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SOBRE UM POEMA DE SENGHOR
Minha mãe vive na aldeia. Quando regresso de viagens por terras que ela nunca verá, observa com apreensão e velada censura a minha mudez e, por fim, pergunta: «Então como te parecem essas cidades? E como são as gentes? E os ares?»
Os ares. Os ares primeiro que tudo. Até mesmo nas suas vindas a Lisboa, passados os primeiros dias da novidade, sentimo-la já precisada, a mais não poder, do ar do seu quintal. Passeia na varanda desde a alba, antes que a atmosfera se carregue, e ficamos a saber que a sua estada terminou.
Os ares de Nova Iorque, mãe, são uma neblina de bafos. Poeiras dentro de poeiras, fumos a engrossarem outros fumos, um suor sulfuroso, digamos assim, que parece resultar da condensação do hálito das ruas, a escapar-se estranhamente de buracos que não se vêem. Não são ares para nós, mãe. E, no entanto, tu, que sempre foste receptiva à mudança, se resistires uns dias a este esmagamento de coisas colossais,
dont les têtes foudroient le ciel
ciclones que rompem do chão e investem para os astros, ... tous les oiseaux de l'air
tombant soudain et morts sous les hautes cendres des terrasses
ossos de aço e músculos de betão, coisas sem medida que não param de crescer, fora ou dentro das quais uma pessoa nada é, se resistires aos inumanos enxurros humanos que avançam sobre nós, ao longe parecendo as ondulações do asfalto quando o sol o faz arder, e ao perto uma vaga que te submergirá sem ao menos reparar no que restou de ti,
... l'angoisse au fond des rues à gratte-ciel
e se mais tarde, quando a noite insidiosamente se apodera do dia, resistires ao súbito deserto em que estas mesmas ruas, ainda há pouco torrentuosas, se transformaram,
tandis que les klaxons hurlent des heures
vides então, mãe, por isto ou aquilo, Nova Ioorque acabará por fascinar-te. Como fascinou Léopold Sédar Senghor, o poeta.
... c'est au bout de la troisième semaine que vous
saisit la fièvre en un bond de jaguar.
Mesmo a ti, mãe. Apesar dos ares. Apesar da luz lívida ou fuliginosa, que é um presságio que deixou de o ser, dos tufões surdos acima e abaixo dos nossos pés, do cerco de perfis maciços.
levant des yeux de chouette parmi l'éclipse du soleil, atravessado de rios negros traçados à régua, onde os corações artificiais se foram habitando de indiferença.
New Yorke je dis New York... j'ai été confondu par ta beauté...
Como tu, Senghor, como eu, mãe.
E, não obstante, o Nova-Iorquino nada faz para te cativar. Nem dá, sequer, pela tua presença, salvo os mercadores do Levante, iguaizinhos aos das nossas feiras alentejanas, que falam todas as línguas do mundo e, nas redondezas do Bryant Park ou nos bairros da periferia, te vão buscar à rua para te meterem à cara e à gula estas maravilhas a saldo, made in Japan, mas fabricadas - quem sabe? - no Colorado. Nova Iorque desconhece-te ou hostiliza-te. Pior: amedronta-te. Pior ainda: perturba-se, se não mostrarmos nem o medo, nem a indiferença, nem a hostilidade que ela tem para te receber. Sobes ao teu quarto do hotel, que é uma babilónia dentro de outra babilónia sempre mais demarcada, e o primeiro aceno de boas-vindas é um letreiro a prevenir-te de que não abras a porta seja a quem for, mesmo que se farde de empregado de hotel, sem que, previamente, averigues pelo telefone se a gerência mandou alguém para te servir. E na encruzilhada das ruas, enquanto o semáforo domestica as iras do tráfego, acabas por reparar que as pessoas ficam intranquilas por estar juntas e paradas, afastando-se de rosto fechado.
Em cada vulto saído das portas sentirás os olhos de um malfeitor, na mão embolsada a arma que te há-de intimidar. Se fores, por exemplo, ao escritório de uma companhia de aviação, o recepcionista, cursado em relações públicas, dir-te-á que, na semana anterior, aquele fotógrafo com tabuleta no prédio em frente foi assaltado duas vezes, duas, e em pleno dia; dir-te-á que, não há muito, esfaquearam um homem ali mesmo, no passeio da 5.a Avenida, tendo-o depois acarreado pelos ombros rua adiante, numa descarada pista de sangue, até ao covil do ajuste de contas - que vale a vida de uma pessoa onde matar é ofício? - na 5.a, repito, sem que uma alma cristã chamasse um polícia; e que no próprio escritório da companhia, eram seis horas da tarde... A bomba, sim, leste isso em Lisboa. E o teu amigo Harry Steller, saudoso da Europa, da Rive Gauche, confessar-te-á que, sendo Nova Iorque uma cidade onde se trabalha mas onde não se dorme - e os negros, Harry?, e os porto-riquenhos?, e os... -, nuits d'insomnie ô nuits de Manhattan! si agitées de feux follets
as pessoas, durante o dia, têm o pensamento no que poderá estar a acontecer na sua residência. Se alguém tarda a um encontro, a primeira ideia a acudir é: que lhe terá acontecido? Medo. Uma insegurança que é odor, um alerta dos reflexos, prontos a avisar-te do perigo. Ali, na Park Avenue, lado sul, e não em Harlem, laisse affluer le sang noir dans ton sang na Park Avenue, lado sul, e não em Brooklyn, ali, onde há polícias tamanhões que talvez durmam de pistola e cinturão, onde as patrulhas motorizadas, os helicópteros, as sirenas ameaçadoras e aflitas poderão acorrer num ápice. Se bateres ao 1005 room da agência de Miss Ritter, a argola da porta só se solta depois de uma identificação acautelada através das frinchas, até se saber, sem mais dúvidas, quem és e ao que vens, mas os olhos em fenda, de metal azul, continuarão a perscrutar-te, enquanto as mãos sacudidas julgam acamar as farripas que um vento imaginário sobressaltou. "Uma recordação de Paris, Miss Ritter." "Um presente? Posso abrir? Para mim, de verdade?" Alguém, que fui eu, lembrou-se em Paris de Miss Ritter. O metal dos olhos fundiu-se, o nervoso das mãos extasiou-se. "Ah, desculpe, mas tenho de experimentar já." E foi um espargir liberal, excitado, dos ombros à ponta dos dedos. Num repente, o 1005 room saturou-se de perfume. E de emoção quase pueril, sem atinar com as palavras adequadas.
Nova Iorque será, pois, assim. Um estado de espírito. A tal "selva urbana" de que te falam os especialistas do terror. Leio agora mesmo no jornal: "Um homem que foi empurrado, acidentalmente, por um jovem, numa rua desta cidade, bateu com a coronha de uma pistola no adolescente, atingiu a tiro outros dois e intimidou com a arma um motorista de táxi, numa tentativa de fuga." Mas estou em crer que a maioria dos nova-iorquinos se parecem com aquela Miss Ritter. O egoísmo, o medo, a agressividade são um contágio. Um escudo contra aquilo que se teme nos outros e que os outros temem em nós. Prescrever rituais como o do embrulhinho parisiense não será panaceia, mas quantas vezes se me revelou o americano sensível, crédulo, para não dizer piegas, sempre que o surpreendíamos com um gesto afectuoso! E mal puseste o pé no escritório do teu amigo Harry Steller, que viste tu? Três ou quatro dos teus livros expostos ao alto, para que soubesses que tens estado presente naquela casa. E, na parede, uma aguarela do seu neto, um pimpolho loiro de cinco anos, ali retratado à saciedade num estendal de fotos. Em quase todo o encontro, de que te falou ele? Desse neto. Da aguarela. Da filha que vive em Copenhaga. Nem uma palavra sobre as obras que o popularizaram.
Talvez sejam as coisas que te assustam e bem menos os homens. Ou talvez os homens te assustem porque as coisas que eles construíram são inóspitas, brutais e, como disse, esmagadoras. De um ou de outro modo, porém, e após os primeiros dias, os teus sentidos deslassam-se. Espantas-te, de súbito, com a tua afoiteza, com a tua intranquilidade já anestesiada, verificas que os sinais ameaçadores não o eram tanto como te pareciam ou te faziam crer os filmes da Broadway e a tal imprensa que escorre sangue de cada título. Passas a incorporar-te em Nova Iorque, em vez de estares de "fora". Nova Iorque, capital da Sicília, da Nigéria, de Porto Rico ou de Israel, é já também o teu "território". E apetecer-te-á gritar, como Senghor:
(Ecoute New York! ô écoute ta voix mâle de cuivre...)
Escuta, Nova Iorque: descobri a tua beleza, mesmo naquilo que em ti é descomunal e terrificante.
Dizia eu, portanto, que Nova Iorque não força os visitantes a um aperto de mão. Antes pelo contrário. Estava eu em Montréal, sem grande cobiça por alongar a viagem até à metrópole americana, mas, tanto me picaram, que me decidi a ir ao consulado obter o visto.
Isso, porém, não é coisa que se arrume em duas penadas. Logo no átrio, uma parada de bichas, a desencorajar. Sobre a prateleira de vidro, laudas de papel em letra miúda, a preencher com vagares e sem falhas na atenção. Uma pessoa fica ali devassada até ao osso. Não há pergunta que não se lhe atire, em jeito de estocada, certificado que não lhe seja imposto. A América da Estátua da Liberdade, que o amplo Hudson minimiza, vê em cada turista um imigrante disfarçado e em cada imigrante um destroço que lhe agravará os problemas.
Pois vamos lá ao requisitório. É comunista, católico ou luterano? Teve sarampo, tísica? Tomou alguma vez drogas na sua vida? Ouvido isto, passe para cá o passaporte, que será radiografado como as obras de arte duvidosas, enquanto, em simultaneidade, se averiguará que razões obscuras te levam a Nova Iorque, a tal que transformou em monumentos os edifícios bizantinos da Ellis Island, porta de entrada de dezasseis milhões de imigrantes entre 1892 e 1954.
E uma pessoa preenche linhas a fio, troca as coisas, emenda, pede à senhora do guichê que lhe explique uma passagem mais abstrusa do questionário, rasga o impresso e volta ao princípio e, por último, repara que esqueceu em Lisboa as fotografias da praxe. O que vale é estar ali uma gerigonça de emergências, que comercia com os imprevidentes. Enfia-se a moeda, outra, outra ainda, e não demora que se dispare a meia dúzia de retratos de fora-da-lei. Nem um vou guardar para lembrança. Um homem nunca gosta de ver a sua caraça assim tão desmascarada.
Eis os papéis, as fotos. Acabou? Qual! Isto foi só o prelúdio. Entre o amigo para esta sala, enquanto um esquadrão de peritos passa a pente fino as suas cédulas. Basta um correr de olhos pela gente que ocupa quase todos os bancos para se sentir, a palpar-se, o fastio de uma longa espera. Uma paleta de rostos: porto-riquenhos, malaios, italianos, indianos, jovens andarilhos de trunfa e blue jeans, e sobretudo negros. A berreira dos trajes, a que os negros não resistem, é tão identificadora como a cor da pele. Esta pequenita, de carapinha arrepiada em laçarotes vermelhos, encarrega-se de distribuir magnanimamente os folhetos turísticos que a burocracia manda que ali se exponham. Semeia-os pelo caminho, no rodopiar ladino, o pai repreende-a com moleza, a saturação já lhe quebrou os ralhos. Só quando a prateleira se esvaziou é que uma funcionária interveio a recuperar os folhetos. Neste grupo italiano, o mandão é o da gravata. Um esplendor de gravata a ajardinar-lhe o peito de lutador romano. No mais, um palmo e meio de gente. Mas não se dá por isso, tal o garbo de cada gesticulação. Ele decifra as falas que se escoam de uns altifalantes roufenhos e dá notícia aos outros se chegou ou não a hora. A hora é o entrar por uma daquelas três portas, onde nos aguarda um síndico. Se se hesita sobre qual das portas chamou, outro que passe adiante, e o castigo será correr de novo aos guichés e desfazer a baralhada. Os jovens e os negros demoram lá dentro mais tempo. Às vezes, saem para retornarem à sala, ao banco, ao enfado, até que voltem a chamá-los. Aquilo das drogas, se calhar, é especialmente com eles. E cada um desses giros frustrados adensa a expectativa.
Ali estou eu, finalmente, face ao síndico, acolitado por duas funcionárias com modos de despachar e andar. Encaramo-nos sem benignidade, o que me apetece é desistir da viagem e ficar-me pelo Canadá. Este tipo cheira-me a FBI, ou então é o azedume da espera que me pôs desconfiado. Li um par de coisas sobre o FBI, que dentro e fora dos Estados Unidos assumiu a cruzada de lutar contra "as forças do mal", e até fiquei a saber que, além de um recrutamento severíssimo quanto a vocações e devoções, se tem em alta conta a aparência. A deles próprios, para começar. Avalio o sujeito, este sujeito que passa a pente fino cada uma das frases com que respondi ao questionário, e confronto-o com o padrão. Ná, não acerta. O agente do FBI, ao que consta, deverá usar fato escuro, camisa com punhos, um lenço imaculado no bolso, tudo isso tendo que ver com os figurinos morais, que são lei para o FBI. Nada de vícios e inclinações duvidosas. Nada de escapadelas à noite deixando a mulher em frente do aparelho de televisão, nada de deitar o rabo do olho às desavergonhadas do Playboy. Um agente do FBI tem de ser um exemplo do puritanismo que gerou uma liberdade austera, toda enquadrada num conformismo social. Não pode usar o cabelo muito curto, que é sinal de imaturidade. E nos tempos em que o lendário Hoover dirigia a instituição, qualquer funcionário deveria ainda, entre mais regras tácitas, enxugar as mãos antes de bater à porta do chefe, pois este detestava peles suadas, e evitar fumar, pois ele não detestava menos o cheiro a tabaco. O comportamento, no FBI, valia (ou vale) tanto ou mais que a inteligência, coisa, aliás, de discutível apreço: lembre-se que o igualmente lendário Goldwater disse que a inteligência não passa de "extremismo dos imbecis" e houve boa gente a gostar da definição. Assim sendo, o FBI incita os funcionários a denunciarem-se uns aos outros, em questões de moralidade, talvez como meio de se manterem em forma. Em suma: uma organização impecável. Um ficheiro de duzentos milhões de pessoas, mesmo que só vinte por cento justifiquem suspeitas, bufos infiltrados em tudo o que seja política e crimes. Por isso, este desabafo de Bill Davidson: "Já se infiltraram tantos espiões do FBI na Mafia que se tornou difícil distinguir os mafiosos dos informadores."
Bom, o meu síndico será ou não do FBI? O cabelo curto e o casaco desmanchadão põem-me o diagnóstico em dúvida. Mas, no fim de contas, que adianto eu com tais conjecturas? Entretanto, o requisitório prossegue. Então que motivo me leva aos Estados Unidos? Turismo, pois, é o que todos dizem. Mas que turismo? E porque não pedi o visto em Lisboa? Um pormenor intrigante. Ah, médico. Muito bem, que provasse. Como? Ora essa. Mostrando, por exemplo, que trago comigo um aparelho do ofício.
Não conseguimos entender-nos. Sou médico, mas não pretendo ir aos Estados Unidos como tal. Para que diabo traria a ferramenta no bolso, se já nem sequer exerço clínica? O que foste dizer, que diabo de ironia te veio à boca! Se não bato à porta dos Estados Unidos com a curiosidade de médico, que espécie de outra curiosidade me trouxe ali? Vá, sai-te dessa. E restou-me a última vaza: vou como escritor. Sou escritor.
O síndico olha-me com a animosidade reservada aos hippies. Escritor? E volta-se para uma das acólitas, inquirindo:
- Que foi que ele disse? Como diabo é que um tipo português é escritor?
Entediado do problema incomum, o homem põe abruptamente o carimbo no visto.
- Cinco dias. Dou-lhe cinco dias de permanência nos Estados Unidos.
A ILHA PRODIGIOSA
Se os Estados Unidos não são Nova Iorque, Nova Iorque também não é Manhattan. A prodigiosa ilha estelar, raiada de molhes voltados para a Europa, salta sobre pontes e fura sob túneis, espraiando-se por Jersey City, Brooklyn, Queens, Richmond, que sei eu; uma pluralidade de raças e de perfis citadinos, somando-se por catorze milhões de pessoas, se a área considerada for a Grande Nova Iorque. Mas bastaria Manhattan, a gigante do dorso em cordilheira, para ilustrar a coabitação de contrastes; a Manhattan de Harlem, que é também a de Wall Street; a de Greenwich Village e do Central Park; a do Lower East Side e do Riverside Drive. A dos teatrinhos-estúdio e a do New York City Center. Primeira em tudo. O primeiro centro financeiro do mundo, o maior porto, a cidade mais populosa. A mais diversa, a mais rica. Uma das mais miseráveis.
Porém, favos segregados, torres-formigueiros ou misturas aluvianas (o colorido estonteador, prolixo e promíscuo, de uma avenida nova-iorquina, que só tem rival à altura no Soho de Londres dos anos 70!), quem chega sente logo que arribou a outro planeta. Ora de pesadelo, ora de promissão. E é essa a diferença, a socar-nos em cheio no estômago, que individualiza Nova Iorque. Diferença física, sem dúvida - pois onde ver esta descomunal floresta petrificada, estas arribas de cimento, talhadas a pique sobre rios humanos, que tanto se enchem como se esvaziam, onde ouvir este gorgolar de uma imensa veia que se rompeu? -, e diferença de atmosfera. De ritmo. De respiração. De estar, de comunicar. Ou, sobretudo, de incomunicar. Nova Iorque é a cidade das solidões.
Vou aqui lembrar o que ouvi da hospedeira (rosto mouro fulgurando nos olhos de carvão) durante a viagem Lisboa-Montréal.
- O Canadá, sim, creio que apreciará a experiência. Mas será em Nova Iorque que, verdadeiramente, sentirá que atravessou o Atlântico. E não me refiro aos celebrados arranha-céus. É noutro aspecto. No viver, nas gentes. Uma pessoa está no meio da multidão e, afinal, está sozinha. Há ali qualquer coisa que não bate certo. Nem eles próprios saberão o quê. O dinheiro como mola-real da vida? O incitamento à competição, ao salve-se-quem-puder criadores de frustrações?
Mais tarde, numa pausa dos sorrisos profissionais, ela voltou ao assunto. Com a mesma versão sombria, modulada de pesar:
- Vê-los-á vagueando pelas ruas, a gesticular e a falar para ninguém, a meter conversa nos bares, ou parados, expressão acusadora ou lamuriosa, na expectativa de que um desconhecido mais convivente lhes passe a palavra. E, naquela terra da fartura, os caixotes do lixo são restolhados por mãos humanas antes que cheguem os "almeidas". Em certos restaurantes, verá gente na espera de que os outros se levantem da mesa e deixem no prato alguma coisa que ainda se possa rapar.
Disso, não vi. Mas as tais pessoas sonâmbulas, monologando, ou então numa fixidez de pedra, sentadas nos jardins, mumificadas num portal, ou deitadas nas relvas como mortas - quantas! E já não falo dos ébrios ou dos exaustos que, caídos nos passeios, um polícia desperta sem se gastar com solicitudes.
Foi eu sair do hotel, na minha primeira aventura pelas ruas, e logo ali na esquina deparou-se-me uma senhora bem senhora, uns trinta anos que a calça justa fazia mais esbeltos, a comandar o tráfego perante o surpreendente alheamento de quem investia e de quem passava. Um pouco adiante, no Bryant Park, mais três exemplares. Um vulto dorme (ou assim parece) enrolado em frangalhos da cabeça aos pés. Sobre a relva. A dois passos de um casal negro jogando, às claras, o jogo do amor. Outro vulto estirado num banco do parque. Este é de mulher. De barriga para cima, o rosto estático de vénulas roxas, antes máscara carnavalesca que feições humanas, sobretudo se olhado de perfil, o tórax sem um arfar, todo o corpo imóvel, morto. Morto, será possível? Mas, em redor, o par negro, a crescer de febre, devassa-se com as mãos, um hippy chupa um gelado, crianças perseguem as pombas que debicam restos de comida, gente vem, gente vai, sirenas uivam, sempre as sirenas, sempre os furacões do trânsito que nem estas árvores conseguem serenar, estudantes descem a escadaria da biblioteca e passam rente ao corpo que não respira - uma indiferença que me arrepia. Por fim, de rodeio em rodeio, acabo por tocar esse rosto de palhaço, o peito rígido. A mulher, céus!, está viva.
Quedo-me por ali. Entretanto, o jardim enche-se, mais tarde saberei que teremos um espectáculo de dança. Improvisado na escadaria, isto às onze horas da manhã. Os bancos da frente disputam-se, deixa de haver um lugar. A mulher que está a meu lado lê o jornal. Não tarda que repare que ela lê sempre a mesma página, talvez a mesma coluna. E, quando se fartou, pôs-se a falar para si. Fala, ri, creio que graceja, a mímica é exuberante, nos lances mais animados o seu tronco flecte-se e endireita-se, numa cadência de boneco articulado. Quando o espectáculo começou, brigando com o seu mundo privado, afastou-se. Julgo ouvir, não longe, o latido de cães. Como numa aldeia. Será?
Agora, em Greenwich Village. O meu jovial cicerone, o Bobbit, de quem falarei a seu tempo, vê-me parar em frente de um homem sentado (acocorado, seria dizer melhor) no degrau de um portal. Numa postura que chama a atenção. As pernas dobradas de modo a salientar os joelhos, nos quais assentam os braços finos. Mãos em concha a aparar o queixo. Na cabeça um barrete frígio. Todo ele quieto, ausente. É estátua ou homem? Ele está e não está ali. Para me fazer crer isso mesmo, o endiabrado Bobbit passa-lhe a mão diante dos olhos, uma e outra vez. Não houve reacção. Horas depois, noite deserta, quem fomos encontrar na mesma postura, na mesma abulia, à beira da Roosevelt House? O nosso homem. E dando-nos igualmente a sugestão da imagem paralisada de um filme cuja projecção tivesse sido interrompida. Nova Iorque pareceu-me então uma cidade irreal, esquizofrénica, habitada aqui e ali por aquela figura em êxtase.
Foi talvez o que mais me impressionou em Nova Iorque: a alienação. Em todo o sentido da palavra. Cada pessoa um mundo insulado, à deriva neste oceano rugidor.
O estranho, porém, é que uns dias de Nova Iorque (cinco dias, lá disse o síndico) bastarão para compreendermos como esta segunda natureza que ela é foi criando coisas e fraudes para alienar o homem e como finalmente, por ter ido aos extremos dessa desumanização, procura agora votar-se ao humano. A América, ou pelo menos uma certa América, viu-se por dentro e sem temor do que o espelho lhe devolveu. E a América do futuro. Sentimo-la em ebulição, vemo-la euforizada, por muito que a outra América, a do rei-dólar, a arrogante América da corrupção e da agressividade, que arrasta pelas ruas despojos humanos, os tais ébrios, os tais desesperados, os tais lixos, como reboca os automóveis deixados em falta, a América da política-máfia de gangsters, ainda ocupe os bastiões. Apercebemos-lhe já o sentimento de culpabilidade, as dúvidas, as cada vez mais erosivas contradições. Ir longe é ver melhor o que está perto, sabe-o o viajante, e a América tem competido com a URSS no desbravar dos espaços. Que é o desbravar de si própria e talvez de todos nós. Daí ouvir-se um Dale Myers, o da Nasa, dizer assim: "De lá de cima (Lua), os homens puderam contemplar pela primeira vez o seu planeta tal como ele é: um corpo celeste entre os outros. E, ao mesmo tempo, qualquer coisa de único, de insubstituível. Então, os homens reconheceram que a sua Terra é bela e merece que se ocupem dela."
A Lua, em suma, acabou. Agora que lá fomos, num risco e num repto necessários, chegou a vez da Terra. Estes jovens desuniformizados, cada qual vestido à sua real gana, com banca armada à entrada dos buildings ou dispostos nos cruzamentos estratégicos, que nos estendem prospectos exaltando McGovern, sem que a frieza dos transeuntes os desanime, estes jovens caminhando enlaçados ou de mãos dadas, nos rostos uma gravidade serena, pelo meio da multidão sempre atrasada sobre o horário, que expõe nas áleas da Park Avenue os seus artesanatos já sofisticados, tudo a um dólar para evitar trocos que, no fervedouro dos campus, vão amadurecendo a sua verdade, que, na terra das segregações, misturam as raças mais díspares, mas misturam-nas com amor, com a veracidade dos gestos naturais, estes jovens que não pretendem ser chairmen de coisa nenhuma, que se entrincheiraram em Greenwich Village sem, todavia, desistirem da sua propagação pela Midtown Manhattan, que regressaram do Vietname sangrando por dentro - são o fermento da nova América. A que, após depurada a "recusa", vai conciliar o progresso com o homem. A que apagará os estigmas da desigualdade e do vazio nas almas. Da poluição moral, social, cultural, tão graves quanto a ecológica. Esses jovens querem a Lua na Terra.
A Lua foi talvez um capricho, um torneio de prestígios, um rasgo poético, um desafio às potencialidades da técnica, ou tudo isso em simultaneidade - mas esse estro meio louco (diz-nos agora um tal Dr. David) "ensinou-nos a dar à ciência um objectivo e como atingi-lo".
Estes jovens (na embocadura do Central Park, sob os anúncios gritantes de Times Square, no terraço exterior do Rockefeller Center, onde calhe, enfim) a imitarem os cerimoniais budistas ou as práticas esotéricas de uma arremedada filosofia oriental, distribuindo nos drugstores reclamos de videntes, fazendo de Cristo uma vedeta da Broadway, mesclando a religião, a política, a simplicidade recuperada e a salvação do mundo com a feitiçaria e o parasitismo, estes jovens, eles próprios uma contradição, ferozes e pregando a concórdia, messiânicos e individualistas, afluindo aos festivais da música e da comunicabilidade despojada de haveres nos seus Cadillacs de príncipes - tornaram-se proféticos. O seu elementarismo e a sua marginalidade, secretados pelo colete-de-forças burguês, de que, no entanto e com frequência, aproveitam as benesses sem lhes pagar o preço, são o símbolo de uma civilização condenada, mas que foi tomando consciência dessa condenação e a quer superar. Eles, e todos os não-jovens sacudidos, contagiados, alertados, talvez saibam cada vez menos o que querem, de tal modo se globalizou e diluiu o protesto (obsessivamente, como a obsessão sexual), de tal modo degenerou em soluções individuais, quando os problemas que contam nos lances históricos são colectivos, mas sabem o que não querem. E já se apercebem os sinais de maturação, sem a qual não se chega à coragem da escolha. O sentimento disseminado de que se deve odiar o esquema de vida que nos envolve sem nada exigirmos de nós próprios para o modificar, de que a felicidade passa ao lado do esforço por merecê-la, de que o tédio codifica a inteligência, começa a ser posto em causa. Os hippies reintegram-se nos elos sociais, influenciando-os, porém, agora que a evasão se evidenciou como um luxo da abundância, os ociosos despertam da sua hibernação, a retórica perde audiência, os desmistificadores vêem-se dia a dia desmistificados, os que cultivam a irresponsabilidade procuram gradualmente responsabilizar-se - e, sobretudo, o homem, em vez de voltar costas ao progresso, decidiu-se a vigiar-lhe as adulterações. Não apenas restaurando os laços com o seu meio, mas harmonizando o conhecimento científico, que é objectivo, com a subjectividade das aspirações humanas. A degradação psicológica acompanhara ou ultrapassara a degradação ambiente, ambas hostilizando o equilíbrio natural, que assenta na racionalidade profunda da vida e não nos seus sucedâneos: o misticismo, a errância, a histeria (há quem compare as arengas circenses de Hitler com os festivais das vedetas dos nossos dias - o mesmo irracionalismo místico os explica), o apetite alienador do dinheiro e do poder, a ciência divorciada do real.
Vou conversando sobre estas coisas com Nino Grisanti, o veneziano. Ele reside em Nova Iorque desde... desde quando, Nino? É que, mesmo triturado por este ritmo de doze horas por dia de escritório, o almoço uma sanduíche e a chicotada do café, o jantar, ah, o jantar, não, é ele próprio que o prepara, afectuosamente, escrupulosamente, com todos os devidos condimentos italianos, doze horas de lida a mata-cavalos, fora os serões menos extraordinários do que se possa julgar, ele e a sua paciente Ruth, americana do Nevada mas já com o molde fisionómico de uma milanesa que faça mais uso da mímica do que das palavras, mesmo sem feriados nem recreios, Nino aguenta-se bem. Ninguém lhe põem mais de quarenta anos. Só um olhar prevenido lhe perscrutará, sob as faces lisas, que a escassez de ar livre desmaiou, sob a melena fofa (e pintada?), um desgaste que talvez não tarde a desmascarar-se.
Que faz correr Nino? O regresso a Veneza. Veneza, minha terra. Mas com um pé-de-meia que o desagrave das doze horas diárias de forçado, desta Nova Iorque que ele odeia (por sentir que já lhe quer bem?), e lhe assegure uma velhice sem telefones, sem facturas, sem uma paisagem de arranha-céus, na branda ociosidade de um meridional. Conversando nas esplanadas soalheiras. Bebendo com amigos. Comendo e amando remansadamente, como um cristão deve comer e amar. Existem milhões de Grisantis no continente americano, vindos de uma infinidade de Venezas. O sonho é o mesmo. Veneza, minha pátria, meu passado e meu futuro. "Nem um dialecto lhe falta, caro amigo, para ser única no mundo." E é ver esta boca azedada finalmente a sorrir.
Nino leva-me a um restaurante veneziano, veneziano retinto, numa das transversais da 6.a, a saborear as artes culinárias do seu compatriota Don Giovanni. Don Giovanni Calogero, fellinesco, malicioso, afagando constantemente as mãos serviçais.
São os italianos que dão de comer a Nova Iorque. Do pão ao Chianti, da pizza ao acepipe mais requintado. O Mama Leone é, aliás, o maior restaurante do mundo, como o Four Seasons goza da fama de ser o mais belo. Aquele, com as suas onze salas de mesa, pode atender simultaneamente mil e quinhentos clientes, parece que uma cidade em viagem parou ali à porta e todos, à uma, se puseram a comer; este, até decorado é com pinturas de Chagall e de Picasso. Todavia, o Mama Leone também mete vista com as suas criadas em trajes folclóricos, os seus tocadores de mandolina, tudo o que uma cidade de província em viagem gostaria de encontrar. Na Rua 48, lado oeste, para quem estiver interessado.
E Nino, a propósito do restaurante de Don Giovanni, assim maneirinho, assim veneziano, como aquelas casas de pasto das vielas que desembocam na Praça de S. Marcos e deitam o anzol ao passante só com o odor capitoso a sopa de peixe, quem me instrui sobre estes roteiros culinários.
São nove horas da noite e já terminou o êxodo. Nova Iorque é uma cidade morta. Mas respira ainda: um murmúrio arfante, indistinto. Ouve-se, ao longe, o que parece ser o rugido de leões. A cidade abandonada continua, porém, de vigília. Os seus olhos amarelos estão acordados e fixos. Em todos estes buildings, torres que vêm do céu e se cravam no chão, os fugitivos deixaram as lâmpadas acesas. É um misterioso fogaréu nocturno, uma vigília de terror.
Como segurar em Nova Iorque os que, em cada noite, dela debandam? Nino também me fala disso, na sua toada nostálgica, como quem se refere a lugares distantes. Ou a lugares perdidos. Há um projecto, do arquitecto Manfred Nicoletti,
- Italiano?
- Claro que italiano!
um projecto de subtrair sessenta e cinco hectares à baía de Manhattan, para aí alojar cento e vinte mil pessoas em grandes conjuntos em forma de concha, de cem metros de altura, descendo em degraus até jardins flutuantes. Ou seja:
-Uma Nova Iorque "amável", contrastando com este perfil desabrido de estacaria cinzenta, juntando-se lá em cima numa vasta cúpula, que fecha o céu.
- Sem novos arranha-céus?
- Seria pedir muito. O projecto prevê alguns, mas no feitio de tripla espiral. Para escritórios e estabelecimentos comerciais. - E Nino, fitando-me sem me ver, numa fixidez abúlica, acrescenta: - Manhattan já não poderia deixar de ser o que é. Uma calculadora electrónica que se enfiou no corpo das pessoas. Até os corações lhe obedecem.
Nova pausa, depois a sua voz torna-se neutra, como neutra se tornara a expressão.
- É um facto que os arranha-céus vão ficando vazios, que, ultimamente, as próprias empresas acompanham os moradores na fuga para os subúrbios. Mas pressente-se já o refluxo. O deserto de cimento reverdece, estão a plantar dezenas de milhares de árvores por ano. E, mais significativo do que isso, Nova Iorque procura descobrir uma tradição. Há uma empresa que se especializou no restauro das casinhas coloniais, que o meu amigo pode vir ver entre as torres gémeas do World Trade Center. E apregoa-se muito a personagem dos neighbourhoods - os bairros. Desataram a defendê-los, como se se tratasse de monumentos seculares, e apesar da fúria de demolição de que Nova Iorque tem estado possessa. Os bairros-formigueiros de imigrantes, muitos deles sórdidos, têm, porém, uma cálida atmosfera de comunidade, que falta aos Nova-Iorquinos e de que eles sentem uma desesperada precisão. Não é, Ruth? Humanizar a cidade, salvar por todo o lado aquilo que tem história e escapou aos bulldozers. Humanizar a mais inumana das cidades. Quer ouvir um exemplo? Uma senhora proprietária de um velho prédio de três andares foi transformada em heroína pelos jornais pelo facto de se ter recusado obstinadamente a vendê-lo aos construtores. O prediozito parece um anão entalado por gigantes, mas é hoje um símbolo. E quem sabe se Harlem não voltará a ser um bairro chique? Agora andam a repetir ao Nova-Iorquino, com a insistência de um slogan: "Todas as cidades têm uma tradição, mesmo as mais jovens. A tua também."
- E Nova Iorque tê-la-á, de facto, no sentido que nós, Europeus, pomos na palavra?
Ruth baixa os olhos, Nino sorri ambiguamente. Deduzo que devo dar o tema por esgotado.
O restaurante de Don Giovanni e da Signora Gabriella (ali espapaçada ao balcão do bar, como de guarda ao tesoiro de martinis) escavou nas entranhas de um building os seus direitos à latinidade. Desde os toldos exteriores, com mesinhas de vime a alastrarem pela via pública, até ao interior recheado de gravuras e armários venezianos. E entrar e, bom Deus, até um português se sente em casa. Buona sera. Com uma diferençazinha, a saudação passaria por lusa. Veneza, meu povo. A Veneza decrépita e a Veneza viva. Ambas debruçadas sobre o seu mais longínquo passado, para que, nesse regresso às origens, reencontrem uma energia remoçadora. É por isso que, quando lhe cursamos as veias de água, canal por canal, palácio por palácio, vemo-la tal como foi, tal como é e ainda como pretende ser: enigmática, pudica no revelar aos estranhos os seus enleios. Esse recato ali se sente nas gravuras e nos armários de Don Giovanni. Veneza, minha terra.
Don Giovanni propõe a Nino uma data de especialidades. Tudo "especial". "Para começar... A seguir, caro Nino, recomendo..." Nino aprova, acrescenta uma sugestão, vai sair dali uma jantarada. À europeia, finalmente. Os Americanos não sabem comer. Nem beber. Bifes, hamburgers, as batatas fritas, o leite, a coca-cola. Um desconsolo. Vinho, que vinho há-de ser, Nino? E ele próprio se antecipa à resposta: "O tinto da casa." Um jarro de meio litro, para prova. Depois se verá se merece outra dose.
Vamos, pois, conversando. A América, sempre a América. Se Veneza é sibilina, a América faz-nos cair na ratoeira das coisas que parecem nítidas.
- Defenda-se de juízos precipitados. Este país é uma barafunda de cores e de estilos, por muito que se lhe apresente uniforme. Os Americanos só no comer é que não nos dão surpresa, lembram as crianças: em lhes sabendo bem uma iguaria, querem que lha dêem a todas as refeições. Panquecas ou espigas de milho, pouco importa. No mais, creia, pouco têm que ver com a imagem convencional que sobre eles se propagou. Os jovens, por exemplo, e este país é um país de jovens: observo-os, escuto-os e parece-me que a distância que vai entre mim e eles já não se mede por idades. Eles vieram de outro planeta. Trata-se de um fosso espacial. Não é, Ruth?
- Isso acontece em todo o lado - anoto eu.
- Acontece mais aqui. Mas a diversidade e o dramatismo do quotidiano não estão apenas nesse problema de gerações. Está talvez sobretudo na mobilidade. Nos Estados Unidos, actualmente, já quase ninguém vive na região onde nasceu. Mudam, mudam de ofício ou de terra sem uma razão coerente. O coração da América é a estrada. Assim, para que serve a experiência dos mais velhos, se ela se esfuma nesta mudança estonteante de hábitos e modos de vida? Aqui, devemos considerar quase eliminada a transmissão familiar dos conhecimentos. Familiar e tribal, digamos assim. Um homem tem que se fazer a si próprio. Sozinho. E numa terra em que tudo se lhe exige.
Vamos, pois, conversando. Nino Grisanti, aqui e ali reticente a algumas das minhas questões (Ruth, a plácida Ruth, apoia-o sempre, basta-lhe um jeito de ombros, um meneio da cabeça alta), não deixa de confirmar que, sim senhor, é na América que o diagnóstico das taras da sociedade actual se está fazendo com maior acutilância e até com mais rigor. De resto, o material de observação abunda, não é vero, Ruth? Basta olhar em torno. Vê-se do melhor e do pior. Mas é um diagnóstico sem cepticismo nem carpideiras: apenas com a confiança de quem já enfrentou outros problemas de respeito e os soube resolver. E com a objectividade de quem se habituou a passar sem demora da especulação à prática.
- E é nisso, meu caro, que eles se nos superiorizam. Muitos dos sofrimentos do mundo europeu têm uma explicação simples: damos prioridade ao malogro. Não concorda?
Concordo. E não concordo menos com esta "pasta" achatada e verde, que sabe mesmo a novidades da horta e delas tem a cor. Verdadeiramente deliciosa. Onde encontrar um maccherone destes fora do restaurante de Don Giovanni?
- ...Exageramos no sentido patético da vida. Eles não. Aceitam com serenidade o relativo e, como se costuma dizer, é o relativo que faz o absoluto. Têm fibra, acredite. Em suma, a América começou já a sua revolução. Há a violência, os madraços que nos comem os impostos (sabia que ser desempregado é na América uma apetecida profissão?), há a porcaria do dinheiro a sujar as pessoas por fora e por dentro, etc., etc., mas também não falta quem lhe ponha as tripas ao sol. A gente, aqui, sente bem que tudo está a deixar de ser o que era. Viu O Padrinho, o filme? Veja. Até a Mafia iniciou já o seu processo de respeitabilidade.
Dera-se, entretanto, um incidente cómico. A palavra "patético" fora direita aos ouvidos de Don Giovanni, que a interpretou com um deformador sentimento de culpa. Daí, veio curvar-se junto de Nino, rogando-lhe perdões, numa voz carpida, de haver alterado quase por inteiro o programa do jantar. "Tuto diverso, vero?" Que tinha pensado melhor, talvez eu, lusitano, não estivesse muito afeito àquelas iguarias, e assim por diante. Nino olhava-o com espanto e depois, gozão, carregou os sobrolhos.
- Vamos castigá-lo, Don Giovanni. Terá de nos trazer a sobremesa mais desejada por este meu amigo.
Entrei no jogo, falei em uvas. Que logo apareceram. Oblongas, perfumadíssimas.
- Da Califórnia? - perguntei.
- Chilenas.
E o jantar terminou com um "digestivo" de anis. Oferta de Don Giovanni.
Vamos a pé até ao hotel, dois quarteirões acima, e encontramos não mais que uma dúzia de pessoas. A passear o cãozinho, flanando (que espécie de mulheres são estas solitárias roçando as montras?) ou apenas a recolher a intimidade sussurrante da noite. As entranhas das ruas fumegam. É o tal vapor do aquecimento, distribuído à cidade numa rede apertada de vasos sanguíneos, que, num ou noutro ponto, se exala pelos ralos do asfalto.
Um homem meio embuçado destaca-se de um desvão. Quase lhe ouço o brado de sentinela: quem vive? Quem vive, repito eu, quem vive na Manhattan misteriosamente despovoada? Desde as cinco da tarde que os Nova-Iorquinos se foram escapando da ilha de cimento, que o Hudson, o Harlem e o East River afilam na direcção de Upper Bay, escapando nos seus Fords e Chevrolets com a desmesura de barcas, hordas e mais hordas de viaturas iradas, cada uma rosnando um repto à do lado e todas em desfilada cega até ao próximo semáforo e aí estacando num súbito empinar de cascos, corcéis a sangrar baba dos freios puxados a destempo. Os escoadouros, por debaixo dos rios, em túneis que são serpentes de anéis metálicos, não conseguem despachar tão compactos bandos. Vemo-los ressurgir à luz do céu três quilómetros adiante, danados da marcha sofreada, e depois dividirem-se pelos viadutos, pelos múltiplos braços das auto-estradas da evasão. Sempre em fuga. Sempre debandando de uma catástrofe que ninguém perguntou qual foi nem onde se deu. Só à vista dos campos em pousio, das sebes, das relvas, das vivendas abonecadas, os fugitivos começam a amansar. Mas também aí, seja na Long Island ou em New Jersey, vão proliferando os dormitórios, tortulhos em impiedoso crescimento, rebentando nas clareiras de serenidade.
Na noite nova-iorquina, que finge dormir, ficam os negros, os Grisantis ou os sem-horário; neste momento, em Harlem e em Greenwich Village, onde o dia nasceu, vai um carnaval de música,
...les trombones de Dieu sim, Senghor, o poeta,
ton coeur... au rythme du sang ton sang
...qui d'un rire de saxophone créa le ciel et la
terre en six fours.
vai um carnaval de trajes que faria enrubescer a imaginação mais solta, e ficam ainda os turistas como eu, que querem atestar de biografia cada minuto da estada aqui.
Isso mesmo foi percebido por Nino. Vejo-o parar, observar-me com uma ironia tolerante, e, levantando a cabeça para o alto, propõe:
- Nova Iorque precisa de ser vista a esta hora lá de cima, do Rockefeller Center. A cidade lê-se como um mapa luminoso. Sobretudo numa noite como esta.
Como esta: uma pirotecnia de lucernas. Uma infindável flotilha de navios nocturnos.
O Rockefeller Center, onde eu haveria de tornar durante o dia, é o Pártenon dos Americanos. Do seu topo sente-se o coração da América. Ou, como afirmam os roteiros, é "a maior aglomeração de imóveis de propriedade privada do mundo". Nada menos que dezassete, cobrindo uma superfície de seis hectares e bem guardados por aqueles super-homens das bandas desenhadas, que nunca parecem ter frio, pois vemo-los sempre em mangas de camisa, tamanhões, impantes de músculo, a vedar-nos a passagem só com um olhar. Xerifes ou pistoleiros? No Oeste mítico, a diferença era nenhuma. Vistos e achados nos átrios dos grandes edifícios dos países norte-americanos, sejam bancos, museus ou favos comerciais, o mesmo boné, a mesma queixada, a mesma pistola a gingar, sugerem molossos ao portão de uma herdade. Os vendilhões, os salteadores e os curiosos que passem de largo. Salvo com a sua (deles) licença. Que não deve ser fácil de cativar.
Em suma: um conjunto imponente, mais de pesadelo do que de harmonia e arrojo arquitectónicos. Nele se combinam os negócios e as distracções, e até as artes, esculturas e pinturas murais, que são um peso nos olhos e não devem muito à qualidade.
E, no entanto, aqui esteve um mural de Rivera. Por encomenda de Rockefeller em pessoa. Esteve - não está. Foi em 1933 que Diego Rivera concebeu o mural decorativo para este átrio repartido em galerias que nem se sabe onde irão terminar. Tenho presente a reprodução: ao centro, o homem novo com o mundo na mão, quatro asas simbolizando a fonte da vida; de um dos lados, a sociedade decadente, com o seu vazio de vida caricaturado num grupo de damas desocupadas jogando as cartas, um friso de personagens tirânicas ou ávidas, talvez um dos retratados fosse o próprio Rockefeller; do outro, a sociedade em marcha para o futuro, mãos solidárias cingidas, tendo numa figura revolucionária o seu astro polarizador. O mural, provocação a essa catedral do capitalismo, foi mandado destruir quando prestes a estar concluído. Rivera regressou ao México e pacientemente reconstituiu-o para o Palácio das Belas-Artes, introduzindo-lhe algumas modificações, embora preservando a ideia nuclear de um mundo futuro dirigido pelo homem liberto pela ciência e progredindo com as conquistas da técnica. O mural tem a monumentalidade sensual e o clamor épico de toda a pintura de Rivera, minuciosa, rigorosa e ao mesmo tempo arrebatada.
Quem lembra ainda o episódio? Quase ninguém, decerto. Neste mundo férvido do Rockefeller Center tudo se apaga, tudo esquece. O seu interior parece um vespeiro de insectos famintos, que deixarão a cidade com as entranhas devoradas. É o que sugerem estes edifícios ligados por uma rede subterrânea de corredores, marginados de boutiques e de tudo o que o consumidor precisar. Degraus acima, restaurantes ao ao livre, lá no cume, panorâmicos, esplanadas, bares, dancings, rinques de patinagem. O cocktail que se tomar no Rainbow Room, com Nova Iorque aos pés, transforma-se numa bebida sagrada.
Ao todo, setenta andares. Como o nosso fito é o Observation Roof, mesmo na cúpula, a duzentos e cinquenta e nove metros de altura, disparamos no elevador, que só faz a primeira pausa no 65." piso. Aí tendes Manhattan, a galáxia resplandecente. A que dorme desperta, sob os tempestuosos céus da América. As coisas acendem-se no clarão do espaço, em gritos de cor. Às vezes, um ramo de nuvem apaga-as episodicamente, para logo renascerem mais vivas. Os arranha-céus não têm contornos: apenas órbitas incendiadas. Parece que o Empire State Building, aquele da agulha espetada nos astros, num aviso ou num desafio, é o mais alto edifício do mundo, mas, visto do Observation Roof, dá-nos a ilusão de ser apenas um gigante entre muitos. Nem maior nem menor. Mais adiante, a sede da ITT. Um mastodonte. Buildings às costas de outros buildings, o último da cordilheira aguça-se para clamar lá do cimo: ITT. Que também pode ser vertido a uma cifra: quatrocentos mil assalariados. Só.
Nino aponta-me o building da Pan-America.
- Ali, no terraço, havia um helicóptero, para as pessoas se deslocarem com mais rapidez. Mas o barulho era de tal ordem, foram tantos os protestos, que tiveram de o tirar de lá. É o que eu já lhe disse: temos duas Américas, que, vigiando-se, brigando, se equilibram.
Isso acertava em cheio com o que Gerard Bonnot escrevera recentemente sobre o ter havido sempre duas Américas: a que tomou a dianteira da civilização ocidental, nunca deixando de espantar o mundo, e a América local, quase provinciana. A dificuldade, ao que parece, está em fazê-las comunicar - o que muitos julgam ter sido finalmente conseguido. A nova América é a tal que, tendo ido à Lua, prefere agora a Terra. A que reabilitou a felicidade como desígnio, que se pôs em face das realidades humanas e começou "a substituir a ciência dos eleitos pela ciência do povo". Essa América, em Manhattan, na Califórnia, em Harvard, giza um dos rostos da sociedade do devir. Com brio, dizem-no os que a conhecem bem, com ânimo, com inventiva, mas também com temperadora humildade.
Consta que em San Diego há já sinais dessa "Nova Sociedade". Referiu-se-me ao caso um americano de passagem em Lisboa, que me bebeu, num serão, uma garrafa de vinho do Porto, colheita de 1924, imaginem. Mas vá lá uma pessoa prever que, na bitola americana, uma prova é a garrafa inteira! Pois San Diego está em pleno crescimento. É ameaçada de especulação imobiliária, poluição, droga, racismo, miséria. Há problemas de alojamento e saúde pública. Tem de tudo o que preocupa e mancha a América. Porém, os peritos auscultaram meses a fio o doente e estão prestes ao receituário. Pensam chegar a uma espécie de modelo de desenvolvimento harmonioso, nada desta Nova Iorque em que os homens rejeitam a sua realidade biológica. Um modelo que sirva depois a outras regiões - e porque não a outros países? Os Americanos não negam os busílis da empresa, mas têm confiança.
E sublinhava-me o bebedor do meu saboroso porto de 1924:
- Quando queremos alguma coisa, experimentamos. E se reconhecemos que nos enganámos, experimentamos de novo. Até acertarmos. Até ganharmos.
Pertinácia temperada de humildade? Essa é também a opinião de Nino, que, no entanto, lhe dá cambiantes interesseiras. Interesseiras para ele, imigrante. Segundo Nino, o Americano, que se mostra dono do mundo quando sai de casa, é aqui um homem retraído. Áspero, mas simplório. E até crédulo. O que, na boca dos ladinos italianos, a quem a penúria aguçou a raposice, é comentado assim:
- Os Americanos são pueris, meu caro. Por isso, tudo neste ambiente é mais fácil, apesar de duro. Para nós, então, é como sairmos da porta e entrarmos no quintal. Nova Iorque é a mais populosa cidade italiana do mundo. Somos três milhões, sabia?
Há ainda um aspecto que Nino faz voltar à conversa. Um pormenor da vida cívica americana que, flagrantemente, lhe toca uma particularíssima corda sensível, os impostos. São coisas de dinheiro e Nino está nos Estados Unidos para encher a bolsa.
- Os impostos escaldam, um sujeito trabalha para que outros o gozem à boa vida, mas este deve ser o único país em que o cidadão paga ao Estado segundo a sua consciência. Vai à tabela, sua um bom pedaço, e passa o cheque ao fisco. O Estado confia. E se vem a verificar que o contribuinte pagou a mais, pois é o Estado que toma a iniciativa de lhe devolver a demasia. Não é vero, Ruth? Ora suponha isto em Itália, onde as leis se fazem para que as pessoas exercitem o engenho em iludi-las...
Não tenho o direito de roubar mais horas ao casal Grisanti, que amanhã bem cedo estará a postos no escritório da Rua 42, lá onde Nino ouve, fala e lida ao mesmo tempo, uma das mãos num dos telefones, a outra folheando um dossier, os olhos em todas as coisas e em toda a gente. Nino ianque, que um dia será de novo o Nino veneziano, embora não tão cedo, nem com tanto desembaraço, como ele faz supor.
Descemos, pois. Até ao 65.o andar, o elevador pára nos vários pisos, a encher-se de grupos trajados a rigor, que vêm dos dancings. Nelas, um halo de excitação. Eles, caladões, a mirada rasteira a inspeccionar-nos desinteressadamente.
A casa de Nino é perto. Ele mesmo no-la aponta, mas sem adiantar um esboço de convite.
- Fica-me a cinco minutos do escritório.
O que lhe permite ter um pé em casa e outro no local de trabalho (já que teatros, cinemas, estádios, foram de há muito varridos da sua agenda - "uma pessoa chega ao fim do dia ou da semana e o que o seu corpo lhe pede é cama") e lhe permite ainda dispensar o automóvel, que aos poucos se foi tornando um pesadelo para os que o têm. Pesadelo na estrada e, sobretudo, pesadelo na cidade, onde, por bastos que sejam os parques de estacionamento (a tanto à hora, numa tabela que escalda), nem sempre há sítio para arrumá-lo. Talvez por isso, a casta snobe decretou a moda do utilitário maneirinho, tipo Volkswagen, que se enfia como piolho por costura nas malhas do tráfego e cabe em dois metros de espaço. Numa reunião elegante, o título de nobreza reconhece-se logo pela singeleza do transporte. A Ford está atenta a esse modismo, não tarda que lance um mini qualquer que ponha um dique à atrevida invasão dos modelos europeus. Assim mo garante Nino. Estes dinossauros actuais, se persistirem, passarão a ser um velho símbolo de pirismo. Ou já o são. O que, seja no velho ou no novo continente, equivale a uma certidão de óbito.
O facto de ter descoberto um apartamento na vizinhança do escritório não faz de Nino um homem tranquilo. Ele mo confessa:
- Apesar disso, quando ando por fora, estou sempre preocupado com Ruth, que às vezes tem de trabalhar para além das seis da tarde. Só respiro fundo depois de telefonar e de a saber em casa.
- Mas então sempre é verdade que passear em Nova Iorque tem os seus riscos...
- Eu penso que sim, meu caro. Ou melhor: estou certo disso. E, no entanto, nunca nos aconteceu coisa nenhuma. Mas a insegurança está em saber-se que pode acontecer.
A companhia de Nino até ao hotel já me pareceu uma escolta. O homem encostado a um taipal das obras lembrou-me uma osga colada a um muro. No elevador, não larguei de vista aquele calmeirão que subiu com o chapéu enterrado na cabeça, como os gangsters dos anos 30. E mais uma vez lamentei não ter aprendido judo ou arte parecida. Tal como Nino, só me senti desoprimido quando fechei a porta do quarto.
Esperava-me, em cima da cómoda, uma carta de Miss Stevens. Dorothy Stevens. Bibliotecária na Astor Library. Seca, alta, pele muito branca, os olhos de um vidro cinzento. A andar, dir-se-ia partida pela cintura, a metade de cima rígida, com os movimentos articulados, a outra metade de uma dengosidade só feita de carne, sem a armadura dos ossos.
Eu visitara-a pela manhã. Havíamos trocado correspondência durante anos. Talvez por isso, ficáramos embaraçados, com a desilusão das pessoas que mutuamente criam uma imagem e, de súbito, verificam que a têm de deitar fora e aceitar outra, a real. Real mas inautêntica. Aquela não era a minha conhecida Miss Stevens. E eu, do mesmo modo, não seria o que ela, pelas cartas, fora imaginando. Tínhamos de rever tudo desde o princípio.
Todavia, por entre silêncios desamparados, o encontro foi aquecendo, meia hora depois já ela me trazia uma turma de jovens universitários que, forçosamente, queria que eu interrogasse e me interrogassem também. Nada resultou daí, o interesse no diálogo desfalecia na demorada decifração de cada palavra minha e deles.
O português de Miss Stevens é um penoso esforço intelectual e anatómico, que a obriga a uma espécie de ruminação das maxilas emperradas. De qualquer modo, ela animou-se com a excentricidade da situação, incitando os seus pupilos a perguntas de quem vai a um jardim zoológico ver e apalpar os bichos raros. Assim se recuperou um pouco da nossa estima frustrada e se fizeram promessas de um novo encontro. Mais tarde, enviei-lhe um ramo de flores.
E, agora, aí tinha a réplica: uma carta. Nela escrevera Miss Stevens o seguinte:
"O senhor fez-me chorar. Nunca ninguém, até hoje, me oferecera flores."
Pela janela, mesmo corridas, golfava o ruído curvo e traumatizante de uma aparelhagem de ar condicionado. Fui olhar. Era no terraço do prédio fronteiro, dois andares abaixo. Pareciam rodízios espumando uma baba branca, ou então eu assim os via por entre a chuva nocturna de pirilampos.
GREENWICH VILLAGE
Todas as grandes cidades têm ou procuram ter o seu Montmartre. Ou o seu Pigalle. Bairros antigos, quase sempre, com a pátina de séculos, cujo tipismo arquitectónico foi preservado, mas o que mais os singulariza é uma tradição de meias com as artes e a boémia, com uma marginalidade irreverente que desafia o estilo de vida da maioria e não raro se torna o berço de inconformismos geradores da mudança. Mundo novo num cenário velho, talvez por neste perdurar o autêntico.
Quando as cidades não têm passado, esse tipismo inventa-se. Vai procurar-se nas áreas urbanas menos cobiçadas pela burguesia próspera, a tal que é corruptora, onde as edificações reflectem a modéstia de quem lá vive, e onde, portanto, a atmosfera humana é mais povo. Mais verdade.
Outros centros polarizadores desse clima convivente, desconstrangido, são as universidades. Mas também pode acontecer que se trate de urbes tão jovens que as cidadelas do despreconceito se implantem ao acaso de uma súbita inspiração. E logo se estabelece uma corrente de usos e até de ofícios e clientelas. Nesses casos, pouco importa a ambiência física. A fauna depressa lhe dará um cariz.
O Montmartre de Nova Iorque é Greenwich Village, feudo de artistas, com os seus cavaletes e galerias ao ar livre, e feudo de escritores, estudantes, hippies e gente da vida airada. Situado a oeste da Broadway, quase limpo de arranha-céus e de agressões publicitárias, estende-se da Rua 14 até às cercanias da Spring Street, sempre a fugir da Midtown Manhattan, rumo ao sul. O seu Washington Arch, obra de Stanford White, enche a boca daqueles em que mais se nota a pateguice dos países que ainda têm de fazer a sua história, mas é um Arco do Triunfo de trazer por casa. Aliás, todo o bairro nada vale do ponto de vista de casticismo urbanístico, salvo o de destoar da hiperbolia do coração da ilha. São as pessoas que lhe dão um estilo.
Mal começam os contactos em Nova Iorque, seja aonde for e com quem for, logo te falarão de Greenwich Village. Uma espécie de salutar antídoto da América de Wall Street, a que não envia flores a uma mulher mas talvez desejasse fazê-lo, um berro dado por uma boca sufocada, umas tréguas para os olhos desabituados de céu, o pecado apetecido após uma eternizada penitência.
Desde um brasileiro amável ao estudante português enjoado dos Estoris, que ali se depura com um quotidiano de modernizado clochard e cabelame à Angela Davis, não houve ninguém que não se propusesse levar-me pela mão a Greenwich Village - simplesmente "Village", para os frequentadores. Há o Village turístico e o genuíno, a oeste da 7.a Avenida, sendo as Bleecker Street e MacDougal Street as ruas mais folionas; há encantadoras casas coloniais e pardieiros mascarados de templos psicadélicos. Esse papel de guia, creio que por sorte minha, calhou ao esfuziante Bobbit - um carão sincero, todo ele alegria de viver a estourar-lhe das bochechas, que lembram as do coelho-Disney. Para mais, Bobbit nasceu em Greenwich Village, lá teve a escola da rua. Não é, pois, um nova-iorquino na acepção rigorosa da palavra.
Ei-lo em frente do hotel a fazer-me sinais de dentro de um Chevrolet já muito amolgado - coisa em que, na América e no Canadá, ninguém repara, visto que um carro não é para consertos, luxo de ricos, mas sim para usar e deitar fora. Não está calor por aí além, todavia Bobbit apresenta-se de camisa de manga curta, bufante, que é nele uma forma de vitalidade a precisar de expressão. Faz-se acompanhar de uma moça que residiu em Paris, para que a conversa seja facilitada. Ele próprio, aliás, arranha um francês bem servido de gestos.
O Chevrolet conhece Nova Iorque de olhos fechados. Diga-se a propósito que o trânsito, não sei por que artes, se é uma torrente, nem por tal se afoga.
Vamos direitos a Greenwich Village e depois se verá o que sobra do programa. Bobbit entrega o carrão ao arrumador de uma garagem que serve de parque de estacionamento. Na rua, só por milagre. Tudo velho e sujo, anemiando-se a uma luz oblíqua, que é um resto de dia. Mas com um férvido clima de feira. Prédios baixos, quando muito três andares, cada porta um pequeno comércio, sobretudo boutiques, cafés a remedar os latinos, bares, discotecas, bazares com o mostruário mais sortido: obras de arte para todos os paladares, posters, bugigangas indecifráveis, cuja moda dura uma semana, peças de artesanato. Que ninguém pretenda achar uma pista coerente nesse aranzel. Tanto se encontram, repetidos por dezenas, parolos óleos retratando a Liz Taylor, de um naturalismo que se apura na exuberância do busto, como esculturas-objectos ou estruturas vivas da mais atiradiça vanguarda. Os posters, em particular, fascinam-me. São um grito, uma bandeira. Tanto denunciam (e com que agressividade!) como nos chamam a uma quase romântica desinibição no amar, no comunicar.
Mas é a gente, a gente festa e cor, que nos aquece o sangue como um vinho novo. Não temos sentidos que cheguem para a captar e menos ainda para a saborear. Quase me imagino caído num palco onde decorre uma interminável, louca apoteose. Quer de fraque e cartola, uma berreira de tons vivos, quer uma libérrima seminudez, a parada não tem limites nem conto. Cada qual que deite mecha à sua imaginação, que invente o seu modelo ou o reconstitua dos romances de capa e espada e dos trajes do Museu Grévin. Chapéus emplumados, à d'Artagnan, tamancos holandeses, botas com tacões quase protésicos, agora em inundação pela Europa atarracada. Todo um mundo que espectaculariza a sua recusa ao desindividualizador uniforme burguês, porque só assim a recusa fere e actua.
Os negros, nisso, como em muitas coisas mais, são os mais ousados. Talvez pelo seu exibicionismo ainda pueril, ou já num desafio de premeditada arrogância. Aí os tens de ponto em branco, parodiando cerimoniais (ou deleitando-se com eles?), casacas de cetim, bengalas de bastão, barbicha senhorial. Estão no seu reino. Lembra-te que mais de metade da população de Nova Iorque é negra.
A par deles, estes rostos macilentos que nos olham sem ver, ausentes. Mãos caladas que se estendem num gesto de pedir. Vestais acolitando libertinos. Vendedores ambulantes (é a feira!, é a feira!) com a sua carrinha de frituras ou gelados. Moços de túnica, visões de areias e orientes. Cabeças de bonzos, rapadas, ou então com uma sebe loira a terminar num rabicho. Uma sugestão oriental de bazar. Enfezadas esotéricas, que enxameiam toda Nova Iorque, e a que poderemos chamar estilo Greenwich. Raparigas com um sarong indiano, meneando-se rítmica e ritualmente junto de imagens sacras. Vestimentas a tirar para o pele-vermelha, frontes coroadas. Um sem-número de tocadores e trovadores, como se encontram, afinal, em toda a Nova Iorque, nem sempre sendo de averiguar que instrumentos mimam nos braços, como este do negro que tange uma simples corda retesada entre dois pregos de madeira. Às vezes, ao raso do passeio, subitamente pessoas emergem de caves-porões e logo iniciam uma mancha afadigada, numa pressa sem alvo, só coreografia.
E ainda os ciganos. É de admirar? Depende. Não serão eles os precursores dos errantes do nosso tempo - destes hippies, destes marginais, de toda uma raça de andarilhos que incessantemente atravessam países, mares, continentes, e mudam de Meca consoante os ventos? Até porque os ciganos são menos perseguidos na América do que na Europa. Aqui, no Village, especializaram-se no remoçar, e pôr em condições de marcha, modelos antigos de automóveis, especialmente os Bugatti, e assim se vão governando. Nada mal, consta. Têm, porém, outros negócios, em que o fisco não deita a unha, o seu raio de acção alarga-se em cada dia. Com a vantagem de não precisarem de escritórios, nem de telefone na lista. Telefonam de um café, na sua indecifrável língua, o romani, que os põe ao abrigo de espias, e, se têm de explorar mercados mais distantes, deslocam-se em caravanas de luxo, puxadas por Rolls ou Bentley, acampando nos trailer parks, onde não desprezam as comodidades que ali aguardam os turistas indígenas. Aí temos um casal cigano, ele à frente, pimpão, como manda a lei, ela de quadris molejando. Falta a cria levada em jeito de trouxa. Parece mesmo que se dirigem a uma feira de Estremoz.
Vamos percorrendo as transversais, mais rarefeitas de passantes, até que, num repente - que se nos depara? Uma procissão? Uma procissão. Mas uma procissão à americana. Assim: à frente, uma turma de majorettes, majorettes de verdade, como se podem ver nos circos eleitorais ou no palco do Radio City, boné-penacho, mini-saia, bota alta, no comando uma perita em manejar o bastão; depois, a fanfarra, com o instrumental e a farda de opereta das nossas charangas de aldeia; o andor levanta-se ao dorso de um automóvel de largos quadris, onde tem assento o senhor bispo, opa doirada, seguido de uma revoada de padres, meninos de coro e um esquadrão de polícia. As fitas que, como longas pétalas fanadas, pendem do santo (com a pinta de Santo António) mal se lhes distingue a cor, debruadas que vão de um maná de dólares. Todo o trânsito foi interrompido no percurso do cortejo. Mas são tantos os curiosos e os devotos, apinhando as ruas e lançando dólares para o andor (dólares ou flores?), que a custo a procissão avança.
Debalde ausculto no rosto de Bobbit, ou da sua companheira, um traço de surpresa ou de contrariedade pela pacovice desse número extra. Nada disso. Ambos estão exultantes. E decerto se sentiriam melindrados se soubessem que as minhas reacções eram bem diferentes.
Porém, os imprevistos litúrgicos não ficaram por aí. Mais tarde, ruas adiante, na esquina da Judson Church Community Center (Holy Trinity Chapel), novo ajuntamento. Rapariguinhas disfarçadas de starlettes, em formatura disciplinada e agitando bandeirinhas, os mesmos meninos de coro, desta vez vestidos de branco e vermelho, os mesmos polícias mobilizados para que ninguém, ao exceder-se no aplauso ou na contradita, perturbe a parada. As bandeiras, às dezenas, são um festival. (Os Americanos pelam-se por estandartes.) Ao farfalharem à brisa, quase se confundem: a bandeira nacional, a estadual, a da Igreja Romana e ainda outras azuis e brancas, decerto siglas da igreja em questão.
Depois, os moços e as moças evoluem muito certinhos, até parece num estádio, passo à frente, passo ao lado, passo atrás, no reduzido rectângulo que os mirones deixam livre, e, a um mando que não se sabe donde veio, desatam a cantar. Um padre, do alto das escadas, observa as paixões da multidão. Só os seus olhos de um cinza aguado se deslocam, como de dentro de uma toca. No mais, esse corpo inteiriço seria estátua.
Desta feita, Bobbit pondera, finalmente, que eu, estrangeiro, terei dificuldade em decifrar o insólito espectáculo e, por isso, toma a iniciativa de um esclarecimento:
- É uma manifestação contra a guerra. Muitas igrejas não se calam com o que se passa no Vietname, e esta é uma delas. Vê aquele painel? Todos os dias ali se acrescenta o número de mortos e, quando possível, os seus nomes.
Fico a saber. Aliás, nisso de painéis na cerca das igrejas, com um fraseado aliciador de inspiração banha-de-cobra, há exemplos que bem acusam de que estamos em terra escandalizadora dos nossos usos europeus. Assim, numa catedral do centro pode ler-se: "No próximo domingo fará uma prédica o reverendo Dodson, a melhor voz de Nova Iorque." E até o ofício religioso pode ter protocolos muito próximos de um sarau ginástico. Como o caso do mestre-de-cerimónias, a receber-nos à entrada para nos conduzir ao lugar que lhe pareça mais apropriado e que, no decurso da função, bate as palmas e faz o gesto sugestivo de cada vez
que nos cumpre ajoelhar, sentar ou ficar de pé. A comparação que logo acode é, de facto, a de um ginásio.
Mas qualquer referência a liturgias e pregadores não passa sem que venha à baila uma personagem eloquente da vida americana: Billy Graham, capelão oficial da Casa Branca, bela cabeça aureolada de vigor e feitiço, mãos acusadoras e logo generosas, a quem um jornalista chamou o Rasputine de Nixon. Um atleta com o sortilégio de servidor de Cristo, um Cristo tão musculado e justiceiro quanto ele. Basta ler Caldwell e Steinbeck para se ter uma ideia da inevitabilidade picaresca ou pungente do "pregador" na ambiência americana; mas Billy Graham apaga essa imagem miserabilista com um gesto. Billy, o apóstolo-instituição, é a América do Rockefeller Center, farta e esmagadora. O pecado existe? Pois combata-se com armas pesadas e tendo à frente um rijo cabo-de-guerra. A Associação Billy Graham produz filmes, edita livros e periódicos (só a revista mensal Decision esgota quatro milhões de exemplares), tem o seu próprio programa na TV e ocupa quatrocentos funcionários a tempo inteiro. Ele, o mago, é a "voz" evangélica, do alto trovejada, como Sinatra foi a "voz" romântica. Ambas fazem ou fizeram desmaiar as pessoas. Às centenas de milhares, entre fanfarras e visões luciferianas. Enquanto ele prega nesses "Festivais de Cristo", resguardado por um esquadrão de devotos vestindo camisolas com a frase "I'm a Jesus People" ("Sou uma criatura de Jesus"), levanta-se o clamor dos convertidos, a quem ele, por fim, apazigua com a promessa: "A nossa vida foi transformada esta noite." E nem só aqui, USA. Meio mundo apela por Billy. E ele, o ex-jogador de basebol, não se nega a essas tournées, que lembram um Paracelso actualizado pelos métodos de uma vedeta de Hollywood. O que, aliás, não belisca a sensibilidade de nenhum crente americano.
Visitei algumas igrejas em Nova Iorque, de diferentes credos. E não sendo novidade que a arquitectura e a decoração dos templos têm que ver com a respectiva religião mas também com o povo que a pratica, isso aqui se me evidenciou mais do que alhures. Da pedra "romana" à madeira "protestante", nas igrejas americanas há uma nudez comum puritana, da qual se baniu a ideia de festividade ou de sumptuosidade dominadora. O cenário, aqui, é austero. Tribunal de pioneiros.
Inevitavelmente, Nova Iorque teria de ostentar um ceptro qualquer em matéria de arquitectura sacra. Assim, a Catedral de St. John the Divine, começada a construir em 1892, é "a maior catedral gótica do mundo", com uma capacidade de quinze mil lugares sentados - um arrojo de pedra, com excepção das cúpulas em aço. Por seu lado, a Catedral St. Patrick, sede do arcebispado de Nova Iorque, numa das esquinas da 5.a Avenida, é um dos mais belos espécimes góticos, mas, neste particular, apenas à escala americana e não já mundial... E a Riverside Church ufana-se do seu campanário com uma data de metros de altura, no qual se aloja o carrilhão Laura Spelman Rockefeller, "o maior do mundo", claro está, com nada menos que setenta e quatro sinos.
Os judeus, cuja presença e poder em Nova Iorque são desinibidamente atestados a todo o passo (basta reparar nos letreiros da banca, das companhias seguradoras, do graúdo e miúdo comércio, já sem referir eles próprios, nas ruas, no seu trajar ortodoxo, com um lúgubre rigor de seita), também têm uma palavra a dizer quanto a grandezas: o Templo Emanu-El, no ângulo da 5.a e da 6.a avenidas, é "a maior sinagoga dos tempos modernos", inspirada no estilo românico da primeira época, em que se incorporaram influências bizantinas. E o seu Jewish Museum, dedicado à arte e à cultura hebraicas, tanto antigas como modernas, deve ser, ao que crêem os nossos olhos viciados na exorbitância, dos mais recheados do mundo.
Continuamos na nossa vadiação. Sempre a fauna variegada, sombria ou buliçosa, excêntrica ou ordinária. Um chispar permanente, como na Broadway. Só aquele tipo estático, isolado, numa impassibilidade retesada, me leva a imaginá-lo um justiceiro que veio limpar o Village de rufiões. Não tarda que ele puxe do revólver, num ápice, deixando a rua vazia. Deito os olhos intranquilos na tabuleta de um prédio esfarelado, onde se anunciam "Massagens pelo método marroquino". É verdade, meu lusitano de pasmos. Repara-me nisso.
Há centenas de casas dessas por toda a Manhattan, aguardando o homem de negócios à saída do escritório, mas também não faltam aqui. Basta abrir um jornal como The Village Voice e logo saltam dezenas de anúncios de massagistas. Temos o tal método "marroquino" e o "dinamarquês". E, provavelmente, outros ainda, menos vulgares e mais aprimorados, mas sempre com lúbricas ressonâncias geográficas. Cada sessão paga-se entre vinte e cinquenta dólares, consoante o mérito estético das massagistas e o luxo ambiente. E consoante o freguês. Há frequentadores especiais, a quem talvez se reservem requintes, que pagam tabela mais alta.
Que vem a ser, então, uma "massagista"? Um brasileiro que habitou o Village explica: massagista é aquela pessoa que começa fazendo massagem e acaba masturbando o massageado. Mas fica-se rigorosamente por aí. Mal vai o cliente que julga que há uma etapa seguinte. Rua com ele, venha o justiceiro. E também se fechará a porta à massagista que, tentada pelos mesmos equívocos, degradar a profissão. Por isso, aqui se pode encontrar, tendo-se por digna, uma jovem que ganha a vida a pôr lume no cio dos homens, para logo depois lhes serenar as frustrações.
Bom, são horas de jantar. Bobbit toma o odor nos ares, faz peito, como para uma briga, e as suas narinas levam-no à Rua MacDougal. Aí temos o Restaurante Shakespeare, onde se come "explosivamente". Assim nos assegura o cardápio (outrageous buffet), ou, na página seguinte, dynamite buffet, tudo à tripa-forra, em suma, e cada qual a servir-se a si próprio. Das onze e meia da manhã até às três e meia da noite. De segunda a sábado. A preço único, dois dólares e cinquenta. Que mais pode desejar o apetite jovial, e agora sôfrego, de Bobbit?
Entramos. Luzes mortiças da praxe, um halo vermelho a escurecer nos recantos. Uma vela ao centro das mesas, música de jazz quase em surdina, mais ambiência que outra coisa. Balcão sem um lugar vago, negros e loiras, loiras e negros, cabelos à Jesus Cristo (Nova Iorque redescobre o Messias e relança-o em vedeta). A criadagem que aborda a clientela não tem farda. São todos adolescentes, meio galhofeiros, pode ser que se trate de estudantes a fazerem um biscate que valha a pena. Nas paredes, uma laboriosa iconografia shakespeariana, vinda de meio mundo: cartazes de espectáculos (autênticos), fotos de actores e de cenas, maquetas, genéricos de filmes.
A propósito, registe-se que, tanto no Canadá como nos Estados Unidos, os antiquários são um crescei-e-multiplicai-vos, o que não é novidade para um europeu, mas proliferam também as casas especializadas... imagine-se em quê? Na venda de cartazes dos anos 20 e 30. Sobretudo dos ídolos do teatro e do cinema. Uma coqueluche. E, sem dúvida, um elucidativo documento. Alguns cartazes de nomes da mitologia de Hollywood sobem a cotações de espanto. Mas a juventude não regateia - esta juventude não pára de nos confundir: toda lançada para a frente, como é seu dever, e simultaneamente com o culto do ressuscitar de legendas e vogas extintas.
O que se bebe no Mr. William Shakespeare's da Rua MacDougal? Canecas monumentais de cerveja, quase um pipo dela, ou copázios, também à grande, de sumo de laranja. Bobbit fala vagamente em vinho - "ah, se aqui tivessem o Ma-tê-us!" -, mostrando o branco dos olhos, e não é logo que eu decifro a palavra. O significativo rosé esclarece-me. De facto, o rosé luso é considerado na América bebida de príncipes. Bobbit esfria com a minha herética expressão de enjoo. Será que pode haver néctar superior ao Ma-tê-us? (Um us muito sibilado, a demorar-se na deliciada ressonância.) Apercebendo o meu desconsolo perante a cerveja, ainda sugere que se tente um vinho americano, mas eu, à ideia do adocicado branco da Califórnia (aliás cultivado e fabricado por imigrantes portugueses, aqueles portugueses que são hoje os fazendeiros de chapéu de aba larga, charuto mordido e bota bicuda, que iremos encontrar no aeroporto), rendo-me à cerveja. Um homem, fora de casa, depressa se adapta a tudo: até a acompanhar a refeição com leite. Só resisti à coca-cola como complemento do bife.
Quanto a comes, vá o sujeito atestar o seu prato na cozinha. Debaixo da chaminé, um manancial de iguarias, carnes, peixes, molhos, queijos, saladas. Bobbit dá o exemplo. Em método e eficiência. Com uma perícia de prático, consegue dar estabilidade e sumiço a uma pirâmide de comida. E não tarda a reconstituí-la.
Na maneira como o aprecio, será certamente difícil distinguir onde termina o espanto e começa o embevecimento. Ele, às tantas, pressente-o e, de bochechas injectadas, diz-me:
- Não está mal, pois não?
- Nada mal.
- É que, nisto de comidas, nunca se sabe. Mas há regras.
É óbvio que Bobbit é especialista no garfo. Por isso, deve-se estimulá-lo a confiar-nos a sua sabedoria. - Que regras?
- Nos snacks, por exemplo, nada de escolher pratos cozinhados. E ir pelas sanduíches, que são deliciosas. E até nos restaurantes nunca se perde em preferir o que é simples, bem à vista. Felizmente que o pessoal não empurra o cliente para o vigário. Nem sequer o coage ao consumo.
A silenciosa companheira de Bobbit sondou alguma dúvida na minha expressão, pois confirmou:
- Mesmo num restaurante de luxo pode-se mandar vir um prato para duas pessoas sem recear os resmungos.
Foi então que um tipo seco, rosto de sombras e ossos, trepou à lareira da sala de mesa e ali se sentou, com os pés apoiados num banco. Nos braços, a guitarra, seu bebé, sua amante. Cabelos escorridos sobre as espáduas, o bigode franjado onde restava uma escuma de cerveja, calças de um amarelo-laranja. É um tipo de uma solenidade triste. Apetece propor a Bobbit que o console com a terceira dose do outrageous buffet. Vai cantar. Fecha os olhos de religiosidade. Canta, trovador místico! Em cada verso, a palavra love. Love, love - mas que espécie de amor? E, se não é love, é God. God, god, mas que Deus, para que redenção, para que espécie de viver? Um love e um God que se foram esvaziando de sentido.
A assistência aplaude. Só uma rapariga de olhos encovados, um sono sem horas de dormir, permanece com a face pálida apoiada na mão, em êxtase.
Bobbit, meio a desculpar-se, comenta:
- Foi pena. No Village Gate teríamos tido bom jazz.
- Deixe. Preferi assim.
Voltamos à garagem, onde Bobbit pagará o estacionamento por uma tabela de milionários. De caminho, atravessamos uma romaria de gente no ir e vir de uma igreja. Sim, mais uma igreja. Agora trata-se do Templo do Cristo Cientista. Fazem de Cristo um enciclopédico, estes americanos do concreto sem finalidade e, por isso, precisados do sobrenatural. E que vem a ser tal confraria? A das pessoas que não crêem na ciência, nos médicos, nas boticas e, portanto, confiam a Cristo a cura dos seus males. Nesta América há confrarias para tudo. Nem falta a ordem religiosa dos homossexuais, calcule-se (Os Companheiros de S. João), com uma cerimónia anual, em julho, no santuário da Igreja Episcopal do Santo Apóstolo, em Manhattan.
Reparo no formigueiro que entra e sai do templo.
Numa forte percentagem, é de mulheres. E nem todas idosas. Talvez as mesmas que, mais adiante, no jardim da universidade, passeiam os cãezinhos e apuram responsabilidades quando um deles começa uma bulha.
Quem parece que se abasteceu no Restaurante Shakespeare é o Chevrolet. Não há cova do asfalto que o modere na noite solta. É um ver se te avias por Chelsea, Riverside Drive, por esse West de má fama, um gato, no meio da viela, a observar um homem acocorado no passeio (ou estarei eu a baralhar-me com uma fotografia de Cartier-Bresson, o fotógrafo de "olhar triste"?), os bares de porta acesa, eis o prefeito de Pittsburgh rodeado de polícias e repórteres. Que aconteceu? Uma banalidade. Anteontem à noite, os gangsters visitaram o clube Amerito, quartel-general do conselheiro municipal, um tipo chamado Verona. A direcção do estabelecimento não apresentou queixa.
Um inspector levou consigo o porteiro do clube, para averiguações. O prefeito em pessoa vai interrogá-lo.
a sordidez cada vez mais nua, cada vez mais de cidade saqueada (ou estarei eu a baralhar-me com uma reportagem dos anos 30, reproduzida num livro de Vladimir Pozner?),
"No sábado houve chinfrim na vossa tasca." "Houve. "
"Mas quando a polícia lhe fez perguntas, você disse que nada se havia passado." "Disse. "
"Pois trate de despejar o saco. Que é que se passou, afinal?"
"Tocaram à porta. Desconhecidos. Abri para perguntar se eram sócios. Disseram que sim e um deles encostou-me a pistola à barriga. O outro subiu ao primeiro andar, alinhou os jogadores e limpou-lhes as algibeiras."
"E você não preveniu a polícia." "Para quê?"
Uma cidade sonâmbula - é uma corrida até ao extremo da Broadway, com os negros à coca nos cruzamentos para, entre a luz vermelha e a verde, darem uma ensaboadela aos vidros dos carros e receberem os apressados níqueis.
"E os seus patrões?" "Isso é com eles."
"Quem estava lá nessa noite?" "Não faço ideia." " Verona estava lá?" "Ah, não. "
"Mas ele é membro do clube." "Talvez, não lhes sei os nomes."
"E os gangsters, você reconheceu-os?" "Tenho má memória para caras." "Parece que você encobre alguém." " É impressão sua."
"É Verona que você está a encobrir, ou os gangsters?"
"Não percebo o que está a dizer." "Ou encobre uns e outros?"
O prefeito levanta o queixo, um polícia abre a porta, um fotógrafo, no corredor, desfecha o flash.
Mas, agora, que vem a ser esse gesto de Bobbit?
Com a mão livre do volante ele cerra sorrateiramente as janelas do Chevrolet, enquanto previne:
- Entrámos em Harlem.
Ou seja: em Harlem, nem de automóvel. Basta o "alto aí" de um semáforo ou um aperto do tráfego para que tudo possa acontecer nesse instante em que o carro estiver parado. Parado e com uma fresta por onde se enfie um braço. Escuta, Bobbit: não estarás a representar uma precaução folclórica? Acabarias por ter o mesmo gesto fosse onde fosse que estivéssemos, em Nova Iorque, em Alfama ou no Bosque de Bolonha? Há pouco, ainda no Village, quando te vi atraído pelo bafo de porão de um dancing, donde saía uma malta que dava calafrios, nem sei porquê acudiu-me à ideia o tal livro de Vladimir Pozner. Retrato americano, sem dúvida, mas - dir-me-ás - também retrato europeu; retrato de uma época, mas também de todas as épocas. Bastaria mudar os cenários. Aí tens mais um relato seco, talvez por isso perdurável.
Agora que os jornalistas que o tinham fritado com perguntas vão ficando lá para trás, e que o automóvel desliza suavemente na noite da Pensilvânia, Charles Margiotti, procurador-geral, pode deixar de sorrir. Ele não tem nenhumas razões para se sentir jovial. Monaghan foi claramente assassinado pela polícia. Uma vez mais, o magistrado resume o caso para si próprio, como quem mastiga uma pastilha de fel. O chefe dos detectives fora encontrado, havia dez dias, com as goelas cortadas. Algumas horas mais tarde, três polícias prenderam Frank Monaghan, sessenta e quatro anos, gerente de hotel, suspeito de haver cometido o crime. Os chuis levaram-no para a cave do comissariado e, como o tipo não confessava, espancaram-no toda a noite. O procurador medita nas manchas de sangue respingando as paredes da cave: como é que o corpo de um velho tem tanto sangue para deitar! Monaghan não falou, o sacana, mas gritara até de madrugada, e a populaça que se juntara diante da esquadra da polícia ouvira muito bem esses gritos. Demasiado escarcéu, demasiadas testemunhas. Fora preciso prender os palermas dos chuis, alertar os jornalistas, os fotógrafos, os peritos. Um caso danado. TERCEIRO GRAU, TERCEIRO GRAU. Chiça. Felizmente que uma história daquelas só de raro em raro termina em morte.
Agora que os jornalistas tinham ficado para trás... São ternas, as noites da Pensilvânia.
- Estamos em Harlem - repete Bobbit, decerto desiludido com a minha aparente indiferença.
Em Harlem, o gueto.
C'est l'heure pure oú dans les rues Dieu fait germer la vie d'avant mémoire.
Tous les éléments amphibies rayonnants comme des soleils. Harlem!
Quem disse? Senghor, o poeta.
HARLEM, UM POVO
Harlem, o gueto.
Vou começar por uma frase de Richard Wright: "Considerai somente o aspecto físico da nossa civilização; quanto nos seduz e deslumbra! Imaginai agora um homem que marcha no meio dessa cena, que dela é parte integrante e, no entanto, sabe que nela não pode participar. Esse homem é o negro americano."
Ou por umas frases de James Hepburn: "O negro sonha sempre com outra cidade diferente daquela onde nasceu. Hoje, os especialistas calculam que, antes do final do século, e talvez com excepção de Nova Iorque, a maior parte das cinquenta maiores cidades dos Estados Unidos terão mais de cinquenta por cento de habitantes negros. E esta uma das mais importantes migrações raciais na história da humanidade, e é certo que, se algum dia rebentar uma nova guerra civil nos Estados Unidos, desta vez será no Norte.
À mesma velocidade com que os negros se mudavam para as cidades, os brancos fugiam para os subúrbios. No Sul, houve resistência à integração em quase todos os campos: escolas, armazéns, teatros, hotéis, restaurantes. No Norte, os negros tinham sempre, pelo menos em teoria, gozado de liberdades, mas o importante aumento da população negra criou um problema premente nas escolas. As facilidades de educação tinham sido teoricamente integradas no Norte, mas as crianças brancas abandonavam as escolas à medida que as crianças negras entravam.
(...) Abandonados pelos habitantes brancos, alguns subúrbios tornaram-se cem por cento negros. Os negros que queriam fugir desses guetos tentaram comprar casas em subúrbios habitados por brancos, mas muitas vezes os seus proprietários ou os agentes imobiliários recusaram vender-lhas, ou então não conseguiam obter a hipoteca necessária. As cláusulas restritivas que os proprietários impunham, para não as vender a negros,, foram declaradas ilegais em certos estados."
Harlem, o gueto. O mundo branco da Park Avenue, da 5.a, a terminar subitamente num mundo interdito, a negra Harlem. Sem muros de roda, mas mais altos do que se os tivesse. Um táxi para Harlem? Vá a pé, se quiser. Deixe-se espancar ou matar, se tem vontade disso. Mas vá sozinho. Harlem é dos negros, dos retintos. Harlem é a degradação, a terra prometida e o paraíso perdido, tudo isso junto - mas em pesadelo, em paranóia. Deixe-se matar na Lower East Side, que é branca; nunca na Rua 126, onde a morte tem a pele negra, onde se mata seis vezes mais do que na celebrada Chicago. Onde o mundo do crime e da droga tem a sua própria organização, a sua máfia, contra a qual nem a outra, a d'O Padrinho, nada pode. E muito menos a polícia, esta polícia que jamais circula desacompanhada na selva afro-americana.
Harlem. Uma cidade (duzentos e cinquenta mil habitantes) dentro de outra cidade, cravada no seu coração. Servindo-se de um punhal de lepras. Deixando as chagas à mostra. Todavia, ou talvez por isso mesmo, nesse mundo segregado gerou-se uma consciência, uma cultura, um povo. Cujas fronteiras se vão alargando à medida que o outro foge da mistura. Ou da ameaça onde a dança e a música jorram como de uma veia rasgada. Suor e sangue: música. Corpo e alma: dança. Música e dança sendo um modo de caminhar, de rir, de sofrer. De ser Harlem, a do poeta.
Il n'est que d'écouter les trombones de Dieu,
ton coeur batte au rythme du sang ton sang
J'ai vu dans Harlem bourdonnant de bruits
de couleurs solennelles et d'odeurs flamboyantes.
Uma rua que tem sido comparada a uma fantástica sala de espera, a multidão cá fora aguardando o momento de partir para uma viagem desconhecida e num meio de transporte que todos ignoram qual seja, uns em que a expectativa se vincou nos rostos lassos, aí tens destroços humanos sobre o lixo dos passeios ou dormitando às portas, outros preenchendo o tempo sem horas com um frenesi de possessos ou com uma errância abúlica, vadiando de quarteirão em quarteirão, até que a madrugada os recolha exaustos. Semivivos ou drogados. Coisas de carne e não homens. É deles que te vem o medo ou de uma velha e inconfessada culpa?
E Bobbit avança, afrouxando quando pode afastar-se das bermas, lá onde grupos jogam às cartas, ao poker, enquanto matronas (ou deusas?) fritam o peixe pescado no Hudson, e uns tantos se juntam em jeito conspirativo e quase todos deambulam, entrando e saindo dos bares, indo e vindo, vindo e indo. A garotada vasculha nas esterqueiras, mas toda a rua é um monturo. O tráfego rareia, os táxis são um lá-vai-um, pergunto a Bobbit se o risco é mesmo como ele nos dá a entender. Que sim, que sim. Mas se eu estiver disposto a... Para o diabo com a laracha! Que sim, repete ele. Acontece até que, vai não vai, um bando de negros chega a plantar em pontos estratégicos um falso sinal de trânsito e, se o automobilista obedece à luz vermelha, aí está ele tramado: estilhaçam-lhe os vidros do carro, põem-lhe as unhas em cima e o resto é o que for. Depende.
De quê, Bobbit? Depende sobretudo da pinta do assaltado. Mais do que do assaltante. O que não quer dizer que muitos brancos, os que não sentem fronteiras nem raças e logo mostram isso na cara, não percorram Harlem de cabo a rabo e lhe frequentem as tascas.
- Depende - repete Bobbit, num misto de gravidade e de ressentimento. - Eles parece que têm um sexto sentido para aperceberem quem merece ser corajoso.
- E você, Bobbit? Já andou por aí, a pé, bem entendido?
- Porque não? Acompanhado de uns amigos negros. Mas também sozinho.
- E necessitou dessa "coragem"?
- Precisei de não a ter. Isso é que é importante. E capta-se logo, fareja-se, essa tranquilidade.
Agora Bobbit tem corda. Qualquer americano a tem ao falar de negros, quer os considere bichos, ou uns safados sem remissão, ou apenas homens iguais aos outros. O que as palavras não dizem, Bobbit confia aos gestos. Venham os gestos, com eles me entendo melhor. Que se passa de diferente com os negros a partir do black power, a partir deste campo entrincheirado de Harlem? Bom, dantes eles detestavam-se a si próprios por serem negros. A moda era desfrisar os cabelos, cobiçar as mulheres loiras, mesmo sob o risco de uma corda na garganta, e, quanto aos objectivos, apanhar uns restos das sobras dos brancos. Hoje, perdido o complexo da cor e tomada uma consciência social (que se confunde com um orgulho rácico), os sinais de negritude passaram a ser ostentados e até impostos aos padrões dos brancos. (Já falei, suponho, das cabeleiras à Angela Davis - último grito da 5.a Avenida e dos seus arredores europeus.) No mesmo passo, o racismo aqueceu. É carne viva. Mais da parte dos negros. Talvez nem se deva falar em racismo, que não diz tudo ou nada diz do que pretende dizer, mas em "nacionalismo". Um nacionalismo em guerra. Assim, na América, está hoje encostada uma África. Uma comunidade bem definida, hasteando as suas raízes, os seus tormentos, a sua hora de resgate. O black power é a sua imagem, a sua bandeira. E também a sua cólera, que é por vezes um sentimento de integração.
Bobbit ainda tem presente o diálogo de um jornalista (Jack Garofalo) com uma Pantera Negra, num snack de Harlem. Em Harlem uma Pantera Negra pode falar à vontade. Está no seu país. Como pode alguém intitular-se Pantera? Antes de mais, ser negro, mas negro americano. E empenhar a sua vida, o seu engenho, os seus dons intelectuais (que tem de os ter, e em medida grande) na luta do povo negro da América. "Estamos em guerra", dissera ele, "estamos em guerra com os Pigs (Porcos), eles têm abatido muitos dos nossos e nós também já matámos uma boa porção deles." Quantos? Segredo militar. Quais as finalidades do movimento? A nação negra. A que apenas falta uma expressão política.
- Que pensa disso, Bobbit?
Um gesto, um sorriso. Nos olhos gaiatos uma sombra de terror?
Mas nessa altura já havíamos entrado no East (no alívio?), terra branca. Os vidros do Chevrolet desceram, uma manobra discreta, que, todavia, não poderia ser de todo embuçada. A conversa mudou. Bobbit projectara, decerto, enfiar-nos pelos olhos toda a Manhattan numa única noite. Ainda mesmo que eu viesse a repetir os lugares num dos dias seguintes. Por isso, marginou o East River, aí tem Yorkville, aí tem o Cor
nell Hospital, interessa?, e agora vamos a uma pausa,
que chegou a vez de uma iguaria deliciosa: o building das Nações Unidas. Com bandeiras e tudo. Aceso.
Pois: é um grande rectângulo posto de pé. Paremos para vê-lo. Mas eu já o vi, Bobbit. Na TV, no cinema, na pintura, nos magazines. Uma das coisas mutiladoras desta época é que a surpresa quase deixou de ser possível. O homem, em sua casa, tem o mundo à mão. Por isso, quando sai para um contacto directo, de receptividade toda rasgada a um encontro novo, desilude-se. Aquilo, ou já foi visto ou não está ali como devia estar. Como os nossos olhos o tinham aprendido antes. É preciso que as coisas tenham o gigantismo do Midtown Manhattan, que transgridam a escala humana, a nossa, para que dentro de nós o berro se solte. Ou então, dá-se o contrário, Bobbit. Nessa civilização urbana, as pessoas, bombardeadas de sensações visuais, brutalizadas pelo denso, criam um mecanismo de defesa, deixam de ver ou de querer ver. Assim se perde o sentido da comunicação. Como da apetência. Que julgas tu que sejam os alienados de Nova Iorque? Inadaptados ou superadaptados? O grande perigo do nosso tempo, disse-o René Dubos, não é que o mundo nos vá destruir, mas que o homem, adaptando-se à custa de mutilações, a si próprio se destrua.
Os Americanos, sabe-lo tu, saem de casa para se sentirem num lugar privado. Em casa, há os filhos, as mulheres mandonas e asseadas (havemos de falar disso, Bobbit), os impressos na caixa do correio, o telefone (o Nova-iorquino bate qualquer um na utilização do telefone), a TV. Infernal. Daí não admitem a publicidade nos cinemas e nos teatros. Uma sala de espectáculos também é refúgio. Como o automóvel. Quando tens necessidade de te sentires só, procuras o Chevrdlet, evades-te. Mesmo que não passes da Rockaway Beach. Ele é a tua coutada, o teu silêncio, as tuas asas. Às vezes, a tua amante. Por isso o queres tamanhão, veloz, poderoso. Só teu. Por isso franzes o nariz aos transportes públicos, salvo se a tanto és forçado. O MacLuhan pinta-te assim: quando pões o pé fora da América, és o conquistador, o universo pertence-te. O Europeu, por seu lado, reage em tudo diversamente: a casa é o oásis privilegiado, nela se sente forte. Nela se aninha para se recuperar a si próprio, dela se ausenta para se sentir em comunidade.
E depois, neste teu mundo intimidativo, que te enfia os dedos nos olhos até que deixes de sentir dor, até que recuses ver, há a vulgarização das coisas, cresta da alma. Sobretudo nas megalópolis, onde o quadro urbano foi expulsando a realidade natural, aquela que nunca se repete. Na tua Nova Iorque (perante a qual, aos sessenta e oito anos, Mondrian teve a revelação mística de um futuro em que a vida quotidiana acabasse por ser plástico puro, sem arte, sem coração, e, tão impressionado por esse peso de cimento, procurou daí em diante banir da sua pintura todas as formas que não pudessem ser reduzidas a relações de posição), na tua Nova Iorque dizem-me que bastam algumas semanas para que o extraordinário se torne banal, para que a clandestinidade deflagre em acto público. Ouvi exemplos. O abortamento era proibido até julho de 1970. De então para cá, centenas de milhares de abortos. Às claras. No vespertino New York Post (como nos jornais do Canadá, donde venho), pode ler-se em caixa alta: "Abortamentos, estritamente confidencial. Cento e dez dólares até catorze semanas de gravidez. Para lá desse período, trezentos dólares." Ou outro, de um competidor mais organizado: "Abortamentos noite e dia. Assistência de grande qualidade." E a arquidiocese da cidade responde no mesmo jornal e usando as mesmas armas: "Antes de praticar um aborto, pense noutra solução. Estamos prontos a servi-la, garantindo um auxílio confidencial."
Onde estávamos, Bobbit? Na mulher americana ou nas Nações Unidas? Nas Nações Unidas, desculpa. Um belo building, sim senhor, que se afastou dos demais, à beira das águas, para que lhe apreciássemos devidamente a esbelteza. Este não sufoca, não foi este que assustou Mondrian, mas a floresta deles, lá mais para o centro. Mais outra cidade dentro da ilha. Uma espécie de Harlem em altura, só que com outros motivos de segregação. Estranha, sinto-a estranha e irreal na noite de incêndios, pouco acolhedora. Há quem a ache falsa e indiferente. E essa indiferença que nos gela, ao que contam alguns que têm de lá viver. Dantes, era um clube anglo-saxónico, as pessoas tinham regras e maneiras, horas burocráticas para a divergência e para a convergência. Depois, com a irrupção dos negros, asiáticos, mestiços, o Palácio alvoriou-se, como quando trazemos um aviário para uma quinta sossegada. Foi preciso esperar que nele reentrasse a compostura. Estou a lembrar-me que um diplomata africano disse que viver na ONU é constranger-se a uma constante disciplina de pensamento, de personalidade, de aparência. Mesmo a cortesia é aqui uma disciplina. De tanto se disciplinar, que resta de um homem? Até a cor se mimetiza. Na ONU (será assim?), nada se assemelha mais a um branco do que um negro.
Bom, vamos terminar a noite falando então da mulher americana. A presença da tua discreta Mary não favorecerá a conversa, mas ela viveu em Paris, tem uma evidente costela que já não pertence a Nova Iorque. Pode bem passar por neutra.
Antes e depois do almoço (a convite de um imigrado austríaco, o senhor Pierston, comi num restaurante do centro uma saborosíssima especialidade romena, não me lembro o nome), andei pela Broadway, a Broadway dos cinemas e dos teatros (e não a que, no total da sua extensão, ronda os vinte e três quilómetros), primeiro a fotografar os anúncios dos cinemas (vê lá tu a que chega um turista luso!), dos quais noventa por cento falam de sexo, fornicação, cama, cama a quatro, a seis e não a dois, tendo as pobres suecas a primazia nessas águas sujas do amor. Depois, entrei num deles. Sob o rótulo de "educação sexual", com um senhor grisalho, didáctico, a explicar porque se faziam assim as coisas, aquilo era sobretudo um chamariz para a plateia misógina, só homens, a vingarem-se, naquelas cenas, da tirania feminina. Da tal mulher eficaz, pondo e dispondo no lar e fora dele, eriçada de bigodis às oito da manhã e bem atestada de drinks às oito da noite. Insaciável. Enérgica. Com a tiróide a trabalhar em cheio. Era, pois, esse macho coagido a arregalar-se com as cordilheiras mamárias do Playboy, com as pernaças altas das heroínas de Mickey Spillane, que estava naquela sala. Com a obsessão do leito e simultaneamente com o pavor dele. Um macho complexado das falências sexuais, da Eva-profissional do divórcio, das massagens "marroquinas". Mas sem poder livrar-se de passar por elas. Por isso, ali o via, assistindo ao amor enxovalhado, como quem assiste a uma execução.
A noite, Bobbit, ainda não findou para mim. E a vigília de quem se viciou em inventariar e digerir a sós o que foi a azáfama do seu dia. Correram talvez duas horas desde que me deixaste à porta do hotel; tardo em adormecer, no meu fadário de insoniado, conquanto o estrépito da cidade tenha emudecido de vez. Reavivam-se, num clarão, as coisas que dissemos, vimos e ouvimos por essa Nova Iorque noctívaga, sobre a qual, e num céu de ardósia, com veios róseos, vagueiam nuvens esparvoadas. O rescaldo do dia não é este último e longo grito de um rebocador, algures no Hudson, mas sim uma trepidação íntima, uma desordem nas ideias, que não me deixam serenar.
Estivemos no coração de Harlem, embora como fugitivos que temem ser castigados por uma culpa ignorada, apercebi-me do teu instintivo desassossego, e agora confronto as mil coisas lidas acerca da tua sociedade americana, tão dilacerada de tensões, e talvez por isso mesmo tão impaciente, com o que me relatou um compatriota, há poucos dias ainda, durante uma seroada em Toronto.
Toronto, meu caro Bobbit, está cheiinha de portugueses. Como Montréal. Aos milhares, como os tem esta América feita de retalhos europeus. Iguais àqueles que viajaram comigo desde Santa Maria, nessa madrugada nevoenta lembrando uma estaçãozinha de província, deserta e secreta, à espera de um comboio duvidoso, e iguais a muitos outros milhares que vieram desde os Minhos aos Algarves, de todo um país que nunca se descobriu e reconheceu na sua própria terra. Chegam, instalam-se, ajudam a edificar países, esquecendo o seu. O sangue humano sempre tem servido de grua e de cimento, diz Malaparte referindo-se à construção da Grande Muralha da China; os cadáveres dos que caíram fazem parte do terriço. A obra vê-se, enaltece-se, mas deles, os construtores, ninguém falará. São a pedra, a ossada, o terriço. Pois os portugueses chegam, instalam-se primeiro nos bairros onde a densidade de emigrados é maior, onde se fala a sua língua nas lojas, onde se podem encontrar outros patrícios nas ruas e nas oficinas, vão ajeitando as casas à sua maneira, às vezes mais parecendo depósitos de gente do que moradas, compram uns quilos de uvas sensaboronas e fabricam vinho na cave para as datas festivas, trocam de emprego, a vida melhora, pois tudo está no suar e no poupar, e logo mudam para bairros mais catitas, como aquele, em Toronto, que me sugeriu a Londres vitoriana, deixando o poiso disponível para outra levada de arribadiços. Enquanto outros, ao apelo irresistível de uma farm abandonada, se expandem nas colinas e nos vales inóspitos mas espaçosos, onde os raros casais se agacham para que as fúrias da areia barrenta os não ceguem, indo reatar uma saga ancestral de lavradores.
E o ciclo repete-se. Mudança, aqui ou no Canadá, é contágio. É uma atmosfera. Em cada ano, um quarto da população de Toronto troca de residência ou de emprego. Ou de ambas as coisas. Talvez seja a cidade do mundo onde as pessoas são mais instáveis, conquanto nela se respire quietude e amenidade. E, como disse, isso pega-se. Mesmo aos portugueses. No seu bairro, porém, há sempre quem apareça para substituir o retirante. É uma raça de gente habituada a fazer a guerra à penúria, à natureza sáfara ou hostil, habituada a fazer a guerra aos exílios opondo-lhes novos exílios, novas errâncias, a opor ao acaso e à adversidade uma tenacíssima energia física e moral, que outros povos aproveitam, colhendo-a como um fruto chegado ao último grau da sazão. E, para onde vão, levam a pátria às costas, embora rapidamente lhe enxertem o mundo alheio. A pátria é também uma língua, sabemo-lo. Por isso, os mais velhos continuam a ser-lhe fiéis, a falar o seu idioma, que é um modo de se identificarem perante si próprios, mesmo quando, instados pelo quotidiano, lhe incorporam vocábulos estranhos, mas os filhos já não o querem nem o entendem. Já não precisam dessa identidade. O molde deles passou a ser outro.
Os bairros de imigrantes portugueses acusam tudo isso. Uma miscelânea de adros pacóvios, alfamas, parques mayers, mourarias, porém adulterados nas suas já de si adulteradas reminiscências. Uma cidade ou um bairro conhece-se pelo que vende e pelo que compra. Na "Rua Augusta" de Toronto, que alguns preferiam que se chamasse "Rua Vasco da Gama", come-se sardinha assada, mas sobretudo cachorros-quentes. Uma multidão balburdienta, como a da Feira Popular, apinha-se nas tascas, faz bicha nas casas de pasto tresandando a fritos, olha, apalpa e cheira os artigos que atulham as mercearias até à porta; no entanto, são os salões de jogos americanizados, onde impera o inevitável cartucho de popcorn, que atraem a malta brava. Repare-se nas tabuletas das lojas: "Estoril Billiards", "Madeira House", "Pereira Market", ou então "Casa da Senhora de Fátima"; estamos sem dúvida num mundo português miniaturizado ou saudosisticamente caricaturado, mas os jornais que se lêem, ou que a gente moça lê, são canadianos. Jornais ou revistelhas com loiras mamalhudas. Os discos à venda do António Mourão são para a velhada. De que vale que um antigo campeão de luta greco-romana, que foi ídolo de Alcântara e ainda hoje é homem para levar uns atiradiços ao tapete, faça terminar cada um dos seus combates vitoriosos com a bandeira lusa envolvendo-lhe o torso? Portugal vai-se esbatendo no tempo e na distância. E nos suicídios.
Pois o tal compatriota, Rodrigo é o seu nome, tem uma vivida experiência das Américas, sobretudo do meio estudantil, seja de Santa Bárbara ou de Quebeque, passando por Amherst, e foi perturbador ouvi-lo. Tudo, aliás, na América é perturbante. "Defenda-se de juízos precipitados", recomendou-me Nino, e ele tinha carradas de razão. Enquanto o rumor metálico que avança e recua no terraço vizinho, como na noite anterior, me faz lembrar o vento perdido nas velhas ruas de Quebeque, aparecendo numa encruzilhada deserta para logo se escapar à procura de vidas ou de ecos, e enquanto me entra no quarto um brilho amarelo filtrado pelo ar sujo, rememoro a seroada de Toronto. O meu compatriota fala em surdina, afagando as mãos, num gesto beato. Não fazia calor, longe disso, mas ele precisava de enxugar a testa repetidamente. E quanto o seu olhar era fixo! Creio que, durante todo o tempo em que o ouvimos, não nos encarou mais que meia dúzia de vezes, e nessas condições parecia surpreso de nos ver ali. Falava em surdina e também sem pausas, obcecadamente. Como um realejo abafado por um pano grosso que lhe tivessem posto em cima.
Sobre os negros americanos, por exemplo, ou melhor, sobre as minorias, as suas opiniões nada tinham de convencionais. Embora "simplificando um tanto a questão", dizia ele didacticamente, o termo "minoria" aplicava-se em particular ao estrato negro e ao estrato porto-riquenho. "Minoria" ressoa, de facto, a uma conotação qualitativa, quanto a ser sinónimo de inferioridade social e até humana, mas essa inferioridade hesita-se em atribuí-la a outras raças. O que, paradoxalmente, redunda em benefício dos negros e porto-riquenhos. Porquê? Por isto: o Governo americano, empenhado em redimir-se do labéu das segregações raciais e étnicas, e também coagido pelos processos reivindicativos da Affirmative Action e da Equal Opportunity, que são mecha acesa em barril de pólvora, desatou a facilitar a vida a essas minorias. Subsídios, estímulos, benquerenças no trabalho e na educação, a ponto de se ter gradualmente instalado uma espécie de "legitimidade moral", que leva a privilegiar alguém no emprego ou na escola na base da sua raça - raça negra ou porto-riquenha, entenda-se. Dá-se, assim, o reversed bias, o preconceito ao contrário. Actualmente, é o negro quem desafia, exaltando a sua raça e os seus valores, atacando violentamente o branco e a sua cultura, e atacando e provocando tanto mais quanto as facilidades encontradas são sentidas, afinal, como uma outra forma de discriminação. Falar em "elementos bilingues" da sociedade americana e conceder-lhes rasgadamente todo um estatuto de benesses e reconhecimento não será acentuar, como sempre, a existência de "minorias"? Talvez por isso, no quadro social, tais regalias podem revestir-se de uma tonalidade degradante. E se as minorias as aceitam, entrando no jogo, é como arma. Como maneira de minar, por dentro, os fortins dos brancos. De os aterrar, de os denegrir. É o reversed racism, o racismo ao contrário.
- Só que, a eles, ninguém chama racista.
O bilinguismo torna-se, pois, um conceito carregado de virulências. E o ensino que o serve, desvirtuado às claras, tem como única finalidade a diferenciação de um bloco culturalmente estanque e agressivo, que interpreta as suas singularidades de uma certa maneira e as utiliza como instrumento desagregador do sistema. O baixo nível do ensino favorece, aliás, esta estratégia. Se a única preocupação dos estudantes, brancos ou de cor, é conseguirem um diploma que lhes abra as portas de um emprego, os professores, pelo seu lado e para conservarem o lugar, vão a todos os extremos da abdicação, que se disfarça de tolerância, pois na apreciação da sua actividade os estudantes têm uma decisiva palavra a dizer. E demitem-se sobretudo perante as "minorias", para que nunca se possa invocar a suspeita de opressiva tutela cultural.
Rodrigo alonga-se muito no tema, vinca-o com argúcia e também com incontido azedume. Nessa experiência americana seja o que for traumatizou-o. Se lhe desvio o olhar com uma pergunta, suspende a narrativa mais tempo do que seria razoável. Como se o realejo se tivesse avariado com a minha interrupção e ficássemos à espera que alguém voltasse a pô-lo a funcionar.
As pessoas, diz ele, querem demonstrar à viva força que estão de acordo com a Equal Opportunity e disso resultam escandalosos favoritismos. Se pela fotografia de um candidato logo se lhe revela o sangue negro, a tendência é favorecê-lo em confronto com os brancos e, além disso, asseguram-lhe salários mais altos, mesmo que as suas qualificações sejam flagrantemente duvidosas; durante a última recessão económica, despediram-se operários brancos, mas não se ousou tocar no negro ou no porto-riquenho. Nas universidades, avaliar dos conhecimentos de um representante das minorias é exercer uma violência intelectual, logo racial. Por conseguinte, o remédio é fechar os olhos à ignorância. A América, em suma, é uma "sociedade de pressões" e as iniciativas e as providências são tomadas em função do furor dos recalcitrantes. No entanto, o que daí resulta é, afinal, um exacerbamento das tensões. Pelo menos, assim o crê o meu compatriota - e tu, Bobbit, que terás a replicar a esse modo de ver? O "preconceito ao contrário" estaria, pois, na origem do explosivo acréscimo de antagonismos. As consequências poderão ser um banho de sangue ou um genocídio.
E o nosso compatriota repisa o cepticismo:
- A afirmação parecerá exorbitante, não, porém, a quem viva nos Estados Unidos. Os brancos estão desorientados e inibidos, vão cedendo, mas sabe-se que há um limite a partir do qual a resposta é cega. O quotidiano americano está cheio disso. Impossível de prever onde termina a transigência moderadora e rebenta o ajuste de contas vingativo, de uma crueza sem medida, que é uma espécie de instinto de sobrevivência ameaçado de morte e do qual se exclui toda a racionalidade. A América ainda tem de progredir muito, e também de sofrer, antes de atingir o estádio cultural e moral em que problemas desta natureza deixem de ter sentido.
Rodrigo dá-nos exemplos que ilustram cada um dos seus comentários:
Susan Brownmiller, autora do bestseller Against our Will. Men, Women and Rape, andou de universidade em universidade, pregando a sua doutrina e cobrando-se à razão de dois dólares por entrada. Após cada sessão, numa atmosfera de paroxismo, acontecia que centenas de feministas em fúria exigiam a castração dos homens, aprontando-se logo para passar da palavra ao acto.
Para Rodrigo, em suma, a sociedade americana, corroída de lutas agrestes, crimes, raivas, impiedades, está ameaçada de morte e, por muito que as aparências o neguem, deixa-se matar quase passivamente. Talvez porque, afinal, seja esse o seu desejo. Talvez por ter consciência de que lhe pesam todas as culpas. E quando as sociedades ou os povos querem findar, sucede o mesmo que com as pessoas: nada há a fazer.
O Circle Line, cruzeiro de trinta e cinco milhas em redor da ilha de Manhattan, é prato forte nos itinerários turísticos de Nova Iorque. E merece a fama, pois, ali das águas, a maior ou menor distância do cerrado arvoredo de betão, pode admirar-se a floresta em toda a sua contrastada magnificência. Só mais adiante começarão as clareiras, umas verdes, outras rochosas, que os novos bairros residenciais começam a desbastar.
São cerca de três horas de viagem, em marcha doseada, variando consoante o que nos é apontado ver. Quem aponta é a guia, ou assistente de bordo, como lhe queiram chamar. Maneirinha, gestos de apresentadora de circo, voz a que o microfone dá uma ressonância de palheta. O timbre amavia-se quando nos sugere que se aproxima a hora do almoço, que o snack é no deck inferior, que nos vai distribuir, a troco de quase nada, um roteiro ilustrado das atracções do nosso circuito.
O cais de largada fica no sujo West, ao fundo da Rua 42. Um parque para automóveis e camionetas que, sem parança, vão despejando os excursionistas, agrupados docilmente no molhe que nos levará directamente ao barco. Parecem-se quase todos uns com os outros, na generalidade provincianos de visita à megalópolis.
Vêm abastecidos de mapas, folhetos, bilhetes-postais, que irão identificar com exclamações pueris quando o modelo lhes saltar aos olhos. Já sem referir as infalíveis máquinas fotográficas ou de filmar, onde se recolherá material de primeira para os serões de sábado.
Gente do país, portanto (que, aliás, tão vário é), mas com o ar meio deslumbrado, meio aturdido, de quem pisa terra alheia. Na maioria, a atirar para a idade da reforma, ou já bem entrados nela, quando uma pessoa resolve despedir-se da vida de papo cheio. Vêem-se até paralíticos em cadeiras de rodas ou velhos que, para mexer um pé, têm de se apoiar em alguém. É uma fauna vulgar entre a população flutuante de qualquer cidade do Novo Mundo ou entre a clientela das agências que despacham rebanhos para Roma, Atenas ou Israel, depois de os aliciarem às portas das igrejas com a recatada colaboração dos reverendos. Envelhecer, sim, mas girando, vivendo. Nada de esperar a morte ao canto do lume. É preferível ir encontrá-la, à traição, num quarto de hotel de Marbella.
O céu continua de cinza e escurece ainda mais sobre o Hudson. Isso faz-me recear um cruzeiro molhado.
Miss Stevens (hoje muito bem penteada) pergunta ao motorista:
- Choverá?
O homem, após tirar e repor o boné, responde num tom de quem não toma partido:
- Eles dizem que chove esta tarde. - Logo, porém, emenda a desconsoladora previsão: - Mas já ontem disseram o mesmo e não choveu.
- Eles...?
- Os tipos da TV.
Ao chegarmos ao molhe, volto a desafiar Miss Stevens:
- Então não se tenta a vir connosco? Ela tem um sorriso mimalho.
- Hoje, não, obrigada.
Uma súbita suspeita faz-me inquirir:
- Diga-me, Miss Stevens, quantas vezes já deu esta
volta de barco?
- Para ser franca, nenhuma... - E acrescenta, como apanhada em falta: - Mas tenho vindo acompanhar muitos amigos até ao embarque.
Não havia dúvida: o Circle Line era para turistas - o que não chegava a ser pejorativo sabendo-se quanto, as mais das vezes, são os de fora que descobrem ou fruem as coisas que possuímos. Daí não haver lugar para surpresa que, numa leva mais tardia, me aparecesse, na sua cordialidade um nadinha emproada, a chilena com quem travámos relações no elevador do hotel. Fora assim: ela fixara-nos desde o rés-do-chão até ao quarto andar e, ousando-se a uma palavra sacrílega no silêncio precavido dos ocupantes, dirigira-se-nos:
- Espanhóis?
- Portugueses.
- Oh, que graça. Passámos por Lisboa há dois dias, eu e o meu marido, vindos da Alemanha. - E logo um ressalto de ênfase: - A Alemanha é longe, mas vale a pena.
No décimo quinto andar sabíamos já que o marido era exportador de não sei quê (em grande), que a viagem à Europa fora de negócios. Saiu connosco do elevador no décimo sétimo andar, a frase que começara não podia ficar em meio. Encurtando razões: o marido tinha uma data de encontros em Nova Iorque, ela não sabia como ocupar o tempo. Onde costumávamos tomar o pequeno-almoço? No coffee shop do hotel, não? Pois, tornava-se mais agradável, mais cómodo: os criados eram dos nossos. Mexicanos, talvez, ou porto-riquenhos. Falavam espanhol, em suma. Ela gostaria de marcar uma hora certa connosco. Pelo menos, para os pequenos-almoços. E, se possível, ainda para o aperitivo do fim da tarde, no outro salão da entrada, um salão muito chique, via-se que a gente que vinha ali não era uma gente qualquer, e onde se podia ouvir um cantor mestiço, também de língua castelhana, ele próprio acompanhando-se à guitarra, a quem ninguém, aliás, parecia dar atenção - oh, estes gringos, bom Deus. Conversaríamos sobre a Alemanha, que país! Não nos importávamos, não?
Olhando os corredores desertos, confessara os seus pavores.
- O nosso quarto é no décimo nono. Recomendaram-me que, quando descesse sozinha no elevador, chamasse primeiro um empregado do hotel para me acompanhar. Parece que têm empregados só para isso. É assim tão perigoso? - E num tom ainda mais segredado: - Também não devemos deixar os sapatos fora da porta. O criado poderia pensar que queremos desfazer-nos deles.
Agora, ei-la no Circle Line, muito senhora, conquanto sem se negar a uma apetitosa conversa com a plebe. E arrojadamente sem guarda-costas, embora com a arma da sua língua intimidadora.
Bom, atenção, ouçamos a guia, que não está ali para outra coisa. Ela, a clown, lembra-nos que Manhattan, vulgarmente confundida com Nova Iorque, é apenas uma das cinco comarcas que constituem a New York City, quatro das quais, incluindo a dita e legendária Manhattan, são ilhas ou parte de uma ilha. O Circle avançará pela rota sul do Hudson, abeirando-se da Estátua da Liberdade, quedar-se-á a cinco milhas da comarca (chamemos-lhe assim, portuguesmente) de Richmond e, rodeando a ponta da ilha, deixará a Upper Bay, para, já nas águas do East River e do serpenteado Harlem River, bordejar a Brooklyn e a Queens, contornando por fim a última das comarcas, a Bronx, a única assente em terras do continente.
Muitos motivos de espanto vão balizando o cruzeiro. A guia não os desperdiça, ou antes, não dá folgas nem permite desvios à nossa atenção. E se alguém se escapa, logo se lhe percebe o ralhete na voz ou nas narinas irritadiças. Reparem: vamos passando por cais e mais cais, espigões de aço golpeando o Hudson, vamos passando por áleas de embarcações amodorradas? Mas basta-nos esse exemplo aí: o Bethlehem Steel Company's Hoboken Yard, só à sua conta, pode abrigar para cima de vinte navios oceânicos de grande tonelagem. E quantos "Bethlehem" terá essa quase incessante paisagem de docas, mastros, chaminés? Eu, porém, onde me firmo é na cordilheira de arranha-céus. Como é que uma pessoa, entre eles, respira e ainda pode sentir-se pessoa? Como será o espectáculo de Manhattan à noite, visto de largo, com a feeria de luzes a banhar-se no
Hudson? E, de repente, a memória do Tejo explode numa pergunta lívida: mas onde estão as gaivotas, que não as vejo, que não as oiço? Mais inumana será Nova Iorque se as tiver assustado. Preciso dizer isto a alguém.
Vamos andando. Fico a saber que aquele barco ancorado em frente do Stevens Center (edificado no lugar onde viveu John Stevens, inventor da primeira locomotiva que correu terras da América e desenhador e construtor do primeiro navio a vapor de longo curso - o culto do Americano pelos exemplos de pioneirismo, pelos padrões, mesmo insignificantes, de uma história que ainda mal começou!) foi um dos celebrados "Quatro Ases" e serve hoje de barco-dormitório.
Repare, senhora Montaldo (a chilena), que isto é mesmo de ouvir: ali a Ellis Island, com os seus edifícios bizantinos ao raso das águas, faz fraca figura perante a Manhattan alpestre, mas ela serviu de porta de entrada para milhões de europeus, famintos, perseguidos ou aventureiros. Quantos Elia Kazan teriam ali exclamado:
América! América! Os tais que deram Manhattans a Nova Iorque, que lhe deram um rosto, um coração, uma arte. Em 1965, o presidente Johnson conferiu-lhe estatuto de monumento, proclamando-a parte da Estátua da Liberdade. Pois não, senhora Montaldo, ninguém dirá que esta, a estátua-símbolo, anda por quarenta e seis metros de altura, fora a base, que é outro tanto. Obra de Frederic Auguste Bartholdi, não se perde nada em sabê-lo, oferta do povo francês ao povo americano.
(E as minhas gaivotas, mesmo que, nesta paisagem de grandezas, não sejam singulares em coisa nenhuma? Céus, aí vem uma piando, sondando a baba do navio. Vem das bandas da Ellis Island. Há gaivotas no Hudson. Nova Iorque é igual a todos os portos do mundo.)
Agora a ilha dos Governadores. E lá deles, os da Guarda Costeira, que devem ter muito que fazer. Centro de treino, quartel-general de mais de setenta comandos marítimos, centro de coordenação operacional da costa atlântica. Mas não se imagine que é assim um dorsozinho de terra a boiar no Hudson. Naquela mancha de verdes e edificações enigmáticas vivem umas cinco mil pessoas.
Senhora Montaldo: siga o exemplo dos nossos companheiros, faça favor de fotografar esses cubos de metal e betão, sempre a crescerem, do World Trade Center. O seu marido apreciará. A Alemanha é longe, o que lhe dá verniz, é certo, mas por enquanto não vê por lá esta dupla torre de cento e dez andares, os edifícios mais altos do mundo. A construção, da iniciativa das autoridades portuárias de Nova Iorque, começou em 1966 e estará terminada em menos de dez anos. As coisas, quando têm esta desconformidade, também na América levam o seu tempo. O World Trade Center foi delineado para ser o ponto quente do comércio internacional, nele já funcionam a Alfândega dos Estados Unidos, escritórios,
consulado, agências. Contíguo, e já fabuloso antes de o ser, o Battery Park City, que alojará catorze mil famílias em 1983, fixando-as à cidade donde se foge. O maior empreendimento da história da América, dizem. Erupções de ferro, de acordo, mas também fontes, alamedas, jardins. Uma nova face de Manhattan, talvez o sinal de uma nova forma de vida. Em grande parte, o Battery será edificado sobre o que hoje se consideram cais obsoletos. Ou sórdidos. Ou ambas as coisas.
Preste atenção a esta ponta de Manhattan. Lembra a proa de uma nau fantasmática, não lhe parece também? Tire, tire a fotografia. Tire várias, tire muitas, a cores. Olhe quanto os nossos companheiros se excitam. Disputam, um tanto à bruta, os lugares estratégicos da amurada donde possam caçar a perspectiva mais desimpedida. Tontos dos nova-iorquinos que nunca fizeram o Circle Line. Ainda não conhecem a sua cidade, pois conhecê-la é encher os sentidos com ela sem lhe sentir o peso.
Dizem que a panorâmica que nos está a subjugar se tem modificado de ano para ano. São gerações de arranha-céus a ofuscarem, a vexarem a geração anterior. A torre do Woolworth Building, durante décadas o mais alto edifício do mundo, vemo-la agora virtualmente escondida por detrás do bloco de buildings do novo estilo, monólitos quadrados, de uma peça, e também eles já abatem o orgulho perante as tais torres do World Trade Center.
Atenção, porém: na cena nova-iorquina o cenário vai mudando sem parança, mas também muda a maneira de o apreciar. O espectáculo de momento parece já não ser o Empire State, nem a sede das Nações Unidas, com as suas cinco mil e quatrocentas janelas, nem as bárbaras dimensões do Macy's, o maior armazém do mundo: a novidade é a Park Avenue. A compita deslocou-se do mais "alto" building para o mais "belo". E quais são as armas da Park Avenue? A graciosidade e sobretudo a luz, refulgindo nos milhares de painéis de vidro. Park Avenue tornou-se uma marca, e isso conta. Não é indiferente o sítio onde as pessoas moram ou trabalham, como não o é a loja onde adquirem as suas coisas: os Tiffany's, os Van Cleef põem um brasão no anel.
Segue-se na parada um empreendimento tipicamente americano. Tome nota: cais 16, East River. O Seaport Museum. Dirigido fora da alçada oficial, apoiado por dezassete mil contribuintes. Seis barcos históricos, os espectáculos mais variados em séries contínuas, de Inverno e de Verão. Nem teatro falta.
A Ponte, senhora Montaldo. Com P grande. A primeira que liga Manhattan a Long Island (que é a Costa do Sol de Nova Iorque - viu do avião?) e a primeira de uma série que se vai adensando. Mas esta não é uma ponte, mas a ponte - a de Brooklyn, faça favor de encher a boca com o nome. Construída há cerca de um século. Abeirando-se dos dois quilómetros de extensão, no seu desenho, no seu projecto, participaram matemáticos, engenheiros, filósofos (pois que julga?), um músico, um especialista em linguística e um bibliotecário. Ao tempo em que foi inaugurada, a maior ponte pênsil do mundo, tinha o dobro de comprimento de qualquer outra. E que inauguração! Milhares de pessoas (cento e cinquenta mil, precisam as crónicas) acorreram à cerimónia, um vagalhão de gente destemperada, depois o pânico, doze foram esmagadas ou caíram ao rio.
Estamos em maré de pontes, como vê. A de Manhattan, a de Williamsburg, a de Queensboro, embora Nova Iorque não se baste com elas e multiplique os túneis que passam por debaixo dos rios. O de Queens, por exemplo, já a senhora conhece, nele desemboca a auto-estrada vinda do Aeroporto Kennedy. Repare que as águas do East River são mesmo águas de rio. Correm. Ao passo que o Hudson, mal comparado, tem a soberana placidez de um mar em repouso.
Aí tem as Nações Unidas, já falámos disso, o mesmo quanto ao Empire State Building, mas preste atenção ao grande anexo do edifício da ONU, inicialmente esboçado por Le Corbusier. Se está de acordo, vamos descer ao convés inferior, ao bar, nem por isso a panorâmica nos fugirá. Não teremos os ovos com bacon do coffee shop do hotel, mas de certeza que haverá cachorros quentes. E café. Servido pelas automáticas, claro. Enquanto repetimos a dose, podemos deitar os olhos à delgada faixa da Welfare Island, entre Manhattan e Long Island. Têm um excelente apetite, estes americanos em férias. Pode ser que seja dos ares fluviais. Fazem bicha ao balcão do bar, contam logo com uma segunda ou terceira rodada, estimulam a fisiologia digestiva ensopando as salsichas em aluviões de mostarda. E os velhos não ficam atrás no dar ao dente. Quanto às crianças, vão pelos gelados. Mas é preciso ver que nem só elas. Nova Iorque em peso empanturra-se de ice cream, servido pelos ambulantes, pelos snacks, pelas lojas especializadas.
A chilena deita fora o copo do café, observa o pessoal em redor, depois a cidade de um cinzento enfumarado, e, num a-despropósito que me deixa quase sem fala, volta à conversa do hotel:
- Será mesmo de ter medo dos elevadores?
- Bom, julgo que sim, tudo pode acontecer.
Ela medita uns instantes, apreensiva, mas a sua loquacidade volúvel logo salta para outro assunto. Precisa de me fazer uma confissão - e urgente: é fã de Lenny. Tem de o ouvir por força. Saberei eu onde actua ele neste momento?
- Lenny. Quem é Lenny? Um cantor?
Para exprimir o seu desapontamento, a senhora Montaldo junta as pontas dos dedos, em prece ou em consternação, num gesto que poderia ser de Nino.
- Leonard Bernstein. O que regeu, anos e anos, a Filarmónica de Nova Iorque. Lenny para toda a gente. Se o ouvisse no Concerto em Sol de Ravel! Ao piano. Com aquelas madeixas brancas. Descontraído, casaco sport. Como se fosse a coisa mais natural deste mundo tocar assim.
Era tarde para esclarecer a chilena que aquele que eu conhecia era o Bernstein e não o "Lenny". O Leonard Bernstein da missa para os Kennedy, do ballet para Jerome Robbins, sobretudo o Bernstein-anfitrião dos "esquerdistas da Park Avenue", organizando parties em favor dos Panteras Negras, acolitado pela sua bela mulher, Felicia, vestida enfaticamente de negro da cabeça aos pés, apenas o berro de um colar de oiro maciço. Conhecia-o das crónicas, bem entendido.
O melhor seria levar até ao fim o meu papel de leigo, perguntando:
- Não entendo. Ele é regente ou pianista?
A minha ignorância exagerara, o rosto e a voz da senhora Montaldo bem mo fizeram notar.
- Lenny é tudo. West Side Story, este título não lhe diz nada?
Fosse qual fosse a minha resposta, eu estava irremediavelmente desacreditado. O melhor seria desviar-lhe a atenção para o cenário, que, sem esperar por nós, fora sempre progredindo. Saiu-me esta:
- Sabe quem habita por estas bandas, numa velha quinta que dá para o East River?
- Um cantor? - e a chilena não reprime a ironia da réplica.
- Norman Mailer, o furacão americano. Parece que a casa dele fica em Brooklyn, à beira-rio.
- Li um dos seus livros, o do filme.
- Dizem que ele se enfia num pavilhão isolado, na tal quinta. Passa o dia bebendo. Para que no seu cérebro fervam as coisas que escreverá mais tarde. É também o que dizem.
A senhora Montaldo estaria decerto a reflectir porque lhe falara eu de Norman Mailer. Para tentar apanhá-la descalça, em troco do seu Lenny? Não me era inteiramente indiferente que fosse assim ou assado e, daí, continuei:
- Desde que estou nos Estados Unidos que, com frequência, me vem à ideia uma frase do Mailer. Tenho-a tido sempre presente neste cruzeiro. Talvez por me sentir um pouco na pele dos imigrantes de há décadas atrás.
- Que frase?, diga.
- Mais ou menos esta: talvez a América volte um dia a ser amada. Os países precisam de ser amados.
A senhora Montaldo sondou-me precavidamente, que liru eu lhe saíra, e eu apontei-lhe à pressa não sei o quê, porventura um veleiro abusivo naquelas águas.
Escutando a chilena, interrogo-me uma vez mais sobre os verdadeiros sentimentos destes latino-americanos, gente de orgulhos e velhas culturas, perante a suserania primária dos Estados Unidos. Ressentimento de meias com fascínio? O desdém enciumado do parente pobre que perdeu bens, títulos e a energia para recuperá-los? E ocorre-me um entrevista do escritor venezuelano Carlos Rangel.
Pergunta: "Diz-se frequentemente que a América Latina é a colónia dos Estados Unidos. Que pensa disso?"
Resposta: "Trata-se de uma interpretação muito sumária. A América Latina foi colonizada pela Espanha. Mas ela conquistou a sua independência política em grande parte sob a égide da revolução norte-americana. Foi cerca dos fins do século xix que os Estados Unidos começaram a ter uma influência determinante, graças à sua situação económica. A construção do canal do Panamá assegurou-lhes um interesse estratégico nas Caraíbas. É um acontecimento que explica muitas coisas."
Caberia replicar: a "explicação" abrangerá a CIA, as ditaduras a soldo, as opressões?
E que pensam os americanos saxónicos dos seus vizinhos latinos? Na sua maioria, a resposta mancha um povo. E está nos factos, mais do que nas palavras. Porém, se há país que tenha a coragem de abrir as tripas e as expor ao sol, enquanto outros as escondem, é a América: daí colhe a sua penitência e sobretudo a sua força. Assim, um Arthur Schlesinger, que vira perto de Recife aldeias miseráveis coalhadas de crianças famintas, com o corpo tatuado de cicatrizes, e não esquecera que Havana, antes da revolução, fora apenas um casino e um lupanar gigantes para os homens de negócios americanos passarem um belo fim-de-semana, escreveu: "Através de toda a América Latina, as antigas oligarquias - os proprietários das terras, a Igreja e o exército - estão a perder a supremacia. Levanta-se larga onda de insatisfação das massas, ainda indistinta, entre os servos, os índios, os mineiros, os trabalhadores das plantações e os operários, classes oprimidas para além do suportável e que se aproximam agora de um estado de revolta."
E, já agora, também Kennedy, John Fitzgerald Kennedy, bem nos antípodas dos Goldwater, para os quais "a civilização americana é a maior façanha do homem na história do mundo". Na sua Estratégia para a Paz, pode ler-se: "Exactamente como devemos recordar o nosso passado revolucionário para compreender o espírito e o significado das insurreições anticolonialistas na Ásia e na África, deveríamos também reler agora a vida de Simão Bolívar, o grande "libertador" da América do Sul, a fim de compreender a recente febre epidémica de liberdade e de reforma disseminada neste momento a sul das nossas fronteiras. Fidel Castro faz parte da herança de Bolívar, que conduziu os seus homens através dos Andes jurando "guerra até à morte" contra a dominação dos Espanhóis e dizendo: "Onde pode passar um cabra, passa um exército." Fidel Castro faz parte da frustração daquela velha revolta que ganhou a guerra contra a Espanha, mas deixou amplamente intacto o feudalismo indígena. Cuba, porém, não é um caso isolado. Podemos ainda manifestar a nossa preocupação com a liberdade e a nossa oposição ao statu quo nas nossas relações com os outros ditadores latino-americanos que, agora ou no futuro, tentem sufocar as aspirações dos seus povos."
Atenção, atenção ao Circle Line, vamos passar pelo terceiro dos centros médicos ribeirinhos do East River. Depois do Bellevue Hospital e do Centro Médico da Universidade de Nova Iorque, eis-nos o Cornell Medical Center, outro colosso. Talvez a localização tenha que ver com o "meio natural" a proporcionar aos doentes, compensando-os da álgida despersonalização dos interiores. Assim, basta uma janela para que os olhos participem do lento ir e vir das embarcações, do céu aguarelado, e, quem sabe, do voo-grito das gaivotas.
Os Americanos preocupam-se com isso bem mais do que convencionalmente se supõe. Até na decoração das casas, agora revolucionada, eles tentam recuperar elos perdidos ou desfigurados, quer rodeando-se de plantas, plantas autênticas e encorpadas, que respondem ao incitamento: "Crescei!", entre as quais os móveis de novo estilo mais parecem esculturas de ar livre, quer, por exemplo, forrando as paredes com papel onde ilusoriamente, em grandes planos, se figuram serenas paisagens. Mas até essa ilusão, como sinal e apelo-recusa, é purificadora.
Sabe lá, senhora Montaldo (e talvez saiba, porque não?), de que coisas miúdas se podem nutrir as vidas mutiladas. Estou a lembrar-me de uma doente, não resisto a contar-lhe, já agora que foi o Cornell Center a desencadear esta léria. Paralítica desde a adolescência, ela tinha os seus cinquenta anos na altura em que a conheci. O seu mundo cabia ali, no quarto-asilo, ou ali se fechava - era o que podia julgar quem a visitasse. Mas não. Todos os fins de ano ela esperava um certo presente, o melhor dos presentes; um calendário que o irmão lhe trazia, cada mês uma folha colorida reproduzindo um lugar exótico, montanha, areal, cidade, aldeia, pelo qual ela viajava sem nenhuma experiência perder, durante aqueles tantos dias de imaginação insaciada. Depois, era mudar de folha, de lugar, de vivencias.
Voltemos ao Circle Line, não estamos aqui para outra coisa. Esta mansão, defendida da voracidade dos buildings pela copada escolta das árvores? E a residência do mayor de Nova Iorque. Não parece nada impressionada com o cerco dos arranha-céus, de que tão altivamente destoa, na América o brasão da idade sobe dia a dia de cotação. E esta morada nasceu em 1788, quando Manhattan era, decerto, um Central Park indomesticado.
Aquele navio rasteiro, com uma barra branca e outra vermelha, chaminé da mesma cor? Pertence à frota anti-incêndio do porto de Nova Iorque. Uns barcos giram, prontos a acudir; outros estão de plantão em lugares conhecidos.
Aí tem o Yankee Stadium, Meca do basebol. Imagina a senhora o que é ser, na América, astro do basebol? Vale uma legenda, como a dos pistoleiros famosos, dos campeões de box e dos gangsters de Chicago. Fale a alguém do Joe DiMaggio, por exemplo. Talvez tivessem esquecido o presidente Roosevelt, ou até Clara Bow, mas não DiMaggio, superman de ombros blindados, mas não Babe Ruth ou Lou Gehrig. Um fenómeno social, não lhe viremos as costas. Desde que este estádio foi construído, a América chamou a si vinte e nove campeonatos mundiais e não se cala com isso. Para meu gosto, prefiro fotografar o perfil carvoento, de esconderijo, desta casota assente em vigas de ferro, a prumo sobre o cais. Em que fita vi eu esta imagem?
Como já observou, senhora Montaldo, os edifícios têm vindo a rarear, as margens vestem-se de uma vegetação crescida ao acaso ou arremedam falésias esgadanhadas pelo vento. O rio encurva-se, quase se poderá falar em languidez. É o Harlem River, disse-o a guia.
O que escuta les trombones de Dieu. Pontes e mais pontes, o salto de Manhattan para Bronx vai-se encurtando. Está admirada daquela cumeeira artificial, não lhe decifra a geologia? Pois é lixo, senhora. E, já agora, permita-me que, nesta peregrinação por uma monstruosidade fascinante como é Nova Iorque, fale de cemitérios de despejos. Um problema, sabe? Para uma cidade que diariamente expele trinta mil toneladas de lixo, tem mesmo de ser um problema. Não há depressões de terreno que as devorem sem incharem de indigestão. Neste momento, o vazadouro de Nova Iorque parece ser um largo espaço em State Island, coisa de mil e quinhentos hectares, que recebe golfadas impressionantes de detritos. Por vezes, subindo a vinte e cinco metros de altura. Mas dentro em pouco a State Island estará saturada, como já se saturaram outras necrópoles. Pode acontecer que um forasteiro chegue aos arredores de uma povoação e fique indeciso sobre se o cabeço que tem à frente é obra da natureza ou resultou de uma lixeira.
Eu nem lhe falaria disto, senhora chilena, prevendo quanto a conversa talvez lhe dê náuseas, se não tivesse passado, ainda há dias, pela experiência do que é uma greve do lixo numa grande cidade. Foi em Montréal, grande cidade, sim, mas que, ao pé de Nova Iorque, é um arremedo. Pois será difícil esquecer aquelas pilhas de sacos de plástico acumulando restos, gases, fedores, chamarizes de ratazanas, focos de incêndios, a pestilência a impregnar a atmosfera como num necrotério em que se tivessem deixado os cadáveres ao sol. Ora imagine-se uma greve assim em Nova Iorque. Tem havido muitas, dizem. A última converteu Nova Iorque num pesadelo.
Isto do lixo, senhora Montaldo, tem que ver, aliás, com o viver das gentes. Ainda ontem mais uma vez o reconheci, ao perpassar, com o meu jovial Bobbit, por Harlem e por tudo o que em Nova Iorque é víscera e aparência. Harlem era uma estrumeira de embalagens de plástico, papelada, farraparia. E nos outros bairros também se podia ver de tudo às portas das casas. Até máquinas de lavar roupa e televisores, aparentemente em bom estado. Bobbit disse-me que os consertos são fogo, que é preferível comprar um aparelho novo do que reparar uma avaria. Além disso, as pessoas estão constantemente a desfazer-se das coisas, de tanto que lhes metem à cara outras mais apetitosas. Uma tara que os hippies apontam a dedo. Se não estou a exagerar neste parêntesis, até lhe vou reproduzir a fala de uma jovem hippy a esse respeito. Ei-la, resumida num ou noutro ponto: "A desgraça da América está em ser rica, porque o pobre no que sonha é em chegar a um televisor e depois a um Cadillac. Para ele, isso é a felicidade, que nem é difícil de concretizar. A diferença de fortuna consiste apenas numa questão de pormenor, um automóvel climatizado ou uma televisão a cores, mas a preto ou a cor os programas são os mesmos. Todas as crianças são educadas com a publicidade e a propaganda. Ora, quando se possui mais do que o necessário, fica-se com tempo livre para reflectir e levantar problemas.
Por exemplo: procura-se outra razão de viver, que não seja o dinheiro e o frigorífico. Olhamos à nossa volta e não encontramos nada nem ninguém para nos ajudar a viver; a religião torna-se um rito, a política um jogo sujo. A vida, assim, é um vazio moral total. A nossa civilização só se desenvolveu no plano material. Perdeu a alma. Toda a nossa geração está consciente desse espantoso vazio."
Pronto, acabei. Mesmo no momento em que o nosso barco passa adiante da cúpula da Universidade de Nova Iorque. Pergunta-me o que é ali? Ali é o Cloisters, encumeando o Fort Tryon Park. Foi mosteiro medieval do Roussillon (repare, nem lhe faltam a abadia e o claustro), compraram-no os Rockefeller, que o fizeram transportar pedra por pedra. Como quem compra um objecto e o muda de sítio. Serve de dependência do Metropolitan Museum, dedicando-se à arte medieval europeia. Afamado sobretudo pela sua colecção de estátuas e tapeçarias. Quem quiser visitá-lo terá de atravessar Harlem, o bairro porto-riquenho e ainda o bairro italiano.
A seguir, mais um hospital tamanhão, o Columbia Presbyterian Medical Center - e, já que no-lo apontam, mais este pormenor ligado às coisas da medicina: por aqui, as mulheres não se tentam pela arte de Esculápio, ou então os usos arredam-nas de tal ofício. Resultado: nos Estados Unidos, uma médica para vinte médicos - o que muitos interpretam como uma das várias formas de segregação. Aliás, a apetência pela medicina até nos homens vai murchando. Os processos intentados pelos doentes, as indemnizações, o fisco, os custos do seguro que os possa proteger de tanta contingência, desencorajam os médicos e não menos os candidatos à medicina. Não há muito que os médicos da Califórnia se puseram todos em greve.
Como pode calcular, muito haveria a dizer sobre a medicina nestas bandas, que é sempre espelho de uma sociedade, mas, não sendo a ocasião azada, ouça-me ao menos duas lérias sobre John von Newmann - um dos tais franco-atiradores que fazem a vitalidade dos Estados Unidos. Desiludidos da corrupção e do cretinismo dos estadistas, cada vez são mais numerosos os americanos que afirmam que o país é deles e não dos banqueiros, dos políticos, dos militares, dos negociantes. E criam as suas próprias comunidades, onde os bulldozers, os buildings e as fardas são proscritos. A única coisa que hes interessa é governarem-se a si próprios. Sem ideologias nem dogmas. Fala-se já do apagamento do Estado, de um socialismo novo, fundado no poder local. Capitalismo e livre iniciativa não são apenas distintos, clamam eles, mas também contraditórios. No dia em que os Americanos se convencerem que o socialismo pode ser liberdade e extinção da burocracia, os Estados Unidos serão um país socialista. Sociedade de consumo? "Mas sendo o consumo apenas um meio de atingir o bem-estar, o alvo deve ser o máximo de bem-estar num mínimo de consumo" - eis a máxima que pode ler-se num livro que muitos americanos têm à cabeceira.
Pois John von Newmann fez uma exposição no Sindicato Nacional de Pessoal Hospitalar sob o tema: "A medicalização da política". Disse ele: astuciosamente, a governança reduz a problemas médicos questões essencialmente sociais. Serve-se dos hospitais, e de quem neles trabalha, para iludir as verdadeiras raízes do mal. Tomemos este exemplo de um bairro proletário de sessenta mil habitantes. Dessa gente, quem se acolhe ao hospital? Os acidentados, os agredidos, os contagiados por doenças venéreas. Vêm depois os que padecem de bronquites causadas por alojamentos insalubres, os que foram mordidos por cães errantes, os alcoólicos, os que não têm outra porta onde bater. No total setenta e cinco por cento das hospitalizações têm causas de ordem social, os remédios que exigem pertencem ao formulário político. Talvez por isso, segundo Newmann, os hospitais são valas comuns abomináveis, onde mesmo as pessoas adequadamente tratadas ficam em risco de perder a saúde. Em nenhum caso os hospitais poderão assegurar aos utentes um estado de saúde que as mazelas sociais a todo o momento comprometem. Portanto, o pessoal hospitalar é simultaneamente o instrumento e
a vítima de um logro gigantesco. Portanto, ainda, exija-se das municipalidades uma "política de saúde" e não "cuidados à doença", tendo por objectivo final o esvaziamento dos hospitais, o seu encerramento. E Newmann remata: as pessoas que não pensem que tem de ser o Estado a resolver-lhes todos os problemas. Enquanto elas tiverem essa mentalidade de assistidos, saberão com certeza fazer motins, mas nunca a revolução.
Bom, passámos o centro médico. Agora, levantando-se do e sobre o arvoredo, três edificações esbranquiçadas: a Riverside Church, com a sua alta e amaneirada torre de vinte e quatro andares, a tal do carrilhão, o Interchurch Center, onde convivem dez diferentes comunidades protestantes, ainda lhe sobrando espaço e ecumenismo para umas tantas igrejas ortodoxas orientais, e o túmulo de Grant.
A viagem abeira-se do final, sente-se-lhe já o enfado no bocejo dos adultos e na impaciência das crianças. As coisas parecem ter sido vistas noutros passos do cruzeiro, embora esta zona do Henry Hudson Parkway e do Riverside Park, mesmo sem se negar ao gigantismo dos blocos de apartamentos, nos dê uma sugestão de amenidade. E até de um lugar que desafia o contágio da Midtown Manhattan, de boamente trocando o afã de comerciar pelo lazer. Assim o atesta, por exemplo, o ancoradouro para iates de raça, onde desemboca a Rua 79. Tudo recomeçará, porém, febre e sebes de aço, um nada mais adiante, nos modernos cais terminais que têm substituído o velho porto, para onde afluem os titãs do mar sob a escolta de rebocadores, cargueiros e buliçosos naviozinhos brancos que têm no Hudson o seu saboreado oceano.
A guia do Circle Line poisa o microfone. A sua expressão alivia-se, subitamente, da cordialidade profissional, que é nela um rito. O cruzeiro terminou, outros que venham substituir-nos. Um dos táxis que aguardam o despejar desta leva não perderá tempo a deixar-nos à entrada do Central Park. E andar, senhora Montaldo, se está disposta a isso. Cinco dias em Nova Iorque não dão para pausas.
UMA HORA NO CENTRAL PARK E O MAIS QUE SE LERÁ
Subir ao 102.o andar do Empire State Building é o aturdimento de mil imagens que seduzem e ferem os sentidos, mas também é o repouso dos olhos sobre a imensa mancha verde do Central Park, com os seus trezentos e trinta e seis hectares de campo urbano, onde os esquilos vêm comer à mão, as crianças perseguem pombas e balões e casais enamorados mutuamente se fotografam nos dias de sol ou de neve. Largos espaços para tudo. Para andar a cavalo, patinar sobre gelo ou cimento, remar nos lagos ou velejar em veleiros-miniatura, ou, simplesmente, para um passeio sobre as relvas, entre árvores que fazem o milagre de absorver o vulcão de uma cidade descrita como um inferno de droga, fumos, pornografia, guerrilha, tudo isso orquestrado por sindicatos do crime.
Mas a calmaria é aparência. Bob Hope, o das anedotas para entreter os "rapazes" do Vietname, dizia, ao que parece com fortes razões: "É pena que a Pista Ho Chi Minh não passe pelo Central Park. Eles nunca mais teriam saído de lá." E a própria polícia a corroborar esta legenda: a partir das nove horas da noite, estabelece um discreto mas alertado cordão sanitário nas entradas do parque, já que nem pensar em esvaziá-lo de rufias, e, a cada um que se mostre mais afoito, faz a advertência, se necessário acompanhada de um apertão no braço: "Volte para trás." Antes os drogados de Greenwich Village, que se amansaram com a sofisticação do lugar, os borrachos do Bowery e os faquistas de Times Square, que nem sempre se atrevem se o passante se coloca estrategicamente no meio da rua. E mesmo durante o dia, como agora, não é preciso avançar muito no coração do parque para vermos rondas motorizadas, indo e vindo nas estradinhas falsamente bucólicas, sobretudo nos sítios mais povoados de crianças, que têm aqui um Far West de brinquedo (aí segue uma charrete puxada por um poldro gorducho, a divertir-se tanto ou mais que a garotada com os guinchos do cowboy cocheiro), um parque de animais (fora o zoo) e, tal como os adultos, uma feira de diversões para distintos paladares.
Aliás, a população do Central Park, pelo menos na área por onde me fico, é constituída de velhos, mães e crianças. E de negros, negros sem idade. São eles e elas que conhecem o sabor do ar livre. No Estio, ar condicionado; no Inverno, aquecimento - o nova-iorquino dos buildings quase esqueceu a atmosfera autêntica. Passa através dela como fugitivo. Há outra gente, sim, mas gente que deambula, que muda de um banco para outro, ou que dir-se-ia acometida de uma ideia súbita e por isso dispara numa direcção, pelo caminho mais curto. Com as histórias que nos enchem os ouvidos, no que logo se pensa é em manobras de larápios, em passadores de droga, em máfias de homossexuais. No entanto, observando em roda, se é manifesto que ninguém se dirige a ninguém, se se apercebe esta paranóia que leva as pessoas a terem medo de quem sente o mesmo medo, nem por tal se vêem as mães numa vigília tensa ou um burguês levantar-se do banco só porque nele se veio sentar um tipo com a barba por fazer. Essa aparente serenidade dever-se-á ao facto de as pessoas, afinal, se sentirem entrincheiradas na indiferença e no próprio medo, assim se protegendo da ameaça? Mas, como em tudo e em toda a parte, há aquilo que escapa à regra. Há o sorriso que pode abrir-se numa boca desconhecida, há a afabilidade à espreita de uma ocasião, há o companheiro mais afortunado que reparte contigo o quarto, a comida, as roupas, numa maré de aperto, há até a curiosidade que, de tão intensa, pode saltar por cima de todas as prevenções e tornar-se latina. Dou este exemplo, que me foi contado por um amigo que habitou Nova Iorque por uns tempos, na altura que um gorro eslavo era coisa só vista nos filmes de espiões. Uma velha sondou o nosso patrício à procura de outras excentricidades além do gorro, apalpou-o bem com os olhos, e teve de pôr cá fora a pergunta: "Você é homossexual ou comunista?"
Este velho que, desde lá longe, tem vindo a abalroar as pessoas, murmurando não sei quê, será também um dos famintos da comunicabilidade? Ou apenas um bum (mendigo), dos que nos declaram exacta e altivamente o que desejam e com os quais se pode passar um diálogo assim:
"Você dispõe de um dólar?"
"Contente-se com menos."
"Quanto?"
"Aí vinte e cinco cents."
"Venha então esse quarto de dólar. Menos, não."
Vou saber se é um bum. Há-os aqui, na Washington Square, no Bronx, há-os aos montes na zona de Bowery. Tenho-o cada vez mais perto. E agora já consigo distinguir que, debaixo do casacão surrado, meio samarra, meio sobretudo, se move uma coisa de certo volume. Uma coisa que ele, afastando cautelosamente uma das abas do samarrão, mostra às pessoas abordadas. É um canito, aninhado no quente. O velho oferece-o por dois dólares.
Finalmente, uma das mamãs dá-lhe troco. E não resiste a puxar o animal do colo do velho, a afagá-lo para o aquietar, pois todo ele treme de susto, passando-o depois para as mãos desajeitadas de um garoto, que o reclama com excitação. Está o negócio feito.
As mães americanas. O seu ar eficiente, o gesto que se quer obedecido. Ponho-me a observar as que estão por ali, à parte do bulício das ruas, onde tudo faísca, brilha, silva como um fogo-de-artifício e, por isso mesmo, se dissolve num conjunto indistinto mas sempre inigualável.
A ideia da mulher mandona e frustradora, que reduz o território masculino a um emprego onde um homem tem de fazer diariamente uma espécie de guerra e a um bar onde se entorpeçam as derrotas no leito conjugal, é uma imagem generalizada, que os factos, ponto de partida de todas as legendas, parecem confirmar. Mas estas mulheres não pensam do mesmo modo, o que seria de prever, não se limitando, porém, à negativa melindrada. Contra-atacam. Fazem prova do contrário.
Assim, por exemplo, Betty Friedan, jornalista, psicólo
ga, abalou os lugares-comuns com uma bomba chamada A Mística da Mulher. Para isso, não precisou de se desfear, desfeminizando-se (como as cabecilhas dos movimentos "libertadores", que usam óculos de burocrata na ponta do nariz, que se despenteiam e desmazelam, recusando, enfim, tudo o que possa simbolizar o anzol lançado ao macho-senhor), não precisou de comícios, orgias-espectáculo, nudismos na praça pública a provocarem o burguês e a polícia - talvez por saber que nenhuma emancipação parcelar se torna significativa ou duradoura numa sociedade que não for globalmente libertada. A sua táctica foi outra, outro o processo de desmistificação. Menos ruidoso, mas mais eloquente. Para estas muitas Betty Friedan (casada, mãe de três filhos), no país da permissão e do suposto matriarcado, nasceu uma nova raça de escravas: a mulher no lar americano. A mesma que vem ao Central Park folhear pela décima vez um magazine estupidificante, lançar um rabo de olho a algum mocetão, arejar os meninos (que têm de ser forçosamente loiros, saudáveis e desinibidos) sob as vistas carregadas, de "nunca fiando", dos pigs calmeirões. Marido e filhos são os seus senhores, o sexo a sua identidade, a casa a sua prisão. Quase nada mudou desde os tempos do pioneirismo, em que a mulher tinha de cuidar de toda a tribo familiar, da comida às ceroulas, e ainda fazer frente, com uma arma, ao forasteiro duvidoso. Até um dia em que, como as negras do Sul faulkneriano, após umas dezenas de anos de trabalho silencioso e forçado, despiam as roupas, deitavam-se numa cama, chamando então os ganapos para uma conversa que se sabia ser a última: "É preciso que tomeis conta do vosso pai. Por mim, estou cansada." E fechavam depois os olhos. Para morrer. Para que outra a viesse substituir.
No entanto, como algumas regalias, ditas essenciais, lhe são concedidas (a escolha de um automóvel, a preferência por um detergente ou por um certo candidato a governador) e como aparece glorificada e amimada na imprensa "do coração", a ideia é que as suas queixas vagas - "Quem sou eu? Tenho a impressão de não existir" - são a síndroma da fartura, a náusea dos caprichos satisfeitos. Para as combater, recomendam-lhe o psicanalista (enquanto o marido vai a outro), ou a mudança dos cortinados da sala. Ou mais um filho. Por fim, é o álcool, a aventura extraconjugal, que pode ter começo aqui mesmo, no Central Park, para regalo do sírio manhoso, que passa e repassa com o seu carrinho de gelados e não precisa de ir além de meia dúzia de vocábulos americanos para entender o que apoquenta as pessoas.
Um médico de Bóston depõe: "Estudados em profundidade, os padecimentos destas mulheres (a quem nada parece faltar e a quem falta o mais importante) tem uma base comum: o vazio das suas vidas." E, tendo por causa a angústia ou outros motivos do viver burguês, o certo é as estatísticas vincarem que o número de mulheres jovens doentes (americanas, bem entendido) é nitidamente superior ao dos seus maridos e três vezes mais pronunciado que nos outros grupos de doentes.
Betty Friedan pôs os pés ao caminho e ouviu uma data de mulheres, resta saber se de meios sociais tão diversos como deixa supor. Os testemunhos foram como os desta entrevistada: "Nunca tive a ambição de uma carreira. Tudo o que eu desejava era um marido, quatro filhos, um lar. Tive-os e amo-os. Mas sou tomada pelo desespero. Sinto-me apenas uma cozinheira, uma besta doméstica, alguém que se pode chamar quando se tem necessidade de qualquer coisa."
Pergunta-se se, também aqui, estamos perante a América convencional, aparentemente segura de si própria, que povoa os subúrbios das grandes cidades, apara a relva do jardim ao domingo, teme a desordem, vota por Nixon e preserva de dente arreganhado os valores clássicos da sociedade anglo-saxónica branca e protestante - ou se a "outra" América padece já dos mesmos males. Para aquela América, que tem um dos seus bastiões em certas faixas da classe operária que são hoje um dos sectores privilegiados da comunidade ianque e persiste em ver no triunfo social um meio e um fim, qualquer coisa como uma bênção divina, para aquela América a mulher está muito bem onde está, mesmo que tenha de beber um copo a mais ou de partir, uma vez por outra, aos gritos, a bateria de cozinha. E para a nova América?
O caso da mulher americana tem que se lhe diga. Como em todo o lado, afinal. É uma carga de séculos a alijar. E, por último, resta ainda a fisiologia. Na perspectiva europeia, a sociedade do Novo Mundo identifica-se com o conforto; daí deduzir que o problema feminino se avalia pelos fastios, e pelos caprichos e melancolias por eles gerados, é uma fácil tentação. Mas também a face desvelada por Betty Friedan não sacia todas as inquirições e, por outro lado, não me acerta inteiramente com os elementos que eu trazia na algibeira antes de pisar terra americana. Menos ainda a dos psiquiatras-confessores de lazeres.
A mulher europeia trabalha mais fora de casa que a americana? A resposta terá de ter em conta as especificidades do meio. O emprego nos Estados Unidos é antes de tudo uma questão de pele; a mulher negra tem mais necessidade de trabalhar para suprir as carências do orçamento doméstico - mas o confronto logo se inverte no caso das mulheres separadas ou divorciadas. As empresas torcem o nariz às "marginais", sobretudo quando elas o são duplamente: pela cor da pele e pela situação familiar. A actividade feminina, pois, prende-se muito com este ingrediente estatístico: a taxa de divórcios. Nos Estados Unidos, em cada três casamentos, dois terminam em separação, longe, por ora, do que acontece no Ocidente europeu. E há ainda outro factor: o emprego a tempo parcial, cuja difusão resultou de um verdadeiro circuito fechado: após a guerra, o baby boom criou necessidades médicas, sociais e culturais inesperadas e em flecha: para as satisfazer, foi preciso recrutar pessoal entre as jovens mães de família, a ponto de correr o pregão: se tiverdes crianças, tereis emprego. Não só aqui, porém, o sistema económico se adaptou à oferta de mão-de-obra feminina, multiplicando os empregos exclusivamente para mulheres e, depois, "feminizando" outros, de que são exemplo a função docente (nos Estados Unidos, setenta por cento do professorado das escolas elementares cabe às mulheres e certos sectores industriais, caso dos têxteis, e certas actividades terciárias. Porquê?, dir-se-á. Pelos mesmos motivos que isso sucede na Europa, e talvez mais acentuadamente ainda. Os salários das mulheres são inferiores aos dos homens (em vinte e oito por cento nos Estados Unidos, em trinta e três por cento na França), pois a prática da subqualificação persiste sem levantar grandes clamores (a mulher faz quase o mesmo trabalho que um homem, mas é um "quase" que logo justifica um degrau abaixo nas remunerações), a sua maior instabilidade e menor assiduidade nos empregos, explicadas pela presença de crianças pequenas no lar, reflectem-se nos prémios das diuturnidades, e, enfim, no funcionalismo dos escalões mais elevados (nos Estados Unidos existem dezasseis), que são praticamente coutada dos homens. No escalão cimeiro, por exemplo, a proporção é: três mulheres em cada cem funcionários. Um último registo: mais do que qualquer outro, o trabalho feminino é sensível às leis do mercado. Inseguro, portanto.
Talvez estas anotações acrescentem uma breve página às de Betty Friedan, não porque ela no-la quisesse esquecer, mas porque a sua mira apontava noutra direcção. De qualquer modo, e retornando à ideia da "nova América", acode sempre a pergunta: como pensa esta integrar a mulher (que tem sofrido talvez mais que o homem as contradições da civilização que produziu o american way of life) numa sociedade em que o verdadeiro progresso se avalie pela melhoria autêntica da vida humana, das suas capacidades de lúcida interferência e fruição? O aperfeiçoamento técnico, com todas as suas benesses e seduções, poderá esconder alguns sintomas da doença do sistema (agravando outros), mas não lhe elimina as causas profundas, se não se orientar para um viver pleno, livre, solidário - em que se ponha coração no que se faz. Cultura é conhecer mas também é amar, cada época se definindo pelo objecto desse conhecimento e desse amor. Da multiplicação e acumulação de bens, como propósito cego, temos caminhado para a ideia de harmonia, para o reatar dos liames equilibrados entre o homem e o seu meio, para o reabrir das consciências individuais numa consciencialização colectiva.
Os contestatários americanos sabem-no e a sua luta ou a sua recusa inserem-se nessas aspirações. Mas de que modo? A verdade é que o ritual da rebelião tem criado uma contra-sociedade que vive em simbiose ou em parasitismo com a sociedade contestada, modificando-a, sem dúvida, mal lhe sacudindo, porém, os alicerces e expondo-se a uma fácil e até rápida absorção. Os revoltados não são necessariamente revolucionários. Quer o processo seja do tipo passivo-errante (hippies), quer do tipo activo-agressivo (esquerdista), em ambos há um acentuado carácter de ineficaz marginalidade, como aliás vem sendo reconhecido por vários caudilhos, entre eles Abbie Hoffmann, que tratou de desfrisar os cabelos, de pôr no lixo os preconceituosos atavios do despreconceito (por terem degenerado num modismo dos jovens burgueses), de proclamar, enfim, que perante esta rebeldia sem substrato, flutuante e de mil e efémeras figurações, ora violenta, ora de branduras, ora agnóstica, ora crente, o homem de negócios esfrega as mãos e vai singrando. Para pesar na balança, advertem esses Hoffmann, é preciso entrar no jogo.
Será, pois, a contracultura assimilável? Os factos parecem tender para a afirmativa. Os Woodstock (para onde se vai de Packard), tanto como os Jesus freaks, recrutados sobretudo na geração "bem" do Sul da Califórnia, tornaram-se um espectáculo e alimentam uma indústria. Outrora, um burguês americano, sobretudo tendo feito a sua ascensão social a pulso, dizia-nos com ufania: "Meu filho está em Harvard." Hoje, o mesmo burguês usa da mesma ufania para dizer: "O meu rapaz fabrica sandálias, algures, no Novo México." Ser dos dropouts (nómadas, saca às costas, ou biblicamente exilados nas comunidades das Montanhas Rochosas) ou dos beachboys, que se instalam, como lagartos, nas quentes praias do Pacífico, é pertencer a uma juventude de escol - a intelectual, a de um inconformismo sem breviário. E viver miticamente um mundo que não existe e, decerto, jamais existirá. Os equívocos são vários e um deles está no facto de muitos desses jovens condenarem a sociedade em si mesma, descuidando as raízes da crise. Isolados da realidade, emigram para uma experiência negativa, como a do misticismo e da droga, julgando assim regressar a um harmonioso refúgio "interior". Há, aliás, quem tenha previsto a decadência da civilização ocidental sob um retorno nostálgico ao tempo em que o homem vivia como qualquer animal, sujeito aos ritmos cósmicos - a nostalgia da permanência, reflexo do cansaço por tanta insaciada mudança. Ou sob uma vaga de religiosidade, feita de exteriorizações, de cenografia. A irracionalidade a rebelar-se contra o cerebralismo. A América é disso o grande palco, como a Europa o foi no tempo dos videntes e dos pregoeiros do Juízo Final. Ouça-se esta historieta ilustrativa: em 1966, um indiano de setenta anos recebeu em sonhos a ordem de ir revelar Krishna, que é a encarnação de Vichnu, às multidões do mundo industrial, no seio das quais há uma contenda suicida entre o ser e o ter, entre a satisfação de existir e o frenesi de agir. Quando o apóstolo desembarcou em Nova Iorque, tinha sete dólares na algibeira e uma mala a abarrotar de livros sânscritos. Hoje, a seita de devotos de Krishna conta, na América, milhares e milhares de adeptos. E a multiplicidade de seitas da mesma cepa pode avaliar-se no espectáculo diário dos místicos de Manhattan.
De idêntico bastardeamento são acusados certos esquerdistas, os de um radicalismo de salão. Tom Wolfe fez deles uma sátira feroz no livro O Esquerdismo da Park Avenue. A propósito de um party movimentado na residência dos nossos já conhecidos Leonard e Felicia Bernstein, a fim de reunir fundos para a causa dos Panteras Negras, eis como ele descreve os snobes, que tudo e em todo o lado conseguem corromper: o chique esquerdista representa o mais alto grau da nova vaga na sociedade nova-iorquina. Primeira regra: tudo o que reflicta a nostalgia da pobreza (as maneiras do povo, o pitoresco, a vitalidade rude dessas gentes, os seus alojamentos primários) é "bem", enquanto tudo o que sugira um carácter burguês, branco ou negro, é "pires Daqui resulta que o chique esquerdista favorece o que pareça primitivo, exótico, singular, tais como os trabalhadores agrícolas migradores, que cheiram a terra, a gado, e, além disso, são latino-americanos; os Panteras Negras, com os seus blusões de couro, as suas cabeleiras afro, os seus óculos de sol e as suas fuzilarias; e os índios peles-vermelhas, que, evidentemente, sempre pareceram primitivos, exóticos e singulares.
Regra número dois: nunca se deve renunciar a um endereço prestigioso, a um interior decorado de um modo suficientemente elegante e a criados. Tom Wolfe põe um acento particular neste último pormenor. Pelo que se observa, os criados formam uma das derradeiras linhas de demarcação entre os que verdadeiramente pertencem à "sociedade" e os que constituem a enorme massa poluidora dos burgueses ambiciosos. Essa imposição do chiquismo esquerdista levanta, porém, embaraços de tomo: por um lado, os criados são o perfeito símbolo do que os movimentos justiceiros pretendem combater; por outro, a criadagem, na América, é tradicionalmente recrutada entre os negros, cujo resgate social é uma das cruzadas do esquerdismo. Segundo Wolfe, parece haver uma única saída, embora não de todo airosa: criados brancos. Mas onde encontrá-los, agora que as últimas levas de imigrantes já não se mostram dispostas à servidão?
Sem dúvida que testemunhos como este, ainda que de uma acidez caricatural, resultam desmistificadores, salutares, doa a quem doer. É preciso amputar as gangrenas, restituir às lutas a sua veracidade. Mas todas as épocas e todos os inconformismos tiveram os seus snobes. Os seus modismos, as suas frivolidades. E o que verdadeiramente importa é aquilo de que os hippies, as vagabundagens, os esoterismos e o mais que pode ver-se numa hora e desaparecer no minuto seguinte são a expressão. Uma expressão ora colorida, ora confusa, de algo profundo. Sentido que foi que o homem se deixara decair numa "pseudo-existência", no quadro baço de uma super ou antinatureza, apenas persistindo a inquietude da criação, deu-se uma subversão fundamental, embora caótica, pela qual a nossa cultura se desagregou e as instituições se esvaziaram de significado. A maior crise da história, tem-se dito. Seja. As crises, porém, sempre representaram um enriquecimento, mal-grado as suas inevitáveis deturpações e as suas máscaras transitórias. E mal-grado o seu preço. As grandes transformações da história deveram-se a essas contraculturas: o cristianismo, a Renascença, o romantismo. Por outro lado, frequentemente, o homem tem de ir até ao excesso antes de corrigir a sua trajectória.
Já que tenho um encontro marcado com o professor Gregory Adami, da Universidade de Nova Iorque, conhecedor destes temas por observação directa e vivência que creio apaixonada sem deixar de ser arguta, ou não tivesse ele uma costela milanesa, vou tentar que a nossa projectada conversa neles se demore.
De qualquer modo, parece fora de dúvida que aqui, USA, 1972, decorre uma simultaneidade de ebulições, catarses, pesquisas, cujo desfecho decidirá de um longo devir para o nosso desiludido mundo. Trata-se de uma efervescência existencial. A "velha" esquerda, seja socialista, comunista ou apenas liberal, começa a ser vista como um rançoso sobrevivente de uma sociedade e de uma mentalidade que chegou o momento de arrumar na história. O radical da nova "consciência", apontando para os formulários políticos, denuncia que "tornar-se um objecto ao serviço de uma causa equivale a trair". Porque não aceita nenhum sistema imposto, a Consciência III (como se autodefine) é perpetuamente futuro, aberta que é às experiências rejuvenescedoras, sempre prontas a modificar as suas maneiras de ver. Nesta "nova cultura", a tecnologia submeter-se-á às pessoas, em vez de serem as pessoas a submeterem-se-lhe. Pessoas, enfim, libertas das prisões em que a sua individualidade criadora se fechara, em nome de princípios tirânicos, azedos e arcaicos.
"Neste país", afirmou um tal Lee, apenas "Lee", numa conversa com Michel Bosquet, "neste país nada te impede de ser homem. Quero dizer: nenhuma escassez material te obriga a disputar aos teus semelhantes o que te é necessário para viver. Se as pessoas não se comportam como homens é porque são prisioneiras de um sistema, de uma lógica, de uma ideologia forjados na luta contra as penúrias. Só aboliremos este sistema se nos conduzirmos segundo uma lógica e uma ideologia diferentes. Isto é: se nos conduzirmos desde já por uma certa ideia que se faça dos homens. Os outros isolam-nos, destroem-nos? Se assim suceder, eles, os outros, demonstrarão que não são homens. Mas sem a nossa existência, nunca teriam ensejo de se aperceber disso. "
E sendo a revolução americana isto mesmo, mudar a ideia que os homens fazem de si próprios, mudar a vida, a revolta contra a bulimia tecnológica participa de um contexto particularmente significativo. Terras degradadas, paisagens desfiguradas, cidades irrespiráveis. Em Los Angeles, por exemplo, todas as manhãs a rádio previne da taxa de poluição atmosférica, para que, atingido um certo limiar, as crianças e os velhos fiquem em casa. E, então, essa revolta quer exprimir-se pela passagem do gigantismo mecânico para a espontaneidade da vida, do tufão para a calmaria. O cientista Karl Hess, que desertou do seu bairro burguês para residir entre os pobres, a quem presta serviços de soldador em troca de géneros e nunca de dinheiro, fundou com outros colegas a Community Technology, a qual se propõe demonstrar que uma tecnologia avançada pode satisfazer directamente as necessidades urbanas sem criar e encorajar servidões. Os técnicos, ao lado dos artesãos, poderão assim repensar os seus papéis respectivos, pondo em prática a sua contestação das prioridades e dos objectivos, contribuindo para que se elabore uma existência diferente, numa sociedade descentralizada e harmónica, que extirpe de si o demónio das hierarquias. Berkeley possui já o Farallones Institute, que tem em gestação uma herdade-piloto de trinta e dois hectares, tendo em vista a "casa integral": esta, graças a um sistema de recuperação, de reciclagem, de aquacultura e de micropecuária, assegura a subsistência dos seus habitantes. São os campos a repovoar-se. A vida a desoprimir-se de sufocadoras engrenagens. São, talvez, os germes de uma civilização nova, alicerçada no solidarismo e na serenidade, o equilíbrio estável entre o homem e a natureza. E lembre-se que, em 1776, quando treze colónias inglesas do Novo Mundo lançaram o desafio do "sonho americano", o grito foi: "Que se restitua a cada homem o poder sobre si próprio."
O professor Adami mora na Rua 86, lado este, em pleno Yorkville. Rua 86. Como poderia ser 54, 30 ou qualquer outro número. E mais uma vez me acode o que John Kennedy disse ao romancista francês Romain Gary: "Os vossos filhos vivem em ruas como Rua Anatole France, Bulevar Vítor Hugo, Avenida Valéry. Desde muito pequenos, começam a sentir a importância da história e da cultura. As nossas ruas têm números. E, no entanto, possuímos grandes nomes, suficientes para os substituir: Praça Hemingway, Bulevar Melville... Bem gostaria de ver um rapazinho de doze anos voltar para casa e dizer à mãe, quando ela lhe ralhasse por chegar tarde: "Estive a jogar basebol na Avenida William Faulkner.""
Mas, por enquanto, o professor Adami mora na Rua 86. Tomo um táxi, aprecio com respeito o imóvel que corresponde ao número do endereço, faço-me anunciar por um porteiro fardado e manifestamente intrigado com a minha tez (serei eu um spiky, ou coisa assim? Spikies são a sub-raça dos latino-americanos), há uma troca de frases pelo telefone interno e, por último, mas sem o mínimo sinal de degelo, o homem aponta-me o elevador: "Pode subir."
Em compensação, a jovialidade hospitaleira do professor Adami incha-lhe a face mais do que seria necessário. É um homem vigoroso, dois dobros de mim (a sua mãozada deixou-me os ossos doridos), cabelo áspero e abundante, embora todo branco. Imaginara-o fisicamente quase o oposto do que é. Tenho a incómoda sensação de estar perante um ex-desportista a fazer as vezes do professor universitário que eu julgava conhecer.
Ele recebe-me na sala, que deve servir simultaneamente de escritório, biblioteca e talvez de quarto de dormir. Vê-se um pijama sobre o sofá-cama. Lembro-me de ele me ter falado, numa das cartas, de um filho estudante, decerto aquele moço das fotografias que prolongam um terrível poster sobre a guerra do Vietname. Muitos livros e muitos quadros.
Contra o que o preconceito europeu tem estabelecido, o Americano, mesmo fora das classes com apetências mais apuradas, não volta as costas à arte, muito pelo contrário: estima-a e não a dispensa no seu cenário, ainda que os seus gostos sejam de um ingénuo eclectismo. Nas galerias de Nova Iorque, incluindo as do Village, pode ver-se a tela da menina prendada, com dourados na moldura, a par da arte óptica à Vasarely. E tudo isso tem comprador. Até as esculturas cool, enormes e neutras, de difícil coabitação, que justificam que os próprios artistas desencorajem os interessados, como se ouviu a Dan Flavin: "O senhor poderá comprar a minha escultura. Mas se a meter na sua casa, é o senhor que acabará por sair." No último relatório da Associação Norte-Americana do Conselho de Recolha de Fundos para a Arte diz-se que mais americanos gastaram mais tempo e mais dinheiro em actividades artísticas durante 1972 do que em qualquer outro ano, sendo provável que essa tendência se tivesse reforçado nos anos seguintes. Haverá nisto o cálculo do investidor (aquele investidor, de faro no vento, que sabe que em 1952 se vendia um Pollock por menos de mil dólares, em 1956 por oito mil e, dez anos depois, por cem mil), mas há sobretudo o americano médio que aprecia no seu lar, ou até no seu gabinete de trabalho, a presença da arte. (Pois não vira eu um Léger no escritório de Nino?) Os museus americanos, geridos como uma empresa, contam com um número chorudo de patronos (novecentos milhões de dólares de contribuições particulares em 1972), embora haja a descontar nesse mecenato o ingrediente "social", e de visitantes: só à sua
conta, o Metropolitan Museum de Nova Iorque registou, num ano, três milhões e quinhentos mil. Em 1948, havia uma trintena de galerias em Nova Iorque, praticamente subsidiárias do património europeu; hoje, devem exceder quatrocentas, que organizam mais de duas mil exposições por ano, e ditam leis à Europa. "As artes estão no meio de um movimento populista", conclui-se naquele relatório. E basta uma ronda pelos museus para nos certificarmos da afirmação.
O professor Adami quer saber o que eu já vi em Nova Iorque. Ri-se quando lhe retruco que eu nada vi ainda de Nova Iorque, pois descobrir uma cidade como esta é uma empresa individual e isso pede tempo, acaso, fusão com as pessoas e os acontecimentos, e pede um esbirro no consulado de Montréal menos suspeitoso das minhas intenções turísticas. O que se passou até agora comigo foi o aturdimento inicial, o tal soco no estômago. Pouco mais.
- Aliás - adianto -, eu prefiro ver um país a viver do que a visitá-lo. Mas raramente me tem sido dado chegar aí.
- De acordo. É por esse motivo que dois viajantes, se confrontarem as suas impressões do mesmo país, podem concluir que estiveram em países diferentes.
O professor Adami pede licença, vai lá dentro buscar cerveja, copos, umas coisinhas torradas que servem de aperitivos. Deve ter apercebido o meu desapreço pela bebida e, estalando com os dedos, numa emenda ainda oportuna, propõe com uma ponta de excitação:
- E se fôssemos a um vinhito da Califórnia?
Não tardou que chegássemos aonde eu queria. O carnaval das ruas nova-iorquinas, em que coabitam gentes a viverem épocas distintas; Deus a morrer num mundo onde a crença já não cabe e a religiosidade a ressuscitar nesse mesmo mundo em que explode a revolta contra a coisificação do homem; o colossal a transgredir a escala humana e a tendência simultânea pelo escasso, pelo humilde, pelo pequeno; a sofreguidão, que em Nova Iorque é um odor, uma vertigem suicida, enfrentada pela desistência dos que largam o emprego, a casa, os haveres e partem para não voltar, como se abandonassem uma cidade condenada; as pessoas, enfim, que sentem chegado o momento da crítica das satisfações e do modo como foi partilhado e fruído aquilo que inventaram e produziram; a renúncia e o misticismo latente, tanto como a redobrada gula pelo poder, apresentando-se como substitutos do amor irrealizado.
O professor Adami roda o copo nas mãos. Depois larga-o descuidadamente sobre um álbum de arte, dá uns passos pela sala.
- Caro amigo, devo começar por lhe dizer que um europeu tem dificuldade em entender-nos. Vejamos: os europeus que atravessaram o Atlântico para se instalarem deste lado, que ambição colectiva os animou? A conquista rude de um país novo e, para muitos, a edificação de uma sociedade desembaraçada das mazelas da velha Europa, na qual reflorescesse uma democracia liberta dos abusos contra os quais haviam lutado e por via dos quais, em tantos casos, haviam emigrado. Isso mesmo foi visto por Tocqueville; conhece o que ele escreveu a nosso respeito? Portanto, chegámos aqui com um espírito de pioneirismo, para o melhor e para o pior. Mas que foi o pioneiro americano? Uma mescla violenta e aparentemente contraditória de personagens. O temerário que partiu à descoberta do Oeste, o pesquisador de oiro, o ganancioso, o vigarista, o assassino, o apóstolo, o camponês intrépido, o chefe de família bíblico, todos esses que criaram a legenda do Far West e depois as cidades dos buildings. Mas o pioneiro foi ainda o empresário lançado na odisseia industrial, o comerciante audacioso, o técnico ou o inventor decididos a explorarem as suas ideias, sem olhar a riscos e reveses. E é ainda este americano médio, tão visado no vosso anedotário, que aceita uma sociedade dura, baseada na lei da concorrência, ou seja, na lei do mais forte ou do mais atrevido, que acredita que os homens atingem a felicidade pela prosperidade e que esta representa uma vitória de quem a merece. Tudo isto, caro amigo, é a mitologia americana. É o nosso molde psicológico e social. Aí os tem expressos no urbanismo, na arquitectura, nas artes em geral. Nas nossas virtudes e nas nossas misérias.
O professor Adami sofreia, de súbito, o embalo da frase, sorri enleado, como apanhado em falta. A pausa é para beber e me observar com precaução.
- Bom. Mas o certo é que, pela primeira vez, o Americano, que se habituara a confiar nesses mitos, descobriu que, afinal, a grande nação estava prisioneira das suas gulas, das suas regras, do seu gigantismo. E que a felicidade não depende só dessa tal prosperidade a todo o preço, que ele considerava como sua obra. No entanto (e aqui está, porventura, o defeito dos vossos juízos), o Americano, contra ou a favor do sistema, tem no sangue o país que criou. Vou ser mais explícito: com uma espécie de fanática intuição, sentimos que o ideal americano, apesar de traído ou seduzido por padrões em degenerescência, não está morto e, agora que foi vigorosamente questionado, pode mesmo encontrar-se muito perto da sua definição purificada. Enfim: esta nação tem poderosíssimas reservas de energia. Tem futuro. - Calou-se uns instantes, enquanto duas frases colidiam na minha lembrança: esta que acabara de ouvir, toda ela confiante, e o requiem do meu compatriota Rodrigo, segundo o qual a América queria simplesmente morrer. São assim os países; são assim os olhos que os vêem. O professor Adami calou-se, pois, uns instantes, como para avaliar uma ideia que se tivesse atravessado no discurso, e, olhando o aparelho entalado na prateleira de livros, disse: - E há mais, a televisão. Excelente para substituir hipnóticos, de um primarismo intragável, mas com um impacte extraordinário. Ela alterou completamente o equilíbrio de poderes nos Estados Unidos. Por um lado, manipula; por outro, desmascara. Como tem acontecido com a guerra do Vietname. Com a televisão, os políticos podem dirigir-se directamente às bases e as podridões rebentam à luz do dia. É uma forma de democraticidade. A televisão pode levantar um safardana às maiores alturas e logo depois estatela-o na lama. E lá o deixa. É assim a América.
Pelo contrair dos lábios, deu-me a impressão que ele dera por terminado o seu testemunho. Ou que se arrependera da veemência. Por isso, espicacei-o:
-Em que medida o aparecimento de uma nova mentalidade americana tem que ver com o Maio de sessenta e oito, em França?
Para minha surpresa, o seu olhar azulado faiscou de desdém:
-Decerto não ignora que muitos vêem no Maio francês, ou europeu, como queira, apenas uma crise interna do capitalismo, um processo de politização da pequeno-burguesia enfadada. Não, caro senhor, não precisámos do Maio francês para coisa nenhuma. Muito antes disso, aqui em Berkeley, vinte e seis mil estudantes e quatro mil e seiscentos professores (entre os quais um número escandaloso de Prémios Nobel) estiveram perto de "um poder estudante". E, de qualquer modo, abalaram o sistema, levedaram uma rebelião. Uma paz relativa regressou aos campus, mas todo o dia, em Berkeley ou em qualquer outra universidade americana, continuamos a discutir Vietname, sexo, arte, uma sociedade fraterna sem totalitarismos de nenhuma espécie. Discutimos com simplicidade, franqueza, olhos nos olhos. E, repare, não nos consideramos tão perfeitos nem tão revolucionários que nos permitamos dar lições aos outros. E, apesar disso, damos.
Mais uma golada, mais um clarão de desconfiança, a testa uma vereda a sulcar-se de Invernos, prosseguiu:
- Como sabe, sou descendente de italianos. Num Verão, aqui há anos, fui à Europa conhecer a terra dos meus antepassados. Senti-me, como dizer?, que visitava um outro planeta, mas senti, ao mesmo tempo, que esse outro planeta acabaria por ser como o nosso, como este. Com apreço ou com desapreço, a verdade é que não se pode ser espectador desinteressado da cena americana. Os nossos vírus e as nossas sementes acabam, mais cedo ou mais tarde, por ir dar às vossas costas.
- Influência do mais poderoso ou contaminação?...
O professor Adami disparou uma risada.
- Responda o senhor. De qualquer modo, aplica-se a isto a célebre frase de Paul Morand: "Leio o meu futuro nas tuas rugas."
- As rugas são as vossas ou as nossas, de velhos europeus?
- Também lhe cedo o prazer ou a responsabilidade da resposta...
Não havendo lugar, semanas a fio, nos principais espectáculos de Nova Iorque, Nino dissera-me:
- Ao menos, para fazer ideia do que é o music hall americano, vá ao Radio City. Aliás, o tipo de espectáculo elucidá-lo-á sobre o gosto do público médio.
Para lá me dirigi após a conversa com o professor Adami. De caminho, surgiu-me numa avenida de Manhattan um carro de cavalos como as diligências do Texas, só com diferença na cor berrante, guiado por um cocheiro de chapéu alto. Do mais insólito que se possa imaginar, num sítio assim. O que era, afinal, já que ninguém parecia surpreso? Ensaio carnavalesco? Não, um golpe publicitário. O carro apregoava um restaurante em fase de promoção.
O Radio City, para não desmanchar a hiperbolia nova-iorquina, apresenta-se com a legenda (por fim banalizada) de a maior sala de espectáculos do mundo: seis mil e duzentos lugares sentados. Mas até parece mais. Quem entra no átrio, de largueza desaproveitada com prodigalidade, sobe as escadarias e vê afastar-se o cortinado negro de uma das portas do balcão, julga-se num estádio desportivo. O palco, também imenso, é lá ao fundo, longe, tudo longe.
A sala nem por isso está muito composta de público, o que permite atentar melhor nas pessoas. Gente de meia-idade, ou daí para cima. A mesma que, na Broadway, justifica as sessões contínuas dos filmes eróticos.
Cada programa do Radio City consta de um filme em estreia e de um espectáculo de variedades, no qual, com maior ou menor desarmonia, se integra um chamado "corpo de baile", de coristas afinadinhas, o "grande órgão" da estirpe do que, há anos, tivemos no S. Jorge e a orquestra sinfónica privativa, que, decerto, tem executantes de primeira mas que se presta àquelas mirabolices de violinos em choradinho, de virtuoses
que aparecem e desaparecem no palco de prestidigitação, sob holofotes a jorrarem arco-íris, e mais coisas nesse estilo. Uma pacovice em lentes de aumentar.
O filme não enganava ninguém: chamava-se The War between Men and Women, vamos vê-lo pela certa qualquer dia em Lisboa. Tive pena de que em tal fantochada participasse um actor como Jason Robards. Quanto ao espectáculo de music hall, o seu título era Black Tie como podia ser outro, havia um solista romântico que se pegava ao palco como grude, um tal Tom McKinney com voz, gestos e o mais dos tempos em que era obrigatório repetir muitas vezes a palavra heart e se levava simultaneamente a mão ao peito, havia umas coisas dançadas que pretendiam ser trechos antológicos de Promises, Promises e Jesus Christ Superstar e, isso sim, o apoteótico número de majorettes, a banda militar e a bandeira americana desfraldada. A sala fervia de aplausos, assobios, urros. Estávamos, de facto, num estádio, com o Pelé a meter golo. Sobretudo as velhas senhoras. E o neurótico que, durante o espectáculo, mudara de cadeira e de fila uma porção de vezes, levando o tempo a estremecer com a cabeça e a desentupir a garganta de um pigarro que soava ao apito de uma chaleira - até esse se entesou, livre de tiques, a pôr as mãos em brasa.
Assim como o show do Radio City não pode ser representativo da cena nova-iorquina, também aquela Broadway subitamente convertida ao jesuísmo ou o seu rival na constestação, o Off off Broadway, teatro explosivo de Greenwich Village e de outros vulcões da irreverência, não devem ser tomados como estandartes do espectáculo made in USA. Mais uma vez se dirá que são várias as Américas, que Nova Iorque é um atordoar de contradições e propostas - e que a personalidade ianque se define por isso mesmo: um espelho que reflecte uma desconcertante pluralidade de rostos.
A Broadway. Já agora, falemos primeiro da Broadway como lugar. Que anda de meias com o mito. A Broadway é um nunca-acabar de rua, mas, afinal, o seu Grande Caminho Branco, durante o dia de feira animada, durante a noite uma aventura entre malteses, não passa de um quilómetro de reclamos e apoteoses - o quilómetro que vai de Times Square ao Central Park. No princípio do século, este Parque Mayer nova-iorquino tinha ainda recatos provincianos. Uma comédia ali representada, em que aparecia uma rapariga negra deitada com um branco, pôs Nova Iorque ao rubro. Depois chegaram as folies, a que a imprensa mordaz, mas inebriada, chamou "o harém ideal para um homem de negócios bem sucedido na vida", chegou a guerra, o mundo foi mudando, as pessoas foram tendo cada vez mais pesadelos, mas também a necessidade de os atordoarem, as pessoas foram sendo mais ousadas, mais sedutoramente loucas, e em 1927 a Broadway, miríade de estrelas, punha em cena cerca de três centenas de espectáculos. Foi a hora grande da Meca do Inferno, como se lhe referiam os calvinistas.
A hora grande e já o pressentimento do declínio. É que o cinema ia destronando rapidamente o teatro e a TV aparecia, logo depois, como sôfrega concorrente. Por outro lado, ir a um espectáculo nocturno, na Broadway infectada de escória, tinha os seus riscos: mal a pessoa descia do táxi, podiam cair-lhe em cima as meretrizes, os homossexuais, os delinquentes. Era mais seguro ficar em casa, ir a um cinema durante o dia.
E agora, que resta à Broadway? Vender remedeios nas sex shops, exibir filmes suecos, massajar solitários, roubar carteiras. E, enfim, deitar a mão a qualquer ideia que seja novidade em matéria de espectáculo - o que, pelo menos, atrai a juventude e a snobeira da 5.a Avenida. Porém, o crítico teatral Walter Kerr, broadwayista no último grau da desesperança, escreveu já a oração fúnebre: "Onde foi o centro do mundo do teatro, hoje não se vê vivalma. Se se encostar o ouvido ao solo, apenas se ouvirá o rumor do metropolitano. Meu Deus, a Broadway transformou-se numa cidade fantasma. É óbvio que a sociedade americana já não vai ao teatro quando precisa de ver-se ao espelho."
Kerr carrega excessivamente nas tintas, mas, quem conheceu a Broadway de outros tempos, diz que ele tem razão.
A Broadway, neste 1972 que fez deslocar as preces das catedrais para o Mark Heelinger Theatre ou onde calhe louvar-se e cantar-se a "Revolução Jesus", põe em liça (ou em conivente coexistência?) a pornografia e o fervor religioso. Ambos são as vedetas da temporada. Numa época onde tudo muda cada vez mais depressa e onde a inércia se tornou uma desolação lúcida e deliberada, um pessimismo metafísico, boa parte dos jovens desertou das filosofias orientais e caiu a fundo nos Evangelhos, como amanhã cairá noutra coisa que pareça um novo antídoto aos sobressaltos da vida moderna. E uma vez que hoje se reza, se clama, se combate através da música, da dança, do espectáculo, sucedem-se as óperas rock, em salas cheias como um ovo, sucedem-se os cânticos pop, misto de espirituais negros, baladas e ladainhas, de que se vendem milhões de discos em duas penadas. Do Jesus Christ Superstar, em que Jeff Fenholt é crucificado com vestes hippy, passou-se ao Godspell, cuja apoteose é significativamente a Ressureição. Nos cinemas, pode ver-se a réplica negra a esta vaga dos Jesus freaks, que nos catequizam na rua com falas bíblicas e nos incitam ao santo-e-senha de uma mão fechada donde rompe o indicador bem estendido, a meio caminho entre a ameaça e a exortação; e a réplica é o Black Jesus: vida, paixão e morte de Lumumba. Na recente inauguração do centro cultural dedicado à memória do presidente Kennedy, que música se ouviu? Uma missa. Sob o signo dos Panteras Negras, com a tal marca Bernstein.
A Broadway, pois, cantando salmos ou dançando ladários, enroupada em camisolas onde se estampam dísticos piedosos: "Jesus ama-te", iça o velame dos erotismos e das orações, em desafio à programação mais ou menos tradicional do Lincoln Center, que, apanhando a Broadway no corte da Rua 63, se atira ao pasmo das pessoas com o soberano conjunto do Philarmonic Hall, do Metropolitan Opera e do New York State Theatre. E a anti-Broadway, que pretende ser a anti-star, a anti-sistema, a antipalco, a antitudo, oferece em contrapartida uma dramaturgia que se funde no quotidiano, inseparável de uma concepção anarquizante e comunitária da vida. Por outras palavras: um laboratório, em permanente pesquisa, de um teatro que sacuda os sentidos do público, em vez de lhes dar repouso.
Depois do Radio City, minha vergonha, é essa Off off Broadway, ou o diabo por ela, que eu preciso conhecer. Um apelo que me vem da inteligência escarnecida.
Trocado em miúdos, que se entende por arte cénica Off off Broadway, já reduzida às iniciais OOB pela corrosiva fama? Para começar, uma cave, uma igreja ou um velho armazém ao abandono, um café falido. Chega uma matilha de ousados, que se bastam com acreditar em si próprios, limpam e pintam a sala, alugam uns projectores ou pescam-nos na feira da ladra, armam uma cena e basta. É a vez dos dramaturgos e dos actores. Tudo gente sem nome nas letras gordas da Broadway, que vem dizer publicamente que não quer ser consumida com deleite nem digerida com paz. Tudo gente que volta costas ao carreirismo, à notoriedade e ao dinheiro, com o protesto, o risco e a aventura no sangue, para quem só é tema aquilo que se disponha a demolir as receitas que produzem o bom americano. Aliás, os textos e a representação mudam, praticamente, em cada noite, porque se alguma palavra de ordem existe nesses espectáculos é a de improvisar. A peça é recriada todas as vezes que convive com um auditório e este participa nessa dinâmica da criação. E seja qual for o sucesso ou o fracasso (nenhum deles conta, ou ambos contam na sua expressão provocativa), cada peça dura no máximo uma semana.
"Que nos importa levar conteúdo e forma até à última perfeição", pergunta Erwin Piscator, "que nos importa criar arte? Deliberadamente construímos o imperfeito. Aliás, não nos sobra tempo para uma estruturação formal. Demasiadas ideias novas e revolucionárias surgem, o tempo é-nos por de mais precioso para que aguardemos o derradeiro aperfeiçoamento. Pegamos nos meios tal qual os encontramos - censurem-nos por isso, que para nós é o mesmo - e com eles efectuamos resolutamente obra de transição."
Nada, portanto, mais instável que um espectácul OOB. Nunca se sabe o que irá à cena nessa noite e muito menos, no dia seguinte. Incerteza excitante, a de safiar a imaginação. Mas uma coisa os espectadores têm certa: numa sala OOB vê-se o que noutro qualquer lu gar seria irrepresentável; e o texto-pretexto tanto pode chamar-se America Hurrah, de Jean Claude van Itallie, a despersonalizada vida americana a mostrar as vísceras como Viet Rock, denúncia de Megan Terry, como Paradise Now. No fim, os actores estendem o chapéu ao público, mas sem as reverências dos títeres medievais, ou é o patrão ou a patroa da casa que vão indo de mesa em mesa, servindo chá, café, limonada, e cobrando uns patacos, coisa que ronde os vinte e cinco escudos, nem muito mais, nem muito menos, para que o excesso ou a míngua não pareçam ofensa.
As salas OOB, nesta época em que as novidades são fogo de palha, multiplicaram-se como míscaros em manhãs de orvalho, chegando à meia centena por toda a Nova Iorque marginalizada, sobretudo no Village, outrora consagrado aos dancings, aos bares e restaurantes italianos e depois epicentro de sismos artísticos, mas o tempo foi ceifando as mais precárias, restando agora talvez menos de duas dezenas. Decerto com vantagem. A efemeridade livra-as de se instalarem no êxito, a que nenhum inconformismo resiste.
Foi por isso que o Living Theatre, de alta fama, cuja primeira representação se dera no domicílio de Judith Malina e Julian Beck, em 1951, por fim teve de desertar de Nova Iorque, mesmo sendo dos agrupamentos mais definidos, acabando por dissolver-se em 1969, embora o rescaldo das suas excentricidades ainda perdurasse em 1971, no dia em que o dito Julian Beck e mais treze elementos da companhia foram presos no Brasil por uso e traficância de drogas.
O Living buscara a inspiração no poeta Antonin Artaud, pregoeiro de um teatro antiliterário, agressivo, dialéctico. De um experimentalismo insaciado, chegou a montar peças sem texto, realizando encenações colectivas, público e actores metidos na mesma caixa de surpresas. Deve-se-lhe a montagem de peças como The Brig, Frankenstein, Mysteries and Smaller Pieces. Mas, esfriada a sensação, só lhe restou a vagabundagem pela Europa. Trinta comediantes sem palco e sem dinheiro, olhados de través pelas autoridades, reavivando a tradição das companhias nómadas. Outros grupos diluíram-se pelos vários estados americanos, hoje aqui, amanhã acolá, até um gerente de hotel lhes exigir a diária adiantada.
O Living Theatre chegou a fazer escala na Península Ibérica, numa das suas peregrinações europeias. A tournée começaria em Bilbau, a convite de uma instituição cultural constestatária. A novidade atraiu gente, a sala encheu-se. Porém, dez minutos após começada a representação, os espectadores foram saindo. Os actores, esses, não se chocaram: estavam habituados. E não tinham vindo ali para outra coisa. O pior foi o que se seguiu: a instituição aboletara-os prodigamente num hotel de luxo, e aquilo, para eles, era o mesmo que um barracão. De blue jeans sebentos e guedelhas de todo o tamanho, sentavam-se nas escadas ou nos átrios alcatifados, discutindo, galhofando, ensaiando, num arraial pegado. Os hóspedes, tudo classe VIP, refilaram. O gerente decidiu-se por dar-lhes ordem de despejo, com larga loquacidade castelhana. De Madrid, anularam o espectáculo que estava previsto. E quando a troupe chegou a San Sebastian, a polícia, sem mais aquelas, pô-los na fronteira. Os Franceses que se entendessem com tal maltesaria.
Num dos primeiros capítulos desta narrativa falei de um espectáculo de dança, logo de manhã, no Bryant Park. Miss Stevens dissera-me então que teria sido mais de esperar um espectáculo de teatro. Sim, mesmo a hora madrugadora. O teatro entrou no goto dos America nos, sobretudo dos jovens e das camadas irreverentes, já desceu à rua, decerto por influência dos grupos étnicos com raízes africanas. A rua como palco é hoje u fascínio para muita gente. Todos os dias surgem nov companhias ambulantes, boa porção delas armando cena na praça pública. O primeiro grupo a ousar-s a essa popularização teve como impulsionadora Patrici Reynolds, que se apresentou ao ar livre, juntament com actores profissionais, para representar A Sapateira Prodigiosa, de Lorca. De então para cá o grupo tem-se mantido com subsídios da Fundação Rockefeller e actua nos subúrbios de Nova Iorque, ora em inglês, or em espanhol. "Por vezes representamos para pessoas que, embora vivendo a cerca de trinta minutos da Broadway, nunca assistiram a um espectáculo teatral", declarou Patricia. "O impacte de um tal teatro junto da assistência é imediato e podemos dizer, poucos minutos após o início da peça, se o público está a gostar ou não."
Assim pensa também, entre outros, Luis Miguel Valdez, que fundou na Califórnia o Teatro Campesino Com um reportório de peças curtas e cenários improvisados, versando temas rurais, Valdez vai correndo o estado na sua caravana de camiões.
Mas seja na rua, numa sala de acaso ou numa igreja, o teatro americano deste estilo, teatro-choque ou intervencionista, usa fundamentalmente o elemento "espera", e busca acima de tudo a "participação", nisso se distinguindo do europeu. Já em 1938, John Cage dizia: "Na Europa procura-se centrar a atenção do público sobre uma obra que exprime as ideias e a sensibilidade de um autor. Nos Estados Unidos pretendemos incutir no espectador quanto pode transformar a sua vida quotidiana numa série ininterrupta de experiências artísticas.
Nós somos os intermediários." Mais tarde, em 1952, o mesmo John Cage encenou assim um espectáculo no Black Mountain College: o autor, vestido de negro no cimo de uma escada, pronuncia uma conferência, enquanto, em igual postura, Charles Olson lê um poema e Tudor improvisa ao piano. De roda, bailarinos dançam, projecta-se um filme, um cão entra em cena sem saber como. Em simultaneidade com esse cruzar de fogos desconexos, que é afinal o nosso viver solitário numa arena repleta, cada um falando e agindo para ninguém, espectadores-actores tomam café em recipientes-cinzeiros. E deles também pode resultar qualquer coisa inesperada.
Na igreja Judson Memorial, o reverendo Al Carmines inaugura o Judson Poet's Theatre, explicando-se deste modo: "O teatro na Idade Média saiu da Igreja; porque não tentar que ele volte ao lugar donde saiu?" Dois anos depois Ken Dewey politiza o happening com The Gift, denunciando o teatro apático, aquele que aceita tudo menos o que lhe cumpre: "a democracia espontânea da criação".
Para não alongar mais os casos deste fervilhar de inquietudes, feche-se o rol com a referência ao congresso de artistas negros, no mesmo ano em que é estreada The Effect of Gamma Rays on Man-in-the-Moon Marigolds, de Paul Zindel (vimo-la em filme, apagadamente, numa Lisboa distraída). Nesse congresso, ouviu-se Leroy Jones, o autor de Dutchman, em que uma prostituta branca excita um negro e acaba assassinando-o, ouviu-se Leroy Jones dizer: "A cultura insere-se em todas as ideias, todas as imagens, todas as acções. Mudar é mudar culturalmente, passar a fazer parte de um conjunto de valores que formam uma certa matriz. Sem cultura, os negros não são mais que um acervo de reacções impostas pelos brancos."
Voltando ao Off off Broadway. Entre os mais estáveis e também celebrizados OOB, vêm à cabeça o Mama e o Cino. Ambos cafés. A proprietária do primeir é uma negra: La Mama. Assim crismada, à latina, por que, quando o negócio não rende para sustentar os autores e intérpretes sob a sua asa, atira-se à empreitada de desenhar fatos de banho, dom milagreiro pelo que se cobra bem. La Mama teve sarilhos em série com críticos e os sindicatos, já que os actores trabalhavam praticamente de graça, mas na América tudo pode acon tecer, até o triunfo dos Quixotes.
Quanto ao Cino, é o mais antigo café-teatro de Nova Iorque. Joe Cino não perde tempo a barbear-se. Em mangas de camisa, rufião, queixos por rapar, puxa
o manípulo da sua máquina "Expresso", no gesto po deroso dos condutores de locomotivas da velha guarda
e incita o pessoal a deitar fora da boca o que lhe apetecer. Estrofes, diatribes ou cantigas. Há tempos, o seu café ardeu, só se aproveitando as paredes chamuscadas. Obra da Mafia? Sabe-se lá. Não seria o primeiro café a sentir-lhe as mãos. Quando menos se espera, um deles explode. Inteirinho. Como nos filmes. Mas aí se viu a solidariedade Off off Broadway. Tudo o que em Nova Iorque é contra o star system, embora para ele (dizem tenda a evoluir, se quotizou para que o Cino pudesse ser restaurado.
E foi. Reconstruído, mas ainda de memória ferida,
o visitei nessa noite de malogros. Vou contar. Um luso, para mais bicho-do-mato, não pode ir ao acaso da descoberta de um OOB sem se precaver com um cicerone batido. De novo o Bobbit? Já seria abuso. Por isso, atravessou-se-me uma ideia. No escritório da TAP, um brasileiro ali funcionário tinha-me metido no coração, fora uma amabilidade genuína, daquelas que pedem que a usem. Ele oferecera-se para me levar a meia Nova Iorque, que eu lhe telefonasse para o apartamento se calhasse apetecer-me a sua companhia. Assim fiz. Do outro lado do fio, uma voz mole, depois surpreendida e ainda depois veemente. Pois não! Estava às ordens. Que eu esperasse um pouquinho, ia pôr-se em contacto com um amigo negro desse meio, de certeza que ele conhecia a que porta se deveria bater. Por ele, Danilo, não sabia, não, o cinema e o jazz entravam-lhe mais no goto.
Esperei o pouquinho. O amigo de Danilo Ferraz (em Ipanema, Guanabara, uma casa para te receber) era, de facto, bacana, daí a meia hora, à porta do hotel, Danilo já trazia uma porção de coisas sabidas sobre o OOB. E a sugestão de que talvez fosse de escolher o Cino. Não, não me incomodava nada, pelo contrário, uma voz portuguesa não se ouvia todos os dias em Nova Iorque. Só que eu esperasse outro pouquinho. Agora pelo negro, o tal, ele vem aí. Veio. Oculos de rã, pastilha elástica, um polegar em cada bolso talhado de esguelha, uma boca que nunca experimentara sorrir. Danilo é que sorria, à toa, manifestamente embaraçado, o corpo a desengonçar-se, o colarinho abafadiço.
Entre mim e o negro, Norman, simplesmente Norman, as coisas não começaram nada bem. Não se apresenta assim um português a um negro sem lhe dizer sem demora que o sujeito apresentado nada tem a ver com colonialismo e guerras coloniais. De contrário, é uma desgraça. Mesmo que as explicações venham depois, já serão tardias. Norman não estava disposto a gastar palavras, saíam-lhe da boca uns resmungos e até esses eram só dirigidos ao Danilo Ferraz.
Fomos andando, a conversa entre eles animou um pouco, nas proximidades da Bowery Avenue lá vimos os bêbados caídos nos passeios. E os velhos às portas, cabeça e tronco dobrados, exibindo a terrível punição que é a velhice. Aquilo pareceu-me um cemitério de elefantes. Mas sendo um dos sítios mais decadentes de Nova Iorque, abundam por ali os estúdios de artistas e teatros de ensaio. Eu não estava muito certo de que o negro nos guiaria ao Cino. Dava-me, aliás, a impressão de que ele esperava fosse o que fosse. De nós ou de alguém que, por força, teria de aparecer no nosso caminho. Fomos, pois, vadiando, chegámos à minha já conhecida Washington Square, coalhada de hippies baladeiros, um negro aproximou-se do nosso acompanhante, foi só um farejar a curta distância, em que me vim eu meter, Danilo de uma figa, depois o brasileiro, para que alguém dissesse alguma coisa que se visse, começou a explicar-me que o Village estava partido em dois, o East, mais pobre, cercado de quarteirões duvidosos, com gangs de porto-riquenhos jovens, os do Lord's Party, toda uma misturada de imigrantes e marginais, e da outra banda o West, este já apessoado, aonde caíra a gente de algo de Nova Iorque, assim que a fama do Village o metamorfoseara em lugar chique.
Então falei do Arthur Kopit. O que me apetecia ver, sendo possível, era o seu Indios. Estaria a peça em cena nalgum desses OOB, ou Kopit já aderira ao sistema? O negro encarou-me como se, entretanto, tivesse limpo os óculos para os desembaciar.
- Donde é que você conhece o Kopit?
Mas eu não conhecia o Kopit, nem tal dissera. Sabia da existência do Kopit, mais nada, ouvira umas coisas sobre Oh papá, pobre papá, a mãe pendurou-te no armário e eu estou tão triste, e, se fosse adivinho, poderia ter acrescentado nessa altura que acabaria por ver a peça em Lisboa, sim, em Lisboa, na Casa da Comédia, onde se tem visto do melhor teatro representado em Portugal. Em Lisboa, sim, repito, e num espanto de representação. Com Fernanda Alves numa Madame Pétala de Rosa de se lhe tirar o chapéu, a boca uma caverna vermelha bordejada de lábios negros, as unhas negras também, de toda ela um fogo negro, demoníaco, canalha, a queimar-nos repulsivamente as entranhas, com Fernanda Alves, Jorge Vale, Luís Cerqueira, Ângela Ribeiro e outros, dirigidos por João Lourenço com mão de mestre. A cena, a sala: um leque todo aberto, lembram-se?, dois leques por baixo um pouco menos abertos, paredes negras, negras como as unhas e como os lábios, um negro de cianose quando a pletora vai rebentar, caixas vermelhas de madeira com um machado dentro, lembram-se?, numa das paredes há dois machados, na da frente há três, expliquem-me o que tudo isto quer dizer, será que até a liberdade é mítica, será que a liberdade começa por ser utopia, demagogia, e por fim esta posse sufocante, degenerada, carnívora? A liberdade está no próprio homem, é o que decerto Kopit nos grita por entre sarcasmos, apelos, fascínios, ardis, imprecações, a liberdade está no próprio homem e não nas palavras e nos sistemas. O homem libertar-se-á quando se libertar dos mitos, até o da liberdade.
Se foi isso o que Arthur Kopit pretendeu dizer-nos, sabe-o ele. É com ele.
- Donde é que você conhece o Kopit? Não conheço, não disse tal.
Mas aí as coisas mudaram, mesmo com a minha negativa. Conquanto Norman continuasse num desassossego, a hostilidade quase desaparecera. Dizia ele agora que, de facto, Arthur Kopit começara na Off off Broadway e, como tantos, terminara na Broadway propriamente dita. Bom, nem era bem assim: tinha um pé num lado e o outro onde lhe parecesse que poderia socar a burguesia. Na boca do estômago. Kopit, em suma, continuava firme no teatro anticomercial, sem se escusar, porém, a ganhar uns cobres. A burguesia não desgostava de se flagelar. E pagava para isso.
- Não sei se Indios está agora em qualquer sítio destes, mas, se estiver, é na Methodist Church. Vou saber.
Achávamo-nos numa rua coalhada de letreiros luminosos, de vez em quando saía um bêbado de uma porta, a luz súbita do interior perseguia-o por instantes e logo se recolhia. Um bêbado, um casal ou um grupo que nunca excedia meia dúzia de pessoas. E, com a saída deles, a música golfava para fora.
Era mesmo um despejo de sons, como se alguém os fosse juntando num balde e, quando cheio, os lançasse à rua. Passámos junto de um desses bares, todos eles ladeados de vitrinas ou cartazes com boas amostras do que lá dentro se podia ver, a porta estava escancarada, era só voltar a cara e dar com os olhos numa rapariga nua, um foco de luz a incendiá-la entre as mesas no escuro. Norman hesitou, mas seguiu adiante. E foi uns metros além que, de súbito, vimos aquela aparição: de uma das janelas do primeiro andar disparou-se um baloiço para o exterior, nele vinha sentada, como uma equilibrista, uma ruiva de Fellini, também nua em pêlo, assim me pareceu, tão desprevenido me apanhou o lance. Fui procurar na expressão de Danilo Ferraz um sinal que me guiasse nas reacções, mas Danilo mastigava indolentemente uma pastilha elástica.
Um quarto de hora mais tarde entrámos no Cino. Um átrio razoavelmente escuro. A atmosfera tinha fosse o que fosse de uma grossa veia a pulsar. A pulsação, tal como a senti, era comandada pelos contrabaixos, algures, nas profundezas da sala. Aos meus ouvidos chegou, numa toada ali insólita, a pergunta de Norman:
- Você é mesmo português?
-já lho disseram. E você, donde é?
- Do Sul.
- Fale-me do Sul.
Norman abriu caminho até ao balcão. Eu procurava um rosto desmazelado que pudesse assentar no Joe Cino, tal como mo haviam descrito. Havia pouca gente, mas o barulho sobrava. Jovens, a maioria negros, e quase todos, ia jurá-lo, com uma peruca tipo black power.
Era cabelo a mais para ser de uma única pessoa. Circulavam pela sala umas raparigas a arder em calor, a fiarmo-nos na escassa roupa que pareciam suportar.
Começámos a beber cervejas, da minha parte só para não destoar, e voltei à carga:
- Fale-me do Sul.
Norman, primeiro muito sisudo, deu uma gargalhada despropositada. Depois apontou-me um dedo que nunca mais acabava:
- Quer então saber curiosidades excitantes sobre o Sul, que fazemos nós por lá, porque teimamos em lá viver? É isso, portuga? - E, durante uma breve pausa, os olhos bem fitos nos meus, o dedo recolheu-se, mas logo toda a mão se abriu, em leque. As mãos dos negros falam. - Vou dar-lhe um conselho. Se for ao Sul e se dirigir a um negro, pergunte antes assim: você, negro, é daqueles que aceitam a opressão dos brancos para ganhar o Céu? E o negro talvez lhe responda: isso acabou. Compramos como vós automóveis a crédito para queimar a mesma gasolina, e os mesmos refrigeradores para neles conservar a mesma manteiga, mas é tudo. A maldição da raça negra vem de Deus. E a maldição da raça branca, essa é o negro, pois o negro está na Terra para que Deus possa amaldiçoar o branco.
Não era nada daquilo que eu esperava de Norman, o que, na ocasião, também não importava por aí além. Ele afastou-se, roçou por umas mesas, coleando, em dois momentos pareceu-me que comunicava sorrateiramente com uns tipos, mas era só palpite, a verdade é que nem se encaravam nem se dirigiam palavra, e Danilo viu-me a estranheza nos olhos, disse:
- Creio que Norman procura um dealer.
- Dealer?
- Um passador de droga.
Não gostei de ouvir a frase. Senti-me provincianamente inquieto.
- Então não vamos ao teatro?
- Deixe isso com Norman.
Quanto a mim, estava à vista que a ideia de confiarmos no Norman fora um fracasso. Mas engoli o co mentário. Nisto, uma velha também de Fellini, a cara dividida entre o carmim e o desmaio enfarinhado, um sorriso obsceno aberto em ferida, pôs-me um cartão nas mãos e, perante o esboço de lho devolver, travou -me o gesto, rasgou mais a ferida. E foi-se. O cartão-: rezava assim:
Signora Lina
Chiromante Di Fama Internazionale
Card And Palm Reader
Will help you in all your problems
Love, Marriage, Business & Health
Dobrei o cartão, pu-lo no bolso.
- Norman droga-se?
- Penso que sim. Mas com drogas fracas. Não passa da marijuana e do LSD. Agora o que mais se vê é o hard stuff, a droga pesada. Heroína, etc. Se ele lhe perguntar se quer fazer uma presença, já sabe o que é.
-E o que é?
- Experimentar o material, dar umas fumaças. Coisa inocente, ritual fraterno. Como se lhe estendessem um vulgar maço de cigarros. Em cada três jovens americanos, um, pelo menos, já fumou marijuana, e, entre quinze, um, pelo menos, já provou o LSD.
Arrisquei:
- A Mafia controla tudo isto, é claro.
- A Mafia controla o Village, o Bronx, Brooklyn, e por aí fora. Mas os seus escritórios estão na 5.a Avenida ou na Park Avenue.
Norman reapareceu junto de nós sem eu ter dado pela sua aproximação. Vinha sombrio. Pediu mais cerveja.
Sem tirar os olhos do copo, que fazia rodar distraidamente com os dedos tamanhões, rosnou-me de esguelha e a sua voz não me agradou:
- Você aí, português de uma figa. Curioso dos negros, não é? Um dia, um velho do Sul disse-me: "A minha vida? Uma pessoa metida num buraco a olhar o céu. À espera que lhe deitem a mão. Por fim, perdido o conto dos anos, um único raio de luz lá em cima: talvez o meu filho venha a conhecer uma existência de homem, talvez a ele lhe deitem a mão." O velho era meu pai. Ele nunca soube que, para sermos homens, precisamos de sair à força do buraco. - Uma fungadela, um dedo espremendo o nariz, mais umas palavras em jeito de pedrada: - Apetecia-lhe o Kopit, não? Nesta altura nem sombra dele em Nova Iorque. Vamos. Hoje, aqui, não há certeza de haver espectáculo.
Julguei que aquilo fosse o convite para darmos a noite por finda e a ideia acertava em cheio com os meus desejos. Mas não. Iríamos passar ainda pelo Electric Circus.
Pelo caminho, com os buildings a fecharem-se sob a abóbada nocturna, Danilo esclareceu-me. O Electric Circus, enxertado num edifício ingrato, a vetusta Casa Nacional Polaca, construída em 1851, era uma espécie de palácio das miragens e, para os afectos, "uma infinita exploração da consciência em expansão". No East Village, oposto, como já se disse, ao Greenwich Village, dia a dia abandonado aos ciganos e aos turistas. Mais precisamente: a dois passos do Tompkins Square Park. Se Harlem é o coração negro de Nova Iorque, o Tompkins Square Park é o seu coração hippy. Ali nascem, irradiam e desfalecem seitas e modas. Como ainda há poucos anos nasciam e irradiavam da Haights-Ashbury. Ultimamente, estes tumultos em chão acomodado escolhem outros cenários e até apontam a outros alvos: a natureza e a ciência, por exemplo.
Estranho país: uma sociedade conservantista, mas, afinal, em permanente ebulição. Onde as artes são as mais indóceis e germina tudo o que é novo. Onde a vida mais se rebela contra a vida-resignação. Onde o egoísmo mais duro e a CIA têm de confrontar-se com as cruzadas mais generosas.
É Danilo que toca no assunto. Norman vai de nariz no ar.
- Noutros tempos, o homem deixava à Providência a regeneração da natureza. Os hippies, não, acham que é o homem que tem de assumir essa responsabilidade, já que foi ele a ameaçar e a perverter o ambiente. O homem, numa palavra, deve tornar-se o elemento cibernético regulador da vida.
Norman apoia e deita-me um olhar que parece repetir: "Você é mesmo português?" A voz mole de Danilo, como que ensonada, prossegue:
-Quanto à ciência, as coisas podem ser postas desta maneira: os homens são responsáveis individual e , colectivamente; logo, os cientistas são-no também. É a sociedade que presta aos cientistas os meios de trabalho, é a sociedade que tem de pedir-lhes contas.
Que dizes, Norman? Norman não diz nada, mas está manifestamente de acordo com os hippies. Eu vou ouvindo e também concordo, embora não me saia da cabeça a história de Norman, no Cino, a pescar um dealer. Teria ele conseguido o "material"? Em que momento começaria a saboreá-lo? Danilo rodava o seu disco: o conhecimento científico é objectivo e as aspirações do homem são subjectivas. Se se separa uma coisa da outra, a vida degrada-se. A unidade está na consciência. Os hippies, nessa ordem de ideias, acusam a sociedade ocidental de escolher o caminho errado (Danilo disse exactamente, na sua toada melodiosa: "o caminho que não bate certo"), consentindo que haja uma ciência fora dessa consciência.
Aquilo não tinha réplica, haviam sido os hippies a falar pela boca de Danilo Ferraz, talvez ele lavasse daí as mãos. Ou, quem sabe, talvez aquelas palavras fossem mesmo dele. Os hippies, de acordo. Não, porém, os hippies do Tompkins Square Park. Esses, não, Danilo, retorqui eu por dentro. Eu estava soldado a esquemas mentais endurecidos, como heras em velhos muros, por muito que me esforçasse não via um sujeito piolhoso a ter preocupações dessas, a ter ideias limpas, embora, a distância, lendo-os, ou lendo os que escreviam por eles, os levasse muito a sério e humildemente lhes auscultasse as rebeliões.
Mas para onde íamos nós, meu santo padroeiro, que as ruas não tinham fim, a noite pasmara? E às duas por três, eis o Electric Circus. Um cartaz bem à vista incitava as pessoas a descalçarem-se. Quem entrasse descalço teria um desconto de cinquenta cents. Nenhum de nós se tentou, mas logo verificámos que a maioria dos fiéis daquele templo electrónico, de uma nova religião, a do "aqui e agora", fora sensível ao chamariz. Descemos a escadaria iniciática decorada de frescos indo-psicadélicos, que o fundo negro exaltava, achámo-nos por instantes diante de um ecrã prateado, enquanto uma fileira de lâmpadas se acendia e apagava ritmadamente, depois de uma passagem estreita, entre espelhos, sofreou-nos a pressa em chegar a qualquer sítio, até que, num repente, nos sentimos apanhados por uma vaga de sons e de luzes. Estávamos numa caverna, ou melhor, no fundo de uma cratera, a quilómetros da superfície, poderia imaginar-se que nem haveria viagem de retorno. Onde uma pessoa se viera meter! Danilo desfigurava-se entre toda aquela gente do outro mundo, manchada ou borrifada de fulgores. E ele pensaria o mesmo de mim. Norman é que não fazia grande diferença, aquele incêndio de poentes bíblicos assentava-lhe bem.
A ambiência aturdia-me, esgazeava-me. Tanto como me provocava o riso, e só ele. Pondo as coisas no são, que era aquele cenário grotesco? Uma cloaca sem forma definida, porque a negrura das paredes a prolongava ilusoriamente e porque as chapadas de cores lhe mudavam os contornos. Mas cloaca. A abrir-se e a fechar-se sem parança. Quando se abria, vazava um caleidoscópio de imagens: flores esplendorosas, amibas rastejantes, animais marinhos, e também pessoas, tais o Johnson e o Nixon mostrando os dentes todos a uma plateia irreverente. Passávamos do horror à sedução alucinatória e logo a seguir de novo ao horror. Tudo isso orquestrado por uma impiedosa agressão sonora, cuja origem, no fim de contas, estava naquele pindérico mas convulsivo trio musical, que as goelas dos amplificadores elevavam aos mais altos decibéis. Sons irracionais? Apenas a tradução deste nosso ríspido mundo de bielas e motores. Uma maneira de o caricaturar. Uma maneira de o humanizar. Ou, enfim, de o incorporar no homem novo que dele nasceu.
Dançava-se, gesticulava-se, obedecendo a um ritmo para mim exótico, bebia-se e sobretudo fumava-se à nossa volta. Mas a embriaguez pressentida e aos poucos sentida não estava na bebida nem no fumo. Estava no ruído, no delírio visual. Demasiado ruído equivalia a silêncio, demasiada luz a obscuridade. Por isso, cada um daqueles devotos se sentia deliciadamente só. Por isso, levado o atordoamento à saturação, cada um daqueles estranhos seres acabava por manifestar uma edénica calma. Nenhum deles parecia dar conta das raparigas de cabelos de palha, pele tatuada de flores, que atravessavam o furacão sonoro para se sumirem, já então de asas negras, nas margens da cloaca.
Que se passava comigo, dentro daquela tumba de delírios - sono ou agonia? Ambas as coisas. Lancei um olhar implorante a Danilo Ferraz, um vago Danilo, que tanto me parecia muito longe como perto. Mas Norman não estaria pelos ajustes. Todo o seu rosto, agora, era um riso branco. Ele encontrara o seu dealer.
QUE É UM AMERICANO
Apetece-me uma pausa. O ar fez-se tépido. Dos longes sujos de fumo investem nuvens plúmbeas, o céu que as espera desmaia numa claridade fugidia e assustada. Parece um anoitecer antecipado, tal como senti em Montréal, naquela tarde em que, sob a folhagem dourada, as lixeiras do parque me sugeriram êxodos, fosse que fosse de irremediável agonia. A gente vê as ervas crescerem num quintal, vê uma casa a esfarelar-se, os detritos no fundo de um lago e não pensa no quintal, na casa, no lago: pensa nas pessoas. Nas pessoas que desertaram, ou morreram ou, de tão desesperançadas, se deixam devorar pela decadência. E, neste momento, penso em Lisboa. Penso no meu país.
Apetece-me uma pausa e, como a ela me abandono, habito-a com uma pergunta que tem vindo a repetir-se: que é um americano?
Aí por volta dos anos 40, e insinuada como exemplar, leu-se esta história na imprensa regional dos Estados Unidos: "Walter Scott, conhecido pelo Scothy do Vale da Morte, passa o seu sexagésimo aniversário na companhia das suas duas mulas, Betty e Slim. Nunca por ali se viram outros rastos do que os deixados no solo pelas suas botifarras e pelas ferraduras dos animais. Quanto a família, Scothy varreu-a da ideia desde o dia em que, garoto ainda, fugiu de casa. Ofícios, muitos. Almocreve durante algum tempo, depois cowboy. O começo do século apanhou-o neste vale californiano. Queria ser rico, e rico se tornou, em cada ano um pouco mais. A sua mina foi mesmo uma mina: uma propriedade em que havia oiro. Em redor dela, Scothy tinha levantado um muro. Um dia, largaria dali, da sua cabana de explorador solitário, poderoso como Rockefeller.
E assim fez, há catorze anos, quando lhe pareceu que havia chegado o momento. Num desfiladeiro californiano, mandou construir um solar de dois milhões de dólares. Terminados os trabalhos, visitou a mansão, percorreu as salas, abriu as torneiras das casas de banho, deu volta aos comutadores que acendiam a constelação de lâmpadas. Tudo isso lhe pertencia! Saiu dali em bicos dos pés, estonteado com tanta riqueza, e mortalmente aborrecido. No dia seguinte, estava de novo na mina.
Hoje, Scott tem sessenta e um anos. Viverá muito tempo ainda, mas jamais terá iates, criados, mulheres. Uma só coisa no mundo o diverte: partir de madrugada, entre Betty e Slim, para o seu jazigo de oiro, regressando à noite com um pouco mais de poeira amarela. Dia a dia, mais um pouco de poeira amarela."
Será assim um americano? Um americano, talvez, mas não o Americano. Porque este, sabe-se, não existe. Insisto, porém: haverá um padrão, suficientemente indefinido e suficientemente preciso, no qual se reconheçam pelo menos alguns milhões das centenas de milhões que vivem nos Estados Unidos?
É tentador cotejar um punhado de respostas.
De Herbert Muller: "Assim se criou um tipo ideal de homem até então desconhecido pela religião e pela sociedade, que nem é humanista nem asceta, mas um homem de negócios a viver no temor de Deus."
Do Cavaleiro De Beaujour (fins do século XVIII "O Americano não perde oportunidade de adquirir ri quezas. O lucro é o assunto de todas as conversas e motivação de todas as acções. Assim, não existe talvez outra nação civilizada no mundo onde haja menos generosidade nos sentimentos, menos elevação da alma do espírito, menos daquelas agradáveis e brilhantes ilusões que são o encanto e a consolação da vida."
Do barão de Montlezun: "Neste país, mais do que em qualquer outra parte, a consideração baseia-se na riqueza. O talento é espezinhado. Quanto vale este homem?, perguntam eles. Não muito? Então despreza-se. Cem mil coroas? Nesse caso, os joelhos dobram-se, o incenso arde e o outrora arruinado comerciante vê-se honrado como um deus."
De um articulista do Sunday Times: "Durante estes cinco séculos, desde que Colombo descobriu o Novo Mundo, a selvajaria fez parte da vida americana. Houve a violência da conquista e da resistência, a violência das diferenças raciais, a violência da guerra civil, a violência dos bandidos e dos gangsters, a violência da lei de Lynch e, como pano de fundo, a violência das imensidões desertas e a da cidade."
De James Hepburn: "Milhões de americanos elevaram-se do proletariado à classe média com um apetrechamento intelectual insuficiente. Ou eles ou os seus filhos desejam continuar a subir na escala social. Esta nova burguesia americana que se elevou pelo seu esforço trabalha hoje menos e paga menos impostos. Pretende descender dos padres peregrinos, mas as suas origens remontam à máquina de lavar. A grande sociedade é essencialmente sectária e violenta. Os seus lemas são "cada qual por si", "não têm nada com isso" e "ai dos vencidos".
O americano de hoje encontra-se à mercê das suas angústias. Os Estados Unidos tornaram-se tão ricos que perderam o contacto com o resto do mundo. A América não está aqui nem ali, tanto em questões de poderio como fraqueza. Deixou de saber o que se passa na Terra. O seu universo existe na terceira pessoa.
Continua a pronunciar-se a diferença entre o radicalismo americano dos anos 30 e o radicalismo de hoje, cuja base ética é a posse. É verdade que podemos seguir a pista dessa base no passado da América e encontrar o seu tema nas baladas do Far West, onde os homens matavam por causa de um cavalo ou de uma garrafa de cerveja. Mas a tradição jeffersoniana colocou ou repôs os valores humanos acima dos valores de propriedade."
De Arthur Miller: "Os Americanos são insensíveis às ideias filosóficas. Necessitam de qualquer coisa de tangível, de qualquer coisa de concreto, de qualquer coisa que foi representada num palco. Isto é, vista e sentida. O que se diz não tem importância. Não ficamos impressionados com explicações e o jogo verbal deixa-nos indiferentes. O que nós queremos é acção."
De John Kennedy, após a sua eleição para presidente: "Não festejamos hoje a vitória de um partido: celebramos a liberdade, que simboliza um fim e um princípio (...) Não ousamos esquecer hoje que somos os herdeiros da primeira revolução. Deixai que, ida deste momento e deste lugar, chegue a notícia a amigos e inimigos de que o facho foi passado a uma nova geração de americanos - nascidos neste século, temperados pela guerra, disciplinados por uma paz difícil e amarga, orgulhosos da nossa herança antiga e não dispostos a presenciar ou permitir o lento aniquilamento daqueles direitos humanos pelos quais esta nação foi sempre responsável e pelos quais nós somos responsáveis, hoje, tanto no nosso país como no resto do mundo.
Que todas as nações saibam, sejam elas amigas ou inimigas, que pagaremos qualquer preço, carregaremos com qualquer peso, enfrentaremos todos os sofrimentos, apoiaremos todos os amigos, combateremos tod os inimigos, para assegurar a sobrevivência e a vitória da liberdade. Isto prometemos, e muitas coisas mais (...) O toque de clarim volta a chamar-nos, não para empunharmos armas, embora delas necessitemos, não num apelo de guerra, embora estejamos em guerra, mas num apelo para suportarmos o peso de uma longa luz crepuscular - uma luta contra os habituais inimigos do homem: a tirania, a pobreza, a doença e a guerra.
(...) Assim, pois, americanos meus conterrâneos não pergunteis o que pode o vosso país fazer por vós perguntai antes o que podereis vós fazer pelo vosso país. Meus concidadãos do mundo: não pergunteis que pode a América fazer por vós, mas o que junto poderemos fazer pela liberdade do homem."
Se fizermos agora a pergunta de outro modo - como se vive na América?, que ideia fazem os America nos da sociedade americana? -, as respostas, do mesmo modo, seriam um desafio à nossa capacidade de dispensar os figurinos e os preconceitos. Os instrumentos ideológicos podem revelar ao meio as forças que o compõem, mas é no próprio meio que se deve interpretá-las. Como tem sido dito, o tão apregoado pluralismo americano é menos uma doutrina que uma matriz da sociedade, que teve de ser tolerante porque precisou de ser confiante, em que a lealdade dos cidadãos para com o grupo foi uma condição vital, embora o indivíduo se insira nesse grupo sem lhe alienar a independência. As instituições dos Estados Unidos mostram, assim, um singular convívio das tendências liberais com as socializanies, que reflecte o equilíbrio entre a espontaneidade e o intervencionismo empírico que caracteriza a vida americana. Esse modo de ser dispensa uma filosofia, mas, afinal, numa filosofia cristalizou, como o sentimento de liberdade, enquadrado numa moral austera que mesmo quando explode se atormenta com a explosão, tende para um conformismo rudimentar.
O Americano ostenta a sua democracia. Para ele, todavia, esta não consiste em utilizar o poder, mas em constranger os governantes a não pisarem a fronteira que leve ao abuso, a não lesarem um tecido gregário urdido no livre jogo das criatividades geradas no seu seio. A coisa pública é desprezível e feita para os políticos; os cidadãos não estão interessados em governar: dizem eles que têm mais que fazer.
Repita-se, portanto: como vivem os Americanos?
Responde Herbert Marcuse: "Analisei (...) algumas tendências do capitalismo americano que conduzem a uma "sociedade fechada" - fechada porque domestica e integra todas as dimensões da existência, privada e pública. Dois resultados desta sociedade são de uma particular importância: a assimilação das forças e dos interesses oposicionais num sistema ao qual faziam frente nas etapas anteriores do capitalismo, e a administração e a mobilização metódicas dos instintos humanos, assim tornando socialmente disciplináveis e utilizáveis os elementos explosivos e "anti-sociais" do inconsciente. A política do negativo, largamente incontrolada nos estádios do desenvolvimento anterior da sociedade, é submetida e transformada num factor de coesão e de afirmação. Nunca como agora os indivíduos e as classes reproduziram a repressão sofrida, pois o processo de integração desenrola-se, no essencial, sem terror aberto: a democracia consolida a dominação mais firmemente que o absolutismo; liberdade administrada e repressão do instinto tornam-se sem cessar fontes renovadas da produtividade. Com um tal fundamento a produtividade resulta destruição, destruição que o sistema pratica "para o exterior" à escala do planeta. À destruição desmesurada do Vietname, do homem e da natureza, do ambiente e do sustento, correspondem o esbanjamento das matérias-primas, dos materiais e forças de trabalho, tendo sempre o lucro como mira, e também o envenenamento da atmosfera e da água, ainda em obediência a esse mesmo lucro, na metrópole rica do capitalismo. A brutalidade do neo-socialismo tem a sua correspondência na brutalidade metropolitana: na selvajaria observada nas auto-estradas e nos estádios, na violência da palavra e da imagem, no impudor da política, que tem ido além da linguagem orwelliana, na ofensa impune, - e mesmo no assassinato impune - daqueles que se defendem.
(...) Não é o materialismo desta forma de vida que é, falacioso, mas a não-liberdade e a repressão que ela contém: reificação total no fetichismo total da mercadoria. Torna-se tanto mais difícil romper com esta forma de vida quanto a satisfação aumenta em função do volume de mercadorias. A satisfação do instinto no sistema da não-liberdade ajuda o sistema a perpetuar-se. E essa a função social do nível de vida crescente nas formas racionalizadas e interiorizadas da dominação."
Um relato da imprensa americana: "Não há um quarto vago em Cleveland. Os membros da Legião Americana reúnem para o seu congresso anual. Trata-se de saber quem dará mais provas de imaginação. Todos eles tiveram doze meses para se concentrar numa ideia que os faça triunfar no torneio. Na oficina, no escritório, à mesa das cartas ou do bilhar, aquilo tornou-se uma obsessão. A luta vai ser rija. Um tal Curry construiu um canhão-miniatura que lança petardos a um alvo apetecido: as pernas das mulheres. Um tal Lawson oferece a todo o que apareça uma sanduíche original: entre duas fatias de pão, um aligátor bebé. Tudo assim. Este 21 de Setembro não se esquecerá tão cedo. Há dezoito anos, eles eram jovens, desejaram a aventura e conheceram-na; hoje, não são jovens, mas também não estão mortos. A guerra é bela em tempos de paz, o congresso permite, uma vez por ano, escapar à família, às prestações dos electrodomésticos, ao tédio que pesa sobre o continente, um tédio mais pesado que a noite que avança sobre as cidades petrificadas."
De Georges Burdeau: "A partir do momento em que as nações acrescentaram uma ideologia às cores nacionais, o american way of life tornou-se para os Estados Unidos uma espécie de bandeira espiritual. Simultaneamente, porém, os elementos componentes desta visão do mundo endureceram e a espontaneidade do pluralismo vivido foi substituída pela rigidez de um pluralismo conformista. Também aí, na determinação da filosofia do regime, tiveram mais relevante papel as circunstâncias do que a pura especulação intelectual."
De uma carta de George Jackson a Angela Davis: "Queridíssima Angela, primeira entre os seus pares: Esta é a quarta tentativa que faço para contactar contigo. As outras iam em papel como este. Todas elas diziam "amo-te, africana", pouco mais. Continuarei a procurar contactar-te nos dias que se seguem. Eles não podem controlar isto.
(...) Não tens muito tempo para escrever; isso é compreensível, mas peço-te que confirmes sempre as cartas que receberes. Estou preocupado e tenho boas razões para isso. Há entre nós uma grande porção de merda, de cimento e aço, de medo e arame farpado. Não será assim por muito tempo. O "suíno" (pig) é uma raça moribunda, hoje em dia está a encontrar dificuldades em intrujar as pessoas. Se na realidade precisares de mim, correrei para o teu lado - agora mesmo, através do aço, do cimento, de todo esse género de coisas. Estão inertes, mortos, sem vontade e sem inteligência.
Os nossos inimigos, desde o "suíno" até aos escalões mais importantes, são idiotas. Porque os toleramos? Nem sequer são realmente maus, porque têm o vigor que procede do espírito. Temos sido demasiado misericordiosos, demasiado indulgentes, demasiado compreensivos, mas tudo isso acabou.
Ouvi hoje a palavra "negro" trezentas e cinquenta vezes. Apenas a palavra - mas não compreendo. Todos os condenados que a usam são uns gajinhos jovens, uns filhos da puta. Três deles, pelo menos, são homossexuais declarados. Têm medo e é esse medo que os impele. Sabem que foram tão longe que nada mais têm a perder. Já deram cabo das suas vidas por falarem de mais.
Calculo que se passe o mesmo com os "suínos" e com os homens que fabricam suínos. Sabem que foram longe de mais, que o perdão é impossível. Devido aos excessos de ontem, deixaram de poder ser razoáveis. É bem claro o que está para vir, não é verdade? Aceita-o, é belo. Amanhã.
Gosto da maneira como fazes as coisas, gosto de tudo em ti. Amo-te.
George."
De Friedrich Hacker: "Uma semana decorrida sobre o fim da guerra civil, o presidente vitorioso, Abraham Lincoln, foi abatido pelo actor Booth no camarote onde assistia a uma peça de teatro (...) No mesmo ano, seis habitantes do estado meridional de Tennessee fundaram uma espécie de associação de estudantes a que chamaram Cyclos e que se transformou rapidamente em Ku Klux. Os membros adoptaram títulos retirados da magia: "grande ciclope", "encantador" e "fantasma", e cavalgavam através da noite vestidos de branco. Foram os membros do Ku Klux Klan. Durante anos seguidos efectuaram guerrilhas contra o "ilegítimo" poder federal: linchagens de negros, mutilações, assassínios clandestinos e actos de terrorismo espectaculares. Esta organização de combate, que lutou seguidamente contra os anarquistas, os judeus, os católicos e os sindicatos, foi perdendo importância (...) Em 1954, no entanto, o Ku Klux Klan recebeu um sopro de renovação, dadas as decisões em matéria escolar. As cruzes de fogo voltaram a brilhar, os tribunais furtivos reuniram-se e realizavam-se julgamentos secretos. Surgiram, uma vez mais, os cavaleiros nocturnos que semeavam o pânico e o terror em seu redor. Em 1964 (cem anos após a vitória da igualdade e dez anos depois da decisão federal), o chefe do Ku Klux Klan, Sam Bowers Junior, "o feiticeiro-mor imperial!", de trinta e nove anos, ordena a mobilização do Mandado que o "inimigo" (o Estado federal) projectava uma invasão do Mississípi para colocar os negros no poder e pôr em prática a sua doutrina comunista."
De Jean Genet: "Este racismo está espalhado, difundido por toda a América: inflexível, dissimulado, hipócrita, arrogante. Há um lugar onde poderíamos esperar que cessasse, mas, pelo contrário, é precisamente nesse lugar que ele atinge o seu grau mais cruel, que se intensifica em cada segundo que passa, consumindo o corpo e a alma; é nesse lugar que o racismo se torna uma espécie de campo concentracionário do racismo: as penitenciárias americanas, a Prisão Soledad e, no seu âmago, as celas Soledad.
Se, por engano, o racismo desaparecesse da superfície dos Estados Unidos, poderíamos descobri-lo, intacto e mais denso, numa dessas celas. Ele acha-se aqui, secreto e público, explicável e enigmático, estúpido e mais indecifrável que o olhar de um tigre, ausência de vida e fonte de dor, massa inexistente e carga radioactiva, patente a todos e, não obstante, oculto. Poderia dizer-se que o racismo se acha aqui no estado puro, acumulando energias, latejando com pujança, pronto a saltar.
A fantástica aventura da América, que é a expansão triunfante da Inglaterra vitoriana, está sem dúvida no fim. Acabará por dissolver-se e desvanecer-se, revelando o que activamente a corrói: a nação negra apanhada nas suas malhas, ela própria percorrida por correntes libertadoras, por movimentos libertadores, acompanhados por longos gritos de júbilo e desespero."
De uma crónica do semanário L'Express: "Nã existe, nos Estados Unidos, a indulgência divertida, pelo menos confessada, para com as hábeis violações da legalidade. Nos Estados Unidos é sempre a lei que tem corrigido a lei. A história americana não refere nenhum golpe de Estado, mesmo popular, mesmo legalizad a posteriori.
(...) Os Franceses sublinham o seu papel na revolução americana, mas habitualmente esquecem o papel dos Americanos na revolução francesa."
A cadeia de hotéis Statler tinha, para uso interno, o “Código do Serviço Statler". Nele podia ler-se:
"A VIDA É UMA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. O homem
que progride é aquele que serve os seus semelhantes cada vez mais e melhor. Sem clientes, não haveria hotéis Statler. Convém, portanto, que todo o empregad desta casa tenha tal facto sempre presente e trate todos os clientes com polidez e consideração. Nunca deveis ser presunçosos, cáusticos ou insolentes. É o cliente que paga o vosso salário. É ele o vosso imediato benfeitor. Os juízos humanos muito apressados são frequentemente erróneos. Um homem pode apresentar-se de gravata vermelha, fato verde, sapatos berrantes e, contudo, ser um cavalheiro. O homem de aparência modesta e voz tímida pode assumir a riqueza de Cresus. O forasteiro calçado de botorras, com chapeirão largo e fatiota fora de moda, pode ser presidente de uma companhia de caminhos-de-ferro ou senador. Fazei sentir a qualquer cliente que, em troca do seu dinheiro, desejamos oferecer-lhe os préstimos mais acolhedores que ele jamais terá recebido noutro hotel.
Ao empregado que contribuir para a realização deste programa nunca lhe faltará trabalho, nem escapará o olhar atento do homem-que-repara-em-tudo: o patrão."
E, inevitavelmente, mais um trecho de um discurso de John Kennedy:
"Muitas vezes o maior inimigo da verdade não é a mentira - deliberada, planeada e desonesta -, mas o mito, o mito persistente, persuasivo e avesso a toda a realidade. Agarramo-nos demasiado aos chavões dos nossos avós. Submetemos os factos a uma série de interpretações prefabricadas. Gozamos o conforto de ter opinião sem o desconforto de ter de pensar.
Todavia, não poderemos compreender nem enfrentar os nossos problemas de agora (...) se estivermos agarrados a rótulos tradicionais e a frases gastas de outra era. A infelicidade está em que a nossa retórica não acompanhou o ritmo das mudanças sociais e económicas. Os nossos debates políticos, os nossos discursos públicos sobre problemas correntes de política interna e de economia não têm as mais das vezes relação com os verdadeiros problemas que os Estados Unidos defrontam.
Esses problemas não podem ser resolvidos pelas artes mágicas de um passado longínquo (...) Alguns dos depoimentos que ouvi no nosso país pareciam velhos discos, restos do que se dizia em meados dos anos 30. As discussões dessa época tiveram grande significado e deram grandes resultados, mas passaram-se num mundo diferente, com necessidades e tarefas diferentes.
Há quase cento e cinquenta anos, Thomas Jefferson escreveu: "As novas circunstâncias em que nos encontramos pedem novas palavras, novas frases e a transferência de velhos vocábulos para novos objectos." Novas palavras, novas frases e a transferência de velhos vocábulos para novos objectos - isto é ainda mais verdade hoje do que no tempo de Jefferson (...) Se trabalharmos harmonicamente para resolver os problemas autênticos do nosso tempo, geraremos uma visão e uma energia que demonstrarão novamente ao mundo a vitalidade superior e a força de uma sociedade livre."
O que é o Americano, como se vive na América. Resta perguntar: como deseja a América viver? Quais as suas perspectivas?
Escolhendo quatro respostas, apontaremos a outros tantos alvos já enunciados nas páginas precedentes.
Jacques Cabau: "Aos cinquenta anos, James Baldwin continua a ser o escritor negro mais importante da América, porque ele recusou perder-se na acção directa. Moderado, ele rejeita a integração e a acção armada: na integração, o negro perde a sua cultura e, na secessão, perde a sua identidade americana. Baldwin e os seus heróis querem-se americanos em corpo inteiro. Porque o racismo liga o opressor ao oprimido numa cumplicidade em que o negro não é a única vítima: o polícia branco e o prisioneiro negro são apanhados na mesma maldição. E dado que toda a América está enferma de racismo, Baldwin recusa fechar-se, como Malcom X ou Leroy Jones, na negritude. É a América inteira que ele quer curar.
Filho de pastor, Baldwin revela um temperamento mais religioso que político. E a sua obra toma espontaneamente a forma do blues, lamento de dor mas também de coragem e ternura.
(...) Aqui, é o amor, mais que a revolta, que abre uma brecha no sistema repressivo americano. Mais evangélico que contestante, Baldwin regressa às fontes religiosas mais autênticas da tradição negra americana. É talvez o sinal de uma evolução do problema negro nos Estados Unidos."
McNamara: "A tecnologia confinou-nos num horizonte de concebíveis horrores, capaz de tornar insignificantes todas as catástrofes que desabaram sobre a humanidade durante o milhão e tal de anos da sua existência. O homem já viveu mais de vinte anos no período que chamamos a era atómica. No que nós não pensamos é em que todas as eras futuras serão atómicas. Se o homem, pois, tiver um futuro, há-de ser um futuro ensombrado pela permanente possibilidade de um holocausto termonuclear. Quanto a esse facto, já deixámos de ser livres. A nossa liberdade sobre tal assunto consiste apenas em enfrentar a questão com realismo e racionalidade e discutir o que há a fazer para que o risco se reduza. Nenhum cidadão no seu perfeito juízo, nenhum chefe político com saúde de espírito, nenhuma nação sensata desejam a guerra nuclear. Mas não desejar, só por si, não chega. Temos de compreender a diferença que existe entre as acções que lhe aumentam o risco, as que o reduzem e aquelas que, embora onerosas, pouca influência exercem seja em que sentido for. A estratégia nuclear é excepcionalmente complexa nos seus aspectos técnicos. Se essa complexidade não for bem compreendida, a discussão racional e a tomada de decisões são, muito simplesmente, impossíveis."
Estas palavras fazem corpo com outras do senador Fullbright: "Os oficiais do exército não são eleitos pelo povo e não têm outra responsabilidade na formulação da política além da que diz respeito à política militar. A sua função é realizar a política elaborada pelos funcionários responsáveis perante o eleitorado. Esta tradição está enraizada no princípio constitucional de ser o presidente o comandante supremo das Forças Armadas e, por esse motivo, os militares não devem participar em actividades que corroam a política por ele seguida."
O que disseram os futurólogos: "Nos próximos anos, os Estados Unidos serão mais do que nunca uma nova sociedade de consumo, mas a última crise económica contribuiu para dar forma a uma sociedade com comportamentos novos.
Durante uma jornada de estudo, organizada em Chicago pelo Conference Board, numerosos especialistas, representando as maiores sociedades americanas, estabeleceram o perfil do consumidor-tipo de 1980.
De 1975 a 1980 os Estados Unidos atravessarão um período particularmente favorável ao consumo, dado que a população com idades de vinte e cinco a trinta anos vai aumentar dezassete por cento. Por outro lado vinte e três milhões e meio de famílias terão em 1980, nos Estados Unidos, recursos anuais ultrapassando os vinte mil dólares, contra quinze milhões em 1975.
Acresce que os hábitos de dezenas de milhões de americanos modificaram-se: a atracção pelos artigos de novidade e por tudo o que pode entrar na categoria de "engenhocas" diminuiu, enquanto a preferência pela qualidade se desenvolveu. A diferente orientação da procura, juntamente com a disponibilidade de maiores recursos, tenderá a favorecer a estima por artigos "verdadeiros": cabedal autêntico, algodão puro, seda natural, lã virgem, etc.
A recessão dos últimos dois anos desencadeou o interesse generalizado pelo "faça você próprio", pela jardinagem, pelo remendar, pelo transformar dos vestidos - actividades caseiras que parecem agora profundamente instaladas nos costumes. A publicação mais lida nos Estados Unidos é uma revista de horticultura e jardinagem: quinze milhões de exemplares. E mais de um terço dos lares americanos fabricam o seu próprio pão, pelo menos ocasionalmente. O fenómeno do "regresso à terra" deixou de ser fenómeno: uma sondagem Gallup revela que cinquenta e um por cento dos lares dos Estados Unidos disporão da sua horta em 1976."
De uma entrevista de um cidadão de Cincinnati à U. S. News and World Report, acerca das iniciativas da Casa Branca, interpretadas pelos numerosos extremistas da direita como se os Russos já tivessem desembarcado na América": "Oh, meu Deus, que saudades tenho de Ike! E até de Harry."
Esta pausa começou com a evocação da tarde passada num parque de Montréal e com essa evocação terminará. O parque estava quase deserto. Um negro, em fato de treino, corria numa estradinha aberta entre as moitas. Acompanhavam-no os renques de árvores esguias, de casca esbranquiçada. Mas o que eu fixara era o cemitério de plásticos e latas de cerveja no fundo do lago. Os papéis que a aragem envolvia no folhedo caído, juntando-os de encontro às sebes, os restos de comida, o desleixo. O que me penetrava era o odor a abandono, ali e em toda a cidade.
Aquilo ia durar apenas mais uns dias, a greve estava no fim. Imagine-se, porém, que duraria meses, anos, que já não se tratava de greve, nem de lixo, mas do rosto adulterado de uma cidade, que não eram imundícies, mas a degradação das coisas em que os homens se reflectem, que era um estado de espírito? Então eu teria de dizer que, quando um país se desfigura por fora, está prestes a desfigurar-se por dentro. Ou já se desfigurou.
PASSAR PARA O OUTRO LADO DO ESPELHO
"São os objectos que, de repente, nos interrogam."
Isto disse Daniel Abadie, o crítico, ao interpretar a passagem intempestiva do abstraccionismo para as correntes figurativas que reintroduziram na arte o quotidiano, as coisas vulgares compartilhadas pelo comum das pessoas. De uma realidade interiorizada, gesto ou sentimento estético, reflectindo as especulações da cultura tradicional, da cultura nascida ao lado de catedrais, chegava-se rudemente às imagens elementares, e até grosseiras, que são a ambiência de uma cultura forjada ao lado de supermercados. O mundo tal como é. O mundo americano em particular.
Claes Oldenburg e Andy Warhol reproduziram latas de conserva da mesma forma que há três séculos o holandês Van Schooten pintava presuntos e mesas atestadas de vitualhas. Mas enquanto este documentava uma burguesia farta, digerindo remansadamente e sem complexos a sua prosperidade abençoada por Deus, os Americanos pretendem denunciar o pesadelo do consumo, a aceitação passiva de uma falsa e tirânica comodidade, a conversão do homem-indivíduo em homem-massa. O homem expulso da existência que lhe é própria.
"Até agora, o artista só via nos objectos do mundo exterior um pretexto para exprimir a sua visão íntima; com o hiper-realismo encontramo-nos do outro lado do espelho. Já não se trata de decifrar o mundo; são objectos que, de repente, nos interrogam." Isto disse Daniel Abadie e muitos outros o têm dito de diferentíssimas maneiras. O próprio Léger, para quem os objectos interessavam tanto como a figura humana, o pressentiu e disse também. Do mesmo modo, Picasso em 1914, com o seu Prato com Bolachas, e o Chirico dos anos 16 e 17, e o americano Gerald Murphy dos anos 20, ou o Stuart Davis com o seu provocante Lucky Strike (um simples maço de cigarros) haviam já utilizado símbolos e materiais comerciais, recuperando para a arte motivos da chata quotidianidade.
De uma arte olhando para dentro, afectada, selectiva, por isso incapaz de romper com temas e veículos privilegiados, mesmo quando se declarava em oposição com os convencionalismos, partia-se para um "regresso à vida", sendo esta feita de banalidades. À arte supercultura, deleitando-se com a fruição estritamente estética, sacralizando os ingredientes criativos, opunha-se a arte parodiadora ou funcional, a arte que é tudo o que nos rodeia, desde a ilustração publicitária à bomba de gasolina, que é tudo o que utilizamos, desde o prato de maçãs à cadeira de cozinha. Um humanismo novo, porque novo é este mundo em que vivemos, um modo de observar e de reter destituído de emocionalidade. Objectivo, neutral.
Curiosamente, esta apregoada indiferença acompanha-se, porém, de uma exaltação vital, como se ao artista tivesse bastado o reencontro com o exterior para reanimar um fogo perdido. Trata-se, talvez, de "um gostar das coisas", na definição de Andy Warhol, que antes de ser o pintor que é, pintor-cineasta-cabotino, com forte cotação na bolsa das artes, foi um bem-sucedido desenhador de modelos de sapatos. Um gostar das coisas, isto é, uma atmosfera interior - frase-bandeira, por certo eloquente, embora Warhol tenha sido autor de outras com maior ressonância. Como aquela em que confessou desejar "ser máquina", decifrada por uns no sentido da aspiração a uma pintura sem retoques, sem nervos, sem arrependimento, uma pintura prodigiosamente acabada, como só de uma máquina se poderia esperar, e em que outros viram o propósito de uma arte directa, extrovertida, na qual o homem, se nela surgisse incidentalmente, o fosse como robô ou caricatura, não mais assumindo o papel de personagem idealizada. Houve, ou há, quem adiante ainda uma terceira interpretação, que aliás não elimina as precedentes: se o pintor pretende ser máquina é porque nos fala de um universo mecânico em que o homem agoniza. Não se esclarece, todavia, se esse projecto sugere optimismo ou renúncia perante uma civilização sem alma que, por isso mesmo, ao ser retratada, pede que nos despojemos de sentimentalidade. De qualquer modo, nela o homem perdeu o mistério, degenerou em autómato, uma "coisa" sitiada e condicionada por um aluvião de artefactos.
Estamos na América, onde as máquinas e os edifícios cresceram até os homens se sentirem pigmeus. Estamos a ouvir e a ver artistas americanos. Eles foram dos primeiros a reconhecer que grande parte do que é significativo na nossa vida é aquilo que se vulgarizou. Se quisermos entender-nos, se quisermos avaliar o que somos e as nossas possibilidades de montarmos o dorso das máquinas, teremos de observar com olhos frios as reacções de massa. E o meio ambiente que as modela. Numa civilização que parece desesperançada, que deixa profetizar a morte do humano, que avança para uma espécie de totalitarismo destruidor da individualidade, de nada valerá, muito pelo contrário, voltar costas à evidência: este preencher do dia-a-dia com produtos irrelevantes e estereotipados até aos limites da despersonalização - latas de cerveja, comida plastificada, cartazes, automóveis, mobiliário, acessórios vistosos, discos, estrelas de cinema, bandas desenhadas, o aparelho de TV acompanhando-nos da rua ao quarto de dormir, uma voz, uma imagem, uma presença que não são as nossas mas que acabam por se tornar a outra metade de nós mesmos, ou até por se sobrepor à metade que resta de nós. Mas é nesse exterior que está o mundo, o que foi segregado por uma sociedade de vastos horizontes, sempre em movimento, coalhada de objectos manufacturados, de formas geométricas - a sociedade americana.
Uma arte que desconhecesse essa verdade seria frágil e utópica. "Desde Cézanne", diz Lichtenstein, "que a arte se mostrava extremamente romântica e irrealista." O realismo tradicional fazia polémica com o ideal. O de hoje faz polémica com a realidade. Anatomizando-a minuciosamente, geladamente, fibra a fibra, o que talvez seja a única maneira de a suprimir.
Logo aqui se declaram diferenças entre os artistas americanos e os europeus. Estes também procuram dissecar uma realidade em mudança, observando-a e fixando-a com olhos rigorosos, sim, mas onde a emoção continua presente. Por outro lado, os seus temas são a redescoberta do corpo, cenas de rua com alusões políticas, a lava erótica que vai crestando o amor, o evento em chama, enquanto os americanos reproduzem o banal contemporâneo, parkings atulhados de cromos cintilantes, cemitérios de automóveis, auto-estradas de cujas margens se expulsaram as árvores. Na América a paisagem é vazia e esse vazio torna as pessoas solitárias. Tanto a arte como a literatura americanas são um combate de solitários. A "atmosfera interior" de Warhol não pode corresponder à de Cézanne a pintar as suas maçãs ou à de Van Gogh a pintar as botas dos seus mineiros.
Reflectem mundos distintos. Através de objectos, cores, sóis, ambientes, o europeu é sempre alguém que se dirige a alguém, que fala de si mesmo a outro, estabelecendo uma corrente de apelos e sensibilidades. Daí que ainda possamos apontar mais esta dissemelhança: o figurativo americano, seja qual for a sua modalidade, criou um estilo, decerto, mas um estilo quase despersonalizado. Muitas das suas obras poderiam ser assinadas por vários nomes sem que isso nos desse surpresas e a eles desgosto. Ora, conquanto com processos idênticos, o europeu ambiciona que a sua obra seja única. Para ele, o grande artista é o inventor do seu próprio estilo e nunca se priva da liberdade de o vincar. A divergência entre os dois realismos, o da América e o da Europa, estará, pois, naquilo que separa a impassibilidade da paixão.
Uma visita a Nova Iorque, ainda que breve, não dispensa o giro dos museus, para onde tem marchado a poder de dólares tudo o que na Europa vale ou finge valer. Mas, ao lado dessa arte importada, há uma impetuosa e poderosa arte nacional, nela se auscultando as vivências do país que viemos conhecer. Não me parece menos elucidativo o modo como esses museus nasceram, como evoluíram e funcionam, e ainda a atmosfera, veraz ou fabricada, que lhes é paralela. Sem esquecer também as suas personagens mais relevantes. A maneira como a arte se incorpora na vida pertence aos estigmas de uma sociedade.
A Europa tem convivido intimamente com a literatura dos Estados Unidos, caixa de ressonância de um povo adolescente e fogoso, explosivo e triste, e muito pouco com a sua arte. Fala-se, de raspão, de um Pollock, de um De Kooning, mais recentemente de um Rauschenberg (estes ou outros nomes, para o caso pouco importa), vemos algumas das suas obras reproduzidas em álbuns decerto de parca divulgação, mas a ideia que corre, feita quase só de palpite, é a de que a arte americana não existe como voz destutelada das escolas europeias e que, portanto, às suas figuras representativas escasseiam estatura e originalidade para sobressaírem fora das suas fronteiras. Ao europeu comum, de medianas letras, são familiares os Hemingway, os Faulkner, os Styron, possantes intérpretes de um mundo caudaloso e rude, cuja vitalidade jorrou do entrechoque das mais diversas seivas e se foi enformando através de violências e generosidades - mas, quanto a artistas plásticos, nem parece haver pejo em ignorá-los, como se antecipadamente estivesse legitimado tal descaso, embora, afinal, a sua pujança não seja menor. Refiro-me, repito, ao leigo e não ao iniciado - porque é aquele que nos deixa avaliar até onde se faz ouvir a arte de um país.
Entre esses leigos, aliás, me acho. Mas um leigo que, a partir da visita a um museu nova-iorquino, o de Arte Moderna, relicário da Guernica, viu a sua curiosidade espertada e se pôs a escutar uns e outros, até corrigir, ainda que pela rama, o preconceituoso alheamento (nos últimos tempos muito minorado) pelo que fazem os artistas americanos. Nunca perdoamos aos grandes a sua grandeza, como nunca perdoamos aos triunfadores o seu triunfo. E os Estados Unidos são uma hiperbolia provocatória, têm tudo a mais: arranha-céus, dinheiro, técnica, tumulto, laboriosidade. Custoso é admitirmos que também o génio lhes sobra. Um génio, porém, seguro de si próprio, resolutamente pessoal, sem convenções nem padroeiros intocáveis, por isso mais incómodo. Que dá para o melhor e para o pior. Foram os europeus que criaram a América, com desespero e esperança; e ainda hoje a olham como a um sonho que se foi realizar do outro lado do oceano e a quem não perdoam as imperfeições. O desdém, pois, pode ser uma forma de ressentimento. Ou de sedução.
Recuperando o fio do discurso, acrescente-se, toda via, que na altura em que a minha curiosidade foi, como disse, atiçada, estávamos ainda longe da irrupção da nova arte americana nas galerias europeias. Como acontecimento. Como moda. Como contágio. Mesmo que esse modismo, assim o verifiquei numa galeria da Rive Gauche, deixasse as pessoas frias por dentro, a idolatria da novidade já as forçava ao bem-comportado aplauso. Confirmando a sua envergadura internacional, uma tela como o Great American Still Life nº 10, de Tony Wesselmann, da pop art segunda vaga, atingia no Espaço Cardin, em Paris, verbas consagradoras. Tanto como um quadro de Martial Raysse, de 1962. E Andy Warhol lançava nos palcos internacionais da arte, a partir da Galeria Castelli, o seu último e ressoante grito: uma série de dez serigrafias glosando o retrato convencional de Mao Tsé-Tung, mas tratado em cores pop: rosto vermelho, azul, branco, amarelo, verde, etc., respectivamente com túnica azul, cinzenta, verde, rosa, amarela, e lábios vermelhos, brancos, azuis, verdes, etc. Tiragem limitada. Preço escaldante. A frieza, em suma, já nada podia valer à arte intelectualizada, sábia e ambígua da Europa com pergaminhos. O vilão era mais forte.
Voltemos a Nova Iorque. Começo por confessar que a visita aos museus me fatiga sobremaneira e me melancoliza. As pernas não tardam a recusar-se ao ritual de procissão: dar uns passos, em ritmo compassado e num recato de igreja, mesmo sem mestre-de-cerimónias à vista, depois especar diante da peça que ali se pôs em culto, o rabo de olho ilicitamente já no sacrário seguinte ou ainda na imagem a que não se deu a devida atenção - e por fim, nos olhos, nos músculos e no cérebro, um vazio de excesso, uma barafunda de coisas "percorridas", pedaço desta, pedaço daquela, um desejo urgente de ar livre, de espaço sem paredes e sem telas.
Se fosse possível, mas não é, já que o número esmaga, dilui, desvaloriza, uma obra de arte deveria estar longe de todas as outras e dispor de horas inteiras para ser amada. Como uma mulher. E também como uma mulher, na nudez da sua verdade. Assim, a sua pujança é uma pujança morta. Como tigres empalhados. Para mais, alinhadas ombro a ombro, à espera do incenso ou do pelotão de execução, o que é que delas permanece bem dentro de nós? Uma memória dissolvida, cuido eu. Ou a tal confusa parada de justiciados. Salvo uma ou outra que, de tão impressiva, até por entre o bramido mudo e emudecedor de um conjunto ainda consegue isolar o seu grito. Como me sucedeu com a Guernica, nesse mesmo Museu de Arte Moderna. Mas a Guernica é a Guernica, pintura e símbolo, e tem toda uma sala só para si.
Um outro modo de recebermos o que uma obra tem para nos dar, e de a ela nos darmos também, é pormo-nos, perante ela, num estado de impenetrável alheamento. As pessoas, as coisas, o mundo deixam de existir. Só a obra e nós. Como esta jovem que se sentou no banco em frente de um Mondrian e ali ficou. As costas levemente arqueadas, um livro a descair das mãos juntas e frouxas. Os olhos sombreados de verde não se desviam do Mondrian. Em estado de graça. Tão alienada como só é possível numa cidade-tufão, cidade-cloaca, onde ninguém é ninguém, onde, em mar assim estrídulo, as pessoas, mesmo se a monte, são ilhas, cegas e surdas, vêem-se sem se ver, ouvem sem ouvir, esbarram sem darem pelo abalroamento. Neste deserto de telas e de gente, apenas Mondrian e a jovem. Eu, os outros visitantes, o guarda negro que vigia a porta e o patamar, somos a miragem.
Já agora que falo em guarda, assinalo, de passagem, que à entrada do museu lá estava o habitual latagão de fazer medo às pessoas. Fardado. Armado. Queixo em proa. Não há grande edifício público ou privado na América (e o mesmo no Canadá) que não esteja defendido como uma fortaleza. A gente acaba por sentir que estamos em guerra uns com os outros. Ou que somos malfeitores. Eu ia para adquirir os bilhetes, os olhos à procura de um cobrador, e afinal o latagão o que queria era revistar-me o saco. Apurar se eu trazia lá uma bomba, um revólver ou coisa aparentada. Não trazia? Bom, adiante. Mas as cautelas não ficariam por aí: de sala em sala, de escada em escada, havia sempre mais um carão desconfiado, um boné de chui, um sondar com a nitidez de lâmina afiada. Negros na sua maioria. Como este de braços atarraxados num tronco maciço. Quanto aos visitantes, a juventude vinha à cabeça, de onde em onde um grupo escasso, meio comprometido, de pessoas de outra idade. Eis mais um Jesus Cristo Superstar. Tronco nu, o vestuário começando nos quadris, calças muito justas, um capacete de caracóis cor de fogo. De mãos dadas com uma moça também encalorada: só um trapinho tapando metade do seio, conquanto a saia de cigana, em contraste, lhe tapasse os pés. Nova Iorque está cheia destes Jesus, cabeleira tufada ou em crina, e destas Marias Madalenas, em traje bíblico ou tropical.
Na subida para o andar de cima, dei com um inesperado pátio interior, a fazer de esplanada. Ali coabitavam árvores (poder-se-á dizer que os arranha-céus são uma saudade das árvores?), flores, esculturas e gasosas. Nem terraço nem museu: ambas as coisas. Ou, então, aquela freguesia aguardava a hora para um dos concertos ou sessões de filmes, que são diários.
Um último apontamento: em nenhum museu nova-iorquino (acaso ou desuso?) se me deparou o rebanho basbaque de excursionistas, a máquina-falante do guia encartado. Nada dessa praga. Um roteiro explicativo em algumas mãos, consultado e ponderado a sós, e por aí se ficava discretamente a catequese. A pedagogia da arte, na Europa, lembra-me o sermão aos domingos nas aldeias. Quando se sai do templo, cumprido o rito, nem o prior nem os paroquianos pensam mais no que lá se passou.
Pois, como ia dizendo, as minhas jornadas nova-iorquinas abriram-me para a arte americana. A América dos poços de petróleo, dos imóveis arrogantes que nos esperam de pé, dos coldres à cinta nas esquinas da Broadway, dos imigrantes com botas de esporas no
Aeroporto Kennedy, poderia ser também um chão das artes, chão criador e até revolucionário? Outra pergunta: por lá as artes têm quem lhes adube a medrança?
René Huyghe, historiador de arte, que passou um ano como "professor residente" na National Gallery de Washington, disse que o que mais o havia impressionado nos Estados Unidos era o respeito pelos museus. Um respeito que tanto pode ser o do primário que ajoelha perante o milagre do arco-íris, o novo-riquismo do pacóvio endinheirado, como um sentimento puro, a que uma política educativa deu claridade. Ou tudo isso junto. Embora um país obsessivamente apostado em produzir descure os interesses "supérfluos", na América a cultura artística e científica nunca foi tão rigorosa como nos nossos dias. Cada cidade possui um ou vários museus, cabendo-lhes o papel que, na Europa, se atribui às casas de cultura: neles se realizam palestras, debates, concertos. Neles se convive. A National Gallery dispõe até de uma orquestra permanente. Este Museu de Arte Moderna - e não foi iniciativa inédita - organizou ainda o ano passado uma exposição dedicada ao desenvolvimento de Nova Iorque. Para que o cidadão comum saiba a quantas anda. Além disso, os museus exibem filmes de iniciação e promoção artísticas, ninguém cobrando bilhete à entrada, e multiplicam-se as brigadas voluntárias de educadores-peritos, sobretudo senhoras, que chamam a si o apostolado das artes nos meios da juventude. Talentos ignorados ou desdenhados dificilmente os há: equipas de pesquisadores batem os estados em demanda de vocações, embora muitos deles na mira de apostar num nome que venha a render dividendos, como se aposta num cavalo gentio caçado na pradaria. Para encorajar futuros coleccionadores, os museus têm locais de venda de peças de mediana raridade. Repare o leitor nos filmes americanos: há pintura, e pintura da melhor, nas casas onde se passam aquelas cenas onde dificilmente se encontra santidade, mas onde às vezes se encontra a amargura e a solitude que leva aos extremos do ódio ou do amor. Os Americanos amam como odeiam, odeiam como amam. Para se habituarem, diz Norman Mailer. Esse insistente cenário não pode ser uma fraude ou um acaso. E mesmo assim.
E, na verdade, se há país em que a arte desceu à rua, é a América. Para muitos artistas, o sonho maior é conquistar as paredes de uma cidade. Um pintor, ou um grupo deles, toma conta de uma parede nua e nela estampa um comentário da actualidade, uma alegoria apocalíptica, o retrato de um político. É a street art, que o modismo devorador acabou por chamar a si. A vida efémera dessas pinturas, à mercê da mudança de locatário, da picareta demolidora, ou até de um contestador que lhe passe por cima uma brocha de tinta, dá-lhe um carácter patético. Elas são feitas para viver o tempo de um acaso ou de um capricho. O tempo em que dure uma metamorfose do quotidiano, e depois desaparecer, como uma estação que morre. Mas, enquanto duram, são uma estridência, talvez por se saberem precárias.
Os começos da pintura mural americana - bem diferente, por exemplo, da que se pode ver na Dinamarca, aqui integrada nas próprias casas, na própria atmosfera de fábula que as incorpora - remontam à década de 30, quando o Governo, para socorrer os artistas desempregados, encomendou mais de cinco mil frescos. Numerosos edifícios públicos, como a Bolsa de San Francisco, foram decorados nessa maré. Para o fim dos anos 60, já o ressurgir de uma tal expressão pública da arte, originariamente espontânea, tomava aspectos selvagens. Ou era uma comunidade hippy que cobria de uma visão psicadélica uma fachada leprosa, ou uma troupe de artistas negros que punha à cara das pessoas um mural com as celebridades da sua raça, ou, enfim, a irreverência criativa de ganapos, para quem um muro fora sempre uma tentação.
Com foros de representatividade, essas realizações viram-se divulgadas pelos centros culturais americanos, como o de Paris, que em 1967 apresentou uma colecção de fotos e de diapositivos, pela qual se pôde apreciar a vasta gama de tendências da street art, indo da pintura primitiva ao hiper-realismo.
E os museus? Grande parte dos museus americanos (há mais de cinco mil, inaugura-se um por semana, sendo seiscentos e quarenta dedicados às belas-artes) nasceu de um sonho, de uma emulação, às vezes de uma aventura. Na boa tradição americana. O sonho é o do imigrante que, enriquecendo, se volta para aquilo que pareça menos efémero e menos acessível que o dinheiro: a arte. Volta-se por curiosidade intrigada ou por ciúme, depois por desfastio e finalmente como modo de perpetuar o seu nome. Por isso, a exemplo da Europa (mais ainda que na Europa), são vulgares as galerias, as salas e até os museus com a chancela de um mecenas. E como os milionários americanos não discutem o preço, para mais deduzido nos impostos, nem aliás se ralam por aí além com o risco de falsificações (que são o inevitável reverso do empenho em que se adquirem peças verdadeiras), poucos podem fazer-lhes frente nos leilões: assim, a Europa vai-se anemiando no seu património de obras-primas, ao mesmo tempo que decadentemente se consola em espalhar anedotas sobre a ingenuidade dos especuladores ianques.
Vale a pena falar disto com vagar. A crónica da arte americana é indissolúvel destas suas personagens subsidiárias. É uma crónica romanesca. E tão eloquente do mundo americano como os lances e os heróis a que mais vezes se recorre para o ilustrar. Veja-se o caso do judeu letoniano Joseph-Herman Hirschhorn, farroupilha desembarcado em Nova Iorque no começo do século, hoje senhor de quase tudo o que, no Canadá, são terrenos uraníferos. Senhor de urânios, pois, mas também patrono de um museu gigante em Washington, que terá, como é da praxe, o seu nome. Quatro mil pinturas, duas mil esculturas, trezentos desenhos e aguarelas.
Hirschhorn ainda esteve hesitante se deveria edificar um templo cultural no meio dos seus jazigos de metais preciosos, mas o presidente Johnson convenceu-o a preferir Washington. Uma condição para essa preferência: o museu deveria ostentar a marca Hirschhorn.
Esta dimensão do museu hirschhorniano, e contra o que se poderia supor em terra de desmesuras, desacorda do que é usual ver-se nos Estados Unidos. Em lugar de museus mastodontes, como o Louvre ou o Ermitage, que uma pessoa visita por crença, os Americanos optaram por unidades relativamente regradas e descentralizadas. A arte para todos é uma aquisição irreversível, mas dada a aglomeração de fruidores, que atinge o limiar da asfixia nos locais mais afamados, procura-se uma melhor repartição das preciosidades museográficas. Durante os meses estivais, o Ermitage recebe cerca de vinte mil romeiros por dia, e o Louvre, o Palácio de Versalhes, o Metropolitan Museum queixam-se da mesma saturação. A ponto de rogarem às agências turísticas que desviem os seus pupilos para outros "santuários" menos frequentados. Por outro lado, o museu médio, mais convidativo, defende o visitante do fartum. E permite que se explique e se detalhe melhor o que vai ser visto. A maioria dos museus americanos distribui gratuitamente uma planta das salas e até um catálogo didáctico, que é, para todos os efeitos, um manual de história de arte. Procura-se que a visita seja agradável e profícua. Disse Thomas Hoving, director do Metropolitan Museum: "Até há pouco, os museus eram estabelecimentos um tanto sonolentos. Isso começa a mudar."
O caso do imigrante da Letónia que vínhamos relatando nem é, porém, dos mais exemplares. De bolsa gorda, ele limitou-se, impassivelmente, a bater recordes nos leilões europeus e a confiar os seus tesouros à colectividade, desde que lhe dourassem a firma. Uns tantos mais fizeram o mesmo. Mas para que um povo se imponha, na arte, ao apreço alheio, necessita, obviamente, e antes de tudo, de possuir criadores que nos ofereçam uma visão original e significativa do seu mundo, e necessita também de um clima propício, traduzido em infra-estruturas apostadas em dar-lhes ressonância.
E aqui chegamos a uma das berrantes antinomias da sociedade americana: cupidez e dadivosidade, fanfúrria grosseira e idealismo. Mas nunca autocompadecimento. "A América não perdoa o falhanço e talvez despreze a desdita", dir-me-ia mais tarde Nino Grisanti, semanas depois da queda de Nixon, ao escalar Lisboa numa das suas meteóricas viagens de uns continentes para outros, troçando dos fusos horários. Ora, o jovem gigante americano, ao mesmo tempo que nos fazia sentir que o oiro é poder, objectivo sagrado, punha-se de amores com as artes, libertando-se assim de um obscuro complexo de inferioridade. Desse modo, desde que a alguns pintores se reconheceu um estilo nacional, desde que se assentou que havia uma arte emancipada da suserania de Londres e Paris, sobressaindo por uma sugestão de força, logo se puseram ao seu serviço meios praticamente ilimitados. Com efeito, impressionada pelo brado da escola nova-iorquina, a classe média americana, até aí desdenhosa, deu as mãos aos intelectuais num mesmo fervor pela pintura.
Durante a visita ao professor Adami, quase toda ela centrada nas dissonâncias de uma sociedade como esta, agarrada aos seus velhos mitos e ao mesmo tempo numa férvida e constante renovação, onde tudo, portanto, pode suceder, também falámos disso e ouvi-lhe coisas como o que se segue:
- Os Americanos despendem anualmente, com os seus lazeres, qualquer coisa como um bilião de dólares, dos quais uma grossa fatia é dedicada à pintura, à música, aos espectáculos. E quando falo em espectáculos, não estou propriamente a referir-me ao Madison Square Garden... Essa fatia está em vias de triplicar com incrível rapidez. Vai-se instaurando uma verdadeira cultura de massas. Dirá o senhor que é o suplemento de alma de um povo sacrificado ao produtivismo cego, mas nela germina algo de novo que nos está a impregnar. A originalidade da arte americana actual reside justamente nessa sanção do ordinário, no menosprezo pelas convenções da "arte elevada", no interesse crescente pela matéria-prima do quotidiano. Como sabe, Rosenquist pintava cartazes para ganhar a vida e foi a pintá-los que aprendeu pintura. Oldenburg ilustrava revistas, fazia design. Tal como Wesselmann. A lista seria um nunca-acabar. Assim se chegou ao emprego de técnicas comerciais para transmitir imagens de representação popular. Talvez porque as artes se misturam com o cidadão comum e dele recebem incentivo, os museus americanos são instituições privadas, geridas por trustees, administradas como uma grande empresa. Podem, por isso, vender ou trocar peças do seu património, arriscando-se frequentemente a reacções iradas. O que conta é a eficácia, o resultado. Tal como se se tratasse de qualquer ITT. Os gestores do Museu Solomon Guggenheim não hesitaram em desfazer-se de quarenta e sete obras de Kandinsky, Léger, Chagall e outros para, tirando daqui e pondo acolá, não perderem o ensejo de conseguir as duzentas e trinta e oito peças da Fundação Hilla Rebay. Esclareça-se, porém, que o museu continua a possuir a mais importante colecção Kandinsky do mundo: um conjunto de setenta óleos, cinquenta aguarelas e noventa gravuras, tudo de primeira escolha. Por essas e por outras, tanto nas compras, como nas vendas, o director do Museu de Arte Moderna tem-se visto em apuros nas colunas da imprensa. Sobretudo quando se sabe que ao museu foi impingido gato por lebre. Não é tão raro como isso que, discretamente, desapareçam das paredes certas obras. Eram falsificações.
Mas voltando às personagens deste milagre à americana que é a arte actual made in USA: mercadores, coleccionadores, críticos e, em particular, os que ali chegaram como foragidos do nazismo ou como despojos da guerra são os heróis de um furacão artístico que deixou a Europa estarrecida quando, em 1968, no Grand Palais de Paris, se expuseram as obras de um Pollock, de um Warhol, de um Rauschenberg - a Arte do Real 1948-1968. Arte americana. Lugar ao gigante! Lugar ao ciclone. Por isso se diz, com humor negro, que no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque falta uma estátua: a de Hitler. Não fora o terror nazi, e os "degenerados" como Hoffmann e Albers não se teriam acolhido a essa pátria que, embora Nino Grisanti a considere implacável para os falhados e desditosos, não desconfia dos estrangeiros, ao contrário de muitos países da Europa. O estrangeiro é rapidamente aceite nesse terreno de liça, tumultuoso e sangrento, e ninguém lhe fará sentir que ele veio de fora. Porém, nessa pátria do vencer ou morrer, e até então, as artes eram um luxo ou uma chinesice. O gigante ainda não despertara da sua letargia.
Hoffmann foi o primeiro a desembarcar, em 1930, face a essa legendária Manhattan, que dizem ter os cinzentos mais variados do mundo. O seu papel no nascimento do expressionismo abstracto, fresca e impetuosa rajada na arte americana, iria ser decisivo. Albers, três anos depois, viria propor a sua escola óptica. Uma fotografia de 1942, tirada na Galeria Pierre Martine, de Nova Iorque, dá-nos este friso: Matta, Zadkine, Tanguy, Ernst, Chagall, Léger, Breton, Mondrian e outros que tais. Os surrealistas, por esse tempo veramente agitadores, lançam a revista VVV e o automatismo psíquico, a que nem escapou Jackson Pollock, chefe de fila da action painting e, como ele próprio se definiu, pintor "por acaso e por acidente". Mondrian arvorava-se em pioneiro da arte geométrica. Nas paredes do seu atelier, quadrados de cartão de várias cores eram pedras de um xadrez que ele fazia deslocar insaciadamente para ensaiar novas composições. À sua chegada a Nova Iorque, impressionado pela mobilidade visual das avenidas, passa bruscamente de uma plástica hirta a uma estética baseada na vertigem da retina, na vibração. Assim, rompe com o geometrismo e decide-se pela arte óptica. Com as três obras New York City, Broadway Boogie-Woogie e Victory Woogie dá o sinal para o que mais tarde se chamaria a op art.
Toda esta irrequietude coincide, aliás, com uma viragem na sociedade americana, na qual, após a Primeira Guerra, se deu um despertar colectivo, um fervilhar de iniciativas e de ideias, um assomo de afirmação. Simultaneamente, contudo, exacerbavam-se as carências afectivas e morais de que a América sempre mostrou padecer, manifestando-se com uma espécie de ferocidade.
Em redor dos anos 50, porém, a cena artística americana aparecia dominada pelos expressionistas abstractos. Obras desmarcadas, metros e metros de tela, cores orgíacas, obras nascidas de uma fogosidade sem parentesco com o já visto. Amplidão, barroquismo, violência. Energia, fúria, extravagância. Pollock, Newman, Rothko, De Kooning eram os chantres primitivos dessa nova doutrina. Quase de um dia para o outro, aluía o império da pintura europeia. À febre de se libertar do tributo juntava-se a agressividade no desbravar de caminhos insuspeitos. Nada dos refinamentos da civilização fatigada que criara a América porque era preciso expulsar para algum lado os réprobos e os insubmissos. Um ostensivo desprezo pelas suas convenções e pelas suas susceptibilidades. Esses chantres apresentavam-se como os arautos de um mundo que tomava consciência do que era, colossal e trepidante, bravio e infatigável. Um mundo novo, uma nova maneira de exprimir. Em vez do pincel, usavam seringas, espátulas, usavam mesmo os dedos e as mãos mergulhados nas latas de tinta. O que explodia nas suas telas, do tamanho de murais, era uma sociedade caótica mas robusta, da qual eles procuravam exorcizar tanto os seus demónios como a sua voraz vitalidade. Action painting, pintura em acção, digamos assim. A arte ao ataque. E tão bem, ou tão demasiadamente bem conseguida, que não poderia sobreviver longo tempo. Mesmo as obras ou as vidas triunfantes, e merecedoras desse triunfo, estão antecipadamente condenadas à precariedade.
O expressionismo abstracto não era, porém, a única forma de "arte nova". Havia a abstracção geométrica, que preferia a linha e o ângulo rectos, havia o que se pode chamar a tradição verista americana, tendo por divisa "pintai o mundo tal como é" (portanto fiel à ideia de que a pintura, ainda mais que a linguagem, tem ou deveria ter o dom de ser entendida por todas as pessoas), rejuvenescida de cada vez que a realidade em mudança lhe injectava novos temas e lhe inquietava o estilo, e havia ainda a abstracção lírica, com Franz Mine e Clifford Still, para não ir mais longe nesta pluralidade de correntes.
No entanto, não será inteiramente correcto dizer-se que foi o expressionismo abstracto a lançar o grito da emancipação. Os quadros da celebrada colecção Garbisch, entre outros, mostram que desde a chegada dos primeiros colonos nascera na América uma arte original, desenvolvendo-se espontaneamente no decurso do século XVIII. Uma arte instintiva e puritana, ainda hoje muito viva nas vocações isoladas que vão surgindo de um extremo a outro do país. Quando o texano Sidney Janis, que ficou na legenda dos mercadores a quem a arte deve audácia e faro apurado, se pôs a percorrer a América, de fazenda em fazenda, contactando lavradores, mineiros, donas de casa, a fim de se documentar sobre uma pintura ingénua que ninguém ainda tentara valorizar, deu com testemunhos genuínos da sociedade americana, de significado inestimável. Um livro aberto, uma história a quente.
Desde logo, tratava-se de uma pintura de minúcia e rigor, num cenário campestre. Os seus heróis eram pioneiros deslumbrados com a riqueza do solo, bênção de Deus e desafio aos homens, mas um deslumbramento regido por éticas severas, de Bíblia na mão. Sentia-se que a posse dessa terra tinha um valor mitológico. Era a real estate, a "verdadeira propriedade". A terra fora conquistada com sangue por gente que atravessara o oceano porque não tinha outro lado para onde ir. A América, América de Elia Kazan nascera da amargura e também da esperança. Depois o cenário foi-se transformando. Entravam agora em cena tanto o aventureiro, o oportunista, como o americano empreendedor, fundando cidades que logo desatavam a crescer, até degenerarem em babéis da indústria, em palco dos grandes negócios e do crime institucionalizado. O quadro Os Punhos Nus, pintado por George A. Hayes por volta de 1860, era eloquente desse período: um combate de boxe ao ar livre, perante uma assistência de homens de chapéu alto e facundas bigodaças - os "ianques", no dizer desdenhoso dos aristocratas do Sul. Nessa terra virgem onde desaguavam imigrados dispostos a tudo, abria-se caminho à força de punhos. Punhos nus. Mas o combate de boxe admitia outra interpretação: numa sociedade onde medravam sementes produzidas por frutos desiguais, uma cena assim poderia sugerir a domesticação da violência por normas codificadoras que disciplinassem o viver e lhe dessem nobreza. Todavia, a panorâmica dominante teria de ser o contraste: campesinos, trapaceiros, andarilhos, ambiciosos, toda uma população híbrida progredindo em febre, ora austera no trajar e no lidar, ora desobediente a qualquer cartilha de comportamento.
Tudo isso se testemunhava nas obras dos artistas americanos, embora aos poucos se fosse fixando um perfil-modelo: o do homem de acção, para quem os valores do trabalho predominam sobre os valores subjectivos. As coisas perdiam o seu coração romântico, o universo a sua falsa profundidade, tanto como o descritivo se desfazia das finuras do velho estilo.
Este detectar da pintura americana, estivesse ela onde estivesse, chegou a ter expressões de corrida ao Eldorado. A América procurava o seu rosto no sudário da arte. A Fundação Ford decidiu conceder uma bolsa de cento e cinquenta mil dólares para que o Museu Whitney mandasse pesquisadores, de estado em estado, descobrir pintores e obras que poderiam correr o risco de passar despercebidos. Parte das quotizações dos "Amigos do Whitney" destinava-se a esse fim. E os ricos abriam e abrem a carteira porque esses donativos dão prestígio social e amaciam as gulas do fisco.
UM LUSO-AMERICANO PARTIDO AO MEIO
Um misto de fascínio e aversão.
Isto podia pôr-se na boca do senhor Pierston, o tal imigrado que me levou a conhecer a culinária romena, ou na de Rodrigo Saavedra, o nosso compatriota residente em Toronto. O senhor Pierston não estaria hoje na América se não tivesse existido Hitler, se não tivesse havido uma guerra e campos de concentração. E se as pessoas não insistissem em viver mesmo quando, dentro delas, a vida se fez apenas absurdo ou tormento. Cidadão americano, faz questão em que o saibamos, mas o seu olhar é frio e o opaco sempre que ergue o rosto para o horizonte murado de arranha-céus ou sempre que, muito simplesmente, com o enfado de aristocrata em terra de vilões, observa a gente que nos devassa no restaurante. A sua pátria, a de origem, e as várias e distantes metamorfoses do que foi a sua biografia são ainda hoje uma cicatriz, uma nostalgia de si próprio.
De tudo isto pouco fala, porém. E o que diz soa-me a uma viagem aventurosa a um passado fabuloso: um cowboy que monta o seu cavalo e percorre ravinas, montanhas, desertos, sem saber para onde vai nem o que pretende. Nada possuindo, nem sequer um destino, não tem medida a sua fruição de uma terra livre.
No campo de concentração ficara-lhe a primeira mulher. Depois fora quase um ano de comboio, avançando e recuando por essa França de retirantes, sem cuidar se haveria um rumo para uma fuga assim - que condutor obcecado ou visionário lhe adiara um desfecho? O comboio movia-se de noite, num arfar sufocado, mal a aurora o alumiava era preciso camuflá-lo com medas de palha e braçadas de ramaria. Quase um ano, uma vida. Por fim, os corações tinham emudecido no espaço fechado das carruagens, repetiam-se os sobressaltos por hábito, as pessoas tinham condicionado as emoções e os gestos por aquele cárcere errante, resistia-se ou aceitava-se aquela transitoriedade definitiva porque não havia outra coisa a fazer.
Durante esse tempo, acompanhara-o um gato - seu desvelo, sua ilusão. Com ele, mais a segunda mulher e um filho de cinco anos, percorrida já meia Europa em ofícios precários, embarcara para Nova Iorque, aportando a um dos molhes do West Side Highway, na sua mudez o espanto do renascer. De vendedor ambulante a motorista, o senhor Pierston repetira escrupulosamente a legenda do imigrante que nem a língua conhece do país onde se abriga e é o primeiro a fechar as portas de retorno. Agora dirige uma próspera agência de viagens, o passado é a tal lembrança aventurosa, mas em que se pega cautelosamente com dois dedos, não se vá machucar-lhe as asas ou despertar-lhe os fantasmas. Refere-se-lhe, pois, com sobriedade. Ou antes: numa toada distraída, refere-se a uma certa ideia que faz de si próprio, reinventa, também distraidamente, uma infância e uma adolescência em vão perseguidas, porque não se recupera o que se duvida se existiu. A América, perguntava eu? O prolongar de uma viagem num comboio sem direcção. Este, porém, era um comboio estrídulo, devorador de paisagens, e ele podia sentar-se no seu lugar com a certeza de que ninguém viria cobrar-lhe o bilhete pelo preço de uma morte adiada.
Na sua doçura de sacristão, arrepiada de ironias, Rodrigo Saavedra fora para mim uma testemunha mais aberta. Punha-se de lado, quando havia terceiros à volta, que ele flagrantemente sentia como intrusos, mas sem perder ensejo de me alertar para qualquer facto que merecesse reparo. Saí de Toronto sem lhe identificar a profissão - tanto me falava de um vago organismo oficial como de um estúdio de teatro. Não parecia, contudo, muito interessado no Canadá, embora lhe gabasse a benignidade nas relações humanas e a tranquila pujança: o fito era a América, sua obsessão, para onde me empurrara como se de mim esperasse a desforra de que não fora capaz. Desforra da América? Tenho dúvidas. O seu ajuste de contas não era com um ambiente, menos ainda com um país: era com uma personagem que esse ambiente secretara. A sua vivência americana, centrada, como disse, no meio universitário, exprimia-se, contudo, de um modo tal que seríamos levados a crer que o perfil de todos os imigrantes portugueses, fossem agricultores, operários ou artesãos, se moldava pelo de um certo Jorge Elias, professor em Sacramento. Tempos depois, aconteceu avistar-me em Lisboa com um luso-americano, por coincidência também professor, e ao primeiro exibicionismo da sua parte, logo encrespado em inquietação, reagi como se tivesse na frente o Jorge Elias. Aquelas ênfases caricaturais só podiam ser dele. Tanto como a dramaticidade sem grandeza.
Jorge Elias, filho de pescadores algarvios, já se desembaraçara, evidentemente, desse nome. Chamava-se agora George Ellis, um nome que tanto podia ser americano, dos da velha guarda, como de origem europeia, recente mas estimável - nunca, porém, portuguesa. E logo aí se acusava a sua personalidade fracturada.
Rodrigo, ao descrevê-lo com minúcia, triturando-lhe a imagem nos dentes das palavras, punha regalado acento nessa bipolaridade do comportamento do imigrado, que, naquela ocasião, podíamos deduzir que se aplicava a todos os Jorge Elias em terras americanas.
- Para os americanos - elucidava-me Rodrigo, repetindo-se as vezes necessárias - ele é Ellis, não pertence à "minoria", fala só inglês e faz o possível por que os filhos nunca venham a aprender o idioma dos seus avós; para os portugueses, no entanto, continua a ser o Elias e cobra-lhes lições que não está preparado para ministrar. Pondo nos píncaros das nuvens tudo o que é América, mesmo o que envergonha os Americanos, esse ridículo exagero é patético, pois nele se esconde a admiração pelos valores humanos portugueses. Uma admiração que ele, repare, não consegue conter. Há-de ouvi-lo apoucar o que é nosso, mas o seu encarniçamento só revela a impotência por extirpar de si uma cultura, esse rio profundo que impregna os ossos de um povo, quando ele já fez história.
E o facto é que o "há-de ouvi-lo" de Rodrigo se confirmou no tal encontro em Lisboa com um dos George Ellis dos Estados Unidos.
Ellis ou Elias, ou ambas as coisas, padece, pois, da "crise de identidade", que é uma das feridas mais cruentas dos americanos até à terceira geração e não apenas dos luso-americanos, embora Rodrigo Saavedra nos faça supor que a nossa gente parece particularmente exposta. Ou, então, no seu Elias a crise exacerbou-se. Eles são americanos, querem sê-lo, mas sentem-se postiços sob essa muda de pele. Alguém, em qualquer momento, lhes avivará a segregação a que foram sujeitos. Continuam americanos de segunda apanha, a América tolera-os sem, todavia, os poupar ao ferrete da sua condição. Estão confrontados com a realidade de terem de viver numa terra que não é a deles, que lhes reserva um estatuto humano de bastardias, mas donde, afinal, já não podem ou desejam sair.
E a personagem que me é sugerida pelo traço acerbo de Rodrigo vai tendo uma nitidez física, associo-a ao que observei, ao vivo, no quotidiano do Canadá. Um tipo agrisalhado, a cabeça escapando-se dos ombros como uma tartaruga, um sorriso que escorre sebo e amargura. Imagino-lhe sobretudo os modos, a insegurança simulada de fanfarrice, o floreio do gesto ao preencher o livro de cheques ou as notas de crédito, quer num posto de gasolina, quer num restaurante de tabela salgada, a palavra gorda mas vazia. E sob essa triunfadora aparência, o acanhamento, a lorpice.
A pele de Elias é outra, porém a carne que ela cobre não sarou. O imigrado enaltece este mundo espevitado e farto, cujo ritmo já lhe corre o sangue; contudo, as seivas da sua origem são um lastro e uma queima, o alicerce de que precisa para não se sentir vazio e dilacerantemente desapoiado. Daí o seu ressentimento para com a sociedade do país onde os seus ascendentes não puderam encontrar meios de vida. Em resposta a uma americana que averiguava de como se dirigir a um português, a nossa reportagem logo a alivia de hesitações:
- Chame-lhe qualquer coisa, Zé, por exemplo. Todos os portugueses acodem ao nome de Zé.
No fundo de si mesmo, Ellis ou Elias não sabe quem é e o que é, não sabe donde veio nem aonde pertence, embora às vezes, ele ou qualquer outro como ele, se veja regressado aos longes da memória, que podem ser apenas uma casa, uma árvore, um café no largo, e nessas ocasiões olhe com incredulidade a muralha de betão que o rodeia.
Rodrigo Saavedra localiza o seu herói na tal universidade de província e vai dizendo, como sempre sem um salpico de humor, que, abstraindo da Ivy League, cadeia de cerca de dez universidades particulares donde sai tudo o que na América é massa cinzenta, o mais, quanto a estabelecimentos universitários, não vale a designação que ostenta. Aliás, grande parte dos estudantes não pode ou não quer dedicar-se inteiramente ao estudo. A América, que faz gala dos seus milionários com um passado rude, dificilmente aceita que o jovem não "trabalhe". E trabalho não é pôr-se uma pessoa olhar para os livros: é suor. Por isso, o estudante tem de procurar noutra ocupação a fonte de receita para seus estudos. As próprias universidades dispõem de repartições para a colocação dos seus alunos, que, assim são simultaneamente condutores de autocarros, cozinheiros, serventes, empregados de escritório.
Como professor universitário, Jorge Elias não tem sono tranquilo. Ele e a maioria dos colegas. O seu cargo perdura enquanto tiver uma clientela de alunos que o justifique perante a administração, que gere a universidade como uma empresa. Trata-se efectivamente de uma "clientela" - caprichosa e cruel. Jorge Elias precisa de a seduzir e cultivar, indo de porta em porta junto dos luso-americanos mais saudosistas ou ainda crentes de que a língua natal poderá representar um investimento. E precisa ainda de se dobrar aos ventos, sopre eles donde soprarem. Sendo o ensino totalmente descentralizado, as correntes que o influenciam partem de baixo para cima e não de cima para baixo. A estrutura escolar é assim gizada a nível local e sob pressões de variadíssimo cariz. Para mais, Jorge Elias ensina a língua e a cultura portuguesa sob a tutela complacente de um departamento que tem a Espanha e o Brasil como núcleo dos seus interesses. Ali, a cultura portuguesa é a parente pobre. Para o departamento pouco importa que o professor Elias apenas tenha em vista o número e nunca a qualidade. Por isso ele poderá dedicar-se à bajulação e à intriga, fazendo rematar os cursos com classificações que nada têm que ver com as realidades. Portugal é longe. E insignificante.
Ouvindo Rodrigo, estamos mesmo a seguir os passos aflitos de Jorge Elias na sua azáfama de caçador de estudantes. Sendo-lhe indiferente a promoção social do imigrado através da promoção cultural dos seus filhos, Elias ou Ellis, tanto faz, torna-se, afinal, em mais um instrumento do nosso descrédito aos olhos estranhos. Nem sequer se coíbe de sobrevalorizar o Brasil e a Espanha sempre que se trate de confrontos. Não nos perdoa o seu viver de vexames.
Ellis é, pois, uma personagem. Mas evitemos generalizá-la ao comum dos imigrados. Rodrigo, mesmo a contragosto, admite essa distinção ao salientar-me que o português, apesar da posição secundaríssima que ocupa na sociedade americana (e na canadiana), tem dinheiro, que é aqui o padrão por excelência, atingindo rapidamente uma relativa abastança, e é apreciado por certos modos de ser que, mesmo quando desdenhados, fazem jeito numa sociedade onde eles foram rareando. Na emulação com imigrados de outras origens, vale-lhe de triunfo a operosidade, o pegar no primeiro ofício que apareça, e não menos o respeito pelas regras do jogo que veio encontrar. Nada de fazer ondas: o português pede trabalho, não pergunta como vai trabalhar. No entanto, esse desafogo de formiga obediente a Deus e ao Diabo volta-se também contra ele. O americano de 1972, que prefere o desemprego a uma ocupação que lhe ofenda os brios, não perdoa ao portuga uma folga económica desacertada com a sua inferioridade social. Ele é minoria. Um segregado, porém, que nem em máfias se soube organizar, que nem sequer explora os filões dessa segregação.
Não sei se o que ouvi a Rodrigo Saavedra justificaria relatá-lo aqui se eu tivesse tido oportunidade de contactar com a colónia portuguesa dos Estados Unidos. Assim, esse colono tenho de registá-lo, decerto abusivamente, apenas através de uma figura ocasional e em segunda mão: George Ellis. O George Ellis correndo para todos os telefones que se lhe deparam ("O telefone, a televisão e o automóvel são imprescindíveis"), anota-me Rodrigo, "a vida está organizada de modo que eles façam parte da biologia"), o George Ellis mercadejando a sua banha-de-cobra de professor cronicamente ameaçado de despedimento, um Ellis entrando numa sala de aula onde, num painel, os alunos são aconselhados a não abandonarem por um instante quaisquer objectos pessoais, pois o roubo tornou-se moeda corrente, e para quem duvide aí se indica o número de carteiras surripiadas no mês anterior, um Ellis transferindo para o seu lobo-d'alsácia os afectos frustrados, um Jorge Elias, enfim, que talvez um dia vá procurar a infância num lugarejo algarvio.
Estávamos, pois, na arte, a ela voltamos.
Avançando rapidamente nos anos, verifica-se que há uma linhagem americana da arte cool, vinda do pré-guerra com os discípulos de Mondrian e os chamados "antigos" do Bauhaus, e se foi apartando da arte geométrica europeia por uma diferença de clima: onde homens como Vasarely propunham composições formalistas e atormentadas, os americanos, desde 1944 com Newman, e desde 1952 com Kelly, vão direitos ao objectivo de "um máximo de cor num mínimo de formas". Superfícies lisas, painéis imensos, monocrómicos, apenas uma franja dissonante de roda ou atravessando-os como uma frecha, para acentuar a monotonia. Ou então um motivo geométrico repetido por todo o vazio da tela. Empregar a cor por si mesma, como um fim e não como um meio, mergulhar o espectador numa atmosfera hedonista, era decerto a intenção destes não-figurativos. Baseada numa execução impecável, espectacularizada pelo descomedimento do formato, esta via levou artistas como Noland, Kelly e Stella a pintar telas em que as desérticas planícies ou as lagunas de cor não procuravam testemunhar outra coisa que a sua própria existência.
A par desses quadros de nove metros de largo, esculturas monumentais. As de Calder, por exemplo, são grandes objectos de placas de ferro soldadas, que ocupam espaços segundo ritmos particulares. Calder, que foi lenhador, pensa que o aspecto real das coisas não é tudo. Dentro delas há uma energia formidável, pertence ao artista captá-la e transmiti-la. São essas potencialidades "internas" que, como também pensa Arp, é preciso explorar. As esculturas de Calder, gradualmente libertas do peso e do tema, começam por ser "estáveis" e, por fim, tornam-se "móveis", compostas de elementos dinâmicos, balanceando como arbustos. Ele, Arp e todos os vanguardistas da época rejeitam o estatismo. Contemporaneamente, a ciência inventa o cérebro electrónico.
Mas as coisas não ficam por aqui. Tal como os pintores, os escultores reagem contra o universo dos buildings devorantes opondo-lhes a insensibilidade ou a indiferença: uma algidez geometrizada. Talvez a única oposição que a lógica do gigantismo não suporta. A violência na América também nasce da supercomodidade, da técnica que todos os dias invade as "reservas" humanas, do aparelho social todo-poderoso, e então uma pessoa, para se saber viva, precisa de esmurrar os punhos contra as paredes da sua fofa jaula. Isso já fora feito pelo expressionismo abstracto. A arte tentava agora outros meios: a inércia, serenadora das coisas, refreadora do tempo. Por vezes, os visitantes dos museus tomam essas carcaças impávidas por uma mesa ou uma cadeira deslocadas do seu lugar e sentam-se nelas. É a imobilidade a confrontar-se com a impaciência do mundo da máquina. A recusa é vertigem.
Perspectiva parecida se pode ter perante o hiper-realismo actual. O homem deixou de ser mais real do que a imagem seu reflexo. Entre a obra e o manequim, a diferença é coisa de nada. O visitante que, por engano, se sentava numa escultura de Tony Smith, pedirá agora desculpa àquela vampe com que esbarrou no átrio da casa de um amigo e é, afinal, uma figura de polistireno, uma obra de arte em tudo igual ao seu modelo. Se tomamos os andróides por homens não será porque o homem se tornou um andróide? Toda a realidade, em suma, empobreceu até não ser mais que uma ilusão.
A cool está longe de ter acabado. A sua segunda investida sobreviveu ao declínio da pop, e a importância que se lhe reconhece na arte americana, em particular quanto à escultura, não cessa de ser afirmada.
Em 1958, um jovem desconhecido estreava-se na Galeria Leo Castelli com uma pintura provocante. Jasper Johns era o seu nome. No próprio dia da inauguração tornava-se célebre. Aliás, Castelli sabia fazer as coisas, jogava para ganhar. Ao passo que os expressìonistas abstractos lançavam o homem contra o meio brutal que o reduzia a uma térmita automatizada, Jasper enfrentava o real com olhos frios e clamores. Um real medíocre, quanto mais ordinário melhor. Enfrentava-o reproduzindo-o com uma espécie de apatia, pior do que se fosse sarcasmo. O ponto de partida podia ser um objecto comezinho como um móvel, uma bandeira, um jornal, eliminando assim o problema da invenção e mais ainda o da sublimação. Essas ninharias eram o mundo dos homens - para quê falsificá-lo? Mas se a cool pretendia traduzir a fadiga da vida moderna, através da sua rejeição, e a rejeição chamava-se inércia, Jasper via as coisas em movimento. Em cada instante os objectos deixavam de ser o que eram, mutação essa tanto ou mais significativa que o objecto mutante.
Após percorrer a exposição, Alfred Barr, director do Museu de Arte Moderna, telefonava a um confrade: "Vem imediatamente. Verás qualquer coisa de novo." Por seu lado, De Kooning, talvez amuado com o êxito de Jasper, declarou que todo esse aranzel se devia a Castelli, que era homem para impingir fosse o que fosse como arte, até latas de cerveja. A história tem versões diferentes, mas um desfecho único: Jasper tomou a graçola à letra, fundiu em bronze duas latas de cerveja Ballantine, pintou-as à mão e não tardou que elas figurassem nos álbuns de arte americana do nosso tempo.
Castelli arriscara-se apadrinhando o jovem Jasper Johns. Porém, essa ousadia, esse apostar forte no incerto, característicos da ambiência americana, foram justamente uma das chaves do esplendor das artes plásticas nos Estados Unidos. Castelli nem sequer era dos mais temerários. O maior de todos, ladino e corajoso, sagaz e autoritário, seria por muito tempo Sidney Janis, cuja ascensão folhetinesca poderia servir de chamariz ao "como vencer na vida em terras de além-Atlântico". A biografia da arte americana tem de tê-lo em conta.
Janis, em 1925, dava lições de dança em Buffalo. Depois associou-se com o irmão num negócio de sapataria. Quando ia a Nova Iorque abastecer-se de calçado, fazia uma ronda pelos museus e galerias. Tal como acontecia com a mulher, tinha um fraco pelas artes. Talvez por isso, para se sentir no coração da vida artística do país, mudou para Nova Iorque em 1925. Estava-se, porém, na época de oiro da Florida e Sidney Janis queria fazer dinheiro, tanto quanto fosse possível e no prazo mais curto. A arte chegaria a seu tempo. Instalado na Florida, desta vez com uma camisaria, teve a ideia de lançar um modelo standard de camisa. O modelo era uma novidade: dois bolsos, um para os óculos, outro para a lapiseira e os cigarros. A camisa M'Lord. O êxito foi imediato e espectacular. Daí em diante, Sidney Janis poderia não só revisitar galerias, prestar-lhes toda a sua embevecida atenção, mas também adquirir quadros. O dinheiro abundava. Um dia tentou-se por um nu de Renoir: seis mil dólares. Resistiu ainda, assustado com o esbanjamento, mas na vez seguinte pagou o que lhe pediram por um Matisse. O seu primeiro quadro! Outros, porém, se lhe juntaram sem demora. Sidney e a mulher tanto se atraíam pelos nomes "sólidos" como pelos desconhecidos, e com uns e outros iam aumentando a sua colecção. O conjunto adquirido nesse espírito de aventura ia do cubismo aos primitivos, dos futuristas aos surrealistas. Como as galerias de Nova Iorque receassem a pintura "escandalosa", a crazy modern art, que afastava a clientela, o casal Janis ia procurá-la directamente aos ateliers.
Estávamos em 1939. Era tempo de Sidney Janis abandonar o negócio das camisas, florescente mas tedioso, e vestir uma nova pele, a apetecida: crítico de arte, por exemplo, que era um modo de se sentir ainda mais convivente com o objecto da sua paixão. Percorre então a Europa com os olhos adestrados e manhas de cigano, investindo à larga em obras de qualidade, e, finalmente, em 1948, abre em Nova Iorque a Sidney Janis Gallery, na qual, todavia, nunca venderá peças da sua colecção pessoal. Numa súbita opção, decide jogar em pleno na pintura americana. É o seu golpe de mestre. Não lhe escapou a importância que iria ter a pop art nascente e todos os demais movimentos em salutar antagonismo. O que faltava era dar-lhe prestígio, impor-lhes uma cotação.
O desejo secreto da maioria dos mercadores de arte é lançar desconhecidos ou ligar-se a artistas consagrados, mas o risco fascina sempre mais que a segurança. Intermediário entre a produção cultural e o "público", o mercador só pode vencer apaixonando, manipulando os ingredientes emocionais: a moda, o snobismo, o correr dos ventos. O valor de uma obra de arte é, afinal, nulo, não o podemos medir por uma bitola de "utilização": daí que o seu interesse pertença ao imaginário, dependa de critérios puramente subjectivos. Ou da confiança que se tem no inculcador ou no vendedor. Sidney Janis sabia de tudo isso. E preferia o risco. Como medianeiro, competia-lhe, então, estimular o sonho, favorecer esperanças, defender do desânimo aqueles que haviam deixado de crer.
Esse estar atento à novidade, aceitá-la, apoiá-la antes de mais ninguém, valeu-lhe, aliás, dissabores. Os artistas da action painting, por quem se batera durante nove anos, num tempo em que a TV, as revistas culturais, os mass media ainda não tinham começado a interferir em cheio no crédito e na cotação das artes, desertaram da sua galeria assim que ele deu luz verde aos mais novos. Essa debandada dos despeitados abalou-o mais do que seria de prever. Não pelo dinheiro, que ele poderia muito bem dispensar, mas porque se sentia deveras vinculado a essa geração. "É preciso ter os nervos sólidos", encorajava-se a si próprio.
De 1933 a 1940, Sidney Janis pertencera à Comissão Consultiva do Museu de Arte Moderna, seu museu predilecto, ao qual, aos setenta e dois anos, legou cem obras, apenas uma parcela da sua fabulosa colecção privada. Uma doação liberal: não só o museu poderia dispor livremente dessas obras, emprestá-las a instituições estrangeiras, como, dez anos após a morte do dador, nada impedia o museu de proceder a vendas e a permutas.
Extraindo da sua vida uma das possíveis exemplaridades, Sidney Janis escreveu: "Em Nova Iorque, pode-se começar por vender salsichas na rua e um dia, mais ou menos tardio, comprar um building na Park Avenue e pôr no telhado o próprio nome. Para tal, basta ter iniciativa e ser-se competente no ofício escolhido."
Vem a propósito, nisto de galerias, mercadores e acasos da fortuna, confrontar o depoimento de Janis com o de Paul Rosen, que no período do pré-guerra nunca fechou a porta aos pintores mais ou menos anónimos:
"Enriqueci involuntariamente, visto que, durante quase toda a minha vida, vi-me forçado a acumular obras por longo tempo invendáveis. Obras de Picasso, Braque, Juan Gris..." O mercador tem de ser assim: paciente e confiante. O essencial é o amor à arte. Aliás, toda a galeria precisa de um "fundo", como acontece às editoras, e isso tanto pode demorar dez anos como setenta. Há as vocações temporãs e há as vocações serôdias. Segundo consta, os mercadores são frequentemente ex-gráficos, ex-litógrafos e até ex-médicos. Para acudir às despesas, muitas vezes vêem-se forçados a alugar as suas paredes a pintores que procuram uma oportunidade de se apresentarem ao público e até são capazes de empenharem a camisa para o conseguir. Por cada galeria que se fecha, seja em Paris, em Londres, em Estocolmo, abre uma dúzia. A arte encontra sempre quem se lhe prenda ou a desvirtue em negócio especulativo, em capricho de marajás. Muitas dessas galerias, porém, transformam-se em centros culturais, em focos dinamizadores, procurando a sobrevivência na especialização. Uma sobrevivência que até pode ser a fortuna, tanto para quem a apeteceu como para quem nunca a teve em cobiça.
Entre o expressionismo abstracto patrocinado por Sidney Janis e a pop art com que iria medir-se, foram lançadas várias pontes. Uma delas, a partir de 1954, chama-se Robert Rauschenberg, conhecido sobretudo pelos seus combine-paintings - amálgama de telas, fotos, ferro-velho, papéis. Para ele, "a tecnologia é a paisagem da nossa época". Uma paisagem desolada. As suas exposições individuais na Galeria Castelli, tal como as de Duchamp e Jasper Johns, vincularam-no fortemente à pop. Mas na época Kennedy vemo-lo já ao lado dos actualistas, dando-nos uma visão crítica da desmesurado mundo americano. Assinale-se, porém, que a pop art surgira primeiro em Inglaterra, ou melhor dizendo: em várias cidades europeias, e só depois, como fenómeno paralelo e independente, nos Estados Unidos. Parece que os artistas pop se ignoravam uns aos outros. A caracteriologia é que era a mesma: um hibridismo formal entre a tradição abstracta e a figurativa, uma linguagem directa. E uma temática idêntica: a sociedade de consumo, os produtos comerciais. O homem só ocasionalmente aparecia como personagem e o mesmo sucedia com o seu meio natural. Por exemplo: não há árvores na pintura americana do presente. Havia na antiga.
A partir de 1950, os artistas tinham misturado nos materiais convencionais pedaços de cartazes ou de madeira queimada, farrapos, metais parecendo em fusão. Era a técnica da "colagem" a reaparecer, mas com mais verismo e menos esteticismo do que na época cubista.
Na década de 60, em suma, a arte americana regressa deliberadamente aos seus filões realistas, impregna-se das vivências em que mergulha, e desses filões parece não querer afastar-se. Observam-se erupções similares numa Europa decadentemente desdenhosa de tudo o que é clareza e vitalidade, mas não passam de erupções: o furacão sopra do outro lado do Atlântico.
Panorâmica análoga se encontra, aliás, na literatura. E sobre isso será curioso ouvir uma escritora francesa que escolheu uma aldeia americana para viver: Marguerite Yourcenar. (Como poderia ter escolhido um "recanto de Portugal" - palavras textuais.) Diz ela acerca da literatura europeia, referindo-se, entenda-se, à literatura da tal Europa do Ocidente: "O que me faz pena é verificar a que ponto ela permanece estreitamente subjectiva, cada um encerrado na sua concha. Tenho grande dificuldade em me entregar a livros em que o escritor vagueia nebulosamente em amores mal correspondidos, em desgostos da adolescência, ou nas paisagens que o viram crescer - uma atmosfera que não difere muito da do romantismo. Eu preferia uma literatura francesa a mergulhar no drama, na actualidade que vivemos e que, decerto, seremos os últimos a viver."
Várias galerias se podem candidatar a pioneiras da pop art. Mas é a Galeria Reuben, no Lower East Side, especializada nas correntes de vanguarda e numa arte "da rua", que mais vezes é considerada seu berço. Alguns dos primeiros happenings, mescla (ou síntese) de teatro e artes visuais, parece que foram ali realizados. O patrono do meio era Allan Kaprow. Também as Galerias Green e a Cooperativa Hansa estão nas origens da pop, a par, ainda, da Judson, que apresentou A Rua de Oldenburg e a Casa de Dine, e da Galeria Martha Jackson, na parte alta da cidade, onde decorreram mostras que deram brado. Em princípios de 1962, Lichenstein, Dine e Rosenquist realizaram exposições individuais que já correspondiam a uma rápida divulgação dessa arte que, numa crueza insolente, recorria a tudo o que dantes era considerado de somenos: ilustrações publicitárias, bandas desenhadas, fotografias, lugares-comuns. O que importava era o choque nos esquemas mentais em vigor. Não se tratava mais de "quadros", mas de "produtos". E esses "novos pintores de tabuletas" contratavam outros "artífices" para reproduzirem ou completarem os seus artefactos, numa revivescência das oficinas medievais. A arte dessacralizava-se. Por último, no Outono de 1962, com a exposição dos Novos Realistas, na Galeria Sidney Janis, a pop impunha-se definitivamente como um impulso e um estilo bem do nosso tempo e consagrava-se como moda. Expandindo-se à doida, a pop tornava-se o grande bazar da civilização.
Dos artistas pop de Nova Iorque mais ortodoxos foram-se singularizando várias heterodoxias. A pop, segundo os entendidos, já deu uma terceira geração. A partir de 1965, os pop mais inventivos partilhavam com os seus contemporâneos abstractos uma atracção pelas formas simples. Os novos materiais permitiam uma composição serena, distribuída por superfícies lisas, impecáveis. Tendia-se, assim, para uma depuração da linguagem, na qual, porém, gradualmente, se diluía
o protesto. A arte torna-se inofensiva quando deixa de nos surpreender, de nos impressionar. Ou quando, desveladas as suas íntimas alquimias, perde magia. Ou quando começamos a duvidar da sua grandeza. Mas esse evoluir para o declínio é, afinal, uma condição
de perdurabilidade, pois se todo o movimento artístico, como toda a vida humana, avança para o crepúsculo por entre louvores e ultrajes, ou por entre silêncios, outros brados e outras vozes vão entretanto despertando para responder àqueles novos desafios que os sentidos envelhecidos já não saberiam escutar. Nessa lei natural, apagam-se os sinais do que passou? Decerto que não. De todas as vezes que a arte muda de pele, herda-se e transmite-se um mundo, sem ele nada seria revigorado. Cada geração, em suma, é um momento de passagem, muito fortuito. E lembremos que até as colunas derrubadas continuam a testemunhar o génio que as ergueu.
Paralelamente à evolução da pop art, progredia um realismo cada vez mais radicalizado. Seria o hiper-realismo. O fenómeno tinha antecedentes. Desde 1960, Philip Pearlstein e Alfred Leslie haviam trocado o expressionismo abstracto pela figuração tal como a praticam ainda hoje. Todavia, o hiper-realismo é a pós-pop art: uma pesquisa consciente da coincidência entre a realidade e a sua imagem. Um desvelo de pormenores que leva ao conhecimento mais exacto possível do real e à restituição também o mais fiel possível desse conhecimento. Como alguns dizem, a "contrafacção" do real,
o que vai além, pois, da sua duplicação. Tudo em nome do registo construtivo do "aqui e agora", da total objectividade da visão. E também da especificidade de cada coisa e de cada ser. Nunca se fora tão longe no propósito, quase obsessivo, e que até chega a afigurar-se maníaco, de fazer "verdadeiro". Os homens retratados pelos hiper-realistas são únicos, com características precisas, tão individualizadoras como uma impressão digital. Desde os pêlos da barba, aos olhos, às rugas, ao colarinho. E, no fim de contas, o mesmo se pode dizer dos objectos, do ambiente, quer sejam as carcaças de automóveis, cadáveres esventrados (aqui se denuncia a sociedade do possuir e do desperdiçar), as montras ostentatórias de uma loja, cujos vidros são jogos de reflexos, jogos de aturdimento, ou os rebrilhantes cromados de uma motocicleta. Não interessa o que exista por debaixo disto, os tais vulcões ocultos, que a arte do conceito escavava. Interessa a aparência minuciosamente descrita. Registo inocente, baço, como a objectiva fotográfica? Mas se o aparelho é neutro, não o é o fotógrafo ao escolher a coisa fotografada, o ângulo de focagem, a luz, o contraste. Olhar é já seleccionar. Ora, o que o hiper-realismo nos documenta é um mundo habitado de mercadorias vulgares. Um mundo alienado, com uma qualidade de vida medíocre. A escolha de temas do hiper-realismo, ainda que sem vibração nem veemência, é terrivelmente denunciante.
O hiper-realismo só trepou verdadeiramente à crista da onda quando, em 1970, o Whitney Museum lhe dedicou uma exposição. A partir daí, artistas de vários países alistaram-se na corrente americana, uns levando ao cúmulo a precisão clínica da pincelada, outros rarefazendo-a numa fluidez sonâmbula, e todos repartindo-se entre o objecto-objecto e um erotismo severo, no qual a mulher continua a ser esse mesmo objecto, embora por vezes tal severidade seja trocada pelo sarcasmo. A Galeria Sidney Janis, por último, já em 1972, organizou, com o habitual fragor, a Sharp Focus Realism. Estava feita a consagração.
Desde os já clássicos Cafeteria de Richard Estes, Nancy de Chuck Close, Dois Nus Sentados de Philip Pearlstein, até aos corpos de John Kacere, às viaturas de John Salt e a essas mortificadamente repetidas auto-estradas de solidão (asfalto, margens, terra nua), o hiper-realismo tem avançado tanto na cópia gelada do real que já não pode recuar. Há quem lhe augure, por isso mesmo, o naufrágio para breve: o maneirismo academizado, que é um modo de adiar o fim, ou a derrota confessada. Se assim for, que terá restado da sua efemeridade? A evidência exemplar de um caminho sem porta de saída, apenas a atonia que desarma a tormenta? Ou uma peça indispensável do processo deste nosso tempo - a tal realidade "profundamente posta em causa porque tão fielmente reproduzida", como pretende Daniel Abadie?
Do hiper-realismo estático, na aparência alheado, ao actualismo dinâmico, já capaz de febres e de dedo em riste, haverá um parentesco estreito, linguagens justapostas, ou, pelo contrário, propósitos declaradamente diferenciados num mesmo olhar directo? Os actualistas, pintando acidentes de automóvel, a cadeira eléctrica, as revoltas raciais, armas de guerra envolvidas em espaguete, isto é, abrindo as estradas do negócio, tomam a actualidade como base de uma nova consciência do mundo. Estão sobre o instante, sobre o acontecimento. Opõem à imagem da solitude a da colectividade, optam por esta. Se utilizam os mesmos elementos da pop, como latas de conserva, fotos publicitárias, aparelhos de televisão, é para fazer sentir o pesadelo do mundo que criámos e não como um maravilhamento impressionista em face da modernidade. Se pintam aviões, motos, desastres, execuções, numa verificação de que a morte, no quotidiano de hoje, pertence à mesma atmosfera de frenesi demencial, de cupidez assassina (Rosenquist, no seu FIII, pinta um bombardeiro ironicamente emaranhado em ingredientes de conforto - o imperialismo a fomentar guerras para se assegurar de mercados), tudo isso não pretende realçar a "beleza" ou a "fealdade" de uma civilização, como talvez o intentem outras correntes realistas, mas sim a necessidade, para cada um de nós, de definir novas relações com o mundo e de fazer coincidir a experiência imaginária com a experiência real - a necessidade de reajustar a nossa presença nas coisas e nos factos.
OS POVOS ACABAM POR SER O QUE PARECEM
Miss Stevens telefonou-me para o hotel. Quer fazer uma gravação. Apercebendo que a ideia não me entusiasma, e sem entender porquê, pormenoriza acauteladamente, como quem pesquisa o ponto doloroso: trata-se de uns minutos de conversa, sobre o que calhar (as minhas impressões de Nova Iorque, porque não?, embora preferisse um tema português), depois a leitura de umas páginas, talvez um poema para remate. Mas eu sou um mau leitor e, quanto a conversa, fico logo inibido ao sentir que está ali um bufo a registar-me as palavras.
- É para o meu arquivo - insiste timidamente a desolada senhora.
Nessa timidez, porém, há seja o que for a dizer-me ser chocante que alguém se recuse a colaborar no "arquivo" de uma pessoa estimável. Concedo. Suponho que os Americanos já não sabem viver sem máquinas, desde a de lavar loiça à de gravar coisas ou à de tirar retratos. Máquinas úteis e máquinas inúteis. Pois se elas se fabricam, se reclamam, se vendem, não é para serem utilizadas? Miss Stevens tem, naturalmente, um gravador e precisa de lhe dar uso. Do uso ao arquivo, foi um curto passo. Estou a ser duro para com Miss Stevens só porque os gravadores me engasgam a espontaneidade. Voltarei, portanto, à Astor Library.
Até parece que Miss Dorothy Stevens apurou nestes breves dias o seu português, conquanto ainda o triture nas maxilas rígidas. Torna-se-me mais agradável a sua presença esgalgada, de gestos lentos mas precisos, o seu sorriso que não se fatiga, que continua a ser sorriso mesmo quando uma contrariedade de súbito lhe estreita os lábios.
Para me quebrar os embaraços, Miss Stevens altera a ordem prevista. Começaremos pela leitura. Estarei de acordo com estas páginas, uma narrativa pegada, ou acho preferível dosear com uma pitada de diálogo? Quanto ao questionário, lá iremos depois, ela elaborou um plano de perguntas, poderemos ensaiar as vezes que for preciso antes de pôr a maquineta em funções. Vamos então ajustar o volume da voz, ver se tudo está em ordem. Miss Stevens pressiona uma tecla, outra, outra ainda, nada daquilo tem segredos para ela, experimenta, rectifica, é curioso captar-lhe uma certa solenidade no manejo do aparelho, o pescoço longo mais longo parece no seu grave e pausado curvar, e eis que a última tecla resiste. Precisamente a que correspondia, pelo que entendi, ao rodar da fita gravadora. E resiste mesmo. Tanto à persuasão hábil e paciente da senhora, apenas nos olhos um chispar glauco, como, depois, às insistências já um pouco agastadas. Não houve modo de a desencravar.
- Mas ainda há momentos tudo isto funcionava. É estranho como diabo amuou.
Esbocei um gesto de ajuda, antecipadamente fracassado. Eu e as máquinas nunca falámos a mesma língua. Enfim: tivemos (Miss Stevens teve) de desistir. Para minha velada satisfação. Ela, contudo, não se deu por rendida. A alternativa foi a fotografia. Uma fuzilaria de flashs à minha volta, de surpresa, nem me dando tempo para ressuscitar após cada tiro. Salvo duas poses convencionais de olhos nas páginas que eu não chegara a ler. Daí a pouco, já reveladas, aí tínhamos uma dúzia de fotografias a cor.
Miss Stevens tirara o seu desforço. Apaziguada, mãos no regaço, sorriso liberto das surdas irritações, queria agora saber o que eu vira e não vira durante esses dias. Não tardou que se falasse da violência, que era em Nova Iorque um respirar, um alerta instintivo, um odor de intranquilidade. Disse-lhe que o dono de um restaurante me prevenira que em Nova Iorque não se sai de casa nem com mais nem com menos de vinte dólares na algibeira. Os viciados a quem falta a droga, e têm de pilhar dinheiro de qualquer modo para a obter, não gostariam nada de apanhar um sujeito de bolsos lisos. Que não são os gangsters que inspiram medo, esses assaltam bancos, mas sim a arraia-miúda, sobretudo os jovens (é de boa regra não dar troco a um jovem que nos interpele na rua). E que esses diabos, para abrirem caminho no metro, nas horas de ponta, ajustam lâminas de barba nos saltos dos sapatos e, numa manobra rápida, vão rasgando as pernas das pessoas. Ou fazem só o gesto: isso basta para arredar os cidadãos pacatos.
Não sei se a expressão de Miss Stevens é divertida ou magoada, de tal modo evita exceder-se nas reacções. Eis as suas mãos a afagarem-se. Quando lhe parece que dominará qualquer ressalto de azedume, replica-me com suavidade:
- Sou de Bóston. Ora a violência, em Bóston, não poderá diferir muito da de Nova Iorque, creio eu, pois, à parte certas diversidades, vivemos todos no mesmo país. E o mesmo se dirá de San Francisco, de Los Angeles, sei lá. De toda a América. Tudo é América. Posso até dar-lhe números, que os tenho aqui na biblioteca. Mas o sensacionalismo tomou Nova Iorque de ponta. Entre sete milhões de habitantes, basta que um pise o risco para se fazer logo um barulho dos demónios. E as pessoas esquecem que os restantes seis milhões e novecentos e tal mil, sete milhões menos um, ficaram sossegados. Prometi-lhe números, vai tê-los.
Não vale a pena contrariá-la. Não se pode contrariar a doce Miss Stevens. Ela ausenta-se por uns minutos, o odor a madeira velha do gabinete torna-se-me mais nítido (e também mais agradável), depois reaparece com um volume gordo, anuário ou coisa parecida. Lê-me então, numa voz aplicada, o que, afinal, vem a ser um relatório do FBI.
Em Nova Iorque, os crimes diminuíram 18 por cento no último ano, em Chicago 4,1 por cento; em Washington 26,9 por cento e assim por diante. Ao todo, noventa e quatro grandes cidades registaram uma queda significativa na criminalidade. Porém, enquanto as áreas urbanas mostram um declínio pelo que respeita a crimes, as suburbanas declararam um acréscimo médio de 2 por cento e as rurais uma subida de 4 por cento - o
que reflecte uma deslocação geral das pessoas para longe dos núcleos centrais. Quem deseje passar ao crivo estas cifras verificará, contudo, que os casos de estupro aumentaram em 11 por cento, os de agressão grave 7 por cento, os de assassínio em 5 por cento.
- Não estou a apoucar o problema, longe disso, até nem me custa a admitir que as disparidades sociais, entre nós, e em certo tipo de competitividade, exasperem as pessoas, as façam desesperadas. Não será a marginalidade, por exemplo, uma forma de desespero? Estou apenas a repartir o labéu por todas as cidades, o que talvez seja uma maneira de o repor nos seus justos termos. Repare no que é Nova Iorque: um núcleo de oiro maciço, Manhattan, cercada de uma cintura de miséria - Bronx, Brooklyn, Harlem. Como não há-de haver violência? Umas aves de agoiro até prevêem que os que trabalham nas cidades utilizarão viaturas blindadas, tanto na ida como na volta aos arredores residenciais, estes provavelmente murados, entrincheirados, deduzo eu. - Miss Stevens abre uma pausa para sorrir. Dita daquele modo macio, e um tanto irónico, até a sugestão de violência perde belicosidade. Depois Miss Stevens, com o vago melindre de há pouco, rematou: - Não foi apenas Nova Iorque que tomaram de ponta. Toda a América. Isso entristece-nos. Dizem que a América é uma espécie de comunidade aberrante, fundada na gula económica, na religião do lucro, nas manigâncias do petróleo. Existe tudo isso entre nós, sem dúvida, mas existe também o contrário: aquilo que nos dá uma ética aglutinadora. As aberrâncias nunca bastaram para estruturar um país. E nós somos um povo, um país. Nascido da fuga à intolerância e à prepotência, repare bem. As pessoas que criaram a América foram expulsas de uma sociedade que as temia. Tinham uma vontade indomável de sobreviver. É essa mesma vontade que ainda perdura e às vezes se manifesta, hoje como ontem, de um modo feroz. - No longo pescoço de Miss Stevens abrira-se uma cova, de guelra sufocada. Preferia que ela ficasse por ali, mas seria inútil fazer-lho sentir. Inútil e chocante. Apenas esbocei um gesto apaziguador. - Nós pomos as nossas chagas à mostra, o livro de Truman Capote A Sangue-Frio chegou a todos os países, dele fizemos um filme, exibimo-lo em todo o lado, e continuaremos a escrever livros e a realizar filmes sobre os nossos males, enquanto existirem. Não haverá tanta violência na América Latina, na Europa, na África, como no nosso país? Só que não a confessam. Ou não a confessam com a mesma lealdade que temos usado.
Eu teria várias questões a pôr a Miss Stevens. Não se tratava apenas de violência, mas de que espécie de violência. O relatório do FBI não me provava coisa nenhuma e até podia confrontá-lo com um outro, de uma comissão oficial, no qual se lia que apenas na época recuada do povoamento da América, quando os homens erguiam fortalezas, faziam sentinela de noite e viajavam em grupos numerosos por uma questão de segurança, é que os Americanos sentiram necessidade de se protegerem da mesma forma que hoje. A verdade é que a violência nos Estados Unidos faz parte do quotidiano, do modo de viver e de morrer, até faz parte da justiça e de quem julga servi-la. A repressão é brutal e a uma repressão assim responde o crime cada vez mais bárbaro. Chega-se a um ponto da escalada em que é o medo que gera a agressão. É a polícia que gera o delinquente. A polícia - estou a lembrar-me de um depoimento do psiquiatra Friedrich Hacker - constitui uma ameaça quase tão grave como a criminalidade. Os Estados Unidos são o lugar do mundo em que a polícia lesa mais a lei do que os outros cidadãos. A polícia é cúmplice da Mafia e dos gangs, entra no orçamento do crime organizado. Um grupo de inquérito estabeleceu recentemente que 98 por cento dos polícias nova-iorquinos eram corruptos. A revelação dessa chaga pôs as pessoas revoltadas? Não tanto como isso. Tomaram-se algumas medidas, prenderam-se três ou quatro maiorais, e o comboio nem precisou de mudar de linha. A cifra baixou para 96 por cento. As pessoas deram-se por satisfeitas.
Eu poderia retorquir, pois, a Miss Stevens que a América, desde a época dos pioneiros, dos tais que precisavam de sobreviver e não eram amados por ninguém, nem por eles próprios, tem uma tradição de violência, mas que isso não chega para explicar a situação, a situação actual. Poderia, mas não o faço. Há coisas que não se dizem a pessoas como Miss Stevens. E a verdade dela também é uma verdade. Tanto como a minha e a de todos que contribuíram para que eu chegasse a uma opinião sobre o que estamos a discutir. Há sempre várias maneiras de apreciar o que nos é posto sob os olhos.
E também muitas maneiras de expor aos outros o que nos pertence.
Talvez nem venha a propósito, mas vou enfiar aqui um desabafo. Um desabafo sobre a bossa portuguesa para escancarar-se aos alheios - coisa em que tenho ponderado muito, à medida que o acumular de experiências se vai fazendo eloquente. Não é no abrir as entranhas que está o mal, pelo contrário. Mas no modo. Na ênfase. Não se trata apenas de masochismo, menos ainda a franqueza de quem, mesmo no que deslustra, faz jogo limpo. Será um pouco de tudo isso, de acordo, no entanto inclino-me mais para um degradante complexo de inferioridade: transferimos para outros o juízo sobre nós próprios, e até a eles pedimos a sentença que a nós devia pertencer. E isto mais por candura do que por confiança. Ora, nem todos os estranhos saberão distinguir, nesta evisceração mortificada, a nossa justa imagem, que, ao ser-nos devolvida, se acrescenta de novos motivos para se mortificar.
Foi este Verão. Chegaram-me aqui, à aldeia onde escrevo, uns jornalistas alemães. Quando recebo estrangeiros em Lisboa, acautelo-os contra apreciações simplistas. Somos um povo singular, por mais que afundemos a mão nunca a livramos de surpresas. E aconselho-os a afoitarem-se país dentro, lá onde essa singularidade, feita de discordes matizes, mais se oferece a olhos atentos. Mas desta vez foi aqui, pois, que pude ilustrar o testemunho com o real. Deu-me para levá-los a um chão entre penedas bárbaras, em todo o redor um fortim de arribas. Chão de hortos, uma vinha e um olival a nascerem. Nascerem de onde, de que modo, se ali só houvera pedra? A façanha fora esta: durante a noite - que o dia tinha de ser dedicado à jorna - o campónio transportara terra da planície, transportou-a um ano inteiro, fez rebentar água da frágua, ali tínhamos agora o vergel.
Como reagiram os alemães a essa obra do sonho feito querer, quase raiada de desvario? Como se visitassem bichos estranhos num zoo. Bichos selvagens, descomedidos. Fotografados uma, duas, vinte vezes, passo à frente, passo atrás, o campónio com a mulher extasiado ao lado, o cão Bailarico ao colo, mais um passo à frente, mais um passo atrás, duas, dez vezes, uma família de bichos esquisitos num zoo. E tinha sido eu a levar esses arribadiços de uma hora a deliciarem-se com uma odisseia que para eles era apenas um espectáculo de excentricidades.
Há coisas que não se mostram a alheios, que, não as entendendo, não as sentindo, as ofendem. Há coisas que, embora por razões opostas, não se dizem a pessoas como Miss Dorothy Stevens.
Ela, a minha serena interlocutora, bem longe dos meus pensamentos, franzia as pálpebras para apreciar uma vez mais as fotos, chegou a propor-me que tirássemos mais, no entanto logo se distraiu da ideia com o lamento "Não percebo esta repentina avaria do gravador, que pena!", e depois recuperou o assunto, talvez porque ainda tínhamos o anuário no caminho dos olhos.
- Além disso, sabe, nas nossas cidades desaguam párias de todo o mundo. Sobretudo em Nova Iorque. Eslavos, irlandeses, italianos, asiáticos. Procuram naturalmente os bairros pobres, onde as condições de vida são terríveis, a promiscuidade degradante, e, quando estes já se encontram saturados, vão formar outros mais longe. Daí sai o crime. - E numa voz coada, como se temesse a interpretação que eu pudesse dar ao que ia acrescentar: - Sai o crime e saem os lutadores. A maioria dos grandes nomes da política, das artes, da literatura, tem, na América, uma biografia muito áspera. A miséria é iníqua, não a podemos admitir, mas, quando não elimina, tem sobre a segregação do mundo confortável a vantagem de robustecer o carácter, pelo desafio que lhe é lançado. Percebe o que quero dizer?
Não fico muito certa disso, desculpe, conheço bem a desconfiança preconceituosa das pessoas que nos visitam, sobretudo os intelectuais... A riqueza debilita, falta-lhe a rua, onde cada criança é confrontada muito cedo com uma grande variedade de experiências. - Miss Stevens torna-se mais veemente, como se lhe fosse absolutamente necessário ser compreendida. - Temos aqui um exemplo, no Lower East Side, bairro de imigrantes, um dos mais sórdidos de Nova Iorque. Imagine que leque de costumes, crenças, astúcias, durezas, ele oferece ao jovem! Para o filho do morador na 5.a Avenida, o seu mundo é a escola, para onde vai de automóvel e onde convive com outras crianças provindas dos mesmos ilhéus fofos. Ignora tudo o que se pode apreender na rua, que é uma humanidade reduzida mas completa. Hoje há a rádio, a TV, a imprensa, tudo isso que, desde a infância, é uma janela rasgada ao mundo. Mas trata-se de uma experiência passiva, pois não é convertida em participação, em acção. O que de vital existe na América nasce desse variadíssimo mosaico de vivências e de escolhas, que exercita quem o experimenta. - E Miss Stevens apressou-se a rematar, adiantando-se a qualquer contradita: - Não pretendo com isto louvar as vicissitudes geradas por uma sociedade injusta, bem entendido. Quero apenas pôr em evidência que há uma escola de vida, de combate e que a rua presta uma forma de educação ao vivo. Aqui na biblioteca contacto com jovens de vários estratos sociais e justamente no período da vida em que a receptividade é, digamos assim, mais crucial. Ora, tenho observado que, no adolescente exposto a um feixe de experiências limitado, as suas faculdades de coordenação e síntese se comprometem. Não será por isso que os chineses e os russos mandam os seus estudantes para os campos, ao encontro de outras faces da realidade? Existe, desde a infância, aquilo a que se chama "informação". Informação directa. Quando é escassa, o mundo da criança atrofia-se.
- Este seu modo de ver aplica-se também aos bairros negros? Tenho presente uma frase de James Baldwin: "Não podemos escapar a esta jaula", referindo-se à paisagem de caixotes de lixo da sua infância.
Miss Stevens afagou a face magra, onde o sorriso se turbou. Depois a sua cabeça alta pôs-se a dizer que não.
- De acordo. Os bairros negros são guetos. Aliás, todos esses bairros o são, é certo, mas há guetos de uma estreiteza infernal. Como os dos negros. Chamamos-lhes slums. São unidimensionais. Guetos, de facto. Quando se habita para lá da Rua 125, todo o resto de Nova Iorque nos fica interdito. Mas não acontecerá o mesmo noutras cidades, noutros países, mesmo naqueles que se dizem igualitários?
- Que solução veria para o problema negro?
Miss Stevens suspirou. Da inconveniência da pergunta ou dos riscos da resposta. Teve um gesto pesado das mãos.
- Há uma infinidade de problemas negros. Que nos excedem. A verdade é essa: que nos excedem. Serão os jovens a resolvê-los. Apenas os jovens. Os de hoje ou os de um amanhã que talvez já esteja próximo. Sabe, há uma ideia que avança em cada dia: embora reivindicando a sua negritude, assumindo-a, orgulhando-se dela, os negros vão tomando consciência de não serem africanos, nem mesmo afro-americanos, mas sim americanos em corpo inteiro. Estão em sua casa e querem torná-la mais habitável.
- Com os brancos?
- Com os brancos. Os negros mais evoluídos apercebem-se de que as novas camadas da sociedade branca querem redefinir o que temos chamado o "ideal americano". Redefini-lo com lealdade, sem mascaradas, à margem da esterqueira que é a nossa política e de tudo o que ela corrompe. Esses vão fazendo o ponto das desilusões e dos malogros. Para eles chegou a hora da maturidade. Há muitas coisas que os estranhos não podem entender na nossa colmeia social, mais do que qualquer outra feita de contrastes, de efervescências, de sofreguidões, tanto como é feita de simplismos e liberalidades. Um francês, homem de teatro (o Antoine Bourseiller, não sei se já ouviu falar dele), tem vivido por temporadas entre nós e descreveu-nos assim: "Ninguém pode bazofiar de conhecer a América. Por mim, digo apenas que conheço bem a minha América: quando um nova-iorquino chama um táxi, urra, transforma-se em King Kong. Toda a ferocidade primitiva das cavernas se reencontra, num segundo, no homem mais civilizado do mundo ocidental."
Miss Stevens lança a cabeça para trás, mais galhofeira que pensativa, e depois faz uma expressão sisuda.
- Pois é, somos contraditórios. Como o senhor e todos podem observar desde o primeiro instante. Sabe como se redigem os dísticos em que, no local de uma construção ou à porta de uma empresa, se informam os candidatos de que não há mais vagas? Assim, nesta linguagem: Not wanted. "Não precisamos de si." Brutal, não é? Ofensivo da dignidade humana. Pois nenhum americano será dessa opinião. Aprendemos desde cedo a vacinarmo-nos contra as sensibilidades de "estilo". O que conta são os factos. Enquanto para vocês, e talvez sobretudo para os Asiáticos, o que conta são as maneiras. - Sondou-me à espera de uma reacção e logo prosseguiu, quase sem se dar pela pausa, apenas a voz um tanto mudada: - Vou contar-lhe uma história, que poderá ter, no nosso meio, milhares de versões. Um escocês, David Ogilvy, montou uma agência de publicidade sem um dólar no bolso. Fiel à divisa de Henry Ford "visite pessoalmente os seus futuros clientes", foi direito às Porcelanas Wedgwood, que investiam em publicidade quarenta mil dólares por ano. "Não gostamos de agências", disse a directora de publicidade. "O papel delas é criar aborrecimentos. Encarregamo-nos nós próprios dos nossos anúncios. Tem algum reparo a fazer-lhes?" - "Pelo contrário", replicou Ogilvy, "acho -os excelentes. Mas se os senhores me permitirem tentar a melhor colocação possível para os vossos anúncios, com bom destaque, as revistas dar-me-ão uma comissão. Isso não vos custará um dólar e poupa-vos de maçadas." Por estranho que lhe pareça, no dia imediato a empresa escrevia-lhe a aceitar a proposta. Sem mais regateio. Para David Ogilvy, estava dado o primeiro passo no objectivo de sair da obscuridade. O passo seguinte foi convidar para um almoço dez repórteres da imprensa publicitária. "Amigos, quero erguer uma agência de primeira grandeza a partir do zero. Conto convosco." A partir daí, os repórteres não cessaram de lhe passar informações valiosas e de publicarem repetidas notícias sobre a actividade da agência. Acabou por se dizer que ninguém da agência ia aos lavabos sem que o "acontecimento" fosse relatado na imprensa profissional. Por outro lado Ogilvy discursava em público duas vezes por ano, só duas, a denunciar a estupidez dos métodos dos colegas. "Eu era pobre, desconhecido e tinha pressa. Precisei de proceder assim." E com esta desculpa, David Ogilvy sentia-se penitenciado de todos os golpes e atropelos. O senhor ri-se? Mas a América é isto. Uma selva do tudo ou nada. Na Europa acontecerá o mesmo, com a diferença da impostura. Uma questão de estilo, como disse há pouco.
Aproximou dos olhos uma das fotografias, fez uma expressão contrariada - "A revelação não ficou muito boa" - e, depois, reavivando a toada do início da conversa, embora uma fadiga crescente lhe pesasse nas palavras, disse:
- Mas voltando aos negros, se não o molesta a insistência. Que significa fundamentalmente black power?
O orgulho dos negros na sua cor, o direito de exercerem a sua inteligência no que de melhor poderão fazer por eles próprios, pelo seu povo. A ideia de que black power implica uma supremacia negra é demagógica. Tanto como a vocação redentora dos Panteras Negras, com os quais se excitam os snobes brancos dos bairros chiques. Há tempos, um deputado negro de Harlem, Adam Powell, teve a coragem de chamar as coisas pelo seu nome: o que a América precisa é de uma organização verdadeiramente democrática, em que os negros ocupem as posições a que têm direito. A violência nada resolve. Acabemos com o racismo de parte a parte. Os motins que levam à pilhagem das lojas pertencendo a negros um pouco mais favorecidos têm um único rescaldo: a frustração.
- Mas, afinal, quem nos Estados Unidos é racista? Quem provocou o racismo?
Miss Stevens fita-me com melancolia, expressão ausente. Por último, numa ênfase de quem dá o assunto por terminado, responde:
- Somos detestados, bem o sei. Nunca se consegue fazer amar às pessoas o que elas não desejam amar. E o trágico é que os povos, como as pessoas, acabam por ser o que parecem. Ou o que os outros neles querem ver. E se fosse mostrar-lhe o metro de Nova Iorque?
Apresso-me a concordar. Descemos à rua, o sol entretanto ofuscou-se. O Hudson, tal como na tarde da véspera, estará cor de ardósia. Vou falando da minha visita ao Museu de Arte Moderna. Daquele Mondrian de 1914, impresso na minha retina. Das obras de Chirico, de Fernand Léger, de Mark Rothko. Das Ninfas de Manet, talvez as mais belas de todas as que pintou. Das esculturas de Giacometti e de Arp - um Arp pesquisador das formas ondulantes, a que chamou "concreções", coisas em crescimento, pois é absurdo supor a matéria em repouso, se toda ela, para nós, é energia irradiante. E, acima de tudo, daquele espanto de uma sala dedicada à Guernica. Não apenas da obra final, que dir-se-ia ter jorrado, assim arrebatada, de um momento de revolta necessitado de desafogo, sem que o pincel tivesse hesitado uma única vez, mas da surpreendente, laboriosa série de esquiços, tanto de estrutura como de pormenor - um gesto, um esgar, um desferir de traço -, diversificados até não se saber qual o mais significativo, refundidos até não se saber qual o mais perfeito, como quem tacteia palavras que, ordenadas, exprimem indiferentemente a mesma ideia, embora não componham a mesma frase. Uma Guernica radiografada pelo que respeita o escrúpulo e a exigência. Assim é a arte, Miss Stevens. Um calvário, uma infinita perseverança, como todas as odisseias espirituais. Quereis olhar para o interior desse tormento? Ide ao Museu de Arte Moderna de Nova Iorque assistir a essa anatomia exemplar.
Desta vez, sou eu, forasteiro, a elucidar a minha acompanhante: Sidney Janis, de que já vos falei, é o homem a quem a América deve Guernica. Foi por sua iniciativa que, em 1939, o quadro veio para Nova Iorque, sob empréstimo. Para ser exposto em benefício dos refugiados da guerra civil de Espanha. Enquanto Franco viver, Guernica não entrará no meu país, dizia Picasso. Morto Picasso, os espanhóis não quiseram esperar que Franco desaparecesse. E juristas madrilenos logo começaram a fiar a sua teia de argumentos legalistas. Guernica, afirmam eles, é propriedade do Estado espanhol.
A propósito de Jean Arp, Miss Stevens diz-me o que eu já sabia: também na América a arte desceu à rua. Teria eu reparado na escultura de aço inoxidável, coisa de duas toneladas, no Central Park, em face de uma das alas do Metropolitan Museum? O projecto foi de Arp. E para assinalar o 25.o aniversário do Chasse Manhattan Bank, o seu presidente, David Rockefeller, fez edificar na Wall Street uma imensa escultura, em fibra de vidro, alumínio e plástico, de que é autor Jean Dubuffet.
- Um autor "flagrante" - comentei.
- Exacto. Com o seu "processo", quer o meu amigo dizer. Mas, se analisarmos bem, um "processo" só o é quando são imitadores a usá-lo.
- Essa presença da arte na rua ainda não se me tornou muito evidente, confesso, salvo, é claro, os casos do Busto de Sylvette, de Picasso, ou o cubo vermelho de Noguchi.
- Oh, porque tudo se dissolve nesta monstruosidade de betão. Mas lá chegaremos. Se o senhor tivesse ensejo de penetrar no coração do país, veria, por exemplo, quanto se vai desenvolvendo a pintura na fachada dos prédios. Pintura as mais das vezes contestatária. E também pavorosa. Em Los Angeles, uma troupe de artistas especializou-se nas visões do futuro. Uma das imagens mais impressionantes encontra-se em Santa Mônica: um rochedo escarpado, batido pelo mar; por cima, sobre o abismo, uma auto-estrada a estalar, toda em fendas. O rigor da pintura é alucinante. - Nos olhos de Miss Stevens perpassa esse rigor, essa alucinação. Sinto-lhe um arrepio. Depois a sua voz enrouquece: - Sabe? A América procura desesperadamente uma identidade. Tanto no descobrir antepassados que nunca teve como na invenção de deuses, dos seus deuses. Mas os mais recentes estão mortos: Kennedy, Marilyn... É preciso criar outros. A arte, porque não? E a arte exorciza. Talvez por isso, os nossos magnates do petróleo são ao mesmo tempo grandes coleccionadores. Como Paul Getty, já ouviu falar?
- Ouvi falar de outros.
- Daqui a nada lhe contarei. Pois, a arte. Estou a lembrar-me de um livro de Renê Huyghe, em que ele diz mais ou menos que a arte tem na vida dois papéis muito diferentes, quase opostos, mas igualmente importantes: ora se insinua na nossa maneira de sentir e de pensar, impondo-se-nos, ora nos liberta de obsessões. Sabe? Quando começaram os happenings, as pessoas troçaram. Logo depois, foram acontecendo tantas coisas novas, tantas coisas irreverentes, que as pessoas deixaram de troçar. Não se tratou apenas da pop art, dos combine-paiintings, do Allan Kaprow a pesquisar a "arte total", integrando os espectadores num espaço composto de objectos e até de perfume, calcule! Tratou-se de tudo. As pessoas começaram a intuir o que os artistas queriam dizer e o que eles pretendiam. A liberdade humana ameaçada, a vida na terra ameaçada, eles queriam chamar a atenção para tudo isso. Com terror, com furor. Pollock pinta com furor. Os artistas acham que é tempo de o homem se interessar pelo homem. Não concorda?
Eu não poderia retorquir à doce Miss Stevens com aquilo que irresistivelmente me viria à ponta da língua. Estava a ouvi-la e pensava mais uma vez que, na verdade, existe não uma, mas muitas Américas. E o mesmo se poderá dizer de todos os países. Existe a América que sente a vida humana ameaçada, a dos cortejos contra a guerra do Vietname, a daquele artista californiano que, num universo cruel, se enfia numa galeria para ali ser electrocutado em holocausto, e a América da sangueira de Mi-Lai e ainda aquela que não é uma coisa nem outra, apenas indiferença. As pessoas, a partir de certa altura, são fadiga: consideram a injustiça, o constrangimento, a violência como inerentes à condição humana e isso vai-lhes calando a revolta. Como se passassem ao lado das coisas embora estando dentro delas. Detestam o seu trabalho, mas fazem-no, reconhecem o totalitarismo de uma sociedade que as manipula, mas sujeitam-se a ele. Estão cansadas. Contentam-se com sobreviver. A maioria dos nova-iorquinos que vemos, tão sozinhos, no rio humano desta avenida, pertencem a esse número. Estão apenas cansados. Mais tarde irão a um cinema onde se projectam os tais mitos, para onde se transferem as emoções definhadas. Esgotado o mito western, o da calma superpoderosa, o da força tranquila que apenas a pérfida agressão obriga a desmandar, numa retórica que quase sempre inverte os papéis de vítima e carrasco, começou o mito-catástrofe. Ciclones, terramotos, cidades a arder inteirinhas, tubarões tomando à sua conta uma praia de veraneantes. É o Apocalipse de mil feitios donde, no final, se sai incólume pela porta do cinema. E dar-se-ão nomes brandos a essas calamidades, os mesmos que servem para designar um tornado no Pacífico ou uma operação militar devastadora em qualquer lugar do mundo onde obviamente a democracia americana esteja a ser agredida e se morra de fuzil nas mãos. A seu tempo, aparecerá outro mito, outro exutório. Por isso, os jovens, ingénuos mas livres, livres de todo esse peso, desembaraçados da erosão, podem surpreendentemente produzir uma crítica tão aguda da sociedade, efectivar, desde as raízes, a revolução existencial - aquilo que escapou aos mais sábios e vividos dos homens.
Não obstante, sempre me dedico a beliscar Miss Stevens:
- Por vezes, ao ouvi-la falar da América, dá-me a impressão que se refere a um país que não é o seu. Há uma ambiguidade nas suas palavras.
Acertara em cheio. Vi-a endurecer os músculos da face, que empalidecera. Depois, refeita, ironizou:
- Isso acontece a todos os cicerones. Acabam por usar uma linguagem neutra. Ou equívoca, como o senhor diz.
E então lembrei-me de Chomsky. Noam Chomsky, filho de imigrantes russos. Para ele, linguista, a América combina, no mesmo discurso, uma cartilha da liberdade para uso interno e uma felonia primária destinada a exportação. Com as mesmas palavras e em nome dos mesmos princípios. Como, aliás, acontece a muitas outras linguagens, seja qual for a ideologia que as suporta. Tomemos esta expressão: bloodbath - o banho de sangue. Com ela se qualificam os actos de terror exercidos sobre os "inimigos da democracia". O crime será dos inimigos mortos e não de quem os foi matar. Os massacres de Hué foram para prevenir "banhos de sangue". As bombas despejadas dos ventres dos B-52 destinaram-se a evitar a ferocidade dos outros. O espírito cavalheiresco americano fica sempre a coberto de maldições: se destrói, é em nome dos sagrados programas de "contraterror selectivo". Por isso, a amplidão planetária da máquina de guerra ianque apenas faz mudar de escala, actualizando-a, a cruzada dos Pais Fundadores de 1787, herdeiros das Luzes e da Reforma puritana. E notoriamente anticolonialista. "A América para os Americanos!", o que quer dizer, através das frinchas da linguagem: "Toda a América, Central e do Sul, para os Estados Unidos da América do Norte." Sempre a linguagem dócil servidora dos opressores de todos os quadrantes. Peguemos noutra expressão: to control. No imperialismo insidioso da língua, que se vai enxertando em todos os idiomas, to control entende-se por "verificar", "dosear" e, forçando um tanto, por "condicionar". Porém, como nos adverte Etiemble, rabioso adversário das colonizações linguísticas (que abrem caminho às outras colonizações), o to control americano significa "tornar-se dono absoluto de", "exercer todo o poder sobre". Subjugar, em suma. O léxico é, assim, manipulável e manipulador. Como o são as ideias, que até se podem ver a legitimar tiranias, atrocidades, exílios e campos de extermínio, em nome da fraternidade universal.
Incomoda sentir o olhar devassador de um estranho numa cidade estranha. Mais ainda se a cidade é, por exemplo, a mal-afamada Nova Iorque. Era o que me estava a acontecer com um tipo que ia sentado no banco da frente. A gola do sobretudo a esconder-lhe os queixos, umas calças que nunca tinham conhecido vinco. Provavelmente, imaginei eu, um dos tais que, segundo ouvira dizer, faziam vida no metro. Penso que Miss Stevens deu pelo meu enfado e avisando: "Desceremos na estação seguinte", perguntou se eu, confessado amador de pintura, me dava por satisfeito com a visita ao Museu de Arte Moderna. Compreendia-se que, numa estada tão curta, me seria impossível andar de museu em museu, mas, numas horas bem aproveitadas, poderia ao menos correr os olhos pelos principais.
Assim, acabámos por descer mais adiante, na estação do Central Park, e fomos ao Metropolitan Museum - conhecido no mundo das artes pelo Met.
Duas palavras acerca do metro (subway) de Nova Iorque, à entrada do qual Miss Stevens não deixara de me prevenir maliciosamente: "Cuidado com os tais malandrins de lâminas de barba!..." A esta hora, o subway é igual a tantos metros da Europa. Ou do Canadá. As mesmas escadas rolantes, os mesmos corredores de mármore, a mesma multidão que parece sempre atrasada relativamente a um horário implacável. O mesmo silêncio ofegante quando as portas se fecham sobre as pessoas empilhadas. Rostos comuns, um ou outro figurão cuja pinta nos faz encostar o braço à carteira para nos certificarmos se ela ainda lá está. Nem sei porquê, veio-me à ideia o blackout de 1965, a feroz explosão de pânico. Aí se evidenciou o corte entre o indivíduo e a tribo, o seu regresso ao Neolítico. Ao isolamento, à desprotecção. Que será este subway à noite, quando a cidade lá por cima se despovoa? Parece que tanto se pode encontrar um travesti, um louco que nos obrigará a descer na estação mais próxima, um passador de droga, como uma congregação religiosa a entoar hinos apologéticos. Fora os que entram simplesmente para dormir, pois consta que o subway se tornou num dos maiores dormitórios do mundo. Os sem-dinheiro sentam-se, esperam ensonados as horas vazias, metem-se numa carruagem, vão viajando sem destino, vão adormecendo e acordando, sucessivamente, acordando à bruta, sacudidos pelos guardas, foi para isso que eles se fizeram. Há truques, como o de dormir com um jornal escondendo o rosto, quem olha até julga que o sujeito está mesmo a ler, os dedos não se desprendem do jornal. Espantoso, sim, mas o certo é que os músculos se exercitam nesse ardil. Os sem-dinheiro sentam-se, têm a noite toda à sua frente, dá para dormir e para acordar. Os sem-dinheiro, os vadios e ainda os bêbados, todos eles esquecem o lugar e as horas. Na pista destes últimos virão os caçadores de carteiras, que, na bitola do meio, representam a escória do crime. Perante a impassibilidade de quem assiste ao roubo. Em Nova Iorque a regra é a indiferença: cada um que se proteja, a vida dos outros é com eles. Numa esquadra de polícia, segundo se conta num livro de Flávio Moreira da Costa sobre a Mafia, até se pode ler este cartaz: "Se um polícia é um suíno (pig), da próxima vez que for assaltado chame um hippy."
Por falar em cartazes. Em quase todas as estações do metropolitano de Nova Iorque, senão em todas, vêem-se os tais cartazes editados pelos serviços de saúde, com este convite: "Quereis abortar? Procurai-nos sem demora." E, quanto à prática do aborto como acto aceite e oficializado, as coisas não ficam por aqui. Os mesmos serviços de saúde editam uma brochura de capa azul, distribuída gratuitamente às jovens americanas que desejem interromper a gravidez. Tendo em conta a numerosa (e prolífica) colónia porto-riquenha, este Guia Azul é redigido nas duas línguas, inglês e espanhol. Na primeira página, lê-se: "O abortamento é uma decisão que cada mulher é agora livre de tomar durante as primeiras vinte e quatro semanas da gravidez. É a ela e ao seu médico que a decisão pertence, e a mais ninguém." Para dar efectividade a esta campanha preventiva do desmancho ilícito, em mãos aventureiras, há hospitais apenas dedicados à prática do aborto. É o caso do Park East Hospital, cerca do Central Park. O que se tem somado por uma segurança incomum: cinco óbitos em cem mil casos.
Pergunte-se de novo: será isto de surpreender num país puritano, com as ligas de moral e os sacerdotes fulminadores em cada esquina, com um Billy Graham, campeão da lei e da ordem, a reunir cento e cinquenta mil devotos num Woodstock evangélico, em Dallas, Texas? É que a América que ajoelha aos pés do apóstolo e, por entre grupos pop e lances de histeria, toma "a decisão a favor de Cristo" (após ser varada com o trovejar: "Sem dúvida que há prazer no pecado, mas, bem no fundo, que frustração!"), essa mesma América não desvia os olhos das estatísticas do abortamento secreto. Tem regras estremes, e até respeita muitas delas, mas é sobretudo realista.
Falemos então do Met.
O Met é uma imensidão, tinha de ser. Mobiliza, à sua conta, cento e trinta e dois conservadores e cinquenta peritos, ou guias, ou educadores, como lhes queiram chamar. Somando com os tais guardas, de que já falámos, nele se ocupam oitocentas e sessenta e três pessoas. Para minha surpresa, pagámos a entrada. Quanto? O que me apetecesse. Fiquei perplexo, o homem decerto não brincava comigo, nem tinha cara disso. Miss Stevens interpôs-se:
- Devia tê-lo prevenido, desculpe. Há dois anos a esta parte todo o visitante deve pagar. Ao seu critério.
Nem que seja um cêntimo. Creio que pretendem incutir nas pessoas o sentimento de que participam na vida do museu.
- Através de dinheiro?...
-Então não estamos no país em que, segundo o vosso juízo de europeus, tudo se mede pelo dólar?
Miss Stevens não perdera a oportunidade de se desforrar, estava no seu direito.
O Met tem cinco mil anos de história de arte. Desde a Pré-História a Pollock. O seu director, que tem aguentado umas boas ressacas, e ainda recentemente se viu exposto a frechadas dos mais acesos devotos do museu, por se ter desfeito de um dos Rousseau que o Met possuía (ficando apenas com a ultracobiçada Cigana Adormecida), é do parecer que, "quando um museu decide admitir apenas mortos, algo nele morre também". Daí, talvez, a venda do tal Rousseau, de um Van Gogh, de um lote de Kandinsky. Para dar lugar aos vivos. Mas os vivos também se fazem pagar - e bem. Decerto mais embaraçoso foi o caso das "desclassificações" de cerca de trezentos quadros das suas galerias. Muitos deles passaram a rotular-se cautelosamente de "escola de Rembrandt", em vez de "Rembrandt", ou de "atelier de Rubens", em lugar de "Rubens". Os Americanos, pelo menos o director do Met, que nisso provou ser corajoso e honesto, entendem que a desclassificação em nada afecta o mérito dos quadros. Por isso, lá continuam. Lá os vi. E mesmo que assim não fosse, ainda resta um número suficiente de belos e autênticos Rembrandt para, só por eles, visitar o Met.
Estou a ser injusto. E a extraordinária profusão de Renoir, de Gauguin, de Van Gogh - que gente foi esta que encheu o mundo de telas? Como lhes chegou a vida, e vida dura, para tanto? Se falarmos então dos vivos, como não alagar os olhos com o tumulto, a grandeza, o poderio de Jackson Pollock, esse imigrado do Far West que, enterrando os hábitos da pintura de cavalete, transformou o "quadro" em mural? E as violências de Barnett Newman, que os entendidos dizem ser o mais importante dos seis grandes do expressionismo abstracto?
O Met nunca pára de ter iniciativas. Às vezes, para o efeito, junta-se a outros colossos. Como é o caso de permuta de obras e colaboradores com o Louvre. Entre elas: exposições alternadas de tapeçarias da Idade Média e do Renascimento. E esta apoteose: realização em comum do centenário do impressionismo.
Embora percorrido meteoricamente, e apenas as salas de pintura, o Met deixou-me uma sensação de aturdimento. Por isso me soube tão bem o ilhéu de calma da Rockefeller Plazza, etapa seguinte. O ruído cerca-nos? Para fugir dele, basta descer. Cavadas entre os buildings, acolhem-nos zonas de tréguas, espécie de pátios insonorizados, sem poeira, sem fumos, onde há de tudo, desde fontes a quiosques e cafés. Miss Stevens, expedita, apanha uma mesa que acaba de vagar.
Pátios e também artérias subterrâneas, constituindo uma espécie de favo ao abrigo dos inconvenientes da rua clássica. Como em Montréal. Só no centro de Nova Iorque existem dezenas destas ruas, percorremo-las como se fossem corredores de um metropolitano. Humanizar a cidade mais inumana do mundo, na expressão de Nino. Daí que exija aos promotores abrir galerias para peões, construir imóveis para habitação ao lado dos imóveis comerciais. Daí que, ultimamente, o curso mais afreguesado de Nova Iorque seja aquele que se intitula: "Os múltiplos rostos de Gotham: arquitectura da cidade de Nova Iorque." Mas será isto humanizar? Como te sentirás, Nino, quando aqui vens, tu, veneziano dos céus molhados, dos céus secretos, ou então dos céus em fogo, donde descem anjos? Possivelmente, sentir-te-ás, como eu, num outro planeta. Um planeta de térmitas. De gelado fervedouro silente. É certo que defenderam estas ruas de tudo o que é poluição, mas quem lhes compensará a falta de sol, um sol latino que se apanhe à mão, a falta de um tecto ilimitado?
Pus-me a pensar: lá em cima, no fragor, bombardeadas por sensações visuais, afogueadas pelo enxame, as pessoas tomam o hábito de deixar de ver, de deixar de ouvir. Protegem-se. E aqui, aqui onde estamos? Recuperarão a liberdade dos sentidos? Estarão a ver-me, estarão a ouvir-me? As pessoas protegem-se, ou adaptam-se, que é também uma forma de se protegerem. Mas, como se disse, há adaptações por mutilação. À custa delas próprias, da totalidade do seu ser. A verdade é que, mesmo cavalgando sobre este presente já carregado de futuro, submetidos a uma cascata de mudanças, a nossa cadeia genética, em cinquenta mil anos.., quase nada se alterou. Caminhamos então para o suicídio ou para a idade de oiro, aquela que não sabemos descrever?
Esse sentimento de risco, de debilidade, e ao mesmo tempo de força que me é exterior, vim encontrá-lo sobretudo em Nova Iorque. E agora que acabo de recuperar, no Met, como uma emanação do tempo e mercê dos mestres venezianos e flamengos, aquela atmosfera habitada de séculos, de ressonâncias, de emoções, em que todo o europeu flutua, mais se evidencia quanto o nova-iorquino está sozinho e, por isso, mais desarmado perante o seu universo frenético e, por isso, mais necessitado de ser violento. Na Europa tudo tem história: uma igreja, uma paisagem, um caco encontrado no chão, e essa história enche-nos. Mas os buildings são apenas buildings, estão ali desde a véspera. Não têm nada dentro. Não têm passado. Será assim, Miss Stevens? Será isso o que me quis dizer ao falar de uma América desesperadamente à procura de uma identidade, transportando da Europa, pedra por pedra, templos carregados de gesta? Tem que ver com este desespero o drama burlesco dos George Ellis? Tem que ver com este desespero e esta susceptibilidade o que ainda há pouco li nos corredores e nas estações do metro? Frases assim, em inscrições garrafais: "Quem não nos ama, que nos deixe", mais adiante variando ligeiramente de versão: "Este país, ama-o ou larga-o!", a par de brados em caracteres de sangue: "Viva Porto Rico livre!", ou de expressões melancólicas, líricas, tendo decerto uma súplica subjacente: "Felizes os que são amados" - que logo nos lembrou Mailer e a sua esgadanhada truculência.
É tocante, e ingénuo também, este modo aplicado de Miss Stevens reparar um esquecimento. "Paul Getty!", gritou ela, quase aflita, pondo de lado a xícara de café. "Prometi-lhe."
-Pois prometeu. Sou todo ouvidos.
Mas não era. Naquele momento eu não estava nada interessado nos mecenas americanos. Mesmo que fossem de calibre.
- Tudo começou quando Paul Getty, na década de quarenta, adquiriu uma propriedade em Malibu, na Califórnia. A casa era de estilo espanhol, dominando os vastos socalcos, plantados de limoeiros, que descem até ao oceano. Um sítio magnífico, a oeste de Los Angeles, muito procurado pela gente de Hollywood. Talvez o lugar ideal para um museu. Por mim, gostaria de ver os museus fora das cidades, fazendo parte do que os rodeia.
- O que a leva a pôr tanta estima no exemplo de Paul Getty?
- É que Getty tem a paixão da antiguidade greco-romana. Ora esse fascínio fez sempre parte do sonho americano. - Olhei-a com surpresa, como se ela, afinal, houvesse estado sintonizada com as minhas reflexões de momentos antes. - O actual Museu Paul Getty reproduzirá exactamente um palácio romano, desenterrado das lavas de Herculano, o Palácio dos Papiros. Paul Getty acabou por desistir da casa de estilo espanhol, a que acrescentara várias galerias, e mandou construir a réplica rigorosa desse palácio. Ainda não se sabe quando as obras estarão concluídas, mas já as visitei. As colecções de Getty passarão a ser expostas no palácio. Só as suas peças de escultura antiga, à roda de trezentas, creio, não desmerecem no confronto com o que temos aqui em Nova Iorque ou em Bóston. Assim, a América ficará com uma imagem concreta do que foram as esplendorosas residências romanas e, ao mesmo tempo, apreciará as obras num contexto apropriado. Sempre me pareceu uma ideia muito feliz.
- Como é que Paul Getty se afeiçoou à arte? Para os milionários americanos não será uma maneira de ainda parecerem mais poderosos?
Miss Stevens sorriu com tolerância.
- Sim, talvez prezem tanto o dinheiro que lhe dão uma aplicação nobre. Se o senhor comprar uma banalidade com o seu dinheiro, desvalorizou-o. Mas se...
- E o nome, a ostentação do nome?
- Pode não ser ostentação, antes humildade. Eles sabem que não são ninguém, tenham a fortuna que tiverem. Mas um artista é alguém, é aquele que capta da vida o que nela perdura e tem sentido. Ligando o nome à arte poderá ser uma tentativa, decerto ingénua, concordo, de que amanhã se saiba que eles existiram.
- Miss Stevens romantiza as pessoas e as coisas... E o seu modo de ser.
- Será...
- Bom, mas Paul Getty tem consciência daquilo em que aplica o seu dinheiro?
- Sem dúvida. As suas viagens, ligadas aos negócios de petróleo (vejo-lhe troça na expressão; não troce, por favor!), foram boas ocasiões para visitar museus. Mais tarde, o petróleo acabou por ser mero pretexto.
Paul Getty tinha um fraco por Itália, passava largos períodos em Roma.
Os seus alvos eram Pompeia e Herculano. Fez relações pessoais com especialistas da antiguidade clássica, para satisfazer a sua curiosidade e para lhes pedir opinião sobre o que ia cobiçando. É verdade, tenho de acrescentar um pormenor sobre o Palácio dos Papiros. Nos jardins, há plantas e flores que foram especialmente apreciadas na época romana. Exagero dele, dirá o senhor.
- O que mais me toca neste momento é o entusiasmo que Miss Stevens põe no assunto.
- Construir uma residência romana num vale da Califórnia, para aí instalar bustos, estátuas, móveis antigos, parecerá uma chinesice, chinesice americana. Mas li há tempos uma sentença muito curiosa de um veneziano, Sansovino, que viveu no século xvi, a propósito das cidades. Disse ele que as cidades devem ser construídas para comodidade e satisfação dos que nelas habitam e também para grande surpresa dos estrangeiros. - Olhou-me com zombaria e logo fez menção de se levantar. - Já se sente com coragem para outra visita?
Misericórdia! Basta de museus, Miss Stevens. Há coisas, porém, que não se podem dizer a certas pessoas. Pelo menos do Whitney Museum não me livrava eu. E ainda bem. Mesmo que só visto de fora. Imaginem uma pirâmide truncada, posta às avessas. O Whitney Museum começou por ser um escândalo, depois um duelo entre sarcasmos e louvores (mas nesses sarcasmos não haveria já o respeito?), agora é a atracção de Nova Iorque, coisa que eu totalmente ignorava. Cem mil visitantes por ano. Diz o seu director: é preciso ser diferente, impor uma imagem que perdure na memória. O Whitney é diferente.
Talvez seja por isso, para provocar um choque visual duradouro, que a nova arquitectura dos museus americanos tem que se lhe diga. O Solomon Guggenheim, que eu ainda lobriguei a curta distância, é uma espiral e a Huntington Hartford Gallery uma torre mourisca. A arquitectura cilíndrica está na moda. Ao que me informa Miss Stevens, é dela exemplo o Museu Hirschhorn, em Washington. Nos últimos tempos, cresce a fama do Mark Taper Forum, teatro em forma de tambor, em Los Angeles.
- A emulação, entre nós, é o acicate de quase tudo o que é progresso. Havia a emulação na indústria, nos arranha-céus, no basebol. Chegou a vez da cultura. Várias cidades americanas querem pôr-se à cabeça. Uma delas, Los Angeles. O Mark Taper Forum é um dos três edifícios do seu centro musical. E possui já um bom par de museus. Quanto à modernidade da arquitectura, é o que vê. Paul Getty, cá volto eu a ele, foi o único que destoou. Deliberadamente. Museus em estilo betão já havia muitos.
Esta pirâmide invertida que é o Whitney, estrutura rude de cimento e granito - que nos transmite, afinal? Audácia, sem dúvida. Mas também poder e dramatismo. E há nele ainda seja o que for de testemunho de uma outra civilização. Passada ou futura. Vejo-o como uma fortaleza de vigias trapezoidais, assimétricas, anómalas - que, aliás, pretendem ter apenas uma função decorativa. A luz exterior foi eliminada.
O museu, portanto, começa cá fora, no próprio edifício. Começa por um desafio. No sopé, um espaço verde, com um pátio-viveiro de esculturas, exposto aos olhos da rua. No interior, a arquitectura apaga-se, só discrição e austeridade, para deixar falar os quadros e as peças escultóricas. Como em raros grandes museus se pode ver.
Grande, o Whitney? A sua superfície útil - leio na brochura obtida à entrada - é três vezes a do Guggenheim, mas não faz gala nisso. A ambição dele não está nos gigantismos. Está na ousadia. Paredes móveis tornam o museu adaptável à índole e ao tamanho das obras que deseje apresentar. E tal como noutros museus (já o dissemos), vamos encontrar-lhe uma infra-estrutura variada: bibliotecas, auditório, laboratórios, um café. Tranquilidade, uma atmosfera aprazível. Nada que pareça alarde. Nas suas salas austeras realizam-se dezenas de mostras por ano, através das quais se pretende documentar a cena artística americana dos nossos dias.
Com efeito, o Whitney é, por excelência, o museu da arte americana. Arte jovem, quase toda do século xx. É o museu da young America, por isso às vezes acusado de chauvinismo. Mas aí se encontram todas as tendências, duas mil e oitocentas obras de pintura em que nenhuma escola ficou de fora. Os seus responsáveis, a quem às vezes esse eclectismo é censurado, defendem-se assim: "Recusamos ser selectivos. Não cremos que a verdade esteja numa ou duas correntes. Procuramos apresentar os artistas mais inspirados, quer sejam vanguardistas ou passadistas. Nada nos pode assegurar que o que hoje nos parece mais moderno seja amanhã considerado o mais antiquado. A posteridade julgará."
O museu deve-se à escultora Gertrude Vanderbilt Whitney, que, no começo do século, se rebelou contra o isolamento face à arte europeia e contra o academismo então em voga. Em 1914, funda o Studio Whitney, perto do seu atelier, onde expõe o que de mais atrevido surge na arte americana. Em 1918, cria o Whitney Studio Club, que se vai tornar o núcleo da nova geração. Finalmente, em 1930, numa casa de estilo colonial, Gertrude Vanderbilt inaugura o primeiro Museu Whitney, todo ele dedicado à arte americana. Em 1954, o Whitney instala-se numa dependência do Museu de Arte Moderna. Depois fez-se um apelo ao povo dos Estados Unidos, logo se recolheram oito milhões de dólares, enquanto o arquitecto Breuer era chamado a criar esta surpreendente conciliação de arcaísmo e modernidade.
Pronto, Miss Stevens: acabaram-se os museus. E também termina aqui o nosso convívio nova-iorquino. Amanhã, será Bobbit a levar-me ao Aeroporto Kennedy. Ele insistiu nisso e a mim livra-me (julgava eu) dos embaraços de quem caminha às cegas neste bosque cerrado.
Sentamo-nos de novo a uma mesa, desta vez no próprio café do museu, as minhas pernas estão mesmo a pedir tréguas. Ela, não, é incansável. A fadiga reparte-se-lhe pelo corpo fino mas sem fim, leva tempo a percorrê-lo todo. Vamos falando dos parques de Nova Iorque, do meu temor (já anteriormente confessado) de por eles me afoitar a sós. Uma sensação de que sou seguido por alguém, de que se esconde um salteador em cada sebe.
- Perigo há, de acordo, numa cidade como esta. Já conversámos sobre isso - e eis finalmente uma ponta de azedume na minha paciente interlocutora. - Mas não devemos exagerar. O mesmo perigo que existe em Londres, em Paris, talvez na sua pacata Lisboa. Olhe, vou contar-lhe um episódio que se passou comigo, o qual, aliás, não me fez desistir dos meus passeios nos jardins, das minhas leituras ao ar livre, que é o modo de uma pessoa se sentir fora destas jaulas de cimento. Foi assim - e Miss Stevens muda de posição, como que a representar a cena. - Eu estava a ler, sentada num banco. Mais adiante, num outro banco, uma rapariga fazia o mesmo. Súbito, um homem aparece-lhe em frente, olhos doidos, uma navalha apontada à sua garganta. O medo, o espanto, nem sei bem, paralisou-a. Como me paralisou a mim. A rapariga não fez um gesto. Essa aparente impassibilidade talvez tivesse desconcertado o homem, que, com a mesma brusquidão, se pôs em fuga por uma das alamedas laterais. Ela então levanta-se do banco, corre a procurar um guarda do parque. "Depressa, vai ali um homem com uma faca. Quis fazer-me mal." - "Não posso intervir", disse o guarda. "Só se eu tivesse assistido, se as coisas se tivessem passado na minha frente. Agora o assunto é com a polícia." Bom, a rapariga pediu para telefonar à polícia, que não tardou e estabeleceu um cerco. O homem da navalha foi encontrado no extremo do parque. A esfaquear sabe o quê? As árvores. Três ou quatro das árvores em redor tinham o tronco lacerado. Não calcula como senti esses golpes no meu corpo.
Miss Stevens baixa os olhos, empalidecendo. Depois, bruscamente, todo o seu rosto se ruborizou.
- Sabe?, não há povo que não tenha as suas doenças e os seus doentes. Gostaria que ficasse a amar o meu país.
No dia seguinte de manhã, eu tinha correspondência no cacifo da recepção do hotel. Nova missiva de Miss Stevens. Desta feita, para me dizer: "O diabo do gravador pôs-se a funcionar assim que cheguei à biblioteca. Acrescente às suas notas que em Nova Iorque também se passam bruxarias. Boa viagem! E, se não fosse desejar muito, até breve."
"OK, IT'S FINE"
" OK, it's fine. "
A quem ouvi eu isto? A Bobbit, quando chegou ao hotel para me conduzir ao Aeroporto Kennedy, trazendo à ilharga o taciturno senhor Pierston, que cobiçara a boleia para os lados do Queens ou, então, usara esse pretexto para se despedir de mim? Podia, de facto, ter sido a Bobbit, todo ele goods e fines, quanto mais não fosse para corrigir a sisudez do senhor Pierston, que parecia um inspector de polícia a quem fizeram levantar da cama às primeiras horas da manhã. Mas não foi. Ouvia-a, sim, a uma emigrante açoriana, ao entrarmos no avião que nos levou de Santa Maria a Montréal, era madrugada, a ilha via-se como um navio avançando na distância para uma manobra obscura. Nas cumeeiras, manchas verdes, recortadas pelas nuvens; no mais, aquelas faldas com o desmaio das dunas, a renderem-se ao cerco do mar. E casinhas brancas, semeadas à toa por uma mão já quase vazia.
Estou a lembrar-me com nitidez. Foi ela. Vestia umas calças de cor de gema de ovo, por cima da blusa uma samarra de peles canadianas, apesar de a atmosfera mornaça pedir roupa leve, e mal acabara de dizer It's fine logo lhe mesclou o lusitaníssimo "Espera aí", dirigido ao garoto a quem haviam enterrado na cabecita um chapéu carnavalesco.
Aquilo fora uma leva de imigrantes de retorno ao Canadá, um súbito tufão. Vinham ou iam para uma romaria, num crescendo de farnéis e excitada expectativa, e não pareciam nada ralados que a estrangeirada que embarcara em Lisboa se mostrasse enfadada. O avião, para eles, já não tinha novidade, não lhes punha silêncio na boca nem susto nos gestos. Foram atulhando os espaços disponíveis com maletas, cabazes merendeiros, rádios portáteis, logo ali duas mãos maternais armaram um berço entre duas filas de cadeiras, em jeito de preguiceira, embora o crianço assim aninhado nem por tal demorasse a berrar, enquanto a malta miúda ia pondo a funcionar, já sem prévia decifração, os botões do ar condicionado. Por entre aquela restolhada de vozes e de trajes, o próprio a mixordar-se com o alheio, adereços ingenuamente ostentatórios, rapaziada gadelhuda a par de outra que havia sido tosquiada no barbeiro da aldeia, difícil uma pessoa entender-se. Quem imaginaria que esta moçoila, com pinta de ribatejana, se pusesse sem mais detenças a mascar pastilhas elásticas e a reclinar lestamente o respaldo do assento? Mas foi o que aconteceu. Utilizarem-se dos lavabos, isso queriam todos ao mesmo tempo, até alguém lembrar que as portas só se abririam quando o avião fosse lá no alto.
Dir-se-ia uma tribo acampando numa feira. Tinham acudido de várias ilhas do arquipélago para se juntarem no aeroporto de Santa Maria, agora o avião era deles. "OK, it's fine, espera aí, tens tempo", o garoto livrara-se de uma estalada por uma unha negra, quem o mandava ser chorão? Em vez do tabefe, porém, o que ele recebeu foi mais um naco de folar. Depois uma voz enfiou-se no alarido, avisando que vinha aí um atrasadão a correr pela pista, desgarrado que se achara do último grupo de viajantes. Ao chegar à escada, o homem, um mal-encarado agastadiço, deixou cair um ramo de flores. Flores, quem poderia supor? Mas quando, resmungando, as recolheu uma a uma, se percebeu que eram flores artificiais. Para fazer vista e durar. Compradas numa drogaria de Vila do Porto.
"It's fine." Quem o disse foi, pois, a emigrante. Agora que, para mim, já começou o regresso, que já passámos por debaixo do East River tendo sempre a nosso lado uma fileira de carros furiosos, aquele que se adiantar um centímetro vai sentir-se um campeão ou um sobrevivente, agora tudo me reflui, em tropel e em remoinho, ao ecrã da memória. Vamos na auto-estrada, mas já não sei qual delas. Tudo é pressa, evasão. Os quilómetros não contam, o que é preciso é andar, durante horas ou durante dias. Andar, fugir. Colinas brandas, rastejando como serpentes, fecham ao longe a paisagem rasa, correm ao nosso encontro os perfis escuros dos silos e dos estábulos, de repente o sol atravessa as órbitas das casas abandonadas, deixa-as a arder. Mais além, o prateado metálico de torres de alumínio, casarões de telhados de zinco, a pique ou abaulados, nem vivalma por estes desterros - serão moradas ou espectros? O imenso Canadá. Mas também poderá ser a imensa América. Cá do cimo, é o mesmo mar de terra, um mar estático e aloirado, imerso num silêncio de grandeza.
Reparem agora neste posto de gasolina, que tem um cartaz mais alto que a bomba: "Eis a sua última oportunidade de gasolina a quarenta e três cents." Léria, pensarás tu. Mas não é. Adiante, no posto próximo, uma proximidade que pode representar cinquenta milhas, poder-se-á verificar que a tabela, de facto, é já outra: quarenta e sete cents. Caixas de correio à beira do asfalto, cada uma serve estas residências solitárias recuadas no arvoredo, aqui os carteiros fazem a distribuição num Chevrolet. Aqui - onde, afinal? No Canadá. Vamos a caminho de Quebeque, não tardam os vendedores de bugigangas acocorados no chão, jovens todos eles e esculpidos de indiferença, chaminés como mastros desnudos, ruas que o tempo habitou de ausências e cobriu de fuligem, só na outra margem do rio a paisagem conserva um esplendor de doçura. Quebeque letrada, cerimoniosa, europeia. Telhados acobreados que o azebre há muito envelheceu. Bichas de escolares, em peregrinação, para assistir ao espectáculo saudosista do Museu do Forte. Um hippy, sentado no parapeito da janela, de pernas para fora, descalçando as meias obviamente rotas e lançando-as ao burguês ofendido. Pareceu-me, não o afirmo, que Quebeque, assediada pela civilização americana, começa a ter as forças quebradas.
Vamos a caminho de Quebeque ou de Toronto, já não distingo bem. Atravessamos Louisville. A cidade, far-westiana, é uma rua, mas de um e de outro lado as casas têm estilos diferentes. Mais cartazes? Que dizem estes? O primeiro é tranquilizador e é um encorajamento à tua prudência: há quatro dias que não se declara um incêndio na comarca, há setecentos e trinta dias que não se regista um acidente mortal. Louisville está orgulhosa. O outro cartaz, na frontaria da esquadra da polícia, acusa-te, porém, das infracções assinaladas na véspera e põe-nas em censurador contraste com a estatística do mesmo dia do ano anterior. Repetem-se os alpendres prateados, ao que parece para absorver o sol, que assim mais depressa derreterá as neves. Repetem-se as casas em ruína, o vento atira-se de encontro às vidraças que restaram, farms que foram cultivadas e são agora pousios, dizem que muitas delas atraem o emigrante luso, a quem nenhum clima nem nenhum exílio mete medo - que fadário é este que nos exige tais desafios, nos álgidos lagos do Canadá, vejam-nos lá das alturas do avião, coalhados de Invernos e murados de florestas, nesses lagos, onde o céu passeia imagens invertidas, vivem trezentos pescadores da Nazaré, contando com as famílias deve ser coisa para mil e tal pessoas, que fadário é este, meu país desertado de si próprio?
"Isto é um rio, não é? Até parece uma estrada." Correm por debaixo de nós estepes de púrpura, rios verdes, pasmam-se charcos, montanhas brancas. Súbito, um cordame de nuvens esconde-nos a terra, mas logo se rasga, deixando rebrilhar os espelhos de água. Vamos no avião, também não sei qual deles. Às vezes um mosaico de telhas resplande como um diamante perdido num areal. No mais, um ermo de charnecas, aqui e ali encrespado em espinhaços onde as neves nunca chegam a liquescer, um mar glauco, uma aurora enevoada. O mar de Santa Maria, esse, é azul, turquesas em fusão a progredirem sobre a ilha absorta.
Donde viemos, para onde vamos? Estávamos no aeroporto de Toronto, agora me recordo. Alguém preveniu pelo altifalante que haveria um pequeno atraso no avião para Nova Iorque, adeus Toronto, cidade que tempera a fogosidade com uma plácida convivência. Os refilões não se calaram com a notícia, sobretudo os americanos, que logo requisitaram o impresso das reclamações. Apenas um sereno bando de asiáticos, talvez chineses da Formosa, sorriram ambiguamente para todos nós, tanto podia ser a convidarem-nos a aceitar com paciência o percalço como a divertirem-se com o nosso tonto azedume. Num ápice, o bar encheu-se de bebedores. Bebe-se muito nos Estados Unidos, bebe-se muito no Canadá. O mesmo na Suécia, o mesmo na Rússia, em todo o lado. Nos bares de Montréal ou de Toronto, de Quebeque ou de Otava, tanto faz, os casais ou os solitários que lá entram ao sábado só de lá saem mareados ou em braços. Cada bebida é paga antecipadamente, não vá o diabo tecê-las. E as pessoas pregam um cartão na lapela, onde se declara o nome e o endereço. Quando o ritual terminar, desse modo se averiguará para onde os clientes deverão ser despachados, num táxi ou no carro de um samaritano. Na segunda-feira de manhã, a saudação nos locais de trabalho é esta: "Então emborrachaste-te a valer?" Uma resposta reticente desacreditaria uma pessoa. Disse-me um médico de Toronto que a doença mais vulgar nas crianças é a síndroma do fim-de-semana. Os pais passam esses dois dias a beber e a curtir a bebedeira, e elas, as pobres, desidratam-se, gasta-se-lhes o açúcar no sangue. Isto é: sede e fome, até os pais se desembaciarem da turbação.
O tráfego não alivia, muito pelo contrário, e eu começo a pensar nas horas. Bobbit nada pode fazer, os carros não despegam, nem dá para uma sapatada no acelerador. Nova Iorque em massa está a escoar-se por estas auto-estradas do êxodo. Como todos os dias ao entardecer. O túnel Queens há muito que ficou para trás, cada auto-estrada vai-se reproduzindo em ramais, mas nem por isso o trânsito se desenfada, reparo nos outros condutores e vejo-os resignados, ou o frenesi se lhes gastou, de tão usado. É preciso que Bobbit não se baralhe neste emaranhado de asfaltos - e se eu perco o avião? Deito um olhar aflito ao senhor Pierston, no seu rosto só há impassibilidade.
Suspeito que nem Bobbit conhece bem o passado do senhor Pierston, que talvez este se tenha confiado mais a mim, durante o almoço a sós, do que em todos os anos de Nova Iorque aos seus companheiros de trabalho. Eu sou a visita de uma hora; o que eu ouvi, porque era necessário dizê-lo a alguém, espalhou-o o vento. Estou certo que, por exemplo, Bobbit ignora que o senhor Pierston tem um filho na Europa. Fora muito tempo depois de chegar à América que ele soubera que essoutro filho estava na Bélgica, vivo. A notícia não lhe dera surpresa, nem sequer alvoroço. O filho não podia ter morrido, às vezes sentia-lhe a presença, o olhar, a respiração, bastaria chamá-lo "Ruddi!" para ele acudir ao chamado, bastaria estender as mãos para tocá-lo. Estava vivo, em suma, e iriam encontrar-se num hotel em Anvers, numa data e numa hora fixadas com laboriosa minúcia. Sinais identificadores, para quê? Eles tinham forçosamente de se reconhecer à primeira vista. Indo e vindo no átrio a todo o momento basculhado de intrusos - "Ruddi teve algum atraso, decerto, Ruddi já não poderá tardar" -, depois subindo e descendo o parque que circundava o hotel, o fim do dia encontrou-o desenganado num sofá, exausto da espera. Que podia ter sucedido? Ruddi equivocara-se no hotel, adoecera de repente, havia um sem-número de razões. Continuaria a aguardá-lo, o tempo não contava. Afinal, noutro sofá, no mesmo átrio, via-se outro homem esperando alguém - aqueles olhos encovados, o tique nervoso no pestanejar, quem lhe faziam lembrar? Ruddi! Um Ruddi que os anos tinham desfigurado.
Vamos chegar tarde ao avião, cada minuto que passa mo faz sentir, já não escondo o nervosismo. Bobbit enganou-se num destes desvios e, quando isso acontece, não há batota que nos livre de um desperdício inimaginável de léguas até se recuperar o caminho. As auto-estradas só têm um sentido, todas voltam costas às cidades. Ou então Bobbit, para largar em casa o senhor Pierston, fez um rodeio qualquer, esquecido das horas. A verdade é que não reconheço estes sítios. Eis uma grande rocha granítica, alguém lhe gravou um imenso coração atravessado por uma seta e sobre esta escreveu o nome da amante. Mais além, um cemitério de automóveis, negros correndo atrás de uma bola, árvores afastando-se umas das outras para que saibamos que espaço nos resta para o preencher de cimento, a paisagem de uma tristeza agressiva, operários deslocando uma casa de madeira, em bloco, como quem desencalha um navio preso nos recifes. E o lixo. Não preciso que me chegue o odor para senti-lo. Ainda tenho nas narinas o lixo de Montréal, um pesadelo. A cidade, às primeiras impressões, julguei-a despovoada, só lixo. Abro um jornal e, a toda a largura da página, uma caricatura: duas ratazanas a pedirem boleia para Toronto. Para se escaparem do fedor. Gostei de Toronto, já o disse, uma cidade que respira árvores, que tem um viver diligente mas saboreado. No entanto, um imigrante de Ílhavo, que estivera em França a estudar, fugido à tropa, e depois pensara fazer vida no Canadá, desabafara assim: "É preciso sair de Portugal para sabermos bem o que é o nosso país. Para o amarmos com paixão." Se assim é, meu amigo, meus companheiros de viagem de Santa Maria a Montréal, meus anfitriões de Toronto, desbravadores de mundos, se assim é, quando partiremos à descoberta de nós mesmos? Nenhuma fronteira inibiu a vossa coragem de afrontar o desconhecido, vão-se os indómitos, vão os que não aceitam o desencanto, a penúria e a renúncia - quem fica no teu país, emigrante de bravuras e porfias? Os velhos, os tristes, os frouxos, os vândalos? Se assim é, que sejas o primeiro a negar-se a esta absurda sina.
O tempo que nos sobra para o avião é, de facto, à justa. Bobbit também acabou por se preocupar, bem lhe entendo a súbita gravidade. Nenhum de nós fala disso, muito menos o senhor Pierston, para quem a hierarquia das emoções parece diferente da nossa. à minha frente só vejo auto-estradas. Há três semanas que os meus olhos se enchem de asfaltos, arranha-céus, chaminés, subsolos. Tive ocasiões em que me senti uma térmita. Sobretudo em Montréal. Mais que Nova Iorque, Montréal tem meia face secreta. A vida esconde-se debaixo do chão, no interior dos grandes imóveis, nas passagens subterrâneas. E aí há de tudo: lojas, restaurantes, cabeleireiros, livrarias, dancings. Vi japoneses extasiados ao descobrirem escritórios que não têm uma janela, só portas que dão para aqueles corredores infindáveis, e extasiados sobretudo junto de urinóis públicos, à espera de observarem como os canadianos os utilizavam. Janelas? Em Harlem também me apontaram uma escola sem janelas, para que as crianças negras não possam ver o que se passa no mundo dos brancos. A sua fronteira é o Central Park.
Nem toda a Montréal é uma cidade furtiva, longe disso. Há ruas e ruas de rosto virado ao sol, que de súbito se inundam de uma multidão com pressa de voltar aos seus esconderijos. Há um bairro genuinamente francês, repousado, há aqueles prédios do começo do século, com escadas exteriores ligando os vários pisos, a recearem a vizinhança dos buildings descomunais. Do avião, a gente não imagina o que irá encon
trar. Um comboio correndo atrás de um trigal, uma paisagem impetuosa que poderá explodir de um instante para o outro, bosques cerrados, manchas como que de poeira sedimentada, uma sombra carvoenta a deitar-se sobre um outeiro luminoso, e eis a explosão: bairros de moradias surgindo das dobras do terreno, chaminés fumegando, anéis de asfalto, fachadas de vidro a brilharem. E, já no aeroporto, o aranzel imprevisto: um par de emigrantes trouxera um leitão assado e a alfândega, receosa de moléstias, queria confiscá-lo, outro casal acrescentara à bagagem uma caixa de sardinhas, bem acamadas em gelo, e este derretera durante a viagem, inutilizando a gabardina de um italiano, que naturalmente se pusera a berrar.
Mas a primeira sugestão de Montréal é, na verdade, de cidade desabitada. Ou antes: habitada de automóveis, sempre os mesmos desarvorados de asa larga. Para onde foram os habitantes? Este rapagão loiro vestido de amarelo atravessa a rua com uma expressão ausente. Para onde foram as pessoas, que não as vejo? Uma irrealidade real. Ou o contrário. Porém, de um tufo de relvas solta-se um pássaro, o seu voo é ligeiro e desacautelado - no Canadá é proibido matar as aves citadinas. Voa o pássaro, que estivera a limar o bico nos arbustos, e isso mais me atormenta a dúvida: para onde foram as pessoas? Até parece que as escavadoras, no seu crepitar sincopado, agem sozinhas. Olho em redor: o Le Château, que será o meu tecto, dispara por aí acima, direito a um céu cinza, e sinto-o vazio. Alphaville, quem diria. Mas esta imobilidade despovoada é falsa, vai acontecer seja o que for. E, com efeito, num ápice, esse céu ameaça desabar, sirenas rompem aos uivos, o vento deu um safanão às árvores, chove. Torrencialmente. O céu pôs-se tão baixo que cortou pelo meio o gigantismo do Le Château. Chovendo, porém, aquela figura estática, sob um largo chapéu-abrigo, revelou-se um ser vivo: é o homem dos gelados, a quem a tormenta obriga a ir recuperar, muitos metros adiante, o carro e o abrigo. A sua cabeça, contudo, nem se protege nem se verga, nada o apressa - um rei. Às vezes basta um homem para que uma cidade se habite.
Não, não perderei o avião. Ele partirá com atraso. Uma agência de viagens despejou numa das múltiplas coutadas em que se reparte o Aeroporto Kennedy (esta é da Air France) uma matilha de excursionistas, e a confusão de malas e bilhetes deu cabo de todos os horários. Entre a malta, uns tipos morenões de chapéu texano, botas de vaqueiro, dólares gordos para pagar, ao balcão, mais uma rodada de cerveja. Quando me aproximo, ouço-os: são portugueses. Estou de novo com a minha gente, o que me apetece é que Bobbit e o senhor Pierston cumpram o rito e se despeçam. Deixei de me sentir na América. Lisboa é já em mim uma impaciência.
Na altura, não poderia prever que daria conta das minhas jornadas nova-iorquinas neste livro, que, dois anos depois, haveria de tentar do senhor Pierston um avivamento de certas lembranças - e que dele, enfim, receberia a seguinte carta:
"Caro Sr. Namora,
O Sr. Morel disse-me que V. gostaria que eu lhe reavivasse a memória a respeito da conversa que, como V. refere, tivemos em Nova Iorque.
Parece-me que V. ficou com a impressão de que eu, naquele encontro, falei de uma maneira crítica do meu país. Francamente, não me lembro de alguma vez o ter feito.
Sim, devemos ter dialogado sobre as minhas experiências pessoais durante os primeiros anos de imigrante. Devo ter-lhe dito que as coisas foram especialmente duras para mim. Além do mais, eu tinha cinquenta e quatro anos e recomeçava a minha vida pela quarta vez. Tinha mulher e um filho de cinco anos de idade. Não conhecia a língua, não possuía amigos nem quaisquer meios de subsistência. Sim, devo ter-lhe dito que a emigração é uma prova rude, que o ajustamento a uma vida nova num novo país é extremamente penoso e que, no meu caso, tudo estava contra mim. Mas também devo ter-lhe acrescentado que, tal como eu, qualquer pessoa o pode fazer neste país, quero dizer, qualquer pessoa que tenha vontade de trabalhar, de ser modesto, económico e paciente. Apesar do meu esforço, só doze anos depois me foi possível pôr o meu filho num colégio particular e pensarmos, eu e minha mulher, em férias agradáveis todos os Verões e em viver confortavelmente.
Este é o modo como eu via na altura a vida na América e como a vejo agora. Mas se V. acha que, naquela conversa, eu pretendi tornar este país responsável pelos meus infortúnios, V. está redondamente enganado.
Seu, P. Pierston."
Lisboa e Monsanto, de Novembro de 1972 a Setembro de 1976.
Fernando Namora
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