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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAVALO DE TRÓIA (9–CANÀ) - P.4 / J. J. Benitez
CAVALO DE TRÓIA (9–CANÀ) - P.4 / J. J. Benitez

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CAVALO DE TRÓIA 9

CANÀ

Quarta Parte

 

No palácio-fortaleza de Maqueronte tudo havia sido minuciosamen­te projetado (para o bom e para o menos bom).

Nesta oportunidade, só o contemplei por fora. Não tive uma circuns­tância adequada para entrar no palácio propriamente dito.

A 400 metros da fortaleza, a pista parou de se contorcer e ficou reta. Antipas a tinha ladrilhado e ela subia ao topo, limpa e ampla, meticulo­samente encaixada entre dois muros de um metro de altura, que serviam de escada. Os cavalos e as redas subiam ou desciam pela calçada central Aqueles que não tinham escolha, a não ser andar, o faziam pelos muros. O lado direito (olhando a fortaleza em relação à sua base) era utilizado para descer. Pelo outro lado se subia para Maqueronte.

As pedras que davam forma aos "muros-escadas", se me permite a expressão, eram calcárias - como os blocos de pedra das muralhas - e deviam ter sido transportadas de muito longe. Possivelmente do sul, da região de Kerak. Toda uma maravilha de muito esforço e habilidade. An­tipas desejava se parecer como seu pai, Herodes, o Grande, o grande construtor. E ele quase conseguiu.[1]

Desde o delta do Jordão até a base do grande cone, calculei 52 quilômetros. O caminho pela orla do mar de Sal era mais curto e menos com­prometido. Teria isso em conta para outras expedições.[2]

Era meio-dia quando nos detivemos, por fim, na pequena esplanada que se abria em frente ao portal da fortaleza. Tratava-se, na realidade, de um: ponte levadiça, de uns dez metros de altura, protegida com placas metálicas Fiquei surpreso.

As muralhas eram o que eu havia visto e muito mais. A palavra que as definia era "solidez". Rondavam os seus 17 metros de altura e pareciam armadas, feitas com blocos de pedra de mais de cem toneladas. Demônios... Como eles subiram tudo até ali? Era simples. Já disse isso antes: com sangue, suor e lágrimas...

As torres eram excepcionais. À direita do portão de entrada se elevavam duas. Uma delas, praticamente colada à ponte levadiça. A outra (conhecida como a "Torre Negra") situava-se na esquina nordeste e se destacava do resto, não só por seus 28 metros de altura, mas, acima de tudo, pela cor da pedra (negro-grafite).

Desde que a vi, não gostei.

A esquerda da ponte levadiça, nessa mesma "fachada" do palácio-fortaleza, se distinguia a torre número três. Por trás, na outra extremidade da grande elipse que formava Maqueronte, apreciei os contornos das torres quatro, cinco e seis. Em todas elas brilhavam os capacetes e as "ca­misas" metálicas dos soldados gauleses. A vigilância era intensa.

Saltamos da reda no momento em que uma das patrulhas se aproxi­mava dos cavalos.

Cumprimentaram Nakebos e me revistaram. Eram as regras. Além dos arcos e flechas carregavam longas espadas do tipo xiphos de 90 centí­metros, com uma lâmina de ferro larga na ponta e estreita perto da empunhadura (isso facilitava o golpe). As empunhaduras eram feitas de bron­ze e imitavam um homem com os braços erguidos. Alguns dos soldados carregavam as temidas achas (arma com o feitio de machado), com cabo de madeira e uma ponta afiadíssima, que servia para perfurar armaduras.

Enquanto caminhávamos em direção ao portão, escoltados pela pa­trulha, um dos gauleses se fixou na "vara de Moisés" e fez sinais, acenando para que eu a deixasse do lado de fora. Eu não podia seguir com ela.

Nakebos assentiu com a cabeça e eu não tive escolha a não ser colocá-la no carro de Tarpelay. O sais tampouco tinha permissão para entrar. Esperaria na esplanada.

Senti-me inquieto. A "vara de Moisés" era uma excelente ajuda em casos de emergência. O que me aguardava no interior daquele lugar?

Ao pisar nas pranchas de ferro da ponte levadiça, a grandiosidade de Maqueronte me fez esquecer essa nova preocupação.

Eu me senti um idiota em relação às minhas avaliações anteriores.

Entre as muralhas, Herodes, o Grande, tinha criado um fosso, ago­ra cheio de água verde e estagnada, com cinco metros de largura e que cercava o forte inteiro, incluindo Ataroth, a aldeia de serviço a oeste, no extremo oposto à porta principal.

Patrulhas de soldados faziam rondas permanentes no alto, em ambas as muralhas, cruzando-as a cada 10 ou 15 minutos.

Raisos, o "conseguidor" e patrão da torre das "Verdes", tinha razão. A força que atuava em Maqueronte era superior a 500 homens.

Tentar um ataque e o resgate de Yehohanan seria um suicídio.

E continuei fazendo anotações mentais...

Ao cruzar a ponte me achei diante de um grande átrio, de uns 80 metros por 20 metros, cercado de colunas (contei 31) pintadas com cores bem vivas. No centro, havia sido disposta uma piscina, de uns 40 metros de comprimento por 5 de largura.

Cheguei mais perto, deslumbrado.

No fundo e nas paredes, belíssimos mosaicos azuis se mostravam. No centro geométrico, os mosaicos foram substituídos por pequenos vi­dros de cor branca, formando círculos concêntricos.

Três círculos?

Um dos guardas me obrigou a regressar e ficar junto de Nakebos e indicou através de sinais que eu não me separasse do capitão.

Pedi desculpas e me juntei ao alcaide, na esquina sudoeste da piscina.

Ali estavam à espera três cadeiras com respaldos de couro. Uma de­las, cujas pernas luziam, era de marfim com cabeças de leões nos pés. Presumi que fosse o lugar de assento do tetrarca.

O local se achava protegido do rigor do sol por algo que tinha visto na fazenda Sapiah, em Caná. O conjunto de criados e ajudantes teve o cuidado de amarrar as extremidades de enormes tules de cor roxa aos capitéis das colunas. E a atmosfera, de repente, ao ficar sob a influência do tule, se tornava suave e extremamente benéfica.

Nakebos sugeriu que eu não me sentasse. O adequado seria esperar pelo anfitrião.

A uma curta distância da piscina ficava o palácio residencial, cons­truído em mármore rosa. Tinha as portas abertas e era possível ver a agitação nas sombras, indo e vindo. Distingui algumas paredes e parte de uma escada, todas decoradas com gesso azul. Eu achei belíssimo e es­pecialmente deslumbrante. Erguer semelhante luxo em um lugar como aquele era, pelo menos, surpreendente.

Perto da torre negra, entre a piscina e as colunas, encontrei o que, num primeiro momento, associei a um poço. O parapeito tinha um metro de altura e, curiosamente, as pedras tinham sido pintadas com um tom de ver­melho raivoso. Era a única nota dissonante no harmonioso átrio. Fiquei tentado a me aproximar, mas não, eu me contive. A advertência do soldado tinha sido muito séria.

Não tivemos que esperar muito...

De repente, ele apareceu.

E os gauleses formaram um círculo à volta da cadeira de marfim.

Olhei para Nakebos, e o alcaide, sorrindo, encolheu os ombros.

- É Osíris...

Osíris era um gato, com um precioso pelo azul. Suponho que fosse natural. Recordou-me os gatos de Malta. Brilhava como o visom. Era um exemplar jovem, flexível e esbelto.

Caminhou nas pontinhas das patas sobre o mármore do piso e foi procurar a cadeira de Antipas.

E, num pulo só, se incorporou ao assento.

Tinha os olhos verdes, grandes e distanciados.

Olhou-nos, um por um, e esperou em silêncio.

Por detrás de Osíris chegou o estafe de serviços. Um dos escravos era particularmente alto e corpulento. Tinha uma cabeleira longa e loira. Carregava uma mesa de cristal com três pés. Sobre ela se alinhavam dife­rentes pratos e bandejas, todos repletos. Tentei averiguar o conteúdo, mas, sinceramente, não consegui. Não reconheci nenhum dos "manjares".

Depois, vindo do palácio, irrompeu no átrio outro grupo de gauleses, armados até os dentes. Formaram uma passagem entre a porta do palácio e a esquina da piscina onde nos encontrávamos e se colocaram em posição de guarda. Contei 50 deles.

Finalmente Antipas se apresentou.

Era como eu me lembrava; não muito alto, esquelético e com o corpo coberto de crostas cinzentas e sujas.[3] Era possível que se tratasse de um tipo de sífilis. As lesões eram abundantes nas mãos, no pescoço e no rosto.

Reluzia um cabelo longo e azul sobre os ombros, com a franja recortada na frente. A última vez que eu o vi (no ano 30) tinha o cabelo loiro, escandaloso.

Calculei que ele tivesse por volta de uns 45 anos, mas aparentava ter mais idade.

Vestia uma túnica transparente e um saiote (um shenti) com notória influência egípcia. Havia sido fabricado em linho e tingido de azul, simu­lando umas asas recolhidas.

As sandálias eram de couro, para combinar com o cabelo e o shenti.

Os olhos apareciam realçados com uma grossa linha de mesdernet, também num azulão exagerado e chamativo. As pálpebras não podiam ficar de fora e foram maquiadas com uma galena brilhante, bem apro­priada para proteger os olhos do intenso sol do Gor. As maçãs do rosto eram urna confusa mescla de kohl e quem sabe o que mais, que protegeria dos insetos, porém dava um aspecto de máscara. Era, definitivamente, um Antipas sofisticado, enfermo e azul.

Nakebos fez as apresentações e o tetrarca respondeu com um sorriso breve e falso.

Então, sem uma palavra, começou a andar ao meu redor, me observan­do. Nakebos fez um sinal para que eu não se movesse. Mantive-me imóvel.

Foi quando eu ouvi aquele tilintar...

Pensei nas sandálias.

Uma vez satisfeito, ele foi para a cadeira de marfim, pegou em seus braços o seu gato azul e sentou-se estrepitosamente, como se estivesse es­gotado. E eu deixei de ouvir o tilintar misterioso.

Por alguns desconfortáveis segundos, apenas me observava. Ele fez isso descaradamente, percorrendo-me da cabeça aos pés. Enquanto fazia isso, acariciava as grandes e pontudas orelhas de Osíris.

Eu também o examinei...

Eu me encontrava diante do indivíduo que tentaria interrogar o Mes­tre em Jerusalém, poucas horas antes da Crucificação. Aquele Herodes Antipas era o sujeito que Jesus qualificaria de "raposa", ainda que não como um símbolo de astúcia, senão como de "destruição". E nisto eu con­cordo com os critérios de especialistas como Schürer, Leaney, Manson e Hoehner, entre outros exegetas e escritores. Como veremos mais adiante, o Galileu não chamou Antipas de "raposa", mas de suai, que significa "es­cavar" e que é sinônimo de chacal. Eram esses canídeos que desenterra­vam os mortos e devoravam a carniça. Os judeus os odiavam, tal como se reflete no livro dos Salmos. Eles também os conheciam como 'iyyim ou "uivadores".

Então quer dizer que tu és um asap...

Eu retifiquei. Não era um "adivinho".

Sou um kásday. Leio as estrelas...

E qual é a diferença? São uns malditos mentirosos... Astrólogos, adivinhos, magos, bruxos e caldeus: todos deveriam estar mortos...

Antipas falava em um grego arcaico, repleto de desvios no dialeto áti­co. Custava-me entender. Era um "helenizante". Assim chamavam os que bebiam da cultura grega. Em Israel, naquele tempo, era outra das modas. Antipas era árabe (arab), como sua família, mas fora educado em Roma. adorava o grego e, como uma brincadeira do Destino, se viu obrigado a governar (é uma forma de dizer) judeus, que odiava.

Centrei-me no diálogo.

Há uma notória diferença, tetrarca, entre um asap (adivinho) e um 'Ásday (astrólogo)...

Qual?

O adivinho mente.

E o astrólogo não?

O astrólogo se equivoca, não é o mesmo.

Nakebos me olhou, satisfeito.

Quer dizer que tu lês as estrelas...

Assenti em silêncio.

E tu conheces o futuro?

O futuro não existe.

Então, para que serve ler as estrelas?

Para ganhar dinheiro.

O tetrarca se inclinou sobre a mesa, inspecionou os pratos e as bandejas, e acabou por introduzir o dedo em um dos manjares. Provou-o e convidou-nos a compartilhar o "refrigério". Assim ele o chamou. Depois, dirigindo-se a Nakebos, manifestou:

Eu gostei do teu amigo...

Um dos servos encheu as taças.

Legmi, o licor favorito de Nakebos!

E o alcaide me deu uma piscada, olho no olho.

Aquela reunião podia terminar como o maldito simposion, na Cesareia.[4]

Não tive outra solução senão provar um dos pratos.

Não sabia o que era e hesitei.

Antipas percebeu e perversamente foi listando: gafanhotos vivos (ador­mecidos com alho e limão), testículos de hiena (para aumentar a virilidade), sangue de cavalo frito, larvas coletadas em cemitérios, vulvas de éguas ruivas para evitar envenenamento) e uma massa negra e viscosa que eles chamaram de hippoman. Nakebos e Antipas se olharam, mas nenhum deles esclareceu o que era o repugnante hippoman... Cheirava a excrementos.

Desculpei-me. Eu falei a eles sobre o meu delicado estômago e me refugiei nos gafanhotos.

Eram crocantes e amargos.

E Antipas prosseguiu com o que lhe interessava.

Quer dizer então que tu és astrólogo...

Não me deixou replicar.

Quem é teu mestre?

Trasilo...

O astrólogo do imperador Tibério!

Eu ia responder afirmativamente quando o tetrarca chamou o servo de cabelos loiros. Ele veio e, como fosse um costume habitual, inclinou-se em frente a Antipas e deixou que o sujeito das úlceras limpasse os dedos em seus cabelos. Eu já tinha visto algo semelhante na fortaleza Antônia, numa das sa­las secretas de Pôncio. Aparentemente, tratava-se de outra nova moda...

Antipas fez um sinal e um dos servos apressou-se a reunir-se com ele. Carregava uma bolsa preta, de tamanho médio. Ele a abriu e o tetrarca olhou para seu interior. Sorriu, satisfeito.

Nakebos estava sério, focado em seu legmi.

Notei que o saco estava se mexendo. Continha algo vivo.

Osíris se ergueu sobre os joelhos de seu amo e ficou em posição de guarda.

Eu continuei com os gafanhotos, prestando atenção na misteriosa bolsa.

Antipas acabou introduzindo o braço direito e tirou de lá um peque­no rato branco.

O gato se lambeu, mas o rato não era para ele.

O servo se retirou e, após passar o aterrorizado roedor sob os bigodes de Osíris, Herodes Antipas ficou de pé.

Nakebos e quem isto escreve nos levantamos e ficamos em pé no mesmo instante, e o tetrarca caminhou até o extremo oposto da piscina. Vários dos gauleses foram atrás dele.

E voltei a ouvir aquele singular tilintar...

Aproveitei a ausência e perguntei a Nakebos o que era aquilo.

Ele me explicou entre risos, que mal podia conter. Era outra coisa que estava na moda, provocando furor entre os "helenizantes". Eram importadas das ilhas orientais (possivelmente da atual Malaca). Tratava-se de uma dú­zia de pequenas contas ocas, de ouro, em forma de cachos, que continham sementes ou grãos de areia. O "cacho" em questão se prendia sob a pele do pênis e se costurava. Era um sinal de distinção e, sobretudo, proporcionava um extraordinário prazer para a mulher. Isso dito por Nakebos.

E compreendi o porquê do tilintar cada vez que o tetrarca se movia. Assim era Antipas.

O tetrarca chegou ao poço vermelho e um dos soldados começou a remover a tampa de madeira. Antipas se aproximou e começou a gritar para alguém, também em grego, de uma forma carinhosa, como se fossem conhecidos desde muito tempo atrás. Pensei em Yehohanan... Estaria preso naquele poço?

Depois arremessou o rato no interior e permaneceu um tempinho contemplando a cena (?).

Não falou. Limitou-se a se apoiar no parapeito e assim continuou uma meia hora.

Voltei a perguntar ao alcaide.

O Batista estava ali, naquele poço de paredes vermelhas? Nakebos riu muito. A pergunta deste explorador o encantou.

Antipas está falando com suas meninas...

Suas meninas? Quem são?

É melhor que tu não saibas...

O tetrarca regressou e estava feliz, com um largo sorriso.

Onde estávamos?

Nakebos refrescou a sua memória.

Falávamos de Trasilo, o astrólogo do divino Tibério...

Ah! Lembrei. E que tenho tantas preocupações. Então tu conheces Trasilo...

Conheço Trasilo, Tibério - menti - e também o novo governador. Creio que me precipitei ao mencionar este último (Pôncio chegou à Judeia ao final de julho desse ano 26).

Também conheces Pôncio?

Notei certa incredulidade em Antipas. E comentou:

Não será melhor que Valério...[5]

E cometi um novo erro. Ou não?

Desejoso de convencer-lhe da minha amizade com Pôncio, imagi­nando que isso viesse a me beneficiar, enfiei a mão na faixa que me servia de cinto e na qual guardava o salvo-conduto do governador.

Notei como os olhares me transpassavam. E aprendi algo importante: na presença de Antipas, não convinha procurar nada no meio da roupa.

Algumas mãos dos soldados viajaram rápidas às empunhaduras das espadas, e ali se mantiveram.

Nakebos fez um gesto de tranquilidade e os gauleses relaxaram, aparentemente.

Antipas, apesar da máscara, estava pálido. Tinha ficado com o ga­fanhoto entre os dedos, na metade do caminho entre o prato e a boca. O único que se mostrava feliz e confiante era o gato azul.

E acabei por mostrar o pergaminho.

Nakebos o tomou em suas mãos e o desenrolou, e então procedeu à leitura. Depois o examinou, na frente e atrás, e chegou a cheirá-lo.

Antipas leu com curiosidade. De vez em quando levantava a vista e me examinava de novo.

O escravo serviu outra rodada de legmi. A cabeça começou a dar voltas.

E, ao chegar a um dos parágrafos, leu em voz alta:

"... e os gregos anteriores mencionados (se referia a Eliseu e a quem isto escreve) - amigos pessoais e servidores do divino Tibério - poderão viajar livremente pelos territórios desta província..."

Deteve a leitura, me olhou diretamente e perguntou:

Quem é Eliseu? Por que não está contigo?

Ele é meu sócio - improvisei. - Outros negócios o retiveram no norte.

Antipas cruzou um olhar de cumplicidade com o alcaide e capitão da guarda. Este assentiu com a cabeça.

Malditos!

Nakebos investigara sobre nós...

Não se podia confiar em ninguém.

Portanto, já que és amigo de Pôncio... - Antipas retomou a conver­sa como se nada tivesse acontecido - ... Tu conheces o futuro dele?

Conheço e creio - me precipitei. - E o teu...

Não me pareceu surpreso.

Meu futuro todo mundo já sabe... Esse profeta louco se ocupou de soltar pelos ares.

E apontou para a torre negra.

Foi uma pista. Yehohanan se achava prisioneiro na mencionada tor­re. Isso foi o que acreditei, pelo menos.

Sim e não.

Certamente, e Nakebos me disse que desejas vê-lo. Por que tanto interesse em um louco?

Observei alguns sinais estranhos em seus olhos e preciso confirmar...

Voltou a interromper-me.

Estás interessado no futuro do Batista ou no meu?

Antipas era um réptil, mas não deveria me esquecer da sua inteli­gência.

Saí do apuro como pude.

Conheço o futuro de ambos, mas quero confirmar o que dizem as estrelas...

E por que fazes isso?

Não entendo...

Querer saber o futuro de Yehohanan é perigoso...

Somente quero vê-lo.

Agora sou eu quem não compreende. Por que queres vê-lo?

Estou escrevendo um livro e desejo contar a verdade. É Yehohanan que se diz?

Permaneceu pensativo.

A saída do "livro", ainda que seja verdade, foi um improviso. E creio que acertei, pelo visto.

Ah, além de kásday... és escritor. Tu também escreverás sobre mim?

Assim espero...

Pois te darei motivos para que não te esqueças de mim...

Não gostei do tom da voz dele.

O que ele pretendia?

Não demoraria muito a descobrir.

Deixou o gato no chão e comentou:

Se tu és um astrólogo como dizes, e sabes o futuro dos demais, é lógico que conheças o teu, e melhor do que ninguém...

Olhou-me com expectativa.

Talvez...

Sorriu com a metade esquerda do rosto. Nunca vi coisa igual.

Levantou-se, agitou o salvo-conduto e ordenou que o seguíssemos.

E foi até o poço das paredes vermelhas no extremo oposto.

Nakebos, os soldados e quem isto escreve nos apressamos atrás dele.

Deveriam ser 13 horas.

Olhei para trás e comprovei que Osíris foi o único que não obedeceu. Saltou sobre a mesa de cristal e se dedicou a farejar os "manjares".

O poço em questão não era grande coisa... Aparentemente.

Antipas ordenou que o destampassem de novo. Um dos gauleses obedeceu.

O da máscara aproximou-se e me pediu que o acompanhasse.

A princípio não vi nada.

Qual é a tua opinião?

Nakebos se situou do outro lado do parapeito. Estava sério. Eu diria que desgostoso.

O que tu achas? - repetiu o tetrarca.

Não soube a que ele se referia. Encontrava-me diante de um poço seco, de uns três metros de profundidade, e pouco mais de 1,20 metro de diâmetro. As paredes eram de pedra, benfeitas. O fundo havia sido dividido em quatro paredes iguais, separadas por muretas de 40 ou 50 centímetros de altura e um pouco mais de 25 de espessura. Não entendi o porquê daqueles quadrantes.

Aquilo me lembrou um viveiro, mas não consegui ver nenhuma ser­pente ali.

Cada quadrante aparecia coberto de pedras, troncos e plantas.

E, de repente, distingui o rato branco. Corria por um dos quadrantes. Parecia assustado.

Não sei - balbuciei. - Não sei do que se trata...

É a casa das minhas meninas...

Deu-me um branco e me vi incapacitado de raciocinar. Quem diabos eram suas "meninas"? Por que aquele indefeso ratinho corria com deses­pero? O que existiria ali embaixo?

Antipas permaneceu em silêncio, atento ao fundo.

Eu tentei descobrir algo, mas não sabia o quê.

Nas paredes interiores do poço observei algo que me chamou a aten­ção. A cerca de 30 centímetros do parapeito e ao longo de toda a circunfe­rência haviam escavado as pedras, formando uma canaleta de cinco centímetros. Toda ela parecia estar coberta com um pó amarelo. Por baixo, a um metro e meio do referido parapeito no qual nos apoiávamos, distingui um segundo canal, idêntico ao primeiro e igualmente cheio daquela substância amarela. Pensei em enxofre. Obviamente, pareciam ter sido feitas como medidas de segurança, para evitar que "algo" subisse até a superfície.

O tetrarca saiu de sua mudez e foi direto ao que o havia levado até ali:

Se tu és um kásday e conheces o futuro...

Sorriu com a metade do rosto.

... em especial o teu, saberás que decisão tomar...

Não sabia do que ele falava.

Agitou o salvo-conduto entre os dedos e terminou jogando-o para o fundo do poço.

Voltou a sorrir com aquele singular e diabólico trejeito e acrescentou:

Se tiveres coragem suficiente para descer, recolher teu salvo-conduto e chegar vivo até aqui, permitirei que vejas esse louco. Somente vê-lo...

Fez um sinal e dois dos soldados se dirigiram à torre negra.

Maldito bastardo! O que ele estava propondo?

Olhei para Nakebos. O alcaide, pálido, negou com a cabeça, e enten­di. Não deveria descer.

Dali a pouco, os gauleses regressaram e ajustaram à boca do poço uma escada de mão, daquelas mais simples.

E Antipas, feliz, começou a gritar em grego, reclamando a presença de suas "meninas".

Chamou-as de "preciosas", "doces" e "herdeiras".

Sabia que eu me encontrava protegido, e bem protegido, pela "pele de serpente", mas...

Hesitei.

Senti medo.

E no mesmo instante pensei em Yehohanan. Era a única oportunidade de vê-lo. Apenas tinha que descer pela escada, recuperar o pergaminho e subir.

Decidido.

Dei outra olhada no fundo, mas não vi nada. Ali, num simples golpe de vista, somente pude ver o rato branco, correndo por um dos quadrantes.

Saltei sobre o parapeito e iniciei a descida pela escada.

Eu recordo o rosto dos soldados, perplexos.

Na metade do trajeto me arrependi. Detive-me por alguns segundos e aproveitei para inspecionar a segunda canaleta. Toquei o pó amarelo e o levei ao nariz, assim confirmando a minha suspeita: enxofre.

Não havia alternativa. Tinha que seguir até o fim. Se eu retornas­se sem o pergaminho, aquele miserável podia encarcerar-me ou cortar o meu pescoço.

Saltei sobre as muretas do fundo e instintivamente me grudei à pare­de. A luz entrava de forma conveniente.

Percebi meu coração. Bombeava de medo.

Acima, Antipas e Nakebos olhavam atentos. O tetrarca tinha deixado de chamar por suas "meninas".

E durante uns minutos - eternos - explorei os quatro quadrantes, atento ao menor movimento, ou a algum som.

Negativo.

Cheguei a pensar que era alguma brincadeira de mau gosto daquele sanguinário.

Não, não era brincadeira de Antipas...

Finalmente avancei até o quadrante em que se encontrava o salvo-conduto, me inclinei, recolhi-o entre as pedras e galho e foi nesse instante que observei de novo o rato branco, bem perto. Parecia imóvel, tinha os olhos abertos e espantados, e se agitava, cada vez mais lentamente.

Dei um passo para trás.

Então eu a vi.

Senti como os pelos se eriçavam.

Estava protegido, mas mesmo assim eu precisava de uma arma.

Olhei ao meu redor e peguei um dos troncos, poderia servir...

Tinha diante de mim uma aranha de 30 milímetros de cor branca, com duas longas faixas marrons e o ventre negro. Na parte de cima trans­portava dez crias.

Quem isto escreve foi treinado para reconhecer alguns tipos de aranhas (especialmente as muito venenosas), mas meus conhecimentos sobre esses artrópodes eram escassos. Ao retornar ao Ravid soube que aquela aranha era uma Lycosa narbonensis (uma tarântula). A Lycosa ha­via terminado de caçar o rato e o estava "absorvendo", literalmente.[6]

Passei algum tempo observando o resto dos cubículos e, sabendo o que procurava, acabei por distinguir outras aranhas. Os quatro quadrantes estavam infectados. Em um deles vivia uma aranha de cerca de 20 centímetros de tamanho, grande como um prato, peluda, pertencente a uma das famílias mygalomorphae. Se ela se visse assediada, poderia jogar uma nuvem de pelos urticantes, altamente tóxicos.

Eu não me movi.

Se elas não se sentissem ameaçadas, não reagiriam. Antipas não sabia, mas suas "meninas" não viam bem. Apesar de terem oito olhos, as aranhas só respondem ao toque e à vibração do ar.

O problema era o veneno.

Eu não deveria confiar.[7]

De repente, ao levantar o olhar, descobri que haviam retirado a escada.

Antipas continuava sorrindo.

Eu o amaldiçoei em meu interior.

Nakebos optou por retirar-se. Creio que tivesse apreço por mim e não desejava contemplar um espetáculo tão lamentável.

E ali eu permaneci atento, grudado na parede e com o galho na mão, preparado. Se alguma aranha viesse até a minha posição, eu a esmagaria.

Mas quantas havia?

O suplício se prolongou durante uma hora, mais ou menos.

E pude descobrir outros tipos de aranhas, isoladas entre si. No tercei­ro quadrante se moviam uns aracnídeos negros, com manchas vermelhas em seu abdômen. Eram os Latrodectus, de 15 milímetros, possivelmente fêmeas, aparentadas com a célebre "viúva negra"; sem dúvida, as mais pe­rigosas. Seu veneno - neurotóxico - é letal.

No quarto cubículo, entre as pedras, se distinguia outro tipo de tarântula, de uns cinco ou seis centímetros. Eram negras com faixas de cor coral nas patas. Pareceu-me estranho. Ao consultar o banco de dados do "berço", comprovei que a espécie, conhecida como Euathlus smithi, é originária de determinadas regiões do México. O que faziam ali aqueles exemplares de "joelhos vermelhos"? A América ainda não havia sido descoberta...

Também eram altamente perigosas.

E os céus se apiedaram daquele explorador.

A essa nona hora (três da tarde), a escada foi devolvida ao seu lugar, permitindo o meu regresso à superfície.

Ali me esperavam o tetrarca e o mais que nervoso Nakebos.

Antipas, cruel e retorcido (começo a entender por que Jesus não se dignou a levantar a cabeça quando ele o interrogou em Jerusalém), me pegou pelo braço e me conduziu feliz até o canto em que se encontrava a mesa de cristal.

E, após felicitar-me por minha suposta valentia, se interessou por suas "meninas". O que eu tinha achado delas?

Quando nos encontrarmos novamente - calculei, - eu te darei uma resposta. Consultarei as estrelas...

E me arrisquei:

Agora é hora de cumprir com a tua palavra...

Nakebos não saía de seu assombro.

Antipas não respondeu.

Voltamos a nos sentar, bebemos e a conversa derivou para outros rumos. Cheguei a pensar que ele havia esquecido a promessa.

Não sabia bem o que fazer.

E, de repente, a surpresa surgiu.

Então quer dizer que tu agora te dedicas a seguir os passos desse carpinteiro louco...

Olhei para Nakebos. A informação de Antipas só podia ter vindo dele...

Não importava. Eu segui o jogo do tetrarca.

Respondi afirmativamente.

Qual é a tua opinião? - perguntou Antipas. - Ele será capaz de levantar o povo... como Yehohanan tentou?

Não me permitiu replicar. Ele mesmo respondeu à sua pergunta:

Isso também não importa!

Não entendo, tetrarca...

Faça o que faça...

Olhou para Nakebos e depois me incendiou com o olhar:

Faça o que faça, eu o esmagarei...

Mas ele ainda não fez nada. Vive no yam, pacificamente...

Antipas sorriu com a metade esquerda do rosto. Como ele conseguia fazer aquilo?

E contestou, convencido:

Esses iluminados são todos iguais. Esse carpinteiro louco não de­morará em sair pela estrada e chamar Herodíade de rameira...

Não pude conter-me.

Ele não é assim.

Também sei disso...

O que insinuas?

Sei tudo sobre Ele...

Parecia desfrutar da conversa.

Sei de sua família, de suas diferenças... Sei que a mãe e os irmãos fugiram de Nazaré...

Não é bem assim...

Não prestou atenção às minhas palavras.

E cometeu um erro.

Alguém próximo desse carpinteiro louco trabalha para mim.

Em um primeiro momento pensei em mim mesmo. Era o que es­cava compactuado com Nakebos. Depois tive dúvidas. Falava de Judas Iscariotes? Era um confidente de Antipas? Ou talvez, refleti, seria outro discípulo? O tetrarca, igual a seu pai, Herodes, o Grande, dispunha de um exército de espiões e informantes. Não era de estranhar que estivesse tecendo sua teia de aranha ao redor do Galileu.

Ele deu meia-volta e mudou de assunto:

Não estou enganado, Jasão... O carpinteiro louco não é como esse ruminado da borboleta na cara: é muito pior...

E me contemplou, desafiante.

Dizem que converteu água em vinho...

Aonde queres chegar?

Não respondeu.

O pôr do sol se derramou, e Antipas e seu gato se retiraram.

Nakebos os acompanhou até o portão do palácio. Fiquei de pé perto dos soldados, e especialmente intrigado com a confissão do tetrarca. Nada disso foi dito pelos evangelistas. Foram dois os traidores?

Antipas sussurrou algo ao ouvido do alcaide e se despediu.

Nakebos conversou com um dos gauleses e voltou para a mesa de cristal.

Vamos - indicou o tetrarca autorizou. Tu podes ver o Batista...

Fiquei perplexo.

Caminhamos pela beira da piscina até a torre negra, e parte da escol­ta nos acompanhou.

Um dos gauleses abriu uma porta negra e brilhante e nos franqueou a passagem.

Nós nos encontrávamos na parte baixa da torre. A escuridão era qua­se completa.

Cheirava mal.

Alguém conseguiu uma tocha e pude ter uma idéia de onde me encontrava.

Uma dúzia de soldados armados apareceu dividida naquela área.

Olhei em volta. O prisioneiro não estava ali.

Tudo foi rápido e bem calculado.

O que comandava a patrulha ordenou algo em sua língua, e um dos gauleses se apressou em levantar um alçapão.

Eu vi chegar novas tochas.

Nakebos indicou que não me separasse dele.

E iniciamos a descida pelos degraus, presos a uma das paredes de um reservatório enorme.

Três soldados, munidos de tochas, nos precediam. Às nossas costas caminhavam mais cinco gauleses, armados igualmente com tochas.

A luz, ora verde, ora amarelada, iluminou uma caverna cúbica traba­lhosamente escavada na rocha.

Ouvi o murmúrio da água.

Não consegui ter uma idéia exata das dimensões do reservatório, mas não creio que tivesse uma altura inferior a 30 metros. Era um cubo, gigantesco, com as paredes rebocadas com gesso. Tratava-se, sem dúvida, de um dos reservatórios de água da fortaleza.

Os degraus não terminavam nunca.

A diferentes alturas, distingui três grandes brechas. Supus que fossem as bocas de outros tantos túneis, e talvez se conectassem com o palácio ou com as cavernas que havia visitado na ladeira noroeste do cone branco.

Necessitamos de algo como três ou quatro minutos para alcançar o final da escadaria de pedra. Ali começava a água. Uma piscina quadrada de uns 30 metros.

Paramos.

Os soldados que caminhavam à frente não hesitaram. Era óbvio que faziam aquele caminho com frequência.

Entraram na água e, mantendo as tochas no alto, se dirigiram à direi­ta. O resto da patrulha permaneceu ao nosso lado.

A água cobria os joelhos.

A princípio, não distingui grande coisa. A escuridão era densa. Depois, conforme caminhavam, observei algo que me desconcertou: um prato de madeira flutuava na piscina. Oh, Deus!

Na tigela, navegavam duas enormes ratazanas. Comiam algo. De repente, ao descobrir a presença dos soldados, saltaram na água e saíram a nado em direção à obscuridade. Não demorei em vê-lo.

A cinco metros do final dos degraus, na parede da direita, se achava o gigante das pupilas vermelhas.

Estava acorrentado ao calcanhar esquerdo. Eu o vi encostado na rocha, observando-nos. Os soldados não falaram. Limitaram-se a puxá-lo e a empurrá-lo. E assim, aos pontapés, o conduziram até o lugar em que nos encontrávamos.

O Batista estava totalmente nu, muito magro e com grandes olheiras. O seu cabelo havia crescido. Agora era um emaranhado sujo, até os ombros. Fazia cinco meses que não o via. A corrente se esticou e a argola da parede protestou. As tochas o iluminavam perfeitamente. Nós nos olhamos em silêncio.

Senti piedade.

Já o viste? - perguntou Nakebos.

Assenti em silêncio.

Contemplaste-o nos olhos como desejavas?

Voltei a assentir, novamente com a cabeça.

Pois bem, vamos sair daqui...

Assenti.

E Yehohanan foi obrigado a regressar para junto da argola.

Foi então que vi as costas e aqueles sinais. Havia sido açoitado, e re­centemente. As feridas sangravam.

Não sei como explicar. Experimentei uma escura e profunda tristeza, tão hostil como aquele úmido reservatório.

E, retornando à superfície, me refugiei no que pude.

Contei os degraus: 252...

Eu soube. Eu sabia. Não sei como eu sabia. Yehohanan não sairia vivo daquele buraco.

O que eu não imaginava nesse dramático momento, é que este explo­rador seria testemunha de sua morte; uma morte mais violenta e dolorosa do que foi contada...

Mas devo ir passo a passo.

Era noite quando cruzamos a ponte levadiça.

Nakebos tentou convencer-me a pernoitar em Maqueronte. Declinei do convite. Só desejava fugir daquele lugar.

Tarpelay não perguntou. Olhou em meus olhos e compreendeu.

E nos distanciamos daquele cone branco.

Na aldeia de Libb, decidimos descansar.

"Baste-lhe a cada dia o seu afã..."

A lembrança das palavras do Mestre me consolou, relativamente.

As estrelas, uma a uma, conseguiram liberar-me daquele sentimento de tristeza. Não compartilhava das idéias de Yehohanan, mas tampouco lhe desejei urn destino tão cruel.

Antipas era pior do que eu imaginava.

E nessa noite modifiquei os planos. Adiaria meu regresso ao yam.

No dia seguinte, segunda-feira, 18 de novembro (ano 26), abraçamos Raisos, o conseguidor e patrão da torre das "Verdes", e também o pequeno grande homem.

Contei a Abner o que havia visto e não ocultei a minha preocupação por Yehohanan.

Ele estava informado de tudo. A corrupta população de Ataroth, a aldeia de serviço de Maqueronte, o mantinha informado. Sabia o que co­mia, quando o torturavam, quantos soldados o vigiavam e o quão extra­ordinariamente difícil era entrar e tentar libertar o seu ídolo. Mas Abner não se rendia com facilidade. Havia traçado um plano. Ele me explicou às escondidas. Não confiava em ninguém.

Fiquei assombrado.

Podia ter êxito.

O assalto-resgate devia acontecer por um dos túneis que, de fato, se comunicava com o grande reservatório com os buracos da ladeira nordes­te. Era questão de entrar, romper a corrente e fugir pelo mesmo caminho.

Permanecemos na torre por uma semana.

Limitei-me a "pescar" betume no barco dos pecados, a passear com Bêji, o mastim branco, e a conversar com Raisos e com Abner. Também conversei comigo mesmo, e muito.

O conseguidor recebeu, encantado, as frases, ditados e provérbios que eu lhe ofereci. "Papai Noel" os selecionara dentre os existentes nos países africanos. A coleção continha provérbios das etnias mandinka, aku, fula e wallof.

E no domingo, dia 24, partimos em direção ao yam.

Não fui capaz de lhes dizer quando regressaria, mas fiz Abner me prometer que, caso o suposto assalto-resgate a Maqueronte fosse mesmo acontecer, ele deveria avisar-me dias antes. Desejava participar dessa ope­ração, ainda que fosse somente como testemunha.

Ele prometeu, mas o Destino tinha outros planos...

Já na reda, quando nos despedíamos, Raisos exclamou:

Não esqueças que o melhor remédio para a enfermidade do ho­mem é o próprio homem...

E acrescentei, para comigo mesmo:

"Sim, o próprio Homem, com maiúscula..."

Tar incitou os cavalos e iniciamos o caminho. Dali a pouco, para nossa surpresa, vimos Raisos aparecer na estrada. E voltou a gritar sorridente:

E não te esqueças de que não é possível coçar a planta dos pés en­quanto corres...

 

Tar me deixou no casarão dos Zebedeu na manhã de terça-feira, dia 26.

Nada havia mudado, a princípio.

Jesus e o último par de discípulos haviam retornado a Saidan no dia 19.

O Mestre seguiu ensinando, mostrando e pescando.

Nenhum dos 12 conhecia seus planos. Ardiam de desejo de sair pelo mundo e proclamar a boa-nova, mas o Galileu pedia calma.

"Tudo em seu momento", Ele dizia. "Convém esperar a vontade de Abba”.

Falei com o Filho do Homem e descrevi o que havia visto na fortaleza de Maqueronte.

De acordo com seu hábito, limitou-se a ouvir e a formular perguntas. Em nenhum momento se pronunciou sobre Yehohanan, mas eu sabia que Ele sabia...

Em geral, aquele mês de tébet (dezembro) foi tranquilo.

Visitei Ruth em Nazaré. Sua ruína física era interminável. Meu amor por ela continuou crescendo, aceitando que o amor pode superar a si mesmo.

Tive três novas e importantes conversas com o Mestre (as quais con­tarei no seu devido momento) e tentei convencer Zebedeu pai para que me permitisse copiar os textos das viagens "secretas" de Jesus de Nazaré. E, como eu já imaginava, ele se negou totalmente. Havia dado a sua pala­vra. Eu me resignei, até certo ponto...

Quanto a Eliseu, quase não o vi. Melhor dizendo, tive uma rápida conversa com ele na tarde de terça-feira, dia 24, nesse mês de dezembro.

Perguntou de novo pelo cilindro das amostras. Respondi como de costume: "Nem tenho procurado nem penso em procurá-lo..."

E o engenheiro, frio como o gelo, me deu um ultimato:

Você tem um mês, exatamente, para devolvê-lo à nave.

E se eu não o fizer?

Voltarei sem você...

Não podia acreditar.

E dezembro, como eu digo, foi se apagando lentamente.

Foi um mês em que os barbos debruçavam cabeça no yam e lançavam gritos, como crianças atemorizadas com a escuridão. Pareciam pressentir algo... Eram enormes, com oito bigodes. Eram chamados de lebus.[8]

Era raro que os pescassem. "Trazia má sorte", diziam.

E chegaram também os grandes bandos de mergulhões, que atrapa­lhavam a pesca. Uma das espécies - a que chamavam de "convencida", pela curiosa franja-topete na cabeça - merecia um ódio especial. Era a mais pescadora de todas. Centenas de exemplares mergulhavam diariamente no lago e arrebatavam toneladas de peixes. Os supersticiosos galileus contrata­vam todo tipo de bruxos, que embarcavam com os pescadores e maldiziam as "convencidas" à distância. O resultado era um absoluto fracasso...

Era igualmente a época dos Phalacrocorax, aves aquáticas branquís­simas que tinham o costume de pousar na margem com as asas estendi­das, como se estivessem saudando umas às outras." Chamavam-nas de drishât shalôm, que poderia ser traduzido como "saudadoras da paz".

Ao navegar em frente a elas, os pescadores levantavam os braços e as saudavam. As aves respondiam com rápidos movimentos das asas. O Mestre também levantava a mão esquerda e as cumprimentava.

Assim terminou aquele inesquecível ano 26...

 

                  De 1º de janeiro a 27 de outubro (ano 27)

Foi surpreendente.

Naquele sábado, 11 de janeiro (ano 27), a lua saiu às 17 horas, 6 mi­nutos e 52 segundos, de um suposto Tempo Universal.

Era uma lua cheia, maravilhosa, e estava enorme. Situou-se na pri­meira linha, como se soubesse o que iria acontecer.

Quem isto escreve havia se retirado para o "pombal". A noite pousou sobre o lago e todos nós dissemos adeus aos afãs e devaneios do dia.

Pois então estava bem ali, contemplando a lua, quando aquilo apare­ceu sobre a posição vertical do casarão. Se não fosse pela estranha forma e pela forte luminosidade, o mais provável seria que eu estivesse confun­dindo aquilo com uma das estrelas.

Permaneci absorto e desconcertado, uma vez mais. Já as havia con­templado em diferentes oportunidades, mas sempre era como uma pri­meira vez.

Pulsava com uma misteriosa cadência.

Era uma luz branca, romboidal (um paralelogramo cuja forma se as­semelha à do losango), com um tamanho considerável (praticamente a metade da lua cheia).

Não conseguia me acostumar...

O que era aquilo?

As "luzes" apareciam sempre um pouco antes de acontecer algo no­tável, e sempre relacionado com o Filho do Homem...

O "losango" (?) ficou estacionário durante três ou quatro minutos; um tempo mais do que suficiente para descartar qualquer explicação racional.

Foi então que ouvi aquela "voz" na minha cabeça.

Ou foi imaginação minha?

A "voz" - ou o quer que fosse - repetiu várias vezes:

- Claco!

Senti um arrepio.

Fazia muito tempo que não me chamavam assim. Era o apelido cari­nhoso que meu avô, caçador de patos, costumava usar. Eu, até então para a família, não valia nada. Não servia para nada. Isso era o que diziam. E isso significava "claco": menos que um centavo.

Quem isto escreve devia ter nove ou dez anos...

Depois, a "luz" se extinguiu. Melhor dizendo, se apagou, igual a uma lâmpada.[9]

Não voltei a vê-la.

Permaneci um bom tempo prestando atenção no céu. Foi inútil. A "luz" não regressou.

No dia seguinte, 12 de janeiro, domingo, perto da quinta hora (11 da manhã), recém-chegado do yam, o Mestre reuniu os 12 e fez um gesto para me eu me unisse a eles. Zal ficou no casarão.

Ninguém sabia para onde nós estávamos nos encaminhando.

Desembarcamos em Nahum e, em silêncio, deixamos para trás o povoa­do, indo em direção ao oeste. Pouco depois, subimos por uma colina, bem conhecida por este explorador. Tratava-se do promontório existente a no­roeste de Nahum, local em que aterrissou o "berço" após o segundo "salto". Ali permanecemos um tempo e tivemos oportunidade de dar continuidade a uma análise transcendental do "corpo glorioso" do Galileu. Naquele lugar mantivemos igualmente uma importante conversa com o Ressuscitado.[10]

O céu se nublou, de repente.

E o vento começou a soprar. Vinha do oeste. Chegou forte e sibilante.

Os discípulos faziam comentários, porém, como eu digo, ninguém conhecia as intenções do Mestre.

Por que caminhávamos por aquela colina?

O tempo não se mostrava firme. Talvez viesse a chover.

Felipe era o que mais reclamava. Não levávamos comida nem água, tam­pouco os casacos com os quais poderíamos nos cobrir em caso de chuva.

Mas o Galileu sabia...

Seguiu subindo na frente.

Deixamos para trás o circo rochoso e a cripta funerária, de tão amar­gas lembranças, e continuamos para cima.

Uma grande área de flores violeta se mostrou no encontro.

E às 13 horas alcançamos o cume.

Bartolomeu respirava com dificuldade.

Jesus deixou que seus homens se recuperassem.

Aos nossos pés, o lago se tornara escuro e ondulado. Algumas velas procuravam a costa com certa impulsividade. Aquilo poderia terminar em tempestade...

E o Mestre solicitou que os discípulos se sentassem na grama. For­maram um círculo em torno Dele. Eu permaneci em pé, por trás do ci­tado círculo. A curta distância, curiosa, vi espiar entre as flores a família de nódulos basálticos. Fazia muito tempo que não pisava naquele lugar. A 400 metros, na direção sul, se encontravam as lajes calcárias sobre as quais a nave pousou.

O Mestre esperou alguns segundos.

O vento agitava a túnica branca, a temperatura tinha baixado. Tentamos nos abrigar com os mantos. O Galileu levava o de sempre, o manto de cor vinho.

Olhou para os discípulos, um por um, e o fez com especial ternura. Eu também recebi o presente daquele olhar, cor castanho-mel.

Observei o céu. As nuvens densas não pressagiavam nada de bom. Não demoraria muito e começaria a chover.

Felipe, sentado ao lado de André, sussurrou algo ao ouvido do "chefe". Este olhou para o alto e ficou pensativo. Felipe parecia preocupado com a ameaça da chuva.

Finalmente, o Filho do Homem, afastando os cabelos do rosto, anunciou:

A hora chegou... Desejo proclamar-vos meus embaixadores...

Os íntimos se entreolharam. Pedro sorriu, mas acredito que não en­tendeu o alcance das palavras do Galileu.

E Jesus continuou:

Irmãos meus, é chegada a hora do reino... Eu vos trouxe aqui para que sintais, bem de perto, a presença de Abba.

Olhou-me de forma fugaz.

A partir de hoje sereis especiais... Quero que proclameis minha mensagem com fidelidade...

Deteve-se por alguns segundos e insistiu:

Quero que proclameis a mensagem do Pai com fidelidade. Em es­pecial quando eu não esteja. Esquecei os assuntos terrenos, esquecei as ri­validades. Esquecei quem é mais ou quem é menos. Todos são superiores a todos... Não esqueçais... Sois filhos de um Deus.

Deteve-se de novo. O vento também se aquietou, em expectativa.

Vós sois imortais, pelo expresso desejo de Abba! Sois imortais, fa­çais o que fizerdes e penseis o que pensardes...!

Os discípulos se olhavam, incrédulos.

Esquecei as proibições. Esquecei os dogmas. Esquecei a política.

Cruzamos os olhares. Sim, isso eu compreendi...

Esquecei-me, inclusive! Esquecei a minha pessoa, se assim o dese­jardes, mas não deixeis que o esquecimento afogue a mensagem do Pai!

Pedro e João Zebedeu protestaram secretamente.

Nunca te esqueceremos, Mestre...

Efetivamente, não entendiam o Galileu.

E qual é essa mensagem?

Jesus a havia repetido dezenas de vezes. Contudo, voltou a falar sobre ela:

O Pai não é o que dizem... Sois seus filhos! Sois imortais por natu­reza! Sois irmãos! Há uma esperança! E foi para isso que eu vim: despertar os que dormem, falar da imortalidade aos que sofrem na escuridão da ig­norância, liberar os oprimidos de espírito, carregar os corações de alegria, respeitar todas as opiniões, não vender...

O rosto de Jesus se iluminou.

Este reino invisível e alado de que falo é o reino do qual a huma­nidade sente falta, desde sempre e para sempre... Em verdade eu vos digo que esse reino chegará. Vós agora sois os primeiros arautos. Não vos afas­teis do que eu prego...

Pedro explodiu:

Nunca, rabi! Jamais nos afastaremos!

Sorri comigo mesmo. O Mestre, suponho, também o fez. Pedro era assim.

Buscai o novo reino em vossas mentes e o resto chegará por acréscimo.

Entretanto, o Mestre falou de algo que deixou os 12 perplexos, e para o que não encontrei explicação:

Em verdade eu vos digo que esse reino está tão perto que um de vós não morrerá até que o tenha visto...

Por fim, fez um novo anúncio de sua morte, contudo nenhum deles captou o sentido das palavras do Galileu:

E quando eu tiver ido, espalhai a minha mensagem...

E o vento regressou.

Jesus ficou em silêncio.

Como diria... Foi uma espécie de reconhecimento "oficial" dos discí­pulos. A partir daquele domingo, 12 de janeiro, eles podiam ser conside­rados os representantes do Filho do Homem na Terra. Porém, lamentavel­mente, não levaram em consideração as palavras Dele. Quando o Mestre morreu, Pedro e uma parte do grupo renegaram a mensagem... E acaba­ram fundando uma Igreja.

Entretanto, essa, de fato, é outra história.

Os discípulos continuavam sentados e fizeram alguns tímidos co­mentários entre si.

Não sabiam do que o rabi estava falando, nem remotamente.

E uma súbita ideia me arrebatou naquele lugar e naquele instante: "Quem dos 12 era o segundo traidor?"

Inspecionei os íntimos, mas não soube.

E esqueci o assunto. Talvez se tratasse de uma bravata de Antipas...

Estava a ponto de assistir a uma cena de muita emoção, algo especial e... como poderia descrevê-la? Incrível? Mas, antes, aconteceu algo que refletiu bem a distância entre o que era dito pelo Galileu e o que era entendido pelos discípulos.

Felipe, de repente, levantou a mão esquerda e perguntou:

Mestre, é possível que chova... Devo descer até Nahum e buscar os casacos?

E acrescentou com timidez:

Eu falo pelo dinheiro...

Jesus sorriu, satisfeito pelo interesse do intendente. E respondeu:

No momento não é necessário.

Mas, Senhor, pode ser que chova...

Eu sei...

E não estás preocupado?

Não, Felipe... O Pai sabe...

Felipe ficou de cara feia.

E comentou com Pedro:

Eu estou dizendo que vai chover...

E lá longe, como se houvessem escutado o voluntarioso Felipe, relampejaram alguns raios.

O Mestre prosseguiu.

Solicitou aos discípulos que se colocassem de joelhos e assim o fizeram.

Logo em seguida, na metade de um sonoro silêncio, elevou o rosto em direção às nuvens, cerrou os olhos e murmurou algo, ao mesmo tempo em que levantava os braços e mostrava as palmas das mãos. Não consegui ouvir o que dizia.

Por um momento pensei em ajoelhar-me. Não o fiz. Eu era só um observador.

Instantes depois, o Filho do Homem caminhou até Judas Iscariotes, colocou as mãos sobre a cabeça dele e, sem tocar os cabelos, deixou que se passassem alguns segundos.

O silêncio seguiu trovejando.

Alguns discípulos, intrigados, levantaram a vista discretamente, con­templaram a cena e voltaram a baixar os olhos.

E o Mestre começou a cantar. Era um cântico suave, melodioso e cheio de mistério. Parte do que disse está por ser decifrado.

Quando regressares, querido Judas, tua dignidade será restabelecida.

O Iscariotes se remexeu, inquieto. Não compreendeu, ninguém en­tendeu. Eu, então, muito menos.

O silêncio seguiu em pé no alto da colina.

Jesus se dirigiu a Tomé. Posicionou as mãos sobre a cabeça do dis­cípulo e voltou a entoar um cântico, ao mesmo tempo em que dirigia os olhos para o céu:

Quando regressares, querido Tomé, tu serás o profeta...

Depois passou ao primeiro dos gêmeos e voltou a cantar:

Quando regressares, querido Tiago, tu serás...

Quarto discípulo: o segundo gêmeo.

Quando regressares, querido Judas, tu atarás os acordos...

Em seguida, chegou diante de Simão, o Zelote, e repetiu a colocação das mãos, cantando:

Quando regressares, querido Simão, nada permanecerá oculto...

Mateus foi o seguinte:

Quando regressares, querido Mateus, o mundo será do Pai...

Continuava trovejando à distância. Inspecionei a base dos cúmulos-nimbos. Aproximavam-se perigosamente.

Quando regressares, querido Bartolomeu, o valioso flutuará a olho nu.

E chegou a vez do intendente:

Quando regressares, querido Felipe, terás vencido para sempre...

Felipe não deixou passar a ocasião, alçou o olhar e perguntou:

Continuas pensando o mesmo?

O Mestre titubeou, e Felipe esclareceu:

Eu te digo que vai chover...

Jesus sorriu, acariciou a cabeça do incombustível intendente e se di­rigiu ao seguinte.

Tiago Zebedeu deixou fazer o que seu amigo deveria fazer.

Jesus colocou as longas mãos sobre a cabeleira do "filho do trovão", ergueu o olhar em direção às nuvens e voltou aos cânticos.

Um forte trovejar se abateu sobre a colina. Não consegui ouvir o Galileu.

E começou a chover, mansamente.

Jesus permaneceu com o rosto voltado para os céus. E a água foi iluminando-o.

Felipe mexeu a cabeça, negativamente.

O Mestre não parecia ter pressa. Deslocou-se em direção a João Ze­bedeu e repetiu a imposição das mãos. Desta vez eu ouvi:

Quando regressares, querido João, o mundo será ancorado na luz...

Notei como a água me ensopava.

E o rabi se colocou na frente de Simão Pedro.

Quando regressares, querido Pedro, tu me precederás...

Pedro olhou ao redor, procurando alguém que lhe explicasse. Nin­guém explicou. Ninguém soube do que falava o Mestre.

E chegou à frente de André. Colocou as mãos sobre a cabeça do pri­meiro dos selecionados e cantou, feliz:

Quando regressares, querido André, não haverá palavras, nem explicações...

Outro trovão irrompeu, bem próximo.

E o Mestre, com as roupas e o cabelo pingando, saiu do círculo e se dirigiu a quem isto escreve.

Foi instantâneo. Eu soube o que Ele iria fazer.

Ajoelhei-me e inclinei a cabeça.

E o Galileu colocou as suas mãos perto dos meus cabelos brancos.

Percebi a energia que emanava daquele Homem.

E o ouvi cantar, com ímpeto:

Quando regressares, querido malak, a noite se retirará e serei ve­nerado como o Divino...

Não sei explicar o que aconteceu. Contarei, apenas, o que vi e o que senti.

Nesse instante, ao finalizar o misterioso cântico, tudo se tornou azul: a chuva, a colina, as nuvens, as roupas, os rostos...

Talvez tenha durado cinco segundos. Tudo era azul...

Deixei de ouvir os trovões, deixei de ouvir o vento e o som da chuva... E experimentei uma indescritível sensação de paz e leveza. Tudo parecia flutuar ao meu redor, começando por mim mesmo e pelos meus próprios pensamentos.

Depois eu soube. Todos viram a luz azul e todos tiveram a mesma sensação de paz. E recordei as palavras do Filho do Homem: "... Eu vos trouxe aqui para que sintais, bem de perto, a presença de Abba".

Mensagem recebida.

Instantes depois, como eu disse, o azul desapareceu.

Deixou de chover.

Os discípulos se entreolharam, desconcertados.

As roupas estavam secas.

Como era possível?

E todos se abraçaram...

Ninguém sabia o que havia acontecido. No entanto, se sentiam bem, começando por este atônito explorador.

Talvez fosse a nona hora (três da tarde), mas o que importava o tempo.

Era a segunda vez que o Mestre colocava suas mãos sobre a cabeça de quem isto escreve. A primeira ocorreu no monte Hermon, em agosto do ano 25.[11] Naquela oportunidade, como se poderá recordar, Eliseu me acompanhava...

Recordo as palavras de Jesus: "Pai... Eles são os primeiros!... Prote­ge!... Guia-os!... Dá a eles a tua bênção!"

O Galileu teria se equivocado? Eliseu, obviamente, não era lá dessas maiores maravilhas não...

Não, o Mestre nunca se equivocava... Ele sabia.

Contudo, não me adiantarei aos acontecimentos...

O Filho do Homem deixou que os discípulos se tranquilizassem.

As nuvens se retiraram - espantadas, eu diria - e a luz se deixou cair. atentíssima, sobre a colina. Todas as criaturas - flores, aves, rochas, inse­tos, ervas... - esticaram as cabeças, surpreendidas.

Não há dúvida. Tudo esteve minuciosamente desenhado.

Os íntimos sentaram-se de novo.

Felipe era um dos mais confusos.

E o Mestre assim falou:

- Agora, meus amigos, já não sois mais como os demais... Agora vós sois os embaixadores de um reino invisível e alado... Deveis vos compor­tar como tais... Sois como esses seres maravilhosos que conhecem a glória do Pai e, sem dúvida, renunciam a ela e comparecem ao auxílio das cria­turas do tempo e do espaço...

Fiquei atônito.

Jesus falava dos seres descendentes, um dos temas das conversas que imda não havia revelado...

Procurou-me com o olhar e deu uma piscadela de cumplicidade.

Seres descendentes. Seres que têm tudo, que vivem na perfeição e que não obstante aceitam "descer" até a matéria... Para socorrer, aliviar e guiar muitos... Operação "Misericórdia".

Algum dia eu tenho que relatar, com detalhes, o que foi conversado com o Filho do Homem sobre esse tema em particular...

Porém, vamos continuar com o que importa.

Naturalmente, os 12 continuavam com os olhares perdidos. Não compreendiam.

E o Senhor continuou:

- Algumas das coisas que estou a ponto de revelar podem vos pare­cer duras... É a lei do novo reino: nada se consegue dormindo...

"Em breve eu vos enviarei para que retireis a venda dos olhos do mundo... Atende-vos à minha mensagem: fora o medo! Aquele que faz a vontade de Abba não voltará a caminhar em trevas!

"Quando encontrardes meus filhos aflitos, falai com eles com ânimo e dizei:

"Bem-aventurados os que sabem ler o arco-íris, porque eles estão no caminho.

"Bem-aventurados os que são perseguidos por causa de sua retidão, norque deles é o reino dos céus.

"Bem-aventurados os que vivem na solidão da alma, porque eles te­rão percorrido a metade do caminho.

"Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados fi­lhos de Deus.

"Bem-aventurados os que não temem, porque eles encontrarão Deus em sua mente.

"Bem-aventurados sereis quando fordes amaldiçoados e perseguidos e quando disserem todo tipo de coisas más contra vós, falsamente, porque grande será a recompensa no reino.

"Bem-aventurados os que sabem e calam, porque eles serão exalta­dos... algum dia.

"Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles obterão misericórdia.

"Bem-aventurados os que escolhem nascer na imperfeição, porque eles serão duplamente recompensados.

"Bem-aventurados os que sofrem o luto, porque eles serão consolados.

"Bem-aventurados os buscadores da verdade, ainda que não a en­contrem, porque eles serão recompensados com a busca.

"Bem-aventurados os que choram, porque eles receberão o Espírito.

"Bem-aventurados os que não buscam a felicidade, porque eles serão encontrados pela felicidade.

"Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus muito antes.

"Bem-aventurados os que não mentem, porque eles não se importam com os que enganam.

"Bem-aventurados os mansos, porque eles receberão a terra como herança.

"Bem-aventurados os que se entregam à vontade de Abba, porque terão encontrado a verdade.

"Bem-aventurados os que têm fome e sede de retidão, porque eles serão saciados.

"Bem-aventurados os que amam a si mesmos, porque começarão a amar os demais.

"Bem-aventurados os humildes e os pobres de espírito, porque deles são os tesouros do reino.

"Bem-aventurados os que desaprendem, porque eles renascem.

Ouvi-lo era uma delícia.

Muitas daquelas "bem-aventuranças" não figuram nos textos evan­gélicos. Mas... Por que eu deveria estranhar?

Foi nesse momento que caí em mim e me dei conta. Estava assistindo ao célebre e não menos manipulado "sermão da montanha". Na realidade. da colina...

E o Mestre continuou falando.

Em síntese, isto foi o que consegui ouvir.

"Vós sois o sal da terra... Não percais nunca a curiosidade nem a confiança..."

"Vós sois a luz do mundo... Uma cidade assentada em um monte não se pode esconder... Brilhai e iluminai as pessoas... Que elas digam: eles são especiais.

"Eu vos envio ao mundo para que me representem, mas, sobretudo para que griteis minha mensagem: o homem é filho de um Deus."

"Confiai no Pai. Não resistais às injustiças pela força. Não vos vendais ao poder... Se o próximo vos golpear no rosto do lado direito, dai-lhe o lado esquerdo... Sofrei antes de lutar entre vós..."

"Não utilizeis o mal contra o mal... Não respondais à injustiça com vingança."

Os discípulos ouviam com espanto. O rosto de João Zebedeu, de Simão, o Zelote, de Judas Iscariotes e de Pedro era uma dissimulação. Não era isso o que eles pensavam ou o que eles pretendiam. Roma me­recia o pior dos castigos...

"E eu vos digo: Amai vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos maldizem, orai pelos que vos ofendem."

Iscariotes começou a se levantar para deixar o grupo, mas André, com um gesto, forçou-o a sentar-se.

O Mestre percebeu, mas continuou:

"E fazei tudo aquilo que crede seria feito por vós."

Ele fez uma pausa de alguns segundos. Contemplou os 12 e, erguen­do a voz, repetiu:

"Vós sois filhos de um Deus... Ele vos deu a luz. Que ela seja dada a outros, da mesma forma como vós a recebestes de graça."

"Não a vendais. Limitai-vos a mostrá-la... Que cada qual decida."

Ele me procurou com os olhos e proclamou:

"É mais importante sugerir do que convencer... Deixai que o Pai faça o seu trabalho."

"Não se deve cometer o erro de tirar o cisco do olho do irmão quan­do há tanta areia no vosso. Retirai primeiro a areia de vossos olhos para depois limpar o cisco do outro..."

Mateus Levi foi o único a assentir com a cabeça. O coletor de im­postos estava começando a levar vantagem sobre o resto. Era mais aten­to e responsivo.

"É possível viver sem medo. Junto ao Pai nada vai faltar. Não temais. Ele está dentro de vossa mente..."

Eles tampouco captaram a grande verdade. Embora Jesus estivesse falando da "centelha divina" dentro de nós, eles continuavam ancorados no Yaveh colérico e constantemente irritado. Como não viver atemoriza­do em uma sociedade tão rígida e legalista como a dos judeus?

"Vós pudestes ouvir o que eu disse: 'Se o cego guiar outro cego, am­bos cairão no abismo'. Se quiserdes guiar outros ao reino invisível e alado de meu Pai, deveis caminhar na luz... Escutai minhas palavras e, acima de tudo, alimentai essas palavras quando eu tiver partido."

"Não se deve perder tempo com aqueles que não desejam ouvir... Não lanceis o que é sagrado aos cães, nem atireis suas pérolas aos porcos, pois eles destruirão tudo e depois rasgarão em pedaços."

Eu me senti mencionado. Não sei exatamente o motivo.

"Ficai atentos. Muitos falsos profetas virão até vós vestidos de cordei­ros. Mas são lobos..."

"Pelos frutos os conhecereis... O importante não é o que o homem diz, mas o que ele faz."

Ele respirou fundo e concluiu:

"Além do mais, o importante não é nem isso. O que importa é o que vós sentis..."

Senti admiração e gratidão.

Ali terminou o ensinamento. A um sinal do Mestre, os 12 se levanta­ram e desceram a "colina da bem-aventurança".

O ocaso aparecia sobre o lago quando avistamos o casarão, em Saidan.

Durante o caminho eles discutiram. Jesus caminhava sozinho na frente, com suas típicas e rápidas passadas.

Não havia como eles chegarem a um acordo. Dava a impressão de que tinham assistido a sermões diferentes.

E apenas uma hora tinha se passado!

Nessa noite, depois do jantar, o Mestre fez um anúncio: dentro de uma semana eles viajariam até a Cidade Santa.

É chegada a hora - anunciou. - Vamos despertar o mundo...

Jesus sustentava o cálice de metal entre os dedos.

Ele olhou para seus homens, mas sabia que eles estavam confusos.

André, finalmente, resumiu o sentimento geral:

Mestre, nós não conseguimos entender tuas palavras sobre o reino..

Jesus parecia estar à espera do comentário. E ele respondeu, seguro:

Vós achais difícil entender a minha mensagem porque vos es­forçais para construir meus ensinamentos sobre aquilo que já está es­tabelecido. Despertai! É preciso que desaprendeis para renascer... É o que eu digo.

Os discípulos prestaram toda a atenção, mas não foi suficiente.

O Mestre insistiu:

A boa-nova não pode ser acomodada ao que já existe. Desaprendei:

Eu acho que ele estava pedindo o impossível...

E completou:

Vou deixar mais fácil. Não estou aqui para destruir, mas sim para iluminar e refrescar a memória do ser humano. Vós esquecestes quem sois, de onde viestes e para onde ireis, inexoravelmente...

E ressaltou:

Inexoravelmente!

Para onde vamos, Senhor?

A pergunta do "urso" comoveu o Galileu.

Para o Pai, para a perfeição... E repetiu:

Inexoravelmente... Vou deixar tudo ainda mais fácil...

Ele continuou polindo a taça e lançou uma declaração simples, mas difícil de implementar:

Abandonai-vos à vontade de Abba e se fará a luz em vossas mentes.

Assim, sem mais?

Sim, Bartolomeu, sem mais.

Mestre, se tiveres algum novo mandamento, gostaríamos de ouvir... Era Simão Pedro. E o Galileu disse:

Não julgueis jamais. Eu já vos disse isso.

A conversa ficou animada a ponto de o sempre calado Tiago Zebedeu propor algo:

Mestre, o que devemos ensinar ao povo sobre o divórcio? O Filho do Homem se manifestou claramente:

Eu não vim para legislar nem para sucumbir à tentação de mudar os assuntos mundanos. Se assim fosse, a evolução natural da sociedade na corrigi-lo. O que é bom hoje não tem por que ser bom amanhã...

Ele me olhou intensamente... Tiago continuou preso às dúvidas e Jesus percebeu. Mas foi Tomé, envolvido em trâmites de divórcio, quem veio a inda­gar o Mestre:

O que tem a ver o Santo, bendito seja seu nome, com o casamento? O Galileu esboçou um sorriso travesso.

Na verdade, nada... Na verdade, Tomé, no novo reino não há casa­mento nem laços de família...

Então, não há sogras...

A intervenção de Pedro foi amplamente aplaudida.

Sim, não há sogras... - admitiu o Filho do Homem - nem pais, nem irmãos... Eu tinha ouvido alguma coisa a respeito disso durante a estada no Hermon. Agora, o Galileu confirmava.

Em outras palavras, o casamento não é sagrado - resumiu Tomé.

É um pacto humano - replicou Jesus. E acrescentou mordaz:

Por que vós insistis em pisar na cauda de Deus?

Eles o observaram de boca aberta. Somente Ele falava do Pai com se­melhante descaramento. No entanto, era uma despreocupação agradável, não era nada agressivo.

E Jesus voltou ao assunto principal:

Vós tropeçais naquilo que ensino porque interpretais a mensagem literalmente. Olhai para além das palavras. A mensagem é mais importan­te do que eu... Não tenteis me imitar. Não tenteis lutar contra o mundo. Despertai o mundo. Com isso é o suficiente.

Hesitou, mas acabou falando:

Se não estiverdes de acordo, podeis sair agora...

Aquela foi a primeira vez que o Filho do Homem fez um convite da­quele tipo, e a seus próprios discípulos. Nada foi dito sobre isso...

Eles o contemplaram perplexos.

Jesus permaneceu em silêncio e continuou acariciando o cálice. Zal aproximou-se do Mestre, introduziu a cabeça entre o braço e o lado es­querdo e começou a lamber a barba de seu dono. O "beijo" do cão foi uma repreensão muda aos íntimos.

O Galileu acariciou as orelhas de Zal e manteve os olhos baixos.

O Filho do Homem estava se sentindo sozinho.

Os discípulos trocaram pontos de vista e Pedro falou em nome de todos:

Mestre, vamos continuar... Estamos preparados para pagar o preço..

Ele hesitou. Olhou para o restante do grupo e André encorajou-o

com as mãos para continuar.

Quero dizer, Senhor...

Pedro apontou para o cálice e concluiu:

Beberemos contigo nesse cálice!

O Mestre não disse nada no momento. Manteve-se atento ao seu tra­balho com a taça. Ele a polia e polia...

E, depois de um pesado silêncio, disse:

Nesse caso, se quiserdes ser meus discípulos, segui-me...

E acrescentou:

A partir de agora, quando derdes esmola, fazei-o em segredo. Que vossa mão esquerda não saiba o que faz vossa mão direita; quando fizerdes vossas orações, fazei-o sozinhos e apenas com o Pai, e falai de vós. Fujais das orações prontas e vazias. Manifestai vossos desejos e inquietudes. Abba vos ouvirá sempre... Ele está dentro de vós. Vós o carregais para todas as partes.. E lembrai-vos também que o Pai sabe o que precisais, e inclusive o sabe an­tes que o peçam. Refugiai-vos no jejum. Não acumulai riquezas. Deixai que o Pai faça seu trabalho. A lâmpada do corpo são os olhos... Se teus olhos são generosos, todo o teu corpo será luz. Mas se teus olhos são mesquinhos e egoístas, teu corpo se encherá de trevas...

Tomé pediu a palavra e perguntou:

Senhor, devemos continuar compartilhando tudo?

Sim, Tomé. É preciso que sejamos uma grande família. Agora sois os embaixadores do reino, e isso significa trabalhar com exclusividade. Como bem sabes, nenhum homem pode disparar dois arcos ao mesmo tempo. Tu não poderás servir a Abba e ao dinheiro. Ou um ou outro...

Pedro, impulsivo como sempre, gritou o nome de Abba.

O Mestre sorriu e terminou sua exposição:

Neste caso, mantende a calma. Não vos preocupeis com comida ou com roupas. O Pai sabe... Buscai primeiro o reino de Deus. Quando encontrardes a porta, podereis comprovar, maravilhados, que o restante os será entregue adicionalmente, e antes que seja solicitado...

Os olhos de Mateus brilhavam.

Aquele Ser tão especial sabia transmitir confiança...

Jesus acariciou a cabeça de Zal novamente e comentou:

Olhai para ele. Não sabe que é um cão, mas confia em seu dono. E eu, como sabeis, sou dependente dele...

Eles concordaram.

Bem, se Deus se importa, e assim tão amorosamente, com uma criatura como Zal, como ele não se preocuparia convosco, que valeis infi­nitamente mais do que um cão?

João Zebedeu interveio e perguntou algo que todo mundo sabia. Imaginei uma intenção distorcida na questão...

Mestre, quem é o meu próximo?

Jesus não caiu na armadilha.

Olha ao teu redor...

João não desistiu e deu um passo adiante:

Roma é o meu próximo?

O Iscariotes e o Zelote aguardavam, impacientes.

João - respondeu o Filho do Homem com resignação -, tu não me verás tomando partido em disputas políticas, sociais, econômicas ou militares... Eu não vim para isso, e tu já sabes disso...

Mas, Mestre, Roma...

O Galileu não permitiu que ele continuasse. E encerrou o assunto:

Meu trabalho é semear a esperança. Eu vim a este mundo para revelar o Pai Azul e despertar a memória adormecida: vós sois imor­tais... Lembrai-vos disso? Vós sois os filhos de Deus e, portanto, fisi­camente irmãos!

O Iscariotes não se conteve:

Roma escraviza!

Judas, prudente como as serpentes e inocente como as pombas...

Não sei se o Iscariotes e os demais compreenderam. Eu tive a sensa­ção de que não.

Eu vos envio como cordeiros no meio de lobos...

Eles o contemplaram sem saber ao que se referia.

Eu vos envio a um mundo que vive na escuridão. Ficai atentos... Ainda assim, vossos inimigos vos levarão aos juizes e vos con­denarão...

Ele ficou em silêncio por alguns segundos e concluiu:

Alguns de vós sereis executados...

Ninguém compreendeu. Eles realmente não sabiam...

O Zelote se animou e, vencendo a timidez, perguntou ao Mestre:

Todos os homens são filhos de Deus?

Sim, Simão.

Os kittim também?

Os romanos também... E para isso que eu vim, querido Simão, para proclamar a boa notícia: os seres humanos, mesmo os ímpios, são filhos de Abba. Essa é a minha mensagem.

E João Zebedeu perguntou novamente:

Mestre, o que é o reino dos céus? Como é possível que alguns mi­seráveis, como os kittim, sejam chamados para esse reino?

Jesus negou com a cabeça, desaprovando a pergunta do Zebedeu.

Mas respondeu:

Todos os homens e mulheres, amigo João, desempenham um pape. na vida. Agora tu não entendes. humilde e aceita que Abba é antes e mais do que tu...

Desta vez foi João que balançou a cabeça.

O reino dos céus é baseado em três coisas essenciais - prosseguiu o Filho do Homem. O reconhecimento da soberania do Pai, a aceitação da filiação entre as criaturas e a aplicação do princípio dos princípios, "que a minha vontade seja a sua vontade".

Ele olhou para eles, um por um, e proclamou de forma bastante clara;

Esta é a mensagem que eu quero que transmitais aos homens.

Assim terminou aquele inesquecível 12 de janeiro, domingo...

Ao me retirar para o pombal, não pude deixar de me lembrar da ex­periência, e a comparei com aquilo que li e estudei nos textos evangélicos.

O resultado foi catastrófico, mais uma vez...

Mateus, que estava presente na colina das bem-aventuranças, assim como João, começa o capítulo 5 de seu evangelho de uma forma descon­certante: "Vendo as multidões, subiu ao monte; e, tendo se assentado, aproximaram-se os seus discípulos, e ele se pôs a ensiná-los, dizendo: Bem-aventurados..."

Eu sinceramente não entendi. A qual multidão Mateus se referia? Nesse dia estavam apenas os 12...

Ele nem se refere à totalidade das bem-aventuranças e, além disso, mutila, distorce e oculta muitas das palavras do Filho do Homem no fa­moso "Sermão da Montanha". Tudo aparece misturado e mal misturado. É como se Mateus tivesse perdido a cabeça...[12]

E o mais incrível: ele não menciona uma única vez o ato transcen­dental da imposição de mão aos 12...

Em relação a Marcos, seu capítulo 10 (especialmente o versículo 9) é outro exemplo claro de manipulação vergonhosa das palavras do Galileu.

"Porquanto - escreve o evangelista a respeito do casamento - o que Deus uniu, não o separe o homem."

Quando o Mestre disse isso? Nunca...

E ele repetiu várias vezes: "O casamento não é sagrado, trata-se ape­nas de uma aliança humana".

Eu já disse e repito: a Bíblia (eu deveria escrever em letras minúscu­las) não é a palavra de Deus. A Bíblia é um naufrágio.

Mas vamos em frente...

Foi nesse mês de janeiro que Saidan, a pequena vila de pescadores em que Jesus vivia, começou a ser visitada por pessoas de origens diver­sas. Eles chegaram às dezenas. Havia árabes, fenícios, egípcios, judeus...

As notícias sobre o milagre de Caná correram sem fronteiras, e ine­vitavelmente distorcidas. Todos desejavam conhecer o autor de tal ma­ravilha. E durante dias eles desfilaram diante do casarão dos Zebedeu, pedindo para ver e ouvir o Mestre.

Alguns acamparam na praia e outros foram acolhidos nas casas de Saidan e da vizinha Nahum.

Entre os forasteiros havia de tudo, como sempre.

Eu soube de gente sincera, que ansiava por receber um pouco de es­perança; havia os curiosos, que buscavam somente a satisfação pessoal e. claro, os espiões e informantes a serviço de Roma, de Antipas, das castas sacerdotais, dos "santos e separados" e dos saduceus.

Um grupo de arab me chamou a atenção. Eles tinham vindo de Pereia, e tinham conhecimento de uma cura misteriosa realizada pelo Galileu durante sua estada na aldeia de Beit Ids. Eles disseram que o Filho do Homem fez ressuscitar um menino deformado e mestiço cha­mado Ajashdarpan...

Nos primeiros momentos, o Galileu, sempre atento, foi recebendo os recém-chegados. Falava com eles e respondia às perguntas. Mas, aos poucos, os discípulos, temendo pela segurança do Mestre, optaram por serem eles a conversar com os estrangeiros. Jesus aprovou a decisão, e os 12 passaram a negociar com todo aquele que viesse ao casarão. Assisti a várias dessas reuniões e fiquei decepcionado. Os íntimos explicavam que Jesus era o Messias prometido, o Libertador de Israel, o "quebrador de dentes", e que o dia da ira estava próximo. Os esforços do Filho do Homem pareciam consumir-se em pura fumaça. E cheguei a pensar que a próxima viagem, programada pelo Galileu para o domingo 19, era consequência da pressão daqueles que se haviam instalado na praia e nos arredores.

Sim e não.

Para falar a verdade, o Filho do Homem tinha tudo planejado...

Nesse grupo de arab eu notei uma família em especial. Ela consistia de pai, mãe e dois filhos.

Eram os Rutal. Assim eram chamados. Eram os "Polvos". Esse apeli­do se devia a um defeito genético do pai, herdado dos antepassados: uma polidactilia (existência de dedos extras). Era um caso espetacular. Ele mostrava oito dedos em cada mão, com duplicações dos dedos polega­res, dos médios e dos indicadores. O pé esquerdo ainda tinha um dedo a mais. Total de 27 dedos. Provavelmente eu estava diante de uma síndrome de Patau (um caso de trissomia ou aberração cromossômica), mas nunca cheguei a confirmar isso.

O "Polvo" era um halak, ou barbeiro. Como é fácil de imaginar, ele demonstrava grande perícia em sua função, mas provocava em seus clien­tes um medo mais do que lógico.

Era cego do olho esquerdo, que tinha sido ferido numa luta. Era isso o que dizia.

A esposa, na casa dos 60 anos, era a típica mulher árabe: só sabia trabalhar. Falava pouco e quase sempre para dentro. Ela sofria de artrite reumatóide grave, associada possivelmente a uma síndrome de Felty.[13] Nas articulações interfalangianas proximais e nas metacarpofalangianas, as mãos e os pulsos apareciam deformados e com um considerável aumento simétrico dos tecidos moles. A dor devia ser considerável. Eu inferi que ela devia padecer do mesmo problema nos pés, nos joelhos e talvez nos tornozelos. Ela ainda apresentava uma considerável perda de peso, e as pernas se mostravam permanentemente ulceradas.

A filha mais velha era chamada de Nüwwar (Flor), embora ela asse­gurasse que seu verdadeiro nome fosse "flor que aparece na neve". Seus parentes a chamavam de Nu.

Ela era um caso dramático.

Nüu vivia prostrada. Era tetraplégica.

Devia ter uns 25 anos.

A moça tinha algum tipo de lesão transversa aguda na medula espi­nhal (talvez ao nível do C-4)[14], que causava uma paralisia flácida e a perda da sensibilidade e das atividades reflexas, incluindo as funções autôno­mas, sob aquele "choque medular". Nü, em suma, estava paralisada do pescoço para baixo.

Seus enormes olhos negros estavam sempre atentos.

O irmão mais novo contava que Nu havia caído em um poço quando era criança, "e fora condenada pelos deuses por sua travessura".

Deduzi então que aquela lesão da medula espinhal cervical tinha sido o resultado da queda. Isso fazia uns 20 anos.

O quarto membro da família era um garoto com cerca de nove ou dez anos, que eles chamavam de Har, o que poderia ser traduzido como "calor" ou, mais precisamente, "aquele que nasce com o calor".

Ele cuidava da irmã e tocava flauta doce de seis furos. Tocava cons­tantemente enquanto Nu cantava. Uma de suas canções me impressionou profundamente. Dizia: "Eu sou uma peregrina... Nasci perto do paraíso e a ele voltarei... Eu sou uma peregrina... Meu nome é flor que espreita para fora na neve..."

A família teve dez filhos. Cinco morreram e três foram vendidos para que pudessem viajar e tentar curar a filha Nu.

O velho barbeiro árabe vivia na aldeia de Rakib, ao norte de Beit Ids, e perto da colina "778", também chamada de "escuridão" ou de znun. Foi em Rakib que ele soube da misteriosa cura do menino mestiço e foi ali, em um ato de coragem, que tomou a decisão de vender tudo quanto possuía, incluindo três de seus filhos, e embarcar em uma aventura para encontrar o igualmente misterioso "Príncipe Yuy", como em Beit Ids eles chamavam Jesus de Nazaré (Yuy significava "Dois").[15]

E os deuses, segundo o "Polvo", os guiaram até o yam.

Todas as manhãs, Nu era transportada de maca para a porta da frente do casarão dos Zebedeu. E lá permanecia sob os cuidados de Har, a crian­ça da flauta.

Os pais trabalhavam naquilo que fosse necessário.

Ao anoitecer, o barbeiro voltava e levava a "peregrina" embora. Eles tinham montado acampamento perto da fonte, junto ao rio Zaji. O bom homem conversou com André assim que chegou, expondo os seus de­sejos. Ele sabia, como eu disse, da cura de Ajashdarpan e pediu que Yuy fizesse a mesma coisa com sua filha. Eles não iriam embora de Saidan até que o Filho do Homem realizasse esse milagre.

André ouviu com atenção, olhou para a paralítica e encolheu os om­bros. Prometeu transmitir o pedido a seu Mestre, embora não pudesse garantir nada. "Essa", afirmou ele, "é uma decisão pessoal do rabi."

André comunicou a Jesus o que estava acontecendo e acompanhou-o até o local onde estavam os filhos do arab. Har continuava tocando. O Mestre observou a menina e, depois de alguns segundos de hesitação, voltou ao casarão. Dentro em pouco eu o vi voltar para junto de Nu. O Ga­lileu trazia uma flauta de madeira. Nunca soube onde a conseguiu. Tinha uns 30 centímetros e também seis orifícios.

Jesus sentou-se ao lado do menino e, sem dizer uma palavra, come­çou a tocar com ele.

E não tocava mal.

E assim foi, durante pouco mais de uma hora.

Nu sorria e cantava.

E todas as manhãs, se não estava no lago, pescando, o Mestre se reu­nia com a paralítica e o menino da flauta doce e tocava melodias conhe­cidas ou improvisava. Os pais coincidiram com a chegada do Galileu em algumas oportunidades, mas nenhum deles sugeriu ao Príncipe Yuy que curasse a menina. Entendi a postura de Jesus. Ele havia prometido a si mesmo que não usaria seu poder. Não faria maravilhas. Não curaria. Isso, como eu digo, eu entendia. O que foi surpreendente foi a atitude dos pais. Por que não aproveitar a presença do Filho do Homem e transmitir os seus desejos? Levou tempo para descobrir que um árabe não age assim. Eles já haviam dito isso ao Príncipe, esse era o motivo da sua presença na frente do casarão. Eles não tinham razão para perturbar desnecessariamente o Príncipe. Ele sabia... No fundo era uma questão de confiança. E Nu recebeu a sua recompensa...

Mas eu devo seguir pela ordem.

Em janeiro, atraído pelos rumores, chegou a Saidan um contingente de mascates, párias e canalhas de toda espécie. Era inevitável. Eu já havia visto esse tipo de gente nos acampamentos que seguiam Yehohanan. Des­ta vez, eles se misturaram com os visitantes na praia e tentavam viver às custas deles. Vendiam o divino e o humano. Vários deles eu conhecia dos vaus do Ômega e das Colunas. Um era o falso coxo que conheci em 25 de setembro do ano 25. Ele escondia o pé no interior de uma prótese de madeira e vendia "água de Dekarim", que era o sumo de raízes de palma, altamente recomendado contra a ressaca.[16] Também descobri falsos man­cos, falsos cegos e, inclusive, falsos leprosos. Todos pediam a proteção dos céus e um bocado de moedas...

Por enquanto eles se mantinham distantes do casarão dos Zebedeu.

Perto da fonte de Saidan foi se reunir um pequeno grupo de leprosas. Eram dez. Elas vieram da costa fenícia. Estavam cobertas com um pano vermelho obrigatório que justamente diferenciava os ame ou "impuros".

As pessoas da aldeia não permitiam que elas se aproximassem das casas e muito menos da fonte. Elas se viram na necessidade de contratar os serviços dos não judeus a fim de que eles as abastecessem do essencial. As crianças se divertiam jogando-lhes pedras.

Passei algumas horas com elas.

A maioria era portadora de hanseníase "branca" ou "Moisés" (agora conhecida como "anestésica"). Os rostos tinham os típicos caroços incha­dos, muitos deles ulcerados e em estado terminal, já murchos. As mãos em forma de garra (provocadas pela lepra tuberculoide) eram também frequentes.

Havia mulheres jovens, quase meninas, e outras idosas. Elas não ti­nham cabelos e sobrancelhas. Outras se mostravam invadidas por placas vermelhas e múltiplas lesões nodulares no pescoço, nas maçãs do rosto e nas orelhas. Uma das anciãs quase não tinha dedos. A hanseníase virchowiana as havia devorado...

De início me olharam com suspeita. Depois, percebendo que eu que­ria ajudar, me permitiram conversar com elas. E eu soube assim de suas intenções. Tinham ouvido falar do Galileu e de seu milagre em Caná, e queriam que seu calvário fosse aliviado. Só pretendiam vê-lo. Isso, disse­ram, já seria suficiente.

Nunca vi tanta fé...

Elas, por sua vez, admiravam a coragem daquele ancião grego, que não temia se contagiar.

Foi assim que vi se aproximar aquele sábado histórico, 18 de janeiro (ano 27), do qual também não se encontra nada nos textos evangélicos.

Na véspera, 17 de janeiro, nem bem acabara de regressar do yam, o Mestre voltou a nos surpreender. No dia seguinte, na primeira luz, subirí­amos de volta para o topo da colina das bem-aventuranças.

Ele não deu explicação.

Os discípulos perguntaram uns aos outros, mas ninguém pôde dar uma razão. Ninguém sabia por quê.

André se limitou a transmitir a ordem e a definir a hora e o local da reunião dos 12: depois do amanhecer, e no cais de Nahum.

Quem isto escreve tampouco sabia de nada. Por mais voltas que eu tivesse dado na memória, não fui capaz de descobrir o texto do Evangelho que falasse dessa segunda subida à colina. Não consegui encontrar o tex­to porque ele simplesmente não existe. Nenhum dos evangelistas reflete o que aconteceu naquela manhã de sábado, 18 de janeiro. E não enten­do. Na minha opinião, foi outro importante acontecimento...

Foi a segunda vez em uma semana. O que pretendia o Filho do Homem?

Lembro-me de que Felipe, o intendente, estava histérico. A primeira grande viagem de pregação estava prestes a começar e, segundo suas pala­vras, "estava tudo virado de cabeça para baixo". Felipe precisava de infor­mações, mas ninguém as fornecia. Na verdade, ninguém sabia de nada. A única coisa de concreto é que partiríamos no domingo, 19, em direção à Cidade Santa, seguindo sempre pelo vale do Jordão. Lá, em Jerusalém, seria realizada a festa da Páscoa. Mas isso seria em abril... Faltavam quase três meses. Felipe não sabia o que preparar e, acima de tudo, em que quantidade. Ele ia e vinha. Falava sozinho. Tropeçava com uns e outros e, além disso, teria que fazer uma pausa no trabalho e subir a colina das bem-aventuranças, como já tinham começado a chamar o morro em questão.

Eu compreendi o nervosismo de Felipe.

E no sábado, 18, como fora planejado, Mateus Levi e Simão, o Zelote, os dois que mantinham sua residência habitual em Nahum, juntaram-se ao resto do grupo e partimos todos para a colina.

O dia prometia luz e paz. Calculei que estava 18°C. O vento foi em­bora e o sol surgiu a leste, despertando as montanhas, bosques e aldeias.

O Mestre guardou silêncio, multiplicando a curiosidade geral.

Notei um detalhe incomum n Ele.

Ele usava a túnica branca e o manto cor de vinho, mas em seu cinto pendia uma pequena bolsa de tela negra. Eu nunca tinha visto antes. Pen­sei no dinheiro. Acabei rejeitando a ideia. Quem cuidava desse assunto era o Iscariotes.

Perguntei sobre a bolsa, mas ninguém tinha a menor idéia. Os discí­pulos também a tinham notado.

Felipe deu de ombros. O intendente continuou em sua lide: lentilhas ou grão de bico?

A escalada serviu para uma revisão dos alimentos e da bagagem que deveriam ser transportados no dia seguinte.

E na terceira (nove da manhã), sufocados pelos incômodos mantos, chegamos finalmente ao cume.

O Mestre solicitou que os 12 se sentassem em um círculo, como da última vez, e todo mundo se acomodou na grama alta, espalhando seus mantos pelo chão.

Felipe continuava pensando em sua tarefa, murmurando a lista de provisões e como elas deveriam ser distribuídas na carroça.

Nossa, isso era uma novidade. A expedição contaria com uma reda de quatro rodas.

Jesus, no centro do círculo, esperou que seus homens se acalmas­sem. Ficou observando-os, um depois do outro, enquanto acariciava a bol­sinha pendurada nas cordas que faziam as vezes de cinto.

Todos nós desviamos os olhos para o misterioso saco de tela.

O que ele conteria?

O Galileu adivinhou os nossos pensamentos e sorriu, divertido.

Quando o Filho do Homem avaliou que era o momento certo, come­çou a caminhar dentro do círculo e lembrou aos discípulos a mensagem que ele queria que fosse transmitida para o mundo. Levou tempo. Ele fa­lou e falou, relembrando o que dissera sobre a imortalidade da alma, sobre a realidade da filiação divina e sobre a necessidade de esperança. Ele não disse nada de novo, exceto um par de frases:

- E quando chegar a hora, quando tiverdes que falar, não vos pre­ocupeis com o que tereis que dizer... O Espírito que vos habita falara por vó...

Eu entendi que estava se referindo à "centelha". Os discípulos, porém, não entenderam.

Eu estava fora do círculo, em pé, e continuei inspecionando o ros­to dos íntimos. A maioria estava ausente, perdida em suas preocupa­ções. Com exceção de Mateus, ocasionalmente assentindo com a cabeça. os demais ouviam, mas não escutavam.

E o Mestre foi parando na frente de cada um dos discípulos. Ele cha­mava um por um pelo nome e perguntava se continuava disposto a continuar nessa aventura. Todos responderam positivamente, embora, verdade seja dita, sem saber do que Ele estava falando.

Duas horas mais tarde (era a quinta, 11 da manhã), o Galileu deu por concluído o ensinamento e pediu que todos se ajoelhassem. Eu, instinti­vamente, fiz o mesmo.

Os 12 se entreolharam. Continuavam sem entender...

Jesus, então, levantou os braços e olhou para o azul sereno do céu. Tudo era expectativa. Tudo ficou em silêncio.

E o Filho do Homem proclamou em voz alta:

Este é o momento de vossa consagração à vontade de Abba...

Pensei entender.

Ele permitiu que os discípulos absorvessem a ideia e continuou:

Pai, recebe-me! Consagro-me a ti agora e para sempre...

Deixou que corressem alguns segundos e clamou novamente:

Pai, recebe-me! Consagro minha vontade à tua, ainda que não compreendas...

Pedro questionou seu irmão André com os olhos, mas o "chefe" não sabia o que dizer, e encolheu os ombros.

Pai, recebe-me! Sei que me habitas. Ajoelho-me e proclamo tua bellinte... Leva-me pela mão.

O silêncio se fez.

Jesus tinha acabado a oração. Provavelmente, depois do Pai-Nosso, era a mais notável já pronunciada pelo Homem-Deus.

Em seguida, o Galileu foi até o Iscariotes, colocou as mãos sobre a cabeça do discípulo, e repetiu a fórmula de consagração à vontade do Pai:

Pai, recebe-me!

Consagro-me a ti agora

e para sempre.

Pai, recebe-me!

Consagro a minha vontade à tua,

ainda que não compreendas.

Pai, recebe-me!

Sei que me habitas.

Ajoelho-me e proclamo tua bellinte.

Leva-me pela mão.

Judas não moveu um músculo.

E lentamente, um após o outro, o Mestre foi se colocando na frente dos íntimos, e recitando a mesma oração.

Percebi como Mateus ficou com os olhos úmidos. Ele foi o único que demonstrou alguma emoção. E eu abro um parêntese. Se Mateus Levi foi testemunha desses fatos (e foi), por que não os mencionou em seu evange­lho? Será que foi suprimido posteriormente? Fecho o parêntese.

Como já disse o Mestre, quem tem ouvidos para ouvir, que ouça...

Finalmente, Ele chegou a este explorador e proclamou a fórmula de consagração à vontade de Abba, mas com uma variante sutil:

Pai, recebe-me!

Consagro-me a ti agora, no tempo,

e amanhã, em nenhum tempo.

Pai, recebe-me!

Consagro a minha vontade à tua,

ainda que não compreendas.

Pai, recebe-me!

Sei que me habitas.

Ajoelho-me e proclamo tua bellinte.

Leva-me pela mão.

Tomei nota. Desde então, essa se tornou uma oração que repito com frequência, especialmente nos momentos difíceis.

Após a cerimônia, Jesus encorajou seus homens a se levantarem.

Foi então que, em meio ao silêncio, o Galileu pegou na mão a peque­na bolsa de tela.

Ficou nos olhando, divertido. Ele sabia de nossa curiosidade e co­nhecia todos os comentários que haviam sido feitos.

Manteve o suspense por mais alguns segundos...

Finalmente, abriu a bolsinha e retirou parte de seu conteúdo. Mas não disse nada. Tampouco o mostrou.

Caminhou lentamente na direção do Iscariotes e depositou na mãe esquerda do discípulo. Depois, abraçou Judas e declarou:

Bem-vindo!

E repetiu a operação, um por um.

Todos contemplaram "aquilo", desconcertados.

Ele se limitava a sorrir e a proclamar:

Bem-vindo!

Quando chegou à minha frente, modificou a ordem. Primeiro me abraçou, e com força. Senti sua energia me atravessando. Era um calor branco, sem começo nem fim. Aquilo me inundou. Notei um nó na minha garganta. Eu não sabia o que dizer.

Ele sussurrou:

- Bem-vindo... embora já estivésseis!

Depois, feliz, abriu minha mão direita e depositou nela uma pe­dra azul, perfeitamente redonda, belíssima, com cerca de dois centí­metros de diâmetro.

Eu a olhei com espanto.

O que era aquilo?

Jesus não deu explicações. Era esse seu estilo. Cada um deveria des­cobrir o sentido ou a simbologia daquela pedra. Quando regressei ao Ravid, eu a submeti a todo tipo de testes e soube que estava diante de uma pedra preciosa conhecida como iolita, ou safira-‘água.[17] Ela é uma pedra com um pleocroísmo[18] intenso, capaz de provocar reflexos azul-celeste, violeta e amarelos da cor do mel. Foi Eliseu quem, tempos depois, me colocou na trilha do simbolismo da gema azul. Ele mencionou algo assim: na Antiguidade, os vikings usavam a iolita como um filtro. Nos dias nu­blados, procuravam o sol com aquela pedra e isso lhes permitia orientar-se durante a navegação.

Mensagem recebida.

E, ao meio-dia, quando estávamos prontos para descer colina abai­xo, um bando de pelicanos nos sobrevoou. Eles formavam um "V" e se dirigiam ao sul. Foi mais um sinal, pelo menos para quem isto escreve. Para os judeus (e para os pescadores), o pelicano simboliza o amor total e desinteressado. Como se sabe, quando a mãe não consegue o alimento necessário para sua ninhada, ela abre o peito e dá seu coração para os filhotes.

Todos receberam o mesmo tipo de pedra preciosa. Todos foram consa­grados à vontade de Abba. Todos contemplaram os pelicanos e todos erarr. bem-vindos ao reino da fraternidade. Mas duvido, no entanto, que essa múl­tipla mensagem fora compreendida por todos os que estavam ali reunidos. Na verdade, como já disse, nada disso foi refletido pelos evangelistas...

Mas... por quê? Eu não conseguia entender isso.

As pedras azuis foram guardadas como um tesouro. Por que os assim chamados "escritores sagrados" - sobretudo Mateus e João - não disseram uma só palavra sobre elas?

Naquela noite, eu receberia uma possível explicação.

Quando a tarde se foi, voltamos a Nahum.

Ali nos aguardava outra surpresa, não tão agradável.

Quando estávamos prestes a embarcar em direção ao bairro pesqueiro de Saidan, as mulheres apareceram. Eram as esposas dos discípulos, acompa­nhadas de outros familiares e amigos. Liderando o grupo, como sempre, es­tava a inquieta Zaku, esposa de Felipe, e Perpétua, a mulher de Simão Pedro.

Elas questionaram Jesus.

"Que história é essa de uma longa peregrinação até a Cidade Santa? O que será dos filhos deles?"

O Mestre deixou que falassem. Os discípulos se mexeram, inquietos e irritados.

- Nós voltaremos... Confiai no Pai.

As palavras do Galileu não causaram o efeito desejado. E elas conti­nuaram discutindo com os esposos e entre elas.

Mateus Levi interveio, e isso foi muito oportuno.

Ele levou as mulheres para um lado e explicou que não havia nada a temer. Teriam dinheiro suficiente para custear as despesas da viagem. Nos últimos seis meses, a pesca havia proporcionado a eles mais de 500 denários de prata de lucro. Com isso eles iriam sobreviver e ajudariam as famílias que estivessem em apuros.

Elas não ficaram muito convencidas...

Foi por causa desse incidente, já no casarão dos Zebedeu, que os dis­cípulos levantaram a necessidade de criar um sistema de correios que os mantivesse informados sobre as respectivas famílias e suas necessidades.

Discutiram.

Jesus se retirou para seu quarto e se manteve à margem dos debates.

Fez bem. Ele precisava descansar. Havia surpresas pela frente e, aci­ma de tudo, tensões.

André propôs que o sistema de mensagens fosse organizado e con­trolado por Davi Zebedeu, o irmão de João e de Tiago. Foi aprovado por unanimidade.

Foi assim que nasceu o corpo de mensageiros que tanta coisa pro­porcionou na vida pública de Jesus e, especialmente, nos dias amargos da Paixão e da Morte do Mestre.

O restante da noite foi dedicado a comentar o que aconteceu na coli­na das bem-aventuranças.

Apenas Felipe estava ausente. Os preparativos para a viagem, como eu disse, o mantinham ocupado. Na última hora surgiu um problema: o carro previsto para o transporte de alimentos era pequeno. Eles precisavam de uma reda maior. E o paciente Felipe se viu com a necessidade de se deslocar para Nahum a fim de contratar um veículo de maior capacidade. Felipe rugia. E o Iscariotes, ao que parecia, não soltava o dinheiro para contratar a nova reda sem a prévia autorização por escrito do administrador-geral: Mateus.

"Questão de ordem", dizia Judas. "Questão de burocracia", protestava Felipe.

Mateus, finalmente, resolveu o tumulto, e Felipe saiu às pressas.

E, como eu dizia, retomaram o fio do mistério da pedra azul, presen­te do Galileu.

Cada um deu a sua opinião.

João Zebedeu, o Zelote e o Iscariotes chegaram a um consenso: "A iolita era um código secreto; com ele estabeleceriam contato quando che­gasse a hora certa".

Os gêmeos nada disseram, como também era o habitual.

Pedro, Tiago Zebedeu e Tomé falaram de bruxaria. "A pedra - disse­ram - enfeitiçaria os kittim."

Bartolomeu, o "urso" de Caná, aproveitou a ocasião para deixar es­capar outra de suas fantásticas histórias, assegurando que, durante uma viagem pela Índia (?), ele tinha visto homens que voavam, com a ajuda de pedras como aquelas. Bastava que o sujeito as segurasse na mão e dirigisse seu pensamento a um lugar determinado, para que a iolita levantasse o dono da gema pelo ar.

Ninguém acreditou nele, e começou a zombaria.

Pedro mostrou a pedra azul, prendeu-a em sua mão esquerda, fechou os olhos e desejou transportar-se para Roma, para "bem longe de sua sogra".

Todos contemplaram a cena, perplexos e ansiosos. Mas o pescador, obviamente, não saiu do lugar. E as risadas e provocações pioraram. O "urso" teve de permanecer em silêncio.

Mateus, como não podia ser diferente, avaliou a posse daquela bela pedra como sendo "uma reserva financeira".

André se absteve de comentar. Sua preocupação estava em outro lu­gar: na bendita carroça...

E quem isto escreve se perguntou: será que pode ter sido aquele evi­dente desacordo entre os discípulos o que acarretou o desaparecimento nos textos evangélicos de qualquer menção à passagem da consagração à vontade do Pai e a posterior entrega dos presentes por parte do Filho do Homem aos 12?

E chegou o incrível domingo, 19 de janeiro (ano 27).

Esse dia amanheceu às 6 horas e 37 minutos.

Quando cheguei à "terceira casa", o lugar parecia um manicômio.

Todo mundo estava gritando. Todos corriam. Todo mundo entrava e saía. Ninguém prestava atenção em ninguém.

Procurei ver se encontrava o Mestre. Não consegui. Ninguém soube me dizer nada.

Tomei o café da manhã da melhor forma que consegui e me dediquei a observar o pessoal.

Felipe não tinha conseguido dormir a noite toda. Ele era o mais al­terado de todos.

Na frente do casarão estava estacionado o carro de quatro rodas, coberto.

Metade da cidade estava concentrada nos arredores da casa. Todas as línguas eram faladas. E todos diziam conhecer o verdadeiro e secreto ob­jetivo daquela viagem: clamar contra Roma durante os festejos da Páscoa. Todos diziam saber disso por uma boa fonte.

Alguns dos estrangeiros que viviam acampados regularmente na praia também tinham se aproximado das portas do casarão. Eles assistiam, intrigados e na expectativa, aos últimos preparativos da viagem.

Em um canto, como sempre, estavam Nü, a tetraplégica, e seu irmão, o menino da flauta. Eles assistiam a tudo espantados.

A troca da reda foi acertada, a julgar pelos víveres e pela bagagem programada pelo intendente.

Duas velhas mulas de um cinza mesclado puxavam o carro. Velhas, não: velhíssimas. Eram do tipo hinni (mistura de cavalo com burro). Cha­mavam-se Baqâr e Schôr. Os termos significavam "trabalhador" e "robus­to", respectivamente.

Eu olhei dentro do carro e fui pego de surpresa.

Não parecia que íamos fazer uma excursão ao vale do Jordão. Parecia mais que estávamos dispostos a atravessar o deserto de Gobi...

Eu me lembro do seguinte: Felipe conseguiu duas grandes tendas de pele de cabra (uma preta e outra branca), o equipamento necessário para a montagem, postes, cabos, peças de couro, e suprimentos para três meses. Três meses? Eu diria que para seis...

Felipe subia e descia da carroça com agilidade. Cada vez que descia ele se lamentava por alguma coisa, e corria para o interior do casarão em busca do paciente André.

Não me lembro de todos os víveres que haviam sido colocados na carroça. Mas havia, pelo menos, cinco sacos de grãos (arroz, lentilhas, grão-de-bico e feijão), com o peso por saco de uma efa (43 quilos apro­ximadamente). Além disso, havia ainda carne salgada em abundância (cerca de três efa), peixe defumado (especialmente tilápias), tâmaras de diversos tipos (secas e moles, muito doces), lagostas cozidas ("saltado­ras"), e mais panelas, dois foles para alimentar o fogo, um prato grande, curvado, para assar o pão, duas grades de ferro para as carnes, 13 lam­parinas de argila (com as respectivas reservas de azeite de oliva), jarros (não se sabe em que quantidade) com os óleos essenciais e os remédios (?) "prescritos" por Felipe, chapéus de palha (dois por discípulo), frutas secas, queijos e as "estrelas" da expedição: Tiberia e Cleo, duas galinhas poedeiras da espécie guiné. Não perguntei o motivo daqueles nomes. Não me atrevi...

André, como líder do grupo, inspecionou a reda em diversas ocasiões. E em todas elas encontrou algo que deveria ser retirado do carro. Em uma das oportunidades, ele ordenou a Felipe que se livrasse de dois potes. Fi­quei atordoado. Um deles continha caracóis vivos. Felipe os alimentava com uma mistura de farinha e mosto de uva. Os protestos do intendente de nada serviram. E os caracóis foram distribuídos aos estrangeiros. O conteúdo da segunda vasilha era ainda mais "espetacular". Felipe teve a santa paciência de reunir uma "família" de ratos-do-campo, vivos. Não sei se já mencionei, mas esse tipo de roedor era uma iguaria para os judeus e gentios. Eram disputados no mercado. Na vasilha haviam sido colocadas várias bolotas e nozes para que eles se alimentassem durante a viagem.

Fiquei feliz pela sábia e prudente decisão do "chefe".

E às 11 da manhã (quinta hora), Felipe foi fazer a enésima revisão da reda e dos sacos de viagens de seus companheiros. Os gêmeos o ajudavam em todos os momentos.

Cada qual apresentou seu saco de viagem e teve que mostrar o con­teúdo para André e Felipe.

Não observei nada de estranho, salvo o arreio de couro que Simão Pedro devia usar durante a noite, e que foi idealizado para prevenir os roncos do discípulo.

No cinto, obrigatoriamente, iam dependurados um par de sandálias e uma pequena cabaça, que fazia as vezes de um "cantil". As sandálias ti­nham sola plana, de madeira ou de papiro prensado.

E eu estava me esquecendo de um detalhe não menos importante...

Dentro da reda, envoltas em uma lona, contei 15 gladius de gume du­plo. O Iscariotes, João Zebedeu e Simão, o Zelote, foram os responsáveis por verificar as espadas e dar seu assentimento.

Naturalmente, amarrada ao carro e recém-pintada, aparecia a Cipriota, a cabra de Felipe.

Estávamos todos.

E os ali reunidos saudaram os discípulos.

"Abaixo Roma!"

Também vi as esposas. Pareciam agora mais calmas, e fizeram coro com os vizinhos e com os forasteiros:

"Abaixo Roma!"

Foi André quem notou a ausência de Jesus. Ninguém o tinha visto desde a manhã. O que havia acontecido? Onde estava o Mestre?

Alguém entrou no casarão e perguntou. Ninguém sabia de nada.

Zal tampouco fora visto por ninguém.

E os discípulos se mobilizaram.

André foi até a praia.

Devia ser meio-dia.

Eu fui atrás dele.

Não demoramos em descobrir Zal. Ele estava na praia, com as per­nas dianteiras sobre a borda de uma das embarcações encalhadas na areia. Ele latia e abanava a cauda com insistência.

Dentro do barco, distingui a figura alta do Mestre. Estava sentado, com a cabeça baixa. Não parecia estar prestando atenção aos latidos preocupa­dos de seu cão.

André e eu nos entreolhamos.

Alguma coisa estava acontecendo.

Caminhamos lentamente, tentando adivinhar. O que teria acontecido?

Nós nos posicionamos em frente ao Mestre, mas Ele não reagiu.

Manteve-se, de fato, com a cabeça inclinada e os cabelos soltos. Vestia a túnica branca. A seu lado, no fundo do barco e perfeitamente dobrado, via-se o manto. E um pouco além estava o alforje.

Zal continuava latindo, e fazia isso sem perder de vista seu dono.

O nobre animal sentia alguma coisa...

Mas o que foi que aconteceu? Nem nos cumprimentou. E sabia que estávamos ali...

Foi André quem decidiu falar primeiro:

Senhor, todos te esperam...

O Galileu não respondeu. Continuou com o rosto enterrado e oculto pelos cabelos.

Zal latia e latia.

Comecei a ficar preocupado.

Senhor - insistiu o "chefe" -, hoje é o grande dia, o dia triunfal. Devemos ir...

Jesus, então, levantou a cabeça, afastou o cabelo do rosto e nos ob­servou em silêncio.

Senti um calafrio.

O Homem-Deus estava chorando.

Era um choro sereno e contínuo.

As lágrimas deslizavam e se precipitavam através de sua barba. E ali desapareciam.

Zal começou a gemer...

André, espantado, deu um passo para trás. Era a primeira vez que o discípulo via seu rabi chorar.

Não entendia muito bem. Por que estava chorando?

O discípulo se recuperou e perguntou, com a voz entrecortada:

Mestre, quem te ofendeu? Dize-me e eu irei arrancar o coração dele...

Jesus não conseguiu responder. O choro o afogava.

Ele enxugou as lágrimas e, aos poucos, tentou desenhar um sorriso. Conseguiu apenas até a metade...

E o bom André insistiu:

O que fizemos, Senhor?

O Mestre sacudiu a cabeça. As palavras ainda continuavam de­sobedientes.

E tudo passou pela minha mente. Ele chorava por causa de alguma desgraça? Pensei em Ruth e voltei a estremecer. Será que tinha morrido? Mas isso não seria possível...

Ele captou as minhas preocupações, olhou para mim e balançou a cabeça, negativamente. Como era difícil de me acostumar com isso...

Pelo menos, não se tratava de Ruth.

Por favor, rabi, o que aconteceu?

André estava lívido.

O Filho do Homem recuperou o controle. As lágrimas desaparece­ram e um sorriso foi iluminando seu rosto.

Finalmente respondeu:

Pouca coisa, André... Acontece que estou triste.

Foi a única vez, pelo menos que eu lembre, em que Jesus de Nazaré reconheceu que estava entristecido.

Zal continuava gemendo, sempre com as patas sobre a borda do barco.

E o Mestre explicou o motivo de sua tristeza: aquela era a primeira excursão de pregações, de fato, e ninguém de sua família de sangue havia aparecido para se despedir. Simples assim.

Ele tinha razão.

Nem André nem este explorador nos atrevemos a fazer um único co­mentário. Mas o que poderíamos dizer? A família do Mestre, na verdade, estava longe e era contra Ele. Mas nada disso foi relatado... Obviamente, não estavam interessados em prejudicar a imagem da Senhora.

Jesus foi breve em sua explicação.

Pulou do barco na areia e Zal correu para Ele. Colocou as patas so­bre o peito do Galileu e começou a lamber seu dono. O Filho do Homem agradeceu o carinho do cão e acariciou com força a cabeça e o lindo pelo da cor de estanho.

O rabi fez menção de pegar sua bolsa de viagem, mas eu não permiti. Adiantei-me e peguei a bagagem.

Jesus sorriu, pegou seu manto cor de vinho, piscou para mim e pro­clamou, decidido:

Vamos! Vamos despertar o mundo!

E nos dirigimos para a escada que levava até a parte de trás do casarão.

A bagagem era pesada. O que levava o Homem-Deus em sua bolsa de viagem?

Ao ver Jesus, os aplausos aumentaram.

"Abaixo Roma!"

Tudo estava pronto para a grande aventura.

O Mestre amarrou na cabeça a fita branca para segurar os cabelos, como de costume, e se preparou para a marcha.

Nisso, alguns dos forasteiros que acampavam na praia se apresen­taram. Eles desejavam unir-se à "marcha contra Roma". Foi assim que a definiram.

O Galileu tentou fazê-los ver o seu erro. Aquilo não era uma marcha política, mas os acampados não deram ouvidos.

Foi André quem lhes suplicou que deixassem que partissem. Eles aceita­ram com relutância. Na verdade, não aceitaram. Eles simplesmente permitiram que a expedição saísse. Algum tempo depois, nós os vimos à distância. Eles nos seguiam com grande tenacidade. Calculei cerca de uma centena deles.

E a expedição se pôs em movimento.

Felipe conduzia as mulas e os gêmeos seguiam cada um de um lado da carroça, aguardando as ordens do intendente.

Salomé e as filhas choravam.

Os amigos e familiares nos acompanharam durante um trecho.

De repente, Abril surgiu do meio dos caminhantes, pendurou-se em meu pescoço, me beijou e fugiu correndo.

Fiquei parado, perplexo. E a vi perder-se ao longe no caminho em direção a Saidan.

Quando já havíamos caminhado uns 500 metros, também de sur­presa, vi Har aparecer, o irmão da moça tetraplégica. Ele chegou perto do Mestre, que seguia na frente de todos, e entregou sua flauta doce. O menino, muito sério, exclamou em árabe:

- Para que te lembres de nós...

O rabi aceitou a flauta, sorriu ao menino, agradeceu e continuou com suas rápidas passadas de sempre.

E a reda e os corajosos embaixadores do reino invisível e alado conti­nuaram pela trilha na costa leste do lago, em direção ao sul.

Levamos o dia todo para chegar à segunda desembocadura do rio Jordão.

Aquilo foi uma loucura.

As pessoas saíam de casa e aplaudiam Jesus e seus discípulos. Não im­portava que não os conheciam. Éramos importantes, a julgar pela Cipriota.

Os íntimos saudavam e correspondiam. Os vizinhos os abraçavam e lhes ofereciam de tudo: pão fresco, vinho, frango, flores...

O mais feliz de todos era Felipe, e nós sabíamos o motivo. O carro ia ficar lotado.

O Iscariotes, João Zebedeu, Pedro e o Zelote não andavam; eles flutuavam.

Aquilo era um sonho. Nem haviam ainda começado o trabalho de divulgação da boa-nova e já eram tratados como heróis...

Eles se felicitavam uns aos outros.

O Mestre seguia em seu próprio ritmo, sempre na frente de todos, com Zal a seu lado, atento.

Houve apenas um percalço.

Ao chegar a Em Gev, por volta da nona hora (três da tarde), as mulas deram um basta. Era peso demais. Não teve modo de fazê-las prosseguir. Os gêmeos começaram a incitá-las com um pedaço de pau, mas o Mestre os repreendeu. Não era um problema de teimosia das mulas, mas é que elas eram incapazes de arrastar tudo aquilo. A reda, segundo meus cálcu­los, levava uma carga superior a 1.100 quilos.

Finalmente, a sanidade prevaleceu.

Era preciso transferir parte dos apetrechos para uma segunda reda.

E começou uma discussão entre o Iscariotes, Mateus e Felipe.

Jesus deixou que discutissem.

Judas não queria desequilibrar a tesouraria. Era cedo demais para um gasto desse porte. Felipe clamava: que outra coisa eles poderiam fazer? O Iscariotes propôs que cada um de nós carregasse uma parte. A ideia foi rejeitada por todos.

Por fim, Felipe e o Iscariotes entraram no povoado em busca de uma segunda carroça e outras duas mulas. O inesperado contratempo represen­tou um desembolso de 200 denários. Se a reda e os animais fossem devolvi­dos no prazo de uma semana, Judas recuperaria metade desse pagamento.

Foi realizada a transferência do excesso de carga para a outra carroça e a expedição continuou seu caminho.

O Iscariotes reclamou os diabos...

Pensei bastante sobre aquilo.

Antipas logo seria informado sobre aquela "marcha contra Romã", como a definiram erroneamente os estrangeiros. E o mesmo aconteceria com os kittim e com as castas sacerdotais... Enfim, não tinha solução.

Passei a observar os discípulos. Existia mesmo um traidor entre eles? Se a informação do tetrarca estava correta, qual deles era o confidente?

Eu teria que ficar atento. Era importante descobrir o espião.

Nessa noite, dormimos fora de Bet Yeraj, um dos núcleos urbanos que integravam aquilo que eu havia chamado de "metrópole",[19] um conjunto de cidades e vilas que, interligadas, somavam mais de 40 mil habi­tantes. Bet Yeraj, ou "Casa da Lua", era a cidade mais populosa e antiga ao sul do mar de Tiberíades.[20]

Tomé, o responsável pelo itinerário, conhecia bem o lugar. E escolheu acampar perto do que chamavam de "celeiros": dez enormes torres de pedra negra, basáltica, de nove metros de diâmetro cada uma, e que guardavam o trigo de Antipas. Os "celeiros" eram protegidos por outro muro, também de pedra. Em seu interior havia, vigilante e permanente­mente, uma patrulha kittim que estava baseada em Tiberíades.

João Zebedeu não gostou do lugar e muito menos o Iscariotes e o Zelote. Mas todos nós estávamos cansados demais e ninguém discutiu a escolha. Ademais, não teríamos motivo para ir ver os romanos...

Foi o teste decisivo para Felipe. Era seu primeiro jantar com o grupo e ele teve que se multiplicar. Bartolomeu estava com a perna esquerda dolorida e precisou que seu amigo de Saidan lhe arrumasse um bálsamo e esfregasse bem o local. Outros discípulos exigiram que Felipe fizesse o mesmo com seus pés. E o fizeram com maus modos. Felipe não se aca­nhou e mandou todos diretamente para o inferno. E nasceram novas dis­cussões e brigas.

André se viu na necessidade de mediar a discussão e a paz foi resta­belecida, ao menos momentaneamente.

Jesus conversou em separado com Tomé, e deduzi que eles estavam planejando o roteiro do dia seguinte. E eu estava certo. Pouco depois, Tomé confirmou minhas suspeitas e anunciou que o Mestre queria acampar nas proximidades do rio Artal, no sinuoso Ômega, o local de seu batismo.

Estávamos a pouco mais de 30 quilômetros. Eu conhecia a estrada que levava até lá. Já a havia percorrido em diversas ocasiões. Caminhando num bom ritmo e sem atropelos e incidentes, precisaríamos de algo como seis ou sete horas.

Mas o delicioso aroma das lentilhas me arrancou dessas reflexões. Eu estava faminto.

Jesus exalava um excelente humor. Repetiu as lentilhas e parabenizou Felipe.

"Tudo perfeito."

E estávamos assim, relaxados ao redor do fogo e com os respecti­vos canecos de madeira nas mãos, quando rompeu um novo e estúpido conflito.

O Iscariotes, de repente, fez um comentário.

Ele apontou as silhuetas dos celeiros, desbotadas pelo ocaso, e re­comendou ao Mestre que, uma vez inaugurado o reino, voltasse a Bet Yeraj, assaltasse as torres e repartisse o trigo de Antipas entre os mais necessitados.

O Galileu o encarou, entre surpreso e intrigado.

O silêncio se fez, mas foi muito breve.

O Zelote e João Zebedeu apoiaram a iniciativa de Judas e afirmaram que deveria ocorrer o mesmo com os celeiros de Tibérias e de Nahum.

Obviamente, eles não haviam entendido nada...

Jesus continuou mexendo a sopa, e seu rosto se endureceu.

Não sei se estava disposto a responder quando Mateus, dirigindo-se ao Iscariotes, o repreendeu por sua "miopia". E acrescentou, corretamente, que aquele não seria o reino do qual tanto o rabi falava.

Como eu já disse, Mateus, o publicano, foi o primeiro (e talvez o único) a entender pelo menos metade da mensagem do Filho do Homem.

Judas, ainda irritado com o incidente da segunda reda, descontou em Mateus. Ele se levantou. Insultou-o entre tosses e chiados e solicitou a Je­sus "que expulsasse do grupo aquele maldito gabbai (coletor de impostos a serviço dos romanos).

João Zebedeu se uniu ao pedido.

Todos ficaram em silêncio.

Mateus estava apavorado.

Olhou para Jesus, mas Ele continuou com as lentilhas.

Quem não esperou foi o Iscariotes.

E, antes que alguém dissesse alguma coisa, ele se aproximou de Ma­teus e jogou as lentilhas em seu rosto.

Mateus se levantou, pronto para responder à ofensa de Judas.

André foi rápido ao intervir, ajudado pelos gêmeos de Alfeu, e Ma­teus foi obrigado a voltar ao seu lugar.

As tosses e chiados aumentaram em Judas, assim como as maldições e impropérios contra o antigo coletor de impostos.

E Iscariotes, então, se encaminhou na direção da panela de lentilhas e a derrubou no chão com um pontapé.

Felipe, impotente, começou a soluçar.

E os discípulos se dividiram. Uns trataram de consolar o intendente. Outros recolheram o que puderam, o que não foi muito.

E o Iscariotes pegou sua bolsa de viagem e se refugiou na escuridão.

Quando passou perto do Mestre, Zal se levantou e começou a latir com força contra Iscariotes.

O Mestre não disse nada. Ele havia perdido o sorriso e o bom humor. Todos nós nos sentimos desconfortáveis. Eu logo me acostumaria com essas brigas, mais frequentes do que imaginamos, e igualmente ignoradas nos textos evangélicos.

No dia seguinte, segunda-feira, 20 de janeiro (ano 27), o amanhecer chegou às 6 horas e 37 minutos (segundo os relógios do "berço"). E ele veio bonito, distribuindo azuis e laranjas.

Tudo parecia ter sido esquecido.

Os discípulos tomaram o café da manhã bem satisfeitos. Zal estava feliz. A Cipriota nos ofereceu um leite excelente e André e Felipe reviram os apetrechos da viagem.

Jesus se levantou cantando... Menos mal.

Judas tomou seu café da manhã, mas continuou com aquele olhar torto. A crise asmática parecia ter arrefecido.

Não conversou com ninguém. E continuou assim por todo o caminho.

A marcha foi retomada e percorremos os quase 40 quilômetros em pouco mais de sete horas, como o Mestre e Tomé haviam previsto. Não houve incidentes que valessem a pena mencionar, exceto a descoberta à distância, como já referi, do grupo de seguidores (?) que acampavam na praia de Saidan quando partimos. Eles permaneceram distantes mas, ob­viamente, tinham intenção de se unir à expedição do Filho do Homem assim que fosse possível. E foi o que ocorreu.

Paramos na aldeia de Ruppin, muito próxima das "11 lagoas" e do criadouro de crocodilos, e depois de nos abastecermos do impres­cindível cruzamos o rio Jordão, entrando em um local bem conheci­do de quem isto escreve: Ômega.[21] Ele era, como já relatei em certa ocasião, um gigantesco meandro em forma de ferradura, de cerca de 700 metros de diâmetro. Era formado pelo Artal, um dos afluentes do Jordão. Os judeus conheciam o lugar como Ahari, mas a designa­ção mais popular era Ômega, pela semelhança da curva do rio com a letra grega.

Pensei que Jesus fosse estabelecer o acampamento na área de costu­me, perto das cinco grandes lajes de pedra negra, do lado mais oriental do Artal. Mas não foi assim.

Às três da tarde (nona hora), prestes a entrar no bosque dos lenços[22] e quando havíamos percorrido apenas um quilômetro desde a aldeia de Rubbin, o Galileu deixou a estrada que atravessava o referido bosque e se dirigiu à margem direita do Artal. Nós estávamos justamente no extremo oposto ao local onde se registrou a emocionante cerimônia de batismo do Filho do Homem, em 14 de janeiro do ano 26.

O Mestre deu as ordens apropriadas e André, depois de inspecionar a região, indicou que podíamos descarregar as redas.

Ficaríamos ali por duas semanas.

O lugar era silencioso, entre as altas davidia e a um passo das pacífi­cas e murmurantes águas do Artal.

Eu me senti bem. Não pude distinguir nada nos arredores. As lajes ficavam a coisa de dois quilômetros. Era preciso atravessar o bosque para chegar até elas.

E Felipe, com o restante do grupo, se ocupou da montagem das bar­racas e da organização do acampamento.

Jesus e sua tabbah (sua escolta pessoal) iriam ficar na barraca branca. Ju­das de Alfeu, o gago, os acompanharia. André tomou para si o sorteio, e todos aceitaram. Na tenda negra dormiria o restante do grupo. Judas Iscariotes se recusou a dividir o mesmo alojamento com Mateus e escolheu dormir ao ar livre, entre as árvores. Eu também me decidi a ficar no bosque, mas por razões diferentes. A temperatura era agradável (ao redor de 18°C). Eu tinha pensado bem. Foi preferível manter uma certa distância do grupo. Eu estava certo...

Jesus se despiu e mergulhou nas águas do Artal.

Desfrutou de um banho.

Naquela noite, na hora do jantar, o Mestre se dirigiu a seus homens e fez uma série de esclarecimentos.

Em primeiro lugar, e insistiu nisso várias vezes, nada de pregar em público.

Os discípulos não esperavam um aviso desses. E ficaram decepcionados.

Mas o Mestre prosseguiu:

"Nada de críticas... A ninguém."

Repetiu isso por três vezes.

E na minha mente apareceu a imagem de Yehohanan, manchando o nome de Antipas e Herodíade.

Eles estavam ali para refletir e se preparar. O que estava por vir era importante.

- Instalar o reino de meu Pai no coração dos homens não é fácil...

E o Galileu chamou a atenção sobre algo que eles sabiam de sobra: nós estávamos na Decápolis; aquele não era um território do tetrarca, mas Antipas possuía olhos e ouvidos em toda parte. Como ele estava certo!

Eles deviam ficar atentos às indicações de André, o chefe.

Nessa ocasião (a primeira vigília da noite), observamos luzes do ou­tro lado do bosque. Algumas tochas iam e vinham... Os discípulos fizeram comentários. E o Zelote lamentou não estar armado. As gladius tinham ficado na carroça, por ordem expressa de André.

Jesus também olhou para as luzes, mas continuou falando.

Pensei nos estrangeiros que nos seguiam.

Aquela situação me parecia familiar.

E o Galileu insistiu em algo que já havia expressado meses antes:

"Quando for chegado o momento, eu cuidarei das críticas."

Ele olhou para seus homens e se deteve por alguns instantes no ir­ritado Iscariotes. Judas sustentou o silêncio e o olhar intenso do rabi e, como sempre, fez isso à sua maneira. Ele se levantou e foi embora. Real­mente, ele era mais rancoroso do que eu pensava.

No dia seguinte, terça-feira, eu comprovei que estava certo. As tochas pertenciam àquela centena de estrangeiros que seguiam o Mestre desde que saímos de Saidan. Eles haviam acampado junto das lajes.

Eles se reuniram com André e prometeram respeitar a privacidade do acampamento dos 12. Ficariam onde estavam.

Jesus pegou Zal e se perdeu na parte mais espessa do bosque.

Os irmãos Zebedeu e Pedro não reagiram a tempo e o Mestre desa­pareceu entre as davidia. A escolta falhara.

As lamentações de Simão Pedro duraram pouco.

Jesus havia alertado a André sobre o que deveriam fazer e, por volta das nove da manhã, uma vintena dos seguidores solicitou ao chefe que os ensinasse sobre o reino. Era o que havia sido previsto pelo Filho do Ho­mem. E os discípulos, aos pares, foram sentando-se sobre as lajes negras. De início, conversaram com pequenos grupos (não mais do que 20 pessoas).

Felipe e os gêmeos ficaram de fora. Judas, depois de consultar André, tomou a segunda reda e foi para En Gev com a intenção de devolver o carro e recu­perar parte do dinheiro. Sinceramente, todos respiramos mais tranquilos...

Eu assisti a quase todas as "palestras"...

Em um primeiro momento, embora as explicações dos discípulos não se ajustassem direito à mensagem do Mestre, tudo correu com discri­ção. Eles falavam em voz baixa, inclusive.

Tudo era temor.

Os discípulos olhavam os estrangeiros e tentavam averiguar (inutil­mente) qual deles poderia ser espião de Roma, de Antipas ou dos "santos e separados".

Acabei ficando entediado e voltei para a "cozinha" do acampamento.

As "palestras" giravam e giravam sobre as mesmas ideias de sempre: Jesus era o Messias prometido, a libertação de Israel era questão de dias. eles eram os futuros governantes do mundo, o dinheiro iria correr como as águas do Jordão, o resto das nações iria se ajoelhar diante do trono dc Davi, os exércitos de Israel imporiam a ordem e a paz e Jesus levaria a cabo grandes maravilhas...

Eles só acertaram esse último...

A partir daquele dia eu assumi a tarefa de lavar os pratos e de ajudar Feli­pe e os gêmeos nas tarefas domésticas. Nisso eu me dava bem e era preferível

Então, pouco a pouco, as "lições" foram esquentando. O tom dos professores foi se elevando - em especial o de Pedro e de João Zebedeu - e aqueles "grupos discretos" terminaram de pé, gesticulando e adiantan- do-se nas palavras uns dos outros.

André teve que intervir mais de uma vez, acalmando os ânimos e relembrando as orientações do rabi.

A paz não durou muito tempo. Os enfrentamentos se intensificaram e recomeçaram...

Ao entardecer, Jesus regressou ao acampamento e escutou atenta­mente o que era dito.

E fez isso com uma estranha paciência. Depois lhes deu a entender que esse não era o caminho. Ele não era o Messias do qual os profetas fa­lavam. Seu reino não era deste mundo. Ele trazia outro tipo de esperança. mais bonita e duradoura...

Foi inútil.

A quarta-feira, 22, segundo o que fora acordado por todos, era o dia destinado ao descanso. Jesus ficou no acampamento e o Zelote, depois dc desjejum, nos surpreendeu. Ele era o encarregado dos jogos e das brinca­deiras e, na minha opinião, o fazia muito bem. Todos nós passamos um grande momento, e Jesus principalmente.

O Zelote tinha tudo planejado. Ele procurou uma ampla clareira e montou duas equipes. E a parte da manhã foi gasta jogando um esporte que chamavam de keri (na verdade keritizein). Era um tipo primitivo de hóquei, importado da Pérsia, e muitas vezes praticado na Grécia e no Egi­to. Os jogadores usavam ramos de davidia e Felipe, mais hábil, fez uma bola de trapo. Os jogadores tinham que golpear a sphaira com bastões ou varas improvisadas e deveriam lançar a bola entre duas árvores determi­nadas. André era o árbitro.

Eu não saía de meu assombro.

Eu nunca imaginara o Filho do Homem de tangas, correndo atrás de uma bola de trapos, gritando e animando seus companheiros de equipe, golpeando a sphaira e protestando contra as decisões do árbitro. Jesus era um excelente driblador. Apesar de sua corpulência, tinha um belo jogo de cintura e suas pernas eram puro músculo. O keri durou duas horas. A equipe do Mestre, formada pela tabbah (os guarda-costas Simão Pedro, João e Tiago Zebedeu) e pelos gêmeos Alfeu, venceu por uma esmagadora diferença de 25 a 3.

Um bom número de seguidores se aproximou da clareira e aplaudiu muitas das jogadas.

Depois de um longo banho, o Zelote veio com outra distração: o harpaston, um rúgbi rudimentar, em que cada equipe tentava cruzar uma li­nha imaginária com a bola em suas mãos. Nesta ocasião, as equipes foram reforçadas por voluntários da plateia. E eu comecei a ver coisas estranhas. Os ataques a Jesus eram tão numerosos quanto desmedidos. E eram sem­pre realizadas pelos mesmos jogadores: dois ou três tipos de Pereia.

O Mestre foi derrubado violentamente em várias ocasiões. Em uma delas foi atingido por uma pedra. O supercílio esquerdo se abriu, correu sangue e os discípulos se assustaram.

A partida foi interrompida. Felipe limpou e curou a pequena ferida e o Galileu foi obrigado a abandonar o jogo. O Filho do Homem protestou, mas André, o árbitro, obrigou-o a sentar-se com o público.

Aqueles sujeitos que sempre derrubavam Jesus eram familiares.

De onde eu os conhecia?

E logo eu me lembrei.

Eram seguidores de Yehohanan.

Quem isto escreve se encontrou com eles no vau de Josué. Eles esta­vam entre aqueles que chegaram a Jericó para marcar o protesto contra o sequestro dos discípulos do Batista.

Naquela tarde eu fiz uma viagem de inspeção pela área das placas e descobri que estava certo. O número de seguidores aumentara signifi­cativamente. Eles chegavam a todo momento. Veio gente de Pereia e da Judeia. Havia famílias inteiras. Reconheci muitos adeptos do Anunciador.

Eu tinha um palpite.

A presença daqueles seguidores não me agradou.

A maioria, como eu mencionei na época, acreditava que Yehohanan fosse o verdadeiro Messias libertador. Jesus era um impostor.

E eu comecei a entender por que a violenta e desnecessária aborda­gem no jogo ao Galileu.

O dia, porém, terminou em calma. Jesus, com um curativo volumo­so na cabeça, foi o primeiro a rir de si mesmo e de sua aparente falta de jeito. Olhamos um para o outro em várias ocasiões e nós dois sabíamos dos pensamentos um do outro. Mas ninguém disse nada. Ninguém sus­peitava...

Simão, o Zelote, foi elogiado. O dia estava uma delícia, em geral.

Na quinta-feira, 23 de janeiro, tudo voltou ao normal. Pelo contrário, quase tudo...

O Mestre se retirou com Zal para dentro do bosque dos lenços e os discípulos passaram parte da manhã, e parte da tarde, com os "ensina­mentos" a pequenos grupos.

Todos nós fomos surpreendidos. O número de curiosos e seguidores continuava a multiplicar-se. Eu somei cerca de 500.

Isso forçou os íntimos a aumentar o número de ouvintes.

E havia as discussões habituais e muito mais...

Os seguidores de Yehohanan logo deram as caras para enfrentar os discípulos amedrontados.

Pude ouvir duas críticas principais:

Em primeiro lugar. Por que Jesus não fez nada para ajudar Yehoha­nan? Por que ele permitiu que continuasse na prisão? Por que não usava o seu suposto poder para libertar o Anunciador?

Os íntimos não sabiam o que dizer. E prometeram responder no dia seguinte, uma vez realizadas as consultas necessárias.

Segundo. Por que os discípulos de Galileu não batizavam?

Também não houve resposta.

André visitava seus companheiros e lembrava a eles, constantemen­te, da necessidade de não entrar em rusgas com ninguém.

As súplicas do paciente e inteligente chefe foram atendidas em parte. Pedro e João Zebedeu eram os mais agressivos e, para entrarem em dis­cussões, não precisava muito...

Aquilo não teria fim...

A noite, depois de ouvir as questões levantadas pelos seguidores de João Batista, o Filho do Homem simplificou a solução:

- Eu tenho dito muitas vezes: nós estamos aqui para proclamar a imor­talidade da alma e mudar a face de Yaveh. Deus é um Pai. Isso é o que deveis responder. O resto é mundano, e é meu Pai quem cuida deles.

E Jesus se retirou para descansar.

Ninguém entendeu e reacendeu-se o debate entre os 11.

Eu também me retirei, desapontado. Aqueles homens estavam a anos-luz da mensagem do Galileu. O pior é que não houve acordo. Mes­mo após a morte eles não aceitariam a boa-nova, pelo menos a maioria...

O resto da semana não experimentou grandes mudanças.

Entrei na tenda branca certa manhã, por motivos de limpeza, e rece­bi uma pequena-grande surpresa.

Ao limpar o canto onde dormia o Mestre, acabei encontrando algo que já havia visto no pombal. E entendi por que o saco de viagem pesava tanto. Na cabeceira da esteira de palha que servia de leito eu encontrei a misteriosa almofada cilíndrica, feita daquela estranha pedra de cor verde.

Eu a acariciei de novo, comprovei o peso (ao redor de cinco quilos) e tentei descobrir a natureza do mineral. Não consegui. Mais adiante, quan­do aconteceu o que aconteceu, Eliseu me deu uma dica... Foi mágico.

Na sexta-feira, 24, retornando para o acampamento, durante o jantar, o Filho do Homem decidiu discutir uma questão de particular importân­cia: o que aconteceu durante os 39 dias de retiro em Beit Ids, não muito longe do meandro do Ômega. Ele explicou, muito por cima, as decisões tomadas na colina dos znun e aquilo que chamou de At-Attah-ani[23], o processo (?) integrador (?) das naturezas divina e humana do Galileu. Eles não entederam nada. Não os culpo. Eu tampouco entendi grande coisa.

O ronco de Pedro alertou o Filho do Homem. E os íntimos ficaram sem saber o que aconteceu com Ajashdarpan e "Despertar", o barco cons­truído por Jesus nas proximidades de Beit Ids.[24]

Que pena...

No domingo, 26, às 13 horas e 29 minutos (segundo os instrumentos da nave), houve um eclipse do sol moderado. Apenas dez por cento do disco solar estava escondido. Nada de importante, realmente, mas o evento não passou despercebido para nós que estávamos no Ômega. Os discípulos fica­ram preocupados. "Alguma coisa séria nos ameaça", disseram eles.

Tomé, o mais cético, tentou acalmar seus companheiros, mas todos riram dele.

Durante a refeição da noite, Jesus de Nazaré ouviu os comentários sobre o eclipse.

Todos os olhos foram erguidos para o céu. Entre as árvores, pudemos ver os milhares de estrelas: pulsantes, brancas, azuis e vermelhas. Elas pa­reciam felizes com a presença do Mestre.

Eu reconheci o cinturão de Orion e a Águia. Além disso, M-75 e o Cisne.

O Galileu permaneceu um tempo com os olhos emaranhados nas estrelas. Na verdade, todas brilhavam para ele, e eu acho que se acotovela­vam para serem vistas...

E, de repente, no silêncio do meio do acampamento, ouviu-se a voz de Bartolomeu, o "urso" de Caná.

- Mestre, o que são as estrelas?

Para a maioria dos judeus daquela época, o céu, ou raquia, era uma extensão "sem sentido", algo criado por Deus que não estava ao alcance do homem, tampouco ao alcance de sua compreensão. Algumas escolas rabí­nicas defendiam que o céu, especialmente à noite, era "a sacada dos mortos". Ali brilhavam as almas daqueles que tinham morrido e mereciam a recompensa divina. Toda vez que uma estrela cintilava, eles diziam, signi­ficava "eu estou aqui".

O próprio "urso" fez alusão a essas crenças, mas Tomé o interrompeu, rechaçando-as. O estrábico, como eu já mencionei, não acreditava em nada.

O Mestre interveio e repreendeu, amorosamente, Tomé.

Nada é o que parece. A realidade não é o que tu pensas...

Aquilo finalmente ia ficar interessante.

A realidade - prosseguiu o rabi - depende da mente do observador...

Nisso eu estava de acordo. E lembrei-me das ideias de Timothy Leary e sua defesa da cultura psicodélica: "O conceito de realidade depende de quem a observa". E assim nasceriam doutrinas como o idealismo, o anti-realismo ou o instrumentalismo. "Tudo o que vemos é pura construção mental."

E Jesus de Nazaré, percebendo que seus homens começavam a se perder, fez uso de uma imagem. Ele falou de um belo peixe azul, preso dentro de uma tigela de cristal. Os íntimos seguiam a narração com expectativa.

Pois bem, imaginai a visão do mundo que tem esse peixe... Ela tem alguma coisa a ver com a vossa visão do mundo?

Alguns responderam negativamente. Outros não sabiam.

E, ainda assim, as duas visões são reais...

E eles discutiram.

Até essa altura, ninguém tinha questionado sobre o ponto de vista de um peixe. Nem eu...

Jesus deixou que a discussão se esvaziasse. Então perguntou:

Quem está certo: o peixe ou vós? Qual é a realidade?

Não souberam responder. Apenas o "urso" tentou dar uma res­posta tímida:

Ambos, rabi.

O mestre assentiu com a cabeça. E acrescentou:

Em verdade vos digo, há tantas realidades quantas mentes existirem.

Tiago Zebedeu decidiu participar no diálogo, o que era raro:

Isso quer dizer, Mestre, que o Pai, bendito seja seu nome, é uma realidade que nos rodeia?

Jesus olhou para ele com admiração. Não poderia defini-lo melhor.

Algo assim, caro Tiago, algo assim...

E onde vive esse Pai Azul? - perguntou Felipe, sem parar de servir a comida. - Porque se supõe que ele tenha uma casa...

O Galileu não respondeu ao intendente. Continuava pensando na pergunta de Tiago. E murmurou, quase que para si mesmo:

Não foi a carne nem o sangue que te revelou esta verdade, Tiago, mas o meu Pai... Ele nos envolve, como o peixe é envolvido pelo mundo... Mas o peixe não sabe.

Felipe insistiu:

Senhor, eu perguntava se Abba tem uma casa...

Uma casa?

Sim, casa, como todos nós... Tu sabes, quatro paredes e um telhado...

Claro, Felipe. Abba tem uma casa, mas também tem milhões e mi­lhões de outras casas...

Como é isso? - indagou Mateus, intrigado. - Quer dizer que ele tem milhões de lares? Mas por que todo esse gasto?

Jesus sorriu, comovido.

Cada mente é a casa dele, eu já te disse.

Ele estava se referindo à "centelha".

Ele habita em vós desde os 5 anos de idade.

Felipe estava com essa ideia fixa:

Mas como é a sua casa de verdade?

Jesus respirou fundo. Ele olhou para o céu estrelado e eu pensei que estava procurando as palavras. Que trabalho tão difícil e apaixonante ao mesmo tempo!

O "urso" tentou ajudar:

Ele mora em uma dessas estrelas?

Sim e não...

Tentou se explicar:

Aquelas estrelas que tu estás vendo, e muitas mais, são o meu reino.

Todos ficaram boquiabertos. Não acreditaram nele.

Mas Jesus insistiu, enfático:

Eu já vos disse, meu reino não é deste mundo. Eu sou o Príncipe e o Criador desse grande império. Mas sou apenas um príncipe. Há milha­res e milhares de príncipes, assim como eu. E cada um governa um reino diferente.

Eles estavam mudos. Eu entendi, ao menos a metade. Algo que nós conversamos antes. Ele, Jesus de Nazaré, é o Príncipe, Criador e Deus de um universo (poderíamos dizer que de uma galáxia: a nossa própria). Mas há milhões e milhões de galáxias, cada uma com um Deus. E acima dos milhares de príncipes e deuses teriam outros deuses, mais notáveis, como pode ser o caso do Pai (Abba), do Filho e do Espírito da Verdade, entre outros. Se me é permitida a expressão, o Galileu, de acordo com esta hierarquia, não seria o Filho, tal como interpretado pela teologia, mas um dos "netos" de Abba.

Mas qual é a sua casa?

Felipe não se esquecia disso nem se estivesse preso e amarrado.

Além, caro Felipe, há uma ilha...

O Mestre apontou o firmamento.

Além? Onde?

Felipe e os outros seguiram a direção indicada pelo dedo indicador esquerdo de Jesus. Eu fiz a mesma coisa.

Ele apontava o céu noturno, mas os íntimos entendiam com dificul­dade. Eles não sabiam nada do cosmos nem de sua natureza nem sobre as distâncias. Jesus fez o seu melhor...

Por trás dessas estrelas - explicou (?) no centro do universo dos universos, há uma ilha de luz. Abba vive lá.

O Pai é um náufrago?

A observação de Bartolomeu aliviou as tensões.

De certa forma sim...

Jesus manteve o sorriso. Ele amava as questões do "urso".

Mas como é essa casa? Tem portas? Tem janelas? Existe um jardim? Será que vamos chegar a ela algum dia?

Jesus pediu calma. As perguntas de Felipe estavam se acumulando.

Eu não posso descrevê-la, da mesma forma que tu não podes des­crever a tua realidade ao peixe azul.

Felipe pareceu desapontado.

A minha palavra deve ser o suficiente. Ela é infinitamente melhor do que tu pensas...

Então já foste lá na ilha...

Sim, Bartolomeu, eu conheço o lugar. Ele existe. É tão real quanto esse fogo ou as árvores que nos abrigam. E todos chegarão a ela, em seu devido tempo...

Quanto tempo?

Quando tu morreres, deixarás de viver o tempo. Simplesmente chegarás lá...

Todo mundo? Faça o que fizer? Sendo bom ou ruim? Cumprindo ou não os mandamentos?

A pergunta múltipla de Mateus foi muito oportuna.

Jesus se limitou a assentir com a cabeça. Ele esperou uns segundos e disse:

Tu és imortal e, portanto, duplamente feliz...

Isso eu não entendi bem.

E foi nesse momento, tão animador e cheio de esperança, que perce­bemos aquele perfume no ar. Cheirava a terra úmida. Mas como poderia ser isso? Não tinha chovido. E então eu me dei conta. Ele estava transmi­tindo esperança e alegria. Ele cheirava a tintal...

Mensagem recebida.

Então tu és um pequeno Deus...

A nova questão do "urso" surpreendeu o Filho do Homem.

E ele sabia como encaixar a piada.

Sim, e muito pequeno se comparado com o Pai...

Pequeno, eu pensei comigo, mas extraordinariamente misericordio­so. Pequeno? Mas há deuses pequenos?

Eu estou vendo um Deus - interveio Mateus acertadamente. - Mas dize-me, rabi, como eu posso ver o Abba de que tanto falas?

Tu não podes, por enquanto...

Por quê?

Os roncos de Pedro marcaram o final da conversa.

Amanhã vou dizer por que tu não podes ver...

Mateus aceitou, assim como o restante de nós. Estávamos exaustos.

Naquela noite, precisei de tempo para conciliar o sono e dormir. O que foi dito pelo Galileu me encheu de dúvidas e de esperanças, ao mes­mo tempo. E lembrei-me do sonho singular da janela. "E hora de voltares à realidade." Sim, eu concordava com o Homem-Deus, existem infinitas maneiras de olhar a realidade e, provavelmente, todas elas são certas. Eu tinha aprendido isso com a física quântica. Sua realidade não tem nada a ver com a realidade da física clássica. E, no entanto, ninguém pode negar nem uma nem outra.

Senti uma dor profunda...

Aquele homem maravilhoso seria torturado e executado. Como isso podia acontecer?

Na segunda-feira, 27 de janeiro, enquanto tomávamos o café da manhã, Mateus recordou ao rabi a pergunta que havia ficado pendente no dia anterior.

Jesus deixou de ordenhar a Cipriota, colocou o balde com leite sobre a grama e pediu ao discípulo que o acompanhasse. Meio curioso, fui atrás deles.

Jesus procurou uma clareira.

O dia estava esplêndido. Céu azul e sol jovem e radiante.

Eu te disse que não podes ver o Pai neste instante, lembra-te? Mateus assentiu. Então Jesus replicou:

Olha o sol. Contempla-o...

Não posso, Senhor. Vai me cegar.

Pois então lembra, Mateus: o sol é só um humilde servidor de Abba. Se é difícil para ti contemplar o sol, como poderias ver o Criador dele?

Mateus se deu por satisfeito.

E a vida continuou seu curso. O número de seguidores continuou crescendo, até o ponto em que o dia de sueto (dia de folga) teve que ser suspenso. Não se davam por saciados. Todos desejavam saber. Os discípu­los falavam e ensinavam (a seu modo), mas cada vez havia mais gente na margem do Artal. No dia 31, sexta-feira, quando Judas Iscariotes regressou, contei mil pessoas. Ali tinha de tudo: fiéis seguidores do Mestre, ven­dedores de peles, farsantes, discípulos do Batista, informantes, traidores, aproveitadores e desocupados vindos dos quatro pontos cardeais.

André estava assustado, e com razão.

Também vi a família RutaJ, os "Polvos", com Nü, a paralítica, e seu irmão Har. Mantiveram-se à distância, perto das lajes.

O Mestre seguiu sua rotina (?). Toda manhã desaparecia na compa­nhia de seu cachorro dos olhos oblíquos. "Necessitava conversar com o Pai." Era o que Ele dizia.

E chegou o fatídico sábado, 12 de fevereiro (ano 27).

Ninguém imaginou o que estava prestes a acontecer. Ou imaginou?

Depois de ter passado a "hecatombe", os discípulos voltaram com toda a força: "foi anunciado pelos céus..." Eles se referiam ao eclipse do sol no domingo, 26 de janeiro. Mas não... A causa do desastre foi outra.

Calculo que eram 15 horas. O sol se deixava cair pelo oeste. O crepús­culo chegaria às 17 horas, 9 minutos e 7 segundos (TU [Tempo Universal]).

Felipe, os gêmeos e quem isto escreve nos encontrávamos em plena preparação do jantar. O Galileu não demoraria a voltar.

E nisso estávamos quando, de repente, apresentou-se ali Bartolomeu.

Chegou cambaleante. Gemia.

A túnica, sempre impecável, se mostrava manchada de sangue.

Caminhou alguns passos e acabou caindo.

Corremos até ele:

O que houve? - Felipe o interrogou. - O que está acontecendo?

É a guerra! - resmungou. - A guerra!

Que guerra? Do que estás falando?

E o "urso" apontou na direção das lajes negras.

A guerra!

E perdeu os sentidos.

Felipe correu até a reda, em busca de remédios e de seus óleos essenciais. Os gêmeos, sem falar nada, empreenderam uma corrida até a mar­gem em que se achavam as mencionadas lajes. Que diabos estava acontecendo? Intuí algo.

E fui atrás de Tiago e Judas de Alfeu.

Na metade do caminho eu me dei conta: não levava comigo a "vara de Moisés". Não importava. Segui adiante.

Ao alcançar o acampamento dos seguidores, ouvi gritos. Os gêmeos se esgueiraram entre as tendas e tropeçaram em várias mulheres e crianças. Tudo era confusão.

As pessoas corriam com os braços para cima e gritavam sem parar. Ao chegar ao Artal fiquei atônito. Não sabia para onde olhar. Brigavam entre eles com bastões, pedras e vasilhas de metal. O que era aquilo?

Um numeroso grupo de seguidores do Batista aparecia no meio das águas, golpeando sem piedade os discípulos. Eram 30 ou 40 contra oito. Eles os estavam massacrando. Pedro e o restante cobriam a cabeça como podiam. Os gritos das mulheres vinham da laje. Vários cachorros latiam, não menos enfurecidos.

E os bastões continuaram caindo sobre os discípulos. Vi o Zelote defendendo-se aos chutes.

André lutava para impor-se entre os agressores e seus companheiros, mas o êxito não estava em sua companhia. Recebeu pancadas e mais pan­cadas, como os demais.

Senti-me impotente. Não devia fazer nada.

Os gêmeos entraram no tumulto e, como puderam, arrastaram os amigos.

Fugiram na correria, tropeçando e amaldiçoando.

Pedro teve que ser assistido por seu irmão. Mancava.

As pedras voaram. A maioria se estraçalhou nos troncos das davidia.

O grupo se perdeu no arvoredo.

Eu permaneci alguns segundos no mesmo lugar, imóvel e desconcertado.

Então vieram até mim, e a chuva de pedregulhos se dirigiu para quem isto escreve.

Fugi como um coelho.

Regressei ao acampamento, ofegante.

Não nos seguiram.

O espetáculo era desolador.

Felipe, que tentava deter a hemorragia do "urso", não sabia o que fazer. Gritava para todo mundo.

Os discípulos se deixaram cair sobre as plantas. Gemiam e choravam.

O Iscariotes e o Zelote revolviam o interior da carruagem. Procura­vam as espadas.

Tratei de proceder com alguma ordem.

Primeiro examinei os feridos.

Havia sangue por toda parte.

Felipe pedia explicações ao "urso" e este, um pouco recuperado, fa­lava de provocação.

Os seguidores de Yehohanan haviam insultado o Mestre e a sua fa­mília. Disse que "aqueles desgraçados chamaram Maria, a mãe, de prosti­tuta". Então, segundo Bartolomeu, começou o alvoroço. Pedro não gostou da afronta e se arremeteu contra alguns dos fanáticos do Batista. Assim os "enquadraria"...

Depois se formou aquele alvoroço.

Os esforços de André, e de outros, para acalmar os ânimos, como disse, não serviram de nada.

O resultado de uma primeira e superficial inspeção foi o seguinte:

Pedro: duas costelas trincadas ou fraturadas, um talho no alto da tes­ta, hematomas por todo o corpo e uma possível lesão no joelho direito.

João Zebedeu: múltiplas contusões (a maioria de escassa importân­cia) e dois dedos do pé esquerdo esmagados.

Tiago Zebedeu: três dentes quebrados.

Tomé e Mateus: milagrosamente incólumes.

O Zelote: pancadas leves e o septo nasal esmagado.

O Iscariotes não permitiu que eu o examinasse. Pelo que pude ava­liar, só recebera pontapés e empurrões. O olho esquerdo se mostrava roxo.

André: inúmeros hematomas e o lábio superior arrebentado.

Bartolomeu: recebera golpes, várias mechas da barba foram arranca­das e possivelmente o tímpano direito fora estourado.

Quando André viu o Iscariotes e o Zelote com as gladius nas mãos, perdeu o controle dos nervos. Encarou os discípulos e lhes arrebatou as espadas, chamando-os de "inconscientes".

Ninguém protestou.

As gladius voltaram para a reda, e André e os gêmeos colaboraram em cuidar dos feridos e providenciar as ataduras dos que sofreram contusões.

Tudo ali eram gemidos e gritos de vingança.

Por sorte o Galileu não estava lá.

E pensei: "Era de imaginar. Cedo ou tarde aconteceria o enfrentamento..."

Que pensaria o Mestre quando voltasse de suas meditações e con­templasse o panorama?

Ajudei no que pude. As lesões eram leves e isso me permitiu acudir com a farmácia e os medicamentos disponíveis que eu tinha. Felipe sabia, e fez os procedimentos corretamente.

Agora convinha esperar. Os mais machucados eram Bartolomeu e Pe­dro. No caso do primeiro, não havia solução. Perdeu parte da audição. Pedro se recuperaria. Era questão de tempo e de imobilização.

E me assaltou um inquietante pensamento: no ano 30, quando co­nheci o "urso" de Caná, Bartolomeu não apresentava problemas de audi­ção. Que estranho...

Finalmente, ao entardecer, o Galileu apareceu com Zal.

Fez-se um silêncio denso.

O panorama era dramático: cabeças com ataduras, machucados, res­tos de sangue...

Jesus viu e escutou. Depois, sem perguntas, sem reprovações, Ele foi se aproximando de cada um dos feridos. Acariciou-os e consolou-os.

Todos, em maior ou menor medida, estavam perplexos. O Filho do Homem poderia repreendê-los. Eles sabiam até que ponto a violência o re­pugnava. Sem dúvida, Jesus se comportou com doçura. Ninguém percebeu uma má expressão em seu rosto ou qualquer sinal de desgosto ou rejeição.

O Iscariotes e o Zelote foram os que mais ficaram confusos.

O Mestre trocou impressões com André e com o intendente, e o che­fe deu uma ordem sucinta:

- Vamos embora!

As tendas foram desmontadas sigilosamente e Pedro foi obrigado a subir no carro. Com a primeira vigília (eram 11 da noite), o grupo se pôs em movimento e nos distanciamos do Ômega.

Ninguém percebeu a nossa fuga; porque disso se tratava: uma fuga, sob todos os aspectos. A primeira de uma dramática série...

Naturalmente, nada disso foi registrado nos textos evangélicos.

Nós nos dirigimos para o sul.

Cruzamos os adormecidos povoados de Mehola, Ghirur, Khiraf e Coreae e, por último, nos detivemos ao pé das ruínas de El Makhruq, "o queimado",[25] a uma curta distância de outro lugar que eu conhecia de sobra: Damiya, na confluência do Jordão com o rio Yaboq.

Ali vimos o amanhecer. Havíamos percorrido 43 quilômetros e o fizemos praticamente em silêncio. O grupo parecia, física e moralmente, abatido.

Felipe não demorou em se dar conta. Nós nos encontrávamos ao re­lento, ao pé de umas ruínas e muito próximos ao movimentado caminho que unia a cidade de Filadélfia, a leste, com o vale de Faria, a oeste.

Consultaram o Galileu e este, sem hesitação, recomendou que a ex­pedição se dirigisse para o outro lado do Jordão.

Foi assim que aparecemos em outra familiar paragem: o chamado vau das Colunas[26], a pouco mais de 300 metros da citada povoação de Damiya, no território de Antipas (a Pereia).

Faltava pouco para a terceira hora (nove da manhã) quando Felipe deteve a reda perto da "praia dos seixos".

O lugar se achava deserto.

Estávamos esgotados e mortos de sono.

André aguardou instruções.

O Mestre pediu calma. Nada de tendas, pelo menos por hora.

Pensei que se tratasse de uma parada "técnica". Questão de uma ou duas horas. Eu me equivoquei.

Ignorava os planos do Galileu. Supus que tentava dirigir-se à Cidade Santa. Dali, das Colunas, o mais lógico era continuar para o oeste e tomar o caminho de Jericó e de Jerusalém. No entanto, estávamos longe, e tudo isso eram apenas suposições.

Jesus pegou a bolsa de viagem, selecionou uma das corpulentas tamargueiras do Nilo, perto da água, e se dispôs a dormir um pouco; Zal tombou a seu lado.

Pareceu-me uma excelente idéia.

O resto do grupo, agradecido, fez o mesmo.

Eu permaneci ao pé do carro, com a Cipriota, atento. O instinto me prevenia. Algo estava prestes a acontecer...

Uma hora depois, os discípulos se encontravam praticamente ador­mecidos. André tinha estabelecido turnos de vigilância. Estava na vez de Felipe, quando de repente vimos Pedro pular da reda. Claudicava. Con­templou Jesus e seus companheiros e se aproximou sigiloso de seu irmão André. E, com lágrimas nos olhos, lhe comunicou que abandonava os em­baixadores do reino. André conhecia bem o errático e volúvel Pedro e o olhou com incredulidade.

O Mestre continuava dormindo, a uns 50 passos.

André tentou dissuadi-lo, e o resto dos discípulos, que acordaram pelo som da conversa, terminaram se integrando ao assunto.

Pedro lhes informou de tudo, afirmando que sua decisão "havia sido longamente pensada..." (!).

Eu continuava assustado.

Foi inútil. Ninguém conseguiu convencê-lo.

Pedro carregou sua trouxa e, arrastando a perna direita, se dirigiu para o caminho de terra vermelha, em direção a Damiya.

Em questão de segundos, Judas Iscariotes, o Zelote e João Zebedeu pegaram suas respectivas bolsas e foram embora atrás dos passos de Pedro.

Estava sendo testemunha da primeira grande crise do colégio apos­tólico. Certamente, nenhum evangelista o menciona.

André afundou a cabeça entre as mãos e começou a soluçar. Os discípulos estavam consternados. Ninguém soube o que dizer ou o que fazer. O Mestre dormia, feliz.

Assim continuamos até o meio da tarde.

Ninguém se atreveu a despertar o Filho do Homem. Ninguém se preo­cupou em fazer uma fogueira, nem com as tendas ou com o jantar.

Tínhamos o coração apertado.

Como o Galileu reagiria?

O Filho do Homem acabou despertando. Deu um passar de olhos em sua gente e soube que algo acontecia.

André, o chefe, se adiantou e o pôs a par da situação.

Jesus, sério, deu algumas ordens.

Ficaríamos aquela noite no vau, mas nada de tendas. Convinha pas­sarmos despercebidos.

Nessa noite, Jesus tentou animar seus companheiros. Não era fácil. E lhes disse:

Confiai...

Aquela palavra era especialmente gratificante para quem isto escre­ve. Mas os discípulos não sabiam de que Ele falava.

Confiai... O Pai tudo sabe. Tudo na vida acontece por algum bom motivo, inclusive o mal.

Bartolomeu inseriu uma pitada de humor, sem querer:

Disseste algo sobre um pau?

André cuidou de consertar:

Pau não, mal.

Pau mal? Não entendo...

André esqueceu o "urso".

Jesus sabia e escolheu permanecer no vau das Colunas. A parada nes­se lugar se prolongou por três semanas. Não levantaram as tendas.

Se não fosse pela ausência dos quatro discípulos e pelo permanente receio de sermos descobertos, aqueles dias teriam sido extraordinaria­mente aprazíveis. Para dizer a verdade, o céu nos concedeu um respiro.

Jesus se dedicou a passear e a meditar, sempre na companhia de Zal e de um de seus discípulos. Após o acontecimento no rio Artal, André não permitiu que o Galileu se distanciasse sozinho do vau. Um dia era incumbência de Tiago Zebedeu, outro dia de cada um dos gêmeos, outro, do chefe, e também deste explorador... Felipe foi o único que não acom­panhou Jesus. Suas obrigações o impediam.

As provisões foram minguando, e de forma alarmante.

Contudo, André proibiu que comparecêssemos ao mercado de Damiya.

Resistiríamos.

O lugar favorito para passear eram as acácias do Karu. Só era preciso vadear as águas e perder-se no imenso e silencioso bosque. Era o local que chamavam de Gaon. Ninguém o percorria. Este explorador o percorreu em várias ocasiões, à procura do Batista.

Tive novas e interessantes conversas com o Homem-Deus, todas inéditas.

Ao entardecer nos reuníamos ao redor do fogo e trocávamos im­pressões, ao mesmo tempo em que saboreávamos as últimas lentilhas e a escassa carne salgada, guardada por Felipe como ouro em pó. Carecíamos de pão, mas nos acostumamos.

Foi ao longo de um desses jantares que saiu à luz o tema da violência. Ninguém mencionou a briga no Ômega, entretanto as imagens flutuavam no pensamento de todos. Qual era a opinião do Mestre?

E Jesus abriu seu coração, explicando por que sentia aquela repug­nância natural a qualquer tipo de violência (física ou verbal):

Utilizar a violência - resumiu - é baixar de nível até o mais primi­tivo do ser humano... Só na imperfeição há violência... Quando regressar­des à realidade, tudo isso vós parecerá um sonho ruim. E se extinguirá lentamente. A passagem pelo mundo será praticamente esquecida...

Mas, Mestre - interviu André -, como mudar isso? Como terminar com a violência? O homem nasce com ela... O homem é uma criatura violenta...

É questão de tempo, André. A violência vem do medo. Vós deveis agora tentar modificar isso. A confiança no Pai deve substituir o medo. Só assim eliminarão a violência.

Jesus disse muitas coisas relacionadas à violência.[27] Todas bem assertivas e proféticas. Creio que Mateus, André e o "urso" compreenderam a fundo essa questão. Tiago Zebedeu continuou mudo e pensativo. Era o mais enigmático de todos.

Aproveitei aqueles agradáveis dias para visitar a prisão do Cobre. Nakebos, o alcaide, se achava ausente. Poderia ser encontrado no palácio-fortaleza de Maqueronte, no mar de Sal. Eu sabia e, de certo modo, eu me alegrei. A presença do homem de confiança do tetrarca na região de Damiya teria sido um perigo. Cedo ou tarde ele se inteiraria da nossa proximidade...

E foi em um de nossos passeios pelo bosque das acácias (pelo que posso recordar, era domingo, 23 de fevereiro) que presenciamos algo - como chamá-lo - estranho?

Aconteceu durante a manhã. O dia se achava nublado. A temperatu­ra estava moderada.

E, de repente, Jesus se deteve. Melhor dizendo, quem se deteve pri­meiro foi Zal. Cheirou o chão e começou a latir furiosamente, com o pelo eriçado e o rabo levantado e hostil.

Ele havia detectado algo.

O cachorro se lançou então em direção a uma das acácias e ali per­maneceu, latindo sem trégua, com o pelo erguido e os olhos oblíquos fixos na ramagem.

Explorei os galhos de flores e os ramos, mas não distingui nada de incomum.

Jesus, como eu digo, se deteve à frente de umas singulares pegadas.

Aproximei-me e as contemplei em silêncio.

Eram circulares, grandes, de uns 15 centímetros de diâmetro e com uma profundidade assombrosa (ao redor de dez centímetros), tendo em conta que nos achávamos em um terreno seco e bem batido.

Pensei em um felino. Tinha que ser enorme, com um peso superior aos 300 quilos...

Na selva do Jordão, como já mencionei, havia leões, leopardos e, so­bretudo, javalis.

Não sei por quê, mas pensei na segurança do Mestre.

Depois, ao examinar as pegadas com mais detalhe, compreendi que não se tratava de um felino, tampouco de um porco selvagem. As pegadas formavam uma fileira e se dirigiam á árvore diante da qual o cachorro de cor de estanho continuava latindo. Um javali, ou um leão, não deixavam esse tipo de pegadas em fileira. Os javalis, além disso, não subiam em árvores.

Não sabia o que pensar.

Encaminhei-me à acácia e investiguei a ramagem de novo.

Alguma coisa se escondia no topo da árvore, obviamente.

Zal estava furioso. Poucas vezes o vira tão alterado.

E me veio à mente a lenda do "homem vermelho", o diabo dos manguezais: uma criatura provavelmente fantástica, capaz de voar, e com os olhos vermelhos. Chamavam-no de Adam-adom. A luz avermelhada que projetava dos olhos - isso diziam os felah - lhe permitia orientar-se na escuridão. Pobre daquele que estivesse caminhando e tropeçasse com ele...

O Galileu, de cócoras, continuava olhando as pegadas; regressei ao seu lado e apalpei o terreno. Pressionei com força, mas não consegui afun­dar a terra; nem mesmo um milímetro. Aquela criatura pesava mais do que eu imaginava.

Somei 15 marcas. Algumas mais claras apresentavam as pegadas de uns dedos afiadíssimos, como se o animal (?) dispusesse de unhas ou gar­ras retráteis.

Tive um mau pressentimento.

Jesus me observou, sério, deu uma piscadela, se levantou e se dirigiu até a acácia onde Zal estava latindo. Eu o vi olhar para o alto. Depois aca­riciou o cachorro, tranquilizou-o e seguiu o seu caminho.

Zal voltava a olhar de vez em quando e ladrava, apontando a acácia.

Apressei-me a seguir o Mestre.

Não sei explicar. Em determinado momento, quando eu me achava ao pé da árvore, os pelos do meu corpo se arrepiaram. Que havia lá no alto? O que quer que fosse, nos observava...

Não fizemos nenhum comentário, salvo a piscadela, entretanto am­bos sabíamos...

Finalmente se produziu o inevitável.

No dia 26 de fevereiro, quarta-feira, começou a chegar gente ao vau das Colunas. Os discípulos estavam perplexos. Eram seguidores do Filho do Homem. Como descobriram onde estávamos? A pergunta era estúpi­da. Simplesmente, não importava como.

Eram 40 ou 50.

Acamparam na praia dos seixos brancos e se dirigiram a André, in­teressados no Galileu.

Jesus não estava presente. Achava-se no bosque das acácias em seu costumeiro passeio matinal. Desta vez quem o acompanhava era Mateus.

André se desculpou como pôde e saiu correndo à procura do rabi.

Essa noite, pela segunda vez, empreendemos a fuga.

Antes de partir, Jesus aconselhou André que tomasse o carro e se dirigisse ao yam para procurar seu irmão Pedro e os "desertores". Tomé o acompanharia.

Felipe repartiu as escassas provisões entre o grupo e sigilosamente, como delinquentes, nos dirigimos para o sul. André e Tomé se encami­nharam para o norte.

Nós nos veríamos na casa de um tal Kbir, na aldeia de Betânia, perto do Jordão (não confundir com a outra Betânia, próxima a Jerusalém).

Tive uma estranha sensação ao ver os discípulos silenciosos e atemo­rizados, a caminho do vau do Josué. O Mestre, como sempre, caminhava na frente, com o fiel Zal. Fazia isso com pressa. Atrás Dele seguiam Felipe com a Cipriota; os gêmeos; o "urso", surdo e manquejante; Tiago, mudo; e Mateus Levi, fazendo contas mentais. O dinheiro se esgotava...

Que novas aventuras nos aguardavam em Betânia?

A cada hora, mais ou menos, descansávamos.

A viagem, de cerca de 37 quilômetros, foi relativamente rápida e sem tropeços.

Ao alvorecer avistamos o nahal Hoglah. Desembocava no Jordão com pressa. E curioso: também fugia.

Cruzamos a ponte de troncos e deslizamos, velozes, pela frente do monumento das "12 Pedras". O schomer dos cabelos loiros continuava na mesma posição, atento às chamas amarelas da menorah.

O sol se entretinha no alto do tel Kharrar. Estava colorindo o local...

Quantas recordações!

Deixamos para trás a pequena aldeia do El Haghtas, com suas colu­nas de fumaça azul e seus ocres entediantes, e Jesus de Nazaré se perdeu entre hortos e palmeiras. Nós o seguíamos com dificuldade, já que conhe­cia o lugar com perfeição.

A um quilômetro do Jordão apareceu a aldeia de Betânia.

Era um pouco maior que Saidan, porém mais cansada e descuidada. Tudo era barro vermelho, canas, pó, sujeira, moscas em pencas, cachorros desconfiados e famélicos, árabes de olhos profundos e crianças choramin­gando em algum lugar.

Ninguém prestou atenção em nós. Betânia era um lugar de passa­gem. Numerosas caravanas do sul e do leste faziam paradas na aldeia. Os habitantes locais nem olhavam.

O Mestre atravessou a povoação e se dirigiu para fora.

Ali, entre palmeiras e mais palmeiras, erguia-se a fazenda de Kbir, um árabe que fazia honra a seu nome (Grande). Tudo em Kbir era des­proporcional. Pesava 200 quilos. Media quase dois metros de altura e suas mãos pareciam presuntos.

Era um velho conhecido do Mestre. Fizeram amizade em uma das viagens secretas do Galileu.

Kbir era um nobre de estirpe e de coração. Recebeu o Filho do Ho­mem com três beijos e rogou que aceitasse sua hospitalidade.

Nós nos acomodamos na parte de trás da casa, entre as palmeiras. Era uma fazenda enorme, com mananciais próprios, que Kbir chamava de "Selva". Era preciso percorrê-la a cavalo.

Felipe estava em glória. Isso sem dizer a Cipriota.

Instalamo-nos e eu pensei: "Aqui sim estamos a salvo..."

Sim e não.

Jesus falou a sós com o arab. Imaginei que lhe pôs a par da situação.

Kbir era casado. Tinha cinco esposas e havia sido chefe de escaladores, igual a Belsa, o persa do sol na testa.[28]

Durante dois dias se ocupou, orgulhoso e feliz, de nos mostrar suas posses. Conhecia cada palmeira. Ele as chamava cada uma por seu nome. Ele sabia tudo sobre tâmaras. Era seu negócio.

Mostrou-nos seus armazéns.

As tâmaras mais suaves e adocicadas eram destinadas aos mais ve­lhos, aos anciãos.

O resto - que chamavam de blah, deliciosamente ásperas - era des­caroçado, secado ao sol e armazenado em cestas ou ânforas. As tâmaras saíam da "Selva" e eram exportadas para meio mundo. Tibério e Antipas as exibiam permanentemente em suas mesas.

Também fabricavam caldas e sucos. Deliciosos.

Só a fazenda de Kbir produzia mais de cem toneladas de tâmaras por ano.

Da palmeira se aproveitava praticamente tudo.

Quando um dos exemplares morria - geralmente devorado pela "mor­te branca" -, Kbir chorava e com ele toda a sua gente. A palmeira era cor­tada e transportada com grande respeito para o lado mais profundo da fa­zenda. Ali era "desvestida" (só na presença de mulheres) e aproveitada ao máximo.[29]

No sábado, dia 1º de março, Jesus anunciou André seu desejo de abandonar a fazenda e de retirar-se uns dias para meditar e entrar em conexão com Abba. O chefe ficou preocupado. Ele não gostava que o rabi caminhasse só. E aceitou, com uma condição: que Jesus fosse acompanhado, em todos os momentos, por um de seus íntimos. O Galileu aceitou e, por sorteio, quem ficou com a incumbência foi Mateus.

Ao sair da "Selva", o Filho do Homem fez um gesto para que eu fosse com ele. E assim eu o fiz. Eu o acompanhei.

Deveria ser perto da terceira hora (nove da manhã) que, sem despe­didas, abandonamos Betânia. Kbir não sentiu estranheza. Já conhecia o singular comportamento de seu amigo, o rabi da Galileia.

A última coisa que vi foi Felipe repintando a Cipriota.

Este explorador se apegou com enorme carinho à cabra...

Jesus caminhou, alegre.

Mateus perguntou se eu conhecia o nosso destino. Eu não sabia. Nin­guém entre os discípulos sabia de nada, como sempre.

Assim era o Filho do Homem: imprevisível e enigmático.

Para onde ele nos levava desta vez?

Surpresa.

Rodeamos Jericó, uma das cidades mais antigas do mundo[30], e dei­xamos para trás a multidão que entrava e saía sem cessar da cidade. To­mamos o pequeno caminho que se abria para a passagem sul da muralha, entre palmeirais e plantações de bálsamo, e então avançamos para o oeste.

Jesus sabia.

Caminhava à frente com Zal.

A trilha, branca, se despediu dos verdes e começou a subir pelos con­trafortes do deserto de Judá. Tudo mudou.

A paisagem se tornou vermelha e áspera, e o caminho começou a me fazer pensar: subia ou não subia? Subiu, claro, porém o fez serpenteando e evitando uma maré de pedras calcinantes. A vegetação desapareceu, suponho que aterrorizada ante aquele sol implacável e mais perto do que nenhum outro.

Jesus usava a faixa branca que prendia os cabelos. Sinal de viagem longa...

Estava errado.

Depois de quase duas horas de caminhada, quando havíamos per­corrido oito quilômetros desde Jericó, o Mestre se deteve.

Mostrou um dos cumes que se levantava à nossa direita e comentou:

- Ânimo!... Ali dormiremos...

Mateus e eu nos olhamos resignados. E fomos atrás Dele.

Que demônio se havia perdido naquele lugar?

Estávamos no meio do nada. Nada? O que eu estou dizendo? Aquilo era muito além do nada...

Ao retornar ao "berço", marquei as posições e soube que havíamos subido no alto de um penhasco vermelho e calcário chamado Makkuk, de 345 metros de altitude. Ao seu redor vigiavam outros irmãos, igualmente nus e abrasados, de 153, 300, 313 e 500 metros de altura, respectivamente.

Em quilômetros em volta, ali só se distinguiam os azuis distantes e prometedores, e o vermelho que rugia no deserto. O verde, como eu disse, havia fugido.

Também me equivoquei.

E marcava a nona hora (três da tarde), faltando duas horas e meia para o ocaso, quando coroamos por fim aquele suplício. Suávamos e respiráva­mos com dificuldade. O Mestre, em contrapartida, parecia como novo.

Zal nos olhava com os seus olhos oblíquos e pensava: "Pobres coitados..."

Como disse, no topo outra surpresa nos aguardava...

O mestre caminhou, decidido, até o centro da planície que formava o cume do Makkuk.

E o vento começou a soprar, como eu posso dizer, movido pela curiosidade.

O primeiro elemento que distingui foi uma família de pequenas árvo­res, de uns cinco metros de altura, de um verde espesso e bem entrelaçado.

Aquilo era um milagre...

Porém, eu não havia visto tudo.

O Mestre se aproximou das árvores, deixou sua trouxa no chão e se ajoelhou em frente a um grosso canal de água.

Mateus e quem isto escreve corremos. Estávamos sedentos.

Mas de onde saía aquele manancial?

Eu me equivoquei. Não era um e sim dois canais de água.

Brotavam em uma rocha lisa e formavam uma hud ou piscina natu­ral. As árvores - que eram advindas da família dos "pilriteiros" - viviam à custa daquele presente dos céus. Eram Crataegus, da família das rosáceas, com centenas de diminutas flores brancas, com uma característica que me deixou atônito, já cantadas em seu tempo por Teofrasto.

Mas esse achado chegaria mais tarde...

Dei uma olhada, como é do meu costume.

Estávamos sós. E pensei: "Você é redondamente idiota... Quem po­deria habitar naquele penhasco, esquecido da mão de Deus?"

Perdido sim, mas não tanto...

A rocha da qual emanavam os mananciais era igualmente singular. Aparecia colonizada por liquens que a vestiam de ouro, de branco e de um vermelhão aceso. Examinei-a com curiosidade. Era uma interessante mis­tura de liquens "vagabundos", não sujeitos ao substrato e que o vento arrastava como diminutas plantas que rodavam, e outros "sócios" que não soube identificar e que formavam uma perfeita simbiose.[31] Alguns me faziam re­cordar os "soldados britânicos", descritos por Ahmadjian e Vernon.

Era como se o Pai tivesse se divertido em pintar a rocha em seu tem­po livre...

Não descobri nada mais na parte de cima do Makkuk e não era pou­co: um paraíso de brinquedo no meio do nada...

Jesus nos animou para que fôssemos nos refrescar.

Tiramos a roupa e desfrutamos de um bom banho.

O Mestre parecia feliz e recompensado.

O jantar foi inesquecível: tâmaras, queijo, frango frito com mel e pas­sas de Corinto, sem sementes, outra "fraqueza" do Filho do Homem. As passas foram um detalhe de Felipe, que se fazia presente em tudo.

E eu quase esquecia: além do delicioso jantar... estrelas. Mais de oito mil. Fartamo-nos de frango e de estrelas.

O Mestre respondeu às perguntas de Mateus.

Por que estava ali?

Jesus foi o mais explícito que podia ser:

Subi até aqui para conhecer a vontade de Abba...

Mas como fazes isso?

Me isolo e escuto.

Eu sabia que havia algo mais, mas o Mestre desviou a conversa. Não era o momento...

E foi nesse instante, com a escuridão caminhando nas pontinhas dos pés vinda por cima do Makkuk, que notei aquela singular característica dos pilriteiros.

No início pensei que estivesse alucinando, mas não...

As pequeninas flores brancas dos Crataegus, que deveriam perma­necer fechadas com a escuridão, se achavam abertas, e de que forma! Em pequenos intervalos de tempo elas se fechavam sobre si mesmas e volta­vam a se abrir.

Parecia que dava para escutá-las.

A lua se mostrava no céu na fase crescente.

Coloquei-me perto de uma das pequenas árvores e verifiquei que não sonhava. As flores, hermafroditas, reunidas em corimbos, se abriam e se fechavam ritmicamente. Eram milhares de pétalas subcirculares, abrin­do e fechando...

Só achei uma explicação: os pilriteiros estavam submetidos ao co­nhecido efeito hemastópico. A crescente umidade noturna provocava essa reação, já referida, como disse, por Teofrasto, e algum tempo depois por Dioscórides.[32]

Foi nessa noite, enquanto Jesus falava sobre o benéfico Pai Azul e os pilriteiros bebiam orvalho, que voltei a experimentar aquela agra­dabilíssima sensação: o lugar ficou saturado por um intenso aroma de sândalo branco.

Como podia ser? Ali não crescia sândalo...

Deduzi que eram a paz interior e a serenidade que flutuavam no am­biente. Ele as transmitia...

No domingo, 2 de março (ano 27), o dia amanheceu às 6 horas e 4 minutos (TU). O alvorecer veio brilhante e violeta.

Jesus se asseou no hud, comeu alguma coisa no café da manhã, amar­rou a faixa branca na cabeça e saiu com Zal.

Quando Ele estava prestes a desaparecer ao longo da borda de cima, voltou-se para Mateus e a este escritor e gritou:

- Shalom! (Paz.)

E nós o vimos descer pelo caminho estreito que tínhamos galgado para o topo da Makkuk.

Nunca soube para onde Ele ia, tampouco perguntei. Eu tinha vivido uma experiência semelhante no Hermon, a montanha sagrada. Ele desa­parecia todas as manhãs e voltava com o pôr do sol. Ele dizia que falava com Abba, e eu acreditava.

Foi assim que programou toda a sua vida, nos mais ínfimos porme­nores. Eu nunca vi um ser humano com tal grau de confiança (muito mais do que a fé) no bom Deus, isto é, no Pai. Ele não fazia nada que não es­tivesse sujeito, anteriormente, à vontade de Abba. O que eu chamei, no momento, e com razão, de "o princípio Ômega".

O que eu poderia fazer? Nós tínhamos o dia inteiro pela frente e ne­nhuma ocupação séria, exceto os preparativos do jantar.

Decidi conversar com o discípulo.

Mateus agradeceu. Sentia falta dos seus, em especial de Telag, o me­nino com síndrome de Down.

Eu conheci muito sobre sua infância, sobre sua paixão por gatos, so­bre sua fascinação por números e matemática em geral e sobre o seu cal­vário após o divórcio de sua primeira esposa.

E nisso nós estávamos quando, mais ou menos na décima (quatro da tarde), ouvimos vozes.

Nós nos inclinamos na direção da borda do cume, bastante alarmados.

Pelo pequeno caminho valente se aproximava um grupo de dez homens.

Nós não vimos Jesus.

Quem eram eles? O que pretendiam?

Corri para o pé das árvores e agarrei a "vara de Moisés".

Mateus tranquilizou-me, em parte:

- Eles não estão armados...

Saudaram, cordiais.

Cinco eram orientais (eu não sei se eram japoneses). Os restantes, caucasianos. Eles não pareciam judeus.

Eles conversaram entre si em koiné (grego internacional).

Todos estavam vestidos de branco.

Os orientais prendiam suas longas cabeleiras em volumosos coques. Usavam calças até os joelhos, médias, e arrematavam os coques com uma espécie de solidéu que chamavam de tokin. Todos agitavam seus respecti­vos leques amarelos e negros e tinham ao pescoço três ou quatro conchas penduradas, brancas e brilhantes.

Ajoelharam-se e, em seu idioma, entoaram o que parecia ser uma oração. Depois, ao conversar com eles, foram me explicando.

Primeiro solicitaram permissão à montanha (?) para pisar em seu cume.

Depois, em koiné, perguntaram se podiam se aproximar da água.

Mateus resumiu, também em koiné:

A água é de todos...

Sorriram e, satisfeitos, caminharam até as pequenas árvores e à pedra dos liquens.

Falaram entre eles, beberam, se refrescaram e decidiram sentar-se ao redor do hud.

Abriram as bolsas de viagem, também de cor branca, e extraíram dali verduras (algumas eram desconhecidas para quem isto escreve).

Eles nos ofereceram e iniciamos uma interessante conversa. Foi as­sim que eu soube quem eram e ao que se dedicavam.

Os brancos eram gregos. Vestiam túnicas de linho e caminhavam descalços. Tinham os pés maltratados. Eram missionários pitagóricos. Eu havia ouvido falar neles. Só isso.

Fiquei desconcertado.

Viajavam pelo mundo cantando as excelências de Pitágoras[33] e sua filosofia.

Eu entendi que era uma ocasião única e os submeti a todo tipo de perguntas.

Responderam encantados e, ao mesmo tempo, desconcertados ante aquele estranho encontro no meio do nada.

Um dos orientais proclamou em koiné:

Nada é por acaso...

E continuou se abanando.

Os pitagóricos diziam que a reencarnação, ou a transmigração das almas, era uma das chaves da sua doutrina. E asseguravam que Pitágoras se lembrou de todas as suas vidas, enquanto estava vivo.[34]

E disseram coisas assim (baseadas na filosofia de seu ídolo):

"Entre os amigos, todas as coisas são comuns. A amizade é a igualdade."

"Ninguém deve falar durante os primeiros cinco anos de iniciação."

"O ídolo (Pitágoras) não deve ser visível, da mesma forma que os deuses não o são."

Mateus estava assombrado.

E explicaram que deveriam se abster da madeira do cipreste na hora de fabricar ataúdes (porque ela é o cetro de Júpiter).

Pensavam que Pitágoras fosse um deus. Concretamente, Apolo, che­gado dos Hiperbóreos.

E afirmavam, convencidos, que uma das coxas de Pitágoras era de ouro maciço.

Não comiam animais nem coisas animadas. A alma dos animais - diziam - é idêntica à nossa. Matá-los era um crime.

Comiam unicamente o que necessitasse da luz. O vinho, as favas, os salmonetes, os ovos e os animais nascidos dos ovos estavam terminante­mente proibidos.

Não podiam ferir o fogo com a espada.

Ajudavam a levar a carga. Jamais a impunham.

Era importante não mostrar a imagem de Deus (Pitágoras) e tam­pouco exibir anéis.

Jamais urinavam com o rosto ao sol, nem acolhiam andorinhas em casa ou cortavam o pão.

Acreditavam que a Terra era redonda, e também nos antípodas (ha­bitante da Terra que, em relação a outro, vive em lugar diametralmente oposto), no sol e na lua como deuses e consideravam o sêmen humano como parte do cérebro.

Eles dividiam a alma em mente, sabedoria e ira, e estavam conven­cidos de que os olhos eram a porta do sol. E asseguravam que a alma é nutrida pelo sangue, "e as palavras são ventos da alma".

Defendiam a igualdade entre homens e mulheres.

Uma vez por ano eram obrigados a declarar em público seus erros.

O número - eles diziam - é o princípio de tudo. Atribuíam um nú­mero (inteiro) para todas as coisas.

Eles acreditavam na harmonia universal.

Eles estimavam que a alma humana se encontrava como uma prisio­neira do corpo (soma), como consequência do dogma órfico da queda.

O pior dos males era a anarquia.

Com a purificação - asseguravam - se encurta o ciclo das reencarnações (a metempsicose, ou transmigração das almas, foi exportada pela índia).

O objetivo primordial da alma era a fusão com a divindade.

A imortalidade poderia ser alcançada através da filosofia e da com­preensão do mundo.

A alma pura - apregoavam - reencarna em um ser de maior relevân­cia moral (e vice-versa).

Apenas com a pureza física, e o pensamento, é possível alcançar a salvação e a imortalidade da alma.

A música era um excelente meio de purificação.

Esta, em síntese, era a filosofia dos pitagóricos, uma das seitas que dominavam a bacia do Mediterrâneo naquela época. Havia outras, como os epicuristas, os estoicos, os cínicos, os céticos e os fiéis das religiões de mistério, às quais espero dedicar algumas linhas depois. O Filho do Ho­mem dialogou com todos eles... Primeiro foram os pitagóricos.

Mas eu devo ir pela ordem.

Dos orientais eu não sabia nada. Eles explicaram-nos...

Eu percebi, em conclusão, que eram monges-ascetas-esportistas-guerreiros-filósofos, com uma paixão vital: as montanhas. Eles eram, de certa forma, adoradores de picos. Subiam em todos que podiam.

Procediam do maciço do Sinai e, segundo eles disseram, estavam se dirigindo para o Hermon, passando por outros picos menores, tais como Guilboá, o Sartaba e o Tabor, entre outros.

Não sabiam por que eles tinham parado naquele morro nu.

Mateus aproveitou e exclamou, imitando o oriental que continuava se abanando:

- Nada é por acaso...

Sorriram.

E pensei: "Se permanecessem no Makkuk assistiríamos a um debate interessante..."

Não me equivoquei.

Eram taoistas.

Entre eles se chamavam yamabushi, que poderia ser mal traduzido como "os que dormem nas montanhas".

Yu, o chinês, teria desfrutado de um belo momento ao lado deles...

Como os pitagóricos, eles veneravam a natureza. Nas cimeiras prati­cavam exercícios físicos e mentais, a fim de atrair os poderes sobrenatu­rais e dispor da capacidade para arrancar os demônios, adivinhar o futu­ro, curar pessoas e animais e, finalmente, alcançar o dô: o caminho.

Afirmaram ter visto estranhas "luzes" no Sinai (as chamavam yama no kami ou "divindade da montanha"). Isso significava "sorte". Os seus passos - eles diziam - eram orientados pelos céus.

Não sabiam até que ponto isso era verdade...

Eles diziam caminhar sobre o fogo e saber apagar os pecados me­diante a água fervente. Não ousei ir mais fundo.

Chegado o momento, se a busca da verdade não fosse satisfatória, praticavam o shashin-gyo (suicídio). Eles, sutilmente, a denominavam como a "prática de deixar o corpo".

Dispunham de fórmulas (tonaegoto) e de poemas mágicos (Majinai-uta) para quase tudo.

Também acreditavam na reencarnação e, como Yu, procuravam de­sesperadamente uma fórmula que lhes desse a imortalidade. O fim da vida os deixava nervosos. Eles não sabiam o que havia do outro lado e, o que era pior, tinham dúvidas de que houvesse algo.

Haviam visitado montanhas como Meru, na índia, o Fujiyama, o Olimpo, Alborj, na Pérsia, Kailasa e K'uen-luen, na China.[35] Entre os seus projetos figurava subir até o "Os Cinco Tesouros das Neves" e "Mãe do Universo" (eu não soube de que montanhas estavam falando).

Foi uma delícia escutá-los. Eu aprendi muito.

E com o pôr do sol o Mestre regressou.

Mateus já tinha organizado tudo. Tudo em comum: jantarmos juntos, fogo para todos, conversas em comum e as estrelas, aos milha­res, em comum...

Jesus veio sem um traço de suor, sem mácula, como se não tivesse dado nem um passo sequer.

Olhei para ele, intrigado. Onde Ele havia estado?

Zal, no entanto, apareceu sem fôlego e morto de sede. Ele bebeu meio hud e caiu exausto sob os pilriteiros.

Mateus fez as apresentações e, de uma forma simples, compartilha­mos o espartano jantar.

Estava a ponto de assistir a uma conversa que me atreveria a qualifi­car como histórica...

Os pitagóricos e os yamabushi - que viajavam juntos por comodida­de - também perguntaram o que faziam aqueles três "loucos" no topo do Makkuk.

Jesus respondeu por nós e assegurou que éramos arautos.

Mensageiros de quem?

E o Mestre falou de Abba, de seu caráter e natureza benéficos, do presente da alma humana, de sua imortalidade (acontecesse o que acon­tecesse), da fraternidade entre os homens (base de todo o planejamento ético) e sobre o formidável destino da humanidade.

Eles o olhavam, perplexos.

Condenados a serem felizes?

A segurança daquele Homem quando falava era tamanha que nin­guém soube o que argumentar contra.

Sim, condenados à felicidade, e não vai tardar...

Como é isso?

Quando abandonardes este mundo e regressardes à realidade, à montanha das montanhas, será tal o achado que não haverá nem palavras...

Havia tanta convicção no que afirmava que um dos adoradores de montanhas, o que chamavam de Haguro, acabou comentando:

Falas como se conheceste a esse Deus...

Jesus respondeu no mesmo instante:

Eu o conheço...

Um dos pitagóricos protestou:

Nenhum humano pode ver os deuses e continuar vivo...

Disseste bem: nenhum humano...

O Mestre se dispunha a ampliar a sugestiva afirmação, mas outro dos missionários desviou o assunto:

Tu és, talvez, como Pitágoras?

Sou diferente...

Tu também te lembras de tuas encarnações anteriores?

O Pai não solicita isso de nós...

O que queres dizer?

O que ouviste...

Mas tu crês ou não na transmigração das almas?

Não é necessária.

Eles mudaram de lugar, inquietos. E iniciaram um ataque a toda a força. Enumeraram as razões pelas quais entendiam que a reencarnação era neces­sária e, inclusive, justa. Um dos argumentos era a necessidade de aprender:

São necessárias muitas vidas para assimilar o que nos rodeia e, so­bretudo, para crescer espiritualmente...

O Filho do Homem escutou atentamente. Então, sem dizer uma pa­lavra, se levantou e caminhou até os pilriteiros.

Eles tinham certeza de que o haviam convencido...

O Galileu voltou, e com várias flores brancas nas mãos.

Mostrou a eles as flores e perguntou:

O que estais vendo?

Flores...

E em que elas se converterão quando o momento chegar?

Os pitagóricos e os orientais olharam uns para os outros. Eles não entendiam aonde Ele queria chegar.

Jesus insistiu:

Em que elas se transformarão?

Em drupas...

Sim - manifestou outro dos yamabushi -, em frutos redondos e de cor vermelha.

Frutos! - exclamou o Galileu. - Isso é maravilhoso! Isso é um milagre!

Seguiam (seguíamos) perplexos. Sobre o que Ele estava falando?

Não entendo, rabi...

Mateus expressou o sentimento geral.

É muito simples - replicou o Filho do Homem. - Alguém pode me dizer como se obter fruto de uma flor? Não é maravilhoso?

Assentiram timidamente.

Em verdade eu vos digo que nem com um milhão de vidas pode­ríeis imaginar uma coisa assim...

Comecei a entender.

O Mestre falava da impossibilidade da mente humana de aproximar-se do segredo da vida e da criação em geral. Nesse aspecto, a reencarna­ção não é a solução.

Mas ele sugeria algo mais...

Jesus estava invocando o imenso poder imaginativo do Pai. Quem no século XX, com toda a nossa tecnologia, seria capaz de transformar uma simples flor de pilriteiro em uma saborosa drupa vermelha? Quem dispõe de um poder e uma imaginação semelhantes?

E o Homem-Deus insistiu:

Por que a madeira flutua?

Não sabiam. Jesus deu a resposta:

Porque alguém o imaginou...

("Alguém" deveria se escrever com maiúscula.)

E seguiu perguntando e respondendo:

Por que o mar não se cansa?... Porque alguém o imaginou assim. Por que existe a verticalidade?... Porque alguém o imaginou. Por que a morte?...

O silêncio se fez mais denso. Jesus falou decidido, sem medo:

... Porque alguém o imaginou... Porque é a melhor maneira de vol­tar à realidade...

Abriu os braços, elevou o olhar para as estrelas e resumiu:

Pura imaginação!

Quer dizer: tu não admites a reencarnação...

A imaginação de Abba está acima do entendimento humano...

Não respondeste à questão...

Eu a respondi sim, estimado amigo, respondi sim... Nem em um milhão de anos, nem em um milhão de vidas, será possível beber este mundo e muito menos o universo...

Mas nós estamos aqui para aprender...

Não exatamente. Estamos aqui para experimentar, o que é diferente.

Eles estavam desconcertados. E o Galileu prosseguiu:

E quanto ao enriquecimento espiritual, é verdade que a alma deve abandonar a imperfeição com um máximo de sabedoria. Mas quem lhe traz isso não é a aprendizagem, ou o estudo, nem a contemplação, nem a comu­nicação entre os homens... Quem dá isso é a experiência: é estar cheio ou vazio... E uma questão pessoal, previamente estabelecida com o Criador.

Eu estava tão surpreso que não sabia o que dizer.

Uma coisa era clara, claríssima: o conceito tradicional da reencarnação (tal como entendem as filosofias orientais) é uma invenção humana, e, além disso, de voo curto e baixo. Em outras palavras: só satisfaz algumas dúvidas...

O Mestre me olhou, leu os meus pensamentos e exclamou:

O Pai é imaginação. Ele faz com que a água flutue nas nuvens, sem que ninguém tenha que segurá-la, ou tornar-se branca quando desce em forma de neve. Ele arranca reflexos do interior das pedras e obriga o alvo­recer a ser pontual... Em verdade eu vos digo que o que vos aguarda após a morte vos fará tremer de emoção... Não há palavras para descrevê-lo, nem nunca haverá.

Haguro, visivelmente emocionado, proclamou:

Não sei se estás louco, amigo, mas tua loucura sacia a minha sede...

Quanto mais cresceres - respondeu o Mestre -, mais se diluirá a tua realidade, e maior será a tua sede...

Por isso nós buscamos subir à montanha...

Buscar ao Pai é subir ao HaMaqom...

Foi a primeira vez que ouvi esse termo. Poderia ser traduzido como "Lugar", no qual habita o incomensurável.

Os estrangeiros permaneceram no Makkuk por mais dois dias.

Estavam entusiasmados e Jesus de Nazaré mais ainda.

O Mestre falou de Abba, do reino invisível e alado, do que nos espera após a morte (o que Eliseu chamava de mundos MAT)[36], da necessidade de "escalar" o interior, do dom, do presente do Pai (a imortalidade, acon­teça o que acontecer), da necessidade de viver (apesar e acima de tudo), e de fazê-lo sempre no presente (o futuro não existe) e, principalmente, falou do mais importante e benéfico: a consagração da vontade do bom Deus, o Número Um.

Os pitagóricos - adoradores dos números - foram embora descon­certados.

Os orientais - estou certo disso - souberam por que o Destino os havia conduzido, praticamente pela mão, para o alto daquele cume ver­melho, pelado e, aparentemente, perdido no nada.

Eu também o experimentei.

Na quarta-feira, 5 de março, regressamos a Betânia do Jordão.

Surpresa.

André e Tomé haviam feito seu trabalho com eficiência e rapidez.

Ali estavam os "desertores"...

Kbir não permitiu que saíssem às colinas para nos procurar. Ele os reteve na "Selva".

Ao ver o Mestre, Pedro correu ao seu encontro, se lançou aos seus pés e, entre lágrimas, pediu perdão.

O Zelote também se ajoelhou diante do Filho do Homem.

João Zebedeu e o Iscariotes se mantiveram à distância, com o rosto voltado para o chão.

Todos pareciam notavelmente recuperados de suas lesões.

Jesus se apressou em levantar os discípulos e, sem dizer palavra, os abraçou.

Depois ele se reuniu com João e com Judas, e abraçou-os também.

Ninguém disse nada, exceto o pedido de desculpas de Simão Pedro. Mais uma vez fiquei maravilhado. A bondade daquele Homem não tinha fim. Ele poderia reprovar ou repreendê-los, mas não o fez. O rosto de Je­sus estava radiante. Seus amigos haviam regressado...

A partir do dia seguinte, de 6 de março até 28, sexta-feira, o Galileu se dedicou a duas tarefas básicas que ocuparam, praticamente, todo o seu tempo: trabalhar e ensinar.

Ao amanhecer, Ele se dirigia aos palmeirais e ali escalava os troncos, trabalhando na polinização e em recolher os frutos da colheita tardia. Ele fazia isso com carinho, e cantando.

Eu desfrutei vendo-o e ajudando-o. Foi como nos velhos tempos, nas florestas de Attiq na Alta Galileia.[37]

Os discípulos o acompanhavam, e escalavam ou trabalhavam no transporte.

Jesus se despojava de suas roupas e, apenas com sua vestimenta íntima, sem cordas, subia ágil até a coroa da árvore. Ali Ele derramava pólen ou cortava as tâmaras, uma por uma, e passava-as aos seus companheiros. Era uma maneira de pagar pela hospitalidade generosa de Kbir para com Ele e com os 12.

Kbir estava preocupado.

A chamada "morte branca" havia aparecido em alguns dos palmei­rais de Jericó. Estávamos diante de uma praga (possivelmente um fungo chamado Fusarium oxysporum) que arrasava as plantações.[38] Desde a noi­te até a manhã, mesmo que o horto estivesse bem cuidado, as palmeiras apareciam mortas, com as folhas brancas e dependuradas, como penas umedecidas. A morte se estendia como uma mancha de óleo. Era a ruína.

Os supersticiosos arab lutavam contra o mal não saindo da casa, ou da fazenda, enquanto durasse a praga. Essa foi uma razão pela qual o Mestre e seus íntimos permaneceram na "Selva" pelo espaço de tempo de 23 dias.

Nesse período, e acompanhado por Kbir, Jesus compareceu à Betânia em uma só oportunidade. Mas disso eu me ocuparei mais tarde...

Depois do trabalho, durante o jantar, o Filho do Homem se reunia com os embaixadores do reino e prosseguia com os seus ensinamentos.

Felipe, o intendente, desfrutava das colheitas das tâmaras. Ele se ocu­pou em preparar essências para mil usos. As maduras - ele dizia - eram boas para embalar crianças ao dormir e para curar crises nervosas. As verdes proporcionavam infusões com ação adstringente e eram muito apropriadas para as úlceras (?).

Kbir o assistia com a boca aberta. E ambos juraram amizade eterna. "Os negócios são negócios..."

Mas o pior daquelas quase quatro semanas na plantação de palmei­ras de Betânia não era a ameaça da "morte branca". O pior foi o clima criado por Iscariotes...

Tudo começou com um rumor, orquestrado pelo próprio Judas.

O fato de que Jesus se achava relativamente perto do mar de Sal e, consequentemente, do palácio-fortaleza de Maqueronte, tocou a imagi­nação dele, que havia sido um discípulo de Yehohanan: "Jesus se prepara para libertar o Batista". E o Iscariotes fez correr um boato. "Tudo está or­ganizado - assegurava com a voz baixa. - O Mestre assaltará Maqueronte e romperá as correntes do Anunciador e colocará em fuga Antipas e sua maldita guarda gaulesa".

André ouvia com uma santa paciência e tentava fazê-lo ver que o que ele falava não tinha pés nem cabeça. Maqueronte era inexpugnável e isso. além do mais, também não fazia parte dos objetivos do rabi.

E a polêmica surgiu novamente.

João Zebedeu, Pedro e o Zelote fizeram causa comum com o Judas Iscariotes e deixaram suas armas preparadas.

João Zebedeu chegou a perguntar ao Mestre sobre as suas intenções a respeito do Batista. E Jesus, desconcertado, negou a notícia espalhada pelo Iscariotes.

Ainda assim, os "desertores" continuaram maquinando e traçando todo tipo e toda sorte de detalhes sobre a operação que conduziria à liber­tação de Yehohanan.

Jesus tinha assuntos mais importantes e não prestou muita atenção.

Ao anoitecer, como eu vinha dizendo, uma vez que o trabalho era concluído, o Galileu e os 12 se sentavam à beira dos dois grandes açudes, jantavam e conversavam.

Embora um deles fosse alimentado por uma nascente subterrâ­nea, os açudes em questão eram de um tipo vernal (da primavera). Eu os explorei muitas vezes. Eles eram relativamente rasos e cheios de vida. Ali os sapos pulavam excitados, febrilmente à busca de acasala­mento, salamandras, ninfas de libélulas verdes, e dezenas e dezenas de rãs, sempre competindo com seus cantos entediantes. Eu não acho que tivesse mais de um metro de profundidade. No meio do verão eles secavam e restava ali uma camada de lodo esponjoso, igualmente vivo e palpitante.

Lembro-me de uma ocasião, quando tomava as referências de cos­tume, um dos trabalhadores arab se aproximou e avisou para que eu tivesse cuidado. Não devia me aproximar das águas verdes dos açudes. Quando perguntei por quê, o badawi ou beduíno não me respondeu. Ou, melhor dizendo, o fez à sua maneira: ele levou o dedo indicador di­reito em volta do pescoço e da garganta e executou um gesto que sugeria degolamento.

E acrescentou:

- Ali vive alma...

Não soube o que ou quem era alma. Ninguém desejava falar da cria­tura em questão. Supus que eu me achasse diante de outra lenda...

Jesus, como eu digo, costumava sentar-se sobre uma família de ro­chas brancas, que montavam guarda à borda de um dos açudes. Lá, ele ensinava e ouvia as perguntas dos discípulos.

Enquanto falava, seu braço direito caía, desmaiado, sobre a água, e os dedos revolviam a superfície.

Desde que soube da alma já não assistia tranquilo aos ensinamentos. Deixava-me arrastar pela imaginação e perscrutava a água em busca de qualquer sinal "estranho"...

Eu mesmo me reprovava de minha absurda postura. Ali não havia nada, salvo os inquilinos habituais de um açude, de uma lagoinha, já men­cionados anteriormente...

Jesus falou várias vezes do evento sucedido no Hermon durante o ve­rão do ano 25. Explicou quem era na realidade[39] e como ficou consciente de sua divindade quando cumpriu os 31 anos.

Já havia entrado nesse tema, porém considerou oportuno voltar a falar sobre ele.

Os dedos seguiam brincando com as águas...

Tudo era paz e sossego.

Em algum lugar, as rãs coaxavam ritmicamente, alheias à transcen­dência do que o Homem-Deus relatava.

Mas os discípulos começaram a balançar a cabeça em sinal de cansa­ço. Eles tinham sono.

Só Bartolomeu e Mateus Levi se sentiram atraídos pela exposição de Jesus.

E foi o "urso", fascinado com a história dos anjos rebeldes que desce­ram sobre o Hermon para interrogar Jesus (nunca para tentá-lo, segundo suas próprias palavras), quem mais perguntou e quem solicitou detalhes. O Mestre respondeu a todas as questões e foi, inclusive, além. Entendo que aquele entardecer do dia 12 de março foi igualmente histórico....Jesus disse algo que jamais foi escrito pelos evangelistas...

O Mestre explicou que os anjos rebeldes se achavam "presos ao do­mínio" (?) e que chegaria o dia em que seriam julgados. "Esse dia - Ele afirmou - será de especial satisfação para os mundos que se rebelaram..."

Por quê, Mestre?

Nesse dia, Bartolomeu, essas humanidades regressarão à luz e co­nhecerão um prolongado período de paz...

E quando será esse juízo?

Jesus permaneceu em silêncio, agitando a água da pequena lagoa.

Eu estava inquieto, tanto pela resposta como pelos dedos...

Então Ele me dirigiu o olhar. Soube que as palavras seguintes seriam destinadas a quem isto escreve. Eu sabia...

Quando o povo que andou na escuridão vir uma grande luz...

Deteve-se por alguns instantes e desviou o olhar para a superfície do açude. Distraiu-se? O que havia na água?

O Mestre retirou a mão.

Respirei aliviado.

E continuou com o que, sem dúvida, era uma profecia; uma impor­tantíssima profecia:

... Então, querido malak, será o momento de meu regresso.

Bartolomeu interviu:

Teu regresso?

Sim, Bartolomeu - manifestou o Galileu sem deixar de me olhar. - Em breve eu vos deixarei...

E regressarás?

Isso foi o que eu disse...

Repetiu a frase:

Quando o povo que andou na escuridão vir uma grande luz, então será o momento de meu regresso.

E se recreou em duas palavras, enchendo o hebraico de ênfase:

Orgadol ("Grande Luz").

As palavras utilizadas pelo Filho do Homem eram de Isaías (9, 1).[40] E eu fiquei pensativo. Será que o Mestre falava de sua segunda vinda? Em caso afirmativo, a qual momento da história Ele estava se referindo? Por que mencionou a escuridão e essa "grande luz"? Por que me olhou en­quanto pronunciava a profecia?

Mateus estava presente e escutou. Por que nunca falou dele em seu evangelho? Não compreendeu? Pareceu estranho? Será que de fato escre­veu e foi manipulado posteriormente?

Tudo é possível...

Seria Eliseu, meu companheiro, quem acharia o fio da meada algum tempo depois. Mas essa é outra história...

Aproveitei aqueles dias tranquilos para materializar uma ideia que havia me ocorrido, tempos atrás: visitaria a cidade de Jericó e procuraria a família de Judas Iscariotes. Sabia em que lugar vivia. Trataria de arrecadar o máximo de informação sobre o traidor. Sabia quem era, o que fazia e como atuava, porém desejava averiguar algo mais; em especial sobre a sua infância.

Apesar dos pesares, como acontecera com Yehohanan, a figura do Iscariotes me atraía. Não sabia exatamente por quê. Intuía que continha um segredo.

Não estava errado.

Não o comentei com ninguém, nem com o Mestre, ainda que saiba que Ele soubesse...

Kbir não perguntou. Só me advertiu das condições estabelecidas con­tra a "morte branca", para todo aquele que entrasse na "Selva". Aceitei. Cada vez que regressasse à propriedade, as sandálias deveriam ser queimadas e a roupa também. Eu teria que submeter-me a um banho de natrão.

Não foi difícil localizar a casa dos Iscariotes. Eram saduceus. Eram ricos. Todo mundo os conhecia. Viviam ao leste da cidade, bem próximos à entrada. Isso facilitou as coisas.

E na casa, de um piso, viviam os pais de Judas e os serviçais.

Simão da Judeia, o pai, era comerciante. Dedicava-se profissionalmen­te à exportação de trigo de Moab, tâmaras, bálsamo, flores do Jordão e não sei quantas coisas mais. Sua fortuna se contava em talentos. As más-línguas a calculavam em cinco mil (mais de 72 milhões de denários de prata).

Recebeu-me no átrio.

Era um velho antipático, amargurado, que falava constantemente só e unicamente em negócios.

Via a vida passar de uma velha cadeira, tão decepcionada como o amo. Dali ele controlava os seus negócios.

Seu coração se mantinha à espreita, como um abutre.

Calculei uns 80 anos de idade.

Vestia uma rica túnica de seda, bordada em ouro, com um espeta­cular medalhão em forma de mosca pendurado no pescoço. Alguém me sussurrou que continha as cinzas do pai.

O cabelo, branco e solto, chegava até a cintura.

Jamais se calçava, e aí estava um dos motivos, entre outras coisas, pelos quais nunca abandonava a casa. Fazia 31 anos que não pisava na rua. Mais adiante soube por quê...

O nariz, aquilino, tipicamente judeu, era idêntico ao do filho.

Não tive tempo de explicar. Quando mencionei o nome de Judas, sem mais nem menos levantou um bastão e tentou me bater.

Perseguiu-me até a porta, chamando-me de "filho de Belzebu" e não sei quantas lindezas mais.

Fugi, claro.

E nisso, enquanto eu me distanciava da casa, certamente abatido ante o aparente fracasso, ouvi uma voz que me chamava.

Era uma anciã.

Debruçara-se por uma porta lateral da casa do Iscariotes e fazia si­nais para que eu me aproximasse.

Eu o fiz com receio.

A mulher sorriu, e, sem mais, indicou que eu a seguisse. E fomos até um pátio que ficava na parte de trás da casa.

Ali, às escondidas, a mulher se identificou como Amidá ("18 bên­çãos"), a mãe de Judas, e perguntou por seu "menino". Havia meses que nada sabia sobre ele. Alguém lhe falou de uma nova seita, da qual ele par­ticipava, dirigida por um carpinteiro louco de Nahum.

Fiquei assombrado.

A mulher era o extremo oposto do marido.

Tinha os olhos claros, muito tristes, a pele enrugada e docemente conquistada por uma tribo de pintas.

Devia ter cerca de 70 anos.

O sorriso, como o do misterioso indivíduo da túnica que mudava de cor, era uma bendição. Quando sorria, tudo ao seu redor se aquietava, contemplando-a.

Era doce, carinhosa e compreensiva.

Também me chamaram a atenção as mãos. Eram extremamente lon­gas. Ela sabia disso e tratava de escondê-las sob a túnica. Luzia um anel de prata...

A melancolia, suponho, a havia consumido. Não creio que pesasse mais de 45 quilos.

E foi assim que o Destino me abriu as portas para a informação.

Amidá se ofereceu para falar-me sobre Judas, sempre e desde que não a delatasse para seu marido.

Naturalmente, assim foi.

Eu a visitei em mais duas oportunidades.

O pai deserdou Judas quando soube que ele havia se enrolado no grupo do Batista. As esperanças do ancião se converteram em fumaça.

A mãe, diante dessas lembranças, chorava amargamente.

Ela amava muito o filho, como era lógico e natural.

Procurei tranquilizá-la, explicando que ele se encontrava bem. A mulher agradecia com um daqueles sorrisos espetaculares, e quem isto escreve se sentia reconfortado.

Esta foi a recordação das intensas conversas no pátio na parte de trás da casa dos Iscariotes:

Amidá não tivera mais filhos. Diziam que era estéril. Lamentavel­mente, como já mencionei em outros momentos destes diários, naquele tempo a esterilidade era uma mancha que só afetava as mulheres. Os va­rões nunca sofriam semelhante "pecado"...

E um belo dia, quando a mulher contava com seus 40 anos, apareceu em Jericó um caldeu, com uma grande capa negra. Era um "geomântico". Que dizer, um sujeito que dizia praticar a adivinhação através das figuras que se formavam das cinzas que lançava ao ar e que se depositavam sobre as pedras no chão.

No meu entender, pura charlatanice.

Pois bem, o caldeu lançou as cinzas ao ar naquela mesma casa e co­meçou a "ler" as figuras.

"Terás um filho - vaticinou - que morrerá antes de vós. E morrerá com os olhos espantados pelo horror..."

O caldeu o chamou de "homem do cálice".

Perguntei à mãe o porquê do dito sobrenome, mas não soube ou não quis esclarecê-lo.

O homem do cálice?

E me veio à mente - não sei por quê - a imagem do cálice de metal que habitualmente acompanhava o Mestre. Mas o que tinha a ver com o Iscariotes? "Quanta imaginação", pensei.

Não disse nada, naturalmente. E reconheci em meu interior que o geo­mântico tinha acertado em parte. Judas não demoraria em morrer (ano 30) e de forma dramática (numa tentativa de enforcamento que resultou em um fracasso).[41] Quando consegui descobrir o cadáver, na companhia do jovem João Marcos, tinha os olhos bem abertos e espantados. Os ratos já haviam começado a devorá-lo...

Judas nasceu aos nove meses da previsão do caldeu (exatamente no mês de siván [junho] do ano -4). Quando conheceu Jesus, no ano 26, acabara de fazer 30 anos.

O pai o rejeitou desde a gravidez. Apregoava em segredo que não era filho seu, e sim daquele maldito caldeu.

Amidá o negou com lágrimas nos olhos. O filho era de seu marido.

Outra questão é como o gerou...

A mulher me olhou nos olhos e, adivinhando os meus pensamentos, proclamou:

- Aquele geomântico era um malak (mensageiro)... O Santo, bendi­to seja seu nome, fez um milagre e eu fiquei grávida.

Essa história não me era estranha.

Não a aceitei nem a rejeitei. Realidades mais delicadas e maravilho­sas eu já havia contemplado...

O nascimento de Judas foi anunciado, da mesma forma que aconte­ceu com Yehohanan e com o mesmíssimo Jesus?

Algo estava claro...

Judas Iscariotes, após a traição e a Crucificação do Mestre, foi consi­derado maldito, e sua história, total e absolutamente apagada. Ninguém se preocupou em indagar sobre sua vida, e muito menos sobre seu nasci­mento ou sua infância. Os evangelistas o mencionam pelo que foi men­cionado e aí termina tudo.

Definitivamente, judas foi um menino mimado pela mãe e rejeitado visceralmente pelo pai. Cresceu só, sem amigos, e construiu seu próprio mundo. Era tímido, receoso e esquivo. Foi educado nas melhores esco­las rabínicas de Jerusalém, mas nunca se licenciou como rabi. Via mal no escuro. Era lento nas percepções, friorento, sujeito a depressão e com uma crescente agressividade. Sofria de síndrome hematófoba ou temor à visão do sangue.[42] Fora violado por uma patrulha romana quando tinha 8 anos de idade (sua vida foi salva por um milagre). Daí provavelmen­te vinha o seu ódio pelos kittim. Viveu um tempo na ilha grega de Ko, na frente da atual Turquia, e ali conviveu com os pitagóricos. Além de seu temperamento esquizotímico (já adiantado na "ficha" do Iscariotes), Judas apresentava um nítido perfil paranoide. Desconfiava de tudo e de todos. Jamais abriu seu coração a ninguém e muito menos ao Mestre. Era sensível de uma maneira doentia. Via alusões negativas nos gestos e nas conversas. Suspeitava que sempre falavam mal dele (nisso ele tinha razão) e que conspiravam para afundá-lo ou afastá-lo. As brigas com os discípu­los foram constantes e cada vez mais azedas. Era rude, retraído, sem senso de humor (jamais ria ou sorria), arrogante e com uma mente fria e distante. Calculava tudo. Sua visão da vida era permanentemente negativa. Exagerava os detalhes e procurava motivos, por mais insignificantes que fossem, que pudessem ir contra suas ideias ou projetos. Provavelmente nunca desenvolveu delírios, mas faltou pouco... Sua relação com a auto­ridade foi conflitiva (inclusive com o Mestre). Era tenaz e meticuloso. Foi um bom tesoureiro, como já expliquei antes.

O Iscariotes, em resumo, se movia na invisível fronteira entre a rea­lidade e os desejos.

E algo importante que não me cansarei de repetir: Judas foi tachado pela história de ladrão. Grave erro. Judas foi tudo, menos ladrão...

Sempre estarei em dívida com Amidá. Ela tratou-me com cortesia e respondeu às minhas perguntas. Pariu um homem de caráter comple­xo, mas ela não teve culpa da traição de Iscariotes. A mãe não era dessa natureza.

Prometi regressar, mas nunca o fiz. Eliseu o faria por mim...

Dia 26 de março, quarta-feira, foi outra jornada inesquecível.

Jesus aceitou sair da "Selva".

Fez isso a pedido de Kbir e dos discípulos. Uma trupe de missionários havia se instalado em Betânia. A cada entardecer eles convocavam a vizi­nhança e lançavam os mais assombrosos discursos. Era o alimento do povo.

Todos sentiam curiosidade.

E nesse dia nós nos reunimos no centro da aldeia.

Havia centenas de curiosos.

Cada qual carregava uma cadeira da sua casa ou procurava se aco­modar sobre os jumentos ou sobre os cestos ou sobre os baldes.

Duas horas antes do pôr do sol e já não cabia uma alma entre as pare­des de barro e as nuvens de curiosos que se formavam na "praça" do povo.

Jesus procurou um lugar e se sentou na primeira fila; ali nós nos apertamos todos.

Felipe lamentou não ter trazido a Cipriota. Nessas reuniões - ele di­zia - sempre se fazem boas amizades.

E de repente, por uma das ruas, apareceu a trupe: dez missionários, todos homens, da seita dos cínicos.

Eram magros, magérrimos. Vestiam tangas e longas e desfiadas ca­pas vermelhas. Distingui anciãos e jovens. Todos caminhavam descalços e portavam enormes bolsas, também de cor vermelha, a tiracolo. Apre­sentavam o cabelo raspado e as olheiras típicas de quem dorme pouco e sobre o chão.

Cada um sustentava uma lamparina de azeite. Se apagasse, era uma desgraça.

Falavam uma mistura de grego internacional (koiné), aramaico e a'rab.

Aproximaram-se do público e, em silêncio, trouxeram as lâmpadas para perto do rosto dos surpreendidos assistentes. Depois, após explorá-los, exclamavam:

Busco a um homem!

As pessoas caíam na gargalhada e apontavam com o dedo indicador o seu respectivo vizinho.

E o da lamparina repetia a operação com o que se achava ao lado e perguntava de novo:

Busco a um homem!

E os risos se encavalaram uns nos outros.

Algumas crianças começaram a chorar. Os jumentos moviam os ra­bos como dizendo: "Não sei não..."

O Mestre olhava, assombrado...

Kbir se inclinou algumas vezes em direção ao Galileu e sussurrou algo, ao mesmo tempo em que levava o dedo indicador direito à têmpora e fazia um gesto de loucura.

Os cínicos não estavam loucos, mas quase...

Era uma seita que havia herdado a filosofia e os importantíssimos princípios de um ser enigmático, ao qual já me referi em outras oportu­nidades, e que conheceram com o nome de Melquisedec (1980 a.C.).[43] Esses fundamentos, sem dúvida, foram alterados com o passar do tempo.

Os cínicos que tínhamos diante de nós defendiam que o ser humano pode alcançar a salvação por si mesmo (se quiser). Predicavam a simpli­cidade e a virtude. Combatiam o medo à morte. Asseguravam que existe outra vida, mas que é preciso ganhá-la com firmeza e disciplina, libertando-se dos desejos e reduzindo ao mínimo as necessidades. Para os cínicos, a ciência, as riquezas, o poder e as honras eram bens a serem depreciados. Caminhavam por povoados e cidades, sempre com suas lamparinas ace­sas e, de certo modo, prepararam o caminho para o cristianismo.

Gritavam que seu fundador havia sido Diógenes, o ateniense[44], mas disso não se tinha certeza. Outros falavam de Antístenes, discípulo de Sócrates (435 a 370 a.C.). A verdade é que tanto um quanto o outro ter­minaram por contaminar os sublimes ensinamentos de Melquisedec, o autêntico Anunciador de Jesus de Nazaré.

O Mestre estava presente aos discursos dos cínicos missionários e o fazia com prazer. Em nenhum momento observei um gesto de discórdia ou um comentário de desaprovação, embora, verdade seja dita, aqueles com as lamparinas proclamaram muitas coisas estúpidas...

Creio já ter dito: o Filho do Homem tinha as idéias muito claras, mas era extremamente respeitoso com as crenças dos outros. Jamais impunha a sua vontade. Apenas sugeria. Informava. Nunca o vi discutir. Nunca vendeu a sua forma de pensar. Ele se limitava a expor as ideias. Depois, cada qual tomava o caminho que considerasse mais conveniente. Jesus jamais se viu sujeito ao peso do que as pessoas dissessem. Nunca o vi afetado pelas críticas ou pelos elogios. Também não me recordo de vê-lo corrigindo alguém ou pedindo conselhos... Ele sabia. Sua paixão era entrar em contato com os seres humanos e ouvir. Nunca se desculpou. Eu, pelo menos, jamais fui testemunha disso. Não gostava de despedidas, como já mencionei, mas gostava dos reencontros. O importante - dizia - era chegar; não importava onde.

Assim era o Filho do Homem...

Os discípulos não deixavam de se espantar. Em especial quando os cínicos defenderam a bondade do canibalismo. "Todas as coisas - pregavam - estão umas nas outras, e entre si participam. A carne, por exemplo, está no pão, e o pão nas ervas, e assim nos demais corpos, em todos os quais, por alguns poros ocultos, penetram as partículas e se co-evaporam e se unem."

A palavra "co-evaporar" me deliciou...

Foram horas deliciosas.

Este era o panorama filosófico daquele tempo.

Como já disse, eu não invejava o trabalho do Mestre.

Os últimos dias na "Selva" foram intensos.

Percebíamos algo.

O tempo de isolamento estava chegando ao fim.

Jesus falou várias vezes na Cidade Santa. A festa da Páscoa se apro­ximava.

O reino alado e invisível estava perto. O Mestre estava prestes a inaugurá-lo.

O Iscariotes continuava com a sua obsessão: o Galileu iria agir e da­ria a liberdade a Yehohanan. A verdade é que o entusiasmo de seus com­panheiros foi se desinflando.

Os discípulos - especialmente Bartolomeu e Mateus - levantaram uma questão de grande profundidade a Jesus. Os ensinamentos dos mis­sionários cínicos os haviam confundido. "O homem pode ser salvo se as­sim o desejar - diziam mas o restante das escolas filosóficas não falava a mesma coisa."

Ser salvo?

A pergunta de Jesus os deixou ainda mais perplexos.

Ser salvo de quê? - insistiu o Galileu.

Ser salvo da gehenna...

A gehenna era um depósito de lixo existente ao sul da cidade de Jeru­salém, sempre ardendo e sempre habitado pela escória da sociedade. Era uma representação do inferno: um lugar de condenação para onde iam as almas dos pecadores (sobretudo dos pagãos).

Não pareceis ter entendido em que consiste a boa-nova...

Eles se entreolharam, confusos.

O homem não precisa ser salvo. Sua alma é imortal, pelo desejo expresso de Abba.

Ele os olhou, divertido, e prosseguiu:

Estou aqui para revelar esse Pai maravilhoso e benéfico. Estou aqui para destapar aquilo que está oculto. Não deveis se preocupar com a sal­vação. Antes de ser, já éreis... Só pretendo que façais correr a voz: abandonai-vos nas mãos do Pai; isso é tudo...

Eles não compreenderam ou não entenderam a metade.

E chegou o dia 31 de março, segunda-feira.

Na madrugada, antes do amanhecer, tomamos o caminho da Cidade Santa.

Ninguém veio se despedir de nós. Kbir conhecia os hábitos do Mestre.

Jerusalém, afinal!

Foram 25 quilômetros de uma viagem confortável, sem pressa.

Ninguém conhecia as intenções do Filho do Homem. Ninguém ima­ginava o que estava reservado pelo Destino...

Foi pior, muito pior, do que este explorador pudera suspeitar.

Mas vamos prosseguir pela ordem.

Entramos em Betânia (a de Jerusalém) pouco depois do meio-dia.

Quantas lembranças do futuro!

Como se imaginava, Jesus parou na propriedade de Lázaro, seu ami­go de infância e aquele que, anos mais tarde, seria ressuscitado.

Pegou todos de surpresa (típico do Galileu).

Lázaro abraçou o Mestre e o cumprimentou efusivo.

Ele estava com uma aparência esplêndida: corpo enxuto, olhos lumi­nosos e músculos, muitos músculos.

Lázaro era um pouco mais velho do que Jesus. No dia 27 completaria 33 anos de idade.

Marta, a irmã mais velha, continuava séria e atraente. Às vezes sorria e revelava o fio de ouro que usava para prender os dentes postiços. Era ela a responsável pela casa.

Maria, a mais nova, também admirava Jesus, e seus olhos negros o seguiam por toda parte. Achei que ela estava apaixonada por Ele...

Por certo, não havia rastro da paixão de Marta em relação a quem isto escreve. Isso aconteceria apenas bem mais tarde, no ano 30.

Não sei como ele o fez, mas Lázaro conseguiu convencer Jesus a se hospedar na fazenda. E mais: suplicou para que o Mestre e os seus cele­brassem a próxima festa da Páscoa em sua casa.

Maria aplaudiu.

Aquele que seria ressuscitado pelo Filho do Homem foi além e pro­pôs que Betânia fosse o quartel-general do grupo enquanto Jesus perma­necesse na região.

Todos olharam para o Galileu, cheios de expectativa.

Como eu disse, ninguém sabia de seus planos.

Jesus acabou aceitando, porém não disse nada mais. E nos deixou com vontades.

Será que inauguraria o reino imediatamente? Faria um templo? Aproveitaria a solenidade da Páscoa? Como pensava em fazê-lo? Que pa­pel os discípulos teriam?

Betânia se achava bem perto de Jerusalém. Se pegasse o caminho mais longo, desde a fazenda até o portão da Fonte, ao sul da Cidade Santa, a distância era de 15 estádios - um oitavo de milha (em torno de 2.800 metros). Isso se podia caminhar em 30 minutos, aproximadamente.

A ideia do quartel-general em Betânia, portanto, era viável.

A terça-feira, de abril (ano 27), foi dedicada ao descanso.

Jesus falou muito com Lázaro e suas irmãs.

Eu aproveitei a curiosidade de Bartolomeu, o "urso" de Caná, e me uni a ele em um transcurso por Betânia. No último momento, Felipe, o intendente, decidiu nos acompanhar.

Betânia era um povoado que não superava os dois mil habitantes. As casas, de pedras lavradas, deixavam claro o poder aquisitivo de seus mo­radores. Quase todos eram camponeses. Os arredores eram um contínuo verde, integrado por bosques de figueiras, velhos sicômoros, e palmeirais jovens e promissores.[45]

A família mais notável não era a de Lázaro, mas sim a de um tal de Ananyah, descendente da tribo de Benjamim. Ali se instalaram seus ante­passados após a volta do exílio da Babilônia.[46]

Betânia, assim como Nazaré, dispunha de uma "cidade troglodítica" aos seus pés. Dezenas de grutas se estendiam pelo subsolo e nos arredores. Nelas guardavam grãos, azeite, figos e tâmaras.

Felipe nos conduziu a uma dessas cavernas, a oeste da aldeia. O inten­dente conhecia o proprietário. Faziam negócios regularmente. Tratava-se de outro Ananyah, também fabricante de óleos essenciais, e de "algo mais"...

Enquanto Felipe cumprimentava seu amigo, o "urso" e quem isto es­creve, vencidos pela curiosidade, demos uma explorada pela gruta.

Espantoso!

Ananyah, ao que apelidaram Racdân ("Bailarino"), era um ancião judeu, com os dedos do pé direito de madeira. Eram réplicas perfeitas, envernizadas e com as unhas pintadas, segundo o humor do dono. O ne­gócio consistia na venda de próteses de todo tipo.

Como eu disse, fiquei assombrado.

Ali, penduradas no teto, oscilavam numerosas pernas de pau e tam­bém de bronze. Dispunham de artefatos e engrenagens que permitiam o movimento do pé ou da perna completa. Também observei braços e mãos articulados, dentes de bezerro para substituir os que se perdiam, olhos de cristal e de marfim (alguns com capilares de arame de ouro), narizes pos­tiços, orelhas de cera, e, inclusive, pênis de madeira de todos os tamanhos, que eram presos mediante o uso de correias.

Racdân tinha sido bailarino, e muito famoso. Daí vinha o apelido. Em função de um acidente, de que Felipe não quis falar, perdeu os dedos do pé e ficou impossibilitado para a dança. Desde então se dedicava à fa­bricação e venda de próteses. Eram uma "ortopedia" muito estimada por judeus e gentios.

Porém, o Bailarino, além disso, era especialista em óleos essenciais. E Felipe foi mostrar-me o último do último. Era uma poção, extraída de uma raiz, cujo cheiro me pareceu familiar. Nesse momento eu não iden­tifiquei. Eles a chamavam de saan (que poderia ser traduzido como "estar calmo" ou "proporcionar paz").

Felipe me presenteou com uma amostra e algum tempo depois, quan­do retornei ao Ravid, procedi a seu exame. Estava certo. Conhecia aquele cheiro... Não era outra coisa do que aquilo que hoje conhecemos como al­caçuz. Naquele tempo eles o utilizavam como remédio contra o resfriado e dor de garganta.[47] As infusões eram consumidas como refresco.

E de Betânia nos encaminhamos para Betfagé, o povoado mais pró­ximo, localizado a coisa de 800 metros.

Betfagé era um punhado de casas, a serviço dos sacerdotes que não residiam habitualmente na Cidade Santa e onde se vendiam os retalhos das carnes oferecidas em sacrifícios. Na minha opinião, Betfagé era a co­bertura de alguns dos negócios das castas sacerdotais. O procedimento era simples: uma vez sacrificados e imolados os animas (fundamental­mente bois e cordeiros), uma parte era retida para o sacerdócio a serviço do Templo. Pois bem, essas porções (quase sempre as mais suculentas) acabavam, por debaixo do pano, em Betfagé. Ali eram vendidas, e o di­nheiro obtido se repartia entre os sacerdotes.

Felipe conhecia tudo isso e compareceu ao povoado com o ânimo de comprar carne (a melhor) e a bom preço.

Naturalmente, os vendedores não eram sacerdotes...

Na quarta-feira, 2 de abril, Jesus quis fazer uma surpresa a seus ínti­mos. E conseguiu...

Deixamos Zal e a Cipriota na fazenda de Lázaro e nos encaminha­mos até a Cidade Santa. Todos conheciam Jerusalém, com exceção dos gêmeos Alfeu.

Devia ser a terceira hora (nove da manhã).

A primavera assomava entre os sicômoros.

Bandos de pombos se aninhavam nos bosques e nos terraços. Eles nos viam passar e arrulhavam, coquetes.

Jesus resplandecia com a túnica principal, a branca, sem costuras.

Parecia alegre e despreocupado.

O cabelo flutuava ao vento e também a cor castanho-mel dos olhos.

Era um Jesus ansioso. Aproximava-se a sua hora...

O Mestre passou os braços sobre os ombros dos gêmeos Alfeu e ca­minhou com eles um bom tempo, cantando:

"Pai..., eu o vejo em todas as partes!"

Os íntimos o seguiam, sem saber o que iria acontecer.

"Voa, pombo!"

E os gêmeos se animaram e acompanharam o cântico. Judas, o gago, fez o que pôde. Pensei que se tratasse de uma canção popular, cantada pelos peregrinos que caminhavam a Jerusalém.

"Pai..., eu o vejo no verde do trigo, amanhã amarelo por Tua bondade!"

"Voa, pombo!"

O restante imitou Jesus e os Alfeu e se uniu ao estribilho:

"Voa, pombo!"

Não soube que salmo era...

"Pai..., eu o vejo no sorriso da minha amada, manhã minha!"

"Voa, pombo!"

"Pai..., eu o sinto em meu interior... Eu, tão pequeno, sobre seus joelhos!"

"Voa, pombo!"

Todos nós acabamos cantando, exceto o Iscariotes. Ele nos olhava com uma expressão de fúria, nos depreciando.

Assim que deixávamos para trás Betânia, a trilha procedente de Jericó se dividia em três. O primeiro caminho subia, ágil, para o alto do monte das Azeitonas e ali se detinha um instante, entre as oliveiras, a uma questão de 818 metros de altitude. Depois se deixava cair até a torrente do Cedron, ao pé da muralha oriental da Cidade Santa e morria, muito dignamente, na chamada porta das Misericórdias, também conhecida como Oriental.[48]

Quantas recordações!

A segunda trilha, mais modesta, buscava também a muralha leste, porém a encosta sul do referido monte das Azeitonas (hoje conhecido como das Olivei­ras ou Olivete). Era recebida por uma porta, não tão frequentada: a dos cavalos.

O Galileu escolheu o terceiro caminho, o mais longo, que desembo­cava na porta da Fonte, ao sul de Jerusalém e a coisa de 660 metros sobre o nível do Mediterrâneo.

Eu conhecia os três caminhos.

Este último era mais frequentado.

E prosseguimos com "Voa, pombo!"

Não demoramos em ser ultrapassados por arreatas de burros e reba­nhos de cordeiros, guiados com pressa para o sul da cidade.

E o trânsito de gente foi se intensificando.

Como disse, se aproximava a festa da Páscoa, a mais solene de todas. Jerusalém, nessas datas, se convertia em um fervedouro de raças, de cores, e muito especialmente de dinheiro.

E Jesus continuou cantando.

Alguns discípulos, ao misturarem-se com o gentio, fizeram silêncio.

Foi então que me chegou aquela ideia: a canção não pertencia ao Livro dos Salmos, como cheguei a acreditar em um primeiro momento. Achava-me diante de uma improvisação do Galileu? Tudo era possível. Aquele Homem era uma permanente surpresa...

E na metade do caminho, pela esquerda, ao chegar à altura de um monte de 685 metros de altitude, algo me chamou a atenção. Na ladeira norte, a que se derramava até a trilha, se estendia um importante cemité­rio judeu. Eu já o havia visto em outras ocasiões, mas agora era diferente. Entre os túmulos e as pedras que sinalizavam as sepulturas observei um bom número de operários. Procediam no labor de branquear as referidas pedras e túmulos. E o faziam com meticulosidade. Depois, no Ravid, sou­be que era o monte do Escândalo e averiguei também o porquê do pro­cesso de branquear os túmulos. Os escrupulosos judeus o faziam para que os peregrinos vissem o cemitério à distância e o evitassem; o judeu ficava impuro se alguém pisasse no cemitério e contaminasse o solo. Isso signifi­cava que seu cordeiro não seria aceito no dia da Páscoa. Obviamente isso supunha uma perda de dinheiro para as castas sacerdotais...

E me veio à mente outra expressão, pronunciada pelo Filho do Ho­mem durante a vida de pregação e repetida várias vezes:

"Sepulcros branqueados..."

Compreendi.

Semanas antes da festa, por ordem do Grande Sinédrio, as casas de Jerusalém eram saneadas e caiadas. Os móveis velhos eram jogados na gehenna e as fachadas e janelas, adornadas com flores e com todo tipo de pássaros cantores. Os funcionários do Templo, e de Antipas, inspe­cionavam cada bairro e faziam vistoria nas pousadas e casas de albergue. As calçadas e caminhos eram reparados, assim como as pontes e marcos. Tudo em favor do peregrino..., e do dinheiro do peregrino.

Foi ao deixar para trás o cemitério que, ao sair de uma das curvas do caminho, a vimos...

Os gêmeos se detiveram, impressionados.

Todos pararam.

Jesus tinha os olhos brilhantes.

Jerusalém apareceu diante de nós, como um leão deitado ao sol.

As muralhas, azuis, alcançavam 30 ou 40 metros de altura. Uma fu­maça branca e espessa se levantava no centro do Templo. Era uma fumaça de oferendas.

Absorto na contemplação da cidade, eu não reparei no mar de tendas que estavam nos engolindo. Era outro dos sinais da proximidade da Pás­coa: centenas, quem sabe milhares, de improvisados abrigos (quase todos confeccionados com peles de cabras) se repartiam em um e no outro lado do caminho e assim até o vale do Cedron, ao pé das muralhas. Não soube calcular o número de peregrinos.

Ali conviviam em paz milhares de judeus chegados da diáspora, e com a santa obrigação de gastar um dízimo de seus ganhos anuais na fes­tividade que se aproximava. Era lógico, portanto, que os moradores da Cidade Santa esfregassem as mãos...

O Mestre não se demorou. Atravessou rápido entre as tendas e des­ceu até o portão da Fonte, um dos mais concorridos de Jerusalém.

Ali nos esperava o habitual, mas desta vez multiplicado por dez: uma nuvem de pedintes, de falsos mendigos, aleijados, falsos aleija­dos, criminosos, enganadores profissionais, cegos e falsos cegos... O melhor do melhor.

O Mestre conhecia bem esse submundo e deslizou com habilidade entre os que faziam soar suas canecas de metal, solicitando um asse (em diversos idiomas). André puxou os ingênuos e comovidos gêmeos, e os advertiu da falsidade e do teatro que aquela gente encenava.

E entramos na zona meridional de Jerusalém, a qual chamavam de süq-ha-tajtôn (Akra) ou bairro baixo. A cidade, como já detalhei em uma oca­sião[49], era formada por uma série de suaves colinas que tinham sido redu­zidas por sucessivas invasões (Jerusalém foi conquistada e reconstruída 20 vezes). Uma depressão, conhecida como vale do Tiropeão, dividia a cidade em duas metades: a zona alta e o bairro baixo já mencionado. Na parte alta viviam as pessoas mais ricas. Ali se erguia o impressionante Templo, que He­rodes, o Grande, terminara de construir, a fortaleza Antônia (sede dos kittim) e o soberbo palácio de Herodes, entre outros edifícios oficiais. Cada região dispunha de seus próprios mercados, bairros de artesanato, banhos públicos, sinagogas, teatros e um hipódromo de 195 metros de comprimento.

Nunca cheguei a conhecer a Cidade Santa por completo. Cada bairro era um labirinto dentro de outro labirinto.

E Jesus, decidido, prosseguiu pelas ruas estreitas da cidade baixa, em direção ao noroeste. Achei que sabia para onde se dirigia...

Aquela região era um entremeado diabólico de vielas e de becos sem saída, impossível de clarificar para quem isto escreve. Tentei anotar os pontos de referência muitas vezes, mas sempre acabava me perdendo.

O bairro palpitava.

Os odores voltaram para mim e, com eles, as recordações.

As pessoas cozinhavam na porta das casas, gritavam por qualquer coisa, discutiam sem motivo e atiravam a água suja pelas janelas. Tinha-se que andar por ali bem atento...

Não conseguia decidir para onde olhar.

Tudo era sujeira: gatos esquivos, cores desbotadas pelas passagens estreitas, fumaça, interiores tenebrosos, ratos enormes, crianças imundas nos observando com enormes olhos negros, matronas sem dentes, rou­pa penduradas nos varais diminuindo o ritmo das passadas, lamentações (nunca se sabia de quem), mais mendigos tão falsos quanto aqueles da porta da Fonte, artesãos, vendedores de pedaços do céu e da terra, viden­tes de olhos vidrados, mulas perdidas, suor e mais sujeira. Jerusalém, e digo isso sem medo de me equivocar, era uma das cidades mais imundas do mundo conhecido. As mulheres varriam, mas os excrementos dos ca­valos e os resíduos iam parar no vizinho, que os varria de volta.

Os gêmeos, excitados, foram repreendidos pelo chefe várias vezes. Faltou pouco para que eles se perdessem entre os guisados e os mercados.

André puxava-os pelo cinto, afastando-os de lá.

Eu não estava enganado.

Jesus se dirigia ao Templo.

O que faria? Teria chegado o grande momento? Revelaria o Pai Azul àquela gente perdida e amedrontada?

Foi tudo muito rápido.

Chegamos à parte externa do Templo às 11 da manhã.

O sol, no alto, já tinha tudo sob controle.

Jesus entrou na frente, pelo túnel de duas mãos que desembocava na chamada Porta Dupla, em pleno átrio dos Gentios.

Fazia muito tempo que não passava por aquele msybh (assim eram chamados os túneis).

Uma maré humana nos acompanhou.

A cada dois metros, alojada em um pequeno nicho, uma corajosa lamparina de azeite fazia o melhor que podia.

André, consciente daquela enorme multidão, repetia sem cessar:

- Prestai atenção! Ficai juntos!

Nesse mesmo lado sul do Templo havia um segundo msybh. Eu tam­bém já o havia atravessado (no ano 30). Agora ele estava fechado para reformas. Quando nos aproximamos, descobri um grupo de levitas, ou a polícia do Templo, que procurava desviar os peregrinos para o único túnel que estava aberto.

Eu não gostava dos levitas. Eram servis e cruéis.[50] Era possível dis­tingui-los de longe. Usavam túnicas verdes que desciam até os pés. Neste caso, apesar de estarem a serviço, não usavam as "camisas" de escamas metálicas nem seus capacetes polidos. A aljava e as flechas tinham sido substituídas pelos temidos bastões com cravos. Eles me lembraram dos gauleses de Antipas.

No túnel, ao lado dos enormes blocos de pedra que formavam a cons­trução, havia outra patrulha de levitas. Serviam para filtrar os peregrinos. Eles carregavam tochas e olhavam fixamente nos olhos dos que passavam na frente deles. Ao vê-los, as pessoas baixavam a vista, aterrorizadas.

Finalmente desembocamos no átrio dos Gentios.

As memórias estavam lá, me olhando...

Apesar de já ter visto antes, e o percorrido, fiquei de novo maravi­lhado.[51]

Aquele lugar contrastava com a sujeira de Jerusalém.

Tudo brilhava. O piso do átrio, de mármore branco, jaspeado, era pura neve. O sol chegava e se derretia, feliz.

Distingui centenas de peregrinos. Eles iam e vinham. Paravam, curiosos e maravilhados. Apontavam para os pórticos, para as colunas, para os portões, os arcos, a fortaleza Antônia no extremo noroeste e, aci­ma de tudo, para o ouro e a prata que estavam presentes em toda parte.

O Mestre permaneceu quieto, e olhou em volta.

Os discípulos o rodearam, igualmente mudos e atônitos.

Flávio Josefo foi curto: "É o edifício mais extraordinário que se pode ver debaixo do sol" (Antiguidades XV, 412).

O Templo ocupava um quinto da área total de Jerusalém. Foi um trabalho de titãs e com dimensões espetaculares: 245 metros de largura por 428 metros de comprimento.

O Mestre reagiu finalmente e tomou a iniciativa, explicando aos seus as características mais importantes do lugar onde estavam.

Fiquei agradavelmente surpreendido.

Jesus tinha conhecimento de muitos dos detalhes daquele soberbo edifício. E prosseguiu comentando, como se fosse um dos modernos guias turísticos...

Falou de Salomão, o construtor do Primeiro Templo (no ano 1000 a.C.), e explicou por que o portão oriental levava o nome do sábio rei. Ali se supunham que ficassem os estábulos de Salomão: 10 mil cavalos (tantos quantas as concubinas).

Em seguida, referiu-se às destruições sucessivas, e também à mais devastadora de todas, que foi realizada pelos persas (em 586 a.C.) e que terminaria com o exílio de 42 mil judeus na Babilônia.

Os 12 escutavam atentos e impressionados. Era a primeira vez, ao menos que eu me lembrava, que o Galileu dava uma lição de história...

Na sua construção foram envolvidos mais de 18 mil trabalhadores de todas as especialidades, muitos dos quais vindos da Fenícia, de Roma, da Grécia, do Egito e até mesmo da China e da Índia.

Eu não conhecia esse fato.

O ouro e a prata utilizados na obra teriam enchido centenas de va­gões, até formar uma fila de 16 quilômetros. (Esse foi o tesouro que o general Tito roubou depois da destruição de Jerusalém, no ano 70.)

A reconstrução foi atacada por Herodes, o Grande, no ano de 23 a.C., e ainda não estava concluída.

O Mestre apontou a seus pés e comentou que "aquilo que não se via naquele Templo era tão importante, ou até mais, do que aquilo que se via". Ele estava certo. O subsolo era atravessado por um labirinto de túneis que iam desde o "lugar santo", no centro do Templo, até os diferentes portões. No total, de acordo com nossos cálculos, eram 15,7 quilômetros de galerias. Várias delas levavam até a câmara do tesouro.

Mais tarde, ao retornar ao Ravid e atualizar os diários, meditei sobre aquilo que havia sido dito pelo Galileu. Agora não estou bem certo de que se referia apenas à rede de túneis. Será que, talvez, estivesse pensando na Arca da Aliança perdida? Estaria ela em algum lugar secreto no subterrâ­neo do Templo?

Mas não desejo me desviar da questão central...

Ele caminhou alguns passos e se dirigiu ao esplêndido pórtico que eles chamavam de Real: uma galeria coberta, de três pisos, e que se pro­longava ao longo de 245 metros daquele lado ao sul do Templo. Os pisos (que abrigavam corredores e cômodos para os altos dignitários) apare­ciam balizados por uma quádrupla fileira de colunas, cada uma mais es­belta que a outra.

Jesus continuou apontando detalhes: cada coluna, feita de mármore e em uma única peça, superava os 11 metros de altura. Eram projetadas ao esti­lo coríntio. No total, 162. Com o restante dos pórticos, tínhamos 628 colunas.

Os tetos eram feitos de madeira de cedro, caprichosamente esculpidos.

E aconteceu algo de imprevisto. Melhor dizendo, duas coisas total­mente inesperadas...

Primeiro, foi o povo. Após ouvir as explicações do Mestre, alguns dos peregrinos se juntaram ao grupo dos 12, e foram escutando e seguindo o Filho do Homem. Em determinado momento, quando percorríamos o referido pórtico Real, ou Régio, contei por volta de 50 pessoas. O Mestre não se importou. Alguns dos discípulos, porém, torceram o nariz, mas nada disseram.

O segundo foi mais grave...

Quando nos encontrávamos na metade das colunas, o Mestre me procurou, dirigiu-se a quem isto escreve, e solicitou emprestada, com um sorriso, a "vara de Moisés".

Acho que empalideci.

Jesus a tomou ao redor da área da curvatura e apontou ao alto de uma das colunas.

Oh, Deus!

Eu não podia acreditar.

Se tocasse a cabeça dos pregos, seria o desastre.

Alguém poderia ficar ferido ou machucado...

Se pressionasse inadvertidamente o laser de alta potência, um fogo invisível se propagaria pelo...

Deus!

Eu não sabia o que fazer. Não podia arrancar-lhe a...

Que situação!

A partir desse momento, quase deixei de prestar atenção às explica­ções do Galileu.

Jesus, com a ajuda da "vara", indicou o teto. Na coluna aparecia gravada uma palavra dupla e alguns sinais estranhos. Li, distraído: Ha-Tikvá, que poderia ser traduzida como "A Esperança". Dos símbolos, sinceramente, não me recordo mais. Meus cinco sentidos estavam em outro lugar...

Deduzi que aquilo fosse a marca do assentador de pedras de plantão, alguma chave.

Como fui bobo...

E o Galileu continuou o passeio, com a "vara" bem presa na mão es­querda. De vez em quando a erguia e apontava algumas coisas ou, simples­mente, colocando-a em posição vertical, ajudava o grupo a não se perder.

Passou entre as mesas dos vendedores e cambistas, localizadas prin­cipalmente no canto sudeste do pátio, sob os pórticos Real e de Salomão.[52] Um grande número de prostitutas vagava entre as colunas. Jesus passou entre elas, mas não prestou atenção.

Os discípulos fizeram comentários sobre as prostitutas e algumas, mais atentas, se insinuaram. Tomé parou e entabulou uma conversa com duas delas. Mas André logo percebeu suas intenções, regressou sobre os próprios passos e puxou o manto de Tomé sem a mínima cerimônia. E ali ficaram as duas mulheres, decepcionadas.

Jesus continuou a explicar. Caminhou por baixo do pórtico de Sa­lomão, falou sobre o portão das Misericórdias e apontou com a "vara" uma representação da cidade persa de Susa. E ouvi algo sobre a im­portância daquele enorme portão, porque, uma vez por ano, passava escoltada por ali uma vaca vermelha. As cinzas do animal voltavam então para o Templo e eram utilizadas nas cerimônias de purificação. Não me recordo bem, na verdade...

Depois seguimos até a esplanada norte, igualmente elegante e des­lumbrante.

Ali, no extremo noroeste, se descortinavam os muros de Antônia, o quartel-general dos kittim em Jerusalém. Uma dúzia de soldados montava guarda nas torres.

João Zebedeu não conseguiu se conter e os chamou de aríts (tiranos).

O Mestre estava um pouco afastado e não ouviu.

A visita à parte externa do Templo prolongou-se durante duas horas.

Eu estava com os nervos à flor da pele.

Jesus continuava com a "vara" das maravilhas...

E eram 13 horas, aproximadamente, quando decidiram entrar no santuário.

Os pagãos, como já expliquei, não tinham acesso ao interior do Templo.

Estávamos no topo de uma escadaria que rodeava completamente o referido santuário. Contei os degraus muitas vezes: 14. Cada um com 22,5 centímetros. Eu sei: não faz sentido...

Jesus se aproximou de quem isto escreve e me devolveu a "vara".

Ao fazê-lo, comentou:

- Como estás pálido, malak.

E piscou para mim, enquanto sorria divertido.

Gaguejei, mas não sei o que respondi...

Assim era o Filho do Homem.

O grupo passou ao outro lado da soreg, a balaustrada de mármore de 1,40 metro de altura que demarcava a fronteira para os gentios. Grandes sinais, gravados na pedra ou pintados em vermelho, advertiam as pessoas como eu: "Nenhum não judeu pode passar além deste ponto. Aquele que o fizer corre o risco de ser punido com a pena de morte". O aviso se repetia por toda a extensão da soreg em grego, latim e aramaico.

E Jesus e os 12 entraram naquele formidável edifício.

Uma das patrulhas de levistas foi atrás deles. Conversaram. Depois continuaram e os perdi de vista.

Sentei-me nos degraus e comecei a examinar a "vara de Moisés". Es­tava tudo em ordem.

E, aliviado, prossegui com minha habitual anotação dos pontos de referência. Nunca se sabe.

Olhei de novo para os degraus que rodeavam o santuário. Eram mag­níficos. Permitiam a passagem desde a esplanada do átrio dos Gentios até o terraço que chamavam de Chel, de quase cinco metros de largura e que ficava muito próximo da parede "interior" do Templo.

Por que me sentia atraído por aqueles 14 degraus?

Agora eu sei. Naquela altura, no entanto, eu não podia sequer imagi­nar a importância daquele cenário. Ali aconteceria um evento particular­mente importante. Melhor dizendo, vários...

E eu estava assim, absorvendo detalhes de tudo aquilo que me cerca­va, quando vi se aproximar uma patrulha de vigilância. Eram cinco levi­tas, todos com porretes com cravos.

Eles se detiveram ao pé do primeiro degrau, na frente deste explora­dor, e um deles apontou para a minha perna direita. Disse algo em ara­maico, mas não consegui entender. Nesse mesmo instante começou um dos toques de trombeta de costume, a partir do canto sudoeste do Templo. Em dias comuns, os sacerdotes ou os levitas tocavam as trombetas de pra­ta num total de sete vezes.[53]

O policial achou que eu não entendia o aramaico e falou em grego.

O comprido cordão da sandália direita estava desatado.

Deves manter a compostura - esclareceu ele.

Agradeci ao policial, também em koiné, e me apressei a resolver o problema.

Ao se retirarem, eles comentaram entre si em aramaico:

Malditos pagãos! Yehohanan tinha razão... É uma pena que Antipas o tenha executado...

Fiquei perplexo.

Yehohanan tinha sido executado? Quando? Eu não tinha recebido nenhuma notícia a respeito disso. Que estranho! Os discípulos teriam co­mentado alguma coisa...

Nisso, absorto na declaração do levita, percebi que o vento au­mentava. A brisa da manhã se alterou e ficou agressiva e sujeita a ra­jadas. E o inevitável aconteceu: a espessa coluna de fumaça que subia desde o centro do santuário se rompeu e passou a varrer a esplanada inteira. O cheiro de carne queimada, resultado dos sacrifícios dos bois e carneiros, se espalhou por todo o átrio. Depois notei um forte cheiro de incenso, que era usado durante as 24 horas do dia.[54] As pessoas, longe de tapar o rosto, respiravam aquela fumaça profundamente, al­çando os braços aos céus e gritando: "Glória ao Santo, bendito seja o seu nome!"

Eles estavam orgulhosos.

Tudo estava coincidindo, como se assim tivesse sido planejado pelos céus...

À fumaça, e à mistura de cheiro ruim e perfume, se uniram os bali­dos e mugidos dos animais aterrorizados, e o cântico dos levitas. E, com o Salmo 94, redobraram os tambores. Os corais, nos quais se destacavam as vozes melodiosas dos filhos dos levitas (nunca menos de 12), suavizaram a dramaticidade do momento.

Era a hora de um dos sacrifícios múltiplos.

Menos mal que minha entrada não tinha sido permitida.

Depois se incorporaram os sons de flautas, das harpas de 12 cordas e das trombetas de prata.

E escutei parte do referido Salmo 94:

"Deus da vingança, Yaveh! Deus da vingança resplandece... Exalta-te, ó juiz da terra, dá aos soberbos o que merecem!"

Imaginei o rosto do Mestre, presente no momento dos sacrifícios dos animais, vendo o sangue correr, sentindo o cheiro da carne queimada e, acima de tudo, ouvindo os corais cantando uma concepção de Abba dia­metralmente oposta...

"Até quando os ímpios, Yaveh, até quando os ímpios exultarão?"

Eu me senti desconfortável. E adivinhei que o Filho do Homem es­tava sofrendo...

Não estava enganado.

"... Yaveh, nosso Deus, os destruirá!"

Eu devia ter adivinhado.

Jesus abandonou o Templo antes do que se esperava.

Quando eles alcançaram de novo os 14 degraus, o Filho do Homem trazia um semblante sério, quase furioso. Ninguém falou nada.

O Galileu me procurou com os olhos. Compreendi.

Aquele espetáculo dos sacrifícios não tinha sido de seu agrado, exa­tamente como eu imaginara.

Ele sentou-se no último degrau, o mais alto, e permaneceu em silêncio, com a cabeça baixa. Eu o achei triste. Fazia tempo que não o via assim...

Os discípulos não entendiam o motivo daquela atitude do rabi. E faziam comentários entre eles. O Zelote, João Zebedeu e o Iscariotes pare­ciam orgulhosos daquilo que tinham visto e ouvido.

"Yaveh destruirá os kittim."

Jesus não deu nenhuma resposta ao comentário do Zebedeu.

Devia ser a nona hora (três da tarde).

André não sabia o que fazer.

E interpretei a inquietude dele. Seria mais conveniente que todos se mexessem e voltassem à fazenda de Betânia.

Mas o Mestre continuava ausente, em silêncio.

Passaram outras duas patrulhas de levitas. Eles nos observaram com atenção e seguiram seu caminho. Os cravos nos porretes brilhavam ao sol.

E foi Judas de Alfeu, o gago, quem conseguiu resgatar o Galileu de suas reflexões. Fez um esforço e perguntou o que estava no coração de quase todos os seus companheiros:

Mestre... O Pa... Pa... Pai... está... aí no... no... no San... San... to dos San... San... tos?

Alguns dos íntimos o fulminaram com o olhar, enquanto outros o chamaram de ignorante.

Jesus, então, ergueu a cabeça e pediu calma a todos.

E foi enfático e explícito na resposta ao gêmeo:

Amigo Judas, o Pai de quem vos falo prefere as vossas mentes a essa suntuosidade e a essa vaidade das vaidades.

Aquilo soou como blasfêmia. O Iscariotes levantou-se, ofendido. Deu meia-volta, desceu os degraus e se afastou, misturando-se aos peregrinos.

Caiu outro espesso silêncio.

Os discípulos não captaram o significado das palavras do Galileu, ou então compreenderam apenas a metade delas.

Outra das patrulhas regressou e continuou seu caminho até o pórtico Real.

E eu me perguntei: o que poderá acontecer no dia em que o Filho do Homem falar em público, exatamente neste mesmo lugar?

Faltava uma hora antes do pôr do sol quando entramos na casa de Lázaro. O Iscariotes estava em um canto, devorado por seus pensamentos.

Os dias que se seguiram foram tranquilos.

Jesus e os discípulos ajudavam nos afazeres do campo.

Marta acolheu na cozinha Felipe, os gêmeos e, é claro, a fiel e pacien­te Cipriota. O intendente aproveitou a folga para repintar sua cabra. O mau-olhado espreitava. Ele repetia isso, e não estava errado...

Quanto a mim, dediquei todo o tempo ao Mestre, como tinha sido o habitual. Procurei não me separar Dele. Eu o acompanhei, inclusive, quando se retirava para os bosques de figueiras de Betânia. Zal e eu brin­cávamos enquanto o Filho do Homem meditava ou entrava em contato com o Pai Azul.

Pouco a pouco, fui me esquecendo dos dramáticos acontecimentos vi­vidos dentro do Templo. Creio haver mencionado: Jesus tinha uma aversão natural a qualquer tipo de violência. Os sacrifícios de bois ou de cordeiros, tal e como eu havia imaginado, o fizeram passar um momento difícil.

Depois que o sol se punha, nós jantávamos e, enquanto fazíamos isso, o Galileu ensinava e respondia às perguntas dos íntimos e da família. O Iscariotes continuava afastado e isolado. Aquele homem não tinha jeito...

Jesus não voltou a pisar na Cidade Santa até o histórico e funesto dia 10 de abril, quinta-feira. Outra data importante e que nunca foi mencio­nada nos textos evangélicos... Mais uma...

Os discípulos, sim, eles visitavam Jerusalém. E faziam isso quase que diariamente.

E voltei a me perguntar: "Quem será o segundo traidor?"

Mas eu não sabia...

Chegaram notícias de Saidan e de Nahum, e também da família dos Alfeu e dos filhos de Tomé, em Tariqueia.

André resumiu a situação: "O dinheiro está no fim..."

Mau negócio.

Mateus, o chefe e Iscariotes fizeram várias reuniões e adotaram algu­mas medidas.

Jesus permaneceu à margem.

Assim que a Páscoa acabasse, Bartolomeu, o "urso", deveria regressar ao yam e tomar pé do assunto em detalhes. Se fosse necessário, e com a aprovação do rabi, eles voltariam a jogar as redes e trabalhariam durante algum tempo. "O reino invisível e alado pode esperar..."

Intuí que haveria problemas.

No dia 4 de abril foi o aniversário de Iyar (Abril). Eu me surpreendi, sentia falta dela!

E chegou o grande dia, quarta-feira, 9, a festa da Páscoa, a solene hag ha-pesah, tal como mencionado no Êxodo (34, 25).

Começaria com o pôr do sol e se prolongaria durante sete dias (oito na diáspora).[55]

A Pessach era uma das grandes festas. Ela comemorava a milagrosa saída dos judeus (na verdade, eles eram clãs de beduínos) das terras do Egito, quando o anjo do Senhor sobrevoou (pessach) a casa dos israelitas e respeitou os primogênitos, acabando com a vida dos filhos mais velhos dos egípcios. Para os ortodoxos, esse tinha sido o começo da nação ju­daica. O povo hebreu se colocou então em movimento e foi dirigido até a terra da promissão por Yaveh. Também era conhecida como Hajerut (a festa da Liberdade) e Hamatzot (a festa dos Pães Ázimos).[56]

Todos estavam nervosos na casa.

Marta se multiplicava. Felipe e o restante ajudavam como podiam. Ninguém foi ao campo.

E na terceira hora (nove da manhã) vários dos íntimos, acompanha­dos por servos da fazenda de Lázaro, se encaminharam até Jerusalém. Se bem me lembro, o grupo era formado pelos irmãos Zebedeu, o Zelote, Judas Iscariotes e Simão Pedro. Eles levavam cinco cordeiros sem defeitos, tal como estava prescrito na Lei.[57] Eles deveriam ser abatidos no Templo pelos ofertantes e na presença dos sacerdotes; posteriormente, uma vez que estivessem sem pele e sem gordura[58], a carne voltaria para a fazenda, sendo então submetida a um assado especial.

Jesus tentou ajudar, mas Marta e Maria não permitiram. Quase o expulsaram a vassouradas da cozinha. E eu o vi retirar-se com Zal para as profundezas dos pomares. Eu o deixei em paz. Imaginei que desejasse meditar...

Ajudei na elaboração do cardápio.

Os discípulos e os servos regressaram à décima hora (quatro da tar­de). Entraram na casa às pressas, suando e ofegantes. Faltavam duas horas para o ocaso.

Tudo estava pronto para fazer o assado.

Eles entregaram os cordeiros a Marta, e Felipe começou: atravessou as peças com varas compridas (de cabo a rabo) e começaram a fazê-las girar muito lentamente, e sem permitir que os cordeiros entrassem em contato com qualquer coisa. Era proibido pela Lei. Eles só podiam ser "acariciados" (e não tocados) pelo fogo. Yaveh exigia, igualmente, que nenhum dos ossos fosse quebrado e que a peça fosse comida em sua totalidade. Não devia res­tar nada para o dia seguinte. Se sobrasse alguma coisa - dizia o Êxodo (12, 8-10) - a família teria que queimar no fogo. Nunca era fervido.

E Felipe, atento, foi supervisionando esse assado.

As pessoas começaram a se lavar e a vestir suas melhores roupas. Eu só tinha uma segunda túnica, assim como o Mestre.

E uma hora antes do crepúsculo e, portanto, na entrada de um novo dia, Lázaro, no papel de cabeça da família, realizou a cerimônia do chametz. Com a lamparina na mão, e acompanhado pelo Mestre, pelas irmãs, pelos servos e pelos discípulos, foi percorrendo a casa, cômodo por cômodo, em busca daquilo que não existia: o chametz, ou o alimento fermentado, preparado com levedura. Geralmente se tratava de tortas ou pães feitos de trigo, de trigo-vermelho, cevada, aveia ou centeio, e que haviam estado em contato com a água. Isso teria causado um processo de fermentação. Mas os serviçais e as irmãs eram extremamente cuida­dosos. Não existia chametz. A Lei, entretanto, era a Lei. E o numeroso grupo se divertiu, fingindo que havia chametz aqui ou acolá. Eles riam como crianças...

Felipe deu o alerta.

O assado estava pronto.

Lázaro e o restante das pessoas saíram da casa e contemplaram o sol se pôr. Naquele dia isso aconteceu às 17 horas, 54 minutos e 46 segundos (TU).

Havia chegado o momento: era o Pessachl Era a Páscoa!

Todos se abraçaram e se cumprimentaram.

Jesus, sorridente, me abraçou. Notei algo raro...

Ele estava usando a túnica branca, a principal...

Marta bateu palmas e ordenou que todo mundo se sentasse em torno da grande mesa.

As mulheres e os gêmeos haviam se esforçado.

Tudo era luz, uma toalha de linho, delicadíssima, bandejas, taças de cristal, e os pratos de seáer (de jantar). Ali esperavam a erva amarga (es­carola com alho) que representava os dias negros dos judeus no Egito; a matzá ou pão ázimo (sem fermento), que simbolizava a libertação do Egi­to (apressadamente); o charosset, um doce delicioso, feito com maçãs, no­zes e vinho; pratos com ovos cozidos; azeitonas; amêndoas; alho-poró no vinagre; brotos de feno grego; ervilhas e karpa (aipo e salsa mergulhados em água salgada e que representavam também as lágrimas dos israelitas no solo egípcio).

Foi servida a primeira taça de vinho com água (era permitido so­mente o vinho tinto). As taças eram grandes, com capacidade para um log (em torno de 600 gramas).

Lázaro chamou a atenção dos presentes e formulou a primeira das bênçãos do seder. "Bendito seja, Santo, nosso Deus, que criastes o fruto da videira... Bendito seja, que nos escolheu entre todos os povos e tens nos exaltado em todas as línguas..."

Olhei para o Mestre.

Tinha o rosto sério e voltado para o chão. Sei que aquelas expressões não eram do seu agrado...

Então, como mandava a tradição, o mais jovem daqueles ali reunidos (neste caso era João Zebedeu) formulou ao cabeça da família a primeira das quatro perguntas obrigatórias na ceia de Páscoa: "Por que esta noite é diferente das demais?"

E Lázaro se estendeu na conhecida história das pragas enviadas por Yaveh contra o povo do Egito, e de como o Santo feriu os primogênitos dos egípcios, e "passou sem ferir" sobre as casas dos israelitas que mostra­vam nas portas as manchas de sangue do cordeiro que haviam sacrifica­do naquela noite "sem fim". Eu conhecia a história da libertação do povo judeu, mas Lázaro acrescentou alguns detalhes que eu desconhecia. Por exemplo: ele assegurou que foram 10 mil merkavah (carros de fogo) que sobrevoaram as terras do Egito naquela noite. "E de cada um deles des­cia um raz (mistério) que matava os primogênitos dos egípcios." Naquela noite, foram vistos milhares de raz.

E, na minha mente, surgiram as imagens das "luzes" que eu havia observado em diferentes oportunidades...

Como dizia o Mestre, quem tem ouvidos que ouça...

Na metade da história, alguns dos presentes começaram a bocejar. Eles estavam famintos. E Marta deu a ordem para que servissem o zeroa, o cor­deiro. Aquele era o símbolo do milagre de Yaveh, que evitara o sacrifício dos filhos dos judeus... (mas que assassinara os primogênitos egípcios) (?).

As peças, bem douradas, foram delicadamente cortadas (não se po­dia tocar nos ossos) e repartidas entre os comensais.

Ao chegar ao Mestre, um dos servos tentou lhe proporcionar uma bela porção, mas o Filho do Homem a recusou polidamente.

O serviçal ficou sem saber o que fazer. Olhou para Lázaro e depois para Marta, a senhora da casa.

Desceu um silêncio bem carregado.

Por que Jesus estava recusando a carne do cordeiro? Será que não estava a seu gosto?

Quando Felipe se deu conta do que havia sucedido, lançou-se ime­diatamente sobre a porção em questão e a examinou detidamente. Estava perfeita.

Então, perguntou:

Mestre, o senhor deseja outro pedaço?

Jesus negou com a cabeça. Ele percebeu o silêncio de chumbo que havia caído sobre a sala e sorriu brevemente.

O senhor está doente?

A nova pergunta de Felipe obrigou o Galileu a dar uma breve explicação:

Estou bem... E o cordeiro, suponho, deve estar requintado... Eu pro­meti a mim mesmo não celebrar nenhuma Páscoa com a carne de cordeiro...

Silêncio.

Lázaro prosseguiu com a narração da história da pessach e, pouco a pouco, todos ali reunidos foram se animando e devorando o jantar. O Mestre comeu apenas o charosset e alguns pães.

Ele estava sério, muito sério, como poucas vezes eu havia visto. Algu­ma coisa estava acontecendo...

Correram as quatro taças de vinho, como mandava também a tradi­ção[59], e logo o ambiente ficou festivo.

Naturalmente, todos terminaram cantando.

E o Mestre continuou bicando a comida.

Marta, assim que o cordeiro terminou, colocou em uma extremida­de da mesa uma bela taça lavrada, também em cristal vermelho e azul, destinada ao profeta Elias, "pois ele regressava". Era outro dos costumes da Páscoa.

Olhei para aquele copo cheio de vinho até a borda e depois observei o Mestre.

Nenhum dos presentes havia compreendido. Elias devia preceder a chegada do Messias libertador. Essa era a razão daquela taça. Mas esse Messias nunca vai chegar...

E, de repente, Tiago Zebedeu dirigiu a palavra ao Filho do Homem, e o fez com coragem:

Rabi, fomos ensinados que não estás aqui para mudar a Lei, tam­pouco os ensinamentos dos profetas, mas, ao se negar a comer o cordeiro pascal, não estarias violando essa Lei?

Jesus contemplou o Zebedeu com ternura.

O silêncio regressou, curioso.

Disseste bem - respondeu o Mestre -, eu não vim para modificar o espírito da Lei...

Fez uma breve pausa e perguntou:

Alguém sabe qual é o espírito da Lei?

Todos se entreolharam, mas tinham muito vinho na cabeça. Nin­guém respondeu:

Pois eu direi: ama a teu próximo como a ti mesmo...

Eles sabiam disso. Jesus continuou:

E ainda mais: ama a ti mesmo primeiro, para poder depois amar o teu próximo...

Mateus e o "urso" assentiram com a cabeça. O restante estava de boca aberta.

Esse é o espírito da Lei - proclamou Jesus. - Isso não será mudado. O resto foi agregado...

A conversa se animou:

Mas a que te referes como coisa que foi agregada? - retrucou o Zelote.

O tempo dos sacrifícios, dos holocaustos, e de toda essa liturgia sangrenta já passou.

Ele até poderia ter dito isso mais alto, mas jamais de forma tão clara.

E acrescentou:

A boa-nova que anuncio não precisa de templos, de animais dego­lados, de liturgias, de incenso, ou de bater no peito, ou de carne queimada, não precisa sequer de sacerdotes... Tudo está dentro.

Alguns olharam para ele espantados. Aquilo parecia uma blasfêmia.

Bartolomeu interveio acertadamente:

Mas, Mestre, a ideia do sacrifício nas Sagradas Escrituras equivale à substituição...

O "urso" falava com acerto, como disse. Para a ortodoxia judaica, a es­sência do sacrifício era o sangue, como está registrado em Levítico (17, 11).

O sangue era entregue em troca da vida do sacrificador. Foi Yaveh quem introduziu a ideia da substituição.

Eu sei o que o salmista diz - replicou o Galileu, que conhecia bem os textos sagrados. - "Bem-aventurado aquele cuja transgressão é perdoada e seu pecado coberto..."

Jesus invocava o Salmo 32. E continuou:

Bem-aventurado o homem a quem Yaveh não atribui a iniquidade...

Eles assentiram, satisfeitos. Mas o Filho do Homem ainda não havia

terminado. Faltava o melhor, na minha humilde opinião:

Pois em verdade vos digo: tudo isso pertence à história distante...

Eles se entreolharam. O que isso quer dizer?

Jesus esclareceu:

Ninguém pode pecar contra o Divino...

(Algo me diz que devo escrever com letra maiúscula.)

O cheiro de blasfêmia continuava no ambiente. Mas o Mestre não retrocedia um milímetro:

Em verdade vos digo: é possível pecar contra o homem e, o que é pior, contra vós mesmos, mas nunca contra o Pai.

Já havíamos conversado sobre isso. Quem isto escreve compreendeu.

Eu, agora, ofereço-vos um jugo mais leve. Fazer a vontade de Abba é a verdadeira Pessach... Não percebestes que a palavra "sacrificar" (hiqriv) também pode ser usada para dizer "ficar mais perto" (qerev)? Aproximai-vos e estendei a mão ao próximo, e a unidade com Abba se dará por acréscimo.

Ele estava certo. A palavra hiqriv em hebraico tem como sua pri­meira acepção "sacrificar" e, como terceira acepção, "ficar mais perto, aproximar-se". Qerev, por sua vez, tem como primeiro significado "aproxi- mar-se" e "sacrificar, imolar" é sua terceira acepção. Curiosamente, ahavá ("amor") tem o valor numerológico de "13" (na Cabala). Exatamente o mesmo que "unidade" (ejad).

O verdadeiro corbân ("sacrifício") é a aproximação ao Pai... E ele já está em vós! Entendeis agora por que a verdadeira Pessach (Páscoa) é Abba? Aproximai-vos Dele e tereis imolado o melhor dos sacrifícios... Lembro-vos do salmo do rei Davi: "... Meu bem maior é estar ligado ao Senhor".

Tenho certeza. Nenhum dos discípulos (exceto Mateus) conseguiu se aprofundar no sentido mais intrínseco das palavras do Galileu.

Desde esse dia, o Mestre não provou o cordeiro durante as festas da Páscoa. Era outra forma de abrir uma porta para o futuro...

Jesus se retirou com um breve e cordial "bom proveito".

E ali continuaram os comensais, bebendo e discutindo sobre o que havia sido dito. A reunião se prolongaria por várias horas.

Eu soube. O coração de Jesus de Nazaré havia começado a se turvar.

Mas o pior ainda estava por vir.

O dia 10 de abril (do ano 27), uma quinta-feira, foi uma data históri­ca e que marcaria a vida pública do Galileu...

Quando Jesus apareceu na cozinha, Felipe e o "urso" apressavam-se atarefados para cá e para lá, ajudando na limpeza e preparando o café da manhã. O restante das pessoas ainda dormia.

O Mestre, como era de costume, ordenhou a Cipriota.

Serviu-se do desjejum e expressou a vontade de ir ao Templo.

Os discípulos entreolharam-se surpresos e perguntaram se deviam ir acordar os outros dez.

O Mestre negou com a cabeça, e isso acabou com qualquer dúvida.

Depois do desjejum, Jesus de Nazaré, Felipe, seu amigo Bartolomeu e quem isto escreve deixamos a fazenda e nos dirigimos para Jerusalém.

Eu me lembro dos olhares de Zal e da cabra colorida, como se disses­sem: "Ai, Deus...!"

A caminhada foi rápida e sem obstáculos.

Felipe carregava uma pequena bolsa "apenas com o essencial". Não sei a que ele se referia, mas eu estava com medo...

E passada a terceira hora (nove da manhã), deixamos para trás o tú­nel e ingressamos no átrio dos Gentios.

Os pórticos e a esplanada estavam lotados. Era a grande festa e as pes­soas chegavam felizes. Em breve, começaria o primeiro holocausto do dia.

Era uma manhã azul e de temperatura agradável. E o sol começou a tomar sua posição. Ele sabia de alguma coisa...

Jesus quase não falou durante a viagem. Ninguém sabia o que pre­tendia. Por que quis voltar ao Templo em uma data tão importante quanto aquela? Por que ele deixou o resto do grupo em Betânia?

Logo iríamos descobrir.

É claro que nenhum dos evangelistas mencionou o que aconteceu naquela manhã.

Observei numerosos fariseus entre os visitantes e os peregrinos.

Eu me senti desconfortável...

Mas o Mestre parecia ter tudo planejado.

Ele dirigiu seus passos para a esplanada norte do átrio, e os discípu­los foram atrás, em silêncio. E eu os segui, é claro.

Vi patrulhas de policiais do Templo. Sempre de cinco em cinco, sem­pre armados com porretes, sempre atentos...

E, ao alcançarmos a altura do portão principal do santuário, o Filho do Homem deteve-se por alguns instantes. Ele olhou para o Templo e, em seguida, subiu os 14 degraus, avançando aos saltos, de três em três.

Ficamos aos pés da escada, atônitos. O que Ele pretendia fazer?

Ao chegar ao alto, ficou imóvel por alguns segundos, de costas para nós, em frente à balaustrada de separação, e olhando para o interior do re­ferido santuário. Pensei que estivesse avaliando a possibilidade de entrar.

Mas não...

O Mestre acabou girando nos calcanhares e nos olhou. Então elevou o rosto para o azul surpreso do céu e fechou os olhos.

Estava pálido.

Felipe fez um comentário. Jesus quase não havia comido na ceia, e pensou que não estivesse se sentindo bem. Ele remexeu em sua bolsa e extraiu de lá uma laranja, limpa e reluzente.

Os peregrinos, intrigados, começaram a se deter e a perguntar a Feli­pe e ao "urso" quem era aquele homem e o que ele estava fazendo.

O Mestre estava no alto da escada, completamente sozinho. E foi er­guendo os braços, com as palmas das mãos estendidas.

Eu já conhecia aquela postura. Estava rezando.

Em questão de minutos, o lugar se encheu de gente. Todos pergunta­vam o que estava acontecendo.

As trombetas soaram. O primeiro sacrifício coletivo de animais esta­va a ponto de ser iniciado.

Os mugidos de terror não demoraram a ser ouvidos. Depois ouvi­mos os cânticos. E depois vimos a coluna de fumaça subindo aos céus...

Uma das patrulhas dos levitas chegou, às pressas, e se misturou com a multidão.

O Mestre continuava na mesma posição, com o rosto voltado para o céu. A túnica branca caía com suavidade, proporcionando majestade. O vento não se atrevia a interromper.

"Quem é ele? - perguntavam os policiais - Ele está louco?"

Alguns diziam que era Yehohanan ressuscitado. Outros citavam Elias, que havia se "apresentado" na metade da festa de Páscoa. Enfim, era uma confusão...

Vi quando chegou uma segunda patrulha. A situação se complicava.

Os cânticos pararam e os mugidos e balidos dos animais degolados se extinguiram.

Jesus desceu os braços e olhou para a multidão.

O que havia naquele olhar? Os peregrinos ficaram hipnotizados.

O Mestre, de fato, exibia uma palidez intensa.

E Felipe, em outro de seus surtos, subiu rapidamente os 14 degraus de mármore. Ficou em frente ao rabi e depositou a bonita laranja na mão esquerda do Mestre. Depois, sem uma palavra, voltou e se postou ao lado do "urso".

E o Galileu, sem deixar de olhar para aqueles que estavam ali reu­nidos, acariciou a laranja com ambas as mãos. E assim permaneceu por alguns segundos, que pareceram a eternidade.

Finalmente, o Mestre deixou ouvir sua voz. Que flutuou, clara e po­derosa, no lado oriental do átrio.

Eu não me dei conta de que isso estava acontecendo até que alguns segundos já tivessem se passado.

Era a primeira vez que Jesus de Nazaré falava - "oficialmente" - em público! E fazia isso no coração da ortodoxia judaica!

Nada disso foi casual...

Amigos...

O silêncio ficou espesso.

Notamos como o rosto do Galileu recuperava as cores.

Amigos, estou aqui para celebrarmos juntos a nova Páscoa!

Senti um calafrio.

Ele estava se metendo na boca do lobo. Melhor dizendo, já estava dentro da boca...

Alguns dos peregrinos romperam o silêncio:

"O que ele disse? Que nova Páscoa é essa? Quem é ele?"

A polícia do Templo continuava observando, muito atenta, e pronta a intervir. No momento, limitaram-se a ouvir.

Fui enviado para revelar aquilo que permanece oculto... Eu vos tra­go uma boa-nova...

Mais peregrinos continuavam a chegar. Já não cabia uma alma viva naquele setor. Calculei mais de 500 pessoas.

"Enviado por quem? - perguntavam os peregrinos. - Enviado para quê?"

O Mestre não respondia a nenhuma das pessoas... Mas respondeu a todas elas.

Abba não é medo! Não é vingança! O Pai não é sangue derramado! Não é fogo nem espada!... Não é raiva nem prêmio ou castigo!... Não é justiça!

Os peregrinos estavam desconcertados. Aquele Homem não gritava e ainda assim todos o ouviam. Aquele Homem parecia saber do que fala­va. Sua voz era segura. Ela penetrava no âmago de cada um.

Abba é amor!... O Pai não tem um livro dando contas de vossos erros e de vossas boas ações!

Alguns se aperceberam do propósito incomum daquele Homem e clamaram:

"O Santo, bendito seja seu nome, é a justiça... Quem é esse sujeito? Está blasfemando!"

Jesus continuou:

Eu fui enviado para despertar todos...

E as pessoas replicavam:

"Já estamos despertos, estúpido! Veja o sol! Volta para casa e vai curar sua bebedeira!"

Então, o Filho do Homem apontou ao santuário e proclamou algo que foi igualmente mal recebido e mal-entendido pelas pessoas, e que fez crescer a ira de muitos dos presentes:

Vede bem...

As pessoas seguiram a direção do dedo indicador esquerdo do rabi. Estava indicando o interior do Templo, como já mencionei.

O Pai não está lá!

O silêncio desabou sobre aquelas centenas de judeus. Os policiais se entreolhavam, sem saber muito bem o que fazer.

E o Galileu repetiu, com ênfase:

Ele não está lá, está aqui!

E levou seu dedo indicador esquerdo até a testa.

Um murmúrio de desaprovação se ergueu na multidão como se fosse uma onda.

Ao apontar o santuário, o Filho do Homem estava se referindo, de forma inequívoca, ao Santo dos Santos, o lugar mais sagrado do Templo e das crenças religiosas judaicas.[60]

Não interpretei como sendo uma blasfêmia (Jesus jamais ofendeu alguém), mas sim como algo literal. Ele tinha razão: o Debir, ou Santo dos Santos, estava vazio. Sempre esteve.

Mas também deixou no ar uma verdade formidável, que era pratica­mente desconhecida para aquelas pessoas: o Pai habita na mente do ser humano (desde os 5 anos de idade).

Obviamente os peregrinos não entenderam nem admitiram isso.

E o chamaram de "blasfemador" e "filho do senhor das moscas" (Belzebu).

Alguns o reconheceram:

"É o carpinteiro louco de Nahum... Transformou a água de Caná em vinho... Ainda está bêbado..."

As risadas e os impropérios se misturavam.

Comecei a tremer. A situação poderia resultar em algo catastrófico.

O que eu devia fazer?

Nada.

Tentei me recompor. Eu era apenas um observador. Esse era o meu trabalho.

Foi isso que fiz... Embora fosse meu amigo.

Dois levitas se destacaram entre a multidão, começaram a subir as escadas e se dirigiram até o Galileu. Pensei que eles o prenderiam.

Mas não.

Passaram na frente Dele, continuaram até a balaustrada e se perde­ram no interior do santuário.

Jesus não vacilou. Continuou seu discurso:

- Eu vos trago a esperança! ... O Pai não está lá, mas dentro de vós... Ele vos ama! Ele espera! Ele sabe! Ele não faz diferença entre as raças e os credos!... Ele não entende a diferença entre homens livres e escravos...! Não importa se sois judeus ou pagãos!... Não importa se sois ricos ou pobres, homens ou mulheres, jovens ou velhos, bons ou maus, doentes ou sãos! Ao Pai não interessa o vosso passado!

A multidão irrompeu de novo, interrompendo o discurso.

"Louco! Blasfemo!"

As pessoas gritavam esses e outros qualificativos. Os punhos se er­gueram ameaçadores.

Felipe e o "urso", lívidos, não sabiam se fugiam ou se ficavam ao pé das escadas.

O Mestre continuava acariciando a bela laranja...

Nós estamos em seu colo! Somos todos filhos de um Deus! Será que não compreendeis?... Estamos sentados no colo do melhor dos Pais!

"Isso é blasfêmia, maldito! Como te atreves a falar assim do Santo, bendito seja seu nome?"

Os fariseus se colocaram na primeira fileira e repreenderam furiosa­mente o Galileu. Os levitas tentavam acalmá-los.

Não há nada a temer - prosseguiu o Filho do Homem com grande ter­nura. - Anuncio que existe um reino, do qual eu venho, e que não se consegue ver com os olhos da carne, mas ao qual regressareis inexoravelmente... Essa é a boa-nova! Sois todos imortais pelo expresso desejo do Pai!

E enfatizou:

Imortais! Sois todos filhos de um Deus e, portanto, irmãos!... Co­rações ao alto! Confiai!

Foi nesse momento que vimos os policiais do Templo regressando. Eles vinham acompanhados por sacerdotes e por outros levitas. Reconhe­ci um dos chefes de seção da polícia: um tal de Ben Bebay, famoso por sua crueldade (ele se ocupava, por exemplo, de açoitar aqueles que tentavam trapacear no sorteio das funções do culto).

Os sacerdotes quase nem prestaram atenção ao Mestre. Passaram diante Dele com pressa e se reuniram com os levitas que aguardavam ao pé das escadas. Eram sacerdotes comuns, com as túnicas brancas de byssus,531 com largas faixas vermelhas e azuis e com turbantes igualmente impecáveis. Nenhum deles usava calçados.

Falavam, argumentavam, apontavam para o Galileu e voltavam a discutir.

- A partir de agora - continuou o Mestre - tudo é novo... Tudo é diferente... Tudo é esperança... Somos todos filhos de um Deus!... Deixai a escuridão, estou aqui para dar-vos a mão!... Vim para que a humanidade recupere aquilo que é seu por direito... Confiai!

Os peregrinos, cegos de ódio, continuavam insultando o rabi.

"Blasfêmia!"

Os sacerdotes e os levitas tentavam chegar a um acordo, mas os es­forços eram infrutíferos: "Prender? Expulsar do Templo? Levar até os che­fes de seção? Surrar ali mesmo?"

Meu Deus!

As pernas de Felipe não paravam de tremer...

Foi então que reparei num detalhe menor (?). Estávamos no dia 10 de abril (do ano 27). Faltavam três anos, quase exatamente, para a conde­nação ali mesmo, em Jerusalém, do Filho do Homem! Jesus foi "julgado" (?) pelo Grande Sinédrio na madrugada do dia 7 de abril do ano 30. Coin­cidência? Acredito que não...

Vários dos levitas correram de novo para o interior do santuário. Imagi­nei que eles tivessem ido se consultar com alguém de escalão superior.

Os "santos e separados", raivosos, continuavam levantando o punho contra o Mestre, pedindo a sua prisão.

Foi nesse momento, em que eu estava misturado aos peregrinos, ou­vindo horrorizado o que diziam uns e outros, que perdi o rabi de vista. Foi questão de segundos.

Quando olhei para o topo dos 14 degraus, o Mestre já não estava mais lá.

Mas aconteceu de eu vê-lo quando se dirigia tranquilamente para o túnel. E desapareceu entre os que entravam e saíam.

No chão, no lugar que até há pouco estava sendo ocupado pelo Galileu, solitária e brilhante, descobri a laranja que tinha sido acariciada du­rante todo aquele tempo.

Foi como um símbolo...

O "urso" também reparou a caminhada de Jesus até o túnel e, no meio da confusão, teve reflexos suficientes para puxar Felipe, o de Saidan, e correr, literalmente, pela esplanada.

Eu me senti tentado a segui-los, mas não o fiz.

Aquilo ainda não havia terminado.

A súbita ausência do rabi irritou ainda mais aos fanáticos.

Os fariseus amaldiçoavam e batiam o pé no chão de mármore.

Eles tinham deixado um blasfemador escapar...

Logo os levitas retornaram. Chegaram trazendo um chefe. Eu já o conhecia. Tinha-o visto em novembro do ano 25, nos lagos de Enaván (hoje Enon), quando uma representação dos sacerdotes do Templo apa­receu na região e tentou descobrir quem era Yehohanan.[61] Era chamado de Masroqi ("Flauta"), porque "soprava" ao falar. Diziam que ele era tão violento quanto beberrão.[62]

O Flauta conversou com as outras patrulhas. Eles explicaram tudo. Descreveram Jesus. E o chamaram de "o louco da laranja". Ninguém sabia como nem para onde o louco tinha ido.

Alguém pronunciou a palavra "milagre". Os fariseus quase o devoraram...

Eles vasculharam o átrio dos Gentios por completo. Procuraram e reviraram tudo. Negativo.

Nem rastro do "louco da laranja".

Eu continuei no alto das escadas, observando.

Sentei-me. Peguei a laranja, contemplei-a e tentei refletir.

O que era aquilo que eu tinha visto e ouvido na histórica manhã de 10 de abril?

A avaliação foi breve e dramática...

Eu acabara de assistir a uma "declaração de princípios" do Homem-Deus. Essa era a sua filosofia, e sua bela e revolucionária mensagem. Mas ninguém a entendia. Esse seria o conteúdo principal de sua vida pública, mas muito poucos teriam acesso a ele.

O pior de tudo é que, além de ser incompreendido, o Filho do Ho­mem começava a ser odiado.

Aquela quinta-feira, 10 de abril do ano 27, foi o princípio do fim... Nenhum evangelista mencionou isso.

Os problemas rugiam em torno Dele, e cada vez mais próximos.

Não sei quanto tempo se passou enquanto eu refletia sobre essas questões.

Deixei a bela e sofrida laranja no chão e saí do Templo.

Retornei a Betânia.

Jesus não estava na fazenda. Ninguém sabia de nada.

Felipe e Bartolomeu fingiam que estavam fazendo alguma coisa. Eles se mexiam na cozinha, preocupadíssimos.

Conversei com eles, mas não souberam me informar de nada. Eles tinham perdido o Mestre de vista. Imaginaram, assim como eu, que tives­se começado a percorrer o caminho de volta para a aldeia de Lázaro, mas não. Tampouco mencionaram o ocorrido aos demais discípulos ou aos membros da família. Escolheram ficar em silêncio, pelo menos até quan­do o Galileu aparecesse de volta. Foi uma atitude prudente. O que havia acontecido naquela manhã no átrio dos Gentios tinha sido algo grave, muito grave. Se alguém fosse tomar a iniciativa de contar aos demais, esse alguém teria que ser Jesus.

A verdade é que, conforme se passavam as horas, Felipe e o "urso" aumentaram seu nervosismo.

Marta ficou intrigada. Aquela era a primeira vez que ela via Felipe a um canto, pálido, mão sobre a mão. Nem prestava atenção à Cipriota.

Quem isto escreve observou Zal. Estava tranquilo em seu canto. Aquele era um bom sinal. E esperamos.

Pouco antes de o sol se pôr, o Mestre chegou.

Tinha uma expressão amável e serena. Disse que havia caminhado bastante. Tinha subido ao Monte das Oliveiras, e se permitiu perder-se entre os bosques de figueiras de Betânia e Betfagé.

Eu o olhei, espantado.

Não parecia ter sido nem um pouco afetado pelo incidente no Templo.

Nem perguntei.

Se tivesse essa vontade, teria tocado no assunto, como já fizera em outras ocasiões.

Felipe e o "urso" entenderam que Jesus devia estar cansado, e que se­ria melhor deixar para discutir os eventos daquela manhã em outra opor­tunidade. Imagino ter dito isso antes: ambos eram discretos e inteligentes.

E assim foi: o Galileu estava esgotado (nunca soube a causa disso). Jantou alguma coisa, deu algumas risadas com as pessoas e depois se reti­rou para descansar.

E o dia se apagou...

Outro dia para a história...

No dia 14, segunda-feira, houve uma novidade. Um mensageiro che­gou até a fazenda. Era inevitável. A notícia da presença de Jesus em Betâ­nia acabou vazando.

O mensageiro tinha sido enviado por Anás, antigo sumo sacerdote de tão amargas lembranças.[63] Ele se encontrou a sós com o Galileu. Jesus explicou mais tarde. Anás era um parente de Salomé, a esposa do Zebe­deu pai. Jesus havia conhecido Anás há muito tempo, em sua juventude, e por intermédio de Salomé. Pois bem, o antigo sumo sacerdote desejava se encontrar com Ele.

Os discípulos saudaram o convite. Anás era realmente uma pessoa importante, e não apenas pela posição que havia ostentado.[64] Metade de Israel era sua. Durante os anos em que ocupou a posição de sumo sacer­dote, acumulou uma fortuna que as más-línguas estimavam em mais de 40 milhões de denários de prata.[65]

Felipe e Bartolomeu não disseram nada, mas suspeitaram que o con­vite tinha a ver com o que fora dito pelo Mestre no Templo naquela ma­nhã do mencionado dia 10 de abril. Eu também imaginei que fosse isso.

A entrevista na casa de Anás em Jerusalém não prenunciava nada de bom...

O Galileu marcou a conversa para sexta-feira, dia 18.

Eu não o vi apurado e muito menos nervoso... Comportou-se como de costume. Continuou ensinando as pessoas e retirando-se para os bos­ques, na companhia de Zal, o cachorro cor de estanho.

E no dia 18 de abril, sem pressa, Jesus e os discípulos (Felipe e os gêmeos ficaram na fazenda de Lázaro) atravessaram a cidade baixa, cru­zaram o vale do Tiropeão e entraram no bairro alto de Jerusalém. A man­são de Anás, à qual já me referi, se levantava perto do portão de Sião, no extremo oeste. Um jardim, com um muro baixo, cercava a propriedade. E as lembranças me assaltaram novamente.

Naquele lugar, anos mais tarde, se registraria a quádrupla negação de Pedro...

O sol estava a pino, atento.

Entramos no jardim e esperamos.

Anás apareceu logo depois. Naquela época ele estava com 67 anos e o mal de Parkinson já havia dado as caras. Era um ancião desgastado pelos anos e pela ganância, mas conservava ainda um olhar rutilante. Nenhum detalhe escapava dele.

Um de seus servos colocou uma cadeira na sombra e Anás sentou-se nela com alguma dificuldade, e soltando alguns gemidos. As mãos tre­miam e seu rosto parecia rígido, como uma pedra.[66]

Ele estava nos observando, um a um.

O Mestre e os discípulos continuavam de pé, ao redor do ex-sumo sacerdote.

Outro dos servos chegou com um amplo leque de penas azuis e se colocou atrás da cadeira, espantando as moscas e proporcionando alguma brisa naquela manhã quente de primavera.

Anás demonstrava profundo cansaço.

Um terceiro servo ajoelhou-se e depositou uma bacia de prata aos pés de Anás. Encheu o recipiente com água, jogou um punhado de sal grosso no líquido e tomou os pés do ancião, colocando-os na pequena tigela. O rosto do parente de Salomé relaxou.

Todos estavam (estávamos) na expectativa.

Jesus esperou. Notei certa tensão em seu rosto.

Anás - cujo nome em aramaico significa "punição" (ele não devia nunca se esquecer disso) - desenhou um sorriso distante e pouco recon­fortante, e foi direto ao assunto:

É verdade o que me contaram?

Ele não esperou pela resposta, e passou a mencionar "o que lhe ti­nham contado":

Tu te proclamaste enviado do Santo...? Bendito seja.

Anás estava se referindo às palavras pronunciadas pelo Mestre na manhã do dia 10 de abril, no átrio dos Gentios.

Pensei ter visto problemas pululando ao redor no jardim...

De que nova Páscoa falaste? Estás tentando mudar aquela que foi estabelecida pelo mesmíssimo Santo, bendito seja, e pelos anciãos da cidade?

Os discípulos se entreolharam, consternados.

O tom de voz do ex-sumo sacerdote era claramente ameaçador.

Como devo entender que o Santo, bendito seja, não seja levado em conta por ti?

Jesus permaneceu impassível. Ele não tinha dito isso, exatamente.

E te atreveste a dizer que o Santo, bendito seja seu nome, não é justo?

Um murmúrio de desaprovação perpassou todos os íntimos.

Bartolomeu continuava mudo e pálido.

Jesus finalmente falou, com confiança e determinação. Foi a única vez em que participou do interrogatório:

Onde há amor, não é necessário justiça...

Anás não ouviu. Não era para isso que ele estava ali. Antes de receber o Filho do Homem, ele já havia decidido a sua sentença...

Jesus percebeu. Aquela "conversa" não tinha sentido.

E Anás elevou o tom:

E te atreveste também a comparar os judeus, o povo eleito pelo Santo, bendito seja, com os pagãos?

O Mestre, com os olhos fixos nos olhos de seu amigo (?), não moveu sequer um músculo. Jesus estava ciente da importância daquele encontro...

Os discípulos, por seu lado, continuavam sem entender. Não sabiam do que falava aquele indignado Anás.

O "urso", que sentiu a tempestade chegando, se retirou para o fundo e tentou passar despercebido.

Anás concluiu com as seguintes palavras:

Serei indulgente... Em consideração a Salomé e à nossa antiga ami­zade, eu te darei a oportunidade para te retratares...

Houve silêncio, quebrado apenas pelo voo negro e rápido das andorinhas.

Eu ordeno que te apresentes aos notáveis do Sinédrio e solicites o perdão deles, humildemente, por tuas blasfêmias.

A tempestade tinha acabado de desabar.

Serão eles a te impor o castigo correspondente...

Eu estava perplexo.

Essa era a primeira acusação formal das castas sacerdotais contra o Filho do Homem. Se a condenação de blasfêmia prosperasse, o Sinédrio poderia condená-lo à morte. Era isso que dizia a Lei.[67]

E Jesus respondeu suavemente:

Amigo, não cometi nenhum erro...

Anás se mostrou tal e qual como era:

Se negares e se não te arrependeres, eu mesmo ordenarei que sejas preso.

Jesus o interrompeu:

Não poderás fazer nada sem o consentimento do Pai.

O ex-sumo sacerdote, confuso, deu um soco no braço esquerdo da cadeira, e babou furioso.

Os discípulos e os servos deram um passo atrás, atemorizados.

O Galileu não se moveu. Seus olhos brilhavam.

E comecei a perceber um perfume familiar. Cheirava a sândalo bran­co. Cheirava serenidade...

Sabes o que fazemos com os profanadores?

Anás se referia aos castigos mencionados nas Sagradas Escrituras, especialmente o Levítico e o Deuteronômio.[68] Silêncio.

Sabes que posso mandar te açoitar?

Silêncio.

Que posso te enviar ao exílio?

Silêncio.

Que posso mandar te cortar?[69]

Silêncio.

Sabes que o Santo, bendito seja, pode fazer cair sobre ti as pragas do Egito?

Anás havia invocado uma passagem do Deuteronômio (28, 58-62);[70] o texto que era recitado precisamente quando um judeu era açoitado por outro judeu.

Silêncio.

Sabes que posso pedir a Roma para te crucificar?

O Mestre empalideceu ligeiramente.

Anás, sem o saber, tinha feito uma profecia...

Sabes que posso destruir todos os teus?

O ancião, irritado com o silêncio que seu suposto amigo mantinha, se colocou de pé e tirou o pé esquerdo de dentro da bacia, mas, desajeita­do, não conseguiu levantar corretamente o pé direito, tropeçou e caiu de bruços sobre as lajes do pátio.

A bacia de prata rolou pelo pavimento e, como um escárnio do des­tino, foi parar bem na frente das barbas de Anás. Ali rodopiou por alguns segundos e, finalmente, satisfeita, parou.

Nenhum dos servos veio em seu auxílio.

Jesus foi o primeiro a reagir.

Inclinou-se sobre o dolorido ex-sumo sacerdote e tentou prestar-lhe ajuda. Anás rejeitou de maneira grosseira e ordenou que desaparecesse da sua vista.

Os serviçais, finalmente, vieram em seu auxílio e o levantaram.

Jesus abandonou o jardim, mas, antes de cruzar o umbral da porta, se voltou para Anás e declarou:

Eu te ofereci a luz, porém escolheste o medo...

Girou sobre os calcanhares e saiu da propriedade. Os discípulos o seguiram atropeladamente.

Nesse entardecer, em Betânia, o Mestre explicou aos seus o que ocor­reu na histórica manhã de 10 de abril, no Templo.

Os íntimos entenderam apenas em parte.

O que estava claro é que Anás não ameaçava em vão.

E surgiu a polêmica.

O ex-sumo sacerdote era um indivíduo poderoso, com influências no Grande Sinédrio e nas castas sacerdotais em geral. Anás era saduceu. Isso sig­nificava que não desejava complicações com o poder estabelecido (Roma).

André, Tiago Zebedeu, Felipe e Bartolomeu opinaram que era me­lhor cumprir as exigências de Anás.

Pedro, João, o Zelote e Judas Iscariotes se opuseram. Não compreen­diam o que foi dito pelo Filho do Homem, mas não aceitavam dobrar os joelhos diante daquele "sanguinário".

Tomé, Mateus e os gêmeos de Alfeu não disseram nada.

Jesus tampouco se pronunciou. Limitou-se a comentar:

Deixemos que o Pai faça o seu trabalho...

Ninguém, com exceção do Galileu, captou nesses momentos o alcance das ameaças de Anás. Os problemas, efetivamente, rugiam muito próximos...

Foi o "urso" quem desviou a conversa, expondo a Jesus uma pergunta interessante:

Mestre, por que respondeste ao "Castigo" (Anás) dessa maneira?

O Galileu, acredito, agradeceu a pergunta e lançou:

Qual, vós podeis dizer, é o pior inimigo do homem?

Discutiram.

Não houve forma de resumir os diferentes critérios.

Uns defendiam que era a inveja. Outros se inclinaram pela cobiça, pelo orgulho e pela idolatria. Tomé se retratou, assegurando que era a mulher.

Pedro aproveitou a oportunidade e apontou sua sogra.

Jesus deixou que eles falassem.

Depois, uma vez expostos os argumentos, se dirigiu aos seus homens e proclamou:

O grande inimigo do homem é o medo.

E acrescentou:

Estais aqui para proclamar a boa-nova: o medo terminou.

Eles o olhavam, estupefatos.

Vós sois imortais! - prosseguiu o Filho do Homem, tentando des­pertar a alma dos íntimos. - Aquele que confia, aquele que se entrega à vontade do Pai, nunca mais voltará a esbarrar com esse tirano...

Tu te referes a Anás?

Não, Bartolomeu, estou falando do medo, o grande tirano do homem...

Mateus, sim, compreendeu, e apontou acertadamente:

Estamos sentados no colo do Número Um... É impossível temer...

Jesus correspondeu com um sorriso esplêndido. Era isso mesmo.

Mas se não tenho medo - interviu Tiago Zebedeu -, em que eu me converto? Não é isso o que diz a Lei...

Vê uma criança... Ela confia plenamente em seu pai. Não há medo nela. Isso é o que eu peço e quero que soliciteis ao mundo: medo, nunca mais! Estais sentados no colo de um Deus! Medo, nunca mais!

E o que sucederá com os meus muitos pecados?...

Era Felipe quem perguntava.

... Como saberei que o Pai me perdoou?

O Galileu, então, começou a contar uma parábola. Falou de um ju­deu que escrevia seus pecados em um livro. Nesse mesmo pergaminho tomava nota dos pecados cometidos por Deus contra ele e contra a sua família e amigos.

Os discípulos ouviam, atônitos.

E chegou o Kippur (o dia do Perdão). Então o judeu em questão pe­gou o livro, o abriu e, dirigindo-se a Deus, exclamou: "Hoje chegou a hora para nós dois... Tu, meu Deus, e eu, repassaremos as contas... Aqui tenho a lista de meus pecados e a lista dos teus: as tristezas e desgraças que tu ocasionaste à minha família, aos meus amigos e a mim mesmo... Se calcu­larmos, tu me deves mais do que eu a ti..."

Bartolomeu, o "urso" de Caná, assentiu com a cabeça, com ar divertido.

E Jesus concluiu:

"Porém, como hoje é o Kippur, o dia em que cada um deve fazer as pazes com o vizinho, eu te perdoo..., se tu concordares em perdoar-me."

Fim da parábola.

E o Mestre perguntou:

Qual é a vossa opinião, com relação ao judeu que perdoou a Deus?

Uns o chamaram de "irreverente". Outros o qualificaram de "blasfemo".

Mateus o chamou de "estúpido" e acrescentou:

Perdeu seu tempo... Pelo que nos foi ensinado, ninguém tem a ca­pacidade de ofender a Deus.

Foi o único que compreendeu.

E o Mestre sentenciou de novo:

Anás prefere o medo à luz...

Nos dias seguintes, os mensageiros não deixaram de chamar à porta de Lázaro. Contei nove.

Traziam convites para Jesus de Nazaré. Todo mundo desejava conhecer o Homem que havia desafiado os corruptos sacerdotes do Templo de Jerusalém.

Isso não era certo. Jesus não desafiara ninguém. Mas os boatos se apoderaram da Cidade Santa.

Os convites - para "comer" e "passar o dia" - procediam dos notá­veis do mundo financeiro, dos ricos saduceus, de membros destacados da irmandade dos "santos e separados" e também dos judeus e pagãos curio­sos, que não tinham coisa melhor para fazer.

Jesus estudou cada pergaminho, porém não decidiu nada imediata­mente. Reuniu-se várias vezes com André e conversaram.

Os discípulos, inquietos ao compreender que o Galileu não cumpri­ria o que fora ordenado por Anás, decidiram montar guarda à porta da fazenda de Lázaro. E fizeram isso às costas do Filho do Homem e armados com as gladius. Cada um por vez.

O Mestre soube, mas deixou-os fazer.

Finalmente, o Homem-Deus tomou uma decisão. Visitaria, unica­mente, a casa de um tal Flávio, um judeu de origem grega, conquistado pela helenização e incircuncidado.

A visita ocorreria na segunda-feira, 21 de abril.

Alguns dos íntimos protestaram, mas o fizeram quando o Mestre não se achava presente.

Pedro, Judas Iscariotes e o Zelote foram os mais teimosos.

Não desejavam nem encostar em Flávio, um "judeu de átrio" (pelo fato de não estar circuncisado, não tinha acesso ao Templo) e, além disso, homossexual assumido. O Levítico, nesse sentido, é claro e contundente.[71]

Quem isto escreve não saía do assombro. Quão diferente é a imagem desses homens nos tempos atuais! Assim é a história...

Pedro e os "teimosos" levantaram um protesto ao chefe e este, sem­pre responsável, o trasladou ao rabi.

Jesus fez um único comentário: eram livres para acompanhá-lo à casa de Flávio.

Jesus jamais entrava numa polêmica, e deixou o assunto na mão de André.

João Zebedeu não se pronunciou. Ele sabia muito bem por quê...

O resto encolheu os ombros.

E na segunda-feira, dia 21, como previsto, Jesus e a metade do grupo se dirigiram à Cidade Santa. Pedro, o Zelote, o Iscariotes, Felipe e os gê­meos permaneceram na fazenda. Os três primeiros pelo já mencionado, e os três últimos por razões de trabalho.

A casa de Flávio se erguia próxima do hipódromo e da muralha que cruzava a cidade de oeste a leste, dividindo-a nos referidos bairros. Flávio, ao que parecia, dada a sua natureza de "judeu de átrio", não era bem-visto pelos ricos habitantes do bairro alto. Esta era a razão pela qual teve que edificar sua propriedade na cidade baixa, mais própria de gente plebeia.

Chegamos um pouco antes da sexta hora (meio-dia).

Como descrevê-la?

A casa de Flávio era uma domus tiberiana: uma mansão com dezenas de quartos, unidos entre si, nos quais viviam a família e os serviçais. Não fui capaz de memorizá-la em sua totalidade, ainda que a tenhamos visitado ao longo de dez dias. Segundo a informação do próprio Flávio, a domus (assim a chamarei daqui para a frente) tinha mais de 1 mil metros quadrados. Era suntuosa, cheia de luz, de mármores, de telas de pinturas... e de mistérios.

Nós a visitaríamos diariamente, como eu digo, até que nos surpreen­deu aquela fatídica quarta-feira, 30 de abril...

Mas eu devo conservar a calma e prosseguir em ordem.

Ao contornar o alto muro de pedra que rodeava a domus por com­pleto, o Mestre, os discípulos e quem isto escreve ficamos assombrados.

O pavimento era uma reluzente e interminável sucessão de mosaicos vermelhos e brancos, as cores favoritas do proprietário.

E, na porta principal, sobre as colunas de mármore amarelo que for­mavam os batentes, Flávio havia colocado estrelas de Davi, de mais de um metro de altura cada uma.

Permanecemos embasbacados, absortos nas enormes estrelas.[72]

O artista as havia confeccionado com conchas marinhas, vermelhas e brancas. Calculei mais de cem por estrela.

Apresentavam o ápice cortado e um detalhe que me chamou pode­rosamente a atenção: as espirais eram levogiras (partiam do mencionado extremo ou ápice e percorriam a concha dos gastrópodes ao contrário do habitual: viravam à esquerda). Nos dias de vento, os caracóis ululavam. Era uma singular e nada tranquilizadora sinfonia, que chamava a atenção de longe. Flávio explicou que os enigmáticos silvos não eram outra coisa que os cânticos das sereias que não conseguiram seduzir Ulisses em sua longa viagem a Itaca. Flávio, como todos os homossexuais, era um romântico...

Conseguia os caracóis em suas constantes viagens pelo mundo co­nhecido afora. As mais apreciadas, como as que eram exibidas na entrada, vinham das águas profundas das ilhas Ciciadas, no que hoje conhecemos como Mar Egeu, a leste da Grécia. Sorria e afirmava: "As Ciciadas são os restos de uma ilha afundada pela queda de uma grande pedra..." Eu supus que se referia à legendária Atlântida, cantada por Platão e desaparecida no mar, misteriosamente. Isso tinha mais de oito mil anos...

Os pescadores de esponjas tinham ordem de guardar todas as con­chas que fossem levogiras: "as conchas de Sira" (assim chamava a suposta grande ilha, arrebatada pelo mar como consequência do impacto do enor­me meteorito que - segundo a lenda - colidiu na região).[73]

Flávio era de Sira, "como o poeta Homero". Era o que ele assegurava, mais do que satisfeito.[74]

E dizia mais: Homero era um poeta cego, sim, mas o seu verdadeiro nome era Zakynthos... Não soube o que pensar a respeito.

Flávio era outro fanático pela Ilíada e pela Odisseia. Deu-se muito bem com Felipe...

Assisti a conversas insólitas, nas quais Flávio defendia que Ulisses foi o verdadeiro inventor do cavalo de madeira com que os gregos se mete­ram em Tróia.

Ulisses era chamado por ele de Nanos ("Errante") e assegurava que era homossexual também.[75]

Os singulares caracóis vermelhos e brancos também chamaram a atenção de Jesus. Permaneceu alguns segundos, como digo, contemplando-os. E apontou as espirais, igualmente surpreso (não é habitual que as conchas de caracóis levogiros existam no hemisfério norte).

Ao retornar ao Ravid, "Papai Noel" ofereceu informação sobre as conchas em questão. Eram as chamadas Columbarium harrisae e Columbarium spiralis, ambas de águas profundas. No banco de dados do com­putador central não apareciam exemplares levogiros.[76] Sim, outro mistério...

Flávio saiu para nos receber à porta.

Estava surpreso. Achou que Jesus não aceitaria o convite.

Encontrei-me diante de um indivíduo de baixa estatura, relativamen­te jovern (eu diria que tinha a idade de Jesus) e com olhos verdes deslum­brantes. Era atlético, sempre bronzeado, mas muito calvo. Usava peruca. Duas ou três ao longo do dia, segundo o humor e as circunstâncias. A alopecia o mantinha obcecado. Empregava graxa de gato, expressamente trazida do Egito, para esfregar no couro cabeludo, mas os resultados es­tavam à vista... Usava cabelo humano, sempre tingido de azul. Às vezes eram perucas curtas, quadradas, com o fio de divisão no meio, ao estilo dos antigos egípcios. Outros dias ostentava a peruca "tripartida", também em azul, também de cabelo humano (quase sempre de escravo germâni­co), com o risco no centro e longos cachos até o peito. Os cachos o fasci­navam. Em ocasiões ele se levantava na metade da conversa, desaparecia, e dali a pouco regressava com uma nova peruca, com as madeixas até os cotovelos. Seu problema, além da calvície, eram as orelhas. Eram grandes e desgrudadas. Quase podia voar...

Apresentou-se ante o grupo com uma ampla e longa túnica transpa­rente. Era um homem sem pudor.

As unhas, impecáveis, tinham cada dia uma cor diferente, dependen­do também do humor e do lugar onde se achasse.

Sempre aparecia cheio de jóias. Era outra de suas fixações.

Naquele primeiro encontro, reluzia nos dedos um total de dez anéis, confeccionados com fio de ouro retorcido, em forma de cordão, e com pé­rolas enfiadas alinhadas em cada anel. Nas orelhas estavam pendentes em ouro e quartzo dois brincos, ao estilo de Oplontis (outra moda vinda de Pompeia). Ao pescoço um espetacular camafeu, de 22 por 18 centímetros, em ouro e marfim, que representava a coroação do imperador Augusto (cópia da Gemma augustea, de Dioscórides de Egeu, o grande gravador de pedras preciosas).

Flávio era imensamente rico.

Seu trabalho era dedicado à fabricação de embalagens para ânforas e dispunha de um bom número de empresas, cada qual mais extravagan­te. Preparava ataúdes para os pagãos. Comprava e vendia obras de arte. Era um especialista. Revendia conchas levogiras e se orgulhava de haver formado a primeira sociedade judaica de cobrança aos caloteiros (uma es­pécie de convicium, muito na moda naquele tempo no Império Romano). Os empregados de Flávio apareciam quase nus pelas ruas de Jerusalém e seguiam o caloteiro de perto, cantando canções em que o estribilho recor­dava o devedor da dívida não saldada. A tortura do mau pagador era tal que ele terminava abonando a dívida. Flávio levava uma comissão.

Mas o grande negócio do judeu helenizado era a agiotagem. Os em­préstimos eram sangrentos. Flávio cobrava 30 por cento de juros e em prazos asfixiantes. A Lei proibia esses abusos, mas ninguém cumpria.

Definitivamente, estávamos diante de um indivíduo tão invejado quanto odiado e temido.

Flávio, fiel seguidor das modas romanas e gregas, se movia sempre com um nomenclator ao seu lado: um escravo especialmente inteligente e desenvolto que lhe sussurrava, a cada momento, o nome dos visitantes ou interlocutores. O nomenclator se ocupava praticamente de toda a domus.

E foi esse servo que ficou a cargo das sandálias, oferecendo-nos água e perfumes. Tive que deixar a "vara de Moisés" aos seus cuidados.

Flávio, feliz, foi nos guiando pela enorme casa.

Ficamos deslumbrados.

À esquerda, assim que entramos, nos vimos em um átrio descoberto, rodeado por um pórtico espetacular, todo ele repleto de obras de arte. No centro se abria um estimável impluvium, uma piscina que servia para re­colher a água da chuva. Os pisos eram de mosaicos ao estilo de Pompeia. Os mosaicos eram incríveis: um material vítreo que permitia o desdobrar de uma enorme gama de cores. Vi reproduções da casa do Fauno, de Pom­peia e numerosos motivos nilotas. Flávio, como disse, era outro apaixona­do pela mítica Pompeia.[77]

As paredes, em metade da casa, eram espelhos de bronze até o teto.

E quanto às obras de arte, sinceramente, não saberia por onde começar...

Naquele átrio, sobre peanhas e bases de pedras e de madeiras nobres, se alinhavam estátuas, bronzes, métopas, vasos...

Contei mais de 60 peças.

Eram réplicas, eu supus.

Fiquei cativado diante da "Deusa das serpentes", numa peça de cerâ­mica brilhante e delicada, procedente de Cnossos.

Jesus se deteve em numerosas ocasiões diante das referidas obras de arte e perguntou, interessando-se por toda sorte de detalhes. A chamada "Máscara de Agamenon", em ouro, lhe chamou especialmente a atenção. Era pura arte micênica. Flávio se sentiu orgulhoso.

Depois nos detivemos em uma cópia do "Vaso com patos", em terra­cota policromada, também grega, de quase 800 anos de antiguidade. Flá­vio assegurou que estávamos diante de uma peça autêntica. Não acreditei.

Dali nós passamos a uma excelente coleção de kuroi (estátuas masculi­nas) e korai (femininas). Os homens eram jovens e atléticos, totalmente nus.

João Zebedeu rangia os dentes e resmungava. "Estávamos pecando..." Isso ele murmurava às escondidas.

Depois, "Kuros de Meios", em um mármore com vida e a chamada "Dama de Auxerre" com a mão direita sobre o peito. Flávio tocou a pedra calcária com veneração. As lágrimas quase saltaram dos olhos.

Depois chegaram as de bronze: guerreiros e, sobretudo, o Hoplitodromoi.

Flávio, sensual, acariciou o pênis de um dos "guerreiros de Riace".

Depois os "discóbolos" (duas cópias em mármore e em bronze). Uma delas do escultor Mirón (?) e outra de Alcámenes (sempre segundo o ju­deu helenizado).

Uma hora depois entrávamos no que Flávio chamava de "A Via da Abundância" em memória de sua querida Pompeia. Tratava-se de outra longa galeria, igualmente com pórticos, com mais de cem estátuas. Con­tei 32 métopas, com uma excelente reconstrução da "centauromaquia", de Fídias, em mármore.

Incrível!

Mateus, com os olhos muito abertos, comentava:

- Quanto dinheiro...!

Contemplamos o "Nascimento de Afrodite", também em mármore e chegamos finalmente à peça favorita do dono da domus: um mármore branco e brilhante que representava o "Hermafrodita dormin­do", do século II a.C.

Flávio, extasiado, percorreu com a vista os delicados perfis do her­mafrodita, dormindo nos braços de um anjo (?).

Desta vez ele se rendeu às lágrimas.

A visita ao "museu" prosseguiu por mais uma hora.

O "urso" também perguntava pela lenda de cada peça. Flávio estava encantado. Até que enfim tinha encontrado alguém sensível...

Tiago não abriu a boca em todo o percurso.

Nem vi Tomé. Creio que ficou na entrada. Tinha os pés doloridos e aproveitou para jogar dados com alguns dos servos.

André seguiu junto com o Mestre, atento às suas palavras.

Após a visita na Via da Abundância, Flávio nos conduziu ao triclínio (sala de jantar), mas passando por um pátio a céu aberto, que nos deixou igualmente perplexos. Era uma espécie de peristilo, com uma importante piscina octogonal no centro. A dita piscina, em sua totalidade, foi elabo­rada em mármore amarelo (o giallo antico que adornava a entrada). No centro foi disposto um labirinto no qual, eu entendi, Flávio e seus convi­dados praticavam jogos aquáticos.

O Mestre permaneceu um bom tempo observando, perguntando e brincando com a água.

Era salgada.

Flávio ordenava seu envio, uma vez por semana, vinda do Mediterrâneo.

No tanque era possível ver conchas e caracóis vivos, todos levogiros...

E no centro da piscina, sobre uma base de metal, outra deliciosa có­pia: "Os esposos", de Cerveteri, obra mestra da arte etrusca. Flávio a man­dou talhar em quatro partes, como na original, com os bustos igualmente erguidos e sobre um colchão de terracota. As tranças da mulher foram pintadas em azul. Por quê?

Pouco depois nos integramos ao triclínio.

Ali nos aguardavam novas e desconcertantes surpresas. Sobretudo uma delas...

O salão de jantar era também espaçoso. Achava-se aberto até o peris­tilo. As outras três paredes eram espetaculares. Flávio não havia economi­zado na hora de decorá-las.

A direita e à esquerda cantarolavam dois ninfeos (fontes de grandes proporções que derramavam águas em três níveis).

Cada fonte havia sido trabalhada com mármores de diferentes ori­gens e texturas. A água, ajudada pela pedra, se tornava azul, ou vermelha, ou verde... E como eu digo, cantava e sussurrava.

O resto dessas duas paredes era um gigantesco espelho de bronze, até o teto. E o teto, perto da cobertura, foi decorado com um formidável bronze polido de quase cem metros quadrados. Os espelhos proporciona­vam luz e profundidade, quase até causar vertigem.

A parede frontal foi outra surpresa.

Flávio a decorou com um mural de dez metros de altura, e se apressou em nos explicar. Tratava-se, ao que podia parecer, de uma pintura, cópia da existente na chamada Vila dos Mistérios, também na cidade de Pompeia.[78] Assegurou que estávamos diante da representação de um casamento no estilo etrusco. E foi explicando o porquê de cada um dos 29 personagens, todos em tamanho natural: a bailarina nua vista de costas, a mulher que a penteia, uma escrava com uma bandeja de tortas de sementes de sésamo, a recém-casada, a figura alada que brandia um chicote, a criança que lê...

Em um primeiro momento não o vi.

E Flávio pediu que nos acomodássemos.

No centro do salão apareciam cinco triclínios ou divãs, em forma de ferradura, estofados em vermelho e branco, com as pernas torneadas em bronze, e os fulcra, ou apoios para a cabeça, também em bronze. Foi o único incômodo na visita ao domus.

O nomenclator deu as oportunas ordens, e outros servos, vestidos com túnicas vermelhas e brancas, todos homens, foram surgindo pelo pe­ristilo e depositando uma mesinha de um só pé no centro de cada ferra­dura. Cada monopodia apresentava várias tigelas de prata nas quais se ofe­recia um refrigério. Flávio o chamou de iantaculum (algo parecido com um café da manhã bem leve).

Diante da dúvida de alguns dos discípulos, o anfitrião explicou que só se tratava de um pão molhado em vinho, com um pouco de alho e de sal.

Delicioso.

Jesus lambeu os dedos.

E Flávio aproveitou o respiro para agradecer ao Mestre por sua ge­nerosidade.

André não compreendeu, e Flávio esclareceu:

- Não é todo mundo, em Jerusalém, que está disposto a pisar nesta casa...

Creio que pude entender.

E continuei observando o lugar.

A minha esquerda se distinguia um abacus, um móvel negro, mag­nificamente trabalhado, de possível origem etrusca, no que Flávio fazia exibir uma louça de porcelana da Numidia. Cada peça - ele disse - estava avaliada em 10 mil sestércios.

Ao pé do afresco do casamento etrusco, em uma preciosa base de marfim à esquerda, distingui uma enorme ânfora. Parecia ática.

Perguntei e Flávio me levou até ela. Era ática de fato, pintada com o touro de Minos e Héracles. Disse que era obra de Lisípedes. Tampouco acreditei. Se fosse isso mesmo, a peça teria idade aproximada de 500 anos.

Ao passar eu descobri... Eu o vi durante um instante.

Flávio, entusiasmado pelo interesse daquele grego, me levou ao lado extremo oposto, também ao pé do grande mural, me mostrou uma caixa de madeira. Ali apareceu uma notável coleção de moedas antigas. Contei 55. Havia gregas, fenícias, egípcias, babilônicas... Flávio assinalou dois dos exemplares. Uma mostrava uma abelha. Era de ouro. Fora encontrada em Efeso três séculos antes. A outra, em bronze, vinha de Corinto. Em um lado mostrava um cavalo galopando. No outro, uma cruz gamada. Flávio assegurou orgulhoso que tinha mais de 500 anos.

Contudo, a minha mente seguia ocupada com o que acabara de ver no afresco. Parecia-me familiar. Onde eu havia visto, ou ouvido anteriormente?

E retornamos ao triclínio.

A decoração do cenatio iovis, como o judeu helenizado gostava de chamar, havia sido complementada com uma estátua, em mármore ama­relo, de quase três metros de altura, representando Héracles nu (provavel­mente cópia do Héracles Farnesio). Flávio jurava por tudo o que era mais santo que era a original esculpida por Lisipo. Era difícil de acreditar...

E André recuperou o fio da meada da conversa:

Por que dizes que não é todo mundo em Jerusalém que está dispos­to a pisar nesta casa?

Era óbvio, mas o anfitrião aclarou:

Pelas minhas obras de arte...

E Flávio recordou aos discípulos o que a Lei Judaica dizia: o uso de imagens é proibido.[79]

O Mestre escutou, atentamente.

Depois, quando Flávio concluiu, expressou um pensamento genera­lizado em boa parte da nação judia:

Se faz muito disso...

O Galileu estava certo. A norma contida no Êxodo tinha pelo menos 1.300 anos.

E Jesus arrematou:

Os tempos mudam.

João Zebedeu protestou.

Jesus não prestou atenção e, dirigindo-se ao surpreendido Flávio, proclamou:

Eu te anuncio, amigo, que existe um reino invisível e alado em que a beleza tudo ocupa...

Mas Moisés disse...

Insisto, Flávio: eram outros tempos. Moisés ficou justificado para evitar a idolatria. Hoje, em contrapartida e em tempos de mudança, não há que olhar a letra da Lei, senão seu espírito...

O judeu helenizado não sabia se ria ou se chorava. Estava desconcer­tado. Era a primeira vez que lhe falavam dessa forma.

Em verdade eu vos digo, Flávio, que nesse reino só se adora a beleza...

Jesus se deteve por uns instantes. Deixou que a ideia os embebesse e prosseguiu:

Nesse reino magnífico, ao qual vós chegareis, só se adora ao Pai, a máxima beleza...

Queres dizer que...

Quero dizer que chegará um dia - e dirigiu o olhar para quem isto escreve - no qual os homens saberão apreciar a arte e ninguém rasgará as vestimentas diante de uma imagem de mármore, de madeira ou de ouro...

Mensagem recebida.

Em verdade eu te digo, Flávio: tudo é bellinte...

Bellinte? A que te referes?

Jesus lhe explicou. Bellinte significa beleza mais a inteligência de Deus na hora de criar... Flávio flutuava.

Um Deus Azul!

E acariciou a peruca azul.

Sabes qual religião pratica o Pai?

A súbita pergunta de Jesus nos desconcertou. Não sabia que Abba fosse religioso... Interessante.

Os discípulos olharam uns para os outros. Flávio encolheu os ombros.

Foi João quem respondeu, não sei se em nome do resto:

O Pai, naturalmente, professa a religião judaica... O Mestre sorriu, maroto, e se apressou em explicar:

O Pai pratica a religião...

Fez uma pausa e deixou todos no ar.

A religião da arte!

Alguns discípulos protestaram, não estavam de acordo. Abba era ju­deu, com certeza.

O Galileu não fez comentários.

Flávio começou a iluminar-se e sussurrou:

Necessito saber mais coisas desse Pai. Não é por acaso que estás aqui... Então, não sei por quê, dirigi o olhar para aquilo que eu tinha visto no mural que representava o casamento etrusco. Casualidade? Parecia-me familiar...

Um dos personagens (o menino nu) lia com atenção um pergami­nho. Na parte do "livro" que dava a frente ao espectador, a quem via de fora, se podia ler: Orgadol ("Grande luz").

Não conseguia lembrar. Eu havia visto ou ouvido essas palavras... Foi um aviso. A memória continuava falhando.

As visitas à domus de Flávio, o judeu helenizado, se prolongaram, como dizia, durante dez dias.

A cada manhã nós viajávamos a Jerusalém e regressávamos a Betânia no fim da tarde, ao pôr do sol.

João Zebedeu não voltou àquela casa, salvo em uma ocasião. Não suportava as imagens. Foi isso que ele disse.

Pela domus desfilaram numerosos judeus e pagãos, todos notáveis e todos curiosos.

Os rumores sobre Jesus de Nazaré continuavam à solta, rodando, e a que velocidade!

As ameaças de Anás, o ex-sumo sacerdote, não demoraram em in­filtrar-se, e o povo começou a fazer apostas. O prestígio do Mestre entre as pessoas mais simples, que odiavam os corruptos sacerdotes, se elevou consideravelmente.

Os discípulos, através do conselho de Pedro, redobravam a guarda às portas da fazenda de Lázaro. Ali os únicos tranquilos eram Zal e a Cipriota.

Pelo que cheguei a observar, a maior parte dos que compareciam para conversar com o Galileu era formada de notáveis temerosos, que não de­sejavam ser vistos em público com o Mestre. Era compreensível. O Filho do Homem havia sido acusado de blasfêmia e nada menos do que pelas castas sacerdotais. Como já expliquei em seu momento, era o sacerdócio o que movia os dinheiros na Cidade Santa e no resto do território. Ninguém estava interessado em colocar-se mal com aqueles sujeitos...

Jesus conhecia essas circunstâncias e, ainda assim, recebeu todos aqueles que se apresentavam à domus. Foi amável e discreto. Jamais per­guntou nomes. Limitava-se a observar seus interlocutores e a responder às perguntas.

Falou com clareza sobre o Pai Azul e sobre sua nova e revolucionária visão de Deus.

Em nenhum momento eu o vi temeroso. Foi valente, como sempre. Não atacou as idéias dos judeus, mas deixou os visitantes com uma sau­dável dúvida.

A maioria não conseguia entender. Do mesmo modo que acontecia com os discípulos, eles se encontravam presos, cravados às ideias ances­trais, cada qual mais obscura, densa e desgastante. Não era fácil mudar a filosofia de um Yaveh justiceiro e vingativo por um Pai benéfico que, além disso, presenteava com a imortalidade.

Alguns daqueles notáveis não voltaram à casa de Flávio.

Jesus também falou do reino invisível e alado e da necessidade de "ler" o espírito da Lei: o amor que nos rodeia passando primeiro pelo amor de si mesmo.

As perguntas foram constantes. Todos desejavam saber. Quase todos se sentiam insatisfeitos, a rigidez da Lei mosaica (Moisés) era tal que não permitia olhar ao mundo interior do indivíduo.

Jesus os animou.

Solicitou uma vez mais que "desaprendessem". Era a chave, o código. A busca por Deus e, definitivamente, da felicidade, é uma questão pessoal, uma experiência única, que ninguém viverá por nós. Não importa como isso será feito. O que conta é o resultado: achar o Pai, saber que somos seus filhos e consequentemente que somos - fisicamente - irmãos.

E repetiu sem cessar: Abba presenteia a vida e presenteia a imorta­lidade. Aconteça o que acontecer. Independentemente do que façamos. Não importa o que falarmos. Tudo está medido. Tudo obedece a uma or­dem benéfica, ainda que não estejamos capacitados (agora) para entender.

E pediu, simplesmente, que pensassem.

Soltai as amarras!... Naveguai rumo ao novo reino!... Apressai-vos. Não percais vosso tempo escrutinando a letra da Lei!... O pai está em vosso interior!... Ele vos guiará!... Ele é o melhor piloto!

Nesses dias, como eu digo, foram formuladas muitas perguntas. Eu me lembro de algumas...

Um tal Jacó, mercador judeu de Creta, expôs ao Mestre um dilema inte­ressante: "Os profetas falam de um Yaveh ciumento, destrutivo, que odeia os ímpios e é implacável com os que não cumprem a sua Lei. Esse Deus é discriminador. Manda matar sem cessar. Todos o temem. Em contrapartida escuto falar aqui de um Deus Pai bondoso, que não leva tudo à risca e que presenteia sem pedir. Um desses deuses não é o certo. Podes me dizer qual é?"

O Mestre respondeu assim:

O Pai é imutável... Nunca muda.

E acrescentou:

É o ser humano que modifica a percepção de Deus. Antes era neces­sário um Deus de justiça. Agora se avizinha um tempo de amor... Hoje esta­mos mais próximos da verdade, da mesma forma que o ancião está cada dia mais próximo da realidade... Eu vos anuncio uma nova concepção desse Deus grande e benéfico. Ele me envia...

Entendemos mais ou menos.

Em outra oportunidade lhe perguntaram: "Como estaremos certos de que tu és um enviado e que esse reino invisível e alado existe?"

Todos terão comprovado alguma vez - replicou Jesus com segu­rança. - Quando a verdade se aproxima, algo se estremece no interior. O coração treme, ainda que não saibamos por quê...

Eu lhe dei razão. E me recordei de Ruth.

O que desejas saber... - prosseguiu o Galileu - é como o enamorar-se. Não há palavras. Se sente. Está aí, ainda que pareça difícil descrevê-lo... Com o novo reino acontece o mesmo. Quando se incorpora a ele, tudo faz sentido.

E concluiu com uma frase que me deixou atônito:

Aquele que ama ao próximo..., me pratica.

Flávio, atentíssimo, aproveitou o momento e as palavras do Filho do Homem e perguntou sem rodeios:

Mestre, tu estás apaixonado?

Jesus foi igualmente rápido na resposta:

Não no sentido tradicional...

De verdade?

Nunca minto, Flávio.

Como é possível? Tu és extraordinariamente atraente... Não acre­dito nisso...

Jesus sorriu, mas não disse nada.

Tu gostas dos homens, como eu?

Quem isto escreve estava desconcertado. Nunca havia falado com o Galileu sobre esses assuntos...

Não, Flávio - respondeu Jesus com delicadeza. - Não gosto dos homens no sentido que tu concebes...

Não compreendo...

E bem simples, querido amigo. Não vim ao mundo para suscitar descendência, ainda que esteja no meu direito. Estou aqui para aquilo que já sabes: para despertar o ser humano...

E alguma mulher, ou homem, já se apaixonou por ti?

Jesus desviou o olhar para quem isto escreve. Captei sua impotência. Ninguém parecia entender as suas palavras.

Mas Jesus foi sincero como sempre:

Uma vez, sim...

Uma vez o quê?

Aconteceu de uma mulher se apaixonar por mim...

Tu poderias falar-me dela?

Foi a única vez que o Mestre se negou a responder. Eu conhecia o nome e a história dessa mulher: Rebeca, de Nazaré...[80]

Flávio compreendeu e aceitou a negativa.

Na quinta-feira, 24 de abril, apareceram na domus dois velhos co­nhecidos. Chegaram como os demais, intrigados e curiosos. Também o fizeram às escondidas, pelo menos a princípio...

Um era Nicodemos, o escriba e fariseu, a quem eu havia conhecido em maio do ano 26, quando interrogaram Yehohanan.

Cumprimentou-me, desconcertado. "Aquele grego estava em to­das as partes..."

O outro era José de Arimateia, com quem me encontraria coinciden­temente no ano 30 e por motivos bem diferentes.

Obviamente não me reconheceu.

E se sentaram, como faziam diariamente, perto do Galileu, atentos a seus gestos, suas palavras e até aos seus silêncios.

Nos primeiros instantes, ainda que eu conhecesse o desenlace final, che­guei a pensar que eram informantes. Eu me equivoquei. Tanto Nico como o de Arimateia estavam ali a título pessoal, e, como eu digo, por curiosidade.

A princípio não perguntaram.

Na segunda-feira, dia 28, Nicodemos, homem instruído (não era em vão um hakam ou "doutor ordenado"), formulou uma primeira pergunta a Jesus de Nazaré.

Rabi, sabemos que és um mestre, enviado pelo Santo, bendito seja seu nome, posto que nenhum homem simples poderia ensinar como tu o fazes. Como posso conhecer mais detalhes desse reino invisível e alado?

Se não me falha a memória, era a primeira vez que o Mestre falava com Nico. E o fez com naturalidade, como se fosse um a mais. Jesus es­queceu (?) que se achava na frente de um fariseu.

Em verdade te digo, Nicodemos, que se o homem não voltar a nas­cer do alto não compreenderá...

Nico, como quase a totalidade dos judeus, interpretava as palavras literalmente. Obviamente, não entendeu. E voltou a perguntar:

Como isso pode ser? Sou velho. Como posso entrar pela segunda vez no ventre da minha mãe?

O Filho do Homem ficou olhando, e moveu a cabeça, negativamente. Fez-se um grande silêncio. Flávio e o de Arimateia estavam atentíssimos.

Quando o vento sopra - o Galileu respondeu -, tu o sabes porque escutas o rumor das folhas ou porque vês como se movem. E eu te per­gunto: podes ver o vento?

Nicodemos negou no mesmo instante.

Em verdade eu te digo que o Espírito é como o vento. Desce sobre a carne, mas ninguém o vê. Isso é nascer do alto: compreender que a ver­dade é derramada... gratuitamente.

Nico o olhou com assombro.

Nascer de novo é despertar o Espírito que movimenta a alma.

Não compreendo, rabi...

E tu és mestre de Israel? Por que não ensinas essas verdades supe­riores? Terás a coragem necessária para crer em mim?

Nico silenciou-se.

Em verdade eu te digo que o Pai já está em ti... Ânimo! Deixa-te guiar pelo Espírito que habita em ti e, em breve, começarás a ver com os olhos da alma. A realidade que contemplarás nada tem a ver com a que conheces agora...

Mas, como posso? - titubeou o escriba - Como...?

O Galileu foi categórico:

Confia e desaprende!... Abandona-te nas mãos de Abbal Deixa que Ele faça o seu trabalho!

E insistiu:

Desaprende!

Nicodemos continuou observando o Mestre. Os dedos nervosos se­guiam enredados nas barbas. Acreditei saber quais eram seus pensamen­tos: "Que diz esse insensato?... Depois de tantos anos, de tanto esforço e de tanto estudo, pretende que se esqueça tudo?"

Jesus havia semeado a semente da dúvida. Era um primeiro e pro­missor passo...

Foi a partir daquela segunda-feira, 28 de abril, que os rumores se precipitaram. A fazenda de Lázaro se tornou um manicômio.

Todo mundo dizia saber de fontes seguras. Todos falavam da imi- nente apreensão judicial do Galileu por parte da polícia do Templo. "Os levitas já estão em Betânia", gritavam.

Falso.

Maria chorava.

Lázaro, desesperado diante da intensidade dos boatos, chegou a pro­por ao Mestre que pegasse a reda e fugisse da Galileia, ou pelo menos para a cidade de Filadélfia, do outro lado do Jordão. Ele tinha amigos na região de Decápolis. O poder de Anás e dos sacerdotes não chegava tão longe.

Jesus ouviu os conselhos, mas não fez comentários.

Ninguém sabia quais eram as suas intenções.

A histeria foi tamanha que Judas Iscariotes, não dando importância e se fazendo omisso das prudentes palavras de André, recuperou sua gladius e começou a afiá-la.

Jesus o viu, mas não disse nada.

O Zelote e João Zebedeu, auxiliados todo o tempo por Pedro, traça­ram um plano de defesa na fazenda, com duas ou três "saídas de emergên­cia" (eufemismo muito próprio de João). Fugiriam para Decápolis, como havia sugerido Lázaro.

Quem isto escreve não saía do assombro.

Se as ameaças de Anás se cumprissem e ele enviasse suas forças para pegar o Filho do Homem, como pretendiam se defender de todo um exér­cito de levitas, armados com porretes?

Nada disso foi contado. Provavelmente não interessava...

No dia seguinte, terça-feira, dia 29, enquanto se alimentava no café da manhã, o Mestre deixou claro que visitaria de novo a domus de Flávio, na cidade baixa de Jerusalém.

Pedro e o resto permaneceram mudos, mas só durante alguns segundos. Recuperados da surpresa inicial, explodiram. E se formou outra confusão.

Tratavam de dissuadir Jesus. Os levitas estavam por chegar. Lutariam,

Pedro ia e vinha, solicitando a aprovação geral. Uns o apoiavam. Ou­tros hesitavam. Os gêmeos seguiam ordenhando a Cipriota. Felipe movia a cabeça, desaprovando as "loucas ideias de Pedro".

O Galileu seguiu em silêncio, esvaziando a tigela de leite quente.

Não disse uma palavra, foi o melhor que pôde fazer...

Saiu pela porta de trás da cozinha e desapareceu.

Imaginei que se dirigia à Cidade Santa.

Os discípulos continuaram discutindo o plano de defesa, até que se deram conta da ausência do Galileu. Durante alguns instantes ficaram pa­ralisados. Depois, em vez de sair atrás Dele, se amontoaram uns por cima das opiniões dos outros, acusando-se de "não estarem preparados".

O que fariam?

Sairiam à sua procura? Onde? Deveriam ir à casa de Flávio?

E o medo os absorveu.

Refugiaram-se na polêmica e ali permaneceram.

Na minha opinião, foi um dos momentos mais vergonhosos do "co­légio apostólico". Deixaram Jesus à mercê dos levitas, supondo que os ru­mores estivessem certos...

Por isso nenhum evangelista escreveu nada.

Eu me apressei a sair da fazenda e caminhei rápido até a domus.

Eu não estava errado. Jesus compareceu pontualmente à reunião com Flávio e com os curiosos e os notáveis habituais. E conversou com todos eles em absoluta normalidade.

Não percebi nada de incomum. Ninguém fez alusão às ameaças do ex-sumo sacerdote. Ninguém parecia temeroso. Se os boatos fossem cer­tos, Flávio teria insinuado algo.

E permaneci atento, se por acaso...

Nessa manhã, estávamos na sexta hora (meio-dia), à hora do refrigério, quando nosso anfitrião nos conduziu ao peristilo. Queria nos mostrar algo.

Por detrás da piscina octogonal, na face leste, Flávio havia aberto uma destacada coleção de relógios de sol. Pude contemplá-los em ou­tras ocasiões. O judeu helenizado era um sujeito obcecado pelo tempo: melhor dizendo, pelo passar do tempo. Odiava envelhecer. Para ser exato: aterrorizava-lhe essa idéia...

Ali eu contemplei quadrantes solares hemisféricos, comprados na ve­lha Roma, delicadamente trabalhados em pedra, e também relógios cons­truídos com rodas de carros, rosetas, e até mesmo em lápides funerárias. Um de seus favoritos era um relógio esférico, em mármore, adquirido na distante Hispânia. A esfera era uma representação da abóboda celeste. Nes­sa área fora gravada uma série de linhas que indicavam o solstício de inver­no e do verão, e os equinócios da primavera e outono. Outras 11 linhas (tra­çadas do alto para baixo) dividiam a esfera em 12 partes (círculos horários).

Era um prodígio e uma beleza. Contava as horas romanas, muito diferentes das astronômicas. Era um dos modelos de relógio "tiberiano". O imperador o contemplava diariamente (especialmente em seu retiro, em Capri).

Flávio havia conseguido reunir igualmente um bom número de clepsidras, assim como esferas de Arquimedes. Algumas das clepsidras, se­guindo as orientações de Yitrúvio, eram capazes de mover figuras (Flávio as chamava de "autômatas").

Fiquei maravilhado.

Uma delas era uma genialidade. Além de medir o tempo, a clepsidra, chamada "de leão" (?), dispunha de uma série de discos giratórios que apresentavam uma cúpula celeste (em projeção estereográfica), oferecen­do assim o movimento diário das estrelas fixas.

Flávio era um especialista em "gnomônica"[81] e um hábil construtor de relógios solares. Havia aprendido a dialogar com o Sol e com as estrelas, como escreveria Portaluppi em sua obra Gnomônica Atellana (1967).

Pois bem, como eu dizia, o judeu helenizado desejava nos mostrar sua última aquisição em matéria de relógios...

Quando nos inteiramos da peça, fiquei perplexo. Como era possível?

Flávio mostrou, orgulhoso, um dos inventos da escola "gnomônica" de Alexandria: um "autômato" fabricado em metal, com sete faces e sete pés igualmente de bronze. O "invento" media um metro de altura. Uma complexa engrenagem permitia conhecer a posição do Sol, da Lua e das estrelas. A parte inferior indicava as horas e os dias do ano (incluindo as festas judaicas e romanas). Na região superior, outros sete discos propor­cionavam informação sobre a Lua e os planetas conhecidos. No total - se­gundo Flávio - eram 170 peças.

Como eu digo, assombroso...

Eu o olhei e olhei novamente, incrédulo.

A história está com um erro, uma vez mais.

Não é certo que o primeiro testemunho de um relógio mecânico seja no ano 1283 da nossa era. Isso dizem os ingleses...

Quem isto escreve se achava diante de um modelo muito anterior.

Mas eu voltei a desviar-me do assunto...

Jesus inspecionou o "autômato" com curiosidade e acabou piscando um dos seus olhos na minha direção.

Foi ali mesmo, diante dos relógios solares e das clepsidras, que Flávio interrogou o Mestre sobre um assunto... delicado. Eu diria que delicadíssimo.

Por que nós envelhecemos, Mestre? O que é o tempo?

O Galileu ficou sério. Permaneceu em silêncio durante uns segun­dos. Passeou para cima e para baixo, contemplando os artefatos e acreditei entender a sua impotência na hora de dar uma explicação medianamente compreensível para a mente humana. Não tinha outra saída senão apelar para os exemplos. Definitivamente, praticar o que Ele chamava "aproxi­mação da verdade". Era como se este explorador tivesse que tentar explicar nossa "viagem" ou a realidade dos swivels aos gêmeos Alfeu ou ao pró­prio Flávio. Como se pode fazer alguém compreender que a luz precisa de oito minutos para chegar até o Sol, ou que, em 1973, eu poderia falar de Jerusalém com outra pessoa, localizada em Roma e em tempo real?

No entanto, Jesus de Nazaré não gostava de refugar as perguntas. Quase sempre respondia. Outra questão é se seus interlocutores compreen­diam ou não. E eu me incluo nisso...

Finalmente, colocou-se à frente de Flávio, pôs as mãos sobre os om­bros do inquieto judeu e proclamou com ternura:

Por que tu te preocupas com o tempo se, na verdade, és imortal?

Não gosto de envelhecer...

Envelhecer é dar passos de encontro à eternidade. Tu deverias sentir-te feliz...

-Oh!

Flávio e o resto estavam desconcertados.

Mas o que é tempo? Por que ninguém conseguiu enjaulá-lo?

O Mestre sorriu com benevolência.

Poderias enjaular a mar?

Curioso. Não sei se já me referi a isso. O Galileu sempre se referia ao mar no feminino. Enfim, vamos em frente...

Não poderia, rabi...

Com o tempo acontece a mesma coisa. Não tentes controlá-lo. Deves des­frutar dele! Sei que o fazes e que vives o momento. Essa é a verdadeira sabedoria.

Mas...

Não te ocupes em analisar o que não podes compreender... agora. O tempo é uma criatura do Pai, outra mais... O tempo foi criado com dois objetivos: embeber a matéria e permitir que tu te aproximes dele. Tu és um nascido do tempo.

-Ah!

Experimenta a vida e o tempo! Faz o que digo porque nenhum deles regressará...

Meditou no que ia dizer e o disse:

Quando chegares ao reino invisível e alado, não haverá tempo. Essa criatura ficará abaixo...

Não poderei medir nem estudar o tempo?

Jesus sorriu de um modo travesso e comentou:

Deixa que o Pai te surpreenda...

Gostei das imagens: "nascer do tempo" e "aproximar-me do tempo". Sim, são razões que justificam a vida.

Flávio terminou perdido, mas se agarrou a uma das informações proporcionadas pelo rabi:

Não há tempo depois da morte? Não há tempo no seol.

O seol para os judeus era o mundo do além-túmulo.[82] Ali as almas permaneciam durante um tempo.

Jesus prescindiu de um sorriso que habitualmente lhe acompanhava e declarou:

Esse lugar, amigo Flávio, não existe...

O judeu helenizado ficou desconcertado. E o resto também.

E o Mestre foi preciso:

Pensais que um Pai Azul e benéfico é capaz de imaginar um lugar como esse? Acreditais que um Ser que pratica a arte condenaria seus filhos às trevas ou ao fogo eterno?

Abro um parêntese.

Não há como remediar.

São falsas todas as frases sobre o inferno atribuídas ao Mestre. Pen­so, por exemplo, em Mateus (23, 33 e 25, 41). Nos primeiros versículos, o Galileu disse, supostamente: "Como tu váis escapar da condenação da gehenna?" (referindo-se aos fariseus). E, no segundo, o evangelista escre­ve: "Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Aparta-os de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o Diabo e seus anjos".

Falso.

Jesus de Nazaré jamais pronunciou palavras assim.

Fecho o parêntese.

O Mestre compreendeu. Era belo demais e demais complexo para as pessoas amarradas às leis mosaicas. Tinha que ir passo a passo.

E deixou que Flávio continuasse perguntando.

Então, segundo o que tu dizes, não devo temer a Duma...

Duma é uma criatura (parecida com um anjo), cuja função era tomar a alma do ser humano e jogá-la no inferno.

Não deves temer..., a ninguém.

Mas eu tenho sido pecador - retificou. - Sou pecador... Que será de mim após a minha morte?

Viverás!

Flávio abriu a boca, perplexo.

O Filho do Homem recuperou o sorriso e prosseguiu, devotando-se às incertezas:

Ninguém te julgarás pelo que tu tenhas escolhido.

O Santo, bendito seja, não me julgará?

Jesus riu, divertidamente.

Nem o verás...

Como é isso?

Havíamos falado no Hermon...

A estrada que leva ao Paraíso, ao encontro com Abba, é uma longa viagem...

E esclareceu:

Cheia de surpresas... Todas boas.

Alguns dos notáveis rejeitaram as afirmações do Homem-Deus.

Jesus captou e insistiu:

Após a morte, ninguém julga ninguém... Ao despertar vereis que tudo está correto.

E o que tu dizes sobre os ímpios? - perguntou um dos notáveis.

Ali não existe essa diferença.

Não há maus?

Não.

Aquele "não" foi instantâneo. Caiu como uma tonelada de mármore sobre o ânimo dos que estavam presentes. Jesus, em determinados mo­mentos, era implacável.

Aceitei a sua palavra, naturalmente.

Devo reconhecer: injetando esperança, Ele era único.

Despertar? A que tu te referes?

A morte é só um sonho... A isso eu me refiro.

A volta para Betânia foi tranquila.

Os ânimos na fazenda haviam sossegado, relativamente.

Judas continuava afiando as espadas. Agora eram as dos companheiros.

Ninguém perguntou nada, nem houve nenhum comentário. André havia chamado a atenção de todos...

E clareou a quarta-feira, 30 de abril (ano 27); outra data para a histó­ria, jamais mencionada nos evangelhos.

Tentarei não me apressar...

Aquele dia amanheceu às 4 horas, 50 minutos e 12 segundos, segun­do os relógios do "berço".

Jesus manifestou seu desejo de voltar a caminhar até a domus de Flávio, em Jerusalém, e os discípulos, não desejando repetir as desagra­dáveis cenas do dia anterior, se ajustaram aos prudentes conselhos do solícito e discreto André. A solução desenhada pelo chefe dos íntimos contemplava que o Mestre fosse e voltasse, mas sempre sob a atenta vigi­lância da tabbah, a guarda selecionada por eles mesmos, formada pelos irmãos Zebedeu e por Pedro. A escolta não deveria perdê-lo de vista.

Jesus, como era o seu habitual, não interviu nesses assuntos domésticos.

Naturalmente a tabbah caminharia a seu lado e fortemente armada.

O resto do grupo permaneceria na fazenda, atento a qualquer con­tingência. Em caso de extrema gravidade - "se os levitas aparecessem em Betânia" -, parte do grupo procuraria Jesus. Eles se reagrupariam na "Sel­va", a propriedade de Kbir, na Betânia do Jordão.

Aquilo parecia uma operação militar da qual, no cúmulo dos cúmu­los, o líder (Jesus de Nazaré) não participava, nem desejava fazê-lo...

E já era a quinta hora (11 da manhã) quando alcançamos as colunas de mármore amarelo da entrada da casa de Flávio. Pedro e João Zebedeu decidiram permanecer na porta, "vigiando".

Não era toda a verdade. Pedro e João não desejavam entrar na domus por duas razões: pelas imagens ali reunidas e pelo fato de que Flávio era um homossexual assumido publicamente. Se eles entravam, pecavam, e isso representava o abono (um pago) de uma quantia em dinheiro ao Templo. Para obter a absolvição, segundo a lei oral, deviam providenciar uma méah quatro asses) para cada falta. O problema se tornava mais agudo ao ter em conta que cada olhada para uma imagem proibida se considerava pecado...

Tiago, mais sensato, acompanhou o Mestre ao interior da domus.

Ali esperava outra surpresa, francamente desagradável...

Nicodemos, José de Arimateia e outros dez notáveis, todos de Jerusa­lém, discutiam acaloradamente. Mostravam-se muito nervosos.

Aquela cena, no meio do salão de jantar, não tinha nada a ver com o que fora vivido nos dias precedentes.

Flávio escutava, pálido.

Nico elevava a voz cantante e apontava para um pergaminho enrola­do que o dono da casa sustentava na mão esquerda.

O que estava acontecendo?

Ao nos ver chegar, emudeceram.

Os olhares se dirigiam ao Mestre. Este seguiu caminhando pelo pe­ristilo, em direção aos divãs do triclínio.

Flávio tratou de ocultar o pergaminho mas, nervoso, não achou o vão da manga onde iria escondê-lo, e o rolo caiu ao chão, rodando entre os pés dos triclínios.

O judeu helenizado fez menção de ir buscá-lo entre os pés de bronze, mas Jesus, atento, se adiantou. Pegou o pergaminho e foi entregá-lo a Flávio.

Este titubeou. Deu um meio sorriso e desviou a vista para seus colegas.

Tiago Zebedeu e quem isto escreve trocamos olhares.

O que ocorria na domus? Por que aquelas expressões tão estranhas?

Não houve palavras. Ninguém correspondeu aos cordiais cumpri­mentos do Galileu.

O Mestre se deu conta na mesma hora.

Era chumbo, um ar pesado que se respirava no triclínio.

Mas aguardou...

Segundos depois, Nicodemos, com a voz insegura, se dirigiu ao Filho do Homem e expôs o problema.

Ninguém se sentou.

No fim da tarde, do dia anterior, segundo o que eu entendi, o Grande Sinédrio havia se reunido a portas fechadas para discutir o que acontecera no átrio dos Gentios na manhã do dia 10 de abril. Anás esteve presente nas deliberações. Discutiram sobre as supostas blasfêmias de Jesus e che­garam a um acordo. Essa resolução, segundo o escriba e fariseu, membro também do citado Grande Sinédrio, se achava registrada no documento que Flávio portava.

Comecei a tremer.

Fez-se de novo um espesso, espessíssimo silêncio, e Nicodemos esti­mulou o dono da domus para que entregasse o rolo ao Mestre.

Flávio esticou o braço e depositou o pergaminho nas mãos do Filho do Homem. A peruca azul tremia.

Mais silêncio.

Jesus desenrolou o pergaminho e começou a ler.

Fez isso tranquilamente.

Não vi lhe tremerem as mãos.

Não pestanejou.

Uma vez lido, permaneceu com o rosto grave. Passeou o olhar entre os notáveis e todos, sem exceção, baixaram o rosto. A maioria, pelo que fui averiguando, tinha estado presente na referida assembleia.

Finalmente, o Galileu passou o pergaminho a Tiago Zebedeu.

Este leu com avidez, mas tampouco fez algum comentário.

E, subitamente, o Zebedeu se distanciou e foi para a porta de entrada. Ele foi com o pergaminho na mão.

Ninguém chamou a atenção de Tiago.

Jesus continuou em silêncio, observando os ali reunidos.

Deus meu! Que situação incômoda.

O que estava acontecendo?

Uns poucos minutos depois, vi chegar a tabbah, completa.

Pedro entrou, tropeçando. Lia enquanto caminhava.

E os três se situaram ao redor do Galileu, como se o estivessem pro­tegendo. Mas do quê?

Pedro terminou e passou o rolo a João.

A nova leitura foi breve. E João bramou:

- Bastardos!

Pedro interrogou os notáveis:

Isso é verdade?

Assentiram.

E Nicodemos, o escriba, assinalou:

Está assinado por 53 dos 72 membros do Sinédrio.

E esclareceu:

Dezenove de nós nos negamos a assinar semelhante despropósito...

Que devemos fazer?

A pergunta de Tiago era a chave.

Jesus acabara por sentar-se em um dos divãs. Estava pálido. O que foi lido no pergaminho tinha que ser especialmente grave...

E teve início outra árdua discussão, similar à que presenciamos ao ingressar na domus.

Os únicos mudos eram o Mestre, Flávio, Tiago Zebedeu e este explorador.

Finalmente me aproximei de João Zebedeu e solicitei o rolo.

E li atônito:

"Ano 3787 do Santo, bendito seja..."[83]

"Os que entregam seu nome, após considerar a santa Lei, estimam que Jesus, construtor de barcos em Nahum, deve comparecer ante este sagrado tribunal para dar conta de seus pecados contra o Santo, bendito seja seu nome."

"Esta corte mobilizará os meios necessários para que a Lei seja satis­feita e o tal Jesus, filho de José, sujeito a domínio."

Ao final do escrito estava escrito: Hetêc (cópia).

Ao pé estava o nome dos 53 sinedritas que estavam de acordo com o procedimento da captura de Jesus. Eu recordo todos: Zacarias ben Quebutal, Jolí Kufrí, Yehohanan ben Zakay, Yehudá ben Betera, Simeón ben Ga­maliel, Nahum, Eleazar ben Dolay, Dostay Kefar, Yehudá ben Tabay...

Para que prosseguir...

Como eu imaginava, era uma ordem de caça e captura do Filho do Homem. O primeiro "ataque oficial" contra o Mestre. O primeiro ataque sério e estruturado das castas sacerdotais, dos escribas, dos saduceus e dos "santos e separados" (fariseus) contra este dócil e maravilhoso Jesus de Nazaré.

Os problemas, efetivamente, se aproximavam como hienas famintas...

"Sujeito a domínio", segundo Nicodemos, era uma expressão habi­tual no jargão jurídico do Sinédrio e das autoridades religiosas judias. Queria dizer que o detido podia ser torturado, desterrado ou executado. Qualquer um que se negasse a colaborar com o Sinédrio, ou dificultasse o seu trabalho, ficava "sujeito a domínio".

Os notáveis, sem exceção, suplicaram ao Mestre que abandonasse a cidade, imediatamente.

Não havia tempo a perder.

A polícia do Templo o procuraria (se é que já não estava fazendo isso).

Saímos da domus pela porta lateral e com grandes precauções.

Pedro ficou na frente, com a mão esquerda permanentemente apoia­da na empunhadura da gladius. Os Zebedeu caminharam por trás do Fi­lho do Homem. Eu fechava a comitiva.

Ninguém falou na viagem de regresso a Betânia.

Jesus parecia ter pressa.

O que o Destino nos reservava?

Na fazenda, por sorte, todos agiram com presteza.

O Mestre organizou uma reunião com Lázaro e com André.

Todos aguardavam, impacientes.

Por último, o chefe dos íntimos chamou Felipe e o instruíram sobre a marcha. Ninguém protestou, no momento.

A reda foi carregada com o imprescindível e aguardamos o cair do sol.

Foi então, enquanto Felipe amarrava a cabra colorida ao carro, que Judas se apresentou diante de André e exigiu que lutássemos. O chefe des­baratou as loucas intenções do Iscariotes com uma frase: "Pretendes que 12 espadas enfrentem 12 mil bastões?"

Todos se mostraram de acordo. O exército de levitas os esmagaria, em caso de luta.

Fugir era o mais inteligente...

André me explicou durante o percurso. Jesus não desejava enfrentamentos (de nenhum tipo). Tinham que partir de Jerusalém e buscar refúgio em regiões nas quais o Grande Sinédrio não tivesse influência.

E com o ocaso (pouco depois das 18 horas), entre abraços, a pequena expedição se colocou novamente na estrada.

Lázaro, as irmãs e os serviçais disseram adeus entre lágrimas.

Era a enésima fuga...

Perdemo-nos na noite, silenciosos, como se fôssemos "bucoles" bandidos).

Jesus e Zal caminhavam à frente, como sempre. Bem perto, a guarda ressoai do Mestre. Por trás, o carro, a Cipriota e o resto do grupo, também :om as espadas ao cinto. E, fechando o grupo, quem isto escreve, descon- :ertado. Tudo aquilo era novo para este explorador.

E fugimos, sem cessar. Não fizemos outra coisa em quase seis meses.

Foram estabelecidas as guardas. Levantava-se o acampamento em pouco tempo. Voltávamos a fugir, sempre com o temor do aparecimento ios levitas, e começávamos tudo de novo...

Atravessamos as regiões de Belém, Hebron, deserto de Judá, Sama­ria, monte Gilboá, mar de Sal...

Jesus seguiu ensinando aos seus e conversando com este explorador.

E assim, quase sem sentir, nos alcançou o mês de tisri (outubro).

Foi na segunda-feira, dia 27, que recebi aquela inesperada visita.

Acabávamos de retornar do mar de Sal.

Tarpelay, o sais negro, meu fiel companheiro de viagens, se apresen­tou no acampamento em Gilboá.

Estava há dias me procurando.

Kesil, nosso servo (agora a serviço de Eliseu), reclamava a minha presença.

Tar não soube me dar o motivo. Ignorava o porquê do requerimento.

Expressou unicamente que Kesil parecia preocupado.

O Galileu e os íntimos se dispunham a seguir até o próximo territó­rio de Decápolis. Era um lugar "neutro", sob a tutela de Roma, ao qual a polícia do Templo de Jerusalém não tinha acesso de comando. Devia ser, portanto, uma região segura.

Diante da insistência de Tarpelay, não tive outra saída senão abando­nar o Gilboá e dirigir-me ao yam.

Jesus soube dessa mudança nos planos. Chamou-me à parte e comentou:

Confia, malak. Confia sempre...

Depositou as mãos sobre os ombros deste explorador e acrescentou:

Agora regressa ao lago. Depois, volta e informa-me...

Sorriu e se distanciou para o alto do monte. Abba o esperava.

E, sem despedidas, deixei para trás o Gilboá...

 

 

De 27 de outubro a 18 de janeiro (ano 28)

 

Terça-feira, 28 de outubro (ano 27), na sexta hora (meio-dia), o sais de­teve o carro diante da insula da "Gata", nas proximidades do cais de Nahum. Tarpelay esperou, "se acaso eu precisasse dele". E, desde já, creio que precisarei, sim! Kesil se lançou em meus braços, chorando. Não conseguia tranquilizá-lo para que pudesse explicar-me. Gemia, se lamentava e se culpava, mas este explorador não sabia do que se tratava.

Tive que sacudi-lo para que conseguisse colocar um pé diante do outro...

Finalmente me conduziu a um dos quartos alugados junto a Si, a dona da insula.

Na cama, tremendo, se achava alguém... No primeiro momento, não consegui identificá-lo. Tinha o cabelo branco, como a espuma marinha. Tive que me aproximar para... Deus!

Era Eliseu, meu companheiro! O que havia acontecido? Eu o examinei.

Tremia de frio. Ardia em febre. A magreza era extrema. A pele pa­recia retraída, os olhos, fundos e tristes, e as orelhas, separadas das apó­fises mastoides.

Exibia olheiras negras e profundas que o desfiguravam.

O nariz, afinado, anunciava o pior...

Sentei-me a seu lado e prossegui o reconhecimento.

Kesil chorava e chorava. Não havia forma de tirar-lhe uma só palavra.

Num primeiro momento, desisti.

O pulso estava rápido. Demais.

Examinei os cabelos. Conhecia o problema. Era um embranquecimento súbito, como o que vivenciou este explorador na garganta de El Firan.[84] Algo provocou a perda dos cabelos pigmentados.

Perguntei de novo a Kesil.

Admitiu que Eliseu ficara velho da noite para o dia. Isso foi tudo.

A suspeita foi imediata: o engenheiro estava sendo atacado pelo mesmo mal que me consumia desde o princípio da Operação. As redes neurais eram destruídas pelos radicais livres, provocando, entre outros problemas, um envelhecimento rápido.

Kesil, finalmente, conseguiu conter o choro e explicou que o enge­nheiro estava há uma semana sem poder se mover. Tudo começou com uns alarmantes vômitos de sangue. Depois se apresentaram a febre, os olhos amarelos, aquelas intensas dores nos ossos e um infinito cansaço.

Fazia dias que reclamava a minha presença. Ele precisava me ver.

Só era capaz de ingerir água.

Kesil, desesperado, chamou Tarpelay e mandou-me procurar.

Então, sob o tecido que o cobria, descobri uma tala enfaixada. Eliseu tinha a perna esquerda fraturada.

Como havia acontecido?

O criado não soube explicar. Um dia, ao tentar levantar-se da cama, o engenheiro rodou para o chão. Resultado (?): a perna quebrada.

O rapaz se queixava também de intensas dores nas costelas, na região lombar e nos quadris.

Descobri hematomas e vermelhões no peito e nas costas, como se alguém tivesse batido nele. Kesil não sabia...

E houve algo que me deu uma pista e que me alarmou: os gânglios linfáticos pareciam inchados.

Mau sinal, pensei.

As náuseas e os vômitos de sangue eram quase constantes.

A perda de peso era alarmante. Eliseu era um ancião esquelético...

Deus santo!

A degradação geral de seu estado (caquexia) era demolidora.

Ao me ver, ele se levantou como pôde e me chamou com a voz dis­tante e irreconhecível:

Major...!...

Suava copiosamente, devorado pela febre.

Tratei de acalmá-lo.

Pensei nos "nemos". Era a única forma de averiguar o que estava sucedendo.

Major! - repetiu com os olhos amarelos e vidrados. - Estou mor­rendo!... Tenho algo para lhe dizer, muito grave!

Eu lhe falei sobre os "nemos", mas Eliseu se aferrou ao meu braço e repetiu:

Estou morrendo, Major!...

Isso não era possível. Eliseu estaria comigo anos depois no ano 30, quan­do iniciávamos a Operação Cavalo de Tróia. O que estava acontecendo?

Major, tenho que lhe falar! Não me abandone!

Tentei apaziguá-lo.

Eu não o deixarei! Fique tranquilo! Descanse!

Não deu importância.

E me obrigou a escutar...

O que tinha a dizer era muito grave.

Eu o ouvi, atentamente, entre vômitos e vômitos de sangue...

Falou em inglês.

Kesil não se afastou do seu lado. Afortunadamente não entendeu.

Em um primeiro momento acreditei que ele estivesse delirando, mas não...

E com dificuldade, detendo-se a cada instante, foi contando.

Eu sabia de algo e suspeitava muito, mas o que ouvi me deixou abalado. Necessitei de tempo para recuperar-me. Na verdade, não sei se consegui...

  1. A Operação na qual havíamos embarcado, e que praticamente nos estava custando a vida, era uma farsa. O grande objetivo não era seguir Jesus de Nazaré e conhecer a sua vida. Cavalo de Tróia fora projetado para algo obs­curo e reprovável: trazer o DNA de Jesus, da Senhora e de José (o pai terreno do Galileu) ao nosso tempo (1973). Por isso o cilindro de aço era vital.
  2. As amostras de DNA de Jesus de Nazaré, de sua mãe e de José (a princípio) estavam destinadas à clonagem.[85]

Eu havia intuído. E mais: tivera um estranho sonho (narrado em pági­nas anteriores) no qual Eliseu e o general Curtiss, chefe do projeto, falavam em clonar o Mestre. O sonho acontecia no "Pelicano Gago", no povoado de Tariqueia, ao sul do yam. Curtiss tentava convencer Jesus: "A CIA distribuirá Messias por todo o mundo... Cem em Cuba! Dez mil na China comunista! Um milhão de Messias nos países árabes! Compreende? Será o novo reino!"

Continuei ouvindo Eliseu. Quem isto escreve era um perfeito idiota...

E entendi o porquê do interesse do engenheiro em recuperar, a todo custo, o maldito cilindro de aço. Compreendi seu ultimato: "Você tem exata­mente um mês para devolvê-lo à nave... Se não o fizer, regressarei sem você".

Isso fazia dez meses...

Como a vida muda!

Mas esses diabólicos projetos do Cavalo de Tróia não eram os únicos.

Eliseu foi enumerando-os: um dos óvulos, uma vez fertilizado, seria depositado na matriz de uma jovem virgem. E assim assistiríamos ao se­gundo nascimento virginal do Mestre...

Estavam loucos!

Depois ensaiariam com os clones de José e da Senhora. Os cruzariam (!). E fariam testes ao mesclar os ditos clones com negros.

"A presença de um duplo de Jesus na Terra - diziam - terminará com as injustiças e com as revoluções. Será o final de tanto pecado comunista..."

Mas havia mais, muito mais...

Os militares norte-americanos pretendiam manipular (?) a alma e tentar reconstruir o "corpo glorioso" do Ressuscitado com base nos acha­dos obtidos em nossas expedições.[86]

Quem isto escreve não saía do assombro.

  1. O interesse por transportar novas amostras de DNA ao nosso tem­po se devia a um feito, acontecido pouco depois do primeiro regresso, em fevereiro de 1973. As amostras de sangue e de cabelo do Filho do Homem teriam se danificado. O processo de inversão de massa, quase que com certeza, terminou contaminando o DNA e tornando-o sem serventia al­guma.[87] Era preciso repetir a "viagem". Necessitavam de um novo DNA. Não tinham nada!

Por isso nós regressamos...

"Você acredita que voltamos para recuperar o maldito micro?"

Eliseu fez um esforço e prosseguiu:

"Você o colocou na bandeja do general..."

Tinha razão. O microfone oculto na mesa da última ceia, na casa de Elias Marcos, em Jerusalém, não era tão importante. Ninguém naquela época poderia saber o que era. Além disso, que importava abandoná-lo? Teria se decomposto em questão de anos.

Fui muito torpe, eu sei...

  1. Tudo foi um teatro. Eliseu dissimulou. Curtiss dissimulou. Todos no projeto dissimularam...

O pior: não há o que questionar. Foi o engenheiro.

Disse acreditar nas palavras do Filho do Homem. Ele se "entusias­mou" no monte Hermon. Prometeu "consagrar-se" à vontade do Pai. Mal­dito seja Curtiss e todos os seus.

Tudo falso.

Simulou o defeito no ECS (Sistema de Controle Ambiental)[88] e co­laborou na farsa do traslado da vergôntea de oliva ao tempo do Galileu...

Os militares estavam conscientes e presentes em tudo. Imaginaram que eu apoiaria o terceiro "salto" no tempo e providenciaram, inclusive, o arsenal farmacêutico, com os fármacos vitais de efeito antioxidante: glutamato, N-tert-butil-a-fenilnitrona e a providencial dimetilglicina.

Tudo calculado em benefício não da verdade sobre o Mestre, mas por nebulosos interesses.

Eliseu era um "obscuro". Mais exatamente um dark-darn, um "obscu­ro do inferno". Ele reconheceu isso abertamente.

Assim chamam aos agentes especiais do DRS (Serviço de pesquisa da Defesa); os mais temidos, tanto por sua preparação como por sua audácia. São os "obscuros" os que empreendem as missões pioneiras, quase sempre com objetivos pouco ou nada confessáveis, e o Cavalo de Tróia era um projeto "especial e muito apetitoso".[89]

E lembrei-me das palavras do engenheiro naquele dia 25 de setem­bro do ano 25, à margem do rio Yaboq, quando, delirando, exclamou:

- Eles me obrigaram... Sinto muito, Major...

Agora eu compreendia muitas coisas...

Eliseu era um dos 52 agentes infiltrados na Operação. São palavras suas.

  1. Reconheceu que simulou também sua paixão. Ruth não lhe impor­tava, ao menos a princípio. Depois foi diferente...

Sinceramente, não acreditei que estivesse apaixonado pela ruiva.

Simulava de novo?

A confissão se prolongou durante duas horas.

Deu todos os detalhes.

Quem isto escreve foi afundando-se, lentamente, conforme o enge­nheiro explicava e esclarecia.

Mas aquele intenso sentimento de raiva não durou muito.

Olhei pelo lado positivo: os "obscuros" não tinham alcançado o que pretendiam, por hora. O cilindro de aço, com as amostras, estava perdido, e graças a Deus! Não seria eu quem iria procurá-lo...

Eliseu descansou. A confissão - isso foi o que ele disse - havia lhe tirado um grande peso. E suplicou que avisasse Ruth. Desejava vê-la pela última vez.

Não comentei nada sobre o delicado estado da ruiva. Não tinha sentido. E prometi que viajaria a Nazaré depois de administrar os "nemos" a ele.

Aceitou resignado.

E nessa mesma tarde de 28 de outubro, Tar me conduziu até as portas de Migdal. Dali eu subi ao Ravid e preparei os "nemos frios". Foi nessa andança que me dei conta de algo importante: continuava desconhecendo a senha que ativava a SNAP 27, a pilha atômica que colocava a nave em funcionamento. Sem esse código, não era possível a decolagem do "berço". Eliseu a tinha modificado. Se falhasse, eu ficaria preso e ancorado naquele tempo para sempre.

Mas isso não era possível... Ou era?

Enquanto programava as doses de "nemos", sempre sob o controle do computador central, pensei muito no que me fora revelado por Eliseu.

Como pude ser tão cego?

O general Curtiss era um fanático religioso. Eu sabia. E pensei que essa questão era algo pessoal, que não tinha por que afetar o nosso trabalho.

Comecei a compreender. Estava muito equivocado. O poder do Pen­tágono, e das mais importantes e obscuras agências de inteligência dos EUA, estava a serviço da extrema direita...

Não haviam entendido nada. Não sabiam quem era realmente o Fi­lho do Homem, nem o que fez ou o que disse. Todos os evangelhos foram manipulados.

Que deveria fazer?

Primeiro, acima de tudo, deveria averiguar o que acontecia com meu companheiro. Depois eu veria o restante...

No dia seguinte, quarta-feira, dia 29, eu lhe administrei os "nemos".

Nessa mesma noite, "Papai Noel" ofereceu os resultados.

Demolidores...

A gravidade do estado do engenheiro era extrema.

Demorei a aceitá-la. Tratava-se de um jovem atleta, saudável, inteli­gente e otimista.

Como pôde mudar tão drasticamente, e em tão pouco tempo?

Li e voltei a reler os resultados. Não tinha nenhum erro. "Papai Noel" não se equivocara.

Os "nemos" manifestaram os seguintes resultados:

Eliseu padecia de um mieloma múltiplo: um câncer nas células plas­máticas.[90]

Um dos piores tipos de câncer...

Isso provocava uma falha no sistema imunológico, com a queda gra­víssima na produção de anticorpos.

Possível origem: exposição a uma radiação. "Papai Noel" apontou a inversão axial. Era o imaginado. Era o mesmo mal de que eu havia pade­cido e do qual continuava padecendo, ainda que em menor grau.

O câncer estava provocando também a destruição do tecido ósseo. A pélvis, por exemplo, se mostrava muito ferida.

As dores eram insuportáveis.

Os "nemos" detectaram osteoporose (perda da densidade óssea) com significativos riscos de fraturas de todo tipo.

O cálcio no sangue estava elevado. Isso podia levar a problemas no coração, nos rins e no cérebro. Não demoraria a aparecer confusão men­tal, prisão de ventre e aumento da frequência da micção.

A anemia já estava presente, devida à alarmante queda de glóbulos vermelhos. Isso explicava o infinito cansaço do rapaz.[91]

Os "nemos" confirmaram a produção excessiva de anticorpos IgG, IgA e IgM.

Eliseu, definitivamente, se encontrava na ante-sala da amiloidose, o mal do qual eu havia sido operado por "Papai Noel".

Expectativa de vida: entre quatro e seis meses, segundo o prognósti­co do computador.

Permaneci imóvel na frente do "Papai Noel".

Não dava crédito ao que estava lendo.

Sinceramente, estava horrorizado.

Se meu companheiro viesse a falecer, que seria deste explorador? Como eu disse, sem o código de acesso para ativar a SNAP, o "berço" não se moveria. Mas se ele se recuperasse, se Eliseu saísse daquele atoleiro, que faríamos? Não dispúnhamos do cilindro de aço. O que aconteceria se voltássemos ao nosso tempo?

E quem poderia garantir que voltaríamos para o ano de 1973?

Não seria melhor procurar a menina selvagem de Beit Ids e tentar recuperar as amostras?

Que besteiras eu cheguei a pensar!

Para o cúmulo de tudo, não dispunha dos medicamentos necessários para administrar os paliativos para as dores e o avanço do mieloma múltiplo.

Revisei o "berço".

Negativo.

Apanhei uma bateria de antibióticos e isso foi tudo.

Não dispunha de muito mais. Deveria reidratá-lo ao máximo, per­manecer com ele, rezar. Supondo que eu soubesse rezar...

Mas os problemas não terminavam aí.

Os "nemos" anunciaram algo que eu já sabia: o cérebro de Eliseu estava se desintegrando. Os radicais livres, como no meu caso, estavam canibalizando as redes neurais.

A capacidade cerebral do engenheiro, decodificada por "Papai Noel" em 1015 bits (1010 neurônios, com umas 104 sinapses por neurônio), di­minuía de forma alarmante, e à razão de quase 500 mil neurônios/dia. (A perda normal em um adulto saudável é de 100 mil neurônios por dia.)

Os "nemos" calcularam a produção diária de radicais livres em 20 bilhões.

Era uma "represa" que perdia água sem solução e, em seu lugar, en­trava veneno puro...

Por último, ainda que não saiba se eu deveria ter mencionado em primeiro lugar, os "nemos" registraram um alarmante déficit na produção da melatonina, um hormônio segregado pela glândula pineal, no ponto mais profundo do cérebro.[92]

Para "Papai Noel", e para quem isto escreve, a diminuição da produ­ção de melatonina foi a chave na queda do sistema imunológico de Eliseu, assim como na proliferação dos radicais livres. A melatonina, como se sabe, é um potente antioxidante, capaz de neutralizar os radicais livres e de evitar o envelhecimento. A tudo isso ainda se deve acrescentar sua enorme capacidade oncostática (de eliminação ou redução de tumores cancerígenos).

Nunca soubemos o que teria acontecido primeiro: a diminuição na produção de melatonina provocou o mieloma múltiplo ou foi ao contrário?

Pouco importava o motivo.

O mal estava ali, em pé, com as garras estendidas, dessangrando o engenheiro...

A glândula pineal, simplesmente, falhava.[93] Tudo estava falhando.

A expectativa de vida de meu companheiro, como disse, não supe­rava os seis meses, segundo "Papai Noel". E eu acrescentei: "com sorte..."

Concluindo: uma situação de extrema gravidade.

Só um milagre ou um transporte imediato para 1973 poderiam re­solver o problema, e não sei até que ponto. Um milagre do Mestre? Jesus não desejava fazer prodígios. Eu sabia disso melhor do que ninguém...

Transportá-lo ao nosso tempo? Teria que tentar. Tinha que arrancar dele a contra-senha...

Eu me senti triste. Profunda e intensamente desolado.

Curioso. As maldades de Eliseu passaram para segundo plano.

Só me interessava por sua saúde e em colocar num lugar seguro o que havíamos encontrado naquela mágica aventura.

E falo certo mesmo: mágica...

Que podia fazer? Melhor dizendo, o que eu deveria fazer?

A quinta-feira, 30 de outubro (ano 27), eu dediquei, completamente, à revisão dos dados facilitados pelos "nemos frios".

Não havia erros.

Consultei a possibilidade de que "Papai Noel" pudesse operar Eliseu.

Negativo.

Não dispúnhamos dos equipamentos e do plasma necessários.

Estava onde estava.

Solução? A já apontada: milagre ou viajar de volta para Massada... Ambos deveriam acontecer (?) o mais rápido possível.

Jesus se encontrava em Decápolis.

Teria que localizá-lo e pedir-lhe que ajudasse meu irmão.

Não era simples, pelo menos para mim. Nunca havia solicitado nada ao Filho do Homem. Não sabia como fazê-lo, nem o que lhe dizer. Mas, chegado o momento, teria que tentar. Eliseu era o primeiro. Ou não?

E desejando postergar ao máximo o retorno à insula de Nahum, pro­curei Tarpelay às portas do povoado de Migdal e nos dirigimos a Nazaré.

No dia 1º de novembro, sábado, conseguimos divisar a branca e aconchegante aldeia, ao pé do Nebo.

Chovia com força.

A Senhora, Miriam, Tiago e os outros se alegraram ao me ver.

Permaneci com eles vários dias.

Conversamos muito.

Conheciam as ameaças de Anás e, certamente, sabiam da ordem de busca e captura de seu Irmão. Os mensageiros estabelecidos pelos dis­cípulos, com Davi Zebedeu como chefe, funcionaram aceitavelmente. A mãe e os irmãos do Galileu estavam a par de tudo, e da mesma forma também sabiam dos meses de permanente fuga e do ódio do Sinédrio.

Maria, a Senhora, chorou amargamente.

E recordou seus vaticínios: se seu Filho não abandonasse aquelas lou­cas ideias, todos sofreríamos. Era preciso que se ajustasse à Lei e aos pro­fetas. Era um Filho do Destino. Era o Libertador político de Israel. Era o momento de organizar os exércitos e sair para as estradas, pelos caminhos, quebrando os dentes dos ímpios. Seus irmãos estavam preparados, e se uniriam a Ele no mesmo instante. Só tinha que reconhecer seu equívoco.

Tiago, o irmão de Jesus, se mostrou especialmente duro.

Sentia-se excluído e com ciúme.

Acusou o Filho do Homem de "insensato e de levar à ruína muitas famílias".

Miriam me olhava com seus lindos olhos de cor verde folha e assen­tia. Jacó, seu marido, não disse nada. Tampouco se pronunciaram José e Tesouro, a esposa. Entendi que estavam confusos. Amavam o Mestre, mas não compreendiam aquela atitude.

Não discuti, e nem os enfrentaria. Não tinha sentido.

O tempo colocaria cada um em seu lugar.

Eu me interessei, obviamente, pela minha amada. Miriam me informou.

Ruth continuava vegetando. Seu estado não havia se modificado. Ou melhor, tinha piorado...

Aceitei vê-la apenas mais uma vez.

Ela tremia constantemente. Era uma luz que se apagava...

A cabeça estava caída sobre o peito. Já não era capaz de levantá-la.

Babava incessantemente.

Ninguém compreendia o que ela dizia.

As lágrimas surgiram de repente nas maçãs do rosto da ruiva e rom­peram meu coração.

Ela sabia que eu estava lá, e que a continuava amando. Sua mente ainda estava funcionando, mas ela era prisioneira de si mesma.

Era preciso dar-lhe de comer e de beber. Era preciso carregá-la para to­das as partes. Ruth não conseguia fazer nada por si mesma, exceto chorar... Os olhos estavam escurecidos e enfumaçados pela dor e pela angústia. Pouco a pouco, braços e pernas se inflamaram e se tornaram azuis. O que mais me impressionou foram os constantes suspiros. Ela sabia que estava se dirigindo para o fim... A morte logo iria bater à porta da casa das pombas. Saí dali sem alma. Ali ela ficou...

Tu ainda a amas? - perguntou Miriam.

Sorri com amargura, e respondi que sim.

Mais do que nunca...

Ela não me compreendeu, mas me deu o melhor de seus sorrisos.

Que estranho grego! - sussurrou.

No dia 5 de novembro, quarta-feira, despedi-me da Senhora e de sua família.

Só voltaria a ver Ruth no ano 30.

E voltamos para a insula da "Gata" no atracadouro de Nahum.

Eliseu estava inconsciente, em coma.

Foi a melhor coisa que poderia lhe acontecer.

Perguntei a Kesil:

Ele deixou alguma mensagem para mim? O servo negou com a cabeça.

Insisti.

Uma mensagem, um pergaminho...?

Nada.

E esperei, pacientemente, que recobrasse os sentidos. Eu precisava da contra-senha para poder decolar com o "berço" e devolvê-lo a seu tempo (nosso tempo). Era a única maneira de ajudá-lo.

Esperei em vão.

Eliseu não despertou.

Simplesmente estava morrendo.

A vida escapava por entre seus dedos...

Regressei ao Ravid em várias oportunidades. Precisava pensar. Preci­sava decidir o que fazer. Escrevi muito.

Deus!

Ruth e Eliseu estavam indo embora, e eu não podia fazer nada por nenhum dos dois...

Kesil chorava, e chorava ainda mais quando coincidia em me ver.

Ele sabia da minha impotência.

Ajudei naquilo que pude. Ministrei a dimetilglicina que restava na nave e procurei novos antioxidantes nas frutas (especialmente no melão, nos pêssegos, no limão e nas amoras), na carne, nos aspargos e no espina­fre. Todos continham betacaroteno, tocoferol, selênio e ácido ascórbico.

Não foi suficiente...

Ele mal seguia em frente...

Não me separei dele durante dois meses.

No casarão dos Zebedeu, em Saidan, continuavam chegando notícias do Mestre e dos 12. Eles ainda estavam em Decápolis, sem novidades.

Eu vivia na insula da "Gata", enquanto aguardava o engenheiro.

E foi em um desses dias de dezembro que soube da morte de Kuteo, o bom samaritano da barba tingida de vermelho, e suposto autor do in­cêndio que matou os meninos "lua". Os rumores, em Nahum, apontavam para Gozo, a prostituta e mãe dos trigêmeos. Ao que parece, ela lhe cortou a garganta na taberna de seu comparsa Nabu, o sírio.

Gozo desapareceu.

Sentia falta do Filho do Homem.

Ele, sem dúvida, saberia como agir, tanto no caso de Ruth como no caso de Eliseu.

Foi Kesil, sempre atento a meus movimentos, quem sugeriu: por que não ir procurar o "fazedor de maravilhas", como ele chamava Jesus, e pro­por a cura de ambos?

Quem isto escreve já havia feito semelhante pedido com relação à ruiva, mas o Mestre rejeitou a petição, alegando que "não era uma doença de morte". Eu não insisti, é claro.

O servo, porém, voltou a tocar no assunto e me incentivou a partir, a localizar o Mestre e a propor a cura dos dois.

Pensei sobre isso com cuidado.

Algo em meu interior continuava dizendo para ter confiança. Eliseu e Ruth iriam se curar, com o tempo. Mas... Como?

A visão da agonia do engenheiro me convulsionava por dentro. E o pior é que eu não sabia o que fazer.

Foi assim que, na manhã da segunda-feira, 5 de janeiro do ano 28, e incentivado por Kesil, peguei minhas coisas e me dirigi até a base de suprimentos dos "13 irmãos", no Jordão.

O objetivo era localizar o Mestre e suplicar - implorar de joelhos - que fizesse alguma coisa por Eliseu.

Ele não poderia recusar...

Tarpelay se ofereceu para acompanhar-me naquela nova aventura, mas comentou, corretamente:

- Decápolis grande... Por onde começar?

Ele tinha razão. O território da liga das cidades gregas e romanizadas (do outro lado do Jordão) era uma extensão como a da atual Suíça.[94] Por onde começar? Eu não tinha a menor aposta. Nem uma...

O Mestre e os discípulos poderiam estar em qualquer parte. Já ha­viam transcorrido mais de dois meses desde que os deixara no acampa­mento de Gilboá. Era possível até que eles já tivessem saído de Decápolis e estivessem em outro território.

Tar esperou pelas ordens.

Pensei na torre das "Verdes". Talvez Raisos, o conseguidor, estivesse informado sobre o paradeiro do grupo.

Viajaríamos ao mar de Sal e consultaríamos o dono da torre.

A idéia não pareceu ruim ao sais negro. Ele pensava o mesmo...

Dito e feito.

Na segunda-feira, 8 de janeiro, a reda de Tarpelay parava na frente da torre das "Verdes", na margem oriental do atual mar Morto.

Raisos, o mestiço, nos abraçou.

Ele sabia da triste sorte de Jesus e de seu grupo, em fuga permanente, e da obsessão do Sinédrio em capturar todos. E concluiu: "Os olhos e os ouvidos de um macaco chegam até onde não alcança a sua cauda".

Quanto ao paradeiro do Mestre, não tinha idéia, mas prometeu se informar. Seria questão de dias...

Decidimos esperar.

E nisso apareceu na torre um velho conhecido.

Nós nos cumprimentamos.

Ele estava vestido da mesma maneira, com aquelas chamativas calças vermelho vivo presas nos tornozelos. Usava uma jaqueta da mesma cor, sem mangas.

Mas o que fazes aqui? - perguntou.

Eu lhe disse a verdade.

E Atar, o tricliniarcha que havia organizado o casamento em Caná, voltou a me abraçar, comovido. Ele gostava de mim, de verdade.

Eu devo muito a esse Jesus - disse. - Esse casamento passará à história.

Não tinha muita certeza até que ponto...

Ele também não sabia me dizer nada sobre o Galileu. O efeminado esta­va em Maqueronte como tricliniarcha ou maître da festa em comemoração à subida ao trono de Herodes Antipas.[95] Ele falou exatamente de smmydyn bw mlk ("o dia em que o rei subiu ao trono"). Conhecia a fama de Raisos como conseguidor e estava ali com alguns "encargos" de última hora. A saber: o persa precisava urgentemente de natrão (sabão) de leite de jumenta, passas de Massandra, uma fruta chamada al-tiví ("milagrosa")[96] e uma espécie de "massa" (não entendi bem) que se chamava lagano, e que se servia em tiras (assadas ou fritas). Misturada à sopa de alho-poró com grão-de-bico ficava deliciosa.

Raisos tomou nota dos pedidos e solicitou alguns dias.

Eu não conseguia deixar de ficar espantado. Massandra ficava no sopé das montanhas de Crimeia. Como ele poderia conseguir algo assim com tanta rapidez?

O tricliniarcha retirou-se para o alto do cone branco, mas prometeu que voltaríamos a nos ver. Tinha muitas "festas" para me contar...

E intimou o conseguidor para que cumprisse aquilo que fora acorda­do. O responsável pelo barco dos pecados levantou a mão, despedindo-se, e clamou: "Se te enganar, e tu enganares a mim, o último a ser enganado viverá lamentando-se".

Curioso, o Destino.

Nunca imaginei que fosse voltar a ver o tricliniarcha de Sapiah, a propriedade de Nathan, em Caná.

E esta não seria a última vez que o vi. Ainda restava o pior...

Naquela noite, durante o jantar, Raisos teve uma boa idéia.

Em Maqueronte, de acordo com suas notícias, estava Nakebos, capi­tão da guarda de Antipas e homem de confiança do tetrarca.

Talvez ele tivesse conhecimento do atual paradeiro de Jesus de Naza­ré. E soltou outra de suas frases de efeito: "A vida do comerciante está em seus ouvidos".

Ele não deixava de ter razão.

Nakebos, para o qual eu trabalhava como "informante", era um sujei­to bem informado.

Eu perguntaria a ele.

No sábado, 10 de janeiro, acompanhei Raiso e três de seus servos até o alto do cone sobre o qual se erguia o palácio-fortaleza de Antipas: Maqueronte.

Subimos pelo wadi Zarad e, depois de entregar a mercadoria soli­citada em Ataroth, a aldeia de serviços, o persa me conduziu até a leste do palácio. Raisos, ao despedir-se, me advertiu: "Atenção! O louco nunca sente medo!"

O que ele quis dizer?

Logo descobriria...

Deveria ser a quinta hora (11 da manhã) quando o tricliniarcha se posicionou na frente da grande piscina existente no átrio e procurou Nakebos com a vista.

O que era aquilo?

- Não te surpreendas - suspirou o afeminado. - Eles estão há cinco dias em festa. Tudo está virado de cabeça para baixo...

Calculei uns cem convidados. Sentados, deitados, outros roncando diretamente sobre cerca de 30 leitos. As cortinas de chiffon violeta que pendiam das colunas os nivelava, mas aquilo era apenas ilusão.

A maioria era árabe. Vestiam as típicas e intermináveis túnicas brancas. Outros pareciam funcionários (talvez a serviço de Roma e do tetrarca). Também pude distinguir a casta dos saduceus, com suas sedas e linhos, muito luxuosos. Outros, deduzi, eram comerciantes ou, simples­mente, aduladores do tetrarca.

Quase todos estavam bêbados.

Osíris, o gato azul de Antipas, saltava de mesa em mesa, e de triclínio em triclínio, roubando o que podia.

Três mulheres nuas se banhavam nas águas da piscina.

Não sabia quem eram elas.

Não consegui distinguir Herodes Antipas.

Entre as 31 colunas coloridas, estava de serviço uma patrulha de sol­dados gauleses, uniformizados, com as cotas de malha reluzentes e as ma­ças e as espadas de dois gumes prontas.

Eles se moviam entre as colunas, observando os convidados e, espe­cialmente, as mulheres que se banhavam...

Eu tentei, mas não consegui descobrir Ti, o soldado das tatuagens nos braços e nas mãos.

A minha direita, na esquina, perto da torre negra, vi o poço das "meninas"...

Senti um calafrio.

Maldito Antipas!

O persa me chamou de um dos sofás. Lá estava Nakebos, tão bêbado quanto o resto das pessoas, ou até mais.

Caminhei com dificuldade entre os triclínios. O piso parecia acarpetado com vômitos. O cheiro de azedo me envolveu imediatamente.

Nakebos me viu, se levantou e me abraçou com tanta força que aca­bamos caindo desajeitadamente sobre outros dois divãs, arrastando co­nosco jarras de vinho e parte da comida.

Um coro de risos e de gritos acompanhou nossa queda estúpida.

Os soldados se mexeram, inquietos. Mas os serviçais acudiram ra­pidamente, e Nakebos e quem isto escreve fomos erguidos do chão com presteza.

O capitão da guarda se apressou a encher uma taça e a me oferecê-la.

Ele tentou falar, mas mordeu a língua. Estava bebendo há cinco dias...

Foi então que a vi. Estava muito perto, em um dos sofás próximos. Estava bebendo e olhando ao redor.

Eu já a tinha visto, fugazmente, em 7 de abril do ano 30, quando o Mestre foi levado à presença de Antipas, em Jerusalém.

Não tinha mudado muito.

Agora estava usando uma túnica de linho, transparente. Distingui a pele morena, azeitonada, e os seios pequenos. Era árabe (de Edom), des­cendente de Esaú, embora não gostasse dessa condição de arab.

Seu cabelo loiro, escandaloso e tingido, tinha amplas ondas que emolduravam o rosto pequeno. Na parte central, o cabelo havia sido ar­ranjado na forma de um melão, outra moda romana.

As unhas das mãos e dos pés estavam pintadas de amarelo, com uma grande crosta de hena. As pálpebras, sobrancelhas e lábios faziam jogo, combinando com um azul dourado. Um toque de malaquita verde anima­va as maçãs do rosto.

Nessa época ela estava com 36 anos de idade.

Era bonita...

O que me chamou mais a atenção foi o seio esquerdo. Sob o mamilo foram pintadas dez pintas, em forma de flor (uma moda de Pompeia).

Mas o mais deslumbrante era o colar.

Quando eu tive a oportunidade de chegar mais perto, percebi que era um colar de ouro trançado com impressionantes engastes ovais de péro­las. Entre cada uma das pérolas apareciam prismas de esmeraldas. Contei dez. Os lampejos das esmeraldas eram constantes.

De pé, ao lado da mulher, estava uma escrava, uma ornatrix, atenta aos cuidados com o cabelo, o vestido (?), a maquiagem e as jóias da pa­troa. Nas mãos da serva brilhava um espelho de bronze com a imagem gravada de Lara, a deusa etrusca dos espelhos.

Sim, era Herodíade, a esposa de Antipas...

A seu lado, no mesmo divã, e reclinada, estava outra mulher, esta mais jovem. Não a identifiquei.

Prestei atenção.

Falavam de Pompeia.

Herodíade, ao que parece, era fanática pelos costumes etruscos e pe­las belezas e tesouros da referida cidade romana. Ela argumentava que os judeus tinham ainda muito que aprender sobre a igualdade de direitos da mulher etrusca. E defendia, com ardor, a necessidade do matronímico (o nome completo da mulher) e a presença da mulher em julgamentos, banquetes, reuniões e, acima de tudo, nas sinagogas (como já foi dito, as mulheres judias não podiam se misturar com os homens, não estavam autorizadas a ser sacerdotisas e, muito menos, a entrar no Santo).[97]

Enquanto falava, notei algo especial, e muito característico do idio­ma etrusco: Herodíade acentuava com força a antepenúltima sílaba de cada palavra. Era um exercício complicado, mas ela adorava.

Perguntei a Nakebos sobre a jovem que conversava com Herodíade.

O capitão da guarda me olhou, surpreso. Ficou sério e interpretou errado a pergunta:

Não te metas aí... Salomé é a enteada de Antipas.

E, baixando a voz, acrescentou:

Todo mundo sabe que ele gosta...

Surpresa!

E na minha mente vieram as alusões de Flávio Josefo à morte de Yehohanan (Antiguidades dos judeus).

Devia permanecer vigilante.

Salomé era, de fato, filha de Herodíade e de outro Herodes, irmão de Antipas. Nesse ano 28 ela estava com 17 anos de idade. Dois anos de­pois (em 30 d.C.) ela se casaria com Filipo, o filósofo e explorador, a cujo cargo ficaram os territórios do norte e do leste: Gaulanitis, Traconítide, Auranitis e Batanea.

Salomé era atraente, nada mais.

Não era muito alta. Talvez 1,60 metro.

Loira, com cabelos ondulados, sempre descansando sobre os ombros.

Os olhos eram bonitos, em forma de amêndoa, doces, inquietos, e de um castanho lânguido. Eu diria um pouco desconfiados.

Dentes amarelados.

Uma família de sardas havia se instalado nas maçãs do rosto e no nariz. Um nariz algo grosso e descomposto. Mas o sorriso era rápido e travesso.

Naquele dia usava guizos nos tornozelos.

Estava quase nua, como a mãe.

Sete faixas de crepe colorido se dependuravam da estreita cintura.

O sexo estava depilado.

As orelhas, pintadas de amarelo, combinavam com os cabelos.

Apesar de sua juventude, sua perna esquerda tinha varizes primárias.

Nakebos me serviu uma segunda e generosa taça de legmi, seu licor favorito, e me incentivou a provar as "delícias" do tricliniarcha.

Atar, o efeminado, era um excelente cozinheiro. Eu sabia disso. Ele teve a oportunidade de demonstrar isso no casamento em Caná. Pois bem, aqui tinha se superado...

Nas mesas colocadas entre os divãs, alinhavam-se pratos e pratos com úberes e vulvas de leitoas virgens, lúcios do Tibre (pescados entre as pontes da cidade de Roma), ostras vindas da Bretanha, esturjões do mar Negro, carne da Germânia, sopa de melancia com sal e pimenta (servida com a neve do monte Hermon), couve, linguiças da Hispânia (cobertas de feijão), atum cru com ovos cozidos (picados), línguas de papagaio, garum para tudo, mil tipos de doces árabes (um deles, pare­cido com um bolo de frutas, com iogurte de azeite de oliva, me deixou perplexo, era delicioso), cerveja gelada, vinhos aromatizados com es­peciarias colhidas nas inundações do Nilo, e legmi, todo o legmi que existia no mundo...

Uma legião de escravos vigiava os alimentos e espantava as moscas.

A cada seis horas, Atar retirava as comidas e as substituía por outras "especialidades".

E estavam assim há cinco dias!

Perguntei até quando durariam os festejos, mas Nakebos não soube responder. Ou melhor, ele respondeu, mas do seu jeito:

- Até que não reste ninguém de pé...

De repente, vi entrar outro contingente de soldados armados até os dentes.

Eles formaram um corredor desde a porta do palácio até o divã onde nos encontrávamos, e esperaram em posição de sentido.

Achei que fosse Antipas que chegava.

Estava certo.

Ao vê-lo entrar no átrio, todos os convidados ficaram em silêncio.

E todos os olhares se voltaram para o tetrarca esquelético e não muito alto.

Ele se aproximou do triclínio e escutei de novo aquele tilintar...

Desta vez, Antipas usava uma túnica de linho que descia até os pés, com uma pele de guepardo sobre os ombros e envolvendo a cintura.

Usava uma peruca branca (presumi que fosse feita de fibras vegetais) até a nuca, que gotejava essência de tâmaras.

O perfume era mortificante.

Ele me viu e sorriu da melhor forma que pôde. A máscara de udju (malaquita procedente do Sinai), que cobria as feridas e cicatrizes do ros­to, do pescoço e das mãos, não permitia que Antipas mostrasse muita expressividade.

Os olhos, avermelhados, denotavam falta de sono e excesso de legmi...

Ao redor de seu pescoço brilhava uma corrente de ouro que levantou murmúrios de admiração. Contei 94 peças em forma de folhas de hera, todas em relevo e de ouro maciço. O colar dava três voltas ao redor do pescoço e teria feito empalidecer o ingênuo Oscar Wilde e o ilustrador Aubrey Beardsley.[98]

Nakebos e eu nos levantamos com sua aproximação, mas o tetrarca sugeriu que deixássemos o protocolo de lado. Afinal, estávamos em sua grande festa.

Atrás dele vinha o corpulento e sempre mudo escravo de cabelos loiros. Trazia nas mãos um gimbal, um pequeno incensório que colocou aos pés do seu amo. E o novo perfume foi eclipsando o da peruca branca. Menos mal...

Nakebos serviu legmi a seu senhor e este, encantado, ergueu a taça e preparou um brinde.

As centenas de convidados ficaram em silêncio novamente.

Para o único asap (adivinho) que entrou no poço das "meninas" e saiu com vida.

Os convidados me procuraram, curiosos, e terminaram brindando por quem isto escreve.

Nakebos sorria e repetia feliz:

É meu amigo! É meu amigo!

Herodíade me passou em revista de cima a baixo. Salomé me dedi­cou um olhar discreto. Creio que o que lhe chamou mais a atenção foi meu cabelo, branco como o de seu padrasto.

Enrubesci.

E bebi o legmi até o fim.

- E o que dizem os astros sobre esta celebração?

Eu não sabia o que dizer. Sentia algo de grave, muito grave, mas tam­pouco tive a opção de responder.

Antipas logo se esqueceu da pergunta e sussurrou algo no ouvido de Nakebos. Este levantou o braço e fez um sinal ao tricliniarcha. Era o momento combinado...

Atar, o persa, tinha tudo pronto.

Cinco núbios, altos como as palmeiras, e muito bonitos, apareceram entre os sofás, e foram se colocar no canto leste da piscina, perto do poço das "meninas". Eles levavam pequenos e grandes tambores de madeira, revestidos de pele de gazela. Dois deles tinham amarrados aos pulsos tim­brei ou tabret (pequenos tamborins), que serviriam de acompanhamento. Cada tabret era segurado por uma das mãos (geralmente a esquerda) e golpeado com a outra. Entre as peles de gazela, ou de jumento, foram co­locadas pequenas peças de cobre, ou de bronze, que sacudiam a cada vez que as peles eram golpeadas. O som era único e excitante. O número de peças de bronze preso às peles era um segredo dos músicos núbios.

O silêncio sentou-se ao nosso lado. Tudo era expectativa.

E soaram os tambores...

A tragédia também apareceu no grande átrio do palácio-fortaleza de Maqueronte.

Tudo estava pronto para o momento terrível...

Salomé, de repente, se levantou e começou a dançar.

Os convidados viram e pararam com o que estavam fazendo. Eles só tinham olhos para a jovem loira.

Antipas a seguia de boca aberta. A taça de legmi não demorou a ser esvaziada. Nakebos a encheu novamente.

A garota movia-se ao ritmo dos tambores, embora, agora que estou pensando melhor, não estou tão certo assim: era ela que dançava ao som dos tambores ou eram os núbios que acompanhavam os movimentos dos braços, dos ombros, dos seios, dos quadris e dos pés?

A princípio, os movimentos foram delicados e insinuantes...

Os tambores estavam, mas não estavam.

Os braços subiam e serpenteavam, e os dedos, em permanente agita­ção, buscavam o roxo iridescente. Os indicadores e os polegares se uniam e davam a entender algo. Era o começo do fim... Salomé falava com o corpo.

Assim transcorreram 10 ou 15 minutos.

Depois, deslizando ágil entre os triclínios, a jovem foi exigindo mais e mais de seus quadris. Vibravam. Agitavam-se lentos ou rápidos. Os ne­gros a seguiam, tenazes.

Os convidados suspiravam.

As mulheres que estavam se banhando na piscina se acomodaram na borda e assistiram à bailarina.

A guarda gaulesa esqueceu-se de seu trabalho e permaneceu con­templando aquele corpo nu e insinuante. Eles cochichavam entre si.

E Salomé, intencionalmente, aumentou o ritmo. Os músculos abdo­minais tomaram a iniciativa e as tiras de pano colorido se agitaram, para cima e para baixo, deixando descobertos o púbis e as nádegas.

Alguns comensais deixaram escapar murmúrios de admiração...

Antipas a devorava com os olhos.

E a mulher veio se aproximando do divã onde estávamos sentados, Antipas, Nakebos e quem isto escreve.

O capitão da guarda encheu a taça de seu senhor, a sua e fez o mesmo com a minha.

Nakebos e Antipas beberam apressadamente.

A mulher se aproximava.

Herodíade seguia os movimentos da filha e acompanhava o frenesi da percussão tamborilando rapidamente com os dedos sobre a mesa de cristal. Ela estava gostando...

O tricliniarcha estava em todas as partes.

Os núbios estavam com os olhos brilhantes. Suavam copiosamente. Era um suor violeta.

Salomé continuou sua estudada aproximação ao tetrarca.

Ela sorriu brevemente e Antipas correspondeu.

A bailarina também suava.

As gotas, igualmente violeta, corriam pela testa e pelas têmporas e se precipitavam apressadas sobre os pequenos e agitados seios. Ali, como se soubessem, paravam um instante, beijavam os mamilos escuros e se suicidavam de prazer, arrojando-se sobre os convidados.

Dois dos negros, aqueles com os tambores mais pesados, se destaca­ram entre os triclínios e se aproximaram da enteada.

O persa me procurou com os olhos. Estava quase desmaiando. O que estava acontecendo? O que era tudo aquilo?

Encolhi os ombros.

Eu não sabia de nada... Ou sabia?

A dança (soube mais tarde) era conhecida como raqs sharqi ("dança oriental", uma variação da dança do ventre praticada no Egito) e provavel­mente tinha sido importada dos desertos árabes.

Era uma dança sensual e sedutora, com inúmeras mensagens ocultas para aquele que soubesse "ler" o corpo.

Os braços estendidos para o alto, ondulantes, perdidos no céu, era uma forma de dizer "estou triste", "não tenho"... Os pés no chão, firmes e seguros, constituíam outro símbolo: "Sou sua", "Sou como a terra"... Os movimentos dos quadris eram "ondas que chegavam sem cessar". Era uma representação da fertilidade... Quando os braços formavam um "U" era o símbolo do ar, das aves, da liberdade...

A bailarina chegou ao triclínio, mas seu olhar foi unicamente dirigi­do a Antipas. Ela sabia...

Os braços escapavam, uma e outra vez, como se quisessem atravessar a cúpula violeta.

E o ritmo dos seios e dos quadris aumentou furiosamente.

Os tambores não permitiam o menor afrouxamento.

O suor nos salpicava.

Antipas capturou uma das gotas e a levou aos lábios.

Nakebos tinha os olhos fixos no sexo de Salomé.

Então percebi um perfume intenso, uma mistura de nardo e gálbano. Vinha de pequenas bolsas presas aos pulsos.

Senti vertigem.

Aquela dança se arrastava.

Ela continuou insinuando-se, mostrando seus encantos sem o menor pudor.

Os convidados haviam parado de beber. Estavam perplexos. Com­preendiam e não compreendiam.

Por que Salomé dançava assim na frente do tetrarca?

A mulher, então, ficou a um passo de Antipas e o desafiou.

Os seios assumiram o controle e ela os agitou sem descanso, muito perto do rosto do padrasto.

Nakebos bebeu de novo, mas engasgou.

E o suor da garota veio de todo o seu corpo.

Os núbios enfureceram-se com as baquetas. A bailarina se esvaziou e tudo foi agitação (sobretudo no interior de Herodes Antipas).

Perfume, quadris, seios, tiras de pano que apareciam e desapareciam, sexo, suor violeta, olhares de cumplicidade...

Eu pensei que fosse desmaiar.

Antipas se rendeu e recuou um pouco.

Foi apenas um segundo.

O tetrarca se recuperou. Ele terminou o que restava do legmi em sua taça, levantou-se e se inclinou em direção aos seios brilhantes de Salomé.

A mulher parecia estar esperando por esse momento.

Não demonstrou medo. Pelo contrário. Avançou um pouco, sem dei­xar de mexer os seios e os quadris.

Antipas estava fora de si. Nakebos estava fora de si. Eu estava fora do mundo...

Os negros eram máquinas.

Osíris, o gato de Antipas, há muito havia escapado de tal loucura.

E o tetrarca, ganancioso e sedento, aproximou os lábios do mamilo direito da mulher.

Herodíade deixou de ser levada pelo ritmo. Estava lívida.

Porém, quando se preparava para sugar, Salomé, inclinada, recuou um passo para trás, e o tetrarca, confuso, acabou perdendo o equilíbrio e caiu sobre o pavimento.

Os soldados deram um passo, colocando as mãos sobre a empunhadura de suas espadas.

Mas não foi necessário. Nakebos se apressou em levantar seu senhor e tudo voltou à normalidade (?).

Antipas, verde e bêbado, voltou a se sentar no divã.

Nakebos serviu mais legmi.

Salomé foi embora.

O ritmo da dança diminuiu.

Os tambores e os pandeiros foram se apagando.

A garota chegou à borda da piscina, executou um último movimen­to, levantou os braços e atirou-se de costas na água.

Fim da histórica dança de Salomé no aniversário da subida ao poder de Herodes Antipas.

Os convidados aplaudiram. Eles se levantaram e aplaudiram freneti­camente. A homenagem durou cinco minutos.

Herodíade continuava séria. Seu olhar parecia amarrado no marido. Era um olhar incendiário.

Mas o tetrarca não vacilou.

E, no meio do clamor geral, eu o vi inclinar-se sobre Nakebos, seu homem de confiança. Sussurrou alguma coisa.

O capitão assentiu com a cabeça, levantou-se e caminhou até a beira da piscina. Chamou Salomé e conversaram rapidamente.

Em seguida, ela foi até o triclínio onde estava Herodíade. Falou com a mãe e essa respondeu, mas não sei o que conversaram.

Depois, por quase um minuto, Herodíade permaneceu em silêncio. Parecia pensativa. Nakebos continuava a seu lado, esperando.

E Herodíade, finalmente, sussurrou outras palavras ao ouvido do ca­pitão da guarda gaulesa.

Nakebos deu meia-volta e retornou para junto do tetrarca. Mas Antipas tinha adormecido, ou pelo menos assim parecia.

Contrariado, Nakebos sentou-se em seu lugar e então esvaziou sua taça de licor.

O que acontece? - atrevi-me a perguntar.

Nakebos agradeceu meu interesse. Ele estava pálido e precisava de­sabafar.

Antipas - explicou em voz baixa - pediu que Salomé voltasse a dançar para ele... Se ela o fizer, irá dar a ela um marido...

Um marido?

Sim, e poderá escolher entre os presentes.

E o que disse Salomé?

Que falasse com sua mãe. Ela decide...

Pensei ter entendido, mas não. Não tinha compreendido.

E então? - pressionei.

Herodíade pensou. Depois pediu que eu transmitisse o seguinte a Antipas: "Salomé dançará para ti, se antes me trouxeres a cabeça do louco Yehohanan..."

Nakebos olhou para Herodíade. Serviu-se de mais uma taça de legmi e acrescentou:

Devo trazê-la numa bandeja de prata...

Ele me olhou com desagrado e estava prestes a dizer mais alguma coisa quando Antipas acordou de repente.

Eu estava assistindo a outro momento histórico, muito mal narrado pelos evangelistas. A verdade não é como foi contada. Era pior...

Antipas, visivelmente chateado, perguntou a Nakebos:

O que ela respondeu?

Que antes de bailar para ti quer a cabeça do louco...

Que louco?

Yehohanan... E a quer numa...

Nakebos não terminou a frase. Chegou mais perto do tetrarca e sus­surrou algo ao ouvido. Imaginei que estivesse falando da bandeja de prata. Sim, e não. O pedido de Herodíade não terminava aí... Antipas olhou para a esposa e o fez com desprezo. Então, sem hesitação, ordenou ao capitão para prosseguir. Tremi.

Nakebos se pôs de pé, chamou a guarda que vigiava entre as colunas e comentou, dirigindo-se a quem isto escreve:

Que dizem as estrelas sobre este dia? Não soube o que responder.

Não importa. Tudo está escrito, como poderás comprovar em breve... Fez um gesto para que vários dos gauleses o acompanhassem. E saiu com os soldados.

De repente, Nakebos se virou e gritou para mim:

Como andas de estômago? Tampouco compreendi, mas respondi:

Bem, acho que...

Ele sorriu, maldoso, e ordenou:

Veremos... Vem, acompanha-me!

Pedi permissão ao tetrarca e esse indicou que eu fizesse como solici­tara o capitão.

Uma risadinha flutuou no triclínio. Maldito Antipas! Maldito chacal! Nakebos se dirigiu até a torre negra. Pressenti algo terrível.

Um soldado abriu passagem e entramos na escuridão da torre. Os gauleses de guarda levantaram-se e bateram continência. Nakebos exigiu mais tochas e mandou que abrissem o alçapão. Assim foi feito.

No interior do grande reservatório outra surpresa me aguardava, ou melhor, várias surpresas desagradáveis... Chegaram as tochas.

Então consegui ver Ti, o gaulês das tatuagens nas mãos e nos braços, que havia tentado me ferir no vau de Josué em 12 de junho, e ao qual aju­dei em novembro na frente da perigosa Naja nigricollis nigricollis. Ele me reconheceu, sorriu maliciosamente e comentou:

Tu, sorte... Agora não matar... til Não era hora para brincadeiras...

Vários soldados se lançaram escada abaixo. Nakebos e quem isto es­creve descemos atrás deles. Por trás de nós, igualmente armados, e com tochas nas mãos, seguia outro grupo de cinco guardas.

Eu sabia muito bem para onde estávamos indo, e por quê...

Ao entrar no reservatório, ouvi vozes.

Quem estava lá com o Batista?

Logo compreendi.

Era o eco, rebatendo nas paredes da caverna.

Ouvi novamente o som da água.

Descemos rapidamente e em silêncio.

A lembrança das ratazanas me fez estremecer.

Prestei atenção à gritaria.

Era a voz raivosa de Yehohanan, que clamava:

Pois eis que vem o dia...

Eram versículos do profeta Malaquias (3, 19).

Ao distinguir as tochas no topo das escadas, iiatista intensificou suas in­vocações, e o eco bateu de parede em parede. Tive a nítida impressão de que o eco também pressentia o que estava prestes a acontecer e tentava escapulir dali.

... Pois eis que (que) vem o dia (dia) ardendo (ardendo) com for­nalha (fornalha)...

Os guardas não lhe deram atenção e continuaram.

Holocausto! Holocausto!

E o eco repetiu: "Holocausto".

Mas do que ele falava?

A loucura, com certeza, continuava com ele.

A patrulha chegou até a água e entrou na piscina, dirigindo-se para a direita dos malditos 252 degraus.

Iluminaram o local e esperaram as ordens.

Não demorei em avistar Yehohanan. Continuava preso por correntes no tornozelo esquerdo. Estava a cerca de cinco metros, encostado na pa­rede de gesso. E gritava e gritava:

Chegará o dia em que cairão todos os arrogantes e todos os que praticam iniquidades!...

O cabelo tinha crescido consideravelmente. Agora já lhe chegava ao peito.

Quase não o reconheci.

Era puro osso, pura miséria...

Seus olhos estavam esbugalhados. Não sabia qual das tochas olhar.

E nesse dia arderão, disse o Santo, bendito seja!...

Senti uma pena infinita por aquele despojo humano. Sua deteriora­ção, física e mental, havia chegado ao fundo. A morte seria sua libertação...

Os soldados perguntaram: "O que faremos?"

O capitão ordenou que o segurassem e o iluminassem.

E nesse dia arderão... E não restará nem raiz nem ramo!

A partir desse momento, tudo foi vertiginoso.

Porque é Ele quem forma as montanhas e quem cria o vento, quem anuncia a sua palavra ao homem...!

Agora ele recitava o profeta Amós (4, 13).

Nakebos pediu uma espada. Nunca me esquecerei. Era uma xiphos, com uma lâmina de ferro larga e brilhante. O guarda, seu dono, cuidava bem dela. Junto da empunhadura no cabo, o metal ficava mais estreito, para facilitar o golpe.

Eis que vem o dia...

Nakebos ficou na frente do gigante de olhos vermelhos e repetiu que o imobilizassem com força.

Assim os guardas o fizeram.

Holocausto!

Então, eu observei-lhe os dentes. Uma parte havia desaparecido. Te­ria sido por causa dos espancamentos dos guardas? Eu sabia que aqueles bárbaros o torturavam muitas vezes...

Holocausto! - repetiu. - Holocausto!

Foi a última palavra a ser dita.

O capitão pegou o pênis do Batista, puxou o órgão o mais que pôde e, com frieza, cortou-o de um golpe.

Um jorro de sangue brotou imediatamente e espirrou em cima de Nakebos e daqueles que seguravam o infeliz Anunciador.

Fiquei horrorizado.

Foi esse o pedido secreto de Herodíade?

O Batista, pálido, com os olhos arregalados, não emitiu som algum. Olhava para seu baixo-ventre ensanguentado e tentava dizer alguma coi­sa, mas não conseguia.

Os guardas, a uma ordem de Nakebos, soltaram aquele que tinha uma borboleta no rosto.

Eles retrocederam.

Havia sangue por toda parte.

O Batista cambaleou.

Mas não teve tempo de cair. Nakebos deu outra ordem. Desta vez, cabia a Ti cumpri-la.

-Atravessa-o!

O jovem soldado desembainhou a espada e, sem hesitação, deu uma estocada em Yehohanan. A lâmina penetrou pelo lado esquerdo e saiu do lado contrário.

O Batista me olhou, incrédulo.

Quis dizer a ele que eu não era o responsável. Que nem sequer estava lá...

O soldado, conhecedor de seu trabalho, esperou por alguns segun­dos. Acho que dez.

A julgar pela trajetória, a lâmina havia seccionado o coração.

Morte imediata.

Ti retirou a espada e fez isso lentamente, enquanto a fazia oscilar, rasgando as artérias, pulmões, tudo...

Um momento depois, Yehohanan caía morto.

Segundo meus cálculos, devia ser a nona hora (três da tarde). Curio­so: foi na mesma hora em que o Mestre morreu, só que 27 meses antes.

O corpo permaneceu sobre os últimos degraus de pedra, virado para baixo.

O sangue corria sem cessar. Tudo estava vermelho: a água, as roupas, o gume das espadas, a visão...

Nakebos, cada vez mais irritado, olhou com asco o pênis que segura­va entre os dedos. O sangue tinha estragado seu robe de seda.

E gritou aos soldados para que acabassem com o serviço de uma vez.

Os guardas se entreolharam. Ninguém sabia o que tinha que fazer.

Nakebos compreendeu. Ele levou a mão esquerda ao pescoço e fez o gesto de decapitação.

Um dos soldados tentou mover o corpo a fim de colocá-lo vi­rado para cima, e continuar com mais facilidade. Não conseguiu. O Batista era pesado. Ele precisou de ajuda. E o sangue continuou cor­rendo pela escada.

Foi então que ouvimos aqueles golpes.

As tochas iluminaram o fundo do reservatório e vimos as ratazanas. Elas saltavam dos túneis e nadavam em nossa direção.

Vamos, vamos! - apressava o capitão.

O corpo estava com as costas sobre os degraus de pedra e as pernas dentro da água do reservatório. O cabelo loiro escondia parte do rosto.

Um dos soldados afastou os cabelos e deixou a garganta exposta.

Vamos!

As tochas iluminaram o Batista.

Outro dos mercenários empunhou a espada com ambas as mãos. Ele a levantou no ar e descarregou um golpe terrível sobre Yehohanan.

Os nervos o traíram e a espada feriu a boca, abrindo parte do rosto.

Outro jorro de sangue me gelou a alma.

Malditos sejam!...

Nakebos estava observando as ratazanas. Elas continuavam nadando e avançando...

Foi a vez de outro dos gauleses. Ele repetiu o golpe, também vio­lento. Mas a espada foi desviada para os degraus de pedra e se partiu em dois.

Os soldados amaldiçoavam em sua língua...

Foi Ti quem deu o terceiro e derradeiro golpe.

Desta vez, a lâmina separou a cabeça.

Ti a agarrou pela cabeleira, levantou-a para que todos vissem e pro­clamou, muito sério, dirigindo-se ao corpo do Batista:

Tu sem sorte!

Os olhos de Yehohanan continuavam espantosamente abertos. A fe­rida na boca deixava o maxilar inferior pendurado.

Tudo era sangue e horror.

Vamos, vamos! - gritou Nakebos. - Para cima!

A patrulha cumpriu a ordem do capitão. Subimos todos com pressa.

Não virei a cabeça para olhar.

Lá ficou o cadáver de Yehohanan, à mercê das ratazanas...

Ao chegarmos à torre, estávamos ofegantes. Não sei se pelo esforço ou pelo cansaço da alma diante de tanto horror...

Alguns dos soldados que aguardavam no alto deram um passo para trás ao ver a cabeça e nossas roupas, ensanguentadas.

Nada perguntaram. Não era preciso.

De repente, Nakebos reparou: faltava a bandeja de prata.

E, furioso, ordenou que buscassem uma.

E insistiu:

- De prata, maldita seja! São as ordens da senhora!

Ele se referia a Herodíade, obviamente.

Vários soldados deixaram a torre negra, e a cabeça do Batista ficou sobre as pedras do pavimento, nos observando.

Nakebos soltou o ensanguentado pênis e pediu água para se lavar.

Não consegui me conter.

Ajoelhei-me diante da cabeça e tentei fechar os olhos.

Foi inútil. Eles voltavam a se abrir.

Foi nesse instante que vi surgir o tricliniarcha. Trazia a maldita ban­deja de prata.

Entrou na torre, deu alguns passos, mas, por causa da penumbra, não viu a cabeça e tropeçou nela. O persa rodou pelo solo e a bandeja foi junto com ele.

Os soldados riram e zombaram dele.

O maître se apressou em levantar-se.

Foi só nesse momento que ele notou o "obstáculo". Soltou um grito e caiu desmaiado.

Um dos gauleses abriu o alçapão e um segundo soldado jogou o efe­minado para dentro da cisterna. Fecharam o alçapão e continuaram rindo.

Nakebos pegou a cabeça de Yehohanan, colocou-a cuidadosamente sobre a bandeja e ordenou que um de seus homens introduzisse o pênis na boca. Esse era o desejo da esposa de Antipas.

Depois, ele pegou uma tocha. Passou-a ao redor da cabeça e, satisfei­to, pediu que abrissem a porta da torre.

E Nakebos deixou o local. Atrás dele vinha a escolta e quem isto es­creve, deprimido.

Caminhamos entre os divãs.

Os convidados, desprevenidos, gritavam ao ver passar aquela bande­ja. Outros se levantaram e foram embora.

Nakebos deixou o "presente" aos pés do tetrarca.

Antipas, mais do que bêbado, contemplou atônito a cabeça e acabou por vomitar em cima dela.

Em seguida, exigiu que levassem "aquilo" e entregassem a quem o havia solicitado.

O capitão da guarda obedeceu. Pegou a bandeja do chão e a trans­portou para o triclínio de Herodíade. Depositou-a no piso, deu um passo para trás e aguardou.

Salomé, reclinada ao lado da mãe, olhou a cabeça e o pênis com frieza.

Foi tudo muito rápido e desagradável, mas entendo que devo contar.

Herodíade olhou a cabeça em silêncio. Ela fez isso durante 10 ou 15 segundos. Depois se levantou, caminhou até a bandeja e se colocou bem em cima dela. Recolheu ligeiramente a túnica transparente de linho, agachou-se e urinou sobre os restos de Yehohanan.

Antipas aplaudiu.

Os convidados, temerosos, aplaudiram também. Foi a ovação mais vergonhosa que já cheguei a ouvir.

Ela urinou por bastante tempo...

Senti algo estranho dentro de mim, como se alguma coisa tivesse se quebrado por dentro...

Terminada a humilhação, Herodíade disse aos servos que recolhes­sem a bandeja e que a seguissem.

Os convidados se levantaram, preparados para um novo ultraje.

A mulher caminhou até o poço das "meninas" e ordenou que o abrissem.

Dois dos soldados se apressaram para fazer sua vontade.

Eles destaparam o poço e Herodíade fez um sinal.

O escravo que estava segurando a bandeja despejou o conteúdo den­tro do poço.

Aquela dor, na boca do estômago, ficou insuportável...

Herodíade olhou para dentro do poço das aranhas.

Eu também fiz a mesma coisa.

A cabeça do Anunciador rolou até o terceiro quadrante, aquele das "viúvas-negras".

Ele mantinha os olhos abertos. O pênis havia desaparecido.

Eu nunca vou me esquecer daquele olhar, e suponho que Herodíade também não. Parecia gritar: "Tudo é mentira!"

Herodíade cuspiu e clamou:

O vento ardente de Yaveh levará a todos... Começando por ti!

Essa era uma frase de Isaías. Yehohanan a utilizava contra Antipas e contra ela. Herodíade se lembrou dela e acrescentou:

Haraim (excremento humano).

Esse era um dos insultos favoritos do Batista.

Ela cuspiu uma segunda vez e gritou:

- Em nome da dusara!

A esposa de Antipas estava familiarizada com os epítetos cortantes que o Anunciador lhe havia dedicado.

Esta era sua vingança.

O poço foi fechado e Herodíade regressou triunfante ao seu triclínio.

Não me despedi de ninguém. Não disse nada...

Abandonei aquele lugar de sangue e de pesadelos e me refugiei na esplanada, em frente à ponte levadiça.

A dor havia me derrubado.

Ali estavam esperando, pacientes, muitos dos sais que haviam trazido os convidados até Maqueronte. Cochilavam ou conversavam entre os carros.

Nenhum deles olhou para mim.

Faltava pouco para o ocaso.

Busquei refúgio entre as redas e, às escondidas, vomitei violentamente.

Tentei me recompor.

Aquela dor...

O que havia acontecido?

Estávamos no sábado, 10 de janeiro do ano 28 de nossa era.

Herodes Antipas, o chacal, tetrarca da Pereia e da Galileia, acaba­va de executar João, o Batista (Yehohanan), chamado erroneamente de Anunciador de Jesus de Nazaré. Nakebos, capitão da guarda, cortou-lhe o pênis previamente. Um dos guardas, sendo três da tarde, o atravessou com sua espada de lado a lado. Depois de várias tentativas, eles o decapitaram.

Em seguida...

Fechei os olhos e tentei colocar os pensamentos em ordem.

O que tudo isso que eu vi e ouvi tinha a ver com aquilo que foi nar­rado pelos evangelistas?

Mateus não acertou uma. Marcos copiou Mateus e também não acertou. Lucas não fala da morte do Batista, e João, mais esperto, não diz uma única palavra sobre o destino de Yehohanan...

Vejamos alguns erros:

Não foi no aniversário de Antipas.

O tetrarca nunca ofereceu metade de seu reino. A razão é simples: ele não podia dar aquilo que não era seu. Roma era a proprietária dos territó­rios que eram "governados" pelo chacal.

E ele tampouco ficou entristecido com o pedido da cabeça de Yeho­hanan. Antipas odiava o Batista...

A cabeça com o pênis enfiado na boca (detalhe que foi esquecido pelos "escritores sagrados") foi posta aos pés de Herodíade, e não de sua filha.

E quanto ao corpo, conhecendo a crueldade de Antipas, ninguém se atreveu a reclamá-lo. Algum tempo depois tive conhecimento daquilo que aconteceu com os restos mortais do Anunciador. As ratazanas o devoraram. Aquilo que sobrou foi retalhado e queimado. Nenhum discípulo se apre­sentou à frente de Antipas. Teria sido um suicídio. O tetrarca não esquecia.

No máximo, os evangelistas ouviram o soar dos sinos... Isso foi tudo.

A narração da morte de Yehohanan foi outro desastre.

Pouco a pouco, aquela dor pungente foi se reduzindo.

De início, eu atribuí ao estresse das últimas horas.

Sim e não.

O Destino continuava avisando.

E agora, o que eu devia fazer?

Pensei em voltar à torre da "Verdes".

De fato, eu não havia perguntado a Nakebos sobre o paradeiro do Mestre.

Abri os olhos, perplexo. Como pude ser tão descuidado?

Eu teria que voltar ao átrio e perguntar ao capitão da guarda, Não poderia voltar à torre sem essa informação.

E eu estava nisso, disposto a entrar mais uma vez no palácio-fortaleza, quando testemunhei aquele estranho fenômeno.

Talvez estivéssemos na décima hora (quatro da tarde).

No céu, azul e sereno, apareceu um arco-íris. Tinha os pés nas mar­gens do mar de Sal.

Não era possível...

As condições meteorológicas não eram adequadas. Não havia nu­vens. Não estava chovendo em parte alguma e, de fato...

Mas o arco-íris evoluiu gradualmente e eu o vi transformar-se em um arco branco e denso.

Sentei-me, perplexo. Nunca tinha visto algo semelhante.

E sob o arco branco surgiu uma parede de nevoeiro.

Outros sais também viram o fenômeno e comentaram entre si. Isso me tranquilizou, porque não era o único que estava vendo...

Aquela névoa se levantou e escalou as colinas que nos rodeavam. Maqueronte também foi encoberta. E, em questão de minutos, o nevoeiro e o silêncio se apoderaram do local.

Todos estavam impressionados... O que era aquilo?

Não se ouvia nada; nem sequer o distante rumor da festa.

Os cavalos e as mulas estavam ficando inquietos. Os sais tiveram que tranquilizá-los.

Eu tive que esperar.

Não era conveniente andar com tal nevoeiro.

Sentei-me ao pé de uma rocha e tentei acalmar minha mente.

Foi assim, acredito, que acabei dormindo. E foi assim, acho, que tive aquele sonho desconcertante...

De dentro da neblina surgiu um velho conhecido.

O sujeito de sorriso encantador!

A túnica não brilhava. A neblina lhe fazia companhia.

Ele se aproximou, decidido, e se ajoelhou ao meu lado.

O sorriso era espetacular. Ele me olhou, compassivo, com aqueles pequenos e vivos olhos azuis, sem fundo, e acabou tomando meu pulso.

- Tu és médico? - perguntei no meio do sonho. (?)

O sorriso se ampliou, mas ele nada disse.

Então, ele me mostrou um cálice de metal, semelhante ao que Jesus possuía. E me convidou a beber.

Tomei o cálice em minhas mãos. O metal estava quente.

Observei o conteúdo.

Era um líquido azul.

Mas de onde ele havia tirado tudo isso?

Ao me ver hesitar, ele moveu a cabeça, incentivando-me a beber.

Foi o que eu fiz. Aquele homem (?) me inspirava confiança.

Era um licor muito doce, semelhante ao suco de abacaxi. Mas isso não podia ser. Não existiam abacaxis naquele lugar, naquele tempo.

Depois de pegar o cálice de volta, ele foi embora, desaparecendo no nevoeiro.

Não me lembro de mais nada...

Não sei o que aconteceu. Não tenho consciência, nem lembrança, de como cheguei à torre das "Verdes".

Raisos, Tarpelay e as mulheres me recolheram na porta.

Já estava escuro.

Eles acreditavam que eu havia descido pelo perigoso wadi Zarad, o das víboras. Tarpelay me repreendeu.

Mas não soube explicar.

Segundo Raisos, eu me queixava de uma intensa dor no ventre.

Não conseguia dar nem um passo...

Eles me recostaram e dormi até bem tarde do dia seguinte, domingo, 11 de janeiro.

Ao despertar, eu me sentia quase bem.

Conseguia me recordar do "sonho", com a aparição daquele persona­gem de sorriso encantador e do líquido azul, mas aí tudo terminava.

Tar falou de Yehohanan. A notícia de sua morte corria por toda a região.

Não contei nada sobre aquilo que vivi em Maqueronte.

Raisos, o conseguidor, nos deu uma notícia: Jesus e seus discípulos se encontravam no meandro Ômega, perto da cidade de Pella. Acabavam de chegar. Vinham da Decápolis e continuavam fugindo. O Grande Sinédrio tinha jurado vingança. Capturariam o Mestre fosse onde fosse, custasse o que custasse...

Raisos não dava um asse pela cabeça do Galileu.

E comentou: "Temos que ver os olhos da noiva para saber se está chorando..."

De repente, fiquei com pressa.

Jesus estava no rio Artal. Eu teria que ir ao seu encontro e suplicar que fizesse algo por Eliseu. Não havia tempo a perder.

Tarpelay logo organizou tudo e, na manhã de segunda-feira, 12, nos despedíamos de novo das pessoas da torre. Raisos gritou: "A pressa te ras­gará a túnica e o coração..."

Ignorei seu comentário e galopamos até Ômega.

Pouco antes do crepúsculo entramos no bosque dos lenços. Ali esta­vam o Mestre e as pessoas.

Fazia dois meses e meio que não O via.

Eu o encontrei mais magro e desgastado.

Os cabelos grisalhos continuavam conquistando aquela cabeleira cor de caramelo.

Eles sabiam da execução do Batista.

Todos se alegraram ao nos ver. Tarpelay era como se fosse da família.

Judas Iscariotes se mantinha afastado. Imaginei o motivo.

Nunca perdoou o Filho do Homem por não ter feito nada por Yehohanan. Por sorte, ninguém em Ômega conhecia os detalhes de sua morte horrível.

Limitei-me a guardar silêncio e observar.

E, de repente, quando eu ajudava o sais a descarregar a reda, o Ga­lileu veio ao meu encontro. Ele me segurou pelos braços e me levou para longe dos íntimos. E ali, entre as corpulentas davidia, olhou-me nos olhos e pronunciou uma frase:

O mal de teu irmão não é de morte...

Sorriu e proclamou:

Confia!

Isso foi tudo. O mestre salvou-me do trabalho de implorar, mas, sin­ceramente, não consegui compreender. Como se podia dizer algo assim? Eliseu agonizava. Seus problemas não tinham solução, ele estava conde­nado à morte. Talvez já estivesse morto, a essa altura.

André e o resto das pessoas me atualizaram sobre tudo, mas quase não prestei atenção.

Meu pensamento estava em outra parte, na insula da "Gata", em Nahum, junto ao engenheiro e a Kesil.

Eles falaram sobre o que já sabia, acho. Relataram sobre suas an­danças por Decápolis, as fugas permanentes, os receios, as chegadas dos mensageiros com notícias do Sinédrio e das famílias... Não pregaram em público. Jesus se limitou a passar os ensinamentos em particular.

E assisti a intermináveis discussões sobre a maldade do Sinédrio...

Nada de novo.

Nessa noite, depois do jantar, o Mestre se dirigiu aos íntimos e anunciou:

Yehohanan está morto... Não esperaremos mais.

Os discípulos ficaram surpresos.

E Jesus proclamou com força e segurança:

A hora chegou! Anunciaremos o reino abertamente! Preparai tudo. Amanhã regressaremos ao yam...

A maioria ficou contente. Outros demonstraram dúvidas. O que sig­nificava isso de "anunciarem o reino abertamente"?

Aquele era o pior dos momentos. Herodes Antipas tinha ficado mais forte com a execução do Batista. As castas sacerdotais os perseguiam como vingança. Se aparecessem na Galileia, ou em Jerusalém, seriam capturados...

Jesus nada disse, e se retirou para descansar. E ali ficaram seus ho­mens, perdidos novamente na perplexidade.

Na terça-feira, 13 de janeiro (ano 28 de nossa era), ao amanhecer, o grupo se pôs em marcha.

Pensei ter entendido. Jesus foi fiel à decisão adotada nas colinas de Beit Ids: esperaria que se cumprisse o Destino de Yehohanan.

Agora, tudo era diferente...

Começava uma nova era para o Homem-Deus. Começava a verda­deira vida de pregação...

E uma idéia ficou flutuando em minha mente: as duras críticas do Batista a Herodes Antipas, e também a Herodíade, teriam sido intencio­nais? Teria Yehohanan planejado sua morte?

 

No caminho de volta ao mar de Tiberíades, eu me mantive sempre no final da expedição.

Foi, sem dúvida, a viagem mais "longa" das que me recordo...

Não desejava voltar. Não queria me reencontrar com aquele Eliseu agonizante, quase morto.

Não entendia, como disse, a atitude do Mestre.

Foi uma caminhada angustiante.

Alguma coisa estava me puxando em direção ao lago. Algo, no mais profundo de meu ser, me dizia para confiar. Mas, ao mesmo tempo, eu não queria regressar...

O instinto (?) sussurrava palavras que eu não aceitava.

Alguma coisa estava acontecendo. Algo muito assustador...

Eu me lembro de não ter falado com praticamente ninguém.

Chegamos antes do ocaso.

Em Saidan tudo transcorria como sempre: sem transcorrer...

No caminho, tomei uma decisão. Se os Zebedeu autorizassem, eu trans­feriria o engenheiro para o casarão. Parecia-me um lugar mais tranquilo. Se Eliseu tivesse que nos deixar, que o fizesse longe da agitação de Nahum.

Negociei com Salomé, e com o Zebedeu pai, e eles aceitaram.

Propus-me a pagar pela estada de meu companheiro e de Kesil, mas eles rejeitaram a sugestão.

E naquela mesma noite, com a ajuda de Tar e de Kesil, Eliseu foi transferido para o pombal.

Eu o encontrei consumido, quase sem pulso. Continuava em estado de coma. A respiração era agitada. A vida estava se extinguindo. Deduzi que faltava pouco. Talvez horas.

E me perguntei, uma vez mais: o que o Destino nos reservava?

Quem isto escreve não havia sido capaz de obter a contra-senha para ativar o "berço". Estávamos enterrados naquele agora! A menos que acon­tecesse um milagre (!), não regressaríamos.

Abril se entregou aos cuidados de meu amigo. Que criatura incrível!

Jesus sabia da presença de Eliseu no casarão, mas, inexplicavelmente, não aceitou ver o engenheiro.

Fiquei perplexo e magoado. Muito magoado...

O obtuso fui eu, na verdade. Ele sabia.

E chegou a quarta-feira, 14 de janeiro. Outra jornada singular.

Lembro que o "terremoto" começou por volta da sexta hora (meio-dia).

De repente, ouvimos vozes.

Deixei Eliseu aos cuidados de Kesil e desci até a "terceira casa".

Pedro discutia com Salomé e com as filhas.

O discípulo falava de Amata, sua sogra. Entendi que ela estava morrendo.

Salomé conhecia a personalidade de Simão Pedro - fantasioso, exa­gerado e volúvel - e não lhe deu demasiada atenção.

Jesus estava presente, escutando.

Pedro, ofegante e suado, tentava mostrar que não estava mentindo.

E nisso irrompeu no casarão a esposa do discípulo, Perpétua.

Chegou chorando e confirmou as palavras do marido.

Todos correram até a casa de Pedro, nos arredores de Saidan. Jesus foi com eles.

Quem isto escreve seguiu atrás, intrigado.

E pensei: "Era o que faltava!"

Na humilde casa se reuniu metade da cidade. Em um lugar como Sai­dan, as notícias voavam. Pedro era querido na aldeia, mas Amata, a sogra, e Perpétua, a esposa, eram muito mais que ele.

Pedro pediu licença e os vizinhos se afastaram, permitindo a passa­gem do Galileu.

A sogra estava no piso superior.

O Filho do Homem subiu os degraus de pedra que ligavam os dois andares e se ajoelhou ao lado de Amata.

As pessoas murmuravam:

- É o profeta de Nahum...

Cheguei até as escadas.

A sogra estava estendida sobre uma esteira de palha e coberta com algumas mantas.

Tremia.

Supus que tivesse febre.

Amata, como já disse, era uma "anciã" de 45 anos de idade.

Tinha o cabelo branco, a pele branca e delicada como de um bebê e um sorriso indescritível. Era só bondade e silêncio. Dificilmente falava. Só sabia trabalhar e obedecer.

Padecia de surdez, mas havia aprendido a ler os lábios.

Os olhos claros eram muito bonitos...

O peso da casa, e a educação dos três filhos de Pedro, tudo corria por sua conta, com a ajuda de Perpétua, sua filha.

Era uma mulher que não contava para ninguém, mas, no fim das contas, era imprescindível.

O Mestre pegou as mãos de Amata, acariciou-as e lhe dedicou pala­vras de consolo.

A sogra de Pedro não reagiu, e o pouco que respondeu foi de manei­ra distante.

Parecia esgotada.

A primeira vista, não sabia o que estava acontecendo com ela.

"Está morta... O profeta a curará... Já é tarde... Amata merece uma cura..."

Felipe, o intendente, chegou apressadamente. Vivia bem próximo dali.

Ordenou a Perpétua que esvaziasse a casa. Tanta gente, em um lugar tão exíguo, não era saudável...

Pedro ajudou sua mulher e, pouco a pouco e entre protestos, a mul­tidão foi se retirando.

Felipe se posicionou junto ao Galileu e começou a colocar panos mo­lhados em água sobre a testa da anciã.

Assim ele permaneceu um bom tempo.

Todos o agradecemos em silêncio.

Finalmente o Filho do Homem se levantou e caminhou em direção aos degraus.

Ao passar do meu lado, me olhou intensamente e sussurrou:

Também não é uma enfermidade de morte...

Deu-me uma piscadela olho no olho e se distanciou, saindo da casa.

Eu não sabia se caminhava atrás Dele ou se permanecia na casa.

A curiosidade foi mais forte e subi ao piso superior. Aproximei-me de Felipe e tentei averiguar a que se devia tanto alarme.

Felipe resumiu tudo, e acertadamente:

Febres malignas... Não é a primeira vez.

Eu a examinei, muito por alto, e cheguei à conclusão de que Amata se achava em plena crise de malária.

A febre era alta. Rondava em torno de 40 graus. Seu corpo era puro fluxo de arrepios e tremores...

Pensei em uma infecção por Plasmodium falciparum, um dos para­sitas mais comuns. Naquele tempo causava milhares de mortes (especial­mente entre as crianças).[99]

Os judeus sabiam que a enfermidade era provocada pelos mosqui­tos. Acreditavam que os espíritos imundos eram enviados por Yaveh e inoculados em cada picada. Quanto mais pecados, mais possibilidades de contrair a malária.

Para combatê-la, faziam uso de uma invenção egípcia, mencionada por Heródoto cinco séculos antes. Besuntavam as redes com óleo de peixe (ou com algo menos poético) e se cobriam com elas. Assim caminha­vam, trabalhavam ou dormiam. Assim nasceram os primeiros repelen­tes da história.

Não pensei que a gravidade fosse tão extrema como proclamava Pedro. Não detectei convulsões nem tampouco sintomas de anemia. Tratava-se ali de uma crise. Convinha ficar atento, mas não acreditei que Amata se achasse nas últimas...

Pensei em ministrar-lhe cloroquina ou, talvez, uma dose de sulfadoxina-pirimetamina (um antibiótico que impede a síntese do ácido fólico por parte do falciparum)

Afastei a idéia.

Não estava autorizado a fazer algo assim...

Foi Felipe quem remediou o problema, em parte.

Preparou uma infusão e lhe deu para beber.

Era outro de seus "remédios", que aprendera com os sábios da sua querida China: essência de artemísia, uma planta medicinal utilizada como antitérmico.

Ao consultar "Papai Noel", comprovei que uma das variedades - cha­mada annua -, com altas proporções de tuiona e cineol, dava resultados positivos na hora de repelir os parasitas da malária.

Felipe havia colhido a artemísia entre julho e setembro (como a sabedo­ria chinesa ordenava) e deixara secar as folhas à sombra, com o calor natural.

Aos poucos, a artemísia surtiu efeito e a febre cedeu.

A mulher se estabilizou e dormiu.

Não havia muito mais o que fazer na casa de Pedro e regressei para junto de Eliseu.

O discípulo e Perpétua, a esposa, seguiam as evoluções de Felipe e o faziam de um canto da casa, chorando a cântaros.

Entendo que Pedro foi sincero. Pensou que a sogra estivesse morrendo.

Instalei-me de novo no pombal e me debrucei à janela.

Jesus passeava pela margem do yam. Fazia sua caminhada de manei­ra solitária. Zal corria a seu lado.

E disse a mim mesmo: "Que estranha criatura! Por que não curou Ruth? É sua irmã... Por que não se preocupou com Eliseu?"

Regressei para o lado do engenheiro.

Peguei sua mão. A pulsação continuava debilitada.

Aquela respiração, pela boca, tão intensa, me mantinha obcecado.

Examinei as pupilas.

Passeei a lanterna em frente aos seus olhos e a luz o feriu. Não havia midríase (dilatação anormal das pupilas).

Então percebi como a mão esquerda do engenheiro apertava. Foi por um instante.

Fiquei perplexo.

Eliseu tentava se comunicar...

Mas a mão ficou morta. Não houve mais movimentos.

E uma lágrima solitária surgiu pelo olho direito de meu amigo. Bri­lhou por um momento e se deixou cair pelo rosto.

Mensagem recebida.

Senti como se a tristeza estivesse me afogando.

E o sol, igualmente esgotado, se ocultou pela região do Migdal.

Nesse dia, o ocaso se registrou às 16 horas e 53 minutos.

Decidi descer e mudar de pensamentos, espairecer.

Pois bem, nesse instante, quando acabava de entrar na "terceira casa", Pedro irrompeu de novo no casarão. Melhor dizendo, não foi o discípulo que entrou: foi um torvelinho. Pedro pulava, gritava, chorava, abraçava todo mundo...

Salomé tratou de interrogá-lo.

O que foi?

O discípulo era incapaz de articular uma só palavra.

Abril e eu nos olhamos. Ninguém sabia de nada...

Salomé acabou segurando Pedro pelos ombros com força.

O que houve?

Um milagre!

Que milagre?

Pedro continuava chorando. Estava pálido.

Que milagre? - insistiu a mulher.

Ele o fez! - balbuciou o discípulo e indicou a sua casa. - O Mestre o fez!

O que Ele fez?

Um milagre!

Maldição! - replicou Salomé, exasperada. - Fala com mais clareza!

Pedro engoliu a saliva, nos olhou com os olhos espantados e procla­mou entre lágrimas:

Ele o fez! Ele curou a minha sogra! Ela está viva!

Mas o que dizes?

Pedro se deixou cair sobre o pavimento e continuou com as lágrimas...

Voltamos correndo para a casa do discípulo.

A casa se encontrava praticamente vazia.

Perpétua e Felipe cuidavam de Amata. A anciã se encontrava sentada nos degraus de acesso ao piso superior.

Fiquei desconcertado.

Aproximei-me e a mulher sorriu. Bebia em uma tigela de madeira. Era sopa quente.

Perguntei a Felipe e este negou com a cabeça. Ali não ocorrera ne­nhum milagre. A febre desapareceu, mas provavelmente estava obedecen­do à ação da artemísia. A mulher continuava debilitada.

Acreditei ter entendido.

A crise tinha altos e baixos...

Pedro confundiu a melhoria com algum prodígio do rabi.

Perpétua, mais sensata, compartilhava da mesma opinião de Felipe. Convinha esperar.

E nisso vimos Pedro entrar.

Ele continuava com suas próprias convicções. Dançava, gritava, pro­clamava que havia sido um milagre, abraçava todo mundo, chorava...

André tentou acalmá-lo.

Foi inútil.

Milagre! Aconteceu um milagre! - clamava com ímpeto. - Depois de Caná, Amata!

E saiu da casa, soltando aos quatro ventos o suposto milagre.

A vizinhança não demorou em ingressar de novo na casa. Contem­plava a sogra, que estava aprazivelmente sentada na escadaria, e se retira­va contagiada pela euforia de Pedro. A aldeia se converteu em um manicômio. Todo mundo corria, entrava e saía das casas e gritava anunciando o milagre do construtor de barcos de Nahum.

Felipe e quem isto escreve não fizemos comentário algum. Ninguém prestaria atenção.

Permaneci na casa durante horas.

E às 12 horas da noite, passado então o efeito da artemísia, Amata caiu em outra crise de tremores. A febre se apresentou, intensa, e a anciã ficou sem controle e enfraquecida.

Como foi falado: não houve nenhum milagre (pelo menos nesse momento).

Na realidade, não há dúvida, mesmo acontecendo sua recaída, o "milagre" não se instalou efetivamente; e mesmo que houvesse a tenta­tiva de replicar, não foi possível. Mas o boato continuou circulando e... a que velocidade!

No dia seguinte, quinta-feira, 15 de janeiro, os rumores dispararam. Foi a fofoca do yam. Todo mundo falava, sabia ou esteve ali, na casa de Pedro, o pescador. Todo mundo assegurava que Amata fora "resgatada das trevas pelo construtor de barcos". Alguns inclusive mencionaram a palavra "ressurreição" (!).

Apesar da experiência, este explorador não saía da perplexidade.

E o povo começou a chegar a Saidan.

Naturalmente, a sogra de Pedro não melhorou, ou sua melhora acon­tecia de tempos em tempos, dependendo do tratamento de Felipe.

Pedro, envergonhado, se retirou do meio. Desculpou-se e se dedicou à pesca, solitariamente. Não voltei a vê-lo...

E ri comigo mesmo, discretamente.

Três dos quatro evangelistas fazem menção à "cura da sogra de Pedro". Pois bem, mentiram ou foram cruelmente enganados. Jesus certa­mente tocou a mão de Amata, mas a febre não deixou a anciã. E tampouco é verdade que uma vez curada "se pôs a servir-lhe". O Mestre permaneceu pouco tempo na casa e não regressou depois.

Tampouco é verdade que o Galileu pegou a enferma pela mão e a levantou.

Lucas, por sua vez, se refugia na fantasia e escreve que Jesus "repreen­deu a febre e a febre a deixou".

É provável, como já mencionei anteriormente, que tanto Marcos (en­tão uma criança) como Lucas (que nem sequer conheceu o Mestre) se tenham deixado influenciar pelas narrações de Pedro. Mais adiante ficará demonstrada a credulidade do discípulo e genro de Amata...

Já a respeito de Mateus, não sei o que pensar. Ele soube da verdadeira história de Amata. Escreveu o que escreveu por respeito a Pedro? O texto foi modificado com o passar do tempo?

Seja como for, o certo é que o incidente com a sogra de Pedro - quem o teria imaginado - terminaria desembocando em um fato extraordinário e único na história da humanidade.

Porém, eu devo respeitar a ordem dos acontecimentos. Quando aprenderei?

Na sexta-feira, dia 16, Amata piorou. A febre a consumia.

Felipe lutou o quanto pôde. Providenciou novas doses de artemísia e a malária retrocedeu. Porém, aos poucos, naturalmente, o mal voltava a apoderar-se da anciã.

Nada disso foi levado em conta pelas centenas de curiosos e de enfer­mos que continuavam chegando à aldeia.

Era a segunda vez que Saidan acabava por ficar tomada - literalmen­te - por pessoas de todos os tipos e condições.

Acampavam nas ruas, na praia, junto à fonte, nos terraços, nos pá­tios, no caminho que conduzia a Nahum e a Kursi, nos jardins e nas mar­gens do rio Zají.

Estavam em todas as partes.

E, como sempre, junto com os enfermos de verdade, junto daquela gente necessitada de consolo e de um pouco de paz, surgiram falsos coxos, falsos cegos, falsos leprosos, vendedores, vigaristas, pedintes, vagabundos de sempre e trapaceiros.

Percorri a aldeia, assombrado.

Muitos se acocoravam em frente à porta principal do casarão dos Zebedeu. Ali permaneciam dia e noite, como na vez anterior, suplicando e esticando os braços ao primeiro que encontrassem e coincidisse de entrar ou sair da casa. Imploravam o nome do Mestre. Solicitavam o perdão dos pecados e a cura de seu corpos.

Entre enfermos de verdade, familiares e amigos que os acompanha­vam, maliciosos, curiosos e desocupados, somei ao redor de 2 mil pessoas.

Jesus, inteligentemente, se retirou para as colinas. Ele se foi com Zal. Não quis que ninguém o acompanhasse.

Nessa noite Ele dormiu fora.

E chegou o incrível sábado, 17 de janeiro (ano 28).

O dia amanheceu nublado. Não demoraria a começar a chover.

O instinto me colocou em estado de alerta. Senti aquele fogo interior, que sempre precede as emoções extremas... O que ia acontecer?

Percorri a aldeia, atento.

Continuava chegando gente. Vinham do norte, do sul e inclusive por mar.

Ali se reuniram judeus e gentios, ricos e pobres, escravos e homens li­vres, enfermos e sãos, crédulos e incrédulos, amigos do Mestre e inimigos coléricos, informantes e famílias que desejavam passar um sábado "diferente".

E foi diferente. Eu tinha fé que iria ser diferente!

Na fonte, próximo do caminho que partia em direção sul do yam, des­cobri a família dos Rutal, o barbeiro dos 27 dedos. Estavam todos ali: os pais, Nü (a filha tetraplégica) e Har, o garoto da flauta doce. Ele havia feito outra com junco e tocava sem parar. Nü sorriu para mim e seguiu cantando.

Um pouco mais abaixo, distantes do burburinho, vi também as le­prosas da Fenícia.

Passei um tempinho com elas. Estavam ali, como sempre, atentas e esperançosas em relação ao Filho do Homem. Se Ele as olhasse, se chegas­se a tocá-las, elas se curariam. Isso é o que elas diziam...

Surpresa!

Em uma das ruas tropecei com a família de Hbal, o arab que vivia na granja dos porcos, ao norte de Hipos, na costa oriental do lago. A notícia da suposta cura milagrosa de Amata chegou também aos ouvidos de Nsura, e alguém propôs transportar o ancião, enfermo de Alzheimer, até Saidan.

Fiquei desconcertado.

O pobre Hbal aparecia ali preso com uma corda. Um dos filhos o obri­gava a permanecer sentado. Para eles, como disse, era alguém com o demô­nio no corpo.

Acabava sendo difícil de avaliar o número de entrevados, cegos, do­entes de todo tipo. Eram centenas...

Na aldeia, como eu digo, era um lamento.

E ao caminhar para o norte, a fim de visitar a anciã Amata, recebi outra agradável surpresa.

Não podia acreditar...

Assi, o essênio, responsável pelo kan localizado no lago Hule, na alta Galileia, se encontrava acampado fora de Saidan, perto das casas de Felipe e de Pedro.

Abraçamo-nos.

Também ouvira maravilhas sobre Jesus e sobre a incrível cura da so­gra do discípulo.

"Algo" que não soube explicar o havia colocado em movimento. Reu­niu a totalidade dos enfermos do kan (nesse momento mais de 60) e ca­minhou até o yam. Este explorador se lembrava de muitos deles.

Ali eu encontrei Denário, o menino surdo-mudo, afilhado de Assi, de tão gratificantes recordações. Nessa época teria 10 ou 11 anos. Os olhos verdes do ruivo mantinham a vivacidade de outrora. O pequeno mamzer se lembrava de mim com perfeição. E, por sinal, se interessou por Eliseu...[100]

Mudei de "conversa".

Cumprimentei também a Hasok (Trevas), o homem de confiança de Assi. Continuava silencioso, com aquela longa túnica vermelha até os pés e com a cabeça sempre coberta. Não mostrava o rosto e tampouco as mãos, devido à hipertricose lanuginosa congênita (abundância de pelo duro e grosso) que o cobria e que lhe trazia um aspecto terrível. Para os estranhos era um "sanguinário lobisomem".

Hasok continuava ocupando-se de tudo e de todos.

Quem não consegui encontrar foi Aru, o negro tatuado que, na minha opinião, acabou misteriosamente curado pelo Filho do Homem no dia 17 de setembro do ano 25, quando descemos do monte Hermon e nos deti­vemos no citado kan de Assi. Aquele rapaz, como já expliquei, sofria de uma doença mental que, em nosso tempo, recebe o nome de amok (em malaio: "lançar-se furiosamente à batalha"). Era um homem agressivo que, até aquela ocasião, havia permanecido acorrentado a um dos casebres do kan.

Conversei com Assi, o "auxiliador", durante boa parte da manhã.

Recordamos os velhos tempos.

Interessou-se pelo Mestre e lhe contei quanto esteve em minha mão e quanto estimei oportuno.

Assi não o compreendia, mas sentia um enorme apreço pelo Galileu.

O médico essênio, sempre de branco imaculado, sempre humilde e bondoso, estava ali porque desejava beneficiar a sua gente. E fez as coisas conforme suas convicções.

Assi me causou uma excelente impressão, desde a primeira vez que eu o vi.

Regressei ao casarão quando era a nona hora (três da tarde).

Os discípulos - com exceção de Pedro e Mateus Levi - se achavam reunidos na sala de jantar ("terceira casa").

Discutiam de forma agitada.

Estive a ponto de passar longe. Sentia-me cansado de tanta disputa...

Mas permaneci na porta, ouvindo.

O tema de suma importância era o gentio que esperava na aldeia.

"Que deviam fazer?"

João Zebedeu, o Zelote e o Iscariotes argumentavam que a situação os beneficiava. Se o Mestre operasse um prodígio e curasse tanta gente, o Sinédrio seria vencido e não teria outra saída senão reconsiderar a ordem de busca e captura.

"E Jesus será proclamado rei..."

André, o "urso" de Caná e Tomé se mostravam céticos.

E foi a vez de Tiago Zebedeu. Falou pouco, como sempre, mas o fez com sensatez: "Passe o que passe, aconteça o que acontecer, as castas sa­cerdotais alimentarão o ódio contra o rabi..."

Definitivamente, era mais lenha na fogueira.

Palavras proféticas, na minha opinião.

Os gêmeos olhavam, em silêncio, mas não entendiam bem.

Felipe, por sua vez, estava com a cabeça em outro lugar: "Se o Mestre decidisse - comentou - se o rabi quisesse que aquelas centenas de foras­teiros fossem alimentadas, de onde tirariam o dinheiro para a comida?"

João fez um gesto depreciativo e o resto do grupo seguiu com o as­sunto da cura:

"Tinham que convencer o Filho do Homem a curar a multidão..."

"Não, isso seria o nosso fim..."

"O ideal é fugir de novo... O Sinédrio nos localizará e será a nossa total ruína."

"Esperemos o rabi..."

Finalmente se deram conta de algo que consideraram muito grave: o Mestre se achava, solitário, em alguma das colinas que rodeavam a aldeia. Por que tinham consentido aquilo? Era perigoso...

E se enroscaram em outra polêmica.

A culpa, enfim, recaiu sobre Pedro e em seu "deslize".

A tabbah, a guarda pessoal que foi designada ao Mestre (Pedro e os irmãos Zebedeu), não funcionou nessa ocasião por causa da ausência de Simão Pedro. A dita ausência, como disse, foi provocada pelo erro de Pe­dro a respeito da cura milagrosa de sua sogra.

Os discípulos esqueciam-se de algo importante: Jesus deixou claro que não desejava companhia. "Tinha que conversar com Abba a sós..."

A disputa derivou até chegar ao insulto pessoal. Chamaram Pedro de tudo. André permaneceu em silêncio. Seus companheiros tinham razão. Pedro era um bocudo...

E, de repente, suponho que irritados, os gêmeos se levantaram e sus­surraram algo ao ouvido de André, o chefe. Este assentiu com a cabeça. O "urso" se colocou em pé também e foi atrás dos passos dos Alfeu.

André explicou que desejavam sair para pescar.

Pareceu ser uma boa idéia e me uni a eles.

Mas, antes, dei uma corrida até o pombal e informei Kesil.

Abril estava sentada na beira da cama, junto ao engenheiro.

Aproximei-me de Eliseu e notei algo estranho.

A respiração - antes agitadíssima - estava mais calma e ritmada.

Examinei as pupilas.

Estavam dilatadas...

Não gostei daquilo.

A midríase (dilatação das pupilas) podia ser um sinal ou o princípio de morte cerebral. O estado de coma se esgotava...

E percebi a morte, sentada também no leito, afilando o nariz de Eliseu.

O fim estava muito próximo.

Que fazer? Ficava no quarto ou me ausentava por um tempo?

Hesitei.

Abril me observava em silêncio. O doce castanho de seus profundos e carinhosos olhos falavam sem falar. Foi nesse momento que soube que ela me amava...

Não sei se fiz bem. Eliseu estava morrendo. Tudo parecia indicar que não passaria daquela noite e, sem dúvida, o Destino escolheu por mim. Ou fui eu quem escolhera? Quem sabe...

A questão é que eu saí para pescar.

Kesil me animou. Ninguém podia fazer nada por Eliseu. Isso era certo.

A sorte estava lançada...

E na décima hora (quatro da tarde), com o céu tempestuoso, eu em­barquei com Tomé, o "urso" e os gêmeos de Alfeu em um dos barcos dos Zebedeu.

Tinha o nome de Lebab ("Coração"). Eu nunca esquecerei.

Era uma embarcação velhíssima, mas ajustada. Eles a haviam pintado de branco e vermelho, com a borda e o convés em azul-claro, bem chamativo. Não tinha mastro. Era mais do que isso para essas frivolidades. O porão do barco sempre se enchia na água. Era outro de seus ataques.

E Coração saiu de Saidan, para minha desgraça...

Minha desgraça?

Agora já não estou tão certo disso...

Navegamos durante uma hora até um lugar da Betijá que chamavam de "rochedo de Lucas". Senti estranheza com o nome: ali não havia uma só rocha.

Fiz os cálculos e tomei notas.

Quando os gêmeos ancoraram o barco, nós nos encontrávamos a duas milhas a oeste de Saidan e a outras tantas, mais ou menos, de Nahum.

Eles prepararam os equipamentos de pesca e quem isto escreve, não desejando incomodar, me dediquei com afã a diminuir a água que inun­dava o porão.

Busquei o sol.

Ele se apagava, sem querer, entre as nuvens densas que denotavam chuva.

Ao retornar ao Ravid, verifiquei que, nesse sábado, o ocaso solar se registrou às 16 horas, 55 minutos e 58 segundos (TU).

Pois bem, nisso nós estávamos, a ponto de iniciar a labuta, quando Tiago de Alfeu pediu atenção geral. E assinalou o céu na direção norte.

- O que é isso?

Entre as nuvens, sobre o lado vertical de Nahum, havia aparecido uma luz azul-celeste.

Ficamos perplexos.

Não era uma estrela. O sol estava a ponto de fundir-se na costa de Tiberíades. Faltavam segundos.

Era uma luz não muito forte. Aparecia entre as brechas das nuvens. O silêncio se fez.

Ninguém sabia o que era...

Calculei altura e distância. Devia achar-se a uns 500 metros do solo, em plena base da frente nebulosa. Distância? Ao redor de três quilômetros.

Retifiquei.

Não se encontrava sobre Nahum, senão um pouco mais atrás, na di­reção oeste (provavelmente na vertical da colina das Bem-aventuranças).

O que quer que fosse não fazia ruído. E o objeto estacionário era impecável. Não se moveu em nenhum momento.

Como eu digo, era de um azul-claro, metálico, que se destacava entre a massa de nuvens.

Notamos uma ligeira brisa e o lago se eriçou.

Os gêmeos deixaram de olhar o céu e prestaram atenção no vento.

Aquela brisa era rara...

Tomé continuava mudo, com o olho bom fixo na luz, e o outro não se sabe onde.

Bartolomeu rompeu o silêncio e começou a contar uma das suas ha­bituais histórias. Disse ter visto uma dessas "luzes" sobre Caná em não sei qual viagem...

Não teve tempo de terminar.

Quando apenas haviam transcorrido alguns minutos desde a apa­rição da estranha "luz" (?), Judas de Alfeu, o gago, apontou a leste, ao mesmo tempo em que tentava chamar a atenção de seus companheiros:

- O... o... o... o... outra!

De fato.

Sobre Saidan, também oculta debaixo das pesadas nuvens, vimos cla­rear outra "luz" azul, gêmea da anterior. A única diferença é que se situava sobre a aldeia citada...

Tinha vida ou parecia que tinha.

Olhei até o lugar onde o sol deveria se pôr. A julgar pelos vermelhos e laranjas que flutuavam na água, acabava de se ocultar.

E se fez um silêncio estranho e sonoro.

Os cinco ficaram encolhidos e sem fala.

O que era aquilo? O que estava acontecendo?

Então assistimos a outro fenômeno impossível...

Da "luz" parada sobre a colina partiu uma espécie de raio serpentea­do ou relâmpago (?) branco que foi impactar (?) na segunda "luz".

Não se produziu nenhum trovão.

Mas que idiotices eu estou dizendo? Aquele "raio serpenteado" não era tal...

Entre "luz" e "luz" calculei seis quilômetros.

O "urso", aterrorizado, se enfiou no porão. Depois vi aparecerem uns olhos, espantados...

Os gêmeos, com as redes nas mãos, não sabiam o que fazer nem para onde olhar. Estavam perplexos, mas não assustados.

Tomé tinha sentado no convés, e acredito que se deleitava.

Esquecemos a pesca, naturalmente.

Então, após a "pequena serpente", se produziu algo não menos des­concertante e mágico.

De repente, procedentes da "luz" que palpitava (?) sobre Saidan, come­çaram a descer, lentamente, milhões e milhões de pontos luminosos azuis.

O "urso" começou a chorar.

E a "nuvem" azul se precipitou sobre a aldeia e sobre os arredores...

Em questão de segundos, Saidan se tornou azul; um azul-celeste, claríssimo.

Eu já havia visto anteriormente essa luminosidade...

Por quanto tempo se prolongou o fenômeno? Ignoro. Quem sabe um minuto. Talvez três.

E tão subitamente como surgiu, assim se extinguiu.

As "luzes" também se apagaram (?) e a escuridão nos cobriu, enciumada.

E regressaram os sons naturais do lago: os guinchos das gaivotas ao lon­ge, os gritos de outros pescadores longínquos e não tão distantes, referindo-se à "tempestade azul"; o bater da água contra o casco de madeira e a chuva.

As nuvens descarregaram e trataram, inutilmente, de lavar o susto daqueles galileus e de quem isto escreve.

Eu tentava analisar e analisar, mas não conseguia.

Carecia de parâmetros. "Aquilo" (tudo o que foi contemplado) era "impossível"...

A chuva, morna e pertinaz, foi a desculpa perfeita.

Ninguém desejava pescar.

"Aquilo" poderia voltar...

Era melhor regressar ao porto.

O "urso", visivelmente assustado, teve forças e vontade para revolver o assunto que volta e meia ficava em pauta e jogou a culpa em Tomé, o azarado do grupo. O pobre Tomé enfrentou Bartolomeu. E retornamos a Saidan ensopados e em plena discussão.

Intuí algo na viagem de volta.

Aquela luminosidade azul...

Mas fiquei em silêncio.

Saltamos a terra às sete da noite.

Tudo em Saidan parecia tranquilo.

Algumas lamparinas brilhavam, tímidas, nas casas. As pessoas ti­nham fugido da chuva. Muito lógico, eu pensei.

Não, não era tudo normal...

Outros pescadores desembarcaram igualmente na quinta pedra e co­mentaram com os discípulos a estranhíssima "tempestade azul".

Tinham medo, ainda que tentassem ocultá-lo.

E os quatro íntimos se dedicaram a encaixotar as redes e a guardar os equipamentos. Faziam-no em silêncio, sob a chuva e às escuras.

Compreendi. Tratavam de retardar a volta ao casarão dos Zebedeu...

Não lhes faltava razão.

Todos nós sabíamos que algo singular havia acontecido em Saidan no momento do pôr do sol. Porém, como eu digo, tínhamos medo.

Ali eu os deixei, supostamente ocupados.

E caminhei, decidido e ensopado, até as escadarias que conduziam à parte traseira do casarão.

Nem em mil anos teria imaginado o que me aguardava na aldeia...

Cruzei o pátio do fundo e observei luz nos pombais. Jesus se encon­trava em seu quarto.

E cometi dois erros.

O primeiro foi não subir ao meu quarto e comprovar o estado de saúde de Eliseu. Segui adiante.

Segundo e grave erro: cheguei à "terceira casa" e, após deter-me por alguns segundos, prossegui até a porta principal.

Na sala de jantar, os discípulos continuavam engalfinhados nas ha­bituais disputas.

Descobri que Salomé e sua família se achavam também junto aos íntimos, mas não considerei que isso fosse importante.

Escutei por alguns segundos e, como disse, continuei em direção à saída.

Não sou capaz de explicá-lo. Por que cometi aqueles erros? "Algo" se atirou em mim, uma vez mais. Tinha que sair para o exterior... O portão estava trancado. Que estranho! Procurei a porta lateral.

Saidan me recebeu, encolhida e incomodada pela chuva. Nada parecia ter mudado.

Os que estavam acampados nas ruas se protegiam da água como po­diam. Utilizavam casacos, bacias, tendas improvisadas...

Ouvi risos e cânticos, mas não me detive para investigar. Ao dobrar uma das esquinas, quase tropecei num grupo de judeus. Aguentavam, em pé, a forte chuvarada. Tinham as mãos e os rostos eleva­dos em direção à negrura do céu e entoavam a "prece" por excelência: as 19 Semoneh esreh, a oração obrigada todo dia a cada varão mais velho (a partir dos 12 anos e meio).

Era incomum. Por que rezavam sob a chuva? "Deus grande"! Poderoso! Terrível!

Olhei de um lado para o outro, olhei as pessoas e não sei por que fui parar nas proximidades da fonte.

Agora sim eu sei. "Alguém" guiava meus passos, como sempre... A princípio, tudo parecia normal. Melhor dizendo, quase tudo. Foi então, assim que cruzei a pequena ponte que pulava sobre o rio Zají, que se apresentou aquela dor na boca do estômago. Desta vez foi como um golpe de aríete. Dobrou-me, literalmente.

Cravei os joelhos no barro e vomitei sangue. Foi uma hematêmese, na qual, inclusive, percebi coágulos de sangue. Foi a última coisa de que me lembro. Quando abri os olhos era dia. Achava-me junto à fonte. Havia parado de chover. Observei as pessoas ao meu redor. Escutei um som. Era uma flauta... O que havia acontecido?

Alguém colocava panos frios sobre a minha testa. Senti as pontadas de dor no estômago e logo lembrei. Mas...

Estava morto, claro!

Que outra coisa podia pensar ao ver "aquilo"?

Fechei os olhos, angustiado. Morrer é estranho, muito estranho...

Voltei a abrir os olhos e voltei a vê-la.

Meu Deus!

Era ela, mas como era possível?

E cheguei à mesma conclusão: Jasão acabara de falecer!

Engoli saliva.

Nunca imaginei que os mortos chegassem a tragar saliva e que sen­tissem tanto medo.

Arrisquei-me de novo e a contemplei.

Deus bendito!

Não estava equivocado. Era ela!

O céu é tão simples assim? E por que o som da flauta? Eu preferia Beethoven...

Era Nü, a "flor que se debruça na neve", a garota tetraplégica!

Não podia ser...

aparecia ao meu lado, de joelhos, sorridente. Cuidava dos panos frios. Ela os tirava de uma tigela e os depositava, delicadamente, sobre a testa deste explorador..., obviamente morto.

Fechei os olhos pela enésima vez.

E pensei: "Uma tetraplégica não se comporta dessa maneira. Uma tetraplégica é uma paralítica, do pescoço até os pés... E impossível que se ajoelhe e que mova os braços... Sim, eu estou morto!"

E lembrei-me do que havia pensado (em vida) quando a contemplei pela primeira vez: "... lesão transversal aguda na medula espinhal (talvez no nível da C-4), que provocava uma paralisia flácida e perda das sensa­ções e das atividades de reflexo...".

Meu Deus!

Eu tampouco queria morrer...

E ela continuou cantando:

Sou uma peregrina... Nasci próximo do paraíso e a ele regressarei!

Então toquei o barro. Sim, era barro! No céu tinha barro?

Algo não se encaixava.

E levei os dedos à boca.

Era barro!

Nü repreendeu-me em árabe.

O barro não se come...

E chamou seu pai, o velho Rutal.

Abri os olhos novamente e vi o "Polvo" ao lado de sua filha.

Não era possível!

Fechei os olhos e chorei amargamente.

Era verdade. Estava morto!

Aquele que eu via em minha frente não era Rutal. O arab que eu conhecia tinha 27 dedos. Mas este não sofria de polidactilia. Suas mãos eram normais.

Sim, eu estava mortíssimo!

E o "Polvo" perguntou a Nü:

Por que choras?

A menina não respondeu.

Abri os olhos e gritei:

Tu não vês? Estou morto!

Então, aconteceu algo impossível. Algo que só ocorre no além. Ou não?

Fixei a vista uma e duas vezes, e até três.

Rutal olhava para mim, perplexo. E fazia com os dois olhos, e não apenas com um.

Mas...

O "Polvo" era caolho! Ele não tinha o olho esquerdo. Tinha sido va­zado em uma briga...

Olhei pela quarta vez. Sim, o árabe me contemplava com os dois olhos muito abertos, e cheios de assombro.

Pai e filha acabaram rindo alto.

Eles não acreditavam em mim.

Eu estava morto... Ou não?

Nü levantou-se, pegou a tigela com água e correu, ágil, até a fonte. Oh, Deus! O que estava acontecendo?

A menina voltou e continuou a me refrescar.

Foi então que me atrevi a perguntar:

Eu estou morto?

Pai e filha riram novamente.

Levantei-me como pude e vi Har, o irmão da tetraplégica (?). Estava sentado muito perto, e tocava uma flauta com seis orifícios. Ele me olhou e deixou escapar um breve sorriso.

Os mortos ouvem?

E o Destino continuou zombando deste desolado explorador.

Por trás de Har vi chegar um grupo de mulheres. Vestiam-se de ver­melho e cobriam a cabeça.

Eram dez.

Eu as conhecia. E lembrei: eram as leprosas da Fenícia.

Tinha passado horas com elas. Sofriam da lepra branca e da mosaica.

Deus!

Mas onde estava a lepra? As peles estavam brancas, limpas, sem ras­tros dos nódulos, das cicatrizes ou das úlceras. Tampouco vi as mãos em garra, provocadas pela lepra tuberculoide.

A anciã que não tinha os dedos me mostrou ambas as mãos.

Estavam intactas!

Ela as agitou, para que eu as visse, e sorriu feliz.

Um pânico que não sou capaz de entender, e muito menos de expli­car, se apoderou de quem isto escreve. Levantei-me e, sem uma palavra, escapei às pressas.

Eu era um morto muito vivo...

Corri sem rumo, tropeçando aqui e ali. As pessoas não me insul­tavam nem me maldiziam. Todos sorriam. Todos cantavam. Todos estavam chorando e se abraçando. Todos se apressavam em vir me ajudar.

Ouvi palmas e louvores ao Santo...

Mas o que estava acontecendo? Eu tinha enlouquecido?

Então, em uma das quedas, alguém veio depressa para me ajudar. Era um dos filhos de Hbal, o ancião que mal vivia em uma granja de porcos, ao norte de Hipos, na margem oriental do lago.

E o rapaz me conduziu a uma barraca de peles de cabra improvisada. Ali, sorridente, me convidou para descansar.

E o que eu acabei vendo no interior da barraca me deixou ainda mais perplexo.

Hbal comia e conversava com os outros filhos e parentes.

Isso não é possível, pensei.

O ancião, que um dia tinha assumido a família Nsura, padecia do mal de Alzheimer, e a um grau muito severo. Vivia amarrado. Não se lembrava de nada e não reconhecia ninguém. A desorientação espaçotemporal, a incontinência dos esfíncteres, a agressividade permanente, os transtornos de linguagem e os distúrbios motores eram o cotidiano desse infeliz. Jesus o havia tratado com grande ternura.

Pois bem, agora ele conversava com seus filhos, tinha lembrança de tudo e de todos, chamava cada um pelo nome, não apresentava alterações de nenhum tipo e seu rosto refletia serenidade.

Quando perguntei, o filho que me havia auxiliado resumiu:

- Esse homem, Jesus, a quem conhecemos na fazenda de porcos, es­pantou os demônios que o consumiam...

Eu desisti.

Permaneci um tempo junto de Hbal, observando e tentando raciona­lizar a bellinte de Deus.

Eu nunca poderia prová-lo cientificamente. E o que isso importava? Eu estava lá. Eu sei que era verdade.

Como fez isso? Eu não sei. Simplesmente fez...

Como homem da ciência, recebi uma das maiores lições da minha vida.

O método científico é sagrado, mas não tanto...

Na noite anterior, em Saidan, aconteceu algo prodigioso, sobrenatu­ral, não humano, magnífico e benéfico, misterioso e rápido, impossível de ser levado a uma mesa de laboratório.

Esse poder (?) afetou mais de 600 pessoas. Segundo meus próprios cálculos, 683 judeus e não judeus foram curados. Talvez mais...

Não importava o tipo de patologia.

Foram curados, e em segundos, ou em décimos de segundos!

Simples assim.

A pobre e mediana mente humana só é capaz de reconhecer a bellin­te, e não é pouco...

Juro por minha honra que tentei descobrir como, em tão pouco tem­po, alguém foi capaz de regenerar (?) ou substituir (?) (as palavras não me ajudam) uma medula seccionada ou esmagada... com todas as suas conexões e devolver o movimento a uma tetraplégica.

Como reconstituir um olho que não existe? Como tirar do nada co­nes e bastonetes? Como colocar em pé interneurônios e células gangliona­res? Como realizar a maravilha de que tudo isso se relacione e funcione? E, além do mais, sem cicatrizes, impecavelmente...

Houve momentos em que pensei que tivesse ficado louco.

A polidactilia é um problema genético.

Isso significa que "Alguém" (?) modificou a informação genética de Rutal em cem por cento... Em outras palavras, fez uma intervenção (?) ou reestrutu­rou (?) algo como 1013 células (10.000.000.000.000 de células). E em segundos!

É claro que estou falando a partir do único ponto de vista que conhe­ço: o humano. Provavelmente Deus tem outros caminhos...

E o que dizer de uma memória perdida? Como é possível ativá-la? Como recuperar os milhões de lembranças que o Alzheimer devorou?

O exemplo não é de todo ruim: o Alzheimer, entre tantos outros pro­blemas, acaba apagando o "disco rígido" da memória. Começa pelas ima­gens mais recentes e termina com tudo. Em outras palavras: ele destrói a complexa rede neural e seus cem bilhões de conexões. É o hardware que acaba sendo consumido na fogueira do Alzheimer.

Como reconstruir (?) tudo isso? Como devolver o frescor a milhões de neurofilamentos, dendritos e axônios?

Aquela manhã de domingo, 18 de janeiro (ano 28), passará à história como a maior cura de humildade para quem isto escreve.

Somos nada nos joelhos de um Deus...

O restante que foi vivido em Saidan é fácil de imaginar.

A totalidade dos doentes do kan do lago Hule foi também curada.

Os que tinham paralisia cerebral, os doentes mentais, os autistas...

Em todos eles, o cérebro foi recomposto, o sistema nervoso, as lem­branças (inexistentes na maioria dos casos) (!)...

Quando cheguei ao acampamento improvisado, Assi chorava a um canto.

Compreendia menos do que eu...

Hasok, o "homem lobo", aparecia limpo. Havia encontrado um espe­lho de bronze e se olhava constantemente. Mas continuava escondendo o rosto e as mãos sob a túnica vermelha. Ele precisava de tempo, como todos os demais...

Denário ouvia, e tapava os ouvidos com as mãos.

Chorava também, embora eu nunca soubesse o motivo.

Alguém teria que ensiná-lo a falar.

Bom Deus! Como fora possível fazer funcionar o órgão de Corti e as vias neurais? Que extraordinária delicadeza!

E me lembrei daquele estranho sonho que tive na pousada do cruza­mento de Qazrin, aquele do dia 19 de agosto do ano 25...

Deus, ou o seu "povo", fala por meio dos sonhos. Tenho certeza disso.

Terminada a manhã, regressei ao casarão.

E o fiz passando pela casa de Pedro. Amata, a sogra, também tinha sido curada. Agora sim tinha havido um milagre... De Pedro, nenhum traço.

As ruas acabaram se convertendo em uma festa. As pessoas iam e vi­nham. As notícias sobre aquele formidável ato de poder e de misericórdia voaram pelo lago, e para além do yam.

E, em frente ao casarão dos Zebedeu, a ponto de entrar no quartel-general, eu os vi...

Foi a enésima surpresa daquele dia histórico (mas não a última).

Eram eles, não havia dúvida.

Examinei a criança.

Não sabia andar, mas havia superado a paraplegia inferior ou crural que o consumia.

Meu Deus!

Era a família de Nahum que conhecera nos teomin, as fontes gêmeas de Enaván. Como se pode recordar, eles apareceram no lugar com a ilusão de que Yehohanan pudesse curar seu filho. Claro, isso não aconteceu.

O menino tinha as pernas paralisadas. Em novembro do ano 25 ele sofria, além disso, de um grave déficit neurológico, com perda do con­trole intestinal e da bexiga. Em suma, como eu já expliquei, ele sofria de um distúrbio congênito chamado de "meningomielocele". Algo incurável naquele tempo.

Queriam agradecer ao construtor de barcos de Nahum...

Eles me abraçaram e asseguraram que este explorador lhes tinha tra­zido sorte.

O menino, de uns 4 anos de idade, parecia perplexo, com enormes e luminosos olhos azuis.

Ele, obviamente, não tinha idéia de sua grande sorte...

O pai explicou que vieram a Saidan quando ouviram os rumores so­bre a cura de Amata, a sogra de Pedro.

Estamos aqui por acaso...

E ri comigo mesmo. Por acaso?

Mas a jornada ainda não havia terminado.

Entrei no casarão por volta das 13 horas, esgotado.

Aquela dor no estômago...

Procurei por Jesus, mas não o encontrei. Ninguém sabia de nada.

E cometi outro erro. Fiquei na sala de jantar, sem me preocupar com o pombal. Não vi Kesil nem Abril. Imaginei que continuassem ao lado do engenheiro.

Sim, foi outro grave equívoco...

Os discípulos, igualmente esgotados, haviam acabado de se retirar a seus respectivos aposentos. Na "terceira casa" tinham ficado André, deses­perado com a ausência de seu irmão, Mateus Levi com sua jovem esposa Mela e uma criança que eu não conhecia.

Eles conversavam em voz baixa. O pequeno dormia nos braços da mulher.

O "urso", Tomé e os gêmeos também já tinham ido embora para sua casa. Precisavam descansar.

Quis saber de Pedro, mas André não foi capaz de me dar muitas ex­plicações.

Ele é burro como ninguém - opinou o chefe. - Disse que foi dele a culpa pelo erro e que não voltará por aqui e nem à casa dele...

André estava se referindo à propagação, por parte de Pedro, do boato sobre a falsa cura de Amata.

Sabemos que ele vai pescar e que inclusive dorme no barco... Deve ter sido isso...

O restante da família dos Zebedeu não estava também no casarão. Parecia estranho. Mas depois deduzi que deviam ter se juntado às festas que ocorriam nas ruas de Saidan.

Então, aproveitei a presença do prudente André para perguntar so­bre o ocorrido no entardecer do dia anterior, enquanto nos encontráva­mos no lago.

André sorriu, e começou a chorar. Ele levantou os braços e a túnica escorregou, deixando a pele exposta.

A psoríase havia desaparecido!

Examinei as mãos. Nem sinal das placas escamosas.

As unhas apareciam intactas e brilhantes.

Deus!

As manchas nos polegares também não existiam mais.

André já não era mais um sapáhat...

Foi então que pensei compreender. Eu nunca cheguei a detectar a psoríase de André no ano 30 porque, simplesmente, ela fora curada antes, em janeiro de 28. E o mesmo aconteceu com o restante dos discípulos, com exceção de Tomé, Bartolomeu e os gêmeos de Alfeu, que não rece­beram aquela misteriosa "luz azul". Tomé continuou com seu estrabismo no olho esquerdo (do tipo deorsum vergens: desvio do olho para baixo). O "urso" continuou sofrendo de varizes e os gêmeos de Alfeu mantiveram seu ligeiro retardo mental.

Quanto a mim... Bem, era meu Destino.

E André contou o ocorrido.

Nesta tarde, pouco depois de tua partida, vimos quando o Mestre regressou. As pessoas continuavam em frente da casa. Chegavam de todas as partes. Havia centenas buscando os favores do rabi...

Mateus e a esposa seguiam as explicações com atenção.

O menino dormia placidamente...

Perguntamos a Jesus o que devíamos fazer, mas não houve res­posta. Ele sentou-se aí onde estás e serviu-se de leite numa tigela. Estava sedento...

Mas onde estava?

Falou sobre as colinas. Permaneceu em contato com Abba. Conti­nuávamos discutindo, mas ninguém chegava a um acordo. Recordas?

Alguns dos discípulos eram partidários de uma cura maciça das pes­soas. Outros eram contra. Tiago Zebedeu falou do ódio do Sinédrio...

Pois bem, estávamos nisso quando ouvimos música...

Que música?

André não conseguia se lembrar do nome de alguém. Mateus, aten­to, ajudou:

Har. Foi Har...

Claro, o irmão da garota paralítica... Ouvimos sua flauta... E, du­rante um pequeno espaço de tempo, houve silêncio na sala. Jesus se levantou, deixou a tigela com leite e saiu da sala. Logo em seguida, regressou. Tinha uma flauta nas mãos... A que Har deu de presente. Jesus deixou o casarão, procurou o menino e sentou-se ao lado dele. E tocaram juntos. Ninguém levantou a voz. Todos nós escutamos fascinados.

Tu viste Nü, a irmã?

André não sabia dela. Nem Mateus.

Quando eles pararam de tocar - prosseguiu o chefe -, alguém no meio da multidão gritou: "Rabi, diz uma só palavra e a saúde voltará para nós! Tem piedade!"

Os olhos do bom André ficaram úmidos.

Ninguém respirava, Jasão... Havia centenas de enfermos, aleijados, cegos e coxos... Houve um longo silêncio. Esperamos...

Já estava escuro?

Quase...

E o que aconteceu?

O Mestre ficou de pé e contemplou as pessoas...

O que Ele disse?

Nada. Limitou-se a olhar... Foi a multidão que, finalmente, eclodiu em uma súplica coletiva. Levantavam as mãos, rogavam, choravam...

Nós estremecemos.

Então, surgiram aquelas lágrimas nos olhos do rabi.

André se emocionou e guardou silêncio.

Mateus também tinha os olhos úmidos.

Depois - balbuciou o chefe dos discípulos - apareceu aquela luz azul entre as nuvens...

André e Mateus olharam para mim, buscando minha compreensão.

Não disse nada, mas continuei atento.

E André, mais calmo, comentou:

Tudo ficou azul...

Mas como?

O chefe encolheu os ombros. Não sabia, logicamente.

Ninguém sabe. Tudo ficou azul: as casas, as ruas, as pessoas, as roupas, os animais, as mãos, os pés... Nevou azul!

Sim, eu sabia o que havia acontecido naquele entardecer em Saidan. Já tinha testemunhado em outras ocasiões...

O Filho do Homem, simplesmente, sentiu compaixão por suas criaturas. E seu coração se colocou ao lado daqueles que imploravam. Imaginei seus pensa­mentos: "Se for da vontade do Pai... Eu gostaria que meus filhos fossem curados"

E a infinita compaixão do Homem-Deus fez o milagre.

Instantaneamente, o "povo" a serviço do Pai se pôs em movimento (?) e agiu: foram curadas entre 600 e 700 pessoas. Aconteceu algo seme­lhante com o menino mestiço - Ajashdarpan -, com Aru, o negro tatuado, e também em Caná.

Jesus foi o primeiro surpreso.

Já o disse mais de uma vez. A característica do Mestre não foi o po­der, nem a sabedoria. Era sua misericórdia inesgotável. E volto a me per­guntar: quantos milagres Jesus de Nazaré fez e que jamais foram conheci­dos? Quantas pessoas se beneficiaram de sua ternura?

E então começou a chover - concluiu André - e a multidão foi à loucura. Estavam curados! Os coxos e os paralíticos caminhavam! Os ce­gos de nascença enxergavam! Os leprosos!

Ele olhou para suas mãos e seus braços e começou a chorar.

"Nevou azul..."

Notei um nó na minha garganta.

Mateus prosseguiu:

As pessoas foram à loucura. Batiam na porta. Pediam a presença de Jesus. Queriam nomeá-lo rei e colocá-lo à frente dos exércitos de liber­tação de Israel!

E o Mestre?

Desapareceu. Trancamos o portão e nos fechamos neste lugar, dis­cutindo... E já sabes: uns a favor e outros contra.

Mateus entrou em detalhes.

Aquele, sem dúvida, foi o melhor dia para João Zebedeu, o Iscariotes e Simão, o Zelote. Eles precisaram de tempo para assimilar o acontecido. Se o reino invisível e alado ainda não havia começado, e já havia ocorrido tudo aquilo, o que os aguardava, então? Estavam eufóricos. Mais choca­dos do que em Caná. O restante do grupo foi mais prudente, mas ardia por dentro. Apenas o Messias prometido, o Libertador, o filho de Davi, o "quebrador de dentes", podia ter realizado um milagre semelhante.

Eles tinham razão, mas não...

De repente, o menino que Mela segurava nos braços começou a ge­mer. E se mexeu.

A esposa o confortou, e o acariciou.

E então, observei a planta do pé esquerdo.

Reconheci aquela mancha singular de Telag, o menino com síndro­me de Down de Mateus: uma espécie de trevo de cinco folhas...

E tive um pressentimento.

Aquele menino...

O pequeno acabou despertando e sentou-se.

Não o reconheci.

André se deu conta de minha confusão e esclareceu:

É Telag...

Telag?

Mateus e Mela assentiram em silêncio.

Deus do céu! Mas como era possível? Telag era uma criança com síndrome de Down!

Acho que fiquei pálido.

Pedi aos pais que me permitissem reconhecer o menino e eles con­cordaram, docilmente.

Mateus comentou feliz:

Já não é mais um endemoniado... O Mestre expulsou o espírito imundo que o habitava.

Telag, de fato, era uma criança normal. Não descobri nenhum vestí­gio dos sintomas de anormalidades cromossômicas (trissomia 21).

Fiquei desconcertado.

Alguém havia retificado o segmento distal do braço longo do cro­mossomo 21 (responsável pelo fenótipo da síndrome de Down). Como é sabido, esse segmento contém os genes que, por serem triplicados, repre­sentam a causa do problema.

Todas as células de Telag - milhões e milhões - foram modificadas (?), de modo que a criança não apresentava mais as três cópias do cromos­somo 21 (local onde se pode encontrar o gene da proteína beta-amiloide), e apenas as habituais.

Outro milagre genético, impossível de ser realizado mesmo em nos­so tempo!

Deu-me trabalho aceitar a realidade. O aspecto de Telag era diferente.

E me atrevi a perguntar:

E como sabes que é ele?

Melá sorriu e foi mostrar aquilo que havia me chamado a atenção: a mancha na sola do pé esquerdo.

Além disso - acrescentou Mateus -, Telag estava conosco. Naquele momento em que o Mestre expulsou os demônios, eu estava segurando a mão dele...

E o casal explicou como havia chegado a Saidan naquela mesma manhã de sábado, 17. Eles ouviram em Nahum as conversas sobre a cura de Amata e se apressaram em visitar Pedro. Nesse dia, não sabiam por quê, Mateus decidiu que sua esposa e seu filho caçula o acompanhariam. E foi desse modo que chegaram ao casarão dos Zebedeu no momento mais que oportuno...

Mateus não se atreveu a falar em coincidência. O discípulo era espe­cialmente inteligente e sensível...

- Ele já não é mais um endemoniado - repetiu.

Eu não disse nada. O importante era que Telag havia recuperado a sua normalidade.

A família flutuava.

O entardecer do sábado, 17 de janeiro (domingo para os judeus), foi um dos momentos mais marcantes na vida do Homem-Deus e, me atre­veria a dizer, na história da humanidade.

Os evangelistas, para minha irritação, dedicaram somente umas poucas linhas ao sucedido.[101] Mateus faz isso em sete. Marcos, em oito, e Lucas, em outras oito linhas.

Entendi que Mateus, sempre prudente e sábio, não colocara nada em seu evangelho sobre Telag, seu filho...

A partir daquele dia, o amor do gabbai, ou ex-coletor de impostos, pelo Galileu não teve medida nem fim. Jesus era o Messias prometido. Nada poderia convencê-los do contrário.

Foi nesse momento que percebi algo importante...

Como pude ser tão estúpido!

E corri para o pombal.

Era a nona hora (três da tarde).

Naquele dia, o ocaso se deu às 16 horas, 56 minutos e 49 segundos (de um suposto Tempo Universal).

Era o Destino, claro, que segurava as rédeas... Abri a porta, apavorado. Meu Deus!

Por que fui tão estúpido? Vazio! O pombal estava vazio!

Onde estava? Para onde o haviam levado? Por que ninguém me disse nada? Kesil tinha uma bela bronca à sua espera... E pensei: "Terá morrido?" Compreendi.

"Se o levaram, foi porque ele faleceu..." Deixei-me cair na cama, desolado. Meu amigo, morto! Quis chorar. Não foi possível.

Pensei em descer até a "terceira casa" e pedir explicações. Mas, de repente, "algo" me puxou e me levou até a janela. O que era esse "algo"? Retifico: o que é esse "algo" que me move? O pressentimento ficou intenso... E eu o vi imediatamente.

O sol rodava, laranja, em direção ao Ravid. Faltavam duas horas para o ocaso.

Era Ele.

Caminhava pela margem do lago. Zal brincava na água. Perto do Mestre observei uma mulher e dois homens... Senti um arrepio.

Um dos homens parecia... Aquele jeito de andar era bem familiar para quem isto escreve.

Mas não. Isso não era possível...

Eles estavam longe. Não os distinguia com precisão. Tinha que apro­ximar-me.

Dei meia-volta e voei, escadaria abaixo.

Mas, subitamente, quando corria pela praia, aquela aguda dor de es­tômago me freou em seco.

Tomei fôlego e tentei dar um passo.

Impossível.

Ensopei-me de um suor frio e fui caindo, de joelhos, sobre a areia.

Estava a ponto de perder a consciência...

Mesmo à distância continuei contemplando o Galileu. Ele estava parado e conversava com os homens. A mulher se mantinha a um passo distante.

Zal começou a latir e avançou em direção a este explorador, sempre latindo.

Jesus e o resto me olharam. Soube que falavam de mim.

Instantes depois, a mulher seguiu os passos do cachorro cor de esta­nho. E começou a correr...

A dor aumentava. Mantinha-me preso.

Depois foram os homens os que se lançaram correndo, também em direção a este imobilizado explorador.

Acreditei reconhecê-lo...

Sim, era ele!

O suor frio me inundou. Acreditei estar morrendo...

O Mestre permaneceu só, na margem do lago. Então levantou o bra­ço esquerdo.

Acenava.

Mas a quem?

Olhei ao meu redor, como um perfeito estúpido.

Na praia não havia ninguém. Só barcos encalhados, gaivotas num vôo folgado, ondas adormecidas e as cores do entardecer, tudo se diver­tindo na aldeia de Saidan.

Jesus manteve o braço no alto. E agitou a mão em sinal de cumprimento.

Cumprimentava a quem isto escreve.

Levantei o braço com timidez e correspondi.

Por que me cumprimentava?

O gesto do Filho do Homem se prolongou por quase um minuto.

Não sei explicar. Na minha mente soou uma palavra, "5 por 5" ("for­te e claro"):

- Confiai!

Não compreendi. Nesse momento não. Agora sei por que foi no plu­ral. O conselho era para mim e para o hipotético leitor dessas memórias..., possivelmente.

Depois, o Mestre abaixou o braço, deu meia-volta e se distanciou com suas típicas passadas.

Zal chegou como um raio. Saltou algumas vezes à minha volta, me presenteou com duas ou três lambidas e partiu, também correndo, à pro­cura de seu amo.

Mensagem recebida.

Abril me abraçou.

Depois eles chegaram.

Kesil, alarmado, se jogou igualmente nos meus braços. Não sabia se ria ou se chorava.

O último foi ele.

Ficou olhando por alguns segundos. Sei que desfrutou da minha perplexidade.

Eu o explorei, de cima a baixo, e tive que me render à evidência.

Era o engenheiro! Eliseu!

Mas...

Estava mudado!

Não era ele! Não era o Eliseu que eu havia deixado no meu quarto! Melhor dito: era ele, em seus melhores momentos...

O cabelo se mostrava negro. Não se apresentava nem um único fio de cabelo branco. O que foi feito do embranquecimento súbito?

A pele era rija, limpa, juvenil, brilhante...

Não podia ser!

Horas antes estava em coma, a ponto de morrer.

Não havia ossos fraturados, nem osteoporose. Que aconteceu com o mieloma múltiplo? O câncer das células plasmáticas era mortal...

As perguntas e os sentimentos se atropelaram.

Finalmente me abraçou.

Foi um abraço longo e firme.

Não houve palavras. Para quê?

O Mestre o havia curado...

Depois, todos quiseram falar ao mesmo tempo. Todos desejavam ex­plicar o acontecimento daquele entardecer de sábado, dia 17 de janeiro.

Eliseu pediu calma, e contou o seguinte:

"De repente abri os olhos. Não sabia onde estava... Vi Kesil e tentei perguntar, mas não pude... Sentia-me confuso. Kesil olhava pela janela. E, de forma imprevisível, tudo ficou azul... Os móveis, as paredes, as roupas... Terminei sentado na cama e perguntei. Kesil me explicou. Dali a pouco a luz azul desapareceu... Procuramos você, mas não estava... Depois soube da grande cura..."

Enquanto ouvia, regressaram à minha mente duas não menos as­sombrosas imagens. Primeiro, a do pilão ou zevivon de madeira de sal­gueiro, presenteado a este explorador na festa de Janucá por Eliseu e por Kesil. Na tarde do dia 29 de dezembro do ano 25, como se recordará, "anunciou" um milagre.[102]

Naquela tarde, começo de noite, no Ravid, o pilão, como disse, "anunciou" a letra nun: "milagre". Nas quatro faces do zevivon se podia ler as iniciais nun, guimel, hé e shin ("milagre grande foi além").

Sim, o milagre grande aconteceu em Saidan...

Casualidade? Duvido.

A segunda e misteriosa lembrança foram as letras e os números que pousaram em minhas mãos durante o "sonho" vivido na garganta de El Firan, e ao qual me referi em outras páginas destes diários; aconteceu em novembro do ano 25.

A quarta e quinta palavras diziam: "DESTINO 101" e "ELISA E 682" respectivamente.

Não saía do meu assombro.

Yehohanan encontrou seu Destino no dia 10 de janeiro ("DESTINO 101")

"ELISA" (Eliseu) era o curado número 683 da minha lista, na histó­rica cura de Saidan: "ELISA E 682".

As "palavras" que desceram sobre este explorador haviam se cumpri­do, com exceção de quatro.[103]

Não tenho a menor dúvida: Deus, ou o seu "povo", fala conosco nos sonhos.

Entretanto, um súbito vômito de sangue - espetacular - me devolveu à realidade.

Empalideci. Lembro-me dos rostos, aterrorizados.

E a dor me venceu, novamente.

Caí na areia, inconsciente...

 

Quando recuperei a consciência, eu me achava no assento do co-piloto do "berço".

O que havia acontecido?

Não conseguia recordar...

Vômito de sangue... Perdi os sentidos... Caí de bruços na praia... Nada mais.

Descobri que estava vestido com o traje espacial.

Eliseu, à minha esquerda, pilotava a nave.

Senti-me debilitado. A mente era um lugar distante e cheio de neblina.

Contemplei o escafandro. Mostrava-se salpicado de sangue.

Havia vomitado de novo?

Voávamos.

Percebi a suave vibração do motor principal, o J85.

Tentei falar.

Não foi possível. Estava sem forças...

Inspecionei o instrumental. Precisava de uma pista. O que estava acontecendo?

O indicador de combustível encostava-se ao mínimo. Havíamos con­sumido a maior parte dos 7.211 quilos que restavam. Nesse instante so­bravam 315 quilos e a reserva (uns 3 por cento do total): 492 quilos.

Tratei de fazer as contas. Consegui mais ou menos...

A nave dispunha de combustível para um total de 161 segundos.

Isso era ruim!

E meus olhos se detiveram nos cronômetros monoiônicos.

Ali estava a chave...

A contagem foi reveladora: "1973... junho... dia 28... hora: 21 (local)... quinta-feira".

Voltei a consultar. Não havia dúvida.

1973!

Estávamos regressando!

O módulo havia decolado do Ravid, cobriu as 109 milhas que nos separavam de Massada, no mar Morto, e "Papai Noel" se ocupou da opor­tuna inversão de massa dos swivels.

Deus Santo!

E imaginei a razão pela qual havíamos regressado ao nosso "agora". Eliseu, alarmado diante da minha situação, optou pelo retorno. Em meu país (EUA), teria mais possibilidades de sobreviver.

Mas eu tinha tanto a fazer ainda...!

O "berço" seguia queimando à razão de 5,2 quilos por segundo.

O caudalímetro não tinha piedade...

Eliseu, finalmente, percebeu a minha volta à vida (?).

Sorriu e comentou com uma inexplicável serenidade:

Ânimo, Major! De volta ao lar!

Não perguntei. Não tinha forças nem ânimo.

Altitude: 300 pés e baixando...

O engenheiro pediu atenção do computador e os sistemas continua­ram no automático.

A estibordo, apareceu a superfície do mar Morto.

Não faltava muito para o ocaso.

Descendo a 23 pés por minuto... 175 para a tomada de contato... Re­dução da velocidade a 2,5 pés por minuto... Redução a 2...

Os oito foguetes auxiliares colaboraram na freada e o fizeram com doçura.

E, de repente, eu me dei conta.

Nós descíamos sobre Massada!

Estávamos caindo diretamente no mar...

Permaneci tranquilo. Meu companheiro sabia... Era um excelente piloto.

Nível: 30 pés...

O "berço", obedecendo ao "Papai Noel" ficou estacionário e começou uma louca correria contra o tempo, queimando seis quilos por segundo.

Por que tínhamos parado?

Estávamos no limite. Já não havia mais combustível... Os tanques de reserva entraram em funcionamento. Disponibilidade: 492 quilos...

Olhei para Eliseu. Continuava atento a tudo.

Deu uma última ordem a "Papai Noel" (que não cheguei a captar), liberou os cinturões de segurança e saltou do assento, animando-me para que o seguisse.

Fim da viagem, Major! Nós só temos 80 segundos!

Ficou olhando-me, aguardando.

Vamos, vamos! A Operação terminou para nós!

Não compreendi.

Major, Cavalo de Tróia termina aqui! Vamos! Os israelitas não irão demorar em nos detectar!

Tentei. Foi impossível. Não era capaz de levantar-me.

O engenheiro intuiu algo. Lançou-se sobre este explorador, soltou os cintos de segurança e meu ajudou a caminhar até o centro do "berço". Lembro-me que arrastava os pés... O que estava acontecendo comigo?

O engenheiro pulsou o sistema hidráulico e, no mesmo instante, o alçapão localizado no piso do módulo se abriu por completo.

Vi as águas azuis, a pouco mais de dez metros, eriçadas pelos gases do peróxido de hidrogênio.

Vamos, Major! Temos que saltar!

Indiquei que estava com o escafandro.

Eliseu assentiu e se desculpou pela falha. Ele o retirou e fez o mesmo com o seu.

Já! - ordenou o engenheiro. - Não há tempo nem combustível!...

Dirigiu o olhar para os controles e confirmou:

Restam 40 segundos!

Porém continuei hesitando...

Maldição! Vamos!

Eliseu não me esperou, acabou empurrando-me no vazio.

E caí...

Senti o roçar quente dos gases nos cabelos e na pele.

Depois, senti o choque contra a água...

Depois, tudo azul.

Afundei.

Fechei os olhos.

Sabia que, em breve, a intensa salinidade me devolveria para a superfície...

Algumas bolhas escaparam do traje. Riam.

Deixei-me levar.

Silêncio.

Tudo era azul...

Que importava morrer?

Então eu vi (em minha mente?).

Era o Mestre.

Levantou o braço esquerdo e cumprimentou. Vestia a túnica branca. Uma leve brisa o acompanhava e desarrumava os cabelos cor de caramelo. Sorria, mostrando a sua impecável dentição. Olhou-me intensamente e o amor se derramou por aqueles olhos cor de mel.

E gritou:

Confiai!

Assim permaneceu um tempo, agitando a mão em sinal de saudação. Ou foi uma despedida?

O yam, então, se tornou azul, como o amor...

Nunca mais voltaria a vê-lo!

Abri os olhos e o sal me feriu. O instinto de sobrevivência me despertou.

Não sabia a que profundidade eu tinha ido parar. A luz abria passa­gem com esforço. Abaixo de mim habitavam trevas sinistras...

Jamais gostei daquele fundo. A 300 metros só havia lodo e morte...

Comecei a subir.

E nisso, para meu assombro, ele surgiu...

Tratei de frear a subida. Era impossível.

Encontrava-se muito perto. Talvez a 10 ou 15 metros...

Quis nadar ao seu encontro.

Não pude. A água me empurrava para cima, não tinha como ser diferente.

Ele afundava!

Enormes trilhas de bolhas saíam de sua base.

Meu Deus!

Era o "berço"! Ia se perder no fundo!

Descia lentamente, com leves balanceios. As bolhas pediam socorro, eu sei.

E Eliseu?

Deduzi que havia pulado...

A luz perseguiu a nave por um tempo, não muito.

Brilhava como prata.

Depois, desapareceu nas profundezas...

Sim, era o fim da Operação Cavalo de Tróia; o fim da mais incrível aventura humana...

Eu o conheci. Conheci sua verdadeira mensagem. Estive ali, com Ele. Eu o amei.

Jesus de Nazaré...

 

Em Abba, às 12 horas, de 12 de julho de 2011.

 

NOTA

Seguindo as instruções do Major da USAF, a nona entrega de seus diários foi tornada pública em 2011, uma vez transcorridos os 30 anos de sua morte, em agosto de 1981.

Da mesma forma, cumprindo o seu desejo, incluo agora o seguinte texto (de seu próprio punho e letra): "Nos presentes diários foram intro­duzidos - intencionalmente - erros de terceira ordem, assim como afir­mações não comprovadas e inconclusivas, fatos anunciados e não narra­dos e supressões que não afetam o essencial. Tudo obedece à necessidade de reduzir, sempre que possível, a credibilidade da narrativa".

 

                                                                                J. J. Benitez  

 

                      

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