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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAVALHEIRO VALENTE / Hannah Howell
CAVALHEIRO VALENTE / Hannah Howell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ainslee de Kengarvey sabe cavalgar e manejar armas como uma guerreira, porém sua habilidade e coragem são de pouca serventia para ajudá-la a escapar do intrigante cavaleiro que a persegue implacavelmente. Para retribuir o apoio e o favorecimento do rei, Gabel de Amalville precisa subjugar a rebelião dos insubordinados MacNaim. E tomar como refém a filha do líder do clã é mais uma necessidade do que uma escolha, pela posição de vantagem que isso lhe trará. No entanto, ao levar Ainslee para o cativeiro de seu castelo, Gabel se descobre irresistivelmente atraído por aquela jovem linda e sensual. E enquanto a guerra assola as Terras Altas, o leal cavaleiro se defronta com um dilema: cumprir a dívida de honra para com seu soberano, ou obedecer ao comando de seu coração apaixonado...

 

 

 

 

                              Terras Altas, Escócia, 1210

         - A cor do céu avisa que uma tempestade se aproxima, Ronald - Ainslee MacNairn disse ao erguer os olhos para as nuvens escuras.

         - É mesmo - concordou seu grisalho companheiro. - Acho que é melhor voltarmos para Kengarvey.

         Ainslee sorriu.

         - Está com medo de uma tempestadezinha de outono?

         - Não, mocinha, e você sabe muito bem disso. Mas nós nos afastamos muito, e receio que possamos deparar com escoceses ou normandos. Achariam excelente se pusessem as mãos em você. Iriam saborear a oportunidade de fazer um pouco de barganha ou se vingar de alguma forma, ou um pouco de cada coisa. E sendo você uma moça de tão boa aparência, não preciso lhe dizer o que nossos inimigos poderiam lhe fazer.

         Quando Ainslee virou sua montaria na direção da maciça fortaleza a que chamava de lar, resmungou baixinho e puxou o capuz do manto volumoso sobre os cabelos de um cobre escuro.

         - Será que nunca haverá um dia em que eu possa cavalgar sem medo de todos os nossos vizinhos, Ronald? Estamos em conflito com cada clã das redondezas, em conflito com os normandos que nosso bom rei estabeleceu logo depois do rio, e em conflito com as pessoas das Terras Baixas. Será que vocês não se cansam de todas essas lutas e mortes?

         - Sim, mas é esse o jeito do mundo, mocinha. Alguém está sempre pensando em nos conquistar. Alguém está sempre cobiçando nossas terras. Sempre há alguma disputa, alguém a reclamar de um ressentimento ou insulto. E sempre haverá os ingleses, os normandos ou os clãs vizinhos a confrontar. Se não for um ataque, é uma hostilidade continuada.

         - Bem, estou farta de todas essas lutas. Muitas vezes me pego tão ansiosa para ir embora daqui que até sonho com isso.

         - Você logo estará casada e então partirá. Porém deve perdoar este velho por desejar que esse dia não venha muito em breve, já que tenho cuidado de você desde que montou seu primeiro pônei. Sentirei saudades de doer.

         - Obrigada, mas não acho que eu vá me casar e seja levada para um lugar melhor, portanto não deveria se preocupar demais. Tenho dezoito anos, Ronald, e nada ainda foi arranjado para mim. Quando eu tinha seis, minhas irmãs se casaram com homens de clãs vizinhos, na vã esperança de aumentar o poder de nosso lorde. Meu pai diz claramente que sou muito magra e muito feia para realizar um bom negócio comigo.

         - Que bobagem! - Ronald mudou a perna enrijecida para uma posição mais confortável, e depois esfregou a cicatriz na mão esquerda, onde perdera três dedos. - Você não é por demais magra. Sob esse manto pesado há uma forma que muito homem ansiaria para possuir. Sim, é esguia e flexível, mas tem todas as curvas nos lugares certos. Quadris pequenos, porém arredondados o bastante para prometer os filhos que um homem deseja. Lindos cabelos ruivos mesclados de dourado, e olhos tão azuis como um lago num belo dia de verão. Eu poderia enchê-la de mais elogios, mas você já está vermelha que nem fogo.

         - Diz as coisas com muita franqueza, Ronald.

         - Alguém precisa, se você tiver de se livrar desse pensamento tolo de que não é suficientemente bonita para qualquer homem.

         - Talvez eu não seja desagradável aos olhos dos homens, porém não sou o que eles procuram numa esposa.

         A face de Ronald, crestada pelo tempo, enrugou-se num sorriso.

         - Com mais de sete anos de diferença de seus irmãos, você chegou à adolescência sem ninguém ao lado. Suas irmãs se casaram e foram embora, e seus irmãos estavam ocupados a aprender a ser homens. Tive a honra de criá-la e receio que não tenha feito isso muito bem.

         - Você se saiu muito bem, na verdade, Ronald. Aprendi muito com você.

         - Sim, a cavalgar tão bem como qualquer homem, empunhar uma espada adequadamente, e ser quase mortífera com um punhal. Uma flecha não causa estranheza a essas mãos delicadas, e você tem despachado muito bicho da floresta para as mesas de Kengarvey. Sabe ler e escrever e até mesmo fazer algumas contas, já que chantageou seu irmão Colin para que a ensinasse, quando ele voltou do mosteiro. No entanto tem pouca habilidade com uma agulha, a não ser para costurar um ferimento. Ah, mas sabe tocar alaúde e cantar com uma doçura suficiente para fazer até mesmo este velho endurecido chorar. Daria uma excelente esposa para qualquer homem, uma que poderia ficar ao lado dele e não se acovardar por trás de um marido.

         Ainslee sorriu e meneou a cabeça.

         - Não é isso que um homem quer, Ronald, e você sabe muito bem. Um homem deseja uma esposa que se ajoelhe diante dele, cumpra cada ordem com obediência cega e sorridente, e nunca reclame. Não creio que isso mude, seja o homem um saxão, um escocês ou um desses normandos que nosso rei corteja tão assiduamente. - Ela franziu a testa ao perceber que Ronald não mais a escutava. - O que há de errado?

         - Está ouvindo, Ainslee? - ele perguntou ao se erguer na sela e olhar ao redor.

         Depois de apurar os ouvidos, Ainslee ficou tensa e concordou.

         - Sim, estou escutando. É o som de cascos de cavalo. - Baixou os olhos para o enorme cão mestiço de lobo que trotava atrás dela e viu os pêlos eriçados em suas costas.

         - Feioso ouviu também, e não é nossa gente que se aproxima.

         Ronald fez um sinal; Ainslee esporeou o cavalo e avançou num galope no mesmo instante que ele, e seguiram em disparada para Kengarvey. No cume da colina, ela viu um bando de normandos que saía do bosque. Um grito cortou o ar frio de outono. Tinham sido avistados. A caça começara. Ainslee só poderia esperar que o inimigo fosse retardado pelo peso das armaduras, pois havia uma grande distância a ser percorrida para ela e seu companheiro alcançarem a segurança de Kengarvey.

         Gabel de Amalville mexeu-se, impaciente, na sela. Detestava comandar incursões pela área selvagem das Terras Altas. Às vezes tinha gana de acabar com todos os clãs e invasores, limpando a região inteira por quilômetros ao redor. Mas os bandidos que procurava eram difíceis de pegar. Um olhar para os vinte homens bem armados que cavalgavam em sua companhia mostrou a Gabel que estavam tão descontentes quanto ele.

         - Gabel, olhe lá! - gritou seu primo, Justice Luten, arrancando-o dos pensamentos desagradáveis. -- Avistamos dois cavaleiros.

         - Se não os interceptarmos, irão alertar Kengarvey.

         Gabel incitou o cavalo a pleno galope, e seus homens rapidamente o seguiram. Os cavaleiros que procuravam haviam desaparecido por trás de um pequeno outeiro. Um parecia jovem, e outro, mais velho, o acompanhava. Gabel não se sentia bem em colocar tais pessoas sob sua espada, mas reuniu coragem para a desagradável tarefa. Se Kengarvey fosse avisada de antemão, sua jornada seria inútil. Jamais poderia investir contra a fortaleza em alerta. Ao se aproximarem mais dos escoceses em fuga, Gabel teve a impressão perturbadora de que um dos cavaleiros poderia ser uma mulher.

         Impossível. Era inconcebível que qualquer mulher pudesse cavalgar tão bem ou montar um cavalo tão poderoso. O cavaleiro parecia completamente à vontade, sem medo da velocidade do animal, e controlava a montaria com incrível perícia. Era improvável que sua presa fosse uma mulher, contudo seus olhos continuavam a afirmar que era. Então, de repente, Kengarvey surgiu à vista, e Gabel puxou as rédeas, espantado demais para caçar a presa, embora eles também tivessem estacado. Kengarvey estava em chamas, e os sons horríveis de batalha eram fáceis de distinguir.

         - É o clã de MacFibh - gritou Justice. - Reconheço a bandeira. Atacaram o castelo.

         - Sim. Parece que as defesas estavam frágeis, como nos disseram - concordou Gabel. - Observe nossa caça, primo. Os dois, agora, se encontram entre dois inimigos. Não há como adivinhar o que farão a seguir.

         No mesmo instante em que ele falava, os cavaleiros fizeram meia-volta. Gabel foi tomado de surpresa quando a dupla cortou-lhes o flanco, galopando de volta rumo ao abrigo da floresta. Seus homens ainda dispararam umas poucas flechas, mas os MacFibh os tinham avistado e mandaram um mensageiro ao encontro deles. Gabel foi forçado a esperar.

         - Se é MacNairn que você procura - disse o escocês ao parar diante de Gabel -, chegou tarde. O bastardo fugiu com os quatro filhos. A batalha já está perto do fim. Aqueles que não morreram fugiram, e a fortaleza está em chamas.

         - Então iremos nos defrontar com MacNairn outro dia. Vamos, homens, quero aqueles dois - Gabel gritou aos seus comandados, enquanto fazia a volta e esporeava a montaria atrás dos dois fugitivos, rumo à floresta.

         Gabel agia por impulso e intuição. O instinto lhe dizia que o par de cavaleiros, a quem mal avistavam agora, era de alguma importância. Havia uma chance de que nem todos os filhos de MacNairn tivessem fugido junto com o pai. Se seus instintos estavam certos, ele poderia exigir um dispendioso resgate pelo retorno do rapaz, um resgate que poderia bem forçar MacNairn a pelo menos se confinar a suas próprias terras e às de seus vizinhos mais próximos, como os MacFibh. Um ataque não seria suficiente para encerrar a dominação de Kengarvey. Fora incendiada numerosas vezes ao longo de anos, e MacNairn sempre ressurgira das cinzas, como uma fênix.

         Qualquer tipo de trégua com MacNairn seria um bálsamo para o rei. E era importante que Gabel agradasse ao rei. Agora que seu irmão mais velho tivera o terceiro filho, ele sabia das poucas chances de herdar as terras inglesas que Guilherme I dera a seu bisavô, Charles de Amalville.

         Gabel não tinha desejo algum de viver e morrer sem ter os filhos pelos quais ansiava. Nem queria desperdiçar a existência como mercenário, ou entrar para um mosteiro. Se agradasse ao rei, teria terras. Dera certo com outros. Se pusesse um fim aos conflitos com os MacNairn, então poderia descansar um pouco, teria condições de se casar e começar uma família.

         Seu castelo estava preparado para uma esposa. Tudo o que precisava era de terras, e os dois cavaleiros que desapareciam naquele instante pelo bosque poderiam ajudá-lo a conquistar essa dádiva.

         Assim que os dois entraram na floresta, Gabel e seus homens tiveram de diminuir o passo por causa da mata cerrada. E, quando os perdeu de vista, ele ordenou ao grupo que parasse. Justice desmontou e examinou o chão. Se Justice pudesse encontrar a trilha, então poderiam capturar a presa.

         - Um deles tomou uma flechada, Gabel! - exclamou Justice. - O rastro de sangue é mais nítido do que as marcas de patas de cavalo.

         - Então, logo terão de parar. Vamos desmontar e seguir a pé - disse Gabel ao saltar da sela. - Os cavalos precisam descansar. Minhas costas também.

         - Veja aqui, eles rumaram para oeste. - Gabel aproximou-se. - A trilha de sangue indica que o ferido não vai agüentar montando por muito tempo. Deve estar bastante fraco com a perda de sangue.

         - Então, nós os pegaremos.

         Ainslee voltou-se para falar com Ronald, que estava tão branco como um lençol imaculado. Quando ela estendeu a mão para tocá-lo, ele vacilou e escorregou da sela. Reprimindo um grito de susto, Ainslee desmontou depressa e correu para o lado de Ronald. Soltou uma praga ao ver o ferimento de flecha na perna esquerda do amigo.

         - Por que não disse nada sobre isso?! - ela exclamou. - Perdeu um bocado de sangue. E a flecha?

         - Arranquei-a, mocinha - ele respondeu com um murmúrio rouco. - Não se dê ao trabalho de cuidar de mim. Fuja daqui, ou aqueles normandos irão capturá-la.

         - E deixá-lo para ser pego, morto ou sangrar até a morte? Jamais.

         Ainslee pegou a pequena sacola que sempre levava pendurada na sela. Ronald a ensinara a viajar preparada para qualquer eventualidade fosse qual fosse a distância da jornada. Desde que era pequena, sempre havia Ronald e a sacola de itens diversos. Conforme crescera, Ainslee tinha começado a preparar a sua própria. E dentro, havia tiras de linho para enfaixar o ferimento de Ronald, e uma mistura de ervas para usar como ungüento. Tudo que ela precisava era de água para limpar a ferida. Foi até o riacho ali perto.

         - Que maldição, menina tola - Ronald resmungou, quando Ainslee tirou o manto, dobrou-o e colocou-o debaixo de sua cabeça. - Vai me fazer o favor de fugir enquanto é tempo? - Começou a praguejar.

         Ainslee sabia por que Ronald estava tão zangado. Sem o manto e o capuz, seus cabelos descobertos, livres de trancas ou qualquer coisa que os prendessem, eram como um farol a guiar os inimigos. Mas Ronald era sua única preocupação no momento. Se o destino trouxesse os normandos até ela, então lidaria com o fato da melhor forma que pudesse.

         Com gestos gentis, banhou o ferimento e tentou não demonstrar o medo que sentia. Ronald perdera muito sangue, e isso poderia ser perigoso. Conforme aplicava um emplastro de ervas, Ainslee rezou para que o ferimento não infeccionasse. O pobre Ronald já era aleijado. Não precisava que a perna direita ficasse dura como a esquerda. Ela enfaixou o ferimento e depois se sentou sobre os calcanhares, a pensar no que deveria fazer a seguir. Ele não poderia montar para fugir. Os cavalos precisavam muito de descanso. E até mesmo seu cachorro tinha desabado ao lado deles, ofegante.

         Ainslee percebeu que teriam de assumir o risco de ficar onde estavam e tentar recuperar as forças. Ao fugir, haviam seguido um caminho tortuoso através da mata fechada. Seria difícil localizá-los. O inimigo não conhecia a floresta tão bem quanto ela e Ronald.

         Incapaz de confiar inteiramente na sorte e no destino, Ainslee pegou sua espada e a de Ronald. Sabia que era um gesto vão, se o inimigo deparasse com eles. Não obstante, pegou o arco e as flechas e deixou os punhais ao alcance da mão. Não era de se esquivar de uma luta nem pretendia se render humildemente. Se ela e Ronald estivessem destinados a morrer, Ainslee tinha intenção de levar alguns dos malditos normandos junto.

         - Menina, fuja enquanto ainda pode! - Ronald exclamou, numa voz sumida.

         - Não, Ronald. Você não me abandonaria, não é?

         - É diferente, e você sabe disso. Nenhum homem com algum senso de honra ou um pingo de coragem deixaria uma mocinha se defender sozinha de um inimigo.

         - Sabe muito bem que eu posso me defender tão bem como qualquer homem, pois foi você que me ensinou tais habilidades. Habilidades que nenhum homem vai esperar que uma mulher tenha. - Ainslee esboçou um sorriso. - Serei uma enorme surpresa para aqueles cães normandos.

         - Menina, não seja idiota. Não sabe o que aqueles porcos normandos farão com você se a pegarem? Mais que qualquer outra mulher, deve saber para que lado os pensamentos de um homem se voltam quando coloca as mãos numa moça.

         - Sim, eu sei que os demônios pensarão em me violentar - ela retrucou, com uma calma forçada.

         - Se perceber que é esse o destino que me espera, eu me matarei.

         - Não! - Ronald gritou, horrorizado.

         - É pecado mortal tirar a própria vida, morrer pelas próprias mãos. Você não poderia ser enterrada em solo consagrado.

         Ainslee deu de ombros.

         - Creio que os normandos podem pensar em pedir um resgate por mim a meus parentes. Há uma grande possibilidade.

         - É verdade, menina.

         - Você precisa descansar. Tem de recuperar as forças, pelo menos o suficiente para continuar. Só não sei para onde iremos. Meu pai se assegurou que ficássemos rodeados de inimigos.

         - Precisamos encontrar um lugar seguro e ficar lá por algum tempo, menina. Não tenha medo. Encontraremos um esconderijo seguro onde ficar até sabermos o destino da sua família.

         Logo, os únicos sons que Ainslee ouvia eram os do riacho e a cantoria dos passarinhos nas árvores. Sentada de pernas cruzadas, colocou as armas no colo. Ouvidos treinados para qualquer som de um perigo que se aproximasse, Ainslee esperou, tensa. O medo formava um nó frio em suas entranhas, mas isso não a afastaria do lado de Ronald. Ele era seu amigo, seu professor, um pai para ela, mais do que o homem de cuja semente Ainslee nascera.

         Correu a mão pela espada em seu colo. Seria inteiramente inútil empunhar aquela arma contra um cavaleiro treinado e enrijecido nos campos de batalha. E ela detestava gestos inúteis. Mesmo assim, sabia que jamais conseguiria ficar ali, sem resistência. Se os normandos tentassem saciar a luxúria em seu corpo, Ainslee se mataria. Outro gesto fútil, mas no momento que tentassem estuprá-la, ela se certificaria de que se apossassem somente de um cadáver.

         A simples idéia de um estupro trouxe-lhe de volta as horríveis lembranças que jamais conseguira expurgar da mente. Podia sentir o frio de enregelar os ossos do buraco escuro e úmido em que sua mãe a enfiara quando o inimigo havia chegado até onde estavam. Os gritos lancinantes da mãe e das outras mulheres ainda ecoavam em seus ouvidos. A visão com que deparou, ao rastejar para fora daquele buraco, fora bem mais do que uma menina de cinco anos poderia suportar, e tinha emudecido sua língua por dois anos, antes que os cuidados amorosos de Ronald a libertassem das garras do terror. Os inimigos tinham violentado cada infeliz que lhes caíra nas mãos, e depois as haviam degolado. Ainslee jurara que jamais teria um destino tão cruel.

         - Será que devemos desistir, Gabel? - indagou Justice.

         - Parece que a nossa caça foi tragada por essas malditas árvores.

         - É melhor procurarmos água e acamparmos por perto. É muito tarde para voltar agora. - Gabel olhou para o céu, que escurecia rapidamente. - Só rezo para que encontremos abrigo antes que a tempestade desabe sobre as nossas cabeças.

         - Há uma colina rochosa nesta região. Podemos encontrar uma caverna para nos esconder. - Justice parou de repente.

         - Ouviu isso, primo? - perguntou a Gabel.

         - Ah, ouço o som abençoado de água.

         - E vem daquele grupo cerrado de árvores. Vamos deixar nossos cavalos aqui?

         - Seria mais prudente. Nossa caça pode ter se amoitado ali. Michael - Gabel chamou o outro primo -, você e André mantenham as montarias calmas e quietas.

         O resto de nós vai tentar se aproximar do riacho o mais silenciosamente possível. Livrem-se de qualquer armadura que possa fazer ruído e nos denunciar - ordenou ao resto dos homens. - Não correremos risco, pois nossa presa não usa armadura.

         Em questão de instantes e sem fazer ruído, Gabel e seus homens seguiram rumo ao som de água. Ele não queria confrontar a presa, apenas capturar os dois fugitivos. O instinto lhe dizia que não eram simples camponeses. Ao chegar à beira da clareira por onde corria o riacho, estacou, tomado de incredulidade diante da surpreendente visão. Arregalou os olhos.

         Ainslee ficou tensa, arrancada das sombrias lembranças do passado. Não tinha ouvido nada, mas cada músculo em seu corpo se contraíra com a sensação de perigo. Seu coração disparou quando viu os homens saírem das sombras do bosque para a clareira. Não havia tempo para usar o arco. Poderia disparar uma flecha, porém logo estariam sobre ela. Então, levantou-se devagar e se postou numa atitude protetora sobre Ronald, a espada empunhada ameaçadoramente pelas mãos delicadas.

         Gabel olhou para a jovem, estupefato. Ela parecia pronta para o combate, os cabelos ruivos a se derramarem em torno dos ombros esguios, a esvoaçarem como chamas ao vento cada vez mais intenso. Como um animal selvagem encurralado, a moça os enfrentava com a coragem do desespero.

         Lentamente, ele examinou cada centímetro do corpo miúdo. A túnica da jovem era de um tom claro de cinza e caía solta sobre os braços. O manto de lã xadrez e a sobrecapa eram abertos de ambos os lados e amarrados com firmeza na cintura. Gabel imaginou que por baixo ela usasse longas calças soltas de Unho grosso. Isso e as botas de couro macio que chegavam aos joelhos, presas por tiras cruzadas, eram o motivo de ele ter pensado, quando a vira cavalgando, que fosse um rapaz. Por um momento, imaginou se ela usaria ceroulas também. E, com tantas roupas grossas, suspeitou que fosse mais miúda do que aparentava.

         Sua atenção foi atraída de volta para os cabelos revoltos. E Gabel compreendeu por que a jovem usava um capuz para escondê-los. Nenhuma trança prendia a farta cabeleira cor de fogo, a luz a arrancar faíscas douradas das mechas. Aqueles cabelos eram como um farol deslumbrante a se derramar até além da cintura em ondas pesadas; e ele não ficou surpreso ao perceber que a visão incendiava-lhe o sangue. Duvidava que algum homem pudesse ver tal beleza e permanecer impassível. Ao sentir o desejo crescer, Gabel olhou para seus homens. Era evidente que se sentiam tão aturdidos e perturbados quanto ele. A situação tinha de ser controlada, e depressa.

         - Senhorita - Gabel dirigiu-se à jovem num tom amistoso ao avançar à frente dos homens.

         - Não pode acreditar que tenha condições de nos enfrentar.

         - Não, meu belo cavaleiro, não sou tão tola assim - ela retrucou ao se inclinar numa postura combativa. - Contudo quero deixá-lo ciente de que enfrentará uma MacNairn.

         - Céus! - murmurou Justice ao se aproximar de Gabel. - Aquele canalha de MacNairn gerou uma mulher e tanto.

         - Acha que ela é filha daquele homem? - Gabel nem mesmo se voltou para o primo, o olhar cravado em Ainslee.

         - Sim, Gabel. Ela usa o broche dos MacNairn no ombro. Você mesmo teria visto se tirasse os olhos dos cabelos da moça.

         - Maravilhosos, não? - murmurou. - Tenho vontade de me enrolar naquelas ondas espessas. Vou procurar fazer com que ela continue a olhar para mim enquanto você a aborda pela esquerda. Tenha cuidado, primo. A jovem pode ser capaz de empunhar aquela espada com alguma habilidade. Parece ter sido feita especialmente para aquelas mãos pequeninas. - Gabel sorriu para Ainslee quando Justice se afastou. - Não há necessidade de causar derramamento de sangue, senhorita. Não queremos machucá-la.

         - Não? Trouxe vinte ou mais combatentes para que possamos trocar fofocas da corte? Para trás! - ela exclamou ao ver o cavaleiro avançar. O rosnado de Feioso confirmou suas suspeitas de que ele tentava pegá-la de surpresa. - Cuide de Ronald - Ainslee ordenou ao cão, e o animal se postou sobre o velho inconsciente.

         - Não incite o animal ao ataque, senhorita, pois meus homens o matarão. Renda-se, e não lhe faremos nenhum mal.

         Ainslee o examinou com atenção e percebeu que não poderia confiar nos próprios instintos. O cavaleiro era bonito demais, ela estava tristemente consciente disso. Era mais alto que a maioria dos outros homens, o corpo atlético e musculoso. Usava apenas calções e botas, e tinha a tez naturalmente morena, e não apenas bronzeada pelo sol. As feições angulosas fascinavam e exigiam respeito. O nariz aquilino era emoldurado por malares altos, e a boca, firme, possuía lábios bem definidos e estreitos.

         Sobrancelhas escuras coroavam os profundos olhos castanhos de cílios tão cerrados que Ainslee tinha certeza de que provocavam inveja em muitas mulheres. O queixo era firme, indicando força e fibra moral. O tronco, largo e liso, mostrava um vestígio de pêlos encaracolados logo abaixo do umbigo, encimando pernas longas e bem torneadas. Ainslee fez um ar de escárnio e bufou.

         - Pretende me escoltar para casa, normando?

         - Pretendo retê-la para pedir resgate - retrucou Gabel.

         Aquilo foi dito com tanta honestidade que ela quase se rendeu, mas então, de repente, avistou um dos normandos aproximar-se sorrateiramente pela lateral. Com destreza e rapidez, sem pensar no que estava fazendo, Ainslee puxou o punhal do cinto largo e lançou-o contra o homem. Confiante de que a arma atingira seu alvo, voltou a fixar toda a atenção no homem que a encarava.

         - Justice! - Gabel gritou, quando o primo berrou de dor. - Está machucado?

         - É só um pequeno ferimento no ombro - Justice respondeu, com um gemido e uma praga.

         Gabel encarou Ainslee.

         - Está me provocando, mulher!

         - Porém não o bastante, eu creio - ela retrucou -, pois ainda continua fora do alcance da minha espada, seu medroso.

         - Não lutarei contra uma mulher.

         - Então será bem mais fácil matá-lo - Ainslee declarou ao atacá-lo.

         Gabel mal conseguiu desviar-se a tempo da lâmina da espada. Seus olhos se arregalaram, e ele ergueu a própria arma, na defensiva. A investida da jovem fora de alguém com prática, não simplesmente um ataque às cegas. A garota tinha habilidades. Os homens ao redor emudeceram e se aproximaram quando ele a confrontou, e Gabel percebeu que um combate tão inusitado os fascinava. Soltou uma praga. Tinha de lutar para se proteger, mas esperava poder desarmar a jovem sem feri-la.

         O tinir de aço contra aço ecoou pela clareira. O cão, dividido entre a ordem de guardar o homem ferido e o impulso de proteger a dona, começou a uivar dolorosamente. Os cavalos, afetados pela agitação do cachorro, também se puseram a re-linchar, inquietos. Gabel estava admirado com a força e a perícia da garota. Custou bem mais do que poderia imaginar para que ela começasse a fraquejar, dando-lhe a vantagem que procurava.

         Quando, finalmente, foi capaz de lhe arrancar a espada das mãos, ela lançou-se ao chão para recuperá-la. Ele chutou a arma para longe, mas a jovem atirou-se em suas pernas, desequilibrando-o. Quando Gabel caiu, ela se jogou sobre ele, com outro punhal na mão. Gabel agarrou-a pelo pulso e os dois rolaram pelo chão, enquanto ele tentava desarmá-la. O punhal acabou caindo da mão da moça, e Gabel, num giro rápido, prensou-a contra o solo com o próprio corpo. E viu que ela ofegava tanto quanto ele.

         - Acabaram-se as suas armas? - Gabel perguntou, consciente da tentadora maciez daquele corpo sob o seu.

         - Sim - ela respondeu, ríspida. - Pode tirar seu peso imenso de cima de mim.

         Gabel levantou-se lentamente, a observá-la, atento, mantendo um aperto firme no pulso delgado enquanto a puxava para cima.

         - Responda com honestidade, senhorita. E filha de lorde MacNairn?

         - Sou Ainslee de Kengarvey, a filha mais nova de Duggan MacNairn.

         - Quem é aquele homem?

         - Ronald MacNairn, um primo.

         - Chame seu cão - Gabel ordenou. - Pascal, reviste o homem e os cavalos em busca de armas. Recolha o que estiver à mão. - Então arrastou Ainslee até onde um de seus homens enfaixava o ferimento de Justice.

         Ainslee lutou para ocultar qualquer vestígio de emoção ao olhar para o ombro ferido do belo rapaz. Detestava causar sofrimento a alguém, embora nunca hesitasse em investir, se fosse preciso.

         - Com remorso, senhorita? - escarneceu Gabel, frustrado pela falta de expressão naquele rosto delicado.

         - Não foi um dos meus melhores lances - Ainslee retrucou. - Posso ir ver Ronald, meu companheiro? O ferimento dele precisa de mais cuidados do que a espetada desse rapaz.

         O homem que cuidava de Justice começou a cobrir o ferimento aberto com um pedaço de pano sujo, sem primeiro lavar ou proteger a ferida. Ainslee sabia que não poderia assistir àquilo sem fazer nada.

         - Seu grande idiota! - esbravejou e arrancou o trapo sujo das mãos do homem.

         - Quer transformar um ferimento sem importância numa coisa fatal? Este pano não serve para limpar um nariz sujo. Traga um pouco de água.

         Quando o homem o fitou, Gabel fez um sinal com a cabeça, indicando que ele deveria obedecer à ordem ríspida. Com cautela, soltou o pulso de Ainslee, permitindo que ela apanhasse uma pequena sacola perto de Ronald. E percebeu que era estranhamente reconfortante descobrir que a garota MacNairn não era tão insensível ao sofrimento de um homem como fingia ser. Quando Ainslee derramou um líquido escuro sobre o ferimento de Justice, depois de limpar bem o local, Gabel ajoelhou-se ao seu lado e pegou o frasco que ela segurava.

         - O que é isto? - indagou, e fez uma careta ao cheirar o frasco.

         - Uisge-beatha, a água da vida. Uma bebida forte que nós fazemos. Faz tempo que está na Escócia?

         - Tempo o bastante, mas tenho juízo suficiente para me abster de provar os venenos locais. Por que o derramou sobre o ferimento?

         - Dizem que ajuda a curar.

         - O que está colocando agora? - Gabel perguntou quando a viu esfregar uma pasta de aparência horrível sobre a ferida.

         Ainslee sentou-se nos calcanhares, lavou as mãos antes de enfaixar o ferimento e lançou um olhar de desgosto ao cavaleiro.

         - E um ungüento de ervas. Quando se enfiar de volta no buraco de onde saiu, você pode limpar e costurar o ferimento e depois aplicar um pouco mais.

         Enquanto ela enrolava uma faixa de pano limpo em torno do ombro de Justice, Gabel sorriu para o primo.

         - Moça mal-humorada, hein?

         - Não se pode esperar que uma prisioneira seja toda delicadeza e alegria - retrucou Ainslee.

         - Não é nenhuma prisioneira, senhorita, mas uma refém - Gabel declarou.

         - Há alguma diferença? Se houver, receio que me escape.Vou cuidar de Ronald agora.

         Gabel ordenou a um de seus comandados que reunisse as montarias e o resto dos homens, antes de se virar para Justice.

         - A moça tem uma língua ferina. Como está seu ombro?

         - Seja lá o que for que ela fez, serviu para aliviar a dor - Justice murmurou.

         - Já estive bem pior que isso antes, embora lamente sofrer pelas mãos de uma garota tão miúda.

         - Uma tempestade se aproxima! - Gabel exclamou, a olhar para o céu.

         - Precisamos encontrar logo algum refúgio.

         - Temos de contar a eles onde fica o abrigo - Ronald disse quando Ainslee ajudou-o a sentar-se.

         - Pouco me importa se os normandos tiverem de enfrentar o nosso clima - resmungou Ainslee.

         - Estamos agora nas mãos deles, e sofreremos também. Uma tempestade nas Terras Altas pode ser feroz e perigosa. Não quero nós dois ao relento.

         Ela sentou-se ao lado de Ronald, enquanto ele chamava o líder dos homens e dizia aos normandos onde poderiam encontrar um refúgio para todos. E, de repente, Ainslee se percebeu invadida por uma incômoda mescla de raiva e tristeza. Não sentia medo. E sabia por quê.

         Aquele belo normando poderia tê-la matado, no entanto se esforçara para não feri-la. E ela também poderia ter sido violentada por ele e os demais homens, mas nenhum deles a tratara com alguma atitude lasciva. Não era tola para pensar que isso significava que estaria a salvo. Porém sentia que não seria usada como uma prostituta repartida entre todos. Ao se recordar da decisão de tirar a própria vida se fosse ameaçada de estupro, fez uma careta, a zombar de si mesma.

         O normando aproximou-se.

         - Por que parece tão desolada, senhorita? - ele perguntou.

         - Simplesmente porque tive de me confrontar com minha própria covardia.

         - Não é nenhuma covarde, senhorita. Ninguém aqui questionaria sua coragem. Enfrentou-me com toda a bravura que qualquer homem poderia demonstrar.

         Ainslee sabia que ouvia um enorme elogio, mas isso não a animou.

         - Mas estou viva.

         - Teria sido mais corajoso morrer?

         - Fiz um juramento. Se a desonra me ameaçasse, eu tiraria minha própria vida. Em vez disso, convenci-me de que não me sinto ameaçada. Não tive coragem de honrar meu próprio juramento.

         - Mas a desonra não a ameaça.

         - Não? E em quem devo depositar minha confiança? Não o conheço.

         Gabel enrubesceu ligeiramente ao perceber que não tivera a cortesia de apresentar-se.

         - Sou sir Gabel de Amalville, e o homem que a senhorita feriu é meu primo e sargento de armas, sir Justice Luten. Eu não deveria precisar relembrá-la de que o suicídio é um pecado mortal. Seu corpo não poderia descansar em solo consagrado.

         - Os MacNairn foram excomungados. Não creio que eu possa descansar em solo consagrado de qualquer maneira.

         - Se seu pai cessasse de agir como um fora-da-lei, isso poderia mudar bem depressa.

         - Meu pai nasceu numa terra sem lei, e um homem sem lei o gerou. Não creio que algum convidado francês do nosso rei possa fazer com que Duggan MacNairn mude seu modo de ser.

         - Não sou convidado, mas um cavaleiro sagrado pelo rei, e logo terei minhas próprias terras.

         Antes que Ainslee pudesse retrucar, um trovão ribombou.

         - A conversa está muito agradável, meu senhor, mas receio que precise ter fim, ou nunca encontraremos abrigo antes que a tempestade caia.

         Ela saltou para a sela, porém Gabel segurou as rédeas. Um olhar rápido para os outros homens mostrou que Ronald e Justice haviam sido acomodados, mesmo sob protestos, em maças feitas às pressas. Ronald não conseguiria fugir agora, e Ainslee não poderia deixá-lo para trás. Era um homem pobre, e seu pai nunca pagaria um resgate por ele. Ronald poderia se ver em grave perigo assim que os normandos descobrissem que era um refém sem valor. Ainslee olhou novamente para o belo cavaleiro.

         - Não tentarei escapar. Estão com o meu mais querido amigo - ela resmungou.

         - Que, sem dúvida, ficaria muito feliz se a senhorita desse um jeito de fugir das minhas garras.

         - Sem dúvida. Contudo não lhe dei ouvidos para que eu fugisse antes, e não irei abandoná-lo agora. Especialmente depois de ver como cuidam mal dos feridos.

         Gabel abriu a boca para protestar, mas ela o calou ao acrescentar:

         - Portanto, se não me deixar cavalgar sozinha, terá de vir comigo.

         - Não, não vou permitir de cavalgue sozinha - ele re-trucou.

         Ainslee ignorou o tom autoritário, embora a irritasse.

         - Então, cavalgue comigo. Conheço o caminho que precisamos tomar, e a minha montaria é muito segura.

         Quando Gabel saltou na sela, atrás dela, Ainslee relanceou os olhos para os braços morenos que a rodeavam pela cintura e depois para as coxas fortes que tocavam as suas.

         - Pena que perdeu as roupas, senhor De Amalville, pois precisará muito delas quando a chuva começar.

         Gabel riu e depois gritou para os homens que o seguissem, e Ainslee percebeu de imediato que cavalgar na mesma sela com aquele homem não fora uma boa idéia. O hálito quente do normando roçava sua nuca, e aquela sensação despertou algo no mais profundo de seu ser. Conforme seguiam, as pernas fortes a resvalar nas suas aumentaram a percepção recém-descoberta, até que Ainslee reconheceu o que era: desejo.

         Que maldição, pensou. Que hora imprópria para seus impulsos sensuais resolverem desabrochar. Gabel de Amalville a fizera prisioneira. Dissera que ela não seria desonrada. Se percebesse seu interesse, poderia bem tentar seduzi-la. E seria bem-sucedido.

         Ainslee nunca se sentira atraída por um homem antes, e não sabia como controlar o anseio que agora a invadia. Que momento terrível para tentar aprender tais lições!

         O contato gelado da chuva em sua face arrancou-a dos devaneios, e ela olhou para o céu.

         - Não creio que a chuva vá esperar até que cheguemos ao abrigo que procuramos.

         Gabel também ergueu os olhos.

         - Não estamos longe, se o seu companheiro disse a verdade.

         - Ronald não tem vontade alguma de enfrentar ao relento uma tempestade das Terras Altas. - Ainslee relanceou o olhar para a perna nua de Gabel e sorriu ao ver a pele eriçada pelo vento cortante e a umidade. - Logo vai se lamentar pela falta de coberta.

         - Está muito preocupada com a minha falta de roupas, senhorita. Isso a perturba?

         - Não quero ter de cuidar da saúde de mais normandos.

         - Um pouco de umidade não vai me deixar doente. Só retira a poeira.

         - Uma gentil chuva francesa poderia ser refrescante, sir Gabel. No entanto esta é uma chuva das Terras Altas, e o ano está no fim.

         Cada gota infiltrará o frio em suas carnes até o âmago dos ossos.

         - Então, apresse o passo do cavalo. A colina em que planejamos nos esconder está a um curto galope daqui.

         - Meu cavalo poderia não agüentar. Não está acostumado a tanto peso.

         - Este animal forte poderia muito bem carregar dois cavaleiros armados e nem notar. - Gabel bateu nos flancos da montaria.

         - Sim, se não estivesse cavalgando por horas, forçado a fugir de um bando de ladrões franceses.

         - Não sou nenhum ladrão. Assim que estivermos num abrigo, sentados ao redor do fogo, vamos conversar. Saberá que não sou ladrão assim que me conhecer.

         Aquela era a última coisa que Ainslee poderia desejar. Já era difícil ignorar a atração daquele corpo e do belo rosto. O senhor De Amalville era perigosamente atraente. E tal atração poderia se aprofundar se ela o conhecesse, o respeitasse ou até mesmo gostasse dele. Ao puxar as rédeas à boca da caverna que procuravam, Ainslee se preparou para enfrentar um suplício: impedir que Gabel a encantasse, a fizesse esquecer de que era uma prisioneira e a levasse a acreditar que poderia ser mais do que isso.

         - Meu primo não precisa de mais cuidados, senhorita - Gabel disse ao se aproximar de Ainslee.

         Ela sobressaltou-se. Desde o momento que haviam entrado na caverna, evitara Gabel. A última coisa que desejava era sentar-se perto dele junto ao fogo, para conversar e saber tudo a seu respeito.

         - Eu estava costurando o ferimento.

         - Teria costurado os trajes de toda uma corte até o momento, senhorita. - Gabel puxou-a pelo braço até a fogueira.

         - Precisa aquecer-se e compartilhar um pouco da nossa comida e do nosso vinho.

         - Preciso ver como está Ronald - Ainslee protestou.

         - Não está pior do que da última vez que o viu. Sente-se - ele ordenou.

         Ela sentou-se, com um olhar furioso. E percebeu que sua indignação apenas divertia os homens. Sem dizer uma palavra, aceitou, contrariada, o pão e o queijo que lhe ofereceram.

         - A comida não é do seu gosto? - Gabel sorriu quando Ainslee aceitou uma segunda fatia grossa de pão.

         - É uma ótima comida para depois de uma incursão - ela resmungou.

         - Não foi uma incursão, mas uma ação justificável do nosso rei. - Como Ainslee continuava a encará-lo com franca hostilidade, ele prosseguiu: - Sempre tenho comida e bebida ao partir para uma missão. Não vejo necessidade de perder tempo saqueando suprimentos. Saquear e tomar, seja o que for, me aborrece.

         - Um sentimento louvável, mas não o impede de agir, não é?

         - Não, minha mal-humorada senhorita, não impede. Meus homens precisam comer.

         - Seus homens poderiam comer bem melhor e mais vezes se ficassem em casa.

         Gabel ignorou o tom irritado.

         - É impossível, e eu creio que a senhorita é inteligente o bastante para perceber.

         - Que gentileza a sua me dizer isso - ela resmungou, e precisou se esforçar para não se deixar fascinar por aquele sorriso.

         - Sou um cavaleiro que empenhou sua palavra e sua espada ao rei. Não creio que ele me pedisse para me enfiar no meu castelo e não fazer nada.

         Ainslee não se sentiu melhor ao se ver obrigada a concordar. Gabel falava calmamente, com um raciocínio claro. E de uma maneira com que poucos homens se dirigiam a uma mulher, como um igual. Seria quase impossível resistir ao seu encanto. E ela lutou para esconder o medo.

         - Ainslee tem a sonoridade de um nome inglês - Gabel murmurou, a voz a penetrar nos pensamentos dela. -- Agora me recordo de ouvir dizer que a esposa de MacNairn tinha algum sangue inglês.

         - Se tivesse, foi rapidamente subjugado pelo bom e saudável sangue dos escoceses.

         - É claro.

         - A comida e o vinho estavam bons - Ainslee murmurou ao se levantar cautelosamente, pronta para resistir a qualquer tentativa de Gabel para retê-la. - E agradeço pela gentileza. Estou cansada e vou dormir perto de Ronald.

         - Percebi que estendeu uma manta ao lado dele.

         - Pode precisar de mim durante a noite. Gabel olhou de relance para a boca da caverna.

         - Acha que essa tempestade vai durar a noite toda?

         - Sim, se for pequena. Bom sono, senhores. - Ainslee curvou a cabeça ligeiramente na direção dos homens e foi se deitar perto de Ronald e de Feioso.

         - Uma jovem peculiar - murmurou Michael Surtane ao se aproximar do primo Gabel, depois que Ainslee se afastara.

         - Peculiar? - perguntou Gabel, sem enfrentar o olhar do primo.

         - Ela age como nenhuma dama que já conheci.

         - Não se pode julgar as mulheres daqui como as damas da França ou da Inglaterra.

         - Falei pensando nas moças escocesas que conheci. Essa jovem não é como elas também.

         Gabel riu baixinho.

         - Concordo, primo. Sim, lady MacNairn não é como qualquer outra dama que você ou eu tenhamos conhecido. Acho que teve uma criação incomum.

         - E verdade. Não se pode esquecer de quem é filha.

         - Não, essa é uma dura verdade. - Gabel olhou para Ainslee, as formas delicadas quase escondidas pelas sombras no fundo da caverna. Sem querer, ele suspirou, e se assustou com a repentina confusão de emoções que o assaltavam. - Estranho, mas não percebo nenhum dos defeitos dos MacNairn nela. E como se aquele homem pouco ou nada tivesse a ver com essa moça.

         Michael concordou. Relanceou os olhos para Ainslee antes de se dirigir ao primo.

         - Notei que você demonstra um agudo interesse por ela.

         - A jovem é intrigante. Tem habilidades mais adequadas a um homem, e creio que existe uma aguda inteligência por trás daqueles belos olhos azuis.

         - E sob aquela gloriosa e farta cabeleira pela qual você está tão enfeitiçado.

         - Ah, começo a compreender o que pode preocupá-lo, primo. Não tema. Não estou tão enfeitiçado que esqueça quem ou o quê ela é: uma MacNairn e uma prisioneira a ser trocada por um resgate. - Gabel sorriu. - Parece que você ficou desapontado.

         - Não. Você sempre foi aquele com mais sangue-frio, e devemos nossas vidas a isso. É que... bem, pelo menos por uma vez eu gostaria de vê-lo encantado por um rosto adorável, e lady MacNairn tem o rosto mais bonito que já vi em muitos anos.

         - Tem mesmo. Contudo aprendi bem cedo que é perigoso permitir que um rosto bonito me encante. Tal tolice quase me custou a vida certa vez, e matou um bom amigo. Se eu não estivesse tão cego pelo belo rosto de lady Eleanor, teria notado a traição que ela tramava.

         - Gabel, isso foi há quase dez anos. Você era apenas um menino, inexperiente e facilmente manipulado - murmurou Michael.

         - E aprendi bem a lição. Como admitiu, você deve sua vida a isso.

         - Sim, mas faria o resto de nós se sentir melhor se você tropeçasse na sua perfeição de vez em quando.

         Gabel riu e deu um tapa nas costas do primo, antes de se deitar em um canto.

         - Nunca fui perfeito, Michael. Você sabe disso tão bem como qualquer um. Simplesmente aprendi de cor uma lição ; dolorosa: sangue-frio e cabeça no lugar, nada de se entregar a paixões ou seguir o coração, é a melhor maneira de continuar vivo. Acorde-me quando a tempestade amainar, ou se eu precisar cumprir um turno de guarda.

         - Acha que pode haver algum problema?

         - Com este tempo? Não. Mesmo assim, mantenha uma guarda, pois é preciso sempre estar alerta nesta terra.

         Assim que Gabel se acomodou na cama dura feita de mantas sobre a pedra, do lado direito da caverna, teve de lutar contra o impulso de olhar para Ainslee. E, ao virar o corpo cansado até que a forma delicada dela ficasse à vista, praguejou no íntimo. Era um tolo fraco. Se seus próprios homens soubessem do turbilhão em seu íntimo, da constante batalha que enfrentava para manter a calma através das emoções avassaladoras que muitas vezes o dominavam, sem dúvida haveriam de questionar sua capacidade para comandá-los.

         Desde o momento em que pusera os olhos em Ainslee MacNairn, Gabel soubera que enfrentaria uma das mais duras batalhas consigo mesmo. Ela havia conseguido o que nenhuma mulher pudera durante anos, ou seja, despertar uma profunda, imediata e poderosa resposta emocional dentro dele. Nunca se sentira tão vivo, tão ansioso para enfrentar as horas, os dias e as semanas que se estendiam à sua frente.

         O caráter daquela jovem o intrigava, surpreendia e o excitava. Algo muito perigoso. Eleanor DesRoches tinha lhe mostrado a tolice de confiar nas emoções. Mais velha e mais mundana, ela usara a luxúria e o amor cego do garoto que ele era para ajudar o amante, um homem que desejava destruir os Amalville e que cobiçava tudo que eles possuíam. Seu amigo Paul havia tentado ajudá-lo, mas Gabel se mostrara surdo para a verdade. Só quando Eleanor procurara acabar com sua vida foi que ele vira sua ingênua confiança desmoronar. Tinha adquirido um cauteloso cinismo, depois disso. E uma escocesa de cabelos de fogo e belos olhos azuis não era uma boa razão para pôr de lado um autocontrole duramente conquistado.

         Mesmo que Ainslee MacNairn não fosse uma prisioneira e um rebento do inimigo, era rebelde, sem os modos apropriados a uma dama.

         Uma mulher de espírito tão livre e voluntariosa seria na verdade uma esposa extremamente inadequada para ele.

         Mas seria uma amante excitante, uma voz murmurou em sua mente, e Gabel olhou outra vez para Ainslee. Fechou os olhos com força e praguejou no íntimo. Tomar uma jovem bem-nascida como mulher, com a intenção de abandoná-la quando encontrasse a esposa que procurava, não era atitude de um homem honrado. Baniu a idéia de ter Ainslee apaixonada em seus braços, e desejou que MacNairn se apressasse em resgatá-la.

         Um grito ecoou pela caverna, e Gabel foi arrancado do sono. De um salto, agarrou a espada a seu lado. Um rápido olhar mostrou que seus homens também estavam acordados, ainda que confusos.

         - Senhor! - gritou Ronald, atraindo a atenção de Gabel.

         O escocês lutava para se sentar, e Gabel percebeu no mesmo instante que Ainslee não se encontrava mais ao lado do velho.

         Virou-se para a boca da caverna e viu que um de seus homens lutava para contê-la. Ia correr para ajudar o guarda, mas a voz trêmula de Ronald o fez estacar.

         - Ela está sonhando - disse o velho.

         - Não está tentando fugir?

         - Só das lembranças sombrias que às vezes a assaltam durante o sono. Pode ser difícil acordá-la, senhor - avisou Ronald. - Pode ser preciso sacudi-la para livrá-la das garras do pesadelo, ou mesmo lhe dar um tapa.

         Assim que chegou perto de Ainslee, Gabel se deu conta de que Ronald tinha razão. Havia uma expressão de absoluto terror no rosto delicado dela, e nenhum sinal de reconhecimento nos olhos azuis arregalados quando ele a chamou pelo nome. Balbuciava algo sobre a mãe, o sotaque tão forte que Gabel mal conseguiu compreendê-la. E a voz... era a de uma criancinha.

         - Ainslee! - ele gritou ao tirá-la das mãos do guarda, e a sacudiu.

         - Acorde!

         - Tenho de sair deste buraco. Mamãe precisa da minha ajuda.

         - Ainslee esmurrou o peito de Gabel numa inútil tentativa de libertar-se. - Não está ouvindo as mulheres gritando?

         - Ninguém está gritando, a não ser a senhorita. Recobre o bom senso, mulher. Isso não passa de um sonho que a aflige.

         - Não! Mamãe está gritando! - Quando Gabel a sacudiu pela segunda vez, Ainslee desabou contra o peito dele, confusa com as próprias palavras, conforme as garras do pesadelo se dissipavam. - Não, isso não está certo. Mamãe está morta. Não posso mudar o que aconteceu.

         - Não, não pode. - Gabel sentiu que a lassidão invadia o corpo de Ainslee e segurou-a com firmeza, lutando para ignorar como era bom senti-la nos braços. - Não se pode voltar atrás e mudar o destino.

         - Mas foi um destino doloroso, terrível, indescritível. Ainda posso ver todo aquele sangue... - Ainslee murmurou. - Não consegui limpá-lo. Eu tentei, mas era apenas uma menininha. Fechei os olhos dela para que o sol não os queimasse.

         Aliviado por ouvir a voz de Ainslee voltar ao normal, Gabel a empurrou gentilmente na direção da fogueira. Lançou um olhar para Ronald, que concordou com a cabeça e deitou-se de novo. Os outros voltaram a seus postos ou para as camas. Ele sabia, instintivamente, que Ainslee estava constrangida.

         - Beba isto - disse a ela, em voz baixa, ao sentar-se, e lhe estender o odre de vinho.

         A se recobrar aos poucos do horror de suas lembranças, Ainslee encontrou forças para encarar Gabel. Sentia-se envergonhada. Sabia que muitos haveriam de considerar a morte de sua mãe uma desonra, embora nenhuma das mulheres mortas naquele dia tivesse procurado o horror que haviam sofrido. Era injusto condenar uma criatura só porque fora abusada.

         - Acha que este vinho pode cegar a lâmina afiada dos meus sonhos? - ela perguntou, quase num murmúrio.

         - Talvez pelo resto desta noite - respondeu Gabel. - Eu só gostaria de ter alguma poção que pudesse arrancar tais lembranças sombrias da sua mente de uma vez por todas. A senhorita viu sua própria mãe morrer?

         - Não, eu a ouvi. E a todas as outras mulheres que foram capturadas.

         - A senhorita ouviu? - Gabel não quis nem imaginar o que tamanho horror poderia causar a uma criança.

         - Sim. Minha mãe me escondeu num buraco escuro, cobrindo-o com entulho. Disse-me para ficar lá e não fazer nenhum barulho.

         Eu não era muito obediente - Ainslee esboçou um sorriso por um breve instante -, mas naquela hora fiz exatamente o que ela me pediu. Fiquei acocorada lá, no escuro, até que tudo ficou quieto, e então saí... e deparei com aquela cena de brutal destruição.

         Gabel encolheu-se sem querer.

         - Não posso afirmar que os meus homens e eu estamos livres de tais crimes, porém nenhum de nós matou cruelmente uma mulher. Onde estava seu pai?

         - Fugindo para salvar a própria vida e a dos filhos.

         - E deixando a esposa e a filha para enfrentar um inimigo enlouquecido?

         - Meu pai preza seus filhos homens acima de tudo. Como ele disse muitas vezes, filhas só servem para um bom casamento, e um homem sempre pode encontrar uma nova esposa. Meu pai enterrou duas esposas desde que minha mãe morreu.

         - Então, a senhorita perdeu três mães.

         - Não, só uma. As outras duas esposas de meu pai não foram para mim mais que sombras a esvoaçar pelos corredores de Kengarvey. Depois que minha mãe foi assassinada, fui entregue aos cuidados de Ronald, e assim fiquei.

         Era difícil para Gabel compreender uma infância tão sombria. Sua família tinha seus problemas, mas ele nunca se sentira indesejado. A julgar pela maneira com que Ainslee falava, só lhe restara Ronald, que muitas pessoas considerariam pouco mais que um criado.

         Estudou-a enquanto ela tomava outro gole de vinho. Não era difícil ver a criança dentro da mulher. Ainslee MacNairn devia ter sido uma criança encantadora e, no entanto, fora descartada pelo pai como restos da mesa. Ela falara da vida sombria como se a aceitasse e, com certeza, não esperava piedade por isso.

         - Seu amigo Ronald cumpriu muito bem o seu dever - disse Gabel.

         - Sim, embora com certeza muita gente não pense assim. - Ainslee esboçou um sorriso.

         - Ronald ensinou-me todas as suas habilidades, transmitiu-me todo o seu conhecimento, mas não é o tipo de habilidade ou conhecimento que uma moça bem-nascida deveria ter.

         - Nesta terra rude, é provável que seja de muita serventia.

         - Realmente, a não ser para conquistar um marido. - Ainslee pensou por um momento na razão de ter falado com tanta franqueza, mas deu de ombros. - Um homem busca, em primeiro lugar, terras, dinheiro ou poder. Depois, procura por habilidades tais como belos trabalhos de agulha e maneiras corteses. Afinal, uma esposa não passa de um instrumento para proveito e procriação. Sim, eu poderia gerar filhos, porém não posso dizer que traria muito proveito a um homem. Não, sobretudo com meu pai a causar tantos problemas e a fazer tantos inimigos.

         Tudo que ela dissera era verdade, e seu raciocínio, prático. Eram as razões que o próprio Gabel usava em sua procura por uma esposa, e, no entanto, ele estremeceu involuntariamente.

         Não havia condenação na voz de Ainslee, mas tais conceitos em voz alta pareciam mesquinhos e egoístas. Gabel sabia que a maioria das pessoas iria considerá-lo o maior dos tolos se não levasse em consideração a linhagem, a fertilidade, a criação e o proveito quando procurasse uma esposa. Mas um homem teria de ser um idiota em não considerar ter Ainslee como esposa, malgrado tudo que lhe faltava.

         - Um homem precisa olhar para o seu futuro - murmurou.

         Ela o encarou. Gabel de Amalville era um fidalgo. Tais homens escolhiam com cuidado suas esposas. E isso não apenas era aceito, mas também esperado de alguém de sua privilegiada posição.

         - Creio que os meus medos desapareceram, sir Gabel - Ainslee murmurou ao ficar de pé.

         - Vou voltar para a minha cama. Rezo para não perturbar mais o descanso de ninguém nesta noite.

         - Não há necessidade de desculpar-se por algo que não pode evitar - ele retrucou.

         - Ninguém está livre dos terrores noturnos.

         - Talvez, mas não quero arrastar todos para o meio dos meus. Bom sono, sir Gabel.

         - Bom sono - ele respondeu, e ficou a observá-la retornar ao lado de Ronald.

         Conforme se enrolava na manta, Ainslee lutou contra o poderoso impulso de olhar para trás. Acordar do pesadelo e descobrir-se nos braços de Gabel havia sido um choque e tanto. Ainda mais por ser obrigada a reconhecer quanto aquele contato e aquela voz suave e profunda contribuíram para amenizar seus temores. Não era algo que quisesse descobrir.

         Não agora, quando ele sabe praticamente tudo sobre você, ela pensou com uma pontada de desgosto. Sir Gabel era um homem gentil. E Ainslee não queria saber das boas qualidades daquele normando. Já sentia dificuldades suficientes em controlar a forte atração que sentia por ele.

         Com um suspiro, rezou para que seu pai não se mostrasse obstinado quanto a querer resgatá-la.

         - Vai ser um belo dia ensolarado! - exclamou Gabel ao olhar para o céu.

         Ainslee observou as costas largas e desejou fervorosamente que houvesse algum jeito de cavalgar atrás do normando em segurança, sem ter de passar os braços em torno da cintura dele. Isso a colocava muito próxima daquele corpo forte, e o calor que tal proximidade provocava dentro dela a irritava. O lato de Gabel ter se apossado das rédeas de seu cavalo a irritava também. Até mesmo o belo tempo a aborrecia. Era vítima de um seqüestro com a finalidade de um resgate. E seu cavalo aceitar tão amistosamente os comandos do novo cavaleiro pareceu-lhe um golpe por demais cruel. Olhou para Feioso, que trotava ao lado deles, e ficou a imaginar quando ele também se bandearia para o lado do inimigo.

         - Não acha o calor do sol agradável? - perguntou Gabel, relanceando os olhos por sobre o ombro.

         - Não pode ver isso no meu sorriso? - Ainslee retrucou tom rispidez.

         - Dessa careta de dentes cerrados? Não. Seu desassossego durante a noite a deixou com um humor horrível.

         - Não é o desassossego que provoca meu mau humor.

         - E por que se tornou uma companhia tão chata?

         Certa de ouvir um toque de riso na voz de Gabel, ela teve de conter o impulso de socá-lo entre os ombros largos.

         - Talvez eu ache irritante ter os normandos perambulando por minha pátria, a tomar seja o que for que cobicem... Terras, fortalezas, honra, mulheres e cavalos. - Ainslee praguejou por entre os dentes, certa de que vira os ombros de Gabel sacudirem de riso.

         Ele acariciou o pescoço do cavalo.

         - Uma bela e forte montaria. Talvez forte demais para uma mulher.

         - Me viu ter alguma dificuldade com ele?

         - Não. A senhorita monta com grande habilidade. Aquele elogio apenas suavizou um pouco o mau humor de

         Ainslee.

         - Sugiro que não se ponha muito confortável no costado dele. Meu pai em breve me resgatará, e levarei o cavalo comigo quando eu for embora.

         - Muitos julgariam um animal tão excelente um despojo de guerra.

         - Ah, mas "disseram" muitas vezes que sir Gabel de Amalville não é como os outros homens.

         Ainslee surpreendeu-se quando ele caiu na risada, uma gargalhada sonora e franca. Ao olhar para os homens que os seguiam, ela percebeu várias expressões admiradas, e olhares curiosos em sua direção. Mas o que a preocupou foi que aquela risada agradável provocara um formigamento em suas entranhas. A falta de controle das sensações errantes aumentou seu azedume.

         - Acha que isso poderia alterar minha decisão a respeito de alguma coisa? - Gabel perguntou, sorrindo para ela por sobre o ombro.

         Ainslee foi incapaz de responder. O sorriso brincalhão que iluminava o rosto moreno do normando teve o condão de provocar um nó em sua garganta. Conforme lutava para recobrar a fala, ela rezou para não parecer tão abobalhada pelo sorriso de Gabel como se sentia.

         - Valeu a pena tentar - finalmente declarou, esperando que ele não percebesse a rouquidão em sua voz.

         - Terei de observá-la de perto.

         Ainslee ia retrucar, quando olhou para o lado. Um grupo armado avançava em silêncio. Aquela aproximação furtiva alertou-a do perigo, o mais novo flagelo que assolava seu país. ++     - Acho que é melhor observar mais de perto aqueles homens à sua direita, meu senhor! - ela exclamou.

         Gabel olhou ao redor, e os homens soltaram seus gritos de guerra e investiram.

         - Quem são eles, pelo santo nome de Maria? -- ele indagou.

         - Bandidos, homens expulsos de seus clãs, lares e cidades. Homens que merecem ser enforcados. É melhor agir logo. Eles são rápidos.

         Num piscar de olhos, Gabel percebeu a vulnerabilidade de seus homens. Despreparado para o ataque e com dois homens feridos, mais uma moça, tinham poucas chances. Gritou ordens, ao mesmo tempo em que incitava a poderosa montaria num galope. Enquanto Gabel e a maior parte de sua força fugia, os dois homens que transportavam as maças com Justice e Ronald se apressaram a penetrar nas sombras da floresta.

         Três outros se esgueiraram atrás deles para proteger a retaguarda.

         Conforme galopavam, atraindo os marginais em seu encalço, Gabel praguejava sem parar. Detestava fugir como um covarde, mas tinha de afastar os atacantes dos membros mais fracos do grupo. Maldisse a própria distração. Deveria estar prestando atenção à região traiçoeira que percorriam, não no tempo e nem na criatura agarrada às suas costas.

         - Se você se desviar um pouquinho para oeste, chegará a uma elevação rochosa onde poderemos resistir a esses porcos - Ainslee gritou, tentando ser ouvida acima do estrondo dos cascos de cavalo.

         Gabel fez o que ela sugeria. Um momento depois percebeu que agira certo. A colina rochosa serviria como uma fortaleza temporária.

         Ainslee saltou da sela antes que chegassem ao topo do outeiro. Gabel empurrou-a pelas costas entre os cavalos, e depois voltou com os homens para enfrentar o ataque.

         Assim que Ainslee acocorou-se entre os animais inquietos, e Feioso desabou, ofegante, a seu lado, viu os bandidos estacarem no sopé da colina. E rezou para que julgassem que um ataque seria muito perigoso. Homens assim tinham tão pouco a perder, contudo... Preocupou-se com os normandos. E sentiu que poderia estar traindo a família por ter tais sentimentos. Mas, naquele preciso momento, os normandos eram tudo que se postava entre ela e os criminosos implacáveis na base do terreno rochoso.

         - A senhorita disse que conhece esses homens? - perguntou Gabel, enquanto esperava o ataque que sabia que se seguiria.

         - São assassinos, ladrões, estupradores e traidores. Muitos foram banidos por seus próprios parentes. Começaram a espalhar o medo e a morte por esta terra faz pouco tempo. Acha que irão atacar?

         - Sim. Mas, embora eles sejam em número maior, nós temos o terreno mais alto. Não podem nos vencer.

         Conforme as duas forças se encararam, tensas, com olhares ameaçadores e trocando insultos, Ainslee procurou suas armas. Gabel e seus homens poderiam repelir qualquer investida dos assaltantes, porém havia a probabilidade de os bandidos subirem a colina em algum momento. E ela não queria se ver indefesa e desarmada quando isso acontecesse. Os berros indicavam o prelúdio de um ataque.

         Ao encontrar o alforje com as armas, Ainslee deixou escapar um suspiro de alívio. Pegou o arco e a aljava. Com os punhais e a espada agora na cinta, ela esgueirou-se até um local junto aos cavalos, que permitia uma visão clara em todas as direções.

         Um arrepio de medo a percorreu quando o grito de guerra dos bandoleiros ecoou mais forte, e eles correram para a encosta íngreme da colina. Ainslee se levantou, espada em punho. Feioso se postou a seu lado, tenso, a rosnar, preparado para defendê-la. Ao primeiro tinir de espadas, ela se encolheu, mas então reuniu coragem para não dar ouvidos aos gritos de dor.

         Como receava, os bandidos logo enxameavam pelo topo da colina. Em número maior, esperavam vencer os normandos. Era o momento perfeito para usar ò arco e flecha, Ainslee pensou. Umas poucas setas disparadas provocariam muitas baixas na horda que subia a colina.

         Então, ela se deu conta de que seu olhar continuava a se demorar em Gabel. Era magnífico vê-lo a combater o inimigo. Como poderia sentir-se tão ligada a um homem que a seqüestrara para obter um resgate?

         Um ruído à sua direita arrancou Ainslee dos pensamentos confusos. Um dos bandidos tinha se afastado sorrateiramente da linha de batalha e deparara com ela. Um sorriso cruel curvava aquela boca ensangüentada. Ele não escapara do combate ileso, mas era evidente que julgava que Ainslee não era alguém a se temer. Ela agachou-se numa postura de combate, preparada para mostrar que o bandido estava enganado. Ao erguer a espada para enfrentar o golpe, o choque das armas percorreu-lhe os músculos, e Ainslee pensou se não fora confiante demais. Feioso começou a uivar, mas não interferiu. Ainslee sentiu o medo diminuir. Se e quando fosse a hora, precisaria apenas de força para gritar, e o inimigo se veria atacado por dois lados.

         Gabel abateu o oponente à sua frente. O berro do bandido ainda doía em seus ouvidos quando os latidos frenéticos do cão atraíram sua atenção. Ordenou aos homens que mantivessem os postos e não caçassem os escoceses que batiam em retirada, e virou-se depressa, à procura de Ainslee e do cão. E soltou um palavrão quando a viu lutando contra um dos assaltantes, um sujeito corpulento, muito mais alto que ela.

         - Aquela maluca pensa que é um homem! - esbravejou Gabel. Em passos cautelosos, avançou na direção de Ainslee. - É evidente que não guardamos as armas direito - disse para Michael, a seu lado.

         - Não me agradaria ficar indefeso quando aqueles porcos atacassem, só podendo me esconder ou fugir - ponderou Michael.

         - É o que faria a maioria das mulheres. Não tente amenizar minha raiva. Não ganharemos nada se aquela garota morrer.

         Gabel ignorou o olhar irônico do primo. O resgate, na realidade, era a última coisa com que estava preocupado naquele momento, mas ele não tinha intenção de confessar o fato. Começou a circundar os dois combatentes, na esperança de poder encontrar uma maneira de empurrar Ainslee de lado e terminar a luta ele mesmo. Percebeu que estava apavorado diante da possibilidade de vê-la ferida ou morta.

         - Maldita garota! - resmungou. - Se eu chegar mais perto, posso provocar sua morte em vez de salvá-la.

         Naquele instante, o homem que Ainslee enfrentava tropeçou. Ela não hesitou em tirar vantagem da repentina vulnerabilidade do inimigo. O golpe mortal que desferiu foi rápido e certeiro. O escocês caiu sem um gemido. E Ainslee ficou de pé, a espada ainda escorregadia de sangue, a fitar o homem que ela acabara de matar.

         - Ainslee! - Gabel gritou ao se aproximar, hesitante, impressionado pela palidez e o olhar de horror naquele rosto delicado. Ela se virou e o encarou, ainda empunhando a espada.

         - Pretende me transpassar também? - ele indagou, erguendo as mãos num gesto de paz.

         - Isso me libertaria - Ainslee murmurou, a voz rouca e arfante.

         - Não, faria com que fosse morta aqui e agora.

         - Seus homens hesitariam em matar uma mulher.

         - Não, se a espada dessa mulher estivesse fincada no meu peito.

         Um suspiro estremeceu o corpo esguio, conforme Ainslee estendeu a espada para Gabel.

         - Era provável que eu lhe cortasse a cabeça, não o trans-passasse.

         Quando Michael se postou ao lado dela, Ainslee entregou-lhe o resto das armas, hesitando apenas brevemente antes de lhe dar o segundo punhal. Com o estômago revirado, ela se deu conta de que nunca havia matado ninguém antes. Jamais fitara os olhos de um homem enquanto lhe enterrava a espada na carne, tirando-lhe a vida. Sentia-se mal, doente, horrorizada.

         - Nunca matou um homem antes? - perguntou Gabel, fazendo um sinal a Michael para que removesse o corpo.

         - Não. Não que eu me lembre. Não cara a cara.

         - É sempre difícil da primeira vez.

         - Por quê? Ele estava tentando me matar. Eu não deveria sentir nada, nem pena nem me lamentar.

         - Levará algum tempo até que essa verdade seja aceita pelo seu coração. O homem lhe deu apenas três escolhas: fugir, o que era impossível; se esconder, outra opção sem valor num local tão pequeno; ou matá-lo, antes que ele a matasse. - Segurou-a pelo braço.

         - Venha, é melhor sairmos deste lugar.

         - A luta acabou?

         - Sim. Os cães ainda vivos fugiram com o rabo entre as pernas.

         - O senhor não os perseguiu?

         - Não. Creio que é melhor irmos embora daqui. Pode haver mais deles. Segui-los poderia nos levar a uma armadilha. Não vim aqui para combater bandidos e marginais. Isso só me daria o prazer de fazer justiça, pois eles devem merecer a forca.

         Gabel montou, e Ainslee deixou que a puxasse para cima e a instalasse na sela, às costas dele.

         - Acha que os outros, os homens que fugiram com Ronald, estão em segurança?

         Com um gesto de concordância, Gabel incitou o cavalo colina abaixo.

         - Não nos encontraremos antes de escurecer. Esse combate nos retardou, e receio que teremos de acampar durante a noite. Se tudo tivesse corrido bem, já estaríamos nas minhas terras.

         Ainslee recostou-se contra Gabel e lutou para banir da mente a imagem do homem morto. Não seria fácil. Teve medo de ser assombrada para sempre pela expressão de surpresa no rosto do bandido quando o matara, pelo modo com que a vida se esvaíra daquele olhar. Precisava conversar com Ronald. Ele sempre estivera a seu lado quando ela enfrentava problemas. Rezou para que o normando tivesse razão, que Ronald estivesse em segurança, esperando por eles em algum lugar ao longo do caminho.

         Ainslee resmungou ao acordar num sobressalto.

         Uma risada máscula, suave e profunda a arrancara do sono. Endireitou-se, observou ao redor e franziu a testa. Cravou os olhos nos braços fortes enlaçados em sua cintura.

         - Como cheguei aqui? Estava cavalgando atrás do senhor - ela murmurou e esfregou as têmporas como se quisesse dissipar da mente a névoa do sono.

         - Estava, mas adormeceu - Gabel respondeu ao puxar as rédeas e obrigar a montaria a parar.

         - Eu caí da sela?

         - Quase. Eu parei e Michael a mudou para a minha frente.

         - E estranho... não consigo me lembrar, não sei como não acordei.

         - A senhorita despertou o suficiente para agradecer a ele com muita doçura.

         - Gabel desmontou, tirou Ainslee da sela e a colocou no chão. - Acamparemos aqui por esta noite e chegaremos às minhas terras pela manhã.

         - Ronald está aqui? - indagou Ainslee, afastando-se e olhando ao redor.

         - Ele e os meus homens estavam esperando por nós aqui. Está logo à sua esquerda, na linha das árvores.

         Gabel ficou a observá-la correr para o lado do amigo e, de repente, espantou-se com a pontada de inveja que sentiu. A cada momento passado na companhia daquela jovem, as coisas ficavam mais e mais complicadas. Assim que seus homens montaram o acampamento e começaram a preparar uma refeição, Gabel seguiu até onde Justice repousava.

         Sentou-se ao lado dele.

         - Como está hoje, primo?

         - Bem demais para ficar prisioneiro desta maça - resmungou Justice.

         - Ficará só mais um pouco e depois poderá se deitar numa cama macia até se recuperar.

         - Gabel! - Justice exclamou, num protesto.

         - Não tente dizer que está curado e pronto para lutar ao meu lado. Ainda está pálido e vacila a cada vez que se move. Não deixe a vaidade retardar sua cura ou fazer com que fique para sempre com esse braço debilitado.

         Justice resmungou e recostou-se contra o tronco da árvore cm que se acomodara sentado.

         - Não é o ferimento que me aborrece - ele admitiu, numa voz ligeiramente ressentida.

         - Uma mocinha escocesa de cabelos de fogo me abateu como se eu fosse um pajem virginal. - Olhou carrancudo para Gabel quando o primo caiu na risada. - Não vejo graça nenhuma nisso.

         - Logo todos saberão em Bellefleur que lady MacNairn não é uma linda e frágil criança. Ela matou um homem numa luta de espada hoje. - Gabel meneou a cabeça numa afirmativa quando Justice arquejou de surpresa. - Conseguiu encontrar uma arma e se defrontou com um daqueles bandidos, idiota o bastante para julgar que ela seria uma presa fácil. - Ele olhou para onde Ainslee estava sentada, ao lado de Ronald. - Ela achou a primeira morte difícil de suportar, mas creio que tem força de vontade para superar o problema.

         - Realmente, essa mulher é mesmo voluntariosa. Uma mulher tão corajosa e hábil seria uma boa esposa para um homem que tentasse assegurar um posto firme nesta terra selvagem.

         - Não tente escolher minha esposa por mim, primo - retrucou Gabel, com um sorriso.

         - Já decidi que tipo de esposa devo ter, e, por mais atraente e provocante que seja Ainslee MacNairn, não é o que eu procuro. Ela é apenas um peão num jogo de negociações. - Gabel evitou o olhar de Justice, certo de que a falta de convicção nas próprias palavras era evidente em seu rosto. - Aquela garota adorável é um pacotinho encantador de problemas, do qual temos de nos livrar o mais rápido que pudermos.

         - Acalme-se, menina - Ronald tranqüilizou Ainslee depois que ela lhe contou tudo que acontecera naquela colina rochosa. - Aquele homem a mataria sem pensar um segundo.

         - Sei disso. - Ela examinou o amigo cuidadosamente com os olhos, aliviada em perceber que a fuga não piorara suas condições. - Você parece ter agüentado bem a escapada pela floresta.

         - Os rapazes fizeram o melhor para nos transportar com jeito. Meu único pesar é que todo esse cuidado é para me levar até Bellefleur, e não a Kengarvey.

         - Bellefleur?

         - Sim. Esse é o nome da fortaleza de sir Gabel.

         - Bellefleur, hein? Não parece um nome muito forte para a fortaleza de um cavaleiro. Fico pensando como foi que ele o escolheu.

         - Acho que você pensa nesse homem bem mais do que seria prudente.

         Embora enrubescesse, Ainslee concordou. Não havia motivo para esconder algo do velho amigo.

         - Não se preocupe com isso, meu amigo.

         Não? Poderemos nos ver retidos em Bellefleur por um longo tempo.

         Ela reconheceu o perigo daquela possibilidade, mas apenas sorriu e alagou a mão de Ronald.

         - Sir Gabel é um homem honrado, e eu sou uma mulher adulta. Se algo acontecer entre nós, recairá sobre nossas próprias cabeças.

         Ainslee fez um ar maroto quando Ronald resmungou um palavrão, e desejou sentir-se tão corajosa quanto se mostrava. Se Gabriel de Amalville tivesse qualquer interesse nela como mulher, uma longa estada em Bellefleur realmente seria perigosa. Mas Ronald não poderia ajudá-la quanto a isso. Fosse o que houvesse entre ela e Gabel, era um assunto que caberia apenas a ela lidar. E tudo que poderia fazer era rezar para que tivesse juízo e firmeza para conduzir-se sem colocar em risco a si e a Ronald. Ou o próprio coração.

         Bellefleur erguia-se, forte e majestosa, de um leito escuro de rochas. Assim que Ainslee chegou ao cume de uma pequena colina e viu a fortaleza de Gabel, hesitou. O rei David I havia recompensado o normando muito bem, realmente. Mesmo a distância, a fortaleza proclamava riqueza e refinamento, nenhum dos quais sua família alguma vez alcançara. A imponente cidadela de pedras era um tremendo símbolo da enorme diferença entre Gabel de Amalville e ela. Todas as outras distâncias e complicações, desde o aprisionamento dela por Gabel para obter resgate até sua educação incomum poderiam ser explicadas, excluídas, postas de lado e ignoradas. Mas não havia como se iludir com respeito ao imenso e robusto símbolo de poder e prestígio para o qual olhava agora. Bellefleur fazia Kengarvey parecer a mais humilde das cabanas de um camponês.

         - Cansou-se, Srta. Ainslee? - indagou Gabel ao cavalgar até ela.

         - Não - Ainslee respondeu, e recomeçou a andar, apressando o passo para alcançar Ronald, cuja maça ela acompanhava a pé. - Apenas precisava de uma pausa por um instante antes de subir o resto desta montanha. - Ainslee ignorou o sorriso e franziu a testa ao perceber como Gabel parecia confortável montado em seu corcel cinza. - Ainda creio que o meu cavalo precise de um descanso por carregar duas pessoas.

         - Uma montaria tão forte como esta nem notaria o acréscimo do seu peso. - Gabel acariciou o pescoço forte do garanhão. - Que nome deu a este animal?

         - Malcolm - ela informou, com um ar sombrio, certa de que o normando planejava ficar com seu cavalo.

         - Malcolm? - Gabel riu baixinho e meneou a cabeça. - Por que chamar uma montaria de Malcolm?

         - Por que não? É um bom nome.

         - Um nome muito bom, realmente, só que estranho para um cavalo.

         - Suponho que pense que eu deveria chamá-lo de Sanguinário ou Quebra-crânios.

         Ele apenas sorriu.

         - O que acha da minha Bellefleur?

         - Parece um local sólido, algo muito necessário nesta terra. - Ainslee o fitou com uma curiosidade que não fez questão de esconder. - E por que um cavaleiro daria à sua fortaleza um nome tão bonito?

         - Minha prima Elaine a batizou. - Gabel esboçou um sorriso divertido. - Prometi a ela o que quer que desejasse no dia que fizesse treze anos. Elaine resolveu que queria dar o nome às minhas terras. Bellefleur não é uma escolha tão ruim.

         - Não. - Ainslee pensou por um momento no tipo de nomes que uma garota poderia pensar e riu. - Poderia ter sido bem pior.

         Depois de perguntar sobre a saúde de Ronald, Gabel avançou até a vanguarda de seus homens. Ainslee esforçou-se por ignorá-lo, e depois desistiu. O normando cavalgava bem, e ela teve de admitir, mesmo com relutância, que ficava muito elegante montado em Malcolm. Ainslee gostava de seu cavalo e dera duro para livrar o animal das mãos cobiçosas da família, mas percebeu que, se Gabel gostasse e quisesse a montaria, ela poderia aceitar a perda. O cavalo certamente levaria uma vida melhor numa fortaleza tão bonita. E Ainslee duvidava que Bellefleur sofresse com os invernos que com freqüência assolavam Kengarvey, longos dias gelados em que até a comida para os cavalos era escassa.

         Suspirou. Apesar de seus melhores esforços, ela se deixara embalar por um ocasional porém improvável devaneio quanto a um futuro com Gabel de Amalville.

         Sua linhagem era nobre, mas as ações de seu pai e de seu avô tinham roubado todas as outras qualificações de que ela precisava para fazer um casamento tão bom. O comportamento ao arrepio da lei dos MacNaim no decorrer dos últimos cinqüenta anos ou mais havia destruído todo o prestígio, o poder e as riquezas do clã. Ver Bellefleur tornava dolorosamente claro que Gabel não ganharia nada desposando uma mulher como ela. E Ainslee duvidava que ele até mesmo se permitisse considerar a possibilidade, mesmo que por um breve momento.

         - Não fique com esse ar tão pesaroso, menina - murmurou Ronald, atraindo a atenção de Ainslee. - Se devemos ser prisioneiros, caímos nas mãos certas. Não precisamos ter medo desses homens.

         - Nem mesmo se meu pai se recusar a nos resgatar? - ela perguntou, sem querer pensar em tal possibilidade, porém conhecendo bem o pai para saber que essa probabilidade existia.

         - Não, nem mesmo assim. E não creio que isso aconteça.

         - Ronald, meu pai...

         - ...é um canalha sem lei, eu sei. Apesar de seus incontáveis defeitos, ele não nos deixará apodrecer com os normandos. Terá receio de denegrir o nome dos MacNairn. Na verdade, o tolo não tem senso para perceber que tudo que fez em sua vida amaldiçoada manchou nosso nome. Mas deixar a filha para apodrecer nas mãos de seus inimigos é coisa que ele não Iara. O que me dá medo é que seu pai não se submeta a qualquer pacto ou negociação para nos libertar.

         - Fiquei preocupada com a mesma coisa e depois me recriminei por pensar tão mal de meu próprio pai.

         - Não é culpa sua, menina. Quando um homem age como ele durante todos esses anos, conquista a dúvida até mesmo dos mais próximos. - Ronald estendeu a mão e segurou a de Ainslee por um instante. - Preste atenção nisso: se seu pai pretender enganar ou trair sir Gabel, não pensará duas vezes no nosso bem-estar. Esta é uma dura verdade, mas você deve enfrentá-la de forma categórica. Saber como seu pai pode ser traiçoeiro pode salvar a sua vida.

         Ainslee afagou ligeiramente a mão do amigo antes de soltá-la.

         - Você tem razão. É difícil admitir que o próprio pai não pode ser confiável, nem mesmo para manter a filha a salvo do perigo, mas eu aceitei essa desagradável verdade longo tempo atrás. O que me preocupa é a sensação de que devo avisar sir Gabel.

         - O sujeito sabe quem é seu pai, querida.

         - Realmente, mas sir Gabel é um homem honrado, eu creio. E um homem honrado não está preparado contra alguém como Duggan MacNairn.

         - Bem, você deve seguir o que mandar seu coração. Se seu pai planejar alguma artimanha, negar um compromisso de honra, e sir Gabel não se der conta, você pode falar, sem medo de ser uma traidora. Não há mal em deixar que sir Gabel veja que pelo menos um dos MacNairn compreende o significado da honradez.

         Conforme atravessaram os imensos portões reforçados de ferro de Bellefleur, Ainslee começou a se sentir dolorosamente observada. Sabia que suas roupas tinham sofrido as durezas da viagem e que ela própria estava suja. Houvera poucas ocasiões para se lavar da poeira da jornada até então. Quando duas mulheres correram para Gabel com exclamações de boas-vindas e o abraçaram, Ainslee sentiu-se pior ainda. As mulheres trajavam vestidos adoráveis, de um tecido macio e vaporoso. Ainslee teve a impressão de estar usando trapos. Era pura vaidade o que lhe causava tamanho desconforto, e ela sabia disso, mas foi incapaz de expulsar a sensação. Tudo que conseguia imaginar era o que Gabel pensava ao olhar para a bela jovem de cabelos negros que o cumprimentava, e, depois, olhar para ela.

         Antes que as mulheres pudessem fazer qualquer pergunta, Gabel mandou que dois homens levassem Ronald a um quarto e o deixassem confortável. Ainslee tentou seguir o companheiro, mas Gabel a segurou pelo braço e a puxou para o grande salão. As duas mulheres os acompanharam. Ainslee foi gentilmente empurrada para uma cadeira à direita do normando, e esperou, num tenso silêncio, enquanto dois pajens apressavam-se a servir uma refeição rápida de vinho doce, pão e queijo. No momento em que Gabel a apresentou a sua tia Marie e a filha dela, Elaine, o estômago de Ainslee estava tão retorcido de nervoso que ela mal conseguia engolir.

         - Você deveria ter mandado avisar que traria hóspedes - Marie queixou-se com doçura.

         Gabel recostou-se confortavelmente na cadeira de carvalho de espaldar alto, tomou um gole de vinho do cálice de prata e sorriu para a tia.

         - A inclusão de lady MacNairn em nosso grupo foi bastante inesperada. Sim, ela é uma hóspede, mas, por outro lado, não é exatamente isso.

         - Está me confundindo, meu sobrinho.

         - Quero que lady Ainslee e seu companheiro sejam tratados como nossos hóspedes de honra, mas também devem permanecer sob guarda. Estão retidos para resgate. Parece chocada, tia. Tal ocorrência não é rara.

         - É verdade, mas você nunca agiu de tal maneira.

         - Um simples capricho do destino. Ninguém havia caído em minhas mãos antes. Isso é tudo.

         - Exigir resgate é bastante comum na Escócia, senhora - disse Ainslee, e então pensou com azedume por que sentia necessidade de defender Gabel.

         - A senhorita já foi feita prisioneira para resgate antes? - indagou Elaine, de olhos arregalados, numa mistura de horror e fascinação.

         - Bem, eu não. Meu irmão George foi refém uma vez - respondeu Ainslee.

         - A senhorita deve ter ficado apavorada. Gabel, como pôde ser tão cruel?

         - Oh, eu sabia que ele não me machucaria - Ainslee assegurou.

         - E quando foi que soube disso? - indagou Gabel. - Antes ou depois de tentar arrancar meu coração?

         Ainslee ia fingir que não ouvira, mas Elaine gritou:

         - A senhorita tentou matar Gabel?

         - Quando ele e seus homens apareceram, eu realmente tentei me defender - disse Ainslee, e lançou um olhar zangado para o normando, que exibia um ar de riso.

         - Não vi nenhuma vantagem em simplesmente ficar parada ali e esperar por meu destino.

         - Ah, com certeza a senhorita ficou apavorada. E talvez ainda esteja, pois está comendo tão pouco...

         - Estou sem apetite porque me sinto exausta e porque não tive tempo nem oportunidade de me limpar da poeira da estrada. - Ainslee teve de reprimir um sorriso quando a tia de Gabel o encarou com um ar escandalizado e de reprovação.

         - Gabel! - exclamou Marie, e cutucou o braço do sobrinho com o dedo.

         - Você não tem modos? Vamos arranjar um quarto para esta pobre menina agora mesmo. Venha, Elaine, você e eu tomaremos providências para que preparem um banho, e iremos procurar alguma roupa limpa para nossa hóspede. - Assim que se pôs de pé, puxando a filha consigo, Marie acrescentou: - Lady MacNairn pode ficar no quarto que lady Surtelle ocupou no mês passado.

         - A senhorita gostou de ver minha tia chamar-me a atenção como a um garoto de recados - resmungou Gabel, assim que a tia e a prima saíram do salão.

         Ainslee sorriu com doçura.

         - Claro que gostei.

         - Então, é melhor eu levá-la aos seus aposentos antes que ela volte e a divirta mais. - Gabel levantou-se e estendeu-lhe a mão.

         - Parece que há uma multidão de primos morando com o senhor. - Ainslee hesitou apenas um instante antes de deixar que ele a tomasse pela mão e a ajudasse a ficar de pé. Recusar-se a tocá-lo com certeza levantaria suspeitas, e ela não queria que Gabel adivinhasse quanto o mais leve contato a afetava.

         Ele a conduziu pela escada em curva até os quartos de dormir.

         - Tenho uma família grande e, no momento, existe uma chance maior de progresso aqui na Escócia ou mesmo na Inglaterra. É preciso cuidar da família, principalmente daqueles que deixaram a França por necessidade, como minha tia, que ficou viúva e, com a preguiça dos parentes do marido, perdeu todas as suas terras e dinheiro. - Gabel a fitou quando parou diante de uma porta reforçada com barras de ferro. - Vocês não dão abrigo a seus parentes?

         - Não são muitos os que desejam ser abrigados em Kengarvey. Na verdade, a maioria de nossos parentes não fala conosco e fica tão distante quanto pode de nós. O próprio rei agora decidiu que meu pai deve ser punido. Eis por que o senhor se dirigia a Kengarvey, não é?

         - Sim. Eu não fiz nenhum segredo do meu objetivo - disse Gabel ao abrir a porta do quarto.

         - Não gosto do modo como meu pai age, fico até mesmo envergonhada de todas as coisas erradas que faz, mesmo assim é meu pai. Não falarei mal dele.

         - Compreendo. Espere que ache estes aposentos confortáveis. Está livre para movimentar-se como quiser dentro das muralhas de Bellefleur, mas seria imprudente tentar escapar.

         Ainslee percebeu o tom duro e frio sob o aviso cortês. Ela sorriu e entrou no quarto. O aposento era bem mais elegante e confortável do que qualquer um em que tivesse alguma vez dormido. Tapeçarias guarneciam as paredes de pedra. Peles de ovelha cortavam o frio do chão. Uma lareira ocupava a parede oposta à cama. Ela ficou fascinada pelo luxo que conhecia apenas de ouvir contar.

         Depois de aquecer as mãos no fogo, sentou-se na cama larga e descobriu que o colchão espesso era recheado com plumas de ganso, e não com palha grosseira a que estava acostumada. Gabel de Amalville poderia não possuir terras, mas era evidente que sua bolsa era cheia quando chegara à Escócia. Ainslee não conhecia nenhum escocês, salvo talvez o próprio rei, que pudesse dispor de tais luxos, como lareiras no quarto e colchões de pluma.

         Uma batida suave na porta arrancou-a dos pensamentos. Ainslee abriu e viu de relance o jovem Michael montando guarda, antes que as criadas entrassem apressadas com seu banho. Outro luxo a que não estava acostumada, ela pensou com azedume ao observar a tina de madeira ser colocada diante do fogo e enchida de água quente. Agradeceu timidamente às criadas quando lhe estenderam o sabão perfumado, toalhas aquecidas e roupas limpas de uma qualidade que nunca tivera. No momento em que ficou sozinha, Ainslee livrou-se das roupas sujas. Ao se entregar ao raro prazer de um banho quente, esqueceu-se de tudo que a perturbava.

         - Vim ver como você está - Gabel murmurou ao fechar a porta e se aproximar da cama de Justice.

         - Estou sendo bem cuidado.

         - É óbvio. - Gabel serviu-se de um copo de cidra do jarro colocado sobre uma mesinha próxima à cama, e depois se sentou na beira do colchão. - Prendi nossos reféns.

         - É mesmo? Se é que alguém pode chamar de prender ou dar a eles os melhores quartos em Bellefleur.

         - Não mostraram nenhum sinal de que causarão problemas. E não vejo necessidade de trancar um velho aleijado e uma mocinha nos calabouços. Estão sendo vigiados também.

         - E a srta. MacNairn tem cabelos tão lindos e brilhantes que seria uma verdadeira vergonha escondê-los nos calabouços... - Justice olhou para o primo com ar de riso.

         - Também é algo a se considerar - resmungou Gabel; mas, depois de esboçar um sorriso, franziu a testa, pensativo.

         - Acha que eu erro em tratá-los com tanta cortesia?

         - Não - respondeu Justice, depois de pensar um pouco.

         - Assim que a garota e seu companheiro se renderam, ela deu pouco trabalho. Também acho que você pode nem precisar de guardas.

         - Por quê?

         - Aquela moça jamais irá embora sem o seu companheiro, e Ronald MacNairn não terá condições de saúde suficientes para voltar a Kengarvey por mais de um mês.

         - Ah, claro, o maravilhoso Ronald. - Gabel encarou o primo quando ele caiu na risada.

         - E qual é a graça?

         - Você parece quase com ciúme, primo - retrucou Justice ao aceitar o copo de cidra que Gabel lhe estendeu.

         Gabel desviou o rosto dos olhos perspicazes do primo, para que ele não pudesse ver sua expressão. Estava com ciúme de Ronald, e aquilo era constrangedor e preocupante. Durante o trajeto de Kengarvey para Bellefleur, ele observara atentamente a conexão entre Ainslee e Ronald, a maneira como ela cuidava com ternura dos ferimentos do homem; como Ronald se preocupava com ela, e o modo como os dois conversavam um com o outro, com franqueza, com uma afeição evidente. A cada quilômetro que percorriam, Gabel havia se desgostado com aquilo cada vez mais. Sentira inveja da atenção de Ainslee como um menino apaixonado.

         Se Justice descobrisse isso, Gabel pensou, iria provocá-lo sem piedade. Pior, o primo poderia se sentir inclinado a bancar o Cupido. Embora a conhecesse apenas havia dois dias, Gabel sabia que teria dificuldade em lutar contra a atração que Ainslee MacNairn lhe provocava. Não precisava que Justice o empurrasse para os braços daquela escocesa voluntariosa. Se o primo julgasse que ele sentia alguma coisa, que fosse apenas um desejo sensual, algo de que poderiam rir e esquecer.

         - Apenas vaidade ferida - retrucou Gabel, e sorriu com ar malicioso. - Não é fácil seduzir uma moça ou convencê-la da minha importância quando ela passa todo o tempo mimando um velho.

         - Que vergonha, Gabel. Não deveria estar pensando em seduzir a garota quando está à procura de uma esposa.

         - É, uma esposa... Tia Marie me disse que lady Margaret Fraser chegará a Bellefleur em poucos dias. O pai dela espera me convencer que a filha dará uma boa esposa para mim.

         - Não é uma excelente ocasião para fazer a corte a uma mulher. Com tudo que sabemos sobre Duggan MacNairn, não posso acreditar que esse pedido de resgate seja um assunto fácil.

         - Não. Contudo é muito tarde para impedir Fraser de vir. Já está a caminho e não sabemos que rota tomou.

         - Para o seu bem, vou rezar para que não haja problemas.

         - Não pode rezar por isso mais do que eu.

         Não foi fácil, mas Ainslee ignorou Michael ao seguir seu caminho até o alto das imponentes muralhas de Bellefleur. O jovem grudara-se nela como uma sombra. Michael estava de pé do lado de fora do quarto quando, limpa e refrescada do banho, ela saíra para ver Ronald. Depois de se assegurar de que o amigo estava bem, e ainda surpresa com os aposentos elegantes destinados a ele, Ainslee tinha deparado com o jovem Michael do lado de fora daquele quarto também. Sabia que ele estava naquele exato momento em seus calcanhares, mas se recusou a encará-lo.

         Parada no parapeito, ela respirou fundo o ar frio do outono. O céu escurecia, com os dias cada vez mais curtos. Ainslee sabia que, se seu pai hesitasse em resgatá-la, ela poderia fácilmente ficar presa em Bellefleur pela duração do inverno. Quando viu Gabel aproximar-se, percebeu que uma estada longa poderia ser perigosa. Só a vista daquela silhueta forte e robusta provocava um salto em seu coração. Detestava pensar em como aquela atração poderia aumentar se passasse muito tempo na companhia daquele normando sedutor.

         - Está esperando que seu pai venha para resgatá-la? - Gabel perguntou ao se recostar contra a muralha. Com um gesto sutil, dispensou Michael.

         Ainslee lhe endereçou um breve olhar de irritação.

         - Estou procurando seus pontos fracos, meu presunçoso cavaleiro, para que eu possa voltar e conquistar suas terras e fazê-lo provar o gostinho do cativeiro.

         - Estou tremendo inteiro de medo. - Ele tomou-lhe a mão nas suas, levou-a lentamente aos lábios e pousou um beijo nos dedos. - Mas que homem poderia protestar ao se ver prisioneiro de tão belos olhos azuis?

         Era bobagem, Ainslee sabia, porém sorriu e até mesmo sentiu o coração palpitar. O tom daquela voz profunda a acariciava. Ficou tensa por um instante quando Gabel enterrou os dedos longos em seus cabelos. Ela não era tão ingênua que não fosse capaz de reconhecer uma tentativa de sedução, mas não sentiu nenhum impulso de rejeitá-lo. Embora soubesse que havia poucas chances de aquela investida conduzir a algo mais que um período na cama de Gabel pela duração da sua estada em Bellefleur, Ainslee percebeu que se sentia curiosa e completamente alvoroçada com aquela atitude.

         - O senhor fala um bocado de lindas tolices - ela murmurou, sem nenhuma tentativa de esquivar-se quando Gabel, gentilmente, aprisionou seu corpo contra o dele e a muralha.

         - Tolices? Não. Apenas a pura verdade. A senhorita tem realmente olhos azuis muito lindos e cabelos que deixam um homem sem fala, pois não existem palavras para descrever tamanha beleza.

         Ainslee estremeceu quando Gabel roçou os lábios em sua testa. Eram macios e cálidos, e a carícia a perturbou. Sabia que ele iria beijá-la. Apesar da multidão de auto-recriminações sobre o perigo da vaidade e a imprudência a que se expunha, Ainslee suspeitava que Gabel queria beijá-la desde que haviam se encontrado. Poderia ser mais adequado e decente recusar aquele avanço com firmeza, porém ela sabia que iria mandar o recato e a decência ao vento. Estava por demais curiosa, tinha pensado em beijá-lo tantas vezes que queria saber como se sentiria. Quando Gabel colou os lábios nos seus, Ainslee se aconchegou a ele, mostrando, sem dizer uma palavra, que também o desejava.

         Um calor espalhou-se por seu corpo, afastando todos os vestígios do frio provocado pelo clima rígido. Ela agarrou-se à frente da túnica pesada de Gabel quando ele, lentamente, começou a aprofundar o beijo. E um tremor a percorreu ao sentir a língua de Gabel invadir-lhe a boca. Cada carícia aumentava a sensação de fome a espalhar-se por suas entranhas. Ainslee aconchegou-se ainda mais, comprimindo seu corpo contra o dele conforme se rendia totalmente ao poder daquele beijo. Então, quando Gabel deslizou as mãos por suas costas, uma fagulha de alarme rompeu a névoa da paixão. O anseio que a consumia era forte demais, e o desejo, muito ardente e ávido.

         Não foi fácil, mas Ainslee conseguiu empurrar Gabel. Respirando ofegante e com uma voz tão rouca que mal reconheceu como sua, ela murmurou:

         - Creio que devo voltar ao meu quarto agora. É um belo aposento, embora ainda seja uma prisão. - Receosa de começar a gaguejar, desviou-se dele e correu para os degraus que conduziam ao pátio. - No entanto, seja ou não uma prisão, parece o lugar mais seguro para mim, no momento. - Sem esperar que Gabel respondesse, fugiu pela escada.

         Ele ficou a observá-la descer correndo. Fora errado tentar seduzi-la, mas não sentia nenhuma pontada de culpa. Aquele único beijo havia revelado um vislumbre de uma paixão tão forte e vibrante que Gabel não poderia simplesmente ignorar a sensação, não importava quanto pudesse ser fugidia. Sabia que Ainslee tentaria agora manter-se afastada, e ele permitiria que se esquivasse por algum tempo, mas sabia que nada poderia impedi-lo de sair à caça outra vez. E em breve.

         Tão silenciosamente quanto pôde, Ainslee começou a descer as escadas. Pela primeira vez desde que Michael recebera ordens de vigiá-la, quatro dias antes, ela o pegara cochilando. Não era de surpreender. Ainslee tinha feito de tudo para se assegurar de que o rapaz não dormisse durante a noite, desde arrastar a pesada mobília, despertando suspeitas, até usar o toalete tantas vezes que ele devia ter pensado que ela estava doente. Seu joguinho a havia deixado exausta também, mas fora bem-sucedida, pois estava livre daquela sombra constante.

         Ainslee relanceou os olhos por sobre o ombro para ter certeza de que Michael não a seguia. E, ao se virar, estacou. Mais alguns passos e teria trombado em Gabel. Ele se encontrava ao pé da escada, mãos nos quadris, a observá-la com ar de suspeita.

         - Para onde está se esgueirando, senhorita? - perguntou. - Fugindo?

         - Oh, claro. Pensei que poderia sair correndo pela fortaleza e atravessar os portões - ela retrucou. - Quis me assegurar de que seria só um pequeno desafio soltar todos os seus cavalos de batalha.

         - Uma noite insone deixa sua língua ainda mais afiada, realmente. Não é um bom dia para se mostrar tão esperta. Tem gente que não fica com o melhor dos humores depois de ser arrancada da cama no meio da noite.

         Ainslee ignorou o comentário. Durante a longa noite, ela fingira ter um pesadelo. Tinha parecido um meio esperto de impedir Michael de descansar, até que Gabel, preocupado, a tia e a jovem Elaine haviam irrompido em seu quarto. Lady Marie e a filha foram muito gentis, mas um lampejo de suspeita logo surgira nos olhos sonolentos de Gabel. Que suspeitasse. Ela jamais admitiria o logro.

         - Mil perdões por ser uma hóspede problemática. Talvez fosse melhor se me mandasse de volta a Kengarvey.

         - O que farei é escolher um segundo guarda para a senhorita, para que não consiga mais deixar um deles tão cansado que não seja capaz de vigiá-la.

         - Como quiser, meu senhor - Ainslee murmurou, furiosa no íntimo. O joguinho para iludir Michael poderia lhe custar qualquer oportunidade de escape. - Eu ia sair para um pequeno passeio - ela emendou, e continuou a descer a escada, ignorando o ar de riso de Gabel.

         - Insisto em acompanhá-la, senhorita! - ele exclamou, ao mesmo tempo em que enganchava o braço no de Ainslee, aumentando a pressão quando ela tentou se livrar com um safa-não.

         - Acho que poderia estar interessada na resposta de seu pai ao meu pedido de resgate.

         - Fico surpresa de que possa dizer a uma dama o que ele respondeu - resmungou Ainslee.

         Havia duas maneiras de seu pai responder: com raiva e numerosas tentativas de adiar o pagamento, ou dizendo a Gabel para fazer o que quisesse com ela. Ronald acreditava que seu pai jamais a lançaria aos lobos, porém Ainslee não se sentia tão confiante disso. Duggan MacNairn não sentia amor pela filha, e já que não conseguira lhe arranjar nenhum casamento, ela não tinha nenhuma serventia para ele.

         Pensar na insensibilidade do pai de Ainslee liquidou com o bom humor de Gabel tão depressa como o comentário amargo dela. A resposta para a exigência do resgate revelara que Duggan MacNairn não se importava nem um pouco com a filha ou o parente. Só havia perguntado de um prisioneiro: o cavalo. Gabel esperava que Ainslee não fosse muito ligada ao animal, pois resolvera se apossar da montaria só para irritar MacNairn. Era um gesto infantil, mas de alguma forma o enchia de satisfação. Sua preocupação no momento, contudo, era dizer a Ainslee o que o pai respondera, sem, porém, ferir os sentimentos dela. No entanto era provável que tentasse protegê-la de uma verdade da qual Ainslee já estava ciente.

         - A linguagem de seu pai foi de uma certa forma belicosa. Está tentando negociar seu preço.

         - Se ele se recusou a me comprar de volta, não precisa hesitar em me dizer. Faz tempo que compreendi que não sou querida por meu pai. Não posso me magoar com uma verdade com a qual já me conformei - ela mentiu, e rezou para que a calma aparente convencesse o olhar perspicaz de Gabel.

         - Tem certeza de que quer saber a verdade toda? - ele perguntou, e parou para encará-la.

         - Sim, é sempre melhor.

         - Às vezes pode ser cruel.

         - A verdade é sempre melhor.

         - Se é isso o que quer... A maior parte da resposta de seu pai consistiu de blasfêmias contra resgates; filhas de cabeça oca e normandos ambiciosos. Ele acha que a senhorita tem culpa disso. A senhorita e seu companheiro. A única coisa de cujo bem-estar seu pai perguntou foi de seu cavalo. Também disse que pode apenas pagar uma ninharia, uma importância tão pequena que é um insulto a mim e também à senhorita.

         Aquilo doeu e magoou tão profundamente que Ainslee se assustou.

         Ocultando o sofrimento, fitou Gabel com um ligeiro sorriso e continuou a caminhar.

         - Isso é a cara de meu pai.

         Gabel alcançou-a quando ela se dirigiu aos degraus estreitos que conduziam ao passadiço das muralhas de Bellefleur. Queria fitá-la dentro dos olhos. Era difícil acreditar que Ainslee pudesse ser tão indiferente à crueldade do pai como fingia.

         - Mandei um mensageiro até ele hoje mesmo - Gabel informou ao segui-la, o olhar cravado na ondulação suave dos quadris esbeltos. - Eu disse a ele o mesmo que disse à senhorita, que a oferta é um insulto. Já que seu pai ignorou minha menção aos desejos do rei para a cessação das atitudes ilegais, eu o avisei das conseqüências de se julgar fora do alcance das ordens do nosso soberano.

         - Meu pai não é homem que considere as conseqüências de qualquer coisa que faça.

         - Não existem cabeças sensatas em Kengarvey?

         - Sim, e enfeitam as estacas sobre as muralhas. A resposta de meu pai a qualquer conselho é uma fúria cega a quem ousou aconselhá-lo. Ninguém mais fala agora, não importa a enormidade da tolice que ele cometa. Afinal, pode-se sobreviver aos erros de Duggan MacNairn, mas jamais alguém sai incólume ao tentar aconselhá-lo.

         - Estou surpreso que alguém ainda possa permanecer em Kengarvey.

         - Alguns não têm escolha. Além disso, Kengarvey é seu lar. Mesmo que precisem suportar um tolo como senhor, eles ficam por amor a Kengarvey. - Ainslee suspirou ao percorrer as muralhas de Bellefleur com o olhar. - Kengarvey não é tão bonita como esta fortaleza nem tão solidamente construída nem tão confortável, porém é o lar e, para muitos, o único lar que conheceram. Existem tolos por lá, assim como aqueles de juízo estreito que pensam que meu pai é o mais corajoso dos homens. Admiram-no pela maneira com que cospe nos olhos de quem tenta governá-lo.

         - Até mesmo o rei? - perguntou Gabel ao se recostar contra a parede de pedra.

         - Quer que eu lance contra meu pai uma acusação de traição?

         - Tal acusação já paira sobre a cabeça dele e, se não fizer o juramento de aliança, descobrirá que o rei de quem escarnece pode ser um inimigo poderoso.

         Ainslee estremeceu diante da idéia do destino que seu pai poderia ter. A pena por traição era a morte, uma longa e pavorosa morte. Não seria apenas o pai que a sofreria. Certamente ele estaria colocando seus preciosos filhos em risco, e poderia até mesmo expor ao perigo ela e as irmãs. Ainslee não conseguia defender as atitudes do pai, mas resolveu que era hora de começar a pesar cada palavra. Nem com palavras nem com atitudes ela ajudaria Gabel ou o rei a lançar a pecha de traidor sobre o próprio pai. Embora ele não fosse alguém que merecesse tal lealdade, era uma questão de auto preservação.

         - Meu pai apenas joga o jogo da barganha, sir Gabel - Ainslee retrucou. - Muito poucas pessoas se curvam à primeira exigência feita.

         - Não posso acreditar, na verdade.

         - O que pensa sobre mim e meus pensamentos, senhor, não importa realmente. - Ela voltou a fitar os arredores e ficou tensa quando Gabel se aproximou, o corpo a roçar o seu enquanto lhe afagava os cabelos.

         - Importa, sim. Não a conheço bem, Ainslee MacNairn, mas sinto que é uma mulher honesta.

         - Eu não lhe disse nenhuma mentira.

         - Não, mas também me contou poucas verdades.

         - Bem, eis uma verdade. Alguém se aproxima, e não são meus parentes.

         Gabel ficou tenso, a olhar para os cavaleiros que rumava para Bellefleur num ritmo lento e constante. Dirigiu-se às escadas. Ainslee sentiu o frio da ausência dele no mesmo instante, porém não apenas do afastamento daquele corpo quente. Gabel se distanciara dela de outra forma. Ainslee fixou o olhar mais atentamente nos cavaleiros, tentando discernir as razões daquela atitude. No meio das montadas havia uma pequena charrete. E dentro dela, algumas mulheres, uma delas evidentemente uma dama. Ainslee reconheceu o grupo. Eram os Fraser, um dos muitos inimigos de seu pai, e o mais ferrenho adversário dos MacNairn.

         Existiam duas razões para os Fraser viajarem a Bellefleur. Uma era para se aliarem a Gabel contra seu pai, porém mulheres bem-nascidas do clã não se juntariam aos homens nessa aventura, especialmente naquela época do ano. A outra era tentar ligar as duas famílias por meio de um casamento. E Ainslee pressentiu que a dama na charrete vinha para ser oferecida como uma possível noiva para o normando.

         Ela viu-se dividida entre a fúria e o desgosto. Não alimentara nenhuma ilusão sobre as tentativas de Gabel em seduzi-la, embora a profunda sensação de mágoa indicasse que havia se deixado iludir.

         O fato de o normando tentar arrastá-la para a cama, enquanto cortejava uma noiva, não apenas era extremamente arrogante da parte dele, como insultante para com ela. Se estivesse correta e fosse a candidata à noiva que entrava pelos pesados portões de Bellefleur naquele instante, então aquilo seria a prova irrefutável de que Gabel de Amalville tinha uma péssima opinião a respeito de Ainslee. Realmente a via como se não passasse de alguém para se divertir e depois ser posta de lado, nada mais que alguma prostituta.

         - Creio que voltarei ao meu quarto - ela resmungou ao descer a escada, desesperada para afastar-se, com medo que Gabel percebesse o turbilhão de emoções que a invadira.

         - Não quer conhecer os Fraser? - ele perguntou ao alcançá-la.

         Ainslee imaginou o que aconteceria se ela empurrasse o idiota do alto das muralhas. Não podia crer que ele quisesse apresentar a pretendida amante para a pretendida noiva.

         - Esses Fraser, em particular, odeiam meu clã. Não creio que ficariam contentes em me ver.

         Apesar de seus esforços para se refugiar na segurança do quarto antes que Colin Fraser e seu pessoal a vissem, Ainslee descobriu-se encurralada no pátio do castelo quando os inimigos mais mortais de seu clã chegaram. Bem que ela tentou se esconder atrás de Gabel enquanto ele apertava as mãos de lorde Fraser e cumprimentava a filha do fidalgo, uma bela jovem morena de seios fartos chamada Margaret. Mas logo percebeu que sua patética tentativa de esconder-se fracassara quando lorde Fraser a encarou com olhos faiscantes.

         - O que essa MacNairn está fazendo aqui? - indagou o homem.

         - É uma prisioneira - informou Gabel. - Estou negociando o resgate com o pai dela no momento.

         - E deixa uma prisioneira andar por aí livremente? Logo uma cria daqueles traiçoeiros MacNairn? Deveria trancar a cadela com correntes, ou logo sentirá uma faca cravada nas suas costas.

         - Pelo menos os MacNairn não sorriem com doçura para um homem enquanto usam de mentiras, da lei e do rei para se livrar dele! - Ainslee esbravejou, devolvendo o olhar de fúria ao homem corpulento.

         - Seu pai nunca obedeceu a uma lei na vida e por certo não conhece quem a usa. E não pode nem mesmo chegar perto do rei, ou será rapidamente enforcado como o cachorro ladrão que é.

         - Basta! - exclamou Gabel; ao ver que Michael se aproximava, empurrou a furiosa Ainslee na direção do jovem guarda.

         Embora sentisse a fúria fazer a bile subir até sua garganta, Ainslee engoliu o insulto final que havia preparado. O olhar de desdém que Margaret Fraser lhe endereçou só fez aquele silêncio mais difícil de manter. Ansiava avançar e bater naquela mulher, mas permitiu que Michael a afastasse dali. Observar Gabel acolher gentilmente os convidados e flertar escancaradamente com Margaret não era algo a que Ainslee quisesse se submeter, de qualquer forma. Só imaginou quanto as circunstâncias de seu cativeiro poderiam se modificar com aqueles convidados.

         - Você não vai acreditar quem acabou de entrar por estes corredores - Ainslee anunciou ao irromper no quarto de Ronald, pouco depois.

         - Colin Fraser e sua filha Margaret dos infernos - Ronald disse ao se erguer até poder recostar-se nos travesseiros que Ainslee afofou às suas costas.

         - Você conhece Margaret Fraser? - Ela o serviu de uma caneca de hidromel e depois se sentou na beirada da cama.

         - Só por meio de boatos, menina. Nunca vi a mulher.

         - Bem, que boatos correm sobre ela?

         - Que é uma amostra exata do sangue do pai. Dizem que é melhor numa intriga que ele. Os Fraser são aqueles cortesãos ambiciosos e sem escrúpulos que fazem da corte do rei um lugar tão perigoso. Tão maus como seu pai, porém com a esperteza de ocultar as safadezas e traições sob um manto de maneiras corteses e legalidade.

         - O velho Colin não foi cortês quando me viu. E a filha me olhou como eu fosse algum pedaço nojento de lixo a manchar seus sapatos. Não posso acreditar que Gabel queira se casar com uma mulher assim.

         - Acha que planejam um casamento?

         - Não creio que tenham chegado a um acordo quanto ao noivado. Gabel não conversou com os Fraser como se já fossem parentes. Margaret está aqui para ser escolhida.

         Ronald meneou a cabeça e depois bebeu o resto do hidromel.

         - Uma aliança seria uma péssima notícia para nós.

         - Nem boa para Gabel ou Bellefleur. Que tolice, eu não deveria me preocupar com isso. Com todo o direito, deveria desejar a eles a pior sorte que Deus pudesse lhes mandar.

         - Não, minha querida. Você tem um coração bom demais. - Ronald afagou-lhe a mão e piscou com ar de malícia. - Sei que vê com bons olhos o jovem Gabel de Amalville.

         - Mas não são os meus olhos que ele gostaria de atrair. - Ronald riu, porém Ainslee continuou, num tom preocupado:

         - Tenta me seduzir até que vê a provável noiva surgir à vista. Eu deveria lançá-lo aos lobos e ficar feliz em vê-los liquidar o pobre cego. Mas, como você disse, tenho um coração muito bom e, talvez, uma cabeça oca. Se esses Fraser são tão traiçoeiros como afirma...

         - Extremamente. E se metade dos boatos sobre a bela Margaret são verdadeiros, ela é a mais venenosa das víboras. Pelas conversas que escutei pelos corredores de Bellefleur, conquistou um enorme reconhecimento do nosso rei.

         - E, em conseqüência, tornou-se alguém que está no caminho de outras que aspiram a esse lugar de honra.

         Ronald concordou e colocou a caneca vazia de lado.

         - Amalville é nosso captor. Pretende dobrar seu pai para o lado do rei ou colocar um fim aos problemas que ele causa. No entanto é também um homem honrado, que preferiria um tratado a uma batalha, e que nos trata com muita gentileza. Merece mais do que ser traído por um sujeito ambicioso e pela filha igualmente inescrupulosa.

         - Você tem toda a razão - concordou Ainslee, que se levantou e se dirigiu à porta.

         - E o que pretende fazer?

         - Observar - ela murmurou ao parar antes de sair.

         - Observar o quê?

         - Primeiro, se Gabel tem a perspicácia para perceber a trapaça num rosto bonito. E se os Fraser merecem tudo aquilo de que são acusados. Se forem, pode não ser de nossa serventia ajudar Gabel, mas nos beneficiará arruinar quaisquer planos que os Fraser tenham arquitetado.

         - Seu pai não é um bom homem, mas não faz nenhum esforço para esconder quem é. Se alguém tiver bom senso, sabe onde está pisando com ele.

         - Fraser, na verdade, é pior que meu pai, pois finge ser o melhor dos cavalheiros. Terei cuidado.

         - Ótimo, pois se suspeitarem de que está ciente de suas artimanhas, você poderá correr grave perigo.

         Ainslee não disse a Ronald, mas julgava que já estava em perigo. Não dera importância, a princípio, ao olhar de desdém de Margaret Fraser. Se algo dos boatos fosse verdadeiro, contudo, aquele olhar poderia bem ser um aviso. Seu maior problema, no entanto, não era Margaret Fraser. Caso os Fraser armassem um complô contra Gabel, isso iria requerer mais habilidade do que Ainslee possuía para convencer o normando de que estava sendo feito de bobo.

         - Por que sua hóspede de cabelos de fogo não estava à mesa esta noite? - perguntou Justice, quando Gabel o ajudou a voltar ao quarto, exausto.

         Gabel contou ao primo o que acontecera quando os Fraser e Ainslee tinham se encontrado no pátio.

         - Acho que é melhor dar um tempo para os ânimos se acalmarem.

         - Pode ser. Aquela garota dos MacNairn tem um temperamento semelhante ao fogo de sua cabeleira. - Justice esboçou um sorriso e permitiu que Gabel o ajudasse a se despir.

         - E uma língua tão cortante quanto a lâmina da sua espada.

         - É mesmo - concordou Justice. Gemeu ao se deitar, reclinando-se contra os travesseiros. - Eu deveria ter ficado aqui. Teria me poupado a vergonha de precisar de ajuda para deixar a mesa.

         - Você não parece assim tão mal, primo. - Gabel sentou-se na beira da cama.

         - Não o ajudei porque você parecia fraco, mas porque me deu a chance de escapar da companhia dos Fraser.

         - Isso não promete um vínculo bem-sucedido entre os De Amalville e os Fraser.

         - Poderia ser uma boa parceria. Ambos os lados ganhariam.

         - Quer ouvir minha opinião sobre o velho Colin Fraser e aquela bela morena?

         - Acho que gostaria.

         - Espero que não se ofenda. Eles são bem-nascidos, poderosos e ricos, o compromisso agradaria ao rei, e muitos homens ficariam ansiosos para levar Margaret para a cama. E, no entanto... - Justice deu de ombros - não creio que confie nela. Sei com certeza que não confio no pai. Gabel concordou.

         - Essa gente me deixa intranqüilo também, não sei por quê.

         - Talvez as palavras duras que lady Ainslee disse a Fraser não fossem simplesmente um insulto trocado com um velho inimigo.

         - Pensei o mesmo. Mas quando Ainslee viu os Fraser se aproximarem, a expressão em seus belos olhos me disse que ela havia adivinhado exatamente por que lady Margaret veio até Bellefleur. - Gabel meneou a cabeça e praguejou baixinho. - Eu não deveria ter beijado a garota MacNairn. Não passou de uma tentativa de sedução, e é uma atitude baixa de minha parte seduzir uma moça bem-nascida enquanto procuro outra para esposa.

         - Realmente, é errado de sua parte, mas creio que eu o acharia o mais estranho dos homens se não tivesse pelo menos tentado. Lady Ainslee é muito bonita paia ser ignorada. E, como não vejo nenhum sinal de unhas em você, devo presumir que ela não resistiu ao beijo.

         - Não, ela não me rejeitou. Acho que pode até ter perdoado aquela primeira transgressão. No entanto eu estava tentando roubar outro beijo quando os Fraser chegaram.

         - Que azar, Gabel. Não poderia ter escolhido a hora mais errada.

         - Realmente, uma péssima hora. Mas ofender Ainslee é a menor das minhas preocupações no momento. Posso ter acolhido um par de víboras na minha casa.

         Ainslee resmungou ao ver Gabel subir as escadas da muralha e caminhar em sua direção. O fato de Margaret Fraser estar lá para ser apresentada como uma possível esposa não lhe agradava de maneira alguma. E que Gabel tentasse seduzi-la, enquanto cortejava uma noiva, a ofendia e magoava. Porém o pior pecado que ele cometera havia sido não permitir que ela se juntasse a todos no salão para a refeição da noite. Sabia ser absurdo magoar-se com isso; era uma prisioneira e não deveria estar jantando com a família de seu seqüestrador. E sabia o que realmente a espicaçara: tinha sido sentir-se posta de lado, escondida como algum relacionamento constrangedor no mo mento em que Margaret Fraser entrara em Bellefleur.

         - Este se tornou seu refúgio para o mau humor, senhorita? - Gabel perguntou ao se recostar na amurada ao lado dela.

         - E por que acha que eu estou mal-humorada?

         - Por favor, não relacione todas as coisas erradas que sente que eu fiz à senhorita. Não quero desperdiçar a noite inteira pedindo seu perdão.

         Ainslee o encarou de forma direta.

         - Por que fui banida de repente para o meu quarto em vez. de fazer minha refeição no salão?

         - É essa a razão de ter fugido para as muralhas e estar com esse beicinho manhoso?

         - Não estou fazendo beicinho. E, considerando o tratamento que recebi desde que fui trazida a Bellefleur, não é irracional perguntar por que as coisas mudaram tão de repente. - Ainslee ficou tensa quando Gabel estendeu a mão e pegou entre os dedos sua longa trança. Sentiu-se insultada que ele pudesse pensar em tentar seduzi-la outra vez.

         - Depois do modo com que lorde Fraser e a senhorita agiram quando se encontraram, considerei prudente mantê-la à parte até que ambos tenham tempo para se acalmar. Imagine os dois tentando se espetar com as facas da mesa... - Gabel deslizou o braço em torno dos ombros de Ainslee, puxou-a para mais perto e roçou os lábios em sua fronte, enquanto perguntava: - Por que odeia Fraser tanto assim?

         - Porque foi Fraser e os seus homens que mataram minha mãe. - Por um momento, Ainslee abandonou-se ao abraço, o desejo por Gabel a invadi-la. Então, lembrou-se de Margaret e, mais importante, da razão de ela estar em Bellefleur. - Acho que seria prudente se poupasse esse joguinho para a mulher que está cortejando, meu senhor! - exclamou ao empurrá-lo.

         Antes que Gabel pudesse responder, Ainslee afastou-se correndo. Na metade das escadas para o quarto, deparou com Margaret Fraser. Era evidente que ela vira Ainslee e Gabel nas muralhas.

         - Eu não tentaria jogar esse jogo, se fosse você - avisou Margaret.

         - E que jogo é esse? - perguntou Ainslee, instintivamente se preparando para um ataque quando Margaret deixou escapar um bufo de escárnio.

         - Está tentando cativar o lorde De Amalville. Um homem dessa estirpe jamais desposaria uma MacNairn.

         - Então, por que se dá ao trabalho de me avisar?

         - Os homens são bem conhecidos por fazer coisas tolas. Preste atenção, MacNairn, eu não ficarei à espera de ser posta de lado por você. Jamais permitirei que sinta o sabor de uma vitória sobre mim.

         Margaret passou bruscamente por Ainslee e se afastou. O calafrio da ameaça sibilante da mulher fez Ainslee estremecer ao correr para o quarto. O quarto deveria ser sua cela de prisão, mas, cada vez mais, começava a parecer o único refúgio seguro dentro das muralhas de Bellefleur.

         Ao apertar a pesada capa em torno de si, Ainslee olhou ao redor do pátio cheio de sombras. Por dois dias, desde que Margaret a tinha ameaçado, vinha jogando um jogo perigoso.

         Agora começara a pensar que era ainda mais perigoso do que havia imaginado. Pusera-se a flertar com o normando, algo que não tinha certeza de fazer com habilidade. Os olhares furiosos de Margaret a tinham divertido. Mas tal diversão poderia lhe custar caro.

         Ainslee olhou ao redor outra vez e não viu o guarda, sua sombra constante. O gorducho Vincent compartilhava agora o dever com Michael, e Ainslee tinha certeza de que ele a seguira. Em algum lugar entre o quarto e o pátio, o rapaz tinha desaparecido. A criada de Margaret andava se oferecendo tanto a Michael como a Vincent. Michael achava divertidas as atitudes sensuais da moça, enquanto Vincent ficara excitado. Ainslee tinha certeza de que o rapaz finalmente havia sucumbido e se esgueirara atrás da mulher. O que a preocupava era a razão pela qual a criada de Margaret tentava atrair seus guardas para longe.

         Era o orgulho que havia forçado Ainslee a sair para o pátio, como se tornara seu hábito, apesar de seus instintos a advertirem do perigo. Deveria voltar depressa para dentro e misturar-se ao pessoal de Gabel. Margaret jamais tentaria machucá-la com Gabel e seus parentes por perto. Mas, teimosa, Ainslee continuou a caminhar, rezando para que fosse a sua desconfiança nos Fraser que a fazia imaginar punhais em cada sombra.

         Um ruído abafado no alto a sobressaltou, e ela olhou para cima. Viu apenas um ligeiro movimento numa das poucas janelas mais largas da fortaleza, mas uma onda de alarme a invadiu. No mesmo instante, colou-se contra a parede fria e úmida. Um momento depois, uma enorme pedra caía da janela, passando tão perto que roçou suas saias.

         Embora ouvisse outro ruído acima, Ainslee controlou o impulso de olhar. Devia ser a pessoa que jogara a pedra, mas, para ver claramente, ela teria de se afastar da parede, o que seria arriscado. Ainslee permaneceu imóvel. Fora preciso uma atitude sorrateira para carregar uma pedra tão grande para dentro do castelo e lançá-la pela janela. Sem dúvida, a intenção tinha sido de matá-la. Com certeza, fora Margaret a planejar o atentado, mas seria impossível provar. Ainslee assustou-se com a fria determinação de assassiná-la, revelada naquele ataque.

         Comprimida contra a parede e olhando seguidamente para cima, ela voltou para a entrada do castelo. Precisava repensar todos os seus planos. Aquela tentativa de assassinato mostrava a importância de impedir tal casamento; que uma mulher feito Margaret não se deixaria vencer com joguinhos como flertar com Gabel.

         Assim que entrou no castelo, Ainslee parou para respirar fundo. Entregou a capa para uma jovem criada, que se apressou em vir ajudá-la, e seguiu direto para o salão. Endireitou os ombros, preparando-se para a primeira confrontação de verdade com os Fraser desde que haviam chegado, e entrou no salão. Não a surpreendeu encontrar Margaret sentada à mesa com Gabel e o pai. Era óbvio que a pérfida mulher não sujaria as próprias mãos. Simplesmente ordenara o assassinato. Um breve lampejo da dúvida dissipou-se quando Margaret a encarou. A expressão da jovem Fraser era de completa surpresa, logo substituída por uma máscara de fúria.

         - Lady Ainslee - chamou Gabel, com um sorriso, acenando para que ela fosse até a mesa. - Venha juntar-se a nós. Mandei um pajem ao seu quarto, mas ele não a encontrou.

         - Fui dar uma volta pelo pátio - Ainslee explicou ao se aproximar.

         - E onde está Vincent?

         - Preciso do meu guarda aqui, onde estou rodeada pelos De Amalville e seus aliados?

         - Claro que não - Gabel murmurou, e relançou os olhos para a porta e de novo para Ainslee. Então, franziu a testa.

         - Venha, sente-se aqui - disse, indicando o assento à sua esquerda.

         Ainslee hesitou, pois o lugar a colocava perto de lorde Fraser. Mas a raiva que tingiu o rosto duro do homem a fez sentar-se.

         - Trata seus prisioneiros muito gentilmente, sir Gabel - Fraser declarou, o tom de voz cordial, mas os olhos revelando seu dissabor.

         - Esta é uma dama bem-nascida, senhor - Gabel retrucou.

         - E não tem me causado preocupações. Não vejo razão para tratá-la de maneira diferente.

         - E como seu pai pretende amealhar a quantia para o seu resgate, senhorita? - Fraser perguntou a Ainslee. - Roubando dos vizinhos, como sempre fez?

         Antes que Ainslee pudesse responder, Gabel bateu a caneca na mesa com um baque.

         - Lady Ainslee deve ser tratada como minha hóspede, Fraser - ele disse. - Não tinha me dado conta de que as normas de educação agora permitem que um hóspede insulte outro à mesa do próprio anfitrião.

         - Perdoe-me. Deixei que uma velha animosidade me roubasse as boas maneiras.

         Ainslee inclinou a cabeça, aceitando as desculpas nada sinceras de Fraser. Já que pretendia mostrar a Gabel quanto os Fraser eram ardilosos e indignos de confiança, precisava comportar-se melhor do que eles. Talvez fosse a coisa mais difícil que já fizera, pois cada vez que olhava para aquele sujeito vil, podia ouvir os gritos de sua mãe.

         - Está meio desarrumada, Ainslee - Gabel disse ao passar a mão pelos cabelos revoltos dela, num gesto casual. - O vento estava muito forte?

         - Não. - Ainslee ficou a imaginar se ele tinha consciência de como agia de maneira imprópria ao tratá-la com tanta informalidade. Os Fraser não esconderam o olhar horrorizado. - Receio ter de lhe contar algo preocupante: seu belo castelo parece estar desabando. - Ainslee percebeu que Margaret estreitava os olhos, furiosa.

         - Desabando?

         - Sim. Quase tive a cabeça esmagada por uma pedra que caiu.

         Gabel empalideceu e a examinou de cima a baixo.

         - Não se machucou?

         - Não. Um ruído me alertou do perigo. Mas a pedra roçou nas minhas saias.

         - Mandarei o pedreiro inspecionar o castelo pela manhã.

         Ainslee sorriu. Sabia que o pedreiro não encontraria nada errado, e esperava que isso despertasse suspeitas na mente de Gabel. O olhar de ódio que Margaret lhe enviou disse a Ainslee que a mulher temia a mesma coisa.

         Embora apreciasse a companhia de Gabel, Ainslee achou a refeição um sacrifício. Lady Marie e Elaine estavam sentadas do outro lado dos Fraser, de modo que era difícil conversar com elas. Ia se retirar, quando os Fraser se desculparam e deixaram o salão. Ainslee tomou o cálice de cidra para acalmar os nervos.

         - Sei que foi difícil para a senhorita - disse Gabel, observando-a atentamente. - Agradeço por haver deixado de lado sua raiva pelos Fraser.

         - Eu a engoli. E tenho certeza de que, se os Fraser forem seus hóspedes enquanto eu estiver aqui, voltarei a Kengarvey com o estômago tão revirado que nunca mais poderei comer direito. - Ainslee fez uma careta quando Gabel esboçou um sorriso. -- Acha minha situação divertida?

         - Não, absolutamente. Só o jeito como a descreve. Tem o dom da palavra, senhorita.

         - Não estou certa de que isso seja um elogio.

         Antes que Gabel pudesse dizer alguma coisa, um grito de arrebentar os tímpanos calou o burburinho das conversas no salão. Gabel saltou da cadeira e correu para o corredor. Ainslee e alguns homens o seguiram. A visão que os recebeu fez Ainslee abrir caminho entre o pequeno grupo. Margaret agarrava-se ao corrimão de pedra, ao pé das escadas, com um ar de pavor. O pai estava a seu lado, de espada em punho. E, acuando os dois, Feioso rosnava.

         - Este bicho nos atacou! - berrou Fraser. - Eu o quero morto!

         - Não! - gritou Ainslee, correndo para Feioso. Ajoelhou-se e acariciou o cão para acalmá-lo.

         - Ele tentou me matar! - exclamou Margaret, e colocou a mão no peito, recostando-se contra a balaustrada como se fosse desmaiar. - Eu ia subir quando esse bicho avançou em mim.

         - O que fez a ele?

         - Nada. O animal simplesmente me atacou.

         - Feioso nunca atacaria alguém sem motivo, ou sem uma ordem minha.

         Ainslee podia sentir o leve tremor do cachorro, já bem mais calmo. Feioso não estava bravo, e sim com medo. Os Fraser, evidentemente, haviam feito algo a ele. Encurralado e ameaçado, o cão atacara de volta como qualquer animal faria. Ainslee sabia qual era o jogo. Já que a tentativa de Margaret para matá-la falhara, a criatura havia revidado como uma criança mimada, procurando feri-la ao atingir seu bicho de estimação. Ainslee começou a rezar; se Gabel acreditasse na palavra dos Fraser, Feioso seria morto, e ela não poderia impedir.

         Gabel franziu a testa. Era difícil acreditar que o cachorro tivesse atacado seus hóspedes. O animal era bem treinado e não demonstrava nenhum sinal de ferocidade. Andava solto por Bellefleur. Um olhar para os homens reunidos no corredor mostrou que eles também duvidavam das alegações dos Fraser.

         - Talvez você tenha mandado o cão me atacar - Margaret disse para Ainslee, ao ver a expressão de incredulidade de Gabel.

         - Feioso é um cão esperto, mas mesmo ele não pode receber uma ordem a ser cumprida mais tarde. Só quem nunca lidou com cães poderia dizer uma bobagem dessas.

         Uma risada reprimida dos homens mostrou a Àinslee que a sua argumentação era difícil de refutar.

         - Então, o bicho simplesmente não gosta de nós.

         - Ora, isso mostra que é um animal de um enorme discernimento.

         Era evidente que Ainslee e Margaret continuariam a bater boca por um longo tempo se Gabel não interviesse.

         - Basta! - ele exclamou. - Creio que a solução é prender o cachorro enquanto os Fraser forem meus hóspedes. - Estendeu a mão para pegar a coleira no pescoço do animal, e encarou Ainslee quando ela não soltou o cachorro de imediato.

         - Feioso nunca ficou preso - Ainslee murmurou, com um olhar furioso para a vitoriosa Margaret, antes de encarar Gabel com um ar de súplica. - Isso irá perturbá-lo.

         - Melhor que se perturbe do que seja morto.

         - O senhor não o mataria, não é?

         - Eu não, mas alguém o declarou uma ameaça - ele retrucou em voz baixa, para que os outros não ouvissem. - Solte-o, Ainslee. O homem que cuida dos meus cães o tratará bem.

         Depois de abraçar o cachorro, Ainslee o soltou. Reconfortou-a o modo gentil com que um dos criados o puxou para fora. Ao se levantar e alisar as saias, ela encarou Margaret, enojada com a maneira com que a mulher balbuciava sua gratidão a Gabel. Mas, ao perceber a expressão irônica no rosto do normando, Ainslee relaxou. O joguinho de Margaret parecia ter se voltado contra ela mesma. Se Gabel não tinha acreditado que o cão a atacara, devia estar se perguntando por que a jovem Fraser inventara tal mentira.

         - Creio que vou me retirar para o meu quarto - disse Ainslee, e se dirigiu às escadas.

         - Srta. MacNairn - Gabel a chamou, afastando-se de Margaret.

         - Feioso poderia ficar trancado no meu quarto ou no de Ronald. Isso o acalmaria - argumentou Ainslee.

         - Sim... quem sabe - murmurou Gabel.

         Depois de um rápido olhar para Margaret, Ainslee acrescentou:

         - Além disso, sou a única que o alimenta. Irá morrer de fome se eu não lhe der comida.

         - Como quiser.

         Gabel ficou aborrecido ao vê-la desaparecer. Tinha a sensação de que algum jogo perigoso se desenrolava bem debaixo de seu nariz, mas ainda precisava descobrir qual era. Ao acompanhar Margaret até a porta do quarto, pensou em como poderia se livrar de seus hóspedes sem ofendê-los.

         - Tem certeza de que o seu cachorro está em segurança, menina? - Ronald perguntou ao olhar Ainslee andar de um lado para outro pelo quarto.

         - Tanto quanto eu. - Ainslee parou e se encostou no pé da cama. Suspirou.

         - Margaret Fraser provocou Feioso por puro despeito, Ronald.

         - Porque você não morreu atingida por aquela pedra.

         - Exatamente. Eu não ficaria surpresa se ela ainda tentar matar Feioso. Foi por isso que pedi para alimentá-lo. Gabel pareceu aceitar minhas razões e concordar.

         - Talvez ele suspeite de algo.

         - Pode ser. Margaret pode ter errado ao tentar dizer que Feioso é um cão perigoso. Nem Gabel nem os seus homens acreditaram. Feioso é estimado em Bellefleur. Até as cozinheiras o agradam.

         - Então o animal não irá sofrer.

         - Seria bem mais fácil sentar-me e contar a Gabel o que penso e sei sobre aqueles malditos Fraser. - Ainslee meneou a cabeça. - Contei a ele que Fraser e os seus homens mataram minha mãe, mas Gabel não se manifestou.

         - O que poderia dizer? Infelizmente, as pessoas morrem nos conflitos. Como condenar Fraser por isso? Porém Gabel não acreditou que você instigou o cão contra eles, não é?

         - Creio que não. Ele sabe que não se pode mandar um cachorro esperar por uma pessoa em particular para atacá-la, horas depois. Gabel teve de tomar uma atitude para acalmar os hóspedes. O que me consola é que não mandou matar Feioso. Era o que Fraser exigia.

         - Preciso sair logo desta cama para não deixá-la andar no meio dessas víboras sozinha.

         - Não tente se forçar por minha causa. Eu estou bem.

         - Eles tentaram matá-la!

         - Sim, e falharam. Estou atenta e tomarei cuidado. Logo meu pai pagará o nosso resgate e iremos embora deste lugar. Agora chega, já o cansei demais com as minhas reclamações...

         - Sabe que estou sempre pronto para escutá-la.

         - Eu sei. - Ainslee beijou o rosto de Ronald e rumou para a porta.

         - Eu ficarei bem. Não se preocupe comigo.

         - Não? Não posso, quando penso que foram os Fraser que mataram sua pobre mãe.

         - Eles logo vão descobrir que tenho uma boa porção do sangue dos MacNairn misturado com o de minha mãe. Não serei uma vítima tão fácil.

         Gabel parou diante da seteira do quarto de Justice e olhou para o canil perto dos estábulos. Feioso estava no cercado, a uivar baixinho. Os outros animais se mantinham afastados. Feioso era tão maior e mais forte que não tinha havido briga quando fora colocado no canil. Gabel teve de controlar o impulso de descer e soltar o cachorro. Por Ainslee. A tristeza de Feioso iria deixá-la infeliz, e ele gostaria de evitar isso a qualquer custo.

         Justice se aproximou de Gabel e olhou para o cão.

         - Aquele animal foi criado com mãos amorosas. E um lutador, mas nunca atacaria alguém sem motivo.

         - Mas por que os Fraser haveriam de querer fazer mal ao cachorro? Não faz sentido.

         - Não? Os Fraser detestam Ainslee MacNairn. E Ainslee ama aquele cão.

         - Quer dizer, se alguém machucar o cachorro, machuca Ainslee? Isso é coisa de criança. Fraser e sua filha são adultos e membros de estirpe da corte do rei.

         - Só um santo está acima de uma atitude ocasional de despeito, primo, e os Fraser não alcançaram a santidade. Não me surpreendi quando soube do acidente com Feioso. E fico a imaginar por que você está tão aborrecido com isso.

         Gabel suspirou.

         - O que me preocupa é que esse acidente é parte de algo maior, embora eu não possa adivinhar o quê.

         - Então, por que tem tanta certeza?

         - Há uma sensação no ar, e me sinto ameaçado por conspirações e traições, algumas não dirigidas a mim diretamente, mas que me dizem respeito. É como se eu fosse arrastado para uma dança cujos passos não conheço. Sinto que Ainslee está tentando me fazer enxergar alguma coisa, porém não sei o que é.

         - Então, pergunte.

         - E acha que ela dirá simplesmente?

         - Aquela moça não sabe mentir. Pode torcer as palavras e enfeitar a verdade, mas penso que não mentirá. - Justice apontou para o canil. - E, se você se apressar, pode ter a chance de conseguir umas poucas respostas que procura.

         Gabel olhou para o cercado e viu que Ainslee alimentava seu cão com restos de comida. Virou-se e saiu do quarto. Iria tentar arrancar a verdade dela.

         - Aqui, meu pobre pequenino - murmurou Ainslee ao dar um bocado de carne a Feioso através das frestas do cercado.

         - Pobre, talvez. Pequenino, de jeito nenhum! - exclamou Gabel parando atrás dela.

         Ainslee deixou escapar um gritinho de surpresa, pois não o ouvira se aproximar. Lançou um breve olhar de desgosto por sobre o ombro, antes de voltar toda a atenção para o cão. A presença de Gabel a afetava de uma forma tão aguda que o calor do corpo dele parecia invadi-la. Seu interesse pelo normando tornava-se mais forte a cada dia. Ainda o queria, ainda sonhava com ele, e ainda ansiava por aqueles beijos. Era algo quase patético.

         - Feioso sempre foi tratado como um bebê - disse Ainslee, passando os dedos pela fresta para acariciar as orelhas do cachorro. - Ele não compreende por que não pode correr livremente por aí.

         - Se ficar solto agora, poderá ser morto. - Gabel enlaçou os braços pela cintura de Ainslee e descansou o queixo no alto da cabeça dela. - Os Fraser acham seu cão uma ameaça.

         - E não pode impedi-los de fazer o que quiserem? - Ainslee maldisse a rouquidão da voz que a onda de calor daquele contato provocava.

         - Impedi-los? Não. Poderia negar que o cão fosse uma ameaça, mas, na verdade, muita gente iria imaginar por que eu me preocuparia com um cachorro. O rei veria isso como uma bobagem e uma perda de tempo.

         - E porque o cão é meu, muitos julgariam que os Fraser estavam certos em matá-lo - Ainslee murmurou, sabendo que o nome MacNairn era o bastante para condená-la ou a qualquer coisa que possuísse.

         - Receio que sim. - Gabel deu um beijo atrás da orelha de Ainslee, e sorriu quando ela estremeceu em seus braços. - Mas por que eles acusariam falsamente o animal?

         - Por que essa pergunta agora? O que isso importa?

         - Algo está se passando em Bellefleur... entre o senhor e os Fraser.

         Ainslee virou-se para encará-lo. Esperava que isso o fizesse parar com aqueles beijos e eliminasse o calor crescente provocado pelo corpo de Gabel tão próximo do seu. Mas o normando colocou as mãos de cada lado, nas tábuas do cercado, prendendo-a entre ele e o canil. Ainslee estremeceu quando Gabel beijou-a na face, seus corpos a se roçarem. Ela fechou os punhos com força para lutar contra o impulso de abraçá-lo. Todos os anseios e desejos a invadiam com uma intensidade à qual era impossível resistir. A clareza de raciocínio de que precisava desvanecia rapidamente.

         - Existem complôs pelo ar - declarou Gabel. - Parece que rodopiam ao meu redor, e até posso sentir a brisa. E há essa animosidade entre a senhorita e os Fraser.

         Um breve lampejo de lucidez atravessou a névoa de desejo que nublava a mente de Ainslee, que se afastou.

         - Animosidade? Que palavra gentil. Eles mataram minha mãe, não se esqueça disso! A minha não é animosidade, mi-lorde, é ódio puro e simples. É provável que o senhor seja o primeiro numa centena de anos a ver Fraser e MacNairn na mesma fortaleza. Em qualquer outro lugar, um de nós teria cortado o pescoço do outro a essas alturas.

         - Tem certeza de que tal assassinato não está sendo tramado agora mesmo?

         - Eu não estou tramando matar ninguém.

         Uma expressão estranha surgiu nos olhos de Gabel, que pousou beijos suaves no pescoço de Ainslee. Ela sabia que deveria empurrá-lo, mas não conseguiu. Inclinou a cabeça para trás num mudo assentimento.

         Ainslee sabia que Gabel procurava apenas saciar seu desejo. A presença de Margaret era a prova disso. Ele queria apenas uma amante por algum tempo. O bom senso mandava que Ainslee o empurrasse, deixasse clara sua indignação e fosse embora. Mas era difícil de resistir àquela paixão. A ameaça de morte pelas mãos dos Fraser ainda pairava sobre sua cabeça. E tinha medo da idéia de morrer sem nunca ter amado, mesmo que esse amor fosse fugidio, nascido da luxúria.

         Gabel puxou-a com força contra si. Beijou-a, a língua a insinuar-se entre os lábios de Ainslee, depois a mergulhar dentro de sua boca. Ela enlaçou-o pelo pescoço e deixou que a paixão governasse suas ações. Haveria um preço a ser cobrado pela insensatez, porém Ainslee decidiu que estava disposta a pagar.

         Gabel ergueu-a nos braços e comprimiu-a ainda com mais força contra o próprio corpo. Quando ela enrodilhou as pernas em torno da cintura de Gabel, este gemeu. Segurando-a agarrada nele, e a lhe mordicar a orelha, Gabel seguiu para os estábulos. Parou num canto cheio de feno, abrigado do frio e de olhos curiosos. Sufocar qualquer protesto com beijos e palavras doces, ele tirou o manto e jogou-o sobre o feno. Ajoelhou-se, colocou-a gentilmente em cima da cama improvisada e depois acomodou-se entre as pernas de Ainslee.

         Ela arquejou quando o corpo de Gabel apertou-se contra o seu. Podia sentir a prova rija do desejo a comprimir-se com firmeza em seu ventre. Saber que o excitava tanto só fez aumentar sua própria volúpia. E enquanto ele a enchia de beijos no pescoço e suavemente soltava as fitas de seu corpete, Ainslee curvou as pernas em torno dos quadris fortes e puxou-o mais ainda para junto de si. Ela gemeu, sentindo um calor espalhar-se daquele ponto de contato e invadir-lhe todo o corpo.

         Não ofereceu resistência quando Gabel lhe arrancou a túnica. Nesse momento, Ainslee se deu conta de que logo estaria só de ceroulas. Lutou para recuperar um pouco de lucidez e cruzou os braços sobre os seios. Gabel ignorou o gesto de protesto. Olhou para a peça íntima com ar de surpresa e diversão.

         - Você usa ceroulas - resmungou.

         - Que homem inteligente você é!

         Ele riu e beijou-a enquanto tirava a camisa.

         - Nunca conheci uma mulher que usasse ceroulas. - Enrolou a camisa e colocou-a sob a cabeça de Ainslee.

         - Ronald insistiu que eu as usasse; era uma coisa a mais para um homem hesitar e me dar uma chance de me afastar.

         - E vai tentar se afastar de mim?

         - Eu deveria - Ainslee murmurou ao ceder à tentação e correr as mãos pelo peito largo de Gabel, saboreando o modo com que ele estremecia ao toque. - Deveria atacá-lo, empurrá-lo e fugir para o meu quarto, com a honra e a virgindade ainda intactas.

         - Não tenho nenhum plano para lhe roubar a honra, minha doce Ainslee.

         - Não? Só que pretende se deitar comigo e me usar para saciar seus desejos...

         - Não tenho intenção de usá-la, Ainslee MacNairn. Quero saboreá-la, agradá-la, satisfazê-la. Pode negar o fogo que arde entre nós?

         Ainslee estremeceu quando Gabel debruçou-se sobre ela. O modo com que a fitava enquanto deslizava as mãos por suas ceroulas tornava difícil respirar. Não havia como ignorar ou negar a paixão que toldava aqueles olhos. Gabel compartilhava seu desejo e sua necessidade, mesmo que não nutrisse os sentimentos mais profundos que Ainslee sentia por ele. Por um breve instante, ela desejou ter força de vontade para resistir. Mas queria muito, desejava desesperadamente provar a paixão que Gabel lhe oferecia. E arquejou de prazer, agarrando-o pelos cabelos fartos quando ele pousou um beijo na ponta de seu seio.

         - Diga-me, Ainslee. Nega a paixão que nos consome?

         - Não - ela murmurou, e estremeceu quando Gabel lhe tirou as ceroulas.

         - Mas eu deveria expulsá-la.

         - Eu também, porém receio não ter forças para isso - ele resmungou, arrancando o resto das roupas enquanto devorava com os olhos cada centímetro daquele corpo esguio.

         - É bom ouvir que não sou a única alma fraca aqui. Gabel debruçou-se sobre ela outra vez, e Ainslee sentiu uma pontada de medo toldar seu desejo. Ele era grande, e ela se deu conta de quanto era pequena e delgada. A paixão de ambos se equiparava, mas Ainslee não tinha mais certeza de que seus corpos combinariam. Quando suas carnes se tocaram, contudo, a onda de prazer que a invadiu foi tão violenta que expulsou todas as suas preocupações. Gabel era maravilhoso e a fazia sentir-se maravilhosamente bem. E, de repente, nada mais importava.

         - Vai me rejeitar, minha linda Ainslee? - ele murmurou a boca a roçar os lábios dela.

         - Não, seu normando implacável e safado, eu não posso, e acho que você sabe muito bem disso - ela respondeu, num tom de voz macio e acolhedor.

         - Não, mas estava rezando para não ser a única a ser dilacerada por este anseio dolorido.

         Ainslee sabia exatamente ao que Gabel se referia. A excitação e a necessidade de satisfazê-la eram tão fortes que ela simplesmente não se importava com as conseqüências. Recebeu o beijo ávido com uma fome que se igualava à de Gabel. E conforme os beijos desciam por seu colo, Ainslee correu as mãos pelas costas fortes do normando.

         Um grito arquejante lhe escapou quando Gabel a beijou nos seios, a língua a acariciar os mamilos intumescidos. Ela arqueou-se, enterrando os dedos nos cabelos dele, segurando-o no lugar. Um tremor a percorreu por inteiro. Tomado de volúpia, Gabel deslizou as mãos pelo corpo delicado, a descobrir cada ponto sensível. E a incendiou ainda mais com as carícias, os beijos e as palavras sensuais que murmurava contra a pele arrepiada.

         Quando ele parou de beijá-la, Ainslee o fitou. E antes que pudesse perguntar por que interrompera os beijos, sentiu-o pressionar a carne rija naquele ponto de seu corpo que latejava de antecipação. Viu-lhe as feições tensas conforme Gabel penetrava devagar no ninho úmido, a respiração presa na garganta. Uma dor aguda a fez arquejar, e Ainslee agarrou-o pelos ombros. Mesmo através do desejo que a dominava, a dor lhe clareou a mente. E ela se tornou consciente dos corpos entrelaçados, da sensação de se unir a Gabel, e até mesmo do ritmo acelerado de suas respirações. Com um profundo suspiro de prazer, prendeu-lhe os quadris com as pernas e puxou-o para mais perto.

         Um gemido sacudiu Gabel e, logo, ambos pareciam se embalar na mesma cadência ancestral, e cada investida os aproximava mais do êxtase. O deleite que percorria Ainslee começou a se concentrar em contrações tórridas em seu ventre. E cresceu com uma força que era quase dolorosa. Então, explodiu, inundando-a com tamanha intensidade que ela gritou o nome de Gabel. Uma pequena parte de Ainslee tinha consciência do normando agarrando-a com força pelos quadris e mergulhando fundo, em meio a uma série de tremores e gemidos. Às cegas, abraçou-o quando Gabel desabou sobre ela.

         Custou um longo tempo até que Ainslee recobrasse a capacidade de raciocinar com clareza. Imaginava o que dizer ou fazer, mas Gabel se afastou de seus braços e saiu. Um frio a percorreu, e ela puxou sobre o corpo nu o manto em que se deitara. Ele voltou com um pano úmido, e Ainslee enrubesceu, porém deixou que a limpasse das manchas da inocência perdida. E não teve coragem de encará-lo quando Gabel se deitou a seu lado e a puxou para os seus braços. O calor daquele corpo másculo e a maneira com que ele acariciou seus cabelos suavizaram o constrangimento, mas Ainslee ainda continuava insegura do que fazer a seguir.

         - Está arrependida? - ele perguntou inquieto com aquele silêncio prolongado.

         - Oh, não - ela murmurou e, finalmente, teve coragem de fitá-lo. Tocou-lhe a face de leve. - Eu deveria me lamentar e choramingar pela perda da minha honra, porém, para falar a verdade, foi muito divertido.

         - Divertido? - Gabel soltou uma gargalhada e a beijou, deliciado com uma resposta tão inesperada. - Nunca ouvi uma mulher chamar isso de divertido.

         - Ah, é? E as suas habilidades para "isso" são julgadas com freqüência, não é?

         - Não com tanta freqüência como você pode achar. Mas não pensou que um homem de vinte e seis anos fosse virgem, pensou?

         Ainslee sorriu. Gabel era franco. Não havia futuro para ambos e, portanto, magoar-se por causa de amantes passadas ou futuras era tolice. Seria melhor ela colecionar uma porção de lembranças para levar de volta à sua vida insípida em Kengarvey.

         - Não, sei como são os homens, mas a vaidade me fez desejar por um instante ser algo mais que apenas uma entre muitas.

         - Oh, certamente é, Ainslee MacNairn. - Gabel a beijou com ternura.

         - Não agüento mais essa incerteza! - ela explodiu. - O que devo fazer agora?

         Ele sorriu, tomou-lhe a mão e beijou a palma.

         - Podemos ficar aqui ou nos esgueirarmos para o meu quarto ou mesmo para o seu. Seria mais confortável se voltássemos para o castelo. - Ao lhe estender as roupas, Gabel emendou: - Podemos sair daqui sem sermos vistos, portanto não precisa recear que logo todos vão falar de nós.

         - Nem mesmo o meu guarda? - Ainslee pensou que o guarda poderia ter ficado espionando a ambos durante todo tempo, do lado de fora do estábulo. E sentiu-se envergonhada.

         - Mandei o rapaz embora quando fui procurá-la no canil. - Gabel a fitou por um momento enquanto se vestiam. - Ainda estou intrigado para saber como conseguiu sair sozinha antes.

         - Sozinha? Acha que saí escondida?

         - Se o guarda estivesse com você, teria me falado do problema com aquela pedra que caiu. Vincent não sabia nada a respeito.

         - Ah, eu o enganei, foi isso.

         - Não, não tente poupar o idiota da merecida punição. Vincent é um tolo, mas é honesto. Confessou que foi distraído. Agora é Paul que a vigia junto com Michael.

         - E o que vai acontecer a Vincent?

         - Ficará limpando os estábulos por uma quinzena. Um golpe duro para o orgulho de um cavaleiro. Quando voltar ao seu posto como um dos meus guardas, será mais diligente.

         Ainslee deixou que Gabel a ajudasse a vestir a capa e conduzi-la para fora do estábulo. Depois de chegarem ao pé das escadas, ele a acompanhou até o quarto. Ainslee percebeu um ligeiro ruído, como o estalar de uma ferragem de porta, mas não viu ninguém.

         Um arrepio percorreu-lhe a espinha, e ela aconchegou-se a Gabel. Ao entrarem no quarto, ele sorriu e fechou o ferrolho. Ainslee sentou-se na cama e, de braços abertos, convidou-o em silêncio a se juntar a ela. E, para sua alegria, Gabel correu e derrubou-a sobre os acolchoados. Aquele caso de amor estava destinado a ser breve, porém Ainslee pretendia que fosse pleno e inesquecível.

         - Por que está nervosa, minha filha? - resmungou Fraser quando Margaret fechou a porta do quarto e começou a andar de um lado para outro, irritada, e depois parou para chutar uma cadeira.

         - Aquela vagabunda dos MacNairn está levando Gabel para a cama! - ela esbravejou.

         - Tem certeza?

         - Acabaram de se esgueirar pelo corredor, agarrados. Nem retiraram o feno das roupas. É claro que estavam fornicando no estábulo como animais.

         - Isso não quer dizer que ele não tomará você como esposa. Ela é uma MacNairn. Não tem dote nem terras nem dinheiro nem poder. Uma péssima escolha para uma noiva.

         - Conheço homens que fizeram escolhas péssimas antes. E é um golpe tremendo para o meu orgulho que aquele bicho dos MacNairn se deite com o homem com quem pretendo me casar. Ela tem de pagar por esse insulto.

         - Seu plano para se livrar da vagabunda falhou. Margaret encarou o pai com os olhos faiscando.

         - Era um bom plano, mas estou rodeada de idiotas. Preciso agir por mim mesma. E pode não ser prudente acabar com aquela mulher aqui.

         - Não pode esperar até que ela volte a Kengarvey.

         - Não, não posso. No entanto não seria surpresa para ninguém se a cadela desaparecesse de Bellefleur. Afinal, prisioneiros fogem o tempo todo...

         Ainslee espreguiçou-se, estendeu a mão e suspirou quando encontrou o outro lado da cama vazio. Gabel havia se levantado silenciosamente antes do amanhecer, tal como dissera que faria. Ela sabia que era melhor assim. Tal discrição a pouparia de constrangimentos.

         Não obstante, seria bem melhor acordar de manhã envolvida naqueles braços quentes, sem necessidade de se preocupar com o que as pessoas vissem ou pensassem. Agir às escondidas roubava um pouco da beleza daquele romance.

         Cruzou os braços sob a cabeça e fitou o teto. Seu corpo estava dolorido do primeiro encontro de amor, mas era um desconforto plenamente suportável diante das doces recordações. Tudo que lhe tinham ensinado a avisava de que o que fizera e o que pretendia continuar fazendo era errado, porém suas emoções proclamavam o contrário. Ronald nunca a condenaria por buscar um pouco de felicidade, e a dele era a única opinião que lhe importava.

         Ao se encolher de lado, Ainslee decidiu que era muito cedo para sair da cama. O sol nem se levantara ainda. E ela estava muito cansada. Puxou as cobertas em torno de si. Então, teve a impressão de ouvir passos. Virou-se para olhar, mas uma dor cegante explodiu em sua cabeça.

         - Cuidado, idiotas! - Margaret murmurou com rispidez ao correr para Ainslee, agora inconsciente. - Não queremos deixar manchas de sangue. - Ao constatar que Ainslee não sangrava, fez um sinal aos dois homens corpulentos para que a enrolassem numa manta.

         - Tirem-na daqui e tomem cuidado para não serem vistos. Eu os seguirei assim que tiver recolhido as roupas dela.

         - Por que isso? - indagou o homem marcado de varíola que jogou Ainslee sobre o ombro.

         - Porque, meu primo idiota, é para ela ter fugido. Quem iria acreditar que tivesse escapado no meio da noite, descalça e vestida apenas com uma fina camisola? Vá, Ian, e não deixe que ninguém perceba o que está fazendo.

         Margaret resmungou ao enfiar as roupas de Ainslee num alforje de sela. Queria ter aliados mais espertos do que o primo e o amigo. Mas eles eram os únicos que poderiam partir de Bellefleur sem despertar curiosidade, pois haviam dito que iriam se reunir ao filho de lorde Fraser. A forma enrolada na manta de Ainslee seria facilmente tomada como parte da bagagem.

         O nascer do sol já coloria o céu quando Margaret viu, pela seteira do quarto, o primo e o companheiro saírem pelos portões. Esfregou as mãos para aquecê-las, já prevendo o alvoroço quando descobrissem que Ainslee MacNairn havia fugido.

         Um gemido escapou de Ainslee ao sentir o corpo bater em algo duro. Com um resmungo, sentou-se, dominada por uma intensa tontura. Como havia saído da cama quente e macia e ido parar numa manta amarrotada e no chão duro e gelado? Dois pares de botas cheias de lama entraram em sua linha de visão; ao esfregar as têmporas numa tentativa inútil de fazer parar a dor latejante da cabeça, ela ergueu os olhos para os dois homens parados à sua frente. Reconheceu um deles, Ian Fraser, e sentiu um arrepio de alarme. Fora tirada de Bellefleur antes do alvorecer e jogada a quilômetros dali. Estava prestes a ser morta.

         - Para onde me trouxeram? - Ainslee indagou, escondendo o medo, a observar os dois atentamente.

         - A um lugar desolado ao sul de Bellefleur - respondeu Ian. - Cerca de cinco horas de cavalgada. Minha prima se tomou de um profundo desgosto por você, Ainslee MacNairn. De Amalville é um estrangeiro aqui e não conhece bem Margaret, mas aposto que você sabe o que acontece com aqueles de quem ela desgosta.

         - Sim, ela manda os brutamontes dos primos idiotas mancharem as mãos de sangue.

         - Posso arrancar essa sua língua afiada, mulher. Tenho sua vida em minhas mãos - ele retrucou, vermelho de raiva.

         - Não, você tem meios de causar minha morte, só isso. Não tem coragem de voltar até aquela sua prima nascida no inferno e lhe dizer que me deixou viva. Portanto, por que você e esse bruto mudo e sem miolos não fazem o que receberam ordens para fazer e depois se escondem no buraco de onde saíram?

         Para sua surpresa, não foi Ian Fraser quem avançou contra ela, mas o companheiro. A provocação instigara um ataque cego, como Ainslee queria. No instante em que o homem a agarrou pelo pescoço, ela tateou em busca do punhal que ele levava no cinto, enquanto lutava para respirar e contra o impulso de escapar das mãos que a sufocavam. Quando seus dedos se fecharam em torno do cabo da arma, Ainslee quase gritou de alívio. Usando o corpo do homem para ocultar sua ação de Ian Fraser, esfaqueou o atacante entre as costelas, enterrando a lâmina bem afiada do punhal até o coração. Depois, o empurrou de lado, tirou-lhe a espada e investiu contra um aturdido Ian, pronta para o combate.

         Ian levou a mão ao punho da espada, porém não a sacou. Olhou para o amigo morto e depois para o rosto crispado de Ainslee. Então, praguejou e correu em direção aos cavalos. Logo, sumia da vista.

         Ainslee desabou no chão, tomada de alívio e ainda incrédula por haver se livrado de dois homens fortes. Felizmente, ambos eram estúpidos e covardes. Mas ainda não estava segura. Encontrava-se no meio de uma região fria e rude, só de camisola e sem alimentos. Ian Fraser levara os cavalos e os mantimentos.

         Fez uma careta ao olhar para o homem que havia matado. Sentiu náuseas pelo que fora forçada a fazer. Mas tinha coisas mais importantes com que se preocupar, tal como sobreviver.

         Começou a tirar do morto tudo que poderia usar. Cortou tiras da grossa capa e da manta pesada e as enrolou nos pés para protegê-los do frio. Tirou-lhe as calças e cortou-as para que lhe servissem, usando tiras a fim de amarrá-las nas pernas. Pegou o cinto da espada para fechar a capa em torno de si, e o broche que Fraser usara para fixar a manta em volta dos ombros dela. O morto ainda tinha o odre de vinho pendurado no braço, e Ainslee o pegou também. Então, inspecionou os arredores.

         Não tinha idéia de onde se encontrava. Ian Fraser dissera que era ao sul de Bellefleur, o que a colocaria próxima demais, para seu gosto, das terras sem lei entre a Inglaterra e a Escócia. Precisava decidir o que fazer com a cabeça. Mesmo num trajeto direto, Kengarvey ficava a mais que o dobro da distância dali do que Bellefleur. Ela não tinha roupas adequadas, um cavalo ou armas, e nenhuma comida, só um odre de vinho pela metade. A viagem até Kengarvey levaria dias. Ainslee olhou para o céu repleto de nuvens da cor de chumbo. Era quase meio-dia. Chovesse ou nevasse, não estava vestida para agüentar o clima. Ronald continuava preso e, se ela conseguisse voltar a Kengarvey, seu pai nunca pagaria um resgate por ele.

         Endireitou os ombros. Rezou para que Ian Fraser tivesse dito a verdade. Se mantivesse um passo firme, não se perdesse, não encontrasse bandido ou animais selvagens, e o tempo não piorasse, poderia chegar a Bellefleur antes da meia-noite. Sorriu ao pensar na reação de Margaret e Gabel. Só por isso a jornada já valeria a pena.

         - Ainslee não está em lugar algum - Michael anunciou ao entrar no quarto de Justice, onde Gabel tomava a refeição matinal com o primo.

         - O que quer dizer com isso? - indagou Gabel, levantando-se e começando a andar pelo quarto. - Aonde pode ter ido? Estava dormindo quando saí, e isso foi pouco antes de você assumir seu posto.

         Ele parou de andar ao perceber o que acabara de dizer, e virou-se lentamente para encarar os primos. Era óbvio que haviam compreendido onde Gabel passara a noite.

         - Eu estava tentando manter o assunto em segredo - murmurou.

         - Um segredo... em Bellefleur? - Michael riu, mas logo ficou sério. - Talvez seja por isso que Ainslee desapareceu.

         - Ela também queria! - exclamou Gabel, ofendido.

         - Posso apostar que era virgem também. E o que uma virgem faz de boa vontade de noite pode fazê-la se arrepender amargamente pela manhã.

         - Acha que Ainslee fugiu de volta para Kengarvey?

         - Onde mais poderia estar? Posso assegurar que nenhum canto de Bellefleur ficou esquecido. Ela se foi. Várias roupas sumiram também.

         - E difícil acreditar que Ainslee fugisse sem Ronald ou aquele cachorro! - exclamou Justice.

         - Ronald, é claro! - gritou Gabel e correu para a porta. - Ele pode saber de alguma coisa.

         Passou-se mais de uma hora antes que Gabel acreditasse em Ronald e nas demonstrações de preocupação do homem por Ainslee. A única explicação para aquele desaparecimento, dolorosa de aceitar, era que Ainslee o havia usado, dormira com ele para fazê-lo baixar a guarda a fim de escapar mais facilmente. A dor que Gabel sentiu com isso começou a se transformar em fúria ao pensar que fizera papel de bobo.

         Quando saía pelos portões de Bellefleur com um grupo que havia reunido às pressas, Justice aproximou-se num trote a cavalo, e Gabel o encarou aborrecido.

         - Você não deveria estar aqui.

         - Estou bem - Justice retrucou.

         - O tempo pode virar, o que será difícil para você.

         - Se piorar, eu voltarei.

         - Por que está tão resolvido a sair nessa busca?

         - Ainslee é uma criatura delicada, sozinha numa região perigosa, está sem cavalo e nenhuma de suas armas. Não levou nem o cachorro, o que, no meu entender, é muito suspeito. Estou com uma estranha sensação sobre tudo isso. Na verdade, virgens podem agir estranhamente pela manhã, depois de se entregarem sem refletir. Mas Ainslee MacNairn não age como qualquer dama que eu conheça. Por que agiria assim agora? Por que não levou pelo menos o cachorro? Teria sido fácil libertar o animal. E o que me diz de Ronald? Ela jamais o deixaria para trás. Não, primo, acho tudo isso muito confuso e preocupante.

         Gabel concordou. Sua raiva o impedira de pensar direito.

         As suspeitas ainda persistiam, pois não ousava confiar plenamente em Ainslee, porém agora queria pelo menos ouvi-la, se conseguissem levá-la de volta a Bellefleur.

         Ainslee tropeçou numa elevação do terreno e praguejou ao arranhar as pernas no solo pedregoso. Estava cansada, com frio, e sua cabeça doía horrivelmente. Era quase o pôr-do-sol e, se tinha avaliado direito a distância e a direção, significava que mal se encontrava na metade do caminho para Bellefleur. Teve vontade de sentar no chão e chorar.

         Havia uma umidade no ar gelado que indicava que a tempestade que ameaçara desabar o dia inteiro estava prestes a cair. Talvez uma nevasca, do tipo que poderia enterrar uma pessoa ou o gado até o degelo da primavera.

         - Basta - ela se recriminou. - Você já tem problemas suficientes para lidar sem ficar se amedrontando com a morte, sua tola.

         Olhou para as roupas, depois se sentou no chão e cortou algumas tiras da manta que usava como capa. Suas mãos estavam enregeladas até os ossos e precisava aquecê-las. As tiras poderiam evitar que gangrenassem.

         - Vou matar Margaret Fraser quando eu voltar - jurou, numa voz baixa e dura ao começar a caminhar de novo. - Vou matá-la bem devagar.

         A essas alturas, Gabel já devia saber que ela não se encontrava em Bellefleur, e provavelmente iria pensar que fugira de seus braços, ou, pior, que havia usado seu desejo para conseguir escapar. Ainslee tinha a impressão de que ele não depositava uma grande confiança nas mulheres em geral. Era possível que estivesse procurando por ela e pensando coisas desagradáveis a seu respeito. E isso, com certeza, agradaria a Margaret; e a idéia de que aquela víbora pudesse se beneficiar do crime deu a Ainslee um pouco de energia. Quando voltasse a Bellefleur, exporia Margaret Fraser como a cobra mortal e traiçoeira que era.

         Um floco de neve umedeceu o rosto de Gabel, que resmungou. Estava escurecendo e a neve os impediria de continuar. Era hora de voltar para Bellefleur, e não apenas pelo bem de Justice. Gabel estava com raiva do tempo, com raiva do escuro e, mais do que tudo, com raiva de ter fracassado em recapturar Ainslee, para pelo menos ter umas poucas respostas para todas as perguntas que povoavam sua mente.

         - Precisamos voltar - anunciou aos homens, e ignorou o alívio que eles não procuraram esconder. Forçou um sorriso para Justice, a seu lado. - Você não parece mal.

         - Não, embora eu fique contente em sair deste frio e da umidade - disse seu primo.

         - Deveríamos ter visto algum sinal de Ainslee.

         - Não há nenhum rastro. Nada que revele que ela saiu de Bellefleur, exceto que não se encontra em lugar algum lá. Deveria haver uma pegada, um galho quebrado, alguma coisa. É como se Ainslee tivesse saído flutuando de Bellefleur. Mas, por mais esperta que ela seja, não creio que saiba voar.

         - Se Ainslee não está em Bellefleur, então só pode ter seguido para Kengarvey.

         - Nenhum dos guardas a viu sair. Nenhum dos lavradores notou algum sinal de que alguém tenha passado por eles - murmurou Justice.

         Gabel cocou o queixo, pensativo.

         - Acha que ela pode ter ido na direção errada?

         - Enquanto você olhava para o chão e xingava todas as mulheres, tomei a liberdade de enviar dois dos nossos homens para olhar ao sul, a leste e oeste.

         - E não encontraram sinal dela?

         - Não.

         Gabel percebeu que, apesar da sua raiva, estava preocupado com Ainslee.

         - Você tem razão, isso tudo é muito estranho. Quando eu soube do desaparecimento dela, imediatamente julguei que havia fugido. Talvez tenha sido uma conclusão apressada.

         Acha que pode ter lhe acontecido algum mal?

         - Quem pode dizer? Devemos levar em consideração o fato de que os Fraser não fazem segredo do ódio que sentem pelos MacNairn - Justice o lembrou. - Podem ter decidido que valia a pena atingir os MacNairn mesmo abusando da sua hospitalidade.

         - Não pensei nisso - Gabel murmurou e maldisse a própria estupidez. - Preciso descobrir se eles têm algo a ver com isso. Não posso ofendê-los ou acusá-los sem ter uma prova concreta que não possa ser negada ou ignorada.

         A possibilidade de Ainslee estar ferida ou mesmo morta provocou um calafrio pela espinha de Gabel. Se tivesse acontecido algo com ela pelas mãos dos Fraser, ele teria de arcar com parte da culpa, já que nada fizera para protegê-la.

         Só mais tarde, naquela noite, Gabel conseguiu uma oportunidade para questionar sutilmente os hóspedes.

         - Ouvi dizer que teve pouco sucesso em encontrar aquela fulaninha dos MacNairn - Margaret comentou, enquanto um pajem enchia sua caneca com cerveja.

         - Não, nenhum - disse Gabel. - É como se ela tivesse saído voando. Não deixou nenhum sinal da sua passagem, nem uma pegada nem um cheiro para os cachorros.

         - Você mandou os cães a rastrearem?

         - Só para tentar encontrar o começo da trilha. Mesmo o próprio cachorro de Ainslee não conseguiu rastreá-la.

         Gabel admitiu para si mesmo que a incapacidade de Feiosó de farejar a dona o alarmara. Observou Margaret atentamente enquanto falava, mas não viu nenhum lampejo de culpa ou de medo. Nem qualquer sinal de preocupação ou, o que era mais curioso, de surpresa. Saber que Ainslee fugira da bem guardada Bellefleur sem deixar traço e que nem os cães tinham encontrado seu rastro não fizera Margaret nem piscar os olhos de espanto. Era como ela se soubesse que não haveria rastro.

         - Bem, os MacNairn sempre foram um bocado sorrateiros, com uma habilidade incrível de lograr os outros.

         - Só achamos o rastro que seu primo e o amigo deixaram - informou Gabel. - Estranho, pois eles seguiram para o sul. Pensei que fossem se reunir a seu irmão na corte do rei, ao norte daqui.

         Gabel não viu reação na expressão de Margaret, a não ser uma rápida troca de olhares com o pai.

         - Acho que foram visitar as amantes. Aquela que meu primo Ian mais aprecia mora a poucos quilômetros ao sul daqui.

         - declarou Margaret, sorrindo. - Meu irmão irá cobrá-los pela indisciplina.

         Gabel sentiu as suspeitas recrudescerem. Mesmo se não houvesse o dedo dos Fraser no desaparecimento de Ainslee, eles sabiam onde ela se encontrava. Estava cada vez mais certo disso.

         - Mas achei um pouco intrigante que Ainslee pudesse fugir sem falar nada com o homem que a criou, Ronald, e sem levar o cachorro junto.

         - Bem, os criados não são confiáveis em manter segredo, e por que ela iria se importar com aquele cão? Pode arranjar outro.

         Margaret se esforçava para não fitar Gabel, ocultando a própria expressão. Se tinha algo a ver com o desaparecimento de Ainslee, era provável que começasse a pensar que poderia ter cometido alguns erros. Mas, no momento, Gabel só tinha intuições, suspeitas, possibilidades. Praguejou no íntimo. Precisava mais do que isso. A vida de Ainslee poderia depender de uma palavra dita sem querer.

         - Estou muito preocupado com o assunto - disse, e tomou um gole de vinho.

         - Quando aquele ladrão MacNairn responder ao seu pedido de resgate, será para lhe dizer que não precisa pagar nada, pois a filha está a salvo em casa.

         - Espero que tenha razão, lady Margaret. Não desejo que nenhum mal aconteça a ela. Se eu descobrir que Ainslee foi ferida propositalmente, tomarei providências para que o crime seja punido. - Gabel sorriu ao perceber os breves olhares que

         Margaret e o pai trocaram, a indicar que haviam compreendido a ameaça.

         - Milorde! - gritou um pajem ao se aproximar correndo da mesa. - Acho que é melhor vir comigo. Sir Justice diz que há algo além das muralhas que o senhor precisa ver.

         Um palavrão brotou dos lábios enregelados de Ainslee quando ela tropeçou e suas mãos, duras de frio, se enterraram na neve. Por força do hábito, olhou ao redor para ter certeza de que ninguém a ouvira e, então, xingou de novo. Era a única infeliz ao relento no frio e na neve. Não importava quanto ela praguejasse ninguém iria repreendê-la.

         Levantou-se e tentou limpar as mãos e as roupas. Era um gesto inútil e sem sentido, pois estava ensopada até os ossos. Ao prosseguir na difícil caminhada, ficou a imaginar o que teria feito, em sua vida tão curta, que merecesse tal castigo. Parecia tremendamente injusto que alguém trapaceiro e assassino como Margaret estivesse quente e confortável dentro de Bellefleur, enquanto ela corria o risco de morrer congelada. Mesmo que não sucumbisse na neve, começava a recear que voltaria a Bellefleur apenas para cair doente e morrer.

         Estava cansada e ansiava por se deitar, mas ceder ao impulso de dormir era dar as boas-vindas à morte. O que a mantinha se arrastando agora era não apenas a desesperada necessidade de fazer Margaret pagar por seu crime, mas também o anseio cada vez mais intenso de ver Gabel e Ronald mais uma vez. Se fosse deixar este mundo, não queria fazer isso no meio do nada, sem chance de dizer adeus ao seu amigo e ao seu amado.

         Havia coisas que queria dizer a ambos, coisas que nunca diria se perdesse a vida sob o branco manto de neve.

         Assim que ela julgou que nem mesmo lhe restara teimosia suficiente para continuar andando, uma forma escura destacou-se à sua frente. Com medo de acreditar nos próprios olhos, Ainslee prosseguiu aos tropeções, até que a forma tornou-se mais distinta. Quando a reconheceu como sendo Bellefleur, quis chorar de alívio, mas mesmo que conseguisse verter algumas lágrimas, tinha certeza de que elas congelaria em suas faces.

         - Agora, tudo que posso fazer é rezar para que algum guarda nas muralhas não me tome por um inimigo e me abata - ela resmungou, lutando para andar mais depressa pela neve cada vez mais funda

         Justice olhou para a figura que tropeçava na neve e meneou a cabeça. Quando Gabel correu para o seu lado no alto das muralhas de Bellefleur, Justice não disse nada, simplesmente apontou para a miúda silhueta que se movia aos trambolhões.

         - É Ainslee? - murmurou Gabel, chocado, a aflição a fazê-lo duvidar.

         - Parece que sim - respondeu seu primo. - Meu primeiro pensamento foi correr e ir buscá-la, mas refleti melhor.

         - Por quê? Ela deve estar quase morrendo congelada. - Gabel olhou feio para Justice quando este o agarrou pelo braço e o fez descer das muralhas.

         - Pode ser, mas ela é uma MacNairn, um clã que você declarou fora-da-lei. Não creio que Ainslee fizesse isso, nas não se pode ignorar a possibilidade de que esteja sendo usada como uma armadilha, uma isca para nos fazer abrir os portões.

         - Ela não teve tempo de chegar a Kengarvey, armar esse complô ardiloso com os parentes e voltar - argumentou Gabel.

         - Eu também acho. Mesmo assim, essa é uma coisa que dever ser decidida por você.

         - Está bem. Só abriremos os portões o suficiente para permitir que uma moça magra entre. E os homens devem estar preparados para responder rapidamente a qualquer sinal de ataque. - Enquanto Gabel descia correndo as escadas, ouviu Justice repassar suas ordens.

         Gabel entreabriu o portão e espiou para fora. Não conseguiu ver ninguém ao lado de Ainslee. A vontade dele era correr e ajudá-la, mas se controlou. Não podia agir movido pela emoção, pois tinha gente demais para proteger.

         Ainslee caiu à beira dos portões e Gabel agarrou-a pelo braço e a puxou para dentro, enquanto dois dos guardas se apressavam a fechá-los e passar as barras outra vez. Ele a levou até o halo de luz de uma tocha presa à muralha e examinou-a, enquanto Justice corria até onde eles estavam. Ainslee parecia perigosamente gelada, e seus trajes eram estranhos. Gabel a ergueu nos braços.

         - Perdeu-se, Srta. MacNairn? - ele resmungou, a voz dura ao lutar para ocultar a preocupação.

         - Kengarvey ainda está a muitos quilômetros ao norte.

         - Caminhei tanto quanto pude hoje, milorde. Creio que eu gostaria de ir para a cama agora.

         Gabel rumou para o castelo. A resposta de Ainslee, proferida por entre os dentes que batiam, não explicara nada do que havia acontecido. Ao entrar no salão, a luz mais brilhante lhe deu a ele uma visão melhor de Ainslee. Estava horrível e vestida de uma forma estranha.

         Ela lutou para erguer a cabeça do ombro de Gabel. A luz a cegou momentaneamente, mas então conseguir avistar Margaret Fraser de pé, à porta do salão. Num gesto brusco, Ainslee escorregou dos braços de Gabel, mas quando tentou ficar de pé, vacilou, e ele a amparou. Ela se apoiou, recusando-se, porém, a deixar que Gabel a erguesse no colo.

         - Não sou tão fácil de matar como minha mãe - disse, olhando diretamente para Margaret, cuja fúria e surpresa eram grandes demais para ocultar.

         - Receio que a pobre criatura esteja delirando, dizendo coisas sem nexo - retrucou Margaret, a voz fria.

         - Não, não pode mais continuar com esse jogo,, lady Margaret. Deveria ter ficado com as pedras lançadas pelas janelas, ou talvez com uma dose de veneno. Seu grande plano para se livrar de mim falhou, e você não tem como se safar.

         - Está falando como uma louca.

         Embora fizesse as mãos congeladas sangrarem, Ainslee pegou do ombro o broche com o brasão dos Fraser e jogou-o aos pés de Margaret.

         - Reconhece isso, milady? Receio que seu primo pouco dotado de inteligência tenha perdido o único amigo que provavelmente já teve.

         - Você derramou sangue dos Fraser?! - Margaret exclamou, olhando para Gabel.

         - Ela só está tentando se desculpar pelos seus crimes.

         - Se eu não fosse pouco mais que um bloco de gelo, cortaria seu pescoço! - Ainslee esbravejou, e tentou dar um passo em direção a Margaret, mas gritou de frustração quando Gabel a ergueu nos braços outra vez. - Dê-me um momento para me aquecer, milorde, e então eu farei essa vagabunda hipócrita pagar pelo que me fez!

         - Calma, Ainslee - ele ordenou, e depois olhou friamente para Margaret. - Justice - chamou -, gostaria que fizesse companhia aos Fraser até que eu tenha cuidado de Ainslee, pois quero conversar com eles.

         Gabel esperou até que Justice e outro homem conduzissem Margaret de volta ao salão, e depois rumou para as escadas que levavam aos quartos, levando Ainslee nos braços.

         - Procuramos por você, mas não conseguimos encontrar nenhum rastro.

         - Estava procurando a pista errada. Deveria ter procurado pela trilha que o primo de Margaret Fraser e o amigo dele deixaram. Aqueles tolos eram estúpidos demais para não deixar um rastro muito claro. - Conforme seu corpo se aquecia, Ainslee tomou consciente de uma infinidade de dores e tocou com os dedos a boca que formigava. Quando viu o sangue em suas mãos, gemeu: - Acho que os meus lábios caíram na neve.

         - Não - Gabel murmurou com uma calma que não sentia. - Creio que ainda sobraram uns poucos pedaços sob o sangue.

         Uma dor aguda e latejante começou a se espalhar por todo o corpo de Ainslee, e ela se lamentou baixinho.

         - Acho que estou sangrando por todos os poros.

         - É apenas o sangue correndo em suas veias de novo.

         - Não pensei que fosse uma coisa tão dolorosa.

         Gabel entrou no quarto e a deitou sobre a cama. Com a ajuda de uma criada, ele tirou-lhe as roupas ensopadas, banhou-a e vestiu-a com roupa quente. Ajudou-a a beber uma caneca de hidromel aquecido, e depois enfiou-a debaixo das cobertas grossas. Assim que a dor no corpo começou a diminuir e todos os ferimentos e a pele ralada estavam cobertos com ungüento e enfaixados, Ainslee sentiu-se entorpecida de sono. Por um momento, lutou contra a sensação, ainda receosa de dormir, pois poderia ser o primeiro passo para a morte.

         - Você não tentou fugir? -- Gabel perguntou, cada vez mais convencido de que Ainslee não o fizera, mas querendo ouvir ela mesma dizer.

         Numa voz que mal passava de um sussurro, as palavras um pouco enroladas conforme tentava não mexer muitos os lábios, Ainslee respondeu:

         - Gabel, a menos que Ronald volte comigo, ele não será resgatado. E se eu o deixasse aqui e fosse para Kengarvey sozinha, nunca mais veria meu único amigo. Sabendo disso, acha realmente que eu tentaria fugir sem Ronald?

         - Julguei estranho.

         - Pensou que eu tivesse fugido para privá-lo do dinheiro do resgate e da sua chance de agradar ao rei?

         A observação mordaz naquelas palavras fez Gabel encolher-se de culpa.

         - Eu ainda tinha algumas dúvidas.

         - Ah, tinha? Não direi que nunca tentarei fugir, mas jamais deixarei Ronald para trás. Ele, Feioso e Malcolm são a minha família. Tente esquecer que sou uma MacNairn e olhe em torno de você, Gabel de Amalville. Não sou eu quem está arquitetando complôs aqui.

         - É isso que estava tentando me contar durante dias?

         - Sim. Esperei que você visse a natureza traiçoeira dos seus hóspedes por si mesmo. Bem, esse jogo quase me custou a vida. Creio que não posso esperar mais que você abra os olhos. Estou muito fraca para falar agora. Volte quando eu tiver descansado, e lhe contarei o que precisa saber a respeito dos seus convidados. Ou vá falar com Ronald. Ele sabe mais sobre eles do que eu.

         - Irei. Descanse, Ainslee - Gabel disse, com ternura, e deu-lhe um beijo na fronte vermelha e queimada pele frio. - Mandarei minha tia ficar com você por algum tempo - emendou, e depois sorriu ao ver que ela já dormia.

         Assim que deixou a tia a cuidar de Ainslee, Gabel seguiu para o quarto de Ronald. O evidente alívio do homem por Ainslee ter sido encontrada e a preocupação que mostrou com a saúde dela serviram para confirmar as impressões de Gabel. Então, Ronald começou a falar com toda a franqueza sobre os Fraser. Gabel não podia acreditar que tivesse sido tão cego. Queria fazê-los pagar pelas tentativas de matar Ainslee, mas sabia que isso seria um erro. O rei julgaria que o único crime que os Fraser haviam cometido era ter abusado da hospitalidade de Gabel, pois os MacNairn eram considerados foras-da-lei, o que dava a qualquer um o direito de fazer com eles o que quisesse.

         Quando Gabel, por fim, voltou ao salão para encontrar os Fraser, não queria ouvir quaisquer explicações, mas se viu forçado a isso.

         - Milorde - disse Margaret ao se aproximar e tocá-lo suavemente no braço, fingindo não perceber o modo como ele reagiu e se afastou.

         - Como pode acreditar nas fantasias daquela moça? É uma MacNairn. É óbvio que ela tentou escapar. Algo saiu errado, e teve de voltar aqui. Agora tenta desviar de si mesma a justa ira de milorde.

         - Então, me explique como ela arranjou um broche dos Fraser, assim como a capa e a espada de um dos seus homens?

         - Roubou-os dele antes de fugir durante a noite.

         - Creio que não. Acho que os pegou quando foi forçada a lutar pela vida. Vocês devem ir embora tão logo a viagem seja possível, e sugiro que se mantenham fora da minha vista até essa hora chegar.

         Antes que Margaret pudesse protestar, o pai a arrastou para fora do salão. Gabel suspirou e serviu-se de um copo de vinho. Bebeu um longo gole. Quando Justice se sentou ao seu lado, Gabel empurrou a jarra para o primo.

         - Então, acredita nas alegações de Ainslee? - Justice perguntou ao se servir.

         - Sim. As roupas que ganhou sumiram, e ela estava enrolada na capa de um homem, de camisola e com uma manta. Tiras de pano eram tudo que havia em seus pés e mãos. Ainslee não iria embora com um tempo desses, tão despreparada. Eu não sei exatamente o que aconteceu lá fora, e não saberei até que ela se recupere o suficiente para me contar, mas não foi uma tentativa de fuga.

         - Se Ainslee não contou exatamente o que aconteceu, como pode ter certeza de que há o dedo dos Fraser nisso? - indagou Justice.

         - Por causa de tudo que Ronald me falou sobre eles. Ainslee estava com um broche dos Fraser, portanto um Fraser tinha de estar com ela. O primo de Margaret e o amigo saíram antes do alvorecer, tal como pensamos que Ainslee havia partido. É óbvio que a levaram junto. Nenhum daqueles homens tem, ou tinha, cabeça para planejar tal seqüestro, e podemos ter certeza de que não estavam procurando ajudá-la.

         Justice meneou a cabeça.

         - Eles se arriscaram muito. Isso foi feito por mais razões do que um velho ódio. Fico a imaginar se Margaret está ciente do seu interesse por Ainslee. Não parece ser do tipo de mulher que tolera uma rival, principalmente se ela considerar essa rival pouco mais que uma camponesa ladra.

         Gabel olhou para o primo por um longo instante antes de soltar um palavrão.

         - Meu Deus, será que permiti que minha própria paixão colocasse Ainslee em perigo?

         - Creio que deve levar em consideração essa possibilidade. E ponderar também que Margaret não apenas vê Ainslee como uma rival, mas alguém a temer.

         - Eu sabia que aquela mocinha de cabelo de fogo seria um problema no momento em que ela me enfrentou com aquela maldita espada na mão - resmungou Gabel. - Porei uma guarda reforçada sobre ela e o velho. Os Fraser já mostraram que não estão de brincadeira. E mande levar aquele cão horrível para o quarto de Ainslee. - Gabel esboçou um sorriso quando Justice caiu na risada, inclinou-se numa reverência caçoísta e depois se apressou a ir buscar o cachorro e a escolher alguns poucos homens para guardar os MacNairn.

         A resmungar por entre os dentes, pois detestava tais intrigas, Gabel terminou o vinho e foi para o quarto de Ainslee. Pretendia manter-se atento a respeito dela, e duvidava que alguém em Bellefleur ficasse surpreso ou chocado com isso.

         Sua tia sorriu quando ele entrou no quarto. Ao se aproximar da cama, Gabel perguntou:

         - Como ela está?

         - Dorme - respondeu Marie. - A respiração parece tranqüila e sem febre.

         - Eu estava preocupado que Ainslee pudesse contrair uma doença séria. - Acompanhou a tia até a porta do quarto. - Vá dormir. Eu cuidarei dela agora. - Beijou-a na face e depois fechou a porta.

         Gabel se acomodou aos pés da cama, olhando para Ainslee adormecida. Sentira-se um pouco constrangido em descobrir como estava contente em vê-la viva e aparentemente ilesa da horrível provação. Comprovava que aquilo que sentia por ela era mais profundo do que mera luxúria. E tratava-se de algo perigoso. A coisa mais prudente a fazer seria distanciar-se de Ainslee, porém, ao fitá-la, esboçou um sorriso. Sabia que não faria isso.

         Era engraçado e triste ao mesmo tempo, pois tudo o que o atraía nela era exatamente o que tornava impossível mantê-la por perto. Isso e o fato de Ainslee ser uma MacNairn. Parecia insensibilidade pensar assim, mas Gabel sabia que precisava ser insensível. Muitas pessoas dependiam dele; e não poderia fazer algo que colocasse em risco a posição que já conquistara, ou prejudicasse quaisquer futuros ganhos que pudesse obter. Queria ter mais liberdade para fazer o que lhe agradasse, mas não poderia nem permitiria que seus sentimentos por Ainslee o fizessem agir de outro modo.

         Ela gemeu baixinho, e seus olhos se abriram devagar. Gabel não se surpreendeu que Ainslee acordasse, já que seu estômago roncava de vazio fazia algum tempo. Ainda com um olhar anuviado, ela perguntou num murmúrio:

         - Foi o meu estômago que roncou?

         - Sim. Você deve estar morrendo de fome. Há pão e queijo na mesinha.

         Ainslee serviu-se de um pedaço de pão e queijo, um pouco surpresa ao perceber como estava fraca, embora aliviada por não ter adoecido.

         - Não comi nada desde a noite passada. Uns poucos goles de vinho azedo foram a minha refeição.

         - Ainslee, quero que me conte exatamente o que aconteceu.

         Ela o encarou com cautela.

         - Tem certeza de que quer ouvir? Ou só vou perder fôlego e força contando uma história que você chamará de falsidade?

         - Não, eu ouvirei e acho que posso assegurar que não questionarei nada. - Deu de ombros e sorriu. - Conversei com Ronald. Não foi difícil adivinhar o que aconteceu. Mesmo assim, gostaria de saber tudo por você.

         Entre bocados de comida, Ainslee contou a Gabel o que ocorrera. Ele se aproximou para examinar o galo em sua cabeça, e Ainslee compreendeu que não era para confirmar sua alegação, e sim para se assegurar de que não se tratava de um ferimento sério. Ficou contente de que Gabel finalmente soubesse a verdade sobre os Fraser. Pelo menos era digna de crédito. Não era algo que acontecesse com freqüência a um MacNairn.

         - Você é uma mulher surpreendente, Ainslee MacNairn - Gabel murmurou.

         - Se devo continuar tirando vidas para ser surpreendente, creio que gostaria de ser bem burra, na verdade.

         Ele tomou-lhe a mão na sua num gesto de conforto.

         - Sinto muito por ter ficado cego para os problemas que você enfrentou. Se tivesse enxergado com mais clareza quem eram realmente os Fraser e o que estavam fazendo, poderia tê-la poupado disso. Devo assumir alguma culpa pelos ataques de Margaret. Se eu tivesse deixado você em paz, como qualquer homem honrado faria, ela não iria considerá-la uma rival da qual precisava se livrar.

         - Se você se recorda bem, fui uma parceira de muito boa vontade.

         Gabel sorriu e pousou um beijo na palma da mão enfaixada de Ainslee.

         - É muito gentil ao tentar amenizar um pouco minha culpa. Os Fraser não podem ser obrigados a partir no meio da tempestade, mas irão embora tão logo o tempo melhore. Também coloquei uma guarda reforçada sobre você e Ronald. Justice ficou de trazer aquele seu cachorro para cá, porém creio que ouvi minha tia mandá-lo levar o animal para o quarto de Ronald, até que tenhamos certeza de que você não vai ficar doente com o frio que passou.

         - Sim, é melhor. Depois de ter ficado no canil, Feioso ficará muito feliz em me ver, e estou muito cansada para brincar com ele esta noite. Quanto tempo acha que os Fraser ainda vão ficar aqui?

         - Não posso dizer. Rezo para que a tempestade termine pela manhã, mas quem pode afirmar como o tempo vai se comportar? Gostaria de puni-los de algum modo, mas...

         - Os Fraser não cometeram nenhum crime ao tentar me matar - Ainslee completou, e suspirou numa mescla de débil resignação e raiva. - Um MacNairn é uma bela caça para qualquer um. O pior que eles fizeram foi se portarem como hóspedes inconvenientes.

         - E isso não é motivo para puni-los. Infelizmente, pouca gente terá simpatia por você, porém ninguém apreciará os modos sorrateiros dos Fraser.

         Ainslee bocejou e enfiou-se debaixo das cobertas.

         - E uma coisa maravilhosa ficar quente - disse com um débil sorriso, e, depois, ficou séria ao olhar para as mãos enfaixadas. - Receio estar um pavor. É como se o vento e o frio tivessem arrancado minha pele fora.

         - O ungüento vai ajudar. Se ficasse em baila da tempestade por muito mais tempo, teria perdido alguns dedos.

         Ainslee estremeceu ao se dar conta de como estivera perto de morrer, e depois se voltou para ele.

         - Olho vivo nos Fraser, Gabel.

         - Ficarei.

         - Não apenas enquanto eles permanecerem aqui. Quero dizer de agora em diante. Precisa ficar atento aos Fraser e vigiá-los de perto. Você os pegou no meio de uma artimanha e pode lhes manchar o nome. E os derrotou, impedindo que conseguissem os prêmios que eles queriam: minha morte e você como marido de Margaret. Creio que o acrescentaram à longa lista daqueles que consideram inimigos e um perigo.

         Cuidado, meu confiante cavaleiro, pois mesmo Margaret é capaz de enterrar uma adaga nas suas costas.

         - Por quê, Ainslee MacNairn, está tão preocupada com o meu bem-estar? - Gabel sorriu diante do olhar de desgosto de Ainslee, e pousou um beijo na face dolorosamente abrasada pelo frio.

         - Se o meu clã deve sobreviver, meu convencido e vaidoso cavaleiro, é preciso que seja estipulado um tratado com alguém, e você é o único que conheci até agora que aceitaria uma negociação com meu pai. Seria bastante custoso para os MacNairn se você morresse.

         - Claro - Gabel murmurou.

         - Descanse, Ainslee. Precisa se recuperar. - Riu baixinho.

         - Não foi assim que imaginei esta noite...

         Ao compreender que ele pensara em voltar a fazer amor com ela, Ainslee sorriu, sonolenta.

         - Receio que terá de esfriar seu calor por algum tempo, milorde. Pelo menos até que tenhamos certeza de que a pouca pele que me sobrou esteja curada para não se descolar. - Ao sentir o sono envolvê-la, Ainslee estendeu a mão e tocou a face de Gabel.

         - Falei sério quando o alertei. Fique atento, pois se for tolo o suficiente para se esquecer de resguardar-se, e os Fraser enterrarem um punhal nas suas costas, voltarei de onde estiver e eu mesma os matarei.

         - Se fosse possível um homem ser morto duas vezes, então você seria a mulher que faria isso.

         Ainslee riu, um riso suave e breve, antes de se entregar ao sono. Por um longo tempo Gabel ficou a fitá-la, segurando com ternura a mãozinha enfaixada. Embora isso o deixasse com bem mais problemas de que ele gostaria, desejou que Duggan MacNairn fosse tão desonrado e insensível como diziam os boatos, e que se recusasse a resgatar a própria filha. Depois, maldisse a si mesmo. Era egoísmo desejar tudo que queria: o tratado ou um fim para MacNairn, ter Ainslee e conseguir a esposa certa. Manter Ainslee como sua amante a magoaria, assim como a recusa do pai em resgatá-la, e Gabel sabia que faria qualquer coisa para não ofendê-la. Perdera a batalha para manter as emoções de lado, mas jurou que não deixaria ser governado por elas.

         - Pare de se preocupar com essas mãos, menina - Ronald admoestou Ainslee ao entrar em seu quarto e encontrá-la a esfregar mais ungüento nas mãos quase curadas. - De tanto esfregá-las ficarão em carne viva, como estavam uma semana atrás.

         Ainslee sorriu ao vê-lo caminhar até a cama e sentar-se na beirada. Ronald deixara o leito de enfermo no dia seguinte à volta de Ainslee de tamanha provação, para cuidar de "sua menina". Ele recuperava as forças a cada dia, e ela começou a se sentir confiante de que o velho amigo ficaria totalmente restabelecido dos ferimentos.

         Ainslee ajeitou-se com mais conforto sobre o pelego diante da lareira e cocou, distraída, as orelhas do cão adormecido. Havia ficado desapontada por não ter sido Gabel que viera. Ele não tinha tomado nenhuma iniciativa de fazer amor com ela outra vez. Mostrava-se afetuoso, mas nunca se aventurava além de uma leve carícia ou um beijo terno. Ainslee começava a recear que não mais a desejasse, que aquela única noite juntos fosse tudo que ela teria. A simples idéia dera-lhe vontade de chorar, mas havia lutado para ocultar de Ronald sua infelicidade e as preocupações.

         - Você parece completamente curado - Ainslee murmurou.

         - Estou feliz que você também se recuperou bem, e de ver aqueles Fraser pelas costas. - Ronald ficou muito sério. - A partida deles não foi amistosa. Convém que Gabel se acautele com aquela gente.

         - Acho que ele está ciente disso.

         - Gabel passa muito tempo com você, menina.

         - Passa, mas pode tirar esse brilho dos olhos, velho amigo. Não existe nenhum compromisso entre mim e ele.

         - E por que não? O rapaz deitou-se com você...

         - Ronald!

         - Posso ser velho, menina, mas não sou cego nem surdo.

         - As pessoas estão falando? - Ainslee perguntou, consternada, pois esperava que, embora não fosse nenhum segredo, o fato não se tornasse motivo de fofocas.

         - Não fique tão horrorizada. São apenas algumas palavras murmuradas aqui e ali. Suspeitei que isso pudesse acontecer entre você e esse belo normando. Ninguém aqui a condena ou fala do assunto como se fosse um pecado ou uma vergonha. Você pode andar com essa cabecinha erguida quando sair pelos corredores.

         - É mais provável que seja pelo imenso amor que eles dedicam ao seu lorde. - Ainslee sorriu com ar travesso. - Tenho a sensação de que muitos aqui acham que Gabel não pode fazer nada errado, que está a apenas um passo da beatificação.

         Ronald riu e meneou a cabeça.

         - Percebi isso também. - Em seguida, ficou sério e estudou-a detidamente.

         - E como se sente quanto ao rapaz?

         - Acho que sabe como me sinto.

         - Você o ama.

         - Sim, mas isso não importa.

         - Não? Foi por esse motivo que se deitou com ele.

         - Eu o desejava, e sinto muito se isso o desaponta.

         - Você é uma moça de sentimentos fortes, Ainslee. Eu sempre soube que, quando seu coração fosse finalmente tocado, você se entregaria por inteiro. Jamais poderá me desapontar. Não sou tão cego a ponto de achar que tudo que você faz é certo, mas não precisa recear que eu a condene por, quem sabe, amar desavisadamente.

         - E é isso mesmo que eu fiz, receio. Oh, sim, Gabel é um homem que vale a pena amar. A imprudência é amá-lo sabendo, desde o começo, que ele nunca se casará comigo ou mesmo corresponderá ao meu amor. Contudo meus sentimentos não podem ficar trancados e se mostrarem apenas quando fosse conveniente.

         - Sentimentos nunca são assim. Ainslee encarou-o com franca curiosidade.

         - Não? Acho que Gabel guarda os dele bem trancados, e está sempre alerta para que não escapem. - Ela deitou-se de costas, mãos cruzadas sob a cabeça, e sorriu quando Feioso rosnou no sono e espichou-se ao seu lado. - Gabel não quer sentir nada a não ser prazer sensual. É apaixonado, mas creio que qualquer sentimento maior permanece firmemente encarcerado.

         - Não é uma boa forma de um homem viver. Se engolir tais emoções com muita freqüência, isso irá corroê-lo por dentro. Talvez ele não passe de um daqueles que não sabem demonstrar com clareza o que sentem, e não encontra as palavras para expressá-lo.

         - A prima de Gabel, Elaine, me contou uma história de traição que explica o modo de ele agir. Uma mulher em quem confiava, talvez amasse, o usou, o ludibriou, e a cegueira de Gabel para a natureza cruel dela custou a vida de seu amigo mais íntimo, um companheiro desde a adolescência.

         - Muitos rapazes sofrem decepções amorosas...

         - Sei disso, mas também sofrem com a perda de um amigo?

         - Bem, não, porém...

         - Ronald, ele não passava de um garoto inexperiente. A mulher era mais velha, mais inteligente e pérfida. Tramou para ajudar o amante a matar os De Amalville e roubar-lhes a fortuna. Tentou matar Gabel, mas o amigo recebeu o golpe fatal no lugar dele. Gabel o amparou enquanto morria. Também soube quem havia ordenado o assassinato. Conseguiu avisar os parentes da traição em curso, mas isso não suavizou o sofrimento de saber que a sua cegueira havia matado o amigo querido e que poderia ter ajudado o inimigo a destruir sua própria família. - Ainslee virou-se de lado e olhou para Ronald. - Acho que foi então que Gabel concluiu que os sentimentos não são confiáveis e, talvez, que o amor seja a mais perigosa de todas as emoções.

         - Ele não parece ser um homem frio.

         - De fato não é. Mas algumas vezes acredito que isso o irrita... Em breve devo voltar a Kengarvey... e não tive oportunidade de tentar cuidar as feridas de Gabel, de fazê-lo confiar nas emoções outra vez.

         - E, portanto, você se consola com o que pode ter.

         - Receio que sim. Começo a pensar que a paixão de Gabel por mim foi ainda mais fugidia do que eu achava, pois ele não procurou a minha cama desde aquela noite.

         - Ainslee franziu a testa quando Ronald deu uma risadinha e meneou a cabeça. - Acha isso engraçado?

         - Se fosse verdade, mas não é.

         - Tem a faculdade de saber o que Gabel de Amalville pensa?

         - Não afie sua língua contra mim, menina - Ronald reclamou com ternura.

         - Diga-me, o rapaz passou a noite com você?

         - Sim. Bem... ele foi embora antes que o sol nascesse, para manter um pouco de discrição.

         - Se deitar-se com você tivesse desapontado Gabel, ele não teria ficado a noite inteira. E se não sentisse a sua falta, não estaria com um humor tão azedo.

         Ainslee sentou-se e sorriu.

         - Por quê, então, Gabel fica longe de mim, se não quer realmente isso?

         - Talvez a separação seja mais fácil se você não estiver partilhando a cama dele. Talvez, se você se afastar agora, não ficará tão amargurada quando for levada de volta a Kengarvey.

         - Não, eu amo aquele estúpido normando. Deitar-me ou não com ele não mudará o fato. Nem diminuirá o meu sofrimento ao deixá-lo, ou por saber que Gabel logo vai se casar. Eu preciso usufruir todo o prazer que puder, enquanto puder. As minhas lembranças é tudo que terei quando voltar a Kengarvey. E planejo guardar tantas que o meu coração e a minha mente ficarão povoados delas.

         Ronald a fitou por um instante antes de se dirigir à porta.

         - Não posso dizer que eu não faria o mesmo. Mas não a magoa saber que Gabel não se casará com você, que nem mesmo a levaria em consideração como noiva?

         - Às vezes - Ainslee confessou. - Existe muita gente que depende dele. Os MacNairn são foras-da-lei, condenados e vilipendiados pelo rei. Seria maravilhoso se Gabel pudesse me amar o bastante para arriscar o seu futuro ou ser objeto da fúria do rei, e me tomar como esposa. Porém, mesmo que fosse possível, eu não tive tempo de fazer isso acontecer.

         - Bem, tome cuidado, mocinha. Não posso protegê-la desse sofrimento.

         Ainslee suspirou e se enfiou na cama depois que Ronald saiu. Era fácil falar com tanta nobreza, exibir tamanha aceitação. Deixar Gabel iria lhe partir o coração, e ela estava com medo. Às vezes julgava que cometera um erro terrível ao se entregar a ele, mas depois relembrava a beleza da paixão que haviam compartilhado. Como poderia resistir, principalmente por saber que era tudo a que podia almejar?

         Gabel respirou fundo para acalmar-se, e depois se dirigiu ao cavalariço com uma voz mais controlada. O rapaz tinha cometido um pequeno erro, e não um crime que justificasse a raiva com que o tratara. Sabia que parecia pronto a agredir a tudo e qualquer um que cruzasse seu caminho. Tivera uma breve amostra da poderosa paixão que havia compartilhado com Ainslee, e queria, precisava, ansiava por mais.

         Logo ela não estaria mais em Bellefleur. Cada noite que dormiam separados era uma noite perdida para sempre. Gabel rumou de volta ao castelo. Ao entrar, deparou com Justice.

         - Aonde vai?

         - Vou para o meu quarto me limpar da sujeira do estábulo - Gabel resmungou e dirigiu ao primo um olhar furioso.

         - Quarto errado, se pretende curar o que o aflige. Não sei por que você se impôs tamanha provação. Ainslee não o recusou nem lhe disse para deixá-la em paz.

         - Você não pode saber o que se passa entre mim e ela.

         - Se Ainslee se deitou com você uma vez, não o manterá fora da sua cama agora.

         - Esqueceu o horror que ela passou por causa da tentativa de Margaret de matá-la?

         - Claro que não. Mas isso foi há uma semana, primo. Apesar da pele queimada pela neve, Ainslee está saudável para aquilo que você anseia o dia inteiro. Você mesmo disse que ela continua forte, impetuosa, e, no entanto, a trata como a mais delicada das flores. Gostaria que pusesse um fim rápido a isso.

         Gabel praguejou e subiu as escadas, tentando ignorar as risadas do primo. Estava se deixando levar pelas emoções. Entrou no quarto e foi se lavar da sujeira de um longo dia de trabalho.

         Depois do banho, Gabel demorou-se o tempo de tomar um copo de vinho e, depois, seguiu para os aposentos de Ainslee.

         Fingiu não notar o alívio do guarda quando ele o dispensou e entrou no quarto. Quando Ainslee lhe endereçou um sorriso hesitante, Gabel suspirou sem querer. Fechou a porta e passou a tranca.

         - Ainslee, você acha que aquela noite no estábulo foi um erro? - indagou.

         - Não. - Ela enrubesceu. - Eu jamais cometo erros - murmurou e abriu um sorriso terno e convidativo.

         - Não vou discutir tamanha arrogância em meu próprio benefício.

         - Nem deve.

         Os olhos de Ainslee se arregalaram ao ver Gabel se aproximar dela enquanto tirava a túnica e a camisa. E se encolheu quando ele se sentou na beirada da cama, ainda a fitá-la com aquela expressão ávida, e tirou as botas e a calça. Um grito de surpresa escapou-lhe no momento em que Gabel a deitou. E Ainslee o ajudou a livrá-la do vestido. Quando ele se apossou de sua boca num beijo quente e voraz, ela arrancou-lhe as ceroulas. E ambos gemeram ao sentir seus corpos se encontrarem.

         Em questão de segundos, Ainslee se perdeu naquele frenesi apressado de desejos reprimidos. A boca e as mãos de Gabel estavam em todo seu corpo, fazendo a paixão explodir, fora de controle. Um grito sufocado escapou-lhe quando se uniram com sofreguidão.

         O desejo represado obrigou-os a satisfazer rapidamente a necessidade que os atormentara durante dias. Quando ambos alcançaram o ápice do prazer, Ainslee gritou o nome dele e contou-lhe de seu amor em gaélico, enquanto Gabel desabava em seus braços. Assim ficaram, entrelaçados, arquejantes, trêmulos, até que ele, por fim, afastou-se e se deitou de costas. Ainslee espreguiçou-se, relaxada e feliz pela primeira vez em dias.

         - Você sarou quase totalmente - Gabel murmurou ao lhe beijar a palma da mão.

         - Não fiquei muito machucada - ela respondeu, feliz ao descobrir que ele não achava sua pele muito áspera.

         - O tempo melhorou e pude livrar Bellefleur de Margaret e do seu sorrateiro pai. Será difícil encará-los da próxima vez em que eu for à corte.

         - Nunca lhes dê a chance de surpreendê-lo por trás - Ainslee avisou.

         - Minhas costas sempre estarão bem guardadas. - Gabel a puxou para mais perto e enterrou o rosto nos cabelos sedosos. - Fiquei longe por tempo demais.

         - Comecei a pensar que havia mudado de idéia.

         - Em desejá-la? Não. Eu estava sendo galante.

         - Ah, e agora resolveu deixar de ser galante?

         - Justice me disse que eu estava amedrontando as criadas e os pajens. Foi de ficar deitado sozinho de noite e pensando demais em onde eu gostaria de estar.

         - Aqui? - Ainslee murmurou, a esfregar os pés pelas canelas de Gabel.

         - Exatamente aqui. - Ele depositou um beijo na ponta de cada seio, e gemeu de prazer ao vê-los se endurecerem, num convite. - Não a deixarei sozinha outra vez.

         Não até que eu seja mandada de volta a Kengarvey, Ainslee pensou, e depois expulsou a idéia da mente. Não era hora de se lamentar. Tinha medo que tais pensamentos a induzissem a fazer perguntas que era melhor deixar sem respostas. Sabia exatamente o que Gabel queria que ela fosse: uma amante apaixonada, sem exigências. E estava decidida a ser apenas isso. Enquanto permanecesse em Bellefleur, iria se deliciar com a paixão que inspiravam um ao outro, não faria perguntas e nenhuma exigência. Já que não obteria nenhuma das respostas que desejava, e Gabel nunca poderia lhe dar o que ela realmente queria, não havia sentido em arruinar o tempo que pudessem compartilhar.

         Ao enterrar os dedos nos cabelos fartos do normando, enquanto ele lhe acariciava os seios, Ainslee lutou para não chorar. Fora ela que havia escolhido assim, tomado a decisão sem ser coagida, e resolvido fingir que não precisava de mais nada além do que Gabel lhe oferecia. A única coisa que a confortava era saber que a paixão que compartilhavam era uma coisa especial. Um desejo tão avassalador não acontecia com freqüência.

         - Está muito calada, Ainslee. Algo a preocupa?

         - Estava pensando nos Fraser - ela murmurou. Tratava-se apenas de uma pequena mentira. - Espero que não tentem atingir minha família porque estão zangados por falharem em me matar.

         - É engraçado o jeito com que disse isso. Como já mencionei você tem um modo estranho de se expressar com palavras, Ainslee MacNairn. - Gabel deitou-se de costas e puxou-a para os seus braços. - Eu não tinha levado em consideração que os Fraser pudessem dirigir sua fúria contra a sua família. Isso prejudicaria minhas tentativas de obter algum tipo de trégua, e eu sempre acreditei que um acordo é preferível a uma matança.

         - Bem, resolveria o problema.

         - É verdade, mas um aliado vivo é melhor que um inimigo morto. Quanto mais aliados a gente tem, menos é preciso temer os inimigos.

         - Existe algo de verdade nisso, eu suponho.

         Ainslee não desejava que seu clã fosse atacado, pois muitos perderiam suas vidas, e nem todos em Kengarvey eram culpados por escarnecer do rei. No entanto não acreditava que seu pai fosse se aliar a Gabel algum dia.

         Duggan MacNairn não tinha aliados; havia gente que ele odiava e gente de quem roubava. Ela, porém, não diria isso. Se ficasse quieta, seu povo teria chances de sobreviver, pelo menos por algum tempo mais.

         - Perdoe-me, Ainslee - Gabel murmurou, arrancando-a dos pensamentos.

         - Pelo quê?

         - Por falar de todo o mal que poderia recair sobre o seu clã. Às vezes esqueço que você é uma MacNairn.

         - Há momentos em que eu gostaria de também esquecer isso, mas não existe um meio de descartar o sangue que corre em nossas veias porque não gostamos do homem que o colocou ali. Gabel esqueceu o que queria dizer quando Ainslee começou a pousar beijos leves em seu pescoço. Estava empoleirada em seu peito de um jeito que o excitava. Cada movimento do corpo delgado contra o seu só fazia crescer o desejo. Com resmungos entrecortados de gemidos de prazer, incentivou-a com elogios e agrados, fazendo-a saber como ela o deixava louco.

         Quando os beijos de Ainslee chegaram ao seu ventre, ele enterrou os dedos nos cabelos macios, ansioso para que ela prosseguisse. Então, Ainslee roçou um beijo no membro rijo, e Gabel gemeu, com um tremor de prazer. Ela ficou tensa e ia se afastar, mas ele a encarou, arquejante. E quando Ainslee recomeçou a acariciá-lo sem muito jeito, Gabel lutou para se conter e controlar a onda de prazer que o fazia delirar, até perceber que perdia a batalha.

         Ainslee precisou apenas de pouca orientação. Logo seus movimentos se tornaram mais hábeis, a perícia a aumentar a cada investida. Gabel ficou encarando-a, certo de que jamais vira algo tão encantador, até que a excitação o obrigou a fechar os olhos, e o êxtase o transportou às alturas.

         Ainslee olhou para Gabel, enrodilhada nos braços dele. Queria saber se não tinha sido muito ousada. Parecera razoável que, se ele a beijava e acariciava onde lhe agradava, ela também poderia fazer o mesmo. Só depois que o prazer os deixou saciados, largados nos braços um do outro, é que Ainslee começou a imaginar se não passara dos limites. Os homens nem sempre gostavam que as mulheres agissem por si próprias.

         - Agora é você que está um pouco calado demais - ela murmurou, sorrindo com timidez, quando Gabel a fitou.

         - Um homem precisa recuperar o fôlego depois de algo tão extenuante - ele murmurou, e depois sorriu e beijou-a na testa.

         - Extenuante, é? - Ainslee relaxou um pouquinho, pois

         Gabel não parecera nem chocado nem ofendido, e nem a olhava como se ela tivesse se comportado com uma prostituta.

         - Incrivelmente extenuante. Senti como se toda a força tivesse sido drenada do meu corpo.

         - Então não acha que fui muito atrevida? - Ainslee perguntou, e, em seguida, mordeu o lábio, arrependida.

         - E por isso que estava me olhando com tanta cautela? Temia que eu a recriminasse ou saísse da cama, chocado com o seu comportamento?

         - Não precisa caçoar das minhas preocupações - ela resmungou, mas sua expressão séria não apagou o largo sorriso de Gabel.

         - Eu nunca caçoaria de você, minha doce Ainslee. - Ele afastou-lhe as mechas de cabelo do rosto. - Ah, você é uma mulher que me confunde. Fica vermelha por qualquer coisa, mas faz amor com toda a liberalidade. Profere palavras cortantes e parece um cardo espinhento, mas quando alguém espia dentro do seu coração, encontra apenas penugem macia. - Gabel riu da expressão confusa de Ainslee e a abraçou. - Não, não achei que foi muito atrevida. Achei uma delícia. Você é uma mulher que leva um homem à loucura, e que aquece meu coração com um sorriso. Quando eu me recobrar dessas suas habilidades recentes, vou lhe mostrar quanto aprecio essa impetuosidade que a leva a fazer o que tem vontade.

         Ainslee aconchegou-se a Gabel, gemendo de prazer enquanto ele a acariciava. Não estava certa do que significavam aquelas palavras bonitas, porém a deixavam feliz. Havia um prazer verdadeiro por trás do que Gabel dissera e no brilho nos olhos dele. Sentira que o tinha surpreendido, e isso também lhe agradava. Se quisesse demorar-se na lembrança de Gabel, precisava ser diferente das outras mulheres que ele conhecera. Se não fosse a melhor amante que Gabel já tivera, pelo menos uma das mais memoráveis. Era um pequeno consolo, pois queria e precisava que ele a amasse. Não suportaria ser esquecida. Tudo que pedia por enquanto era a bênção de ter tempo suficiente para ocupar um lugar na mente daquele belo normando. E, se possível, em seu coração.

         - Chegou outra resposta de seu pai - Gabel anunciou ao entrar no quarto de Ainslee.

         Ela ficou tensa, segurando com força a escova com que penteava os cabelos. Todo o prazer que havia sentido com o banho quente que acabara de tomar desapareceu. Deu um profundo suspiro.

         Havia se passado um quinzena desde a tempestade, e Ainslee se deixara iludir com o falso sentimento de calma e felicidade durante aqueles dias vividos na segura e elegante Bellefleur, e as noites abrigada nos braços fortes de Gabel. Os Fraser tinham ido embora, Feioso passeava livre pela fortaleza, Ronald estava plenamente restabelecido, e ela envolta numa paixão jubilosa toda vez que passava algum tempo sozinha com o normando. Isso tornara fácil afastar todas as suas dúvidas e preocupações. Agora, contudo, o pai se intrometia bruscamente em seu mundo de sonhos. E algo na expressão de Gabel a fez ter certeza de que seu paraíso chegara ao fim.

         - Meu pai me quer de volta? - ela perguntou, sentindo que conseguia controlar as emoções errantes ao encará-lo.

         - Bem, ele ainda não concorda com tudo que eu pedi... - respondeu Gabel ao se sentar perto de Ainslee.

         - O que meu pai oferece?

         - Muito pouco.

         - Gabel, o que foi que ele disse?

         - Seu pai a resgatará e diz que você pode levar Ronald junto, se quiser, mas que não pagará nada por ele.

         - Canalha ingrato! -- Ainslee resmungou. - Muitas vezes pensei se meu pai não escarnece de Ronald porque não poderá nunca ser o homem que Ronald é.

         - É possível. Alguns homens consideram muito irritantes aqueles que possuem a bondade que lhes falta.

         - Quando devo ser mandada de volta a Kengarvey? - ela perguntou, numa voz suave, tensa ao esperar a resposta.

         - Partiremos em três dias e nos encontraremos com o seu clã no rio.

         Gabel praguejou sem querer quando Ainslee usou o cabelo para esconder a face e a expressão. Queria se dar conta de como ela se sentia em deixar Bellefleur, em deixá-lo. Era injusto, e sabia disso, mas isso não diminuía sua ansiedade em saber. Não poderia ficar com Ainslee. Não poderia pôr de lado todos os planos cuidadosamente elaborados e renegar tudo que julgava certo para Bellefleur e seu povo só para manter aquela situação. Era errado e até cruel tentar fazê-la expor os próprios sentimentos, e, no entanto, ele ansiava por conhecer o que havia na mente e no coração de Ainslee, agora que teria pouco tempo para ficar com ela.

         - Temos poucos dias para passar juntos, Ainslee - Gabel disse ao se aproximar, tirar-lhe a escova da mão e começar a lhe pentear os cabelos ainda úmidos.

         - Estou surpresa que meu pai tenha concordado tão depressa. Pensei que ele se mostraria mais teimoso.

         - Isso poderia colocar sua vida em perigo, pelo menos pelo que seu pai imagina.

         - Não, ele sabe que estou segura aqui em Bellefleur. Informou-se de tudo a seu respeito, Gabel, antes que você acendesse a primeira lareira na sua bela fortaleza. Como acha que meu pai tem sobrevivido por tanto tempo quando tanta gente anseia por matá-lo?

         - Sorte e habilidade - Gabel retrucou ao deixar a escova de lado e tomá-la nos braços.

         Ainslee se aconchegou a ele e fitou o fogo.

         - Ele sabe que a melhor defesa de um homem está em conhecer o inimigo. Se tivesse empenhado toda a inteligência e habilidade numa boa causa, meu pai poderia ter se tornado o maior dos homens. Infelizmente, tais dons serviram apenas para torná-lo o mais esquivo e mortal dos adversários. Acho que é por isso que às vezes eu fico tão zangada com ele.

         Gabel puxou o manto que ela colocara sobre os ombros e beijou-lhe a pele quente.

         - Talvez seu pai perceba isso nos seus olhos, e seja também por esse motivo que desgosta tanto de Ronald, pois sabe que você o compara a ele.

         Ainslee franziu a testa ao pensar na possibilidade e, em seguida, deu de ombros.

         - Acho difícil. Houve um incidente certa vez, quando eu só tinha onze anos, que nunca entendi. Ronald ficou doente e me mandou sair de perto dele por medo que eu pudesse adoecer também. Naquela noite, jantei no salão com meu pai e meus irmãos pela primeira e última vez. Durante a refeição, olhei para meu pai, e, de repente, ele avançou contra mim e começou a me bater, berrando que iria me ensinar um pouco de respeito.

         - Machucou-a muito?

         - Meu irmão Colin me socorreu, achando que fosse me matar. Voltei para o lado de Ronald e lhe disse que nada poderia ser mais assustador nem tão perigoso como estar perto de meu pai.

         Gabel não disse nada, apenas abraçou-a e beijou-a com ternura. Lutou contra a onda de culpa que o invadiu ao pensar que estava prestes a devolvê-la àquele monstro. Mas que escolha tinha? Cumpria ordens do rei, e não poderia desistir porque Ainslee poderia levar uma surra quando fosse devolvida à família. Duggan MacNairn tinha o direito de fazer como ela o que quisesse. Gabel praguejou no íntimo, e pensou, pela centésima vez, como e quando havia permitido que uma mulher de cabelos de fogo complicasse tanto sua vida e desordenasse seu raciocínio.

         - Então, em três dias encontraremos meu famoso pai na margem do rio - Ainslee murmurou.

         - Sim - confirmou Gabel. - Achei que seria prudente ter o rio entre nós.

         Ela pousou as mãos no peito largo e começou a desamarrar-lhe a túnica.

         - Seria melhor colocar a Escócia inteira entre você e meu pai. Tome cuidado, Gabel.

         - Não é estranho a filha de alguém alertar aquele que procura punir seu pai?

         - Não vejo erro em alertar um homem honrado de que está prestes a se defrontar com quem, infelizmente, não tem nenhuma honra. Você tem sido gentil e correto, Gabel de Amalville, para mim e para os meus. É justo que eu lhe diga a verdade sobre o homem que em breve irá enfrentar.

         - Agradeço-lhe por isso. Contudo seu pai deve ter bom senso suficiente para saber que, se não honrar o nosso acordo, levará seu clã à completa destruição.

         Ainslee tirou-lhe a camisa dos ombros.

         - Não gostaria de falar ou me preocupar com o que está por vir. Não quero pensar em meu pai, agora.

         Gabel fechou os olhos e suspirou de prazer enquanto ela pousava beijos suaves em seu peito. Aos poucos, Ainslee se tornara mais ousada durante a semana em que haviam ficado juntos, e Gabel se deliciava com esse fato. Também não queria pensar em Duggan MacNairn, pois isso o recordava que, em três curtos dias, ele a perderia. Queria passar cada momento daqueles três dias fazendo amor com Ainslee, mas sabia que não poderia agir assim. Ao entrelaçar os dedos entre os cabelos dela, soltando-os da fita frouxa com que Ainslee os prendera, Gabel sentiu-se invadido por uma raivosa frustração. Nunca tinha pensado em quanto teria de desistir ao ser o senhor de Bellefleur.

         Qualquer outro pensamento desapareceu no momento em que Ainslee soltou os laços de suas calças, abaixou-as e começou a lhe depositar beijos nas pernas. E Gabel estremeceu ao senti-la se agachar entre suas coxas, sorrindo sedutoramente. Sua respiração tornou-se ofegante e um gemido rouco lhe escapou pela garganta quando Ainslee correu as mãos por suas coxas arrepiadas e beijou o membro ereto. Observá-la o encheu de um prazer tão intenso que ele rilhou os dentes e lutou para manter a excitação sob controle. Mas a força da volúpia fluiu por seu corpo e então ele deitou Ainslee de costas nas peles do tapete.

         - Acha que pode me deixar louco antes de sair de Bellefleur?

         - Só pensei em agradar você - ela murmurou.

         - Ah, fez isso multiplicado por dez. Mas eu vou me vingar.

         - Você parece hesitante...

         - Hesitante? Não! Apenas recupero o fôlego para que possa lhe mostrar que nós dois podemos jogar este jogo.

         Gabel, então, se debruçou sobre Ainslee e beijou-a.

         Ela retribuiu o beijo com a mesma intensidade, e um toque de desespero. Tinha pouco tempo para inundar a mente e os sentidos com as sensações de Gabel. Com um gemido de prazer, jogou a cabeça para trás. Um arrepio a percorreu quando ele lhe acariciou os seios com a língua, quase levando-a ao delírio. E a boca de Gabel foi descendo, até parar sobre o ventre, a lhe mordiscar a pele e fazer disparar ondas de volúpia por todo o corpo. Sentiu que não havia mais forças para se conter. Implorou que a possuísse e gemeu de prazer quando Gabel a penetrou numa investida firme. Pouco depois, ambos atingiam um estonteante clímax.

         - Para alguém tão ousada no ato do amor, você está muito vermelha agora que lhe retribuí os carinhos.

         Ainslee esboçou um sorriso tímido e o espiou através dos cabelos emaranhados.

         - Bem, devia haver algo que não tivéssemos feito, e eu estava só pensando que era provável que fosse isso.

         Gabel soltou uma risada, rolou de lado e puxou-a para seus braços.

         - Estou disposto a arcar o peso dessa culpa.

         - Que galante, senhor cavaleiro. Sem dúvida, passarei por anos de penitência quando eu confessar meus pecados.

         - E julgará que valeu a pena? - Gabel perguntou, com doçura, e pensou tristemente na própria fraqueza ao tentar arrancar alguma declaração de Ainslee quanto aos sentimentos que nutria por ele.

         - Oh, sim. Desfrutei a riqueza de experiências que você possui - ela resmungou, fitando-o por um instante -, mas creio que descobrirei que não existe calor que se iguale.

         - Não, não existe. Sei quanto é importante a castidade para mulheres bem-nascidas. Contudo não consegui me afastar de você. Espero que seja capaz de me perdoar essa fraqueza.

         Ainslee calou-o com um beijo terno.

         - E eu espero que você pare de tentar carregar nos seus ombros todo o fardo do que houve entre nós, por mais largos e fortes que eles sejam. Já deve saber, agora, que não sou nenhuma mocinha tímida e ingênua. Eu poderia ter gritado "não", e você é muito honrado para ignorar a minha recusa. Também sei enfrentar um homem, coisa que muita mulher nunca aprendeu. Sim, eu jamais poderia derrotá-lo num combate, mas você sabe que certamente teria me livrado das suas garras lascivas e feito com que lamentasse amargamente por haver me tomado nos braços.

         Encarou-o muito séria.

         - Está com receio que eu me vire contra você quando voltar a Kengarvey, que vá gritar que fui estuprada?

         - Não. Sou homem, mais velho que você, e sei melhor dessas coisas que você, e, portanto, achei que era justo que eu aceitasse a responsabilidade.

         - Eu posso nunca ter feito nada, mas acha realmente que um homem como Ronald deixaria que eu entrasse na adolescência sem saber tudo a esse respeito? Sobre o que os homens querer de uma moça e as artimanhas que podem usar para conseguir?

         - Não. - Gabel riu e meneou a cabeça. - Qualquer homem ficaria deliciado em ter uma amante como você.

         Mas não uma esposa, Ainslee pensou, e recriminou-se por deixar que a amargura estragasse o tempo que ainda teriam para ficar juntos.

         - Fico feliz que, como uma MacNairn, eu seja capaz de algo que valha a pena - ela declarou.

         - Creio que também seja culpa de Ronald essa sua língua cortante - Gabel murmurou.

         - E o que ele diz sobre o nosso relacionamento? Você lhe contou alguma coisa?

         - Claro que sim. Como o próprio Ronald disse, ele não é nem surdo nem cego. Teria descoberto a verdade por si mesmo, então achei melhor que a ouvisse de mim. Ronald me criou para seguir minha própria mente e, portanto, não tenta me fazer agir como ele gosta ou acha que é certo. Todo com que Ronald se importa é se eu estou feliz e em segurança.

         - E está feliz, Ainslee?

         - Não estaria deitada aqui se não estivesse. - Ela suspirou e decidiu que dizer uma pequenina verdade não poderia fazer mal. - Terei algumas lembranças muito cálidas e agradáveis para acalentar quando voltar a Kengarvey, e tais coisas podem ser muito valiosas. Kengarvey, apesar de ser meu lar, muitas vezes não é nem cálida nem agradável.

         - Sinto muito por isso.

         - Por quê? Não é sua culpa.

         - Você enxerga os fatos com tanta clareza, querida... Não, não é minha culpa, mas eu ainda sinto muito que você tenha de suportar algo assim.

         - Está com pena? - Ainslee ficou tensa, considerando odiosa a idéia de que Gabel pudesse ter pena dela. - Isso não me ajuda nem muda o que é Kengarvey.

         - Não, não é pena o que eu sinto, portanto não precisa eriçar seus espinhos, meu belo cardo escocês de cabelos de fogo. Não creio que alguém pudesse sentir pena de uma mulher com a sua fortaleza de espírito. Você merece bem mais do que tem. Talvez esse acordo traga a Kengarvey um pouco de paz.

         - Sim, quem sabe...

         - Ainslee, existe algum outro lugar para onde você possa ir? Qualquer lugar em que possa viver além de Kengarvey, pelos menos pelos próximos meses?

         - Acha que os próximos meses serão suficientes para mudar minha vida?

         - Não, mas poderia mudar decididamente a vida em Kengarvey.

         Ela sentou-se, esquecida da própria nudez, os longos cabelos a lhe servirem de veste.

         - Você me quer longe de Kengarvey porque acha que pode haver conflito.

         Gabel sorriu. Gostaria de poder mentir, mas não conseguiria. E Ainslee era inteligente demais e perceberia facilmente a mentira. A verdade era dura, e ele lamentava, porém sabia que ela a receberia melhor do que qualquer bela mentira.

         - Sim, poderá haver. Eu não queria empunhar a espada contra seus parentes.

         É a última coisa que desejo fazer, pois sei que a magoará também.

         - Você não tem opção.

         - Nenhuma. Se seu pai não respeitar o tratado que faremos, então o rei exigirá uma batalha. E não haverá nada que eu possa fazer para impedir isso, e não posso recusar-me a participar dela. Na verdade, em razão de ter assumido a responsabilidade de encerrar a sangrenta tirania de seu pai sobre esta terra, serei o primeiro homem contra o qual ele se insurgirá. E não quero pensar que você esteja trancada dentro das muralhas que eu tiver de derrubar.

         - Sei que você jamais me magoaria, Gabel.

         - Você sabe como os inocentes podem sofrer no calor da batalha. - Afagou-lhe os cabelos ao vê-la estremecer.

         - Os homens de Bellefleur nunca agiriam como os Fraser - Ainslee protestou, numa voz sumida.

         - Não, não agiriam. Contudo, Ainslee, os homens de Bellefleur podem não ser os únicos junto às muralhas a clamar por sangue e vingança. Se seu pai romper o acordo, o rei ficará tão furioso que poderá querer ver Kengarvey arrasada. Outros podem ser enviados para a batalha. Juro por minha honra que não ferirei ninguém que não tente me enfrentar, que farei o máximo para assegurar que as mulheres e crianças, os inocentes de Kengarvey, não sofram com a estupidez do seu senhor. Mas não posso falar por quaisquer outros que talvez se juntem ao combate.

         - Aqueles como os Fraser e os MacFibhs.

         - Sim, velhos inimigos sedentos de sangue. Promete que deixará Kengarvey e irá para algum outro lugar por algum tempo? Você e Ronald?

         Ainslee gostaria de prometer, nem que fosse apenas pela aflição com que Gabel fizera o pedido, revelando que os sentimentos dele eram realmente mais profundos do que apenas desejo carnal. O que Gabel lhe contara a preocupava muito, mas uma parte de si se enchera de felicidade diante daquele sinal de amor. Gabel lhe pedira uma coisa simples, a certeza de que, quando atacasse Kengarvey, não se arriscaria a matá-la ou a Ronald. Não queria o sangue deles em suas mãos, mesmo que fosse forçado a derramar o sangue do resto de sua família.

         Ainslee, no entanto, não poderia lhe prometer sair de Kengarvey. Seu pai poderia forçá-la a quebrar qualquer promessa que ela fizesse. Não havia como fugir de Kengarvey sem que ele soubesse. E depois do tanto que Ainslee custara a Duggan MacNairn, teria sorte em não ser encarcerada nos calabouços pelo resto da vida.

         - Gostaria de poder lhe fazer essa promessa, mas não posso - ela murmurou, com a voz trêmula, pois estava à beira das lágrimas.

         - Por quê? É tão apaixonada por seu lar que morreria por ele? Ou esse é algum gesto estranho e inútil de lealdade para com seu pai? Se for assim, então poderá desperdiçar sua vida por nada. Não há nenhum lugar para onde possa fugir?

         - Não creio que meu pai deixará que eu saia dos portões outra vez, e fugir de Kengarvey é quase impossível.

         Gabel praguejou, sentou-se e enterrou as mãos nos cabelos.

         - Tem certeza de que seria impossível fugir?

         - Absoluta. Acha que ninguém tentou? Prisioneiros, mulheres sem esperança, servos medrosos e até mesmos soldados acovardados, todos tentaram e ninguém sobreviveu à empreitada, exceto um ou dois que valiam mais vivos que mortos.

         - No entanto seu pai parece que consegue sempre escapar quando a sorte de um combate se volta contra ele. - Os olhos de Gabel se arregalaram diante do sorriso amargo que Ainslee lhe endereçou.

         - Claro que consegue. Deve existir um caminho para fora das muralhas, uma rota de fuga, porém meu pai e meus irmãos são os únicos que sabem onde fica. Ele não contou nem mesmo para minha mãe, para que ela pudesse se salvar e a mim. Eu poderia tentar conseguir a informação de meus irmãos, mas tenho pouca esperança de ter sucesso, tanto que eles temem meu pai. Na verdade, acho que sabem que morreriam se me dissessem.

         - Deus o amaldiçoe - resmungou Gabel.

         - Só posso lhe prometer uma coisa - Ainslee murmurou ao lhe afagar o rosto.

         - Eu tentarei. É tudo que posso fazer. Direi a Ronald que você me pediu, e ele também tentará. - Ainslee esboçou um sorriso triste. - Desculpe-me.

         - Não tem nada do que se desculpar. Na nossa impaciência por batalhas e honra, pensamos apenas em nós mesmos e em nossos próprios ressentimentos.

         - O mundo é assim. Só posso prometer a você uma coisa mais.

         - E o que é? Que seu pai sustentará o acordo e que não preciso me preocupar?

         - Não, receio que isso esteja nas mãos de Deus, e penso às vezes que o Todo-Poderoso deve estar cada vez mais ansioso para entregar Duggan MacNairn ao diabo. Não, prometerei que, se meu pai forçar uma batalha e algo acontecer a mim e àqueles a quem amo, não culparei Gabel de Amalville.

         - É um pequeno consolo.

         - É tudo que posso oferecer.

         - Não, não é tudo - ele murmurou, com a voz rouca ao puxá-la para seus braços.

         - Pode me oferecer um modo de esquecermos o que nos espera. Será uma cegueira momentânea, é verdade, mas será doce - Gabel emendou ao beijá-la.

         Ainslee estremeceu quando estava parada no pátio de Bellefleur, esperando que Gabel trouxesse os cavalos. Fazia frio, porém ela sabia que não era por isso que tremia. Um gelo profundo se instalara em seu coração desde o instante em que havia aberto os olhos e percebido que precisava ir embora. Durante três dias, Ainslee e Gabel tinham passado cada momento que podiam a fazer amor e a tentar não pensar em sua partida. O tempo, contudo, não poderia ser parado para satisfazê-los, e o dia que lutavam com tamanha determinação para esquecer enfim amanhecera. Ainslee sentira como se seu corpo inteiro fosse um único nó duro, enquanto lutava contra o impulso doloroso de chorar e implorar a Gabel que a deixasse ficar com ele. Não havia sido o orgulho que a impedira, e sim o fato de saber que suplicar não mudaria as coisas.

         - Ainslee - chamou uma voz doce, e ela sentiu um ligeiro puxão na capa.

         Respirando fundo, Ainslee virou-se e sorriu para Elaine.

         - É muito cedo para você estar acordada.

         - Eu queria lhe dizer adeus - disse Elaine ao lhe estender um pequeno embrulho.

         - O que é isso? - Ainslee perguntou, aceitando o pacote.

         - Dois dos vestidos de que você gostou tanto.

         - Ah, eu não posso aceitar um presente tão caro. - Tentou devolver o embrulho, mas Elaine empurrou-o de volta para as mãos dela.

         - Pode e vai aceitar. Temos mais vestidos do que precisamos, e você fica muito bonita neles, muito mais do que nós. Minha mãe e eu também desejamos que você tenha algo para se lembrar de nós, pois, infelizmente, receio que nunca mais nos veremos.

         - Eu também creio que não - Ainslee murmurou, e foi difícil falar com aquele nó na garganta. - Agradeço imensamente e gostaria de agradecer à sua mãe também, mas não a vi por aqui.

         - Não a verá. Minha mãe não suporta despedidas. Ela alega que já disse adeus demais na vida.

         - Compreendo. Mesmo quando se tem certeza de que aqueles que partem vão voltar, ainda assim é difícil.

         - Sim. Receio que a relutância de minha mãe seja pelo fato de que muitos daqueles que ela viu se afastarem nunca mais retornaram. - Elaine soltou um longo suspiro e depois endereçou a Ainslee um sorriso tímido. - Você foi a melhor prisioneira que já tivemos.

         - E ninguém poderia pedir por mais gentis captores - Ainslee respondeu, lutando para corresponder ao sorriso de Elaine.

         - Há uma coisa que eu gostaria de lhe pedir.

         Quando Elaine hesitou e mordeu o lábio inferior, Ainslee a incentivou.

         - Peça... que eu farei.

         - Não pretendo ofendê-la - Elaine assegurou e estendeu a mão para afagar o braço de Ainslee. - É que eu ouvi falar tão mal de seu pai...

         - E tem medo que as coisas possam não sair como planejado. - Ainslee tocou o rosto ruborizado de Elaine. - Não tomo isso como ofensa. Sei o que dizem sobre meu pai, e aceito que a maior parte seja verdade.

         - Vai ficar atenta por Gabel e pelos outros? - Elaine olhou na direção dos homens que se reuniam no pátio, preparando-se para a partida. - Há tantos da minha família entre eles. Se houver uma traição ou alguma emboscada...

         - Você perderia a maioria de seus parentes. Ficarei atenta a eles, Elaine. Sei as artimanhas que meu pai pode empregar, e desta vez não tenho a intenção de permitir que seja bem sucedido em qualquer jogo mortal. Alguns poderão me tachar de traidora do meu próprio sangue, mas, já que meu pai concordou com um tratado, não vejo crime em que pelo menos um dos MacNairn tente cumprir a palavra empenhada.

         - Obrigada. Sinto-me mais aliviada ao saber disso, e tenho certeza de que minha mãe também ficará. Boa viagem, Ainslee MacNairn - Elaine murmurou e beijou-a na face antes de se afastar correndo.

         Ainslee ficou observando a jovem desaparecer dentro do castelo. Sentiria saudade da gentileza com que a haviam tratado em Bellefleur, do ar de contentamento de seu povo, e da sensação de segurança que a rodeava. Comparada a Bellefleur, Kengarvey era um lugar sombrio, perigoso e agourento. Não era apenas por querer ficar com Gabel que tinha medo de voltar para casa.

         Endireitou os ombros ao ver que Gabel se aproximava com os cavalos. Num esforço para se acalmar e amenizar a tristeza que a dilacerava, disse a si mesma que conhecera algo de que seu clã precisava fazia muitos anos: paz. Embora tivesse pouca confiança de que seu pai honrasse o tratado por muito tempo, Ainslee não queria que a chance de pacificação de Kengarvey fosse perdida porque fora egoísta demais. Isso lhe deu a força suficiente para encarar Gabel com calma, quando ele lhe estendeu a mão. Com um sorriso débil, ela a tornou e ergueu-se na sela, atrás dele.

         - Você pretende cavalgar Malcolm até o rio? - Ainslee perguntou ao acariciar o flanco musculoso do cavalo.

         - Sim - Gabel murmurou e fez um sinal para conduzir seus homens pelos portões de Bellefleur. - Eu poderia me desculpar, mas não o farei. Ficarei com ele... e o tratarei bem.

         - Não creio que precisarei de um cavalo, já que Malcolm ficaria com meu pai ou com um de seus homens, e eles o tratariam com crueldade. Pretende mostrar a meu pai que vai manter a única coisa que lhe interessou?

         - Pretendo. Nunca discutimos o preço do cavalo, e eu creio que, se ele perguntar no dia de hoje, eu o colocarei tão alto que seu pai jamais concordará em pagar.

         - Ele ficará muito zangado. Sim, realmente enraivecido. - Ainslee franziu a testa ao se encostar em Gabel, descansando a face contra o tecido macio da capa que ele usava.

         - Não sei lhe dizer o que meu pai fará se enfurecer.

         - É difícil saber o que Duggan MacNairn fará a qualquer hora. - Gabel afagou a mão de Ainslee, passada em sua cintura. - Não se preocupe. Meus homens e eu estamos preparados para quase tudo.

         Ainslee rezou para que não fosse uma fanfarronice inútil, mas não disse nada. Tinha avisado Gabel sobre o pai e não o obrigaria a dar atenção às suas advertências. Tudo que poderia fazer era pedir a Deus para que, fosse qual fosse a traição que Duggan MacNairn pudesse ter arquitetado, não incluísse alguma ameaça imediata à vida de Gabel ou à de qualquer de seus homens. Apertou o braço na cintura de Gabel e fechou os olhos, cansada da longa noite de amor, e desesperançada demais para continuar qualquer conversa.

         Gabel suspirou ao sentir o peso de Ainslee aumentar em suas costas. Estava cansado também, porém precisava ficar alerta, e suas emoções se encontravam em tal turbilhão que duvidava que pudesse dormir, de qualquer jeito. A coisa mais difícil que já fizera na vida havia sido acordar Ainslee naquela manhã, sabendo que seria a última vez em que ela estaria deitada em seus braços. O dever o obrigava, porém. Como um covarde, ele a deixara sozinha, com medo do que poderia fazer ou dizer se ficasse com ela mais um instante.

         O que verdadeiramente enraivecia Gabel e o deixava aflito era que não tinha certeza de que tudo estaria acabado quando ele chegasse ao rio e encontrasse Duggan MacNairn.

         - Você deixou a mocinha exausta - Ronald declarou ao aproximar sua montaria a de Gabel.

         Ele olhou para o velho senhor com cautela.

         - Ela está bem. Se precisarmos cavalgar mais depressa, eu a colocarei na sela diante de mim. Seu jeito de ser me confunde. Todos os escoceses são assim, ou apenas você e Ainslee?

         - Está confuso porque não estou clamando por seu sangue? Realmente, você deveria ter sido mais forte e deixado a menina em paz, mas não vejo nenhum mal nisso. Ela estava feliz. É tudo que me importa.

         - E Ainslee não é feliz em Kengarvey?

         - Não, mas nunca reclamou da própria sorte. Irá sobreviver. Eis por que eu a criei para ser forte.

         - Ora, ela é forte, voluntariosa e muito inteligente para uma mulher. Isso deve causar problemas com um pai como Duggan MacNairn.

         - Causaria se eu deixasse o canalha chegar perto da filha, mas faço tudo que posso para manter os dois separados. Duggan quase a matou uma vez, e jurei que ele nunca mais poria as mãos em Ainslee de novo, não enquanto eu vivesse.

         - Ela me falou sobre isso. Parece que pelo menos um dos irmãos pode ter algo de bom dentro de si. Ronald concordou.

         - O jovem Colin. Ele pode protegê-la. Os outros três não têm o coração tão empedernido como o pai, porém morrem de medo dele, e nunca iriam contra MacNairn, não importa quanto pensem que esteja errado. Colin passou alguns anos num mosteiro, aprendeu algumas lições com os monges, e é isso que lhe dá forças para intervir, embora o faça raramente.

         - Ele deve ter algum juízo, pois faz isso e sobrevive. E, pelo que me disseram, muito poucos questionam o que MacNairn faz e vivem para contar.

         - Não precisa recear por Ainslee. Eu a mantive bem esses anos todos e, se Deus quiser, continuarei a fazê-lo.

         Gabel gostaria de ter certeza de que Ainslee não pagaria caro demais por aquilo que o pai se vira forçado a fazer. Pediu a Deus que, antes que chegassem ao rio, pudesse lhe ocorrer alguma solução brilhante para o problema de conseguir um tratado e manter Ainslee em segurança.

         Ainslee gemeu baixinho ao ser erguida da sela. Quando Gabel a colocou de pé e virou-se para cuidar do cavalo, ela olhou ao redor e lutou para se livrar na névoa do sono. Seu repouso fora atormentado por pesadelos.

         Ao ver Ronald sentado sob uma árvore torta e desfolhada, Ainslee aproximou-se e se sentou ao lado dele.

         - Está se sentindo mal por alguma coisa? - Ronald perguntou ao lhe oferecer o odre de vinho. Ela tomou um gole. - Além de deixar aquele normando, quero dizer.

         - Não, estou apenas cansada.

         - Cansada? Você dormiu a manhã inteira.

         - Foi um sono atribulado, cheio de pesadelos e medos horríveis daquilo que está por vir.

         - Talvez os pesadelos tenham voltado porque você está chegando perto de Kengarvey - Ronald disse, abraçando-a pelos ombros.

         - Não sonhei com minha mãe. Sonhei conosco, todos nós, aqui e agora. Sonhei com o rio - Ainslee murmurou, com a voz abalada pelo horror das cenas em sua mente.

         - Pela palidez do seu rosto, acho que não tivemos um bom destino.

         - Não, não tivemos. Talvez seja a minha desconfiança em meu pai que me faz ver traição e morte.

         - O que você viu, menina?

         - Estávamos todos lá, os homens de Bellefleur de um lado e meus parentes do outro. O rio que corria entre nós não era nem cinzento nem azul, mas vermelho. Vermelho de sangue.

         - E onde estava você?

         - Parada no meio do rio, olhando para o fluxo vermelho redemoinhar pelos meus joelhos e tentando fazê-lo parar. Era como se aquilo fluísse de mim, embora eu não tivesse nenhum ferimento.

         - Um sonho muito tenebroso, realmente - Ronald murmurou, e estremeceu com um calafrio. - Só rezo para que você não tenha se tornado vidente e que não se trate de algum presságio.

         - Não pode rezar mais do que eu para que nada disso seja verdade.

         Ronald beijou-a no rosto ao ver Gabel caminhar na direção deles.

         - Lá vem seu esplêndido amado, menina. Vá com ele. Talvez Gabel possa afastar essa escuridão da sua mente.

         Ainslee deixou que Gabel a puxasse pela mão. Sorriu timidamente para Justice quando ele lhes entregou um farnel com pão, queijo e vinho. Depois, seguiu Gabel até um local apartado do acampamento e dos olhos curiosos de seus homens. Ele sentou-se num ponto coberto de musgo no chão, debaixo de uma árvore frondosa, e puxou Ainslee para o seu lado.

         - Você parece muito cansada e deprimida para alguém que passou as últimas horas ressonando nas minhas costas - disse Gabel ao lhe entregar uma porção do lanche.

         - Eu não ressonei - ela protestou e começou a comer. - Nem baixinho.

         - Não, claro que não. Deve ter sido o vento.

         - Deve.

         - E foi o vento que gritou algumas vezes? - ele perguntou calmamente, observando-a pelo canto dos olhos.

         Ainslee suspirou e tomou um longo gole do vinho forte do odre.

         - Antes que me pergunte, não, não sonhei com minha mãe de novo.

         - Bem, seja o que for, não era agradável.

         - Sei que algumas pessoas dão pouco valor aos sonhos.

         - Nunca mudei meus planos por causa de um sonho, mas não descarto completamente o valor deles. O seu não é reconfortante, mas não sei como avaliar seu significado.

         - Acho que há perigo a esperar por nós naquele rio - Ainslee murmurou.

         - Bem, sabíamos disso antes de partirmos, de manhã. Sabemos faz dias. Talvez seja o que preocupa a sua mente e lança tanto horror nos seus sonhos.

         - Quem sabe - ela declarou, um pouco irritada.

         - É evidente que você não pensa assim. O que acha que seria preciso fazer? Quero dizer, você realmente acredita que viu o futuro, que Deus ou alguma coisa tenta nos avisar?

         - Eu não sei. Foi por isso que contei a você e a Ronald sobre o sonho.

         - Vamos imaginar que seja um aviso, um que deveríamos escutar. O que devemos fazer? Voltar a Bellefleur e nos acovardar atrás das muralhas? Enfrentar seu pai, armados e preparados para a batalha, mesmo que ele esteja cumprindo com tudo com que concordou? Ou, quem sabe, deveríamos traí-lo, avançando sobre seus parentes pela retaguarda e matando todos eles antes que possam empunhar uma espada contra nós?

         - Não, não pode fazer nada disso - Ainslee resmungou e se encolheu.

         - Talvez você tenha razão. Estou com medo, confesso, e isso tem me feito ver demônios e morte quando fecho os olhos. - Ela o fitou e agarrou-se ao braço de Gabel.

         - Mas, pelo menos, vamos tomar algumas precauções a mais. Quem sabe esse sonho diga que haverá derramamento de sangue entre os MacNairn e os De Amalville. Não podemos fazer algo para assegurar que ao menos ele não seja derramado no rio esta tarde?

         - Creio que já nos preparamos bem, porém verificarei de novo para ter certeza.

         - Obrigada, Gabel. Peço desculpas... - Ainslee calou-se quando ele pousou um beijo em sua boca.

         - Iremos descansar aqui apenas por uma hora, e depois continuaremos até o rio. Pouco antes que chegarmos à margem, devolverei todas as armas a você. Posso confiar que não vai enterrar um punhal em mim?

         - Não, não vou, e obrigada por fazer isso, já que sentirei um pouco menos de medo se estiver armada.

         - Acha que seu pai faria algo para feri-la?

         Ainslee deu de ombros.

         - Quem pode dizer? Pelo menos ele hesitaria por um momento se eu tivesse uma espada na mão.

         - Só um tolo não hesitaria se a enfrentasse quando você empunha uma espada. - Gabel abraçou-a e beijou-a, tentando confortar Ainslee e a si mesmo, embora soubesse que não adiantava.

         - Peço a Deus para não colocar você em perigo - ela murmurou.

         - Não há nada que possa ser feito para mudar a situação. Você deve ser devolvida a Kengarvey pelo seu bem e pelo bem do meu povo. E se eu não voltar, terei posto tudo a perder. - Gabel levantou-se e estendeu-lhe a mão.

         - Acho que é melhor nos reunirmos aos outros. Não posso ficar sozinho com você por muito tempo, ou os meus pensamentos se voltam para outra coisa...

         Ainslee levantou-se e riu com doçura, o prazer ao ouvir tais palavras amenizando sua tristeza.

         - É um homem muito ávido, Gabel de Amalville.

         - Eu gostaria muitíssimo de ser bem mais ávido - ele disse e a fitou por um longo instante antes de levá-la de volta para o acampamento.

         Ainslee apressou-se a acompanhar-lhe as longas passadas, e ficou intrigada com aquilo que Gabel tinha dito. Parecera uma constatação de um pesar profundo diante da necessidade de mandá-la embora, mas ela receava que pudesse ter deixado que seu coração visse muito além do sentido das palavras. Gostaria de perguntar o que ele quisera dizer, porém afastou a idéia. Não importava. Mesmo que estivesse certa, e Gabel aludisse a algo que sentisse por ela, isso apenas serviria para lhe mostrar quanto estava perdendo ao ir embora.

         O grupo seguiu caminho outra vez. Ainslee começou a reconhecer a região que atravessavam, e seu coração se apertou. Em apenas poucas horas ela estaria de volta à sua família, e tinha medo disso. Se tivesse a chance e houvesse um lugar para onde pudesse ir, deixaria Kengarvey. Embora amasse sua terra e muita gente ali, não era mais um lugar em que quisesse viver. Devia existir um refúgio para ela em algum lugar, e jurou que o encontraria.

         - Chegaremos ao rio dentro de alguns momentos - Gabel disse em seguida, puxou as rédeas do cavalo e desmontou.

         - Reconheci este local, embora tenha vindo tão longe apenas poucas vezes - Ainslee contou quando ele a ajudou a descer da sela.

         - Eu trouxe uma velha égua para você atravessar o rio. - Gabel fez um sinal a um dos primos para que levasse o animal até onde ambos se encontravam. - Suas armas já estão presas na sela.

         Ainslee olhou para a montaria que Justice puxava, e sorriu.

         - Creio que meu pai perceberá que não estou cavalgando Malcolm - murmurou, e Justice riu.

         Gabel esboçou um sorriso.

         - Espero que ele perceba. É um gesto maldoso, mas, desde o momento em que seu pai perguntou pelo cavalo antes de perguntar de você, decidi que ele não teria Malcolm de volta. Esta égua foi uma boa montaria e uma excelente reprodutora. Espero que não seja maltratada, pois está velha e é provável que morra logo. - Afagou o focinho do animal.

         Gabel ajudou-a a se acomodar na sela enquanto Justice se afastava. Apesar dos esforços para se manter calmo, demorou-se por alguns instante, a mão a acariciar a perna de Ainslee, por sobre as meias grossas.

         - Pode não haver tempo para dizer adeus quando chegarmos ao rio... - ele começou.

         Ainslee inclinou-se e pousou-lhe um beijo na boca.

         - Então, diga agora - murmurou.

         - Adeus, Ainslee MacNairn - Gabel disse com suave ternura. - E tenha cuidado.

         - Sim, assim como eu rezo para que você também tenha, Gabel de Amalville. Não permita que meu pai faça algum mal a você ou aos seus.

         Ele concordou com a cabeça e, por um breve momento, aumentou o aperto na perna de Ainslee. Em seguida, saltou de novo para a sela de Malcolm. Ficou alarmado ao constatar quanto era duro dizer adeus a ela. E teve de lutar contra o impulso avassalador de agarrá-la, colocá-la na sela e galopar para lugares desconhecidos, maldizendo o rei e todas as intrigas da corte.

         Conforme cavalgavam na direção do rio, Gabel começou a se dar conta do gravíssimo erro que poderia estar cometendo. Quando viu os MacNairn à espera na margem oposta, praguejou.

         Avaliou o adversário conforme avançavam até a beira do rio. Duggan MacNairn era um homem grande, de compleição sólida, as mãos nos quadris e a postura de arrogância. Poderia intimidar alguém simplesmente com um olhar. Vê-lo fez Gabel acreditar em tudo que era dito sobre ele, e perceber que tinha ainda algumas dúvidas. Parecia impossível que alguém pudesse cometer tantos erros e sobreviver por tanto tempo, mas um olhar bastou para desvendar aquele enigma. A única maneira de impedir que MacNairn fizesse exatamente o que queria era matá-lo.

         - Então, seu normando intrometido, trouxe a vagabunda da minha filha de volta! - berrou Duggan MacNairn.

         Ainslee cavalgou para perto de Gabel e murmurou:

         - Ele só está tentando intimidá-lo.

         - Eu sei - disse Gabel, de dentes cerrados. - O modo com que se refere a você me espanta.

         - Meu pai não conhece outra maneira de falar. - Ela se arriscou a fazer um aceno sutil a Colin, que se postava atrás do pai, e, para sua alegria, o irmão o retribuiu, embora com cautela.

         - Ainda está disposto a aceitar a troca e manter seu juramento ao nosso rei? - Gabel indagou.

         - Estou aqui, não estou normando? - Duggan fez um sinal a um homem, que se aproximou da margem do rio.

         Enquanto Gabel proclamava os termos do tratado, e Duggan reafirmava a concordância diante de testemunhas e depois repetia o juramento de lealdade ao rei, Ainslee examinou a área.

         A presença de seu pai já era suficiente para deixar qualquer pessoa prudente com suspeitas, mas se tratava mais do que isso que eriçava os pêlos de seus braços, fazendo-lhe formigar a pele. Duggan se mostrava muito cordial. Não havia nenhum sinal da fúria que devia devorá-lo. Via-se obrigado a se inclinar diante de um cavaleiro normando e jurar apoiar um rei que ele desprezava. Isso o faria arrancar os cabelos, num ataque de fúria, mas MacNairn se postava lá como se fosse o dono do mundo. E tal atitude a deixou muito nervosa.

         - Algo está errado - Ainslee resmungou quando Ronald emparelhou a montaria com a dela. Relanceou os olhos para ele antes de voltar a estudar cada pedaço de chão de ambas as margens do rio.

         - O que a faz pensar assim, Ainslee? - Ronald perguntou, e se inclinou para ouvi-la acima dos brados dos dois lados.

         - Olhe para meu pai, Ronald. Onde está a raiva? Ele foi derrotado e, no entanto, está lá como se fosse o vitorioso.

         Deveria sentir tamanha fúria que precisaria ser amarrado a uma árvore para impedi-lo de se lançar pelo rio num ataque cego e mortal contra Gabel.

         - Sim, o velho Duggan parece muito à vontade. - Ronald olhou ao redor.

         - Não consigo ver nada.

         - Nem eu, e isso deveria me acalmar, mas os meus temores estão cada vez mais fortes. Maldição preciso ficar atenta, pois logo iremos cruzar o rio.

         Ainslee continuou a esquadrinhar o terreno, porém não havia nada. Ela praguejou no íntimo. Sentia uma ansiedade crescente, pois não tinha certeza de conhecer todas as artimanhas que o pai poderia arquitetar. Precisava ser capaz de perceber uma armadilha e avisar Gabel. No momento em que fosse feita a troca pelo resgate, ela, Gabel, Ronald e. Justice estariam no meio do rio de águas velozes, e não haveria meio de protegê-los.

         - Pronto, já foi dito tudo para a sua satisfação, normando? - berrou Duggan.

         - Sim - respondeu Gabel, a voz tensa da raiva.

         - Então mande a vagabunda para mim. Suponho que vá devolver o aleijado também.

         - Ele é um homem seu.

         - Homem não é a palavra correta para o velho idiota. Vamos, coloque-a no lombo do cavalo dela e mande-a para cá, enquanto eu mando meu mensageiro encontrá-lo.

         - Sua filha está montada no animal em que vai ser devolvida.

         Ainslee recuou quando o pai começou a esbravejar e a lançar uma saraivada de impropérios contra Gabel. Colin deu um passo à frente e disse algo ao pai, mas se passaram alguns instantes antes de MacNairn se acalmar. E Ainslee se encolheu de vergonha.

         - Não consigo ver nada - ela murmurou, para que só Ronald a ouvisse.

         A lembrança do sonho horrível voltou-lhe à mente quando ela olhou ao redor, tentando inutilmente descobrir a armadilha que sabia que seu pai armara.

         - Chegou o momento, Ainslee - disse Gabel, arrancando-a dos pensamentos.

         - Não - ela murmurou, dominada por uma onda de pânico.

         Ele estendeu a mão para tocar as mãos de Ainslee, fechadas em punho.

         - Está com medo de seu pai?

         Depois de respirar fundo para acalmar-se, ela virou-se e encarou Gabel.

         - Não, foi apenas um instante de pavor. Não é nada.

         - Tem certeza? Está muito pálida.

         - Ficarei bem.

         - Ainslee...

         Ela encostou os dedos nos lábios do normando. -

         - É hora de fazermos o que o dever exige.

         Gabel comprimiu os lábios numa linha dura e concordou.

         Lentamente, levaram os animais através do rio. Ao mesmo tempo, o homem dos MacNairn começou a travessia da outra margem. Deveriam se encontram no meio da corrente e trocar o resgate por Ainslee, e depois voltar para as respectivas margens. Embora rezasse para que nada acontecesse que tudo corresse como deveria, e Gabel voltasse em segurança para a sua gente e o seu lar, Ainslee continuou a procurar por algum sinal de perigo.

         O enviado de MacNairn se encontrava tão perto que ela podia ver o suor no rosto do homem.

         E quando ele lançou um olhar nervoso numa certa direção, Ainslee seguiu-lhe o olhar e viu que não estava imaginando coisas. No alto de uma árvore do lado do rio em que se postava seu pai, havia um arqueiro. Mirava a seta diretamente em Gabel. Embora ela tivesse certeza de que haveria outros espalhados pelas árvores, não teve tempo de procurá-los.

         - Uma armadilha! - gritou, e chutou Gabel da sela.

         Ele escorregou de lado e, antes que pudesse endireitar-se, ouviu o silvo característico de uma flecha a cortar o ar bem perto. Se ainda estivesse sentado ereto, ela teria se enterrado em seu peito.

         Então Ainslee soltou um grito, e Gabel se apavorou. Julgou que ela tivesse sido alvejada pelas flechas que agora enchiam o espaço em torno deles. Viu-a tentar agarrar Ronald, que caiu no rio e logo desapareceu nas corredeiras, o corpo se revirando ao ser levado pelas águas velozes. Ainslee mandou Feioso atrás de Ronald e, depois, o fitou. E Gabel sentiu o coração apertar-se ao ver-lhe a expressão de pânico.

         - Fuja enquanto pode, Gabel. Lembre-se, não o culparei por aquilo que será obrigado a fazer. Fique alerta. - Ainslee esporeou o cavalo para a frente e seguiu em direção ao pai.

         Gabel gritou por ela, mas antes que pudesse tentar alcançá-la, Justice agarrou as rédeas de seu cavalo e puxou-o para trás.

         - Ainslee vai se matar! - Gabel protestou quando seu primo o arrastou para longe.

         - Está tentando salvar a sua vida, idiota! Não desperdice a chance que ela lhe deu!

         Custou um instante para que Gabel percebesse o que Ainslee fizera. Ao cavalgar na direção de seu pai, ela deixara confusos os homens de MacNairn. Tinham parado de disparar as flechas, com medo de atingir a filha de seu lorde, e o breve intervalo foi tudo de que Gabel precisava. Ao retornar à relativa segurança da margem oposta, ele ouviu Duggan MacNairn berrar aos seus homens para que continuassem a lançar as flechas sem nem pensar na segurança da própria filha.

         Gabel não pôde saber como estava Ainslee até que recuaram o suficiente para ficar fora do alcance das flechas de MacNairn. A montaria de Ainslee lutava para subir a margem oposta, e o pai foi rápido em alcançá-la. Arrancou-a da sela e jogou-a no chão antes que ela tivesse a chance de sacar uma arma e se defender. Foram precisos dois homens para segurar Gabel quando Duggan MacNairn ergueu a filha do chão e começou a esmurrá-la, até que Ainslee caiu. Então, começou a chutá-la.

         - Ele vai matá-lá! - Gabel gritou, mas foi incapaz de se livrar das mãos dos primos.

         - E se você partir como um cego para resgatá-la, será abatido! - exclamou Justice. - Isso não fará nenhum bem a Ainslee, e ela não haveria de querer que você morresse. Fez tudo para salvá-lo, não para que enfrente os MacNairn num ataque de fúria e cavalheirismo fora de hora.

         - Olhe - disse Michael ao apontar para a cena horrível do outro lado do rio. - Há pelo menos um daqueles covardes que não deixará que ele a mate.

         Conforme lutava para controlar a ira cega, Gabel viu Colin MacNairn agarrar o pai e puxá-lo para longe. Os dois se enfrentaram furiosamente por um momento, o filho falava o tempo todo. Quando o rapaz finalmente soltou Duggan MacNairn, foi atingido por um soco e caiu ao lado da apavorada Ainslee. Mas Duggan não voltou a espancar a filha. Em vez disso, o senhor de Kengarvey dirigiu sua atenção para os homens de Bellefleur.

         Ambos os lados se encararam, mas tudo que trocaram foram uns poucos berros insultuosos. Gabel sabia que seus homens estavam furiosos com a armadilha traiçoeira. Ele, contudo, hesitou. O que acabara de acontecer mostrava que não sabia que forças tinha o inimigo, ou onde todos os homens estavam. Havia também Ainslee a considerar. Se ainda estivesse viva, e ele se obrigou a acreditar que sim, poderia ser resgatada no meio do combate. O lugar que Gabel escolhera para o encontro havia sido cuidadosamente selecionado para protegê-lo e a seus homens; contudo não era um bom local para tentar enfrentar um inimigo em batalha.

         - Não vamos fazer nada? - perguntou Michael, o rosto contorcido pela fúria.

         - Estou tentando pensar o que poderemos fazer sem arriscar nossas vidas - retrucou Gabel, a voz ríspida ao tentar controlar a raiva. - Eles não virão até nós, portanto teremos de ir atrás deles, e isso nos coloca no meio do rio.

         - Onde os arqueiros podem nos matar ao seu bel-prazer - disse Justice, e socou a própria coxa num gesto de frustração. - Não importa quanto avancemos depressa, perderemos muitos dos nossos homens.

         - Encontre Ronald - Gabel ordenou. - Precisamos engolir nossa fúria e orgulho e recuar, a menos que MacNairn tente nos atacar, mas eu não creio que ele seja tolo.

         - Ronald com certeza está morto - protestou Michael.

         - Então me traga o corpo, para que eu possa lhe dar um enterro como ele merece. Não posso ajudar Ainslee agora, mas pelo menos ela algum dia saberá que me importei com o seu amigo.

         Gabel encarou Duggan MacNairn enquanto seus primos se afastavam a galope. O homem sabia que estava seguro. Sabia que Gabel nunca arriscaria a vida de seus homens cruzando o rio. O que amargurava ainda mais o normando era a certeza repentina de que era por essa razão que MacNairn concordara tão prontamente com o local de encontro que ele escolhera. Gabel havia procurado o lugar mais seguro, e MacNairn vira o ponto perfeito para uma armadilha.

         Ao observar o inimigo se preparar para partir, com as provocações retinindo em seus tímpanos, Gabel voltou a atenção para Ainslee. O irmão, Colin, cuidava dela, e, ao vê-la se mexer ligeiramente, ele soltou um profundo suspiro de alívio. Tinha certeza de que Ainslee não estava morta, que Colin impedira o pai a tempo. Sentiu-se ainda mais tranqüilo quando viu o irmão carregá-la até seu cavalo, colocá-la na sela e montar atrás de Ainslee. Por enquanto, ela estava a salvo da sanha de Duggan, e Gabel sentia que Ainslee saberia como se manter fora do caminho do pai, em Kengarvey. Gostaria que Ronald estivesse ao lado dela, mas pelo menos havia alguém em Kengarvey disposto a mantê-la viva.

         - Vamos caçá-los, milorde? - perguntou um dos homens de Gabel quando os MacNairn começaram a desaparecer na mata fechada da margem oposta do rio.

         - Não - ele respondeu por entre os dentes cerrados pelo esforço de controlar a vontade de ir atrás de Duggan MacNairn e transpassá-lo com a espada. - Revira meu estômago ficar sentado aqui e ver os cães se esgueirarem para longe, porém não podemos vencê-los agora. Eles armaram a armadilha e nós caímos nela. Tudo que podemos fazer é ter certeza de que não morreremos todos por causa da minha cegueira. MacNairn pagará. Infelizmente, seu povo também. O idiota arrogante pensa que venceu, mas apenas assinou a sentença de morte para o seu clã.

         Enquanto os MacNairn desapareciam, Gabel e seus homens aguardaram que Justice e Michael retornassem. Gabel enviou alguns dos homens até o bosque vizinho para procurar por algum sinal de armadilhas. Ao ver os primos se aproximarem, por fim, com uma forma enrolada em uma manta sobre a sela de Justice, ele suspirou. Parecia injusto demais que a traição de MacNairn tivesse custado a vida de Ronald. Quando Ainslee soubesse do destino do amigo, ficaria com o coração despedaçado, pois o velho tinha sido realmente seu pai, assim como seu mais fiel companheiro.

         - Ele não está morto - Justice anunciou ao se aproximar de Gabel.

         - Não? - Gabel desmontou e examinou o velho antes de pedir que fizessem uma maça.

         - Como conseguiu sobreviver? - resmungou ao tirar o inconsciente Ronald do cavalo.

         - Levou uma flechada no peito e está enregelado até os ossos. - Conforme depositava gentilmente Ronald no chão, afagou o focinho de Feioso que, encharcado, deitou-se perto do escocês.

         - Vimos o cão primeiro - explicou Justice ao desmontar e parar perto de Gabel. - Feioso tirou o velho do rio. Verificamos que ainda estava vivo, cuidamos do ferimento da melhor forma que pudemos e o trouxemos para cá. - Justice meneou a cabeça ao examinar Ronald.

         - Não tenho certeza de que conseguirá sobreviver até chegarmos a Bellefleur.

         - Ronald viverá - Gabel jurou ao ajudar a tirar as roupas molhadas de Ronald e a enrolá-lo em mantas. - Não tenho causado nada além de problemas e aflições para Ainslee MacNairn, e ainda há mais coisas por acontecer. Pelo menos posso lhe devolver a única pessoa que realmente se importa com ela.

         - Acha que a verá novamente? - Justice perguntou.

         - Eu preciso - Gabel retrucou. - Nem que seja para lhe implorar perdão por tornar tudo dela e lhe dar apenas sofrimento e dor.

         Ainslee sufocou um gemido quando recobrou a consciência, e a dor pareceu intensificar-se em seu corpo machucado. Sentiu uma presença forte e quente às costas, e por um breve instante teve esperanças de que fosse Gabel. Um olhar para as mãos nas rédeas foi o bastante para dissipar o sentimento. Espiou por sobre o ombro e esboçou um sorriso tímido para o irmão Colin. Embora a lembrança do ataque furioso de seu pai fosse, na maior parte, um borrão de terror e sofrimento, ela sabia que havia sido Colin que lhe salvara a vida.

         - Obrigada - murmurou, e viu um breve lampejo de suavidade naqueles duros olhos azuis.

         - Você é o meu sangue. Não poderia deixar meu pai matar minha irmã - ele retrucou, numa voz seca.

         - E os De Amalville? - Ainslee perguntou.

         - Retornaram a Bellefleur, sem dúvida para planejar a melhor maneira de nos matar a todos.

         Ela estremeceu, pois sabia que era exatamente esse o destino que seu pai fizera recair sobre todo seu clã.

         - E Ronald? - Ainslee ficou tensa, à espera da resposta.

         - Não sei qual foi o destino dele - Colin murmurou, uma sombra de pesar na voz.

         - A última vez em que o vi, estava sendo levado pelo rio, com aquele seu cão correndo atrás dele pela margem. Ronald levou uma flechada no peito. - Colin firmou o aperto em torno de Ainslee ao senti-la vacilar na sela.

         - Ronald sobreviveu a um ferimento sério antes - disse ela.

         - Sim, mas sem dúvida tinha você para cuidar dele. Estará sozinho agora.

         - Não - Ainslee murmurou com uma convicção nascida do fundo do coração.

         - Gabel cuidará dele.

         - Um MacNairn? Você está louca.

         - Não, Gabel cuidará de Ronald. Ele não partirá até que o encontre, e, se o meu querido amigo estiver vivo, Gabel fará tudo que puder para assegurar que possa sobreviver, ou lhe dará o enterro decente que ele merece.

         - Bem, acredite no que quiser. Eu só rezo para que, em poucas semanas, quando todos estivermos amontoados no chão, haja alguém que tenha a gentileza de nos enterrar.

         Ainslee gostaria de poder reafirmar ao irmão que o futuro não seria tão sombrio, mas não era uma boa mentirosa, e Colin era inteligente o bastante para saber quando ela mentia.

         Gabel devia estar furioso com aquela traição e, mesmo que pudesse encontrar algum modo de fazer seu pai pagar sem derramamento de sangue, o rei não lhe daria ouvidos. Duggan MacNairn jogara fora a última chance de sobrevivência de seu clã, e dessa vez não poderia salvar nem a si mesmo nem aos seus preciosos filhos.

         - Acorde, Ainslee, mas não se mexa.

         O murmúrio arrancou-a do sono inquieto em que mergulhara. Compreendeu o aviso por trás das palavras de Colin. Seu pai estava perto, e ela poderia lhe atrair a atenção se não fosse cuidadosa. Seu irmão poderia lutar para impedir que ela fosse morta, mas não poderia salvá-la de tudo que Duggan poderia querer fazer com ela.

         Conforme atravessavam os pesados portões de Kengarvey, Ainslee ficou admirada com o trabalho que havia sido feito. Com tantos inimigos a rodeá-lo, seu pai nunca tivera tempo para edificações em pedra, mesmo que tivesse dinheiro para tanto, mas era evidente que o povo maltratado de Kengarvey tinha se tornado muito hábil em se fechar numa cidadela de madeira. As robustas muralhas de pedra de Kengarvey ainda estavam intactas, e qualquer coisa que houvesse sobrevivido ao último incêndio fora bem utilizado. Mas não importava mais, na realidade, de que forma seu pai erigia sua fortaleza, pois ela suspeitava que, mesmo que Duggan MacNairn estivesse de posse da esplêndida Bellefleur, nem aquela magnífica fortificação poderia protegê-lo.

         Assim que entraram no pátio, ela avistou o pai e estremeceu, detestando a si mesma pelo temor que sentia, mas incapaz de controlá-lo. Quando ele desmontou e caminhou em sua direção, Ainslee fingiu estar inconsciente. Não pudera cuidar dos ferimentos que ele lhe causara, e poderia não agüentar mais alguns.

         - Então, a vagabunda ainda está desmaiada! - Duggan exclamou ao parar perto do cavalo de Colin e olhar, furioso, para a filha.

         - Acho que pode ser mais sério que um desmaio, pai - Colin murmurou. - E por que continua a chamá-la de vagabunda?

         - E o que você acha que ela esteve fazendo com aquele canalha normando enquanto ficou em Bellefleur?

         - Não tenho provas de que Ainslee estivesse fazendo alguma coisa com ele.

         - Aqueles monges embotaram seu juízo, rapaz. Claro, o homem se satisfez com ela e, já que parecia bastante sã quando veio até nós, creio que Ainslee gostou muito. É uma boa coisa que eu não tenha arranjado um casamento para ela, e isso nunca vai acontecer, já que sua irmã me custou bastante.

         - Pensei que tínhamos vencido hoje, pois temos Ainslee de volta e ainda conservamos o resgate que o senhor recolheu.

         - Sim, é verdade. Cuspi bem no olho daquele porco normando, e ele não se esquecerá disso facilmente.

         - Não, com certeza não esquecerá - Colin concordou com uma voz grave.

         - Bem, jogue essa estúpida em algum lugar e venha festejar comigo. É um dia para celebração.

         - Irei me juntar a vocês logo - disse Colin, mas Duggan já seguia para a fortaleza.

         Depois de espiar para ter certeza de que seu pai se afastara, Ainslee endireitou um pouco o corpo.

         - Ele realmente acredita que venceu - murmurou, espantada que Duggan pudesse ser tão cego.

         - Nosso pai realmente ganhou no dia de hoje - Colin disse ao desmontar, e depois estendeu os braços para pegar Ainslee.

         - Alguém poderia dizer que sim, mas ele perdeu mais do que ganhou. - Ela cerrou os dentes para suportar a dor em seu corpo quando seu irmão a carregou para dentro e começou a subir a estreita escada de madeira. - Nosso pai é um homem morto. Você sabe disso, não é?

         - Sim, sei. Você verá que o incêndio não destruiu tudo. O seu quartinho ainda está inteiro.

         - E uma bênção.

         Só depois que se enfiou na pequena cama, com os ferimentos lavados e enfaixados, foi que Ainslee encontrou outra oportunidade de falar em particular com Colin. Ele sentou-se na beira da cama e ajudou-a a beber um pouco de hidromel. Ela gostaria que seu irmão não parecesse tão deprimido, mas não tinha nada a dizer que pudesse animá-lo.

         - Você precisa ir embora de Kengarvey, Colin - Ainslee murmurou e segurou-lhe a mão.

         - Ah, é? E para onde eu iria?

         - De volta para os monges?

         - Não posso. Quando nosso pai resolveu que eu não precisava aprender mais nada, não apenas me tirou de lá, como se apossou de tudo que eles tinham de valor.

         - Roubou uma igreja? Roubou dos homens santos?

         - Ele não acha que todos os monges são homens santos, menina. Havia alguns lá mergulhados em pecados, e não se importavam nem um pouco em salvar as almas.

         Ainslee ficou um pouco surpresa quando seu irmão soltou uma risada cínica.

         - Gabel voltará, Colin.

         - Você o chama de Gabel. Talvez papai tenha razão.

         - Que eu sou uma vagabunda?

         - Não, em dizer que você se deitou com o normando.

         Ela enrubesceu e sorriu.

         - Ora, isso não importa.

         - Não para mim, mas eu não deixaria papai saber. Ele iria pensar que se trata de algo que poderia usar, e você se veria entre os dois.

         - Jamais. Nunca passarei por isso de novo. Mas, escute-me, Colin. Gabel virá e arrasará Kengarvey. Ele não tem escolha. O rei ordenará. Precisamos rezar para que apenas os homens de Bellefleur venham derrubar os nossos portões.

         - Não posso compreender por que rezar por algo assim. Como isso nos ajudaria?

         - Gabel conhece o valor da misericórdia. O que eu receio é que outros se juntem à batalha, aqueles que desejam ardentemente ver cada MacNairn afogado na poça do próprio sangue, aqueles como os Fraser e os MacFibh.

         Colin suspirou e correu as mãos pelos longos cabelos acobreados

         - Então, estamos com o destino selado, pois eles não vão parar até que nada reste de Kengarvey, a não ser sangue e cinzas.

         - Quando o inimigo vier e você compreender que a batalha está perdida, entregue-se a um homem de Bellefleur e renda-se - aconselhou Ainslee.

         - Por quê? Para que eu também possa ser arrastado acorrentado diante do rei? Prefiro morrer pela espada a encontrar a morte horrível que ele escolherá.

         - Para que possa ter a chance de viver. Gabel jurou que fará tudo para salvar os que ele puder. Nosso pai é um homem morto. Morreu quando a primeira flecha foi disparada no rio. Você não precisa morrer com ele. Nem você, nem nossos irmãos, se puderem se entregar nas mãos de Gabel. Ele não deseja aniquilar o clã. Procura apenas a paz, e está disposto a acreditar que poderá negociar com os filhos, se não puder fazer isso com o pai.

         - E como ele pretende negociar com a filha? - Colin perguntou, num tom suave.

         - Gabel pretende me manter viva, mas não pode fazer mais nada. Prometa-me, Colin, que tentará se salvar e quem sabe também um ou todos os nossos irmãos.

         - Não tenho vontade de morrer, Ainslee.

         Só quando Colin saiu foi que Ainslee percebeu que ele não prometera nada. Suspirou ao se dar conta de que o irmão provavelmente não havia acreditado nela. Ainda havia tempo para convencê-lo, pois sabia que se passariam semanas antes que uma batalha fosse travada. Seria primavera quando Duggan MacNairn se visse obrigado a pagar o preço de sua traição.

         Ainslee lutou para pôr de lado todas as preocupações, os medos, o pesar por Ronald e o sofrimento de haver se afastado de Gabel. Precisava descansar. Antes que a batalha final chegasse aos portões de Kengarvey, ela tentaria conversar com o pai, fazê-lo ver que estava condenando a todos e que, mesmo que não pudesse salvar a si próprio, poderia pelo menos tentar preservar o clã. Tal confronto poderia lhe custar a vida, e ela sabia disso, mas não poderia se acovardar e se esconder no quarto sem procurar salvar seu povo. Quando muito, simplesmente seria vítima de outra surra furiosa, e precisava ser forte para suportar e sobreviver a isso.

         Antes de se entregar ao sono, Ainslee rezou por Ronald, pediu a Deus para que fosse encontrado e estivesse vivo. Não queria que ele pagasse um preço tão caro pela traição de seu senhor. Também rezou por Gabel. Sabia que ele tinha visto como seu pai a recebera, e a única real preocupação que Gabel havia demonstrado, fora pela segurança dela. Sem dúvida devia estar se sentindo culpado, e ela desejava continuar viva pelo menos até poder aliviá-lo de tão pesado fardo.

         -- Vocês precisam falar com o rapaz - Ronald disse aos dois jovens tristonhos sentados em sua cama. - Ele está intratável faz uma semana, e isso não ajuda ninguém.

         Justice trocou um sorriso com Michael e depois olhou para Ronald.

         - Gabel sabe, como todos nós, que agora deve enfrentar o rei com o fracasso e empunhar a espada contra o seu clã.

         - Sim, pois aquele idiota de Duggan não lhe deu nenhuma escolha.

         - Você está muito calmo e conformado com o fato de que o seu povo enfrentará a destruição.

         - Meu povo tem enfrentado a destruição durante anos, desde o tempo anterior a meu pai. Não estou tranqüilo quanto a isso, pois, acreditem ou não, existe gente boa lá, gente que não merece pagar pelos crimes sangrentos de Duggan. Contudo a espada paira sobre as nossas cabeças faz mais de um ano, e embora me entristeça saber que Gabel será aquele que irá empunhá-la, não o culpo. Acho que a verdadeira preocupação dele é que a pequena Ainslee está encurralada dentro daquelas muralhas.

         - Sim - concordou Michael. - Acredito que o que deixa profundamente preocupado é também o fato de ter ficado parado na margem daquele rio e ver a moça surrada quase até a morte. Gabel não podia fazer nada para ajudá-la, e isso é um duro golpe para o orgulho de um homem.

         - Bem, já passou da hora de o rapaz parar de lamentar o orgulho ferido e fazer alguma coisa. - Ronald sorriu quando os dois rapazes caíram na risada. - Eu bem que gostaria de fazer algo, pelo menos pela minha pobre menina, mas preciso recuperar as forças.

         - Tem sorte de estar vivo, velho bobo! -exclamou Justice, com um toque de afeição na voz. - Tomou uma flechada nesse peito ossudo e ficou na água gelada daquele rio amaldiçoado. E perdeu um bocado de sangue.

         Ronald riu, e depois fez uma careta ao tossir.

         - Agora, um dos dois vai ter de falar com seu primo.

         - Nossa tia e Elaine insistiram na mesma coisa - murmurou Justice.

         - Então, por que ainda hesitam? - indagou Ronald. - A cada dia que passa, Duggan tem condições de fortalecer suas defesas.

         - Está bem. - Justice levantou-se e obrigou Michael a também ficar de pé.

         - Iremos falar com Gabel. Chegou a hora de enfrentar o rei e saber o que deve ser feito. Se Gabel julga que precisa ajudar Ainslee, ele não pode fazer isso trancado no quarto.

         Gabel olhou pela janela estreita do quarto, a maldizer a própria incapacidade de agir, mas não se mexeu. Sua mente estava povoada das imagens de Ainslee indefesa no chão, enquanto o pai a chutava. Era uma visão que o assombrava nos sonhos. Havia falhado com ela e com o rei. Embora o único bem que resultará daquele dia no rio, tinha sido conseguir salvar a vida de Ronald. Sabia que o homem não teria sido ferido se ele não fosse um idiota completo.

         Cometera um enorme erro, e não apenas no confronto com Duggan MacNairn. Sabia agora que nunca deveria ter deixado Ainslee ir embora. Naquele dia, no rio, seu erro havia sido ao mesmo tempo estratégico e emocional. Gabel arrancara fora o próprio coração e não via esperança em curar a ferida.

         Suspirou quando uma batida suave ressoou na porta.

         - Não serei uma boa companhia - avisou ao se dirigir até a mesinha e servir-se de um copo de vinho da jarra.

         - Oh, estamos cientes disso - retrucou Justice ao fazer o mesmo. - É por isso que o deixamos sozinho durante a semana inteira. Mas chegou a hora de pôr de lado nossa covardia.

         - Uma semana? - Gabel perguntou, com espanto, ao tentar se recordar de quantos dias haviam se passado. Assustou-se ao descobrir que não fazia idéia.

         - Sim, uma semana. Você se escondeu aqui desde o momento em que voltamos a Bellefleur, e ninguém mais o viu nem soube nada a seu respeito.

         - Berrou pedindo comida e bebida - interveio Michael - e perguntou por Ronald uma ou duas vezes, embora até isso tenha parado quando teve certeza de que ele iria sobreviver.

         - Uma semana... - murmurou Gabel, e afundou na cama. Justice resmungou sentou-se ao lado dele enquanto Michael o servia de mais vinho.

         - Posso sacudi-lo para despertá-lo desse sono entorpecido?

         - Não. - Gabel tomou um longo gole de vinho e depois olhou para os primos.

         - Perdi a conta dos dias.

         - Começamos a pensar que você tivesse perdido a cabeça, mas depois percebemos que nunca havia enfrentado uma derrota tão dura.

         Gabel resmungou e levantou-se. Começou a andar de um lado para outro do quarto.

         - Não foi a derrota, embora fosse uma missão estúpida e um erro ainda maior. Eu estava tão decidido a proteger todos de qualquer possível traição que não levei em consideração quanto um lugar como aquele poderia também proteger MacNairn.

         - Eu não me castigaria tão severamente quanto a isso, já que não creio que houvesse qualquer outro lugar que fosse melhor. E, realmente, MacNairn é um cão arrogante e traiçoeiro que tem a capacidade de tornar uma derrota mais amarga. - Justice respirou fundo e se aventurou a declarar: - Não creio que seja a derrota que o deixa com tal humor sombrio.

         - Não - confessou Gabel ao se voltar para encarar o primo. - Não enxergar a traição de MacNairn não foi o único erro que eu cometi naquele dia, e creio que não se tratou do mais lamentável também.

         - Não, foi mandar aquela pobre moça para o pai e depois observar aquele canalha matá-la - disse Michael, sentando-se perto de Justice.

         - Ela estava viva! - esbravejou Gabel.

         - Ora, quero dizer... ele quase a matou.

         - Sinto muito - murmurou Gabel, com um sorriso sem graça diante do olhar cauteloso do primo. - Tenho passado horas e horas com medo que Ainslee esteja morta, de tê-la visto ser assassinada a pontapés. Recordar-me de vê-la se mexer ligeiramente não é mais suficiente para acalmar esse medo. Sim, eu nunca deveria ter mandado Ainslee de volta para o pai.

         - Porque a queria para você - disse Justice, olhando firmemente para Gabel. - Não poderia mantê-la como sua amante para sempre. Ainslee MacNairn não é uma mulher para se sentar quieta numa cabana e esperar que você apareça na ponta dos pés, fugindo da esposa para passar umas poucas horas com ela.

         A imagem detestável que Justice projetou fez Gabel fazer uma careta. Teve vergonha de admitir que pensara num tal arranjo uma ou duas vezes.

         - Não, Ainslee jamais se rebaixaria a tanto. É provável que cortasse meu pescoço se eu sugerisse. - Gabel jogou-se numa cadeira e fitou o copo de vinho. - Não, meu erro foi pensar que nunca poderia tomar uma mulher como ela como esposa, que isso de alguma forma prejudicaria Bellefleur.

         - Por que pensou numa coisa dessas?

         - Porque Ainslee é uma MacNairn. - Gabel esboçou um sorriso quando Justice ficou sério e concordou. - Havia também o fato de que ela não poderia trazer nada ao casamento, a não ser a si mesma. Não sou um homem ganancioso, mas eu tinha tudo planejado com cuidado, desde quanto dinheiro minha noiva deveria ter até onde suas terras deveriam ficar. Também levei em consideração o poder e o prestígio que a família dela precisaria possuir. Quando vi Ainslee seguir para as garras brutais do pai só para que eu conseguisse meus objetivos egoístas, me dei conta da inutilidade e do pouco que tudo isso significava para mim.

         - Na verdade você não precisa de uma noiva com uma bolsa recheada, e Bellefleur é rodeada de campos excelentes, portanto não necessita mesmo de mais terras. Mas também não pode se culpar por pensar que isso é o que alguém deve procurar numa esposa. É o que todos fazem. Não se casam apenas pelos filhos que virão, mas pelo acréscimo de riqueza e prestígio.

         Gabel deu de ombros.

         - É verdade, porém eu não tinha de ser escravo dos meus próprios planos. Cada vez que julgava que estava amolecendo, cada vez que o simples pensamento de ficar com Ainslee se infiltrava na minha mente, eu me recriminava e me convencia de que precisava do tipo certo de esposa para Bellefleur, que tudo que fizesse devia ser por Bellefleur. Era o meu dever.

         - E isso não incluía Ainslee? - Michael perguntou.

         - Um homem não toma uma esposa como Ainslee por dever.

         - Ah, compreendo. Você ama essa moça.

         - Mas só percebeu o que sentia por ela quando foi entregue às mãos grosseiras do pai - declarou Justice.

         - Creio que suspeitava o que se passava no meu coração logo depois que a trouxe a Bellefleur. - Gabel meneou a cabeça. - Mas eu estava determinado a não me deixar governar pelas emoções, e Ainslee era toda emoção.

         - Ah, então ela o ama também - disse Michael, e sorriu quando Justice lhe deu um tapa na cabeça.

         - Como você é esperto! - Justice murmurou, e desviou-se de Michael, que tentou acertá-lo.

         - Deixe-o em paz, Justice - ordenou Gabel, embora não conseguisse deixar de rir das palhaçadas dos primos. - Provocar Michael não ajuda no momento. Não sei se Ainslee me ama. Nunca perguntei, e ela nunca disse nada.

         - Mas se deitou com você - alegou Michael. - Isso é paixão.

         - Não. Bem, sim, tinha de haver paixão. Porém, por outro lado, não, Ainslee MacNairn não é nenhuma vagabunda ou mulher sem moral. Fui seu guarda durante a maior parte da sua estada aqui. Não consigo achar que se entregou só porque você a fazia se sentir sensual. É orgulhosa demais para tanto.

         - O garoto está falando com algum bom senso - Justice comentou, ainda a provocar o primo. - Ainslee MacNairn pode não ter dito o que havia em seu coração, mas tinha de ser mais que paixão. Quem sabe sentisse que você não queria saber.

         Por um longo momento Gabel apenas ficou encarando Justice enquanto remoia aquelas palavras na mente. Percebeu que poderia ser verdade. Ele não tinha pedido nada a Ainslee, a não ser paixão, e ela lhe dera isso em toda a plenitude. Nos últimos dias, ele havia tentado lhe arrancar alguma confissão, mas nada dissera dos próprios sentimentos, porque não queria se ver obrigado a responder da mesma forma.

         - Maldita idiotice! - ele exclamou, depois de tomar um longo gole de vinho.

         - Não, eu não agi como um homem que tivesse qualquer interesse nos verdadeiros sentimentos de Ainslee. Se houvesse algo mais além de uma poderosa paixão à qual nenhum de nós dois tinha forças para resistir, sem dúvida eu a deixei com medo de me confessar. E não lhe dei razões para pensar que eu estava interessado em saber.

         - E um erro comum entre amantes - Justice assegurou. - Afinal, quem quer ser o primeiro a expor o coração e a alma? Pense na humilhação de fazer isso e descobrir que não se é correspondido. Ainslee sabia que nem ficaria aqui. Nós jamais lhe demos qualquer escolha, a não ser voltar para Kengarvey.

         - Realmente - concordou Michael. - Esse plano nunca mudou, portanto por que ela diria algo a você? O que sentia ou não sentia com relação a você não faria nenhuma diferença.

         - E toda esta conversa não faz diferença também - Gabel declarou ao se levantar.

         - Cometi um erro. Não, cometi dois. Não fui tão cauteloso como deveria com MacNairn, e lhe entreguei a única coisa que tem valor para mim. Devo me dar por feliz que ele não saiba disso. E preciso parar de ficar me lamentando no meu quarto e fazer alguma coisa.

         - Foi o que Ronald disse.

         - Ora essa! - resmungou Gabel, e depois riu. - Aquele velho está ficando muito à vontade.

         - Ele chama você de rapaz - falou Justice.

         - A vontade demais. Bem, a primeira coisa que farei será assegurar a Ronald de que não estou mais com os olhos pregados na parede e com pena de mim mesmo, e que me empenharei quanto puder para trazer a mocinha dele de volta. Vocês dois podem sair e começar os preparativos para a viagem. Seguirei para a corte do rei manhã cedo. Passou da hora de ficar me escondendo dele também.

         - Sei que não está dormindo - Gabel disse ao parar ao lado da cama de Ronald.

         Ele abriu um olho e fitou o normando.

         - Você é realmente um belo rapaz. Poderia fazer um velho achar que está vendo um anjo em seu leito de morte.

         - Você não está morrendo. - Gabel sentou-se na beira da cama.

         - Mandou meus primos me recriminarem.

         - Não recriminá-lo, e sim acordá-lo. Precisa fazer algo que o obrigue a perceber que o tempo está passando.

         - Realmente. Não tinha me dado conta de quanto tempo se passou. Eu estava mergulhado na autocomiseração pelo orgulho ferido. - Gabel meneou a cabeça.

         - Foram tantos erros que cometi que não sei como consertá-los.

         - Não tem nada a consertar. Com certeza não foi o único que foi ludibriado por aquele canalha de MacNairn. E também você não é o primeiro que não sabe o que quer até perder o que lhe é precioso.

         - Acha que eu perdi Ainslee? - Gabel perguntou, sem tentar negar a afirmação de Ronald ou esconder os próprios sentimentos.

         O velho meneou a cabeça.

         - Não, meu rapaz. Não precisa se preocupar, se ela ainda estiver viva.

         - Está.

         - O jovem Michael não tem tanta certeza.

         - Eu a vi se mexer quando o irmão, Colin, a acudiu.

         - Ah, então ele agiu em tempo de novo. Mas isso não quer dizer que Ainslee esteja segura.

         - Ainslee sobreviveu naquele lugar por muitos anos. Tenho certeza de que pode sobreviver por algumas semanas a mais.

         - Acha que levará apenas umas poucas semanas para que você vá atrás dela?

         É uma época ruim do ano para partir para uma batalha.

         - Só se o tempo piorar. Estamos sendo abençoados por um clima ameno. Rezo para que continue assim; senão, partiremos para Kengarvey assim que recebermos as ordens do rei.

         Ronald suspirou.

         - Ele vai querer que todo o clã MacNairn seja passado a fio da espada.

         - O rei não é um homem sanguinário e nunca se aferrou à crença de que é preciso matar todos para se proteger - declarou Gabel. - É Duggan MacNairn que ele quer. Posso não conseguir salvar os filhos de MacNairn, mas tentarei, pelo bem de Ainslee. Já que os filhos nunca foram condenados pessoalmente, se eu entregar Duggan MacNairn ao rei, espero que isso seja o suficiente. Só desejo que aquilo de que preciso para pacificar meu soberano não sejam as cabeças de todo o clã MacNairn.

         - Você deve cumprir a vontade do rei.

         - Sim, eu devo. Também devo tentar afastar todos os abutres que podem querer seguir junto comigo, aqueles que não querem nenhum MacNairn vivo. Não pretendo participar de um banho de sangue.

         Ronald sorriu com tristeza.

         - Pode ser impossível. A única coisa que Duggan sempre fez com grande sucesso é conseguir que a maior parte da Escócia queira matá-lo e a qualquer um que lute com ele ou compartilhe seu sangue. O homem é muito bom em fazer as pessoas o odiarem profunda e eternamente.

         Gabel concordou com tristeza ao se levantar.

         - Só posso prometer fazer o máximo para salvar tantos quanto possível. Pensei que você deveria saber disso, e guardava a esperança de que pudesse me assegurar que Ainslee ficará segura. Foi tolice.

         - A única coisa que posso fazer é relembrá-lo de que ela é uma moça inteligente e forte. Se alguém puder sobreviver lá, mesmo com Duggan zangado com a filha, Ainslee pode.

         - Descanse, Ronald. Peço a Deus para poder lhe trazer boas novas em breve.

         - Não se preocupe com as notícias. Traga-me a minha menina.

         Gabel respirou fundo e entrou no grande salão do castelo de Edimburgo, onde o rei o esperava. Levara três dias para chegar à corte e depois outros três dias até que o soberano concordasse em recebê-lo. Rezou para que não fosse um sinal de desprestígio. Embora tivesse de lhe dar más notícias, precisava que o rei estivesse com um humor que permitisse alguma misericórdia.

         Mas havia pouco sinal de piedade na expressão do soberano quando Gabel se inclinou diante dele. A direita do monarca estava Fraser, e Gabel teve certeza de que o rei já sabia tudo a respeito do fracasso com Duggan MacNairn. O olhar de regozijo na face de Fraser advertiu-o de que teria de enfrentar muitas mentiras, e que nem todas poderiam ser refutadas com sucesso.

         - Parece que o fora-da-lei de MacNairn conseguiu fazê-lo de idiota, sir Gabel! - exclamou o rei, o tom de voz quase agradável, ao observar Gabel atentamente.

         Aquilo lhe espicaçou o orgulho, mas Gabel decidiu que apenas a verdade poderia auxiliá-lo naquele momento.

         - Realmente, meu soberano. - Ele quase sorriu quando as sobrancelhas do rei se arquearam de surpresa, e Fraser fez uma carranca. - Planejei bem minha estratégia para proteger meus homens, mas tal plano também permitiu que MacNairn arquitetasse um golpe sujo e pudesse fugir sem ser penalizado. Eu bem que havia sido avisado dos ardis de que ele é capaz, mas acho que não acreditei em todas as histórias.

         - E agora acredita?

         - Sim, meu soberano. Aprendo com os meus erros.

         - E, portanto, sente que poderá enfrentar o homem de novo e ser vitorioso dessa vez?

         - Se tiver de destruir Kengarvey, não deixando pedra sobre pedra, ou eu o matarei, ou o trarei a Vossa Majestade para receber a punição que merece. Eu lhe dei a chance de salvar-se, e ele não a aceitou.

         O rei concordou e cocou o queixo.

         - Quero que Kengarvey desapareça daquele lugar nojento, mesmo que com Duggan MacNairn morto. Quero aquele ninho de ladrões arrasado até o chão.

         - E quanto ao povo? - Gabel perguntou, com calma. -- O que é que tem? São ladrões também.

         - Na maioria, trata-se de pessoas tão apavoradas que fazem quase tudo que seu lorde ordena. E o próprio Duggan MacNairn e alguns poucos de seus seguidores que causam problemas. Ninguém ousa contrariar algo que ele faz, pois fica tão enfurecido que os mata.

         O rei esboçou um sorriso.

         - Você está me pedindo para mostrar misericórdia?

         - Sim, meu soberano, estou.

         - Misericórdia? - berrou Fraser, dando um passo à frente na direção de Gabel.

         - Como pode pedir por misericórdia? Mesmo aquela vadia da filha de MacNairn não merece misericórdia. Kengarvey nada mais é que um ninho de víboras e já passou da hora de fazer uma limpeza completa.

         A maneira com que o rei olhou de Gabel para Fraser e de volta para Gabel deixou claro que o soberano havia se dado conta da animosidade entre os dois. Mas não havia tempo para lidar com aquele arrogante Fraser. Era preciso salvar a vida de Ainslee e de quantos Gabel pudesse do povo inocente de Kengarvey.

         - Nem todos em Kengarvey merecem ser passados a fio de espada, Vossa Majestade - Gabel disse ao rei.

         - Você manteria os filhos dele vivos? - o rei indagou.

         - Se derem a palavra que honrarão o tratado que o pai encarou com tanto desdém...

         - E tem uma boa razão para acreditar que farão isso? Não está baseando seu julgamento no que alguma moça bonita murmurou em seu ouvido enquanto estavam nos braços um do outro?

         - Não. Só peço a chance de oferecer a vida a qualquer uma das pessoas de Kengarvey que não me enfrente, e que esteja disposta a jurar lealdade a Vossa Majestade.

         - E a você - o rei murmurou -, pois decidi que merece aquelas terras. Portanto, qualquer um que sobreviva à batalha será seu povo, e você carregará o peso e a responsabilidade pelos atos que eles praticarem. Esta noite eu lhe direi o que desejo que seja feito. Preciso pensar no assunto.

         - Dito isso, o rei fez um gesto dispensando Gabel.

         Gabel ainda resmungava contra Fraser quando chegou ao quarto que compartilhava com os primos. Serviu-se de um copo de hidromel forte e bebeu quase tudo de um só gole, antes de sentir a fúria amenizar um pouco. Havia ainda uma chance de conseguir a promessa de misericórdia de que precisava, e não ganharia nada em discutir com Fraser.

         - A reunião não correu bem? - perguntou Justice.

         - Não - respondeu Gabel. - Fraser estava lá, e é óbvio que usou o tempo na corte para encher os ouvidos do rei de mentiras. Gostaria de acreditar que nem todas envenenaram o nosso soberano, mas não posso ter certeza. Só saberei o que ficou resolvido sobre Kengarvey e seu povo na noite de hoje.

         - Que bom que o rei não esteja furioso com o seu fracasso em conseguir o tratado que queria, e que não tenha se mostrado enraivecido quando você pediu para que usasse de misericórdia com o povo de Kengarvey.

         - Tenho uma sensação ruim a respeito de tudo isso.

         - O que quer dizer? - indagou Justice.

         - Não sei, mas indica algo ruim para os MacNairn.

         - Sua Majestade quer que eu faça o quê? - Gabel berrou, fazendo o mensageiro do rei dar vários passos para trás, nervoso.

         - O senhor deverá ir a Kengarvey e fazer de tudo para que MacNairn morra. Se o homem sobreviver à batalha, então deve trazê-lo até aqui.

         - Não foi isso que me fez berrar, homem. Foi a outra coisa que você disse. Não tenho permissão de ir sozinho?

         - Não, sir Gabel - respondeu o mensageiro, a voz hesitante.

         - Terá de permitir que sir Fraser e seus homens sigam com o senhor. Os MacFibh também têm permissão de se juntar à luta. Nosso soberano acredita que o senhor precisará de mais homens armados para derrotar Duggan MacNairn.

         - Mas... mandar Fraser e os MacFibh? Eles odeiam os MacNairn, e nada os deixaria mais felizes do que ver até a última das criancinhas mortas. - Gabel suspirou e enterrou as mãos nos cabelos quando o mensageiro apenas o fitou. - Vá e diga ao rei que seguirei para Bellefleur pela manhã, reunirei meus homens e partirei diretamente para Kengarvey, se as condições do tempo continuarem a meu favor.

         No instante em que o mensageiro do rei saiu, Gabel começou a andar pelo quarto, a berrar imprecações. Só parou quando percebeu o modo com que Michael e Justice o encaravam. Ao desabar numa das cadeiras, respirou fundo, procurando se acalmar. Precisava planejar o que faria, pois, com os Fraser e os MacFibh também em combate, ele teria de se assegurar de que encontraria um modo de proteger todos os que pudesse.

         - Não compreendo - disse Justice. - Como pode o rei lhe conceder o poder de oferecer misericórdia onde quiser e, ao mesmo tempo, lançar sobre os MacNairn dois de seus piores inimigos? Quem Sua Majestade pensa que restará se os arqui-inimigos partirem para lá com uma ordem de aniquilação contra os MacNairn?

         - Penso que o rei sabe muito bem que eles farão o máximo para matar cada MacNairn que puderem, desde o próprio Duggan ao mais novo bebê. Minha tarefa, se eu realmente ansiar por misericórdia, será me apressar e ver quantos posso salvar.

         - Tudo isso não será bem aceito pelos nossos homens. Eles odeiam os Fraser - disse Michael. - Não creio que exista um guerreiro que queira cavalgar ao lado dessa gente.

         - Bem, terão de engolir o dissabor. Não posso me dar ao luxo de agradar a todos. Agora é melhor descansarmos, pois teremos de partir ao alvorecer. Creio que devemos nos dirigir a Kengarvey tão depressa quanto possível. Não quero aqueles dois clãs sanguinários clamando à porta dos MacNairn antes que eu chegue ao campo de batalha.

         Ainslee respirou fundo para tomar coragem e esgueirou-se silenciosamente para o salão. Fez uma careta com o cheiro de palha imunda e corpos igualmente sujos que invadiu seu nariz. Embora tentasse evitar fazer isso, comparou o ambiente com aquele de Bellefleur. Não eram apenas a ausência de elegância e as paredes de tábua que faziam o salão de Kengarvey parecer uma tapera perto do de Bellefleur. Não era a pobreza nem o buraco no teto a fazer a diferença. Era a sujeira, a bagunça e a negligência geral. Era também o ânimo hostil e temeroso que demonstrava a gente reunida ali.

         Ainslee apoiou-se na parede mesmo que se recriminasse por se aproximar do pai com tamanho medo. Sua pele ainda mostrava os hematomas lívidos da surra que ele lhe dera na semana anterior, no rio. A idéia de ter de suportá-lo outra vez fez seu estômago se contrair de pavor. Ao olhar ao redor para as pessoas reunidas no salão, pensou em por que deveria se arriscar tanto. Aquelas pessoas ficariam simplesmente paradas, olhando, se seu pai resolvesse espancá-la até a morte. No entanto ela iria correr esse risco na vã esperança de salvar algumas delas. Era lealdade ao clã, a Kengarvey e às poucas pessoas boas dentro daquelas muralhas que a induziam a agir dessa forma, e Ainslee concluiu que lealdade nem sempre constituía algo sensato.

         Para seu alívio, os homens reunidos em torno de seu pai se afastaram antes que ela se aproximasse. Só Colin e seu irmão mais velho, George, permaneceram. Sem seus homens ao lado, Duggan MacNairn poderia se dispor a ouvir suas razões, pois não sentiria necessidade de exibir força e nem de aterrorizar ninguém.

         - Pai - Ainslee murmurou ao parar diante da cadeira muito gasta de Duggan MacNairn. Sua voz saiu rouca e hesitante, e ela limpou a garganta depressa, sem querer demonstrar o medo que sentia ao encará-lo.

         - Onde arranjou esse vestido? - indagou MacNairn ao pegar uma dobra da saia entre os dedos sujos para examinar o tecido.

         Ainslee maldisse a própria imprevidência em pôr um dos vestidos que Elaine e Maria lhe haviam dado.

         - As senhoras de Bellefleur me deram.

         - Não acharam que a roupa que eu lhe dei era fina o bastante, hein?

         - Minhas roupas se estragaram na ocasião da minha captura e da viagem até Bellefleur.

         - Hum... Acho que não foram as senhoras que a vestiram tão bem, mas sim aquele normando com quem estava se deitando. É claro que você não tem vergonha, ou não ficaria exibindo esses trajes de vagabunda. Ia ser mais difícil do que Ainslee pensara. Então, chegou à conclusão de que a melhor coisa a fazer seria ignorar as ofensas e continuar falando como se o pai não tivesse dito coisas tão cruéis.

         - O lorde de Bellefleur virá se vingar da traição no rio - ela disse.

         Duggan deu de ombros.

         - Alguém está sempre clamando nos portões de Kengarvey. E nós os expulsaremos também como sempre. E reconstruiremos tudo.

         - Não desta vez, pai. - Ainslee ficou tensa quando os olhos de MacNairn se estreitaram e ele se inclinou para mais perto dela. - O senhor de Bellefleur tem ordens do rei. Foi por insistência dele que o rei lhe permitiu tentar conseguir um tratado de paz sem derramamento de sangue. Ele não lhe dará uma segunda chance.

         - Não creio que eu tenha pedido isso ao canalha.

         Havia uma frieza tão dura na voz do pai, que Ainslee quase parou e fugiu do aposento, pois sabia que o temperamento dele estava prestes a explodir.

         - Pai, não será nenhum pequeno combate desta vez, nenhuma escaramuça com os MacFibh ou algumas trocas de golpes de espada com os Fraser. O senhor assinou o seu atestado de morte e o de todos daqui.

         - A ameaça de morte paira sobre mim faz anos. E acho que você ficou com esses intrometidos normandos por tempo demais, pois é claro que se esqueceu de com quem está falando, moça.

         - Não, pai, sei exatamente com quem estou falando, com o lorde de Kengarvey. - A ira crescente de Duggan a apavorava, mas Ainslee sentiu um lampejo do próprio temperamento voluntarioso superar o medo. - É hora de o senhor agir como o lorde que é e pensar um pouco em seu povo. - A voz de Ainslee sumiu num grito de espanto quando o pai, de repente, saltou de pé e a agarrou pela frente do vestido.

         - As marcas que lhe dei ainda não sumiram, e você vem aqui pedir por outra surra!

         - Só estou tentando salvar alguns poucos de Kengarvey. O rio de sangue que correrá não deixará homem, mulher ou criança com vida. Não pode ver isso?

         Ainslee sufocou um grito quando ele a esbofeteou e jogou-a no chão. Tremendo de medo, levantou-se para encará-lo outra vez.

         - Não será apenas sir Gabel que virá para cá, de espada em punho, mas cada inimigo que o senhor tem. Enfrentaremos um mar de homens que o odeiam e desejam ver cada MacNairn caído, a apodrecer no chão. Não se importa com o seu próprio povo? - Ela se desviou da bofetada, mas sabia que não poderia evitar os punhos do pai por muito tempo. - Se não puder salvar a si mesmo, pelo menos pense nos bebês e em seus filhos.

         Antes que conseguisse dizer mais alguma coisa, MacNairn avançou com uma fúria da qual ela não pôde se esquivar. Ainslee caiu e, ao se encolher, tentou evitar que os chutes a atingissem com toda a violência com que choviam sobre seu corpo. Quando o pai a ergueu do chão pelos cabelos, ela tentou proteger o rosto, e ele esmurrou-a no estômago. Então, de repente, viu-se livre daquelas mãos rudes. Através dos olhos inchados, não conseguiu enxergar com clareza, mas sabia que Colin se interpusera para resgatá-la. Para seu espanto, seu pai imediatamente recuou.

         - Está forçando meu amor por você até o derradeiro limite, mocinho! - Duggan exclamou, a voz rouca da fúria que ainda o dominava.

         - Você pode matá-la.

         - Estava enfiando algum respeito dentro dessa cabecinha estúpida. A moça pensa que é melhor do que eu só porque abriu as pernas para algum lorde que o rei prestigia.

         - Ainslee está tentando ajudar Kengarvey. Só isso.

         - Se sua irmã quer tanto ajudar Kengarvey, deveria ter pedido para aquele normando fornicador alguns favores enquanto ele despejava as sementes dentro dela. Sim, e se houver algum bastardo crescendo nessa barriga, nem mesmo você me impedirá de arrancá-lo a chutes de dentro dela.

         - Deixe-me levá-la para o quarto - Colin murmurou ao erguer Ainslee nos braços.

         - Então, você não precisará mais vê-la.

         - É melhor eu não ver a vagabunda por um longo tempo! - Duggan berrou às costas do filho quando Colin se dirigiu para a porta do salão.

         - Está louca? - O irmão esbravejou ao começar a subir as escadas para o quarto de Ainslee.

         - Eu tentei salvar Kengarvey, ou pelo menos alguns de vocês - Ainslee retrucou, com voz engrolada, largada sobre o ombro de Colin.

         - Por que não tentou pensar em se manter viva?

         - Seremos todos mortos se nosso pai não procurar consertar as coisas.

         - Nenhum rei pode parecer forte e ao mesmo tempo perdoar um homem pelos muitos crimes e traições que ele cometeu... como papai. Fiquei surpreso quando nos ofereceram uma chance de firmar um tratado. Nunca teremos uma segunda oportunidade.

         Ainslee não respondeu, e Colin chamou uma criada que surgiu no corredor. A jovem ajudou-o a colocá-la na cama e cuidar dos ferimentos, e, depois, sumiu. Encolhida de dor, Ainslee encostou-se nos travesseiros e bebeu um gole de hidromel que Colin lhe deu. A bebida ardeu em sua boca, e ela percebeu que estava toda cortada e inchada outra vez.

         - Papai nunca terá outra chance - ela murmurou. - Gabel está disposto a estender a mão e oferecer paz a qualquer outro que deseje depor as armas.

         - Você parece muito segura disso.

         - Eu não teria medo pelos inocentes e indefesos encurralados dentro das muralhas de Kengarvey. Gabel jamais os machucaria. Contudo não será apenas ele.

         - É evidente que Gabel foi gentil com você e com o velho, mas você estava compartilhando a cama dele, e todos nós sabemos que ninguém pode machucar Ronald sem você correr para ajudá-lo.

         - Gabel foi gentil comigo antes mesmo de me beijar. Eu gostaria de poder fazer alguém aqui me ouvir - Ainslee murmurou, a voz hesitante devido à dor que sentia.

         - Se continuar tentando, estará morta, e então nunca mais verá o seu belo cavaleiro normando, nem poderá ajudar ninguém quando a batalha finalmente começar. - Colin afagou-lhe gentilmente o braço quando ela o fitou com aquele ar de desapontamento no rosto.

         - Descanse, Ainslee. Mesmo que o tempo continue bom, nosso destino não poderá atravessar os portões por outra quinzena, e quem sabe veremos a chegada da primavera.

         - E você acha que isso mudará alguma coisa?

         Colin apenas sorriu e depois foi embora. Seu irmão era muito bom em não responder a perguntas. Com o máximo cuidado, ela relaxou o corpo até que se deitou de costas. Colin tinha razão. Haveria tempo, talvez até mesmo uma quinzena. Não era tempo suficiente, contudo, para ela sarar e então convencer alguém em Kengarvey a procurar a paz, mesmo que só para si e a própria família. Ainslee sabia que tentaria pelo menos mais uma vez, mas depois começaria a procurar um jeito de salvar o próprio pescoço.

         Ainslee sufocou um palavrão ao se esgueirar colada à parede. Fazia apenas uma semana desde que seu pai a surrara pela segunda vez naquela quinzena. Os novos golpes a faziam sentir-se dolorida e fraca. No entanto não poderia mais permanecer na cama. Ninguém lhe dera ouvidos.

         O frio golpeou-lhe o rosto quando ela esgueirou-se pelas portas pesadas e entrou no pátio. Estremeceu e abraçou com força a pequena sacola de suprimentos e roupas. Não havia uma grande distância da porta da fortaleza até os portões de Kengarvey, mas, conforme começou a percorrê-la, pareceram-lhe quilômetros. Os homens nas muralhas estavam à espera de um ataque, e não que uma mulher miúda fugisse. Mas Ainslee recordou-se dos poucos que haviam tentado sair dali e do destino que se abatera sobre eles.

         Procurando não fazer nenhum ruído, ela se apressou a chegar ao abrigo das altas muralhas, perto dos portões. Ali havia uma pequena porta pesada, reforçada de ferro e trancada com firmeza. Uma vez que passasse por ela, Ainslee tinha certeza de que poderia desaparecer na noite, porém não seria fácil abri-la.

         Na ponta dos pés, passou pelo guarda adormecido, encolhido no pequeno telheiro, e colocou o embrulho no chão. Puxou o ferrolho, parando a cada ligeiro ruído que fazia. Demorou um tempo enorme para retirar a pesada barra e colocá-la no solo gelado, e Ainslee respirou fundo. Recolheu os preciosos suprimentos, abriu a porta e se esgueirou para fora.

         Teve de controlar a vontade de sair correndo pelo campo aberto e para o bosque que circundava Kengarvey. Com o coração disparado, ela se ocultou nas sombras e seguiu cautelosamente para a mata. Teria até o amanhecer para se distanciar quanto possível de Kengarvey. No momento em que chegou ao refúgio das árvores, começou a caminhar com maior rapidez.

         Faltava pouco mais de uma hora para o amanhecer quando ela, por fim, perdeu a luta contra a exaustão e contra toda a dor em seu corpo machucado. Ao encontrar um lugar escondido entre alguns arbustos espessos, estendeu uma manta no chão, usou outra para se enrolar e deitou-se a fim de descansar um pouco.

         Um murmúrio de irritação escapou de Ainslee quando um barulho a arrancou do sono profundo. Então, lembrou-se de onde se encontrava e, mais importante, por que estava ali, e calou-se. Mesmo o menor ruído poderia denunciar seu esconderijo. Um nó gelado retorceu-lhe o estômago quando ela viu os homens a vasculharem a clareira. Eram homens de seu pai. E a encontrariam.

         Ao ver Colin lado a lado com George, os dois irmãos a examinar atentamente o chão, Ainslee sentiu-se traída. Seus irmãos eram peões de Duggan MacNairn. Fariam o que o pai ordenasse. Arriscar a vida da própria irmã não os faria hesitar. Ela percebeu que, a não ser por Colin, não poderia ter certeza se os homens a matariam ou se apenas iriam capturá-la. Duggan MacNairn tratava todas as tentativas de fuga como um crime sério, tão sério quanto a traição.

         Conteve a respiração e recuou com cuidado, afastando-se dos homens que a procuravam. Aquele esconderijo não seria seguro por muito tempo, e ela precisava encontrar outro. Nervosa, enrolou as mantas, detestando ter de perder tempo, mas sabendo que precisaria delas. Agachada quanto pôde e ainda capaz de se mover com rapidez, esgueirou-se para fora dos arbustos e se afastou.

         Uma sensação de pânico ameaçou sufocá-la conforme procurava, aflita, outro esconderijo ou um meio de fugir de todos os homens que a caçavam. Cometera algum erro, tinha deixado algum vestígio que um deles vira. Ao se aproximar de uma pequena clareira, viu que além dela havia um bosque tão fechado era que poderia facilmente se embrenhar sem deixar rastro.

         Olhou ao redor para se assegurar de que nenhum dos perseguidores estava por perto. Respirou fundo para recuperar a coragem, que vacilava, e correu na direção do bosque.

         Não ficou surpresa quando um grito ressoou. Desde o momento em que os homens tinham surgido vasculhando as moitas, Ainslee pressentira sua captura. Maldisse o destino, que parecia determinado a impedi-la de salvar alguém de Kengarvey, inclusive a si mesma. Continuou correndo, em ziguezague, na esperança de escapar das mãos que tentavam agarrá-la. De repente, um cavalo surgiu à sua frente, e Ainslee estacou. Quando viu seu pai encarando-a com os olhos faiscantes de ódio, ela entrou em pânico e correu, sem se importar para onde ia.

         Só queria fugir.

         Um dos homens jogou-a no chão. Todo o ar dos pulmões lhe escapou ao ser comprimida contra o solo por ele, tirando-lhe a capacidade de lutar para escapar. O homem a ergueu, e ela viu de relance que Colin e George corriam para o seu lado, mas seu pai avançava a cavalo, com a espada na mão.

         - Sua vagabunda suja! - Duggan berrou ao puxar as rédeas e parar diante de Ainslee.

         - Pensou em correr de volta para o seu garanhão normando e lhe contar tudo que ele precisava saber para que possa me destruir?

         Uma coragem nascida da resignação diante de seu destino fez Ainslee gritar:

         - Tolo! Se eu estava correndo para o meu normando, por que me dirigir para o norte? Não pode abrir esses seus olhos de bêbado e ver onde estou?

         De repente, se viu livre. E mal conseguiu se desviar do golpe da espada do pai. Percebeu que o homem que a derrubara tentava escapar da ira assassina de Duggan MacNairn. Lutando para evitar as patas do poderoso cavalo, Ainslee esperou o próximo ataque. Veio tão rápido que ela quase caiu ao se desviar. O som da capa e do vestido se rasgando e a sensação do aço a roçar sua pele através do rasgo disseram-lhe quanto estivera perto de morrer. Ouviu os irmãos gritando, mas não ousou tirar os olhos do pai. Sua única esperança de continuar viva era ser mais rápida que aquela espada.

         Quando saltou para se esquivar de outro golpe da arma, Ainslee espantou-se ao ver seus quatro irmãos atacarem o pai. Arrancaram-no do cavalo, com ele berrando como um louco. Enquanto George e Martin tentavam mantê-lo no chão, Colin e William correram para ampará-la. Ofegante de medo e do esforço para continuar viva, Ainslee só pôde fitá-los num silêncio aturdido, esperando pelo que iria acontecer.

         - Bastardos! - gritou Duggan ao se livrar das mãos dos filhos e se levantar, a espada ainda em punho. Tomado de uma ira cega, investiu contra George e Martin, que saltaram para fora de seu alcance. Então, ele olhou para Ainslee. - Vocês são todos uns bastardos traiçoeiros!

         - Não pode matar sua própria carne e sangue, sua própria filha, pelo amor de Jesus! - Colin bradou e ergueu a espada em prontidão quando o pai deu um passo ameaçador na direção dele.

         - E desde quando vocês tomam as dores dessa estúpida? - Duggan gritou, encarando, furioso, todos os filhos. - As leis de Deus e desta terra dizem que posso fazer o que quiser com a vagabunda. Ela tentou me trair.

         - Passei um longo tempo com os monges, papai, e em lugar algum eu li ou ouvi que o senhor tem o direito de matar a própria prole - Colin disse, numa voz fria e calma. - Se um tal pecado pudesse ser apenas seu, eu não creio que nós teríamos a coragem de impedi-lo, mas o sangue vai manchar as nossas mãos também, simplesmente porque poderíamos tê-lo impedido e não o fizemos. O senhor pode fazer o que quiser com a sua alma imortal, porém não podemos deixar que a sua fúria macule as nossas almas também.

         Ainslee viu quando o pai controlou a fúria. E, de repente, percebeu que não era por Colin ser o filho predileto que isso lhe dava aquele pouco de poder sobre Duggan. Apesar da multidão de pecados, a despeito do fato de ter pouca chance de salvação, Duggan MacNairn ainda conservava o medo profundo da Igreja e da danação no inferno.

         - Quero essa maldita trancada - ele disse, numa voz fria.

         - Ficará bem presa no quarto - Colin prometeu.

         - Não! - berrou Duggan. - Jogue a prostituta traidora nos calabouços.

         - Mas, pai...

         - Você me ouviu! Jogue-a nos calabouços. Não permitirei que ela volte sorrateiramente para o amante normando para trair todos nós.

         Ainslee abriu a boca para se defender de novo da acusação de traição contra o clã, mas Colin aumentou o aperto das mãos em seu braço até fazê-la arquejar. Seu irmão tinha razão.

         Se ela falasse, iria encolerizar o pai novamente, e dessa vez estivera perto demais da morte para desafiá-lo.

         Os outros três irmãos se atreveram a lhe endereçar um olhar de simpatia quando Colin a arrastou para o cavalo. E ela julgou que, embora tivessem impedido o pai de abatê-la no lugar, eles nada mais fariam para ajudá-la. Não a surpreenderia se pensassem ter-lhe feito um grande favor ao conservá-la viva. Mas apodrecer nos calabouços era vida?

         Para seu alívio, Colin seguiu atrás dos outros. Ainslee não queria ficar no meio dos homens ou muito perto de Duggan MacNairn. Conforme se aproximaram de Kengarvey, o desespero e um sofrimento profundo a invadiram, tomando o lugar do medo e da raiva. Era difícil aceitar que o próprio pai, o homem que a gerara, tentasse matá-la.

         - Eu sempre soube que meu pai não tinha nenhum amor por mim, talvez por nenhum de nós - disse a Colin ao se recostar contra ele. - Nunca me dei conta de que ele me odiava. Tentou arrancar minha cabeça do ombro com a espada e precisou ser contido pelos próprios filhos... Não fiz nada a ele.

         - Sinto muito, Ainslee, mas faz tempo que passei a acreditar que o seu crime, a razão de nosso pai odiá-la tanto, é ter sobrevivido no dia em que mamãe morreu.

         Ela franziu a testa ao olhar para o irmão por sobre o ombro.

         - Não entendi. Ele não pode me culpar pela morte de mamãe - murmurou o espanto e a incredulidade a deixá-la quase sem voz.

         - Cada vez que nosso pai olha para você, ouve os murmúrios de condenação da sua própria covardia ao abandonar nossa mãe. Ele pode não tê-la amado, mas muitos outros a adoravam. Qualquer um que saiba como ela morreu pensa como nosso pai pôde deixar a esposa e a filha à mercê dos Fraser, bem conhecidos pela brutalidade e pelo modo com que matam todos num combate, guerreiros e bebês da mesma forma. Você é a lembrança viva dessa vergonha.

         - Não pensei que nosso pai sentisse vergonha.

         - Não, a única coisa que ele procura proteger fervorosamente é a reputação de corajoso. Não mostrou coragem quando a deixou para trás. Se conseguiu salvar-se, então poderia ter tentado salvar a esposa e a filha pequena. Foi mamãe quem a salvou. - Colin suspirou.

         - Quando voltamos a Kengarvey e papai encontrou você sentada entre as cinzas, quase a liquidou ali mesmo, mas Ronald e eu o impedimos. E continuamos a impedi-lo. Esperei que esse ódio desaparecesse, mas só foi aumentando.

         - E um dia nem você nem Ronald estarão por perto para impedi-lo - Ainslee murmurou, e estremeceu quando Colin não disse nada para confortá-la. - Se eu ficar em Kengarvey, estarei morta. Nossas irmãs sabem disso?

         - Sempre souberam que papai a odiava, embora jamais tenham perguntado a razão.

         - E nunca se ofereceram para me levar para as suas casas, onde eu estaria segura.

         - Sim, você ficaria a salvo, mas nossas irmãs não pensam assim, Ainslee. Você sabe o que é honra e confiança e tudo o mais, pois Ronald lhe ensinou. Eu só aprendi o pouco que sei no mosteiro. Nossas irmãs podem não ter enveredado para o crime e o pecado como nosso pai, mas têm o coração e a mente dele. Prefeririam que você morresse pelas mãos de papai a ver os maridos a olharem com lascívia. - Colin deu de ombros. - Sei que isso deve magoá-la, mas era tempo de você conhecer umas poucas verdades.

         - Nenhum de vocês poderia me ajudar a fugir? Diferentemente de Ronald, você tem liberdade de ir aonde quiser, e conhece a rota de fuga para longe de Kengarvey.

         - E isso seria a maneira mais certa de perder as nossas cabeças. Podemos impedir nosso pai de matá-la, porém mais do que isso colocaria em risco as nossas próprias vidas. A única lição que se aprende bem em Kengarvey é como continuar vivo.

         Ainslee caiu em silêncio, sabendo que jamais convenceria Colin a ajudá-la a fugir. Ele precisava escolher entre salvar a irmã ou a si mesmo, e ela podia entender. Ninguém a livraria dos calabouços. Seu pai nunca mudaria de idéia, já que era evidente que esperava que ela sucumbisse como tantos outros antes que haviam apodrecido lá.

         Era quase hora do crepúsculo quando, finalmente, chegaram a Kengarvey. Ainslee ficou surpresa ao ver como havia conseguido caminhar para tão longe no escuro e no frio. Se tudo que Colin dissera era verdade, e ela não tinha nenhum motivo para duvidar, então seu plano de procurar as irmãs seria um fracasso, pois elas a entregariam de volta ao pai. Ao ser tirada do cavalo de Colin, ela lutou para esconder o medo, mas não conseguiu ao se ver separada do irmão. O homem de olhar frio e peito duro que a arrastava iria se esquecer dela no momento em que fechasse a pesada porta de ferro.

         Ainslee soltou um grito de terror quando o homem a empurrou para dentro de uma cela e bateu a porta. O ar bolorento, o escuro e o frio úmido, tudo a aterrorizava. Desde os primeiros dias da infância, ela soubera que os calabouços de Kengarvey eram o local onde trancafiavam as pessoas para morrerem. Encolheu-se ao ouvir o carcereiro girar a chave na fechadura, e, depois, fechou os olhos, tremendo, quando escutou os passos se afastarem.

         Andou até o canto e sentou-se na enxerga roída pelos ratos. E lutou contra o terror cego que tentou se apossar de seu coração e de sua mente. Deveria esperar um pouco antes de enlouquecer, pensou com amargura. Ao olhar ao redor, sentiu os fantasmas das pobres criaturas que haviam ficado ali antes dela, e imaginou se logo se tornariam reais diante de seus olhos.

         Um homem alto e magro entrou nos calabouços e colocou um banco duro do lado de fora da cela. Ainslee não entendeu como seu pai poderia ainda estar tão preocupado a ponto de colocar um guarda para vigiá-la. Nunca sairia das celas de Kengarvey, a não ser para o cemitério. Aquele homem poderia ter sido colocado ali só para ver quanto tempo levaria até que ela morresse de inanição.

         Sacudiu a cabeça para afastar o pensamento medonho. Precisava fixar a mente em algo diferente, não importando quanto fosse impossível. Se Deus ouvisse suas preces, poderia sobreviver, até mesmo fugir, e dessa vez voltaria direto para Bellefleur. Gabel em breve chegaria. E ela só podia rezar para que ele viesse a tempo.

         - Há outra briga entre um dos nossos homens e um dos Fraser - anunciou Justice ao entrar no quarto de Ronald sem bater, sabendo que Gabel estaria ali.

         Gabel soltou um palavrão e começou a andar pelo quarto, furioso. Fazia apenas uma semana que havia falado com o rei e recebera as ordens indigestas de Sua Majestade. Mal tinha desmontado no pátio de Bellefleur, três dias depois, e os Fraser já começaram a chegar. Desde o primeiro instante, os problemas surgiram. Um de seus homens fora assassinado, e o rápido enforcamento do culpado, um primo distante de lorde Fraser, só tornara as coisas piores. Gabel ansiava por partir para Kengarvey.

         - Alguém ficou ferido? - ele perguntou.

         - Não - respondeu Justice. - Só uns poucos arranhões.

         - Eu deveria ter mandado que acampassem do lado de fora das muralhas, mas nunca pensei que pudessem causar tantos problemas.

         - Não foi imprudência sua, porém muitas vezes confia demais nos outros, esperando que ajam como você agiria. Não pode mandá-los para fora agora?

         - Não, sem fazer um sério insulto a Fraser. E eu não me atrevo a isso, não até que tenhamos resolvido a questão de Kengarvey a contento para o nosso soberano.

         - Acredita realmente que o rei está desgostoso com você?

         - Está aborrecido. Sua oferta de me dar Kengarvey e as pessoas que eu for capaz de salvar não foi ura presente ditado pela benevolência. Ele acredita que eu ficarei tristemente atormentado por problemas ao tentar administrar aqueles domínios. Sua Majestade sabe que os Fraser e os MacFibh cobiçam aquelas terras e me causarão dificuldades. E não vamos esquecer que existem outros parentes de Duggan MacNairn além daqueles que o rei considera fora-da-lei. Também julgarão que usurpei o que é por direito deles. Sim, é uma recompensa, mas carregada de duras pragas.

         - Haverá muito poucos em Kengarvey que oferecerão resistência quando Duggan morrer - argumentou Ronald.

         - Nem mesmo os filhos dele? - perguntou Justice.

         - Não - respondeu o velho. - A única coisa que aqueles rapazes aprenderam é como sobreviver.

         - E não sentirão desejo de vingança pela morte do pai?

         - Creio que não. Duggan MacNairn arrancou todo o amor do coração dos filhos. Eles têm pavor do homem, mais nada. Se obedecem, é por medo. Não o abandonam, pois gostam de Kengarvey, embora Duggan tenha tornado aquilo pouco mais que uma tapera. A única coisa que eu temo é que deixarão que Duggan os leve para a morte certa.

         - Farei o melhor que puder para salvá-los - prometeu Gabel.

         - Sei disso. Contudo não pode salvar a todos, rapaz.

         - No momento, pareço incapaz de ajudar até meus próprios homens, que estão profundamente aborrecidos. - Gabel fechou o cenho quando Michael, de repente, irrompeu pelo quarto. - Ninguém mais bate na porta?

         - Perdão, primo! - exclamou Michael, ofegando. - Lorde MacFibh está aqui.

         - O próprio lorde?

         - Sim - respondeu Michael, mas antes que pudesse dizer mais alguma coisa, um homem imenso, de cabelos negros, entrou no quarto.

         Gabel reconheceu de imediato o senhor dos MacFibh, embora tivesse encontrado o homem apenas uma vez. Angus MacFibh era difícil de ser esquecido. Sua cabeça e os ombros ficavam acima da maioria dos homens; possuía uma compleição tão forte como o mais excelente cavalo de batalha, e tinha uma cicatriz grande e vermelha a lhe marcar a face quadrada e pouco atraente. Usava trajes rudes de camponês e uma capa grossa feita de pele de lobo. Enquanto Gabel se levantava para cumprimentá-lo, o escocês estacou e olhou para Ronald.

         - Trata o inimigo muito gentilmente - disse Angus, olhando para Gabel com cautela, a mão no cabo da espada.

         - Não considero este homem um inimigo - Gabel retrucou, com uma voz calma e cortês, mas estava zangado com o olhar de desconfiança no semblante de Angus.

         - É um daqueles malditos MacNairn, não é? Nosso rei não disse que todo aquele ninho de víboras deveria ser limpo?

         - Nosso rei também disse que posso poupar qualquer deles que eu quiser, exceto Duggan MacNairn. Pretendo poupar Ronald.

         - E eu tenho em mente fazer Kengarvey sangrar. Vamos trabalhar um contra o outro, meu senhor?

         - Acho que não, se não tentar me impedir. Afinal, que bem seria Kengarvey para mim se eu não tivesse ninguém para trabalhar nas terras?

         - Há muitos MacFibh que poderiam fazer isso.

         - Tenho certeza, e me lembrarei disso se precisar deles. Posso perguntar por que veio a Bellefleur? Eu esperava um simples mensageiro com a informação de que estavam prontos para o ataque, e não o próprio lorde MacFibh.

         - Sinto que esta batalha é importante demais e vim lhe dizer pessoalmente que estou pronto. - Angus cocou a barriga e endereçou outro olhar duro para Ronald.

         - Estou ansioso para acabar com aqueles porcos dos MacNairn.

         Gabel encarou Ronald com uma expressão severa quando o velho resmungou, com ar de fúria. E pediu a Michael que conduzisse MacFibh aos aposentos de hóspedes, onde poderia descansar depois da dura jornada. No momento em que a porta se fechou, Gabel soltou uma praga.

         - A arrogância desse sujeito é quase chocante - resmungou Justice.

         - O cheiro dele não é muito melhor também - Ronald disse.

         - Acho a ansiedade desse homem em liquidar os MacNairn um pouco deprimente.

         Ronald concordou e depois deu de ombros.

         - Posso compreender tanto ódio. Duggan tem muito sangue dos MacFibh nas mãos. Matou inúmeros parentes próximos de Angus, e algumas vezes deixou as terras deles tão arrasadas e queimadas que o povo morreu de fome.

         - Mesmo que eu não tenha problemas com ele quanto às terras, posso ter em proteger os MacNairn - declarou Gabel.

         - Ele não deixará de nos odiar simplesmente porque temos um novo senhor.

         - E já provamos o sabor da traição de que os Fraser são capazes.

         - Quem sabe possa se livrar do lugar depois que o temperamento do rei esfriar e ele se sentir mais generoso a seu respeito - disse Justice.

         - Não - murmurou Gabel, e meneou a cabeça. - Quem tomaria as terras? MacFibh? Fraser? Eu estaria entregando a gente de Ainslee aos seus executores. Não seria um presente de casamento muito bem-vindo. Como explicar que não foi apenas a vida do pai dela que tirei, mas as terras também?

         Ronald sorriu.

         - Ainslee sabe que seus irmãos terão muita sorte se continuar vivos. Poderá ficar zangada com o rei por eles perderem o direito de nascença, sendo que os crimes foram cometidos por seu pai, e não pelos filhos, mas não irá culpá-lo, Gabel.

         Gabel gostaria de ter a confiança de Ronald, porém não discutiu.

         - Bem, é melhor eu ir e ser cortês com os meus hóspedes indesejados. Agora que os MacFibh estão prontos para o.com-bate, não precisamos nos demorar mais. Pretendo partir para Kengarvey pela manhã.

         - Direi aos homens - Justice declarou ao rumar para a porta. - É a notícia pela qual esperavam.

         Gabel olhou para Ronald.

         - Não creio que eu já tenha me sentido tão relutante em partir para uma batalha.

         - Sei disso. Deve fazer o que o rei ordena e, embora o meu coração se entristeça profundamente pelo meu povo, se algum homem deve ser enviado para pôr um fim aos problemas em Kengarvey, fico contente que seja você. Posso descansar em paz sabendo que, se Deus permitir que alguns deles sobrevivam, você os tratará bem.

         Ao agradecer com um gesto de cabeça pela confiança, Gabel saiu do quarto com o coração pesado. Os aliados que o rei lhe mandara jamais poderiam ser confiáveis ou benquistos. Bellefleur estava abarrotada de homens brutais. Mesmo suas ordens para mostrar alguma misericórdia seriam desobedecidas, e ele não apenas teria de lutar por sua vida e pela de seus homens, mas também pelas pessoas de Kengarvey que estivessem dispostas a se render.

         E, em algum lugar em meio a toda a desonestidade e o derramamento de sangue, ele tentaria encontrar Ainslee, antes que um Fraser ou um MacFibh conseguisse.

         Ainslee pestanejou, os olhos feridos pela luz de mais uma tocha que Colin havia assentado no suporte da parede. Estava nos calabouços fazia cinco longos dias, e aquela era apenas a segunda vez que seu irmão viera vê-la. Como ele tinha conseguido que os guardas os deixassem a sós, sem fazer com que a ira do pai desabasse sobre sua cabeça?

         Um pouco constrangida com a própria sofreguidão, Ainslee pegou o pão e o queijo que Colin lhe passou pelas grades. As míseras porções de comida que ele lhe trouxera antes tinham sido tudo que ela havia comido desde o aprisionamento. Seu pai mandara que tivesse água e nada mais. Era evidente que pretendia matá-la de inanição. Os guardas, provavelmente, deviam informar em que estado de fraqueza ela se encontrava. Isso logo traria problemas para Colin, pois Duggan suspeitaria se ela demorasse a sucumbir à fome.

         - Não tem medo que os guardas contem a nosso pai o que você faz? - Ainslee perguntou ao se obrigar a mastigar devagar a fina fatia de pão que o irmão lhe dera.

         - Não dirão nada - Colin murmurou.

         - Como pode ter certeza?

         - Porque ninguém aqui conta a nosso pai o que estou fazendo.

         - É estranho... Pensei que haveriam de procurar adulá-lo.

         - A maioria sabe que os favores dele não duram. - Colin franziu a testa quando ela guardou o resto do pão e do queijo debaixo da manta fina e estragada.

         - Por que não comeu tudo?

         - Se comer tudo agora, o que comerei amanhã ou depois?

         - Coma qualquer resto que lhe derem - seu irmão retrucou, num tom tenso, observando-a.

         - Não há nenhum resto, Colin - Ainslee murmurou, e viu o rubor tingir o rosto dele.

         - Só me deram água. - Ela encolheu-se quando Colin soltou um palavrão horrível e bateu o punho contra as barras, sem se importar com a dor que isso lhe causava.

         - Papai pretende matá-la... lentamente.

         - Você o impediu de me espancar até a morte, e não deixou que me transpassasse com a espada, portanto ele tenta agora me matar de fome. Afinal, quem iria questionar se eu morresse aqui? As pessoas morrem em lugares assim o tempo todo. E embora alguns possam estranhar que alguém coloque a própria filha nos calabouços, não lhe traria os problemas que simplesmente me matar provocariam.

         Colin puxou o banco do guarda e se sentou, as mãos fechadas com tanta força no colo que os nós dos dedos estavam brancos à luz das tochas.

         - Talvez eu consiga pegar a chave.

         - Não. Os guardas não permitiriam, pois a minha fuga custaria a vida deles. Nós dois sabemos que, para mim, existe apenas uma maneira de escapar de Kengarvey sem risco de captura, e, se você me disser como, colocará em perigo a própria vida.

         - Então, devo ficar sentado aqui e ver nosso pai deixá-la morrer de inanição?

         - Sim, embora eu não creia que isso venha a acontecer.

         - Não? Ele logo irá se dar conta de que você está vivendo por tempo demais só com água. Tenho certeza de que serei o primeiro para quem se voltará quando suspeitar de que alguém a tem alimentado, e fará o que for preciso para impedir isso.

         - Então, talvez devesse parar de me ajudar.

         - Ah, é? E me deitar confortavelmente na minha cama, de barriga cheia, enquanto você morre aos poucos aqui? Acha que não tenho consciência?

         - Acho que talvez tenha mais do que seja seguro aqui dentro de Kengarvey. - Ainslee esboçou um sorriso débil. - A ameaça de danação que você continua incutindo em nosso pai logo deixará de intimidá-lo.

         - Ah, você adivinhou o meu jogo. Sempre foi a mais esperta de nós.

         - Não lhe falta inteligência, Colin.

         - Talvez. Sei que me cansei de usar isso simplesmente para manter as pessoas vivas. Kengarvey poderia ser quase tão grande como Bellefleur se papai parasse de desperdiçar sua força e riqueza em batalhas e guerras.

         - Você deve se proteger. Papai obriga todos a isso com a sua fúria e crueldade. Você pode não querer minha morte na consciência, mas nem eu quero ser a causa da sua.

         - Começo a pensar que não existe resposta para este dilema. Se eu ajudá-la, arrisco a mim mesmo. Se eu me proteger e não a ajudar, então você irá morrer aos poucos. Ninguém deveria se ver diante de tal escolha. Não, principalmente dada pelo próprio pai.

         - Então, devemos rezar para que o rei decida que está farto e mande um exército para cá.

         - Ah, sim, e então ambos morreremos.

         Ainslee riu, surpresa de achar graça de uma situação tão desesperadora.

         - Você deveria tentar me animar, Colin.

         Ele sorriu com desalento.

         - Você espera muito de um simples mortal. Suponho que só reste o riso quando a gente se vê sem ter para onde se voltar e quase nenhuma esperança. No entanto, qualquer um dos nossos inimigos que for enviado estará determinado a que todos nós paguemos pelos pecados e pela arrogância de Duggan MacNairn.

         - Não Gabel.

         - Você o enxerga com os olhos nublados de mulher apaixonada.

         - Talvez um pouquinho, mas não estou completamente cega. Gabel não deseja varrer Kengarvey da face da Terra. Ele matará nosso pai, sim, mas o senhor de Bellefleur não é homem que matará cada homem, mulher e criança pelos erros de um lorde.

         - Eu gostaria de acreditar nisso, pois me daria esperança, mas aprendi que esperança não é uma boa coisa em Kengarvey. Desmorona com freqüência, e a gente se cansa e depois cessa de esperar. - Colin levantou-se e apertou as mãos de Ainslee através das grades.

         - Farei o que puder para ajudá-la. - Fechou-lhe os lábios com a ponta do dedo quando ela ia retrucar. - Não, não adianta vir com avisos e protestos. Farei o que devo. E rezarei para que você tenha razão, e que o lorde de Bellefleur realmente seja misericordioso de alma.

         Ainslee esboçou um sorriso triste ao ver o irmão se afastar. Ao voltar para o catre e ver o guarda assumir o posto, ela concluiu que o melhor a fazer seria rezar também. Pediria a Deus para dar ao povo de Kengarvey uma última chance, e permitir que Gabel liderasse o exército que em breve estaria clamando diante das muralhas.

         Era a única esperança que teriam de sobreviver.

         Gabel beijou a tia e a jovem Elaine, na despedida, e sorriu gentilmente diante dos pedidos para que se protegesse. As duas não eram boas em ocultar os temores a cada vez que ele partia para uma batalha, porém não o atormentavam com isso. Dessa vez, Gabel sabia que elas tinham razão em temer. Não apenas estava partindo para enfrentar um inimigo, já que os homens que o rei o forçara a aceitar como aliados eram, por si só, inimigos. Nessa ocasião, ele não apenas cavalgava para o perigo, cavalgava com o próprio perigo ao lado.

         Ao montar o cavalo que havia escolhido para si, sorriu e afagou o pescoço forte de Malcolm. Passara o animal por uma série de testes para analisar a valia como cavalo de batalha, e Malcolm tinha superado cada um deles com admirável perícia. Alguém o adestrara muito bem. E Gabel se deu conta da ligeira ironia em montar o cavalo de um MacNairn num combate contra o povo de Kengarvey. Não poderia deixar de lado um animal tão valioso, contudo, só porque havia sido a montaria de Ainslee.

         Quando cruzou os portões de Bellefleur, Michael e Justice se apressaram para flanqueá-lo, e Gabel relanceou os olhos para trás, para a multidão de homens a segui-lo, alguns a cavalo, outros a pé. A ansiedade sanguinária dos Fraser e dos MacFibh ainda lhe dava calafrios. Mas o que mais o preocupava no momento era a maneira com que os dois clãs tinham juntado forças. Sabia que ele e seus homens estavam sozinhos na luta que teriam à frente. Tais aliados ajudariam naquilo que significasse acabar com os homens que iriam combater, porém tinha certeza de que nenhum dos MacFibh ou dos Fraser era confiável para proteger sua retaguarda ou a de seus guerreiros. Na verdade, começou a suspeitar de que precisaria tomar cuidado para evitar um ataque traiçoeiro dos próprios aliados.

         - Rezei para que o rei mudasse de idéia e chamasse de volta esses cães - murmurou Justice.

         - Isso teria me tranqüilizado, mas não creio que Sua Majestade se dê conta de que pode nos ter colocado em perigo. Ele quer Duggan MacNairn morto, e sabe que os Fraser e os MacFibh cumprirão com prazer o seu desejo. Só receio que o nosso soberano não creia que eu pudesse cumprir a tarefa.

         - Ele não pode acreditar que você o trairia - murmurou Michael, ultrajado.

         - Não, porém não quer mostrar piedade, e sente que estou muito comprometido com isso. MacNairn é um traidor, e a pena que um traidor deve receber, por lei, é uma morte lenta e horrível. Acho que o nosso rei não ficaria contente se o meu senso de misericórdia o forçasse a executar MacNairn ele próprio. Quer que seja morto em combate.

         - Sua Majestade receia que os seus outros lordes se revoltem se ele matar brutalmente um dos seus pares, não importa quanto MacNairn esteja errado - disse Justice.

         - Sim. Ele está rodeado por um bando problemático e, embora nenhum deles aja com tanta ousadia como MacNairn, o rei deve se conduzir com cautela, a sopesar cada ação e palavra. Não é um reino fácil de governar.

         - Bem, não podemos amaciar o caminho para ele, exceto neste pequeno canto do país.

         - E faremos isso pela manhã.

         - Acha que não chegaremos a Kengarvey hoje?

         - Não. Se marcharmos com muita pressa, cansaremos os homens que estão a pé, e não darão o seu melhor em combate. Chegaremos perto do cair da noite ou no escuro, pois não convém acampar onde seremos vistos pelos MacNairn. Não, acamparemos pelo menos a uma hora de jornada de Kengarvey, e o alcançaremos pela manhã.

         Quando o sol começou a se esconder, e Gabel ordenou uma parada, defrontou-se com a imediata discordância dos Fraser e dos MacFibh. Quase uma hora foi perdida enquanto os dois lordes brigavam e ameaçavam continuar sem ele. A única coisa que os impediu de dividirem o exército foi saber que ficariam mal perante o rei se colocassem a campanha em perigo. Quando Gabel, finalmente, conseguir sentar com os primos para comer, estava tão furioso que mal conseguiu sentir o sabor da comida que o criado lhe trouxe.

         - Canalhas arrogantes! - resmungou Justice ao observar os dois clãs que acampavam a uma pequena distância dos homens de Bellefleur.

         - Farejaram a minha fraqueza - murmurou Gabel, que colocou de lado o prato e tomou um longo gole de vinho.

         - O que quer dizer... sua fraqueza? Eu não vejo nenhuma.

         - Olhe com mais atenção, primo. A desaprovação do rei pode ser mínima, mas ainda estou marcado por ela. E é essa desaprovação que impede essa corja de sair correndo, ignorando qualquer ordem que eu possa dar. Mas Fraser e MacFibh vêem uma oportunidade de me rebaixar ainda mais perante a estima do rei, e, se puderem encontrar um meio, agirão sem vergonha alguma.

         - Então, você acredita que não teremos de nos preocupar apenas com os MacNairn, mas que precisamos nos proteger, sobretudo você, da conspiração de Fraser e do seu novo lacaio, MacFibh?

         - Tenho certeza disso. Cada vez que olho na direção de Fraser, vejo o homem a me encarar com ódio. É meu inimigo. Sim, preciso ficar alerta, ou ele pode tentar usar a batalha para se livrar de mim.

         - Quer dizer que acha que Fraser pode tentar matá-lo?

         - É o que faz com aqueles que ele julga estarem no seu caminho ou que fizeram algo que pensa que o prejudicou. Tem se safado sem punição por tanto tempo porque joga seus jogos mortais com a sutileza que falta a MacNairn, e porque, até agora, não matou alguém que o rei tem em alta estima. Mas há algo que me preocupa bem mais que os possíveis complôs de Fraser de me matar ou me desonrar.

         Justice meneou a cabeça.

         - O que poderia preocupá-lo mais do que isso?

         - Fraser sabe do meu envolvimento com Ainslee. Acho que também sabe que ela é a única em que eu pensava quando pedi para ser misericordioso com qualquer um dos MacNairn, a não ser Duggan. Receio que ele procure chegar até Ainslee primeiro e matá-la, só para me atingir.

         - Começo a recear essa batalha cada vez mais - murmurou Michael.

         - Não é reconfortante saber que cavalgamos para combater um inimigo, rodeados de outros. Em combate, queremos homens que nos protejam as costas. Agora você me diz que teremos de nos preocupar com os nossos aliados tanto quanto com os MacNairn.

         Gabel esboçou um sorriso. Detestava a situação, mas sabia que não poderia ser mudada.

         - Lutaremos sozinhos. Não será difícil, já que os exércitos estão separados. E assim continuarão. Nunca ocorrerá um combate franco entre nós, portanto manter distância de nossos companheiros indignos de confiança deve ser o suficiente.

         - Espera muito de todos nós - murmurou Justice.

         - Ah, mas não é nada que você não possa fazer com facilidade, considerando-se sua inteligência e perícia.

         Justice bufou de desgosto com o elogio irônico de Gabel.

         - Quando você tenta me adoçar com palavras de adulação para amenizar meus receios, sei que estamos enrascados.

         Gabel riu, porém seu bom humor foi passageiro. Queria ver aquela batalha terminada. Queria os Fraser e os MacFibh de volta de onde vieram. Mais do que tudo, queria Ainslee de volta à sua cama, a salvo e ilesa. Era muita coisa a esperar, e tudo que poderia fazer era rezar para que Deus fosse piedoso o bastante para lhe conceder o que desejava.

         - Lá está Kengarvey - murmurou Justice ao puxar as rédeas do cavalo ao lado de Gabel.

         - Sim, lá está - Gabel concordou, ausente, o olhar cravado na fortaleza recentemente reconstruída, mas com a mente focada no que seria forçado a fazer a seguir.

         Justice olhou por sobre o ombro para os homens reunidos atrás, na espera do início do combate. Todos aguardavam dentro da mata cerrada, usando as árvores para ocultar a aproximação.

         Se qualquer um deles avançasse mais que uns poucos metros, entraria na grande clareira que circundava Kengarvey, e os vigias nas altas muralhas o avistariam, a menos que fossem cegos ou estivessem adormecidos. Justice tinha certeza de que o exército julgava que Gabel estava avaliando pela última vez os pontos fortes e as fraquezas de Kengarvey, e aguardaria seu comando, mas os Fraser e os MacFibh não ficariam imóveis por muito mais tempo.

         - Primo, nossos aliados começam a se mostrar inquietos. - Justice inclinou-se para mais perto de Gabel, na esperança de arrancá-lo do devaneio.

         Gabel olhou para trás e viu que os Fraser e os MacFibh se adiantavam, cada um tentando ficar um passo à frente do outro.

         - Eles estão tão ocupados em tentar assegurar a liderança que logo deixarão a cobertura das árvores.

         - Compreendo o que o faz hesitar, Gabel, mas, se pretender salvar algum MacNairn no dia de hoje, convém não se demorar aqui por mais tempo.

         - Se eu ordenar o ataque, tenho certeza de que serei sufocado pela poeira dos MacFibh e Fraser, ansiosos para iniciar a carnificina.

         - Estão assim desde quando o rei permitiu que se juntassem a nós. Você elaborou um novo plano, ou está parado, esperando que algum sortilégio permita que enxergue através daquelas muralhas e encontre Ainslee antes que a batalha comece?

         Um leve sorriso curvou a boca de Gabel.

         - Isso seria suficiente para me confortar de alguma forma. Mas, não, não fiz nenhum plano novo. Diga aos nossos arqueiros para ficarem prontos. Nosso ataque atrairá todos os olhares de Kengarvey na nossa direção, mas só por algum tempo.

         - Cada homem de Bellefleur sabe que deve tentar encontrar Ainslee antes dos outros. Com tantos olhos a procurar por ela, tenho certeza de que será encontrada.

         Gabel concordou, desejoso de acreditar em Justice, mas incapaz disso. Sabia que um combate nada mais traria que caos e destruição. Poderia ser impossível localizar Ainslee entre todos as pessoas que estariam em luta, tentando fugir ou se escondendo dos inimigos. Muitas vezes ele fora obrigado a aguardar até que a batalha terminasse para descobrir o destino de seus próprios parentes, mesmo quando os De Amalville eram vitoriosos. Ao dar o sinal a seus homens, Gabel rezou para que Ainslee tivesse achado um modo de fugir de Kengarvey.

         Ainslee franziu a testa com o estranho som que a arrancou da letargia. Levantou-se do catre e mordeu o lábio quando seus primeiros passos foram vacilantes. A surra que levara, a umidade fria do calabouço e a falta de alimento, tudo conspirava para minar suas forças. A fome constante retardava sua cura e tornava difícil combater o efeito prejudicial da prisão escura.

         Agarrada às grades geladas e escorregadias, ela observou de olhos estreitados o guarda magro. Na semana em que ele estivera sentado ali a vigiá-la, tudo que Ainslee tinha conseguido saber era que se chamava Robert. Aquele retalho de informação lhe chegara só porque o outro guarda o havia chamado pelo nome. Depois de dois dias, ela cessara de tentar arrancá-lo do mutismo e aceitara aquela presença silenciosa. A evidente inquietação de Robert indicava que seus ouvidos não a enganavam. Aguçou a atenção por um momento e, de repente, reconheceu o barulho. E um calafrio desceu por sua espinha.

         - Estamos sendo atacados! -- ela gritou, dividida entre o medo por si mesma, pelos irmãos, pelo povo de Kengarvey e a alegria. Uma batalha significava perigo para todos, mas também que Gabel estava perto.

         - Não - protestou Robert, a voz sem convicção. - Talvez seu pai esteja simplesmente tendo aqueles seus acessos de fúria.

         - Bem, meu pai pode ter acessos de fúria gloriosos e ensurdecedores, mas você sabe que não estamos ouvindo seus berros assustadores agora. A batalha começou. - O guarda não disse nada, e Ainslee praguejou baixinho. - Ora, você é um dos mercenários de meu pai e deve ter vendido sua espada a outros antes de chegar aqui. Se eu posso reconhecer o som de um combate, você também pode.

         - É, talvez tenha razão - Robert resmungou -, mas fui pago para vigiá-la.

         - Ah, vamos permanecer aqui e esperar pelo inimigo?

         - O inimigo pode nunca chegar tão longe, dentro de Kengarvey.

         - Podemos morrer aqui, idiota!

         - Talvez, mas não é certeza, é? Eis o que é certo: se eu soltá-la e estivermos enganados, morrerei, já que seu pai me matará pela falha sem hesitar.

         Não havia como Ainslee discutir, pois era a pura verdade. Ela se agarrou às grades de ferro com força, a lutar contra o medo e a irritação, desesperada pela incapacidade do infeliz de raciocinar. Estudou-o atentamente por um momento enquanto o homem andava de um lado para outro, parando só para espiar os degraus estreitos que levavam à fortaleza. Poderia se sair melhor, Ainslee pensou, se jogasse com o instinto de sobrevivência do mercenário.

         - Preste atenção por um instante - ela falou, usando o tom mais calmo e agradável que conseguiu, para não o ofender ou irritar. - Que bem resultará para meu pai se nós morrermos aqui, ou se eu for arrancada das mãos dele mais uma vez, custando mais do seu dinheiro escasso e precioso? - Ao ver que o guarda parecia refletir, Ainslee o pressionou:

         - Já imaginou se meu pai tiver razão e eu for mesmo a amante do senhor de Bellefleur? Pode muito bem ser ele que chegou para me levar de volta. Que mal há se você for tentar descobrir o que está acontecendo? Se estivermos sendo atacados, e se Kengarvey estiver prestes a cair nas mãos dos inimigos, seria prudente soltar-me, não acha? Meu pai haverá de preferir que eu fuja a ser levada para resgate mais uma vez. Afinal, se eu continuar viva, ele pode me recapturar depois e me matar do seu jeito cruel, algo que sabemos bem que está tentando fazer.

         - Sim, lorde MacNairn a quer morta, e não se importa se for abatida em batalha.

         - Oh, sim, ele irá se importar, e você sabe muito bem disso. Meu pai parece me odiar, e ambos sabemos que ele não ficará nada satisfeito se a espada de outro homem lhe tirar esse gosto.

         - Fique quieta! - Robert berrou, passando a mão pelos cabelos sujos. Pensou por um momento. - Tem razão, moça. É melhor descobrir exatamente o que está acontecendo em cima das nossas cabeças. Voltarei em poucos minutos.

         Assim que o guarda desapareceu pelos degraus estreitos, Ainslee desejou que ele voltasse. Sabia que estava permitindo que seus medos a enganassem. Aquele homem não a protegeria. A única preocupação dele era continuar vivo, e a sacrificaria prontamente para conseguir isso. Só poderia rezar para que voltasse e lhe contasse o que estava acontecendo.

         Ela fechou os olhos e respirou fundo para se acalmar. Era impossível, mas finalmente conseguiu controlar a sensação de pânico que ameaçava impedi-la de raciocinar. Sabia que, enquanto continuasse presa nos calabouços, só podia rezar para que os atacantes de Kengarvey tivessem misericórdia.

         Conforme o tempo passava lentamente, Ainslee ficou mais e mais agitada. Não tinha nenhuma dúvida de que um combate ferrenho se desenrolava acima de sua cabeça. Os sons se tornavam mais distintos a cada instante. Ela começou a andar pela cela úmida, a maldizer o cativeiro, seu pai, sua condição debilitada e a falta de armas.

         Finalmente parou, comprimida contra as grades, e fechou os olhos. Tentou concentrar-se no barulho abafado, tentando descobrir o que acontecia. Tão atenta estava que, quando a porta no patamar da escada abriu-se, saltou de susto. O barulho que entrou pela abertura confirmou todos os seus medos. Kengarvey se encontrava em pleno conflito.

         Seu coração encheu-se de esperança ao reconhecer quem descia os degraus: Colin. Ele usava o gibão almofadado, a cota de malha e o elmo. Tudo estava manchado de sangue. O pouco que Ainslee podia ver do rosto sob o elmo estava riscado de suor, poeira e sangue. Até a espada que seu irmão empunhava. Kengarvey devia ter caído, pois Colin jamais deixaria a batalha só para ir até ela.

         - Nossos inimigos chegaram - ele anunciou ao se encostar contra as grades, procurando recuperar o fôlego.

         - E estão vencendo - Ainslee murmurou.

         - Falta muito pouco para eles arrebentarem os nossos portões. Também enxameiam por sobre as nossas muralhas. Mais do que podemos rechaçar correm pelos parapeitos, combatendo contra os nossos.

         - Você não me disse que inimigo nos ataca. - Ainslee tentou manter a esperança na voz, mas Colin a encarou com fúria.

         - Seu belo senhor de Bellefleur está lá, lutando para ser o primeiro a passar pelos nossos portões.

         - O que quer dizer com ser o primeiro?

         - Não veio sozinho. Aqueles cães dos Fraser e dos MacFibh estão uivando nos calcanhares dele.

         - Não! - Ainslee ficou apavorada. Tinha certeza de que Gabel jamais trataria com aquela gente, mas não podia duvidar da afirmação de Colin. - Gabel mandou Fraser embora de Bellefleur porque ele tentou me matar por duas vezes. Queria fazer algo mais, mas não poderia puni-los pela tentativa contra mim, já que sou considerada fora-da-lei por causa de nosso pai.

         - Bem, pode perguntar ao seu amante, porque ele está grudado como unha e carne com aqueles homens. Se você viver o bastante... - Colin foi até onde o guarda se sentava, embainhou a espada e pegou a chave do gancho na parede. - Não vim aqui para falar a respeito De Amalville e de com quem se aliou. - Remexeu as chaves ao procurar encaixar uma delas na fechadura. - Vim aqui para libertá-la, para que você tenha chance de se salvar.

         No momento em que Colin abriu a porta, Ainslee lutou contra o impulso de arrojar-se aos pés do irmão, tal era sua gratidão e seu alívio. Abraçou-o, sem se importar com o fedor da batalha que o envolvia.

         - Salve-se também, Colin - disse ao se afastar e fitá-lo nos olhos. - Não deixe nosso pai levar você e nossos irmãos para o túmulo, junto com ele.

         - Não comece a dizer como De Amalville vai nos ajudar! - Colin esbravejou, puxando-a para as escadas.

         - Ele jurou que tentaria salvar todos que pudesse.

         - O homem está derrubando os restos dos nossos portões com as próprias mãos, tão ansioso para cortar as nossas gargantas como seus aliados infernais.

         - Ou talvez esteja tentando chegar até nós antes dos Fraser e dos MacFibh, pois sabe que eles nos matarão sem dó nem piedade.

         Colin parou ao chegarem ao salão superior, praguejou e depois empurrou Ainslee para as escadas que levavam aos quartos.

         - Vá, pegue suas armas para poder se defender, ou suprimentos para poder fugir deste lugar encharcado de sangue, mas pare de tentar embotar meu raciocínio com velhas promessas.

         Ainslee ia argumentar, porém seu irmão já corria de volta ao pátio, para o âmago da batalha. Com vontade de chorar por ter fracassado em convencê-lo a confiar em Gabel e salvar a própria vida, ela lutou contra as lágrimas. Não havia tempo para lamentações. Correu para o quarto e resolveu pegar as armas e alguns poucos suprimentos. Não duvidava de que precisaria lutar, mesmo se quisesse fugir. Só rezou para que a sorte e a bondade de Deus a entregassem nas mãos de Gabel.

         Gabel praguejou ao ver os Fraser e os MacFibh escalarem as muralhas. Ainda havia um portão a ser derrubado. A batalha se tornara uma corrida. Os aliados traiçoeiros pretendiam superá-lo e matar tantos MacNairn quanto pudessem antes que ele conseguisse salvar algum. Também suspeitava de que ambos disputavam o privilégio de matar o senhor de Kengarvey. Não era uma honra que desejasse buscar, embora soubesse que melhoraria grandemente seu prestígio junto ao rei. Tudo com que ele se importava era chegar dentro da fortaleza antes que cada MacNairn fosse cruelmente assassinado, antes que Ainslee fosse encontrada pelos homens que só queriam sua morte.

         Os MacNairn lutavam ferozmente, e Gabel tinha de admirá-los por isso. Além do mais, de todos os corpos de coalhavam o chão do lado de fora das muralhas, só uns poucos eram dos homens de Bellefleur, o que o deixava um pouco mais feliz. A maneira com que Fraser e MacFibh lançavam seus contingentes contra a fortaleza, sem nenhuma consideração pelas vidas dos guerreiros, era algo que o enojava. A tática finalmente funcionara ao vencer a resistência dos MacNairn, mas o custo havia sido alto demais para justificá-la.

         A cada morte que infligiam, Fraser e MacFibh exultavam. Gabel jurou que, mesmo que o rei ordenasse, jamais lutaria com gente assim outra vez.

         - Estamos quase estourando o portão, milorde, e os MacNairn começam a recuar para o outro lado! - gritou um dos soldados de Bellefleur.

         Antes que Gabel pudesse dizer alguma coisa, outro homem gritou:

         - Olhe para o norte, milorde! Está chegando alguém!

         Com Justice a seu lado, Gabel dirigiu-se à retaguarda e olhou para o pequeno contingente que se aproximava ao norte de Kengarvey. O grupo parou perto das primeiras ruínas. Um dos homens avançou e cavalgou na direção deles, cada vez mais confiante ao perceber que não precisava temer nenhuma flecha disparada das muralhas.

         - Você é um MacNairn? - Gabel perguntou, quando o cavaleiro puxou as rédeas da montaria.

         Algo no recém-chegado deixou Gabel inquieto. Não precisava de mais ninguém no combate. O homem tinha seus quarenta anos, era magro e estava vestido com elegância, parecendo completamente deslocado naquele cenário de batalha a que observava com frieza.

         - Não - ele respondeu. - Sou casado com Elspeth, a filha mais velha de MacNairn. - Curvou a cabeça num ligeiro cumprimento. - Sou Donald Livingstone. - Ergueu a mão quando Gabel se apresentou. - Sei quem é, senhor De Amalville.

         - Por que vem a Kengarvey num dia como o de hoje?

         - Para observar, nada mais. Não me juntarei a vocês contra meus parentes pelo casamento, e também não planejo ajudar meu sogro.

         - Que razão tem para estar aqui?

         - Ouvi dizer que o rei ordenou esta batalha, e senti que era meu dever estar aqui e observar o resultado. Quero lhe pedir um favor, milorde.

         - Se olhar ao redor, verá que estou no meio de um combate sangrento. Nem tenho tempo nem inclinação para fazer favores.

         - Isso não me impedirá de pedir. Quero que Ainslee MacNairn possa continuar viva.

         - Por quê? - Gabel indagou, o instinto a lhe dizer que não iria gostar da resposta.

         - Encontrei um homem disposto a desposar aquela moça desobediente.

         - Vem me procurar para me falar sobre isso agora? Desapareça, se não pretende nos ajudar ou render-se a mim. Se qualquer um de nós sobreviver, pode me procurar, porém mais tarde, muito mais tarde.

         Gabel virou as costas para o homem e abriu caminho entre os soldados para voltar aos portões.

         - O sujeito deve ser completamente louco - ele comentou com Justice, que corria ao seu lado. - Cavalga para o meio de uma batalha sangrenta, observa calmamente os parentes da esposa serem mortos e me pede que eu tente poupar a vida de apenas uma pessoa? Nem mesmo perguntou de qualquer um dos irmãos de Ainslee.

         - Ele pode não ganhar nada deles, exceto mais bocas para alimentar - disse Justice.

         - Não, o homem tem algum plano, e esta batalha poderá estragá-lo.

         - Bem, logo descobrirá que todos os planos espertos não darão em nada. Mesmo que eu não quisesse ficar com Ainslee para mim, jamais a entregaria àquele sujeito.

         - Olhe, Gabel, finalmente arrebentaram aqueles malditos portões!

         Gabel se viu engolfado na onda de homens que avançou pela abertura. Um olhar ao redor do pátio afastou todo pensamento a respeito de Donald Livingstone de sua mente. O povo de Kengarvey continuava a lutar bravamente, mas os MacFibh e os Fraser espalhavam uma destruição sangrenta. Os aliados que Gabel passara a odiar pareciam dominados pela gana de matar, e não davam trégua.

         - Jesus! - murmurou Michael, pálido e de olhos arregalados.

         - É como se estivessem todos loucos de ódio e ávidos pelo cheiro de sangue. Acho que podem se voltar contra nós se tentarmos impedir essa carnificina.

         - Sim - concordou Gabel -, e nós precisamos reunir as poucas almas que pudermos num lugar seguro, e depois guardá-las bem.

         Gabel escolheu dois arqueiros e três espadachins para o seu contingente, e levou-os a um canto, com a muralha da fortaleza ainda firme às costas. Dentro do semicírculo de homens armados, algumas daquelas pessoas apavoradas de Kengarvey poderiam encontrar proteção. Deu aos seus soldados rígidas instruções de que abrigassem quaisquer MacNairn que os procurassem, e que apenas um homem de cada vez poderia se afastar para tentar resgatar alguém. Depois de se assegurar de que haviam compreendido o que ele desejava, rumou para a fortaleza.

         Não ficou surpreso quando, um momento depois, Michael e Justice estavam a seu lado.

         - Vamos procurar por Ainslee? - indagou Michael.

         - Não... pelo pai dela - retrucou Gabel. - Eu o vi correr para cá, deixando os filhos por conta própria. - Deu de ombros. - Pelo menos presumo que os quatro rapazes que ele abandonou sejam seus filhos, já que os homens de Fraser estão pressionando muito os quatro.

         Gabel concordou com um gesto quando, antes de entrarem no salão, Michael fez um sinal a alguns homens de Bellefleur para que ajudassem os filhos de MacNairn.

         - Muitos pensarão que fiquei maluco ao esperar que os filhos sobrevivam - declarou Gabel -, mas Ronald jurou que eles não são como o pai, e eu prefiro encontrar Ainslee com a certeza de que fizemos tudo que pudemos para tentar poupar seus irmãos.

         - Tem certeza de que deseja encarar o pai dela? - Justice franziu a testa ao entrarem no salão e depararem com Duggan MacNairn a enfrentar três dos soldados dos MacFibh.

         - Não me parece que o homem tenha qualquer intenção de render-se, e isso quer dizer que você deve matá-lo, ou se afastar e deixar que outro o faça.

         - Não - Gabel murmurou. - Não terei nenhum problema em acabar com Duggan MacNairn, nem que seja por causa da surra que ele deu em Ainslee. Aquela visão tem requeimado minha mente e minhas entranhas desde o dia que a perdemos no rio. Minha única hesitação nasce de ter de encará-la depois, com o sangue de seu pai em minhas mãos. No entanto ela declarou que compreende que o pai traçou esse destino para si mesmo. - Olhou para os primos e ordenou: - Vamos, é hora de afastar esses cães dos MacFibh da nossa presa.

         Enquanto mantinham os olhos atentos em Duggan MacNairn, Justice e Michael dispensaram os MacFibh. Os três protestaram aos berros contra tal ordem, pois tinham em mente conseguir o que consideravam o mais valioso prêmio do combate. Quando Michael e Justice quase trocaram socos com eles para os obrigar a recuar, Gabel ordenou rispidamente e com toda a autoridade de enviado do rei que os aliados se afastassem. Depois de um momento de hesitação tensa e hostil, os três recuaram, embora para uma curta distância. Gabel não queria os três a espreitar às suas costas, zangados e se sentindo trapaceados, porém se esforçou para focar os pensamentos em Duggan MacNairn, pois sabia que o homem tentaria usar alguma artimanha para se safar.

         - Ainda tem uma chance de se salvar - Gabel disse para Duggan MacNairn.

         - Acha mesmo que sou tão burro que não sei exatamente o que o rei quer fazer comigo?

         - Você deve ter uma conversa ladina, ou não conseguiria contar todas as mentiras que disse durante todos esses anos. Por que não encara o rei como um homem? Se não puder se salvar, pelo menos poderia tentar salvar seus filhos, Kengarvey e seu povo.

         - Eles que se virem. Tenho minha própria vida para cuidar, e se pensa que pode tirá-la, normando, venha! - desafiou Duggan, a voz e a postura arrogante a aumentar a provocação por trás das palavras.

         Gabel tinha certeza de que não arrancaria a verdade da boca de MacNairn, mas resolveu perguntar por Ainslee. Se Duggan lhe desse uma resposta correta, isso poderia poupar tempo, assim como salvar a vida de sua amada. Descobriu que precisava reunir forças para perguntar, pois se Duggan tivesse ferido a filha, o canalha iria saborear a chance de fazê-lo perder a cabeça.

         - Onde está sua filha? - Gabel conseguiu finalmente indagar.

         - Achou que poderia se divertir um pouquinho mais com aquela tola promíscua, hein?

         Isso vai ser bem mais difícil do que julguei, Gabel pensou ao lutar contra o impulso de avançar sobre o homem que insultava a própria filha.

         - O que pretendo fazer com ela deixará de ser da sua conta se não se render a mim.

         - A idiota tentou fugir de Kengarvey. Deveria saber que ninguém escapa deste lugar.

         - Você a matou?

         - Pode ter acontecido, a essas alturas. - Duggan MacNairn deu de ombros.

         - Não sei.

         - Antes de morrer, MacNairn, é melhor me dizer onde Ainslee está. Se não falar, sua morte aqui, em minhas mãos, pode facilmente ser tão dolorosa como a morte de traidor que o rei planeja para você.

         - A vagabunda descansa nos calabouços, e já faz uma semana, talvez mais. E pode realmente estar descansando, pois. não teve nada a não ser água para beber em todo esse tempo que está encarcerada lá.

         Gabel ficou tão furioso que estremeceu com a força da revolta. Obrigou-se, no entanto, a assumir o controle das emoções, pois isso poderia fazer com que atacasse às cegas, e era exatamente o que Duggan MacNairn queria que ele fizesse. Daria ao oponente uma perigosa vantagem. MacNairn falava de sua crueldade com Ainslee, a própria filha, e da tentativa de matá-la de inanição com tanta fanfarronice que o estômago de Gabel se revirou. E ficou fácil afastar toda a preocupação que sentia se matasse o pai dela. Não julgava que alguma vez tivesse enfrentado um homem que merecesse morrer mais do que Duggan MacNairn.

         - A honra me obriga a perguntar mais uma vez: você se rende? - ele perguntou, a voz rouca de tanta raiva.

         - Não, seu fornicador intrometido. Se é covarde demais para me enfrentar, então mande outro. Quero lavar o salão com o sangue do meu inimigo.

         - Acho que não, seu canalha arrogante. E somente o seu sangue que irá encharcar esta palha imunda.

         No momento em que sua espada chocou-se com a de MacNairn, Gabel sentiu-se quase revigorado. Percebeu que ansiava por enfrentar o canalha desde aquele dia no rio, quando se vira forçado a observar, impotente, enquanto Duggan MacNairn espancava a própria filha até quase a morte. O bandido vivera demais e, mesmo se isso lhe causasse algum problema com Ainslee mais tarde, Gabel sabia que queria ser aquele que poria um fim ao reinado brutal do tirano.

         Não se surpreendeu quando MacNairn comprovou ser um hábil adversário. Tinha de ser, pois somente tal perícia havia-lhe permitido continuar vivo por tanto tempo. Nem o surpreendeu quando, por duas vezes, precisou esquivar-se de uma tentativa sorrateira e mortal de MacNairn, já que não esperava que Duggan pudesse lutar de forma honrada. O que o espantou foi a força do velho. Pelo sangue e a sujeira emplastrada por todo o gibão acolchoado e a cota de malha, era evidente que eleja enfrentara outros oponentes e, no entanto, a não ser por uma fina camada de suor entre as sobrancelhas, o homem mostrava apenas um ligeiro sinal de cansaço.

         Foi um passo em falso que pôs fim ao combate. MacNairn tropeçou, e Gabel aproveitou-se depressa da vantagem e enterrou a espada no coração do tirano. Ao puxar a lâmina e ver o homem se amontoar, sem vida, no chão, Gabel conteve uma breve sensação de desapontamento. MacNairn não merecia uma morte tão rápida e tão honrosa. Com um suspiro de alívio, Gabel limpou a espada no gibão do morto e a embainhou. Depois se virou para encarar os outros.

         - Para onde foram os MacFibh? - ele perguntou quando viu que Justice e Michael estavam sozinhos.

         - No momento em que a sua espada entrou no peito do canalha, os três correram para fora - informou Justice. - É provável que tenham ido procurar seu senhor para contar o que você acabou de fazer. - Justice seguiu até o lado de MacNairn e cutucou-o com a ponta da bota.

         - Tem certeza de que o animal está morto?

         - Você viu minha espada transpassar-lhe o coração.

         - Sim, mas um homem como este muitas vezes faz alguém imaginar se tem mesmo um coração que se possa transpassar.

         O sorriso de Gabel foi passageiro, pois sua mente já se focava em Ainslee. A simples idéia daquilo que o próprio pai lhe fizera o fez estremecer. O que ele estava esperando para correr até as entranhas de Kengarvey? Um instante depois foi obrigado a admitir para si mesmo que o medo daquilo que pudesse encontrar o retardava e o pregava no lugar. Pensar em achar Ainslee morta ou agonizante, esfaimada além da salvação, e indubitavelmente coberta de hematomas e inchaços provocados pelos punhos do pai, era mais do que ele poderia enfrentar. Mas o pensamento que se seguiu foi que, se ela ainda estivesse viva, precisaria da sua ajuda. E isso, finalmente, lhe deu forças para sair do lugar.

         Justice e Michael estavam em seus calcanhares quando

         Gabel saiu pelo salão, agarrou uma moça apavorada pelo braço antes que ela pudesse fugir e exigiu que lhe contasse como chegar aos calabouços. Soltou-a assim que a jovem lhe disse o que precisava saber, e correu. Ao chegar perto da porta que escondia as escadas que conduziam ao interior da fortaleza, o passo de Gabel se acelerou, e ele se viu dominado por dúvidas. Encontrar Ainslee poderia não ser assim tão fácil.

         A escuridão e o frio úmido que sentiu ao descer as escadas somaram-se aos seus temores pela segurança de Ainslee. E aumentaram sua fúria com relação a MacNairn. Ainslee não merecia tal punição. O desapontamento oprimiu-lhe o coração quando viu os calabouços vazios, mas não ficou surpreso. Devia existir alguém bondoso em Kengarvey que a libertara assim que a batalha tinha se voltado contra os MacNairn e as chances de Duggan permanecer como senhor daqueles domínios haviam se tornado nulas.

         - Agora preciso encontrá-la antes que os inimigos dela o façam - Gabel resmungou e esmurrou as barras de ferro.

         - Ainslee é esperta - murmurou Justice. - Deve ter fugido da fortaleza.

         - Ela está com medo também pela sua gente. E embora pouco tenham feito por ela durante todos esses anos, Ainslee fará o melhor para tentar ajudá-los.

         - Então deve ter ido para o pátio, pois iria procurá-lo lá, sabendo que você manteria a promessa de salvar quantos pudesse.

         - E deve estar no meio da batalha, do caos e ao alcance de homens ansiosos por matá-la! - Gabel exclamou e subiu as escadas correndo.

         - Lembre-se de como é a mulher que você procura, primo - Justice gritou. - Ainslee MacNairn pegaria suas armas no momento em que estivesse livre, e ela sabe bem como usá-las.

         - Mas mesmo com toda a perícia, Ainslee não poderia combater contra todos os Fraser e os MacFibh, que tentarão liquidá-la.

         Ao correr pelos corredores de Kengarvey, Gabel viu as sombras da gente aterrorizada que procurava se esconder dentro de uma fortaleza que já começava a ser incendiada. Chamou a todos, dizendo que seriam tratados com justiça e misericórdia se se rendessem aos homens de Bellefleur. Ao perceber que alguns dos que se escondiam poderiam não saber quem era de Bellefleur entre os inimigos que enxameavam por toda Kengarvey, Gabel explicou-lhes a indumentária de seus soldados. Então, voltou a concentrar-se em encontrar Ainslee. Se pudesse alcançá-la antes dos aliados sedentos de sangue, ele ainda poderia salvar-lhe a vida.

         No momento em que Ainslee afivelou a cinta da espada, embainhou seus punhais e pegou o arco e as flechas, sentiu-se mais à vontade. Ainda estava debilitada devido à falta de comida, às deprimentes condições do calabouço e à surra que suportara, mas não mais se sentia indefesa, não mais encurralada e completamente à mercê de quaisquer inimigos com que deparasse. Nas atuais circunstâncias, teria pouca chance de vencer um combate, mas jurou que custaria caro aos Fraser e aos MacFibh se tentassem matá-la.

         Num pequeno saco, enfiou o pouco que pôde encontrar de utilidade, se fosse forçada a fugir da fortaleza. Passou o saco pelo ombro e, cautelosamente, saiu do quartinho gelado, a procurar por algum sinal do inimigo, enquanto seguia para as escadas. Só parou por um breve instante ao cruzar com uns poucos fugitivos, para lhes pedir que procurassem um soldado de Bellefleur e se rendessem. Se havia algo que o povo de Kengarvey aprendera com grande habilidade era se esconder. Ao chegar ao pé da escada, ela viu de relance a criada que havia ajudado Colin a cuidar dela depois da surra do pai. A jovem tentava se espremer para dentro de um minúsculo nicho na parede perto das escadas. Tinha um menino de olhos arregalados nos braços. Quando Ainslee se aproximou, ela gritou de susto e custou um instante a reconhecê-la.

         - Morag, não é? - Ainslee murmurou, num tom suave, ao se agachar perto da moça e se colocar numa posição em que poderia vigiar as imediações.

         - Sim, senhora - a criada respondeu, a voz alterada. - Graças a Deus que alguém a soltou. Mas agora a senhora precisa fugir. Os Fraser e os MacFibh estão matando todo mundo.

         - Calma, moça, não deixe que o medo a faça se descuidar e deixar aqueles covardes a caçarem. - Ainslee segurou o braço da jovem num gesto protetor. - É seu filho? - A moça concordou. - Um belo rapazinho.

         - É filho bastardo de seu pai.

         Aquilo realmente não surpreendeu Ainslee. Notara de imediato algo dolorosamente familiar nos olhos e nos cabelos da criança. Ronald tinha tentado manter aquela parte da vida em Kengarvey em segredo, mas fora impossível. Mal havia se tornado adulta, Ainslee descobrira que seu pai usava todas as mulheres e jovens na fortaleza, principalmente as meninas que mal tinham menstruado. Ela suspirou e afagou os cachos avermelhados do garoto.

         - Desculpe-me, Morag - Ainslee murmurou.

         - Por quê? A senhora não me fez nada. Minha mãe esperava me dar como esposa a meu primo, em Edimburgo, quando eu ficasse mocinha, mas não houve jeito de sair deste lugar amaldiçoado. Tentei ficar escondida nas sombras, porém seu pai me encontrou. Sorte minha que me julgou muito tímida, muito fria e muito magra, e raramente me arrastava para a cama. - Sua expressão tornou-se dura. - Fico contente que ele esteja morto.

         - Meu pai está morto? - Ainslee ficou surpresa ao se dar conta de como isso a chocava, pois era o destino que Duggan MacNaira pai cortejara durante todos aqueles anos. - Vamos, menina - ordenou, sabendo que teria de ser firme. - Você e meu irmãozinho virão comigo.

         - Começou a puxar a criada para a porta que levava ao pátio.

         - Não! - gritou Morag, o terror a lhe dar forças. Tentou libertar-se. - Vamos morrer!

         - Não se chegarmos até os homens de Bellefleur.

         - Foi o próprio lorde de Bellefleur que matou seu pai no salão. - É um inimigo dos MacNairn tal como os outros.

         - Não, não é - retrucou Ainslee. - Se comparar o senhor De Amalville com aqueles porcos outra vez, você vai ver só. - Os olhos da criada se arregalaram de medo e ela se deixou puxar até a porta do salão.

         - Disse que lorde MacNairn foi morto aqui?

         - Sim, mas juro que não tenho nada com isso, e peço perdão por dizer que fiquei contente com a morte dele.

         - Se enxergasse um pouco além do medo, veria que não estou nem triste nem zangada pela morte de meu pai. Também veria que nenhum inimigo está no salão. Não vimos nem os ouvimos desde que a tirei daquele esconderijo. - Ainslee achou o fato estranho, mas resolveu que seria mais prudente não dizer nada, pois a garota ainda tremia de pavor. - Não vejo o corpo de meu pai morto... - ela resmungou ao correr os olhos pelo local, com todos os sinais de luta, mas nenhum cadáver.

         Por um breve momento, seu olhar se cravou nas palhas encharcadas de sangue onde tinha certeza de que seu pai caíra.

         - Levaram o corpo embora, senhora - Morag disse.

         - Por que perderiam tempo para arrastar um cadáver daqui?

         - Não sei, eu estava escondida, senhora. Só ouvi de longe e não entendi o que diziam. Eram homens dos Fraser, isso eu posso jurar.

         - Maldição! Precisamos chegar ao pátio. Providenciarei que você e seu filho fiquem seguros nas mãos dos homens de Bellefleur.

         - Oh, Virgem Maria, logo estaremos mortos!

         Ainslee parou de tentar ser gentil e arrastou a garota enquanto atravessava as portas arrebentadas do salão. O cheiro acre de fumaça começou a arder em seu nariz e nos olhos, e ela percebeu que a fortaleza fora incendiada. Mas quase fez eco ao choro de Morag ao correr os olhos pelo pátio. O chão estava coalhado de corpos, e a fumaça do incêndio esvoaçava entre os cadáveres retorcidos. Vários Fraser e MacFibh amontoavam-se entre os caídos, mas isso pouco serviu de conforto a Ainslee. O preço que seu próprio povo pagara havia sido terrivelmente alto.

         Um grito de horror escapou de Morag, e o puxão com que a criada tentou se livrar arrancaram Ainslee dos pensamentos sombrios. Ela se voltou e viu que a moça não olhava para os cadáveres, mas para cima. Ainslee seguiu a direção do olhar de Morag e ouviu o próprio grito de espanto. Agora sabia por que os homens tinham removido o cadáver de seu pai do salão. Seus inimigos haviam decapitado Duggan MacNairn e exibiam a cabeça decepada na ponta de uma lança fincada no alto das muralhas de Kengarvey. Embora não sentisse nenhum pesar pela morte do pai, aquela exibição macabra revoltava seu estômago. Lutou contra o impulso de vomitar e correr, de fugir da visão pavorosa do corpo desmembrado de Duggan, do fedor de sangue, de fumaça e de morte, da destruição do único lar que ela conhecera.

         Um olhar para a criada e para o filho ajudou Ainslee a superar aquele impulso.

         - Vamos, Morag, eu a levarei até o povo de Gabel - disse a fraqueza a fazer sua voz hesitar.

         - Não precisamos ir agora. - A moça apontou para a cabeça de Duggan MacNairn.

         - A batalha foi perdida. E o combate logo cessará. Precisamos nos esconder...

         - Faremos o que eu disse, e pare de choramingar!

         Ainslee sentiu uma pontada de culpa por tratar a jovem com tanta rudeza, mas a vida brutal em Kengarvey fizera de Morag uma covarde. Simpatia e gentileza não lhe salvariam a vida naquele momento.

         Enquanto procurava por algum sinal de um soldado de Bellefleur que pudesse ajudá-la, Ainslee permaneceu perto da fortaleza. Fagulhas das construções em chamas caíam perigosamente por perto, mas ela julgava que os Fraser e os MacFibh eram bem mais perigosos. Não teriam piedade com ninguém. E os mercenários de seu pai não haveriam de esperar por isso, portanto aquela era uma luta de vida ou morte. No meio de toda aquela confusão, alguns roubavam as armas dos mortos e remexiam o fogo em busca de qualquer butim que pudessem recolher.

         Ainslee tropeçou num corpo caído perto da muralha. Ao olhar para baixo, deixou escapar uma praga. O homem que a vigiara no calabouço a "olhava" com uma expressão de surpresa. Uma onda de horror e pena a envolveu. Ele havia sido o único que deixara que Colin a visitasse e lhe desse alguns bocados de comida. Tinha algo de bom no coração.

         Distraída com o cadáver de Robert, ela não percebeu a aproximação de um dos Fraser até que era quase tarde demais. Morag soltou um grito sufocado e amontoou-se no chão, a proteger seu filho com o próprio corpo. Ainslee praguejou, mas conseguir erguer a espada em tempo de bloquear o golpe mortal. A onda de dor que percorreu seu braço com a força do choque confirmou seus temores. O cativeiro a enfraquecera.

         Teria de utilizar algum truque se quisesse vencer, e rezou por uma oportunidade, porque sua resistência diminuía a cada instante.

         - Você é a filha mais nova de MacNairn, não é? Aquela que o aleijado criou - disse o homem.

         Aquele mercenário conversava com ela enquanto lutavam, o que revelava como se sentia confiante de que poderia vencê-la; e Ainslee imaginou como poderia tirar vantagem disso.

         - Sim, e aquele aleijado é mais homem do que você algum dia foi ou será!

         - Ah, é? Largue a espada, moça, e eu lhe mostrarei o macho que eu sou!

         - Ah, então os Fraser ainda se deliciam com os crimes de estupro e de assassinato de mulheres.

         - Eu não disse que iria matá-la.

         - Mas não me ofereceu nenhuma chance de viver.

         - Se quiser viver, é melhor ir atrás daqueles molengas de Bellefleur.

         Ainslee esquivou-se da estocada, porém o homem logo se recobrou. O golpe seguinte passou tão perto que cortou suas saias, e ela percebeu que não conseguiria enfrentá-lo por muito tempo. Todas as privações que havia sofrido desde que voltara a Kengarvey a debilitavam, roubando-lhe a perícia e a rapidez. Gostaria que Morag não tivesse tanto medo e fosse buscar ajuda, mas sabia que não poderia contar com ela.

         A investida que se seguiu rasgou seu corpete e cortou superficialmente a carne. Ainslee sentiu a umidade quente do sangue ensopar suas roupas, e teve de lutar contra o medo crescente.

         O comentário insultuoso sobre os homens de Bellefleur indicava que Gabel mantinha a promessa que lhe fizera de tentar salvar todos que pudesse. Ela se encontrava muito perto da segurança. Não poderia morrer agora. Não seria justo. Isso também causaria a morte de Morag e da criança, pois, quando Ainslee caísse, o homem imediatamente atacaria a criada apavorada e a criança indefesa.

         Quando Ainslee julgou que a oportunidade de que precisava não chegaria, e já se sentia exausta demais para continuar, Morag saltou e agarrou o homem dos Fraser pelo braço.

         - Não devia tentar matar uma mulher, seu covarde fedorento! - a criada gritou, enquanto chutava repetidamente as pernas do sujeito.

         No instante em que o mercenário desviou a atenção, procurando se livrar de Morag, Ainslee não hesitou. Investiu com a ponta aguda da espada no peito do homem, cuja expressão revelou que se dera conta do erro fatal que havia cometido. Quando ele caiu ao solo a seus pés, Ainslee ouviu Morag choramingar de medo.

         - Obrigada, Morag - ela disse, enquanto a moça pegava o menino no colo.

         - Você salvou a minha vida.

         - Salvei? - Morag pestanejou de surpresa e acalmou-se um pouco. - Acho que nem pensei no que estava fazendo. Só queria que a luta acabasse - murmurou, hesitante.

         - Bem, este porco nojento não vai nos aborrecer - ela disse ao empurrar o corpo com a bota.

         - Não posso acreditar que acabou de matar esse homem. - Morag a encarou com um misto de horror e admiração.

         - Não é algo de que eu goste, mas prefiro lutar e matar a ficar parada e morrer.

         - E escolha difícil para uma mulher.

         - Realmente é. Agora temos de sair daqui antes que um dos companheiros deste porco imundo resolva me enfrentar. Estou muito fraca para outro combate.

         Ainslee sentiu o medo toldar a expressão de Morag e maldisse a língua comprida. Dissera a verdade, mas não uma verdade que a moça tivesse condição de ouvir. Não era hora de mostrar fraqueza e dúvida.

         - Vamos, Morag, precisamos nos apressar e achar algum lugar onde não tenhamos o que temer.

         - Senhora... - Morag murmurou, numa voz vacilante, instantes depois.

         - Aquele é um dos homens de Bellefleur?

         Ainslee olhou na direção que a criada apontava, e seu coração disparou de esperança e alegria. Tinha certeza de que Gabel estava apenas a alguns metros de distância. Mas a aglomeração de homens e o elmo que ele usava a confundiram por um momento. Então, todo o prazer desapareceu ao ver com quem Gabel se defrontava. Cada centímetro do corpo robusto de Fraser tremia de fúria, e Ainslee podia sentir o perigo da discussão mesmo de onde se encontrava. De repente, todas as suas preocupações, até de salvar Morag e o filho, foram postas de lado. O instinto a mantinha alerta para os perigos que a rodeavam, mas ela começou a avançar mais depressa, desesperada para chegar até Gabel antes que a discussão entre ele e Fraser resultasse num ataque à mão armada.

         Gabel fechou o cenho quando Fraser e MacFibh se aproximaram e o encararam.

         Era fácil ver que estavam furiosos e imaginar o porquê de tanta ira. Nenhum dos dois apreciara que muitos MacNairn tivessem se colocado sob a proteção de Gabel. O fato de todos os irmãos de Ainslee se encontrarem ao abrigo de retaliações era demais para seus sanguinários aliados suportar. Gabel tinha receado que aquele confronto acontecesse, e ficaria feliz se tivesse se enganado.

         A todo momento, ele precisava se explicar a seus pretensos aliados, e perder tempo tentando impedir a morte de gente inocente. E a constante discórdia e outros problemas o retardavam. Até agora não tinha conseguido localizar Ainslee. E Fraser aparecia para irritá-lo outra vez.

         MacFibh era mais fácil de aturar, o que o surpreendera um pouco. Tratava-se de um homem ordinário e de maneiras rudes, com idéias sanguinárias quanto ao modo de tratar o inimigo. Porém possuía também um forte senso do certo e do errado, e não mudava de opinião para agradar aos outros e alcançar seus objetivos. Já Fraser era o pior tipo de cortesão e, em comparação, MacFibh parecia um fidalgo. MacFibh ainda pensava que a única maneira de acabar com os problemas causados pelos MacNairn era matar todos eles, até o último, mas por fim, resmungando, concordara em permitir que as mulheres e as crianças pudessem se render. Havia um pitada de piedade nos corações dos MacFibh, contudo, e alguns deles tinham deixado que vários homens se rendessem. O próprio lorde, no calor da batalha, empurrara um garotinho para os braços de Gabel, alegando que seu braço da espada estava cansado quando havia alcançado o menino.

         Agora, porém, MacFibh se postava ao lado de Fraser, e Gabel não tinha certeza de qual seria a postura que ele assumiria. Só via seus olhos, sob o elmo, e tinham uma expressão fria de ponderação, nada mais.

         - Que jogo está jogando, De Amalville? - Fraser esbravejou ao encarar Gabel e, em seguida, dirigir um olhar cheio de ódio aos irmãos MacNairn.

         - Nenhum.

         - Não? Estamos aqui para esmagar os MacNairn, e você os acolhe em seu peito como parentes muito amados.

         - Não creio que eu os esteja acolhendo com tanta intimidade. - Quando o rosto de Fraser ficou vermelho e sua expressão se tornou quase colérica, Gabel ficou tenso, sentindo o perigo. - Estou fazendo exatamente o que disse ao rei que faria: salvando tantos dos MacNairn quanto eu puder. - Ao ver Michael e Justice se colocarem a seu lado, Gabel relaxou um pouco.

         - O rei queria Duggan MacNairn e toda a sua prole mortos - declarou Fraser.

         - Não, o rei queria apenas a cabeça do lorde. Talvez Sua Majestade creia, como eu, que não se possa colocar o fardo da culpa de um pai sobre os ombros dos filhos. Esses rapazes expressaram a disposição de fazer o juramento de lealdade ao rei, e já se comprometeram comigo. Creio que um aliado forte e vivo é de mais valia do que qualquer inimigo morto.

         - Você não pode confiar nesses MacNairn mais do que poderia confiar no pai deles! - Fraser berrou.

         - Não tenho provas disso ainda. Mostrei que possuo a força e a capacidade de punir quem me trai. Se escolherem seguir a trilha traiçoeira do pai, então lidarei com eles tal como lidei com Duggan MacNairn. - Gabel lançou um olhar para o horrível troféu sobre a muralha da fortaleza. - Bem, quase do mesmo jeito.

         - Se você não tem estômago para fazer o que precisa ser feito, eu farei.

         Fraser puxou a espada, mas deu apenas um passo na direção do grupo amontoado dos MacNairn. Todos os quatro irmãos levaram as mãos às espadas e praguejaram ao tocar as bainhas vazias. Fraser não avançou mais, pois deparou com as espadas de Gabel, Justice e Michael. MacFibh olhou a cena por um instante e, em seguida, deu um passo atrás, distanciando-se de Fraser e dos desafiantes.

         - Covarde! - Fraser berrou para MacFibh, mas este deu de ombros.

         - Não sou um dos homens prediletos do rei - MacFibh retrucou. - Perderia mais que você se puxasse a espada contra o normando. Embora eu não concorde com essa coisa de mostrar tanta piedade, vim aqui como um aliado de sir Gabel. Você que se entenda com ele.

         - Você vive perto desses canalhas. Como pode ter estômago para deixar que os MacNairn continuem aqui, principalmente o herdeiro? - retrucou Fraser.

         - Lidarei com eles quando precisar. Uma fortaleza arruinada, sem ninguém para guardar a região, também não me traz nenhum bem.

         Quando Fraser virou-se de novo para Gabel, este sorriu com frieza.

         - E tem certeza de que deseja brigar por causa disso?

         - Esses homens são tão culpados como o pai, e serão a mesma praga ameaçadora que ele era. Exijo que você os puna. Se não o fizer, é tão traidor quanto eles.

         Quando Justice e Michael adiantaram-se como se fossem atacar Fraser, Gabel os impediu com um movimento brusco da mão. A tarefa dos primos era proteger sua retaguarda e ajudá-lo em caso de traição, não de lutar por ele. Dessa vez Gabel sabia que tais insultos não poderiam ser deixados impunes, e Fraser teria de se humilhar com desculpas para ser perdoado. E o homem jamais se rebaixaria a se desculpar.

         - Você me acusou de covardia e de ser um traidor! - Gabel exclamou.

         - Foi longe demais, Fraser. Seus insultos começaram meses atrás, dentro da própria Bellefleur, e continuaram incessantemente. Espero que se desmanche em desculpas, ou porei um fim aos seus modos sorrateiros aqui e agora.

         - Desculpar-me? Por quê? Tentei matar uma MacNairn em Bellefleur. Não é nenhum crime.

         E não retirarei uma palavra do que disse. Mostre-se, normando. Prove a nós todos que pode fazer mais que falar bonito e pedir trégua em favor de canalhas e bandidos.

         - Pode ter cavado sua sepultura agora, Fraser.

         Gabel mal acabara de falar quando Fraser o atacou, o retinir das espadas a silenciar todos ao redor. Ele não precisou olhar para os MacNairn refugiados atrás de seus homens para saber que estavam aflitos. Um gemido se ouviu no meio deles no instante em que o combate começou. Sabiam que Gabel lutava não apenas por sua honra, mas pela vida deles. Se Fraser matasse Gabel, não pensaria duas vezes em abater os homens de Bellefleur para chegar aos MacNairn, e MacFibh provavelmente se juntaria à matança.

         Depois de prometer que o resto do clã dos MacNairn ficaria a salvo sob a sua proteção, Gabel não poderia permitir que seu orgulho ferido e a sede de sangue de Fraser destruíssem essa segurança.

         Fraser era hábil, mas Gabel logo percebeu como o adversário permitia que a raiva o perturbasse. E quanto mais enfurecido Fraser ficava, mais calmo Gabel se forçava a parecer. Começou a sorrir. E o temperamento inflamado do adversário fez com que acreditasse que estava sendo feito de tolo. Foi sua derrocada. Os últimos vestígios de perícia se perderam nos movimentos desordenados causados pela ira.

         Conforme Fraser ofegava, perdendo energia ao tentar lutar e controlar a própria fúria, Gabel vislumbrou a chance que esperava. Com estocadas rápidas, arrancou a espada da mão do oponente, que tropeçou e caiu no chão. E antes que Fraser pudesse ficar de novo em pé, ele o prensou no solo, colocou a bota sobre o peito que arfava e encostou a espada na garganta dele.

         - Eu o aconselharia a se render - Gabel disse, com fria polidez, louco para matar aquele homem, mas sabendo que por enquanto seria mais prudente aceitar uma vitória sem sangue.

         O "rendo-me" resmungado de Fraser foi completamente insatisfatório, mas Gabel o soltou. O homem recolheu a espada, encarou a todos com expressão de ódio e depois saiu em passos largos, abrindo caminho entre os homens que haviam se reunido para assistir à luta. Gabel meneou a cabeça ao embainhar a espada. Nada se resolvera. O ódio de Fraser só havia se aprofundado, irrevogavelmente.

         - Aquele sujeito tentará de tudo para fazê-lo pagar caro pela vergonha que passou - Colin MacNairn declarou.

         Gabel virou-se para fitar o irmão de Ainslee, e percebeu como os outros se reuniam em torno dele, escolhendo-o instintivamente como líder.

         - Percebo que fiz um inimigo para toda a vida.

         - Sim, e ele tentará tornar a sua vida tão curta quanto possível.

         - Deveria ter cortado a garganta do canalha. Tinha esse direito - opinou George, e reclamou quando Colin lhe deu um tabefe na cabeça.

         - Perdão, meu senhor - disse Colin. - Ele esquece com quem está falando. No entanto existe uma evidente verdade nessas palavras francas.

         - Eu sei, mas não posso tratar Fraser como trataria outro inimigo, pelo menos até que eu tenha a chance de conversar com o rei a respeito dos crimes e insultos que ele vem perpetrando contra mim. Fraser ocupa um lugar privilegiado na estima de Sua Majestade. Matá-lo e depois tentar explicar por que fiz isso poderia arruinar meu próprio prestígio, e eu preciso dele. Ainda sou visto como um intrometido, até um ladrão que rouba a terra que um escocês poderia administrar em meu lugar. Revolta minhas entranhas que aquele cão viva mais um pouco, mas, por enquanto, ganho mais agindo assim.

         Colin franziu a testa ao olhar por sobre o ombro de Gabel.

         - Eu disse para aquela menina fugir deste lugar - ele resmungou e meneou a cabeça.

         - Não faz bem à minha dignidade saber disso, mas, de todos os meus irmãos, só aquela garota tem espírito e orgulho, enquanto o resto de nós seguiu nosso pai como cordeiros para o matadouro, apavorados demais para fazer alguma coisa.

         Custou um instante para Gabel compreender de quem Colin falava. Então, ele virou-se e correu os olhos pelo pátio ainda apinhado de gente. Finalmente, viu Ainslee em meio à fumaça, de pé, viva e sem nenhum ferimento sério visível. Gabel sorriu. Começou a caminhar em sua direção, com a intenção de encontrá-la no meio do caminho, e dispensou Justice e Michael, que tentavam acompanhá-lo.

         Ainslee embainhou a espada, certa de que não teria mais necessidade dela. Apressou o passo enquanto olhava ao redor para confirmar que a batalha realmente terminara. Um homem junto à muralha atrás de Gabel atraiu-lhe a atenção, e ela parou de repente. O homem aprumou uma seta no arco e olhou para Gabel. Então, ela viu lorde Fraser à direita. Tinha os olhos cravados em seu arqueiro. O sangue de Ainslee enregelou nas veias quando Fraser fez um sinal, e o arqueiro retesou o arco. Dessa vez não poderia haver dúvida quanto ao alvo: as costas desprotegidas de Gabel.

         - Cuidado, Gabel! - ela gritou, mas ele apenas a olhou com ar confuso.

         Ainslee ergueu as saias e começou a correr, a atenção focada no arqueiro. Quando estava quase junto de Gabel, viu o homem disparar a flecha. Guiada pelo instinto, ela abaixou a cabeça e chocou-se contra o estômago de Gabel, que soltou um urro ao cair para trás. Bateu as costas com força no chão, e ficou sem ar, ofegante, sem entender o que acontecia.

         Ainslee ergueu o corpo e então sentiu algo enterrar-se em seu ombro. Cambaleou com a força do impacto, conforme a dor se espalhava do ponto onde a ponta da flecha penetrara. Levou a mão ao ombro e tombou ao chão. E enquanto o espesso manto negro da inconsciência descia, Ainslee ouviu o próprio urro de dor.

         Gabel virou-se e, de joelhos, rastejou até onde Ainslee caíra. Sua garganta ardia de gritar o nome dela enquanto a via cair.

         Pelo canto dos olhos, percebeu que seus homens corriam para protegê-lo de qualquer outro ataque. Só quando chegou ao lado de Ainslee, ele ouviu um grito, olhou para cima e viu que o homem que havia tentado assassiná-lo despencava da muralha com diversas flechas cravadas no peito. Com mão trêmula, procurou algum sinal de vida em Ainslee. E estremeceu de alívio ao sentir seu coração bater. A criada que a acompanhava correu e ajoelhou-se ao lado dela, enquanto outra mais velha se aproximava também.

         - Sou Morag, milorde - a moça murmurou enquanto abria o corpete de Ainslee para examinar o ferimento. - Esta é minha mãe - ela apresentou a outra criada.

         - Vamos fazer o que for preciso. Nós duas cuidaremos da srta. Ainslee.

         - Mas... - ia protestar Gabel, embora começasse a se levantar.

         - Vá, milorde. É claro que o senhor tem inimigos mortais. É melhor se livrar deles antes que tentem matá-lo de novo.

         Embora ansiasse para ficar ao lado de Ainslee, temendo que ela pudesse morrer enquanto não a estivesse olhando, Gabel sabia que a criada tinha razão. O assassino era um homem de Fraser. Ele voltou-se para procurar o mandante do crime.

         Fraser estava parado a poucos metros de distância, à sua esquerda. Era flanqueado por meia dúzia de homens armados, e cercado por duas vezes aquele número de guerreiros de Bellefleur. Sabendo que nenhum dos seus agiria sem o seu comando, a menos que Fraser fizesse outra tentativa de matá-lo, Gabel caminhou até onde se encontravam Justice e Michael. Fraser teria de prestar contas a ele, e só a ele, e dessa vez não pretendia dar qualquer chance ao canalha para se render.

         - Você tentou me matar, atingir-me pelas costas como um covarde vil e nojento! - Gabel berrou ao dar um passo em direção a Fraser, espada em punho e o corpo todo tenso e pronto para o combate.

         - Não. Pensei que aquela MacNairn pretendia lhe causar algum mal - Fraser retrucou.

         Gabel observou o homem olhar ao redor, nervoso, procurando descobrir alguma rota de fuga. Contudo não havia como escapar da justa punição para um assassino. Numa única tentativa mal pensada de se livrar do rival, Fraser perdera tudo que havia conseguido durante anos, sobretudo o prestígio duramente conquistado e cobiçado junto ao rei.

         Havia testemunhas demais para a sua tentativa sorrateira de matar um homem de Sua Majestade. Dessa vez não conseguiria mentir com sucesso para se safar do problema.

         - Não pode imaginar que acreditaremos nisso, Fraser - disse Gabel. - Não, nem mesmo o rei, que tem sido cego para os seus métodos dissimulados e jogos mortais durante tantos anos, engolirá essa mentira. Se não por mais nada, você me insulta e aos meus homens ao insinuar que precisamos da sua ajuda para nos defender de uma mulher frágil.

         - Mulher? Não é de uma simples mulher que falamos, mas de uma da própria prole do demônio.

         - Cuidado, Fraser. Não cometa o erro de acrescentar insultos ao mal que já causou.

         - Não fiz nada, a não ser abater uma MacNairn. Não há crime nisso.

         - Há, quando ela está sob a minha proteção, uma proteção que o próprio rei me permitiu oferecer a qualquer um de minha escolha. E não use essa alegação, pois aquela flecha estava destinada a plantar-se nas minhas costas. Pare de tentar mentir para livrar-se desse ato de covardia, e prepare-se para procurar salvar a sua vida.

         - Não pode me matar, De Amalville. Eu também sou um dos homens do rei. Você terá de responder pela minha morte.

         - Não tenho nenhuma dúvida de que poderei justificar facilmente o que farei.

         Antes que Gabel pudesse agir, contudo, Fraser e seus homens recuaram. Atrás deles estavam os MacFibh e vários de seu clã. Se os MacFibh ficassem ao lado dos Fraser, Gabel sabia que a luta poderia custar caro. Ponderou rapidamente se deveria ou não partir para o confronto, com a chance de ocorrer um combate mortal com as forças combinadas dos Fraser e dos MacFibh, ou recuar e colocar seus homens e os MacNairn fora do alcance dos Fraser, quando, de repente, a decisão foi tirada de suas mãos.

         MacFibh investiu sem aviso, a pegar tanto Gabel de surpresa como Fraser totalmente vulnerável. Até mesmo a expressão de Fraser revelava a terrível constatação de que seus aliados o tinham desertado, quando MacFibh arrancou-lhe a cabeça dos ombros. Os homens que cercavam Fraser foram abatidos com igual brutalidade. Através do pátio, outros do clã fugiam ou lutaram até a morte nas mãos dos MacFibh. E Gabel se deu conta de que, enquanto ele e Fraser discutiam, MacFibh distribuíra tranqüilamente seus homens de maneira que pudessem dar um fim à ameaça antes que começasse. Depois de olhar para o inimigo morto por um longo momento, mudo de surpresa com a reviravolta nos acontecimentos, Gabel ergueu os olhos para MacFibh. O escocês terminou de limpar a espada no gibão de Fraser, levantou-se, embainhou a arma e depois enfrentou o olhar de Gabel.

         - Havia planejado matá-lo eu mesmo - Gabel murmurou, desapontado por não ter conseguido se vingar pessoalmente do mal que Fraser fizera a Ainslee, e sem ter certeza de que ainda poderia confiar em MacFibh.

         - Sei disso, senhor De Amalville, mas eu tinha minhas próprias razões para querer o homem morto - MacFibh retrucou.

         - Ele era seu aliado. Os dois estiveram ombro a ombro contra mim desde que demos início a esta missão.

         - Esse homem nunca foi aliado de alguém, salvo de si mesmo. Ele cortaria o pescoço da própria mãe se julgasse que lhe traria algum ganho. Faz um ano, Fraser roubou as terras e a vida de meu primo. Agora eu tenho de hospedar em minha casa e alimentar a viúva e as crianças dele, com o nome tão manchado que podem nunca mais conseguir limpá-lo.

         - Mesmo assim juntou forças com o velhaco?

         - O rei ordenou, e eu tinha ânsia de derramar o sangue dos MacNairn. - MacFibh olhou para o corpo de Fraser por um momento e, então, cuspiu sobre o cadáver.

         - Eu poderia enfileirar os crimes deste canalha até o sol se pôr e nascer de novo, mas acho que você sabe quem era ele.

         - Veio para esta batalha com a intenção de se vingar de Fraser, assim como dos MacNairn?

         - Não, mas vim com a intenção de manter os olhos atentos a qualquer chance de liquidá-lo. O ciúme que ele tem de você me deu essa oportunidade longamente esperada. Eu desconfiava que Fraser usaria o combate para tentar assassiná-lo.

         Ao embainhar a espada, Gabel olhou para MacFibh com crescente ceticismo.

         - Não pensou que eu ou mesmo um dos meus homens deveria ser informado das suas suspeitas?

         - Não vi necessidade de preocupá-lo com elas - resmungou MacFibh, e depois esboçou um sorriso, com um ar sarcástico nas feições duras.

         - E, senhor De Amalville, por que deveria um homem do rei dar ouvidos às suspeitas de um velho lorde de menor importância sobre outro dos súditos prediletos do nosso soberano?

         Gabel quase caiu na risada, mas a preocupação com Ainslee já desviava seus pensamentos para longe de MacFibh e de Fraser.

         - Eu gostaria de tê-lo matado pessoalmente.

         - E por lhe roubar a chance de vingança, peço que me perdoe. - MacFibh hesitou.

         - Haverá outros, milorde, e eu juro que não me intrometerei quando tiver de se livrar deles.

         Gabel meneou a cabeça e afastou-se para procurar Ainslee. Sabia que depois poderia ver uma pitada de humor negro na situação e na franqueza de MacFibh. O homem era bárbaro, sujo e sem educação, mas também muito mais inteligente do que ele o julgara a princípio. Tinha procurado uma chance de se livrar do velho inimigo sem custo ou retribuição, e não apenas vira tal oportunidade no momento em que havia surgido, como também agira com rápida e mortal sagacidade ao agarrar aquela chance sem colocar em sério perigo a si mesmo e aos seus homens. Era desonesto, e no entanto havia sido franco sobre o que planejara e o que fizera. Gabel concluiu que precisaria se manter atento a MacFibh, e encontrar tempo para saber tudo a respeito dele. Naquele momento, contudo, todo o seu interesse centrava-se em Ainslee.

         Encontrou-a num pequeno abrigo construído com estacas e pelegos sujos. A criada e a mãe já tinham removido a flecha e enfaixavam o ferimento. Gabel olhou para as tiras de pano que envolviam o ombro delicado e sentiu um calafrio correr por sua espinha. Estavam quase tão imundas como as peles em que Ainslee se encontrava deitada e as mãos da criada e da mãe. Ele lembrou-se da insistência de Ainslee por limpeza ao tratar de um ferimento, e de outra coisa: aqueles que ela tratara, Justice e Ronald, tinham sarado sem complicações.

         Com cautela e agradecendo pela ajuda, Gabel tirou as mulheres do abrigo e chamou Justice com um gesto. Se Ainslee tivesse razão ao afirmar que a sujeira era um perigo para os ferimentos, ele ainda tinha tempo para evitar quaisquer danos.

         - Ela não acordou ainda? - Justice perguntou olhando para Ainslee.

         - Não é um mau sinal - murmurou, numa tentativa de acalmar os temores do primo.

         - Lembra-se do que ela fez quando tratou do seu ferimento?

         - Aplicou um pouco de ungüento nele e enfaixou. Parece que as mulheres cuidaram bem dela.

         - Olhe melhor e pense com calma, amigo. Não se lembra da insistência de Ainslee quanto à limpeza do local e das mãos quando o tratava?

         - Oh, sim... - Justice riu. - Tanta limpeza não é uma preocupação dos MacNairn, parece.

         - Vamos, não estou brincando. Precisamos tirar esses trapos sujos dela.

         - Vou arranjar alguns lençóis limpos e água, primeiro. E quem sabe eu possa encontrar um pouco daquela bebida horrível que esse povo bebe. Recordo-me agora que Ainslee despejou um pouco sobre o meu ferimento.

         Assim que Justice saiu, Gabel concentrou-se em Ainslee. Sua palidez e imobilidade o angustiavam. Quando, finalmente, arrancou as tiras ensangüentadas da ferida, a vista do orifício denteado na carne macia o deixou apavorado de medo. Ela era tão pequena, tão delicada, que um ferimento assim poderia ser perigoso, até mesmo fatal. O corpo miúdo estava coberto de hematomas, e Ainslee perdera peso. Gabel sabia que tudo era resultado da brutalidade do pai, e poderia roubar a força de que ela precisava para se curar. Oh, como ele teria gostado de fazer MacNairn pagar infinitamente por todos os maus-tratos que infligira à própria filha!

         No momento em que Justice retornou com a água, panos limpos e lençóis, Gabel despiu e banhou Ainslee. No íntimo, pediu perdão por violar sua intimidade. Justice manteve Ainslee imóvel enquanto Gabel limpava e costurava a ferida, pois, mesmo inconsciente, ela sentia dor e gritava, debatendo-se em sofrimento. Quando, finalmente, terminou, Gabel lavou-lhe o rosto com água limpa enquanto Justice a cobria com mantas.

         - É um ferimento fundo, e a crueldade do pai a debilitou muito - declarou Gabel.

         - Mesmo assim, machucada e meio morta de fome, Ainslee MacNairn é mais forte que a maioria das mulheres que conhecemos.

         - Rezo para que tenha razão, primo, pois nunca me perdoarei se a minha fraqueza for a causa da sua morte.

         - Sua fraqueza? - Justice encarou o primo, surpreso e confuso.

         - O que está dizendo? Mesmo que eu pudesse pensar em alguma fraqueza, como poderia resultar nesta tragédia?

         - Minha fraqueza é a hesitação em tratar meus inimigos como merecem. Mostro piedade a quem não merece nenhuma. Tento fazer a paz com homens que não têm honra. Minha relutância em derramar o sangue dos outros conduziu Ainslee a isto.

         Eu deveria ter matado Fraser na primeira vez que ele tentou assassiná-la, em Bellefleur.

         - Misericórdia e relutância em matar todos que se antepõem a você não é fraqueza. Se tivesse liquidado Fraser em Bellefleur, poderia ter enfurecido o rei de tal maneira que Sua Majestade não permitiria que você liderasse este combate, ou mesmo se juntasse a ele. E isso seguramente teria custado a vida de Ainslee e a de todo o seu povo também.

         - Eu deveria ter percebido a traição de Fraser.

         - Você é um homem honrado, Gabel. Às vezes é difícil para um homem honrado perceber a traição, ou adivinhar que artimanha um homem desonesto poderia planejar. Sim, talvez precise encarar os outros com mais desconfiança, mas isso não é fraqueza ou defeito. - Justice meneou a cabeça. - Você aceitou a rendição daquele canalha e não pode culpar-se por não ver a covardia que Fraser iria praticar.

         - MacFibh viu - Gabel retrucou, o olhar fixo no rosto de Ainslee, procurando por algum sinal de que ela iria despertar.

         - MacFibh está apenas a um passo de se desonrar também.

         - É um homem inteligente. Queria Fraser morto, e esperou o momento certo de praticar a vingança que buscava, sem medo de retaliação. Creio que o mal que Fraser fez ao primo de MacFibh é apenas um dos muitos crimes e insultos que teve de engolir, e MacFibh esperou com paciência, frieza, até o momento perfeito de atacar. Acho que o modo como agiu com os MacNairn revelou a verdadeira natureza desse homem.

         - Ah, mas os MacNairn foram declarados fora-da-lei, e ele poderia fazer o que quisesse.

         - Sim, mas precisamos ficar atentos. - Em seguida, Gabel praguejou baixinho.

         - Por que ela não acorda?

         - Talvez o tempo em que ficou aqui em Kengarvey tenha minado a sua resistência e a force a dormir tão profundamente. Com o pai a espreitá-la, Ainslee pode ter descansado muito pouco.

         - Eu nunca deveria ter deixado que ela voltasse a este lugar amaldiçoado.

         - Você não tinha escolha.

         Antes que Gabel pudesse dizer alguma coisa, Michael chegou, dizendo:

         - Aquele bobalhão que veio procurá-lo do lado de fora dos portões está aqui. E exige falar com você novamente.

         - Será que o imbecil não sabe o que aconteceu? - Gabel esbravejou ao sair do pequeno abrigo.

         - Ele sabe, pois os irmãos de Ainslee o informaram. É claro que não existe nenhum sentimento de afeto entre os irmãos e o marido de uma das irmãs. As notícias de que ela foi ferida apenas pareceram irritar Livingstone. Acho que é melhor você ir falar com o sujeito, antes que haja problemas entre ele e os parentes.

         Gabel praguejou por entre os dentes. Queria ficar ao lado de Ainslee, estar lá quando ela despertasse. A última coisa que desejava era ter de lidar com um homem que claramente queria apossar-se dela por razões egoístas. Havia um jeito de livrar-se de Livingstone, e era dizer a ele que pretendia casar-se com Ainslee. Só não gostaria de declarar publicamente seus planos até que tivesse a oportunidade de conversar com ela.

         - Fique aqui, Justice - ordenou ao primo. - Mandarei aquela criada ajudá-lo. Procure fazer a moça se limpar sem ofendê-la. Se Ainslee se mexer, quero ser informado imediatamente.

         Depois de se assegurar de que Ainslee seria bem cuidada, Gabel afastou-se para se entender com Livingstone. Viu o homem a andar de um lado para outro, zangado, na frente dos MacNairn, e teve de controlar a própria raiva. Era mais uma prova de que Ainslee estava rodeada por gente insensível, pessoas que só queriam usá-la para conseguir o que queriam ou descarregar a fúria sobre ela. E admitiu, cheio de culpa, que não tinha agido de maneira melhor, que também a usara e dispusera dela para conseguir o que desejava. Paz sem derramamento de sangue poderia ser uma meta honrosa a alcançar, porém não desculpava inteiramente suas ações. Mas Gabel estava determinado a pôr um ponto final em tudo. Dali em diante, Ainslee teria liberdade para fazer o que bem quisesse.

         - Lorde De Amalville! - exclamou Livingstone, num cumprimento frio, a reverência tão ligeira que era quase um insulto. - Ouvi dizer que minha cunhada foi gravemente ferida.

         Quando Michael soltou um palavrão e ficou tenso, Gabel percebeu que não poderia permitir que a própria culpa o fizesse ouvir sem refutar a acusação velada por trás daquelas palavras.

         - Lorde Fraser tentou me matar, e lady Ainslee se colocou corajosamente entre mim e a flecha dirigida às minhas costas.

         - Por que ela corria por aí no meio de uma batalha?

         - Nunca esteve em combate, senhor? É impossível colocar todos os inocentes em algum refúgio seguro, enrolado em cobertores, enquanto nós, guerreiros, nos digladiamos e matamos uns aos outros. O senhor tenta imputar culpa a algo que não poderia ser prevenido, e está muito próximo de proferir um grave insulto. - Gabel ficou satisfeito quando o aviso frio provocou um visível recuo em Livingstone. Não queria enfrentar mais um parente de Ainslee.

         - Fiquei apenas incomodado com notícias tão graves - disse Livingstone, num tom conciliatório. - Se o ferimento precisa de cuidados, posso levar lady Ainslee comigo agora. A irmã, Elspeth, pode cuidar dela. Não precisa se preocupar.

         - Mas eu quero me preocupar. Devo minha vida a lady Ainslee.

         - Certamente, senhor, seria melhor se os próprios parentes cuidassem dela agora.

         - Pelo que vi, ela ficará muito melhor em Bellefleur do que nas mãos de seus parentes.

         - Meu senhor... - Livingstone começou, num tom de protesto.

         - Basta! Ela retornará a Bellefleur comigo. Se não por mais nada, o homem que a criou, Ronald, está lá, e ele mostrou ser hábil na arte da cura.

         Livingstone tentou fazer Gabel mudar de idéia, mas logo percebeu que era inútil. E não escondeu a frustração e a raiva quando prometeu ir a Bellefleur dentro de uma quinzena, se o tempo permitisse. Partiu sem perguntar qual seria o destino de Kengarvey, e isso foi outra coisa pela qual Gabel ficou grato. Não queria discutir tal questão naquele momento.

         Ao ver Livingstone se afastar, Gabel jurou que, se Ainslee não o aceitasse como marido, uma possibilidade que julgou penosa de levar em consideração, ele jamais permitiria que Livingstone pusesse as mãos nela. Não descobrira quem seria o homem para quem ele a venderia em casamento, mas tinha certeza de que o bem-estar e a vontade de Ainslee não seriam considerados.

         - Aquele canalha nunca dirigiu um pensamento para Ainslee até agora - resmungou Colin, olhando, furioso, para o cunhado que se afastava.

         - Algum dos MacNairn alguma vez fez isso? - Gabel indagou, com frieza e tenso de raiva, ao se recordar das muitas marcas roxas no corpo delicado de Ainslee.

         Colin enrubesceu e concordou.

         - Poucas e raras vezes. Contudo, senhor De Amalville, deveria ter cuidado em condenar o que não pode entender, pois tenho certeza de que nunca viveu o que todos vivemos neste lugar três vezes amaldiçoado. Até conhecer o inferno, pode ter medo dele, porém não pode conhecer realmente seus tormentos.

         - Não, não sei que vida vocês tiveram em Kengarvey. No entanto são irmãos de Ainslee, os parentes mais próximos, e jovens homens fortes. Como puderam ficar parados e ver o pai quase matá-la?

         - Cada machucado que minha irmã apresenta aumenta o fardo que carregarei para o túmulo - disse Colin, com tristeza. - Não posso explicar por que fizemos tão pouco por ela. A partir do momento em que deixamos o calor do ventre de nossa mãe, conhecemos só a brutalidade de nosso pai. Desde o berço, aprendemos a sobreviver, a evitar as surras e todas as outras crueldades que ele nos infligia e aos outros. Sim, somos fortes e podemos enfrentar qualquer um, espada contra espada, sem hesitar. No entanto vivíamos com um terror mortal de

         Duggan MacNairn, e esse medo era antigo e profundo, dado a nós como alimento através do leite de nossa mãe.

         Gabel meneou a cabeça e enterrou os dedos nos cabelos.

         - Sinto muito. Você tem razão. Não posso compreender uma vida assim, ou como ela afeta um homem. Respondo com aquilo que está diante dos meus olhos: que uma mulher pequena e delicada foi tratada com selvageria pelo próprio pai, e ninguém ergueu a mão em sua defesa.

         - Não me sinto insultado com isso, senhor. Ainslee está viva. Foi tudo o que pudemos fazer, com grande risco para nós mesmos.

         - Mas por que um pai haveria de querer matar a própria filha?

         - Ele a odiava. Ainslee deveria ter morrido com nossa mãe. Nosso pai via a própria vergonha e covardia cada vez que punha os olhos nela. Poderia ter salvado nossa mãe e Ainslee, mas fugiu da batalha e nem pensou em ajudá-las. Minha irmã constituía o lembrete vivo daquela deserção. - Colin baixou a cabeça. - Eu não tinha percebido como meu pai a queria morta, até ela voltar a Kengarvey. Ainslee tentou fugir e, quando a encontramos, nosso pai ia transpassá-la com a espada no próprio lugar em que a achamos, se nós não o impedíssemos. Então ele a trancou no calabouço e quis matá-la de inanição. Eu a libertei quando vocês chegaram aos nossos portões, mas não consegui pensar num modo de ajudá-la sem que isso custasse muitas vidas.

         - Bem, parece que nosso velho inimigo, Fraser, teve sucesso em fazer o que nosso pai não conseguiu - resmungou George.

         - Ainslee não vai morrer! - Gabel gritou, sabendo que tentava convencer a si próprio disso.

         - O senhor disse que Ronald está vivo? - indagou Colin. - Que cuidará de Ainslee? Acha que deveria removê-la daqui antes que se recupere?

         - Salvamos Ronald no rio, naquele dia. Está forte e cuidará dela. Não existe lugar aqui para abrigá-la. Mesmo que construíssemos algo, demoraria mais do que levá-la para Bellefieur. Lá, Ainslee terá cuidados, uma cama macia e bastante comida. Meus homens e eu partiremos ao amanhecer.

         - Mesmo se ela tiver febre?

         As palavras de Colin enregelaram até os ossos de Gabel, mas ele lutou para ocultar o medo. Uma febre poderia ser fatal. Quando ficara ao lado de Ainslee, havia tocado sua testa com freqüência para ver se não estava quente demais. Era tolice, porém precisava banir o medo da mente.

         - Não importa em que estado ela esteja. - Gabel respirou fundo.

         - Existe uma coisa que eu ainda não lhes disse. O rei concedeu Kengarvey e todas essas terras a mim.

         - Imaginei isso, senhor. Por que outro motivo nos pediria para lhe jurar lealdade?

         - Para que isso não me causasse preocupações, nem ao meu povo ou aos meus domínios. E razão suficiente.

         - E está disposto a confiar na palavra de um MacNairn?

         - Embora tudo que aconteceu hoje tenha me mostrado como muitas vezes sou confiante demais... sim, aceitarei o juramento. Irei observá-los de perto, contudo, para descobrir qualquer sinal de que também aprenderam a ser traiçoeiros. Confiar em seu pai me custou caro, e pode custar bem mais do que eu gostaria de imaginar. Mas não será só a mim que terão de comprovar serem bons homens.

         - Sei que quase todos na Escócia se tornaram nossos inimigos no decorrer dos anos. Não julgo uma atitude cautelosa de sua parte um problema ou um insulto. Tentaremos limpar nosso nome. - Colin olhou na direção para onde seguira o cunhado. - Existe alguém que não ficará satisfeito com a notícia. Não é apenas nossa irmãzinha que ele quer. Livingstone acha que tem direito de ganhar com a nossa perda.

         - Mas ele não quis empunhar a espada em nome do rei.

         - Livingstone raramente empunha uma espada. Quando se casou com nossa irmã, era de esperar que se colocasse do nosso lado nos conflitos. Mas ele se apossou do dote de Elspeth, fugiu para o seu castelo e raramente foi visto de novo. E veio aqui porque procura ganhar alguma coisa com isso. Sim, Elspeth deve ter empurrado o marido. Nossa irmã sempre teve um olho esperto para o lucro, sem se importar de quem ela precisa surrupiar. Elspeth aprendeu todos os truques de nosso pai. Não é bonito falar mal dos próprios parentes, mas ela não liga para a família. O senhor ouviu alguma oferta de abrigo ou de ajuda para a reconstrução de Kengarvey?

         - Ora, não - respondeu Gabel, incapaz de ocultar a surpresa. - Mas se estas terras fossem dadas a Livingstone, vocês e seu povo teriam permissão de continuar aqui.

         - Não, senhor. Talvez as criadas e outros que trabalham nas terras e limpam os estábulos, mas nenhum de nós teria permissão para permanecer aqui. E quais são seus planos, milorde? Pediu nosso juramento e, até agora, não disse se ficaremos ou devemos vaguear pela região.

         - Podem permanecer aqui. Se mantiverem o juramento, não vejo razão para expulsá-los.

         - Agradecemos por isso, senhor De Amalville. E a quem teremos de responder?

         - Não sei ainda. - Gabel olhou para a destruição provocada pelos Fraser, pelos MacFibh e por seus próprios homens. - Não sobrou muita coisa.

         - Reconstruiremos tudo - Colin assegurou, e os irmãos concordaram.

         - Fizemos isso tantas vezes que nos tornamos muito bons no ofício.

         - Será bastante difícil para vocês e todo esse povo. - Gabel franziu a testa, sem vontade de abandonar todos dali sem abrigo e com poucos suprimentos. Não poderia acolher tanta gente em Bellefleur, contudo, sem prejudicar seu próprio povo.

         - Não receie por nós. Logo ergueremos alguns abrigos e, quando o tempo permitir, reconstruiremos a fortaleza. E quem sabe possamos gozar de um longo período de paz e prosperidade. Mas deixamos as esperanças em suas mãos e nas mãos de Deus.

         Gabel sorriu e depois ordenou aos seus homens que ajudassem os MacNairn como pudessem, para encontrar abrigo para a noite que se aproximava. Embora os MacFibh já estivessem de partida, era tarde demais para tentar voltar a Bellefleur.

         Não havia sinal de tempestade, e Gabel julgou que seria seguro aguardar até o amanhecer antes de ir embora.

         Quando ele chegou ao local onde deixara Justice e Ainslee, mal o reconheceu. Seu primo havia reunido alguns homens para aumentar o abrigo, armara um fogareiro, recolhera alguns suprimentos e até fizera uma cama com uma porção de mantas. Ainslee agora desfrutava um calor suave, deitada sobre camadas de peles. Só não tinha recobrado a consciência. Gabel entrou no abrigo e sentou-se na cama de palha que o Justice arrumara perto da de Ainslee. A criada apressou-se a sair antes que ele tivesse a chance de lhe agradecer.

         - Antes que pergunte: não, não insultei a moça - disse Justice.

         - Ela é muito tímida. Como tem um filho, achei que o marido poderia ter sido morto na batalha, mas parece que o menino é filho bastardo de Duggan MacNairn.

         - Ela era amante dele? - Gabel achou que não seria seguro ter a amante de MacNairn cuidando de Ainslee.

         - Não, apenas outra de suas vítimas. MacNairn julgava que tinha o direito de deitar-se com qualquer moça que ele quisesse, mesmo que ela dissesse não.

         - Estas terras ficarão melhor sem Duggan MacNairn - declarou Gabel.

         Quando ele pousou a mão na testa de Ainslee, ficou tenso. A pele estava seca e quente de febre.

         - Voltaremos a Bellefleur pela manhã, e Ronald logo irá lhe devolver a saúde - murmurou Justice.

         Gabel não disse nada. Começou a banhar o rosto de Ainslee com água fria, e a rezar com fervor para que o primo estivesse com a razão.

         Quando a alvorada tingiu de ouro o céu sobre os destroços de Kengarvey, Gabel se encheu de dúvidas quanto à viagem que estava prestes a fazer. Ainslee ardera de febre a noite toda, a delirar, e ele queria ficar ali, cuidando dela, até que estivesse bem o bastante para a longa jornada. Ao mesmo tempo, desejava levá-la para o conforto de Bellefleur e os cuidados de Ronald. Foi pensar na capacidade de Ronald que o fez decidir. Mas, ao partirem de Kengarvey, Gabel se viu assaltado pelos temores.

         - Você parou para tocar a testa de Ainslee quase a cada quilômetro - Justice murmurou quando Gabel se inclinou sobre a carroça e pousou os dedos no rosto vermelho de Ainslee.

         - Só quero ter certeza de que ela não piorou - ele explicou ao se endireitar. Cavalgava ao lado do primo, logo atrás da pequena carroça que levava Ainslee.

         - Dentro de uma hora, ela estará aos cuidados de Ronald - disse Justice.

         - Espero que ele concorde com a minha decisão em transportá-la.

         - Ainslee não está pior do que estaria naquele abrigo. E pare de olhar para as nuvens lá atrás. Não creio que a tempestade nos alcance antes que cheguemos a Bellefleur. Contudo, mesmo que nos alcance, estamos perto e não enfrentaremos mau tempo por muitas horas.

         Gabel concordou, porém não compartilhava a confiança de Justice. Bellefleur tinha todo o conforto de que Ainslee poderia precisar, mas as pessoas morrem mesmo rodeadas de luxo e cuidados. Aquela febre o apavorava. Homens fortes tinham sucumbido, as forças minadas pela febre. Saber disso tornava difícil ter fé de que a pequena Ainslee a pudesse superar.

         Quando Bellefleur, finalmente, surgiu à vista, Gabel sentiu um alívio profundo inundá-lo. O frio e a umidade da noite que se aproximava e a tempestade a pairar ao norte tinham aumentado no decorrer das últimas horas. Logo, as pesadas cobertas que abrigavam Ainslee não seriam mais suficientes.

         No momento em que Gabel e sua comitiva entraram pelos portões, Elaine e lady Marie correram para abraçá-los. Chocadas e assustadas com o que acontecera, elas providenciaram de imediato que Ainslee fosse levada para o quarto, enquanto Gabel corria para procurar Ronald. Depois de deixar o velho com Ainslee, ele foi lavar-se da longa viagem.

         Ao voltar ao quarto, algum tempo depois, Gabel constatou que Ronald já havia feito seu trabalho, pusera as mulheres para fora e estava sentado ao lado da cama de Ainslee.

         - Como está ela? - Gabel perguntou ao se postar do outro lado da cama. Tocou a testa de Ainslee e sufocou um palavrão.

         - Fraca, machucada e com febre - Ronald respondeu com rude franqueza.

         - Não precisa encostar nela. Eu faço um bom trabalho com cura, mas não posso eliminar a febre em pouco tempo.

         - Uma parte de mim esperava que você pudesse - Gabel retrucou, preocupado.

         - Bem, meu rapaz, eu também gostaria, mas não consigo. O ferimento está limpo, Ainslee não perdeu mais sangue e não vi sinais de inflamação.

         - Boas coisas, mas ainda percebo uma estranha hesitação na sua voz, como se não quisesse me contar tudo.

         - É evidente que você tem medo da febre, e eu não queria aumentar a sua preocupação.

         - Qualquer homem teria medo, depois de ver o que a febre faz.

         - Bem, eu ficaria mais confiante com as chances de recuperação se aquele canalha do pai dela não lhe tivesse feito tanto mal, antes do ferimento. Ainslee foi surrada duas vezes.

         - E como sabe disso?

         - A cor das manchas me diz. Algumas estão mais claras que outras. E estão por cima. Além disso, a pobrezinha perdeu peso, que já não era muito. No tempo que passou em Kengarvey, perdeu as forças. Porém é uma lutadora.

         - Isso ela é, mas desta vez tem de enfrentar um desafio bastante difícil.

         - Está nas mãos de Deus.

         - Eu sei. Que Ele possa me perdoar se eu blasfemo, mas desejo que pelo menos nos permita conhecer seus planos e nos poupar desse medo. - Gabel sorriu quando Ronald soltou uma risada. - E você? Está forte para cuidar dela?

         - Confesso que não estou tão forte como gostaria ou precisaria. Terei de deixar que me ajudem, para poder descansar de vez em quando. Não adiantará nada se eu ficar doente e fraco antes que Ainslee comece a sarar. Agora pode me dizer como ela se feriu dessa maneira?

         Gabel respirou fundo e, com relutância, contou tudo a Ronald. E esperou qual seria a reação do velho a respeito de tudo. Gostaria de saber principalmente a opinião dele sobre Donald Livingstone.

         - Fico feliz em saber que os rapazes sobreviveram e aceitaram a derrota - Ronald por fim murmurou. - Não creio que acreditassem que restaria algo de Kengarvey. Eles têm defeitos... Mas quem não teria, depois de ser criado por Duggan MacNairn?

         - Colin parece acreditar que a irmã, Elspeth, é a única que herdou a natureza do pai.

         - Uma moça de espírito mesquinho e sem coração. Sim, se fosse homem ou tivesse se casado com um homem com estômago para combates, ela seria outro Duggan.

         - Pode incitar o marido a lutar em seu nome.

         - Só se ele não tiver de partir para a guerra. Livingstone pode tentar conseguir o que deseja, mas nunca fará nada que leve um exército aos seus portões ou que o obrigue a se empenhar pessoalmente em combate. E uma sorte Elspeth não ter se casado com um guerreiro. Livingstone irá discutir e até levar sua reivindicação ao rei. Mas o estúpido não vai entrar em conflito com os parentes de Ainslee.

         - Ótimo. Agora, só o que me preocupa é Ainslee. Preciso lhe dizer e perguntar muita coisa assim que ela se recuperar.

         Ronald não disse nada, e Gabel mandou que o velho fosse descansar por algumas horas, já que Ainslee parecia confortável. Sentiu-se inquieto com a falta de uma palavra de conforto. Gostaria que alguém lhe dissesse que Ainslee ficaria bem, que logo estaria cheia de saúde e energia. Sentou-se na cadeira ao lado da cama e sorriu com as próprias divagações. A única pessoa que poderia convencê-lo seria a própria Ainslee, e ela não lhe dera ainda nenhum sinal convincente. Rezou para que reparasse em um, logo, pois quanto mais tempo a febre a consumisse, menores seriam as chances de recuperação.

         Gabel espreguiçou-se e foi lavar o rosto. Fazia três longos dias que trouxera Ainslee de volta a Bellefleur, e ele havia passado a maior parte desse tempo ao lado dela. Só uma vez Ainslee tinha despertado o suficiente para reconhecê-lo, chamando-o pelo nome e estendendo a mão para lhe tocar a face. Mas logo mostrara não saber que se encontrava doente, onde estava ou que dia era.

         Gabel tomou um copo de vinho e retornou ao lugar ao lado da cama. Mesmo quando saía para cuidar de algo que precisava resolver, ou para se deitar na própria cama, quase não conseguia repousar da vigília. Afastar-se de Ainslee não o impedia de se preocupar, e o crescente mau humor de Ronald lhe dizia que o velho também estava muito pessimista.

         Gabel se inclinou e colocou a mão na testa de Ainslee. Tornara-se um hábito, mas dessa vez ele enregelou. Arquejou ao tirar a mão depressa, a umidade da palma a brilhar sob a luz das velas. Aturdido, saltou de pé e começou a apalpar-lhe o corpo inteiro. Ainslee estava ensopada de suor da cabeça aos pés. Gabel se sentiu fulminado no lugar, sem saber o que faria primeiro, se a abraçava como um louco ou se saía correndo pelos corredores, a gritar que a febre finalmente cedera.

         Respirou fundo várias vezes para tentar se acalmar. Embora detestasse deixá-la sozinha caso ela acordasse, sabia que precisava ir buscar Ronald.

         Correu para a porta e disse a uma criada que fosse procurar o velho. Então voltou para o lado de Ainslee e sentou-se na beira da cama. Tomou-lhe uma mão na sua, a fitá-la, e desejou que ela abrisse os olhos. Queria ver se estavam livres das névoas do delírio que os toldara durante dias. Ainslee fez uma careta e se mexeu. Sentia-se fraca, dolorida e desconfortavelmente úmida. Ao perceber que alguém segurava sua mão com força, abriu os olhos e se espantou um pouco com o esforço que isso lhe custou. Quando, por fim, conseguiu enxergar Gabel com clareza, tentou sorrir, mas hesitou ao sentir os lábios secos e rachados.

         Ele levou a mão de Ainslee aos próprios lábios, sem deixar de fitá-la. Ela o examinou. Gabel não parecia muito bem. Estava pálido e com uma expressão cansada. Quando tentou tocar a barba dura que lhe escurecia o rosto, Ainslee resmungou. Estava sem forças e o braço caiu na cama.

         - Você está com um aspecto deplorável, Gabel - ela disse, surpresa com a voz rouca e de como doía falar. - Mas acho que devo estar muito pior. Fiquei doente?

         Gabel riu, emocionado, aturdido e um pouco constrangido pela emoção que o engasgava.

         - Sim, ficou. É a primeira vez que diz alguma coisa sensata desde que aquela flecha se fincou na sua carne.

         Por um momento, Ainslee não compreendeu o que ele dizia, mas logo as lembranças fluíram de volta. Tentou tocar o ombro, e depois concluiu que não era preciso. Podia sentir o ferimento que, contudo, não era tão doloroso. Por quanto tempo perdera os sentidos?

         - Faz tempo?

         - Quatro dias. - Gabel decidiu dar respostas breves, para não gaguejar e falar mais do que deveria.

         - Estou de volta a Bellefleur?

         - Eu a trouxe para cá, pois seria mais bem cuidada. Kengarvey tinha poucos abrigos e suprimentos.

         - Kengarvey... - Ainslee murmurou. - Como estão meus irmãos? Quantos morreram?

         - E a fortaleza... - Ela arregalou os olhos quando Gabel pousou um dedo em seus lábios para silenciá-la. - Tem receio de me contar? As notícias são tão ruins que acha que eu cairia doente, com febre outra vez?

         - Não. Só quero que fique quieta. Está de cama, com febre faz quatro dias, quase cinco, se contarmos o dia em que foi ferida. Não deveria exaurir, fazendo perguntas, o pouco de força que recuperou. Ah, Ronald... - Gabel disse quando o velho entrou correndo no quarto.

         Para alívio de Gabel, Ronald assumiu a situação. Tirou as roupas de Ainslee, banhou-a com água morna e a vestiu com uma camisola limpa. Gabel aproveitou o tempo para recompor-se. Uma das coisas que lamentara durante aqueles dias em que Ainslee tinha ficado de cama, tão doente, havia sido a impossibilidade de lhe confessar seu amor. As palavras giravam num turbilhão em sua mente a cada minuto, e agora estavam na ponta da língua, lutando para sair. Gabel sabia que estava perto de ceder ao impulso de gritar o que sentia, mas não era o momento. Ainslee poderia aceitá-lo por causa da gratidão por tudo que ele fizera, e por se sentir fraca demais para recusá-lo. Tinha medo de que ela não correspondesse aos seus sentimentos, mas a idéia de que o aceitasse sem realmente o desejar, por gratidão ou piedade, era ainda mais difícil de suportar.

         Quando Ronald aproximou-se dele e serviu-se de um pouco de vinho, Gabel olhou para a cama e viu que os olhos de Ainslee haviam se fechado de novo.

         - A febre voltou?

         - Não - respondeu Ronald. - Ela se sente fraca, e os meus cuidados a cansaram. Mas deve estar curada, pois me xingou.

         Gabel riu. Ainslee podia ser frágil de corpo, porém seu espírito ainda era forte. Fora isso que a tinha ajudado a combater a febre.

         - Acha que ela vai ficar totalmente curada?

         - Sim. O ferimento está sarando bem, apesar da febre. Os olhos estão lúcidos. A mente, clara. Ainda está muito fraca, e teremos de agüentar a língua ferina, pois ela vai tentar fazer o que não pode, mais cedo do que deve.

         - Ela ficará na cama até que você permita que se levante. Mesmo que eu tenha de amarrá-la.

         Ronald riu e terminou de beber o vinho.

         - O jantar está sendo servido. Quer descer até o salão? Eu fico aqui com Ainslee.

         - Não. Você vai. E mande um pajem trazer um pouco de comida aqui em cima, para mim e para ela. Ainslee pode não comer muito, mas o apetite logo voltará.

         - E seria melhor se ela comesse bem para recuperar as forças e um pouco de peso. Está pele e ossos.

         - Ah, mas pele e ossos lindos.

         Gabel riu com o ar de desgosto de Ronald. E quando o velho saiu, pouco depois, ele voltou ao seu lugar, ao lado da cama. Percebeu que pousava a mão na testa da Ainslee a todo momento e sorriu com a própria tolice. Sabia que só queria ter certeza de que ela estava a caminho da recuperação.

         Era tarde quando procurou a própria cama e deixou Ainslee aos cuidados de Morag. Ela acordara apenas uma vez, mas seus olhos estavam claros, e havia comido um pouco. Quando Gabel se acomodou na cama, percebeu que poderia dormir profundamente pela primeira vez desde que aquela pequena escocesa, a dona de seu coração, voltara de Kengarvey.

         Gabel enfrentou o olhar furioso de Ainslee com toda a calma. Nos quatro dias desde que a febre cedera, ela havia se tornado cada vez mais briguenta, a contestar as ordens de todos, embora fossem para o seu próprio bem. O ânimo e o temperamento que mostrava diziam a Gabel que ela poderia ouvir sua proposta de casamento e responder com honestidade. Ele não receava mais que a fraqueza e a gratidão a forçassem a concordar, se não fosse isso que desejava.

         - Duvida do conhecimento de Ronald da arte da cura? - Gabel perguntou quando a acomodou contra os travesseiros que Morag afofara antes de sair do quarto.

         - Não, claro que não - Ainslee respondeu, cruzando os braços sobre o peito e olhando os pés cobertos com uma manta.

         - Mas questiona tudo que ele diz que você deve fazer para se recuperar.

         - Ele sabe como curar as pessoas, mas também sabe se comportar como uma velha irritada.

         - Se levarmos em conta como você é mal-humorada, eu não acho que Ronald queira mantê-la na cama por mais tempo que o necessário. Você pode tornar a vida de alguém muito desagradável, e qualquer homem em sã consciência iria querer o fim disso. - Encarou-a com a mais perfeita calma e um ar de recriminação.

         - Não fui assim tão ruim.

         - Quase intolerável. Só a compreensão daqueles que cuidam de você impede que fique completamente sozinha. - Gabel sentou-se na beira da cama e tomou a mão de Ainslee na sua quando ela enrubesceu e não o encarou de novo. - Entendo como a doença pode ser aflitiva para alguém que não está acostumada a ficar acamada e incapaz de fazer alguma coisa. Acha que passei tantos anos como cavaleiro sem ter um arranhão?

         Ainslee suspirou, recostou-se contra os travesseiros e o fitou com um sorriso tímido de desculpas.

         - Não. Eu o superei em mau humor e ingratidão?

         - Eu gostaria de dizer sim, mas acho que tem gente aqui que iria discutir.

         - Sinto muito, e pedirei desculpas aos outros quando ousarem chegar perto de mim outra vez. - Ainslee meneou a cabeça. - Meu ferimento não me preocupa mais e eu me sinto curada, mas a febre me roubou a maior parte das forças. Minha mente e meu coração dizem que estou bem para me levantar e fazer alguma coisa, porém meu corpo vacila e treme de fraqueza. É de enlouquecer. E já que não posso descontar em mim mesma, descarrego minha raiva nos outros. Não estou arranjando uma desculpa pelos maus modos, mas só tentando lhe dizer que parece que vou explodir.

         Gabel pousou um beijo terno nos lábios de Ainslee, e riu baixinho quando ela passou o braço em torno de seu pescoço e roubou um beijo mais profundo. Em seguida, ele se afastou um pouco, lutando contra a paixão, meneou a cabeça e ficou sério.

         - Com certeza, você ainda não está forte o suficiente para isso.

         - Afinal, se preciso ficar deitada o dia todo...

         - Não queira me tentar - Gabel advertiu, com ar de riso, ao empurrá-la gentilmente.

         Ainslee suspirou.

         - Não precisa me fazer companhia quando tem trabalho a fazer.

         - Tenho muito trabalho, realmente, mas resolvi que você já se recuperou o suficiente para uma coisa.

         - E o que é? - ela indagou, quando ele a fitou, a expressão muito séria.

         - Precisamos conversar. Eu pensei neste momento durante dias, semanas até, e, de repente, descobri que é difícil começar.

         - Está me deixando aflita.

         Ainslee tentou não demonstrar medo. Será que Gabel iria lhe dizer que teria de voltar a Kengarvey assim que estivesse bem para viajar? Era o senhor de seu clã agora. Talvez tivesse arranjado um casamento adequado para ela. Ainslee recriminou-se no íntimo por ser tola e acreditar que o fato de Gabel trazê-la de volta a Bellefleur significava mais do que uma gentil preocupação por seu bem-estar. Ferira-se ao lhe salvar a vida, então ele a havia levado para o único lugar onde sabia que ela seria bem cuidada. Embora dissesse isso a si própria de vez em quando, ela se dava conta de que não quisera ouvir a voz da razão.

         - Não é nada tão horrível. - Gabel lhe tomou a mão e correu o polegar pelo nó dos dedos delicados.

         - Eu não a tratei bem, Ainslee.

         - Que bobagem! - Ela comprimiu os lábios com força diante do olhar firme de Gabel.

         - Isso não será fácil se você insistir em me interromper.

         - Ficarei calada.

         - Ótimo. Agora, deixe-me continuar. - Ele respirou fundo.

         - Eu a tratei muito mal. Deitei-me com você e, no entanto, continuei a procurar outra mulher para esposa. Com isso, eu a insultei, tratando-a como uma prostituta. Mas juro que nunca pensei em você dessa maneira degradante. - Gabel esboçou um sorriso tenso e meneou a cabeça. - Estou me saindo muito mal.

         - Então, talvez devesse parar de tentar de se explicar tanto e dizer logo o que deseja.

         - É, mas senti que precisava consertar as coisas erradas que fiz, antes de fazer a pergunta que parece ter ficado presa na minha garganta.

         Ainslee estendeu a mão e afagou-lhe o rosto com carinho.

         - Não consigo pensar em nada que você precise consertar, mas, se isso o fizer se sentir melhor, então eu o perdôo de todos os pequenos erros que acha haver cometido.

         - Obrigado... - Gabel tomou-lhe ambas as mãos entre as suas e a fitou dentro dos olhos.

         - O que quero perguntar é... Quer ser minha esposa?

         Ainslee o encarou, perplexa. Ouvira as palavras, porém duvidava dos próprios ouvidos. Não houvera nenhum preâmbulo ou palavras de amor, nem a confissão de como e quando ele tinha percebido que não podia viver sem ela. Simplesmente a pergunta direta. E Ainslee não conseguia nem mesmo notar qualquer emoção no rosto de Gabel, a não ser uma espera tensa.

         - Não precisa se casar comigo porque tirou minha virgindade - ela murmurou, com cautela, receando que ele agisse assim por uma questão de honra. - E com certeza não precisa fazer isso porque levei a flechada que era destinada a você.

         - Não faço isso por nenhuma dessas razões. Eu quero que seja minha esposa. Eu deveria ter pedido no momento em que você acordou da febre, só que fiquei com medo que pudesse dizer sim pelas razões erradas. Eu queria que estivesse com a mente clara, com seu ânimo de volta, e com um pouco de sua força também. Ainslee, eu tinha umas idéias bem estranhas a respeito daquilo que queria numa esposa, e me agarrei a elas por tão longo tempo que fui incapaz de aceitar qualquer mudança nas minhas convicções. Só quando percebi que havia colocado você fora do meu alcance é que me dei conta de que a queria, que você seria uma excelente esposa para mim.

         - E o que a sua família pensa disso?

         - Todos em Bellefleur estão contentes, e a maioria acha que eu me demorei demais. - Ainslee não disse nada, então Gabel pousou um beijo em seus lábios e perguntou:

         - Se não me quiser para marido, precisa apenas dizer não.

         - Eu não quero dizer não. - Ela fez uma careta. - Você me pegou tão de surpresa que não consigo raciocinar direito. Meu único pensamento claro é que você pode querer se casar comigo por uma questão de honra, e isso é um motivo pelo qual eu teria de dizer não.

         - Não, não quero me casar com você por qualquer senso de honra.

         Antes que Gabel pudesse dizer algo mais, um jovem pajem irrompeu no quarto e comunicou:

         - Há um homem exigindo falar com o senhor, milorde. - O menino enrubesceu e recuou até a porta. - Oh, eu deveria ter batido e pedido licença - desculpou-se.

         - Deveria, sim. Lembre-se dos modos da próxima vez. Quem exige falar comigo? - Gabel perguntou.

         - Um tal de sir Donald Livingstone. É muito insistente.

         - Eu sei - Gabel resmungou, e depois praguejou baixinho. - Diga a ele que descerei daqui a pouco. - Assim que o pequeno pajem saiu, Gabel levantou-se e olhou para Ainslee.

         - Sinto-me confiante pelo fato de que você não me recusou. Enquanto converso com Livingstone, talvez possa pensar na minha oferta e conversar sobre isso mais tarde. - Ele franziu a testa. - Não esperava esse homem tão cedo.

         - Se Donald procura ganhar alguma coisa, então é minha irmã que o mandou tão depressa. É provável que o tenha posto a correr do castelo com as suas exigências.

         Gabel beijou-a de leve e seguiu para a porta.

         - Bem, ele logo descobrirá que a viagem foi inútil. Não terá nem você nem Kengarvey.

         E ele saiu antes de Ainslee dizer algo. Quando recobrara um pouco as forças, Gabel havia lhe contado sobre o destino de Kengarvey. E Ainslee afirmara novamente que não sentia raiva dele. Depois dos crimes que seu pai tinha cometido só um tolo pensaria que as terras permaneceriam com a família.

         Tudo com que ela se importava era que a maioria de seu povo e seus irmãos tivessem saído com vida. E ela não se surpreendeu que Elspeth tentasse reclamar as terras. O que a espantara havia sido a insinuação de que Livingstone a queria também.

         - Maldição! - Ainslee resmungou ao se sentar com cuidado, para não cair com a tontura que a afetava de vez em quando. - Ele quer que eu fique na cama para descansar, e depois me deixa com perguntas que me atormentam a cabeça.

         Conforme escorregava devagar para fora da cama e alcançava um vestido, Ainslee decidiu que não iria esperar. Só havia uma razão para sua irmã querer ficar com ela: casá-la e lucrar com isso. O pensamento lhe deu calafrios. Gabel não falara de amor nem dissera qualquer palavra doce quando havia pedido sua mão. E ela hesitara por causa disso, e lamentava-se agora. Se o deixasse pensar que ela poderia não aceitar a proposta, ele talvez levasse em consideração algum compromisso que Livingstone sugerisse.

         Custou bem mais do que ela gostaria enfiar-se no vestido, e sabia que estava com uma aparência desmazelada, mas começou a sentir uma forte sensação de urgência. Gabel não tinha nenhuma razão para recusar a proposta de um enlace feita por seu parente. Ainslee tinha consciência de que o casamento com Gabel, se ele não a amasse tanto quanto ela o amava, poderia ser doloroso, mas era bem mais preferível a ser vendida a algum homem da escolha de Elspeth. Precisava dizer a Gabel que aceitava a proposta, mesmo que tivesse de rastejar até o salão para tanto. Todos os problemas que pudesse prever seriam analisados mais tarde.

         Gabel bebeu o vinho e examinou o homem que estava sentado perto dele, todo tenso. Era evidente que Livingstone não gostaria estar em Bellefleur, como também não queria fazer nem dizer nada que pudesse enfurecer Gabel, porém não tivera coragem de enfrentar a esposa. Provavelmente, havia algo da própria ganância do homem por trás de suas ações. Gabel, no entanto, não tinha intenção alguma de entregar Ainslee ou Kengarvey a Livingstone, e agora percebia que Ronald tinha razão, que poderia se recusar a fazer tudo que o cunhado de Ainslee pedisse sem se arriscar a qualquer enfrentamento.

         - Disse que viria dentro de uma quinzena - Gabel declarou.

         - Não me dei conta de que já se passaram quinze dias.

         - Peço que me desculpe por não esperar, mas comecei a temer que o tempo piorasse e, portanto, nos impedisse de acertar essas questões até a primavera - disse Livingstone.

         - Não estou certo de quais questões o senhor acha que temos de acertar.

         - Ora, as questões de Kengarvey e de Ainslee, naturalmente.

         - Kengarvey é minha.

         - Sua? Nem todos os MacNairn são traidores do rei. As terras devem ir para aqueles membros da família que permaneceram leais ao soberano.

         - O rei julgou que eu deveria ter o domínio das terras. Pode dirigir-se a ele com suas reivindicações, se quiser. Não tentarei impedi-lo. Sou um homem do rei e obedecerei aos desejos dele nesta questão. A vontade de Sua Majestade, neste momento, é de que eu seja o senhor de Kengarvey.

         - E quem será a castelã? Não pode governar aquela fortaleza e Bellefleur ao mesmo tempo.

         - Coloquei um bom homem lá, e com a ajuda dos MacNairn que sobreviveram, creio que posso fazer Kengarvey renascer. Sim, e torná-la melhor do que Duggan MacNairn alguma vez permitiu que fosse.

         Livíngstone tomou um longo gole de vinho enquanto tentava visivelmente se controlar. Então, disse:

         - E quanto a Ainslee MacNairn? Recuperou-se dos ferimentos?

         - Está se recobrando aos poucos.

         - Quando ela estiver bem, milorde, minha esposa e eu nos incumbiremos de seus cuidados.

         - Não, creio que não. - Gabel sorriu quando Lívingstone ofegou.

         - O rei não a deu ao senhor também, deu?

         - Não, mas não vejo razão para entregá-la ao senhor.

         - Sou parente de Ainslee! - Livingstone exclamou, numa voz tensa, como se lutasse para controlar o temperamento.

         - Nunca teve interesse algum nela antes; então, por que haveria de querê-la tanto agora?

         - Minha esposa e eu tivemos muita sorte em encontrar um excelente casamento para Ainslee. Creio que mencionei o fato em Kengarvey. Não foi fácil, pois ela já está com dezoito anos e não tem dote. Mas aconteceu de conhecermos um homem que deseja muito uma esposa e quer fazer um acordo. Seria um arranjo bastante vantajoso.

         - Sim, para o senhor.

         - E para Ainslee. Ela não pode querer se tornar uma solteirona, destinada a ser não mais que uma babá para os filhos que os irmãos possam gerar.

         - Não creio que terá tal destino.

         - E um bom casamento o que eu ofereço a Ainslee.

         - Bem, eu creio que ela poderá fazer um melhor... comigo. Livingstone bufou e colocou o cálice sobre a mesa com mãos visivelmente trêmulas.

         - Quer se casar com Ainslee?

         - Sim. Pedi a mão dela hoje mesmo. Estupefato, Livingstone encarou Gabel.

         - E qual foi a resposta? - perguntou.

         - A resposta foi sim - disse Ainslee ao entrar no salão a tempo de ouvir a conversa.

         Gabel não soube dizer se ficou louco de alegria ou furioso quando se virou e a viu caminhar lentamente até a mesa. Ela estava pálida e amarfanhada, como se tivesse enfiado o vestido por cima da camisola e saído do quarto. Olhou para os pés de Ainslee e viu que estava descalça. Contudo o que o atordoou mais que a caminhada potencialmente perigosa até o salão foi que ela acabara de aceitar sua proposta de casamento.

         Ao ajudá-la a sentar-se à sua direita e entregar-lhe um guardanapo para enxugar as gotas de suor da testa, Gabel percebeu o que havia acontecido. Ainslee adivinhara os planos de Livingstone e tinha descido para pôr um ponto final neles da maneira mais segura que pudera. Não era a razão que ele desejava que a norteasse, mas resolveu não discutir. Poderia ter dúvidas sobre o que havia na mente ou no coração de Ainslee, porém sabia que partilhavam uma poderosa paixão. Era um bom começo.

         Gabel voltou-se para Livingstone e lhe ofereceu pousada por uma noite. Mas depois de dizer adeus a Ainslee, seu cunhado foi embora. Confiante de que não teria problemas com aquele membro da família, Gabel olhou para ela.

         - Creio que eu lhe disse para parar de tentar sair da cama. Mesmo assim você se levantou, se vestiu e se arrastou até o salão.

         - Eu não me arrastei - ela murmurou, pensando se sua voz tremia tanto quanto suas pernas.

         - Não?

         - Não, eu cambaleei. Achei que gostaria de ouvir minha resposta.

         - Gostei. - Gabel debruçou-se e lhe deu um beijo suave. - Mas poderia esperar.

         - Não. Bem, talvez, porém decidi que não permitiria que você mudasse de idéia.

         - Não há perigo. Mas eu deveria repreendê-la com energia por usar a pouca força que recuperou para vir até aqui.

         - Talvez isso pudesse esperar. Acho que é melhor eu voltar para a cama.

         Como Ainslee não se mexeu, Gabel franziu a testa.

         - Quer jantar primeiro?

         - Não, estou tentando pensar num jeito de lhe dizer que não posso dar outro passo, e que terá de me carregar de volta.

         Ele riu e levantou-se.

         - Não vai ser uma esposa muito obediente, vai? - perguntou ao pegá-la no colo.

         Ainslee passou os braços em torno do pescoço de Gabel e descansou a cabeça no ombro forte.

         - Receio que não, senhor De Amalville. Ainda há tempo de mudar de idéia - murmurou, rezando para que isso não acontecesse.

         - É pouco provável. Como você bem sabe, posso me agarrar a um plano com enorme tenacidade. Só tenho uma pergunta a lhe fazer. Você disse sim apenas para se livrar de Livingstone?

         - Não - ela murmurou, sonolenta.

         - Então, está certo. Assim que você tiver forças para ficar diante de um padre, nós nos casaremos.

         - Pode parar um pouco de se mexer? - Mane pediu, num tom afetuoso de repreensão. Ainslee sorriu e obrigou-se a ficar tão imóvel quanto pôde. Fazia três longas semanas desde que aceitara o pedido de casamento de Gabel. Todos haviam ficado contentes e se dedicavam, em tempo integral, a preparar a cerimônia. Ainslee começou a pensar que era a única que não estava completamente feliz.

         Nem uma vez Gabel havia falado de amor. Dissera a si mesma que isso não importava, que o seu amor era suficiente para os dois, e que ele poderia vir a amá-la. No entanto sabia que isso não passava de uma bobagem. Tais sentimentos não aplacavam os receios que consumiam seu coração. Também estava dividida entre o que queria e o que poderia aceitar. Queria desesperadamente que Gabel a desposasse porque a amava. E embora soubesse que poderia sofrer com a ausência desse amor, não tinha forças para impedir o casamento. Desejava, acima de tudo, ser esposa de Gabel.

         A coisa mais difícil que enfrentaria seria não poder amar Gabel livremente e com toda a honestidade. Pelo que ela sabia, os homens não gostavam do amor. Viam-se constrangidos quando a mulher demonstrava uma afeição à qual não podiam corresponder. Portanto, mesmo que fosse sua esposa, Ainslee teria de ter cuidado em esconder tudo o que sentia por Gabel. E isso seria uma tortura.

         - Finalmente você está pronta para ficar diante do padre - Marie anunciou ao dar um passo para trás.

         Ainslee olhou-se no espelho comprido pendurado em seu quarto. O vestido azul que as mulheres de Bellefleur lhe haviam confeccionado era adorável. Embora ainda não tivesse recuperado todo o peso que perdera em Kengarvey, preenchia o traje de uma forma bonita. Ela mesma não julgara que poderia ficar tão bem, e sorriu com gratidão para Marie e Elaine. Apesar de todas as dúvidas e receios que a consumiam, Ainslee não conseguia deixar de se sentir feliz por estar vestida de uma maneira adequada para o casamento. Ao desposá-la, Gabel perderia todas as vantagens que um homem normalmente procura num casamento, e ela pelo menos desejava parecer que serviria como a senhora de Bellefleur.

         - Não está com um ar tão feliz como achei que teria - disse Elaine, e depois se desviou de um tapa da mãe. - Ora, ela não parece mesmo.

         - Casamento é um passo muito importante na vida de qualquer mulher - Ainslee murmurou, lutando para imaginar algum jeito de explicar a tristeza que Elaine percebera, e acalmar a preocupação que as parentes de Gabel pareciam ocultar. - Estou apenas me sentindo insegura, Elaine. Dentro de muito pouco tempo darei um passo sem volta.

         Marie abraçou-a por um instante.

         - Conheço o receio a que se refere, menina, mas você é a mais afortunada das mulheres. Muitas de nós se casam com homens escolhidos pelos outros. Algumas nem têm a chance de conhecer os maridos antes de estarem casadas. Penso que você deve conhecer Gabel muito bem a essas alturas. Teve a oportunidade de escolher e pode desposar um homem que a ama.

         - Ele me ama? - Ainslee perguntou, e depois praguejou baixinho, zangada consigo mesma por não ocultar as próprias dúvidas.

         - Ah, vejo que o problema é esse - murmurou Elaine. - Meu estúpido primo não falou de amor, falou?

         - Gabel me pediu para ser sua esposa. E uma grande honra, e estou me mostrando muito ingrata ao reclamar.

         - Não, não está. Ele poderia pelo menos ter murmurado umas poucas palavras bonitas. Aposto que nem isso fez. Os homens são mesmo uns idiotas.

         - Minha filha de língua ferina tem razão quanto a isso - concordou Marie ao passar as mãos pelos cabelos de Ainslee, soltos e enfeitados com fitas azuis e brancas. - Deixe de lado as preocupações, querida. Não tentarei convencê-la de que Gabel a ama, pois só ele pode fazer isso, mas lhe asseguro que nutre profundos sentimentos por você. Vi quando voltou do rio naquele dia. Gabel se deu conta de que havia cometido um erro em devolvê-la a seu pai, e esse erro o atormentou. Eu o vi também cuidar de você. Passava horas ao lado da sua cama. Mesmo quando saía para trabalhar ou descansar, todos podiam perceber que a mente e o coração de meu sobrinho continuavam com você, rezando pela sua recuperação. Gabel a ama, menina. Talvez precise arrancar as palavras de dentro dele.

         Quando Ainslee entrou no salão, poucos momentos depois, e viu Gabel aguardando-a diante do padre, ela rezou para que Mane soubesse do que estava falando. Às vezes vira um vislumbre de algum sentimento mais forte nos olhos de Gabel, mas não tinha ousado confiar nas próprias conclusões. Gostaria de ter mais fé naquilo que outras pessoas pareciam enxergar com clareza.

         - Tenha coragem, mocinha - Ronald murmurou ao se adiantar e beijá-la na face.

         - Estou tentando, Ronald.

         - Boa menina. Você está fazendo a coisa certa, embora eu ache que pode custar um pouquinho para perceber como isto é certo mesmo.

         Ainslee esboçou um sorriso hesitante quando caminhou na direção de Gabel e deixou que lhe tomasse a mão. Ele parecia mesmo o senhor de Bellefleur, com sua elegante túnica negra contornada de delicados bordados em prata. De repente, Ainslee se sentiu muito inadequada. Gabel merecia muito mais que uma moça sem um vintém, sem terras, com um nome que atraía somente desprezo e ódio dos outros. Algum dia ele se daria conta disso, e o que aconteceria com o seu casamento então?

         Quando encontrou o olhar de Gabel, ela captou um breve lampejo de incerteza naqueles olhos escuros. Ao se ajoelharem diante do padre, rezou para que conseguisse aprender a ser feliz com aquilo que Gabel pudesse lhe oferecer.

         Gabel bebeu seu vinho enquanto observava Ainslee com atenção. Ela ria e conversava animadamente com todos, porém ele percebia-lhe uma certa reserva. Quando tinham se postado diante do padre, percebera um vislumbre de medo e tristeza nos olhos de Ainslee, e isso o deixara inquieto. Estava disposto a tentar conviver com o fato de que ela não o amaria tão profundamente quanto ele a amava, mas se Ainslee começasse a pensar que errara ao desposá-lo, ele nem mesmo se atrevia a imaginar quanto isso o magoaria.

         - Vamos tentar nos esgueirar para longe - ele murmurou ao tomar a mão de Ainslee e lhe beijar a palma.

         - Exigirá muita habilidade de nossa parte conseguir sair deste salão lotado sem sermos vistos - ela murmurou, sorrindo, enquanto olhava ao redor.

         - Então, vamos sair depressa.

         Ainslee riu quando Gabel levantou-se num salto, ergueu-a nos braços e avançou para a porta. Só umas poucas pessoas no salão se recobraram da surpresa com tempo suficiente para fazer um poucos comentários maliciosos. Ainslee agarrou-se ao pescoço do marido quando ele subiu correndo as escadas.

         - Vão falar disso durante os próximos dias - ela murmurou.

         Ainslee deixou escapar um riso nervoso quando Gabel entrou no quarto que iriam compartilhar, a partir daquele dia, fechou a porta com um chute e seguiu para a cama, onde a deitou sobre as cobertas macias. Então, ela sentiu-se tomada pela paixão ao vê-lo começar a arrancar as roupas. Por um instante Ainslee ficou deitada ali, observando-o se desnudar e jogar as roupas no chão. Havia uma expressão de profunda avidez a lhe contrair as feições, e Ainslee foi contagiada por tamanha sofreguidão. Levantou-se e começou a tirar o vestido.

         Pouco depois, os corpos nus de ambos finalmente se encontraram pela primeira vez em tanto tempo, e Ainslee fez coro ao gemido de satisfação daquele que agora era seu marido. O ato de amor logo se transformou num ímpeto desenfreado, conforme se apressavam em satisfazer a necessidade de tocar, acariciar e beijar cada centímetro um do outro. Ainslee agarrou-se a Gabel, acompanhando-lhe a sofreguidão dos movimentos com uma paixão tão ardente e selvagem quanto a dele. Seus gritos de êxtase se mesclaram quando chegaram juntos ao clímax que tanto buscavam.

         Gabel passou a mão pelos cabelos revoltos de Ainslee e disse baixinho:

         - Eu tinha planejado fazer amor com você bem devagar, com toda a minha mísera habilidade, para expulsar suas dúvidas a respeito da paixão que podemos partilhar. Pensei que, se pudesse fazê-la relembrar de como é especial e forte essa paixão, você parasse de se perguntar se o nosso casamento é certo... para nós dois.

         - Dúvidas? - Ainslee o fitou com um ar cauteloso. - Por que você haveria de pensar que tenho alguma dúvida?

         - Vi no seu rosto. Muitas vezes, ao fitá-la nos olhos, vi... incerteza, quase medo. Estava lá quando tomei sua mão e nos ajoelhamos diante do padre.

         - O casamento é um passo sério e importante - Ainslee murmurou, e pensou em como eram inadequadas tais palavras. Não haviam convencido a jovem Elaine, portanto como satisfariam Gabel?

         - Eu sei. Tive essa hesitação também - ele confessou. - É uma coisa que homens e mulheres devem sentir quando chega o momento de pronunciar o juramento diante do padre e de Deus. Mas o que vi nos seus olhos era mais que isso. E não creio que eu esteja fantasiando.

         - Não, não está. - Ainslee suspirou. - Estava lá - admitiu. - Não poderia mentir para Gabel na noite de núpcias, na primeira de toda uma vida.

         - E por quê?

         - Por quê? Gabel, acabei de me casar com um homem que ocupa um lugar mais alto que eu, a quem não trouxe nem terras nem dote, nem mesmo um nome que o povo da Escócia possa julgar bom, a não ser para se cuspir nele. Você estava tão elegante, mostrava-se tão bem-nascido e rico nos seus trajes de casamento, e eu... de repente, me senti imprestável, como se não tivesse nada para recompensá-lo pela honra que me concedeu.

         Gabel sorriu e pousou um beijo suave nos lábios da esposa.

         - Eu só preciso de você.

         O coração de Ainslee deu um salto, pois havia um verdadeiro sentimento naquelas palavras.

         - Você poderia ter acalmado algum dos meus medos e dúvidas se tivesse dito algumas palavras bonitas quando me pediu que o desposasse.

         - Existe mais que apenas palavras bonitas, Ainslee. Eu não tentaria iludi-la com elogios vazios - Gabel murmurou ao acariciar-lhe o ventre. - Não sou muito bom com galanterias, de qualquer forma. E estranho, mas sinto que você precisa de algo, e parece que não consigo lhe dar. Mas saiba que eu lhe darei qualquer coisa que você quiser.

         - É como se fosse "peça e receberá"?

         - Sim, dentro do razoável.

         - Então, quero que você me ame.

         - Isso não é nenhum desafio, pois eu já a amo.

         A tensão, que fizera um nó no estômago de Ainslee, desapareceu tão depressa que ela precisou de alguns instantes para recuperar o fôlego. Sentiu-se como se tivesse levado um soco. Como palavras tão simples poderiam ter tal poder?

         - O que disse? - Ainslee perguntou. Gabel fitou-a atentamente e se sentou.

         - Disse que o seu pedido é fácil de atender, pois eu a amo.

         Ela resmungou a respeito da idiotice dos homens; subiu em cima de Gabel e o encarou. Era incrível que as palavras que esperara ouvir por tanto tempo pudessem deixá-la tão zangada. Queria dizer uma porção de coisas, mas se viu incapaz de falar.

         - Quando, finalmente, tive a coragem de abrir meu coração, não pensei que você fosse me olhar como se quisesse me estrangular - Gabel declarou, a inquietação a crescer conforme Ainslee apenas o fitava, sem dizer nada.

         - Na verdade - por fim ela falou -, eu estava pensando em colocar o travesseiro sobre a sua cabeça até que você parasse de respirar. Contudo, por mais que apreciasse isso agora, acho que lamentaria mais tarde.

         Ainslee inclinou-se e fitou-o dentro dos olhos. Lentamente, seus pensamentos se tornaram mais claros, e ela sentiu que poderia falar sem gaguejar.

         - Há quanto tempo você sabia que me amava? - perguntou.

         Hesitante e inseguro, Gabel ergueu as mãos e começou a deslizá-las pelas costas de Ainslee.

         - Desde que a vi atravessar o rio naquele dia.

         - E nunca pensou na possibilidade de que eu poderia querer saber disso?

         - Ah, eu deveria ter lhe dito bem antes. - Gabel sentiu-se invadido por uma sensação de alegria ao se dar conta do motivo que deixara Ainslee tão zangada. Ele não dissera as palavras que ela estava ansiosa por ouvir.

         - Isso teria sido ótimo - Ainslee declarou. - Teria me poupado longas semanas de sofrimento, do turbilhão de emoções até eu decidir se deveria arriscar tudo e me casar com um homem que poderia nunca me amar como eu queria que amasse. Teria me poupado de perder o sono para me convencer de que o amor que eu tinha era suficiente para fazer do nosso casamento uma união boa e feliz...

         Ainslee teve de se calar quando Gabel a puxou para os seus braços e a beijou com volúpia.

         - E talvez - ele murmurou, boca contra boca - eu tivesse me poupado de umas poucas dúvidas e receios se você fosse mais transparente.

         Ela se afastou o suficiente para fitá-lo nos olhos.

         - E você tinha dúvidas e receios?

         - Quando um homem aceita finalmente que está apaixonado, acha que ele têm plena certeza de que os seus sentimentos são correspondidos e que tudo vai dar certo?

         - Nunca pensei nisso, já que eu não sabia que você sentia alguma coisa por mim. - Ainslee enfrentou o olhar de desgosto de Gabel um breve sorriso. Então, ficou séria ao traçar as linhas do rosto dele com a ponta dos dedos. - Posso ver que nós dois sofremos. Vamos ter de aprender a falar com mais franqueza um com o outro. Seja o que for que tenhamos a nos dizer, não provocaremos tanto sofrimento como o que passamos.

         - Concordo. E quero que me lembre desse acordo se julgar que estou sendo reticente.

         - É justo. - Ela se debruçou sobre o marido, e sorriu ao senti-lo novamente excitado.

         - Acho que o amei desde o primeiro instante em que o vi.

         - E? Então, tem um modo muito estranho de mostrar afeição, pois, se me recordo bem, tentou enterrar a espada no meu peito.

         - Talvez estivesse apenas procurando atrair a sua atenção, o que acha? - Ainslee deu uma risadinha quando Gabel praguejou. - Percebi isso na ocasião em que nos tornamos amantes. Oh, tentei ser prática, mas fracassei miseravelmente. E fiquei doente de ciúme quando você cortejou Margaret Fraser.

         - Imagino agora quanto a magoei. Só posso pedir que me perdoe. Eu me recusava a ver o que havia no meu coração, e afastava as dúvidas dizendo a mim mesmo que estava fazendo o melhor para Bellefleur e para mim. Não queria me deixar levar pela emoção. E você despertou tamanha emoção dentro de mim que era algo quase assustador. - Diante da incredulidade de Ainslee, ele continuou: - Confesso que me assustei e fugi, alegando a necessidade de me deixar governar apenas pela lógica fria da razão. Só quando julguei que você estivesse fora do meu alcance, é que percebi que não queria ser racional, e que isso não me tornaria um homem pela metade. Por mais perigoso e enlouquecedor que fosse, eu desejei todos os sentimentos que você pode despertar com tanta facilidade em mim.

         - Você não me fez promessas e não me disse mentiras bonitas. Não fui forçada para a sua cama. Ao contrário, eu me entreguei de livre e espontânea vontade. Não há nada que eu tenha de lhe perdoar. - Beijou-o com carinho. - Eu amo muito você, Gabel de Amalville.

         - E eu a você, Ainslee MacNairn.

         - Mesmo que eu seja tão espinhosa como um cardo?

         - Sim, pois descobri toda a suavidade que existe dentro de você.

         - Serei uma boa esposa.

         - Seja você mesma, Ainslee. Não peço mais nada. Foi assim que vim a amá-la, embora, na minha cegueira, eu tenha lutado contra esse amor como lutaria contra qualquer inimigo. Se quiser ficar ao meu lado, espada na mão, então, assim será. Se quiser passar os dias fazendo Bellefleur brilhar de tão limpa, assim será. Faça o que desejar. Minha felicidade virá ao vê-la feliz. Ninguém mais merece a felicidade como você, não depois de tudo que sofreu em Kengarvey.

         - Oh, não foram tempos tão ruins. Eu tinha Ronald... E, sabe, um sonho, um devaneio, de vez em quando. Eu me via como uma bela mulher em vez da criança magricela e miúda que era.

         - Essa parte do sonho certamente se realizou.

         Ainslee o beijou em recompensa pelo elogio, e depois prosseguiu com voz enlevada:

         - E um dia, quando eu tinha medo de não conseguir agüentar mais, surgiu um homem em meio à neblina. - Gabel esboçou um sorriso, e ela o olhou feio.

         - E melhor não rir.

         - Não, eu nunca faria isso.

         Ainslee percebeu que ele sufocava o riso, mas fingiu ignorá-lo.

         - Esse homem era alto, moreno, esplêndido, e me levava em seu cavalo. Cavalgávamos para longe de Kengarvey, para um lugar que eu jamais tinha visto, onde não havia batalhas nem homens brutais, e com tanta fartura e comida quanto alguém poderia desejar. E ele me amava. Era estranho que sonhos tão tolos pudessem me dar algum conforto, e eles conseguiam.

         - Não, não é estranho. - Gabel a beijou com ternura. - Receio não poder prometer que não haverá batalhas nem mortes ou mesmo que você sempre terá toda a fartura e comida que quiser. Tais coisas não estão em minhas mãos, mas nas de Deus.

         - Não importa. Tudo que você tem de fazer é prometer que fará o melhor para me amar - Ainslee disse, baixinho. - Sim, quero que ame com todo ardor e por toda a eternidade como eu o amarei.

         - Isso, minha linda mocinha, é uma das promessas mais fáceis que já me pediu, e eu a faço agora, de todo o meu coração.

 

 

                                                                  Hannah Howell

 

 

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