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Series & Trilogias Literarias
Os soldados do Imperador Cláudio prestavam serviço em dois corpos as legiões e as unidades auxiliares, de que são exemplos a Décima Legião e a Segunda Coorte Ilírica, protagonistas deste romance.
As legiões eram as unidades de elite do exército romano. Os seus elementos eram cidadãos romanos, e estavam fortemente armados e ben equipados, sendo submetidos a um regime de treinos brutal. Além de serem a ponta de lança militar da política romana, as legiões eram tambén utilizadas na concretização de grandes projectos como estradas e pontes. Cada legião tinha, por norma, um efectivo de cinco mil e quinhentos homens. Estes eram divididos por dez coortes; cada uma delas era composta por seis centúrias de oitenta homens (e não de cem, como seria de supor mas a primeira coorte tinha o dobro do efectivo das outras e tinha geralmente a missão de proteger o flanco vulnerável, o direito, quando en combate.
Ao contrário das legiões, as coortes auxiliares recrutavam os seus ele mentos nas províncias, sendo a cidadania romana atribuída aos que conseguiam sobreviver aos mais de vinte anos de serviço activo que os esperavam antes da passagem à disponibilidade. Os romanos não conseguiam apresentar grandes unidades de cavalaria com capacidade efectiva de com bate, nem unidades de combate à distância (nomeadamente arqueiros (fundibulários) mas, sendo um povo eminentemente prático, atribuíam a maior parte destas especialidades às coortes auxiliares em que não existiam cidadãos romanos, numa espécie de subcontrato. Os auxiliares tinham un treino profissional tão aturado como as legiões, mas o equipamento que lhes era distribuído era mais ligeiro, e o pagamento que recebiam seguia o mesmo princípio. Os seus deveres eram geralmente limitados a guarnecer postos nas províncias e a policiar as áreas respectivas em tempos de paz. Quando em campanha, actuavam como batedores e tropa ligeira, sendo sua principal tarefa a de fixar o inimigo no terreno de forma a permitir que as legiões, mortíferas no combate próximo, se aproximassem e entrassen em contacto com ele. As coortes auxiliares eram geralmente compostas por seis centúrias, embora pudessem ser mais numerosas; era o caso da Segunda Ilírica, que possuía ainda esquadrões de cavalaria. Em épocas de campanha, as coortes auxiliares eram geralmente agrupadas em brigadas com as legiões.
Quanto às patentes, tanto as centúrias das legiões como as das coortes auxiliares eram comandadas por um centurião, coadjuvado por um optio. As coortes das legiões eram comandadas por centuriões-chefe; as das unidades auxiliares eram comandadas por prefeitos - normalmente antigos centuriões com vasta experiência, promovidos das legiões. As legiões eram comandadas por legados com um estado-maior composto por tribunos, jovens oficiais de origem aristocrática que aí adquiriam a sua primeira experiência militar. Quando se formava um exército, o comando era geralmente atribuído a um indivíduo de comprovada competência militar, e que era escolhido pelo Imperador. Não era invulgar que esse homem ocupasse simultaneamente outros postos, como por exemplo o governo de uma região; era o caso de Cássio Longino, um dos personagens deste livro.
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Enquanto o entardecer descia sobre o forte em construção, o comandante da coorte dirigiu o olhar do alto da falésia para o rio. Uma leve neblina cobria o Eufrates
e inundava as margens, erguendo-se acima das árvores que ladeavam o rio, fazendo-o assemelhar-se ao ventre macio de uma gigantesca cobra a serpentear lentamente
pela paisagem. A imagem fez com que os pelos da nuca do centurião Castor se eriçassem. Puxou a capa para cima dos ombros, fechando-a com força sobre o peito, semicerrou
os olhos e perscrutou o território que se estendia do outro lado do Eufrates: a Pártia.
Mais de cem anos tinham decorrido desde o momento em que o poderio romano se tinha pela primeira vez confrontado com os partos. E desde então os dois impérios enfrentavam-se
num jogo letal pelo controlo de Palmira, a região a leste da província romana da Síria. Agora que Roma negociava um tratado de amizade com Palmira e estreitava os
laços com o reino, a sua influência alargava-se até às margens do Eufrates, ou seja, até à porta de entrada nos territórios do velho inimigo. Já nada separava Roma
e Pártia, e quase ninguém tinha dúvidas de que a hostilidade latente entre as duas potências daria rapidamente lugar a um conflito aberto. Quando o centurião e os
seus homens tinham passado pelos portões de Damasco já as legiões da Síria se estavam a preparar para uma campanha.
Tal pensamento fez com que o centurião Castor se sentisse mais uma vez amargamente ressentido com as ordens que recebera de Roma: levai uma coorte de tropas auxiliares
pelo deserto, muito para lá de Palmira, para construir um forte ali mesmo, nas falésias à beira do Eufrates. Palmira estava a oito dias de marcha para ocidente,
e os soldados romanos mais próximos estavam ainda a outros seis dias de marcha, em Émeso. Castor nunca se sentira tão isolado em toda a sua vida. Ele e os seus quatrocentos
homens encontravam-se nos verdadeiros confins do Império, estacionados naquele penhasco, à espera de algum sinal de que os partos se iam decidir a atravessar o Eufrates
e atacar.
Depois de uma marcha extenuante pelo deserto rochoso e desolado tinham montado acampamento no sopé das falésias e começado a construir um forte que guarneceriam
até que um qualquer oficial emproado
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nos gabinetes de Roma se lembrasse de os substituir. Durante a marcha, a coorte tinha-se visto cozida pelo dia, sob o calor tórrido do sol, e congelada pela noite,
quando a temperatura caía que nem uma pedra e os homens se embrulhavam nas capas e tremiam de frio. A água tinha sido estritamente racionada, e quando finalmente
tinham alcançado o grande rio que atravessava o deserto e banhava a área do crescente fértil, os homens tinham fugido ao controlo dos oficiais e corrido para saciar
a sede, entrando pelo rio, levantando a água aos céus e deixando-a cair às mãos cheias sobre os lábios ressequidos.
Depois de três anos colocado em Cirro, cidade guarnecida pela Décima Legião, recheada de jardins bem irrigados e que oferecia todos os prazeres da carne que um homem
podia desejar, Castor encarava o seu novo posto temporário com crescente receio. A coorte podia bem vir a passar meses naquele canto esquecido do mundo, talvez anos.
Se não morressem de aborrecimento, os partos com toda a certeza acabariam por se encarregar de lhes dar esse destino. Por isso, assim que tinha encontrado um ponto
na falésia que permitia dominar o vau do rio e ter uma perspectiva aberta sobre as vastas planícies da Pártia que se estendiam na outra margem, o centurião tinha
obrigado os homens a trabalhar no duro na construção de um novo forte. Castor estava absolutamente certo de que as notícias da presença romana na área chegariam
aos ouvidos do rei da Pártia em poucos dias, e era por isso vital que a coorte erigisse defesas sólidas antes que os partos resolvessem agir. Os auxiliares tinham
passado vários dias a aterrar a zona escolhida, e a preparar as fundações das muralhas e das torres do novo forte. Depois, os canteiros tinham preparado rapidamente
as pedras que tinham sido extraídas dos afloramentos próximos e trazidas para o estaleiro de construção por carroças de mulas. As muralhas já tinham as paredes confinantes
à altura do peito de um homem, e o espaço entre elas estava a ser cheio com terra e pedras soltas; ao lançar um olhar sobre o estaleiro à luz do entardecer, o centurião
Castor assentiu para si mesmo, satisfeito. Mais uns cinco dias e as defesas já teriam altura suficiente para poder mudar o acampamento para o interior das muralhas
e deixar o fortim provisório lá em baixo. Nessa altura poder-se-iam sentir algo seguros em relação aos partos. E até que esse momento chegasse, continuaria a fazer
os homens trabalhar sem descanso, pelo menos enquanto houvesse luz suficiente.
O sol já se pusera, e já só restava uma faixa de luz rosada a pairar no horizonte. Castor virou-se para o seu adjunto, o centurião Sétimo.
- Bem, é altura de dar o dia por terminado.
Sétimo assentiu, respirou fimdo e levou as mãos em concha à boca, para que as ordens fossem ouvidas em todo o estaleiro.
- Coorte! Largar as ferramentas, e regressar ao campo!
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Por toda a área, Castor viu as indistintas silhuetas dos homens a pousarem pás e picaretas e cestos de vime, e depois a pegarem nos escudos e lanças para formar
no exterior da abertura correspondente à entrada principal do forte. Enquanto os últimos soldados se alinhavam levantou-se um vento vindo do deserto, e quando Castor
franziu a vista na direcção do poente avistou uma densa massa de poeira que se aproximava velozmente.
- Vem aí uma tempestade de areia. - Resmungou, dirigindo-se a Sétimo. - Seria melhor chegarmos ao campo antes que ela nos alcance.
O outro acenou em concordância. Sétimo tinha passado quase toda a carreira na fronteira leste e sabia perfeitamente a rapidez com que os homens podiam perder qualquer
noção da direcção correcta a seguir quando se viam engolidos pelas nuvens de poeira abrasiva e sufocante e eram açoitados pela areia levantada pelos ventos que varriam
aquelas terras.
- Aqueles sacanas sortudos nem vão dar por ela.
Castor sorriu fugazmente. Tinha sido deixada meia centúria de guarda ao acampamento, enquanto os seus camaradas se afadigavam no cimo da falésia. Facilmente imaginava
os homens a recolherem às guaritas das sentinelas, escondendo-se do vento e da areia.
- Bem, então vamos pôr esta malta a mexer.
Deu ordens para se porem em movimento e os homens obedeceram seguindo pela trilha sinuosa que levava ao acampamento, a cerca de quilómetro e meio do local de construção.
O vento subiu de intensidade enquanto a escuridão progredia sobre a paisagem, e as capas dos soldados esvoaçavam e batiam à medida que iam descendo a encosta pedregosa
da falésia.
- Não vou ter saudades desta terra, senhor. - Resmungou Sétimo. - Tem alguma ideia de quando é que vamos ser substituídos? Tenho coisas à espera, e os miúdos lá
em Emesa.
Castor abanou a cabeça.
- Não faço ideia. Mas tenho tanta vontade de me pôr a andar daqui para fora como vocês todos. Suponho que tudo depende da situação em Palmira, e do que os nossos
amigos partos decidirem fazer quanto a isso.
- Filhos da puta. - Rosnou Sétimo. - Os sacanas não param quietos. Foram eles que estiveram por trás daquela confusão na Judeia no ano passado, não foram?
Castor assentiu em silêncio, enquanto recordava a revolta que tinha rebentado a leste do Jordão. Os partos tinham fornecido armas aos rebeldes e tinham até enviado
um destacamento de arqueiros montados. Só o esforço da guarnição do Forte Bushir tinha impedido que os rebeldes e os seus aliados levassem a revolta a toda a Judeia,
e criassem um enorme problema a Roma. Mas agora os partos tinham voltado atenções para a cidade-oásis
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de Palmira - um elo vital na rota do comércio oriental, e um tampão entre o Império e a Pártia. Palmira tinha conseguido manter um considerável grau de independência,
e era mais um protectorado romano do que um estado subjugado. Mas o rei local estava a ficar velho, e os membros da sua casa mostravam bem as rivalidades que os
separavam, tentando colocar-se na melhor posição para lhe suceder. E um dos mais poderosos príncipes de Palmira não escondia o seu desejo de se aliar aos partos
em caso de se tornar o novo governante.
Castor limpou a garganta.
- Convencer os partos a manter as patas longe de Palmira é trabalho para o governador da Síria.
O centurião Sétimo franziu o sobrolho.
- Cássio Longino? Acha que ele está à altura dessa tarefa?
Castor manteve-se em silêncio enquanto pesava a questão.
- Sim, acho que sim. Não é nenhum lacaio, nenhum pau-mandado; é um homem que fez por merecer as promoções que recebeu. Se não conseguir triunfar no plano diplomático,
estou certo de que nos guiará a uma vitória militar. Se tal se tornar necessário.
- Gostaria de partilhar a sua confiança, senhor. - Sétimo abanou a cabeça. - Pelo que ouvi, da última vez que se viu em sarilhos, o Longino não esperou muito tempo
para se raspar.
- Quem te disse tal coisa? - Irritou-se Castor.
- Um oficial da guarnição de Bushir, senhor. Ao que parece, o Longino estava no forte quando os rebeldes apareceram. Saltou para a sela e pôs-se dali para fora mais
depressa do que uma puta da Subura nos limpa a bolsa.
Castor encolheu os ombros.
- Por certo teria as suas razões.
- Evidentemente.
Castor encarou o subordinado com ar severo.
- Olha, não nos compete discutir as decisões do governador. Sobretudo não ao pé dos homens. Portanto, guarda as tuas opiniões para ti mesmo, entendido?
O centurião cerrou os lábios antes de assentir.
- Como desejar, senhor.
A coluna continuou a descer a encosta enquanto o vento aumentava, e depressa as primeiras nuvens de poeira atravessaram a estrada. Em poucos momentos a paisagem
em redor ficou escondida, e Castor abrandou o passo para se assegurar de que continuava a seguir o caminho para o acampamento. Prosseguiram com dificuldade, os ombros
encolhidos enquanto se tentavam proteger das rajadas de areia por trás dos escudos. Daí a pouco o caminho começou a tornar-se plano, sinal de que tinham alcançado
o sopé
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da falésia. O acampamento estava já a curta distância, mas a areia e a escuridão crescente escondiam-no de vista.
- Quase lá. - Comentou Castor para si mesmo.
Sétimo ouviu-o e comentou.
- Óptimo. A primeira coisa que vou fazer quando chegar à minha tenda é limpar a garganta com um copázio de vinho.
- Bela ideia. Posso acompanhar-te?
Sétimo rangeu os dentes perante o pedido inesperado, e resignou-se entristecido a ter que partilhar o último dos frascos de vinho que tinha trazido de Palmira, através
do deserto. Pigarreou e acedeu.
- Com todo o prazer, senhor.
Castor soltou uma gargalhada e deu-lhe uma palmada no ombro.
- Ora aqui está um tipo decente! Quando regressarmos a Palmira, sou eu que ofereço a primeira bebida.
- Sim, senhor. Obrigado... - De súbito, Sétimo deteve-se e esforçou a vista para tentar perceber o que se passava à distância. De imediato levantou o braço, dando
sinal de paragem à coluna.
- O que foi? - Perguntou Castor sem alarme, ao lado do subordinado. - O que se passa?
Sétimo acenou na direcção do forte.
- Pareceu-me ver qualquer coisa à nossa frente. Um cavaleiro.
Os dois oficiais perscrutaram a areia rodopiante, de vistas e ouvido atentos, mas não se notava qualquer sinal de presença humana, a pé o montada. Apenas se viam
os pobres arbustos sequiosos que ladeavam a estrada. Castor engoliu em seco e tentou aliviar a tensão que se apossara dos seus músculos.
- O que é que viste, exactamente?
Sétimo olhou-o com uma expressão exasperada, percebendo que o superior duvidava da sua palavra.
- Já disse, um cavaleiro. A uns cinquenta passos. Foi uma abertura da tempestade, só um instante, foi nessa altura que o vi.
Castor tentou serená-lo.
- Tens a certeza que não foi um efeito da luz? Podia muito bem ser um daqueles arbustos a agitar-se.
- Senhor, já lhe disse. Era um cavalo. Claro como água. Juro-o por todos os deuses. Ali mesmo à nossa frente.
Castor preparava-se para responder quando os dois homens escutaram um leve ressoar metálico acima do rugir do vento. Aquele som era inconfundível para qualquer soldado:
espadas entrechocavam-se algures nas imediações. Logo a seguir escutou-se um gemido abafado, que desapareceu rapidamente, deixando apenas o vento a perturbar a tarde.
Sentiu
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o sangue gelar-lhe nas veias enquanto se virava para Sétimo e falava com aparente serenidade.
- Passa palavra aos outros oficiais. Eles que formem os homens em fileiras cerradas ao lado da estrada. Nada de espalhafato.
- Sim, senhor. - O centurião Sétimo fez a saudação e ficou para trás, para alertar toda a coluna. Enquanto os homens começavam a ocupar as posições designadas, Castor
deu mais alguns passos na direcção do campo fortificado. Uma alteração súbita do vento permitiu-lhe um vislumbre do portão, e ele reparou num corpo no solo junto
à estrutura de madeira, eriçada de setas. O véu de poeira voltou a esconder a cena, e Castor recuou para junto dos homens. Os auxiliares estavam formados numa linha
com quatro homens de profundidade, escudos levantados e lanças em riste, enquanto olhavam ansiosos na direcção do campo. Sétimo aguardava pelo comandante à cabeça
da centúria no flanco direito. Ao lado, a encosta subia num amontoado confuso de pedregulhos e arbustos.
- Senhor, viu alguma coisa?
Castor assentiu e esperou até estar ao lado do outro oficial para lhe falar em voz baixa.
- O acampamento foi atacado.
- Atacado? - Sétimo arqueou as sobrancelhas. - Por quem? Partos?
- Quem mais?
Sétimo acenou em concordância e deixou que a mão escorregasse até ao punho da espada.
- Senhor, quais são as suas ordens?
- Eles ainda estão por aí. No meio desta tempestade, podem estar em qualquer lugar. Temos que tentar recolher ao campo, verificar o interior e fechar os portões.
É a nossa melhor hipótese.
Sétimo sorriu com ar sombrio.
- A nossa única hipótese, quer dizer.
Castor não respondeu, mas ajeitou as dobras da capa sobre os ombros e empunhou a espada. Levantou-a no ar e olhou ao longo da formação para se assegurar que todos
os oficiais o imitavam e que a mensagem era compreendida pelos homens. Não fazia ideia de qual seria o efectivo inimigo. Se tinham ousado atacar e tinham conseguido
dominar o fortim, deviam ser bastante numerosos. Com toda a certeza, a neblina que pairava sobre o rio e a tempestade de areia tinham dissimulado a aproximação da
força inimiga. Pouco consolo encontrava por a mesma tempestade oferecer agora alguma cobertura aos seus soldados enquanto se aproximavam do acampamento fortificado.
Com alguma sorte, talvez os auxiliares conseguissem devolver a surpresa ao inimigo. Baixou devagar o braço com que ostentava a espada, fazendo-a descrever um arco
e mergulhar na direcção do acampamento. O
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sinal foi repetido por toda a formação, mesmo por aqueles que a escuridão e a tempestade não lhe permitiam avistar.
Castor colocou a espada de forma a que a lâmina se encostasse à orla do escudo, e avançou. Toda a linha romana o seguiu, e os auxiliares progrediram em passos seguros
sobre o terreno irregular nas imediações do campo fortificado. Os oficiais mantiveram o passo lento, de forma a poderem ir corrigindo as linhas enquanto os soldados
avançavam. À direita, a encosta dava lugar a um espaço aberto, deixado vago pela centúria que ocupava o flanco. Castor semicerrou os olhos tentando perceber o que
se desenhava à sua frente, se eram sinais do inimigo ou das fortificações do acampamento. Por fim avistou o grande vulto dos portões no meio da areia e poeira que
volteava pelo ar. A silhueta da paliçada, mais elevada nos dois lados do por tão, revelou-se em maior detalhe quando os auxiliares se aproximaram do campo. Para
lá do cadáver encostado às tábuas do portão, não havia vestígios de qualquer outra presença. Viva ou morta.
Ouviu um som de cascos à direita, e virou-se no preciso momento en que um homem na ponta da formação soltava um grito e agarrava incrédulo na haste de uma seta que
de repente lhe atravessara o peito. Vultos indistintos rasgaram o véu de poeira levantado pela tempestade, revelando-se como arqueiros montados que surgiam repentinamente
da escuridão e lançavam as suas flechas contra os flancos desprotegidos dos soldados romanos, os direitos. Mais quatro homens foram atingidos e caíram pelo solo
e um outro esforçava-se para se manter de pé enquanto tentava arrancar a flecha que lhe tinha trespassado uma perna e ainda se tinha cravado noutra. Os partos fizeram
as montadas mudar de direcção e desapareceram de repente, deixando atrás de si surpresa e terror nas mentes dos auxiliares.
Quase de imediato ouviu-se um grito na esquerda, sinal de nova vaga de ataque inimiga.
- Mexam-se! - Gritou Castor desesperado, ao ouvir ainda mais cavalos a rodear a coorte. - Corram, homens!
As linhas ordenadas da formação dissolveram-se numa massa de homens que desatou a correr para a entrada do fortim, com Castor entre eles. Mas depararam-se com os
portões a cerrarem-se e dezenas de rostos a surgirem de imediato sobre a paliçada. Arcos foram assestados e de novo se escutou o som das flechas a zunir pelo ar,
fazendo tombar um bom número de auxiliares, que se tinham detido em frente ao fortim, sem ter para ond ir. Não houve qualquer alívio na chuva de setas que continuou
a bater contra os escudos ou a penetrar na carne dos homens com sons húmidos arrepiantes. Gritos surgiam de todos os lados e, com um aperto na boca do estômago,
Castor apercebeu-se de que os seus homens seriam rapidament aniquilados, a não ser que fizesse alguma coisa.
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- A mim! - Gritou. - Juntem-se aqui!
Um punhado de soldados escutou-o, e apressou-se a reunir em torno do centurião e do estandarte da coorte. Outros homens se lhes juntaram, arrebanhados de passagem
por Sétimo enquanto este se dirigia para junto do comandante. Por fim juntaram-se cerca de cinquenta homens num círculo apertado, com os escudos levantados, e Castor
deu ordens para recuarem ao longo da estrada. Foram seguindo lentamente pelo caminho nas trevas, tentando ignorar os gritos dos camaradas feridos que lhes suplicavam
que não os abandonassem em poder dos partos. Castor endureceu o coração. Nada podia ser feito por eles. O único abrigo possível para os sobreviventes era o forte
semi-construído ao cimo da falésia. Se lá conseguissem chegar, o que restava da coorte podia tentar de alguma forma resistir. A verdade era que a coorte estava arrumada,
mas ao menos podiam tentar levar consigo o maior número de partos que conseguissem.
O pequeno grupo conseguiu chegar à base da falésia antes que o inimigo lhe adivinhasse as intenções e se lançasse na perseguição. Da escuridão irromperam cavaleiros
a lançar as suas setas; porém, depressa mudaram de táctica ao compreender que já não havia necessidade de atacar e fugir, pelo que podiam deter os cavalos e disparar
calmamente e com melhor pontaria. Enquanto seguia pela estrada, a coorte apresentava um alvo reduzido aos inimigos, e a retaguarda da pequena coluna era protegida
por uma sólida muralha de escudos enquanto progredia a passo lento para a construção no planalto. Os partos seguiram-nos sem grande pressa, mantendo-se à distância
e disparando os arcos sempre que adivinhavam uma brecha na parede de escudos. Quando compreenderam que era inútil tentar trespassar os escudos, começaram a apontar
para as pernas desprotegidas dos auxiliares, obrigando-os a agachar-se e tornando ainda mais lento o progresso para o forte. Antes de chegarem ao ponto em que a
estrada voltava a tornar-se plana e o acesso ao forte se aproximava, cinco homens foram assim feridos. Ali, a maior altura sobre o rio, o vento ainda era forte,
mas ao menos estavam livres das nuvens de poeira e conseguiam ver toda a paisagem circundante.
Deixando Sétimo a comandar a retaguarda, Castor levou o resto da coluna através das fundações dos portões. As muralhas eram demasiado baixas para conseguir conter
os partos, e o único local onde os auxiliares poderiam tentar montar uma defesa efectiva era na torre de vigia, quase terminada, e que ficava no canto mais longínquo
do forte, à beira da falésia.
- Por aqui! - Bradou. - Sigam-me!
Apressaram-se por entre o labirinto de pedras alinhadas que marcavam os locais onde seriam erigidos os edifícios e se desenhariam as alamedas
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planeadas para o forte. Mais à frente já se via a silhueta da grande torre desenhada contra o céu repleto de estrelas. Assim que alcançaram a estrutura de madeira,
Castor deixou-se ficar à entrada e fez sinal aos homens para a ocuparem. Eram pouco mais de vinte, e o centurião compreendeu que precisariam de muita sorte para
sobreviverem até à alvorada. Depois de entrar deu ordens aos homens para guarnecerem a plataforma no cimo da torre e as aberturas nas paredes no piso acima da entrada.
Manteve quatro soldados junto a si para defender a porta enquanto aguardavam pela chegada de Sétimo e da retaguarda da coluna. Pouco depois avistaram um punhado
de homens que corria pela abertura no que seria a frente do forte e se dirigiam para a torre. Perseguia-os uma assustadora vaga de guerreiros inimigos que lançava
já gritos de vitória.
Castor levou a mão à boca e gritou.
- Estão mesmo em cima de vocês! Corram!
Os homens eram retardados pelas pesadas armaduras e estavam cansados do dia de trabalho extenuante, pelo que não conseguiam ser muito rápidos. Ao atravessar o emaranhado
de pedras, um deles tropeçou e caiu no solo com um grito de pânico, mas nem um dos seus camaradas fez sequer uma pausa para o ajudar, e depressa foi engolido pela
chusma de partos que convergia para a torre de vigia. Enquanto passavam por ele golpeavam-no e cortavam-no com as lâminas recurvas que usavam. A morte do auxiliar
deu ainda assim tempo suficiente aos outros para chegarem à torre e nela entrarem em completo desalinho; uma vez no interior, pousaram os escudos e tentaram recuperar
o fôlego. Sétimo lambeu os lábios enquanto se obrigava a colocar-se em sentido e a fazer um relatório ao comandante enquanto o peito lhe arfava.
- Perdi dois homens, senhor... Um ainda na estrada, e o outro agora mesmo.
- Eu vi. - Comentou Castor.
- E agora?
- Aguentamo-los enquanto pudermos.
- E depois?
Castor soltou uma gargalhada sem humor.
- Depois, morremos. Mas não antes de despacharmos uns quarenta a nossa frente, para nos fazerem a guarda de honra no caminho para Hades.
Sétimo obrigou-se a sorrir, para dar alento aos homens que observavam a conversa. Depois espreitou por cima do ombro do superior, e a expressão do seu rosto ganhou
um tom sombrio.
- Senhor, aí vêm eles.
Castor virou-se e levantou o escudo.
- Temos que os deter aqui à entrada! Formem!
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Sétimo colocou-se ao seu lado, e os outros quatro homens posicionaram as lanças de forma a poderem usá-las sobre as cabeças dos oficiais. A massa escura dos partos
correu pelo solo irregular na ânsia de se lançar sobre os odiados romanos, mas os escudos bloqueavam a estreita porta. Castor preparou-se para o impacto, e imediatamente
sentiu o escudo recuar na sua direcção quando a massa dos atacantes o alcançou. Cravou as botas cardadas na terra e empurrou, pondo todo o seu peso por trás da bossa
do escudo. Ouviu um gemido de dor quando atingiu alguém. A haste de uma lança manobrada por um dos auxiliares passou-lhe sobre o ombro, e um grito de agonia depressa
se fez ouvir do outro lado. Quando a lança foi recuada, pingos de um líquido quente caíram-lhe em cima da vista. Limpou-os rapidamente, mesmo a tempo de evitar um
golpe de espada que lhe atingiu a orla do escudo. Ao seu lado, Sétimo lançava o escudo contra os atacantes que se acotovelavam na passagem estreita e usava a espada
contra qualquer nesga de pele desprotegida que lhe passasse ao alcance.
Enquanto os dois oficiais resistissem e tivessem um apoio efectivo dos homens por trás deles, preparados para ferir com as suas lanças quem quer que avançasse demasiado,
o inimigo não conseguiria penetrar na torre. Por momentos, Castor começou a sentir alguma esperança, já que era a primeira vez que algo corria bem naquele desgraçado
dia.
Demasiado tarde, reparou num movimento rente ao solo, quando um dos partos, mesmo à beira da entrada da torre, se ajoelhou e varreu o ar com a espada, fazendo-a
passar por baixo do escudo do centurião. O gume da lâmina apanhou-o acima do tornozelo, e cortou o cabedal da bota, a pele, a carne e os tendões até chocar contra
o osso. A dor foi instantânea, como se o tivessem atingido com um ferro em brasa. Cambaleou para trás, com um grito de dor e raiva.
Sétimo deitou-lhe uma olhadela rápida, vendo-o recuar e cair a um lado da entrada.
- Avance o seguinte! Depressa!
O auxiliar mais próximo avançou para completar a primeira linha de defesa, mantendo-se agachado para proteger as pernas. Entretanto, os outros soldados usaram as
lanças, golpeando sem cessar para obrigar o inimigo a recuar. De súbito, ouviu-se um grito de aviso no exterior, enquanto grandes pedregulhos desabavam por entre
a escuridão. Castor apoiou-se nas estruturas de madeira para espreitar e tentar perceber o que se passava, no preciso momento em que um pesado bloco se abatia sobre
os partos, esmagando um homem contra o solo. Mais blocos e pedras soltas caíram sobre os atacantes, derrubando vários antes que recuperassem da surpresa e se retirassem
para uma distância segura.
- Porra, isto assim sabe bem. - Proclamou Sétimo, enquanto admirava
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a cena. - É para verem se gostam de ser atacados sem poderem ripostar, Cabrões.
À medida que o inimigo saía do seu alcance, a barragem de pedras começou a diminuir de intensidade, e os sons do combate deram lugar aos assobios e provocações dos
auxiliares no cimo da torre, e aos gemidos e grito dos feridos junto à entrada. Sétimo deu uma última espreitadela ao exterior antes de fazer sinal a um dos homens
para tomar o seu lugar. Apoiou o escudo contra a parede e ajoelhou-se para examinar a ferida de Castor, esforçando a vista à escassa luz que vinha da entrada para
perceber onde ficava e que aspecto tinha. Os dedos apalparam o rasgão e perceberam a presença de estilhaços de osso no meio da carne macerada. Castor inspirou ruidosa
mente e cerrou os dentes enquanto lutava contra o impulso de gritar de dor.
Sétimo olhou para ele.
- Lamento informá-lo que os seus dias de combates terminaram.
- Diz-me alguma coisa que eu ainda não saiba, está bem? - Resmungou Castor.
Sétimo sorriu brevemente.
- Tenho que estancar a hemorragia. Senhor, o seu lenço.
Castor desapertou o lenço do pescoço, abriu-o e passou-o ao adjunto. Sétimo passou uma ponta por trás da barriga da perna do outro homem e avisou.
- Isto vai doer. Pronto?
- Despacha lá isso.
Sétimo enrolou o pano à volta da perna, cobrindo a ferida, e depois amarrou-o à volta do tornozelo. A dor excruciante que sentiu não tinha paralelo na longa carreira
militar de Castor, e apesar do frio da noite o centurião suava abundantemente quando Sétimo deu por concluída a tarefa e se voltou a colocar de pé.
- Quando chegar o momento, vais ter que me ajudar a pôr-me de pé e a apoiar-me ali na escada.
Sétimo assentiu.
- Tratarei disso, senhor.
Os oficiais encararam-se, solenes, ao compreenderem o real significado daquelas palavras. Uma vez aceite o destino inevitável, Castor sentiu que lhe saía de cima
dos ombros o peso da ansiedade pelo destino do seu comando. Apesar da dor que o atormentava, o coração estava agora pleno de calma resignada e de determinação para
morrer lutando. Sétimo olhou para a porta, e viu que o inimigo se tinha juntado em magotes espalhados pelo forte, fora do alcance das pedras e de outros projécteis
que os homens no cimo da torre tinham atirado.
- O que farão eles agora? - Tentou adivinhar. - Matar-nos à fome?
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Castor abanou a cabeça. Servia há tempo mais que suficiente nas legiões do oriente para conhecer a natureza do velho inimigo de Roma.
- Não, não vão ficar à espera. Não há honra nenhuma nisso.
- Então?
Castor encolheu os ombros.
- Depressa o descobriremos.
O silêncio impôs-se, até que Sétimo virou costas à entrada.
- Bom, afinal o que representa isto? Um ataque ocasional? O primeiro passo numa nova campanha contra Roma?
- E isso interessa?
- Gostava de saber a razão da minha morte.
Castor mordeu os lábios e pesou a situação.
- Pode ser um simples ataque casual. Podem ter visto a construção deste forte como um gesto provocatório. Mas também pode ser que estejam a abrir caminho para o
exército parto atravessar o Eufrates. Pode muito bem ser o primeiro passo, sim, para assumirem o controlo de Palmira.
Os pensamentos de Castor foram interrompidos por um grito vindo do exterior.
- Romanos! Oiçam-me! - Clamou uma voz em grego. - A Pártia exige-vos que deponham as armas e se rendam!
- O caralho! - Ripostou Sétimo.
O homem lá fora não respondeu à provocação, e prosseguiu em tom sereno.
- O meu comandante pede a vossa rendição. Se depuserem as armas, serão poupados. Tem a sua palavra.
- Poupados? - Repetiu Castor em surdina, antes de gritar uma resposta. - Poupar-nos-ão as vidas e permitirão que nos retiremos para Palmira?
Houve uma curta pausa, e a voz prosseguiu.
- Serão poupados, sim, mas serão nossos prisioneiros.
- Escravos, isso sim. - Rosnou Sétimo, cuspindo no chão. - Não, nunca serei um maldito escravo. - Virou-se para Castor. - Senhor? O que vamos fazer?
- Diz-lhe que pode ir andando para Hades.
Sétimo sorriu amargamente, os dentes a rebrilhar ao luar. Virou-se para a entrada e gritou a resposta romana.
- Se querem as nossas armas, venham cá buscá-las!
Castor sorriu.
- Pouco original, mas soou bem.
Os oficiais trocaram um sorriso, e os outros homens imitaram-nos, até que a voz se voltou a fazer ouvir pela última vez.
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- Assim seja. este local será então o vosso túmulo. Ou melhor... A vossa pira funerária!
Um brilho tímido tinha surgido a alguma distância no recinto do estaleiro, e Sétimo conseguiu distinguir a pequena chama que surgiu e que realçava a silhueta do
homem que a acendera. Bem alimentada, depressa se transformou numa fogueira à qual acorreram os soldados inimigos para acender tochas improvisadas com os arbustos
que por ali cresciam. Foram-se aproximando da torre e, perante o olhar inquieto de Sétimo, a primeira flecha incendiária, com os seus trapos embebidos em óleos combustíveis,
foi chegada a uma tocha e pegou fogo. De imediato, o arqueiro assestou o arco e disparou na direcção da torre. A chama percorreu a escuridão e cravou-se nos andaimes
de madeira, fazendo saltar fagulhas. Foi imediatamente seguida por outras que começaram a cravejar as estruturas de madeira e a contribuir para que o incêndio se
espalhasse rapidamente.
- Merda! - Sétimo agarrou firmemente no punho da espada. - Querem assar-nos!
Castor sabia que não havia pinga de água na torre, pelo que abanou a cabeça.
- Não podemos fazer nada. Chama os homens que estão lá em cima.
- Sim, senhor.
Pouco depois, quando os últimos dos sobreviventes se juntaram na pequena casa da guarda na base da torre, Castor pôs-se a custo de pé e encostou-se à parede, para
lhes falar.
- Rapazes, estamos no fim da linha. Ou ficamos aqui e morremos queimados, ou saímos e tentamos levar connosco alguns daqueles filhos de uma cabra. É isto. Portanto,
quando eu der a ordem, quero que sigam o centurião Sétimo. Mantenham-se perto uns dos outros e ataquem-nos sem medo. Percebido?
Alguns acenaram em concordância, e outros conseguiram mesmo emitir algumas palavras de assentimento. Sétimo interveio.
- Senhor, e o que fará? Não pode acompanhar-nos.
- Pois não. Aqui ficarei, com o nosso estandarte. Não permitirei que o tomem. - Castor estendeu a mão na direcção do porta-estandarte da coorte. - Dá-mo.
O homem hesitou uns instantes, mas acabou por avançar e entregar o símbolo ao comandante.
- Senhor, cuide bem dele.
Castor assentiu, segurando a haste e usando-a como suporte para o peso que não podia pôr na perna ferida. O ar em redor estava já quente e cheio do crepitar das
chamas que iam devorando as madeiras da torre, cujo
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interior se via agora banhado numa luz alaranjada. Dirigiu-se a custo para a escada ao canto da estrutura.
- Quando chegar lá acima, darei a ordem de ataque. Rapazes, espero que façam valer cada golpe de espada e cada investida de lança.
- Fá-lo-emos, senhor. - Retorquiu Sétimo com toda a solenidade.
Castor aceitou a promessa, e apertou rapidamente o braço do outro
centurião; então, cerrando os dentes, começou a subir as escadas com enorme esforço enquanto o ar continuava a aquecer e se viam já rolos de fumo à luz alaranjada
que se esgueirava pelas janelas e seteiras. Quando chegou ao cimo, o lado da torre virado para o inimigo já ardia de alto a baixo. Conseguia ver dezenas de partos
à espera e a apreciar tranquilamente o trabalho das chamas. Respirou fundo.
- Centurião Sétimo! Agora! Ao ataque!
Ouviu-se um coro de gritos de guerra na base da torre e Castor viu os partos erguerem os arcos, concentrando o seu poder de fogo, e imediatamente encherem o espaço
vazio de traços escuros a voar. Espreitando sobre o parapeito, viu como a pequena formação de auxiliares se lançava num assalto heróico mas condenado ao malogro.
Os ombros dos homens estavam encolhidos por trás dos escudos enquanto corriam na direcção do inimigo, atrás de Sétimo, que berrava insultos aos partos. Os arqueiros
aguardaram-nos a pé firme, disparando os seus arcos tão depressa quanto lhes era possível contra o alvo em movimento. Os que ainda tinham flechas incendiárias usaram-nas,
e viram-se verdadeiros arcos de fogo a dirigir-se contra os auxiliares. Muitas embateram nos escudos e lá se cravaram, não impedindo o progresso dos seus possuidores.
Foi então que Castor viu Sétimo deter-se de súbito, ficar muito quieto, deixar cair a espada e agarrar com a mão a haste de uma flecha que lhe trespassara o pescoço,
ainda os ecos dos seus gritos soavam no forte que nunca seria concluído. Tombou então de joelhos, e caiu de borco sobre o solo, gemendo enquanto sangrava até à morte.
Os auxiliares reuniram-se em torno do seu corpo e ergueram os escudos. Castor observou, frustrado e impotente. Todo o ímpeto da carga tinha morrido com Sétimo, e
agora os partos não enfrentavam qualquer problema, enquanto os iam abatendo um a um, procurando brechas na barreira de escudos e alcançando com os seus projécteis
assassinos a carne dos que perdiam a protecção. Não esperou para ver o inevitável fim. Apoiou-se na haste do estandarte e atravessou a plataforma até ao lado que
dava para o rio, debruçado sobre a falésia. Lá em baixo a neblina tinha desaparecido, e
o luar fazia reluzir a corrente de água sobre os rochedos. Levantou os olhos para o céu, contemplou ainda uma vez a serena profundeza do firmamento e encheu os pulmões
do ar fresco da noite.
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No outro lado da torre, um pedaço de madeira em chamas desprendeu-se e caiu, relembrando-lhe a situação em que se encontrava; não havia tempo a perder se queria
evitar que o estandarte caísse nas mãos do inimigo. Via as hostes partas através da cortina tremeluzente das chamas e do fumo que engrossava a cada instante, e num
repente percebeu que aquilo era apenas o início. Em pouco tempo uma maré de fogo e destruição engoliria o deserto e ameaçaria as províncias romanas do oriente do
Império. Castor agarrou a haste do estandarte com ambas as mãos e avançou aos pulos até ao rebordo da plataforma. Respirou fundo uma última vez, cerrou os dentes
e lançou-se no vazio.
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Isto é que é vida. - Macro sorriu enquanto se recostava contra a parede da Ânfora Repleta, o seu habitual bebedouro, e esticava as pernas preguiçosamente. - Finalmente,
um posto na Síria. Cato, sabes que mais?
- O que foi? - O companheiro agitou-se e entreabriu os olhos.
- Isto é mesmo tão bom como eu alguma vez sonhei. - Cerrou os olhos e deixou que o calor do sol se espalhasse pelo seu rosto curtido. - Bom vinho, mulheres a preços
decentes e com a experiência adequada, e este maravilhoso tempo quente e seco. E até têm uma biblioteca aceitável.
- Nunca pensei em ouvi-lo manifestar algum interesse em livros. - Comentou Cato. Nos meses recentes, Macro tinha saciado quase todos os seus desejos mundanos, e
acabara por se dedicar à leitura. Era verdade que a sua preferência ia para textos eróticos e comédias de baixo nível, mas pelo menos lia alguma coisa, e talvez
isso acabasse por o levar a material mais estimulante em termos intelectuais; era essa pelo menos a esperança do jovem.
Macro sorriu.
- Sim, por agora estamos aqui muito bem. Clima quente, mulheres quentes. Digo-te, depois daquela campanha na Britânia, nunca mais quero ver um cabrão de um celta
na vida.
- Aí dou-lhe toda a razão. - Murmurou o centurião Cato, apoiando com ênfase a ideia do amigo enquanto recordava o frio, a humidade e os pântanos cobertos de nevoeiro
nos quais ele, Macro e os homens da Segunda Legião tinham combatido para acrescentar a ilha às possessões imperiais. - Ainda assim, no Verão não era muito mau.
- Verão? - Macro franziu o sobrolho. - Ah, estás a referir-te àquela meia-dúzia de dias que tínhamos entre o Inverno e o Outono.
- Deixe estar. Uns mesitos de campanha a sério no deserto e há-de recordar esses húmidos dias da Britânia como se fossem o Elísio.
- Pode ser que sim. - Considerou Macro, enquanto rememorava a colocação anterior, na fronteira da Judeia, no meio de lado nenhum. Abanou a cabeça, como se quisesse
sacudir a lembrança. - Mas por agora tenho uma coorte para comandar, o salário de um prefeito e a perspectiva
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de um período de descanso decente antes de voltar a pôr o pescoço em risco pelo Imperador, pelo Senado e pelo Povo de Roma. - Entoou o lema oficial com desdém. -
Ou seja, por aquele miserável e retorcido sacana do Narciso.
- Narciso... - Ao repetir o nome do secretário particular do Imperador Cláudio, Cato sentou-se e virou-se para o amigo. Baixou o tom de voz. - Ainda não tivemos
resposta. Ele já deve ter lido o nosso relatório, com certeza.
- Sim. - Macro encolheu os ombros. - E então?
- Então, o que acha que vai ele fazer quanto ao governador?
- O Cássio Longino? Oh, esse safa-se. Cobriu perfeitamente todos os rastos que a ele conduziam. Não há qualquer prova sólida que o relacione com traições, e podes
ter a certeza que, agora que sabe que está a ser vigiado, vai fazer tudo e mais alguma coisa para se mostrar o mais leal dos servidores do Imperador.
Cato olhou de relance para os clientes sentados na mesa mais próxima, e inclinou-se para Macro.
- Dado que somos nós os tipos que o Narciso enviou para manter o governador debaixo de olho, tenho bastantes dúvidas de que ele derramasse uma lágrima se por acaso
nós falecêssemos. Temos que ter muito cuidado.
- Ele não se atreveria a mandar matar-nos. - Macro fungou. - Isso seria demasiado suspeito. Descontrai-te, Cato, está tudo fino. - Esticou os braços, fez estalar
os ombros e pôs as mãos por trás da nuca enquanto soltava um bocejo satisfeito.
Cato contemplou-o por momentos, desejando que o amigo levasse um pouco mais a sério a ameaça representada por Cássio Longino. Poucos meses antes, o governador da
Síria tinha feito um pedido expresso para que lhe fossem atribuídas mais três legiões, de forma a combater a crescente ameaça de uma revolta generalizada na Judeia.
Se tivesse uma força dessas dimensões sob o seu comando, Longino ter-se-ia convertido numa séria ameaça ao Imperador. Cato estava plenamente convencido de que o
homem se tinha estado a preparar para lançar uma tentativa de chegar ao trono imperial. Graças aos esforços de Macro e Cato, a revolta tinha sido esmagada antes
de se espalhar por toda a província, e Longino tinha-se visto privado das razões para obter as novas legiões. Nenhum homem com o poder e as ambições do governador
esqueceria ou perdoaria quem quer que as tivesse minado, pelo que Cato vivera os últimos meses numa espera ansiosa por uma vingança que sabia que havia de surgir.
Só que agora o governador enfrentava uma real ameaça concretizada no crescente poder da Pártia, e para confrontar tão perigoso inimigo só dispunha das Terceira,
Sexta e Décima Legiões, com as suas coortes complementares de tropas
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auxiliares. Se a guerra se declarasse nas províncias orientais, todos os homens disponíveis seriam necessários para enfrentar os partos. Cato suspirou. Era verdadeiramente
irónico que esta nova ameaça fosse bem-vinda. Pelo menos afastaria por algum tempo as ideias de vingança do pensamento do governador. Cato acabou a sua bebida e
recostou-se contra a parede, deixando o olhar espraiar-se pela cidade.
O Sol estava já próximo do horizonte, e os telhados e cúpulas de Antióquia refulgiam sob os raios rasantes do entardecer. O centro da cidade, como acontecia com
a maior parte das que tinham caído no domínio de Roma, e antes disso no dos herdeiros gregos das conquistas de Alexandre Magno, reunia os edifícios públicos que
se podiam encontrar por todo o Império. Para lá das altivas colunas dos templos, e dos pórticos, a cidade era constituída por bairros de belas casas senhoriais e
outros, menos atractivos, onde só se viam edifícios sujos e remendados, habitados por gente sem posses. Nas ruas dessas áreas o ar tinha a pungência da humanidade
a viver num espaço demasiado pequeno. Era aí que a maior parte dos soldados de folga passava o seu tempo. Mas Cato e Macro preferiam o quase conforto da Ânfora Repleta,
cuja posição relativamente elevada lhes permitia gozar a mais pequena brisa que soprasse sobre a cidade.
Tinham passado quase toda a tarde a beber, e Cato sentia-se a deslizar para o abraço acolhedor do sono despreocupado. Desde há cerca de um mês que treinavam incessantemente
a coorte auxiliar que lhes fora entregue, a Segunda Ilírica, colocada no imenso campo militar situado junto às muralhas de Antioquia. Era o primeiro comando de Macro
na patente de prefeito, e ele estava determinado a fazer com que os seus homens se apresentassem, marchassem e combatessem melhor do que qualquer outra coorte do
exército do oriente do Império. A tarefa fora dificultada pelo facto de cerca de um terço dos homens serem recrutas, substitutos para as baixas sofridas pela coorte
no Forte Bushir. O exército tinha sido colocado de prevenção, e por isso todos os comandantes de coortes vasculhavam a região em busca de homens que lhes permitissem
completar os efectivos.
Enquanto Cato se tinha encarregado do treino básico e das encomendas de material e abastecimentos, Macro tinha percorrido a costa incessantemente, de Selêucia Piéria
a Cesareia, sempre em busca de recrutas. Tinha levado consigo dez dos mais duros soldados da coorte, e o seu estandarte. Chegado a cada povoação ou porto, instalava
uma banca junto ao fórum e fazia um discurso de recrutamento dirigido a todos os homens ociosos ou sedentos de aventura que era possível encontrar em qualquer praça
por todo o Império. Na voz grossa que usava na parada prometia-lhes um prémio de alistamento, um salário decente, refeições regulares, uma vida de aventura e, se
sobrevivessem, a cidadania romana quando fossem desmobilizados
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depois de cumprida a pequena formalidade que consistia em vinte e cinco anos de serviço. Além disso, com alguns dias de treino ganhariam a aparência dura e viril
dos soldados que o ladeavam. Quando terminava, havia sempre um grupo de esperançosos a aproximar-se da banca, e Macro podia escolher os de aparência mais sã, recusando
os fracos, os idiotas e os mais idosos. Nas primeiras povoações teve de facto direito a essa escolha, mas ao longo das viagens descobriu que outros oficiais lhe
seguiam o exemplo e já tinham passado pelas povoações em que se encontrava, levando os melhores homens. Ainda assim, quando regressou para junto da coorte, trazia
gente suficiente para completar o efectivo da coorte e dispunha do tempo necessário para os treinar antes que começasse alguma campanha militar.
Macro tinha passado os longos meses de Inverno a treinar os novos recrutas, enquanto Cato conduzia os veteranos da coorte em longas marchas e na prática das armas.
Enquanto a Segunda Ilírica treinava com afinco, havia uma corrente incessante de outras unidades a chegar a Antióquia, engrossando o acampamento que crescia junto
ao forte ocupado pela Décima Legião. Com todos estes soldados veio o habitual séquito de gente que vivia a explorá-los, e as avenidas e mercados de Antióquia encheram-se
com os gritos dos vendedores de rua. Todas as estalagens estavam repletas de soldados, e havia sempre filas de homens à espera junto aos bordéis de cores vivas que
fediam a incenso barato e a suor.
Enquanto o Sol se punha sobre a cidade, o olhar de Cato abrangia tudo isto sem tentar julgar ninguém. Embora pouco tivesse passado dos vinte anos de idade, já estava
na legião há quatro anos e meio, e tinha-se acostumado aos costumes dos soldados e aos efeitos da sua presença nas cidades onde se reunia um exército. Apesar de
um começo pouco prometedor, tinha acabado por se revelar um excelente soldado, como ele próprio admitia. Inteligência rápida e coragem tinham jogado o seu papel
na sua transformação de produto mimado do palácio imperial em comandante de homens. A sorte também tinha tido o seu papel, claro. Tinha tido a boa fortuna de ser
colocado na centúria de Macro quando se juntara à Segunda Legião, reflectiu. Se o centurião Macro não tivesse reconhecido algum potencial naquele miúdo magricela
e nervoso, recém-chegado de Roma, e não lhe tivesse dado alguma protecção, não tinha dúvidas de que pouco tempo teria sobrevivido na fronteira da Germânia, ou na
campanha seguinte, na Britânia. Depois disso, tinham ambos deixado a Segunda Legião e passado um curto período na marinha, antes de serem enviados para o oriente,
para a posição que ocupavam agora. Na campanha que se avizinhava combateriam integrados num exército, e Cato sentia algum alívio por ver retiradas dos seus ombros
as responsabilidades de um comando independente; ao
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mesmo tempo, acumulavam-se as preocupações perante a muito concreta perspectiva de uma nova guerra a travar em breve.
Muito melhores soldados do que ele tinham sido abatidos por uma flecha, um golpe de espada ou um impacto de metralha que não tinham conseguido evitar. Até ali tinha
sido poupado, e esperava que a sua boa estrela continuasse se a guerra contra a Pártia se viesse a tornar realidade. Tinha combatido os partos ocasionalmente no
ano anterior, e já era conhecedor da sua perícia com o arco, e da velocidade com que montavam um ataque e voltavam a desaparecer antes que os romanos conseguissem
responder eficazmente. Era um estilo de combate que constituiria um duro teste aos homens das legiões, e ainda mais aos auxiliares da Segunda coorte Ilírica.
Mas talvez isso não fosse justo, considerou. De facto, os homens da sua coorte até talvez tivessem maiores possibilidades de sobreviver a um combate com os partos
do que os legionários. Tinham um equipamento mais leve, e um quarto do efectivo da coorte era constituído por cavalaria, pelo que os partos teriam que tomar maiores
cautelas ao atacar a coorte do que quando fustigassem a lenta infantaria pesada das legiões. Cássio Longino teria que avançar contra os partos com toda a precaução,
isto se quisesse evitar a mesma sorte de Marco Crasso e das suas seis legiões, quase cem anos atrás. Crasso tinha avançado pelo deserto e, depois de alguns dias
a ser flagelado pelo inimigo sob o implacável calor do sol, todo o exército e o seu general tinham sido chacinados.
O sol desapareceu finalmente por trás do horizonte e ouviu-se o distante som das trombetas no campo militar, anunciando o começo do primeiro turno de sentinelas.
Macro remexeu-se e desencostou-se da parede.
- Será melhor voltarmos para o acampamento. Amanhã vou levar a rapaziada nova até ao deserto. Será a primeira vez para eles. Vai ser engraçado ver como é que se
portam.
- É melhor não os rebentar logo à primeira. - Sugeriu Cato. - Não nos podemos dar ao luxo de sofrer baixas antes mesmo do começo da campanha.
- Não os rebentar? - Irritou-se Macro. - Foda-se, então não. Se não forem capazes de se aguentar agora, então quando a guerra começar a sério nem vale a pena pensar
neles.
Cato encolheu os ombros.
- Na minha opinião, precisamos de todos os homens que pudermos ter.
- Dos homens, sim. Dos pesos-mortos, não.
Cato manteve-se calado por momentos.
- Macro, isto não é a Segunda Legião. Não podemos esperar demasiado do pessoal de uma coorte auxiliar.
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- Achas mesmo? - A expressão de Macro endureceu. - A Segunda Ilírica não é uma coorte qualquer. É a minha coorte. E se eu quiser que os seus homens marchem, lutem
e morram como se fossem legionários, porra, hão-de fazê-lo. Entendido?
Cato assentiu.
- E tu farás a tua parte para garantir que isso aconteça.
As costas do jovem endireitaram-se.
- Evidentemente, senhor. Alguma vez o desiludi?
Encararam-se durante um curto momento de tensão, até que Macro
soltou uma súbita gargalhada e deu uma potente pancada no ombro do amigo.
- Ainda não! Caraças, miúdo, tens uns tomates de ferro sólido. Quem me dera que o resto dos homens estivesse à tua altura.
- Também a mim. - Retorquiu Cato, em tom neutro.
Macro levantou-se, esfregando as nádegas que, depois de algumas horas assentes na rija madeira do banco da estalagem, estavam dormentes. Pegou na sua vareta de centurião.
- Vamos andando.
Começaram a atravessar o fórum que já se enchia com os pregões de bordéis e vendedores de bugigangas, e com os primeiros dos soldados que tinham entrado de folga
naquela noite. Os recrutas, reconhecíveis pelas faces imberbes, juntavam-se em magotes e dirigiam-se aos bares mais próximos, onde seriam muito provavelmente esfolados
por aldrabões experientes e vendilhões que depressa os reconheceriam e usariam todo um reportório de truques e negociatas para lhes sacar umas moedas. Cato ainda
sentiu um pouco de pena pelos recrutas, mas reconheceu que só a experiência lhes ensinaria aquilo que precisavam de saber. Um crânio dorido e umas algibeiras vazias
seriam a melhor forma de garantir que para a próxima não se deixariam ir em cantigas... se sobrevivessem para as escutar, claro.
Como era habitual, havia uma clara divisão entre os homens das legiões e os das coortes auxiliares. Os legionários recebiam muito melhor e geralmente olhavam os
soldados do Império que não possuíam a cidadania romana com algum desdém profissional - um menosprezo que Cato compreendia, e que Macro aprovava sem reservas. Estes
sentimentos eram evidentes mesmo para além do campo militar, e nas ruas de Antióquia os homens das coortes mantinham-se por norma a uma distância respeitosa dos
legionários. Aparentemente, porém, nem todos seguiam esse princípio. Quando Cato e Macro viraram para uma das ruas que saíam do fórum ouviram uma exaltada troca
de argumentos a curta distância à sua frente. Sob o brilho de uma grande lamparina de cobre que se projectava da parede à entrada de um bar tinha-se reunido uma
pequena multidão, em torno
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de dois homens que tinham saído para a rua e agora rolavam pela sarjeta trocando murros e pontapés.
- Há aqui chatice. - Resmungou Macro.
- Só por esta vez, que tal darmos a volta?
Macro observou a cena enquanto se aproximavam, e encolheu os ombros.
- Não vejo razão para nos envolvermos. Eles que resolvam a coisa entre eles.
Nesse preciso momento algo faiscou na mão de um dos homens envolvidos na rixa, e alguém gritou.
- Ele tem uma faca!
- Merda. - Lamentou Macro. - Agora temos mesmo que nos meter ao barulho. Anda!
Estugou o passo e afastou à bruta alguns dos homens que tinham saído do bar para ver o que se passava.
- Ei! - Protestou um tipo maciço, de túnica vermelha. - Vê lá por onde andas!
- Cautela com a língua! - Macro ergueu a vareta de forma bem visível para o interlocutor e para todos os que os rodeavam, e abriu caminho por entre a turba até junto
dos homens que lutavam. - Vocês os dois, parem imediatamente. É uma ordem!
Depois de uma troca final de golpes ouviu-se um grunhido explosivo, e os homens separaram-se. Um deles, um tipo magro e de aspecto nervoso, que envergava uma túnica
de legionário, movia-se com a agilidade de um gato e assumiu imediatamente uma posição semi-agachada, preparado para prosseguir a contenda. Macro impôs a sua presença,
brandindo a vareta.
- Já disse que acabou.
Foi então que Cato reparou na diminuta lâmina que o homem empunhava. Já não brilhava, porque um líquido escuro a cobria e escorria da ponta. No chão, o adversário
tentava soerguer-se sobre um cotovelo enquanto com a outra mão apertava o flanco. Arquejou e a face contorceu-se em agonia.
- Foda-se... Caralho, isto dói... Filho da puta, acertaste-me.
Encarou o outro com ódio antes de gemer de dor e se estatelar no solo
sob a tímida luz da lamparina na parede.
- Eu conheço este. - Disse Cato, baixinho. - É um dos nossos. Caio Menato, é de um dos esquadrões de cavalaria. - Ajoelhou-se junto ao homem e examinou a ferida.
A túnica do auxiliar estava já ensopada com o sangue que jorrava do corte; Cato olhou em volta.
- Afastem-se! - Ordenou aos homens mais próximos. - Dêem-me espaço!
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Tinha deixado a vareta no quarto, e o seu ar juvenil fez com que alguns dos veteranos presentes hesitassem em obedecer à ordem. Mas os homens da Segunda Ilírica,
camaradas de Menato, depressa reconheceram o seu oficial e afastaram-se de imediato. Ao fim de alguns instantes os outros seguiram-lhes o exemplo, e Cato virou-se
de novo para o ferido. O rasgão na túnica era diminuto, mas o sangue não estancava, e o centurião rasgou o tecido para observar melhor o torso do soldado. Os lábios
da ferida faziam lembrar uma boca a fazer beicinho, e à fraca luz da rua o sangue refulgia oleoso enquanto saía às golfadas. Cato colocou uma mão sobre a ferida
e fez pressão enquanto dava ordens aos soldados mais próximos.
- Arranjem uma tábua, uma coisa qualquer para o transportar, depressa! Tu, corre até ao campo, desencanta um médico e leva-o para o hospital. Ele que esteja pronto
para quando nós chegarmos com o ferido. Diz-lhe que o Menato foi apunhalado.
- Sim, senhor! - O auxiliar fez a saudação e virou-se, deitando a correr pelas ruas na direcção dos portões da cidade.
Enquanto Cato voltava a dedicar atenção a Menato, Macro avançou lentamente para o legionário com a faca. O homem tinha recuado para o lado oposto da rua e ainda
se mantinha numa posição agachada, com os olhos arregalados, a apreciar a aproximação do centurião com toda a atenção.
Macro sorriu e esticou a mão.
- Já chega de confusão por hoje, rapaz. Dá-me essa faca, antes que provoques mais estragos.
O legionário abanou a cabeça devagar.
- Sacana de merda, teve o que merecia.
- Tens toda a razão, com certeza. Havemos de tirar a coisa a limpo. Mas agora, passa para cá a faca.
- Não. Depois prendem-me. - A voz do homem tinha uma indisfarçável entoação alcoólica.
- Prendem-te? - Desdenhou Macro. - Esse é o menor dos teus problemas. Larga a faca antes que a coisa se torne mesmo séria para a tua banda.
- Não está a perceber. - O legionário agitou a faca na direcção do homem estendido no solo. - Aquele cabrão fez batota. Aos dados.
- Uma porra é que fez! - Gritou uma voz. - Ganhou-te sem espinhas.
Ouviu-se um coro de assentimento irado, logo seguido por furiosas vozes discordantes.
- SILÊNCIO! - Urrou Macro.
Os homens remeteram-se de imediato ao silêncio. Macro passou o olhar demoradamente sobre todos eles, antes de dar novamente atenção ao que empunhava a arma.
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- Legionário, qual é o teu nome, posto e unidade?
- Marco Metelo Crispo, optio, quarta centúria, segunda coorte, Décima Legião, senhor! - Respondeu o homem de forma automática. Deu mesmo a sensação de tentar colocar-se
em sentido, mas imediatamente o álcool no sangue o fez descair.
- Optio, dá-me essa faca. Isto é uma ordem.
Crispo abanou a cabeça.
- Não vou para a prisão por causa dessa escumalha batoteira.
Macro cerrou os lábios, como se considerasse o assunto, e aquiesceu.
- Muito bem, seja; mas teremos que tratar deste assunto assim que amanhecer. Vou ter que falar com o teu centurião.
Começou a virar-se para se afastar, e Crispo relaxou, baixando a guarda pela primeira vez. De repente algo voou pelo ar, a uma velocidade tal que mal se viu. A vareta
de Macro descreveu um arco veloz enquanto o centurião rodopiava sobre os calcanhares. Ouviu-se o ruído do impacto, alto e agudo, quando a rija vareta atingiu o crânio
do homem, e ele tombou. A faca resvalou pelo solo e parou a alguns metros de distância. Macro avançou sobre Crispo, o braço pronto a desferir novo golpe, mas não
era necessário; o homem estava desacordado. Macro sorriu satisfeito e baixou a vareta.
- Vocês os quatro. - Designou alguns homens da Segunda Ilírica. - Peguem neste monte de merda e levem-no para a nossa casa da guarda. Ele que espere lá enquanto
resolvo esta situação com o comandante dele.
- Alto. - Um homem destacou-se da multidão e confrontou o centurião. Era mais alto uma cabeça e tão largo de ombros como Macro, e à luz alaranjada da iluminação
da rua a face tinha um ar duro e gasto. - Eu conduzirei este homem de volta às instalações da Décima. Nós trataremos de o punir adequadamente.
Macro não recuou, limitando-se a avaliar o adversário.
- Já dei as minhas ordens. Este homem está sob prisão.
- Não; eu levo-o comigo.
Macro sorriu levemente.
- E quem és tu, já agora?
- Sou o centurião da Décima Legião que te está a dizer como é que as coisas se vão passar. - Respondeu o outro com um sorriso similar. - E não um centurião merdoso
de uma coorte auxiliar qualquer. Portanto, se os teus rapazolas me desamparassem a loja...
- O mundo é mesmo pequeno. - Ripostou Macro. - Acontece que também não sou de todo um centuriãozeco de uma coorte qualquer. Por acaso, sou o prefeito da Segunda
Ilírica. Gosto de andar com a minha vareta para lembrar os bons velhos tempos. Tempos em que era centurião na Segunda Legião.
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O outro olhou para Macro durante algum tempo, até que se empertigou e fez a saudação regulamentar.
- Assim está melhor. - Comentou Macro. - Agora, quem és tu afinal?
- Centurião Pórcio Cimber, senhor. Segunda centúria, terceira coorte.
- Ora muito bem, Cimber. Este tipo está sob custódia. Vai ter com o teu legado e explica-lhe a situação. O vosso homem será punido por ter usado uma faca contra
um dos meus.
Macro foi interrompido por um longo gemido emitido por Menato; o ferido remexera-se, fugindo ao cuidado de Cato. O sangue voltou imediatamente a jorrar.
- Porra, onde é que está essa maca? - Gritou Cato, antes de pressionar de novo as mãos contra a ferida e tentar acalmar Menato. - Deixa-te estar quieto.
- Merda... Estou cheio de frio. - Sussurrou Menato, enquanto os olhos se lhe reviravam e as pálpebras se cerravam. - Oh... Merda, merda... Isto dói.
- Aguenta-te, Menato. - Insistiu Cato com firmeza. - Vamos tratar dessa ferida. Vais safar-te.
A multidão de soldados e de civis que se tinha aglomerado continuava a assistir em silêncio ao desenrolar do drama, enquanto Menato gemia e a respiração lhe era
cada vez mais penosa. Começou a tremer violentamente e sofreu um espasmo, cada fibra do corpo rija como rocha num instante e flácida no seguinte, em que se esvaiu
sobre o pavimento, soltando um último e longo suspiro. Cato encostou o ouvido ao peito ensanguentado do homem e afastou-se, retirando a mão da ferida.
- Foi-se.
Por momentos a turba manteve-se em silêncio. Mas logo um dos auxiliares levantou a voz.
- Aquele filho da puta matou-o. Tem que morrer.
Ergueu-se um coro de vozes iradas e contraditórias, e de forma quase automática a multidão separou-se em dois grupos antagónicos, auxiliares e legionários, que trocavam
olhares assassinos.
Cato notou que os punhos se cerravam e que os homens se preparavam para o embate, mas Macro avançou, colocando-se de permeio e erguendo os braços.
- Já chega! Acabou! Nem mais um passo! - Ostentava uma expressão de fúria enquanto olhava alternadamente para os dois lados, quase desafiando os homens a atreverem-se
a confrontá-lo. Depois acenou na direcção do centurião Cimber. - Leva os teus homens para o forte. Já!
- Sim, senhor! - Cimber fez a saudação militar e empurrou bruscamente
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os soldados mais próximos, na direcção dos distantes portões. - Toca a andar, seus trastes! Acabou-se o espectáculo.
Continuou a empurrar e a insultar os irados legionários, afastando-os do bar e do corpo prostrado na rua. Um dos auxiliares lançou-lhes uma provocação à laia de
aviso.
- Não se vêem livres de nós com essa facilidade! Temos contas a ajustar!
- Silêncio! - Bramou Macro de imediato. - Fechem as cloacas! Centurião Cato?
- Sim, senhor? - Cato ergueu-se enquanto limpava as mãos sujas de sangue à túnica.
- Deixa o Cimber ganhar alguma distância, e depois leva os nossos homens para o campo também. Assegura-te que o prisioneiro se mantém de boa saúde.
- E quanto ao Menato?
- Leva-o também. Diz aos enfermeiros que preparem o corpo para o funeral.
Enquanto esperava que os legionários se afastassem o suficiente, Cato aproximou-se do amigo e falou em voz baixa.
- Isto não é nada bom. A última coisa de que precisávamos era de uma rixa de sangue entre os nossos e os tipos da Décima, agora que estamos quase a entrar em campanha.
- Tens toda a razão. - Confirmou Macro, resignado. - E com o nosso homem morto, o futuro do Crispo também não é brilhante.
- O que é que lhe vai acontecer?
- Por anavalhar um camarada? - Macro abanou a cabeça, pesaroso.
- Nem tem espinhas. Vai ser condenado à morte. E duvido muito que o assunto desapareça com a execução.
- Oh?
- Sabes como são os soldados quando se trata de guardar ressentimentos. Já é mau quando é entre tipos da mesma unidade. Mas neste caso vai haver uma longa inimizade
entre a Segunda Ilírica e a Décima, lembra-te do que te digo. - Soltou um profundo suspiro. - E agora vou ter que escrever a porra do relatório para o governador,
e ir falar com ele logo pela manhã. Bom, tenho que me pôr a andar. Dá-me um momento, e depois leva os homens.
- Sim, senhor.
- Até depois, Cato.
Enquanto Macro se afastava, Cato contemplou o cadáver a seus pés. A campanha ainda nem tinha começado e já tinham perdido dois homens. E pior ainda, se o que Macro
dissera se confirmasse, os danos provocados por
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uma rixa de bêbados iam pesar fundo nos corações dos homens das unidades envolvidas. Precisamente quando iam precisar de toda a concentração e solidariedade entre
as tropas para ter alguma possibilidade de derrotar os partos.
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O corpo do auxiliar tinha sido colocado numa padiola antes do alvorecer e transportado até à pira pelos seus camaradas. Esta tinha sido edificada a curta distância
dos portões do campo. A centúria a que pertencera o soldado assassinado tinha montado uma guarda de honra, mas praticamente todos os homens da coorte tinham passado
por lá para lhe prestar homenagem. Macro não deixara de reparar no ar carrancudo e sedento de vingança que os soldados ostentavam, enquanto proferia uma breve oração
por Menato e depois acendia a pira. Os homens contemplaram a forma como as chamas lamberam a madeira ensopada em óleos e se expandiram vigorosamente, enviando para
o céu límpido uma pluma de fagulhas e fumo em remoinhos. Quando a pira começou a ruir, Macro acenou a Cato, para que este desse ordens para o regresso ao acampamento.
Num silêncio pesado, os homens obedeceram prontamente, e seguiram para as suas acomodações.
- Estão longe de estar felizes, parece-me. - Comentou Cato.
- Pois. Será melhor que lhes arranjes alguma coisa para fazer. Mantém-nos ocupados, enquanto eu vou falar com o Longino.
- Como?
- Não faço ideia. - Respondeu Macro, com um traço de irritação na voz. - Tu é que és o inteligente. Inventa qualquer coisa.
Cato olhou assombrado para o amigo, mas manteve-se calado. Sabia que Macro tinha passado a noite a pensar no relatório e a fazer os preparativos para o funeral,
depois de ter passado o dia anterior a beber, pelo que o seu humor negro era inevitável. Limitou-se portanto a anuir.
- Treino de combate. Com lastros. Deve chegar para os cansar.
Umas horas com as espadas e escudos de treino, com o dobro do peso
normal, deixariam até os mais fortes dos soldados exaustos; um sorriso fino surgiu na expressão de Macro.
- Trata disso.
Cato fez a saudação e virou-se para acompanhar os homens que atravessavam o portão. Macro ficou a vê-lo afastar-se, interrogando-se sobre o tempo que levaria ao
jovem para dominar a técnica de treino militar que a
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ele tinha levado tantos anos. Agora conseguia gritar todas as instruções, e uns tantos insultos tradicionais a acompanhá-las, num tom suficientemente elevado para
ser ouvido em toda a parada, e podia fazê-lo horas a fio; mas Cato ainda não tinha os pulmões assim tão desenvolvidos e dava mais a impressão de um professor na
escola do que a de ser um centurião testado e comprovado ao longo de inúmeros combates na primeira linha. Mais uns anitos, reflectiu, e o miúdo fá-lo-ia com a mesma
naturalidade de todos os outros oficiais. E até lá? Suspirou. Até essa altura, Cato teria que continuar constantemente a demonstrar ser merecedor do posto que ocupava,
e a que tão poucos homens da sua idade chegavam. Macro voltou-se para os portões de Antióquia. O governador tinha requisitado uma das mais belas casas da cidade
para lá instalar o seu quartel-general. Nada de casebres para Cássio Longino, evidentemente. Muito menos o relativo desconforto de um complexo de espaçosas tendas
de campanha. Macro sorriu com pesar. Se havia alguma certeza quanto à campanha que se avizinhava era que o comandante das tropas viajaria no tipo de luxo sobre o
qual os seus homens apenas podiam sonhar, enquanto marchavam nas suas pesadas armaduras de combate e carregavam às costas todo o equipamento pessoal.
- Realmente, adoro um tipo que dá o exemplo. - Comentou para si mesmo enquanto se dirigia à reunião que tinha marcado com Longino.
O governador da Síria levantou os olhos do relatório e recostou-se na cadeira. Do outro lado da mesa sentavam-se Macro e o legado Amácio, o comandante da Décima
Legião. Longino contemplou-os a ambos em silêncio durante alguns segundos, e arqueou as sobrancelhas.
- Meus senhores, não posso dizer que me sinta particularmente feliz com esta situação. Um soldado morto, outro à espera de sentença. Não me custa imaginar que isto
vá provocar muita fricção entre as vossas unidades. Como se preparar o exército para a guerra não chegasse, ainda tenho que tratar deste assunto.
Macro sentiu crescer a raiva perante o tom acusatório do superior. Não tinha qualquer responsabilidade na morte de Menato. E se ele e Cato não tivessem entrado em
cena e impedido a situação de se tornar realmente séria, àquela hora haveria muitas mais piras funerárias no exterior das instalações militares e a lançar fumo para
o céu matinal. Era muito pouco provável que Crispo fosse o único legionário com uma faca no meio da multidão de soldados que andava pela cidade na noite anterior.
Ou que nenhum dos homens de Macro estivesse equipado de igual forma. Na atmosfera que a zanga de bêbados criara, o combate entre os dois homens poderia facilmente
ter-se espalhado e fugido ao controlo dos oficiais. Ao responder, Macro teve o cuidado de esconder a irritação que sentia.
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- Foi uma infelicidade, senhor, mas podia ter sido bem pior. Agora, temos que garantir que os homens se acalmam e esquecem o incidente o mais depressa possível.
Quer os meus, quer os da Décima, senhor.
- Ele tem razão. - Concordou o legado Amácio. - Este, hum, assunto, tem que ser resolvido com toda a celeridade, senhor. O meu homem tem que ser julgado e punido.
- Punido, sim... - Longino afagou o queixo. - E que castigo será adequado para este Crispo, pergunto-me? É evidente que tem que ser transformado num exemplo, se
queremos desencorajar repetições de cenas destas.
Amácio anuiu.
- Claro, senhor. Creio que um espancamento é o mínimo que se pode aplicar. Isso e, evidentemente, a despromoção. Os meus homens lembrar-se-ão disso por muito tempo.
- Não. - Macro abanou firmemente a cabeça. - Isso não chega. Um homem morreu desnecessariamente, e tudo porque o Crispo sacou da faca. Podia ter lutado de forma
limpa, mas não o fez. Agora deve sofrer todas as consequências do seu acto. Os regulamentos são claros. Senhor, vem mencionado nas normas de execução permanente
que emitiu. Todos os homens de folga estão sujeitos a uma proibição estrita de porte de armas, e suponho que a razão era precisamente para evitar incidentes como
o da noite passada. Não estou certo, senhor?
- Pois, era isso. - Longino abriu a mão na direcção de Macro. - Então, como achas que deve este tipo ser punido?
Macro endureceu o coração. Não extraía qualquer prazer do facto de enviar Crispo para a morte, mas sabia que as consequências de não o fazer abririam uma enorme
brecha na disciplina militar. Enfrentou directamente o olhar do governador.
- Execução pelos homens da sua centúria, na presença de toda a coorte.
- Quem é o comandante da coorte, já agora?
- É o centurião Castor, por acaso. - Respondeu rapidamente Amácio. Olhou para o governador. - Na sua ausência, posso garantir que os seus homens não aceitariam a
punição sugerida pelo prefeito Macro. E porque haveriam de a aceitar? Afinal, o tipo que ele matou não passava de um auxiliar. Lamento essa morte, tanto como o prefeito
Macro, mas a perda dessa vida não se pode comparar com a morte de um legionário, um cidadão romano. Sobretudo porque tudo isto resultou apenas de uma cena de pancada
na rua, sob o efeito do álcool. - Virou-se para Macro. - Macro, sei o que aconteceu. Procedi ao meu próprio inquérito. Ao que parece, o teu homem fez batota aos
dados e tentou enganar o meu legionário.
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- Não é o que dizem os meus homens, senhor.
- Como seria de esperar, não? Querem a pele do meu soldado. Diriam qualquer coisa para o conseguir.
- Tal como os seus homens diriam qualquer coisa para lhe salvar o pescoço. - Retorquiu Macro em tom gélido. - Parece-me evidente que devemos considerar as declarações
dos homens um tanto ou quanto parciais. Mas eu estava lá. Vi o que sucedeu. Com todo o respeito, senhor, o mesmo não sucede consigo. Crispo é culpado. E terá que
ser punido de acordo com a lei militar.
Amácio franziu o cenho antes de responder com uma cordialidade artificial.
- Prefeito, compreendo os teus sentimentos. É perfeitamente natural que partilhes o desejo de vingança dos teus homens.
- Vingança não, senhor. Justiça.
- Chama-lhe o que quiseres. Mas escuta. Se tivesse sido o teu homem a puxar da faca, gostarias de o ver poupado, não era?
- O que eu quereria é irrelevante, senhor. - Respondeu Macro com firmeza. - O castigo previsto para um crime desta natureza é bem claro.
Amácio persistiu.
- Macro, escuta. Em tempos foste um legionário, não foi?
- Sim, senhor. E então?
- Então, deves ter alguma lealdade para com os teus camaradas das legiões. Não queres com certeza ver um camarada a ser executado por causa da morte de um pobre
diabo das províncias, pois não?
Macro sentiu o sangue a ferver-lhe nas veias, ao escutar a descrição dos seus homens como pobres diabos das províncias. Eles eram a Segunda Ilírica. Os homens que
tinham combatido um exército rebelde apoiado pela Pártia, e que assim tinham esmagado a rebelião na Judeia no ano anterior. Eram homens duros e corajosos, e tinham
mostrado o seu valor onde isso realmente contava, no campo de batalha. Macro estava orgulhoso deles. O suficiente para que a lealdade que lhes devia se sobrepor
ao que quer que fosse que devesse à irmandade dos legionários. Essa ideia surgiu-lhe de repente, e não deixou de o surpreender. Mas compreendeu que era verdade.
Tinha-se afeiçoado ao seu comando mais do que alguma vez pensara possível. Sentia uma tremenda responsabilidade pelos seus homens e de forma alguma permitiria que
um aristocrata mimado como Amácio cravasse uma cunha entre ele e a Segunda Ilírica.
Inspirou profundamente para se acalmar antes de responder.
- Nenhum legionário que eu conheça seria capaz de descer tão baixo a ponto de fazer um apelo dèsse género... Senhor.
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Amácio sentou-se direito como se tivesse sido picado, aspirou o ar como se estivesse aflito, e olhou para Macro com irritação.
- Prefeito, isso é uma insubordinação grosseira. Se fizesses parte da minha legião, pagarias caro pela ousadia.
Longino fez sentir a sua presença ao limpar ruidosamente a garganta.
- Pois, Galo Amácio, mas ele não faz parte da tua legião, e portanto não está sob a tua jurisdição. - Sorriu. - Está porém sob o meu comando, e não tenciono permitir
tais formas de discórdia entre os meus oficiais. Portanto, prefeito, vou-te pedir que retires essa última afirmação, e que peças desculpa por a teres proferido.
Macro abanou a cabeça.
- Senhor, vá para o inferno.
- Estou certo que sim, mas não por mo ordenares. Agora, pede desculpa, ou terei que encontrar outro homem para comandar a Segunda Ilírica.
- Estou certo que qualquer um dos meus oficiais apreciaria a oportunidade de meter esses auxiliares na ordem. - Apressou-se Amácio a sugerir. - Talvez um dos meus
tribunos.
Macro cerrou os dentes. A situação era insuportável. Os dois aristocratas estavam a divertir-se à sua custa, mas por muito que lhe apetecesse revelar abertamente
o desprezo que sentia por eles e por todos os da sua laia
- políticos a brincar aos soldados - não podia permitir que o seu orgulho se sobrepusesse àquilo que melhor servisse aos homens. E um tribuno da Décima Legião, algum
convencido com um apetite por glória, era a última coisa de que a coorte precisava quando se preparava para enfrentar os partos. Engoliu em seco e virou-se para
Amácio com uma expressão de pedra.
- Senhor, as minhas desculpas.
Amácio sorriu.
- Assim está melhor. Um homem deve sempre saber qual é o seu lugar.
- Com efeito. - Ajuntou Longino. - Mas pronto, caso arrumado. Ainda temos que decidir o que fazer afinal com esse teu legionário.
- Sim, senhor. - Amácio voltou a colocar um ar sério. - Dadas as circunstâncias, creio que um castigo como o que sugeri será suficiente. Compreendo o que o prefeito
sente, mas não podemos esquecer que se trata de um cidadão romano.
Macro decidiu tentar uma última vez chamar o governador à razão, e inclinou-se para ele ao falar.
- Senhor, não pode permitir que este homem escape à punição que merece. Há que considerar a forma como este assunto vai ser visto pelo conjunto do exército. Se não
for tornado claro aos homens o que lhes poderá suceder se infringirem os regulamentos e andarem com facas quando não estiverem de serviço, continuarão a fazê-lo
e, da forma como as coisas
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estão, esta não será a última morte a ocorrer nas ruas de Antioquia. Senhor, acredite que não me dá qualquer prazer pedir a morte deste legionário, mas rogo-lhe
que considere os danos que poderão surgir se ele escapar à condenação.
Longino franziu as sobrancelhas, levantou-se de repente e atravessou a sala, dirigindo-se à varanda que dava para o pátio interno da casa, ocupado por um jardim.
Deixou a vista passar sobre o telhado das acomodações dos escravos, cujas traseiras davam para ali, e sobre as muralhas da cidade, detendo-se na paliçada que rodeava
o campo militar instalado numa pequena elevação a curta distância. A um dos lados do campo, uma nuvem de poeira indicava alguma actividade: uma patrulha, talvez,
ou então uma das unidades a treinar no espaço que tinha sido desbastado e aterrado para os exercícios e para as paradas ocasionais. Manteve o olhar perdido na distância
mais algum tempo e por fim virou-se para os dois oficiais que ainda estavam sentados em frente à secretária.
- Muito bem, a minha decisão está tomada.
Cato percorreu lentamente a linha de postes que tinha sido erigida numa das zonas laterais da grande parada exterior. O contingente de infantaria da Segunda Ilírica
estava distribuído em filas em frente a cada poste, cada homem armado com uma espada de treino, de madeira e com um peso de chumbo no punho e outro logo a seguir
à guarda. Nas mãos esquerdas seguravam as pegas dos escudos de vime entrelaçado, também mais pesados do que os equipamentos que seriam usados em combate. Se um homem
fosse treinado no uso daquelas armas, quando surgisse o momento de enfrentar um inimigo sentiria muito maior facilidade no manejo das verdadeiras. Para já, no entanto,
os auxiliares lançavam-se com um brado contra os postes e desencadeavam sobre eles uma chuva de golpes até Cato soprar no apito, permitindo que o homem que estivera
em acção fosse substituído pelo próximo da fila e se retirasse para o fim da bicha, onde poderia descansar até que fosse de novo a sua vez.
Estavam a ter um bom desempenho, considerou Cato, e imaginou que todos eles projectavam mentalmente a imagem de Crispo nos postes que atacavam com aquela fúria.
Fosse qual fosse a razão, a verdade é que tinham passado quase toda a manhã a treinar debaixo de um sol impiedoso e ninguém tinha proferido um queixume. Decidiu
continuar o treino até ao meio-dia e só depois lhes permitir que regressassem às suas tendas para repousar. A tarde seria passada com o contingente montado, a praticar
ataques aos mesmos postes em galope directo ou com mudanças de direcção, o que era bastante mais difícil do que o combate a pé que se treinava naquele momento. Graças
ao treino incessante, Cato estava certo de que a
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Segunda Ilírica se portaria bem quando fosse chamada a marchar contra a Pártia. Sorriu para si mesmo. Já não tinha dúvidas de que a guerra seria uma realidade.
A campanha que se aproximava nunca lhe saía muito tempo do pensamento, e apesar da confiança que depositava nos homens que treinava, sentia-se apreensivo quando
pensava em lutar contra os partos. Conhecia perfeitamente as dificuldades tácticas que os soldados romanos enfrentavam quando confrontados com aquele inimigo. Os
partos tinham desenvolvido as suas capacidades no combate montado ao longo de centenas de anos, e eram capazes de apresentar no campo de batalha um dos mais temíveis
exércitos do mundo conhecido. O método que empregavam era simples e pouco variado. O primeiro ataque seria realizado por arqueiros montados, que castigariam os adversários
com flechas, numa tentativa de abrir brechas na formação; quando isso sucedesse, pequenas unidades móveis de catafractários, cavaleiros couraçados e equipados com
lanças pesadas, carregariam e destruiriam os oponentes. Esta táctica tinha resultado contra a maior parte dos seus inimigos e tinha mesmo levado à destruição do
exército de Crasso há várias décadas. E agora, não sem apreensão, um novo exército romano preparava-se para enfrentar o poderio dos partos.
- Senhor! - Um dos optios que assistia Cato no treino chamou-o e apontou com o bordão que segurava para as colinas a leste. Cato virou-se para lá e perscrutou o
horizonte, definido por encostas pedregosas semeadas de maciços de cedros. De repente, algo refulgiu numa ravina cuja saída apontava directamente para Antióquia.
Piscou os olhos e levou a mão à face para servir de pala, numa tentativa de descortinar mais detalhes. Uma coluna de figuras diminutas, a cavalo, emergia da ravina.
O optio deu alguns passos para se reunir a ele, e os dois homens continuaram a olhar para a distância, esquecidos dos ruídos do treino que prosseguia nas suas costas.
- Quem serão aqueles? - Murmurou o optio.
Cato abanou a cabeça.
- Para já, não há forma de sabermos. Pode ser uma caravana vinda de Cálcis, de Beroea ou até de Palmira.
- Caravana? Não me parece, senhor. Não distingo nenhum camelo.
- É verdade. - Cato observou o grupo de cavaleiros à medida que deixavam a ravina, e contabilizou já mais de cem. Quando a luz do sol fez rebrilhar armas e equipamento,
sentiu o primeiro arrepio de medo na parte de trás do pescoço. Baixou a mão e deu ordens rápidas ao subalterno. - Leva os homens para dentro e alerta a cavalaria.
Quero-os aqui depressa, e prontos para o combate. Manda avisar o general que foi avistada uma coluna montada a leste.
- E digo que são quem?
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Cato encolheu os ombros.
- Não podemos dizer para já. Mas também é melhor não arriscarmos. Vai.
O optio saudou-o e afastou-se, berrando ordens para que os auxiliares parassem de treinar e formassem imediatamente. Os homens encaminharam-se para as suas posições
e quando todos estavam prontos a pequena coluna marchou pela parada na direcção dos portões do campo, deixando Cato só, a avaliar a aproximação dos cavaleiros. Quando
por fim o último saiu da ravina, fez uma rápida estimativa e concluiu que seriam mais de duzentos. À cabeça da coluna via-se um estandarte, uma fita vermelha e dourada
que ondulava fracamente no ar tremeluzente. Os cavaleiros continuaram a aproximar-se calmamente de Antióquia e do campo militar que ocupava a paisagem junto às muralhas
da cidade. Cato apercebeu-se de que não se tratava de uma tentativa de surpreender qualquer patrulha romana descuidada. Aqueles homens faziam gala em ser vistos.
Do interior do campo vieram os sons estridentes das trombetas, e pouco depois o primeiro esquadrão montado da Segunda Ilírica atravessou a trote os portões e formou
em duas linhas na orla da parada, à espera que os homens dos outros três esquadrões formassem à sua direita. Quando o último dos soldados de cavalaria fez o cavalo
alinhar-se com os outros e todo o contingente montado da coorte se preparava para um possível embate, empunhando as lanças e não tirando os olhos dos cavaleiros
distantes, surgiu um pequeno grupo de oficiais do estado-maior vindo da cidade e dirigindo-se a toda a brida para junto de Cato e dos seus homens. O jovem identificou
imediatamente a vistosa crista vermelha do capacete da figura que os liderava, e sentiu-se aliviado ao concluir que o governador da Síria se ia encarregar pessoalmente
da situação. O grupo de oficiais deteve os cavalos numa nuvem de poeira e cascalho, e Cato reparou então que Macro e o legado da Décima Legião acompanhavam o governador
e o seu pessoal. Longino designou Cato com o braço esticado e interpelou-o.
- Centurião! Apresenta o teu relatório.
- Senhor, é o que se pode ver. - Cato acenou na direcção da coluna que se aproximava. - Estão armados, mas até agora não mostraram qualquer disposição hostil, senhor.
Longino observou também os cavaleiros. A coluna tinha interrompido a marcha e formado uma linha que atravessava a estrada; surgira um destacamento em volta do estandarte,
e naquele momento galopava pela planície que se estendia entre as colinas e o campo romano. Quando se aproximou do grupo de oficiais, ouviram-se toques de uma trombeta.
Longino virou-se para o legado Amácio, que se mantinha a seu lado.
- Ao que me parece, alguém quer uma trégua.
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- Trégua? - O legado abanou a cabeça, espantado. - Mas quem são eles, afinal?
Cato avaliou os cavaleiros, agora a menos de um quilómetro dali. A poeira levantada pelos cascos das suas montadas formava um fundo contra o qual se tornava mais
fácil distinguir os detalhes dos capacetes cónicos, das vestes largas, e dos sacos dependurados das selas onde se acomodavam arcos. Baixou a mão e virou-se para
o seu comandante.
- Senhor, são partos.
- Partos? - A mão de Longino descaiu para o punho da espada. - Partos... O que raios estão eles aqui a fazer? Caramba, mesmo debaixo dos nossos narizes...
Os cavaleiros detiveram as montadas a não mais de cem passos de Cato e dos outros oficiais, e pouco depois um deles avançou a passo na direcção dos romanos.
- Senhor, ordeno aos nossos homens que avancem? - Perguntou Macro, enquanto fazia sinal aos esquadrões montados da Segunda Ilírica.
- Não. Ainda não. - Retorquiu Longino, aparentemente tranquilo e de olhar fixo no cavaleiro que se aproximava.
- Partos. - Amácio coçou o queixo, nervoso. - Mas o que querem eles?
Longino agarrou o punho da espada, tenso, e murmurou uma resposta.
- Depressa o saberemos.
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O parto parou a curta distância dos oficiais romanos e inclinou a cabeça. Afastou da face o lenço de seda, revelando assim a tez escura. Cato notou os traços escuros
pintados em volta dos olhos, bem como o bigode e a barba cuidadosamente aparados. Esboçou um sorriso antes de falar num latim com uma ligeira pronúncia.
- O meu senhor, o príncipe Metaxas, envia-vos saudações, e deseja conversar com o governador da província da Síria. - Passou a vista pelo grupo de oficiais romanos.
- Suponho que um destes garbosos soldados poderá informá-lo desta pretensão.
Longino inchou o peito, irritado.
- Sou Cássio Longino, governador da Síria e comandante dos exércitos imperiais do Oriente. O que me deseja o teu senhor?
- O príncipe Metaxas foi enviado pelo nosso rei para resolver algumas questões pendentes entre a Pártia e Roma, na esperança de que as nossas duas potências possam
solucionar estas disputas sem recorrer à força. O nosso rei não tem qualquer desejo de provocar desnecessárias perdas de vida nas fileiras das vossas admiráveis
legiões.
- Ah, sim? - Explodiu o legado Amácio. - Havemos de ver como se portam os vossos cavaleirinhos emproados quando se virem frente a frente com a Décima.
- Calado! - Ordenou Longino ao subordinado. Lançou-lhe um olhar furibundo, antes de se dirigir ao emissário parto. - Muito bem, estou disposto a conversar com o
teu senhor. Trá-lo até nós.
O parto sorriu brevemente.
- Por grande infelicidade, chegaram aos ouvidos do meu senhor rumores de que nem todos os romanos são respeitadores das tradições inerentes a uma trégua.
A expressão de Longino toldou-se, e ele respondeu num tom gelado.
- Atreves-te por acaso a acusar-me de tal infâmia?
- Evidentemente que não, senhor. Não me refiro a nenhum dos presentes.
- Então conduz o teu senhor até aqui. Se para tanto ele tiver estômago.
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- Estômago? - O parto revelou-se atónito. - Perdoe-me, senhor, mas escapam-se-me algumas subtilezas da vossa língua.
- Diz ao teu senhor que não discuto com escravos. Diz-lhe ainda que conversarei com ele aqui e agora, se ele tiver a coragem de deixar de se esconder por trás da
escolta.
- Com prazer o faria, mas atrevo-me a sugerir que a sua resposta seria muito similar. - O parto fez um gesto abarcando os outros oficiais presentes e a cavalaria
pertencente à coorte de Macro. - Estou porém certo de que um tão grande general terá com toda a certeza a coragem requerida para deixar para trás a protecção desta
tão impressionante escolta. Ainda assim, e em deferência para com as vossas compreensíveis ansiedades, o meu senhor autorizou-me a sugerir que o vosso encontro se
dê a meio caminho entre as nossas forças.
Longino lançou um rápido olhar ao espaço aberto entre o campo romano e os cavaleiros ricamente adornados que o contemplavam à distância.
- A sós, dizes tu?
- Claro, senhor.
- Senhor, não o faça. - Avisou Amácio entre dentes. - Só pode ser um truque qualquer destes bárbaros. Não faz ideia da capacidade desta laia para a traição mais
vil.
Macro limpou a garganta.
- Não sei. Não me parece que o príncipe Metaxas consiga fazer muitos estragos sozinho.
Amácio virou-se para Macro.
- E o que sabes tu, prefeito? Os partos podem facilmente abater o governador muito antes de ele alcançar o local das conversações.
Macro encolheu os ombros.
- É possível que sim, senhor. Mas nesse caso arriscar-se-iam a atingir o seu próprio representante. Além disso, há a questão do orgulho. Se o governador recusar...
Bom, imagino que as pessoas lá em Roma acabariam por compreender.
- Meus senhores! - O parto ergueu a mão. - Peço desde já desculpa por intervir na vossa discussão, mas se consideram que uma tal reunião representa um perigo inaceitável,
posso talvez sugerir que as duas forças recuem para lá do alcance de qualquer arco, e que o meu príncipe e o governador sejam acompanhados por, digamos, três outros
elementos cada? Será por certo suficiente para acalmar as vossas suspeitas e receios?
- Receios? - Foi a vez de Longino se irritar. - Parto, não tenho qualquer receio. Um romano nada teme, muito menos uns meros bárbaros do oriente.
- Muito me agrada escutar tais palavras, senhor. Nesse caso, posso en-
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tão informar o meu senhor de que o encontro se realizara nas condições propostas?
Cato esforçou-se por ocultar o divertimento que sentia ao ver o governador ser tão facilmente levado a aceitar a proposta dos partos. Pelo seu lado, Longino estava
furioso, e perdeu algum tempo a recuperar o controlo das emoções. Enquanto olhava em redor a espumar de raiva não deixou de reparar na expressão de Cato, e espetou
o dedo.
- Centurião Cato, vens comigo, já que estás de tão bom humor. Tu, o teu amigo Macro e o legado Amácio. Os outros, juntem-se à cavalaria. Fiquem aqui. Se eu der sinal,
acorram em nosso auxílio imediatamente. Vão!
Voltou-se de novo para o emissário parto e rosnou.
- Vai dizer ao teu senhor que nos encontraremos, assim que os vossos homens recuarem para uma distância aceitável.
- Muito bem, senhor. - O parto inclinou a cabeça, e de imediato fez a montada dar meia-volta e galopar para se juntar aos seus camaradas, sem dar qualquer ensejo
ao governador para sugerir alterações às condições da cimeira. Enquanto o viam afastar-se, Macro virou-se para Cato e falou baixinho.
- Os meus sinceros agradecimentos por me teres envolvido em mais uma.
- Desculpe, senhor. - Cato fez um gesto na direcção do esquadrão montado. - Será melhor, então... Hum, vou arranjar um cavalo para mim.
- Pois. Faz isso. Antes que me arranjes mais algum sarilho.
Enquanto Cato se afastava atrás dos outros oficiais, Amácio, Macro e o
governador viram os partos fazer meia-volta e afastarem-se conduzindo os cavalos a passo, deixando para trás o emissário, o porta-estandarte e outros dois homens.
Macro soltou o ar que retivera nas bochechas.
- Alguma ideia do que terão eles em mente, senhor?
- Não. Nem um palpite. - Longino pensou em silêncio antes de continuar. - Não percebo como é que se aproximaram desta forma do forte sem serem notados. As nossas
patrulhas e as guarnições dos postos da fronteira devem andar cegos. Alguém vai pagar as favas por isto. - Concluiu, severo.
Ao escutarem o som de um cavalo a aproximar-se todos olharam para trás; era Cato que se juntava a eles. Longino deitou um olhar de aviso aos companheiros.
- Olhos abertos. Ao primeiro sinal de perigo, soltem um aviso e ataquem-nos sem piedade. Mas lembrem-se que estamos oficialmente em tréguas. Só agimos se eles fizerem
primeiro alguma coisa. Portanto, mãos longe das espadas, e bem à vista.
Amácio fungou.
- Esperemos que o tal príncipe dê indicações semelhantes aos seus.
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- Pois. - Longino assentiu, e respirou lentamente para acalmar os nervos. - Bom, será melhor despacharmos isto. Vamos lá.
Pressionou levemente os calcanhares das botas de cabedal nos flancos do seu cavalo e começou a avançar. Os outros imitaram-no, e o pequeno grupo de romanos avançou
cauteloso através do espaço aberto até junto dos partos. Enquanto seguia ligeiramente atrás e para o lado do seu comandante, Cato teve que fazer um sério esforço
para resistir ao impulso de colocar a mão no punho da espada. Ao invés, usou as duas mãos para segurar as rédeas e endireitou-se na sela, tentando dar uma imagem
de altivez e destemor aos partos. Por dentro, todavia, tinha as tripas cheias de nós e o coração batia desalmadamente. Enquanto tentava manter uma aparência de bravo
guerreiro, desprezava-se a si mesmo pelos receios que o consumiam. Uma olhadela para o lado mostrou-lhe que Macro não desviava os olhos dos partos, com uma expressão
de curiosidade e avaliação, em vez de tensão e receio. Cato agarrou-se ao pensamento reconfortante de que, se existissem planos para uma traição, o seu destemido
amigo seria mais do que suficiente para qualquer guerreiro parto que alguma vez tivesse visto a luz do sol.
Os dois grupos de cavaleiros foram convergindo, o silêncio e calmaria da atmosfera do meio do dia apenas quebrados pelos sons das patas dos cavalos no solo irregular.
Cato registou a elaborada decoração dos estojos em que os partos mantinham os arcos, bem como a excelente qualidade das roupas que vestiam. As montadas eram mais
pequenas que as dos romanos, e pareciam bem tratadas, com os músculos evidentes e descrevendo os movimentos com uma fluidez graciosa. Poucos detalhes distinguiam
aparentemente os partos, excepto o facto de o porta-estandarte trazer um grande cesto de vime pendurado na sela. Por consenso silencioso, os dois grupos pararam
à distância de duas lanças e trocaram olhares. Então o mais alto dos partos afastou de súbito o lenço que lhe cobria o rosto e iniciou um discurso.
O emissário escutou atentamente e inclinou a cabeça antes de se virar para os romanos.
- O príncipe deseja-vos saúde e prosperidade eternas. A vós, ao vosso Imperador e a todo o povo de Roma. Deseja também cumprimentar-vos pelas belas terras que adquiriram
em nome de Roma. Afirma-se muito impressionado pelas linhas de torres de vigia e postos avançados que guardam os caminhos para Antióquia. Passar por todos eles sem
sermos detectados constituiu um agradável desafio.
Os lábios de Longino cerraram-se numa linha fina ao ouvir o último comentário, e a mão livre fechou-se momentaneamente num punho. De súbito, ergueu-a.
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- Basta de cortesias, imponho que não estamos aqui para discutir os detalhes da vossa excursão. Vamos ao que interessa. O que deseja realmente o príncipe?
Houve uma rápida troca de palavras entre o emissário e o príncipe, até que o primeiro voltou a falar.
- A Pártia exige que Roma renuncie a qualquer tentativa de estender a sua influência para a região do Eufrates.
- Roma tem todo o direito de proteger as suas fronteiras. - Contrapôs Longino, em tom firme.
- Ah, com certeza, mas as vossas fronteiras têm o estranho hábito de ir avançando, como ladrões que se aproximam a pouco e pouco dos lares de novas vítimas.
- O que queres dizer? Nós honramos o tratado que está em existência.
- Entre a Pártia e Roma, sim. - Admitiu o outro. - Mas o que dizer das vossas negociatas com Palmira? Usam as terras do reino como se fossem vossas, e os vossos
soldados marcham até às fronteiras da Pártia.
- O rei Vabathus assinou um tratado com Roma. - Confirmou Longino, com serenidade. O príncipe fungou quando as palavras lhe foram traduzidas. Lançou-se então numa
longa diatribe cujo tom mal-humorado se tornou evidente aos romanos muito antes de o emissário tentar falar pelo seu senhor. Macro lançou um olhar a Cato e revirou
significativamente os olhos. O jovem não lhe respondeu. Sabia que o amigo era um soldado profissional dos pés à cabeça, mas que detestava qualquer réstia de política
ou diplomacia; e parecia-lhe evidente que a presença de Macro num encontro tão tenso como aquele estava a ser constituía um risco para o lado romano. Cato arregalou
os olhos e tentou avisá-lo com o olhar. Macro arqueou uma sobrancelha numa questão muda, e depois encolheu os ombros, quando o emissário traduziu as palavras do
príncipe parto.
- O príncipe Metaxas avisa que é bem evidente o verdadeiro propósito do vosso tratado. Toda a gente sabe que este é apenas um passo para a anexação de Palmira.
- O rei Vabathus fez o acordo por vontade própria.
- E se o rei, ou um seu sucessor, decidisse que o tratado devia ser anulado? O que sucederia então?
Longino já tinha mordido o isco uma vez, pelo que fez uma pausa para considerar que resposta dar.
- Não se põe tal questão. Palmira e Roma são agora aliados.
O príncipe parto deu uma gargalhada repentina e espetou o dedo na direcção do governador romano, enquanto respondia.
- Aliados? - Traduziu o emissário. - Os vossos únicos aliados no
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reino são Vabathus e a sua corja. As grandes casas da nobreza palmirense denunciam abertamente o tratado. Há até quem, no palácio real, veja o rei como pouco mais
do que um traidor. O vosso tratado é um embuste, e depressa o rei será forçado a renunciar-lhe. Se ele não o fizer, podem estar certos de que o seu sucessor cortará
todos os laços que amarram Palmira a Roma. E se Roma tentar influenciar os assuntos internos de Palmira pela força, a Pártia fará tudo o que estiver ao seu alcance
para proteger o seu vizinho da agressão romana.
Foi a vez de Longino soltar uma gargalhada.
- A Pártia, a grande protectora? Essa é nova! O vosso desejo de controlar Palmira está à vista de todos. O que é que vos faz pensar que o povo de Palmira aceitará
uma intervenção parta?
- Temos as nossas razões para assim acreditar. E já fizemos saber que protegeremos a sua independência. De Roma ou de qualquer outra potência.
- E pensam que eles vos crêem? Porque haveriam de ter mais confiança nas vossas intenções do que nas nossas?
- Porque nós não enviámos soldados para as suas terras para construírem fortificações que, lenta mas seguramente, se transformarão nas barras da sua prisão. Sabemos
que tentaram mesmo construir um forte nas margens do Eufrates, e que, se o permitirmos, daqui a pouco os campos romanos se multiplicarão ao longo das margens do
rio, quais facas apontadas à garganta da Pártia.
Macro inclinou-se para Cato e não resistiu a um comentário.
- Estes filhos da puta têm a mania das frases poéticas, não achas?
- Chiu! - Respondeu Cato, tão alto quanto se atreveu. Deu-se uma pausa quando o emissário, Longino e o legado da Décima olharam para os dois amigos, antes que o
emissário prosseguisse na tradução do discurso do seu príncipe.
- A Pártia não tolerará um tão óbvio gesto de agressão. O forte era um claro sinal das intenções de Roma, pelo que ficam avisados para não tentarem novas incursões
do género.
- Era? - Interrompeu Longino. - O que é que lhe aconteceu?
- Foi arrasado.
- E a coorte de auxiliares que o construiu? O que lhes sucedeu?
- Foram destruídos.
- Destruídos? - Longino não escondeu a surpresa. - E quanto aos prisioneiros? Onde estão?
- Lamentavelmente, não foram tomados quaisquer prisioneiros.
- Cabrões. - Irritou-se o legado Amácio. - Porcos assassinos.
O outro encolheu os ombros.
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- Não se renderam. Os nossos homens não tiveram outra opção senão abatê-los.
Longino manteve-se em silêncio por mais alguns segundos.
- Quinhentos homens, e um dos melhores oficiais do exército. O centurião Castor... - Encarou o príncipe parto com raiva. - Diz ao teu senhor que considero isto um
acto de guerra.
Metaxas sorriu quando o emissário traduziu a resposta.
- Qual deles? A destruição da vossa coorte, ou a ameaça que o forte colocava à nossa soberania?
- Não tentes misturar as coisas! - Disparou Longino. - Ele sabe bem o que quero dizer. Quando isto chegar aos ouvidos do Imperador, duvido que algum poder terreno
o demova de lançar uma terrível vingança sobre a Pártia. E será o destino que vocês mesmos provocaram.
- General, nós não temos qualquer desejo de provocar uma guerra.
- Uma porra! - Explodiu Amácio. - Destroem uma das nossas coortes e ainda dizem que não têm qualquer desejo de provocar uma guerra! - A mão do legado deslizou para
o punho da espada, e o gesto não escapou aos olhos dos partos. Um dos membros da escolta desembainhou de imediato a sua espada, fazendo a lâmina curva faiscar ao
sol. Porém, o príncipe Metaxas deu-lhe uma ordem rápida e seca, e o homem, embora relutante, voltou a guardar a arma.
- Senhor. - Disse Cato em tom calmo, dirigindo-se ao legado. - Seria talvez mais sensato retirar a mão da espada.
As narinas de Amácio incharam quando ele olhou para o centurião. Mas depois reconheceu o bom senso do conselho, piscou os olhos e largou a arma.
- Muito bem. Mas um dia acertaremos as contas pelo centurião Castor e pelos homens da sua coorte. Um dia.
O emissário não se mostrou impressionado.
- Talvez, mas não nesta vida. Não, se Roma atribui algum valor à manutenção da paz na sua fronteira oriental. O meu senhor solicita que retirem as vossas forças
do território de Palmira. E que não interfiram na política interna do reino. Se alguma destas condições não for respeitada, a Pártia ver-se-á forçada a agir militarmente.
Por muito que o príncipe e o seu pai, o rei Gotarzes, desejem a paz, serão obrigados a entrar em guerra com Roma. E esse conflito terá custos pesados para Roma.
Muitos mais dos vossos cidadãos seguirão o destino de Crasso e das suas legiões. São estas as palavras do meu senhor. - Concluiu o emissário. - General, o nosso
aviso está feito, e nada mais há a dizer.
O príncipe parto fez um último comentário e acenou ao cavaleiro que transportava o cesto de vime à sela. O homem desapertou as tiras que prendiam
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o cesto e deixou-o cair pesadamente sobre o solo junto às patas do cavalo. Então os partos fizeram os cavalos rodopiar e o emissário dirigiu umas últimas palavras
aos romanos.
- O meu amo pede-vos que aceitem uma oferta. Algo que foi colhido nas margens do Eufrates. Peço-vos que o considerem como uma amostra do que vos espera se escolherem
desafiar o reino da Pártia.
Os partos esporearam os cavalos e afastaram-se a galope, dirigindo-se para a distante linha de cavaleiros que já desfazia a formação para também se afastar de Antióquia
e seguir pela ravina por onde tinha chegado. Por momentos, os romanos ficaram a vê-los afastarem-se no meio da poeira que as montadas levantavam. Então Longino virou
o olhar para o cesto que ficara sobre o solo pedregoso. Fez um gesto na sua direcção.
- Centurião Cato.
- Senhor?
- Vê o que é que está lá dentro.
- Sim, senhor. - Cato desceu do cavalo. Aproximou-se cautelosamente do cesto, como se este estivesse cheio de cobras ou escorpiões. Engoliu em seco e adiantou os
dedos, afastando as pegas. Lá dentro estava um jarro de barro, sem qualquer decoração. Era do tamanho de uma grande melancia. O fundo do jarro tinha-se partido quando
o cesto embatera no solo, e o cheiro do azeite chegou ao nariz de Cato, que reparou que o líquido já se espalhava pelo solo, depois de ensopar o vime. Ao cimo do
jarro rebrilhava uma massa escura e confusa, e à medida que o azeite se ia escoando começava a tornar-se mais reconhecível.
- O que é? - Instou Amácio. - Mostra-nos lá o que é isso, homem!
Cato sentiu a bílis vir-lhe à boca, mas avançou e pegou na massa oleosa.
Cerrando os dentes, puxou o pesado objecto para fora do jarro e ergueu-o no ar. O azeite escorreu pela pele acinzentada da cabeça cortada e pingou dos lábios mortos
para o solo ressequido.
O legado Amácio fez uma careta ao observar o macabro espectáculo.
- O centurião Castor...
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Senhores. - Cássio Longino percorreu lenta e solenemente com o olhar a assembleia reunida no salão de banquetes das suas acomodações. Estava de pé num pódio, e tinha
dali uma vista panorâmica sobre as expressões exibidas por centuriões, tribunos e legados, que aguardavam as suas palavras. - A guerra com a Pártia começou.
Os oficiais trocaram olhares, e um burburinho excitado percorreu o salão antes de amainar, quando todos os rostos se voltaram para o governador da Síria com evidente
ansiedade. As notícias sobre o grupo de cavaleiros partos que, na véspera, se tinha pavoneado perante as próprias muralhas de Antióquia tinham-se espalhado pelo
campo romano e pelas ruas da cidade. Os fabricantes de boatos tinham-se atirado ao labor com entusiasmo, e circulavam já várias interpretações para o episódio, desde
ser o sinal de uma aliança histórica entre Roma e Pártia até à aterrorizante perspectiva da presença de um poderoso exército parto a não mais de um dia de marcha,
e com a intenção expressa de massacrar todo e qualquer habitante de Antióquia, homem, mulher ou criança. As primeiras palavras de Longino tinham eliminado algumas
das mais fantasiosas especulações, e agora os oficiais da guarnição aguardavam uma maior clarificação da situação por parte do seu comandante. Este esperou que se
voltasse a fazer silêncio antes de prosseguir.
- Há poucos dias, os partos surpreenderam um dos nossos postos avançados e massacraram a guarnição. Os recentes visitantes vieram presentear-nos com a cabeça do
comandante desse destacamento, o centurião Castor, da Décima Legião.
Os homens que rodeavam Cato e Macro fizeram ouvir a sua revolta perante as notícias, e o veterano deu um toque ao companheiro, enquanto comentava.
- Coitados dos partos que se atreverem a enfrentar-nos. Parece-me que temos pela frente alguns combates animados.
- Animados? - Cato franziu o sobrolho. - Não estou certo de partilhar esse seu entusiasmo quanto a esta campanha. Os partos não vão com certeza deixar-se matar assim
às primeiras.
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- Oh, com franqueza! Já enfrentámos coisas piores.
- Tem a certeza? Diga-me lá então.
Macro cerrou os lábios e encarou o amigo por momentos.
- Bem lembrado. Os partos são uns filhos da puta bem rijos. - Acabou por admitir, antes de esfregar as mãos. - Mas vai ser interessante, isso é certo.
Foi a vez de Cato ficar a olhar para o amigo, antes de abanar a cabeça, incrédulo.
- Juro que às vezes penso que para si isto não passa tudo de um jogo.
- Jogo? - Macro mostrou-se surpreso. - Não. É muito mais do que isso. É uma vocação. É tudo aquilo para que um soldado, um dos verdadeiros, vive. Mas é evidente
que tu não percebes isso. Com a tua mania das filosofias e por aí fora.
Cato suspirou. Para Macro, a vasta educação que Cato recebera antes de se juntar às legiões era muito mais um desperdício do que uma vantagem, e o veterano nunca
se cansava de vincar essa opinião. Mas Cato sentia apenas que o exército era agora a sua família, e enquanto cumprisse todos os seus deveres com o máximo profissionalismo,
o peso da sua bagagem cultural deveria ser irrelevante - excepto nas raras ocasiões em que todo o seu esotérico conhecimento podia ter alguma aplicação prática.
Nesses momentos até Macro aceitava a ajuda, embora não deixasse de resmungar e tentasse ocultar qualquer sinal de admiração que pudesse ter para com os conhecimentos
de Cato.
Entretanto, Longino erguera as mãos, tentando acalmar os comentários irados dos seus oficiais.
- Senhores! Sei como se sentem perante estas novidades. Partilho a vossa tristeza, a vossa justa ira, e prometo-vos, pelo omnipotente Júpiter, que haveremos de vingar
o centurião Castor e os seus homens. Irromperemos pela Pártia, a espada numa mão e o fogo castigador na outra, e puni-los-emos de tal forma que nunca mais se atreverão
a perturbar a paz reinante nos nossos territórios e nos dos nossos aliados. O nosso propósito será nada menos do que a destruição do poder militar da Pártia, e não
descansaremos enquanto o rei desses piolhosos não se ajoelhar perante o Imperador e lhe suplicar misericórdia!
Os oficiais bateram com os pés no chão, em sinal de aprovação ao discurso do governador, e Macro voltou a comentar.
- Assim, sim. Cá para mim, o Longino é um general à maneira!
Cato espantou-se.
- Já se esqueceu por que é que fomos enviados aqui para o oriente? - Baixou a voz. - O tipo conspirava contra o Imperador.
- Não conseguimos provar isso.
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- Pois não. - Admitiu Cato. - De facto, não encontrámos nenhuma prova conclusiva. Mas sabemos quais eram os seus planos. E, Macro, tivemos ocasião de perceber o
tipo de homem que o Longino é. Não confio nele. E você também não devia confiar.
Macro considerou a afirmação do amigo enquanto coçava o queixo com os nós dos dedos esfolados.
- Esta pode ser a oportunidade para ele se redimir.
- Ou então para ganhar reputação, e conseguir a admiração dos seus soldados, e acumular o poder que lhe permita desafiar o Imperador. Seja como for, temos que ter
muito cuidado com ele. Se avançar imprudentemente para a guerra, poderemos ver-nos metidos em grandes sarilhos. - Designou com a cabeça todos os outros oficiais
no salão. - Todos nós. Do que precisamos nesta campanha contra a Pártia é de um general a sério, que perceba os soldados, e não de um político ambicioso. E além
disso, não lhe vão faltar ocasiões para se tentar ver livre de nós. Lembre-se das minhas palavras. Temos que ter muito cuidado.
Macro anuiu, convencido.
- Pronto, tens razão.
No pódio, Longino pedia novamente silêncio.
- Já enviei ordens aos legados das Terceira e Sexta Legiões, para que se venham juntar a nós aqui em Antióquia. Assim que todo o exército estiver reunido, marcharemos
para leste e esmagaremos os partos. Enquanto esse momento não chega, camaradas, temos que preparar os nossos homens para os combates próximos. Cada oficial vai efectuar
um inventário completo do equipamento da sua unidade, fazer regressar quaisquer soldados que estejam em destacamento, e fazer todas as requisições necessárias. A
minha intenção é que o exército parta para a guerra assim que estiver tudo pronto. Receberão as ordens completas para a campanha que se avizinha nos próximos dias.
E termino com este pensamento... Nos anos vindouros, quando todos estivermos velhos, as pessoas olharão para nós com admiração e dirão, ali vão os homens que derrotaram
o mais antigo e letal inimigo de Roma. Se triunfarmos - não, quando triunfarmos, como acontecerá por certo - teremos conseguido muito mais do que uma mera vitória.
Os nossos feitos dar-nos-ão a imortalidade, e nenhum verdadeiro romano pode aspirar a mais. - Longino desembainhou a espada e espetou-a no ar sobre a cabeça. - A
Roma, e à vitória!
Ao redor de Cato e Macro todos os oficiais ergueram os punhos no ar e repetiram o brado. Depois de uma rápida olhadela ao jovem amigo, Macro juntou-se à festa, lançando
também ele um potente brado. Cato suspirou e abanou a cabeça, antes de o imitar a contragosto. Apesar de ter conseguido, com grande esforço, convencer-se dos seus
méritos como soldado, estava
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longe de ser aquela a primeira vez em que se sentia completamente desligado do fervor profissional dos outros oficiais. No pódio, Cássio Longino aproveitava a disposição
da assembleia para se mostrar o líder que mais podiam desejar, virando-se para uma secção da audiência de cada vez e brandindo a espada no ar. Por fim, lá a guardou
na bainha e ficou de pé em frente ao pódio enquanto o centurião mais antigo da Décima Legião avançava, batia com a vareta na pedra e gritava.
- Dispensados!
Os oficiais começaram a dirigir-se para as portas, debatendo animadamente as perspectivas da nova campanha. Seria para muitos deles a primeira vez que entrariam
em acção depois de terem sido colocados na província da Síria. O ténue equilíbrio de poderes que existia entre Roma e Pártia desde os tempos do primeiro Imperador,
Augusto, tinha-se finalmente desfeito. O longo jogo da diplomacia e dos subterfúgios que tinha sido travado entre os agentes dos dois impérios estava terminado,
e agora seria o embate dos dois formidáveis exércitos a decidir o desenlace daquela crise.
- Prefeito Macro! Centurião Cato!
Cato sobressaltou-se ao ouvir o eco do chamamento do centurião-chefe ribombar nas paredes. Os dois amigos viraram-se em simultâneo para ver o outro oficial a olhar
para eles.
- Não se vão já embora!
- Merda. - Comentou Macro, enquanto os oficiais mais próximos lhes lançavam olhares cheios de curiosidade. - O que foi agora?
Cato encolheu os ombros e começou a abrir caminho por entre a multidão que deixava o salão, dirigindo-se para o pódio. Apercebeu-se que Longino e o legado Amácio
os observavam. Os dois amigos viram-se perante eles quando os últimos oficiais deixavam o salão. Longino acenou ao centurião-chefe.
- É tudo. Podes sair.
- Sim, senhor! - O centurião fez uma saudação imperiosa e virou-se, marchando atrás dos seus camaradas, as botas cardadas a martelar as lajes do pavimento. Ao sair,
fechou as portas, e só nesse momento Longino se virou para Macro e Cato.
- Há mais um assunto a resolver antes de o meu exército partir para a guerra. Já decidi o destino do legionário Crispo.
Os três subordinados olharam atentamente para o comandante, que continuou.
- Dada a gravidade da ofensa, e a premente necessidade de preservar a disciplina perante as presentes circunstâncias, decidi que Crispo será executado.
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- Não! - Amácio abanou a cabeça. - Senhor, devo protestar. Deu-me a entender que ele seria poupado.
- Nunca o afirmei. - Ripostou Longino. - Pois não?
Amácio inspirou através dos dentes cerrados.
- Não, senhor. Mas deixou-o implícito.
- Isso nada quer dizer. - Longino lançou um olhar significativo a Macro e Cato antes de prosseguir. - Crispo será executado pelos homens da sua própria centúria,
perante toda a Segunda Ilírica. Amanhã, pela alvorada. Legado, vais levar as notícias ao prisioneiro, e garantir que ele seja mantido sob custódia até ao momento
da execução. Já ouvi falar de alguns incidentes em que homens condenados à morte escaparam. Se o Crispo desaparecer, serão os homens destacados para o guardar que
tomarão o seu lugar. Espero que lhes deixes isso bem claro. Entendido?
Amácio engoliu a sua raiva e virou-se para Macro com uma expressão de azedume.
- Imagino que estejas encantado com a novidade.
Macro encarou-o em silêncio antes de responder.
- Se é isso que imagina, senhor, temo que nunca venha a compreender verdadeiramente os soldados que comanda.
Amácio continuou a olhá-lo furibundo, antes de se virar de novo para Longino e se aprumar.
- É tudo, senhor?
- É tudo. Os camaradas do Crispo devem apresentar-se na parada exterior assim que alvorecer. Devem envergar apenas túnicas e estar armados de cajados.
- Sim, senhor.
O tom de Amácio era subserviente, e Cato entendia-o bem. A arrogância dos legionários seria esmagada pelo facto de serem obrigados a surgir em frente aos auxiliares
da Segunda Ilírica sem armadura e sem armas. A ordem era deliberada. A disciplina militar exigia que os camaradas de um condenado partilhassem a sua vergonha, de
forma a garantir que não lhes faltasse a vontade de o punir por os humilhar daquela forma. Da próxima vez estariam menos dispostos a permitir que outro homem cometesse
uma ofensa que se reflectisse em todos eles. E uma vez que Amácio teria que comandar o grupo executor da Décima e testemunhar a execução, também sobre ele cairia
alguma da vergonha; isso explicava facilmente o ódio que quase flamejava no breve olhar que lançou a Macro e Cato antes de abandonar o salão e fechar a porta com
estrondo.
Por momentos nada foi dito, até que Macro inclinou a cabeça num agradecimento a Cássio Longino.
- Obrigado, senhor. Foi a decisão correcta.
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- Não preciso que mo digas. - Retorquiu Longino com rispidez.
- Muito bem, senhor. Mas obrigado na mesma. - Macro fez uma pausa. - Há mais algum assunto?
- Não. Limita-te a garantir que isto não volta a suceder. Já estou farto de vos ter aos dois a interferir nos meus assuntos aqui na Síria. Se não fossem os partos,
já me tinha visto livre de vocês há muito tempo. Estariam a caminho de Roma para apresentarem o vosso relatório àquela serpente do Narciso. Mas dado o pé em que
estão as coisas... Preciso de todos os homens para enfrentar os partos. Se me tivessem dado os reforços que pedi, a questão estaria arrumada quase antes de começar.
Mas assim só tenho três legiões e umas unidades auxiliares para os enfrentar. As minhas hipóteses poderiam ser bem melhores. - Sorriu friamente. - Seja: se triunfar,
maior será a glória. E se falhar, encontrarei algum consolo, por pequeno que seja, na certeza de que vocês os dois morrerão ao mesmo tempo que eu.
Cato não deixou de se espantar perante a mudança na disposição de Longino, depois do triunfalismo do seu discurso aos oficiais reunidos. Mas apercebeu-se que era
para aquilo precisamente que os aristocratas romanos se treinavam anos a fio: a actuação perfeita, no tom e no modo, que lhes garantisse a conquista do público,
por muitas dúvidas que albergassem no íntimo sobre a causa que defendiam. E na verdade Longino tinha sido bastante convincente, reconheceu. Aparentemente, fora ele
o único a não se deixar levar pela retórica. Até Macro, profundo conhecedor das dúbias manobras políticas do governador, se tinha deixado levar em certos momentos
pelas promessas de acção e glória.
- Deixem-me. - Ordenou Longino. - Vão lá tratar dos preparativos para a execução.
Fez um gesto casual na direcção da porta. Macro e Cato puseram-se em sentido, saudaram-no e viraram-se, marchando em cadência ao deixar a companhia do governador
da Síria, que a sós ficou, no seu improvisado salão de audiências.
Na pálida luz antes do nascer do Sol, os homens da Segunda Ilírica foram despertados pelos gritos dos optios e centuriões, que percorriam as linhas de tendas e as
abanavam, antes de urrar aos ouvidos dos sonolentos homens que as ocupavam. Vestiram rapidamente as túnicas de lã, os coletes de cota de malha e as botas, e saíram
para o ar frio antes de colocarem os gorros e os capacetes e apertarem as tiras que os seguravam. Por fim, pegaram nos escudos e nas lanças e assumiram as suas posições
nas centúrias que formavam em frente às tendas. Os esquadrões de cavalaria, com as suas espadas mais compridas e as longas lanças, formavam nos flancos. As montadas
não eram necessárias na assembleia que ia testemunhar a execução,
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pelo que ficaram nos estábulos, mastigando alegremente a cevada contida nos sacos que lhes tinham sido pendurados nas orelhas pelos seus cavaleiros assim que estes
se tinham levantado.
Macro, com Cato por perto, percorreu as fileiras, inspeccionando os seus homens. A execução de Crispo era um momento solene. Apesar do legionário ter sido condenado
por assassínio, não deixava de ser um soldado, e ser-lhe-ia mostrado o devido respeito, mesmo na morte. O homem que tinha sido morto era um dos seus camaradas, mas
ainda assim os homens da Segunda Ilírica prestariam a Crispo as honras devidas a um camarada de armas que ia fazer a viagem para o mundo das sombras. Todos os auxiliares
se apresentavam bem ataviados; os capacetes tinham sido polidos na noite anterior, bem como as orlas e as bossas dos escudos, e todas as partes metálicas das bainhas
das espadas. Macro olhou-os, orgulhoso. Não poderia ter arranjado um melhor grupo de homens para comandar, mesmo nas legiões, admitiu a contragosto; e em nenhuma
circunstância proferiria essa opinião em público. O sangue que tinha derramado pela Segunda Legião, os camaradas que tinha perdido ao longo dos anos, tudo isso lhe
deixara uma marca, um profundo amor e devoção às águias que tão bem conhecia.
Ao passar pelo último dos homens, deitou uma olhadela a Cato, que era o oficial directamente responsável pelo aspecto dos homens na parada, bem como por inúmeros
detalhes da administração do acampamento da coorte.
- Belo conjunto de soldados, centurião Cato! - Começou Macro, com a sua voz habituada à parada a fazer-se ouvir até pelo mais distante dos homens. - A própria Guarda
Pretoriana não teria melhor aspecto!
Era o género de retórica fácil que nunca falhava em dar alento aos homens, e Macro piscou o olho a Cato enquanto berrava o seu discurso. Os dois sabiam perfeitamente
que aquelas palavras, mesmo que não tivessem qualquer conteúdo, resultavam, e fariam os homens agir com maior garbo durante todo o dia. Ou, pelo menos, até assistirem
à execução, pensou Cato, sentindo-se miserável. Percebia a razão por trás da punição, mas ainda assim havia uma parte do seu ser que se revoltava perante aquela
forma brutal de pôr fim à vida de um homem. Ao contrário de Macro, não achava qualquer piada aos jogos que políticos ambiciosos praticavam em qualquer povoação ou
cidade do Império. Se havia que morrer, melhor seria para um homem morrer a tentar alcançar algum objectivo. Que Crispo fosse colocado na primeira linha do exército
quando enfrentassem os partos. Nessas condições poderia ao menos morrer em face do inimigo, com a espada em punho, pela honra de Roma, e alcançar a redenção aos
olhos dos seus camaradas.
Cato inspirou profundamente ao escutar o comentário de Macro.
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- Sim, senhor! A ninguém podem ficar dúvidas de que a Segunda Ilírica é a melhor das coortes ao serviço do Imperador!
Virou-se para os homens e incitou-os.
- Quero ouvir-vos!
Os soldados soltaram um tremendo urro colectivo, e bateram com as lanças nos escudos antes de as apoiar no solo, todos ao mesmo tempo. O silêncio repentino fez Macro
sorrir de prazer.
- Sim senhor, centurião Cato, tão bons como os melhores. Saberão os deuses o que eles farão aos partos, mas a mim fazem-me borrar de medo!
Cato e muitos dos homens não conseguiram evitar um sorriso. Macro ergueu a vareta de centurião para lhes atrair de novo a atenção.
- Centurião, leva-os.
- Sim, senhor. - Cato inspirou de novo. - Segunda Ilírica, direita volver!
As dez centúrias de infantaria e os quatro esquadrões de cavalaria colocaram as lanças aos ombros e obedeceram de imediato.
Macro e Cato colocaram-se à frente da coluna, junto ao estandarte e aos dois clarins, com os seus instrumentos de metal retorcido. Macro fez uma curta pausa antes
de ordenar.
- Em frente!
A coorte avançou no pesado ritmo das botas cardadas, a caminho dos portões do campo e da parada exterior. A área designada para a execução ficava no extremo mais
longínquo, onde se viam duas filas de postes distanciados de quase dois metros. Macro conduziu a Segunda Ilírica pela parada e deu ordem de alto.
- Cato, forma-os em três lados do corredor.
- Sim, senhor. - Cato fez a saudação militar e foi curhprir as ordens. Macro tomou o seu lugar na entrada do corredor definido pelos postes, no lado que a coorte
deixara aberto. Quando o último dos homens se alinhava na posição definida de forma a deixar um dos lados da formação aberto, Macro viu uma pequena coluna de soldados
em túnicas vermelhas que deixava o campo e se aproximava. Uma figura era quase arrastada no meio de dois dos homens no centro da coluna. Cada um dos legionários
transportava um bastão de madeira bem grossa e rija, escolhido a dedo nos armazéns. Na retaguarda da coluna vinham o governador e o legado da Décima. Macro mandou
os seus homens colocarem-se em sentido quando a coluna se aproximou, e a coorte apresentou armas assim que Longino se deteve. Amácio encarregou-se de distribuir
os seus homens, cada um junto a um dos postes, enquanto Crispo era conduzido ao início do corredor. Quando todos os homens estavam em posição, caiu um silêncio tenso
sobre o cenário, até que Longino ergueu a mão.
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- Pelo poder que em mim foi investido pelo Imperador, pelo Senado e pelo Povo de Roma, aqui confirmo a sentença de morte a que foi condenado Tito Crispo. Prisioneiro,
tens alguma coisa a dizer antes que a sentença seja executada? - Virou-se para Crispo, mas o legionário respirava pesadamente e tremia enquanto contemplava as duas
filas de camaradas seus que o aguardavam ao longo do corredor. Por fim, o sentido das palavras do governador penetrou através do pavor, e ele levantou o olhar suplicante
para Longino.
- Senhor, imploro-lhe! Poupe-me. Foi um acidente! Juro-o! - As pernas fraquejaram-lhe, e ele caiu pelo solo. - Deixem-me viver!
Longino ignorou a súplica e acenou a Amácio.
- Prossegue.
O legado dirigiu-se a Crispo e deu-lhe uma ordem.
- Levanta-te!
O olhar de Crispo abandonou o governador, e o homem lançou-se aos pés do legado.
- Senhor, por piedade, sou um bom soldado! Conhece a minha folha de serviços. Poupe-me! Não me podem fazer isto.
- Levanta-te! - Urrou Amácio. - Não tens vergonha? É assim que um legionário da Décima enfrenta a morte? De pé. - Puxou a bota atrás e aplicou um pontapé nas costelas
do prisioneiro.
- Ahhhh! - Crispo gemeu de dor e agarrou-se ao lado do corpo. Amácio pegou-lhe no braço e obrigou-o a levantar-se com brusquidão, atirando-o para a entrada do corredor,
onde os seus camaradas o aguardavam, com os bastões bem seguros nas duas mãos. Por momentos reinou o silêncio na parada, apenas perturbado pelo lamento choroso de
Crispo.
- Executem a sentença!
Amácio empunhou a espada e empurrou Crispo. O legionário firmou os calcanhares, enterrando-os na areia, e recusou-se a avançar até que o legado o picou com a ponta
da espada. Crispo gemeu ao ver as duas linhas paralelas formadas pelos seus camaradas e a forma como eles faziam rodar os cajados.
Cato sentira uma sensação de náusea a crescer enquanto observava os preparativos; sussurrou na direcção de Macro.
- Há alguma hipótese de ele conseguir chegar ao outro lado?
- Há sempre essa possibilidade. - Respondeu Macro, sem emoção.
- Alguma vez viu um homem sobreviver a uma coisa destas?
- Nunca.
Amácio preparou a espada para voltar a encorajar Crispo, que gritou ao aperceber-se do facto.
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- Vá, homem! - Incitou Amácio, irritado. - Antes que nos cubras a
todos de vergonha.
Por fim alguma réstia de coragem e desafio apossou-se de Crispo, e o legionário lançou-se para o meio dos homens que o aguardavam. Movendo-se com rapidez e mantendo
a cabeça bem baixa e protegida, evitou os ataques dos dois primeiros pares de homens. Um dos elementos na terceira posição tivera tempo para preparar o bastão e
acertou-lhe no ombro, embora apenas de raspão. O impacto fê-lo perder velocidade e colocar-se na posição ideal para o ataque do legionário seguinte, que o apanhou
em cheio na bacia. Gritou mas prosseguiu, enfrentando o par seguinte. Um deles apanhou-o de novo junto ao ombro, e o outro aplicou-lhe um poderoso golpe nas costelas,
forçando o ar dos pulmões num tremendo grito de dor. Cambaleou debaixo de uma chuva de golpes, aproximando-se do primeiro quarto do percurso. Nessa altura um legionário
baixou-se e esmagou-lhe uma das canelas, e Crispo tombou com um grito. O homem mais próximo avançou e acertou-lhe em cheio, quebrando-lhe o queixo. Sangue e dentes
foram projectados pela areia, enquanto Crispo se enrolava numa bola, tentando proteger a cabeça ferida com os braços. Os seus camaradas olharam para ele e procuraram
indicações do legado.
- Acabem com ele! - Amácio apontou a figura no solo. - Acabem isso!
Os legionários aproximaram-se de Crispo e Cato viu os cajados a subirem e descerem num frenesim de golpes. Gotas de sangue saltavam pelo ar, e as pontas dos bastões
iam ficando cada vez mais vermelhas à medida que eles se encarniçavam sobre o homem no solo. Este tinha deixado de emitir sons ao fim de poucos segundos, felizmente.
Amácio deixou os seus homens continuarem a sua macabra tarefa por um tempo que a Cato pareceu interminável, enquanto o resto das testemunhas permanecia impassível
e em silêncio.
Por fim Amácio ordenou que parassem, e os legionários afastaram-se, exaustos e manchados de sangue. No solo, no meio de uma poça de sangue que empapava a areia,
via-se uma forma que dificilmente se poderia reconhecer como humana. Todos os membros tinham sido partidos, e o crânio fora reduzido a uma polpa, de forma que ossos
e cérebro se espalhavam pela areia como se fossem uma papa de aveia colorida de vermelho e cinzento. Cato forçou-se a engolir a bílis que lhe subira à boca e afastou
o olhar da cena, preferindo passá-lo pela parada, de alto a baixo. Um movimento distante captou-lhe a atenção e fê-lo semicerrar os olhos, acabando por distinguir
um cavaleiro que galopava em torno de um dos cantos da fortaleza e se dirigia à parada e mais especificamente ao local da execução e à zona onde se encontrava a
Segunda Ilírica. Ao escutarem
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o som dos cascos, todos os oficiais e homens voltaram o olhar para o cavaleiro.
- Temos chatice. - Comentou Macro, ao notar a ligadura suja que o cavaleiro trazia em redor do crânio. No último momento o homem refreou a montada, espalhando poeira
e cascalho. Fez a saudação regulamentar e remexeu imediatamente por dentro da túnica.
- Quem és tu? - Exigiu saber Longino.
O homem lambeu os lábios secos antes de responder.
- Sou o tribuno Gaio Carínio, destacado da Sexta Legião, senhor. Venho de Palmira. - Encontrou por fim aquilo que procurava e extraiu uma tábua encerada do interior
da túnica, entregando-a ao governador. - Um despacho do embaixador Lúcio Semprónio, de Palmira, senhor.
Longino pegou na tábua. Olhou com mais atenção para o homem.
- O que é que aconteceu por lá?
O homem engoliu com dificuldade, enquanto procurava ainda recuperar o fôlego.
- Houve uma revolta em Palmira, senhor. Simpatizantes dos partos. Tencionam depor o rei e rasgar o tratado com Roma.
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Cato observou o tribuno enquanto este se instalava numa das cadeiras que tinham sido colocadas em arco no gabinete do governador. Depois avaliou os outros oficiais
que tinham sido convocados por Cássio Longino. Estavam lá Amácio e os comandantes das outras coortes auxiliares que estavam no acampamento, e ainda Macro e, sobretudo,
ele próprio. Interrogou-se sobre o motivo da sua inclusão.
Longino fez um gesto na direcção do tribuno, que ainda mostrava bem os efeitos da longa cavalgada que realizara. Tivera apenas tempo para se refrescar brevemente
enquanto era solicitada a presença dos oficiais nos aposentos do governador.
- Carínio, por favor. Diz-lhes o que me disseste enquanto aguardávamos a sua chegada à reunião.
O indigitado acenou em concordância e limpou a garganta.
- Há cinco dias, o filho mais novo do rei Vabathus, o príncipe Artaxes, anunciou à corte em Palmira que ia suceder ao seu pai no trono. - Fez uma pausa que conjugou
com um breve sorriso. - O problema é que ele é o mais jovem de três irmãos, e portanto não é ele que se encontra na linha directa para herdar o trono. Sucede porém
que o filho mais velho, Amethus, não possui qualquer capacidade política, e que o filho do meio, Balthus, passa os dias a caçar, a beber e a perseguir as mulheres
da corte. Artaxes ficou com toda a inteligência da família, e é claramente uma grande ameaça a Roma. Em criança foi enviado para leste, para ser educado na corte
da Pártia. Ao que parece, durante essa educação, aprendeu a odiar profundamente Roma, e agora conseguiu persuadir muitos nobres de Palmira a apoiarem essa opinião.
- Estou a ver. - Assentiu Amácio. - Mas por certo que o rei não pode tolerar um tão grande desafio à sua autoridade?
Longino tamborilou com os dedos sobre a tábua encerada que lhe fora enviada pelo questor romano que desempenhava o papel de embaixador de Roma na corte do rei Vabathus.
- O rei está velho. E Artaxes é o seu favorito. A única coisa que o impede de o apoiar é a sua lealdade para com Roma. Mas não há forma de
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saber até onde irá essa lealdade na presente situação. Segundo o embaixador Semprónio é Thermon, o ministro, que governa realmente em nome do rei. E nesse podemos
confiar. Desde que continue a receber o nosso dinheiro, de forma discreta, claro. Ainda segundo o embaixador, Artaxes exigiu que a coroa lhe fosse entregue de imediato.
O ministro opôs-se-lhe, e já houve alguns confrontos entre os seguidores das duas facções. Artaxes conseguiu ganhar para o seu lado um dos generais, e já tem cerca
de um milhar de homens. Thermon só pode contar com a guarda pessoal do rei e com os servidores dos nobres que se mantêm fiéis ao soberano. Além do Semprónio e das
suas forças, claro. Recuaram para a cidadela, uma fortaleza dentro da cidade, com o rei e o seu filho mais velho.
- E quanto ao outro filho, o caçador? - Quis saber Cato. - O que é feito dele?
Longino virou-se para o tribuno.
- O que é que sabes dele?
- Balthus estava no norte do território, numa caçada, quando Artaxes avançou. Quando o questor me enviou com as novidades ainda não havia notícias dele, senhor.
- Uma pena. - Comentou Macro. - Dava-nos jeito tê-lo do nosso lado.
- Não estaria tão seguro disso. - Contrariou o tribuno. - Balthus não morre de amores por Roma. A nossa sorte é que ele odeia os partos, e a nós só nos detesta.
Macro inclinou a cabeça.
- Bem, há sempre aquela história acerca do inimigo do meu inimigo... Ele podia vir a ter alguma utilidade.
- Talvez, sim. - Considerou Longino. - Mas só o usaremos se tivermos absoluta necessidade disso. A última coisa de que Roma precisa é de se livrar de uma ameaça
para pôr outra no seu lugar. Seja como for, tanto quanto sabemos, o rei e os seus aliados estão encurralados na cidadela em Palmira. Segundo a mensagem do Semprónio,
têm mantimentos e água em quantidade e, a menos que Artaxes consiga deitar a mão a algumas máquinas de cerco, devem conseguir manter a cidadela em seu poder ainda
por mais algum tempo. Podemos evidentemente assumir que os nossos amigos partos foram avisados com antecedência das intenções de Artaxes. E mesmo que não tenha sido
esse o caso, as notícias hão-de chegar-lhes dentro de poucos dias. Assim sendo, e na melhor das hipóteses, senhores, temos uma pequeníssima vantagem. É fundamental
que apoiemos o rei Vabathus.
Amácio abanou a cabeça.
- Senhor, o exército ainda não está preparado. As outras legiões ainda
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nem deixaram as suas bases. Mesmo a Décima não está pronta para marchar. Muitos dos meus homens ainda estão em destacamentos e levarei alguns dias a concentrar
todas as forças. E o mesmo se passa com a maior parte das coortes auxiliares. Algumas acabam de chegar.
- Mas há uma coorte em condições de avançar. - Retorquiu Longino.
- A Segunda Ilírica. Não é assim, prefeito?
Macro sobressaltou-se, mas depois anuiu, inclinando-se para a frente enquanto falava.
- Os meus rapazes podem estar a caminho de Palmira em menos de uma hora, senhor. Se nos apressarmos, podemos lá chegar em dez dias.
- Óptimo. Então será mesmo isso que faremos. - Decidiu Longino.
- A Segunda Ilírica partirá imediatamente para Palmira, e o resto do exército começará a preparar-se para a seguir. As outras legiões seguirão assim que estiverem
prontas.
- Senhor, isso está muito bem. - Contrariou Cato. - Mas o que fará exactamente a Segunda Ilírica quando chegar a Palmira? Estará em inferioridade numérica, e muito
provavelmente os rebeldes terão o controlo das muralhas da cidade. Assim sendo, que auxílio poderemos prestar aos que estão encurralados na cidadela?
- A vossa missão será a de os reforçar, centurião. Ajudar Vabathus a aguentar a situação até à chegada da força principal.
- Mas, senhor, mesmo que consigamos penetrar na cidade, teremos que abrir caminho por entre as ruas até chegar à cidadela.
- Pois, suponho que sim.
Cato olhou para o governador, sentindo-se impotente. Era evidente que o homem não fazia ideia do que estava a pedir à Segunda Ilírica.
Macro veio em seu auxílio.
- O miúdo tem razão, senhor. Não há qualquer hipótese de que uma coorte consiga cumprir uma missão dessas sozinha.
Longino sorriu.
- E é por isso mesmo que não vou enviar apenas a Segunda Ilírica. Macro, eu não sou nenhum idiota. Percebo as dificuldades da missão de que vos encarrego. E não
envio ninguém em missões suicidas. Isso não seria muito bem visto em Roma. Portanto, para além da Segunda Ilírica, vou enviar também uma coorte da Décima Legião,
com o respectivo esquadrão de batedores montados. Agora, e uma vez que o centurião Castor foi abatido durante a missão que desempenhava, a coorte precisa de um novo
comandante. Decidi que tu és o homem indicado para essa posição. Portanto, serás tu a comandar a coluna de socorro.
- E quem comandará a Segunda Ilírica? - Indagou Macro.
Longino apontou para Cato.
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- O teu adjunto. Até que esta crise tenha fim, nomeio-o prefeito interino.
- Ele? - As sobrancelhas de Amácio arquearam-se. - É demasiado jovem. Inexperiente. Seria melhor que Macro continuasse no comando dos seus auxiliares, senhor, e
que um outro oficial da Legião substituísse Castor.
- Não, a minha decisão está tomada. Macro é o melhor homem disponível para o lugar. E não temos tempo a perder com debates. A coorte do Castor e a Segunda Ilírica
devem partir de imediato. Senhores, estas são as minhas ordens. Macro, o meu pessoal dar-te-á instruções escritas antes de deixares o campo. Os outros terão as ordens
por escrito assim que tiverem sido lavradas. Esta reunião está encerrada.
- Bom, a que conclusão chegas depois desta história toda? - Macro fez sinal com o polegar na direcção dos aposentos do governador, enquanto descia a rua lado a lado
com Cato. - Enviar uma coluna avançada para salvar o couro ao rei de Palmira é uma das mais estúpidas ideias que alguma vez ouvi.
- Então porque é que não o disse enquanto podia?
Macro deitou um olhar penetrante ao amigo.
- Cato, nós não fazemos política, limitamo-nos a seguir ordens. Além disso, é capaz de resultar. Se conseguirmos arranjar maneira de furar até à cidadela.
- Se? - Cato abanou a cabeça. - Um se grande como a porra...
Macro manteve-se em silêncio por instantes, antes de explodir numa
gargalhada forçada.
- Ora, Cato, tu ouviste-o. Se há alguém capaz de o fazer, sou eu. O melhor homem para o lugar. Foram estas as suas palavras exactas.
- Acha mesmo?
Macro mordeu os lábios.
- Seria magnífico, se fosse verdade. Talvez o Longino pense que é verdade.
- Talvez. - Concordou Cato, sem entusiasmo. - E talvez ele pense apenas que esta é com toda a certeza a melhor ocasião de que vai dispor para se ver livre de nós.
- Hà?
- Há que admirar o plano do homem. - Prosseguiu o jovem. - Seria fácil enviar-nos para uma morte certa, bastava despachar apenas a Segunda Ilírica para Palmira.
Mas ele tem razão, Narciso ia perceber essa jogada num instante. A aniquilação deliberada dos seus dois agentes na Síria não faria mais do que confirmar as suas
suspeitas sobre ele. Assim, pode sempre
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dizer que enviou uma força suficiente para a missão de que nos incumbiu. Quem é que em Roma duvidará de que uma coorte de legionários chega para forçar a entrada
numa cidade do deserto? Se tivermos sucesso, ele colherá os louros por uma acção rápida e decidida. Se não tivermos, o ónus do falhanço recairá sobre nós. Isso se
sobrevivermos, claro. A nossa destruição, por outro lado, dará peso aos seus repetidos apelos para reforços. Oh, sim, este Longino é um tipo astuto.
Macro estacou de repente e virou-se para o amigo.
- Cato, não me digas que pensaste nisso tudo agora mesmo?
Cato confirmou, com um sorriso amarelo.
- Pois, e o pior é que me parece fazer todo o sentido.
- A sério? - Macro lançou um suspiro. - Sabes, também é possível que Longino acredite simplesmente que esta ideia vai resultar. Que a nossa força vai conseguir surpreender
o inimigo e que podemos ajudar o rei a aguentar a situação até à chegada do resto do exército.
- Partindo do princípio de que ele põe o exército em movimento a tempo de nos salvar.
- Porra, Cato, caraças! - Irritou-se Macro. - Porque é que para ti há-de ser tudo uma conspiração? Porque é que partes do princípio de que todo e qualquer tipo acima
do posto de centurião está metido num esquema para chegar a Imperador?
As pessoas que passavam na rua olhavam para eles, e Cato sussurrou.
- Baixinho!
- Porque senão...? Alguém nos vai denunciar aos agentes do Narciso? Cato, somos nós os cabrões dos agentes. Portanto, digo o que me apetece, mais nada. Porque é
que achas que todos os senadores estão envolvidos nalguma conspiração?
- E como sabe que não estão?
- Oh, vá lá! - Exasperado, Macro retomou a marcha pela rua. - Não temos tempo para isto. Vamos embora.
Caminharam em silêncio por momentos, até que Macro estalou os dedos.
- Olha, e o Vespasiano?
Cato recordou o legado da Segunda Legião, sob cujas ordens tinham combatido aquando da invasão da Britânia. A família de Vespasiano tinha sido promovida à classe
senatorial havia poucos anos, e por isso ele tinha uma muito maior compreensão dos homens que comandava.
- O que tem ele?
- Um tipo às direitas, como poucos. Um soldado até à medula. Nem um pozinho de política.
Cato ponderou por momentos, e depois abanou a cabeça.
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- Um aristocrata como todos os outros. São alimentados a política desde o berço. Mas concordo consigo. Parecia um tipo honesto. Ainda assim, não ficaria espantado
se até Vespasiano nos viesse a pregar uma partida, no fim das contas.
Macro fungou, desdenhando das ideias do amigo enquanto prosseguiam em passo rápido e em silêncio até ao acampamento da coorte.
Assim que lá chegaram, Macro convocou todos os centuriões e explicou-lhes a situação, confirmando a nomeação temporária de Cato como prefeito.
- Vejo-te lá fora, na estrada. Nada de demasiado equipamento, quero-os leves. Armas, equipamento mínimo, rações. Os mantimentos podem seguir nas carroças.
- Sim, senhor. Compreendido. Não levarão mais do que o necessário.
- Muito bem. - Macro deu uma palmada amigável no ombro de Cato. - Para mim, é chegado o momento de regressar às Águias.
Deixou o subordinado a dar ordens aos homens para que se preparassem para levantar o acampamento, e seguiu para tomar o comando da coorte da Décima Legião que anteriormente
fora do malogrado Castor. O escrivão do governador estava à sua espera à porta da tenda de comando da Legião. Tinha vindo a correr a toda a brida desde os aposentos
do general na cidade, e ofegava enquanto entregava a Macro uma tábua selada.
- Senhor, a sua autoridade para assumir o comando... E as ordens do general.
Macro deu um curto aceno de cabeça e entrou na tenda. Lá dentro, um par de veteranos estava sentado à mesa, e assim que viram surgir o oficial esforçaram-se imediatamente
por aparentar estarem muito atarefados. Macro apontou para o mais próximo.
- Tu! Vai chamar os meus oficiais. Quero-os todos aqui, imediatamente. Diz-lhes que a coorte tem um novo comandante. E tu, vai avisar os optios, e diz-lhes que quero
os homens rapidamente preparados para uma marcha dura. - Sorriu. - E para um combate ainda mais duro.
Assim que os homens formaram, Cato passou uma inspecção aturada a cada centúria. O homem que tinha seleccionado para seu adjunto, o centurião Parmenião, era o mais
velho e experiente dos oficiais da unidade de auxiliares, e acompanhou-o passo a passo com um estilete e uma tábua, pronto para tomar notas de acordo com os desejos
do novo comandante. Era engraçado, reflectiu Cato. Ainda naquela manhã era ele quem ocupava aquele lugar, e conhecia bem o peso que caíra sobre os ombros do veterano.
Porém, esse parecia bem leve quando comparado com o que agora assentava sobre os seus próprios ombros. Mais de oitocentos homens o olhavam, e
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não deixariam de o comparar directamente com Macro. Um difícil padrão, considerou, sombrio. Ainda assim, ele não era um comandante novo, vindo de fora, ansioso por
demonstrar o seu valor perante a coorte. Há quase um ano que servia na Segunda Ilírica, e combatera ao lado de quase todos aqueles homens. Portanto, eles conheciam-no,
e há muito que o tinham aceite. Todavia, não conseguia afastar a ideia de que agora o avaliariam de outra forma, e que o observariam com toda a atenção para saber
se ele merecia ser o seu prefeito, ainda que interino.
O olhar de Cato foi atraído por uma figura que oscilava ligeiramente na formatura, pouco à frente. Acelerou o passo e postou-se repentinamente em frente do auxiliar.
- Nome?
O homem, que já não era um jovem, e que Cato reconheceu como um dos novos recrutas que Macro aceitara, empertigou-se e tentou manter-se tão firme quanto possível,
mas o fedor a vinho barato traiu-o.
- Públio Galeno, senhor.
- Ora bem, Galeno, dir-se-ia que não estás propriamente sóbrio.
- Não, senhor.
- Estás consciente de que apresentares-te ao serviço em estado de embriaguez é uma ofensa grave?
- Sim, senhor.
- Nesse caso, não te surpreenderá saber que vais ter uma semana de faxinas extra, e que vais pagar uma multa de dez dias de salário.
- Senhor, não é justo. - Resmungou Galeno. - Há uma hora eu não estava de serviço. Nem eu nem nenhum dos rapazes. Estávamos a pensar ir passar a noite à cidade,
e resolvi humedecer os lábios antes de ir - sabe muito bem o que nos levam aqueles sacanas dos mercadores locais por uma mísera ânfora - quando de repente soa o
toque de formatura e, bem... - Olhou de relance para Cato. - E cá estamos, senhor.
- De facto.
Por um instante, Cato esteve à beira de cancelar o castigo ao homem. Galeno tinha alguma razão. Não lhe podia ser apontada responsabilidade pelas decisões repentinas
do comando. Por outro lado, Cato já tinha tomado uma decisão, e recuar seria admitir uma precipitação. Perguntou-se o que faria Macro, mas a resposta era clara.
- Parmenião. Assinala aí o castigo deste homem. Fossem quais fossem as circunstâncias, estar bêbado em serviço é uma falta grave.
Galeno franziu o cenho e não evitou pronunciar-se.
- Senhor, não é justo.
Cato continuou a dirigir-se a Parmenião.
- Adiciona-lhe dez noites de serviço de piquete, por insubordinação.
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A maxila de Galeno descaiu de espanto, até que uma reserva de autocontrolo o salvou de pior destino e o homem fechou a boca, enquanto Parmenião tomava notas rápidas
com o estilete. Cato prosseguiu. Concluiu a revista e deu-se por satisfeito: cada homem levava apenas o equipamento necessário e as rações, em respeito às ordens
recebidas. Montou então o cavalo que um impedido mantinha à sua espera, e dirigiu-se a trote para a cabeça da coluna.
- Segunda Ilírica! - Bradou, antes de uma ligeira pausa para gozar a sensação de ser agora o prefeito Cato, prestes a conduzir os seus homens para o combate. - Avançar!
A coorte auxiliar marchou através dos portões do campo militar e tomou a estrada para Palmira. Ainda não era meio-dia, mas o Sol já se abatia impiedosamente sobre
a terra ressequida, e a habitual poeira levantada pelas botas cardadas dos soldados e pelos cascos dos cavalos ficava a pairar no ar como se fosse nevoeiro.
Ao contornarem a esquina da fortaleza, Cato viu que a coorte de Macro já estava formada na estrada, à espera. A Segunda Ilírica juntou-se-lhe, assumindo posição
na retaguarda da coluna, enquanto Macro se dirigia a Cato, erguendo a mão numa saudação formal.
- O que é que te atrasou?
Cato ergueu as sobrancelhas e respondeu com boa disposição.
- Senhor, viemos o mais depressa possível.
Macro franziu o sobrolho, e Cato apercebeu-se de que o amigo já tinha mais uma vez assumido o papel do profissional austero, preparado para a acção.
- Desculpe, senhor. Não voltaremos a demorá-lo.
- Assegura-te de que isso não acontece. - Macro virou-se e acenou na direcção da estrada que se estendia à frente da coluna até se perder na distância. - Enfrentamos
uma dura caminhada, e um árduo combate espera-nos ao fim dela, Cato. Não tenhas dúvidas, esta vai ser a mais dura das campanhas em que estivemos metidos até agora.
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Macro conduziu as duas coortes num ritmo implacável, avançando
para as colinas ressequidas a leste de Antióquia. Durante o dia o Sol abatia-se ferozmente sobre a pequena coluna, e à noite a temperatura descia de forma abrupta,
fazendo os homens tiritar enquanto se juntavam em torno das fogueiras e roíam as rações de carne seca e pão duro. Na primeira noite os soldados queixaram-se amargamente
de dormirem ao relento, e depois de uma noite desconsolada viram-se forçados a retomar a marcha ainda as estrelas luziam no negro aveludado do céu nocturno. No dia
seguinte Macro não permitiu mais do que um brevíssimo descanso ao meio do dia, de forma a que, quando a coluna finalmente se imobilizou por falta de luz suficiente
para prosseguir, os homens estavam tão fatigados que nem se lembraram de protestar pela falta de tendas. Limitaram-se a deixar-se ficar onde estavam, formando linhas
mal definidas, a largarem o equipamento e a aninharem-se no solo, caindo quase imediatamente no sono. E por ali ficaram até serem acordados para os respectivos turnos
de sentinela.
As ordens de Longino eram bem explícitas quanto à necessidade de rapidez. Era exigido a Macro que marchasse o máximo de horas possível por dia, e que não se desse
ao trabalho de construir campos fortificados ao fim de cada jornada. Todos os anos de experiência de campanhas faziam-no sentir-se dilacerado perante a necessidade
de sacrificar a segurança à velocidade de deslocação. Para compensar a ausência de fossos e paliçadas, tinha dobrado o número de sentinelas e mantinha de prevenção
um piquete de cavalaria para acorrer a qualquer emergência. A sobrecarga de turnos de sentinela ajudava à exaustão provocada pelos longos dias de marcha, de forma
que no segundo dia já havia um pequeno grupo de soldados a atrasar-se, e a só alcançar o resto da coluna tarde na noite.
- Isto ainda vai piorar. - Resmungou Cato, enquanto observava os vultos dos últimos a chegar às apalpadelas no meio das linhas de homens já deitados sobre o solo
pedregoso, à procura das respectivas unidades. - Daqui a mais um ou dois dias já nem conseguem juntar-se à coluna. Vão ficar espalhados pela estrada. Presas fáceis
para quaisquer bandidos, ou para patrulhas inimigas.
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- Não há nada a fazer. - Retorquiu Macro antes de bocejar, enquanto se recostava contra a sela e puxava a pesada capa militar para cima do peito. - Em qualquer coorte
há sempre uns tipos mais preguiçosos. E bastam uns diazitos de marcha para os fazer vir ao de cima.
- Preguiçosos? - Cato abanou a cabeça. - Vi alguns homens perfeitamente válidos a ficarem para trás esta tarde. Se mantivermos este ritmo, os homens que conseguirem
chegar a Palmira na coluna não vão de certeza estar em condições de combater.
- Oh, hão-de combater. - Ripostou Macro, confiante. - Se não quiserem ser mortos.
- Quem me dera ter o mesmo optimismo.
Macro virou-se para o jovem com uma expressão divertida que não escapou a Cato, mesmo à fraca luz das estrelas.
- O que é? Disse alguma coisa engraçada?
- Quem é que disse que eu sou optimista? Só te estou a dizer como são as coisas. Como sempre foram para um soldado em campanha. Achas que tivemos uma vida difícil
na Britânia? Comparado com este deserto, isso foi um passeio pelo fórum. Este terreno é tão perigoso como o inimigo. Quando chegarmos a Cálcis, ainda nos faltarão
mais de cento e cinquenta quilómetros até Palmira. - Macro deitou-se para trás, colocando um braço por baixo da cabeça. - Esta tem sido a parte fácil, Cato. Espera
até chegarmos ao verdadeiro deserto. Nessa altura tu e os homens vão ter mesmo do que se queixar. Nem pensar em procurar água pelo caminho, se quisermos seguir as
instruções. Quando deixarmos Cálcis, os homens terão que levar água para uns cinco ou seis dias. Não faço ideia em que estado chegarão a Palmira. Mas sei que terão
que enfrentar o combate das suas vidas.
- Seria portanto boa ideia dar-lhes uma oportunidade de descansar antes do combate. - Insistiu Cato. - Estes turnos duplos não ajudam nada. Ainda estamos longe de
Palmira.
- Cato, viste muito bem a facilidade com que aquele príncipe parto e os seus homens se esgueiraram por entre os nossos postos de vigia e se apresentaram à porta
do governador. - Macro apontou para o horizonte com o polegar. - Quem te diz que eles não estão ali à espreita agora mesmo? À espera de uma oportunidade para atacar?
Não vou correr esse risco.
- Ponderou mais uns momentos. - Aliás, o melhor é daqui para a frente não fazermos fogueiras. Só para o caso do inimigo estar mesmo nas proximidades. Prefiro ter
os homens gelados e derreados do que vê-los mortos. Além disso... - Um bocejo interrompeu-o. - Temos dificuldades mais imediatas.
- Oh?
- Pois. Os oficiais e os homens da minha coorte não ficaram lá muito
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felizes por me verem nomeado comandante. Como se a execução do Crispo não bastasse, ainda levaram com o anterior comandante da vítima do Crispo. Foi uma espécie
de bofetada para eles. E faz-me pensar se o governador não estaria a tentar arranjar-nos ainda mais problemas neste passeio até Palmira.
- Não me espantaria nada. - Assentiu Cato, desanimado. - Mais uma torçãozita na faca. O que é que eles andam a dizer, então?
- À minha frente, nada. É mais o tom dos comentários, e o ambiente fúnebre sempre que me aproximo. Como é evidente, estou-me a cagar de alto para os sentimentos
que eles nutrem por mim. Só têm é que fazer o que eu mandar. Ainda assim, será boa ideia estarmos atentos a quaisquer confusões que surjam entre legionários e auxiliares.
A última coisa de que precisamos é que os homens andem desconfiados uns dos outros, quando têm que se concentrar no inimigo.
- É bem verdade. - Cato lançou um último olhar sobre o acampamento improvisado, antes de se deitar no solo e tentar arranjar uma posição confortável debaixo da capa.
Apesar do calor diurno, as noites eram gélidas, e não conseguiu evitar um tremor de frio. Sabia perfeitamente que ia levar algum tempo até adormecer, se o conseguisse
de todo.
- Macro?
- Hum? - Respondeu o amigo, sonolento. - Que é? Que se passa?
- Quais são os seus planos para quando chegarmos a Palmira?
- Planos? - Macro fez uma pausa antes de responder. - Bem, o Longino não tinha grande coisa a dizer sobre esse momento. Temos que abrir caminho até à cidadela e
mantê-la na nossa posse até à chegada do exército.
- Isso, partindo do princípio que Artaxes e os seus seguidores ainda não a conquistaram.
- Claro.
- E se já o tiverem feito?
- Nesse caso, estamos tramados. Já não teremos água, portanto nem vale a pena pensar numa retirada. Teremos que conquistar a cidade, ou então rendermo-nos. - Macro
deu uma gargalhada. - Sempre a mesma história. A morte, ou a desgraça. Grande escolha, hã?
- Grande escolha, sim. - Concordou Cato, absorto.
- Bom, não há nada a fazer quanto a isso. - Concluiu Macro. - Portanto, faz-me o favor de te calares e vê se dormes. Bem precisamos.
Virou-lhe as costas e puxou de novo a capa, envolvendo o corpo maciço. Pouco depois já estava a dormir, e o seu profundo ressonar juntava-se ao coro dos outros homens
adormecidos, aqui e ali interrompido por um diálogo em surdina travado por soldados que não conseguiam dormir, ou pelo resfolegar e relinchar que vinha da zona onde
estavam os cavalos. Só
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Cato não conseguia conciliar o sono, preocupado com a situação. Tudo parecia jogar contra eles, e embora entendesse a necessidade de enviar uma coluna de socorro
para Palmira, parecia-lhe que aquele gesto do governador mais não era do que uma medida desesperada. O rei Vabathus podia até já estar morto, bem como o embaixador
e o seu séquito. Naquele preciso momento, Artaxes podia estar a consolidar o seu poder e a abrir as portas do reino aos partos. Se tal sucedesse, o frágil equilíbrio
de poder que tinha assegurado a paz na parte oriental do Império seria estilhaçado. A Pártia poderia então concentrar o seu veloz exército na própria fronteira da
Síria e ameaçar directamente os territórios sob domínio romano, da Arménia ao Egipto. O Imperador Cláudio ver-se-ia obrigado a reforçar os exércitos do oriente,
o que por sua vez se traduziria num tremendo gasto e, ao mesmo tempo, no enfraquecimento da fronteira do Reno, já subguarnecida. Mas seria isso ou permitir que a
Pártia passasse a dominar vastas áreas, o que levaria à ira da populaça e dos rivais políticos em Roma.
Tudo aquilo poderia ter sido evitado, compreendeu Cato. Se Roma se tivesse contentado em deixar Palmira na posição de tampão entre o Império e a Pártia, a paz podia
ter-se mantido, por pouco sólida que fosse. Mas assim que o tratado com o rei Vabathus fora assinado, o confronto com a Pártia tinha ficado assegurado. Sentiu uma
raiva fria a crescer dentro de si ao imaginar a complacência dos políticos em Roma, na sua vida de luxo, muito longe das consequências que as suas batalhas pelo
poder provocavam. Talvez tivessem calculado que os planos que tinham para Palmira justificavam o risco de provocar os partos; para eles, era apenas mais uma inócua
jogada dos dados. Ali na fronteira, contudo, a aposta era feita com vidas, as vidas dos homens que dormiam na escuridão em redor. Homens cuja resistência seria levada
ao limite nos dias que aí vinham, antes mesmo de terem uma oportunidade de enfrentarem o inimigo. Se triunfassem, um marcador seria muito levemente deslocado sobre
o mapa do Império que se podia ver no palácio de Cláudio em Roma. Se fossem derrotados, o marcador seria simplesmente removido do mapa e atirado fora.
Sorriu amargamente perante essa ideia, e amaldiçoou-se por ser capaz de tanto desprendimento, por ser capaz de pesar as acções em que estava envolvido à luz do contexto
global. Mirou Macro, que dormia despreocupado, com inveja. Por fim, muito depois de quase todos os outros se terem aquietado e adormecido, Cato mergulhou num sono
perturbado sobre o solo frio e duro.
No dia seguinte a coluna deixou para trás as colinas e abordou a planície poeirenta por onde serpenteava a estrada para Cálcis. Apesar de todas as
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preocupações de Macro, apenas se cruzaram com as habituais caravanas de mercadores, que aproveitaram para vender fruta e vinho aos soldados, a preços tremendamente
inflacionados. O número de atrasados aumentava sem cessar, e quando chegaram a Cálcis, três dias depois de terem deixado Antióquia, Cato verificou que o efectivo
da Segunda Ilírica se encontrava desfalcado de oito homens, que não se tinham apresentado a tempo à chamada matinal. Sentou-se à sombra das palmeiras que orlavam
o pequeno lago em cujas margens se situava a cidade. Como outras cidades na rota das caravanas, Cálcis vivia das taxas que cobrava às caravanas de camelos que passavam
pelo seu território, e os seus habitantes desfrutavam de invejáveis niveis de conforto. Porém, agora que as notícias da revolta em Palmira e do inevitável conflito
entre Roma e Pártia se espalhavam entre a população, havia uma pequena multidão à espera para ver a coluna romana quando esta chegou à povoação e fez alto para descansar,
e para encher os cantis e os sacos de água no lago.
Cato compreendia perfeitamente a ansiedade dos habitantes locais. O isolamento, que tanto os beneficiava em tempo de paz, tornava a cidade extremamente vulnerável
quando a guerra se instalava na região, e a sua importância estratégica significava que os dois lados a tentariam ocupar. Os lucros do comércio desapareceriam, e
a cidade enfrentaria tempos difíceis, que podiam mesmo pôr em causa a sua sobrevivência. O jovem focou a atenção nos números de efectivos que se podiam ler na tábua
encerada que o centurião Parmenião lhe apresentava.
- Agora foram mais oito. Quantos mais vamos perder até chegarmos a Palmira?
- Senhor, quer que envie um esquadrão de cavalaria para os recolher?
Cato considerou a possibilidade por breves instantes, mas abanou a cabeça.
- Não; se eles conseguirem, seguir-nos-ão até nos alcançarem. Mas não estou para perder mais homens, e é o que vai acontecer se começar a mandar grupos de busca
de cada vez que isto acontece. Assinala-os como ausentes sem licença. Se não nos alcançarem até amanhã de manhã, marca-os como desertores.
- Muito bem, senhor. - Parmenião escrevinhou uma nota na tábua e Cato observou-o, antes de se lhe dirigir de novo, mas desta vez em voz baixa.
- Que tal estão os homens?
Parmenião encarou-o, e depois deu uma rápida olhadela em redor, para se certificar de que ninguém os ouvia.
- Não estão mal, tendo em conta as coisas.
- Quais coisas?
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O adjunto acenou na direcção dos legionários que descansavam debaixo das palmeiras, a curta distância dos homens e cavalos da Segunda Ilírica.
- Ainda há muita animosidade à conta daquela história de Antióquia. Os legionários aproveitam todas as ocasiões para provocarem os nossos rapazes. Para dizer toda
a verdade, estão mortinhos por se pegarem.
- Quem, os nossos ou os do Macro?
- Todos. - Parmenião esfregou a barba que lhe nascia no queixo. - Não será preciso grande coisa para se atirarem uns aos outros.
- Temos que garantir que isso não sucede. - Sublinhou Cato com firmeza. - Passa a palavra aos outros centuriões e optios. Não podemos tolerar nenhuma confusão. Se
algum dos homens provocar uma luta, caio-lhe em cima como uma montanha em derrocada. Assegura-te que todos percebem a ideia.
- Sim, senhor.
- Muito bem, Parmenião, então é tudo. Prossegue.
O adjunto fechou as tábuas enceradas, saudou-o e dirigiu-se depois para as carroças de mulas onde eram transportados os registos da coorte, o dinheiro para pagar
aos soldados e uma reserva de armas e rações. Um grupo de auxiliares ocupava-se a arrumar bexigas repletas de água e cestos de frutas e carne seca compradas no mercado
da cidade. Cato observou-os por momentos, e interrogou-se sobre a justeza dos cálculos que fizera quanto aos abastecimentos necessários para os seus homens atravessarem
o deserto até Palmira. Tinham sido difíceis. Dentre todos os tipos de abastecimentos que um comandante tinha a considerar para manter os homens em condições, era
a água a mais difícil de avaliar, dado o seu peso e a prodigiosa facilidade com que se escoava pela mais pequena fresta. Se levassem demasiada água, isso atrasaria
a caminhada. Se fosse de menos, e a coluna tivesse que enfrentar uma tempestade de areia, ou uma força inimiga, que a retardassem, a água poderia esgotar-se, e os
soldados sofreriam as agonias da sede, que as condições naturais do deserto depressa agravariam até à loucura.
Notou uma mancha vermelha pelo canto do olho, e avistou Macro a atravessar os portões da cidade e a dirigir-se para a coluna. Quando chegou ao pé das carroças reparou
em Cato e virou na sua direcção.
- Não te levantes! - Gritou, ao reparar que Cato fazia menção de se erguer e colocar em sentido. No momento seguinte foi ele que se agachou pesadamente junto ao
amigo enquanto desapertava o nó que prendia o capacete e o tirava com um suspiro de alívio.
- Isso era mesmo preciso? - Indagou Cato. - Estou a falar do capacete.
- Parece-me que sim. - Macro enxugou a testa suada com as costas
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do antebraço. - Tenho quase a certeza de que algures em Cálds existe algum miúdo com uma funda e muita simpatia pelos partos. Para que me hei-de eu arriscar?
- Bom, tem razão. Há notícias de Palmira?
Macro tinha estabelecido como prioridade uma visita ao conselho que governava Cálcis, e assim que a coluna chegara à cidade tinha-a cumprido. Baixou o braço e assentiu:
- Um mercador grego chegou cá esta manhã com a família. A situação em Palmira não parece nada favorável às nossas cores. O rei e os seus seguidores ainda controlam
a cidade, mas as ruas pertencem a Artaxes. Ao que parece, ele não tem lá grande controlo sobre as suas tropas, e já começaram a saquear a cidade. Por isso é que
este tipo se veio embora. Tem filhas ainda jovens. Provavelmente tomou a melhor opção.
Cato concordou com um aceno.
- Além disso, ele deu-me um mapa da cidade. - Prosseguiu Macro, enquanto desenrolava um papiro que transportara por dentro da armadura. Colocou-o sobre o solo e
prendeu os cantos com pedras, enquanto Cato se debruçava sobre o desenho e o examinava rapidamente. Era óbvio que tinha sido elaborado à pressa e não mostrava grande
detalhe. Tudo o que tinha sido desenhado era o contorno das muralhas e a localização dos bairros mais importantes.
- Não é lá grande coisa. - Assinalou.
- Pois, mas é tudo o que temos, por agora. O grego fez o melhor que pôde, estou certo. - Macro olhou para o amigo com um sorriso de cumplicidade. - Antes que perguntes,
fiz-lhe ver que precisávamos de alguém que conhecesse a região e que ele bem podia servir-nos de guia.
- E ele?
- Respondeu-me com uma linguagem, digamos, colorida. Apesar de todos os meus esforços no estudo do grego nos últimos meses, usou uma palavra que eu não conhecia.
Numa palavra mais habitual, e para resumir: não.
- Uma pena.
- Mas ainda assim deu-me mais algumas informações. - Macro apontou para o semicírculo achatado que era descrito pelas muralhas de Palmira. - As defesas estão todas
em excelente condição, disse ele, pelo que teremos mesmo que usar um dos portões para penetrar na cidade. A cidadela fica aqui. - Bateu com os dedos num grupo de
rectângulos pretos à direita do diagrama.
- Nesse caso, podemos contornar a cidade e entrar directamente na cidadela. - Observou Cato, esperançoso.
- Era bom, era... Mas não vai ser assim tão fácil. A cidadela está
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encavalitada numa zona rochosa mais alta que a muralha. Não há nenhum acesso directo do exterior. E no interior de Palmira só há um. Segundo o nosso mercador, a
melhor entrada para nós é por aqui, neste portão no lado leste da cidade. É o caminho mais directo para a cidadela.
- Mas isso quer dizer que teremos mesmo que andar pelas ruas da cidade. - Cato abanou a cabeça ao imaginar tal cenário. - Se seguirmos esse trajecto, os rebeldes
vão poder atacar-nos de todos os lados, incluindo telhados. E se estiverem de sobreaviso, facilmente bloquearão a nossa passagem. Se tivermos que andar à procura
do caminho pela cidade...
- Eu sou capaz de imaginar os detalhes, obrigadinho. - Contrapôs Macro, aborrecido. - Mas por agora esta é a nossa única opção. Quer gostes ou não desta porra de
plano, não temos outro.
Cato revirou os olhos, resignado, antes de prosseguir.
- E o seu mercador não tinha mais nenhuma informação?
- Tirei dele tudo o que pude. A cidadela está bem fortificada, e a guarda do rei é constituída pelos melhores homens do exército. Tipos tesos, do primeiro ao último.
Pelo menos foi o que disse o grego, mas ele não me pareceu muito versado em assuntos de tropa, portanto temos que aceitar esta informação com reservas. Ainda assim,
há uma notícia boa. Todas as máquinas de cerco do exército de Palmira estão guardadas num recinto que fica no interior da cidadela. Portanto, se quiser assaltar
o sítio, Artaxes vai ter que construir as suas próprias máquinas. Sempre nos dá mais algum tempo, acho eu.
- E quanto às forças dele? O grego sabia alguma coisa quanto ao número de homens?
- Disse que ele tem um exército numeroso. - Macro cuspiu com desprezo. - Provavelmente aquele tipo nunca tinha visto uma turba. Não me soube dizer se eram mil ou
dez mil. Não fazia a mais pequena ideia. Mas disse que o Artaxes anda a espalhar pela cidade que um exército parto vai chegar para o ajudar, e que quando isso acontecer
todos os que estão na cidadela, bem como todos os que se recusarem a jurar-lhe fidelidade, serão mortos.
- Acho que podemos assumir isso como facto. - Reflectiu Cato. - No fim de contas, assim que percebeu a situação, Longino não hesitou em enviar uma força de intervenção.
Não temos razão nenhuma para pensar que os partos agiram de outra forma. E nesse caso, tudo depende de quem vai chegar primeiro a Palmira.
- Precisamente o que eu penso. - Concordou Macro, enquanto enrolava o mapa. - Portanto, o melhor é deitarmos pernas ao caminho o mais depressa possível.
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Pouco depois, a coluna retomou a marcha, e os homens não puderam mais do que lançar olhares desejosos à apetitosa superfície do lago, enquanto lhe percorriam as
margens. Tinham tido muito pouco tempo para encher os cantis e descansar uns momentos à sombra das palmeiras, e só um pequeno número tinha encontrado ocasião de
mergulhar nas águas frescas antes que chegassem, aos berros do costume, as ordens para pegar nas trouxas e armas e formar, estilhaçando o sossego que se tinha instalado
em qualquer recanto onde caísse uma sombra. Os habitantes de Cálcis ficaram a ver a coluna afastar-se durante muito tempo, antes de regressarem aos seus afazeres
e contemplarem o futuro com apreensão.
Do outro lado do lago, a estrada para Palmira curvava, atravessando um campo irrigado e mergulhando de imediato no deserto. Cato sentiu o coração afundar-se ao contemplar
a vasta e monótona extensão de areia amarelada e de rochas que se estendia até ao horizonte, marcada por uma faixa tremeluzente de ar quente que fazia lembrar prata
fundida. A coluna marchou em direcção ao calor, deixando para trás a pequena mancha verde que rodeava o lago, até que também ela foi engolida pelo ar escaldante
que fazia oscilar a paisagem para onde quer que o olhar se dirigisse.
Parmenião lançou um último olhar sobre o ombro, antes de se virar para Cato e resmungar.
- Pelo menos mais uns cinco dias disto até chegarmos a Palmira. Quando isso acontecer, esses sacanas de rebeldes de merda hão-de pagar-me com sangue por cada passo
que dei neste maldito deserto.
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Todos os dias se iniciavam com a repetição de um ritual. Ao mais leve sinal de claridade no horizonte, o centurião de serviço em cada coorte acordava os outros oficiais.
Estes, por sua vez, percorriam as linhas de homens adormecidos, berrando ordens para se levantarem e prepararem para a marcha, interrompendo aqui e ali o caminho
para aplicarem um pontapé em qualquer infeliz que não respondesse com a prontidão exigida. Resmungando e espreguiçando-se, tentando recuperar a mobilidade dos membros
entorpecidos, os soldados levantavam-se e sacudiam a areia que os tinha coberto durante a noite, soprada pelo vento. Colocavam o equipamento às costas e tomavam
uma rápida refeição de carne seca e pão duro, das rações que levavam consigo, empurrando-a com uns goles de água. Todos os centuriões e optios tinham perfeita consciência
da necessidade de poupar a água, pelo que vigiavam cuidadosamente os homens enquanto eles se dessedentavam.
Depois de uma formatura por centúrias, havia uma rápida chamada, a que se seguia a ordem de Macro para que se iniciasse a marcha. Enquanto a alvorada progredia,
o ar ainda estava calmo e fresco, e as coortes avançavam a bom ritmo, o pesado bater das botas cardadas acompanhado pelo chocalhar e bater do equipamento solto e
por conversas travadas em surdina no seio das fileiras. As primeiras horas do dia eram sempre as mais confortáveis para a marcha, e Macro mantinha deliberadamente
um passo rápido antes que o calor crescesse e fechasse o deserto no seu amplexo ardente. Antes desta campanha, Cato sempre considerara a alvorada como a mais bela
parte do dia. Agora tinha passado a considerá-la apenas como o início da tortura quotidiana, e era com apreensão que via o Sol a afastar-se do horizonte e as poucas
sombras proporcionadas pela quase absoluta planura do deserto a mirrarem.
Pouco a pouco, a luz aumentava de intensidade, até se tornar um farol ofuscante que fazia os homens piscar os olhos e manter as cabeças baixas enquanto continuavam
a avançar por aquele ermo. E depois chegava o calor. Fazendo rapidamente desvanecer-se o ar fresco da madrugada, enrolava-se à volta dos homens das duas coortes.
Nessa altura quer os mais verdes
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recrutas quer os mais rijos veteranos começavam a sentir o peso do equipamento, e as trouxas esmagavam-lhes os ombros, forçando-os a adoptar expressões fechadas
e a limitarem-se a colocar um pé à frente do outro e a não pensar no que ainda faltava de dia de marcha. À medida que o Sol subia para o pino, os homens iam ficando
encharcados em suor, o que provocava a muitos um constante e irritante picar sob as túnicas militares, mais um inevitável incómodo para o resto do dia.
Por fim, quando o Sol se aproximava do zénite, Macro dava ordem para fazer alto, e os homens pousavam as cargas com grunhidos de cansaço e suspiros de alívio, antes
de se deixarem tombar onde quer que estivessem e beberem a ração de água dos cantis. A seguir preocupavam-se em arranjar uma sombra, usando escudos e capas para
improvisar abrigos, e descansavam até passar o maior calor e receberem ordens para retomar a marcha. Punham-se de novo em pé, pegavam nas trouxas e no equipamento,
e formavam na estrada. Quando a ordem de marcha era dada, lá se arrastavam a passo de chumbo pelo que restava da tarde, até que o Sol iniciava o seu mergulho para
o horizonte. O dia de marcha só era dado por terminado quando a luz começava a escassear.
Na terceira noite depois de deixarem Cálcis, Cato organizou os turnos de sentinelas e foi apresentar o relatório diário a Macro. Mais alguns dos seus homens tinham
ficado para trás durante o dia, e três dos cavalos coxeavam. Em circunstâncias normais, seriam abatidos e a sua carne distribuída entre os homens, para a cozinharem.
Mas como não estavam a construir fortins de campanha, Macro proibira que se acendessem fogueiras - como se tal fosse possível face à ausência de lenha, descontando
os pobres arbustos secos e mirrados que por vezes encontravam à beira da estrada -, pelo que os animais seriam de facto abatidos, mas as carcaças abandonadas na
planície.
Macro estava sobre uma pequena crista, a curta distância dos homens, a apreciar o terreno que teriam que atravessar no dia seguinte, enquanto ainda se via alguma
coisa. Ao ouvir o som das botas de Cato, virou-se. Forçou um sorriso nos lábios gretados, e acenou ao amigo.
- Mais dois dias disto, e acabou-se, Cato. Só mais dois dias.
- Duma forma ou doutra, estaremos acabados, sim.
- É verdade. Mas lidaremos com a situação em Palmira quando lá chegarmos.
Cato percebeu a exaustão no ar do amigo, e assentiu.
- Claro. Primeiro temos que ultrapassar isto.
Macro olhou para ele um momento, e depois desatou a rir, perante a preocupação evidente no tom de Cato.
- Pareces a minha mãe. Estou fino, garanto-te. - Voltou a passear
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o olhar pelo deserto. - Só estava a pensar como é possível haver gente disposta a lutar pela posse desta terra. Uma paisagem completamente desolada.
- Desolada, sim, mas algures lá pelo meio existe uma cidade junto a um oásis que está mesmo em cima de uma lucrativa rota comercial. - Retorquiu Cato.
Macro anuiu lentamente, e cerrou os lábios.
- Bem, se é assim que vês a coisa...
Um alarido repentino obrigou os dois amigos a voltarem-se na direcção do acampamento. Um magote de soldados rodeava a carroça onde se procedia ao reabastecimento
dos cantis. Enquanto os dois oficiais observavam, mais homens emergiram da escuridão, convergindo para a área.
- Merda! Mais sarilhos. - Suspirou Macro, perante o coro de vozes exaltadas. - Vamos. Uma barulheira destas vai-se propagar pelo deserto até muito longe.
A correr, desceram do montículo e dirigiram-se para a carroça.
- Fora do meu caminho! - Gritou Macro, tão alto quanto se atreveu. Nas trevas que se adensavam não era fácil aos homens reconhecer a patente do homem que abria passagem
por entre eles. Cato agarrou num braço e empurrou um homem para fora do caminho de Macro.
- Abram alas para o comandante, caraças!
Um grupo de homens estava engalfinhado; a luta era feroz, e murros e pontapés eram trocados sem cessar. Macro ergueu a vareta e fê-la descrever um arco. Encontrou
um alvo com o som de uma chicotada, e imediatamente um homem gritou e caiu para trás, agarrado à cabeça.
- Este disparate acaba, e já, porra! - Ordenou Macro, e fez dançar a vara na direcção de dois homens que ainda trocavam uns socos. - Imediatamente, foi o que eu
disse!
A rixa interrompeu-se como que por encanto, e os envolvidos afastaram-se uns dos outros, separando-se num grupo de legionários e noutro de auxiliares que Macro,
de costas contra a carroça, enfrentou com olhar severo.
- O que raio se passa aqui? Onde está o optio responsável pela distribuição da água?
- Aqui, senhor. - Um oficial auxiliar levantou-se a custo do chão.
- Fala, homem! O que significa isto?
O optio pôs-se em sentido. Deitou uma rápida olhadela aos homens que o rodeavam e engoliu em seco, nervoso.
- Senhor, foi um mal-entendido.
Macro fungou com desprezo.
- Foda-se, também me parece! Quero saber o que se passou!
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O optio percebeu que não haveria possibilidades de abafar o caso, e prosseguiu em tom monocórdico.
- Senhor, eu estava de serviço. A supervisionar as rações de água. Os tipos da Segunda Ilírica chegaram primeiro com os cantis, e logo a seguir vieram os da Décima.
Quando comecei a encher os cantis, um dos legionários meteu-se na fila e exigiu que a sua secção fosse abastecida antes dos meus rapazes. Disse-lhe para esperar
pela vez dele. Respondeu-me que os legionários têm sempre prioridade e que os meus homens teriam que ceder a vez aos... Bom, aos verdadeiros soldados, foi o que
ele disse.
- Quem foi o tipo que disse isso?
O olhar do optio passou sobre o ombro de Macro, mas antes que ele dissesse algum nome, um legionário deu um passo em frente.
- Fui eu, senhor.
Macro virou-se para o homem e avaliou-o rapidamente.
- E quem és tu?
- Décimo Tádio, senhor. Sexta centúria.
- E o que pensas tu que andas a fazer, soldado?
- Senhor, foi exactamente como ele disse. As legiões têm sempre prioridade, seja no que for.
- Como muito bem sabes, Tádio, isso aplica-se ao saque. Não às rações. Muito menos às rações numa situação destas. Enquanto eu estiver no comando, cada homem terá
direito à sua parte, na sua vez. Seja auxiliar ou legionário. - Macro avançou para Tádio e fez raspar a vareta de oficial na armadura segmentada do homem. - Percebeste?
- Sim, senhor.
- Ainda bem, porque se provocares mais sarilhos, corro-te da minha coorte e ponho-te na Segunda Ilírica. Pode ser que aprendas alguma coisa por lá.
Tádio abriu a boca para protestar.
- Nem penses nisso! - Avisou-o Macro. - E agora, vocês, vamos a formar uma fila e a receber a vossa água, cada um na sua vez. E mexam-se!
- Espera. - Ordenou Cato a Tádio, em tom calmo, enquanto os outros soldados seguiam as indicações do comandante. - Tu não. Põe-te em sentido.
Macro resmungou.
- Cato, o que estás a fazer? O assunto está resolvido.
- Não, senhor, ainda não. Este homem desobedeceu a uma ordem dada por um optio. É uma clara infracção aos regulamentos.
Macro deitou uma rápida olhadela aos homens e percebeu que os mais próximos o observavam para ver como reagia, embora tentassem disfarçar o interesse. Aproximou-se
de Cato e baixou o tom de voz.
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- Acabou. Não se passou nada de muito grave. Não vale a pena exagerar a coisa.
- Senhor, não se trata de exagerar. Este homem desafiou um superior à frente de testemunhas. Não podemos deixar passar isso em branco. Tem que ser punido.
Macro suspirou, exasperado.
- Ouve, Cato. Não tenho tempo para este disparate. E já temos muito com que nos preocuparmos, sem termos que estar a inventar punições de campanha.
- Ainda assim, devo insistir para que este homem sofra a punição prevista nos regulamentos.
Macro coçou a cabeça, arreliado, e acabou por resolver-se.
- Seja, muito bem então. - Virou-se para Tádio e engrossou a voz. - Legionário Tádio!
- Sim, senhor.
Pensou rapidamente. Uma multa, faxinas ou mesmo algumas chicotadas não teriam grande significado, ali no deserto. Havia apenas uma punição adequada àquela situação,
e seria bem pesada.
- Tádio, hoje não recebes ração de água. Regressa à tua centúria.
O soldado engoliu em seco, e mal conseguiu responder por entre os dentes cerrados.
- Sim, senhor.
Fez a saudação e, pondo o cantil ao ombro, virou-se e afastou-se num passo rígido, mostrando a cada passo a raiva que sentia pela injustiça que achava que se abatera
sobre ele. Macro acenou ao optio na carroça.
- Prossigam.
Enquanto as magras rações de água eram passadas para os cantis oferecidos, Macro chamou Cato com um gesto e começou a afastar-se da fila de homens. Quando já se
encontravam a uma distância que lhes garantia a privacidade, deteve-se e encarou o amigo com uma expressão zangada.
- A que propósito foi aquela história?
- Disciplina, senhor.
- Cato, quando os homens não estão à escuta, não precisamos dessa história do "senhor".
- Muito bem. - Prosseguiu o jovem. - Não o percebo. Nunca o vi deixar um soldado fazer uma coisa destas e passar sem castigo. Se estivéssemos num forte, o Tádio
passava o resto da vida a tirar a merda das latrinas à pazada.
- É muito possível. - Concedeu Macro. - Mas não estamos num forte. Estamos numa situação limite. E já há suficiente má vontade entre os teus e os meus homens, era
escusado estar a atiçar as chamas.
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- Os meus e os seus homens? - Repetiu Cato. - Faz isso soar como se não estivéssemos todos do mesmo lado.
- Precisamente. Se estes homens olharem uns para os outros como inimigos, no instante em que aparecer um inimigo real, estaremos tramados. Não podemos dar-nos ao
luxo de alimentar rancores sem substância.
- Então e a disciplina?
- Às vezes temos que aceitar compromissos. Seja como for, parece-me que tomaste conta desse pormenor. - Macro suspirou. - Se um dia sem água não acabar com o Tádio,
conseguiste fazer um inimigo para o resto da vida. Parabéns.
Cato preparava-se para replicar quando se ouviu um grito vindo do acampamento.
- A patrulha montada está de volta!
Macro abanou a cabeça, fatigado.
- Foda-se, mas esta noite não tenho direito a um minuto de descanso? Vamos lá, passa-se qualquer coisa.
O som dos cavalos a galopar pelo deserto anunciava o regresso de uma das patrulhas de cavalaria que Cato enviara para bater o terreno, e os dois oficiais apressaram-se
a dirigir-se ao decurião que detinha a montada junto às linhas de homens já adormecidos.
- Onde está o prefeito? - Inquiriu o decurião, ansioso.
Cato levantou o braço.
- Aqui. O que se passou?
- Senhor, avistámos uma significativa força montada. - A respiração do decurião era pesada, e ele tentava manter o cavalo calmo, enquanto o animal ofegava, extenuado
pelo galope até ao acampamento. - A sul da nossa posição.
- A que distância? - Quis saber Macro.
- Não mais de três quilómetros, senhor. Pareciam vir nesta direcção.
- Conseguiste identificá-los?
- Estava demasiado escuro, senhor. Observei-os o tempo necessário para avaliar a direcção que seguiam, e regressei para avisar. Estou certo de que eles não nos viram.
Cato interrompeu.
- Tropa montada, dizes? Cavalos ou camelos?
O decurião pareceu puxar pela cabeça antes de responder.
- Ambos, senhor.
- Então é mais provável que seja uma força vinda de Palmira do que partos. Supostamente, eles preferem cavalos. - Cato olhou para Macro. - De acordo com as minhas
fontes, senhor.
- Fontes?
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- O que li na biblioteca de Antióquia.
- Então deve ser verdade. - Comentou Macro com sarcasmo. - Bom, não temos tempo para lhes sair do caminho. Portanto temos que tratar de nos esconder e deixá-los
passar sem levantar suspeitas.
- E se eles vierem mesmo dar connosco? - Perguntou Cato.
- Nesse caso, aplicamos-lhes a maior surpresa das suas vidas.
Cato mandou regressar todas as patrulhas e enviou a cavalaria pela estrada, para se esconder numa pequena depressão que a coluna tinha deixado para trás antes de
fazer alto para a noite. No caso de se dar um combate, os romanos não podiam correr o risco de confundir a sua própria cavalaria com os inimigos que se aproximavam
em plena escuridão. Deveriam juntar-se à coluna quando ouvissem uma trombeta. Entretanto, a infantaria, quer legionários quer auxiliares, tinha envergado de novo
as armaduras e empunhado as espadas antes de se esconder por trás dos escudos. Se ocorresse uma escaramuça, seria uma coisa confusa, uma luta corpo-a-corpo. Os dardos
só atrapalhariam, portanto o assunto teria que ser resolvido com recurso à espada curta, a arma favorita das legiões romanas. Os oficiais, sempre agachados, passavam
pelas linhas reforçando nos homens a necessidade de se manterem imóveis e silenciosos, e de não mexerem um músculo enquanto não lhes fosse dada ordem para tal. Macro
e Cato adiantaram-se um tanto à coluna, na direcção de onde se aproximavam os cavaleiros desconhecidos, e esticaram-se na areia, perscrutando atentamente a paisagem
agreste e monótona que se lhes deparava.
- Se se tratar do inimigo, só teremos uma oportunidade para os destruir de vez. - Afiançou Macro, em tom calmo. - Se eles conseguirem escapar-nos e mantiverem alguma
organização, quando chegar a luz do dia estamos fodidos... Vão espetar-nos até parecermos ouriços.
- Eu sei.
- Portanto, se surgir a ocasião, tu e os teus homens têm que atacar com toda a força.
- Macro, confie em mim. Sei o que faço.
O homem mais velho virou-se para o seu jovem amigo e sorriu. À tímida luz das estrelas, os seus dentes pareciam brilhar por entre as trevas da noite do deserto.
Deu uma palmada no ombro do amigo.
- Claro que sabes. Aprendeste com o melhor.
Riram em conjunto, e Cato sentiu dissipar-se alguma da tensão nervosa que acumulara. Se se desse uma batalha, não havia ninguém ao lado de quem preferisse combater.
Mas nesse instante, franzindo a vista, apercebeu-se de um movimento no deserto.
- Ali! - Aproximou-se, de forma a que Macro pudesse seguir a
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direcção que indicava com o dedo. A princípio o veterano nada conseguiu descortinar na linha do horizonte. Piscou os olhos para os limpar, e tentou de novo.
- Não vejo nada. Tens a certeza?
- Claro que sim. - Respondeu o jovem, irritado. - Use os olhos, caramba.
Desta vez Macro viu-os, ou melhor, distinguiu uma mancha escura que emergia do negrume do céu, a não mais de um quilómetro. Quando começou a perceber os detalhes,
reparou nas pequenas nuvens de areia que os cascos dos cavalos levantavam. Enquanto a coluna se aproximava, apercebeu-se de outro pormenor.
- Deslocam-se em silêncio. - Sussurrou. - Parecem fantasmas.
Sentiu um arrepio frio a subir-lhe pela espinha. O pensamento não lhe
pareceu extraordinário: o sangue já derramado naquelas terras era por certo suficiente para justificar que as hostes dos espíritos dos mortos as percorressem sem
cessar.
- Acalme-se. Estão bem vivos, pelo menos por enquanto. - Replicou Cato, a sossegá-lo. - Mas cavalgam em silêncio, é bem verdade. A questão é: o que andam aqueles
tipos a fazer por estas bandas? E porque é que se deslocam durante a noite? Não fazem parte de nenhuma caravana, isso é certo. Dada a situação, são-nos hostis, garantidamente.
- Como é que podemos ter a certeza?
- Bom, somos os únicos romanos por aqui, e parece-me bem que os poucos amigos que temos por estas paragens estão encurralados na cidadela em Palmira. Além disso...
- Um pensamento tenebroso cruzou-lhe a mente. - É quase como se andassem à procura de qualquer coisa. De nós, se calhar. E nesse caso, mais uma vez, não me parece
que possam ser amigáveis.
- De nós? Como é que isso é possível? Não podem saber que estamos aqui. Ainda não houve tempo para isso.
- Porque não? Alguém pode ter vindo a correr de Cálcis dar o alarme, não era nada difícil.
- Merda, tens toda a razão. - Macro deu um murro na areia. Depois virou-se para o amigo. - Mas se andam à nossa procura, como é que não têm batedores?
Cato puxou pela cabeça.
- Pode ser que não acreditem que nós já chegámos aqui. Pouco importa. - Deu um toque no braço do amigo. - Vêm na nossa direcção. Temos que voltar para o pé dos homens.
Os dois oficiais recuaram, sempre agachados e tentando não deixar na areia marcas que pudessem trair a sua presença. Macro dirigiu-se para junto
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dos legionários enquanto Cato se acomodava junto ao seu porta-estandarte, empunhando a espada e colocando o escudo em posição junto ao corpo. Olhou em redor e ficou
satisfeito ao ver que os seus homens estavam deitados no chão, e que no meio da escuridão havia fortes probabilidades de que os cavaleiros não os notassem, desde
que não passassem demasiado perto ou, pior, que tropeçassem neles. O coração batia-lhe como um martelo e todos os sentidos estavam alerta perante o cheiro, o som
e a aparência da fria noite do deserto. Por momentos nada se passou, e depois começou a tornar-se audível o som abafado de cascos, até que a cabeça da coluna de
cavaleiros se tornou visível contra a ténue luz que ainda provinha do horizonte ocidental.
Um dos auxiliares murmurou qualquer comentário, e Cato virou a cabeça para o repreender com o olhar, ao mesmo tempo que deixava escapar um süvo por entre os dentes.
- Chhhiu! - Se viesse a descobrir quem tinha sido o autor da gracinha, afiançou a si mesmo, furioso, fá-lo-ia ser espancado pela desobediência. Se ambos sobrevivessem
àquela noite.
Já eram perceptíveis os sons feitos por selas e estribos e os ruídos dos cavalos, e os cavaleiros continuavam a aproximar-se dos romanos escondidos na areia. Cato
tentou calcular a trajectória que seguiam, e percebeu, com um arrepio de certeza, que se dirigiam mesmo contra Macro e a sua coorte, à esquerda da sua posição.
- Merda. - Resmungou em surdina, e de imediato se amaldiçoou por ter deixado escapar um som. Cerrou os lábios, apertou com mais força a espada e o escudo, e esperou.
Os outros continuaram a aproximar-se, saindo das trevas e deixando perceber agora os detalhes dos capacetes, das lanças e dos próprios vultos desenhados contra o
céu. Até se conseguia ouvir o som das conversas que travavam descontraídos enquanto, sem saber, avançavam direitos aos romanos.
De repente, um dos cavalos que seguiam à cabeça da coluna relinchou e empinou-se, quase atirando o seu passageiro ao solo. Um grito de dor rasgou a escuridão, e
Cato percebeu que o animal tinha pisado um dos legionários.
- De pé, e a eles! - Gritou Macro, e uma súbita vaga de homens armados ergueu-se das areias do deserto e lançou-se contra os cavaleiros enquanto soltava um urro
colectivo e assustador.
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Cato levantou-se de um salto e encheu os pulmões de ar.
- Segunda Ilírica! À carga!
Não se deu qualquer tentativa de combater em formação. Os auxiliares limitaram-se a avançar em massa, correndo na direcção dos atónitos cavaleiros inimigos, sabendo
perfeitamente que não lhes podiam dar qualquer hipótese de recuperar a compostura. Durante alguns instantes, os cavaleiros permaneceram imóveis sobre as selas, surpreendidos
ao ver os romanos irromperem do deserto pela frente e pelos flancos. Cato olhou rapidamente em redor para se certificar de que o porta-estandarte e os outros homens
estavam ao seu lado, e lançou-se de imediato ao cavaleiro mais próximo. Estava tão perto que distinguia perfeitamente o rosto escuro e barbado que o observava. O
homem lançou uma qualquer imprecação na sua língua e empunhou a lança, manobrando-a de forma a atacar o jovem oficial. Num esforço supremo, Cato correu até se ver
bem no interior da área de acção da lança, e lançou o escudo contra a figura montada, enquanto rasgava o ventre do cavalo com a espada, provocando uma enxurrada
de sangue tão negro como a escuridão que tudo rodeava. O cavaleiro vacilou e foi atirado para fora da sela quando o animal ferido tentou fugir a Cato.
- Os cavalos! - Berrou Cato. - Abatam os cavalos!
Irritou-se por não ter pensado nisso antes e não o ter ordenado aos homens quando se estavam a preparar. Se fossem partos ou rebeldes palmirenses, teriam muito menos
possibilidades de resistir se fossem obrigados a combater a pé. Por outro lado, se conseguissem forçar a passagem e colocar-se em posição de utilizar os arcos, a
história seria bem diferente. Alguns dos homens próximos seguiram a indicação do oficial e atacaram zonas vitais dos animais ou tentaram cortar-lhes os tendões,
obrigando-os a abater-se sobre o solo, levantando grandes nuvens de poeira que obscureciam a visão. Cato prosseguiu cautelosamente, olhando constantemente em redor
para se certificar de que não era derrubado e pisoteado por alguma das montadas. Sentiu um sopro de ar quente e virou-se mesmo a tempo de deparar com a cabeça de
um cavalo que lhe surgia pela direita. O cavaleiro estava inclinado para a frente na sela, com a espada pronta para desferir
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um golpe. Cato rodou, lançando o escudo contra o focinho do animal. Este empinou-se de imediato e a lâmina cortou o ar por sobre a cabeça de Cato, arrancando-lhe
algumas pontas da crista do capacete. Contra-atacou imediatamente, lançando a espada para cima e rasgando as vestes largas do adversário, até lhe atingir o peito,
partindo-lhe uma costela antes de lhe perfurar um pulmão e lhe atingir o coração com a ponta. O homem gemeu e desfaleceu na sela, largando as rédeas e deixando o
cavalo decidir que caminho tomar para se afastar de Cato e se envolver na confusão que os rodeava.
O jovem recuou alguns passos e conseguiu distinguir, a curta distância, o recorte do estandarte por cima das cabeças dos homens.
- Porta-estandarte! Para aqui!
Enquanto aguardava que o homem chegasse ao pé de si, Cato tentou avaliar a evolução do combate. Do pouco que se conseguia perceber, os romanos pareciam estar a levar
a melhor. Macro e a sua coorte tinham surpreendido a cabeça da coluna e tinham prevalecido, fazendo-a dispersar, enquanto a Segunda Ilírica tinha atacado o flanco.
Atacados de dois lados, os cavaleiros não tinham tido hipótese de formar uma linha de batalha eficaz, e tentavam apenas escapar ao embate da infantaria que lhes
rodeava os cavalos e golpeava animais e homens sem fazer qualquer distinção. Não era uma forma de combate a que estivessem habituados, muito menos que alguma vez
tivessem desejado. Estavam em clara desvantagem, e se não conseguissem romper o cerco seriam completamente dizimados. Do outro lado, os romanos aproveitavam a oportunidade
para liquidar alguns daqueles arqueiros montados cuja forma de luta viam como cobarde e desleal.
Olhou para direita e apercebeu-se de que a retaguarda da coluna montada se escapulia para a escuridão da noite.
- Ataquem! - Gritou. - Força! A eles sem medo, rapazes!
Acenou ao porta-estandarte, respirou fundo, cerrou os dentes e lançou-se de novo para o calor da refrega. Os auxiliares seguiram-no de perto, reforçando a primeira
vaga de atacantes. A nova investida abriu caminho por entre os cavaleiros, separando-os em pequenos grupos que se viam atacados por todos os lados. Algures na esquerda
ouviu-se a voz de Macro a incitar os seus homens.
- Acabem com eles! Matem esses cabrões! Não os deixem escapar!
Cato avançou sobre os cadáveres que já juncavam o solo. Havia cavalos
mortos, mas outros estavam apenas feridos e desferiam coices no ar enquanto relinchavam de terror e agonia, contribuindo para o barulho infernal do entrechocar das
armas e dos gritos dos homens. Pouco à frente, viu um grupo dos seus homens a atacar uma bolsa de cavaleiros, e correu para se juntar ao combate. Encontrou um espaço
vazio, agachou-se para baixar o centro de gravidade e avançou sob a protecção do escudo, com a espada
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em riste. Os cavaleiros pareciam começar a recuperar da surpresa e já os enfrentavam com escudos e lanças prontos para a defesa. Mesmo à frente de Cato, um homem
fazia rodopiar com mestria um cavalo maior e mais possante que os outros, enquanto golpeava todos os auxiliares que se aproximavam demasiado. Flectindo os músculos,
Cato aproximou-se, quando o outro se inclinou para um dos lados e fez a lâmina descrever um largo arco, zunindo pelo ar até encontrar o braço levantado de um dos
homens de Cato, que decepou sem dificuldade mesmo abaixo do cotovelo. O auxiliar caiu com um grito agudo, enquanto o braço, ainda a segurar a espada, lhe tombava
aos pés.
O cavaleiro gritou uma ordem por cima do ombro e vários dos seus camaradas alinharam os cavalos e carregaram sobre Cato e o porta-estandarte.
- Oh, merda! - Foi tudo o que o homem teve tempo de dizer antes de se ver envolvido pelos inimigos. Cato levantou o escudo por instinto e foi imediatamente atirado
para o lado, quando o peito de um cavalo embateu contra a frente da defesa. O golpe vibrou-lhe por todo o braço até ao ombro, e os dedos deixaram fugir a pega. Em
contrapartida, o cavalo tinha perdido o ímpeto, e isso foi-lhe fatal. O porta-estandarte, que seguia mesmo atrás de Cato, tinha posto um joelho no solo e abaixado
a ponta acerada da haste na direcção do animal. Este não teve qualquer possibilidade de a evitar, e empalou-se na arma, que lhe perfurou o peito, partindo a cruzeta
que segurava a flâmula e continuando a penetrar-lhe a carne, até que estremeceu e tombou para o lado. O cavaleiro soltou uma imprecação e saltou da sela, atirando-se
sobre Cato. O choque fez os dois homens rolarem pelo solo, sem fôlego. Em redor, os desconhecidos tentavam desesperadamente atravessar as linhas pouco compactas
dos auxiliares, e ninguém prestou atenção ao combate corpo-a-corpo que o prefeito se preparava para travar contra um inimigo pelo meio da poeira.
O hálito do outro atingiu Cato em cheio no rosto; enquanto mantinha o jovem preso ao solo com um braço, com a outra mão o adversário procurava a adaga que levava
ao cinto, largando a espada. A mão direita de Cato ainda segurava na espada, mas não tinha maneira de utilizar a lâmina naquela posição, pelo que se limitou a golpear
o dorso do homem com a guarda metálica. No meio da refrega reparou que o homem não usava um capacete, apenas uma espécie de barrete, e que os olhos lhe rebrilhavam
de ódio e desejo de matar um inimigo romano. Ouviu-se metal a raspar, sinal de que a adaga tinha sido desembainhada, e Cato percebeu que tinha apenas mais uma oportunidade
se queria salvar a vida. Fez força nos músculos do pescoço e lançou a cabeça para cima com toda a gana. Os olhos do outro arregalaram-se de surpresa, e o grunhido
de ódio que lhe bailava
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nos lábios morreu quando a orla metálica do capacete romano lhe partiu o nariz e feriu uma das vistas. Soltou um uivo de dor e afrouxou a pressão que mantinha com
o braço. Cato lançou então o joelho direito para cima e, para ajudar, acompanhou o gesto com um murro no queixo do adversário. Perante a sucessão de golpes, o outro
rebolou para o lado, gemendo. Cato empurrou-o para longe e saltou para se pôr de pé. O coração batia-lhe descompassadamente, e quase não conseguia raciocinar. Era
controlado apenas pelo instinto, lutar e matar. Avançou para o homem que ainda jazia no solo e preparou-se para lhe dar um golpe fatal com a espada. Enquanto o fazia,
pelo canto do olho percebeu mais do que viu um movimento furtivo: alguém saltava sobre ele, uma lâmina brilhava, um grito animal saía-lhe da garganta. Cato rodopiou
para enfrentar esta nova ameaça, orientando a ponta da espada directamente contra o vulto. Apanhou-o ao cimo da cota de malha, esmagando-lhe a omoplata e escorregando
ao longo da carne até se cravar no ombro do homem.
O tempo pareceu passar mais devagar enquanto Cato reparava na face do oponente, que o encarava com os olhos arregalados de surpresa e choque por baixo de um capacete
romano. Aflito, Cato libertou a lâmina num movimento brusco, como se conseguisse desfazer o erro se agisse suficientemente depressa. A espada soltou-se, fazendo
aflorar o sangue, e o auxiliar tombou de joelhos, olhando para o seu prefeito ainda incrédulo. Abanou devagar a cabeça e caiu de costas no solo.
Cato ficou imóvel, segurando na espada que pingava sangue, e passou uma mão pela face, como que a tentar limpar o erro e proteger a vista da terrível cena que se
lhe deparava. Finalmente o momento de pânico desvaneceu-se, e olhou em redor. Os soldados mais próximos estavam de costas para ele, ocupados em derrubar um dos cavaleiros.
Ninguém o tinha visto, portanto. Engoliu em seco e ajoelhou-se, espetando a espada na areia, em posição de ser rapidamente empunhada em caso de necessidade. Apressou-se
então a soltar o lenço do pescoço do homem e a pressioná-lo contra o sangue que jorrava da ferida. O homem gritou ao sentir a pressão, e a mão dele agarrou no pulso
de Cato com uma força férrea.
- Foda-se, isso dói. - Gemeu, por entre os dentes cerrados.
- Larga-me. - Ordenou Cato. - Estou a ajudar-te. Estás ferido. Se não conseguir estancar isto, vais perder muito sangue.
O homem acenou e largou-lhe a mão, antes de o encarar com olhos arregalados e murmurar.
- Foste tu...
- Calado. - Repreendeu-o Cato. - Poupa o fôlego.
- Foste tu. - Repetiu o homem, antes dos olhos se lhe cerrarem e ele se deixar descair com um gemido. Cato continuou a usar uma mão para
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pressionar a ferida com o lenço, enquanto a outra se mantinha pronta para usar a espada. Ao olhar de novo em redor percebeu que os cavaleiros sobreviventes fugiam
sem olhar para trás, e que apenas um pequeno punhado ainda enfrentava os auxiliares, fazendo os cavalos rodar enquanto tentavam evitar os golpes dos homens que os
rodeavam. Era um duelo desigual, e poucos instantes depois o último dos combatentes inimigos era abatido. Os auxiliares ergueram as espadas e celebraram a vitória
enquanto o som dos últimos cascos se esvaía na noite.
- Aqui! - Cato chamou os homens mais próximos. - A mim!
Vários soldados se apresentaram, e Cato indicou-lhes o homem no solo.
- Este homem está ferido. Levem-no para uma das carroças.
- Sim, senhor.
Os auxiliares depuseram as armas e prepararam-se para ajudar o camarada; Cato levantou-se e afastou-se. Em redor, o resto da coorte estava entretido a liquidar os
feridos e a saquear os cadáveres. Cato levou a mão em concha à boca.
- Centurião Parmenião!
Voltou a chamar antes de ouvir uma resposta e avistar Parmenião a correr na sua direcção. O centurião tentava atar uma ligadura improvisada em torno do braço com
que empunhava a espada.
- A ferida é grave? - Quis saber Cato.
- Superficial, senhor. Ainda consigo manejar a espada. O que não se pode de todo dizer destes cavaleiros merdosos. Fugiram que nem coelhos.
- Por agora. - Concedeu Cato. - Mas ainda são capazes de nos dar muito que fazer.
- Acha mesmo, senhor?
O tom era de surpresa, mesmo de incredulidade, e Cato irritou-se.
- Vamos evitar qualquer risco desnecessário, está bem? Para já, quero os nossos feridos recolhidos e acondicionados de forma tão confortável quanto for possível.
A coorte vai formar em redor deles. Entendido?
- Sim, senhor.
- Algum sinal do centurião Macro?
- Não o vi, senhor. Mas ouvi-o. - Parmenião apontou por cima do ombro.
- Era difícil não o fazer. - Comentou Cato, antes de dar um toque amigável no ombro do subordinado. - Podes seguir.
Começou a atravessar o campo de batalha, contornando os corpos de homens e cavalos que juncavam o solo. Os primeiros legionários com quem se cruzou ainda estavam
excitados pela rapidez e ferocidade do combate, e não tinham a menor ideia de onde se encontrava o seu comandante. Cato
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prosseguiu, com os níveis de frustração a subir, até que encontrou um dos centuriões de Macro.
- Pelos infernos, o que é que se está a passar aqui? - Inquiriu, furibundo. - Porque é que não estás a formar os homens?
- Senhor, vencemos, derrotámo-los. Não vejo a necessidade...
- Onde está Macro?
- Ali, senhor, junto ao estandarte.
- Óptimo. - Cato apercebeu-se por fim da quase indistinta figura do porta-estandarte da coorte. - Agora, centurião, trata de colocar os homens em formação. E depressa.
- Empurrou o outro para o lado e continuou.
- Centurião Macro? Senhor, está aí?
- Cato! - Uma figura gigantesca, qual urso, destacou-se da escuridão e aproximou-se do jovem. - Pelos deuses, demos-lhes uma boa sova! Devemos ter aviado pelo menos
metade deles.
- Talvez, mas o que me preocupa é justamente a outra metade.
- Miúdo, esses fugiram! - Macro estava jubilante e não o escondia. - Duvido muito que parem antes do nascer do Sol.
- Oh, hão-de parar muito antes disso. - Retorquiu Cato, pensativo. Apontou para um dos cadáveres, esparramado no solo junto à montada, a curta distância dos dois
oficiais. - Veja. Este tem uma aljava. E há muitos com o mesmo equipamento por aí.
Macro examinou o corpo e revirou-o com a ponta do pé.
- Parto?
Cato examinou com maior atenção as vestes do morto. Junto à cabeça via-se um capacete cónico com uma orla ornamentada.
- Talvez. Mas é mais provável que seja um dos rebeldes de Palmira. Os partos não podem ter já chegado a esta área. - Pronunciou, intrigado. - Pois não?
Macro inclinou a cabeça.
- Suponho que não... Espero que não; se não, então é que estamos mesmo na merda.
- Seja como for, estamos a enfrentar o mesmo tipo de tropas e a mesma táctica. Podemos tê-los surpreendido, mas assim que estiverem a uma distância segura e recuperarem
alguma organização, hão-de vir atrás de nós.
- Atrás de nós? - Macro abanou a cabeça. - Depois da esfrega que levaram? Não me parece.
- Macro, agora que a surpresa passou, eles podem perfeitamente utilizar os arcos e usar-nos como alvos. - Cato bateu com a mão na perna.
- Gaita, devíamos tê-los despachado a todos.
- Bem tentámos. - Insistiu Macro. - Bom, talvez seja melhor mandar
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formar os rapazes, sim. Só para evitar surpresas. O melhor será juntarmos as duas coortes e pôr os feridos ao meio.
- Sim, senhor, julgo que isso seria prudente. Vou buscar os meus homens.
- E quanto à nossa cavalaria?
Cato considerou a situação.
- Talvez seja melhor deixá-los onde estão, pelo menos por agora. Há sempre o risco de os confundirmos com estes arqueiros montados. Se precisarmos deles, depressa
os podemos ter connosco.
- Excelente. Então vamos a despachar.
Os centuriões e optios chamaram os homens para formar junto aos seus estandartes, enquanto os que tinham sido destacados para cuidar dos feridos os transportavam
para o centro da pequena depressão que Macro tinha escolhido como posição para as duas coortes aguardarem que o dia se levantasse. Se se desse algum ataque, o inimigo
seria forçado a aproximar-se para localizar o alvo. Talvez até o suficiente para se colocar ao alcance dos dardos e das fundas da coorte, e nesse caso pagaria caro
pela audácia, considerou Macro com um misto de determinação e resignação. Enquanto os feridos eram colocados na zona que lhes fora destinada, outros homens empurravam
as carroças de abastecimentos pelo meio das rochas e da poeira. Depois as duas coortes formaram uma caixa defensiva e, abrigados por trás dos escudos, os homens
enfrentaram a escuridão do deserto enquanto esperavam pelo regresso da luz.
Macro e Cato posicionaram-se na face da formação virada para a direcção em que o inimigo fugira, e partilharam a tensão sentida pelos homens. Tinham sido dadas ordens
para que todos se mantivessem em silêncio, pelo que o único som que se escutava era o dos feridos que não conseguiam conter as dores. Os ocasionais gemidos e gritos
de agonia desgastavam os nervos dos soldados, que depressa começaram a maldizer os feridos.
Assim que se apercebeu do sentimento reinante, Cato não conseguiu evitar reviver o momento em que tinha ferido um dos auxiliares, e o sentimento de culpa voltou
a assolá-lo em força. Perguntou-se se devia dizer alguma coisa a Macro. Afinal, sossegou-se, tinha sido um acidente. Um acidente trágico, do género que nenhum oficial
com experiência de combate se podia permitir, muito menos perdoar, essa é que era a verdade. Pouco depois, interrogou-se se o homem teria sobrevivido. E se estivesse
ainda vivo, teria contado aos camaradas que tinha sido ferido por um oficial em pânico? Por momentos, Cato desejou que o soldado tivesse falecido. E logo se amaldiçoou
por ter tido tal pensamento. A necessidade de saber em que
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estado estava o homem era contudo irresistível, e quando já faltava menos de uma hora para a alvorada não se conteve mais.
- Senhor, se for possível, gostaria de ir verificar o estado dos meus feridos.
Macro olhou-o espantado.
- Agora? Porquê?
Cato obrigou-se a manter-se tão calmo quanto possível.
- Como prefeito interino, devo garantir que os meus homens recebem os melhores cuidados possíveis. Tenho que verificar em que condições se encontram, senhor.
- Pois... Calculo que sim. Vai lá então, mas vê se te despachas.
Cato tentou ocultar o alívio que sentia enquanto se afastava e se dirigia em silêncio para a zona em que as filas de feridos se aglomeravam, junto às carroças.
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Como ficámos de baixas? - Perguntou Cato ao médico da coorte, um grego magro que estava a poucos meses de deixar as legiões, e já sonhava com uma reforma confortável.
Temócrito levantou-se e limpou as mãos ensanguentadas a um trapo, antes de saudar o prefeito.
- Até agora, quatro mortos, senhor. - Fez um gesto que abarcou os homens em redor. - Dezoito feridos. Três deles vão morrer com toda a certeza, os outros devem recuperar.
A maior parte conseguirá andar, apesar dos ferimentos.
- Estou a ver. - Assentiu Cato. - Leva-me até junto dos homens que estão mortalmente feridos.
- Sim, senhor. - Os olhos de Temócrito arregalaram-se de espanto. Fez-lhe um sinal. - Por aqui.
Conduziu Cato até ao fim da linha de homens prostrados sobre a areia. Quase todos se mantinham calados e imóveis, mas alguns não conseguiam evitar gemidos e gritos
de agonia devido aos ferimentos que tinham sofrido. A diminuta secção de enfermeiros estava espalhada por entre eles, tentando tratar de feridas, pôr talas em membros
partidos, e estancar as hemorragias. Os feridos mais graves estavam a alguma distância dos restantes. Um deles estava praticamente inerte, e respirava em fracos
soluços. Um dos enfermeiros vigiava os outros dois. Assim que se apercebeu da aproximação dos dois oficiais colocou-se de pé e em sentido.
- Faz o teu relatório. - Pediu Cato.
- Um deles acaba de morrer, senhor. Por perda de sangue. O outro também se está quase a ir.
Apontou para o homem que jazia sobre o solo e, por entre a penumbra, Cato adivinhou as feições do soldado que tinha ferido. O coração acelerou, assustado, e sentiu-se
enrubescer de vergonha e culpa, dando graças aos deuses por ser ainda noite e a sua expressão ser difícil de perceber à quase imperceptível luz das estrelas. Deu-se
conta de que o enfermeiro o olhava fixamente.
Limpou a garganta e continuou.
- Como se chama este homem?
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O outro fez um pequeno silêncio antes de responder.
- Gaio Primo, senhor.
Cato agachou-se junto ao soldado e hesitou antes de dar um toque amigável no ombro são do homem. Este agitou-se e a cabeça levantou-se do solo quando encarou Cato,
de olhos muito abertos.
Cato forçou-se a sorrir.
- Não te preocupes, Primo. Vamos tratar do teu caso. Juro-to.
O auxiliar encolheu-se perante aquelas palavras e o toque do superior. Uma onda de fria ira apoderou-se de Cato quando percebeu o que tinha dito. Podia ter escolhido
melhor as palavras. Tentou refrasear o que tinha querido dizer, e afirmá-lo com um tom de preocupação.
- Vão tratar das tuas feridas.
- Você... - Murmurou Primo, antes de estremecer perante uma vaga de dor que o atravessou, fazendo-o ranger os dentes na tentativa de lhe resistir. De repente, a
mão do homem fechou-se sobre o pulso de Cato, como nos momentos seguintes ao incidente no campo de batalha. Enquanto o homem lutava contra a agonia, o centurião
tentava libertar-se, mas isso era impossível sem usar uma força que pareceria despropositada ao enfermeiro que os observava. Começou a soltar os dedos do soldado
um a um, admirado com a força com que o ferido o agarrava.
Ouviu-se uin zunir no ar, e algo se enterrou na areia perto de Cato. Olhou em volta e avistou a haste de uma flecha a sair do solo à distância de uma espada da sua
bota, como se ali tivesse crescido de repente.
O enfermeiro encolheu-se amedrontado, enquanto Cato se apercebia rapidamente do perigo que todos corriam. Já não havia tempo para se preocupar com Primo, pelo que
soltou a mão rapidamente e se levantou.
- Flechas! Protejam-se!
De repente, o ar encheu-se com um som semelhante ao restolhar das folhas num dia de vento, enquanto os homens procuravam os escudos para se abrigar. Cato empunhou
o seu e colocou-o rapidamente em posição sobre a cabeça, antes de voltar a lançar o aviso. A revoada de setas atingiu-os nesse momento, a maior parte ressaltando
sem perigo nos escudos; mas algumas encontraram alvos mais lentos ou descuidados na forma como usavam as defesas. Um grito agudo denunciou um auxiliar que não tinha
actuado com prontidão perante o perigo iminente. Olhando em redor, Cato percebeu que os enfermeiros e os feridos não tinham qualquer protecção contra o bombardeamento.
Enquanto olhava, dois dos feridos foram atingidos. Um deles recebeu uma seta em plena testa, e a ponta metálica perfurou-lhe o crânio e atingiu-lhe o cérebro, calando-lhe
de imediato os gemidos. Cato fez sinal aos mais próximos dos homens.
- Vocês! Protejam os feridos! Mexam-se!
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Os homens avançaram sem grande vontade, cada um tentando cobrir-se a si mesmo e a um dos feridos da melhor forma possível. Quando ficou satisfeito com a protecção
aos feridos e enfermeiros, Cato dirigiu a atenção para o resto dos homens. Uma vez que já estavam em formação quando a barragem começara, tinham respondido de acordo
com o treino, pondo um joelho em terra e abrigando-se sob os escudos.
- Centurião Parmenião!
- Senhor? - Respondeu a voz do adjunto, ali perto.
- Vem cá!
Um vulto escuro esgueirou-se sobre a areia, aproximando-se.
- Parmenião, assume o comando aqui. Vou ver se encontro o Macro. Temos que reagrupar os homens. Formar um alvo mais pequeno. Toma conta disto por aqui.
- Sim, senhor.
Cato rastejou ao longo da linha formada pelos seus homens até encontrar os primeiros comandados de Macro, e depois correu por trás deles na direcção do estandarte.
As rajadas iniciais de flechas tinham-se tornado uma chuva contínua, e a atmosfera era dominada por um ruído como que de granizo, já que os arqueiros inimigos não
davam tréguas, colocando projécteis nos arcos, apontando e disparando sem esperar por ordens ou respeitar uma cadência colectiva. Cato mal os distinguia sobre os
escudos e capacetes dos legionários enquanto passavam velozmente pela frente do quadrado romano e lançavam a sua chuva mortal. Passou-lhe pela cabeça a ideia de
que eles podiam perfeitamente parar, ou até desmontar, e continuar a fustigar as duas coortes sem problemas. Concluiu que os inimigos conduziam o combate da única
forma que conheciam. A verdade é que estavam perfeitamente seguros, pelo menos enquanto estivessem para lá do alcance dos dardos romanos. E quando o compreendessem,
então os romanos estariam realmente em apuros; quando chegasse a alvorada, daí a poucas horas, os arqueiros teriam um alvo realmente fácil.
Ao aproximar-se de Macro, agachado junto ao estandarte, Cato fez a saudação.
- Isto está mau! - Macro lançou um sorriso desanimado. - Parece que é a vez de eles nos darem uma coça.
- Exacto, senhor. Temos que fazer alguma coisa, antes que eles percebam a extensão da vantagem que possuem.
- Fazer alguma coisa? - Macro cerrou os lábios. - Seja. Vamos formar linhas duplas.
- Sim, senhor. É uma boa ideia. - Cato acenou em concordância, e apontou para as carroças. - E talvez usar as fundas, para lhes dar algo em que pensar.
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- Sim. Boa ideia também. Vou mandar alguns dos meus rapazes tratar disso.
- Quanto tempo mais acha que eles vão passar a mandar-nos flechas para cima? - Indagou Cato, no preciso instante em que um dos projécteis lhe embateu no escudo com
estrondo.
- Suponho que até se cansarem.
- Brincar com o assunto não nos ajuda nada.
- Bem, tu é que fizeste a pergunta parva. - Macro abanou a cabeça com ar trocista. - Seja como for, sabes como é. Os arqueiros só nos estão a amolecer. Enquanto
mantivermos a formação vamos aguentar-nos. Se a desfizermos, estes tipos vão passar-nos por cima e cortar-nos às postas.
- Dou o sinal para a nossa cavalaria avançar, senhor?
- Ainda não. Espera até haver luz suficiente para percebermos quem é quem. Não quero que os nossos se ataquem uns aos outros por engano.
- Sim, senhor. - Anuiu Cato. - Bem, é melhor regressar para junto dos meus homens.
Assim que regressou para junto da sua coorte Cato transmitiu as ordens e depois de as centúrias formarem quatro linhas recuaram lentamente, até formar uma parede
compacta de escudos em torno das carroças e dos feridos, cujo número foi subindo a pouco e pouco. Macro fez distribuir fundas por uma secção em cada centúria, mas
os legionários, sem conseguirem ver claramente os arqueiros inimigos, faziam-nas rodopiar e soltavam a carga em arco sobre as cabeças dos seus camaradas, na direcção
em que supunham que se encontrava o inimigo. Nas trevas reinantes era impossível ver onde é que os lançamentos terminavam, ou se algum dos cavaleiros era atingido,
e Cato desejou que ao menos tivessem o efeito de manter os arqueiros à distância e lhes perturbassem a pontaria. A barragem de flechas esmoreceu quando o inimigo
resolveu começar a poupar munições, e os dois lados limitaram-se a trocar ocasionalmente projécteis, enquanto a noite avançava lentamente para a alvorada.
Quando um pálido tom acinzentado começou a despontar a leste, os apurados olhos de Cato espreitaram para a imensidão do deserto em redor, por cima da orla do escudo.
Os arqueiros inimigos eram agora claramente visíveis, e à medida que a luz crescia ele era capaz de distinguir mais e mais detalhes nos cavaleiros que cercavam as
coortes. Cato percebeu que as roupas e adornos eram ligeiramente diferentes dos usados pelos partos, que tinha combatido no ano anterior. Deviam portanto ser tropas
palmirenses.
Sentiu alguma ansiedade ao considerar que existia a possibilidade de aqueles homens serem lealistas, enviados pelo rei para procurar o auxílio dos romanos. Nesse
caso, continuou a especular, o encontro nocturno podia muito bem ter sido um trágico erro. E o homem que ferira teria sido
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apenas mais um entre muitos que tinham sido mortos ou feridos sem necessidade. Mas estes pensamentos depressa foram afastados por uma análise mais cuidada. Dificilmente
se podia confundir a infantaria romana com outra força qualquer, e os cavaleiros não tinham feito qualquer esforço para acalmar a situação e se mostrarem amigáveis.
Eram, portanto, claramente hostis: seguidores do traidor Artaxes e dos seus aliados partos.
Enquanto a luz se espalhava pelo deserto, os arqueiros começaram a aumentar a cadência de disparos, lançando os projécteis bem para o ar de forma a que as setas
subiam, pareciam imobilizar-se no ar e depois se precipitavam sobre os romanos num ângulo abrupto. Embora os legionários e os auxiliares estivessem bem protegidos
pelos escudos, as mulas que puxavam as carroças não o estavam; por isso, e perante a impotência de Cato, os animais foram atingidos, um após outro, lançando zurros
arrepiados de choque e dor quando as pontas metálicas lhes perfuravam a pele e se enterravam na carne. Contudo, nem tudo corria de feição ao inimigo, reparou Cato:
um deles foi derrubado da sela e largou o arco quando um projéctil de funda lhe acertou em cheio no crânio. Morto instantaneamente, o homem esmagou-se no solo com
estrépito, provocando uma explosão de poeira, e os romanos que viram a cena lançaram um brado de alegria e prazer.
- Bela pontaria! - Berrou Macro, da outra ponta do quadrado. - Vale um dinário... e o mesmo por cada um daqueles sacanas que não viva para ver a luz do dia!
O anúncio da recompensa teve efeitos imediatos, e os fundibulários romanos aceleraram o ritmo dos lançamentos, o que levou os cavaleiros inimigos a recuarem para
uma distância segura, reduzindo significativamente a ameaça que representavam os seus disparos. Cato depressa reparou que a barragem de flechas estava a diminuir
de intensidade, até começarem a existir evidentes intervalos entre as revoadas de projécteis. Por fim, quando o Sol se ergueu sobre o horizonte e começou a lançar
longas sombras sobre o deserto, os arqueiros cessaram por completo os seus ataques e afastaram-se até una certa distância, onde desmontaram, descansaram as montadas
e comeram as refeições ligeiras que transportavam nas sacolas.
- Parece-me que estamos num impasse. - Comentou Parmenião. - Eles não nos conseguem desbaratar, e nós não os conseguimos atacar. Pelo menos sem a cavalaria.
- Pois, é tempo de a utilizar. - Cato virou-se para Macro, agitando um braço para lhe chamar a atenção. Assim que o amigo o viu saudou-o com um gesto vago. Cato
apontou para os dois clarins de pé junto ao estandarte da Segunda Ilírica, e Macro anuiu deliberadamente, ao entender as intenções do jovem. Cato virou-se para os
homens, mas antes que pudesse dar qualquer ordem, Parmenião pegou-lhe no braço.
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- Senhor! Eles estão a movimentar-se de novo.
Cato rodou e viu os cavaleiros inimigos a desfazerem-se das refeições e a montarem apressadamente, enquanto empunhavam de novo os arcos.
- Parece que afinal vão carregar sobre nós.
- Eles que tentem. - Rosnou o centurião mais velho. - Não conseguirão penetrar no quadrado. Pelo menos sem truques.
Cato deu um sorriso fugidio. Era evidente que Parmenião pertencia à velha escola militar romana, que defendia que os arqueiros não passavam de cobardes. Na sua opinião,
aquela não passava de outra forma de travar um combate. Tinham vantagens, claro, mas também limitações. Infelizmente, naquelas circunstâncias, eram as vantagens
que sobressaíam.
- Cerrar fileiras! - Ordenou. - Primeira linha! Lanças a postos! Preparem-se para o embate!
Ao seu redor, auxiliares e legionários prepararam-se com expressões de firmeza, não afastando o olhar do inimigo, cujos elementos continuavam a montar em desalinho
e a formar grupos dispersos que pouco mais faziam do que levantar poeira. Mas quando começaram a alinhar-se junto aos estandartes serpenteantes, Cato não evitou
um franzir de sobrolho.
- Mas que raio...?
Parmenião esforçou o olhar sobre as fileiras dos auxiliares que se dispunham à sua frente em silêncio.
- Estão a virar-se para o outro lado. Mas porquê?
Cato abanou a cabeça. Era estranho. Os inimigos apressavam-se a formar uma coluna como se fossem carregar sobre alguém, mas dando as costas às coortes romanas. O
que estaria a passar-se? Nesse instante ouviu um som fraco mas estridente, uma trombeta na distância, para lá dos cavaleiros inimigos.
- Reforços? - Adiantou Parmenião, esperançoso. - Nossos ou deles?
- Nossos não, com toda a certeza. Não há outra formação romana numa distância de cento e cinquenta quilómetros.
Ouviram-se mais trombetas, e logo se escutou uma resposta dos homens que tinham passado a madrugada a atacar as duas coortes - uma nota vibrante e clara, um desafio.
E de imediato se lançaram ao ataque, afastando-se dos romanos numa nuvem de pó levantada pelos cascos das montadas em aceleração. Os romanos ficaram a vê-los afastarem-se,
sem acreditar no que se passava. Macro atravessou o quadrado para se reunir a Cato.
- O que raio se está a passar?
- Não faço ideia, senhor. Só sei que há para ali mais cavaleiros. Podem ser mais um grupo hostil, e estes foram apenas juntar-se a eles... Ou, se
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tivermos sorte, alguém que veio em nosso auxílio. Em qualquer dos casos, devíamos colocar a nossa cavalaria em posição.
- Tens razão. Fá-lo.
- Sim, senhor. - Cato virou-se para dar ordens aos clarins, com as suas grandes trombetas metálicas. Estes inspiraram, encheram as bochechas de ar e emitiram de
pronto o toque indicado. Repetiram-no duas vezes antes de pousar os instrumentos, e então todos os olhos se concentraram na nuvem de poeira que os cavaleiros inimigos
tinham deixado ao retirar. No meio do tom avermelhado que o ar apresentava era difícil perceber quaisquer detalhes, e só de quando em vez se vislumbrava um dos homens
em fuga. Mas os sons que passaram a chegar aos ouvidos dos romanos, de trombetas, entrechocar de armas e gritos de homens, contavam a sua própria história.
- Mas quem estará a atacá-los? - Inquiriu Macro. - Pensava que éramos os únicos romanos por estas bandas.
- Talvez Longino tenha enviado uma coluna montada a seguir-nos. - Propôs Parmenião, esperançado.
- Talvez. - Anuiu Cato. - Mas duvido muito.
- Senhor, se não for assim, quem poderá ser?
- Depressa o saberemos.
Enquanto os três oficiais e os seus homens observavam em silêncio, o combate encarniçado prosseguia à distância. Por vezes surgia da confusão uma figura isolada,
afastando-se da luta e internando-se no deserto. Outras vezes era um cavalo sem cavaleiro que saía da nuvem de poeira e se afastava lentamente. A pouco e pouco os
sons da batalha foram diminuindo de intensidade até que desceu o silêncio, enquanto o Sol subia lentamente no céu, espalhando raios avermelhados pela paisagem.
Parmenião virou-se e soltou um brado.
- Ai estão os nossos!
Os quatro esquadrões de cavalaria da Segunda Ilírica aproximavam-se a galope, com as armaduras a refulgir à luz da alvorada. Cato deitou-lhes um olhar rápido e voltou
a concentrar-se no que se passava lá ao longe. Respirou fundo.
- Olhem!
Macro e Parmenião rodopiaram para seguir a direcção que o dedo esticado do jovem apontava.
Da nuvem de poeira que assentava lentamente tinha emergido um vulto. Era um cavaleiro todo vestido de negro, e os raios do sol saltitavam pelos ornamentos prateados
que se espalhavam pelo arnês e pelo capacete cónico que usava. Refreou o cavalo e imobilizou-se, examinando os soldados romanos que se lhe deparavam, ainda formados
em quadrado. Depressa
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outras figuras montadas saíram da poeira e se juntaram ao primeiro. Por fim, Cato conseguiu calcular que o homem teria pelo menos uns cem seguidores. Avançaram até
se juntarem ao seu líder, enfrentando os romanos.
- Fantástico. - Resmungou Macro. - E agora? Mais hostis?
Cato coçou o queixo.
- Por estas paragens? Nada mais provável. Seja como for, afugentaram aqueles tipos. Vamos esperar que o inimigo do nosso inimigo seja realmente nosso amigo.
No momento seguinte, o líder dos cavaleiros ergueu o braço e ordenou aos seus homens que o seguissem, enquanto fazia avançar o cavalo a passo na direcção das duas
coortes romanas.
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Macro levou as mãos em concha à boca e gritou em grego, de forma a fazer-se ouvir pelo grupo que se aproximava.
- Já se aproximaram o suficiente! Parem imediatamente!
O líder dos cavaleiros levantou uma mão, refreando os seus homens, mas continuou a avançar sozinho, levando o cavalo a passo num claro desafio à linha romana. Por
momentos, Macro considerou a possibilidade do outro não entender o grego. Era pouco provável, concluiu, uma vez que o grego era a língua franca do oriente, mesmo
em regiões como aquela, em que a língua nativa era o aramaico. Junto ao centurião, um dos legionários equipados com fundas começou a fazê-la girar, deixando que
as tiras de cabedal e a bolsa com o seu projéctil preparado lhe subissem acima da cabeça.
- Baixa isso! - Ordenou-lhe Macro. - Ninguém ataca sem eu dar a ordem! A recompensa está temporariamente suspensa.
A maior parte dos homens riu perante a afirmação, sobretudo aqueles que não tinham tido oportunidade de trocar o escudo por uma funda. Cato nunca conseguira entender
o prazer que os soldados tiravam quando viam a frustração de um dos seus camaradas, e abanou a cabeça com uma expressão exasperada. O legionário visado, entretanto,
parara de acelerar a funda e deixara cair o projéctil para o solo. O silêncio voltou a imperar nas linhas romanas, enquanto o agora solitário cavaleiro continuava
a aproximar-se, desprezando abertamente o aviso que Macro lhe lançara.
- Um cabrãozito atrevido, não te parece?
- Bom, pelo menos não ordenou aos seus homens que nos atacassem.
Macro indicou com um rápido gesto do polegar a cavalaria romana,
que se aproximava vinda da direcção contrária.
- Porque havia de o fazer, com os nossos a chegarem?
- Não me parece do tipo que teme a cavalaria romana.
Macro encolheu os ombros.
- Veremos.
Deu um passo adiante, abandonando o quadrado, e apontou o dedo ao cavaleiro, que já não estava a mais de cinquenta passos.
- Pára aí mesmo! Não voltarei a avisar-te!
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O homem refreou por fim a montada, fazendo-a parar. Por momentos reinou o silêncio, enquanto ele contemplava os soldados romanos com um olhar intenso. Cato notou
que as suas vestes escuras eram feitas de um tecido fino, provavelmente seda, que ondulava e dançava suavemente enquanto o cavalo batia com as patas no solo. Parecia
ser um homem bastante forte, com um rosto largo e másculo emoldurado por uma barba negra e cuidadosamente aparada. Aparentava ser alguns anos mais novo que Macro.
Os seus olhos acabaram por o encontrar e fixar-se no poderoso oficial romano.
- E quem são vocês? - Indagou, em grego. - Para lá de romanos, claro.
A voz era rica e profunda, sem traços de pronúncia.
- Sou o centurião Macro, da Quarta Coorte da Décima Legião. Comando a coluna de socorro enviada em auxílio de Sua Majestade o rei Vabathus, aliado de Roma.
- Aliado de Roma? - As sobrancelhas do homem ergueram-se numa expressão de sarcasmo. - Lacaio de Roma, isso sim.
Macro preferiu ignorar a provocação.
- E quem és tu, ó ilustre?
- Ilustre? - O homem pareceu surpreso perante o termo usado pelo romano. - Sou Balthus, príncipe de Palmira, e estes... - Fez um gesto largo, abarcando os seguidores.
- O meu séquito, caçadores na sua maior parte. Há menos de um mês andávamos pelas colinas a perseguir veados e lobos. Hoje em dia caçamos traidores e inimigos de
Palmira. Como os cães que deixámos espalhados pela areia lá atrás. - Acenou com a cabeça por cima do ombro.
Macro estendeu a mão.
- Nesse caso, príncipe, somos amigos.
- Amigos? - Balthus fungou e cuspiu para o solo. - Roma não é amiga de Palmira.
Cato fez-se notar ao limpar a garganta, resolvido a entrar na discussão.
- Mas também não é com certeza uma inimiga. Ao contrário da Pártia, e daqueles que estão prontos a vender Palmira aos partos, e que ocupam a cidade.
Deu-se uma pausa, enquanto Balthus avaliava Cato; finalmente, respondeu.
- Quanto a isso, romano, a ver vamos. Não é segredo que o vosso Imperador deseja Palmira como um ladrão almeja possuir aquilo que pertence a outros.
Macro abanou a cabeça.
- Calma aí, amigo. Não somos ladrões. Estamos aqui para auxiliar o
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vosso rei. Para o salvar daqueles que estão dispostos a traí-lo em favor dos partos.
- A sério? - Balthus sorriu com desdém. - E como te propões salvá-lo, com uma tão ridícula força?
Macro inchou o peito.
- Somos mais do que suficientes para isso.
- Não me parece, centurião. Foram vocês que precisaram de ajuda há momentos. Se não fosse a minha intervenção, teria sido uma mera questão de tempo até que aqueles
traidores vos destruíssem.
- Não. Tínhamos a situação sob controlo. Aguardávamos apenas que chegasse a luz para fazer entrar a cavalaria na refrega. - Apontou para os homens dos esquadrões
montados da Segunda Ilírica que se aproximavam.
Por trás da primeira fila dos auxiliares, Cato virou-se para Parmenião e sussurrou.
- É melhor enviar um mensageiro ao centurião Aquila. Não queremos que a nossa cavalaria entenda mal a situação e acabe feita em tiras.
- Sim, senhor.
Enquanto Parmenião se apressava a transmitir as ordens, Cato deixou também a formação e juntou-se a Macro, no preciso instante em que Balthus se deixava levar por
um riso aparentemente espontâneo.
- Cavalaria romana... Tenho a impressão de que não fariam grande diferença numa situação destas.
Macro corou, irritado, e deu um passo na direcção de Balthus.
- Oiça lá, somos perfeitamente capazes de tomar conta de nós mesmos.
Apesar de partilhar o sentimento de orgulho ferido do amigo, Cato percebia perfeitamente que não era aquele o momento ou o local para se revelarem ultrajados, pelo
que resolveu intervir, pigarreando ruidosamente. De tal forma que quer Balthus quer Macro se viraram para ele.
- Já acabaste? - Rosnou Macro.
- Perdão, senhor. É do pó. De qualquer maneira, penso que já ficou claro que estamos todos do mesmo lado. Creio que chegou o momento de discutirmos com o príncipe
a situação em Palmira.
- Achas mesmo?
- Sim. - Cato insistiu com veementes gestos de cabeça. - Muito claramente, senhor.
Macro olhou-o por momentos, e então virou-se para o príncipe Balthus.
- Muito bem. Se ordenar aos seus homens que desmontem, darei indicações para os meus homens se acalmarem, e poderemos conversar em termos mais civilizados.
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Balthus assentiu.
- Seria bem melhor, centurião.
Virou-se e dirigiu algumas palavras aos seus seguidores. No momento seguinte, os cavaleiros desceram das montadas e sentaram-se junto aos cavalos, prontos a montar
de novo assim que o seu líder o ordenasse. Ainda assim, admitiu Macro, estavam a agir de boa-fé, pelo que se virou para os seus homens e lhes deu ordem para abandonar
o dispositivo armado. Os homens pousaram escudos e lanças, mas não deixaram de olhar desconfiados para os palmirenses que, entretanto, se tinham dedicado a tirar
das sacolas pão e carne seca para se alimentarem, enquanto aguardavam por novas ordens. Perto do quadrado romano, o centurião Áquila tinha também feito os seus homens
deter-se e desmontar, juntando-se aos seus camaradas a pé. A tensão entre as duas forças era ainda assim palpável. Cato sorriu sem vontade. Aquele episódio tinha
pelo menos conseguido fazer esquecer por momentos a hostilidade latente entre legionários e auxiliares.
O príncipe Balthus desceu do cavalo e ordenou a um dos seus homens que olhasse pela montada, antes de se dirigir a passos largos pela areia para junto dos dois oficiais
romanos. Parou à frente deles e avaliou-os cuidadosamente com os olhos escuros; depois agachou-se e convidou-os a imitá-lo. Macro franziu o sobrolho, pouco habituado
e pouco disposto a acatar a autoridade de alguém que não fosse romano. Cato não manifestou a mesma relutância, baixando-se e sentando-se com as pernas cruzadas;
com um suspiro resignado, Macro fez o mesmo.
- É portanto assim que Roma honra o tratado que estabeleceu com o meu pai. - Começou Balthus. - No momento em que ele precisa de assistência, o vosso governador
envia-lhe um ridículo punhado de homens para restabelecer a sua autoridade no reino. Bem o avisei para não confiar em Roma.
- Somos apenas uma força avançada. - Explicou Macro, irritado. - O general Longino avançará para Palmira assim que reunir o resto do seu exército.
- E o que esperam vocês, força avançada, conseguir, exactamente?
- As ordens que recebemos foram para penetrar até à cidadela e proteger o rei e os cidadãos romanos, até à chegada do grosso do nosso exército.
- Estou a ver. - Concluiu Balthus. - A reputação romana acerca dos planos meticulosos é de facto bem merecida.
Cato sentiu-se atingido pelo tom irónico do homem; Macro limitou-se a acentuar o franzir do sobrolho.
- Como tencionam penetrar na cidade? - Prosseguiu Balthus. - E que caminho vão seguir pelas ruas até à cidadela?
- Trataremos disso quando lá chegarmos.
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Cato interveio.
- Naturalmente que apreciaríamos qualquer ajuda que nos pudesse prestar, ou qualquer assistência que nos desse e que nos permitisse cumprir as nossas ordens.
- Estou certo de poder contar com a gratidão de Roma, tanto como com as promessas de auxílio que foram feitas a Palmira. - Antes que Macro pudesse reagir, Balthus
continuou em tom melífluo. - Ajudar-vos-ei a chegar à cidadela, sim. Mas há condições.
- Condições? - Inquiriu Macro, agastado. - Quais?
- Em primeiro lugar, eu comandarei a coluna até que esta se encontre a salvo no interior da cidadela.
Macro abanou a cabeça.
- Não. O comando é meu. Nem pensar em renunciar-lhe.
- Centurião, neste momento precisas da minha ajuda, não sou eu que preciso da tua. Sem os meus homens, duvido muito que chegues a Palmira, quanto mais que consigas
abrir caminho pelas ruas até à cidadela. Se tiveres mais algum encontro com arqueiros montados, temo bem que tu e os teus homens acabem por ter o triste destino
de que vos salvei há bem pouco tempo.
Fez uma pausa para deixar que as suas palavras pesassem, e para que os dois oficiais romanos se apercebessem de que o que dizia era a verdade. Prosseguiu então.
- Portanto, serei eu a comandar esta coluna. Obedecerás às minhas ordens e quando alcançarmos a cidadela poderás tomar de novo o comando dos teus homens.
Macro sorriu.
- Tenho a certeza de que o seu pai apreciará o gesto. O filho leal que o vem salvar, ao comando dos meus homens. Ficará muito bem visto, com certeza.
- Evidentemente. Terei que ser visto como leal se quero ter hipóteses de ser designado sucessor.
- Sucessor? - Demandou Macro, abismado. - Mas não passa do segundo filho do rei. Não é o herdeiro.
- Ainda não. - Balthus sorriu.
- Suponho que será outra das suas condições? - Inquiriu Cato, calmamente. - Quer que Roma o confirme como sucessor.
- Sim. Mas há mais. - Baixou a voz. - Se Artaxes for capturado, exijo que seja executado assim que a revolta for esmagada.
- Duvido que, da parte de Roma, encontre alguma oposição a esse pedido. - Assinalou Macro.
- E quero ainda que o meu irmão mais velho seja exilado.
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- Exilado? - Cato admirou-se. - Porquê? O seu irmão mais velho encontra-se na cidadela com o rei. É-lhe indiscutivelmente leal.
- Sim, é uma pena. Mas o Amethus não passa de um idiota.
Macro voltou a abanar a cabeça.
- Não sei nada disso. Tanto quanto me lembro, ser um idiota chapado nunca impediu ninguém de ser também rei. Embora existam excepções.
- Precisamente. Centurião, sou tudo menos parvo; e os interesses de Roma e Palmira serão muito melhor servidos se eu suceder ao meu pai. - Uma imensa fome de poder
revelou-se no olhar do príncipe ao prosseguir.
- Quando esta revolta terminar, serei eu o rei. E poderei considerar respeitar o tratado com Roma, desde que lhe sejam feitas algumas modificações.
- Claro, naturalmente.
Balthus ignorou o tom sarcástico de Macro e terminou em tom amigável.
- São estes os meus termos. E não são negociáveis.
Macro cerrou os lábios enquanto considerava a oferta. Cato resolveu intervir.
- Senhor, parecem-me aceitáveis.
O centurião pensou ainda mais alguns momentos antes de responder.
- Até pode ser que sim. Mas não posso fazer acordos destes sem a aprovação do Longino. Tudo o que lhe posso oferecer é a minha palavra de que defenderei a sua proposta
perante os meus superiores. Considera isto aceitável?
Balthus encolheu os ombros.
- Centurião, aceito a tua palavra. A jura de um oficial romano satisfaz-me por completo. Em troca, eu e os meus homens vamos escoltar-vos até Palmira e conduzir-vos
até à cidadela, e então poderás assumir o comando da defesa.
- Muito bem. - Aceitou Macro, e ofereceu a mão. - Estamos entendidos.
Um sorriso desenhou-se nos lábios do príncipe Balthus quando agarrou na mão do oficial romano e selou o acordo. Levantou-se então, fazendo ondular as vestes largas
e negras.
- Bem, centurião, será melhor preparares as tuas tropas para a marcha. O dia já nasceu, e temos que percorrer a maior distância possível antes que ele chegue a meio.
Macro e Cato levantaram-se também e inclinaram as cabeças enquanto o príncipe palmirense se dirigia para o local onde se concentravam os seus homens. Macro aguardou
que ele estivesse fora do alcance do ouvido, e comentou.
- Bom? O que é que pensas disto?
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- Foi o melhor acordo que podíamos conseguir nestas circunstâncias.
Macro olhou-o com atenção.
- Mas...?
- Não confio nele.
- Nem eu. - Macro seguiu Balthus com o olhar ainda mais alguns instantes e inflou as bochechas. - Bom, vamos lá formar os homens para continuarmos.
Depois de um breve descanso aproveitado para comer as rações matinais, os feridos foram colocados nas carroças, a que foram atreladas as mulas sobreviventes. Vários
dos animais tinham sido mortos ou feridos pelas setas, e foi preciso aproveitar alguns cavalos de uma das unidades de cavalaria para ocupar as posições em falta.
O príncipe Balthus e os seus homens tinham já tomado posse dos poucos cavalos inimigos que tinham ficado no campo de batalha, a título de despojos de guerra. Os
mortos foram rapidamente depositados em campas rasas, cobertas com pedras para poupar aos falecidos a indignidade de serem consumidos pelos abutres ou outros necrófagos.
Depois as duas coortes formaram: os legionários à frente, seguidos pelas carroças, e só então os auxiliares; os dois esquadrões de cavalaria seguiam à frente da
coluna, ocupando os flancos. Quando todos os homens tinham assumido as suas posições, Macro passou revista à coluna com o olhar e comentou.
- São bons tipos. Nem parece que estiveram em combate há poucas horas. Quando chegarmos a Palmira havemos de mostrar àquele príncipe gozão o que podem os verdadeiros
soldados.
- Sim, senhor. - Retorquiu Cato, e continuou. - Mas entretanto, precisamos dele e dos seus homens. São a melhor hipótese de que dispomos para conseguir desempenhar
a nossa missão.
Macro abanou a cabeça.
- Cato, meu caro, estou tão ciente disso como tu. Prometo que me vou portar bem.
- Oh, senhor, não quis dizer isso. - Reconheceu Cato, embaraçado.
- Estava a falar dos homens. Teremos que os vigiar atentamente, e garantir que não se envolvem em disputas com os locais. Se o Balthus servir de exemplo, não podemos
contar com uma recepção calorosa quando chegarmos a Palmira, sendo nossos aliados ou não.
- Pois não. - Macro lançou um profundo suspiro. - Bom, e com esta nota animadora, vamos lá pôr-nos a andar.
A coluna começou a marcha, juntando-se aos cavaleiros palmirenses. Balthus deu imediatamente uma ordem, e os seus homens dispersaram, formando um leque de batedores
que se espalhou pelo deserto na direcção
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de Palmira. A estrada levou-os a passar pelo local onde se tinha dado a escaramuça entre os dois grupos de cavaleiros, e os romanos observaram curiosos as dezenas
de cadáveres de homens e cavalos espalhados pelo deserto pedregoso.
Cato sentiu um arrepio na espinha ao contemplar os corpos abandonados.
- Curioso, não lhe parece?
- O quê? - Macro virou-se para ele. - O que é que é curioso?
- Não houve prisioneiros. E nenhum dos homens do Balthus pareceu ter ficado seriamente ferido.
- E então? Apanharam-nos de surpresa e deram-lhes uma boa tareia.
- Eu sei. - Concordou Cato. - Mas por certo que alguns dos rebeldes devem ter tentado render-se, e os homens de Balthus devem ter sofrido algumas baixas. Portanto,
onde estão uns e outros?
Os dois oficiais voltaram a admirar o macabro espectáculo dos mortos iluminados pelo sol matinal. Foi Macro o primeiro a falar.
- Bom, parece que este sacana do Balthus é ainda mais implacável do que eu estava a pensar.
Cato assentiu.
- Desde que seja implacável a nosso favor...
- E se não for?
- Nesse caso, a situação em Palmira tem todas as possibilidades de se vir a tornar o nosso pior pesadelo. - concluiu Cato, serenamente.
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Uma vista e tanto. - Comentou Macro, enquanto pegava no cantil e sorvia uma pequena porção de água.
Balthus e Cato descansavam ali perto, à sombra de um arbusto raquítico que crescia numa crista do terreno que dominava Palmira. A encosta rochosa descia por baixo
deles até se encontrar com a planície que se espalhava pela distância até encontrar o oásis que dava à cidade não apenas nome mas também riqueza. Para lá da cidade
avistava-se uma zona pontuada por palmeiras e parcelas de terreno irrigado. A sul via-se um vale pouco profundo dominado por grupos de pequenas torres, que não eram
mais que túmulos. As paredes lustrosas da cidade fechavam-se sobre as cúpulas e os telhados dos edifícios e palácios, construídos num estilo grego. O mercado, as
áreas abertas e os templos situavam-se na parte ocidental da cidade, enquanto a leste imperava uma vasta área murada, que se sobrepunha aos edifícios próximos por
estar implantada sobre uma elevação do terreno. Cato apontou-a.
- Aquilo é a cidadela?
Balthus anuiu.
- Qual é a melhor forma de lhe aceder?
- O portão oriental. Ali, estás a ver?
- Sim... - Cato esforçou a vista. - Sim, já estou a ver.
O portão não era protegido por qualquer torreão, integrando-se sem quebras na muralha, e só a esparsa fiada de visitantes matinais a caminho da cidade revelou a
Cato a sua presença. Decidiu que não devia ser nenhuma formidável instalação defensiva. No interior das muralhas os edifícios eram baixos e denunciavam com clareza
que aquela era a parte mais pobre da cidade. As dúvidas do jovem despertaram imediatamente.
- As ruas devem ser muito estreitas naquela zona.
- É verdade. - Admitiu Balthus. - Mas é o caminho mais directo para a cidadela, e todos os palácios e instalações da guarnição estão na outra ponta da cidade. Se
conseguirmos irromper pelo portão antes que o alarme seja dado e avançarmos com rapidez, conseguiremos por certo quebrar as linhas dos rebeldes e chegar ao nosso
objectivo.
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- Se conseguirmos irromper. - Sublinhou Cato. - Temos que estar certos de que a guarnição do portão será mínima quando a nossa coluna avançar. Ou seja, teremos que
criar uma manobra de diversão. E será fundamental que a guarnição da cidadela efectue uma sortida.
- Sortida? - Questionou Macro. - Não te estás a esquecer de nada? Eles são poucos, e estão cercados.
- Eu sei. Mas terão que atrair a atenção do inimigo, afastá-lo do portão, se queremos ter alguma hipótese de conseguir levar a coluna até à cidadela.
Balthus anuiu.
- Ele tem razão, centurião Macro. Teremos que contar com a ajuda da guarnição.
- A sério? - Macro humedeceu os lábios. - Até parece fácil, quando vocês falam nisso.
Balthus sorriu.
- Por certo que os soldados do grande Império Romano não serão detidos por uma tão ínfima contrariedade...
- Não serão, não. - Retorquiu Macro com firmeza. - Mas como é que vamos chegar ao portão sem atrair atenções? Na planície não há hipótese de dissimularmos a coluna.
Teremos que avançar a coberto da noite.
- Evidentemente, centurião. - Uma expressão arreliada atravessou momentaneamente o rosto do príncipe. - Como eu ia dizer. Seguiremos pela crista até àquele ponto.
- Indicou uma projecção rochosa que descia mais suavemente para a planície, alcançando-a a cerca de três quilómetros da muralha, na parte norte da cidade. - Teremos
que colocar uns trapos nos cascos dos cavalos, e abandonar ali as vossas carroças de provisões. Não podemos dar-nos ao luxo de sermos denunciados pelo ruído das
rodas, ou pelo guinchar de um eixo.
- E os nossos feridos? - Indagou Cato. - Não os deixaremos para trás.
- Vão atrasar-nos. E se um deles calha a gritar de dor? Serias capaz de pôr em risco toda a tua força para tentar salvar um soldado ferido e inútil?
- Não os deixaremos para trás. - Repetiu Cato com firmeza. - Eles sabem perfeitamente que não podem pôr em risco a vida dos camaradas. Não farão qualquer barulho.
O olhar de Balthus procurou Macro.
- Centurião, é também essa a tua opinião?
- É. Concordo com o Cato.
- Seja, então. Mas se a nossa aproximação for detectada e tivermos que tentar a fuga, eu e os meus homens seremos forçados a cuidar apenas de nós mesmos.
- Nada mais esperava, príncipe.
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- Ainda bem que nos entendemos, romano.
- Não creio que haja qualquer dúvida quanto a isso. - Concluiu Macro, e levantou-se a custo, abandonando a escassa sombra. - Vamos, parece-me que já é hora de regressarmos
para junto da coluna.
Os três homens deixaram o ponto de onde tinham vigiado a cidade e regressaram para junto dos homens, na base da crista. Tinha sido permitido aos homens de infantaria
destroçar, e eles tinham-se espalhado pela área, tentando encontrar uma sombra e repousar uns instantes; alguns tinham mesmo tentado improvisar uma tenda com as
capas, esticadas sobre uma armação de lanças e escudos. Os cavaleiros, quer os romanos quer os palmirenses, descansavam à sombra dos cavalos, com as rédeas na mão.
Tinham chegado àquele local cedo pela manhã e feito alto, enquanto os três comandantes tinham subido até ao cimo da crista para reconhecer o terreno até Palmira.
Depois de regressarem para junto dos homens, a coluna prosseguiu, mantendo-se por trás da crista rochosa até chegar à sua extremidade, onde o espigão rochoso quase
desaparecia, e aí voltaram a parar, quase ao meio-dia.
- Porque é que paramos aqui? - Quis saber Macro.
- Olha. - Balthus apontou para a nuvem de poeira que se elevava sobre a coluna. - Não nos podemos permitir dar um sinal tão evidente da nossa presença. A crista
é suficientemente alta para nos esconder dos vigias nas muralhas da cidade, mas se a ultrapassarmos eles não deixarão de atentar na poeira que levantamos. Portanto,
é fundamental esperar pela chegada da noite para continuar a avançar.
- Seja. - Admitiu Macro. - Esperemos então.
Depois de postada uma sentinela no topo da crista, todos tentaram repousar, sob o Sol do meio-dia; quando a ardente esfera começou a descer do zénite, Macro deu
ordens aos homens para se prepararem para a marcha nocturna até ao portão leste. Todo o equipamento portátil foi retirado das carroças e distribuído entre legionários
e auxiliares. As peças de madeira e os dardos de reserva foram usados para fazer padiolas para os feridos e escadas de assalto. Entretanto, Cato deu ordens aos cavaleiros
para que envolvessem os cascos das montadas em pedaços de pano cortados das próprias capas.
- Não vão precisar delas esta noite. - Obrigou-se a sorrir, enquanto explicava a situação ao centurião Áquila e aos outros oficiais. - Se tivermos sucesso, teremos
acomodações quentes à nossa espera na cidadela de Palmira. Se falharmos, bem, duvido que em Hades as nossas capas tenham alguma utilidade.
Uma piada lamentável, reconheceu, mas os oficiais fingiram apreciá-la. Apesar da sua juventude, Cato liderava homens há tempo suficiente
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para saber o que valia uma atitude jocosa e aparentemente despreocupada. Deixou Áquila a cumprir as suas indicações e regressou para junto de Macro. Havia ainda
uma última tarefa a organizar. Fosse como fosse, tinha que ser transmitida uma mensagem através das linhas inimigas, para que o rei e os seus seguidores estivessem
preparados para receber na cidadela a coluna de socorro. Era óbvio que teria que ser um dos homens de Balthus a servir de mensageiro, mas mais uma vez os dois oficiais
romanos estavam de acordo quanto à desconfiança que lhes despertava o seu novo aliado.
- Não me agrada. - Resmungou Macro. - Eu sei que ele nos ajudou contra aqueles arqueiros, mas continua a não me apetecer nada oferecer-lhe as costas. E a verdade
é que, a partir do momento em que marcharmos contra aquele portão, estaremos nas mãos dele. Se lhe apetecer trair-nos, estamos feitos.
- É verdade. - Assentiu Cato. - Mas não há nenhuma razão válida para ele nos trair. Está pelo menos tão interessado como nós em abafar a rebelião. A minha maior
preocupação é que os partos lhe possam oferecer melhores condições do que Roma. Enfim, acho que tem razão. Temos que tomar muito cuidado.
- Cato, as palavras são boas, mas não nos protegem. O que é que vamos fazer quanto a isto?
Cato pesou a situação; aquele que parecia o melhor curso de acção não o seduzia de todo. De facto, aquilo que estava prestes a sugerir aterrorizava-o. Porém, ao
mesmo tempo, sentia alguma excitação perante o enorme risco, e percebeu, num repente, que estava a adquirir algum gosto pelo perigo. Havia uma perversa característica
na sua natureza que o procurava, e não pôde deixar de se interrogar: seria esse desejo tão forte que era capaz de lhe toldar a razão? Sentiu uma vaga de repulsa
e desprezo por si mesmo. Se isso fosse verdade, não tinha qualquer direito de comandar homens, de tomar nas suas mãos a responsabilidade pelas suas vidas. Estariam
muito mais seguros sob o comando de outro homem. Esse pensamento tornou a decisão que ia tomar muito mais fácil.
- Bem, se não confiamos no Balthus, o melhor será mandar um dos nossos homens com o mensageiro. Só para ter a certeza de que ele não se desvia do caminho, e de que
os portões da cidadela se abrirão para nos acolher.
Macro considerou a sugestão e virou-se para o amigo com uma expressão triste e desalentada.
- Já sei o que vais dizer. Sei-o mesmo antes de abrires a boca. Nem penses nisso. Os teus homens precisam de ti. Para falar muito francamente, eu preciso de ti.
Vamos ter que combater duramente esta noite, e eu ficaria
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muito mais tranquilo se soubesse que a Segunda Ilírica estava em boas mãos.
Cato encarou-o por momentos, o coração cheio de afecto pelo veterano duro e honesto que o tinha ensinado a ser um soldado, e a comandar homens. Macro era o ideal
de Cato. Aos olhos do jovem, era aquele o padrão por que se mediam todos os soldados, e ouvi-lo dizer que precisava de si era algo que ia muito para além dos elogios
rotineiros que lhe pudessem ser oferecidos. Tentou controlar o orgulho e o afecto antes de falar.
- O centurião Parmenião é tão capaz de conduzir os homens como eu.
- Ná. - Macro abanou a cabeça e soltou uma gargalhada: - É muito mais capaz. Eu é que não gosto de competição tão dura. É muito melhor poder comparar-me contigo.
Riram os dois, e Cato prosseguiu.
- Tenho que ser eu. Para ter a certeza de que do outro lado tudo está preparado. Se formos traídos, antes perder-me a mim do que a ambas as coortes.
- Mas como é que eu vou saber se o plano do Balthus pode ser seguido?
- Já pensei nisso. Se conseguir chegar à cidadela, farei com que acendam uma fogueira na mais alta das torres. Assim que a virem, ataquem o portão da cidade. Se
não virem o sinal antes da alvorada, terão que assumir que falhei. Senhor, está tudo certo? - O tom formal era deliberado. Cato sabia que a decisão final só cabia
a Macro, e se ele recusasse o plano, não haveria mais debate.
Macro esfregou o queixo, onde cresciam alguns pêlos.
- Muito bem. Vai dar as tuas ordens ao Parmenião e volta para aqui. Vou falar com o nosso amigo, o príncipe, e decidir que mensagem é que vamos enviar ao rei.
Quando Cato se juntou de novo a Macro já o Sol ia baixo no horizonte e as sombras se espalhavam rapidamente pela planície. Um dos homens de Balthus esperava junto
ao príncipe e ao oficial romano, com umas vestes escuras nos braços.
- Este é o Carpex, um dos meus escravos. - Explicou Balthus. - Um homem cuja lealdade tenho na máxima conta.
- Para escravo, claro. - Comentou Macro.
- Sim, mas não hesitaria em confiar-lhe a minha vida. - Ripostou Balthus.
- Ainda bem. Porque é precisamente isso que estamos a fazer. A confiar-lhe a sua vida, mas também as nossas.
Carpex apontou para as roupas enquanto instruía Cato.
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- Senhor, terá que usar estas vestes. Será melhor pô-las sobre a armadura, de forma a esconder as armas. O resto do equipamento terá que ficar.
- Como é que vamos chegar à cidadela? - Quis saber Cato.
- Há uma maneira. - Respondeu Balthus. - Há um túnel que vai dos esgotos da cidade até aos antigos estábulos na cidadela. Hoje em dia o edifício é uma caserna militar,
mas eu e o Carpex descobrimo-lo quando éramos miúdos e usámo-lo muitas vezes para escapar a castigos.
- Que grandes malandros me saíram. - Foi o comentário de Macro.
- E quando foi a última vez que o usaram?
- Há uns dez anos. - Balthus cerrou os lábios. - Talvez mais.
- Estou a ver. Portanto não há qualquer garantia de que não esteja bloqueado, ou até entulhado, pois não?
- Tanto quanto sei, ainda lá está, na mesma.
- E se não estiver? - Inquiriu Cato.
- Nesse caso teremos que tentar de outra forma.
- Muito bem. - Concordou Cato. - Se o problema surgir, lidaremos com ele.
Macro abanou a cabeça.
- Isto é uma loucura.
- Talvez seja. - Admitiu o jovem. - Mas por vezes a loucura é tudo o que nos resta.
- Oh, essa é muito profunda.
Cato encolheu os ombros e virou-se para o escravo.
- Onde está a mensagem?
Balthus apresentou uma pequena tábua encerada e deu-a a Cato.
- Aqui está.
- E, bom, é suficientemente clara? - Quis saber Cato, interrogando Macro.
O amigo sorriu.
- Está lá tudo o que é preciso. Nada de surpresas.
- Óptimo. - Retorquiu o jovem, enquanto guardava a tábua na mochila. Então removeu o capacete, a capa, o arnês e a armadura e passou-os a Macro, antes de se dobrar
para retirar as caneleiras prateadas. Quando por fim envergou as novas roupas e fixou uma faixa em redor da cabeça já não tinha ar de romano, e esperou mesmo poder
passar por um súbdito de Palmira - pelo menos na escuridão. Enquanto o Sol descia para o horizonte, Cato e Macro sentaram-se na encosta, a alguma distância dos homens.
Assim que se encostou a um rochedo, Macro adormeceu. A cabeça descaiu-lhe para o peito e começou a ressonar. Cato não conseguiu evitar um sorriso. Por muito cansado
que estivesse, ele próprio nunca conseguia dormir nas horas que antecediam uma batalha, e a mente divagava-lhe por
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inúmeros e díspares caminhos. Agora que já tinha passado aquela primeira onda de excitação perante a ideia do perigo, Cato percebeu que estava a tremer e que um
tique nervoso lhe tinha tomado conta do joelho. Olhou para ele surpreso e teve que fazer um esforço para parar o movimento rítmico.
E então, sem qualquer motivo aparente, a imagem do homem que tinha ferido passou-lhe pelo pensamento. Podia ver todos os detalhes da expressão de surpresa e medo
de Primo quando a sua lâmina se lhe tinha cravado profundamente no ombro. O soldado tinha mergulhado na inconsciência e morrido no dia anterior, e estava sepultado
na areia, debaixo de uma pilha de rochas para evitar que os animais do deserto conseguissem chegar ao corpo. Cato não o vira mais depois do começo do ataque nocturno
dos arqueiros montados, mas a imagem do homem continuava a assombrá-lo. Ao fim de algum tempo não conseguiu mais conter-se, e sacudiu Macro.
- Ei, acorde.
- Hmmmm? - Resmungou Macro, lambendo os lábios e virando-se de costas para ele. - Desaparece, estou a dormir.
- Não, não está. Vá, acorde. Temos que conversar. Senhor? - Cato abanou o ombro do amigo.
Macro agitou-se, pestanejou e levantou-se a custo, praguejando perante a dor nas costas.
- O que foi? Cato, o que se passa?
Agora que tinha finalmente a atenção do amigo, Cato não sabia por onde começar. Engoliu em seco, nervoso.
- Aconteceu uma coisa na outra noite. Quando emboscámos os arqueiros montados. Algo que não lhe contei.
- Ah? Bom, o que foi?
Cato respirou fundo e obrigou-se a confessar.
- Durante o combate, eu... Eu atingi um dos meus homens. Trespassei-o com a espada.
Macro encarou-o por momentos, e depois esfregou os olhos.
- Fizeste o quê?
- Feri um dos meus próprios soldados.
- Ele morreu?
- Sim.
- Reconheceu-te?
- Sim. - Cato relembrou o olhar acusador do homem, e esforçou-se por afastar a memória. - Tenho a certeza disso.
- E teve tempo de contar a história a alguém?
- Não faço ideia.
- Hum. Uma confusão. Não é absolutamente nada de extraordinário.
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No calor da batalha, ainda por cima à noite, nada mais natural que um acidente. Ainda assim, é preciso admiti-lo. Se houver algum inquérito, isso não vai ficar nada
bem na tua folha de serviço. E mesmo que não haja, haverá boatos, se o tipo falou com alguém antes de quinar. E já sabes como são as coisas no exército, quando há
um rumor. Os teus homens não ficarão nada satisfeitos. Nem os meus, já agora. Pelo menos enquanto não se esquecerem daquele incidente lá em Antióquia.
- Mas foi um acidente. - Protestou Cato. - Estava escuro. Foi em plena refrega. Não queria de todo fazê-lo.
- Miúdo, sei disso tudo muito bem. O problema é que os rapazes da Décima Legião não o verão da mesma forma. Hão-de dizer que o Crispo matou um tipo da mesma maneira,
por acidente, e foi executado por isso. Vão querer saber porque é que tu não hás-de sofrer o mesmo castigo. Sei que as circunstâncias são completamente diferentes,
mas esse é o género de detalhes que os homens ignoram quando estão ressentidos e só pensam na vingança.
Cato manteve-se em silêncio por instantes, antes de levantar o olhar e enfrentar o amigo.
- O que devo então fazer?
- Pouca coisa. Se o Primo morreu sem contar a ninguém, não tens problemas. - Macro fez uma pausa e sorriu. - Bem, isto é maneira de dizer. Conhecendo-te como conheço,
não tenho dúvidas de que hás-de carregar a culpa até ao momento da tua própria morte. Se o Primo disse alguma coisa, os homens tratar-te-ão como um leproso. Pior
ainda, terás que ter muita cautela.
Cato agoniou-se só de pensar em ser tratado como um proscrito entre os seus camaradas militares. Engoliu em seco.
- Acho que o melhor é contar toda a história, antes que comecem a circular rumores. Para o bem de toda a coorte.
- Cato, porra, não há qualquer necessidade de te armares em mártir heróico, pelo menos por enquanto. - Respondeu Macro, com irritação.
- Aguenta uns tempos. Depressa saberás se ele contou ou não a alguém. E entretanto, seria bem melhor que não te torturasses com este assunto. - Pensou um momento
e apontou o dedo ao jovem. - Espera lá, isto é tudo por causa dessa história?
- O quê?
- Ofereceres-te para levar a mensagem ao rei.
- Não. Não tem nada a ver com isso.
Macro encarou-o por momentos, e depois encolheu os ombros.
- Está bem. Se tu o dizes. Mas vê lá se não arranjas maneira de ser morto só para supostamente endireitares a situação. Já te conheço, Cato.
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- Não se preocupe. Não tenho qualquer intenção de desperdiçar a minha vida.
- Muito bem, então. - Macro estava longe de estar convencido. - Mas tem cuidado, sim?
Entretanto, Cato observava duas figuras que se dirigiam a eles, subindo a encosta: Balthus e Carpex. Os dois romanos levantaram-se e saudaram o príncipe com um inclinar
de cabeça.
- Chegou o momento. - Anunciou Balthus. - Segue o meu homem e faz exactamente aquilo que ele te indicar. Há maneira de entrar na cidadela, mas tens que confiar nele
e obedecer-lhe. Não fales, nem sequer em grego, porque a tua pronúncia denunciar-te-á imediatamente. E não te esqueças do sinal. Se não o virmos, não entraremos
na cidade.
- Compreendo.
- Muito bem; então, embora isso me custe imenso, romano, desejo-te boa sorte.
- Obrigado. - Cato virou-se para Macro. - Senhor, vê-lo-ei mais tarde, na cidadela.
- Evidentemente. - Macro sorriu e deu-lhe uma palmada no ombro.
- E como diz o príncipe, boa sorte.
- Obrigado, senhor. - Respondeu Cato solenemente, e virou-se para seguir Carpex a caminho da crista.
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Ultrapassaram a elevação e desceram pela outra face, mantendo-se a coberto do espigão rochoso que se projectava para a planície, na direcção de Palmira. O Sol escondeu-se
por trás da crista e eles prosseguiram em silêncio, enquanto as trevas se adensavam à medida que o crepúsculo avançava. Cato seguia Carpex de perto, atento às possíveis
armadilhas do terreno e sempre em busca de sinais de habitações ou patrulhas inimigas. Mas daquele lado da cidade a paisagem era inóspita e deserta, pelo que nada
mais se avistava para lá de algumas criaturas do deserto, nos seus afazeres típicos. Os dois homens surpreenderam um chacal que se apressou a esgueirar-se por entre
os arbustos, enquanto soltava estridentes guinchos de aviso. No céu um abutre descrevia as suas lentas espirais, e Cato não pôde deixar de imaginar como aqueles
dois animais se iam daí a pouco satisfazer num banquete de carne humana.
O último traço de luz desaparecia no céu quando alcançaram a extremidade do espigão rochoso e fizeram uma pausa, mal adivinhando as luzes cintilantes das lamparinas
penduradas nas muralhas da cidade, espalhadas pelas janelas ou telhados planos dos edifícios. Fora das muralhas viam-se também algumas fogueiras, pertencentes a
grupos de viajantes e mercadores acampados, empenhados nos seus negócios e indiferentes à luta pelo poder que se travava na cidade. A massa da cidadela fortificada
dominava a parte oriental da cidade; Cato deu um ligeiro toque no ombro do companheiro de aventura.
- E agora, por onde vamos?
Carpex apontou para uma depressão pouco pronunciada que se desenvolvia desde as colinas e serpenteava pela planura até perto da cidade. Nos poucos dias por ano em
que chovia na região, era o leito de um dos cursos de água que levava a humidade até ao oásis. Naquela altura, porém, apresentava-se seco e oferecia uma excelente
cobertura para a sua aproximação à cidade.
- Senhor, venha atrás de mim. E se encontrarmos alguém não pronuncie uma palavra que seja, sim?
- Sim, já sei. Vamos.
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Correram até à beira do canal e desceram para o leito. O solo era duro, mas ao mesmo tempo suave, e quase não faziam ruído ao avançar rapidamente, seguindo o curso
do ribeiro. Num dado momento Cato julgou ouvir vozes e deteve Carpex até ter a certeza de que não havia nada de errado; prosseguiram com todos os cuidados. Depois
de percorrerem uns cinco quilómetros, pelos cálculos de Cato, o curso seco começou a estreitar e a subir e emergiram na planície a não mais de quinhentos metros
da cidade. Logo à frente via-se um maciço de palmeiras que marcava o ponto em que a água que escorria das colinas terminava a sua jornada, e Carpex fez sinal a Cato
para o seguir até perto dos troncos esguios que curvavam ligeiramente até às copas frondosas. Havia uma ligeira brisa nocturna que agitava as longas folhas e as
fazia cantar; os dois homens avançaram pelas sombras e atravessaram cautelosamente o pequeno bosque.
O escravo agachou-se de repente, e fez sinal a Cato para o imitar. Enquanto o romano se colocava ao seu lado, Carpex olhou-o com ar assustado e levou o indicador
aos lábios. A cerca de trinta passos, onde as palmeiras começavam a tornar-se mais espaçadas, viam-se as inconfundíveis silhuetas de vários camelos, de joelhos no
solo. Por trás dos animais havia um grupo de homens sentados sob as estrelas e a conversar em aramaico, em voz baixa.
- Rebeldes? - Perguntou Cato, num murmúrio.
Carpex abanou a cabeça.
- Mercadores. - Inclinou a cabeça para um dos lados e escutou atentamente. - Estão-se a queixar por causa da revolta e dos problemas que lhes provoca nos negócios.
Cato resmungou sem convicção.
- Quem me dera ter esse género de problema. Bom, o que fazemos? Temos que os rodear.
- Sim. Por aqui. - Carpex agachou-se e prosseguiu de gatas ao longo do arvoredo, tomando todos os cuidados para não remexer as folhas secas que tinham caído das
palmeiras. Fez uma pausa e dirigiu-se a Cato. - Cautela, romano. Podem haver por aí escorpiões ou cobras, à caça na escuridão.
- Cobras?
- Víboras, sim. Vamos!
Cato seguiu-o, tentando não se encolher enquanto pensava na possibilidade de dar de caras com algum réptil ou insecto mortal. Lançou olhares apreensivos aos animais
e homens próximos. Um camelo virou-se para ele enquanto mastigava com ar ausente, e bramiu levemente; Cato deteve-se. Mas o animal depressa perdeu o interesse e
virou o olhar para outro lado enquanto continuava a ruminar. Assim que se viram a uma distância segura dos mercadores, voltaram a pôr-se de pé e prosseguiram para
a cidade.
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À sua esquerda estava a estrada para leste, para a Pártia, e Carpex dirigiu-se para ela. Cato agarrou-lhe no braço.
- Porquê por aqui? Vamos ser vistos de certeza.
- Claro. E assim seremos tomados por viajantes anónimos a caminho de Palmira. Se nos avistarem a chegar das colinas do norte, então sim, levantaremos suspeitas.
Confie em mim, senhor.
Cato suspirou profundamente e anuiu.
- Parece-me que não tenho escolha.
- De facto. E agora, por favor, silêncio.
Assim que chegaram à estrada começaram a segui-la a caminho da cidade. Pouco depois cruzaram-se com uma longa caravana que aproveitava o ar fresco da noite para
começar uma viagem em condições de algum conforto. Carpex trocou algumas palavras com vários dos condutores, e quando deixaram para trás o último dos camelos virou-se
para Cato.
- Ao que parece, os mercadores apressam-se a retirar da cidade os seus bens mais valiosos. A maior parte das famílias com posses já abandonou a cidade. Temem que
venha a ocorrer uma grande batalha, senhor. Talvez já tenham tido notícias de que o vosso governador se aproxima com as suas legiões?
Cato assentiu. Se ocorresse uma batalha, ou um cerco, seriam os habitantes de Palmira quem mais sofreria. Percebia perfeitamente a vontade de se afastarem dali,
pelo menos até que as convulsões terminassem. E como sempre, os pobres, os que não tinham outra casa nem meios para viajar, estavam condenados a ficar e aguentar
a sangrenta tempestade que se preparava para desabar sobre a cidade.
Ao aproximarem-se do portão oriental, Cato reparou que havia grupos de pessoas sentadas ou a dormir no solo, de ambos os lados da estrada. Apesar da revolta, alguns
dos habitantes locais ainda se arriscavam a entrar e sair da cidade, para tratar das suas diminutas parcelas agrícolas no oásis ou para garantir a segurança dos
seus rebanhos de cabras. O portão estava aberto, mas fortemente policiado por homens armados que não permitiam que o tráfego o cruzasse durante a noite. À luz dos
archotes que ardiam em suportes na parede sobre o portão e dos braseiros localizados de ambos os lados da estrada Cato verificou que os soldados envergavam armaduras
sobre as suas vestes largas e ligeiras. Também usavam capacetes cónicos e estavam equipados com escudos redondos e lanças. E barravam o caminho para o interior da
cidade.
- E agora? - Sussurrou Cato.
- Faça como lhe digo, senhor. Não foi o que combinámos?
Cato acenou em concordância.
- Siga-me e não fale. Quando chegarmos ao portão direi quem sou.
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Muito provavelmente seria reconhecido de qualquer maneira. Dir-lhes-ei que o senhor é outro escravo que escapou comigo do séquito do príncipe Balthus. Dir-lhes-ei
também que o meu amo está acampado a curta distância a leste daqui. E que lhes darei a sua localização precisa quando me for dada uma recompensa pela informação
que trago ao príncipe Artaxes. Dar-nos-ão passagem e escoltar-nos-ão ao encontro do príncipe. Quando entrarmos, estaremos no bairro mais pobre da cidade. As ruas
são estreitas e tortuosas. Quando eu disser, escapamos; terá que me seguir. Será fácil fugir à escolta e deixá-los para trás naquelas ruas, mas em caso algum poderá
deixar de me ver, senhor, ou perder-se-á e acabará de novo nas mãos deles.
- É esse o teu plano? - Sussurrou Cato, assombrado. - E se não resultar?
- Senhor, tem uma ideia melhor? - Ripostou Carpex, magoado.
Cato acenou vigorosamente.
- Para começar, devíamos pôr-nos daqui para fora e pensar num plano decente. - Mas já era demasiado tarde. Não havia hipótese de alterar o esquema de Carpex. - E
se eles mandarem alguém buscar o príncipe em vez de nos escoltarem? Fazemos o quê?
- O quê? - Carpex parecia surpreendido pela possibilidade de as coisas não se passarem como previa. - Nesse caso depressa descobrirão o que somos realmente, senhor,
e seremos executados, claro.
Cato abanou a cabeça, irritado pela natureza desesperada do plano desenhado pelo companheiro de aventura e lamentando não possuir forma de o evitar. Já estavam suficientemente
perto dos homens que guardavam os portões para estes os avistarem à luz dos archotes, e dar meia-volta naquele momento não deixaria de provocar suspeitas. Cato engoliu
em seco, nervoso, e desejou ardentemente que o barrete que usava lhe disfarçasse as feições romanas.
Carpex acelerou o passo e, depois de uma olhadela nervosa sobre o ombro, avançou para o portão, com Cato na peugada.
Foram imediatamente avistados por alguns dos guardas, que de pronto baixaram as lanças, apontando-as aos vultos que emergiam da escuridão. Um grito grave cortou
a noite, e o resto dos guardas foi alertado, levantando-se de imediato e empunhando as armas; Carpex e Cato pararam a uma distância segura. Um dos rebeldes aproximou-se,
aos gritos. Carpex levantou as mãos e caiu de joelhos, começando a justificar-se num discurso rápido. Cato ajoelhou-se ao seu lado, mantendo a cabeça baixa, adoptando
o que pensava ser uma atitude de escravo obediente. O diálogo entre Carpex e o guarda prolongou-se, mas o tom do outro foi-se alterando, de hostil para surpreso
e depois para excitado, acabando por dizer a Carpex para se levantar e o acompanhar. Cato apressou-se a imitá-lo e manteve-se
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tão perto dele quanto possível enquanto eram levados através do portão e entravam na cidade.
Lá dentro, à luz de mais tochas, viu uma rua de ar antigo e repleta de lixo, que se desenvolvia entre edifícios de aspecto sujo. Depois de tantos dias no deserto,
o cheiro fétido da cidade atingiu-lhe as narinas como se fosse um murro, e torceu o nariz involuntariamente. O oficial de serviço aos portões acendeu um pequeno
archote e conduziu-os pela rua em passo rápido. Carpex e Cato seguiram-no, e a coluna foi fechada por dois homens com lanças, e que usavam armaduras e capacetes.
A única hipótese, concluiu Cato, era a de fugir suficientemente depressa para se porem fora do alcance das lanças; talvez os guardas tentassem mesmo usá-las como
dardos, mas isso seria difícil por causa do peso das armas e da falta de espaço no meio da cidade. A rua fez uma curva em torno de uma fonte pública e começou a
subir ligeiramente, no que Cato calculou fosse a direcção da cidadela. Não deixava de prestar atenção a Carpex, e de se manter tenso, pronto a correr e escapar.
A uns vinte passos à esquerda desembocava uma ruela estreita, e o escravo aproximou-se discretamente desse lado da rua enquanto caminhava. Ao chegarem à altura do
beco, Carpex deixou-se cair de gatas, lançando um grito de dor. O oficial virou-se, surpreso, e deu ordens aos dois guardas enquanto retomava a marcha. Um dos homens
ultrapassou o escravo e parou logo a seguir, vigiando Cato. O outro dobrou-se e puxou Carpex com brusquidão, para o pôr de novo em pé.
Carpex saltou de repente, lançando um punhado de areia e imundície ao rosto do guarda. Este recuou instintivamente com um grito de surpresa.
- Corra! - Gritou Carpex em grego, e lançou-se para a entrada da ruela, com Cato nos calcanhares. Assim que saíram do círculo de luz da tocha que o oficial empunhava
viram-se rodeados pelas trevas. A via era estreita, de tal forma que dois homens dificilmente a podiam percorrer lado a lado, e a intensidade do cheiro a comida
apodrecida, fezes e suor era tal que Cato e Carpex quase cambaleavam ao passar por portas e janelas cerradas. Lá atrás, o oficial gritava ordens aos seus homens,
e uma réstia de luz penetrou no beco quando os guardas se lançaram na perseguição.
- Depressa! - Carpex puxou por Cato e continuou. Olhando rapidamente sobre o ombro, o romano percebeu que era o oficial que liderava a perseguição, com a tocha bem
ao alto e a rebrilhar no espaço confinado, derramando um brilho avermelhado sobre os guardas e as miseráveis redondezas. O oficial gritou de novo e apontou os fugitivos.
- Mantenha-se junto a mim! - Sussurrou Carpex, e prosseguiram na corrida, mantendo-se no meio do beco para evitar quaisquer obstáculos que pudessem estar junto às
paredes. Cato ouvia perfeitamente o ruído das botas dos rebeldes que se apressavam para tentar recapturá-los. Carpex
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escorregou e perdeu o equilíbrio, quase caiu, mas lá conseguiu endireitar-se novamente, embora Cato quase chocasse contra ele.
- Estão a aproximar-se! - Gritou o jovem através dos dentes cerrados.
- Temos que fazer alguma coisa.
- Continue a correr! - Incitou Carpex. - Depressa nos perderão. Confie em mim!
Mas Cato já não tinha dúvidas de que a tentativa de se manterem à frente dos guardas estava condenada ao malogro. Havia demasiados obstáculos espalhados pela rua.
Mais cedo ou mais tarde embateriam num deles, cairiam e seriam capturados. Percebeu, por uma subtil alteração nas sombras, que pouco à frente a ruela fazia uma curva
abrupta para a esquerda. Quando Carpex a dobrou, Cato decidiu que era o momento de agir, para evitar um falhanço que os condenaria a eles mas também aos homens das
duas coortes. Pegou no braço de Carpex.
- Espera aqui!
Apontou para o centro do beco, a poucos passos de distância. De imediato afastou as roupas e desembainhou a espada enquanto se colava à porta mais próxima. O coração
martelava-lhe aos ouvidos, com tal ímpeto que se tornava difícil ouvir os passos dos perseguidores. Sabia que só teria uma hipótese de atacar. Tinha que actuar de
forma decisiva, como Macro faria numa situação semelhante. Inspirou profundamente, enchendo os pulmões no instante em que uma tremeluzente luz avermelhada se projectava
sobre as paredes na esquina.
Logo a seguir toda a ruela ficou iluminada quando a tocha emergiu da curva junto à porta onde Cato estava escondido. O oficial avistou de imediato Carpex e lançou
um urro de triunfo enquanto corria para o escravo. O primeiro dos seus homens surgiu a seguir, precisamente quando o oficial passava por Cato. Lançando um berro
tão potente quanto possível, Cato saltou do esconderijo, com a espada em riste e a ponta dirigida ao rosto do guarda. Sem parar, esticou o braço armado contra o
homem, atingindo-o por baixo do olho esquerdo. A lâmina cortou carne e músculo antes de esmagar o osso subjacente e penetrar no crânio. Cato retirou a lâmina com
um puxão selvagem e rodopiou no mesmo movimento, enquanto continuava a soltar um urro tremendo. O oficial rebelde tinha parado e dera meia-volta, com a surpresa
e o medo estampados no rosto, visível ao brilho avermelhado da tocha. O gume da espada de Cato encontrou-lhe o pescoço, entre o cimo da cota de malha e a guarda
do capacete. O golpe tinha sido desferido com toda a força que Cato conseguira reunir, e cortou o pescoço do homem na diagonal, penetrando até chocar contra a espinha.
As pernas do outro amoleceram e ele caiu de joelhos com uma expressão de surpresa, e morreu.
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Um som por trás de si fez Cato virar-se, enquanto libertava de novo a lâmina. O corpo do primeiro guarda tinha acabado de atingir o solo, com as pernas a dar pontapés
espasmódicos no ar, quando o terceiro perseguidor chegou a correr à cena, preparando-se para dobrar a esquina; mas a visão dos seus dois camaradas por terra e Cato
triunfante sobre eles, semi-agachado e pronto para saltar, enquanto erguia a espada manchada de sangue, foi demais para ele. Recuou em pânico, fugindo pela rua,
e Cato limitou-se a ouvir os passos do homem a afastarem-se em corrida e os gritos de alarme e terror que lançava.
Não havia tempo para celebrar aquela pequena vitória, e Cato limpou rapidamente o sangue da lâmina na capa, e acenou a Carpex.
- Tira essas roupas. Veste o fato do oficial.
- O quê? - À luz da tocha derrubada, que mal ardia no solo imundo, Carpex ainda parecia aturdido pela sucessão dos acontecimentos.
- Veste isso, já. - Ordenou Cato sem dar lugar a objecções, enquanto se libertava também das suas vestes e se debruçava sobre o corpo do guarda. Desfez os laços
e retirou-lhe o capacete e a protecção da cabeça, e depois desapertou-lhe o cinto onde se dependurava a espada. Viu que Carpex se tinha ajoelhado junto ao oficial
morto e, depois de uma pausa que marcava bem a relutância que sentia, tinha começado a fazer o mesmo. O guarda tinha uma cota de malha e como sempre os pequenos
anéis metálicos mostravam-se relutantes em deslizar pelo peito, ombros e cabeça do cadáver; Cato teve que a puxar furiosamente até conseguir libertá-la. Pô-la imediatamente
pela cabeça e ergueu os braços, de forma a que ela deslizasse pesadamente pelo seu tronco abaixo. Pegou na protecção e colocou-a na cabeça antes de plantar sobre
ela o capacete cónico e apertar as tiras. Carpex ainda se debatia para vestir a sua cota de malha, e Cato auxiliou-o. Depois pegou na tocha e passou-a ao escravo,
antes de voltar a baixar-se para pegar na lança do guarda.
- Pelo menos nestas vestes não devemos atrair muita atenção. E agora vamos lá ver se encontramos esse túnel, Carpex.
O escravo virou-se e correu pelo beco. Cato seguiu-o, mantendo-se por perto de forma a poder ver o caminho à luz da tocha. Carpex levou-os sem hesitações pela rede
de ruas que se retorciam e cruzavam, mesmo sendo noite. Nunca encontraram qualquer sinal dos habitantes da cidade, e Cato adivinhou que a maior parte devia estar
encafuada em casa, de trancas na porta, rezando para que os rebeldes os deixassem em paz. Por fim chegaram a uma rua ligeiramente mais larga que desembocava numa
praça onde se situava um mercado, de bancas vazias. Uma voz fez-se ouvir num grunhido vindo das trevas, e os dois viraram-se para o som, avistando um vulto a curta
distância. Mas antes que pudessem
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reagir, o homem desapareceu. O som dos seus passos afastou-se pelo labirinto de ruas.
- Devia ser um pedinte. - Sugeriu Carpex. - Costumam dormir nos mercados. Mas ali está, senhor. - Carpex apontou para uma estrutura de pedra no centro da praça,
com uma entrada em arco.
- O que é aquilo?
- Uma das entradas para os esgotos da cidade. É usada pelos engenheiros do rei de vez em quando, mas normalmente está fechada a sete chaves. - Carpex sorriu. - Pelo
menos é o que eles pensam.
- Fechada? - Cato abanou a cabeça frustrado, enquanto se aproximavam da pesada porta forrada a metal que fechava o arco. - E agora?
- Observe. - Disse Carpex, enquanto examinava a peça de ferro que segurava a barra de metal que penetrava na pedra e trancava a porta. Puxou da adaga e limpou alguma
da porcaria que se tinha acumulado nas fendas da pedra, e depois inseriu a lâmina no espaço que devia estar ocupado por estuque. Remexeu a lâmina até que um pedaço
de pedra começou a sair. Assim que lhe conseguiu segurar pelas pontas, Carpex retirou-a e colocou-a cuidadosamente no chão. A tranca tinha agora espaço para se mexer,
e a porta podia ser aberta. A base raspou nas pedras e as dobradiças chiaram em protesto. Os dois homens assustaram-se e esperaram alguns momentos para ver se alguém
aparecia, antes de entrarem.
- Como é que sabias desta porta? - Perguntou Cato assim que estavam no interior.
- Fui eu que a preparei, de forma a que eu e o príncipe pudéssemos entrar e sair dos túneis sem ninguém saber. Se não se olhar com todo o cuidado para aquele pedaço
de pedra, nunca se perceberá que se pode tirar do sítio. Vamos.
Carpex curvou-se por causa do tecto baixo e iluminou o caminho com a tocha. Cato seguiu-o. Havia uma pequena plataforma de pedra, e dali partiam uns degraus imundos
que levavam ao túnel.
- Senhor, é melhor fechar a porta.
Cato puxou a porta para a posição original, lentamente, tentando fazer o menor barulho possível. Acenou a Carpex.
- Pronto. Agora, vamos.
Os degraus estavam secos a princípio, mas os de baixo estavam cobertos por humidade e porcaria, e Cato prestou atenção ao sítio onde punha os pés enquanto desciam
para o túnel. O nariz revoltava-se perante o fedor; fizeram uma pequena pausa e tentaram ver o que os esperava à luz da tocha. O esgoto estendia-se em ambas as direcções,
mas a tocha só conseguia iluminar uma curta extensão. Os degraus desapareciam sob uma lenta corrente de água imunda, e depois de uma breve hesitação Carpex desceu
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para a caleira. A água chegava-lhe às canelas e ele seguiu para a direita, na direcção da corrente. Cato fez uma careta e seguiu-o. A atmosfera densa cheirava a
fezes e urina, e o romano engoliu em seco, tentando reprimir os vómitos que lhe vinham à garganta.
- Quanto é que temos que andar?
- Umas centenas de passos, senhor. Nessa altura já estaremos sob a cidadela.
Não tinham andado mais de cinquenta passos quando escutaram um som abafado mas indesmentível de dobradiças a ranger, pelo que estacaram e lançaram olhares cuidadosos
ao longo do túnel. O som de vozes ecoava nas arcadas de pedra e depressa se avistou um brilho avermelhado nas escadas que vinham da entrada.
- Merda. - Protestou Cato. - O tal pedinte deve ter encontrado alguém. Foi rápido, isto. O outro guarda deve ter alertado a cidade em peso.
- O que é que fazemos?
- És capaz de dar com o caminho às escuras?
- Não.
- Bom, então temos que nos pôr a andar! E depressa!
Apressaram-se a abrir caminho pela corrente imunda, à luz inconstante
da tocha que Carpex empunhava. Logo se ouviu um grito atrás deles, brusco e aparentemente próximo no espaço fechado, e os dois aperceberam-se dos passos apressados
de vários perseguidores.
- Ainda falta muito? - Perguntou Cato, ansioso.
- Não. É já aqui, há um túnel à direita.
Cato procurou com a vista o túnel mencionado pelo escravo. Depressa avistou uma abertura escura no limite da zona iluminada pelo brilho alaranjado da tocha.
- Já o vejo!
Patinharam até à bifurcação e meteram pelo novo túnel.
- E agora?
- Seguimos este um bocado, até ele curvar, e logo aí está a entrada que dá para os antigos estábulos da cidadela.
- Óptimo. - Cato seguiu atrás do escravo, que se precipitou para a frente. Por momentos os perseguidores desapareceram da vista, e até os sons que produziam pareceram
reduzir-se, agora que Cato e Carpex estavam noutro túnel. Porém, depressa a abertura por onde tinham acabado de passar se iluminou, anunciando a chegada dos rebeldes
ao cruzamento. Cato reparou que o túnel começava a curvar, exactamente como Carpex anunciara. Ao descreverem a curva os perseguidores mais uma vez ficaram fora da
vista, e Carpex apontou.
- Ali! Veja!
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Mais ou menos a meio da altura da parede do túnel em que se encontravam abria-se uma estreita passagem. Quando a alcançaram, Cato notou que o piso se inclinava.
- Onde é que isto vai dar?
- Directamente às casernas, senhor. Acaba sob uma grelha de protecção.
- Bem. - Cato pegou na tocha e empurrou o escravo para a abertura.
- Vai primeiro. Avança o mais depressa possível. Mas assim que ouvires os rebeldes, pára.
Carpex assentiu e agachou-se para subir pela passagem inclinada. Cato agarrou na tocha e atirou-a para tão longe quanto conseguiu. Iluminou as paredes enquanto voou
pelo ar, bateu numa, lançando fagulhas, e caiu na corrente, assobiando e depois apagando-se, deixando o túnel na mais profunda escuridão. Apalpou à procura da entrada
do túnel lateral e agachou-se para entrar com maior facilidade. Não se podia caminhar erecto, nem agachado, pelo que se pôs de gatas. No chão corria um fio de água
por entre pedaços de imundície e pequenas pedras. À sua frente conseguia ouvir Carpex a grunhir enquanto se esforçava por subir. Respirava cada vez com maior dificuldade,
e o peso da cota de malha estava a deixá-lo sem forças. Tinham percorrido não mais de trinta passos quando os sons dos perseguidores se fizeram ouvir.
- Carpex! - Sibilou, no tom mais elevado a que se atreveu. - Pára!
A pequena passagem ficou silenciosa quando os dois homens se imobilizaram e Cato tentou controlar a respiração ao perceber que os rebeldes se aproximavam da abertura.
Uma luz faiscou na abertura e depois voltou a desaparecer. Cato aguardou ainda alguns instantes, antes de murmurar.
- Vai.
Prosseguiram, subindo pela passagem no meio das trevas, até que Cato voltou a ouvir os rebeldes a aproximarem-se. Uma voz lançou um chamamento e logo a seguir vários
homens subiram para o túnel em que se encontravam. Já não havia necessidade de silêncio, e Cato gritou a Carpex.
- Já nos descobriram! Mexe-te!
Gatinharam a toda a velocidade, ignorando o fedor e a porcaria que remexiam com mãos e pés enquanto progrediam pela passagem. Os perseguidores tinham tochas e avançavam
mais rapidamente; os seus gritos e grunhidos enchiam o diminuto espaço como se estivessem mesmo colados a Cato. O jovem começou então a vislumbrar os contornos das
paredes e percebeu que isso se devia à aproximação dos rebeldes e da luz que traziam consigo. Se fossem alcançados antes de chegarem ao fim do túnel, não teriam
qualquer possibilidade de dar meia-volta e enfrentar os atacantes. Cato tinha apenas uma espada. Tinha notado que pelo menos um dos
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perseguidores trazia uma lança. Assim, tinha um alcance muito maior, e naquele espaço confinado ele nem se conseguiria desviar da lança e seria trespassado com facilidade.
O túnel começou a aplanar e Cato teve a sensação de ouvir vozes mais à frente.
- Estamos quase lá! - Gritou Carpex.
Cato espreitou por cima do ombro e avistou, a uns cinquenta passos, a tocha que o primeiro dos perseguidores empunhava, e a expressão determinada do homem enquanto
avançava sem hesitações.
As vozes à frente tinham-se tornado muito mais perceptíveis, e por fim Cato avistou uma réstia de luz que se infiltrava até ao túnel. Carpex lançou-se para os últimos
metros de subterrâneo e ergueu-se para agarrar as barras de ferro de uma grelha que cobria uma abertura no tecto do túnel, e empurrar. A grelha não se moveu. Cato
juntou-se ao escravo, erguendo-se também e empurrando com todas as forças, cortando a mão numa ponta metálica. Sobre eles tombaram pedaços de estuque e por fim,
com um raspar súbito, a grelha cedeu e saltou para o chão do compartimento em que se encontrava com um estrondo. Carpex trepou rapidamente, agarrando-se ao rebordo
do buraco, puxando-se para cima e rolando para o lado. Cato lançou um último olhar pelo túnel e deu com o mais próximo dos rebeldes quase em cima dele; o homem tinha
atirado fora a tocha e já empunhava a espada enquanto avançava de dentes cerrados e ânimo assassino no olhar.
No compartimento superior havia um clamor de vozes atónitas, e Carpex soltou um grito. Sem tentar sequer perceber que perigo o aguardava, Cato içou-se pelo buraco,
para escapar ao tipo que se aproximava com claras intenções de o liquidar. Com um grunhido de esforço, saiu do túnel de rompante. Já tinha mais de metade do torso
de fora quando viu Carpex estendido no chão à sua frente. O escravo tinha uma expressão ausente, e sangue corria-lhe do canto da boca. À sua volta aglomerava-se
um grupo de homens em túnicas azuis, soltando gritos e imprecações furiosas. Vários estavam armados, e um deles avançou de espada em riste, preparado para a abater
sobre a cabeça de Cato.
- Não! - Gritou em latim, lançando o braço para cima numa tentativa de se proteger enquanto a lâmina descia. - Eu sou romano!
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Assim que a noite caiu, Macro e o príncipe Balthus conduziram a coluna por um trajecto menos directo que o que Cato e Carpex tinham seguido. A cavalaria romana e
os palmirenses iam a pé, levando as montadas pelos arreios, depois de terem envolvido os cascos dos animais em trapos, para abafar os ruídos. A infantaria tinha
deixado as mochilas numa caverna na base da colina e seguia em passo livre, levando apenas a armadura sobre o corpo e as armas pessoais. Nenhuma peça solta tinha
ficado por imobilizar, de forma a que não se produzisse qualquer som, e a conversa estava estritamente proibida. Os centuriões e optios seguiam próximo aos homens,
de ouvidos atentos, e qualquer infracção das ordens resultaria num rápido e brutal espancamento para o culpado.
Enquanto a coluna se esgueirava silenciosamente pela paisagem, Macro não conseguia impedir-se de sentir um imenso orgulho pelo que tinham já conseguido. Tinham atravessado
uma vasta extensão de deserto estéril e combatido um inimigo difícil, e tinham agora à vista o seu objectivo. Ainda assim, se Cato não conseguisse contactar a guarnição
da cidadela e convencê-la a criar uma manobra de diversão de forma a que a coluna romana conseguisse entrar na cidade, aquilo seria o mais próximo que estariam desse
mesmo objectivo. Ao pensar no seu jovem amigo, mais uma vez se arrependeu de o ter autorizado a acompanhar o escravo de Balthus. Havia muitos outros oficiais capazes
de desempenhar aquela missão, e Cato era fundamental para os homens da sua coorte. A verdade, concluiu Macro, enquanto voltava a analisar a situação, era que ele
próprio também precisava da ajuda de Cato, especialmente em situações como aquela, em que eram fundamentais o bom julgamento e a tomada de decisões precisas no momento
adequado, de cabeça fria; qualidades que o jovem possuía, sem qualquer dúvida. Numa situação de combate aberto contra qualquer inimigo, Macro estava no seu elemento,
e poucos homens nas legiões se lhe poderiam comparar na liderança de uma unidade envolvida numa refrega. Tinha tanto de poderoso e brutal como de corajoso, e não
tinha problemas em admitir que adorava a sensação de antecipação de uma batalha, quando lhe corria pelas veias o fogo do combate. Cato, pelo
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contrário, via uma batalha apenas como um meio inevitável para alcançar um fim preciso.
Ou melhor, era assim que Cato costumava ver as coisas, reflectiu, com uma expressão de preocupação. Naquele preciso dia, e pela primeira vez, tinha notado um brilho
de excitação nos olhos de Cato quando insistira em acompanhar o escravo de Balthus ao interior de Palmira. Era uma missão inacreditavelmente perigosa, e quando o
amigo se tinha oferecido Macro não escondera a preocupação com a sua segurança. Tal não se ficara a dever apenas ao facto de ele se ir arriscar até às entranhas
de uma cidade controlada pelo inimigo; o principal motivo tinha sido a dúvida que Macro já não conseguia afastar quanto à natureza de Cato e à sua apetência pelo
combate. Havia demasiado de pensador no miúdo, ponderou mais uma vez, inquieto. Encher a cabeça com filosofias elaboradas, pesquisadas em obscuros pergaminhos, não
tinha qualquer utilidade prática, e nem sequer se podia dizer que servisse para entreter o espírito, ao contrário das comédias, que constituíam uma fonte de prazer
para o veterano.
Desde que Cato lhe tinha ensinado a ler, havia já alguns anos, Macro tinha usado essa capacidade sobretudo para cumprir as enfadonhas exigências da burocracia militar.
Porém, nos meses mais recentes, graças à transferência para Antióquia e ao ambiente calmo e descontraído da cidade, Macro tinha começado a ler por prazer. Pondo
discretamente de lado as traduções latinas de Sócrates e Aristóteles que Cato se tinha esforçado por encontrar na biblioteca local, Macro tinha devotado as suas
horas de leitura às comédias, por entre outro material mais picante, e tinha andado a ler todas as peças de Pláucio - até que a crise tinha rebentado e o tinha levado
até ali, a Palmira.
De repente, a mente de Macro regressou ao presente, ao avistar um dos batedores a aproximar-se, vindo da planície. Levantou a mão para dar sinal de paragem aos homens
que o seguiam, e toda a coluna se imobilizou, com alguns encontrões pelo meio das trevas. O batedor era de um dos esquadrões de cavalaria da Segunda Ilírica, e fez
a saudação antes de começar o relatório. Macro interrompeu-o de imediato.
- Fala em grego. - Fez um aceno na direcção de Balthus. - Assim, todos te percebemos.
- Sim, senhor. - O homem, como a maior parte das tropas estacionadas nas regiões orientais do Império, tinha o grego como primeira língua e só falava latim na medida
em que o exército a isso o obrigava. Apontou para lá da extremidade da crista rochosa. - Demos de caras com uma patrulha inimiga para aqueles lados, senhor. A não
mais de um quilómetro da ponta da rocha. Junto a algumas palmeiras.
- Quantos são?
- Cerca de vinte, senhor.
- Que direcção seguem?
- Nenhuma, senhor. Ao que parece, pararam para passar a noite. A maior parte parece estar a dormir, há dois de vigia.
- Porra. - Resmungou Macro. A patrulha rebelde tinha acampado mesmo no meio do caminho que queria seguir.
- Podíamos circundá-los. - Sugeriu Balthus. - Afastávamo-nos da rocha umas centenas de metros e depois passávamos ao lado deles.
Macro abanou a cabeça.
- Isso levaria demasiado tempo. Temos que entrar na cidade antes da alvorada. Além disso... - Virou-se para a paisagem nua que se estendia para lá da crista rochosa.
- Teríamos que nos afastar muito mais, para ter a certeza de que não seríamos avistados. Se eles nos vissem, por certo que correriam imediatamente a alertar os seus
amigos em Palmira. Mas mesmo que escapássemos à detecção, teríamos que percorrer um longo caminho até podermos voltar a aproximarmo-nos do portão. E aí pela planície
há com certeza pastores, mercadores ou outros viajantes. Qualquer deles poderia dar o alarme.
- Bem pensado, centurião. O que sugeres então?
Macro pensou com afinco.
- O melhor é seguirmos a rota mais directa. É a mais rápida e segura, desde que eliminemos a patrulha.
- Eliminar a patrulha? - A surpresa era evidente na voz do príncipe.
- Sim. E temos que o fazer rapidamente. Podemos perfeitamente apanhá-los e liquidá-los a todos antes que tenham ocasião de dar o alarme. E é aí que entram os seus
homens.
- O que é que queres dizer?
- Vamos colocá-los de ambos os lados do acampamento. Quando estiverem em posição, montam, avançam e aniquilam-nos antes que eles tenham tempo de montar. Nem um pode
escapar. Isso tem que ficar bem claro.
- Não te preocupes, romano. Sei perfeitamente o que está em jogo. - Balthus fez uma curta pausa e prosseguiu. - Mas se acontecer o pior, e um deles conseguir escapar
e dar o alarme? O que fazemos então?
- Nessa altura teremos que decidir se retiramos para as colinas e esperamos por outra oportunidade para tentar entrar na cidade, que muito francamente duvido que
possa surgir; assim que os rebeldes souberem da nossa presença próximo de Palmira, muito provavelmente a nossa destruição tornar-se-á uma das suas prioridades. Virão
caçar-nos com toda a certeza. - Macro encarou o príncipe, analisando a sua reacção. - Ou então, prosseguimos e atacamos antes que eles tenham tempo de se organizar.
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Evidentemente, se eles conseguirem manter o controlo sobre o portão, a nossa acção será infrutífera. Para mim, são estas as nossas opções, se algum membro da patrulha
escapar. E para si?
Macro já tinha tomado a sua decisão, mas estava curioso quanto a Balthus. Preferiria o príncipe de Palmira fugir, ou combater? Precisava de saber com o que contava.
Balthus respondeu sem hesitação.
- Se algum escapar, a minha sugestão é que avancemos a toda a pressa contra Palmira. - Balthus bateu no peito. - E como sou eu quem está no comando até chegarmos
à cidadela, será isso que faremos.
Macro sorriu.
- É cá dos meus. Muito bem, suponho que quererá dar ordens aos seus homens para o ataque à patrulha.
Balthus assinalou a sua concordância e dirigiu-se à linha que os seus homens tinham formado a curta distância da coluna romana. Macro observou-o durante alguns momentos
e avançou então até à cabeça da sua coluna; destacou a primeira centúria da sua coorte, comandada pelo centurião Horácio, e conduziu-a atrás do batedor, na direcção
da patrulha inimiga, movendo-se em silêncio. À esquerda, os palmirenses puseram-se também em acção, deixando a protecção da formação rochosa e internando-se no deserto,
de forma a cercarem os rebeldes. À direita de Macro, a crista rochosa descia a pouco e pouco até desaparecer na planície, acabando num amontoado de penedos. A curta
distância percebiam-se as silhuetas das frondosas palmeiras que se recortavam contra o céu estrelado.
- Alto. - Sussurrou Macro para o centurião que o seguia de perto, e enquanto a ordem era passada e os soldados se detinham onde estavam, ele progrediu rastejando.
Avançou até encontrar o batedor e deu-lhe um toque no ombro. - Já chega, não é preciso chegarmos mais perto.
O homem acenou em compreensão e baixou-se ainda mais. Macro imitou-o e espreitou através das trevas. As árvores percebiam-se bem, tal como os cavalos que a elas
estavam presos. E em redor, espalhados pelo solo, estavam os rebeldes. Tal como o batedor tinha relatado, a maior parte deles estava deitada, mas havia um pequeno
grupo que se mantinha sentado, na conversa, e Macro conseguia escutá-los. Pareciam estar descontraídos, e era evidente que não esperavam ter problemas naquela noite.
Ainda assim, avistavam-se dois vultos, sentinelas, nas duas extremidades do acampamento.
Macro colocou-se numa posição mais confortável e sussurrou ao ouvido do batedor.
- Volta para junto do centurião Horácio e diz-lhe que está tudo a correr bem. O inimigo ainda está no mesmo sítio e o Balthus vai surpreende-los.
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Diz-lhe que quero que os homens dele avancem assim que começar
o ataque.
- Sim, senhor.
- Vai, então.
O batedor assentiu e afastou-se, escolhendo o caminho por entre as rochas e deixando Macro sozinho a observar o acampamento inimigo. Aquela espera era angustiante,
mas esperava que não os atrasasse demasiado. Corria-se o risco de Cato acender o sinal e, pior, que a guarnição da cidadela lançasse um perigoso ataque de diversão
em vão. Bom, isso era se Cato tivesse realmente conseguido chegar à cidadela, reflectiu. Continuou a observar a patrulha rebelde, perscrutando a escuridão em busca
de sinais de Balthus e dos seus homens. Mas não apareciam. Ao fim de algum tempo começou a ficar nervoso e a assobiar de forma impaciente por entre os dentes.
- Vá lá... Vá lá. Porra, não temos a noite toda... Mas onde se meteram estes tipos?
Enquanto lançava imprecações e amaldiçoava o príncipe palmirense, um dos rebeldes que conversava com os companheiros levantou-se de repente e dirigiu-se lentamente
na direcção de Macro.
- Oh, fantástico... - Resmungou o romano. - Bela altura para ir mandar uma cagadela.
A irritação depressa se transformou em apreensão, à medida que o outro continuava a aproximar-se. Se não parasse, ia dar mesmo de caras com Macro e tropeçar nele.
Estendeu-se no solo e deixou que a mão se deslocasse para o punho da espada. Já conseguia ouvir os passos do homem, um leve arrastar sobre o chão pedregoso. Alguém
o interpelou vindo do campo, e o homem respondeu com um grito irado que provocou uma risota nos seus camaradas. Macro estava escondido entre um penedo e um arbusto
raquítico, e espreitou por entre os ramos ressequidos, avaliando a progressão do rebelde. Este vasculhou em redor até se fixar num calhau a não mais de três metros
da posição de Macro, onde se podia agachar fora da vista dos camaradas. Puxou as roupas para cima e agachou-se, espetando o traseiro na direcção do centurião. Lançou
um grunhido e começou a defecar, fazendo Macro desejar ardentemente que a dieta do sujeito não fosse tão rica em fibra. Um odor indescritível encheu o ar, fazendo
o oficial franzir o nariz, enojado. Por fim o homem terminou o serviço, e olhou em redor à procura de algo com que se limpar. Avistou Macro e estacou.
Durante um momento que pareceu uma eternidade nenhum dos homens se mexeu, mas depressa o rebelde se ergueu, ainda a olhar para o romano. Mal se atrevendo a respirar,
Macro largou a espada e procurou por perto um calhau de dimensão apropriada. Os dedos encontraram um que
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se ajustou à mão e fecharam-se em torno dele, enquanto o outro dava um passo hesitante na sua direcção e abafava uma exclamação.
Macro saltou do esconderijo, lançou a pedra com toda a força e pegou de imediato na espada enquanto se atirava sobre o outro. A pedra atingiu-o de raspão na face
lateral do queixo, mas o impacto atordoou-o por instantes, tempo suficiente para Macro o alcançar e derrubar, enquanto lhe cravava a espada no estômago. Macro aterrou
sobre o rebelde, tirando-lhe por completo o fôlego. A lâmina avançava sob as costelas do homem, tentando alcançar órgãos vitais. Agitou-se, tentando respirar, e
Macro temeu que ele conseguisse lançar um grito de alarme antes de morrer.
- Oh não, nem penses nisso. - Sibilou Macro, colocando a mão sobre a boca do oponente e fazendo pressão. Usando a última reserva da força que se lhe esvaía, o homem
remexeu-se e torceu-se, tentando afastar o romano, mas Macro persistiu, agitando furiosamente a lâmina no interior do peito do homem. Por fim o rebelde tombou inerte,
o olhar vazio perdido nas estrelas. Macro continuou a segurá-lo durante mais uns instantes até ter a certeza de que estava morto, e por fim aliviou a pressão, tirando-lhe
a mão da boca. Rolou para longe do corpo, soltando a lâmina e deixando-se cair no solo a recuperar o fôlego. Ao fim de alguns momentos deu-se conta do cheiro, e
só então se apercebeu que se tinha deitado no preciso local em que o homem tinha esvaziado os intestinos.
- Merda. - Protestou. - Foda-se, em cheio. Bonito serviço.
Debruçou-se sobre o cadáver, cortou uma ponta da túnica e tentou limpar-se o melhor possível, enquanto continuava à procura de algum sinal de Balthus e dos seus
homens. Aquilo estava a passar das marcas, considerou amargamente. Se Balthus não atacasse imediatamente, tornar-se-ia demasiado tarde para atacar o portão da cidade
sob a cobertura da escuridão. Uma voz chamou da fogueira. Macro deixou-se ficar quieto, mas a voz repetiu o chamamento. A situação estava a piorar, reflectiu. Se
não houvesse resposta, os outros viriam com certeza ver o que se passava. Tirou apressadamente o capacete e colocou-o sobre o solo. Levantou-se com toda a cautela,
espreitando sobre as rochas na direcção da fogueira. Quando o mesmo rebelde chamou pela terceira vez, com evidente ansiedade, Macro soergueu-se ligeiramente e acenou
com a mão. Para seu alívio, o homem que procurava o companheiro riu e voltou à conversa com os outros.
Mal o centurião retomara a sua posição por trás da rocha quando se ouviu um trovejar de cascos, e da escuridão saíram vultos escuros que atacaram o acampamento da
patrulha rebelde. O som surdo das flechas a cravarem-se na carne dos alvos sobrepôs-se ao dos cascos e dos sons feitos pelos cavalos assustados. Depressa os gritos
dos feridos e as exclamações de alarme encheram a noite, ao mesmo tempo que o metal das espadas
começava a cantar à conta dos duelos que se travavam. Já não havia qualquer necessidade de se manter escondido, pelo que Macro emergiu do meio das rochas e observou,
a uma distância segura, a forma como Balthus e os seus homens volteavam por entre as palmeiras e abatiam qualquer inimigo que descobrissem ainda de pé.
- Senhor? - Gritou o centurião Horácio, enquanto guiava os seus homens por entre as rochas. - Senhor, está aí?
- Aqui! - Macro ergueu o braço e o centurião correu para junto dele, seguido pelos homens. - Formem duas linhas aqui. Não nos vamos envolver nisto. Só é preciso
evitar que algum rebelde consiga escapar nesta direcção.
- Sim, senhor. - Horácio torceu o nariz e fez uma careta de nojo antes de saudar e dar as ordens aos homens. Macro virou-se para continuar a acompanhar o ataque
à patrulha inimiga. Estava praticamente terminado. Os cavaleiros de Balthus já não galopavam pelo acampamento, limitavam-se agora a percorrer a passo a área, parando
quando encontravam um ferido, para lhe dar o golpe de misericórdia, e abatendo sem piedade qualquer um que tentasse render-se. Não haveria prisioneiros naquela noite.
Serviriam apenas para atrasar a coluna e obrigariam a destacar alguns homens para os guardar, sem falar do perigo de poderem denunciar a coluna quando esta se aproximasse
mais da cidade e ficasse à espera da oportunidade para avançar sobre o portão oriental.
- Bom, isto está acabado. - Anunciou Macro. - Manda um mensageiro ao resto da coluna. É tempo de nos pormos a andar.
Aproximou-se um cavaleiro, vindo do maciço de palmeiras, e Macro adivinhou que se tratava de Balthus.
- Centurião, o caminho está aberto. Nenhum dos rebeldes escapou. Estão todos mortos.
- Bom trabalho. - Admitiu Macro. - Sugiro que prossigamos imediatamente, príncipe.
Era a primeira vez que Macro o tratava com alguma deferência, e o príncipe fez uma pausa para apreciar o tom de respeito e o elogio. Concordou com o oficial.
- Concordo. Agora que chegámos à planície, vou enviar os meus homens para baterem a região até ao portão. Não devemos ter mais atrasos.
- Óptimo. - Comentou Macro. - Não podemos parar até chegarmos a uma posição que nos permita ver o sinal de Cato.
- Muito bem, centurião. Vou informar os meus homens. - Fez uma pausa. - Já agora, donde é que vem este cheirete?
- Cheirete? - Retorquiu Macro, irritado. - Qual cheirete?
Balthus deu meia-volta à montada e dirigiu-se para junto dos seus
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homens. Macro observou-os, impressionado com a rapidez e agressividade com que tinham atacado e eliminado a patrulha inimiga. Com alguns milhares de homens daquele
género ao serviço de Roma, não haveria limites ao que podia ser conseguido na fronteira oriental do Império. A sua perícia com o arco e a espada a cavalo era inigualável.
Só os partos seriam melhores naquele tipo de combate extremamente móvel, e mesmo assim os homens de Palmira não se deviam portar mal quando enfrentavam as tropas
partas, decidiu Macro. Afastou as suas especulações com um sorriso quando começou a escutar os passos desarticulados do resto dos seus homens. Desde que conhecera
Cato que passava muito mais tempo a matutar do que antes. Demasiado, especialmente quando havia verdadeiro trabalho de soldado para fazer.
- Coluna! - Gritou, tão alto quanto se atreveu. - Avançar!
Os homens das duas coortes surgiram por entre as rochas, avançando como se fossem uma gigantesca serpente negra. Deixaram rapidamente para trás a cena do massacre
e seguiram pelo caminho tomado por Balthus e os seus homens, directamente para o portão leste de Palmira. Não encontraram mais rebeldes, e apenas se cruzaram com
um miúdo que apascentava as suas ovelhas; rebanho e pastor escapuliram-se para a escuridão, os animais a balirem irritantemente.
Ao aproximarem-se da cidade, Macro e os seus homens estavam exaustos. Marchar durante a noite era sempre mais cansativo do que durante o dia, e a tensão aumentava
pela necessidade de aguçar olhos e ouvidos em busca de qualquer sinal do inimigo, ou de uma emboscada. Balthus fez alto e dispersou os seus homens pelos flancos
assim que Macro se lhe juntou com a infantaria. Foi ordenado aos homens que se agachassem e se mantivessem quietos e silenciosos até que lhes fosse dada a ordem
de ataque. Macro e Balthus avançaram um pouco e deitaram-se na areia a não mais de quinhentos metros do portão. As muralhas da cidade erguiam-se imponentes e escuras,
e havia tochas a arder ao longo das ameias, enquanto as sentinelas percorriam o caminho entre as torres e vigiavam atentamente o deserto.
A cidadela era visível à distância, e Macro conseguia a custo distinguir a mais alta das suas torres. Se Cato tinha conseguido passar, seria ali que o sinal surgiria,
e o veterano não mais desviou os olhos daquele ponto. A noite foi decorrendo sem indícios do sinal combinado. Balthus remexeu-se e virou-se para Macro.
- Se calhar o teu camarada e o meu escravo não conseguiram chegar à cidadela.
- Dê algum crédito ao miúdo. - Retorquiu Macro. - O Cato é capaz de tudo. Nunca falhou uma missão até hoje.
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Balthus olhou-o em silêncio, e depois continuou.
- Tens uma elevada opinião daquele jovem.
- Sim. Sim, é verdade. O Cato é um tipo especial, pouco comum. Não nos vai deixar ficar mal.
- Espero bem que não, centurião. Tudo depende dele, agora.
- Eu sei. - Respondeu Macro, e ambos concentraram o olhar nas muralhas da cidade e se interrogaram em silêncio sobre a sorte de Carpex e Cato.
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- Romano? - Espantou-se o soldado, exprimindo-se em grego, enquanto
aixava a espada. - Por Hades, o que faz um romano a saltar assim do nosso esgoto?
- Tirem-me daqui, que já explico. - Exigiu Cato, que ouvia perfeitamente a respiração pesada e os ruídos da passagem dos rebeldes no túnel por baixo de si.
O soldado palmirense hesitou ainda, enquanto os seus camaradas se aproximavam. Finalmente optou por embainhar a espada; agarrou no braço de Cato e puxou-o pela abertura
até ao nível da caserna, embora continuasse a olhá-lo desconfiado. Apontou Carpex, ainda atordoado e no solo, sobre o rego que percorria o compartimento e ia dar
à abertura do esgoto.
- Bom, aquele não é romano de certeza.
- Já explico. - Retorquiu Cato, ofegante, enquanto apontava para o túnel. - Aquilo ali em baixo está cheio de rebeldes.
- Uma história perfeita. - Ouviu-se uma voz, em tom desconfiado.
- São é espiões, esses dois sacanas. Arquelau, corta-lhe mas é o pio de vez.
O homem que tinha derrubado Carpex e puxado Cato do esgoto voltou a dirigir a mão à espada, mas interrompeu o gesto ao contemplar a abertura. Cato deitou uma espreitadela
e apercebeu-se que ali assomava o brilho de um archote, logo substituído pela ponta de uma lança. O grego a quem tinham chamado Arquelau empunhou de imediato a espada
e recuou um passo, enquanto avisava os camaradas de armas.
- Ele tem razão! Está alguém aqui em baixo. Às armas, todos!
Num instante a caserna transformou-se num formigueiro de figuras em alvoroço, quando aqueles que ainda não tinham pegado nas armas se dirigiram aos seus leitos,
sobre os quais tinham deixado o equipamento. A ponta da lança emergira do buraco, uma mão segurava-se à borda, e logo surgiu um capacete a erguer-se do nível do
solo. Arquelau lançou-se sobre ele e golpeou-o de forma selvática com a falcata. Ouviu-se um choque metálico seguido de um som de esmagamento, já que a lâmina atravessou
o capacete e trespassou o crânio do atacante, parando apenas ao nível das órbitas. Os olhos do homem esbugalharam-se e ele pareceu surpreso, mas
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logo um lençol de sangue lhe obscureceu o rosto. Arquelau apoiou o pé no ombro do homem e soltou a espada, ao mesmo tempo que o corpo e a lança desapareciam de vista.
Ouviu-se um grito de fúria vindo do túnel, mas nenhum dos perseguidores se arriscou a repetir o feito.
Cato apontou para um caldeirão suspenso sobre o lume, na parte do compartimento que era usada como cozinha e messe dos soldados. Das bordas do recipiente elevavam-se
pequenas colunas de vapor.
- Aquilo! Tragam o caldeirão para aqui!
- Mas aquilo é o nosso jantar! - Protestou um dos homens. - E está quase pronto!
Cato pôs-se de pé de rompante, e ergueu-se a toda a sua altura enquanto dava uma ordem clara.
- Tu e tu, vão buscá-lo, e já!
Os dois viraram-se para Arquelau, à espera de uma confirmação que veio com um gesto premente da espada ensanguentada.
-Vão!
Os soldados apressaram-se a pegar no caldeirão. Colocaram panos em redor das pesadas pegas de ferro e levantaram-no; depois, grunhindo com o esforço, dirigiram-se
ao buraco com a carga. Quando um dos mercenários gregos se inclinou sobre a abertura, a ponta de uma lança dardejou direita à sua face, e só lançando-se para trás
numa reacção rápida é que o homem conseguiu evitar ser atingido. Assim que o par que levava o caldeirão alcançou a orla, pousaram o recipiente e pegaram-lhe na borda,
esforçando-se por o inclinar. O líquido fervente e alguns pedaços de carne começaram a verter, a maior parte descendo de imediato para o esgoto numa torrente espessa
e acastanhada. Ouviram-se de imediato vários gritos, e o brilho da tocha apagou-se. Do buraco elevou-se uma coluna de vapor, acompanhada de urros de dor e raiva.
Depois pôde-se escutar o som dos rebeldes a afastarem-se pelo túnel, antes que lhes lançassem acima qualquer outra coisa.
Arquelau soltou uma sonora gargalhada.
- Ora bem, já cozemos estes! Agora voltem a colocar a grelha no seu lugar e tu, Croton, mantém-na debaixo de olho. - O grego deitou uma olhadela a Carpex, que se
tinha soerguido sobre um cotovelo e abanava a cabeça, ainda meio atordoado. - Desculpa lá, amigo, mas quando se põe a cabeça de fora de um esgoto sem anunciar, não
se pode esperar outra coisa.
Carpex olhou para ele, fez uma careta e deixou escapar um longo gemido. Arquelau reparou então na marca na testa do escravo e virou-se para Cato.
- É teu, romano?
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- Não, pertence ao príncipe Balthus. Por ordem dele, guiou-me até aqui à cidadela. Trazemos uma mensagem para o rei. Tenho que o ver imediatamente.
- Calma lá. - Arquelau ergueu a mão. - Primeiro, vais-me dizer quem tu és e o que se passa aqui.
Cato refreou o impulso de desatar aos berros com o homem e exigir ser levado à presença do rei. Respirou fundo para se acalmar.
- Sou o prefeito da Segunda Coorte Ilírica. Fazemos parte de uma coluna de socorro enviada pelo governador da Síria. O resto da nossa força está lá fora, à entrada
da cidade, à espera de um sinal para assaltar o portão oriental e abrir caminho pelas ruas até à cidadela. E agora, se já te chega, tenho mesmo que ir falar com
o vosso rei.
O mercenário grego semicerrou os olhos.
- Que grande história. Em circunstâncias normais, não engolia nem uma palavra. Mas a estranha forma como surgiste por aqui parece dar alguma substância à tua narrativa.
Felizmente para ti tínhamos acabado de sair de turno, senão não haveria aqui ninguém que te pudesse ajudar. - Arquelau apontou para a abertura. - E agora, ao que
parece, acabas de mostrar aos rebeldes uma forma de penetrar na cidadela. Bom, disto cuida-se depressa. Tu! - Apontou para um dos seus homens. - Entulha-me esse
túnel. Tapa-o por completo, e depois põe qualquer coisa bem pesada por cima da grelha. Romano, vem comigo.
Aprestou-se a ajudar Carpex a pôr-se de pé, mas franziu o nariz.
- Bem, é melhor livrarem-se dessas roupas antes de irmos, não?
Cato estava mais que disposto a ir ver o rei imediatamente, mas apercebeu-se de que seria necessário algum formalismo, se queria deixar uma boa primeira impressão.
Depois de removerem as vestes, que tinham ficado imundas na aventura do esgoto, e de se limparem o melhor e mais rapidamente possível, seguiram Arquelau e deixaram
as casernas. O compartimento aonde tinham ido dar revelou-se apenas um de entre dez que davam para um pátio nas traseiras dos alojamentos do rei na cidadela. Em
tempos mais pacíficos, as casernas tinham acolhido alguns dos mais magníficos cavalos do mundo oriental. Agora eram as pessoas que se acotovelavam, dormiam e faziam
a sua vida no lugar onde os cavalos se tinham exercitado. Os sons de tosse e de conversas em surdina pontuavam a quietude da noite.
- Quem é esta gente? - Perguntou Cato.
- Alguns fazem parte do pessoal do palácio. Mas a maioria são lealistas que fugiram para a cidadela quando rebentou a revolta. Demos guarida a todos os que chegaram,
até que o rei nos ordenou que encerrássemos os portões. Já não havia espaço no interior.
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- Havia mais?
- Centenas. Ficaram encurralados quando os rebeldes se acercaram da cidadela.
- E o que é que lhes sucedeu?
- O que é que achas? - Retorquiu Arquelau com brusquidão. - Precisas que te faça um desenho? Digamos apenas que o príncipe Artaxes não será lembrado pela sua natureza
misericordiosa.
Caminharam em silêncio, abrindo caminho por entre os refugiados, até que Cato voltou a falar.
- Que tal está a situação por cá? A mensagem que recebemos em Antióquia dizia que vocês se estavam a aguentar.
- Até certo ponto, é verdade. - Respondeu Arquelau. - Não será tão cedo que os rebeldes hão-de conseguir romper pelas muralhas. Temos homens mais que suficientes
para os manter à distância. E ainda temos comida para vários dias. O problema é a água. Existem duas cisternas sob os aposentos reais, ali. - Apontou para o edifício
assente em colunas à frente deles, e para as torres aos cantos do mesmo. Ao lado ficava o templo de Bei, rodeado por uma parede alta e fina que impedia os olhos
dos ímpios de conspurcar o santuário do mais poderoso dos deuses de Palmira. - Era suposto que ambas fossem mantidas no máximo da capacidade, para emergências. Afinal,
numa delas a água está estragada, e a outra está a meio. O que não seria um problema, claro, se só tivessem que abastecer a guarnição habitual. - Concluiu.
- Quantos homens tens à tua disposição? - Indagou Cato.
- Quando a revolta rebentou, a guarda real incluía quase quinhentos homens. Perdemos cerca de cem quando fugimos do palácio e lutámos por toda a cidade até chegar
à cidadela. Já perdemos mais alguns desde esse dia. Nesta altura... - Pensou um momento. - Restam perto de trezentos e cinquenta. A minha sintagma foi a que sofreu
as maiores baixas no combate até à cidadela.
- Sintagma?
- A guarda real é composta por duas sintagmas. Cada uma possui duzentos e quarenta homens; ou possuía, antes da revolta. E divide-se em quatro tetrarquias de sessenta
homens. Eu comando uma delas. - Pressionou o próprio peito com o polegar. - Sou um tetrarca.
- Já percebi. - Assentiu Cato. - E a vossa força inclui mais alguns homens para lá da guarda real?
Arquelau encolheu os ombros, desdenhoso.
- Um punhado de nobres com os seus servidores. Pessoalmente acho que são mais perigosos para nós que para os rebeldes. E ainda há uma meia centúria de tropas romanas
auxiliares que protegiam o embaixador romano
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e a sua família e pessoal. Portanto, temos um pouco mais de quatrocentos efectivos, e pelo menos uns quinhentos civis.
Cato considerou a informação. Se as coisas corressem bem na noite que se aproximava, a guarnição da cidadela depressa engrossaria com mais de mil soldados romanos
e seguidores do príncipe Balthus, e os seus cavalos. Virou-se para Arquelau.
- Quanto tempo durará a água?
- Mais uns vinte dias. Da forma como a temos racionado. Oh... - Parou a meio de um passo e encarou Cato. - Mas isso era antes da tua coluna se juntar a nós.
- Dessa forma, a água vai acabar em menos de dez dias.
- Fantástico. - Resmungou Arquelau, enquanto retomava o caminho para os aposentos reais. - Já imagino o prazer que o rei vai sentir quando se lembrar dessa.
Ao aproximarem-se do edifício, os guardas, que estavam sentados em bancos laterais, ergueram-se de imediato e bloquearam a entrada, de lanças em riste. Um deles
adiantou-se e saudou Arquelau. Lançou um olhar curioso a Cato e Carpex, antes de se voltar de novo para o tetrarca.
- Senhor, o que o traz ao palácio?
- Estes dois homens chegaram agora à cidadela. Dizem que têm uma mensagem para o rei.
- Senhor, o rei está a descansar.
- Imagino que sim. - Arquelau sorriu brevemente. - Estamos a meio da noite. Mas estes homens têm que o ver imediatamente.
O guarda mudou o peso de pé, hesitante, antes de tomar uma decisão.
- Vou enviar um homem para informar o ministro.
- Mas despacha-te! - Explodiu Cato, exasperado. - Não há tempo a perder.
O guarda encarou o jovem, torceu o nariz e olhou para Arquelau. Este mostrou a sua concordância com Cato.
- Faz o que ele diz.
- Sim, senhor.
O guarda fez um gesto na direcção do camarada e o outro virou-se, entreabriu uma das pesadas portas e esgueirou-se para o interior. Instalou-se um silêncio tenso
enquanto todos aguardavam por uma resposta. Cato virou-se e observou o pátio. Para lá das densas aglomerações de refugiados, as muralhas eram altas e negras. Lá
em cima, no passadiço, viam-se os escuros vultos das sentinelas que vigiavam as ruas próximas à cidadela. Em cada uma das torres ardiam tochas, mas as sentinelas
mantinham-se afastadas da luz, para não se tornarem um alvo fácil para os sitiantes. Cato ficou satisfeito com o aspecto das defesas, mas a resistência das muralhas
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de pouco serviria quando a água acabasse. Nessa altura os defensores teriam de escolher entre morrer à sede, renderem-se aos rebeldes - e serem massacrados - ou
tentarem uma fuga desesperada da cidade, a menos que o governador da Síria e o seu exército alcançassem Palmira antes que se tornasse necessário optar por uma dessas
vias.
O som de passos fez com que Cato se virasse, a tempo de ver a porta de bronze abrir-se de novo e revelar, à luz das lamparinas de óleo que ardiam lá dentro, um guarda
e outro homem, alto e magro, e com uma imponente barba acinzentada. O recém-chegado olhou para Cato por breves instantes, e depois virou-se para Carpex. Antes de
lhe falar em grego, os olhos mostraram que o tinha reconhecido.
- Então, Carpex, como passa o teu amo? Ainda atarefado na caça com os seus dissolutos amigos?
Carpex fez uma profunda vénia.
- O meu senhor aguarda no exterior da cidade, preparado para socorrer o seu pai.
- A sério? Já se lhe acabou outra vez o dinheiro para as bebidas?
Carpex pareceu inclinado a responder, mas arrependeu-se e permaneceu prostrado, enquanto o ministro dedicava a sua atenção a Cato.
- E tu deves ser o romano. Penso que nos deves uma explicação para a tua presença entre nós.
Cato inspirou.
- Não há tempo a perder com detalhes. Está uma coluna romana lá fora, à espera de um sinal para romper pelo portão leste e se juntar a nós. Mas primeiro é preciso
afastar a atenção dos rebeldes, atraí-los a outra área da cidade. Só nessa altura é que poderemos dar o sinal.
O ministro contemplou-o por momentos.
- Será melhor que venhas para dentro. O escravo, esse cão, pode ficar aqui.
- Sim, senhor. - Murmurou Carpex, inclinando ainda mais a cabeça.
- E eu, senhor? - Quis saber Arquelau.
O ministro dispensou-o com um gesto.
- Podes voltar à tua caserna, tetrarca. Romano, segue-me.
O homem fez Cato passar pela porta de bronze e seguir por um curto corredor. O piso era de mármore com veios avermelhados, e nas paredes viam-se pinturas de cavalos
a galope, como se estivessem numa corrida. O corredor dava, através de um arco, para uma área aberta e pavimentada. Um pórtico percorria a orla da praça e havia
tochas a intervalos regulares nas paredes. A um dos lados estavam dispostas confortáveis poltronas em torno de uma mesa, sobre a qual se viam os restos de um pequeno
festim. Vários escravos ocupavam-se a remover pratos e cálices, enquanto outros
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serviam os convivas que ainda bebiam. As conversas e risos eram claramente audíveis na praça, enquanto o ministro levava Cato para umas escadas que levavam ao que
parecia um salão. Havia ali um vestíbulo, e o ministro apontou para um dos bancos de pedra que ladeavam a entrada.
- Senta-te aí.
Cato fez o que lhe era indicado, enquanto o ministro continuava e entrava no salão, fechando a porta. O silêncio imperou por momentos, e Cato sentiu-se a ferver
perante a demora, perfeitamente ciente de que Macro e os outros aguardavam no exterior da cidade pelo sinal que lhes prometera. Ouviu por fim vozes no interior,
embora não conseguisse entender a conversa. A porta abriu-se e o ministro chamou-o com um gesto.
- Cá dentro.
Cato deu o seu melhor para não se irritar ainda mais perante o tom altivo do homem, e entrou no salão. Era um compartimento quadrado e vasto. Não seria de todo um
salão de audiência à altura de um monarca rico e poderoso, mas era preciso ter em atenção que aquilo era o refúgio de Vabathus, e não o seu palácio. As paredes eram
altas e desnudas e o chão pavimentado sem luxo, ao contrário do corredor que percorrera antes. Tinham sido colocadas cadeiras num semicírculo ao fundo do salão,
e dois homens já as ocupavam. O ministro levou Cato até perto dos dois e sentou-se também, a um dos lados. Na maior das cadeiras acomodava-se um homem um tanto obeso,
aparentemente de cinquenta e tal anos de idade, com cabelo grisalho e uma expressão cansada. Envergava uma túnica branca e simples, e sandálias, e uma capa sobre
os ombros. O outro homem também vestia uma túnica, mas a sua ostentava uma larga faixa vermelha na frente. Era mais jovem, não aparentando ter mais do que quarenta
anos, e magro, com o porte altivo de um aristocrata romano, e Cato apercebeu-se imediatamente que só podia ser o embaixador, Lúcio Semprónio.
Cato colocou-se em sentido, enquanto Semprónio pigarreava e começava a falar.
- Tens uma mensagem para nós?
- Para o rei, sim.
Semprónio sorriu.
- Claro, para o rei. Dá-ma.
Cato fez uma pausa, lançando um olhar na direcção de Vabathus e aguardando por um sinal de aprovação, mas o homem limitou-se a contemplar o vazio, pelo que Cato
extraiu a tábua encerada da sacola e avançou para o embaixador romano, entregando-lha.
- Do príncipe Balthus e do meu comandante, o centurião Macro, da Décima Legião.
- E tu, quem és?
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- Quinto Licínio Cato, senhor. Prefeito interino da Segunda Coorte Ilírica.
Semprónio avaliou-o sem disfarçar.
- Prefeito interino, é? Um tanto jovem para tamanha responsabilidade, diria eu. - Comentou, com um toque de suspeita na voz.
- O governador viu-se forçado a enviar as duas únicas unidades que estavam disponíveis, senhor. - Explicou Cato, com toda a paciência que conseguiu reunir. - O centurião
Macro foi colocado à frente de uma coorte da Décima Legião enquanto durar esta emergência. Eu era o seu adjunto na Segunda Ilírica, pelo que fiquei no comando.
- Estou a ver. Bom, o que tem que ser tem muita força, suponho. - Semprónio cerrou os lábios por instantes. - Como é óbvio, a minha mensagem chegou a Longino. Portanto,
ele deve vir atrás das vossas duas coortes com o grosso do exército, correcto?
- Não faço ideia, senhor. Ele disse que viria assim que pudesse. E entretanto enviou-nos para reforçar a guarnição. Juntámo-nos ao príncipe Balthus e aos seus homens.
Neste preciso momento eles aproximam-se do portão leste, e...
- Balthus? - Interrompeu o rei, aturdido. - Para que nos servirá esse tolo? Não preciso para nada de um imbecil bêbado que passa a vida a caçar e a perseguir meretrizes.
Não quero ficar a dever-lhe nada. Diz-lhe para se ir embora. - Olhou para Cato como se o jovem não estivesse lá, e prosseguiu, sem emoção. - De todos os meus filhos,
porque não foi Balthus a trair-me? Não teria desperdiçado quaisquer lágrimas nesse traste...
O rei fez uma careta e deixou descair a cabeça, concentrando o olhar nos próprios pés. Cato olhou de relance para o embaixador, para tentar perceber qual seria a
resposta adequada, mas Semprónio limitou-se a abanar a cabeça. Depois de alguns instantes de silêncio, o embaixador tossicou e acenou a Cato.
- Prossegue, por favor.
Atendendo à reacção do rei, Cato decidiu não voltar a mencionar o príncipe.
- Os meus superiores ordenaram-me que solicitasse à guarnição da cidadela a execução de um ataque, uma diversão que atraia as forças rebeldes para longe do portão
leste. Para que haja alguma possibilidade de eles conseguirem romper e chegar até à cidadela, senhor, este ataque terá que ser desencadeado o mais depressa possível.
Estão com certeza à espera do meu sinal, uma fogueira na mais alta torre da cidadela. - Cato passou a falar em latim, baixou o tom de voz e prosseguiu com urgência.
- Senhor, peço-lhe encarecidamente. Use toda a influência que possui para que isto se concretize. Se o centurião Macro não conseguir entrar na cidade e
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juntar-se a nós, ele e os seus homens serão mortos em frente às muralhas de Palmira.
Semprónio assentiu e falou calmamente.
- Farei com que as ordens necessárias sejam emitidas, prefeito Cato. Tens a minha palavra. - O embaixador voltou ao grego e virou-se para o ministro, que se tinha
mantido em silêncio durante toda a conversa.
- Thermon, meu amigo, ouviste o que aqui foi dito. Tens que convocar o comandante da guarnição. Este ataque tem que acontecer o mais depressa possível. Por ordem
do rei, compreendes?
O ministro assentiu e dirigiu-se ao rei.
- Majestade?
- O que foi? - Vabathus ergueu penosamente o olhar, e percebeu que todos esperavam a sua palavra. Fez um gesto desalentado com a mão. - Faz como te aprouver.
O ministro fez uma vénia, e recuou até sair do salão, enquanto Semprónio chamava Cato.
- Prefeito, ao que sei tens contigo um dos escravos do príncipe.
- Sim, senhor.
- Ele que te conduza à torre sobre o portão. No cimo, existe uma estação sinalizadora. Assim que a guarnição der início ao ataque, poderás acender a tua fogueira.
E depois será melhor que vás tratar disso. - Disse, acenando para a mão ensanguentada do jovem.
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Lá está o sinal! - Balthus pôs-se em pé de um salto e apontou para a torre.
- Hum? - Resmungou Macro, remexendo-se no lugar que tinha escolhido para descansar. Tinha estado muito perto de cometer o imperdoável pecado de adormecer em serviço.
O que lhe tinha dado? Afastou rapidamente a justificação do sono perdido ao longo da dura marcha desde Antióquia. Tinha marchado e combatido em campanhas bem mais
duras sem permitir que a exaustão o vencesse. Talvez fosse apenas a idade a mostrar os dentes, concluiu tristemente, enquanto se punha de pé e se juntava ao príncipe.
Balthus indicava a cidadela, por trás da muralha e de todo o casario da cidade. Para lá das tochas que ardiam ao longo das muralhas via-se uma outra fonte luminosa
mais intensa que rebrilhou precisamente no momento em que Macro a localizava.
- Tem a certeza que se trata do sinal? - Indagou.
- Absoluta.
- Então vamos pôr-nos a mexer. - Macro virou-se para os oficiais que tinham aguardado ali perto, sentados no chão, mas que se tinham aproximado quando tinham ouvido
o grito excitado de Balthus. Macro empertigou-se, e esfregou as nádegas que tinham ficado dormentes de tanto estar sentado à espera.
- Meus senhores, isto terá que ser rápido e mortífero. Já têm as vossas ordens; tratem de as seguir à letra. Não quero nenhuma confusão quando se iniciar o ataque.
Aprontem os homens, e vamos a isto.
Trocou uma saudação com os oficiais e voltou para junto de Balthus.
- Assim que iniciar o ataque os meus homens segui-lo-ão. Boa sorte... Senhor.
Balthus sorriu abertamente enquanto dava uma palmada no ombro de Macro.
- Romano, o meu problema nunca foi a falta de sorte, portanto esta noite podes ficar com uma porção dela.
Virou-se e correu para o seu cavalo, fazendo esvoaçar as vestes ligeiras que usava; pegou nas rédeas que um auxiliar segurava e saltou para a sela.
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Na escuridão, o resto do seu séquito imitou-o, e quando Balthus viu que todos estavam a postos desembainhou a espada curva e ergueu-a sobre a cabeça, com um grito
para chamar a atenção. Fez uma pausa e agitou a espada na direcção dos portões da cidade, soltando outro grito estridente. Os seus homens lançaram também os seus
gritos de guerra e colocaram as montadas a galope, fazendo com que de repente uma maré de cavaleiros em tons escuros surgisse da escuridão e avançasse velozmente
para o portão oriental de Palmira.
Assim que a carga de Balthus se iniciou, Macro encheu os pulmões e deu ordens para as duas coortes avançarem. Enquanto corriam atrás dos cavaleiros, o centurião
reparou que havia flechas incendiárias a ser disparadas das distantes muralhas da cidadela e concluiu que a manobra de diversão devia estar em andamento. Saiu-lhe
um peso de cima do coração, já que isso só podia significar que Cato tinha tido sucesso na sua missão. Macro e os seus homens tinham estado escondidos a menos de
quinhentos metros dos portões, de forma a poder alcançá-los antes que o inimigo tivesse tempo de reagir, mas todos os romanos estavam conscientes de que o êxito
do plano dependia da velocidade de Balthus e da sua força.
Apercebeu-se de que o ataque tinha começado quando viu, à luz das tochas que ardiam sobre a entrada da cidade, um primeiro rebelde tombar devido aos disparos dos
arqueiros montados. Alguns dos homens que guardavam o portão pegaram em lanças e escudos e prepararam-se para defender a posição. Outros correram de pronto para
a segurança do interior, enquanto outros ainda surgiam junto à muralha, alertados pelo som dos cascos a aproximarem-se. Os mais corajosos dentre os que mantiveram
a posição ergueram os escudos para se protegerem das setas lançadas pelos cavaleiros. Um oficial rebelde, com assinalável presença de espírito, mandou os homens
formar e quando os atacantes se aproximaram enfrentaram uma pequena parede de escudos e lanças que os obrigou a mudar de direcção.
Macro pegou na espada e gritou a plenos pulmões.
- Ao ataque!
Atrás dele, os homens lançaram-se em corrida, respirando pesadamente enquanto o equipamento saltava sem cessar e as botas cardadas batiam ritmicamente no solo duro.
Enquanto Balthus e os seus homens tentavam cercar o bando de soldados que se esforçava por defender a entrada, golpeando os escudos e tentando derrubar as lanças
que eles empunhavam, os portões estavam a ser lentamente fechados pelos homens que, no interior da cidade, aplicavam toda a sua força para empurrar as pesadíssimas
tábuas forradas a metal. Macro observou a situação com um desespero crescente, enquanto corria, ultrapassando os mais recuados dos cavaleiros do príncipe,
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que tinham optado por parar os cavalos para melhor apontar os arcos e trocar disparos com os arqueiros inimigos nas ameias sobre os portões. Macro evitou os quartos
traseiros de um cavalo que se tinha empinado enquanto o cavaleiro respectivo se debatia com a haste de uma flecha que lhe tinha cravado a perna à sela. Ziguezagueou
por entre os cavalos, e conduziu a primeira centúria directamente contra os portões. A abertura entre as portadas estava cada vez mais estreita, e Macro viu os últimos
defensores apressarem-se a recolher ao interior da cidade através dela.
Cerrou os dentes e correu a toda a velocidade, com o coração a martelar-lhe o peito, deixando para trás o grupo disperso de cavaleiros e galgando o terreno aberto
que o separava dos rebeldes junto aos portões. Lançou um berro e atirou-se aos três inimigos que ainda estavam no exterior. Surpresos pelo feroz grito de guerra
do romano, ainda assim aguardaram-no a pé firme, baixando as lanças para uma posição defensiva. Macro levantou o escudo e rodou-o para proteger o corpo, sentindo
de imediato a ponta de uma lança a resvalar contra ele, enquanto atacava a haste de outra com a espada, obrigando a ponta a descer e a afastar-se de forma a não
o ameaçar. O terceiro homem mal teve tempo de arremeter com a lança contra o rosto do centurião, que baixou a cabeça e se arrepiou todo quando a ponta lhe raspou
no capacete, mesmo por cima de uma orelha. Saltou sobre o mais próximo dos inimigos, escudo contra escudo, e acabou por lançá-lo para trás, contra uma das portadas.
O ímpeto com que tinha atacado fizera com que ultrapassasse um dos rebeldes, pelo que rodou a espada para a direita e para trás, apanhando o adversário na armadura,
na zona dos ombros. A lâmina do gládio não conseguiu penetrar na couraça, mas o tremendo impacto atordoou o homem e deixou-o sem fôlego por tempo suficiente para
que um dos legionários que seguiam Macro lhe aplicasse um golpe no capacete, fazendo-o cair de joelhos, para logo ser vítima de uma estocada no pescoço que lhe foi
direita ao coração.
O último dos defensores tinha atirado fora a lança numa tentativa desesperada de passar pela minúscula abertura nos portões. Macro pegou na arma e empurrou-a pela
brecha entre as portadas. Estas fecharam-se sobre ela, dobrando a haste de tal forma que Macro pensou que ela ia estalar. Usou a espada contra o homem que ainda
estava no exterior, encostado a uma das tábuas, e lançou de imediato todo o seu peso contra a outra portada.
- Aqui! - Gritou por cima do ombro. - Não deixem que os portões se fechem!
Mais legionários chegaram à cena e se lançaram contra a dura superfície de madeira, e outros homens puseram o seu peso por trás deles, com as botas a derrapar no
solo enquanto tentavam aguentar a porta aberta. Entretanto,
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as equipas de ataque tinham já apoiado as escadas contra as muralhas de ambos os lados do portão. Macro ouvia perfeitamente os gritos dentro da cidade, enquanto
os oficiais rebeldes incitavam os seus homens, tentando desesperadamente cerrar os portões e impedir o acesso do inimigo ao interior.
- Vamos lá! - Urrou Macro. - Força, sacanas! Ponham músculo nisso! - À sua volta os legionários apinhavam-se e grunhiam com o esforço de empurrar a porta. A um dado
momento a porta pareceu começar a avançar contra eles, e Macro alarmou-se ao ver a brecha tornar-se ainda mais fina, a ponto de nenhum homem poder passar por ela.
Mas entretanto chegaram mais homens, e um dos optios começou a marcar um ritmo, o que permitiu aos romanos vencerem a resistência dos defensores. As pesadas portadas
imobilizaram-se, presas entre os esforços desesperados de defensores e atacantes. Macro notou que, entretanto, os legionários se lançavam ao assalto das muralhas.
O primeiro a trepar pelas escadas de assalto foi iluminado pela luz alaranjada das tochas e foi de imediato localizado e abatido pelos arqueiros inimigos nas ameias,
caindo da escada eriçado de hastes de flechas. Mas já outro o tinha imitado, subindo mais devagar e protegendo-se com o escudo.
Macro sentiu que a porta contra a qual se empenhava se movia ligeiramente, e olhando de relance para a abertura notou que estava a alargar-se, primeiro a pouco e
pouco, depois de forma mais perceptível. O seu coração alegrou-se perante a perspectiva do triunfo, e gritou encorajamentos excitados aos homens que o rodeavam,
e que ofegavam com o esforço de manter os portões abertos.
- Está a ceder! Força, rapazes! Mais um bocado!
Os pés de Macro estavam solidamente plantados contra as lajes gastas do pavimento, e as pernas empurravam com todas as forças. Devagar, mas sem paragens, os romanos
foram ganhando terreno, enquanto as pesadas dobradiças de ferro rangiam devido às pressões contrárias que lhes eram aplicadas. A abertura alargava, e já se viam
através dela as fileiras de rebeldes formados do outro lado. O mais próximo deles avistou-o ao mesmo tempo e saltou para a abertura, pronto a atacar Macro com uma
lâmina de fino acabamento. Macro desviou a cabeça no último instante, evitando o golpe da ponta da lâmina que foi puxada com selvajaria.
- Merda! - Exclamou, por entre os dentes cerrados. - Esta passou perto.
Manteve-se a uma distância segura da extremidade da porta, mas colocou de novo todo o seu peso contra a madeira.
- Força, rapazes! Está quase!
A pressão sobre a portada era enorme, e os romanos continuavam a
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ganhar terreno. Quando a abertura se tornou suficiente para dar passagem a um homem, Macro ordenou aos legionários mais próximos que a mantivessem assim, mas que
não tentassem entrar. Tinham que atacar os rebeldes com uma massa compacta de homens, com todo o poder das fileiras por trás, e não através de indivíduos que se
lançassem para a frente de forma irresponsável, que seriam abatidos sem dificuldade assim que entrassem na cidade.
Um dos legionários atirou um dardo através da abertura e logo o ar se encheu com uma troca de mísseis, alguns improvisados: mais dardos, flechas, metralha e pedras.
A abertura já dava para uma formação de três homens lado a lado, e os legionários colocaram os escudos de forma a frustrar qualquer tentativa de abater os homens
que continuavam a esforçar-se para manter os portões afastados. Estava quase a chegar o momento de carregar sobre o inimigo, e Macro afastou-se das portadas.
- Abram alas! Tu, fica no meu lugar!
Forçou a passagem até chegar ao pé dos homens que já formavam em frente à abertura, e brandiu a espada.
- Quando eu der ordem...!
À sua volta os legionários prepararam-se para o embate, erguendo os escudos, baixando as cabeças, agarrando as espadas com toda a firmeza. Macro encheu os pulmões.
- À carga!
Soltou um urro animal que foi imediatamente engolido numa tremenda tempestade de gritos quando as outras vozes se lhe juntaram, e os legionários começaram a avançar
para a cidade. Assim que a carga romana os atingiu, os defensores abandonaram o portão e, libertas de qualquer pressão para se manterem fechadas, as portas abriram-se
velozmente de par em par e foram embater nas paredes, esmagando um dos rebeldes que se atrasara na fuga. O oficial responsável pela defesa da entrada da cidade não
tinha conseguido reunir mais do que uns cinquenta homens para lançar o contra-ataque assim que os romanos pusessem o pé no interior; lançaram um grito de guerra
e carregaram, tentando proteger-se com os seus ligeiros escudos arredondados. Um punhado de defensores dos portões viu-se encurralado entre os dois grupos que corriam
aos gritos um contra o outro e foram empurrados, pisoteados e esmagados entre escudos, espadas e massas de músculos em colisão.
Macro seguia na segunda linha da centúria que conduzia o ataque, e por momentos todos os seus instintos lhe gritaram que devia abrir caminho e assumir o seu lugar
na frente, liderando os homens na batalha. Mas a razão prevaleceu. Estava ali no comando de mais de mil homens. A sua sobrevivência dependia dele e seria completamente
irresponsável arriscar
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a vida naquela escaramuça: seria um gesto de criminosa vaidade. Respirou fundo, embainhou a espada e afastou-se ligeiramente da frente de combate. Ao olhar em redor
reparou que as centúrias nos flancos tinham encontrado forma de trepar para as muralhas nas zonas laterais aos portões e estavam já a limpá-las de rebeldes, enquanto
o resto da coluna se preparava para entrar na cidade em formação ordenada. Sentiu uma sombra a aproximar-se e rodopiou; era Balthus que descia do cavalo.
- Afinal é verdade: os homens das legiões lutam realmente comoleões.
O comentário era sincero e Macro sentiu-se orgulhoso e de certa forma
vingado, depois da humilhação de ter sido salvo pelo príncipe e pelos seus seguidores. Mas o sentimento depressa se desvaneceu quando olhou pela rua, por cima das
cabeças dos combatentes, na direcção da cidadela.
- Senhor, o combate ainda mal começou. Temos muito que andar.
O sorriso de Balthus também se esbateu.
- De facto. Assim que os teus homens acabarem de eliminar os rebeldes junto ao portão, eu tomarei a dianteira.
- Muito bem. Agora, desculpe, mas ainda tenho trabalho. - Macro virou-se e dirigiu-se ao coração da refrega. Percebeu que os seus homens estavam a prevalecer, o
que não constituía surpresa. Os rebeldes demonstravam bravura, mas as armas e o equipamento de que dispunham não estava à altura do desafio que enfrentavam. Os legionários
apresentavam aos defensores uma parede de escudos que não hesitavam em usar para atingir os inimigos que se aproximavam demasiado. Pelo meio dos escudos faiscavam
as lâminas dos gládios, como se fossem línguas de prata a lamber a massa de rebeldes, espetando e cortando, forçando-os a recuar pela rua. Depressa houve homens
a debandar, virando as costas ao combate e desatando a correr, escapulindo-se para as ruelas transversais numa tentativa de fugir ao avanço romano. Macro sorriu
satisfeito ao ver como os legionários abatiam os últimos rebeldes, os mais loucos ou mais corajosos, que insistiam em lutar até ao fim; depressa a rua lhes pertencia.
- Primeira centúria! Formar! - Gritou o centurião Horácio, e os homens apressaram-se a formar em coluna de quatro, ocupando quase toda a largura da rua.
Quando a centúria seguinte entrou na cidade, Macro ordenou ao comandante que formasse por trás dos homens de Horácio, e depois dirigiu-se ao príncipe Balthus.
- Senhor, preciso que os seus homens formem pequenos grupos e se disponham entre as minhas centúrias.
- Porquê?
Macro indicou os edifícios que ladeavam a rua.
- Já estive envolvido nalguns combates urbanos. A medida que avançarmos
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pela cidade, os rebeldes não deixarão de se reagrupar e voltar a atacar-nos. Das ruelas laterais e dali de cima. Os seus homens são todos excelentes arqueiros.
Já o demonstraram claramente. - Lançou um sorriso. - São a nossa melhor hipótese de abater os atacantes e desencorajar outros de se aproximarem.
Balthus anuiu.
- Percebi. Darei as ordens necessárias.
- Será preciso que desmontem e que deixem os cavalos ao cuidado da nossa cavalaria.
A suspeita fez os olhos de Balthus faiscarem à luz das tochas que alumiavam a rua.
- Centurião, os meus seguidores não apreciam de todo a ideia de se separarem das suas montadas.
- Sei-o perfeitamente, senhor. Mas dou-lhe a minha palavra de que os meus homens protegerão os animais.
- A tua palavra. Muito bem, darei então as ordens necessárias. - Balthus afastou-se, saindo da cidade. Macro subiu as escadas internas para o cimo da muralha e convocou
os centuriões que comandavam as centúrias flanqueadoras para uma reunião sumária. Enquanto avançava pelo passadiço Macro não deixou de reparar na profusão de cadáveres
por ali espalhados, e facilmente imaginou o árduo combate que se travara pela posse daquela área das muralhas. Quando os dois centuriões se apresentaram, deu-lhes
as novas ordens.
- Ficam responsáveis pela segurança dos flancos até que o último dos auxiliares entre na cidade. Nessa altura passam a constituir a guarda recuada da coluna. Mantenham
os vossos homens em formação cerrada e sigam pela rua. Nada de parar para combater os rebeldes. Ignorem todo e qualquer ataque proveniente das ruas e becos laterais.
Se a coluna for obrigada a parar, perderemos a iniciativa. E se isso suceder, é como se já estivéssemos mortos. Ficou claro?
- Sim, senhor. - Responderam os dois centuriões em uníssono.
- Óptimo. E já agora... - Macro fez um gesto abrangendo os sinais da renhida luta que ali tivera lugar. - Bom trabalho.
- Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Quando Macro regressou à rua, os primeiros dos homens de Balthus já se tinham posicionado por trás da primeira centúria, de arcos prontos. O príncipe tinha-se juntado
a eles, armado com o seu próprio arco, decorado de forma vistosa mas tão ou mais letal que os outros, adivinhou Macro. Juntou-se a ele.
- Tudo pronto?
- Sim, centurião. Seguimos por esta rua até ao mercado, viramos
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à esquerda, passamos por baixo do arco que há lá e vamos dar à cidadela.
- Muito bem. - Macro levou as mãos em concha à boca. - Coluna!... Avançar!
O curto espaço de tempo que fora necessário para formar a coluna chegara para que os rebeldes começassem a surgir ao fundo da rua, e assim que os romanos começaram
a avançar as setas começaram a abater-se sobre os escudos das primeiras linhas. Os homens de Balthus ripostaram de imediato, e os rebeldes viram-se obrigados a procurar
refúgio perante a chuva de setas.
- Agora é que vão começar os sarilhos. - Comentou Macro.
Balthus olhou para ele.
- Porquê?
- Já vai ver. - O olhar de Macro saltitava pelos edifícios que rodeavam a rua pouco à frente. Depressa localizou um foco de movimento num dos telhados e espetou
um dedo nessa direcção. - Lá em cima!
Assim que a coluna se aproximou do ponto em que as setas antes lançadas pelos homens de Balthus estavam espalhadas sobre o pavimento, um bloco de pedra foi lançado
de um edifício próximo. Macro lançou um aviso, mas demasiado tarde para conseguir evitar que o pedregulho se abatesse sobre o ombro do porta-estandarte da primeira
centúria. O golpe lançou o homem para o solo, onde aterrou de joelhos. Gemeu, e tentou manter a pesada haste do estandarte erecta com a outra mão, mas não conseguiu,
e o símbolo estremeceu e começou a tombar. Macro deu um salto na direcção do homem e agarrou no estandarte antes que caísse ao solo. Virou-se e fez um gesto para
os dois homens mais próximos.
- Tu, pega no estandarte. E tu, leva este homem para a retaguarda.
O homem designado para levar o estandarte era um jovem longilíneo, cuja expressão traduzia de forma inequívoca o orgulho que sentia ao vér ser-lhe atribuída aquela
missão.
- Sabes o que tens a fazer. - Indicou-lhe Macro, com solenidade. - Mantém-no ao alto, onde os homens o possam ver, e defende-o com a tua própria vida.
- Sim, senhor.
- Então, segue. - Acenou na direcção da primeira centúria, que prosseguia a marcha, subindo a rua. - Nada de ficares para trás.
Enquanto o legionário se apressava a retomar a posição devida ao estandarte, alguém lançou um novo aviso, e mais pedras foram lançadas dos telhados circundantes.
- Escudos! - Ordenou Macro. - Ponham os escudos por cima das cabeças!
Os homens levantaram os escudos, formando uma cortina protectora
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quase contínua sobre as suas cabeças. Os homens de Balthus não possuíam nenhuma protecção semelhante, mas a verdade é que estavam ocupados a disparar contra qualquer
vulto que descortinassem sobre os telhados. O mais adiantado deles deu um grito súbito e caiu no chão junto a Macro, abatido por um lançamento de funda. Não havia
tempo para verificar a gravidade do ferimento, e a coluna prosseguiu. Pouco à frente já se via a zona onde a rua se alargava para desembocar na praça do mercado.
Uma linha de soldados rebeldes surgiu à vista, em passo de corrida; formaram rapidamente, encostando os escudos e apresentando aos romanos uma frente de lanças.
Avançaram de imediato pela rua, tapando a passagem. Macro alertou Balthus para a nova ameaça e o príncipe soltou uma rápida série de ordens. Os seus homens deram
imediatamente atenção à formação que agora bloqueava a rua e começaram a disparar contra eles. Porém, aquele contingente rebelde fazia parte do exército regular
de Palmira, uma força pequena mas eficiente, que tinha optado por seguir a revolta e trair o seu rei. Tal como faria uma formação romana, os soldados ergueram os
escudos e anularam com facilidade a chuva de flechas, que embateram nas superfícies de bronze sem causar perigo.
- Atenção, aí vêm as lanças! - Avisou Macro.
Os lanceiros ocupavam toda a largura da rua e avançavam deliberadamente, numa cadência marcada pelo oficial que os comandava. Os legionários enfrentaram-nos sem
vacilar, mantendo a barreira de escudos e preparando as espadas para contra-golpear. Um dos romanos começou a bater com a lâmina contra a orla metálica do escudo,
e daí a pouco toda a centúria o imitava, fazendo ressoar o som metálico rítmico pelas paredes dos dois lados da rua. À medida que a coluna romana avançava, Macro
ia espreitando cuidadosamente para cada ruela transversal, e não lhe escapavam movimentos furtivos pelo meio das sombras. De vez em quando lá saía uma flecha ou
uma pedra para se abater sobre o escudo ou a armadura de um dos legionários. Eram mais um aborrecimento do que uma verdadeira ameaça, que só era representada pelos
elementos inimigos que se tinham conseguido posicionar nos telhados das casas que ladeavam a rua, já que continuavam a lançar toda a sorte de projécteis sobre a
coluna que a ia percorrendo.
O espaço entre as duas formações reduzia-se a cada passo e Macro abriu caminho por entre as fileiras da primeira centúria, posicionando-se poucas linhas atrás da
frente. Empunhou a espada, pô-la à altura da cintura e juntou-se aos homens que continuavam a bater com as lâminas nos escudos. A sua frente, a pequena força inimiga,
cujas armaduras refulgiam levemente, graças às tochas que eram empunhadas por homens que marchavam nas alas da formação, mudou a cadência do passo e levantou as
lanças,
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preparando-se para usar as pontas aguçadas para manter os romanos à distância. Macro e os seus homens reagiram levantando os escudos, embora ainda conseguissem espreitar
por cima deles. Depressa os dois lados ficaram ao alcance um do outro, e os rebeldes lançaram gritos de guerra e fizeram os possíveis por atingir os romanos com
as suas armas. Os legionários baixaram as cabeças, deixando como alvos apenas as cristas dos capacetes e as superfícies encurvadas dos escudos. As lanças terrivelmente
aceradas embateram nas defesas sem causar quaisquer danos, enquanto os romanos forçavam a passagem e colocavam os inimigos ao alcance das suas espadas, lançando-se
então num ataque veloz, acompanhado de um urro colectivo. Os escudos chocaram, e logo os romanos se dedicaram a cortar as hastes das lanças, ou a derrubá-las das
mãos que as seguravam, antes de se virarem contra os soldados inimigos e os golpear com total ferocidade e dedicação.
- Vamos a eles, rapazes! - Gritou Macro. - Sem piedade!
Contra qualquer outro inimigo, os lanceiros teriam muito boas hipóteses de triunfar, mas os legionários já tinham praticamente eliminado a ameaça das lanças e tinham-se
aproximado de tal maneira que o seu uso se tornara impossível; pelo contrário, só serviam para atrapalhar. Alguns dos rebeldes perceberam a situação e livraram-se
das suas, ou tentaram lançá-las como dardos contra os romanos, recorrendo depois às espadas. Macro notou que todos estavam equipados com falcatas, espadas curtas
e de lâmina pesada e curva, que eram armas letais, especialmente quando usadas para cortar. Ouvia-se um contínuo trovão proveniente dos choques dos escudos, e os
homens dos dois lados dedicavam-se à sanguinária tarefa de tentar ferir e espetar os adversários sempre que lhes surgia uma aberta entre a muralha de escudos. Enquanto
usava o seu peso para apoiar os homens da primeira linha, Macro reparou que as espadas dos rebeldes lhes ofereciam uma inesperada vantagem no combate corpo-a-corpo.
A curva para baixo na ponta da pesada lâmina não alcançava grande distância para lá do escudo de um oponente, mas se este tivesse a cabeça levantada para espreitar
sobre ele podia bem receber um golpe letal. Como que a confirmar esta observação, e mesmo à sua frente, ouviu-se um estalido metálico quando uma falcata atravessou
o capacete de um legionário e lhe seccionou o crânio. O homem caiu como uma saca de cereais, enquanto a espada saltava sobre o solo e o escudo rodopiava até lhe
tombar por cima como uma mortalha. Macro correu imediatamente, pisando o cadáver para cobrir a abertura repentina na formação, e esticou o braço para tentar alcançar
o inimigo que abatera o legionário. O rebelde apercebeu-se do brilho da lâmina do centurião e ergueu o escudo mesmo a tempo de desviar o golpe, mas no instante seguinte
recebeu o impacto do pesado escudo de Macro, o que o fez recuar um passo. As linhas atrasadas dos dois lados empurravam,
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forçando os homens da frente a aproximarem-se mais e mais enquanto trocavam golpes. Estava a tornar-se impossível combater no espaço reduzido, e Macro optou por
se colocar por trás do escudo e empurrar também, rangendo os dentes enquanto firmava as botas no solo e se esforçava por avançar. Em redor outros homens imitavam-no,
tentando fazer recuar o inimigo. Do outro lado do escudo, ali a curta distância, conseguia ouvir a respiração pesada do homem que tentara matar instantes antes.
Nenhum deles conseguia agora lançar um golpe, e a escaramuça estava a tornar-se um teste de força e de resistência.
- Com mais força, cambada! - Ordenou Macro aos seus homens. - Empurrem!
Por momentos, nenhuma das partes deu indicações de estar a ceder, mas depois, devagar a princípio, as botas cardadas e o peso da formação romana começaram a prevalecer
e Macro deu um passo em frente e voltou a juntar a sua força à dos legionários. Um passo foi ganho, depois outro, e daí a pouco os romanos já empurravam claramente
os inimigos enquanto subiam a rua a caminho do mercado. Ainda eram alvo de uma contínua barragem de mísseis vindos dos telhados e dos becos laterais, embora Balthus
e os seus arqueiros fizessem os possíveis para obrigar os rebeldes a manterem-se escondidos.
- Continuem a andar!
Macro espreitou sobre a orla do escudo e apercebeu-se de que o inimigo já se vira forçado a recuar para a zona do mercado. Voltou a baixar-se e continuou a empurrar.
A resistência ao avanço da coluna romana já era quase nula, e os rebeldes começavam a abandonar as suas linhas e a escapulir-se por entre as bancas do mercado. O
oficial que os comandava berrava ordens furiosas, até que uma seta lhe trespassou a garganta e o calou para sempre. Deixou tombar a espada e cambaleou, tentando
arrancar a haste do projéctil, mas quando o conseguiu o sangue jorrou das artérias rasgadas e ele caiu para o solo, inerte. Os seus homens vacilaram e acabaram por
debandar, correndo pelo mercado em desordem, numa tentativa de escapar aos romanos. Balthus e os seus homens lançaram algumas setas contra a massa de fugitivos,
mas depressa voltaram a sua atenção para os rebeldes que ainda ocupavam posições nos telhados. Por seu lado, a secção de legionários que ocupava a vanguarda fez
menção de perseguir os rebeldes.
- Deixem-nos! - Gritou Macro. - Esqueçam isso, se não querem que passe a apertar as minhas botas com as vossas tripas em tiras!
Os homens detiveram-se de imediato e apressaram-se a reunir-se aos seus camaradas, com sorrisos amarelos perante a pitoresca ameaça, que não tinha escapado aos ouvidos
dos outros soldados.
- Chega de brincadeira! - Ordenou Macro. - Cerrem as fileiras e
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comecem a virar à esquerda. Por ali. - Ergueu a espada e apontou para um arco que dava saída da praça onde se encontravam. A coluna reformou as fileiras e começou
a atravessar o mercado, passando pela mais larga das áleas que separavam as bancas. Macro, a arfar, deixou-se ficar momentaneamente para o lado, para avaliar a forma
como a situação estava a evoluir. Naquele espaço aberto havia luz suficiente, oferecida pelas estrelas e por um fino crescente, para que os homens distinguissem
o que estava à sua volta e para combaterem. Para lá do arco, na direcção da cidadela, o céu estava pintado de vermelho e laranja em consequência de um incêndio algures,
e Macro sentiu um aperto no estômago. Ouviam-se sons de combate.
- Deve ser o ataque de diversão.
Macro sobressaltou-se quando deu conta de que era Balthus que se lhe tinha juntado sem fazer ruído.
- Porra, move-se em silêncio. - Resmungou Macro, aliviado. - Ainda bem que está do nosso lado.
Balthus encarou-o por momentos.
- Para já, sim. Pelo menos até Artaxes ter a sua conta e os partos aprenderem a deixar o meu povo em paz.
- E depois?
- Depois?Balthus sorriu friamente. - Depois, veremos.
Macro assentiu.
- Seja. Assim será. Mas, por agora...
A sua atenção foi chamada por um repentino coro de gritos, e quando se virou de novo para a praça avistou uma massa escura de vultos vinda da rua que dava para a
cidadela.
Macro levou a mão em concha à boca e gritou as suas ordens.
- Coluna! Alto! Escudos ao alto! Preparar para receber carga inimiga! Balthus, trate deles!
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acomodações normalmente reservadas aos hóspedes do rei tinham sido transformadas num hospital improvisado para acolher os feridos. Quando Cato saiu para o pequeno
pátio central, reparou que já quase todos os quartos estavam repletos de homens que jaziam em colchões simples, ou em esteiras de palha. Alguns dormiam profundamente,
outros estavam perdidos em delírios febris, e outros ainda gemiam ou gritavam de dor. Um punhado de enfermeiros e de mulheres tentava zelar pelo seu bem-estar, na
medida do possível. Cato sentiu de imediato que pouco direito tinha de ali estar. Deitou uma espreitadela ao profundo corte que lhe atravessava a palma da mão esquerda.
A hemorragia estava a parar, e o sangue já coagulava nas imundas e inchadas bordas da ferida. Apesar da dor e do latejar ininterrupto, Cato não conseguiu evitar
alguma vergonha, considerando a insignificância da sua ferida em comparação com os males dos outros homens no hospital. Fez uma careta de auto-desprezo, e preparava-se
para dar meia-volta e regressar por onde tinha vindo quando um vulto emergiu de um dos quartos ali próximos.
- Venha cá. - Disse-lhe uma suave voz feminina, em grego. - Deixe-me ver essa ferida.
- O quê? - Cato levantou o olhar e viu a silhueta da mulher desenhada contra a luz das lamparinas espalhadas pelo corredor.
- A mão. Deixe-me vê-la. - Ela aproximou-se.
- Não, não é preciso. - Respondeu Cato rapidamente. - Tenho que ir.
A mulher moveu-se com rapidez e pegou-lhe no cotovelo com a mão.
- Aqui, debaixo da luz, onde possa olhar para isso.
Cato deixou-se conduzir ao longo das colunas que rodeavam o pátio; ao aproximarem-se da luz, começou a reparar nos detalhes de quem o amparava. Era jovem, e tinha
o longo cabelo negro apanhado num rabo-de-cavalo. O corpo era esguio, pelo menos assim parecia sob a simples estola castanha clara que usava, agora suja por manchas
de sangue escuro. Quando se detiveram junto ao brilho amarelado das lamparinas e ela inclinou a cabeça para lhe examinar a mão, Cato pôde apreciar o carrapito no
cabelo e a fina
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estrutura da face da rapariga. Os olhos dela eram cinzentos e um sorriso passou-lhe pelos lábios quando olhou para cima, para ele.
- Feio.
Cato encarou-a, estupefacto.
- Desculpe? Não percebo...
- O corte. Como é que isto sucedeu? Não é uma ferida de espada. E sim, sei distinguir - não tenho visto outra coisa nos últimos dias.
Oh. - Cato afastou o olhar, desconcertado pela forma como ela o mirava directamente. - Fiz isso num túnel.
- Fez isto num túnel? - Ela abanou a cabeça. - Francamente, vocês, homens, nunca crescem. Arranhões, brigas...
Cato puxou o braço para trás e endireitou a espinha, de forma a poder encará-la do alto de toda a sua altura.
- Não se preocupe, eu mesmo tratarei da ferida.
- Oh, vá lá! - Ela deu uma risada cansada. - Estava só a brincar. Agora, a sério, tenho que ver isso. Essa ferida tem que ser limpa e ligada. Siga-me.
Virou-se e, sem esperar por ele, dirigiu-se a uma porta ao fundo das colunas. Depois de um segundo de hesitação, Cato soltou um suspiro, e seguiu-a. A porta dava
para uma sala dominada por uma grande mesa de madeira, salpicada de sangue. Viam-se alguns instrumentos cirúrgicos de latão numa das pontas da mesa, sob a luz fraca
de uma lamparina. Num dos lados do quarto havia um braseiro, no qual algumas brasas ainda brilhavam. Sobre elas estava um recipiente de ferro, e o ar estava cheio
do cheiro acre do pez. Por baixo da mesa um cesto quase não se via, mas dele saíam os dedos recurvados de uma mão, e um pedaço de outro membro. Cato afastou rapidamente
o olhar, enquanto a jovem o chamava para perto de outra mesa mais pequena, enquanto deitava água numa bacia.
- Aqui. Deixe-me limpar isso.
Cato aproximou-se e ofereceu-lhe a mão, colocando-a sobre a bacia. Ela mergulhou-a na água e começou a afastar a sujidade com um pano limpo. Olhou para ele.
- Não é daqui, e também não é um daqueles mercenários gregos. Romano, portanto. - Passou a falar em latim. - Não me lembro de o ter visto antes. Não faz parte do
pessoal do embaixador, isso é certo. Quem é você?
Cato estava fatigado e com pouca vontade de ser submetido a um interrogatório. Naquele preciso momento, os gregos estavam a formar junto aos portões da cidadela,
preparando-se para a manobra de diversão, e queria estar junto deles quando o sinal fosse dado para as forças no exterior da cidade. De qualquer forma, não viria
mal ao mundo se falasse com a rapariga enquanto ela lhe tratava da ferida.
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- Faço parte da força de socorro enviada pelo governador da Síria.
Ela fez uma pausa e encarou-o com os olhos muito abertos.
- Isso quer dizer que a mensagem passou. Estamos salvos, que os deuses sejam louvados.
- Ainda não. - Contrariou Cato. - Somos só uma coluna avançada. O grosso do exército está ainda a alguns dias de distância.
- Oh. - Voltou a dar atenção à mão de Cato, forçando o trapo pelos bordos da ferida de forma a limpar a sujidade que lá tinha penetrado. Cato estremeceu, mas obrigou-se
a manter-se imóvel. Afastou o olhar da ferida e voltou a contemplar a face da rapariga.
- E você? O que faz uma mulher romana aqui em Palmira?
Ela encolheu os ombros.
- Viajo com o meu pai.
- E quem é ele?
- Lúcio Semprónio, o embaixador.
Cato examinou-a com maior atenção. Nem mais nem menos do que a filha de um senador, e ali estava ela a tratar das feridas a vulgares soldados.
- Tem um nome?
Ela olhou para ele e sorriu, revelando dentes brancos e regulares.
- Júlia. E o seu?
- Quinto Licínio Cato, prefeito da Segunda Coorte Ilírica. Bom, prefeito interino, pelo menos por enquanto. - Era a vez de Cato sorrir. - Mas pode chamar-me Cato.
- Era o que ia fazer. Não vale a pena estarmos com grandes formalidades nesta situação. Quer dizer, acho eu, dado que os rebeldes podem irromper por aqui adentro
a qualquer momento e passar-nos a todos pela espada. - Comentou ela com inteiro à-vontade, enquanto pegava num trapo limpo e lhe secava a mão, retirando a água em
excesso. Em seguida pegou numa ligadura de um cesto e começou a enrolá-la em torno da mão de Cato. - Prefeito, dizes? É um posto importante, não é?
Cato franziu o sobrolho.
- Para mim, é.
- Não és um tanto jovem demais para uma posição dessas?
- Sou. - Admitiu, antes de prosseguir, picado. - E não estará a filha de um senador um tanto deslocada, a tratar de vulgares soldados?
Ela atou a ligadura com firmeza, terminando com um puxão que forçou Cato a cerrar os dentes para evitar um grito de dor.
- É evidente, prefeito, que não és um vulgar soldado, mas as tuas maneiras são bem ordinárias. Até mesmo insultuosas.
- Não quis ofender.
- Ah, não? - Ela recuou um passo. - Bem, a sua fenda está tratada,
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e o trabalho foi feito da mesma forma que seria por qualquer um dos enfermeiros, apesar da evidente desvantagem que me é conferida pelo meu estatuto social. E agora,
prefeito, se não se incomodar, tenho mais que fazer.
Corou, irritado pelos modos que ela assumira, e ao mesmo tempo envergonhado pela forma como ele próprio reagira. Ela passou por ele, saindo para o corredor. Virou-se
e foi atrás dela.
- Obrigado... Júlia.
Ela fez uma breve pausa, empertigada, antes de entrar para um dos outros quartos e desaparecer de vista.
Cato abanou a cabeça, enquanto murmurava para si mesmo.
- Oh, bem feito, sim senhor. Inimigos por todo o lado lá fora, e ainda consegues fazer mais um cá dentro. - Bateu com a mão na perna, exasperado, e arrependeu-se
imediatamente, quando a dor lhe trepou pelo braço e o fez gemer. - Merda!
Rangendo os dentes, saiu rapidamente do hospital e dirigiu-se para a torre sinaleira. Quando conseguiu que todos tivessem bem presente que o sinal para Macro só
devia ser aceso quando a sortida já estivesse em andamento, Cato foi ter com a força que se preparava para o ataque de diversão, e que se concentrara junto aos portões
da cidadela. O comandante da guarnição tinha atribuído a missão a uma sintagma da guarda real, e os homens tinham formado rapidamente à luz das tochas que ardiam
em suportes nas paredes junto aos portões. Estavam fortemente equipados, com os grandes escudos redondos e as lanças mortíferas que os seus antepassados tinham usado
nos tempos de Alexandre. As cristas dos capacetes não agradavam a Cato, mais habituado aos capacetes simples e sem adornos dos soldados romanos, mas fazia-os parecer
mais altos e dava ao grupo de homens ali reunidos um aspecto formidável, admitiu.
- Ah! O meu amigo dos esgotos.
Cato dirigiu o olhar para a voz, e avistou um oficial que lhe fazia sinal.
- Arquelau?
- Eu mesmo! - O grego gargalhou. - Vem juntar-te aos meus homens, e vais ver como lutam os verdadeiros guerreiros.
- Não tenho nem escudo nem elmo.
Arquelau virou-se para o mais próximo dos seus homens.
- Traz equipamento para o nosso amigo romano.
O soldado fez uma saudação rápida e dirigiu-se às casernas, enquanto Arquelau oferecia a sua lança e escudo a Cato.
- Toma, vou ensinar-te a usar estas coisas.
Cato reparou que o interior do escudo tinha uma alça central pela qual passou o braço, antes de agarrar a pega que se situava junto ao rebordo. Ao contrário do desenho
romano, este escudo servia apenas para protecção
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pessoal, e dificilmente podia ser usado como arma para empurrar o inimigo. Dava uma boa cobertura ao corpo e parte superior das pernas, e Cato experimentou-o, manobrando-o
até se sentir à vontade com o peso e o equilíbrio. Pegou então na lança que Arquelau lhe oferecia de braço esticado. Tinha cerca de meio metro a mais que a sua altura,
com uma haste grossa e uma ponta de ferro comprida e em forma de lágrima. Na outra ponta também oferecia um gancho metálico. Fechou a mão sobre a pega de cabedal
e avaliou a arma. Era pesada, e era destinada a ser usada em estocadas, ao contrário dos pilos usados pelos legionários, que podiam servir de lança ou de projéctil.
- Mantém-na ao alto. - Explicou Arquelau. - Levamo-la assim até nos aproximarmos do inimigo. Isso impede-nos de ferir os nossos próprios camaradas e também ajuda
a deter setas ou chumbos que mandem contra nós. Quando estamos quase a entrar em contacto, é dada a ordem de avançar lanças, e a fileira da frente adianta-se e muda
a pega, assim. - Pegou na lança de Cato, atirou-a ao ar e pegou-lhe com o braço dobrado, de forma a que a haste ficasse paralela ao solo e a ponta à altura dos olhos.
- Desta posição, é só dar estocadas. - Fez a lança avançar com um golpe poderoso, e recuperou rapidamente a posição inicial, pronto a repetir o gesto. Voltou a alterar
a pega, deixou a ponta da arma tombar para o solo e devolveu-a a Cato. - Experimenta.
Cato tentou segurar a lança como o grego lhe indicara, e espetou o ar repetidamente para ver se se ajeitava. Preferia usar a espada, mas apercebeu-se da utilidade
daquela arma comprida para ferir o inimigo à distância. O soldado que Arquelau enviara às casernas regressou entretanto, com mais equipamento, e Cato devolveu as
armas ao tetrarca. Assim que apertou as tiras que prendiam o capacete e empunhou lança e escudo, ouviu o comandante da sintagma a dar ordem para cerrar fileiras.
Cato reparou que alguns dos homens levavam pequenas sacolas a tiracolo.
- Material para fazer fogo. - Explicou Arquelau, seguindo a direcção do olhar do romano. - Vamos tentar chegar ao aríete que eles têm andado a preparar junto ao
templo, do outro lado da ágora. Vamos incendiá-lo. O aríete e tudo o que encontrarmos e que possa ser usado pelos rebeldes.
O comandante lançou outra ordem, enquanto se juntava à linha da frente da formação. Alguns dos gregos levantaram a tranca que prendia os portões e puxaram com todas
as forças. As altas portadas, revestidas a metal, protestaram nas dobradiças e começaram a escancarar-se com um rugido profundo. O comandante ergueu a lança sobre
a cabeça e lançou um olhar sobre o ombro para dar a ordem de avanço.
- Em frente!
A primeira linha da sintagma começou a andar e depressa toda a coluna
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tinha atravessado os portões, mantendo-se em perfeita formação. Cato seguia ao lado de Arquelau, a algumas linhas atrás da frente, e o coração batia-lhe desalmadamente
enquanto voltava a deixar a relativa segurança da cidadela. Antes, tinha-se interrogado sobre a real necessidade de se juntar ao ataque de diversão, mas era vital
que a coluna chefiada por Macro conseguisse chegar à cidadela, e Cato sentia uma necessidade instintiva de fazer tudo o que pudesse para ajudar o amigo e os homens
da Segunda Ilírica. Portanto, ali estava; baixou a cabeça, cerrou os dentes e agarrou com toda a força no escudo e na lança, enquanto a coluna deixava a cidadela
e se dirigia para as barricadas que os rebeldes tinham improvisado nas ruas que davam para a ágora, em frente à fortaleza.
- Em corrida! - Gritou o comandante, e os homens aceleraram o passo; as sandálias que usavam produziam um barulho diferente do das botas de Cato, mas o som das bainhas
das espadas a baterem nas pernas e da respiração acelerada era igual para todos. Sobre o ruído da formação que carregava, Cato escutou os gritos de alarme que saíam
das linhas inimigas. Do lado de lá das barricadas brilhavam fogueiras, e surgiam figuras por trás das defesas, preparando-se para o embate contra os homens da guarda
real que atravessavam a ágora em passo de corrida. Num pátio em frente a um templo, Cato apercebeu-se da presença da estrutura ainda incompleta que servia de suporte
ao aríete. Notou os primeiros alvores da madrugada que se aproximava por cima dos telhados que ladeavam a ágora; o tempo estava a esgotar-se para Macro e para a
coluna de socorro, se queriam atravessar a cidade a coberto da noite.
O comandante da sintagma foi o primeiro a alcançar a barricada, constituída por carroças derrubadas e madeira solta, que tinha sido construída no lado aberto do
recinto do templo. Mandou o escudo contra uma banca de mercado que tinha sido ali empilhada e colocou a lança sobre ela, tentando atingir o rebelde mais próximo.
O homem saltou para trás, escondendo-se por trás do escudo e golpeando a haste da lança com a espada, para a arrancar das mãos do grego. Os mercenários empilharam-se
em poucos momentos contra a barricada, tentando atingir os homens do outro lado, e um deles conseguiu mesmo trepar pelas defesas improvisadas e saltar para o outro
lado, de escudo levantado e lança pronta a golpear. Lançou um grito selvagem e fez oscilar a lança, limpando um espaço que permitiu a vários dos seus camaradas juntar-se
a ele. Cato manteve a sua posição ao lado de Arquelau, enquanto alguns dos mercenários se dedicavam a desmantelar a barricada, puxando as madeiras e pondo uma carroça
de novo sobre as rodas antes de a empurrarem dali para fora. Cato olhou para trás, na direcção da cidadela. No cimo da torre sinaleira surgiu uma pequena chama,
mas depressa as labaredas se desenvolveram, espalhando
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fagulhas e rasgando a escuridão. O sinal estava portanto dado. A qualquer momento, Macro e a sua coluna lançariam um assalto ao portão oriental da cidade; Cato lançou
uma rápida prece a Fortuna, para que aquele ataque em que estava envolvido conseguisse desviar a atenção dos rebeldes.
Os guardas do rei tinham já conseguido abrir uma brecha na barricada, e continuavam a alargá-la, enquanto outros passavam, seguindo para o recinto do templo. Arquelau
avançou e Cato seguiu-o, na maré, com os outros mercenários. O pequeno pátio quadrado em frente ao templo estava mergulhado no caos, e viam-se vultos quase indistintos
na escuridão envolvidos em duelos impiedosos. A única forma de distinguir os dois lados era a diferença entre os capacetes: com cristas, os dos mercenários e cónicos,
os usados pelos rebeldes.
- Destruam-nos! - Gritou o comandante grego.
Arquelau ergueu a lança bem ao alto, e lançou o seu próprio grito de encorajamento.
- Vamos lá, rapazes! Desfaçam-me estes cabrões!
Lançou-se para a frente, baixando a ponta da lança e empalando um inimigo que fugia. O homem abriu os braços, e a espada que empunhava caiu no solo, momentos antes
do próprio corpo. Cato juntou-se à confusão, olhos a saltar para todos os lados enquanto avançava, semi-agachado para controlar o equilíbrio e tornar mais difícil
a tarefa de quem o quisesse derrubar. Ouviu um grito selvagem à sua esquerda e mal teve tempo de voltar o escudo para esse lado de forma a bloquear o golpe de uma
espada, que resvalou na protecção com um estrondo ensurdecedor. Rodou e tentou ripostar com a lança, mas o rebelde facilmente desviou a tentativa com uma gargalhada
de desdém, e voltou a atacá-lo, uma e outra vez, com estocadas que o obrigaram a defender e recuar, passo após passo. Não tinha qualquer ocasião de usar a lança
e nas suas mãos pouco habituadas aquela arma pouco mais era do que um peso inútil.
- Porra para isto. - Rosnou, atirando-a para o lado e desembainhando a espada. O familiar ruído do gládio a raspar, o peso e a forma daquela arma faziam-no sentir-se
como que em casa. Empunhou-a com confiança.
- Ora bem, vamos lá a ver se és assim tão teso.
Defendeu mais uma série de golpes, e assim que teve oportunidade lançou um contra-ataque, usando o escudo para atingir o adversário. O homem vacilou, expondo a guarda,
e Cato atacou, primeiro à cara e depois às pernas, rasgando roupas e carne. O outro rugiu de dor e tentou fugir, com o sangue a correr das feridas. Mas Cato não
lho permitiu; atirou-se para a frente, pondo todo o peso por trás do escudo, e chocou deliberadamente contra o oponente. Este tombou, rolando pelo chão e mal conseguindo
proteger-se com o seu próprio escudo, enquanto Cato, de pé sobre ele,
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desferia uma tempestade de golpes. Quando pensou que o inimigo já estaria atordoado perante o ataque, fez uma pausa para avaliar a situação; reparou então nas pernas
e pés desprotegidos do homem, que não cabiam por trás do escudo. Recuou um passo e dirigiu um golpe às pernas. O rebelde uivou de dor quando a espada lhe esmagou
um osso. Cato continuou a sua tarefa sanguinária até ter a certeza de que aquele adversário não causaria mais problemas, e virou-se, ignorando os gritos de agonia
do homem.
Apercebeu-se de que o combate estava a cair para o lado dos gregos. Havia poucos rebeldes ainda empenhados em enfrentá-los, e o vulto comprido, maciço e escuro da
estrutura de suporte do aríete, quase terminada, era evidente na outra ponta do recinto do templo. Cato respirou fundo e chamou.
- Arquelau! Arquelau!
- Aqui estou! - Respondeu uma figura próxima, que se dirigiu rapidamente para junto de Cato. - Vejo que ainda estás connosco, romano.
- Com efeito. - Não evitou acompanhar o sorriso divertido do grego por um instante, mas assinalou de imediato o aríete.
- Seria melhor pores os teus rapazes a tratar daquilo ali, antes que eles arranjem pessoal suficiente para lançar um contra-ataque.
- Sim, é para já. - O grego virou-se e chamou os soldados que transportavam os materiais inflamáveis. Quando o pequeno grupo se reuniu em torno dele e de Cato, avançaram
por entre os grupos de homens ainda envolvidos em combates. Foram direitos à estrutura de madeira, montada sobre sólidas rodas maciças do mesmo material. Partes
da construção já tinham sido forradas com peles e trapos amontoados, para tentar absorver o impacto de qualquer projéctil que fosse lançado das muralhas da cidadela
quando o aríete estivesse prestes a entrar em acção contra os portões. No interior da estrutura, suspenso por correntes, estava o próprio aríete, um imenso toro
com uma cabeça metálica.
Arquelau deteve-se e dirigiu-se aos homens.
- Acendam todos os incêndios que conseguirem. Quero isto tudo em chamas antes de termos de retirar.
Os mercenários largaram escudos e lanças e dispersaram-se em redor da estrutura, começando a acumular todo o combustível que encontravam junto aos pontos em que
queriam atear o fogo. Cada um deles levava uma pederneira, e depressa todos se entretinham a tentar produzir uma chama e acender uma mecha.
Enquanto Cato e Arquelau aguardavam, de armas em riste, a primeira das chamas começou a despontar e daí a pouco a área ficou iluminada pelos pequenos fogos enquanto
chispas e fumo se espalhavam pela escuridão. Por instantes Cato sentiu-se satisfeito, já que tudo indicava que a arma
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inimiga depressa se transformaria em cinzas. Mas assim que o material mais facilmente incendiável se consumiu, percebeu que havia algo de errado.
- O fogo não está a pegar. - Avançou até junto da estrutura e embainhou a espada. Apalpou o couro que cobria a madeira. - Isto está tudo húmido. Foi tudo molhado,
ensopado. - Virou-se para Arquelau. - Esqueçam a ideia de incendiar isto. Vamos mas é desfazer a estrutura.
O oficial grego concordou e passou a lança para a mão que segurava também o escudo; desembainhou a falcata e deu uma ordem aos seus homens.
- Usem as espadas! Cortem as cordas todas! E incendeiem os armazéns!
Os homens deixaram imediatamente de tentar alimentar o fogo, e atacaram as espessas cordas que sustentavam o pesado toro. O ar encheu-se dos sons das pancadas secas
das espadas contra as cordas, e Cato obrigou-se a manter a boca fechada, embora sentisse que o trabalho devia avançar mais depressa. Apercebeu-se de que a noite
estava a chegar ao fim ao olhar para o céu, que começava a tornar-se menos escuro sobre os telhados de Palmira.
O último dos inimigos tinha sido já abatido ou fugira, e não se ouviam sons de combate no recinto do templo, nem gritos de guerra ou imprecações soltas no calor
da luta. Aqui e ali um ferido gemia no solo, ou pedia ajuda em desespero. Cato avançou até à barricada destruída e tentou distinguir qualquer som que lhe indicasse
o que se estaria a passar no portão leste. Conseguiu perceber sons de combate à distância, o que o animou. Só podiam significar que Macro e os outros tinham lançado
o seu ataque, e que, com alguma sorte, já estariam no interior da cidade.
Um súbito grito de triunfo reclamou a atenção do jovem, e ele virou-se: as cordas que seguravam a parte de trás do aríete tinham sido finalmente cortadas, e o toro
tinha caído para o chão. Os homens de Arquelau lançaram de imediato um ataque frenético contra as restantes cordas. Por trás do templo, em pleno coração da cidade,
soaram cornetas de guerra, lançando notas profundas e urgentes que despertavam os rebeldes e os chamavam a encurralar e chacinar o pequeno grupo de membros da guarda
real que se atrevera a lançar aquela sortida contra o aríete, peça fundamental para o ataque à cidadela.
- É altura de nos pormos a andar daqui para fora. -• Notou Arquelau.
- Não tarda nada estão em cima de nós.
O comandante dos mercenários partilhava evidentemente esse pensamento, já que ordenou aos homens que deixassem o recinto do templo e formassem por trás do que restava
da barricada. Os homens de Arquelau deixaram o aríete e correram para a ágora. Cato fez uma rápida inspecção aos danos causados. O aríete estava dependurado de uma
única corda,
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bastante gasta pelos ataques. Havia pequenos focos de incêndio que lambiam as madeiras. Uma estimativa rápida fê-lo concluir que aquilo atrasaria os rebeldes talvez
num meio-dia. Não era muito, mas frustrava de alguma maneira os planos de Artaxes e dos seus seguidores, e faria subir o moral dos que defendiam a cidadela.
-Prefeito!
Virou-se e viu Arquelau a chamá-lo, recortado contra o cenário à fraca luz da pré-alvorada. Deixou a estrutura e correu para se juntar aos mercenários. Os sons de
combate vindos do portão oriental pareciam ter baixado de volume, e Cato desejou ardentemente que isso se devesse ao facto de Macro e toda a coluna já terem entrado
na cidade. Da direcção oposta aproximavam-se os gritos dos rebeldes, os sons das suas cornetas e dos seus tambores. Assim que o último dos feridos foi incorporado
na formação grega, o comandante deu ordens para proceder à retirada. Os mercenários marcharam em fileiras alinhadas, em passo firme, atravessando de novo a ágora,
agora a caminho dos portões da cidadela. Uma pequena unidade da guarda real mantinha-se ali, de prevenção contra qualquer ataque de surpresa dos rebeldes. Cato assentiu,
notando o facto. Era o tipo de precaução que aprovava sem reservas. Era evidente que o comandante da sintagma era um homem experiente e capaz.
Já tinham percorrido cerca de metade da distância que os separava dos portões quando os primeiros rebeldes surgiram no extremo distante da ágora. Depressa muitos
outros se lhes juntaram, surgindo de todas as ruas que davam para a praça pavimentada, e o comandante grego deu ordens para acelerar o passo. Olhando para trás,
Cato concluiu que chegariam sem problemas aos portões, já que os rebeldes ainda não tinham reunido homens suficientes para os atacar. Os portões estariam fechados
muito antes que isso sucedesse. Mas então apercebeu-se, aflito, que isso significava que também estariam cerrados quando a coluna de socorro chegasse às imediações
da cidadela.
- Arquelau! Temos que parar.
- Parar? - O grego virou-se para olhar para Cato como se este fosse um lunático. - Acenou sobre o ombro. - Em caso de não teres reparado...
- Temos que manter os portões abertos. E temos que abrir um caminho para a coluna de socorro.
Arquelau franziu o sobrolho, e depois assobiou por entre os dentes.
- Tens toda a razão. Vem comigo.
Abriu caminho por entre as fileiras até encontrar o comandante da formação.
- Senhor! - Chamou-o Arquelau. - Temos que parar.
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- Parar? - O comandante abanou a cabeça. - Porquê?
Cato chegou-se à frente.
- Temos que manter o caminho para a cidadela aberto para a coluna de socorro poder passar.
O comandante pensou uns momentos e voltou a abanar a cabeça.
- É demasiado arriscado. Temos que nos proteger. Eles terão que abrir caminho até aos portões sozinhos.
- Não! - Explodiu Cato. - Não os podemos abandonar assim.
- Lamento, romano.
- Porra, não! Ouve bem, atravessámos o deserto para vos vir ajudar. Muitos homens perderam a vida por vocês. - Cato obrigou-se a acalmar o tom de voz e lançou uma
provocação sem estrépito. - Não têm vergonha?
O comandante virou-se para ele furibundo, perturbando a marcha dos homens e obrigando-os a desviar-se dos três oficiais.
- Olha, romano, não recebo ordens tuas. Primeiro está a segurança dos meus homens, depois estão as ordens de quem me paga. Tu nem sequer constas da lista das minhas
prioridades.
Cato encarou-o com furia, enquanto tentava encontrar alguma forma de persuadir o comandante dos mercenários a mudar de estratégia.
- Olha, vocês precisam de nós. Mais um milhar de homens na guarnição pode muito bem fazer a diferença entre garantir a vossa sobrevivência até à chegada do general
Longino e do seu exército ou serem varridos da face deste mundo. E supõe que deixas a coluna entregue à sua sorte e que essa notícia chega aos ouvidos de Longino?
Achas que ele não se vingaria em ti? Seja como for, a escolha é entre ajudar os homens que aí vêm, ou a morte. - Cato esticou o braço em direcção ao portão leste
da cidade.
O comandante fez cara de poucos amigos, mas acabou por encolher os ombros.
- Prefeito, ao que parece não me deixas escolha. Seja. - Inspirou e gritou uma ordem. - Alto! Formar linha ao longo da ágora! Os feridos que voltem para a cidadela!
Os mercenários estacaram e depois, enquadrados pelos oficiais, espalharam-se pelo espaço aberto e formaram para enfrentar os rebeldes que se dirigiam contra eles.
As fileiras começaram a cerrar-se, de escudos sobrepostos, e as lanças foram empunhadas, com as hastes apoiadas na parede metálica. O comandante fez um gesto impaciente
para Arquelau.
- Pega em dez homens da fila de trás. Avança até à coluna e diz-lhes para virem o mais depressa possível. Vou manter o caminho aberto para eles por tanto tempo quanto
conseguir, mas...
Cato deu uma palmada no ombro de Arquelau antes que o outro mudasse de ideias.
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- Vamos!
O pequeno destacamento separou-se da sintagma e correu na direcção da avenida que levava ao portão leste da cidade. Um grito levantou-se da massa dos rebeldes quando
se lançaram numa carga contra a linha dos mercenários gregos que os enfrentavam de lanças aperradas. Cato ignorou-os, continuando a correr pela via que descia da
cidadela para o coração da cidade. Era larga e estava quase deserta, e à fraca luz do amanhecer podiam ser apreciados os bairros mais pobres de Palmira que a ladeavam.
Correram pela descida, de olhos atentos em busca de sinais do inimigo. A rua fazia uma curva e, ao descrevê-la, Cato avistou as familiares formas oblongas dos escudos
dos legionários que marchavam ao seu encontro. Não resistiu ao impulso de lançar um grito de alegria e agitar a espada no ar, à laia de saudação. Arquelau e os outros
seguiram-no a correr, na direcção da coluna.
Nesse momento deu-se conta da presença dos arqueiros que seguiam atrás da primeira centúria da coorte de Macro. Viu-os assestar os arcos, apontar e soltar uma revoada
de flechas.
- Abaixem-se! - Gritou para Arquelau e os outros, enquanto se agachava por trás do escudo. Os mercenários imitaram-no, à excepção de um homem que se deixou ficar
siderado, a olhar para os projécteis que vinham ao seu encontro. Um deles apanhou-o no pescoço, trespassando-lhe a garganta com um ruído húmido. Levou as mãos à
haste da seta com uma expressão de horror e tentou falar, mas o sangue invadia-lhe a boca e tudo o que saiu foi um gorgolejar.
Cato afastou o olhar e desatou a correr pela avenida, aos gritos.
- Cessar fogo! Sou eu, o prefeito Cato!
Mais setas chocaram com o pavimento empedrado e com os escudos que se mantinham na defensiva. Ouviu-se uma exalação mais profunda, e Cato voltou-se, avistando Arquelau
a cair no chão, com a haste de uma flecha a sair-lhe do corpo, mesmo por baixo do ombro.
- Parem de disparar! - Gritou, desesperado.
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Ao ouvir o grito de Cato, Macro sentiu um aperto no coração e um frio na espinha. Virou-se de imediato para Balthus e os seus homens, aos berros.
- Parem! Não disparem mais! - Fazia gestos frenéticos na direcção das diminutas figuras agachadas por trás dos seus escudos arredondados.
- São dos nossos!
Balthus baixou o arco e deu uma ordem aos seus seguidores, que imediatamente o imitaram, retirando a tensão às cordas e poupando as setas que se preparavam para
atirar. Convencido de que o perigo passara, Macro abriu rapidamente caminho até às linhas mais avançadas e correu pela encosta acima ao encontro do amigo, enquanto
berrava uma ordem para que a coluna prosseguisse a caminho da cidadela.
- Cato! Cato! Onde é que te meteste, miúdo? - Ao aproximar-se, refreou a velocidade da corrida, enquanto os recém-chegados se refaziam do ataque e espreitavam por
trás dos escudos. Um dos soldados jazia morto, imóvel, de costas no solo, com a garganta trespassada por uma seta. Outro debatia-se no solo, agarrado à haste da
flecha que lhe penetrara na perna. Um terceiro elemento tinha sido atingido no ombro, e era auxiliado por um camarada que já tinha extraído a seta.
Um rosto virou-se para ele, e à luz pálida da alvorada Macro sentiu um alívio imenso ao reconhecer o amigo. Forçou-se a soltar uma gargalhada.
- Devia ter adivinhado, um tipo como tu nunca seria atingido por aquelas flechazitas de merda.
A expressão de Cato, porém, manteve-se carrancuda.
- Uma porra de um milagre, é o que é, que alguns de nós ainda estejam de pé.
- Bom, estávamos à espera de tudo menos de encontrar amigos antes de chegar à cidadela. - Disse Macro, enquanto menosprezava o assunto com um gesto vago da mão.
- E seja como for, no escuro é difícil distinguir quem são os inimigos, como bem sabemos todos.
Cato encarou-o friamente, e Macro desejou com todas as suas forças não ter pronunciado aquelas palavras.
- Cato?
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Avançou e preparou-se para dar uma ajuda com o homem que Cato tentava amparar.
- Eu pego-lhe pelo outro lado.
- Não, espere.
Mas Macro já tinha colocado a mão sob o sovaco do outro e tinha-lhe dado um valente puxão, para o levantar. O mercenário ergueu-se com um longo gemido de agonia,
e só então Macro reparou que boa parte da haste da seta ainda se mantinha presa na ferida.
- Epá, desculpa lá. Daqui não vi isso.
Os olhos do homem reviraram-se, e ele cerrou os dentes num esforço para combater a tremenda dor que lhe tolhia o ombro e não desfalecer.
Cato abanou a cabeça.
- Bem jogado, senhor.
- Só estava a tentar ajudar. - Justificou Macro, num tom magoado. - Bom, mas afinal como é que estão as coisas? E o que raio fazes tu vestido com esses trapos?
- Dificilmente teria conseguido entrar em Palmira com aquela tralha toda, não lhe parece? - Cato afastou o olhar, enquanto continuava a ajudar Arquelau. - E depois,
queria ter a certeza de que estava por perto para ajudar a coluna a chegar à cidadela em segurança.
Macro sentiu-se profundamente comovido ao perceber que o amigo estivera preocupado com a sua segurança, mas depressa essa sensação foi substituída pelo embaraço.
Esforçou-se por afastar aqueles sentimentos, antes que Cato se apercebesse da sua momentânea emotividade. Virou-se, dando ordens para que a coluna se apressasse,
e por fim decidiu-se a voltar a encarar o jovem.
- Estes teus gregos parecem tesos. Espero que haja mais como eles lá dentro da cidadela.
- Não são os meus gregos. Estes tipos estão sob o comando de Arquelau. - Fez um aceno de cabeça na direcção do homem que continuava a auxiliar.
- Então, Arquelau? Muito prazer. - Macro esticou a mão, mas o grego, ainda de dentes cerrados, deitou um olhar à ferida que o afligia e voltou a olhar para o romano
com as sobrancelhas arqueadas.
- Ah, pois. Desculpa lá. - O centurião fez um sorriso amarelo. - Seja como for, prazer em conhecer-te.
Cato resmungou debaixo do peso do grego.
- Bom, agora que as formalidades estão cumpridas, vamos mas é par-a a cidadela.
- Sim, claro. Esses homens podem juntar-se à nossa formação.
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Macro olhou ao longo da rua, ao escutar o som dos combates na ágora. - O que é que se passa lá para a frente?
- A guarda real mantém os portões da cidadela abertos, à vossa espera.
- Explicou Cato. - Temos que nos apressar. Não lhes será possível aguentar os rebeldes por muito mais tempo.
A coluna continuou a subir a rua, em direcção aos sons de combate. Quando alcançaram a ágora, Macro olhou para a direita e percebeu imediatamente que a linha de
mercenários gregos estava a ceder perante a constante pressão do inimigo, protegido por uma muralha de escudos. Das muralhas da cidadela jorrava sobre a horda rebelde
uma barragem ininterrupta de setas, dardos e mísseis de balista, diminuindo o número dos que atacavam os gregos.
- Continuem a marcha! - Gritou Macro aos homens, que tinham abrandado para apreciar o espectáculo. - Porra, não estamos no circo! Toca a mexer!
A coluna apressou-se em direcção aos portões abertos; quando os alcançaram, Macro manteve-se de lado a incitar os homens. Cato deixou Arquelau aos cuidados de dois
dos seus homens, para que o levassem ao hospital, e juntou-se a Macro. Quando todos os legionários tinham entrado, foi a vez dos cavaleiros: primeiro Balthus e os
seus seguidores, depois os esquadrões montados da Segunda Ilírica. À frente da infantaria auxiliar, que fechava a coluna, vinha o centurião Parmenião. Ao reconhecer
Cato, sorriu e saudou-o.
- É bom vê-lo de novo, senhor.
- A ti também, centurião. Que tal se portaram os homens?
- Não tivemos problemas, senhor. Os rapazes da Décima fizeram quase todo o trabalho. Tomaram o portão e abriram caminho por entre os rebeldes. - Olhou de relance
para Macro e continuou num tom semi-elogioso. - Fizeram um excelente trabalho, senhor.
Macro encolheu os ombros.
- Evidentemente; são legionários. Mas a malta da Segunda Ilírica teria feito exactamente a mesma coisa. - Comentou, com todo o tacto. - E tivemos a ajuda de Balthus
e dos seus homens. Um bom trabalho de equipa, diria eu.
Cato olhou-o e sorriu.
- Ora bem, aí está um verdadeiro diplomata.
- Diplomata? - Macro franziu o cenho. - Vai-te lixar, sim? Deixo isso para os aperaltados. Faltam-me a língua suave e o jeito para lamber cus.
Cato soltou uma gargalhada.
- Aí está uma imagem tenebrosa, impossível de imaginar.
Macro deu-lhe um murro amigável no ombro.
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- Bom, está bem. Mudemos de assunto, sim? Este não é o tempo nem o lugar para conversas espirituosas.
- Muito bem, senhor.
Macro preparava-se para replicar quando se ouviu um grito entusiasta nas fileiras dos rebeldes. Os três oficiais viraram-se mesmo a tempo de ver como o flanco direito
da linha dos mercenários ruía perante o assalto incessante dos inimigos. Já alguns tinham conseguido penetrar as linhas dos defensores, e continuavam a alargar a
brecha. Muitos outros concentravam os esforços naquela zona, e Cato apercebeu-se de que aquele contingente da guarda real corria o sério risco de se ver cercado,
subjugado e destruído. O experiente olho de Macro avaliou a situação num relance.
- Cato, pega nos teus homens e fecha aquela brecha. Imediatamente.
- Sim, senhor. - Cato assentiu e correu rapidamente alguns metros para se colocar ao lado da coluna, que continuava a encaminhar-se para os portões. - Segunda Ilírica!
Alto!... Direita, volver!
Os meses de aturado treino a que Macro e Cato tinham sujeitado os homens mostraram a sua utilidade quando a coorte se transformou de coluna em linha no espaço de
poucos segundos. Cato fez uma pausa para respirar e emitiu nova ordem.
- Abram alas, a meia centúria!
Os homens moveram-se de forma a criar espaços entre as linhas e, quando a manobra foi completada, Cato empunhou a espada e agitou-a na direcção da ameaçada linha
grega.
- Avançar!
A Segunda Ilírica avançou em boa ordem pela ágora, aproximando-se dos mercenários, com a disposição das linhas a ser mantida pelos oficiais. O comandante da sintagma
olhou para trás e compreendeu que os auxiliares vinham em seu auxílio. Notou as brechas na sua linha e percebeu de imediato a intenção de Cato. Virando-se para os
seus homens, levou a mão em concha à boca e ordenou.
- Retirar! Recuar para a cidadela!
Os mercenários começaram a afastar-se dos rebeldes, usando as lanças para manterem uma distância segura para a massa dos inimigos. Assim que se viram com algum espaço,
alguns correram para junto dos homens de Cato, pondo em risco os mais lentos, já que as linhas se desfaziam rapidamente e os rebeldes se preparavam para tirar vantagem
do facto. Um grupo de gregos viu-se assim cercado e atacado de todos os lados; os homens, de costas com costas, tentavam desesperadamente bloquear os golpes dos
inimigos. Era porém inevitável que uma qualquer estocada acabasse por encontrar um alvo, e assim que algum deles era tocado e cambaleava, ferido, era imediatamente
seleccionado para um impiedoso ataque concentrado
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de espadas e lanças até tombar pelo solo. Os mercenários continuaram a recuar na direcção da linha romana, passando pelas aberturas que esta proporcionava. Mais
uma vez, Cato empunhou a espada e juntou-se a Parmenião no centro da linha de combate. Enquanto avançavam sobre as lajes do pavimento, Cato olhava para ambos os
lados, tentando descortinar o momento exacto para emitir a próxima ordem. Quando por fim o último dos gregos alcançou a segurança por trás das linhas romanas, gritou.
- Cerrar fileiras!
Os homens da segunda linha avançaram rapidamente para cobrir as aberturas na formação romana, contra a qual já corriam os rebeldes.
- Escudos à frente! - Ordenou Cato mesmo antes do impacto, e de imediato os escudos dos auxiliares foram colocados de forma a oferecerem à horda inimiga nada mais
do que uma parede de bossas metálicas reluzentes. As linhas aguçadas das espadas que ocupavam os interstícios da muralha de escudos faiscaram brevemente. Perante
tal visão os rebeldes hesitaram, e a carga perdeu todo o ímpeto. As duas linhas chocaram num clamor de escudos a embater, espadas a abaterem-se sobre madeira coberta
por couro, e lâminas a cantarem em tons metálicos enquanto deslizavam sobre outras lâminas. Cato encolheu-se por trás do escudo que lhe fora emprestado, e firmou
as pernas. Um golpe ressoou no rebordo da protecção e a espada responsável pelo som deslizou até lhe bater no capacete. Por momentos Cato viu tudo branco, e teve
que piscar os olhos para recobrar o ânimo; lançou a espada para a frente sem perceber bem contra o quê. Não se deu nenhum contacto, e recolheu o braço antes que
algum rebelde se lembrasse de lhe retalhar a pele exposta. Por todo o lado os homens grunhiam com o esforço, tentando atingir o inimigo; alguns lançavam gritos de
guerra a altos berros, outros apenas insultos ou desafios. E no meio de tudo isso, já se ouviam as lamentações e gemidos dos feridos e moribundos. Cato concentrou-se
em manter a sua posição na frente da coorte, sabendo perfeitamente que enquanto a linha se aguentasse a Segunda Ilírica não soçobraria, por muito díspares que fossem
os números.
A carga dos rebeldes tinha ainda assim interrompido o avanço romano, e agora combatiam a pé firme, usando os escudos para agredir qualquer inimigo que se aproximasse
demasiado e golpeando com os gládios assim que dispunham de uma oportunidade. A luz ia aumentando, e foi assim que Cato viu uma lâmina a rebrilhar sobre o escudo
e por instinto puro ergueu a sua para aparar o golpe. O pesado gume de uma falcata embateu-lhe na espada curta, forçando-o a recuar. Sentiu o golpe por todo o braço,
e teve que fechar o punho com toda a força para manter a arma sob controlo. A falcata subiu de novo" acompanhada por um rosnar vitorioso do rebelde que a empunhava.
Mas desta vez Cato conseguiu usar o escudo, colocando-o
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em posição de interceptar o golpe, enquanto com a outra mão fazia a espada descrever uma curva por baixo, tentando atingir a perna mais avançada do adversário.
Teve êxito, embora ao mesmo tempo o poder do choque da falcata no escudo o forçasse a recuar, e a ajoelhar-se. Teve contudo a satisfação de ouvir o grito de dor
e raiva do inimigo, percebendo que o seu ataque lhe tinha rasgado a perna profundamente, cortando os músculos até ao osso. O homem vacilou e sucumbiu, caindo no
chão e largando a arma, preocupando-se apenas com uma vã tentativa de estancar o sangue com as duas mãos. Mas logo outro rebelde ocupou o seu lugar à frente de Cato,
e o primeiro desapareceu de vista.
Uma mão pegou no braço de Cato, levantou-o e puxou-o para a formação romana. Cato olhou para cima e apercebeu-se de que tinha sido Parmenião a intervir.
- Prefeito, está ferido?
- Não.
Parmenião acenou satisfeito, e inclinou-se de imediato, quando uma lança trespassou o espaço onde estivera a sua cabeça no momento anterior. Cato atacou a haste,
obrigando-a dirigir-se para o solo, e depois feriu a mão que a segurava, esmagando ossos e rasgando tendões, até que a lança caiu dos dedos destroçados do rebelde.
- Recuem! - Ordenou Cato. - Centurião, marca a cadência.
- Um! - Berrou Parmenião, e a coorte recuou um passo. - Dois! Um! Dois!
A Segunda Ilírica recuou em bom ritmo para a cidadela, e Cato furou por entre os homens até se ver junto ao porta-estandarte. Uma retirada era das manobras mais
complexas de efectuar em boa ordem. Se a formação vacilasse ou se rompesse, os rebeldes palmirenses destroçá-los-iam com toda a facilidade. Cato viu que os últimos
mercenários já tinham entrado pelos portões e que só Macro se mantinha naquela zona sob o maciço arco nas muralhas, fazendo-lhe sinal para entrar também. Ao seu
lado, Parmenião continuava a marcar a cadência e a coorte recuava sem hesitações. O flanco esquerdo estava já protegido pelas muralhas, de onde continuavam a chover
projécteis sobre os rebeldes. Mas o direito, desprotegido, teria que desfazer a linha para continuar a recuar, e os rebeldes não deixariam de aproveitar a oportunidade
para concentrar os seus ataques nessa zona e tentar cercar os soldados romanos como tinham feito aos mercenários gregos.
- Parmenião! A mim!
Assim que o seu adjunto se aproximou, Cato indicou-lhe o flanco direito.
- Vou tomar o comando directo da centúria que ocupa o flanco.
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Assim que a ponta esquerda da linha chegar aos portões, manda-os entrar, uma centúria de cada vez. Eu protejo-vos até chegar a minha vez.
- Sim, senhor. - Parmenião acenou em concordância. - Boa sorte, senhor.
- Bem vou precisar.
Correu pela retaguarda da coorte até chegar junto à primeira centúria, composta por homens escolhidos a dedo. O comandante, centurião Metelo, saudou Cato quando
este o alcançou.
- Um trabalho duro, este, senhor.
- E mais duro vai ficar. - Cato lançou um sorriso determinado. - Vamos proteger a entrada das outras centúrias. Quando der a ordem, quero uma formação em cunha.
Vamos recuar até ao portão e aguentar a posição até que o resto da coorte tenha entrado.
- Compreendido, senhor. - Retorquiu o centurião, calmamente. - Os meus rapazes não o vão deixar ficar mal.
Cato sorriu.
- Eu sei.
Olhou em redor e notou que os últimos dos feridos, bem como as tropas montadas que os protegiam, já atravessavam os portões, enquanto os auxiliares continuavam a
aproximar-se. Tinha chegado o momento da primeira centúria abandonar a relativa protecção dos edifícios à direita, dando oportunidade aos rebeldes para a cercar.
Cato acenou ao centurião Metelo.
Dá a ordem.
Metelo encheu os pulmões e gritou.
- Primeira centúria, em cunha! - Fez uma curta pausa, contando até três em surdina, e urrou. - Executar!
De imediato, as secções da centúria reorganizaram-se para formar as três faces da cunha, cobertas de escudos. Os rebeldes aproveitaram o espaço deixado vazio, e
rodearam a centúria de Metelo, golpeando e atacando os escudos.
- Primeira centúria! Avançar para o portão!
Metelo manteve a cadência e a cunha foi atravessando a ágora, rodeada pelos rebeldes, que gritavam de excitação e triunfo, como predadores que adivinhavam uma captura
fácil. Tal como Cato previra, a pressão sobre as outras centúrias diminuiu, e todas foram retirando sem grandes problemas, recolhendo ao interior da cidadela, enquanto
o inimigo concentrava a sua fúria na unidade que lentamente tentava atravessar a turba. Espreitando por entre as fileiras dos seus homens, Cato reparou que a maior
parte dos rebeldes que os rodeavam usava equipamento ligeiro. Até àquele instante, só um punhado das forças regulares do príncipe Artaxes se tinha juntado à refrega,
mas nesse instante ecoou uma nota na ágora e Cato virou-se, a tempo
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de ver surgir uma coluna de soldados na outra extremidade do espaço aberto. Começaram imediatamente a correr na direcção do combate que se travava à frente dos
portões.
- Temos que acelerar o passo. - Decidiu. - Metelo!
- Já os vi, senhor. - Respondeu o outro, e subiu o ritmo com que marcava o andamento. - Um!... Dois!
Já não estavam a mais de cinquenta passos dos portões. Macro já tinha passado para o interior da cidadela, e Cato avistou a crista transversal do capacete do amigo
no meio da densa formação de legionários do lado de dentro da cidadela. Nas muralhas, os arqueiros tinham dedicado atenção à coluna de inimigos que irrompera na
ágora. As escuras linhas de setas em voo tombavam sobre as lajes ou cravavam-se em escudos, e só por acaso uma delas abatia um dos soldados que corriam para impedir
a retirada dos últimos romanos no exterior da cidadela.
A pressão da densa massa de homens em torno da cunha romana já estava a cobrar o seu preço, e os auxiliares começavam a abrandar o avanço enquanto continuavam a
usar escudos e espadas contra os inimigos que se acotovelavam para os tentar abater. De súbito, um dos rebeldes, mais audacioso, agarrou a orla superior do escudo
de um dos homens perto de Cato. Antes que o auxiliar conseguisse decepar-lhe os dedos, o outro empurrou o escudo para baixo com toda a força, fazendo o rebordo inferior
embater nas canelas do soldado. O homem grunhiu de dor e, nesse momento de hesitação, em que tinha a parte superior do corpo exposta, outro rebelde atacou-lhe a
garganta com uma lança. A ponta da arma rasgou o lenço que usava ao pescoço e trespassou-lhe a carne, saindo junto à guarda do capacete. Enquanto o soldado tombava
de joelhos, o homem que o matara tentou saltar para a brecha.
- Não, nem penses nisso! - Gritou Cato, e deu os poucos passos que o separavam do rebelde, pondo todo o peso por trás do escudo no instante em que uma lança resvalou
sobre a superfície encurvada; Cato chocou com o homem, lançando-o aos tropeções para o meio da massa inimiga. O jovem deteve-se, reformando a linha ao ocupar a posição
do soldado abatido. O coração rugia-lhe, batendo como um tambor acelerado. Gritou.
- Continuem! Se pararmos, morremos todos!
Os homens que formavam a cabeça da cunha empurraram, usando os escudos e as espadas curtas para abrir caminho. Deram talvez uns dez passos antes de voltarem a ser
detidos, mesmo à beira dos portões, no instante em que os recém-chegados soldados de Artaxes começaram a abrir caminho por entre a turba de rebeldes para chegar
ao corpo-a-corpo com os romanos. Nesse momento, Cato percebeu com absoluta certeza que a primeira centúria nunca alcançaria a cidadela. Lançou um golpe com o
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escudo, e afastou os inimigos mais próximos ao fazer a espada descrever um arco assassino, enquanto espreitava para os portões, ali a tão poucos passos de distância.
Ainda estavam abertos, e já havia alguns rebeldes a olharem naquela direcção, pressentindo uma oportunidade única de penetrar na cidadela.
- Fechem os portões! - Gritou Cato com todas as forças, de tal forma que o grito lhe arranhou a garganta. - Macro, salve-se! Feche os portões!
Uma pancada no escudo fê-lo cambalear e recuar; então, uma calma gelada tomou conta do seu ser, e resolveu simplesmente matar tantos inimigos quantos pudesse antes
de ser abatido.
- Filhos da puta! - Rosnou entredentes. A mão cerrou-se em torno do punho da espada, e ele lançou-se para a linha da frente, desferindo golpes em todas as direcções.
Encheu os pulmões e soltou um brado. - Segunda Ilírica! Segunda Ilírica! - Os homens que o rodeavam imitaram-no, e o grito depressa se propagou a toda a centúria.
A pressão inimiga vinha agora de todas as direcções, e a cunha romana viu-se transformada numa oval em torno do estandarte; nessa altura, para piorar as coisas,
os soldados regulares da força rebelde entraram na refrega. A vantagem do número estava agora claramente do outro lado, e as baixas entre os auxiliares começaram
a aumentar. Viram-se obrigados a recuar, pisoteando os corpos dos seus próprios camaradas caídos, cerrando fileiras, respirando com dificuldade, as pernas e braços
a arder de exaustão, tentando limpar o sangue que lhes manchava as faces, e passo a passo cedendo o terreno ao inimigo avassalador.
Cato sentiu um golpe e uma sensação de dor no braço que segurava o escudo, e vislumbrou uma lâmina que recuava depois de o ter atingido no braço, mesmo abaixo da
cota de malha. Cerrou os dentes e soltou um profundo rugido de dor e raiva, movendo-se rapidamente para o lado enquanto fazia descer a espada com um poder selvagem
sobre a falcata do adversário, fazendo-a soltar-se-lhe das mãos. Mudou de direcção e lançou a espada sobre o peito do homem, desfazendo-lhe a túnica e a pele, e
deixando-lhe na carne um rasto vermelho.
Ouviu um grito vindo do portão enquanto recuava de escudo descaído, já que as suas últimas reservas de força no braço esquerdo se tinham esgotado completamente.
Olhou em redor e avistou uma densa coluna de legionários a sair pelos portões da cidadela. À cabeça vinha Macro, soltando um grito de guerra. Os legionários, com
o seu equipamento pesado, varreram sem dificuldades os rebeldes que tentaram barrar-lhes o caminho junto aos portões e foram abrindo uma senda por entre a densa
massa de inimigos que rodeava o que restava do grupo de auxiliares. A ferocidade do ataque
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surpreendeu os rebeldes, e Cato aproveitou a falta de reacção destes para congregar os seus homens.
- A mim! Por aqui! - Baixou a espada e lançou o escudo contra os poucos inimigos que o separavam da coluna de Macro. Os auxiliares lançaram um brado geral de esperança
e ânimo recobrado, e seguiram-no, atacando sem cessar e prosseguindo na direcção dos seus camaradas da legião. Cato atingiu mais um rebelde com o escudo, lançando-o
pelo solo, e logo a seguir deparou-se com as costas de outro inimigo. Usou a espada para o golpear por baixo do ombro, sem hesitar. A lâmina penetrou no momento
em que a ponta de outra espada surgia nas costas do homem, no meio de uma mancha de sangue. Cato libertou a espada e o rebelde caiu, arrastando com o seu peso o
outro gládio, pertencente a Macro, que surgiu à vista do amigo salpicado de sangue, de olhos arregalados e a sorrir como um louco.
- Ora cá estás tu! Vá, miúdo, manda os teus homens entrarem. Nós tratamos disto.
Cato anuiu e ordenou aos seus homens que seguissem, enquanto os legionários limpavam o terreno e mantinham o inimigo à distância. Os auxiliares exaustos tropeçaram
pelos portões adentro e deixaram-se cair no solo ou dobraram-se sobre si mesmos junto às paredes. Cato foi o último a entrar, e ficou a ver como os legionários recuavam
em boa ordem, embora fortemente pressionados pelos rebeldes, exasperados ao ver que a presa lhes escapava, e soltando gritos de ódio e frustração. Os legionários
retiraram, passando sob o arco nas muralhas, e o choque das espadas ressoou claramente nas pedras em volta.
- Preparem-se para fechar os portões! - Gritou Macro sobre o ombro, e o grupo de legionários que esperava junto às portadas começou a empurrar as pesadas e sólidas
tábuas com os ombros, apoiando-se nas botas que se firmavam contra as lajes. Por fim, Macro e os últimos dos legionários entraram na cidadela, e o centurião deu
a ordem.
- Fechem os portões!
Com um novo grunhido de esforço, os legionários fizeram força e as portas continuaram a rodar nas dobradiças que gemiam. A abertura foi-se reduzindo, e por fim só
Macro estava à frente dela, golpeando os mais próximos dos rebeldes, e gritando obscenidades, insultos e desafios. Cato temeu que o amigo acabasse por ficar entalado
entre as portas, pelo que guardou a espada e correu para o puxar pelo cinto com todas as forças. Distribuindo espadeiradas pelo ar enquanto era forçado a recuar,
Macro gritou.
- Foda-se! O que é que estás a fazer? - Precisamente nesse instante as portas encostaram-se com um baque, e os legionários imediatamente colocaram a pesada tranca
no lugar.
Os gritos dos rebeldes diminuíram de intensidade de imediato,
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enquanto os romanos tentavam recuperar o fôlego. Por fim, Cato lembrou-se de largar o escudo, que caiu no solo com estrépito. Largou também o cinto de Macro, que
se virou para ele e soltou um enorme suspiro.
Encararam-se em silêncio por momentos, e depois largaram às gargalhadas de surpresa e pura alegria por terem sobrevivido. Macro embainhou a espada e espetou um polegar
por cima do ombro na direcção dos portões.
- Bom, correu tão bem como seria de esperar.
Cato sorriu, mas de imediato tomou consciência dos sobreviventes da centúria de Metelo que o rodeavam, exaustos, feridos, ensanguentados, tão derreados que mal se
tinham em pé.
- Podia ter sido pior, sim. - Concordou serenamente.
- Pois. - O sorriso de Macro também se apagara. - Mas conseguimos. E agora que cá estamos, as coisas estão um bocado piores para os lados do príncipe Artaxes. -
Os olhos do centurião repararam no braço de Cato, riscado por linhas de sangue que lhe pingava dos dedos. - É melhor ires tratar disso. Antes de irmos falar com
o embaixador romano.
- Sim, vou já. Assim que os meus feridos forem levados para o hospital. - Antes de se virar para dar as ordens necessárias, Cato fez uma pausa e olhou intensamente
para Macro. - Por que é que o fez?
- Fiz o quê?
- Ir salvar-nos naquele momento.
Macro tentou aligeirar a resposta.
- Ora, assim como assim, já temos poucos homens. A última coisa de que eu precisava era perder uma boa centúria, mesmo que de auxiliares. Foi por isso. E aliás,
para que é que servem os amigos? Terias feito o mesmo por mim.
Cato assentiu, mas não reprimiu um sorriso quando recuou um passo e fez uma careta perante o odor que se exalava das roupas do amigo.
- Mas se não limpar essas roupas, eu por mim pensava duas vezes antes de retribuir o favor.
- Olha a piadinha... Vê lá se te caem os dentes. Vai mas é ao hospital, antes que arranjes umas feridas novas.
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O hospital estava repleto de feridos. Até os corredores se encontravam pejados de homens encostados às paredes, sentados ou mesmo deitados sobre o solo nu. O pequeno
punhado de enfermeiros via-se submerso no número de baixas sofridas pela guarda real e pela coluna de socorro. O médico da legião avaliava cada homem que lhe era
apresentado, e os que eram considerados para lá de qualquer esperança de auxílio eram levados pelo pátio para uma pequena cela a um canto. Enquanto ajudava um dos
seus homens a deitar-se no solo para ser examinado pelo médico, Cato acenou na direcção da morgue improvisada.
- O que lhes acontece ali?
O médico lançou-lhe um olhar de aviso, ao mesmo tempo que res-
- Os homens são aliviados do seu sofrimento.
- Oh... Estou a ver. - Perturbado, olhou para o ferido. A investida de uma lança tinha encontrado um ponto fraco na cota de malha, e tinha-lhe trespassado o estômago.
O fedor das entranhas do homem, reviradas e expostas, subia em revoadas, provocando agonias em Cato. Os olhos do homem estavam cerrados, e ele gemia continuamente
enquanto apertava a ferida com as duas mãos. Cato virou-se para o médico e apercebeu-se do breve lampejo de resignação e pena que lhe passou pela face antes de voltar
a falar em tom suave.
- Acredite, senhor, não sentem qualquer dor, e depressa tudo passa.
Cato não se sentiu de forma alguma reconfortado, e levantou-se e afastou-se alguns passos do moribundo, sentindo-se impotente e envergonhado. O médico chamou alguns
dos homens designados para transportarem macas e indicou-lhes o ferido.
- É um dos casos especiais. - Disse, sem deixar transparecer emoção, antes de se debruçar sobre o homem e lhe dar um aperto amigável no ombro. - Vão tratar de ti,
meu amigo. Poderás descansar, e as tuas dores depressa serão esquecidas.
Levantou-se, e deixou que os improvisados enfermeiros transferissem
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o homem para uma maca, em que pegaram e levaram dali. O médico virou-se para Cato e examinou a ferida no braço do jovem.
- Deixe-me ver isso.
- Não é grave. - Respondeu Cato, alarmado. - Uma ferida superficial, nada mais.
- Dir-lhe-ei se assim for. Fique quieto e deixe-me ver.
O médico puxou a manga da túnica e da cota de malha para cima até ao ombro, e examinou detalhadamente a ferida, apalpando-a cuidadosamente. Cato cerrou os dentes
e olhou em frente até que o médico lhe largou o braço.
- A ferida está limpa. Depois de suturada, acabará por sarar.
- Suturada?
- De levar uns pontos. - O médico deu-lhe uma gentil palmada no ombro e apontou um quarto ao fundo do corredor. - Ali. Está lá um muito interessante membro do meu
pessoal que tratará de si.
- Já nos conhecemos. - Resmungou Cato.
- Óptimo. Não se deixe impressionar por ser uma mulher. Pelo que tenho ouvido, tem sido mais útil do que uma dúzia de enfermeiros.
- Seja. - Cato acenou ao médico, que se aprestou a atender novos pacientes. Seguiu pelo corredor, um tanto apreensivo perante a perspectiva de novo duelo com a filha
do embaixador e a sua língua afiada. Quando chegou à porta do quarto, a claridade da manhã entrava pelas duas janelas alpenduradas nas paredes e banhava o interior
numa luz dourada e doce. Júlia aplicava cuidadosamente uma ligadura à volta da cabeça de um auxiliar.
- Já o atendo. - Disse em tom fatigado, sem se virar. - Espere à porta, por favor.
Cato ficou onde ela lhe dissera, chateado pela demora. Precisava de se juntar a Macro e de ir falar com o embaixador. Além de que se queria demorar o menos possível
na companhia daquela insuportável mulher. Tinha todos os atributos típicos da sua classe: altiva, arrogante e segura de que seria obedecida de imediato, qualquer
que fosse o seu capricho. Era tentador detestá-la logo à entrada. Cato inspirou longamente para se acalmar, entrou no quarto e sentou-se no banco junto à porta.
A filha do embaixador continuou sem levantar os olhos da tarefa a que se dedicava, dando um nó na ponta da ligadura.
- Pronto! - Deu um passo atrás ao dirigir-se ao soldado. - Terás que descansar um ou dois dias, e pronto.
O auxiliar riu-se.
- Senhora, muito apreciaria essa possibilidade. Mas duvido que o prefeito me dê esses dias. É um tipo duro.
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Duro? - Júlia sorria. -Ele?
- Sim, senhora! Desde que deixámos Antióquia que nos tem feito andar a toque de caixa. Tem um aspecto inocente, mas lá no fundo é um bom filho da...
Cato limpou a garganta de forma audível, fazendo com que os dois se voltassem para ele. O soldado colocou-se imediatamente de pé, em sentido, de olhar fixo num ponto
abstracto algures sobre a cabeça de Cato. A boca do homem abriu-se e fechou-se, mordendo os lábios enquanto esperava pela admoestação que adivinhava ir abater-se
sobre ele. Cato olhou-o fixamente, sem mostrar qualquer expressão. Depois desviou o olhar para a jovem.
- Este homem já está despachado?
- Sim, prefeito Cato. A questão é: na sua opinião, ele está pronto para o serviço?
- É um soldado, e cumprirá as missões que eu lhe atribuir, senhora.
- Mas não antes de estar em condições para tal, por certo?
Cato franziu o sobrolho.
- Essa é uma decisão que me pertence. Soldado, estás dispensado. Junta-te à tua centúria.
- Sim, senhor. - O auxiliar fez a saudação e marchou para fora do quarto, desaparecendo da vista do seu comandante a toda a brida. Depois de ele sair, Cato voltou
a sentar-se no banco. Júlia contemplou-o por momentos, e então demonstrou a sua impaciência ao colocar as mãos na cintura.
- Bom, o que foi agora?
- Ferimento de espada. - Cato assinalou o fio de sangue que lhe corria pelo braço.
- Venha para aqui, então. - Replicou, de forma pouco amigável. - Para a luz, onde se consiga ver alguma coisa. Vá, prefeito, não me faça perder tempo. Há outras
pessoas que precisam da minha atenção.
E muito bom proveito lhes faça, reflectiu Cato, irritado, enquanto se punha de pé e atravessava o quarto. A filha do embaixador pegou-lhe no cotovelo e fê-lo pôr-se
em posição, sob a faixa de luz que vinha da janela. Fez uma rápida inspecção à ferida.
- Parece portanto que está decidido a ficar sem este braço, um bocadinho de cada vez.
Cato cerrou os lábios, e os vincos na sua testa aprofundaram-se. Júlia olhou nesse instante para o seu rosto, e o jovem apercebeu-se de que ela combatia a vontade
de rir. Zombava dele. Fungou, cheio de azedume.
- Um soldado espera ser ferido, senhora. Seja um soldado comum, como o homem que aqui estava, seja um oficial. Faz parte do nosso dever. Algo a que não imagino que
uma senhora de fina extracção esteja habituada.
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As palavras tinham-lhe saído antes que se apercebesse de quão agressivo estava a ser. Os olhos de Júlia arregalaram-se por um instante e quando ela respondeu fê-lo
num tom gelado.
- Prefeito, sei muito bem quais são os meus deveres. E nestes últimos dias tenho visto mais feridas do que me quero lembrar. Apreciaria que tivesse tal facto em
mente.
Os olhos dos dois encontraram-se, e Cato dedicou-lhe o tipo de olhar duro que reservava para assustar os novos recrutas, até que Júlia cedeu e voltou a vista para
a ferida.
- É uma ferida superficial. Parece estar limpa, mas será melhor lavá-la e cosê-la.
Pegou num recipiente com água que estava sobre a mesa e tirou do interior um trapo húmido, torcendo-o para fazer sair o excesso de água. Colocou-o sobre a ferida.
- E pronto, lá vamos nós outra vez. Já conhece a rotina. Vai ser doloroso, mas o que é isso para um durão do seu calibre?
Cato enrubesceu, mas recusou-se a morder o isco.
- Tenho um relatório a apresentar ao senhor seu pai. Agradecia portanto que se despachasse e me deixasse voltar ao serviço.
- Muito bem. - Resignou-se Júlia. Preparou uma agulha e um fio e dedicou-se ao trabalho, fazendo a ponta penetrar na pele de Cato, fechando a ferida pouco a pouco,
até que só ficou uma faixa de pele arrepelada de tom púrpura, e pequenos pontos ensanguentados sob o fio escuro. Cato manteve o olhar fixo na porta e os dentes cerrados,
decidido a suportar a dor sem um queixume. Por fim, Júlia deu por terminado o trabalho, dando um nó apertado. - Aí está, prefeito.
Cato acenou à laia de agradecimento e dirigiu-se à porta, feliz por finalmente se poder pôr a léguas daquela jovem. Quando ia a sair, ela lançou-lhe uma última provocação.
- Até à próxima ferida, então.
- Hummmph. - Foi tudo o que Cato conseguiu responder enquanto saía para o corredor. Lá fora, o médico organizava um grupo de homens para ir buscar a ração diária
de água e alimentos para os feridos. Olhou para cima quando Cato se aproximou, e arqueou uma sobrancelha.
- Senhor, sente-se melhor?
- Melhor? - Cato deteve-se. - Claro que não. É uma ferida profunda, não é nenhuma porra de nenhuma constipação.
O médico não desanimou.
- Bom, mas uma mulher daquelas consegue fazer qualquer homem esquecer a dor.
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- Ah, isso sim. - Concordou Cato com um sorriso amargo. - Já nem me lembro do mal que me sentia antes.
O médico pareceu confundido.
- Não queria dizer...
Mas Cato já se afastava a passos largos, a expressão franzida numa careta enquanto contemplava a perspectiva de se ver encerrado na cidadela na companhia daquela
irritante e emproada filha da aristocracia de Roma. Como se não bastasse a altivez da atitude, ela ainda se atrevia a ter uma aparência que só podia servir para
distrair os soldados e líderes políticos encafuados na cidadela. O pensamento surpreendeu-o, mas ao analisar o assunto mais calmamente, Cato viu-se forçado a admitir
que de facto a filha do embaixador era atraente; até mesmo bela.
- Bela. - Sussurrou para si mesmo, irritado. Que importância tinha isso? Ela não passava de um factor de distracção e aborrecimento. Isso na melhor das hipóteses.
Na pior? Sentiu uma repentina leveza no coração, um tremor, e aplicou um murro na própria perna enquanto se dirigia ao encontro do embaixador.
Lúcio Semprónio levantou os olhos ao notar a entrada dos dois oficiais na pequena sala que lhe tinha sido atribuída pelo ministro do rei Vabathus. Sendo embaixador
do Imperador Cláudio, era merecedor de melhores instalações, mas a sobrelotação da cidadela significava que não havia condições para respeitar todos os protocolos.
O seu pessoal, também pouco numeroso, acotovelava-se no corredor, que lhes servia quer de escritório quer de dormitório. Macro tinha sorrido abertamente quando passara
com Cato junto aos magotes de jovens aristocratas que se viam forçados a aguentar aquelas duras condições e, pior, a partilhá-las com meros escriturários e guardas
pessoais. Far-lhes-ia bem, considerou, experimentarem por poucos dias que fosse a dureza da vida dos subalternos antes de começarem a trepar pelas fileiras da burocracia
imperial. Partindo do princípio, claro, que sobreviveriam ao cerco; este pensamento apagou-lhe o sorriso do rosto.
Dirigiram-se ao embaixador e detiveram-se.
- O centurião Macro e o prefeito Cato apresentam-se, senhor.
O embaixador acenou na direcção das cadeiras dispostas em frente à mesa que usava como secretária.
- Senhores, têm um ar fatigado. O que não me surpreende, considerando aquilo por que têm passado nos últimos dias... E noites. - Sorriu para Cato. - Os meus agradecimentos
a ambos. A chegada da vossa coluna deu um novo alento ao rei e aos seus apoiantes. Estava preocupado perante a possibilidade de eles se renderem antes que vocês
chegassem. Agora estão certos de que Roma não abandona os seus amigos. Porém... - Fez
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uma pausa e baixou a voz. - Já a chegada do príncipe Balthus pode ser boa ou má. Não é propriamente o filho favorito do rei. Essa honra cabia ao príncipe Artaxes.
- Artaxes? - Macro não escondeu a surpresa. - O rebelde? O que tomou o partido dos partos?
- Esse mesmo. - Confirmou Semprónio. - Vabathus escolheu o jovem traidor. Era cego aos defeitos que ele bem evidenciava, e apesar de notícias sobre a sua perfídia
terem chegado aos ouvidos do ministro alguns meses antes de a revolta estalar, o rei não lhes atribuiu importância, e evitou tomar quaisquer medidas contra ele.
Até mesmo quando os rebeldes avançaram, o rei recusou-se a aceitar que fosse Artaxes quem os patrocinava. Disse que ele estava por certo a ser obrigado a liderá-los
contra a sua própria vontade. Imagine-se! - Semprónio abanou a cabeça, incrédulo. - Ao que parece, há pais que são completamente cegos perante as imperfeições dos
filhos. Bom, também não é totalmente assim, de facto. O Vabathus pouca consideração tem pelo mais velho, Amethus. Não o posso censurar. É um tolo. Estúpido como
uma porta, e facilmente influenciável. Passa a vida a defender ardentemente a última coisa que alguém lhe tenha metido na cabeça. O rei até pode gostar dèle como
filho, mas há muito que deixou de pensar nele como um possível sucessor. E o mesmo se aplica ao príncipe Balthus. Ou aplicava, até ao eclodir da revolta. Agora que
Artaxes se revelou uma serpente traiçoeira, o rei vai ser obrigado a reconsiderar a sua escolha de sucessor. - Semprónio inclinou-se para os dois oficiais. - Que
impressão têm do príncipe Balthus?
Macro agitou-se, incomodado, mas resistiu ao impulso de trocar um olhar com Cato antes de responder.
- Um combatente aguerrido, senhor. Precisamente o tipo de homem de que o rei precisa neste momento.
- É agradável saber disso, nestas circunstâncias. - Semprónio voltou a recostar-se. - Ainda não o conheci. Pelo que ouvi dizer, Balthus parecia não passar de um
bêbado despreocupado. Um ocioso sem qualquer sentido do dever. Só espero que tenha mais lá dentro do que essa capacidade para combater.
- Oh, isso sim, sem qualquer dúvida. - Retorquiu Macro, ainda desconfortável. - Senhor, o príncipe mostra uma ambição preocupante.
- O que é que queres dizer?
- Quero dizer que ele quer ser o rei, suceder a Vabathus. Assim que Roma persuadir Vabathus a abdicar, depois de esmagada a revolta.
Semprónio lançou uma risada amarga.
- Tem muitas certezas, esse homem.
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Desta vez Macro não conseguiu resistir a olhar para Cato antes de prosseguir.
- Bem, senhor, ainda há mais.
- O quê?
- Bem, senhor, fizemos uma espécie de acordo com o príncipe Balthus. Em troca do seu auxílio para trazer a coluna até à cidadela, senhor.
- Um acordo?
- Sim, senhor. Prometemos que faríamos o nosso melhor para defender a sua causa quando aqui chegasse, senhor. Precisávamos mesmo da ajuda dele. Sem ele, nunca teríamos
alcançado a cidadela. Devemos-lhe as nossas vidas.
- Estou a ver. - Semprónio esfregou a face, preocupado. - E não vos ocorreu que ele estava numa situação tão má como a vossa?
- Senhor? - Macro franziu o sobrolho e voltou-se para Cato com uma expressão de espanto, enquanto o embaixador prosseguia.
- Quando a revolta estalou, o nosso amigo príncipe Balthus pode muito bem ter sentido uma enorme vontade de se juntar ao pai, para aproveitar a vulnerabilidade do
velhote. O problema era chegar cá. E então aparecem vocês, desesperados por alguma forma de auxílio, e ele vislumbra a sua oportunidade. Propõe-vos um acordo, e
vocês aproveitam. Prefeito Cato, o que foi que lhe prometeram exactamente?
Apanhado de surpresa, Cato não evitou uma expressão culpada. Durante a conversa, as pálpebras tinham começado a pesar-lhe, e teria sem dúvida adormecido não fosse
a súbita mudança de interlocutor operada pelo embaixador. Engoliu em seco e tentou rapidamente ordenar os pensamentos.
- Senhor, pouca escolha tivemos na matéria, como afirmou o centurião Macro. Ou aceitávamos o acordo que ele nos propunha, ou ele nos abandonava em pleno deserto.
Ou pelo menos...
- Pelo menos foi isso que ele quis que vocês pensassem. - Completou Semprónio. - Oh, deuses! Se bem percebo, vocês empenharam a vossa palavra em como o ajudariam
a tornar-se rei. É isso?
Macro mordeu os lábios.
- Bem, senhor, sim. Numa palavra, é isso.
- Centurião Macro. - Começou Semprónio, fazendo um evidente esforço de contenção verbal. - És um soldado. O que raio pensavas tu que estavas a fazer ao estabelecer
acordos com um homem deste género? Não é suposto fazeres mais do que treinar e combater. É para isso que te pagam. É esse o teu trabalho. Portanto, por favor, concentra-te
na liderança dos teus homens e no combate frontal aos inimigos. Deixa que sejam os diplomatas a tratar de enterrar umas facas nas costas dos outros, está bem?
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- Sim, senhor.
- Quanto a ti, prefeito Cato. Estavas a par de tudo?
- Sim, senhor. Estava presente quando o acordo foi estabelecido.
- E não tentaste intervir?
- Não, senhor. Naquele momento parecia a melhor opção. O príncipe Balthus era a nossa única possibilidade de ultrapassarmos as defesas do inimigo.
- És tão prestável como o centurião Macro.
- Sim, senhor. - Concordou Cato, humildemente.
Semprónio passou as mãos sobre a farta cabeleira, aqui e ali manchada de cinzento.
- Bom, agora não há nada a fazer. O melhor será que eu debata esta questão com o príncipe, mais tarde. Entretanto, estão terminantemente proibidos de brincar aos
políticos aqui em Palmira. Entendido?
- Sim, senhor! - Responderam os dois oficiais em coro.
- Bom, então o que temos a fazer agora é dirigirmo-nos à sala de audiências do rei. Ele convocou-nos aos três, além do que lhe resta do conselho. Quando lá chegarmos,
agradeceria profusamente que mantivessem as bocas fechadas. Deixem-me falar a mim. É uma ordem.
- Sim, senhor.
Semprónio levantou-se de súbito da cadeira.
- Então, vamos. Estou curioso para descobrir que género de homem é que é afinal esse príncipe Balthus.
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Os guardas encerraram as portas do salão de audiências real, e o estrondo ficou a repercutir-se pelas paredes. Quando se restabeleceu o silêncio, o ministro, Thermon,
levantou-se e olhou em redor, contemplando a diminuta assembleia constituída pelos oficiais romanos e pelos nobres de Palmira leais ao rei. Vabathus parecia ter
posto de lado a sua melancolia anterior, reparou Cato, e agora mostrava-se atento e altivo enquanto o seu ministro abria os trabalhos, falando em grego, de forma
a que todos pudessem entender as suas palavras.
- O rei dá-vos as boas vindas, em particular aos bravos comandantes da coluna de socorro que nos foi enviada por Roma. A chegada destas tropas reforça consideravelmente
a posição do rei, e a notícia de que um exército romano se aproxima de Palmira para esmagar a rebelião deixa o seu coração repleto de esperança. O rei está também
grato pela decisão do príncipe Balthus que o levou a tomar o seu partido no presente conflito. E aguarda que o príncipe se continue a mostrar digno da sua linhagem
em oportunidades futuras, que não faltarão por certo nos tempos difíceis que se avizinham.
Cato deitou uma olhadela a Balthus, e reparou que o príncipe se mantinha sentado, imóvel, com uma expressão de perfeita compostura, enquanto anuía quase imperceptivelmente.
À sua direita sentava-se um outro nobre palmirense, que vestia uma túnica ricamente decorada. Era magro, tinha um queixo pouco vincado e feições finas, mas não havia
como negar as parecenças com Balthus. Era então aquele o príncipe Amethus, concluiu, estudando-o enquanto Thermon prosseguia o seu discurso. Não mostrava o mesmo
aprumo do irmão mais novo, e deixava o pé esquerdo bater no solo num ritmo rápido enquanto contemplava um qualquer ponto no tecto, de boca entreaberta.
- Sua Majestade convocou este conselho para deliberar sobre as opções que se nos põem, dada a situação em que nos encontramos, aqui cercados na cidadela. Esta manhã,
depois da coluna de socorro ter chegado, recebemos o habitual apelo para que nos rendamos. Mas desta vez os rebeldes juntaram-lhe um aviso, dirigido aos nossos aliados
romanos. Todos, soldados
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ou simples civis, têm até amanhã de manhã para abandonar a cidade, ou serão executados se a cidadela for tomada. - Thermon fez uma pausa e olhou para Semprónio,
que já ajeitava a toga formal que usava para se erguer e responder; Cato compreendeu imediatamente que aquela parte da reunião tinha sido preparada de antemão. O
embaixador lançou um olhar firme em redor do salão, até se concentrar no monarca e começar a falar na forma medida e deliberada em que a maior parte dos aristocratas
romanos eram desde cedo treinados pelos seus professores de retórica.
- Majestade. - Semprónio baixou ligeiramente a cabeça na direcção de Vabathus. - É com desdém que respondo a esse aviso dos nossos inimigos. Roma é vossa aliada,
e Roma cumpre as obrigações que assume para com os seus aliados, seja qual for o custo. Falo aqui por todos os romanos presentemente na cidadela. - Fez um gesto,
como que apresentando Macro e Cato à assembleia. - Enquanto estes indómitos oficiais e os seus corajosos homens respirarem, lutaremos pela causa do rei Vabathus.
Não abandonaremos a grande cidade de Palmira à sua sorte, sejam quais forem as vis ameaças proferidas pelos inimigos de Vossa Majestade. E, todos juntos, manteremos
a cidadela em nosso poder até que o governador da Síria chegue com o seu exército e esmague os rebeldes!
Antes que Semprónio se sentasse, já outra figura se erguera, por trás do príncipe Amethus. Era um homem de aspecto poderoso, cujas finas vestimentas não ocultavam
o físico imponente e o peito largo. Inclinou a cabeça na direcção do rei e virou-se para o embaixador romano.
- Poderei então saber do nosso aliado romano quanto tempo teremos que esperar até à chegada do exército de Cássio Longino?
Semprónio permaneceu sentado enquanto respondia, no que constituiu uma clara e deliberada demonstração de desprezo pelo interlocutor.
- O comandante da coluna de socorro garantiu-me que o governador chegaria daqui a poucos dias, Krathos.
- Dias? E quantos, exactamente? - O olhar do homem concentrou-se em Macro, enquanto levantava o braço para pedir silêncio a Semprónio, que começava a responder.
- É ao centurião que ponho esta questão. Portanto, quantos dias?
Macro agitou-se na cadeira, sentindo-se desconfortável com todos os olhares em cima dele. Procurou Semprónio com a vista, e este correspondeu com um aceno e um murmúrio.
- Centurião, diz a verdade.
Macro engoliu em seco e pôs-se a pensar furiosamente, tentando calcular quanto tempo levaria o governador a concentrar as suas forças e a marchar até Palmira através
do deserto. Com toda a bagagem que decerto traria, não ia ser fácil. Inspirou profundamente e deu a resposta.
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- Pelo menos uns quinze dias. Talvez mesmo uns vinte, senhor.
- Vinte dias. - Repetiu Krathos, enfático.
Semprónio inclinou-se ligeiramente para Macro e sussurrou.
- Macro, caramba, não era preciso ser assim tão honesto. Pelos deuses!
- Vinte dias! - Krathos abriu os braços num gesto teatral. - Como poderá esta cidadela resistir por mais vinte dias?
- Já resistimos há mais tempo do que isso. - Contrapôs Semprónio.
- Podemos muito bem aguentar outros vinte dias.
- Como? - Ripostou Krathos. - A água está-se a acabar, e a comida também não é muita. Graças à chegada do príncipe Balthus e dos seus amigos, e dos nossos aliados
romanos, temos agora mais mil bocas para alimentar, sem contar com as centenas de cavalos que trouxeram com eles. Em vez de nos salvarem, estes romanos apenas contribuíram
para tornar a nossa situação muito pior! Quando o exército do governador alcançar finalmente a cidade, já há muito que teremos perecido à fome e à sede, e o príncipe
Artaxes e os seus rebeldes já se terão deleitado a brincar com os nossos ossos.
- Muito bem, então. - Interrompeu Thermon, batendo com o bastão no pavimento empedrado. - O que sugeres tu, Krathos?
- Que negociemos com os rebeldes. Que cheguemos a termos de rendição que permitam que todos os que se refugiaram na cidadela sejam poupados.
- Mesmo que isso signifique que o rei terá que abdicar? E que o tratado que estabelecemos com Roma será rasgado?
- Sim, mesmo nessas condições. - Insistiu Krathos. - A minha lealdade para com Sua Majestade é infinita, porém ele terá que aceitar que continuar, a reinar nestas
condições apenas levaria à divisão de Palmira. O mesmo sucederia se o príncipe Artaxes tomasse a cidadela e se proclamasse rei, de resto. A meu ver, só há uma forma
de pôr fim a este impasse. Temos que oferecer ao povo de Palmira um compromisso: um governante que não esteja comprometido nem com Roma nem com a Pártia. Ou seja,
temos que lhe apresentar o príncipe Amethus como novo rei. - Avançou um passo e colocou a mão sobre o ombro do príncipe. Amethus sobressaltou-se e olhou em redor,
amedrontado. Krathos sorriu-lhe, sossegando-o, ao que o filho do rei pareceu acalmar, voltando a deixar o olhar perder-se na distância.
Krathos pigarreou e prosseguiu.
- Que seja o príncipe Amethus a manter o equilíbrio de forças entre os dois impérios entre os quais estamos espartilhados. Que Sua Majestade renuncie ao trono, em
favor do seu filho mais velho e herdeiro natural. E que o príncipe Amethus traga a paz ao nosso reino.
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- Paz! - O príncipe Balthus levantou-se e enfrentou Krathos com o
desdém claramente estampado no rosto. - Com o meu irmão no trono nunca haverá paz, e tu sabe-lo perfeitamente. Amethus é um tolo. Fácil de levar. Especialmente por
ti, Krathos. É só dares um toque na trela e ele segue-te como um cãozinho amestrado. Todos o sabem. Tal como todos sabem que nos venderias ao império que mais ouro
te oferecesse!
Cato reparou que Amethus mal se mexera durante a tirada do irmão. Perguntou-se como seria possível que o príncipe ignorasse aquele chorrilho de insultos. Só a simplicidade
de espírito o podia imunizar à discussão que se desenhava.
Por momentos os olhos de Krathos dilataram-se de fúria, mas o homem forçou-se a sorrir e a sacudir a mão, retirando importância ao que acabava de ser dito.
- O príncipe esquece-se de quem é. A minha família tem apoiado o rei Vabathus e todos os seus antepassados com absoluta lealdade; estarei errado? Não aceito lições
de lealdade da parte de um homem para quem a única coisa que conta é a satisfação dos seus desejos.
Balthus avançou para o nobre, a mão à procura da espada quase por instinto, antes de se recordar que a arma tinha sido entregue aos guardas à entrada. A nenhum homem
era permitida a posse de armas na sala de audiências do rei, com a excepção do próprio e da sua guarda pessoal. Krathos recuou quando Balthus, exaltado, lhe espetou
um dedo na direcção da cara.
- És verdadeiramente o filho de um cão. - Levantou a cabeça num gesto altivo. - É ao meu pai que sou leal, e bastaria uma palavra sua para por ele lutar e morrer.
É a honra que governa a minha vida. No teu caso, é o ouro.
A expressão condescendente de Krathos endureceu. Cato reparou que as mãos do homem se cerravam em punhos, e temeu que surgissem novas divisões entre as já depauperadas
fileiras dos que se acoitavam na cidadela. Mas antes que algum dos homens avançasse para o confronto físico, o rei pôs-se de pé e soltou um brado.
- Chega! Sentem-se, os dois! Imediatamente!
Trocando um último olhar de ódio mútuo, Krathos e Balthus regressaram aos seus assentos, contrariados. O monarca olhou para ambos com cara de poucos amigos, antes
de falar de novo, em voz firme e profunda. Cato, que o tinha visto tão abatido e fatigado na noite anterior, ficou surpreso perante o poder que emanava da sua pessoa,
e a potência da voz, que ilustrava bem o homem que ele fora em tempos mais felizes.
- Não haverá quaisquer negociações com os rebeldes, que isso fique bem claro para todos. Seja como for, conheço bem o meu filho, o príncipe Artaxes. Se lhe pedíssemos
para parlamentar, só receberíamos desprezo.
202
E nunca ele aceitará Amethus como herdeiro natural do meu trono. - A voz tremeu-lhe ligeiramente ao prosseguir. - Tinha esperança que Artaxes assumisse o papel de
ministro do seu irmão, talvez de general. Em tempos prometeu tanto. Agora? Não passa de um castigo dos deuses, que existe apenas para atormentar a memória de um
velho. - O rei fez uma pausa e engoliu em seco. - Quando chegar o seu tempo, Amethus será rei.
- E eu? - Inquiriu Balthus.
- Tu? - O rei pareceu ficar surpreso. - Quando este cerco terminar, estou certo de que voltarás a ser aquilo que sempre foste: um bêbado e um irresponsável.
Os lábios de Balthus cerraram-se numa linha fina, e o príncipe agarrou com força os braços da cadeira.
- Não é justo. - Comentou Macro, num murmúrio. - O tipo é um excelente combatente.
- Calado. - Repreendeu-o Semprónio. - Nem mais uma palavra.
Macro assentiu, mas tentou fazer chegar a sua opinião a Cato com uma
troca de olhares.
Entretanto, o rei ainda contemplava o seu filho do meio.
- Se acaso estou errado quanto ao julgamento que de ti faço, meu filho, é a ti que cabe demonstrá-lo.
- Assim farei. - Ripostou Balthus, num tom gelado. - E terás que engolir as tuas palavras.
Grande parte da assembleia abriu a boca de espanto perante as temerárias palavras do príncipe, e o rei continuou a olhá-lo, as sobrancelhas fortemente franzidas.
O pesado silêncio manteve-se até que Thermon pigarreou e quebrou a tensão.
- Majestade, há ainda muitas outras coisas a discutir.
O olhar do monarca afastou-se do filho e fixou-se com ar irritado no ministro.
- Majestade, há a questão dos mantimentos... - Insinuou Thermon.
- Temos que nos debruçar sobre ela.
- Sim... Sim, temos que o fazer. - Vabathus voltou a instalar-se no seu cadeirão. - Continua.
Thermon inclinou a cabeça e virou-se para se dirigir ao resto da assembleia.
- Tal como Krathos mencionou, a nossa situação alimentar é grave. A guarnição já está a meias rações. Os refugiados mal sobrevivem com porções menores ainda. E agora
temos de facto mais bocas para alimentar. A questão é: o que podemos fazer quanto a isso?
Deu-se uma pausa enquanto os conselheiros consideravam a pergunta. Foi Balthus o primeiro a falar.
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- Evacuar os refugiados. Mandá-los de volta para a cidade.
- Não podemos fazer isso. - Retorquiu Thermon. - O mais provável é que fossem massacrados pelos rebeldes.
- Talvez o meu irmão os poupasse. - Balthus encolheu os ombros.
- E se não, bom, a morte é o que os espera de qualquer maneira. E assim podíamos ao menos poupar as rações necessárias para os soldados que defendem a cidadela e
protegem o rei. Alguém tem uma ideia melhor? - Balthus virou-se e enfrentou a audiência.
- Abater os cavalos. - Sugeriu Cato, em voz alta.
Balthus virou-se para ele e fez menção de não ter escutado bem.
- O quê?
- Abater os cavalos. - Repetiu Cato. - Consomem água de que muito precisamos, e a carne permitiria alimentar a guarnição e os civis por mais uns dias. Talvez não
os suficientes para aguentar até à chegada do governador. Mas esta medida permitir-nos-ia ganhar algum tempo.
A sugestão parecia evidente a Cato, que contudo se apercebeu de súbito que todos os nobres de Palmira o olhavam com indisfarçável horror. Inclinou-se para Semprónio.
- O que foi que eu disse?
- Por estas bandas há tendência para atribuir um enorme valor aos cavalos. - Explicou o embaixador. - Alguns parecem mesmo ter maior afeição aos cavalos do que às
próprias mulheres.
- Isso lembra-me o meu pai. - Comentou Macro a despropósito.
Cato não se deixou dissuadir. Levantou-se e ergueu a mão para tentar
apaziguar os murmúrios furiosos que eram trocados entre os nobres locais.
- Dão-me licença?
O ministro acenou, concedendo-lhe autorização para falar, e raspou com o bastão no solo para pedir silêncio aos seus concidadãos. Cato aguardou que todos sossegassem
antes de continuar.
- Não é tempo de confundir prioridades. Tudo depende de a cidadela ser capaz de se aguentar o máximo de tempo possível. Os cavalos podem significar a diferença entre
a sobrevivência e a derrota. Se mantivermos os cavalos, e eles continuarem a consumir os nossos mantimentos, só servirão para apressar a nossa derrota. Tem portanto
que ser abatidos. - Insistiu Cato. - Afinal, não passam de animais.
- Não passam de animais? - Balthus abanou a cabeça. - Talvez para vocês, romanos. Os vossos cavalos não passam de criaturas miseráveis. Se querem matar alguma coisa,
comecem pelos vossos. Nos meus não tocam.
Os outros nobres sussurraram, mostrando apoio à posição de Balthus, mas Cato manteve-se firme.
- Preferem portanto alimentar os vossos cavalos, em vez do vosso
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povo? É isso? - Abanou a cabeça. - E por quanto tempo acham que o povo vai suportar tal situação? Quando as crianças passarem fome e nada lhes acalmar o estômago
roído pela falta de alimento, acham que eles vão, por um momento que seja, partilhar dessa vossa paixão pelos belos cavalos? Far-vos-ão em pedaços. Ou tentarão,
pelo menos. E, para proteger os vossos cavalos, ver-se-ão forçados a matá-los a todos. E quando o príncipe Artaxes souber da vossa loucura, espalhará a notícia,
para que todos os homens, mulheres ou crianças, da Síria ao Eufrates, a conheçam. E não mais será visto como um rebelde, e sim como um libertador.
Fez uma pausa para deixar as suas palavras assentar nas consciências e olhou em redor do salão, notando que Macro lhe lançava um piscar de olho aprovador. Respirou
fundo para se acalmar e prosseguiu, em tom mais ameno.
- Há que sacrificar os cavalos, ou perder tudo. Mas há outra razão que justifica o abate. Será um claro sinal para todos no interior da cidadela: não haverá qualquer
fuga, nenhuma tentativa de romper o cerco e escapar para lugar seguro. Lutaremos, todos juntos, até que Cássio Longino chegue; ou morreremos, todos juntos, na defesa
da cidadela.
Voltou a sentar-se e cruzou os braços. Macro deu-lhe um toque e comentou em voz baixa.
- Bom trabalho. Aliás, fantástico. Espero bem que não estejas a pensar em mandar a carreira militar às urtigas e em te dedicares ao direito, quando regressarmos
a Roma.
- Mesmo vindo de si, Macro, esse é um comentário despropositado.
Semprónio estava atento às reacções ao breve discurso de Cato, e assentiu satisfeito, antes de se voltar para o jovem oficial.
- Parece-me, prefeito, que conseguiste convencê-los. Um apelo bastante simplista à razão e ao medo, e desprovido de floreados retóricos, mas parece ter resultado.
- Encarou Cato com atenção, parecendo reavaliá-lo.
- Há muito mais em ti do que eu suspeitava. Se sobrevivermos a isto, irás longe.
- Espero bem que sim. - Murmurou Cato. - Quanto mais longe daqui, melhor.
O rei fez um gesto na direcção do ministro, chamando-o, e os dois conversaram em voz baixa por momentos, até que Vabathus se recostou na cadeira com uma expressão
determinada, e Thermon abriu os braços para atrair a atenção dos presentes.
- Meus senhores! O rei exige a vossa atenção! Silêncio, por favor.
Quando o ambiente no salão se acalmou enfim, o rei ergueu-se e limpou a garganta antes de falar.
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- É meu desejo que todos os cavalos da cidadela sejam imediatamente abatidos. Não haverá excepções. Todos entregarão os vossos cavalos ao comandante da guarda real.
Incluindo tu, Balthus.
- A sério? - Balthus sorriu sem qualquer humor. - E o que sucederá às montadas do vosso estábulo, Majestade?
- Serão os primeiros a ser abatidos. - O rei fez um gesto na direcção de Cato. - O jovem oficial romano tem razão. Estamos todos juntos nisto. Um único destino aguarda
todos os que estão na cidadela. E se Artaxes vier a saber disto, perceberá por certo que estamos dispostos a tudo para o derrotar, ou a morrer na tentativa. É esta
a minha decisão. E agora, a audiência está terminada.
O bastão de Thermon bateu no chão.
- Todos de pé!
As cadeiras rasparam no chão quando os nobres e os romanos se puseram de pé e dobraram o pescoço. O rei levantou-se também e atravessou a sala, desaparecendo por
uma pequena porta a um canto. Thermon aguardou mais uns momentos e deu depois permissão aos outros para também saírem. Os nobres palmirenses continuaram a trocar
palavras azedas em surdina enquanto deixavam a sala, até que só ficaram os três romanos e os apoiantes do príncipe Amethus, junto ao seu eleito. Krathos olhou para
Cato com fúria.
- Podíamos ter negociado com os rebeldes. Podíamos ter salvo muitas vidas. - Sorriu sem vontade. - Podíamos até ter salvo os cavalos a que o príncipe Balthus se
mostra tão apegado. Mas agora? Agora que convenceste o rei a lutar, estamos todos condenados. Espero que estejas satisfeito, romano.
Cato manteve-se aprumado e não respondeu. Por momentos instalou-se um silêncio tenso, até que Karthos fungou com desdém e se virou para o príncipe Amethus.
- Temos que ir.
Amethus fez um vago gesto de concordância e levantou-se. Krathos indicou-lhe a porta e o príncipe para lá se dirigiu, seguido pelo seu pequeno séquito, encabeçado
pelo nobre.
- Não te preocupes com o Krathos. - Comentou Semprónio, muito calmo. - Pouca influência tem sobre o rei, ou até no conjunto da corte. Já o poder que tem sobre Amethus,
essa é outra história.
- Não estou preocupado com ele. - Retorquiu Cato, no mesmo tom.
- É o irmão que constitui a verdadeira ameaça.
- O príncipe Artaxes? - Semprónio arqueou as sobrancelhas. - Bom, isso é evidente.
- Não, não é esse. - Prosseguiu Cato. - O príncipe Balthus. Aconteça
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o que acontecer, ele nunca me perdoará por o ter afastado do pai. Temo que tenhamos acabado de fazer um novo inimigo.
- A sério? - Macro encolheu os ombros. - Nesta altura, mais um, menos um, é tudo o mesmo. - Lambeu os beiços. - Além disso, pelo que ouvi, vamos voltar a ter carne
fresca à mesa.
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A matança dos cavalos teve início pouco tempo depois; os primeiros a serem abatidos foram os da estrebaria real, tal como o rei Vabathus ordenara. Os animais eram
mantidos em posição por homens fortes que seguravam espessas correias de couro. O magarefe das cozinhas reais encarregava-se então de lhes abrir a garganta, de forma
a que o sangue fosse recolhido em grandes tinas de madeira, e pudesse mais tarde ser utilizado como espessante na papa que era todos os dias confeccionada para alimentar
os refugiados. As carcaças eram rapidamente limpas e esfoladas, e os órgãos não comestíveis eram levados e lançados para o exterior das muralhas, tendo o cuidado
de considerar a direcção do vento para que o odor da putrefacção não viesse a afectar a cidadela. Entretanto, a carne era separada dos ossos e colocada em salmoura
nas enormes talhas que para tal tinham sido preparadas e se acumulavam nas caves por baixo dos aposentos reais. Tudo o mais que se pudesse aproveitar era levado
para os caldeirões que ferviam nas casernas da guarda real.
Cato e Macro passaram o dia a tratar das acomodações para os seus homens, a preparar escalas de serviços e a proceder ao inventário do equipamento que lhes restava.
Não houve um momento em que o ar não estivesse repleto dos sons dos animais aterrados, e o cheiro a carne de cavalo a cozinhar de tal forma os atormentou que Macro,
ao fim do dia, quase tinha abandonado qualquer desejo de se refastelar com carne fresca. Quase. Quando um legionário de serviço lhes trouxe para o jantar um pedaço
de rija carne de cavalo grelhada e um jarro de vinho aguado, Macro depressa olvidou as suas queixas sobre o fedor e atirou-se à refeição, cortando um naco para Cato.
Estavam instalados numa das diminutas divisões dos estábulos reais. O odor dos ocupantes anteriores ainda se sentia no ar acre. O resto dos auxiliares e legionários
espalhava-se pelos estábulos e pelo picadeiro; a maior parte dos homens já dormia, depois de nos últimos dias terem sido levados ao limite da resistência física.
- Tiveste uma boa ideia. - Conseguiu Macro entoar, entre duas dentadas. - Já estava a ficar farto de pão duro e mais nada.
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Cato tinha pegado na adaga e cortava pequenas tiras de carne da sua porção.
- Pode ser que sim. Duvido é que me tenha tornado popular entre os nobres.
- Que se fodam. Tinhas razão. Se não conseguem ver o que é realmente importante e só se preocupam com a merda das suas propriedades, então nem as merecem. - Deu
uma risada. - Impagável, a expressão naquelas trombas. O que eu não dava para viver outra vez esse momento!
Continuou a comer, antes de olhar para Cato e voltar a falar.
- É verdade, aquilo é que foi um discurso.
Cato encolheu os ombros.
- Ora, limitei-me a dizer o que era preciso.
- Eu sei, mas o que contou foi a forma como o disseste. Por mim, nunca teria sido capaz disso. - Afirmou Macro, com sinceridade. Sentiu um aperto, ao reconhecer
aquele fragmento de inferioridade. Não tinha o mesmo jeito com as palavras que o seu jovem amigo, e nunca o teria, admitiu. Apesar de ser um bom soldado, Macro duvidava
que alguma vez viesse a ser promovido a um posto de comando importante. No seu íntimo, e tal como a maior parte dos homens das legiões, tinha a ambição de um dia
chegar a centurião-mor - o primus pilus. Muito poucos homens o conseguiam. A larga maioria era morta ou ferida e desmobilizada muito antes de reunir as condições
para poder alcançar tão grande honra. E mesmo assim, apenas homens com registos imaculados e um peito repleto de medalhas de coragem eram considerados para tal posição.
Macro reflectiu amargamente nas peripécias que lhe tinham ocorrido nos últimos dois anos, desde que ele e Cato se tinham visto enredados nos negócios de Narciso
e tinham sido persuadidos a desempenhar missões especiais para o secretário imperial. A natureza secreta desse trabalho significava que nunca seriam publicamente
recompensados pelos perigos que tinham enfrentado ao serviço de Roma. Embora as missões tivessem sido vitais, para nada contariam quando regressassem ao serviço
nas legiões.
Até lá, teria que aproveitar ao máximo o comando temporário que exercia e esperar que o seu bom desempenho fosse registado. Era a única via que tinha para marcar
pontos no caminho da promoção, reflectiu. Por outro lado, Cato, com a sua mente arguta, estava nitidamente destinado a, um dia, ser retirado da longa marcha do centurionato
e designado para o comando permanente de uma das mais prestigiadas coortes de auxiliares. Isso significaria a entrada para a ordem equestre, a segunda categoria
da aristocracia romana, e os seus herdeiros, se ele vivesse o suficiente para os produzir, poderiam almejar uma eleição para o Senado. Uma perspectiva atraente,
reconheceu Macro, enquanto observava Cato de forma dissimulada.
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Ocorreu-lhe que um dia o seu jovem amigo seria seu superior na escala social. O pensamento surpreendeu-o, e por momentos deixou que o ressentimento o dominasse.
Mas rapidamente afastou esse sentimento, fulo por ter permitido que tão estúpida ideia se lhe tivesse imposto.
Cato apanhou uma lasca de carne e colocou-a na boca.
- Seja como for, isso agora não importa. O que interessa é assegurar que conseguimos aguentar até à chegada de Longino. Se ele demorar mais do que imaginamos, matar
os cavalos não chega. Teremos que pôr em prática a ideia do Balthus.
Macro fez uma pausa para recordar esse plano, e arqueou as sobrancelhas.
- Ah, estás a falar daquela ideia de expulsar os civis da cidadela.
- Sim.
Bem, miúdo, essa é invulgarmente dura, vinda de ti.
- Não podemos fazer outra coisa. - Cato suspirou, derrotado. - Se os deixarmos ficar, acabaremos por ter que nos render por causa da fome, e Palmira cairá sob o
domínio da Pártia. O Imperador nunca o aceitará, e isso significa uma guerra onde morrerão dezenas de milhares. O sacrifício dos civis nesta altura pode ser justificado,
a longo prazo.
- Talvez. - Retorquiu Macro. - Mas há uma questão mais premente.
- Sim?
- Não convém esquecermos o que o príncipe Artaxes nos reserva, se conseguir tomar a cidadela.
- Não me esqueci disso.
Macro encolheu os ombros.
- Se tivermos que escolher entre os civis e nós, bom, para mim a questão nem se põe.
Cato não respondeu. Ainda estava a matutar na ameaça de massacrar todo e qualquer romano encontrado no interior da cidadela. Entre eles estava evidentemente a filha
do embaixador, Júlia - mas no caso dela a morte só chegaria depois de ter sido entregue aos soldados, para que se divertissem um pouco. Sentiu a fúria a crescer
dentro de si perante tal perspectiva, e notou de novo aquela ponta de afeição, aquela dor quente no coração, ao pensar nela. Pegou na caneca e bebeu abundantemente.
Macro olhou para ele espantado.
- Bebes como se acabasses de descobrir o vinho.
Cato pousou a caneca.
Estava a precisar. Foi um longo dia.
Põe longo nisso. - Macro riu. - Não há outro como tu para as subtilezas, pois não?
Cato juntou-se ao riso do amigo, e por breves momentos toda a tensão
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dos últimos dias lhe fugiu dos ombros, contente com a perspectiva de ter Macro a seu lado nos combates que se aproximavam. Perante quaisquer hipóteses, por baixas
que fossem, por muito provável que fossem a derrota e a morte, a presença do veterano tinha o condão de o convencer de que sobreviveriam a todas as dificuldades.
Levantou-se e espreguiçou-se, com um grunhido de cansaço.
- Vais a algum lugar? - Quis saber Macro.
Cato assentiu.
- Uma última ronda às sentinelas, antes de me deitar. Nada mais.
- Espero bem que sim. Precisas de descansar, miúdo. Como todos nós.
- Sim, mãe.
- Não sou a tua mãe, sou apenas o teu comandante. E ordeno-te que tenhas uma boa noite de sono.
Cato sorriu e saudou o amigo com aprumo exagerado.
- Sim, senhor!
Deixou os estábulos e subiu até às muralhas. Naquela noite, cabia à Segunda Ilírica fornecer as sentinelas, e Cato foi de posto em posto para verificar que os seus
homens estavam alerta e mantinham o inimigo sob vigilância. As sentinelas estavam tão cansadas como os outros homens, mas todos estavam cientes da punição que os
aguardava se acaso adormecessem em serviço - a morte por lapidação - e por isso mantinham-se acordados, marchando para cá e para lá ao longo da secção de muralha
que tinham a seu cargo. Depois de passar o último posto e se dar por satisfeito quanto ao trabalho do centuriião de serviço na preparação das escalas e na atribuição
de senhas e contra-senhas, Cato subiu à torre sinaleira para uma última olhadela à cidade antes de se encaminhar para o leito e uma noite de sono bem necessário.
Ao cimo das escadas fez uma pausa para recuperar o fôlego, antes de sair para a plataforma e acenar em resposta à saudação do auxiliar que vigiava a pira. Esta era
composta por uma pesada armação de ferro sobre a qual se apoiavam troncos de palmeira, por cima de uma cama de folhas secas, que serviam de mecha. Sob esta estrutura
podiam ver-se as cinzas do fogo que tinha sido acendido na noite anterior para avisar Macro de que era chegado o momento de lançar o ataque ao portão oriental da
cidade. Cato atravessou a torre, parou junto ao parapeito que dava para a ágora, e olhou para o recinto do templo, onde os rebeldes tinham passado o dia a trabalhar,
numa tentativa de remediar os danos ao aríete e à sua estrutura de suporte. Em redor da máquina ardiam tochas e podia ver-se que já tinham sido substituídas as cordas
danificadas, e que longas filas de homens faziam um esforço conjunto para levantar de novo o pesado toro com o auxílio de alavancas; mais cordas estavam ainda a
ser passadas para ajudar a suportar
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o peso, e eram rapidamente colocadas em posição e presas à estrutura. Enquanto apreciava os progressos, Cato sentiu um peso no estômago quando percebeu que a arma
estaria reparada antes que chegasse a alvorada do dia seguinte. O destemido ataque dos mercenários gregos custara apenas um dia de atraso ao inimigo. E era tudo
o que fora conseguido, descontando o facto de ter afastado a atenção das forças inimigas do ataque de Macro ao portão oriental. Sim, fora um pobre ganho, reflectiu,
mas já era soldado há tempo suficiente para perceber que um dia podia perfeitamente significar a diferença entre a vitória e a derrota.
Levantou o olhar e perscrutou lentamente a área em redor. As luzes das fogueiras nas ruas do outro lado da cidade revelavam a actividade do inimigo. Cato apercebeu-se
da tremenda desproporção de números que era enfrentada pela guarnição da cidadela. E se os partos alcançassem Palmira antes de Longino, qualquer esperança estaria
perdida de vez.
Ouviu passos, e percebeu que mais alguém subia para a torre, mas estava demasiado cansado e deprimido para se virar e verificar a identidade do visitante.
- Ora, se não é o prefeito Cato. - Disse Júlia.
Cato olhou então, endireitando-se para a saudar com toda a formalidade.
- Senhora Júlia.
- O que está aqui a fazer? - Inquiriu ela, directa ao assunto.
Frustrado pela interrupção, Cato respondeu de forma abrupta.
- O meu trabalho. E a senhora?
- O meu trabalho está concluído por hoje, prefeito. É para aqui que venho quando quero estar só.
- Só? - Cato não conseguiu esconder a surpresa. - Porque quereria estar só?
Ela olhou-o com uma ponta de malícia.
- Pela mesma razão que o trouxe aqui, suponho. Para pensar. Não é por isso que está aqui?
Cato franziu o sobrolho, irritado por ela ter tão facilmente adivinhado o que lhe ia na alma. A exagerada irritação que lhe transpareceu na face tornou-a cómica,
e ela soltou uma gargalhada repentina: um riso leve e agradável, que teria agradado ao jovem noutras circunstâncias, mas que naquele momento apenas contribuiu para
lhe endurecer ainda mais a expressão. Ela avançou e tocou-lhe no braço.
- Peço imensa desculpa. Parece-me que começámos mal. - Sorriu.
- Acredite, não queria de forma alguma ofendê-lo. Muito menos fazê-lo zangar-se dessa forma.
O tom era sincero, e a luz trémula da pequena fogueira que ardia junto
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à pira fez os olhos dela faiscarem. Apesar de se tentar manter frio e distante, Cato era incapaz de resistir e ignorá-la.
Assentiu.
- Não foi de facto a mais cordial das apresentações. Peço desculpa pelo meu comportamento. Por vezes é difícil esquecer que sou um soldado.
- Eu sei. O meu pai queixa-se muitas vezes de ser incapaz de esquecer que é um diplomata. E depois de tudo o que passou, tem todo o direito a ter pouca paciência.
Cato sentia-se embaraçado face ao seu comportamento inicial, e ainda mais quando acabava de ver Júlia arranjar uma graciosa forma de o desculpar, quando ele fora
simplesmente grosseiro. Engoliu em seco e inclinou a cabeça, enquanto recuava meio passo.
- Senhora, será talvez melhor que a deixe com os seus pensamentos. Peço desculpa por ter perturbado a sua privacidade.
- Mas fui eu que invadi a sua quietude. Estava aqui primeiro. - Recordou-lhe ela. - Não se sente capaz de partilhar a torre comigo? Prometo que estou calada e não
o perturbo.
Havia outra vez um leve tom divertido na voz dela, que fazia Cato sentir que ela estava a brincar com ele. Abanou a cabeça.
- Tenho que descansar, senhora. Desejo-lhe uma boa noite.
Antes que ele se virasse completamente, Júlia não foi capaz de se conter.
- Por favor, fica e conversa comigo. Se não estiveres demasiado cansado e fores capaz de me dispensar uns momentos.
Estava exausto, e a ideia de dormir era mais do que uma tentação, mas o olhar de súplica dela derreteu facilmente toda a sua firmeza. Sorriu.
- Seria um prazer, senhora.
- Sabes, podias chamar-me simplesmente Júlia.
- Podia. Mas nesse caso teria que me chamar só Cato.
- Mas esse é o teu nome de família. Podias dizer-me o teu nome próprio.
- No exército somos conhecidos pelo nome de família. É a força do hábito.
- Seja. Ficas Cato. - Júlia afastou-se, dirigindo-se à face da torre que dava para a ágora. Olhou para ele e sorriu, e Cato aproximou-se, consciente da proximidade
física, mas tomando todas as precauções para não lhe tocar. Apercebeu-se pela primeira vez do cheiro que emanava dela, um leve aroma a limão misturado com algo doce,
e deixou-se estar a saboreá-lo ao lado dela, contemplando Palmira.
- Tão belo. - Comentou Júlia. - Uma cidade à noite. Quando era pequena costumava sentar-me no terraço da nossa casa em Roma. Vivíamos numa colina com vista para
o fórum e o palácio imperial. À noite havia
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tochas e braseiros a brilhar como diamantes e âmbares por toda a cidade. Nas noites de luar conseguiam-se perceber todos os detalhes da paisagem, como se Roma fosse
um brinquedo feito de uma pedra azulada. Às vezes levantava-se do Tibre uma neblina.
Cato sorriu.
- Lembro-me disso. Era como um fino véu de seda. Parecia tão suave que tudo o que eu queria era tocar-lhe.
Ela olhou-o com uma expressão de espanto.
- Também tu? Pensava que era a única pessoa que a via assim. Viveste em Roma?
- Cresci no palácio. O meu pai era um liberto ao serviço do Imperador. - As palavras tinham-lhe saído antes de pensar, e não pôde deixar de temer que, agora que
lhe conhecia as humildes origens, ela lhe tivesse menos consideração.
- Filho de um liberto, e agora prefeito de auxiliares. - Comentou Júlia. - Nada mal, de facto.
- Prefeito interino. - Confessou Cato. - Assim que for encontrado um comandante adequado, voltarei à patente de centurião. É bastante baixo na hierarquia, devo dizer.
Ela não se deixou iludir pela modéstia.
- O facto de teres sido escolhido para o comando, Cato, só pode querer dizer que alguém acha que tens muito potencial.
- Seria agradável poder acreditar nisso. Caso contrário, vai levar muito tempo até ter antiguidade suficiente para ser promovido.
- E é nisso que pensas?
- Claro, não conheço nenhum soldado que não o faça.
- Perdoa-me, Cato, mas não me pareces de todo um soldado típico.
Ele encarou-a.
- Não?
- Oh, estou certa de que és um óptimo oficial, e não tenho dúvidas sobre a tua coragem, e segundo o meu pai tens um evidente talento para as palavras.
- Mas...?
Ela encolheu os ombros.
- Não sei bem. Parece-me que há em ti uma sensibilidade que nunca encontrei num soldado.
- Isso deve-se a ter crescido no palácio.
Ela riu e voltou a contemplar a cidade, deixando crescer o silêncio entre eles, até que Cato o rompeu.
- E a si? O que sucedeu à jovem que passava as noites a admirar Roma?
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Júlia lançou um pálido sorriso, segurou o pulso com a outra mão e esfregou-o levemente.
- Como todas as raparigas de boas famílias, casaram-me com um homem com o triplo da minha idade assim que fiz catorze anos. Para criar um laço entre duas famílias
de linhagem antiga e orgulhosa. Só que o que o meu marido apreciava realmente era espancar-me.
- Lamento ouvi-lo.
Ela olhou-o com tristeza.
- Já sei o que estás a pensar. Qual é o marido que não bate na mulher de vez em quando?
- Não era isso que...
- Bem, talvez seja verdade. Mas Júnio Porcino batia-me praticamente todos os dias. Por qualquer falha que me pudesse atribuir. Aguentei durante algum tempo... Pensava
que um casamento era assim mesmo. Passados dois anos, em que todas as manhãs contemplei um rosto cheio de nódoas negras, pedi ao meu pai permissão para me divorciar
de Porcino. Quando soube o que se passava, ele concordou. Desde então que viajo com ele, ao serviço do Imperador. De facto, governo a casa, substituo a minha mãe.
Ela faleceu ao dar-me à luz. - Júlia ficou em silêncio por momentos, antes de lançar um sorriso envergonhado. - Que tonta! A chatear-te com a história da minha vida,
quando precisas de descansar.
- Não, está tudo bem. - Retorquiu Cato. - Quero eu dizer, não estou chateado. A sério. Foi muito... Esclarecedor.
- Queres tu dizer que devia ter vergonha.
Cato abanou a cabeça.
- Não, queria dizer honesta, aberta. Só que não estou habituado a isso. Os soldados costumam ser mais reservados quanto aos seus sentimentos. É uma mudança agradável.
- Bem, não sou habitualmente tão cândida. Mas agora? - Encolheu os ombros. - A vida pode revelar-se bem mais curta do que imaginava. Não vale a pena guardar as coisas
que me apetece dizer. A perspectiva da morte próxima é libertadora.
- Ah, quanto a isso, concordo absolutamente. - Cato sorriu, ao relembrar a selvagem euforia do combate, misturada com o mais profundo medo. Paradoxalmente, nunca
se sentira mais vivo do que nesses momentos. Uma triste verdade, admitiu. Noutro tempo, o seu maior prazer tinha sido a descoberta do conhecimento. Desde que se
tinha tornado um soldado, tinha encontrado uma parte de si de que nunca suspeitara antes. Talvez fosse esse o grande benefício da vida militar - o autoconhecimento.
Quatro anos antes não passava de um jovem tímido, cheio de dúvidas quanto ao seu valor. Tudo lhe parecera impossível. Agora sabia aquilo de que era
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capaz, para o bem e para o mal. Tinha conseguido feitos de resistência e coragem que nunca teria julgado possíveis.
Apercebeu-se de que se mantivera calado durante bastante tempo, e que Júlia o observava.
- Às vezes, gostava de ter nascido homem. - Disse ela, sem alarde.
- Há tantas coisas que são negadas às mulheres. Tantas oportunidades. Mas desde que esta revolta rebentou, tenho menos certezas. Já nem consigo contar quantas feridas
horrendas tive que tentar remediar no hospital. Ser soldado é um trabalho brutal.
- É bem verdade. - Concordou Cato. - Mas essa é apenas uma parte do trabalho. Não vivemos para matar.
- Se tivesses visto o que aconteceu aqui no dia da revolta... - Júlia estremeceu e fechou os olhos por momentos. - A matança começou e não parou. Os soldados mataram
soldados, mas depois mataram também mulheres e crianças. Uma carnificina, foi o que foi. Nunca vi tamanha barbaridade.
- Com certeza. - Cato esfregou a face. - O problema é que esse bárbaro espreita no interior de cada um de nós. Tudo o que precisa é de uma provocação, de uma oportunidade
para saltar cá para fora.
Ela olhou-o com atenção.
- Achas que sim?
- Estou certo disso.
- E pensas portanto que também tu serias capaz de actos daquela natureza?
- Não se trata de ser capaz. Não o é para mim, nem para qualquer outro homem. Nem sequer para si, Júlia. Nas devidas circunstâncias, qualquer um reage assim.
Ela voltou a olhá-lo intensamente antes de se afastar das ameias.
- Foi bom falar com alguém sobre outro assunto que não as feridas que exibe. Mas devo deixar-te descansar. Agradeço-te pela paciência. Não posso prender-te mais
tempo.
O tom era firme, e Cato não se sentia suficientemente seguro para a contrariar. Além disso, estava demasiado cansado para pensar de forma clara, e não queria arriscar-se
a dizer alguma coisa errada àquela jovem que tanto desejava conhecer melhor.
- Talvez possamos continuar a conversa uma outra noite destas. - Sugeriu.
- Seria agradável, sim. Espero que sim.
Olharam ambos para lá da ágora, para a zona onde os rebeldes estavam a terminar o aríete e a estrutura de suporte.
- Vão conseguir tomar a cidadela? - Perguntou ela, calmamente.
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- Não sei a resposta a essa questão. - Confessou Cato, com todo o cansaço.
- Não sabes? Ou não queres?
- Não lhe mentiria acerca disto, Júlia. Não sei, é tudo. Há tantos factores em jogo...
Ela virou-se para ele e pôs a mão no peito.
- Esquece os detalhes. Diz-me, do coração. Achas que conseguiremos sobreviver a isto?
Cato olhou-a nos olhos e assentiu, lentamente.
- Sim, sobreviveremos. Dou-lhe a minha palavra. Não permitirei que nada de mal lhe aconteça.
Ela olhou-o de novo e acenou.
- Muito obrigada por seres tão honesto comigo.
Cato sorriu. Ela virou-se e iniciou a descida da torre. Agora que ela o tinha deixado, o jovem apercebeu-se de quão fria estava a noite, e arrepiou-se. Talvez voltassem
a conversar noutra noite, sim. Assim o esperava. Mas ao olhar outra vez para a ágora e apreciar a forma como o inimigo se afadigava a preparar o aríete, compreendeu
que no dia seguinte haveria um assalto em forma às muralhas, e que apenas um punhado de extenuados soldados romanos e mercenários gregos se interpunha entre os rebeldes
sedentos de sangue do príncipe Artaxes e os aterrorizados civis albergados na cidadela.
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Os defensores ocupavam os seus postos na muralha da cidadela desde os primeiros alvores da madrugada, observando com toda a atenção a preparação dos rebeldes e esperando
que estes lançassem o ataque. Tinham sido colocadas pilhas de dardos, flechas e metralha a intervalos regulares ao longo das fortificações, e pedregulhos de grandes
dimensões tinham sido empilhados na área das muralhas directamente sobre os portões. O cheiro a óleo aquecido enchia o ar enquanto uma fina coluna de fumo se elevava
lentamente de um dos grandes fornos próximos das casernas dos mercenários gregos.
Macro e Cato, acompanhados pelo comandante da guarda real, um veterano magro chamado Demétrio, e pelo príncipe Balthus, estavam na muralha sobre o portão e dali
observavam os soldados inimigos que formavam em torno do aríete.
- Não lhes custou muito repararem os estragos. - Comentou Balthus.
Demétrio inspirou, exasperado.
- Fizemos tudo o que nos foi possível no escasso tempo de que dispúnhamos, príncipe.
- Dizes tu. Seja como for, foi uma pena: não ganhámos mais do que um dia, e perdemos uns trinta homens.
Demétrio cerrou os lábios com decisão, para sufocar uma resposta impulsiva. A custo, conseguiu murmurar.
- Uma pena, senhor, como disse.
- Bom, o que está feito, feito está. - Interveio Macro. - Eles vêm aí, e temos é que tratar de os pôr a andar por onde vêm. Chegou o momento de nos juntarmos aos
nossos homens. Boa sorte. - Voltou-se para Cato e trocou um aperto de braços com o amigo, fazendo depois o mesmo com os outros. - Dêem-lhes com força!
Dirigiu-se à escada que dava acesso ao espaço aberto por trás dos portões. Os seus legionários aguardavam-no, formados a curta distância. Se os rebeldes conseguissem
forçar os portões, a tarefa de os manter à distância cairia sobre os melhores dos soldados presentes na cidadela. Por trás dos legionários havia grupos de homens
equipados com cobertores e ganchos
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de ferro em hastes compridas, preparados para combater quaisquer incêndios provocados por projécteis incendiários. O príncipe Balthus e os seus homens estavam colocados
na muralha à esquerda do portão, e os mercenários gregos à direita. Cato e os melhores dos seus homens guardavam as torres que ladeavam o portão e a extensão de
muralhas entre elas. O resto dos auxiliares cobria a restante área das muralhas da cidadela, sob o comando do centurião Parmenião.
Cato trocou um cumprimento com Balthus e Demétrio, antes de estes se irem também juntar aos seus homens. Ainda se sentia cansado, e o braço ferido estava rígido
e dorido, mas ainda assim experimentou alguns movimentos e espreguiçou-se para tentar libertar a tensão. Os homens já tinham sido alimentados e, ao fazer uma ronda
pelas posições que ocupavam, Cato ficou satisfeito ao reparar no ar determinado e alerta que exibiam. O equipamento, que tinha ficado sujo e empoeirado na marcha
desde Antióquia, estava já impecável, e capacetes e bossas dos escudos, de tão polidos, rebrilhavam sob os raios do sol matinal.
- Não há motivo para preocupações, rapazes. - Cato sorriu ao passar por entre os soldados. - Desta vez há uma muralha bem sólida a separar-nos daqueles malditos
arqueiros de merda. Se houver oportunidade para isso, vamos mostrar-lhes quem é que tem tomates para um combate a sério, e dar-lhes a provar o ferro romano.
Alguns dos auxiliares murmuraram, concordando com o seu comandante, enquanto relembravam a chuva de flechas que tinham sido forçados a suportar durante a escaramuça
no deserto. Desta vez era sua a vantagem, e estavam decididos a fazer os rebeldes pagar pelo episódio anterior.
- A nossa missão é garantir que estes portões continuam na nossa posse. - Prosseguiu Cato com firmeza. - Mantenham o sangue-frio, o escudo ao alto, e façam-nos lamentar
o dia em que nasceram! Segunda Ilírica! - Desembainhou a espada e ergueu-a bem ao alto. - Segunda Ilírica!
Os homens ergueram também as suas armas e repetiram o grito, fazendo o nome da coorte ecoar por toda a cidadela. Depressa os homens mais afastados, escutando-o,
o entoaram também. Logo outro grito se ergueu quando os homens de Macro gritaram o nome da sua legião e usaram as espadas para criar um ritmo avassalador, fazendo-as
bater contra a borda metálica dos escudos.
- É assim mesmo! - Cato sorriu para si próprio. Os homens estavam entusiasmados, e quase teve pena dos primeiros elementos do inimigo que se iriam colocar ao alcance
das espadas romanas.
- Aí vêm eles! - Gritou uma voz da torre à esquerda, e os gritos de motivação depressa esmoreceram; Cato forçou-se a avançar em passo normal
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até às escadas, embora lhe apetecesse correr. No cimo, os auxiliares comprimiam-se na face da torre que dava para a ágora.
- Afastem-se! - Ordenou. - Dêem-me espaço, depressa!
Os homens obedeceram de pronto, permitindo a Cato observar o que se passava lá em baixo, no recinto do templo, no momento em que cornetas e tambores ressoaram na
ágora. Havia centenas de homens comprimidos no interior da armação que rodeava o aríete, acomodando-se por trás dos barrotes colocados transversalmente sob o longo
toro, que sobressaía da frente da estrutura. Os tambores começaram a marcar uma cadência e os homens fizeram força contra as traves, fazendo avançar a pesada arma
na direcção dos portões da cidadela. Homens armados acompanhavam o avanço da estrutura, mantendo as abas laterais de couro esticadas, enquanto miúdos corriam para
a frente e para trás com recipientes cheios de água, ensopando o couro antes que este ficasse ao alcance dos projécteis incendiários que não deixariam de surgir,
vindos da cidadela. Cato percebeu que os rebeldes preparavam o seu próprio bombardeamento incendiário quando o seu olhar foi atraído para a actividade que se desenrolava
nas ruas que iam dar à ágora. Surgiram à vista filas de homens que puxavam por longas cordas. Por trás deles apareceram estruturas móveis, e em cada uma delas estava
montada uma balista ou uma catapulta, peças ligeiras mas muito capazes de enviar as suas cargas por cima das muralhas da cidadela. A seguir fizeram a sua aparição
outros soldados que transportavam braseiros de ferro, repletos de tições, de tal forma que o ar tremeluzia sobre eles.
Foi a vez de chegarem outros homens; estes carregavam amplas e aparentemente sólidas protecções, que foram espalhando pela ágora. Com eles vinham os arqueiros, que
avançavam com feixes de setas sobressalentes guardados debaixo dos braços. Os abrigos foram rapidamente instalados, enquanto as equipas das peças de cerco apontavam
as armas e começavam a acumular tensão nos mecanismos de disparo. À esquerda de Cato ouviu-se entretanto uma ordem, e os primeiros arqueiros de Balthus soltaram
as suas setas. Os projécteis escuros mergulharam contra os rebeldes, embatendo nas lajes e cravando-se nas superfícies dos abrigos recém-instalados. Os atacantes
mostraram o seu respeito pelos arqueiros sitiados tomando todas as precauções e protegendo-se cuidadosamente, enquanto iam preparando os seus arcos e ateavam os
projécteis, para os lançar contra a cidadela.
- Atenção! - Gritou Cato. - Vêm aí flechas incendiárias!
Os auxiliares encolheram-se sob os escudos, ou esconderam-se por trás das ameias de sólida pedra. No momento seguinte uma seta flamejante passou sobre a muralha,
deixando um fino rasto de fumo; atingiu o pináculo
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da sua trajectória e curvou, apontada aos edifícios das acomodações do rei. Partiu-se ao atingir uma telha, espalhando fragmentos em chamas em todas as direcções.
Mais projécteis se seguiram. A maior parte atingiu telhados e paredes ou caiu no chão sem provocar danos, mas algumas alojaram-se em portas e janelas de madeira,
e os grupos destacados para combater incêndios precipitaram-se para tentar abafar as labaredas antes que se espalhassem.
- Senhor?
Cato virou-se e viu o centurião Áquila a dirigir-se para si, agachado. Uma vez que os cavalos já não existiam, Áquila e os seus homens combatiam como infantaria,
e Cato tinha-o escolhido para seu adjunto na defesa dos portões.
- O que se passa?
- Devo dar ordens aos nossos fundibulários para ripostar? E as balistas nas torres?
Cato abanou a cabeça.
- Não vale a pena expor os homens, por enquanto. Vamos deixar os rebeldes gastar munições, para já não nos estão a causar grandes danos. Vamos esperar que o aríete
fique ao nosso alcance. Nessa altura, eles que tentem abater aqueles arqueiros.
- Sim, senhor. - Um ar desapontado instalou-se no rosto de Áquila.
- Muito bem.
- Não te preocupes, Áquila. Daqui a pouco vamos ter ocasião de lhes mostrar quem somos.
- Mal posso esperar. - Lançou o centurião em tom de ameaça, enquanto arriscava uma espreitadela rápida sobre a muralha. - Chegou a altura de os fazer pagar pelos
cavalos.
- Os cavalos? - Espantou-se Cato, e abanou a cabeça. O comandante da sua cavalaria era evidentemente um daqueles homens que se afeiçoavam às montadas. De qualquer
maneira, se ele culpava os rebeldes pelo massacre da véspera, tanto melhor.
- Centurião Áquila, quando isto estiver terminado, prometo-te que terás à tua escolha os melhores dos cavalos dos inimigos.
- Sim, senhor. Muito obrigado. - Áquila sorriu por fim.
Ouviu-se um baque surdo vindo da ágora, e no momento seguinte um
monte de trapos em chamas passou sobre as muralhas, amarrados à volta de uma pedra. O míssil tombou na zona da cidadela que estava ser usada como hospital, caiu
sobre um telhado, partiu as telhas e desapareceu de vista. Cato sentiu um aperto na garganta ao pensar na segurança de Júlia, mas nada podia fazer para a proteger
ou sequer para saber se estava em segurança, pelo menos enquanto durasse o ataque inimigo. Tentou afastar
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da mente qualquer pensamento sobre ela, respirando fundo e espreitando para verificar os avanços do aríete inimigo.
Os rebeldes já tinham avançado um terço do espaço aberto da ágora. O príncipe Balthus e os seus arqueiros mantinham uma ininterrupta barragem de flechas incendiárias,
que se podiam ver espetadas no telhado de couro da estrutura do aríete. Algumas ainda ardiam sobre o material húmido, mas antes que algum incêndio se pudesse propagar
os jovens aguadeiros avançavam e lançavam água sobre o couro. O gemido dos eixos em que assentavam as grandes rodas da arma chegava claramente às ameias, sobrepondo-se
mesmo ao barulho ensurdecedor que o metal que as cobria fazia ao riscar as pedras do pavimento. Os tambores continuavam a marcar uma cadência lenta para ajudar ao
esforço dos homens que empurravam o aríete.
- Às balistas! - Ordenou Cato. - Preparar projécteis incendiários!
A equipagem da balista na torre esquerda subiu para a plataforma
da arma e começou a preparar-se para a acção. Um dos homens segurou a ponta de um pesado projéctil de um metro de comprimento sobre as chamas de um braseiro na retaguarda
da plataforma. Os trapos embebidos em óleo e atados à haste logo atrás da ponta metálica depressa se incendiaram, e o auxiliar transportou a sua carga, colocando-a
com todo o cuidado no canal preparado para esse efeito no braço de arremesso. O optio que comandava a secção de artilharia apontou cuidadosamente para a estrutura
do aríete. Os arqueiros rebeldes já se tinham apercebido das movimentações em torno da balista, e de imediato tinham feito da torre o seu alvo preferencial. Ouviu-se
um estalido quando a haste de uma seta se cravou na armação da balista. O fumo elevava-se da mecha em chamas que transportava.
- Deitem água naquilo! - Ordenou o optio, e voltou de novo a atenção para a orientação da arma. Quando se deu por satisfeito com a pontaria, levantou-se e pegou
na alavanca de disparo.
- Afastem-se!
A equipagem recuou e no instante seguinte os braços da arma saltaram para a frente até baterem nos travões almofadados. O projéctil em chamas saiu disparado numa
trajectória quase horizontal, atravessando a ágora. Atingiu o envelope de couro do aríete, rasgou-o sem perder ímpeto, e desapareceu no interior. A equipagem da
balista ergueu os braços no ar em sinal de triunfo, mas o optio virou-se para eles, furibundo.
- Por Hades, o que é que vocês acham que estão a fazer? Não são pagos ao dia. Toca a recarregar, e tu, apaga esse fogo de merda imediatamente!
Cato tinha observado o impacto do projéctil, e acenou satisfeito.
- Bom trabalho, optio. Dispara tão depressa quanto possas. Daqui a
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pouco, os rebeldes terão o aríete tão próximo das nossas muralhas que já não poderemos atingi-los.
- Sim, senhor. - Retorquiu o optio. - Faremos o nosso melhor.
Nesse preciso instante, o homem que estava à frente da plataforma a
tentar extinguir a flecha incendiária com água do cantil soltou um grunhido de surpresa. Deixou cair o cantil e vacilou, tentando alcançar a haste que lhe saía das
costas, mesmo por baixo da omoplata.
- Cuidado! - Gritou Cato. - Agarrem-no!
Mas era tarde demais. As pernas do auxiliar bateram no parapeito e ele desequilibrou-se, caiu para trás a agitar os braços, e desapareceu. O grito que lançou foi
curto, mas todos escutaram o baque surdo que o corpo fez ao atingir o solo. O optio cerrou os dentes, avançou para a frente da balista, arrancou a seta em chamas
e lançou-a na direcção do inimigo antes de voltar para trás e ameaçar os homens.
- O próximo cabrão que deixar que lhe aconteça uma coisa destas está fodido comigo. Porra, lembrem-se de esconder a merda dessas cabeças!
Ouviu-se mais um estalo, e Cato percebeu que a outra balista também tentava atingir o aríete. Enquanto os rebeldes o iam lentamente orientando para os portões da
cidadela, vários projécteis atingiram a estrutura, atravessando o couro e causando vítimas entre os homens que se acotovelavam debaixo da cobertura, ou alojando-se
nas grossas tábuas que compunham a estrutura, ardendo até que um dos aguadeiros a conseguia extinguir. Por trás do aríete, à medida que ia avançando, ficava um rasto
de sangue e de corpos de mortos e feridos que denunciava os estragos que as balistas da cidadela estavam a provocar.
A barragem defensiva, porém, não poderia prosseguir por muito mais tempo. As balistas nas torres não podiam ser orientadas para baixo, e assim que o aríete chegou
a um ponto inalcançável foi a vez de uma das balistas inimigas montadas nas plataformas móveis e dispostas na ágora ter o seu momento de felicidade. A pesada ponta
metálica do projéctil atingiu em cheio o braço de lançamento da arma na torre esquerda. Com um som de madeira a estalar, o componente atingido partiu-se, e sob a
intensa pressão imposta pelo cordame torcido, os fragmentos partiram em arco pelo ar, esmagando o crânio do mais próximo dos soldados e atingindo o braço do seguinte,
enquanto estilhaços de madeira explodiam em todas as direcções e aterravam em cima dos soldados que tinham estado a manejar a arma. Outros três homens ficaram feridos,
e um deles não parava de gritar enquanto levava as mãos à cara e tentava extrair uma longa farpa de madeira que lhe atingira o olho.
- Tirem daí os feridos! - Gritou Cato. - Para o hospital. Optio!
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- Sim, senhor? - Também o optio fora atingido, e fazia uma careta enquanto extraía um pedaço de madeira do braço.
- Puxem a balista para trás e tentem repará-la.
- Reparar, senhor? - O optio deitou uma olhadela à arma. O que restava do braço de arremesso estava espetado no ar, a alguma distância do mecanismo de torção. -
Está toda fodida.
- Quero lá saber. Afastem-na da vista do inimigo e reparem-na. Ainda vamos precisar dela.
O optio aprumou-se e assentiu.
- Sim, senhor. Bom, rapazes! Ouviram o prefeito. Vamos a isso.
Cato afastou-se, enquanto os sobreviventes da equipagem se mexiam
em torno da arma e a retiravam das ameias. Alguns dos auxiliares tinham-se encarregado dos feridos, levando-os pelas escadas até ao pátio. Cato levantou o escudo
e atreveu-se a espreitar de novo para ver em que ponto estava o aríete. Os rebeldes já tinham conseguido empurrá-lo até relativamente perto da muralha, fazendo-o
sair da área de acção das balistas da cidadela, mas ainda não o deixando ao alcance de pedras ou fardos incendiários que pudessem ser atirados das muralhas. Entretanto,
os arqueiros e as balistas na ágora continuavam a bombardear as ameias sem parar um instante, e as catapultas enviavam de quando em vez os seus mísseis incendiários
num longo arco sobre a muralha para atingir edifícios e pessoas bem no interior da cidadela.
Apesar de o aríete estar naquele momento fora do alcance dos defensores, os rebeldes teriam que o encostar aos portões, e aí nada os poderia proteger dos homens
sobre as muralhas. O príncipe Artaxes sabia perfeitamente disso, e os arqueiros e balistas dos atacantes já estavam a ser recolocados de forma a protegerem o aríete.
Cato desceu as escadas a correr até ao passadiço mesmo por cima dos portões. Debruçou-se para o interior e gritou.
- Tragam o óleo a ferver para aqui! Já!
Virou-se para os homens equipados com forquilhas que aguardavam junto aos braseiros com fardos de madeira e trapos ensopados em pez, deu ordens para avivar as chamas
e se prepararem para incendiar os fardos. Enquanto alguns dos homens os manejavam com as forquilhas, elevando-os no ar, os outros usavam foles para atiçar os braseiros
até se ver o amarelo vivo das chamas a dançar, enquanto se soltavam fagulhas.
- Acendam-nos! - Gritou, e um optio pegou numa tocha, levou-a ao fogo até se acender e correu pelos fardos, acendendo-os um a um até que todos se incendiaram e o
fumo se espalhou pelas muralhas, enquanto a madeira crepitava. - Mandem-nos lá para fora!
Ao escutarem a ordem, os homens das forquilhas lançaram os fardos
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sobre o parapeito. Um a um, rebolaram das muralhas. Os rebeldes mais próximos olharam aterrorizados para cima e fugiram enquanto os fardos em chamas se abatiam sobre
o cimo da estrutura do aríete e se desfaziam, lançando uma chuva de detritos em chamas por toda a área.
- Continuem! - Ordenou Cato.
A maior parte dos fardos atingia o aríete, mas alguns falhavam o alvo e faziam-se em pedaços sobre as lajes da ágora. Cato olhou para baixo mesmo a tempo de ver
como um atingia um dos aguadeiros rebeldes. Este lançou-se sobre o solo, rebolando, coberto de chamas. Um grito agudo cruzou o ar e continuou, enquanto o rapaz se
debatia no solo. Os seus camaradas, que tinham fugido ao súbito bombardeamento, estavam agora a ser obrigados a regressar para junto do aríete pelos soldados rebeldes,
à força de chicote. Corriam em torno da estrutura, atirando água sobre qualquer zona que estivesse a arder, e escapuliam-se sempre que viam um dos fardos em chamas
a precipitar-se na sua direcção, apenas para serem obrigados a voltar para a zona de conflagração pelos chicotes. E durante todo o tempo, os homens, invisíveis sob
a cobertura de couro, esforçavam-se para fazer avançar a arma até junto do portão.
O último dos fardos foi lançado sobre as muralhas, e Cato foi a correr ver o que se passava com o óleo. Os homens que o traziam ainda se debatiam a tentar subir
os últimos degraus para o cimo do passadiço: eram quatro, suportando duas longas varas que passavam por anéis de ferro nos lados do recipiente.
- Despachem-se! Mexam-se, vá!
Ao alcançarem a plataforma sentiram tudo a tremer em consequência do primeiro embate do aríete contra os portões.
- Cato! - Gritou Macro, e o jovem debruçou-se para baixo.
- Senhor?
- Lança o óleo e as pedras e tudo o que conseguires para cima daquilo, e depressa!
- Sim, senhor.
Virou-se para os auxiliares e inspirou antes de apontar as pilhas de pedregulhos que se viam ao pé das ameias.
- Mandem isso tudo lá para baixo.
Os homens largaram as forquilhas a um canto da torre e foram ajudar Cato, que se debatia com uma pesada pedra, cambaleando até à face da muralha. Com um grunhido,
o jovem conseguiu içá-la até ao cimo das ameias e arriscou-se a lançar uma olhadela à estrutura envolvente do aríete. Um comprido manto de couro estendia-se para
trás a partir da ponta, já encostada ao portão; entretanto, ao bater cadenciado de um tambor sentiu-se mais um impacto quando a pesada arma chocou de novo contra
as tábuas.
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Cato apercebeu-se que o único dano sério que os fardos em chamas tinham provocado era um buraco chamuscado na cobertura, junto à frente da estrutura. Através dele
distinguiam-se a custo os torsos reluzentes de suor dos rebeldes que manejavam o aríete. Aguardou alguns instantes até que mais dos seus homens se lhe juntaram de
ambos os lados, com pedras e preparados para as lançar sobre o parapeito.
- Já!
As pedras rasparam na muralha com um som de trovão, e os pesados projécteis abateram-se sobre a cobertura do aríete. Passaram por ela sem dificuldade, bem como pelo
labirinto de vigas da armação que a suportava. Os rebeldes que se encontravam directamente por baixo foram esmagados pelo impacto.
- Continuem! - Ordenou Cato, e virou-se para os homens que transportavam o caldeirão de óleo. Fumo e vapor escapavam-se das paredes de ferro enegrecido do recipiente,
e o ar estava inundado do odor desagradável da gordura aquecida. - Tragam isso para aqui!
Enquanto os auxiliares no parapeito continuavam a deixar cair pedregulhos sobre a estrutura de suporte do aríete, Cato ajudou os outros soldados a posicionarem o
caldeirão sobre o cimo da muralha, directamente sobre a arma. Quando ficou no local adequado, Cato convocou mais homens para ajudarem a fazer peso na alavanca, e
o caldeirão começou lentamente a inclinar-se. O líquido começou a jorrar, e soltou-se uma pluma de vapor que quase impediu a visão do que se passava lá em baixo.
O óleo ardente respingava e salpicava tudo, entrando pelos buracos da estrutura e atingindo os atacantes. Os gritos de agonia encheram de imediato o ar, e muitos
abandonaram de imediato as suas posições, fugindo e irrompendo pelas traseiras da cobertura. Os homens de Balthus viraram as suas atenções para os fugitivos, e as
setas voaram em trajectórias quase directas, abatendo vários dos inimigos enquanto eles tentavam alcançar a segurança dos abrigos dos seus próprios arqueiros. Estes
deram o seu melhor para obrigar os homens de Balthus a protegerem-se, numa furiosa troca de flechas.
Aproveitando o facto de as atenções do inimigo estarem concentradas noutro ponto, Cato examinou atentamente os danos provocados, e verificou que o óleo fervente
tinha cumprido a sua missão. O aríete estava a arder, e as chamas espalhavam-se rapidamente pela estrutura de madeira semi-despedaçada. Os aguadeiros inimigos tinham
fugido ao mesmo tempo que os guerreiros, pelo que ninguém tinha ficado para trás a combater o incêndio. Um sorriso de satisfação dançou-lhe nos lábios, até que sentiu
a primeira onda de calor na face. Nesse instante sentiu um aperto no estômago, ao recordar com ansiedade uma cena semelhante, na defesa do portão fortificado de
uma aldeia germânica em que estivera envolvido há alguns
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anos, ao lado de Macro. Apressou-se a cruzar o passadiço até à face interna, e gritou para baixo.
- Senhor! O aríete está a arder!
O rosto de Macro abriu-se num sorriso quando olhou para cima.
- Óptimo!
Mas Cato abanou a cabeça, preocupado.
- Está mesmo encostado ao portão.
O sorriso de Macro desvaneceu-se.
- Oh, merda. Merda! Como está a situação vista daí?
- Fugiram todos, senhor. Pelo menos por agora!
- Muito bem. Só há uma maneira de resolver isto. - Macro preparou-se para dar ordens. - Abram os portões!
A primeira centúria avançou para destrancar os portões e para se encarregar das pesadas correntes que permitiam abrir as portadas. Com o habitual ribombar surdo
das dobradiças as espessas portas de madeira reforçada começaram a separar-se. O fumo entrou pela abertura, e Macro avistou as labaredas a lavrarem no que restava
da estrutura de suporte do aríete. A cobertura de couro já tinha sido consumida, pondo à vista o esqueleto da estrutura e o próprio aríete de ponta metálica, ainda
suspenso, apesar de as cordas que o suportavam estarem a arder também.
Macro embainhou a espada e avançou, piscando os olhos quando o fumo os começou a fazer arder.
- Sigam-me!
O fogo já envolvia toda a arma, e o calor atingiu Macro como um soco. Levantou o escudo e apoiou-o contra um dos sólidos postes que, nos cantos, eram a base de toda
a estrutura; acenou aos homens da primeira centúria.
- Façam como eu! Usem os escudos e empurrem. Temos que afastar esta porra dos portões, e depressa!
Os soldados, fazendo caretas devido ao calor, avançaram, apoiaram os escudos na estrutura e empurraram com toda a força. Com toda a lentidão, o aríete começou a
deslocar-se, mas quando outros homens se vieram juntar aos primeiros e aumentaram a pressão, as enormes rodas recuaram sobre as lajes do pavimento.
- É isso, rapazes! - Incitou Macro, mas os pulmões encheram-se-lhe de pronto de fumo, o que o fez tossir dolorosamente, como se tivesse o peito recheado de vidro
moído. À medida que o incêndio continuava a temperatura ia subindo, e de repente notou um odor acre no ar; era a crista do seu capacete que tinha também pegado fogo.
O instinto ordenava-lhe que se retirasse e se afastasse das chamas que lhe queimavam a face, mas verificara que o aríete ainda não estava suficientemente longe dos
portões para ter a certeza de que as chamas não se propagariam. - Força, meus sacanas!
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Alguma coisa bateu no solo junto aos seus pés, e ao olhar verificou que era uma flecha. Logo outra deslizou sobre as lajes. Com os olhos semicerrados, percebeu que
os arqueiros inimigos já tinham esquecido Balthus e os seus homens, e que agora concentravam os disparos sobre os romanos que se esforçavam por afastar o aríete
dos portões da cidadela. E por trás deles já havia uma grande formação de soldados rebeldes que começava a marchar através da ágora com o claro intuito de os confrontar.
Macro olhou sobre o ombro e percebeu que já tinham empurrado a estrutura em chamas pelo menos uns seis metros.
- Só mais um bocadinho. - Murmurou para si mesmo, entredentes.
Surgiu um ruído e Macro sentiu, tanto como ouviu, as cordas que suportavam o pesado toro a cederem, e o aríete a cair no solo. A pesada arma de cerco parou de vez.
- Pronto, está feito! - Gritou Macro aos homens. - Para trás! Para dentro da cidadela!
Afastaram-se do aríete e retiraram, mantendo os escudos virados para o inimigo, até porque as setas continuavam a chover na sua direcção, atravessando as chamas
que se erguiam para o céu. Assim que os rebeldes se aperceberam que os romanos estavam a recuar, o seu comandante lançou uma ordem, e eles correram para os portões
com um urro. Ao notar que a barragem de setas tinha diminuído de intensidade, Macro virou-se e gritou aos legionários.
- Corram!
Os romanos entraram de repelão pelos portões, as botas cardadas a baterem com toda a força nas pedras polidas do pavimento. Macro foi o último a entrar, e virou-se
de imediato, empunhando a espada e preparando-se para, se necessário, enfrentar o inimigo.
- Fechem os portões! - Gritou. - Despachem-se!
Os primeiros soldados inimigos corriam já junto ao aríete em chamas, tentando desesperadamente alcançar os portões antes que os romanos os conseguissem fechar. Mais
uma vez as dobradiças de ferro rangeram, enquanto o peso das portas maciças voltava ao lugar. A abertura diminuía rapidamente, e Macro sorriu quando verificou que
os rebeldes não a conseguiriam alcançar a tempo.
- Aha! Tarde demais, cabrões!
As portas encostaram-se com estrondo, e os legionários apressaram-se a colocar a tranca no lugar. Ouviu-se de imediato um rugido de raiva do outro lado, e alguns
sons de soldados inimigos, frustrados, a descarregarem a ira nas madeiras do portão.
Macro voltou a embainhar a espada e virou-se.
- Bom trabalho, rapazes!
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Os homens da primeira centúria receberam o cumprimento com sorrisos nervosos, enquanto ofegavam. Alguns tinham sido feridos pelas setas inimigas, que os tinham atingido
nas pernas ou braços desprotegidos, e esforçavam-se por conter os gemidos que a dor lhes pedia. Macro chamou uma secção da centúria seguinte.
- Vocês! Levem estes homens para o hospital.
- Senhor, está bem?
Macro olhou para cima a tempo de ver Cato a descer rapidamente o último lanço de escadas, preocupado.
- Estou fino.
Cato olhou-o de alto a baixo e abanou a cabeça.
- A mim, parece-me que está é quase assado. Sobretudo a crista do capacete. - Sorriu.
Macro largou o escudo e desapertou as tiras de cabedal que seguravam o capacete. Tirou-o e viu que a bela crista vermelha tinha sido queimada e estava negra, e que
as pontas se desfaziam quando passava os dedos por elas.
- Caraças, esta merda custou-me uma fortuna em Antióquia. - Protestou. - Era uma bela peça. Ou foi. Aqueles sacanas lá fora hão-de pagar por isto.
- Senhor. - Cato apontou para os braços do superior, e só então Macro se apercebeu das bolhas e manchas avermelhadas na pele queimada, sentindo por fim a sensação
de ardor inevitável. Cato acenou na direcção dos feridos que estavam a ser conduzidos ao hospital.
- Será melhor ir com eles e ver se trata dessas queimaduras.
- Vou já. Diz-me só se o aríete ficou suficientemente longe das madeiras?
- Sim, senhor. Não há perigo de o incêndio se propagar aos portões. E se eles quiserem voltar a tentar, terão que se ver livres deste belo obstáculo.
- E os outros?
- Recuaram. Arqueiros, infantaria e artilharia. - Cato indicou os grupos que se afadigavam a apagar os últimos incêndios ateados pelos projécteis incendiários dos
rebeldes. - Fizeram poucos danos, e quase não tivemos baixas. Desta vez, batemo-los.
- Desta vez, sim. - Concordou Macro. - Mas eles podem voltar a tentar as vezes que quiserem. Nós só temos que perder uma vez, e pronto. E uma coisa é certa: eles
voltarão a tentar, assim que puderem.
229
23
Ah, o outro oficial romano. - Júlia abanou a cabeça, enquanto Macro se sentava numa banqueta junto à sua mesa. - Diz-me, vocês os dois são mesmo dados a acidentes,
ou é só por andarem sempre metidos no meio do barulho?
Macro encolheu os ombros.
- Faz parte do trabalho, senhora. Não acho que arranjamos ferimentos com maior frequência do que os outros oficiais. - Fez uma pausa, pensou um bocado, e abanou
a cabeça por sua vez. - Não. Não é bem assim, de facto. Eu e o miúdo temo-nos visto metidos nalgumas belas alhadas desde que nos conhecemos.
Júlia inclinou-se sobre os braços esticados do centurião, avaliando as queimaduras.
- Oh? E há quanto tempo foi isso?
- Quatro anos. Estava eu com a Segunda Legião no Reno quando o Cato se juntou a nós. - Sorriu ao evocar a tarde chuvosa de Inverno em que a coluna de recrutas entrara
pelo portão da fortaleza. - Não passava de um trinca-espinhas sem força na verga, nessa altura. - Levantou o olhar.
- Senhora, perdoe a minha linguagem, mas ele era mesmo assim. Devia tê-lo visto. Embrulhado na capa, com um embrulho de roupas debaixo de um braço e uns pergaminhos
e o estojo de escrita debaixo do outro. A coisa mais perigosa que tinha manejado até àquele momento era o aparo da pena. Pensei que não ia durar até ao fim do ano.
- Remuou Macro. - Bem, espantou-nos a todos, o bom do Cato. E revelou-se um dos melhores oficiais que alguma vez conheci.
- Pode baixar os braços. - Disse Júlia, enquanto se punha de pé e pegava num pote de banha que estava sobre a mesa. - Essas queimaduras vão ter que andar protegidas
durante uns dias. Os braços vão arder por uns tempos, mas atrevo-me a supor que é capaz de fingir que nem dá por isso.
Macro soltou uma gargalhada.
- Parece que já me avaliou.
- Não. Não a si, só aos soldados em geral. A maior parte parece julgar-se tão dura como um espartano.
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- Espartanos? - Macro fungou em desprezo. - Uma data de mariconços, e só isso. Não se aguentavam um quarto de hora contra as legiões.
- Se o diz. - Júlia mergulhou a mão no pote e encheu a palma da mão com uma boa dose de gordura. - Agora fique quieto.
Macro cerrou os lábios enquanto a jovem aplicava o unguento e o espalhava sobre a carne viva das áreas queimadas nos seus braços. Ardia, como ela prometera, mas
o veterano preferiria ser açoitado a deixar transparecer algum desconforto. Obrigou-se a continuar a conversa num tom absolutamente normal.
- Então há quanto tempo é que se dedica à medicina?
Júlia sorria
- Não me tenho em tão grande conta. Mas um dos escravos do meu pai em Roma tinha de facto sido treinado nas artes médicas. Ensinou-me algumas coisas, e o resto tenho
aprendido neste último mês, à força, pode dizer-se.
- Parece saber o que anda a fazer por aqui. - Admitiu Macro, a contragosto. - Para uma mulher, quero eu dizer. Embora uma mulher não tivesse que andar a fazer isto.
Sobretudo a filha de um senador.
- Disparate. Não há qualquer razão para que a filha de um embaixador não possa servir o Império da melhor forma que lhe for possível. Alguns diriam mesmo que o meu
dever era precisamente ajudar. E seja como for, é esta a minha vontade.
Macro sorriu, arguto.
- Senhora, consegue sempre tudo o que quer?
Ela levantou o olhar a tempo de surpreender a expressão do veterano, e sorriu também.
- Sempre.
- O seu pai deve achá-la difícil de aturar.
- Não me parece. Sou uma boa filha, nunca o envergonharia. Mas tenho as minhas próprias ideias, e ele respeita isso.
- Não sei se permitiria que uma filha minha fosse tão teimosa.
- Nesse caso, ainda bem que não sou sua filha, centurião. - Inclinou-se para o pote para recolher mais unguento. - O outro braço, por favor.
Enquanto aplicava cuidadosamente a gordura manteve-se em silêncio por instantes.
- O seu amigo, o Cato, não parece ter pinta de guerreiro.
- A quem o diz, senhora. Mas a verdade é que, com todas aquelas manias, é um soldado extraordinário. Combate como um demónio, e na marcha deixa quase qualquer um
de rastos. Excepto eu, claro. E tem uma excelente cabeça em cima daqueles ombros. O único problema é que às vezes pensa demais.
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- Sim, parece de facto do género sensível.
- Sensível? - Macro repetiu a palavra com asco, como se fosse um insulto, e na sua opinião era-o certamente. Resolveu naquele mesmo instante que, se um dia algum
tipo tivesse tomates suficientes para lhe chamar sensível, cara a cara, lhe partiria imediatamente o focinho. E claro que tentaria sentir-se mal por causa disso.
Depois. Enfim, talvez. Contemplou Júlia. - Sobre isso não faço ideia, mas o miúdo tem coração, tanto como cabeça, se é isso que quer dizer.
- Sim, era isso que queria dizer. - Retorquiu a jovem, diplomaticamente. - Imagino que os vossos deveres de oficiais não vos deixam muito espaço na vida para coisas
como família.
- De facto, não. Sobretudo se não estivermos colocados na guarnição de uma cidade qualquer. Desde que conheci o Cato, vejamos: foi campanha na Britânia, uns tempos
na Marinha, e agora viemos aqui parar.
- Não é casado, portanto. - Concluiu Júlia. - E o seu amigo? É casado?
Macro abanou a cabeça.
- E não há uma mulher à espera dele em Antióquia, ou Roma, ou noutro sítio qualquer?
- Nem por isso. Não passámos tempo suficiente em lugar algum, ou então andávamos demasiado ocupados para coisas do género, tirando uma galdéria ou outra.
-Oh.
Macro olhou para ela com malícia.
- Portanto, se alguém estiver interessado, senhora, o miúdo é um homem livre.
Júlia corou e apressou-se a acabar de passar a gordura, esfregando-a com tanta firmeza que Macro se viu forçado a cerrar os dentes para não mostrar a dor que lhe
estava a causar. Ela afastou-se e pegou num trapo para limpar as mãos.
- E pronto. Tente não esfregar, essa gordura vai proteger as zonas queimadas durante algum tempo. Vou mandar um boião para os seus aposentos. Terá que a aplicar
de manhã e à noite.
Macro assentiu.
- Obrigado, senhora.
- Pode seguir. - Respondeu ela, irritada. - Há outros homens a precisar da minha atenção.
Acredito, pensou Macro enquanto deixava o compartimento. Agora que a tinha visto de perto, percebia que ela era realmente bela, mas o ar aristocrático que exibia
anulava qualquer efeito que pudesse ter em Macro.
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Demasiado educada, demasiado esperta e demasiado independente para o seu gosto. De qualquer maneira seria um achado, para o tipo certo.
Não ocorreram novas tentativas de tomar de assalto a cidadela, e as sentinelas limitaram-se a patrulhar as muralhas e a registar o que se passava na cidade, debaixo
do sol ardente. Um punhado de rebeldes mantinha também uma vigilância constante aos defensores a partir de um posto na periferia da ágora, bem como de certos pontos
elevados no exterior da cidade dos quais se podia ver o interior da cidadela, no seu ninho sobre a formação rochosa. Mas a vida parecia decorrer normalmente na cidade
e nas suas redondezas. Grupos de mercadores e comerciantes chegaram à cidade para efectuar os seus negócios, e uma caravana de camelos já sem carga iniciou o seu
longo caminho de regresso às margens do Eufrates. O único sinal da luta pelo poder que decorria em Palmira era a constante procissão de corpos a caminho do campo
funerário a sul da cidade. Ali tinham sido erigidas dezenas de piras para receber os cadáveres; uma a uma eram acendidas e lançavam para a atmosfera rolos de fumo
negro e gorduroso enquanto os corpos eram consumidos pelas chamas. Em seguida as cinzas eram recolhidas em pequenas urnas de barro que eram seladas e levadas para
as bizarras torres tumulares que se erguiam na planície, e onde os restos mortais eram colocados com reverência junto aos dos seus antepassados.
No interior da cidadela pouco espaço havia para tais rituais, pelo que os corpos dos falecidos no combate matinal foram queimados numa pira comum, nos jardins reais;
as cinzas foram recolhidas em urnas e guardadas em segurança à espera do fim do cerco, altura em que poderiam ser enterradas com as devidas honras.
Macro e Cato fizeram uma ronda às defesas, para se assegurarem de que existiam reservas suficientes e rapidamente disponíveis de setas, metralha para as fundas e
outros mísseis, no caso de surgirem novos ataques. Quase no fim do reconhecimento, quando estavam no cimo da torre sinaleira e olhavam para os telhados da cidade,
Cato coçou o pescoço e lançou uma pergunta.
- O que acha que eles vão fazer a seguir?
- Depende. Podem deixar-se ficar muito quietinhos e tentar que a fome nos vença, ou esperar que os partos cheguem com os seus especialistas em cercos e algum equipamento.
Ou então podem fazer um aríete melhorzinho e voltar a tentar derrubar os portões.
- O que faria no lugar deles?
- Eu? - Macro pensou durante algum tempo. - Bom, julgaria que a chegâda de uma coluna romana, por pequena que fosse, enviada para auxiliar o Vabathus, era um sinal
do empenhamento romano nesta questão.
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Portanto, estaria à espera de ver chegar uma força bastante mais numerosa. O que significaria que tinha pouco tempo para tomar a cidadela. - Virou-se para Cato.
- Ou seja, atacaria novamente, assim que pudesse.
Cato assentiu.
- Também eu. - Lançou uma olhadela rápida sobre o ombro, mas os outros homens no cimo da torre estavam junto às ameias do outro lado, concentrados num jogo de dados.
- E uma coisa que me animaria era saber que existe algum grau de discordância entre os defensores.
- E como pode o Artaxes saber disso?
- Ora, ele é da família. Sabe muito bem da profunda divisão que existe entre os seus irmãos, e da pouca fé que o pai tem em qualquer um deles. Além disso, também
deve saber que o Balthus não é propriamente um admirador de Roma, e que não deve estar muito agradado com a nossa presença na cidade. E ainda há mais uma coisa.
Se algum dos nobres ou dos refugiados começar a desconfiar que o rei não vai conseguir derrotar o Artaxes, pode muito bem achar que terá mais a ganhar se se juntar
a ele, e trair-nos. A perspectiva de alguma recompensa pode muito bem ser mais um incentivo à traição. - Cato sorriu sem vontade. - Não é a melhor situação em que
já nos vimos metidos.
- Também não é a pior.
- Talvez não.
Macro lançou um olhar ao amigo, como que a avaliá-lo.
- O que foi? - Estranhou Cato. - O que se passa?
- Estou muito contente por te ter a ti e à tua mente tortuosa do meu lado. É como disse à rapariga: és um soldado pensador, um tipo inteligente.
- Qual rapariga?
- A do hospital. A que tratou das minhas feridas. A filha do embaixador, Júlia Semprónia.
Cato sentiu as tripas liquefazerem-se com os nervos.
- Estiveram a falar de mim?
- Mais ou menos. Ela fartou-se de fazer perguntas.
- Sobre mim?
- Sim. E depois? Não lhe disse nada que não pudesses contar tu mesmo.
Cato sentiu-se muito pouco certo disso. Julgava conhecer Macro o suficiente para recear que Júlia lhe tivesse conseguido arrancar alguma indiscrição, pequena ou
grande.
- O que é que ela queria saber?
- O que é que eu achava de ti. Se eras casado, ou se tinhas uma mulher algures à tua espera.
- E o que lhe disse?
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- Que não existia ninguém neste momento, e que portanto estavas disponível.
Cato engoliu em seco, exasperado.
- Disse-lhe isso?
- Claro que disse! - Macro deu-lhe uma palmada no ombro. - É uma miúda muito gira. Um bocado empertigada a mais para o meu gosto, é verdade. Mais do teu tipo.
Cato cerrou os olhos e esfregou a testa.
- Por favor, por favor, diga-me que não lhe sugeriu que era boa ideia... Que ela devia dedicar-me algum tipo de afeição.
- Oh, muito bem dito! - Gozou Macro. - Muito romântico. Mas ouve lá, por que género de idiota me tomas? Só mencionei que estavas livre de compromissos, e que serias
uma boa companhia. Cato, isto não é uma festa de miúdos. As hipóteses são de que não consigamos aguentar o Artaxes muito mais tempo. E se assim for, o que tem ela
a perder? Aliás, o que tens tu a perder? Parece-me bem que ela tem um fraquinho por ti. Se tu também estás interessado nela, mexe-te enquanto é tempo.
- E se conseguirmos sobreviver a isto? Faço o quê? - Cato imaginava facilmente o constrangimento de uma relação forjada à beira do abismo, cujos intervenientes acabavam
por se safar para regressar ao velho mundo feito de rotinas e sossego. E isso se Júlia não se limitasse a pô-lo no seu lugar, logo para começar.
Macro bocejou.
- Bom, podes sempre transformá-la numa mulher honesta.
Encararam-se por momentos, até que Macro desatou às gargalhadas.
- Estava a brincar!
- Engraçadinho. - Resmungou Cato, sombriamente. Mas não conseguiu evitar que a mera sugestão de um casamento com Júlia lhe preenchesse a mente por momentos e lhe
fizesse o coração sentir-se leve como uma pluma. Logo se amaldiçoou por ceder a um sonho tão idiota. O que poderia uma aristocrata romana ver no filho de um liberto?
Era impensável; mas ainda assim...
Cato afastou-se deliberadamente do parapeito e compôs a expressão facial.
- Senhor, creio que terminámos por aqui. Tenho que proceder a um inventário do armamento da minha coorte.
- Um inventário do equipamento? - Macro tentou não sorrir perante a óbvia tentativa do amigo para evitar a continuação da discussão sobre aquele tema. Resolveu imitar
o tom formal do jovem. - Muito bem, prefeito Cato, prossiga.
Trocaram uma saudação formal, e enquanto Cato se virava e marchava
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rigidamente para os seus supostos afazeres, Macro abanou a cabeça e murmurou para si próprio.
- Este está apanhadinho de todo...
Pouco depois do meio-dia, um mensageiro do rei Vabathus chegou aos aposentos improvisados que eram partilhados por Macro e Cato. O jovem tinha finalmente dado por
terminadas as suas inspecções e tinha-se relutantemente juntado a Macro no fresco interior da cidadela, para evitar o calor e a luz ofuscante do sol a pino.
- Sua Majestade solicita a vossa presença numa modesta recepção que oferece em vossa honra esta noite. - Explicou o servo real. - Ao pôr-do-sol. Em traje de gala,
por favor.
- Traje de gala? - A expressão de Macro toldou-se. Fez um gesto a indicar a túnica gasta e suja e as botas cobertas de pó. - Isto é tudo o que temos para vestir.
Quando deixámos Antióquia foi a caminho da guerra, foda-se, não foi para irmos a um jantar de gala.
O servo inclinou a cabeça e retorquiu.
- O ministro de Sua Majestade sugere que, quanto às roupas, peçam a assistência do embaixador romano. Sua Excelência Lúcio Semprónio já fez saber que gostaria de
vos fornecer túnicas, togas e sandálias.
- Oh, muito bem. - Resmungou Macro. - Lá estaremos então. Podes ir.
O servo fez uma profunda vénia e recuou até sair do quarto, cerrando a porta atrás de si. Macro voltou a recostar-se no colchão, cruzou os braços por trás da cabeça
e contemplou as tábuas do tecto.
- Ora cá estamos, cercados por ferozes inimigos, e lá vamos nós todos aperaltados a um jantar de gala. Bem, ao menos sempre será uma mudança de ementa, estou farto
de carne de cavalo.
- Suponho que sim. - Respondeu Cato. - Mas parece-me é que não há-de ser lá grande coisa para o moral das pessoas aqui na cidadela, saber que o rei e o seu círculo
participam em festins enquanto eles sobrevivem com rações contadas.
Macro e Cato chegaram ao recinto real quando o Sol já se inclinava para o horizonte e banhava a cidade num brilho alaranjado. Na parte de trás da cidadela, encravado
entre a muralha e o edifício principal, havia um pequeno jardim com colunas a ornamentar os lados abertos. As sombras eram providenciadas pela abundante vegetação,
entre a qual se viam pequenas árvores e arbustos, e havia inúmeros canteiros de flores. Um escravo regava as plantas quando os oficiais romanos fizeram a sua entrada,
e Cato não pôde deixar de se perguntar qual seria o sentido de prioridades do rei.
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No outro lado, com vista para a muralha e para o oásis que se estendia lá em baixo, tinha sido colocado um bom número de poltronas em volta de mesas baixas. Uma
cobertura tinha sido estendida sobre a área, e a leve brisa do deserto fazia-a ondular e esvoaçar. A maior parte dos convidados já tinha chegado. Cato reconheceu
alguns dos nobres, bem como Themon, Balthus, Amethus, Semprónio e a filha.
Sentiu o pulso acelerar quando a avistou, mas quando ela o procurou com o olhar ele preferiu fingir que observava os outros convidados. Notou que Balthus se aproximava
de Júlia, a cumprimentava com uma vénia graciosa e começava a conversar com ela.
Semprónio sorriu ao reparar nos dois oficiais e veio ter com eles.
- Centurião Macro, noto que a minha túnica te fica um tanto justa nos ombros.
Macro agitou os braços.
- É suficientemente confortável, senhor. Cá me arranjarei. Mas obrigado por nos ter acudido.
- Foi um prazer. - Semprónio virou-se para Cato. - Tu, por outro lado, pareces ter sido feito de encomenda para as minhas roupas. Ficam-te melhor a ti do que a mim.
Cato mostrou-se constrangido perante o elogio, e Semprónio voltou a sorrir.
- Não te habitues demasiado a elas. Hei-de querê-las de volta. Bom, mas deixem-me conduzir-vos aos vossos lugares. - Colocou uma mão no ombro de cada um dos homens
e indicou-lhes as posições que lhes estavam reservadas. - O rei, quando se juntar a nós, ocupará a cabeceira da mesa principal. Thermon e os príncipes ficarão à
sua esquerda, e vocês ficarão nos lugares de honra, à direita do rei. Eu e a minha filha ficaremos do outro lado. Os locais não aprovam normalmente a presença de
mulheres à mesa com os homens, mas abriram uma excepção no caso da Júlia.
- Muito simpático da parte deles. - Ironizou Macro.
- Suponho que sim, mas parece-me que se deve sobretudo ao facto de Balthus estar interessado nela.
- Deveras? - Macro olhou para Cato e ergueu uma sobrancelha. - É compreensível, senhor. É uma jovem encantadora. Qualquer homem com juízo se sentiria orgulhoso de
a ter como esposa.
Cato encarou o amigo, irritado, enquanto Semprónio franzia também o sobrolho e comentava com evidente tristeza.
- Quem me dera que esses sentimentos tivessem sido partilhados pelo seu antigo marido. Mas é verdade que o príncipe parece gostar bastante dela, e isso pode ser-nos
útil.
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- Útil? - Cato mostrou-se chocado pela escolha de palavras do embaixador.
- Claro. No pé em que estão as coisas, qualquer influência que eu consiga ter sobre o Balthus ou qualquer um deles é preciosa. Portanto, por favor, esta noite pensem
como diplomatas, e não como...
- Soldados? - Sugeriu Macro.
Semprónio anuiu.
- Se não for pedir-vos demasiado. Pelo Imperador.
Macro assumiu uma expressão solene.
- Nesse caso, suponho que sim, que posso tentar evitar qualquer tipo de comportamento que possa provocar escândalo; mas não posso falar em nome do meu amigo Cato.
É com ele que deve ter cuidado.
- A sério? - Semprónio olhou para Cato com espanto.
- Não lhe ligue. - Comentou Cato. - Ignore-o, por favor.
Nessa altura, Thermon bateu com o bastão no chão, e as conversas morreram repentinamente, já que todos os nobres palmirenses se viraram para a entrada e inclinaram
as cabeças. Semprónio, por gestos, incitou os seus dois companheiros a imitarem-nos. Depois de um momento de pausa solene, o rei Vabathus fez a sua entrada. Abriu
caminho por entre o pequeno grupo de convidados e instalou-se no cadeirão real. Thermon aguardou que o seu soberano se acomodasse antes de voltar a bater com o bastão
no solo.
- Podem sentar-se!
Os convidados apressaram-se a tomar os seus lugares, e o murmúrio das conversas foi gradualmente subindo de volume. Macro e Cato, deitados nas suas poltronas à direita
do rei, mantiveram-se calados, à espera de serem interpelados pelo monarca. Vabathus olhou-os por momentos e pigarreou.
- Romanos, têm toda a minha gratidão, pela magnífica defesa dos portões da cidadela que conduziram esta manhã.
Macro inclinou a cabeça.
- Muito obrigado, Majestade, mas nada mais fizemos do que o nosso dever.
O rei fez um gesto vago na direcção do braço do centurião.
- Estás ferido?
Macro abanou a cabeça.
- Apenas umas leves queimaduras, senhor. Daqui a poucos dias estarão saradas.
- Estou a ver. - O rei olhou para lá de Macro, para se dirigir a Cato.
- Etu?
- Majestade?
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- Estás ferido?
- Não, Majestade. Hoje nada me aconteceu.
- Ah. - O rei fez um leve gesto de alívio com a cabeça e deixou transparecer uma expressão ausente, olhando por sobre a muralha para o oásis. O brilho do Sol mal
sublinhava o horizonte, e longas sombras cobriam a areia e as escuras folhagens das palmeiras. Macro aguardou algum tempo, para o caso de o rei desejar fazer mais
algum comentário, e depois virou-se para Cato, comentando a situação com um ligeiro movimento da cabeça. Mas o jovem já estava focado noutros convidados. Júlia estava
ao lado do pai, e Cato sentiu-se aliviado por a ver temporariamente separada do príncipe Balthus.
- Diz-me, prefeito. - Semprónio falou em grego, usando um tom de voz adequado para que todos os convidados o ouvissem. - Os rebeldes deram-vos muito trabalho?
Cato não conseguiu evitar um leve sorriso ao reparar na pergunta quase ensaiada, e teve o cuidado de falar em tom perfeitamente audível.
- A maioria não passa de rufiões armados, uma turba sem grande capacidade militar. Desses nada há a temer. Quanto aos outros, estou seguro de que poderemos enfrentar
os soldados do príncipe Artaxes sempre que eles tiverem estômago para nos atacar. Mas duvido que o façam de novo nos próximos dias.
Semprónio assentiu, agradado com a resposta.
- E nessa altura é de supor que o general Longino já esteja a aproximar-se da cidade com as suas legiões.
- Acredito que sim, senhor.
- Óptimo. Estamos portanto salvos. - Semprónio virou-se para olhar para o ministro, de pé a curta distância da mesa do soberano, onde passaria a noite a ordenar
e anunciar os diferentes pratos do festim. Os dois homens trocaram um aceno quase imperceptível, e Thermon bateu com o bastão e deu uma ordem dirigida a uma pequena
porta lateral. De lá emergiu imediatamente uma fila de escravos empunhando travessas com a comida. O rei foi o primeiro a ser servido, e começou a debicar algumas
iguarias de carne. Ao resto dos convidados foram servidas porções um tanto mais reduzidas em diversidade e quantidade. Macro soergueu-se sobre os cotovelos e contemplou
o que lhe tinha sido oferecido.
- Salsichas de cavalo, bifes de cavalo, costeletas de cavalo em mel...
- Forçou-se a sorrir e anunciou em voz alta. - As melhores rações dos últimos meses. - Fez uma pausa ao reparar numa terrina repleta do que parecia uma curiosa fruta
fibrosa e branca. Dirigiu-se a Semprónio. - Perdoe-me, senhor. Sabe o que é aquilo?
- Isto? - O embaixador deitou um olhar à terrina e sorriu ligeiramente.
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- Claro que sei. São uma iguaria local, centurião. Devias experimentar. Mas lembra-te de usar sempre a mão direita. - Adicionou, enquanto Macro se inclinava para
a terrina.
- Uma iguaria, com que então? - Macro não escondia a gulodice. - O meu género de comida preferido.
Extraiu uma das bolas da terrina. Quando olhou para aquilo que tinha na mão a sua expressão de prazer ficou congelada.
- Parece um olho.
- E é. Para ser mais preciso, é um olho de carneiro.
- Olho de carneiro? Pelos deuses! E chamam a isso uma iguaria?
- Sim, tens que experimentar. - Insistiu Semprónio. - Tal como tu, prefeito, se não quiserem ofender mortalmente os nossos anfitriões.
- O quê? - Respondeu Cato, já agoniado. Havia porém uma expressão de seriedade na face do embaixador. Isso não impediu o jovem de abanar a cabeça. - Não consigo.
Apesar das suas próprias reservas, expressas um momento antes, Macro não se conteve perante a possibilidade de gozar com o asco demonstrado pelo amigo. Inclinou-se
novamente para a frente e apanhou outro olho.
- Ora cá está, este parece bem apetitoso. - Ofereceu-o na direcção de Cato, que tentou recuar sem dar muito nas vistas. Mas apercebeu-se de que os outros convivas
os observavam, expectantes, e resolveu-se a aceitar a oferta. Macro olhou para ele divertido, e depois piscou o olho.
- Goela abaixo! - Com um movimento rápido, Macro colocou o olho que ainda segurava na boca e fez um gesto de morder antes de engolir e lamber os lábios. - Delicioso.
Cato sentiu-se agoniado, mas não se atreveu a rejeitar a comida, por receio de causar alguma ofensa. Engoliu em seco, e depois de uma curta batalha com o seu próprio
estômago e a vontade que este manifestava de enviar de volta o seu conteúdo, levou o globo ocular aos lábios e forçou-o a entrar na boca. O tecido muscular que rodeava
o globo era rijo e viscoso, e sabia vagamente a vinagre. Experimentou a textura com os dentes, verificando que era tão dura e borrachenta como temera. Convocando
toda a sua coragem, obrigou a horrível vitualha a ir para o fundo da boca, e engoliu.
Os convivas aplaudiram-no, sorrindo, alguns mostrando-lhe os olhos que se preparavam para consumir, como se fossem uma bebida apropriada a um brinde. Cato agarrou
no cálice de vinho que lhe tinha sido servido e bebeu sem pudor, fazendo o vinho circular em redor dos dentes e gengivas de forma a erradicar qualquer sinal do sabor
do olho.
- Bravo.
Cato virou-se e avistou Júlia a cumprimentá-lo com um gesto da cabeça. Obrigou-se a sorrir em resposta, e retorquiu em latim.
240
- Não é assim tão mau quando experimentamos.
- Se o dizes. Agora experimenta as carnes doces. Vão ajudar-te a tirar aquilo da cabeça.
À medida que os convidados se dedicavam às vitualhas e estabeleciam conversas mais ou menos animadas, Cato afastou por momentos o olhar de Júlia e fixou a sua atenção
nos dois príncipes, sentados lado a lado mas sem se falarem, sem sequer olharem um para o outro. Tinha sido um erro colocá-los lado a lado, decidiu. O ministro tinha
tentado obviamente dar uma imagem de união e solidariedade perante os convidados, mas o facto era evidente para todos - os dois irmãos desprezavam-se mutuamente.
Macro tinha seguido o olhar do amigo e adivinhara-lhe os pensamentos.
- Lá se vai a ilusão de unidade. - Comentou em voz baixa. - Parece-me bem que vamos ter que combater em duas frentes, daqui a pouco tempo.
- Esperemos bem que não. - Cato mudou de posição e serviu-se de alguns pedaços de carne de cavalo com especiarias e molho, antes que Macro se lembrasse de lhe pôr
à frente outro olho de carneiro.
O rei agitou-se e virou-se novamente para os seus convidados romanos.
- Embaixador, és um homem de sorte.
- Porquê, Majestade?
- Tens uma filha maravilhosa. E cuja lealdade é absoluta e evidente.
- Assim gosto de pensar. - Semprónio sorriu e deu um toque amigável no braço de Júlia.
- Exactamente. - Prosseguiu o rei. - Por vezes bem desejava ter tido filhas, em vez de dois filhos mais novos que se combatem como um par de lobos num fosso. E sempre
assim foi. Quando não lutam um contra o outro, é apenas porque resolveram desafiar-me a mim. Quanto ao Amethus - bem, pode não ter juízo, mas ao menos tem um bom
coração.
Cato ficou assombrado perante a franqueza do idoso monarca na presença dos seus filhos. Reparou que, por trás de Vabathus, Balthus mantinha o olhar rigidamente fixo
no infinito enquanto comia sem a mínima ponta de entusiasmo. Amethus, por seu lado, tinha fitado o pai ao escutar as suas palavras, e pouco a pouco a sua expressão
ausente transformava-se numa máscara de ira.
Vabathus prosseguiu em tom cansado.
- Tal tem sido o fardo que carrego, eu e todo o meu povo. Quem herdará o trono quando eu partir? O mais capaz e amado dos três revelou-se um traidor, o mais velho
muda de opinião mais depressa do que o vento muda de direcção, e Balthus nada mais persegue do que o seu prazer,
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esquecendo tudo o resto. Se escolher qualquer um deles para meu sucessor, o que será do meu reino?
Nesse instante o príncipe Balthus pousou com estrépito a sua taça.
- Basta! Pai, julgas-me mal! Tudo o que sempre tentei foi agradar-te.
Apesar da agitação dos convivas e do fim súbito de todas as conversas,
a expressão do rei não se alterou; o ar fatigado revelava que nem se tinha dado ao trabalho de escutar as palavras do filho, talvez por as ter ouvido com demasiada
frequência.
- Se encontras tantos defeitos nos teus filhos, digo eu que isso se deve apenas a ti, por não teres já resolvido a questão da sucessão. - Continuou o príncipe. -
Apesar de não ser o mais velho, sou eu o teu sucessor natural. E se o tivesses confirmado como devias, nada disto teria acontecido. Mas não, preferiste sempre adiar.
Ano após ano, até que nos vimos nesta situação. Porque pensas tu que Artaxes e os seus rebeldes estão lá fora a cercar-nos? Durante demasiado tempo deixaste-o a
pensar na possibilidade de subir ao trono. Tentaste-o, até que a paciência dele se esgotou. Se me tivesses designado, Artaxes saberia qual é o seu lugar, e não estaria
lá fora com um exército, e nós não estaríamos metidos nesta armadilha... - Balthus fechou os olhos e cerrou os punhos, numa tentativa de controlar a ira que sentia.
Vabathus suspirou.
- Meu filho, já terminaste? - Quando não houve resposta, o rei fez um gesto significativo para Semprónio. - Vês? Que esperança pode existir para Palmira?
- Majestade, há sempre esperança. - Retorquiu Semprónio, suavemente. - Estou certo de que quem quer que vos suceda poderá contar com a amizade e o apoio de Roma.
O Império nunca abandona os seus aliados.
O príncipe Balthus soltou uma gargalhada, e virou-se também para o embaixador.
- É curioso como tão frequentemente aqueles que foram um dia aliados de Roma se tornam rapidamente nas novas províncias imperiais. Se este tolo suceder ao rei, mais
vale entregar de imediato Palmira nas mãos dos colectores de impostos e das legiões de Roma.
Amethus ergueu-se do assento e encarou o pai de rosto franzido.
- Sem tino... Foi o que disseste. Sem tino. Desmiolado. Deixa-me dizer-te... Estou farto disso. Não sou nenhum idiota. Até posso não ter intel... - Fez uma pausa
e franziu o sobrolho, concentrado. - Inteli...
- Intelecto? - Sugeriu Balthus. - Inteligência?
Amethus acenou vigorosamente.
- Isso! É precisamente essa a palavra.
- Qual delas?
- Ambas. Uma delas. Seja como for, o que interessa é que tenho um
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bom coração. Distingo perfeitamente o que está certo do que está errado, e seria um bom rei. Foi o que disse o Krathos. Portanto, já chega de me tratarem como um
tolo!
Amethus virou-se e saiu disparado pela porta de cerimónia, deixando os outros convivas chocados pela clareza com que tinham sido expostas as divergências entre ele,
o pai e o príncipe Balthus.
Vabathus abanou a cabeça, pesaroso.
- Estão a ver o que tenho que aturar? Vêem o meu dilema? Só me apetece chorar pela sorte do meu povo.
Cato e Macro tinham ficado tão surpresos como os demais, e agora um silêncio embaraçado tinha-se abatido sobre todos os convidados deitados em volta das mesas do
banquete. Por fim Semprónio pigarreou e falou no tom mais razoável que conseguiu convocar.
- Majestade, foi um longo dia. Todos estão exaustos.
- Sim. - O rei sorriu. - Demasiado fatigados para conseguirem dar descanso às línguas.
- Talvez fosse portanto melhor se todos nos retirássemos. Estou seguro de que o centurião Macro e o prefeito Cato estão agradecidos pela honra que Vossa Majestade
lhes concedeu esta noite, e não têm qualquer objecção a que o banquete seja abreviado, de forma a que as emoções possam arrefecer.
- Tens razão. - Admitiu o rei. - Será melhor assim.
Os convivas começaram a levantar-se para se retirarem da presença do monarca. Balthus acompanhou-os. Macro olhou em redor e pegou rapidamente num cesto de pão, começando
a enchê-lo com a comida espalhada e abandonada noutros pratos.
- Cato, dá aqui uma ajuda.
Cato franziu o sobrolho.
- Não sei bem se este é o lugar ou o momento de recolher comida dessa maneira.
- Bom, se não for agora, quando será? Faz como queiras. - Macro limpou mais alguns pratos, aconchegou o cesto no colo e virou-se para o rei.
- Hum, mais uma vez, muito obrigado, Majestade.
Vabathus deu sinal de mal o ter escutado, levantando os dedos e continuando a mastigar lentamente, perdido nos seus pensamentos. Os romanos foram praticamente os
últimos a sair, e quando chegaram à entrada do jardim Cato olhou para trás e viu a figura solitária do rei sentado frente a uma assembleia vazia, apenas ladeado
pelo seu ministro, na mesma posição em que estivera todo o serão, fazendo-lhe companhia. A noite já caíra e os céus estavam salpicados de estrelas. Perto do horizonte,
uma Lua quase cheia nascia sobre o deserto, banhando-o numa luz azulada e etérea.
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Cato juntou-se aos outros.
- Mesmo que consigamos aguentar até à chegada de Longino, o que vai acontecer a Palmira?
Semprónio abanou a cabeça.
- Não faço ideia. Se Vabathus não escolher um herdeiro com quem possamos conversar, Roma terá que intervir.
- Intervir?
Semprónio olhou em redor, preocupado, e baixou a voz.
- Anexar o reino, transformá-lo em mais uma província. Que mais poderemos fazer?
Macro assentiu.
- Com aqueles dois filhos, não me parece que haja outra alternativa.
Enquanto percorriam o corredor que os levaria a deixar os aposentos do
rei, Cato viu-se a caminhar ao lado de Júlia. O aroma que se desprendia dela fazia com que o seu corpo fosse percorrido por um tremor de desejo, e o coração batia-lhe
com toda a força. O que mais desejava no mundo era convidá-la a ir de novo até à torre sinaleira e a apreciar a cidade e a paisagem em redor. Desta vez não seria
surpreendido pela sua aparição, e as coisas correriam melhor. Tinha-se apercebido de que ela tinha de facto alguma inclinação por ele, e a necessidade de saber se
estava certo roía-o incessantemente.
Chegaram ao fundo do corredor, e ao arco que dava para a área pavimentada entre os edifícios e o portão da cidadela. Os aposentos do embaixador ficavam numa direcção,
e os de Macro e Cato na outra.
Semprónio deteve-se e apertou os braços aos dois oficiais.
- Excelente trabalho, esta manhã. Quando regressar a Roma, garanto-vos que informarei o Imperador das vossas acções.
- Muito obrigado, senhor. - Retorquiu Macro.
Cato agradeceu também com um gesto da cabeça.
- Bom, então muito boa noite. Vamos, minha querida. - O embaixador e a filha começaram a afastar-se.
- Júlia. - Soltou Cato. Eles pararam.
- Sim?
- Queria... Gostava de saber se me daria a honra de passear um pouco na minha companhia. - Cato fez uma careta perante a sua própria escolha de palavras.
- Passear contigo? - Júlia arqueou uma das suas delicadas sobrancelhas. - Aonde?
- Ah! Hum, pois, ao mesmo sítio de ontem, pelo menos era essa a minha ideia.
Semprónio virou-se para a filha e sorriu ao fazer-lhe uma carícia na face.
- Vês, eu bem te dizia que o prefeito estava de olho em ti. Vai, minha
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filha. Passeiem, conversem, mas nada mais, espero. Cato, confio em que sejas um homem honrado.
- Sim, senhor.
Semprónio encarou-o com firmeza, e deixou transparecer um lampejo de ansiedade antes de sorrir.
- Boa noite a todos, então.
Virou-se e seguiu a caminho dos seus aposentos, sob o luar. Macro ajeitou o peso, embaraçado.
- Bom, também me vou. Até logo, Cato. E boa noite, senhora. Até amanhã. - Virou-se, deu alguns passos e fez uma pausa. - Queres que te guarde alguma comida?
- Não, obrigado. Não tenho fome.
- Seja. Porta-te bem. - Macro acenou e afastou-se pela escuridão. Cato e Júlia ficaram a escutar os passos dele e viraram-se um para o outro com timidez nos olhares.
Os lábios de Júlia abriram-se num sorriso.
- Agora que os nossos pais se foram...
Riram ambos, e Cato pegou-lhe no braço e orientou-a.
- Vamos, então.
Toda a ansiedade tinha desaparecido de repente, e em seu lugar tinha surgido uma alegria imensa, o prazer de estar com ela, mesmo ali na cidadela sitiada, saboreando
o calor e a suavidade do braço dela contra o seu no ar frio da noite. Andaram alguns passos em silêncio até que Júlia falou.
- Tenho tanta pena dele.
- Hum?
- Do rei Vabathus. Parece tão cansado, tão tristonho.
- Sim. - Comentou Cato, com ar vago. O comentário dela tinha-o despertado do seu sonho e agora a perspectiva dos dias difíceis que se aproximavam caíra sobre ele
como um manto pesado. - Não deve ser fácil para ele, mas tem que se manter firme, para o bem de todos nós. Se permitir que a situação na cidadela o deite abaixo,
é como se o Artaxes já tivesse triunfado, e nós... - Não conseguiu completar a frase, já que a visão de Júlia entre os romanos massacrados lhe passou pela mente.
- Bom, seja como for, não vamos pensar nisso agora. É cedo, e há tanta coisa para dizer.
- Como por exemplo?
Cato riu.
- Não sei. Nada... Tudo. Sei lá.
- Bom, bom. - Júlia franziu o sobrolho. - Isso não me parece nada claro. Mas tenho a certeza de que encontraremos algum tema interessante. - Deu-lhe um pequeno aperto
no braço enquanto chegavam à base da torre e entravam na passagem escura que dava acesso às escadas.
- Cuidado. - Avisou Cato. - Está escuro como breu aqui dentro.
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Júlia avançou à frente, sem temor.
- Cobarde. Não há nada a...
Deu um grito agudo e tombou para a frente.
- Júlia! - Cato apressou-se, tentando apanhá-la pelo braço. Ao senti-lo, fechou os dedos e pô-la de pé, enquanto ao mesmo tempo a puxava para fora da escuridão.
Ela estava abalada, e Cato apercebeu-se de uma mancha escura na frente da estola que ela envergava.
- Está ali alguém no chão. - A voz tremia-lhe. - Tropecei no corpo.
- Fique aqui. Vou ver.
Cato agachou-se e voltou a entrar, apalpando o solo. Os dedos roçaram por um tecido, e ele continuou às apalpadelas até encontrar um membro, uma perna enfiada numa
bota de material fino. Agarrou no calcanhar, puxou o cadáver para uma zona iluminada pelo luar e endireitou-se. A roupa escura que o homem envergava cobria-lhe a
cabeça.
- Quem é? - Perguntou Júlia. - Está... Morto?
- Só há uma maneira de descobrir. - Respondeu Cato, enquanto se debruçava e afastava a dobra de tecido que cobria a face. O cabelo escuro ondulado e as feições cuidadas
de um nobre surgiram à luz. Cato continuou a puxar o tecido, revelando o corte selvagem que lhe rasgara a garganta. As vestes estavam ensopadas em sangue e rebrilhavam
ao luar.
Júlia levou as mãos à boca.
- Oh, não... O príncipe Amethus.
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O corpo jazia agora sobre uma mesa baixa na sala da guarda, junto ao portão. Cato apressara-se a procurar Macro e os dois juntos tinham levado para ali o cadáver.
Júlia chegara logo a seguir, depois de ter ido buscar o pai.
- Então é mesmo verdade. - O embaixador meneou a cabeça enquanto afastava a mortalha improvisada e contemplava as feições do morto, manchadas de sangue. - O príncipe
Amethus.
Júlia deu uma olhadela ao rosto do príncipe e desviou rapidamente a vista.
- Pobre homem.
Semprónio ajeitou as roupas de forma a tapar a obscena ferida na garganta de Amethus, mas deixou-lhe o rosto descoberto.
- Isto complica a situação. E não é pouco.
- A sério? - Macro cruzou os braços. - A mim parece-me que a torna mais simples. Vejamos: um dos filhos tenta derrubar o pai, outro está morto, portanto o caminho
para o trono está desimpedido e à mercê do príncipe Balthus. O que o torna no mais óbvio suspeito deste assassínio, não acham?
- Precisamente.
Cato recordou rapidamente os momentos finais do banquete e abanou a cabeça.
- Não. O Balthus foi dos últimos a sair. Mesmo antes de nós, e na companhia de alguns nobres. Não pode ter sido ele. Não teria tido tempo.
- Pode ser que sim. - Admitiu Macro. - Ainda assim, parece-me evidente. Estava a tratar de arranjar um álibi, enquanto alguém se encarregava do assunto, em obediência
a ordens suas. O Balthus está por trás disto, sem qualquer dúvida. Motivo não lhe falta, e dos grandes. Lembras-te do que ele nos disse enquanto vínhamos para cá,
Cato? Aquela ideia de tomar o trono e despachar o irmão, com o nosso apoio. Ao que parece, está farto de esperar.
Cato anuiu lentamente, enquanto ponderava os pormenores.
- De facto, tudo o parece indicar.
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- Indicar? - Macro franziu o sobrolho. - Quem mais é que poderia estar por trás disto?
- Não faço ideia.
- Enviaram alguém a avisar o rei? - Inquiriu Semprónio.
- Não. - Respondeu Cato. - Pareceu-nos melhor informá-lo primeiro a si, senhor. De forma a estar preparado.
- Preparado? - Semprónio arqueou as sobrancelhas. - Preparado para quê? Com certeza não pensam que eu tive alguma coisa a ver com isto?
- Partimos do princípio de que não tem, senhor. Mas é sempre melhor ter tempo para considerar uma situação antes de ter que tomar medidas quanto a ela.
- Aí têm razão. Seja como for, temos que dizer ao rei. Prefeito, vê se encontras o Thermon. Diz-lhe o que se passou e pede-lhe que informe o rei de imediato. Depois,
coloca alguns dos teus homens de confiança à porta dos aposentos do príncipe Balthus. Não é preciso imporem-se. Só quero que o vigiem e reparem se ocorrer alguma
actividade suspeita, percebido?
- Sim, senhor.
- Então trata disso.
- Júlia. - Semprónio desfez as dobras da toga e atirou-a para o lado.
- Ajuda-me a limpar o corpo. Não me parece que o rei deva ver o filho nestas condições.
- Sim, pai. - Júlia trocou um último olhar com Cato mesmo antes de este se virar a caminho da porta. Abanou a cabeça, lamentando a oportunidade perdida, e Cato acenou-lhe,
mostrando a sua compreensão. Depois deixou a sala da guarda.
Thermon ainda estava vestido quando assomou à porta dos seus aposentos em resposta ao raspar de Cato na porta.
- Prefeito? O que se passa?
Cato acenou na direcção do guarda que o tinha escoltado desde a entrada dos aposentos reais.
- Em privado.
Thermon dispensou o guarda e, quando ficaram a sós, inclinou a cabeça em sinal de expectativa.
- Bom, o que é então?
- O príncipe Amethus está morto. Assassinado.
- Assassinado? - Thermon juntou as mãos, aterrado. - O que se passou?
- Alguém lhe cortou o pescoço. Fui eu quem encontrou o corpo. - Cato fez uma pausa, vincando o pormenor de forma a afastar qualquer suspeita. - Aliás, eu e a filha
do embaixador. Na base da torre sinaleira.
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Alguém o deve ter seguido quando ele abandonou o banquete.
Atacou-o e arrastou-o para ali antes de o liquidar.
- Como podes saber tudo isso?
- Não havia qualquer razão para o príncipe se encontrar ali, e o sangue acumulou-se junto ao corpo. Não havia sinais de luta no chão.
Thermon fez sinal de compreender a explicação.
- Já alguém deu a notícia ao rei?
- Não. É por isso que aqui estou. Semprónio considerou que seria melhor que a notícia lhe fosse transmitida por si.
- Tem provavelmente razão. Fá-lo-ei imediatamente. Onde está o corpo?
- Na casa da guarda, junto aos portões.
- Quem está lá neste momento?
- O centurião Macro, o embaixador e a filha.
- Bom, então tenta encontrar o comandante da Guarda Real e o príncipe Balthus. Eles que vão lá ter connosco.
O príncipe Balthus foi o último a chegar. Tinha mudado de indumentária, vestindo agora uma simples túnica, e era acompanhado pelo seu escravo, Carpex. Cato não lhe
indicara o motivo da convocatória, apenas lhe dissera que o ministro insistira na sua presença. Balthus irrompeu pela casa da guarda com uma expressão de irritação
no rosto.
- Por Hades, alguém se importa de me dizer o que se passa?
Um pequeno grupo rodeava a mesa, e quando todos se viraram para o recém-chegado ele avistou o cadáver sobre o qual o pai se debruçava, contemplando o rosto do falecido
filho. Balthus atravessou rapidamente a sala, travando quando reconheceu o irmão.
- Amethus? Morto?
Thermon assentiu.
- Assim é, príncipe.
O olhar de Balthus ficou por momentos preso no corpo inanimado.
- Quando é que isto aconteceu?
- Pouco depois do fim do banquete.
Cato tossicou.
- Ainda não temos a certeza. O príncipe Amethus saiu algum tempo antes do fim do banquete. O assassino podia estar à espera dele no exterior, ou então pode ser um
dos convidados que saíram logo a seguir.
- Estou a ver. - Balthus virou a atenção para o pai. Vabathus abatera-se sobre um banco, junto ao corpo, incapaz de afastar o olhar da face sem vida. Olhos abertos
mas mortiços pareciam contemplá-lo em resposta. O idoso monarca afagou carinhosamente o cabelo do filho, afastando-o da
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testa. Um dos caracóis voltou à sua posição natural quando a mão do pai lhe passou por cima. O rei sorriu tristemente.
- Sempre teve o cabelo em desalinho, mesmo quando era um miúdo... Meu filho, meu querido rapazinho.
Debruçou-se e beijou a testa do filho, antes de lhe encostar a face à cabeça, ao mesmo tempo que as lágrimas começavam a rolar pela face enrugada e curtida.
Ninguém mais falou. Todos contemplaram imóveis enquanto Vabathus lamentava o destino do filho. Por fim, Balthus ajoelhou-se do outro lado da mesa e, hesitante, avançou
uma mão para acariciar o ombro do pai.
- Pai. Tenho muita pena.
Vabathus continuou a soluçar, o peito em convulsões, completamente esquecido de todos os que o rodeavam. Mesmo uma figura tão solene como um rei se via reduzido
à mera condição de homem e pai perante o corpo de um filho morto. Cato bem queria oferecer-lhe algum consolo, alguma ajuda, mas sabia bem que mesmo naquela tão íntima
situação havia barreiras, desníveis de estatuto que não poderia nunca atravessar. Sentiu uma mão agarrar-se à sua e olhou em volta; era Júlia que o olhava de uma
forma que demonstrava claramente que também ela sentia a mesma impotência, e os mesmos sentimentos.
Por fim, Thermon quebrou o silêncio e avançou, cauteloso.
- Majestade... Há alguma coisa que possamos fazer?
Quando não houve resposta, Thermon debruçou-se mais perto do rei e voltou a falar.
- Senhor, deseja que o deixemos só?
Vabathus pestanejou, tentando secar as lágrimas, e sentou-se. O príncipe Balthus ergueu-se também. O rei franziu o sobrolho e olhou em redor, como se estivesse rodeado
por estranhos, até que o seu olhar se fixou em Thermon.
- Quem fez isto?
- Majestade, não sabemos. Acabámos de descobrir o corpo.
- Quem o encontrou?
Cato engoliu em seco, nervoso.
- Eu.
- E eu. - Acrescentou Júlia de imediato. - No interior da torre sinaleira, Majestade.
Vabathus õlhou para um e depois para o outro.
- Quando o encontraram ainda tinha algum sinal de vida?
Cato abanou solenemente a cabeça.
- Já estava morto. Nada pudemos fazer por ele.
Vabathus olhou para o corpo e depois para Thermon.
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- Quero o assassino encontrado. Não quero saber como. Não quero saber quantos suspeitos mandas torturar. Encontra o responsável.
- Sim, Majestade. Tratarei disso.
- Espero bem que sim. Alguém sofrerá as consequências! - Proclamou Vabathus. - Alguém morrerá por isto. Se não encontrares o assassino, serás executado em seu lugar.
- Senhor? - Aterrado, o ministro mal conseguia enfrentar a ira do seu soberano.
Semprónio abanou a cabeça.
- Majestade, essa é uma má decisão. Este homem está inocente. Não posso deixar de protestar perante tal ameaça.
- Romano, protesta o que quiseres. - Retorquiu Vabathus de pronto.
- Este é o meu domínio. A minha vontade é lei. Thermon fará o que lhe foi ordenado, ou pagará com a vida. Tal como o meu filho pagou. - A voz de Vabathus fraquejou
quando o seu olhar se desviou de novo para o cadáver.
- Não tive ocasião de me despedir dele. Separámo-nos em rancor, e agora ele nunca mais saberá quanto eu o amava. Como pode um pai aceitar isto? Perdi-o. Perdi-o
para sempre. - A cabeça do velho monarca descaiu, e o peito estremeceu, anunciando a chegada das lágrimas.
Balthus inspirou profundamente e falou.
- Pai, ainda me tens a mim. Estou aqui, ao teu lado.
Vabathus pareceu ter sido picado.
- Tu? Não tens para mim qualquer valor. O único dos meus filhos que é de todo incapaz de governar um reino, o meu reino, e é tudo o que me resta.
Balthus imobilizou-se, os lábios cerrados, a expressão a transformar-se à medida que o ódio o invadia.
- Pai, sou tão responsável como outro qualquer. Para estar aqui ao teu lado tive que abrir caminho de espada e arco na mão. Não é o suficiente para te convencer,
para ganhar a tua afeição, para merecer o teu respeito?
Vabathus encarou-o, antes de abanar a cabeça com amargura.
- Tudo o que queres é o meu trono, quando eu partir. Amethus seria o rei, mas agora... - Fez um gesto na direcção do corpo, estremecendo ao reparar na ferida que
atravessava a garganta do filho. - Agora, ele partiu. Imagino que a situação te deixe satisfeito, Balthus. Mal podes esperar para te apossares da minha coroa. Vejo-o
nos teus olhos.
- Pai, perdeste um filho, mas eu perdi um irmão. Nem ao menos me permites que partilhe a tua dor? - Num gesto teatral, o príncipe Balthus estendeu os braços para
o rei. - Pai?
Por momentos, Vabathus olhou-o com uma expressão de dor no rosto.
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Mas logo os olhos se lhe semicerraram e ele afastou os braços estendidos de Balthus com uma estalada, repelindo-o.
- Víbora, como te atreves? Pelo que sei, és tu quem está por trás disto. Tu e estes teus amigos romanos.
- Amigos romanos? - Balthus abanou a cabeça. - Pai, acusas-me deste assassínio? Do meu próprio irmão? Carne da minha carne? Como poderia eu ser capaz disso?
- Conheço-te. Conheço a tua ambição. Nada mais desejas, além do meu trono. - O olhar do rei saltou para o embaixador e para os outros romanos na sala, e Cato não
deixou de reparar no medo que eles mostravam.
- Inimigos, estou rodeado de inimigos.
Semprónio voltou a abanar a cabeça.
- Majestade, asseguro-lhe que não somos mais do que leais aliados. Nada temos a ver com a morte do príncipe Amethus.
Vabathus encarou-o sem dar mostras de lamentar o que afirmara, e Semprónio apontou para Macro e Cato.
- Não será a presença destes dois oficiais e dos seus homens a prova do nosso empenho em ajudar o reino? Não somos inimigos de Palmira. Pela vida da minha filha,
que prezo acima de todas as coisas, juro-o.
O rei Vabathus permaneceu em silêncio alguns momentos; por fim, os ombros descaíram-lhe, e ele voltou a contemplar o cadáver.
- Deixem-me. Todos vós, deixem-me a sós.
Semprónio pareceu inclinado a dizer qualquer coisa, mas Thermon alertou-o com o olhar e um firme gesto da cabeça, apontando para a porta. O embaixador hesitou, sem
afastar os olhos do rei, mas acabou por recuar devagar e abrir a porta sem ruído, fazendo sair a filha e os dois oficiais. Thermon aguardou um momento, antes de
se dirigir a Balthus em voz baixa.
- Príncipe?
Balthus virou-se rapidamente e interpôs-se entre ele e o rei.
- Ouviste o meu pai. Sai.
- Mas... - Thermon tentou rodear o príncipe, mas Balthus bloqueou-lhe a passagem.
- Sai!
O rei deu conta da agitação e levantou o olhar. Respirou fundo e soltou um grito.
- Rua! Os dois! Desapareçam da minha vista!
Balthus virou-se para ele, pronto a protestar, mas o pai apontou a porta com um dedo em riste.
- Fora!
Thermon apressou-se a obedecer, e Balthus acabou por o seguir, lançando um último olhar ao pai antes de fechar a porta.
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Lá fora, no espaço aberto em frente ao portão da cidadela, os outros esperavam, e instalou-se um silêncio embaraçoso, até Balthus falar com desprezo na voz.
- Sei o que estão a pensar. Acham que fui eu quem mandou matar o Amethus.
- Bom, foi ou não? - Questionou Cato.
- E acaso importa o que eu possa dizer? Já todos sabem aquilo em que acreditam.
Cato abanou a cabeça.
- Não, ainda não. Quero ouvi-lo dos seus próprios lábios. Matou-o?
- Não. - Retorquiu Balthus de imediato. - Pronto. Satisfeito?
Macro soltou um som desdenhoso.
- Meu amigo, isso nada prova. Se não foi você, ou alguém do seu séquito, então quem foi?
- E porque não um romano? - Balthus lançou um sorriso fúnebre.
- Talvez tu mesmo.
Macro deu uma palmada no próprio peito.
- Eu?
- Se o rei não tiver herdeiros, será muito mais fácil para Roma anexar Palmira quando o meu pai morrer. Como motivo, basta. Claro, isso implica que também terão
que se ver livres de mim.
- Príncipe, quer que acreditemos que nada tem a ganhar com a morte do seu irmão? - Contrapôs Macro. - Se excluirmos o insignificante facto de que era ele o seu único
rival à coroa.
- Centurião Macro, já chega! - Cortou Semprónio, exasperado. - Cale-se. Não está a ajudar a situação. - Virou-se para Balthus e tentou moderar o tom de voz, com
evidente esforço. - Príncipe, aceitemos para já que nenhuma das partes teve nada a ver com a morte de Amethus. Não podemos permitir que este acontecimento nos divida.
Sobretudo quando estamos cercados por um exército inimigo. Pode até achar que tem boas razões para suspeitar de nós, tal como nós as temos para suspeitar de si.
Para já, de qualquer maneira, o rei parece suspeitar de todos. Temos que pôr este assunto de lado até ao fim do cerco.
- Pôr o assunto de lado? - Balthus pareceu considerar a questão. Virou-se para Ihermon. - E tu, velho, que dizes? És o principal conselheiro do meu pai desde que
me lembro. Achas que ele vai pôr de lado o assassínio do filho?
Ihermon fez uma pausa antes de responder.
- O pensamento de Sua Majestade estará ocupado com a mágoa durante alguns dias. Depois, quando os ritos funerários estiverem completos,
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acredito que o rei não terá descanso enquanto não descobrir a identidade do assassino e vingar a morte do seu filho.
- Muito bem. - Comentou Semprónio. Temos portanto uns dias de alívio. Que não haja mais trocas de acusações entre nós. E depois do funeral, todos colaboraremos com
o rei para descobrir o assassino. Concordam?
Balthus anuiu.
- E agora, se não se importam, gostaria de regressar aos meus aposentos e chorar em privado a morte do meu irmão.
- Claro.
Balthus despediu-se de Macro e Cato com breves acenos da cabeça, antes de se dirigir a Júlia.
- Senhora, espero que quando tudo isto estiver no passado, nos possamos vir a conhecer melhor.
Júlia forçou-se a sorrir.
- Assim o espero, príncipe Balthus.
Ele pegou-lhe na mão, levantou-a e inclinou a cabeça para a beijar, deixando os lábios permanecer uns instantes sobre a pele dela. Júlia ficou imóvel até que o príncipe
lhe largou a mão, dando então um passo à retaguarda.
- Desejo-vos a todos uma boa noite. - Lançou Balthus calmamente, e retirou-se, dirigindo-se a passos largos para os seus aposentos.
Ficaram a vê-lo afastar-se, até que Cato agarrou gentilmente na mão de Júlia e murmurou.
- Está tudo bem?
Ela estremeceu.
- Aquele homem faz-me pele de galinha.
- Portaste-te bem, minha filha. - Comentou Semprónio com evidente orgulho. - Ele não percebeu os teus verdadeiros sentimentos.
- Pouco me importa que os tenha percebido.
Macro soltou o ar que tinha acumulado nas bochechas e coçou a nuca.
- Bom? Acham que foi ele? Matou o irmão?
Semprónio pensou um pouco e respondeu.
- Não há dúvidas. Só pode ter sido o Balthus.
Cato concordou.
- O que quer dizer que estamos metidos num sarilho. E bem grande. Inimigos à porta, um assassino à solta, e um aliado que suspeita que lhe matámos o filho. Os dados
estão contra nós...
Macro soltou uma gargalhada amarga.
- E desde quando é que te tornaste jogador, miúdo?
Cato manteve-se em silêncio uns segundos antes de responder.
- Desde que o conheci, senhor.
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O que é que achas que eles andam a preparar? - Perguntou Macro, enquanto esforçava a vista para tentar perceber que actividade se desenrolava na área do mercado,
para lá da ágora. Cato estava ao seu lado, no passadiço sobre os portões, protegendo os olhos do brilho do sol enquanto olhava na mesma direcção que o amigo. Os
rebeldes afadigavam-se a pouco mais de cem passos dali, e por trás do muro do pátio dos mercadores vinham os sons de madeira a ser serrada, e de marteladas.
- Provavelmente, outro aríete. - Sugeriu Cato. - Tiveram tempo mais que suficiente para arranjar material para o fazer.
Tinham passado oito dias desde a anterior tentativa de forçar os portões, e sobre a morte de Amethus. O rei tinha passado o tempo a chorar a morte do filho. Muito
mais tempo do que seria de esperar, já que, debaixo daquele calor, o corpo depressa tinha entrado em putrefacção, apesar de ter sido levado para um dos compartimentos
mais frescos nas catacumbas da cidadela. Por fim, Vabathus tinha autorizado os sacerdotes do templo de Bei a prepararem o corpo para o funeral, e uma pira tinha
sido erigida no pátio junto aos aposentos do rei. A falta de madeira tinha obrigado os servos do palácio a desmantelarem alguma da mobília e das portas, de forma
a construírem uma pira digna de um príncipe. Quando o sol se pusesse ao fim daquele dia, Amethus seria colocado na pira e esta seria acesa, de forma a que as chamas
purificassem o corpo e libertassem o espírito do príncipe, que ascenderia ao céu nocturno.
Os boatos sobre a morte do príncipe tinham-se espalhado rapidamente por entre a soldadesca e os civis na cidadela, e os diferentes campos de opinião olhavam-se com
suspeita e precaução. Cato tinha tido experiência disso em pessoa, quando tinha ido visitar Arquelau ao hospital, dois dias depois do assassínio. O mercenário grego
estava sentado sobre uma enxerga na zona dos claustros quando Cato deu com ele. Tinha múltiplas ligaduras no ombro e os olhos encovados. Cato sorriu-lhe e mostrou
o pequeno frasco de vinho que trazia consigo.
- Remédio.
Arquelau sorriu brevemente.
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- Mesmo o que eu precisava.
Cato deixou-se escorregar para o chão ao lado do tetrarca e encostou-se à muralha com um suspiro de cansaço, enquanto oferecia o frasco ao outro.
- Como vão as coisas? - Quis saber Arquelau. - Não dei por mais confusão nas muralhas.
- Pois não. Os rebeldes têm estado tranquilos. Se calhar podem dar-se a esse luxo. As nossas reservas de água e comida estão quase no fim, enquanto eles aguardam
a chegada de um exército parto para os auxiliar. A nossa única possibilidade é que Longino chegue cá antes dos partos.
- E achas isso provável? - Arquelau removeu a rolha e sorveu uma longa golfada de vinho.
- Não faço ideia. - Admitiu Cato. - Bom, e como vai o ombro?
- Dorido, romano. Para já, este braço é inútil. Não me parece que possa voltar a combater tão cedo. Tenho muito que esperar.
- Isso é mau. Precisamos de todos os homens que consigam usar uma espada ou uma lança. Mas a verdade é que, da maneira como as coisas andam, as pessoas aqui na cidadela
parecem tão capazes de as usar para se atacar umas às outras como para combater os rebeldes.
Instalou-se um silêncio desconfortável, até que Arquelau bebeu mais um gole e prosseguiu.
- Diz-se que o príncipe foi morto pelo irmão.
Cato mudou de posição, de forma a conseguir olhar de frente para o grego.
- A sério? É isso que se diz? - Encolheu os ombros. - Talvez o Balthus seja o responsável, sim. Tem de facto muito a ganhar ao livrar-se de um rival na corrida ao
trono. Mas quando o assassínio se deu, ele estava com outras pessoas.
- Então talvez seja melhor averiguar onde andava aquele escravo dele, o Carpex.
Cato pensou no assunto e concordou.
- Sim, talvez valha a pena ter uma conversinha com o Carpex. Só para ver se ele sabe alguma coisa.
- Talvez gostes também de saber que há outros que acusam um romano de ter morto o príncipe. Um dos conselheiros do rei, o Krathos, anda a espalhar essa história.
Diz que, agora que Amethus está morto, vocês vão liquidar o Balthus, e depois o próprio rei, e proclamar Palmira parte do Império.
Cato riu perante a história, mas interrompeu a hilaridade ao notar o ar com que Arquelau o observava, com uma expressão séria.
- Não me vais dizer que engoliste essa história?
Arquelau cerrou os lábios.
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- Só te estou a dizer o que tenho ouvido. Para mim, ou para a maior parte dos mercenários que compõem a guarda real, pouco importa. Só queremos receber o nosso pagamento.
O problema é que, se há alguma verdade neste boato, ficamos sem trabalho. Portanto, prefeito, muita cautela quando estiveres próximo do rei ou do príncipe. Os guardas
vão estar atentos a qualquer sinal de traição. Agirão primeiro, e farão perguntas depois.
- Só nos faltava esta. - Resmungou Cato. - Gente a perseguir fantasmas.
- Bem, alguém liquidou o príncipe. E algum motivo estará por trás disso.
Cato abanou a cabeça.
- Isto começa a ficar fora de controlo. Bem, tenho que ir. Fica com o resto do vinho. - Levantou-se e espreguiçou-se antes de acenar a Arquelau. - Cuida-te.
- Tu também, romano. E não te distraias.
- Terei cuidado. - Cato afastou-se; depois de um momento de hesitação, dirigiu-se ao compartimento ao fundo das colunas. Júlia estava a lavar ligaduras numa bacia
de bronze sob a janela quando Cato entrou.
- Nunca tiras uma folga? - Lançou o jovem.
Júlia interrompeu a tarefa e olhou sobre o ombro com um sorriso cansado.
- Não. E tu?
Enquanto Cato atravessava a sala, ela limpou as mãos na longa túnica que usava. Iluminada pela faixa de luz que entrava pela janela, ela estava radiosa, de uma forma
que Cato nunca antes vira, e o pulso acelerou-lhe enquanto se aproximava. E então aconteceu algo de completamente inesperado. Sem pensar, Cato pegou-lhe nas mãos,
inclinou-se sobre ela e beijou-lhe os lábios. Sentiu-a ficar tensa, mas logo a seguir ela derreteu-se e respondeu, pressionando os lábios contra os dele e soltando
as mãos para poder rodear-lhe as costas e puxá-lo contra ela num abraço estreito. Cato sentiu-se quase tonto, e a corrente da paixão percorreu-lhe todas as veias
do corpo. Fechou os braços em torno dela, apertando-a contra si. De súbito, ela afastou os lábios.
- Ai! Importas-te?
- O quê? O que foi?
Júlia assinalou a presença da espada à cintura de Cato, com o seu punho saliente.
- Essa coisa estava a espetar-me. Quer dizer, acho que era isso...
Cato corou.
- Desculpa. Não queria... Entusiasmei-me.
- Com toda a certeza! - Júlia beijou-o novamente, num repente. -
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Até que enfim. Perguntava-me quando é que me beijarias. Ou pelo menos, esperava que o fizesses.
Cato afagou-lhe a face com a mão, e mergulhou nos olhos dela.
- Quer dizer que sentes o mesmo que eu?
- É claro que sim, meu pateta. - Ela beijou-lhe a mão. - Muito honestamente, Cato, a maior parte dos homens mal consegue manter as mãos afastadas das mulheres. Começava
a desesperar do teu caso. Mas pronto, já sei que não és como os outros. Aliás, é disso que mais gosto em ti.
- Conhecemo-nos há tão poucos dias... Sou assim tão transparente?
- Cato sorriu, intrigado.
- Só no que me interessa. - Pegou-lhe nos ombros e puxou o rosto dele para baixo para o beijar mais uma vez, mais profunda e longamente, até que se ouviu um tossicar
embaraçado seguido de um bater na porta. Júlia afastou-se então de Cato e olhou para o médico que tentara atrair-lhe a atenção. - Sim, o que foi?
- Encontrei mais algumas ligaduras, senhora. Tem que ser lavadas.
- Óptimo. Trá-las para aqui.
- Hum... - Murmurou Cato. - Será, hum, será melhor regressar para junto dos meus homens. Ver-nos-emos de novo, em breve?
- Evidentemente. - Júlia não escondeu a surpresa. - Não te vês livre de mim assim com tanta facilidade.
Sorriu ao recordar aquele encontro e os outros, de natureza mais íntima, que lhe tinham sucedido.
- Estás-te a rir de quê? - Quis saber Macro.
- O quê? - Cato despertou das memórias que o embalavam, da esbelta silhueta de Júlia sentada ao seu lado ao luar na noite anterior, olhando as nuvens de prata a
deslizar por entre as estrelas. - Desculpe, estava distraído.
Macro olhou para o seu jovem amigo e abanou a cabeça.
- Era mesmo do que eu precisava, um fedelho perdido de amores para me secundar no comando destes tipos. Vá lá, Cato. Concentra-te no trabalho, e deixa de lado o
rabiosque da rapariga. Já temos uma boa dose de problemas. Olha para aquilo.
Cato olhou na direcção indicada e reparou numa sólida estrutura de madeira que se erguia sobre a parede do pátio dos mercadores. Finalmente conseguiu perceber o
que contemplava.
- Um onagro.
- Pois. E haverá mais. Os rebeldes construíram uma plataforma para a artilharia por trás daquele muro. Muito inteligente. Não temos forma fácil de lhes chegar, enquanto
que eles, pelo seu lado, nos têm perfeitamente ao
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alcance, do portão aos edifícios desta zona. - Macro coçou os pêlos que lhe rebentavam no queixo. - Será melhor pedir ao Balthus que coloque aqui os seus arqueiros.
E ordenar às equipas das balistas que façam tantos estragos quantos puderem e tentem perturbar-lhes as acções. Trata disso.
Quando por fim os defensores começaram a lançar uma chuva ininterrupta de mísseis sobre o inimigo já este tinha instalado oito catapultas de grande capacidade, das
quais só se conseguia ver o topo, que ultrapassava o muro que as protegia. As preparações continuaram sem grandes dificuldades, e ao anoitecer surgiram os primeiros
rastos de fumo no céu vindos da posição dos rebeldes.
- Fantástico. - Resmungou Macro. - Lá nos vão aquecer os pés outra vez.
Cato assentiu e dirigiu-se ao outro lado do passadiço para chamar o centurião Metelo, que estava encarregado dos piquetes de combate a incêndios.
- Bombardeamento incendiário. Mantém os teus homens a postos.
- Sim, senhor. - Metelo fez a saudação e afastou-se, para reunir a sua equipa, composta por soldados feridos e por civis, e para os formar. Saíram com ar fatigado
dos abrigos que tinham improvisado e apressaram-se a tomar as posições que lhes tinham sido designadas, junto aos contentores de água espalhados pelo interior das
muralhas. Alguns levavam baldes, outros apenas cobertores para abafar as chamas. Por todo o lado, os refugiados pegavam nas suas escassas posses e nas crianças e
tentavam encontrar um lugar abrigado, apinhando-se nas portas e outras entradas do edifício principal da cidadela. Apesar dos perigos que os ameaçavam, o rei Vabathus
tinha proibido os seus súbditos de entrarem nos aposentos reais. Depois do assassínio do filho tinha dobrado a guarda pessoal e raramente deixava o seu quarto, com
medo de sofrer a mesma sorte. Uma vez que todos os outros edifícios tinham sido atribuídos aos nobres e aos representantes romanos, e os antigos estábulos serviam
de casernas para os soldados que defendiam a cidadela, os civis viam-se forçados a permanecer ao relento. Mantinham-se nas sombras durante o dia e à noite tremiam
de frio, famílias inteiras a tentar sobreviver ao cerco com as suas míseras rações de água, carne de cavalo e cereal que lhes eram distribuídas todos os dias pelos
guardas do rei.
Cato conseguia ver sobre o muro do pátio dos aposentos reais, e notou que a pequena procissão fúnerária de Amethus estava a sair dos aposentos privados do rei. Depois
dos sacerdotes, que rasgavam as roupas e davam largas à mágoa em lamentos ululantes, vinham os que transportavam a urna em que jazia o corpo de Amethus, envolvido
em panos perfumados. O rei, envergando um traje negro sem adornos, fechava solenemente a procissão.
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- Não escolheram a melhor altura. - Comentou Cato para si próprio.
Não fosse a atmosfera de desconfiança e inimizade que se instalara recentemente, o príncipe Balthus teria acompanhado o pai. Ao olhar para a torre à sua direita,
Cato avistou Balthus no comando dos seus arqueiros, aparentemente sem se dar conta de que a cerimónia fúnebre do irmão se tinha iniciado. Ou talvez se desse apenas
o caso de o príncipe não ter estômago para testemunhar o funeral do irmão por cuja morte fora responsável, especulou. Mas logo afastou essa teoria. Balthus não lhe
parecia o tipo de homem que se deixasse consumir pelo remorso. Virou costas à cena e regressou para junto de Macro. Este apertava as tiras do capacete para garantir
que estava bem seguro. Ao avistar Cato, sorriu com ar cansado.
- Daqui a pouco isto vai ficar quentinho.
Nesse instante a atenção de ambos foi atraída para a posição dos rebeldes por um ruído surdo. Cato reparou que o braço de arremesso de um dos onagros estava já encostado
à barra transversal. Um projéctil em chamas descrevia um arco no céu do entardecer, deixando atrás de si um rasto negro de óleo. Os defensores conseguiram escutar
o rugir das chamas quando o projéctil lhes passou por cima das cabeças e se precipitou para o coração da cidadela. Antes que atingisse o solo, novos disparos foram
ouvidos e mais mísseis incendiários subiram pelo céu, manchando-o com o fumo que lhes marcava as trajectórias e permanecia no ar por alguns segundos, antes de se
dissipar. Os projécteis, trapos feitos numa bola e mergulhados em óleo, desfaziam-se quando embatiam nos telhados e pavimentos ou faziam ricochete nas paredes, lançando
partículas em chamas para todos os lados. O bombardeamento prosseguiu, e daí apouco o facto de as diferentes equipagens trabalharem a diferentes ritmos traduziu-se
numa chuva contínua de mísseis flamejantes.
Macro e Cato retiraram-se para as traseiras da muralha sobre o portão e avaliaram o efeito da barragem incendiária no interior da cidadela. Já tinham eclodido vários
incêndios, e as equipas de combate afadigavam-se ao redor das chamas, batendo-lhes freneticamente e deitando-lhes água por cima. Todavia, assim que um fogo parecia
controlado, e depois extinto, logo aterrava outro míssil que dava origem a um novo incêndio algures. Um dos onagros, com maior capacidade de torção, enviava os seus
projécteis mais longe para o interior da cidadela, e enquanto os dois oficiais romanos observavam, um destes precipitou-se para lá do muro do pátio real e acertou
em cheio na pira funerária. Os sacerdotes que se ocupavam naquele momento de colocar a urna no cimo da pira quase a deixaram tombar com a surpresa e o medo que o
míssil lhes provocou. Conseguiram ainda assim controlar as emoções e colocar apressadamente o corpo na posição adequada, antes de as chamas se começarem a espalhar
pela estrutura. Os
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sacerdotes praticamente saltaram da pira e voltaram a ocupar a posição que lhes era destinada, por trás do rei.
- Aquele poupou trabalho a alguém. - Considerou Macro. - Pelo menos este incêndio não vai ter que ser apagado.
- Ainda bem. O Metelo e os seus homens vão ter muito que fazer de qualquer maneira.
Macro olhou para o interior da cidadela, pesando a situação.
- E não vão conseguir resolver todos os problemas. Preciso que vás lá para baixo. Organiza a tua coorte em brigadas anti-incêndio e apaga-me aqueles fogos. Não podemos
correr o risco de algum deles se tornar incontrolável, senão os rebeldes acabam por nos assar cá dentro ou destruir-nos lá fora.
- Mas, e se eles atacam, senhor? Os meus homens serão necessários nas muralhas.
- Eu aguento-os com a minha coorte e com os homens do Balthus. - Decidiu Macro. - Vai lá fazer o que te disse.
Cato correu pelas muralhas à esquerda dos portões até avistar o centurião Parmenião.
- Diz aos homens para largarem os escudos e as lanças, e para descerem das muralhas. Temos que controlar aqueles incêndios. Passa a palavra aos outros centuriões!
- Sim, senhor.
Cato reuniu os auxiliares mais próximos e desceu rapidamente as escadas com eles atrás. Assim que alcançaram a praça pavimentada por trás dos portões conduziu-os
até ao reservatório mais próximo e à pilha de cobertores e baldes que ali tinha sido deixada.
- Peguem nisso! Encham os baldes e formem aqui!
Assim que os homens ficaram prontos, Cato pô-los a trabalhar em secções, uma para cada projéctil que atingia o solo. Assim que o apagassem, deviam regressar ao ponto
de água e esperar pelo impacto seguinte. Não teriam muito que aguardar, considerou Cato. Os rebeldes usavam as armas com uma determinação furiosa e novos incêndios
pareciam nascer por todos os cantos. Ainda assim, a decisão de Macro de reforçar as equipas de combate ao fogo com os homens de Cato significava que os defensores
eram agora capazes de controlar as deflagrações e apagá-las antes que tivessem ocasião de se propagar. A tarde foi lentamente dando lugar à noite, e o bombardeamento
prosseguiu. Só um punhado de incêndios se constituíam como ameaças sérias, por terem surgido em locais de difícil acesso para as equipas de bombeiros improvisados.
Então, quando a penumbra do entardecer envolvia já a cidade, o mais poderoso dos onagros foi reorientado, e os mísseis que enviava começaram
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a cair no pátio do hospital provisório. Cato apercebeu-se da alteração, e assim que compreendeu em que ponto estavam agora a cair os projécteis o seu coração encheu-se
de temor pela vida de Júlia. Pensou em correr até lá, só para se assegurar de que estava tudo bem com ela, mas compreendeu que não podia abandonar os seus homens
e as suas atribuições, por muito pouco tempo que gastasse. Enquanto as bolas incendiárias continuavam a tombar sobre o hospital, notou um brilho alaranjado e oscilante
que vinha dessa direcção, e depressa avistou as primeiras labaredas a subirem para o céu escuro. Sabia que não havia equipas de bombeiros colocadas mais para o interior
da cidadela, e que se aquele incêndio não fosse imediatamente atacado se propagaria rapidamente. Chamou o optio de Metelo e gritou-lhe algumas ordens.
- Ficas no comando aqui! Vou levar duas secções e ver o que se passa no hospital. - Cato indicou as chamas que já se erguiam no ar naquela direcção. - Continuem!
- Sim, senhor!
Precipitou-se para o monte de cobertores e pegou num. Estava húmido e cheirava a bolor - perfeito para abafar chamas, decidiu com um sorriso amargo. Virou-se então
para os grupos mais próximos de homens da sua coorte.
- Esta secção e a seguinte. Venham comigo!
Correram ao longo do muro do maior edifício da cidadela até chegarem à esquina, e viraram para o pátio que servia de hospital. Olhou por cima do ombro.
- Não fiquem para trás! Não há tempo a perder, caralho!
Os homens correram pela ruela e atravessaram o arco que dava para o pátio, já iluminados pelo brilho do incêndio. Quando Cato entrou apercebeu-se imediatamente que
um dos lados do claustro era presa das chamas
- precisamente a zona em que Júlia cuidava dos seus pacientes. Sentiu um aperto gelado no coração, mas afastou os receios quando se lembrou que tinha que dar ordens
aos seus homens. O médico e os seus assistentes tentavam desesperadamente retirar os feridos dos quartos mais próximos ao centro do incêndio, enquanto as labaredas
avançavam com um rugido de fera selvagem.
- Ajudem-nos! - Gritou Cato. - Tirem os feridos daqui em primeiro lugar! Levem-nos para o pátio.
Os homens largaram tapetes e baldes e apressaram-se a pegar nos pacientes ainda espalhados em enxergas na zona que corria maior perigo. Cato avistou Arquelau, que
usava o braço são para ajudar um camarada ferido.
- Aguentas-te?
O outro fez sinal que sim com a cabeça.
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- Onde está a senhora Júlia?
- Lá para trás. - Arquelau acenou na direcção do incêndio. O fumo escapava-se de uma porta junto à área em chamas. - Ainda estão alguns homens naquele compartimento.
Cato lançou-se em frente, esquivando-se a quem fugia das chamas e do fumo. Quando alcançou a porta que o grego tinha indicado, inspirou profundamente e entrou. No
espaço confinado, o calor era atroz, e grandes línguas de fogo lambiam as traves do tecto, enquanto pedaços de estuque queimados e em brasa tombavam pelo meio do
fumo. Agachou-se para evitar a zona em que o fumo era mais denso e olhou em redor. Quase todas as enxergas estavam vazias, à excepção de duas no canto mais afastado.
Júlia estava ali, de joelhos, a tentar arrastar um ferido pelo chão, e Cato aproximou-se rapidamente dela.
- Deixa, eu levo-o.
Ela olhou em redor, os olhos lacrimejantes do fumo, tossiu e mal conseguiu pronunciar umas palavras.
- Cato. Graças aos deuses. Leva-o, sim. Eu vou buscar o outro.
- Não. - Pediu Cato, mas ela já se tinha voltado e rastejava na direcção do outro ferido, que jazia imóvel.
- Merda. - Resmungou Cato, antes de pegar por debaixo dos braços no homem que ela lhe deixara e o arrastar para a porta. O soldado tinha talas a imobilizar-lhe uma
das pernas, e uivou de agonia enquanto Cato o puxava pelo chão até à zona das colunas no exterior. Cato avistou alguns dos seus homens a correr na sua direcção.
- Tirem-no daqui.
Regressou imediatamente ao interior do quarto. O calor ainda era mais intenso e estremeceu ao senti-lo atacar a pele exposta como se se tratasse de uma espada ardente.
O fumo também estava mais espesso e ele deixou-se cair de gatas e avançou para o canto mais distante. Avistou Júlia, prostrada, cobrindo a face com os braços dobrados
e tentando respirar. Pegou-lhe no cotovelo.
- Sai daqui! Agora!
Júlia enfrentou-o com os olhos a chorar por causa do fumo.
- Não saio sem ele. Não o vou deixar para trás.
Cato pulou por cima dela, agarrou a túnica do homem e puxou. Os membros do ferido rolaram, flácidos, e a boca revelou-se aberta. Cato largou-o e virou-se para Júlia.
- Está morto! Já não vale a pena. Vamos.
Ela ainda resistiu um momento, mas acabou por anuir e lhe agarrar na mão ao sentir que o fumo a sufocava. Cato apressou-se para a porta, puxando-a. Ouviu-se um estrondo
súbito, e do tecto caíram materiais em chamas ao redor do casal.
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- Sai! - Gritou Cato. - Corre!
Foram de trambolhão até à porta, já que o calor e o fumo os forçavam a cerrar os olhos. Cato levava a mão estendida e foi o choque com a parede que o guiou. Aos
apalpões, encontrou a ombreira da porta e puxou Júlia para fora da divisão, no preciso instante em que o tecto começou a ruir, espalhando madeiras, estuque e telhas.
Uma vaga de calor atravessou a porta e queimou a perna de Cato enquanto ele empurrava Júlia para longe daquele inferno. Correram alguns passos, saindo para o pátio,
antes de se deixarem cair no solo, tossindo e tentando limpar os olhos.
Assim que recuperou o fôlego, Cato debruçou-se sobre a rapariga.
- Júlia... Estás bem?
Ela ainda tossia sem cessar, pelo que se limitou a acenar para o sossegar.
- O que raio estavas tu a fazer ali? - Inquiriu, furioso. - A tentares matar-te? - Olhou-a por instantes, e a ira desapareceu como que por encanto; afastou carinhosamente
o cabelo da face dela, revelando uma testa negra de fuligem. Beijou-a e abraçou-a. - Nunca mais faças isso. Nunca. Percebes?
Ela piscou os olhos e encarou-o, e depois sorriu, mas um novo acesso de tosse fê-la dobrar-se enquanto tentava respirar.
- Júlia? - Ao sentir a frágil figura a tremer nos seus braços, Cato assustou-se. Mas por fim o acesso de tosse passou e ela conseguiu respirar profundamente enquanto
lhe passava os braços em torno do pescoço e o segurava contra ela.
- Porque é que voltaste lá para dentro? - Perguntou ela numa voz rouca, baixinho, ao ouvido dele.
- Porquê? - Beijou-a no pescoço. - Porque te amo.
As palavras tinham-lhe saído espontaneamente, antes que pensasse no que ia dizer, e logo se sentiu invadido por algum receio de que tivesse falado demais, ao mesmo
tempo que se sentia de alguma forma livre de um peso. Era a verdade. Amava-a, e apercebeu-se repentinamente que se sentia feliz por o ter afirmado.
Ela afastou a cara do pescoço dele e olhou-o intensamente nos olhos.
- Cato... Meu Cato. Meu amor.
Deram um beijo rápido, e Cato pôs-se de pé e ajudou-a a levantar-se. Chamou um dos seus homens.
- Leva a filha do embaixador até aos seus aposentos. E depois desencanta alguém que lhe trate das queimaduras.
- Sim, senhor.
O soldado era um homem forte, e pegou em Júlia ao colo antes que esta pudesse protestar. Enquanto o auxiliar se dirigia à entrada dos claustros, Júlia olhou por
cima do ombro do homem para Cato e pronunciou
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em silêncio as palavras que Cato tanto queria escutar de novo. Quando ela desapareceu, o jovem olhou em redor do pátio para avaliar a situação. A zona que tinha
servido de enfermaria estava transformada num inferno, e o brilho vermelho e alaranjado das chamas iluminava uma boa porção da cidadela e das muralhas. Ainda assim,
todos os feridos tinham sido postos a salvo e já estavam a ser levados dali pelos auxiliares e pelos enfermeiros. Por momentos deixou-se estar, tentando perceber
se haveria perigo de o incêndio se espalhar. Mas um exame rápido mostrou-lhe que o arco ia servir de corta-fogo de um dos lados, e do outro a própria muralha da
cidadela o conteria.
Ainda estava no mesmo sítio quando um auxiliar de uma das outras centúrias surgiu a correr. Assim que o avistou correu pelo pátio enquanto lançava um brado.
- Senhor! Venha imediatamente!
Cato empertigou-se e repreendeu o soldado.
- Põe-te em sentido quando falares com um oficial!
- Sim, senhor. - O auxiliar bateu os calcanhares e olhou em frente, para além do ombro de Cato. - Peço licença para o informar, senhor. O centurião Parmenião respeitosamente
informa que precisa de todos os homens disponíveis, senhor.
- O que se passa de tão grave?
- Acertaram nos armazéns de cereais, senhor. Uma série de disparos bem enquadrados. Aquela porra está toda a arder.
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Pela manhã o ar estava pesado com o cheiro acre a queimado. Com a ponta da bota, Macro deu um toque num dos cestos que tinha contido grãos de cereal, enegrecido
e ainda a fumegar. Cinza e pedaços quebradiços separaram-se e tombaram para o chão. A maior parte do cereal tinha formado uma massa sólida e negra. Olhou para cima
e avistou o que restava da fileira de armazéns em frente aos antigos estábulos: alguns montes de madeira semi-calcinada. Os rebeldes tinham ficado sem munições a
meio da noite, mas ainda assim os defensores tinham passado o resto da madrugada a combater as dezenas de focos de incêndio, até mesmo ao despontar do dia. Naquele
momento ainda havia um fogo a lavrar, num dos cantos dos aposentos reais: um dos projécteis tinha caprichosamente entrado por uma janela e ateado as chamas às tapeçarias
que cobriam as paredes da sala. O rei tinha sido forçado a deixar os seus aposentos enquanto o incêndio era combatido, e tinha-se retirado para a sala de audiências,
rodeado de homens escolhidos a dedo de entre os mercenários gregos que compunham a sua guarda pessoal.
Sobre a cidadela pairava uma nuvem de fumo que fazia lembrar uma mortalha, à luz pálida do amanhecer. As nuvens de fumo que ainda se evolavam dos incêndios que persistiam
e dos materiais que acabavam de se consumir ajudavam à atmosfera sombria.
- Quanto é que conseguimos salvar? - Indagou Macro, resignado.
Cato consultou as tábuas enceradas.
- Trinta cestas. A maior parte do que restava da carne de cavalo. Pus alguns homens a vasculharem as zonas afectadas pelo incêndio a ver se conseguem recuperar mais
alguma coisa, mas não estou à espera de grandes resultados.
- Pois, salta à vista que não vai dar grande coisa. - Macro fez um gesto vago, abarcando as ruínas fumegantes aos seus pés. Inspirou profundamente. - Bom, no fim
de contas, com quantos dias de rações é que ficámos?
- Ao nível de distribuição corrente... Dois dias.
- Dois dias. - Repetiu o veterano, com amargura na voz. - E os homens já estão a meia ração.
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- Podíamos cortá-la a meio outra vez. Mas mais do que isso e nem forças teriam para resistir a outro assalto. - Cato levantou o olhar das notas que consultava. -
E há mais más notícias, receio.
- A sério? Olha que surpresa. - Macro suspirou. - Diz lá.
- Tivemos que usar muita água para combater os incêndios. O nível da cisterna desceu para os quinze centímetros. Ou seja, suspeito que vamos ficar sem água mais
ou menos ao mesmo tempo que se acabar a comida. E é claro, mais uma noite como esta e estaremos verdadeiramente fritos.
- Merda. - Resmungou Macro. - Tens alguma notícia agradável para me dar?
- Por acaso, tenho. - Cato bateu com o aparo na tábua encerada. - Sofremos poucas baixas. Oito mortos, dos quais cinco civis. Vinte feridos, três pela queda de destroços
e os outros com queimaduras. - Fechou o bloco de tábuas e ficou a contemplar as ruínas dos armazéns. - Não percebo é porque raio é que eles não fizeram outra tentativa
de arrombar os portões, ou de escalar as muralhas. Sabiam com certeza que tirámos homens das ameias para tratar dos fogos.
- A resposta é óbvia. Para quê arriscar a perda de homens quando sabem que nos podem destruir pelo fogo, ou forçar-nos à rendição pela fome?
- Sim, faz sentido. - Cato bocejou e esticou os ombros. - Senhor, quais são as ordens?
- Hum? - Macro esfregou os olhos fatigados, antes de responder.
- Os homens que ficaram nas muralhas que façam o primeiro turno de vigia; os outros podem ir descansar. Merecem bem o repouso. E bem precisam dele.
- Não precisamos todos?
- Nós descansaremos mais tarde. Primeiro há que tratar do que é importante. - Macro virou-se para o amigo. - Temos que decidir o que fazer quanto às provisões, ou
falta delas. O melhor é mandar um mensageiro ao Thermon e convocar uma reunião. O rei, os conselheiros, o embaixador, Balthus, e nós.
- Sim, senhor. A que horas?
Macro considerou a situação.
- Assim que for possível. O melhor será à terceira hora. No salão de audiências do rei.
- Sim, senhor.
Cato já estava a virar-se para ir cumprir as ordens quando Macro lhe pegou no braço.
- Aquela miúda em que andas tão interessado, a Júlia. Está tudo bem com ela?
- Umas queimaduras sem importância. Ela enviou-me uma mensagem.
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- Explicou Cato, rapidamente. - Nem tive tempo para verificar por mim mesmo.
Macro sorriu.
- Miúdo, não tens que me dar satisfações. Fico feliz por saber que ela ainda está viva, é tudo. Mas se nos safarmos deste aperto, já fizeste alguns planos?
Cato encolheu os ombros.
- Não sei. Ainda é cedo para isso. Quer dizer, sim, gostava de ter planos, mas ela é a filha de um senador, e eu não passo de um soldado comum.
- Não, isso não. - Retorquiu Macro. - És um soldado sim, mas completamente invulgar. Não faço ideia até onde poderás subir no futuro, Cato, mas o teu potencial está
bem à vista. E o embaixador não é cego. Para mim, ele devia era sentir-se orgulhoso por te aceitar na família. Se não for esse o caso, então é um idiota, e a verdade
é que o Semprónio me parece tudo menos isso.
- De facto. - Concordou Cato, pouco à vontade. - Não imagino que possa passar muito mais tempo sem que ele se aperceba da relação que tenho com a filha. Se é que
não percebeu já.
- Relação? - Macro deitou-lhe um olhar de gozo. - De que tipo de relação estamos nós a falar?
- O que é que quer dizer? - Perguntou Cato, na defensiva.
- Quero dizer, vocês os dois já passaram a vias de facto?
Cato estranhou visivelmente a expressão, e Macro deu uma risada.
- Pronto, se queres que eu ponha a questão em termos mais elegantes, estou a perguntar se vocês os dois já partilharam alguns momentos de intimidade física.
Foi a vez de Cato se rir.
- Onde é que foi buscar essa?
- Oh, a um livro qualquer. Uma trampa romântica sem pés nem cabeça, mas na altura não tinha mais nada para ler. Mas responde à pergunta, vá. Já o fizeram?
Cato anuiu, e Macro soltou um suspiro.
- Oh, Cato, essa é que foi bem jogada. Quando eu já estava a ver o Semprónio a dar-te a sua aprovação. Se ela engravida e o pai descobre antes de teres tempo de
regularizar a situação, vai haver uma grande salgalhada. Sabes muito bem como são estes aristocratas.
- E o que é que eu havia de fazer? Amo-a, e o mais provável é que estejamos todos mortos antes de termos tempo de descobrir se ela engravidou. O que é que tínhamos
a ganhar se nos controlássemos?
- Há que aproveitar a ocasião, pois então. - A risada de Macro tinha
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um tom amargo. - Bem, para ser honesto, se estivesse no teu lugar teria provavelmente feito a mesmíssima coisa.
- Grande dúvida. - Respondeu Cato. - Se fosse consigo, tinha-lhe saltado para cima mais depressa do que o Cícero fodia um triunvirato.
- Ah, aí tens toda a razão! - Gargalhou Macro. - Vá, põe-te lá a andar! Trata de marcar a reunião.
- Sim, senhor. - Cato saudou o amigo com um largo sorriso na face, e deixou-o.
Macro ficou a vê-lo escolher o caminho por entre os auxiliares que pesquisavam os cestos de cereais aparentemente menos queimados. Apesar do risco que o amigo assumira,
estava feliz por ele, e esperava sinceramente que existisse um futuro para ele e para Júlia.
Murmurou para si próprio.
- Seja como for, os deuses sabem como aquele miúdo precisa de umas quecas valentes.
O rei Vabathus estava rigidamente sentado no seu trono temporário, rodeado por quatro dos seus guardas pessoais. À sua frente tinham sido colocadas cadeiras num
semicírculo, e quando o príncipe Balthus se juntou aos outros convocados, o monarca acenou a Thermon.
O ministro pigarreou e começou.
- Centurião Macro, Sua Majestade deseja saber as razões para esta reunião que insististe em convocar com tanta urgência. Macro levantou-se e inclinou ligeiramente
a cabeça na direcção do soberano.
- Muito bem. - Antes de começar a falar olhou em redor da sala, para ter a certeza de que tinha a atenção de todos os presentes. Quase todos estavam tão fatigados
como ele próprio, já que tinham estado envolvidos no combate aos incêndios ou na defesa das muralhas, como era o caso de Balthus. Tossicou e começou. - Senhores,
estamos perante a necessidade de tomar decisões difíceis. Mas elas têm que ser tomadas e executadas imediatamente.
- Porquê? - Interrompeu Krathos. - O que sucedeu?
- Já lá chegarei. - Retorquiu Macro, levemente irritado. - Se me fizer a cortesia de me escutar...
Krathos fez uma careta e voltou a sentar-se; cruzou os braços e acenou para que o romano prosseguisse.
- Muito obrigado. Como alguns de vós já sabem, os projécteis incendiários do inimigo levaram à completa destruição dos armazéns de cereais na noite passada. Salvámos
o que pudemos, mas tendo em atenção as limitadas reservas de água de que dispomos, o meu adjunto, o prefeito Cato, calculou que, com as rações que estão correntemente
a
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ser distribuídas, os nossos mantimentos se esgotarão daqui a dois dias. Menos ainda se eles repetirem a brincadeira esta noite. A água que ainda temos terá que ser
usada no combate aos incêndios. E mesmo assim, acabará antes de conseguirmos controlá-los a todos. Como é evidente, podemos cortar ainda mais as rações de água e
cereais, mas na melhor das hipóteses isso só nos dará mais alguns dias, e os nossos soldados estarão longe do seu melhor quando forem obrigados a combater para defender
a cidadela.
Macro interrompeu-se para deixar as suas palavras penetrar nos cérebros dos outros, e Thermon aproveitou para colocar uma pergunta.
- Centurião, quais são as nossas opções?
- São fáceis de explicar. - Macro foi contando pelos dedos. - Uma: negociamos uma rendição. Duas: reduzimos as rações e continuamos a resistir até onde nos for possível,
e depois rendemo-nos ou lutamos até à morte.
- Não nos podemos render. - Adiantou Balthus. - Artaxes e os seus matar-nos-iam, ao rei, a mim e à maior parte dos presentes. Temos que continuar a lutar.
- Espera. - Krathos ergueu a mão. - O romano disse que podíamos negociar a rendição. Talvez pudéssemos conseguir termos aceitáveis. O príncipe Artaxes sabe que conquistar
a cidadela lhe custará muitos homens. Se nos rendêssemos e lhe entregássemos o reino para governar como bem entendesse, estaria com certeza disposto a deixar-nos
com vida. Pelo menos a alguns de nós.
- Talvez a ti mesmo? - Balthus não fez qualquer tentativa de esconder o seu desprezo. - Acho que sabes muito bem o destino que o meu querido irmão me reserva. Não
me parece que me venha a render, muito obrigado.
- Então, o quê? - Contrapôs Krathos. - Ficamos aqui e morremos de fome?
- Não. - Balthus abanou a cabeça e virou-se para Macro. - Romano, há uma terceira escolha.
- Eu sei. - Respondeu Macro, - Só queria ver como reagiam as pessoas às duas primeiras.
- Uma terceira opção? - Indagou o rei, em tom lento. - Qual é? Fala, romano.
- Majestade, podemos evacuar os civis da cidadela e usar as rações extra para tentar aguentar até à chegada do general Longino. Mas se os mantimentos acabarem antes
disso, estaremos outra vez reduzidos às duas primeiras hipóteses.
Fez-se um breve silêncio enquanto todos consideravam a nova possibilidade, e então Krathos abanou a cabeça.
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- Lá fora serão seguramente massacrados.
- Muito possivelmente. - Admitiu Macro. - Mas se ficarem na cidadela não terão outro destino que não a morte. Pela fome, se o inimigo não conseguir entretanto penetrar
as muralhas, caso em que serão massacrados ao mesmo tempo que todos nós. Portanto, ou morrem cá dentro connosco, ou arriscam a sorte lá fora. E o seu sacrifício
pode dar-nos os dias de que precisamos.
Krathos cerrou os lábios.
- Estou a ver. Talvez seja pelo melhor, sim.
- Fácil para ti dizer isso. - Respondeu Balthus friamente, mas então um brilho surgiu-lhe no olhar. - É claro que teríamos que nos ver livres de todos os civis,
para que a comida dure o mais possível para os soldados. Não é assim, centurião?
Macro assentiu.
- E nesse caso, teríamos que dispensar todos os que não são essenciais, como os escravos do rei, o embaixador romano e o seu séquito, e nobres como tu, Krathos.
- Eu? - O indigitado levou a mão ao peito. - Essa sugestão é um ultraje! Sou um dos mais leais súbditos de Sua Majestade. O meu lugar é ao seu lado em qualquer provação.
- Oh, e de que serves tu ao seu lado? És capaz de disparar um arco? Consegues por acaso empunhar uma espada ou uma lança como o mais insignificante soldado? Então?
- Não é isso que está em causa. - Explodiu Krathos. - Sua Majestade necessita de bons conselheiros. E quando tudo isto tiver terminado, o reino terá necessidade
de homens bons e experientes que possam restaurar a lei e a ordem e reavivar o comércio.
Balthus abanou a cabeça.
- Do que o rei precisa neste momento é de combatentes, e não de gordos mercadores como tu.
- Como te atreves? - Indignou-se Krathos, enquanto se levantava.
- Basta! - O rei aplicou um murro no braço do trono, e a sua voz ecoou nas altas paredes da sala. Todos se reduziram imediatamente ao silêncio. Vabathus respirou
fundo para se acalmar e só então prosseguiu num tom mais neutro. - Não se põe a questão de expulsar qualquer nobre da cidadela. Bem como qualquer dos romanos. Se
o fizéssemos, quando soubessem dessa notícia, os romanos não hesitariam em lançar sobre nós toda a sua implacável fúria. Não temos escolha, temos que aceitar a terceira
opção sugerida pelo centurião. É a melhor hipótese que tenho de manter o meu trono. O povo terá que ser sacrificado.
Thermon virou-se para o rei com uma expressão pesarosa.
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- O que se passa? - Quis saber Vabathus.
- Majestade, todos sabemos qual é o mais provável resultado de colocar essas pessoas à mercê dos rebeldes, e muitas delas são familiares dos nossos soldados. O que
dirão eles quando souberem desta medida? - Thermon fez um gesto abarcando os quatro guardas do rei. Todos os olhos se focaram neles, mas os homens, fiéis ao treino
e à profissão, não traíram qualquer emoção.
Foi Balthus quem quebrou novo período de silêncio incómodo.
- Devemos então proceder com cautela. Os homens com famílias no interior deverão ficar confinados às casernas enquanto os civis estiverem a ser reunidos e escoltados
para fora da cidadela.
- E se eles não quiserem sair? - Indagou Cato. - Se se recusarem a sair?
- Teremos que empregar a força. - Foi a resposta de Balthus. - Em tempos de desespero são necessárias acções desesperadas, romano.
- Sei-o perfeitamente. - Cato pensava rapidamente. - Mas é forçoso que tentemos negociar com Artaxes para que eles tenham a possibilidade de sair em segurança. Devemos-lhes
isso.
- Bonitos sentimentos, romano, mas porque há-de Artaxes aceitar negociar? Nada tem a ganhar com isso.
- Há algo que lhe podemos oferecer, e que ele terá dificuldade em recusar. - Os outros homens na sala olharam para ele, expectantes, e Cato engoliu em seco, nervoso,
antes de explicar aquilo em que estava a pensar.
Ao meio-dia, os portões da cidadela abriram-se e Cato saiu para a ágora. Não levava qualquer arma consigo, tal como os dois homens que o acompanhavam. Um dos auxiliares
transportava uma trombeta, e ia soltando notas à medida que avançavam; o outro levava uma bandeirola vermelha que não parava de agitar e devia ser facilmente visível
das linhas inimigas. O pequeno grupo avançou trinta passos e deteve-se, bem à vista quer dos defensores quer dos sitiantes, que os observavam curiosos do muro que
dava para o pátio dos mercadores. O jovem oficial engoliu em seco e questionou o bom senso da sua acção. Ainda estava a tempo de virar as costas e correr de volta
à segurança. Mas nesse momento escutou um ruído surdo, provocado pelas portadas ao regressarem à sua posição habitual; já não havia escolha, era forçoso prosseguir.
Avançaram outros trinta passos e de novo se detiveram, as notas da trombeta a ecoarem nas muralhas. O homem que levava o estandarte agitava-o lentamente no ar, de
forma a que ninguém pudesse alegar que não o vira. Avançaram de novo, detendo-se desta vez junto ao muro. Um
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homem surgiu então à frente deles, um dos oficiais de Artaxes, considerou Cato, a avaliar pela armadura de boa qualidade e por todos os ornamentos que exibia.
- Já chega, romano! - Avisou o homem, em grego. - O que queres?
- Quero falar com o príncipe Artaxes.
- Porquê?
Cato sorriu perante a curiosidade do homem.
- Não falo com lacaios. Só com o príncipe em pessoa.
O outro olhou-o com desdém, e depois apontou para o chão.
- Não te mexas, romano. Se algum de vocês sair deste exacto ponto, os meus arqueiros abatê-los-ão como cães!
- Muito bem.
O oficial rebelde desapareceu de vista, e Cato e os seus homens ficaram no local indicado, a enfrentar o olhar dos soldados inimigos que ocupavam o muro e discutiam
animados o que estaria o emissário romano ali a fazer, e o que quereria discutir com o príncipe. O auxiliar que empunhava a bandeira continuava a agitá-la.
- Isso já não é preciso. - Disse-lhe Cato. - Acho que já lhes atraímos a atenção.
- Muito bem, senhor. - Os dois homens adoptaram uma postura menos rígida e esperaram pacientemente atrás do seu comandante, enquanto o sol os banhava. O tempo foi
passando e Cato desapertou o lenço que tinha ao pescoço e limpou o suor que lhe escorria pela face. Sentiu-se tentado a desapertar o capacete e mesmo a tirá-lo por
um momento que fosse, para fugir ao peso que o calor do meio-dia ampliava. Mas afastou a tentação. Seria dar um sinal de fraqueza ao inimigo. Minúscula, e até justificada,
reflectiu, mas amaldiçoado seria se deixasse transparecer algum sinal de desconforto em frente àqueles sacanas. Seria bem melhor mostrar-lhes até que ponto eram
duros os soldados de Roma. Discretamente, voltou a apertar o lenço em torno da garganta e deixou-se estar, mantendo o olhar fixo no muro à sua frente e tentando
dar a impressão de um homem absolutamente imperturbável.
Depois do que lhe pareceu uma eternidade debaixo do calor insuportável, Cato pressentiu algum movimento e virou-se a tempo de ver um pequeno grupo de homens a rodear
a esquina feita pelo muro que separava a ágora do pátio dos mercadores. À frente deles vinha um homem ainda jovem, magro, de finos trajes amarelados que rebrilhavam
enquanto se dirigia aos romanos. À cintura ostentava um cinto com uma bainha de espada cravejada de diamantes, que refulgiu quando a luz bateu no ouro polido e nas
jóias. A barba estava cuidadosamente aparada, e o cabelo brilhava ao Sol, graças ao óleo perfumado com que tinha sido penteado. Ao seu lado
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marchava uma guarda pessoal composta por seis enormes lanceiros, musculosos e envergando armaduras articuladas.
Cato virou-se para eles e ergueu a mão numa saudação.
- Tenho a honra de me dirigir ao príncipe Artaxes?
- Tens, de facto. - Retorquiu o príncipe, sem delongas. - O que queres?
Cato tinha memorizado o discurso que pretendia fazer, e falou lenta e deliberadamente, para não deixar lugar a quaisquer equívocos.
- O rei deseja relembrar que este combate se trava entre os dois. Entre os seguidores de um e de outro. O povo comum em que o reino se alicerça não passa de testemunha
inocente que a nenhuma das partes ameaça, e como tal deve ser tratado. Nesse sentido, Sua Majestade enviou-me para lhe solicitar passagem segura para os civis que
se refugiaram na cidadela. Pensaram erroneamente que tinham motivos para o temer, e nada mais desejam do que regressar às suas casas e negócios e prosseguir com
as suas vidas, qualquer que seja o rei que o vosso deus escolher para governar Palmira.
Artaxes assentiu e olhou em redor para os seus guardas.
- Fiquem onde estão. - Aproximou-se cautelosamente de Cato, até ficar à distância de um golpe de adaga, e baixou a voz de forma a que apenas os dois pudessem ouvir
o que ia dizer.
- Correndo embora o risco de uma blasfémia, são os meus homens e os meus aliados partos quem decidirão o futuro de Palmira. Ambos o sabemos, romano, portanto vamos
deixar os deuses de fora desta história, está bem?
- Como desejar, príncipe. - Acedeu Cato. - Mas o general Longino pode muito bem chegar a Palmira antes dos seus amigos partos, e nesse caso seria do seu interesse
e do dos seus seguidores ter permitido aos civis deixarem a cidadela em segurança. Um gesto de misericórdia pode muito bem ser recompensado com outro.
Artaxes abanou a cabeça com ar de gozo.
- Romano, o exército parto está a menos de oitenta quilómetros da cidade. Onde está esse teu general? Segundo o que tenho ouvido, o vosso exército progride à velocidade
do caracol. Nunca chegará a Palmira antes dos partos. O vosso tempo está a esgotar-se. Diz-me, porque razão deveria eu mostrar piedade para com os meus inimigos?
- Porque eles não são seus inimigos. Se tiver razão, daqui a poucos dias serão apenas seus súbditos. Trate-os com misericórdia, e eles respeitá-lo-ão.
- Ah, mas se, ao invés, não lhes der quartel, todos os meus súbditos me temerão. - Artaxes sorriu. - Diz-me, romano, qual destas opções deverá um rei preferir, respeito
ou medo?
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- Não posso dar a resposta, de um rei, mas eu preferiria o respeito.
- Então não passas de facto de um tolo. Estamos aqui nesta situação por uma única razão: o meu pai não inspirava temor. E, no fim, nem sequer respeito. E quando
o perdeu, não se pôde socorrer do temor para o salvar. Não cometerei o mesmo erro. Farei com que todos os homens me temam, e assim obedecer-me-ão sem pensar sequer
em alternativas. E o castigo aos civis que neste momento se escondem cobardemente por trás das muralhas da cidadela será uma prova evidente das minhas intenções.
Serão mortos assim que vocês os enviarem para fora dos portões.
- Quem disse que os vamos enviar para o exterior?
Artaxes fingiu-se surpreendido.
- Por que outra razão estarias tu aqui, a suplicar pelas suas vidas? Romano, não sou parvo. Não têm alimentos para eles; é por isso que o meu pai os quer dali para
fora. E isso significa que os vossos mantimentos estão prestes a esgotar-se, e que a minha vitória está próxima. - Encarou Cato fixamente. - Não é assim, romano?
Cato não respondeu de imediato. Tal como temera, Artaxes tinha adivinhado toda a história sem dificuldades. Podia negar que estivessem numa crise de mantimentos,
mas era evidente que Artaxes não acreditaria nas suas palavras. Já só havia uma peça para jogar naquelas negociações. Assentiu com a cabeça.
- Tem razão, príncipe. Ainda assim, tenho uma proposta a fazer-lhe. Se for permitido aos civis saírem sem que nada lhes aconteça, daqui a cinco dias as duas coortes
romanas deixarão a cidadela e render-se-ão. E ficarão à sua mercê.
Artaxes voltou a fixá-lo com o olhar, antes de responder.
- Não sabes o destino que prometi a todo e qualquer romano que capture com vida?
- Conheço-o, sim.
- Então porque me fazes essa proposta idiota?
- Como disse, não podemos aguentar o cerco por muito mais tempo. Seja como for, somos homens mortos. Esta alternativa dará ao menos algum significado às nossas mortes.
- Estou a ver. Mas se de qualquer maneira vocês estão mortos, porque haveria eu de concordar?
- Conhece bem o valor dos soldados de Roma. Se se vir forçado a destruir-nos em combate, quantos dos seus homens levaremos nós connosco?
- Era uma jogada arriscada, visto que quando se desse esse combate os soldados já estariam demasiado fracos para opor qualquer resistência significativa, mas Cato
precisava que o príncipe acreditasse nela, e manteve uma expressão dura e de desafio enquanto esperava pela resposta do líder rebelde.
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- Dariam portanto as vossas vidas pelas dos cidadãos de Palmira?
- Sim.
- Porquê?
Cato aprumou-se antes de responder.
- O Império leva vários meses a recrutar e treinar uma coorte. O exército romano levou cem anos a construir uma reputação. Não seremos lembrados por lançar pessoas
indefesas às garras de chacais como este exército de rebeldes.
Os olhos de Artaxes arregalaram-se, e a sua mão fechou-se sobre o punho da espada. Mas forçou-se a responder apenas com um sorriso, largando a arma.
- E porque devo acreditar que vocês se entregarão sem problemas?
- Pela mesma razão que nos fará acreditar que os civis foram poupados. Confiança. Se me der a sua palavra de que eles não serão molestados, terá a minha promessa
de que nos renderemos, se não recebermos reforços no prazo de cinco dias. Se qualquer um de nós quebrar a palavra, a penalidade será a mesma: o nosso nome será símbolo
de infâmia por toda a região.
Artaxes considerou a proposta, e Cato desejou ardentemente que a vontade de humilhar e destruir as vidas de soldados romanos levasse a melhor sobre a razão do príncipe
rebelde. Artaxes fechou os olhos por momentos e cofiou a bem aparada barba. E então abanou a cabeça.
- Não. Não farei qualquer acordo contigo. Se tivermos que destruir as vossas coortes, fá-lo-emos em combate, e assim provaremos a todo o mundo que os soldados de
Palmira chegam e sobejam para os vossos legionários e auxiliares. E quanto aos civis? Serão vocês a forçá-los a deixar a cidadela, bem podem depois assistir ao que
lhes vai acontecer.
A perfídia era clara no tom empregue, e Cato sentiu o frio aperto do medo na base do pescoço. Era evidente que Artaxes tinha todas as características de um tirano.
Era para ele tão natural inspirar pavor como era para uma serpente atacar uma presa.
- É a sua palavra final? - Insistiu Cato.
- Sim... Não. - Artaxes sorriu de novo. - Uma última coisa. Diz ao meu pai e aos meus irmãos, se por acaso ainda viverem, que quando a cidadela for tomada os farei
serem esfolados vivos, e que depois os seus corpos serão atirados para as areias do deserto, para se tornarem repasto dos chacais. - Os seus lábios finos e negros
arreganharam-se num riso sinistro quando ergueu o dedo e o apontou a Cato. - E tu, romano, far-lhes-ás companhia. Nessa altura veremos o que acontece a essa tua
altivez.
Cato engoliu em seco, e tentou manter a compostura, enquanto se virava para os dois homens que o tinham acompanhado.
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- De volta à cidadela. Passo acelerado.
Enquanto atravessava a ágora, Cato quase jurava que era capaz de sentir o olhar frio e penetrante de Artaxes na nuca, e não conseguiu resistir a lançar uma derradeira
olhadela sobre o ombro. Artaxes reparou nisso e sorriu com satisfação, antes de se dirigir por sua vez para a mais distante esquina do recinto dos mercadores, seguido
pelos seus guardas pessoais. Antes de lá chegar, porém, surgiu um homem a correr, que mal avistou o príncipe se precipitou na sua direcção e se apoiou sobre um joelho
enquanto lhe dirigia a palavra. Cato já estava demasiado longe para conseguir perceber as palavras trocadas e prosseguiu a caminho dos portões, embora reduzisse
o andamento e continuasse atento ao que se passava lá atrás. Percebeu que Artaxes fechava o punho e se virava para olhar para os romanos, com uma expressão transformada
numa máscara de fúria.
A voz de Artaxes cortou o ar enquanto o príncipe corria para se abrigar. Ao longo do muro, os seus homens apressavam-se a preparar os arcos. Cato dirigiu-se aos
seus companheiros.
- Corram!
Os três homens aceleraram em direcção à cidadela. Cato ouviu a voz de Macro a dar ordens aos homens que manejavam os portões, e no instante seguinte as dobradiças
rangeram quando as pesadas portadas começaram a abrir-se. Uma seta assobiou ao passar-lhes por cima, logo seguida por outra que se enterrou na areia ali perto. Cato
baixou a cabeça e correu tão depressa quanto conseguia, debaixo da pesada armadura. Viu a abertura do portão a alargar-se pouco a pouco, enquanto a chuva de setas
se tornava mais intensa. Ouviu então um grito agudo à sua direita. Olhou e apercebeu-se de que o homem que levava a bandeira tinha sido atingido na perna, por trás
do joelho.
- Oh, merda! - Lamentou-se o auxiliar, enquanto tentava continuar a correr. Todavia, poucos passos à frente acabou por se ver forçado a parar.
Cato alertou o outro soldado.
- Ajuda-me! - Pegou no braço do ferido e lançou-o sobre o ombro, enquanto o outro homem atirava fora a trombeta e fazia o mesmo do outro lado.
- Vamos! - Exclamou Cato por entre os dentes cerrados. - Vamos!
Prosseguiram, meio carregando meio arrastando o ferido, que gemia
de cada vez que apoiava a perna ferida no solo. Estavam já próximos dos portões, mas a chuva de setas era feroz, e Cato sentiu um impacto na parte de trás do ombro,
no momento em que passavam sob o arco da entrada e se lançavam pelo solo enquanto os legionários, de ambos os lados, se esforçavam por voltar a cerrar os portões
e por colocar a pesada tranca no lugar. Enquanto arquejava, Cato apontou para o ferido.
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- Levem-no para o hospital.
Enquanto um par de legionários pegava no homem e o levava para os claustros que serviam ainda de hospital, Cato levantou-se e apalpou as costas, fazendo uma careta
quando sentiu uma dor súbita. Mas não encontrou nenhuma haste de flecha; a cota de malha tinha feito o seu trabalho. Se o impacto não lhe tivesse partido nenhuma
costela, só teria que se preocupar com algumas nódoas negras. Macro surgiu das escadas.
- Depreendo que ele não estava interessado nas nossas propostas?
- Pode ser posto dessa forma, sim.
Macro inclinou a cabeça para o lado.
- Não me custa nada dizer que prefiro morrer em combate a ser executado a sangue-frio. - Virou-se e contemplou uma família acolhida junto à parede dos aposentos
reais. - De qualquer maneira, lamento profundamente a sorte desta pobre gente. Para eles não há qualquer esperança.
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A decisão está tomada. - Relembrou Balthus, com firmeza. - Temos que sacrificar os civis, e temos que o fazer agora, antes que consumam mais dos nossos mantimentos.
Ouviu-se um murmúrio de assentimento no grupo de conselheiros reunido no salão de audiências naquela noite, mas Cato recusou-se a dar-se por vencido, e de novo usou
da palavra.
- Repito que algo se passou. Assim que a conferência terminou, houve um mensageiro que se aproximou de Artaxes. E o que quer que lhe tenha dito não devem ter sido
boas notícias.
- Porque dizes isso? - Inquiriu Balthus. - Conseguiste ouvir alguma coisa?
- Não. - Admitiu Cato. - Mas a expressão que se lhe estampou no rosto não dava lugar a enganos.
- Dizes tu. Na realidade, pode ter sido outra coisa qualquer.
- Não me parece. De que más notícias é que ele podia estar à espera? Os partos aproximam-se para o auxiliar. Nós aqui estamos quase sem provisões, pelo que tudo
o que Artaxes tem a fazer é deixar passar o tempo e ver a cidadela cair-lhe nas mãos. - Cato fez uma pausa para que as suas palavras fossem bem assimiladas. - A
única notícia que podia ser realmente má seria a chegada de Longino e do seu exército.
Macro deu sinal da sua presença, e Cato virou-se a tempo de ver o amigo a abanar a cabeça.
- Cato. - Macro falou com serenidade. - É possível que tenhas razão. Possível. Mas o mais provável é estares enganado.
- Não estou. Tenho a certeza.
- Não podes saber mais do que viste. Ou melhor, do que julgaste ver quando olhaste essa última vez para o Artaxes. Não é suficiente. Não podemos arriscar e esperar
que seja mesmo Longino. Temos que seguir o plano. Os civis terão que ser sacrificados.
- E se eu tiver razão? - Cato olhou em redor. - O sangue de centenas de pessoas estará nas vossas mãos.
Deu-se uma pausa tensa, até que Thermon se pôs de pé.
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- É esse o preço que temos que aceitar, romano. E se os deixarmos ficar? A água e a comida de que dispomos esgotar-se-ão num dia, dois no máximo. Tudo o que teríamos
conseguido seria adiar-lhes as mortes. À custa das vidas de todos os que se encontram na cidadela.
- Mas se Longino já estiver próximo da cidade, todos podem ser salvos.
- E se não estiver? Se chegar cá um dia depois de a fome nos ter obrigado à rendição? Nesse caso, tudo teria sido em vão. Portanto, que seja feito este sacrifício,
e que venha a ter um significado. Será bem melhor as gentes morrerem pela preservação do reino do que ficarem mais uns dias à espera e acabarem por morrer em vão.
Podes com certeza entender isto?
Os lábios de Cato cerraram-se, reprimindo a ira e a frustração que sentia, e Macro puxou-o gentilmente para a cadeira.
- Miúdo, ouve, ele tem razão. Não podemos correr esse risco. És tu quem costuma pensar nas coisas todas. Se tivesse sido eu a ir falar com o Artaxes e voltasse com
uma história dessas, o que é que pensarias? O que farias?
Cato olhou para o amigo com ar sério.
- Confiaria no seu julgamento; seria isso que faria.
Antes que Macro pudesse responder, Thermon deu por encerrada a reunião. Falou num tom sombrio.
- Na minha opinião, não há qualquer motivo válido para alterarmos o nosso plano. Antes que vá dizer ao rei o que foi concluído, há mais alguém que deseje falar para
defender a posição do prefeito Cato?... Não? Então o assunto está arrumado. Desejo-vos boa noite, senhores. Descansem. Amanhã será provavelmente mais um dia muito
difícil.
O arrebanhar dos civis começou antes da alvorada. Os soldados que tinham família no interior da cidadela foram conduzidos a um dos armazéns ainda de pé e colocados
sob custódia sem qualquer explicação. Foram-lhes fornecidos pão e vinho, vindos directamente das cozinhas do rei, e quando ficaram fora de circulação os legionários
começaram a despertar os civis e a expulsá-los dos seus abrigos improvisados nos pátios. Era uma tarefa difícil para os soldados, mas Macro tinha oferecido os seus
legionários para a desempenharem. Eram duros profissionais, e a proporção de veteranos era maior do que na coorte de Cato, portanto eram homens em quem se podia
confiar para cumprirem as ordens sem se deixarem levar por emoções. Os auxiliares de Cato, bem como os mercenários gregos e os seguidores de Balthus, tinham sido
colocados nas muralhas, com ordens estritas para não abandonarem as posições até serem substituídos.
De archotes nas mãos, os legionários conduziram homens, mulheres e crianças para a praça junto aos portões. Duas centúrias formaram um
280
cordão para bloquear qualquer tentativa de fuga, com os escudos largos e as lanças em posição de ataque. Não foi dado tempo aos civis para recolherem os seus pertences,
e toda a comida ou bebida que possuíssem foi-lhes confiscada. Depressa o ar fresco da madrugada se encheu com os seus gritos e lamentos desesperados. As mulheres
abraçavam as crianças, enquanto os homens tentavam confrontar os soldados romanos, gritando de raiva e agitando os punhos, mas mantendo-se cautelosamente fora do
alcance das mortíferas pontas metálicas. Depois de terem sido verificadas todas as localizações mais óbvias, Macro conduziu uma centúria através da cidadela, revistando
todos os locais mais recônditos em busca de civis que tivessem tentado esconder-se, e uma corrente ininterrupta de gente, indivíduos isolados e famílias, foi-se
juntando à multidão chorosa acumulada junto aos portões.
Depois de procurar na área em redor dos armazéns ardidos, Macro preparava-se para se dirigir às ruínas das antigas instalações do hospital improvisado, quando ouviu
um gemido fino. Deteve-se e escutou atentamente, enquanto percorria com os olhos as ruínas calcinadas e negras. Nada se mexia, e não havia um som. Quando surgiu
um dos legionários a correr e o saudou, deixou que a atenção se voltasse para o homem.
- Senhor, já acabámos de verificar esta área. O optio deseja saber se tem novas ordens.
Nesse preciso instante, Macro voltou a escutar o mesmo som, uma espécie de miado, como de um gato faminto. Levou um dedo aos lábios.
- Calado.
Os dois homens ficaram imóveis, de olhos e ouvidos alerta. Ouviu-se outro grito, mais evidente desta vez, e Macro percebeu que não se tratava de nenhum gato.
- Veio dali, senhor. - O legionário apontou para uma pilha de cestos de cereal esturricados e empilhados junto a uma parede. - Estou certo disso.
Macro assentiu, fez um gesto para que o outro o seguisse e começou a avançar cuidadosamente por entre as ruínas. O choro tornou-se contínuo quando se aproximaram,
e entretanto também se tornou audível uma voz que murmurava ansiosamente. Rodeou a pilha de cestas queimadas e reparou que havia um espaço entre elas e a parede.
Parte dele estava coberto por um pano escuro, que se mexia, enquanto o sussurro se tornava mais claro.
- Ali! - Disse o legionário, enquanto desembainhava a espada.
- Deixa isso. - Ordenou Macro. - Não vai ser precisa.
Passou pelo legionário e avançou sobre os restos calcinados dos cestos que juncavam o chão naquela zona. Pegou no tecido e baixou-se, puxando a ponta num movimento
repentino. Ouviu-se um arfar de surpresa, e uma
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miúda, que não podia ter mais de treze ou catorze anos de idade, olhou para cima, enquanto segurava um bebé que chorava agarrado ao seu peito. A boca ficou aberta
como que pronta para gritar, mas ela limitou-se a engolir e a abanar a cabeça.
- Por favor! Não nos levem, por favor. - A rapariga falou em grego, e Macro reparou que a estola azul e a capa que usava eram de bom material. O cabelo negro mostrava
tranças bem cuidadas e tinha um pendente de ouro ao pescoço. O bebé tinha sido embrulhado à pressa num xaile, e a pequena face adoentada enrugava-se enquanto ele
berrava e os pequenos punhos se agitavam no ar frio.
- Tem fome. - Explicou ela. - Está esfomeado. Como eu. Por favor, ajudem-nos.
Macro pegou na jovem gentilmente, erguendo-a pelos sovacos e suspendendo-a no ar.
- Há por aí mais alguém escondido?
- Acho que não. - Ela agarrou-se ao braço de Macro com a mão livre.
- Por favor, deixa-nos ficar aqui.
- Lamento, jovem. Mas tenho as minhas ordens.
- Eu sei, mas tu pareces um bom homem. - Olhou para o legionário.
- Os dois têm um ar bondoso. Poupem-nos. Deixem-nos ficar.
Macro abanou a cabeça.
- Não te vamos fazer mal. Mas tens que vir connosco.
- Se não nos vão fazer mal, para onde é que nos estão a levar?
Macro encarou-a e respondeu claramente.
- Para o portão.
- Para o portão? Porquê?
O centurião sentiu uma enorme pena da rapariga, e decidiu que não tinha o direito de a enganar.
- O rei ordenou que todos os civis abandonassem a cidadela.
Ela olhou-o incrédula, enquanto todas as implicações do que ele dissera lhe atravessavam a mente.
- Não... Isso é puramente um assassínio. Condenam-nos à morte.
- Minha cara jovem, são estas as ordens que me deram. Agora, vem connosco. - Agarrou-a firmemente pelo braço. - Não me dês trabalho, está bem?
Ela tentou escapar, mas não havia forma de fugir ao aperto de Macro. Mordeu o lábio e resolveu mudar de estratégia, numa enxurrada de palavras a jorrarem da esguia
garganta.
- Eu podia cozinhar para ti. Cuidava do teu equipamento... Aquecia-te à noite. Poupa-me, a mim e ao meu irmão. Prometo que não te arrependerás.
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Macro sentiu a dor da culpa perante a sugestão da rapariga, bem como um profundo cansaço por mais uma vez descobrir até onde as pessoas se dispunham a ir em tempos
de desespero. O legionário escutara a conversa e olhou significativamente para Macro.
- Senhor, o que diz? Posso brincar um bocadito antes de a levar para o pé dos outros?
- O quê? - Macro virou-se para o homem, de cenho bem franzido.
- Ela é um belo naco, senhor. Seria um desperdício deixá-la ir assim. Daqui a nada está morta.
- Cala-me essa boca. - Rosnou Macro. - E desaparece-me da vista, vai vasculhar o outro pátio, anda.
- Sim, senhor. - O soldado colocou-se em sentido, saudou o oficial, virou-se e desapareceu. Macro olhou-o furioso, sabendo perfeitamente que ele assumiria que o
seu comandante tinha decidido guardar a jovem para seu único proveito. Outro oficial qualquer poderia por certo aproveitar a ocasião, aceitou Macro, mas sentia-se
agoniado pela natureza das ordens que recebera, mesmo que não fossem da sua responsabilidade. Os civis teriam que morrer para permitir ao rei e aos seus seguidores
a posse da cidadela por mais alguns dias. Duro, mas fazia sentido, tentou mais uma vez convencer-se. Olhou para a rapariga e para o bebé, e de súbito as suas certezas
ruíram.
- Como te chamas?
- Jesmiah. - Respondeu ela rapidamente, pressentindo uma mudança de atitude no centurião. - E o meu irmão chama-se Ayshel.
- Jesmiah, que é feito da tua família?
- Não faço ideia, senhor. Ficámos separados quando toda a gente tentava alcançar a cidadela. Eu e o Ayshel fomos dos últimos a entrar antes de os portões serem fechados.
- E como é que tens sobrevivido desde então?
- Recebíamos rações, como todos os outros. Dei a maior parte das minhas ao Ayshel, mas ele continua com fome.
Macro olhou-a com atenção e reparou na magreza da face; adivinhou que sob as dobras da estola ela não devia passar de pele e ossos.
- Talvez voltes a encontrar a tua família lá fora.
Ela olhou para ele alarmada.
- Não pode lançar-me lá para fora. Eles matar-me-ão. E ao meu pequeno Ayshel.
Macro endureceu o coração.
- Vamos lá, miúda, tem que ser.
Conduziu-a pelo braço até saírem das ruínas do armazém de cereais e levou-a na direcção dos portões. Jesmiah começou a chorar e a suplicar-lhe
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que a deixasse ficar. Em pleno desespero, prometeu-lhe toda a espécie de favores sexuais que a sua jovem mente conseguia congeminar, mas Macro manteve-se resoluto
e duro como pedra. Quando ouviu a multidão e os seus lamentos, Jesmiah calou-se. Ao rodearem a esquina, ela avistou os civis apertados por trás do cordão de legionários
armados, e as pernas cederam-lhe; caiu, ainda apertando o irmão nos braços.
- Não! Não vou! Não quero morrer. Não vou!
- Vais, sim. - Ripostou Macro com firmeza. - Levanta-te. Já!
- Não... Por favor, imploro-te.
- De pé! - Macro levantou-a, e agarrou-a com brusquidão. Os olhos da rapariga dardejaram na direcção do irmão, regressando de imediato a Macro.
- Se eu tenho que ir, ao menos leva o meu irmão e deixa-o viver.
- Não posso.
- Peço-te!
- Não. Como poderia eu tratar de um bebé? É o teu irmão. Contigo é que ele deve ficar. Vamos.
Macro ergueu-a do solo e pegou-lhe ao colo, continuando a caminhar para os portões. Jesmiah pareceu ficar prostrada, de olhos fechados, e começou a murmurar o que
parecia uma oração. Macro olhou para ela uma única vez, mantendo o olhar fixo na distância. Abriu caminho por entre os legionários e pô-la no chão sem se deixar
levar pela compaixão; afastou-se um passo e apontou para a multidão.
- Cá estamos. Junta-te ao resto do teu povo.
Ela olhou-o uma última vez, os olhos cheios de desprezo e altivez, e depois, aninhando a pequena cabeça do irmão no seu ombro, avançou lentamente através da multidão,
até se colocar directamente em frente aos portões. Para ser a primeira a ser expulsa. Para ser a primeira a ser massacrada pelos rebeldes. Virou-se então, e olhou
para Macro com ar acusador. Este observou quando um dos legionários colocados de guarda ao portão se aproximou dela e lhe agarrou no cordão de ouro, puxando-o e
colocando-o na sua bolsa antes de voltar ao posto. Por momentos, Macro pensou em dar uma reprimenda ao homem, mas para que serviria isso? Se não tivesse sido o legionário
a roubar-lhe o pendente, seria um qualquer rebelde a tirar-lho do corpo. O mesmo que provavelmente poderia vir a tirá-lo do cadáver daquele legionário, dali a uns
dias. Abanou a cabeça, desalentado, e saiu do caminho do último grupo de civis que era trazido por um grupo de busca.
Quando o último dos refugiados já tinha sido adicionado à multidão, deu a ordem.
- Abram os portões!
Os homens destacados para a tarefa removeram a pesada tranca e
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esforçaram-se para escancarar as portadas. Os portões abriram-se com um ranger pesado, deixando entrar na cidadela a luz rósea da alvorada. A multidão virou-se para
a luz, silenciada por momentos, enquanto contemplava o caminho que a esperava.
- Vamos pô-los lá fora! - Gritou Macro. - Apresentar lanças!
Os soldados baixaram as armas, dirigindo as pontas aguçadas aos civis, que se encolheram assustados. Os gritos de medo e pânico voltaram a escutar-se, pelo que Macro
se viu obrigado a pôr as mãos em concha e gritar a plenos pulmões para fazer ouvir as suas ordens.
- Em passo lento... Avançar!
A linha de soldados romanos moveu-se, aproximando-se da turba. A princípio ninguém se mexeu, mas depressa a pressão dos que estavam mais próximos das lanças se tornou
inexorável, e as pessoas começaram a atravessar os portões e a espalhar-se pela ágora. Macro dirigiu-se às escadas e subiu para o cimo das muralhas. Cato olhava
para lá da ágora, para a zona onde os rebeldes tinham estabelecido a sua plataforma de artilharia.
- Decididamente, este não é o nosso melhor momento. - Comentou Macro em voz baixa, ao aproximar-se do amigo.
Cato deitou-lhe um olhar distraído, antes de perceber realmente o que Macro dissera.
- Não, suponho que não. Mas não havia nada a fazer.
- Fraca consolação para essas pobres gentes, e mesmo para nós que tivemos que fazer o trabalho sujo. Porra.
Mas Cato já tinha retomado toda a atenção para as linhas inimigas, e Macro suspirou, frustrado pela falta de uma resposta elaborada.
- O que é que te apoquenta a ti?
- Está tudo muito calmo para aquelas bandas. - Retorquiu o jovem.
- Praticamente não se vê movimento.
Macro protegeu os olhos da luz rasante e tentou perceber o que se passava no pátio dos mercadores e no recinto do templo. Dois vultos, rapazes pelo que percebeu,
afadigavam-se a escolher coisas entre o material deixado no exterior do templo.
- Já estou a perceber o que queres dizer.
- O que estarão eles a preparar?
Macro encolheu os ombros.
- Caralho, sei lá. Mas eles andam por aí. Tem que andar. E assim que virem aquela malta, vais ver se não aparecem.
Acenou na direcção dos civis que se espalhavam pela ágora. A maior parte dava uns passos e parava, olhando amedrontada para os edifícios e para as ruas que se abriam
para aquele espaço no lado oposto à entrada da cidadela. Um punhado deles, mais ousado, correu para o que lhes
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pareceu o abrigo mais próximo, tentando desaparecer de vista antes que os rebeldes percebessem que estavam à sua mercê. O olhar de Macro vasculhou por entre a multidão
até localizar a frágil figura de uma rapariguita vestida de azul, com um bebé nos braços. Jesmiah correu rapidamente para a rua mais próxima e desapareceu. O coração
de Macro pesava como chumbo ao contemplar o que via como uma traição pessoal à jovem e ao seu irmão.
O passadiço estremeceu levemente sob as suas botas quando os portões foram de novo encerrados. Continuava a não haver sinal do inimigo, e os dedos de Cato tamborilavam
nervosamente na bainha do gládio.
- Mas do que estarão eles à espera, pelos demónios?
Na ágora, os civis já se tinham apercebido do silêncio e da quietude dos rebeldes, e começavam a escapar-se rapidamente, deixando a área aberta e metendo pelas ruas
estreitas que saíam da praça. Em pouco tempo a zona ficou deserta e silenciosa, e nem se escutavam gritos distantes de pânico, muito menos o clamor de algum massacre
sangrento a acontecer algures nas ruas da cidade.
- Aconteceu alguma coisa. - Decidiu Cato. - Temos que descobrir o que se passa.
- Pode ser uma armadilha.
- Pode ser, sim. Mas temos que saber na mesma.
- Muito bem. - Assentiu Macro. Virou-se e dirigiu-se ao outro lado da muralha, chamando pelos legionários que estavam lá em baixo. - Centurião Braco!
- Senhor?
- Manda sair duas secções. Verifiquem o recinto do templo e as barracas dos mercadores. Apresentem-me um relatório assim que voltarem.
- Sim, senhor. - Braco virou-se para os homens mais próximos e deu ordens. Logo a seguir os portões entreabriram-se de novo para deixar passar os legionários em
fila indiana. Das muralhas, Macro e Cato viram como o grupo se separava em dois; alguns atravessaram diagonalmente a ágora em direcção ao templo, enquanto o outro
bando se dirigiu directamente para a posição que os rebeldes tinham fortificado de forma a proteger a sua artilharia. Dobraram a esquina e saíram do campo de visão
dos oficiais. Mas pouco depois Macro e Cato viram alguns dos homens a esgueirarem-se junto a uma parede. Não havia sinal da presença do inimigo. No templo sucedia
o mesmo. Depressa os líderes das secções foram avistados a correr de regresso à cidadela.
Macro levou a mão em concha à boca e interpelou-os.
- O que é que encontraram?
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- Nada, senhor. Partiram. Abandonaram tudo. As catapultas ainda ali estão. E o material para fazer outro aríete. Mas quanto aos rebeldes, senhor, parece que desapareceram.
Macro virou-se para Cato.
- O que se passará? Porque raio abandonariam eles o cerco? E afinal para onde é que foram?
- Isto não me agrada. Ainda pode ser uma armadilha.
Macro lançou um sorriso tímido.
- Olha para o lado bom da coisa. Nem sinais de um cavalo de madeira.
Cato lançou-lhe um olhar irritado.
- Está certo, tens razão. Desculpa. Não é altura para brincadeiras.
- Não.
Macro desapertou o capacete e tirou-o. O cabelo ensopado em suor estava colado ao crânio, e ele passou a mão pelos caracóis escuros. Logo a seguir aplicou um murro
no parapeito de pedra que tinha ali mesmo à mão de semear.
- Foda-se, mas estes gajos estão a brincar às escondidas? Se não estão aqui, então devem ter-se escapulido durante a noite e deixado a cidade. Por que carga de água
é que fariam isso?
Nesse momento vieram à memória de Cato as conversações com o príncipe Artaxes, e o homem que tinha surgido com a tal mensagem quando elas tinham terminado. Virou-se
para Macro, os olhos a brilhar de excitação.
- É o Longino! As patrulhas deles devem ter visto o exército a aproximar-se. Os rebeldes fugiram.
- Longino?
- Sim. Só pode ser! - Cato deu uma palmada no ombro do amigo. - Estamos safos!
- Tem lá calma. - Instou Macro. - Se é o Longino, onde está ele? Além disso, para estar tão cedo em Palmira, teria que ter marchado à velocidade do vento.
Cato correu para a torre mais próxima e galgou os degraus dois a dois. No cimo, com o coração a bater desalmadamente, assomou às ameias e vistoriou o horizonte para
lá da cidade. A princípio nada distinguiu. Mas depois, para as bandas do leste, reparou numa pequena nuvem de poeira que se erguia por trás de uma crista do terreno.
Só podiam ser as forças de Artaxes, a retirar para a zona controlada pelos seus amigos partos. O olhar de Cato concentrou-se então no norte e depois no oeste, e
finalmente avistou algo, outra mancha de poeira no céu. Esticou o braço na direcção em que a via.
- Além! Macro, ali mesmo!
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Na muralha sobre o portão, Macro seguiu a indicação do amigo, esforçou a vista e imediatamente soltou um grito de alegria e agitou o punho no ar.
- Estamos salvos! - Virou-se para os outros homens nas ameias. - É o Longino! É o general Longino!
O grito de triunfo propagou-se por toda a muralha e pelos soldados no solo junto aos portões, e o ar encheu-se de berros de alívio. Todo o cansaço, o desespero e
a fome dos dias anteriores foram esquecidos, enquanto os homens riam, se felicitavam e celebravam. Cato desceu a correr da torre e apertou o braço a Macro.
- Conseguimos! Aguentámos! - Tentou recuperar alguma compostura. - Senhor, as minhas felicitações.
Macro afastou a alegria com um gesto breve. - Foi por pouco. Mais uns dias e...
- Não interessa. - Interrompeu-o Cato. - Estamos salvos!
- Salvos? - O centurião concordou com um leve aceno da cabeça. Olhou para lá da ágora, para as ruas por onde Jesmiah tinha sido forçada a avançar ao encontro do
destino. - Sim, estamos salvos. Todos estamos a salvo, agora.
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Senhores, fizeram um trabalho extraordinário. - Assinalou o general Longino. - Na melhor tradição das legiões. Podem ficar certos de que não me esquecerei de o mencionar
nos meus relatórios para Roma.
- Obrigado, senhor. - Respondeu Macro.
Encontravam-se no salão de audiências do rei, na cidadela. Vabathus e todos os seus conselheiros já tinham regressado, na companhia dos mercenários gregos, para
os aposentos muito mais confortáveis que os esperavam no palácio real, do outro lado da cidade. Sua Majestade tinha, antes de mais, oferecido os seus mais vivos
agradecimentos ao general Longino, e declarara a cidade aberta ao exército romano, em parte devido ao seu desejo de cimentar a amizade com Roma, mas sobretudo para
se vingar dos habitantes que tinham apoiado Artaxes, ou que pelo menos nada tinham tentado contra ele. Longino agradecera por sua vez a oferta, mas declinara, já
que não se podia dar ao luxo de comprometer a integridade do seu exército com uma pilhagem e todos os desacatos normalmente a ela associados. Assim que concluíra
o encontro com o rei, o general agendara uma reunião com os dois oficiais que tinham comandado a coluna avançada. Na companhia de Semprónio e de todo o seu estado-maior,
dera-lhes os parabéns pelo trabalho, e virava-se agora para os assuntos mais prementes.
- De acordo com o vosso relatório, o príncipe Artaxes abandonou a cidade ontem à noite. Deve ter um avanço de uns vinte e cinco a trinta quilómetros. A minha intenção
é dar-lhe caça, assim que a minha coluna estiver reabastecida de água e comida. Assumi o risco de deixar a maior parte do comboio de abastecimentos em Cálcis, de
forma a alcançar Palmira o mais cedo possível. Marcharemos portanto com aquilo que pudermos transportar. Quando alcançarmos os rebeldes, trataremos de os aniquilar.
Creio que chegaremos e sobraremos para os restos do exército do príncipe Artaxes. Cato tinha poucas dúvidas a esse respeito. Longino trouxera consigo duas legiões,
a Décima e a Terceira, bem como várias coortes de auxiliares. A Sexta ficara na retaguarda, para defesa da província. Havia porém, na composição do exército de Longino,
uma coisa que preocupava o jovem oficial, e ele pigarreou de forma audível. - Senhor?
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- Sim, prefeito?
- O príncipe Artaxes referiu que havia um exército parto a dois ou três dias de marcha de Palmira. E isso foi ontem. Se ele estava a dizer a verdade, corremos o
risco de só o alcançar depois de ele se ter reunido aos partos.
Longino assentiu.
- Melhor ainda. Os meus espiões afiançaram-me que os partos não vão conseguir dispor de um exército numeroso na região senão daqui a alguns meses. Portanto, esmagaremos
os rebeldes e, ao mesmo tempo, daremos uma lição aos nossos mais perigosos inimigos. Depois de vergados, não se atreverão a meter a pata nos assuntos de Palmira
nos próximos anos.
- Estou certo de que tem razão, senhor. Se os derrotarmos, efectivamente.
- Se? - Longino sorriu. - Duvidas de que o conseguiremos?
- Não, senhor. Por certo que não, se tomarmos as precauções devidas.
- Precauções? A que precauções te referes, prefeito?
Cato fez uma pausa, para planear a melhor forma de apresentar as suas preocupações. Impaciente, o general Longino mudou o peso de um pé para outro. - Então? Vá,
homem, desembucha.
- Senhor, é certo que tem ao seu dispor duas legiões, mas o que é fundamental neste caso é a cavalaria. Se o exército tiver de enfrentar os partos, é vital que não
exista qualquer desproporção em termos de cavalaria.
- Ah. - Longino anuiu. - Deves achar-me um idiota, se pensas que não conheço a fama do... Hum, do lendário arqueiro montado parto. Prefeito, deixa-me garantir-te
uma coisa. As legiões de Roma estão perfeitamente à altura de quaisquer cavaleiros ou arqueiros que alguma vez percorreram este mundo. O facto de os nossos amigos
partos terem decidido combinar as duas funções não tem qualquer importância.
- Senhor, não teria essa opinião se tivesse estado connosco no deserto quando enfrentámos um pequeno destacamento de arqueiros a cavalo, precisamente. Se não tivessem
sido o príncipe Balthus e os seus homens...
- Nesse caso, ainda bem que o príncipe e os seus seguidores nos acompanham. Neste preciso momento preparam montadas frescas.
- O Balthus vai connosco? - Interrompeu Macro. - Porquê?
- O rei, seu pai, ofereceu-nos os seus serviços; e por mim, mais alguns homens são sempre bem-vindos à minha força. Podem ser-nos úteis como batedores, e poupar
os homens que empregaríamos para essa função. E assim teremos com toda a certeza suficientes homens a cavalo para contrariar qualquer ameaça desses arqueiros montados.
Isto chega para te sossegar?
- Francamente, senhor, não. - Admitiu Cato.
O general Longino franziu o sobrolho.
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- E porque não?
- Senhor, o deserto é, em grande parte, terreno propício para a cavalaria. Não poderemos proteger os nossos flancos. Não poderemos evitar que o inimigo nos rodeie
e ataque pela retaguarda. Eu não ofereceria batalha, a não ser que pudesse escolher o terreno, numa zona onde uma grande força de infantaria pudesse enfrentar o
inimigo mantendo os flancos seguros, ou num alto, onde o declive fizesse as montadas perder o ímpeto de uma carga. Se os partos apanharem a nossa coluna em pleno
deserto, poderão atacar de qualquer direcção, lançar uma revoada de flechas e desaparecer antes que a nossa cavalaria se aproxime sequer.
- Prefeito, se isso acontecer, não passará de um contratempo. Não nos impedirá de avançar contra o grosso da coluna inimiga.
- Mas, senhor, a cavalaria constitui o grosso da coluna dos partos. Aí é que bate a questão. A princípio não parecerá nada de especial, apenas uns ataques ocasionais
para castigar os nossos flancos. Vão fazer de tudo para nos atrair ainda mais para o interior do deserto, enquanto tratarão de ir reduzindo os nossos números, e
de provocar nos nossos homens o pavor de se verem de repente sob uma nova chuva de flechas.
- Bem, prefeito, então que sugeres que eu faça? - Havia um tom de exasperação na voz do general. - Suspender a perseguição e permitir que Artaxes e os seus rebeldes
escapem?
- Com todo o respeito, senhor, sim. É precisamente isso que eu sugiro.
- E porquê?
- Já controlamos Palmira. Não há nada que possua qualquer valor estratégico daqui até ao Eufrates. Se os partos querem a guerra, então que nos venham atacar aqui,
nos nossos termos. Só conseguirão cansar-se a atacar as muralhas da cidade. E quanto ao príncipe Artaxes... O melhor que ele pode conseguir agora é um exílio na
Pártia. Os seus seguidores terão que ir lá ter com ele, ou regressar a Palmira e implorar o perdão do rei. Senhor, Artaxes é uma peça gasta. Podemos ignorá-lo.
- Não farei tal. Não entregarei a iniciativa ao inimigo. Persegui-los-ei e derrotá-los-ei. Não podemos permitir que desafiem Roma.
- Estou certo de que era esse o pensamento do general Crasso, senhor.
Longino fez um gesto com a mão, afastando a referência.
- Crasso era um cretino. Penetrou demasiado no território inimigo. Eu limito-me a perseguir um bando de rebeldes. Evidentemente, se existir por aí uma força parta,
terão que se juntar aos seus aliados e dar-nos luta, ou então limitar-se a abandoná-los. Se isso suceder, teremos apanhado o príncipe Artaxes e demonstrado que a
aliança com a Pártia de nada lhe serviu. A vantagem é nossa. - O general sorriu, confiante. - Percebo que tu e o centurião Macro tiveram que enfrentar duras condições
nestes últimos
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dias, e que os vossos homens bem precisam de um período de descanso e recuperação. Talvez seja melhor que fiquem por aqui, se não estão em condições de prosseguir
na campanha.
Cato abanou a cabeça.
- Não necessitamos de qualquer descanso. Senhor, estamos prontos para o combate.
- Óptimo. Vou precisar de todos os homens que conseguir para perseguir e destruir os rebeldes. Portanto, prefeito, se não tens mais nada a acrescentar...
Longino fez uma pausa, encarando Cato com ar duro, desafiando-o a levantar mais objecções. Mas foi Semprónio quem avançou.
- General, se posso dar uma palavra...
O olhar de Longino dirigiu-se para o embaixador.
- Sim? O que é?
- Estes oficiais demonstraram vezes sem conta a sua coragem e habilidade, não apenas na defesa da cidadela mas também, e em primeiro lugar, na forma como atravessaram
o deserto e penetraram na cidade, combatendo ao longo do caminho. Não tenho quaisquer dúvidas sobre as suas capacidades e valor, nem sobre a compreensão que detêm
em relação ao inimigo e às suas tácticas. Seria bom que tomasses em consideração os seus conselhos.
- Seria, com certeza. - Longino virou-se para a sua diminuta corte de oficiais do estado-maior, quase todos jovens tribunos na sua primeira colocação militar. Sorriam
com ar superior. Cato sentiu o sangue a ferver-lhe nas veias. Que sabiam eles de combates no deserto? O que podiam eles saber, acabadinhos de chegar das suas ricas
casas em Roma? A única acção que tinham visto desde a sua chegada ao oriente devia ter sido nos lupanares de Antióquia e das outras cidades guarnecidas pelas legiões
da Síria. De repente, abateu-se sobre ele um enorme cansaço, e compreendeu que nada poderia dizer ou fazer para levar Longino a alterar os seus planos. Lançou uma
olhadela a Macro, e baixou a cabeça, resignado.
Longino notou o gesto e bateu as mãos ao cruzá-las por trás das costas, enquanto prosseguia.
- Muito bem. Senhores, este debate está concluído. Quero os homens prontos para esta perseguição assim que estiverem reabastecidos. Tratem de garantir que as ordens
são dadas de imediato. Semprónio, gostaria de trocar algumas palavras em privado com estes dois oficiais, se não te importas.
O embaixador olhou para o general um momento, antes de anuir.
- Como desejares. Cato, vou para os meus aposentos. Gostaria que tivesses a cortesia de me fazer uma visita antes de deixares de novo a cidade.
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- Com certeza, senhor.
Os oficiais do estado-maior saudaram e deixaram o salão com o embaixador. Longino aguardou que o último saísse e cerrasse a porta antes de confrontar Cato.
- O que é que pensas que estavas a fazer, a pôr em causa a minha autoridade daquela maneira?
- Senhor, tenho o dever de exprimir a minha opinião profissional.
- Que se lixe a tua opinião profissional! Não passas de um oficial subalterno, nada mais do que prefeito, e interino ainda por cima. Porque é que pensas que vos
enviei, a ti e ao Macro, para cá? Por serem os melhores oficiais de que dispunha? Cato, acorda. Escolhi-vos porque eram dispensáveis. Porque vos queria fora do meu
caminho. Permanentemente. Vocês não passam dos espiõezinhos de bolso do Narciso. Nem sequer são verdadeiros soldados. Só por milagre é que conseguiram chegar à cidadela.
Vocês os dois são os tipos mais sortudos que já conheci. Talvez seja bom que se juntem ao meu exército. Pode ser que a vossa boa fortuna passe para nós. - Longino
fez uma pausa, e pela primeira vez Cato sentiu que o general tinha algumas dúvidas quanto à decisão de perseguir Artaxes.
- Senhor, já terminou de nos apoucar? - Inquiriu Macro, sem esconder a irritação.
Longino fixou-o com o olhar por momentos, e depois anuiu.
- Preparem os vossos homens para a marcha que os espera. Podem juntar-se à retaguarda da coluna, onde merecem estar. E agora desapareçam da minha frente.
Semprónio recostou-se na cadeira e abanou a cabeça.
- Cato, nada posso fazer quanto a isso. Não passo de um embaixador. Fui enviado para concluir um tratado com o rei Vabathus, e nada mais. A autoridade do Longino
neste caso ultrapassa a minha, e de muito longe. Se ele está determinado a prosseguir a campanha, fá-lo-á de qualquer maneira.
- É uma imprudência. - Respondeu Cato. - Quer perseguir Artaxes com rações para uns poucos dias, e isso inclui a água. Se não o alcançar rapidamente, será forçado
a recuar. Se adiar essa decisão, só os deuses sabem quantos homens perderá no regresso.
- Ele deve ter essa noção. - Retorquiu Semprónio. - Cato, ele não é parvo. Conheço-o o suficiente para o garantir. É apenas ambicioso.
- Ambicioso? - Macro lançou uma gargalhada amarga. - Oh, isso sim, e muito mais do que poderá supor.
Semprónio considerou Macro com o olhar.
- O que queres dizer com isso?
293
- Nada. - Macro sacudiu a mão no ar, afastando o assunto. - É o cansaço a falar. Não quis dizer nada. Ou melhor, apenas quis dizer que ele, como a maior parte dos
do seu género, é um caçador de glória.
- Estou a ver. - Aceitou Semprónio, deixando aparentemente o assunto morrer. Virou-se para a filha, sentada junto a Cato. - Minha querida, importas-te de nos trazer
um jarro de vinho?
- Vinho? - Surpreendeu-se Júlia. - Agora?
- Claro. Estes homens estão prestes a marchar para a guerra. Merecem uma bebida. Traz uma coisa boa. Suponho que ainda deve haver umas ânforas do nosso melhor vinho.
Júlia franziu o sobrolho.
- Pai, porque não pedes a um dos escravos para trazer o vinho?
- Gostaria que fosses tu a trazê-lo, minha querida. Agora, por favor.
Durante um momento, Júlia não se mexeu, o que fez com que o pai a
encarasse com severidade. Com um suspiro de resignação, ela acabou por se levantar e dirigir-se à porta, fechando-a com estrondo depois de sair.
- Esta cena era mesmo necessária? - Inquiriu Cato.
- É a minha filha. Farei tudo o que for necessário para a proteger. O que quer dizer que, para a sua própria segurança, há coisas que não deve saber. Como por exemplo,
esta história do Longino. Não estão a ser totalmente honestos comigo, vocês os dois. O que é que se passa?
Cato sorriu.
- Senhor, como disse, há coisas que é demasiado perigoso conhecer.
- Porra. - Explodiu Macro, num acesso de frustração. - Cato, estou farto disto. Sou um soldado, caraças, não um espião.
- Macro! - Avisou Cato. - Nem pense.
Macro abanou a cabeça.
- Porra, tenho que tirar isto cá para fora. Se este cabrão do Longino nos vai levar a um desastre militar, quero que alguém conheça as verdadeiras razões. Alguém
que possa regressar a Roma e contar a verdade.
- E qual é essa verdade? - Quis saber Semprónio.
- Longino gosta demasiado do púrpura. - Afiançou Macro. - É essa a verdadeira dimensão da sua ambição.
- Isto é verdade? - Perguntou Semprónio a Cato.
O jovem lançou um olhar exasperado a Macro, inspirou profundamente e resignou-se à necessidade de explicar a situação.
- Julgamos que sim. Não temos é provas suficientes para o demonstrar. Ele tem feito um bom trabalho quando se trata de esconder os seus rastos. Mas, para mim, não
há dúvidas. E agora ele precisa de uma vitória. Para cimentar a sua reputação e demonstrar como é um leal servidor de Roma e do Imperador. Foi também por isso que
me mandou, com o Macro,
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na coluna avançada. Não era suposto termos êxito. Ao que parece esperava era que fôssemos mortos. No fundo, mais um detalhe incriminatório que desapareceria.
Semprónio olhou para ambos antes de falar.
- Sendo assim, ele vai-se dar a outro grande esforço para se tentar ver livre de vocês.
- Tem boas razões para nos querer ver mortos.
- Vocês não são apenas vulgares oficiais das legiões, pois não?
Cato não respondeu, e lançou um olhar de aviso a Macro, que se limitou a encolher os ombros e a olhar para lá da janela.
Semprónio deixou que o silêncio comprometedor se prolongasse por mais uns momentos, antes de limpar a garganta e prosseguir.
- Quero que saibam que sou um leal servidor do Imperador Cláudio. Podem confiar em mim. Porém, há mais uma coisa. Cato, estou perfeitamente ciente de que entre ti
e a minha filha há algo mais forte do que uma amizade passageira. Júlia contou-me tudo. Tudo, compreendes? Assumo portanto que isso significa que queres tomá-la
por esposa?
A mente de Cato funcionava a toda a velocidade, tentando lidar com a inesperada direcção que a conversa tomara. Os profundos sentimentos que tinha por Júlia estavam
em conflito com a necessidade de manter em segredo o verdadeiro objectivo por trás do seu envio para o leste do Império. Semprónio apercebeu-se do dilema do jovem,
e prosseguiu.
- Cato, tal como Longino, eu também não sou parvo. Consigo perceber a mão do Narciso por trás disto tudo. Sou o pai da Júlia. Antes de a autorizar a casar-se contigo,
preciso de saber que ela vai ficar em segurança. Que não correrá quaisquer perigos ao ficar ligada a ti. Conheço perfeitamente os riscos da vida de soldado. Mas
também conheço os muito maiores riscos que corre um homem ao serviço de Narciso. Tudo o que peço é que sejas honesto comigo. És um agente imperial?
Cato sentiu-se preso numa armadilha. Não havia maneira simples de escapar. Nenhuma resposta casual que o livrasse de ter que revelar toda a verdade. Além disso,
Semprónio tinha praticamente adivinhado quase tudo o que Cato lhe poderia dizer. Já sabia perfeitamente que os dois oficiais trabalhavam para o secretário imperial.
- Fomos enviados por Narciso para o oriente para vigiar Longino. - Confessou, resignado. Desde o instante em que Narciso os tinha engajado no seu serviço que Cato
e Macro se tinham visto envolvidos em situações tão ou mais perigosas do que as que tinham enfrentado enquanto serviam na Segunda Legião. O que ele mais desejava
era regressar à carreira militar pura e simples, sem se ver envolvido nos planos secretos e na intriga política que constituíam o mundo do secretário imperial. Respirou
fundo, e
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prosseguiu. - O Narciso suspeitava que o general se estava a preparar para usar as legiões do oriente como escada para o trono imperial. O Macro e eu conseguimos
frustrar-lhe os planos, e agora ele anda sobretudo preocupado com o apagar dos traços da conspiração. Se nos acontecer alguma coisa, terá que informar o Narciso
de que as suas suspeitas tinham razão de ser, mas que não conseguimos encontrar provas concretas. Não somos agentes secretos, eu e o Macro. Somos soldados, senhor.
Tivemos foi o azar de nos envolvermos com o Narciso.
Semprónio sorriu com tristeza.
- Não são os primeiros a quem isso acontece. É assim que ele age. Recruta alguns homens directamente. Suborna outros. Outros ainda, são chantageados, ameaçados,
e forçados a trabalhar para ele. Homens como vocês são lentamente sugados para o interior desse mundo de conspirações e intrigas. O meu conselho é que se afastem
dele o mais que possam, se sobreviverem a esta campanha. Sejam quais forem as recompensas que ele vos possa oferecer, voltem à vossa simples vida militar e fiquem
por lá.
- Há-de ser certo. - Comentou Macro, com azedume.
- Nada nos daria maior satisfação. - Realçou Cato. Inclinou-se e cruzou os braços sobre a mesa. - E Júlia?
- Júlia?
- Senhor, quero a sua autorização para me casar com ela.
Semprónio olhou para o jovem e fê-lo esperar alguns momentos pela
resposta.
- Não. Ainda não.
A resposta atingiu Cato como se lhe tivessem dado uma martelada no peito, e teve que lutar tenazmente para controlar a onda de amargura e desespero que ameaçava
engoli-lo.
- Porquê?
- Como tu próprio admites, vais enfrentar grandes perigos nos próximos dias. Contudo, se sobreviveres, se regressares ileso a Palmira, se conseguires encerrar todas
as tarefas que te prendem aqui à região oriental do Império, terás o meu consentimento. Mas só nesse momento.
Cato sentiu o alívio a invadi-lo, mas não conseguiu esquecer tudo o que o aguardava; o destino parecia resolvido a negar-lhe a felicidade, pelo que foi em tom sombrio
que retorquiu.
- Viverei.
A porta abriu-se, e Júlia regressou com um simples tabuleiro de madeira, sobre o qual se viam uma pequena ânfora e quatro cálices de prata.
- O resto do meu vinho de Falerna? - Semprónio não conseguiu evitar um ar de aborrecimento ao reconhecer a ânfora.
- Pai, disseste para trazer o melhor.
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- Sim. Tens razão, de facto. Muito bem, façamos o nosso brinde.
Pegou na ânfora e removeu a tampa. O aroma frutado do vinho espalhou-se rapidamente pelo ar. Encheu cuidadosamente os cálices e rolhou de novo a ânfora, com um gesto
definitivo.
Ouviu-se à distância a nota grave de uma trombeta.
- É o toque a reunir. - Explicou Macro ao embaixador e à filha. Virou-se para Cato. - É melhor bebermos depressa. Temos que ir.
- Espera. - Pediu Semprónio. Olhou para Júlia e ergueu o cálice. - Estaremos para sempre gratos aos dois pelo que conseguiram aqui em Palmira. Duvido muito que existam
outros homens de valor semelhante em todo o exército romano. Roma precisa dos dois. E por isso, proponho este brinde. Que regressem vivos.
Macro soltou uma gargalhada.
- Bebo a isso!
Ergueu o cálice e despejou-o de um trago, pousando-o em seguida na mesa com estrondo. Lambeu os lábios.
- Bela pinga.
Semprónio, que se limitara a beberricar um pouco do seu, quase estremeceu de horror ao ver a forma como Macro consumira tão precioso néctar.
- Se tivéssemos tempo para isso, oferecer-vos-ia mais uns cálices.
- Ah, senhor, muito obrigado. É muito gentil da sua parte. - E com estas palavras, Macro pegou na ânfora e colocou-a debaixo do braço. - Este fica para o caminho.
Vamos, Cato, é tempo.
Júlia lançou a mão sobre a mesa e agarrou na do jovem oficial. Olhou-o nos olhos com uma súplica.
- Volta para mim.
Cato sentiu a pressão dos seus dedos e acariciou com o polegar a pele sedosa das costas da mão da rapariga.
- Voltarei. Juro-o, por tudo o que é sagrado.
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O exército tomou pela estrada que Artaxes tinha usado para se retirar na noite anterior. O general Longino tinha enviado à frente as suas duas coortes de cavalaria
e grupos de batedores, para forçarem o contacto com a retaguarda do inimigo e assim retardarem a fuga. O resto do exército marchou, levantando uma enorme nuvem de
poeira, que sufocava os pulmões e se metia nos olhos, obrigando os homens a chorar e tentar limpar a vista constantemente. Alguns dos soldados tentaram cobrir a
face com os lenços, para filtrar a poeira, mas essa alternativa nada tinha de cómodo, e fazia aumentar o calor que sentiam.
A pior posição na coluna era, naturalmente, a retaguarda; e era lá que marchavam Macro e os seus homens, depois de toda a Décima Legião, seguidos por Cato com a
Segunda Ilírica. No flanco seguia o príncipe Balthus com o seu pequeno contingente de arqueiros, novamente montados graças aos poucos cavalos que os rebeldes tinham
deixado para trás. Cato e Macro seguiam lado a lado, em conversa, quando Balthus se aproximou a trote e desmontou, conduzindo o cavalo pelas rédeas e juntando-se
aos dois romanos.
- Bem, meus amigos, cá estamos de novo. - Começou, animado. - Desta vez os papéis estão invertidos, e é o meu irmão quem foge. Ah, quando o alcançarmos, peço a Bei
que seja a minha seta ou a minha lâmina a tirar-lhe a vida.
Macro abanou a cabeça.
- Deve ter sido divertido crescer na sua família.
- Família? - Balthus pensou por momentos. - Centurião, um palácio real não é um lar. E as pessoas que nele habitam não são como uma família. Desde muito cedo que
se tem uma única certeza: os nossos irmãos são, de facto, apenas nossos rivais. E perigosos. Assim que o rei designa um sucessor, os irmãos tornam-se distracções
desnecessárias, no mínimo, ou competidores ferozes, no pior dos casos. Sempre assim foi. Faziam ideia de que o meu pai era o mais velho de cinco irmãos? Quantos
deles pensam vocês que estão ainda vivos?
Macro encolheu os ombros.
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- Como hei-de eu saber?
- Um.
- Um? - Comentou Cato. - E onde está ele?
- Não percebeste? - Balthus pareceu divertido. - É Thermus, mais novo dos irmãos do meu pai. E a única razão porque ainda vive é o facto de o meu pai o ter feito
castrar, de forma a que não existissem na família mais rivais para mim e os meus irmãos.
Macro franziu o sobrolho.
- Pelos deuses, este reino está podre, de alto a baixo.
- Achas? - Balthus lançou um olhar interrogativo, com as sobrancelhas arqueadas. - Será assim tão diferente em Roma? O que é que aconteceu ao vosso anterior Imperador?
Gaio Caligula? Não foi assassinado pelos seus próprios guardas? Centurião, não sou nenhum bárbaro ignorante. Li muitos livros. Muitas histórias. A vossa, sobretudo.
E vocês têm um passado violento como poucos.
- O que quer dizer?
- Antes de César Augusto, quantos romanos morreram em conflitos intestinos? Os vossos generais e estadistas lançavam-se uns aos outros como lobos encurralados num
fosso. Armavam enormes exércitos apenas para enfrentar os rivais. O que espanta é que tenham sobrado os suficientes para governar um tão vasto Império.
Macro estacou de repente e encarou o príncipe.
- Veio ter connosco só para dizer mal de nós e do nosso Império?
- Não, claro que não. - Balthus sorriu. - Não vos quis ofender. Vim apenas dizer-vos que considero uma honra a oportunidade de voltar a combater ao vosso lado. Depois
de toda aquela má atmosfera que se estabeleceu entre nós lá na cidadela.
- Houve uma razão para esses desentendimentos. Não aprecio particularmente que me acusem de assassínio.
- Nem eu.
- Ah, mas quem beneficia com a morte de Amethus? Essa é a questão.
Cato deitou uma olhadela ao amigo.
- Tem andado a ler Cícero?
- Estava aborrecido. O que havia eu de fazer, se tu aproveitavas cada momento livre para andar a rondar a boazona da aristocrata?
- Ela chama-se Júlia. - Ripostou Cato, pouco agradado.
- Pois, já sei. Seja como for, príncipe, a verdade é que tem muito mais a ganhar com essa morte do que Roma. É lógico.
- Lógico? Fazes isso soar como uma acusação.
- Se assim o quiser entender.
- Digo-to mais uma vez: não matei o meu irmão.
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- Assim o diz, pois.
A tensão entre os dois homens começava a afectar os nervos de Cato, e ele observou o séquito de Balthus, agora reduzido a pouco mais de quarenta homens.
- Onde anda o seu escravo, o Carpex?
Balthus franziu as sobrancelhas.
- Não faço ideia. Desapareceu esta manhã, quando andava a ver se encontrava cavalos para os meus homens.
- Desapareceu? O que aconteceu?
- Não sei. Enviei-o ao palácio real para que me trouxesse um arco e flechas dos meus aposentos. Nunca mais regressou. Tive que ficar com um conjunto de um dos meus
homens, antes de partirmos. Tanto quanto sei, ele ficou lá em Palmira. Não faço ideia porquê ou para quê. É estranho.
- De facto. - Reflectiu Cato. Carpex nunca se tinha afastado muito do seu amo durante todo o cerco.
- Se resolveu fugir, pagará caro quando for apanhado.
- Mas porque haveria ele de tentar escapar? - Indagou Macro. - A vida dele é agradável, e muito melhor que a de muitos libertos.
Cato sorriu.
- Duvido que ele tenha visto as coisas assim quando andávamos pelos esgotos. Provavelmente foi por isso que fugiu. Deve estar farto de uma vida na merda.
- Bom, nesse caso tomou a opção correcta. - Concluiu Macro. - Porque tenho a nítida sensação de que nos estamos a meter na mais profunda das pocilgas, e que depressa
vamos ter merda até aos pescoços.
A meio da tarde o exército já tinha atravessado as baixas colinas a leste, e Palmira e o seu oásis tinham ficado muito para trás. O general Longino não concedeu
aos homens mais do que breves pausas para descanso, tentando recuperar o terreno que o separava das forças de Artaxes. Enquanto o Sol descia para o horizonte, as
legiões atravessaram um terreno difícil que se estendia por alguns quilómetros, com profundas ravinas de ambos os lados da estrada. Por fim, a estrada desembocou
numa vastíssima planície, estéril e desolada, ainda batida pelo Sol inclemente. A poeira levantada pela retaguarda das forças rebeldes era claramente visível a alguns
quilómetros de distância; pequenas nuvens assinalavam a presença de bandos de soldados atrasados. Havia ainda grupos de cavaleiros espalhados pela paisagem, mantendo-se
normalmente a distância segura uns dos outros, mas por vezes carregando e envolvendo-se em breves escaramuças, antes de recuar e retomar as posições.
Assim que o Sol desapareceu, a temperatura começou a baixar, e os
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soldados animaram-se perante a perspectiva de uma paragem para a noite. Mas não foi dada qualquer ordem para fazer alto, e os soldados romanos continuaram a avançar
como um rio imparável a serpentear pelo deserto.
O crescente da Lua e as estrelas forneciam luz suficiente para caminhar, e projectavam ténues sombras sobre a areia escura. Perto da meia-noite, segundo os cálculos
de Cato, a coluna parou por fim, e os oficiais do estado-maior percorreram-na, convocando todos os comandantes de unidade para uma reunião com o general Longino.
- Ele não está com certeza a pensar num ataque nocturno? - Indagou Cato, enquanto se dirigia em passo de corrida para a frente da coluna, ao lado de Macro. Os homens
das legiões e das coortes auxiliares tinham sido autorizados a tirar as mochilas e descansar. Estavam por todo o lado, sentados ou deitados na areia. Havia um murmúrio
de conversas no ar, e não foi difícil a Cato perceber que o tom geral era de descontentamento.
- Quem sabe? - Respondeu Macro, a ofegar. - Parece que o general não nos vai deixar descansar até que apanhemos os rebeldes.
- Espero bem que não seja esse o plano, porque nesse caso os homens vão estar mortos de cansaço antes mesmo de começar a combater.
Macro resmungou.
- Mortos, pois, esse é que é o problema.
Havia um ajuntamento de homens e cavalos num dos flancos da cabeça da coluna, o que lhes revelou a localização do general; foi para lá que os dois amigos se dirigiram,
abrindo caminho por entre uma massa de impedidos, ajudantes e batedores, e passando enfim pela inspecção discreta dos guardas pessoais do general.
Macro viu o vulto de Longino de pé perante a assembleia de oficiais do seu exército, e tossiu para anunciar a sua chegada.
- Centurião Macro e Prefeito Cato apresentam-se, senhor.
- Até que enfim. Podemos então começar. - Fez uma pausa até se fazer completo silêncio e toda a gente focar nele a sua atenção. Inspirou e começou. - Os batedores
informam que Artaxes está acampado mesmo para lá daquela pequena crista no terreno, a uns três quilómetros daqui. Do lado de cá do cimo da crista aperceberam-se
do brilho dos fogos do acampamento inimigo. Os nossos batedores não se mostraram, portanto duvido que ele saiba que estamos aqui tão perto. É minha intenção avançar
até à crista, formar uma linha com as legiões no centro e os auxiliares nos flancos, ultrapassar a elevação do terreno em ordem de batalha e atacar o campo inimigo.
A surpresa estará do nosso lado, e calculo que conseguiremos destruí-los antes mesmo de terem tempo para organizar qualquer defesa. Pela alvorada, a cavalaria e
os batedores montados poderão conduzir uma operação de limpeza, abatendo quaisquer grupos que consigam
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escapulir-se. - Fez outra pausa. - Senhores, daqui a poucas horas teremos derrotado o inimigo, esmagado os rebeldes e terminado esta campanha com toda a glória.
Quando os partos souberem que Palmira está nas nossas mãos e que Artaxes foi derrotado, não terão outra alternativa que não seja retirar.
Macro inclinou-se para Cato.
- Um ataque nocturno. Ao que parece tinhas razão, o homem é, em termos militares, um idiota.
Mas Cato tinha outra opinião.
- Até pode resultar. Desde que os ataquemos antes que eles consigam formar uma linha defensiva. E depois, somos muito mais do que eles.
- Mesmo assim, isto não me agrada. - Resmungou Macro. - Não conheço nenhum soldado que goste de combater à noite. Há demasiadas coisas que podem correr mal.
- É bem verdade. - Respondeu Cato, reavaliando o plano. - Parece-me é que o Longino ainda não percebeu que tipo de inimigo está a enfrentar.
- Chiu! - Queixou-se um dos centuriões mais próximos. - Importam-se? Não consigo ouvir a porra de uma palavra do que o general está a dizer.
Macro avançou para o homem, mas Cato agarrou-lhe o braço.
- Deixe.
Por momentos Macro olhou para o amigo, mas depois, relutantemente, assentiu.
- Está bem, tens razão.
O general já tinha despachado o tradicional discurso preparatório de uma batalha, e já ordenava aos oficiais que regressassem às suas unidades. À medida que a pequena
multidão dispersava, Macro ia abanando a cabeça.
- Foda-se, que perda de tempo. Para que raio é que nos obrigaram a vir à cabeça da coluna, para ouvir um discurso mais que estafado?
- Para a posteridade. - Retorquiu Cato. - O Longino julga que está a escrever uma página de História, e quer que todos recordem o momento.
- Garanto-te que não vou esquecer o que este sacana me tem cansado.
Os oficiais do estado-maior de Longino indicaram a cada unidade a sua posição no esquema de combate. Apesar de banhada pelo luar, a coluna moveu-se lentamente, já
que havia que aguardar que cada unidade se destacasse e depois atravessasse o deserto numa direcção transversal, escolhendo com cuidado o caminho por entre a paisagem
pejada de rochas. A Terceira Legião ocupou a área à direita da estrada, a Décima ficou à esquerda. A coorte
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de Macro ficou no flanco da legião a que pertencia, e
ocupou a posição seguinte. Outra unidade auxiliar, a Sexta Macedónica, manteve-se como reserva, a curta distância. Os arqueiros de Balthus formaram por trás da coorte
de Cato. As duas coortes de cavalaria e os batedores montados permaneceram na retaguarda, à espera da luz do dia para entrar em acção.
Por fim, todo o exército estava formado na linha de batalha. Quinze mil soldados de infantaria e quase mil de cavalaria aguardaram em silêncio a ordem de avançar.
Naquelas circunstâncias, não haveria nenhum estridente toque de trombetas, que não deixaria de alertar o inimigo. Ao invés, os oficiais do estado-maior ocuparam
posições espaçadas à frente da coluna, cada um deles empunhando uma das bandeiras que os engenheiros militares usavam para delimitar os acampamentos de marcha.
Uma pequena força de batedores montados varreu o percurso que o exército ia seguir do outro lado da crista. Nada mais se interpunha entre as forças de Longino e
os rebeldes de Artaxes, para lá de alguns cavaleiros inimigos e uns oficiais romanos.
Pareceu a Cato que o exército ficou à espera uma eternidade. Os pés doíam-lhe horrivelmente por causa da longa caminhada, e tinha a mente tão embotada pelo cansaço
que chegou a temer adormecer em pé. Obrigou-se a andar para cá e para lá em frente à sua unidade, trocando de vez em quando algumas palavras com os comandantes das
centúrias, ou com algum soldado que lhe parecesse estar quase a desfalecer. Regressou por fim à sua posição junto ao estandarte e virou-se para Parmenião.
- Diz-me uma coisa, já alguma vez tomaste parte num ataque nocturno?
- Sim, senhor, já estive envolvido nalgumas acções nocturnas.
- Mas já alguma vez viste todo um exército lançar um ataque desta envergadura a coberto da noite?
- Não, senhor.
Cato manteve o silêncio por instantes.
- Eu também não.
- Vai correr tudo bem, senhor.
- Achas mesmo? - Cato sorriu. - Vai uma aposta?
- Com certeza, senhor. - Respondeu de imediato Parmenião, seguindo um guião já bem conhecido. - E, no caso de ser o senhor a ganhar, para onde devo enviar o dinheiro?
Riram-se os dois em surdina, mas Cato apercebeu-se de algo.
- Atenção!
Cinquenta passos à sua frente, o oficial tinha levantado a bandeira e começado a fazê-la oscilar de um lado para o outro, e o mesmo faziam todos os outros oficiais
na linha de aviso. Cato virou-se para Parmenião.
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- Passa a palavra. Todos preparados para avançar.
- Sim, senhor. - Parmenião saudou o superior e correu pela frente da Segunda Ilírica, alertando os homens à sua passagem. Toda a linha do exército se agitava, à
medida que os soldados faziam uma última verificação ao equipamento e soerguiam os escudos. De súbito, o oficial do estado-maior baixou a bandeira e desatou a correr,
regressando ao centro da linha. Os oficiais de Cato tinham estado a observá-lo, e de imediato deram ordens para avançar, pelo que a Segunda Ilírica começou a percorrer
o espaço vazio à sua frente. Cato acelerou até se adiantar alguns passos e conseguir abranger com o olhar toda a linha do exército, até ao flanco oposto. Era uma
visão impressionante, mesmo à fraca luz da Lua e das estrelas, e a sua confiança na vitória subiu ligeiramente. Se conseguissem surpreender o inimigo alcançariam
por certo um triunfo relativamente fácil. Não se ouviam ordens gritadas, nada de estridentes toques das trombetas, nenhum soldado batia com a espada contra o escudo,
não havia sinais da habitual cacofonia que acompanhava um exército romano a caminho da batalha. Nada mais do que o esmagar de grãos de areia debaixo dos milhares
de botas cardadas que atravessavam o deserto, e o tilintar de algumas peças de equipamento soltas. O efeito global era quase sobrenatural, reflectiu.
As densas linhas de soldados atravessaram a planície e começaram por fim a subir a ligeira crista que os separava do acampamento inimigo. Cato avistou uma massa
escura sobre o solo à sua frente e, quando se aproximou, percebeu que era o corpo de um soldado palmirense, uma das sentinelas inimigas, por certo. O topo da crista
estava já ali à frente, desenhado a contraluz pelo brilho das fogueiras no campo rebelde, e de repente as dúvidas sobre o plano de Longino que já antes o tinham
apoquentado tornaram-se avassaladoras, e a ansiedade fê-lo sentir um frio a subir-lhe pela espinha. Havia muito mais luz do que seria de esperar para uma força com
as dimensões da que Artaxes comandava. Acelerou, e ouviu outros passos quando Parmenião se lhe juntou.
- Não gosto nada do ar que isto está a tomar. - Comentou o centurião.
- Nem eu.
O chão tornava-se de novo plano, e assim que Cato alcançou o cimo da crista parou, a admirar a quantidade de fogueiras disseminadas pelo deserto à sua frente. Parmenião
sussurrou, assombrado.
- Foda-se. O que é isto?
- Isto é o exército do Artaxes, engrossado pelos seus aliados partos.
- Respondeu Cato, conformado. - Alcançaram-no antes de nós. Ao que parece, os espiões do general mentiram-lhe.
- E agora, por Hades, o que vamos fazer?
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- Continuamos com o ataque. - Cato recomeçou a avançar. - Não podemos parar. É a nossa única hipótese. Apanhá-los de surpresa, antes que tenham tempo de reagir.
O resto da linha romana já tinha alcançado o topo da crista, e já todos podiam ver o acampamento inimigo espalhado a sua frente, a menos de um quilómetro de distância.
O general tinha tido toda a razão, concedeu Cato. Contra todas as possibilidades, tinha conseguidoapanhar o inimigo desprevenido. Tinha errado na sua avaliação de
Longino.
Nesse instante, uma trombeta emitiu uma curta série de notas que se espalhou no silêncio do deserto. Outras se lhe juntaram, repetindo o sinal. Parmenião estacou
e olhou para Cato.
- Mas o que é que ele está a fazer? O que é que aquele imbecil está a fazer?
Cato abanou a cabeça, estupefacto. Por toda a linha os soldados paravam, respondendo ao toque de alto. Cato sentiu-se agoniado.
- O general perdeu a coragem. - Concluiu Parmenião. - Viu aquilo tudo lá em baixo, e cortou-se. - Manteve o silêncio por mais uns breves instantes e depois concluiu.
- Que os deuses nos ajudem.
- Será melhor rezares para que o façam. - Murmurou Cato. - Porque acabamos de perder a iniciativa. Olha.
Na planície já soavam os primeiros sinais de alarme. Logo se escutou no cimo da crista o som de um tambor, e à luz das fogueiras Cato observou como milhares e milhares
de homens acordavam e imediatamente se equipavam e procuravam os seus cavalos.
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O exército romano manteve-se imóvel, enquanto observava o inimigo a concentrar as suas forças. Artaxes e os seus rebeldes, infantaria na sua maior parte, formaram
uma linha pouco profunda em frente ao acampamento. Esses representavam uma ameaça insignificante. Muito mais preocupantes, admitiu Cato, eram os grupos de arqueiros
montados e catafractários partos, que já começavam a dirigir-se para a elevação de terreno onde os romanos aguardavam.
- Mas o que anda ele a fazer? - O centurião Parmenião bateu com o punho na perna enquanto olhava para a direita, para o centro da linha, onde o general Longino e
o seu estado-maior se tinham posicionado. - Porque é que não dá ordem de ataque, antes que seja tarde demais, porra?
Cato limpou a garganta e dirigiu-se ao subordinado.
- Centurião Parmenião.
- Senhor?
- Agradecia que mantivesses a boca fechada. Pensa nos homens. Tanto quanto sabem, esta espera faz parte dos planos. Percebido? Portanto, mantém alguma reserva. És
um veterano, age como tal, caramba.
- Sim, senhor.
Cato olhou-o por momentos, até se certificar de que o outro tinha mesmo percebido a ideia, e anuiu.
- Podes continuar.
- Sim, senhor.
No horizonte oriental já se desenhava uma linha de céu menos escuro, anunciando para daí a pouco a chegada da alvorada, e a cada momento Cato conseguia distinguir
mais detalhes da paisagem que o rodeava. Mas a ordem de avançar continuava a não surgir. Por fim, um dos oficiais subalternos do estado-maior, um tribuno da aristocracia
menor, passou por toda a linha, parando para dar instruções a cada um dos comandantes de unidades. Cato avançou ao seu encontro. Assim que ele se aproximou da zona
da Segunda Ilírica, saudou o prefeito interino.
- Senhor, cumprimentos do general. - Disse, quase sem respirar. - As ordens são para esperar o ataque do inimigo aqui nesta zona mais elevada.
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O general dará a ordem de avançar assim que quebrarmos o ímpeto da carga deles. Até lá, é sua função assegurar a segurança do flanco. Se ocorrer alguma tentativa
de nos rodear, caber-lhe-á a si e às forças do príncipe Balthus impedi-la.
- Muito bem. - Concordou Cato. - Faremos o nosso dever.
- Sim, senhor.
Trocaram uma saudação, e o tribuno fez a montada dar meia-volta e galopou de novo para junto do general. Cato virou-se para Parmenião
- Ouviste?
- Sim, senhor.
- Já sabemos com o que podemos contar. Temos que guardar este flanco. - Decidiu Cato. - Organiza os homens, forma uma linha a partir da crista onde está a ponta
da coorte do Macro. Envia um mensageiro ao Balthus. Os homens dele que formem atrás de nós, e que se preparem para abater os partos que atacarem o flanco esquerdo
da nossa linha.
- Sim, senhor.
- Então toca a mexer! Não nos pagam à hora!
Assim que a Segunda Ilírica assumiu a nova formação, a posição de Cato ficou relativamente perto da de Macro, e o jovem dirigiu-se ao encontro do amigo para comentar
a evolução dos acontecimentos. Macro viu-o chegar enquanto abanava a cabeça, com ar fatigado.
- Longino fodeu completamente isto tudo. - Apontou a nova crista que lhe adornava o capacete. - Paguei cinco dinários a um sacana qualquer da segunda coorte por
isto. Porra, dinheiro atirado fora, agora que estamos quase a servir de alvos para os partos praticarem com os arcos.
- Assim parece. - Concordou Cato. - E o general parece ter metido na cabeça que eles vão carregar sobre nós.
- Depressa vamos tirar isso a limpo.
- E depois? - Cato baixou a voz, de forma a que só Macro o pudesse ouvir. - O que acha que ele fará?
- O que pode ele fazer? Não temos propriamente cavalaria capaz de aguentar o inimigo num sítio e permitir que as legiões avancem sobre ele. Palpita-me que, assim
que os nossos homens começarem a tombar que nem moscas, o Longino vai dar é ordem de retirada.
- Também me parece. Vai ser duro conseguir não perder muita gente.
Macro suspirou.
- Bem, ele ansiava por uma batalha. Aqui a tem. Difícil vai ser conseguir sobreviver para contar a história.
- Pois. - Cato ergueu o olhar para o céu. - Está a começar a fazer-se luz. Será melhor juntar-me aos meus homens. Boa sorte, senhor.
- Também para ti, Cato. - Trocaram um aperto de braços, e Cato
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virou-se e dirigiu-se a passo firme para onde o estandarte da Segunda Ilírica esvoaçava.
Quando a luz começou a tornar-se mais forte, os partos lançaram o seu ataque. Não se deu qualquer carga selvagem do género das que as legiões estavam habituadas
a enfrentar noutros campos de batalha. Pequenos grupos de arqueiros partos levavam as montadas a subir a encosta e despejavam os arcos sobre as cerradas fileiras
dos legionários. A força dos arcos que usavam era tão grande que lhes permitia disparar em linha recta contra os alvos; mas essa táctica era escolhida apenas por
alguns. A maior parte lançava as setas para o céu, deixando-as descrever um arco para se precipitarem sobre o solo. Ser atacado de dois ângulos diferentes pôs um
problema novo, e provocou confusão nas fileiras da infantaria romana. Quando viram os primeiros homens a serem abatidos, os centuriões das diversas unidades depressa
ordenaram que as duas primeiras filas criassem uma parede contra os tiros directos, enquanto as filas de trás colocavam os escudos em ângulo contra as setas vindas
do alto. Embora esta solução resolvesse os problemas imediatos postos pela táctica inimiga, manter os escudos em posição era um trabalho cansativo, e os homens depressa
tinham que ser substituídos, ou desfaleceriam.
Assim que os partos perceberam que os arcos tinham deixado de provocar baixas na frente das linhas inimigas, concentraram-se nos flancos.
- Lá vêm eles! - Gritou um auxiliar junto à crista do terreno.
- Para baixo! - Ordenou Cato. - Abriguem-se por trás dos escudos!
Os homens puseram um joelho no chão e baixaram as cabeças até mal
conseguirem espreitar sobre os escudos. Cato virou-se para Balthus e levou a mão à boca para se fazer ouvir. - Preparem-se para disparar!
O príncipe acenou e deu uma ordem rápida à sua força, que rapidamente assestou arcos ao som tumultuoso dos cascos que se aproximavam. Cato viu-os então, cerca de
cinquenta inimigos, a cruzar a crista a curta distância do flanco da formação romana. Os que vinham à frente tentaram refrear os cavalos assim que perceberam que
o flanco dos oponentes estava organizado e bem protegido, mas os que os seguiam continuaram a avançar, procurando um caminho pelo meio dos animais, o que desorientou
a formação atacante e os fez perder todo o ímpeto. Balthus viu a oportunidade de contra-atacar, aproveitando a paragem e desorganização do adversário, e deu ordens
aos seus homens. As setas passaram por cima dos romanos, descrevendo um arco alto no céu para se abaterem como um fino véu sobre os partos amontoados. O efeito foi
devastador, como Cato não deixou de verificar. Ao contrário dos soldados romanos, os arqueiros montados não envergavam qualquer couraça, e nem sequer usavam escudos,
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pelo que nada deteve as setas, que se cravaram com facilidade na carne dos alvos. Vários dos homens foram lançados para fora das selas, e os cavalos que tinham sido
atingidos empinaram-se e relinchavam, em agonia. Uma segunda revoada de setas aumentou ainda mais a carnificina, derrubando mais homens e animais no meio da poeira.
Por fim, sob uma nova chuva de flechas, os partos deram meia-volta e fugiram, passando de novo para lá da crista tão depressa como as suas montadas os podiam levar.
De imediato os homens da coorte de Cato e da mais próxima das centúrias de Macro soltaram um coro de assobios e insultos. Parmenião ergueu-se, pronto para os mandar
calar, mas Cato avisou-o com o olhar para não o fazer.
- Deixa-os divertirem-se por um segundo. Vão precisar de muito boa disposição para aguentar o que aí vem.
- Muito bem, senhor.
Cato levantou-se para avaliar o que se passava no terreno em frente da Segunda Ilírica. Cerca de vinte inimigos tinham sido abatidos por Balthus e os seus homens.
Alguns tinham ficado onde tinham caído, imóveis; outros arrastavam-se, feridos, e pediam ajuda. Um deles, com o ombro trespassado, avançava para o cimo da crista.
Cato ouviu Balthus dar uma ordem, e um dos seus seguidores colocou o arco a tiracolo e acelerou o cavalo até um galope rápido. Curvou na ponta da linha dos auxiliares
e dirigiu-se ao ferido. Na mão direita surgiu-lhe de repente uma lâmina curva, e ele inclinou-se na sela enquanto se aproximava rapidamente do parto. Só nessa altura
o inimigo percebeu a sua aproximação, e virou-se e correu numa tentativa de salvar a vida. Mas o cavaleiro alcançou-o facilmente, e executou um golpe veloz que fez
surgir repentinamente uma torrente vermelha enquanto o corpo rebolava pelo solo, já sem vida. Os assobios quase morreram nas gargantas dos homens, mas foi a vez
de Parmenião erguer o punho no ar e soltar um brado triunfal.
- Fodam-me esses gajos! Matem-nos a todos!
O cavaleiro enviado por Balthus seguiu estritamente a indicação, percorrendo tranquilamente a área em busca de feridos e abatendo-os um a um, até que nada se movia,
à excepção dos cavalos feridos que esperneavam no solo ou se deixavam estar deitados sobre o dorso, com as narinas enfunadas de dor e medo e os peitos a arfar como
foles. O cavaleiro limpou calmamente a lâmina nas vestes de um dos partos, embainhou-a sem pressas e regressou a trote para junto dos seus companheiros, passando
junto aos auxiliares e recebendo os seus cumprimentos.
Quando o sol subiu acima da crista, um oficial do estado-maior percorreu novamente a linha romana.
- Senhor, o general ordenou a retirada. - Explicou o tribuno, apressadamente.
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- A Terceira Legião seguirá na vanguarda, seguida pelo corpo principal de coortes auxiliares. A Décima irá a seguir, e depois a Sexta Macedónica. A retaguarda será
constituída pela coorte do centurião Macro, pela Segunda Ilírica e pelo contingente palmirense.
Cato sorriu amargamente.
- Senhor? - O tribuno olhou-o com uma expressão desconcertada.
- Não é nada. Nada a que não esteja habituado. - Cato apontou ao longo da linha romana. - Leva uma mensagem minha ao general. Diz-lhe que o prefeito Cato pressente
que um novo milagre está prestes a ocorrer. Percebeste?
- Sim, senhor. Mas não entendo.
- Limita-te a repetir-lhe o que te disse.
- Sim, senhor. - O tribuno fez uma saudação rápida. - Boa sorte, senhor.
Cato agradeceu, e sublinhou a afirmação.
- Aí está algo de que todos vamos precisar hoje.
À medida que o Sol subia num céu límpido, a prometer mais um dia de calor abrasador, o exército romano iniciou a retirada da crista de terreno que ocupara na preparação
do ataque. A formação passou a coluna, na qual se integrou uma coorte de cada vez, a partir do centro da linha, e esticou-se ao longo da estrada de regresso a Palmira,
que começou a percorrer lentamente. Os partos não interromperam a barragem de setas, gastando todas as que transportavam consigo e depois dirigindo-se aos grupos
de camelos que transportavam grandes cestos repletos de material, para voltar a encher as aljavas e regressar ao ataque. Os escudos dos romanos mostravam bem o resultado
deste incessante castigo, nos riscos provocados por embates menos certeiros e, nalguns casos, pelas próprias hastes dos projécteis, cravadas na superfície das defesas.
Inúmeras setas viam-se espalhadas pelo solo, ou enterradas na areia, por vezes de forma tão densa que pareciam as hastes deixadas num campo de trigo depois de uma
queimada. Já havia centenas de homens feridos ou mortos. Os que podiam ainda caminhar iam juntar-se às unidades que já tinham formado na estrada. Os que tinham ferimentos
demasiado graves para poder andar eram postos ao dorso das poucas mulas que o exército tinha trazido.
Quando cada unidade se retirava, a frente apresentada pelo exército romano encolhia, e as coortes ainda em formação na crista eram obrigadas a mudar de posição,
aproximando-se umas das outras. A meio da manhã os últimos elementos da Décima Legião começaram finalmente a descer a encosta, deixando apenas as coortes de Macro
e Cato para proteger a retirada.
- Vamos formar em quadrado. - Decidiu Macro. - Escudos para
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fora enquanto marchamos. Avançaremos devagar, mas limitaremos as baixas. Os feridos terão que ir para o centro da formação. Levaremos todos os que pudermos, mas
os casos mais difíceis terão que ser vistos um a um. De qualquer maneira, nem pensar em deixá-los para trás vivos e nas mãos do inimigo.
Cato murmurou a sua concordância.
- E que ordens tens para mim? - Quis saber Balthus.
- Vou precisar dos seus homens como coluna de apoio. Tentem perturbar os ataques deles, mas mantenham-se à distância, senão eles fazem-vos em bocados.
Balthus assentiu. Os dois homens encararam-se, tentando avaliar as hipóteses de sobreviverem. Apesar das suas suspeitas sobre as motivações para as acções do príncipe
palmirense, Macro sabia já que no campo de batalha o homem estava verdadeiramente no seu elemento, e sentia crescer o seu respeito por ele. Acenou ao príncipe.
- O último a chegar a Palmira paga as bebidas. Vamos pôr-nos a mexer.
O exército refez lentamente o caminho que tinha tomado para chegar ali, debaixo de um sol impiedoso: uma longa coluna de homens pesadamente equipados a marchar no
meio de uma nuvem de poeira, todos encolhidos por trás dos escudos com receio da próxima revoada de setas que viesse ao seu encontro sem aviso. Os partos, aos milhares,
mantiveram a sua táctica de flagelar os flancos do exército do general Longino, cavalgando ao longo de todo o comprimento da coluna e disparando os seus arcos quase
como se estivessem a recrear-se, esgotando as setas e abandonando momentaneamente a presa para ir buscar novas munições às reservas. O único factor de perturbação
da sua actividade eram as cargas ocasionais da cavalaria auxiliar romana, que os forçava a afastarem-se por momentos. Mas depois os esquadrões regressavam às suas
posições e os temíveis arqueiros montados retomavam a rotina das cavalgadas de tiro ao alvo. O príncipe Balthus e os seus homens apenas dispunham de uma pequena
reserva de flechas, pelo que as usavam com parcimónia, só quando algum parto se aproximava demasiado da retaguarda da coluna.
Os homens de Macro, uma vez que estavam mais bem equipados, formavam a cauda da longa formação, e os largos escudos dos legionários eram alvo de um constante embater
de mísseis enquanto a coorte continuava a arrastar-se pelo deserto ressequido. De vez em quando uma seta encontrava um caminho por entre ou sobre os escudos e atingia
um homem no interior do dispositivo romano. O impacto fazia a vítima cambalear e soltar um grito de surpresa, seguido pelos naturais gemidos de dor. Por vezes não
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passavam de feridas superficiais, arranhões, ou mesmo feridas em que o projéctil atravessava um membro sem tocar em ossos ou órgãos vitais, ou sem romper uma veia
ou artéria; a haste era cortada, e um dos enfermeiros fazia um curativo rápido com um penso improvisado. Os feridos mais graves eram postos sem cerimónias aos ombros
de um camarada e levados para o centro do quadrado, onde um médico avaliava rapidamente a gravidade do caso. Se houvesse boas hipóteses de recuperação, o homem era
colocado num dos vagões de mulas, ou mesmo sobre o dorso de um dos animais; em qualquer dos casos, a irregularidade do piso ampliava as dores devidas aos ferimentos,
e tornava quase impossível estancar hemorragias. E tudo isto se passava debaixo do martelar infernal de um Sol inclemente. Alguns dos homens, com menor grau de autocontrolo,
já tinham esvaziado os cantis, e quando os lábios lhes secavam, a sede começava também a queimar-lhes as gargantas.
Aos feridos que tinham poucas ou nenhumas hipóteses de recuperação, o médico reservava um outro tratamento; pegava dissimuladamente numa lâmina de gume afiado e
abria uma artéria ao desgraçado, que morria por perda de sangue antes de perceber o que lhe tinha sucedido. Os corpos eram deixados ao pé dos que eram mortos ao
primeiro impacto de uma flecha; e depressa a trajectória que a coluna romana seguia na retirada podia ser seguida pelos montes de corpos e equipamento abandonados
aqui e ali.
Ao fim de pouco mais de uma hora de marcha, os homens de Cato começaram a passar pelas vastas pilhas de mochilas e fardos pessoais de equipamento que tinham sido
deixados para trás na noite anterior, quando o exército tinha formado em linha de ataque. Já pouco havia de valor para recuperar quando as duas coortes passaram
pela zona. As unidades que primeiro tinham recuado por ali tinham recuperado os cantis e a comida que tinham encontrado e só tinham deixado roupas, equipamento de
messe e lembranças pessoais espalhadas pela areia. Pelo meio dos detritos viam-se também alguns corpos de soldados pertencentes às outras unidades e que tinham sido
abatidos pelo caminho.
- Larga isso! - Ordenou Cato a um dos seus homens, que se tinha posto a examinar um fardo embrulhado em seda. - Foda-se, isso serve-te para alguma coisa nestas condições?
Optio! Toma nota do nome deste homem! O próximo que quiser andar a vasculhar será espancado!
- Senhor! - Parmenião correu para junto de Cato e apontou para a distância. - Olhe para aquilo!
Havia um intervalo de mais de cem passos entre a Segunda Ilírica e a unidade que a precedia na linha de marcha. A Sexta Macedónica era uma coorte de infantaria auxiliar
com um efectivo reduzido, adjunta à
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Décima Legião e, enquanto Cato observava, um forte contingente parto aproximou-se e atacou-a, disparando os arcos quase à queima-roupa. Mas na realidade estavam
apenas a fazer um assalto de diversão, dissimulando a verdadeira ameaça. Por trás deles surgiu uma massa sólida de catafractários, lanceiros montados e couraçados,
com pesadas armaduras e cavalos de grande porte, também eles envolvidos numa protecção almofadada. Deixaram-se ficar, enquanto os seus camaradas concentravam a sua
chuva de projécteis num ponto preciso da linha dos auxiliares. Inevitavelmente, alguns homens acabaram por tombar, outros abriram espaços, e uma brecha surgiu. De
imediato os arqueiros montados deram meia-volta e os catafractários avançaram em força e entraram pela formação romana sem dificuldade.
- Oh não... - Parmenião observou, pálido, a forma como a Sexta Macedónica se desintegrava. Os homens fugiam em todas as direcções, alguns largando escudos e lanças
enquanto corriam. O inimigo, catafractários e arqueiros, galopava por entre eles, derrubando-os com lanças, espadas e setas daqueles que ainda preferiam usar os
arcos. Os sobreviventes mais próximos correram na direcção da Segunda Ilírica, e alguns dos homens de Cato abriram pequenos espaços para os acolher. Assim que eles
entraram na formação, Cato encheu os pulmões e deu as suas ordens.
- Formação cerrada! Querem ter a mesma sorte, porra? Fechem as fileiras!
Os partos refrearam os cavalos ao ver que os auxiliares colocavam de novo as lanças em posição de defesa e lhes apresentavam uma cerrada linha de pontas aceradas.
O mais próximo dos catafractários foi projectado pelo solo quando o seu cavalo foi atingido por uma flecha na garupa e se empinou. Depressa outras flechas zuniram
pelo ar, anunciando a chegada de Balthus e dos seus homens, que atacavam os partos. Encurralados entre as lanças da coorte em movimento e a barragem de flechas,
os partos depressa tomaram nova opção e galoparam na direcção oposta. Deixaram atrás de si uma montanha de corpos e equipamento do que tinha sido a Sexta Macedónica.
Só tinham ficado de pé o porta-estandarte e o minúsculo punhado de homens que o rodeava. Quando a coorte de Cato os alcançou eles juntaram-se à primeira centúria,
arquejando, salpicados de sangue e de olhos arregalados de pavor e da fúria da batalha.
Assim que se apercebeu que o inimigo recuava, Balthus virou-se à procura de Cato e acenou com a mão. O romano respondeu-lhe, e o príncipe palmirense colocou um amplo
sorriso no rosto e levou os seus homens para a posição que lhes tinha sido atribuída, no flanco da retaguarda da coluna. Cato virou-se para os seus homens e avisou-os,
à medida que iam marchando sobre as ruínas da Sexta Macedónica.
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- Rapazes, atentem bem nisto! É o que espera qualquer homem que ceda perante a pressão destes filhos da puta!
A penosa marcha prosseguiu ao longo da tarde, e só quando o Sol mergulhou para o horizonte é que o inimigo afrouxou a intensidade do seu ataque, acabando por cessar
e retirar para junto da caravana de camelos que lhe transportava os abastecimentos, e que seguia com a coluna de Artaxes, a alguns quilómetros de distância. A Terceira
Legião, finalmente desobrigada de seguir em formação cerrada, criou um perímetro de segurança para o qual foram entrando as outras unidades, reunindo-se no local
escolhido para passar a noite. Os homens de Macro e Cato foram dos últimos a passar pela já estabelecida linha de sentinelas, e quer legionários quer auxiliares
se deixaram cair em magotes de homens exaustos assim que um oficial do estado-maior os conduziu ao local que para eles fora designado e puderam desfazer a formação.
Para Macro e Cato, porém, não haveria ainda descanso.
- O general deseja ver todos os comandantes de unidade na sua tenda, imediatamente, senhor. - Explicou o tribuno a Macro.
- Na sua tenda?
- Sim, senhor. O general mandou alguns homens recolherem a sua bagagem pessoal durante a retirada.
- Que previdente. - Retorquiu Macro, sem deixar transparecer os seus verdadeiros pensamentos. - Não se admitiria que um general viajasse sem o seu conforto, não
é?
- Bem, senhor, não. Se o diz.
- Muito bem, podes seguir.
Enquanto o tribuno se afastava na escuridão, Macro virou-se para Cato e comentou.
- Fico tão feliz por saber que o nosso brilhante comandante conseguiu salvar as suas posses das garras da derrota. Será que esta manobra genial faria parte do plano?
Fizeram caminho através das linhas de soldados extenuados, e a sombria disposição dos homens era bem evidente nos tons resignados e surdos das conversas que se travavam.
De vez em quando ouvia-se um grito ou um gemido de um dos feridos, o que só piorava o moral dos homens já derreados. Apesar do dia difícil que tinham passado, o
rigoroso treino do exército romano tinha vindo ao de cima, e o acampamento tinha sido implantado de acordo com as regras, pelo que havia as habituais alamedas que
conduziam ao coração do campo, onde se situava a tenda do comando. À entrada ardia um pequeno braseiro, e ao seu lado os guardas pessoais de Longino mantinham-se
de sentinela. Lá dentro havia mais luz, e quando
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Cato e Macro entraram verificaram que a tenda já estava repleta com os outros comandantes de coortes e com os legados das duas legiões, sentados em bancos ao redor
do general.
Longino estava sentado por trás da sua mesa de campanha, a escutar o legado Amácio.
- Senhor, Palmira está a pelo menos mais um dia de marcha. A maior parte dos homens já não tem água, não comeu nada durante todo o dia e está completamente exausta.
Perdi mais de quatrocentos homens e tenho mais de trezentos feridos. O mesmo se passa com as coortes de auxiliares anexas à legião. E já nem falo da Sexta Macedónica.
- Estou a ver. - Longino ergueu o olhar ao aperceber-se da chegada de mais oficiais. - E qual é a condição das vossas coortes, senhores?
Macro pegou numa tábua que levava consigo e abriu-a.
- Cinquenta e dois mortos, trinta e um feridos na minha coorte. Trinta mortos e vinte e sete feridos na Segunda Ilírica, senhor.
Longino anotou os números.
- Bom trabalho na retaguarda, Macro.
Macro encolheu os ombros e soltou um desabafo.
- Pelo menos chegámos cá.
- É verdade. A questão, senhores, é: até onde podemos chegar? Perdemos talvez um quinto dos efectivos. E podemos perder muitos mais amanhã, se o inimigo voltar a
castigar-nos como hoje.
- Senhor, temos que continuar enquanto pudermos. - Replicou Amácio. - É tudo o que podemos fazer.
- É uma opção, sim. - Contrariou Longino. - Podíamos ao menos poupar a cavalaria, e enviá-la de regresso a Palmira esta noite mesmo. A infantaria teria que se haver
sozinha.
Macro inclinou-se para Cato e sussurrou.
- E imagina qual seria o oficial que seguiria com a cavalaria, sem esquecer a preciosa tenda?
- Quais são as outras opções, senhor? - Indagou Amácio.
Longino remexeu-se na cadeira e voltou a recostar-se enquanto percorria com o olhar as faces dos seus oficiais.
- O inimigo surpreendeu-nos, senhores. Os partos juntaram-se a Artaxes mais depressa do que eu previa. Fomos forçados a recuar; não tive escolha. Fomos contrariados.
Não há qualquer desonra nisso. Os partos eram muito mais numerosos do que me tinha sido indicado. Foi uma tentativa corajosa, e em Roma isso há-de ser reconhecido,
a seu tempo.
- Não, senhor. - Interrompeu Amácio. - Este desastre será reconhecido como aquilo que verdadeiramente foi.
Longino encarou-o, e um sorriso desagradável surgiu-lhe no rosto.
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- Ao que parece, o legado Amácio discorda da minha visão dos acontecimentos.
- Discordo de facto, senhor. Devíamos ter atacado.
- Atacado? Contra aquela horda?
- Era a melhor hipótese que tínhamos de os derrotar, senhor. - Amácio encolheu os ombros. - Agora? Teremos muita sorte se escaparmos com vida. E se o conseguirmos,
será à custa de alguns milhares de vidas de homens valorosos, já para não falar do nosso prestígio na região, que sofrerá um tremendo abalo. A Pártia será vista
como a maior potência do Oriente.
- Basta! - Longino bateu com a mão aberta na mesa. - Amácio, estás a exagerar. Assim que regressar à Síria, prepararei outro exército. Desta vez trarei as três legiões,
e regressarei para destruir os partos.
- A sério? E acha que há nesta tenda algum homem que tenha vontade de o seguir nessa nova aventura?
Instalou-se um silêncio confrangedor enquanto os dois homens se encaravam com desprezo. Por fim, Longino abriu as mãos, num gesto de resignação.
- Essa questão ficará para outra ocasião. Estamos onde estamos, senhores, e temos que nos pôr a mexer, para usar uma frase comum. Preciso de soluções para esta difícil
situação. Não de queixas.
Amácio deixou-se cair na cadeira com um suspiro, e o general olhou em redor mais uma vez.
- Bem? Alguém tem alguma coisa a sugerir?
Cato mordeu o lábio, tossicou e ergueu-se. Macro olhou para o amigo e não encontrou melhor comentário do que colocar a cabeça entre as mãos e fixar o olhar no solo
entre as botas, enquanto murmurava para si próprio.
- Caralho, lá vamos nós outra vez.
- Prefeito Cato, fala.
Todas as cabeças se viraram para ele, e Cato viu-se forçado a manter-se calmo e a controlar os pensamentos que lhe corriam pela mente, enquanto relembrava a paisagem
que se abria à frente da coluna romana e aquilo que podia ainda ser feito durante a noite.
- Senhor, há uma possibilidade de voltarmos a situação a nosso favor. Será arriscada, mas não mais do que continuar a retirada nestas condições. O truque reside
em conseguir travar a cavalaria inimiga. Para isso, precisamos de um terreno adequado, e de algum do material que trazemos connosco.
Fez uma pausa, repentinamente consciente de que estava rodeado de oficiais mais velhos e, na vasta maioria dos casos, muito mais experientes do que ele. Podiam ridicularizar
o seu plano, mas estava certo de que ele
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constituía a melhor hipótese de salvar o exército da destruição completa. Se não resultasse, significaria a sua própria morte, bem como a de muitos mais. Mas esses
homens podiam muito bem vir a morrer na estrada, de qualquer maneira. O seu olhar cruzou-se com o de Longino, e o general assentiu.
- Bem, prefeito, conta-nos lá o que te passa pela cabeça.
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Já falta pouco para a aurora. - Murmurou o centurião Parmenião. Espreguiçou-se, e lançou um último olhar em torno da posição que ocupavam. O terreno acidentado em
redor era percorrido por profundas ravinas. Para norte, estas reduziam-se e acabavam por desaparecer, dando lugar à planura imensa do deserto. Mas uns dois quilómetros
à frente o terreno voltava a tornar-se irregular, apresentando uma série similar de desfiladeiros e penhascos dispersos. Atrás de Cato, no fundo da ravina que se
estendia para norte, escondiam-se os homens da Segunda Ilírica e de outras duas coortes auxiliares. Do outro lado da estrada estava emboscado Macro com a sua coorte,
Balthus e os seus arqueiros, e ainda outra coorte auxiliar. O resto do exército prosseguia a retirada pela estrada, a caminho de Palmira, e não passava já de uma
escura massa de homens que se arrastava lá longe pela areia. Cato observou a coluna a afastar-se, com uma crescente sensação de desconforto. Era vital que Longino
não obrigasse os legionários a deslocarem-se demasiado depressa; doutra forma, ultrapassariam a zona mais confinada do percurso antes que os partos os alcançassem
e forçassem a batalha. Voltou a observar o deserto para trás daquele ponto. Àquela hora, os batedores partos já deviam ter encontrado o acampamento vazio e descoberto
o rasto de Longino e do exército. Teriam imediatamente voltado para trás e relatado ao seu comandante que os romanos se tinham tentado escapulir a coberto da noite.
Se, como esperava Cato, o comandante parto fosse alguém tão sequioso de glória como Longino, daria de pronto ordens para levantar o acampamento e perseguir os romanos
em fuga. Portanto, naquele preciso momento as suas forças avançadas deviam estar por perto, batendo o terreno e tentando localizar as exaustas legiões.
- Será melhor mantermo-nos fora de vista. - Avisou Cato. - Não nos podemos arriscar a que percebam a nossa localização.
Parmenião assentiu, e baixou-se até que os seus olhos ficaram ao nível do terreno na entrada da ravina. Os dois oficiais tinham removido os capacetes com as vistosas
e conspícuas cristas transversais. A noite tinha sido fria, e Cato estava sentado à espera do alvorecer, com as pernas encolhidas e os joelhos junto ao peito, enquanto
os dentes lhe tremiam e os músculos
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estremeciam de vez em quando. Parmenião olhou-o com simpatia. O veterano era mais generosamente provido de carnes, e os longos anos de serviço em climas muito mais
frios tinham-no como que imunizado ao desconforto que os atingia naquela altura. Foi à sua bolsa e tirou um naco de carne seca, donde cortou uma tira que ofereceu
ao jovem.
- Senhor, coma isto.
Cato, perdido nos seus pensamentos, agitou-se e olhou para a carne fibrosa e escura antes de recusar com um gesto da cabeça. Tinha o estômago aos nós com a ansiedade,
revendo os detalhes do plano que congeminara, e sentia-se mais enjoado que faminto.
- Era boa ideia comer qualquer coisa. - Insistiu Parmenião. - Tirava-lhe o frio dos pensamentos, e sempre lhe dava alguma força para quando o combate se desencadear.
Cato hesitou, mas rapidamente se apercebeu que aquela era uma oportunidade para deixar transparecer calma e despreocupação ante a batalha iminente. Aceitou a oferta.
- Obrigado.
A carne seca tinha uma consistência de madeira, até ser mastigada e enrolada com a língua por algum tempo, tornando-se então tão maleável e apetecível como o couro
de que eram feitas as botas militares. Ainda assim, considerou Cato enquanto dava trabalho às maxilas, para um homem com o estômago vazio, aquele gosto a fumeiro
acabava por se tornar agradável. E, tal como Parmenião afiançara, o esforço vigoroso que comer aquilo exigia fê-lo esquecer o frio, pelo menos por alguns minutos.
- É bom. - Comentou, entre mastigadelas.
Parmenião concordou.
- Preparei-o segundo uma receita que me foi passada por um velho mercador de Alexandria que conheci em tempos. O truque para lhe dar este sabor é deixar a carne
a marinar em garo antes de a pendurar para secar.
- Garo? - Cato não era grande entusiasta do molho feito de tripas de peixe apodrecidas, mas Macro punha-o em tudo o que comia, desde que tivesse um frasco à mão
de semear. - Bom, resulta. É de facto saboroso.
Parmenião sorriu, agradado por ter providenciado algum conforto ao seu comandante, enquanto esperavam que o inimigo surgisse. Continuaram a comer em silêncio, observando
a forma como os primeiros alvores do dia se espalhavam no horizonte a leste.
- Se nos safarmos desta inteiros, o que é que acha que vai acontecer ao general? - Para falar, Parmenião transferiu a carne que tinha na boca para a bochecha, o
que lhe deu um aspecto estranho.
Cato pensou, antes de responder, com amargura.
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- Nada. Se isto correr tão bem como eu espero, podes ter a certeza de que ele reclamará todo o crédito, e será aclamado em Roma como o homem que derrotou os partos.
A merda que fez ontem depressa será esquecida. Imagino que um qualquer lambe-botas no Senado levantará a voz e pedirá uma ovação para Longino.
- E um triunfo, não?
Cato virou-se para ele surpreso, antes de se lembrar que Parmenião não era romano por nascimento, e provavelmente nunca teria sequer visitado a cidade, e por isso
não estaria a par das regras que governavam os rituais com que Roma celebrava os seus generais vitoriosos. Quando era atribuído um triunfo, ou uma honraria menor
como uma ovação, a Via Sacra, a antiga rua que passava pelo coração da grande cidade, ficava repleta de cidadãos jubilantes, libertos e até escravos, aclamando,
enquanto os heróis se pavoneavam em trajes de gala à frente dos soldados que transportavam os despojos das conquistas.
- Hoje em dia, os triunfos estão reservados a membros da família imperial. Portanto, um senador como Longino não pode ter direito a um. Podia dar-lhe volta ao miolo
e encorajá-lo a dar asas à ambição, e isso não seria bom para o Império. Assim, terá que se contentar com uma ovação; quanto a nós, a nossa recompensa será vê-lo
receber outro comando, tão longe da Síria quanto for possível.
Parmenião não evitou uma risada.
- Os rapazes ficarão bem contentes por o ver pelas costas, isso é certo! Devo dizer que a maior parte dos generais e legados sob os quais servi não me impressionaram
de todo. A única coisa que lhes interessava era marcarem os pontos necessários para subir mais um degrau. Cambada de amadores.
- Alguns sabem o que fazem. - Reflectiu Cato. - Eu e o Macro tivemos um bom comandante na Britânia. Vespasiano. Já ouviste falar dele?
- Vespasiano? Não, não me parece.
- Bom, um dia ouvirás, se não me engano na avaliação que faço dele.
Parmenião ficou tenso de repente, e espreitou cuidadosamente para a
entrada da ravina.
- Aí vêm eles.
Cato engoliu a bola de carne que tinha na boca e pôs o resto na bolsa, enquanto olhava para nascente. A retaguarda do exército, que era agora comandada por outro
dos oficiais do legado Amácio, estava precisamente a entrar na zona plana que ficava entre as duas regiões acidentadas. A pouco mais de um quilómetro, na orla da
nuvem de poeira levantada pelas botas dos romanos, que ia assentando lentamente, avistavam-se alguns grupos de cavaleiros em alta velocidade. A medida que a luz
aumentava Cato
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apercebia-se do número crescente destes grupos, espalhados pelo deserto e preparados para oferecer a legionários e auxiliares outro dia de tormento. Na parte de
trás desta coluna marchava uma longa serpente de homens a pé: o príncipe Artaxes e os seus rebeldes. Cato concentrou neles a sua atenção. A armadilha seria fechada
no momento em que Artaxes nela entrasse.
Baixou a cabeça.
- Muito bem, passa a palavra. Inimigo à vista. Que ninguém mexa um músculo. A última coisa que queremos é que um espertalhaço ponha a cabeça de fora para espreitar
e faça o sol reflectir-se no equipamento.
- Todos o compreenderam, senhor.
- Mas diz-lhes outra vez, só para garantir.
- Sim, senhor. - Parmenião saudou-o e esgueirou-se cautelosamente pela ravina, tentando não levantar poeira, que podia denunciá-los tão depressa como um reflexo
metálico.
Cato viu-o afastar-se na direcção dos homens, agachados e em silêncio a não mais de cem passos dali. O jovem sabia que os soldados estavam esgotados. Era a segunda
noite sem dormir, e tinham passado o dia a marchar sob frequentes barragens de flechas. Porém, se tudo corresse bem, depressa teriam a oportunidade de se vingarem
do inimigo, e Cato sabia que nesse instante todos descobririam dentro de si uma tremenda reserva de força que os levaria ao combate sem restrições. Já muitas vezes
o tinha notado, até em si mesmo, e não deixava de se espantar perante tudo o que um homem conseguia aguentar quando era preciso. Como naquele momento.
Os homens na retaguarda da coluna romana também já tinham dado pela presença do inimigo no seio da nuvem de poeira que os seguia, e tinham estougado o passo. Cato
franziu o sobrolho. Tinham ordens estritas para não acelerar. Porém, a natureza humana tomaria a primazia, e seria difícil evitar que os homens tentassem pôr maior
distância entre eles e inimigos do género dos partos. Além disso, seria uma reacção aguardada pelos perseguidores, e contribuiria assim para aumentar a surpresa.
O grupo de partos mais próximo acelerou de repente a passada das montadas e aproximou-se da retaguarda romana, lançando para o ar uma revoada de flechas que, àquela
distância, pareciam simples paus inofensivos
- uma ideia prontamente desmentida quando se viam as suas distantes vítimas a tombar na areia. Cato concentrou a atenção na cabeça da coluna romana. Por enquanto
continuava a progredir para oeste, e o jovem prefeito sentiu alguma apreensão quando se lembrou que Longino podia outra vez mudar de ideias, abandonar o plano e
continuar para Palmira, deixando Cato, Macro e os outros entregues ao seu destino. Mas logo se acalmou quando reparou que a coluna fazia alto e se dispunha em linha
de batalha ao longo da estrada. Ao contrário do que sucedera no dia anterior, os flancos
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estariam protegidos pela disposição natural do terreno, pelo que os partos só poderiam efectuar ataques frontais. A retaguarda seria a primeira a sofrer o embate
do poder inimigo, e sofreria por certo pesadas baixas. Cato afastou o pensamento. Com o seu sacrifício, esses homens conseguiriam oferecer aos seus camaradas o tempo
necessário para fechar a armadilha, e se resultasse, as suas vidas não teriam sido perdidas em vão.
Assim que a formação ficou completa, as unidades romanas ainda na estrada apressaram-se a avançar pela abertura que lhes tinha sido deixada. Entretanto, densas massas
de cavaleiros inimigos flagelavam os flancos e a cauda da coluna, avançando cada vez mais na faixa de terreno plano que separava as zonas de desfiladeiros e ravinas
que se estendiam dos dois lados. Por fim, até a caravana de camelos com os abastecimentos e a própria coluna de Artaxes passaram pela posição de Cato, e o jovem
virou-se para Parmenião e fez um movimento horizontal com a mão, como quem quisesse colher todos os inimigos de uma vez. Era o sinal que tinham combinado. Parmenião
virou-se para a primeira centúria da Segunda Ilírica e ordenou-lhes que se levantassem e preparassem. Os auxiliares estavam sedentos de acção, e depressa pegaram
em lanças, dardos ligeiros e escudos, e se mostraram prontos para marchar. Mais atrás na linha estavam homens com cestos cheios de espigões de ferro, que tinham
sido aproveitados dos armazéns do exército. A velocidade de movimentação era vital, já que era evidente que assim que começassem a andar levantariam uma nuvem de
poeira suficientemente grande para despertar a atenção do inimigo, e isso antes ainda de saírem da ravina onde se tinham mantido escondidos.
Cato desceu cuidadosamente até ao chão da ravina, colocou o capacete e atou as tiras com todo o cuidado, enquanto Parmenião conduzia a coorte. Pegou no escudo e
colocou-se ao lado do adjunto assim que a coluna o alcançou.
- Segunda Ilírica! Passo rápido.... Avançar!
Começaram a correr pela ravina, seguindo-lhe o curso até desembocar na planície, a mais de um quilómetro de distância, o suficiente para o inimigo não ter sequer
desconfiado da sua presença, concentrado como estava na perseguição ao exército de Longino. Algures do outro lado da planície, Macro devia estar a replicar aquele
movimento, fazendo a sua força convergir com a de Cato. Se era verdade que a velocidade era fundamental, também era vital a coordenação, e Cato esperava que o amigo
tivesse começado a avançar mais ou menos ao mesmo tempo.
Correu, forçando as pernas cansadas a darem sempre outro passo, enquanto o coração lhe batia com toda a força e a respiração se começava a tornar ofegante. Tentou
manter um passo regular, que sabia conseguir aguentar pelo tempo que ia ser necessário para colocar a coorte na posição
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prevista no plano. O pisotear das botas dos auxiliares fazia um ruído estranhamente elevado no espaço confinado da ravina. Mas ao menos os raios do Sol, que mal
tinha despontado, ainda não ultrapassavam a borda superior do pequeno desfiladeiro, para juntar o brilho ofuscante e o calor ao desconforto de correr pelo solo arenoso.
O terreno começou a subir pouco a pouco, e as paredes da ravina a desaparecer na mesma medida. Quando chegaram à zona plana, Cato olhou para a esquerda. A retaguarda
da coluna rebelde mal se via, a quase um quilómetro de distância, por causa da poeira. Para além dela, o exército parto espalhava-se pela planície, entre as duas
faixas de terreno acidentado. Travava naquele momento uma batalha posicional, lançando miríades de flechas contra a linha de batalha apresentada por Longino: um
pesadelo que os homens das fileiras da frente teriam que suportar até que Cato e Macro tivessem os seus homens em posição. Nesse momento, Longino daria ordens para
avançar, o que, previsivelmente, faria os partos recuar para uma distância segura, de onde pudessem continuar a disparar os seus arcos sem sofrer baixas. Mas nessa
altura deveriam aperceber-se do novo perigo, e compreender que tinham sido emboscados. Cato sorriu ao imaginar a surpresa que sentiriam. Não duraria muito tempo,
claro. Depressa reparariam na diminuta profundidade da linha que fechava a armadilha, e por certo pensariam que facilmente a atravessariam com uma carga adequada.
Só que não teriam em conta um outro aspecto do plano de Cato.
- Lá está o Balthus! - Avisou Parmenião, e Cato seguiu a indicação com o olhar. O pequeno grupo de arqueiros montados que acompanhava o príncipe tinha saído da ravina
em frente e galopava na direcção da coorte, pronto para tomar posição por trás da linha de infantaria. Atrás deles vinha Macro, facilmente reconhecível pela crista
escarlate no capacete. A coluna de legionários com os seus escudos oblongos seguia-o, espalhando-se pela planura. Tão intenso era o desejo inimigo de destruir o
exército romano que tinha pela frente que não houve qualquer reacção antes de as duas pinças da armadilha se fecharem na sua retaguarda. Só nessa altura é que Cato
viu faces rebeldes a olharem para trás e depois homens a agitarem os braços para chamar a atenção dos outros.
- Falta pouco para se virarem contra nós. - Avisou. - Forma a linha.
Parmenião assentiu, inspirou e lançou o brado.
- Alto!... Esquerda volver!
A Segunda Ilírica formou numa longa linha dupla, com um passo de separação entre as filas. Os peitos dos homens arfavam devido ao esforço da corrida para a nova
posição. As outras coortes auxiliares formaram à esquerda, ocupando o terreno até à abertura da ravina. À direita de Cato, ouvia-se Macro a dar ordens para que os
seus homens completassem a linha.
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Cato sentiu-se por momentos nas nuvens, por terem conseguido dispor todas as tropas como tinham planeado, e sem problemas. Faltava apenas um último detalhe.
- Estrepes! - Gritou Cato para toda a linha; a ordem foi repetida pelos comandantes das unidades.
Os homens que levavam os cestos passaram entre as linhas, avançaram trinta passos e começaram a espalhar as armadilhas aguçadas à frente da formação. As aceradas
peças de ferro tinham sido desenhadas de forma a que, ao serem atiradas para o solo, se apoiassem em três pés e deixassem outro a apontar para cima, a postos para
trespassar o pé ou o casco de qualquer inimigo desatento que carregasse sobre eles.
- Bem, não levaram muito tempo a perceber o que se passava. - Parmenião apontou, e Cato reparou que os cavalos dos partos tinham dado meia-volta e já se dirigiam
para eles a meio-galope. Levou a mão em concha à boca e gritou.
- Despachem-se com os estrepes, antes que aqueles cabrões nos apanhem!
Os homens que distribuíam as armadilhas levantaram os olhos e apressaram-se, lançando os ferros como se fossem lavradores a espalhar sementes. Assim que esvaziaram
os cestos largaram-nos e correram de regresso às linhas, onde empunharam as armas e retomaram as suas posições.
- Fundibulários! - Gritou Cato. - Preparar!
Aqueles a quem tinham sido distribuídas fundas largaram as lanças e os escudos e deram um passo para a frente da linha, pegando nas tiras de cabedal que levavam
aos ombros e retirando das mochilas os pedaços de chumbo usados como munição.
Durante os instantes em que os homens de Cato se preparavam para o embate, os partos tinham-se aproximado. Estavam agora já tão próximos que Cato conseguia vê-los
a ajustar as setas nos arcos.
- Disparar à vontade!
Um zunido espalhou-se pelo ar quando os auxiliares começaram a fazer girar as fundas por cima das cabeças, apontando e libertando os mísseis. A mortífera metralha
seguiu uma trajectória directa contra os cavaleiros que se aproximavam a toda a brida. Um dos cavalos foi atingido em cheio na cabeça e caiu redondo, lançando o
seu cavaleiro num voo picado para o solo. Outros alvos foram atingidos, e vários inimigos tombaram ou foram cuspidos pelos cavalos feridos. Mas o número de atacantes
crescia sem parar, e apesar de esse facto fornecer aos fundibulários um alvo mais concentrado, Cato sabia perfeitamente que o combate naquela zona se ia inclinar
para o lado dos partos.
- Fundibulários! Retirar!
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O último dos projécteis foi lançado contra a densa massa da cavalaria inimiga, e os auxiliares voltaram a lançar os cordões das fundas sobre os ombros e correram
para se reunir à linha que aguardava a carga a pé firme.
- Preparar para ataque de flechas! Protejam-se!
A ordem foi repetida ao longo de toda a formação, e os soldados romanos ajoelharam-se por trás dos escudos apoiados no chão, dando-lhes um ângulo para trás, de forma
a aproveitarem ao máximo a protecção de que dispunham. À distância, para lá do martelar dos cascos das montadas dos partos, Cato conseguia ouvir as estridentes notas
das trombetas que davam sinal ao corpo principal do exército para avançar para a batalha.
- Falta pouco, rapazes! - Anunciou Cato. - Só temos que os aguentar até que o Longino os apanhe a jeito.
- O sacana do general sempre foi um bom rabeta! - Gritou uma voz anónima, provocando uma gargalhada geral, até que Parmenião interveio.
- Quem disse isso? Quem foi o cabrão insolente que se atreveu a dizer isso? Tu! Calpúrnio! Foste tu... Quando esta merda acabar, sou eu quem te paga o primeiro copo!
Os homens aplaudiram com fervor, e Cato sorriu ao apreciar a forma como Parmenião lhes tinha levantado o ânimo. Era precisamente aquilo de que os homens necessitavam.
O género de coisa que Macro diria, mas que Cato nunca se sentiria com à-vontade suficiente para sequer tentar.
- Flechas! - Gritou uma voz, e o clamor morreu nas gargantas dos homens enquanto eles se protegiam. As hastes negras assobiaram pelo ar, mesmo antes de se quebrarem
contra os escudos ou se enterrarem na areia. Cato manteve a cabeça baixa e protegida, tentando ao mesmo tempo encolher o corpo magro de forma a caber todo por trás
do escudo. Torceu o pescoço para ver o que se passava, e verificou que ainda nenhum dos seus homens tinha sido atingido. O espaçamento entre as linhas e os escudos
colocados em posição óptima estavam a servir o seu propósito - enervar os partos perante a falta de êxito da sua forma habitual de ataque, e fazê-los pensar no grosso
do exército romano, que depressa se aproximava deles por trás. Houve uma pausa na barragem de setas, e Cato arriscou mais uma espreitadela sobre a orla do escudo;
os partos faziam avançar as montadas de forma a poderem usar os arcos com maior precisão e abater mais romanos, antes de carregar para tentar romper a linha.
Cato olhou fixamente enquanto eles se aproximavam, os rostos selvagens e exultantes perante a perspectiva de uma vitória fácil. Nesse instante, os primeiros cavaleiros
chegaram à faixa de estrepes. Cato sabia perfeitamente que haveria alguns que teriam a sorte de atravessar toda aquela zona sem que os seus cavalos pisassem uma
das armadilhas. Mas muitos outros, porventura a maioria, não teriam tanta felicidade, e os que viessem atrás
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hesitariam por certo em segui-los para uma zona tão perigosa. E nessa altura, parados, indecisos, constituiriam um estupendo alvo para Balthus e os seus homens.
O troar dos cascos foi de súbito interrompido pelos guinchos agudos de cavalos feridos, e pelos gritos de surpresa dos cavaleiros. Cato viu vários cavalos a tombar.
Um dos atacantes conseguiu passar, mas ao ouvir o caos que se desencadeava atrás dele parou e virou-se para ver o que sucedia. Cato apontou-o ao auxiliar mais próximo.
- Abate aquele tipo, imediatamente!
O auxiliar assentiu e pegou no dardo ligeiro. Levantou-se, puxou atrás o braço, apontou ao parto e lançou o míssil com um grunhido de esforço. A pontaria era boa,
e o alvo permaneceu estático, pelo que a ponta da arma apanhou o arqueiro inimigo pelas costas, acertando-lhe em cheio no coração. O impacto fez com que o homem
se arqueasse na sela e lançasse os braços ao alto antes de cair, morto antes de atingir o solo.
- Belo lançamento! - Cato sorriu ao soldado. - Agora baixa-te!
Vários outros cavaleiros tinham já passado pela zona armadilhada, mas
viam-se isolados e eram surpreendidos pela resposta rápida dos auxiliares, que usavam os dardos ou as fundas para os aniquilarem. Do outro lado da área dos estrepes,
os partos acotovelavam-se, e viam-se em dificuldades para encontrar espaço suficiente para empregar os arcos. Cato virou-se e lançou um brado.
- Balthus! Agora!
Era o momento por que o príncipe e os seus seguidores aguardavam, e lançaram de imediato os cavalos para a frente, enquanto assestavam as setas nos arcos. Assim
que se viram à distância adequada, imobilizaram-se e começaram a castigar o inimigo com uma chuva de setas. Quase todas encontraram os alvos pretendidos, homens
e cavalos, e a confusão nas fileiras partas aumentou, de tal forma que muito poucos ainda se lembravam de tentar disparar os seus arcos contra a linha romana.
- Fundas e dardos! - Gritou Cato, fazendo-se ouvir acima do clamor que se levantava do grupo dos partos. - Fundas e dardos, já!
Com um urro colectivo, e como que impulsionados por uma mola, os auxiliares ergueram-se e usaram as armas, enchendo o espaço entre as duas linhas com massas escuras
de metralha e dardos em pleno voo. Mais homens e cavalos foram abatidos, e já se começava a formar uma pilha de corpos, alguns inertes, outros que ainda se agitavam,
junto ao limite da zona armadilhada. Para lá dessa linha, Cato viu que os partos hesitavam, e que os menos corajosos já se deixavam ficar para trás. Virou-se para
os seus homens.
- Estão a vacilar! Recuam! Força nisso!
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Agachou-se, pegou numa pedra de bom tamanho e atirou-a com toda a gana contra o inimigo. Alguns dos homens, esgotados os dardos, seguiram-lhe o exemplo, por pouco
resultado que o esforço pudesse ter. A barragem frenética de mísseis acabou por se revelar demasiado para os partos, e de repente eles começaram a recuar em desalinho
ao longo de toda a linha, tentando desesperadamente escapar. Uma espessa nuvem de poeira pairava no ar, lançada por milhares de cavalos agitados, e foi essa neblina
escura que escondeu os partos quando estes cavalgaram em fuga, o barulho a recuar com eles.
Mas não tinham realmente qualquer hipótese de escapar, e Cato sabia-o. Depressa se confrontariam com Longino e a sólida parede mortal das legiões. E na retaguarda
romana vinha a cavalaria, à espera do momento em que o inimigo fosse destroçado e se pudesse lançar na perseguição impiedosa aos grupos em fuga. Cato largou a pedra
que ainda segurava e agitou o braço para chamar a atenção aos seus homens.
- Parem todos! Formem a linha!
Os fundibulários voltaram a pendurar os cordões ao pescoço, e recuperaram escudos e lanças. Em pouco tempo os homens tinham recuperado as posições iniciais e a formação
estava pronta a enfrentar qualquer nova ameaça. O som dos cascos continuava a afastar-se, e no meio da névoa que se dispersava lentamente só se escutavam agora os
gritos e gemidos dos inimigos feridos. Cato afastou-se ligeiramente da linha das coortes e olhou para ambos os lados. Por entre as hastes das setas viam-se alguns
soldados romanos abatidos, enquanto outros, feridos, tinham já sido levados para a retaguarda, onde estavam aos cuidados dos enfermeiros.
Um novo som atravessou a poeira, quase um trovão, provocado pelo bater de milhares de espadas nas orlas dos escudos; o exército romano preparava-se para atacar os
partos. O som depressa se perdeu no meio do clamor da feroz batalha. Choques de armas, gritos guerreiros, aclamações, festejos e provocações de unidades inteiras,
toques de trombetas, tambores e címbalos dos partos, tudo se juntava numa cacofonia infernal.
A voz de Macro fez-se ouvir a partir da direita.
- Atenção! Infantaria inimiga!
Cato esforçou a vista, mas não conseguiu perceber o que se passava no meio da poeira. Provavelmente, um golpe de vento tinha dado a Macro um panorama mais aberto.
- Segunda Ilírica! Cerrar fileiras! Linha de batalha!
A formação contraiu-se rapidamente, quando os homens executaram as manobras necessárias para deixar cada centúria com quatro homens de profundidade, com cada secção
a recuar e a movimentar-se lateralmente. Dispuseram-se depois em redor de Cato e do porta-estandarte. Ao olhar
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para a direita, viu que Macro fazia os legionários executarem a mesma manobra, e que se tinha aberto uma brecha entre as duas unidades. Quando ambas as coortes se
imobilizaram, Cato escutou um fraco som de passos e pressentiu a aproximação do inimigo; só podia tratar-se de Artaxes e do seu grupo de rebeldes, fazendo também
uma tentativa de escapar da armadilha. Os sons vinham da direita, e Cato percebeu que a coluna inimiga se ia envolver com os legionários. Viu-a sair da poeira, abrindo
caminho por entre os mortos partos que atapetavam o solo do deserto. Artaxes tinha colocado à frente da sua coluna alguns dos seus soldados regulares, e a armadura
que envergavam rebrilhava ao sol. Assim que avistaram os estrepes fizeram alto, e um oficial deu ordens de imediato, o que fez com que alguns dos homens começassem
a abrir um caminho, limpando-o das armadilhas metálicas. Não levariam muito tempo a criar uma brecha suficiente para que toda a coluna passasse, e então os quatrocentos
homens de Macro ver-se-iam a braços com vários milhares.
Olhou para a nuvem de poeira que se erguia em frente aos seus homens, e tomou uma decisão imediata.
- Parmenião!
- Senhor?
- Manda emissários às outras coortes auxiliares; elas que aguentem a linha.
Enquanto Parmenião escolhia um mensageiro, Cato virou-se para a mais próxima secção de soldados.
- Vocês! Venham comigo!
Correu até aos estrepes e começou a pegar neles e a afastá-los.
- Abram um caminho! Depressa!
Os homens imitaram-no, trabalhando de forma sistemática, até terem uma brecha de cerca de dez passos de largura. Cato pegou numa aljava parta, tirou algumas setas
e usou-as para marcar a posição da abertura.
- Segunda Ilírica! Formar em coluna e atrás de mim!
À medida que a coorte atravessava a brecha e ultrapassava os corpos que jaziam do outro lado, Cato olhava para Macro; o inimigo já irrompia pela abertura que tinha
feito na faixa de estrepes a uns cem passos de distância. Os dois lados chocaram com tinido de espadas e estrépito de escudos. Cato correu pelo canal que abrira
e tomou posição à frente dos homens, contando os passos enquanto o fazia. Havia corpos por todo o lado, muitos ainda a remexerem-se, e esses olhavam com terror para
os romanos que passavam por eles. Havia também cavalos, sem cavaleiros e nervosos, a bater com os cascos no solo. Quando a contagem de passos lhe garantiu que já
estavam para lá do espaço ocupado pelos estrepes, Cato fez a coorte deter-se.
- Direita volver!
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Chamou o optio mais próximo.
- Passa a palavra. Quando der a ordem de carregar, quero ouvir o mais aterrador grito de guerra que alguma vez foi escutado neste mundo. Vamos dar-lhes, a eles e
aos emproados dos legionários do Macro, uma lição que nunca hão-de esquecer!
Enquanto a mensagem era passada ao longo da linha, Cato e o porta-estandarte tomaram posição à cabeça da terceira centúria, ao centro da formação. Esperou até ouvir
a última repetição das suas ordens. Lá à frente, para a direita, ouvia o clamor da tremenda refrega entre os homens de Macro e os rebeldes. Cato ergueu a espada,
inspirou e lançou um brado.
- Segunda Ilírica... Avançar!
A linha de auxiliares moveu-se, passando por cima dos partos mortos e feridos. Cato sabia que tinham que atingir o inimigo com uma linha sólida, e avisou os oficiais
para manterem os homens alinhados enquanto prosseguiam. Os seus olhos detectaram vultos humanos no meio da poeira, e a poucos passos de distância avistou o flanco
da coluna rebelde. Os soldados regulares ocupavam a cabeça do dispositivo de Artaxes, e o resto era composto por civis arregimentados, pouco mais do que uma horda
armada, cujos olhos se arregalaram de terror ao ver os auxiliares a surgirem do meio do nada.
Não havia tempo para protocolos de parada, e Cato soltou de imediato a ordem.
- Carregar!
O grito perdeu-se entre o urro que se soltou das gargantas dos seus homens, ao lançarem-se sobre o flanco da coluna rebelde. Estes não tiveram qualquer possibilidade
de se preparar para o embate. Alguns ainda conseguiram virar-se para o lado de onde surgia esta nova ameaça, firmando as pernas e preparando escudos e espadas. Mas
muitos outros limitaram-se a virar as costas e fugir, largando mesmo as armas numa tentativa de salvar a vida. A maior parte ficou estática e surpresa, a olhar incrédula
para os auxiliares e a sua carga selvagem, semeada de gritos de guerra. A Segunda Ilírica cortou pela coluna inimiga como uma torrente. O grito sem sentido de Cato
acabou por se calar quando ele cerrou os dentes, levantou o escudo e se preparou para o impacto contra a massa de corpos dos rebeldes que lhe surgia à frente. Abateu
o inimigo mais próximo com todo o peso do corpo e da armadura que envergava, fazendo o homem ficar sem fôlego. Fez uma ligeira pausa para se reequilibrar e avançou,
golpeando à direita com a espada, ferindo um homem que se preparava para atacar com a falcata o auxiliar que seguia ao seu lado. O outro abateu-se no solo, deixando
cair a arma. Cato soltou a lâmina e fê-la rodar num arco, para atingir o homem que tinha derrubado com o escudo. A lâmina ressaltou na orla da couraça
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do homem e acabou por o atingir no crânio, apenas protegido por um barrete almofadado. O outro cambaleou, afastando-se, e de repente vomitou e caiu redondo no chão.
- Segunda Ilírica! Segunda Ilírica! - Gritavam os auxiliares sem cessar, enquanto abatiam inimigos com uma ferocidade ímpar, num ritmo em que o empurrar com os escudos
alternava com o golpear com a espada. Cato imitou-os, lançando o escudo para a frente, avançando, empurrando de novo, até conseguir provocar ferimentos sérios no
inimigo mais próximo. Desta vez desviou o escudo para o lado e avançou de espada em riste. Num repente, apercebeu-se do olhar de terror de um homem com o dobro da
sua idade, mesmo antes da ponta da espada de Cato lhe entrar pela órbita ocular e penetrar no crânio, provocando um salpico de sangue que sujou a cara do jovem quando
retirou a lâmina.
- Para a frente, Segunda Ilírica! - Gritou. - Em frente!
A área de combate alargava-se. Enquanto mais e mais rebeldes recuavam e fugiam, Cato, agachado e com os pés bem firmados, olhou de relance para o que se passava
à sua volta. Os seus homens já tinham completamente cortado a coluna inimiga, e agora ocupavam-se das bolsas de rebeldes que insistiam em lutar até ao fim. À direita,
perto da cabeça da coluna, avistou uma flâmula que ostentava uma serpente e era rodeada por um anel de homens com armaduras mais evoluídas e com vestes em tom púrpura.
Só podiam ser a guarda pessoal de um príncipe, decidiu. Apontou a espada ensanguentada para o estandarte e gritou, tão alto quanto conseguiu.
- Segunda Ilírica! Ao estandarte inimigo!
Cruzou o olhar com um dos seus optios, e fez-lhe sinal, assinalando o círculo de guardas. Com um aceno, o homem virou-se e deu ordens que foram rapidamente transmitidas
ao longo da linha. De imediato se deu um movimento perceptível na direcção do estandarte, e os auxiliares lançaram-se contra Artaxes e a sua guarda pessoal. Cato
conseguiu ver um homem a curta distância do estandarte, incitando os seus soldados. Enquanto abria caminho, reconheceu-lhe as feições e confirmou a sua ideia.
- Artaxes...
Os auxiliares fecharam o cerco em volta do príncipe e dos seus defensores, e ao olhar para lá deles Cato conseguiu perceber que também os legionários de Macro tinham
aberto um caminho por entre os estrepes e atacavam a cabeça da coluna rebelde. Os revoltosos estavam perdidos, concluiu. A única escolha que restava a Artaxes era
lutar até ao fim, ou fugir. O príncipe de Palmira devia ter chegado à mesma conclusão ao mesmo tempo, já que inspirou profundamente e deu uma ordem aos seus homens,
que imediatamente cerraram fileiras, sobrepondo os escudos e colocando as lanças por cima destes, de forma a poderem golpear qualquer romano
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que se aproximasse das longas e aceradas pontas das suas armas. Olhou para trás e confirmou que a sua coorte se ocupava a destruir o que restava da coluna inimiga.
O deserto estava juncado de corpos e havia poças de sangue que obrigavam os homens que ainda combatiam a ter cuidado com o equilíbrio; mas isso não parecia impedi-los
de matar sem piedade os rebeldes suficientemente loucos ou corajosos para continuarem a combater.
Haveria cerca de cem homens a acompanhar Cato quando se acercou de Artaxes e dos seus guardas pessoais. Enquanto os auxiliares mediam o inimigo, deu-se uma pausa
tensa; no ar apenas se ouviam as respirações pesadas dos homens dos dois lados, encarando-se e esperando pelo momento em que o encantamento seria quebrado, e a morte
voltaria a reclamar o seu quinhão.
Cato aprumou-se e ergueu a espada, chamando a atenção dos seus homens.
- Segunda Ilírica! Manter posições!
Os homens olharam-no, alguns com expressões de surpresa, mas detiveram-se e aguardaram pela ordem seguinte do seu comandante. Cato virou-se para os rebeldes.
- Príncipe Artaxes! Estás derrotado. Os partos estão em debandada. A tua revolta está terminada. - Cato deixou que as suas palavras fizessem efeito, antes de continuar.
- Não há qualquer vantagem em prolongares a resistência. Salva as vidas dos teus homens e rende-te.
A princípio não houve resposta. Artaxes limitou-se a olhar para Cato com ferocidade, e mordeu o lábio. Nesse momento um dos seus homens olhou para ele e começou
a baixar a lança.
- Não! - Explodiu Artaxes. - Nunca me renderei! Matem-nos!
Agarrou na lança do homem mais próximo e atirou-a na direcção de
Cato. A arma foi impulsionada por um desespero e uma força selvagens, e se a direcção foi má, a verdade é que o auxiliar mais próximo de Cato não teve tempo de reagir,
pelo que a ponta da lança lhe atravessou o corpo, entrando pelo ventre e saindo pelas costas numa explosão de sangue e carne dilacerada. O homem esbracejou, e escudo
e espada saltaram-lhe das mãos e caíram no chão. Caiu para trás, esperneou e morreu, com o sangue a borbulhar na boca.
- Matem esses filhos da puta! - Gritou um dos homens, a voz esganiçada pela ira. - Acabem com eles todos!
Com um urro de fúria, os auxiliares avançaram numa onda, antes que Cato conseguisse detê-los. Lanças estilhaçaram-se contra os escudos romanos; só os rebeldes com
maior força de braços conseguiram fazer a ponta das suas armas atravessar os escudos, e um conseguiu mesmo ferir um auxiliar no braço. Mas os auxiliares depressa
fecharam o espaço e varreram os
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guardas pessoais do príncipe, usando o peso e o número para os empurrar. As lanças continuaram a procurar vítimas, tentando ultrapassar a barreira de escudos, batendo
em capacetes e deslizando ao longo das armaduras. Entretanto, os soldados romanos tentavam manter os seus escudos ao alto e as cabeças baixas, continuando a forçar
o inimigo a recuar. Ao aproximarem-se, tinham a vantagem de usar espadas curtas, e sempre que surgia uma brecha na linha de escudos inimigos, eles aproveitavam para
castigar os membros expostos. Alguns desbastavam as hastes das lanças que se projectavam por cima dos escudos, ou tentavam arrancá-las das mãos dos rebeldes.
Os grunhidos dos homens das duas facções, os gritos de triunfo mais rosnados que articulados, os gemidos e expressões de espanto dos feridos estavam por todo o lado,
e por momentos Cato teve a sensação de que estava a absorver os últimos suspiros dos moribundos à sua volta, e deixou-se tomar por um arrepio de terror supersticioso.
Mas recuperou e abriu caminho por entre os homens, na direcção do estandarte inimigo e do príncipe Artaxes. Ainda o conseguia ver, a gritar em desafio, erguendo
a espada no ar e incitando os seus homens à resistência. Porém, um a um, eles foram sendo abatidos, e ao caírem eram esfacelados pelas botas cardadas dos auxiliares,
que não se detinham. Antes que Cato conseguisse aproximar-se de novo de Artaxes, um dos auxiliares liquidou o homem que protegia directamente o príncipe, e avançou
pela brecha que criara no minúsculo grupo de sobreviventes. Viu-se frente a frente com Artaxes e, antes que o príncipe pudesse reagir, o soldado romano lançou-se
sobre ele, usando o escudo para derrubar o porta-estandarte. A flâmula caiu ao chão, enquanto o auxiliar defrontava Artaxes, obrigando-o a recuar e a agachar-se,
quando o espaço de que dispunha se tornou minúsculo. Artaxes levantou a espada para parar um golpe que lhe era dirigido à cabeça, mas no último instante o auxiliar
alterou a direcção da estocada e a lâmina atingiu o braço do príncipe acima do pulso, esmagando-lhe os ossos e cortando-lhe os tendões. Artaxes soltou um grito e
largou a espada, incapaz de a segurar. O auxiliar avançou, pronto para acabar com a vida do adversário.
- Não! - Gritou Cato, lançando-se no encalço do homem. O seu escudo apanhou o soldado de lado e derrubou-o, evitando que a lâmina ceifasse a vida de Artaxes. - Deixa-o!
Virou-se e gritou em grego.
- Rendam-se! O príncipe foi capturado! Rendam-se!
Os sobreviventes da guarda pessoal encararam Cato e, depois de alguma hesitação, um deles baixou a espada. Os outros imitaram-no, mas não antes que um deles tombasse
sob os golpes de um auxiliar ainda possuído pelo frenesim da batalha.
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- Segunda Ilírica! - Berrou Cato. - Manter posições! Fiquem onde estão!
Os homens recuaram alguns passos e baixaram também as espadas. Só nesse momento é que os sobreviventes inimigos baixaram cautelosamente os escudos e se entregaram,
com o medo e o desespero pela derrota sofrida bem estampados no rosto. Cato pôde finalmente relaxar o punho da espada, e deixar o escudo apoiar-se no solo. Aos seus
pés, Artaxes agarrava no braço ferido, mantendo-o junto ao peito com a outra mão, e gemia em agonia através dos dentes cerrados. O peito de Cato arquejava; a respiração
era ofegante, e já sentia um cansaço avassalador e a forma como o corpo lhe doía depois de todos os esforços que lhe tinham sido pedidos nos últimos dias. Mas estava
tudo terminado, finalmente. O ataque à coluna rebelde, a batalha contra o exército parto, a revolta. Tudo. Olhou para baixo, para Artaxes, e assentiu para si próprio,
cansado. Nesse instante o olhar foi-lhe atraído pelo estandarte com a serpente vermelha brilhante e como que acordou, dobrando-se para lhe pegar. Procurou o auxiliar
que tinha derrubado Artaxes, chamou-o e entregou-lhe o estandarte.
- É teu... Bem o mereceste, soldado.
O homem lançou um sorriso tímido e pegou na haste.
- Sim, senhor. Obrigado, senhor.
- Cato! Cato! Miúdo, onde é que te meteste?
Virou-se para a voz de Macro e percebeu que os legionários tinham destruído a frente da coluna rebelde e se aproximavam agora dos homens derreados e cobertos de
sangue da Segunda Ilírica, concentrados em torno do estandarte inimigo. Os corpos de rebeldes e romanos estavam espalhados por toda a área, em pilhas, e a um dos
lados o punhado de prisioneiros olhava desalentado para a cena.
- Pelos deuses. - Comentou Macro, enquanto passava por cima dos cadáveres. - Que banho de sangue. Cato, está tudo bem contigo?
O jovem viu a expressão preocupada no rosto do amigo e levou um instante a perceber que a sua cara e capacete deviam estar manchadas de sangue.
- Estou bem, senhor. Estou óptimo.
- Ainda bem. - Macro deu-lhe um aperto amigável no braço. - Grande trabalho. Este é o Artaxes, não?
- Em pessoa. Será melhor mandar alguém tratar-lhe do braço.
- Se achas que vale a pena. - Macro encolheu os ombros. - A mim, não me parece. Duvido muito que ele sobreviva à reunião com o seu adorado pai.
- Sim, também eu. - Admitiu Cato. - Mas isso é lá entre eles. Acho que, se o levarmos a Vabathus vivo, conseguiremos ganhar alguma simpatia.
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E uma vez que a ameaça parta está removida... - Virou-se e contemplou o campo de batalha. Agora que o combate terminara e que a poeira tinha começado a assentar,
começava a poder apreciar-se a extensão da derrota inimiga. O exército parto tinha sido completamente destruído, e o que restava dele estava em fuga e a ser caçado
pelo general Longino e os seus homens. Os partos fugiam para as ravinas, tentando desesperadamente colocar algum terreno entre si e os soldados romanos vitoriosos.
Macro riu ao ver o amigo a avaliar o campo de batalha.
- Parece-me que o teu plano resultou em cheio.
Cato virou-se então para ele, e por fim a tensão libertou-se; riu.
- Assim parece.
Os legionários da coorte de Macro rodeavam Cato e os seus homens, admirando sem pudor o trabalho sanguinolento feito pelos auxiliares. Nesse instante, do meio das
fileiras, levantou-se uma voz.
- Malta, um grito pela Segunda Ilírica!
De imediato os legionários ergueram as vozes num imenso coro de aprovação; depois de uns instantes de surpresa, as faces dos auxiliares mostraram o orgulho e a alegria
do triunfo, enquanto os homens das duas coortes se misturavam como velhos camaradas de armas e comentavam os acontecimentos do dia.
Ouviu-se o som de cascos, e os dois oficiais viraram-se para ver chegar Balthus e os seus homens. O príncipe sorria abertamente, e os seus olhos luziram de prazer
ao ver o estandarte derrubado. Fez a montada estacar num repente e escorregou de imediato da sela, passando sobre os cadáveres que juncavam o chão para se juntar
aos dois oficiais romanos.
- Meus amigos, que grande vitória. A Pártia foi hoje aqui humilhada. Humilhada, digo-vos! Viram o meu irmão? O corpo foi encontrado?
Macro desviou-se e apontou Artaxes.
- Ei-lo. Vivo, embora um bocado amolgado.
O riso de Balthus desapareceu de pronto, e ele aproximou-se do irmão que permanecia sentado no solo, tentando estancar o sangue da ferida que quase lhe decepara
a mão.
- Tu... Vives ainda.
Artaxes abriu os olhos e encarou o irmão com desdém.
- Vivo sim, irmão, e quando chegar à presença do rei, ele nada verá senão remorsos. Chorarei enquanto confessar que me deixei possuir por um espírito ambicioso que
me perdeu. E sabes que mais? Ele perdoar-me-á.
Macro riu a bom rir.
- Parece-me que estás enganado, querido! Depois de tudo o que fizeste?
- Tens dúvidas? - Artaxes sorriu, antes de estremecer, ao sentir outra
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onda de dor a percorrê-lo. A fronte do príncipe estava perlada de gotas de suor frio quando prosseguiu. - Não conheces o meu pai. Como quase todos, tem um fraco
por um dos filhos. Uma compulsão que o leva a perdoar o filho preferido, o que quer que ele tenha feito.
Deu-se um momento de silêncio enquanto os outros consideravam as palavras que tinham escutado. Balthus assentiu, e comentou em tom calmo.
- Ele tem razão. A situação vai ser complicada... - Virou-se para o mais próximo dos seus homens e deu-lhe uma rápida ordem. Antes que Macro e Cato percebessem o
que se estava a passar, vários arcos tinham sido retesados e as setas atravessavam o ar, cravando-se em Artaxes ali mesmo, no solo. O príncipe tentou respirar, encarando
o irmão com uma expressão de choque. Então os seus olhos apagaram-se e ele tombou de costas, olhando para o céu de boca aberta, sem nada ver.
Balthus contemplou-o por momentos e inclinou-lhe a cabeça ligeiramente para o lado, comprovando a morte.
- Assunto arrumado.
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No dia seguinte à batalha, os sacerdotes das legiões cumpriram os ritos funerários pelos homens que tinham perdido a vida. As piras iluminaram o céu nocturno e,
pela alvorada, quando o exército iniciou a marcha de volta a Palmira, o deserto estava pejado de restos enegrecidos. O sofrimento dos feridos inimigos foi abreviado
com golpes certeiros nas gargantas dos homens, enquanto os feridos romanos eram recolhidos e tratados o melhor possível, antes de serem colocados em carroças, mulas
e cavalos, ou em macas improvisadas que os seus camaradas transportavam. Outros grupos de soldados percorriam o campo de batalha e recuperavam quaisquer armas ainda
em condições de utilização, das muitas que se viam espalhadas pelo solo.
Os inimigos abatidos foram deixados onde estavam, em pilhas pela areia. Cadáveres às centenas estavam dispersos pela paisagem, onde quer que tivessem sido abatidos
pela cavalaria romana que os perseguira. O exército parto fora realmente aniquilado. Os sobreviventes eram poucos e dispersos, sem comando, e tinham abandonado armas
e equipamento. Tudo o que lhes restava era uma longa retirada pelo deserto até ao Eufrates e ao território parto, do outro lado do rio. Sem água, poucos conseguiriam
completar a árdua jornada, e os que o fizessem teriam uma triste história para contar. Muitos anos teriam que passar até que a Pártia voltasse a atrever-se a desafiar
Roma.
Dois dias depois, enquanto o exército construía um fortim de campanha junto às muralhas de Palmira, o general Longino conduziu uma procissão de oficiais, incluindo
o príncipe Balthus, e alguns soldados e prisioneiros escolhidos, através dos portões da cidade e pela artéria principal, até ao palácio real. Assim que o rei recebera
uma mensagem de Longino anunciando a vitória, Vabathus tinha declarado um feriado para comemorar o fim da rebelião e a derrota da Pártia. Porém, enquanto os romanos
percorriam a rua pavimentada com os seus estandartes, os sinais de regozijo da população eram escassos. Macro e Cato avançavam à frente dos estandartes, com os outros
oficiais, e pela rigidez dos movimentos da cabeça do general apercebiam-se que
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Cássio Longino estava longe de se sentir agradado perante aquela fria recepção.
- O que se passa aqui? - Perguntou Macro, em voz baixa. - Seria de pensar que estariam felizes pelo fim da revolta.
Cato olhou em volta. Não havia mais do que um punhado de habitantes a testemunhar a passagem dos romanos, e não se manifestavam enquanto os soldados marchavam à
sua frente.
- É difícil culpá-los. No último mês assistiram a uma dose reforçada de combates. Quando perceberem realmente que a paz regressou, por certo que ficarão felizes.
Macro considerou a opinião do amigo por momentos, antes de encolher os ombros.
- Podes ter razão, mas eu gostava bastante de receber alguns agradecimentos agora mesmo. Não marchei por este forno de trampa de deserto, aguentei um cerco e participei
numa batalha para agora ser recebido com tanto entusiasmo como um peido no meio de uma formação cerrada.
- Como queira; por mim, estou bastante contente só por estar de volta a Palmira.
Macro deitou-lhe uma olhadela e sorriu.
- Evidentemente que estás. E é claro que isso não tem nada a ver com a filhota do Semprónio, não é?
Cato sentiu a irritação a crescer dentro de si, mas conseguiu controlar-se e até sorrir de volta.
- Tem tudo a ver com ela. Com a Júlia. - Sentiu o coração aquecer perante a simples menção do nome da rapariga. - O pai dela deu-me a sua palavra que, quando regressasse,
poderia casar-me com ela.
- Se regressasses, foi o que ele disse.
- Se, quando, qual é a diferença?
Macro sorriu tristemente.
- Toda, quando ninguém espera que um tipo sobreviva o tempo suficiente para nos fazer cumprir uma promessa feita sem sinceridade.
Os olhos de Cato semicerraram-se.
- O que é que quer dizer?
- Oh miúdo, vá lá! Não és parvo nenhum. O Semprónio é um aristocrata. E tu, o filho de um liberto. Dificilmente podes ser visto como um pretendente à altura da sua
preciosa filha. Ele estava apenas a animar-te.
Foi a vez de Cato ponderar as palavras do amigo; acabou por abanar a cabeça.
- Não. Isso não faz sentido. Se o Semprónio não tinha qualquer intenção de me deixar desposar a Júlia, por que é que prometeria tal coisa,
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sabendo que havia hipóteses de eu regressar? Macro, acho que está enganado. Muito enganado.
- Bem... Tudo o que posso dizer é que também espero que sim, miúdo. Espero mesmo.
Prosseguiram em silêncio, percorrendo a avenida praticamente deserta que atravessava a cidade e ia dar ao complexo do palácio. Quando se aproximaram da entrada,
um arco monumental que cobria toda a via, uma pequena multidão de mulheres e crianças andrajosas disposta dos dois lados da avenida começou a vitoriá-los sem grande
entusiasmo. Quando o general Longino chegou ao pé deles começaram a lançar pétalas brancas e brilhantes aos seus pés.
- Uma boa ideia. - Comentou Macro. - Mas tresanda a insinceridade. Esta malta deve ter sido arrebanhada nos recônditos mais miseráveis da cidade e posta aqui para
nos dar as boas-vindas.
- Não queria uma recepção digna de um herói? - Retorquiu Cato. - Cá está ela. Pelo menos o general parece agradado.
Macro espreitou para a frente da coluna e notou que Longino inclinava a cabeça solenemente para ambos os lados da via, enquanto mantinha a mão no ar, num gesto de
agradecimento pouco empenhado. O centurião fungou.
- Pela maneira como se comporta, estava capaz de pensar que já teve direito à sua ovação e que estava em Roma, a marchar pela Via Sacra abaixo, com uma multidão
de ambos os lados e uma escolta privada de vestais.
- Se calhar está a encarar isto como um ensaio para quando for a sério.
- Comentou Cato, sarcástico.
- Achas mesmo que o Longino merece ser ovacionado por isto? Aqueles partos quase que deram cabo de nós.
- Macro, sabe perfeitamente como é que isto se passa. Pouco importam os erros cometidos, o número de homens perdidos, desde que o resultado final seja o pretendido.
E uma vitória sobre os partos vai saber bem em Roma. Portanto, vai haver com certeza uma celebração. Até ajuda a manter a plebe contente.
- Fantástico...
Cato deitou um olhar em redor, aos outros oficiais, e baixou ainda mais o tom de voz.
- E ainda tem o benefício suplementar de o separar das suas legiões por algum tempo. Atendendo às ambições do homem, não me parece mal pensado dar-lhe a ovação.
Macro anuiu. Mesmo tendo conseguido frustrar os planos que Longino traçara para erguer um exército capaz de derrubar o Imperador, não
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tinham conseguido reunir indícios suficientes para provar as suas intenções traiçoeiras. Narciso não ficaria plenamente satisfeito com os seus esforços, pensou,
desanimado. O secretário imperial não era exactamente conhecido pela paciência que demonstrava para com quem não produzia os resultados esperados. Macro e Cato tinham
sido enviados para as províncias orientais para expor Longino como um traidor. Por muito que tivessem alcançado, Longino não se tinha incriminado de forma a justificar
a sua deposição e eliminação. Nos tempos de Calígula as coisas eram diferentes, e qualquer romano podia ser executado a qualquer momento, por um capricho do Imperador.
O seu sucessor, porém, estava determinado a desencorajar esses excessos extrajudiciais. Macro sorriu para si mesmo ao imaginar que Narciso, muito provavelmente,
adoraria a brutal simplicidade do anterior regime.
Nesse preciso instante apercebeu-se de uma cara familiar na orla da turba, o que o fez estacar e sair da formação. Cato virou-se com uma expressão curiosa e juntou-se
ao amigo.
- O que se passa?
- Vai andando. Já te apanho.
- Porquê? O que se passa?
- Tenho que falar com uma pessoa. Vai andando. - Insistiu Macro, com firmeza.
Cato encolheu os ombros, e acabou por voltar à coluna. Ao olhar para trás, avistou Macro a dirigir-se calmamente para junto da multidão andrajosa, e parar à frente
de uma rapariga.
O desfile passou pelo arco e desembocou no vasto pátio em frente ao palácio real. Uma guarda de honra, composta pelos sobreviventes dos mercenários gregos, ocupava
os degraus que levavam à entrada do palácio, onde Thermon aguardava em frente às duas colunas que suportavam o pórtico. O general Longino avançou até à base da escadaria
e deteve o cavalo, antes de desmontar graciosamente. Fez um gesto na direcção dos seus oficiais e de Balthus, para que o acompanhassem, e subiu os degraus, dirigindo-se
à entrada. O comandante da guarda real emitiu uma ordem, e os mercenários viraram-se para o meio das escadas, puseram-se em sentido e apresentaram armas. Thermon
fez uma profunda vénia quando Longino se aproximou.
- Meu senhor Cássio Longino, é com enorme prazer que voltamos a recebê-lo na cidade. As novas da sua vitória foram causa de grande alegria e festividades em Palmira.
- Já reparei. - Ripostou Longino de forma ácida, enquanto acenava com a cabeça na direcção da avenida que atravessava a cidade. - Ao que parece, os vossos cidadãos
ainda estarão a recuperar da festa.
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Thermon fez uma pausa ao perceber o tom do comentário do romano, e depois sorriu em direcção a Balthus.
- Meu príncipe, o rei está feliz com o seu sucesso e aguarda a oportunidade de abraçar o seu valoroso filho.
- Sim, estou certo disso. - Retorquiu Balthus.
- Bom, podemos talvez avançar. - Interrompeu Longino. - Tenho que falar com o rei e depois regressar para junto do meu exército e tratar das necessidades dos homens.
- Com certeza, senhor. Se quiser ter a gentileza de me seguir. - Thermon voltou a fazer uma vénia e afastou-se da entrada aos recuos, antes de se virar e conduzir
todo o grupo ao longo de um vasto salão cujas paredes estavam decoradas com vistosas pinturas que celebravam os sucessos de antigos reis de Palmira. Ao fundo do
salão havia duas portas de grandes dimensões, revestidas a metal reluzente, que foram abertas por guardas do palácio para dar entrada ao grupo na sala de audiências
do rei Vabathus. O monarca sentava-se no trono, que se elevava acima do espaço circundante por estar sobre um pódio arredondado, ao qual se acedia por um pequeno
lanço de escadas. À sua frente via-se um grupo constituído por nobres de Palmira e pelos mais ricos homens da cidade, todos envergando as suas mais esplendorosas
vestes. Afastaram-se para os lados, dando passagem a Longino e ao seu séquito. Havia mais guardas no interior do salão, que tomaram posição de forma a criar uma
avenida de lanças e escudos que conduzia directamente ao rei no seu trono altaneiro.
Enquanto seguia atrás do general, Cato deixou que os olhos abrangessem toda a vastidão da sala. Avistou Semprónio, próximo do rei, e depois procurou por entre a
multidão até localizar Júlia, ligeiramente à parte dos demais, junto a uma das colunas engalanadas. Fez um breve aceno na sua direcção, seguido de um sorriso. Ela
respondeu erguendo ligeiramente a mão, enquanto o rosto se lhe iluminava com uma mistura de alegria e alívio por o rever.
Thermon conduziu Longino até à base dos degraus e colocou-se de lado respeitosamente, enquanto fazia um anúncio formal.
- Majestade, apresento Cássio Longino, governador da província romana da Síria; acompanham-no os seus oficiais e o príncipe Balthus.
O monarca acenou aos seus convidados e deu-se uma breve pausa, enquanto ele se endireitava no trono e começava a falar.
- General Longino, dou-te as boas vindas ao palácio. Não tenho palavras que consigam exprimir de forma adequada os agradecimentos que te devo, bem como aos teus
bravos soldados. Libertaste-nos das garras da Pártia, e das dos traidores entre o meu povo que estavam prontos a vender a sua cidade para que se tornasse escrava
do império parto. - Ao prosseguir
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não conseguiu evitar um ligeiro tremor na voz. - Soube que Artaxes morreu no campo de batalha, às mãos do príncipe Balthus. É talvez um fim adequado. Mas enquanto
choro a perda de mais um filho, mesmo um que me traiu, reconheço que estarei para sempre em dívida para com Roma.
Cato notou o fremir de Balthus ao escutar aquelas palavras. O príncipe franziu o sobrolho e cerrou firmemente os lábios, enquanto o seu pai prosseguia.
- Tal é a extensão da minha gratidão que assinei hoje mesmo um tratado com o embaixador do Imperador Cláudio. Daqui em diante, Palmira e todos os seus domínios terão
o estatuto de reino privilegiado nas suas relações com o Império Romano. - O rei fez uma pausa e olhou directamente para o seu único filho sobrevivente. Por momentos
notou-se um traço de piedade nos seus olhos, logo seguida por resignação sombria. - Compreendo perfeitamente que este tratado não agradará a alguns, entre o meu
povo. Mas a escolha que se nos depara é entre sermos aliados de Roma ou conquistas da Pártia.
- Não! - O príncipe Balthus abanou a cabeça e apontou para o pai. - Pai, sabes perfeitamente o que quer dizer esse estatuto. Quando desapareceres, Palmira passará
a ser apenas mais uma província romana. Perderemos a independência. Perderemos o nosso rei, e passaremos a estar sob o jugo de Roma.
- Sim. - Respondeu Vabathus em tom firme. - Mas é esse o preço que me vejo forçado a pagar, e que terás que aceitar.
- Nunca o aceitarei. - Ripostou Balthus, inflamado. - É dever de um rei a preservação do seu reino. Não o cumprir é trair todo o povo de Palmira.
- Falas-me de traição. - Contrapôs Vabathus em tom glacial. - Como te atreves? Tu, que traíste a tua própria carne, o teu próprio sangue, e ordenaste a morte do
teu irmão Amethus?
Balthus abanou a cabeça.
- Não o fiz! Não tens qualquer prova disso.
- Não? - Vabathus deu um passo ao lado, e lançou uma ordem curta.
- Tragam-no para aqui, para onde todos o possam ver.
Ouviu-se um gemido abafado, e o som de passos arrastados por trás do pódio real, e então dois dos guardas do rei surgiram, trazendo entre eles um monte de trapos
sujos que envolvia uma massa de carne pisada e ensanguentada. Empurraram o que restava de um homem até à frente do trono e lançaram-no sobre o solo.
- O que é isto? - O general Longino recuou, com ar enojado. - Esta... Este homem?
O rei ignorou o romano e fixou a sua atenção no filho.
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- Balthus, já não és capaz de reconhecer o mais leal dos teus escravos?
O príncipe olhava espantado para o homem enrolado no solo, todo ele ferido e pisado, e ainda assim agarrado à vida, como o demonstravam as costelas, que se erguiam
a cada respiração sumida. A pouco e pouco um olhar de horror tomou conta do rosto de Balthus, ao compreender por fim o que se passava.
- Carpex. - Murmurou. - Carpex, o que me fizeste?
O escravo pareceu de repente dar conta do que se passava à sua volta, e encolheu-se ao escutar aquela voz, como se tivesse sido atingido por mais um golpe.
- Meu senhor. - A voz do escravo não passava de um murmúrio rouco. - Oh, meu amo, peço-vos perdão. Eu...
- Silêncio, cão! - Ordenou Vabathus. - Como te atreves a falar na presença do teu rei? - Encarou Carpex, fazendo-o encolher-se com um ar aterrorizado. O soberano
pareceu agradado com a reacção obtida, antes de se virar para o filho e prosseguir. - Balthus, este verme imprestável deu-nos todas as respostas que procurávamos,
assim que o torturámos o suficiente. O escravo confirmou aquilo de que já suspeitava pessoalmente, que foste tu quem deu ordem para a morte de Amethus. E que foi
ele mesmo, Carpex, quem a cumpriu.
- Mentiras! - Explodiu Balthus. - Mentiras, digo-vos. - Deu um passo em frente e pontapeou Carpex. - Pai, o escravo está a iludir-te. Nada tive a ver com tal assunto,
juro-o, pelo omnipotente Bei.
- Calado! - Vabathus olhava o filho com desprezo. - Serás capaz de te desgraçar mais ainda, ao jurar pelo deus da nossa cidade? Não tens nem um resquício de honra?
- Ergueu-se e apontou um dedo firme ao príncipe. - Não és meu filho. Deserdo-te, aqui e agora. Não passas de um criminoso comum, de um traidor, e só pode haver uma
pena para crimes como os teus. Guardas, prendam-no!
Enquanto os mercenários se aproximavam e o cercavam, Balthus rangeu os dentes e olhou em volta como um animal acossado. A mão desceu para o punho da espada e ele
desembainhou-a num instante, apontando-a ao mais próximo dos guardas.
- Mais um passo e esventro-te.
- Larga a espada! - Ordenou Vabathus. - Não tens como escapar.
Por um momento Balthus olhou para o pai com ar de desafio, mas
por fim suspirou profundamente e baixou a cabeça. A tensão desceu perceptivelmente, e os guardas refizeram-se e prepararam-se para continuar a aproximar-se do príncipe.
Nesse momento, Balthus saltou de rompante sobre Carpex, e a sua lâmina faiscou no ar. Ainda o escravo soltava um grito de terror e já a espada atravessava a mão
ossuda que ele tinha usado
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para se tentar proteger. O fino gume da arma atravessou todo o braço e prosseguiu, rasgando-lhe a garganta até se cravar na espinha do homem, silenciando-lhe o grito.
O sangue espirrou sobre o pavimento da sala de audiências quando Carpex tombou para trás com a cabeça parcialmente separada do corpo. Balthus contemplou-o com um
olhar de profundo desprezo, enquanto o corpo dava um último estremeção. Lançou então a espada sobre o solo e não fez qualquer esforço para resistir quando os guardas
se apoderaram dele e lhe prenderam os braços atrás das costas.
- Levem-no. - Ordenou Thermon, antes de se virar para outro grupo de homens e apontar para o cadáver do escravo. - E limpem isso.
Balthus foi levado para fora da sala de audiências sob o olhar espantado dos oficiais romanos e dos nobres palmirenses. Depois de ele sair, os ombros de Vabathus
abateram-se visivelmente, e ele desceu do trono.
- Thermon, vou para os meus aposentos. Assegura-te de que não sou incomodado.
O ministro deitou uma olhadela tímida a Longino e aos oficiais romanos.
- Mas, Majestade, os festejos... O banquete.
- Festejos? - Vabathus abanou a cabeça, exaurido. - O que tenho eu para celebrar?
Manteve-se imóvel um instante, e prosseguiu.
- Mas tens razão. As celebrações devem prosseguir. Não será a presença de um homem destroçado que as perturbará. Trata disso, Thermon.
Virou-se e dirigiu-se à pequena porta ao fundo da sala. Os nobres dobraram os pescoços à sua passagem, mas Vabathus ignorou-os, mantendo o olhar fixo no solo enquanto
passava por entre eles e desaparecia pela minúscula passagem, deixando apenas silêncio atrás de si.
As sombras alongavam-se no pátio do palácio enquanto Macro se mantinha em sentido em frente do general Longino e do embaixador romano. Os dois senadores estavam
sentados a uma pequena mesa, enquanto beberricavam água aromatizada com limão. Por trás deles, um escravo abanava um grande leque feito de folhas de palmeira entrelaçadas,
refrescando-os.
Longino pousou o copo e limpou a garganta.
- Muito bem então, centurião Macro, o que tens de tão importante a dizer-nos?
- Senhor, isto não está certo. Esta história com o Balthus. O homem salvou-me o pescoço, e o de todos os que vinham na coluna de socorro. Lutou ao nosso lado na
cidadela, e esteve connosco na batalha contra os partos. É um tipo corajoso. - Concluiu Macro com um aceno firme. - Seria um erro deixar que seja executado como
um cão. Senhor, não está certo.
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O general Longino mordeu os lábios por momentos, como se estivesse a ponderar o que responder.
- Percebo o que queres dizer. E concordo, temos para com ele uma dívida de gratidão. Noutras quaisquer circunstâncias, nunca permitiríamos que ele fosse morto desta
forma.
Macro sentiu o peso da certeza assentar-lhe no coração quando ouviu as palavras do general.
- Senhor, o que é que me está a dizer? Noutras quaisquer circunstâncias?
Semprónio debruçou-se sobre a mesa.
- Talvez eu possa explicar a situação ao nosso amigo?
Longino agitou a mão, assentindo.
- Força.
O embaixador olhou para Macro e sorriu com tristeza.
- Não tenho dúvidas de que aquilo que dizes sobre o príncipe é verdade.
- Então porque tem ele que morrer? - Interrompeu Macro, teimosamente.
- Por necessidade política, pura e simples. Roma quer ver Palmira na condição de um estado dependente. É fundamental assinar um novo tratado, para nós e para Vabathus.
E nessa nova ordem, não há lugar para Balthus. Não podemos permitir que ele venha a tornar-se o governante de Palmira. Balthus sabe-o perfeitamente, e depressa conspiraria
contra o pai, tal como Artaxes fez, e isso é tão certo como o Verão suceder à Primavera. Por que outra razão teria ordenado a morte do seu irmão mais velho? Estava
a preparar o caminho para o trono. - Semprónio fez uma pausa para deixar que as suas palavras fizessem efeito. - Lamento, centurião. Mas não há nada que possamos
fazer. O príncipe Balthus pode ter-se tornado teu irmão de armas. É um homem de coragem e valor. Mas é também um personagem implacável e ambicioso, e se lhe fosse
permitido viver, tão cedo não haveria paz em Palmira. Portanto, Balthus será executado amanhã ao romper da aurora.
Macro sentiu-se invadir por uma vaga de amargura, e foi necessária uma forte dose de autocontrolo para reprimir a fúria que ameaçava explodir. Olhou com desprezo
para os dois homens.
- Necessidade política, dizem-me. Senhor, isso não passa de um eufemismo lamentável. Para mim, não passa de um assassínio disfarçado.
Longino bateu com o copo na mesa, irritado.
- Alto lá, centurião! Já estou farto da tua impertinência. Parece-me bem que te vou mandar...
- Macro tem razão. - Interrompeu Semprónio. - Se esquecermos
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as palavras com que embrulhamos a situação, não passa de um assassínio puro e simples. Não há como o disfarçar. Mas, centurião, isso não muda nada. Para o bem de
todos, temos que nos livrar do Balthus... - O embaixador sorriu perante a triste figura que fazia. - Ele tem que morrer Não existe alternativa. Compreendes?
- Sim.
- Bom. Então, só há uma última coisa a resolver. - Semprónio meteu a mão na sacola que se via no chão junto ao banco que ocupava e tirou de lá um documento dobrado
que ostentava o selo do Imperador. - O correio imperial trouxe-me isto ontem, junto com os outros despachos. Vem dirigido a ti e ao Cato.
Macro pegou na carta e deu uma olhadela às palavras por baixo do selo.
- De Narciso, Secretário Imperial. Só podem ser más notícias.
Semprónio deu uma risada, e Macro imitou-o.
- Bom, será melhor lê-la e procurar o Cato.
- Sim. - Assentiu o embaixador, e sorriu perante algum pensamento íntimo. - Parece-me que facilmente encontrarás esse admirável jovem nos jardins reais.
- Cato! Cato! Onde é que te meteste?
Macro avançou pelos jardins, procurando por todos os recantos formados pelos arbustos envasados e pelas árvores dispostas em torno de colunas e peristilos ornamentados.
Era seguido a curta distância por Jesmiah, que ainda vestia os restos da estola e da capa que usara na cidadela. O ar fresco do entardecer enchia-se do aroma do
jasmim e de outras flores. Estavam a ser feitos os preparativos finais para o banquete que seria servido à noite, e muito do pessoal ao serviço do rei estava espalhado
pelos jardins a aproveitar o entardecer enquanto podia, ou então passava por ali a caminho de realizar uma qualquer tarefa. As conversas interrompiam-se e todos
olhavam irritados para o oficial romano que lhes perturbava a tranquilidade aos berros.
- Cato, porra, onde é que andas?
Um vulto levantou-se de um banco de pedra e acenou para lhe atrair a atenção na penumbra que descia rapidamente.
- Estou aqui.
- Ah! Porra, até que enfim! - Macro dirigiu-se para junto do amigo, e mostrou-lhe a missiva de Narciso, já aberta. - Novidades de Roma! Grandes notícias.
Ao aproximar-se do banco, reparou que havia outra pessoa sentada junto a Cato, e refreou o entusiasmo ao aperceber-se da sua identidade.
- Senhora Júlia, perdão. Não queria interromper-vos.
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- Oh, não há problema. - Ela estava radiante. - Já dissemos tudo o que queríamos. Não te acanhes com a minha presença.
- Muito bem. - Macro virou-se para Cato e meteu-lhe a carta nas mãos. - Lê isso.
- Não pode esperar? - Retorquiu Cato, e depois inclinou a cabeça para o lado quando avistou a rapariga que seguia o centurião. - E quem é esta?
Macro olhou para trás, e fez um sinal para avançar. Jesmiah aproximou-se timidamente. Macro colocou-lhe a mão sobre o ombro enquanto explicava a situação.
- É a Jesmiah. Ela e o irmão, ainda bebé, estavam connosco na cidadela.
Todas as implicações destas palavras foram claras para Cato, que se remexeu com desconforto ao relembrar a horrível cena da expulsão dos civis do reduto cercado
pelos rebeldes.
Macro prosseguiu.
- A família dela morreu na revolta, e o irmão também acabou por não resistir. Morreu ontem. Era um bebé pequeno, e estava doente. A Jesmiah não tem ninguém neste
mundo. E por isso, pus-me a pensar...
- Macro olhou directamente para Júlia. - Pelo que tenho ouvido, uma jovem senhora romana precisa constantemente de bons servos e damas de companhia.
- A sério? - Júlia arqueou as sobrancelhas. - Não faço ideia onde podes ter ouvido essas histórias.
Macro encolheu os ombros.
- Bom, seja como for, tinha esperança de que pudesse arranjar uma posição para a Jesmiah. Ela nada tem aqui em Palmira. Nem família nem amigos. A casa foi queimada
de cima a baixo, e ela tem vivido nas ruas desde o fim do cerco. - Limpou a garganta. - Eu não posso cuidar dela. E tinha esperança, senhora, que pudesse ajudar.
Júlia continuou a olhá-lo, divertida, e depois deitou uma olhadela à rapariga andrajosa.
- Muito bem, seja, vou tratar disso.
A expressão de Macro iluminou-se de imediato.
- Obrigado. Quer dizer, hum... Agradeço-lhe em nome da miúda... Isso. - Voltou a atenção de novo para a carta nas mãos de Cato. - Tens que ler isso. Agora mesmo.
Cato olhou para o selo quebrado.
- Porque é que não me poupa esse trabalho e me diz o que lá vem escrito?
- Ora bolas, pronto, está bem, preguiçoso! - Macro sorriu enquanto
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dava uma palmada no ombro do jovem. - Narciso leu o nosso relatório e ordena o nosso regresso a Roma. O trabalho está feito, estamos daqui para fora. E o melhor
é que ele diz que nos vai arranjar postos na Legião. Deixaremos o exército da Síria assim que chegarmos a Antióquia, e seguiremos para a costa, onde apanharemos
o primeiro navio para Óstia e... Oh, gaita, lê tu se quiseres.
- São boas notícias, sim. - Cato sorriu ao amigo e bateu nas folhas com os dedos. - Duvido que haja muito mais a descobrir depois desse relato.
- Lê a carta.
- Já leio. Mas, primeiro, tenho também boas notícias para lhe dar.
- Tens? - Macro franziu o sobrolho. - Bom, miúdo, então não faças caixinha. Vamos lá a ouvir isso.
- Muito bem. - Cato colocou a mão por baixo do braço de Júlia e puxou-a, de forma a que ela se levantou e ficou ao seu lado. - Ao que parece, eu e a Júlia sempre
nos vamos casar.
- Casar? - As sobrancelhas de Macro subiram-lhe pela testa acima.
- O Semprónio sempre autorizou?
- Sim, e até em termos muito simpáticos. Embora tenha que admitir que em tempos julguei que ele tinha a intenção de a dar ao Balthus. Mas da maneira como as coisas
ficaram...
A expressão de Macro endureceu por instantes.
- Pois, de facto. Mais uma morte política.
- Bom, continuando. - Cato pôs o braço em torno dos ombros da jovem e beijou-lhe a testa. - Assim que chegarmos a Roma trataremos dos preparativos.
- Bem, caraças. Estou banzado. - Comentou Macro, estupefacto, antes de se lembrar das boas-maneiras. - Quero eu dizer, dou-te os meus mais sinceros parabéns. Aos
dois, aliás, claro.
Júlia deu uma gargalhada.
- Ora, centurião Macro, muito obrigada.
- Sim, muito obrigado. - Repetiu Cato. - Mas tenho que confessar que a autorização do Semprónio me apanhou de surpresa também a mim.
- Pois, mas não devia. - Censurou Júlia, em tom firme. - Eu já tinha decidido que me ia casar contigo. E seria preciso um pai muito corajoso para tentar deter-me
depois da resolução tomada.
Macro encarou-a, e depois levou as costas da mão à boca, num gesto teatral, como se quisesse dizer um segredo.
- Cato, vais ter que ter muito cuidado com esta amazona, miúdo.
A brincar, Júlia deu-lhe uma palmada na mão e depois, antes que
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Macro pudesse reagir, colocou-lhe o braço sob o dela, de forma a ficar ladeada pelos dois homens.
- Ora então, muito bem. E agora sugiro que nos juntemos às celebrações e arranjemos algo para beber. - Fez uma pausa e sorriu a Jesmiah. - Tu também. Parece-me bem
que te daria jeito comer qualquer coisa.
Jesmiah concordou com vigorosos gestos da cabeça, provocando uma risada geral. Júlia virou-se para Macro e apertou-lhe o braço.
- Acho que estamos todos a precisar de uma bebida. Como é aquela expressão? Dar de beber à criança, sim. É isso.
Macro deitou um rápido olhar ao amigo.
- Não me digas que ela está...
- Não. - Cortou Cato, de imediato.
Júlia riu perante o evidente embaraço masculino.
- Eu disse que era apenas uma expressão... Por agora. Vamos embora.
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NOTA DO AUTOR
As ruínas de Palmira ainda são bem visíveis no meio do deserto oriental da Síria, e valem bem uma visita. São perceptíveis os principais eixos de desenvolvimento
da cidade nos séculos que passaram desde a sua fundação. O ponto mais alto da História de Palmira aconteceu cerca de dois séculos depois do episódio aqui relatado,
quando Zenobia, a rainha guerreira, constituiu uma efémera mas séria ameaça à parte oriental do Império Romano. Essa é uma história com os seus próprios laivos épicos
(a que talvez retorne daqui a uns tempos!). Tomei algumas liberdades em relação à disposição que a cidade apresentaria a meio do primeiro século. No local em que
se teria situado a cidadela que desempenha um importante papel neste livro foi mais tarde construído um imenso templo, cujas paredes aproveitei para imaginar as
dimensões e do reduto defensivo.
O reino de Palmira ocupava uma posição crítica entre dois poderosos impérios separados apenas pelo deserto. Roma e Pártia estavam há muito envolvidos numa espécie
de guerra fria que ocasionalmente se transformava em conflito aberto e directo. Esses combates só muito raramente eram resolvidos a favor de Roma. O general Crasso,
à frente de um poderoso exército, fora aniquilado em Carras no século I a.C., e o próprio Marco António tinha fracassado numa campanha desastrosa, poucos anos antes
de se ver esmagado pelo seu rival político Octaviano (o futuro Augusto).
Palmira acabou por ser anexada e integrada na província romana da Síria, à volta da época em que decorre este romance. A forma de que se revestiu essa conquista
seguiu o plano habitual, consistindo no estabelecimento de um tratado que dava privilégios especiais aos pequenos reinos que rodeavam o Império, mas que os tornava
também extremamente dependentes de Roma. Em troca da protecção, a autonomia dos reis que assinavam tais acordos ia sendo gradualmente erodida, até que as suas terras
eram de facto absorvidas pelo Império.
A principal dificuldade para os exércitos romanos nos confrontos com os partos era a extraordinária mobilidade destes, já que as suas forças eram maioritariamente
compostas por arqueiros montados apoiados por pequenos grupos de cavalaria de choque, os catafractários, fortemente equipa-
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dos. Era muito difícil para os romanos conseguir fixar o inimigo durante o tempo suficiente para as legiões entrarem em contacto directo com ele. Poder-se-ia dizer
que foi este um dos primeiros casos de tácticas assimétricas. A única forma de levar os partos a um combate em linha seria escolher um terreno confinado, onde o
choque frontal não pudesse ser evitado. O truque seria atrair os partos a essa arena, já que eles temiam aproximar-se demasiado dos romanos, a não ser que a vitória
estivesse iminente. Dito de outra forma, ter-se-ia de seguir algo de muito próximo do plano que, neste romance, foi concebido pelo prefeito interino da Segunda Ilírica.
Simon Scarrow
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