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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CELULAR / Stephen King
CELULAR / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

      A civilização entrou na sua segunda idade das trevas em um pouco surpreendente rastro de sangue, mas com uma rapidez que não poderia ser prevista nem mesmo pelo mais pessimista dos futurólogos. Era como se estivesse engatilhado. No dia 10 de outubro, Deus estava no céu Dele, a Bolsa de Valores estava em 10.140 pontos e a maioria dos aviões estava no horário (exceto os que chegavam e partiam de Chicago, o que era de se esperar). Duas semanas depois, os céus pertenciam aos pássaros novamente e a Bolsa de Valores era uma lembrança. Já no Dia das Bruxas, todas as grandes cidades, de New York a Moscou, fediam sob o céu vazio, e o mundo como ele havia sido antes era uma lembrança.

 

 

 

 

     O evento que veio a ser conhecido como O Pulso começou às 15h03, horário da costa leste, na tarde do dia 10 de outubro. O termo era inapropriado, é claro, porém, dez horas depois do evento, a maioria dos cientistas capazes de apontar isso estava morta ou louca. Seja como for, o nome não tinha importância. O importante foi o efeito.

     Às três da tarde daquele dia, um jovem sem grande importância para a história veio andando — quase quicando — na direção leste pela Boylston Street, em Boston. O nome dele era Clayton Riddell. Trazia uma expressão de inconfundível contentamento no rosto, que combinava com seu passo saltitante. Na mão esquerda, balançavam as alças de um portfolio, daquele tipo que fecha e prende para virar uma maleta. Enrolado nos dedos da mão direita, estava o cordão de uma sacola de compras de plástico marrom, com as palavras pequenos tesousos impressas nela para qualquer um que quisesse lê-las.

     Dentro da sacola, balançando para frente e para trás, havia um pequeno objeto redondo. Um presente, arriscaria você, e teria razão. Talvez você também arriscasse dizer que este Clayton Riddell era um jovem que queria comemorar alguma pequena (ou talvez não tão pequena assim) vitória com um pequeno tesouro, e teria razão novamente. O item dentro da sacola era um peso de papel consideravelmente caro com uma nuvem cinza de penugem de dente-de-leão no centro. Ele o comprara ao voltar do Copley Square Hotel para o muito mais modesto Atlantic Avenue Inn, onde estava hospedado, com medo da etiqueta de 90 dólares na base do peso de papel e, de certa forma, com mais medo ainda da noção de que ele não tinha condições de comprar uma coisa daquelas.

     Entregar o cartão de crédito para o balconista exigira quase coragem física. Achava que não teria conseguido se o peso de papel fosse para ele; teria balbuciado algo sobre ter mudado de idéia e saído correndo da loja. Mas era para Sharon. Sharon gostava daquele tipo de coisa, e ainda gostava dele — estou torcendo por você, querido, ela disse um dia antes de ele ir para Boston. Levando em conta os problemas que tinham causado um para o outro no decorrer do ano passado, aquilo tinha mexido com ele. Agora ele queria mexer com ela, se é que ainda era possível. O peso de papel era uma coisa pequena (um pequeno tesouro), mas ele tinha certeza que ela adoraria aquela delicada nuvem cinza enfiada no meio do vidro, como uma névoa de bolso.

     O tilintar de um caminhão de sorvete atraiu a atenção de Clay. Estava parado na calçada oposta ao Four Seasons Hotel (que era ainda mais grandioso do que o Copley Square) e próximo ao Boston Common, que segue pela Boylston por duas ou três quadras naquele lado da rua. As palavras MISTER SOFTEE estavam pintadas nas cores do arco-íris sobre uma dupla de sorvetes dançantes. Três garotos estavam amontoados na janela, mochilas no chão, esperando suas guloseimas. Atrás deles estava uma mulher de terninho com um poodle em uma coleira e duas adolescentes vestindo jeans de cós baixo, com iPods e fones de ouvido em volta dos pescoços, para que pudessem ficar cochichando — sérias, sem risadinhas.

     Clay ficou atrás delas, transformando o que era antes um pequeno grupo em uma fila curta. Comprara um presente para a sua ex-mulher; passaria na Comix Supreme no caminho de casa e compraria para o filho a nova edição do Homem-Aranha; talvez também se desse um presente. Estava louco para contar a novidade para Sharon, mas ela estaria fora de contato até chegar em casa, por volta das 15h45. Ele achou que ficaria no Inn pelo menos até falar com ela, basicamente andando de um lado para o outro no seu quarto pequeno e olhando para o portfolio aberto. Enquanto isso, o Mister Softee seria um passatempo aceitável.

     O cara no caminhão serviu aos garotos na janela dois Dilly Bars e um cascão enorme de chocolate e baunilha para o gastador do meio, que pelo visto estava pagando para todos. Enquanto ele arrancava um punhado de notas amassadas do bolso do seu jeans baggy da moda, a mulher com o poodle e o terninho de poderosa enfiou a mão na sua bolsa de ombro, tirou o celular — mulheres que vestem terninhos de poderosa já não saem de casa sem o celular do mesmo jeito que não saem sem seus cartões de crédito da Amex — e o abriu. Atrás deles, no parque, um cachorro latiu e alguém gritou. Não pareceu a Clay um grito de alegria, mas, quando olhou por sobre o ombro, tudo que pôde ver foram alguns pedestres, um cachorro correndo com um frisbee na boca (eles não deviam estar na coleira lá dentro?, pensou), acres de verde ensolarado e sombras convidativas. Parecia um bom lugar para um homem que acabara de vender sua primeira graphic novel — e a continuação dela, ambas por uma bela grana — se sentar e tomar uma casquinha de chocolate.

     Quando voltou a olhar, os três meninos de jeans baggy tinham ido embora e a mulher de terninho pedia um sundae. Uma das duas garotas atrás dela tinha um celular cor de hortelã preso à cintura e a mulher do terninho de poderosa trazia o dela enganchado na orelha. Clay pensou, como quase sempre pensava em algum nível da sua mente quando via uma variação daquele comportamento, que estava vendo um ato que no passado teria sido considerado de uma má educação quase intolerável — sim, mesmo durante uma pequena transação comercial com um completo estranho — se tornar um comportamento cotidiano aceitável.

     Coloque isso no Dark Wanderer, querido, disse Sharon. A versão dela que ele trazia na cabeça falava bastante e sempre tinha algo a di-zer. Isso valia para a Sharon do mundo real também, com separação ou sem separação. Mas não no celular dele. Clay não tinha celular.

     O cçlalar cor de hortelã tocou as primeiras notas daquela música do Crazy Frog que Johnny adorava — o nome era Axel P. Clay não conseguia lembrar, talvez porque a bloqueara da sua mente. A dona do telefone o tirou da cintura e falou:

     —      Beth? — Escutou, sorriu e então disse para a amiga: — É a Beth.

     Em seguida, a outra garota inclinou o corpo para frente e as duas ficaram ouvindo, os cabelinhos curtos quase idênticos (para Clay elas pareciam personagens de desenho animado, as Meninas Superpode-rosas, talvez) balançando juntos na brisa da tarde.

     —      Maddy? — disse a mulher vestindo o terninho de poderosa quase na mesma hora. O poodle dela estava sentado de modo contem plativo na ponta da coleira (a coleira era vermelha e salpicada de alguma coisa cintilante), observando o tráfego na Boylston Street. Do outro lado, no Four Seasons, um porteiro vestindo um uniforme marrom — eles sempre eram marrons ou azuis — acenava, provavelmente para um táxi. Um Duck Boat1 repleto de turistas passava, parecendo fora de lugar em terra, o motorista berrando em seu megafone sobre algo histórico. As duas garotas que ouviam o telefone cor de hortela olharam uma para a outra e sorriram por conta de alguma coisa que escutavam, mas ainda não deram risadinhas.

     —      Maddy? Está me ouvindo? Está me...

     A mulher de terninho ergueu a mão que segurava a coleira e meteu um dedo de unha longa na orelha livre. Clay estremeceu, temendo pelo tímpano dela. Imaginou-se a desenhando: o cachorro na coleira, o terninho de poderosa, o cabelo curto chique... e uma pequena gota de sangue pingando do dedo na orelha. O Duck Boat acabando de sair do quadro e o porteiro ao fundo, aquelas coisas emprestando ao desenho uma certa verossimilhança. Dariam; ele sabia que sim.

     —      Maddy, a ligação está caindo! Só queria dizer que cortei o cabelo naquele novo... meu cabelo?... MEU...

     O cara do Mister Softee se abaixou e estendeu uma taça de sundae. Um Alpe se erguia dela com calda de chocolate e morango escorrendo pelos lados. Seu rosto, com a barba por fazer, estava impassível. Dava para ver que ele já tinha visto aquilo antes. Clay tinha certeza que sim, e mais de uma vez. No parque, algtiém gritou. Clay voltou a olhar por sobre o ombro, dizendo a si mesmojque tinha que ser um grito de alegria. Às três da tarde, no Boston Common, tinha que ser um grito de alegria. Não tinha?

      A mulher disse algo ininteligível para Maddy e fechou o telefone celular com uma bem treinada virada do pulso. Largou-o de volta na bolsa e então ficou parada, como se tivesse se esquecido do que estava fazendo ou talvez até mesmo de onde estava.

     — São quatro dólares e cinqüenta — disse o cara do Mister Softee, ainda estendendo pacientemente o sundae. Clay teve tempo para pensar como tudo era caro pra cacete na cidade. Talvez a Mulher do Terninho de Poderosa também achasse... aquele, pelo menos, era seu primeiro palpite... porque ela continuou sem ação por um instante, simplesmente olhou para a taça com seu morro de sorvete e calda escorrendo como se nunca tivesse visto algo parecido.

     Então veio outro grito do Common, e daquela vez não era huma-no, mas algo entre um latido de surpresa e um uivo de dor. Clay se virou para olhar e viu o cachorro que estivera correndo com o frisbee na boca. Era um cão marrom de bom porte, talvez um labrador. Ele não conhecia cachorros direito; quando precisava desenhar um, pegava um livro e copiava a gravura. Um homem de terno estava ajoelhado ao lado do cão, usava uma gravata e parecia estar — com certeza não estou vendo o que acho que estou vendo — mastigando a orelha dele. Então o cachorro uivou novamente e tentou se desvencilhar. O homem de ter-no o segurou firme e, sim, aquela era a orelha do cão na boca do homem e, enquanto Clay continuava a olhar, ele a arrancou do lado da cabeça do animal. Desta vez, o cão soltou um grito quase humano, e vários patos que estavam flutuando em uma lagoa próxima alçaram vôo grasnando.

     "Rast.1", alguém gritou atrás de Clay. Pareceu rast. Poderia ter sido rato ou rastro, mas experiências futuras o fizeram se decidir por rast não uma palavra de verdade, apenas um som inarticulado de agressão.

     Ele se virou na direção do caminhão de sorvete a tempo de ver a Mulher do Terninho de Poderosa investir contra a janela em um esforço para agarrar o Cara do Mister Softee. Ela conseguiu pegá-lo pelas dobras soltas do avental, mas bastou um pulinho para trás para que ele se libertasse. Os saltos altos da mulher deixaram a calçada por um instante e ele ouviu o som de tecido se rasgando e o tilintar de botões, à medida que a frente do casaco dela subia pela beirada do balcão e depois escorregava de volta para baixo. O sundae caiu, sumindo de vista. Clay viu uma mancha de sorvete e calda no pulso esquerdo e no antebraço da Mulher do Terninho de Poderosa enquanto seus saltos altos batiam de volta na calçada. Ela cambaleou, joelhos dobrados. A expressão reservada, polida, estou-empúblico no seu rosto — que Clay chamava de cara inexpressiva-para-usar-narua — tinha sido substituída por um rosnado convulsivo que transformou seus olhos em frestas e expôs ambas as carreiras de dentes. O lábio superior estava completamente do avesso, revelando um tecido rosa e aveludado, tão íntimo quanto uma vulva. O poodle correu para a rua arrastando a coleira vermelha atrás de si com a alça na ponta. Uma limusine preta o atro-pelou antes de ele conseguir atravessar a metade da rua. Fofura em um instante, entranhas no outro.

     O pobrezinho já devia estar latindo no paraíso dos cãezinhos antes de descobrir que estava morto, pensou Clay. Compreendeu de uma maneira vagamente clínica que estava em estado de choque, mas aquilo não modificou a profundidade do seu assombro. Ficou parado com o portfolio pendendo de uma das mãos e a sacola de compras marrom da outra, boquiaberto.

     Em algum lugar — talvez na esquina da Newbury Street — algo explodiu.

     As duas garotas tinham o mesmíssimo corte de cabelo sobre os fo-nes de ouvido de seus iPods, mas a do celular cor de hortelã era loura e a amiga era morena; eram a Cabelinho Claro e a Cabelinho Escuro. A Cabelinho Claro deixou o telefone cair na calçada, onde ele se despedaçou, e agarrou a Mulher do Terninho de Poderosa pela cintura. Clay supôs (da melhor maneira que lhe era possível supor algo naqueles instantes) que ela queria impedir a Mulher do Terninho de Poderosa ou de ir atrás do Cara do Mister Softee de novo ou de sair correndo para a rua atrás do cachorro. Uma parte da sua mente chegou a aplaudir a presença de espírito da menina. A amiga dela, Cabelinho Escuro, estava se afastando dali, mãozinhas brancas juntas entre os seios, olhos arregalados.

     Clay largou seus próprios itens, um de caía lado, e deu um passo à frente para ajudar a Cabelinho Claro. Do outro lado da rua — viu isso apenas de soslaio — um carro perdeu a direção e disparou pela calçada em frente ao Four Seasons, fazendo o porteiro sair correndo do caminho. Gritos vieram do pátio do hotel. E, antes que Clay pudesse começar a ajudar a Cabelinho Claro com a Mulher do Terninho de Poderosa, a garota jogou o rostinho bonito para frente com a velocidade de uma cobra, mostrou os dentes jovens e sem dúvida fortes e os fincou no pescoço da mulher. Um enorme jato de sangue apareceu. A menina de cabelo curto enfiou a cara nele, parecendo banhar-se — talvez tenha até bebido (Clay tinha quase certeza que sim) —, e então sacudiu a Mulher do Terninho de Poderosa como uma boneca. A mulher era mais alta e devia ter uns 20 quilos a mais, mas a menina a sacudiu com força o suficiente para jogar a cabeça dela para frente e para trás, fazendo mais sangue jorrar. Ao mesmo tempo, ergueu o próprio rosto manchado de sangue para o céu azul-celeste de outubro e uivou de uma maneira que parecia triunfante.

     Ela está louca, pensou Clay. Completamente louca.

     A Cabelinho Escuro gritou:

     —      Quem é você? O que está acontecendo?

     Ao som da voz da amiga, a Cabelinho Claro virou a cabeça sanguinolenta. Sangue pingava das pontas de cabelo em forma de adaga que pendiam da sua testa. Olhos como lâmpadas brancas fitavam de órbitas salpicadas de sangue.

     A Cabelinho Escuro olhou para Clay, os olhos arregalados.

     —      Quem é você? — ela repetiu... e então: — Quem sou eu?

   A Cabelinho Claro largou a Mulher do Terninho de Poderosa, que desabou na calçada com a carótida aberta a dentadas ainda esguichando, e então saltou na direção da garota com quem ela estivera dividindo amigavelmente um telefone alguns poucos minutos atrás.

     Clay não pensou. Se tivesse pensado, a Cabelinho Escuro talvez tivesse acabado com a garganta aberta como a mulher vestindo o terninho de poderosa. Nem chegou a olhar. Simplesmente se abaixou, agarrou a parte de cima da sacola de compras da pequenos tesouros à sua direita e a girou contra a nuca da Cabelinho Claro, enquanto ela pulava em tima da sua ex-amiga com as mãos esticadas, formando garras contra o céu azul. Se ele errasse...

     Não errou; tampouco acertou a garota de leve. O peso de papel de vidro dentro da sacola atingiu a nuca da Cabelinho Claro em cheio, fazendo um barulho abafado. Ela deixou as mãos caírem, uma manchada de sangue, outra ainda limpa, e desabou na calçada aos pés da amiga como um saco de correio.

     —      Que porra é essa? — exclamou o Cara do Mister Softee. A voz dele era de um agudo improvável. Talvez o choque o tenha emprestado aquele alto tenor.

     —      Não sei — disse Clay. O coração dele estava retumbando. — Rápido, me ajude. Esta outra aqui está se esvaindo em sangue.

     De trás deles, na Newbury Street, veio o inconfundível som oco de batida e estilhaços de um acidente de carro, seguido de gritos. Os gritos foram acompanhados por outra explosão, mais alta, abaladora, martelando o dia. Atrás do caminhão do Mister Softee, outro carro perdeu a direção, atravessou três pistas da Boylston Street e entrou no pátio do Four Seasons, ceifou uma dupla de pedestres e por fim se enfiou na traseira do carro anterior, que acabara com a frente enroscada nas portas giratórias. Aquela segunda batida empurrou o carro mais para dentro das portas, entortando-as para o lado. Clay não conseguia ver se havia alguém preso lá dentro — nuvens de fumaça subiam do radiador aberto do primeiro carro —, mas os gritos aterrorizados nas sombras sugeriam coisas ruins. Muito ruins.

     O Cara do Mister Softee, que não conseguia ver aquele lado, estava debruçado na janela do caminhão, olhando para Clay.

     —      O que está acontecendo lá atrás?

     —      Não sei. Algumas batidas de carro. Pessoas feridas. Esqueça. Me ajude aqui, cara.

     Ele se ajoelhou ao lado da Mulher do Terninho de Poderosa no meio do sangue e os restos despedaçados do celular da Cabelinho Claro. Àquela altura, os espasmos da mulher já tinham ficado bem fracos.

     —      Tem fumaça subindo da Newbury — observou o Cara do Mister Softee, ainda sem abandonar a relativa segurança do seu caminhão de sorvete. — Alguma coisa explodiu lá. Coisa séria. Talvez sejam terroristas.

     Assim que a palavra saiu da boca dele, Clay teve certeza de que ele tinha razão.

     —      Me ajude.

     —      QUEM SOU EU? — a Cabelinho Escuro gritou de repente.

       Clay tinha se esquecido completamente dela. Ergueu os olhos a tempo de ver a garota bater na própria testa com a base da mão, e então dar três voltas rápidas em torno de si, ficando quase na ponta dos tênis ao fazê-lo. A visão trouxe à tona a lembrança de um poema que ele lera em uma aula de literatura na faculdade — Descreva um círculo ao redor dele três vezes. Coleridge, não era? Ela cambaleou e, em seguida, correu depressa pela calçada e bateu de frente em um poste. Não tentou desviar, nem mesmo levantou as mãos. Meteu a cara nele, ricocheteou, cambaleou e fez de novo.

     —      Pare com isso! — vociferou Clay. Ele saltou de pé, começou a correr na direção dela, escorregou no sangue da Mulher do Terninho de Poderosa, quase caiu, voltou a correr, tropeçou na Cabelinho Claro e quase caiu mais uma vez.

     A Cabelinho Escuro se virou para olhar para ele. O nariz dela estava quebrado e esguichava sangue até a parte inferior de seu rosto. Uma contusão vertical estava inchando na sobrancelha, como uma nuvem carregada em um dia de verão. Um dos olhos tinha se entortado na órbita. Ela abriu a boca, expondo os destroços do que provavelmente havia sido um tratamento dentário caro, e sorriu para ele. Ele nunca se esqueceu daquilo.

     Então ela saiu correndo pela calçada, gritando.

     Atrás dele, um motor deu partida e sinos amplificados começaram a badalar o tema de Vila Sésamo. Clay se virou e viu o caminhão do Mister Softee saindo rapidamente do meio-fio na hora em que, do último andar do hotel do outro lado da rua, uma janela se estilhaçava em uma ducha brilhante de vidro. Um corpo se atirava no dia de outubro. Caiu na calçada, onde mais ou menos explodiu. Mais gritos vindos do pátio. Gritos de horror; gritos de dor.

     —      Não!— gritou Clay, correndo do lado do caminhão do Mister Softee. — Não, volte e me ajude! Preciso que alguém me ajude aqui, seu filho-da-puta!

     Não houve resposta do Cara do Mister Softee, que talvez nem tenha escutado por conta da música alta. Clay conseguia lembrar a letra de uma época em que não tinha motivos para acreditar que seu casamento não duraria para sempre. Naquele tempo, Johnny assistia a Vila Sésamo todos os dias, sentado na sua cadeirinha azul e com as mãos em volta do seu copinho de neném. Algo sobre um dia ensolarado, que mantinha longe as nuvens.

     Um homem de terno veio correndo do parque, rugindo sons sem palavras a plenos pulmões, as abas do paletó batendo às suas costas. Clay o reconheceu por conta do cavanhaque de pêlo de cachorro. O homem foi correndo para a Boylston Street. Carros derrapavam ao redor dele, não o atropelando por pouco. Atravessou para o outro lado, sem parar de rugir e acenar com as mãos para o céu. Desapareceu nas sombras sob o toldo do pátio do Four Seasons e sumiu de vista, mas deve ter arranjado mais encrenca imediatamente, pois uma nova torrente de gritos irrompeu do lado de lá.

     Clay desistiu de perseguir o caminhão do Mister Softee e ficou com um pé na calçada e outro enfiado na sarjeta, observando-o seguir até a pista do meio da Boylston Street, com o sino ainda tocando. Estava prestes a voltar para a menina inconsciente e a mulher moribunda quando outro Duck Boat apareceu. Aquele não estava vindo devagar, e sim disparando à velocidade máxima e balançando loucamente de bombordo a estibordo. Alguns dos passageiros estavam sendo jogados para frente e para trás e berrando — implorando — para que o piloto parasse. Outros simplesmente se agarravam aos suportes de metal que corriam pelas laterais abertas do trambolho enquanto ele vinha na direção da Boylston Street de encontro ao tráfego.

     Um homem de suéter agarrou o motorista por trás e Clay ouviu outro daqueles gritos desarticulados através do sistema de amplificação primitivo do barco, enquanto o motorista atirou o cara longe, jogando os ombros para trás com força. Não foi Rastr daquela vez, e sim algo mais gutural, algo como Gluh! Então o motorista viu o caminhão do Mister Softee — Clay tinha certeza disso — e mudou de rumo, indo na direção dele.

     — Oh Deus, por favor, não!— gritou uma mulher sentada perto da frente na embarcação para turistas e, à medida que ela se aproximava do caminhão de sorvete, que tinha quase um sexto do seu tamanho, Clay se lembrou com clareza de estar assistindo ao desfile de vitória dos Red Sox na tevê no ano em que eles ganharam a WUUTKI Series. O time veio em uma procissão lenta daqueles mesmos Duck Boats, acenando para as massas delirantes enquanto uma garoa gelada de outono caía.

     —      Deus, por favor, não!— a mulher voltou a gritar e, do lado de Clay, um homem disse, quase com brandura: —   Jesus Cristo.

     O Duck Boat atingiu o caminhão de sorvete com a parte lateral e o virou como um brinquedo de criança. Ele caiu de lado com o seu próprio sistema de amplifícação ainda tilintando o tema de Vila Sésamo e deslizou para trás na direção do Common, atirando para cima rajadas de faíscas geradas pelo atrito. Duas mulheres que estavam observando saíram correndo do caminho, de mãos dadas, e escaparam por um triz. O caminhão do Mister Softee entrou quicando na calçada, ficou suspenso no ar por um instante, atingiu a cerca de ferro batido em torno do parque e se deteve. A música pulou duas vezes e cessou em seguida.

     Enquanto isso, o lunático que dirigia o Duck Boat perdera qualquer vago controle que tivera antes sobre o veículo. Ele disparou de volta pela Boylston Street com sua carga de passageiros aterrorizados, gritando e se agarrando às laterais abertas, subiu a calçada oposta a uns 50 metros do local onde o caminhão do Mister Softee tilintara pela última vez e se chocou contra o muro de sustentação debaixo da vitrine de uma loja de móveis chique chamada Citylights. Houve um estrondo enorme e dissonante à medida que a janela se despedaçava. A traseira grande do Duck Boat (Dama da Enseada estava escrito em letras rosa) subiu cerca de um metro e meio no ar. A força cinética queria que o trambolho sacolejante capotasse; a massa não permitia. Assentou-se de volta na calçada com o bico enfiado entre os sofás espalhados e as dispendiosas cadeiras de sala de estar, mas não sem antes atirar para frente pelo menos uma dúzia de pessoas, que desapareceram de vista.

     Dentro da Citylights, um alarme começou a soar.

      —      Jesus Cristo — repetiu a voz branda do lado direito de Clay. Ele se virou e viu um homem baixinho com cabelo preto ralo, bigodlnho preto e óculos com armação dourada. — O que está acontecendo?

     —      Não sei — respondeu Clay. Era difícil falar. Muito difícil. Ele se viu tendo que quase empurrar as palavras para fora. Imaginou que fosse o choque. Do outro lado da rua, pessoas corriam, algumas saídas de dentro do Four Seasons, outras do Duck Boat acidentado. Enquanto ele observava, um fugitivo do Duck Boat colidiu com um dos que escaparam do hotel e ambos se espatifaram na calçada. Clay teve tempo de se perguntar se tinha enlouquecido e se aquilo tudo não seria uma alucinação dele em algum manicômio. Juniper Hill, na região de Augusta, talvez, entre injeções de Torazina. — O cara no caminhão de sorvete disse que talvez fossem terroristas.

     —      Não estou vendo homens armados — disse o baixinho de bigode. — Nem gente com bombas amarradas nas costas.

     Clay também não, mas ele viu a sacola de compras da pequenos tesouros e o portfolio na calçada, e viu que o sangue da garganta aberta da Mulher do Terninho de Poderosa — bons deuses, pensou, tanto sangue— tinha quase alcançado o portfolio. Apenas uns dez desenhos seus do Dark Wanderer estavam lá dentro e era com os desenhos que ele estava preocupado. Ele começou a voltar para lá a passos rápidos e o baixinho o acompanhou no mesmo ritmo. Quando um segundo alarme contra roubos (bem, algum tipo de alarme) disparou no hotel, juntando seu zurro rouco ao som do alarme da Citylights, o sujeitinho deu um pulo.

     —      É o hotel — disse Clay.

     —      Eu sei, é só que... oh, meu Deus. — Ele acabara de ver a Mulher do Terninho de Poderosa, que estava deitada em um lago daquela coisa mágica que vinha fazendo tudo nela funcionar... há quanto tempo? Quatro minutos? Ou só dois?

     —      Ela está morta — Clay falou. — Tenho quase certeza. Aquela garota... — Apontou para a Cabelinho Claro. — Foi ela. Com os dentes.

     —      Tá brincando.

     —      Bem que eu queria.

     Uma outra explosão veio de algum lugar mais adiante na Boylston Street. Os dois homens se abaixaram. Clay notou que sentia cheiro de fumaça. Pegou a sacola da pequenos tesouros e o portfolio e os tirou de perto do sangue que se espalhava.

     —      Essas coisas são minhas — falou, se perguntando por que sentiu necessidade de explicar.

     O sujeitinho, que usava um terno de tweed — muito elegante, pensou Clay —, ainda estava olhando, aterrorizado, para o corpo enroscado da mulher que parará para comprar um sundae e perdera primeiro o cachorro e depois a vida. Atrás deles, três jovens passaram correndo pela calçada, rindo e fazendo algazarra. Dois estavam com bonés dos Red Sox virados para trás. Um deles estava segurando uma caixa de papelão contra o peito. Tinha a palavra panasonic escrita em azul na lateral. Este último pisou no sangue da Mulher de Terninho de Poderosa com o tênis direito e deixou uma trilha de um pé só desaparecendo atrás de si, enquanto ele e os colegas corriam para a extremidade leste do Common e além, em direção a Chinatown.

     Clay se agachou, apoiando-se em ura joelho, e usou a mão que não estava agarrando o portfolio (estava com mais medo ainda de perdê-lo depois que viu o menino correndo com a caixa de papelão da panasonic) para pegar o punho da Cabelinho Claro. Encontrou o pulso de imediato. Estava lento, mas forte e regular. Sentiu um grande alívio. Não importava o que ela tinha feito, era só uma menina. Não queria pensar que a matara com uma pancada do peso de papel que ia dar de presente para a mulher.

     —      Cuidado! Cuidado! — quase cantou o sujeitinho de bigode.

     Clay não teve tempo de ter cuidado. Por sorte, daquela vez não era nem perto deles. O veículo, um daqueles enormes utilitários esportivos a gasolina, saiu da pista da Boylston e entrou no parque a uns 20 metros de onde ele estava agachado, emaranhando-se na cerca de ferro batido e indo parar com o pára-choque enfiado na lagoa dos patos.

     A porta se abriu e um jovem saiu tropeçando de dentro do carro, gritando imprecações contra o céu. Caiu ajoelhado na água, bebeu um pouco dela com as duas mãos (um pensamento cruzou a cabeça de Clay sobre todos os patos que tinham cagado alegremente naquela lagoa anos a fio), então fez um esforço para se levantar e atravessou a água para o lado oposto. Desapareceu em um arvoredo, ainda brandindo as-jnãos e berrando seu sermão incoerente.

     —      Temos que encontrar ajuda para essa garota — disse Clay para o homem de bigode. — Está inconsciente, mas não corre risco algum de vida.

       —     O que temos que fazer é sair da rua antes de sermos atropelados — respondeu o homem e, como se para validar seu argumento, um táxi bateu em uma limusine perto do Duck Boat acidentado. A limusine estava na contramão, mas o táxi sofreu mais com o impacto; enquanto Clay olhava ainda ajoelhado na calçada, o motorista saiu voando pela janela subitamente sem vidro do carro e caiu na rua, segurando um braço ensangüentado para cima e gritando.

     O homem de bigode estava certo, é claro. A racionalidade que Clay conseguiu juntar — só um pouquinho dela conseguiu atravessar a cortina de choque que abafava seu raciocínio — sugeriu que a ação mais sensata, de longe, seria dar o fora da Boylston Street e procurar abrigo. Se aquilo fosse um ato terrorista, não parecia com nada que ele tivesse visto ou lido. O que ele — eles — devia fazer era se esconder e ficar escondido até a situação se esclarecer. Aquilo provavelmente envolveria encontrar uma televisão. Mas ele não queria deixar aquela menina inconsciente estirada em uma rua que de repente virará um manicômio. Todos os instintos do seu geralmente terno — e certamente civilizado — coração se ergueram contra essa idéia.

     —      Vá em frente — ele disse para o homenzinho de bigode. Falou aquilo com imensa relutância. Nunca vira o homenzinho mais gordo, mas pelo menos ele não estava berrando imprecações e jogando as mãos para o céu. Ou partindo para cima da garganta de Clay com os dentes para fora. — Procure algum abrigo. Eu vou... — Ele não sabia como terminar a frase.

     —      Vai o quê? — perguntou o homem e, em seguida, jogou os ombros para frente e se encolheu quando alguma outra coisa explodiu.

     Aquela explosão parecia ter vindo logo de trás do hotel e então fumaça negra começou a subir de lá, manchando o céu azul antes de ficar alta o suficiente para o vento levar embora.

     —      Vou ligar para a polícia — disse Clay, subitamente inspirado. — Ela tem um celular. — Ele apqntou com o polegar para a Mulher do Terninho de Poderosa, que estava deitada em uma piscina do próprio sangue. — Ela estava usando antes... sabe, logo antes de a merda...

     Ele se interrompeu, relembrando o que exatamente tinha acontecido antes de a merda bater no ventilador. Surpreendeu-se olhando primeiro para a mulher morta, depois para a garota inconsciente e então para os fragmentos do celular cor de hortelã da menina.

     Sirenes de dois timbres diferentes encheram o ar. Clay supôs que um dos timbres pertencia a carros de polícia e o outro a caminhões de bombeiros. Supôs que saberia a diferença se morasse na cidade, mas ele não morava, vivia em Kent Pond, no Maine, e desejou de todo coração estar lá naquele momento.

     O que aconteceu logo antes de a merda bater no ventilador foi que a Mulher do Terninho de Poderosa ligara para sua amiga Maddy para contar que tinha cortado o cabelo e uma das amigas da Cabelinho Claro tinha ligado para ela. A Cabelinho Escuro escutara essa última ligação. Depois disso, as três enlouqueceram.

     Você não está pensando...

     De trás deles, da direção leste, veio a maior explosão de todas: um som tremendo que mais parecia um tiro de escopeta. Clay saltou de pé. Ele e o homenzinho de terno de tweed se entreolharam desvairados e em seguida olharam na direção de Chinatown e do North End de Boston. Não conseguiam ver o que explodira, mas um penacho de fumaça muito mais largo e escuro subia para além dos prédios daquele lado do horizonte.

     Enquanto olhavam para ele, uma radiopatrulha da polícia de Boston e um caminhão de bombeiro com escada pararam em frente ao Four Seasons do outro lado da rua. Clay olhou para a outra calçada a tempo de ver um outro suicida sair voando do último andar do hotel, seguido por mais dois do telhado. Para Clay, parecia que os dois últimos estavam brigando enquanto caíam.

     —      Meu Deus do Céu, NÃO!— gritou uma mulher. — Oh, não, CHEGA, CHEGA!

     O primeiro do trio suicida caiu na traseira do carro de polícia, atirando cabelo e entranhas na lataria do portamala e estilhaçando a janela de trás. Os outros dois caíram no caminhão, enquanto bombeiros vestidpS com capotes amarelobrilhantes se espalhavam como pás-saros inverossímeis.

     —      NÃO!— berrou a mulher. — CHEGA! CHEGA! BOM DEUS, JÁ CHEGA!

     Mas então uma mulher se jogou do quinto ou sexto andar, às cambalhotas como uma acrobata louca, atingindo um policial que estava olhando para cima e com certeza matando-o ao mesmo tempo em que matou a si mesma.

     Do norte, veio outra daquelas explosões ensurdecedoras — o som do diabo atirando com uma escopeta no inferno —, e Clay olhou mais uma vez para o homenzinho, que olhava ansiosamente para ele. Mais fumaça subia até o céu e, apesar do vento forte, o azul estava quase encoberto.

     —      Eles estão usando aviões de novo — disse o homenzinho. — Os desgraçados estão usando aviões de novo.

     Como que para reforçar essa idéia, o som de uma terceira explosão monstruosa veio rolando na direção deles da parte nordeste da cidade.

     —      Mas... o aeroporto é para lá. — Clay estava tendo dificuldades para falar de novo e mais dificuldade ainda para pensar. Tudo o que parecia haver na sua cabeça era uma espécie de piada pela metade: Já ouviu aquela dos terroristas (insira aqui o seu grupo étnico favorito) que decidiram acabar com a América explodindo o aeroporto?

     —      E?... — perguntou o homenzinho, de um jeito quase truculento.

     —      E por que não o Hancock Building? Ou o arranha-céu do Prudential Center?

     O homenzinho curvou os ombros.

     —      Não sei. Só sei que quero sair dessa rua.

     Como se para dar ênfase a esse argumento, meia dúzia de jovens passaram correndo por eles. Boston era uma cidade de gente jovem, notou Clay — com todas aquelas universidades. Aqueles seis, três homens e três mulheres, pelo menos não tinham roubado nada, e com certeza não estavam rindo. Enquanto corriam, um dos rapazes tirou o celular e o colou na orelha.

     Clay olhou para o outro lado da rua e viu que uma segunda viatura preto-ebranca tinha estacionado atrás da primeira. Não havia necessidade de usar o celular da Mulher do Terninho de Poderosa, no fim das contas (o que era bom, já que ele decidira que não queria mesmo fazer aquilo). Poderia simplesmente atravessar a rua e falar com eles... só que não tinha certeza se teria coragem de atravessar a Boylston Street naquele instante. E mesmo que o fizesse, será que eles viriam para aquela calçada para atender uma garota inconsciente quando tinham só Deus sabe quantas mortes do lado de lá! E, à medida que observava, os bombeiros começaram a entrar de volta no caminhão; parecia que estavam indo para algum outro lugar. Para o aeroporto Logan, possivelmente, ou...

     —      Ai meu Jesus Cristo, olha só aquele — disse o homenzinho de bigode, falando com uma voz baixa e tensa. Estava olhando para o oeste, na Boylston em direção ao centro, de onde Clay tinha vindo quando seu maior objetivo na vida era conseguir ligar para Sharon. Ele até sabia como iria começar a ligação: Boas noticias, querida — não importa como as coisas estejam entre nós, sempre vai ter comida no prato para o garoto. Na cabeça dele, parecia alegre e engraçado — como nos velhos tempos.

     Não tinha nada de engraçado naquilo. Na direção deles — sem correr, mas andando a passos largos e decididos — vinha um homem de uns 50 anos, vestindo calça social e os restos de uma camisa e gravata. As calças eram cinza. Era impossível saber quais eram as cores da camisa e da gravata, pois ambas estavam em farrapos e manchadas de sangue. O homem carregava na mão direita o que parecia ser um cutelo com uma lâmina de uns 45 centímetros. Clay achava de verdade que tinha visto aquele cutelo, na vitrine de uma loja chamada Soul Kitchen, quando estava voltando da reunião no Copley Square Hotel. O jogo de facas na vitrine (AÇO SUECO! proclamava o pequeno cartão impresso na frente dele) brilhara sob a luz atraente dos spots escondidos, mas aquele cutelo já tinha sido bem usado desde que saíra de lá — ou mal usado — e estava embaçado de sangue.

     O homem de blusa esfarrapada brandiu o cutelo à medida que se aproximava dos dois com seus passos firmes, a lâmina descrevendo arcos curtos para cima e para baixo no ar. Ele quebrou o padrão somente uma vez, para golpear a si mesmo. Um novo córrego de sangue desceu pelo cqrte recém-aberto na camisa rasgada. Os restos da gravata se agitaram. Ao se aproximar, ele os intimidou como um pregador caipira falando no palavrório fervoroso de alguma revelação divina.

     — Ailá! — gritou. — Eilá-ailá-ababala nazi Ababala hein? Abunalu ué? Kazald! Kazald-VAli FiufXl-fiuf— E então levou o cutelo de volta ao quadril direito e além dele e Clay, cujo senso visual era superdesenvolvido, viu o golpe arrebatador que viria em seguida. O golpe nas entranhas, dado ao mesmo tempo em que o homem continuava sua marcha insana para lugar nenhum pela tarde de outubro naqueles passos firmes e declamatórios.

     — Cuidado! — gritou o homenzinho de bigode, mas ele não estava tomando cuidado, não o sujeitinho de bigode; o sujeitinho de bigode, a primeira pessoa normal com quem Clay Riddell falara desde o começo da loucura... que tinha, na verdade, falado com ele, que provavelmente juntara alguma coragem, dadas as circunstâncias... estava congelado, os olhos maiores do que nunca por trás das lentes dos seus óculos de aros dourados. E será que o maluco estava indo para cima dele porque, dos dois homens, o de bigode era menor e parecia uma presa mais fácil? Se fosse assim, talvez o senhor Palavrório-Fervoroso não fosse completamente louco, e de repente Clay ficou tanto com raiva quanto assustado, com a raiva que ficaria se tivesse olhado pelo portão do pátio de uma escola e visto um valentão batendo em um menino mais novo para se aquecer.

     — CUIDADO! — quase chorou o homem de bigode, ainda imóvel enquanto a morte vinha correndo na direção dele, a morte libertada de uma loja chamada Soul Kitchen, onde os cartões Diner's Club e Visa sem dúvida eram aceitos, e também o seu Cheque se Acompanhado do Cartão do Banco.

     Clay não pensou. Simplesmente pegou de volta o portfolio pela alça dupla e o enfiou entre o cutelo que se aproximava e seu novo amigo de terno de tweed. A lâmina o cortou inteiro com um som oco, mas a ponta se deteve a 10 centímetros da barriga do homenzinho. O sujeitinho finalmente se tocou e tomou um passo medroso pelo lado, na direção do Common, gritando por ajuda a plenos pulmões.

     O homem de camisa e gravata esfarrapadas — começando a ficar meio bochechudo e com papada, como se sua matemática pessoal de boa alimentação e bom exercício tivesse parado de dar certo há uns dois anos — interrompeu de súbito a peroração sem sentido. O rosto dele assumiu uma expressão de perplexidade vazia que parecia muito com surpresa, e mais ainda com assombro.

     O que Clay sentiu foi uma espécie de ultraje desolador. A lâmina cortara todos os seus retratos do Dark Wanderer (para ele aqueles eram retratos, jamais desenhos ou ilustrações), e lhe parecia que aquele som oco era o barulho da lâmina penetrando em uma câmara especial do seu coração. Era uma bobagem, pois ele tinha reproduções de tudo, incluindo as quatro splash-pages coloridas, mas isso não o fazia se sentir melhor. A lâmina do maluco rasgara John, o Feiticeiro (em homenagem ao seu filho, é claro), Flak, o Mago, Frank e os Posse Boys, Gene Dorminhoco, Sally Venenosa, Lily Astolet, a Bruxa Azul e, claro, Ray Damon, o próprio Dark Wanderer. As criaturas fantásticas dele, que viviam na caverna da sua imaginação e estavam prontas para libertá-lo da chatice que era ensinar arte em uma dúzia de escolas rurais do Maine, dirigir milhares de quilômetros e praticamente viver no carro.

     Ele poderia jurar que tinha ouvido os personagens gemerem quando a lâmina sueca do louco os perfurou enquanto dormiam o sono dos inocentes.

      Furioso, sem se preocupar com o cutelo (pelo menos por ora), ele empurrou o homem de camisa rasgada rapidamente para trás, usando o portfolio como uma espécie de escudo, ficando cada vez mais irado à medida que ele se entortava em um grande V ao redor da lâmina.

     —      Blet!— urrou o lunático e tentou puxar o cutelo de volta. Estava preso demais. — Blet qui-iã dô-rã kazalá ababalá!

     —      Eu vou meter o ababalá no seu a-kazalá, seu merda! — gritou Clay e enfiou o pé esquerdo atrás das pernas agitadas do lunático. Mais tarde ocorreu-lhe que o corpo sabe como lutar quando precisa. Que aquele é um segredo que o corpo guarda, do mesmo jeito que o faz com os segredos de como correr ou pular um riacho, ou dar uma trepada ou, muito possivelmente, morrer quando não há outra escolha. Que sob situações de estresse extremo, o corpo simplesmente assume o controle e faz o que tem que ser feito, enquanto o cérebro sai de cena, incapaz de fazer outra coisa que não assobiar, bater o pé e olhar para o céu. Ou então contemplar o som de um cutelo rasgando o portfolio que sua mulher dera para você no seu aniversário de 28 anos.

     O lunático tropeçou no pé de Clay na hora que o corpo esperto dele quis que o homem tropeçasse e caiu de costas na calçada. Clay ficou em cima dele, resfolegando, ainda agarrando o portfolio com as duas mãos, como um escudo entortado em uma batalha. O cutelo ainda estava preso nele, cabo para um lado, lâmina para o outro.

       O lunático tentou se levantar. O novo amigo de Clay veio em disparada e chutou-lhe o pescoço, com muita força. O sujeitinho estava chorando alto, as lágrimas jorrando pelas faces e embaçando as lentes dos seus óculos. O homem caiu de volta na calçada com a língua saindo da boca. Produziu sons de sufocação que Clay achou parecidos com o palavrório fervoroso de antes.

     —      Ele tentou nos matar! — chorou o homenzinho. — Ele tentou nos matar.

     —      Sim, sim — disse Clay. Ele estava ciente de que havia dito sim, sim para Johnny da mesmíssima forma na época em que eles ainda o chamavam de Johnny-Gee e ele vinha na direção dos dois pelo caminho de entrada da casa com as canelas ou cotovelos ralados berrando eu tenho SANGUE!

     O homem na calçada (que tinha bastante sangue) estava apoiado nos cotovelos, tentando se levantar de novo. Clay fez as honras daquela vez, tirando um dos cotovelos dele do chão com um chute e fazendo-o voltar para o asfalto. O chute parecia no máximo um quebra galho, e dos piores. Clay agarrou o cabo do cutelo, retraiu-se por conta da sensação pegajosa do sangue meio gelatinoso nele — era como passar a palma da mão por um pedaço de gordura fria de bacon — e puxou. O cutelo se soltou um pouco, mas depois ou ficou preso ou sua mão escorregou. Imaginava ter ouvido os personagens murmurando em agonia de dentro da escuridão do portfolio e ele mesmo produziu um som de dor. Não pôde evitar. E não pôde deixar de pensar no que pretendia fazer com o cutelo assim que o soltasse. Esfaquear o lunático até a morte com ele? Pensou que talvez tivesse conseguido fazê-lo no calor do momento, mas provavelmente não naquele instante.

     —      O que houve? — perguntou o homenzinho com uma voz lacrimosa. Clay, mesmo aflito, não pôde deixar de se sentir tocado pela preocupação que detectou naquela pergunta. — Ele te pegou? Você o tapou por alguns segundos e não consegui ver. Ele te pegou? Você está ferido?

     —      Não — respondeu Clay. — Estoij b...

     Outra explosão gigantesca veio do norte, quase certamente do aeroporto Logan, do outro lado do porto de Boston. Os dois curvaram os ombros e se encolheram.

     O lunático aproveitou para se sentar e estava lutando para ficar de pé quando o homenzinho de terno de tweed deu um desajeitado, porém eficiente, chute enviesado, cravando um sapato bem no meio da gravata esfarrapada do homem, nocauteando-o mais uma vez. O lunático rugiu e agarrou o pé do homenzinho. Poderia tê-lo derrubado no chão e talvez lhe dado em seguida um quebra-costelas, se Clay não tivesse pegado seu novo amigo pelo ombro e o puxado para longe.

     —      Ele pegou meu sapato!— gritou o homenzinho. Atrás deles, mais dois carros bateram. Houve mais gritos, mais alarmes. Alarmes de carro, alarmes de incêndio, alarmes contra roubos esporrentos. Sirenes soavam a distância. — O desgraçado pegou meu sa...

     De repente, lá estava um policial. Um dos que estiveram do outro lado da rua, Clay supôs, e, à medida que o policial se agachou apoiando-se em um joelho azul do lado do lunático tagarela, Clay sentiu algo muito parecido com amor pelo tira. Ele tinha se dado o trabalho de ir até lá! Ele tinha notado!

     —      É melhor tomar cuidado — disse o homenzinho nervosamente. — Ele é...

     —      Eu sei o que ele é — respondeu o policial, e Clay viu que ele estava com sua pistola automática na mão. Não fazia idéia se o policial a tirara depois de se ajoelhar ou se estivera com ela em punho o tempo todo. Clay estava muito ocupado se sentindo agradecido para notar.

     O policial olhou para o lunático. Aproximou-se do lunático. Pareceu quase se oferecer para o lunático.

     —      E aí, meu caro, como vai? — ele murmurou. — Quero dizer, tudo em cima?

     O lunático investiu contra o policial e colocou as mãos na garganta dele. No momento em que fez isso, o policial meteu a boca da arma na cavidade da têmpora do homem e puxou o gatilho. Um grande jato de sangue jorrou através do cabelo grisalho do outro lado da cabeça do lunático e ele caiu de volta na calçada, estirando os dois braços de forma melodramática: Olhe só mamãe, estou morto.

     Clay. olhou para o homenzinho de bigode e o homenzinho de bigode olhou para ele. Então os dois olharam de volta para o policial, que tinha colocado a arma no coldre e estava tirando uma carteira de couro do bolso da frente da blusa do uniforme. Clay ficou feliz em ver que a mão que ele costumava usar para fazer aquilo estava tremendo um pouco. Estava com medo do policial, mas teria ficado com mais medo ainda se as mãos dele estivessem firmes. E o que acabara de acontecer não era um caso isolado. O tiro parecia ter tido algum efeito na audição de Clay, limpado um circuito ou algo do gênero. Ele passou a ouvir outros tiros, estampidos isolados pontuando a cacofonia cada vez maior daquele dia.

     O policial tirou um cartão — Clay achou que fosse um cartão de apresentação — da carteira fina de couro e então a colocou de volta no bolso da frente. Segurou o cartão entre os dois primeiros dedos da mão esquerda enquanto a direita havia descido novamente para a coronha da arma. Perto dos seus sapatos bem polidos, sangue da cabeça estraçalhada do lunático empoçava na calçada. Próximo de lá, a Mulher do Terninho de Poderosa estava caída em outra poça de sangue, que começava a coagular e passar para um tom mais escuro de vermelho.

     —      Qual é seu nome, senhor? — perguntou o policial para Clay.

     —      Clayton Riddell.

     —      O senhor sabe me dizer quem é o presidente?

     Clay disse para ele.

     —      Senhor, sabe me dizer a data de hoje?

     —      É dia 10 de outubro. Você sabe o que está?...

     O policial olhou para o homenzinho de bigode.

     —      Seu nome?

     —      Eu sou Thomas McCourt, 140 Salem Street, Malden. Eu...

     —      Sabe me dizer o nome do homem que concorreu contra o presidente na última eleição?

     Tom McCourt disse.

     —      Quem é a mulher do Brad Pitt?

     McCourt jogou as mãos para cima.

     —      Como é que eu vou saber? Uma estrela de cinema qualquer, eu acho.

     —      Ok. — O policial entregou para Clay o cartão que estava entre seus dedos. — Eu sou o oficial Ulrich Ashland. Este é o meu cartão. Os senhores talvez sejam chamados para testemunhar sobre o que aconteceu aqui. O que aconteceu é que os senhores precisaram da minha ajuda, eu os ajudei, fui atacado e me defendi.

      —     Você quis matá-lo — disse Clay.

     —      Sim, senhor, estamos mandando-os dessa para a melhor o mais rápido possível — concordou o oficial Ashland. — E se o senhor disser para qualquer tribunal ou comitê de inquérito que eu falei isso, vou negar. Mas tinha que ser feito. Esse pessoal está aparecendo em tudo quanto é canto. Alguns apenas cometem suicídio. Muitos outros atacam. — Ele hesitou e então prosseguiu: — Até onde sei, todos os outros atacam. — Como se para reforçar aquele argumento, ouviu-se outro tiro do outro lado da rua, uma pausa e então mais três, em rápida sucessão, do pátio coberto de sombras do Four Seasons Hotel, que se tornara um emaranhado de vidro quebrado, corpos quebrados, veículos acidentados e sangue derramado. — É como a porra do A Noite dos Mortos-vivos. — O oficial Ulrich Ashland seguiu de volta para a Boylston Street com a mão ainda na coronha da arma. — Só que essas pessoas não estão mortas. Quero dizer, a não ser que a gente as ajude.

     —      Rick! — Era um policial do outro lado da rua, chamando insistentemente. — Rick, temos que ir para o Logan! Todas as viaturas! Vem para cá!

     O oficial Ashland olhou para ver se havia trânsito, mas não havia. Com exceção dos veículos acidentados, a Boylston Street estava momentaneamente deserta. Porém, o som de mais explosões e batidas vinha das cercanias. O cheiro de fumaça estava ficando mais forte. Ele começou a atravessar a rua, chegou até a metade do caminho e se virou.

     —      Procurem algum abrigo — falou. — Protejam-se. Já tiveram sorte uma vez. Talvez não tenham da próxima.

     —      Oficial Ashland — disse Clay. — O seu pessoal não usa telefones celulares, usa?

     Ashland o observou do meio da Boylston Street — um lugar não muito seguro para ficar, na opinião de Clay. Ele estava pensando no Duck Boat fora de controle.

     —      Não, senhor — respondeu ele. — Temos rádios nos nossos carros. Esses aqui — ele deu uma batidinha no rádio que carregava no cinto, no lado oposto ao coldre. Clay, um rato de histórias em quadrinhos desde que aprendera a ler, pensou brevemente no maravilhoso cinto de utilidades do Batman.

     —      Não os use — disse Clay. — Diga aos outros. Não usem os telefones celulares.

     —      Por que diz isso?

     —      Por que eles estavam usando. — Ele apontou para a mulher morta e para a garota inconsciente. — Logo antes de enlouquecerem. Aposto o que você quiser que o cara do cutelo...

     —      Rick! — o policial do outro lado da rua voltou a gritar. — Anda logo, porra!

     —      Procurem abrigo — repetiu o oficial Ashland e correu para a calçada do Four Seasons. Clay queria ter repetido o que falou sobre os celulares, mas no geral estava feliz de ver que o policial estava a salvo. Não que ele achasse que qualquer pessoa em Boston estivesse de fato, não naquela tarde.

     —      O que você está fazendo? — Clay perguntou a Tom McCourt. — Não encoste nele, pode ser, sei lá, contagioso.

     —      Não vou encostar nele — disse Tom —, mas preciso do meu sapato.

     O sapato, perto dos dedos abertos da mão esquerda do lunático, pelo menos estava longe de onde jorrava o sangue. Tom enganchou com cuidado os dedos na parte de trás dele e o puxou na sua direção. Então se sentou no meio-fio da Boylston Street — bem onde o caminhão do Mister Softee tinha estacionado no que parecia a Clay uma outra vida — e o calçou no pé.

     —      O cadarço está rasgado — ele disse. — Aquele maluco rasgou o cadarço. — E começou a chorar de novo.

     —      Faça o melhor que puder — falou Clay. Começou a tentar tirar o cutelo do portfolio. Ele tinha sido enfiado com uma força tremenda, e Clay descobriu que teria que sacudilo para cima e para baixo até soltá-lo. Saiu com relutância, após uma série de puxões, e com uns rangidos feios que lhe deram vontade de se encolher. Ele não parava de imaginar quem tinha sofrido mais lá dentro. Pensar naquilo era idiotice, tudo culpa do estado de choque, mas ele não conseguia evitar.

     —      Não dá para amarrar mais embaixo?

     —      É, acho que s...

     Clay começou a ouvir um zumbido de mosquito mecânico que aumentou até virar um ronco mais próximo. Tom levantou o pescoço do seu lugar no meio-fio. Clay se virou. A pequena caravana de carros do Departamento de Polícia de Boston que saía do Four Seasons parou em frente à Citylights e ao Duck Boat acidentado com suas luzes piscando. Policiais colocaram a cabeça para fora das janelas à medida que um avião particular — de tamanho médio, talvez um Cessna ou o tipo que chamam de Twin Bonanza, Clay não conhecia aviões direito — veio seguindo lentamente por sobre os prédios entre o porto de Boston e o Boston Common, caindo rápido. O avião fez uma curva trôpega sobre o parque, a asa inferior quase raspando o topo de uma árvore outonal, e então se estabilizou no desfiladeiro da Charles Street, como se decidisse que aquilo era uma pista. Depois, a menos de 6 metros do solo, se inclinou para a esquerda e a asa daquele lado se chocou contra a fachada de um prédio de ardósia cinza, talvez um banco, na esquina da Charles com a Beacon. Qualquer ilusão de que o avião se movia lentamente, quase deslizando, desapareceu naquele instante. Ele girou ao redor da asa presa com um tranco violento, bateu no prédio de tijolo vermelho do lado do banco e desapareceu por entre pétalas brilhantes de fogo laranja-avermelhado. A onda de choque martelou pelo parque. Patos levantaram vôo diante dela.

     Clay olhou para baixo e viu que estava segurando o cutelo na mão. Ele o havia soltado enquanto ele e Tom McCourt observavam o avião bater. Limpou primeiro um lado da lâmina e depois o outro com a parte da frente da camisa, tomando cuidado para não se cortar (agora as mãos dele estavam tremendo). Então o enfiou — com muito cuidado — no cinto, até o cabo. Ao fazer aquilo, uma das suas primeiras tentativas de criar uma história em quadrinhos lhe veio à mente... uma pequena nuvem, na verdade.

     — Joxer, o pirata, ao seu dispor, belezinha — ele murmurou.

     —      O quê? — perguntou Tom. Ele estava do lado de Clay, olhando para aquele inferno borbulhante que se tornara o avião no lado oposto ao Boston Common. Somente a cauda estava fora do fogo.

     Nela, Clay conseguia ler o número LN6409B. Encimando-a, havia algo que parecia um logotipo de alguma equipe esportiva.

       Então aquilo também desapareceu.

     Ele sentia as primeiras ondas de calor começando a bater contra o seu rosto.

     —      Nada — ele disse para o homenzinho de terno de tweed. — Vamos ralar.

     —      Hein?

     —      Vamos cair fora.

     —      Ah, ok.

     Clay começou a andar pelo lado sul do Common, na direção que estava indo às três da tarde, 18 minutos e uma eternidade antes. Tom McCourt apertou o passo para acompanhá-lo. Ele era um homem muito baixinho mesmo.

     —      Me diz uma coisa — ele falou —, você fala muita besteira?

     —      Sem dúvida — disse Clay. — Pergunte pra minha mulher.

     — Para onde estamos indo? — perguntou Tom. — Eu estava a caminho do metrô. — Ele apontou para um quiosque pintado de verde a cerca de uma quadra de distância. Uma pequena multidão se misturava lá. — Mas já não acho que estar debaixo da terra seja uma boa idéia.

     —      Eu também não — disse Clay. — Estou em um quarto em um lugar chamado Atlantic Avenue Inn, a umas cinco quadras mais adiante.

     Tom se animou.

     —      Acho que eu conheço. Fica na Louden, na verdade, saindo da Atlantic.

     —      Isso. Vamos para lá. Podemos ver a tevê. E eu quero ligar para a minha mulher.

     —      Do telefone do quarto.

     —      Do telefone do quarto, entendido. Eu nem tenho um celular.

     —      Eu tenho um, mas deixei em casa. Está quebrado. Rafe, meu gato, o derrubou de cima do aparador. Ia comprar um novo hoje mesmo, mas... peraí. Sr. Riddell...

     —      Clay.

       — Clay, então. Tem certeza que é seguro usar o telefone do seu quarto?

     Clay parou. Não tinha nem mesmo considerado essa possibilidade. Mas se os telefones fixos não estivessem ok, o que estaria? Ia dizer aquilo para Tom quando uma confusão começou de repente na estação do metrô logo adiante. Ouviam-se exclamações de pânico, gritos e mais daquele palavrório enlouquecido — agora ele reconhecia aquilo pelo que era, a assinatura mal traçada da loucura. O pequeno emaranhado de pessoas que se misturava ao redor do abrigo de ardósia cinza e dos degraus que desciam para o metrô se dispersou. Alguns correram para a rua, dois deles com os braços ao redor um do outro, lançando olhares furtivos por sobre os ombros no caminho. Outras pessoas — a maioria delas — correram para o parque, todas em direções diferentes, o que partiu um pouco o coração de Clay. Ele sentiu um pouco mais de simpatia pelos dois que se abraçavam.

     Ainda na estação do metrô e de pé estavam dois homens e duas mulheres. Clay tinha quase certeza de que eram eles que tinham saído da estação e afugentado os demais. Enquanto Clay e Tom observavam a meia quadra de distância, aqueles quatro restantes começaram a lutar entre si. Aquela briga possuía a crueldade histérica e assassina que ele já tinha visto antes, mas não havia um padrão discernível. Não eram três contra um, dois contra dois e certamente não eram meninos contra meninas; na verdade, uma das "meninas" era uma mulher que parecia ter uns 65 anos, com um corpo atarracado e corte de cabelo sisudo que fez Clay pensar em várias professoras que ele conhecera e que estavam perto de se aposentar.

     Eles brigavam com pés, punhos, unhas e dentes, grunhindo, gritando e circundando os corpos de talvez meia dúzia de pessoas que já estavam no chão desmaiadas, ou talvez mortas. Um dos homens tropeçou em uma perna esticada e caiu de joelhos. A mais jovem das duas mulheres se jogou em cima dele. O homem de joelhos pegou algo da calçada no patamar da escada — Clay notou sem surpresa alguma que era um celular — e golpeou o lado do rosto da mulher com ele. O celular se despedaçou, abrindo um rasgo na bochecha da mulher e fazendo um jato de sangue jorrar no ombro do seu casaco leve, mas seu grito foi mais de raiva do que de dor. Ela agarrou as orelhas do homem ajoelhado como se fossem um par de alças, enfiou os próprios joelhos no colo dele e o empurrou para trás, jogando-o na penumbra do fosso da escada do metrô. Eles saíram de vista encalacrados e se engalfinhando como gatos no cio.

     —      Vamos — murmurou Tom, puxando a camisa de Clay com uma estranha delicadeza. — Vamos. Para o outro lado da rua. Vamos.

     Clay se deixou ser levado pela Boylston Street. Imaginou que ou Tom McCourt estava atento ao caminho ou era sortudo, pois chegaram ao outro lado a salvo. Pararam novamente em frente à Colonial Books (Os Melhores Livros Antigos, os Melhores Livros Novos), observando a improvável vencedora da batalha da estação de metrô entrar no parque na direção do avião em chamas, com sangue pingando no colarinho, das pontas do seu cabelo grisalho estilo tolerância zero. Clay não ficou nem um pouco surpreso que a última pessoa de pé tivesse sido a senhora que parecia uma bibliotecária ou uma professora de latim a um ano ou dois da aposentadoria. Dera aulas com bastante senhoras daquele tipo e as que chegavam àquela idade eram muitas vezes quase indestrutíveis.

     Ele abriu a boca para falar algo do gênero para Tom — na cabeça dele, parecia muito espirituoso — e o que saiu foi um grasnido choroso. Sua visão também ficou tremida. Ao que parecia, Tom McCourt, o homenzinho de terno de tweed, não era o único tendo problemas com o sistema hidráulico. Clay esfregou um braço sobre os olhos, tentou falar mais uma vez e não conseguiu nada além de outro daqueles grasnidos chorosos.

     —      Está tudo bem — disse Tom. — É melhor deixar sair.

     E assim, de pé em frente a uma vitrine cheia de livros velhos em volta de uma máquina de escrever Royal que mandava suas saudações de uma época muito anterior à era das comunicações celulares, Clay deixou sair. Chorou pela Mulher do Terninho de Poderosa, pela Cabelinho Claro e pela Cabelinho Escuro e chorou por si mesmo, pois Boston não era seu lar, e seu lar nunca pareceu tão distante.

     Depois do Common, a Boylston Street se estreitou e ficou tão entu-lhada de carros — tanto acidentados quanto simplesmente abandonados — que eles não precisavam mais se preocupar com limusines kamicases ou Duck Boats fora de controle. O que era um alívio. Por todo lado, a cidade pipocava e explodia como um réveillon no inferno. Também havia muito barulho nas proximidades — alarmes de carro e contra roubo, em sua maioria —, mas a rua em si estava sinistramente deserta pelo momento. Protejam-se, disse o oficial Ulrich Ashland, já tiveram sorte uma vez. Talvez não tenham da próxima.

     Porém, duas quadras à direita da Colonial Books e ainda a uma quadra do hotel nem-tão-fuleiro-assim de Clay, eles tiveram sorte mais uma vez. Outro lunático, daquela vez um rapaz de uns 25 anos, com músculos que pareciam esculpidos por aparelhos de ginástica, irrompeu de um beco bem na frente deles e saiu correndo pela rua, saltando por cima dos pára-choques enganchados de dois carros e despejando um fluxo incessante daquela língua sem sentido no caminho. Segurava uma antena de carro em cada mão e as brandia rapidamente para frente e para trás no ar como adagas, enquanto seguia seu curso letal. Estava nu, com exceção do que parecia um par de Nikes novinho em folha, com seus logos vermelhos brilhantes. O pau dele balançava de um lado para o outro, como o pêndulo de um relógio antigo à base de anfetamina. Ele chegou à calçada oposta e dobrou para a esquerda, seguindo de volta para o Common, sua bunda subindo e descendo em um ritmo fantástico.

     Tom McCourt agarrou o braço de Clay, com força, até aquele último lunático desaparecer, e então o soltou devagar.

     —      Se ele tivesse visto a gente... — começou a falar.

     —      É, mas não viu — disse Clay. Ele sentiu de repente uma felicidade absurda. Sabia que a sensação iria passar, mas, por ora, a aproveitava com prazer. Sentia-se como um jogador conseguindo uma seqüência interna em uma partida de pôquer com o maior pote da noite bem na sua frente.

     —      Tenho pena de quem ele vir — disse Tom.

     —      E eu de quem o vir — disse Clay. — Venha.

     As portas do Atlantic Avenue Inn estavam trancadas.

     Clay ficou tão surpreso que por um instante tudo que fez foi ficar parado ali, tentando girar a maçaneta e sentindo-a escorregar pelos dedos, tentando fazer a idéia entrar na sua cabeça: trancada. As portas do seu hotel, trancadas contra ele.

     Tom foi para o seu lado, encostou a testa no vidro para evitar o reflexo e olhou para dentro. Do norte, certamente do Logan, veio outra daquelas explosões monstruosas e, dessa vez, Clay apenas se encolheu. Não achou que Tom McCourt houvesse tido reação alguma. Ele estava muito compenetrado no que estava vendo.

     —      Um cara morto no chão — anunciou por fim. — Com um uniforme, mas parece velho demais para ser o carregador.

     —      Não quero que ninguém carregue a minha bagagem, porra — disse Clay. — Só quero subir para o meu quarto.

     Tom deu uma bufadinha esquisita. Clay achou que ele talvez estivesse começando a chorar de novo, mas então percebeu que o som era de uma risada abafada.

     As portas duplas traziam ATLANTIC AVENUE INN escrito em um dos vidros e uma mentira cabeluda — O MELHOR HOTEL DE BOSTON — escrita no outro. Tom espalmou a mão sobre o vidro da esquerda, entre O MELHOR HOTEL DE BOSTON e uma série de adesivos de cartões de crédito.

     Agora Clay também estava olhando lá para dentro. O saguão não era muito grande. À esquerda ficava o balcão da recepção. À direita, dois elevadores. No chão, havia um tapete vermelho-alaranjado. O velho de uniforme estava em cima dele, de bruços, com um pé sobre uma poltrona e uma gravura emoldurada de um veleiro sobre a bunda.

     Os bons sentimentos de Clay o deixaram rapidamente e, quando Tom começou a esmurrar o vidro em vez de só bater nele, ele pousou a mão sobre o punho de Tom.

     —      Não vai adiantar — ele falou. — Eles não vão nos deixar entrar, mesmo se estiverem vivos e sãos. — Pensou sobre aquilo e assentiu. — Especialmente se estiverem sãos.

     Tom olhou para ele, pensativo.

     —      Você não entende, não é?    

     —      Hein? Não entendo o quê?

     —      As coisas mudaram. Eles não podem deixar a gente aqui fora.

     — Ele tirou a mão de Clay de cima da dele, mas, em vez de esmurrar, encostou a testa no vidro de novo e gritou. Clay achou que ele gritava bem para um cara tão pequeno. — Ei! ô de casa!

     Uma pausa. Nada mudou no saguão. O velho carregador continuou morto com uma gravura em cima da bunda.

     —      Ei, se vocês estão aí, é melhor abrirem a porta! O homem que está comigo é um hóspede do hotel e eu sou convidado dele! Abram ou eu vou pegar um paralelepípedo e quebrar o vidro, estão me ouvindo?

     —      Um paralelepípedo — disse Clay. Ele começou a rir. — Você disse paralelepípedo} Que supimpa. — Riu mais forte. Não conseguia evitar. Então notou um movimento à esquerda com o canto do olho. Olhou em volta e viu uma adolescente parada um pouco mais à frente na rua. Estava olhando para eles com os olhos azuis abatidos de uma vítima de desastre. Usava um vestido branco e havia um grande babador de sangue na parte da frente dele. Mais sangue estava incrustado debaixo do nariz, da boca e do queixo. Fora o nariz sangrando, ela não parecia estar ferida, nem tampouco louca, apenas chocada. Chocada quase até a morte.

     —      Você está bem? — perguntou Clay. Deu um passo na direção dela e ela respondeu com um passo para trás. Dadas as circunstâncias, não podia censurá-la. Ele parou, mas levantou uma das mãos para a garota como um guarda de trânsito: Fique parada.

     Tom olhou brevemente em volta e então voltou a esmurrar a porta, daquela vez com força o bastante para chocalhar o vidro na moldura de madeira velha e fazer seu reflexo tremer.

     —      Ultima chance, depois nós vamos entrar!

     Clay se virou e abriu a boca para falar que aquele tom de ordem não iria adiantar nada, não naquele dia, e então uma cabeça careca subiu lentamente de trás do balcão. Era como olhar um periscópio saindo da água. Clay reconheceu aquela cabeça mesmo antes de enxergar o rosto; era do recepcionista que fizera o registro dele no dia anterior e que carimbara o seu tíquete do estacionamento, que ficava a uma quadra de distância; o mesmo recepcionista que lhe dera informações sobre como chegar ao Copley Square Hotel naquela manhã.

     Ele ainda ficou pelo balcão por um instante, e Clay ergueu a chave do quarto com o pingente de plástico verde do Atlantic Avenue Inn. Então ergueu também o portfolio, achando que o recepcionista poderia reconhecê-lo.

     Talvez tenha reconhecido. Era mais provável que houvesse apenas decidido que não tinha escolha. Fosse como fosse, ele levantou a parte com dobradiça do final do balcão e veio rapidamente na direção da porta, dando a volta no corpo. Clay Riddell pensou que talvez estivesse vendo a primeira disparada relutante da sua vida. Quando o recepcionista chegou ao outro lado da porta, olhou de Clay para Tom e de volta para Clay. Embora não parecesse particularmente tranqüilizado pelo que viu, retirou um molho de chaves de um bolso, passou os dedos depressa por ele, encontrou uma e a usou no seu lado da porta. Quando Tom foi pegar a maçaneta, o recepcionista careca levantou a mão quase da mesma maneira que Clay levantara a sua para a menina suja de sangue atrás deles. O recepcionista encontrou uma segunda chave, a utilizou em outra tranca e abriu a porta.

     —      Entrem — ele falou. — Rápido. — E então viu a garota, parada um pouco mais adiante e observando. — Ela não.

     —      Ela sim — disse Clay. — Venha, querida.

     Mas ela não vinha, e quando Clay deu um passo na direção dela, a menina deu meiavolta e começou a correr, a saia do vestido balançando às suas costas.

     — Ela pode morrer lá fora — disse Clay.

     —      Não é problema meu — disse o recepcionista. — Vai entrar ou não, sr. Riddle?

     Ele tinha um sotaque de Boston, não o tipo proletariado-de-South-Boston a que Clay estava mais acostumado no Maine, onde de cada três pessoas que você encontrava uma parecia ter sido expatriada de Massachusetts, mas um sotaque metido, do tipo eu-bem-que-queria-ser-inglês.

     —      É Riddell.

     Ele iria entrar sim, aquele cara não iria deixá-lo de fora de jeito nenhum agora que a porta estava aberta, mas ficou mais um tempo parado na calçada, procurando a garota.

     — Entre — disse Tom baixinho. — Não podemos fazer nada.

     E ele estava certo. Não podiam fazer nada. Aquela é que era a agonia. Ele entrou depois de Tom e o recepcionista voltou a fechar as duas trancas do Atlantic Avenue Inn atrás deles, como se aquilo bastasse para protegê-los do caos nas ruas.

     — Aquele era o Franklin — disse o recepcionista enquanto ia à frente, dando a volta no homem uniformizado estirado de bruços no chão.

   Ele parece velho demais para ser um carregador, Tom havia dito, enquanto olhava pela janela, e Clay pensou que parecia mesmo. Era um homem pequeno, com cabelos brancos bastos e viçosos. Para o azar dele, a cabeça na qual eles ainda cresciam (cabelos e unhas demoravam a receber a notícia, pelo que Clay tinha lido em algum lugar) estava virada em um terrível ângulo torto, como a de um enforcado.

     —      Ele trabalhava há 35 anos no hotel, como tenho certeza que disse a todos os hóspedes que registrou. Quase sempre duas vezes.

     O sotaquezinho forçado dava nos nervos em frangalhos de Clay. Ele pensou que se fosse um peido, seria do tipo que faz o som de uma cometa soprada por uma criança com asma.

     —      Um homem saiu do elevador — disse o recepcionista, voltando para trás do balcão, de volta ao local em que parecia se sentir em casa. A luz da lâmpada do teto bateu no seu rosto e Clay notou que ele estava muito pálido. — Um dos malucos. Franklin deu o azar de estar parado bem na frente das portas...

     —      Pelo visto não passou pela sua cabeça ao menos tirar a droga da gravura de cima da bunda dele — disse Clay. Agachou-se, pegou o quadro e o colocou sobre o sofá. Aproveitou para empurrar o pé do recepcionista morto da almofada, onde ele havia parado. O pé caiu com um som que Clay conhecia muito bem. Já o tinha transcrito em várias revistas em quadrinhos como CLUMP.

     —      O homem do elevador só acertou um soco nele — falou o recepcionista. — Fez o pobre Franklin sair voando até a parede. Acho que ele quebrou o pescoço. De qualquer forma, foi isso que fez a gravura cair, a batida de Franklin na parede.

       Na cabeça do recepcionista, aquilo parecia justificar tudo.

     —      E o que aconteceu com o homem que bateu nele? — perguntou Tom. — O maluco? Para onde ele foi?

     —      Para a rua — respondeu o recepcionista. — Foi quando achei que trancar a porta seria de longe a atitude mais sensata. Depois que ele saiu. — Ele olhou para os dois com uma mistura de medo e avareza lasciva e linguaruda que Clay achou especialmente de mau gosto. — O que está acontecendo lá fora? É muito grave?

     —      Parece que você tem uma boa idéia do que está acontecendo — falou Clay. — Não foi por isso que trancou a porta?

     —      Sim, mas...

     —      O que estão falando na tevê? — perguntou Tom.

     —      Nada. A tevê a cabo está fora do ar... — Ele olhou para o relógio. — Há quase meia hora.

     —      E o rádio?

     O recepcionista lançou um olhar afetado que dizia você só pode estar brincando. Clay estava começando a pensar que aquele sujeito poderia escrever um livro: Como Ser Detestado em Três Tempos.

     —      Rádio neste lugar? Em qualquer hotel do centro? Você só pode estar brincando.

     Lá de fora, veio um urro agudo de dor. A garota de vestido manchado de sangue voltou a aparecer na porta e começou a bater nela com a palma da mão, olhando por sobre o ombro ao fazê-lo. Clay foi para lá, depressa.

     —      Não, ele trancou a porta de novo, lembra? — Tom gritou para ele.

     Clay não tinha se lembrado.

     —      Destranque-a.

     —      Não — disse o recepcionista e cruzou os dois braços com firmeza sobre o peito estreito para mostrar como se opunha a agir daquela forma. Do lado de fora, a menina de vestido branco olhou por sobre o ombro de novo e bateu com mais força. Seu rosto raiado de sangue retesado de terror.      

     Clay tirou o cutelo do cinto. Tinha quase se esquecido dele e ficou um tanto espantado com a velocidade e a naturalidade com que ele lhe voltou à mente.

     —      Abra a porta seu filho-da-puta — ele falou para o recepcionista —, ou vou cortar sua garganta.

     — Não vai dar tempo — gritou Tom e pegou uma das cadeiras Queen Anne falsas de espaldar alto que ladeavam o sofá do saguão. Enfiou-a nas portas duplas com as pernas para cima.

     A garota notou que ele estava vindo e se afastou encolhida, erguendo as duas mãos para proteger o rosto. No mesmo instante, o homem que a perseguia apareceu na frente da porta. Fazia o tipo peão, enorme, com um bom pedaço da barriga saltando da frente da camisa amarela e um rabo-de-cavalo grisalho e seboso subindo e descendo às suas costas.

     As pernas da cadeira se chocaram com os painéis das portas duplas, as duas da esquerda estilhaçando o vidro que dizia ATLANTIC AVENUE INN, e as duas da direita, o que dizia O MELHOR HOTEL DE BOSTON. As da direita atingiram o ombro carnudo e vestido de amarelo do peão no momento em que ele agarrava a garota pelo pescoço. A parte de baixo do assento da cadeira bateu na junção sólida em que as duas portas se encontravam e Tom McCourt foi cambaleando para trás, atordoado.

     O peão estava rugindo aquele palavrório desconexo e sangue começara a descer pela carne sardenta do seu bíceps esquerdo. A garota conseguiu se livrar dele, mas tropeçou nos próprios pés e caiu, metade na calçada e metade na sarjeta, gritando de dor e medo.

     Clay estava emoldurado em um dos painéis de vidro estilhaçados, sem se lembrar de ter atravessado o saguão e apenas com uma vaga lembrança de ter tirado a cadeira do caminho.

     —      Ei, babaca! — gritou, e se sentiu um pouquinho encorajado quando a torrente de palavras sem sentido do homenzarrão parou por um instante e ele se deteve. — É, você mesmo — gritou Clay. — Estou falando com você. — E então, por ser a única coisa em que conseguiu pensar: — Eu comi a sua mãe, e foi uma trepada e tanto!

     O maníaco enorme de camisa amarela gritou algo que parecia sinistramente com o que a Mulher do Terninho de Poderosa gritara logo antes de morrer — parecia sinistramente com Rast!— e se virou de volta para o prédio que tinha criado de repente dentes e voz para atacá-lo. O que quer que tenha visto, não pode ter sido um homem feroz e suado com um cutelo na mão saindo de dentro de um painel retangular que antes era envidraçado, pois Clay nem precisou atacá-lo. O homem de camisa amarela pulou em cima da lâmina projetada para frente do cutelo. O aço sueco deslizou com facilidade para dentro da papada queimada de sol sob seu queixo, liberando uma cascata vermelha. Ela inundou a mão de Clay com uma quentura surpreendente — quase tão quente quanto uma xícara de café recém-servida —, obrigando-o a refrear um impulso de se afastar. Em vez disso, fez força para frente, sentindo por fim que a faca encontrava resistência. Ela hesitou, mas aquela belezinha não empenava. Varou a cartilagem e então saiu pela nuca do homenzarrão. Ele caiu para frente — Clay não tinha como segurá-lo com um braço, de jeito nenhum, o cara devia ter uns 115 quilos, talvez até uns 130 — e por um instante ficou apoiado na porta como um bêbado em um poste, com os olhos castanhos saltando para fora, a língua manchada de nicotina pendendo de um canto da boca e o pescoço cuspindo sangue. Então os joelhos dele falharam e ele desabou. Clay segurou o cabo do cutelo e ficou impressionado com a facilidade com que ele se desprendeu. Muito mais fácil do que arrancá-lo do couro e do aglomerado reforçado do portfolio.

     Com o lunático no chão, ele podia ver a garota novamente, um joelho na calçada e outro na sarjeta, gritando por trás da cortina de cabelo que pendia sobre o seu rosto.

     — Querida — ele disse. — Querida, pare — mas ela continuou gritando.

     O nome da menina era Alice Maxwell. Pelo menos isso ela conseguiu dizer a eles. E também que tinha vindo de trem junto com a mãe para Boston — de Oxford, ela disse — para fazer umas compras. Isso costumavam fazer nas quartas, que chamavam de "dia curto" na escola secundária que freqüentava. Ela falou que as duas tinham descido do trem na South Station e pegado um táxi. Disse que o motorista estava usando um turbante azul, e o turbante era a última coisa de que conseguia se lembrar até o recepcionista careca finalmente destrancar as portas duplas estilhaçadas do Atlantic Avenue Inn e deixá-la entrar.

     Clay achava que ela se lembrava de mais. Baseou esse palpite na maneira como a garota começou a tremer quando Tom McCourt perguntou se ela ou a mãe estavam com celulares. Ela disse que não se lembrava, mas Clay tinha certeza que uma delas estava, ou as duas. Parecia que todo mundo tinha um naqueles dias. Ele era a exceção que confirmava a regra. E havia Tom, que talvez devesse a vida ao gato que derrubara o dele de cima do balcão.

     Eles conversaram com Alice (a conversação consistiu basicamente em Clay fazer perguntas enquanto a garota ficava calada, baixando os olhos para os joelhos ralados e balançando a cabeça de vez em quando) no saguão do hotel. Clay e Tom tinham levado o corpo de Franklin para trás do balcão, ignorando o protesto veemente e bizarro do recepcionista careca de que "assim eu vou ficar pisando nele". Desde então, o recepcionista, que dissera se chamar simplesmente Sr. Ricardi, havia se retirado para o seu escritório particular. Clay o seguira o suficiente para se certificar de que o Sr. Ricardi tinha dito a verdade sobre a tevê estar fora do ar, e então o deixou sozinho. Sharon Riddell diria que o Sr. Ricardi estava meditando na sua tenda.

     No entanto, o homem não deixou Clay ir embora sem uma provocação de despedida.

     —      Agora estamos vulneráveis — disse ele com azedume. — Espero que você esteja feliz.

     —      Sr. Ricardi — disse Clay, o mais pacientemente possível —, eu vi um avião cair do outro lado do Boston Common há menos de uma hora. Parecia que mais aviões, aviões grandes, estavam fazendo a mesma coisa no Logan. Talvez eles até estejam realizando ataques suicidas nos terminais. Explosões estão acontecendo em todo o centro. Eu diria que esta tarde toda a cidade de Boston está vulnerável.

     Como que para frisar esse argumento, um baque muito pesado soou sobre a cabeça deles. O Sr. Ricardi não olhou para cima. Apenas fez um gesto com a mão que dizia vá embora na direção de Clay. Sem tevê para assistir, ele se sentou à mesa e ficou olhando severamente para a parede.

    

     Clay e Tom colocaram as duas cadeiras Queen Anne falsas contra a porta, e seus espaldares altos taparam bem as molduras estilhaçadas que antes sustentavam os vidros. Embora Clay tivesse certeza que obstruir a entrada do hotel ofereceria uma segurança frágil ou completamente inútil, achou também que bloquear a vista da rua seria uma boa idéia, e Tom concordara. Uma vez que as cadeiras estavam no lugar, eles baixaram a persiana da janela principal do saguão. Isso escureceu bastante o local e fez com que sombras fracas na forma de barras de cela de prisão marchassem pelo tapete vermelho-alaranjado.

     Com aquelas coisas resolvidas e a história radicalmente resumida de Alice Maxwell contada, Clay finalmente se dirigiu ao telefone atrás do balcão. Ele olhou para o relógio. Eram 16h22; uma hora perfeitamente lógica, exceto que qualquer sensação normal de tempo parecia ter sido eliminada. Horas pareciam ter passado desde que ele vira o homem mordendo o cachorro no parque. Também era como se não houvesse tempo algum. Mas havia tempo, da maneira como os humanos o mediam, pelo menos, e, em Kent Pond, Sharon com certeza já teria voltado para a casa na qual ele ainda pensava como lar. Precisava falar com ela. Para se certificar de que ela estava bem e dizer que ele também estava; mas aquilo não era o importante. Certificar-se de que Johnny estava bem, isso sim é que importava, mas havia uma coisa mais importante ainda. Vital, na realidade.

     Ele não tinha um celular e estava quase certo de que Sharon também não. Imaginava que talvez ela tivesse comprado um desde que eles se separaram em abril, mas os dois ainda viviam na mesma cidade, ele a via quase todos os dias e achou que se Sharon tivesse comprado um, ele saberia. Para começo de conversa, ela teria lhe dado o número, certo? Certo. Mas...

     Mas Johnny tinha um celular. Foi aquilo que o pequeno Johnny-Gee, que já não era tão pequeno assim, 12 anos não era tão pequeno, quis no seu último aniversário. Um celular vermelho que tocava o tema do programa de tevê favorito dele quando chamava. É claro que ele era proibido de ligá-lo ou até mesmo tirá-lo de dentro da mochila enquanto estivesse na escola, mas as aulas já tinham terminado àquela hora. E, além disso, Clay e Sharon na verdade o incentivaram a levar o aparelho para o colégio, em parte por causa da separação. Poderiam acontecer emergências ou pequenos contratempos, como perder um ônibus. A esperança de Clay era que Sharon tinha falado que, quando entrava no quarto de Johnny ultimamente, quase sempre via o celular esquecido em cima da mesa ou no peitoril da janela ao lado da cama, fora do carregador e morto como um cocô de cachorro.

     Ainda assim, a idéia do celular vermelho de John tiquetaqueava na cabeça dele como uma bomba.

     Clay tocou o telefone fixo no balcão do hotel e então tirou a mão. Lá fora, algo explodiu, mas aquela explosão foi longe dali. Era como ouvir um projétil explodir quando se está bem longe das linhas inimigas.

     Não levante essa hipótese, ele pensou. Nem mesmo levante a hipótese de existirem linhas inimigas.

     Ele olhou através do saguão e viu Tom se agachando ao lado de Alice enquanto ela se sentava no sofá. Estava murmurando algo baixinho, tocando um de seus mocassins e erguendo os olhos para o rosto dela. Aquilo era bom. Ele era bom. Clay se sentia cada vez mais grato por ter encontrado Tom McCourt... ou por Tom McCourt tê-lo encontrado.

     Provavelmente, não teria problema usar os telefones fixos. A questão era se provavelmente era bom o bastante. Ele tinha uma esposa pela qual ainda se sentia de certa forma responsável, e quanto ao filho, não havia essa história de "de certa forma". Simplesmente pensar em Johnny era perigoso. Todas as vezes que sua mente se voltava para o garoto, Clay sentia um rato surtar na sua cabeça, pronto para se libertar da gaiola frágil que o prendia e sair mordendo tudo que encontrasse pela frente com seus dentinhos afiados. Se ele conseguisse se certificar de que Johnny e Sharon estavam bem, poderia manter o rato na gaiola e planejar o que fazer em seguida. Mas se fizesse alguma idiotice, não serfa capaz de ajudar ninguém. Na verdade, tornaria as coisas mais difíceis para as pessoas que estavam ali. Pensou um pouco naquilo e então chamou o nome do recepcionista.

     Quando não obteve resposta do escritório, chamou de novo. Quando continuou sem resposta, disse:

     —      Sei que está me ouvindo, Sr. Ricardi. Se me obrigar a ir buscá-lo, vou ficar chateado. Talvez fique chateado o bastante para considerar a hipótese de jogar você na rua.

     —      Não pode fazer isso — disse o Sr. Ricardi em um tom rude de ordem. — Você é um hóspede deste hotel.

     Clay pensou em repetir o que Tom dissera para ele quando ainda estavam lá fora — as coisas mudaram. Em vez disso, algo o fez ficar calado.

     —      O que é? — disse o Sr. Ricardi finalmente. Soando mais rude do que nunca. Do andar de cima, veio um baque mais alto, como se alguém tivesse derrubado uma mobília pesada. Uma escrivaninha, talvez. Daquela vez, até mesmo a garota olhou para cima. Clay achou que tinha ouvido um grito abafado, ou talvez um uivo de dor, mas, se fosse o caso, não houve continuidade. O que ficava no segundo piso?

     Não era um restaurante, ele se lembrava que alguém lhe disse (o próprio Sr. Ricardi, quando Clay chegara) que o hotel não tinha restaurante, mas o Metropolitan Café ficava logo ao lado. Salas de reunião, ele pensou. Tenho quase certeza de que são salas de reunião com nomes indianos.

     —      O que é?— perguntou novamente o Sr. Ricardi. Parecia mais rabugento do que nunca.

     —      Você tentou ligar para alguém depois que tudo isso começou?

     —      Mas é claro. — disse o Sr. Ricardi. Ele apareceu na porta entre o escritório e a área atrás do balcão, com seus escaninhos, monitores do circuito de segurança e computadores. Então olhou indignado para Clay. — Os alarmes de incêndio dispararam, eu os desliguei, Doris falou que uma lixeira tinha pegado fogo no terceiro andar, e eu liguei para os Bombeiros para dizer que não precisavam se preocupar. A linha estava ocupada! Ocupada, imagine só!

     —      Você deve ter ficado bastante irritado — disse Tom.

     O Sr. Ricardi pareceu ficar mais calmo pela primeira vez.

     —      Liguei para a polícia quando as coisas lá fora começaram a... bem... a degringolar.

     —      Sim — falou Clay. Degringolar era uma bela maneira de colocar a questão. — Conseguiu falar com eles?

     —      Um homem disse que eu tinha que desocupar a linha e desligou na minha cara — disse o Sr. Ricardi. A indignação estava voltando à sua voz. — Quando liguei de novo, depois de o maluco ter saído do elevador e matado Franklin, uma mulher atendeu. Ela disse... — A voz do Sr. Ricardi começou a tremer e Clay viu as primeiras lágrimas descerem pelos desfiladeiros estreitos que marcavam os lados do nariz do homem — ... disse...

     —      O quê? — perguntou Tom, naquele mesmo tom de solidariedade. — O que ela disse, Sr. Ricardi?

     —      Ela disse que se Franklin estava morto e o homem que o matara tinha ido embora, eu não tinha problemas. Foi ela quem aconselhou que eu me trancasse aqui dentro. Também me disse para chamar os elevadores do hotel para o saguão e desligá-los, o que eu fiz.

     Clay e Tom trocaram um olhar que expressava um pensamento: Boa idéia. Clay vislumbrou uma imagem vivida de insetos presos entre uma janela fechada e uma tela, zumbindo furiosamente, mas sem conseguirem sair. Aquela imagem tinha algo a ver com os baques que tinham vindo de cima das cabeças deles. Ele imaginou brevemente quanto tempo levaria para a pessoa — ou pessoas — que estava fazendo o barulho lá em cima achar a escada.

     —      Então ela desligou na minha cara. Depois disso, liguei para minha mulher em Milton.

     —      Você conseguiu falar com ela — disse Clay, querendo esclarecer bem aquele ponto.

     —      Ela estava muito assustada. Me pediu para ir para casa. Falei que tinham me aconselhado a ficar no hotel com as portas trancadas. A polícia tinha me aconselhado. Falei para ela fazer o mesmo. Tranque as portas e fique... bem, fique na encolha. Ela implorou que eu fosse para casa. Disse que tinha ouvido tiros na rua e uma explosão a uma rua de distância. Falou que viu um homem nu correndo pelo quintal dos Benzyck. Os Benzyck são nossos vizinhos.

     —      Sim — disse Tom com brandura. Docemente, até. Clay não falou nada. Estava um pouco envergonhado pela raiva que sentira do Sr. Ricardi, mas Tom ficara com raiva também.

     —      Ela disse que achava que o homem nu talvez... talvez, ela só disse talvez... estivesse carregando o corpo de uma... mmm... uma criança nua. Mas provavelmente era só uma boneca. Ela me implorou de novo para deixar o hotel e voltar para casa.

     Clay já tinha conseguido o que precisava. Os telefones fixos eram seguros. O Sr. Ricardi estava em estado de choque, e não louco. Clay colocou a mão no aparelho. O Sr. Ricardi colocou a mão sobre a dele antes de Clay levantar o fone. Os dedos do Sr. Ricardi eram longos, pálidos e muito frios. Ele ainda não terminara. Estava inspirado.

     —      Ela me chamou de filho-da-puta e desligou. Sei que estava com raiva de mim e é claro que entendo o porquê. Mas a polícia me disse para trancar tudo e ficar onde estava. A polícia me disse para ficar fora das ruas. A polícia. As autoridades.

    Clay assentiu.

     —      As autoridades, claro.

     —      Você veio de metrô? — perguntou o Sr. Ricardi. — Eu sempre uso o metrô. Fica a duas quadras daqui. É muito conveniente.

     —      Não seria conveniente nesta tarde — falou Tom. — Depois do que acabamos de ver, nada me faria ir lá para baixo.

     O Sr. Ricardi olhou para Clay com uma impaciência chorosa.

     —      Está vendo?

     Clay assentiu mais uma vez.

     —      Você está mais seguro aqui — falou. Sabendo que queria ir para casa ver o filho. Sharon também, é claro, mas principalmente o filho. Sabendo que não deixaria nada impedi-lo, a não ser que fosse inevitável. Era como um peso na sua mente que lançava uma sombra real sobre seus olhos. — Muito mais seguro.

     Então pegou o fone e discou 9 para uma linha externa. Não tinha certeza se iria conseguir uma, mas conseguiu. Discou 1, depois 207, que era o código de área para todo o Maine, e então 692, que era o prefixo para Kent Pond e para as cidades vizinhas. Discou três dos quatro números — quase alcançando a casa na qual ainda pensava como lar — antes de os característicos três toques o interromperem. Uma voz feminina gravada entrou em seguida. "Desculpenos. Todos os circuitos estão ocupados. Por favor, tente fazer sua chamada mais tarde."

     Logo em seguida, veio um tom de discagem, como se um circuito automático o tivesse desconectado do Maine... se é que era de lá que vinha a voz da máquina. Clay deixou o fone cair até a altura do ombro, como se tivesse ficado muito pesado. Então o colocou de volta no gancho.

    

     Tom disse que ele era louco de querer sair dali.

     Em primeiro lugar, apontou Tom, eles estavam relativamente seguros no Atlantic Avenue Inn, especialmente com os elevadores desativados e o acesso ao saguão pelas escadas bloqueado. Tinham feito isso empilhando caixas e malas que estavam na sala de bagagens em frente à porta no fim do corredor curto depois da área dos elevadores. Mesmo se alguém dotado de uma força extraordinária empurrasse a porta do outro lado, conseguiria apenas arrastar a pilha até a parede oposta, criando uma brecha de talvez 15 centímetros. Insuficiente para uma pessoa passar.

     Em segundo lugar, o tumulto na cidade além do porto seguro deles parecia estar aumentando. Havia uma zoeira constante de alarmes que se misturavam, gritos e berros, motores em disparada e, às vezes, o cheiro apavorante de fumaça, embora parecesse que o vento forte do dia estivesse levando a maior parte dela para longe dali. Até agora, pensou Clay, mas não disse em voz alta, pelo menos não por ora — não queria deixar a garota mais assustada do que já estava. Havia explosões que nunca pareciam vir individualmente, e sim em espasmos. Uma delas foi tão perto que todos se agacharam, certos de que a janela da frente iria explodir. Não aconteceu, mas, depois daquilo, eles foram para o santuário do Sr. Ricardi.

     O terceiro motivo que Tom deu para achar que Clay estava louco de simplesmente pensar em deixar a precária segurança do hotel era que já eram 17hl5. O dia estava para terminar. Ele argumentou que tentar sair de Boston de noite seria loucura.

     — Dê uma olhada lá fora — ele disse, gesticulando para a pequena janela do Sr. Ricardi, que dava para a Essex Street. A Essex estava repleta de carros abandonados. Havia pelo menos um corpo, de uma jovem vestindo jeans e uma camiseta dos Red Sox. Estava de bruços na calçada, com os dois braços estirados, como se tivesse morrido tentando nadar. VARITEK, dizia a camiseta. — Você está pensando que vai conseguir dirigir seu carro? Se estiver, é melhor pensar de novo.

     —      Ele está certo — disse o Sr. Ricardi. Ele estava sentado atrás da mesa com os braços cruzados mais uma vez sobre o peito estreito, um estudo em desalento. — O seu carro está no estacionamento da Tamworth Street. Acho que você não vai conseguir nem recuperar as chaves.

     Clay, que já havia considerado o carro uma causa perdida, abriu a boca para dizer que não estava pensando em dirigir (pelo menos não em um primeiro momento), quando outro baque veio do andar de cima, daquela vez, forte o bastante para fazer o teto tremer. Alice Maxwell, que estava sentada na cadeira em frente à mesa do Sr. Ricardi, olhou nervosa para cima e então começou a se encolher mais ainda.

     —      O que tem lá em cima? — perguntou Tom.

     —      Logo acima da gente fica a Sala Iroquois — respondeu o Sr. Ricardi. — A maior das nossas três salas de reunião e onde guardamos todas os nossos materiais: cadeiras, mesas, equipamento audiovisual. — Ele fez uma pausa. — E, embora não tenhamos um restaurante, organizamos bufês ou coquetéis, se os clientes requisitarem esse tipo de serviço. O último baque...

     Ele não completou a frase. Na opinião de Clay, não precisava. Aquele último baque foi de um carrinho com uma pilha de utensílios de vidro sendo virado no chão da Sala Iroquois, onde vários outros carrinhos e mesas já tinham sido derrubados por algum louco que estava andando de um lado para o outro furiosamente lá em cima. Zunindo pelo segundo andar como um inseto preso entre a janela e a tela, algo sem inteligência para descobrir a saída, algo que só sabia correr e parar, correr e parar.

     Alice falou pela primeira vez em quase meia hora e, pela primeira vez desde que a encontraram, sem que alguém a incitasse.

     —      Você disse alguma coisa sobre uma mulher chamada Doris.

     —      Doris Gutierrez. — O Sr. Ricardi assentia com a cabeça. — A chefe da limpeza. Excelente funcionária. Provavelmente a melhor. Ela estava no terceiro andar na última vez que falei com ela.

     —      Ela estava com... — Alice não falou. Em vez disso, fez um gesto que se tornara quase tão familiar para Clay quanto o indicador na frente dos lábios indicando Shh. Alice colocou a mão direita do lado do rosto com o polegar perto da orelha e o dedinho na frente da boca.

     —      Não — disse o Sr. Ricardi, quase afetadamente. — Os funcionários são obrigados a deixá-los nos seus armários durante o expediente. Uma violação e eles ganham uma advertência. Duas e podem ser despedidos. Digo isso a eles quando são contratados. — Ele meio que deu de ombros com um só ombro magro. — A política é da casa, não minha.

     —      Ela poderia ter descido para o segundo andar para investigar aqueles sons? — perguntou Alice.

     —      Provavelmente — disse o Sr. Ricardi. — Não tenho como saber. Só sei que não tive notícias de Doris desde que fui comunicado do fogo na lata de lixo, e ela não respondeu ao bipe. Eu a bipei duas vezes.

     Clay não queria dizer: Viram, aqui também não é seguro, em voz alta, então olhou para Tom, que estava atrás de Alice, tentando passar para ele a idéia básica com os olhos.

     Tom falou:

     —      Quantas pessoas você diria que ainda estão nos andares de cima?

     —      Não tenho como saber.

     —      Se tivesse que adivinhar.

     —      Não muitas. Em se tratando do pessoal da limpeza, provavelmente só Doris. Os funcionários do dia saem às três e os da noite só chegam às seis. — O Sr. Ricardi apertou os lábios com força. — É um gesto de economia. Não se pode dizer medida, porque não funciona. Quanto aos hóspedes...

     Ele pensou.

     —      A tarde é parada para nós, muito parada. Os hóspedes da noite anterior já saíram todos, é claro, a diária acaba ao meio-dia no Atlantic Inn, e os hóspedes da noite não começam a se registrar antes das quatro, mais ou menos, em uma tarde comum. O que certamente não é o caso desta. Os hóspedes que ficam vários dias geralmente estão aqui a negócios. Como imagino que você esteja, Sr. Riddle.

     Clay assentiu sem se preocupar em corrigi-lo.

       —     No meio da tarde, os homens de negócio geralmente estão fazendo o que quer que os trouxe até Boston. Então, como pode ver, estamos quase sozinhos.

     Como que para contradizer aquela afirmação, outro baque soou sobre a cabeça deles, mais vidro quebrando e um rosnado feroz baixo. Todos olharam para cima.

     —      Clay, ouça — disse Tom. — Se o cara lá de cima encontrar as escadas... Não sei se essa gente é capaz de raciocinar, mas...

     —      A julgar pelo que vimos nas ruas — disse Clay —, até chamá-los de gente pode estar errado. Estava pensando que o cara lá em cima é mais como um inseto preso entre uma janela e uma tela. Um inseto assim pode sair, se achar um buraco, e o cara lá em cima pode até achar as escadas, mas se isso acontecer, acho que vai ser por acidente.

     —      E quando ele descer e descobrir que a porta para o saguão está travada, vai usar a porta de incêndio do corredor — falou o Sr. Ricardi com o que, para ele, era um tom de animação. — Vamos escutar o alarme, está programado para soar sempre que alguém empurra a barra, e saberemos que ele foi embora. Menos um doido para nos preocuparmos.

     Em algum lugar ao sul de onde estavam, algo grande explodiu e todos se encolheram. Clay pensou que agora sabia como devia ser viver em Beirute durante a década de 1980.

     —      Estou tentando provar uma coisa — disse Clay com paciência.

     —      Eu não acho — disse Tom. — Você vai sair de qualquer jeito, porque está preocupado com sua mulher e seu filho. Está tentando nos convencer porque quer companhia.

     Clay soltou um suspiro de frustração.

     —      É claro que quero companhia, mas não é por isso que quero convencê-los a vir comigo. O cheiro de fumaça está ficando mais forte, mas quando foi a última vez que vocês ouviram um alarme?

     Ninguém respondeu.

     —      Eu também não — falou Clay. — Não acho que as coisas vão melhorar em Boston, não por agora. Vão piorar. Se foram os telefones celulares...

     —      Ela tentou deixar uma mensagem para papai — disse Alice. Falou depressa, como se quisesse garantir que as palavras todas saíssem antes que a lembrança fosse embora. — Só queria confirmar que ele tinha pegado a roupa na lavanderia, porque precisava do vestido amarelo de lã para a reunião do comitê e eu precisava do meu uniforme extra para o jogo fora de casa do sábado. Isso foi no táxi. E então nós batemos! Ela estrangulou o homem e mordeu o homem e o turbante dele caiu e o rosto dele estava cheio de sangue e nós batemos!

     Alice olhou em volta para os três rostos que a observavam, então colocou o próprio rosto entre as mãos e começou a soluçar. Tom fez menção de confortá-la, mas o Sr. Ricardi surpreendeu Clay ao dar a volta na mesa e passar um braço magrelo em volta da garota antes de Tom a alcançar.

     —      Passou, passou — ele disse. — Tenho certeza de que foi tudo um mal-entendido, minha jovem.

     Ela levantou a cabeça para olhar para ele, os olhos arregalados e furiosos.

     —      Mal-entendido?— Ela indicou o babador de sangue seco na frente do vestido. — Isso parece um mal-entendido? Usei o caratê que aprendi nas aulas de defesa pessoal da escola. Dei golpes de caratê na minha própria mãe! Quebrei o nariz dela, acho... tenho certeza... — Alice balançou a cabeça rapidamente, o cabelo se agitando. — E mesmo assim, se eu não tivesse conseguido esticar o braço para trás para abrir a porta...

     —      Ela teria matado você — disse Clay categoricamente.

     —      Ela teria me matado — concordou Alice com um sussurro. — Ela não sabia quem eu era. Minha própria mãe. — A garota olhou de Clay para Tom. — Foram os celulares — ela disse com o mesmo sussurro. — Foram os celulares, sem dúvida.

     — Quantas dessas pragas existem em Boston? — perguntou Clay. — Qual é a penetração de mercado?

     — Considerando o grande número de estudantes universitários, eu diria que é enorme — respondeu o Sr. Ricardi. Ele voltara ao seu lugar atrás da mesa e agora parecia um pouco mais animado. Deve ter sido por ter confortado a garota, ou talvez por conta da pergunta sobre negócios. — No entanto, o alcance vai muito além dos jovens abastados, é claro. Li um artigo na Inc. há um ou dois meses que afirmava que hoje em dia o número de celulares na China continental é igual à população da América. Dá pra imaginar uma coisa dessas?

     Clay não queria imaginar.

     —      Certo. — Tom assentia com relutância. — Estou vendo aonde você quer chegar com isso. Alguém, alguma organização terrorista, dá um jeito de manipular os sinais de celular. Se você fizer ou receber uma ligação, recebe um tipo de... o quê?... um tipo de mensagem subliminar, sei lá... que te deixa maluco. Parece ficção científica, mas acredito que há 15 ou vinte anos os telefones celulares como eles são hoje em dia pareceriam ficção científica para a maioria das pessoas.

     —      Tenho quase certeza de que é algo do gênero — disse Clay. — basta entreouvir uma ligação e você está completamente ferrado. — Ele estava pensando na Cabelinho Escuro. — Mas o mais traiçoeiro é que quando as pessoas vêem algo de errado ao redor...

     —      O primeiro impulso delas é pegar o celular e tentar descobrir a causa — disse Tom.

     —      Exatamente — falou Clay. — Eu vi gente fazer isso.

     Tom olhou para ele com desânimo.

     —      Eu também.

     —      O que tudo isso tem a ver com você sair da segurança do hotel, principalmente com a noite chegando, eu não sei — disse o Sr. Ricardi.

     Como se para responder à pergunta, houve outra explosão. Seguida por outra meia dúzia, marchando para o sudeste como as passadas de um gigante indo embora. De cima deles veio outro baque e um grito fraco de raiva.

     —      Não acho que os malucos sejam inteligentes o bastante para sair da cidade da mesma forma que o cara lá de cima não consegue achar o caminho para as escadas — disse Clay.

     Por um instante ele pensou que a expressão no rosto de Tom fosse de choque, mas então percebeu que era de outra coisa. Estupefação, talvez. E uma esperança nascente.

     —      Oh, meu Deus — ele disse e chegou a dar um tapa no rosto com uma das mãos. — Eles não vão sair. Não tinha pensado nisso.

       —     Acho que tem outra coisa — falou Alice. Estava mordendo o lábio e com os olhos baixados para as mãos, que estavam embaralhadas em um nó inquieto. Ela se forçou a erguer os olhos para Clay. — Talvez seja mais seguro sair à noite.

     —      Por que, Alice?

     —      Se não conseguirem te ver, se você for para trás de alguma coisa, se conseguir se esconder, eles esquecem de você quase na mesma hora.

     —      O que te faz pensar assim, querida? — perguntou Tom.

     —      Eu me escondi do homem que estava me seguindo — ela disse baixinho. — O cara de camisa amarela. Foi logo antes de eu ver vocês. Me escondi em um beco. Atrás de uma daquelas caçambas. Fiquei com medo porque achei que estava sem saída se ele viesse atrás de mim, mas foi a única coisa que consegui pensar em fazer. Eu o vi parado na entrada do beco, olhando em volta, andando de um lado para o outro... fazendo círculos de preocupação, como diria meu avô... e primeiro achei que ele estava de sacanagem comigo, sabe? Porque ele tinha que ter me visto entrar no beco, eu estava a poucos centímetros dele... só alguns centímetros... quase ao alcance da mão... — Alice começou a tremer. — Mas, assim que entrei ali, era como se eu estivesse... sei lá...

     —      Longe dos olhos, longe da mente — disse Tom. — Mas se ele estava tão perto, por que você parou de correr?

     —      Por que eu não agüentava mais — respondeu Alice. — Simplesmente não agüentava mais. Minhas pernas pareciam de borracha e era como se eu fosse despedaçar por dentro. Mas acabou que nem precisava correr. Ele fez mais alguns círculos de preocupação, murmurando aquela falação maluca, e foi embora. Mal pude acreditar. Achei que ele estivesse tentando blefar... mas ao mesmo tempo sabia que era louco demais para uma coisa daquelas. — Ela olhou de relance para Clay e então voltou a baixar os olhos para as mãos. — Meu azar foi encontrar com ele de novo. Devia ter ficado com vocês na primeira vez que os vi. Às vezes eu sou uma idiota.

     —      Você estava assus... — Clay começou a falar, e então a maior explosão até o momento veio de algum lugar a leste de onde estavam, um KER-WHAM ensurdecedor, que fez com que todos se abaixassem e tapassem os ouvidos. Ouviram a janela do saguão se estilhaçar.

       —     Meu... Deus— disse o Sr. Ricardi. Para Clay, aqueles olhos arregalados debaixo da careca deixaram-no parecido com Daddy Warbucks, o preceptor de Annie, a Pequena Órfã. — Deve ter sido aquele novo posto da Shell que eles construíram na Kneeland. Aquele que todos os táxis e Duck Boats usam. Veio da direção dele.

     Clay não fazia idéia se Ricardi tinha razão, não sentia cheiro de gasolina (pelo menos ainda não), mas sua mente visualmente direcionada podia ver um triângulo de concreto urbano queimando como um maçarico no entardecer.

     —      Uma cidade moderna pode se incendiar? — ele perguntou para Tom. — Uma cidade feita quase toda de concreto, metal e vidro? Ela pode se incendiar como Chigaco depois que a vaca da Sra. O'Leary derrubou o lampião2 ?

     —      Essa história de vaca derrubando o lampião não passa de uma lenda urbana — disse Alice. Ela esfregava a nuca como se estivesse ficando com uma dor de cabeça forte. — Foi o que a Sra. Myers disse, na aula de história americana.

     —      Claro que pode — disse Tom. — Veja o que aconteceu com o World Trade Center, depois que aqueles aviões o atingiram.

     —      Aviões cheios de combustível — disse o Sr. Ricardi incisivamente.

     Como se o recepcionista careca o tivesse invocado, o cheiro de gasolina queimando chegou a eles, soprando pelas janelas estilhaçadas do saguão e deslizando por baixo da porta do escritório como sinal de más vibrações.

     —      Parece que você acertou na mosca em relação ao posto da Shell — observou Tom.

     O Sr. Ricardi foi até a porta que separava o escritório do saguão. Ele a destrancou e abriu. O que Clay conseguia ver do saguão à sua frente já parecia deserto, sombrio e, de certa forma, irrelevante. O Sr. Ricardi deu uma fungada ruidosa e então fechou a porta e a trancou novamente.

     —      Já está mais fraco — falou.

     —      Bem que você queria — disse Clay. — Ou o seu nariz já está se acostumando com o cheiro.

     —      Acho que ele pode ter razão — disse Tom. — Um vento forte está vindo do oeste lá fora, o que quer dizer que o ar está se movendo na direção do mar, e se o que acabamos de ouvir foi o novo posto que eles colocaram na esquina da Kneeland com a Washington, em frente ao New England Medical Center...

     —      É esse mesmo — disse o Sr. Ricardi. Seu rosto registrando uma satisfação abatida. — Oh, os protestos! O dinheiro deu um jeito neles, pode cre...

     Tom passou por cima dele.

     —      ... então o hospital deve estar pegando fogo a essa altura... junto com todo mundo que ainda estiver dentro dele, é claro...

     —      Não — disse Alice, e em seguida cobriu a boca com a mão.

     —      Acho que sim. E o Wang Center vai ser o próximo. O vento pode parar quando acabar de escurecer, mas, se não parar, até as dez da noite tudo que estiver a leste da Mass Pike vai virar churrasco.

     —      Nós estamos a oeste — observou o Sr. Ricardi.

     —      Então estamos a salvo — disse Clay. — Pelo menos disso.

     Ele foi até a janelinha do escritório, ficou na ponta dos pés e olhou para a Essex Street.

     —      O que está vendo? — perguntou Alice. — Está vendo gente?

     —      Não... sim. Um homem. Do outro lado da rua.

     —      É um dos malucos? — ela perguntou.

     —      Não dá para saber. — Mas Clay achava que sim. Pelo jeito que ele andava e a maneira convulsiva como ficava olhando por sobre o ombro. Uma vez, logo antes de dobrar a esquina para a Lincoln Street, o cara quase bateu em um arranjo de frutas em frente a uma mercearia. E, embora Clay não pudesse ouvi-lo, conseguia ver os lábios do homem se mexendo. — Agora ele sumiu.

     —      Mais ninguém? — perguntou Tom.

     —      Não no momento, mas tem fumaça. — Clay fez uma pausa. — Fuligem e poeira também. Não dá para saber quanto. O vento está soprando tudo.

     —      Ok, você me convenceu — disse Tom. — Sempre fui devagar para aprender as coisas, mas nunca fui burro. A cidade vai queimar e só os malucos vão ficar por aqui.

      

     —      Acho que vai ser isso mesmo — falou Clay. E ele não achava que aquilo valia só para Boston, mas, por ora, Boston era tudo que suportaria levar em conta. Depois, poderia até ser capaz de ampliar sua visão, mas não antes de Johnny estar em segurança. Ou talvez o quadro mais amplo ficasse sempre fora do seu alcance. Afinal de contas, ele desenhava quadrinhos para viver. Porém, apesar de tudo, o sujeito egoísta que ficava agarrado na sua mente como um carrapato teve tempo de enviar um pensamento claro. Ele veio em azul e dourado cintilante. Por que isso teve que acontecer justamente hoje? Logo depois de eu finalmente dar uma dentro?

     —      Posso ir com vocês, se vocês forem? — perguntou Alice.

     —      Claro — respondeu Clay. Olhou para o recepcionista. — Você também pode vir, Sr. Ricardi.

     —      Eu vou ficar no meu posto — disse o Sr. Ricardi. Ele falou com arrogância, mas, antes de se afastarem do olhar de Clay, seus olhos pareceram doentes.

     —      Não acho que você vai ter problemas com a gerência se fechar o hotel e ir embora sob essas circunstâncias — disse Tom. Ele falou daquele jeito cavalheiro de que Clay estava começando a gostar bastante.

   —      Eu vou ficar no meu posto — ele repetiu. — O Sr. Donnelly, o gerente do dia, saiu para fazer o depósito da tarde no banco e me deixou responsável pelo hotel. Se ele voltar, talvez...

     —      Por favor, Sr. Ricardi — falou Alice. — Ficar aqui não vai adiantar.

     Mas o Sr. Ricardi, que tinha mais uma vez cruzado os braços sobre o peito estreito, apenas balançou a cabeça.

     Eles tiraram uma das cadeiras Queen Anne do caminho e o Sr. Ricardi destrancou as portas da frente. Clay olhou para fora. Não via pessoas se movendo em nenhuma direção, mas era difícil ter certeza, pois o ar estava cheio de poeira fina e preta. Ela bailava no vento como neve negra.

     —      Vamos — ele disse. Para começar, eles iriam apenas para o prédio vizinho, o Metropolitan Café.

     —      Vou trancar de novo a porta e colocar a cadeira de volta no lugar — disse o Sr. Ricardi —, mas estarei ouvindo. Se tiverem problemas, se mais daquelas... pessoas... estiverem escondidas no Metropolitan, por exemplo, e vocês tiverem que voltar, lembrem-se de gritar: "Sr. Ricardi, Sr. Ricardi, precisamos de ajuda!" Assim eu fico sabendo que é seguro abrir a porta. Entendido?

     —      Sim — disse Clay. Ele apertou o ombro magro do Sr. Ricardi. O recepcionista se retraiu, e então ficou firme (embora não tenha demonstrado sinal algum de prazer por ter sido cumprimentado daquela forma). — Você é gente boa. Não achei que fosse, mas estava errado.

     —      Tento fazer o melhor que posso — disse o careca com austeridade. — Lembre-se...

     —      Nós vamos lembrar — falou Tom. — E vamos ficar lá uns dez minutos. Se alguma coisa der errado por aqui, você grita.

     —      Certo.

     Mas Clay não achou que ele gritaria. Não sabia por que pensou isso, não fazia sentido pensar que um homem não gritaria para salvar a própria vida se estivesse encrencado, mas Clay pensou.

     Alice disse:

     —      Por favor, mude de idéia, Sr. Ricardi. Boston não é seguro, o senhor já deve ter percebido isso.

     O Sr. Ricardi apenas desviou o olhar. E Clay pensou, não sem espanto: É assim que um homem fica ao decidir que correr o risco de morrer é melhor do que correr o risco de mudar.

     —      Venham — disse Clay. — Vamos fazer uns sanduíches enquanto ainda temos eletricidade para enxergar.

     —      Algumas garrafas de água mineral seriam uma boa, também — disse Tom.

     A luz oscilou enquanto eles embrulhavam o último sanduíche na cozinha bem perfumada e de azulejos brancos do Metropolitan Café. Àquela altura, Clay já havia tentado ligar mais três vezes para o Maine: uma para sua antiga casa, outra para a Escola Primária de Kent Pond, onde Sharon dava aulas, e outra para a Escola Secundária Joshua Chamberlain, que Johnny freqüentava. Nenhuma das vezes conseguiu ir além do código de área 207.

     Quando as luzes do Metropolitan se apagaram, Alice gritou no que a princípio pareceu a Clay uma escuridão total. Então as luzes de emergência se acenderam. Isso não tranqüilizou muito Alice. Ela se apoiava em Tom com um braço. Na outra mão, empunhava a faca de pão que usara para cortar os sanduíches. Os olhos dela estavam arrega-lados e, de certa forma, apáticos.

     —      Alice, largue essa faca — disse Clay, com um pouco mais de rispidez do que queria. — Antes que você corte um de nós com ela.

     —      Ou a si mesma — disse Tom com aquela sua voz branda e confortante. Seus óculos cintilavam com o brilho das luzes de emergência.

     Ela largou a faca e então a apanhou de volta.

     —      Quero ficar com ela — falou. — Quero tê-la comigo. Você tem uma, Clay. Eu também quero.

     —      Tudo bem — ele disse —, mas você não tem um cinto. Vamos fazer um com uma toalha de mesa. Por enquanto, só tenha cuidado.

     Metade dos sanduíches era de rosbife e queijo, a outra de presunto e queijo. Alice os embrulhou com filme de PVC. Debaixo da caixa registradora, Clay encontrou uma pilha de sacos e ele e Tom jogaram os sanduíches em dois deles. Em um terceiro, colocaram três garrafas d'água.

     As mesas haviam sido preparadas para um jantar que nunca iria acontecer. Duas ou três tinham sido viradas, mas a maioria estava per-feita, com as taças e talheres brilhando na luz dura das lâmpadas de emergência nas paredes. Algo naquela ordenação calma partiu o coração de Clay. A brancura dos guardanapos dobrados e as pequenas lâmpadas elétricas em cada mesa. Os abajurzinhos estavam apagados e ele imaginava que demoraria bastante para as lâmpadas dentro deles se acenderem novamente.

     Ele viu Alice e Tom olhando em volta com rostos tão infelizes quanto o seu parecia estar, e um desejo de animá-los — quase frenético de tão urgente — o invadiu. Lembrou-se de um truque que costumava fazer para o filho. Voltou a pensar no celular de Johnny e o rato surtado deu uma outra mordida nele. Clay esperava de todo coração que o maldito telefone estivesse esquecido debaixo da cama de Johnny-Gee entre bolinhas de poeira, com a bateria mortamortamorta.

     —      Preste bastante atenção nisso — ele falou, largando o seu saco de sanduíches —, e note que em nenhum momento minhas mãos saem do lugar. — Ele pegou a ponta de uma toalha de mesa.

     —      Não é hora para truques de mágica.

     —      Eu quero ver — disse Alice. Pela primeira vez desde que eles a encontraram, ela estava com um sorriso no rosto. Era pequeno, mas estava lá.

     —      Precisamos da toalha de mesa — disse Clay —, vai ser rápido e, além do mais, a dama quer ver. — Ele se virou para Alice. — Mas você vai ter que falar uma palavra mágica. Shazam serve.

     —      Shazam — ela disse, e Clay puxou com força com as duas mãos.

     Não fazia o truque há dois, talvez três, anos e quase deu errado. Porém, ao mesmo tempo, o erro — uma pequena hesitação na hora de puxar, sem dúvida — acabou acrescentando charme à coisa. Em vez de ficar onde estavam enquanto, debaixo deles, a toalha simplesmente desaparecia, todos os utensílios na mesa andaram uns 10 centímetros para a direita. Na verdade, a taça mais próxima de onde Clay estava ficou com metade da sua base circular na mesa e outra metade fora dela.

     Alice aplaudiu, agora rindo. Clay fez uma mesura com as mãos estendidas.

     —      Podemos ir agora, ó grande Vermicelli? — perguntou Tom, mas até ele estava sorrindo. Clay conseguia ver seus dentes pequenos sob as luzes de emergência.

     —      Assim que eu ajeitar isso — respondeu Clay. — Ela pode carregar a faca de um lado e um saco de sanduíches do outro. Você pode levar a água.

     Ele dobrou a toalha em um triângulo e então a enrolou rapidamente na forma de um cinto. Passou o cinto pelas alças de um dos sacos de sanduíches e então o colocou em volta da cintura fina da garota, precisando dar uma volta e meia e amarrar o nó nas costas dela para deixar firme. Arrematou enfiando a faca serrada de pão no seu lugar, do lado direito.

     —      Ei, você é bem jeitoso — disse Tom.

     —      Jeitoso é vistoso — falou Clay, e então alguma outra coisa explodiu lá fora, próximo o bastante para fazer o Café tremer. A taça que estava metade na mesa, metade fora dela, perdeu o equilíbrio, caiu no chão e quebrou. Os três olharam para ela. Clay pensou em dizer que não acreditava em presságios, mas aquilo só pioraria as coisas. E além do mais, ele acreditava.

     Clay tinha seus motivos para querer voltar ao Atlantic Avenue Inn antes de eles partirem. Um deles era reaver seu portfolio, que deixara no saguão. Outro era ver se conseguiam achar algum tipo de bainha improvisada para a faca de Alice — ele calculou que mesmo um estojo de barbear serviria, se fosse longo o bastante. O terceiro era dar ao Sr. Ricardi mais uma chance de se juntar a eles. Ele ficou surpreso ao descobrir que queria isso mais do que o portfolio de desenhos esquecido. Desenvolvera uma simpatia estranha e relutante pelo homem.

     Quando confessou isso a Tom, este o surpreendeu com um assentimento.

     — É assim que eu me sinto em relação a anchovas na pizza — ele falou. — Digo a mim mesmo que há algo de nojento em uma combinação de queijo, molho de tomate e peixe morto... mas às vezes um impulso vergonhoso toma conta de mim e não consigo enfrentá-lo.

     Uma tempestade de cinza preta e fuligem soprava pela rua e entre os prédios. Alarmes de carro trinavam, alarmes contra roubo zurravam e alarmes de incêndio grasniam. Não parecia haver calor no ar, mas Clay ouvia fogo estalando nas direções sul e leste. O cheiro de queimado estava mais forte, também. Eles ouviram vozes gritando, mas elas vinham do caminho de volta para o Common, onde a Boylston Street se alargava.

     Quando chegaram ao Atlantic Avenue Inn, Tom ajudou Clay a empurrar uma das cadeiras Queen Anne da frente de um dos painéis de vidro quebrados. O saguão se tornara um mar de escuridão no qual o balcão e o sofá do Sr. Ricardi eram apenas sombras mais escuras se Clay já não tivesse estado ali, não faria idéia do que aquelas sombras representavam. Sobre os elevadores, uma única luz de emergência piscava, a bateria na caixa atrás dela zumbindo como uma mosca.

     —      Sr. Ricardi? — chamou Tom. — Sr. Ricardi, nós viemos ver se você mudou de idéia.

     Não houve resposta. Um instante depois, Alice começou a derrubar os dentes de vidro que ainda se projetavam da armação da janela.

     —      Sr. Ricardi!— Tom chamou novamente e, quando continuou sem resposta, virou na direção de Clay. — Você vai entrar, não vai?

     —      Sim. Para pegar meu portfolio. Meus desenhos estão nele.

     —      Você não tem cópias?

     —      Aqueles são os originais — disse Clay, como se aquilo explicasse tudo. Para ele, explicava. E, além do mais, havia o Sr. Ricardi.

     Ele disse: Estarei ouvindo.

     —      E se o Barulhento do andar de cima o tiver pegado? — perguntou Tom.

     —      Se fosse o caso, acho que o teríamos escutado fazendo barulho aqui embaixo — disse Clay. — Além disso, ele viria correndo na direção do som das nossas vozes, tagarelando como o cara que tentou nos retalhar lá no Common.

     —      Você não tem como saber isso — disse Alice. Ela estava mordendo o lábio inferior. — É cedo demais para achar que sabe todas as regras.

     É claro que ela estava certa, mas eles não podiam ficar parados lá discutindo, aquilo também não iria adiantar nada.

     —      Vou ter cuidado — ele falou e passou uma perna por sobre a parte de baixo da janela. Era estreita, mas larga o suficiente para ele passar. — Vou só enfiar a cabeça dentro do escritório. Se ele não estiver por lá, não vou sair atrás dele como uma menina de filme de terror. Só vou pegar meu portfolio e a gente cai fora.

     —      Fique gritando — disse Alice. — Diga apenas: "Ok, estou bem", ou algo do gênero. O tempo todo.

     —      Certo, mas se eu parar de gritar, vão embora. Não venham atrás de mim.

     —      Não se preocupe — ela disse, sem sorrir. — Eu também vi todos esses filmes. A gente tem Cinemax lá em casa.

       — Estou bem — gritou Clay, pegando o portfolio e colocando-o no balcão. Prontinho, ele pensou. Mas ainda não.

     Ele olhou por sobre o ombro ao dar a volta no balcão e viu a única janela desbloqueada tremeluzir, parecendo flutuar na escuridão cada vez mais densa, com duas silhuetas recortadas na última luz do dia.

     —      Estou bem, ainda estou bem, só vou dar uma olhada no escritório agora, ainda estou bem, ainda es...

     —      Clay? — a voz de Tom estava inquieta, mas por um instante Clay não pôde responder para acalmá-lo. Havia um lustre no meio do teto alto do escritório. O Sr. Ricardi estava pendurado nele pelo que parecia ser uma corda para amarrar cortinas. Seu rosto estava coberto por uma sacola branca. Clay achou que fosse o tipo de saco plástico que o hotel dá para os hóspedes colocarem a roupa suja e para lavagem a seco. — Clay, você está bem?

     —      Clay?— A voz de Alice saiu esganiçada, à beira da histeria.

     —      Estou bem. — Clay ouviu a própria voz dizer. Sua boca parecia estar funcionando sozinha, sem ajuda do cérebro. — Ainda estou bem aqui. — Ele estava pensando na expressão do Sr. Ricardi quando disse: Eu vou ficar no meu posto. As palavras foram arrogantes, mas os olhos estavam assustados e, de certa forma, humildes, os olhos de um guaxinim encurralado em um canto da garagem por um cachorro grande e furioso. — Já estou saindo.

     Ele se afastou andando de costas, como se o Sr. Ricardi pudesse tirar o garrote improvisado do pescoço e vir atrás dele no instante em que Clay virasse. De repente, sentiu mais medo por Sharon e Johnny; a saudade deles era tão profunda que o fez pensar no seu primeiro dia na escola, a mãe o deixando no portão do playground. Os outros pais tinham entrado com os filhos. Entre lá, Clayton, é a primeira sala, vai dar tudo certo, meninos têm que fazer essa parte sozinhos. Antes de fazer o que ela mandou, ele a observou ir emSora, subindo de volta a Cedar Street. O casaco azul dela. Agora, parado no escuro, ele se deparava novamente com a idéia de que as pessoas não diziam morrer de saudade à toa.

     Tom e Alice eram legais, mas ele queria as pessoas que amava.

      

     Assim que deu a volta no balcão, ele ficou de frente para a rua e atravessou o saguão. Chegou perto o bastante da longa janela quebrada para ver os rostos assustados dos seus novos amigos, e então se lembrou que tinha esquecido a porra do portfolio de novo e teria que voltar. Ao alcançar o portfolio, teve certeza de que a mão do Sr. Ricardi sairia da escuridão cada vez maior atrás da mesa e se fecharia sobre a dele. Isso não aconteceu, mas outro daqueles baques veio do andar de cima. Algo ainda estava lá em cima, algo ainda andava às cegas no escuro. Algo que havia sido humano até as três da tarde daquele dia.

     Daquela vez, quando ele estava a meio caminho da porta, a solitária luz de emergência à bateria do saguão piscou brevemente e então se apagou. Isto é uma violação do Código de Incêndio, pensou Clay. Eu deveria fazer a denúncia.

     Ele estendeu o portfolio. Tom o pegou.

     —      Onde está ele? — perguntou Alice. — Ele não estava lá dentro?

     —      Morto — disse Clay. Passara pela cabeça dele mentir, mas não achou que seria capaz. Estava chocado demais pelo que vira. Como um homem poderia se enforcar sozinho? Ele nem conseguia entender como era possível. — Suicídio.

     Alice começou a chorar e ocorreu a Clay que ela nem sabia que, se dependesse do Sr. Ricardi, provavelmente ela mesma estaria morta àquela altura. Na verdade, ele próprio sentiu um pouco de vontade de chorar. Porque Sr. Ricardi acabara sendo gente boa. Talvez a maioria das pessoas o fosse, tendo a chance.

     Um grito que pareceu forte demais para ter saído de pulmões humanos veio da direção do Common, a oeste de onde eles estavam na rua cada vez mais escura. Clay achou que parecia quase um barrido de elefante. Não havia dor nele, tampouco alegria. Apenas loucura. Alice se apertou contra Clay, que passou o braço em volta dela. A sensação do corpo da garota era como a de um fio elétrico conduzindo uma corrente forte.

     —      Se vamos dar o fora daqui, é melhor irmos logo — disse Tom.

     — Se a gente não se meter em muito problema, consegue chegar até Malden e pode passar a noite na minha casa.

     —      Excelente idéia — disse Clay.

     Tom sorriu com cautela.

     —      Você acha mesmo?

     —      Com certeza. Quem sabe, talvez o oficial Ashland já esteja lá.

     —      Quem é o oficial Ashland? — perguntou Alice.

     —      Um policial que encontramos no Common — disse Tom. — Ele... bem, ele nos ajudou. — Os três estavam andando para o leste na direção da Atlantic Avenue, em meio às cinzas que caíam e o som de alarmes. — Mas ele não vai estar por lá. Clay só está tentando fazer graça.

     —      Ah — ela disse. — Que bom que alguém está tentando.

     Um celular azul com a capa quebrada estava caído na calçada do lado de uma lata de lixo. Alice o chutou para a sarjeta sem alterar o passo.

     —      Bom chute — disse Clay.

     Alice deu de ombros.

     —      Cinco anos de futebol — ela falou e, naquele mesmo instante, as luzes da rua se acenderam, com uma promessa de que nem tudo estava perdido.

    

      

     MALDEN

      

     Milhares de pessoas pararam na ponte do Mystic River e observaram tudo entre a Commonwealth Avenue e o porto de Boston ser consumido pelo fogo. O vento oeste continuou forte e quente mesmo depois de o sol se pôr, e as chamas rugiam como em uma fornalha, borrando as estrelas. A lua nascente estava cheia e basicamente hedionda. Por vezes, a fumaça a escondia, mas a maior parte do tempo aquele olho de dragão saliente voava livre e olhava para baixo, projetando uma luz laranja turva. Clay achou que ela parecia uma lua de revista em quadrinhos de horror, mas não falou nada.

     Ninguém tinha muito a dizer. As pessoas na ponte simplesmente olhavam para a cidade que tinham acabado de abandonar, observando as chamas alcançarem os condomínios luxuosos de frente para o porto e começarem a engoli-los. Do outro lado da água, vinha uma intricada tapeçaria de alarmes — alarmes de incêndio e de carros na sua maioria, com diversas sirenes barulhentas para completar. Por algum tempo, uma voz amplificada disse aos cidadãos para SAIR DAS RUAS e, em seguida, outra voz os aconselhou a ABANDONAREM A CIDADE A PÉ PELAS PRINCIPAIS AVENIDAS AO OESTE E AO NORTE. Esses dois conselhos contraditórios competiram por vários minutos e então o aviso para SAIR DAS RUAS cessou. Cinco minutos depois, o que dizia para as pessoas ABANDONAREM A CIDADE A PÉ também foi interrompido. Agora havia apenas o rugido faminto do fogo impulsionado pelo vento, os alarmes e um estampido distante e contínuo que Clay imaginou ser de janelas implodindo por conta do calor enorme.

     Ele imaginou quantas pessoas estariam presas do lado de lá. Entre o fogo e a água.

     —      Lembra quando você perguntou se uma cidade moderna podia se incendiar? — disse Tom McCourt. Sob a luz do fogo, seu rosto pequeno e inteligente parecia cansado e doente. Havia uma mancha de cinza em uma de suas bochechas. — Lembra?

     —      Ah, cale a boca — disse Alice. Ela estava claramente irritada, mas, como Tom, falou em voz baixa. Parece que estamos em uma biblioteca, pensou Clay. E depois, Não... em uma funerária. — Vamos embora, por favor? Isso está me deixando louca.

     —      Claro — disse Clay. — Pode crer. A que distância fica a sua casa, Tom?

     —      Daqui, pouco mais de 3 quilômetros — ele disse. — Mas sinto dizer que ainda não deixamos tudo para trás.

     Eles tinham virado para o norte, e Tom apontou para frente e para a direita. O brilho que vinha de lá poderia até ser o da luz alaranjada das lâmpadas de sódio dos postes em uma noite nublada, só que a noite estava limpa e os postes de luz estavam apagados. De qualquer forma, postes não soltavam colunas de fumaça.

     Alice gemeu e então cobriu a boca, como se esperasse que aiguém em meio à multidão silenciosa que observava Boston queimar a repreendesse por fazer muito barulho.

     —      Não se preocupe — disse Tom com estranha calma. — Nós estamos indo para Malden, e aquilo parece Revere. Do jeito que o vento está soprando, ainda deve estar tudo bem em Malden.

     Pare de falar agora mesmo, Clay exigiu em silêncio, mas Tom não parou.

     —      Por enquanto — ele acrescentou.

     Havia dezenas de carros abandonados na pista de baixo e um caminhão dos bombeiros com EAST BOSTON escrito na sua lateral verde-abacate, que tinha sido atingida por um caminhão de cimento (os dois estavam abandonados), mas no geral aquele nível da ponte pertencia aos pedestres. Só que agora provavelmente vamos ter que chama-los de refugiados, pensou Clay, e então percebeu que não fazia sentido falar na terceira pessoa. Nós. Nos chamar de refugiados.

     Ainda não havia muita conversa. A maioria das pessoas ficava parada olhando a cidade queimar em silêncio. Os que estavam se mexendo o faziam muito devagar, olhando com freqüência por sobre os ombros. Então, quando eles chegaram ao final da ponte (ele enxergava o Old Ironsides3 — pelo menos achava que era o Old Ironsides — ancorado no porto, ainda a salvo das chamas), Clay notou uma coisa estranha. Muitos deles também estavam olhando para Alice. A princípio, a idéia paranóica de que as pessoas estivessem pensando que ele e Tom tinham raptado a garota e a estavam levando para Deus sabe que tipo de intenções imorais lhe passou pela cabeça. Então ele teve que lembrar a si mesmo que aqueles fantasmas na ponte estavam em estado de choque, que haviam sido arrancados de suas vidas normais com mais violência do que os refugiados do furacão Katrina — aqueles infelizes pelo menos tiveram algum aviso — e possivelmente não seriam capazes de reflexões tão elaboradas. Muitos deles estavam muito imersos nos próprios pensamentos para fazer juízos morais. Então a lua subiu mais um pouco, apareceu com um pouco mais de clareza e ele entendeu: ela era a única adolescente à vista. Mesmo o próprio Clay era jovem, se comparado à maioria dos seus colegas refugiados. A maioria das pessoas que olhava embasbacada para a tocha que havia sido Boston ou que se arrastava em direção a Malden e Danvers tinha mais de 40 anos, e muitos pareciam poder utilizar a fila de idosos no supermercado. Ele viu poucas pessoas com crianças e uns dois bebês em carrinhos, mas o grupo de jovens se resumia praticamente a isso.

     Um pouco mais adiante, ele notou outra coisa. Havia telefones celulares largados pela rua. Eles passavam por um depois do outro, e nenhum estava inteiro. Tinham sido ou esmagados ou pisoteados até virarem um monte de fios e lascas de plástico, como cobras perigosas aniquiladas antes que voltassem a morder.

     —      Qual é o seu nome, querida? — perguntou uma mulher gorducha que cruzou a rua na direção deles. Isso foi cerca de cinco minutos depois de terem deixado a ponte. Tom disse que mais 15 e eles chegariam à saída da Salem Street e, de lá, estariam a apenas quatro quadras da sua casa. Ele falou que o gato ficaria felicíssimo em vê-lo e aquilo trouxe um sorriso abatido ao rosto de Alice. Clay pensou que um sorriso abatido era melhor do que nada.

     Alice olhava com desconfiança reflexiva para a mulher gorducha que havia se separado dos grupos mais silenciosos e das pequenas fileiras de homens e mulheres — pouco mais que sombras, na realidade, alguns com malas, outros carregando sacolas de compras ou mochilas -      que atravessaram a ponte e seguiam na direção norte pela Route One, para longe do grande incêndio ao sul e plenamente conscientes do outro que se formava em Revere, mais adiante ao nordeste.

     A mulher gorducha retribuiu o olhar com um interesse terno. Seu cabelo grisalho estava arrumado em cachinhos de salão de beleza bem feitos. Ela usava óculos de gatinha e o que a mãe de Clay chamaria de "casaquinho". Carregava uma sacola de compras em uma das mãos e um livro na outra. Parecia inofensiva. Certamente não era um daqueles fonáticos — eles não viram um deles que seja desde que saíram do Atlantic Avenue Inn com seus sacos de comida —, mas Clay sentiu que estava na defensiva de qualquer jeito. Serem abordados como se estivessem em uma festinha em vez de fugindo de uma cidade em chamas não parecia normal. Mas, sob aquelas circunstâncias, o que era normal? Ele provavelmente estava ficando doido, mas, se fosse o caso, Tom também estava. Ele lançava para a mulher gorducha e maternal o mesmo olhar de "cai fora".

     —      Alice — disse finalmente Alice, na hora em que Clay tinha decidido que a garota não iria falar nada. Ela soava como uma criança com medo de responder a uma pergunta que podia ser uma pegadinha, em uma aula que era difícil demais para ela. — Meu nome é Alice Maxwell.

     —      Alice — disse a mulher gorducha, e os lábios dela se curvaram em um sorriso maternal tão terno quanto o seu interesse. Não havia motivo para aquele sorriso deixar Clay mais desconfiado do que ele já estava, mas deixou. — É um nome adorável. Significa "abençoado por Deus".

     —      Na verdade, senhora, significa "da realeza", ou "de berço nobre" — disse Tom. — Agora, a senhora nos dá licença? A garota perdeu a mãe hoje e...

     —      Todos nós perdemos alguma coisa hoje, não é Alice? — falou a mulher gorducha sem olhar para Tom. Ela acompanhou o ritmo de Alice, seus cachinhos de salão de beleza pulando a cada passo. Alice a olhava com uma mistura de inquietude e fascinação. Ao redor deles, algumas pessoas andavam, apertavam o passo e, na maioria das vezes, se arrastavam cabisbaixos, pouco mais que fantasmas naquela escuridão pouco familiar, e Clay continuava sem ver gente jovem, exceto por algumas crianças, alguns bebês e Alice. Nenhum adolescente, porque a maioria dos adolescentes tinha celulares, como a Cabelinho Claro no caminhão do Mister Softee. Ou seu próprio filho, que tinha um Nextel vermelho com um toque do Clube dos Monstros e uma mãe professora workaholic que pode estar com ele ou em praticamente qualquer out...

     Pare. Não deixe aquele rato sair. Aquele rato não pode fazer nada além de correr, morder e perseguir o próprio rabo.

     Enquanto isso, a mulher gorducha continuava assentindo. Seus cachinhos seguiam saltitantes.

     —      Sim, todos nós perdemos alguém, porque esta é a hora da grande Tribulação. Está tudo lá, no Apocalipse.

     Ela ergueu o livro que estava carregando, e é claro que era uma Bíblia; Clay achou que estava entendendo melhor o brilho nos olhos por trás dos óculos de gatinha da mulher gorducha. Não era interesse bondoso, era loucura.

     —      Ah, já chega, pode ir tirando o cavalinho da chuva — disse Tom. Clay notou na voz dele uma mistura de revolta (consigo mesmo, muito provavelmente por ter deixado a mulher gorducha se aproximar para começode conversa) e desânimo.

     A gorducha não deu ouvidos, é óbvio; grudara os olhos em Alice, e quem poderia tirá-la dali? A polícia estava ocupada com outros assuntos. Havia apenas os refugiados que se arrastavam em estado de choque, e eles pouco se importavam com uma velha maluca com uma Bíblia e um permanente.

     —      O Véu da Insanidade recaiu sobre a mente dos maus e a Cidade do Pecado foi incendiada pela chama purificadora de Je-o-vá! — gritou a mulher gorducha. Ela usava batom vermelho. Os dentes eram certinhos demais para não serem dentaduras. — Agora vemos os impenitentes fugirem, sim, é fato, como os vermes fogem da barriga aberta de...

     Alice colocou as mãos sobre os ouvidos.

     —      Faça-a parar! — ela gritou, e os vultos fantasmagóricos dos ex-moradores da cidade continuaram passando, apenas alguns lançando um olhar apático e sem curiosidade, para em seguida voltarem a olhar para a escuridão onde, mais adiante, em algum lugar, ficava New Hampshire.

     A mulher gorducha estava começando a suar, Bíblia erguida, olhos acesos, cachinhos de salão de beleza assentindo e balançando.

     —      Baixe as mãos, garota, e ouça a Palavra de Deus antes de deixar esses homens te levarem embora e fornicarem com você diante dos próprios portões do Inferno! "Pois eu vi uma estrela arder no céu e o nome dela era Absinto, e todos aqueles que a seguiam, seguiam Lúcifer, e aqueles que seguiam Lúcifer o seguiam até a fornalha do..."

     Clay bateu nela. Ele retraiu o soco no último segundo, mas ainda foi um belo golpe no queixo, e ele sentiu o impacto subir até o seu ombro. Os óculos da gorducha saltaram do nariz de buldogue e então caíram de volta no lugar. Atrás deles, os olhos perderam o brilho e rolaram para cima nas órbitas. Seus joelhos falharam e ela se curvou, a Bíblia caindo da mão cerrada. Alice, embora ainda parecesse estar chocada e horrorizada, tirou as mãos de cima das orelhas com rapidez o bastante para pegar a Bíblia. E Tom McCourt agarrou a mulher pelas axilas. O soco e as duas pegadas que se seguiram foram tão caprichadas que poderiam ter sido coreografadas.

     Clay de repente estava mais perto de um colapso do que nunca, desde que as coisas começaram a dar errado. Porque aquilo era pior do que a adolescente vampira ou do que o homem de negócios com o cutelo, pior do que encontrar o Sr. Ricardi enforcado em um lustre com um saco sobre a cabeça, ele não sabia, mas era. Ele chutara o homem de negócios com o cutelo, Tom também, mas aquele homem era um outro tipo de maluco. A velha com cachinhos de salão de beleza era só...

     —      Meu Deus — disse Clay. — Ela era só uma doida e eu a nocauteei. — Ele estava começando a tremer.

     —      Ela estava aterrorizando uma jovem que perdeu a mãe hoje — disse Tom, e Clay notou que não era calma o que ouvia na voz do homenzinho, mas uma extraordinária frieza. — Você fez exatamente a coisa certa. Além do mais, é impossível derrubar um boi desses por muito tempo. Ela já está acordando. Ajude-me a carregá-la até o acostamento.

     Eles tinham chegado à parte da Route One — chamada às vezes de estrada dos Milagres e às vezes de beco da Cafonice — em que a via de acesso limitado dava lugar a um amontoado de hipermercados de bebida, lojas de roupas com descontos, pontas de estoque de artigos esportivos e estabelecimentos de comida com nomes como Fuddruckers. Lá, as seis pistas estavam abarrotadas, se não congestionadas, de veículos que tinham engavetado ou simplesmente sido abandonados quando seus motoristas entraram em pânico, tentaram usar os celulares e enlouqueceram. Os refugiados traçaram suas diversas rotas em silêncio por entre os destroços, fazendo Clay imaginar um grupo de formigas evacuando um formigueiro que tivesse sido demolido pela pisada desatenta de algum humano.

     Havia uma placa verde com refletores, que dizia MALDEN SALEM ST. SAÍDA A 400M pertinho de um prédio rosa baixo que fora invadido; a fachada era um rodapé de vidros quebrados pontiagudos, e um alarme contra roubo a bateria continuava soando seus últimos estertores. Um olhar para a placa apagada no telhado bastou para Clay entender o que fez daquele estabelecimento um alvo na esteira do desastre: MERCADÃO DE BEBIDAS MISTER BIG.

     Ele pegara um dos braços da gorducha. Tom pegara o outro e Alice segurava a cabeça da mulher murmurante à medida que eles a colocavam sentada com as costas apoiadas contra um dos suportes da placa. Assim que a baixaram, a mulher abriu os olhos e olhou para eles desnorteada.

     Tom estalou os dedos na frente do rosto dela, duas vezes, rapidamente. Ela piscou e olhou para Clay.

     —      Você... me bateu — ela disse. Seus dedos subiram para tocar a parte do queixo que inchava depressa.

     —      Sim, eu sint... — começou a falar Clay.

     —      Ele pode sentir muito, mas eu não — disse Tom. Ele falou naquele mesmo tom enérgico e frio. — Você estava aterrorizando nossa pupila.

     A mulher gorducha riu baixinho, mas havia lágrimas nos seus olhos.

     —      Pupila! Eu já ouvi muitas palavras para isso, mas é a primeira vez que ouço esta. Como se eu não soubesse o que homens como vocês querem com uma garota meiga como ela, especialmente numa hora dessas. "Eles não se arrependeram pelas fornicações, ou pelas sodomias, ou pelas..."

     —      Cale a boca — disse Tom —, ou eu mesmo vou te dar uma porrada. E, diferentemente do meu amigo, que parece ter tido a sorte de não crescer entre carolas e, portanto, não reconhece você pelo que é, não vou retrair meu soco. Está avisada... mais uma palavra. — Ele ergueu o punho diante dos olhos da mulher e, embora Clay já tivesse concluído que Tom era um homem educado, civilizado e provavelmente não muito bom de soco em circunstâncias normais, não pôde deixar de se sentir abatido diante daquele punho pequeno, cerrado, como se estivesse vendo um presságio dos tempos vindouros.

     A mulher olhou e ficou calada. Uma lágrima gorda desceu pela sua bochecha avermelhada de ruge.

     —      Já chega, Tom, eu estou bem — disse Alice.

     Tom depositou a bolsa de compras da mulher gorducha no seu colo. Clay nem tinha percebido que Tom a resgatara. Então ele pegou a Bíblia de Alice, agarrou uma das mãos cheias de anéis da mulher e enfiou o livro nela, cora a lombada para dentro. Começou a se afastar e então voltou.

     —      Tom, já chega, vamos embora —- disse Clay.

     Tom o ignorou. Inclinou-se na direção da mulher recostada no suporte da placa. As mãos dele estavam nos joelhos e, para Clay, os dois — a gorducha de óculos que olhava para cima e o homenzinho de óculos que se apoiava nos joelhos — pareciam gravuras de alguma paródia enlouquecida das ilustrações antigas dos romances de Charles Dickens.

     —      Vou te dar um conselho, irmã — disse Tom. — A polícia não vai mais protegê-la como nas passeatas que você e seus amigos hipócritas e papa-hóstias fizeram nos centros de planejamento familiar ou na Clínica Emily Cathcart em Waltham...

     —      Aquela fábrica de abortos! — ela exclamou e ergueu a Bíblia, como se bloqueasse um golpe.

     Tom não bateu nela, mas estava sorrindo com ferocidade.

     —      Não sei quanto ao Véu da Insanidade, mas com certeza tem beatos malucos por aí esta noite. Fui claro? Os leões estão soltos e pode acreditar que eles vão comer os cristãos desbocados primeiro. Alguém anulou seu direito à liberdade de expressão por volta das três da tarde de hoje. Só estou dando um conselho. — Ele olhou para Alice e Clay, e Clay viu que seu lábio superior sobre o bigode tremia um pouco. — Vamos?

     —      Sim — disse Clay.

     —      Uau — disse Alice, quando eles já haviam voltado a andar em direção à rampa para Salem Street, deixando o Mercadão de Bebidas Mister Big para trás. — Você se criou com alguém assim?

     —      Minha mãe e as duas irmãs dela — disse Tom. — Primeira Igreja de Cristo Redentor da Nova Inglaterra. Elas viam Jesus como um salvador particular, enquanto a igreja as considerava seus trouxas particulares.

     —      Onde está sua mãe agora? — perguntou Clay.

     Tom olhou brevemente para ele.

     —      No céu. A não ser que aqueles desgraçados a tenham enganado sobre isso também. Tenho quase certeza que sim.

     Perto do semáforo no pé da rampa, dois homens brigavam por um barril de chope. Se tivesse que adivinhar, Clay diria que ele provavelmente fora roubado do Mercadão de Bebidas Mister Big. Agora estava no acostamento, esquecido, amassado e vazando espuma, enquanto os dois homens — ambos fortes e ambos sangrando — se esmurravam.

     Alice apertou o corpo contra Clay e ele passou o braço ao redor dela, mas havia algo quase tranqüilizador naqueles brigões. Eles estavam com raiva — furiosos —, mas não loucos. Não como aquelas pessoas na cidade.

     Um deles era careca e usava um casaco dos Celtics. Ele acertou um gancho de cima para baixo no outro que esmagou os lábios do oponente e o nocauteou. Quando o homem de casaco dos Celtics avançou sobre o homem caído, ele se arrastou para longe e então se levantou, ainda se afastando. Cuspiu sangue.

     —      Pode ficar, seu merda! — ele gritou com um sotaque gutural e choroso de Boston. — Tomara que morra engasgado.

     O careca de casaco dos Celtics fez menção de atacá-lo e o outro subiu correndo a rampa na direção da Route One. O Casaco dos Celtics começou a se abaixar para apanhar seu prêmio, notou a presença de Clay, Alice e Tom, e se empertigou de novo. Eram três contra um, ele estava com um olho roxo e sangue descia pelo seu rosto de uma orelha estraçalhada, mas Clay não viu medo na expressão dele, embora só tivesse a luz cada vez mais fraca do incêndio de Revere para poder enxergar. Ele pensou que seu avô teria dito que a sorte daquele cara tinha acabado, o que combinava bem com o trevo nas costas do casaco.

     —      Tá olhando o quê, caralho? — ele perguntou.

     —      Nada... só estou de passagem, se não tiver problema — disse Tom com brandura. — Moro na Salem Street.

     —      Para mim, você pode ir pra Salem Street ou para o inferno — disse o careca com o casaco dos Celtics. — Ainda é um país livre, não é?

     —      Hoje à noite? — falou Clay. — Livre até demais.

     O careca refletiu e então gargalhou, um rá-rá duplo sem humor.

     —      O que aconteceu, porra? Cês tão sabendo?

     Alice disse:

     —      Foram os celulares. Eles deixaram as pessoas malucas.

     O careca pegou o barril. Ele o manujeou com facilidade, inclinando-o para cessar o vazamento.

     —      Essas merdas — falou. — Nunca quis ter um. Programa de minutos acumulados. Que porra é essa?

     Clay não sabia. Talvez Tom, sim — ele tinha celular, então era capaz de saber —, mas não falou nada. Provavelmente não queria entrar em uma discussão longa com o careca, o que provavelmente era uma boa idéia. Clay pensou que aquele homem tinha algumas das características de uma granada não detonada.

     —      A cidade tá queimando — disse o careca. — Não tá?

     —      Está sim — respondeu Clay. — Acho que os Celtics não vão jogar no Fleet este ano.

     —      Eles estão uma merda mesmo — falou o homem. — Doe Rivers não serve pra treinar nem a Liga Atlética da Polícia. — O homem ficou olhando para eles, barril no ombro, sangue descendo por um lado do rosto. No entanto, parecia bastante pacífico, quase sereno. — Vão — ele disse. — Mas não fiquem tão perto da cidade por muito tempo. A coisa vai piorar antes de melhorar. Vai haver muito mais incêndios, pra começo de conversa. Vocês acham que todo mundo que fugiu para o norte lembrou de desligar o gás da cozinha? Eu duvido.

     Os três começaram a andar, e então Alice parou. Ela apontou para o barril.

     —      Isso era seu?

     O careca lançou um olhar sensato para ela.

     —      Não tem mais era numa hora dessas, docinho. Não tem mais essa de era. Só tem o agora e o amanhã-quem-sabe. Agora ele é meu e, se tiver mais algum sobrando, vai ser meu também amanhã-quem-sabe. Agora, vão. Caiam fora.

     —      Até loguinho — disse Clay, e ergueu a mão.

     —      Não queria estar na pelinha de vocês — respondeu o careca, sem sorrir, mas levantou a própria mão em resposta. Eles tinham passado do semáforo e estavam atravessando para a outra calçada do que Clay supunha ser a Salem Street quando o careca os chamou de novo: —       Ei, bonitão.

     Tanto Clay quanto Tom viraram para olhar, e então trocaram olhares, achando graça. O careca com o barril já tinha virado apenas um vulto na ladeira; podia ser um homem das cavernas carregando um tacape.

     —      Onde foram parar os doidos? — perguntou o careca. — Não venha me dizer que estão todos mortos. Porque eu não vou acreditar.

     —      Essa é uma boa pergunta — disse Clay.

     —      Pode crer que sim. Tomem conta dessa belezinha aí. — E, sem esperar resposta, o homem que vencera a batalha do barril de cerveja deu meia volta e se misturou às sombras.

     — Cá estamos — disse Tom, menos de dez minutos depois, e a luz surgiu de trás das nuvens e fumaça esparsas que a haviam escondido por cerca de uma hora, como se o homenzinho de óculos e bigode tivesse dado uma deixa para o Diretor de Iluminação Celestial. Seus raios, agora prateados, em vez daquele terrível laranja infecto, iluminavam a casa que era ou azul-escura, ou verde, ou até mesmo cinza; sem a ajuda das luzes da rua, era difícil ter certeza. O que Clay conseguia ver era que a casa era bem conservada e bonita, embora não tão grande quanto a primeira impressão dava a entender. O luar ajudava a criar a ilusão, mas ela era causada principalmente pela maneira como os degraus subiam do gramado bem cuidado de Tom McCourt até a única varanda coberta da rua. Havia uma chaminé de pedra à esquerda. De cima da varanda, uma água-furtada dava para a rua.

     — Oh, Tom, ela é linda — disse Alice com uma voz extasiada demais. Para Clay, ela parecia exausta e à beira da histeria. Ele próprio não a achava linda, mas certamente parecia a casa de um homem que tinha um celular e todos os outros apetrechos do século XXI. Assim como todas as demais casas naquela parte da Salem Street. E Clay duvidava que muitos moradores tivessem tido a fantástica sorte de Tom. Ele olhou apreensivo à sua volta. Todas as casas estavam escuras, não havia energia, e talvez estivessem desertas, embora ele tivesse a sensação de que olhos os observavam.

     Os olhos dos lunáticos? Dos fonáticos? Ele pensou na Mulher do Terninho de Poderosa e na Cabelinho Claro; no louco de calças cinza e gravata em frangalhos; no homem de terno que arrancara com os dentes a orelha do cachorro. Pensou no homem nu brandindo as antenas de carro para frente e para trás enquanto corria. Não, tocaiar não fazia parte do repertório dos fonáticos. Eles simplesmente vinham para cima de você. Mas, se houvesse pessoas normais escondidas naquelas casas — algumas delas, pelo menos —, onde estavam os fonáticos? Clay não sabia.

     —      Não sei se eu a chamaria de linda — disse Tom —, mas ainda está de pé, e isso já está de bom tamanho para mim. Eu já tinha metido na cabeça que a gente ia chegar aqui e encontrar um buraco fumegante no chão. — Ele enfiou a mão no bolso e tirou um pequeno molho de chaves. — Entrem. Mesmo sendo um lar humilde, e por aí vai.

     Eles foram andando pela passagem e tinham subido apenas uma meia dúzia de degraus quando Alice gritou:

     —      Esperem!

     Clay deu meia volta, sentindo-se ao mesmo tempo assustado e exausto. Ele achou que estava começando a entender um pouco a fadiga de combate. Até sua adrenalina parecia combalida. Mas não havia ninguém lá — nenhum fonático, nenhum careca com sangue escorrendo pelo rosto de uma orelha rasgada, nem mesmo uma velhinha tagarelando sobre o Apocalipse. Só Alice, apoiando-se em um joelho no local onde a entrada da casa de Tom saía da calçada.

     —      O que foi, querida? — perguntou Tom.

     Alice se levantou e Clay viu que ela segurava um tênis muito pequeno.

     —      É um Nike de bebê — ela disse. — Você tem...

     Tom balançou a cabeça.

     —      Eu moro sozinho. Fora Rafe, quero dizer. Ele acha que é o rei do pedaço, mas é só o gato.

     —      Então quem o perdeu? — Ela olhou de Tom para Clay com um olhar pensativo e cansado.

     Clay balançou a cabeça.

     —      Impossível saber, Alice. É melhor jogar fora.

     Mas Clay sabia que ela não o faria, era um déjà-vu na sua forma mais desconcertante. Ela ainda o trazia nas mãos, enroscado contra a cintura, quando foi para trás de Tom, que estava nos degraus, passando os dedos devagar pelas chaves na luz escassa.

     Agora vamos ouvir o gato, pensou Clay. Rafe. E, sem dúvida, lá estava o gato que tinha sido a salvação de Tom McCourt, miando boas-vindas do lado de dentro.

     Tom se agachou e Rafe ou Rafer — ambos diminutivos de Rafael — pulou nos braços dele, ronronando alto e esticando a cabeça para cheirar o bigode bem aparado do dono.

     —      É, eu também senti sua falta — disse Tom. — Tudo está perdoado, acredite.

     Ele carregou Rafer pela varanda coberta, acariciando o topo da cabeça do gato. Alice o seguiu. Clay entrou por último, fechando e trancando a porta antes de ir atrás dos outros dois.

     —      Sigam-me até a cozinha — falou Tom quando eles já estavam dentro da casa propriamente dita. Havia um cheiro agradável de lustra móveis e, Clay pensou, couro, um cheiro que ele associava a homens que viviam vidas tranqüilas que não necessariamente envolviam mulheres. — Segunda porta à direita. Fiquem juntos. O corredor é largo e não tem nada no chão, mas há mesas dos dois lados e está um breu. Como vocês podem ver.

     —      Por assim dizer — disse Clay.

     —      Rá-rá.

     —      Você tem lanternas? — perguntou Clay.

     —      Lanternas e um lampião que deve servir melhor ainda, mas vamos chegar à cozinha antes.

     Eles o seguiram pelo corredor, Alice andando entre os dois homens. Clay podia ouvi-la respirar rápido, tentando não ficar apavorada com o ambiente desconhecido, mas era obviamente difícil. Diabos, era difícil para ele. Desorientador. Seria melhor se eles tivessem pelo menos um pouquinho de luz, mas...

     Ele topou com o joelho em uma das mesas que Tom mencionara e algo que parecia muito propenso a quebrar fez um barulho de dentes tiritando. Clay se preparou para ouvir a coisa se despedaçar e para o grito de Alice. Era quase garantido que ela iria gritar. Então, o que quer que fosse, um vaso ou alguma quinquilharia, decidiu viver um pouco mais e ficou no lugar. Ainda assim, pareceu que eles andaram bastante até Tom falar: 

     —      Aqui, ok? Virem à direita.

     A cozinha estava quase tão escura quanto o corredor, e Clay teve apenas um instante para pensar em todas as coisas de que estava sentindo falta e de que Tom devia estar sentindo mais falta ainda: o painel digital do microondas, o zumbido da geladeira, talvez uma luz da casa vizinha entrando pela janela sobre a pia e fazendo reflexos na torneira.

     —      Aqui está a mesa — disse Tom. — Alice, vou pegar na sua mão. Aqui está uma cadeira, ok? Desculpe se parece que estou brincando de cabra-cega.

     —      Tudo b... — ela começou a falar, então soltou um gritinho que fez Clay pular. Sua mão foi parar no cabo do seu cutelo (agora Clay pensava no cutelo como dele), antes mesmo de ele perceber que o havia alcançado.

     —      O quê? — perguntou Tom bruscamente. — O quê?

     —      Nada — ela respondeu. — Foi só... nada. O gato. O rabo dele... na minha perna.

     —      Oh. Desculpe.

     —      Tudo bem. Que idiota — ela acrescentou com um ódio de si mesma que fez Clay se encolher no escuro.

     —      Não — ele disse. — Não seja tão dura consigo mesma, Alice. Foi um dia difícil no escritório.

     —      Um dia difícil no escritório! — repetiu Alice, e riu de uma maneira que Clay não gostou, pois o fez lembrar da voz dela quando chamou a casa de Tom de linda. Ele pensou: Ela vai ter que deixar disso, mas o que eu posso fazer? Nos filmes, a garota histérica leva uma bofetada e isso sempre coloca a cabeça dela no lugar, mas nos filmes a gente consegue enxergá-la.

     Ele não teve que estapeá-la, sacudi-la ou abraçá-la, o que seria, provavelmente, a sua primeira opção. Ela talvez tenha escutado aquela inflexão na própria voz, controlou-a e a subjugou: transformando-a primeiro em um gargarejo sufocado, depois em um arquejo e, por fim, em silêncio.

     —      Sente-se — disse Tom. — Você deve estar cansada. Você também, Clay. Vou trazer uma luz para cá.

     Clay saiu em busca de uma cadeira e sentou-se em uma mesa que mal conseguia enxergar, embora seus olhos já estivessem totalmente habituados ao escuro àquela altura. Sentiu algo roçar a perna da sua calça por um instante. Um miado baixinho. Rafe.

     —      Ei, adivinha só? — ele falou para o vulto da garota à medida que os passos de Tom se afastavam. — O velho Rafe acabou de me dar um susto também. — Embora não tivesse sido o caso, não exatamente.

     —      Temos que perdoá-lo — ela disse. — Sem o gato, Tom estaria tão maluco quanto aqueles outros. E isso seria uma pena.

     —      Seria mesmo.

     —      Estou com tanto medo — ela disse. — Você acha que vai melhorar amanhã, à luz do dia, essa coisa de sentir medo?

     —      Não sei.

     —      Você deve estar morrendo de preocupação com a sua mulher e o garotinho.

     Clay suspirou e esfregou o rosto.

     —      A pior parte é suportar a sensação de impotência. Nós estamos separados, sabe, e... — Ele parou de falar e balançou a cabeça. Não teria prosseguido se ela não tivesse pegado a sua mão. Os dedos dela estavam firmes e gelados. — Nós nos separamos na primavera. Ainda moramos na mesma cidadezinha, o que minha mãe chamaria de casamento de portão. Minha mulher é professora primária.

     Ele se inclinou para frente, tentando ver o rosto dela na escuridão.

     —      Sabe o que é pior? Se isso tivesse acontecido um ano atrás, Johnny estaria com ela. Mas nesse setembro ele passou para o ensino médio, e a escola fica a 8 quilômetros de distância. Fico tentando calcular se ele já estava em casa quando tudo foi pelos ares. Ele e os amigos vêm de ônibus. Acho que ele já devia estar em casa. E acho que teria ido direto atrás da mãe.

     Ou tirado o celular da mochila e ligado para ela!, sugeriu alegremente o rato surtado... e então mordeu. Clay sentiu seus dedos apertarem a mão de Alice e se forçou a parar. Mas não conseguia impedir o suor de brotar no rosto e nos braços.

     —      Mas você não tem certeza — ela disse.

     —      Não.

     —      Meu pai tem uma loja de reproduções e molduras em Newton — ela disse. — Tenho certeza de que ele está bem. Papai sabe se virar bem sozinho, mas deve estar preocupado comigo. Comigo e com a minha. A minha você-sabe-quem.

     Clay sabia.

     —      Não paro de pensar em como ele fez para jantar — ela disse. — Sei que é loucura, mas ele não sabe fritar um ovo.

     Clay pensou em perguntar se o pai dela tinha celular, mas algo o avisou para não fazê-lo. Em vez disso, perguntou:

     —      Você está bem agora?

     —      Sim — ela falou e deu de ombros. — O que aconteceu com ele aconteceu. Não posso fazer nada.

     Ele pensou: Preferia que você não tivesse dito isso.

     —      Já contei que o meu filho tem um celular? — A voz dele soou tão rouca quanto o grasnido de um corvo aos seus próprios ouvidos.

     —      Sim, contou. Antes de cruzarmos a ponte.

     —      É verdade. — Ele estava mordendo o lábio inferior e se forçou a parar. — Mas ele não estava sempre carregado. Eu devo ter falado isso também.

     —      Falou.

     —      Não tenho como saber. — O rato surtado tinha saído da gaiola. Correndo e mordendo.

     As duas mãos dela se fecharam sobre as de Clay. Ele não queria sucumbir ao consolo da garota — era difícil abdicar do autocontrole e sucumbir —, mas o fez, achando que talvez ela precisasse mais dar do que ele receber. Eles estavam daquele jeito, as mãos unidas perto do saleiro e do pimenteiro de metal na mesa da pequena cozinha de Tom McCourt, quando Tom voltou do porão com quatro lanternas e um lampião ainda na caixa.

     A luz do lampião era forte o bastante para tornar as lanternas desnecessárias. O brilho era intenso e branco, mas Clay gostava dele, da ma-neira como ele acabava com todas as sombras, exceto as deles próprios e a do gato — que saltou de um jeito fantástico parede acima como uma decoração de Dia das Bruxas feita de papel crepom preto.

     — Acho que você devia fechar as cortinas — disse Alice.

     Tom estava abrindo um dos sacos plásticos do Metropolitan Café. Ele parou e olhou para ela com curiosidade.

     —      Por quê?

     Ela deu de ombros e sorriu. Clay achou que aquele era o sorriso mais estranho que já vira no rosto de uma adolescente. Ela limpara o sangue do nariz e do queixo, mas havia olheiras de cansaço debaixo dos seus olhos e o lampião descoloriu-lhe o restante do rosto, deixando-o pálido como o de um cadáver, e a artificialidade adulta daquele sorriso, que mostrava um pedacinho dos dentes entre lábios trêmulos que já não tinham mais batom algum, era desconcertante. Ele pensou que Alice parecia uma atriz de cinema do fim da década de 1940 fa-zendo o papel de uma socialite à beira de um colapso nervoso. O tênis em miniatura estava diante dela na mesa. Ela o girava com um dedo. A cada volta, os cadarços rodavam com um estalo. Clay começou a dese-jar que ela desmoronasse logo. Quanto mais segurasse as pontas, pior seria quando finalmente se entregasse. Ela havia deixado um pouco daquilo vir à tona, mas ainda estava longe de ser o suficiente. Até o momento, quem tinha deixado vir mais à tona era Clay.

     —      Não acho que as pessoas deviam ver que estamos aqui, só isso — ela disse. Girou o tênis. O que ela chamava de Nike de bebê. Ele deu uma volta. Os cadarços rodaram com um estalo na mesa bem lustrada de Tom. — Talvez seja... ruim.

     Tom olhou para Clay.

     —      Ela pode ter razão — disse Clay. — Não gosto da idéia de sermos a única casa iluminada no quarteirão, mesmo sendo a luz dos fundos.

     Tom se levantou e fechou as cortinas sobre a pia sem falar mais uma palavra. Havia outras duas janelas na cozinha e ele fechou as cortinas delas também. Começou a voltar para a mesa, mas então mudou de rumo e fechou a porta entre a cozinha e o corredor. Alice girou o Nike de bebê à sua frente. Sob o brilho intenso e profuso do lampião, Clay pôde ver que ele era rosa e púrpura, cores que só mesmo uma criança gostaria. E ele rodou. Os cadarços saltaram com um estalo. Tom olhou para ele com a cara fechada ao sentar, e Clay pensou: Diga para ela tirar o tênis da mesa. Diga que ela não sabe por onde ele andou e que você não o quer em cima da mesa. Isso deve bastar para ela explodir e então poderemos começar a tirar essa parte do caminho. Diga a ela. Acho que é isso que ela quer. Acho que é por isso que está girando o tênis.

     Porém, Tom apenas tirou os sanduíches da sacola — rosbife e queijo, presunto e queijo — e os distribuiu. Ele pegou um jarro de chá gelado do refrigerador ("Ainda está bem gelado", ele disse) e então colocou os restos de uma caixa de hambúrgueres crus no chão para o gato.

     —      Ele merece — ele falou, quase na defensiva. — Além do mais, ia acabar estragando com a falta de energia.

     Havia um telefone pendurado na parede. Clay o testou, mas era apenas uma formalidade, e daquela vez não conseguiu nem um tom de discagem. A coisa estava morta feito... bem, a Mulher do Terninho de Poderosa, lá no Boston Common. Ele voltou a sentar e se ocupou do seu sanduíche. Estava com fome, mas sem vontade de comer.

     Alice largou o dela depois de apenas três mordidas.

     —      Não consigo — ela disse. — Agora não. Acho que estou cansada demais. Quero dormir. E quero tirar esse vestido. Acho que não dá pra lavar, não muito bem, mas daria qualquer coisa para poder jogar essa porra de vestido fora. Está fedendo a suor e sangue. — Ela girou o tênis. Ele rodou do lado do papel amassado embaixo do sanduíche quase intocado. — Sinto o cheiro da minha mãe nele também. Do perfume dela.

     Por um instante, ninguém falou nada. Clay se sentia desconfortável. Ele visualizou momentaneamente Alice sem o vestido, vestindo sutiã e calcinhas brancas, com aqueles olhos arregalados e fundos fazendo-a parecer uma boneca de papel. Sua imaginação de artista, sempre obediente e prestativa, acrescentou alças nos ombros e na parte de baixo das pernas da figura. Era perturbador não por ser sexy, mas por não ser. Ao longe — muito baixinho — algo explodiu com um foomp surdo.

     Tom quebrou o silêncio, e Clay lhe agradeceu por isso.

     —      Aposto que um jeans meu serviria em você, se enrolar as pontas. — Ele se levantou. — Sabe, acho que você vai até ficar bonitinha com ele, como Huck Finn em uma montagem de Big River em uma escola para meninas. Vamos subir. Vou separar umas roupas para você usar de manhã e pode passar a noite no quarto de hóspedes. Tenho um monte de pijamas, minha casa é infestada de pijamas. Quer ficar com o lampião?

     —      Só... acho que posso ficar só com uma lanterna. Tem certeza?

     —      Claro — disse ele. Tom pegou uma lanterna e entregou outra para ela. Deu a impressão de estar prestes a falar alguma coisa sobre o tênis em miniatura quando a garota o pegou, mas pareceu reconsiderar. O que disse foi: — Pode se lavar, também. Talvez não tenha muita água, mas deve sair um pouco da torneira mesmo sem energia, e tenho certeza de que podemos gastar uma bacia. — Ele olhou por sobre a cabeça dela para Clay. — Sempre deixo um engradado de garrafas d'água no porão, então não vai faltar, para beber.

     Clay assentiu.

     —      Durma bem, Alice — falou.

     —      Você também — ela respondeu vagamente. E depois, mais vagamente ainda: — Foi um prazer.

     Tom abriu a porta para ela. As luzes das lanternas oscilaram e então a porta voltou a fechar. Clay escutou passos na escada e depois no andar de cima. Ouviu água corrente. Esperou o barulho do ar nos canos, mas o fluxo de água parou antes que o ar começasse. Clay também queria lavar sangue e sujeira do corpo — assim como Tom, ele imaginava —, mas achou que deveria ter outro banheiro no primeiro piso. E se Tom fosse tão caprichoso em relação à higiene quanto o era consigo mesmo, a água da privada estaria limpa. E havia também a água do tanque, é claro.

     Rafer pulou na cadeira de Tom e começou a lamber as patas sob a luz branca do lampião. Mesmo com o zumbido baixo e constante do lampião, Clay conseguia ouvi-lo ronronar. Na opinião de Rafe, a vida ainda era tranqüila.

     Ele pensou em Alice girando o tênis em miniatura e imaginou, quase distraidamente, se era possível para uma garota de 15 anos ter um colapso nervoso.

      —      Não seja idiota — ele falou para o gato. — É claro que sim. Acontece o tempo todo. Eles fazem filmes sobre isso.

     Rafer olhou para ele com olhos verdes e sábios e continuou lambendo a pata. Conte-me mais, aqueles olhos pareciam dizer. Você apanhava quando era criança? Tinha pensamentos sssexuais sobre a mãe?

     Sinto o cheiro da minha mãe nele. Do perfume dela.

     Alice é uma boneca de papel, com alças saindo dos ombros e das pernas.

     Não ssseja bobo, os olhos de Rafer pareciam dizer. As alças das etiquetasss ficam nas roupas, não na boneca. Que tipo de artista você é?

     — O tipo desempregado — ele disse. — Por que você não cala a boca?

     Ele fechou os olhos, mas foi pior. Os olhos de Rafer flutuavam descarnados no escuro, como os do Gato Risonho de Lewis Carroll: Somos todos loucos aqui, querida Alice. E sob o zumbido constante do lampião, ele ainda conseguia ouvir o ronronar.

     Tom demorou 15 minutos. Quando voltou, empurrou Rafe para fora da cadeira sem cerimônia e deu uma mordida grande e convincente no seu sanduíche.

     —      Ela está dormindo — ele disse. — Se enfiou em um dos meus pijamas enquanto eu esperava no corredor e então jogamos o vestido no lixo juntos. Acho que ela apagou quarenta segundos depois de bater no travesseiro. Estou convencido de que jogar o vestido fora foi o que resolveu o problema. — Uma pequena pausa. — Estava fedendo mesmo.

     —      Enquanto você estava lá em cima — disse Clay —, nomeei Rafe presidente dos Estados Unidos. Ele foi eleito por unanimidade.

     —      Ótimo — falou Tom. — Boa escolha. Quem votou?

     —      Milhões. Todo mundo que ainda está são. Eles mandaram os votos por telepatia. — Clay arregalou bem os olhos e cutucou as têmporas. — Eu leio meeentesss.

     Tom parou de mastigar, então voltou... porém lentamente.

     —      Sabe — ele disse —, dadas as circunstâncias, isso não é tão engraçado assim.

     Clay suspirou, bebericou um pouco de chá gelado e se forçou a comer um pouco mais do sanduíche. Ele disse a si mesmo para pensar na comida como gasolina para o corpo, se era o que precisava para empurrá-la goela abaixo.

     —      Não. Acho que não. Desculpe.

       Tom fez um gesto com o copo dele na direção de Clay antes de beber.

     —      Tudo bem. Agradeço o esforço. Ei, onde está o seu portfolio?

     —      Deixei na varanda. Queria estar com as duas mãos livres enquanto passávamos pelo Corredor da Morte de Tom McCourt.

     —      Então está tudo bem. Ouça, Clay, lamento mesmo pela sua família...

     —      Não lamente ainda — disse Clay, com um pouco de rispidez. — Não há nada para lamentar ainda.

     —      ... mas fico muito feliz por ter encontrado você. Era só o que eu queria dizer.

     —      Igualmente — falou Clay. — Agradeço pelo lugar tranqüilo para passar a noite e tenho certeza de que Alice também.

     —      Contanto que Malden não fique turbulenta e queime à nossa volta.

     Clay assentiu, sorrindo um pouco.

     —      Contanto que isso não aconteça. Você tirou aquele sapatinho sinistro dela?

     —      Não. Ela foi para cama com ele como... sei lá, um ursinho de pelúcia. Ela vai estar melhor amanhã se dormir a noite inteira.

     —      Você acha mesmo?

     —      Não — disse Tom. — Mas se acordar assustada no meio da noite, vou dormir com ela. Entrar na cama junto, se for preciso. Você sabe que eu não faria nada com ela, não é?

     —      Claro. — Clay sabia que ele também não, mas entendeu sobre o que Tom estava falando. — Vou para o norte amanhã assim que o dia raiar. Talvez seja uma boa idéia vocês dois virem comigo.

     Tom pensou sobre a proposta por um instante, então perguntou:

     —      E o pai dela?

     —      Ela falou que o pai, abre aspas, "sabe se virar bem sozinho". A maior preocupação dela era sobre como ele fez para jantar. O que entendi disso é que Alice não está pronta para saber. É claro que teremos que esperar para ver a reação dela, mas prefiro mantê-la com a gente e não quero ir para aquelas cidades industriais do oeste.

     —      Você não quer ir para o oeste de jeito nenhum?

     —      Não — admitiu Clay.

       Clay pensou que Tom talvez fosse discutir sobre aquilo, mas não discutiu.

     —      E hoje à noite? Você acha que devemos ficar vigiando?

     Clay não tinha pensado sobre o assunto até aquele momento. Ele disse:

     —      Não sei se vai adiantar muito. Se uma turba enlouquecida descer a Salem Street brandindo armas e tochas, o que nós poderemos fazer a respeito?

     —      Descer para o subsolo?

     Clay pensou naquela opção. Descer para o subsolo lhe parecia terrivelmente extremo — o refúgio final do bunker como defesa —, mas havia a possibilidade de a hipotética turba enlouquecida em questão achar que a casa estivesse deserta e passar direto. Ele imaginou que seria melhor descer do que ser massacrado na cozinha. Talvez depois de ver Alice ser estuprada por um grupo de homens.

     Não vai chegar a esse ponto, ele pensou, apreensivo. Você está se deixando levar pelas hipóteses, só isso. Ficando apavorado no escuro. Não vai chegar a esse ponto.

     Só que Boston estava em chamas atrás deles. Lojas de bebidas estavam sendo saqueadas e homens se esmurravam até sangrar por barris de alumínio de cerveja. Já tinha chegado àquele ponto.

     Enquanto isso, Tom o observava, deixando-o digerir a idéia... o que significava que Tom talvez já tivesse feito isso. Rafe pulou no colo dele. Tom largou o sanduíche e acariciou as costas do gato.

     —      Por que a gente não faz o seguinte? — falou Clay. — Se você tiver umas mantas para eu me enrolar, posso passar a noite lá fora, na varanda. Ela é coberta e mais escura do que a rua. O que significa que é mais provável que eu veja qualquer pessoa vindo bem antes de ela notar que eu estou observando. Principalmente se for um daqueles fonáticos. Eles não me pareceram ser muito bons de tocaia.

     —      Não, eles não são do tipo que atacam de surpresa. Mas e se alguém vier pelos fundos? A Lynn Avenue fica a uma quadra daqui.

     Clay deu de ombros, tentando indicar que eles não tinham como se defender de tudo — ou mesmo de muita coisa — sem precisar dizer em voz alta.

      

     —      Tudo bem — disse Tom, depois de comer um pouco mais do seu sanduíche e dar um pedaço de presunto para Rafe. — Mas você poderia me chamar lá pelas três. Se a Alice não tiver acordado até essa hora, é bem provável que durma a noite inteira.

     —      Vamos esperar para ver o que acontece — disse Clay. — Veja bem, acho que sei a resposta para essa pergunta, mas você não teria uma arma?

     —      Não — falou Tom. — Nem uma solitária lata de spray de pimenta. — Ele olhou para o sanduíche e o largou. Quando ergueu os olhos para Clay, eles estavam extraordinariamente tristes. Falou baixinho, como as pessoas falam quando conversam assuntos secretos. — Você se lembra do que o policial falou logo antes de atirar naquele maluco?

     Clay assentiu. E aí, meu caro, como vai? Quero dizer, tudo em cima? Ele jamais se esqueceria daquilo.

     —      Sei que não foi igual nos filmes — disse Tom —, mas nunca imaginei que tivesse um poder tão enorme, ou que fosse tão brusco... e o barulho quando os miolos... os miolos...

      Ele se inclinou para frente de súbito, uma das mãos pequenas enroscada sobre a boca. O movimento assustou Rafe, que pulou para o chão. Tom emitiu três sons de náusea baixos e guturais, e Clay se preparou para o vômito que quase certamente viria em seguida. Ele não queria começar a vomitar também, mas achava que não ia ter jeito. Sabia que estava perto de fazê-lo, muito perto. Pois ele sabia do que Tom estava falando. O tiro e, depois, o borrifo líquido e pegajoso no asfalto.

     Ninguém vomitou. Tom se controlou e ergueu a cabeça com os olhos úmidos.

     —      Desculpe — ele falou. — Não devia ter falado sobre isso.

     —      Não precisa se desculpar.

     —      Acho que, se quisermos passar pelo que quer que seja que nos espere, é melhor acharmos um jeito esconder nossas sensibilidades mais nobres. Acho que as pessoas que não conseguirem fazer isso... — Ele se interrompeu e então voltou a falar. — Acho que as pessoas que não conseguirem fazer isso... — Parou uma segunda vez. Na terceira, conseguiu terminar. — Acho que as pessoas que não conseguirem fazer isso podem morrer.

     Eles se encararam sob a luz do lampião.

     — Depois que deixamos a cidade, não vi ninguém armado — disse Clay. — No começo, não estava prestando atenção, mas depois passei a prestar.

     —      Você sabe por quê, não sabe? Com exceção talvez da Califórnia, Massachusetts tem a lei mais rigorosa para armas do país.

     Clay se lembrava de ter visto outdoors anunciando aquilo na divisa do estado alguns anos atrás. Então eles foram substituídos por outros que diziam que, se você fosse pego dirigindo alcoolizado, passaria a noite na prisão.

     Tom disse:

     —      Se os policiais encontrarem uma arma escondida no seu carro, tipo no porta-luvas com os seus documentos, você pode pegar sete anos de prisão, eu acho. Se for parado com um rifle na sua picape, mesmo na temporada de caça, pode ganhar uma multa de 10 mil dólares e dois anos de serviço comunitário. — Ele pegou o resto do sanduíche, deu uma olhada nele e o largou de novo. — Você pode ter uma arma em casa se não for um criminoso, mas uma licença de porte? Pode até conseguir a assinatura do padre O'Malley4 do Boys' Club, mas talvez nem assim.

     —      A falta de armas pode ter salvado algumas vidas, quando as pessoas estavam saindo da cidade.

     —      Concordo plenamente com você — disse Tom. — Aqueles dois caras brigando pelo barril de cerveja. Graças a Deus que nenhum dos dois tinha um calibre 38.

     Clay assentiu.

     Tom recostou na cadeira, cruzou os braços sobre o peito estreito e olhou ao redor. Seus óculos cintilaram. O círculo de luz que o lampião emitia era brilhante, mas pequeno.

     —      Só que agora eu bem que gostaria de ter uma arma. Depois de ver o estrago que elas fazem. E eu me considero um pacifista.

     —      Há quanto tempo você mora aqui, Tom?

     —      Quase 12 anos. Tempo suficiente para ver Malden descer boa parte da ladeira até a Merdolândia. Ainda não chegou lá, mas está perto.

     —      Certo, então pense bem. Quais dos seus vizinhos podem ter armas em casa?

     Tom respondeu de imediato.

     —      Arnie Nickerson, do outro lado da rua, três casas mais adiante. Adesivo da NRA55 no pára-choque do carro, junto com umas duas fitinhas amarelas de apoio às nossas tropas decalcadas e um adesivo Bush-Cheney antigo...

     —      Não precisa falar mais nada...

     —      E na picape dois adesivos da NRA, que ele equipa com um bagageiro para acampar em novembro, e vai caçar lá na sua terra.

     —      E nós ficamos felizes em receber a renda da licença de caça para os que moram fora do estado — disse Clay. — Vamos arrombar a casa dele amanhã e pegar as armas.

     Tom McCourt olhou para Clay como se ele estivesse louco.

     —      Esse cara não é paranóico como aqueles sujeitos metidos a paramilitares em Utah... quero dizer, ele mora em Massachusetts, o reino dos impostos... mas tem um daqueles alarmes contra roubo com sensores no gramado que diz basicamente TÁ SE SENTINDO SORTUDO, VAGABUNDO?, e tenho certeza de que você conhece a política do NRA a respeito de quando vão conseguir tirar as armas deles.

     —      Acho que tem a ver com arrancá-las de seus dedos mortos...

     —      É isso mesmo.

     Clay se inclinou para frente e expôs o que para ele tinha ficado óbvio desde o instante em que desceram a rampa da Route One: Malden havia se tornado apenas mais uma cidade ferrada nos Estados Unicelulares da América, e que o país estava fora de área, desligado, sentimos muito, tente mais tarde. Salem Street estava deserta. Ele tinha sentido isso quando eles estavam chegando... não tinha?

     Não. Mentira. Você se sentiu observado.

     É mesmo? E mesmo que aquilo fosse verdade, seria aquele o tipo de intuição em que se podia confiar, se basear para agir, depois de um dia como aquele? A idéia era ridícula.

     —      Ouça, Tom. Um de nós vai até a casa desse tal de Nackleson amanhã, assim que o dia estiver claro.

     —      É Nickerson, e não acho que seja uma idéia muito boa, o vidente McCourt o vê ajoelhado atrás da janela da sala de estar com um rifle automático que estava guardando para o fim do mundo. Que parece ter chegado.

     —      Eu vou — disse Clay. — Mas não vou se escutarmos tiros da casa de Nickerson hoje à noite ou amanhã de manhã. Certamente não vou se vir corpos no gramado do sujeito, com ou sem ferimentos de bala. Eu também assisti a todos aquele episódios antigos de Além da Imaginação, aqueles em que se descobre que a civilização não passa de uma fina camada de verniz.

     —      Se é isso — disse Tom de modo sombrio. — Idi Amin, Polpot, dou o caso por encerrado.

     —      Vou até lá com as mãos levantadas. Vou tocar a campainha. Se alguém atender, falarei que só quero conversar. O pior que pode acontecer é ele me mandar cair fora.

     —      Não, o pior que pode acontecer é ele te matar bem em cima da porra do capacho de Boas-vindas e me deixar sozinho com uma adolescente órfã — disse Tom com rispidez. — Pode fazer quantas piadinhas quiser sobre episódios antigos de Além da Imaginação, mas não se esqueça daquelas pessoas que viu hoje, brigando em frente à estação de metrô em Boston.

     —      Aquilo foi... não sei o quê foi aquilo, mas aquelas pessoas estavam loucas de pedra. Não tenha dúvida, Tom.

     —      E quanto à Papa-hóstias Maluca? E os dois homens brigando pelo barril? Eles estavam loucos?

     Não é claro que não, mas se houvesse uma arma naquela casa do outro lado da rua, ele ainda a queria. E se tivesse mais de uma, queria que Tom e Alice ficassem com elas também.

     —      Estava pensando em ir uns 150 quilômetros para o norte — disse Clay. — Talvez a gente possa roubar um carro e dirigir um pedaço, mas acho que vamos ter de andar todo o caminho. Você quer ir protegido só com facas? Estou perguntando de um homem sensato para outro, porque algumas das pessoas que vamos encontrar estarão armadas. Você sabe disso.

     —      Sim — disse Tom. Ele passou a mão pelo cabelo bem aparado, despenteando-o de um jeito engraçado. — E sei que Arnie e Beth provavelmente também estão fora de casa. Eles são tão doidos por engenhocas quanto por armas. Arnie vivia tagarelando no celular quando passava naquela picape Dodge Ram grande e fálica dele.

     —      Está vendo? Prontinho.

     Tom suspirou.

     —      Tudo bem. Vai depender de como as coisas vão estar pela manhã. Ok?

     —      Ok. — Clay pegou o sanduíche de novo. Sentia um pouco mais de vontade de comer agora.

     —      Onde eles foram parar? — perguntou Tom. — Os que você chama de fonáticos. Onde eles foram parar?

     —      Não sei.

     —      Vou dizer o que eu acho — disse Tom. — Acho que eles entraram nas casas e edifícios depois do pôr do sol e morreram.

     Clay olhou para ele com incredulidade.

     —      Pense com calma sobre a coisa e você vai ver que eu tenho razão — falou Tom. — Isso foi quase certamente algum tipo de ato terrorista, concorda?

     —      Essa parece ser a explicação mais provável, embora não faça a menor idéia de como qualquer sinal, por mais subversivo que seja, possa ter sido programado para fazer o que esse fez.

     —      Você é cientista?

     —      Você sabe que não. Sou um artista.

     —      Então quando o governo diz que é capaz de guiar bombas inteligentes computadorizadas de porta-aviões que podem estar a mais de 3 mil quilômetros de distância até a porta de bunkers debaixo do deserto, tudo o que você pode fazer é oihar para as fotos e aceitar que a tecnologia existe.

     —      Tom Clancy não mentiria para mim — disse Clay, sem sorrir.

     —      E se esse tipo de tecnologia existe, por que não aceitar essa outra, pelo menos provisoriamente?

    —      Ok, pode falar. Em poucas palavras, por favor.

     —      Por volta das três da tarde, uma organização terrorista, talvez até um governo de meia tigela, gerou um tipo de sinal ou pulso. Por ora, temos que supor que este sinal foi transmitido por todas as operadoras de celular do mundo. Vamos torcer para que não seja o caso, mas, por ora, acho que temos que supor o pior.

     —      A transmissão acabou?

     —      Não sei — disse Tom. — Quer pegar um celular para descobrir?

     —      Tuchim — falou Clay. — É assim que o meu filhinho fala touché. — E, por favor Deus, é assim que ele continua falando.

     —      Mas, se esse grupo pode transmitir um sinal que deixaria todos que o ouvissem loucos — prosseguiu Tom —, não haveria a possibilidade de que o sinal também contivesse uma diretriz que mandasse todos os que o recebessem se matarem cinco horas depois? Ou talvez simplesmente irem dormir e pararem de respirar.

     —      Eu diria que isso é impossível.

     —      Eu teria dito que um louco vir para cima de mim do Four Seasons Hotel com uma faca é impossível — disse Tom. — E que Boston ser consumida pelo fogo enquanto toda a população... quero dizer, a parcela da população que tem a sorte de não ter celulares... foge pelas pontes Mystic e Zakim.

     Ele se inclinou para frente, olhando para Clay com atenção. Ele quer acreditar nisso, Clay pensou. Não desperdice muito tempo tentando dissuadi-lo, porque ele quer muito acreditar, muito mesmo.

     —      De certa forma, isso não é diferente do bioterrorismo que o governo tanto temia depois do 11 de setembro — ele disse. — Através dos celulares, que se tornaram a forma cotidiana de comunicação dominante, é possível transformar a população em um exército particular, um exército que literalmente não tem medo de nada, porque é louco, ao mesmo tempo em que destrói a infra-estrutura. Onde está a Guarda Nacional hoje à noite?

     —      No Iraque? — arriscou Clay. — Na Louisiana?

     Não foi uma piada muito boa e Tom não sorriu.

     —      Em lugar nenhum. Como se usa uma força interna que hoje em dia depende quase totalmente da rede de celulares até para se mobilizar? Quanto aos aviões, o último que vi voando foi aquele pequeninho que caiu na esquina da Charles com a Beacon. — Ele fez uma pausa e então prosseguiu, olhando através da mesa direto para os olhos de Clay. — Tudo isso que eles fizeram... quem quer que sejam eles. Eles olharam para nós de onde quer que vivam e adorem seus deuses, e o que viram?

     Clay balançou a cabeça, fascinado pelos olhos de Tom, que brilhavam por trás dos óculos. Eram quase os olhos de um visionário.

     —      Eles viram que tínhamos reconstruído a Torre de Babel... e sustentada apenas por teias eletrônicas. E, em questão de segundos, eles varreram essas teias e nossa Torre caiu. Eles fizeram tudo isso, e nós três somos como insetos que calharam, por pura sorte, de evitar o pisão de um gigante. Eles fizeram tudo isso, e você acha que não poderiam ter codificado um sinal que mandasse os afetados simplesmente irem dormir e pararem de respirar? Qual é o mistério, se comparado com o primeiro? Não muito grande, eu diria.

     Clay disse:

     —      Acho que está na hora de irmos dormir.

     Por um instante, Tom ficou como estava, um pouco curvado sobre a mesa, olhando para Clay como se incapaz de entender o que ele tinha dito. Então riu.

     —      É — ele disse. — É, você está certo. Eu me empolguei. Desculpe.

     —      Sem problema — disse Clay. — Espero que tenha razão quanto aos lunáticos estarem mortos. — Fez uma pausa e então falou: — Quero dizer... a não ser que meu filho... Johnny-Gee... — Não conseguiu terminar. Em parte, ou principalmente, porque se Johnny tivesse tentado usar o telefone naquela tarde e tivesse recebido a mesma ligação que a Cabelinho Claro e a Mulher do Terninho de Poderosa, Clay não tinha certeza se queria que o filho ainda estivesse vivo.

     Tom estendeu o braço até o outro lado da mesa e Clay envolveu com as duas mãos a mão delicada e de dedos longos do outro homem. Ele viu isso acontecer como se estivesse fora do corpo e, quando falou, não parecia ser ele mesmo falando, embora sentisse a boca se mexendo e as lágrimas que haviam começado a cair dos seus olhos.

     —      Estou com tanto medo por ele — sua boca dizia. — Estou com medo pelos dois, mas principalmente pelo meu filho.

     — Vai ficar tudo bem — disse Tom, e Clay sabia que a intenção dele era boa, mas as palavras encheram-lhe o coração de terror da mesma forma, pois era apenas uma daquelas coisas que você fala quando não resta mais nada a dizer. Como Você vai superar, ou ele está em lugar melhor.

    

     Os gritos de Alice acordaram Clay de um sonho confuso mas agradável em que ele estava em uma Tenda de Bingo na Feira Estadual de Akron. No sonho, voltara aos 6 anos de idade — com certeza não mais que isso, mas talvez fosse até mais novo —, agachado debaixo da mesa em que a mãe estava, olhando para uma floresta de pernas femininas e sentindo o cheiro de serragem enquanto o locutor entoava: "B12, jogadores, B12! É a vitamina da luz solar!

     Por um instante o seu subconsciente tentou integrar os gritos da menina ao sonho, insistindo que o que ele ouvia era o apito de meio-dia de sábado, mas apenas por um instante. Clay se permitira dormir na varanda de Tom depois de uma hora de vigília, pois estava convencido de que nada iria acontecer lá fora, pelo menos não naquela noite. Porém, ele deveria estar convencido também de que Alice não dormiria a noite toda, pois não ficou confuso quando sua mente identificou os gritos pelo que eram e tampouco precisou se esforçar para saber onde estava ou o que estava acontecendo. Em um momento ele era um garotinho agachado debaixo de uma mesa de bingo em Ohio; no outro, estava saindo do sofá confortavelmente longo na varanda coberta de Tom McCourt com o cobertor ainda enroscado nas pernas. E, em algum lugar da casa, Alice Maxwell, berrando em um registro quase agudo o bastante para quebrar cristal, articulava todo o horror do dia que acabara de passar, insistindo com um grito depois do outro que tais poisas não deveriam ter acontecido de forma alguma e precisavam ser negadas.

     Clay tentou desembaraçar as pernas do cobertor sem sucesso. Ele se viu pulando na direção da porta e agitando a maçaneta em uma espécie de pânico, enquanto olhava para a Salem Street, convicto de que as luzes começariam a acender por todo o quarteirão, mesmo sabendo que não havia energia, convicto de que alguém — talvez aquele sujeito que tinha armas e adorava engenhocas, o Sr. Nickerson, que morava mais adiante — sairia para o gramado e gritaria para alguém pelo amor de Deus calar a boca daquela menina. Não me obrigue a ir até aí! Berraria Arnie Nickerson. Não me obrigue a ir até aí dar um tiro nela!

     Ou os gritos atrairiam os fonáticos como mariposas para uma luz. Tom poderia achar que eles estavam mortos, mas Clay acreditava nisso tanto quanto na fábrica do Papai Noel no Pólo Norte.

     Porém, a Salem Street — pelo menos o quarteirão em que estavam, logo a oeste do centro e depois da parte de Malden que Tom chamava de Granada Highlands — permaneceu escura, silenciosa e sem movimento. Até o brilho do fogo em Revere parecia ter diminuído.

     Clay finalmente se livrou do cobertor, entrou e ficou ao pé da escada, olhando para a escuridão acima. Agora conseguia escutar a voz de Tom — não as palavras, mas o tom, baixo, calmo e tranqüilizador. Os gritos arrepiantes da garota começaram a ser cortados por arquejos, e então por soluços e exclamações inarticuladas que se tornaram palavras. Clay entendeu uma delas: pesadelo. Tom continuou falando sem parar, contando mentiras em uma ladainha reconfortante: estava tudo bem, ela iria ver só, as coisas pareceriam melhores pela manhã. Clay os visualizava sentados lado a lado na cama do quarto de hóspedes, os dois vestindo pijamas com monogramas com as iniciais TM nos bolsos da frente. Poderia tê-los desenhado daquela forma. A idéia o fez sorrir.

     Quando teve certeza de que ela não recomeçaria a gritar, Clay voltou para a varanda, que estava um pouco fria, mas confortável assim que ele se enrolou no aconchego do cobertor. Sentou-se no sofá, inspecionando o que conseguia ver da rua. À esquerda, a leste da casa de Tom, havia um centro comercial. Ele achou que podia ver o semáforo que marcava a entrada da praça central. Do outro lado — que era o caminho pelo qual tinham vindo —, mais casas. Todas ainda naquela escuridão profunda.

     — Onde estão vocês? — ele murmurou. — Sei que alguns foram para o norte ou para o oeste ainda com a cabeça no lugar. Mas para onde foram os outros?

     Nenhuma resposta veio da rua. Poxa, talvez Tom tivesse razão — os celulares mandaram uma mensagem para as pessoas enlouquecerem às três e caírem mortas às oito. Parecia bom demais para ser verdade, mas ele se lembrava que tinha pensado o mesmo sobre CDs graváveis.

     Silêncio vindo da rua à frente dele; silêncio vindo da casa às suas costas. Um instante depois, Clay recostou no sofá e deixou os olhos se fecharem. Pensou que talvez pudesse cochilar, mas não achava que conseguiria pegar no sono novamente. Porém, acabou conseguindo, e desta vez sem sonhos. Logo antes do dia raiar, um vira-lata subiu pela entrada de Tom McCourt, olhou para ele roncando no seu casulo de cobertor e voltou a seguir adiante. Não estava com pressa, não faltavam restos de comida nas ruas de Malden naquela manhã e continuaria sendo assim por muito tempo.

    

     — Clay. Acorde.

     A mão de alguém, sacudindo-o. Clay abriu os olhos e viu Tom, usando jeans e uma camisa de botão cinza, inclinando-se sobre ele. A varanda estava iluminada por uma luz pálida e forte. Clay olhou para seu relógio de pulso à medida que tirava o pé de cima do sofá e viu que eram 6h20.

     —      Você tem que ver isto — disse Tom. Ele estava pálido, ansioso e com os dois lados do bigode grisalhos. Um dos lados da ponta da camisa estava para fora do cinto e a parte de trás do cabelo ainda estava de pé.

     Clay olhou para a Salem Street, viu um cachorro com algo na boca passando aos trotes por alguns carros abandonados a meia quadra na direção oeste; era a única coisa que se mexia. Sentia um cheiro fraco de fumaça no ar e imaginou que fosse de Boston ou Revere. Talvez de ambos, mas pelo menos o vento parará. Virou-se para Tom.

     —      Aqui não — disse Tom. Ele manteve a voz baixa. — No quintal dos fundos. Vi quando fui para a cozinha fazer café, antes de lembrar que não dá para ligar a cafeteira, pelo menos por enquanto. Talvez não seja nada, mas... cara, não estou gostando disso.

     —      Alice ainda está dormindo? — Clay estava tateando sob o cobertor, atraí das meias.

     —      Sim, e isso é bom. Esqueça as meias e os sapatos, não vamos jantar no Ritz. Venha.

     Ele seguiu Tom, que usava um par de chinelos que pareciam confortáveis, pelo corredor até a cozinha. Havia um copo meio vazio de chá gelado no aparador.

     Tom falou:

     —      Não consigo começar o dia sem um pouco de cafeína de manhã, sabe? Então me servi de um copo daquela coisa, aliás, pode pegar, ainda está bom e gelado, e abri a cortina em cima da pia para dar uma olhada no jardim. Sem motivo, só queria ter contato com o mundo exterior. E vi... olhe você mesmo.

     Clay olhou para fora pela janela da pia. Nos fundos, havia um bem cuidado pátio de ladrilhos com uma grelha a gás. Depois do pátio, ficava o quintal de Tom, metade gramado, metade jardim. Mais além, havia uma cerca alta e larga com um portão. O portão estava aberto. Pelo visto, estivera fechado a ferrolho, pois agora ele estava caído de lado, parecendo a Clay um pulso quebrado. Ocorreu-lhe que Tom poderia ter feito o café na grelha, não fosse pelo homem sentado no jardim, ao lado do que só podia ser um carrinho de mão ornamental, comendo a polpa de uma abóbora partida e cuspindo as sementes. Usava um macacão de mecânico e um boné seboso com um B apagado nele. Escrito em letras vermelhas apagadas no bolso esquerdo do macacão estava o nome tye&upe. Clay ouvia os sons baixos de sucção que o rosto dele fazia toda vez que o enfiava na abóbora.

     —      Merda — disse Clay baixinho. — É um deles.

     —      É. E se tem um, pode haver vários.

     —      Ele arrombou o portão para entrar?

     —      Claro que sim — disse Tom. — Não o vi fazendo, mas garanto que estava trancado quando eu saí ontem. Não tenho o melhor relacionamento do mundo com Scottoni, o cara que mora do outro lado. Ele não precisa de "sujeitinhos como eu", como já me disse várias vezes. — Ele fez uma pausa, então prosseguiu com a voz mais baixa. Já estava falando baixo antes, mas agora Clay tinha que chegar perto dele para ouvir. — Sabe o que é mais esquisito? Eu conheço aquele cara. Ele trabalha no posto Texaco, lá no Centro Comercial. É o único posto de gasolina da cidade que ainda faz consertos. Ou fazia. Ele trocou uma mangueira de radiador para mim uma vez. Me contou que foi com o irmão para o estádio dos Yankees no ano passado e viu Curt Schilling acabar com o Big Unit6. Parecia um sujeito legal. Agora olhe só para ele! Sentado no meu jardim comendo uma abóbora crua!

     —      O que está acontecendo, gente? — perguntou Alice atrás deles.

     Tom se virou, aparentando desânimo.

     —      Você não vai querer ver isso — ele disse.

     —      Não senhor — disse Clay. — Ela tem que ver.

     Ele sorriu para Alice, o que não era tão difícil assim. Não havia monograma no bolso do pijama que Tom lhe emprestara, mas ele era azul, como Clay tinha imaginado, e ela ficava terrivelmente bonita nele, descalça, com a bainha da calça levantada até as canelas e o cabelo desgrenhado pelo sono. Apesar dos pesadelos, Alice parecia mais descansada do que Tom. Clay poderia apostar que ela parecia mais descansada do que ele também.

     —      Não é um acidente de carro nem nada — falou ele. — É só um cara comendo uma abóbora no quintal do Tom.

     Ela se enfiou entre os dois, colocando as mãos na beirada da pia, e ficou na ponta dos pés para olhar pela janela. O braço dela roçou o de Clay e ele sentiu a quentura do sono que ainda irradiava da sua pele. Alice ficou olhando por um bom tempo e então se virou para Tom.

     —      Você disse que todos eles tinham se matado — ela falou, e Clay não soube dizer se estava acusando Tom ou dando uma bronca de mentirinha. Provavelmente ela mesma não sabe, ele pensou.

     —      Eu não falei com certeza — respondeu Tom, soando pouco convincente.

     —      Você me pareceu ter bastante certeza. — Ela voltou a olhar para fora. Pelo menos, pensou Clay, ela não está surtando. Na verdade, Alice parecia extraordinariamente tranqüila, até mesmo chapliniana, naquele pijama um pouco grande demais. — Uh... gente?

     —      O quê? — eles falaram juntos.

     —      Olhem o carrinho de mão do lado dele. Vejam só a roda.

     Clay já tinha visto o que ela estava falando — os restos de casca, polpa e sementes de abóbora.

     —      Ele bateu com a abóbora na roda para abri-la e comer o que estava dentro — disse Alice. — Acho que é um deles...

     —      Ah, ele é um deles com certeza — disse Clay. George, o mecânico, estava sentado no jardim com as pernas abertas, revelando a Clay que desde a tarde de ontem esquecera tudo que mamãe tinha ensinado sobre baixar as calças antes de fazer xixi.

     —      ... mas ele usou aquela roda como ferramenta. Não acho que um doido faria uma coisa dessas.

     —      Um deles estava usando uma faca ontem — disse Tom. — E tinha outro cara brandindo duas antenas de carro.

     —      Eu sei, mas... isso parece diferente.

     —      Mais pacífico, você quer dizer? — Tom olhou de volta para o intruso no jardim. — Não estou a fim de ir lá fora para descobrir.

     —      Não, não é isso. Não quis dizer pacífico. Não sei bem como explicar.

     Clay achou que entendia o que ela estava falando. A agressão que eles haviam testemunhado no dia anterior fora uma atitude cega, impulsiva. Uma coisa do tipo o-que-cair-na-minha-mão-eu-uso. Sim, teve o homem de negócios com a faca e o rapaz musculoso brandindo as antenas enquanto corria, mas também teve o homem no parque que arrancou a orelha do cachorro com os dentes. A Cabelinho Claro também usara os dentes. Aquilo parecia muito diferente, e não só porque ele estava comendo em vez de matando. Mas, assim como Alice, Clay não conseguia entender como era diferente.

     —      Oh, meu Deus, mais dois — disse Alice.

     Pelo portão aberto dos fundos entrou uma mulher de cerca de 40 anos com um terninho cinza sujo e um idoso vestindo um short de caminhada e uma camiseta com GRAY POWER escrito na frente. A mulher de terninho usava uma blusa verde em frangalhos, revelando as taças de um sutiã verde claro. O idoso estava mancando bastante, jogando os ombros para frente enquanto fazia uma espécie de sapateado a cada passo para manter o equilíbrio. Sua esquelética perna esquerda estava coberta de sangue seco e o pé estava sem o tênis de corrida. Os restos de uma meia atlética, encardida de sujeira e sangue, pendiam do tornozelo esquerdo. O cabelo branco um tanto longo do velho lhe caía sobre o rosto inexpressivo como um capuz. A mulher de terninho emitia um barulho repetitivo que soava como "Goom! Goom!" enquanto examinava o quintal e o jardim. Olhou para George, o Comedor de Abóbora, como se ele nem existisse, e então passou por ele em direção aos pepinos restantes. Ajoelhou-se diante deles, arrancou um da sua haste e começou a comê-lo. O velho com a camiseta GRAY POWER marchou até o final do jardim e então ficou parado um instante, como um robô cujo óleo finalmente acabara. Usava óculos dourados minúsculos — óculos de leitura, pensou Clay — que cintilavam na luz da manhã. Para Clay ele parecia como alguém que um dia fora muito inteligente e agora era muito idiota.

     As três pessoas na cozinha se espremeram, olhando pela janela, mal respirando.

     O olhar do velho parou em George, que jogou para longe um pedaço de casca de abóbora, examinou o resto e então meteu o rosto de volta nele, retomando o café-da-manhã. Em vez de se portar agressivamente em relação aos recém-chegados, nem mesmo pareceu notá-los.

     O velho mancou para a frente, se agachou e começou a puxar uma abóbora do tamanho de uma bola de futebol. Estava a menos de um metro de George. Clay, recordando a batalha campal em frente à estação do metrô, prendeu a respiração e esperou.

     Ele sentiu Alice agarrar seu braço. Toda a quentura do sono desaparecera da mão dela.

     —      O que ele vai fazer? — ela perguntou baixinho.

     Clay apenas balançou a cabeça.

     O velho tentou morder a abóbora e só conseguiu bater com o nariz. Era para ser engraçado, mas não foi. Seus óculos ficaram tortos e ele os colocou de volta no lugar. Foi um gesto tão normal que por um breve momento Clay teve certeza de que era ele que estava louco.

     —      Goom!— gritou a mulher de blusa rasgada e atirou longe o pepino meio comido. Divisara alguns tomates temporões e rastejou na direção deles com o cabelo caído sobre o rosto. A parte de trás da sua calça estava toda suja.

     O velho achara o carrinho de mão ornamental. Levou a abóbora até ele, então pareceu notar George, que estava sentado ao lado. Olhou para o homem, com a cabeça torta. George gesticulou com a mão pintada de laranja para o carrinho, um gesto que Clay já tinha visto milhares de vezes.

     —      A vontade — murmurou Tom. — Minha nossa.

     O velho se ajoelhou no jardim, um movimento que obviamente lhe causou muita dor. Fez uma careta, ergueu o rosto vincado para o céu resplandecente e proferiu um grunhido de aborrecimento. Então segurou o fruto sobre a roda. Estudou o ângulo de descida por vários segundos, bíceps velhos tremendo, e lançou a abóbora para baixo, partindo-a. Ela se abriu em duas metades polpudas. O que aconteceu em seguida foi rápido. George largou sua própria abóbora quase completamente devorada no colo, se jogou para frente, agarrou a cabeça do velho com as mãos grandes e manchadas de laranja e a torceu. O barulho do pescoço do velho quebrando atravessou o vidro da janela e chegou aos ouvidos dos três. O cabelo branco e longo dele voou. Os pequenos óculos desapareceram no que Clay achava que eram beterrabas. O corpo sofreu um espasmo, e então ficou flácido. George o largou. Alice começou a gritar e Tom cobriu a boca da menina. Ela ficou observando por sobre a mão dele com os olhos arregalados. Lá fora, no jardim, George pegou um pedaço fresco de abóbora e começou a comer com tranqüilidade.

     A mulher de blusa rasgada olhou ao redor por um instante, casualmente, e então arrancou outro tomate e o mordeu. Suco vermelho desceu pelo seu queixo e escorreu pelo vinco sujo do pescoço. Ela e George ficaram sentados no jardim dos fundos de Tom McCourt comendo legumes e, por algum motivo, o nome de um dos quadros favoritos de Clay veio-lhe à mente: O Reino Pacífico.

     Clay não percebera que havia falado alto até Tom olhar para ele com frieza e dizer:

     —      Não mais.

    

     Os três ainda estavam em pé diante da janela da cozinha cinco minutos depois quando um alarme começou a soar a alguma distância dali. Parecia fraco e rouco, como se estivesse prestes a cessar.

     — Alguma idéia do que pode ser? — perguntou Clay. No jardim, George tinha abandonado as abóboras e desenterrado uma batata grande. Isso o levou mais para perto da mulher, mas ela não despertou seu interesse. Pelo menos não por ora.

     —      Meu palpite seria que o gerador do Safeway no Centro Comercial acabou de parar — disse Tom. — Eles provavelmente têm um alarme a bateria caso isso aconteça, por conta de todos os alimentos perecíveis. Mas é só um palpite. Até onde eu sei, pode ser o First Malden Banke...

     —      Olhem! — disse Alice.

     A mulher parou de arrancar um outro tomate, se levantou e saiu andando em direção ao lado direito da casa de Tom. George se ergueu quando ela passou, e Clay teve certeza de que ele pretendia matá-la como matou o velho. A expectativa fez Clay se encolher e ele viu Tom se preparando para desviar Alice da cena. Mas George apenas seguiu a mulher, dando a volta na casa atrás dela e sumindo de vista.

     Alice se virou e saiu correndo para a porta da cozinha.

     —      Não deixe que eles vejam você — exclamou Tom em uma voz baixa e urgente, seguindo-a.

     —      Não se preocupe — ela disse.

     Clay os acompanhou, preocupando-se com todos.

     Eles alcançaram a sala de jantar a tempo de ver a mulher com seu terninho sujo e George com seu macacão mais sujo ainda passarem pela janela, os corpos segmentados pelas venezianas que estavam baixadas, mas não fechadas. Nenhum dos dois olhou para dentro da casa, e George estava tão perto da mulher que poderia morder sua nuca. Alice, seguida por Tom e Clay, subiu o corredor até o pequeno escritório de Tom. Lá, as venezianas estavam fechadas, mas Clay viu as sombras dos dois passarem rapidamente por elas. Alice continuou seguindo pelo corredor, em direção à porta aberta que dava para a varanda. O cobertor estava metade em cima e metade fora do sofá, como Clay o havia deixado. A luz brilhante da manhã inundava a varanda. Parecia queimar o assoalho.

     —      Alice, tenha cuidado! — disse Clay. — Tenha...

     Mas ela parara. Estava apenas olhando. E então Tom estava ao lado dela, quase da mesma altura que a menina. Vistos daquela maneira, poderiam ser irmãos. Nenhum dos dois se preocupou em tentar se esconder.

     —      Puta merda — disse Tom. Parecia ter levado um balde de água fria. Ao lado dele, Alice começou a chorar. Era o tipo de choro sem fôlego que uma criança cansada choraria. Uma criança que está se acostumando a ser castigada.

     Clay os alcançou. A mulher de terninho estava cruzando o gramado de Tom. George ainda estava atrás dela, seguindo-a passo a passo. Estavam quase marchando em fileira. O ritmo quebrou um pouco no meio-fio, quando George foi para a esquerda da mulher, deixando de ser uma sombra para ladeá-la.

     Salem Street estava cheia de loucos.

     À primeira vista, Clay achou que poderia haver centenas deles, ou mais. Então seu lado observador assumiu o controle — o olho frio do artista — e ele percebeu que aquilo era um exagero, causado pela surpresa de se deparar com uma pessoa que fosse quando esperava ver uma rua vazia e pelo choque de perceber que todos eram eles. Era impossível não reconhecer os rostos vazios, os olhos que pareciam ver através de tudo, as roupas sujas, manchadas de sangue, desalinhadas (em muitos casos não havia roupa alguma), os ocasionais grasnidos ou gestos convulsivos. Havia o homem vestindo apenas uma cueca apertadinha e uma camisa pólo e que parecia estar acenando sem parar; a mulher gorda cujo lábio inferior estava partido, formando dois bifes que pendiam revelando todos os dentes de baixo; o adolescente alto de bermuda jeans que andava até o meio da Salem Street carregando o que parecia ser uma chave de roda ensangüentada em uma das mãos, um senhor indiano ou paquistanês que passou pela casa de Tom mexendo a mandíbula de um lado para o outro e ao mesmo tempo batendo os dentes, um menino — meu Deus, um menino da idade de Johnny — que caminhava sem o mínimo sinal de dor, embora um dos seus braços estivesse balançando da junta deslocada do ombro, uma bela jovem de minissaia e top sem mangas que parecia estar comendo do estômago vermelho de um corvo. Alguns gemiam, outros emitiam sons que talvez tenham sido palavras um dia, e todos seguiam para o leste. Clay não fazia idéia se eles estavam sendo atraídos pelo alarme ou pelo cheiro de comida, mas estavam todos indo na direção do Centro Comercial de Malden.

     —      Meu Deus, é o paraíso dos zumbis — disse Tom.

     Clay não se deu o trabalho de responder. As pessoas lá fora não eram exatamente zumbis, mas Tom quase acertou. Se qualquer um deles olhar para cá, nos enxergar e decidir vir atrás da gente, estamos ferrados. Não vamos ter a mínima chance. Nem se nos entrincheirarmos no porão. E quanto àquelas armas do outro lado da rua? Pode esquecer.

     A idéia de que sua esposa e filho poderiam estar — muito possivelmente estavam — tendo que lidar com aquele tipo de criatura o encheu de horror. Mas aquilo não era uma história em quadrinhos e ele não era herói: não podia fazer nada. Os três talvez estivessem seguros na casa, mas, em se tratando do futuro próximo, ele, Tom e Alice não iriam para lugar nenhum.

     —      Eles são como pássaros — disse Alice. Ela limpou as lágrimas do rosto com as mãos. — Um bando de pássaros.

     Clay entendeu o que ela queria dizer e a abraçou impulsivamente. Ela identificara algo que ele tinha percebido quando observou George, o mecânico, seguir a mulher em vez de matá-la, como fizera com o velho. Os dois eram obviamente cabeças-ocas, mas pareciam ter ido lá para frente mediante algum tipo de acordo tácito.

     —      Não estou entendendo — disse Tom.

     —      Você não deve ter visto A Marcha dos Pingüins — disse Alice.

     —      Na verdade eu vi — respondeu Tom. — Se quiser ver alguém andar engraçado de smoking, vou a um restaurante francês.

     —      Mas você já notou como os pássaros se comportam, especialmente na primavera e no outono? — perguntou Clay. — Já deve ter visto. Eles ficam todos pousados na mesma árvore, ou no mesmo fio de um poste...

     —      Às vezes são tantos que o fio chega a envergar — disse Alice. —        E então todos saem voando na mesma hora. Meu pai diz que eles devem ter um líder, mas o Sr. Sullivan, meu professor de ciências, quer dizer, quando eu estava no ginásio, disse que é uma espécie de consciência coletiva, tipo quando as formigas saem todas juntas de um formigueiro, ou quando as abelhas saem da colméia.

     —      O bando faz curva para a direita ou para a esquerda, todos ao mesmo tempo, e os pássaros nunca batem um no outro — falou Clay.

     — Às vezes eles deixam o céu preto e o barulho é de enlouquecer. — Ele fez uma pausa. — Pelo menos onde eu moro, no interior. — Outra pausa. — Tom, você... você reconhece alguma dessas pessoas?

     —      Algumas. Aquele lá é o Sr. Potowami, da padaria — ele disse, apontando o indiano que balançava a mandíbula e batia os dentes. — Aquela moça bonita... acho que ela trabalha no banco. E lembra que eu falei sobre o Scottoni, o meu vizinho de quadra?

     Clay assentiu.

     Tom, que ficara muito pálido, apontou para uma mulher visivelmente grávida usando apenas um guarda-pó sujo de comida que ia até a parte de cima das coxas. Cabelo loiro caía sobre suas bochechas cheias de espinhas e um piercing brilhava no nariz.

     —      Aquela é a nora dele — ele falou. — Judy. Ela já fez questão de ser gentil comigo. — Ele acrescentou em um tom casual: —     Me dá um aperto no coração.

     Da direção do centro da cidade, veio um som alto de tiro. Alice gritou, mas desta vez Tom não precisou cobrir-lhe a boca, ela mesma o fez. De qualquer forma, nenhuma das pessoas da rua olhou para lá. Nem o estrondo — Clay achava que tinha sido um tiro — pareceu incomodá-los. Eles simplesmente continuaram andando, nem mais rápido, nem mais devagar. Clay esperou outro tiro. Em vez disso, ouviu um grito, muito breve; durou só um instante, como se tivesse sido interrompido.

     Os três nas sombras logo atrás da varanda ficaram observando, sem conversar. Todos que passavam estavam indo para o leste, e, embora não andassem exatamente em formação, havia sem dúvida uma espécie de ordem. Para Clay, o que deixava isso claro não era a visão dos próprios fonáticos, que quase sempre mancavam e às vezes se arrastavam, que balbuciavam e faziam gestos esquisitos, e sim a passagem silenciosa e ordeira das suas sombras no asfalto. Elas o fizeram pensar naqueles cinejornais sobre a Segunda Guerra Mundial que tinha visto, nos quais um grupo de bombardeiros depois do outro cruzava o céu. Ele contou 250 antes de desistir. Homens, mulheres, adolescentes. Um bom número de crianças da idade de Johnny, também. Mais crianças do que velhos, embora tenha visto umas poucas crianças com menos de 10 anos. Não gostava de pensar sobre o que deveria ter acontecido com os garotinhos e garotinhas que não tinham ninguém para cuidar deles quando o Pulso aconteceu.

     Ou com os garotinhos e garotinhas que estavam aos cuidados de pessoas com celulares.

     Quanto às crianças com o olhar vazio que via, Clay imaginou quantas delas tinham infernizado os pais pedindo celulares com toques especiais no ano anterior, como o fizera Johnny.

     —      Uma só mente — disse após um instante. — Você acredita mesmo nisso?

     —      Eu meio que acredito — falou Alice. — Porque... tipo... que mente própria eles têm?

     —      Ela tem razão — disse Clay.

     A migração (uma vez que se via aquilo daquela maneira, era difícil imaginar que fosse outra coisa) diminuiu, mas não parou, mesmo depois de meia hora, três homens passaram ombro a ombro — um vestindo uma camisa de jogador de boliche, um com os restos de um terno e outro com o pouco que sobrou da parte de baixo do rosto transformado em uma massa de sangue seco — e, em seguida, dois homens e uma mulher andando em fila, como se dançassem uma conga desajeitada, e então uma mulher de meia-idade que parecia uma bibliotecária (quer dizer, se você ignorasse o seio nu que balançava ao vento) enfileirada com uma adolescente desengonçada que poderia ser uma auxiliar de biblioteca. Houve um intervalo e então apareceu mais uma dúzia deles, parecendo formar uma espécie de quadrado, como uma unidade militar das Guerras Napoleônicas. E, ao longe, Clay começou a ouvir sons de guerra — o barulho de tiros de pistola ou rifle e uma vez (perto deles, talvez do bairro vizinho de Medford ou de Malden mesmo) o rugido longo e rascante de uma arma automática de alto calibre. E também mais gritos. A maioria vinha de longe, mas Clay tinha, certeza de que eram gritos.

     Ainda havia outras pessoas sãs por ali, muitas delas, e algumas tinham conseguido pegar em armas. Era muito provável que aquela gente estivesse atirando nos loucos. Outros, porém, não tiveram a sorte de estarem abrigados quando o sol nasceu e os malucos apareceram. Ele pensou em George, o mecânico, pegando a cabeça do velho em suas mãos laranja, a torção, o estalo, os pequeninos óculos de leitura voando para cima das beterrabas, onde ficariam. E ficariam. E ficariam.

     —      Acho que vou para a sala me sentar — disse Alice. — Não quero mais olhar para eles. Nem ouvir. Está me fazendo mal.

     —      Claro — disse Tom. — Pode ir. Eu vou ficar aqui observando mais um pouco. Acho que um de nós tem que ficar observando, não acha?

     Clay assentiu. Ele achava que sim.

     —      Então daqui a uma hora mais ou menos a gente reveza. Podemos fazer um rodízio.

     —      Ok. Combinado.

     Enquanto eles voltavam pelo corredor, Clay com os braços em volta dos ombros de Alice, Tom disse:

     —      Mais uma coisa.

     Eles olharam para trás.

     —      Acho melhor descansarmos o máximo que pudermos hoje. Quero dizer, se ainda quisermos ir para o norte.

     Clay olhou para ele com atenção, para se certificar de que Tom ainda estava com a cabeça no lugar. Parecia que sim, mas...

     —      Você notou o que está acontecendo lá fora? — ele perguntou.

     — Ouviu os tiros? Os... — Clay não queria dizer os gritos na frente de Alice, embora obviamente fosse um pouco tarde para tentar proteger as sensibilidades que ainda restavam nela — ... os berros?

     —      Claro que sim — disse Tom. — Mas os loucos se abrigaram na noite passada, não foi?

     Por um instante, nem Clay nem Alice se mexeram. Então Alice começou a bater as mãos em um aplauso baixinho, quase inaudível. E Clay começou a sorrir. O sorriso pareceu duro e estranho em seu rosto, e a esperança que ele trazia era quase dolorosa.

     —      Tom, você deve ser um gênio — ele falou.

     Tom não retribuiu o sorriso.

     —      Não aposte nisso — ele disse. — Nunca me dei muito bem no vestibular.

     Sentindo-se claramente melhor — e aquilo só podia ser uma coisa boa, calculou Clay —, Alice foi até o andar de cima procurar algo para vestir entre as roupas de Tom. Clay se sentou no sofá, pensando em Sharon e Johnny, tentando decidir o que eles teriam feito e para onde teriam ido, sempre supondo que tiveram a sorte de se encontrar. Ele cochilou e os viu com clareza na Escola Primária de Kent Pond, o co-légio em que Sharon dava aula. Estavam entrincheirados no ginásio, com mais duas ou três dúzias de pessoas, comendo sanduíches do refeitório e bebendo aquelas caixinhas de leite. Eles...

     Alice o acordou, chamando do segundo andar. Ele olhou para o relógio de pulso e viu que dormira no sofá por quase vinte minutos. Seu queixo estava babado.

     —      Alice? — Ele foi até o pé da escada. — Está tudo bem? — Notou que Tom também estava olhando.

     —      Sim, mas você pode subir um instante?

     —      Claro.

     Ele olhou para Tom, deu de ombros e subiu as escadas.

     Alice estava em um quarto de hóspedes que não parecia ter sido muito usado, embora os dois travesseiros sugerissem que Tom passara a maior parte da noite com ela, e as roupas de cama reviradas sugerissem, além disso, um sono muito agitado. Encontrara uma calça caqui quase do tamanho certo e uma blusa com CANOBIE LAKE PARK escrito na frente, sob o desenho de uma montanha russa. No chão, havia o tipo de aparelho de som portátil grande que um dia Clay e seus amigos desejaram ardentemente, do mesmo jeito que Johnny-Gee desejara aquele celular vermelho. Clay e seus amigos chamavam aqueles rádios de estoura tímpanos.

     —      Estava no armário e parece que as pilhas estão novas — ela disse. — Pensei em ligá-lo e procurar por uma estação de rádio, mas fiquei com medo.

     Ele olheu para o estoura tímpanos no belo chão de madeira de lei do quarto de hóspedes e também teve medo. Poderia ter sido uma arma carregada. Mas ele sentiu um ímpeto de esticar a mão e passar o botão de CD para FM. Imaginou que Alice tivesse sentido o mesmo e que o chamara por isso. O ímpeto de tocar uma arma carregada não teria sido nem um pouco diferente.

     —      Minha irmã me deu dois aniversários atrás — disse Tom da porta, e os dois deram um pulo. — Coloquei pilhas nele julho passado e o levei para a praia. Quando éramos crianças, costumávamos ir todos à praia e ficar ouvindo rádio, só que eu nunca tive um desse tamanho.

     —      Nem eu — disse Clay. — Mas bem que eu queria.

     —      Eu fui com ele para Hampton Beach em New Hampshire com um monte de CDs do Van Halen e da Madonna, mas não foi a mesma coisa. Nem de longe. Está parado desde então. Imagino que todas as rádios estejam fora do ar, vocês não acham?

     —      Aposto que algumas ainda estão no ar — disse Alice. Ela mordia o lábio inferior. Clay pensou que se ela não parasse logo com aquilo ele começaria a sangrar. — As que os meus amigos chamam de estações robôs. Elas têm nomes bonitinhos tipo BOB e FRANK, mas todas vêm de um computador gigante em Colorado e são transmitidas via satélite. Pelo menos é o que dizem os meus amigos. E... — Ela passou a língua no lugar em que mordera. O sangue brilhava logo embaixo da pele. — E é assim que os sinais de celular são enviados, não é? Via satélite?

     —      Não sei — disse Tom. — Acho que os de longa distância sim... e os que fazem chamadas transatlânticas com certeza... e imagino que um certo gênio poderia enviar o sinal de satélite errado para todas aquelas torres de microondas que existem por aí... aquelas que espalham os sinais...

     Clay sabia de que torres eles estavam falando, esqueletos de aço cobertos de pratos que mais parecem ventosas cinza. Elas pipocaram em todo canto nos últimos dez anos.

     Tom falou:

     —      Se conseguirmos sintonizar uma rádio local, talvez possamos conseguir informação. Alguma idéia sobre o que fazer, para onde ir...

     —      Sim, mas e se o rádio também estiver transmitindo aquilo? — disse Alice. — É disso que eu estou falando. E se a gente sintonizar na freqüência que a minha... — Ela passou a língua nos lábios mais uma vez, e então voltou a mordiscar. — ... a minha mãe ouviu? E meu pai? Ele também, ah, sim, ele tinha um celular novinho em folha, com tudo a que tinha direito, vídeo, autodiscagem, conexão com a Internet, ele adorava aquela coisinha! — Ela deu uma risada que era ao mesmo tempo histérica e triste, uma combinação desconcertante. — E se vocês sintonizarem no que eles escutaram? Meus pais e aquelas pessoas lá fora? Vocês querem arriscar?

     A princípio, Tom ficou calado. Então falou, cuidadosamente, como se estivesse testando a idéia:

     —      Um de nós poderia arriscar. O outro sairia e esperaria até...

     —      Não — disse Clay.

     —      Por favor, não — disse Alice. Ela estava quase chorando de novo. — Eu quero vocês dois. Preciso de vocês dois.

     Eles ficaram diante do rádio, olhando para ele. Clay se viu pensando nos romances de ficção científica que lera quando adolescente (às vezes na praia, ouvindo Nirvana em vez de Van Halen no rádio). Em boa parte deles, o mundo acabava. E então os heróis o reconstruíam. Não sem lutas e contratempos, mas sim, eles usavam os apare-lhos e as tecnologias disponíveis e o reconstruíam. Não se lembrava de nenhum em que os heróis ficavam plantados em um quarto olhando para um rádio. Mais cedo ou mais tarde alguém vai usar um aparelho ou ligar um rádio, ele pensou, porque alguém vai ter que fazer isso.

     Sim. Mas não naquela manhã.

     Sentindo-se um traidor de algo maior do que podia entender, Clay pegou o estoura tímpanos de Tom, colocou-o de volta no armário e fechou a porta.

    

     Mais ou menos uma hora depois, a migração ordeira para o leste começou a se desmantelar. Clay estava de vigia, e Alice, na cozinha, comendo um dos sanduíches que eles haviam trazido de Boston — ela disse que eles tinham que acabar de comê-los antes de partirem para os enlatados na despensa de Tom, pois não sabiam quando encontrariam carne fresca de novo —, e Tom dormia na sala de estar, no sofá. Clay podia ouvi-lo roncar alegremente.

     Ele notou algumas pessoas andando contra o fluxo para o leste e então percebeu que a ordem se afrouxara um pouco na Salem Street. Era uma mudança tão sutil que seu cérebro registrou o que os olhos viram apenas como uma intuição. A princípio, ele achou que era uma falsa impressão causada pelos poucos errantes — mais desorientados ainda do que os outros — que seguiam na direção oeste, em vez de para o leste, mas então olhou para as sombras. O padrão que tinha observado antes começara a se distorcer. E logo já não havia padrão algum.

     Mais pessoas começaram a seguir na direção oeste, e algumas estavam mastigando comida roubada de algum mercado, provavelmente o Safeway que Tom mencionara. A nora do Sr. Scottoni, Judy, carregava um tubo gigante de sorvete de chocolate derretido, que cobria a frente do seu guarda-pó, lambuzando-a dos joelhos ao piercing no nariz; todo aquele chocolate no rosto a deixava parecida com aqueles atores brancos com a cara pintada de preto dos shows de antigamente. E, àquela altura, qualquer crença vegetariana que o Sr. Potowami possa ter tido um dia desaparecera, pois ele andava se refestelando em um grande punhado de carne de hambúrguer crua. Um gordo de terno sujo carregava o que parecia ser uma perna de carneiro parcialmente degelada e, quando Judy Scottoni tentou pegá-la, o gordo a usou para dar-lhe uma bela porrada no meio da testa. Ela caiu tão silenciosa quanto um bezerro abatido, batendo primeiro com a barriga grávida, em cima do tubo de chocolate Breyers praticamente destruído.

     Havia bastante pancadaria àquela altura, e bastante violência para acompanhar, mas nada que remetesse à selvageria da tarde anterior. Pelo menos não ali. No Centro Comercial de Malden, o alarme, que começara fraco, já tinha parado de soar há muito. Ao longe, tiros continuavam a pipocar esporadicamente, mas ele não ouvira nada próximo desde aquele disparo isolado vindo do centro da cidade. Clay ficou de olho para ver se algum dos lunáticos tentaria invadir uma das casas, mas, embora às vezes andassem pelos gramados, nenhum deu sinal de evoluir de invasão de propriedade para invasão de domicílio. Na maior parte do tempo, limitavam-se a vagar, às vezes tentavam roubar a comida um do outro e, de vez em quando, brigavam e se mordiam. Três ou quatro — a nora de Scottoni entre eles — estavam caídos na rua, mortos ou inconscientes. Clay imaginava que, graças a Deus, a maioria dos que tinham passado pela casa de Tom mais cedo ainda estava na praça central, fazendo um baile de rua ou talvez o Primeiro Festival Anual de Carne Crua de Malden. Porém, a maneira como aquele ar de propósito — aquele ar de bando — parecia ter afrouxado e desaparecido era estranha.

     Depois do meio-dia, quando Clay começou a se sentir muito sonolento, ele foi até a cozinha e encontrou Alice cochilando na mesa com a cabeça entre os braços. Ela segurava com os dedos frouxos o pequeno tênis, aquele que chamara de Nike de bebê. Quando ele a acordou, ela olhou grogue para o sapatinho e o trouxe para junto do peito, agarrando-o como se temesse que Clay tentasse levá-lo embora.

     Ele perguntou se Alice poderia vigiar um pouco do fim do corredor sem pegar no sono de novo ou ser vista. Ela disse que sim. Clay confiou na palavra da garota e levou uma cadeira para ela. Alice parou por um instante na porta da sala de estar.

     —      Olhe só — ela disse.

     Clay olhou para dentro da sala por sobre o ombro dela e viu que Rafe, o gato, estava dormindo na barriga de Tom. Clay resmungou, achando divertido.

     Alice se sentou onde ele colocara a cadeira, longe o bastante da porta para que quem olhasse para a casa da rua não conseguisse vê-la. Depois de olhar para fora só uma vez, ela falou:

     —      Eles não estão mais em bando. O que aconteceu?

     —      Não sei.

     —      Que horas são?

     Ele olhou para o relógio.

     —      Meio-dia e vinte.

     —      Que horas você percebeu que eles estavam em bando?

     —      Não sei, Alice. — Estava tentando ser paciente com ela, mas mal conseguia manter os olhos abertos. — Seis e meia? Sete? Não sei. Qual é a importância?

     —      Seria muito bom se pudéssemos calcular o padrão deles, você não acha?

     Ele respondeu que pensaria naquilo depois de dormir um pouco.

     —      Só algumas horas, então me acorde ou ao Tom — ele disse. — Mais cedo, se acontecer alguma coisa de errado.

     —      Não pode dar muito mais errado do que isso — ela falou baixinho. — Vá lá pra cima. Você está um trapo.

     Ele subiu até o quarto de hóspedes, tirou os sapatos e se deitou. Pensou por um instante no que ela falara. Se pudéssemos calcular o padrão deles. Talvez fosse uma boa idéia. Pouco provável, mas talvez...

     Era um quarto agradável, muito agradável, bem ensolarado. Deitado em um quarto como aquele, era fácil esquecer que havia um rádio no armário que você não tinha coragem de ligar. Já não era tão fácil esquecer que a sua mulher, que você ainda amava apesar da separação, poderia estar morta, e seu filho — que você não só amava, mas adorava — poderia estar louco. Ainda assim, o corpo tem seus imperativos, não é mesmo? E aquele era o quarto ideal para uma soneca à tarde. O rato surtado se contorceu, mas não fincou os dentes, e Clay dormiu quase imediatamente após fechar os olhos.

    

     Daquela vez foi Alice quem o acordou. Enquanto ela o sacudia, o pequeno tênis roxo balançava para frente e para trás. Ela o amarrara em volta do pulso esquerdo, transformando-o em um talismã muito sinistro. A luz no quarto havia mudado. Fora para o outro lado e diminuíra. Ele tinha virado na cama e precisava urinar, um sinal confiável de que dormira por um bom tempo. Sentou-se depressa e ficou surpreso — quase pasmo — ao ver que eram 18hl5. Tinha dormido mais de cinco horas. Porém, a noite anterior não havia sido a primeira de sono entrecortado; também dormira mal na noite retrasada. Nervosismo, por conta da reunião com o pessoal da Dark Horse comics.

     —      Está tudo bem? — ele perguntou, pegando-a pelo pulso. — Por que me deixou dormir tanto?

     —      Porque você precisava — ela respondeu. — Tom dormiu até as duas e eu dormi até as quatro. Ficamos vigiando juntos até agora. Desça e venha ver. É bem impressionante.

     —      Eles estão em bando de novo?

     Ela assentiu.

     —      Mas agora estão indo para o outro lado. E não é só isso. Venha ver.

     Ele esvaziou a bexiga e desceu correndo as escadas. Tom e Alice estavam parados na porta da varanda com os braços em volta um do outro. Já não havia necessidade de se esconder; o céu se encobrira e a varanda de Tom estava imersa em sombras. De qualquer maneira, havia poucas pessoas na Salem Street. Todas estavam indo para o oeste, sem correr, mas num ritmo constante. Um grupo de quatro passou pelo meio da rua, marchando sobre vários corpos esparramados e um monte de sobras de comida, que incluíam a perna de carneiro, agora roída até o osso; um mar de sacolas de celofane rasgadas e caixas de papelão, além de frutas e vegetais jogados fora. Atrás deles, veio um grupo de seis, os últimos usando as calçadas. Não olhavam uns para os outros, mas estavam tão perfeitamente juntos que, quando passaram pela casa de Tom, pareceram por um instante ser um homem só, e Clay notou que até seus braços balançavam em uníssono. Depois deles, veio um rapaz de uns 14 anos, mancando, soltando mugidos inarticulados e tentando alcançá-los.

     —      Eles deixaram para trás os mortos e os que estavam completamente inconscientes — disse Tom —, mas ajudaram alguns que estavam se mexendo.

     Clay procurou a grávida e não a viu.

     —      E a Sra. Scottoni?

     —      Foi uma das que eles ajudaram — disse Tom.

     —      Então eles voltaram a agir feito gente?

     —      Não se engane — disse Alice. — Um dos homens que eles tentaram ajudar não conseguia andar e, depois que ele caiu algumas vezes, um dos caras que o estava levantando cansou de fazer papel de escoteiro e simplesmente...

     —      Matou o sujeito — disse Tom. — E não foi com as mãos, como o cara no jardim. Foi com os dentes. Rasgou a garganta dele.

     —      Eu vi o que estava para acontecer e desviei o olhar — disse Alice —, mas ouvi. Ele... guinchou.

     —      Calma — disse Clay. Ele apertou o braço dela com delicadeza. — Acalme-se.

     As ruas tinham ficado quase vazias. Mais dois homens aparece-ram e, embora estivessem andando quase lado a lado, mancavam tanto que não havia impressão de uníssono entre eles.

     —      Para onde eles estão indo? — perguntou Clay.

     —      Alice acha que estão procurando abrigo — respondeu Tom, parecendo empolgado. — Antes de anoitecer. Talvez ela tenha razão.

     —      Onde? Onde fica o abrigo deles? Vocês viram algum entrar nas casas deste quarteirão?

     —      Não — os dois falaram juntos.

     —      Nem todos voltaram — disse Alice. — Com certeza nem todo mundo que desceu a Salem Street hoje de manhã voltou. Então um monte ainda deve estar no Centro Comercial de Malden, ou mais adiante. Talvez tenham sido atraídos para locais públicos, como quadras esportivas escolares.

     Quadras esportivas escolares. Clay não gostou daquilo.

     —      Você viu aquele filme, Despertar dos Mortos! — ela perguntou.

     —      Vi — respondeu Clay. — Não vai me dizer que deixaram você ver.

     Ela olhou para Clay como se ele fosse maluco. Ou velho.

     —      Um dos meus amigos tem o DVD. A gente assistiu quando estava na oitava série. — Na época em que o Correio ainda era a cavalo e as planícies eram cheias de búfalos, dizia o tom dela. — Nesse filme, todos os mortos... bem, nem todos, mas um monte deles... voltam para o shopping depois que acordam.

     Por um instante, Tom McCourt olhou para ela com os olhos arregalados, então disparou a rir. E não era uma risadinha, e sim uma série de gargalhadas, um riso tão forte que ele teve que recostar no muro para se apoiar, e Clay achou que seria melhor fechar a porta entre o corredor e a varanda. Não dava para saber quão bem aquelas criaturas que subiam a rua escutavam; tudo em que conseguia pensar naquele momento era na audição extremamente aguçada do narrador louco do conto "O coração delator", de Poe.

     —      Era o que eles faziam — disse Alice, colocando as mãos nas cadeiras. O tênis de bebê balançou. — Iam direto para o shopping.

     Tom riu mais forte ainda. Os joelhos dele dobraram e ele escorregou lentamente até o chão do corredor, urrando e batendo com as mãos na camisa.

     —      Eles morreram... — falou arquejando — ... e voltaram... para ir ao shopping. Jesus Cristo, será que Jerry F-Falwell...7 — Teve outro acesso de riso. Lágrimas desciam aos borbotões pelo seu rosto. Ele conseguiu se controlar o bastante para terminar a piada: — Será que Jerry Falwell sabe que o paraíso fica no shopping Newcastle?

     Clay também começou a rir. Alice também, embora Clay achasse que ela estava um pouco irritada por sua referência não ter sido recebida com interesse ou mesmo com risos comedidos, mas com gargalhadas. Porém, quando as pessoas começam a rir, é difícil não se juntar a elas. Mesmo quando se está irritado.

     Quando estavam quase parando, Clay disse, sem motivo aparente:

     —      If heaven ain't a lot like Dixie, I don't want to goes.8

     E começaram a rir de novo, todos os três. Alice ainda estava rindo quando falou:

     —      Se eles estão em bando e indo passar a noite em quadras esportivas, igrejas e shoppings, é possível metralhálos às centenas.

     Clay foi o primeiro a parar de rir. Depois Tom parou e olhou para ela, secando o bigodinho bem aparado com a mão.

     Alice assentiu. As risadas tinham corado suas faces e ela ainda estava sorrindo. Havia passado de bonitinha para uma verdadeira beldade.

     —      Talvez aos milhares, se estiverem todos indo para o mesmo lugar.

     —      Meu Deus — disse Tom. Ele tirou os óculos e começou a limpá-los também. — Você não brinca em serviço.

     —      É uma questão de sobrevivência — disse Alice casualmente. Ela baixou os olhos para o tênis amarrado no pulso e então olhou para os homens. Assentiu mais uma vez. — Temos que calcular o padrão deles. Descobrir se eles estão em bando e quando estão em bando. Se estão buscando abrigo e onde estão se abrigando. Porque se pudermos calcular o padrão...

    

     Clay os conduzira para fora de Boston, mas quando os três saíram da casa na Salem Street cerca de 24 horas mais tarde, não havia dúvida de que era Alice Maxwell, de 15 anos de idade, quem estava no comando. Quanto mais Clay pensava naquilo, menos surpreso ficava.

     Não faltava a Tom o que os primos ingleses dele chamavam de colhões, mas ele não era e nunca seria um líder nato. Clay tinha algumas qualidades de liderança, mas naquela tardinha Alice tinha uma vantagem a mais, além da inteligência e desejo de sobreviver: sofrerá perdas e começava a superá-las. Ao deixar a casa na Salem Street, os dois homens estavam lidando com novas privações. Clay começara a sentir uma depressão bastante assustadora que, a princípio, creditou simplesmente à decisão — inevitável, é verdade — de deixar o portfolio para trás. No entanto, à medida que a noite avançava, ele percebeu que era um medo profundo do que poderia encontrar se e quando chegasse a Kent Pond.

     Para Tom, era mais simples. Ele odiava ter que abandonar Rafe.

     —      Deixe a porta aberta para ele — disse Alice, a nova e mais durona Alice, que a cada minuto que passava parecia mais decidida. — É muito provável que ele fique bem, Tom. Têm mantimentos de sobra por aí. Vai demorar muito até os gatos morrerem de fome ou os fonáticos terem que recorrer à carne de gato.

     —      Ele vai ficar selvagem — disse Tom. Estava sentado no sofá da sala de estar, elegante e triste com sua capa de chuva com cinto e chapéu de feltro. Rafer estava no colo dele, ronronando e parecendo entediado.

     —      É, é isso que eles fazem — disse Clay. — Pense em todos os cachorros, os pequenininhos e os grandes demais, que vão simplesmente morrer.

     —      Ele está comigo há tanto tempo. Desde que era filhote, na verdade. — Tom ergueu os olhos, e Clay viu que o homem estava à beira das lágrimas. — E além disso, acho que penso nele como meu amuleto da sorte. Meu talismã. Ele salvou minha vida, lembra?

     —      Agora nós somos o seu talismã — disse Clay. Não quis lembrar que ele também quase certamente já salvara a vida de Tom, mas era verdade. — Certo, Alice?

     —      Sim, senhor — ela disse. Tom tinha encontrado um poncho para Alice, e ela carregava uma mochila nas costas, embora não tivesse nada dentro além de pilhas para as lanternas... e, Clay tinha quase certeza, aquele sapatinho sinistro, que pelo menos não estava mais amarrado no pulso dela. Clay também estava carregando pilhas na sua mochila, e um lampião. Alice sugeriu que não levassem mais nada. Disse que não havia motivo para carregar o que poderiam pegar no caminho. — Nós somos os Três Mosqueteiros, Tom; um por todos e todos por um. Agora vamos até a casa dos Nickleby ver se conseguimos arranjar uns mosquetes.

     —      Nickerson. — Ele ainda estava acariciando o gato.

     Ela era esperta o suficiente, e talvez sensível o suficiente também, para não dizer algo como "tanto faz"; mas Clay notou que a paciência dela estava chegando ao limite. Ele disse:

     —      Tom. Temos que ir.

     —      É, acho que sim. — Ele começou a afastar o gato, então o apanhou e deu-lhe um beijo forte entre as orelhas. Rafe suportou aquilo apertando um pouco os olhos. Tom o largou no sofá e ficou parado. — Dose dupla de ração na cozinha, do lado do fogão, amigo — ele falou. — E mais uma tigela grande de leite, com o resto do creme nele de lambuja. A porta dos fundos está aberta. Tente se lembrar onde fica a sua casa, e talvez... ei, talvez a gente volte a se ver.

     O gato pulou para o chão e foi em direção à cozinha com o rabo levantado. E, fiel à sua natureza, não olhou para trás.

     O portfolio de Clay, envergado e com um vinco horizontal que ia para os dois lados a partir do meio, onde a faca tinha cortado, estava recostado na parede da sala. Clay olhou para ele no caminho e resistiu à vontade de tocá-lo. Pensou por um instante nas pessoas lá dentro que viviam com ele há tanto tempo, tanto em seu pequeno estúdio quanto no território muito mais amplo (modéstia à parte) da sua imaginação: Flak, o Mago; Gene Dorminhoco; Jumping Jack Flash; Sally Venenosa. E o Dark Wanderer, é claro. Dois dias atrás, ele achou que aqueles personagens seriam estrelas. Agora eles tinham um buraco no meio e o gato de Tom para fazer companhia.

     Ele pensou em Gene Dorminhoco saindo da cidade montado em Robbie, o Cavalo-robô, dizendo: Até lo-logo amimigos! Tatatalvez eu vo-volte um um-dia!

     —      Até logo, amigos — ele falou em voz alta; um pouco constrangido, mas não muito. Afinal de contas, não era o fim do mundo. Não era uma grande despedida, mas teria que servir... E Gene Dorminhoco também teria dito: Dó-dói mamais que u-um fefer-ferrete em brabrasa bebem no o-olho.

     Clay saiu para a varanda atrás de Alice e Tom, adentrando o som da chuva fraca de outono.

    

     Tom estava com o seu chapéu de feltro, o poncho de Alice tinha capuz, e Tom achara para Clay um boné dos Red Sox que manteria sua cabeça seca pelo menos por um tempo, se a chuva não ficasse mais forte. E se ficasse... bem, havia mantimentos de sobra, como apontara Alice. Isso certamente incluía acessórios para tempo ruim. Do altinho da varanda, eles conseguiam ver quase duas quadras inteiras da Salem Street. Era impossível ter certeza com o dia escurecendo, mas ela parecia completamente deserta, exceto por alguns corpos e restos de comida que os lunáticos tinham deixado para trás.

     Cada um dos três carregava uma faca nas bainhas que Clay tinha feito. Se Tom estivesse certo em relação aos Nickerson, logo estariam mais bem fornidos. Clay esperava que sim. Talvez conseguisse usar de novo o cutelo da Soul Kitchen, mas ainda não tinha certeza se conseguiria fazê-lo a sangue frio.

     Alice trazia uma lanterna na mão esquerda. Ela olhou para se certificar de que Tom também estava com uma e assentiu.

     —      Ok — ela disse. — Leve a gente até a casa dos Nickerson, certo?

     —      Certo — respondeu Tom.

     —      E, se virmos alguma pessoa no caminho, paramos no ato e jogamos a luz em cima dela. — Ela olhou um pouco nervosa para Tom e depois para Clay. Já tinham passado por aquilo. Clay imaginou que ela agia daquele mesmo jeito obsessivo antes de provas importantes... e sem dúvida aquela era uma delas.

     —      Certo — disse Tom. — Nós falamos: "Nossos nomes são Tom, Clay e Alice. Somos normais. Como vocês se chamam?"

     Clay falou:

     —      Se eles tiverem lanternas iguais às nossas, podemos praticamente supor...

     —      Nós não podemos supor nada — ela disse agitada, quase se exaltando. — Meu pai diz que supor é coisa de gente idiota.

     —      Tudo bem — disse Clay.

     Alice esfregou os olhos, e Clay não soube dizer se foi para limpar a água da chuva ou lágrimas. Ele imaginou, por um doloroso instante, se Johnny estaria em algum lugar chorando por ele naquele momento. Clay esperava que sim. Esperava que o filho ainda fosse capaz de chorar. E de se lembrar das coisas.

     —      Se eles responderem e falarem os nomes, estão bem e provavelmente podemos confiar neles — disse Alice. — Certo?

     —      Certo — respondeu Clay.

     —      É — concordou Tom, um pouco distante. Estava olhando para a rua, onde não havia ninguém e nenhuma luz de lanterna se mexendo, perto ou longe de onde estavam.

     Em algum lugar mais afastado, tiros pipocaram. Pareciam fogos de artifício. O ar fedia a queimado e coisas carbonizadas, e tinha sido assim o dia todo. Clay achou que o cheiro estava mais forte por conta da chuva. Ele imaginou quanto tempo levaria para o bafio de carne em decomposição que pairava sobre a Grande Boston se transformar em uma fedentina. Calculava que iria depender do calor que fizesse nos próximos dias.

      —      Se encontrarmos pessoas normais e elas perguntarem quem somos, o que estamos fazendo ou para onde estamos indo, lembrem-se do que combinamos — ela falou.

     —      Estamos procurando sobreviventes — disse Tom.

     —      Isso mesmo. Porque eles são nossos amigos e vizinhos. Qualquer pessoa que encontrarmos vai estar só de passagem. Ela vai querer seguir adiante. Mais tarde, talvez seja melhor nos juntarmos a outras pessoas normais, porque quanto mais gente, mais segurança, mas por enquanto...

     —      Por enquanto nós vamos pegar aquelas armas — disse Clay.

     — Se elas estiverem lá. Vamos logo com isso, Alice.

     Ela olhou com preocupação para ele.

     —      O que houve? O que eu fiz de errado? Pode me falar, eu sei que sou só uma menina.

     Calmamente, com toda a paciência que nervos que pareciam cordas de guitarra esticadas demais permitiram, Clay falou:

     —      Não tem nada de errado, querida. Eu só quero resolver isso logo. De qualquer maneira, não acho que vamos encontrar ninguém. Acho que está cedo demais pra isso.

     —      Espero que você tenha razão — ela disse. — Meu cabelo está horrível e eu quebrei uma unha.

     Os dois olharam para Alice em silêncio por um instante e então riram. Depois daquilo as coisas melhoraram entre eles e continuaram boas até o fim.

    

     — Não — disse Alice. Ela golfou. — Não. Não vou conseguir. — Uma golfada mais forte. — E então: — Vou vomitar, desculpe.

     Ela se afastou correndo da luz do lampião e adentrou a escuridão da sala de estar dos Nickerson, que era separada da cozinha por um grande arco. Clay ouviu o som abafado dos joelhos de Alice batendo no carpete, seguido por mais golfadas. Uma pausa, um arquejo e ela estava vomitando. Ele se sentiu quase aliviado.

     —      Oh, Cristo — disse Tom. Ele inspirou longamente, com muito esforço, e então falou em um jorro de ar vacilante que era quase um uivo. — Oh, Criiiiiisto.

     —      Tom — disse Clay. Ele viu que o homenzinho estava cambaleando e prestes a desmaiar. Por que não? Aqueles restos sanguinolentos tinham sido seus vizinhos.

     —      Tom! — Ele pisou entre Tom e os dois corpos no chão da cozinha, entre Tom e a maior parte do sangue derramado, que parecia tão preto quanto nanquim sob a luz branca e inclemente do lampião. Deu tapinhas no rosto de Tom com a mão livre. — Não desmaie!— E quando viu que Tom estava com os pés firmes, baixou um pouco a voz. — Vá até a sala e cuide de Alice. Deixe a cozinha comigo.

     —      Por que você quer entrar lá? — perguntou Tom. — Aquela é Beth Nickerson com os miolos... com os mimiolos espalhados... — Ele engoliu saliva. A garganta dele fez um clique alto. — O rosto dela está quase todo destruído, mas dá pra reconhecer o avental azul com flocos de neve. E aquela é a Heidi caída na ilha do meio. A filha deles. Posso reconhecê-la, mesmo com... — Ele balançou a cabeça, como se quisesse clareá-la, e então repetiu: — Por que você quer entrar lá?

     —      Tenho quase certeza de que estou vendo o que a gente veio pegar — disse Clay. Ele estava pasmo com a calma que parecia transmitir.

     —      Na cozinha!

     Tom tentou olhar mais adiante, e Clay saiu da frente.

     —      Confie em mim. Vá cuidar de Alice. Se ela tiver condições, vocês dois podem começar a procurar mais armas. Gritem se acharem alguma coisa. E tenham cuidado, o Sr. Nickerson também pode estar por aqui. Quero dizer, podemos supor que ele estava no trabalho quando tudo isso aconteceu, mas como diz o pai da Alice...

     —      Supor é coisa de gente idiota — disse Tom. Ele conseguiu sorrir debilmente. — Beleza. — Começou a ir para o outro lado, e então voltou. — Não quero saber para onde vamos, Clay, mas não quero ficar aqui mais do que o necessário. Não morria de amores por Arnie e Beth Nickerson, mas eles eram meus vizinhos. E me tratavam muito melhor do que aquele babaca do Scottoni.

     —      Combinado.

     Tom ligou sua lanterna e seguiu para a sala de estar dos Nickerson. Clay o ouviu murmurando para Alice, tranqüilizando-a.

     Criando coragem, Clay foi em direção à cozinha com o lampião erguido, desviando das poças de sangue no piso de madeira. Ele já tinha secado, mas mesmo assim Clay queria pisar no mínimo possível.

     A garota deitada de costas na ilha do meio era alta, mas tanto os rabos-de-cavalo quanto as extremidades do corpo sugeriam que se tratava de uma criança dois ou três anos mais nova do que Alice. A cabeça dela estava em um ângulo forçado, quase imitando um sinal de interrogação, e seus olhos mortos estavam arregalados. O cabelo era de um louro sujo, mas as mechas do lado esquerdo da cabeça — o lado que havia levado a pancada que a matara — tinham ficado todas da mesma cor marrom-escura das manchas no chão.

     A mãe dela estava recostada debaixo do balcão à direita do fogão, onde os simpáticos armários de cerejeira se juntavam, formando um ângulo. As mãos estavam fantasmagoricamente brancas de farinha e as pernas ensangüentadas e mordidas, abertas de maneira indecorosa. Uma vez, antes de começar a trabalhar em uma revista de tiragem limitada chamada Inferno da Guerra, Clay acessou uma série de fotos de mortes por armas de fogo na Internet, achando que poderia encontrar algo de útil. Não encontrou nada. As lesões por armas de fogo possuíam uma terrível linguagem própria, e lá acontecia a mesma coisa. Beth Nickerson era basicamente uma mistura de líquidos e cartilagem do olho esquerdo para cima. O olho direito rolara até a parte de cima da órbita, como se ela tivesse morrido tentando olhar dentro da própria cabeça. O cabelo da nuca e uma boa quantidade de massa encefálica estavam emplastados no armário de cerejeira no qual ela recostara em seus breves instantes de agonia. Algumas moscas voavam ao seu redor.

     Clay começou a golfar. Virou a cabeça e cobriu a boca. Disse a si mesmo para manter o controle. Na sala, Alice tinha parado de vomitar — na verdade, ele conseguia ouvi-la conversando com Tom enquanto os dois entravam mais na casa — e Clay não queria que ela voltasse por causa dele.

     Pense neles como manequins, bonecos em um filme, ele disse a si mesmo, mas sabia que era impossível.

     Quando se virou de volta, procurou olhar para as outras coisas no chão. Aquilo ajudou. Já tinha visto a arma. A cozinha era espaçosa e a arma estava na outra extremidade, entre a geladeira e um dos armários, com o tambor para fora. O primeiro impulso que teve ao ver a mulher e a menina mortas foi desviar o olhar; ele parou no tambor da arma por acidente.

     Mas talvez eu já soubesse que tinha que haver uma arma ali.

     Ele até viu onde ela ficava antes: em um suporte na parede entre a tevê embutida e o abridor de latas industrial. Eles são tão doidos por engenhocas quanto por armas, Tom tinha dito, e uma arma pendurada em um suporte na cozinha pronta para pular na sua mão... ora, se aquilo não era o melhor de dois mundos, o que era?

     —      Clay? — Era Alice. Chamando de longe.

     —      O quê?

     Em seguida veio o som de pés subindo depressa um lance de escadas, e depois Alice chamando da sala de estar.

     —      Tom falou que você pediu pra gente avisar se achasse alguma coisa. Acabamos de achar. Deve ter uma dúzia de armas no gabinete do andar de baixo. Tanto rifles quanto pistolas. Estão em um armário com um adesivo de uma empresa de alarmes, então a gente vai acabar sendo preso... foi uma piada. Você está vindo?

     —      Já vou, querida. Não venha para cá.

     —      Não se preocupe. Você é que tem que sair daí para não passar mal.

     Ele estava além de passar mal, muito além. Havia dois objetos caídos no chão de madeira ensangüentado da cozinha dos Nickerson. Um era um rolo de massa, o que fazia sentido. Havia uma forma de torta, uma tigela e uma lata amarela com FARINHA escrito na ilha do meio. O outro objeto no chão, que estava mais ou menos perto de uma das mãos de Heidi Nickerson, era um celular de que somente uma adolescente poderia gostar; azul e cheio de margaridas laranja e grandes decalcadas.

     Clay conseguia entender o que tinha acontecido, por menos que quisesse. Beth Nickerson está fazendo uma torta. Será que ela sabe que algo terrível começou a acontecer na Grande Boston, na América, talvez no mundo? Está passando na tevê? Se estiver, a tevê não enviou uma mensagem para ela enlouquecer, Clay estava certo disso.

     Porém, a filha recebeu uma daquelas mensagens. Ah, recebeu. E Heidi atacou a mãe. Será que Beth Nickerson tentou discutir com a filha antes de derrubá-la com uma pancada do rolo de massa? Ou simplesmente bateu? Não por ódio, mas por conta da dor e do medo. Em todo caso, não foi suficiente. E Beth não estava de calças. Estava usando um vestido, e as pernas estavam nuas.

     Clay baixou a saia da morta. Com cuidado, cobrindo a calcinha simples, de ficar em casa, que ela sujara no fim.

     Heidi, que certamente não tinha mais de 14 anos, talvez 12, devia estar rosnando naquela língua selvagem e sem sentido que eles pareciam aprender imediatamente depois de receber a dose completa de Sai-Pra-Lá-Juízo dos celulares, dizendo coisas como rast e eilá e kazalá. O primeiro golpe do rolo de massa derrubou a menina, mas não a fez perder os sentidos, e ela começou a morder as pernas da mãe. E não foram mordidinhas, mas dentadas fundas, dilacerantes; algumas chegaram até o osso. Clay não via apenas marcas de dentes, mas também tatuagens apagadas, que deviam ter sido feitas pelo aparelho ortodôntico de Heidi. E então — provavelmente gritando, sem dúvida em agonia, e quase certamente sem se dar conta do que fazia — Beth Nickerson dera outro golpe, muito mais forte. Clay quase podia ouvir o som abafado do pescoço da menina quebrando. A filha adorada, morta no chão da cozinha moderna, com aparelho nos dentes e o celular moderno na mão estendida.

     E será que a mãe refletiu antes de arrancar a arma do suporte entre a tevê e o abridor de latas, onde estivera esperando há sabe-se lá quanto tempo por um ladrão ou estuprador aparecer naquela cozinha limpa e bem iluminada? Clay achava que não. Clay achava que ela não hesitou, que quis alcançar a alma da filha enquanto a explicação para o que fez ainda estava na ponta da sua língua.

     Clay andou até a arma e a pegou. De um fissurado em engenhocas como Arnie Nickerson, ele esperava uma automática — talvez até com mira a laser —, mas aquele era um bom e velho revólver Colt calibre 45. Clay pensou que fazia sentido. A mulher dele talvez se sentisse mais à vontade com aquele tipo de arma; sem aquela história de se certificar de que estava carregada se precisasse dela (ou perder tempo resgatando um pente de trás das espátulas ou dos temperos se não estivesse), e depois puxar o ferrolho para garantir que tem uma bala pronta na câmara. Não, com aquela belezinha bastava girar o tambor para fora, o que Clay fez sem problemas. Ele desenhara milhares de variações daquela mesma arma para o Dark Wanderer. Como tinha imaginado, apenas uma das seis câmaras estava vazia. Ele balançou o tambor para tirar uma das balas, sabendo exatamente o que iria encontrar. O calibre 45 de Beth Nickerson estava carregado com balas mortíferas altamente ilegais. Projéteis de ponta oca. Não era de se admirar que o topo da cabeça dela tivesse explodido. O impressionante era a cabeça ainda estar lá. Ele baixou os olhos para os restos da mulher recostada no canto e começou a chorar.

     —      Clay? — Era Tom, subindo as escadas do porão. — Cara, Arnie tinha de tudo! Tem uma automática que aposto que garantiria a ele umas férias na cadeia... Clay? Você está bem?

     —      Já estou indo — disse Clay, limpando os olhos. Travou o revólver e o enfiou no cinto. Então tirou a faca e a deixou no balcão de Beth Nickerson, ainda na sua bainha improvisada. Parecia que estavam fazendo uma troca. — Me dê mais dois minutos.

     —      Yo.

     Clay ouviu os passos de Tom descendo de volta para o depósito de armas de Nickerson e sorriu, apesar das lágrimas que desciam pelo seu rosto. Aquilo sim era algo digno de nota: mostre um porão cheio de armas para brincar a um gay bonzinho de Malden e ele começa a falar yo igual ao Sylvester Stallone.

     Clay começou a vasculhar as gavetas. Na terceira que abriu encontrou uma caixa vermelha pesada com os dizeres IM2-PENDEI! CALIBRE 45 50 TIROS. Estava embaixo dos panos de prato. Ele colocou a caixa no bolso e foi se juntar a Tom e Alice. Queria sair de lá naquele instante, e o mais rápido possível. O difícil seria tirá-los de lá sem que tentassem levar toda a coleção de armas de Nickerson junto.

     Quando chegou à metade do arco, ele parou e olhou para trás, segurando alto o lampião e fitando os corpos. Baixar a saia do avental da mulher não ajudou muito. Eles ainda eram apenas cadáveres, as feridas tão nuas quanto Noé quando seu filho o pegou de porre. Clay podia encontrar alguma coisa para cobri-los, mas se começasse a cobrir corpos, quando aquilo iria acabar? Quando? Quando chegasse a vez de Sharon? Do seu filho?

     —      Deus me livre — sussurrou Clay, duvidando que Deus o faria só porque ele pediu. Baixou a lanterna e seguiu os fachos de luz de Tom e Alice, que dançavam no andar de baixo.

    

     Os dois usavam cintos com pistolas de alto calibre nos coldres e aquelas eram automáticas. Tom também jogara uma cartucheira sobre o ombro. Clay não sabia se ria ou se começava a chorar de novo. Parte dele tinha vontade de fazer os dois ao mesmo tempo. É claro que se fizesse aquilo eles achariam que ele estava tendo um ataque histérico. E é claro que estariam certos.

     A tevê de plasma presa na parede do porão era grande — muito grande —, irmã da que estava na cozinha. Outra tevê, um pouco menor, tinha uma entrada para vários tipos de videogame que Clay, em um passado distante, adoraria ter examinado. Babado em cima, talvez.

     Para equilibrar, havia uma jukebox Seeberg no canto perto da mesa de pingue-pongue dos Nickerson, com todas as suas cores fabulosas apagadas e mortas. E, obviamente, havia os armários com as armas, dois, ainda trancados, mas com os vidros da frente quebrados.

     —      Eles tinham barras de proteção, mas Nickerson guardava uma caixa de ferramentas na garagem — disse Tom. — Alice usou um pé-de-cabra para quebrá-las.

     —      Foi moleza — disse Alice com modéstia. — Isso aqui estava na garagem atrás da caixa de ferramentas, enrolado em um pedaço de cobertor. É o que eu acho que é?

     —      Puta merda — falou Clay. — Isso é... — Ele apertou os olhos para ler as letras em altorelevo sobre o guardamato. — Acho que é russo.

     —      Tenho certeza que sim — disse Tom. — Você acha que é uma Kalashnikov?

     —      Sei lá. Vocês acharam balas para ela? Quero dizer, caixas com a mesma coisa que está escrita na arma?

     —      Meia dúzia. Caixas pesadas. É uma metralhadora, não é?

     —      Pode-se dizer que sim. — Clay moveu uma alavanca. — Tenho quase certeza de que uma dessas posições é para um tiro e a outra é para rajada.

     —      Quantos tiros ela dá por minuto? — perguntou Alice.

     —      Não sei — disse Clay —, mas acho que o certo é tiros por segundo.

     —      Uau. — Ela arregalou os olhos. — Será que você consegue aprender a usá-la?

     —      Alice, tenho certeza de que eles ensinam matutos de 16 anos de idade a usá-las. Sim, consigo aprender. Posso gastar uma caixa de munição, mas consigo aprender. — Por favor, Deus, não deixe que ela exploda nas minhas mãos, ele pensou.

     —      Um negócio desse é legal em Massachusetts? — ela perguntou.

     —      Agora é, Alice — disse Tom sem sorrir. — Vamos?

     —      Sim — disse ela, e então, talvez não se sentindo ainda totalmente confortável em ser a pessoa encarregada das decisões, olhou para Clay.

     —      Sim — disse ele. — Para o norte.

     —      Por mim, tudo bem — disse Alice.

     —      Isso — disse Tom. — Norte. Vamos nessa.

    

    

     ACADEMIA GAITEN

      

     Quando o dia chuvoso nasceu na manha seguinte, Clay, Alice e Tom estavam acampados no celeiro anexo a um haras abandonado em North Reading. Eles observaram da porta os primeiros grupos de gente doida aparecerem, formando bandos na rota 62 em direção a Wilmington. As roupas deles estavam uniformemente encharcadas e surradas. Alguns estavam descalços. Ao meio-dia, tinham sumido. Por volta das quatro, à medida que o sol surgiu por entre as nuvens em raios longos e entrecortados, eles começaram a se juntar novamente, voltando pelo caminho que tinham ido. Muitos estavam mastigando. Alguns ajudavam os que tinham dificuldade de andar sozinhos. Se houve assassinatos naquele dia, Clay, Tom e Alice não viram.

     Cerca de meia dúzia de lunáticos arrastava objetos grandes que Clay achava familiares; Alice encontrara um no armário do quarto de hóspedes de Tom. Os três tinham ficado parados diante dele, com medo de ligá-lo.

     —      Clay? — perguntou Alice. — Por que alguns deles estão carregando rádios?

     —      Não sei — respondeu ele.

     —      Não gosto disso — disse Tom. — Não gosto do fato de eles se juntarerm em bando, de estarem ajudando uns aos outros e muito menos de vê-los com esses mini systems.

     —      Só alguns estão com... — começou a falar Clay.

     —      Olhe só aquela lá — interrompeu Tom, apontando para uma mulher de meia-idade que mancava pela rodovia 62 abraçando um rádio/CD-player do tamanho de um pufe. Ela o segurava contra os seios como se fosse um bebê adormecido. O fio saía da parte de trás do aparelho e se arrastava na rua às suas costas. — E você não está vendo nenhum deles carregando lustres ou torradeiras, ou está? E se eles foram programados para montar rádios a pilha, ligá-los e começarem a transmitir aquele tom, pulso, mensagem subliminar ou o que quer que seja? E se quiserem pegar os que se safaram da primeira vez?

     Eles. O sempre popular e paranóico eles. Alice tirara o seu sapatinho de algum lugar e o apertava com a mão, mas quando falou a voz saiu calma o bastante.

     —      Não acho que seja o caso — disse ela.

     —      Por que não? — perguntou Tom.

     Ela balançou a cabeça.

     —      Não sei dizer. Mas não me parece que seja isso.

     —      Intuição feminina? — Ele estava sorrindo, mas sem tirar sarro.

     —      Talvez — disse ela —, mas acho que uma coisa é óbvia.

    

     —      O quê, Alice? — perguntou Clay. Ele tinha uma idéia do que ela iria falar e estava certo.

     —      Eles estão ficando mais espertos. Não individualmente, mas porque estão pensando juntos. Isso pode parecer loucura, mas acho mais provável do que eles estarem juntando um monte de mini systems a pilha para deixar todo mundo biruta.

     —      Pensamento coletivo por telepatia — disse Tom. Alice o observou enquanto ele considerava a hipótese. Clay, que já havia decidido que ela tinha razão, observou o fim do dia pela porta do celeiro. Estava pensando que precisavam parar em algum lugar para pegar um mapa rodoviário.

     Tom assentia.

     —      Ei, por que não? Afinal, é provavelmente isso que significa se movimentar em bando: pensamento coletivo por telepatia.

     —      Você acha mesmo ou está só falando para me...

     —      Acho mesmo — disse ele. Esticou o braço para tocar a mão dela, que passara a apertar o sapatinho depressa. — Acho mesmo, de verdade. Dê um descanso para essa coisa, sim?

     Ela deu um sorriso fugidio e distraído. Clay o viu e pensou mais uma vez em como ela era bonita, bonita de verdade. E como estava perto de um colapso.

     —      Aquele monte de feno parece macio e eu estou cansada. Acho que vou tirar um bom cochilo.

     —      Vai fundo — disse Clay.

     Clay sonhou que estava fazendo um piquenique com Sharon e Johnny-Gee nos fundos da casinha deles em Kent Pond. Sharon estendera seu cobertor navajo na grama. Comiam sanduíches e bebiam chá gelado. De repente, o dia ficou escuro. Sharon apontou para trás de Clay e disse: "Cuidado! Telepatas!" Mas quando ele se virou, viu apenas um bando de corvos, um deles tão grande que tapou o sol. Então uma melodia começou a soar. Parecia o caminhão do Mister Softee tocando o tema de Vila Sésamo, e Clay ficou apavorado no sonho. Virou-se e Johnny-Gee tinha sumido. Quando perguntou a Sharon onde ele estava — já com medo, sabendo qual seria a resposta —, ela disse que Johnny se enfiara embaixo do cobertor para atender o celular. Havia uma protuberância no cobertor. Clay entrou debaixo dele, sentindo o cheiro esmagador de feno. Gritou para Johnny não atender e esticou o braço para pegá-lo, mas encontrou apenas a circunferência fria de uma bola de vidro: o peso de papel que comprara na Pequenos Tesouros, o que tinha uma penugem de dente-de-leão enfiada bem no meio, flutuando como uma névoa de bolso.

     Então sentiu Tom sacudi-lo, dizendo que já passava das nove no relógio dele, que a lua estava no céu e que se quisessem andar mais um pouco, era melhor começarem logo. Clay nunca se sentira tão feliz em acordar. No geral, preferia os sonhos com a Tenda de Bingo.

     Alice estava olhando esquisito para ele.

     —      O que foi? — disse Clay, conferindo se as armas automáticas deles estavam travadas; aquilo já se tornara um hábito.

     —      Você falou dormindo. Ficou dizendo: "Não atenda, não atenda."

     —      Ninguém devia ter atendido — disse Clay. — Estaríamos todos muito melhor.

     —      Ah, mas quem resiste a um telefone tocando? — perguntou Tom. — E aí pronto, acabou a festa.

     — Assim falou a porra do Zaratustra — disse Clay.

     Alice riu até chorar.

     Com a lua entrando e saindo de trás das nuvens — como uma ilustração num livro infantil sobre piratas e tesouros escondidos, pensou Clay —, eles deixaram o haras para trás e retomaram a caminhada para o norte. Naquela noite, voltaram a encontrar outras pessoas iguais a eles.

     Porque essa é a nossa hora, pensou Clay, trocando o rifle automático de mãos. Totalmente carregado, era pesado pra cacete. O dia é dos fanáticos; quando as estrelas aparecem, é a nossa vez. Somos como vampiros. Fomos banidos para a noite. De perto, nos reconhecemos porque ainda conseguimos falar; a poucos passos, nos identificamos sem erro por conta das mochilas e das armas que cada vez mais de nós carregamos; porém, a distância, a única garantia é a luz oscilante de uma lanterna. Três dias atrás, não só dominávamos a Terra, como trazíamos a culpa dos sobreviventes em relação a todas as espécies que exterminamos na nossa escalada em direção ao nirvana dos canais de notícia a cabo 24 horas e da pipoca de microondas. Agora somos o Povo das Lanternas.

     Ele olhou para Tom.

     —      Para onde eles vão? — ele perguntou. — Para onde vão os lunáticos depois que o sol se põe?

     Tom olhou feio para ele.

     —      Para o pólo norte. Todos os gnomos morreram da doença da rena louca e esses caras estão dando uma força até a nova leva chegar.

     —      Meu Deus — disse Clay. — Alguém levantou pelo lado errado do monte de feno hoje.

     Porém, Tom continuou sem sorrir.

     —      Estou pensando no meu gato — disse ele. — Imaginando se ele está bem. Tenho certeza de que você deve achar isso uma idiotice.

     —      Não — disse Clay, embora achasse um pouco, já que tinha um filho e uma mulher para se preocupar.

      

     Conseguiram um mapa rodoviário em uma papelaria na cidade de dois semáforos de Ballardvale. Estavam seguindo na direção norte e bastante satisfeitos por terem decidido ficar no V mais ou menos bucólico entre as rodovias interestaduais 93 e 95. Os outros viajantes que encontraram — a maior parte deles indo para o oeste, para longe da I-95 — falavam de engarrafamentos e acidentes terríveis. Um dos poucos peregrinos que estavam indo para o leste disse que um carro tanque tinha batido perto da saída da I-93 para Wakefield e o fogo causara uma série de explosões que incineraram mais de um quilômetro e meio de carros que seguiam para o norte. O fedor, ele disse, era como "o de um churrasco no inferno".

     Encontraram mais membros do Povo das Lanternas à medida que se arrastavam pelos arredores de Andover e ouviram um boato tão recorrente que já era repetido com a segurança de um fato: a fronteira para New Hampshire estava fechada. A polícia estadual de New Hampshire e agentes especiais estavam atirando primeiro e fazendo perguntas depois. Sem se importarem se você estava maluco ou são.

     —      É só uma nova versão da porra do lema que eles têm naquelas merdas de placas de carro desde sempre — disse um idoso de expressão amarga que andou junto com eles por um tempo. Ele carregava uma pequena mochila em cima de um sobretudo caro e tinha uma lanterna de cilindro longo. A coronha de uma pistola saía do bolso do seu sobretudo. — Se você estiver em New Hampshire, tem o direito de viver livremente. Se quiser ir para New Hampshire, tem o direito é de morrer.9

     —      Isso é... difícil de acreditar — disse Alice.

     —      Acredite no que quiser, senhorita — falou o companheiro temporário deles. — Eu encontrei algumas pessoas que tentaram ir para o norte como vocês, e eles voltaram correndo para o sul quando viram algumas pessoas sendo alvejadas indiscriminadamente enquanto tentavam entrar em New Hampshire pelo norte de Dunstable.

     —      Quando? — perguntou Clay.

     —      Na noite passada.

     Clay pensou em fazer várias outras perguntas, mas, em vez disso, segurou a língua. Em Andover, o homem de expressão amarga e a maioria das pessoas que havia dividido com eles a mesma rota repleta de veículos (mas possível de atravessar) viraram para a rodovia I-33, em direção a Lowell e outros lugares a oeste. Clay, Tom e Alice ficaram na rua principal de Andover — deserta à exceção de alguns transeuntes com lanternas — com uma decisão a tomar.

     —      Você acredita nisso? — Clay perguntou a Alice.

     —      Não — respondeu ela e olhou para Tom.

     Tom balançou a cabeça.

     —      Nem eu. Para mim, a história dele é tipo aquela do crocodilo no esgoto.

     Alice assentia.

     —      As notícias já não se espalham tão rápido. Não sem telefones.

     —      É — disse Tom. — Essa é definitivamente a lenda urbana da próxima geração. Ainda assim, estamos falando sobre o que um amigo meu chama de New Hamster. O que me faz pensar que devíamos cruzar a fronteira pelo local mais escondido que conseguirmos achar.

     —      Boa idéia — disse Alice e, depois daquela conversa, eles voltaram a andar, usando a calçada enquanto ainda estavam na cidade e ainda havia uma calçada para usar.

     Nos arredores de Andover, um homem com um par de lanternas amarradas na cabeça por uma espécie de arreio (uma em cada têmpora) saiu da vitrine quebrada do supermercado IGA. Após acenar de maneira amistosa, veio em direção a eles, atravessando um congestionamento de carrinhos de compra enquanto jogava enlatados no que parecia uma sacola de jornaleiro. Parou do lado de uma picape virada de lado, se apresentou como Sr. Roscoe Handt, de Methuen, e perguntou para onde estavam indo. Quando Clay disse Maine, Handt balançou a cabeça.

   — A fronteira de New Hampshire está fechada. Encontrei duas pessoas há menos de meia hora que foram obrigadas a voltar. Disseram que eles estão tentando diferenciar os fonáticos das pessoas como a gente, mas sem se esforçarem muito.

     —      Essas duas pessoas viram isso acontecer com os próprios olhos? —    perguntou Tom.

     Roscoe Handt olhou para Tom como se ele fosse louco.

     —      A gente tem que acreditar na palavra dos outros, cara — disse ele. — Quero dizer, não dá para ligar para ninguém e verificar, não é? — Fez uma pausa. — Eles estão queimando corpos em Salem e Nashua, foi o que esses caras me disseram. E está fedendo feito um churrasco. Eles me falaram isso também. Estou levando um grupo de cinco para o oeste e queremos rodar alguns quilômetros antes de o sol nascer. O caminho para o oeste está livre.

     —      É o que estão dizendo por aí? — perguntou Clay.

     Handt olhou para ele com um leve desprezo.

     —      E o que estão dizendo, sim. E uma palavra basta para o sábio, minha mãe costumava dizer. Se quiserem mesmo ir para o norte, é melhor chegarem à fronteira no meio da noite. Os lunáticos não saem depois do anoitecer.

     —      Nós sabemos — disse Tom.

     O homem com as lanternas presas nos lados da cabeça ignorou Tom e continuou falando com Clay. Tomara-o como líder do trio.

     —      E eles não carregam lanternas. Balancem as suas. Falem. Gritem. Eles também não fazem essas coisas. Duvido que as pessoas na fronteira deixem vocês passarem, mas, se tiverem sorte, também não vão ser fuzilados.

     —      Eles estão ficando mais espertos — disse Alice. — O senhor sabe disso, não sabe Sr. Handt?

     Handt riu com desdém.

     —      Eles estão se deslocando em grupo e não estão mais matando uns aos outros. Não sei se isso os torna mais espertos ou não. Mas eles ainda estão matando a gente. Disso eu sei.

     Handt deve tér notado a dúvida no rosto de Clay, porque sorriu. A luz das lanternas transformou o sorriso em algo desagradável.

     —      Eu os vi pegarem uma mulher hoje de manhã — falou ele. — Com meus próprios olhos, certo?

     Clay assentiu.

     —      Certo.

     —      Acho que sei por que ela estava na rua. Foi em Topsfield, a uns 15 quilômetros daqui. Eu e o meu grupo estávamos em um Motel. Ela estava indo para lá. Mas não estava andando normal. Estava apertando o passo. Quase correndo. Olhando para trás. Eu a vi porque não conseguia dormir. — Ele balançou a cabeça. — Se acostumar a dormir de dia é foda.

     Clay pensou em dizer para Handt que todos eles iriam se acostumar, mas ficou quieto. Ele viu que Alice estava segurando seu talismã de novo. Não queria que ela ouvisse aquilo, mas sabia que era inevitável. Em parte porque era informação útil para a sobrevivência (e, ao contrário dos boatos sobre a fronteira de New Hampshire, ele tinha quase certeza de que aquela informação era verdadeira); em parte porque o mundo estaria cheio de histórias como aquelas por um tempo. Se ouvissem um bom número delas, algumas talvez começassem a convergir e gerar padrões.

     —      Provavelmente estava só procurando um lugar melhor para ficar. Nada mais que isso. Viu o Motel e pensou: "Ei, um quarto com cama. Bem ali, perto do posto Exxon. A uma quadra de distância." Mas antes de chegar à metade do caminho, um monte deles apareceu na esquina. Estavam andando... sabe como eles estão andando agora?

     Roscoe Handt veio na direção deles com o corpo duro, como um soldado de chumbo, com a sacola de jornaleiro balançando. Não era daquele jeito que os fonáticos andavam, mas eles sabiam o que ele queria mostrar e assentiram.

     —      E ela... — Ele recostou na picape virada e esfregou brevemente o rosto com as mãos. — É isso que eu quero que vocês entendam, ok? É por isso que vocês não podem se deixar enganar, não podem achar que eles estão ficando normais porque de vez em quando um deles dá a sorte de apertar os botões certos de um mini system e bota um CD para tocar...

     —      Você viu isso acontecer? — perguntou Tom. — Ouviu isso acontecer?

     —      Sim, duas vezes. O segundo cara que eu vi estava andando com um rádio, balançando o treco de um lado para o outro com tanta força que o CD estava pulando pra cacete, mas estava tocando. Então eles gostam de música, e é claro, talvez estejam reavendo alguns de seus parafusos, mas é por isso mesmo que vocês têm que ter cuidado, entendem?

     —      O que aconteceu com a mulher? — perguntou Alice. — A que se deixou enganar.

     —      Ela tentou fingir que era um deles — disse Handt. — E eu pensei, parado em frente à janela do quarto onde eu estava: "É isso aí, garota, talvez você tenha uma chance se continuar fingindo que é um deles para depois fugir, entrar em algum lugar." Porque eles não gostam de entrar nos lugares, já perceberam isso?

     Clay, Tom e Alice assentiram. O homem fez o mesmo.

     —      Eles entram, já vi acontecer, mas não gostam.

     —      Como identificaram a mulher? — Alice voltou a perguntar.

     —      Não sei direito. Sentiram o cheiro dela, sei lá.

     —      Talvez tenham conseguido ouvir os pensamentos dela — disse Tom.

     —      Ou não tenham conseguido — disse Alice.

     —      Disso eu não sei — falou Handt —, mas sei que eles a despedaçaram na rua. Quero dizer, literalmente fizeram picadinho dela.

     —      E quando isso aconteceu? — perguntou Clay. Ele viu que Alice estava vacilando e colocou um braço em volta dela.

     —      Às nove da manhã de hoje. Em Topsfield. Então, se você vir um bando deles subindo a estrada de Tijolos Amarelos com um mini system tocando Why Can't We Be Friends... — Ele os examinou com a cara fechada sob a luz das lanternas presas na cabeça. — Eu não sairia gritando sabe, é só o que tenho a dizer. — Ele fez uma pausa. — E também não iria para o norte. Mesmo se eles não atirarem em você na fronteira, é uma perda de tempo.

     Porém, depois de uma pequena conferência na entrada do estacionamento do IGA, eles foram para o norte assim mesmo.

     Eles pararam perto de North Andover, na passarela sobre a rota 495. As nuvens estavam voltando a ficar mais espessas, mas o luar as atravessava o suficiente para revelar seis pistas de tráfego silencioso. Perto da ponte em que eles estavam, nas pistas ao sul, um caminhão capotado jazia como um elefante morto. Estava cercado por cones laranja, o que mostrava que alguém pelo menos tomara uma atitude simbólica, e havia duas viaturas policiais depois deles, uma de cada lado. O caminhão estava estorricado da metade para trás. Não havia sinal de corpos, não sob a luz momentânea da lua. Algumas pessoas seguiam para o oeste pelo acostamento, mas mesmo lá o movimento era devagar.

     —      Isso meio que deixa as coisas mais reais, não é? — disse Tom.

     —      Não — disse Alice. Ela soava indiferente. — Para mim parece um efeito especial em algum filme arrasa quarteirão. Compre um balde de pipoca e uma Coca e veja o mundo acabar em... como eles chamam mesmo? Imagem gerada por computador? CGI? Fundo azul? Uma porra dessas. — Ela ergueu o sapatinho por um dos laços. — Isso é tudo o que preciso para deixar as coisas mais reais. Uma coisa pequena o bastante para carregar na mão. Vamos.

     Havia um monte de veículos abandonados na rodovia 28, mas comparada à 495 ela estava vazia. Às quatro, eles se aproximavam de Methuen, a cidade do Sr. Roscoe Handt, o homem das lanternas estéreo. Os três acreditavam na história de Handt o suficiente para quererem encontrar abrigo bem antes de o dia nascer. Escolheram um motel na interseção da 28 com a 110. Cerca de uma dúzia de carros estava parada em frente aos vários apartamentos, mas Clay achava que eles pareciam abandonados. E por que não estariam? Dava para passar pelas duas estradas, mas somente a pé. Clay e Tom pararam na entrada do estacionamento, balançando as lanternas no ar.

     —      Estamos bem! — gritou Tom. — Pessoas normais! Estamos entrando!

     Eles aguardaram. Não houve resposta do que a placa identificava como sendo o Sweet Valley Inn, Banheira Aquecida, HBO, Diárias Especiais.

     —      Vamos — disse Alice. — Meus pés estão doendo. E o dia está para nascer, não está?

     —      Olhem só isso — disse Clay. Ele pegou um CD da entrada para carros do motel e o iluminou com a lanterna. Era Love Songs, de Michael Bolton.

     —      E você ainda diz que eles estão ficando mais espertos — disse Tom.

     —      Não se precipite — disse Clay ao começarem a andar em direção aos apartamentos. — Quem quer que fosse o dono, jogou fora, não jogou?

     —      É mais provável que tenha perdido — disse Tom.

     Alice jogou a luz da lanterna dela sobre o CD.

     —      Quem é esse cara?

     —      Minha querida — disse Tom —, nem queira saber.

     Ele pegou o CD e jogou por sobre o ombro.

     Eles arrombaram as portas de três apartamentos contíguos — com o maior cuidado possível, para que pudessem pelo menos correr o ferrolho depois que entrassem — e, com camas para dormir, dormiram o dia quase inteiro. Não foram incomodados, embora Alice tenha dito naquela tarde que pensara ter ouvido música vindo de longe. Porém, ela admitiu, poderia ter sido de um sonho.

    

     Havia mapas mais detalhados do que o mapa rodoviário à venda no saguão do Sweet Valley Inn. Estavam dentro de um armário com porta de vidro que havia sido quebrado. Clay pegou um de Massachusetts e outro de New Hampshire, enfiando a mão com cuidado para não se cortar, e viu um rapaz deitado do outro lado do balcão da recepção ao fazê-lo. Os olhos dele fitavam sem ver. Por um instante, Clay achou que alguém tinha colocado um buquê de cor estranha na boca do cadáver. Então viu as pontas esverdeadas saindo das bochechas do rapaz morto e percebeu que elas eram da mesma cor dos estilhaços de vidro que cobriam as prateleiras do armário dos mapas. O cadáver usava um crachá que dizia MEU NOME É HANK, PERGUNTE-ME SOBRE OS PACOTES SEMANAIS. Clay pensou brevemente no Sr. Ricardi enquanto olhava para Hank.

      

     Tom e Alice esperavam por ele logo em frente à porta do saguão. Eram 21hl5 e estava um breu lá fora.

     —      O que você achou? — perguntou Alice.

     —      Esses aqui devem ajudar — disse ele. Entregou os mapas a Alice e então ergueu o lampião para que ela e Tom pudessem analisá-los, compará-los com o mapa rodoviário e planejar a viagem da noite. Ele estava tentando cultivar um senso de fatalidade em relação a Johnny e Sharon, tentando focar a mente na verdade nua e crua da situação atual da sua família: o que aconteceu em Kent Pond aconteceu. Ou o filho e a mulher estavam bem, ou não. Ou ele os encontraria, ou não.

     Nem sempre esse tipo de pensamento semi mágico dava resultado.

     Quando começava a falhar, ele dizia a si mesmo que tinha sorte de estar vivo, e isso sem dúvida era verdade. O que depunha contra a sua boa sorte era o fato de que ele estava em Boston, a mais de 150 quilômetros de Kent Pond pela via mais rápida (que definitivamente não era a que eles estavam pegando) quando o Pulso aconteceu. Mas ainda assim, encontrara pessoas boas. Isso não podia negar. Pessoas que ele podia considerar amigas. Várias outras — o Cara do Barril de Cerveja e a Senhora Gorducha da Bíblia, e o Sr. Roscoe Handt de Methuen também — não tiveram essa sorte.

     Se ele encontrou você, Share, se Johnny encontrou você, você tem que estar cuidando bem dele. Tem quê.

     Porém, e se ele estivesse com o telefone? E se tivesse levado o celular vermelho para a escola? Ele não poderia estar levando o aparelho com mais freqüência ultimamente? Porque quase todos seus coleguinhas levam os deles?

     Deus.

     —      Clay? Você está bem? — perguntou Tom.

     —      Claro. Por quê?

     —      Não sei. Você parece um pouco... soturno.

     —      O cara morto atrás do balcão. Não era nada bonito.

     —      Olhem só — disse Alice, seguindo uma linha no mapa. Ela serpeava pela fronteira do estado e então parecia se juntar à rota 38 de New Hampshire um pouco ao leste de Peham. — Acho que é uma boa. Se pegarmos essa rodovia aqui na direção oeste por uns 12 ou 14 quilômetros — ela apontou para a 110, onde a garoa fazia tanto os carros quanto o asfalto emitirem um brilho fraco —, a gente chega lá. O que vocês acham?

     —      Acho uma boa idéia — disse Tom.

     Ela olhou de Tom para Clay. Tinha guardado o sapatinho — provavelmente na mochila —, mas Clay percebia que ela queria apertá-lo. Ele pensou que ainda bem que Alice não era fumante, ela estaria à base de quatro maços por dia.

     —      Se a fronteira estiver vigiada... — ela começou a falar.

     —      Vamos nos preocupar com isso se houver necessidade — disse Clay, mas ele não estava preocupado. Ele iria para o Maine de qualquer maneira. Se isso significasse se arrastar no mato como um trabalhador ilegal cruzando a fronteira com o Canadá para colher maçãs em outubro, ele faria. Se Tom e Alice decidissem ficar para trás, azar. Ele ficaria triste em deixá-los... mas seguiria adiante. Porque tinha que saber.

     A tortuosa linha vermelha que Alice achara nos mapas do Sweet Valley tinha um nome — Dostie Stream Road — e estava quase toda livre. Era uma caminhada de pouco mais de 6 quilômetros até a fronteira, e eles não encontraram mais de cinco ou seis veículos abandonados e apenas um acidente. Também passaram por duas casas em que viram luzes acesas e ouviram o barulho de geradores. Pensaram em parar nelas, mas logo desistiram.

     —      Acabaríamos trocando tiros com algum sujeito a fim de defender a família e o lar — disse Clay. — Isso supondo que tenha alguém lá dentro. Aqueles geradores provavelmente estavam programados para ligar quando a energia do município caiu e vão continuar ligados até o gás acabar.

     —      Mesmo que tivessem pessoas sãs lá dentro e elas nos deixassem entrar, o que não seria nada sensato, o que a gente iria fazer? — disse Tom. — Pedir para usar o telefone?

     Eles discutiram a possibilidade de parar em algum lugar e pilhar um carro (pilhar foi a palavra que Tom usou), mas acabaram desistindo dessa idéia também. Se a fronteira estivesse sendo protegida por policiais ou vigilantes, chegar a ela em um Chevy Tahoe talvez não fosse a melhor saída.

     Então eles andaram e, obviamente, não havia nada na fronteira além de um outdoor (pequeno, adequado a uma estrada de asfalto de duas pistas que cruzava o interior) com os dizeres VOCÊ ESTÁ ENTRANDO EM NEW HAMPSHIRE e BIENVENUE! Os únicos sons que ouviam era o gotejar do orvalho nos bosques que os cercavam e o ocasional suspiro do vento. Talvez o ruído de algum animal se movendo. Eles pararam por um instante para ler a placa e seguiram em frente, deixando Massachusetts para trás.

     Qualquer sensação de estarem sozinhos acabou junto com a Dostie Stream Road, em uma placa que dizia ROTA 38 NH e MANCHESTER 30KM. Ainda havia poucos viajantes na 38, mas quando eles foram para a 128 — uma estrada larga, repleta de destroços, que levava quase diretamente ao norte —, meia hora depois, aquele fio d'água se transformou em um fluxo constante de refugiados. Em sua maioria, eles seguiam em pequenos grupos de três e quatro, com o que pareceu a Clay um desinteresse mesquinho por qualquer outra pessoa que não eles mesmos.

     Encontraram uma mulher de cerca de 40 anos e um homem talvez vinte anos mais velho empurrando carrinhos de compras, cada um com uma criança dentro. O que estava no carrinho do homem era um menino, grande demais para o transporte, embora tenha achado um jeito de se enrolar dentro dele e dormir. Enquanto Clay e seu grupo passavam por aquela família improvisada, uma roda se soltou do carrinho do homem. Ele tombou de lado, cuspindo o menino para fora, que parecia ter uns 7 anos de idade. Tom o agarrou pelo ombro e evitou o pior da queda, mas o garoto ralou um dos joelhos. E é claro que estava assustado. Tom o levantou do chão, mas o menino não o conhecia e tentou fugir, chorando mais forte ainda.

     —      Está tudo bem, obrigado. Nós o pegamos — disse o homem.

     Ele apanhou a criança e sentou no meio-fio com ela, onde o menino fez um escândalo sobre o que chamava de dodói, um termo que Clay achava que não ouvia desde que ele tinha 7 anos. O homem disse:

     —      Gregory vai dar um beijo e o dodói vai sarar.

     Ele beijou o machucado da criança e o menino deitou a cabeça no ombro do homem. Já iria voltar a dormir. Gregory sorriu para Tom e Clay e assentiu. Ele parecia quase morto de cansaço, um homem que na semana passada talvez fosse um sessentão em boa forma estava com a aparência de um judeu de 70 anos de idade, tentando dar o fora da Polônia enquanto ainda dava tempo.

     —      Nós vamos ficar bem — disse ele. — Podem ir agora.

     Clay abriu a boca para dizer: Por que não vamos todos juntos? Por que não nos juntamos? O que você acha, Greg? Era o tipo de coisa que os heróis dos romances de ficção científica que ele lera quando adolescente sempre diziam: Por que não nos juntamos?

     —      É, vão embora, o que vocês estão esperando? — perguntou a mulher antes que ele pudesse dizer aquilo ou qualquer outra coisa. No carrinho de compras dela, uma garota de uns 5 anos ainda dormia. A mulher ficou do lado do carrinho com um ar protetor, como se tivesse pegado um produto fabuloso em uma loja e temesse que Clay ou um de seus amigos tentassem arrancá-lo das suas mãos. — Estão achando que a gente tem alguma coisa que vocês querem?

     —      Pare, Natalie — disse Gregory com uma paciência cansada.

     Mas Natalie não parou, e Clay percebeu o que era tão deprimente naquela pequena cena. Não era o fato de estar levando um esporro — na calada da noite — de uma mulher cujo esgotamento e terror levara à paranóia; isso era compreensível e perdoável. O que acabou com o ânimo dele foi a maneira como as pessoas simplesmente continuavam andando, balançando as lanternas e falando baixo entre si em seus grupinhos, trocando as malas de uma mão para outra. Algum pitboy em uma minimoto elétrica subiu a rua desviando dos destroços e passando por cima dos entulhos, e as pessoas abriram caminho para ele, resmungando de raiva. Clay pensou que não faria diferença se o garotinho tivesse caído do carrinho e quebrado o pescoço, em vez de apenas ralado o joelho. Pensou que tampouco faria diferença se aquele gordo lá na frente, andando ofegante pelo acostamento com uma mochila sobrecarregada, desabasse por conta de uma trombose coronária.

     Ninguém nem se deu o trabalho de gritar: É isso aí, moça! ou Ei, cara, por que você não manda essa mulher calar a boca? Simplesmente continuaram andando.

     —      ... porque essas crianças são tudo o que eu tenho, uma responsabilidade que não pedimos quando mal conseguimos tomar conta de nós mesmos. Ele tem um marca-passo, você pode me dizer o que a gente vai fazer quando a pilha acabar? E agora essas crianças! Você quer uma criança? — Ela olhou ao redor freneticamente. — Ei! Alguém quer uma criança?

     A garotinha começou a se mexer.

     —      Natalie, você está perturbando Portia — disse Gregory.

     A mulher chamada Natalie começou a rir.

     —      Bem, azar o dela! O mundo é perturbador pra cacete!

     Em volta deles, as pessoas continuaram fazendo o Passo dos Refugiados. Ninguém prestava atenção, e Clay pensou: Então é assim que nós agimos. É isso que acontece quando a coisa fica preta. Quando não tem nenhuma câmera filmando, nenhum prédio em chamas, nenhum Anderson Cooper dizendo: "Agora voltamos aos estúdios da CNN em Atlanta." Então é assim quando o Departamento de Segurança Nacional é fechado por falta de sanidade.

     —      Me dêem o menino — disse Clay. — Posso carregá-lo até vocês acharem algo melhor para ele ficar. Esse carrinho já era. — Ele olhou para Tom. Tom deu de ombros.

     —      Fique longe de nós — disse Natalie e, de repente, ela estava com uma arma na mão. Não era grande, provavelmente uma calibre 22, mas até uma calibre 22 poderia dar conta do recado se a bala entrasse no lugar certo.

     Clay ouviu o som de armas sendo sacadas dos dois lados dele e compreendeu que Tom e Alice estavam apontando as pistolas que pegaram da casa de Nickerson para a mulher chamada Natalie. Pelo jeito, era assim também.

     —      Guarde a arma, Natalie — ele disse. — Nós estamos indo embora agora.

     —      Pode apostar que sim — ela disse, tirando um cacho de cabelo rebelde de cima da vista com a mão livre. Não parecia se dar conta de que o rapaz e a moça que acompanhavam Clay estavam apontando armas para ela. Naquele momento, as pessoas que passavam olharam, mas a única reação que tiveram foi se afastar do local do confronto e potencial derramamento de sangue um pouco mais depressa.

     —      Vamos, Clay — disse Alice baixinho. Ela colocou a mão livre no pulso dele. — Antes que alguém leve um tiro.

     Eles começaram a andar novamente. Alice caminhava com a mão no pulso de Clay, quase como se ele fosse seu namorado. Um simples passeio à meia-noite, pensou Clay, embora não fizesse idéia de que horas eram e tampouco se importasse. O coração dele batia forte. Tom os acompanhava, mas, até dobrarem a curva seguinte, ele andou de costas, com a arma ainda apontada. Clay imaginou que Tom queria estar preparado para atirar de volta caso Natalie decidisse usar sua arma de brinquedo. Porque era isso mesmo atirar de volta, uma vez que o serviço de telefonia havia sido interrompido até segunda ordem.

    

     Nas horas que precederam o amanhecer, enquanto andavam pela rota 102 ao leste de Manchester, eles começaram a ouvir música, tocando muito baixinho.

     —      Meu Deus — disse Tom, parando de andar. — É a Baby Elephant Walk.

     —      É o que? — perguntou Alice. Ela parecia ter achado aquilo divertido.

     —      Um jazz instrumental da época em que a gasolina custava 25 centavos. Les Brown & His Band of Renown, se não me engano. Minha mãe tinha o disco.

      Dois homens os alcançaram e pararam para recuperar o fôlego. Ambos eram velhos, mas pareciam estar em boa forma. Como uma dupla de carteiros recém-aposentados caminhando pelas Cotswolds, pensou Clay. O que quer que elas sejam. Um deles carregava uma mochila — e não era uma mochilinha qualquer, e sim do tipo que ia até a cintura, com armação — e o outro estava com uma bolsa pendurada no ombro direito. Pendurado no esquerdo, via-se o que parecia ser uma calibre 30.

     O Mochileiro limpou o suor da testa enrugada com o antebraço e disse:

     —      A sua mãe podia ter uma versão de Les Brown, filho, mas é mais provável que fosse a de Don Costa ou Henry Mancini. Essas é que eram populares. A que está tocando — ele inclinou a cabeça em direção à melodia fantasmagórica — é a de Lawrence Welk 10, tenho certeza absoluta.

     —      Lawrence Welk — disse Tom com um suspiro, em um tom quase reverente.

     —      Quem?— perguntou Alice.

     —      Ouça aquele elefantinho andar — disse Clay, rindo. Estava cansado e se sentindo palhaço. Ocorreu a ele que Johnny adoraria aquela música.

     O Mochileiro lançou um olhar de desprezo momentâneo para Clay e então voltou a olhar para Tom.

     —      É o Lawrence Welk mesmo — falou ele. — Meus olhos já não prestam pra nada, mas meu ouvido está ótimo. Minha mulher e eu costumávamos assistir ao programa dele todo santo sábado.

     —      Dodge também se divertia à beca — disse o Cara da Bolsa. Foi a única coisa que ele acrescentou à conversa, e Clay não fazia idéia do que aquilo significava.

     —      Lawrence Welk e a Champagne Band — disse Tom. — Vejam só.

     —      Lawrence Welk e os Champagne Music Makers — falou o Mochileiro. — Jesus Cristo.

     —      Não se esqueça das Lennon Sisters e da adorável Alice Lon — disse Tom.

     Ao longe, a música fantasmagórica mudou.

     —      Essa é Calcutta — disse o Mochileiro. Ele suspirou. — Bem, nós vamos indo. Foi um prazer passar um pedaço do dia com vocês.

     —      Da noite — disse Clay.

     —      Não — disse o Mochileiro. — Estes são os nossos dias agora. Você não notou? Tenham um bom dia, rapazes. Você também, senhorita.

     —      Obrigada — a senhorita entre Clay e Tom falou com a voz fraca.

     O Mochileiro voltou a andar. O Cara da Bolsa o seguiu com passos firmes. Ao redor deles, um desfile constante de fachos de lanterna oscilantes conduzia as pessoas mais para dentro de New Hampshire. Então o Mochileiro parou e se virou para dizer uma última coisa.

     —      É melhor não ficarem na rua por muito mais tempo — disse ele. — Encontrem uma casa ou um motel e entrem. Você sabe dos sapatos, certo?

     —      O que têm os sapatos? — perguntou Tom.

     O Mochileiro olhou com paciência para ele, da maneira que provavelmente olharia para qualquer pessoa que não conseguia deixar de ser uma imbecil. Bem ao longe na estrada, Calcutta — se é que era essa música mesmo — dera lugar a uma polca. Ela parecia uma loucura naquela noite nevoenta e chuvosa. E, para completar, aquele velho com uma mochila enorme nas costas falando sobre sapatos. —      Quando entrarem em algum lugar, deixem os sapatos em frente à porta — disse o Mochileiro. — Não se preocupem que os malucos não vão pegá-los. Isso serve para mostrar às outras pessoas que o lugar está ocupado e elas devem procurar outro. Evita... — Ele baixou os olhos para a arma automática pesada que Clay estava carregando.

     —      Evita acidentes.

     —      Houve acidentes? — perguntou Tom.

     —      Oh, sim — respondeu o Mochileiro, com uma indiferença gélida. — Do jeito que as pessoas são, sempre acontecem acidentes. Mas têm lugares de sobra. Então não há necessidade de vocês sofrerem um acidente. Apenas deixem os sapatos do lado de fora.

     —      Como o senhor sabe disso? — perguntou Alice.

     O Mochileiro abriu um sorriso que melhorou incrivelmente a cara dele. Mas era difícil não sorrir para Alice; ela era jovem e, até as três da manhã, ainda era bonita.

     —      As pessoas falam, eu escuto. Eu falo e às vezes as outras pessoas escutam. Você escutou?

     —      Sim — disse Alice. — Escutar é um dos meus maiores talentos.

     —      Então espalhe a notícia. Já basta termos que lutar contra eles. — O Mochileiro não precisava ser mais específico. — Não precisamos de acidentes., entre nós ainda por cima.

     Clay pensou em Natalie apontando a arma. Ele falou:

     —      O senhor tem razão. Obrigado.

     Tom disse:

     —      Essa que está tocando é The Beer Barrel Polka, não é?

     —      Isso mesmo, filho — respondeu o Mochileiro. — Myron Floren no acordeão. Deus o tenha. Talvez seja melhor vocês pararem em Gaiten. É um vilarejo simpático a uns 3 ou 4 quilômetros mais adiante.

     —      É para lá que os senhores estão indo? — perguntou Alice.

     —      Oh, eu e Rolfe devemos ir um tiquinho mais longe — respondeu ele.

     —      Por quê?

     —      Porque nós podemos, senhorita, só por isso. Tenha um bom dia.

     Daquela vez eles não o contradisseram e, embora os dois homens já devessem estar perto dos 70, logo sumiram de vista, seguidos pelo facho da única lanterna, que o Cara da Bolsa — Rolfe — carregava.

     —      Lawrence Welk e os Champagne Music Makers — admirou-se Tom.

     —      Baby Elephant Walk — disse Clay, rindo.

     —      Por que Dodge também se divertia à beca? — quis saber Alice.

     —      Acho que é porque ele podia — disse Tom e disparou a rir da perplexidade no rosto dela.

    

     A música vinha de Gaiten, o vilarejo simpático em que o Mochileiro tinha recomendado que eles parassem. Não era nem de perto tão alta quanto o show do AC/DC a que ele assistira em Boston na adolescência — que o havia deixado com os ouvidos zumbindo por dias —, mas era alta o bastante para fazê-lo pensar nos concertos de verão da banda municipal a que assistira com os pais em South Berwick. Na verdade, Clay estava achando que eles descobririam que a música vinha da praça municipal de Gaiten — provavelmente algum velho, não transformado em fonático, mas apenas abalado pelo desastre, que enfiara na cabeça usar um monte de alto-falantes a pilha para presentear aquele êxodo com uma serenata de músicas antigas.

     Havia uma praça municipal em Gaiten, mas estava deserta, a não ser por algumas pessoas jantando tarde, ou tomando café-da-manhã cedo, à luz de lanternas e lampiões. A música vinha de algum lugar mais ao norte. Àquela altura, Lawrence Welk dera lugar a alguém tocando um trompete tão suavemente que chegava a dar sono.

     —      É Wynton Marsalis, não é? — perguntou Clay. Estava pronto para fechar o expediente e achou que Alice parecia quase morta de cansaço.

     —      Ou ele ou Kenny G — disse Tom. — Sabe o que o Kenny G falou quando saiu do elevador?

     —      Não — disse Clay —, mas tenho certeza de que você vai me dizer.

     —      "Cara, que puta som!"

     Clay falou:

     —      Isso foi tão engraçado que acho que o meu senso de humor acabou de implodir.

     —      Não entendi — disse Alice.

     —      Nem vale a pena explicar — disse Tom. — Pessoal, temos que parar por hoje. Estou pregado.

     —      Eu também — disse Alice. — Achei que o futebol tinha me deixado em forma, mas estou exausta.

     —      É — concordou Clay. — Eu também.

     Já tinham passado pelo centro comercial de Gaiten e, de acordo com as placas, a Main Street — que também era a rota 120 — tinha se tornado a Academy Avenue. Aquilo não surpreendeu Clay, pois a placa nos arredores da cidade proclamava Gaiten lar da Histórica Academia Gaiten, uma instituição sobre a qual Clay ouvira vagamente falar. Ele imaginava que fosse uma daquelas escolas preparatórias da Nova Inglaterra para crianças que não conseguem entrar para Exeter ou Milton. Supunha que logo os três estariam de volta à terra dos Burger Kings, lojas de conserto de amortecedores e cadeias de motéis, mas aquela parte da rota 102 de New Hampshire era ladeada por casinhas muito bonitas. O problema era que havia sapatos — às vezes chegando até a quatro pares — em frente à maioria das portas.

     O número de transeuntes diminuíra consideravelmente à medida que outros viajantes encontravam abrigo para o dia que ia nascer. Porém, quando eles passaram pelo posto de gasolina Citgo da Academia Grove e se aproximaram dos pilares de pedra que flanqueavam a entrada da Academia Gaiten, começaram a alcançar um trio que estava logo adiante: dois homens e uma mulher, todos bem avançados na meia-idade. Enquanto andavam lentamente calçada acima, aqueles três inspecionavam cada casa, buscando uma sem sapatos em frente à porta. A mulher mancava muito, e um dos homens estava com o braço em volta da cintura dela.

     A Academia Gaiten ficava à esquerda, e Clay percebeu que era de lá que a música saía (naquele momento, uma versão monótona, repleta de cordas, de Fly Me to the Moori). Ele notou mais duas coisas. Uma era que havia muito mais lixo naquela parte — sacolas rasgadas, vegetais comidos pela metade, ossos roídos —, e a maior parte do lixo seguia pela entrada de cascalho da Academia. A outra era que havia duas pessoas paradas lá. Uma era um velho curvado sobre uma bengala. O outro era um menino com uma lanterna a pilha posicionada entre os sapatos. Não parecia ter mais de 12 anos e cochilava recostado em um dos pilares. Usava o que parecia ser um uniforme escolar: calças cinza, suéter cinza e um paletó marrom com um brasão.

     À medida que o trio na frente de Clay e seus amigos se aproximou ombro a ombro da entrada da Academia, o velho — que vestia um paletó de tweed com cotoveleiras — dirigiu-lhes a palavra em uma voz forte, do tipo vão “me ouvir até a última fileira da sala de aula".

     —      Olá, olá, meus caros! Por que vocês não entram aqui? Podemos oferecer abrigo, porém, o mais importante é que temos que...

     —      Não "temos que" nada, senhor — disse a mulher. — Estou com quatro bolhas, duas em cada pé, e mal consigo andar.

     —      Mas temos espaço de sobra — começou a falar o velho. O homem em que a mulher se apoiava lançou um olhar para ele que deve ter sido feio, pois o velho se calou. O trio passou pela entrada, pelos pilares e pela placa em um suporte de ferro antiquado com ganchos em forma de S que dizia: ACADEMIA GAITEN, FUNDADA EM 1846 " Uma Mente Jovem É uma Luz na Escuridão."

     O velho voltou a se curvar sobre a bengala, então viu Clay, Tom e Alice chegando e se empertigou mais outra vez. Esteve a ponto de saudá-los, mas pelo jeito decidiu que a sua abordagem de palestrante não estava dando resultado. Em vez disso, cutucou seu companheiro nas costelas com a ponta da bengala. O menino se endireitou com uma expressão desnorteada, enquanto atrás dos dois, onde prédios de tijolos se erguiam na escuridão da encosta de uma pequena colina, Fly me to the Moon dava lugar a uma versão igualmente lerda de algo que um dia talvez tenha sido Get a Kick out of You.

     —      Jordan! — ele disse. — Sua vez! Convide-os.

     O menino chamado Jordan deu um pulo, pestanejou para o velho e então olhou para o novo trio de estranhos que se aproximava com uma desconfiança melancólica. Clay pensou na Lebre de Março e no Rato do Campo em Alice no País das Maravilhas. Talvez aquilo fosse errado — provavelmente era —, mas ele estava muito cansado.

     —      Ah, com eles não vai ser diferente, senhor — disse o menino. — Eles não vão entrar. Vamos tentar de novo na noite que vem. Estou com sono.

     E Clay soube que, apesar do cansaço, eles tinham que descobrir o que o velho queria — isto é, a não ser que Tom e Alice se recusassem terminantemente. Em parte porque o companheiro do velho fazia com que ele se lembrasse de Johnny, sem dúvida, mas principalmente porque o menino enfiara na cabeça que ninguém iria ajudar naquele nada admirável novo mundo — ele e o homem que chamava de senhor estavam sozinhos porque era assim que as coisas eram. Só que se aquilo fosse verdade, logo não haveria mais nada que valesse a pena salvar.

     —      Fale — o homem o incentivou. Ele cutucou Jordan com a ponta da bengala mais uma vez, porém sem força. Sem machucar. — Diga-lhes que podemos oferecer abrigo, que temos bastante espaço, mas que eles precisam ver antes. Alguém tem que ver isso. Se eles se recusarem, nós desistimos por hoje.

     —      Certo, senhor.

     O velho sorriu, expondo uma boca cheia de dentes de cavalo enormes.

     —      Obrigado, Jordan.

     O menino veio na direção deles completamente sem ânimo, arrastando os sapatos sujos, com a ponta da camisa aparecendo debaixo da bainha ao suéter. Ele segurou a lanterna em uma das mãos e ela chiou baixinho. Jordan estava com olheiras pretas sob os olhos e precisava lavar o cabelo com urgência.

     —      Tom? — perguntou Clay.

     —      Vamos ver o que ele quer — disse Tom —, porque estou vendo o que você quer, mas...

     —      Senhores? Com licença, senhores.

     —      Só um segundo — disse Tom ao menino, e então se virou para Clay. O rosto dele estava sério. — O dia vai nascer dentro de uma hora. Talvez menos. Então é melhor o velho estar falando sério sobre ter lugar para a gente.

     —      Oh, temos sim, senhor — disse Jordan. Ele parecia não querer mostrar esperança, mas não conseguia evitar. — Muitos lugares. Centenas de dormitórios, isso sem contar com a Casa Cheatham, Tobias Wolff veio aqui no ano passado e ficou lá. Veio dar uma palestra sobre o livro dele, Meus Dias de Escritor.

     —      Eu li esse livro — disse Alice, soando desconcertada.

     —      Os meninos que não tinham celulares fugiram todos. Os que tinham...

     —      Nós sabemos o que aconteceu com eles — disse Alice.

     —      Eu sou bolsista. Morava em Holloway. Não tinha celular. Tinha que usar o telefone do dormitório sempre que queria ligar para casa e os outros meninos ficavam me zoando.

     —      Me parece que você riu por último, Jordan — falou Tom.

     —      Sim, senhor — disse ele respeitosamente, mas à luz da lanterna que chiava Clay não viu alegria, apenas desgosto e cansaço. — Os senhores não querem entrar para conhecer o Diretor?

     E, embora também estivesse bastante cansado, Tom respondeu com perfeita educação, como se estivessem em uma varanda ensolarada — talvez em um Chá para os Pais — em vez de na beira cheia de lixo da Academy Avenue às 4hl5 da manhã.

     —      O prazer será todo nosso, Jordan. — disse ele.

    

     — Eu costumava chamá-los de interfone do diabo — disse Charles Ardal, que era presidente do Departamento de Inglês da Academia Gaiten há 25 anos e diretor interino de toda a Academia no momento do Pulso. Agora ele manquejava com surpreendente rapidez colina acima, mantendo-se na calçada e evitando o rio de lixo que cobria o acesso à Academia. Jordan andava atento ao lado dele, os outros três o seguiam. O menino estava com medo de que o velho perdesse o equilíbrio. Clay estava com medo de o homem ter um enfarto ao tentar conversar ao mesmo tempo em que subia uma colina, por menos íngreme que fosse.

     —      Não falava sério, é claro; era uma piada, um chiste, um exagero cômico, mas, para dizer a verdade, nunca gostei daquelas coisas, especialmente em um ambiente acadêmico. Eu poderia ter tentado proibir o uso deles na escola, mas naturalmente sairia derrotado. Seria mais fácil tentar legislar contra a subida da maré, não é mesmo? — Ele bufou rapidamente várias vezes. — Meu irmão me deu um de aniversário de 65 anos. A bateria acabou. — Mais bufadas e arquejos. — E nunca mais recarreguei. Sabiam que eles emitem radiação? É verdade que a quantidade é minúscula, mas ainda assim... uma fonte de radiação tão perto da cabeça de uma pessoa... do cérebro...

     —      Senhor, talvez seja melhor esperar até chegarmos ao Tonney — disse Jordan. Ele endireitou Ardal quando a bengala do Diretor derrapou em um pedaço de fruta podre e ele pendeu momentaneamente (mas em um ângulo preocupante) para bombordo.

     —      Essa é provavelmente uma boa idéia — disse Clay.

     —      Sim — concordou o Diretor. — Só que... eu nunca confiei neles, é aí que quero chegar. Com o meu computador foi diferente. Acostumei-me a ele como um pato à água.

     No topo da colina, o caminho principal do campus se dividia em um Y. A bifurcação esquerda serpeava até prédios que quase certamente serviam de dormitórios. A da direita seguia em direção a salas de aula, um grupo de prédios administrativos e um arco cuja brancura brilhava no escuro. O rio de lixo e embalagens descartadas passava por baixo dele. O Diretor Ardal os conduziu por aquele caminho, contornando os entulhos da melhor forma possível, com Jordan segurando-lhe o cotovelo. A música — agora era Bette Midler cantando Wind Beneath My Wings — vinha de além do arco, e Clay viu dezenas de CDs no chão entre os ossos e sacos de batata frita vazios. Ele estava começando a ter um mau pressentimento em relação àquilo.

     —      Hã, senhor? Diretor? Talvez seja melhor a gente...

     —      Vamos ficar bem — respondeu o Diretor. — Você brincou de dança das cadeiras quando era criança? É claro que brincou. Bem, enquanto a música estiver tocando, não temos com que nos preocupar. Vamos dar uma olhadinha rápida e então vamos para a Casa Cheatham. É a residência do Diretor. Fica a menos de 200 metros do estádio Tonney. Pode confiar em mim.

     Clay olhou para Tom, que deu de ombros. Alice assentiu. Jordan calhou de estar olhando para trás (bastante ansioso) e viu aquela interação colegial.

     —      Vocês precisam ver — disse ele. — O Diretor tem razão. Enquanto não virem, não têm como saber.

     —      Ver o quê, Jordan? — perguntou Alice.

     Mas Jordan apenas olhou para ela — os olhos grandes e jovens na escuridão.

     —      Espere — respondeu ele.

    

     — Puta merda — disse Clay. Na mente dele, aquelas palavras soavam como um brado a plenos pulmões de surpresa e horror, talvez com uma pitada de ultraje, mas na verdade saíram mais como um débil gemido. Parte disso talvez se devesse ao fato de que àquela distância a música estivesse quase tão alta quanto o show do AC/DC de anos atrás (embora Debby Boone cantando You Light Up My Fire como uma colegial fosse bem diferente de Hell’s Bells, mesmo no volume máximo), mas o maior culpado era um estado de puro choque. Clay tinha pensado que depois do Pulso e da subseqüente fuga de Boston estava preparado para tudo, mas se enganara.

     Ele não imaginava que escolas preparatórias como aquela se permitissem algo tão plebeu (e tão vulgar) quanto futebol americano, mas, pelo jeito, lá eles davam bastante importância ao futebol de bola redonda. As arquibancadas que se estendiam por ambos os lados do estádio Tonney pareciam capazes de comportar umas mil pessoas, e eram enfeitadas com bandeiras que só agora começavam a ficar com um aspecto sujo, por conta do tempo chuvoso dos últimos dias. Havia um placar caprichado na extremidade do campo com letras grandes enfileiradas em cima. Por conta da escuridão, Clay não conseguia ler o que estava escrito, e provavelmente também não teria conseguido à luz do dia. Mas havia luz o bastante para enxergar o campo propriamente dito, e era isso que importava.

     Cada centímetro de grama estava coberto por fonáticos. Eles estavam deitados de costas como sardinhas enlatadas, perna a perna, cintura a cintura e ombro a ombro. Os rostos deles fitavam o céu escuro de antes do amanhecer.

     —      Meu Senhor Jesus Cristo — disse Tom. A voz saiu abafada, pois ele apertava um punho contra a boca.

     —      Segurem a garota! — gritou o Diretor. — Ela vai desmaiar!

     —      Não... eu estou bem — disse Alice, mas quando Clay a enlaçou com um braço, ela se curvou contra o corpo dele, respirando rápido. Estava com olhos abertos, porém fixos, como se estivesse drogada.

     —      Tem mais deles debaixo das arquibancadas também — disse Jordan. Ele falou com uma calma estudada, quase exibida, na qual Clay não acreditou nem por um minuto. Era a voz de um menino garantindo aos amigos que não estava com nojo dos vermes que pululavam nos olhos de um gato morto... logo antes de dobrar os joelhos e botar o almoço para fora. — A gente acha que é ali que eles colocam os feridos que não vão melhorar.

     —      Nós achamos, Jordan.

     —      Desculpe, senhor.

     Debby Boone alcançou a catarse poética e se calou. Houve uma pausa, e então os Champagne Music Makers de Lawrence Welk voltaram a tocar Baby Elephant Walk. Dodge também se divertia à beca, pensou Clay.

     —      Quantos desses mini systems eles conseguiram ligar juntos? — ele perguntou ao Diretor Ardal. — E como fizeram isso? Pelo amor de Deus, eles são idiotas; são zumbis! — Uma idéia terrível lhe veio à mente, ao mesmo tempo ilógica e persuasiva. — Foi o senhor! Para mantê-los quietos, ou... sei lá...

     —      Não foi ele — disse Alice. Ela falou baixinho, de dentro da proteção que o braço de Clay oferecia.

     —      Não, e as duas premissas estão erradas — falou o Diretor.

     —      As duas? Não estou...

     —      Eles devem adorar música mesmo — refletiu Tom —, porque não gostam de entrar em locais fechados. Mas é neles que estão os CDs, não é?

     —      Isso sem falar nos mini systems — disse Clay.

     —      Não há tempo para explicações agora. O céu já está começando a clarear e... diga a eles, Jordan.

     Jordan falou com obediência, com o ar de quem recita uma lição que não compreende:

     —      Todo bom vampiro deve entrar antes de o galo cantar, senhor.

     —      Isso mesmo, antes de o galo cantar. Por enquanto, apenas olhem. É tudo o que precisam fazer. Vocês não sabiam da existência de lugares como esse, sabiam?

     —      Alice sabia — disse Clay.

     Eles olharam. E, como a noite tinha começado a clarear, Clay percebeu que os olhos em todos aqueles rostos estavam abertos. Ele tinha quase certeza de que não viam nada; estavam apenas... abertos.

     Observar os corpos espremidos e os rostos inexpressivos (a maioria deles branca, afinal, eles estavam na Nova Inglaterra) era horrível, mas os olhos vazios fitando o céu noturno o encheram de um horror irracional. Em algum lugar, não muito distante, o primeiro pássaro da manhã começou a cantar. Não era um corvo, mas o Diretor se assustou e então perdeu o equilíbrio. Daquela vez foi Tom quem o segurou.

     —      Vamos — falou o Diretor. — A Casa Cheatham fica perto daqui, mas é melhor irmos andando. A umidade deixa minhas juntas mais duras do que nunca. Segure meu cotovelo, Jordan.

     Alice soltou Clay e foi para o outro lado do velho. Ele abriu um sorriso um tanto intimidador e balançou a cabeça.

     —      Jordan consegue tomar conta de mim sozinho. Nós cuidamos um do outro agora; certo, Jordan?

     —      Sim, senhor.

     —      Jordan? — perguntou Tom. Eles se aproximavam de uma residência enorme (e um tanto pretensiosa), estilo Tudor, que Clay imaginava ser a Casa Cheatham.

     —      Senhor?

     —      A mensagem em cima do placar; não consegui lê-la. O que dizia?

     —      BEM-VINDOS AO FIM DE SEMANA DOS ALUMNI. —Jordan quase sorriu, mas então se lembrou de que não haveria Fim de Semana dos Alumni naquele ano, as bandeiras nas arquibancadas já tinham começado a esfarrapar, e o brilho abandonou o rosto dele. Se não estivesse tão cansado, talvez tivesse conseguido manter a compostura, mas era muito tarde, quase de manhã, e enquanto eles subiam a passarela que levava à casa do Diretor, o último aluno da Academia Gaiten, ainda vestido de marrom e cinza, desatou a chorar.

    

     — Estava uma delícia, senhor — disse Clay. Ele assumira muito naturalmente o modo de falar de Jordan. Tom e Alice também. — Obrigado.

     —      É mesmo — disse Alice. — Obrigada. Nunca tinha comido dois hambúrgueres de uma vez na vida... pelo menos não tão grandes assim.

     Eram três da tarde do dia seguinte. Eles estavam na varanda dos fundos da Casa Cheatham. Charles Ardal — o Diretor, como Jordan o chamava — havia preparado os hambúrgueres em uma pequena grelha a gás. Ele disse que podiam comer a carne sem medo porque o gerador que alimentava o freezer do refeitório funcionara até o meio-dia do dia anterior (e, de fato, os hambúrgueres que ele tirara do refrigerador, e que Tom e Jordan tinham trazido da despensa, ainda estavam brancos de gelo e duros como discos de hóquei). Ardal disse que não haveria problema em grelhar a carne até as cinco da tarde, embora a prudência os obrigasse a comer cedo.

     —      Eles sentiriam o cheiro da comida? — perguntou Clay.

     —      Digamos que não estamos interessados em descobrir — respondeu o Diretor. — Estamos, Jordan?

     —      Não, senhor — disse Jordan e deu uma mordida em seu segundo hambúrguer. Estava comendo mais devagar, mas Clay achou que ele conseguiria dar conta do recado. — A gente quer estar dentro de casa quando eles acordam e dentro de casa quando eles voltam da cidade. É pra lá que eles vão, para a cidade. Estão limpando tudo, como pássaros em um milharal. É o que diz o Diretor.

     —      Eles estavam voltando em bando para casa mais cedo quando estávamos em Malden — disse Alice. — Não que soubéssemos onde era a casa deles antes. — Ela estava olhando para uma bandeja com formas de pudim. — Posso comer um desses?

     —      É claro. — O Diretor empurrou a bandeja na direção dela. — E outro hambúrguer também, se quiser. O que não comermos logo vai estragar.

     Alice gemeu e balançou a cabeça, mas pegou um pudim. Tom fez o mesmo.

     —      Eles parecem sair no mesmo horário todas as manhãs, mas têm mesmo voltado para casa mais cedo — disse Ardal, pensativo. — Por que será?

     —      Menos comida? — perguntou Alice.

     —      Talvez... — Ele deu uma última mordida no hambúrguer e então cuidadosamente cobriu o resto com um guardanapo. — Existem muitos bandos. Talvez uma dúzia em um raio de 80 quilômetros. Pessoas que estavam indo para o sul nos informaram que há bandos em Sandown, Fremont e Candia. Durante o dia, eles saem procurando quase a esmo, talvez não só por comida, mas também por música, e então voltam para o lugar de origem.

     —      Isso o senhor sabe com certeza — falou Tom. Ele terminou um pudim e partiu para outro.

     Ardal balançou a cabeça.

     —      Não podemos ter certeza de nada, Sr. McCourt. — O cabelo dele, um emaranhado de fios longos e brancos (sem dúvida o cabelo de um professor de inglês, pensou Clay), balançou um pouco na brisa suave da tarde. As nuvens tinham sumido. A varanda dos fundos tinha uma boa vista para o campus, que até então estava deserto. Jordan dava a volta na casa a intervalos regulares para inspecionar a colina que descia até a Academy Avenue e declarava que tudo estava tranqüilo daquele lado também. — Vocês não viram nenhum dos outros locais de aglomeração?

     —      Não — disse Tom.

     —      Mas estávamos viajando no escuro — Clay o recordou —, e agora o escuro é escuro de verdade.

     —      Sim — concordou o Diretor. Ele falava quase como se devaneasse. — Como le Moyen Age. Traduza, Jordan.

     —      A Idade Média, senhor.

     —      Muito bem. — Ele deu um tapinha no ombro do menino.

     —      Mesmo os bandos grandes passariam despercebidos — disse Clay. — Nem precisariam estar escondidos.

     —      Não, eles não estão se escondendo — concordou o Diretor Ardal, juntando os dedos em forma de triângulo. — Ainda não, pelo menos. Eles se agrupam... procuram comida... e a consciência coletiva talvez se desfaça um pouco enquanto estão procurando... mas talvez em menor escala. Talvez em menor escala a cada dia.

     —      Manchester queimou inteira — disse Jordan de repente. — Dava pra ver o fogo daqui, não dava, senhor?

     —      Dava — concordou o Diretor. — Foi muito triste e assustador.

     —      É verdade que as pessoas que estão tentando entrar em Massachusetts estão levando tiros na fronteira? — perguntou Jordan. — É o que estão falando por aí. As pessoas estão dizendo que o melhor é ir para Vermont, só por lá é seguro.

     —      Isso é bobagem — disse Clay. — Ouvimos a mesma coisa sobre a fronteira de New Hampshire.

     Jordan o encarou com os olhos arregalados por um instante, então disparou a rir. O som soava límpido e bonito no ar parado. Então, ao longe, uma arma disparou. E, mais próximo de lá, alguém gritou de raiva ou horror.

     Jordan parou de rir.

     —      Conte-nos sobre aquele estado esquisito em que eles estavam na noite passada — falou Alice baixinho. — E sobre a música. Todos os outros bandos escutam música à noite?

     O Diretor olhou para Jordan.

     —      Sim — disse o menino. — Eles só escutam músicas lentas, nada de rock, country...

     —      Imagino que nada de música clássica, também — acrescentou o Diretor. — Não as mais desafiadoras, pelo menos.

     —      São as canções de ninar deles — disse Jordan. — É o que a gente acha, não é senhor?

     —      Nós achamos, Jordan.

     —      Isso, nós achamos, senhor.

     —      Mais é isso mesmo que achamos — concordou o Diretor. — Embora eu suspeite que exista algo mais além disso. Sim, muito mais.

     Clay estava bestificado. Mal sabia como continuar. Olhou para os amigos e viu nos rostos deles o que ele estava sentindo — não só perplexidade, mas uma terrível relutância em aceitar aquele esclarecimento.

     Inclinando-se para frente, o Diretor Ardal disse:

     —      Posso ser franco? Preciso ser franco; é um hábito que me acompanhou a vida toda. Quero que vocês nos ajudem a fazer uma coisa terrível aqui. Acredito que temos pouco tempo para fazê-lo, e embora uma ação solitária como essa possa não dar em nada, nunca se sabe, não é mesmo? Nunca se sabe que tipo de comunicação pode surgir entre esses... bandos. Seja como for, não vou ficar parado enquanto essas... coisas... roubam de mim não só a escola, mas a própria luz do dia. Já teria tentado antes, mas sou velho e Jordan é muito jovem. Jovem demais. O que quer que sejam agora, eles eram humanos há pouco. Não vou deixar que o menino se envolva nisto.

     —      Eu posso fazer a minha parte, senhor! — disse Jordan. Ele falou com a convicção, pensou Clay, de qualquer adolescente muçulmano que já afivelou um cinto suicida cheio de explosivos.

     —      Saúdo a sua coragem, Jordan — o Diretor disse a ele —, mas acho melhor não. — Ele olhou para o menino com afeto, mas quando se virou para os demais, seus olhos tinham endurecido consideravelmente. — Vocês têm armas, armas boas, e eu tenho apenas um rifle calibre 22 de um tiro só que talvez nem funcione mais, embora o cano esteja desobstruído, eu olhei. Mesmo que funcione, os cartuchos que tenho talvez não disparem. Mas tenho uma bomba de gasolina na garagem da nossa pequena frota de veículos, e gasolina talvez sirva para matá-los.

     Ele deve ter visto o horror nos rostos dos seus companheiros, porque assentiu. Para Clay, Ardal não parecia mais o adorável Mr. Chips; estava mais para um velho puritano em uma pintura a óleo. Do tipo que condenaria um homem ao tronco sem pestanejar. Ou mandaria uma mulher para a fogueira para ser queimada como bruxa.

     Ele assentiu para Clay em especial. Clay tinha certeza disso.

     —      Tenho consciência do que estou falando. Sei como soa aos ouvidos de vocês. Mas não seria assassinato, não exatamente; seria extermínio. E não tenho poder para forçá-los a fazer nada. Mas, de qualquer forma... quer vocês queiram me ajudar a queimá-los, quer não, precisam passar uma mensagem adiante.

     —      Para quem? — perguntou Alice com a voz fraca.

     —      Para todas as pessoas que encontrarem, Srta. Maxwell. — Ele se inclinou sobre os restos da refeição, aqueles olhos inquisidores penetrantes, pequenos e inflamados. — Precisam dizer o que está acontecendo com eles; com os que receberam a mensagem infernal do interfone do diabo. Precisam passar isto adiante. Todos que foram privados da luz do dia têm que ouvir, e antes que seja tarde demais. — Ele passou uma das mãos sobre a parte debaixo do rosto e Clay notou que seus dedos tremiam um pouco. Seria fácil considerar aquilo um sinal da idade do homem, mas ele não tinha visto nenhuma tremedeira antes. — Tememos que logo vai ser. Não é, Jordan?

     —      Sim, senhor. — Jordan sem dúvida parecia saber de algo; ele parecia aterrorizado.

     —      O quê? O que está acontecendo com eles? — perguntou Clay.

     — Tem alguma coisa a ver com a música e com aqueles mini systems ligados juntos, não tem?

     O velho se curvou, aparentando de repente cansaço.

     —      Eles não estão ligados juntos — falou. — Não se lembra que eu disse que as duas premissas estavam erradas?

     —      Sim, mas não entendo o que o senhor quer...

     —      Tem um aparelho de som com um CD dentro, quanto a isso você tem razão. Uma coletânea, segundo Jordan, e por isso as mesmas músicas se repetem.

     —      Sorte a nossa — murmurou Tom, mas Clay mal o escutou. Ele estava tentando compreender o que Ardal acabara de falar: eles não estão ligados juntos. Como aquilo era possível? Não havia como.

     —      Os aparelhos de som, ou mini systems, como quiser, estão todos em volta do campo — prosseguiu o Diretor —, e estão todos ligados. A noite, dá para ver as pequenas luzes vermelhas...

     —      É verdade — disse Alice. — Eu vi algumas luzes vermelhas, mas não me toquei.

     —      ... só que eles estão vazios... sem nenhum CD ou fita cassete... e nenhum fio que os conecte. São apenas escravos que recebem o áudio do CD mestre e retransmitem.

     —      Se eles estiverem de boca aberta, a música sai de dentro deles também — disse Jordan. — Sai baixinho... menos que um sussurro... mas dá pra ouvir.

     —      Não — falou Clay. — É imaginação sua, garoto. Só pode ser.

     —      Eu não ouvi isso — disse Ardal —, mas é claro que minha audição não é a mesma de quando eu era fã do Gene Vicent e os Blue Caps. "Já era", como diriam Jordan e seus amigos.

   —      O senhor é muito velha guarda — disse Jordan. Ele falou com uma solenidade gentil e com um afeto inconfundível.

     —      É Jordan, sou mesmo — concordou o Diretor. Ele deu um tapinha no ombro do garoto e voltou a atenção aos demais. — Se Jordan diz que ouviu, eu acredito nele.

     —      Não é possível — disse Clay. — Não sem um transmissor.

     —      Eles estão transmitindo — respondeu o Diretor. — É uma habilidade que parecem ter adquirido desde o Pulso.

     —      Espere — disse Tom. Ele ergueu a mão como um guarda de trânsito, a abaixou, começou a falar, ergueu-a mais uma vez. Do seu lugar vagamente seguro do lado do Diretor Ardal, Jordan o observou com atenção. Por fim, Tom disse:

     —      Estamos falando de telepatia?

     —      Imagino que esse não seja exatamente le mot juste para este fenômeno em particular — respondeu o Diretor —, mas por que nos prendermos aos detalhes técnicos? Eu apostaria todos os hambúrgueres que restam no freezer que vocês já tinham usado a palavra entre si antes.

     —      O senhor ganharia o dobro de hambúrgueres — disse Clay.

     —      Bem, é verdade, mas essa coisa de se juntar em bando é diferente — falou Tom.

     —      E por quê? — O Diretor ergueu as sobrancelhas desgrenhadas.

     —      Bem, porque... — Tom não conseguia terminar, e Clay sabia por quê. Não era diferente. Formar bandos não era comportamento humano e eles sabiam disso desde o instante em que observaram George, o mecânico, seguir a mulher de calças sujas pelo jardim da frente de Tom na Salem Street. Ele andara tão perto da mulher que poderia ter mordido o pescoço dela... mas não mordeu. E por quê? Porque, para os fonáticos, a hora de morder já tinha acabado; era hora de formar bandos.

     Pelo menos, a hora de morder os seus iguais. A não ser que...

     —      Professor Ardal, no começo eles matavam qualquer um...

     —      Sim — concordou o Diretor. — Tivemos muita sorte de escapar, não tivemos, Jordan?

     Jordan estremeceu e assentiu.

     —      Os meninos saíram correndo para todo lado. Até alguns professores. Matando... mordendo... falando coisas sem sentido... Eu me escondi em umas das estufas por um tempo.

     —      E do sótão desta casa aqui — acrescentou o Diretor —, eu observei da pequena janela lá em cima o campus, o campus que eu amo, ir literalmente para o inferno.

     Jordan falou:

     —      A maioria dos que não morreram fugiu em direção ao centro. Agora um monte deles está de volta. Lá do outro lado. — Ele meneou a cabeça na direção do campo de futebol.

     —      E o que podemos concluir disso tudo? — perguntou Clay.

     —      Acho que sabe a resposta, Sr. Riddell.

     —      Clay.

     —      Clay, certo. Acho que o que está acontecendo é mais do que uma anarquia temporária. Acho que é começo de uma guerra. Vai ser curta, mas extremamente violenta.

     —      O senhor não acha que está exagerando...

     —      Não. Embora só possa me basear nas minhas próprias observações, e nas de Jordan, tivemos a oportunidade de estudar um bando bem numeroso, e os vimos ir e vir, e também... digamos, descansar. Eles pararam de matar uns aos outros, mas continuam matando pessoas que classificaríamos como normais. Eu chamo isso de comportamento militar.

     —      O. senhor os viu matando pessoas normais com os próprios olhos? — perguntou Tom. Atrás dele, Alice abriu a mochila, tirou o Nike de bebê e o segurou na mão.

     O Diretor olhou para ele com gravidade.

     —      Vi. Sinto dizer que Jordan também.

     —      Não teve jeito — disse Jordan. Lágrimas saíam dos olhos dele. —        Eles eram muitos. Foi um homem e uma mulher. Não sei o que eles estavam fazendo no campus tão perto do anoitecer, mas com certeza não sabiam sobre o estádio Tonney. Ela estava machucada. Ele estava ajudando a moça a andar. Então encontraram com uns vinte deles voltando da cidade. O homem tentou carregar a moça. — A voz de Jordan começou a falhar. — Se estivesse sozinho, talvez tivesse conseguido escapar, mas com ela... só conseguiu chegar até o Horton Hall. É um dos dormitórios. Lá ele caiu e eles os pegaram. Eles...

     Jordan enterrou repentinamente a cabeça no casaco do velho — ele vestia uma peça cinza-escuro naquela tarde. A mão grande do Diretor acariciou a nuca macia de Jordan.

     —      Eles parecem saber quem são seus inimigos — refletiu o Diretor. — Talvez faça parte da mensagem original que receberam, vocês não acham?

      —      Talvez — disse Clay. Fazia uma espécie de sentido perverso.

     —      Quanto ao que eles estão fazendo à noite deitados tão quietos e com os olhos abertos, ouvindo aquela música... — O Diretor suspirou, tirou um lenço de um dos bolsos do casaco e secou os olhos do menino de modo casual. Clay viu que ele estava ao mesmo tempo muito assustado e muito convencido de qualquer que fosse a conclusão à qual chegara. — Acho que eles estão reiniciando — disse.

    

     —      Vocês estão vendo as luzes vermelhas, não estão? — perguntou o Diretor com sua voz arrebatadora, do tipo "vão me ouvir até a última fileira do auditório". — Contei no mínimo sessenta e tr...

     —      Fale baixo!— sibilou Tom. Só faltou tapar a boca do velho com a mão.

     O Diretor olhou para ele com calma.

     —      Você se esqueceu do que eu falei na noite passada sobre a dança das cadeiras?

     Tom, Clay e Ardal tinham acabado de passar das roletas, com o arco do estádio Tonney às suas costas. Alice concordara em ficar na Casa Cheatham com Jordan. A música que saía do campo de futebol da escola preparatória era uma versão instrumental em ritmo de jazz de Garota de Ipanema. Clay achava que, se você fosse um fonático, aquilo era a coisa mais vanguarda do mundo.

     —      Não — disse Tom. — Enquanto a música estiver tocando, não temos com que nos preocupar. Só não quero acabar com a garganta rasgada por uma exceção insone a essa regra.

     —      Isso não vai acontecer.

     —      Como pode ter tanta certeza, senhor? — perguntou Tom.

     —      Porque eles não estão dormindo de verdade. Venha.

     Ele começou a descer a rampa de concreto que os jogadores usavam para chegar ao campo, viu que Tom e Clay tinham ficado para trás e olhou para eles com paciência.

     —      Não se ganha muito conhecimento sem correr riscos — ele disse —, e a essa altura, eu diria que conhecimento é essencial, concordam? Venham.

     Eles desceram a rampa, seguindo as batidas da bengala do velho em direção ao campo, Clay um pouco na frente de Tom. Sim, eles estavam vendo as luzes vermelhas dos mini systems circundando o gramado. Devia haver sessenta ou setenta delas. Viam-se aparelhos de som bem grandes a cada 3 ou 4 metros de distância, cada qual cercado de corpos. À luz das estrelas, eles eram uma visão estarrecedora. Não estavam empilhados — cada um tinha sua própria vaga —, mas não sobrava nem um centímetro. Até os braços estavam entrelaçados, de modo que davam a impressão de cobrir o campo como bonecas de papel enfileiradas, enquanto a música — Que parece do tipo que se ouve em supermercados, pensou Clay — subia na escuridão. Uma outra coisa também subia no ar: um cheiro insalubre de terra e vegetais podres, com um odor mais forte de dejetos humanos e putrefação por baixo.

     O Diretor desviou do gol, que tinha sido tirado do lugar, virado e cuja rede fora estraçalhada. Lá, onde o lago de corpos começava, jazia um rapaz de uns 30 anos com mordidas subindo pelo braço até a manga da sua camisa da NASCAR. As mordidas pareciam estar infeccionadas. Ele segurava em uma das mãos um boné vermelho, o que fez Clay se lembrar do tênis de estimação de Alice. O rapaz olhava estupidamente para as estrelas enquanto Bette Midler cantava mais uma vez sobre o vento que inflava suas asas.

     —      Olá — exclamou o Diretor com sua voz esganiçada e penetrante. Ele cutucou o rapaz animadamente com a ponta da bengala, empurrando a barriga até ele peidar. — Olá, meu caro!

     —      Pare com isso! — Tom quase gemeu.

     O Diretor olhou para ele com desdém e então enfiou a ponta da bengala no boné que o rapaz estava segurando. Atirou-o longe. O boné voou uns 3 metros e foi parar na cara de uma mulher de meia-idade. Clay observou, fascinado, o boné escorregar um pouco para o lado, revelando um olho extasiado e impassível.

     O rapaz ergueu o braço com uma lentidão sonolenta e fechou a mão que segurara o boné em um punho. Então a deixou cair.

     —      Ele acha que está segurando o boné de novo — sussurrou Clay, fascinado.

     —      Talvez — respondeu o Diretor, sem muito interesse. Ele cutucou as mordidas infeccionadas do rapaz com a bengala. Deveria doer pra cacete, mas o rapaz não reagiu, apenas continuou olhando para o céu à medida que Bette Midler dava lugar a Dean Martin. — Eu poderia enfiar minha bengala na goela dele e ele não tentaria me impedir. E nenhum dos que estão em volta se levantaria para defendê-lo, embora à luz do dia não tenho dúvidas de que me esquartejariam.

     Tom estava agachado diante de um dos estoura tímpanos.

     —      Este aqui está com pilhas — disse ele. — Dá pra saber pelo peso.

     —      Sim. Todos estão. Eles parecem mesmo precisar de pilhas. — O Diretor refletiu e então acrescentou algo que Clay preferiria não ter ouvido. — Pelo menos por enquanto.

     —      Nós poderíamos cair dentro, não poderíamos? — disse Clay. — Poderíamos acabar com eles do jeito que os caçadores exterminaram pombos nos anos 1880.

     O Diretor assentiu.

     —      Eles espalharam os miolos daqueles pombos pelo chão, não foi? Boa analogia. Mas eu demoraria muito com a minha bengala. Temo que demoraria até com a sua automática.

     —      De qualquer forma, não tenho balas o suficiente. Deve haver... — Clay correu os olhos por sobre os corpos amontoados mais uma vez. Olhar para eles lhe dava dor de cabeça. — Deve haver uns seiscentos ou setecentos. Isso sem contar os que estão debaixo das arquibancadas.

     —      Senhor? Sr. Ardal? — Era Tom. — Quando o senhor... como o senhor descobriu?...

     —      Como determinei a profundidade deste estado de transe? É isso que quer saber?

     Tom assentiu.

     —      Eu vim observar na primeira noite. O bando era muito menor, é claro. Fui atraído a eles por uma simples, porém esmagadora, curiosidade. Jordan não estava comigo. Passar para a existência noturna tem sido muito difícil para ele.

     —      O senhor sabe que arriscou a vida — disse Clay.

     —      Não tive muita escolha — respondeu o Diretor. — Era como se estivesse hipnotizado. Entendi logo que eles estavam inconscientes, embora os olhos estivessem abertos, e algumas poucas experiências com a ponta da minha bengala confirmaram a profundidade do transe.

     Clay pensou em como o Diretor mancava e considerou perguntar se o velho havia pensado no que teria acontecido se estivesse enganado e eles viessem atrás dele, mas segurou a língua. Sem dúvida o Diretor reiteraria que não se obtém conhecimento sem riscos. Jordan estava certo: aquele era um cara muito velhaguarda. Clay certamente não gostaria de ter 14 anos e estar diante da palmatória daquele homem.

     Enquanto isso, Ardal balançava a cabeça para ele.

     —      Seiscentos ou setecentos é uma estimativa muito modesta, Clay. Este é um campo de futebol oficial. São 500 metros quadrados.

     —      Quantos, então?

     —      Do jeito que eles estão amontoados? Eu diria no mínimo mil.

     —      E eles não estão aqui de verdade, estão? O senhor tem certeza disso.

     —      Tenho. E os que voltam, um pouco mais a cada dia, e Jordan concorda comigo, e ele é um ótimo observador, pode confiar em mim, não são mais o que eles eram antes. Quero dizer, não são mais humanos.

     —      Podemos voltar para a Casa agora? — perguntou Tom. Ele parecia estar passando mal.

     —      Claro — concordou o Diretor.

     —      Só um segundo — disse Clay. Ele se ajoelhou ao lado do rapaz com a camisa da NASCAR. Não queria fazer aquilo, não conseguia deixar de imaginar que a mão que agarrara o boné tentaria agarrá-lo, mas se obrigou. Ao nível do chão, o fedor era pior. Clay pensara que estava se acostumando, mas tinha se enganado.

     Tom começou a falar:

     —      Clay, o que você está...

     —      Silêncio. — Clay se inclinou sobre a boca do rapaz, que estava semi-aberta. Depois de hesitar, forçou-se a chegar mais perto, até conseguir ver o brilho fraco da saliva no lábio inferior do homem. A princípio, ele pensou que era só imaginação, mas, ao se aproximar mais 5 centímetros, quase próximo o bastante para beijar a criatura não-adormecida com Ricky Craven estampada no peito, viu que estava errado.

     — Sai baixinho..., — dissera Jordan, — menos que um sussurro... mas dápra ouvir.

     Clay ouviu; a voz de alguma forma uma ou duas sílabas à frente do som que saía dos mini systems interligados: Dean Martin cantando Everybody Loves Somebody Sometime.

     Ele se levantou, quase gritando ao som de disparo dos seus próprios joelhos estalando. Tom ergueu a lanterna e o encarou com os olhos arregalados.

     —      O quê? O quê:'Você não vai me dizer que aquele garoto estava...

     Clay assentiu.

     —      Venha. Vamos voltar.

     Na metade da subida da rampa, ele colocou a mão com força sobre o ombro do velho. Ardal se virou para encará-lo, sem parecer incomodado em ser agarrado daquela forma.

     —      O senhor está certo. Precisamos nos livrar deles. O máximo que conseguirmos e o mais rápido possível. Essa talvez seja a nossa única chance. Ou o senhor acha que estou errado?

     —      Não — respondeu o Diretor. — Infelizmente, não acho. Como disse, isto é uma guerra, pelo menos acredito que sim, e o que se faz na guerra é matar os inimigos. Por que não voltamos e discutimos isso? Podemos tomar um chocolate quente. Eu sou um bárbaro e gosto de um pouco de bourbon no meu.

     No topo da rampa, Clay dedicou um último olhar para trás. O estádio Tonney estava escuro, mas a luz forte das estrelas do norte o permitia ver o tapete de corpos espalhados de cima a baixo e de uma ponta a outra. Ele pensou que talvez não fosse possível entender o que era aquilo logo de cara, mas depois que você entendia... depois que você entendia...

     Os olhos dele pregaram-lhe uma peça e, por um instante, Clay pensou tê-los visto respirar — todos os oitocentos ou mil deles — como um só organismo. Aquilo o assustou de tal forma que ele se virou para alcançar Tom e o Diretor Ardal, quase correndo.

    

     O Diretor preparou chocolate quente na cozinha, e o beberam na sala de visitas, à luz de dois lampiões a gás. Clay achou que o velho sugeriria que fossem até a Academy Avenue mais tarde, arrastar mais voluntários para o Exército de Ardal, mas ele parecia satisfeito com o que tinha.

     A bomba de gasolina na garagem da frota de veículos, o Diretor contou para eles, era alimentada por um tanque suspenso de 1.500 litros; bastava puxar um plugue. E também havia pulverizadores de 110 litros na estufa. Pelo menos uma dúzia. Eles poderiam carregar uma picape com eles, talvez, e descer de ré uma das rampas...

     —      Espere — disse Clay. — Antes de começarmos a montar estratégias, se o senhor tem alguma teoria sobre o que está acontecendo, eu gostaria de ouvi-la.

     —      Nada muito formal — disse o velho. — Mas Jordan e eu observamos, temos nossa intuição e, juntos, temos bastante experiência com...

     —      Eu sou um rato de computador — disse Jordan por sobre a caneca de chocolate quente. Clay achou a confiança emburrada do garoto estranhamente charmosa. — Um completo McNerd. Sempre fui, a vida inteira. Aquelas coisas estão reiniciando, com certeza. Eles poderiam ter INSTALANDO SOFTWARE, POR FAVOR, AGUARDE piscando na testa.

     —      Não estou entendendo — disse Tom.

     —      Eu estou — disse Alice. — Jordan, você acha que o Pulso foi mesmo um Pulso, não acha? E ele... apagou o disco rígido de todo mundo que o escutou.

     —      É claro — respondeu Jordan. Ele era educado demais para dizer: Dã.

     Tom olhou perplexo para Alice. Mas Clay sabia que Tom não era burro e não achava que ele fosse tão lento assim.

     —- Você tinha um computador — disse Alice. — Eu vi no seu escritório.

     —      Tinha...

     —      E instalava softwares neles, certo?

     —      Claro, mas... — Tom parou, olhando fixamente para Alice. Ela devolveu o olhar. — Os cérebros deles? Você quer dizer os cérebros...

     —      O que você acha que é um cérebro? — disse Jordan. — Um disco rígido gigante. Um conjunto de circuitos orgânicos. Com ninguém sabe quantos bytes. Talvez um giga elevado à enésima potência. Uma infinidade de bytes. — Ele colocou as mãos nas orelhas, que eram pequenas e bem-feitas. — Bem aqui no meio.

     —      Não acredito — disse Tom, mas ele falou com uma voz fraca e dava a impressão de estar enjoado. Clay achou que ele acreditava sim.

     Pensando na loucura que tinha estourado em Boston, ele tinha que admitir que a idéia era tentadora. E era também terrível: milhões, talvez bilhões, de cérebros apagados ao mesmo tempo, do mesmo jeito que se pode apagar um disquete antigo com um ímã poderoso. Clay se viu recordando da Cabelinho Escuro, a amiga da garota com o celular cor de hortelã. Quem é você? O que está acontecendo? Gritara a Cabelinho Escuro. Quem é você? Quem sou eu? Então ela bateu várias vezes na própria testa com a base da mão e enfiou a cara em um poste, duas vezes, despedaçando seu caro tratamento dentário.

     Quem é você? Quem sou eu?

     Não tinha sido o telefone dela. A Cabelinho Escuro estava ouvindo por tabela e não recebeu uma dose completa.

     Clay, que na maior parte do tempo pensava em imagens em vez de palavras, tinha na cabeça a imagem muito clara de uma tela de computador repleta das seguintes frases: QUEM É VOCÊ QUEM SOU EU QUEM É VOCÊ QUEM SOU EU QUEM É VOCÊ QUEM SOU EU QUEM É VOCÊ QUEM SOU EU e, para terminar, no fundo, tão frio e indiscutível quanto o destino da Cabelinho Escuro: FALHA NO SISTEMA.

     A Cabelinho Escuro como um disco rígido apagado pela metade? Era horrível, mas parecia a verdade nua e crua.

     —      Sou formado em inglês, mas quando jovem li bastante sobre psicologia — o Diretor disse a eles. — Comecei com Freud, é claro, todo mundo começa com Freud... depois Jung... Adler... a partir deles, fui passando por todo o campo de batalha. Por trás de todas as teorias de como a mente funciona, existe uma teoria maior: a de Darwin. No vocabulário freudiano, a idéia da sobrevivência como diretriz primária é expressa pelo conceito do id. Em Jung, pela idéia um tanto mais grandiosa da consciência do sangue. Creio que ninguém discordaria da hipótese de que se todo o pensamento consciente, toda a memória, toda a habilidade de raciocínio fossem apagados da mente humana em um determinado momento, o que sobrasse seria puro e terrível.

     Ele fez uma pausa, olhando em volta à espera de comentários. Ninguém falou nada. O Diretor assentiu como se estivesse satisfeito e concluiu.

     —      Embora nem os freudianos nem os jungianos digam isso com todas as letras, eles sugerem vigorosamente que talvez tenhamos um núcleo, uma freqüência básica em comum ou, usando a linguagem com a qual Jordan está mais habituado, uma linha de código que não pode ser apagada.

     —      A DP — disse Jordan. — A diretriz primária.

     —      Sim — concordou o Diretor. — No fundo, não somos nem um pouco Homo sapiens. Nossa diretriz primária é matar. O que Darwin foi educado demais para dizer, meus amigos, é que dominamos a Terra não porque éramos os mais inteligentes, ou mesmo os mais cruéis, e sim porque sempre fomos os mais loucos, os mais desgraçados homicidas da floresta. E foi isso que o Pulso demonstrou cinco dias atrás.

     —      Eu me recuso a crer que éramos lunáticos e assassinos antes de qualquer coisa — disse Tom. — Meu Deus, cara, e o Parthenon? E o Davi de Michelangelo? E aquela placa na lua que diz: "Viemos em paz para toda a humanidade."

     —      Aquela placa também tem o nome de Richard Nixon escrito nela — disse Ardal com aspereza. — Um quacre, mas dificilmente um homem de paz. Sr. McCourt, Tom, meu intuito não é acusar a humanidade. Se fosse, diria que para cada Michelangelo existe um Marquês de Sade, para cada Ghandi, um Eichmann, para cada Martin Luther King, um Osama Bin Laden. Vamos nos limitar ao seguinte: o homem dominou o planeta graças a dois traços essenciais. Um é a inteligência. O outro é a completa disposição para matar tudo e todos que possam vir a impedi-lo.

     Ele se inclinou para frente, estudando-os com aqueles olhos brilhantes.

     —      A inteligência humana finalmente conseguiu superar o instinto assassino, e a razão dominou os impulsos mais insanos. Isso também foi uma questão de sobrevivência. Creio que a batalha final entre os dois se deu em outubro de 1963, por conta de um punhado de mísseis em Cuba, mas isso é conversa para outra ocasião. O fato é: a maioria das pessoas sublimou o que há de pior nelas até o Pulso chegar e apagar tudo, exceto aquele núcleo vermelho.

     —      Alguém tirou o diabo-da-tasmânia de dentro da jaula — murmurou Alice. — Quem?

     —      Isso também não é do nosso interesse — respondeu o Diretor.

     —      Imagino que eles não tinham idéia do que estavam fazendo... ou da magnitude do que estavam fazendo. Tomando como base o que devem ter sido experiências feitas às pressas nos últimos anos, ou talvez nos últimos meses, é possível que tenham pensado que iriam desencadear uma onda destrutiva de terrorismo. Em vez disso, desencadearam um tsunami de violência inenarrável, que está em processo de mutação. Por mais horríveis que os dias de hoje pareçam, é provável que mais tarde os consideremos uma calmaria entre duas tempestades. Talvez eles sejam a nossa única chance de causar algum impacto.

     —      O que o senhor quer dizer com processo de mutação? — perguntou Clay.

     Porém, o Diretor não respondeu. Em vez disso, voltou-se para o menino de 12 anos.

     — Quando quiser, meu jovem.

     —      Certo. Bem. — Jordan parou para pensar. — A mente consciente usa apenas uma pequena percentagem da nossa capacidade cerebral. Vocês sabem disso, certo?

     —      Sim — disse Tom, com certa complacência. — Já li sobre isso.

     Jordan assentiu.

     —      Mesmo se acrescentarmos todas as funções automáticas que ele controla, e mais as coisas inconscientes, ou seja, os sonhos, os pensamentos involuntários, o impulso sexual, toda essa conversa, nosso cérebro trabalha muito pouco.

     —      Holmes, você me impressiona — disse Tom.

     —      Não banque o espertinho, Tom — falou Alice, e Jordan olhou para ela com os olhos decididamente brilhando.

     —      Não estou bancando o espertinho — disse Tom. — O garoto é bom.

     —      Ele é mesmo — disse o Diretor secamente. — Jordan às vezes escorrega no inglês, mas não ganhou bolsa por ser um ás no dominó. — Ele notou o desconforto do menino e despenteou carinhosamente o cabelo de Jordan com os dedos ossudos. — Prossiga, por favor.

     —      Bem... — Clay viu que o garoto se esforçou para conseguir retomar o ritmo. — Se o nosso cérebro for mesmo um disco rígido, estaria quase vazio. — Ele percebeu que somente Alice havia entendido. —   Em outras palavras: a barra de informações diria algo como 2% em uso, 98% de espaço livre. Ninguém sabe ao certo para que servem os 98%, mas o potencial deles é grande. Por exemplo, vítimas de derrame... às vezes elas acessam áreas do cérebro que estavam dormentes para voltarem a andar e falar. É como se o cérebro delas se conectasse em volta da área danificada. Áreas semelhantes do cérebro são ativadas, mas do outro lado.

     —      Você estuda essas coisas? — perguntou Clay.

     —      É um produto natural do meu interesse por computadores e cibernética — disse Jordan, dando de ombros. — E eu também leio bastante ficção científica cyberpunk. William Gibson, Bruce Sterling, John Shirley...

     —      Neal Stephenson? — perguntou Alice.

     Jordan abriu um sorriso radiante.

     —      Neal Stephenson é um deus.

     —      Voltando ao assunto... — ralhou o Diretor... mas com ternura.

     Jordan deu de ombros.

     —      Se você formatar o disco rígido de um computador, ele não pode se regenerar espontaneamente... exceto talvez em um romance de Greg Bear. — Ele sorriu de novo, mas desta vez apenas por um instante e, pensou Clay, com nervosismo. A culpa era em parte de Alice, que obviamente deixava o menino gamado. — Com pessoas é diferente.

   —      Mas há uma grande diferença entre voltar a andar depois de um derrame e ser capaz de ligar um monte de mini systems por telepatia — disse Tom. — Uma diferença monstruosa. — Ele olhou em volta constrangido quando a palavra telepatia saiu da sua boca, como se esperasse que rissem dele. Ninguém riu.

     —      É verdade, mas uma vítima de derrame, mesmo se for grave, é muito diferente do que aconteceu com as pessoas que estavam usando o celular durante o Pulso — retorquiu Jordan. — A gente acha, quer dizer, nós achamos, que, além de limpar o cérebro das pessoas até aquela linha de código impossível de apagar, o Pulso também ativou alguma outra coisa. Algo que provavelmente estava lá dentro há milhões de anos, enterrado naqueles 98% de disco rígido inativo.

     A mão de Clay se moveu furtivamente para a coronha do revólver que ele pegara no chão da cozinha de Beth Nickerson.

     —      Um gatilho — disse ele.

     Jordan abriu um sorriso.

     —      Isso, exatamente! Um gatilho de mutação. Não poderia acontecer sem essa... tipo, limpeza total em grande escala. Porque o que está emergindo, o que está surgindo naquelas pessoas lá fora... só que elas não são mais pessoas, o que está surgindo é...

     —      Um único organismo — interrompeu o Diretor. — Essa é a nossa teoria.

     —      Sim, mas é mais do que um simples bando — disse Jordan. — Porque o que eles conseguem fazer com os CD-players pode ser apenas o começo, como uma criancinha aprendendo a amarrar os sapatos. Imaginem o que eles podem conseguir fazer em uma semana. Ou em um mês. Ou em um ano.

     —      Você pode estar errado — disse Tom, mas a voz dele saiu tão seca quanto palha.

     —      Ele também pode ter razão — disse Alice.

     —      Oh, eu tenho certeza de que ele tem razão — atalhou o Diretor. Ele bebericou seu chocolate quente batizado. — É claro que eu sou um velho e meu tempo está se esgotando de qualquer maneira. Acatarei qualquer decisão que vocês tomarem. — Ele fez uma pequena pausa. Seus olhos bruxulearam de Clay para Alice e então para Tom. — Desde que seja a decisão correta, obviamente.

     Jordan falou:

     —      Os bandos vão tentar se unir. Se eles já não conseguem ouvir uns aos outros, vão conseguir logo, logo.

     —      Besteira — disse Tom, apreensivo. — Histórias de fantasmas.

     —      Talvez — disse Clay —, mas vamos pensar no seguinte: agora, as noites são nossas. E se eles decidirem que precisam de menos horas de sono? Ou que não têm tanto medo assim do escuro?

     Ninguém falou nada por vários instantes. O vento estava ficando mais forte lá fora. Clay bebericou o chocolate quente, que nunca tinha estado mais do que morno e já estava quase frio. Quando voltou a erguer os olhos, Alice tinha deixado de lado sua caneca e estava com o talismã da Nike nas mãos.

     —      Eu quero exterminá-los — disse ela. — Os que estão no campo de futebol, quero exterminá-los. Não digo matá-los porque acho que Jordan tem razão, e não quero fazer isso pela raça humana. Quero fazer pela minha mãe e pelo meu pai, porque ele está morto também. Sei que está, posso sentir. Quero fazer pelas mihhas amigas Vicky e Tess. Elas eram boas amigas, mas tinham celulares, não saíam para lugar nenhum sem eles, e tenho certeza de que estão como eles agora, e que estão dormindo: em algum lugar igual àquela porra de campo de futebol. — Ela olhou para o Diretor, corando. — Perdão, senhor.

     O Diretor afastou a desculpa dela com um gesto.

     —      Podemos fazer isso? — ela perguntou ao velho. — Podemos exterminá-los?

     Charles Ardal, que estava encerrando sua carreira como diretor interino da Academia Gaiten quando o mundo acabou, revelou seus dentes carcomidos em um sorriso que Clay daria muito para ter capturado em um desenho; não havia uma gota de piedade nele.

     —      Srta. Maxwell, nós podemos tentar — disse.

    

     Às quatro da manhã do dia seguinte, Tom McCourt sentava-se em uma mesa de piquenique entre as duas estufas da Academia Gaiten, que haviam sido bastante danificadas desde o Pulso. Os pés dele, agora usando os Reeboks que calçara ainda em Malden, estavam em cima de um dos bancos e a cabeça estava pousada nos braços, que descansavam sobre o joelho. O vento jogava seu cabelo primeiro para um lado, depois para o outro. Alice sentava-se na frente dele, com o queixo apoiado nas mãos e fachos de várias lanternas desenhando ângulos e sombras no seu rosto. A luz dura a deixava bonita, apesar do cansaço evidente; na idade dela, qualquer luz ainda era lisonjeira. O Diretor, sentado ao lado de Alice, parecia apenas exausto. Na estufa mais próxima, dois lampiões a gás flutuavam como espíritos inquietos.

     Os lampiões convergiram na saída da estufa. Clay e Jordan passaram pela porta, embora enormes buracos tivessem sido abertos nas paredes de vidro em ambos os lados. Pouco depois, Clay se sentou perto de Tom e Jordan retornou ao seu posto habitual ao lado do Diretor. O menino cheirava a gasolina e fertilizante; cheirava ainda mais a desânimo. Clay largou vários molhos de chave na mesa em meio às lanternas. Para ele, as chaves poderiam ficar ali até algum arqueólogo as descobrir quatro milênios mais tarde.

     —      Desculpem-me — disse baixinho o Diretor Ardal. — Parecia tão simples.

     —      Pois é — falou Clay.

     Parecia simples: bastava encher os pulverizadores da estufa com gasolina, colocar os pulverizadores na traseira de uma picape, dar a volta no estádio Tonney, encharcando os dois lados no caminho, e acender um fósforo. Ele pensou em falar para Ardal que a aventura de George W. Bush no Iraque também devia ter parecido simples — carregar os pulverizadores, acender um fósforo — e não era. Seria uma crueldade sem sentido.

     —      Tom? — perguntou Clay. — Você está bem? — Ele já tinha percebido que Tom não tinha grandes reservas de energia.

     —      Tudo bem, só estou cansado. — Ele ergueu a cabeça e sorriu para Clay. — Não estou acostumado com o turno da noite. O que a gente faz agora?

     —      Vamos para cama, eu acho — disse Clay. — Vai amanhecer daqui a uns 40 minutos. — O céu já começara a clarear ao leste.

     —      Não é justo — disse Alice. Ela esfregou com raiva as bochechas. — Não é justo, a gente se esforçou tanto.

     Eles tinham se esforçado muito, mas nada era fácil. Cada pequena (e, no fim das contas, inútil) vitória tinha sido o tipo de luta encarniçada que a mãe de Clay chamava de ralação bolchevique. Parte de Clay queria muito culpar o Diretor... e também a si mesmo, por não ter ouvido a idéia do pulverizador de Ardal com um pouco mais de malícia. Agora, parte dele achava que acatar a idéia de um professor de inglês de incendiar um campo de futebol era meio como levar uma faca para um tiroteio. Ainda assim... bem, parecera uma boa idéia.

     Isto é, até descobrirem que o tanque de gasolina da garagem da frota de veículos estava dentro de um barraco trancado. Eles passaram quase meia hora no escritório revirando à luz de lanternas um monte de chaves irritantemente sem etiquetas em um mural atrás da mesa do supervisor. Foi Jordan quem finalmente encontrou a chave do barraco.

     Então eles descobriram que "basta puxar um plugue" não era exatamente o caso. Havia uma tampa, e não um plugue. E, como o barraco em que o tanque estava, a tampa estava fechada à chave. Voltaram ao escritório, remexeram mais à luz de velas e finalmente encontraram uma chave que parecia servir. Foi Alice quem observou que, uma vez que a tampa estava no fundo do tanque, para garantir que a força da gravidade empurrasse a gasolina caso faltasse energia, eles iriam entornar tudo se não usassem uma mangueira ou um sifão. Passaram então uma hora procurando uma mangueira que servisse e não acharam nada que fosse remotamente parecido. Tom encontrou um pequeno funil, o que deixou todos levemente histéricos.

     E, uma vez que nenhuma das chaves das picapes estava etiquetada (pelo menos não de maneira que não-funcionários da frota de veículos pudessem entender), localizar o molho certo se tornou outro processo de tentativa e erro. Pelo menos isso foi mais rápido, pois havia apenas oito picapes estacionadas atrás da garagem.

     Por fim, as estufas. Lá eles encontraram apenas oito pulverizadores, e não uma dúzia, com capacidade não de 110 litros, mas de 35. Talvez até conseguissem enchê-los com a gasolina do tanque, mas o processo os deixaria encharcados e o resultado seria menos de 300 litros de gasolina útil. Foi a idéia de exterminar mil lunáticos dos celulares com menos de 300 litros de gasolina comum que levara Tom, Alice e o Diretor à mesa de piquenique. Clay e Jordan ainda rodaram mais um pouco, procurando por pulverizadores maiores, porém não encontraram nada.

     —      Mas encontramos alguns pulverizadores de jardim — disse Clay. — Sabem, aqueles que as pessoas costumavam chamar de bombas de Flit.

     —      E além disso — disse Jordan —, os pulverizadores grandes lá de dentro estão todos cheios de fertilizante, adubo ou algo do gênero. Primeiro teríamos que jogar tudo fora, e ainda precisaríamos de máscaras para não nos intoxicar, ou sei lá o quê.

     —      Que dureza — disse Alice, emburrada. Ela olhou para o tênis de bebê por um instante e então o enfiou no bolso.

     Jordan pegou as chaves que eles descobriram servir em uma das picapes.

     —      Podemos ir até o centro — disse ele. — Tem uma loja de ferragens lá. Eles devem ter pulverizadores.

     Tom balançou a cabeça.

     —      Fica a quase 2 quilômetros daqui e a pista principal está cheia de carros acidentados e veículos abandonados. Talvez a gente consiga desviar de alguns, mas não de todos. E dirigir pelos gramados está fora de questão. As casas são muito grudadas. As pessoas estão todas viajando a pé por um motivo. — Eles haviam visto algumas pessoas de bicicleta, mas não muitas. Mesmo as que tinham farol eram perigosas se você acelerasse o mínimo que fosse.

     —      Será que um caminhão pequeno conseguiria passar pelas ruas laterais? — perguntou o Diretor.

     Clay disse:

     —      Imagino que a gente possa explorar essa possibilidade na noite de amanhã. Poderíamos antes inspecionar um caminho a pé e voltar para pegar o caminhão. — Ele refletiu. — Provavelmente uma loja de ferragens também tem mangueiras de todo tipo.

     —      Você não me parece muito animado — disse Alice.

     Clay suspirou.

     —      Qualquer coisa pode bloquear uma rua pequena. Acabaríamos fazendo muito trabalho de burro de carga mesmo se tivermos mais sorte do que hoje à noite. Talvez a idéia pareça melhor depois que eu descansar um pouco.

     —      É claro que vai parecer — concordou o Diretor, mas não soou convincente. — Para todos nós.

     —      E o posto de gasolina em frente à escola? — perguntou Jordan, sem muita esperança.

     —      Que posto de gasolina? — perguntou Alice.

     —      Ele está falando do Citgo — respondeu o Diretor. — O mesmo problema, Jordan: muita gasolina nos tanques embaixo das bombas, mas nenhuma energia. E duvido que os contêineres deles possam encher mais do que algumas latas de gasolina de 8 ou 20 litros. O que eu acho mesmo é... — Mas o velho não disse o que achava mesmo. Ele parou de falar. — O que foi, Clay?

     Clay estava se lembrando do trio à frente deles, que passara mancando por aquele posto de gasolina, um dos homens com o braço em volta da cintura da mulher.

     —      Citgo da Academia Grove — disse ele. — É este o nome, não é?

     — É...

     —      Mas acho que eles não vendem apenas gasolina. — Ele não só achava, tinha certeza. Por conta dos dois caminhões parados em frente do posto. Ele os tinha visto e não achara nada de mais. Não naquela hora. Não tinha motivo.

     —      Não sei o que você... — o Diretor começou a falar e então se interrompeu. Os olhos dele encontraram os de Clay. Seus dentes carcomidos apareceram mais uma vez naquele sorriso excepcionalmente impiedoso. — Oh — ele disse. — Oh. Minha nossa. Minha nossa, é claro.

     Tom olhava de um para outro com uma perplexidade cada vez maior. Alice também. Jordan apenas aguardava.

     —      Vocês se importariam de dividir com a gente o que estão pensando? — perguntou Tom.

     Clay estava prestes a fazê-lo — ele já via claramente como iria funcionar, e era bom demais para não compartilhar com os demais — quando a música no estádio Tonney cessou. Ela não parou com um clique, como geralmente acontecia quando eles acordavam pela manhã; o som despencou, como se alguém tivesse chutado a fonte para o fundo de um poço de elevador.

     —      Eles acordaram cedo — disse Jordan em voz baixa.

     Tom agarrou o antebraço de Clay.

     —      Está diferente — disse ele. — E um daqueles malditos estoura tímpanos ainda está tocando... Dá para ouvir, bem baixinho.

     O vento estava forte, e Clay sabia que ele vinha da direção do campo de futebol por conta dos cheiros pungentes que trazia: comida em decomposição, carne em decomposição, centenas de corpos sem banho. Trazia também o som fantasmagórico de Lawrence Welk e os Champagne Music Makers tocando Baby Elephant Walk.

     Então, vindo de algum lugar a noroeste — talvez a 15 ou 50 qui-lômetros de distância, era difícil saber desde onde o vento conseguia carregá-lo —, veio um gemido espectral, de alguma forma parecido com o som de mariposas. Depois silêncio... silêncio... e, em seguida, as criaturas não-despertas e não-adormecidas no campo de futebol Tonney responderam da mesma forma. O gemido delas era muito maís alto, um grunhido espectral, surdo e retumbante que subia em direção ao céu escuro e estrelado.

     Alice cobriu a boca. O tênis de bebê saltou das suas mãos. Ela arregalou os olhos para ele. Jordan jogará os braços em volta da cintura do Diretor e enterrara o rosto nas costelas dp velho.

     —      Veja, Clay! — disse Tom. Ele se levantou e cambaleou até o gramado entre as duas estufas destruídas. — Está vendo? Meu Deus, está vendo?

     Um brilho laranja-avermelhado tingira o horizonte a noroeste, de onde o grunhido distante tinha surgido. Ficou mais forte à medida que ele observava; o vento trouxe aquele som terrível novamente... e mais uma vez foi respondido com um grunhido semelhante, porém muito mais alto, vindo do estádio Tonney.

     Alice se juntou a eles, seguida pelo Diretor, que andava com os braços em volta dos ombros de Jordan.

     —      O que fica para lá? — perguntou Clay, apontado em direção ao brilho. Ele já tinha começado a enfraquecer novamente.

     —      Pode ser Glen's Falls — respondeu o Diretor. — Ou talvez Littleton.

     —      Seja o que for, está rolando um churrasco — disse Tom. — Eles estão queimando. E o nosso bando sabe disso. Eles ouviram.

     —      Ou sentiram — disse Alice. Ela estremeceu, se empertigou e arreganhou os dentes. — Espero que sim!

     Como se para responder à afirmação de Alice, outro grunhido veio do estádio Tonney: várias vozes se ergueram em uníssono em um grito de solidariedade e, talvez, agonia compartilhada. O único mini system que restara — era o mestre, imaginava Clay, o que estava com um CD dentro — continuou tocando. Dez minutos depois, os demais voltaram a se unir a ele. A música — daquela vez, Close to You, dos Carpenters — aumentou da mesma forma que tinha despencado antes. Àquela altura, o Diretor Ardal, visivelmente mancando com sua bengala, já os havia levado de volta para a Casa Cheatham. Logo em seguida, a música parou de novo... mas daquela vez com um clique, como na manhã anterior. Ao longe, trazido pelo vento por Deus sabe quantos quilômetros, ouviu-se o som fraco de um tiro. Então um silêncio sinistro e absoluto caiu sobre o mundo, enquanto ele aguardava a noite dar lugar ao dia.

    

     À medida.qae os primeiros raios vermelhos do sol começavam a trespassar as árvores no horizonte ao leste, eles observaram os fonáticos deixarem mais uma vez o campo de futebol em formação de ordem-unida e seguirem para o centro de Gaiten e para os bairros mais próximos. Mudaram de direção no caminho, descendo rumo à Academy Avenue como se nada de inconveniente tivesse acontecido perto do fim da noite. Mas Clay não levou fé naquilo. Ele pensou que, se quisessem fazer o que tinham que fazer no posto Citgo, era melhor que fosse depressa, naquele dia mesmo. Sair à luz do sol poderia significar ter que atirar em alguns deles, mas enquanto estivessem se movendo em grupo apenas no começo e no fim do dia, ele estava disposto a correr o risco.

     Eles observaram o que Alice chamou de "o despertar dos mortos" da sala de jantar. Mais tarde, Tom e o Diretor foram para a cozinha. Clay os encontrou sentados à mesa em uma nesga de sol, bebendo café morno. Antes de Clay começar a explicar o que ele queria fazer mais tarde, Jordan tocou o pulso dele.

     —      Alguns dos lunáticos ainda estão aqui — disse ele. — Eu estudei com alguns deles.

     Tom falou:

     —      Achei que a essa altura eles estivessem fazendo compras no Kmart, procurando pelas ofertas especiais.

     —      É melhor dar uma conferida — disse Alice da porta. — Não sei bem se é outro... como é que vocês chamam?... outro passo evolutivo, mas pode ser que sim. Provavelmente.

     —      Com certeza é — disse Jordan em um tom sombrio.

     Os fonáticos que tinham ficado para trás — Clay achava que era um pelotão de cerca de cem deles — estavam retirando os mortos debaixo das arquibancadas. A princípio, simplesmente os carregaram até o estacionamento ao sul do campo e para trás de um prédio de tijolos longo e baixo. Voltaram de mãos vazias.

     —      Aquele prédio é a pista de atletismo coberta — o Diretor contou a eles. — É também onde guardamos o material esportivo. Tem um barranco atrás dele, imagino que estejam jogando os corpos pela beirada.

     —      Pode apostar que sim — disse Jordan. Ele parecia enojado. —Tem um pântano lá embaixo. Eles vão apodrecer.

     —      Eles já estavam apodrecendo de qualquer jeito, Jordan — disse Tom delicadamente.

     —      Eu sei — falou ele, parecendo mais enojado do que nunca —, mas vão apodrecer mais rápido ainda no sol. — Uma pausa. — Senhor?

     —      O que foi, Jordan?

     —      Eu vi Noah Chutsky. Do seu Clube de Leitura.

     O Diretor deu tapinhas no ombro do menino. Estava muito pálido.

     —      Esqueça.

     —      Com prazer — sussurrou Jordan. — Ele tirou uma foto minha uma vez. Com o... com o senhor-sabe-o-quê dele.

     Então, um novo desdobramento. Duas dúzias de abelhas operárias se destacaram do grupo principal sem parar para conversa e foram em direção às estufas destruídas, movendo-se em formação de V, que fazia os observadores se lembrarem de gansos em migração. O que Jordan identificou como Noah Chutsky estava entre eles. O resto do pelotão de remoção de corpos os observou partirem por um instante e então voltou a descer as rampas, três ombro a ombro, e continuaram resgatando corpos debaixo das arquibancadas.

     Vinte minutos depois, o grupo da estufa retornou, andando em fila única. Alguns ainda estavam com as mãos vazias, mas a maioria adquirira carrinhos de mão do tipo usado para transportar sacas de cal ou fertilizante. Logo, os fonáticos estavam usando os carrinhos para se livrarem dos corpos, e o trabalho andou mais rápido.

     —      É um passo evolutivo, com certeza — disse Tom.

     —      Mais que um — acrescentou o Diretor. — Limpar a casa; usar ferramentas para fazer o serviço.

     Clay falou:

     —      Não estou gostando disso.

     Jordan ergueu os olhos para ele, o rosto pálido, cansado e muito mais velho do que devia.

     —      Bem-vindo ao clube — disse.

    

     Eles dormiram até úma da tarde. Depois de confirmarem que o destacamento dos corpos havia terminado o trabalho e ido ao encontro dos demais catadores, desceram até os pilares de pedra que marcavam a entrada da Academia Gaiten. Alice zombara da idéia de Clay de que ele e Tom deveriam fazer aquilo sozinhos.

     —      Podem ir tirando essa idéia de Batman e Robin da cabeça — disse ela.

     —      Que pena, sempre quis ser o Menino Prodígio — disse Tom, ceceando um pouco, mas quando ela o encarou com um olhar sisudo, agarrando o tênis (que já estava ficando meio surrado) com uma das mãos, ele ficou sério. — Desculpe.

     —      Vocês podem ir até o posto de gasolina sozinhos — disse ela. — Até aí, tudo bem. Mas o restante de nós vai ficar vigiando do outro lado da rua.

     O Diretor sugeriu que Jordan ficasse na Casa. Antes de o menino poder responder — e ele parecia prestes a fazê-lo com fervor —, Alice perguntou:

     —      Como é a sua vista, Jordan?

     O menino abriu um sorriso para ela, mais uma vez acompanhado daquele olhar um tanto brilhante.

     —      Boa. Ótima.

     —      E você joga bastante videogame? Daqueles de tiro?

     —      Claro, de montão.

     Ela entregou sua pistola para o menino. Clay notou que ele estremeceu um pouco, como um diapasão, quando seus dedos se tocaram.

     —      Se pedir para você apontar e atirar, ou se o Diretor Ardal pedir, você atiraria?

     —      Claro.

     Alice olhou para Ardal com uma mistura de rebeldia e pedido de desculpas.

     —      Precisamos da ajuda de todos.

     O Diretor aceitara aquilo, e lá estavam eles e lá estava o Citgo da Academia Grove, do outro lado da rua e só um pouquinho mais perto da cidade. De onde estavam, dava para ler a outra placa, um pouco menor: GÁS LP DA ACADEMIA. O único carro parado em frente às bombas, com a porta do motorista aberta, já tinha uma aparência empoeirada, de algo há muito abandonado. A janela panorâmica de vidro do posto estava quebrada. Mais à direita, estacionado na sombra do que só podia ser um dos últimos olmos que restaram depois da praga no norte da Nova Inglaterra, havia dois caminhões no formato de botijões de gás gigantes. As seguintes palavras estavam escritas na lateral de ambos: GÁS LP DA ACADEMIA e Servindo Southern New Hampshire desde 1982.

     Não havia sinal de fonáticos catadores naquela parte da Academy Avenue e, embora a maioria das casas que Clay conseguia ver estivesse com sapatos na frente, muitas estavam sem. O fluxo de refugiados parecia estar diminuindo. Cedo demais para ter certeza, ele advertiu a si mesmo.

     —      Senhor? Clay? O que é aquilo? — perguntou Jordan. Ele apontava para o meio da avenida, que obviamente ainda era a rota 102, embora aquilo fosse fácil de esquecer naquela tarde ensolarada e silenciosa, em que os sons mais próximos eram os de pássaros e do farfalhar do vento nas folhas. Havia algo escrito em giz rosa choque no asfalto, mas, de onde estavam, Clay não conseguia ler. Ele balançou a cabeça.

     —      Você está pronto? — ele perguntou a Tom.

     —      Claro — respondeu ele. Tom estava tentando soar casual, mas uma pulsação batia rapidamente do lado do seu pescoço não barbeado.

     — Você Batman, eu Menino Prodígio.

     Eles atravessaram a rua a passos rápidos, com os revólveres em punho. Clay deixara a arma automática russa com Alice, mais ou menos convencido de que ela a faria rodar como um peão se a garota tivesse que usá-la.

     A mensagem rabiscada em giz rosa no asfalto era

     KASHWAK=SEM-FO

     —      Isso significa alguma coisa para você? — perguntou Tom.

     Clay balançou a cabeça. Não significava e, naquele momento, ele não dava a mínima. Tudo o que queria era sair do meio da Academy Avenue, onde se sentia tão exposto quanto uma formiga em uma vasilha de arroz. Ocorreu-lhe, subitamente e não pela primeira vez, que ele venderia a alma só para saber que o filho estava bem, em um lugar onde as pessoas não estavam colocando armas nas mãos de crianças que jogavam bem videogame. Era estranho. Clay imaginara que tinha definido suas prioridades, que estava lidando com seu baralho pessoal carta a carta, mas então surgiam esses pensamentos, cada qual tão fresco e doloroso quanto uma dor não superada.

     Saia daqui Johnny. Não é aqui que você deve estar. Esse não é o seu lugar nem a sua hora.

     Os caminhões de gás estavam vazios e trancados, mas isto não foi problema; naquele dia, a sorte estava do lado deles. As chaves estavam penduradas em um mural no escritório do posto, sob uma placa com os dizeres: PROIBIDO REBOQUE ENTRE MEIA-NOITE E 6 DA MANHÃ SEM EXCEÇÕES. Um botijão de gás em miniatura pendia de cada chave. No meio do caminho de volta para a porta, Tom tocou o ombro de Clay.

     Dois fonáticos subiam pelo meio da rua, lado a lado, mas de maneira nenhuma em marcha. Um estava comendo uma caixa de bolinhos Ana Maria; o rosto dele estava coberto de creme, farelos e cobertura. O outro, uma mulher, segurava diante de si um livro de deixar na mesa da sala. Para Clay, ela parecia uma corista segurando um hinário gigante. A capa do livro parecia ter a foto de um collie saltando por dentro de um balanço de pneu. O fato de a mulher estar segurando o livro de cabeça para baixo aliviou um pouco Clay. As expressões vazias e perplexas em seus rostos — e o fato de estarem andando sozinhos, o que significava que meio-dia ainda era uma hora em que eles não se agrupavam — o aliviaram mais ainda.

     Porém, ele não estava gostando daquele livro.

     Não, não estava gostando nem um pouco daquele livro.

     Eles passaram pelos pilares de pedra e Clay podia ver Alice, Jordan e o Diretor à espreita, de olhos arregalados. Os dois lunáticos andaram por cima da mensagem em código escrita a giz na rua — KASHWAK=SEM-FO — e a mulher tentou pegar os bolinhos do seu companheiro. O homem afastou a caixa dela. A mulher atirou o livro longe (ele aterrissou com o lado direito para cima, e Clay viu que era Os 100 Cães mais Amados do Mundo) e tentou de novo. O homem a esbofeteou com tanta força que o cabelo sujo dela voou, o som muito alto no silêncio do dia. Eles não pararaín de andar um instante. A mulher produziu um som:

     —      Aw!

     O homem respondeu (Clay achava que era uma resposta):

     —      Eeeen!

     A mulher tentou pegar a caixa de bolinhos Ana Maria. Àquela altura, eles passavam pelo Citgo. O homem bateu no pescoço daquela vez, descrevendo um arco com a mão espalmada, e então enfiou a mão na caixa para pegar outro bolinho. A mulher parou. Olhou para ele. E, logo em seguida, o homem parou. Afastara-se um pouco, de modo que estava praticamente de costas para ela.

     Clay sentiu algo no silêncio aquecido pelo sol do escritório do posto de gasolina. Não, ele pensou, não no escritório, em mim. Falta de ar, como quando você sobe um lance de escadas muito depressa.

     Só que talvez também fosse no escritório, porque...

     Tom ficou na ponta dos pés e sussurrou no ouvido dele:

     —      Você sentiu isso?

     Clay assentiu e apontou para a mesa. O ar estava parado, eles não sentiam vento nenhum, mas os papéis em cima da mesa estavam tremulando. E, no cinzeiro, as cinzas tinham começado a rodopiar lentamente, como água descendo pelo ralo de uma banheira. Havia duas guimbas nele — não, três —, e as cinzas em movimento pareciam empurrá-las para o centro.

     O homem se virou para a mulher. Olhou para ela. Ela devolveu o olhar. Eles ficaram se olhando. Clay não conseguiu detectar nenhuma expressão no rosto deles, mas sentia os cabelos do braço se eriçarem e ouviu algo tilintar baixinho. Eram as chaves no mural debaixo do cartaz que dizia PROIBIDO REBOQUE. Elas também estavam vibrando; batendo discretamente umas contra as outras.

     —      Awl — disse a mulher. Ela estendeu a mão.

     —      Eeen! — disse o homem. Ele vestia os restos desbotados de um terno. Calçava sapatos pretos sem brilho. Seis dias atrás, talvez fosse um gerente intermediário, um vendedor ou um gerente de condomínio. Agora, a única propriedade com que se importava era a sua caixa de bolinhos Ana Maria. Ele a apertava contra o peito, mastigando com a boca melada.

     —      Awl — insistiu a mulher. Ela estendeu as duas mãos em vez de apenas uma, naquele gesto imemorial que significa me dá, e as chaves tilintaram mais alto. Acima da cabeça deles, houve um bztk à medida que uma lâmpada fluorescente para a qual não havia energia piscou e voltou a apagar. A mangueira caiu da bomba de gás do meio e bateu na ilha de concreto com um barulho de metal morto.

     —      Aw — disse o homem. Os ombros dele se curvaram e toda a tensão o abandonou. A tensão abandonou o ar. As chaves no mural silenciaram. As cinzas deram uma última volta em seu relicário de metal talhado e pararam. Era como se nada tivesse acontecido, pensou Clay, exceto pela mangueira caída lá fora e o pequeno bolo de guimbas de cigarro no cinzeiro em cima da mesa.

     —      Aw — disse a mulher. Ainda estava com as mãos estendidas.

     O homem andou até o raio de alcance delas. Ela pegou um bolinho em cada mão e começou a comê-los, com embalagem e tudo. Clay ficou mais uma vez aliviado, mas só um pouco. Eles voltaram a se arrastar lentamente em direção à cidade, a mulher parando para cuspir um pedaço de celofane lambuzado de recheio. Não demonstrou interesse no livro Os 100 Cães mais Amados do Mundo.

     —      O que foi aquilo? — perguntou Tom em uma voz baixa e tremida quando os dois estavam quase fora de vista.

     —      Não sei, mas não estou gostando — disse Clay. Ele estava com as chaves dos caminhões de gás. Entregou um molho para Tom.

     — Você sabe dirigir um carro com câmbio manual?

     —      Eu aprendi a dirigir em um. Você sabe?

     Clay sorriu pacientemente.

     —      Eu sou hétero, Tom. Héteros sabem dirigir carros com câmbio manual sem precisar aprender. É uma coisa instintiva.

     —      Muito engraçado. — Tom não estava prestando muita atenção. Procurava a dupla que tinha ido embora e a pulsação do lado do pescoço dele batia mais rápido do que nunca. — Fim do mundo, temporada de caça às bichas, por que não?

     —      Isso mesmo. Vai ser temporada de caça aos héteros também, se eles conseguirem controlar aquela merda. Vamos resolver isso logo.

     Ele começou a sair pela porta, mas Tom o segurou por um instante.   

     —      Ouça. Talvez os outros tenham sentido aquele negócio do lado de lá, talvez não. Se não sentiram, talvez a gente não deva falar nada por enquanto. O que você acha?

     Clay pensou em como Jordan não deixava o Diretor sair de vista e como Alice sempre mantinha aquele pequeno tênis sinistro ao alcance da mão. Pensou nas olheiras deles e então sobre o que eles planejavam fazer naquela noite. Armagedon talvez fosse uma palavra forte demais, mas nem tanto. O que quer que fossem agora, os fonáticos já tinham sido seres humanos, e queimar mil deles vivos já era um belo fardo. Até pensar naquilo feria-lhe a imaginação.

     —      Por mim, tudo bem — disse ele. — Suba aquela colina em marcha lenta, certo?

     —      Na mais lenta que eu encontrar — disse Tom. Estavam seguindo em direção aos enormes caminhões em forma de garrafa. — Quantas marchas você acha que um caminhão desses tem?

     —      A primeira já deve dar conta do recado — disse Clay.

     —      Pelo jeito que estão estacionados, acho que vamos ter que começar dando uma ré.

     —      Que se foda — disse Clay. — Pra que serve o fim do mundo se você não pode passar por cima de uma porra de uma cerca?

     E foi isso que eles fizeram.

    

     A Ladeira da Academia era como o Diretor Ardal e seu último aluno chamavam a longa e sinuosa colina que descia do campus até a estrada principal. A grama ainda era de um verde brilhante e estava apenas começando a ser coberta pelas folhas que caíam. Quando a tarde deu lugar à noitinha e a Ladeira da Academia ainda estava vazia — nenhum sinal de fonáticos voltando —, Alice começou a andar pelo hall principal da Casa Cheatham, parando a cada volta para olhar pela janela de sacada da sala de estar. Ela oferecia uma boa vista da ladeira, dos dois principais auditórios e do estádio Tonney. Estava novamente com o tênis amarrado ao pulso.

     Os dernais estavam na cozinha, bebericando latas de Coca-Cola.

     —      Eles não vão voltar — Alice falou para eles ao terminar uma de suas voltas. — Ficaram sabendo do nosso plano, leram nossas mentes ou algo do gênero, e não vão voltar.

     Mais duas voltas no longo hall do andar de baixo, ambas com uma pausa para olhar pela janela grande da sala de estar, e então voltou a olhar para dentro da cozinha.

     —      Ou talvez seja uma migração generalizada, vocês já pensaram nisso? Talvez eles vão para o sul no inverno como aqueles malditos tordos.

     Ela foi embora sem esperar resposta. Subindo do hall e descendo para o hall. Subindo do hall e descendo para o hall.

     —      Ela parece o capitão Ahab atrás de Moby — observou o Diretor.

     —      O Eminem pode ser um idiota, mas ele tinha razão quanto a esse cara — disse Tom, emburrado.

     —      Desculpa, não entendi, Tom — disse o Diretor.

     Tom gesticulou, encerrando o assunto.

     Jordan olhou para o relógio.

     —      A essa hora, ontem à noite, ainda faltava quase meia hora para eles voltarem — disse ele. — Se vocês quiserem, posso descer e falar isso para ela.

     —      Não acho que vá adiantar muito — disse Clay. — É uma coisa que ela precisa fazer, só isso.

     —      Ela está bem apavorada, não é, senhor?

     —      E você não está, Jordan?

     —      Estou — disse Jordan baixinho. — Estou superapavorado.

     Na próxima vez que Alice apareceu na cozinha, ela disse:

     —      Talvez seja melhor eles não voltarem. Não sei se estão reiniciando o cérebro de algum outro jeito, mas certamente tem alguma macumba braba rolando. Senti isso com aqueles dois hoje à tarde. A mulher com o livro e o homem com os bolinhos Ana Maria? — Ela balançou a cabeça. — Macumba braba.

     Ela voltou correndo para a patrulha do hall antes que alguém pudesse responder, o tênis balançando no pulso.

     O Diretor olhou para Jordan.

     —      Você sentiu alguma coisa, filho?

     Jordan hesitou e então disse:

     —      Eu senti alguma coisa. O cabelo da minha nuca tentou se levantar.

     O Diretor desviou o olhar para os homens do outro lado da mesa.

     —      E quanto a vocês dois? Vocês estavam muito mais perto.

     Alice os salvou da obrigação de responder. Ela entrou correndo na cozinha, as faces coradas, os olhos esbugalhados, as solas do sapato cantando nos ladrilhos.

     —      Eles estão vindo — disse ela.

    

     Da janela da sacada os quatro observaram os fonáticos subirem a Ladeira da Academia em fileiras convergentes, as sombras longas formando um catavento gigante na grama verde. Ao se aproximarem do que Jordan e o Diretor chamavam de arco Tonney, as fileiras se juntaram e o catavento pareceu rodar sob a luz dourada do fim do dia, ao passo que se contraía e se solidificava.

     Alice não conseguia mais deixar de segurar o tênis. Ela o arrancara do pulso e o apertava compulsivamente.

     —      Eles vão ver o que fizemos e dar a volta — disse ela, falando baixo e depressa. — Eles ficaram espertos o bastante para isso; se voltaram a apanhar livros, devem ter ficado.

     —      Veremos — disse Clay. Ele tinha quase certeza de que os lunáticos dos celulares entrariam no estádio Tonney, mesmo se o que vissem perturbasse sua estranha mente coletiva; logo iria escurecer e eles não teriam nenhum outro lugar para ir. Um pedaço de uma canção de ninar que a mãe de Clay costumava cantar para ele passou-lhe pela cabeça: Homenzinho, você teve um dia cheio.

     —      Espero que eles entrem e que fiquem lá dentro — ela disse, mais baixo do que nunca. — Parece que eu vou explodir. — Ela deu uma risadinha desvairada. — Só que são eles que têm que explodir, não é? Eles. — Tom se virou para olhar para Alice e ela disse: — Estou bem. Estou bem, vou ficar quieta.

     —      Eu só ia dizer que o que tiver que ser, será — disse ele.

     —      Lengalenga New Age. Parece até o meu pai. O "Rei das Molduras".

     Uma lágrima desceu por uma de suas bochechas e ela a limpou impacientemente com a base da mão.

     —      Acalme-se, Alice. Fique olhando.

     —      Vou tentar, certo? Vou tentar.

     —      E largue esse tênis — disse Jordan, em um tom que, para ele, era de irritação. — Esse nhec, nhec está me tirando do sério.

     Ela baixou os olhos para o tênis, como se estivesse surpresa, e então o colocou em volta do pulso, amarrando-o novamente. Eles observaram os fonáticos convergirem no arco Tonney e passarem por baixo dele evitando empurra-empurra e tumulto de um jeito que nenhuma platéia que viesse para a partida de futebol do Fim de Semana dos Alumni conseguiria igualar — Clay estava certo disso. Observaram os lunáticos voltarem a se espalhar mais adiante, atravessando o pátio e descendo as rampas em fila. Aguardaram aquela marcha diminuir de ritmo e parar, mas isso não aconteceu. Os retardatários — a maioria ferida e se ajudando mutuamente, mais ainda assim andando em grupos fechados — entraram bem antes de o sol avermelhado passar pelos dormitórios a oeste do campus da Academia Gaiten. Eles haviam retornado mais uma vez, como pombos correios para seus ninhos ou como andorinhas para Capistrano. Menos de cinco minutos depois de a estrela vespertina surgir no céu que escurecia, Dean Martin começou a cantar Everybody Loves Somebody Sometime.

     —      Eu me preocupei à toa, não foi? — disse Alice. — Às vezes eu sou uma idiota. É o que o meu pai diz.

     —      Não — o Diretor disse a ela. — Todos os idiotas tinham celulares, querida. É por isso que eles estão lá fora e você está aqui, conosco.

     Tom falou:

     —      Fico imaginando se Rafe ainda está bem.

     —      Eu fico imaginando se Johnny está — disse Clay. — Johnny e Sharon.

    

     Às 22h daquela noite de ventania de outono, sob uma lua que entrava em seu último quarto, Clay e Tom estavam parados no nicho da banda no lado do time da casa do campo de futebol Tonney. Logo à frente deles, havia uma barreira de concreto que ia até a cintura e tinha sido bastante acolchoada na lateral do campo. Na lateral, havia alguns suportes de partitura enferrujados e um tapete de lixo que chegava aos calcanhares; o vento jogara sacos rasgados e pedaços de papel para lá, e lá eles ficaram. Atrás e acima deles, na altura das roletas, Alice e Jordan ladeavam o Diretor, um vulto alto apoiado na haste fina da bengala.

     A voz de Debbie Boone rolava pelo campo em ondas amplificadas de uma imponência cômica. Normalmente, depois dela viria Lee Ann Womack cantando Hope You Dance, voltando em seguida a Lawrence Welk e os Champagne Music Makers, mas talvez não naquela noite.

     O vento era refrescante. Trazia o cheiro dos corpos em decomposição do pântano atrás do prédio da pista de atletismo e o aroma de sujeira e suor das criaturas vivas empilhadas no campo em frente ao nicho da banda. Se é que se pode chamar isso de vida, pensou Clay, e abriu um pequeno e amargo sorriso interno. A racionalização é um grande esporte humano, talvez o maior deles, mas ele não queria se enganar naquela noite: é claro que eles chamavam aquilo de vida. Independentemente do que fossem ou estivessem se tornando, chamavam aquilo de vida do mesmo jeito que ele chamava a sua.

     —      O que você está esperando? — murmurou Tom.

     —      Nada — Clay murmurou de volta. — É só que... nada.

     Do coldre que Alice encontrara no porão de Nickerson, Clay sacou o antiquado Colt calibre 45 de Beth Nickerson, que estava mais uma vez totalmente carregado. Alice oferecera a ele o rifle automático — que até então não haviam nem mesmo testado —, mas Clay recusara, dizendo que se o revólver não desse conta do recado, provavelmente nada daria.

     —      Não sei se a automática não seria melhor, já que ela dispara trinta ou quarenta balas por segundo — disse ela. — Você poderia transformar aqueles caminhões em raladores de queijo.

     Ele concordara que era possível, mas lembrou Alice de que o objetivo naquela noite não era destruição per se, e sim combustão. Então explicou a natureza altamente ilegal da munição que Arnie Nickerson arranjara para a esposa. Balas de ponta oca calibre 45. Que no passado eram chamadas de balas dundum.

     —      Ok, mas se não funcionar, você pode tentar o Sr. Ligeirinho — disse ela. — A não ser que os caras lá fora decidam, você sabe... — Ela não chegou a usar a palavra atacar, mas imitou duas perninhas andando com os dedos da mão que não estava segurando o tênis. — Nesse caso, sebo nas canelas.

     O ventou arrancou uma bandeirola esfarrapada do Fim de Semana dos Alumni do placar e a fez dançar sobre os dorminhocos amontoados. Em volta do campo, parecendo flutuar no escuro, estavam os olhos vermelhos dos mini systems, todos tocando sem precisar de CDs, menos um. A bandeira ficou agarrada no pára-choque de um dos caminhões de gás, balançou ao vento por alguns segundos e então se soltou e saiu voando noite adentro. Os caminhões estavam estacionados lado a lado no meio do campo, erguendo-se da massa de formas comprimidas como estranhas plataformas de metal. Os fonáticos dormiam debaixo deles e tão próximos dos veículos que alguns estavam grudados nas rodas. Clay pensou novamente nos pombos selvagens e em como os caçadores do século XIX espalharam os miolos deles pelo chão. Pelo começo do século XX, toda a espécie já estava extinta... mas é claro que eram apenas aves, com pequenos cérebros de pássaros, incapazes de reiniciar.

     —      Clay? — perguntou Tom baixinho. — Tem certeza de que quer fazer isso?

     —      Não — respondeu Clay. Agora que estava diante daquela situação, havia muitas perguntas sem respostas. O que fariam se aquilo falhasse era uma delas. Porque os pombos foram incapazes de se vingar. Aquelas coisas lá fora, por outro lado... —     Mas vou fazer.

     —      Então faça — disse Tom. — Porque, além do mais, You Light Up My Fire é chata pra diabo.

     Clay ergueu a calibre 45 e segurou firme o pulso direito com a mão esquerda. Apontou a mira para o tanque do caminhão à esquerda. Atiraria duas vezes naquele e duas vezes no outro. Assim, sobraria mais uma bala para cada, se necessário. Se aquilo não desse certo, ele poderia experimentar a arma automática que Alice passara a chamar de Sr. Ligeirinho.

     —      Abaixe-se caso o fogo venha pra cima da gente — ele disse a Tom.

     —      Não se preocupe — respondeu ele. Fazia uma careta, antecipando o estrondo da arma e o que quer que viesse em seguida.

     Debby Boone estava chegando a um grand finale. E de repente passou a ser muito importante para Clay chegar primeiro. Se você errar a essa distância, é um retardado, ele pensou, e apertou o gatilho.

     Não houve chance para um segundo tiro e tampouco necessidade. Uma flor vermelho vivo se abriu no meio do tanque e a luz dela revelou a Clay uma rachadura profunda na superfície antes lisa de metal. O inferno parecia estar lá dentro, e crescendo. Então a flor se transformou em um rio, o vermelho virando laranja branco.

     —      Abaixe-se!— gritou ele e puxou o ombro de Tom. Caiu em cima do homem menor no instante em que a noite se tornou um deserto ao meio-dia. Houve um rugido sibilante e enorme seguido de um BANG dilacerador que Clay sentiu em cada osso do corpo. Estilhaços voaram por sobre a cabeça deles. Ele achou que tinha ouvido Tom gritar, mas não tinha certeza, pois houve outro daqueles rugidos sibilantes e de repente o ar estava ficando cada vez mais quente.

     Ele agarrou Tom meio pelo cangote e meio pelo colarinho da camisa e começou a arrastá-lo para trás até a rampa de concreto que dava nas roletas, os olhos praticamente fechados contra o brilho descomunal que jorrava do centro do campo de futebol. Algo enorme caiu nas arquibancadas extras à direita. Ele achou que talvez fosse um bloco de motor. Tinha quase certeza de que os pedacinhos retorcidos de metal sob os seus pés eram o que restava dos suportes de partitura da Academia Gaiten.

     Tom gritava e seus óculos estavam tortos, mas se encontrava de pé e parecia ileso. Os dois subiram correndo a rampa como fugitivos de Gomorra. Clay podia ver as sombras deles, longas e finas como patas de afanha, e notou que objetos caíam por todo lado: braços, pernas, um pedaço de pára-choque, a cabeça de uma mulher com o cabelo em chamas. De trás deles, veio um segundo BANG estrondoso — ou talvez ura terceiro — e daquela vez foi ele quem gritou. Clay tropeçou nos próprios pés e saiu aos trambolhões. O mundo inteiro estava rapidamente gerando calor e uma luz incrível: era como se ele estivesse na ilha de som particular de Deus.

     Não sabíamos o que estávamos fazendo, pensou ele, olhando para uma barra de chiclete, uma caixa de Júnior Mints amassada e um boné azul da Pepsi. Não tínhamos idéia do que estávamos fazendo e agora vamos pagar com a vida.

     —      Levante-se! — Era Tom, e Clay achou que ele estava gritando, mas a voz parecia vir de quilômetros de distância. Sentiu as mãos delicadas e de dedos longos de Tom puxando-o pelo braço. E então Alice estava lá também. Ela puxava o outro braço e brilhava sob a luz. Clay conseguia ver o tênis amarrado no pulso dela dançando e indo pra lá e pra cá. Ela estava coberta de sangue, retalhos de tecido e pedacinhos de carne fumegante.

     Clay se levantou com esforço, voltou a se apoiar em um joelho e Alice o ergueu novamente à força. Atrás deles, o gás rugia como um dragão. E então Jordan chegou, com o Diretor cambaleando no seu encalço, com o rosto rosado e cada ruga pingando suor.

     —      Não, Jordan, não, só tire o Diretor do caminho! — berrou Tom, e Jordan puxou o velho de lado para eles, agarrando-o com força pela cintura quando ele vacilou. Um tórax em chamas com um piercing no umbigo aterrissou aos pés de Alice e ela o chutou para fora da rampa. Cinco anos de futebol, Clay se lembrou dela falando. O pedaço incandescente de uma camisa caiu na nuca de Alice e Clay o jogou longe antes que pudesse queimar o cabelo dela.

     No topo da rampa, um pneu de caminhão em chamas ainda preso à metade de um eixo partido estava apoiado na última fileira de cadeiras especiais. Se tivesse caído no meio do caminho, talvez eles tivessem virado churrasco — no caso do Diretor, era quase certo que sim. Do jeito que estava, conseguiram passar por ele, prendendo a respiração contra as ondas de fumaça oleosa. Logo depois, eles estavam passando por baixo da roleta, Jordan de um lado e o Diretor e Clay do outro, os dois quase carregando o velho. Clay levou duas porradas da bengala do velho na cabeça, mas trinta segundos depois de passarem pelo pneu estavam parados debaixo do arco Tonney, olhando para a imensa coluna de fogo que se erguia sobre as arquibancadas e a tribuna de imprensa no centro com expressões idênticas de estupefata incredulidade.

     Um retalho em chamas de uma bandeirola flutuou até o chão perto da bilheteria principal, deixando um pequeno rastro de faíscas antes de se apagar.

     —      Você sabia que isso ia acontecer? — perguntou Tom. O rosto dele estava branco em volta dos olhos, vermelho na testa e nas bochechas. Metade do bigode parecia ter sido arrancada pelo fogo. Clay conseguia ouvir a voz dele, mas soava distante. Tudo soava distante.

     Era como se estivesse com as orelhas cheias de bolas de algodão, ou com os tampões de ouvido que Arnie, o marido de Beth Nickerson, sem dúvida a obrigara a usar quando a levava ao tiro ao alvo favorito do casal. Onde provavelmente atiravam com os celulares presos em um lado da cintura e os bipes no outro.

     —      Você sabia?— Tom tentou chacoalhá-lo, conseguiu pegar só um pedaço da camisa dele, rasgando a frente toda.

     —      Claro que não, porra, está maluco? — A voz de Clay estava mais do que rouca, mais do que seca; parecia assada. — Você acha que eu teria ido pra lá com um revólver se soubesse? Se não fosse por aquela barreira de concreto, teríamos sido cortados ao meio. Ou vaporizados.

     Incrivelmente, Tom começou a sorrir.

     —      Rasguei sua camisa, Batman.

     Clay teve vontade de arrancar a cabeça dele. Também teve vontade de abraçá-lo e beijá-lo por ele ainda estar vivo.

     —      Quero voltar para a Casa — disse Jordan. O medo na voz dele era inconfundível.

     —      Vamos por favor nos deslocar para uma distância segura —concordou o Diretor. Ele tremia muito com os olhos fixos no inferno que se erguia acima dos arcos e das arquibancadas. — Graças a Deus está ventando na direção da Ladeira da Academia.

     —      O senhor consegue andar? — perguntou Tom.

     —      Sim, obrigado. Se Jordan me ajudar, tenho certeza de que consigo andar até a Casa.

     —      Acabamos com eles — disse Alice. Ela estava limpando respingos de tripas do rosto quase distraidamente, deixando manchas de sangue. Seus olhos não pareciam com nada que Clay tivesse visto na vida, exceto em algumas fotografias e na arte de algumas revistas em quadrinhos inspiradas das décadas de 1950 e 1960. Ele se lembrou da vez em que foi a uma convenção de quadrinhos quando era apenas uma criança e ouviu Wallace Wood falar sobre suas tentativas de desenhar algo que chamou de Olhar do Pânico. Agora Clay via aquele olhar no rosto de uma colegial suburbana de 15 anos.

     —      Vamos, Alice — disse ele. — Temos que voltar para a Casa e juntar nossas coisas. Temos que dar o fora daqui.

     Logo depois que as palavras saíram da boca dele, Clay teve que dizê-las novamente e ver se elas soavam verdadeiras. Da segunda vez, soaram mais do que isso; soaram apavoradas.

     Talvez Alice não as tenha escutado. Ela parecia exultante. Inflada de triunfo. Farta dele, como uma criança que comeu doces do Dia das Bruxas demais no caminho de casa. As pupilas dos seus olhos estavam cobertas pelo fogo.

     —      Nada poderia sobreviver a isso.

     Tom agarrou o braço de Clay. Doeu do jeito que uma queimadura de sol doeria.

     —      Qual é o problema?

     —      Acho que cometemos um erro — disse Clay.

     —      Igual no posto de gasolina? — perguntou Tom. Atrás dos óculos tortos, o olhar dele era penetrante. — Quando o homem e a mulher estavam brigando por conta daqueles malditos bolinhos...

     —      Não, só estou achando que cometemos um erro — disse Clay. Na verdade, era mais do que isso. Ele sabia que tinham cometido um erro. — Vamos, temos que partir hoje à noite.

     —      Se você diz, tudo bem — disse Tom. — Venha, Alice.

     Ela desceu junto com eles um pedaço do caminho em direção à Casa, onde haviam deixado dois lampiões a gás acesos na grande janela da sacada, e então se virou para olhar mais uma vez. Àquela altura, a tribuna de imprensa estava em chamas, e as arquibancas também. As estrelas sobre o campo de futebol tinham desaparecido; mesmo a lua não passava de um fantasma dançando freneticamente na fumaça quente que encimava aquele jato de gás feroz.

     —      Eles estão mortos, estão aniquilados, viraram churrasco — disse ela. — Queimem, baby, quei...

      Foi então que ouviram o grito. Porém, não vinha de Glen's Falls ou Littleton a 15 quilômetros dali. Também não tinha nada de espectral ou fantasmagórico. Era um grito de agonia, o grito de algo — uma única entidade, e consciente, Clay tinha certeza — que acordara de um sono profundo e descobriu que estava sendo queimado vivo.

     Alice soltou um berro e cobriu os ouvidos, seus olhos se esbugalhando à luz do fogo.

     —      Vamos voltar atrás! — disse Jordan, agarrando o pulso do Diretor. — Senhor, temos que voltar atrás!

     —      Tarde demais, Jordan — falou Ardal.

     Uma hora mais tarde, as sacolas recostadas na porta da frente da Casa Cheatham estavam um pouco mais gordas. Havia algumas camisas em cada, sacos de granola, caixinhas de suco e pacotes de Slim Jims, além de pilhas e lanternas extras. Clay azucrinou Tom e Alice para que juntassem as coisas o mais rápido possível, e agora era ele quem corria para a janela grande da sala para espiar.

     O jato de gás no estádio finalmente começava a queimar com menos intensidade, mas as arquibancadas ainda estavam em chamas, assim como a tribuna de imprensa. O fogo chegara até o próprio arco, que brilhava na noite como uma ferradura em uma forja. Nada que estivesse naquele campo poderia estar vivo ainda — Alice tinha razão quanto a isso, sem dúvida —, mas, no caminho de volta para a Casa (o Diretor trôpego como um velho bêbado, apesar dos esforços dos demais para ampará-lo), eles escutaram duas vezes o vento carregar aqueles gritos fantasmagóricos de outros bandos. Clay disse a si mesmo que não ouvia raiva neles, que era só imaginação — sua imaginação cheia de culpa, sua imaginação de assassino, sua imaginação de assassino em massa —, mas não conseguiu se convencer.

     Foi um erro, mas o que mais poderiam ter feito? Ele e Tom tinham sentido os lunáticos acumularem energia naquela mesma tarde, tinham visto, e foram apenas dois deles. Como poderiam ter deixado aquilo continuar? Deixado aquilo crescer?

     —      Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come — disse ele baixinho e deu as costas para a janela. Não saberia dizer quanto tempo ficou olhando para o estádio em chamas e resistiu à tentação de consultar o relógio. Seria fácil deixar o rato surtado tomar conta dele, faltava pouco para isso, e, se deixasse, o rato atacaria os outros num piscar de olhos. A começar por Alice. Ela conseguira recuperar algum controle, mas ele era tênue. Da finura de uma página de jornal, sua mãe jogadora de bingo diria. Embora também fosse uma criança, Alice foi capaz de se manter otimista, mais por conta do outro menino, para que ele não entregasse os pontos por completo.

     O outro menino. Jordan.

     Clay voltou correndo para o hall de entrada, notou que ainda não havia uma quarta sacola recostada na porta e viu Tom descendo as escadas. Sozinho.

     —      Onde está o garoto? — perguntou Clay. A audição dele tinha começado a clarear, mas sua voz ainda soava muito distante e como a de um desconhecido. Imaginava que continuaria daquele jeito por um tempo. — Você deveria estar ajudando Jordan a juntar algumas coisas pra levar... Ardal falou que ele trouxe uma mochila daquele dormitório...

     —      Ele não quer ir. — Tom esfregou um lado do rosto. Parecia cansado, triste, distraído. Sem metade do bigode, parecia também ridículo.

   —      O quê?

     —      Fale mais baixo, Clay. Eu não faço as notícias, só transmito.

     —      Então me diga o que isso quer dizer, pelo amor de Deus.

     —      Jordan não vai sem o Diretor. Ele falou: "Você não pode me obrigar." E se você estiver falando sério sobre ir embora hoje à noite, acho que ele tem razão.

     Alice irrompeu da cozinha. Tinha tomado um banho, prendido o cabelo e colocado uma blusa nova — que ia quase até os joelhos —, mas a pele dela irradiava a mesma queimação que Clay sentia na sua. Ele imaginou que deveriam se considerar sortudos por não estarem cheios de bolhas.

     —      Alice — ele começou a falar. — Preciso que você exerça seus poderes femininos sobre Jordan. Ele está...

     Ela passou batida, como se ele não tivesse falado nada, ajoelhou-se, apanhou sua mochila e a abriu. Clay observou, perplexo, Alice começara a tirar coisas de dentro da bagagem. Ele olhou para Tom e viu uma expressão de compreensão e solidariedade surgir no rosto do outro.

     —      O que foi? — perguntou Clay. — O que foi, pelo amor de Deus? — Ele sentira aquele mesmo incômodo exasperado em relação a Sharon no decorrer do último ano em que viveram juntos, com muita freqüência, e se odiou por aquilo ter vindo à tona logo naquela hora. Mas cacete, outra complicação era a última coisa de que precisavam. Ele passou as mãos pelo cabelo. — O que foi?

     —      Olhe para o punho dela — disse Tom.

     Clay olhou. O pedaço sujo de cadarço ainda estava lá, mas o tênis sumira. Ele teve uma sensação de absurdo. Ou talvez não fosse tão absurdo assim. Se era importante para Alice, então ele imaginava que era mesmo importante. E daí que fosse apenas um tênis?

     A blusa extra e a camiseta que ela havia guardado (GAITEN BOOSTERS' CLUB estampado na frente) saíram voando. As pilhas rolaram pelo chão. A lanterna sobressalente bateu no assoalho e a tampa da lente rachou. Aquilo foi suficiente para convencer Clay. Não era igual a um dos ataques de Sharon Riddell porque o café de sabor avelã ou o sorvete Chunky Monkey tinham acabado; aquilo era puro terror.

     Ele foi até Alice, ajoelhou ao lado dela e pegou seus punhos. Conseguia sentir os segundos voando, tornando-se minutos que eles deveriam estar usando para deixar aquela cidade para trás, mas também conseguia sentir a velocidade alucinante da pulsação de Alice sob seus dedos. E conseguia ver os olhos dela. Já não havia pânico neles, e sim agonia, e ele compreendeu que a menina colocara tudo naquele tênis: a mãe e o pai, os amigos, Beth Nickerson e a filha, o inferno do estádio Tonney, tudo.

     —      Não está aqui! — gritou ela. — Achei que tinha guardado, mas não guardei. Não estou achando em lugar nenhum!

     —      Não? querida, eu sei. — Clay ainda segurava os punhos dela. Então ergueu o que estava com o cadarço em volta. — Está vendo? —

     Ele esperou até ter certeza de que os olhos de Alice tinham focado e balançou as pontas embaixo do nó, onde antes havia um segundo nó.

     —      Está muito longo agora — disse ela. — Não estava tão longo antes.

     Clay tentou se lembrar da última vez em que vira o tênis. Disse a si mesmo que era impossível lembrar uma coisa daquelas, levando em conta todas as coisas que estavam acontecendo, mas então percebeu que se lembrava. E com muita clareza, também. Foi quando ela ajudara Tom a levantá-lo depois que o segundo caminhão explodira. Naquela hora, ele estava pendurado no cadarço, balançando. Ela estava coberta de sangue, retalhos de tecido e pedacinhos de carne, mas o tênis ainda estava no pulso. Ele tentou se lembrar se ainda estava lá quando ela chutou o tórax em chamas da rampa. Achava que não. Talvez estivesse enganado, mas achava que não.

     —      Ele se soltou, querida — disse ele. — Se soltou e caiu.

     —      Eu o perdi. — Os olhos dela, incrédulos. As primeiras lágrimas. — Tem certeza.

     —      Tenho certeza, sim.

     —      Era o meu talismã — sussurrou ela, as lágrimas transbordando.

     —      Não — disse Tom, colocando um braço em volta dela. — Nós somos o seu talismã.

     Alice olhou para ele.

     —      Como você sabe?

     —      Porque você nos encontrou primeiro — disse Tom. — E nós ainda estamos aqui.

     Ela abraçou os dois e eles ficaram daquele jeito por um tempo, os três, nos braços uns dos outros no hall, com os poucos pertences de Alice espalhados pelo chão em volta.

     O incêndio se espalhou até um auditório que o Diretor identificou como Hackery Hall. Então, por volta das quatro da manhã, o vento diminuiu e ele não foi mais além. Quando o sol nasceu, o campus Gaiten fedia a propano, madeira carbonizada e inúmeros corpos queimados. O céu claro de uma perfeita manhã de outubro da Nova Inglaterra foi coberto por uma coluna de fumaça cinza-escuro. E a Casa Cheatham ainda estava ocupada. No fim das contas, foi um efeito dominó: o Diretor só poderia viajar de carro, e isso era impossível, e Jordan não iria sem o Diretor. Tampouco Ardal foi capaz de persuadi-lo. Alice, embora resignada com a perda do seu talismã, se recusou a ir sem Jordan. Tom não iria sem Alice. E Clay relutava em partir sem os dois, embora a idéia de que aqueles recém-conhecidos parecessem, pelo menos temporariamente, mais importantes do que seu próprio filho o horrorizasse, e embora continuasse convencido de que pagariam um preço alto pelo que fizeram no estádio Tonney se ficassem naquela cidade, quanto mais na cena do crime.

     Ele achou que talvez fosse se sentir melhor a respeito disso ao raiar do dia, mas não se sentiu.

     Os cinco observaram e esperaram diante da janela da sala de estar, mas, obviamente, nada saiu das ruínas fumegantes. O único som era o estalar baixo do fogo devorando as entranhas dos escritórios e vestiários do Departamento de Atletismo, ao mesmo tempo em que terminava de consumir as arquibancadas superiores. Os cerca de mil fonáticos que tinham se agrupado ali tinham virado, como dissera Alice, churrasco. O cheiro deles era forte e horrível, do tipo que não sai da garganta. Clay vomitara uma vez e sabia que os demais também o fizeram — até o Diretor.

     Cometemos um erro, ele voltou a pensar.

     —      Vocês deveriam ter ido embora — disse Jordan. — Nós ficaríamos bem... ficamos antes, não foi, senhor?

     O Diretor Ardal ignorou a pergunta. Estava estudando Clay.

     —      O que aconteceu ontem quando você e Tom estavam no posto de gasolina? Acredito que alguma coisa aconteceu lá para deixar você como está agora.

     —      Ah, é? E como eu estou, senhor?

     —      Como um animal que fareja uma armadilha. Aqueles dois na rua viram vocês?

     — Não foi bem isso — disse Clay. Não gostava de ser chamado de animal, mas não podia negar que era isso mesmo: entram oxigênio e comida, saem dióxido de carbono e merda, e bingo.

     O Diretor começara a esfregar com impaciência o lado esquerdo do diafragma com uma de suas mãos grandes. Clay achou que, como muitos dos gestos do velho, aquele possuía uma estranha teatralidade; não exatamente forçado, mas feito para ser visto da última fileira do auditório.

     —      Então o que exatamente aconteceu?

     E, uma vez que proteger os demais já não parecia mais ser uma questão de escolha, Clay contou ao Diretor exatamente o que tinham visto no escritório do posto Citgo — uma luta por uma caixa de doces velhos que de repente virou outra coisa. Ele contou sobre os papéis tremulantes, as cinzas que começaram a girar no cinzeiro como água descendo pelo ralo de uma banheira, as chaves tilintando no mural, a mangueira que caiu da bomba de gasolina.

     —      Isso eu vi — disse Jordan, e Alice assentiu.

     Tom mencionou a sensação de falta de ar, e Clay concordou. Os dois tentaram explicar a impressão de que algo poderoso se acumulava na atmosfera. Clay disse que era a mesma sensação de antes de uma tempestade. Tom disse que o ar parecia de alguma forma carregado. Pesado demais.

     —      Então ele deixou a mulher pegar um pouco daquela merda e tudo isso parou — disse Tom. — As cinzas pararam de girar, as chaves pararam de tilintar e o ar já não parecia estar mais carregado. — Ele olhou para Clay em busca de confirmação. Clay assentiu.

     Alice falou:

     —      Por que vocês não contaram isso pra gente antes?

     —      Porque não teria mudado nada — disse Clay. — Nós tentaríamos queimar o ninho de qualquer maneira.

     —      É verdade — disse Tom.

     Jordan falou de repente:

     —      Você acha que os fonáticos estão virando psiônicos, não acha?

     Tom disse:

     —      Não sei o que essa palavra significa, Jordan.

     —      Pessoas que conseguem mover objetos só com o pensamento, por exemplo. Ou por acidente, quando as emoções delas fogem do controle. Habilidades psiônicas como telecinese e levitação...

     —      Levitação?— Alice quase gritou.

     Jordan não deu atenção.

     —      ... são apenas ramificações. O tronco da árvore psiônica é a telepatia, e é disso que você está com medo, não é? Da telepatia.

       Tom levou os dedos até o local em cima da sua boca em que metade do bigode sumira e tocou a pele avermelhada.

     —      Bem, o pensamento passou pela minha cabeça. — Ele fez uma pausa, inclinando a cabeça. — Essa frase foi engraçada. Não foi?

     Jordan ignorou aquilo também.

     —      Digamos que eles sejam. Quero dizer, que eles sejam telepatas de verdade, e não apenas zumbis com um instinto coletivo. E daí? O bando da Academia Gaiten está morto, e eles morreram sem fazer idéia de quem os queimou, porque morreram durante o que chamam de sono, então, se você estiver preocupado com o fato de eles terem enviado um fax telepático com nossos nomes e descrições para os colegas nos estados vizinhos da Nova Inglaterra, pode ficar tranqüilo.

     —      Jordan... — começou a falar o Diretor. Ainda estava esfregando o diafragma.

     —      Sim? O senhor está bem?

     —      Estou. Pegue o meu Zantac do banheiro do andar debaixo, sim? E uma garrafa de água mineral. Bom menino.

     Jordan saiu correndo para cumprir a ordem.

     —      Não é uma úlcera, é? — perguntou Tom.

     —      Não — respondeu o Diretor. — É estresse. Um velho... eu não chamaria de amigo... conhecido?

     —      O seu coração é bom?

     —      Imagino que sim — concordou o Diretor, arreganhando os dentes num sorriso de uma jovialidade desconcertante. — Se o Zantac não funcionar, podemos imaginar outra coisa... mas, até agora, o Zantac tem funcionado, e não preciso me preocupar em arranjar problemas com tantos à disposição. Ah, Jordan, obrigado.

     —      Disponha, senhor. — O menino entregou o comprimido e o copo para ele com o sorriso de sempre.

     —      Acho que você deveria ir com eles — disse Ardal para o menino depois de engolir o Zantac.

     —      Senhor, com todo o respeito, eles não têm como saber, de jeito nenhum.

     O Diretor lançou um olhar inquisidor para Tom e Clay. Tom ergueu as mãos. Clay apenas deu de ombros. Ele poderia dizer o que achava em voz alta, poderia articular o que eles certamente sabiam que ele sentia — cometemos um erro, e ficarmos aqui significa pactuar com ele —, mas não via motivo. Uma camada de determinação e inflexibilidade escondia o pavor no rosto de Jordan. Eles não conseguiriam persuadi-lo. E, além do mais, era dia novamente. O dia era a hora deles. Ele despenteou o cabelo do menino.

     —      Se você diz, Jordan. Vou tirar uma soneca.

     Jordan demonstrou um alívio quase sublime.

     —      Boa idéia. Acho que eu também.

     —      Vou tomar uma caneca do mundialmente famoso chocolate morno da Casa Cheatham antes de subir — disse Tom. — E acho que vou raspar o resto deste bigode. Os choros e lamentos que vocês vão ouvir serão meus.

     —      Posso ver? — perguntou Alice. — Sempre quis ver um homem feito chorar e se lamentar.

    

     Clay e Tom dividiam um pequeno quarto no terceiro andar; Alice tinha ficado com o único que sobrara. Enquanto Clay tirava os sapatos, ouviu uma batida rápida na porta, seguida imediatamente pelo Diretor. Duas manchas coradas ardiam nas suas faces. Fora isso, o rosto dele estava pálido como a morte.

     —      O senhor está bem? — perguntou Clay, levantando-se. — Então é mesmo o coração?

     —      Fico feliz que tenha feito essa pergunta — respondeu o Diretor. — Não estava convencido de que tinha plantado a semente, mas parece que sim. — Ele olhou por sobre os ombros para o corredor, então fechou a porta com a ponta da bengala. — Ouça com atenção, Sr. Riddell... Clay... e não pergunte nada a não ser que ache absolutamente necessário. Vocês irão me encontrar morto na minha cama no fim desta tarde ou no começo da noite, e você dirá que então era mesmo o meu coração, e que o que fizemos na noite passada deve ter sido o estopim. Entendido?     

     Clay assentiu. Ele entendeu e refreou o protesto automático. Talvez fizesse sentido no mundo antigo, mas não fazia nenhum naquele lugar. Ele sabia por que o Diretor estava propondo aquilo.

     —      Se Jordan ao menos suspeitar que tirei minha própria vida para livrá-lo do que ele, de forma admirável e pueril, considera uma obrigação sagrada, talvez faça o mesmo. No mínimo, mergulharia no que os anciãos da minha infância chamariam de fuga negra. Ele irá sofrer profundamente de qualquer maneira, mas isso é admissível. A idéia de que cometi suicídio para tirá-lo de Gaiten, não. Você compreende isto?

     —      Sim — disse Clay. E então: — Senhor, espere mais um dia. O que o senhor tem em mente... pode não ser necessário. Pode ser que consigamos sair dessa. — Ele não acreditava naquilo e, fosse como fosse, Ardal estava convencido do que iria fazer; toda a verdade de que Clay precisava estava no rosto abatido daquele homem, nos lábios cerrados e nos olhos brilhantes. Ainda assim, ele tentou mais uma vez. — Espere mais um dia. Talvez nenhum deles venha.

     —      Você ouviu aqueles gritos — respondeu o Diretor. — Aquilo era raiva. Eles virão.

     —      Talvez, mas...

     O Diretor ergueu a bengala para impedi-lo.

     —      E se vierem, e se puderem ler nossas mentes da mesma forma que lêem as deles próprios, o que lerão na sua, se a sua ainda estiver aqui para ser lida?

     Clay não respondeu, apenas fitou o rosto do Diretor.

     —      Mesmo que não possam ler mentes — prosseguiu o diretor —, o que você sugere? Ficarmos aqui, dia após dia, semana após semana? Até a neve cair? Até que eu morra de velhice? O meu pai viveu até os 97 anos. Por outro lado, você tem mulher e filho.

     —      Minha mulher e meu filho ou estão bem, ou não estão. Já estou conformado em relação a isso.

     Aquilo era mentira, e talvez Ardal a tenha notado no rosto de Clay, pois sorriu aquele sorriso perturbador.

     —      E você acredita que seu filho está conformado em não saber se o pai está vivo, morto ou louco? Depois de apenas uma semana?

     —      Isso foi um golpe baixo — disse Clay. Sua voz já não estava tão firme.

     —      É mesmo? Não sabia que estávamos brigando. Seja como for, não existe juiz. Só a gente para contar história, como dizem. — O Diretor olhou para a porta fechada, então voltou a olhar para Clay. — A equação é bem simples. Você não pode ficar e eu não posso ir. É melhor Jordan ir com você.

     —      Mas abater o senhor como um cavalo com a perna quebrada...

     —      Não é nada disso — interrompeu o Diretor. — Cavalos não fazem eutanásia, pessoas sim. — A porta se abriu, Tom entrou e, quase sem hesitar, o Diretor prosseguiu: — E você já considerou fazer arte publicitária, Clay? Quero dizer, para livros?

     —      Meu estilo é muito espalhafatoso para a maioria das casas editoriais — disse Clay. — Eu fiz capas para algumas editoras pequenas de fantasia, como Grant e Eulalia. Alguns livros de Marte de Edgar Rice Burroughs.

     —      Barsoom! — exclamou o Diretor e brandiu a bengala vigorosamente no ar. Então esfregou o plexo solar e fez uma careta. — Maldita azia! Com licença, Tom, só vim bater um papinho antes de me deitar.

     —      Toda — disse Tom e o observou ir embora. Quando o som da bengala do Diretor ficou bem distante no corredor, ele se virou para Clay e disse: — Ele está bem? Estava muito pálido.

     —      Acho que sim. — Ele apontou para o rosto de Tom. — Pensei que você fosse raspar a outra metade.

     —      Desisti com Alice por perto — falou Tom. — Gosto dela, mas ela pode ser cruel de vez em quando.

     —      É paranóia sua.

     —      Obrigado, Clay, estava precisando disso. Faz só uma semana e já estou sentindo falta do meu analista.

     —      Combinada com mania de perseguição e delírios de grandeza. — Clay passou os pés para cima de uma das camas estreitas do quarto, colocou as mãos atrás da cabeça e olhou para o teto.

     —      Você queria que estivéssemos fora daqui, não é? — perguntou Tom.

     —      Pode apostar. — Ele falou em um tom monocórdio.

     —      Vai ficar tudo bem, Clay. De verdade.

     —      É o que você diz, mas tem mania de perseguição e delírios de grandeza.

     —      É — disse Tom —, mas isso é compensado por uma péssima auto-imagem e menstruação de ego a mais ou menos cada seis semanas. E, de qualquer forma...

     —      ... tarde demais, pelo menos por hoje — concluiu Clay.

     —      Isso mesmo.

     Havia até uma certa concórdia em relação àquilo. Tom disse algo mais, parem Clay só ouviu "Jordan acha..." e então adormeceu.

    

     Ele acordou gritando, pelo menos foi o que pensou a princípio. Somente depois de olhar alucinadamente para a outra cama, onde Tom ainda dormia em paz com algo dobrado sobre os olhos — uma toalha de rosto, talvez —, Clay se convenceu de que o berro tinha sido dentro da cabeça dele. Talvez algum tipo de grito tenha escapado da sua boca, mas, se fosse o caso, não havia sido alto o suficiente para acordar o colega de quarto.

     O quarto não estava nem um pouco escuro — estavam no meio da tarde —, mas Tom baixara a cortina antes de cair no sono, e havia pelo menos uma penumbra. Clay ficou do jeito que estava por um instante, deitado de barriga para cima, com a boca seca como serragem, os batimentos cardíacos rápidos no peito e entre os ouvidos, onde pareciam passos em disparada numa superfície de veludo. Fora isso, a casa continuava silenciosa. Talvez ainda não tivessem trocado completamente a noite pelo dia, mas a noite anterior fora extraordinariamente estafante e, naquele momento, não se ouvia um ruído sequer na Casa. Lá fora, um pássaro cantou e, em algum lugar bem afastado — fora de Gaiten, ele pensou —, um alarme teimoso soava sem parar.

     Será que já tivera um sonho pior? Talvez um. Cerca de um mês depois de Johnny nascer, Clay sonhou que pegava o bebê do berço para trocar as fraldas e o corpinho gorducho de Johnny simplesmente se despedaçava em suas mãos como um boneco mal montado. Aquele ele conseguia entender: medo da paternidade, medo de estragar tudo. Um medo com o qual ele ainda convivia, como notara o Diretor Ardal. Mas como deveria interpretar o sonho de agora?

     O que quer que significasse, ele não queria esquecê-lo e sabia por experiência própria que, para que isso não acontecesse, teria que agir rápido.

     Havia uma mesa no quarto e uma caneta esferográfica enfiada em um dos bolsos do jeans que Clay deixara embolado ao pé da cama. Ele pegou a caneta, foi descalço até a mesa, sentou-se e abriu a gaveta sobre o espaço para os joelhos. Encontrou o que queria, um pequeno maço de papéis de carta com o cabeço ACADEMIA GAITEN e "Uma Mente Jovem É uma Luz na Escuridão” em cada folha. Pegou uma delas e a colocou sobre a mesa. A luz estava fraca, mas iria servir. Fez a ponta da esferográfica saltar para fora com um clique e hesitou apenas por um instante, relembrando o sonho com o máximo de clareza possível.

     Ele, Tom, Alice e Jordan estavam enfileirados no centro de um campo. Não um campo de futebol, como o estádio Tonney — um campo de futebol americano, talvez? Havia uma espécie de construção no esqueleto ao fundo com uma luz vermelha piscando nela. Não fazia idéia do que era, mas sabia que o campo estava cheio de pessoas olhando para eles, pessoas com rostos retalhados e roupas rasgadas que ele reconhecia bem até demais. Clay e os amigos estavam... enjaulados? Não, estavam em plataformas. Elas eram jaulas do mesmo jeito, mas não tinham barras. Não sabia como aquilo era possível, mas era. Já estava se esquecendo dos detalhes do sonho.

     Tom era o último da fila. Um homem foi até ele, um homem especial, e colocou a mão na sua cabeça. Clay não se lembrava como o homem conseguiu fazer aquilo, já que Tom — assim como Alice, Jordan e o próprio Clay — estava em uma plataforma, mas ele fez. E disse: Ecce homo... insanus. E a multidão — milhares deles — rugiu em uníssono: "NÃO TOQUE!" O homem se aproximou de Clay e repetiu aquilo. Com a mão em cima da cabeça de Alice, disse: Eccefe-mina... insana E em cima da cabeça de Jordan: Ecce puer... insanus. Todas as vezes, a resposta foi a mesma: "NÃO TOQUE!"

     Nem o homem — o anfitrião? O mestre de cerimônias? — nem as pessoas na multidão abriram a boca durante o ritual. O diálogo tinha sido inteiramente telepático.

     Então, deixando sua mão direita pensar sozinha (a mão e o cantinho especial do cérebro que a comandava), Clay começou a desenhar uma imagem no papel. O sonho inteiro fora horrível — toda aquela calúnia, aquela sensação de acuamento —, mas nada tinha sido pior do que o homem que se aproximou de cada um deles, colocando a mão aberta sobre suas cabeças como um leiloeiro se preparando para vender gado em uma feira. Clay pensava que, se conseguisse passar a imagem daquele homem para o papel, passaria também o terror.

     Era um negro com uma cabeça nobre e um rosto ascético que encimava um corpo magricela, quase esquálido. O cabelo era um gorro justo de caracóis pretos, com um horrível buraco triangular de um lado. Os ombros eram estreitos, a cintura, quase inexistente. Sob o gorro de caracóis, Clay esboçou a testa larga e bonita — a testa de um erudito. Então a transfigurou com outro traço e sombreou o pedaço de pele solto que cobria uma sobrancelha. A bochecha esquerda do homem havia sido rasgada, possivelmente por uma mordida, e o lábio inferior também estava aberto daquele lado, pendendo em um sorriso cansado de escárnio. Os olhos deram trabalho. Clay não conseguia acertá-los. No sonho, eles eram ao mesmo tempo cheios de energia e de alguma forma mortos. Após duas tentativas, desistiu e desceu até o moletom, antes que se esquecesse dele: era do tipo que as crianças chamam de "capuzinho" (VERMELHO, ele escreveu, fazendo uma seta), com letras de forma brancas na frente. Era grande demais para o corpo magro do homem, e um pedaço de tecido tampava a metade superior das letras, mas Clay tinha quase certeza de que elas diziam HARVARD. Estava começando a escrever aquilo quando o choro começou, baixinho e abafado, de algum lugar abaixo de onde estava.

    

     Era Jordan: Clay soube de imediato. Ele deu uma olhada por sobre o ombro para Tom enquanto colocava os jeans, mas Tom não se mexera. Fora de combate, Clay pensou. Abriu a porta, deslizou para fora e a fechou.    

     Alice, vestindo uma blusa da Academia Gaiten como camisola, estava sentada no patamar do segundo piso com o menino aninhado nos braços. Jordan pressionava o rosto contra o ombro dela. Ela ergueu os olhos ao ouvir o som dos pés descalços de Clay na escada e falou antes de ele dizer algo de que talvez se arrependesse mais tarde: É o Diretor?

     —      Ele teve um pesadelo — disse ela.

     Clay falou a primeira coisa que lhe veio à cabeça. Naquela hora, parecia de vital importância.

     —      Você também teve?

     Ela franziu o cenho. Com as pernas nuas, o cabelo amarrado em um rabo-de-cavalo e o rosto queimado de sol como se tivesse passado um dia na praia, ela parecia a irmã de 11 anos de idade de Jordan.

     —      O quê? Não. Eu o ouvi chorando no hall. Acho que já estava acordando e...

     —      Só um minuto — disse Clay. — Não saia daí.

     Ele voltou para o seu quarto no terceiro andar e pegou o esboço de cima da mesa. Daquela vez, os olhos de Tom saltaram. Ele olhou em volta com uma mistura de pavor e desorientação, então se deteve em Clay e relaxou.

     —      De volta à realidade — disse ele. Então, esfregando o rosto com uma das mãos e apoiando-se em um cotovelo: — Graças a Deus. Cruzes. Que horas são?

     —      Tom, você sonhou? Teve um pesadelo?

     Tom assentiu.

     —      Acho que tive, sim. Ouvi alguém chorando. Era Jordan?

     —      Sim. Como era o sonho? Você se lembra?

     —      Alguém estava nos chamando de loucos — disse Tom, e Clay sentiu o estômago despencar. — O que é provavelmente verdade. Não me lembro do resto. Por quê? Você?...

     Clay não esperou para ouvir mais. Saiu correndo pela porta e desceu as escadas novamente. Jordan olhou em volta com uma espécie de timidez atordoada quando Clay se sentou. Já não havia mais sinal do gênio da informática; se Alice parecia ter 11 anos com o rabo-de-cavalo e bronzeada daquele jeito, Jordan regredira aos nove.

     —      Jordan — disse Clay. — O seu sonho... o seu pesadelo. Você se lembra dele?  

     —      Já estou esquecendo — respondeu Jordan. — Eles colocaram a gente em plataformas. Estavam olhando pra gente como se fôssemos... sei lá, animais selvagens... só que disseram...

     —      Que estávamos loucos.

     Jordan arregalou os olhos.

     —      Isso!

     Clay ouviu passos às suas costas à medida que Tom descia as escadas. Não olhou em volta. Mostrou o esboço a Jordan.

     —      Este homem estava no comando?

     Jordan não respondeu. Não precisava. Afastou-se duas vezes do desenho, tateando em busca de Alice e enfiando o rosto contra o peito dela mais uma vez.

     —      O que é isso? — perguntou Alice, perplexa. Ela estendeu a mão para pegar o desenho, mas Tom o apanhou antes.

     —      Cristo — disse ele, e o devolveu. — Já quase esqueci do sonho, mas lembrome dessa bochecha rasgada.

     —      E do lábio — disse Jordan, as palavras abafadas contra o peito de Alice. — O jeito que o lábio dele fica pendurado. Era esse homem quem mostrava a gente para eles. Para eles. — Ele estremeceu. Alice esfregou as costas do menino e então juntou as mãos sobre suas espátulas para abraçá-lo com mais força.

     Clay pôs o desenho na frente de Alice.

     —      Faz você lembrar algo? O homem dos seus sonhos?

     Ela balançou a cabeça e começou a dizer não. Antes que pudesse fazê-lo, eles ouviram um matraquear alto e demorado e uma série de baques vindos da frente da porta de entrada da Casa Cheatham. Alice gritou. Jordan a agarrou com mais força, como se quisesse se esconder dentro dela e soltou um berro. Tom apertou o ombro de Clay.

     —      Ah, cacete, que porra é...

     O barulho veio mais uma vez de trás da porta, alto e demorado. Alice gritou mais uma vez.

     —      Armas! — berrou Clay. — Armas!

     Por um instante, os três ficaram paralisados no patamar ensolarado; então, ouviu-se outro daqueles barulhos longos e altos, um som como o de ossos rolando. Tom subiu correndo para o terceiro andar e Clay o seguiu, derrapando por causa das meias e agarrando o corrimão para recuperar o equilíbrio. Alice empurrou Jordan para longe e foi correndo para o seu quarto, a bainha da blusa esvoaçando entre as pernas, deixando o menino abraçado ao pilar da escada, olhando para o hall de entrada com os olhos arregalados e úmidos.

      

     — Calma — disse Clay. — Vamos manter a calma, certo?

     Os três estavam ao pé da escada menos de dois minutos depois do primeiro daqueles barulhos longos e irregulares que tinham vindo de trás da porta de entrada. Tom estava com o não testado rifle de assalto russo que eles passaram a chamar de Sr. Ligeirinho; Alice estava com uma automática de 9 milímetros em cada mão e Clay com o calibre 45 de Beth Nickerson, que conseguira de alguma forma não largar na noite anterior (embora não se lembrasse de tê-lo enfiado de volta no cinto, onde o encontrou mais tarde). Jordan ainda estava encolhido no patamar. De lá de cima, ele não conseguia ver as janelas do andar de baixo, e Clay achava isso uma boa coisa.

     Estava mais escuro porque havia fonáticos em cada uma das janelas que podiam ver, amontoados contra os vidros e olhando para eles: dezenas, talvez centenas daqueles rostos estranhos e vazios, a maioria marcada pelas batalhas que tinham lutado e pelas feridas que haviam sofrido durante a última e anárquica semana. Clay viu olhos e dentes faltando, orelhas rasgadas, machucados, queimaduras, pele chamuscada e talhos de carne escurecida. Estavam em silêncio. Havia uma espécie de sofreguidão agourenta neles, e aquela sensação voltara a preencher o ar, aquela atmosfera sufocante de alguma energia enorme e rotativa, contida por um triz. A todo momento, Clay esperava ver as armas saírem voando de suas mãos e começarem a atirar sozinhas.

     Na gente, ele pensou.

     —      Agora sei como as lagostas se sentem no tanque do Harbor Seafood no Pague Uma Leve Duas da terça-feira — disse Tom em uma voz fraca e tensa.

     —      Calma — repetiu Clay. — Vamos deixá-los dar o primeiro passo.

     Porém, não houve primeiro passo. Ouviu-se outro daqueles barulhos demorados — que pareciam a Clay o som de algo sendo descarregado na varanda da frente —, e então as criaturas nas janelas se afastaram, como se comandadas por um sinal que apenas elas conseguiam ouvir. Fizeram isso em filas bem ordenadas. Aquela não era a hora do dia em que normalmente se juntavam em bando, mas as coisas tinham mudado. Era óbvio.

     Clay andou até a janela da sacada na sala de estar, segurando o revólver do lado do corpo. Tom e Alice o seguiram. Eles observaram os fonáticos (que já não pareciam nem um pouco lunáticos para Clay, pelo menos não na interpretação dele) baterem em retirada, andando para trás com uma calma sinistra e ágil, jamais perdendo o pequeno espaço que havia entre eles. Pararam entre a Casa Cheatham e as ruínas fumegantes do estádio de futebol Tonney, como um batalhão militar maltrapilho em uma praça de armas coberta de folhas. Cada olhar nem-tão-vazio-assim pairava sobre a residência do Diretor.

     —      Por que as mãos e os pés deles estão tão sujos? — perguntou uma voz insegura. Eles olharam em volta. Era Jordan. Clay não notara a fuligem e as manchas pretas nas mãos das centenas de criaturas silenciosas lá fora, mas antes de conseguir falar isso, Jordan respondeu à própria pergunta. — Eles foram ver, não foram? É claro. Foram ver o que fizemos com os amigos deles. E estão furiosos. Dá pra sentir. Estão sentindo?

     Clay não queria dizer que sim, mas é claro que sentia. Aquela atmosfera pesada, carregada, aquela sensação de uma descarga contida por um triz em uma rede de eletricidade: aquilo era raiva. Ele pensou na Cabelinho Claro avançando no pescoço da Mulher do Terninho de Poderosa e na senhora idosa que vencera a Batalha da Estação de Metrô da Boylston Street, a que tinha entrado no Boston Common com sangue pingando do cabelo cinza-escuro curto. No rapaz, nu com exceção dos tênis, brandindo as antenas de carro para frente e para trás enquanto corria. Toda aquela raiva — se ele achava que ela havia simplesmente desaparecido depois que eles começaram a se juntar em bando, estava muito enganado.

     —      Estou sentindo — disse Tom. — Jordan, se eles têm poderes psíquicos, por que não fazem a gente se matar, ou matar uns aos outros?

     —      Ou fazem nossas cabeças explodirem — disse Alice. A voz dela tremia. — Vi isso em um filme antigo, uma vez.

     —      Não sei — disse Jordan. Ele ergueu os olhos para Clay. — Onde está o Homem Esfrangalhado?

     —      É assim que você o chama? — Clay olhou para o esboço, que ainda estava em suas mãos: a carne rasgada, a manga rasgada do agasalho, o jeans largo. Não achava Homem Esfrangalhado um nome ruim para o cara com o moletom de Harvard.

     —      Eu o chamo de encrenca, isso sim — disse Jordan com um fiapo de voz. Ele olhou novamente para os recém-chegados, trezentos no mínimo, talvez quatrocentos, vindos de Deus sabe quais cidades vizinhas, e então de volta para Clay. — Você o viu?

     —      Sem ser em pesadelo, não.

     Tom balançou a cabeça.

     —      Para mim, ele é só um desenho em um pedaço de papel — disse Alice. — Não sonhei com ele e não estou vendo ninguém de moletom lá fora. O que eles estavam fazendo no campo de futebol? Você acha que eles tentaram identificar os mortos? — Ela parecia ter dúvidas quanto a isso. — E ainda não está quente lá? Só pode estar.

     —      O que eles estão esperando? — perguntou Tom. — Se não vão nos atacar, nem fazer a gente enfiar facas de cozinha uns nos outros, o que estão esperando?

     De repente, Clay descobriu o que estava acontecendo, e também onde estava o Homem Esfrangalhado de Jordan — aquele era o que o Sr. Devani, seu professor de álgebra do ginásio, chamaria de um momento ard! Ele se virou e foi na direção do hall de entrada.

     —      Aonde você está indo? — perguntou Tom.

     —      Ver o que eles deixaram para nós — disse Clay.

     Eles o seguiram correndo. Tom o alcançou antes, enquanto a mão de Clay ainda estava na maçaneta.

     —      Não sei se isso é uma boa idéia — disse Tom.

     —      Talvez não, mas é o que eles estão esperando — disse Clay. — E sabe de uma coisa? Acho que se quisessem nos matar, já estaríamos mortos.

     —      Acho que ele tem razão — disse Jordan com uma voz baixa e fraca.

     Clay abriu a porta. A longa varanda de entrada da Casa Cheatham, com sua confortável mobília de vime e vista para a Ladeira da Academia, que descia até a Academy Avenue, fora feita para tardes ensolaradas de outono como aquela, mas, naquele momento, a ambientação era a menor das preocupações de Clay. Parado ao pé da escada, havia um grupo de fonáticos em formação de ponta de lança: um na frente, dois atrás do primeiro, três atrás deste, e então quatro, cinco e seis. Vinte e um ao todo. O que estava na frente era o Homem Esfrangalhado do sonho de Clay, seu desenho tornado realidade. As letras na frente do moletom vermelho em farrapos diziam mesmo HARVARD. O rasgo na bochecha esquerda fora puxado para cima e preso ao lado do nariz por dois pontos brancos malfeitos, que, antes de se firmarem, tinham aberto cortes em forma de lágrimas na pele negra e indiferente à sutura. Havia talhos onde um terceiro e um quarto ponto tinham se soltado. Clay achou que talvez tivessem sido dados com linha de pescar. O lábio caído revelava dentes que pareciam ter sido tratados por um bom dentista há pouco, quando o mundo era um lugar mais gentil.

     Na porta da frente, soterrando o capacho e se espalhando pelos dois lados, havia uma pilha de objetos escuros e disformes. Quase podia ser a idéia de arte de algum escultor meio doido. Clay precisou apenas de um instante para perceber que olhava para os restos derretidos dos estoura tímpanos do bando do estádio Tonney.

     Então Alice gritou. Alguns dos mini systems derretidos tinham caído quando Clay abriu a porta, e algo que muito provavelmente estivera bem equilibrado no topo caíra junto com eles, parando entre o chão e a pilha. Ela deu um passo à frente antes que Clay pudesse impedi-la, derrubando uma das automáticas e agarrando a coisa que vira. Era o tênis. Ela o aninhou entre os seios.

     Clay olhou para Tom, que estava atrás dela. Tom devolveu o olhar. Eles não eram telepatas, mas naquele instante bem que poderiam ser. E agora?, perguntavam os olhos de Tom.

     Clay voltou a atenção para o Homem Esfrangalhado. Imaginava se era possível sentir alguém lendo sua mente se ela estivesse sendo lida naquele instante. Estendeu as mãos na direção do homem. Ainda estava com a arma em uma delas, mas nem o Homem Esfrangalhado nem os integrantes do pelotão pareciam intimidados por ela. Clay colocou as palmas para cima: O que vocês querem?

     O Homem Esfrangalhado sorriu. Não havia humor no sorriso. Clay achou que conseguia ver raiva nos olhos castanho-escuros, mas parecia ser uma coisa superficial. Para além da superfície, não havia brilho algum, pelo menos não que Clay pudesse notar. Era quase como ver um boneco sorrir.

     O Homem Esfrangalhado entortou a cabeça e ergueu um dedo: Espere. E, abaixo deles, na Academy Avenue, como se esperassem a deixa, vieram muitos gritos. Gritos de pessoas numa agonia mortal. Alguns sons guturais e predatórios se seguiram a eles. Não muitos.

     —      O que você está fazendo? — perguntou Alice. Ela deu um passo à frente, apertando o pequenino tênis convulsivamente na mão. Os nervos do antebraço saltavam a ponto de fazer sombras na sua pele como riscos a lápis longos e retos. — O que você está fazendo com as pessoas lá embaixo?

     Como se pudesse haver alguma dúvida, pensou Clay.

     Ela ergueu a mão que ainda carregava uma arma. Tom a agarrou, arrancando-a dela antes que Alice pudesse apertar o gatilho. Ela o atacou, arranhando-o com a mão livre.

     —      Devolva a arma para mim! Não está ouvindo isso? Não está ouvindo?

     Clay a empurrou para longe de Tom. Durante todo esse tempo, Jordan observava da entrada com olhos arregalados e aterrorizados, e o Homem Esfrangalhado ficava parado na ponta da lança, sorrindo com um rosto cujo humor escondia a raiva, e cuja raiva escondia... nada, até onde Clay podia ver. Absolutamente nada.

     —      De qualquer maneira, estava travado — disse Tom depois de checar rapidamente. — Graças a Deus pelos pequenos favores. — E para Alice: — Você quer nos matar?

     —      Você acha que eles vão deixar a gente ir embora? — Ela chorava com tanta força que era difícil entender o que dizia. Ranho escorria pelas suas narinas em dois filetes claros. Lá debaixo, da avenida ladeada por árvores que seguia para além da Academia Gaiten, vieram mais gritos. Uma mulher berrou: Não, por favor, não, por favor, não, e então as palavras se perderam em um terrível urro de dor.

     —      Não sei o que eles vão fazer com a gente — disse Tom com uma voz que lutava para se manter calma —, mas se quisessem nos matar, não estariam fazendo isso. Olhe para ele, Alice: o que está acontecendo lá embaixo é para o nosso bem.

     Houve alguns tiros na medida em que as pessoas tentavam se defender, mas não muitos. Em sua maioria, eram apenas gritos de dor e terrível surpresa, todos vindo da área próxima à Academia Gaiten, onde o bando fora queimado. Aquilo certamente não durou mais do que dez minutos, mas às vezes, pensou Clay, o tempo era mesmo relativo.

     Pareceram horas.

    

     Quando os gritos finalmente cessaram, Alice ficou parada em silêncio entre Clay e Tom, com a cabeça baixa. Ela deixara as duas automáticas em uma mesa para malas e chapéus logo depois da porta de entrada. Jordan segurava a mão dela, olhando para o Homem Esfrangalhado e seus colegas de pé na beirada da calçada. Até então, o menino não notara a ausência do Diretor. Clay sabia que ele notaria logo, e então a próxima cena daquele dia terrível começaria.

     O Homem Esfrangalhado deu um passo adiante e fez uma pequena mesura com as mãos esticadas dos dois lados, como se dissesse: Às ordens. Então ergueu os olhos e estendeu uma das mãos em direção à Ladeira da Academia e à avenida mais além. Ao fazê-lo, olhou para o pequeno grupo amontoado na porta aberta atrás da escultura de mini systems derretidos. Para Clay, o significado era claro: A estrada é de vocês. Podem pegá-la.

     —      Talvez — disse Clay. — Enquanto isso, vamos deixar uma coisa bem clara. Tenho certeza de que vocês podem acabar com a gente se quiserem, obviamente estão com a vantagem numérica, mas alguma outra pessoa vai assumir o comando amanhã, a não ser que você decida ficar no quartel-general. Porque vou garantir pessoalmente que você seja o primeiro a cair.

     O Homem Esfrangalhado levou as mãos às bochechas e arregalou os olhos: Ai, que medo! Os outros atrás dele estavam tão inexpressivos quanto robôs. Clay ficou olhando por mais um instante, então fechou a porta lentamente.

     —      Desculpe — disse Alice com desânimo. — Não estava agüentando ouvir aqueles gritos.

     —      Tudo bem — disse Tom. — Não tem problema. E olhe só, eles trouxeram de volta o Sr. Sapatinho.

     Alice olhou para ele.

     —      Foi assim que descobriram que foi a gente? Eles sentiram o cheiro, do mesmo jeito que um cão de caça fareja uma pista?

     —      Não — disse Jordan. Ele estava sentado em uma cadeira de espaldar alto do lado do vaso para guarda-chuvas, parecendo pequeno, abatido e exausto. — Essa é a maneira de eles dizerem que conhecem você. Pelo menos, é o que eu acho.

     —      Concordo — disse Clay. — Aposto que eles sabiam que fomos nós antes mesmo de chegarem aqui. Pescaram isso nos nossos sonhos do mesmo jeito que vimos o rosto dele.

     —      Eu não... — começou a falar Alice.

     —      Porque você estava acordando — disse Tom. — Imagino que uma hora ele vá falar com você. — Ele fez uma pausa. — Isto é, se ainda tiver algo a dizer. Não estou entendendo, Clay. Nós fizemos. Nós fizemos e eles sabem disso, tenho certeza.

     —      Sim — disse Clay.

     —      Então por que estão matando um bando de viajantes inocentes quando poderiam sem o menor esforço, bem, com algum esforço, invadir a casa e matar a gente? Quero dizer, entendo o conceito de retaliação, mas não vejo sentido nisso...

     Neste momento, Jordan saiu da cadeira e, olhando em volta com uma expressão de súbita preocupação, perguntou:

     —      Cadê o Diretor?

    

     Clay alcançou Jordan, mas não antes de o menino ter chegado até o patamar do segundo piso.

     —      Espere, Jordan — disse ele.

     —      Não — respondeu o garoto. O rosto dele estava mais branco e chocado do que nunca. Seu cabelo estava revolto, e Clay imaginou que era só porque ele estava precisando de uma tesoura, mas era como se estivesse tentando ficar em pé. — Com toda essa comoção ele devia estar com a gente! E estaria com a gente, se estivesse bem. — Os lábios dele começaram a tremer. — Lembra de como ele estava se esfregando? E se não fosse só aquele negócio de refluxo gástrico?

     —      Jordan...

     Jordan não deu atenção, e Clay podia apostar que ele esquecera completamente do Homem Esfrangalhado e seus companheiros, pelo menos por ora. Livrou-se da mão de Clay e desceu correndo o corredor, gritando: "Senhor! Senhor!", enquanto Diretores que remontavam ao século XIX baixavam os olhos graves para ele das paredes.

     Clay olhou escada abaixo. Alice não tinha condições de ajudar — estava sentada ao pé da escada com a cabeça torta, olhando para aquela porra de tênis como se fosse a caveira de Yorick —, mas Tom começou a subir com relutância para o segundo andar.

     —      Qual vai ser o tamanho do estrago? — ele perguntou para Clay.

     —      Bem... Jordan acha que o Diretor teria se juntado a nós se estivesse bem e eu tendo a pensar que ele...

     Jordan começou a se esgoelar. Era um som agudo penetrante que varou a cabeça de Clay como uma lança. Foi Tom quem se mexeu primeiro, Clay ficou enraizado nos primeiros degraus da escada por pelo menos três segundos, e talvez até sete, imobilizado por um único pensamento: Não é assim que uma pessoa grita quando descobre algo parecido com um ataque de coração. O velho deve ter feito alguma besteira. Talvez tenha usado o tipo errado de comprimidos. Estava na metade do corredor quando Tom gritou, chocado: "Oh meu Deus Jordan não olhe", quase como se fosse uma só palavra.

     —      Espere! — gritou Alice de trás dele, mas Clay não esperou. A porta para a pequena suíte do Diretor estava aberta: o escritório com os livros e o agora inútil fogareiro, o quarto mais adiante com a porta escancarada, deixando a luz vazar. Tom estava de frente para a mesa, segurando a cabeça de Jordan contra a barriga. O Diretor estava sentado atrás da mesa. O peso dele jogara a cadeira giratória para trás e o velho parecia estar olhando para o teto com o olho que restava. Seu cabelo branco revolto pendia do espaldar. Para Clay, ele parecia um pianista que acabara de tocar o acorde final de uma composição difícil.

     Ele ouviu Alice dar um grito estrangulado de horror, mas quase não prestou atenção. Sentindo-se como um passageiro dentro do próprio corpo, Clay andou até a mesa e olhou para a folha de papel que jazia sobre o mataborrão. Embora estivesse manchada de sangue, ele conseguia decifrar as palavras; o Diretor as escrevera com uma letra bonita e clara. Velha guarda até o fim, Jordan teria dito.

      

     aliene   geisteskrank

     insano elnebajos   vansinnig   fou

     atamagaokashii   gek   dolzinnig

     hullu

     gila

     meschuge   nebun dement

    

     Clay só sabia falar inglês e um pouco de francês que aprendera na escola, mas sabia muito bem o que era aquilo, e o que significava. O Homem Esfrangalhado queria que eles fossem embora e sabia de alguma forma que o Diretor Ardal estava velho e artrítico demais para acompanhá-los. Então, o obrigou a sentar-se à mesa e escrever a palavra louco em 14 línguas diferentes. E, quando ele terminou, o fez enfiar a ponta da caneta tinteiro que usara no olho direito até o cérebro velho e inteligente que ficava atrás dele.

     — Eles o fizeram se matar, não foi? — perguntou Alice, com a voz falhando. — Por que ele e não a gente? Por que ele e não a gente? O que eles querem?

     Clay pensou no gesto que o Homem Esfrangalhado fizera em direção à Academy Avenue — Academy Avenue, que também era a rota 102 de New Hampshire. Os fonáticos, que não eram mais exatamente lunáticos — ou o eram de um jeito bem diferente —, queriam que eles voltassem para a estrada. Mais do que isso ele não sabia, e talvez fosse melhor assim. Talvez fosse para o bem. Talvez aquilo fosse misericórdia.

    

    

     AS ROSAS MURCHARAM, O JARDIM MORREU

      

     Havia meia dúzia de toalhas de mesa de linho fino em um armário no fim do corredor dos fundos, e uma delas serviu de mortalha para o Diretor Ardal. Alice se dispôs a costurá-lo, mas caiu no choro quando nem seu talento como costureira nem seus nervos se mostraram à altura da missão. Tom assumiu a tarefa; esticou a toalha, fez um ponto duplo e arrematou com golpes rápidos e quase profissionais. Clay achou que era como observar um boxeador bater em um saco invisível com a mão direita.

     —      Não faça piadas — disse Tom sem erguer os olhos. — Agradeço pelo que você fez lá em cima, eu jamais conseguiria ter feito aquilo, mas não vou agüentar uma piada que seja agora. Nem aquelas mais inofensivas, do tipo Willand Grace. Mal consigo manter a cabeça no lugar.

     —      Tudo bem — disse Clay. Fazer piadas era a última coisa em que ele estava pensando. Quanto ao que havia feito lá em cima... bem, a caneta tinha que ser tirada do olho do Diretor. Não iriam deixar aquilo lá de forma alguma. De modo que Clay resolveu o problema, desviando o olhar para o canto do quarto enquanto a arrancava, tentando não pensar no que estava fazendo ou por que aquela merda estava tão presa. Na maior parte do tempo, conseguiu não pensar, mas a caneta raspou o osso da órbita do velho quando finalmente se soltou, e Clay ouviu um som mole, como um pedaço de carne fazendo plop, quando algo caiu do bico de aço torto da caneta em cima do mata-borrão. Ele achou que se lembraria daqueles sons para sempre, mas conseguira tirar a maldita caneta, e era isso que importava.

     Lá fora, havia quase mil fonáticos no gramado entre as ruínas fumegantes do campo de futebol e a Casa Cheatham. Eles tinham ficado lá a maior parte da tarde. Então, por volta das cinco, seguiram em bando silenciosamente na direção do centro de Gaiten. Clay e Tom desceram o corpo amortalhado do Diretor pela escada dos fundos e o colocaram na varanda de trás. Os quatro sobreviventes se reuniram na cozinha e fizeram a refeição que haviam se acostumado a chamar de café-damanhã enquanto as sombras começavam a se alongar lá fora.

     Jordan comeu surpreendentemente bem. Estava corado e falava com animação. A conversa resumia-se a reminiscências da sua vida na Academia Gaiten e à influência que o Diretor Ardal tivera no coração e na mente de um viciado em computadores sem amigos e introvertido de Madison, Wisconsin. A magnífica lucidez das recordações do menino deixava Clay cada vez mais desconfortável e, quando olhou nos olhos primeiro de Alice e depois de Tom, viu que eles sentiam o mesmo. A mente de Jordan estava rateando, mas era difícil saber como lidar com aquilo; mandá-lo para um psiquiatra estava fora de cogitação.

     Em um determinado momento, depois do anoitecer, Tom sugeriu que Jordan deveria descansar. Jordan disse que iria, mas não antes de enterrarem o Diretor. Poderiam colocá-lo no jardim atrás da Casa, disse ele. E falou que o Diretor costumava chamar a pequena horta de vegetais de "jardim da vitória", embora jamais tenha dito por quê.

     —      É o melhor lugar — disse Jordan, sorrindo. As faces dele estavam afogueadas. Seus olhos, fundos nas órbitas escuras, brilhavam com o que poderia ser entusiasmo, bom humor, loucura ou os três juntos. — Não só o solo é macio, como é o lugar que ele sempre gostou mais... quero dizer, lá fora. Então, o que vocês acham? Eles foram embora, ainda não saem à noite, isso não mudou, e podemos usar os lampiões quando formos cavar. O que vocês acham?

     Depois de refletir, Tom perguntou:

     —      Temos pás?

     —      Pode apostar que sim, no barraco dos jardineiros. Nem precisamos ir até as estufas. — E, por incrível que pareça, Jordan riu.

     —      Então, pronto — disse Alice. — Vamos enterrá-lo e acabar logo com isso.

     —      E depois você vai descansar — disse Clay, olhando para o garoto.

     —      Claro, claro — exclamou Jordan com impaciência. Ele se levantou da cadeira e começou a andar pela sala. — Vamos, pessoal! — Como se estivessem brincando de pique.

     Então eles abriram a cova no jardim atrás da Casa e enterraram o Diretor entre os feijões e tomates. Tom e Clay baixaram o vulto amortalhado no buraco, que tinha cerca de um metro de profundidade. O exercício os manteve aquecidos, e eles só perceberam que a noite ficara muito fria depois que pararam. As estrelas brilhavam no céu, mas uma névoa baixa e espessa rolava ladeira abaixo. A Academy Avenue já tinha sido engolida por aquela maré branca e apenas os telhados pontiagudos das maiores entre as casas antigas lá embaixo vinham à tona.

     —      Bem que alguém poderia saber alguma boa poesia — disse Jordan. As faces dele estavam mais vermelhas do que nunca, mas os olhos se afundaram nas cavidades circulares e ele tremia, apesar de estar com dois suéteres. Sua respiração saía em pequenas baforadas. — O Diretor adorava poesia, achava a coisa mais foda do mundo. Ele era... — A voz de Jordan, que soara estranhamente alegre a noite toda, finalmente cedeu. — Ele era totalmente velhaguarda.

     Alice o envolveu com os braços. Jordan resistiu, mas depois deixou.

     —      Vamos fazer o seguinte — disse Tom. — Vamos cobri-lo direitinho, para protegê-lo do frio, e então declamamos um pouco de poesia. Está bom assim?

     —      Você conhece mesmo alguma?

     —      Conheço, sim — respondeu Tom.

     —      Você é tão inteligente, Tom. Obrigado. — E Jordan sorriu para ele com uma gratidão esgotada, horrível.

     Cobrir a cova foi rápido, embora no fim tivessem precisado pegar um pouco de terra emprestada de outras partes do jardim para nivelá-la. Quando terminaram, Clay já estava suando de novo e sentia o próprio fedor, fazia tempo que não tomava banho.

    Alice tentou evitar que Jordan ajudasse, mas o menino se livrou dela e se pôs a trabalhar, atirando terra no buraco com as próprias mãos. Quando Clay acabou de socar a terra com a parte de trás da pá, o menino tinha os olhos vidrados de cansaço e cambaleava feito um bêbado.

     Mesmo assim, olhou para Tom.

     —      Vamos. Você prometeu.

     Clay quase esperou que ele acrescentasse: E capriche, senor, senão eu meto uma bala em você, como um bandido assassino em um faroeste de Sam Peckinpah.

     Tom foi até uma das pontas da cova — Clay achou que era a da cabeça, mas estava tão cansado que não conseguia lembrar. Nem conseguia lembrar com certeza se o nome do Diretor era Charles ou Robert. Tiras de névoa se enroscavam nos pés e tornozelos de Tom, enrolando-se nos caules de feijão mortos. Ele retirou o boné de beisebol e Alice tirou o dela. Clay levou as mãos à cabeça e se lembrou de que não estava usando nada.

     —      Isso mesmo! — exclamou Jordan. Estava sorrindo, enlouquecido pela compreensão dos fatos. — Tirem os chapéus! Tirem os chapéus para o Diretor! — Ele próprio estava com a cabeça descoberta, mas fingiu tirar um chapéu assim mesmo. Tirou-o e o agitou no ar, e Clay temeu novamente pela sanidade do garoto. — Agora o poema! Vamos, Tom!

     —      Certo — disse Tom —, mas você tem que ficar quieto. Demonstre respeito.

     Jordan colocou um dedo entre os lábios para mostrar que entendeu, e Clay viu nos olhos cheios de mágoa sobre o dedo erguido que o menino ainda não tinha perdido a cabeça. Perdera o amigo, mas não a cabeça.

     Clay esperou, curioso para ver como Tom prosseguiria. Esperava algo de Frost, talvez um fragmento de Shakespeare (certamente o Diretor aprovaria Shakespeare, mesmo que fosse apenas "Quando nós três nos reencontraremos"), talvez até algum improviso de autoria de Tom McCourt. Mas não esperava os versos que saíram da boca de Tom em uma voz baixa e precisa.

     —      Não nos prive da tua misericórdia, senhor; que teu amor e tua verdade sempre nos protejam. Pois males sem-fim nos cercam; fomos rodeados pelos nossos pecados e não podemos ver. Eles são mais numerosos do que os cabelos das nossas cabeças, e nossos corações desfalecem. Digna-te a salvar-nos Senhor; Senhor, apressate em nosso auxílio.

     Alice segurava o tênis e chorava diante da cova. Estava com a cabeça abaixada. Seus soluços eram rápidos e baixos.

     Tom continuou, com uma das mãos esticadas sobre a cova fresca, a palma para a frente, os dedos enrolados.

     —      Que todos aqueles que queiram tomar nossas vidas como esta vida foi tomada caiam em vergonha e agonia; que todos aqueles que desejam nossa ruína sejam expulsos e caiam em desgraça. Que aqueles que nos escarnecem sejam confundidos pela própria vergonha. Aqui jaz o morto, pó da terra...

     —      Sinto muito, Diretor! — gritou Jordan em uma voz tremida e aguda. — Sinto muito, não está certo, senhor, sinto muito que o senhor esteja morto... — Seus olhos rolaram para cima e ele caiu sobre a cova fresca. A névoa o cobriu com seus dedos brancos e vorazes.

     Clay o ergueu e mediu a pulsação no pescoço do menino; estava forte e regular.

     —      Foi só um desmaio. O que era aquilo que você estava falando, Tom?

     Tom parecia encabulado.

     —      Uma adaptação bem livre do Salmo 40. Vamos levá-lo para dentro.

     —      Não — disse Clay. — Se não for muito longo, termine.

     —      Sim, por favor — disse Alice. — Termine. É lindo. Como bálsamo em uma ferida.

     Tom se virou e ficou de frente para a cova novamente. Deu a impressão de estar se recompondo, mas talvez estivesse apenas voltando para o lugar.

     —      Aqui jaz o morto, pó da terra, e aqui estamos nós, os vivos, pobres e necessitados. Senhor, cuida de nós. Tu és nosso arrimo e nosso provedor. Senhor, não tardes a vir. Amém.

     —      Amém — Cfay e Alice disseram juntos.

     —      Vamos levar o garoto para dentro — disse Tom. — Está um gelo aqui fora.

     —      Você aprendeu isto com as carolas da Primeira Igreja de Cristo Redentor da Nova Inglaterra? — perguntou Clay.

     — Ah, sim — disse Tom. — Quanto mais salmos decorados, sobremesas extras. Também aprendi a mendigar nas esquinas e encher um estacionamento da Sears inteiro com panfletos do tipo Um Milhão de Anos no Inferno sem um Copo d'Água. Vamos colocar esse menino na cama. Aposto que ele vai dormir direto até as quatro da tarde de amanhã e acordar se sentindo muito melhor.

     — E se o homem da bochecha rasgada voltar e descobrir que ainda estamos aqui depois de ele ter nos mandado ir embora? — perguntou Alice.

     Clay pensou que aquela era uma boa pergunta, mas não achava que valesse a pena remoê-la por muito tempo. Ou o Homem Esfirangalhado daria mais um dia para eles, ou não. Enquanto levava Jordan para a cama no andar de cima, Clay descobriu que estava cansado demais para se importar com qualquer uma das hipóteses.

     Por volta das quatro da manhã, Alice deu um boa-noite sonolento para Clay e Tom e se arrastou para a cama. Os dois homens ficaram sentados na cozinha, bebendo chá gelado, sem conversarem muito. Não parecia haver muito a dizer. Então, logo antes da aurora, outro daqueles grunhidos altos, proferidos ao longe de modo fantasmagórico, veio do noroeste através do ar nebuloso. Oscilava como o som de um theremin em um filme de terror antigo e, quando estava começando a sumir, um grito de resposta muito mais alto veio de Gaiten, para onde o Homem Esfrangalhado levara seu novo e mais numeroso bando.

     Clay e Tom saíram pela frente, empurrando de lado a barreira de mini systems derretidos para descer os degraus da varanda. Não conseguiam enxergar nada; o mundo inteiro estava branco. Ficaram lá por um tempo e voltaram para dentro.

     Nem o grito da morte nem a resposta de Gaiten acordaram Alice e Jordan; eles podiam se sentir gratos por isso. O guia de ruas, já dobrado e com as pontas amassadas, estava na bancada da cozinha. Tom o folheou e disse:

     — Aquilo pode ter vindo de Hooksett ou Suncook. As duas são cidades de um tamanho razoável a noroeste daqui... quero dizer, de um tamanho razoável para New Hampshire. Imagino quantos eles pegaram. E como fizeram.

     Clay balançou a cabeça.

     —      Espero que tenham sido muitos — disse Tom com um sorriso fraco e insosso. — Espero que tenham sido pelo menos mil, e que tenham cozinhado bem devagar. Fico pensando numa cadeia de restaurantes qualquer que costumava anunciar "galinha assada". Nós vamos partir amanhã à noite?

     —      Acho que, se o Homem Esfrangalhado nos deixar viver o dia de hoje, não temos escolha. Você não acha?

     —      Não vejo outra saída — disse Tom —, mas vou lhe dizer uma coisa, Clay... estou me sentindo como uma vaca sendo conduzida por um corredor de zinco até o abatedouro. Quase posso sentir o cheiro do sangue dos meus irmãos bovinos.

     Clay sentia o mesmo, mas a mesma pergunta voltava à baila: se um massacre era o que eles tinham em sua mente coletiva, por que não logo ali? Poderiam tê-lo realizado na tarde do dia anterior, em vez de largarem mini systems derretidos e o tênis de estimação de Alice na varanda.

     Tom bocejou.

     —      Vou pra cama. Você consegue ficar acordado mais algumas horas?

     —      Talvez — disse Clay. Na verdade, nunca sentira tão pouca vontade de dormir na vida. Seu corpo estava exausto, mas sua mente não parava quieta. Logo começaria a se acalmar, e ele se lembraria do som que a caneta fez ao sair da órbita do Diretor: o guincho de metal contra o osso. — Por quê?

     —      Porque se eles decidirem matar a gente hoje, prefiro ir do meu jeito do que do jeito deles — respondeu Tom. — Já vi como é o deles. Concorda?

     Clay pensou que se a mente coletiva que o Homem Esfrangalhado representava tivesse realmente feito o Diretor enfiar uma caneta tinteiro no olho, os quatro inquilinos restantes da Casa Cheatham poderiam descartar suicídio como uma das opções. Porém, Tom não merecia ir para cama com aquele pensamento. De modo que ele assentiu.

     —      Vou levar todas as armas lá para cima. Você está com aquele bom e velho calibre 45, certo?

     —      O preferido de Beth Nickerson. Estou.

     —      Então, boa-noite. E, se os vir se aproximando, ou se sentir que eles estão se aproximando, grite. — Tom fez uma pausa. — Isto é, se tiver tempo. E se eles deixarem.

     Clay observou Tom sair da cozinha, pensando que ele sempre esteve um passo à sua frente. Pensando em como gostava de Tom. Pensando que gostaria de conhecê-lo melhor. Pensando que isso não era muito provável. E Johnny e Sharon? Eles nunca pareceram tão distantes.

     Às oito daquela manha, Clay se sentou num banco em um canto do jardim da vitória do Diretor, dizendo a si mesmo que, se não estivesse tão cansado, levantaria a bunda morta e faria uma espécie de lápide para o velho. Não duraria muito, mas o cara merecia, mesmo que fosse só por ter tomado conta do seu último aluno. O problema era que ele nem tinha certeza se conseguiria se levantar, cambalear para dentro da casa e acordar Tom para que ele ficasse de vigia.

     Logo eles teriam um belo e frio dia de outono — feito para colher maçãs, preparar cidra e jogar futebol americano no quintal dos fundos. Por ora, a névoa ainda estava espessa, mas o sol da manhã a atravessava vigorosamente, emprestando uma brancura deslumbrante ao pequeno mundo em que Clay estava sentado. Gotículas suspensas pendiam no ar, e centenas de pequenos arco-íris circulavam diante dos seus olhos pesados.

     Algo vermelho se materializou, saindo daquele branco incandescente. Por um instante, o moletom do Homem Esfrangalhado parecia flutuar sozinho, e então, na medida em que atravessava o jardim em direção a Clay, o rosto pardo e as mãos do seu ocupante se materializaram em cima e embaixo dele. Naquela manhã, o capuz estava levantado, emoldurando a deformidade sofridente do rosto e aqueles olhos mortos-vivos.

     Testa larga de erudito, transfigurada por um rasgo. Jeans sujos e disformes, rasgados nos bolsos e vestidos há mais de uma semana.

     HARVARD escrito no peito estreito.

     O calibre 45 de Beth Nickerson estava no cinto de Clay, guardado no coldre lateral. Ele nem chegou a tocá-lo. O Homem Esfrangalhado parou a cerca de 3 metros dele. Ele — a criatura — estava parado em cima da cova do Diretor, e Clay não achava que fosse por acaso.

     —      O que você quer? — ele perguntou ao Homem Esfrangalhado, e respondeu a si mesmo imediatamente: — Quero. Dizer.

     Clay ficou olhando para o homem, mudo de surpresa. Esperara telepatia ou nada. O Homem Esfrangalhado sorriu, da melhor forma que podia com aquele corte feio no lábio inferior, e espalmou as mãos como se dissesse: Ora, coisa fácil.

     —      Fale o que quer falar, então — disse Clay e tentou se preparar para ter a voz invadida uma segunda vez. Ele descobriu que não dava para se preparar. Era como se tivesse se transformado em um pedaço de madeira sorridente no colo de um ventríloquo.

     —      Vá. Hoje à noite. — Clay se concentrou e disse: — Cale a boca, pare!

     O Homem Esfrangalhado esperou, era a encarnação da paciência.

     —      Acho que consigo bloquear você se me esforçar — disse Clay. — Não tenho certeza, mas acho que consigo.

     O Homem Esfrangalhado esperou, o rosto dizendo: Já terminou?

     —      Prossiga — disse Clay, e então falou: — Poderia ter trazido. Mais. Vim. Sozinho.

     Clay refletiu sobre a força de vontade do Homem Esfrangalhado unida à de um bando inteiro e se deu por vencido.

   —      Vá. Hoje à noite. Norte. — Clay esperou e, quando teve certeza de que o Homem Esfrangalhado havia terminado de usar a voz dele por ora, disse: — Para onde? Por quê?

     Não houve palavras daquela vez, mas uma imagem surgiu de repente diante de Clay. Era tão clara que ele não sabia se estava em sua mente ou se o Homem Esfrangalhado a havia invocado de alguma forma na tela brilhante da névoa. Era o que eles tinham visto rabiscado em giz rosa no meio da Academy Avenue:

     KASHWAK=SEM-FO

     —      Não entendo — disse ele.

     Mas o Homem Esfrangalhado estava indo embora. Pôde ver o moletom vermelho por um instante, parecendo mais uma vez flutuar sozinho contra a névoa reluzente; então ele sumiu também. Clay ficou apenas com a pífia consolação de saber que eles iriam para o norte de qualquer maneira e que tinham ganhado mais um dia. O que significava que não havia necessidade de vigiar. Decidiu ir para cama e deixar os outros continuarem dormindo também.

    

     Jordan acordou com a cabeça no lugar, mas a lucidez nervosa desaparecera. Ele mordiscou metade de um bagel duro igual pedra e escutou com desânimo Clay contar sobre o encontro com o Homem Esfrangalhado naquela manhã. Quando Clay terminou, Jordan pegou o guia de ruas, consultou o índice no final e então abriu na página do oeste do Maine.

     —      Aqui — disse ele, apontando uma cidade em cima de Fryeburg. — Esta é Kashwak, ao leste, e Little Kashwak, a oeste, quase na divisa Maine New Hampshire. Sabia que eu tinha reconhecido o nome. Por causa do lago. — Jordan o cutucou. — Quase tão grande quanto Sebago.

     Alice aproximou o rosto para ler o nome do lago.

     —      Kash... Kashwakamak, acho que é isso.

     —      E um território não-incorporado chamado TR-90 — disse Jordan. Ele cutucou aquilo também. — Sabendo disso, fica fácil adivinhar o que significa Kashwak igual a Sem-Fo, vocês não acham?

     —      É uma zona morta, certo? — disse Tom. — Sem torres de telefonia celular, sem torres de microondas.

     Jordan abriu um sorriso fraco para ele.

      —      Bem, imagino que tenha um monte de gente com antenas parabólicas, mas fora isso... bingo.

     —      Não estou entendendo — disse Alice. — Por que eles nos mandariam para uma área sem cobertura celular onde todo mundo deve estar mais ou menos bem?

     —      Pensando assim, é melhor perguntar por que eles nos deixaram vivos pra começo de conversa — disse Tom.

     —      Talvez eles queiram nos transformar em mísseis teleguiados vivos e nos usar para bombardear o pedaço — disse Jordan. — Se livrar da gente e deles. Dois coelhos com uma cajadada só.

     Eles consideraram a hipótese em silêncio por ura instante.

     —      Vamos descobrir — disse Alice —, mas eu não vou bombardear ninguém.

     Jordan a encarou com frieza.

     —      Você viu o que eles fizeram com o Diretor. Se chegar a esse ponto, acha que vai ter alguma escolha?

    

     Ainda havia sapatos na maioria das soleiras da calçada oposta aos pilares de pedra que marcavam a entrada da Academia Gaiten, mas as portas das casas simpáticas ou estavam abertas, ou tinham sido arrancadas das dobradiças. Alguns dos mortos que eles viram espalhados naqueles gramados ao retomarem a viagem para o norte eram fonáticos, mas a maioria consistia em peregrinos inocentes, que calharam de estar no lugar errado, na hora errada. Eram os que estavam descalços, mas nem havia necessidade de olhar para os pés deles; muitas das vítimas da retaliação tinham sido literalmente desmembradas.

     Depois da escola, onde a Academy Avenue voltava a se tornar a rota 102, havia uma carnificina em ambos os lados por quase um quilômetro. Alice andava com os olhos resolutamente fechados, deixando Tom guiá-la como se fosse cega. Clay se ofereceu para fazer o mesmo por Jordan, mas ele apenas balançou a cabeça e seguiu com teimosia pelo meio da rua, um garoto magricela com uma mochila nas costas e cabelo demais na cabeça. Depois de alguns olhares rápidos para a matança, ele baixou os olhos para os tênis.

     — São centenas — disse Tom uma vez. Eram oito da noite e a escuridão era total, mas eles conseguiam ver muito mais do que queriam. Enrolada no chão em volta de uma placa de "pare" na esquina da Academy com a Spofford, havia uma garota de calças vermelhas e blusa de marinheiro branca. Não parecia ter mais de 9 anos, e estava descalça. A menos de 20 metros de distância, via-se a porta aberta da casa de onde ela provavelmente tinha sido arrastada, gritando por misericórdia. — Centenas.

     —      Talvez nem tanto — disse Clay. — Alguns da nossa gente estavam armados. Eles atiraram em uma boa quantidade desses desgraçados. Esfaquearam outros tantos. Cheguei até a ver um com uma flecha saindo da...

     —      Nós causamos isso — disse Tom. — Você acha que existe gente como nós?

     A resposta a essa pergunta veio quando eles pararam para comer o almoço frio em uma beira de estrada quatro horas mais tarde. Àquela altura, já estavam na rota 156 e, de acordo com a placa, aquilo era um mirante, com vista para a histórica Flint Hill a oeste. Clay pensou que era uma boa vista, se você estivesse almoçando lá ao meio-dia, em vez de à meia-noite, com lampiões em cada uma das quatro pontas da mesa de piquenique para poder enxergar.

     Já tinham começado a comer a sobremesa — biscoitos Oreo pas-sados — quando um grupo de meia dúzia veio andando com dificuldade, todos mais velhos. Três empurravam carrinhos de compras cheios de suprimentos e os seis estavam armados. Eram os primeiros viajantes que viam desde que haviam voltado para a estrada.

     —      Ei — chamou Tom, acenando para eles. — Tem outra mesa de piquenique aqui, se vocês quiserem sentar um pouquinho.

     Eles olharam. A mais velha das duas mulheres do grupo, estilo vovó, com montes de cabelo branco e fofo que brilhava à luz das estrelas, começou a acenar. Mas então parou.

     —      São eles — disse um dos homens, e Clay não deixou de notar a repulsa e o medo na voz dele. — É o bando de Gaiten.

     Um dos homens disse:

     —      Vá pro inferno, amigo.

     Eles seguiram caminho, andando até um pouco mais rápido, embora a vovó estivesse mancando e o homem ao lado dela tenha precisado ajudá-la a passar por um Subaru que tinha enganchado o pára-choque no de um Saturn abandonado.

     Alice saltou de pé, quase derrubando um dos lampiões. Clay agarrou o braço dela.

     —      Deixe para lá, menina.

     Ela o ignorou.

     —      Pelo menos nós fizemos alguma coisa. — gritou ela na direção do grupo. — O que vocês fizeram? O que vocês fizeram, porra?

     —      Vou dizer o que nós não fizemos — falou um dos homens. O pequeno grupo já havia passado do mirante, e ele teve que olhar por sobre os ombros para falar com Alice. Podia fazer aquilo porque a estrada estava livre de veículos abandonados por algumas centenas de metros dali em diante. — Não matamos um monte de normies. Não sei se você notou, mas existem mais deles do que da gente...

     —      Conversa fiada, você não sabe se isso é verdade! — gritou Jordan. Clay percebeu que era a primeira vez que o menino falara desde que tinham passado dos limites de Gaiten.

     —      Talvez seja, talvez não seja — disse o homem —, mas eles fazem uns trecos muito estranhos e poderosos. Isso você não pode negar. Eles dizem que vão nos deixar em paz se nós os deixarmos em paz... e se deixarmos vocês em paz. E a gente disse "tudo bem".

     —      Se você acredita no que eles dizem, ou enviam por pensamento, então é um idiota — disse Alice.

     O homem virou o rosto para frente, ergueu as mãos no ar, fez um gesto que era uma mistura de "vá à merda" e "até logo", e não disse mais nada.

     Os quatro observaram as pessoas dos carrinhos de compra sumirem de vista, então trocaram olhares na mesa de piquenique com suas iniciais antigas entalhadas.

     —      Bem, agora já sabemos — disse Tom. — Somos proscritos.

     —      Talvez não, se o povo dos celulares quer que a gente vá até onde o resto dos... do que ele os chamou?... o resto dos normies está indo — disse Clay. — Talvez sejamos outra coisa.

     —      O quê? — perguntou Alice.

     Clay tinha uma idéia, mas não gostaria de colocá-la em palavras. Não à meia-noite.

     —      Agora estou mais interessado em Kent Pond — disse ele. — Quero... preciso ver se encontro minha mulher e filho.

     —      Não é muito provável que eles ainda estejam lá, é? — perguntou Tom com sua voz baixa e gentil. — Quero dizer, independentemente de como estejam, normais ou fonóides, eles provavelmente seguiram caminho.

     — Se estiverem bem, terão deixado algum recado — disse Clay. — De qualquer forma, é um lugar para se ir.

     E, enquanto não tivessem chegado e terminado aquela etapa, ele não precisaria imaginar por que o Homem Esfrangalhado os mandaria para um lugar seguro se as pessoas lá os odiavam e temiam.

     Ou como Kashwak Sem-Fo poderia ser seguro, uma vez que o povo dos celulares sabia da existência do local.

     Eles estavam seguindo lentamente para o leste, aproximando-se da rota 19, uma estrada que os levaria para além da fronteira do estado até o Maine, mas não chegaram lá naquela noite. Todas as estradas daquela parte de New Hampshire pareciam cortar a pequena cidade de Rochester, que tinha sido consumida pelo fogo. O núcleo do incêndio ainda estava vivo, irradiando um brilho quase radioativo. Alice assumiu o comando, liderando um meio círculo para o oeste que contornava a pior parte das ruínas flamejantes. Eles viram muitas vezes KASHWAK=SEM-FO rabiscado nas calçadas; e uma vez pichado na lateral de uma caixa de correio.

     —      Isso dá uma fiança de um zilhão de dólares e prisão perpétua na baía de Guantánamo — disse Tom com um sorriso fraco.

     Aquele caminho acabou obrigando-os a atravessar o enorme estacionamento do shopping Rochester. Muito antes de chegarem, podiam ouvir o som amplificado de um trio de jazz New Age pouco inspirado tocando o tipo de coisa que Clay considerava música para fazer compras. O estacionamento estava soterrado de rios de lixo em decomposição; os carros restantes estavam até a calota de entulho. Eles sentiam o cheiro podre e orgânico de cadáveres no ar.

     —      Tem algum bando por aqui — comentou Tom.

     O bando estava no cemitério prqximo ao shopping. Eles passariam ao sul e a oeste dele, mas, quando saíram do estacionamento do shopping, estavam perto o bastante para verem os olhos vermelhos dos mini systems através das árvores.

     —      Talvez devêssemos matá-los — propôs Alice de repente quando eles voltaram para a North Main Street. — Deve ter um caminhão de gás enguiçado aqui por perto.

     —      É isso aí, baby. — disse Jordan. Ele ergueu os punhos até os lados da cabeça e os brandiu, parecendo vivo pela primeira vez desde que saíram da Casa Cheatham. — Pelo Diretor!

     —      Acho melhor não — disse Tom.

     —      Está com medo de testar a paciência deles? — perguntou Clay. Ele ficou surpreso de se ver mais ou menos a favor da idéia maluca de Alice. Não tinha dúvidas de que incendiar um outro bando era uma idéia maluca, mas...

     Ele pensou: Eu poderia fazer isso pelo simples motivo de que esta é a pior versão de "Misty" que já ouvi na vida. Não precisa nem torcer meu braço pra me convencer.

     —      Não é isso — disse Tom. Ele parecia estar pensando. — Está vendo aquela rua ali? — Ele apontava para uma avenida que seguia entre o shopping e o cemitério. Estava entulhada de carros parados. Quase todos estavam apontando na direção oposta ao shopping. Clay não teve dificuldade nenhuma para imaginar aqueles carros cheios de pessoas tentando ir para casa depois do Pulso. Pessoas que queriam saber o que estava acontecendo, e se suas famílias estavam bem. Que pegariam os telefones dos carros, os telefones celulares, sem pensar duas vezes.

     —      O que tem ela? — perguntou ele.

     —      Vamos descer um pouquinho naquela direção — disse Tom.

     — Com muito cuidado.

     —      O que você viu, Tom?

     —      Prefiro não dizer. Talvez nada. Afastem-se da calçada, fiquem debaixo das árvores. Aquele foi um belo dum engarrafamento. Vai haver corpos.

     Havia dúzias de cadáveres apodrecendo para se tornarem novamente parte do grande esquema infinito das coisas entre a Twombley Street e o cemitério West Side. Misty tinha dado lugar a uma versão melosa de Left My Heart in San Francisco quando se aproximaram das árvores, e eles conseguiam ver novamente os olhos vermelhos dos mini systems. Então Clay viu algo mais e parou.

     —      Meu Deus — ele sussurrou. Tom assentiu.

    —      O quê? — sussurrou Jordan. — O quê?

     Alice não falou nada, mas Clay percebia pela direção em que ela olhava e pelo curvar derrotado dos seus ombros que ela vira o mesmo que ele. Havia homens com rifles fazendo uma barreira de segurança em volta do cemitério. Clay virou a cabeça de Jordan e viu os ombros do menino também se curvarem.

     —      Vamos embora — sussurrou o garoto. — Esse cheiro está me deixando enjoado.

    

     Em Melrose Corner, a uns 6 quilômetros ao norte de Rochester (eles ainda conseguiam ver o brilho vermelho da cidade oscilar no horizonte ao sul), eles encontraram outra área para piquenique, daquela vez com um círculo para fogueira além de mesas. Clay, Tom e Jordan cataram lenha seca. Alice, que afirmava ter sido escoteira, provou suas habilidades fazendo uma bela fogueira e depois esquentando três latas do que chamava de "feijão de mendigo". Enquanto comiam, dois pequenos grupos de viajantes passaram por eles. Ambos olharam, ninguém em nenhum dos dois grupos acenou ou falou.

     Depois que o lobo dentro de sua barriga se acalmou um pouco, Clay disse:

     —      Você viu aqueles caras, Tom? Lá do estacionamento do shopping? Estou pensando em mudar seu nome para Olho de Águia.

     Tom balançou a cabeça.

     —      Foi pura sorte. Isso e a luz que vinha de Rochester. Das brasas.

     Clay assentiu. Todos sabiam do que ele estava falando.

     —      Calhei de olhar para o cemitério na hora certa e do ângulo certo e vi o brilho em alguns canos de rifle. Disse a mim mesmo que não podia ser o que parecia, que eram provavelmente as hastes da cerca de ferro ou algo do gênero, mas... — Tom suspirou, olhou para o resto do feijão e o empurrou de lado. — É isso aí.

    —      Talvez fossem fonáticos — disse Jordan, mas Clay notava na voz do menino que ele não acreditava naquilo.

     —      Fonáticos não fazem o turno da noite — disse Alice.

     —      Talvez precisem de menos horas de sono agora — falou Jordan. — Talvez isso faça parte da nova programação deles.

     Ouvi-lo falar daquele jeito, como se o povo dos celulares fosse composto de computadores orgânicos em algum tipo de upload cíclico, sempre arrepiava Clay.

     —      Eles também não usam rifles, Jordan — disse Tom. — Não precisam deles.

     —      Então arranjaram alguns colaboradores para cuidar deles enquanto descansam a beleza — disse Alice. Havia um desprezo frágil na voz dela, e lágrimas logo abaixo. — Espero que apodreçam no inferno.

     Clay não disse nada, mas se viu pensando nas pessoas que tinham encontrado mais cedo naquela noite, os que estavam com carrinhos de compras — no medo e repulsa na voz do homem que os chamou de bando de Gaiten. Poderiam bem ter nos chamado de gangue de Dillinger, pensou Clay. E então: Já não penso mais neles como fonáticos, e sim como um povo, o povo dos celulares. Por que isso? O pensamento que se seguiu a este foi ainda mais desagradável: Quando um colaborador deixa de ser um colaborador? Parecia-lhe que a resposta era quando os colaboradores se tornavam a maioria absoluta. Então, os que não eram colaboladores se tornavam...

     Bem, se você for um romântico, chama essas pessoas de "a resistência". Se não for, os chama de fugitivos. Ou talvez simplesmente de criminosos.

     Eles andaram até a aldeia de Hayes Station e passaram a noite em um motel caindo aos pedaços chamado Whispering Pines. De lá, dava para ver uma placa que dizia ROTA 19 11KM SANFORD THE BERWICKS KENT POND. Não deixaram os sapatos na soleira dos apartamentos que escolheram.

     Já não parecia haver necessidade.

    

     Ele estava em cima plataforma no meio daquele maldito campo novamente, de alguma forma imobilizado, o alvo de todos os olhares. A construção no esqueleto com a luz vermelha piscando no topo erguia-se no horizonte. O lugar era maior do que o estádio de Foxboro. Seus amigos estavam junto dele, em fila, mas daquela vez não estavam sozinhos. Plataformas parecidas estendiam-se pelo campo aberto. À esquerda de Tom havia uma grávida com uma camisa Harley-Davidson com as mangas cortadas. À direita de Clay, um cavalheiro idoso — não do naipe do Diretor, mas quase lá — com cabelo grisalho preso em um rabo-decavalo e uma expressão assustada no rosto longo e inteligente. Atrás dele, estava um homem mais jovem, com um boné surrado dos Miami Dolphins.

     Clay não ficou surpreso em reconhecer algumas das centenas de pessoas que via — não é assim que as coisas são nos sonhos? Em um instante, você está espremido numa cabine de telefone com a sua professora da primeira série; no outro, está transando com as três cantoras do Destiny's Child no observatório do Empire State.

     O trio do Destiny's Child não estava no sonho, mas Clay viu o rapaz nu que havia brandido as antenas de carro no ar (vestindo no sonho calças de sarja e uma camisa branca limpa), o cara de mochila que chamara Alice de senhorita e a mulher estilo vovó que mancava. Ela apontou para Clay e seus amigos, que estavam mais ou menos na linha de 50 jardas, e então falou com a mulher ao seu lado... que era, Clay notou sem surpresa, a nora grávida do Sr. Scottoni. Aquele é o bando de Gaiten, disse a vovó, e a nora grávida do Sr. Scottoni ergueu o carnudo lábio superior em um sorriso de escárnio.

     Socorro!, gritou a mulher na plataforma ao lado de Tom. Ela estava gritando para a nora do Sr. Scottoni. Eu também quero ter o meu bebê! Ajude-me!

     Você devia ter pensado nisso enquanto ainda havia tempo, respondeu a nora do sr. Scottoni; e Clay percebeu, como percebera no outro sonho, que ninguém estava de fato falando. Usavam telepatia.

     O Homem Esfrangalhado começou a subir a fila, colocando a mão na cabeça de cada pessoa que alcançava. O gesto era o mesmo que Tom fizera sobre a cova do Diretor: palma estendida, dedos enrolados. Clay pôde ver um tipo de bracelete de identificação "brilhando no pulso do Homem Esfrangalhado, talvez uma daquelas pulseiras de identidade para emergências médicas, e percebeu que havia luz ali — os holofotes estavam acesos. Viu outra coisa também. O Homem Esfrangalhado conseguia alcançar o topo da cabeça deles, embora estivessem em plataformas, porque não estava no chão. Estava andando, mas em pleno ar, a um metro de altura do solo.

     — Ecce homo... insanus — disse ele. — Eccefemina... insana. — E, todas as vezes, a multidão rugia a resposta em uníssono: "NAO TOQUE", tanto o povo dos celulares quanto os normies. Pois não havia mais diferença. No sonho de Clay, eles eram todos iguais.

     Ele acordou no fim da tarde, com o corpo enrolado em uma bola e abraçando um travesseiro de motel. Saiu e encontrou Alice e Jordan sentados no meio-fio que separava o estacionamento dos apartamentos. Alice estava com um braço em volta do menino. Jordan, com a cabeça no ombro dela, a enlaçava pela cintura. O cabelo dele estava de pé na nuca. Clay se sentou com os dois. Diante deles, a estrada que le-vava à rota 19 e ao Maine estava deserta, exceto por um caminhão da Federal Express morto na faixa branca com as portas de trás abertas e uma motocicleta acidentada. Clay se sentou com os dois.

     —      Vocês?...

     —      Eccepuer... insanus— disse Jordan, sem levantar a cabeça do ombro de Alice. — Sou eu.

     —      E eu sou a femina— disse Alice. — Clay, tem algum estádio de futebol americano enorme em Kashwak? Porque, se tiver, não vou chegar nem perto desse lugar.

     Uma porta se fechou atrás deles. Passos se aproximaram.

     —      Eu também não — disse Tom, sentando-se. — Sou o primeiro a admitir que tenho muitos problemas, mas desejo de morte nunca foi um deles.

     —      Não tenho certeza, mas não acho que exista muita coisa além de uma escola primária lá — disse Clay. — As crianças com idade para o ensino médio provavelmente vão de ônibus para Tashmore.

     —      É um estádio virtual— disse Jordan.

     —      Hein? — disse Tom. — Você quer dizer como em um jogo de computador?

     —      Quero dizer como em um computador. — Jordan ergueu a cabeça, ainda olhando para a estrada vazia que levava até Sanford, the Berwicks e Kent Pond. — Esqueça, estou me lixando para isso. Se eles não vão tocar na gente, o povo dos celulares, as pessoas normais, quem vai tocar? — Clay jamais vira uma dor tão adulta nos olhos de uma criança. — Quem vai tocar na gente?

     Ninguém respondeu.

     —      O Homem Esfrangalhado vai tocar na gente? — perguntou Jordan, erguendo um pouco a voz. — O Homem Esfrangalhado vai tocar na gente? Talvez. Porque ele está observando, eu sinto que ele está.

     —      Jordan, você está se deixando levar — disse Clay, mas a idéia tinha uma certa lógica interior estranha. Se eles receberam aquele sonho, o sonho das plataformas, então talvez ele estivesse mesmo observando. Não se manda uma carta sem ter o endereço.

     —      Não quero ir para Kashwak — disse Alice. — Pouco me importa se é uma área sem telefones ou não. Prefiro ir para... Idaho.

     —      Eu vou para Kent Pond antes de ir para Kashwak, Idaho ou qualquer outro lugar — disse Clay. — Consigo chegar lá a pé em duas noites. Gostaria que vocês me acompanhassem, mas se não quiserem, ou não puderem, vou entender.

     —      O homem precisa de uma resolução, vamos dar isso a ele — disse Tom. — Depois, podemos pensar no que fazer em seguida. A não ser que alguém tenha outra idéia.

     Ninguém tinha.

    

     As duas vias da rota 19 estavam completamente livres em alguns pequenos trechos, que às vezes chegavam a quase meio quilômetro, e isso incentivava os sprinters. Este foi o termo que Jordan cunhou para os carros semi-suicidas que passavam zunindo em alta velocidade, geralmente no meio da rua, sempre com os faróis altos acesos.

     Clay e os outros conseguiam ver as luzes se aproximando e saíam da rua depressa, pulando a mureta e entrando no mato, caso vissem acidentes ou carros parados mais adiante. Jordan passou a chamar esses obstáculos de barreiras de sprinters. O sprinter passaria voando, as pessoas dentro dele muitas vezes aos berros (e quase certamente embriagadas). Se tivesse apenas um carro parado, uma pequena barreira de sprinter, o motorista provavelmente escolheria contorná-la. Se a rua estivesse completamente bloqueada, ele talvez ainda tentasse fazer o contorno, porém, o mais provável era que o motorista e os passageiros simplesmente abandonassem o veículo e voltassem a seguir para o leste a pé, até encontrarem alguma outra coisa que valesse a pena usar como sprinter; isto é, algo rápido e temporariamente divertido. Clay pensou que viajar daquele jeito era uma babaquice... mas a maioria dos sprinters era mesmo babaca, mais um pé no saco no que se tornara um mundo pé no saco. Isso também parecia valer para Gunner.

     Ele foi o quarto sprinter na primeira noite deles na rota 19, e os viu parados no acostamento sob o brilho dos faróis. Viu Alice. Gunner colocou a cabeça para fora, cabelos negros ondeando para trás, e gritou:

     —      Chupa o meu pau, putinha adolescente!— enquanto varava a estrada em um Cadillac Escalade preto.

     Os passageiros fizeram algazarra e acenaram. Alguém gritou:

     —      Podicrê!

     Para Clay, aquilo parecia um êxtase absoluto exprimido em um sotaque de South Boston.

     —      Que lindo — foi o único comentário de Alice.

     —      Algumas pessoas não têm... — começou a falar Tom, mas antes que pudesse contar a eles o que algumas pessoas não tinham, o som de pneus cantando veio da escuridão logo à frente, seguido por um estampido alto e surdo e o tilintar de vidro.

     —      Puta merda — disse Clay e começou a correr. Antes de ele avançar 20 metros, Alice o ultrapassou.

     —      Calma, eles podem ser perigosos! — exclamou ela.

     Tom alcançou Clay, já ofegante. Jordan, correndo ao lado dele, nem suava.

     —      O que... vamos... fazer... se eles estiverem... gravemente feridos? — perguntou Tom. — Chamar... uma ambulância?

     —      Não sei — disse Clay, mas ele estava pensando em como Alice erguera uma das automáticas. Ele sabia.

      

     Eles alcançaram Alice na próxima curva da estrada. Ela estava parada atrás do Escalade. O carro estava virado de lado, com os airbags acionados. A história do acidente não era difícil de entender. O Escalade fizera a curva cega a toda, talvez a mais de 90 quilômetros por hora, e deu de cara com um caminhão de leite abandonado. O motorista, babaca ou não, conseguiu evitar bem o desastre. Estava andando zonzo em volta do utilitário esportivo arruinado, tirando o cabelo de cima do rosto. Sangue jorrava do seu nariz e de um corte na testa. Clay andou até o Escalade, os tênis raspando nos pedacinhos de vidro de segurança, e olhou para dentro. Estava vazio. Passou a lanterna pelo interior e viu sangue apenas no volante. Os passageiros tinham sido espertos o bastante para fugir do acidente, e todos, exceto um, tinham abandonado a cena, provavelmente por puro reflexo. O que ficara com o motorista era um pós-adolescente nanico, dentuço, com marcas feias de acne e cabelo ruivo longo e sujo. A falação dele fazia Clay lembrar o cachorrinho que idolatrava o Spike nos desenhos da Warner Bros.

     —      Cê tá bem, Gunnah? — perguntou ele. Clay imaginava que era assim que se pronunciava Gunner em South Boston. — Puta merda, cê tá sangrando feito um desgraçado. Caralho, achei que cê tava morto. — Então, para Clay. — Tá olhando o quê?

     —      Cala a boca — disse Clay; e, dadas as circunstâncias, até com alguma educação.

     O ruivo apontou para Clay e virou para o amigo ensangüentado.

     —      Ele é um deles, Gunnah! É um bando deles!

     —      Cala a boca, Harold — disse Gunner. Sem educação nenhuma. Então olhou para Clay, Tom, Alice e Jordan.

     —      Vamos dar um jeito na sua testa — disse Alice. Ela havia recolocado a arma no coldre e tirado a mochila. Então começou a revirá-la. — Tenho band-aids e chumaços de gaze. E também peróxido de hidrogênio, que vai arder, mas é melhor uma ardidinha do que uma infecção, certo?

     —      Levando em conta o que esse rapaz lhe chamou no caminho, você é uma melhor cristã do que eu fui no meu auge. — disse Tom.

     Ele sacara o Sr. Ligeirinho e olhava para Gunner e Harold segurando-o pela alça.

     Gunner devia ter uns 25 anos. O cabelo longo e preto de vocalista de rock estava coberto de sangue. Ele olhou para o caminhão de leite, depois para o Escalade, depois para Alice, que estava com um chumaço de gaze em uma das mãos e o frasco de peróxido de hidrogênio na outra.

     —      Tommy, Frito e aquele cara que estava sempre enfiando o dedo no nariz ralaram. — Ele inflou o pouco peito que tinha. — Mas eu fiquei! Puta merda, mermão, cê tá sangrando feito um porco.

     Alice colocou peróxido de hidrogênio no chumaço de gaze e deu um passo em direção a Gunner. Ele recuou imediatamente.

     —      Fique longe de mim. Você é veneno.

     —      São eles! — gritou o ruivo. — Dos sonhos! Num falei?

     —      Fique longe de mim — disse Gunner. — Sua puta. Todos vocês.

     Clay sentiu uma súbita vontade de atirar nele, e não ficou surpreso. Gunner tinha a aparência de um cachorro acuado e agia como tal: dentes arreganhados e preparados para morder. E não é isso que se faz com cães perigosos, quando não há outra alternativa? Você não atira neles? Porém, eles obviamente tinham uma alternativa e, se Alice podia bancar a Boa Samaritana para com o vagabundo que a chamou de putinha adolescente, ele achava que conseguiria se privar de executá-lo. Mas queria descobrir uma coisa antes de deixar aqueles dois rapazes adoráveis seguirem o caminho deles.

     —      Estes sonhos — disse ele. — Você tem um... sei lá... um tipo de guia espiritual neles? Um cara de moletom vermelho, talvez?

     Gunner deu de ombros. Rasgou um pedaço da camisa e o usou para limpar o sangue do rosto. Estava recuperando um pouco os sentidos, parecia um pouco mais consciente do que acontecera.

     —      Harvard, pode crer. Certo, Harold?

     O ruivo assentiu.

     —      É. Harvard. O negro. Mas eles não são sonhos. Se você não sabe, não adianta porra nenhuma te contar. São transmissões. Transmissões nos nossos sonhos. Se vocês não recebem, é porque são veneno. Não são, Gunnah?

     —      Vocês fizeram uma merda grossa — disse Gunner com uma voz absorta e limpou a testa. — Não toquem em mim.

     —      A gente vai ter nosso próprio lugar — disse Harold. — Não vamos, Gunnah? Lá no Maine. Todo mundo que não recebeu o Pulso tá indo pra lá, e a gente não vai ficar pra trás. Caçar, pescar, viver da porra da terra. É o que Harvard diz.

     —      E você acredita nele? — disse Alice. Ela parecia fascinada.

     Gunner ergueu um dedo que tremia um pouco.

     —      Cala a boca, sua puta.

     —      Acho melhor você calar a sua — disse Jordan. — Nós estamos armados.

     —      É melhor nem pensarem em atirar na gente! — disse Harold com a voz esganiçada. — O que você pensa que Harvard faria se vocês atirassem na gente, seu tampinha de merda?

     —      Nada — disse Clay.

     —      Você não... — começou a falar Gunner, mas, antes que pudesse prosseguir, Clay deu um passo à frente e bateu no queixo dele com o calibre 45 de Beth Nickerson. A mira na ponta do cano abriu um novo rasgo no queixo de Gunner, mas Clay esperava que aquilo fosse um remédio mais eficiente do que o peróxido de hidrogênio que o homem recusara. Nisso ele se enganou.

     Gunner caiu contra a lateral do caminhão de leite abandonado, olhando para Clay com uma expressão chocada. Harold deu um passo à frente por impulso. Tom apontou o Sr. Ligeirinho para ele e balançou a cabeça uma única e proibitiva vez. Harold se retraiu e começou a roer as pontas dos dedos sujos. Acima deles, seus olhos estavam arregalados e úmidos.

     —      Nós estamos indo — disse Clay. — Eu os aconselho a ficarem aqui pelo menos uma hora, porque não vão querer nos encontrar de novo. Estamos dando as vidas de vocês de presente. Se aparecerem na nossa frente mais uma vez, vamos tirá-las. — Ele andou de costas em direção a Tom e aos demais, ainda olhando para aquele rosto afogueado e incrivelmente cheio de sangue. Sentiu-se um pouco como o velho domador de leões Frank Buck, tentando dar conta do recado por pura força de vontade. — Mais uma coisa. Não sei por que o povo dos celulares quer todos os normies em Kashwak, mas sei o que geralmente acontece quando o gado é arrebanhado. Pensem nisso quando receberem a próxima transmissão noturna.

     —      Vá se foder — disse Gunner, mas desviou o olhar de Clay e olhou para os próprios sapatos.

     —      Venha, Clay — disse Tom. — Vamos.

     —      Não nos deixe encontrar vocês de novo, Gunner — disse Clay, mas eles deixaram.

    

     Gunner e Harold devem ter se adiantado a eles de alguma forma, talvez se arriscando a viajar 8 ou 16 quilômetros à luz do dia enquanto Clay, Tom, Alice e Jordan dormiam no State Line Motel, que ficava uns 200 metros depois da divisa do Maine. A dupla deve ter parado na área de repouso de Salmon Falls, Gunner escondendo seu novo veículo entre a meia dúzia de carros que havia sido abandonada lá. Mas isso não tinha importância. O que importava era que os dois se adiantaram a eles, os esperaram passar e então atacaram.

     Clay mal registrou o som do motor se aproximando ou o comentário de Jordan: "Lá vem um sprinter." Aquele era o seu torrão natal e, à medida que passavam por cada familiar ponto de referência — o Depósito de Lagostas Freneau a 3 quilômetros do State Line Motel, a sorveteria Shaky's Tastee Freeze do outro lado da rua, a estátua do general Joshua Chamberlain na pequena praça municipal —, ele se sentia cada vez mais como um homem tendo um sonho muito real. Só percebeu quão pouca esperança tivera de chegar em casa quando viu o grande cone de sorvete que ficava sobre a Shaky's. Ele parecia ao mesmo tempo banal e exótico, como algo saído do pesadelo de um louco, com sua ponta espiralada se erguendo em direção às estrelas.

     —      A estrada está atravancada demais para um sprinter — comentou Alice.

     Eles foram para o acostamento quando faróis se acenderam na colina às suas costas. Havia uma picape capotada pela faixa branca. Clay achou bem provável que o veículo que se aproximava fosse bater nela, mas os faróis desviaram para a esquerda um segundo depois de passar pelo topo da colina; o sprinter evitou a picape com facilidade, raspando a mureta por alguns segundos antes de voltar à estrada. Clay imaginou mais tarde que Gunner e Harold provavelmente tinham passado por aquele trecho antes, mapeando as barreiras de sprinters com atenção.

     Eles ficaram olhando, Clay mais perto das luzes que se aproximavam. Alice do lado esquerdo dele. A esquerda dela estavam Tom e Jordan. Tom com os braços casualmente em volta dos ombros de Jordan.

     — Nossa, ele está pisando fundo — disse Jordan. Sua voz não soava alarmada; era apenas uma observação. Clay também não estava alarmado. Não conseguiu prever o que estava por vir. Havia se esquecido completamente de Gunner e Harold.

     Um carro esportivo, talvez um MG, estava parado com uma metade dentro e a outra fora da estrada a uns 15 metros a oeste de onde estavam. Harold, que estava dirigindo o sprinter, desviou para evitá-lo. Foi um desvio pequeno, mas talvez tenha atrapalhado a pontaria de Gunner. Ou talvez não. Talvez Clay nunca tenha sido o alvo. Talvez ele tivesse mirado em Alice o tempo todo.

     Naquela noite, eles dirigiam um seda Chevrolet comum. Gunner estava ajoelhado no banco de trás, com o corpo para fora da janela até a cintura, segurando um bloco de concreto lascado nas mãos. Ele soltou um grito inarticulado que poderia ter vindo direto de um balão de uma das revistas em quadrinhos que Clay desenhara como freelance — Yahhhhhh!— e atirou o bloco. O pedaço de concreto descreveu sua rota curta e mortal pela escuridão e acertou Alice no lado da cabeça. Clay nunca se esqueceu do som que ele fez. A lanterna que ela segurava — que teria feito dela um alvo perfeito, embora todos estivessem com uma — caiu da sua mão relaxada e desenhou um cone de luz sobre o asfalto, iluminando cascalhos e um pedaço de vidro de lanterna traseira que reluziu como um rubi falso.

     Clay caiu de joelhos ao lado de Alice, chamando o nome dela, mas não conseguia se ouvir em meio ao rugido súbito do Sr. Ligeirinho, que finalmente estava sendo testado. Os flashes do cano da arma entrecortaram a escuridão, permitindo-o ver o sangue jorrando do lado esquerdo do rosto — oh, Deus, que rosto — dela.

     Então os tiros pararam. Tom estava gritando: "O cano foi pra cima, não conseguia baixá-lo, acho que atirei a porra do cartucho inteiro para o céu", e Jordan gritava: "Ela está machucada? Ele acertou?", e Clay pensou em como ela se oferecera para colocar o peróxido de hidrogênio na testa de Gunner para depois enfaixá-la. Melhor uma ardidinha do que uma infecção, certo?, dissera Alice, e ele tinha que estancar o sangue. Tinha que estancá-lo imediatamente. Clay tirou a jaqueta que estava vestindo e então o suéter. Usaria o suéter, o enrolaria em volta da cabeça dela como a porra de um turbante.

     A lanterna oscilante de Tom caiu sobre o bloco de concreto e parou. Estava coberto de sangue e cabelos. Jordan o viu e começou a berrar. Clay, ofegante e suando desesperadamente, a despeito do ar frio da noite, começou a enrolar o suéter em volta da cabeça de Alice. Ficou encharcado na mesma hora. Ele parecia estar usando luvas quentes e úmidas. Então, a lanterna de Tom encontrou Alice, a cabeça dela envolvida no suéter até o nariz, deixando-a parecida com um prisioneiro de extremistas islâmicos em uma foto da Internet — a bochecha (o que restava da bochecha) e o pescoço imersos em sangue —, e Clay também começou a gritar.

     Ajudem-me, ele queria dizer. Parem com isso vocês dois e me ajudem aqui. Mas a voz não saía e tudo o que Clay podia fazer era pressionar o suéter ensopado contra o lado esponjoso da cabeça dela, lembrando-se de que Alice também estava sangrando quando eles a conheceram, pensando que se ela tinha ficado bem daquela vez também ficaria nessa.

     As mãos dela estavam se contorcendo desvairadamente, os dedos respingando sangue na poeira do acostamento. Alguém dê a ela aquele tênis, pensou Clay, mas o tênis estava na mochila e Alice estava deitada em cima dela. Deitada com o lado da cabeça esmagado por alguém que tinha uma pequena dívida para acertar. Ele viu que os pés dela também estavam se debatendo, e ainda conseguia sentir o sangue jorrar, atravessando o suéter e cobrindo suas mãos.

     Aqui estamos nós, no fim do mundo, pensou Clay. Ele ergueu os olhos para o céu e viu a estrela vespertina.

    

     Ela nunca chegou a desmaiar e tampouco recuperou completamente a consciência. Tom conseguiu se controlar e ajudou a carregá-la ladeira acima no lado da rua em que estavam. Havia árvores ali — o que Clay lembrava ser um pomar de macieiras. Ele achava que já tinha vindo ali com Sharon uma vez para colher maçãs, quando Johnny era bem pequeno. Quando as coisas estavam bem entre eles e não havia discussões sobre dinheiro e ambições para o futuro.

     —      Não se deve mover as pessoas quando elas estão com ferimentos graves na cabeça — queixou-se Jordan, andando atrás deles e carregando a mochila de Alice.

     —      Não precisamos nos preocupar com isso — disse Clay. — Ela não vai sobreviver, Jordan. Não nesse estado. Acho que nem um hospital poderia fazer muito por ela. — Ele viu o rosto de Jordan começar a se contorcer. Havia luz o suficiente para enxergar. — Sinto muito.

     Eles a deitaram na grama. Tom tentou fazê-la beber de uma garrafa de água mineral com dosador e ela até aceitou um pouco. Jordan deu-lhe o tênis, o Nike de bebê, e ela o aceitou também, apertando-o, manchando-o de sangue. Então esperaram Alice morrer. Esperaram aquela noite inteira.

    

     Ela disse:

     —      Papai falou que eu posso ficar com o resto, então não coloque a culpa em mim.

     Isso foi por volta das 11. Ela estava deitada com a cabeça na mochila de Tom, que ele havia enchido com um cobertor de motel que pegara no Sweet Valley Inn. Aquilo tinha sido nos arredores de Methuen, no que parecia ter sido em outra vida. Numa vida melhor, na verdade. A mochila já estava encharcada de sangue. Com o olho que restava, Alice olhou para as estrelas. Estava com a mão esquerda aberta na grama ao seu lado. Não se mexia há mais de uma hora. A mão direita apertava o tênis incansavelmente. Apertava... e soltava. Apertava... e soltava.

     —      Alice — disse Clay. — Você está com sede? Quer um pouco mais de água?

     Ela não respondeu.

      

     Às 3h30, na calada da noite, Alice falou:

     —      Ah, mamãe, que pena. As rosas murcharam, o jardim morreu. — Então a voz dela ficou mais animada. — Vamos ter neve? Vamos fazer um forte, vamos fazer uma folha, vamos fazer um pássaro, vamos fazer uma mão, vamos fazer uma azul, vamos... — E perdeu o fio da meada, olhando para as estrelas que giravam no céu noturno como um relógio. A noite estava fria. Eles a haviam agasalhado. Cada respiração dela saía na forma de um vapor branco. O sangramento finalmente parara. Jordan se sentou perto dela, afagando-lhe a mão esquerda, a que já estava morta e esperava o resto a alcançar.

     —      Toque aquela música gostosa que eu curto — disse ela. — Aquela de Hall & Oates.

    

     Às 4h40, ela disse:

     —      É o vestido mais bonito do mundo. — Estavam todos reunidos em volta dela. Clay tinha dito que achava que ela estava morrendo.

     —      Qual é a cor dele, Alice? — perguntou Clay, sem esperar resposta, mas ela respondeu.

     —      Verde.

     —      E quando você vai usá-lo?

     —      As senhoras vêm até a mesa — disse ela. Ainda apertava o tênis na mão, porém, mais devagar. O sangue no lado do rosto tinha secado, ganhando uma aparência esmaltada. — As senhoras vêm até a mesa, as senhoras vêm até a mesa. O Sr. Ricardi fica no posto dele e as senhoras vêm até a mesa.

     —      Tudo bem, querida — disse Tom baixinho. — O Sr. Ricardi ficou no posto dele, não ficou?   

     —      As senhoras vêm até a mesa. — Alice virou o olho que restava para Clay, e pela segunda vez ela falou naquela outra voz. Na voz que ele ouvira saindo da própria boca. Apenas quatro palavras daquela vez. — Estamos com seu filho.

     —      É mentira — sussurrou Clay. Estava com os punhos cerrados e teve que se conter para não atacar a garota moribunda. — Seu desgraçado, é mentira.

     —      As senhoras vêm até a mesa e nós tomamos chá — disse Alice.

    

     O primeiro fio de luz começara a surgir ao leste. Tom se sentou ao lado de Clay e colocou hesitante a mão no braço dele.

     —      Se eles lêem mentes — disse ele —, podem ter descoberto que você tem um filho e que está preocupadíssimo com ele com a mesma facilidade que a gente procura alguma coisa no Google. Aquele cara pode estar usando Alice pra ferrar contigo.

     —      Eu sei disso — disse Clay. Sabia também de outra coisa: o que ela dissera na voz de Harvard era muito plausível. — Sabe em quê eu não consigo parar de pensar?

     Tom balançou a cabeça.

     —      Quando ele era pequeno, 3 ou 4 anos de idade, na época em que Sharon e eu ainda nos dávamos bem e o chamávamos de Johnny-Gee, ele vinha correndo toda vez que o telefone tocava. Ele gritava: "Pra-pramim-mim?" A gente se escangalhava de rir. E se fosse a vovó ou o vovô de Johnny, nós falávamos: "Pra-pravo-você", e passávamos a ligação. Ainda me lembro como aquele negócio parecia grande nas mãozinhas dele...

     —      Clay, pare.

     —      E agora... agora... — Ele não conseguia prosseguir. E não precisava.

     —      Venham cá, vocês dois! — chamou Jordan. Havia angústia na sua voz. — Depressa!

     Eles voltaram para onde Alice estava deitada. Ela se levantara em convulsão a espinha descrevendo um arco rígido e trêmulo. O olho que restava, esbugalhado; os lábios com os cantos para baixo. Então, de repente, ela ficou toda relaxada. Falou um nome que não significava nada para eles — Henry — e apertou o tênis uma última vez. Então os dedos se afrouxaram e ele se soltou. Um suspiro e uma última nuvem branca, muito tênue, saíram de seus lábios entreabertos.

     Jordan olhou de Clay para Tom, e então de volta para Clay.

     —      Ela está?...

     —      Sim — respondeu Clay.

     Jordan irrompeu em lágrimas. Clay permitiu que Alice olhasse mais alguns segundos para as estrelas que esmaeciam, e então fechou o olho dela com a base da mão.

    

     Havia uma casa de fazenda perto do pomar. Eles encontraram pás em uma das barracas e a enterraram sob uma macieira, com o pequeno tênis na mão. Os três concordaram que era o que ela gostaria que fizessem. A pedido de Jordan, Tom recitou mais uma vez o Salmo 40, embora daquela vez tenha tido dificuldade em terminá-lo. Todos compartilharam uma lembrança sobre Alice. Durante aquela parte do funeral improvisado, um bando do povo dos celulares — pouco numeroso — passou ao norte de onde estavam. Viram o que estava acontecendo, mas não deram importância. Aquilo não surpreendeu nem um pouco Clay. Eles eram loucos, não deveriam ser tocados... e Clay tinha certeza de que Gunner e Harold ficariam sabendo da tristeza deles.

     Eles dormiram a maior parte das horas do dia na casa de fazenda, então seguiram para Kent Pond. Clay já não esperava mais encontrar o filho lá, mas não perdera a esperança de ter notícias de Johnny, ou talvez de Sharon. Apenas saber que ela estava viva talvez diminuísse um pouco da tristeza que sentia, uma sensação tão pesada que parecia envergá-lo como um manto feito de chumbo.

      

    

     KENT POND

      

     A casa antiga de Clay — a casa em que Johnny e Sharon estavam morando no momento do Pulso — ficava na Livery Lane, duas quadras ao norte do semáforo morto que marcava o centro de Kent Pond. Era o tipo de imóvel que alguns anúncios imobiliários chamavam de "para reformar" e outros de "casa provisória". A piada entre Clay e Sharon — antes da separação — era que aquela "casa provisória" provavelmente seria também a "casa de repouso" dos dois. E, quando ela ficou grávida, eles pensaram em chamar o bebê de Olivia, se ele fosse do que Sharon chamava de "gênero feminino". Assim, ela disse, eles teriam a única Liwie da Livery Lane. E se escangalharam de rir.

     Clay, Tom e Jordan — um Jordan pálido, um Jordan calado e pensativo, que precisava quase sempre ouvir uma pergunta duas ou três vezes antes de responder — chegaram ao cruzamento da Main com a Livery Lane poucos minutos depois da meia-noite, numa noite de ventania na segunda semana de outubro. Clay olhava freneticamente para o sinal de trânsito na esquina de sua antiga rua, onde aparecera como visitante pelos últimos quatro meses. As palavras ENERGIA NUCLEAR. ainda estavam pichadas lá, como antes de ele viajar para Boston. PARE... ENERGIA NUCLEAR. PARE... Ele não conseguia ver sentido naquilo. Não era uma questão de significado, que estava bem claro; era apenas am protesto político espertinho (se procurasse, provavelmente encontraria a mesma coisa escrita em cima de sinais de trânsito na cidade inteira, talvez em Springvale e Acton, também), mas não compreendia como o sentido daquilo poderia ser o mesmo, quando o mundo inteiro havia mudado. De alguma maneira, Clay achava que, se olhasse para aquilo com intensidade suficiente, uma passagem apareceria, uma espécie de túnel de ficção científica, e ele mergulharia no passado, e tudo aquilo seria desfeito. Toda aquela escuridão.

     —      Clay — perguntou Tom. — Você está bem?

     —      Essa é a minha rua — disse Clay, como se aquilo explicasse tudo, e então, sem saber o que estava fazendo, começou a correr.

     Livery Lane era uma rua sem saída. Todas as ruas daquela parte da cidade terminavam na encosta da colina Kent, que na verdade era uma montanha erodida. Carvalhos pendiam dela e a rua estava cheia de folhas mortas que estalavam sob o pé de Clay. Também havia um monte de carros parados, e dois com as grades encalacradas em um beijo mecânico vigoroso.

     —      Para onde ele está indo? — gritou Jordan atrás dele. Clay odiava o medo que ouvia na voz do menino, mas não podia parar.

     —      Ele está bem — disse Tom. — Deixe-o ir.

     Clay desviou dos carros parados, o facho da sua lanterna dançando e furando a escuridão à sua frente. Um dos golpes de luz acertou o rosto do Sr. Kretsky. O Sr. Kretsky sempre tinha um doce para Johnny nos dias que ele ia cortar o cabelo, quando Johnny era Johnny-Gee, só um menininho que costumava gritar pra-pramim-mim quando o telefone tocava. O homem estava deitado na calçada em frente à sua casa, meio enterrado pelas folhas de carvalho e aparentemente sem o nariz.

     Não posso encontrá-los mortos. Esse pensamento retumbava na cabeça dele repetidas vezes. Não depois de Alice. Não posso encontrá-los mortos. E então, de forma abominável (porém, nos momentos de estresse a mente quase sempre fala a verdade): E se tiver que encontrar um deles morto... que seja ela.

     A casa deles era a última à esquerda11 (como ele sempre costumava lembrar Sharon, com uma risada macabra para combinar — muito depois de a piada perder a graça, na verdade),11 e a entrada para carros subia para o abrigo reformado que comportava apenas um veículo. Clay já estava sem fôlego, mas não diminuiu o ritmo. Subiu correndo a pista, chutando as folhas à sua frente e sentindo uma fisgada começar a subir pelo lado direito do corpo, além de um gosto de cobre no fundo da boca, onde sua respiração parecia chiar. Ele ergueu a lanterna e iluminou o interior da garagem.

     Vazia. A questão era: aquilo era bom ou ruim?

     Ele se virou, viu as luzes de Tom e Jordan balançando na direção dele lá embaixo e iluminou a porta dos fundos. O que viu fez seu coração saltar até a garganta. Subiu correndo os três degraus até o alpendre e quase varou a porta de proteção com a mão ao arrancar o bilhete do vidro. Estava preso pela beiradinha da fita adesiva; se tivessem chegado uma hora mais tarde, talvez até meia hora, o vento incansável da noite o teria levado embora. Ele poderia matá-la por ser tão descuidada, uma desatenção daquelas era tão típica de Sharon, mas pelo menos...

     O bilhete não era da mulher dele.

     Jordan subiu a entrada para carros e parou diante dos degraus com a luz em cima de Clay. Tom veio andando atrás com dificuldade, respirando pesado e fazendo uma barulheira à medida que arrastava os pés pelas folhas. Ele parou ao lado de Jordan e pousou a própria lanterna em cima do papel desdobrado na mão de Clay. Em seguida, ergueu o facho de luz lentamente até o rosto estupefato dele.

     — Esqueci da porra da diabete da mãe dela — disse Clay e entregou aos dois o bilhete que tinha sido colado com fita adesiva à porta. Tom e Jordan leram juntos:

    

    

    

    

     Papai,

    

     Aconteceu uma coisa ruim como você deve saber, espero que você esteja bem e que leia isso. Mitch Steinman e George Gendron estão comigo, as pessoas estão ficando malucas a gente acha que são os celulares. Papai agora é a parte ruim, a gente veio pra cá porque eu estava com medo. Eu ia quebrar o meu se eu estivesse errado, mas eu não estava errado, ele não estava lá. A mamãe tem levado ele porque a vovó está doente você sabe e ela queria ficar checando. Tenho que ir, meu Deus estou com medo, alguém matou o Sr. Kretsky. Tem um monte de gente morta e maluca igual num filme de terror mas a gente ficou sabendo que as pessoas estão se juntando (pessoas NORMAIS) na prefeitura e é pra lá que a gente está indo. Talvez mamãe esteja lá mas meu Deus ela tá com o meu TELEFONE. Papai se você estiver bem, POR FAVOR VENHA ME BUSCAR.

    

     Seu filho, John Gavin Riddell

    

     Tom terminou de ler e falou em um tom de advertência gentil que horrorizou Clay mais completamente do que qualquer comentário cruel o faria.

     —      Você sabe que as pessoas que se reuniram na prefeitura provavelmente tomaram caminhos diferentes, não sabe? Faz dez dias, e o mundo passou por uma turbulência horrorosa.

     —      Eu sei — disse Clay. Seus olhos ardiam e ele sentia a voz começando a vacilar. — E sei que a mãe dele provavelmente está... — Ele deu de ombros e brandiu a mão trêmula para o mundo escuro que descia para além da entrada para carros coberta de folhas. — Mas, Tom, eu preciso ir até a prefeitura ver. Talvez tenham deixado notícias. Ele pode ter deixado notícias.

     —      Sim — disse Tom. — É claro que precisa. E quando chegarmos lá, podemos decidir o que fazer em seguida. — Ele falou naquele mesmo tom de terrível gentileza. Clay quase preferiu que ele tivesse gargalhado e dito algo como: Ora, seu idiota, você acha mesmo que vai vê-lo novamente? Caia na real.

     Jordan lera o bilhete uma segunda vez, talvez uma terceira e uma quarta. Mesmo naquele estado de horror e agonia, Clay teve vontade de pedir desculpas a ele pelos erros de ortografia e estilo de Johnny — lembrando-o de que o filho possivelmente tinha escrito aquilo sob um estresse terrível, curvado no alpendre, enquanto seus amigos assistiam ao caos correr solto lá embaixo.

     Então, Jordan baixou o bilhete e disse:

     —      Como é o seu filho?

     Clay quase perguntou por quê, mas então decidiu que não queria saber. Pelo menos ainda não.

     —      Johnny é quase 30 centímetros mais baixo do que você. Atarracado. Cabelo castanho-escuro.

     —      Não é magrelo. Nem louro.

     —      Não, esse parece mais George, um amigo dele.

     Jordan e Tom trocaram um olhar. Foi um olhar grave, mas Clay achou que havia alívio nele também.

     —      O quê? — perguntou ele. — O quê? Falem pra mim.

     —      Do outro lado da rua — disse Tom. — Você não viu porque estava correndo. Tem um menino morto umas três casas antes daqui. Magrelo, louro, com uma mochila vermelha...

     —      É George Gendron — disse Clay. Ele conhecia a mochila vermelha de George tão bem quanto a azul com tiras espelhadas de Johnny. — Ele e Johnny construíram uma vila de peregrinos juntos para o projeto de História da quarta série. Tiraram dez. George não pode estar morto. — Mas era quase certo que estivesse. Clay se sentou no alpendre, que rangeu daquele jeito familiar com o seu peso, e colocou o rosto entre as mãos.

     A prefeitura ficava no cruzamento da Pond com a Mill Street, em frente à praça municipal e à lagoinha que dava nome à cidadezinha. O estacionamento estava quase vazio, exceto pelas vagas reservadas para os funcionários, pois ambas as ruas que levavam ao grande prédio vitoriano estavam engarrafadas com veículos parados. As pessoas haviam chegado o mais perto possível e então andado o restante do caminho. Para os retardatários como Clay, Tom e Jordan, o progresso era lento. A duas quadras da prefeitura, nem mesmo os gramados estavam livres de carros. Meia dúzia de casas tinham queimado. Algumas ainda estavam fumegantes.

     Clay havia coberto o corpo do menino na Livery Lane — tinha sido de fato George, — o amigo de Johnny —, mas eles não podiam fazer nada pelos vários mortos inchados e putrefatos que encontraram enquanto seguiam lentamente em direção à prefeitura de Kent Pond. Havia centenas deles, porém, no escuro, Clay não viu ninguém conhecido. Talvez também não tivesse visto se fosse dia. Os corvos tiveram trabalho de sobra na última semana e meia.

     A mente de Clay continuava voltando a George Gendron, que fora encontrado de bruços em uma poça coagulada de sangue e folhas. No bilhete, Jordan havia dito que George e Mitch, o outro amigo que fizera naquele ano, na sétima série, tinham estado com ele. Então, o que quer que tenha acontecido com George deve ter acontecido depois de Johnny colar o bilhete na porta de proteção e os três saírem da casa dos Riddell. E, uma vez que apenas George estava em meio àquelas folhas ensangüentadas, Clay poderia supor que Johnny e Mitch haviam saído da Livery Lane vivos.

     É claro que supor é coisa de gente idiota, pensou ele. O evangelho segundo Alice Maxwell, que ela descanse em paz.

     E era verdade. O assassino de George pode ter perseguido os dois e os pegado em algum outro lugar. Na Main Street, ou na Dugway Street, talvez próximo ao Laurel Way. Tê-los furado com um cutelo ou com duas antenas de carro...

     Eles chegaram à entrada do estacionamento da prefeitura. À esquerda, havia uma picape que tentara alcançar o prédio por terra e acabou atolada em uma vala pantanosa a menos de um metro e meio de um pedaço de asfalto civilizado (e praticamente deserto). À direita, havia uma mulher com a garganta rasgada e o rosto transformado em uma massa de buracos pretos e filetes de sangue pelas bicadas dos pássaros. Ainda estava com o boné de beisebol dos Portland Sea Dogs e a bolsa pendurada no braço.

     Os assassinos não estavam mais interessados em dinheiro.

     Tom colocou a mão no ombro de Clay, assustando-o.

     —      Pare de pensar no que pode ter acontecido.

     —      Como você sabia...

     —      Não preciso saber ler mentes. Se você encontrar seu filho, o que eu acho difícil, mas se encontrar tenho certeza de que ele vai lhe contar tudo. Se não for assim... tem alguma importância?

     —      Não. É claro que não. Mas Tom... eu conhecia George Gendron. As crianças costumavam chamá-lo de Connecticut às vezes, por que a família dele veio de lá. Ele comia cachorros-quentes e hambúrgueres no nosso jardim. O pai dele costumava ir lá em casa para assistir aos jogos dos Patriots comigo.

     —      Eu sei — disse Tom. — Eu sei. — E então com rispidez para Jordan: — Pare de olhar para a mulher, Jordan, ela não vai se levantar e sair andando.

     Jordan o ignorou e continuou olhando para o cadáver bicado pelos corvos com o boné dos Sea Dogs.

     —      Os fonóides começaram a cuidar uns dos outros assim que readquiriram algum nível básico de programação — disse ele. — Mesmo quando apenas os retiravam debaixo das arquibancadas e jogavam no pântano, estavam tentando fazer alguma coisa. Mas eles não tomam conta dos nossos. Deixam os nossos apodrecendo em qualquer lugar. — Ele se virou para encarar Clay e Tom. — Não importa o que digam ou prometam, não podemos confiar neles — disse ele com raiva.

     —      Não podemos, certo?

     —      Concordo plenamente — disse Tom.

     Clay assentiu.

     —      Eu também.

     Tom meneou a cabeça em direção à prefeitura, onde algumas luzes de emergência com baterias de longa duração ainda estavam acesas, jogando um brilho amarelo doentio sobre os carros dos empregados, que estavam parados sobre rios de folhas.

     —      Vamos entrar lá e ver o que eles deixaram para trás.

     —      Sim, vamos. — disse Clay. Tinha certeza de que Johnny não estaria lá, mas uma pequena parte dele, pequena e infantil, que nunca se dá por vencida, ainda esperava ouvir um grito de "papai" e ver o filho pular nos seus braços, uma coisa viva, com peso de verdade em meio àquele pesadelo.

    

     Eles não tiveram mais dúvidas de que a prefeitura estava vazia quando viram o que estava pintado nas portas duplas. Sob o brilho fraco das luzes de emergência, às demãos grossas e desleixadas de tinta vermelha pareciam mais sangue seco:

     KASHWAK=SEM-FO

     —      A que distância fica essa Kashwak? — perguntou Tom.

     Clay calculou de cabeça.

     —      Eu diria uns 130 quilômetros, quase direto para o norte. Você pega a rota 160 a maior parte do caminho, mas quando chega ao TR não sei mais.

     Jordan perguntou:

     —      O que exatamente é um TR?

     —      TR-90 é um território não-incorporado. Existem algumas vilas, algumas pedreiras e uma reserva minúscula da tribo Micmac mais ao norte, mas é quase tudo floresta, urso e veado. — Clay mexeu na maçaneta e a porta se abriu. — Vou dar uma olhada neste lugar. Vocês realmente não precisam entrar se não quiserem... estão dispensados.

     —      Não, nós vamos entrar — disse Tom. — Não vamos, Jordan?

     —      Com certeza. — Jordan suspirou como um garoto confrontado com uma tarefa possivelmente difícil. Então sorriu. — Ei, luzes elétricas. Quem sabe quando vamos ver uma dessas de novo?

     Nenhum Johnny Riddell saiu em disparada de um quarto escuro para se jogar nos braços do pai, mas a prefeitura ainda recendia a comida, que tinha sido preparada nas grelhas a gás e hibachis pelas pessoas que haviam se reunido lá depois do Pulso. Fora do grande salão principal, no mural longo em que geralmente ficavam notícias sobre a cidade e seus próximos eventos, talvez duzentos bilhetes haviam sido afixados. Clay, quase ofegante de tensão, começou a examiná-los com o fervor de um estudioso que acredita ter encontrado o evangelho perdido de Maria Madalena. Tinha medo do que poderia encontrar e do que poderia não encontrar. Tom e Jordan se retiraram educadamente para o salão de reuniões principal, que ainda estava entulhado de restos dos refugiados. Aparentemente eles tinham passado várias noites ali, esperando um resgate que nunca chegou.

     Nos bilhetes afixados, Clay viu que os sobreviventes haviam começado a acreditar que um resgate não era a única esperança. Por que aquela cidadezinha em especial, quando todo o TR-90 (certamente os quadrantes norte e oeste) não tinha cobertura de transmissão e recepção para celulares? Os bilhetes no mural não deixavam isso claro. A maior parte parecia supor que qualquer pessoa que os lesse não precisaria de explicações; era um caso de "todo mundo sabe, todo mundo está fazendo". E mesmo o mais claro dos correspondentes tinha obviamente lutado para manter o equilíbrio entre o horror e o entusiasmo. A maioria das mensagens não passava de siga a Estrada de Tijolos Amarelos em direção a Kashwak e à salvação o mais rápido possível.

     Quase no fim do mural, com a metade escondida por um bilhete de íris Nolan, uma moça que Clay conhecia muito bem (ela havia sido voluntária na pequena biblioteca da cidade), ele viu uma folha com o garrancho redondo e familiar do filho e pensou: Oh, bom Deus, obrigado. Muito obrigado. Arrancou-o da parede, tomando cuidado para não rasgá-lo.

     A data no bilhete era 3 de outubro. Clay tentou se lembrar de onde estivera na noite de 3 de outubro, sem muito sucesso. Teria sido no celeiro em North Reading, ou no Sweet Valley Inn, perto de Methuen? Achava que era o celeiro, mas não conseguia ter certeza absoluta — estava tudo embolado e, se ele pensasse demais, começava a parecer que o homem com as lanternas nos lados da cabeça era o mesmo que o rapaz brandindo as antenas de carro; que o Sr. Ricardi tinha se matado engolindo vidro quebrado em vez de se enforcado; e que tinha sido Alice no jardim de Tom, comendo pepinos e tomates.

     — Pare — sussurrou ele e se concentrou no bilhete. Tinha menos erros de ortografia e estava um pouco mais bem redigido, mas o sofrimento nele era inconfundível.

    

     3 de out. Querido papai,

     Espero que esteja vivo e que receba esse bilhete. Eu e Mitch chegamos bem, mas Hughie Darden pegou George, e acho que matou ele. Eu e Mitch conseguimos correr mais rápido. Fiquei achando que a culpa era minha, mas Mitch disse você não tinha como saber que ele era um Fonóide como os outros e a culpa não é sua.

     Papai, agora vem o pior. Mamãe é um deles. Eu a vi com um dos "bandos" hoje. (É assim que estão chamando eles, bandos.) Ela não está tão mal quanto os outros, mas sei que se saísse ela nem ia me reconhecer e me mataria assim que me visse. SE VOCÊ A VIR, NÃO SE DEIXE ENGANAR, SINTO MUITO MAS É VERDADE.

     Estamos indo para Kashwak (é para o norte) amanhã ou depois de amanhã, a mãe de Mitch está aqui e eu estou morrendo de inveja dele. Papai, eu sei que você não tem um celular e todo mundo sabe que Kashwak é um lugar seguro. Se você receber esse bilhete, POR FAVOR VENHA ME BUSCAR.

     Eu te amo de todo Coração,

     Seu filho,

     John Gavin Riddell

    

     Mesmo depois da notícia sobre Sharon, Clay estava agüentando firme até chegar ao Eu te amo de todo Coração. Talvez tivesse agüentado firme do mesmo jeito, não fosse por aquele C maiúsculo. Ele beijou a assinatura do filho de 12 anos, olhou para o mural com olhos que tinham se tornado inconfiáveis — as coisas se duplicaram, triplicaram e então se separaram completamente — e soltou um grito rouco de dor. Tom e Jordan vieram correndo.

     —      O que foi, Clay? — perguntou Tom. — O que aconteceu? —

     Ele viu a folha de papel, uma página amarela com pautas, arrancada de um bloco de anotações, e a pegou das mãos de Clay. Ele e Jordan passaram os olhos por ela rapidamente.

     —      Eu vou para Kashwak — disse Clay com a voz rouca.

     —      Clay, não acho que essa seja uma boa idéia — disse Jordan, com cautela. — Levando em consideração o que nós fizemos na Academia Gaiten.

     —      Não me importo. Eu vou para Kashwak. Vou encontrar meu filho.

     Os refugiados que haviam se abrigado na prefeitura de Kent Pond deixaram uma boa quantidade de suprimentos para trás quando desfizeram o acampamento, provavelmente em massa, para o TR-90 e Kashwak. Clay, Tom e Jordan fizeram uma refeição que consistia em pão dormido com salpicão de frango enlatado e salada de frutas enlatada de sobremesa.

     Quando estavam terminando, Tom se inclinou para Jordan e murmurou alguma coisa. O menino assentiu.

     —      Você nos daria licença por alguns minutos, Clay? Jordan e eu precisamos ter uma conversinha.

     Clay assentiu. Quando eles foram embora, ele abriu outra lata de salada de frutas e releu a carta de Johnny nove ou dez vezes. Estava bem perto de memorizá-la. Lembrava-se da morte de Alice com a mesma clareza, mas aquilo já parecia ter acontecido em outra vida, e a uma versão diferente de Clayton Riddell. Um rascunho anterior, por assim dizer.

     Ele terminou a refeição e guardou a carta assim que Tom e Jordan voltaram do hall, onde tinham feito o que Clay imaginava que advogados chamavam de consulta paralela, na época em que havia advogados. Tom estava mais uma vez com o braço em volta dos ombros estreitos de Jordan. Nenhum dos dois parecia feliz, mas ambos pareciam calmos.

     —      Clay — começou a falar Tom —, nós conversamos sobre o assunto e...

     —      Vocês não querem ir comigo. Entendo perfeitamente.

     Jordan falou:

     —      Sei que ele é seu filho e tudo, mas...

     —      E sabe que eu sou a única coisa que lhe restou. A mãe dele... — Clay riu, uma única risada desprovida de humor. — A mãe dele. Sharon. É irônico. Depois de tanto me preocupar com Johnny recebendo uma transmissão daquela maldita cascavel vermelha. Se tivesse que escolher um, escolheria Sharon. — Pronto, ele colocou para fora. Como um pedaço de carne preso na garganta que estava ameaçando sufocá-lo. — E sabe como estou me sentindo? Como se tivesse oferecido um pacto ao diabo, e o diabo tivesse vindo me atender.

     Tom ignorou aquilo. Quando falou, foi com cautela, como se estivesse com medo de explodir Clay como uma mina terrestre não detonada.

     —      Eles nos odeiam. Começaram odiando todo mundo, e então progrediram até odiarem só a gente. O que quer que esteja acontecendo lá em Kashwak, se é idéia deles, boa coisa não pode ser.

     —      Se eles estão se encaminhando para um nível superior, talvez cheguem ao estágio de viva-e-deixe-viver — disse Clay. Aquilo era inútil, com certeza os dois entendiam isso. Ele tinha que ir.

     —      Duvido — disse Jordan. — Lembra aquele negócio sobre um corredor conduzindo ao matadouro?

     —      Clay, nós somos normies, esse é o primeiro problema — disse Tom. — A gente queimou um bando deles. Esse é o segundo e o terceiro problema juntos. Viva e deixe viver não se aplica no nosso caso.

     —      E por que deveria? — acrescentou Jordan. — O Homem Esfrangalhado diz que somos loucos.

     —      E que não devemos ser tocados — disse Clay. — Então eu vou ficar bem, certo?

     Depois disso, não parecia haver mais nada a dizer.

    

     Tom e Jordan decidiram pegar o caminho para o oeste. Atravessaram New Hampshire até Vermont, deixando KASHWAK = SEM-F0 para trás — e para além do horizonte — o mais rápido possível. Clay disse que a rota 11, que fazia um entroncamento em Kent Pond, serviria tanto para ele quanto para os dois como ponto de partida.

     —      Ela vai me levar para o norte até a 160 — disse ele —, e vocês podem segui-la até Laconia, no meio de New Hampshire. Não é exatamente uma reta, mas vocês não têm nenhum avião para pegar, não é mesmo?

     Jordan enterrou as bases das mãos nos olhos, os esfregou e então tirou o cabelo de cima da testa, um gesto que Clay já conhecia muito bem — significava cansaço e distração. Ele sentiria falta daquilo. Sentiria falta de Jordan. E mais ainda de Tom.

     —      Gostaria que Alice ainda estivesse aqui — disse Jordan. — Ela convenceria você a desistir disso.

     —      Eu duvido — disse Clay. Ainda assim, desejava de todo coração que Alice pudesse ter tido a oportunidade. Desejava de todo coração que Alice pudesse ter tido a oportunidade de fazer muitas coisas. Quinze anos não era idade para se morrer.

     —      Seus planos me lembram do quarto ato de Júlio César — disse Tom. — No quinto ato todos se matam.

     Eles estavam contornando (e às vezes escalando) os carros parados que congestionavam a Pond Street. As luzes de emergência da prefeitura morriam lentamente às suas costas. Diante deles, o semáforo apagado que marcava o centro da cidade balançava no vento fraco.

     —      Não seja tão pessimista, porra — disse Clay. Ele prometera a si mesmo não ficar irritado, se pudesse evitar, não queria se separar dos amigos daquela forma, mas sua determinação estava sendo testada.

     —      Desculpe-me por estar cansado demais para torcer — disse Tom. Ele parou ao lado de uma placa que dizia ENTRONCAMENTO ROTA 11 3KM. — E, para ser franco, por estar triste em perdê-lo.

     —      Sinto muito, Tom.

     —      Se eu achasse que existe uma chance em cinco de você ter um final feliz... diabos, uma em cinqüenta... bem, deixa pra lá. — Tom jogou a luz da lanterna sobre Jordan. — E você? Algum último argumento contra esta loucura?

     Jordan refletiu, então balançou a cabeça lentamente.

     —      O Diretor me disse uma coisa certa vez — falou ele. — Você quer ouvir?

     Tom prestou uma continência irônica com a lanterna. O facho de luz resvalou pelo letreiro do cinema Ioka, que estava passando o novo filme do Tom Hanks, e pela farmácia ao lado.

     —      Manda ver.

     —      Ele disse que a mente pode calcular, mas o espírito deseja e o coração sabe o que o coração sabe.

     —      Amém — disse Clay. Ele falou com muita brandura.

     Eles seguiram na direção leste, pela Market Street, que também era a rota 11, por 3 quilômetros. Depois do primeiro quilômetro e meio, as calçadas terminaram e começaram as fazendas. No fim da segunda delas, navia outro semáforo apagado e uma placa que marcava o entroncamento com a rota 11. Três pessoas estavam sentadas lá, enfiadas até o pescoço em sacos de dormir na encruzilhada. Clay reconheceu uma delas assim que a iluminou com o facho da lanterna: um senhor idoso com um rosto longo e inteligente e cabelos grisalhos amarrados em um rabo-de-cavalo. O boné dos Miami Dolphins que o outro homem estava usando também parecia familiar. Então, Tom jogou a luz sobre a mulher ao lado do Sr. Rabo-de-cavalo e disse:

     —      Você.

     Clay não tinha como saber se ela estava usando uma camisa Harley-Davidson com as mangas cortadas, o saco de dormir estava muito erguido para tanto, mas sabia que havia uma na pequena pilha de mochilas perto da placa da rota 11 se ela não estivesse. Do mesmo jeito que sabia que a mulher estava grávida. Tinha sonhado com aqueles dois no Whispering Pines Motel, duas noites antes de Alice ser morta. Sonhara com eles no campo longo, sob os refletores, em pé nas plataformas.

     O homem de cabelo grisalho se levantou, deixando o saco de dormir deslizar pelo corpo. As provisões deles incluíam rifles, mas ele levantou as mãos para mostrar que estavam vazias. A mulher fez o mesmo, e quando o saco de dormir caiu aos seus pés, não houve dúvidas quanto à sua gravidez. O cara com o boné dos Dolphins era alto e tinha uns 40 anos. Ele também ergueu as mãos. Os três ficaram daquele jeito por alguns segundos sob a luz das lanternas, e então o homem grisalho tirou um par de óculos com armação preta do bolso da frente da camisa amarrotada e o colocou. A respiração dele fazia nuvens brancas no ar noturno gelado, subindo até a placa da rota 11, onde setas apontavam para o oeste e para o norte.

     —      Ora, ora — disse ele. — O Reitor de Harvard disse que vocês provavelmente viriam por este caminho, e cá estão. É um cara esperto esse Reitor de Harvard, embora seja um pouquinho jovem para o cargo e, na minha opinião, devesse fazer uma plástica antes de ir encontrar doadores generosos em potencial.

     —      Quem é você? — perguntou Clay.

     —      Tire essa luz da minha cara, jovem, e ficarei feliz em lhe dizer.

     Tom e Jordan baixaram as lanternas. Clay também baixou a dele, mas manteve a mão na coronha do calibre de Beth Nickerson.

     —      Sou Daniel Hartwick, de Haverhill, Mass — disse o homem grisalho. — A jovem dama é Denise Link, também de Haverhill. O cavalheiro à direita dela é Ray Huizenga, de Groveland, uma cidade vizinha.

     —      Prazer — disse Ray Huizenga. Ele fez uma pequena mesura que era ao mesmo tempo engraçada, charmosa e desajeitada. Clay deixou a mão soltar a coronha da arma.

     —      Mas nossos nomes não têm mais importância — disse Daniel Hartwick. — O que importa é o que somos, pelo menos no que diz respeito aos fonóides. — O homem lançou um olhar grave para eles. — Somos loucos. Como vocês.

    

     Denise e Ray improvisaram uma pequena refeição em um fogareiro a gás ("Essas salsichas enlatadas não ficam tão ruins se você as ferver à vera", disse Ray) enquanto eles conversavam. Quer dizer, enquanto Dan falava a maior parte do tempo. Ele começou dizendo que eram 2h20 da manhã, e que às três queria estar de volta à estrada com o seu "corajoso grupinho". Disse que queria fazer o maior número possível de quilômetros antes de o dia nascer, quando os fonóides começavam a perambular.

     —      Porque eles não saem à noite — disse ele. — Pelo menos isso temos a nosso favor. Mais tarde, quando a programação deles estiver completa, ou perto do fim, talvez consigam sair, mas...

     —      O senhor concorda que é isso que está acontecendo? — perguntou Jordan. Pela primeira vez desde que Alice morrera, parecia empolgado. Ele agarrou o braço de Dan. — O senhor concorda que eles estão reiniciando, como computadores cujos discos rígidos foram...

     —      ... apagados, sim, sim — falou Dan, como se aquilo fosse a coisa mais elementar do mundo.

     —      O senhor é... o senhor era... algum tipo de cientista? — perguntou Tom.

     Dan sorriu para ele.

     —      Eu era todo o departamento de sociologia da Escola de Artes e Tecnologia de Haverhill — disse ele. — Sou o pior pesadelo do Reitor de Harvard, se ele tiver um.

      

     Dan Hartwick, Denise Link e Ray Huizenga tinham destruído não só um, mas dois bandos. Haviam topado com o primeiro por acidente, nos fundos de um ferro-velho de Haverhill, quando o grupo deles contava com meia dúzia de pessoas e eles estavam tentando achar um jeito de sair da cidade. Aquilo fora dois dias depois da transmissão do Pulso, quando o povo dos celulares ainda era composto de fonáticos confusos e propensos a matar uns aos outros tanto quanto qualquer normie que vissem pelo caminho. Aquele primeiro tinha sido um bando pequeno, apenas uns 75, e eles usaram gasolina.

    —      Da segunda vez, em Nashua, usamos dinamite que arranjamos no galpão de um canteiro de obras — falou Denise. — Já tínhamos perdido Charlie, Ralph e Arthur àquela altura. Ralph e Arthur resolveram seguir sozinhos. Charlie... o pobre Charlie teve um enfarto. De qualquer forma, Ray sabia manipular a dinamite, da época em que ele trabalhava como construtor de estradas.

     Ray, agachado sobre o fogareiro e mexendo os feijões ao lado das salsichas, ergueu a mão livre e acenou.

     —      Depois disso — disse Dan Hartwick —, começamos a encontrar aquelas mensagens que diziam Kashwak=Sem-Fo. Aquilo nos soou bem, não foi, Denni?

     —      Pode crer — falou Denise. — Um, dois, três, salve todos. Estávamos indo para o norte, assim como vocês, e quando começamos a ver aquelas mensagens, seguimos para lá mais rápido. Eu fui a única que não caiu de amores pela idéia, porque perdi meu marido durante o Pulso. Por conta daqueles desgraçados, meu filho vai crescer sem pai. — Ela viu Clay se retrair e disse: — Desculpe. Sabemos que seu filho foi para Kashwak.

     Clay ficou boquiaberto.

     —      Ah, sim — disse Dan, pegando um prato assim que Ray começou a distribuí-los. — O Reitor de Harvard sabe de tudo, vê tudo, tem dossiês sobre tudo... ou quer que pensemos assim. — Ele piscou para Jordan, que, surpreendentemente, abriu um sorriso.

     —      Dan me convenceu — falou Denise. — Algum grupo terrorista, ou talvez apenas uma dupla de malucos inspirados trabalhando em uma garagem, desencadeou essa coisa, mas ninguém sabia que chegaria a este ponto. Os fonóides estão somente fazendo a parte deles. Não eram responsáveis quando eram lunáticos, e não são exatamente responsáveis agora, porque...

     —      Porque estão sob algum imperativo coletivo — disse Tom. — Como uma migração.

     —      É um imperativo coletivo, mas não é migração — disse Ray, sentando-se com seu prato. — Dan diz que é pura sobrevivência. E acho que ele tem razão. O que quer que seja, temos que encontrar um lugar que sirva de abrigo para a tempestade. Sacou?

     —      Os sonhos começaram a surgir depois que queimamos o primeiro bando — falou Dan. — Sonhos poderosos. Ecce homo insanuss, típico de Harvard. Então, depois que explodimos o bando de Nashua, o Reitor de Harvard apareceu pessoalmente com uns quinhentos dos seus amigos mais íntimos. — Ele comia com mordidas rápidas e bem-educadas.

     —      E deixaram um monte de mini systems derretidos em frente à sua porta — disse Clay.

     —      Alguns estavam derretidos — disse Denise. — A maioria que recebemos estava aos pedaços. — Ela sorriu. Era um fiapo de sorriso. — Mas tudo bem. Eles têm um péssimo gosto musical.

     —      Vocês o chamam de Reitor de Harvard, nós o chamamos de Homem Esfrangalhado — disse Tom. Ele colocara o prato de lado e estava abrindo a mochila. Fuçou dentro dela e tirou o desenho que Clay fizera no dia em que o Diretor tinha sido obrigado a se matar.

     Denise arregalou os olhos. Ela passou o desenho para Ray Huizenga, que assobiou.

     Dan o pegou por último e ergueu os olhos para Tom com respeito renovado.

     —      Você desenhou isso?

     Tom apontou para Clay.

     —      Você é muito talentoso — falou Dan.

     —      Eu fiz um curso — disse Clay. — Como Desenhar Fofinho. —        Virou-se para Tom, que também guardava os mapas na mochila. —        Qual a distância entre Gaiten e Nashua?

     —      Uns 50 quilômetros, no máximo.

     Clay assentiu e voltou a olhar para Dan Hartwick.

     —      E ele falou com o senhor? O cara de casaco vermelho?

     Dan olhou para Denise e ela desviou o olhar. Ray voltou a atenção para o seu fogareiro — provavelmente para fechá-lo e guardá-lo na mochila — e Clay entendeu.

     —      Através de qual de vocês ele falou?

     —      De mim — respondeu Dan. — Foi horrível. Já aconteceu com você?

     —      Já. Dá pra evitar, mas não se você quiser saber o que ele está pensando. Você acha que ele faz isso para mostrar como é forte?

     —      Provavelmente — disse Dan —, mas não acho que seja o único motivo. Acho que eles não conseguem falar. Conseguem vocalizar, e tenho certeza de que pensam... embora não como antes, seria um erro terrível imaginar que eles têm pensamentos humanos... mas não creio que consigam produzir palavras.

     —      Mesmo assim... — disse Jordan.

     —      Mesmo assim... — concordou Dan. Ele olhou para o relógio, e aquilo levou Clay a olhar para o seu. Já eram 2h45.

     —      Ele nos mandou ir para o norte — disse Ray. — Disse Kashwak=Sem-Fo. Falou que já não iríamos mais incendiar bandos porque eles estavam colocando guardas...

     —      Sim, nós vimos alguns em Rochester — disse Tom.

     —      E vocês viram Kashwak=Sem-Fo escrito em vários lugares.

     Eles assentiram.

     —      Pensando simplesmente como sociólogo, comecei a questionar aquelas mensagens — falou Dan. — Não a maneira como elas começaram. Estou certo de que as primeiras mensagens Sem-Fo foram escritas logo depois do Pulso, por sobreviventes que escolheram um lugar que, por não ter cobertura celular, seria o melhor refúgio do mundo. O que questionei foi como a idéia, e a pichação, pôde se espalhar tão depressa em uma sociedade caoticamente fragmentada, em que todas as formas de comunicação, exceto a fala e a escuta, é claro, tinham entrado em colapso. A resposta me pareceu clara, uma vez que admiti que uma nova forma de comunicação, disponível apenas para um determinado grupo, havia entrado em cena.

     —      Telepatia — Jordan quase sussurrou a palavra. — Eles. Os fonóides. Eles querem que a gente vá para o norte, até Kashwak. — Ele lançou os olhos aterrorizados para Clay. — É mesmo um corredor de matadouro. Clay, você não pode ir pra lá! É exatamente isso que o Homem Esfrangalhado quer!

     Antes que Clay pudesse responder, Dan Hartwick voltou a falar. Ele o fazia com a arrogância natural de um professor: dissertar era sua responsabilidade, interromper, seu privilégio.

     —      Desculpem-me, mas infelizmente tenho que apressar as coisas. Temos algo para mostrar a vocês. Algo que o Reitor de Harvard exigiu que mostrássemos a vocês, na verdade...

     —      Em sonho ou pessoalmente? — perguntou Tom.

     —      Em sonho — falou baixinho Denise. — Só o vimos em pessoa uma vez, desde que queimamos o bando em Nashua, e de longe.

      —      Inspecionando a gente — disse Ray. — É o que eu acho.

     Dan esperou com uma expressão de paciência irritada o diálogo terminar. Quando terminou, ele prosseguiu.

     —      Decidimos obedecer, já que a coisa estava no nosso caminho...

     —      Então vocês estão indo para o norte? — Foi Clay quem interrompeu daquela vez.

     Dan, parecendo mais irritado, deu uma outra olhadela rápida no relógio.

     —      Se você olhar com atenção para aquela placa, vai ver que ela oferece uma opção. Pretendemos ir para o oeste, não para o norte.

     —      É isso aí, porra — murmurou Ray. — Eu posso ser burro, mas não sou maluco.

     —      O que vou mostrar a vocês será para o nosso bem, e não para o deles — falou Dan. — E, por sinal, falar que o Reitor de Harvard, ou o Homem Esfrangalhado, se preferirem, aparece em pessoa é provavelmente um erro. Ele não passa de um pseudópode que a mente coletiva, o bando, envia para negociar com os normies comuns e com os normies loucos, como nós. Minha teoria é que existem bandos em todo o mundo a essa altura, e cada um deles deve ter elegido um desses pseudópodes. Talvez mais de um. Mas não cometa o erro de achar que, ao falar com o Homem Esfrangalhado, está falando com um homem de verdade. Você está falando com o bando.

     —      Por que você não mostra logo o que ele quer que a gente veja? — perguntou Clay. Ele teve que se esforçar para soar calmo. Sua mente estava esbravejando. O único pensamento claro nela era que, se conseguisse alcançar o filho antes de Johnny chegar a Kashwak — e ao que quer que estivesse acontecendo lá —, talvez ainda houvesse uma chance de salvá-lo. A racionalidade lhe dizia que Johnny provavelmente já estava em Kashwak, mas uma outra voz (e que não era de todo irracional) dizia que algo poderia ter atrasado o filho e o grupo com o qual estava viajando. Ou talvez tenham ficado com medo. Era possível. Era até possível que nada mais terrível do que segregação estivesse acontecendo no TR-90, que o povo dos celulares estivesse apenas criando uma reserva para normies. No fim das contas, ele imaginava que era como Jordan tinha dito, citando o Diretor Ardal: a mente pode calcular, mas o espírito deseja.

     —      Venha por aqui — falou Dan. — É perto.

     Ele pegou uma lanterna e começou a andar até o entroncamento da rota 11-Norte com o facho de luz apontado para os pés.

     —      Perdoem-me por não ir junto — disse Denise. — Eu já vi. Uma vez é o suficiente.

     —      Acho que era para vocês gostarem disso, de certa forma — falou Dan. — É claro que também serve para frisar, para o meu pequeno grupo e para o seu, que os fonóides estão no poder agora, e que devemos obedecer-lhes. — Ele parou. — Chegamos. Neste sonho em particular, o Reitor de Harvard fez questão de que todos víssemos o cachorro, para que não fôssemos para a casa errada. — O facho de luz revelou uma caixa de correio com um collie pintado na lateral. — Sinto muito que Jordan tenha que ver isto, mas talvez seja melhor vocês saberem com quem estão lidando. — Ele ergueu mais a luz. Ray juntou o facho da sua lanterna ao de Dan. Eles iluminaram a entrada de uma modesta casa de madeira de um andar, assentada em cima de um pequeno jardim.

     Gunner havia sido crucificado entre a janela da sala de estar e a porta da frente. Estava nu, exceto por uma cueca samba-canção manchada de sangue. Pregos grandes o bastante para serem pregos de linha projetavam-se de suas mãos, pés, antebraços e joelhos. Talvez fossem pregos de linha, pensou Clay. Sentado com as pernas abertas aos pés de Gunner estava Harold. Como Alice quando eles a conheceram, Harold estava com um babador de sangue, mas o dele não vinha do nariz. A cunha de vidro que usara para cortar a garganta depois de crucificar seu colega de corridas ainda cintilava em uma de suas mãos.

     Um pedaço de papelão estava amarrado em volta do pescoço de Gunner, com três palavras rabiscadas em letras de forma pretas: JUSTITIA EST COMMODATUM.

     — Caso vocês não saibam latim... — Dan Hartwick começou a falar.

     —      Lembro o suficiente do ginásio para ler o que está escrito — disse Tom. — "Foi feita justiça." Isso foi por terem matado Alice. Por terem ousado tocar um dos intocáveis.

     —      Exatamente — disse Dan, desligando a lanterna. Ray fez o mesmo. — Também serve de aviso aos outros. E eles não os mataram, embora certamente pudessem tê-lo feito.

     —      Nós sabemos disso — disse Clay. — Houve retaliação em Gaiten depois que queimamos o bando deles.

     —      Eles fizeram o mesmo em Nashua — disse Ray em um tom sombrio. — Vou me lembrar dos gritos até a morte. Foi horrível. Essa merda também. — Ele gesticulou em direção ao vulto da casa. — Eles obrigaram o baixinho a crucificar o grandão, e o grandão a ficar parado. E, quando acabou, mandaram o baixinho cortar a própria garganta.

     —      Igual com o Diretor — disse Jordan, pegando a mão de Clay.

     —      Esse é o poder da mente deles — disse Ray —, e Dan acha que, em parte, é esse poder que está fazendo todo mundo ir para o norte, até Kashwak... talvez seja por isso que abestávamos indo para o norte, mesmo quando nos convencemos de que era apenas para mostrar isto para vocês e persuadi-los a se juntarem à gente. Sacou?

     Clay disse:

     —      O Homem Esfrangalhado falou a vocês sobre o meu filho?

     —      Não, mas se tivesse falado com certeza seria para dizer que ele está com os outros normies, e que vocês dois teriam um alegre reencontro em Kashwak — disse Dan. — Quer saber de uma coisa? Pode esquecer aqueles sonhos em que você fica parado em uma plataforma enquanto o Reitor diz à platéia que você é louco. Este fim não é o seu, não pode ser o seu. Tenho certeza de que a essa altura todos os finais felizes possíveis já passaram pela sua cabeça, o principal deles sendo como Kashwak e Deus sabe quantas outras áreas sem cobertura celular são como reservas naturais para os normies, lugares onde as pessoas que não receberam uma transmissão no dia do Pulso serão deixadas em paz. Acho que o que o seu jovem amigo disse sobre o corredor que dá em um matadouro é bem mais provável, mas, mesmo supondo que os normies vão ser deixados em paz lá no norte, você acha que os fonóides vão perdoar gente como a gente? Os exterminadores de bandos?

     Clay não tinha resposta para aquilo.

     No escuro, Dan olhou mais uma vez para o relógio.

     — Já passa das três — disse ele. — Vamos voltar. Denise já deve ter arrumado nossa bagagem a essa altura. Chegou a hora de nos separarmos ou decidirmos seguir juntos.

     Mas, quando você fala em seguirmos juntos, você está me pedindo para abandonar meu filho, pensou Clay. E aquilo ele só faria se descobrisse que Johnny-Gee estava morto.

     Ou transformado.

    

     —      Como você espera ir para o oeste? — perguntou Clay enquanto eles voltavam para a placa do cruzamento. — As noites ainda podem ser nossas por enquanto, mas os dias são deles, e você sabe do que eles são capazes.

     —      Tenho quase certeza de que podemos evitar que eles entrem na nossa cabeça enquanto estamos acordados — falou Dan. — Dá um pouco de trabalho, mas é possível. Vamos dormir em turnos, pelos menos por enquanto. Tudo depende de ficarmos longe dos bandos.

     —      O que significa entrar pela região oeste de New Hampshire e seguir para Vermont o mais rápido possível — disse Ray. — Mantendo distância das áreas urbanas. — Ele iluminou Denise, que estava recostada nos sacos de dormir. — Tudo pronto querida?

     —      Tudo pronto — respondeu ela. — Só queria que vocês me deixassem carregar alguma coisa.

     —      Você está carregando seu filho — disse Ray carinhosamente.

     —      Já é o suficiente. E podemos deixar os sacos de dormir para trás.

     Dan falou:

     —      Em alguns lugares, dirigir pode até ser uma boa idéia. Ray acha que algumas das estradas secundárias podem ter até 20 quilômetros livres. Temos bons mapas. — Ele se apoiou em um joelho e colocou a mochila nos ombros, erguendo os olhos para Clay com um meio-sorriso fraco e amargo ao fazê-lo. — Sei que as chances não são boas. Não pense que sou idiota. Mas nós exterminamos dois bandos, matamos centenas deles, e não quero parar em cima de uma daquelas plataformas.

     —      Temos uma outra coisa a nosso favor — disse Tom. Clay ficou pensando se Tom notou que tinha acabado de se incluir no grupo de Hartwick. Provavelmente sim, ele não era nada bobo. — Eles nos querem vivos.

     —      Correto — falou Dan. — Temos uma chance de conseguir. Ainda é só o começo para eles, Clay. Eles ainda estão tecendo a teia, e aposto que ainda existem muitos buracos nela.

     —      Ora, eles ainda nem mudaram de roupa — acrescentou Denise. Clay a admirava. Parecia estar grávida de seis meses, talvez mais, mas era durona. Ele quis que Alice a tivesse conhecido.

     —      Nós podemos nos safar — falou Dan. — Atravessar a fronteira para o Canadá por Vermont ou Nova York, talvez. Cinco é melhor do que três, mas seis seria melhor do que cinco: três dormem, três vigiam durante o dia, para combater a má telepatia. Nosso pequeno bando. Então, o que me diz?

     Clay balançou a cabeça lentamente.

     —      Vou procurar o meu filho.

     —      Reconsidere, Clay — disse Tom. — Por favor.

     —      Deixe-o em paz — falou Jordan. — Ele já se decidiu. — O menino colocou os braços em volta de Clay e o abraçou. — Espero que você o encontre. Mas, mesmo se o encontrar, acho que nunca mais vai achar a gente de novo.

     —      É claro que vou — disse Clay. Ele beijou Jordan no rosto, então se afastou. —- Vou capturar um telepata e usá-lo como bússola. Talvez o próprio Homem Esfrangalhado. — Ele se virou para Tom e estendeu a mão.

     Tom a ignorou e colocou os braços em volta de Clay. Ele o beijou primeiro em uma bochecha e depois na outra.

     —      Você salvou minha vida — ele sussurrou no ouvido do outro. Seu hálito era quente e fazia cócegas. A bochecha dele raspou a de Clay. — Deixe-me salvar a sua. Venha com a gente.

     —      Não posso, Tom. Preciso fazer isto.

     Tom se afastou e olhou para ele.

     —      Eu sei — disse. — Sei que você precisa. — Ele secou os olhos. — Droga, eu sou péssimo em despedidas. Não consegui dar adeus nem para a porra do meu gato.

    

     Clay parou do lado da placa e observou as luzes do grupo desaparecerem. Manteve o olhar fixo na de Jordan, e ela foi a última a sumir. Por alguns instantes, ficou sozinha na primeira colina a oeste, uma única centelha no escuro, como se Jordan tivesse parado para olhar para trás. Ela pareceu acenar. Então também desapareceu, e a escuridão ficou completa. Clay suspirou — um som trêmulo, lacrimoso —, colocou a própria mochila nas costas e começou a andar para o norte pelo acostamento de terra da rota 11. Por volta das 3h45, cruzou a divisa da cidade de North Berwick e deixou Kent Pond para trás.

    

      

     BINGO DO TELEFONE

      

     Não havia motivo para não retomar uma vida mais normal e começar a viajar de dia. Clay sabia que o povo dos celulares não lhe faria mal. Era proibido tocá-lo e eles o queriam em Kashwak. O problema era que ele havia se acostumado à existência noturna. Só preciso de um caixão e de uma capa para me cobrir quando for deitar nele, pensou.

     Quando, na manhã seguinte à separação do grupo, a aurora rompeu vermelha e fria, ele estava nos arredores de Springvale. Havia uma casinha, provavelmente uma cabana de caseiro, próxima ao Museu do Madeireiro da cidade. Parecia aconchegante. Clay forçou o cadeado da porta lateral e entrou. Ficou feliz ao encontrar um forno à lenha e uma bomba d'água na cozinha. Havia também uma pequena e organizada despensa, bem fornida e intocada por saqueadores. Ele celebrou essa descoberta com uma tigela grande de mingau de aveia, feito com leite em pó, montes de açúcar e passas salpicadas em cima.

     Na despensa, encontrou também bacon e ovos desidratados em embalagens de alumínio, arrumadinhos na prateleira como se fossem livros. Cozinhou um deles e guardou os demais na mochila. Foi uma refeição muito melhor do que imaginara e, quando chegou ao quarto dos fundos, Clay adormeceu quase imediatamente.

     Havia tendas grandes nos dois lados da rodovia.

     Aquela não era a rota 11 com suas fazendas, cidades e descampados e lojas de conveniência com bombas d'água a mais ou menos cada 25 quilômetros, mas uma rodovia em algum lugar no meio do nada. A mata fechada ia até os valões da beira da estrada. Pessoas faziam longas filas em ambos os lados da faixa branca central.

     Esquerda e direita, dizia uma voz amplificada, Esquerda, direita, formem duas filas.

     Parecia um pouco a voz amplificada do cantador de bingo da Feira Estadual de Akron, porém, quando Clay chegou mais perto, seguindo a faixa central da estrada, ele percebeu que o som estava dentro da sua cabeça. Era a voz do Homem Esfrangalhado. Mas o Homem Esfrangalhado era apenas um — do que Dan o havia chamado mesmo? —  apenas um pseudópodo. E o que Clay ouvia era a voz do bando.

     Esquerda e direita, duas filas, isso mesmo. É assim que se faz.

     Onde estou? Por que ninguém olha pra mim e diz: "Ei amigo, não fure a fila, espere a sua vez"?

     Mais à frente, as duas fileiras quebravam para lados opostos, como rampas de saída, uma indo para a tenda à esquerda da estrada, e a outra para a tenda à direita. Eram do tipo de tenda grande que as ca-sas de festa montam para abrigar bufês ao ar livre nas tardes de calor. Clay conseguia ver que, logo antes de cada fileira chegar às tendas, as pessoas se dividiam em filas menores de dez ou 12. Pareciam fãs esperando rasgarem seus ingressos para poder entrar em um show.

     Parado no meio da rua no local em que a fila dupla se separava e quebrava para a direita e para a esquerda, ainda usando o moletom vermelho puído, estava o próprio Homem Esfrangalhado.

     Esquerda e direita, senhoras e senhores. A boca imóvel. Telepatia no volume máximo, amplificada pelo poder do bando. Sigam adiante. Todo mundo vai ter a chance de ligar para um ente querido antes de entrar na zona sem cobertura.

     Aquilo estarreceu Clay, mas era um estarrecimento previsível — como o fim de uma boa piada que você ouviu pela primeira vez dez ou vinte anos atrás.

     — Onde fica isso? — perguntou ele ao Homem Esfrangalhado. — O que você está fazendo? O que está acontecendo, porra?

     Mas o Homem Esfrangalhado não olhou para ele, e Clay sabia muito bem por quê. Era naquele lugar que a rota 160 entrava em Kashwak, e ele estava visitando o local em um sonho. Quanto ao que estava acontecendo...

     É o bingo do telefone, pensou ele. É o bingo do telefone, e essas são as tendas em que o jogo acontece.

     Continuem andando, senhoras e senhores, transmitiu o Homem Esfrangalhado. Faltam duas horas para o pôr do sol e queremos processar o maior número de gente possível antes de pararmos para a noite.

     Processar.

     Aquilo era um sonho?

     Clay seguiu a fileira que quebrava para a tenda à esquerda, sabendo o que encontraria antes mesmo de ver. No fim de cada uma das filas menores, havia um membro do povo dos celulares, aqueles especialistas em Lawrence Welk, Dean Martin e Debby Boone. Assim que o próximo da fila chegava, o leão-de-chácara — vestindo roupas imundas, muitas vezes mais terrivelmente desfigurado pelas lutas pela sobrevivência dos últimos 11 dias do que o Homem Esfrangalhado — estendia um celular.

     Clay observou o homem mais próximo dele pegar o telefone, discar três números e colá-lo ansiosamente no ouvido.

     — Alô? — disse ele. — Alô, mãe? Mãe, você está me ouvin...

     Então ficou calado. Seus olhos se esvaziaram e o rosto relaxou. O celular desgrudou um pouco da orelha dele. O facilitador — aquela era a melhor palavra que Clay conseguia encontrar — pegou o telefone de volta, empurrou o homem para que ele andasse para a frente e fez sinal para a próxima pessoa da fila se aproximar.

     Esquerda e direita, dizia o Homem Esfrangalhado. Continuem andando.

     O cara que havia tentado ligar para a mãe se afastou da tenda arrastando os pés. Mais adiante, Clay viu centenas de outras pessoas andando em círculos. Às vezes uma impedia o caminho da outra e as duas trocavam alguns tapas de leve. Porém, nada como antes. Porque...

     Porque o sinal foi modificado.

     Esquerda e direita, senhoras e senhores, continuem andando, temos que cuidar de muitos de vocês antes do anoitecer.

     Clay viu Johnny. Ele estava usando jeans, o boné da Liga Juvenil e sua camisa favorita dos Red Sox, a que tinha o nome e o número de Tim Wakefield nas costas. Havia acabado de chegar ao fim da fila a duas tendas de onde Clay estava.

     Clay correu na direção dele, mas o caminho estava obstruído.

     — Sai da frente! — ele gritou, mas obviamente o homem que o impedia, pulando de um pé para o outro como se precisasse ir ao banheiro, não podia ouvi-lo. Aquilo era um sonho e, além do mais, Clay era um normie, não possuía telepatia.

    Ele se enfiou pelo meio do homem inquieto e da mulher atrás dele. Abriu caminho também pela próxima fila, concentrado demais em alcançar Johnny para se preocupar se as pessoas que empurrava eram de carne e osso ou não. Chegou até onde Johnny estava no momento em que uma mulher — ele viu com um horror cada vez maior que era a nora do Sr. Scottoni, ainda grávida, mas sem um olho — entregava ao menino um celular Motorola.

     É só discar 911, disse ela sem mexer a boca. Todas as ligações são feitas pelo 911.

     —      Não, Johnny, não!— gritou Clay e esticou o braço para pegar o telefone à medida que Johnny-Gee começava a discar o número, um número que, muito tempo atrás, havia aprendido a ligar se estivesse em apuros. — Não faça isso!

     Johnny virou para a esquerda, como se quisesse proteger a ligação do olho sem vida da facilitadora grávida, e Clay não conseguiu pegá-lo. Provavelmente não teria conseguido impedir Johnny de qualquer maneira. Afinal de contas, aquilo era um sonho.

     Johnny terminou de discar (apertar três teclas não era muito demorado), pressionou o botão de ENVIAR e colocou o telefone no ouvido.

     —      Alô? Papai? Papai, você está aí? Está me ouvindo? Se estiver me ouvindo, por favor, venha me bus...

     Do jeito que o menino estava virado, Clay só conseguia ver um dos olhos do filho, mas um era o suficiente quando se viam as luzes se apagando. Johnny arqueou os ombros. O telefone desgrudou da orelha dele. A nora do Sr. Scottoni pegou o celular com a mão suja e então empurrou Johnny com desprezo pela nuca para fazê-lo seguir para Kashwak, junto com todos os outros que tinham vindo até ali para ficar em segurança. Ela fez sinal para a próxima pessoa da fila se aproximar e fazer sua ligação.

     Esquerda e direita, formem duas filas, vociferou o Homem Esfrangalhado no meio da cabeça de Clay, e ele acordou gritando o nome do filho na cabana do caseiro à medida que a luz do fim da tarde vazava pelas janelas.

     À meia-noite, Clay chegou à cidadezinha de North Shapleigh. Àquela altura, uma chuva fria e chata, que era quase granizo — o que Sharon chamava de "chuva de sorvete" —, começara a cair. Ele ouviu o som de motores se aproximando e saiu da estrada (ainda a boa e velha rota 11; nada de rodovia do sonho) para o macadame de uma loja de conveniência. Quando os faróis apareceram, transformando a garoa em linhas prateadas, ele viu que era uma dupla de sprinters correndo lado a lado, na verdade, fazendo um pega na escuridão. Clay foi para trás de uma bomba de gasolina, não exatamente se escondendo, mas sem querer dar bandeira. Ele os observou passarem voando como uma visão do além, borrifando água para cima. Um dos carros parecia um Corvette antigo, embora, com apenas a luz de emergência fraca do canto da loja para ver, fosse impossível ter certeza. Os carros passaram batidos pelo que era todo o sistema de controle de tráfego de North Shapleigh (um pisca-pisca apagado), viraram pontos de néon no escuro por um instante e então desapareceram.

     Clay pensou novamente: Loucura. Então, voltando para o acostamento: Quem é você para falar de loucura?

     Era verdade. Pois o sonho do bingo do telefone não tinha sido um sonho, ou não apenas um sonho. Ele tinha certeza disso. Os fonóides estavam usando suas habilidades telepáticas fortalecidas para rastrear o maior número de exterminadores de bandos possível. Aquilo fazia todo o sentido do mundo. Talvez tivessem mais dificuldade com grupos como os de Dan Hartwick, que estavam tentando resistir, mas duvidava que tivessem alguma dificuldade com ele. A questão era: a telepatia guardava uma estranha semelhança com os telefones — ela parecia ser de mão dupla. O que fazia dele... o quê? O fantasma na máquina? Algo assim. Enquanto os fonóides ficavam de olho nele, ele também era capaz de ficar de olho nos fonóides. Pelo menos enquanto dormia. Em sonho.

     Haveria mesmo tendas na divisa de Kashwak, com normies fazendo filas para fritar os miolos? Clay achava que sim, tanto em Kashwak quanto em lugares como Kashwak em todo o país e em todo o mundo. A coisa já estaria mais devagar àquela altura, mas os postos de controle — os postos de transformação — talvez ainda estivessem lá.

     Os fonóides usaram telepatia coletiva para coagir os normies a virem. Para que sonhassem em vir. Aquilo tornava os fonóides inteligentes, calculistas? Não, a não ser que você achasse uma aranha inteligente porque ela pode tecer uma teia, ou um crocodilo calculista porque ele pode ficar parado e parecer um tronco. Enquanto andava para o norte pela rota 11 em direção à rota 160, a estrada que o levaria até Kashwak, Clay pensou que o sinal telepático que os fonóides enviavam como um canto de sereia (ou um pulso) deveria conter pelo menos três mensagens diferentes.

     Venha e você estará seguro — poderá parar de lutar pela sobrevivência.

     Venha e você estará com os seus, em um lugar só para você.

     Venha e você poderá falar com seus entes queridos.

     Venha. Sim. É isso. E quando se chega perto o suficiente, já não há mais escolha. A telepatia e o sonho da segurança simplesmente tomam conta de você. Você faz uma fila. Obedece quando o Homem Esfrangalhado manda continuar andando, todo mundo vai poder ligar para um ente querido, mas temos muita gente para processar antes de o sol se pôr e aumentamos o volume de Bette Midler cantando The Wind Beneath My Wings.

     E como eles conseguiram continuar fazendo isso, mesmo depois de a energia ter acabado, as cidades pegado fogo e a civilização caído em um mar de sangue? Como eles conseguiram substituir os milhões de fonóides perdidos no primeiro cataclismo e no extermínio dos bandos que se seguiu? Eles conseguiram perseverar porque o Pulso não cessou. Em algum lugar — em um laboratório clandestino ou na garagem de um maluco — alguma engenhoca a bateria ainda estava ligada, algum modem ainda estava transmitindo seu sinal agudo e louco. Enviando-o para os satélites que orbitavam o planeta ou para as torres de retransmissão de microondas que o cercavam como um cinturão de aço. E para que número você poderia ligar e ter certeza de que a ligação ainda seria completada, mesmo que a voz que atendesse estivesse apenas em uma secretária eletrônica a bateria?

     911, pelo jeito.

     E aquilo quase certamente tinha acontecido com Johnny-Gee.

     Ele sabia que sim. Já era tarde demais.

     Então por que ele continuava andando para o norte pela noite chuvosa? Newfield ficava logo adiante, e lá Clay trocaria a rota 11 pela 160. Imaginava que depois de algum tempo subindo a rota 160 já não estaria lendo placas de trânsito (ou qualquer outra coisa), então por quê?

     Porém, ele sabia por quê, da mesma forma que sabia que aquela batida distante e a buzinada curta e baixa que ouviu mais adiante na escuridão chuvosa significava que um dos sprinters se dera mal. Clay seguia adiante por causa do bilhete na porta de proteção, preso por menos de meio centímetro de fita adesiva quando ele o pegou; todo o resto já tinha se soltado. Seguia adiante por causa do segundo bilhete que encontrou no mural da prefeitura, meio escondido pela mensagem esperançosa de Iris Nolan para sua irmã. O filho dele havia escrito a mesma coisa nas duas vezes, em letras maiúsculas: POR FAVOR VENHA ME BUSCAR.

     Se fosse tarde demais para buscar Johnny, talvez ainda houvesse tempo para encontrá-lo e dizer que ele tentou. Talvez ele até consiga manter controle suficiente por tempo suficiente para fazê-lo, mesmo se eles tiverem obrigado o filho a usar um dos celulares.

     Quanto às plataformas e às milhares de pessoas observando...

     — Kashwak não tem estádio de futebol — disse ele.

     Na sua mente, Jordan sussurrou: É um estádio virtual.

     Clay afastou o pensamento. Afastou-o para longe. Ele já havia tomado sua decisão. Era loucura, é claro, mas aquele tinha se tornado um mundo louco, e aquilo o colocava em perfeita sintonia.

     Às 2h45, com os pés doloridos e molhado apesar do pesado casaco de capuz que roubara da cabana do caseiro em Springvale, Clay chegou à interseção das rotas 11 e 160. Havia vários carros acidentados na encruzilhada, e o Corvette que passara correndo por ele em North Shapleigh agora era um deles. O motorista pendia da janela toda esmagada do lado esquerdo, com a cabeça apontando para baixo e os braços caídos. Quando Clay tentou levantar a cabeça do homem para ver se ele ainda estava vivo, a metade de cima do corpo despencou na estrada, deixando um emaranhado carnoso de entranhas atrás de si. Clay cambaleou até um poste telefônico, fincou a cabeça subitamente febril na madeira e vomitou até não restar nada.

     Do outro lado da interseção, onde a 160 seguia na direção norte, ficava o Posto Comercial de Newfield. Uma placa na janela prometia DOCES MELAÇO ARTESANATO INDÍGENA "BIBELÔS". O lugar parecia ter sido destruído e também saqueado, mas era um abrigo contra a chuva e ficava longe do horror casual e inesperado que ele acabara de encontrar. Clay entrou e se sentou com a cabeça baixa até a vontade de desmaiar passar. Havia corpos lá dentro, ele sentia o cheiro, mas alguém os cobrira com uma lona, com exceção de dois, e pelo menos aqueles não estavam em pedaços. A geladeira de cerveja do lugar tinha sido detonada e esvaziada, a máquina de Coca-Cola tinha sido apenas detonada. Ele pegou um refrigerante e bebeu em goladas longas e demoradas, pausando para arrotar. Depois de um tempo, começou a se sentir melhor.

     Sentia muita falta dos amigos. O infeliz lá fora e quem quer que estivesse correndo com ele tinham sido os únicos sprinters que Clay vira naquela noite, e ele não encontrara nenhum grupo de refugiados a pé. Passaria a noite inteira apenas com os pensamentos para lhe fazer companhia. Talvez o clima estivesse mantendo os andarilhos fora das ruas, ou talvez tivessem passado a viajar de dia. Não havia motivo para não fazer isso, uma vez que os fonóides tinham passado do assassinato para a conversão.

     Ele percebeu que não tinha ouvido aquilo que Alice chamara de música para bandos naquela noite. Talvez todos os bandos estivessem ao sul de onde ele estava, com exceção do grandão (ele imaginava que fosse um grandão) que estava fazendo as conversões de Kashwak. Clay não ligava muito; mesmo sozinho como estava, ainda considerava a pequena folga de Hope You Dance e do tema de Amores Clandestinos uma pequena dádiva.

     Clay decidiu andar no máximo mais uma hora e então achar um buraco para se meter. A chuva fria estava de matar. Ele deixou o Posto Comercial de Newfield, decidido a não olhar para o Corvette acidentado ou para os restos mortais ensopados ao lado dele.

     Ele acabou andando quase até o amanhecer, em parte porque a chuva parou, mas principalmente porque não havia abrigo na rota 160, apenas mata. Então, por volta das 4h30, passou por uma placa cravada de balas que dizia AQUI COMEÇA GURLEYVILLE, UM DISTRITO NÃO-INCORPORADO. Cerca de dez minutos depois, passou pela raison d'être de Gurleyville, por assim dizer: a Pedreira Gurleyville, uma jazida enorme com alguns barracos, caminhões basculantes e uma garagem ao pé dos muros de granito talhados. Clay pensou por um instante em passar a noite em uma das barracas de ferramentas, mas decidiu que poderia encontrar algo melhor e seguiu em frente. Ainda não tinha visto peregrinos e tampouco ouvido música para bandos, nem mesmo ao longe. Era como se fosse o último homem da terra.

     Mas não era. Cerca de dez minutos depois de deixar a pedreira para trás, ele chegou ao topo de uma colina e viu uma pequena vila lá embaixo. O primeiro prédio que alcançou foi o do Corpo de Bombeiros Voluntário de Gurleyville (NÃO SE ESQUEÇA DA DOAÇÃO DE SANGUE DE HALLOWEEN leia-se mais no mural da entrada. Parecia que ninguém ao norte de Springvale sabia escrever), e havia dois fonóides no estacionamento se encarando diante de um deprimente caminhão de bombeiro que devia ter sido novo lá pelo final da Guerra da Coréia.

     Eles se viraram lentamente na direção de Clay quando ele os iluminou com a lanterna, mas então voltaram a se encarar. Os dois eram homens, um parecia ter uns 25 anos e outro talvez o dobro. Não havia dúvida de que eram fonóides. As roupas estavam sujas e quase se desfazendo. Seus rostos estavam cortados e esfolados. Uma queimadura grave parecia cobrir um braço inteiro do mais jovem. O olho esquerdo do mais velho brilhava no fundo de bolsas de carne muito inchadas e provavelmente infeccionadas. Porém, a aparência deles não era o mais importante. O mais importante foi o que o próprio Clay sentiu: aquela mesma estranha falta de ar que ele e Tom haviam sentido no escritório do Citgo de Gaiten, onde tinham ido pegar as chaves dos caminhões de gás. Aquela sensação de uma concentração poderosa de força.

     E era noite. Com o céu encoberto por nuvens pesadas, a aurora ainda demoraria a chegar. O que aqueles caras estavam fazendo acordados à noite.

     Clay desligou a lanterna, sacou o Nickerson calibre 45 e ficou olhando para ver se algo acontecia. Por vários segundos, achou que não iria acontecer nada, que a coisa se limitaria àquela estranha falta de ar, àquela sensação de algo prestes a acontecer. Então, ouviu um lamento agudo, quase como se alguém vibrasse a lâmina de um serrote entre as mãos dele. Clay ergueu os olhos e viu que os fios de eletricidade que passavam em frente ao prédio do corpo de bombeiros estavam se agitando rapidamente; tão rápido que quase não dava para notar.

     —      Vá-embora!

     Foi o mais jovem, e ele parecia arrancar as palavras da boca com um esforço tremendo. Clay levou um susto. Se estivesse com o dedo no gatilho, quase certamente teria atirado. Aquilo não era Aw e Eeen; eram palavras de verdade. Ele achou que as tinha ouvido dentro da sua cabeça também, mas muito baixinho. Apenas um eco distante.

     —      Você!... Vai! — respondeu o mais velho. Estava usando uma bermuda baggy com uma mancha marrom enorme na bunda. Poderia ser lama ou merda. Falou também com esforço, mas daquela vez Clay não ouviu eco nenhum na cabeça. Paradoxalmente, aquilo o fez ter mais certeza de que ouvira da primeira vez.

     Eles haviam esquecido completamente dele. Disso Clay não tinha dúvida.

     —      Meu! — disse o mais jovem, mais uma vez arrancando a palavra da boca. E ele arrancou mesmo. Seu corpo inteiro pareceu sofrer com o esforço. Atrás dele, várias janelas pequenas na ampla garagem do corpo de bombeiros explodiram para fora.

     Houve uma longa pausa. Clay ficou observando, fascinado, completamente esquecido de Johnny pela primeira vez desde Kent Pond. O mais velho parecia estar pensando furiosamente, lutando furiosamente, e Clay achava que a luta era para se expressar da maneira que ele se expressava antes de o Pulso privá-lo da fala.

     No topo do prédio do corpo de bombeiros, que não era mais do que uma garagem melhorada, a sirene soou um breve WHOOP, como se uma explosão fantasma de energia tivesse passado por ela. E as luzes do caminhão antigo — os faróis e os pisca-piscas — bruxulearam por um instante, iluminando os dois homens e talhando momentaneamente suas sombras.

     —      Não senhor! — conseguiu falar o mais velho. Ele cuspiu as palavras como um pedaço de carne preso na garganta.

     —      Meaminhão!— o mais jovem quase gritou, e na mente de Clay aquela mesma voz sussurrou: Meu caminhão. Era simples, na verdade. Em vez de bolinhos Ana Maria, eles estavam brigando pelo caminhão velho. Só que aquilo estava acontecendo à noite — no fim dela, tudo bem, mas ainda noite fechada —, e eles estavam quase falando novamente. Quase o cacete, eles estavam falando.

     Porém, parecia que a conversa tinha acabado. O mais jovem baixou a cabeça, correu até o mais velho e deu-lhe uma cabeçada no peito. O mais velho se estatelou no chão. O mais jovem tropeçou nas pernas dele e caiu de joelhos.

     —      Não! — gritou ele.

     —      Porra! — exclamou o outro. Com certeza foi o que ele disse.

     Porra é inconfundível.

     Eles se levantaram e ficaram a uns 4 metros um do outro. Clay conseguia sentir o ódio dos dois. Estava na cabeça dele; empurrando seus olhos para fora, tentando sair.

     O mais jovem falou:

     —      Aque é... meaminhão!

     E, na cabeça de Clay, a voz distante do rapaz sussurrou: Aquele é o meu caminhão.

     O mais velho respirou o ar. Levantou espasmodicamente um braço com a pele cheia de cascas. E mostrou o dedo médio para o rapaz.

     —      Senta. Aqui! — disse ele com total clareza.

     Os dois baixaram as cabeças e dispararam um para cima do outro. Suas cabeças se chocaram com um craque surdo que fez Clay se encolher. Daquela vez, todas as janelas da garagem explodiram.

     A sirene no telhado deu um longo grito de guerra antes de parar. As luzes fluorescentes do prédio se acenderam por cerca de três segundos, alimentadas pela pura energia da loucura. Houve uma breve explosão de música: Britney Spears cantando Oopsl... I Did It Again. Dois cabos de força arrebentaram com um estalo líquido e caíram quase na frente de Clay, que se afastou deles correndo. Provavelmente eles estavam mortos, deveriam estar mortos, mas...

     O mais velho caiu de joelhos com sangue descendo pelos dois lados da cabeça.

     —      Meu caminhão!— disse ele claramente, e então caiu de cara no chão.

     O mais jovem se virou para Clay, como se o convocasse para ser testemunha da sua vitória. Sangue escorria do seu cabelo emaranhado e sujo, descendo pelos olhos, pelos dois lados do nariz e pela boca. Seus olhos, Clay viu, não estavam nem um pouco vazios. Estavam enlouquecidos. Clay compreendeu — de súbito, completa e indiscutivelmente — que se aquele era o fim do ciclo, não havia chance de salvar seu filho.

     —      Meaminhão!— esgoelou-se o rapaz. — Meaminhão, meaminhão!— A sirene do caminhão soltou um grunhido curto e oscilante, como se concordasse. — MEAMI...

     Clay atirou nele, então colocou o calibre 45 de volta no coldre. Que se foda, ele pensou, eles só podem me colocar em um pedestal uma vez. Ainda assim, ele estava tremendo muito, e quando invadiu o único motel de Gurleyville do outro lado da cidade, demorou bastante para dormir. Em vez do Homem Esfrangalhado, foi seu filho quem o visitou em sonho, uma criança suja, de olhos vazios, que respondeu "Vai-inferno, meaminhão”, quando Clay a chamou pelo nome.

     Ele acordou deste sonho muito antes do anoitecer, mas já não conseguia mais dormir e decidiu recomeçar a caminhada. E, assim que deixasse Gurleyville para trás — o pouco que existia para deixar para trás —, começaria a dirigir. Não havia motivo para não fazê-lo; àquela altura a estrada parecia quase totalmente livre e provavelmente tinha estado assim desde o acidente feio na interceção com a rota 11. Ele apenas não havia notado por conta da escuridão e da chuva.

     O Homem Esfrangalhado e seus amigos limparam o caminho, pensou ele. É claro que sim, é a porra do corredor de gado. Para mim é provavelmente o corredor que leva ao matadouro. Porque eu já sou notícia velha. Eles querem é carimbar PAGO em mim e me arquivarem o mais rápido possível. Sinto muito por Tom, Jordan e os outros três. Será que eles encontraram estradas secundárias suficientes para irem até a região central de New Hampshire...

     Ele chegou ao topo de uma ladeira, e esse pensamento se interrompeu de imediato. Um pequeno ônibus escolar amarelo com DISTRITO ESCOLAR 38 MAINE NEWFIELD pintado na lateral estava estacionado na rua lá embaixo. Um homem e um menino estavam recostados nele. O homem estava com o braço em volta dos ombros do menino em um gesto casual de amizade que Clay teria reconhecido em qualquer lugar. Enquanto ele ficava olhando, paralisado, sem acreditar no que via, outro homem contornou a frente rombuda do ônibus. Tinha cabelos longos e grisalhos amarrados em um rabo-de-cavalo. Atrás dele vinha uma grávida vestindo uma camiseta. Era azul-clara em vez da preta Harley Davidson, mas era Denise, sem dúvida.

     Jordan o viu e gritou seu nome. Livrou-se do braço de Tom e começou a correr. Clay correu na direção dele. Eles se encontraram a uns 30 metros do ônibus.

     — Clay! — exclamou Jordan. Ele estava histérico de alegria. — É você mesmo!

     —      Sou eu — concordou Clay. Ele girou Jordan no ar e então o beijou. Jordan não era Johnny, mas serviria, pelo menos por enquanto. Clay o abraçou, então o colocou no chão e examinou seu rosto abatido, sem deixar de notar as olheiras marrons de cansaço sob os olhos do menino. — Como vocês vieram parar aqui?

     O rosto de Jordan ficou sombrio.

     —      Não poderíamos... quer dizer, nós sonhamos que...

     Tom veio andando. Ignorou mais uma vez a mão estendida de Clay e o abraçou.

     —      Como você está, Van Gogh? — perguntou ele.

     —      Bem. Feliz pra caralho em reencontrar vocês, mas não entendo...

     Tom sorriu para ele. Era um sorriso ao mesmo tempo cansado e doce, uma bandeira branca.

     —      O que o ás dos computadores está tentando dizer é que no fim das contas não tivemos escolha. Venha para o ônibus. Segundo Ray, se a estrada continuar livre, e tenho certeza de que vai continuar, podemos chegar a Kashwak ao pôr do sol, mesmo se andarmos a 50 quilômetros por hora. Você já leu A Assombração da Casa da Colina?.

     Clay balançou a cabeça, confuso.

     —      Vi o filme.

     —      Tem uma frase nele que combina com a nossa situação: "No fim do caminho, os amantes se encontram." Parece que eu vou acabar conhecendo seu filho.

     Eles andaram até o ônibus escolar. Dan Hartwick ofereceu a Clay uma latinha de pastilhas de menta com a mão não muito firme. Assim como Jordan e Tom, ele parecia exausto. Clay, sentindo-se como em um sonho, pegou uma.

     —      E aí, cara — disse Ray. Ele estava atrás do volante do ônibus, com o boné dos Dolphins virado para trás, um cigarro queimando em uma das mãos. Tinha uma aparência pálida e abatida. Não estava olhando para Clay, e sim pelo retrovisor.

     —      E aí, Ray, meu rei — respondeu Clay.

     Ray sorriu por um instante.

     —      Essa aí eu já ouvi bastante.

     —      Com certeza, provavelmente umas cem vezes. Eu poderia dizer que estou feliz em te ver, mas, do jeito que as coisas andam, não sei se você gostaria de ouvir.

     Ainda olhando pelo retrovisor, Ray respondeu:

     —      Tem uma pessoa lá na frente que você certamente não vai ficar feliz em ver.

     Clay olhou. Todos eles olharam. A menos de meio quilômetro ao norte, a rota 160 subia outra colina. Depois em cima e olhando para eles, o casaco de HARVARD mais sujo do que nunca, mas ainda brilhante contra o céu cinza da tarde, estava o Homem Esfrangalhado. Por volta de outros cinqüenta fonóides o cercavam. O Homem Esfrangalhado viu que eles estavam olhando. Ele ergueu a mão e acenou para o grupo duas vezes, como alguém limpando um retrovisor. Então deu meia-volta e começou a ir embora, seu entourage (seu rebanho, pensou Clay) o seguindo de ambos os lados, como uma espécie de rabo em forma de V. Logo estavam fora de vista.

    

    

     WORM

      

     Eles pararam em uma área para piquenique mais adiante na estrada. Ninguém estava com muita fome, mas aquela era uma chance para Clay fazer perguntas. Ray não comeu nada, apenas sentou na ponta de uma churrasqueira de pedra a favor do vento e fumou, ouvindo. Não acrescentou nada à conversa. Para Clay, ele parecia completamente desanimado.

     —      Nós achamos que estamos parando aqui — falou Dan, gesticulando para a pequena área de piquenique, margeada por pinheiros e árvores desfolhadas da cor do outono, com seu riacho sussurrante e sua trilha com uma placa na entrada que dizia SE FOR POR AQUI, LEVE UM MAPA! — Provavelmente estamos parando aqui, porque...

      — Ele olhou para Jordan. — Você diria que estamos parando aqui, Jordan? Você parece ter uma percepção mais clara.

     —      Sim — disse Jordan imediatamente. — Isso é real.

     —      É — disse Ray, sem erguer os olhos. — Estamos aqui, sim. —Ele bateu com a mão na pedra da churrasqueira, e sua aliança fez um pequeno tink-tink-tink. — Isso aqui é pra valer. Estamos juntos novamente, isso era tudo que eles queriam.

     —      Não estou entendendo — disse Clay.

     —      Nós também não, não completamente — falou Dan.

     —      Eles são muito mais poderosos do que eu poderia imaginar —disse Tom. — Isso eu entendo muito bem. — Ele tirou os óculos e os limpou na camisa. Foi um gesto cansado, distraído. Tom parecia dez anos mais velho do que o homem que Clay conhecera em Boston. — E eles mexeram com a nossa cabeça. E muito. Nunca tivemos a mínima chance.

     —      Vocês todos parecem exaustos — replicou Clay.

     Denise riu.

     —      É mesmo? Bem, não é para menos. Nós deixamos você e pegamos a rota 11 na direção oeste. Andamos até vermos o dia começar a raiar. Dirigir não fazia o menor sentido porque a estrada estava um caos. Dava pra conseguir meio quilômetro livre, mas então...

     —      A estrada ficava bloqueada, eu sei — disse Clay.

     —      Ray disse que ficaria melhor assim que chegássemos a oeste da Spaulding Turnpike, mas decidimos passar o dia em um lugar chamado Twilight Motel.

     —      Já ouvi falar — disse Clay. — Fica colado no parque Vaughan. É bastante famoso na minha terra.

     —      Ah, é? Ok. — Ela deu de ombros. — Então a gente vai para lá e o garoto, Jordan, diz: "Vou preparar o maior café-da-manhã que vocês já comeram na vida." E a gente responde vai sonhando, garoto, o que acabou sendo meio engraçado porque de certa forma era isso mesmo que estava acontecendo, mas o lugar tinha luz, e ele prepara mesmo. Me aparece com esse café-da-manhã enorme. A gente cai dentro. É um exagero de café-da-manhã. Estou contando direito?

     Dan, Tom e Jordan assentiram. Sentado na churrasqueira, Ray se limitou a acender outro cigarro.

     De acordo com Denise, eles comeram na sala de jantar, o que Clay achou fascinante, pois tinha certeza de que o Twilight não tinha sala de jantar. Era só mais um daqueles motéis baratos que margeavam a interestadual Maine New Hampshire. Dizia-se que os únicos atrativos eram duchas de água fria e filmes de sacanagem nas TVs dos quartos minúsculos.

     A história ficou mais estranha. Havia uma jukebox. Nada de Lawrence Welk e Debby Boone; estava era cheia de música de festa e, em vez de irem direto para a cama, eles dançaram — animadamente — por duas ou três horas. Então, antes de deitarem, fizeram outra refeição farta, daquela vez com Denise de mestre cuca. Depois de comerem, finalmente, caíram no sono.

     —      E sonhamos que estávamos andando — acrescentou Dan. Ele falou com uma amargura esgotada que era perturbadora. Aquele não era o mesmo homem que Clay conhecera duas noites atrás, o homem que dissera: Tenho quase certeza de que podemos evitar que eles entrem na nossa cabeça enquanto estamos acordados e temos uma chance de conseguir. Ainda é só o começo para eles. Então ele riu um pouco, um som que não continha humor algum. — Cara, devíamos ter sonhado, porque estávamos andando. Andamos aquele dia todo.

     —      Nem todo — disse Tom. — Eu sonhei que estava dirigindo...

     —      É, você dirigiu — disse Jordan baixinho. — Apenas por cerca de uma hora, mas dirigiu. Foi quando também sonhamos que estávamos dormindo naquele motel. O tal do Twilight. Sonhei com você dirigindo também. Foi como um sonho dentro de um sonho. Só que esse foi real.

     —      Está vendo? — disse Tom, sorrindo para Clay. Ele despenteou o cabelo cheio do menino. — Em algum nível, Jordan sempre soube.

     —      Realidade virtual — disse Jordan. — Não passava disso. Era quase como estar em um videogame. E nem era tão bem-feito assim. — Ele olhou para o norte, na direção em que o Homem EsfrangaIhado tinha desaparecido. Na direção de Kashwak. — Vai ficar melhor se eles ficarem melhores.

     —      Os filhos-da-puta não conseguem fazer isso depois que escurece — disse Ray. — Eles têm que ir pra caminha.

     —      E, no fim do dia, nós também fomos — falou Dan. — Era o que eles queriam. Nos deixar tão esgotados que não perceberíamos o que estava acontecendo, mesmo quando a noite chegasse e eles perdessem o controle. Durante o dia, o Reitor de Harvard estava sempre por perto, junto com um bando de bom tamanho, enviando aquele campo de força mental deles e criando a realidade virtual de Jordan.

     —      Deve ter sido isso — falou Denise. — Com certeza.

     Tudo isso estava acontecendo, calculou Clay, enquanto ele dormia na cabana do caseiro.

     —      E nos deixar esgotados não era tudo que eles queriam — disse Tom. — Também não queriam apenas trazer a gente de volta para o norte. Eles também nos queriam reunidos.

     Os cinco entraram em um motel caindo aos pedaços na rota 47 — a rota 47 do Maine, não muito ao sul do rio Great Works. A sensação de deslocamento, disse Tom, havia sido enorme. O som de música para bandos não muito ao longe não ajudara. Todos tinham uma noção do que provavelmente havia acontecido, mas foi Jordan quem verbalizou, da mesma forma que foi Jordan quem apontou o óbvio: a tentativa de fuga deles falhara. Sim, eles poderiam sair do motel em que se encontravam e voltar a seguir para o oeste, mas até onde chegariam daquela vez? Estavam exaustos. Pior, estavam sem ânimo. Também foi Jordan quem apontou que os fonóides talvez tivessem até mandando alguns espiões normies rastrear seus movimentos noturnos.

     —      Nós comemos — falou Denise —, porque, além de cansados, estávamos famintos. Então fomos nos deitar de verdade e dormimos até a manhã seguinte.

     —      Fui o primeiro a acordar — disse Tom. — O próprio Homem Esfrangalhado estava no pátio. Ele fez uma pequena mesura para mim e gesticulou para a estrada. — Clay se lembrava bem daquele gesto. — Acho que poderia ter atirado nele, estava com o Sr. Ligeirinho, mas do que adiantaria?

     Clay balançou a cabeça. Não adiantaria nada.

     Eles voltaram para a estrada, primeiro subindo a rota 47. Então, contou Tom, sentiram-se mentalmente empurrados para um caminho sem sinalização que parecia na verdade serpentear para o sudoeste.

     —      Nenhuma visão naquela manhã? — perguntou Clay. — Nenhum sonho?

     —      Não — respondeu Tom. — Eles sabiam que já tínhamos entendido a mensagem. Afinal de contas, podiam ler nossas mentes.

     —      Ouviram a gente pedir penico — falou Dan naquele mesmo tom cansado e amargo. — Ray, você pode me dar um cigarro? Parei de fumar, mas estou pensando em retomar o hábito.

     Ray atirou o maço para ele sem dizer palavra.

     —      É como se alguém empurrasse você com a mão, só que dentro do cérebro — disse Tom. — Nem um pouco agradável. É intrusivo de um jeito que nem sei começar a descrever. E o tempo todo havia a sensação do Homem Esfrangalhado e do seu bando nos acompanhando. Às vezes chegávamos a ver alguns deles em meio às árvores; mas na maior parte do tempo, não.

     —      Então eles não estão apenas formando bandos de dia e de noite agora — disse Clay.

     —      Não, tudo isso está mudando — falou Dan. — Jordan tem uma teoria; bem interessante e com algumas provas para sustentá-la. Além do mais, nós somos uma exceção. — Ele acendeu o cigarro. Tragou. Tossiu. — Porra, sabia que tinha largado isso por algum motivo. — E então, quase sem pausar. — Sabia que eles flutuam? Levitam. Deve ser uma maneira muito útil de se locomover com as estradas tão entulhadas. É como ter um tapete voador.

     Depois de subirem aparentemente em vão o caminho por cerca de um quilômetro e meio, os cinco chegaram a uma cabana com uma picape estacionada na frente. Estava com as chaves. Ray dirigiu; Tom e Jordan seguiram na carroceria. Nenhum deles ficou surpreso quando mais adiante o caminho dobrou novamente para o norte. Logo antes de desaparecer, o farol em suas cabeças mandou-os para um outro caminho, e então para um terceiro, que era pouco mais que uma trilha com mato crescendo no meio. A trilha deu em um trecho pantanoso onde a picape atolou, mas uma hora de luta com a lama os fez sair na rota 11, logo ao sul da interseção daquela estrada com a 160.

     —      Dois fonóides mortos ali — disse Tom. — Frescos. Cabos de energia caídos, postes quebrados. Os corvos estão fazendo um banquete.

     Clay pensou em contar a eles o que vira no Corpo de Bombeiros Voluntário de Gurleyville, mas desistiu. Não via como aquilo poderia estar relacionado com a atual situação. Além do mais, havia muitos que não estavam brigando entre si, e aqueles vinham forçando Tom e os demais a ir adiante.

     Aquela força não os havia levado até o ônibus amarelo; Ray o encontrara explorando o Posto Comercial de Newfield enquanto os outros roubavam refrigerantes do mesmo freezer que Clay saqueara. Ray o viu por uma janela dos fundos.

     Eles só haviam parado uma vez desde então, para fazer uma fogueira no chão de granito da pedreira Gurleyville e comerem uma refeição quente. Também tinham trocado de sapatos no Posto Comercial de Newfield — a caminhada na chuva deixara todos enlameados até as canelas — e descansado por uma hora. Devem ter passado por Clay no Gurleyville Motel aproximadamente na hora em que ele estava acordando, pois foram forçados a parar logo depois.

     —      E aqui estamos nós — disse Tom. — Caso quase encerrado. — Ele balançou um braço para o céu, a terra e as árvores. — Um dia, filho, tudo isso vai ser seu.

     —      Já não estou sentindo mais aqueles empurrões na cabeça, pelo menos por enquanto — falou Denise. — E me sinto grata. O primeiro dia foi o pior, sabia? Quero dizer, Jordan tinha uma idéia mais clara de que algo estava errado, mas acho que todos nós sabíamos que a coisa não estava... direita, sabe?

     —      É — disse Ray. Ele esfregou a nuca. — Era como estar em uma história infantil em que os pássaros e as cobras falam. Eles dizem coisa tipo: "Você está legal, está bem, esqueça que suas pernas estão tão cansadas, você está chuchubeleza." Chuchubeleza, era assim que costumávamos falar quando eu era criança em Lynn.

     —      "Lynn, Lynn, cidade do pecado; quando você chegar ao céu, eles não vão deixar você entrar" — cantarolou Tom.

     —      Você cresceu mesmo no meio dos carolas — disse Ray. — Bem, o garoto sacou, eu saquei, e acho que todos nós sacamos. Se você tivesse alguma coisa na cabeça e ainda acreditasse que iria se safar...

     —      Eu acreditei até onde pude porque quis acreditar — falou Dan —, mas, sinceramente? Nunca tivemos a mínima chance. Outros normies talvez sim, mas não a gente, não os exterminadores de bandos. Eles querem nos pegar, independentemente do que aconteça com eles.

     —      O que você acha que eles planejam para nós? — perguntou Clay.

     —      Nos matar, ora — disse Tom, quase sem interesse. — Pelo menos vou poder dormir direito.

     A mente de Clay finalmente alcançou algumas coisas e compreendeu. No início daquela conversa, Dan tinha dito que o comportamento normal deles estava mudando e que Jordan tinha uma teoria a respeito. Ele acabara de dizer independentemente do que aconteça com eles.

     —      Eu vi dois fonóides se atacarem não muito longe daqui — Clay finalmente contou.

     —      Foi mesmo? — falou Dan, sem se interessar muito.

       —     À noite — acrescentou Clay, e então todos olharam para ele. — Estavam brigando por um caminhão de bombeiro. Como duas crianças por um brinquedo. Recebi um pouco daquela telepatia de um deles, mas os dois estavam falando.

     —      Falando? — perguntou Denise com ceticismo. — Tipo palavras de verdade?

     —      Palavras de verdade. Nem sempre saíam claras, mas com certeza eram palavras. Quantos cadáveres frescos vocês viram? Só aqueles dois?

     Dan falou:

     —      Já vimos provavelmente uma dúzia desde que recuperamos a noção de onde estamos. — Ele olhou para os demais. Tom, Denise e Jordan assentiram. Ray deu de ombros e acendeu outro cigarro. — Talvez eles estejam revertendo; isso combina com a teoria de Jordan, embora a fala não pareça combinar. Podem ter sido apenas corpos de que os bandos não quiseram se livrar. Desova não é prioridade para eles no momento.

     —      Nós somos a prioridade, e eles vão nos desovar logo, logo — disse Tom. — Não acho que vamos receber o... vocês sabem, o tratamento do estádio até amanhã, mas tenho certeza de que eles nos querem em Kashwak antes do anoitecer.

     —      Jordan, qual é a sua teoria? — perguntou Clay.

     Jordan respondeu:

     —      Acho que havia um worm no programa original.

     — Não entendi — disse Clay —, mas até aí tudo bem. No computador, eu sabia usar o Word, o Adobe Illustrator e o MacMail. Fora isso, era praticamente analfabeto. Johnny tinha que me ensinar o jogo de paciência que veio com o meu Mac. — Falar sobre aquilo doeu. Lembrar da mão de Johnny se fechando sobre a dele no mouse doeu mais ainda.

     — Mas você sabe o que é um worm de computador, certo?

     — É um negócio que entra na sua máquina e ferra com todos os programas, não é?

     Jordan revirou os olhos, mas disse:

     —      Quase. Ele pode se esconder, corromper seus arquivos e o disco rígido no caminho. Se entrar em arquivos compartilhados e nas coisas que você envia, até mesmo anexos de e-mail, e eles entram, pode assumir comportamento viral e se espalhar. O worm é mutante e às vezes os filhotes sofrem mais mutações ainda. Ok?

     —      Ok.

     —      O Pulso foi um programa de computador enviado por modem; é o único jeito que poderia dar certo. E ainda está sendo enviado assim. Só que ele está com um worm, e o worm está destruindo o programa. Está ficando cada vez mais corrompido a cada dia que passa. GIGO. Você sabe o que é GIGO?

     Clay disse:

     —      Eu nem sei como chegar a San José.

     —      É uma sigla para garbage in, garbage out, ou seja, "lixo que sai, lixo que entra". Nós achamos que existem pontos de conversão onde os fonóides estão transformando normies...

     Clay se lembrou do seu sonho.

     —      Sobre isso eu já sei bem mais do que vocês.

     —      Mas agora eles estão recebendo uma programação corrompida. Entende? E faz sentido, porque parece que são os fonóides mais novos que estão caindo primeiro. Brigando, enlouquecendo ou simplesmente caindo mortos.

     —      Você não tem dados o suficiente para afirmar isso — respondeu Clay de pronto. Estava pensando em Johnny.

     Os olhos de Jordan estavam brilhando. Depois do que Clay falou, apagaram-se um pouco.

     —      Isso é verdade. — Então ele ergueu o queixo. — Mas é uma questão de lógica. Se a premissa estiver certa... se for um worm, algo entrando cada vez mais fundo no programa original... então é tão lógico quanto o latim que eles usam. Os novos fonóides estão reiniciando, mas agora é de um jeito maluco e instável. Recebem a telepatia, mas ainda conseguem falar. Eles...

     —      Jordan, você não pode tirar essa conclusão baseado apenas nos dois que eu vi...

     Jordan não estava prestando atenção. Na verdade, estava falando para si mesmo.

       —     Eles não formam bandos como os outros, não tão perfeitamen te, porque a ordem de formar bandos não está instalada de forma correta. Em vez disso eles... eles ficam acordados até tarde e levantam cedo. Voltam a agredir uns aos outros. E se isso estiver piorando... você não percebe? Os fonóides mais novos seriam os primeiros a se ferrarem!

     —      É como em Guerra dos Mundos — falou Tom em um devaneio.

     —      Hein? — disse Denise. — Eu não vi esse filme. Parecia assustador demais.

     —      Os invasores foram mortos por micróbios que os nossos corpos toleram sem problemas — disse Tom. — Não seria uma justiça poética se os fonáticos todos morressem por conta de um vírus de computador?

     —      Eu me contentaria com a hostilidade — falou Dan. — Vamos deixá-los se matarem em uma grande guerra.

     Clay ainda estava pensando em Johnny. Em Sharon também, mas principalmente em Johnny. Johnny que escrevera POR FAVOR VENHA ME BUSCAR em letras maiúsculas e então assinara os três nomes, como se aquilo de alguma forma acrescentasse mais peso ao pedido.

     Ray Huizenga disse:

     —      Não vai nos adiantar nada se isso não acontecer hoje à noite. — Ele se levantou e espreguiçou. — Logo, logo eles vão mandar a gente continuar viagem. Vou parar pra fazer uma pequena necessidade enquanto posso. Não vão embora sem mim.

     —      No ônibus não vai dar — disse Tom enquanto Ray começava a subir a trilha. — As chaves estão no seu bolso.

     —      Cuidado para o passarinho não voar, Ray — falou Denise com doçura.

     —      Ninguém gosta de engraçadinhos, querida — disse Ray, sumindo de vista.

     —      O que eles vão fazer com a gente? — perguntou Clay. — Alguém tem alguma idéia?

     Jordan deu de ombros.

     —      Talvez seja como um circuito fechado de TV, mas com várias áreas diferentes do país participando. Talvez até mesmo o mundo inteiro. O tamanho daquele estádio me faz pensar que...

     —      E o latim também, é claro — falou Dan. — É uma espécie de língua franca.

     —      Mas por que eles precisam de uma língua franca? — perguntou Clay. — Eles são telepatas.

     —      Mas ainda pensam em palavras na maior parte do tempo — disse Tom. — Pelo menos até agora. Seja como for, eles querem nos executar, Clay. Jordan e Dan acham que sim, e eu também.

     —      E eu também — falou Denise com uma voz baixa e soturna, e acariciou a curva da sua barriga.

     Tom falou:

     —      O latim é mais que uma língua franca. É a língua da justiça, e nós já os vimos usá-la uma vez.

     Gunner e Harold. Sim. Clay assentiu.

     —      Jordan tem outra idéia — disse Tom. — Acho que você precisa ouvi-la, Clay. Por via das dúvidas. Jordan?

     Jordan balançou a cabeça.

     —      Não consigo.

     Tom e Dan Hartwick trocaram olhares.

     —      Bem, um de vocês me conte, então — disse Clay. — Mas que coisa!

     No fim das contas, Jordan mesmo contou.

     —      Por serem telepatas, eles sabem quem são seus entes queridos.

     Clay tentou encontrar algo de sinistro naquilo, mas não conseguiu.

     —      E daí?

     —      Tenho um irmão em Providence — disse Tom. — Se ele for um deles, ele será o meu carrasco. Quer dizer, se Jordan estiver correto.

     —      Minha irmã — falou Dan Hartwick.

     —      Meu monitor — disse Jordan. Ele estava-muito pálido. — O que tem um celular Nokia de 1.0 megapixel que roda vídeos baixados da Internet.

     —      Meu marido — falou Denise e desatou a chorar. — A não ser que ele esteja morto. Peço a Deus que sim.

     Por um instante, Clay continuou sem entender. Então pensou: John? O meu Johnny! Ele viu o Homem Esfrangalhado com a mão sobre a sua cabeça; o ouviu pronunciar a frase: "Ecce homo... insanus." E viu o filho andar em sua direção, com o bonezinho da Liga Juvenil virado para trás e com sua camisa favorita dos Red Sox, a que tinha o nome e o número de Tom Wakefield. Johnny, pequeno sob os olhos de milhões de espectadores pelo milagre da telepatia de circuito fechado, potencializada pelos bandos.

     O pequeno Johnny-Gee, sorrindo. De mãos vazias.

     Armados apenas com os dentes.

     Foi Ray quem quebrou o silêncio, embora nem estivesse presente.

     —      Ah, meu Deus. — Vindo de um pouco mais adiante na trilha.

     — Merda. — E então: — Ei, Clay!

     —      O que foi?— gritou Clay em resposta.

     —      Você morou aqui a vida inteira, não é? — Ray não parecia um campista muito feliz. Clay olhou para os outros, que devolveram apenas olhares vazios. Jordan deu de ombros e estendeu as palmas das mãos, tornando-se por um instante de cortar o coração um pré-adolescente em vez de apenas mais um refugiado da Guerra dos Celulares.

     —      Bem... mais para o interior, mas sim. — Clay se levantou. — O que houve?

     —      Então você sabe reconhecer sumagres-venenosos e urtigas, certo?

     Denise começou a rir e fechou a boca com as duas mãos.

     —      Sei — disse Clay. Ele não conseguia deixar de sorrir, mas sabia reconhecê-los muito bem. Já tinha mandado Johnny e seus amiguinhos ficarem longe deles muitas vezes no passado.

     — Bem, então venha aqui dar uma olhada — disse Ray —, e venha sozinho. — Então, quase sem pausar: — Denise, não preciso de telepatia para saber que você está rindo. Pode ir parando, garota.

     Clay saiu da área para piqueniques, passando pela placa que dizia SE FOR POR AQUI, LEVE UM MAPA! e então pela margem do belo riacho. Àquela altura, tudo na mata estava bonito — uma gradação de cores quentes misturadas com o verde forte e imutável dos abetos —, e ele imaginou (não pela primeira vez) que se todo homem e mulher devia uma morte a Deus, havia estações piores do que aquela para se pagar.

     Clay tinha esperado encontrar Ray com as calças abertas ou até mesmo nos tornozelos, mas ele estava em pé em um tapete de folhas de pinheiro com as calças abotoadas. Não havia nenhum arbusto onde ele estava, nenhum sumagre-venenoso ou nada do gênero. Ray estava pálido como Alice quando ela saiu correndo para a sala de estar dos Nickerson para vomitar, a pele tão branca que parecia morta. Somente os olhos ainda tinham vida. Estavam queimando no rosto dele.

     —      Vem cá — ele disse com um sussurro de pátio de presídio. Clay quase não conseguia ouvi-lo por trás do cacarejar barulhento do rio. — Rápido. Não temos muito tempo.

     —      Ray, que porra...

     —      Escute o que eu digo. Dan e o seu amigo Tom são espertos demais. Jordy também. Às vezes pensar atrapalha. A Denise é melhor, mas ela está grávida. Não dá pra confiar numa mulher grávida. Então é com você mesmo, Sr. Artista. Não estou gostando porque você ainda está apegado demais ao seu filho, mas o seu filho já era. No fundo você sabe disso. O seu filho rodou.

     —      Tudo bem aí, meninos? — gritou Denise, e por mais anestesiado que estivesse, Clay conseguia ouvir o sorriso na voz dela.

     —      Ray, não sei do que...

     —      Não, e é assim que vai ser. Escute o que eu digo. O que aquele merda de moletom vermelho quer não vai acontecer, se você não deixar. Isso é tudo que você precisa saber.

     Ray enfiou a mão no bolso da calça de sarja e tirou um celular e um pedaço de papel. O telefone estava cinza de sujeira, como se tivesse passado boa parte da vida em uma obra.

     —      Coloque isso no seu bolso. Quando a hora chegar, ligue para o número no papel. Você vai saber a hora certa. Só posso esperar que sim.

     Clay pegou o telefone. Era pegar ou largar. O pedacinho de papel escapou de seus dedos.

     —      Pegue o papel!— sussurrou Ray furiosamente.

     Clay se agachou e pegou a tira de papel. Dez números estavam rabiscados nela. Os três primeiros eram o código de área do Maine.

     —      Ray, eles lêem mentes! Se eu ficar com isso...

     A boca de Ray se esticou em uma terrível paródia de sorriso.

     —      Ah, é?! — sussurrou ele. — Eles vão bisbilhotar na sua cabeça e descobrir que você está pensando numa porra de um celular! E no que mais todo mundo está pensando desde o dia le de outubro? Quer dizer, os que ainda conseguem pensar?

     Clay olhou para o celular sujo e maltratado. Havia duas etiquetas na tampa. A de cima dizia SR. FOGARTY. A de baixo dizia PROP. DA PEDREIRA GURLEYVILLE NÃO RETIRAR.

     —      Coloca no bolso, porra!

     Não foi a urgência da ordem que o fez obedecer, e sim a urgência daqueles olhos desesperados. Clay começou a guardar o telefone e o pedaço de papel. Estava usando jeans, o que significava que seu bolso era mais apertado do que o da calça de sarja de Ray. Ele estava olhando para baixo para abrir mais o bolso quando Ray esticou o braço para frente e puxou o calibre 45 de Clay do coldre. Quando Clay ergueu os olhos, Ray já estava com o cano da arma sob o próprio queixo.

     —      Você vai estar fazendo um favor para o seu filho Clay. Acredite em mim. Isso não é jeito de viver.

     —      Ray, não!

     Ray apertou o gatilho. A bala American Defender de ponta oca arrancou toda a metade de cima da cabeça dele. Uma multidão de corvos abandonou as árvores. Clay nem tinha notado que eles estavam ali, mas agora eles rasgavam o céu de outono com seus gritos que, por um instante, sumiram sob o som do de Clay.

     Eles mal tinham começado a cavoucar uma cova para Ray na terra escura e macia sob os abetos quando os fonóides invadiram suas cabeças. Clay estava sentindo aquele poder combinado pela primeira vez. Era como Tom havia dito, como ser empurrado pelas costas por uma mão poderosa. Quer dizer, isso se tanto a mão quanto as costas estivessem dentro da sua cabeça. Nenhuma palavra. Apenas aquele empurrão.

     —      Deixe a gente terminar! — ele gritou e imediatamente respondeu a si mesmo em um registro um pouco mais agudo que reconheceu de imediato. — Não. Vão. Agora.

     —      Cinco minutos! — disse Clay.

     Desta vez, a voz do bando usou Denise.

     —      Vão. Agora.

      Tom rolou o corpo de Ray — os restos da cabeça enrolados na capa de um dos descansos para cabeça do ônibus — para o buraco e chutou um pouco de terra. Então agarrou os lados da própria cabeça, fazendo uma careta.

     —      Ok. Ok — disse ele e respondeu imediatamente a si mesmo. — Vão. Agora.

     Eles voltaram para a área de piquenique pela trilha, Jordan na frente. Ele estava muito pálido, mas não tanto quanto Ray ficara no último minuto de vida, pensou Clay. Nem de perto. Isso não é jeito de viver: suas últimas palavras.

     Do outro lado da rua, à vontade, fonóides faziam uma fila que se estendia até as duas linhas do horizonte, talvez num total de 800 metros. Devia haver quatrocentos deles, mas Clay não viu o Homem Esfrangalhado. Imaginava que ele tinha ido preparar o caminho, pois na casa dele há muitas moradas.

     Com uma extensão telefônica em cada uma delas, pensou Clay.

     Enquanto eles marchavam em direção ao microônibus, Clay viu três dos fonóides saírem da formação. Dois começaram a se morder, lutar e rasgar as roupas um do outro, rosnando o que poderiam ter sido palavras — Clay achou que tinha ouvido a expressão calaboca, mas imaginou que não passara de uma coincidência de sílabas. O terceiro simplesmente se virou e começou a ir embora, descendo a faixa branca em direção a Newfield.

     —      É isso mesmo, fora de forma, soldado! — gritou Denise histericamente. — Todos vocês, fora de forma!

     Mas eles não obedeceram, e antes de o desertor — se é que era isso que ele era — chegar à curva onde a rota 160 virava para o sul, sumindo de vista, um fonóide idoso, porém corpulento, simplesmente atirou os braços para frente, agarrou a cabeça do andarilho e a torceu para um lado. O andarilho desabou no asfalto.

     —      Ray estava com as chaves — falou Dan com uma voz cansada. Seu rabo-decavalo estava quase todo solto, e o cabelo caía-lhe sobre os ombros. — Alguém vai ter que voltar e...

     —      Eu peguei as chaves — disse Clay. — E eu vou dirigir. — Ele abriu a porta lateral do pequeno ônibus, sentindo aquela pulsação e aqueles empurrões constantes na cabeça. Havia sangue e terra nas suas mãos. Ele sentia o peso do celular no bolso e teve um pensamento estranho: talvez Adão e Eva tenham apanhado algumas maçãs antes de serem expulsos do Éden. Uma coisinha para beliscar no decorrer da longa e empoeirada estrada até 7 mil canais de televisão e mochilas com bombas no metrô de Londres. — Vamos entrando, todo mundo.

     Tom olhou para ele.

     —      Não precisa soar tão animadinho, Van Gogh.

     —      Por que não? — disse Clay, sorrindo. Ele ficou imaginando se aquele sorriso não parecia com o de Ray; aquele terrível ato final. — Pelo menos não vou ter que ouvir as suas besteiras por muito mais tempo. Todos pra dentro. Próxima parada, Kashwak=Sem-Fo.

     Antes de entrarem no ônibus, eles foram obrigados a se livrar das armas.

     Isso não se deu por meio de um comando mental, tampouco o controle motor deles foi sobrepujado por alguma força superior — Clay não teve que ficar olhando enquanto algo fazia sua mão baixar e tirar o calibre 45 do coldre. Ele não achava que os fonóides pudessem fazer aquilo, pelo menos não por ora; não podiam nem mesmo fazer o truque do ventríloquo sem permissão. Em vez disso, ele sentiu uma espécie de coceira muito forte, quase insuportável, dentro da cabeça.

     —      Minha Nossa Senhora! — exclamou Denise em voz baixa e atirou o pequeno calibre 22 que carregava no cinto o mais longe possível. Ele foi cair na estrada. Dan jogou sua própria pistola em seguida e então acrescentou a faca de caça para completar. A faca voou com a ponta para frente quase até o outro lado da rota 160, mas nenhum dos fonóides que estavam lá recuou.

     Jordan largou o revólver que carregava no chão ao lado do ônibus. Então, resmungando e se contorcendo, enfiou a mão na mochila e jogou longe a arma de Alice. Tom acrescentou o Sr. Ligeirinho.

      

     Clay juntou o calibre 45 às demais armas ao lado do ônibus. Aquela arma vinha trazendo azar para as pessoas desde o Pulso, e ele não estava muito triste em deixá-la para trás.

     —      Pronto — disse ele. Falou para os olhos que os observavam e para os rostos sujos, muitos deles mutilados, do outro lado da rua, mas era o Homem Esfrangalhado quem estava visualizando. — Isso é tudo. Está satisfeito? — E respondeu a si mesmo de imediato. — Por quê. Ele Fez. Aquilo?

     Clay engoliu em seco. Não eram apenas os fonóides que queriam saber; Dan e os outros estavam olhando para ele também. Clay notou que Jordan segurava o cinto de Tom, como se temesse a resposta dele da mesma maneira que um bebê temeria uma rua movimentada. Uma rua cheia de caminhões em alta velocidade.

     —      Ele disse que o seu jeito não era jeito de viver — disse Clay. — Pegou minha arma e estourou a própria cabeça antes que eu pudesse impedi-lo.

     Silêncio, exceto pelo grasnido dos corvos. Então Jordan falou, em um tom monocórdio e declamatório.

     —      O nosso jeito. É o único jeito.

     Dan falou em seguida. No mesmo tom.

     Se não estiverem sentindo raiva, eles não sentem nada, pensou Clay.

     —      Entrem. No ônibus.

     Eles entraram. Clay foi para trás do volante e deu a partida no motor. Ele seguiu para o norte pela rota 160. Estava há menos de um minuto na estrada quando percebeu movimento à sua esquerda. Eram os fonóides. Eles estavam indo para o norte pelo acostamento — por sobre o acostamento — em linha reta, como se estivessem em uma esteira a uns 20 centímetros do chão. Então, mais à frente, onde a estrada subia, eles levitaram muito mais alto, talvez a 40 centímetros do solo, descrevendo um arco humano contra o céu sombrio, quase todo nublado. Observar os fonóides desaparecendo para além do topo da colina era como observar um grupo descer o aclive de uma montanha-russa invisível.     

     Então a graciosa simetria se rompeu. Um dos vultos em suspensão caiu como um pássaro alvejado de uma moita, desabando pelo menos 2 metros até o acostamento. Era um homem vestido com uma roupa de corrida em frangalhos. Ele girava furiosamente no chão, chutando com uma perna, arrastando a outra. Quando o ônibus passou por ele a constantes 25 quilômetros por hora, Clay viu que o rosto do homem estava repuxado em uma careta de fúria e que sua boca se mexia, cuspindo o que quase certamente eram suas últimas palavras.

     —      Então agora já sabemos — disse Tom com cinismo. Ele estava sentado com Jordan no banco dos fundos do ônibus, em frente ao bagageiro em que as mochilas estavam empilhadas. — Os primatas dão origem ao homem, o homem dá origem aos fonóides, e os fonóides dão origem a telepatas que levitam e sofrem de síndrome de Tourette. Evolução completa.

     Jordan perguntou:

     —      O que é síndrome de Tourette?

     Tom respondeu:

     —      E eu sei lá, filho. — E, incrivelmente, todos começaram a rir.

     Logo estavam às gargalhadas, até Jordan, que não sabia do que estava rindo, enquanto o microônibus amarelo seguia lentamente para o norte, com os fonóides ultrapassando-o e então levitando, levitando em uma procissão aparentemente sem fim.

    

      

     KASHWAK

      

     Uma hora depois de deixarem a área para piqueniques em que Ray se matara com a arma de Clay, eles passaram por uma placa que dizia:

     EXPO DOS CONDADOS DO NORTE 5-15 DE OUTUBRO VENHAM TODOS!!!

     VISITE O KASHWAKAMAK HALL

     E NÃO SE ESQUEÇA DA EXCLUSIVA "ALA NORTE"

     *CAÇA-NÍQUEIS (INCLUINDO PÔQUER TEXANO)

     *"BINGO INDÍGENA"

     VOCÊ VAI DIZER "UAUÜ!"

     —      Oh, meu Deus — disse Clay. — A Expo do Kashwakamak Hall. Jesus. É o lugar perfeito para um bando.

     —      O que é uma expo? — perguntou Denise.

     —      Uma feira como outra qualquer — respondeu Clay —, só que maior do que a maioria e bem mais desregrada, porque é no TR, que é território não-incorporado. E tem também esse negócio de Ala Norte. Todo mundo no Maine sabe o que é a Ala Norte na Expo dos Condados do Norte. Ao seu estilo, é tão famosa quanto o Twilight Motel.

    

     Tom queria saber o que era a Ala Norte, mas antes de Clay poder explicar, Denise falou:

     —      Mais dois. Minha Nossa Senhora, sei que eles são fonóides, mas ainda fico enojada.

     Um homem e uma mulher jaziam na poeira do acostamento. Haviam morrido abraçados ou em uma briga feia, e abraços não pareciam combinar com o estilo de vida fonóide. Eles tinham passado por meia dúzia de outros corpos no caminho para o norte, quase certamente baixas do bando que viera buscá-los, e tinham visto o dobro disso vagando a esmo para o sul, às vezes sozinhos, às vezes aos pares. Um dos pares, claramente sem saber ao certo para onde queriam ir, chegou a pedir carona para o ônibus.

     —      Não seria ótimo se todos eles começassem a brigar ou caíssem mortos antes do que planejaram para nós amanhã? — disse Tom.

     —      Não conte com isso — falou Dan. — Para cada baixa ou desertor que vimos, havia vinte ou trinta que ainda estavam dentro do programa. E só Deus sabe quantos estão esperando lá em Kashwacky.

     —      Também não desconsidere a hipótese — Jordan disse do seu lugar ao lado de Tom. Ele falou com um pouco de rispidez. — Um bug em um programa, um worm, não é pouca coisa. Pode começar como uma pequena encheção de saco e então bum, perda total. Eu jogo aquele Star-Mag, sabem? Bem, costumava jogar, e um mau perdedor da Califórnia ficou tão puto de sempre perder que colocou um worm no sistema e derrubou todos os servidores em uma semana. Quase meio milhão de jogadores tendo que voltar a jogar cartas por causa daquele babaca.

     —      Não temos uma semana, Jordan — falou Denise.

     —      Eu sei — respondeu ele. — E sei que nem todos eles estão propensos a saírem do ar da noite para o dia... mas é possível. E ainda tenho esperanças. Não quero terminar como Ray. Ele parou de ter... bem, esperança. — Uma lágrima solitária desceu pelo rosto de Jordan.

     Tom o abraçou.

     —      Você não vai terminar como Ray — ele disse. — Vai crescer e ficar igual ao Bill Gates.

     —      Não quero ficar igual ao Bill Gates — disse Jordan com rabugice. — Aposto que ele tem celular. Na verdade, aposto que ele tem uns 12. — Ele se empertigou. — Uma coisa que eu daria tudo para saber é como tantas torres de transmissão de celulares ainda estão funcionando se não há luz.

     —      FEMA12 — falou Dan com cinismo.

     Tom e Jordan se viraram para olhar para ele. Tom com um esboço de sorriso no rosto. Até mesmo Clay ergueu os olhos para o retrovisor.

     —      Vocês acham que eu estou brincando — falou Dan. — Quem me dera. Li um artigo sobre o assunto em uma revista enquanto estava no consultório do meu médico, esperando por aquele exame desagradável em que ele coloca uma luva e então começa a explorar...

     —      Por favor — interrompeu Denise. — As coisas já estão ruins o suficiente. Pode pular essa parte. O que o artigo dizia?

     —      Que depois do 11 de setembro a FEMA requisitou e conseguiu uma verba do Congresso, não me lembro quanto, mas eram dezenas de milhões, para equipar torres de transmissão de celulares em todo o país com geradores de energia de longa duração para garantir que continuássemos capazes de nos comunicar mesmo no caso de ataques terroristas coordenados. — Dan fez uma pausa. — Parece que deu certo.

     —      FEMA — disse Tom. — Não sei se é para rir ou para chorar.

     —      Eu sugeriria que você escrevesse para o seu congressista, mas ele deve estar louco — falou Denise.

     —      Ele já era louco bem antes do Pulso — respondeu Tom, mas falou distraidamente. Estava esfregando a nuca e olhando pela janela. — FEMA — disse ele. — Sabe, até que faz sentido. A porra da FEMA.

     Dan falou:

     —      Eu daria tudo para saber por que eles fizeram tanta questão de nos colocar na coleira e nos trazer para cá.

     —      E se certificarem de que o resto de nós não seguisse o exemplo de Ray — acrescentou Denise. — Lembre-se disso. — Ela fez uma pausa. —Não que eu fosse seguir. Suicídio é pecado. Eles podem fazer o que quiserem comigo aqui, mas eu vou para o céu com o meu bebê. Acredito nisso

     —      O que me dá arrepios é o latim — falou Dan. — Jordan, é possível que os fonóides pudessem pegar coisas antigas, quero dizer, coisas de antes do Pulso, e incorporá-las à nova programação deles? Se estivesse de acordo com suas... hummm, sei lá... com suas metas a longo prazo.

     —      Acho que sim — respondeu Jordan. — Não sei bem, porque não sabemos que tipo de comando foi codificado no Pulso. Isso é bem diferente de programas de computador comuns. É autogerativo. Orgânico. Como um aprendizado. Acho que é um aprendizado. "É uma definição satisfatória", como diria o Diretor. Só que estão todos aprendendo juntos, por causa...

     —      Por causa da telepatia — atalhou Tom.

     —      Isso — concordou Jordan. Ele parecia incomodado.

     —      Por que o latim te dá arrepios? — perguntou Clay, olhando para Dan pelo retrovisor.

     —      Tom disse que o latim é a língua da justiça, e acho que é verdade, mas para mim isso parece mais vingança. — Ele se inclinou para frente. Atrás dos óculos, seus olhos pareciam cansados e perturbados. — Porque, com ou sem latim, eles não conseguem pensar de verdade. Estou convencido disso. Pelo menos ainda não. Em vez de dependerem do pensamento racional, eles dependem de um tipo de mente coletiva nascida de pura raiva.

     —      Objeção, Meritíssimo, especulação freudiana! — disse Tom, um tanto alegremente.

     —      Talvez Freud, talvez Lorenz — falou Dan —, mas, seja como for, conceda-me o benefício da dúvida. Você ficaria surpreso se uma entidade dessas, uma entidade tão raivosa, confundisse justiça com vingança?

     —      Isso teria importância? — perguntou Tom.

     —      Talvez tenha para nós — respondeu Dan. — Como alguém que já deu um curso sobre vigilantismo na América, posso afirmar que a vingança geralmente dói mais.

    

     Pouco depois dessa conversa, eles chegaram a um lugar que Clay reconheceu. O que era perturbador, pois ele nunca estivera naquela parte do estado antes. Exceto uma vez, no sonho das conversões em massa.

     KASHWAK=SEM-FO estava escrito na estrada em pinceladas grossas de tinta verde brilhante. A van passou por cima das palavras a constantes 48 quilômetros por hora enquanto os fonóides continuavam a fluir à esquerda em sua procissão imponente e sobrenatural.

     Aquilo não foi um sonho, ele pensou, olhando para os montes de lixo presos nos arbustos dos acostamentos e para as latas de cerveja e refrigerante nas valas. Sacos que haviam contido batatas fritas, Doritos e Cheez Doodles estalavam sob os pneus do microônibus. Os normies ficaram parados aqui em fila dupla, comendo seus lanches e tomando suas bebidas, sentindo aquela coceira esquisita dentro da cabeça, aquela sensação estranha de que alguém os empurrava mentalmente pelas costas, esperando sua vez de ligar para algum ente querido que se perdera durante o Pulso. Ficaram aqui e ouviram o Homem Esfrangalhado dizer: Esquerda e direita, isso mesmo, é assim que se faz, vamos continuar andando, temos muitos de vocês para processar antes do anoitecer.

     Mais adiante, as árvores se afastavam em ambos os lados da estrada. O que antes tinha sido o arduamente conquistado pasto para vacas ou ovelhas de algum fazendeiro fora esmagado e revolvido até virar terra nua pelos vários pés que o cruzaram. Era quase como se o lugar tivesse sido palco de um show de rock. Uma das tendas sumira — levada pelo vento —, mas a outra se prendera em algumas árvores e batia na luz fosca do começo da noite como uma língua grande e marrom.

     —      Eu sonhei com esse lugar — disse Jordan. A voz dele estava tensa.

     —      Foi mesmo? — falou Clay. — Eu também.

     —      Os normies seguiam os sinais de Kashwak igual a Sem-Fo e era aqui que eles chegavam — disse Jordan. — Eram como cabines de pedágio, certo, Clay?

     —      Tipo isso — disse Clay. — É, tipo cabines de pedágio.

     —      Eles tinham caixas de papelão grandes cheias de celulares — disse Jordan. Aquele era um detalhe do sonho de que Clay não se lembrava, mas não duvidou que fosse verdade. — Montes e montes deles. E todo normie tinha direito a uma ligação. Que bando de sortudos.

     —      Quando você sonhou com isso, Jordy? — perguntou Denise.

     —      Na noite passada. — Os olhos de Jordan encontraram os de Clay no retrovisor. — Eles sabiam que não iriam falar com as pessoas que queriam. No fundo, sabiam. Mas ligaram assim mesmo. Pegaram os telefones assim mesmo. Pegaram e escutaram. A maioria nem mesmo reagiu. Por que, Clay?

     — Porque estavam cansados de lutar, imagino — respondeu Clay. — Cansados de serem diferentes. Queriam ouvir Baby Elephant Walk com novos ouvidos.

     Já estavam além dos pastos arruinados que haviam abrigado as tendas. Mais adiante, uma estrada de acesso asfaltada se separava da rodovia. Era mais larga e mais plana do que a interestadual. Os fonóides a estavam subindo e desaparecendo em uma abertura na mata. Assomando-se bem acima das árvores, a uns 800 metros à frente, havia uma estrutura de ferro parecida com uma grua que Clay reconheceu imediatamente dos seus sonhos. Ele achou que só podia ser uma espécie de brinquedo, talvez um Sky Coaster. Havia um outdoor na interseção da rodovia com a estrada de acesso, mostrando uma família sorridente — papai, mamãe, filhinho e irmãzinha — que entrava em um paraíso de brinquedos, jogos e exposições agrícolas.

     EXPO DOS CONDADOS DO NORTE

     QUEIMA DE GALA DE FOGOS DE ARTIFÍCIO

     5 DE OUTUBRO

     VISITE O KASHWAKAMAK HALL

     "ALA NORTE" ABERTO 24H DE SEGUNDA A

     SEGUNDA 5-15 DE OUTUBRO

     VOCÊ VAI DIZER "UAUÜ!"

     Do lado deste outdoor estava o Homem Esfrangalhado. Ele ergueu uma das mãos e a estendeu em um gesto de pare.

     Oh, meu Deus, pensou Clay e estacionou o microônibus ao lado dele. Os olhos do Homem Esfrangalhado, que Clay não conseguira acertar no seu desenho em Gaiten, pareciam ao mesmo tempo confusos e cheio de um interesse malévolo. Clay disse a si mesmo que era impossível que eles aparentassem as duas coisas ao mesmo tempo, mas aparentavam. Às vezes a apatia confusa sobressaía; logo em seguida, parecia ser aquela avidez estranhamente perturbadora.

     É impossível que ele queira se dar bem com a gente.

      Porém, parecia que era isso que o Homem Esfrangalhado queria. Ele ergueu as mãos até a porta do ônibus com as palmas unidas e então as abriu. O gesto foi bastante bonito — como um homem indicando o pássaro voou —, mas as mãos estavam pretas e sujas, e o dedinho da esquerda tinha se quebrado aparentemente em dois lugares.

     Essas são as novas pessoas, pensou Clay. Telepatas que não tomam banho.

     —      Não o deixe entrar — falou Denise. A voz dela estava tremendo.

     Clay, que conseguia notar que o movimento constante, como se em uma esteira, dos fonóides à esquerda do ônibus tinha parado, balançou a cabeça.

     —      Não temos escolha.

     Eles vão bisbilhotar na sua cabeça e descobrir que você está pensando numa porra de um celular!, dissera Ray, quase bufando. E no que mais todo mundo está pensando desde o dia 10 de outubro?

     Espero que você tenha razão, Ray, ele pensou, porque ainda falta uma hora e meia para escurecer. Uma hora e meia no mínimo.

     Ele baixou a alavanca que abria a porta, e o Homem Esfrangalhado, com o lábio inferior curvado naquele constante sorriso de escárnio, entrou. Ele estava absurdamente magro, o abrigo vermelho imundo pendia do seu corpo como um saco. Nenhum dos normies dentro do ônibus estava particularmente limpo — a higiene já não era prioridade desde l0 de outubro —, mas do Homem Esfrangalhado emanava um fedor podre e intenso que quase fez Clay lacrimejar. Era o cheiro de um queijo forte deixado em uma câmara quente para curar.

     O Homem Esfrangalhado se sentou no banco do lado da porta, o que ficava de frente para o assento do motorista, e olhou para Clay. Por um instante, não houve nada além do peso seco dos olhos dele e daquela estranha curiosidade sorridente.

     Então Tom falou em uma voz fina e ultrajada que Clay só o ouvira usar uma vez, quando disse: Ah, já chega, pode ir tirando o cavalinho da chuva, para a papa-hóstia gorducha que começou a pregar o sermão do Fim dos Tempos para Alice.

     —      O que você quer de nós? Você já tem o mundo; o que quer de nós?

     A boca arruinada do Homem Esfrangalhado formou a palavra ao mesmo tempo em que Jordan a dizia. Apenas aquela palavra, em um tom monótono e sem emoção.

     —      Justiça.

     —      No que diz respeito à justiça — falou Dan —, acho que você nem sabe do que está falando.

     O Homem Esfrangalhado respondeu com um gesto, erguendo uma das mãos em direção à estrada de acesso, palma para cima e indicador apontando: Pé na tábua.

     Quando o ônibus começou a se mover, a maioria dos fonóides também voltou a andar. Alguns tinham arrumado briga, e pelo retrovisor Clay viu outros voltando para a rodovia pela estrada de acesso da exposição.

     —      Você está perdendo alguns soldados — disse Clay.

     O Homem Esfrangalhado não respondeu em nome do bando. Os olhos dele, apáticos, depois curiosos, depois os dois, continuaram fixos em Clay, que julgava quase sentir aquele olhar caminhando levemente sobre sua pele. Os dedos contorcidos do Homem Esfrangalhado, cinzas de sujeira, estavam no colo do seu jeans azul encardido. Então ele sorriu. Talvez aquilo bastasse como resposta. Dan estava certo, no fim das contas. Para cada fonóide que caía — ou saísse do ar, na língua de Jordan — havia muitos outros. Mas Clay não fazia idéia do que muitos outros significava até meia hora mais tarde, quando a mata se abriu de ambos os lados e eles passaram pelo arco de madeira que dizia BEM-VINDOS À EXPO DOS CONDADOS DO NORTE.

     — Bom Deus — falou Dan.

     Denise articulou melhor os sentimentos de Clay; ela deu um grito baixinho.

      

     Sentado do outro lado do corredor estreito do ônibus no primeiro banco de passageiros, o Homem Esfrangalhado apenas ficou parado olhando para Clay com a malevolência vaga de uma criança idiota prestes a arrancar as asas de algumas moscas. Gostou?, o sorriso dele parecia dizer. É impressionante, não é? Está todo mundo aqui! É claro que um sorriso daqueles poderia significar aquilo ou qualquer outra coisa. Poderia até significar eu sei o que está no seu bolso.

     Além do arco, havia um caminho amplo e uma porção de brinquedos, ambos ainda em construção na época do Pulso, ao que parecia. Clay não sabia quantas tendas de exposição tinham sido montadas, mas algumas haviam sido levadas pelo vento, como as do posto de controle a 10 ou 12 quilômetros atrás, e apenas algumas continuavam de pé, as laterais parecendo respirar na brisa noturna. As Xícaras Malucas ainda estavam inacabadas, assim como a Casa dos Horrores em frente (DESAFIAMOS VOCÊ A estava escrito no único pedaço da fachada erguido; esqueletos dançavam sobre as palavras). Apenas a Roda-gigante e o Sky Coaster do outro lado do que teria sido o caminho principal do parque pareciam terminados e, sem as luzes elétricas para animá-los, Clay os achava medonhos, mais parecidos com instrumentos de tortura gigantes do que com brinquedos. Porém, uma luz estava piscando, ele viu: uma luz de farol, certamente à bateria, bem no topo do Sky Coaster.

     Muito além do brinquedo, havia um prédio branco com molduras vermelhas, da largura de uma dúzia de celeiros. Montes de feno tinham sido empilhados nas laterais. Bandeiras americanas, tremulando na brisa noturna, haviam sido fincadas naquele revestimento vagabundo a cada 3 metros. O prédio estava decorado com grinaldas de flâmulas patrióticas e trazia o letreiro EXPO DOS CONDADOS DO NORTE KASHWAKAMAK HALL em tinta azull brilhante.

     Mas não foi nada disso que chamou a atenção deles. Entre o Sky Coaster e o Kashwakamak Hall havia vários acres de campo aberto. Clay imaginou que era lá que as grandes multidões se reuniam para as exibições de gado, as corridas de tratores, os shows do último dia da feira, e — é claro — as queimas de fogos que abririam e fechariam a Expo. A área era cercada de postes de luz e mastros com alto-falantes. Agora, aquela esplanada enorme e coberta de grama estava apinhada de fonóides. Eles estavam ombro a ombro e quadril a quadril, seus rostos virados para assistirem à chegada do pequeno ônibus amarelo.

     Qualquer esperança que Clay tinha nutrido de encontrar Johnny — ou Sharon — desapareceu num instante. Seu primeiro pensamento foi que devia haver 5 mil pessoas aglomeradas sob aqueles postes de luz apagados. Então viu que eles também haviam transbordado até os estacionamentos adjuntos à área de exposição principal e corrigiu sua estimativa para cima. Oito. Pelo menos 8 mil.

     O Homem Esfrangalhado continuou sentado no lugar que pertencia a algum aluno da Escola Primária de Newfield, sorrindo para Clay com os dentes projetando-se do rasgo no lábio. Gostou?, parecia perguntar aquele sorriso, e Clay teve que se lembrar mais uma vez que se podia interpretar de qualquer maneira um sorriso daquele tipo.

     — Então, quem vai tocar hoje à noite? Vince Gill? Ou vocês rasparam o cofre e trouxeram Alan Jackson? — Foi Tom quem falou. Ele estava tentando ser engraçado e Clay lhe dava crédito por isso, mas Tom só conseguiu transmitir medo.

     O Homem Esfrangalhado ainda estava olhando para Clay, e um vinco começou a aparecer no meio da sua testa, como se algo o intrigasse.

     Clay conduziu o microônibus lentamente pelo meio do caminho principal, em direção ao Sky Coaster e à multidão silenciosa além dele. Havia mais corpos ali; eles faziam Clay se lembrar de como você às vezes encontra um monte de insetos mortos no peitoril da janela depois de uma geada inesperada. Ele se concentrou em manter as mãos relaxadas. Não queria que o Homem Esfrangalhado visse os nós dos seus dedos ficarem brancos sobre o volante.

     E vá devagar. Tranqüilo e calmo. Ele está sé olhando para você. Quanto aos celulares, em que outra coisa as pessoas estão pensando desde l0 de outubro?

     O Homem Esfrangalhado ergueu uma das mãos e apontou um dedo torto e muito gasto para Clay.

     —      Sem-fo pra você — disse Clay naquela outra voz. — Insanus.

     —      É, sem-fo-pramim-mim, sem-fo pra nenhum de nós, somos todos palhaços neste ônibus — disse Clay. — Mas você vai dar um jeito nisso, certo?

     O Homem Esfrangalhado sorriu, como se concordasse com aquilo... mas a pequena linha vertical ainda estava lá. Como se algo ainda o intrigasse. Talvez algo dando voltas e voltas na mente de Clay Riddell.

     Clay ergueu os olhos para o retrovisor à medida que se aproximavam do fim da rua.

     —      Tom, você me perguntou o que era a Ala Norte — disse ele.

     —      Desculpe, Clay, mas já não estou muito interessado — disse Tom. — Talvez seja o tamanho do comitê de boas-vindas.

     —      Não, mas isso é interessante — disse Clay, um pouco exaltado.

     —      Ok, o que é? — perguntou Jordan. Deus abençoe Jordan. Curioso até o fim.

     —      As Exposições dos Condados do Norte nunca foram grande coisa no século XX — disse Clay. — Não passavam de feirinhas agro pecuárias cafonas com pinturas, artesanato, produtos e animais lá no Kashwakamak Hall... que é onde eles vão colocar a gente, pelo jeito.

     Ele olhou para o Homem Esfrangalhado, mas ele não confirmou nem desmentiu. O Homem Esfrangalhado se limitou a sorrir. A pequena linha vertical desaparecera da sua testa.

     —      Clay, cuidado — falou Denise com uma voz tensa, controlada.

     Ele se virou para olhar pelo párabrisa e pisou no freio. Uma senhora idosa com cortes infeccionados em ambas as pernas saiu cambaleando da multidão silenciosa. Ela contornou a beirada do Sky Coaster, tropeçou nos vários pedaços pré-fabricados da Casa dos Horrores que haviam sido descarregados, mas não montados, na época do Pulso, e então disparou numa corrida desajeitada para cima do ônibus escolar. Quando o alcançou, começou a esmurrar lentamente o párabrisa com as mãos sujas e deformadas pela artrite. O que Clay viu no rosto daquela mulher não era a apatia voraz que ele passara a relacionar com os fõnóides, e sim uma desorientação aterrorizada. E aquilo era familiar. Quem é você?, perguntara a Cabelinho Escuro. A Cabelinho Escuro, que não recebera uma carga direta do Pulso. Quem sou eu?

     Nove fonóides em um bem organizado quadrado ambulante vieram atrás da senhora idosa, cujo rosto desvairado estava a menos de um metro e meio do de Clay. A boca da mulher se moveu e ele ouviu quatro palavras, tanto nos seus ouvidos quanto na sua mente:

     — Me leve com vocês.

     A senhora não vai querer ir para onde nós vamos, pensou Clay.

     Então os fonóides a agarraram e levaram-na de volta para a multidão na esplanada. Ela tentou se libertar, mas eles eram implacáveis. Clay viu os olhos dela de relance e pensou que eram os olhos de uma mulher que, se tivesse sorte, estava no purgatório. Era mais provável que fosse o inferno.

     Mais uma vez, o Homem Esfrangalhado ergueu a mão, palma para cima e indicador apontando: Andem.

     A senhora havia deixado a marca de sua mão, diáfana, mas visível, no párabrisa. Clay olhou através dela e seguiu adiante.

    

     — Enfim — disse Clay —, até 1999, a Expo não era nada demais. Se você vivesse nessa parte do mundo e gostasse de brinquedos e jogos, desses negócios de parque de diversões, tinha que ir até a Freyburg Fair. — Ele ouvia a própria voz como se ela estivesse em uma fita cassete. Falar simplesmente por falar. Aquilo o lembrava dos motoristas dos passeios de Duck Boat em Boston, indicando os vários pontos turísticos. — Então, logo depois da virada do século, a Secretaria Estadual para Assuntos Indígenas fez uma análise territorial. Todo mundo sabia que o terreno da Expo ficava colado à reserva Sockabasin; o que a análise revelou foi que a extremidade norte do Kashwakamak Hall estava na verdade dentro da reserva. Tecnicamente, era território dos índios Micmac. Os donos da Expo não eram idiotas, nem os membros do conselho da tribo Micmac. Eles concordaram em retirar as lojinhas da ala norte do hall e colocar caça-níqueis. De uma hora para outra, a Expo dos Condados do Norte se tornou a maior feira de outono do Maine.

     Eles haviam chegado ao Sky Coaster. Clay começou a virar à esquerda e guiar o ônibus por entre a rua e a Casa dos Horrores incompleta, mas o Homem Esfrangalhado fez um gesto com as mãos no ar, com as palmas para baixo. Clay parou. O Homem Esfrangalhado se levantou e virou em direção à porta. Clay baixou a alavanca e ele saiu. Então, virou-se para Clay e fez uma espécie de mesura.

     —      O que ele está fazendo agora? — perguntou Denise. Ela não conseguia ver de onde estava sentada. Nenhum deles conseguia.

     —      Ele quer que a gente saia — disse Clay. Ele se levantou. Sentia o celular que Ray o entregara pesar na parte de cima de sua coxa. Se olhasse para baixo, veria a protuberância dele contra o tecido azul do jeans. Clay puxou para baixo a blusa que estava usando, tentando cobri-lo. Um celular, e daí? Todo mundo está pensando neles.

     —      E nós vamos sair? — Jordan perguntou. Parecia assustado.

     —      Não temos muita escolha — respondeu Clay. — Vem, gente, vamos para a exposição.

     O Homem Esfrangalhado os conduziu em direção à multidão silenciosa. Ela se abriu para eles, formando um corredor estreito — pouco mais que um gargalo — que ia da parte de trás do Sky Coaster até as portas duplas do Kashwakamak Hall. Clay e os demais passaram por um estacionamento repleto de caminhões (EMPR. DE DIVERSÕES NOVA INGLATERRA, pintado nas laterais, junto com o logotipo de uma montanharussa). Então foram engolidos pela turba.

     A caminhada parecia interminável para Clay. O cheiro era quase insuportável, intenso e feroz, mesmo com a brisa refrescante levando a primeira camada embora. Estava ciente do movimento das pernas, estava ciente do moletom vermelho do Homem Esfrangalhado à sua frente, mas as portas duplas do hall com suas grinaldas de flâmulas vermelhas, brancas e azuis não pareciam se aproximar. Sentia o cheiro de terra e sangue, urina e merda. Sentia o cheiro de infecções em decomposição, carne queimada, o aroma de ovo podre, de pus secretado. Sentia o cheiro de roupas que apodreciam nos corpos que vestiam. Sentiu o cheiro de outra coisa também — de algo novo. Seria muito fácil chamá-lo de loucura.

     Acho que é o cheiro da telepatia. E se for, não estamos preparados para ela. É forte demais para nós. Queima o cérebro de alguma forma, do mesmo jeito que uma corrente muito forte queimaria o circuito elétrico de um carro ou de um...

     —      Me ajude com ela! — gritou Jordan atrás dele. — Me ajude com ela, ela está desmaiando!

     Ele se virou e viu que Denise tinha caído de quatro. Jordan estava na mesma posição do lado dela e passara um dos seus braços pelo pescoço, mas Denise era muito pesada para ele. Tom e Dan não conseguiam se aproximar o suficiente para ajudar. O corredor que cortava a massa de fonóides era muito estreito. Denise levantou a cabeça e, por um instante, seus olhos encontraram os de Clay. O olhar era de atordoada incompreensão, os olhos como os de um bezerro abatido. Ela vomitou uma pasta rala na grama e sua cabeça caiu novamente. O cabelo caiu-lhe sobre o rosto como uma cortina.

     —      Me ajude! — gritou Jordan novamente. Ele começou a chorar.

     Clay voltou e começou a dar cotoveladas nos fonóides para chegar ao outro lado de Denise.

     —      Saiam da frente! — ele gritou. — Saiam do caminho, ela está grávida, seus idiotas, não estão vendo que ela está grá...

     Foi a blusa que ele reconheceu primeiro. A blusa de gola alta e seda branca que ele sempre chamara de blusa de médica de Sharon. De certa forma, ele achava aquela a roupa mais sexy de Sharon, em parte por causa daquela gola alta e chique. Gostava dela nua, mas gostava ainda mais de tocar e apertar seus seios através daquela blusa de gola alta e seda branca. Gostava de endurecer os mamilos até eles ficarem salientes contra o tecido.

     Agora a blusa de médica de Sharon estava com listras pretas de sujeira em algumas partes e marrons de sangue em outras. Estava rasgada debaixo do braço. Ela não está tão mal quanto os outros, escrevera Johnny, mas não estava nada bem; certamente não era a Sharon Riddell que saíra para dar aula com sua blusa de médica e saia vermelho-escura, enquanto o ex-marido estava em Boston, prestes a fechar um negócio que poria fim às preocupações financeiras da família e mostraria a ela que todas aquelas reclamações sobre o "hobby caro" dele não tinham passado de medo e má-fé (esse, pelo menos, fora o seu sonho semi-rancoroso). Seu cabelo louro-escuro pendia em fios escorridos. O rosto tinha sido cortado em vários lugares, e metade de uma das orelhas parecia ter sido arrancada; no lugar dela, um buraco coagulado se afundava no lado da cabeça. Algo que Sharon comera, algo escuro, pendia em um coágulo dos dois lados da boca que ele beijara quase todos os dias por quase 15 anos. Ela olhou para Clay, através dele, com aquele meio-sorriso idiota que os fonóides às vezes traziam.

     —      Clay, me ajude!— quase soluçou Jordan.

     Clay acordou. Sharon não estava lá, era disso que ele deveria se lembrar. Sharon não estava lá há quase duas semanas. Desde que tentara fazer uma ligação no celular vermelho de Johnny no dia do Pulso.

     —      Abra espaço pra mim, sua piranha — disse ele e empurrou de lado a mulher que um dia fora sua esposa. Antes que ela voltasse, Clay tomou o seu lugar. — Esta mulher está grávida; abra espaço pra mim, porra. — Então se agachou, passou o outro braço de Denise pelo pescoço e a ergueu.

     —      Vá em frente — disse Tom a Jordan. — Deixa comigo, já peguei ela.

     Jordan levantou o braço de Denise alto o bastante para Tom passá-lo em volta do próprio pescoço. Ele e Clay a carregaram daquele jeito pelos últimos 80 metros até as portas do Kashwakamak Hall, onde o Homem Esfrangalhado esperava. Àquela altura, Denise murmurava que eles podiam soltá-la, que conseguia andar, que estava bem, mas Tom não queria fazê-lo. Clay tampouco. Se a soltasse, talvez olhasse para trás em busca de Sharon. Não queria fazer isso.

     O Homem Esfrangalhado sorriu para Clay e, daquela vez, o sorriso parecia ter mais foco. Era exatamente como se os dois compartilhassem uma piada. Sharon?, pensou ele. Sharon é a piada?

     Não parecia ser isso, pois o Homem Esfrangalhado fez um gesto que teria sido bastante familiar a Clay no velho mundo, mas parecia estranhamente fora de lugar naquela situação: mão direita no lado direito do rosto, polegar direito na orelha, dedinho na boca. A mímica do telefone.

     —      Sem-fò-pravo-você — falou Denise e então, na sua própria voz: — Pare, odeio quando você faz isso!

     O Homem Esfrangalhado não deu atenção. Continuou segurando a mão direita no gesto de telefone, polegar na orelha e dedinho na boca, olhando para Clay. Por um instante, Clay teve certeza de que ele também baixou os olhos para o bolso em que o celular estava enfiado. Então Denise repetiu, aquela terrível paródia da velha brincadeira com Johnny-Gee:

     —      Sem-fo-pravo-você.

     O Homem Esfrangalhado imitou uma risada, e sua boca arruinada a tornava medonha. Atrás dele, Clay sentia os olhos do bando como um peso físico.

     Então as portas duplas do Kashwakamak Hall abriram sozinhas, e os odores misturados que saíram, embora fracos — fantasmas olfativos de outros anos —, ainda serviam de paliativo para o fedor do bando: temperos, geléias, feno e gado. Também não estava completamente escuro lá dentro; as luzes de emergência a bateria estavam fracas, mas não tinham se apagado por completo. Clay pensou que aquilo era impressionante, a não ser que elas tivessem sido economizadas especialmente para a chegada deles, mas ele duvidava disso. O Homem Esfrangalhado não estava disposto a contar. Apenas sorriu e fez sinal com as mãos para que entrassem.

     —      Vai ser um prazer, seu doente — disse Tom. — Denise, tem certeza de que consegue andar sozinha?

     —      Sim. Só tenho que fazer uma coisinha antes. — Ela inspirou e então cuspiu no rosto do Homem Esfrangalhado. — Pronto. Leve isso de volta para Harvard com você, seu merda.

     O Homem Esfrangalhado não disse nada. Apenas sorriu para Clay. Dois camaradas que compartilhavam uma piada interna.

     Ninguém trouxe nenhuma comida para eles, mas havia um monte de máquinas de salgadinhos, e Dan encontrou um pé-de-cabra no armário do almoxarifado da enorme parte sul do prédio. Os demais estavam parados em volta observando-o arrombar a máquina de doces — É claro que somos loucos, pensou Clay, vamos comer Baby Ruths no jantar e PayDays amanhã no caf é— quando a música começou. E daquela vez não era You Light Up My Fire ou Baby Elephant Walk que saíam dos enormes alto-falantes que circundavam a esplanada lá fora. Era uma música lenta e solene que Clay já tinha ouvido antes, embora não a ouvisse há anos. Ela o encheu de tristeza e fez um arrepio subir pela parte debaixo dos seus braços.

     —      Oh, meu Deus — falou baixinho Dan. — Acho que é Albinoni.

     —      Não — disse Tom. — É Pachelbel. O Canon em Ré Maior.

     —      Sim, é claro — falou Dan, soando constrangido.

     —      É como se... — começou a falar Denise, então se interrompeu, baixando os olhos para os sapatos.

     —      O quê? — perguntou Clay. — Pode falar. Você está entre amigos.

     —      É como o som das memórias — disse ela. — Como se fosse tudo que eles tivessem.

     —      É verdade — falou Dan. — Imagino que...

     —      Gente! — chamou Jordan. Estava olhando para fora por uma das janelinhas. Elas eram bem altas, mas ele conseguia alcançá-las, ficando na ponta dos dedos. — Venham ver isso!

     Eles se enfileiraram e olharam para a enorme esplanada. A escuridão era quase total. Os alto-falantes e postes de luz agigantavam-se, sentinelas negras contra o céu morto. Mais adiante, havia o vulto em forma de grua do Sky Coaster com sua luz solitária piscando. E na frente dele, bem na frente dele, milhares de fonóides tinham se ajoelhado como muçulmanos prestes a rezar, enquanto Johann Pachelbel enchia o ar com o que poderia ser um substituto da memória. E, quando eles se deitaram, foi como se fossem um só, produzindo um grande e macio som de queda e um deslocamento de ar que fez sacos vazios e copos de refrigerante achatados saírem do chão rodopiando.

     —      Hora de dormir para todo o exército dos dementes — disse Clay. — Se formos fazer alguma coisa, tem que ser hoje à noite.

     —      Fazer? O que nós vamos fazer? — perguntou Tom. — As duas portas que tentei abrir estavam trancadas. Tenho certeza de que as outras também vão estar.

     Dan ergueu o pé-de-cabra.

     —      Duvido — disse Clay. — Esse negócio pode funcionar muito bem nas máquinas, mas lembre-se de que este lugar era um cassino. — Ele apontou para a ala norte do hall, luxuosamente acarpetada e cheia de fileiras de caça-níqueis, o aço cromado deles opaco sob as luzes de emergência bruxuleantes. — Acho que você vai descobrir que as portas são à prova de pés-de-cabra.

     —      E as janelas? — perguntou Dan, então olhou mais de perto e respondeu à própria pergunta. — Jordan, talvez.

     —      Vamos comer alguma coisa — disse Clay. — Então vamos nos sentar e ficar quietos um pouquinho. Não temos feito muito isso ultimamente.

     —      E fazer o quê? — perguntou Denise.

     —      Bem, vocês podem fazer o que quiserem — respondeu Clay. — Eu não desenho há quase duas semanas, e estou sentindo falta. Acho que vou desenhar.

     —      Mas você não tem papel — contestou Jordan.

     Clay sorriu.

     —      Quando não tenho papel, desenho na cabeça.

     Jordan olhou para ele em dúvida, tentando descobrir se estava sendo sacaneado ou não. Quando decidiu que não, falou:

     —      Isso não pode ser tão bom quanto desenhar no papel, não é?

     —      Às vezes é até melhor. Em vez de apagar, eu apenas repenso.

     Ouviu-se um estrondo, e a porta da máquina de doces abriu.

     —      Bingo! — exclamou Dan e ergueu o pé-de-cabra sobre a cabeça. — Quem disse que professores universitários não servem para nada no mundo real?

     —      Olhem só — falou Denise avidamente, ignorando Dan. — Uma prateleira inteira de Júnior Mints! — E caiu dentro.

     —      Clay? — perguntou Tom.

     —      Humm?

     —      Você não viu o seu filho, viu? Ou a sua mulher? Sandra?

     —      Sharon — disse Clay. — Não vi nenhum dos dois. — Ele olhou em volta do quadril largo de Denise. — Aquilo são Butterfingers?

     Meia hora depois eles já haviam comido sua cota de doces e atacado a máquina de refrigerantes. Tentaram abrir as outras portas e descobriram que estavam todas trancadas. Dan tentou usar o pé-de-cabra, mas não conseguiu um ponto de apoio nem mesmo no fundo. Tom achava que, embora as portas parecessem de madeira, muito provavelmente tinham um núcleo de aço.

     — E devem ter alarmes também — disse Clay. — É só mexer muito com elas que os guardas da reserva vêm atrás de você.

     Em seguida, os quatro sentaram-se em um pequeno círculo no carpete macio do cassino entre os caça-níqueis. Clay se sentou no concreto, recostado nas portas duplas pelas quais o Homem Esfrangalhado os havia conduzido com aquele gesto zombeteiro — Vocês primeiro, nos vemos pela manhã.

     Os pensamentos de Clay queriam voltar àquele outro gesto zombeteiro — a mímica de telefone com o polegar e o dedinho —, mas ele não deixou, pelo menos não diretamente. A experiência lhe havia ensinado há muito tempo que a melhor maneira de abordar aquele tipo de coisa era pela porta dos fundos. Então Clay recostou a cabeça na madeira com o núcleo de aço escondido dentro e fechou os olhos, visualizando uma splash page. Não uma página do Dark Wanderer — o Dark Wanderer estava acabado e ninguém sabia disso melhor do que ele —, mas de uma nova revista. Vamos chamá-la de Celular, na falta de um título melhor; uma empolgante saga apocalíptica sobre as hordas dos fonóides contra os últimos normies remanescentes...

     Porém, aquilo não estava correto. Parecia correto se você olhasse de relance, do mesmo jeito que as portas daquele lugar pareciam de madeira, mas não eram. As tropas dos fonóides tinham que estar muito reduzidas — tinham que estar. Quantos foram perdidos no surto de violência que se seguiu imediatamente ao Pulso? Metade? Ele recordou a fúria daquele surto e pensou: Talvez mais. Talvez 60 ou até 70%. E mais as perdas devido a ferimentos graves, infecções, exposição às intempéries, mais violência e pura burrice. Além, é claro, dos exterminadores de bandos; quantos eles teriam eliminado? Quantos bandos grandes como aquele ainda restavam?

     Clay pensou que talvez descobrissem no dia seguinte, se todos os que sobraram se reunissem para um grande espetáculo de execução dos loucos. Essa.informação seria de muita utilidade para eles.

     Não importa. Simplifique. Se você quiser que sua splash tenha um pano de fundo, a situação deve ser simplificada até caber em um único quadro narrativo. Aquela era uma regra não-escrita. A situação dos fonóides poderia ser resumida em duas palavras: baixas graves. Eles pareciam muitos — porra, eles pareciam uma multidão —, mas os pombos selvagens também devem ter parecido muitos até o fim. Porque viajavam em bandos de escurecer o céu até o fim. O que ninguém percebeu é que havia cada vez menos daqueles bandos gigantes. Quer dizer, até todos terem sido exterminados. Extintos. Finito. Tchau tchau.

     Além do mais, pensou ele, agora eles têm aquele outro problema, aquela falha na programação. Aquele worm. Que tal essa? No fim das contas, esses caras podem acabar durando menos que os dinossauros, com telepatia, levitação e tudo.

     Ok, já chega de pano de fundo. Qual é a sua ilustração? Qual é o seu retrato, aquele que vai prender o leitor e arrastá-lo para dentro da história? Ora, Clay Riddell e Ray Huizenga, é lógico. Os dois estão na mata. Ray está com o cano do calibre 45 de Beth Nickerson sob o queixo e Clay está segurando...

     Um celular, claro. O que Ray roubou da pedreira Gurleyville.

     CLAY (aterrorizado): Ray, PARE! Isso não faz sentido! Você se esqueceu? Kashwak é uma ÁREA SEM COBERTURA CE... Inútil! KA-POW! Em maiúsculas amarelas e dentadas no primeiro plano da splash, e aquela chegava a fazer splash mesmo, pois Arnie Nickerson foi atencioso o bastante para abastecer a mulher com o tipo de bala de ponta oca vendida na Internet nos sites Paranóia Americana, e o topo da cabeça de Ray parece um gêiser vermelho. Ao fundo — um daqueles detalhes que talvez tivessem tornado Clay Riddell famoso em um mundo em que o Pulso jamais tivesse acontecido — um único corvo aterrorizado levanta vôo de um galho de pinheiro.

     Uma bela splash page, pensou Clay. Sanguinolenta, com certeza — jamais teria sido aprovada nos velhos tempos do Código de Ética —, mas imediatamente sedutora. E embora Clay nunca tivesse falado aquilo sobre os celulares não funcionarem depois do local de conversão, ele teria dito se tivesse pensado na hora. Ray se matara para que o Homem Esfrangalhado e seus amigos fonóides não vissem o telefone na mente dele, o que era de uma ironia amarga. O Homem Esfrangalhado já sabia do celular cuja existência Ray morrera para proteger. Sabia que estava no bolso de Clay... e não dava a mínima.

     Parado diante das portas duplas do Kashwakamak Hall. O Homem Esfrangalhado fazendo aquele gesto — polegar na orelha, dedos enrolados perto da bochecha rasgada e áspera, dedinho na frente da boca. Usando Denise para repetir, para reforçar o ponto: Sem-fo-pravo-você.

     Isso mesmo. Porque Kashwak=Sem-Fo.

     Ray morrera em vão... então por que isso não o incomodava naquele instante?

     Clay notou que estava cochilando, como era comum quando desenhava com a cabeça. Desligando-se. E não tinha problema. Porque era daquele jeito que ele sempre se sentia logo antes de o desenho e a história se fundirem — feliz, como as pessoas se sentem antes de uma esperada volta para casa. Antes de os amantes se encontrarem no fim do caminho. Não tinha o menor motivo para se sentir daquela maneira, mas se sentia.

     Ray Huizenga morrera por um celular inútil.

     Ou por mais de um? Agora, Clay via outro quadrinho. Aquele era um quadrinho de flashback, dava para notar por conta das margens retorcidas.

     Close na mão de RAY, segurando o celular sujo e uma tira de papel com um número de telefone rabiscado nela. Os dedos de RAY tampam tudo menos o código de área do Maine.

     RAY (FORA DE CENA): Quando a hora chegar, ligue para o número no papel Você vai saber a hora certa. Espero que sim.

     Não dá pra ligar pra ninguém de celular em Kashwakamak, Ray, porque Kashwak=Sem-fo. É só perguntar para o Reitor de Harvard.

     E para reforçar o ponto, eis mais um quadrinho de flashback com aquelas margens retorcidas. Rota 160. Em primeiro plano, o pequeno ônibus amarelo com DISTRITO ESCOLAR 38 MAINE NEWFIELD pintado na lateral. À meia distância, pintado na estrada, KASHWAK=SEMFO. Novamente, os detalhes são impecáveis: latas de refrigerante vazias caídas na vala, uma blusa descartada presa em uma moita e, ao longe, uma tenda balançando numa árvore como uma enorme língua marrom. Sobre o microônibus, quatro balões em off. Não foi exatamente aquilo que eles falaram (mesmo cochilando sua mente sabia), mas essa não era a questão. O roteiro não era a questão, não naquela hora.

     Ele achou que saberia qual era a questão quando topasse com ela.

     DENISE (EM OFF): Foi aqui que eles...?

     TOM (EM OFF): Fizeram as conversões, isso mesmo. Você entra na fila, um normie faz sua ligação, e quando estiver indo para o bando da Expo, já é um deles. Que furada.

     DAN (EM OFF): Por que aqui? Por que não no terreno da Expo?

     CLAY (EM OFF): Já esqueceu? Kashwak=Sem-Fo. Eles juntaram todo mundo no limite da cobertura celular. Depois daqui, nada. Neca de pitibiriba. Zero.

     Outro quadrinho. Close no Homem Esfrangalhado em toda sua glória pestilenta. Sorrindo com a boca mutilada e trazendo tudo à tona com um gesto. Ray teve uma idéia brilhante que dependia de uma ligação de celular. Era tão brilhante que ele esqueceu completamente que aqui não tem cobertura. Eu provavelmente teria que ir para Quebec para conseguir sinal no telefone que ele me deu. É hilário, mas sabe o que é mais hilário ainda? Eu peguei o aparelho! Que trouxa!

     Então Ray morreu em vão? Talvez, mas outro desenho estava se formando. Lá fora, Pachelbel dera lugar a Fauré, e Fauré dera lugar a Vivaldi. Jorrando de alto-falantes em vez de mini systems. Alto-falantes negros contra um céu morto, com os brinquedos inacabados ao fundo; em primeiro plano, o Kashwakamak Hall com suas flâmulas e revestimento vagabundo de feno. E, como toque final, o pequeno detalhe que já estava tornando Clay Riddell famoso...

     Ele abriu os olhos e se sentou direito. Os outros ainda estavam sentados em círculo no carpete da extremidade norte. Clay não sabia quanto tempo tinha ficado recostado na porta, mas fora tempo suficiente para deixar sua bunda dormente.

     Gente, ele tentou dizer, mas a princípio nenhum som saía. Estava com a boca seca. Seu coração batia forte. Ele pigarreou e tentou mais uma vez.

     — Gente! — disse, e eles olharam em volta. Algo em sua voz fez Jordan se levantar de um pulo, e Tom quase fez o mesmo.

     Clay andou até eles com pernas que nem pareciam as suas — estavam dormentes. Tirou o celular do bolso no caminho. O telefone pelo qual Ray morrera porque no calor do momento se esquecera do fato mais óbvio sobre Kashwakamak: lá na Expo dos Condados do Norte, aqueles negócios não funcionavam.

    

     — Para que serve isso, se não funciona? — perguntou Dan. Ele ficara empolgado com a empolgaçao de Clay, mas logo se desanimou quando viu que o objeto na mão de Clay não era uma carta Você Está Livre da Prisão, mas apenas outro maldito celular. Um Motorola velho e sujo com a capa rachada. Os outros olharam para ele com uma mistura de medo e curiosidade.

     —      Tenha um pouco de paciência comigo — disse Clay. — Pode ser?

     —      Nós temos a noite inteira — respondeu Dan. Ele tirou os óculos e começou a limpá-los. — Temos que passar o tempo de algum jeito.

     —      Vocês pararam naquele Posto Comercial de Newfield para arranjar algo para comer e beber — disse Clay. — E acharam o ônibus escolar amarelo.

     —      Parece que foi um zilhão de anos atrás — falou Denise. Ela esticou o lábio inferior e soprou o cabelo de cima da testa.

     —      Ray encontrou o ônibus — disse Clay. — Ele tinha uns vinte lugares...

     —      Dezesseis, na verdade — atalhou Dan. — Está escrito no painel. Cara, as escolas daqui devem ser minúsculas.

     —      Dezesseis lugares, com espaço na traseira para mochilas ou bagagem leve para passeios fora da escola. Então vocês continuaram viagem. E, quando chegaram à pedreira Gurleyville, aposto que foi Ray quem teve a idéia de parar lá.

     —      Foi isso mesmo — disse Tom. — Ele achou que a gente estava precisando de uma refeição quente e de uma descansada. Como você sabe, Clay?

      

     —      Eu sei porque desenhei — respondeu Clay, e era quase verdade; ele via a cena enquanto falava. — Dan, você, Denise e Ray exterminaram dois bandos. O primeiro com gasolina, mas no segundo usaram dinamite. Ray sabia mexer nela porque já tinha usado explosivos quando trabalhava como construtor de estradas.

     —      Puta merda — exalou Tom. — Ele pegou dinamite naquela pedreira, não pegou? Enquanto estávamos dormindo. Pode ter pegado; a gente dormiu feito uma pedra.

     —      Foi Ray quem nos acordou — falou Denise.

     Clay disse:

     —      Não sei se foi dinamite ou algum outro explosivo, mas tenho quase certeza de que ele transformou aquele ônibus amarelo em uma bomba ambulante enquanto vocês estavam dormindo.

     —      Está na traseira — disse Jordan. — No bagageiro.

     Clay assentiu.

     As mãos de Jordan tinham se fechado em punhos.

     —      Quanto você acha que tem?

     —      Só vamos saber quando explodir — disse Clay.

     —      Deixe-me ver se estou entendendo — disse Tom. Lá fora, Vivaldi dera lugar a Mozart: Pequena Serenata Noturna. Os fonóides haviam definitivamente superado Debby Boone. — Ele escondeu uma bomba na traseira do ônibus... então deu um jeito de acoplar um celular como detonador?

     Clay assentiu.

     —      É o que eu acredito. Acho que ele encontrou dois celulares no escritório da pedreira. Imagino que devia ter uma meia dúzia, para os funcionários usarem. Enfim, ele acoplou um deles a um detonador nos explosivos. Era o que os insurgentes faziam para detonar bombas de beira de estrada no Iraque.

     —      Ele fez tudo isso enquanto a gente estava dormindo? — perguntou Denise. — E não nos contou?

     Clay disse:

     —      Ele escondeu de vocês para que a informação não ficasse em suas mentes.

     —      E se matou para que ela não ficasse na dele — falou Dan. Então soltou uma gargalhada amarga. — Ok, ele é um herói! A única coisa que se esqueceu é que celulares não pegam além do lugar em que eles colocaram aquelas malditas tendas de conversão. Aposto que mal funcionavam lá!

     —      Certo — disse Clay. Ele estava sorrindo. — É por isso que o Homem Esfrangalhado me deixou ficar com esse telefone. Ele não sabia para que eu o queria; e nem sei se o que eles fazem é exatamente pensar...

     —      Não igual a gente — disse Jordan. — E nunca vão conseguir.

     —      ... mas ele não se importou, porque sabia que não iria funcionar. Eu nem poderia me dar uma dose de Pulso com ele, porque Kashwak é igual a sem-fo. Sem-fo-pramim-mim.

     —      Então por que o sorriso? — perguntou Denise.

     —      Porque eu sei algo que ele não sabe — respondeu Clay. — Algo que eles não sabem. — Ele se virou para Jordan. — Você sabe dirigir?

     Jordan pareceu surpreso.

     —      Ei, eu tenho 12 anos. Acorda, cara.

     —      Você nunca dirigiu um kart? Um ATV? Um carro de neve?

     —      Bem, já... tem uma pista de terra para kart num minicampo de golfe depois de Nashua, e uma vez ou outra...

     —      Ótimo. Não vai ser para muito longe. Quer dizer, levando em conta que eles tenham deixado o ônibus no Sky Coaster. E aposto que deixaram. Eles devem saber dirigir tanto quanto sabem pensar.

     Tom falou:

     —      Clay, você ficou maluco?

     —      Não — respondeu ele. — Eles podem fazer as execuções em massa de exterminadores de bando que quiserem naquele estádio virtual amanhã, mas nós não vamos fazer parte delas. Nós vamos dar o fora daqui.

     As janelinhas eram grossas, mas o pé-de-cabra de Dan deu conta do vidro. Ele, Tom e Clay se revezaram com ele até derrubarem todos os cacos. Então Denise tirou o suéter que estava usando e cobriu a parte de baixo da moldura.

     —      Você está tranqüilo quanto a isso, Jordan? — perguntou Tom.

     Jordan assentiu. Ele estava assustado — seus lábios estavam completamente sem cor —, mas parecia calmo. Lá fora, a música de ninar dos fonóides tinha voltado ao Canon de Pachelbel — o que Denise chamara de som das memórias.

     —      Estou bem — disse Jordan. — Vou ficar, pelo menos. Eu acho. Assim que começar.

     Clay falou:

     —      Tom talvez consiga passar apertado...

     Atrás do ombro de Jordan, Tom olhou para a janelinha, com menos de 45 centímetros de largura, e balançou a cabeça.

     —      Vou ficar bem — disse Jordan.

     —      Certo. Repita para mim.

     —      Dou a volta e olho na traseira do ônibus. Confiro se os explosivos estão lá, mas não encosto neles. Procuro pelo outro celular.

     —      Isso. E confere se ele está ligado. Se não estiver...

     —      Já sei, eu ligo. — Jordan olhou para Clay com uma cara de "não sou idiota". — Depois dou a partida no motor...

     —      Não, não se apresse...

     —      Empurro o assento do motorista para frente para poder alcançar os pedais, depois dou a partida no motor.

     —      Isso.

     —      Sigo entre o Sky Coaster e a Casa dos Horrores. Vou superdevagar. Vou passar por cima de alguns pedaços da Casa dos Horrores e talvez eles quebrem, partam sob os pneus, mas não vou deixar isso me impedir.

     —      É isso aí.

     —      Chego o mais perto deles possível.

     —      Sim, isso mesmo. Então volta para os fundos, até essa janela. Para que o hall fique entre você e a explosão.

     —      O que esperamos que seja uma explosão — falou Dan.

     Clay poderia ter passado sem essa, mas não deu atenção. Ele se abaixou e beijou Jordan na bochecha.

     —      Eu te amo, sabia? — disse ele.

     Jordan deu um abraço rápido e forte em Clay. Depois em Tom. E depois em Denise.

     Dan estendeu a mão e falou:

     —      Ah, que se dane. — E deu um quebra-costelas em Jordan.

     Clay, que nunca fora muito fã de Dan Hartwick, passou a gostar mais dele depois disso.

    

     Clay fez uma escadinha com as mãos e impulsionou Jordan para cima.

     —      Lembre-se — disse ele —, vai ser como um mergulho, só que em feno em vez de água. Mãos para cima e esticadas.

     Jordan colocou as mãos sobre a cabeça, estendendo-as para a noite além da janela quebrada. Sob a cascata de cabelos grossos, seu rosto estava mais pálido do que nunca; as primeiras marcas vermelhas da adolescência sobressaindo como pequenas queimaduras. Ele estava assustado, e Clay não o culpava. Estava prestes a encarar uma queda de 3 metros e, mesmo com o feno, a aterrissagem tendia a ser dura. Clay esperava que Jordan se lembrasse de manter as mãos esticadas e a cabeça encolhida; de nada adiantaria se ele acabasse caindo do lado do Kashwakamak Hall com o pescoço quebrado.

     —      Quer que eu conte até três, Jordan? — perguntou ele.

     —      Não, porra! Vai logo antes que eu mije nas calças.

     —      Então mantenha as mãos esticadas, vai — gritou Clay e lançou suas mãos entrelaçadas para cima. Jordan varou a janela e desapareceu. Clay não o escutou aterrissar; a música estava muito alta.

     Os demais se amontoaram na janela, que estava logo acima de suas cabeças.

     —      Jordan? — chamou Tom. — Jordan, tudo bem?

     Por um instante, nada aconteceu e Clay teve certeza de que Jordan quebrara mesmo o pescoço. Então ele falou com a voz tremida.

     —      Estou aqui. Putz, que dor. Machuquei o cotovelo. O esquerdo. O braço está todo esquisito. Esperem um instante...

     Eles esperaram. Denise pegou a mão de Clay e a apertou forte.

     —      Está se mexendo — disse Jordan. — Parece que está tudo bem, mas acho que vou procurar a enfermeira da escola.

     Todos riram alto demais.

     Tom amarrara a chave de ignição do ônibus em um fio duplo da sua camisa, e o fio na fivela do cinto. Clay enlaçou os dedos novamente e Tom subiu.

     —      Vou descer a chave para você, Jordan. Está preparado?

     —      Estou.

     Tom agarrou a beirada da janela, olhou para baixo e então desceu o cinto.

     —      Pronto, já pegou — disse ele. — Agora ouça o que eu vou dizer. Tudo que pedimos é: faça se você puder. Se não puder, não tem castigo. Entendeu?

     —      Entendi.

     —      Então vai. Chispa. — Ele ficou olhando por um instante; então disse: — Ele já foi. Deus o ajude, ele é um garoto corajoso. Me põe no chão.

    

     Jordan saíra pelo lado do prédio oposto ao bando adormecido. Clay, Tom, Denise e Dan atravessaram o salão até o lado do caminho principal. Os três homens viraram de lado a já vandalizada máquina de salgadinhos e a empurraram contra a parede. Clay e Dan conseguiam olhar com facilidade pelas janelas altas em cima dela; Tom precisava ficar na ponta dos pés. Clay acrescentou um caixote para Denise também poder ver, rezando para que ela não caísse de cima dele e entrasse em trabalho de parto.

     Eles viram Jordan andar até a beirada da multidão adormecida, ficar parado lá um instante como se estivesse pensando e então seguir para a esquerda. Clay achou que continuava a ver movimento bem depois de sua mente racional ter lhe dito que Jordan já deveria ter sumi-do, contornando a beirada do bando maciço.

     —      Quanto tempo você acha que ele vai levar para voltar? — perguntou Tom.

     Clay balançou a cabeça. Ele não sabia. Dependia de muitas variáveis — o tamanho do bando era apenas uma delas.

     —      E se eles checaram a traseira do ônibus? — perguntou Denise.

     —      E se Jordy checar a traseira do ônibus e não encontrar nada? — falou Dan, e Clay teve que se controlar para não mandar o homem guardar suas vibrações negativas para si.

     O tempo passou, arrastando-se centímetro a centímetro. A luzinha vermelha no topo do Sky Coaster piscou. Pachelbel mais uma vez deu lugar a Fauré, que deu lugar a Vivaldi. Clay se surpreendeu recordando o menino adormecido que fora jogado do carrinho de compras, como o homem que estava com ele — que provavelmente não era seu pai — tinha se sentado ao seu lado na beira da estrada e dito: Gregory vai dar um beijo e o dodói vai sarar. Lembrou-se do homem com a bolsa ouvindo Baby Elephant Walk e dizendo: Dodge também se divertia à beça. Lembrou-se de como, nas tendas de bingo da sua infância, o homem com o microfone exclamava invariavelmente: É a vitamina da luz solar! Quando tirava B-12 de dentro do globo com as bolas de pingue-pongue dançantes dentro. Embora a vitamina da luz do sol fosse a D.

     Agora, o tempo parecia se arrastar de meio em meio centímetro, e Clay começou a perder as esperanças. Se fossem ouvir o som do motor do ônibus, já deveriam ter ouvido àquela altura.

     —      Alguma coisa deu errado — disse Tom em voz baixa.

     —      Talvez não — disse Clay. Ele tentou afastar da voz o peso que sentia no coração.

     —      Não, Tommy está certo — falou Denise. Estava à beira das lágrimas. — Eu o amo até a morte, e ele tinha mais colhões do que lorde Satanás na sua primeira noite no inferno, mas se estivesse vindo, já estaria chegando.

     A reação de Dan foi surpreendentemente positiva.

     —      Não sabemos o que ele pode ter encontrado. Respirem fundo e tentem manter a imaginação sob controle.

     Clay tentou fazer isso e não conseguiu. Os segundos passaram a gotejar. Ave-Maria de Schubert ribombava dos enormes alto-falantes para shows. Ele pensou: Eu venderia minha alma por um bom rock-and-roll; Chuck Berry cantando Oh, Carol, U2 cantando When Love Comes to Down...

     Lá fora, apenas a escuridão, as estrelas e aquela minúscula luz a bateria.

     —      Me levanta até lá em cima — disse Tom, descendo da máquina de salgadinhos. — Vou dar um jeito de passar por aquela janela e ver se consigo buscá-lo.

     Clay começou a falar:

     —      Tom, se eu me enganei sobre os explosivos na traseira do ônibus...

     —      Que se dane a traseira do ônibus e que se danem os explosivos! —        disse Tom, enlouquecido. — Só quero encontrar Jor...

     —      Ei! — exclamou Dan, e então: — Ei, é isso aí! MANDA VER! —  Ele esmurrou a parede próxima à janela.

     Clay se virou e viu que faróis haviam surgido na escuridão. Uma névoa começara a emanar do tapete de corpos comatosos nos acres da esplanada, e os faróis do ônibus pareciam estar cortando fumaça. Eles ficavam brilhantes, foscos, e então brilhantes novamente, e Clay conseguia ver Jordan com muita clareza, sentado no assento do motorista do microônibus, tentando descobrir quais controles faziam o quê.

     As luzes começaram a se mover para frente. Faróis altos.

     —      Isso, meu bem — suspirou Denise. — Você consegue, querido. —        De pé no caixote, ela agarrou a mão de Dan de um lado e a de Clay do outro. — Maravilha, continue vindo.

     Os faróis se afastaram deles, passando a iluminar as árvores bem à esquerda da área aberta com o tapete de fonóides.

     —      O que ele está fazendo? — quase gemeu Tom.

     —      É o pedaço em que a Casa dos Horrores dá uma virada — disse Clay. — Está tudo bem. — Ele hesitou. — Acho que sim. — Se o pé dele não escorregar. Se ele não confundir o freio com o acelerador, bater com o ônibus no lado da porra da Casa dos Horrores e ficar preso nela.

     Eles aguardaram, e os faróis giraram de volta, acertando a lateral do Kashwakamak Hall ao nível do chão. E o brilho dos faróis altos fez Clay compreender por que Jordan demorara tanto. Nem todos os fonóides estavam dormindo. Dezenas deles — os que receberam a programação corrompida, ele imaginou — estavam de pé e se movendo. Andavam sem rumo para todas as direções possíveis, vultos negros se espalhando em ondulações crescentes, lutando para atravessar os corpos dos adormecidos, tropeçando, caindo, se levantando e voltando a andar enquanto a Ave de Schubert enchia a noite. Um deles, um jovem com um longo talho vermelho cortando-lhe o meio da testa como uma ruga, alcançou o Hall e tateou pela parede como um cego.

     —      Já está bom, Jordan — murmurou Clay à medida que os faróis se aproximavam dos alto-falantes do outro lado da área aberta. — Pare o ônibus e volte para cá.

     Era como se Jordan tivesse escutado. Os faróis pararam. Por um instante, as únicas coisas que se moviam lá fora eram os vultos inquietos dos fonóides acordados e a névoa que emanava dos corpos quentes dos demais. Então eles ouviram o motor do ônibus dar partida — mesmo com a música eles ouviram —, e os faróis saltaram para frente.

     —      Não, Jordan, o que você está fazendo?— gritou Tom.

     O ônibus foi aos solavancos para dentro do bando adormecido. Para cima do bando adormecido. Os faróis começaram a saltar para cima e para baixo, ora apontando para eles, ora se erguendo levemente, ora voltando ao nível do chão. O ônibus girou para a esquerda, voltou a seguir reto, então virou para a direita. Por um instante, um dos sonâmbulos foi iluminado pelos quatro faróis brilhantes tão claramente quanto um recorte numa cartolina preta. Clay viu o fonóide erguer os braços, como se quisesse mostrar que marcou um gol, e então foi arrastado para baixo da grade do veículo.

     Jordan guiou o ônibus até o meio deles e parou, faróis acesos, grade pingando. Erguendo uma das mãos para tapar o excesso de luz, Clay conseguiu ver um pequeno vulto negro — distinguível dos demais por conta de sua agilidade e determinação — emergir da porta lateral do ônibus e começar a seguir em direção ao Kashwakamak Hall. Então Jordan caiu, e Clay achou que ele já era. Logo depois, Dan gritou: "Lá está ele, lá!', e Clay o enxergou novamente, uns 10 metros mais próximo e bastante à esquerda de onde ele perdera o menino de vista. Jordan deve ter se arrastado um pouco por sobre os corpos adormecidos antes de se arriscar a ficar de pé novamente.

     Quando Jordan voltou para dentro do cone de luz esfumaçado que os faróis do ônibus produziam, eles conseguiram vê-lo com clareza pela primeira vez, junto à ponta de uma sombra de mais de 10 metros. Não o rosto, por conta da luz que vinha de trás, mas a maneira louca graciosa como ele corria por sobre os corpos dos fonóides. Os que estavam no chão ainda estavam mortos para o mundo. Os que estavam acordados, mas distantes de Jordan, não deram atenção. Porém, muitos dos que estavam perto tentaram agarrá-lo. Jordan desviou de dois destes, mas o terceiro, uma mulher, o pegou pela cabeleira embaraçada.

     —      Largue-o — rugiu Clay. Não conseguia vê-la, mas tinha uma certeza louca de que era a mulher que um dia fora sua esposa. — Largue o menino!

     Ela não largou, mas Jordan agarrou seu pulso, o torceu, caiu com um joelho no chão e saiu catando cavaco. A mulher tentou pegá-lo de novo, errou por pouco a parte de trás da camisa dele, e então seguiu cambaleando seu próprio caminho.

     Clay notou que muitos dos fonóides infectados tinham se juntado ao redor do ônibus. Os faróis pareciam atraí-los.

     Clay saltou da máquina de salgadinhos (daquela vez foi Dan Hartwick quem salvou Denise de um tombo) e pegou o pé-de-cabra. Ele pulou de volta para cima da máquina e quebrou a janela pela qual estivera olhando.

     —      Jordan!— ele berrou. — Para os fundos! Vá para os fundos!

     Jordan ergueu os olhos ao som da voz de Clay e tropeçou em alguma coisa — uma perna, um braço, talvez um pescoço. Quando estava se levantando, a mão de alguém saiu da escuridão pulsante e agarrou a garganta do menino.

     —      Por favor, Deus, não — sussurrou Tom.

     Jordan se jogou para frente como um fullback tentando uma primeira descida, impulsionando-se com as pernas, e conseguiu se soltar. Seguiu adiante aos trambolhões. Clay conseguia ver seus olhos e a maneira como seu peito arfava. Quando Jordan se aproximou do hall, Clay conseguia ouvi-lo arquejando.

     Nunca vai conseguir, pensou ele. Nunca. E está tão perto, tão perto.

     Mas conseguiu. Os dois fonóides que estavam mancando daquele lado do prédio não se interessaram nem um pouco por Jordan quando ele passou pela dupla correndo e deu a volta para o outro lado. Os quatro saíram ao mesmo tempo da máquina de salgadinhos e atravessaram o hall em disparada como uma equipe de revezamento, Denise e sua barriga na frente.

     —      Jordan!— gritou ela, saltitando na ponta dos dedos. —Jordan, Jordy, você está aí? Pelo amor de Deus, garoto, diga que você está aí!

     —      Estou — ele respirou bastante ar — aqui. — Respirou mais uma vez. Clay tinha uma vaga noção de que Tom ria e batia nas suas costas. — Nunca imaginei — Whooo-ooop!— que passar por cima de gente fosse tão... difícil.

     —      O que você pensou que estava fazendo? — gritou Clay. Era uma agonia não poder agarrar o menino, primeiro abraçá-lo, depois sacudi-lo e depois beijar todo aquele rosto corajoso e idiota. Uma agonia não poder nem vê-lo. — Eu disse para chegar perto, não para subir em cima deles, porra!

     —      Fiz — Whooo-ooop!— pelo Diretor. — Além da falta de ar, havia também rebeldia na voz de Jordan. — Eles mataram o Diretor. Eles e o Homem Esfrangalhado. Eles e aquele Reitor de Harvard idiota. Queria que pagassem por isso. Quero que ele pague.

     —      Por que você demorou tanto? — perguntou Denise. — Esperamos um tempão!

     —      Tem dezenas deles andando por aí — disse Jordan. — Talvez centenas. O que quer que esteja errado com eles... ou certo... ou apenas diferente... está se espalhando muito rápido. Eles estão zanzando de um lado para o outro, perdidinhos. Tive que ficar mudando o percurso. Acabei tendo que andar desde a metade do caminho principal até o ônibus. E aí... — Ele riu sem fôlego. — O ônibus não pegava! Dá pra acreditar? Eu rodava e rodava a chave e só conseguia um clique. Quase entrei em pânico, mas não deixei isso acontecer. Porque sabia que o Diretor ficaria desapontado se eu deixasse.

     —      Ah, Jordy... — suspirou Tom.

     —      Sabe o que era? Eu tinha que colocar a droga do cinto. Não precisa se você estiver nos bancos de passageiros, mas o ônibus só dá partida se o motorista estiver com o dele colocado. Enfim, desculpem-me por demorar tanto, mas aqui estou eu.

     —      E então podemos supor que o bagageiro não estava vazio? — perguntou Dan.

     —      Podem supor isso até o eu fazer bico. Está cheio do que parecem ser tijolo. Pilhas e pilhas deles. — Jordan já estava recuperando o fôlego. — Estão debaixo de um cobertor. Tem um celular em cima deles. Ray o amarrou a dois tijolos daqueles com uma corda elástica, tipo uma correia. O telefone está ligado, e é do tipo que tem uma entrada, tipo para fax ou para passar arquivos pra um computador. O cabo desce pelo meio dos tijolos. Eu não vi, mas aposto que o detonador está no meio. — Ele inspirou fundo mais uma vez. — E o telefone estava com sinal. Três barras de sinal.

     Clay assentiu. Ele estava certo desde o início. Era para Kashwakamak ser uma zona sem cobertura celular assim que você passasse da estrada de acesso que dava na Expo dos Condados do Norte. Os fonóides arrancaram essa informação das cabeças de alguns normies e a usaram. A pichação Kashwak=Sem-Fo tinha se espalhado feito varíola. Porém, será que algum fonóide tentou fazer uma ligação de celular para celular no terreno da Expo? É claro que não. E por que tentariam? Se você é telepata, os telefones se tornam obsoletos. E quando você é um membro do bando — uma parte do todo —, eles se tornam duplamente obsoletos, se é que isso é possível.

     Porém, os celulares funcionavam naquela pequena área, e por quê? Porque os funcionários estavam montando o parque, eis o porquê — funcionários que trabalhavam para uma companhia chamada Empresa de Diversões Nova Inglaterra. E no século XXI, esse tipo de funcionário — como roadies de shows de rock, montadores de palco e equipes de filmagem em locação — dependia de celulares, principalmente em locais isolados, onde havia poucas linhas fixas. Não existem torres de telefonia celular para enviar e receber sinal? Beleza, eles pirateiam o programa necessário e instalam uma torre própria. Ilegal? É claro, mas, a julgar pelas três barras de sinal que Jordan dizia ter visto, funcionava e, uma vez que era a bateria, ainda estava funcionando. Tinha sido instalada no ponto mais alto da Expo.

     No topo do Sky Coaster.

    

     Dan atravessou o hall de volta, subiu na máquina de salgadinhos e olhou para fora.

     — Tem três camadas deles em volta do ônibus — relatou ele. — Quatro em frente aos faróis. É como achassem que algum grande pop star está escondido lá dentro. Os fonóides debaixo deles devem estar sendo esmagados. — Ele se virou para Clay e assentiu olhando para o Motorola sujo que Clay segurava nas mãos. — Se for fazer isso, sugiro que tente agora, antes que algum deles decida entrar e tente levar a porra do ônibus embora.

     —      Eu devia ter desligado o motor, mas achei que os faróis iriam apagar se eu desligasse — falou Jordan. — E precisava deles para enxergar.

     —      Não tem problema, Jordan — disse Clay. — Não faz mal. Eu vou...

     Mas não havia nada no bolso do qual ele tirara o celular. O pedaço de papel com o número de telefone tinha sumido.

    

     Clay e Tom estavam procurando por ele no chão — procurando desesperadamente por ele no chão —, e Dan relatava com desânimo de cima da máquina de salgadinhos que o primeiro fonóide acabara de entrar no ônibus, quando Denise berrou:

     —      Parem! CALEM A BOCA!

     Todos eles pararam o que estavam fazendo e olharam para ela. O coração de Clay batia rapidamente na garganta. Não conseguia acreditar no próprio descuido. Ray morreu por isso, seu merda!, parte dele não parava de gritar para o resto. Ele morreu por isso e você perdeu o papel!

     Denise fechou os olhos e juntou as mãos sobre a cabeça abaixada. Então, entoou muito rapidamente:

     —      Antônio, Antônio, onde está você, perdemos uma coisa que não quer aparecer.

     —      Que porra é essa7.

     —      Uma prece a Santo Antônio — disse ela com calma. — Aprendi no colégio de freiras.

     —      Dá um tempo — quase grunhiu Tom.

     Ela o ignorou concentrando toda a atenção em Clay.

     —      Não está no chão, está?

     —      Acfio que não.

     —      Mais dois acabaram de entrar no ônibus — relatou Dan. — E as setas estão ligadas. Então um deles deve estar sentado no...

     —      Você pode, por favor, calar a boca, Dan? — falou Denise. Ela ainda estava olhando para Clay. Com a mesma calma. — E se você perdeu o papel no ônibus, ou lá fora, já era, certo?

     —      Sim — respondeu ele com desânimo.

     —      Então sabemos que não está em nenhum desses lugares.

     —      Por quê?

     —      Porque Deus não permitiria.

     —      Acho... que a minha cabeça vai explodir — disse Tom em uma voz estranhamente calma.

     Ela o ignorou mais uma vez.

     —      Então em qual bolso você não olhou?

     —      Eu olhei em todos... — começou a falar Clay e então se interrompeu. Sem desgrudar os olhos de Denise, ele investigou o bolsinho costurado dentro do bolso direito da frente do jeans. E encontrou o pedaço de papel. Ele não se lembrava de tê-lo guardado no bolsinho, mas estava lá. Tirou-o. O seguinte número estava escrito na má caligrafia do morto: 207-919-9811.

     —      Agradeça a Santo Antônio por mim — disse ele.

     —      Se isso funcionar — respondeu ela. — Vou pedir a Santo Antônio para agradecer a Deus.

     —      Deni? — disse Tom.

     Ela se virou para encará-lo.

     —      Agradeça a ele por mim, também.

    

     Os quatro se sentaram juntos contra as portas duplas através das quais tinham entrado, contando com os núcleos de aço para protegê-los. Jordan estava agachado nos fundos do prédio, sob a janela quebrada que usara para sair.

     —      O que a gente vai fazer se a explosão não abrir nenhum buraco na lateral deste lugar? — perguntou Tom.

     —      A gente dá um jeito — respondeu Glay.

     —      E se a bomba de Ray não explodir? — perguntou Dan.

     —      Penalidade máxima — falou Denise. — Vai logo, Clay. Não precisa esperar a música tema.

     Ele abriu o celular, olhou para o mostrador e percebeu que deveria ter conferido se aquele aparelho estava com sinal antes de mandar Jordan lá para fora. Não tinha pensado naquilo. Nenhum deles tinha pensado. Idiota. Quase tão idiota quanto esquecer que tinha colocado o pedaço de papel com o número no bolsinho da calça. Ele apertou o botão de liga/desliga. O telefone apitou. Por um instante, não apareceu nada. Então três barras surgiram, brilhantes e claras. Ele discou o número, então pousou o polegar de leve no botão que dizia CHAMAR.

     —      Jordan, está preparado aí atrás?

     —      Sim!

     —      E vocês? — perguntou Clay.

     —      Vai logo antes que eu tenha um ataque do coração — disse Tom.

     Uma imagem surgiu na mente de Clay, de uma clareza horripilante: Johnny-Gee deitado quase exatamente debaixo do lugar onde o ônibus carregado de explosivos parará. Deitado de costas com os olhos abertos e com as mãos fechadas sobre o peito da camisa dos Red Sox, ouvindo a música enquanto sua mente se reconstruía de uma nova e estranha maneira.

     Ele a afastou.

     —      Antônio, Antônio, onde está você? — ele disse sem motivo algum, e então apertou o botão que ligaria para o celular na traseira do microônibus.

     Não houve tempo para ele contar os segundos antes que o mundo inteiro do lado de fora do Kashwakamak Hall parecesse explodir, o rugido engolindo o Adágio de Tomaso Albinoni em um estrondo voraz. Todas a janelinhas que se estendiam pelo lado do prédio que dava para o bando explodiram para dentro. Uma luz rubra brilhante jorrou pelos buracos, e então toda a ala sul do prédio foi pelos ares em uma chuva de tábuas, vidro e redemoinhos de feno. As portas em que estavam apoiados pareceram entortar para trás. Denise protegeu a barriga com os brados. Um terrível grito de dor começou a vir do lado de fora. Por um instante, aquele som cortou a cabeça de Clay como a lâmina de uma serra elétrica. Então parou. Os gritos continuaram a soar nos ouvidos dele. Era o som de pessoas queimando no inferno.

     Algo aterrissou no telhado. Algo pesado o bastante para fazer todo o prédio tremer. Clay puxou Denise de pé. Ela olhou para Clay desnorteada, como se não soubesse mais onde estava.

     — Venham!— Ele estava gritando, mas mal conseguia ouvir a própria voz. Ela parecia estar sendo filtrada por chumaços de algodão. — Venham, vamos sair!

     Tom estava de pé. Dan começou a se levantar, caiu sentado, tentou mais uma vez e conseguiu. Ele agarrou a mão de Tom. Tom agarrou a de Denise. Em uma corrente de três, eles arrastaram os pés até o buraco aberto no fim do Hall. Lá encontraram Jordan parado ao lado de um monte de feno incendiado, olhando para o que um único celular tinha feito.

    

     O pé de gigante que parecia ter pisado no telhado do Kashwakamak Hall tinha sido um grande pedaço do ônibus escolar. As telhas estavam em chamas. Logo diante delas, além da pequena pilha de feno incandescente, havia dois assentos de ponta-cabeça, também em chamas. Suas molduras de aço tinham virado espaguete. Roupas caíam do céu como grandes flocos de neve: blusas, chapéus, calças, shorts, um suporte atlético, um sutiã pegando fogo. Clay viu que o feno empilhado ao longo da parte debaixo do hall logo se tornaria um fosso de fogo; eles estavam saindo bem a tempo.

     Montinhos de fogo salpicavam a esplanada que havia sido palco de shows, danças ao ar livre e várias competições, mas os pedaços do ônibus explodido tinham voado para mais longe ainda. Clay viu chamas tremulando alto em árvores que estavam a pelo menos 250 metros. Logo ao sul de onde estavam, a Casa dos Horrores começara a queimar, e ele viu algo — achou que provavelmente era um tronco humano — pendurado em chamas no meio da estrutura do Sky Coaster.

     O bando em si tornara-se um bolo de carne crua de fonóides mortos e moribundos. A telepatia deles havia parado de funcionar (embora às vezes pequenas correntes daquela estranha força psíquica o atraíssem, eriçando-lhe os cabelos e arrepiando-lhe a pele), mas os sobreviventes ainda conseguiam gritar e encheram a noite com seus lamentos. Clay teria agido até se tivesse sido capaz de imaginar o tamanho do estrago — mesmo durante os primeiros segundos ele não quis se enganar a esse respeito —, mas aquilo estava além da sua imaginação.

     A luz do fogo era suficiente para mostrar a eles mais do que queriam ver. As mutilações e as decapitações eram ruins — as poças de sangue, os membros pelo chão —, mas as roupas espalhadas e os sapatos descalçados eram, de certa forma, piores, como se a explosão tivesse sido violenta o bastante para vaporizar parte do bando. Um homem andou na direção deles com as mãos na garganta, tentando impedir o fluxo de sangue que jorrava por sobre e entre seus dedos — o sangue parecia laranja sob o brilho incandescente do telhado em chamas do Hall —, enquanto seus intestinos balançavam de um lado para o outro na altura da virilha. Mais anéis molhados foram saindo enquanto o homem passava por eles com os olhos arregalados e cegos.

     Jordan estava falando alguma coisa. Clay não conseguia ouvir por conta dos gritos, dos urros e do estalar cada vez mais alto do fogo às suas costas, então se inclinou mais para perto.

     —      A gente tinha que fazer isso, era o único jeito — disse Jordan.

     Ele olhou para uma mulher sem cabeça, para um homem sem pernas e para algo tão arregaçado que se tornara uma canoa de carne cheia de sangue. Mais adiante, outros dois bancos do ônibus estavam caídos sobre um casal de mulheres em chamas que haviam morrido enlaçadas.

     — A gente tinha que fazer isso, era o único jeito. A gente tinha que fazer isso, era o único jeito.

     —      Isso mesmo, meu querido, que tal colocar o rosto contra o meu corpo e ir andando assim? — disse Clay, e Jordan enterrou imediatamente o rosto nas costelas de Clay. Era desconfortável andar daquele jeito, mas não impossível.

     Eles contornaram a beirada do acampamento do bando, em direção ao que teria sido um parque de diversões completo se o Pulso não tivesse entrado no caminho. Enquanto andavam, o Kashwakamak Hall queimava com mais intensidade, jogando mais luz sobre a esplanada. Vultos negros — muitos nus ou seminus, as roupas tinham sido arrancadas de seus corpos — mancavam e arrastavam os pés. Clay não fazia idéia quantos. Alguns passaram perto do pequeno grupo, mas não demonstraram interesse nele; eles ou continuavam seguindo até o caminho principal ou mergulhavam na mata a oeste do terreno da Expo, onde Clay tinha certeza de que morreriam de frio a não ser que conseguissem restabelecer algum tipo de consciência coletiva. Ele não achava que conseguiriam. Em parte por conta do vírus, mas principalmente por conta da decisão de Jordan de guiar o ônibus até o meio deles, alcançando uma zona de extermínio máxima, como o tinham feito com os caminhões de gás.

     Se eles soubessem que matar um velho poderia levar a isso..., pensou Clay e então: Mas como saberiam?

     Eles chegaram ao estacionamento de terra em que os funcionários do parque tinham estacionado seus caminhões e campers. Lá, cabos de força serpeantes cobriam o chão, e os espaços entre os campers estavam repletos de acessórios das famílias que viviam na estrada: churrasqueiras, grelhas a gás, cadeiras de quintal, uma rede, um pequeno varal com roupas que deviam estar penduradas há quase duas semanas.

     —      Vamos descobrir alguma coisa que esteja com as chaves dentro e dar o fora daqui — falou Dan. — Eles limparam a estrada de acesso e, se tivermos cuidado, aposto que podemos seguir para o norte pela 160 até quando bem entendermos. — Ele apontou. — Lá para cima quase tudo é sem-fo.

     Clay vira um furgão com LEM BOMBEIRO HIDRÁULICO E PINTOR na traseira. Testou as portas e elas abriram. O interior estava cheio de engradados de leite, a maioria cheia de ferramentas de encanador, mas uma delas tinha o que ele queria: latas de tinta spray. Clay pegou quatro delas depois de checar que estavam cheias ou quase cheias.

     —      Pra que você quer isso? — perguntou Tom.

     —      Depois eu conto — respondeu Clay.

     —      Vamos dar o fora daqui, por favor — falou Denise. — Não estou agüentando mais. Minhas calças estão encharcadas de sangue. — Ela começou a chorar.

     Eles entraram no caminho principal entre as Xícaras Malucas e o trenzinho para crianças chamado Charlie, Choochoo.

     —      Oh... meu... Deus — falou baixo Dan.

     Os restos de um moletom vermelho chamuscado e fumegante — do tipo que às vezes é chamado de capuzinho — estavam presos como uma bandeira no topo da bilheteria do trenzinho. Uma mancha de sangue cobria a frente em torno de um buraco provavelmente feito por um pedaço do ônibus escolar voador. Antes de o sangue tomar conta de tudo, cobrindo o que restava, Clay pôde ver três letras, a última risada do Homem Esfrangalhado: HAR.

    

     — A porra do casaco não tem ninguém dentro e, pelo tamanho do buraco, ele sofreu uma cirurgia cardíaca sem direito a anestesia — falou Denise —, então, quando vocês cansarem de olhar...

     —      Tem um outro estacionamento pequeno do outro lado do parque — disse Tom. — Lá tem uns carros bonitos. Estilo manda-chuva. Talvez a gente dê sorte.

     Eles deram sorte, mas não com um carro bonito. Uma van pequena, com os dizeres TYCO ESPECIALISTAS EM PURIFICAÇÃO DE ÁGUAS, estava estacionada atrás de vários dos carrões, bloqueando-os com eficiência. Provavelmente por isso mesmo, o cara da Tyco teve a consideração de deixar as chaves na ignição. Assim, Clay os guiou para além do fogo, da carnificina e dos gritos, descendo com lenta cautela a estrada de acesso até a interseção marcada pelo outdoor que mostrava o tipo de família feliz que não existia mais (se é que um dia existira). Então Clay parou e colocou o câmbio em ponto morto.

     —      Um de vocês vai ter que pegar a direção agora — disse ele.

     —      Por que, Clay? — perguntou Jordan, mas Clay notou pela voz do menino que ele já sabia.

     —      Porque é aqui que eu desço.

     —      Não!

     —      Sim. Vou procurar pelo meu filho.

     Tom disse:

     —      É quase certo que ele esteja morto lá atrás. Não estou querendo ser durão, só realista.

     —      Eu sei, Tom. Também sei que existe uma chance de que ele não esteja, e você também. Jordan falou que eles estavam andando para todo lado, como se estivessem completamente perdidos.

     Denise falou:

     —      Clay... querido... mesmo que ele esteja vivo, pode estar dando voltas na mata com metade da cabeça estourada. Detesto dizer isso, mas você sabe que é verdade.

     Clay assentiu.

     —      Também sei que ele pode ter fugido antes, enquanto estávamos trancados no Hall, e pego a estrada para Gurleyville. Alguns chegaram até lá; eu os vi. E vi outros no caminho. E vocês também.

     —      Impossível discutir com um artista, não é? — perguntou Tom com pesar.

     —      É — disse Clay —, mas será que você e Jordan poderiam descer comigo por um instante?

     Tom suspirou.

     —      Por que não? — disse.

    

     Vários fonóides, parecendo perdidos e desnorteados, passaram por eles enquanto estavam do lado da pequena van da purificadora de águas. Clay, Tom e Jordan não deram atenção a eles, e os fonóides retribuíram o favor. Ao noroeste, o horizonte ficava cada vez mais laranja-avermelhado à medida que o Kashwakamak Hall compartilhava seu fogo com a floresta atrás dele.

     —      Sem grandes despedidas dessa vez — disse Clay, fingindo não ver as lágrimas nos olhos de Jordan. — Estou esperando ver vocês de novo. Aqui, Tom. Tome isso. — Ele estendeu o celular que usara para detonar a explosão. Tom o pegou. — Vá para o norte daqui. Fique conferindo se o aparelho consegue sinal. Se encontrar obstáculos, abandone o que estiver dirigindo, ande até a estrada ficar desbloqueada e depois pegue outro carro ou furgão e volte a dirigir. Você deve conseguir sinal por volta de Rangeley... as pessoas velejavam lá no verão, caçavam no outono e esquiavam no inverno... mas depois a barra deve ficar limpa, e deve ser seguro viajar de dia.

     —      Aposto que já é seguro agora — disse Jordan, secando os olhos.

     Clay assentiu.

     —      Talvez você tenha razão. Enfim, vocês é que sabem. Quando estiverem a uns 150 quilômetros de Rangeley, procurem uma cabana, um casebre, ou algo do gênero, abasteçam o lugar com provisões e se preparem para o inverno. Já sabem o que o inverno vai fazer com aquelas criaturas, não sabem?

     —      Se a mente coletiva pifar e eles não migrarem, quase todos vão morrer — disse Tom. — Pelo menos os que estiverem ao norte da linha Masondixon.

     —      É, acho que sim. Coloquei aquelas latas de tinta spray no console central. A cada 30 quilômetros, mais ou menos, pintem T-J-D na estrada, bem grande. Entenderam?

     —      T-J-D — disse Jordan. — Tom, Jordan, Dan e Denise.

     —      Isso. Escrevam em letras gigantes, com uma seta, se mudarem de estrada. Se forem pegar uma estrada de terra, pintem nas árvores, sempre do lado direito, que é onde eu vou procurar. Entendido?

     —      Sempre do lado direito — disse Tom. — Venha com a gente Clay, por favor.

     —      Não. Não torne isso mais difícil para mim do que já é. Todas as vezes que tiverem que abandonar um veículo, deixe-o no meio da rua e pintem T-J-D nele. Ok?

     —      Ok — respondeu Jordan. — É melhor você nos encontrar.

     —      Vou encontrar, sim. O mundo vai ser um lugar perigoso por um tempo, mas não tão perigoso quanto antes. Jordan, preciso perguntar uma coisa para você.

     —      Manda.

     —      Se eu encontrar Johnny e o pior que tiver acontecido seja uma passagem pelo ponto de conversão deles, o que eu devo fazer?

     Jordan ficou boquiaberto.

     —      E como é que eu vou saber? Meu Deus, Clay! Tipo... meu Deus!

     —      Você sabia que eles estavam reiniciando — disse Tom.

     —      Foi um palpite!

     Clay sabia que tinha sido muito mais do que isso. Muito melhor do que isso. Também sabia que Jordan estava exausto e apavorado. Ele se apoiou em um joelho na frente do menino e pegou a mão dele.

     —      Não tenha medo. A coisa não pode ficar pior para ele do que já está. Deus sabe que não.

     —      Clay, eu... — Jordan olhou para Tom. — Pessoas não são como computadores, Tom! Diz isso pra ele!

     —      Mas computadores são como pessoas, não são? — disse Tom.

     — Porque a gente cria a partir do que conhece. Você sabia que eles estavam reiniciando e sabia sobre o worm. Então dê o seu palpite. Ele nem deve encontrar o menino mesmo. E se encontrar... — Tom deu de ombros. — É como ele disse. Não tem como ficar pior.

     Jordan pensou naquilo, mordendo o lábio. Aparentava um cansaço terrível, e havia sangue na sua camisa.

     —      Vocês vêm ou não vêm? — chamou Dan.

     —      Só mais um minuto — disse Tom. E então, com mais brandura: — Jordan?

     Jordan ficou mais um instante calado. Então olhou para Clay e disse:

     —      Você vai precisar de outro celular. E vai ter que levar seu filho para um lugar que tenha cobertura...

      

    

     SALVAR NO SISTEMA

      

     Clay ficou parado no meio da rota 160, no que teria sido a sombra do outdoor em um dia ensolarado, e observou os faróis traseiros até eles sumirem de vista. Não conseguia se livrar do pensamento de que jamais voltaria a ver Tom e Jordan (as rosas murcharam, sussurrou sua mente), mas recusou-se a deixar aquilo virar uma premonição. Afinal de contas, tinham se encontrado duas vezes, e as pessoas não diziam que três era o número da sorte?

     Um fonóide que passava topou nele. Era um homem com sangue coagulando em um lado do rosto — o primeiro refugiado ferido da Expo dos Condados do Norte que ele via. Veria mais se não se adiantasse a eles, então partiu pela rota 160, indo para o sul novamente. Não tinha motivo para achar que o filho seguira naquela direção, mas esperava que algum vestígio da mente de Johnny — da sua antiga mente — tivesse dito a ele que sua casa ficava para lá. E pelo menos era um caminho que Clay conhecia.

     Quase um quilômetro ao sul da estrada de acesso, encontrou outro fonóide, daquela vez uma mulher, andando rapidamente de um lado para o outro da rodovia como um capitão na proa de um navio. Ela virou o rosto para Clay com um olhar tão penetrante que ele ergueu aí mãos, preparado para se engalfinhar com a mulher se ela o atacasse.

     Não atacou.

     — Quem fa-Pa? — perguntou ela e, em sua mente, com muita clareza, Clay ouviu: Quem caiu? Papai, quem caiu?

     —      Não sei — respondeu ele, deixando-a para trás. — Não vi.

     —      Onde gora? — perguntou ela, andando mais furiosamente ainda, e Clay ouviu em sua mente: Onde estou agora? A isso ele não tentou responder, mas pensou na Cabelinho Escuro perguntando: Quem é você? Quem sou eu?

     Clay apertou o passo, mas não o suficiente. A mulher gritou atrás dele, gelando seu sangue:

     —      Quem é Cabe Escu?

     E, em sua mente, ele ouviu a pergunta ecoar com aterrorizante clareza. Quem é Cabelinho Escuro?

     A primeira casa que Clay arrombou não tinha armas, mas tinha uma lanterna de cilindro longo que ele usou para iluminar cada fonóide errante que encontrava, sempre fazendo a mesma pergunta, tentando ao mesmo tempo jogá-la em sua mente como um slide de lanterna mágica numa tela: Você viu um menino?

     Na segunda casa, havia um belo Dodge Ram parado na entrada para carros, mas Clay não teve coragem de pegá-lo. Se Johnny estivesse naquela estrada, estaria andando. Se fosse de carro, talvez deixasse de vê-lo, mesmo dirigindo devagar. Na despensa, Clay encontrou um presunto enlatado, o abriu puxando o anel da tampa e comeu enquanto voltava a pegar a estrada. Estava prestes a jogar o resto na mata depois de ficar satisfeito quando viu um fonóide idoso parado do lado de uma caixa de correio com um olhar triste e faminto. Clay estendeu o presunto e o velho o pegou. Então, falando devagar e com clareza, tentando criar uma imagem de Johnny em sua mente, Clay disse:

     —      Você viu um menino?

     O homem mastigou o presunto. Engoliu. Pareceu refletir. Disse:

     —      Ganei o deseio.

     —      O deseio — disse Clay. — Certo. Obrigado. — E seguiu caminho.

     Na terceira casa, cerca de um quilômetro e meio mais ao sul, encontrou um rifle calibre 30-30 no porão, junto com três caixas de balas. No aparador da cozinha, achou um celular no carregador. O carregador estava morto — é claro — mas quando ele apertou o botão do telefone, o aparelho apitou e ligou imediatamente. Clay conseguiu apenas uma barra de sinal, mas isso não o surpreendeu. Os fonóides tinham instalado o ponto de conversão no limite da área de cobertura.

     Estava andando em direção à porta com o rifle carregado em uma das mãos, a lanterna na outra e o celular preso ao cinto quando foi tomado pela mais pura estafa. Ele cambaleou para o lado como se tivesse levado uma martelada na cabeça. Queria prosseguir, mas o pouco bom senso que sua mente cansada conseguiu juntar disse que ele deveria dormir, e talvez dormir até fizesse sentido. Se Johnny estivesse lá fora, o mais provável era que ele também estivesse dormindo.

     — Mude para o turno do dia, Clayton — murmurou ele. — Você não vai achar merda nenhuma no meio da noite com uma lanterna.

     Aquela era uma casa pequena — lar de um casal idoso, pensou ele, a julgar pelas fotografias na sala de estar, pelo único quarto e pelas barras de segurança ao lado do vaso sanitário do único banheiro. A cama estava bem arrumada. Clay se deitou nela sem abrir os lençóis, tirando apenas os sapatos. E, assim que bateu no colchão, a fadiga pareceu se instalar sobre ele como um peso. Não conseguia se imaginar levantando por nada. O quarto cheirava a alguma coisa; a sachê de mulher velha, ele pensou. Um cheiro de avó. Parecia tão fraco quanto ele. Deitado naquele silêncio, a carnificina no terreno da Expo parecia-lhe distante e irreal, como uma idéia para uma revista que jamais escreveria. Horrível demais. Continue com o Dark Wanderer, teria dito Sharon — sua velha e doce Sharon. Continue com os seus caubóis do apocalipse.

     A mente de Clay pareceu se erguer e flutuar sobre o corpo. Ela voltou — preguiçosamente, sem pressa — para os três parados ao lado da van da Purificadora de Águas Tyco, logo antes de Jordan e Tom entrarem de volta no veículo. Jordan repetira o que havia dito ainda em Gaiten, sobre como os cérebros humanos não passam de enormes discos rígidos e que o Pulso os apagara. Jordan disse que o Pulso agira nos cérebros humanos como um pulso eletromagnético.

     Só sobrou o núcleo, dissera Jordan. E o núcleo era assassinato. Mas porque os cérebros são discos rígidos orgânicos, eles começaram a se reconstruir. A reiniciar. Só que o sinal-código estava com um bug. Não tenho provas, mas estou certo de que a formação de bandos, a telepatia, a levitação... tudo isso nasceu desse bug. Ele estava lá desde o início, então se tornou parte da reinicialização. Estão me acompanhando?

     Clay assentira. Tom, também. O menino olhava para eles, seu rosto manchado de sangue cansado e grave.

     Mas, enquanto isso, o Pulso continua pulsando, certo? Porque em algum lugar existe um computador a bateria, e ele fica rodando esse programa. O programa está corrompido, então o bug nele não pára de sofrer mutações. Uma hora o sinal vai acabar parando, ou o programa vai acabar fechando de tão corrompido. Mas por enquanto... talvez você consiga usá-lo. Eu disse talvez, entendeu? Tudo depende de os cérebros fazerem o que computadores superprotegidos fazem quando recebem um pulso eletromagnético.

     Tom perguntara o que eles faziam. E Jordan abriu um sorriso fraco.

     Eles salvam no sistema. Todos os dados. Se for isso que acontece com as pessoas, e se você conseguir apagar a programação fonóide, talvez a velha programação acabe reiniciando.

     — Ele estava falando da programação humana — murmurou Clay no quarto escuro, sentindo o aroma doce e fraco de sachê. — A programação humana, salva em algum lugar bem lá no fundo. Intacta. — Já estava perdendo a consciência, adormecendo. Se fosse sonhar, esperava que não fosse com a carnificina na Expo dos Condados do Norte.

     Seu último pensamento antes de cair no sono foi que talvez, a longo prazo, os fonóides se tornassem uma opção melhor. Sim, eles tinham nascido em meio à violência e ao horror, mas nascimentos eram geralmente difíceis, quase sempre violentos e, às vezes, horríveis. Depois que começaram a formar bandos e desenvolver uma só mente, a violência diminuíra. Até onde ele sabia, os fonóides não tinham exatamente declarado guerra aos normies, a não ser que a conversão forçada fosse considerada um ato de guerra;« retaliação que se seguiu à destruição dos bandos deles tinha sido grotesca, mas perfeitamente compreensível. Se deixados em paz, talvez eles até se provassem melhores caseiros da Terra do que os supostos normies. Eles certamente não ficariam fissurados em comprar utilitários esportivos bebedores de gasolina, não com suas habilidades de levitação (ou com seus desejos consumistas um tanto primários). Ora, até o gosto musical deles estava melhorando no final.

     Mas que outra escolha eles tinham?, pensou Clay. A sobrevivência é igual ao amor. Os dois são cegos.

     Então ele caiu no sono e não sonhou com o massacre na Expo. Sonhou que estava em uma tenda de bingo e, quando o locutor cantou B-12 — É a vitamina da luz solar—, Clay sentiu alguém puxar uma das pernas de sua calça. Ao olhar debaixo da mesa, viu que Johnny estava lá, sorrindo para ele. E, em algum lugar, um telefone tocava.

     Nem toda a raiva tinha se dissipado dos fonóides refugiados, assim como seus talentos fantásticos também não haviam desaparecido por completo. Por volta do meio-dia do dia seguinte, que foi frio e úmido, com um gostinho de novembro no ar, Clay parou para olhar dois deles brigarem furiosamente à beira da estrada. Eles trocaram socos, então se arranharam e finalmente se engalfinharam, batendo cabeças e se mordendo nas bochechas e nos pescoços. Durante a briga, começaram a se desprender lentamente da calçada. Clay ficou olhando, boquiaberto, os dois atingirem uma altura de aproximadamente 3 metros, ainda lutando, os pés separados e retesados, como se estivessem em uma plataforma invisível. Então, um deles enfiou os dentes no nariz do oponente, que usava uma camisa esfarrapada e manchada de sangue com as palavras CARGA PESADA escritas na frente. O Papa-Nariz empurrou CARGA PESADA para trás. CARGA PESADA cambaleou, então caiu como uma pedra em um poço. Sangue jorrava para cima de seu nariz rasgado enquanto ele despencava. O Papa-Nariz olhou para baixo, parecendo finalmente notar que estava à altura de um andar da estrada, e desabou também. Como Dumbo depois de perder a pena mágica, pensou Clay. O Papa-Nariz torceu o joelho e ficou caído na estrada, compôs dentes manchados de sangue arreganhados, rosnando para Clay ao vê-lo passar.

     Porém, esses dois eram uma exceção. E quase todos os fonóides que cruzaram o caminho de Clay (ele não viu nenhum normie naquele dia, nem durante toda a semana seguinte) pareciam perdidos e desnorteados sem uma mente coletiva que os sustentasse. Clay não conseguia tirar da cabeça algo que Jordan dissera antes de voltar para a van e seguir para as florestas do norte, onde não havia cobertura celular: Se o worm continuar em mutação, os convertidos mais recentes não vão ser nem fonóides, nem normies, pelo menos não exatamente.

     Para Clay, aquilo significava que ficariam parecidos com Cabelinho Escuro, só que um pouquinho mais perdidos. Quem é você? Quem sou eu? Ele conseguia ver aquelas perguntas nos olhos deles e suspeitava — não, sabia — que eram elas que estavam tentando fazer quando despejavam aquele falatório.

     Ele continuou perguntando: Vocês viram um menino, e tentando transmitir a imagem de Johnny, mas não tinha esperanças de obter uma resposta que fizesse sentido àquela altura. Na maioria das vezes, não recebia resposta alguma. Passou a noite seguinte em um trailer cerca de 8 quilômetros ao norte de Gurleyville e, pela manhã, um pouco depois das nove, divisou um pequeno vulto sentado no meio-fio em frente do Gurleyville Café, no meio do centro comercial de uma quadra da cidade.

     Não pode ser, pensou ele, mas começou a andar mais rápido e, quando chegou um pouco mais perto — perto o suficiente para ter quase certeza de que o vulto era o de uma criança, e não o de um adulto pequeno —, passou a correr. A mochila nova começou a subir e descer nas suas costas. Seus pés tocaram o início da pequena calçada do café e começaram a bater no concreto.

     Era um menino.

     Um menino muito magro, com cabelo longo quase na altura dos ombros da camisa dos Red Sox.

     —      Johnny!— gritou Clay. — Johnny, Johnny-Gee!

     O menino virou na direção do grito, assustado. Sua boca estava aberta, numa expressão apalermada. Não havia nada nos seus olhos além de um vago choque. Parecia estar pensando em correr, mas antes mesmo que pudesse preparar as pernas, Clay já o havia erguido e cobria-lhe o rosto sujo e indiferente e a boca frouxa de beijos.

     —      Johnny — disse Clay. — Johnny eu vim te buscar. Eu vim. Vim te buscar. Vim te buscar.

      

     E em um determinado momento — talvez apenas porque o homem que o segurava tinha começado a girá-lo no ar — o menino colocou as mãos em volta do pescoço de Clay para se segurar. Ele disse algo, também. Clay se recusou a crer que era uma vocalização vazia, tão sem sentido quanto o vento passando pelo gargalo de uma garrafa esvaziada de refrigerante. Foi uma palavra. Poderia ter sido taeii, mas também poderia ter sido paeii, que era como ele, aos 16 meses de idade, tinha chamado pela primeira vez seu pai.

     Clay decidiu se agarrar a isto. Decidiu acreditar que a criança pálida, suja e desnutrida que estava agarrada ao seu pescoço o chamara de pai.

     Agora o menino dormia em um catre dentro de um armário, porque Johnny sossegou nele e porque Clay estava cansado de tirá-lo debaixo da cama. O abrigo quase uterino do armário pareceu acalmá-lo. Talvez fizesse parte da conversão pela qual ele e os demais passaram. Que bela conversão. Os fonóides de Kashwak haviam transformado seu filho em um débil mental obsessivo sem ao menos um bando para confortá-lo.

     Lá fora, sob um céu noturno cinzento, a neve respingava. Um vento frio a fazia ondular pela rua principal sem luz de Springvale. Parecia cedo demais para neve, mas é claro que não era, principalmente tão ao norte. Quando ela vinha antes do Dia de Ação de Graças, você sempre reclamava, e quando vinha antes do Halloween você reclamava em dobro, então alguém o lembrava que você vivia no Maine, e não na ilha de Capri.

     Clay imaginou onde estariam Tom, Jordan, Dan e Denise naquela noite. Imaginou como Denise faria quando chegasse a hora de ter o bebê. Achava que ela provavelmente ficaria bem — aquela sim era uma mulher durona. Imaginou se Tom e Jordan pensavam tanto nele quanto ele pensava, nos dois, e se sentiam sua falta tanto quanto ele sentia a deles — dos olhos solenes de Jordan, do sorriso irônico de Tom. Não tinha chegado nem perto de ver aquele sorriso tanto quanto queria; as coisas pelas quais passaram não tinham sido tão engraçadas.

     Ele imaginou se aquela última semana com o filho não teria sido a mais solitária de sua vida. Chegou à conclusão de que a resposta era sim.

     Clay baixou os olhos para o celular em sua mão. Aquilo o intrigava mais do que qualquer outra coisa. Devia ou não fazer outra ligação? As barras de sinal apareciam no pequeno mostrador quando ele ligava o aparelho, três belas barras, mas a bateria não duraria para sempre, e ele sabia disso. E tampouco podia esperar que o Pulso continuasse eternamente. As baterias que estavam enviando o sinal para os satélites (se é que era isso que estava acontecendo, e se é que ainda estava acontecendo) poderiam acabar. Ou o Pulso poderia se transformar em uma simples onda condutora, em um zumbido idiota ou no tipo de chiado agu-do que você recebia quando ligava para o fax de alguém por engano.

     Neve. Neve no dia 21 de outubro. Era mesmo 21 de outubro? Ele perdera a conta dos dias. Se havia uma coisa de que tinha certeza era de que os fonóides estavam morrendo lá fora, mais deles a cada noite. Johnny teria sido um deles, se Clay não o tivesse encontrado.

     A questão era, o que ele tinha encontrado?

     O que tinha salvado?

     Paeii.

     Pai?

     Talvez.

     Certamente o menino não tinha dito nada remotamente parecido com uma palavra desde então. Andava de bom grado com Clay... mas também tendia a vagar para onde bem entendesse. Quando fazia isso, Clay tinha que agarrá-lo mais uma vez, do jeito que se agarra uma criancinha que tenta sair correndo pelo estacionamento de um super-mercado. Toda vez que isso acontecia, Clay se lembrava de um robô de dar corda que ele teve quando criança, e como o brinquedo sempre ia para um canto e ficava lá subindo e descendo os pés inutilmente até você virá-lo de volta na direção do meio da sala.

     Johnny armou uma pequena e desesperada briga quando Clay encontrou um carro com as chaves dentro, más depois que ele conseguiu colocar o cinto no menino, trancá-lo no veículo e começar a andar, Johnny já estava calmo novamente e parecia quase ter caído em transe. Ele até encontrou o botão que descia a janela e deixou o vento bater no seu rosto, fechando os olhos e erguendo um pouco a cabeça. Clay observou o vento jogar o cabelo longo e sujo do filho para trás e pensou: Deus tenha piedade de mim, é como dirigir com um cachorro.

     Quando chegaram a um obstáculo na estrada que não conseguiam contornar e Clay ajudou Johnny a sair do carro, ele descobriu que o filho tinha molhado as calças. Ele esqueceu como ir ao banheiro junto com a fala, pensou Clay com desolação. Cruz credo. E aquilo era mesmo verdade, mas as conseqüências não foram tão complicadas ou medonhas quanto Clay pensara. Johnny não sabia mais como ir ao banheiro, mas se você parasse e o levasse até um espaço aberto, ele urinaria se estivesse com vontade. Ou se tivesse que se agachar, faria isso, olhando em devaneio para o céu enquanto esvaziava os intestinos. Talvez traçando o caminho que os pássaros faziam lá em cima. Talvez não.

     Não sabia ir ao banheiro, mas tinha aprendido a não fazer cocô dentro de casa. Novamente, Clay não conseguiu deixar de pensar nos cachorros que tivera.

     Só que cachorros não acordavam no meio de todas as noites e gritavam por 15 minutos.

     Naquela primeira noite eles tinham ficado em uma casa perto do Posto Comercial de Newfield e, quando os gritos começaram, Clay achou que Johnny estava morrendo. Embora o menino tivesse adormecido nos seus braços, ele havia sumido quando Clay acordou de um pulo. Johnny não estava mais na cama, e sim debaixo dela. Clay se arrastou até lá, entrando em uma sufocante caverna de bolinhas de poeira, com a parte de baixo do colchão a uns 2 centímetros da cabeça, e agarrou um menino esguio que mais parecia uma barra de ferro. Os gritos tinham sido mais intensos do que pulmões tão pequenos poderiam produzir, e Clay compreendeu que os estava ouvindo amplificados na sua cabeça. Todos os cabelos de Clay, até os pêlos pubianos, pareciam estar de pé e rijos.

     Johnny gritara por quase 15 minutos debaixo da cama, então se calou tão abruptamente quanto havia começado. O corpo dele ficou flácido. Clay teve que apertar a cabeça contra o lado do menino (um dos braços dele de alguma forma passados por sobre seu pescoço naquele espaço incrivelmente pequeno) para se certificar de que o filho ainda estava respirando.

     Ele arrastara Johnny para fora, mole como um saco de correio vazio, e colocara o corpo empoeirado e sujo de volta na cama. Ficou acordado ao lado dele por quase uma hora antes de também cair pesadamente no sono. Pela manhã, estava mais uma vez sozinho na cama. Johnny voltara a se arrastar para baixo dela. Como um cachorro depois de uma surra, procurando o menor abrigo possível. Aquilo parecia o total oposto do comportamento fonóide anterior... mas, obviamente, Johnny não era como eles. Johnny era algo novo. Que Deus o ajudasse.

     Agora eles estavam em uma confortável cabana de caseiro perto do Museu do Madeireiro de Springvale. Havia bastante comida, um forno a lenha e água fresca da bomba manual. Tinha até um banheiro químico (embora Johnny não o usasse; Johnny usava o quintal dos fundos). Todas as conveniências modernas, de cerca 1908.

     Foi um período tranqüilo, exceto pelas gritarias noturnas de Johnny. Clay teve tempo para refletir e, agora, parado em frente à janela da sala de estar, observando a neve soprar pela rua enquanto o filho dormia em seu pequeno esconderijo no armário, teve tempo de perceber que já era hora de parar de refletir. Nada iria mudar a não ser que ele agisse.

     Você vai precisar de outro celular, dissera Jordan. E vai ter que levar seu filho para um lugar que tenha cobertura...

     Havia cobertura ali. Ainda havia cobertura. As barras de sinal no celular estavam lá para provar.

     Não tem como ficar pior, dissera Tom. E dera de ombros. Mas é claro que ele podia dar de ombros, não é? Johnny não era filho dele. Ele tinha um filho próprio agora.

     Tudo depende de os cérebros fazerem o que computadores superprotegidos fazem quando recebem um pulso eletromagnético, tinha dito Jordan. Eles salvam no sistema.

    Salvar no sistema. Uma frase de impacto.

     Mas seria preciso apagar o programa fonóide antes para abrir espaço para uma altamente teórica segunda reinicialização, e a idéia de Jordan — atingir Johnny com o Pulso mais uma vez, como atear um contrafogo — parecia tão assustadora, tão absurdamente perigosa, diante do fato de que Clay não tinha como saber em que tipo de programa o Pulso tinha se transformado àquela altura... supondo (supor é coisa de gente idiota, sim, sim, sim) que ele ainda estivesse funcionando...

     — Salvar no sistema — suspirou Clay. Lá fora, já estava quase escuro, e o soprar da neve parecia mais fantasmagórico do que nunca.

     O Pulso estava diferente àquela altura, Clay tinha certeza. Ele se lembrou dos primeiros fonóides que encontrara acordados à noite, os do Corpo de Bombeiros Voluntário de Gurleyville. Eles estavam brigando pelo velho caminhão dos bombeiros, mas estavam fazendo muito mais do que isso; estavam falando. Não só fazendo vocalizações vazias que poderiam ser palavras, falando. Não tinha sido muita coisa, nenhum bate-papo brilhante de coquetel, mas uma conversa de verdade, mesmo assim. Vá embora. Você vai. Não, senhor. E o inesquecível Meaminhão. Aqueles dois tinham sido diferentes dos fonóides originais — os fonóides da Era do Homem Esfrangalhado —, e Johnny era diferente daqueles dois. Por quê? Porque o worm ainda estava fazendo estrago, porque o Pulso ainda estava em mutação? Provavelmente.

     A última coisa que Jordan disse antes de dar um beijo de despedida em Clay e seguir para o norte foi: Se você instalar uma nova versão do programa em cima do que Johnny e os outros receberam no ponto de conversão, eles podem comer um ao outro. Porque é isso que os worms fazem. Eles comem. E então, se a velha programação estiver lá... se tiver sido salva no sistema.

     Clay notou que sua mente conturbada se voltava para Alice — Alice, que perdera a mãe, Alice que encontrara uma maneira de ser corajosa transferindo seus medos para um tênis de criança. A umas quatro horas de Gaiten, na rota 156, Tom perguntara a um outro grupo de normies se eles gostariam de compartilhar o local para piquenique da beira da estrada. São eles, um dos homens falara. É o bando de Gaiten. Outro mandara Tom ir para o inferno. E Alice tinha saltado de pé. Saltado de pé e falado:

     —      Pelo menos nós fizemos alguma coisa — disse Clay olhando para a rua que escurecia. — Então perguntou: "O que vocês fizeram, porra?

     Então lá estava a resposta que ele procurava, cortesia de uma menina morta. Johnny-Gee não iria melhorar. No fim das contas, as escolhas de Clay eram duas: continuar na mesma situação ou tentar mudá-la enquanto havia tempo. Se é que havia.

     Clay usou uma lanterna a bateria para iluminar o caminho até o quarto. A porta do armário estava entreaberta, e ele conseguia ver o rosto de Johnny. Adormecido, com a bochecha em uma das mãos e o cabelo embaraçado em cima da testa, ele estava quase igual ao garoto cujo rosto Clay beijara antes de partir para Boston com seu portfolio do Dark Wanderer mil anos atrás. Um pouco mais magro; afora isso, bonito do mesmo jeito. Apenas quando ele estava acordado dava para notar as diferenças. A boca caída e os olhos vazios. Os ombros curvados e as mãos pendendo dos braços.

     Clay escancarou a porta do armário e se ajoelhou diante do catre. Johnny se agitou um pouco quando a luz da lanterna bateu no seu rosto, então sossegou de volta. Clay não era de rezar, e os acontecimentos das semanas anteriores não aumentaram em muito sua fé em Deus, mas não podia negar que encontrara o filho, então mandou uma oração lá para cima para o que quer que estivesse ouvindo. Era curta e ia direto ao ponto: Antônio, Antônio, onde está você, perdemos uma coisa que não quer aparecer.

     Ele abriu o celular e apertou o botão de liga/desliga. O aparelho apitou baixinho. A luz âmbar do mostrador se acendeu. Três barras. Ele hesitou por um instante, mas havia apenas um número que podia arriscar: o que o Homem Esfrangalhado e seus amigos tinham discado.

     Depois de discar os três dígitos, ele esticou o braço e sacudiu o ombro de Johnny. O menino não queria acordar. Ele gemeu e tentou se afastar. Então tentou virar de lado. Clay não o deixou fazer nada daquilo.

     —      Johnny! Johnny-Gee! Acorde! — Ele o sacudiu com mais força e continuou sacudindo até o menino finalmente abrir os olhos vazios e olhá-lo com desconfiança, mas sem curiosidade humana alguma.

     Era o tipo de olhar que você receberia de um cachorro maltratado, e Clay ficava com o coração partido sempre que o via.

     Mas qual tinha sido a probabilidade de encontrar Johnny em primeiro lugar? E de Johnny abandonar o bando de Kashwakamak antes da explosão? Uma em mil? Uma em 10 mil? Ele conviveria com aquele olhar desconfiado, porém sem curiosidade, à medida que Johnny completasse 13 anos, depois 15 e depois 21, para sempre dormindo no armário e cagando no quintal dos fundos?

     Pelo menos nós fizemos alguma coisa, dissera Alice Maxwell.

     Ele olhou para o mostrador sobre o teclado. Nele, os números 911 se destacavam tão brilhantes e negros quanto um destino anunciado.

     Os olhos de Johnny estavam fechando. Clay deu outra sacudidela nele para mantê-lo acordado. Fez isso com a mão esquerda. Com o polegar da direita, apertou o botão CHAMAR do aparelho. Não houve tempo para contar os segundos antes de a mensagem CHAMANDO na janelinha iluminada mudar para CONECTADO. Quando isso aconteceu, Clayton Riddell não se permitiu ter tempo para pensar.

     — Ei, Johnny-Gee — disse ele. — Pra-pravo-você. — E apertou o celular contra a orelha do filho.

 

 

                                                                  Stephen King

 

 

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