."

"Que guarda de segurança?", parei o que vinha fazendo e olhei para ela.

"O sujeito que disparou o sistema de alarme por julgar que teríamos um vazamento de radiação no andar de cima."

Olhei para ela, que apanhava um atestado de óbito no carpete. Com os clipes, Rose o pendurou num fio. Continuei a arrumar minha mesa.

"Do que está falando, afinal de contas?"

"Só sei isso. Eles estavam discutindo no estacionamento." Ela levou as mãos às costas e olhou em volta. "Não acredito como esse negócio seca depressa. Parece coisa de filme de ficção científica." Ela pendurou outro atestado de óbito. "Acho que assim vai ficar ótimo."

Não comentei a observação, pensando novamente em meu carro. Sentia um pavor genuíno de vê-lo novamente, e cobri o rosto com as mãos. Rose não sabia o que fazer, pois nunca me vira chorar.

"Quer um pouco de café?", ela perguntou.

Balancei a cabeça.

"Isso foi como uma ventania muito forte. Amanhã, vai parecer que não houve absolutamente nada." Ela tentava fazer com que eu me sentisse melhor.

Dei graças a Deus quando percebi que estava indo embora. Delicadamente, fechou as duas portas de minha sala. Recostei na poltrona, exausta. Peguei o telefone e tentei o número de Marino, que não estava. Liguei para Mc George Mercedes e torci para que Walter não tivesse saído para atender algum chamado.

Ele estava lá.

"Walter? É a doutora Scarpetta", falei, sem preâmbulos. "Por favor, pode passar aqui para pegar meu carro?" Gaguejei. "Acho melhor eu explicar tudo direito."

"Não precisa explicar nada. Está muito amassado?", ele perguntou, e obviamente acompanhara o noticiário.

"Para mim é perda total", falei. "Para qualquer outra pessoa, está novo em folha."

"Compreendo, e não me surpreende", ele disse. "O que a senhora quer fazer?"

"Posso trocá-lo por outro, agora mesmo?"

"Tenho um quase idêntico. Mas é usado."

"Bom estado?"

"Quase novo. Era da minha mulher. Um S-500, preto com interior em couro velho."

"Alguém pode me trazer o carro para o estacionamento dos fundos e fazer a troca?"

"Estou a caminho."

Ele chegou às cinco e meia, quando já estava escuro lá fora, ótimo momento para um vendedor mostrar um carro usado a uma pessoa desesperada como eu. No entanto, eu era cliente de Walter havia muitos anos e teria comprado o carro sem vê-lo, pois confiava totalmente nele. Era um senhor muito distinto, com bigode imaculado e cabelo curto. Vestia-se melhor do que muitos advogados que eu conhecia e usava uma pulseira de Alerta Médico porque era alérgico a abelhas.

"Lamento isso tudo", ele disse, enquanto eu tirava minhas coisas do porta-malas.

"Também lamento", disse, sem tentar ser amistosa ou disfarçar meu estado de espírito. "Aqui está uma chave. A outra pode dar por perdida. Se não se importa, eu gostaria de ir embora imediatamente. Não quero vê-lo em meu carro. Quero apenas ir embora. Mais tarde conversaremos sobre o equipamento de rádio."

"Compreendo. Cuidaremos dos detalhes outro dia."

Não me preocupava nem um pouco com eles. Naquele momento pouco me importava a relação custo-benefício do que estava fazendo, ou se o carro que eu aceitara era melhor do que o outro, que dei em troca. Se fosse uma betoneira, para mim estaria ótimo. Apertei uma tecla do console, travei as portas e guardei o revólver no vão entre os bancos.

Segui para o sul, pela Fourteenth Street, entrando na Canal em direção à via expressa que eu normalmente pegava para ir para casa. Algumas saídas depois abandonei a pista e voltei. Queria repetir o trajeto que Danny havia feito na noite anterior, segundo minhas deduções, e se ele estivesse vindo de Norfolk teria pego a 64 West. A saída mais fácil seria a da Faculdade de Medicina da Virgínia, que o deixaria praticamente na porta do necrotério. Mas eu não achava que ele havia feito isso.

Quando chegou a Richmond, ele já devia estar pensando em comer, e não havia nenhum lugar que valesse a pena perto do meu departamento. Danny obviamente sabia disso, pois trabalhara lá durante algum tempo. Eu desconfiava que ele usara a saída da Fifth Street, como eu fazia agora, e seguira por ela até a Broad. Estava muito escuro quando passei por obras e terrenos baldios que em breve seriam a obra do Biomedical Research Park da Virgínia, para onde minha divisão um dia seria transferida.

Vários carros de polícia passaram por mim, e parei atrás de um no sinal próximo ao Marriott. Observei o policial à frente, que acendeu a luz interna e anotou algo numa prancheta. Era jovem, de cabelos louros, e tirou o fone do rádio para falar. Acompanhei o movimento de seus lábios e da cabeça, que se virou na direção do posto policial da esquina. Ele desligou o rádio e bebeu de um copo do 7-Eleven. Novato, deduzi, pois não prestava atenção ao que acontecia à sua volta. Ignorava estar sendo observado, pelo jeito.

Segui em frente, entrando à esquerda na Broad, passando por uma Rite Aid e pela antiga loja de departamentos Miller & Rhoads, que fechara as portas definitivamente, pois pouca gente ainda fazia compras no centro. A antiga sede da prefeitura municipal era uma fortaleza de granito em estilo gótico de um lado da rua. Do outro situava-se o campus da Faculdade de Medicina, que eu conhecia muito bem. Danny não, provavelmente. Duvidava que ele soubesse da existência do Skull & Bonés, onde os professores e alunos comiam. Duvidava que soubesse onde estacionar meu carro, lá dentro.

Eu acreditava que ele havia feito o que qualquer um faria se conhecesse mal a cidade e estivesse guiando o carro importado da chefe. Teria seguido sempre em frente, parando no primeiro lugar decente que encontrasse. Literalmente, essa era a descrição do Hill Café. Dei a volta no quarteirão, como ele teria de fazer para estacionar virado para o sul, no local em que encontramos o saco de batata frita. Parei debaixo da magnífica magnólia e desci, guardando o revólver no bolso do casaco. Instantaneamente, os latidos atrás da cerca alambrada soaram. O cachorro parecia ser grande e me odiar como se eu o tivesse maltratado muito. A luz se acendeu no andar superior da pequena casa de seu dono.

Atravessei a rua e entrei no café, como sempre cheio e barulhento. Daigo preparava whisky sours e não notou minha presença, até que me acomodei numa das banquetas do bar.

"Você está com. cara de quem precisa de uma bebida forte esta noite, meu bem", ela disse, pondo uma rodela de laranja e uma cereja em cada copo.

"Tem razão. Mas estou trabalhando", falei, notando que os latidos haviam cessado.

"Esse é o problema com você e o capitão. Com os dois. Estão sempre trabalhando." Ela percebeu o aceno do garçom.

"Você já viu um cachorro que fica do outro lado da rua? Na Twenty-eighth Street?", perguntei, em voz baixa.

"Você deve estar falando do Fora-da-Lei. Pelo menos é assim que eu chamo aquele cachorro filho da puta. Tem idéia de quantos fregueses aquele sarnento afugentou daqui?", ela olhou para mim contrariada, enquanto fatiava um limão. "Sabe, ele é meio pastor alemão, meio lobo", ela prosseguiu, antes que eu pudesse falar. "Quis morder você, é?"

"Não, mas late tão alto, e com tanta fúria, que eu fiquei pensando que poderia ter latido depois que Danny Webster saiu daqui, na noite passada. Principalmente porque acreditamos que Danny estacionou debaixo da magnólia que fica perto do alambrado."

"Bem, aquele cão danado late sem parar."

"Então, não se lembra. Claro, eu não esperava que..."

Ela me cortou, lendo uma comanda e abrindo uma cerveja. "Claro que eu me lembro. Como eu disse, ele late sem parar. Não foi diferente com o pobre menino. O Fora-da-Lei latiu feito louco, quando ele saiu. Aquele cachorro miserável late até para o vento."

"E antes de Danny sair?", perguntei.

Ela parou para pensar, e logo abriu um sorriso. "Bem, agora que você falou nisso, estou me lembrando que o cachorro ficou latindo sem cessar, no início daquela noite. Na verdade, cheguei a comentar isso, dizendo que ia me pôr louca e que eu ia ter de falar com o dono do bicho."

"E quanto aos fregueses?", perguntei. "Entrou muita gente, enquanto Danny estava aqui?"

"Não." Disso ela estava certa. "Para começar, ele chegou cedo. Além dos fregueses de carteirinha, não havia ninguém quando ele chegou. Não me lembro de ninguém ter chegado antes das sete, pelo menos para comer. E ele saiu antes disso."

"Quanto tempo o cachorro latiu, depois que Danny foi embora?"

"Latiu um pouco e parou, depois recomeçou, como sempre."

"Parou e recomeçou. Ou seja, não ficou latindo sem parar."

"Ninguém agüentaria, se ele latisse a noite inteira sem parar." Ela me olhou, desconfiada. "Bem, se estava pensando que o cachorro ficou latindo porque tinha alguém lá fora esperando o rapaz sair", ela apontou a faca para mim, "acho que é difícil. O tipo de vagabundo que circula por aqui sai correndo feito louco quando o cachorro começa. É para isso que as pessoas arranjam um cachorro. Como os moradores daquela casa." Ela apontou com a faca, novamente.

Pensei outra vez na Sig roubada usada para matar Danny, no local onde o policial a perdera, e entendi o que Daigo estava querendo dizer, exatamente. O ladrão de rua comum sentiria medo de um cachorro grande, barulhento, e da atenção que poderia chamar. Agradeci e fui embora. Por um momento, fiquei parada na calçada, observando os trechos iluminados muito afastados uns dos outros naquelas ruas escuras e estreitas. Os vãos entre prédios e casas sumiam nas sombras, e qualquer um poderia se esconder ali sem ser visto.

Olhei para meu novo carro, e adiante para o pequeno quintal onde o cachorro aguardava. Estava em silêncio, e caminhei pela calçada em direção ao norte, para ver o que ele ia fazer. Mas o cão não demonstrou o menor interesse por mim, até que me aproximei da cerca alambrada. Só então ouvi o cachorro rosnar de modo arrepiante. Quando destravei a porta do carro ele já estava nas patas traseiras, latindo e balançando a cerca.

"Você está só guardando seu território, não é mesmo?", falei. "Gostaria que pudesse me contar o que viu na noite passada."

Olhei para a casinha no momento em que uma luz se acendia no andar de cima.

"Bozo, cala a boca!" Gritou um sujeito gordo de cabelo desgrenhado. "Cala a boca, seu vira-lata estúpido!" E a janela se fechou com estrépito.

"Tudo bem, Bozo", falei ao cachorro que não se chamava Fora-da-Lei, infelizmente para ele. "Agora eu preciso ir embora." Olhei em volta pela última vez e entrei no carro.

O trajeto do restaurante de Daigo até a área reurbanizada na qual a polícia de Franklin encontrara meu carro exigia menos de três minutos de carro, na velocidade permitida. Dei meia-volta na ladeira que levava a Sugar Bottom, pois ir lá estava fora de questão, principalmente de Mercedes. Esse pensamento conduziu a outro.

Especulei por que o assassino andaria a pé por uma área reurbanizada participante do programa de vigilância civil, o Neighborhood Watch, amplamente divulgado pela televisão. Church Hill tinha um jornalzinho, os moradores vigiavam as ruas da janela e não hesitavam em chamar a polícia, especialmente se ouvissem o som de tiros. Parecia muito mais seguro retornar descontraidamente para o carro e dirigir até um local menos perigoso.

Todavia, o assassino não fez nada disso, e deduzi que conhecia a região geográfica, mas não culturalmente, pois não era daqui. Imaginei que não havia levado meu carro porque o dele estava estacionado ali perto, e que não se interessava pelo meu. Ele não precisava dele, nem pelo dinheiro que poderia render, nem para escapar. A teoria fazia sentido se Danny estivesse sendo seguido, e não tivesse sido vítima de um ataque casual. Enquanto jantava, o atacante poderia ter estacionado, retornado a pé até o café e esperado no escuro, perto do Mercedes, enquanto o cachorro latia.

Eu estava passando pelo prédio do meu departamento, na Franklin, quando o pager vibrou junto ao meu corpo. Puxei-o e acendi a luz, para ver a mensagem. Não tinha telefone nem rádio no carro, ainda, e tomei rapidamente a decisão de entrar no estacionamento dos fundos do ocme. Usei uma porta lateral, digitando o código de segurança para ter acesso ao necrotério e pegar o elevador para o andar de cima. Os sinais do falso alarme do dia haviam desaparecido, mas os atestados de óbito de Rose continuavam suspensos no ar, num arranjo macabro. Sentei-me à mesa e retornei o chamado de Marino.

"Onde é que você está?", ele disse, imediatamente.

"No escritório", falei, olhando para o relógio.

"Bem, acho que este é o último lugar do mundo onde você deveria ficar, no momento. E aposto que está sozinha. Já comeu?"

"O que quer dizer, o último lugar do mundo onde eu deveria estar?"

"Vamos nos encontrar que eu explico."

Combinamos ir ao Linden Row Inn, que ficava no centro e era discreto. Preparei-me para esperar, pois Marino morava do outro lado do rio, mas ele se antecipou. Quando cheguei já estava sentado na mesa perto da lareira. Como estava de folga, tomava cerveja. O garçom era um sujeito peculiar, idoso, que usava gravata borboleta. Carregava um balde de gelo, e a música era Pachelbel.

"O que houve?", perguntei a Marino, ao sentar. "O que aconteceu, agora?"

Ele usava uma camisa pólo preta. A barriga abria as malhas do tecido e transbordava por cima da cintura da calça jeans. O cinzeiro já estava cheio de pontas, e suspeitei que a cerveja não era a primeira, nem seria a última.

"Você gostaria de ouvir a história do alarme falso desta tarde, ou alguém chegou primeiro e contou tudo?" Ele levou a caneca aos lábios.

"Ninguém me contou nada. Só ouvi um boato a respeito de radioatividade", falei, quando o garçom surgia com frutas e queijo. "Pellegrino com limão, por favor", pedi.

"Acho que é mais do que um simples boato", Marino disse.

"Como é?" Franzi a testa. "Por que você saberia mais a respeito do que se passa dentro do meu departamento do que eu?"

"Porque o problema da radioatividade tem a ver com uma prova material de um caso de homicídio." Ele tomou outro gole de cerveja. "O assassinato de Danny Webster, para ser exato."

Ele esperou um momento para que eu digerisse a informação, mas eu estava chegando no limite.

"Está querendo dizer que o corpo de Danny estava radioativo?", perguntei, como se ele fosse doido.

"Não. Mas os fragmentos que extraímos de seu carro eram radioativos, ao que tudo indica. Se quer saber, o pessoal que recolheu o material está morrendo de medo, e eu também não gostei nada da história, pois examinei seu carro, também. Tenho pavor desse negócio, como aquelas pessoas que sentem medo de aranhas e cobras. É como os caras que foram expostos ao agente laranja no Vietnã e agora estão morrendo de câncer."

A expressão em meu rosto era de puro assombro. "Você está realmente falando do banco do passageiro do meu Mercedes preto?"

"Estou, e se eu fosse você nunca mais guiaria aquele carro. Como pode garantir que não vai ficar contaminada, a longo prazo?"

"Nunca mais vou guiar aquele carro", falei. "Não se preocupe. Mas quem falou a você que o material recolhido era radioativo?"

"A moça que cuida do tal do sem."

"O microscópio de varredura eletrônica?"

"Isso. Ele identificou urânio, disparando o contador Geiger. Disseram que nunca aconteceu antes."

"Tenho certeza que não."

"Então, em seguida o pessoal da segurança entrou em pânico. Eles ficam no mesmo corredor, como sabe. E um dos guardas tomou a decisão de evacuar o prédio. Só teve um problema. Ele se esqueceu de que acionaria o sistema contra incêndio ao quebrar o vidro da caixinha vermelha e apertar o botão."

"Pelo que sei", falei, "o sistema nunca foi usado. Dá para entender que alguém tenha esquecido. Talvez ele nem soubesse disso." Pensei no diretor de Serviços Gerais, sabendo qual seria a atitude dele. "Deus do céu. Tudo aconteceu por causa do meu carro. Em certo sentido, por minha causa."

"Não, doutora." Marino me encarou, com ar severo. "Tudo aconteceu por causa do filho da mãe que matou Danny. Quantas vezes vou ter de dizer isso?"

"Acho que vou querer uma taça de vinho."

"Pare de se culpar por tudo. Sei o que está fazendo e onde vai parar."

Ergui os olhos para procurar o garçom, e comecei a achar o fogo da lareira quente demais. Quatro pessoas, sentadas ali perto, comentavam em voz alta a respeito do "jardim encantado" no pátio do bar, onde Edgar Allan Poe costumava brincar quando era menino e morava em Richmond.

"Ele escreveu a respeito num dos poemas", disse uma das mulheres.

"Dizem que o bolinho de caranguejo daqui é uma delícia."

"Não gosto quando você fica deste jeito." Marino insistiu, debruçando na minha direção e apontando o dedo. "Não demora e você vai começar a agir por conta própria. E eu não vou mais conseguir dormir."

O garçom me viu e mudou rapidamente de rumo, vindo em nossa direção. Mudei de idéia quanto ao Chardonnay e pedi Scotch. Tirei o casaco e o pendurei nas costas da cadeira. Suava e sentia a pele pegajosa, desconfortável.

"Me dá um Marlboro", pedi a Marino.

Seus lábios se entreabriram e ele me olhou, chocado.

"Por favor." Estendi a mão.

"Ah, de jeito nenhum." Ele foi firme.

"Faço um trato com você. Eu fumo um, você fuma um e depois nós dois paramos."

Ele hesitou. "Você não está falando sério."

"Uma ova que não estou."

"Não vejo vantagem nenhuma para mim."

"Exceto continuar vivo. Se ainda não for tarde demais."

"Obrigado. Mas não vai dar." Ele pegou o maço e tirou um cigarro para cada um de nós, com o isqueiro na mão.

"Quanto tempo faz?"

"Nem sei mais. Uns três anos." O cigarro era insípido, mas gostei de senti-lo entre os lábios, como se os lábios tivessem sido inventados para isso.

A primeira tragada atingiu meu pulmão como uma facada, e eu senti tontura instantaneamente. Senti-me como na época em que fumei o primeiro Camel, aos dezesseis anos. Depois a nicotina enevoou meu cérebro, como havia feito na primeira vez, e o mundo passou a girar mais devagar. Meus pensamentos se misturaram.

"Meu Deus, como eu senti falta disso", choraminguei, batendo a cinza.

"Então não me atormente mais."

"Alguém tem de fazer isso."

"Ei, não é que nem maconha ou alguma droga."

"Nunca fumei maconha. Mas se não fosse ilegal talvez hoje eu fumasse."

"Droga, você está começando a me assustar."

Dei a última tragada e apaguei o cigarro. Marino me observava com uma expressão estranha. Quando eu me comportava de maneira inesperada, ele entrava em pânico.

"Ouça", voltei ao assunto. "Acho que Danny foi seguido na noite passada, que sua morte não foi um crime casual motivado por assalto, relacionamento gay ou compra de drogas. Aposto que o assassino esperou por ele cerca de uma hora, depois o abordou quando voltava a meu carro, saindo das sombras da Twenty-eighth Street, perto da magnólia. Sabe o cachorro que tem ali? Ele ficou latindo, enquanto Danny estava dentro do Hill Café, segundo Daigo."

Marino me olhou sem dizer nada, por um momento. "Está vendo? Era disso que eu falava. Você foi lá esta noite."

"Sim, eu fui."

Ele rilhou os dentes, contraindo os músculos da face, mas virou o rosto para o outro lado. "Era disso que eu estava falando."

"Daigo se lembra de que o cachorro latiu sem parar."

Ele não disse nada.

"Estive lá mais cedo. O cachorro só late quando a gente se aproxima da cerca. Aí, ele fica alucinado. Entende onde quero chegar?"

Marino fixou os olhos em mim novamente. "Quem ficaria lá, esperando, com um cachorro latindo daquele jeito? Tenha dó, doutora."

"Seu assaltante comum jamais faria isso", respondi. Minha bebida chegou. "Essa é a questão."

Esperei até que o garçom nos servisse, e depois que ele se afastou de nossa mesa falei: "Acho que Danny foi morto por um pistoleiro profissional".

"Entendi." Ele esvaziou o copo de cerveja. "Por quê? Afinal, o que ele poderia saber? Só se estivesse metido com drogas, com o crime organizado."

"Ele estava metido em Tidewater", falei. "Ele morava lá. Trabalhava em meu departamento. Estava envolvido com o caso de Eddings, pelo menos indiretamente. Sabemos que o assassino de Eddings era altamente sofisticado. Sua morte também foi premeditada e cuidadosamente planejada."

Marino ficou pensativo, passando a mão no rosto. "Portanto, você está convencida de que existe uma ligação."

"Creio que não gostariam que soubéssemos disso. Quem está por trás de tudo tentou fazer com que parecesse um assalto comum que deu errado ou outro crime de rua."

"Sei. E todo mundo está achando isso mesmo."

"Nem todo mundo." Enfrentei seu olhar. "Nem todo mundo, com certeza."

"E você acha que o alvo era Danny, pois foi serviço de profissional."

"Eu poderia ser o alvo. Eles o mataram para me assustar", falei. "Talvez a gente nunca saiba."

"Já recebeu o resultado do exame toxicológico de Eddings?" Ele pediu mais uma rodada.

"Você viu a confusão de hoje. Espero conseguir algo amanhã. Conte o que anda acontecendo em Chesapeake."

Ele deu de ombros. "Não tenho a menor idéia."

"Como assim, não tem idéia?", falei, impaciente. "Deve haver trezentos policiais por lá. Ninguém está investigando a morte de Ted Eddings?"

"Não importa se há trezentos ou três mil policiais lá. Basta uma divisão corrupta. Neste caso, é a divisão de homicídios. Há uma barreira intransponível lá, pois o detetive Roche continua cuidando do caso."

"Não entendo", falei.

"Bem, ele continua no seu caso, também."

Não quis saber, pois o sujeito não valia meu tempo.

"Se eu fosse você, tomava cuidado." Ele fez uma pausa. "Sabe como é, o pessoal comenta. Andei ouvindo umas coisas. Segundo as fofocas, você andou se oferecendo para o Roche e o chefe dele vai pedir ao governador que a demita."

"As pessoas podem falar o que quiserem", eu disse, impaciente.

"Bem, parte do problema é que as pessoas olham para ele, vêem que é muito jovem e não precisam dar muitos tratos à bola para imaginar que você se sentiu atraída pelo rapaz." Ele hesitou, e percebi que Marino odiava Roche, que daria tudo para acabar com ele. "Lamento dizer, mas seria muito melhor se o sujeito não fosse tão bonito."

"Assédio sexual não tem nada a ver com a aparência da pessoa, Marino. De todo modo, ele não vai conseguir nada, e eu não estou preocupada."

"Vale a pena lembrar que ele quer atingi-la, doutora. Fará qualquer coisa para conseguir isso. De um jeito ou de outro vai sacanear você, se puder."

"Por mim, ele pode entrar na fila e esperar a vez, junto com os outros."

"A pessoa que ligou para o guincho em Virgínia Beach dizendo ser você era um homem." Ele me encarou. "Só para você saber."

"Danny não faria uma coisa dessas", foi só o que consegui dizer.

"Nem pensei nisso. Mas Roche talvez fizesse", Marino retrucou.

"O que você vai fazer amanhã?"

Ele suspirou. "Não tenho tempo para dizer."

"Acho melhor a gente fazer uma viagem a Charlottesville."

"Para quê?" Ele franziu o cenho. "Não venha me dizer que Lucy continua agindo de modo estranho."

"Não é por isso que precisamos ir até lã. Mas podemos aproveitar e dar uma olhada nela, também."

 

Na manhã seguinte fui atrás dos resultados. Na primeira parada encontrei a cientista forense Betsy Eckles pulverizando um pedaço quadrado de borracha de pneu, no laboratório de microscopia eletrônica. Ela estava sentada de costas para mim, e observei-a enquanto montava a amostra numa plataforma que logo seguiria para uma câmara de vidro a vácuo para ser coberta por uma camada de partículas atômicas de ouro. Notei o sulco no centro do pedaço, e tive a impressão de que era familiar. Mas não poderia afirmar isso com certeza.

"Bom dia", falei.

Ela virou de costas para o imponente console de medidores de pressão, controles e microscópios digitais que forneciam imagens em pixels, e não em linhas em telas de vídeo. Grisalha e impecável, usando guarda-pó comprido, parecia mais irritada do que habitualmente, naquela quinta-feira.

"Bom dia, doutora Scarpetta", ela disse, posicionando a amostra de borracha cortada na câmara.

"Pneus cortados?", perguntei.

"O pessoal da balística pediu que examinasse esta amostra. Disseram que era urgente. Não me pergunte a razão."

Ela não estava nem um pouco contente com o fato, uma vez que parecia uma reação desmedida a um crime que ninguém considerava sério. Não compreendi por que seria prioritário numa época em que os laboratórios andavam sobrecarregados de serviço, mas não estava ali para discutir isso.

"Estou aqui para conversar a respeito do urânio", falei.

"Foi a primeira vez que encontrei algo do gênero", ela disse, abrindo um envelope plástico. "E trabalho com isso há vinte e dois anos."

"Precisamos saber com qual isótopo de urânio estamos lidando", falei.

"Concordo, e como nunca houve um caso similar, não sei onde realizar a análise. Aqui não dá, com certeza."

Usando uma fita adesiva de dupla face, ela começou a montar o que pareciam ser partículas de sujeira num bastonete que iria ser guardado dentro de um frasco especial. Recebia amostras de aspirador diariamente, e estava sempre correndo contra o relógio.

"Onde está a amostra radioativa, neste momento?", perguntei.

"Onde a deixei. Não abri a câmara e prefiro não fazer isso."

"Posso ver o que temos?"

"É claro."

Ela passou para outro aparelho digital, ligou o monitor e ele se encheu de um universo negro lotado de estrelas de diferentes tamanhos e formatos. Algumas eram muito brilhantes, outras apagadas. Nenhuma seria visível a olho nu.

"Vou aumentar para três mil vezes", disse, mexendo nos controles. "Quer mais?"

"Acho que será o suficiente", falei.

Examinamos o que poderia ser um panorama de observatório astronômico. Esferas de metal pareciam planetas tridimensionais cercados por luas e estrelas menores.

"Isso veio de seu carro", ela informou. "As partículas brilhantes são de urânio. As mais foscas de oxido de ferro, do tipo que se encontra no solo. Além disso, há alumínio, um metal usado praticamente em tudo, hoje em dia. E sílica, ou seja, areia."

"Tipicamente, o que haveria na sola do sapato de uma pessoa", falei. "Exceto pelo urânio."

"Gostaria de chamar sua atenção para um detalhe", ela disse. "O urânio tem duas formas. O lobular ou esférico, resultado do processo pelo qual foi derretido. Veja aqui, porém." Ela apontou. "Temos também formas irregulares, com pontas afiadas. Quer dizer que elas resultaram de um processamento que envolveu máquinas."

"A cp&l usa urânio nas usinas nucleares", falei, referindo-me à Commonwealth Power & Light, a companhia de eletricidade que supria a Virgínia e parte da Carolina do Norte.

"Sim, é verdade."

"Existem outras empresas que usam urânio?", perguntei.

Ela refletiu por um minuto. "Não há minas na região, nem usinas de processamento. Bem, temos um reator na uva, mas acho que é usado basicamente para pesquisa."

Continuei a olhar para as amostras do material radioativo que havia sido deixado em meu carro pelo sujeito que matou Danny. Pensei na munição Black Talon, com suas garras selvagens, e no telefonema bizarro que recebera em Sandbridge, seguido pela invasão da casa, quando pularam o muro. Acreditava que Eddings era o elo comum, e que tudo se devia ao seu interesse pelos neo-sionistas.

"Veja bem", falei a Eckles, "só porque o contador Geiger disparou, não quer dizer que a radioatividade seja prejudicial. Na verdade, o urânio não faz mal à saúde."

"O problema é que não temos nenhum precedente com uma substância dessas", ela disse.

Expliquei, com paciência: "E muito simples. O material é prova numa investigação de homicídio. Sou a legista encarregada do caso, que está sob jurisdição do capitão Marino. Basta que você entregue o material para Marino e para mim. Daremos um recibo e levaremos a amostra para a uva, onde um físico nuclear poderá determinar qual é o isótopo."

Claro, isso não poderia ser feito sem uma conferência telefônica que incluiu o diretor do Bureau de Ciência Forense e o secretário de Saúde Pública, meu chefe direto. Eles temiam um possível conflito de interesses, uma vez que o urânio havia sido encontrado em meu carro. Além disso, claro, Danny trabalhava para mim. Quando ressaltei que meu nome não constava da lista de suspeitos, eles se deram por satisfeitos. No final, sentiram alívio por ver que a amostra radioativa sairia de suas mãos.

Retornei ao laboratório do sem e Eckles abriu a câmara apavorante enquanto eu calçava luvas de algodão. Cuidadosamente, removi a fita adesiva do bastonete e a guardei dentro de um saquinho plástico, que lacrei e identifiquei. Antes de sair daquele andar passei na Balística, onde Frost examinava uma baioneta militar antiga no microscópio de comparação. Perguntei a ele a respeito do pedaço de pneu pulverizado com ouro, por intuição.

"Temos um possível suspeito de rasgar os pneus, no seu caso", ele disse, ajustando o foco conforme movia a lâmina.

"Esta baioneta?" Soube a resposta antes que ele falasse.

"Isso mesmo. Chegou esta manhã."

"Quem trouxe?", perguntei, e minhas suspeitas cresceram.

Ele olhou para um papel dobrado numa mesa próxima. Vi o número do caso e a data, bem como o nome no final: "Roche".

"Chesapeake", Frost respondeu.

"Sabe algo a respeito da origem da baioneta?", perguntei, enfurecida.

"O porta-malas de um carro. Foi só o que me disseram. Pelo que sei, tem prioridade absoluta."

Subi para o Laboratório de Toxicologia, último local em que eu precisava passar. Meu humor estava péssimo e não melhorou quando finalmente encontrei alguém capaz de confirmar o que meu nariz havia percebido no necrotério de Norfolk. O dr. Rathbone era um senhor idoso, grande, de cabelo muito preto. Encontrei-o assinando relatórios, em sua mesa.

"Acabei de ligar para você", ele disse, erguendo os olhos. "Como foi de Ano Novo?"

"Novo e diferente. E você?"

"Tenho um filho que mora em Utah, e fomos para lá. Juro que iria morar na região, se conseguisse um emprego. Mas calculo que os mórmons não veriam utilidade em meus conhecimentos."

"Creio que seus conhecimentos seriam valiosos em qualquer lugar", falei. "E presumo que já tenha os resultados do caso Eddings", acrescentei, pensando na baioneta.

"A concentração de cianureto na amostra de sangue enviada é de cinco miligramas por litro. Como sabe, uma quantidade letal." Ele continuou assinando o nome.

"E quanto à válvula do narguilé, tubos e assim por diante?"

"Inconclusivos."

Não me surpreendi, pois realmente isso pouco importava. Não restava dúvida de que Eddings havia sido envenenado com gás de cianureto. Sua morte fora homicídio, indubitavelmente. Eu conhecia a promotora de Chesapeake . e parei na minha sala o tempo necessário para ligar-lhe pedindo que encorajasse a polícia a agir da maneira correta.

"Você não deveria precisar telefonar para mim dizendo isso", ela falou.

"Tem razão, não deveria."

"Deixa para lá." Ela parecia brava. "Que bando de idiotas. O fbi tomou alguma providência?"

"Chesapeake dispensa a ajuda deles."

"Claro. Aposto que eles têm casos de homicídio de mergulhadores por envenenamento com cianureto gasoso todos os dias. Vou ver o que posso fazer e falo com você mais tarde."

Desliguei, peguei o casaco e a bolsa. Saí, vendo que o dia estava ficando lindo. Marino estacionara o carro na lateral da Franklin Street e estava sentado lá dentro com o motor ligado e o vidro abaixado. Aproximei-me; ele abriu a porta do motorista e o porta-malas.

"Cadê o negócio?", disse.

Mostrei um envelope pardo e ele ficou abismado.

"Você trouxe tudo aí dentro?", ele exclamou, arregalando os olhos. "Pensei que pelo menos ia guardar tudo numa lata revestida de chumbo."

"Não seja ridículo", falei. "A gente pode levar urânio na mão, que não faz mal nenhum."

Coloquei o envelope no porta-malas.

"Então, por que o contador Geiger disparou?", ele continuou a discutir quando entrou no carro. "Era um aviso de que essa merda era radioativa, certo?"

"Sem a menor sombra de dúvida, o urânio é radioativo. Mas não muito, pois libera radioatividade de maneira muito lenta. Além disso, a amostra que guardei no porta-malas é ínfima."

"Bem, para mim um pouco radioativo é o mesmo que um pouco grávida ou um pouco morto. E se não estava preocupada por que vendeu o Mercedes?"

"Não foi por isso que o vendi."

"Prefiro não ser contaminado, se não se importa", ele disse, irritado.

Mas continuou reclamando. "Não acredito que você foi capaz de me expor, e meu carro, ao urânio."

"Marino", tentei mais uma vez, "muitos pacientes chegam ao necrotério com doenças terríveis, como tuberculose, hepatite, meningite, atds. Você presenciou inúmeras autópsias, e sempre esteve seguro ao meu lado."

Ele dirigia pela via interestadual em alta velocidade, costurando no meio do tráfego.

"Acho que você já deveria saber, a esta altura, que eu jamais o colocaria deliberadamente em perigo", acrescentei.

"Deliberadamente, não mesmo. Mas você talvez esteja envolvida com algo que não conhece", disse. "Quando foi a última vez em que teve um caso de radioatividade?" .,

"Para começar", expliquei, "não se trata de um caso de radioatividade. Apenas apareceram alguns fragmentos microscópicos com essa característica. Além disso, estou familiarizada com a radioatividade. Sei tudo a respeito de raios X, mri e isótopos como cobalto, iodo e tecnécio, usados para tratar câncer. Os médicos aprendem muitas coisas, inclusive a cuidar de doenças associadas à radiação. Dá para diminuir a marcha, escolher uma faixa e ficar nela?"

Olhei-o assustada, mas ele relaxou um pouco e desacelerou. O suor formava gotículas no alto da cabeça e descia pelas têmporas. O rosto ficou vermelho. Com os músculos dos maxilares contraídos e as mãos fechadas com força no volante, ele ofegava.

"Pare o carro", exigi.

Ele não respondeu.

"Marino, pare o carro imediatamente", repeti num tom de voz que ele aprendera a respeitar.

O acostamento era largo e pavimentado, naquele trecho da 64. Sem dizer uma só palavra, desci e dei a volta até a porta do lado dele do carro. Fiz um gesto com o polegar, para que saísse. Marino obedeceu. As costas da camisa estavam ensopadas, dava para ver a camiseta embaixo dela.

"Acho que estou pegando uma gripe", ele disse,

Ajustei o banco e o retrovisor.

"Não sei o que está acontecendo comigo." Ele enxugou o rosto com o lenço.

"Você teve um ataque de pânico", falei. "Respire fundo e tente se acalmar. Abaixe e puxe os dedos do pé. Relaxe, solte o corpo."

"Se alguém a vir dirigindo uma viatura, estou ferrado", ele disse, ajustando o cinto de segurança.

"No momento, a polícia deveria dar graças a Deus por você não estar dirigindo", falei. "Você não pode operar nenhuma máquina, no momento. Na verdade, deveria estar no consultório do psiquiatra." Olhei para ele, percebendo que estava envergonhado.       

"Não sei o que houve", ele resmungou, olhando pela janela.

"Ainda está chateado por causa de Doris?"

"Acho que não contei uma das piores brigas que tivemos, pouco antes de ela ir embora." Ele enxugou o rosto novamente. "Foi a respeito de uns pratos que comprou num bazar. Sabe, ela andava falando em comprar pratos novos fazia um tempão. Aí, um dia voltei do trabalho e lá estava o jogo de pratos cor de laranja berrante em cima da mesa de jantar." Ele olhou para mim. "Já ouviu falar em Fiesta Ware?"

"Vagamente."

"Bem, eu descobri que há alguma coisa no esmalte desta linha de louça que é capaz de acionar um contador Geiger."

"Não é preciso muita radioatividade para acionar um contador Geiger", insisti.

"Bem, ouvi muitas histórias sobre aquela louça, que foi tirada do mercado. Mas Doris não quis saber. Achou que eu estava exagerando."

"Provavelmente, estava mesmo."

"Bem, as pessoas têm fobias das coisas mais esquisitas. No meu caso, é radiação. Sabe o quanto odeio tirar uma chapa. Quando ligo o microondas, saio da cozinha. Por isso, peguei todos os pratos e dei um fim neles, sem contar nada a ela."

Ele ficou em silêncio e limpou o rosto outra vez. Pigarreou repetidamente.

Aí, falou: "Um mês depois ela foi embora".

"Sabe", falei, suavizando a voz, "eu também não ia querer comer naqueles pratos. Mesmo sabendo que não corria riscos. Compreendo o medo, que muitas vezes é irracional."

"Certo. É, doutora, no meu caso é isso mesmo." Ele abriu uma fresta na janela. "Tenho medo de morrer. Acordo todas as manhãs e penso nisso, se quer saber. Diariamente, acho que vou sofrer um derrame ou descobrir que tenho câncer. Não quero ir para a cama, pois tenho medo de morrer dormindo." Ele parou, e com imensa dificuldade acrescentou: "Foi esta a verdadeira razão para Molly parar de sair comigo, se quer saber".

"Não foi uma razão muito boa." O que ele disse doeu em mim.

"Bem", ele ficou mais à vontade, "ela é bem mais jovem que eu. E por causa do modo como me sinto ultimamente, prefiro não exagerar."

"Então, fica com medo de fazer sexo."

"Porra", ele disse, "por que não grita isso para todo mundo ouvir?"

"Marino, sou médica. Só quero ajudar, se puder."

"Molly me disse que se sentia rejeitada", ele prosseguiu.

"E você fez com que ela se sentisse assim, provavelmente. Há quanto tempo tem este problema?"

"Sei lá. Desde o feriado de Ação de Graças."

"Aconteceu alguma coisa específica?"

Ele hesitou novamente. "Bem, sabe que parei de tomar o remédio."

"Qual remédio? O Finasteride ou o bloqueador de epinefrina? Eu não sabia."

"Os dois."

"Por que você fez essa bobagem?"

"Porque quando estou tomando nada dá certo", ele confessou. "Parei de tomar quando comecei a sair com Molly. Depois comecei de novo, na época do dia de Ação de Graças, quando fiz um check-up e a pressão estava alta e minha próstata ruim de novo. Fiquei apavorado."

"Nenhuma mulher vale sua vida", disse. "E estamos falando aqui de um caso de depressão, pois você é um candidato perfeito."

"Sim, é deprimente quando a gente não consegue. Você não entende."

"Claro que entendo. E deprimente quando o corpo não corresponde, quando a gente envelhece e enfrenta outros fatores estressantes na vida, como as mudanças. E você passou por uma série de mudanças, nos últimos anos."

"Nao é nada disso", ele falou, e sua voz subiu de tom. "O problema é quando ele não sobe. E depois ele sobe e não quer descer mais. E aí a gente quer urinar e não pode. Depois urina quando dá, mesmo que não queira. Aí tem o problema de não ficar com vontade quando arranja uma namorada jovem o bastante para ser sua filha." Ele olhava para mim, com as veias saltando do pescoço. "Sim, estou deprimido. Porra, e não era para estar?"

"Por favor, não fique bravo comigo."

Ele desviou a vista, respirando com dificuldade. .

"Você precisa marcar consulta com o cardiologista e com o urologista", falei.

"De jeito nenhum." Ele balançou a cabeça. "A merda do plano de saúde que eu tenho me mandou para uma mulher urologista. Não posso entrar lá e contar tudo isso para uma mulher."

"Por que não? Você acabou de contar para mim."

Ele se fechou e virou o rosto para o lado da janela. Olhando pelo espelho externo, disse: "A propósito, tem um cretino seguindo a gente desde Richmond, num Lexus dourado".

Espiei pelo retrovisor. Modelo novo. A pessoa no carro falava ao telefone.

"Acha que estamos sendo seguidos?", perguntei.

"Como posso saber, cacete? Mas eu não gostaria de pagar a conta do telefone desse cara."

Estávamos perto de Charlottesville, e o terreno plano ficara para trás, dando lugar a colinas cinzentas por causa do inverno, entre as árvores perenes. Nevava mais, o ar estava mais frio, mas a estrada continuava seca. Perguntei a Marino se poderia desligar o rádio, pois me cansara de ouvir conversas de policiais. Peguei a 29 Norte, no rumo da Universidade da Virgínia.

Por um tempo as encostas rochosas e bosques esparsos que chegavam até a beirada da pista dominaram a paisagem. Chegamos à periferia do campus, onde as quadras eram ocupadas por pizzarias e lanchonetes, lojas de conveniência e postos de gasolina. A universidade ainda estava em férias de Natal, mas minha sobrinha não era a única pessoa no mundo a ignorar o fato. No Scott Stadium entrei na Maury Avenue, onde os estudantes descansavam sentados nos bancos ou andavam de bicicleta, usando mochilas e pastas que pareciam cheias de livros. Havia muitos carros.

"Já viu algum jogo ali?" Marino voltara ao normal.

"Acho que não."

"Isso é um crime. Sua sobrinha estuda aqui e você nunca viu os Hoos? O que faz, quando vem à cidade? Quero dizer, o que você e Lucy fazem?"

Na verdade, não fazíamos quase nada. Passávamos nossos raros momentos juntas em longas caminhadas pelo campus, ou conversando em seu quarto no Lawn. Claro, havia muitos restaurantes como The Ivy e Boar's Head. Saíamos para jantar e eu encontrava seus professores. Cheguei a assistir aulas. Mas não via as amigas dela, as poucas que tinha. Ela não as compartilhava comigo, assim como não me levava aos lugares que freqüentavam.

Percebi que Marino continuava falando.

"Jamais me esquecerei do dia em que fui vê-lo jogar", dizia.

"Me desculpe", falei.

"Pode imaginar alguém com dois metros e treze? Sabe que ele mora em Richmond, atualmente?"

"Deixa ver", falei, estudando os prédios por onde passávamos. "Vamos para a Faculdade de Engenharia, que começa aqui. Mas precisamos descobrir qual é a Faculdade de Engenharia Mecânica, Aeroespacial e Nuclear."

Reduzi a velocidade ao avistar um edifício de tijolo aparente emoldurado em branco e li a placa. Era lá. Não foi difícil encontrar um lugar para estacionar. Já o dr. Alfred Matthews não foi fácil. Ele prometera me receber em sua sala às onze e meia, mas aparentemente se esquecera.

"Onde ele foi parar, afinal?", Marino perguntou, ainda incomodado com a amostra em seu porta-malas.

"Está no reator nuclear." Entrei novamente no carro.

"Maravilha."

Na verdade, o local chamava-se laboratório de Física Aplicada e ficava no alto do morro, onde também se situava o observatório astronômico. O reator nuclear da universidade era um silo grande, feito de tijolo. Protegido por uma cerca e rodeado de mata, fez com que a fobia de Marino se manifestasse novamente.

"Vamos lá. Vai achar interessante." Abri a porta.

"Não tenho o menor interesse pelo assunto."

"Tudo bem. Então fique, que eu vou."

"Nem precisa insistir", ele disse.

Abri o porta-malas e peguei a amostra. Na entrada do laboratório, toquei a campainha e alguém acionou o porteiro eletrônico. Entrei, e no pequeno saguão disse ao rapaz atrás do vidro que eu procurava pelo dr. Matthews. Ele conferiu uma lista e informou que o chefe do Departamento de Física, que eu só conhecia por telefone, estava na área do reator. O rapaz pegou o interfone e me entregou um crachá de visitante e um detetor de radiação. Prendi os dois no casaco e o acompanhei quando ele saiu da recepção para me levar até uma porta pesada de aço sob uma luz vermelha, acesa para indicar que o reator estava ligado.

A sala não tinha janelas e as paredes altas eram revestidas de azulejos. Todos os objetos à vista estavam marcados com o símbolo amarelo forte indicativo de radiação. Numa das extremidades do tanque iluminado, a radiação Cerenkov conferia à água um brilho azulado fantástico, conforme os átomos instáveis espontaneamente se desintegravam no depósito de combustível, a seis metros de profundidade. O dr. Matthews conversava com um estudante que, pelo que entendi, usava cobalto em vez de autoclave para esterilizar as micropipetas usadas na fertilização in vitro.

"Pensei que a senhora só viesse amanhã", o físico nuclear disse para mim, com uma expressão de espanto no rosto.

"Não, marcamos para hoje. De todo modo, agradeço a gentileza de me receber. Tenho a amostra comigo." Estendi a mão com o envelope.

"Certo, George", ele disse ao rapaz. "Você pode resolver tudo sozinho?"

"Sim, senhor. Obrigado."

"Vamos", Matthews disse, dirigindo-se a mim. "Vamos levar a amostra para baixo e fazer os testes. Sabe qual é a quantidade existente?"

"Não sei ao certo."

"Se houver o bastante, podemos fazer o teste enquanto você espera."

Viramos à esquerda depois de passar por uma porta pesada. Paramos numa caixa grande, que monitorava a radiação dos pés e das mãos. Seguimos pelo corredor iluminado de verde claro e descemos a escada que conduzia ao laboratório de radiografia de nêutrons, num porão no qual havia uma oficina de reparos das máquinas, empilhadeiras e enormes bombonas contendo lixo atômico de baixa radioatividade, à espera de transporte. Havia equipamento de emergência espalhado por todo lado, e a sala de controle ficava fechada numa espécie de jaula. Distante de tudo aquilo situava-se a sala de controle de radiação. Feita de concreto grosso, sem janelas, continha tubos de cinqüenta galões de nitrogênio líquido, detetores e amplificadores de germânio e tijolos de chumbo.

O processo de identificação de minha amostra era surpreendentemente simples. Matthews, usando como proteção especial apenas o guarda-pó e as luvas, colocou o pedaço de fita adesiva num tubo, que inseriu num recipiente de alumínio de cinqüenta centímetros que continha o cristal de germânio. Finalmente, ele empilhou tijolos de chumbo dos dois lados da amostra, para protegê-la da radiação de fundo.

Ativar o processo exigia apenas teclar um comando no computador. Um sensor no recipiente começou a medir a radioatividade, o que nos diria qual era o isótopo em questão. Aquilo tudo era novidade para mim, pois eu estava acostumada a instrumentos complicados como microscópios de varredura eletrônica e cromatógrafos a gás. Aquele detetor, por sua vez, não passava de uma casinha de chumbo resfriada por nitrogênio líquido, aparentemente incapaz de qualquer pensamento inteligente.

"Bem, se assinar o recibo", falei, "poderei ir embora."

"Talvez leve uma ou duas horas. Difícil dizer", ele respondeu.

Ele assinou o formulário e eu lhe entreguei uma cópia.

"Passarei aqui depois de visitar Lucy."

"Venha comigo. Vou acompanhá-la para garantir que não mexa em nada. Tudo bem com ela?", ele perguntou quando passamos pelos detetores, que não se manifestaram. "Ela já esteve no mit?"

"Fez um estágio lá, no outono", respondi. "Em robótica. Agora voltou para cá. Vai ficar um mês, pelo menos."

"Não sabia. Isso é ótimo. O que está estudando?"

"Realidade virtual, pelo que me disse."

Matthews pareceu perplexo, por um momento. "Ela não fez isso quando esteve aqui antes?"

"Acho que é uma pesquisa avançada."

"Imagino que seja." Ele sorriu. "Gostaria de ter pelo menos um aluno como ela por classe."

Lucy provavelmente fora a única estudante da uva, fora do curso de física, a cursar energia nuclear por curiosidade. Saí e andei até o carro. Marino fumava do lado de fora, encostado no capo.

"E então?", ele disse, ainda de cara fechada.

"Acho que vou fazer uma surpresa para minha sobrinha, e convidá-la para almoçar. Você é mais do que bem-vindo, se quiser vir conosco."

"Só preciso parar no posto Exxon ali adiante e usar o telefone público", ele disse. "Tenho de fazer umas ligações."

 

Ele me levou até a Rotunda, que brilhava branca ao sol. Era meu prédio favorito projetado por Thomas Jefferson. Segui pelos antigos caminhos pavimentados com tijolos, ladeados por colunas, entre árvores ancestrais. Os terraços uniam duas fileiras de casas privilegiadas, conhecidas como o Lawn.

Residir ali era um prêmio pela distinção acadêmica, embora para alguns fosse considerado uma honra duvidosa. Chuveiros e toaletes ficavam em outro prédio, nos fundos. Os quartos parcamente mobiliados não visavam necessariamente o conforto dos ocupantes. Mesmo assim, jamais ouvira uma queixa de Lucy. Ela amava a vida acadêmica na uva.

Ela estava em West Lawn, no Pavilhão M, com colunas coríntias de mármore de Carrara esculpidas na Itália. As venezianas do quarto 11 estavam fechadas e o jornal, em cima do capacho de entrada. Deduzi, perplexa, que ela ainda não se levantara. Bati na porta várias vezes, até ouvir barulho lá dentro.

"Quem é?", perguntou minha sobrinha.

"Sou eu", falei.

Depois de uma pausa, a surpresa: "Tia Kay?".

"Vai abrir a porta para mim?" Meu bom humor estava indo embora depressa, pois ela não parecia contente com a visita.

"Espere um pouquinho. Já vou."

A porta foi destrancada e aberta.

"Oi", ela disse, quando entrei.

"Espero não ter acordado você", falei, entregando o jornal.

"Ah, T. C. assinou", disse, referindo-se à amiga que ocupava oficialmente o quarto, "e se esqueceu de cancelar a assinatura quando foi para a Alemanha. Nunca tenho tempo para ler."

Entrei num cômodo não muito diferente do quarto que eu havia conhecido na visita do ano anterior. O local era pequeno, tinha uma cama, uma pia e estantes cheias de livros. O assoalho de tábuas de pinho sem tapete combinava com as paredes nuas, onde só havia um pôster de Anthony Hopkins em Terra das sombras. Os interesses científicos de Lucy ocupavam mesas, a escrivaninha e até algumas cadeiras. Outros equipamentos, como aparelho de fax e o que parecia ser um pequeno robô, estavam no chão.

Havia linhas telefônicas adicionais instaladas e ligadas a modems com luzinhas verdes que piscavam sem parar. Não me parecia que minha sobrinha morava ali sozinha, pois vi duas escovas de dente na pia e solução para limpeza de lentes de contato, que ela não usava. Os dois lados da cama de casal estavam desarrumados, e em cima da cama havia uma mala que eu não conhecia.

"Pronto." Ela tirou a impressora de cima da cadeira e a puxou para perto do fogo. "Sente-se. Desculpe-me, isso aqui está uma bagunça." Ela usava um agasalho de moletom cor de laranja da uva e calça jeans. O cabelo estava molhado. "Posso esquentar água", disse, e percebi que estava constrangida.

"Se está oferecendo chá, aceito", falei.

Observei-a atentamente, enquanto ela enchia uma chaleira elétrica com água e a ligava na tomada. Ali perto, em cima da cômoda, vi a credencial do fbi, uma pistola e as chaves do carro. Notei pastas e folhas de papel com anotações e roupas que eu não conhecia penduradas.

"Me conte sobre T. C", pedi.

Lucy abriu um saquinho de chá. "Estuda alemão. Vai passar seis semanas em Munique. Aí, ela disse que eu poderia ficar aqui no quarto dela."

"Foi muita gentileza. Gostaria que eu a ajudasse a guardar as coisas dela, para você ter espaço para as suas?"

"Não precisa fazer nada, por enquanto."

Olhei para a janela, ao ouvir um ruído.

"Ainda gosta de chá preto?", Lucy disse.

O fogo crepitou, a fumaça mudou de direção e eu não me surpreendi quando a porta se abriu e uma mulher entrou. Mas não esperava ver Janet ali, e ela não esperava me encontrar.

"Doutora Scarpetta", ela disse, surpresa, trocando um olhar com Lucy. "Que bom receber sua visita."

Ela carregava apetrechos para banho e usava um boné de beisebol em cima do cabelo molhado que batia no ombro. Usava conjunto esportivo e tênis. Era linda, saudável e assim como Lucy parecia ainda mais jovem por estar novamente no campus de uma universidade.

"Venha tomar chá conosco", Lucy disse a ela enquanto me passava uma caneca.

"Estávamos correndo um pouco", Janet disse, sorridente. "Meu cabelo está vim horror. Então, o que a trouxe aqui?", perguntou, sentando-se no chão.

"Preciso de ajuda num caso", falei. "Você também está fazendo o curso de realidade virtual?" Estudei a fisionomia das duas.

"Isso mesmo", Janet disse. "Lucy e eu estamos fazendo o curso juntas. Talvez já saiba que fui transferida para o escritório de Washington, no ano passado."

"Lucy me contou."

"Estou na divisão dos crimes de colarinho branco", ela explicou. "Principalmente casos relacionados à violação do IOC."

"O que é isso?", perguntei.

Lucy, sentada a meu lado, encarregou-se de responder. "Lei de Interceptação das Comunicações. Somos o único grupo no país com especialistas capazes de lidar com casos desse tipo."

"E o Bureau mandou vocês duas para cá em treinamento por causa desse tal grupo." Eu me esforçava para entender. "No entanto, não vejo o que realidade virtual pode ter a ver com hackers que invadem computadores", acrescentei.

Janet permaneceu em silêncio enquanto tirava o boné e escovava o cabelo, olhando para o fogo. Dava para notar que estava muito constrangida, e não pude deixar de cogitar o quanto sua atitude teria a ver com o que acontecera em Aspen no feriado. Minha sobrinha aproximou-se da lareira e olhou para mim.

"Não estamos aqui para fazer um curso, tia Kay", ela disse, séria e contida. "Mas preferimos que as pessoas pensem isso. Vou ter de contar tudo agora, quando não deveria, mas é tarde demais para continuar mentindo."

"Você não precisa me contar nada", falei. "Eu entendo."

"Não." Seus olhos brilhavam. "Quero que entenda o que está acontecendo. Vou fazer um resumo rápido. No outono passado a Commonwealth Power & Light começou a ter problemas. Um suposto hacker teria entrado no sistema de computador da companhia. As tentativas de invasão tornaram-se freqüentes - chegavam a quatro ou cinco vezes por dia. Mas eles não conseguiram identificar o autor, até que o indivíduo deixou pistas no sistema de registro, depois de acessar e imprimir dados a respeito de contas de usuários. Fomos chamadas, e conseguimos descobrir que a origem do ataque era a uva."

"Então, ainda não conseguiram pegar o sujeito, seja lá quem for", falei.

"Não." Janet encarregou-se de falar. "Interrogamos o estudante identificado como autor, mas definitivamente ele não é o hacker. Temos motivos para garantir isso."

"O que interessa", Lucy disse, "é que diversas identidades foram roubadas dos estudantes desde então. Com elas, o criminoso tentou acessar o computador da cp&l, bem como o computador da universidade e outro em Pittsburgh."

"Tentou?"

"Na verdade ele anda bem quieto recentemente, o que dificulta as coisas para nós", Janet disse. "Em geral, procuramos localizá-lo no computador da universidade."

"Isso mesmo", Lucy disse. "Não conseguimos perceber sua presença no computador da cp&l faz quase uma semana. Acho que é por causa dos feriados."

"Por que alguém faria uma coisa dessas?", perguntei. "Vocês têm alguma teoria?"

"Uma demonstração de força, sem trocadilho", Janet disse. "Talvez queira apagar e acender a luz na Virgínia e nas duas Carolinas, de farra. Como é que a gente pode saber?"

"De todo modo, acreditamos que o sujeito, seja lá quem for, está no campus, atacando via Internet e outra conexão, chamada Telnet", Lucy disse, acrescentando confiante: "Vamos pegá-lo".

"Importa-se se eu perguntar por que tanto segredo?", falei a minha sobrinha. "Você não poderia simplesmente ter dito que estava trabalhando num caso confidencial?"

Ela hesitou antes de responder. "A senhora faz parte do conselho da universidade, tia Kay."

Era verdade, e eu nem havia pensado nisso. Embora fosse apenas professora visitante de patologia e medicina legal, considerei válido o argumento de Lucy. Não a censurava por me ocultar aquilo, ainda mais porque havia outra razão. Ela queria manter sua independência, principalmente ali, onde todos sabiam de seu parentesco comigo durante o curso de graduação.

Olhei para ela. "Por isso saiu de Richmond com tanta pressa, naquela noite?"

"Recebi uma mensagem pelo pager."

"Minha", Janet explicou. "Eu estava vindo para cá de avião, de Aspen, acabei me atrasando etc. Lucy foi me apanhar no aeroporto e viemos para cá."

"E houve outras tentativas de invadir os computadores durante os feriados?"

"Algumas. O sistema está sendo monitorado constantemente", Lucy disse. "Não estamos sozinhas nisso, obviamente. Somos apenas agentes infiltradas aqui para poder investigar mais à vontade."

"Por que não me acompanha até a Rotunda?", falei, ao me erguer. Elas também se levantaram. "Marino já deve estar de volta com o carro." Abracei Janet, e seu cabelo cheirava a limão. "Cuide-se, e apareça para me visitar", eu disse. "Considero você parte da família. Só Deus sabe como estava na hora de aparecer alguém para ajudar a tomar conta dessa aí." Sorri, passando o braço em volta do ombro de Lucy.

Lá fora, ao sol, estava suficientemente quente para usar apenas pulôver. Eu teria gostado de ficar mais, se pudesse. Lucy não relaxou durante a curta caminhada, e percebi que se preocupava com a possibilidade de que nos vissem juntas.

"É como nos velhos tempos", falei, jogando conversa fora para ocultar minha mágoa.

"Como assim?", ela perguntou.

"Sua ambivalência a respeito de ser vista comigo."

"Isso não é verdade. Eu sentia orgulho."

"E agora não sente mais", falei, com ironia.

"Talvez eu quisesse que você se sentisse orgulhosa por estar comigo", ela disse. "Em vez de ser sempre o contrário. Era isso que eu estava querendo dizer."

"Sinto orgulho de você, sempre senti, mesmo quando aprontava tanto que me dava vontade de trancá-la no porão."

"Isso é chamado de maus-tratos contra criança."

"Não, no seu caso, o veredicto do júri seria maus-tratos contra tia. Mas pode confiar em mim", falei. "Fiquei contente em saber que você e Janet se entenderam e que estão juntas, agora que ela voltou de Aspen."

Minha sobrinha parou e olhou para mim, forçando os olhos por causa do sol. "Obrigada pelo que disse a ela. Foi importante, principalmente neste momento."

"Eu disse a verdade, apenas", falei. "Talvez um dia a família dela faça isso, também."

Vimos o carro de Marino. Ele estava sentado lá dentro, fumando, como de hábito.

Lucy encostou na porta, do lado dele. "Ei, Pete", ela disse, "você precisa lavar este carro."

"Preciso coisa nenhuma", ele resmungou, jogando o cigarro fora antes de descer.

Ele olhou em volta, e a cena de Marino ajeitando as calças e inspecionando o carro, pois não conseguia evitar, foi demais. Lucy e eu rimos, enquanto ele tentava ficar sério. No fundo, adorava ser provocado. Brincamos com ele mais um pouco e Lucy foi embora. Um Lexus dourado último tipo com vidro escuro passou. Era o mesmo carro que nos seguira. Não conseguimos ver o motorista, oculto atrás do vidro espelhado.

"Isso está começando a me dar nos nervos", Marino disse, acompanhando o carro com os olhos.

"Você poderia checar a placa", falei, embora fosse óbvio.

"Já fiz isso." Ele ligou o carro e deu marcha à ré. "O sistema caiu."

Ele se referia ao computador do Departamento de Veículos Motorizados. O sistema vivia caindo, pelo jeito. Voltamos para o prédio do reator, mas Marino recusou-se a entrar quando chegamos lá. Deixei-o no estacionamento, e desta vez o rapaz atrás do vidro me disse que eu poderia entrar sozinha.

"Ele está no porão", falou, sem tirar os olhos da tela do computador.

Encontrei Matthews na sala de medição, sentado na frente de uma tela de computador que mostrava um espectro em preto e branco.

"Ah! Oi", disse, ao me ver a seu lado.

"Parece que você deu sorte", falei. "Embora eu não tenha bem certeza do que estou vendo. Talvez seja muito cedo."

"Não", ele disse. "Você chegou na hora. Essas linhas verticais indicam as energias dos raios gama significativos que foram detectados. Uma linha é igual a uma energia. No entanto, a maioria das linhas que estamos vendo aqui vêm da radiação de fundo." Ele me mostrou na tela. "Sabe, nem mesmo os tijolos de chumbo conseguem eliminá-la totalmente."

Sentei-me a seu lado.

"O que estou tentando mostrar, doutora Scarpetta, é que a amostra que a senhora trouxe não está liberando raios gama de alta energia quando decai. Se olhar aqui, neste espectro energético", ele fitava a tela, "verá que temos o raio gama característico para urânio dois-trinta-e-cinco." Ele tocou um pico na tela.

"Certo", falei. "E o que isso significa?"

"É a coisa." Ele olhou para mim.

"O material usado em reatores nucleares", falei.

"Exatamente. O material que usamos para preparar cápsulas ou hastes de combustível. Mas, como provavelmente já sabe, só 0,3 por cento do urânio é dois-trinta-e-cinco. O resto está esgotado."

"Certo. O resto é urânio dois-trinta-e-oito", falei.

"E é isso que temos aqui."

"Se ele não está liberando raios gama de alta energia", falei, "como pode saber isso examinando o espectro energético?"

"Porque o cristal de germânio está detectando urânio dois-trinta-e-cinco. Como a porcentagem dele é tão reduzida, isso indica que a amostra em questão só pode ser de urânio esgotado."

"Não poderia ser combustível usado proveniente de um reator nuclear", pensei em voz alta.

"Não poderia, mesmo", ele concordou. "Não há material de fissão misturado em sua amostra. Nada de iodo, césio, estrôncio, bário. Você já teria identificado tudo isso antes no microscópio."

"Nenhum isótopo do gênero surgiu até agora", concordei. "Só urânio e elementos irrelevantes que se espera encontrar na terra grudada no sapato de alguém."

Olhei para os picos e vales do que poderia ser um cardiograma assustador, enquanto Matthews tomava nota das observações.

"Quer que eu imprima o resultado?", ele perguntou.

"Por favor. Para que serve o urânio esgotado?"

"Em geral, para nada." Ele digitou vários comandos.

"Se não veio de uma usina nuclear, qual a sua origem?"

"Provavelmente de um local que realiza separação de isótopos."

"Como Oak Ridge, no Tennessee", sugeri.

"Lá eles não fazem mais isso. No entanto, passaram décadas fazendo, e sem dúvida há depósitos de urânio. Atualmente, há locais de processamento em Portsmouth, no Ohio. E em Paducah, no Kentucky."

"Doutor Matthews", falei, "supondo que alguém tivesse urânio na sola do sapato e o deixasse no chão de um carro. O senhor teria alguma explicação lógica para isso? Como aconteceu, ou por quê?"

"Não." Seu rosto continuou impassível. "Creio que não."

Pensei nas formas dentadas e esféricas reveladas pelo microscópio eletrônico e tentei novamente. "Por que alguém derreteria urânio dois-trinta-e-oito? Por que o trabalhariam numa máquina?"

Mais uma vez, ele não fazia a menor idéia.

"O urânio esgotado tem algum uso ou aplicação?", perguntei.

"No geral, a indústria pesada não usa urânio metálico", ele respondeu. "Nem mesmo as usinas nucleares, pois as hastes e cápsulas são cerâmicas, de oxido de urânio."

"Talvez seja melhor perguntar para que o urânio esgotado poderia ser usado, em teoria", insisti, reformulando a questão.

"Há algum tempo o Departamento de Defesa andou falando em usar urânio na blindagem dos tanques. E sugeriram empregar o material na confecção de balas e outros projéteis. Vamos ver. Acho que o único outro uso possível seria como escudo para proteção contra material radioativo."

"Que espécie de material radioativo?", perguntei, sentindo a adrenalina fluir. "Combustível radioativo usado, por exemplo?"

"Seria uma boa idéia, se soubéssemos como dar um fim ao lixo atômico neste país", ele disse, meditativo. "Sabe, se o lixo pudesse ser retirado e enterrado a quinhentos metros de profundidade, debaixo da montanha Yucca, em Nevada, por exemplo, então o U-238 poderia ser usado para forrar os recipientes de transporte."

"Em outras palavras", falei, "se os resíduos radioativos forem removidos de uma usina nuclear, precisarão estar guardados dentro de um recipiente, e o urânio esgotado daria um escudo protetor melhor do que o chumbo."

Ele disse que se referia a isso, precisamente, e me devolveu a amostra, pois era uma prova material e poderia ser útil num julgamento, algum dia. Eu não ia deixá-la ali, mesmo sabendo como Marino se sentiria quando a devolvesse para o porta-malas do carro dele. Encontrei-o andando de um lado para outro, de óculos escuros.

"O que fazemos agora?", ele perguntou.

"Abra o porta-malas, por favor."

Ele entrou no carro e puxou a alavanca, dizendo: "Estou avisando, isso aí não vai ficar na sala de provas da minha delegacia, nem na sede. Ninguém vai cooperar, mesmo que eu peça".

"Precisa ser guardado em algum lugar", falei calmamente. "Tem uma caixa de cervejas no porta-malas."

"Assim eu não preciso parar para comprar mais tarde."

"Qualquer dia desses você vai se dar mal." Fechei o porta-malas da viatura policial.

"Então, que tal guardar o urânio em seu escritório?", ele disse.

"Pode ser." Entrei no carro. "Vou fazer isso."

"Então, como foi?", ele perguntou, dando a partida.

Fiz um resumo, deixando de fora o máximo de detalhes científicos que consegui.

"Está dizendo que alguém deixou lixo atômico no seu Mercedes?", ele perguntou, abismado.

"Pelo jeito, foi isso. Preciso passar no quarto de Lucy e conversar uma coisa com ela."

"Por quê? O que ela tem a ver com esta história?"

"Não sei se ela tem ou não", falei, enquanto ele descia o morro. "Mas tive uma idéia maluca."

"Odeio quando você tem essas idéias."

Janet ficou preocupada quando voltei a bater no quarto delas, desta vez acompanhada de Marino.

"Está tudo bem?", ela perguntou, abrindo a porta para que entrássemos.

"Acho que preciso da ajuda de vocês", falei. "Quer dizer, nós dois precisamos."

Lucy estava sentada na cama, com um caderno aberto no colo. Ela olhou para Marino. "Pode dizer. Mas cobramos a consulta."

Ele se sentou ao lado da lareira. Peguei uma cadeira e me acomodei a seu lado.

"A tal pessoa que andou entrando no computador da cp&l", falei. "Sabemos o que ele acessou, além das contas dos usuários?"

"Não posso afirmar que saibamos tudo", Lucy respondeu. "Mas ele entrou nas contas, com certeza. E nas informações a respeito dos usuários em geral."

"Como assim?", Marino perguntou.

"Os dados sobre os usuários incluem endereço para remessa, telefone, serviços especiais, média de consumo. E alguns usuários participam do programa de aquisição de ações..."

"Vamos falar das ações", interrompi. "Eu participo do tal programa de aquisição. Parte do dinheiro que eu gasto todos os meses vai para ações da cp&l. Portanto, a empresa guarda algumas informações financeiras a meu respeito, inclusive o número da minha conta bancária e do seguro social." Parei, para refletir. "Este tipo de coisa poderia ser importante para um pirata de computador?"

"Teoricamente, sim", Lucy disse. "É preciso ter em mente que um banco de dados monstruoso como o da cp&l não fica instalado apenas num lugar. Eles têm outros sistemas com canais de acesso, o que pode explicar o interesse do hacker pelo mainframe de Pittsburgh."

"Talvez explique, para você", Marino disse, sempre impaciente com as explicações de Lucy sobre os computadores. "Mas não explica porra nenhuma para mim."

"Se considerar os canais de comunicação como vias expressas de um mapa - como a 1-95, por exemplo", ela disse, paciente, "então, se você for de uma a outra, teoricamente pode navegar pela rede mundial. Conseguir qualquer coisa que desejar."

"O quê, por exemplo?", perguntei. "Pode me dar uma idéia mais nítida?"

Ela deixou o caderno de lado e deu de ombros. "Se eu entrasse no computador de Pittsburgh, meu passo seguinte seria a at&t."

"Aquele computador dá acesso ao sistema telefônico?", perguntei.

"Ele e alguns outros. Jan e eu estávamos trabalhando com esta hipótese - o pirata em questão pretendia usar eletricidade e telefone sem pagar a conta."

"Claro, no momento é apenas uma teoria", Janet disse. "Até agora, não temos indícios de qual seja a motivação do hacker. De qualquer maneira, do ponto de vista do fbi, as invasões de computadores são contra a lei. É isso que conta."

"Sabe quais foram os registros de usuários da cp&l que ele acessou?", perguntei.

"Sabemos que o elemento tem acesso a todos os usuários", Lucy respondeu. "E estamos falando de milhões de pessoas. Mas ele só examinou detalhadamente alguns poucos registros. E nós sabemos quais foram."

"Gostaria de vê-los", falei.

Lucy e Janet pararam de falar.

"Para quê?", Marino perguntou, arregalando os olhos para mim. "O que está pretendendo, doutora?"

"Estou pretendendo chegar às usinas nucleares que usam urânio como combustível, e a cp&l tem duas usinas nucleares com essas características na Virgínia e uma no Delaware. O computador central delas foi invadido. Ted Eddings ligou para meu departamento fazendo perguntas sobre radioatividade. Em seu computador pessoal havia vários arquivos com informações sobre a Coréia do Norte e suspeitas de que lá se tentava obter plutônio de uso militar em reatores nucleares de usinas."

"E na hora em que começamos a pesquisar em Sandbridge passamos a ser observados", Lucy acrescentou. "Aí alguém corta os pneus dos nossos carros e o detetive Roche ameaça você. Agora Danny Webster vem para Richmond e aparece morto. Ao que tudo indica, o assassino deixou vestígios de urânio em seu carro." Ela olhou para mim. "Pode dizer o que você gostaria de examinar."

Eu não precisava de uma lista completa dos usuários dos serviços da empresa, que incluía praticamente todo mundo na Virgínia, inclusive eu e meu departamento. Interessava-me pelos registros que haviam sido consultados, e me deparei com uma lista curta porém curiosa. De cinco nomes só não reconheci um.

"Alguém sabe quem é Joshua Hayes? Tem uma caixa postal em Suffolk", falei.

"Até agora", Janet disse, "só conseguimos descobrir que ele é fazendeiro."

"Tudo bem", falei, seguindo em frente. "Temos Brett West, um executivo da cp&l. Não sei qual é o cargo dele." Olhei para o printing.

"Vice-presidente executivo, responsável por Operações", Janet disse.

"Ele mora numa daquelas mansões de tijolo aparente, perto da sua casa, doutora", Marino disse. "Em Windsor Farms."

"Morava. Se olhar a conta", Janet alertou, "verá que ele mudou em outubro passado. Pelo jeito, agora vive em Williamsburg."

Havia outros dois executivos da cp&l cujos registros haviam sido examinados por quem estava entrando ilegalmente no sistema pela Internet. Um deles era o presidente, outro, o diretor executivo. Contudo, a identidade da quinta vítima da curiosidade eletrônica foi o que realmente me assustou.

"Capitão Green", falei, olhando abismada para Marino.

Seu rosto permaneceu imperturbável. "Não faço a menor idéia de quem seja."

"Ele estava presente no estaleiro de navios desativados quando tirei o corpo de Eddings da água", falei. "Ele trabalha para o Serviço de Investigação da Marinha."

"Entendi." O rosto de Marino se anuviou. O caso de violação da lei de interceptação de comunicações de Lucy e Janet sofreu uma reviravolta dramática.

"Não chega a ser surpresa que o invasor esteja curioso para saber coisas a respeito dos altos executivos da companhia elétrica, mas não vejo onde o Serviço de Investigação da Marinha se encaixa nesta história", Janet disse.

"E eu não sei se quero saber isso", falei. "Contudo, o que Lucy disse a respeito das ligações entre os computadores é relevante. Talvez o destino final, para este hacker, seja a conta de telefone de certas pessoas."

"Por quê?", Marino perguntou.

"Para saber com quem elas conversam", respondi, fazendo uma pausa. "O tipo de informação que interessa a um repórter, por exemplo."

Levantei-me da cadeira e comecei a andar, sentindo o medo mexer com meus nervos. Pensei em Eddings envenenado no bote, em Black Talons e no urânio. Lembrei-me de que a fazenda de Joel Hand ficava para os lados de Tidewater.

"O sujeito chamado Dwain Shapiro, dono da bíblia encontrada na casa de Eddings", falei a Marino, "ele morreu num suposto roubo de carro. Temos outras informações a respeito?"

"No momento, não."

"Talvez tenham procurado fazer com que a morte de Danny também parecesse casual", falei.

"Ou a sua, no caso. Especialmente por causa do tipo de carro. Se temos um crime encomendado, talvez o pistoleiro não soubesse que Scarpetta era mulher", Janet disse. "Talvez o sujeito estivesse nervoso e soubesse apenas que deveria matar o motorista daquele carro."

Parei perto da lareira enquanto ela falava.

"Ou talvez o assassino não tenha percebido que era Danny no carro e não você até que fosse tarde demais. E aí sobrou para Danny."

"Por que eu?", perguntei. "Qual seria o motivo?"

Lucy encarregou-se de responder: "Obviamente, eles pensavam que você sabia demais".

"Eles quem?"

"Os neo-sionistas, talvez. Pelo mesmo motivo, mataram Ted Eddings", disse. "Eles acharam que sabia algo, ou que ia denunciá-los por algum motivo."

Olhei para minha sobrinha e para Janet. Minha ansiedade aumentou.

"Pelo amor de Deus", falei com veemência, "não mexam mais nisso até que eu possa falar com Benton ou alguma outra pessoa. Droga! Não quero que pensem que vocês também sabem de algo."

Mas eu tinha certeza de que Lucy, pelo menos, não me obedeceria. Ela pularia para o teclado, com entusiasmo redobrado, no momento em que eu fechasse a porta.

"Janet?" Olhei para minha única esperança de uma atitude mais cautelosa e segura. "Seu hacker muito provavelmente está ligado ao assassinato de várias pessoas."

"Doutora Scarpetta", ela disse, "eu compreendo."

Marino e eu deixamos a uva. O Lexus dourado que havíamos visto em duas ocasiões, naquele dia, nos seguiu por todo o caminho de volta a Richmond. Marino dirigia com os olhos grudados no retrovisor. Suava muito e estava furioso porque o computador do registro de veículos ainda não estava funcionando. O número da placa que havia fornecido não retornara com os dados. A pessoa atrás de nós, naquele carro, era jovem e branco. Usava óculos escuros e boné.

"Ele não se importa se soubermos quem ele é", falei. "Se se importasse, não agiria de modo tão descarado, Marino. Trata-se de mais uma tentativa de intimidação."

"Pode crer. Mas já vamos ver quem intimida quem", ele disse, reduzindo a velocidade.

Com os olhos fixos no retrovisor, Marino diminuiu ainda mais a marcha. O outro carro se aproximou. De repente, ele meteu o pé no freio com força. Não sei quem ficou mais espantado, o sujeito que nos seguia ou eu. Os pneus do Lexus cantaram, ouvi buzinas por todos os lados e o carro entrou na traseira do Ford de Marino.

"Puxa vida", ele disse. "Parece que alguém acabou de bater na traseira de um policial."

Ele desceu do carro e sutilmente destravou o coldre, enquanto eu assistia a tudo incrédula. Tirei a pistola e a coloquei no bolso do casaco, decidindo que era melhor sair também, uma vez que não fazia a menor idéia do que ia acontecer em seguida. Marino aproximou-se da porta do Lexus, observando o trânsito a suas costas, enquanto falava pelo rádio.

"Mantenha as mãos onde eu possa vê-las", ordenou ao motorista em voz alta, autoritário. "Agora pegue a carta de motorista. Bem devagar."

Eu estava do outro lado do carro, perto da porta do passageiro. Soube quem era o sujeito antes que Marino visse a carta e a fotografia.

"Ora, ora, detetive Roche", Marino disse, levantando a voz acima do ruído do trânsito. "Que coincidência trombar com você aqui. Ou vice-versa." Sua voz era dura. "Saia do carro. Agora. Está portando uma arma de fogo?"

"Está entre os bancos, à vista", ele disse, com frieza.

Roche desceu do carro, lentamente. Era alto e esguio. Usava calça de brim grosso, casaco de denim, botas e um relógio preto grande, de mergulhador. Marino fez com que se virasse e ordenou que mantivesse as mãos à vista. Fiquei onde estava, e os óculos escuros de Roche se fixaram em mim, o sorrisinho convencido.

"Então me diga, detetive Fantoche", Marino falou, "para quem está espionando, hoje? Talvez tenha conversado um pouco com o capitão Green, usando o telefone celular, não é? Andou contando para ele tudo que fizemos hoje, onde fomos, o quanto você nos assustava sempre que o víamos pelo espelho retrovisor? Ou agiu de modo tão óbvio porque é um burro de merda?"

Roche fechou a cara e não disse nada.

"Foi isso que você fez com Danny, também? Ligou para a oficina e disse que era o dono e queria saber a que horas o carro ficaria pronto? Depois passou a informação para a frente. Só que não era a doutora ao volante, naquela noite. E agora falta metade da cabeça do rapaz, porque um pistoleiro qualquer não sabia que deveria matar uma mulher, ou confundiu Danny com a doutora."

"Você não pode provar nada", Roche disse, com o mesmo sorriso de escárnio.

"Veremos o que eu posso provar quando conseguir a conta do seu celular." Marino aproximou-se mais de Roche, impondo sua presença avantajada, a ponto de quase tocá-lo com a barriga. "E, quando eu puder provar algo, você vai ter tantos motivos para se preocupar que nem se lembrará da multa de hoje. No mínimo, vou acusá-lo de cumplicidade num assassinato premeditado. Você vai pegar uns cinqüenta anos.

"Neste meio tempo", Marino enfiou o dedo em riste na cara dele, "não quero ver você por perto. Não me apareça nem a um quilômetro de distância. E acho melhor ficar longe da doutora, também. Você não sabe como ela é quando se irrita."

Marino ergueu o rádio e voltou ao ar para verificar a demora para a chegada de outros policiais ao local. Enquanto a solicitação era divulgada novamente uma viatura apareceu na 64. O carro parou atrás de nós, no acostamento, e uma policial feminina de Richmond desceu. Era um sargento, caminhava decididamente e mantinha a mão discretamente próxima da arma.

"Boa tarde, capitão." Ela ajustou o volume do rádio no cinto. "Qual é o problema?"

"Bem, sargento Schroeder, o elemento passou a maior parte do dia me seguindo", Marino disse. "Lamentavelmente, quando fui forçado a frear para evitar o atropelamento de um cachorro branco que cruzou a frente do meu veículo de repente, o elemento bateu em minha traseira."

"Acredita que tenha sido o mesmo cachorro branco?", a policial perguntou, sem sequer esboçar um sorriso.

"Pelo jeito, foi o mesmo cachorro que já nos causou problemas antes."

Eles continuaram com a brincadeira policial mais antiga do mundo. Quando havia um acidente automobilístico envolvendo um único veículo, a culpa sempre era de um misterioso cachorro branco que passava na frente do carro, desaparecendo para atacar novamente, o próximo motorista incompetente, que assim justificava sua imperícia.

"Ele tem no mínimo uma arma de fogo dentro do veículo", Marino acrescentou, em seu tom policial mais sério. "Quero que seja revistado antes de ser detido."

"Muito bem, afaste os braços e as pernas."

"Sou policial", Roche reclamou.

"Compreendo, senhor. Então sabe exatamente qual é o procedimento", a policial Schroeder disse, impassível.

Ela o revistou de alto a baixo, descobrindo um Coldre na altura do tornozelo da perna esquerda.

"Puxa vida, que surpresa", Marino disse.

"Senhor", a policial disse em voz mais alta, quando um carro de polícia, sem insígnias, parou, "retire o revólver do coldre e guarde-o dentro de seu veículo."

Um subchefe de polícia desceu do carro, resplandecente em seu uniforme de couro com detalhes de latão, e não estava exatamente animado por ter sido convocado ao local. No entanto, o regulamento exigia sua presença sempre que um capitão se envolvesse numa ocorrência policial, por irrelevante que fosse. Ele observou em silêncio Roche remover o Colt .380 do coldre de náilon preto, que guardou no Lexus. Roche estava vermelho de raiva quando foi colocado no banco traseiro da viatura para o interrogatório, enquanto eu aguardava dentro do Ford batido.

"E agora, o que vai acontecer?", perguntei a Marino, quando ele voltou.

"Ele vai ser acusado de dirigir próximo ao veículo da frente e libertado, conforme a lei da Virgínia." Marino prendeu o cinto, e parecia feliz da vida.

"Só isso?"

"É. Depois vai a julgamento. A boa notícia é que arruinei o dia dele. A ótima notícia é que temos algo para investigar que pode acabar mandando o cretino para Mecklenburg, onde fará muitos amigos, sendo tão gostosinho."

"Sabia que era ele, antes da batida?", perguntei.

"Não tinha a menor idéia de quem era." Voltamos para a pista.

"E o que ele disse, quando foi interrogado?"

"O esperado. Que eu brequei de repente."

"E foi isso mesmo."

"Pela lei, tenho todo o direito."

"E quanto ao fato de estar seguindo a gente? Ele deu alguma explicação?"

"Disse que passou o dia resolvendo problemas e passeando. Não sabia do que estávamos falando."

"Certo. E ele precisa levar duas armas para resolver seus problemas."

"Gostaria muito ( e saber como esse cara conseguiu dinheiro para comprar um carrão daqueles." Marino olhou para mim. "Provavelmente, ganha metade do que eu ganho. Mas um Lexus assim não sai por menos de cinqüenta paus."

"O Colt que ele portava também não é barato", falei. "Ele fatura um extra por aí."

"Capangas sempre dão um jeito."

"Acha que ele é só isso?"

"Sim, no geral. Creio que faz o trabalho sujo para alguém. Para Green, provavelmente."

O rádio nos interrompeu subitamente, com o apelo estridente de um alerta geral. Tivemos nossas respostas, e elas eram piores do que podíamos imaginar.

"Atenção todas as unidades. Recebemos um teletipo da polícia estadual com as seguintes informações", o operador falou. "A usina nuclear de Old Point foi invadida por terroristas. Houve tiroteio e vítimas fatais."

Fiquei sem fala, com o choque, enquanto a mensagem era repetida.

"O chefe de polícia ordenou que o departamento adote o plano de emergência A. Até o recebimento de instruções detalhadas todas as unidades em serviço permanecerão em seus postos. As ordens serão dadas em breve. Todos os comandantes de divisão devem se dirigir ao posto de comando montado na academia de polícia imediatamente."

"Uma ova." Marino disse, pisando até o fundo. "Vamos para o seu departamento."

 

A invasão da usina nuclear de Old Point foi tão rápida quanto terrível. Ouvimos as notícias incrédulos, enquanto Marino cruzava a cidade a toda velocidade. Não dissemos uma única palavra enquanto o repórter histérico presente no local transmitia sua impressão num tom várias oitavas acima do normal.

"A usina nuclear de Old Point foi tomada por terroristas", ele repetia. "O ataque ocorreu há cerca de quarenta e cinco minutos, quando;um ônibus levando pelo menos vinte homens disfarçados de funcionários da cp&l invadiu o prédio principal da administração. Consta que pelo menos três civis morreram." Sua voz trêmula competia com o ruído dos helicópteros que sobrevoavam a área. "Daqui podemos ver carros de bombeiro e viaturas policiais. Eles estão por toda parte, mas não podem se aproximar. Meu Deus, isso é horrível.

Marino estacionou na rua lateral do meu prédio. Por algum tempo ficamos ali, sem nos mover, escutando a mesma notícia várias vezes. Nada daquilo parecia real, pois a menos de cento e cinqüenta quilômetros de Old Point, ali em Richmond, a tarde estava linda. O trânsito fluía normalmente, as pessoas caminhavam nas calçadas como se nada estivesse acontecendo. Meus olhos arregalados não se fixavam em lugar algum, meus pensamentos não saíam das listas de coisas que eu precisava fazer.

"Vamos logo, doutora", Marino disse, desligando o motor. "Vamos para dentro. Preciso usar o telefone e falar com um dos tenentes. Precisamos tomar certas precauções, caso venha a faltar energia em Richmond, ou coisa pior."

Eu também precisava tomar uma série de providências, a começar por uma convocação geral para uma discussão na sala de reuniões. Logo no início, declarei estado de emergência estadual.

"Cada distrito deve ficar de sobreaviso, pronto para cumprir sua parte no plano de emergência", anunciei a todos os presentes. "Um desastre nuclear pode afetar todos os distritos. Obviamente, Tidewater é o mais exposto e o menos preparado. Doutor Fielding", falei a meu assistente principal, "gostaria que assumisse a responsabilidade por Tidewater e ocupasse a chefia quando eu não estiver lá."

"Farei o que for possível", ele disse, com bravura, embora ninguém em seu juízo perfeito desejasse a tarefa que ele acabara de receber.

"Bem, não sei onde vou estar enquanto isso durar", falei aos rostos ansiosos. "Vamos manter a rotina, por aqui. Quero que os corpos sejam trazidos para cá. Qualquer corpo de Old Point, digo. A começar pelas vítimas do tiroteio."

"E quanto aos outros casos de Tidewater?", Fielding indagou.

"Casos normais serão tratados conforme a rotina. Sei que temos outro técnico de autópsias para assumir a função até que possamos contratar alguém em definitivo."

"Alguma chance de que os corpos encaminhados para cá estejam contaminados?", o administrador perguntou. Era sempre o mais preocupado.

"Até o momento, estamos falando de vítimas de tiroteio", disse.

"Não estão contaminados, então?"

"Não."

"E depois? E os outros?", ele insistiu.

"Contaminação leve não é problema", falei. "Basta lavar os corpos e jogar fora a água com sabão e as roupas. Exposição aguda à radiação é diferente, principalmente se os corpos estiverem muito queimados, com presença de fragmentos radioativos, como aconteceu em Chernobyl. Corpos nessas condições terão de ser guardados num caminhão refrigerado especial, e todas as pessoas que precisarem entrar em contato com eles deverão usar trajes revestidos com chumbo."

"Estes corpos serão cremados?"

"Eu recomendaria que sim. Mais uma razão para que sejam trazidos a Richmond, aliás. Podemos usar o crematório do Departamento de Anatomia."

Marino enfiou a cabeça pela porta da sala de reuniões. "Doutora?" E gesticulou para que eu saísse.

Saí, e conversamos no corredor.

"Benton exige nossa presença imediata em Quantico", disse.

"Bem, agora não dá", falei.

Olhei para a sala de reuniões. Pela porta entreaberta notei que Fielding argumentava, enquanto um dos médicos parecia tenso e contrariado.

"Tem uma maleta para passar a noite fora?", Marino prosseguiu, sabendo que eu sempre tinha uma à mão.

"Isso é realmente necessário?", reclamei.

"Eu lhe diria, se não fosse."

"Preciso de quinze minutos para encerrar a reunião."

Tentei ao máximo acabar com medos e confusões, dizendo depois aos médicos que eu poderia me ausentar por vários dias, pois fora convocada para ir a Quantico. Mas estaria sempre com o pager. Em seguida, Marino e eu pegamos o meu carro, e não o dele, pois ele já havia mandado a viatura para a oficina, consertar o pára-choque amassado por Roche. Seguimos para o norte pela 95, com o rádio ligado. De tanto ouvir a história, já a conhecíamos melhor do que os próprios repórteres.

Nas duas últimas horas ninguém morrera em Old Point, segundo as informações disponíveis. Os terroristas soltaram dúzias de pessoas. Os afortunados puderam sair em grupos de dois ou três, disseram os repórteres. As equipes médicas, polícia e fbi estavam interceptando todos, para exames e interrogatório.

Chegamos a Quantico por volta das cinco. Fuzileiros navais em uniformes camuflados enfrentavam com vigor a aproximação rápida da noite. Formavam grupos em torno dos caminhões e atrás das barricadas de sacos de areia no campo de tiro. Quando passamos perto de um pelotão, reunido na beira da estrada, senti dor ao ver faces tão jovens. Fizemos a curva e chegamos aos edifícios altos de tijolo marrom que se elevavam acima das copas das árvores. O conjunto não parecia uma instalação militar. Na verdade, poderia ser uma universidade, não fosse pelas antenas no telhado. A via que conduzia ao conjunto era interrompida por um portão de acesso no qual barreiras de pontas de aço arreganhavam os dentes para os pneus dos carros de quem seguisse pelo lado errado.

Um guarda armado saiu da guarita e sorriu, autorizando nossa entrada, pois não éramos estranhos. Estacionamos no terreno amplo que ficava na frente do prédio mais alto, chamado de Jefferson. Ali se situava o centro nervoso da Academia. Havia agência de correio, estande de tiro, sala de refeições e rádio. Nos andares superiores os dormitórios incluíam suítes de segurança máxima para testemunhas sob proteção e espiões.

Novos agentes de fardas caqui e azul-escuras limpavam pistolas na sala de armas. Era como se eu tivesse passado a vida cheirando solvente. Bastava acionar a memória para ouvir o som do ar comprimido percorrendo canos e outras partes, sempre que desejasse. Minha história se misturava à daquele lugar. Raros cantos não despertavam alguma emoção, pois ali eu me apaixonara e para aquele prédio levara meus casos mais terríveis. Aprendera e ensinara naquelas salas de aula, e sem saber dera-lhes minha sobrinha.

"Só Deus sabe o que temos pela frente", Marino disse, quando entramos no elevador.

"Vamos dar um passo de cada vez", falei, enquanto os agentes novatos do fbi, usando bonés, desapareciam atrás de portas de aço.

Ele apertou o botão do subsolo, que fora construído para ser o abrigo contra bombas de Hoover, numa outra época. A unidade de perfis psicológicos, como ainda éramos chamados pelo mundo exterior, funcionava a vinte metros da superfície, sem janelas ou outra distração dos horrores que testemunhávamos. Francamente, nunca entendi como Wesley conseguia suportar o local, ano após ano. Sempre que eu participava de reuniões que duravam mais do que um dia, ficava meio maluca. Sentia necessidade de sair e caminhar um pouco, ou andar de carro. Sair dali.

"Um passo de cada vez?", Marino repetiu, quando o elevador parou. "Não há passo ou pulo capaz de ajudar a resolver este caso." Estamos um dia atrasados, com a conta no vermelho. Começamos a reunir as peças do quebra-cabeças depois que o jogo já tinha acabado."

"Ainda não acabou", falei.

Passamos pela recepção e viramos para pegar o corredor que conduzia à sala do chefe da unidade.

"Bem, vamos esperar que não acabe tudo num estalo. Merda. Se tivéssemos descoberto antes." Suas passadas eram longas e cheias de raiva.

"Marino, não tínhamos como saber. Não havia meio."

"Bem, acho que deveríamos ter deduzido algo antes. Em Sandbridge, quando você recebeu aquele telefonema maluco, ou quando aconteceram as outras coisas."

"Pelo amor de Deus", falei. "O que poderíamos ter feito? Um telefonema seria o bastante para que percebêssemos que um bando de terroristas pretendia invadir uma usina nuclear?"

A secretária de Wesley era nova, e eu não me lembrava de seu nome.

"Boa tarde", falei. "Wesley está?"

"Quem deseja falar com ele?", ela perguntou, com um sorriso.

Após as identificações, a secretária o chamou pelo inter-fone. Não conversavam muito.

Ela nos olhou ao desligar, dizendo: "Podem entrar".

Wesley, sentado à mesa, levantou-se quando entramos. Tipicamente, parecia preocupado e sombrio, num terno cinza espinha de peixe e gravata cinza e preta.

"Acho melhor passarmos para a sala de reuniões", ele disse.

"Por quê?" Marino puxou uma cadeira. "Está esperando mais gente?"

"Para falar a verdade, estou", ele respondeu.

Parei onde estava. Eu não ia olhar para ele mais do que o estritamente necessário.

"Pensando bem", Wesley reconsiderou, "podemos ficar aqui. Esperem." Ele foi até a porta. "Emily, por favor, traga outra cadeira."

Ela trouxe, e nos acomodamos. Wesley estava passando por maus bocados, esforçando-se para manter a cabeça no lugar e tomar as decisões corretas. Eu o conhecia bem, quando estava sobrecarregado. Percebi que estava assustado.

"Vocês já sabem o que está acontecendo", ele disse, como se soubéssemos.

"Sabemos o que todos já sabem", respondi. "Ouvimos a mesma notícia no rádio pelo menos cem vezes."

"Acho melhor contar tudo desde o início", Marino disse.

"A cp&l tem uma filial em Suffolk", Wesley começou. "Pelo menos vinte pessoas saíram de lá esta tarde, num ônibus, para um suposto seminário sobre manutenção na sala de controle simulado da usina de Old Point. Todos homens brancos, entre trinta e quarenta anos, fingindo ser funcionários, o que obviamente não eram. Conseguiram invadir o prédio principal, onde se situa a sala de controle."

"Estavam armados", falei.

"Sim. Quando chegou a hora de passar pelas máquinas de raios X e outros detetores no prédio principal, eles sacaram armas semi-automáticas. Como sabe, algumas pessoas morreram. Em nossa estimativa, pelo menos três funcionários da cp&l, além de um físico nuclear que visitava o local hoje e passou na hora errada pelos detetores."

"Quais são as exigências do grupo?", perguntei, sem idéia do quanto Wesley sabia, e há quanto tempo. "Eles já disseram o que pretendem?"

Ele olhou para mim. "Isso é o que mais nos preocupa. Não sabemos o que desejam."

"Mas eles deixaram que as pessoas saíssem", Marino disse.

"Sei disso. O que também me preocupa", Wesley disse. "Terroristas não costumam agir assim." O telefone tocou. "Este caso é diferente." Ele atendeu! "Sim", disse. "Ótimo. Mande-o entrar."

O general-de-divisão Lynwood Sessions usava farda da Marinha ao entrar na sala. Apertou a mão de todos nós. Era negro, tinha cerca de quarenta e cinco anos. Sua beleza original chamava a atenção. Ele não tirou a jaqueta, nem sequer a desabotoou ao se sentar e colocar uma valise grossa a seu lado.

"General, obrigado por vir", Wesley disse.

"Gostaria que fosse por um motivo mais alegre", ele falou, abaixando-se para pegar um bloco de anotações e uma pasta.

"Assim como todos nós", Wesley disse. "Este é o capitão Pete Marino, da polícia de Richmond, e a doutora Kay Scarpetta, legista-chefe da Virgínia." Ele olhou para mim e eu para ele. "Eles trabalham conosco. A doutora Scarpetta realizou as autópsias dos casos que acreditamos ter relação com os eventos de hoje."

O general Sessions balançou a cabeça, sem fazer comentários.

Wesley falou com Marino e comigo: "Vou tentar resumir para vocês o que sabemos, além dos fatos da crise imediata.

Temos motivos para acreditar que vasos de guerra do estaleiro desativado estão sendo vendidos a países que não deveriam poder comprá-los. Isso inclui Irã, Iraque, Líbia, Coréia do Norte e Argélia".

"Que tipo de embarcações?", Marino perguntou.

"Submarinos, principalmente. Também suspeitamos que o estaleiro está comprando embarcações de países como a Rússia para depois os revender."

"E por que não fomos informados disso antes?", perguntei.

Wesley hesitou. "Não tínhamos provas."

"Teci Eddíngs estava mergulhando no estaleiro quando morreu", falei. "Perto de um submarino."

Ninguém respondeu.

O general falou: "Ele era repórter. Supunha-se que estivesse mergulhando atrás de relíquias da Guerra de Secessão".

"E Danny, o que ele estava fazendo?" Medi bem as palavras, mas já estava ficando cansada daquele jogo. "Explorando um túnel de trem histórico, em Richmond?"

"É difícil saber o que Danny Webster estava fazendo", el.e disse. "Mas soube que a polícia de Chesapeake encontrou uma baioneta no porta-malas do carro, e ela tem as características da lâmina que cortou seus pneus."

Olhei para ele, por um longo tempo. "Não sei onde conseguiu essa informação, mas se o que está dizendo for verdade, aposto que a prova foi fornecida pelo detetive Roche."

"Creio que ele entregou a baioneta, realmente."

"Creio que todos aqui nesta sala são dignos de confiança", falei, enfrentando seu olhar. "Se houver uma catástrofe nuclear, por força de lei serei responsável por cuidar dos mortos. Várias pessoas já morreram em Old Point." Fiz uma pausa. "General Sessions, acho que está mais do que na hora de falar a verdade."

O general disse: "O navsea está preocupado com o estaleiro já faz algum tempo".

"navsea? Mas que diabos é isso?", Marino perguntou.

"Sistema de Comando Naval", ele disse. "São os responsáveis por garantir que estaleiros como o mencionado respeitem as normas."

"Eddings tinha um número programado em seu aparelho de fax, com o código n-v-s-e. Ele mantinha contato com seu pessoal?"

"Ele fez várias perguntas", o general Sessions disse. "Conhecíamos o senhor Eddings. Mas não podíamos dar as respostas que queria. Assim como não podíamos responder à senhora, doutora Scarpetta, quando nos mandou um fax perguntando quem éramos." Seu rosto era inescrutável. "Estou certo de poder contar com a sua compreensão."

"O que é d-r-m-s, de Memphis?", perguntei.

"Outro número de fax usado por Eddings, e pela senhora também", ele disse. "Serviço de Vendas de Material de Defesa. Eles cuidam das vendas de itens desativados, que devem ser aprovadas pelo navsea."

"Faz sentido", falei. "Posso entender por que Eddings entrou em contato com esses departamentos. Ele desconfiava de alguma fraude no estaleiro, sabia que o regulamento da Marinha vinha sendo desobedecido de um modo indecoroso. Estava reunindo material para uma reportagem."

"Fale mais a respeito do regulamento", Marino pediu. "Como o estaleiro deve proceder?"

"Vou lhe dar um exemplo. Se Jacksonville quiser comprar o Saratoga, ou outro porta-aviões, o navsea garante que qualquer modificação feita esteja de acordo com os padrões da Marinha."

"Como assim?"

"Por exemplo, a prefeitura precisa se responsabilizar pelos cinco milhões de dólares necessários para reformar o navio, e também pelos dois milhões anuais de manutenção. O porto precisa ter no mínimo dez metros de profundidade. Além disso, quando o navio estiver ancorado alguém do navsea - provavelmente um civil - o visitará uma vez por mês, para inspecionar o serviço feito a bordo."

"E isso acontecia no estaleiro?", perguntei.

"Bem, no momento não sabemos quem era o civil encarregado disso." O general olhou diretamente para mim.

Em seguida, Wesley falou: "Isso é um problema. Há civis por toda parte. Alguns são mercenários que compram e vendem qualquer coisa, com total desprezo pela segurança nacional. Como sabe, uma empresa civil cuida do estaleiro. Ela inspeciona os navios vendidos a cidades ou como ferro-velho".

"E quanto ao submarino que está lá agora, o Exploiter?", perguntei. "O submarino que eu vi quando desci para buscar o corpo de Eddings?"

"Trata-se de um submarino da classe Zulu V, que carrega mísseis balísticos. Foi construído entre 1955 e 1957", o general Sessions disse. "Nos anos sessenta, os submarinos construídos nos Estados Unidos utilizam energia nuclear."

"Portanto, o submarino em questão é velho", Marino disse. "Não é nuclear."

O general disse: "Não poderia ser nuclear. Mas ele pode disparar qualquer tipo de torpedo ou míssil que desejar".

"Está dizendo que o submarino perto do qual eu mergulhei poderia ser equipado com armas atômicas?", pensei, sentindo que o espectro terrível se agigantava.

"Doutora Scarpetta", o general disse, debruçando-se na minha direção, "não estamos presumindo que o submarino foi equipado aqui nos Estados Unidos. Bastaria que fosse reformado e levado para alto-mar, onde seria interceptado por uma nação» que não deveria ter acesso a ele. O serviço poderia ser feito no mar. Mas o Iraque ou a Argélia não conseguiriam produzir plutônio para uso militar em suas instalações."

"E de onde sairia isso?", Marino indagou. "Não me parece que se possa arranjar isso numa usina nuclear. Se os terroristas acham que sim, então acho que estamos lidando com um bando de sulistas retardados."

"Seria extremamente difícil, quase impossível, conseguir plutônio em Old Point", concordei.

"Um anarquista como Joel Hand não pensa no quanto algo pode ser difícil", Wesley disse.

"Na verdade, é possível", Sessions acrescentou. "Por cerca de dois meses, após a colocação de novas hastes de combustível num reator, é possível obter plutônio."

"Com que freqüência as hastes são substituídas?", Marino perguntou.

"Old Point troca um terço das hastes a cada quinze meses. São oitenta peças, ou cerca de três bombas atômicas, se o reator for fechado para a retirada do plutônio durante este intervalo de dois meses."

"Então Hand precisava conhecer as datas de troca", falei.

"Claro que sim."

Pensei nos registros telefônicos dos executivos da cp&l, que poderiam ser acessados ilegalmente por alguém como Eddings.

"Então alguém foi subornado", sugeri.

"Temos um suspeito. Um funcionário do alto escalão", Sessions disse. "Alguém que influenciou decisivamente a decisão de instalar uma unidade do cp&l numa propriedade adjacente à fazenda de Hand."

"A fazenda pertencente a Joshua Hayes?"

"Isso mesmo."

"Merda", Marino disse. "Hand deve ter planejado isso durante anos, e com toda a certeza recebia muito dinheiro de algum lugar."

"Não resta dúvida quanto a isso, tampouco", o general concordou. "Uma operação deste porte exige anos de planejamento e alguém para financiar as despesas."

"Vale lembrar que um fanático como Hand se considera engajado numa guerra religiosa de duração infinita. Ele pode se dar ao luxo de ser paciente", Wesley disse.

"General Sessions", falei, "se o submarino em questão estivesse a caminho de um porto distante, o navsea saberia disso?"

"Com certeza."

"Como?", Marino quis saber.

"De várias maneiras", ele disse. "Por exemplo, quando os navios são ancorados no estaleiro desativado, os tubos de mísseis e torpedos são cobertos com placas de aço, colocadas na parte externa do casco. E uma placa é soldada por dentro, para fixar a hélice. Obviamente, além de tudo isso os armamentos e equipamentos de comunicação são removidos."

"Ou seja, a violação de alguns regulamentos, pelo menos, poderia ser verificada pelo lado de fora", falei. "Seria possível saber isso examinando a embarcação na água, de perto."

Ele olhou para mim e entendeu a sugestão direitinho. "Sim, seria possível saber."

"Alguém poderia mergulhar perto do submarino e descobrir que os tubos de torpedos, por exemplo, não estavam lacrados. Seria possível até verificar que a hélice não estava soldada."

"Sim", ele concordou novamente. "Seria possível descobrir tudo isso."

"Era o que Ted Eddings estava fazendo, então."

"Creio que sim", Wesley falou. "Os mergulhadores recuperaram a máquina fotográfica, e examinamos o filme. Continha apenas três fotos, todas elas imagens desfocadas da hélice do Exploiter. Portanto, não parece que ele passou muito tempo na água antes de morrer."

"E onde está o submarino agora?", perguntei.

O general fez uma pausa. "Pode-se dizer que estamos procurando por ele."

"Então ele já zarpou."

"Deixou o porto no momento em que a usina nuclear foi atacada."

Olhei para os três homens. "Bem, agora sei porque Eddings andava paranóico e com mania de proteção."

"Alguém deve ter armado tudo para ele", Marino disse. "Não se resolve envenenar alguém com cianureto gasoso assim, de última hora."

"O assassinato dele foi um crime premeditado, cometido por alguém em quem ele devia confiar", Wesley disse. "Ele não teria contado a qualquer um o que pretendia fazer naquela noite."

Pensei em outro código no aparelho de fax de Eddings. cpt poderia ser capitão, e mencionei o nome do capitão Green para eles.

"Bem, Eddings devia ter pelo menos uma fonte interna para fazer a matéria", Wesley comentou. "Alguém vazou informações para ele, e suspeito que esta mesma pessoa preparou a armadilha, ou ajudou alguém a fazer isso." Ele olhou para mim. "Sabemos, pelas contas telefônicas dos últimos meses, que manteve contato freqüente com Green, por telefone e fax. Isso começou no outono passado, quando Eddings fez uma matéria de divulgação do estaleiro."

"Depois ele começou a cavar mais fundo", falei.

"Sua curiosidade acabou sendo útil para nós", o general Sessions disse. "Também começamos a ir mais fundo. Esta situação vem sendo investigada há mais tempo do que vocês poderiam imaginar." Ele parou, completando com um sorriso: "Na verdade, doutora Scarpetta, a senhora não estava tão sozinha quanto supunha, em determinados momentos".

"Então transmita meu muito obrigado a Jerod e Ki Soo", falei, presumindo que eles eram seals.

Wesley encarregou-se de responder: "Farei isso. Mas você poderá agradecer pessoalmente, em sua próxima visita ao hrt".

"General Sessions", falei, passando para a questão mais urgente, "sabe se os ratos são um problema em navios desativados?"

"Os ratos são um incômodo em qualquer navio", ele disse.

"Um dos usos para o cianureto é exterminar roedores cm navios", falei. "O estaleiro deve ter um suprimento de veneno para rato."

"Como já disse, estamos de olho no capitão Green." Ele percebeu exatamente onde eu queria chegar.

"Tanto quanto os neo-sionistas?", perguntei.

"Não", Wesley respondeu por ele. "Juntamente com eles, isso sim. Minha teoria é que Green serve como elo de ligação entre os neo-sionistas e as Forças Armadas. Por exemplo, o estaleiro. Roche é apenas um capanga, encarregado de intimidar, espionar e bisbilhotar."

"Ele não matou Danny", falei.

"Danny foi assassinado por um psicopata que consegue se integrar à sociedade normal o suficiente para não chamar a atenção. Tanto que ninguém o notou enquanto esperava fora do Hill Café. Eu descreveria o indivíduo como branco, sexo masculino, trinta a quarenta anos, familiarizado com caça e armas em geral."

"Parece a descrição dos caras que atacaram Old Point", Marino notou.

"Sim", Wesley disse. "A morte de Danny, quer ele fosse a vítima desejada ou não, foi uma caçada, como pegar uma marmota. O indivíduo que cometeu o crime provavelmente comprou a Sig quarenta e cinco na mesma feira de armas na qual conseguiu as Black Talons."

"Pensei que tivesse dito que a Sig pertencia a um policial", Sessions falou.

"Certo. Mas_a arma circulou nas ruas, e acabou vendida como sendo de segunda mão", Wesley disse.

"A um dos seguidores de Hand", Marino disse. "O mesmo tipo de cara que pegou Shapiro em Maryland."

"Exatamente o mesmo tipo."

"A questão importante, no momento, é o que eles pensam que você sabe", o general me perguntou.

"Pensei muito nisso, e não consegui chegar a uma conclusão", respondi.

"Você precisa pensar como eles", Wesley falou para mim. "O que eles poderiam achar que você sabe, e outras pessoas não?"

"Eles podem pensar que eu tenho o Livro", falei, por falta de idéia melhor. "Pelo jeito, é tão sagrado para eles quanto o cemitério dos antepassados para os índios."

"O que haveria lá que eles não gostariam que outras pessoas soubessem?", Sessions perguntou.

"Creio que a revelação mais perigosa para eles seria o plano que acabam de colocar em prática", respondi.

"Claro. Eles não poderiam levá-lo adiante se alguém os denunciasse." Wesley olhou para mim, com mil pensamentos nos olhos. "O que o doutor Mant sabe?"

"Não tive chance de perguntar a ele. Não atende minhas ligações nem telefona de volta, apesar de eu haver deixado vários recados."

"Não acha isso meio estranho?"

"Acho isso muito esquisito", falei. "Mas não creio que tenha acontecido algo muito ruim, ou teríamos sido informados. Creio que ele está com medo."

Wesley explicou ao general: "Trata-se do legista responsável pelo distrito de Tidewater".

"Bem, talvez seja melhor visitá-lo", o general sugeriu para mim.

"Nas circunstâncias, creio que não é o momento apropriado", falei.

"Pelo contrário", o general disse. "Penso que este seja o momento ideal."

"Talvez tenha razão", Wesley concordou. "Nossa única esperança, realmente, ê descobrir como esta gente pensa. Talvez o doutor Mant tenha informações úteis. Talvez esteja se escondendo por este motivo."

O general Sessions ajeitou o corpo na poltrona. "Bem, a idéia tem minha aprovação", ele disse. "Precisamos tomar cuidado para que tal coisa não aconteça lá também. Já conversamos a respeito, Benton. O resto pode esperar, certo? E não é nenhum bicho-de-sete-cabeças, desde que a British Airways não se importe com uma viagem repentina." Ele parecia sentir um prazer amargo. "Se isso acontecer, vou ter de acionar o Pentágono."

"Kay", Wesley explicou para mim, enquanto Marino (ilhava para todos, furioso. "Não sabemos se outro Old Point está ocorrendo na Europa, pois o ataque aqui na Virgínia não foi decidido de uma hora para outra. As grandes cidades de outros países também nos preocupam."

"Quer dizer que esses lunáticos neo-sionistas atuam também na Inglaterra?", Marino perguntou, a ponto de explodir.

"Não sabemos de nada. Infelizmente, não faltam outros grupos para tomar o lugar deles", Wesley disse.

"Bem, eu tenho uma opinião." Marino olhou para mim, acusador. "A possibilidade de um desastre nuclear não pode ser descartada. Você não acha melhor ficar por aqui?"

"Eu preferiria que fosse assim."

O general fez um comentário pertinente. "Se nos ajudar, não será necessário ficar por aqui, pois não haverá nada para fazer."

"Compreendo isso, também", falei. "Ninguém mais do que eu defende a prevenção."

"Você poderia dar um jeito?", Wesley perguntou.

"Minha equipe já foi mobilizada para lidar com qualquer situação", expliquei. "Os outros médicos sabem como proceder. Você sabe que ajudarei em tudo que estiver ao meu alcance."

Marino, porem, não se conformava. "Não é seguro." Ele olhou para Wesley. "Você não pode mandar a doutora sair por aí sozinha, passando por aeroportos e lugares desconhecidos, pois não sabemos quem está atrás dela, nem o que eles pretendem."

"Você tem toda a razão, Pete", Wesley disse, pensativo. "Nós não vamos fazer isso."

 

Naquela noite voltei para casa, pois precisava apanhar algumas roupas, e o passaporte estava no cofre. Fiz as malas com as mãos trêmulas, esperando o sinal do pager. Fielding estava ligando de hora em hora, para saber as novidades e transmitir suas preocupações. Os corpos de Old Point continuavam onde os atacantes os haviam deixado, pelo que sabíamos. Não tínhamos idéia de quantos funcionários da usina continuavam lá dentro, como reféns.

Dormi mal, com um carro de polícia estacionado na porta de casa. Sentei-me na cama quando o despertador me acordou, às cinco da manhã. Uma hora e meia depois um Learjet me aguardava no terminal Millionaire em Henrico County, onde os empresários mais ricos da região deixavam seus helicópteros e jatinhos. Wesley e eu fomos educados, mas reservados, quando nos cumprimentamos. A idéia de que iríamos viajar juntos para outro continente era quase inacreditável. Mas já havia sido decidido que ele visitaria a embaixada antes da sugestão de minha viagem a Londres, e o general Sessions não conhecia nossa história. Pelo menos, foi assim que decidi encarar uma situação que estava fora do meu controle.

"Não sei bem se acredito nos seus motivos", falei a Wesley enquanto o jatinho ganhava velocidade, como um carro de corrida dotado de asas. "E quanto a isso?" Olhei em torno. "Desde quando o Bureau usa Learjets? Ou foi cortesia do Pentágono, também?"

"Usamos o que for preciso", ele disse. "A cp&l colocou todos os recursos à nossa disposição, para ajudar a resolver esta crise. O Learjet pertence a eles."

O jatinho branco era reluzente, com bancos de couro cinza azulado e madeira nodosa, mas era barulhento, e não conseguíamos conversar em voz baixa.

"Você não acha perigoso aceitar ofertas deles?", perguntei.

"Eles estão tão revoltados com isso quanto nós. Pelo que sabemos, exceto por um ou dois funcionários desleais, a cp&l não tem culpa de nada. Na verdade, os empregados deles foram as maiores vítimas, até agora."

Ele olhou para a frente, para a cabine e seus dois pilotos fortes que usavam ternos. "Além disso, os pilotos são do hrt", ele acrescentou. "E checamos cada parafuso desta coisa, antes da decolagem. Não se preocupe. Quanto a minha presença aqui, com você", ele me olhou, "vou dizer novamente. O problema agora é operacional. Passei a bola para o HRT. Serei útil só quando os terroristas começarem a se comunicar conosco, quando pudermos pelo menos identificá-los. E duvido que isso vá acontecer nos próximos dias."

"Como pode garantir?" Servi café.

Ele pegou a xícara em minha mão e nossos dedos esbarraram. "Sei que eles estão ocupados. Precisam dos conjuntos* de plutônio, e só conseguem uma quantidade limitada por dia."

"Os reatores foram desligados?"

"De acordo com a companhia elétrica, os terroristas desligaram os reatores assim que invadiram a usina. Eles sabem o que querem e estão indo atrás."

"E há vinte terroristas."

"Aproximadamente o número que entrou para o suposto seminário na sala de controle simulado. No entanto, não temos certeza de quantos estão lá dentro agora."

"Esta visita", falei, "quando foi marcada?"

"A empresa informou que foi marcada no início de dezembro, para o final de fevereiro."

"Então eles adiantaram os planos." Não me surpreendi ao perceber isso, à luz dos acontecimentos recentes.

"Sim", ele disse. "Foi repentinamente remarcada, dias antes da morte de Eddings."

"Pelo jeito eles estão desesperados, Benton."

"Além disso, mais ousados e menos preparados", ele disse. "O que é melhor para nós. E também pior."

"E quanto aos reféns? Baseado em sua experiência, você acha que vão soltar todos?"

"Não sei. Todos, realmente, não sei." Ele olhou pela janela, o rosto preocupado sob a luz suave que o iluminava de lado.

"Meu Deus", falei. "Se tentarem tirar o combustível nuclear de lá, podemos ter uma calamidade nacional. E não sei como pretendem conseguir isso. Os dispositivos provavelmente pesam várias toneladas cada um. E são tão radioativos que podem causar morte imediata a quem se aproximar. Como pretendem tirá-los de Old Point?"

"A usina está rodeada por água, usada para resfriar os reatores. Ali perto, no James, há uma barcaça que acreditamos pertencer a eles. Está sob observação."

Recordei-me de quando Marino falou a respeito de barcaças que entregaram caixas enormes no centro neo-sionista, e falei: "Podemos capturá-la?".

"Não. Tomar submarinos e barcaças é impossível, no momento. Só faremos isso quando os reféns estiverem fora de perigo." Ele tomou um gole de café, enquanto o horizonte ganhava tons de ouro pálido.

"O melhor cenário seria eles pegarem o que desejam e saírem sem matar mais ninguém", calculei, embora não acreditasse que isso fosse possível.

"Não. O melhor cenário, neste caso, seria detê-los lá dentro." Ele olhou para mim. "Não queremos uma barcaça cheia de material altamente radioativo seguindo pelos rios da Virgínia, a caminho do mar. O que vamos fazer, ameaçar afundá-la? Além disso, aposto que levarão reféns." Ele fez uma pausa. "No final, fuzilarão todos eles."

Não pude deixar de imaginar aqueles pobres coitados. O medo percorrendo cada célula do sistema nervoso, sempre que respiravam. Conhecia as manifestações físicas e mentais do medo. As imagens eram assustadoras, e as expulsei da mente. Senti ódio por aqueles homens auto-intitulados neo-sionistas, e cerrei os punhos.

Wesley olhou para os nós dos meus dedos, esbranquiçados, e pensou que eu estava com medo de voar. "Só mais alguns minutos", ele disse. "Já vamos pousar."

Aterrissamos no aeroporto Kennedy, e um ônibus nos aguardava na pista. Mais dois sujeitos fortes de terno estavam a bordo. Não perguntei nada a Wesley sobre os dois, pois já sabia. Um deles nos acompanhou até o terminal da British Airways, que fora muito gentil e aceitara cooperar com o Bureau, ou com o Pentágono, cedendo dois lugares no primeiro vôo do Concorde para Londres. No balcão, mostramos nossas identidades discretamente, avisando que não portávamos armas. O agente encarregado da nossa segurança nos acompanhou até o portão de embarque. Quando procurei por ele novamente, examinava pilhas de jornais estrangeiros na banca.

Wesley e eu nos acomodamos em poltronas confortáveis, na frente de janelas panorâmicas que davam para a pista na qual o avião supersônico aguardava feito uma gigantesca garça branca sendo alimentada por uma mangueira presa à sua lateral. O Concorde parecia mais um foguete do que qualquer avião comercial que eu conhecia, e pelo jeito os passageiros, em sua maioria, não eram mais capazes de se impressionar com ele ou com qualquer outra coisa. Saboreavam tortas e frutas; alguns já preparavam blood-marys e suco de laranja com champanhe

Wesley e eu trocamos poucas palavras. Sondávamos constantemente a multidão e mantínhamos os jornais abertos à frente, como espiões ou fugitivos estereotipados.

Percebi que pessoas do Oriente Médio, em particular, atraíam sua atenção. Eu me preocupava mais com gente como nós, pois me lembrava de Joel Hand no dia em que o enfrentei no tribunal, um sujeito que me pareceu gentil e atraente. Se estivesse sentado a meu lado agora, sem que eu o reconhecesse, acharia que estava mais adequado ao ambiente do que nós.

"Tudo bem?" Wesley baixou o jornal.

"Não sei." Eu me sentia agitada. "Diga uma coisa. Estamos por nossa conta ou seu amigo continua por aí?"

Os olhos dele sorriram.

"Não vejo graça nenhuma."

"Então você acha que o Serviço Secreto pode estar por aqui. Ou agentes disfarçados."

"Entendo. Então o sujeito de terno que nós acompanhou até aqui é segurança da British Airways."

"Vou responder sua pergunta de outra maneira. Se não estivermos sozinhos, Kay, eu não vou lhe dizer."

Trocamos um olhar mais longo. Nunca tínhamos viajado juntos para o exterior, e aquele não me parecia um bom momento para começar. Ele usava um terno azul tão escuro que mais parecia preto, acompanhado da costumeira camisa branca e gravata convencional. Eu me vestira igualmente de maneira sóbria, e nós dois usávamos óculos. Achei que parecíamos sócios de um escritório de advocacia, e quando estudei as outras mulheres no saguão concluí que eu não levava o menor jeito para esposa de alguém.

O papel farfalhou quando ele dobrou o London Times e consultou o relógio. "Acho que é o nosso", disse, levantando-se enquanto os passageiros do vôo 2 eram chamados novamente.

O Concorde levava cem pessoas, em duas seções com dois assentos em cada lado do corredor. Carpete cinza-escuro e couro cinza dominavam a decoração. As janelas tipo nave espacial eram pequenas demais e não deixavam ver o lado de fora direito. As aeromoças eram inglesas e formais.

Se sabiam que éramos passageiros do fbi, Marinha ou cia, não davam o menor sinal disso. Mostravam-se preocupadas apenas com o que queríamos beber. Pedi uísque.

"Não é um pouco cedo?", Wesley falou.

"Em Londres, não. Lá é cinco horas mais tarde", respondi.

"Obrigado. Vou ajustar o relógio", ele disse secamente, como se nunca tivesse viajado para outro país na vida. "Acho que vou tomar uma cerveja", ele disse para a aeromoça.

"Bem, agora que já estamos no fuso horário correto, é bem mais fácil pedir uma bebida", falei, sem conseguir evitar o tom ácido na voz.

Ele se virou e me olhou. "Você está brava?"

"É por isso que você se tornou especialista em perfis psicológicos. Consegue captar essas coisas."

Ele olhou em volta, sutilmente, mas estávamos protegidos pelos encostos de cabeça laterais. Não havia ninguém do outro lado do corredor, e eu não me importava com quem pudesse estar sentado atrás.

"Podemos ser razoáveis e conversar como adultos?", ele falou, em voz baixa.

"Fica difícil ser razoável, Benton. Você só quer conversar depois dos fatos consumados."

"Não sei se entendi direito onde você quer chegar. Acho que me perdi no meio do caminho."

Eu estava louca para dar o troco a ele. "Todo mundo sabia a respeito de sua separação, menos eu", falei. "Lucy me contou, pois tinha ouvido comentários dos outros agentes. Eu adoraria ser incluída no nosso relacionamento de vez em quando, só para variar."

"Nossa, eu preferia que você não ficasse tão brava à toa."

"E eu, muito mais."

"Não falei nada porque eu não queria ser influenciado por você", ele disse.

Falávamos em voz baixa, com as cabeças próximas, de modo que nossos ombros se tocavam. Apesar das circunstâncias graves, eu sentia cada movimento dele, e seu toque em meu corpo. Sentia o cheiro do paletó de lã e do perfume que usava sempre.

"Qualquer decisão referente ao casamento não pode incluir você", ele prosseguiu, quando as bebidas chegaram. "Sei que é capaz de entender isso."

Meu corpo não estava acostumado a beber uísque naquele horário, e o efeito foi rápido e forte. Comecei a relaxar instantaneamente, fechando os olhos durante a decolagem. O jato se inclinou e deixou o solo ruidosamente, trovejando através do espaço. A partir dali o mundo não passava de um horizonte vago, e eu não via absolutamente nada pela janela. O barulho dos motores continuava alto e nos obrigava a aproximar as cabeças para continuar nossa conversa íntima.

"Sei bem o que sinto a seu respeito", Wesley estava dizendo. "Sei disso há muito tempo."

"Você não tem o direito", falei. "Nunca teve esse direito."

"E quanto a você, Kay? Tinha o direito de fazer o que fez? Ou eu estava sozinho no quarto?"

"Pelo menos, não sou casada, nem estou com alguém", falei. "Mas não, eu não tinha o direito."

Ele continuava a tomar a cerveja. Nenhum de nós se interessou pelos canapés e caviar que, suspeitei, seriam apenas as preliminares de uma longa jornada gastronômica. Permaneci em silêncio por algum tempo, folheando revistas e publicações especializadas. Praticamente todo mundo naquela seção fazia o mesmo. Notei que as pessoas no Concorde não falavam muito umas com as outras. Deduzi que ser rico, famoso ou nobre era uma chateação.

"Então, creio que essa questão já está resolvida", Wesley retomou o diálogo, aproximando-se de mim enquanto eu experimentava os aspargos.

"Que questão?" Abaixei o garfo, pois sou canhota e ele estava atrapalhando.

"Você sabe. A respeito do que devemos fazer ou não." Ele esbarrou em meu seio, e seu braço permaneceu ali, como se o que havia dito antes tivesse sido anulado no Mach dois.

"Sim", falei.

"Sim?" A voz dele traía a curiosidade. "O que quer dizer com isso?"

"Sim, a respeito do que você acabou de dizer." A cada vez que eu respirava, meu corpo se movia na direção dele. "Quanto a resolver as coisas."

"Então, é isso que vamos fazer", ele concordou.

"Claro que vamos", falei, sem ter muita certeza do que estávamos falando. "Mais uma coisa", falei. "Se você se divorciar e quiser sair comigo, vamos começar do zero."

"Apoiado. Faz o maior sentido, para mim."

"Enquanto isso, somos colegas e amigos."

"É o que eu quero, também. Exatamente isso", ele disse.

Estávamos percorrendo Park Lane às seis e meia, no banco traseiro de um Rover dirigido por um guarda da polícia metropolitana. No escuro, via as luzes de Londres passando. Estava desorientada e intensamente viva. O Hyde Park era um mar negro, pontilhado por manchas iluminadas nos caminhos sinuosos.

O flat no qual ficaríamos era bem perto do hotel Dorchester, e um grupo de paquistaneses se aglomerava nas imediações do antigo hotel, protestando contra a visita de seu primeiro-ministro com fervor. Havia muitos policiais e cães, mas o motorista não se abalou.

"Procurem o porteiro", ele disse, estacionando na frente de um prédio alto, que parecia relativamente novo. "Basta entrar e mostrar a identidade que ele os conduzirá a suas acomodações. Querem ajuda com as malas?"

Wesley abriu a porta. "Obrigado, não é preciso."

Descemos e seguimos até a pequena área de recepção, onde um senhor idoso e alerta sorriu calorosamente, atrás da escrivaninha de madeira encerada.

"Sejam bem-vindos. Já os esperava", ele disse.

Levantando-se, pegou nossas malas. "Por favor, me acompanhem. O elevador é ali."

Subimos até o quinto andar. Ele nos conduziu ao flat de três dormitórios com janelas grandes, decorado com tecidos de cores vivas e arte africana. Minha suíte era confortável, com uma banheira tipicamente inglesa, grande o bastante para alguém morrer afogado dentro dela, e privada com descarga de cordinha. A mobília vitoriana ornava com o assoalho de madeira coberto por tapetes orientais um pouco gastos. Aproximei-me da janela e aumentei a temperatura do aquecimento. Apaguei a luz e fiquei olhando para os carros que passavam em alta velocidade e para as árvores do parque que o vento balançava.

O quarto de Wesley ficava no final do corredor, e só percebi sua presença quando ele falou.

"Kay?", ele esperou, parado na porta. Ouvi o ruído fraco do gelo. "Quem mora aqui, seja lá quem for, tem Scotch do bom. Fui informado que poderíamos nos servir à vontade."

Ele entrou e colocou os copos no parapeito da janela.

"Tenciona me embebedar?", perguntei.

"Nunca foi preciso antes."

Ele parou a meu lado; bebemos e ficamos encostados um no outro, olhando juntos a paisagem. Por muito tempo trocamos frases curtas, em voz baixa. Depois ele tocou meu cabelo, beijou minha orelha e meu rosto. Toquei-o, também, e nosso amor se tornou mais profundo conforme as carícias e beijos aumentavam de intensidade.

"Senti tanto a sua falta", ele murmurou, enquanto as roupas eram afrouxadas e desabotoadas.

Fizemos amor porque não pudemos evitar. Era nossa única desculpa e não seria aceita em nenhum tribunal que eu conhecia. A separação foi muito dura, por isso não demos trégua um ao outro por toda a noite. De madrugada, cochilei o suficiente para acordar e perceber que ele tinha ido embora, como se tudo não passasse de um sonho. Fiquei embaixo do acolchoado de pena, e as imagens passavam por minha mente, lentas e líricas. As luzes dançavam debaixo das pálpebras e parecia que me balançavam, como se eu fosse novamente uma menina e meu pai ainda não estivesse morrendo de uma doença que naquela época eu não compreendia.

Jamais conseguira superar sua morte. A mim parecia que minhas ligações com outros homens reviviam melancolicamente a sensação de ter sido abandonada por ele. Era um jogo no qual eu entrava sem perceber, para logo me encontrar no silêncio do quarto vazio de minha vida mais íntima. Percebi o quanto Lucy e eu éramos parecidas. Nós duas amávamos em segredo e não falávamos da dor.

Depois de me vestir atravessei o corredor e encontrei Wesley na sala, tomando café e olhando o dia cinzento lá fora. Estava de terno e gravata, não parecia cansado.

"Passei café", ele disse. "Quer que eu lhe traga um pouco?"

"Pode deixar que eu mesma pego." Fui para a cozinha. "Está acordado há muito tempo?"

"Mais ou menos."

Ele fazia café forte, e me dei conta de que não conhecia praticamente nenhum detalhe prosaico de sua vida cotidiana. Não fazíamos comida juntos nem tirávamos férias ou praticávamos esportes, embora nós dois tivéssemos o mesmo gosto para muitas coisas. Atravessei a sala e pus a xícara no parapeito da janela; queria apreciar a vista do parque.

"Tudo bem?" Os olhos dele se fixaram em mim.

"Estou bem. E você?"

"Você não me parece nada bem."

"E você tem sempre um elogio na ponta da língua."

"Só quis dizer que parece que você não dormiu muito."

"Não dormi praticamente nada, por sua culpa."

Ele sorriu. "Minha e do jet lag."

"O seu efeito é muito mais devastador, agente especial Wesley."

O trânsito intenso já rugia na rua, tendo como contraponto a curiosa cacofonia das sirenes britânicas. Naquela manhã fria o sol ainda fraco iluminava as pessoas que caminhavam apressadas pelos passeios. Algumas corriam, de agasalho esportivo. Wesley levantou-se da cadeira.

"Precisamos nos apressar." Ele acariciou minha nuca e a beijou. "Vamos comer alguma coisa. Será um longo dia."

"Benton, não gosto de viver deste jeito", falei, quando ele fechou a porta.

Seguimos pela Park Lane, passando pelo hotel Dorchester, no qual alguns paquistaneses ainda protestavam. Pegamos a Mount Street até South Audley, onde encontramos um pequeno restaurante aberto. Chamava-se Richoux. Vendia doces franceses exóticos e caixas de chocolates que poderiam ser expostas como obras de arte, de tão lindas. As pessoas, arrumadas para ir trabalhar, liam o jornal em mesas pequenas. Tomei suco de laranja feito na hora e fiquei com fome. A garçonete filipina ficou intrigada, pois Wesley quis apenas torrada, e eu acabei pedindo ovos com bacon, cogumelo e tomate.

"Vocês vão dividir?", ela perguntou.

"Não, obrigada." Sorri.

Faltando ainda um pouco para as dez continuamos a caminhar pela South Adley até Grosvenor Square, onde se situava a embaixada americana, um lamentável bloco de granito estilo anos 50, protegido por uma águia de bronze de asas abertas no telhado. A segurança era rígida, havia guardas mal-encarados por toda parte. Mostramos passaportes e credenciais. Tiraram nossa fotografia. Finalmente, fomos escoltados até o segundo andar, onde encontramos o adido legal sênior do fbi para a Grã-Bretanha. A sala de Chuck Olson, num canto, permitia uma visualização perfeita das pessoas que formavam longas filas para pedir vistos e green cards. Era um sujeito forte, de terno escuro. O cabelo cortado rente era quase prateado, como o de Wesley.

"Muito prazer", ele disse, apertando minha mão. "Por favor, sentem-se. Querem café?"

Wesley e eu escolhemos um sofá afastado da mesa, que estava limpa a não ser por um bloco de anotações e algumas pastas. Num quadro de cortiça atrás da cadeira Olson pregara desenhos, provavelmente feitos pelos filhos pequenos. Em cima do quadro pairava um imenso selo do Departamento de Justiça. Além disso, a sala continha apenas estantes de livros e diplomas. Um espaço despojado de um sujeito ocupado que não se impressionava com o cargo nem consigo mesmo.

"Chuck", Wesley disse, "você certamente já sabe que a doutora Scarpetta é nossa consultora em patologia forense. Embora tenha suas responsabilidades na Virgínia, ela pode ser chamada aqui se for necessário."

"Deus me livre", Olson disse, pois só me chamariam se houvesse um desastre nuclear na Inglaterra ou outro país europeu, para ajudar a cuidar dos mortos.

"Portanto, seria bom se você pudesse dar a ela um quadro claro de nossas preocupações", Wesley disse.

"Bem, isto é óbvio", Olson disse a mim. "Cerca de um terço da eletricidade na Inglaterra provém de usinas nucleares. A possibilidade de um ataque terrorista similar nos assusta. Na verdade, é possível que os responsáveis estejam planejando algo similar aqui."

"Mas os neo-sionistas são uma seita da Virgínia", falei. "Está insinuando que eles têm contatos internacionais?"

"Eles não são a força motriz neste caso", ele disse. "Não são eles os interessados no plutônio."

"E quem seriam os interessados, então?"

"Os tíbios."

"Creio que o mundo inteiro já conhece as intenções da Líbia há algum tempo."

"Bem, agora eles partiram para a ação", Wesley disse. "Estão agindo em Old Point."

"Como você já deve saber", Olson prosseguiu, "Kadafi quer armas nucleares há muito tempo, mas suas tentativas de obtê-las foram frustradas. Agora, ele parece ter encontrado um jeito. Descobriu os neo-sionistas na Virgínia, e sem dúvida há grupos extremistas daqui que ele poderia usar. Temos também muitos árabes."

"Como sabem que é a Líbia?", perguntei.

Wesley encarregou-se de responder. "Para começar, examinamos as listas de ligações telefônicas de Joel Hand, e ele deu inúmeros telefonemas para lá nos dois últimos anos. Principalmente para Trípoli e Bengazi."

"Mas vocês não sabem se Kadafi está tentando algo aqui em Londres."

"Nosso medo é ficarmos vulneráveis. Londres é o ponto de partida para a Europa, Estados Unidos e Oriente Médio. Um grande centro financeiro. Só porque a Líbia roubou o fogo dos Estados Unidos, isso não quer dizer que os Estados Unidos sejam o alvo."

"Fogo?", perguntei.

"Como no mito de Prometeu. Fogo é o código para plutônio."

"Compreendo", falei. "O que está me dizendo faz sentido e é assustador. Digam o que eu posso fazer."

"Bem, precisamos explorar o mecanismo intelectual desse negócio. Saber o que está acontecendo agora e o que pode vir a ocorrer", Olson disse. "Precisamos conhecer melhor a maneira de pensar desses terroristas. Isso, obviamente, é do departamento de Wesley. A sua tarefa é obter informações. Soube que tem um colega aqui que pode nos ajudar."

"Vamos torcer para que seja isso", falei. "De todo modo, pretendo conversar com ele."

"E quanto à segurança?", Wesley perguntou. "Vamos destacar alguém para acompanhá-la?"

Olson olhou para mim de modo estranho, como se avaliasse minha força, como se eu não fosse nada além de um objeto ou lutador pronto para entrar no ringue.

"Não", ele disse. "Creio que ela está absolutamente segura aqui, a não ser que você tenha uma opinião diferente."

"Não sei bem", Wesley disse, olhando para mim também. "Talvez seja melhor mandar alguém com ela."

"De jeito nenhum", falei. "Ninguém sabe que vim para Londres. E o doutor Mant já se mostrou muito arisco, ou morto de medo. Não vai se abrir comigo se eu levar alguém junto. Aí esta viagem perde completamente o sentido."

"Tudo bem", Wesley concordou relutante. "Desde que. a gente saiba onde você está. E precisamos nos encontrar aqui até as quatro horas, para não perdermos o avião."

"Telefonarei, se tiver algum problema", falei. "Vão ficar por aqui?"

"Se eu não estiver, minha secretária saberá nos localizar", Olson disse.

Desci para o saguão, onde a água jorrava ruidosamente de uma fonte. Uma estátua de bronze de Lincoln guardava as paredes enfeitadas com retratos dos ex-embaixadores no país. Os guardas fechavam a cara ao examinar passaportes e revistar visitantes. Eles permitiram minha passagem com olhares frios, e senti que acompanhavam meu trajeto até a saída. Na rua, fazia frio. Era uma manhã úmida. Fiz sinal para um táxi e dei ao motorista o endereço. Não era longe, ficava em Belgravia, perto de Eaton Square.

A senhora Mant, já idosa, morava em Ebury Mews, numa mansão vitoriana de três andares que fora dividida em apartamentos. O prédio era rebocado, com chaminés vermelhas apontando no alto do telhado. Nos peitoris das janelas havia hera, narciso e açafrão. Subi a escada até o segundo andar e bati na porta, mas não foi meu legista quem atendeu. A senhora matronal que me encarava parecia tão confusa quanto eu.

"Lamento", falei a ela. "Pelo que vejo, o apartamento já foi vendido."

"Creio que houve um engano. Ele não esteve à venda, em momento algum", ela disse, com firmeza.

"Estou procurando por Philip Mant", falei. "Acho que me enganei..."

"Ah, é isso", ela disse. "Philip é meu irmão." Ela sorriu, satisfeita. "Acabou de sair para o trabalho. Por pouco não o encontra."

"Trabalho?" Foi só o que consegui dizer.

"Sim, ele sempre sai a esta hora. Para escapar do trânsito, sabe. Embora eu não creia que isso seja realmente possível." Ela hesitou, subitamente consciente da presença de uma desconhecida. "Quem devo dizer q.ue esteve à procura dele?"

"Doutora Kay Scarpetta", falei. "E preciso muito falar com ele."

"Mas é claro." Ela parecia tão surpresa quanto contente. "Ouvi falar muito na senhora. Ele a considera muito, e ficará alegre ao saber que passou aqui. O que a trouxe a Londres?"

"Jamais perco a chance de passear por aqui um pouco. A senhora poderia me dizer onde posso encontrá-lo?", insisti.

"Claro. No necrotério público de Westminster, em Horseferry Road." Ela hesitou, insegura. "Achei que ele havia dito isso à senhora."

"Sim, claro", falei. "E fico muito contente por ele."

Eu não sabia direito o que estava dizendo, mas ela ficou muito contente, também.

"Não conte que estou indo até lá", falei. "Quero fazer uma surpresa."

"Claro, vai ser ótimo. Ele vai ficar muito feliz."

Peguei outro táxi pensando no que tinha acabado de ouvir. Por melhor que fosse o motivo para Mant agir daquela maneira, não pude deixar de sentir uma certa raiva.

"Vai pegar um atestado de óbito, madame?", o motorista perguntou. "Fica ali." Ele apontou para um belo prédio de tijolos, pela janela.

"Não, vou ao necrotério mesmo", falei.

"Tudo bem. Então é ali. Melhor entrar andando do que carregada, né?", ele disse, rindo de modo rude.

Paguei e desci na frente de um prédio pequeno, para os padrões londrinos. Revestido de tijolos, com molduras de granito e uma estranha marquise no teto, o edifício era protegido por uma rebuscada cerca de ferro fundido cor de ferrugem. De acordo com a placa na entrada, o necrotério tinha mais de cem anos. Pensei no quanto seria difícil praticar medicina forense naquela época. Havia menos provas para contar a verdadeira história. Sobravam apenas os humanos, e eu duvidava que as pessoas mentissem menos antigamente.

A recepção do necrotério era pequena mas bem decorada, como um típico saguão de empresa. Vi que depois de uma porta aberta havia um corredor. Como não encontrei ninguém, segui naquela direção, vendo uma mulher sair de uma das salas, com os braços carregados de livros enormes.

"Com licença", ela disse. "Não é permitida a entrada aqui."

"Estou procurando o doutor Mant", falei.

Ela usava vestido folgado e suéter, falando com sotaque escocês. "E quem deseja falar com ele?", perguntou, educadamente.

Mostrei meus documentos. .'.

"Ah, tudo bem. Então ele a aguarda."

"Creio que não", falei.

"Entendo." Ela passou os livros para o outro braço, e eslava confusa.

"Ele trabalhava para mim, nos Estados Unidos", falei. "Gostaria de fazer uma surpresa. Por isso, preferia ir ao encontro dele, se me fizer a gentileza de indicar o caminho."

"Ele deve estar na sala de autópsia de corpos em decomposição no momento, meu bem. Siga por esta porta." Ela apontou para uma das entradas. "Você vai dar no vestiário, à esquerda do necrotério principal. Encontrará lá tudo que vai precisar. Depois entre à esquerda, na porta dupla, e estará lá. Entendeu bem?", ela sorriu.

"Sim. Muito obrigada", falei.

No vestiário coloquei proteção para o sapato, luva e máscara. Depois, ajeitei o traje cirúrgico, para evitar que o odor impregnasse minhas roupas. Passei por uma sala na qual reluziam seis mesas de aço inoxidável e uma parede de geladeiras brancas. Os médicos usavam trajes azuis, e Westminster dera muito trabalho a eles, naquela manhã. Mal me olharam, quando passei. Encontrei meu assistente no final do corredor, usando bota alta de borracha, trepado numa banqueta enquanto examinava um corpo em adiantado estado de putrefação, que parecia ter passado muito tempo dentro da água. O mau cheiro era terrível, e fechei a porta ao entrar.

"Doutor Mant", falei.

Ele se virou e por um momento não pareceu saber quem eu era ou onde ele estava. Em seguida, ficou chocado.

"Doutora Scarpetta? Minha nossa, com mil demônios." Ele desceu ruidosamente da banqueta, pois não era um sujeito pequeno. "Estou tão surpreso, nem sei o que dizer!" Gaguejava, e seus olhos piscavam de medo.

"Estou surpresa, também", falei, de cara fechada. ,

"Posso imaginar que esteja. Vamos. Não precisamos ficar aqui, conversando ao lado deste cadáver medonho. Foi encontrado no Tâmisa, ontem à tarde. Para mim, parece que foi apunhalado. Não temos a identidade. Vamos para uma das salas", ele disse, falando sem parar, nervoso.

Philip Mant era um senhor idoso, encantador, de quem todos gostavam. Tinha cabelo branco grosso e sobrancelha pesada a emoldurar olhos claros rápidos. Demos a volta e passamos pelas duchas, onde desinfetamos os pés, tiramos as luvas e as máscaras. Deixamos tudo numa lata de lixo. Depois fomos para a sala de espera, que dava para o pátio de estacionamento, nos fundos. Como tudo em Londres, o cheiro de cigarro daquele lugar tinha uma longa história.

"Deseja tomar alguma coisa?", ele perguntou, apanhando um maço de Players. "Sei que não fuma mais, por isso não lhe ofereço um."

"Não quero nada, exceto algumas explicações", falei.

As mãos dele tremiam ligeiramente, quando acendeu o cigarro.

"Doutor Mant, em nome de Deus, pode me explicar o , que está fazendo aqui?", comecei. "Pelo que eu sei, o senhor veio para Londres por causa de uma morte na família."

"Foi isso mesmo. Por coincidência."

"Por coincidência?", repeti. "Como assim?"

"Doutora Scarpetta, eu já pretendia ir embora. Quando minha mãe morreu, subitamente, percebi que seria o mo- -mento mais fácil e apropriado."

"Então, o senhor não tem intenção de voltar", falei.

"Lamento muito, mas não tenho a menor intenção de voltar", ele disse, batendo a cinza delicadamente.

"Poderia ter avisado, pelo menos, para que pudéssemos procurar um substituto. Tentei falar com o senhor várias vezes, pelo telefone."

"Não contei nada nem telefonei porque não queria que eles soubessem."

"Eles?" O pronome ficou pairando no ar. "A quem se refere exatamente, doutor Mant?"

Ele falou com muita calma, enquanto fumava, de pernas cruzadas, a barriga se esparramando sobre o cinto. "Não tenho idéia de quem eles são, mas eles sabem quem somos, com toda a certeza. É isso que me assusta. Posso lhe contar exatamente quando tudo começou. Foi no dia treze de outubro. Talvez se lembre do caso."

Eu não tinha a menor idéia do que ele estava falando.

"Bem, a Marinha fez a autópsia, pois a morte ocorreu no estaleiro deles em Norfolk."

"O sujeito que foi acidentalmente esmagado num dique seco?", falei, pois me lembrava vagamente do episódio.

"Esse mesmo."

"Tem razão. Foi um caso da Marinha, e não nosso", falei, começando a imaginar o que ele ia dizer. "Poderia explicar o que isso teve a ver conosco?"

"Bem, o esquadrão de resgate cometeu um engano", ele continuou. "Em vez de transportar o corpo para o Hospital Naval de Portsmouth, para onde deveria ir, eles o trouxeram para o necrotério, e Danny não sabia de nada. Ele começou a tirar o sangue, preencher formulários, essas coisas. E encontrou algo muito estranho entre os pertences do morto."

Me dei conta que o dr. Mant não sabia da morte de Danny.

"A vítima tinha uma mochila de lona consigo", ele prosseguiu. "E o pessoal do resgate simplesmente a colocou em cima do corpo e cobriu tudo com uma mortalha. Suponho que não teríamos a menor idéia, se não fosse essa ocorrência, por incrível que pareça."

"Idéia do quê?"

"Aquele sujeito levava consigo uma cópia de uma bíblia sinistra, que mais tarde descobrimos pertencer a uma seita. Os neo-sionistas. Era uma coisa absolutamente terrível, o livro. Descrevia em detalhes torturas, assassinatos, coisas do gênero. Era muito perturbador, em minha opinião."

"Seu nome era o Livro de Hand?", perguntei.

"Sim, isso mesmo." Seus olhos se acenderam. "Era, sem dúvida."

"Encadernado em couro preto?"

"Creio que sim. Mas o nome escrito no frontispício não era o do falecido. Curiosamente, era Shapiro, ou algo assim."

"Dwain Shapiro."

"Claro", ele disse. "Vocês já sabem de tudo a respeito."

"Sei que existe o Livro, mas não como este indivíduo o obteve, pois certamente o nome dele não era Dwain Shapiro."

Ele parou, para esfregar os olhos. "Creio que o nome da vítima era Catlett."

"Ele pode ter assassinado Dwain Shapiro", falei. "Isso explicaria a posse do Livro."

Mant não sabia. "Quando me dei conta de que tinha um caso da Marinha no necrotério", ele falou, "pedi a Danny que transportasse o corpo para Portsmouth. E os pertences do pobre coitado deveriam ter seguido com ele."

"Mas Danny ficou com o livro", falei.

"Infelizmente, ficou." Ele se.debruçou e apagou o cigarro no cinzeiro que havia sobre a mesa de centro.

"Por que ele fez isso?"

"Entrei na sala dele por acaso e vi o livro. Perguntei por que o pegara. Danny disse que o livro tinha o nome de outro indivíduo no frontispício, e ele imaginou que havia sido recolhido por engano, no local do acidente. Talvez a mochila pertencesse a outra pessoa, também." Ele fez uma pausa. "Sabe, ele ainda é muito jovem, e creio que cometeu um engano, sem maldade."

"Diga uma coisa", falei, "algum repórter andava ligando para seu departamento, ou circulando por ali? Por exemplo, alguém andou perguntando a respeito do sujeito que morreu esmagado no estaleiro?"

"Sim, o senhor Eddings esteve lá. Lembro-me bem, pois ele quis saber todos os detalhes, o que me intrigou um pouco. Que eu saiba, nunca escreveu uma linha sequer a respeito."

"E Danny poderia ter conversado com Eddings?"

Mant olhou para a parede, absorto em suas lembranças. "Creio ter visto os dois conversando. Mas o jovem Danny era cuidadoso, jamais daria uma entrevista."

"Talvez tenha dado o Livro a Eddings, sabendo que ele estava fazendo uma reportagem sobre os neo-sionistas."

"Não tenho como saber, na verdade. Nunca mais vi o Livro, e presumi que Danny o tivesse devolvido para a Marinha. Sinto saudades daquele rapaz. Como vai ele, por falar nisso? O joelho sarou? Costumava chamá-lo de Canguru, sabe?", ele riu.

Não respondi sua pergunta, nem ri. "Conte o que aconteceu depois. O que o fez ficar com tanto medo?"

"Coisas estranhas. Telefonemas misteriosos. Achei que estava sendo seguido. O supervisor do necrotério, como sabe, pediu demissão abruptamente, sem dar nenhuma explicação. Certo dia, quando cheguei ao estacionamento, vi que havia sangue no pára-brisa do meu carro. Analisei uma amostra no laboratório, e vi que provinha de algum açougue. Era sangue de boi, em outras palavras."

"Presumo que tenha conhecido o detetive Roche", falei.

"Infelizmente. Não gostei dele nem um pouco."

"Ele tentou obter alguma informação com o senhor?"

"Ele passava por lá de vez em quando. Não acompanhava as autópsias, obviamente. Não tinha estômago para isso."

"O que ele queria saber?"

"A respeito da morte da Marinha de que estamos falando. Fez perguntas sobre o caso."

"Ele perguntou a respeito dos pertences do morto? Da mochila que inadvertidamente foi parar no necrotério, junto com o corpo?"

Mant tentou se lembrar. "Agora que está pressionando esta memória patética que eu tenho, creio que ele quis saber a respeito da mochila. Sugeri que falasse com Danny, suponho."

"Bem, Danny obviamente não entregou a mochila a ele", falei. "Ou, pelo menos, não entregou o Livro, pois nós o localizamos posteriormente."

Não contei como, pois não queria assustá-lo ainda mais.

"Aquele Livro maldito deve ser terrivelmente importante para alguém", ele comentou.

Fiz uma pausa, enquanto ele fumava novamente. Depois, falei: "Por que não me contou? Por que fugiu sem dizer uma única palavra a respeito?".

"Francamente, não queria ser envolvido nisso. Além do mais, a história toda soava fantasiosa." Ele parou, e percebi por sua fisionomia que sabia da ocorrência de outros eventos lamentáveis desde sua partida da Virgínia. "Doutora Scarpetta, já não sou mais jovem. Só quero fazer meu trabalho em paz por algum tempo e depois me aposentar."

Evitei criticá-lo, pois compreendia sua atitude. Francamente, não podia culpá-lo e fiquei contente por sua fuga, que provavelmente lhe salvara a vida. Ironicamente, não descobrira nada de importante, e teria sido assassinado à toa, como ocorrera com Danny.

Resolvi contar toda a verdade, revivendo as cenas da joelheira vermelha como sangue fresco jorrando, e folhas e detritos presos aos cabelos empapados. Lembrei-me do sorriso radiante de Danny, e jamais me esquecerei do saquinho branco que carregava ao sair do café no alto da ladeira, onde um cachorro latiu durante boa parte da noite. Em minha mente permaneceria sempre viva a tristeza e o medo em seus olhos, quando ele me ajudou na autópsia de Ted Eddings, a quem conhecia, como vim a descobrir. Juntos, os dois jovens inadvertidamente seguiram em direção a uma morte violenta.

"Meu Deus. Pobre rapaz", foi só o que Mant conseguiu dizer.

Ele levou o lenço ao rosto, e quando o deixei o médico ainda estava chorando.

 

Wesley e eu voamos de volta para Nova York naquela mesma noite. Chegamos antes da hora prevista, pois os ventos chegavam a mais de cem nós. Passamos pela alfândega e pegamos nossas malas. O mesmo ônibus nos aguardava na pista, para nos levar ao aeroporto particular no qual o Learjet esperava.

O tempo esquentou de repente e parecia que ia chover. Voamos por entre nuvens de tempestade colossais, iluminadas por raios violentos. A tempestade roncava e relampejava enquanto voávamos em meio ao que parecia uma batalha. Fui informada da situação do momento, e não me surpreendi ao saber que o fbi montara um posto de observação ao lado dos outros instalados pela polícia e esquadrões de resgate.

Lucy, soube aliviada, estava trabalhando novamente com o Grupo de Pesquisa de Engenharia, o erf, em segurança. O que Wesley não me contou, até chegarmos à Academia, foi que ela havia sido convocada juntamente com o resto do hrt e não ficaria muito tempo em Quantico.

"Isso está fora de questão", falei, como se fosse a mãe recusando permissão.

"Lamento, mas você não tem voz ativa nisso", ele respondeu.

Wesley me ajudou a carregar as malas através do saguão Jefferson, que estava deserto naquele sábado à noite. Acenamos para as moças da recepção, sem interromper nossa discussão.

"Pelo amor de Deus", prossegui, "ela é novata. Não pode atirá-la no meio de uma crise nuclear."

"Não a estamos atirando no meio de nada." Ele abriu as portas de vidro. "Mas precisamos dos conhecimentos técnicos de Lucy. Ela não vai atuar como franco-atiradora nem pular de um avião."

"Onde ela está, agora?", perguntei, quando entramos no elevador.

"Na cama, espero."

"Sei." Consultei o relógio. "Acho que é meia-noite. Pensei que já fosse amanhã, e que eu deveria estar acordando."

"E. Também fiquei confuso."

Nossos olhos se encontraram, e eu virei para o outro lado. "Acho que devemos fingir que não aconteceu nada", falei, com certa agressividade na voz, pois não havíamos comentado o que acontecera entre nós.

Entramos no corredor e digitamos o código no teclado. -A porta de vidro foi destrancada, e ele a abriu.

"De que adianta fingir?", ele disse, digitando outra vez um código para abrir mais uma porta.

"Diga apenas o que você deseja que eu faça", falei.

Chegamos à suíte de segurança na qual eu costumava ficar quando o trabalho ou o perigo me impediam de ir embora. Ele levou minhas malas para o quarto, enquanto eu fechava a cortina da janela grande da sala. A mobília era confortável mas neutra. Como Wesley não respondeu, lembrei-me de que provavelmente não era seguro falar de nossa intimidade num lugar no qual no mínimo os telefones estavam grampeados. Segui-o de volta ao corredor e repeti a pergunta.

"Seja paciente", ele disse, aparentando tristeza ou talvez apenas cansaço. "Kay, entenda, preciso ir para casa. Amanhã bem cedo precisamos fazer um vôo de observação com Mareia Gradecki e o senador Lord."

Gradecki era ministra da Justiça dos Estados Unidos, e meu velho amigo Frank Lord o presidente do Comitê Judiciário.

"Gostaria que você fosse conosco, pois acho que sabe mais a respeito do que está acontecendo do que qualquer outra pessoa. Talvez possa explicar a importância da bíblia adotada por esses lunáticos. Que são capazes de matar por ela. E de morrer."

Ele suspirou, esfregando os olhos. "E precisamos conversar sobre o que faremos se - Deus nos livre - tivermos de lidar com corpos contaminados, caso esses filhos da mãe resolvam explodir os reatores." Ele olhou para mim novamente. "Só nos resta tentar", ele disse, e se referia a mais coisas, além da crise do momento.

"É isso que estou fazendo, Benton", falei, voltando para dentro da minha suíte.

Chamei a recepção e pedi para falar com o quarto de Lucy. Como ninguém atendeu, deduzi o que havia acontecido. Ela estava no erf, e eu não podia ligar para lá, pois desconhecia seu paradeiro dentro de um prédio do tamanho de um campo de futebol. Vesti o casaco e saí do prédio Jefferson, pois não conseguiria dormir sem ver minha sobrinha.

O erf tinha seu próprio portão com guarita, não muito distante do portão de entrada da Academia. A maior parte da polícia do fbi, naquela altura, já me conhecia bem. O guarda de serviço ficou surpreso quando apareci por lá, e saiu da guarita para ver o que eu queria.

"Acho que minha sobrinha está aí, trabalhando até mais tarde", expliquei.

"Isso mesmo, doutora. Eu a vi entrar."

"Há algum modo de entrar em contato com ela?"

"Hummm." Ele franziu o cenho. "Tem idéia de qual é o setor em que ela poderia estar trabalhando?"

"Talvez a sala dos computadores."

Ele tentou, sem êxito, depois olhou para mim. "E importante?"

"Sim, claro", falei, agradecida.

Ele levou o rádio à altura da boca.

"Unidade quarenta-dois para base", disse.

"Quarenta-dois, câmbio."

"Você dez-vinte-cinco comigo no portão do erf?"

"Dez-quatro."

Esperamos a chegada do outro guarda, que ficou na guarita enquanto seu colega me acompanhava até a parte interna do prédio. Percorremos corredores vazios por algum tempo, tentando abrir portas trancadas que davam em laboratórios e oficinas de manutenção nas quais minha sobrinha poderia estar. Após uns quinze minutos de busca, demos sorte. Ele experimentou e conseguiu abrir a porta de uma sala grande, uma verdadeira oficina de Papai Noel de equipamentos eletrônicos.

No meio de tudo estava Lucy, usando uma luva digital e um capacete com equipamentos na cabeça, ligado a cabos pretos longos que serpenteavam pelo chão.

"Está tudo certo, agora?", o guarda perguntou.

"Sim", falei. "Muito obrigada."

Outros pesquisadores, usando guarda-pós ou macacões, cuidavam de computadores, equipamentos de interface e telas enormes. Todos me viram entrar, menos Lucy, cega pelo equipamento. Ela não estava naquela sala, mas em outro lugar no pequeno tubo de raios catódicos cobrindo seus olhos, andando por um corredor metálico virtual que, suspeitei, ficava na usina atômica de Old Point.

"Vou dar um zoom de aproximação agora", ela disse, pressionando um botão no dorso da luva.

A imagem na tela ficou maior de repente, e a figura que era Lucy parou na beira da escada íngreme.

"Merda, estou dando um zoom out", ela disse, impaciente. "Não adianta, isso não funciona."

"Juro que funciona", disse o jovem que monitorava uma caixa preta enorme. "Mas tem que ter a manha."

Ela parou para ajustar os controles. "Não sei não, Jim. Isso é mesmo de alta resolução? Ou o problema está em mim?"

"Creio que o problema é com você."

"Acho que estou ficando enjoada", minha sobrinha disse, movendo-se para dentro do que parecia ser uma esteira rolante entre turbinas imensas, na tela dos computadores.

"Vou dar uma olhada no algoritmo."

"Sabe", ela disse, descendo a escada virtual, "talvez seja melhor colocar tudo em código C e partir de um atraso de três-quatro a trezentos e quatro microsegundos etc, em vez do que está no software atual."

"Certo. As seqüências de transferência estão fora", alguém mais disse. "Precisamos ajustar os saltos temporais."

"Não podemos nos dar ao luxo de ficar ajustando demais esse negócio", outra pessoa disse. "E, Lucy, sua tia está aqui."

Ela parou por um momento, depois prosseguiu, como se não tivesse escutado o que a pessoa acabara de dizer. "Bem, vou providenciar o código C até amanhã. Precisamos arrumar tudo, ou Totó vai acabar preso em algum lugar, ou caindo da escada. E, se isso acontecer, estamos ferrados."

Totó, pelo que concluí, era a cabeça redonda com um olho de vídeo que estava montado num corpo de aço em formato de caixa, com menos de um metro de altura. As pernas eram dotadas de esteiras, os braços tinham garras e no geral ele mais parecia um tanque de guerra animado. Totó estava estacionado de lado, não muito longe de sua dona, que acabava de tirar o capacete.

"Precisamos trocar os biocontroles desta luva", ela disse, removendo-a cuidadosamente. "Estou acostumada a usar um dedo para ir à frente, e dois para recuar, e não o contrário. Não posso me permitir um erro quando estivermos em campo."

"Isso é fácil", Jim disse, aproximando-se para pegar a luva.

Lucy estava agitada, quase fora de controle, quando me encontrou perto da porta.

"Como conseguiu entrar aqui?" Seu tom não era nada amigável.

"Um dos guardas me trouxe."

"Sorte sua ser conhecida."

"Benton contou que eles a trouxeram de volta, que o hrt precisa de seus serviços", falei.

Ela observou os colegas, que continuavam a trabalhar. "A maior parte do pessoal já foi para lá."

"Para Old Point", falei.

"Temos mergulhadores, franco-atiradores, helicópteros à espera. Mas nada disso vai adiantar se não conseguirmos infiltrar pelo menos uma pessoa lá dentro."

"E, obviamente, esta pessoa não será você", falei, sabendo que eu mataria o füi inteiro de uma vez só se não fosse assim.

"De certo modo, eu estarei lá dentro", minha sobrinha falou. "Vou pilotar Totó. Ei, Jim", ela gritou. "Aproveite que está mexendo aí e acrescente um comando de voar no conjunto."

"Então Totó vai ganhar asas", alguém brincou. "Boa idéia. Vamos precisar de um anjo da guarda esperto, mesmo."

"Lucy, você tem idéia do quanto aquelas pessoas são perigosas?" Não pude evitar o comentário.

Ela olhou para mim e suspirou. "Tia Kay, quem você acha que eu sou? Uma menina brincando com o computador?"

"Só sei que não consigo deixar de me preocupar."

"Todos nós temos motivos para preocupação, no momento", ela disse, desanimada. "Bem, preciso voltar ao trabalho." Consultando o relógio, respirou fundo. "Quer dar uma olhada rápida no meu plano, para pelo menos saber o que está acontecendo aqui?"

"Por favor."

"Vai ser assim." Ela se sentou no chão e eu me sentei a seu lado, apoiando as costas na parede. "Normalmente, um robô como Totó seria controlado por rádio, mas isso não daria certo num local com tanto concreto e aço. Portanto, tive uma idéia que pode funcionar. Basicamente, ele vai carregar um rolo de cabo de fibra ótica, que deixará para trás conforme se mover, como o rastro de uma lesma."

"E por onde ele vai andar?", perguntei. "Dentro da usina nuclear?"

"Estamos tentando resolver isso agora", ela disse. "Muita coisa, porém, vai depender do que acontecer. Podemos entrar para reunir informações, sem que nos percebam. Ou pode haver uma missão às claras, no caso de os terroristas desejarem um telefone para negociar reféns, por exemplo, que é nosso palpite. Totó precisa estar pronto para ir a qualquer lugar, quando for preciso."

"Menos pela escada."

"Ele anda em escadas. Em algumas melhor do que em outras."

"Os cabos de fibra ótica serão seus olhos?", perguntei.

"Eles estarão diretamente ligados à luva virtual." Ela ergueu as duas mãos. "Eu me movimentarei como se fosse eu que estivesse lá dentro, e não Totó. A realidade virtual permitirá uma presença remota, e reagirei instantaneamente a qualquer coisa que os sensores captarem. Por falar nisso, a maioria dos sensores são naquele lindo tom de cinza que usamos para construí-lo." Ela apontou para a amiga, do outro lado da sala. "A tinta sensível o ajuda a não bater nos obstáculos", acrescentou, como se tivesse sentimentos em relação a ele.

"Janet voltou com você?", perguntei.

"Ela está terminando o serviço em Charlottesville."

"Terminando?"

"Bem, já sabemos quem invadiu o computador da cp&l", ela disse. "Uma mulher, pesquisadora em física nuclear. Quem diria, hein?"

"Qual é o nome dela?"

"Loren qualquer coisa." Ela esfregou a face com as mãos. "Nossa, eu não deveria ter sentado. Sabe, o ciberespaço deixa a gente tonta, quando se passa tempo demais lá.

Ultimamente, tem me dado enjôo." Ela estalou os dedos diversas vezes. "McComb. Loren McComb."

"Qual a idade dela?", perguntei, pois me lembrei de Cleta ter dito que o nome da namorada de Eddings era Loren.

"Quase trinta."

"De onde ela é?"

"Inglaterra. Na verdade, é sul-africana. Ela é negra."

"Isso explica sua falta de caráter, segundo a senhora Eddings."

"Hã?" Lucy olhou para mim, intrigada.

"E qual a conexão com os neo-sionistas?", perguntei.

"Pelo jeito, entrou em contato com eles pela Internet. É militante, odeia o governo. Minha teoria é que ela sofreu lavagem cerebral, que piorou conforme se aproximava deles."

"Lucy", falei, "creio que ela era namorada e fonte de Eddings. No final, pode ter ajudado os neo-sionistas a matá-lo, provavelmente com ajuda do capitão Green."

"Por que ela os ajudaria a cometer uma barbaridade dessas?"

"Talvez tenha acreditado que não lhe restava outra escolha. Se passou informações a Eddings capazes de prejudicar a seita de Hand, eles podem tê-la convencido a ajudá-los. Ou a ameaçaram."

Pensei no Champanhe Cristal na geladeira de Eddings, e imaginei que ele pretendia passar o Ano Novo com a namorada.

"Como ela os ajudou?", Lucy perguntou.

"Provavelmente, conhecia o código do alarme contra roubo. E a combinação do cofre." Meu pensamento final foi pior. "Talvez estivesse com Eddings na noite em que ele morreu. Na verdade, não sabemos se ela o envenenou ou não. Afinal de contas, é cientista."

"Que droga."

"Presumo que tenha conversado com ela", falei.

"Janet cuidou disso. McComb alega que há uns dezoito meses navegava pela Internet quando viu uma nota num quadro de avisos. Segundo ela, um produtor ia rodar um filme no qual terroristas tomavam uma usina nuclear, para recriar uma situação similar à da Coréia do Norte e obter plutônio para fabricação da bomba atômica etc. O suposto produtor precisava de consultoria técnica, e pagava bem."

"Ela deu um nome para este produtor imaginário?"

"Disse apenas que ele se apresentava como 'Alias', insinuando que fosse famoso. Ela caiu na história e a jogada começou. Passou a enviar informações dos estudos avançados a que tinha acesso em função da bolsa de pesquisa. Deu ao tal Alias todos os toques necessários para tomar Old Point e mandar os conjuntos de combustível para os árabes."

"E quanto aos recipientes?"

"Também. Roubaram toneladas de urânio esgotado de Oak Ridge. Mandaram para o Iraque, Argélia, sei lá para onde. Fundiram recipientes de cento e vinte e cinco toneladas. Depois os mandaram de volta para cá, de navio, e os reservaram para o grande dia. Ela falou um pouco a respeito do modo como o urânio se transforma em plutônio dentro do reator." Lucy parou e olhou para mim. "Ela alega que jamais lhe ocorreu que tudo aquilo pudesse ser real."

"E tornou-se real para ela quando começou a penetrar no computador da cp&l?"

"Isso ela não conseguiu explicar nem dar um motivo."

"Creio que o motivo é fácil de entender", falei. "Eddings estava interessado em telefonemas para países árabes que certas pessoas poderiam estar fazendo. E ela conseguiu a lista pelo computador de Pittsburgh."

"Você não acha que ela ia se dar conta de que os neo-sionistas não iam gostar desta ajuda ao namorado, que era repórter?"

"Duvido que se preocupasse com isso", falei, com raiva. "Suspeito que gostava de jogar para os dois times. No mínimo, sentia-se muito importante, como jamais se sentira no tranqüilo mundo acadêmico. Duvido que tivesse noção da realidade, até que Eddings começou a investigar o navsea, o grupo do capitão Green e sabe-se lá quem. Aí os neo-sionistas souberam que a fonte deles, a senhorita McComb, estava ameaçando o sucesso da operação inteira."

"Se Eddings tivesse descoberto tudo", Lucy disse, "eles jamais teriam conseguido pôr o plano em prática."

"Exatamente", falei. "Se qualquer um de nós tivesse descoberto o plano a tempo, nada disso estaria acontecendo." Observei uma mulher de guarda-pó manobrando os braços de Totó, para que ele erguesse uma caixa. "Diga uma coisa", falei, "qual foi o comportamento de Loren McComb quando Janet a interrogou?"

"Distante. Sem emoção nenhuma."

"O pessoal de Hand é muito poderoso."

"Acho que sim, para fazer alguém matar o namorado a quem estava ajudando um minuto antes." Lucy observava o robô, e não parecia estar gostando do que via.

"Bem, espero que os néo-sionistas não consigam localizar a senhorita McComb, qualquer que seja o local onde o fbi a tenha escondido."

"Ela está presa num lugar seguro", Lucy disse, quando Totó parou subitamente e a caixa caiu pesadamente no chão. "Você regulou a rpm da articulação do ombro para quanto?", perguntou.

"Oito."

"Vamos diminuir para cinco. Droga." Ela esfregou o rosto novamente. "Não faltava mais nada."

"Bem, vou deixá-la agora e voltar para Jefferson", falei ao me levantar.

Seus olhos tinham uma expressão estranha. "Está instalada no andar de segurança máxima, como de costume?", perguntou.

"Sim."

"Acho que não faz diferença alguma, mas Loren McComb está lá também", Lucy disse.

Na verdade, minha suíte ficava ao lado da dela. Mas a moça estava detida, o que não acontecia comigo. Quando me sentei na cama e tentei ler, escutei o barulho da televisão do outro lado da parede. Ouvi o som dos canais sendo mudados e depois reconheci o tema de Jornada nas Estrelas. Ela estava vendo a reprise de um episódio antigo.

Passamos algumas horas a poucos metros de distância uma da outra, sem que ela soubesse disso. Imaginei-a misturando calmamente o ácido clorídrico e o cianureto numa garrafa e dirigindo o gás para a entrada de ar do compressor. A longa mangueira negra instantaneamente se agitaria na água, e depois disso apenas a correnteza lenta do rio se moveria.

"Você vai ver esta cena quando estiver dormindo", falei a ela, embora não pudesse me ouvir. "Você vai sonhar com isso o resto da sua maldita vida. Noite após noite." E desliguei o abajur com raiva.

 

A neblina era densa do lado de fora da minha janela, na manhã do dia seguinte. Um silêncio anormal tomara conta de Quantico. Não ouvi um único disparo nos estandes de tiro, e parecia que até os fuzileiros navais estavam dormindo além da conta. Quando eu me dirigia para a área onde ficavam os elevadores, passando a porta dupla de vidro, ouvi o som das trancas de segurança que se abriam, na suíte vizinha.

Apertei o botão de descer e olhei para lá. Vi duas agentes usando conjuntos discretos caminhando ao lado de uma mulher negra de pele relativamente clara que fitava meu rosto de modo direto, como se já nos conhecêssemos. Loren McComb tinha olhos escuros desafiadores, e o orgulho a dominava inteira, como se fosse a seiva que nutria sua força vital, alimentando todos os seus atos.

"Bom dia", falei com voz neutra.

"Doutora Scarpetta", uma das agentes me cumprimentou com ar sério, e entramos no elevador juntas.

Seguimos em silêncio até o térreo, e pude sentir o odor pungente da mulher que ensinara Joel Hand a fazer a bomba. Usava calça jeans desbotada, tênis e uma blusa branca comprida que não ocultava o corpo deslumbrante que seguramente contribuíra para que Eddings cometesse seu erro fatal. Fiquei atrás dela e das agentes, observando a parte do rosto ainda visível. Ela passava a língua nos lábios com freqüência e olhava fixamente para a frente, para as portas que pareciam demorar uma eternidade para se abrir.

O silêncio era denso como a neblina lá de fora. Chegamos ao térreo. Saí sem pressa, observando as agentes que conduziam McComb sem encostar um dedo nela. Não era preciso, pois poderiam detê-la sem muito esforço, se fosse necessário. Escoltaram Loren McComb por um corredor, entrando numa das inúmeras passagens fechadas chamadas de túneis de ratos, e surpreendi-me quando ela parou e olhou para trás novamente. Encarei-a com hostilidade e ela seguiu em frente, dando mais um passo no que esperava que fosse uma longa peregrinação até a penitenciária.

Subi a escada e entrei na lanchonete, em cuja parede havia bandeiras de todos os estados. Encontrei Wesley num canto, debaixo de Rhode Island.

"Acabo de ver Loren McComb", falei, colocando minha bandeja sobre a mesa.

Ele consultou o relógio. "Ela vai passar o dia sendo interrogada."

"Acha que ela vai nos contar algo que possa ser útil?"

Ele puxou o sal e a pimenta para mais perto. "Não, é tarde demais", disse apenas.

Comi ovos mexidos e torrada simples, tomando café preto enquanto observava agentes novatos e policiais da Academia Nacional pedindo omeletes e waffles. Alguns faziam sanduíches com bacon e lingüiça, e pensei no quanto era chato envelhecer.

"Precisamos ir", falei, pegando minha bandeja, pois às vezes nem valia a pena comer.

"Ainda não acabei, chefe."

"Você estava comendo granola, e já acabou."

"Acho que vou pegar mais um pouco."

"Não, senhor", falei.

"Mas estou com vontade."

"Tudo bem." Olhei para ele, interessada em saber o que tinha a dizer.

"Qual a importância desse Livro de Hand?"

"Enorme. Parte do problema começou quando Danny conseguiu um exemplar e provavelmente o deu a Eddings."

"Por que acha que é tão importante assim?"

"Você é especialista em perfis psicológicos. Deveria saber. O livro nos diz como eles vão se comportar. O Livro os torna previsíveis."

"Um pensamento terrível", ele disse.

Por volta das nove horas passamos pelos estandes de tiro e chegamos ao campo gramado perto da casa que o HRT usava nas manobras que logo se tornariam realidade. Naquela manhã não havia ninguém ali, estavam todos em Old Point, com exceção do nosso piloto, Whit. Tipicamente silencioso, de roupa de aviador preta, esperava ao lado de um Bell 222 azul e branco, um helicóptero para executivos que também pertencia à cp&l.

"Whit." Wesley o cumprimentou com um aceno discreto.

"Bom dia", ele disse enquanto embarcávamos.

Havia quatro lugares no que parecia a cabine de um avião pequeno, e um co-piloto estava ocupado, estudando um mapa. O senador Lord lia, completamente absorto no texto. A ministra da Justiça, à sua frente, estava preocupada com seus papéis, também. O helicóptero os apanhara em Washington primeiro. Nenhum dos dois parecia ter dormido o suficiente nas últimas noites.

"Tudo bem, Kay?" O senador não ergueu os olhos.

De terno escuro, camisa branca de colarinho duro e gravata vermelha, ele usava abotoaduras do Senado. Mareia Gradecki, em contraste, vestia um conjunto simples de saia azul-clara e casaco, com colar de pérolas. Era uma mulher formidável, com um rosto atraente, de um modo enérgico e dinâmico. Embora tivesse começado a carreira na Virgínia, não nos conhecíamos ainda.

Wesley encarregou-se de nos apresentar quando já voávamos pelo céu perfeitamente azul. Passamos por cima de ônibus escolares amarelos, vazios àquela hora do dia. Logo os prédios deram lugar a pântanos com lagoas e mata fechada. O sol pintava caminhos no topo das árvores, e quando acompanhamos o curso do James, nosso reflexo silenciosamente nos seguiu pela água.

"Daqui a um minuto vamos sobrevoar Governor's Landing", Wesley disse, e não precisávamos de fones para conversar uns com os outros, só com os pilotos. "É um condomínio pertencente à cp&l, onde Brett West vive. Ele é o vice-presidente encarregado de operações. Mora numa casa de novecentos mil dólares." Parou, quando todos olharam para baixo. "Dá para ver a casa. Aquela ali. A mansão de tijolo com piscina e quadra de basquete nos fundos."

O condomínio tinha várias casas enormes, com piscinas e jardins ainda em formação. Havia também um campo de golfe e um iate clube, onde West mantinha um barco que não estava lá no momento, fomos informados.

"E onde está o senhor West?", perguntou a ministra da Justiça, enquanto os pilotos rumavam para o norte, onde o Chickahominy se encontrava com o James.

"No momento, não sabemos", Wesley disse, sempre olhando pela janela.

"Suponho que vocês acreditam no envolvimento dele", o senador disse.

"Sem dúvida. Na verdade, quando a cp&l decidiu abrir uma sucursal em Suffolk, eles construíram a sede num terreno adquirido de um fazendeiro chamado Joshua Hayes."

"Os registros dele também foram acessados no computador", falei.

"Pela hacker", Gradecki disse.

"Isso mesmo."

"E vocês a têm em custódia", ela disse.

"Sim. Ao que consta, ela namorava Ted Eddings. Foi assim que ele se envolveu com o caso e acabou assassinado." O rosto de Wesley revelava dureza. "Estou convencido de que West é cúmplice de Hand desde o início. Vocês podem ver a sucursal da companhia elétrica, agora." Ele apontou. "Como já sabem", acrescentou, "fica bem ao lado da comunidade de Hand."

A unidade da companhia elétrica era basicamente um estacionamento enorme para caminhões e depósitos de gás, além de prédios modulares com o logo da cp&l pintado no teto. Sobrevoamos o local e um bosque. De repente, o local se transformou na fazenda do rio Nansemond onde Joel Hand morava, protegido por uma cerca que, segundo se dizia, era eletrificada.

A comunidade era um agrupamento de casas e alojamentos pequenos, em volta da mansão malcuidada que exibia colunas brancas altas na frente. Mas não eram aqueles os prédios que nos preocupavam. Havia também estruturas de madeira enormes, que pareciam ser depósitos, construídas ao longo dos trilhos de trem que davam para uma doca particular com imensos guindastes na água.

"Não são celeiros normais", a ministra da Justiça comentou. "O que está sendo transportado para fora desta fazenda?"

"Ou para dentro dela", o senador disse.

Lembrei a eles o que o assassino de Danny deixara no chão de meu Mercedes. "Deve ser ali que eles guardam os recipientes", acrescentei. "Os prédios são grandes o bastante, e para transportá-los seria preciso ter guindastes e caminhões, ou trens."

"Isso certamente vincularia o assassinato de Danny Webster aos neo-sionistas", disse a ministra da Justiça, brincando nervosamente com o colar de pérolas.

"Ou, pelos menos, a alguém que entrava e saía dos galpões onde os recipientes estavam guardados", falei. "Deve haver partículas microscópicas de urânio esgotado por toda parte, uma vez que os recipientes são revestidos com urânio esgotado."

"Então, a pessoa poderia ter urânio na sola do sapato sem saber disso", o senador Lord disse.

"Sem sombra de dúvida."

"Bem, precisamos dar uma busca neste lugar e ver o que há lá."

"Claro, senhor", Wesley concordou. "Assim que for possível."

"Frank, até agora eles não fizeram nada que possamos provar", Gradecki disse. "Não temos uma causa provável. Os neo-sionistas não reivindicaram a responsabilidade pelo ataque."

"Claro, eu também sei como as coisas funcionam, mas isso é ridículo", Lord falou, olhando para fora. "Para mim, não há ninguém lá, a não ser os cães. Pode me explicar isso, se os neo-sionistas não estão envolvidos? Cadê todo mundo? Bem, eu acho que sei muito bem onde eles estão."

Os dobermans latiam e pulavam no canil, quando sobrevoamos o local.

"Meu Deus", Wesley disse, "não pensei que todos eles pudessem estar em Old Point."

Nem eu, e uma idéia apavorante começou a tomar forma.

"Presumimos que os neo-sionistas mantinham o mesmo número de pessoas aqui, nos últimos anos", Wesley prosseguiu. "Mas talvez não seja este o caso. Talvez as únicas pessoas que restaram estivessem em treinamento para o ataque."

"E isso inclui Joel Hand." Olhei para Wesley.

"Sabemos que mora aqui", ele disse. "Provavelmente, estava no ônibus. Deve estar dentro da usina, junto com os outros. É o líder, afinal."

"Nada disso", falei, "ele é o deus deles."

Seguiu-se uma longa pausa.

Então Gradecki disse. "O problema é que o sujeito é insano."

"Não", falei. "O problema é que ele não é insano. Hand é maligno, e isso é infinitamente pior."

"E seu fanatismo afeta tudo que ele faz", Wesley acrescentou. "Se estiver lá", disse, medindo as palavras, "então a ameaça é bem maior do que a possibilidade de fuga numa barcaça cheia de conjuntos de combustível nuclear. A qualquer momento isso pode se transformar numa missão suicida."

"Não sei por que você está dizendo isso", Gradecki contestou, pois não queria saber daquela hipótese. "A motivação deles é clara."

Pensei no Livro de Hand, e no quanto era difícil aos não-iniciados entender o que um homem como ele era capaz de fazer. Olhei para a ministra da Justiça enquanto voávamos por cima de fileiras de cinzentos cargueiros e navios de transporte de tropas abandonados, conhecidos como a Navy's Dead Fleet. Os navios ficavam ancorados no James, e de longe parecia que a Virgínia estava sitiada. De certo modo, estava mesmo.

"Não acredito que nunca vi isso antes", ela murmurou, olhando atônita para baixo.

"Bem, deveria ter visto", o senador Lord retrucou. "Foram vocês democratas os responsáveis pela aposentadoria de metade da esquadra. Na verdade, não temos onde colocar os navios. Estão espalhados por aí, como espectros de sua existência anterior, totalmente inúteis se precisarmos de vasos de guerra operacionais com rapidez. Quando conseguirmos botar uma banheira velha dessas para navegar de novo, o Golfo Pérsico vai estar tão no passado quanto a outra guerra que foi travada por aqui."

"Frank, eu já sei qual é a sua opinião", ela disse, agressiva. "Creio que esta manhã temos outras questões a resolver."

Wesley havia posto o fone de ouvido, para poder conversar com os pilotos. Pediu uma atualização e ficou apenas ouvindo e olhando para Jamestown e sua balsa. Quando tirou o fone seu rosto indicava ansiedade.

"Chegaremos a Old Point em alguns minutos. Os terroristas continuam se recusando a fazer contato e ainda não sabemos quantas vítimas há dentro do prédio."

"Estou ouvindo outros helicópteros", falei.

Ficamos em silêncio, e depois o som dos motores se impôs, inconfundível. Wesley voltou ao rádio,

"Droga, o faa deveria impedir acesso ao espaço aéreo desta área." Ele fez uma pausa, enquanto escutava. "De jeito nenhum. Ninguém tem autorização para se aproximar, todos devem ficar a no mínimo dois quilômetros..." Ele foi interrompido, e ficou escutando. "Tudo bem, tudo bem." Estava bravo. "Meu Deus", disse, e o barulho aumentou.

Dois Hueys e dois Black Hawks passaram por nós, ruidosos. Wesley tirou o cinto, como se pretendesse ir a algum lugar. Furioso, levantou-se e foi para o outro lado da cabíne, olhando pela janela.

Estava de costas para o senador, quando disse com fúria contida: "Senhor, não deveria ter chamado a Guarda Nacional. Temos uma operação muito delicada em andamento, e não podemos - insisto nisso - não podemos ter nenhum tipo de interferência nos planos ou no espaço aéreo. Gostaria de lembrar que a jurisdição aqui é policial, e não militar. Estamos nos Estados Unidos...".

O senador Lord o interrompeu: "Não chamei a Guarda, e concordo plenamente com você".

"Então, quem fez isso?", Gradecki perguntou, e ela era a chefe máxima de Wesley.

"O governador, provavelmente", o senador Lord disse, olhando para mim. Percebi, por seus modos, que ele também estava furioso. "Ele é bem capaz de fazer uma estupidez dessas, pois só consegue pensar na próxima eleição. Liguem para o gabinete dele agora mesmo."

O senador colocou o fone sem se importar com quem poderia estar ouvindo, minutos depois, quando o contato foi estabelecido.

"Pelo amor de Deus, Dick, você ficou maluco?", ele disse ao homem que ocupava o mais alto posto do estado. "Não precisa me explicar nada", disparou. "Você está interferindo com nossas ações aqui. Se isso custar a vida de alguém, pode ter certeza de que eu vou contar quem foi o culpado..."

Ele ficou em silêncio por um momento, e sua expressão enquanto ouvia era de dar medo. Em seguida, pronunciou mais algumas frases duras e o governador ordenou que a Guarda Nacional regressasse. Na verdade, os imensos helicópteros sequer pousaram. Mudaram de formação e ganharam altura. Passaram por cima de Old Point, que se tornou visível subitamente, como uma montanha de concreto a se erguer no límpido céu azul.

"Lamento muito", o senador se desculpou, pois era um cavalheiro, acima de tudo.

Vimos dezenas de policiais, viaturas, ambulâncias e carros de bombeiro, além de antenas parabólicas e peruas da televisão. Dúzias de pessoas estavam lá, ao ar livre, como se desfrutassem um adorável dia ensolarado. Wesley informou que a equipe dele estava reunida no centro de visitantes, posto de comando para o perímetro externo.

"Como podem ver", explicou, "estamos a menos de oitocentos metros da usina e do prédio principal, que fica ali." Ele apontou.

"A sala de controle fica no prédio principal?", perguntei.

"Isso mesmo. É aquele prédio bege de tijolo, com três pavimentos. Eles estão lá, ou pelo menos a maioria deles, inclusive os reféns."

"Bem, é lá que eles precisam ficar, se planejam fazer algo com os reatores, como desligá-los, o que aliás já sabemos que foi feito", comentou o senador Lord.

"E agora?", a ministra da Justiça perguntou.

"Há geradores de emergência, e ninguém vai ficar sem luz. A própria usina possui uma fonte alternativa de emergência", Lord disse. Ele era conhecido como ardoroso defensor da energia nuclear.

Largos cursos d'água corriam pelos dois lados da usina; um deles vinha do James, o outro era o canal de um lago artificial próximo dali. Havia muitos transformadores e linhas de alta tensão, bem como estacionamentos com muitos carros, pertencentes aos reféns e pessoas que chegaram para ajudar.

Aparentemente não havia maneira de chegar ao prédio principal sem ser notado, pois qualquer usina nuclear é projetada dentro dos mais rígidos padrões de segurança. A idéia era manter todas as pessoas não autorizadas bem longe, o que no momento nos incluía, infelizmente. Entrar pelo teto, por exemplo, exigiria fazer buracos através de metal e concreto. Seria impossível tentar isso sem que notassem.

Suspeitei que Wesley estava pensando num plano anfíbio, pois os mergulhadores do hrt poderiam entrar pelo rio ou lago sem serem notados, seguindo depois por um dos canais até chegar bem perto da lateral do prédio principal. Tive a impressão de que poderiam nadar até vinte metros de distância da mesma porta que os terroristas usaram para entrar. Eu só não imaginava como os agentes evitariam que os vissem, depois de sair da água.

Wesley não divulgou nenhum plano. Embora o senador e a ministra fossem aliados, amigos até, eles também eram políticos. Nem o fbi nem a polícia desejavam a interferência de Washington naquela missão. A atitude do governador já fora um desastre.

"Prestem atenção no trailer grande branco, perto do prédio principal", Wesley disse. "Ali fica nosso posto de comando do perímetro interno."

"Pensei que aquele trailer pertencesse a uma equipe de jornalismo da televisão", o ministro comentou.

"Eles estão ali para iniciar o relacionamento com Mister Hand e seu Bando Feliz."

"De que maneira?"

"Para começar, quero conversar com eles", Wesley disse.

"Ninguém falou com eles, ainda?", o senador quis saber.

"Até o momento", Wesley explicou, "eles não mostraram o menor interesse em nós."

O Bell 222 pousou lenta e ruidosamente, enquanto ;is equipes de televisão se aglomeravam perto do heliporto que havia do outro lado da rua, em frente ao centro de visitantes. Recolhemos malas e valises e desembarcamos sob o vento forte das hélices. Wesley e eu caminhamos depressa, em silêncio. Olhei para trás apenas uma vez, vendo o senador Lord rodeado de microfones enquanto a advogada mais poderosa da nação dava uma série de declarações emocionadas.

Entramos no centro de visitantes, com seus inúmeros painéis destinados a estudantes e curiosos. No momento, porém, a área havia sido dividida entre a polícia local e a estadual. Os policiais tomavam refrigerantes, comiam lanches e salgadinhos perto dos mapas e painéis. Não pude deixar de pensar se a presença de algum de nós seria capaz de fazer diferença.

"Onde fica seu setor?", Wesley perguntou para mim.

"Deve ser junto com as equipes de resgate. Acho que vi nosso caminhão-refrigerador do alto."

Os olhos dele tentavam captar todos os detalhes. Pararam na porta do toalete masculino, que se abriu e fechou. Marino saiu do banheiro, ajeitando as calças. Não esperava vê-lo ali. No mínimo, o pavor da radiação deveria mantê-lo em casa.

"Vou pegar café", Wesley disse. "Alguém quer?"

"Oba. Para mim, uma xícara grande."

"Obrigada", falei, antes de dizer a Marino: "Aqui era o último lugar onde eu esperaria encontrá-lo".

"Está vendo esses caras andando por aí?", ele perguntou. "Participamos de uma força conjunta, de modo que todas as jurisdições locais tenham alguém aqui capaz de ligar para a central e dizer o que diabos está havendo. Ou seja, o chefe me mandou para cá, embora eu não esteja exatamente entusiasmado com a idéia. Por falar nisso, vi seu chapa, o chefe Steels, ali adiante. Aposto que você vai gostar de saber que Roche foi suspenso sem direito ao salário."

Não respondi, pois Roche não tinha a menor importância no momento.

"Isso deveria deixar você um pouco mais contente", Marino insistiu.

Olhei para ele. O colarinho branco duro estava manchado de suor e o cinto rangia com o peso dos equipamentos, quando ele se movimentava.

"Enquanto eu estiver aqui, farei o possível para ficar de olho em você. Mas gostaria que não ficasse na mira de algum idiota armado com um rifle", ele acrescentou, alisando o cabelo com a mão enorme, calejada.

"Gostaria que você evitasse fazer isso, também. Preciso encontrar minha equipe", falei. "Você viu alguém?"

"Sim. Fielding está no trailer grande que o pessoal da agência funerária trouxe para vocês. Fazendo ovo frito na cozinha, como se estivesse num camping ou algo parecido. Tem um caminhão-refrigerador, também."

"Certo. Este eu sei exatamente onde está."

"Posso acompanhá-la até lá, se quiser", ele se ofereceu, em tom casual, como se não fizesse a mínima diferença.

"Estou contente por vê-lo aqui", falei, pois sabia que em parte ele viera por mim, mesmo que disfarçasse.

Wesley voltou, equilibrando uma bandeja de papelão com roscas doces e xícaras descartáveis de café. Marino se serviu enquanto eu olhava pela janela, para o dia claro e frio.

"Benton", falei, "e Lucy, onde está?"

Ele não respondeu, e por isso eu soube. Meus piores temores foram confirmados naquele instante.

"Kay, todos nós temos um trabalho a fazer." Seus olhos eram gentis, mas não conseguiam esconder a verdade.

"Claro que temos." Deixei o café de lado, pois meus nervos já estavam suficientemente abalados. "Vou sair para ver como estão as coisas."

"Espere", Marino disse, começando a comer a segunda rosca.

"Vou ficar bem."

"Sim, claro que vai", ele disse. "Quero ter certeza disso."

"Você precisa mesmo tomar cuidado lá fora", Wesley me disse. "Sabemos que eles puseram um terrorista em cada janela, e podem começar a atirar a qualquer momento que quiserem."

Olhei para o prédio principal, ao longe, e abri a porta de vidro que dava para fora. Marino veio atrás de mim.

"Onde fica o pessoal do hrt?", perguntei a ele.

"Onde ninguém pode vê-los."

"Não me venha com gracinhas. Não estou a fim."

Caminhei de forma resoluta. Como não podia ver nenhum sinal dos terroristas ou de suas vítimas, a situação toda mais parecia uma simulação. Carros de bombeiros, caminhões-refrigeradores e ambulâncias davam a impressão de participar de uma emergência de mentira. Até Fielding, arrumando os kits para desastres no trailer branco que servia de posto de comando não me convencia. Ele estava abrindo um dos armários azuis do exército, marcado com as iniciais do nosso departamento, ocme. Dentro havia de tudo, de agulhas dezoito a sacos amarelos para guardar os pertences dos mortos.

Ele me olhou como se eu estivesse ali há muito tempo. "Tem idéia de onde estão as estacas?", perguntou.

"Deveriam ficar numa caixa separada, junto com machados, alicates e pinças de metal", respondi.

"Bem, eu não sei onde podem estar."

"E quanto aos sacos amarelos para os corpos?" Examinei armários e caixas guardadas dentro do trailer.

"Acho que vamos precisar pegá-los com o pessoal da fema", ele disse, referindo-se à Agência Federal de Emergências.

"Onde eles estão?", perguntei, pois centenas de pessoas, de diversas agências e departamentos, ocupavam a área.

"Saia e verá o trailer deles, bem à esquerda, ao lado dos caras de Fort Lee. Registro de Baixas. Os femas têm os trajes revestidos de chumbo."

"Vamos rezar para que não sejam necessários", falei.

Fielding disse a Marino: "Quais são as novidades, em relação aos reféns? Sabemos quantos ainda permanecem lá dentro?".

"Não temos certeza, pois não sabemos exatamente quantos empregados estavam no prédio", ele disse. "Mas o turno era reduzido, quando eles atacaram. Fazia parte do plano, creio. Já soltaram trinta e duas pessoas. Calculamos que haja uma dúzia lá dentro. Não temos idéia de quantos ainda estão vivos."

"Meu Deus." Os olhos de Fielding brilhavam de raiva, enquanto ele balançava a cabeça. "Se quer minha opinião, aqueles filhos da mãe deveriam ser fuzilados lá mesmo."

"Bem, não sou eu quem vai discordar disso", Marino disse.

"No momento", Fielding me disse, "podemos dar conta de cinqüenta. É o máximo, somando o caminhão que veio para cá e o necrotério de Richmond, que aliás já está cheio. Além disso, o mcv foi mobilizado, para guardar os corpos, se for preciso."

"Os dentistas e radiologistas também foram mobilizados", presumi.

"Claro. Jenkins, Verner, Silverberg, Rollins. Estão todos de prontidão."

Senti o cheiro de ovos com bacon, sem saber se sentia náuseas ou fome. "Entre em contato pelo rádio, se precisar de mim", falei, abrindo a porta do trailer.

"Não ande tão depressa", Marino queixou-se, quando saímos novamente.

"Você já checou o posto de comando móvel?", perguntei. "O trailer grande azul e branco? Dava para ver de lá de cima, quando chegamos."

"Acho melhor a gente não ir lá." . "Bem, eu vou."

"Doutora, fica no perímetro interno."

"O hrt está reunido lá", falei.

"Vamos confirmar com Benton, primeiro. Sei que está procurando por Lucy, mas, puxa vida, use a cabeça."

"Estou usando a cabeça e procurando por Lucy." Eu estava ficando cada vez mais brava com Wesley.

Marino segurou meu braço, obrigando-me a parar. Trocamos olhares sob o sol, semicerrando os olhos. "Doutora", ele disse, "ouça o que estou dizendo. O que está havendo aqui não é pessoal. Ninguém dá a mínima que Lucy seja sua sobrinha. Ela é agente do fbi, caramba. Wesley não tem obrigação de informá-la a respeito de tudo que ela faz para eles."

Não falei nada, e ele tampouco precisou ser mais claro, para que eu percebesse a verdade.

"Portanto, não fique puta com ele", Marino disse, ainda segurando gentilmente meu braço. "Quer saber? Não gosto da idéia, também. Não suportaria, se lhe acontecesse algo. Não sei o que faria se acontecesse alguma coisa com qualquer uma de vocês. E agora estou mais apavorado do que já estive em toda minha vida. Mas tenho um dever a cumprir, assim como você."

"Ela está no perímetro interno", falei.

Ele parou. "Vamos, doutora. Vamos conversar com Wesley."

Não tivemos a chance, porém, pois quando entramos no centro de visitantes ele estava ao telefone. Seu tom era calmo, duro como ferro, e ele falava em pé, tenso.

"Não façam nada até eu chegar aí. É muito importante que eles saibam que estou a caminho", disse, devagar. "Não, não. Não façam isso. Use um megafone, para que ninguém chegue muito perto." Ele olhou de relance para Marino e para mim. "Agüentem firme. Digam a eles que alguém vai levar um telefone para negociar, imediatamente. Tudo bem."

Ele desligou e foi direto para a porta. Nós o seguimos de perto.

"O que está havendo, afinal?", Marino perguntou.

"Eles querem se comunicar."

"Como avisaram? Mandaram uma carta?"

"Um deles gritou pela janela", Wesley respondeu. "Estão muito agitados."

Passamos pelo heliporto. Notei que estava vazio. O senador e a ministra já haviam partido.

"Quer dizer que eles ainda não têm um telefone?", perguntei, muito surpresa.

"Desligamos os telefones do prédio", Wesley disse. "Eles precisavam pedir o telefone para nós, e até agora não se manifestaram. De repente, querem conversar."

"Portanto, têm algum problema", falei.

"Também pensei nisso." Marino estava sem fôlego.

Wesley não respondeu, mas percebi que estava petrificado. Raramente acontecia algo capaz de deixá-lo assim. A rua estreita nos levava através do mar de pessoas e veículos de apoio, e o prédio bege crescia cada vez mais. O posto de comando móvel brilhava ao sol. Estava estacionado na grama, com os cones de isolamento e a água necessária para resfriamento tão próximos que eu poderia atingi-los com uma pedra.

Sem dúvida os neo-sionistas nos tinham na mira de seus rifles e poderiam nos abater um por um, se resolvessem puxar o gatilho. As janelas que usavam para vigiar estavam abertas, mas não dava para ver nada por trás das persianas.

Fomos até a frente do trailer, onde meia dúzia de policiais e agentes à paisana rodeavam Lucy. Vê-la quase me parou o coração. Usava farda preta e bota. Estava novamente presa aos cabos, como na vez anterior em que eu a vira, no erf. Desta feita, porém, ela usava duas luvas e Totó estava no chão, movendo-se, com o pescoço grosso preso a um rolo de cabo de fibra ótica que parecia longo o suficiente para levá-lo até a Carolina do Norte.

"Acho melhor prender o fone com fita isolante", minha sobrinha dizia aos homens que não podia ver, pois usava o capacete de realidade virtual.

"Quem tem fita?"

"Espere um pouco."

Um sujeito de moletom preto abriu uma caixa de ferramentas avantajada e atirou um rolo de fita isolante para outro agente. Este cortou várias tiras compridas e prendeu o fone no telefone preto comum que estava numa caixa presa com firmeza pelas garras do robô.

"Lucy", Wesley falou.

"É Benton Wesley. Estou aqui."

"Oi", ela disse, e pude perceber seu nervosismo.

"Assim que você entregar o telefone a eles, começarei a falar. Só queria que você soubesse o que vou fazer."

"Está tudo pronto?", ela perguntou, sem ter a menor idéia de que eu me encontrava ali.

"Vamos lá", Wesley disse, tenso.

Ela tocou um botão na luva e Totó acordou, zumbindo baixinho. O olho na cabeça em domo virou, como se focalizasse as coisas da maneira que uma lente de câmera fazia. A cabeça girou para o lado quando Lucy tocou outro botão na luva, e todos acompanharam, quietos e ansiosos, a movimentação repentina da criação de minha sobrinha. O robô avançou sobre as esteiras de borracha, com o telefone firme entre as garras, seguido pelos cabos de fibra ótica e telefone, que saíam dos rolos.

Lucy conduziu Totó silenciosamente em sua jornada, como se regesse uma orquestra, movendo delicadamente os braços abertos. Com firmeza, o robô seguiu pelo caminho, passando por um trecho de pedriscos e depois pela grama, até se afastar o bastante para tornar indispensáveis os binóculos fornecidos por um dos agentes. Seguindo pela calçada, Totó subiu quatro degraus de cimento que levavam à entrada envidraçada do prédio principal, e parou. Lucy tomou fôlego e continuou a impor sua telepresença ao amigo de metal e plástico. Tocou outro botão e os braços se esticaram, com as garras na ponta. Eles baixaram delicadamente o telefone no segundo degrau. Totó recuou e deu meia-volta. Lucy começou a trazê-lo de volta.

O robô não havia se afastado muito quando todos puderam ver a porta de vidro se abrir. Um sujeito barbudo de calça e suéter caqui surgiu. Ele pegou o telefone e desapareceu lá dentro.

"Bom trabalho, Lucy", Wesley disse, e parecia muito aliviado. "Muito bem, agora vamos ligar", acrescentou, e não estava falando conosco, mas com eles. "Lucy", falou, "quando estiver pronta, vamos entrar."

"Sim, senhor", ela disse, e seus braços conduziram Totó em segurança por obstáculos e buracos.

Marino, Wesley e eu subimos os degraus do posto de comando móvel, que era decorado em cinza e azul, com mesas entre os bancos. Havia uma pequena cozinha e um banheiro. As janelas eram espelhadas, para que ninguém pudesse ver nada do lado de fora. Equipamentos como rádios e computadores ficavam na parte traseira. Acima de nossas cabeças, cinco televisores estavam sintonizados nas principais redes e na cnn, com o volume bem baixo.

Um telefone vermelho em cima da mesa começou a tocar quando entramos e percorremos o corredor. Soava urgente, imperativo. Wesley correu para atender.

"Wesley", disse, olhando pela janela, apertando os botões que iniciavam a gravação da conversa e colocavam a voz do interlocutor no sistema de som.

"Precisamos de um médico." A voz masculina tinha sotaque sulista, de branco. O sujeito ofegava.

"Certo. Mas você precisa me dizer mais."

"Não banque o engraçadinho comigo!", ele gritou.

"Calma", Wesley disse, muito tranqüilo. "Não estou brincando, ok? Queremos ajudar, mas para isso precisamos de mais informações."

"Ele caiu na piscina e entrou numa espécie de coma."

"Quem caiu?"

"Que diferença faz para você, porra?"

Wesley hesitou.

"Se ele morrer, este lugar está lotado de explosivos, entendeu? Vamos explodir esta merda, se não fizerem alguma coisa agora!"

Compeendemos de quem ele estava falando. Por isso, Wesley não perguntou de novo. Algo acontecera a Joel Hand, e eu não queria nem imaginar o que seus seguidores fariam se ele morresse.

"Continue", Wesley disse.

"Ele não sabe nadar."

"Deixe-me ver se entendi. Alguém quase se afogou?"

"Ouça. A água é radioativa. Os malditos conjuntos de combustível nuclear estavam lá dentro, entendeu?"

"Ele estava dentro de um dos reatores?"

O sujeito gritou de novo. "Porra, chega de fazer perguntas. Mande alguém aqui para ajudar. Se ele morrer, todo mundo morre. Entendeu bem?", ele disse, e um tiro soou pelo telefone e dentro do prédio, ao mesmo tempo.

Todo mundo parou. Ouvimos alguém chorando ao longe. Pensei que meu coração fosse romper as costelas.

"Se me fizer esperar mais um minuto", disse a voz excitada do sujeito, do outro lado da linha, "vamos matar mais um."

Aproximei-me do telefone e antes que alguém pudesse me impedir, falei: "Sou médica. Preciso saber exatamente o que aconteceu quando ele caiu na piscina do reator".

Silêncio. O sujeito disse: "Ele quase se afogou, é só o que sabemos. Tentamos tirar a água dele, mas já estava inconsciente".

"Ele engoliu água?"

"Não sei. Acho que sim. Saiu um pouco de água da boca." Ele estava ficando mais inquieto. "Se não fizer alguma coisa, moça, vou transformar a Virgínia num maldito deserto."

"Vou ajudá-lo", falei. "Mas preciso fazer outras perguntas. Qual é a condição atual dele?"

"Como falei, está desmaiado. Acho que entrou em coma."

"Onde o puseram?"

"Na sala, aqui com a gente." Ele parecia apavorado. "Ele não reage, por mais que a gente tente."

"Vou precisar levar muito gelo comigo, e medicamentos", falei. "Vou precisar fazer várias viagens, a não ser que alguém me ajude."

"É melhor você não ser um agente do fbi", ele disse, levantando a voz novamente.

"Sou médica, e estou acompanhada de pessoal médico", falei. "Vou entrar para ajudar, mas não se você complicar as coisas para mim."

Ele ficou algum tempo em silêncio. Depois, disse: "Tudo bem. Mas venha sozinha".

"O robô ajudará a carregar as coisas. O mesmo que levou o telefone."

Ele desligou, e eu também. Wesley e Marino olhavam para mim como se eu tivesse acabado de cometer um assassinato.

"De jeito nenhum!", Wesley disse. "Pelo amor de Deus, Kay! Você está fora de si?"

"Não vou deixar que você entre lá, mesmo que tenha de algemá-la", Marino intrometeu-se.

"Preciso ir", falei apenas. "Ele vai morrer", acrescentei.

"Exatamente por isso você não pode entrar lá", Wesley exclamou.

"Ele sofreu contaminação radioativa aguda, por engolir água ao cair na piscina", falei. "Ninguém pode salvá-lo. Morrerá logo, e aí vocês sabem muito bem quais serão as conseqüências. Seus seguidores provavelmente detonarão os explosivos." Dirigi-me a Wesley, a Marino e ao comandante do HRT: "Não entendem? Eu li o Livro. Ele é o messias desta gente. Eles não pretendem se entregar, simplesmente, caso o sujeito morra. Transformarão isso numa missão suicida, como previsto". Olhei para Wesley.

"Não sabemos o que eles farão", foi sua resposta.

"E vai querer correr o risco?"

"E se voltar a si", Marino disse, "Hand é capaz de reconhecê-la e dizer aos cretinos quem você é. E aí?"

"Ele não vai acordar mais."

Wesley olhou pela janela. Não estava muito quente no trailer, mas para ele parecia um forno. A camisa empapara de suor e ele não parava de enxugar a testa. Não sabia o que fazer. Eu tinha dado minha idéia, e duvidava que houvesse outra possibilidade.

"Preste atenção", falei. "Não posso salvar Joel Hand, mas posso fazer com que os outros pensem que ele não está morto."

Todos me olharam.

Marino disse: "Como?".

Eu estava ficando agitada. "Ele pode morrer a qualquer momento", falei. "Preciso entrar lá agora, e conseguir ganhar tempo suficiente para que vocês entrem também."

"Não podemos entrar", Wesley disse.

"Depois que eu estiver lá dentro, talvez possam", falei. "Vamos usar o robô para encontrar um caminho. Entraremos e depois ele pode atordoá-los e cegá-los até que vocês cheguem. Sei que vocês têm equipamento para fazer isso."

Wesley parecia desolado, e Marino desesperado. Eu compreendia como se sentiam, mas sabia que aquilo precisava ser feito. Fui até a ambulância mais próxima e peguei o que precisava com os paramédicos, enquanto os outros buscavam gelo. Depois Totó e eu nos aproximamos do prédio. Lucy reassumira o controle do robô. Ele carregava vinte e cinco quilos de gelo, enquanto eu levava uma caixa grande de suprimentos médicos. Seguimos na direção da porta do prédio principal de Old Point como se aquele fosse um dia comum e nossa visita algo normal. Não pensei nos homens lá dentro que me mantinham sob mira. Recusei-me a imaginar explosivos ou uma barcaça carregando material que serviria para a Líbia construir uma bomba atômica.

A porta foi aberta imediatamente quando chegamos, por um sujeito que parecia ser o mesmo barbudo que apanhara o telefone antes.

"Entre logo", ele disse, indelicado. Carregava um fuzil militar numa correia.

"Ajude com o gelo", falei.

Ele olhou para o robô com os cinco sacos de gelo firmemente presos a suas garras. Hesitou, como se Totó fosse um pit bull capaz de mordê-lo de surpresa. Mas acabou pegando o gelo e Lucy programou o companheiro para abrir a garra, pelo cabo de fibra ótica. Em seguida, o sujeito e eu entramos no prédio, a porta se fechou. Vi que a área de segurança fora destruída. O aparelho de raios X e outros equipamentos de detecção haviam sido arrancados e despedaçados a bala. Havia gotas de sangue e rastros de corpos ensangüentados. Segui-o, dobrando num canto, e senti o cheiro de sangue antes mesmo de ver os guardas abatidos a tiro, que formavam uma pilha sangrenta medonha no fundo do corredor.

O medo me subiu à garganta como bile quando passamos por uma porta vermelha e o ronco das máquinas sacudiu meus ossos e tornou impossível ouvir qualquer coisa dita pelo sujeito, que era um neo-sionista. Notei a pistola preta grande no cinto, pensando em Danny e na 45 que o abatera com tanta frieza. Subimos escadas metálicas suspensas pintadas de vermelho. Evitei olhar para baixo para não ficar tonta. Ele me levou por uma passarela metálica até uma porta pesada cheia de avisos. Digitou um código enquanto o gelo começava a pingar no chão.

"Faça apenas o que for ordenado", ouvi-o dizer ao entrarmos na sala de controle. "Está entendendo?", ele pressionou minhas costas com o cano do fuzil.

"Sim", falei.

Havia cerca de uma dúzia de homens lá dentro, todos usando calças de combate e pulôveres ou jaquetas. Empunhavam rifles semi-automáticos e metralhadoras. Estavam excitados e raivosos, indiferentes aos dez reféns sentados no chão, encostados na parede. Estes tinham as mãos amarradas na frente do corpo e fronhas enfiadas na cabeça. Pelos furos cortados nos olhos, percebi o terror deles. As aberturas para a boca estavam molhadas de saliva. As respirações eram rápidas, entrecortadas. Notei marcas de sangue de um corpo arrastado no chão também ali. Só que essas marcas eram recentes e seguiam até a parte traseira de um console onde os terroristas haviam jogado a última vítima. Pensei em quantos corpos encontraria no final de tudo, caso o meu não estivesse entre eles.

"Por aqui", o sujeito ordenou.

Joel Hand estava deitado de costas no chão, coberto por uma cortina que alguém arrancara da janela. Muito pálido, continuava molhado com a água que engolira na piscina e que o mataria, independentemente do que eu fizesse. Reconheci o rosto claro, os lábios fartos, pois já o vira no tribunal. Envelhecera e inchara um pouco.

"Há quanto tempo ele está assim?", disse ao sujeito que me conduzira até ali.

"Cerca de uma hora e meia."

Ele fumava e andava de um lado para outro. Não olhava diretamente para mim e mantinha a mão trêmula sobre o cano da arma, que apontou para minha cabeça enquanto eu posicionava a caixa de suprimentos médicos. Dei meia-volta e o encarei.

"Não fique apontando isso para mim", falei.

"Cale a boca." Ele parou de andar e olhou para mim como se pretendesse rachar minha cabeça ao meio.

"Estou aqui porque vocês me chamaram, estou tentando ajudar." Enfrentei seu olhar frio com decisão na voz. "Se não quer minha colaboração, vá em frente. Atire ou me deixe ir embora. Mas isso não ia ajudar em nada. Estou tentando salvar uma vida, e não quero ser distraída por essa sua porcaria de arma."

Ele não soube o que dizer. Encostou no console que tinha comandos suficientes para nos mandar para a lua. Monitores de vídeo nas paredes mostravam que os dois reatores haviam sido desligados. Em certas áreas havia uma luz vermelha acesa, indicando problemas que eu não compreendia.

"Ei, Wooten, vá com calma", disse um dos companheiros dele, acendendo um cigarro.

"Vamos abrir os sacos de gelo agora", falei. "Seria melhor se tivéssemos uma banheira, mas não temos. Estou vendo alguns livros em cima daquele balcão, e há pilhas de papel ao lado do aparelho de fax. Tragam tudo para cá, e mais o que puderem arranjar para servir de anteparo."

Os homens trouxeram manuais grossos, resmas de papel, maletas que presumi pertencerem aos funcionários tomados como reféns. Formei um anteparo retangular em torno de Hand, como se estivesse no quintal preparando um canteiro de flores. Depois cobri-o com vinte e cinco quilos de gelo, deixando apenas o rosto e os braços de fora.

"De que adianta isso?" O sujeito chamado Wooten se aproximou. Dava a impressão, pelo sotaque, de ser do Oeste.

"Ele foi exposto à radiação", falei. "Seu sistema está sendo destruído, e o único meio de interromper o processo é reduzir a intensidade do metabolismo."

Abri a caixa de suprimentos médicos e peguei uma agulha, que inseri no braço do líder terrorista moribundo. Instalei um tubo intravenoso que ia do braço a uma bolsa plástica no pedestal, contendo apenas uma solução salina inócua, incapaz de fazer mal ou bem. O soro começou a pingar, enquanto ele esfriava debaixo do gelo.

Hand estava morrendo. Meu coração batia com força quando eu olhava em torno, para aqueles homens suados que acreditavam ser Deus o sujeito que eu fingia estar salvando. Um deles tirou o suéter, e a camiseta estava acinzentada, com as mangas puídas por anos de lavagem. Muitos usavam barba, outros não se barbeavam havia vários dias. Pensei em onde estariam suas mulheres e filhos, pensei na barcaça no rio e no que poderia estar acontecendo em outros pontos da usina.

"Com licença", ouvi uma voz trêmula e apagada dizer. Pelo menos um dos reféns era mulher. "Preciso ir ao banheiro."

"Mullen, leve-a. Não quero ver ninguém cagando aqui."

"Por favor, eu também preciso ir", disse outro refém, um homem.

"E eu também."

"Tá legal. Mas um de cada vez", disse Mullen, um rapaz imenso.

Eu sabia pelo menos uma coisa que o fbi desconhecia. Os neo-sionistas não pretendiam soltar ninguém. Terroristas colocam capuzes em reféns porque é mais fácil matar gente sem rosto. Peguei uma ampola de soro e injetei cinqüenta mililitros no tubo intravenoso de Hand, como se estivesse dando a ele um remédio mágico.

"Ele está bem?", um dos homens perguntou, em voz alta, enquanto outro refém ia sendo conduzido ao banheiro.

"A condição dele se estabilizou, por enquanto", menti.

"Quando ele vai voltar a si?", outro terrorista perguntou.

Senti o pulso dele novamente, e estava tão fraco que quase não o percebi. De repente, o sujeito se abaixou e ficou ao meu lado, com a mão no pescoço de Hand. Depois ele enfiou os dedos no gelo e colocou a mão sobre o coração. Ao olhar para mim, estava apavorado e furioso.

"Não senti nada", gritou, com o rosto vermelho.

"Não é para sentir nada mesmo. O mais importante é mantê-lo em estado hipodérmico, para impedir que a radiação danifique vasos sangüíneos e órgãos", expliquei. "Ele acabou de tomar uma dose maciça de ácido dietileno triamino pentacético, e está bem vivo."

Ele se levantou, arregalando os olhos ao se aproximar ainda mais de mim, com o dedo no gatilho da Tec-9. "Como saberemos que você não está enrolando a gente ou fazendo ele piorar?"

"Vocês não têm como saber." Não demonstrei minhas emoções, pois aceitara a idéia de que aquele seria o dia de minha morte, e não a temia. "Vocês não têm escolha senão confiar em mim. Sei o que estou fazendo. Conseguimos reduzir drasticamente seu metabolismo. Ele não vai voltar a si, por enquanto. Estou tentando mantê-lo vivo, simplesmente."

Ele desviou a vista.

"Ei, Bear, vá com calma."

"Deixe a moça trabalhar."

Continuei ajoelhada ao lado de Hand. O soro intravenoso pingava e o gelo derretia. A água começou a escorrer pelos vãos da barricada, espalhando-se pelo piso. Medi seus sinais vitais muitas vezes e tomei notas, para parecer que eu estava muito ocupada cuidando dele. Não podia evitar, porém, olhar furtivamente para as janelas, sempre que possível, pensando em meus companheiros. Por volta das três horas da tarde seus órgãos sucumbiram, como seguidores que subitamente perdessem o interesse na causa. Joel Hand morreu sem um gesto ou som, frio como a água que corria em filetes pela sala.

"Preciso de mais gelo e remédios", falei, olhando para cima.

"E depois?" Bear se aproximou.

"Em algum momento precisaremos levá-lo para um hospital."

Ninguém respondeu.

"Se não me derem o que preciso não poderei fazer mais nada por ele", falei, com muita calma.

Bear foi até uma das mesas e pegou o telefone de contato. Disse que precisava de mais gelo e remédios. Eu sabia que Lucy e sua equipe tinham de agir logo, ou eu acabaria sendo morta. Afastei-me da poça em volta de Hand, que aumentava de tamanho. Quando olhei para seu rosto, achei difícil acreditar que ele tinha tanto poder sobre os. outros. Contudo, cada um dos homens naquela sala, dentro do reator e na barcaça, seria capaz de matar por ele. Na verdade, já haviam feito isso.

"O robô vai trazer o material. Vou lá pegar", Bear disse, olhando pela janela. "Já está a caminho."

"Se sair lá fora, eles vão atirar em você."

"Não com ela aqui dentro." Os olhos de Bear eram hostis e alucinados.

"O robô pode trazer as coisas aqui", falei, e os surpreendi.

Bear riu. "Não se lembra das escadas? Acha que aquele monte de merda enlatada consegue subir os degraus?"

"Ele é perfeitamente capaz de fazer isso", falei, torcendo para que fosse verdade.

"Ei, então faça com que traga o material para cá, assim ninguém precisa sair", disse um dos outros.

Bear falou com Wesley pelo telefone, mais uma vez. "Mande o robô trazer o suprimento para a sala de controle. Não vamos sair." Ele bateu o telefone, sem se dar conta do que havia acabado de fazer.

Pensei em minha sobrinha e rezei por ela, pois sabia que aquele seria seu maior desafio. Dei um salto ao sentir o cano de uma arma em meu pescoço.

"Se deixar ele morrer, você morre também. Entendeu, sua vaca?"

Não me mexi.

"Daqui a pouco vamos cair fora daqui, e ele vai conosco."

"Desde que eu tenha os medicamentos, conseguirei mantê-lo vivo", falei calmamente.

Ele afastou o cano da arma do meu pescoço e eu injetei o último frasco de soro no tubo intravenoso do líder morto. Gotículas de suor desciam pelas minhas costas. O traje médico que eu havia colocado sobre minha roupa estava ensopado. Imaginei Lucy lá fora, naquele instante, mexendo os dedos e braços, andando para lá e para cá, enquanto as fibras óticas possibilitavam que visse cada centímetro do terreno em seu monitor visual. A tele presença dela era a única esperança de que Totó não ficasse preso num canto ou caísse da escada no caminho.

Os homens olhavam pela janela, comentando quando as esteiras do robô o levaram pela rampa de acesso a deficientes até a porta do prédio. Ele entrou.

"Seria o máximo ter um desses", um dos homens disse.

"Você é burro demais para dirigir uma coisa dessas."

"Nada disso. Essa belezinha não é controlada pelo rádio. Nada que usa ondas de rádio funciona aqui dentro. Tem idéia da grossura destas paredes?"

"Seria ótimo para carregar lenha, quando o tempo está feio."

"Por favor, preciso usar o banheiro", disse um dos reféns, timidamente.

"Merda. Outra vez, não."

Minha tensão era insuportável. Temia o que poderia acontecer se eles saíssem e não estivessem de volta quando Totó chegasse.

"Ei, ele pode esperar. Droga, queria fechar as janelas. Está frio pra caralho aqui dentro."

"Sabe, você não vai mais sentir este ar frio e limpo em Trípoli. Melhor aproveitar enquanto pode."

Vários homens riram simultaneamente. Ao mesmo tempo, a porta se abriu e um sujeito que eu ainda não havia visto entrou. Sua pele era morena. Tinha barba e usava jaqueta e calça militar. Estava furioso.

"Temos apenas quinze conjuntos nos recipientes, nas barcaças", ele disse, autoritário, com forte sotaque. "Precisamos de mais tempo. Para conseguir outros."

"Quinze é coisa pra burro", Bear disse, e não parecia se importar com aquele sujeito.

"Precisamos de vinte e cinco conjuntos, no mínimo! Foi esse o trato!"

"Ninguém me disse nada disso."

"Ele sabe disso." O sujeito com sotaque olhou para o corpo de Hand, estendido no chão.

"Bem, ele não está disponível para discutir isso com você, no momento." Bear apagou o cigarro com a ponta da bota.

"Você não entende?" O estrangeiro estava furioso agora. "Cada conjunto pesa uma tonelada, e o guindaste precisa tirá-lo do reator inundado e colocá-lo na piscina, e depois dentro do contêiner. É difícil e demorado, além de muito perigoso. Vocês prometeram que teríamos pelo menos vinte e cinco. Agora estão com pressa e fazendo tudo de qualquer jeito, só por causa dele." O sujeito apontou para Hand. "Mas nós temos um trato!"

"Meu único trato é cuidar dele. Precisamos transportá-lo para a barcaça e levar a doutora conosco. Depois ele vai para o hospital."

"Isso é absurdo! Para mim, ele já parece morto! Vocês são uns lunáticos!"

"Ele não está morto."

"Olhem para ele! Está branco como cera, e parou de respirar. Está morto!"

Eles gritavam uns com os outros, e as botas de Bear batiam no chão estrepitosamente, enquanto ele andava para lá e para cá. De repente, perguntou: "Ele não está morto, não é?".

"Não", respondi.

O suor escorria pelo rosto dele. Sacando a pistola da cintura, apontou-a primeiro para mim. Depois a apontou para os reféns. Todos eles se encolheram, e um começou a chorar.

"Não, por favor. Não faça isso", um homem implorou.

"Quem queria tanto ir ao banheiro?", Bear gritou.

Eles ficaram em silêncio, com os olhos arregalados, trêmulos, respirando ofegantes pelos buracos das fronhas.

"Era você?", ele apontou para um dos reféns.

A porta da sala de controle estava aberta, e pude ouvir o zumbido de Totó, que vinha pelo corredor. Conseguira subir as escadas e atravessar a passarela metálica. Chegaria em alguns segundos. Apanhei a lanterna grande, preparada pelo hrt e colocada na caixa de suprimentos médicos pela minha sobrinha.

"Porra, quero saber se ele está morto", disse um dos homens, e soube que minha encenação terminara.

"Eu mostro", falei, enquanto o zumbido aumentava.

Apontei a lanterna para Bear e apertei o botão. Ele gritou com o clarão cegante e levou a mão aos olhos. Golpeei- o com a lanterna pesada como um bastão de beisebol. Senti os ossos de seu pulso sendo fraturados e ouvi a pistola caindo no chão. O robô entrou, sem trazer nada. Deitei-me no chão, de bruços, cobrindo olhos e ouvidos o melhor possível. Uma luz branca intensa tomou conta da sala, quando uma bomba de efeito moral explodiu no alto da cabeça de Totó. Ouvi gritos e palavrões enquanto os terroristas, cegos, tateavam por entre os consoles, apalpando uns aos outros Não ouviam nem viam nada, quando dezenas de agentes do hrt entraram correndo.

"Quietos, seus filhos da puta!"

"Nem um som, ou a gente arrebenta a cabeça de vocês, seus filhos da puta!"

"Todo mundo quieto!"

Não me mexi, sobre o gelo que cobria Joel Hand. enquanto os helicópteros faziam tremer as janelas e agentes desciam pelas cordas e entravam. Ouvi o ruído das algemas que se fechavam, armas retinindo no chão, largadas ou chutadas para longe. Ouvi gente chorando e me dei conta de que os reféns estavam sendo levados para fora.

"Está tudo bem. Você está em segurança, agora."

"Ah, meu Deus. Muito obrigado. Meu Deus."

"Vamos. Vocês precisam sair daqui imediatamente."

Finalmente, senti uma mão fria no lado do pescoço. Percebi que a pessoa procurava sinais vitais, pois eu parecia estar morta.

"Tia Kay?" Era a voz emocionada de Lucy.

Virei de costas e me sentei lentamente. Minhas mãos e um lado de meu rosto, que ficaram em contato com a água gelada, haviam perdido a sensibilidade. Eu tremia tanto que meus dentes batiam ruidosamente quando ela se ajoelhou a meu lado, empunhando a arma. Seus olhos examinaram a sala enquanto outros agentes, de roupas pretas, levavam os prisioneiros embora.

"Vamos, vou ajudá-la", ela disse.

Lucy estendeu a mão para mim, e meus músculo tremiam como se estivesse a ponto de sofrer um ataque. Não conseguia me aquecer, e os ouvidos não paravam de zumbir. Quando me levantei, vi Totó perto da porta. Seu olho estava queimado, a cabeça, enegrecida, a cúpula, destruída. Estava imóvel, no final da trilha de cabos de fibra ótica, e ninguém lhe deu atenção, enquanto os neo-sionistas, um por um, eram levados embora.

Lucy olhou para o corpo frio no chão, viu a água e o soro intravenoso, as seringas e as embalagens vazias de solução salina.

"Minha nossa", ela disse.

"É seguro sair agora?" Eu tinha lágrimas nos olhos.

"Recuperamos o controle da área de contenção. Tomamos a barcaça.ao mesmo tempo em que atacamos a sala de controle. Muitos terroristas foram mortos a tiros, pois não baixaram as armas. Marino pegou um no estacionamento."

"Ele atirou num terrorista?"

"Foi obrigado", ela disse. "Acho que pegamos todos - uns trinta, acho -, mas ainda estamos revistando tudo, com muito cuidado. O local está cheio de explosivos, vamos sair daqui logo. Você consegue andar?"

"Claro que consigo."

Arranquei o traje cirúrgico ensopado e o joguei longe, pois não o suportava mais. Tirei as luvas e saímos rapidamente da sala de controle. Ela pegou o rádio na cintura e seguiu em frente. As botas faziam barulho na passarela metálica e na escada com que Totó lidara tão bem.

"Unidade um-vinte para unidade móvel um", ela disse.

"Um."

"Estamos saindo, agora. Tudo em ordem?"

"Você pegou a encomenda?" Reconheci a voz de Benton Wesley.

"Dez-quatro. A encomenda está ok."

"Graças a Deus", foi a resposta, inusitadamente emotiva para a comunicação por rádio. "Diga à encomenda que estamos esperando por ela."

"Dez-quatro, senhor", Lucy disse. "Acho que a encomenda já sabe disso."

Passamos rapidamente pelos corpos e pelo sangue seco, atravessando o saguão que não mantinha mais ninguém dentro ou fora. Ela abriu a porta de vidro. A tarde estava tão clara que precisei proteger os olhos da luz. Não sabia para onde íamos, e sentia as pernas bambas.

"Cuidado com onde pisa." Lucy passou o braço em torno da minha cintura. "Tia Kay", ela disse, "apóie-se em mim."

 

                                                                                            Patricia Cornwell  

 

                      

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