Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
M A T A R A N A
Livro II / Segunda Parte
CÉU EM CHAMAS
“Estou na fase dos enjoos e tonturas. Ainda não tenho uma barriguinha para mostrar e os meus peitos doem pra caramba. Faço caretas para comidas que até pouco tempo eram as minhas prediletas. Não raras vezes, corro para o banheiro com uma ânsia de vômito terrível e fico olhando o fundo da privada sem expelir nada. Sono, muito sono. O que é irritante, porque sempre fui muito ativa. E quando minha pressão baixa e vejo pontinhos pretos, preciso pôr a cabeça entre as pernas e esperar a tontura passar. Não esperava me sentir tão mal fisicamente. Por isso me sinto culpada por somente conseguir expressar a parte chatinha da gravidez e ofuscar a melhor. Quero ser uma boa mãe, me disseram uma vez que eu não estava preparada para ser uma boa mãe. Aí, penso na relação que tenho com a minha e o fato de que nem lembro a última vez que nos falamos por telefone. E não sinto falta dela. Acho que não sou uma boa filha, então, tenho medo de não ser uma boa mãe. Insegura e despreparada é como me sinto”.
Com dois travesseiros apoiando-lhe as costas na cama, Nova releu o que acabara de escrever no notebook. Era um post para o blog que resolvera criar para compartilhar a sua experiência com outras mamães de primeira viagem. Temia que a sua primeira postagem soasse negativa demais. Não queria induzir nenhuma grávida ao suicídio. Visto por outro ângulo, porém, limitar-se a escrever sobre a plenitude da maternidade e as divertidas compras do enxoval do bebê poderia ter um efeito contrário, já que muitas mulheres não se divertiam comprando e se sentiriam estranhas e complexadas por não curtirem tanto assim cãibras, enjoos, ovários e seios inchados, sensibilidade exacerbada e excesso ou ausência de desejo sexual. Nem tudo eram flores para quem carregava humanos no ventre. O que importava mesmo era que valia a pena.
Antes de publicar o texto, voltou-se para Franco que ao seu lado lia “Pais Grávidos”. Ela sorriu ao vê-lo absorto na leitura, totalmente compenetrado, folheando devagar as páginas e observando cada ilustração. Sobre o seu criado-mudo outras publicações sobre gravidez, “O que você espera quando está esperando” e “Manual do Grávido”.
Fora ele quem pedira para arranjar livros sobre o assunto, queria saber como funcionavam as coisas nessa área. Voltara de Santa Fé desiludido por não encontrar nada que o tirasse da ignorância de não saber nem mesmo a diferença entre embrião e feto. Nova então o apresentou ao seu notebook e fez a compra pela internet diante dos olhos curiosos e desconfiados do noivo que tanto criticava a tecnologia. Quando os livros chegaram, Franco adonou-se de todos e levava um deles consigo na picape. Sempre que podia, abria-o e o lia como se estivesse fora do planeta.
Naquela hora da noite, encostado contra a guarda da cama, nu debaixo do lençol, ele novamente estava fora do planeta. Virou-se para ela ao perceber que estava sendo observado. Comentou com a naturalidade de sempre e um belo sorriso jovial:
— Antes que eu esqueça, princesa, li em uma revista enquanto esperava para ser interrogado para um emprego que...
— Entrevistado, amor, não interrogado — interrompeu-o e corrigiu com suavidade, vendo-o sorrir ainda mais.
— Bom, o camarada se comportou como um policial, não percebi que era apenas uma entrevista para ser segurança de um puteiro. Tenho a impressão de que ele não queria me dar o emprego, sabe? Uma má vontade do cacete! — completou, balançando a cabeça, contrariado.
— É só mais um idiota. — ela disse, inclinando-se para beijá-lo levemente na boca.
Ao se separarem, ele recomeçou num tom jocoso:
— Antes de me interromper, mulher linda, eu estava dizendo que li sobre o sexo nos primeiros três meses de gravidez e digo uma coisa, somos sortudos que não tenha acontecido nada com a nossa pequena.
Nova estreitou os olhos, confusa, tentando acompanhar a sua linha de raciocínio.
— Pelo visto se perdeu na ideia, né? — brincou, puxando-a para um abraço e se afastando ligeiramente para encará-la com seriedade: — Olha só, temos de moderar na cama.
— Como assim? — indagou, tentando controlar uma risada. — Só pode estar brincando! Semana passada você estava gripado com 39 graus de febre e veio com tudo pra cima de mim.
Ele sorriu sem graça.
— A culpa é sua, claro. Como acha que consigo me controlar quando põe debaixo do meu braço o termômetro e na minha cara os seus peitos? Mas a questão não é a frequência, Nova. Falo sério agora. Falo mesmo, Nova, para de rir! — censurou-a com brandura e emendou: — O problema é que sou muito, digamos... agressivo quando pego você de jeito.
— Intenso, amor, é essa a palavra. — brincou.
— Intenso? Tem certeza de que é só isso? Quando terminamos, mal consegue respirar e demora pra voltar a se mexer. Sei que judio, judio com amor, mas judio. Por isso temos de maneirar. Na revista estava escrito sobre... — ele desviou o olhar e baixou-o para o livro.
Percebendo o tom rosado das bochechas, ela já sabia que era algo bem específico sobre sexo e, apesar de adorar a prática, a parte teórica deixava-o pouco à vontade. O pistoleiro era cheio de pudores. Nova admirava esse aspecto de sua personalidade que se contrapunha à voracidade na cama e a virilidade de seu trabalho como segurança armado.
— Me diz o que leu na revista, moço. — não resistiu à provocação.
Ele se voltou e respondeu com a expressão séria e desafiadora, aceitando o seu atrevimento e o devolvendo à altura:
— Por acaso a senhorita jornalista de cidade grande sabia que a penetração não pode ser muito profunda? O pênis não pode encostar no colo do útero. Sabia sobre isso? O caubói tosco aqui sabe e de jeito nenhum meterei bala. Acredite, Nova, nada de sexo até a nossa filha nascer. Quando estou duro de tesão nem penso em paternidade e acabarei machucando o seu útero e a testa da minha filha. Não deixarei você na mão, sei como satisfazê-la, mas a pistola ficará no coldre. — afirmou determinado.
Por um momento, ela ponderou sobre o que acabava de ouvir. O tom de voz era de alguém obstinado em cumprir uma missão. Mas ele só podia estar brincando — concluiu ela.
— Temos pelo menos oito meses pela frente mais o tempo de pós-parto. Você não consegue manter a pistola quieta nem debaixo do lençol quanto menos no coldre... Me poupa, Franco!
Ele olhou para a própria cintura e se irritou consigo mesmo.
— Ai, merda! — praguejou, desvencilhando-se do lençol e saindo da cama. — Para resolver esse problema é só tomar um bom banho frio. — declarou, encaminhando-se para o banheiro.
— Não, volta aqui, temos de conversar. — pediu, pegando-o pelo pulso e puxando-o de volta, fazendo-o se sentar ao seu lado. — A gente toma todas as precauções em relação a isso, é apenas mais um detalhe que temos de nos adaptar temporariamente. — ponderou, entrelaçando seus dedos nos dele e continuou de forma terna: — Como quando nos conhecemos. A gente gamou um pelo outro sem cogitar a hipótese de termos pouco em comum. Não tivemos muito tempo para conversar, debater ideias, contar nossas histórias de vida. Parecia que tudo isso era desnecessário, porque estávamos concentrados em nós mesmos, um no outro, e no tempo presente. E deu certo, não? Sou muito feliz com você e me apavora pensar que posso ser punida por essa felicidade. — ela se ajoelhou na cama, ao lado dele, e o abraçou: — Então não seremos nós a fodermos tudo, ok?
Dois braços ajustaram-se à sua cintura e, com o rosto colado na camisola dela, ele disse numa voz abafada:
— Não tenho uma boa índole. Venho de um lugar ruim e, por mais que eu não queira, acabarei machucando você. — afirmou ainda abraçado nela, aspirando o cheiro que o acalmava nas tempestades de sua alma, o cheiro de Nova. — Repetirei o que todos os outros Dolejal fizeram e eles destroem quem mais amam. Vou machucar você.
Cortou-lhe o coração ouvi-lo falar os seus tormentos. A influência do pai ainda agia de modo bastante eficiente.
— Tenho pena do Thales por não ter aproveitado o amor que a Karen tentou dar para ele. Você não é o seu o pai nem o seu avô. É outra pessoa completamente diferente deles e muito melhor que todos eles. — ela acariciou os cabelos dele e sussurrou com carinho: — Agora deita nessa cama que vou amá-lo.
Ergueu-lhe o rosto envolvendo-o entre suas mãos e encontrou um oceano profundo à espera de seu toque sempre apaixonado. Permitiu-se ser conduzido por ela, que o empurrou com suavidade contra os travesseiros e baixou a cabeça até tocar a boca no tórax e omoplatas, alcançando o pescoço, acompanhando a trilha de uma veia grossa que pulsava quente. Enquanto viajava pelo corpo de Franco, aspirava o seu cheiro, o frescor de sua pele, o mapa de seus músculos e a textura tépida e macia de cada contorno, rótula e desvio. De olhos fechados, Nova enxergava cada detalhe do percurso.
Ele a trouxe em direção aos seus lábios e beijou-a como se fosse partir, despediam-se à beira da plataforma do trem ou retornavam de lugares confusos e distantes e, na névoa intensa da separação, encontravam-se outra vez. Ouvindo-o respirar mais forte, as mãos espalmadas apertando-lhe as nádegas, o corpo quase formando um arco debaixo do dela, querendo o contato, ansiando por se colar ao dela, chupou-lhe o lóbulo da orelha descendo a mão para a vontade que se erguia potente para tomá-la.
— Deixa comigo, não se preocupe... — gemeu tomada pela febre e uma força arrebatadora que explodia como delicadas descargas elétricas em espasmos por debaixo da pele e a empurravam para ele, para misturar-se a ele ao ponto de coabitá-lo como moradia eterna.
Ao se posicionar para montá-lo e devastar o prado, foi agarrada pela cintura por duas mãos que a ergueram e puseram-na na cama. Imediatamente Nova apoiou-se sobre os antebraços atenta ao homem ao seu lado. A respiração pesada e os dedos que se enfiaram por entre as mechas loiras, nervosos.
Ele se sentou, respirou fundo tentando se recompor e voltou-se para ela, pois lhe devia uma explicação:
— Não posso. — disse simplesmente sem um pingo de contrariedade. Entre a sua consciência e a vontade, parecida determinado a escolher a primeira.
— Como assim, não pode?
Antes de sair do quarto em direção ao corredor que levava ao banheiro, Franco disse sem se voltar:
— É impossível domesticar um animal selvagem com afagos. Por enquanto, é melhor que fique longe de mim.
Ela se enrolou no lençol e o seguiu. Segurou a porta que ele tentou fechar como obstáculo entre eles.
— Por que tanto drama? — perguntou, irritada.
O registro do chuveiro foi girado e o barulho da torrente fria ocupou o espaço para a resposta que pairava no ar. Franco postou-se debaixo da água encharcando o cabelo. Esticou o braço, a fim de pegar o sabão de coco que usava no banho. Não o encontrando virou-se para Nova, que ainda aguardava a elucidação de um fato novo e perturbador que merecia atenção:
— Onde está o sabão?
— No tanque, Franco, dei para Maria lavar os tapetes. Já disse que xampu de ceramidas não interfere na sua macheza. — falou com rispidez.
Ele esboçou um sorriso e apertou o frasco de xampu na mão. Esfregou rapidamente no cabelo e o enxaguou. Em seguida, virou-se para ela e sentenciou:
— Têm coisas, princesa, que precisam ser do meu jeito.
— Quase tudo é do seu jeito. — considerou num resmungo.
— É por isso que está tudo certo entre nós. Não foi o que me disse há pouco? — alçou a sobrancelha com petulância. — Sei o que faço e quero que seja assim.
— Não tentarei mudá-lo. Falei pro Rodrigo que pessoas como você e a Karen têm de ser aceitas como são ou então precisamos deixá-las partir. Se quer levar a cabo essa decisão maluca de tornar o nosso relacionamento assexuado, como era com o Cris, tudo certo, eu topo. Já estou acostumada a mendigar atenção e tenho a impressão de que nasci para a abstinência sexual. Obedecerei às suas ordens e voltarei para a minha cama de noivinha intocada. — disse, ofendida.
Saindo do boxe, ele falou com severidade:
— Acho engraçado quando se põe como vítima do destino. Jamais me passou pela cabeça não servir você. É claro que sua experiência nessa área é bastante restrita, por isso não captou muito bem as minhas intenções. Não vou perdoar a sua ignorância, você raramente deixa de me corrigir, não é mesmo, noivinha? — ele estendeu o braço e pegou a toalha pendurada detrás dela e, com um gesto ágil, enrolou-a ao redor da cintura. Depois se aproximou e pôs as mãos sobre os seus ombros e declarou num tom de falso pesar: — Acho que não era bem esse tipo de conto de fadas que você imaginava viver... Ééé, minha amada noiva, nem todas as princesas ganham o príncipe, têm as que são premiadas com o sapo.
Ele baixou a cabeça e fez menção de beijá-la, recuou, sorriu e deixou-a plantada no meio do banheiro.
O espelho mostrava uma mulher com cabelo curto, olhos brilhantes e um sulco entre as sobrancelhas. Franco era direto e simples. Mesmo assim, não deixava de se constituir um mistério, pensou ela, decidida a não modificar o seu amado anfíbio.
Ao voltar para o quarto, encontrou-o vestido com uma camiseta velha e uma cueca boxer preta. Pelo visto tão cedo não tornaria a dormir sem roupa. Suspirou resignada. Desligou a luz do abajur e ficou quietinha, deitada de lado, percebendo que ele se acomodava para dormir. De repente a voz baixa veio de uma boca encostada ao seu ouvido:
— Fui muito grosseiro?
Ela sorriu no escuro. Preferiu responder com o silêncio.
Rodrigo bocejou pela terceira vez. O que o levou a despejar o café preto, tinindo de quente, no copo plástico e sorvê-lo sem muito cuidado. O amargor fumegante desceu-lhe ardendo a garganta e o despertando totalmente. Praguejou baixinho, ajeitando-se melhor no banco da picape. Passou a mão mais uma vez pelo rosto num gesto que denunciava sua exaustão. Girou a tampa da térmica e a pôs de volta no banco do passageiro. Decidido a varar a madrugada fazendo campana próxima a Coração de Ouro, Rodrigo driblava o sono dando fim a mais um litro de café e ao segundo maço de cigarros. Posicionado, estrategicamente, aguardava o começo da movimentação de desova da camionete. O advogado do coronel, por certo, acreditava que até ao amanhecer o juiz de Santa Fé teria expedido o mandado. Assim, teriam poucas horas para sumirem com a camionete usada no atentado na estrada. Por sua vez, o delegado, sabendo sobre o acidente do juiz no Chile, não botava fé que conseguiria entrar na propriedade do coronel Marau de forma legal.
Ao perceber a saída de uma picape pela porteira principal, ele abaixou-se discretamente. Foi um gesto mais instintivo do que necessário. Camuflado pelos arbustos à entrada de um bosque cerrado, pouco depois da entrada da fazenda, era impossível de ser visto. Mesmo quando dois círculos de luz focaram os eucaliptos, desprezando-os para, depois, ajustarem-se para frente, iluminando a estrada de chão batido.
Erguendo a cabeça e dando uma espiada com atenção, percebeu que se tratava da picape do filho caçula do coronel e tornou a se aquietar, encostando o ombro contra a porta e bebendo mais um pouco do seu café.
O que sabia sobre Leonardo Marau?, apertou os olhos, buscando na memória alguma informação ao seu respeito.
O coronel era casado havia uma eternidade com a mesma mulher e tivera dois filhos. A mãe de João Alfredo — que surtara no Colono Tranquilo, e outro garoto de pouco mais de dez anos de idade. Ela era casada com Augusto, contador do próprio sogro, chamava-se Giovana, tinha trinta e poucos anos e era dona de um salão de beleza sofisticado. Filha de Catarina que, aos quarenta anos, descuidara-se e pusera no mundo Leonardo. E os boatos que pairavam sobre as mesas dos bares e debaixo dos secadores nos salões de beleza eram que ao caçula Marau tudo era dado e permitido, menos a palavra não. Por esse tipo de pensamento, Rodrigo já desconfiava que Leonardo se tornara um sociopata. Porém, como até pouco tempo o garoto estava fora da cidade, se possuía ou não transtorno de personalidade, não o interessava.
Desde que retornara a Matarana, o preferido do coronel — esse também era um dos rumores, parecia estar na fase de adaptação à realidade de uma província alicerçada no feudalismo contemporâneo. Rodrigo apostava sua moeda de um cruzado novo que o rapaz não aguentaria viver numa cidade cujo ápice da vida social dos jovens era as sorveterias das avenidas principais, no centro da cidade, ou o salão country. Talvez a praça com o coreto em frente à igreja católica. Vez ou outra, uma dupla sertaneja tentava a sorte cantando para um público que, ao som dos alto-falantes potentes dos automóveis e picapes estacionados, exibia um gosto musical influenciado pelos gringos do Tennessee, Texas e Kentucky.
Quando enfim amanheceu, Rodrigo ligou o motor e partiu em direção à delegacia. Adele logo chegaria, depois de visitar Lucas no hospital. Mais uma semana e o policial retornaria ao trabalho.
Entrou na sua sala, deixou o chapéu sobre a mesa e foi até a pia lavar o rosto. Um quilo de areia debaixo das pálpebras. Pôs a cafeteira para trabalhar enquanto pensava num jeito de voltar a enfrentar uma cama sem Karen. A campana fora uma boa ideia para que não tivesse que dormir sem ela no seu maldito quarto de hotel. Ao livrar-se da camisa e trocá-la por outra, considerou que não estava de todo certo. Era duro admitir que o pior não era dormir sem ela; o pior era acordar.
Espreguiçou-se e avançou um braço em direção à mulher que ainda lutava para se manter de olhos fechados. Um corpo convidativo — um corpo pronto para recebê-lo sempre quando bem o conviesse, escondido por uma parte do lençol; a outra não. Um filete de sol infiltrava-se pela textura puída do tecido e fazia o que aquele homem faria a seguir. Havia tanta fome em seu olhar e tanta violência em sua vontade de aplacá-la que pouco se importou em despertá-la ou em seguir o protocolo do sexo. Dispensou as preliminares, separou-lhe as pernas com as suas e, apertando com força a sua coxa mantendo-a erguida, enfiou-se dentro dela com a brutalidade que lhe era peculiar. Era a sua natureza, justificava-se, vendo-a acordar sobressaltada. Ela nada podia fazer, era refém de outro corpo, mais forte que o seu e disposto a se saciar sem contenção de qualquer espécie. A primeira batida da cabeça contra a guarda da cama a fez proteger-se com as mãos, amenizando os golpes contra a madeira. O fogo crescia na mesma medida que a dor. Ainda não estava preparada para tê-lo, mas isso nunca fora importante para ele. Na maior parte das vezes, após o primeiro ataque e as sucessivas estocadas violentas, ela era açoitada por um fogo denso e agonizante, mexia-se para aprofundar a penetração, para senti-lo todo até o fundo, completamente louca de desejo e terminava se oferecendo ainda mais para ser mordida, arranhada, beijada e esbofeteada pelo seu homem. Era tudo que conseguia dele. Quinze a vinte minutos. Era tudo o que ele podia dar, um amor sexual de menos de meia hora.
Antes que ela conseguisse controlar a respiração ofegante, Leonardo já pulara fora da cama e se enfiara no banheiro. A porta aberta, o barulho do xixi contra a louça da privada e a cabeça da mulher rodando em mil direções. Culpa, rejeição, paixão fulminante e beco sem saída. A expressão fodida e malpaga cabia muito bem para ela — conjecturou a pistoleira, mordendo o canto do lábio.
— Como estão as coisas com a bicha cosmopolita? — perguntou ele, voltando e ameaçando juntar suas roupas, vesti-las e cair fora.
A morena sorriu levemente ao ouvir a expressão que o coronel costumava usar para se referir a Thales Dolejal. Tal pai, tal filho, ela pensou, vendo-o puxar o zíper do jeans, aguardando a sua resposta.
— Vai receber um troféu no clube campestre, cidadão mataranense ou coisa parecida. — respondeu Virgínia, admirando o traseiro estufado na calça.
Ele se virou e endereçou-lhe aquele tipo de olhar que quando um homem tem uma ideia maligna endereça — como Adolf quando pensou sobre o que poderia fazer com os judeus.
— Boa menina! — exclamou com um sorriso preguiçoso. Em seguida, enterrou o chapéu na cabeça e emendou sem deixar de sorrir: — Agora quero que se inscreva na corrida do Vitorino e dê um pau na vadia que ficou com o meu Maverick.
Virgínia encolheu-se na cama.
— O patrão me mata.
— Mata? Que nada! — deu de ombros — Talvez a demita, um belo pontapé na bunda. Mas, aí, a tal Karen Lisboa já estará arrebentada.
— Preciso trabalhar, Leonardo.
— Não, meu anjo, não precisa. Você só está na Arco Verde, porque eu quis que estivesse lá. Não se apegue a coisas materiais. Afinal, o que resta ao ser humano quando sua alma está corrompida? — ironizou.
— O patrão vai me perseguir, me expulsar da cidade... Ele é louco por aquela mulher. — considerou, saindo da cama e começando a se vestir.
Leonardo acendeu um cigarro e concluiu, fazendo uma careta como se Virgínia lhe tivesse dito o óbvio:
— Bom, era isso que eu queria saber, qual o ponto fraco do senhor Dolejal, e agora sei. Portanto, acabe com a vaca.
Quando a porta do quarto bateu, Virgínia tornou a se sentar na beirada da cama e considerou as suas possibilidades. Estava entre a cruz e a espada. Pior que isso, entre um Marau e um Dolejal. E ainda teria de enfrentar Karen Lisboa. Virgínia precisava se benzer.
Às dez horas, Adele entrou na sala do chefe, encostou-se contra o batente da porta e trouxe as boas-novas:
— Temos um meliante entre nós. — pôs as mãos na cintura e explicou a situação: — O Lucas quase implorou para eu seduzir os seguranças do hospital, ele queria se escafeder. Chega a dar pena do coitado, toda a sua hiperatividade reduzida a um leito de hospital e uma televisão com somente canais abertos.
Rodrigo bebeu o resto do café da caneca e, ao depositá-la na mesa, percebeu que a mão tremia. Procurou disfarçar, pegando alguns papéis e jogando-os para dentro da gaveta. Voltou-se para a escrivã e falou:
— É bom que ele descanse um pouco, mesmo que seja no hospital. — ergueu-se da cadeira e perguntou: — Está de olho no nosso amigo de Santa Fé, não?
— Claro que sim, chefe, só que ele ainda não voltou do Chile. Parece que o juiz está todo quebrado, vai demorar a erguer o martelo de novo. — respondeu, cedendo-lhe passagem.
Quase entalaram debaixo do vão da porta. Em vez de a escrivã afastar-se para o delegado passar, apenas encolheu a barriga, aproveitando para tirar uma lasquinha do caubói. Nada mal começar o dia esmagada feito uma lagartixa na parede. Conteve um suspiro, principalmente, ao perceber a cara amarrada do delegado que não gostou nadinha do golpe baixo. Porém, manteve-se calado, seguindo em direção à saída caminhando do jeito que sempre caminhava quando cansado, gingando ainda mais o quadril estreito. Desgraceira de homem bonito! — Adele podia passar horas examinando o seu chefe de cima a baixo, frente e verso, que não se cansaria.
Ele atravessou a rua depois de olhar para os dois lados e um pouco além. Sempre fora desconfiado. Talvez por isso se tornara policial ou, após ter entrado para a polícia, a desconfiança tenha-se potencializado. O trânsito de automóveis, naquela hora do dia, não era expressivo. Entretanto, acreditava que estava sendo vigiado mais do que o normal. Tinha consciência de que à época em que Dolejal tivera-o como amigo dispersara seus homens em alguns pontos da cidade para vigiá-lo, caso sofresse retaliação por parte do coronel ou de algum forasteiro desavisado. Detestava que considerassem que ele precisava de pistoleiros para executar o seu trabalho. Mas ele precisava. Em outras cidades pequenas, os delegados, sozinhos, não resistiam à pressão e acabavam por escolher uma ou outra opção, como se corromper ou sumir na cauda de um arco-íris. Aceitar, por exemplo, que na esquina da delegacia com a Farmácia do Nogueira houvesse um camarada à espreita com uma automática na cintura preparada para ser sacada caso o policial fosse ameaçado, não seria também uma forma de corrupção?
Intimamente torcia para que a irmã estivesse sozinha, separada do rebanho de mulheres que sempre a cercava. Precisava voltar para casa e pegar alguns de seus pertences deixados para trás. O inconveniente nessa circunstância era bater de frente com Karen e recomeçar uma discussão.
Na calçada em frente à Confeitaria de Karen e Val, observou os últimos reparos antes da inauguração. A vitrine de vidro protegida por tiras largas de papel pardo dava um ar de suspense ao que, em questão de dias, fisgaria a clientela. Valéria não parava de falar das doceiras que contratara. Três garotas nascidas e criadas em Santa Fé, jovens demais para terem o próprio negócio e maduras o suficiente para a responsabilidade de fazer os melhores bolos, doces e salgados da região. Enquanto criavam recheios e coberturas cantavam música Gospel, pedindo a benção divina para suas obras.
Bastou parar em frente à porta de vidro fechada e a irmã já o viu, sorriu e veio ao seu encontro.
— Pestinha, você apareceu! Dormiu bem? Como poderia dormir bem num hotel de quinta. — puxou-o para dentro e o abraçou, dizendo em tom maternal: — Está tão magrinho... Tudo bem, sempre foi magro, mas essas olheiras, a barba por fazer e... Meu Deus!, Rodrigo, que tremedeira é essa? — perguntou preocupada, afastando-se dele para olhá-lo melhor.
— Acalme-se, Val. — fez-lhe um afago no cabelo, embaraçando as mechas avermelhadas e, dando uma olhada ao redor, comentou satisfeito pelo o que via: — É, está ficando interessante esse lugar, hein?
Valéria acompanhou-lhe o olhar com um sorriso faceiro estampado no rosto. De fato, agora, depois da reforma que incluíra a instalação do piso de taco envernizado, das luminárias, das estantes aéreas que guarneciam os vidros de geleia caseira, ambrosia e compotas, começara a parte restrita à decoração sóbria cujas paredes na cor creme manifestavam claramente a intenção de tornar os produtos expostos como a atração do lugar e não apenas o lugar propriamente dito.
Um expositor vertical giratório exibiria as mais variadas tortas, enquanto nos três balcões de vidro, à esquerda de quem entrasse, iria expor desde meros brigadeiros, beijinhos, quindins e glaçados e caramelados a barquetes, empadas, croissants e tortas frias. O terceiro balcão seria guarnecido com os pães feitos por Maurício, um rapaz de vinte e três anos, que trabalhara na Confeitaria Colombo. Antes de desembarcar em Matarana, ele passara uma semana em Paris e descobrira os biscoitinhos de massa fina, recheados e coloridos, os Macarons. Ao ser deportado para o Brasil, trouxera-os consigo. E foi isso que Valéria contou ao irmão, puxando-o pela mão até uma das seis mesas revestidas por toalhas beges, rodeadas por cadeiras de madeira escura, onde se encontravam várias caixas de papelão, brancas e retangulares. Ela abriu uma delas devagar, encenando uma grande aparição. Ele riu.
— E aqui está a estrela da festa! — encenou, arregalando os olhos verdes. — O Maurício sabe fazer o Macaron do jeitinho dos franceses. É viciante, Rodrigo. Você come um e quer todos. Além disso, eles são muito chiques! — exclamou com a voz esganiçada, estendendo-lhe a caixa.
— Deixa para depois, ô moça empolgada, acabei de tomar café. — fez uma careta e emendou convicto: — Vocês fizeram um ótimo trabalho aqui, é discreto sem ser fresco. — alçou a sobrancelha enfatizando: — E muito convidativo.
— Rodrigo, pega um Macaron e prova, pelo amor de Deus! — insistiu ela, apertando a caixa contra o abdômen dele.
— Certo, Val. — suspirou resignado, escolhendo um amarelo bastante chamativo. Provou mordendo um pedacinho e sentindo-o se derreter na sua boca. Meneou a cabeça, satisfeito e comentou: — Humm, delicioso. Com certeza, ficarão ricas. — brincou.
— Eu não disse, porra?! — bradou bem-humorada.
Ainda sentindo a doçura debaixo da língua, perguntou interessado, varrendo o olhar por sobre os balcões de vidro ainda vazios:
— Quando chegam as outras estrelas?
— Na manhã da inauguração. A Nova entrou em contato com um ex-colega do Jornal do Cerrado e ele fará a cobertura do evento. Nada de mais, sem fogos de artifício e corte de fita. — deu de ombros, rindo-se: — A minha querida sócia disse que é para simplesmente abrir e pôr dinheiro no caixa.
— É, a Karen é bem prática. — considerou com secura.
— E a Rita é uma vadia falsa. — desferiu rapidamente.
Rodrigo riu de um jeito estranho, meio sem graça, era mais como um pigarro na garganta que uma risada.
— Não tenho nada com a Rita, Valéria Malverde, deixa a coitada em paz. Por outro lado, preciso saber se a Karen está em casa, quero buscar umas coisinhas por lá e prefiro não me atracar com a fera ferida.
— Gosta de brincar com fogo, né, caubói do cerrado?
— Não, Val, não gosto. Por isso não quero ver a Karen. Estou cansado e louco de dor de cabeça e isso limita um pouco a minha capacidade de argumentação com ela.
Valéria fez um trejeito com a boca, demonstrando desgosto pelo o que acabava de ouvir. Esperava que a noite no hotel tivesse amolecido o coração do irmão, ainda mais no tocante à sua natureza solitária e sentimental. Uma combinação que o tornava refém dos seus amores. A questão era que ele havia passado a noite em claro e trabalhando e, pelo visto, prosseguiria nessa tática até o momento do seu corpo desabar de exaustão. Ela conhecia-o desde sempre e sabia o quanto Rodrigo Malverde era um cabra teimoso.
— Não tem ninguém em casa. — por fim ela disse e emendou com mais informações: — A Sabrina está no hospital, o Johnny na escola e a vó com a Veridiana. Parece que as duas estão fazendo um curso de web designer, acredita? — riu-se.
— Qualquer coisa para bater perna na rua. — brincou, ajeitando a aba do chapéu para trás. — A Karen tem a quem puxar.
— Pois é, mas a vó pelo menos diz para onde vai. — declarou Val, fechando a caixa com Macaron.
Não seria de um dia para o outro que as coisas mudariam. — refletiu o delegado, dando um beijo na testa da irmã e batendo em retirada.
Val odiava mentir para ele.
Ainda vestida na camisola e com os pés descalços pisando no assoalho frio de madeira, Nova entrou na cozinha e o viu de costas, preparando a mesa com o café da manhã. Havia um vaso com uma rosa vermelha no centro da mesa e os bules de leite e café ladeando o cesto com pães e bolachas. O cheiro do queijo derretendo na frigideira a fez correr para o banheiro e vomitar.
Ao erguer a cabeça do vaso sanitário, percebeu as pontas das botas de vaqueiro, Franco estava ao seu lado com o remédio para enjoo e um copo com água gelada. Sem falar nada, entregou-lhe o que precisava e saiu.
Após lavar o rosto e escovar os dentes retornou à cozinha. Encontrou-o à mesa, diante da folha com o nome dos convidados para o jantar de noivado deles e o celular colado à orelha. Ao vê-la fez um sinal com o dedo, indicando-lhe à cadeira a sua frente, e encerrou a conversa com quem quer que fosse do outro lado da linha. Virou-se com o semblante sério e perguntou interessado:
— Está melhor?
Nova assentiu com a cabeça lentamente, verificando o esmero da mesa posta para o desjejum. Obrigou-se a tomar o café com leite e dar uma mordidinha de leve em uma torrada.
— Já convidei todo mundo para o jantar no último sábado do mês.
— Último? Não tínhamos combinado que seria depois de amanhã? — ela estranhou. — Por que está adiando o nosso noivado?
Ele alçou a sobrancelha com um ar de quem diz: “ah, sei, agora eu sou importante para você, né?”.
— Acho que quando enfiei o anel no seu dedo selamos o nosso noivado, o que falta é apenas a comemoração. — afirmou meio que a esnobando.
Era verdade que Franco ainda estava chateado por ela tê-lo ignorado na noite anterior.
— Sei que estamos noivos, não é a primeira vez que isso acontece comigo. — falou secamente. — Só não entendo a mudança no dia do jantar de noivado.
— É por causa disso. — entregou-lhe um envelope aberto e informou: — É o convite para a cerimônia de entrega do troféu Cidadão Mataranense, e papai ganso receberá o seu. — ironizou, fez uma pausa para bebericar o seu café preto e continuou: — Depois da nota no Jornal do Cerrado, anunciando aos quatro ventos que sou filho legítimo de um dos colonizadores da cidade, também fui convidado para o evento. Aliás, Nova, a nossa família foi convidada, ou seja, você e a nossa filha.
Ela desviou os olhos do papel para o noivo e viu um amplo sorriso no semblante antes carrancudo. Jamais teria paz com esse homem — esse era o seu mantra.
— Interessante, — disse, enquanto recolocava o convite dentro do envelope — você acaba de ser reconhecido pela sociedade mataranense como um legítimo Dolejal. Como se sente? — provocou-o, sorrindo.
— Não me importo com isso. — deu de ombros e fincou dois olhos azuis nela: — Quero falar com a sua médica sobre sexo.
Ela riu e quase verteu o café pelo nariz.
— Espero ter entendido direito.
— Se ela disser que não tem problema, tudo bem, a gente volta à ativa. Podemos testar posições diferentes ou... bem... — emborcou o resto do café quase enfiando a cara dentro da caneca: — não quero falar sobre isso. Não sei nem se conseguirei falar sobre essas coisas com uma estranha.
— Por que nós dois não conversamos com ela? — ponderou.
— Então você faz as perguntas e eu me concentro nas respostas. — decidiu, começando a juntar a louça na mesa.
Nova interpelou-o:
— Posso lavar a louça e cuidar da casa, moço. Deixa tudo aí. Hoje vou para o Gringo, é a Noite Shania Twain. Dobrarei meu cachê com as gorjetas. — declarou alegremente.
— Por isso mesmo quero que volte para cama a durma até o meio-dia. Tenho uma entrevista às duas da tarde. Um cara me chamou para fazer a segurança de um Armazém na saída da cidade. O salário é bem mais alto do que aquele que o coronel Rodrigues me pagava. Se eu der sorte e não falar muita merda, a gente tira o pé da lama, princesa. — considerou ele, levantando-se e pondo a louça na pia.
— Não estamos com o pé na lama, pelo menos, ainda não.
— Mas sem muito esforço chegaremos lá, não se preocupe. — afirmou, de costas, preparando-se para ensaboar os utensílios domésticos.
Ela o abraçou por trás, deitando a cabeça no dorso largo, aspirando o cheiro dele através do tecido da camiseta de algodão. Apertou-o com força e fechou os olhos para, dessa forma, se separar do resto do mundo que não se restringisse a ela e Franco. Era sempre nesses momentos de intenso amor e ternura, que o sentimento de perda, antecipada perda, a atingia em cheio.
— Resolveu o problema com a Bety? — ela perguntou sem rodeios.
— Claro que sim, dona. — respondeu sem hesitar.
— Ah, Val, sacana mentirosa! — murmurou Rodrigo ao entrar pelo portão de sua casa e encontrar o Maverick estacionado, obliquamente, em frente ao avarandado da casa.
Karen estava em casa, e ele não podia mais dar marcha à ré e impedir novo confronto. Antes mesmo de girar a chave na ignição e desligar o motor, duas patas riscaram a porta da sua picape.
— Ei, minha velha, vem cá! — ele abriu a porta e desceu, abaixando-se para ser quase derrubado por Bonnie.
A cadela fez-lhe festa, pondo as patas sobre o seu tórax, latindo e gemendo como se reclamasse a sua falta. Ele acarinhou-lhe a cabeça e as orelhas. Ficaram brincando por um tempo. Rodrigo ameaçava escapar por um lado e virava-se para outro, Bonnie imitava-o, balançando-se toda. Os olhos brilhando e a boca arreganhada assemelhava-se a um sorriso feliz.
Chamou-a batendo a mão contra a própria perna e se encaminhando em direção à parte detrás da picape. Da caçamba, pegou uma sacola de lona preta.
A música que vinha da casa era alta. O delegado reconheceu-a como sendo Bonnie Tyler — razão do nome do seu bichinho de estimação, cantando I need a hero. Ele parou entre curioso e ao mesmo tempo interessado em saber o que Karen estaria fazendo enquanto clamava por um herói.
Entrou discretamente pela porta da sala que, após o pequeno corredor, levava até a cozinha. Encostou-se à soleira da porta, cruzou os braços e observou a mulher vestida no short e camiseta. O cheiro do assado impregnava o ambiente de uma pungência caseira e acolhedora, apesar de a cozinheira estar mais preocupada em dublar a cantora usando o batedor de bife como microfone do que concentrada nos tomates que esperavam serem cortados em rodelas.
Era incrível como ela mexia com ele. Tudo nela era intenso e brutal, não fosse somente o corpo cheio de curvas e carnes quentes e firmes, havia também aquela aura de mulher que não estava nem aí para homem algum. Sabia que a encontraria bem depois da separação — jamais a imaginara na cama chorando e sofrendo, mas tão bem ao ponto de dançar e cantar era algo que mais do que frustrá-lo ou abalar os seus brios de amante renegado, imprimia a certeza de que Karen Lisboa era uma mulher como poucas. E mais uma vez ponderava sobre tentar dobrá-la ou encaixá-la dentro de suas regras. Poderia imitar o comportamento de Thales e deixá-la solta e livre, acreditar que fechar os olhos para a sua paulatina autodestruição nas bebedeiras e corridas violentas se restringisse a uma questão de personalidade. Ou que o fato de ela ainda se sentir presa ao fazendeiro fosse um daqueles casos os quais o tempo curava.
Afastou-se devagar para não chamar a atenção sobre si e rumou para a garagem. Agora já não era mais possível voltar e retomar o que tivera com Karen. Se ela tencionava acabar consigo mesma de uma forma ou de outra ou se desistisse das competições e andasse na linha, não adiantava mais. Rodrigo era um alvo ambulante marcado para ser abatido. E qualquer pessoa que estivesse ao seu lado poderia levar a pior.
Puxou a tampa do alçapão e desceu os quatro degraus da escadinha de madeira. Após acender a lâmpada suspensa no teto, curvou-se debaixo da casa, no sótão onde eram guardados móveis para serem consertados, a máquina de costura aposentada, os apetrechos de pintura de Val, também aposentados, e o baú de cedro. Tirou do bolso a chave e soltou o cadeado. Contraiu os maxilares com dureza. Suas têmporas latejavam quando um sentimento resumiu tudo o que ele sentia: amargura. Ao se substituir o código penal pelas armas, nada mais restava de moralidade que pudesse ser salva em Matarana. Ele não se tornara um defensor da lei para viver esse tipo de situação.
Em poucos minutos, montou a espingarda calibre 12 e a guardou na sacola juntamente com a munição. Levou a mão à nuca massageando-a. Uma dor de cabeça de lascar. Precisava de analgésico e algumas horas de sono. Mas, no momento, precisava apenas se virar bem devagar — a expectativa de revê-la misturada à vontade de evitar mais um embate, tão devagar que se esqueceu de respirar até encontrá-la diante de si.
— Está se escondendo de mim? — o tom era de acusação.
Ele tentou sorrir. Um martelo golpeava-lhe a cabeça por todos os lados.
— Não queria atrapalhar a sua apresentação.
Karen sorriu de um jeito leve e moleque. E Rodrigo pensou em nomes de santos e marcas de jeans para não agarrá-la.
— Foi um bom show, a plateia estava receptiva. — brincou; em seguida, apontou para a sacola: — O que tem aí?
— Minha espingarda. Começou a temporada de caça.
— Não se preocupe com o Thales, ele não tentará nada contra você. — disse ela num tom grave.
Tal declaração irritou-o sobremaneira. Torceu o canto do lábio num jeito de desprezo e indagou secamente:
— Desde quando preciso da proteção de um fazendeiro?
— Sempre foi assim e nunca mudará. Aqui temos de escolher o nosso lado. Em que mundo vive, Cinderela? — perguntou com cinismo.
Ele devolveu de imediato:
— No mundo em que a lei e a ordem são estabelecidas pela autoridade policial que, no caso de Matarana, são representadas por mim. — afirmou convicto.
— O orgulho matou um cego.
— O que, Karen? — estreitou os olhos tentando entender e insistiu: — O que quer dizer com isso exatamente?
— Não importa. — saiu pela tangente, já que não fazia ideia do que significava o que havia dito: — Você está sob a proteção do Thales, quer queira ou não. Essa decisão já não lhe cabe mais, delegado.
— Esse tipo de colocação, vindo de uma das colonizadoras da cidade, me enoja. Que a Rita ou qualquer outro filho da puta ganancioso fale, eu não me importo e continuo mantendo a firme decisão de não me envolver nesse lixo. Agora quando você repete esse mesmo discurso, de escolher um lado para sobreviver, me deixa simplesmente com nojo.
— Por que escolhi o lado do Thales? — ironizou, arqueando a sobrancelha e investigando-lhe as emoções que dançavam em seu rosto: — Desde que meu marido abandonou a mim e ao meu filho fui obrigada a decidir qual estrada seguir, a que levava para o Dolejal ou para o Marau. Eu era uma mulher sozinha e ingênua, carente até e você chegou com a Jasmine e o resto da saudável e perfeita família Malverde. O Thales obrigou os mataranenses a me aceitarem do jeito que eu era... do jeito que um homem pode ser e uma mulher não.
— É mesmo, o Thales sempre a valorizou e a considerou como a pessoa mais importante da vida dele. — debochou, fazendo menção de passar por ela e escapulir; mas parou e disse: — É engraçado que defenda um camarada que até pouco tempo você queria descer o cacete. — ele ajeitou o chapéu, empurrando a aba para cima: — É algum complô? Por que todo mundo quer que eu fique do lado certo, se o único lado certo é o lado da lei? E isso significa que é o meu lado.
Ela baixou a cabeça como se estivesse ponderando sobre algo.
— Tudo bem, escolho o seu lado. — declarou baixinho e emendou encarando-o sem piscar: — Então quando voltará para mim? Mais vinte e quatro horas sem você e vou enlouquecer.
Ele tentou não rir.
— É, deu para perceber pela cantoria que você está meio doida mesmo.
— O fato de não expressar a dor, não significa que não doa. — disse magoada e completou tentando se justificar: — Essa situação é complicada pra mim. Nunca fui boa com os sentimentos. Não sei expressar da maneira certa a coisa e quando sai, não sai, explode. Foi impossível dormir naquela cama com o seu cheiro e sem você. Passei a noite acordada bolando um jeito de ficarmos juntos de uma maneira que agrade os dois...
— Não, Karen... — ele fez um gesto com a mão, contendo-a: — É cedo ainda para termos essa conversa.
— Escuta, Rodrigo, ontem fui falar com o Thales para dizer que acabou e, de fato, acabou. Amo você e quero ficar do seu lado como sua parceira, entendeu?, tipo tiras americanos. — brincou, apesar de a voz transmitir toda a doçura da tristeza: — Precisei perdê-lo por algumas horas para ter certeza de que você é tudo pra mim, é o meu pajé e o meu cacique, é a tribo inteira. — concluiu com um sorriso que temia se formar e desaparecer diante da expressão impassível do delegado.
Ele suspirou profundamente e arou o cabelo com os dedos. Sentia-se um bagaço sobre botas e enfrentar uma DR não o ajudava em nada a relaxar. Fez menção de dar-lhe as costas e sair do porão. O problema era que Karen falava sério e estava triste, sem vestígio algum de agressividade ou ironia, era como se tivesse enfim baixado a guarda. Um raro momento a ser celebrado, concluiu, aproximando-se dela e tocando-lhe a bochecha num afago quase imperceptível.
— E você é o amor da minha vida. — declarou numa voz morna.
— Mas...? — apressou-se em perguntar, pois a resposta certamente não seria boa.
— Ah, sim, tem um “mas”, e um dos grandes. — começou, afastando-se para sair: — Preciso de um tempo antes de reatarmos. — ele ouviu-a suspirar irritada e virou-se para ela: — Vamos voltar, isso é certo, seja nessa vida ou na outra. Mas não agora. — afirmou incisivo.
— Por que, Rodrigo? Tempo para quê? Seja homem e enfrente a situação! — exclamou exasperada, seguindo-o pelo pátio até a entrada da casa pela cozinha.
O momento precioso de calmaria havia-se perdido, conjecturou o delegado, à procura dos analgésicos no armário aéreo. Percebia que atrás de si uma fera zanzava de um lado para outro como se estivesse enjaulada. Pegou os comprimidos e um copo, atravessando o recinto pelo outro lado da mesa, sem ter de esbarrar na mulher que o olhava de cara feia. Encheu-o de água e ingeriu o remédio.
— Não entendo quando as pessoas dizem que precisam de tempo. Tempo pra quê? É uma mentira, uma desculpa esfarrapada, uma forma de romper a relação aos poucos sem grandes dramas. — ela parou, pôs as mãos na cintura e ignorou o fato de ele toldar os olhos com a mão para tentar amenizar a dor: — Se sou tão importante para você, nesse tempo que precisa somente para si, ficará pensando em mim, certo? Então vamos encurtar essa história, ok? Preste bem atenção no que lhe direi, você é meu homem e se não trouxer de volta suas roupas para casa, vou até o hotel e ponho fogo nelas!
— É por isso que prefiro ficar na minha. — afirmou com o semblante carregado. Puxou uma cadeira e sentou-se, cravando os cotovelos na mesa e dois olhos enfiados nela: — Esse tipo de reação maluca não combina com uma mulher saudável e madura que tem filho para criar. O Johnny ainda não é um adulto e precisa de você. Não só como exemplo, mas como apoio e, principalmente, como mãe. Ele tem mãe ou não tem? Você chega em casa machucada, às vezes, machucada e bêbada. Outras vezes, quase pula no pescoço do Thales ou chama as pessoas para a briga... Me diz, Karen, onde está a mulher adulta em você? A mãe do Johnny? Temos o direito de sermos o que somos, você tem razão quanto a isso, eu tento mudá-la, é verdade. Se pouco me importasse com você ou com o guri, deixaria as coisas como estão, afinal a vida é sua mesmo e nada até hoje que fez afetou os Malverde, como diz. Afeta, sim, quem a ama e se importa. Mas não é por isso que não volto. — ele retesou os maxilares e revelou sem fitá-la, apertava as têmporas com os dedos, os olhos fechados: — O coronel está me caçando e tenho de ficar longe de vocês. Deixarei dois policiais militares aqui em casa até tudo se ajeitar. É só uma questão de tempo.
Abriu os olhos e viu-a sentada à sua frente, a atenção tensa voltada para ele.
— O negócio está tão feio assim? — preocupou-se.
Ele fez que sim com a cabeça e acrescentou:
— Por algum motivo o coronel resolveu mostrar as garras e me tirar de vez do seu caminho. É possível que já tenha mexido os pauzinhos e buscado alguém de fora para ocupar o meu lugar na delegacia.
— Vou pegar de jeito o safado do Vitorino. — afirmou ela com raiva.
Ao que o delegado pegou no ar:
— Como assim? — fingiu-se de desentendido.
Visivelmente constrangida, Karen tentou sorrir e inventar uma justificativa que ofuscasse o seu deslize. Era só o que faltava entregar de bandeja ao delegado o organizador das corridas ilegais.
— Bom, ele é o braço direito do coronel... Todo mundo sabe. — riscando a toalha com a ponta da unha, prosseguiu: — Sei que bebe no Colono Tranquilo, posso dar um pau nele. — comentou com naturalidade.
— Tudo o que falei antes não valeu pra nada, né? — perguntou impaciente: — Brigar? É tão feminino cair no chão com um cara, não, Karen? A senhorita não dará jeito nenhum no Vitorino. Quero é que não arranje confusão. Será que consegue?
— Claro que consigo. — respondeu meio que ofendida; logo depois, tornou a se levantar e retomou: — Acha então que não sou uma boa mãe... É engraçado que pense assim, vindo de alguém que não tem filhos.
— Certo, — disse, decidido a encerrar a conversa e erguendo-se a fim de cair fora: — convenhamos que você não está na sua melhor fase como mãe. Agora tenho de ir. Preciso conseguir um mandado para entrar na fazenda do coronel e apreender a... — ele parou antes de contar sobre o atentado. Estranhou a repentina escuridão do ambiente e olhou ao redor tentando compreender o que acontecia.
— O que foi?
Rodrigo respirou fundo e tornou a se sentar. Fora apenas uma tontura. Cansaço e paracetamol costumavam jogá-lo para baixo.
— Deita a cabeça entre as pernas. A Nova me ensinou, assim a gente não desmaia. — aconselhou-o, postando-se ao seu lado e apertando-lhe os ombros.
Era melhor obedecê-la, decidiu por fim. Permaneceu com a cabeça abaixada até a sensação de alheamento passar. As mãos de Karen permaneciam em seus ombros, apertando-os sem machucar, a pressão necessária para soltar a musculatura e relaxá-lo. Era bom.
— Está melhorzinho?
Ouvi-la usar o diminutivo de forma carinhosa era muito esquisito.
— Estou, Karen, obrigado. — fez menção de erguer a cabeça.
— Espera, só mais um pouco.
— Chega, acabarei dormindo. — comentou, desvencilhando-se das mãos dela. — Preciso mesmo voltar à DP. — encarando-a sem desviar, declarou com suavidade: — Temos de construir algo sólido para o futuro. Quero envelhecer ao seu lado, viu, garota? — sorriu levemente.
Naquele momento tudo o que ela conseguiria dele era o sorriso cansado e uma promessa e, como qualquer promessa, frágil como cristal. Ok, ela topava, mesmo com a intenção de fazê-lo ceder à tentação de morder a maçã. Escorregou para o seu colo, os braços enlaçados no pescoço do homem que mantinha a feição congelada numa fisionomia expectante. Antes que seus neurônios de bom-moço-ponderado-e-racional se agitassem à procura da saída lógica para safar-se do ataque, ela ajustou seus lábios nos dele pressionando-lhe a nuca a fim de aprofundar o beijo. Enterrou os dedos no cabelo curto bagunçando as mechas castanho-claras. Não houve resistência. Dois braços ajustaram-se perfeitamente às suas costas, puxando-a para si, esmagando-lhe os seios contra o tórax rígido. Por entre os lábios, no beijo que ora se convertia em pequenas mordidas, ora em lambidas em comissuras, ora em investidas delicadas como selinhos de namorados, ela ouvia as respirações pesadas e as coisas que ele murmurava, os pedidos que fazia a si mesmo, as ordens de uma mente que nunca parava de trabalhar, ainda que se enfraquecesse à mercê da combinação indestrutível de um coração tenro de amor e de um corpo inflamado de desejo. Um último beijo, tão violento ao ponto de ela gemer e querer mais, o fez recobrar o juízo.
Apenas por dois ou três segundos.
— Não me deixe sozinha no mundo — ela implorou, mordiscando-lhe os lábios entreabertos.
Consciente de que tal pedido feito a um super-herói injetava-lhe ainda mais poder, ela esperou que o último beijo não fosse o último contato entre ambos. Os olhos congestionados e as pálpebras semicerradas combinavam com a dilatação nas narinas e Rodrigo era um homem que atingia o seu limite. Com um gesto rápido e ágil, ele se ergueu com ela agarrada à sua cintura e a pôs deitada sobre a mesa. Pratos e talheres espatifaram-se no chão.
A toalha emaranhou-se debaixo de Karen, que jogou os braços para trás, oferecendo a visão de um corpo feito para o dele.
Rodrigo deslizou as mãos pelos seios que arfavam debaixo da roupa e admirou o semblante de quem era torturada com deleite, um leve sorriso e os olhos quase se fechando para viajar. Baixou a cabeça e beijou-lhe o ventre, a aspereza do cavanhaque ralo roçando a pele. A ponta da língua alcançou o umbigo e desenhou círculos tépidos, a respiração secando-os, os lábios tornando a umedecer a pele. Ao esbarrar no cós do short, ele parou. Tornou a olhá-la com um sorriso secreto de quem planejava algo que os levariam à felicidade. De pé, entre as pernas dela, baixou o zíper do jeans.
Antes de desgrudar seus olhos dos de Karen e concretizar a intenção, o estouro esganiçado de um vidro e, em seguida, os latidos de Bonnie.
— Dane-se, é alguma criança... — falou Karen num fiapo de voz, puxando-o pelo pulso: — Volte ao serviço, delegado. — brincou.
Ele a ignorou e se recompôs, puxando o zíper e sacando a automática enquanto se afastava fazendo sinal com o dedo em frente aos lábios, pedindo o seu silêncio. Encostou-se contra a parede da cozinha, encaminhando-se com cuidado para a sala. No entanto, nem precisou dar mais do que três ou quatro passos. O barulho baixo e seco de pneus rodando sobre cascalhos chamou sua atenção. Imediatamente destravou a arma e retornou, seguindo em direção à porta da cozinha.
Um segundo estrondo o fez parar. Antes que pudesse visualizar o veículo e seus ocupantes, uma rajada de projéteis espatifou as janelas da sala e da cozinha. Rodrigo só teve tempo de virar-se e puxar Karen para o chão, pondo-se por cima dela, as mãos protegendo-lhe o crânio enquanto abaixava ao máximo a própria cabeça. Debaixo de si, ela tremia e agarrava-se nele, os dedos apertando-lhe firmemente a camisa. O som dos tiros secos parecia não ter fim, próximos o suficiente, acertando o armário aéreo na parede, perfurando-o, lascas da madeira caindo sobre ambos. A louça que estava sobre a pia se fez em pedaços, assim como o monitor do computador de Johnny.
Rodrigo puxou-a para debaixo da mesa, procurando ficar o máximo possível rente ao chão.
— Não se mova. — pediu-lhe junto à orelha.
Ela apenas concordou com um meneio leve de cabeça e viu quando ele se arrastou para fora do móvel. Avançou até a soleira da porta entre a cozinha e a sala e esperou a deixa para confrontá-los atirando. Uma hora a munição acabaria. Na primeira brecha, recuado contra a esquadria da porta, esticou o braço apontando em direção ao pátio e descarregou a pistola. A resposta veio rápida, encontrando como barreira a fachada de alvenaria da casa.
O delegado obrigou-se a se abaixar. Jogou a automática para o lado, irritado. Precisava da sacola com a espingarda.
— Karen! — chamou a mulher em posição fetal, protegendo a cabeça com as mãos. — Karen! — aparentemente, ela não estava ferida.
Arrastou-se de volta à mesa onde estava a sacola com a 12. Suspirou quase feliz ao vê-la sobre o piso de cerâmica. No ardor das carícias, tudo que estava na mesa fora empurrado para várias direções. Depois de o que parecera uma eternidade, os tiros cessaram. Ele ainda teve tempo para municiar a espingarda e, espreitando com cautela, postou-se à janela para atirar. Poupou munição ao ver a cortina de poeira camuflar a placa da mesma camionete que o abordara na estrada com Joaquim.
Ele apertou os lábios com ódio e disparou numa corrida louca atrás do veículo. Correu até sentir as tripas retorcidas. Quase sem fôlego, parou e disparou um único tiro que não alcançou o alvo.
— Malditos filhos da puta! Cretinos! — praguejou alto.
Sentia tamanha fúria e frustração que sua musculatura inteira tremia. Era mais do que uma afronta à sua figura como delegado, os desgraçados tencionavam ferir também a sua família. Agora já se tornava uma questão pessoal, decidiu ele, amparando a espingarda sobre o ombro.
Um grito desesperado irrompeu no lugar que, até minutos atrás, era o paraíso do silêncio e da paz, isolado próximo ao rio e tendo como único vizinho e não muito perto dali, a casa de Nova e Franco.
— Rodrigo!
Ele correu de volta sem sentir o chão debaixo dos pés. Ao chegar diante de casa, deu com uma Karen apavorada e pálida. Nos braços, Bonnie aparentemente adormecida. Só que sangrava.
— Às vezes penso sobre essas grandes tragédias coletivas, saca? Essas merdas que aparecem na tevê, terremotos, malucos se explodindo com bombas ou atirando em escolas, quedas de avião e por aí vai... Os caras falam de, sei lá, cinquenta, cem, quatrocentas vítimas... Porra, é muita gente. Fico de bobeira divagando, entende?, tipo, 389 vítimas, por exemplo, é um bom número. Mas, de repente, também penso... “porra, que isso significa?” 389 o quê? Viajo um pouco mais na ideia e consigo separar uma ou outra vítima e ficar nela, quase vendo ela vivendo o seu dia a dia... Pode ser a 21ª vítima ou a 5ª, sei lá, não importa, que dia de merda ela teve, não?, tomou café, fez um bom xixizinho, até planejou grandes coisas, aí pegou o avião e se fodeu. — Leonardo parou de falar, mantendo um sorriso sonhador nos lábios; depois, tragou novamente o cigarro e continuou: — Caralho, ela achava que tinha uma vida inteira pela frente ou que uma hora ou outra o jogo viraria, mas pegou a porra do avião errado, ou o certo, se for analisar pela perspectiva da teoria do caos. A coisa toda é muito doida, Vitorino, pensa bem! O que faz com que você perca o trem que vai descarrilhar? Ou que se atrase para a reunião num restaurante que explodirá quando você pegar o cardápio? O que torna alguém vítima ou o que salva alguém de não se tornar uma vítima, um maldito número no grupo dos fodidos pelo acaso? Entende o que falo?
Os dois homens olhavam para o horizonte nublado. Conversavam sobre os mistérios entre o céu e a terra. Não esperavam necessariamente por respostas; esperavam por um avião.
Vitorino tomou a dianteira, já que, para ele, o assunto se esgotara. Na verdade, nem precisava ter começado. Leonardo era um sujeito excêntrico e, por vezes, perturbador.
— Entendo, pra morrer basta estar vivo. — balançou a cabeça como se levasse a sério o que dissera e mudou o rumo da prosa: — O trabalho foi feito. Depois desse cagaço o delegado pega os trapos e se manda.
O velho catou um cigarro detrás da orelha, riscou o fósforo com a mão em concha e olhou ao redor. Tinha de tirar o chapéu para o rapaz. A escolha de utilizar a primeira pista de pouso da fazenda, de terra e desativada havia anos após a decisão de construir uma asfaltada mais perto da casa-sede, evitava despertar a atenção dos funcionários da Coração de Ouro e do coronel. Além disso, deixava-se de cumprir determinadas formalidades. Mesmo que fosse esperado o carregamento de agrotóxico, o que receberiam seria apenas a embalagem do pesticida contendo a pasta de cocaína. Para todos os efeitos e aos olhos bisbilhoteiros do gerente da fazenda, o carregamento era de pesticida para a lavoura.
Desde que retornara à cidade, Leonardo conseguira arregimentar um bom número de pistoleiros, considerou Vitorino, verificando que a fidelidade ao patrão mais velho facilmente era transferida para o mais novo. Uma geração sobrepunha a outra.
— Se ele não se mandar de Matarana, Vitorino, quero o corpo do camarada adubando a lavoura do meu pai. — determinou Leonardo, retomando a expressão séria e obstinada de um homem de negócios.
— Sim, senhor. — foi tudo o que pôde dizer, sabendo que mais uma vez teria de sujar as mãos de sangue.
O Cessna 210 despontou no horizonte preparando-se para o pouso. O céu começava a ficar carrancudo e pesado. Era certo que entre duas e três da tarde cairia um toró daqueles. Até lá já teriam descarregado a mercadoria e a escondido num compartimento discreto de um dos armazéns de grãos.
— Por que fez essa cara? — indagou Leonardo, deixando de fitá-lo para observar o avião encontrando a pista de pouso tranquilamente.
O velho não era chegado a confissões. Apenas deu de ombros e tragou mais uma vez o seu vício. Leonardo não costumava deixar nada pendente:
— Não quer matar de novo, né? — perguntou sem esperar a resposta, emendando de um jeito amistoso: — Jamais esquecerei o que fez por mim. A gente tinha de pôr fim na chantagem do corretor, imagina se ele contasse pro meu pai sobre os meus negócios. Não ia ser nada fácil convencer o velho que no lugar do agronegócio, eu optei pelo “narconegócio”. — debochou.
— Fiz o que tinha de ser feito, Leonardo... Mas sabe o que eu acho?, que o Teobaldo estava gagá e me confundiu com alguém ou sei lá... Ele falou uma merda qualquer sobre o Everaldo Viegas... — suspirou profundamente. — Só não quero virar a porra de um exterminador. Já tenho minha cota de matança nas costas, não preciso aumentar ela.
— Serviço limpo?
—Talvez. — respondeu incerto.
Foi a vez do outro se interessar pelo assunto, desviando a atenção do avião que taxiava na pista e virando-se para o pistoleiro.
— Explique-se, homem. — pediu, enfático.
— Me vesti como o Dolejal, tentei me passar por ele, mas sou bem menor e magricela... não sei se a vizinha doida do Teobaldo caiu nessa. — afirmou, meneando a cabeça, inseguro.
— Bom, pense o seguinte, Vito, o silêncio é reconfortante nesses casos. Se ela o tivesse reconhecido, já o teria procurado para tirar proveito. Desde que voltei, percebi o que sempre soube sobre Matarana: as pessoas boas não estão aqui.
As moscas-varejeiras se alimentavam das mangas caídas do alto da árvore, abertas em estrias como corpos em decomposição. Um gurizinho de cinco ou seis anos abaixou-se para pegar uma delas. Sacudiu a fruta no ar para espantar os insetos e a levou à boca. Assustou-se ao ouvir a voz grave do homem bem atrás de si:
— Isso é porcaria. — disse Dolejal, tirando a manga da mão do garoto e jogando-a para fora do seu alcance. — Vamos procurar a sua mãe. — determinou, apontando com o dedo indicador o caminho a seguir.
Havia pouco tempo que alguns dissidentes dos Panarás, vindos de Matupá, ocupavam as terras recém-compradas por Dolejal na negociação com o coronel Rodrigues. A gleba se localizava na faixa de terras entre as duas fazendas vizinhas, e a decisão do proprietário da Arco Verde era a de neutralizar as investidas latifundiárias de Rodrigues na região. Sabia o quanto o último detestava os que não eram da sua raça e também os de sua raça mas não tão claros como ele.
Thales retirara da beira da BR-163 parte do povo que crescia e precisava de espaço para continuar crescendo. Eram os mais jovens, os índios que se distanciavam daqueles que quase foram dizimados no século XX. Liderados pelo chefe Aturi, os Panarás se distribuíam pelo norte do estado em busca da não extinção. De certa forma, retornavam à estrada que os expulsara à época de sua construção. Essa nova geração não havia sofrido as doenças e a humilhação de ser transferida para qualquer parte, como os sem-tetos à mercê da caridade do governo. Mesmo com sua aldeia em Matupá, os Panarás que se agrupavam ao longo da estrada aceitaram desconfiados o presente do homem que não sorria.
Agora era esse o passatempo de Thales, quando podia se afastar do escritório e das viagens a trabalho. Gerenciava pessoalmente o assentamento do seu novo e original povo. Ainda que não tivesse ganhado por completo a sua confiança, dia após dia, recebia olhares longos e avaliativos, além de trocas de informações.
Mengrire, um índio alto e atlético, que insistia em manter longo e ultrapassando a linha dos seus ombros o cabelo liso e negro, era-lhe o tradutor. Compreendia o português tanto quanto a língua nativa, o jê. Tinha 23 anos e andava sempre ao lado, na cola, do chefe Aturi, seu pai.
O filho do chefe aproximou-se sorrindo, a fileira de dentes alvos contrastando com a pele morena e os olhos escuros e profundos:
— O senhor sabe como funciona a organização da aldeia?
O fazendeiro fez que não com a cabeça e apontou para o indiozinho nu, agarrado em seu jeans:
— Esse pequeno está com fome. Abasteci o armazém com compras do atacado até que a roça comece a dar resultado.
— Já temos a nossa caça. — afirmou de um jeito que parecia zombar da ignorância do homem branco. — A cultura dos brancos chama isso de cultura autossustentável. Até mesmo nossos guerreiros se preocupam em “abastecer” a aldeia. — enfatizou.
— De qualquer forma, o Bronson ficará com vocês durante o dia. Acredito que o Rodrigues de início irá incomodá-los, mas logo se cansará. — em seguida, observando os índios trabalharem na construção de suas casas, comentou: — A sua tribo é engraçada, Mengrire, orgulham-se de caçar animais e debocham dos meus enlatados. No entanto, pediram-me computadores e celulares. — constatou, a seguir, salientando: — E, de preferência, frisaram, com antena Wi-Fi.
Mengrire deitou a cabeça para trás, rindo, e a luz prateada do céu que se contorcia em nuvens plúmbeas cheias d’água iluminou-lhe os músculos dos braços e abdômen. Vestia apenas um jeans.
— Quando a FUNAI abriu dois telecentros em Matupá e ensinou os mais novos a mexerem nos computadores, despertou a nossa paixão pelos brinquedinhos dos brancos — fez troça com bom humor.
— É, temos as nossas distrações, — comentou com indiferença e depois com azedume: — como inventar inutilidades tornando-as úteis.
O índio franziu o cenho, intrigado. Ele achava que Thales Dolejal era um homem cuja alma era uma noite eterna sem estrelas. Todos os dias o fazendeiro passava pela aldeia, que se erguia rapidamente como os colonizadores de Matarana havia trinta anos o fizeram, e verificava o progresso do local, conversava com o chefe Aturi, com os demais índios e, às vezes, assistia a uma partida de futebol na terra batida. Ficava algumas horas debaixo do seu chapéu, o rosto relaxado, mas nunca sorrindo ou alegre. Talvez ele comesse muita comida guardada dentro de latas.
Thales tinha um plano para essa gente. Mais que isso, tinha um plano para si mesmo. Acendia uma vela para Deus, devolvendo a terra aos seus verdadeiros donos, ainda que fosse a uma minúscula fração deles e acendia outra vela ao diabo, com a venda dos lotes de terras brasileiras aos americanos do Texas. Comprando, vendendo e dividindo a terra por toda a região norte do Mato Grosso, ele fragmentava, assim, o poder econômico dos coronéis, reduzindo-os às suas propriedades até então adquiridas. E nada além.
Bronson aproximou-se no seu passo arrastado, coçou a cabeça e fez um gesto como quem pretende uma conversa particular com o patrão. Dolejal estendeu o braço e apertou a mão de Mengrire, afastando-se depois de determinar com seriedade:
— O Rodrigues tem uma espécie de milícia para defender seus interesses e um dos seus interesses é se apropriar das terras alheias. Agora, de acordo com a escritura de transferência que passei ao seu pai, este lugar pertence a vocês. E se for preciso brigar com o coronel, conte com a minha proteção armada. Não se mantém mais um território à base da borduna... Na verdade, a lei sempre foi a do revólver.
Mengrire aquiesceu retesando os maxilares.
Encontrou o chefe da segurança encostado junto à lateral da camionete que o trouxera à aldeia.
— O delegado sofreu novo atentado. — disse simplesmente.
Dolejal assimilou a informação como o fazia nas reuniões no seu escritório no centro.
— Está vivo?
O pistoleiro tentou reconhecer um traço de ansiedade na voz, alguma nota dissonante que apontasse a direção do interesse do patrão. Por fim, torceu o lábio num de seus rictos da idade e respondeu com indiferença:
— É, escapou dos atiradores. — lançou um rápido olhar para o neto de Onório, a fim de captar uma reação de alívio ou decepção.
O semblante impassível negava-se a revelar os verdadeiros sentimentos — conjecturou Bronson, arrumando a postura ao endireitar-se para voltar ao trabalho.
— O Marau está me afrontando quando tenta dar cabo do meu delegado. — afirmou com enfado acrescido de ironia.
— Seu delegado? — indagou o outro com um meio sorriso.
— É, meu caro, quero que o Rodrigo permaneça exatamente no lugar em que está.
— Pois é, desta vez, atiraram na casa dos Malverde... — o velho interrompeu-se ganhando tempo.
— O que foi? — farejou uma informação omitida propositadamente.
— Os camaradas demoliram toda a fachada da casa, deviam ser uns três ou quatro caras, todos com .40. Nosso pessoal não chegou a tempo de pegar os desgraçados... — ele parou e raspou da garganta o catarro e cuspiu-o. — Tem um rastro de sangue no pátio, mas não encontramos ninguém na casa. Ou o delegado se feriu ou...
Thales estreitou os olhos e vasculhou a feição hesitante do funcionário.
— Está tentando me dizer que a Karen pode estar ferida? — perguntou, mal descolando os lábios.
Bronson apertou a própria nuca com a mão, tentando soltar os músculos tensos.
— Ela também estava na casa quando aconteceu o confronto. Mas, patrão, — ponderou com cuidado: — o sangue também pode ser dos camaradas, o delegado é bom de mira.
— Os homens do coronel abriram fogo contra a casa dos Malverde e com a Karen dentro da casa? — insistiu, a expressão facial de um animal se contendo.
Novamente a metamorfose de uma criatura que mudava de cor para se camuflar, como um camaleão. Entretanto, não eram as cores na feição de Thales Dolejal que mudavam; eram as emoções inchando veias, avermelhando órbitas oculares e raiando cada sentimento contido, reprimido debaixo da pele. Era um sujeito passional, extremamente passional — considerava Bronson, que implodia em cada célula do seu organismo, sem nunca explodir ao ponto de se expor. Isso era bem diferente de ser um homem frio — como a população de Matarana considerava-o. O herdeiro de Onório era um belo candidato a um derrame cerebral.
— Pode ser que o sangue não seja dela.
— Eles abriram fogo contra a Karen? — insistiu incrédulo e, sem esperar a resposta, afirmou quase sorrindo. — Já estão mortos.
O pistoleiro lembrou-se, então, de Mendes e tudo o que lhe acontecera em seguida ao sequestrar Karen Lisboa.
— Quero que fique com o chefe Aturi e treine Mengrire. Traga as automáticas e arme os índios. — determinou obstinado, encaminhando-se para sua camionete. O velho no seu encalço. — Eles sabem lutar, mas do jeito errado. — abriu a porta e antes de entrar, ordenou com o olhar gelado: — Encontre o Franco e mande-o a Arco Verde. Preciso de um estrategista, porque nós vamos acabar com toda a família Marau.
Todos estavam à mesa quando ele chegou. Tirou o chapéu e fez menção de sentar-se. Foi interrompido pela mãe:
— Já não disse que é para lavar as mãos antes de comer? — perguntou com aspereza, o olhar plantado no dele.
Leonardo apenas sorriu e assentiu levemente com a cabeça, erguendo-se e empurrando a cadeira de madeira e espaldar alto para debaixo da mesa. Captou um movimento de desagrado do pai, à cabeceira da mesa para oito lugares, um gesto quase imperceptível com os ombros e uma leve torção da boca. E isso sempre acontecia quando Catarina impunha sua autoridade ao filho. Ele tinha plena consciência de que o seu velho pai detestava quando a mãe chamava-lhe a atenção.
Ao voltar do lavabo, retomou a ideia original de sentar-se para almoçar com seus pais e a família de sua irmã, o cunhado Henrique e os filhos deles, Augusto e João Alfredo.
— Penso em abrir uma filial do Belle em Santa Fé. Matarana é pequena demais para manter um salão de beleza de três andares — choramingou sua irmã, Giovana, no alto de sua postura de perua de 35 anos.
Ela olhou para cada um de seus familiares procurando vestígio de interesse. Todos concentrados em mexer seus talheres e engolir a comida. Nem os empregados da fazenda se importavam com a presença espalhafatosa da mulher turbinada nos seios, com implantes de porcelana como dentes e prematuro Botox na testa e ao redor da boca.
O marido queria dizer-lhe que ela parecia uma boneca de plástico, mas trabalhava como contador da família Marau e, assim, não lhe parecia inteligente ser sincero e se importar com a esposa. Augusto recém completara 11 anos, ladeava o irmão que tentava se acostumar à ideia de ser trancafiado em uma clínica de reabilitação em Cuiabá. Ao passo que o coronel, entre uma mordida e outra numa coxa de frango, rememorava a piada contada por Vitorino ao ver Leonardo descer da camionete quando retornara da capital, após concluir a faculdade. Ele dissera:
— Escuta essa, coronel, — baixou o tom de voz e começou: — um sujeito procura um pai de santo para ver se consegue desfazer uma praga que lhe foi rogada há 30 anos. O pai de santo aí diz pro cara, pode ser, mas eu preciso saber quais as palavras exatas que foram usadas na praga. O sujeito então responde sem hesitar: eu vos declaro marido e mulher!
O coronel riu alto, o barrigão duro estremeceu enquanto seus olhos se encheram de água — como no jantar, naquele exato momento em que lembrava novamente o que Vitorino lhe falara.
— Está rindo do quê, Emílio? — indagou a esposa.
O coronel secou os olhos no guardanapo e respondeu:
— Tive uma epifania, só isso.
Alguns anos atrás, quando não precisava de Viagra e Captopril, teria dormido com qualquer mulher que quisesse. Erguera Matarana e tinha o poder e o dinheiro de um colonizador. Mas preferira trabalhar e aumentar o capital em vez de se deitar numa boa cama. Agora, ao seu lado, ele tinha um pau de virar tripa. Uma sessentona flácida e mandona. Praticamente uma ameixa seca com ubres murchos como sacos de leite.
Voltou para o melhor da família e comentou mastigando um pedaço do frango:
— Contratei uma paulista para decorar o escritório que montei pra você no centro. Ela estudou fora, tem um baita currículo, foi o teu cunhado aí que arranjou. — deu uma garfada na comida e continuou com o peito estufado: — Já disse e repito: quero o do bom e do melhor para o doutor Leonardo Marau.
Leonardo sorriu de um jeito que somente os bem-nascidos e bem-fodidos conseguiam sorrir. Mesmo assim valia a pena passar pelo aperto. Olhava para aquelas pobres pessoas, ao redor da mesa de seu dono, mexendo a cabeça para cima e para baixo como vaquinhas de presépio. Eram dependentes e vítimas de um algoz que as nutriam de dinheiro e status enquanto manipulavam as cordinhas penduradas em seus braços e pernas.
— Perfeito, pai, não vejo a hora de começar. — afirmou, alegremente, emborcando o suco de laranja com genuíno prazer.
Ele ainda não sabia, não tinha como saber. Qual filho imagina que a partir de determinado momento na vida de um pai, ele decida dedicar-se exclusivamente ao seu rebento, como se a sua própria existência começasse a se apagar, lâmpada após lâmpada, até restar-lhe apenas a escuridão da morte. O coronel sentia-se mais velho do que nunca, observando ao redor a sua geração de amigos desaparecer a cada virada de ano.
— Esse, sim, é um legítimo Marau. — disse com orgulho e decidido a acompanhar de perto a incipiente carreira jurídica de seu herdeiro.
A antessala da clínica veterinária era modesta. Dois divãs de napa encostados na parede de alvenaria, decorada com documentos oficiais em quadros com vidro e moldura barata. Um tapete colorido debaixo da mesinha de centro repleta de revistas de fofoca e um balcão alto que quase escondia atrás de si a recepcionista, ironicamente, com a fisionomia que sugeria um ancestral da família dos leporídeos — caso fosse possível tal mistura genética entre os mamíferos.
Karen não sabia o que dizer. Sentada ao lado de Rodrigo, percebia-o de esguelha, o corpo avançado para frente, ombros encurvados e os dedos entrelaçados, sendo estalados, um a um, num tique nervoso. A camisa xadrez com as fraldas para fora do jeans com nódoas de sangue e suja de terra. Acima da gola, riscos de arranhões na parte detrás do pescoço e nos braços. Machucara-se ao se atirar no chão para protegê-la e enquanto se esgueirava contra as paredes durante o tiroteio.
Ao longo do caminho até a clínica mantiveram-se em silêncio. Bonnie deitada sobre os joelhos do motorista que infligira várias regras de trânsito, a fim de salvar a vida de sua amiga de quatro patas e sete anos de idade. Entregara-a ao veterinário disposto a acompanhar o atendimento. Porém, mesmo que a bala não pudesse ser removida, ele foi convidado a aguardar o atendimento na antessala.
— O doutor Antero é o melhor da cidade, pelo menos é o mais experiente. Ele curou a diarreia crônica do Prefontaine. — tentou consolá-lo.
Rodrigo esfregou o rosto demonstrando evidentes sinais de exaustão. Recostou-se contra a parede, deitando a cabeça na alvenaria e fechando os olhos. Ao falar, expressava uma voz carregada de emoção:
— Ela não teve chance alguma no meio dos tiros. — engoliu em seco e continuou, sentindo a emoção à flor da pele: — Essa minha parceira sempre foi durona, garanto que ao vê-los partiu para cima. Sabe por que vocês nunca se deram bem? — virou-se para ela com um leve sorriso: — Porque são iguais, combativas e passionais.
Karen suspirou fundo e pensou em Prefontaine. Compreendia perfeitamente a dor de Rodrigo.
— A Bonnie é uma firme defensora do seu território. — brincou, sem sorrir. — Pessoas como ela não são abatidas com apenas um tiro. — afirmou com convicção.
— Pessoas? — ele indagou com um sorriso.
— Por acaso, prefere acreditar que quem atirou contra a nossa casa são as verdadeiras pessoas? — enfatizou com ironia.
Ele tornou a fechar os olhos e tal gesto significava que evitaria falar sobre o assunto com ela. Era um caso de polícia que seria compartilhado apenas entre policiais.
— Devia existir uma palavra mágica que tivesse o efeito de um analgésico. Queria dizê-la agora e fazer você se sentir um pouco melhor. — declarou com pesar, pegando-lhe a mão entre as suas e acariciando-lhe o dorso.
— Prefiro o silêncio. — retrucou secamente.
Karen estranhou a brusquidão da resposta, apesar de que ultimamente a vida do delegado estivesse virada do avesso. E durante o tempo em que viveram juntos de forma alguma ela a tornara melhor.
A recepcionista aumentou o volume do rádio ao ouvir o locutor anunciar Don’t Cry e Axl Rose começar a cantar. Uma sucessão de eventos externos parecia combinar entre si, refletindo o que ambos sentiam, impotentes diante do encadeamento de fatos que conduziriam a um desfecho muito ruim, fosse para quem fosse. Por isso, tentando pagar uma dívida para com ele ou aceitando de vez que aquele homem era tudo para ela, Karen o abraçou e o trouxe para si, fazendo-o descansar a cabeça contra o seu ombro e afagando-lhe o cabelo curto.
— Eu não esqueci que você é assim, — ele falou baixinho e ergueu a cabeça para beijá-la suavemente nos lábios: — uma mulher doce e carinhosa, e quero que aceite proteção policial enquanto o coronel não for detido. Sem discussão e sem brigas, simplesmente aceite. Certo, Karen? — esperou pela sua reação.
Ela fez uma careta engraçada, meio que revirou os olhos e, por fim, parecendo ceder à proposta apertou-lhe o queixo.
— Certo, Rodrigo, não vou mais te causar dor de cabeça.
Quando o estrondo de um trovão se misturou aos acordes da guitarra e a claridade de um relâmpago inundou de prata a sala iluminada pelo dia que virou noite, no mesmo instante em que a natureza se pronunciou prepotente, Thales Dolejal irrompeu no recinto e tudo naquele olhar da cor dos raios que riscavam o céu de Matarana apontava a direção de um calvário.
Em poucas passadas ele completou o caminho entre a entrada, passando pelo balcão da recepção, e o divã.
Rodrigo instintivamente afastou-se de Karen, que se virou para ele tentando entender a razão do afastamento. O semblante do delegado tornou a se fechar, as sobrancelhas juntas e as veias latejando contra a pele sensível das têmporas. A mão foi levada à cintura e a ponta dos dedos encontraram o couro do coldre. Uma fração de segundos depois, o cérebro do defensor da lei assimilou a figura do fazendeiro como aliado e também como um homem que não usava armas. Relaxou, ligeiramente, ainda que experimentasse uma sensação ruim na boca do estômago.
Sem cerimônia, Thales encurvou-se o suficiente para pôr as garras nos ombros de Karen e levantá-la de forma abrupta. Ela só teve tempo de exclamar um “porra!” e já estava de pé, a blusa manchada de sangue sendo arrancada de seu tronco.
— Seu maluco! — gritou, cruzando os braços em frente aos seios e dobrando o corpo na tentativa de proteger sua nudez.
— Onde se feriu? — perguntou com rispidez, inspecionando a parte do corpo exposta.
Rodrigo se interpôs entre os dois, separando-os calmamente.
— Ela não se machucou. — afirmou incisivo. — O sangue na roupa é da minha cachorra.
O efeito daquelas palavras provocou uma metamorfose na feição de Thales. A atitude descabida e violenta foi substituída pelo aturdimento. Ele endureceu os maxilares ao ponto dos ossos se projetarem contra a pele escanhoada. Recuou um passo do casal, avaliando a situação como um todo. Era possível perceber o encadeamento de seus pensamentos, agora, que ele voltava à razão. O pomo de adão subiu e desceu, a confusão fora desfeita e mais uma vez ele fora pego em flagrante delito de paixão explícita.
Ao ouvir a voz de Karen, ele ergueu o queixo com altivez, preparando-se para o golpe.
— Imaginou que a vaca louca estava sendo atendida por um veterinário? — alfinetou-o, abaixando-se para juntar do chão a sua blusa.
Desfeito o mal-entendido, já não se interessava em prolongar o evento. Impassível, deu atenção àquele que balançava o chapéu na mão, com a cara amarrada e olhando-o de modo avaliativo.
— Pelo visto, o coronel quer pô-lo para correr.
Rodrigo assentiu devagar sem desfazer o ricto de exasperação do semblante.
— Com que direito você ataca a Karen dessa maneira, despindo-a publicamente? —indagou sério.
Thales não se deu por rogado.
— Apenas examinei os seus supostos ferimentos. — afirmou com um leve sorriso e continuou a fim de esquentar a cena: — É interessante quando o camarada que é pago pelos cidadãos para nos proteger, expõe uma cidadã ao perigo por sua culpa e responsabilidade. — ironizou.
— Ele me protegeu, seu cretino. Acha que se o Rodrigo não estivesse lá eu não teria morrido? Minutos antes eu estava ouvindo música num volume tão alto que sentiria o segundo tiro sem ao menos ouvir o primeiro. — reclamou mal-humorada, ajeitando-se dentro da blusa suja e amassada.
— Esse tipo de proteção não funciona. A situação mudou de perspectiva, meus amigos, e por isso também temos de nos adaptar a ela. — declarou com suavidade, uma suavidade pendendo à arrogância. — A partir do momento em que expõe ao perigo uma pessoa relacionada a você, significa nada mais nada menos que a situação está fora do seu controle. Não quero ser grosseiro ou desafiar a sua autoridade, mas a polícia de Matarana não está dando conta do negócio.
Rodrigo ajeitou o chapéu na cabeça e sorriu levemente, as linhas de expressão ao redor de seus olhos pronunciaram-se.
— Assim que eu chamar reforços e, inclusive, a Polícia Federal, já que estamos lidando também com o tráfico internacional de drogas, as coisas voltarão ao controle da autoridade aqui. — apontou com o polegar para si mesmo.
— Até isso acontecer pretende construir um bunker para proteger os seus familiares? — desafiou-o; em seguida, fez um sinal com a cabeça em direção à recepcionista e completou: — Em uma cidade cheia de ouvidos, como evitará que a sua irmã ou o filho da Karen, por exemplo, sejam raptados ou qualquer outra merda ainda pior? Designará um PM para cada membro querido? — ironizou com um meio sorriso.
Karen acompanhava o confronto em silêncio refletindo sobre cada argumento. A clareza de ideias de Dolejal era como um rio límpido. Não havia como contestá-lo. Apesar de que era visível o quanto Rodrigo procurava por soluções à altura enquanto riscava o chão com a sola da bota e o olhar distante atravessava a janela aberta.
— Farei o meu melhor. É uma questão de nos planejarmos, Thales. Ainda assim agradeço a sua preocupação.
O olhar felino do latifundiário estreitou-se perigosamente.
— Está me dispensando? — riu um riso áspero e rápido, emendando num tom bem menos animado: — Não me importo com nossas diferenças, ainda que seja apenas em relação a uma mulher, mas o fato é que sempre nos entendemos, Rodrigo. A verdade, bem, você sabe qual é a verdade, não é mesmo? Está sozinho com uma escrivã e um agente. Confia nos policiais militares? Acredita que não comem na mão do coronel? Se não aceitar a minha ajuda, continuará sozinho no meio da burocracia e do descaso para com um mero delegado na terra sem lei.
— O que pode nos oferecer? — Karen perguntou.
— Ok, então já está resolvido — interrompeu o delegado decidido, tornando a se sentar no banco estofado, espichando as pernas: — Depois que acertarem os detalhes me avisem.
— É bem simples, quero os Malverde e os Lisboa na Arco Verde. Ninguém ousaria invadi-la e todos estariam seguros. Há acomodações para a sua família, Rodrigo, — virando-se para Karen completou: — e para a sua vó e o seu filho. E quando tiverem de sair serão escoltados pelos meus homens.
Karen voltou-se para Rodrigo na expectativa de saber a sua opinião.
— Continuarei no hotel, — falou meio que se justificando: — mas acho que temporariamente é uma boa ideia. Isso tudo logo estará resolvido. — afirmou secamente.
— Claro que estará. — confirmou o outro de modo enigmático.
— A Val não vai gostar nadinha. — disse Karen, enfiando as mãos nos bolsos traseiros do short. — Aliás, ela vai ficar muito puta quando souber que os desgraçados perfuraram toda a fachada reformada.
— Mandarei alguém trocar os vidros da casa. — informou Rodrigo, disposto a encerrar a conversa, os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça nas mãos. A preocupação em relação ao estado de saúde de Bonnie voltava a ocupar-lhe os pensamentos.
Karen estava entre os dois no meio da sala, suja, com sangue na roupa e não conseguindo tirar da cabeça a cena violenta que vivera. O barulho seco e alto dos tiros, os vidros explodindo, os utensílios domésticos destruídos. O assoalho gelado debaixo do seu corpo e a possibilidade de ela e Rodrigo serem alvejados. Por um momento temeu que os pistoleiros entrassem de fato dentro de casa e os executassem.
— Bom, acho melhor avisarem o pessoal de vocês sobre a mudança. Hoje mesmo enviarei alguns homens para conduzi-los até a fazenda. — Thales informou endereçando um longo olhar a Karen: — Você está bem?
Ela anuiu sem dizer palavra. Captou o seu olhar desconfiado. Não tencionava desabafar com ele, já estava acostumada a desabafar por dentro. Esticou o braço e pegou uma mecha do cabelo de Rodrigo num doce afago.
— Vai dar tudo certo. — falou, tentando sorrir.
— Eu sei. — retrucou sem convicção, virando-se a seguir para o fazendeiro: — Só entenda que não participo de qualquer aliança contra o coronel. Por mais que insista em oferecer proteção, não tenha dúvida alguma de que não farei vista grossa para o seu lado. — ele parou e sentenciou: — Não fui comprado. Entendeu?
O recado fora dado, concluiu o policial.
— Não precisa esfregar na minha cara a sua integridade, eu sei quem você é, e por isso mesmo ainda é o delegado da cidade. Se fosse corrupto, nesse momento, estaria ao lado do coronel planejando uma forma de se livrar de mim. — comentou com um estranho senso de humor e, voltando-se para Karen, perguntou: — Quer trocar de roupa?, você está um trapo.
Ela buscou a resposta com Rodrigo. E já era a segunda vez que Thales percebia uma mudança em seu comportamento. Impressão ou não, parecia que ela começava a desenvolver os primeiros sintomas de uma doença chamada dependência emocional.
— Não sabe mais pensar por si mesma? — provocou-a.
Foi Rodrigo que interveio antes que Karen respondesse torto:
— É melhor que aproveite a carona. Não sei que horas sairei daqui.
Karen cogitou permanecer ao seu lado. Temia que o resultado na sala do veterinário não fosse positivo. Porém, Rodrigo precisava pôr os pensamentos em ordem para, depois, sim, executar o que decidisse. Ele deixou-se ser abraçado sem se erguer do sofá nem lhe ofereceu a boca para ser beijada. Podia interpretar de várias maneiras tal gesto. Preferiu apenas não julgá-lo.
Quando os dois se afastaram, o delegado exalou o ar dos pulmões, cansado demais. Ele não se sentia à vontade com Karen quando Thales estava por perto. A bem da verdade, sentia-se um estranho no ninho. Observou-os atravessar o corredor, lado a lado, até a porta de saída. Ainda havia entre eles a permissividade que somente os anos de intimidade proporcionavam.
Acordou de um sono profundo. Espreguiçou-se espichando as pernas nuas e rolou para o lado vazio, enterrando o rosto na fronha do travesseiro de Franco. Deviam fazer um perfume com esse cheiro, constatou sorrindo ainda sonolenta. Percebeu que estava livre dos enjoos e louca de fome. Mas lembrou também de não ter deixado comida pronta para Franco aquecer no micro-ondas. Estalou a língua no palato irritada consigo mesma e obrigou-se a sair da cama.
Por mais que quisesse se alimentar, ainda se sentia mole e com preguiça. Enfiou os pés numa rasteirinha e postou-se diante do espelho. Ajeitou com os dedos o cabelo curto e sorriu satisfeita ao se admirar no pijama curto, cor-de-rosa, um tanto infantil. Ficou de lado e forçou a coluna para frente e viu apenas um leve inchaço no baixo-ventre. Em algumas semanas, sua barriguinha já seria visível. O corpo magro e pequeno igual ao de um garoto de 14 anos, que antes tanto a desgostara, colaboraria enfim ao expor sua gravidez já nos primeiros meses.
No corredor distinguiu duas vozes masculinas vindas de fora. Parou e prestou bem a atenção. Reconheceu a de Franco, baixa, pausada; a outra era a de Bronson. E eles deviam estar à porta da sala debaixo do avarandado. Mordeu o lábio incerta se deveria manter-se escondida para ouvir sobre o quê conversavam, como no tempo em que era de fato uma jornalista atrás de um furo de reportagem ou se deveria seguir calmamente seu caminho em direção à geladeira.
Ao entrar na cozinha deparou-se com a mesa preparada para o almoço. Entre os pratos um refratário com tampa. O cheiro que exalava de dentro era tentador. Destampou-o, libertando o vapor do ensopado de carne com legumes; a tigela com arroz branco ladeando a com salada verde.
Ela reconsiderou os dotes culinários do futuro marido. Ele sabia fritar ovo sem furar a gema e esquentar pão com manteiga na frigideira. Nunca precisara cozinhar, comendo a comida da governanta da fazenda ou em restaurantes com o patrão.
A resposta para desvendar o enigma veio quando se aproximou da pia para pegar um copo e na lixeira estava a embalagem de um restaurante. Ela admirou a praticidade do seu homem ao mesmo tempo em que o viu entrando na cozinha com ar reflexivo. Por certo digeria um alimento pesado.
Ao vê-lo ameaçou um sorriso de satisfação que só não vingou porque Charles Bronson existia.
— Seus roncos são tão lindos quanto você, minha dona. — disse, puxando-a para um abraço prolongado.
Ele precisava dela. Esperaria que Franco tomasse a dianteira para se abrir. E foi o que aconteceu:
— O Bronson veio me chamar de volta.
— É mesmo? — afastou-se ao perceber o tom entristecido na voz.
— É, “ele” me quer de volta.
A ênfase no “ele” referia-se ao pai e ex-patrão.
— O que pretende fazer? — sondou-o.
Ele deu de ombros e a trouxe ainda mais para si, beijando-lhe o topo do crânio.
— O que acha que devo fazer?
— Amor, olha aqui pra mim. — pediu, e ele se afastou centímetros para observá-la, mantendo-se à espera do que ela continuaria a dizer: — Me diz o que o impede de tornar a se aproximar do seu pai?
Ele não mexeu um músculo ao responder sem rodeios:
— Ele quer apenas o chefe da segurança de volta.
— Por quê?
— Atiraram contra a casa do Rodrigo. — ele adiantou-se ante o seu olhar assustado: — Está tudo bem, acabei de vir de lá. Acontece que os tiros partiram dos pistoleiros do coronel e parece que o patrão pretende montar uma ofensiva contra o Marau. Eles sempre foram inimigos e, agora, com esse atentado contra o delegado, o patrão deve achar que é uma afronta a ele próprio. Matarana inteira sabe que o Rodrigo é um dos protegidos do meu pai... — ele parou e corrigiu-se: — do meu ex-patrão. O Bronson também acredita nisso, que em vez de atacar de frente a parte mais poderosa, o coronel pretenda fulminá-lo através dos seus protegidos... ou talvez seja mera provocação, como o Dolejal está fazendo com o coronel Rodrigues, comprando as suas terras e pondo os índios a viver nelas. Além disso, — suspirou pesadamente e acrescentou: — o Bronson está com os Panarás, e uma tal de Virgínia é quem agora o acompanha como segurança pessoal, isso significa que mais do que nunca, não é a minha presença que ele quer ou que sente falta; é o meu trabalho que faz ele me chamar de volta. Sabe aquela frescura para a qual fomos convidados a ir, lá no clube campestre?
Nova fez que sim com a cabeça.
— Acabei de saber que o meu primeiro trabalho é cuidar da segurança do evento com o Rodrigo e a mulher que vai organizar a tal entrega de troféu. — entortou o lábio com desgosto.
— Ainda há tempo para ir à entrevista no Armazém, o salário é bom e não me parece mais arriscado que chefiar uma ação criminosa contra um fazendeiro.
Franco precisou de pouco tempo para considerar a sugestão.
— É verdade, agora tenho família para cuidar e não posso deixar você e a minha filha na mão. Vou ligar para o camarada do Armazém e confirmar o horário da entrevista. — afirmou decidido.
Ela o observou se encaminhar para a sala enquanto apertava as teclas do celular. Ainda não estava convencida se ele queria mesmo deixar o pai “na mão”. Aparentemente, parecia um dilema fácil de ser resolvido. Se Nova não soubesse quase tudo sobre o coração daquele caubói. Ela não se sentia nada bem ficando entre os dois, entre pai e filho, entre o criador capaz de tudo para ter outra vez e, talvez sempre, a sua criatura para si, para a tal margem turva do rio — como Franco se referia à sua relação com Thales Dolejal.
Quando ele voltou e parou entre a mesa e o fogão com as mãos na cintura, a postura displicente e uma sombra de desconfiança no olhar, Nova já sabia que a entrevista fora cancelada. Faltava saber a respeito da mentira inventada pelo entrevistador:
— Eles decidiram ficar com um rapaz que apareceu por lá hoje pela manhã. Um rapaz, sabe? — indagou num tom de amargura e deboche. — Um cara que apareceu do nada, caiu de paraquedas, com um nome tão estranho que parecia inventado na hora, ainda mais quando gaguejam ao falar... — ele baixou a cabeça e respirou fundo e não era para controlar a emoção ou pôr em ordem os pensamentos. Era somente para pronunciar a sentença: — É inútil continuar vivendo em Matarana se não for como pistoleiro do Dolejal. Todos esses empreguinhos de merda...toda essa gente covarde desistiu de me dar um emprego porque ele não deixou. Não conseguirei trabalho na cidade. Aliás, nem na região. Para me ver livre dele teremos de sair do centro-oeste. — ele se riu com desgosto e ponderou: — É, o idiota do Alberto tinha razão quando me disse que o Dolejal havia pedido para o coronel Rodrigues me contratar... E, claro, foi ele mesmo que pediu para o Rodrigues me demitir. — balançou a cabeça, derrotado.
Nova precisou se sentar quando a firmeza do assoalho abandonou-a. O medo voltou a assombrá-la como antes, antes de conhecer Franco. Fitou-o com olhos desse medo e encontrou tristeza e ternura nos olhos dele.
Apaixonara-se por um homem condenado.
Adele recolheu as cápsulas das pistolas no assoalho do avarandado que tomava toda a frente da casa dos Malverde. Um bom número delas jazia acondicionado no saco de evidências. Os peritos de Santa Fé não receberiam o material para análise. Ainda que ela soubesse que haveria outra investigação paralela à oficial, uma peculiaridade de Matarana. Toda ação criminosa era investigada pela polícia e pelos colonizadores. A maior parte dos crimes nem chegava ao conhecimento da polícia, resolvia-se debaixo do sol, ao largo da planície descampada e com a boa sorte dos deuses. Acontece que quase ninguém tinha sorte por aquelas bandas. E era por esse motivo que a produção de grãos da cidade ganhava destaque no mercado do agronegócio nacional: a riqueza do solo adubado com ossos humanos.
A escrivã recebeu um telefonema do delegado que lhe disse para não se esforçar muito com a investigação. Viviam em uma terra com códigos próprios e bem distantes da benção do Papa. O que acontecia em Matarana ficava em Matarana. Fosse acima ou abaixo do seu solo. Assim, a policial pegou seu saco plástico, entrou na viatura e voltou à delegacia. Antes de dobrar a esquina da segunda via, que levava até a delegacia no centro, recebeu um segundo telefonema do delegado. Sorriu satisfeita com a decisão do seu chefe. Gostava dele e queria-o vivo.
— A notícia sobre o atentado se espalhou? — ele perguntou, sondando-a.
— Até agora somente os Dolejal...e, claro, os Marau sabem.
— Refiro-me, Adele, a alguém do Jornal do Cerrado.
— O Dolejal proibiu que divulgasse o ocorrido. — garantiu e completou insinuante: — Estou com as cápsulas deflagradas e são muitas, chefe. Pelo menos três ou quatro camaradas descarregaram suas automáticas... Pedimos reforços para Santa Fé?
— Não.
— Não?
— Não. — repetiu e comunicou o veredicto: — É o fim da linha para o coronel.
Adele sorriu satisfeita enquanto pensava num jeito de sumir com a prova do atentado. O que acontecesse ao coronel não poderia ter ligação com o delegado. E o melhor que poderia acontecer com o delegado era se ligar a Thales Dolejal.
Foi o diabo convencer Valéria Malverde e vó Ninita a se mudarem para a fazenda. Karen quase acabou com a bateria do seu celular e com o seu estoque de argumentos a fim de convencê-las a aceitar o improviso da nova situação.
Val levou uns bons minutos para se recuperar do choque da notícia, e a primeira notícia que Karen lhe dera fora sobre a rajada de tiros contra ela e Rodrigo. Depois, mais alguns segundos para digerir a informação de que Bonnie fora alvejada e, por fim, a decisão de Thales — com a autorização de Rodrigo, de se mudarem por um tempo para a Arco Verde. Todos. Malverde e Lisboa. De mala e cuia na fortaleza de Dolejal. Era compreensível que lhe fosse difícil assimilar tudo em questão de minutos e, ainda por cima, via telefonia móvel. Por outro lado, Karen não tinha muita paciência para dar explicações. O que devia ser feito, seria feito e ponto final. Bastava aceitar a escolta de duas picapes e quatro seguranças para buscarem roupas e demais pertences na casa onde dois vidraceiros consertavam o estrago das janelas e um PM fazia a sentinela.
Ao contrário de sua relação com o melhor amigo de Rodrigo, Cris, sua irmã não partilhava dos mesmos sentimentos em relação ao outro amigo, Thales. E não era de agora quando disputavam a mesma mulher. Valéria não escondia de ninguém a desconfiança em relação ao fazendeiro no que tangia sua suposta relação amistosa com o delegado da cidade. Era uma amizade no mínimo interesseira, era isso que ela acreditava. Mas em troca da proteção de sua família, ela tentaria uma postura diplomática e aceitaria obedecer à vontade do seu irmão. Ainda que com os dois pés atrás.
Vó Ninita, de sua parte, irritou-se com a perspectiva de dormir em um lugar — como ela o classificou, estranho e hostil. Desde que a neta decidira viver com Rodrigo, a esperta senhora suspeitara que o antigo amante de Karen fosse partir para algum tipo de retaliação. Não por sofrimento ou para tê-la novamente por amor. Não, não. Thales Dolejal era virado em ego, ego para todos os lados. E era claro e límpido que não estava satisfeito em ver a “sua” Karen Lisboa com o amigo de longa data. Era oportuno o atentado e o convite para se refugiarem nos seus domínios. Ela podia ver de longe as nuvens se juntando, cada qual com uma forma diferente, aproximando-se devagar até exaustas de água explodirem sobre a cabeça de todos. E isso nada tinha a ver com as estações do ano. Por fim cedeu à pressão de Karen com um rosnado baixo e a firme intenção de manter seus olhinhos argutos na nuca do fazendeiro. A neta precisava de paz, paz de espírito, e somente a conseguiria se mantivesse Rodrigo ao seu lado, e não um narcisista egocêntrico.
O ditado “os últimos serão os primeiros” cabia na situação como dez lutadores de sumô dentro de um Fiat 147. Assim, Johnny apenas foi avisado de que suas roupas, materiais de aula e jogos do computador haviam sido transferidos para outro endereço. Ele não perguntou para onde. E quando uma das camionetes da Arco Verde parou em frente a sua escola, entrou nela e afivelou o cinto. Bronson foi o encarregado de buscá-lo, justamente porque ambos se conheciam de outros carnavais. Ao passo que Sabrina foi a única que ficou encantada com a situação. A opinião que tinha sobre Thales era a de que ele era um coroa bonito que tinha um filho lindo e doido. Mais nada. O resto eram histórias sobre sua relação maluca com Karen ou os confrontos com o coronel. Na verdade, ele não significava merda nenhuma pra ela, mas o fato de morar por um tempo em uma fazenda de luxo soava-lhe como férias em abril. Não era a sua realidade de verdade, ela não era ingênua. Porém, um pouco de ilusão não custava nada ao coração. Apesar de que para curtir as suas férias no paraíso o tio quase levara bala e Bonnie quase fora morta. Sentia-se culpada por pensar de modo fútil diante de uma circunstância tão grave. Era evidente também que sua maneira de pensar não alteraria os fatos. Problema então resolvido.
No final das contas, Karen concluiu que os Malverde e os Lisboa eram muito parecidos. As duas famílias aceitavam a proteção de quem não confiavam.
Quando deu por si, a Silverado estacionou diante da casa de Nova. O comboio com outras duas camionetes ladeou o veículo de Thales. Ele fez um meneio de cabeça para os seguranças, e eles leram a ordem de permanecerem onde estavam.
— Acha que a Nova está correndo algum risco? — perguntou Karen, preocupada.
O fazendeiro girou a chave na ignição e desligou o motor. Virou-se para ela com um olhar divertido:
— Sim, claro, engravidar de um pistoleiro para prendê-lo num casamento é um grande risco. — debochou.
— Ainda mais sendo seu filho. — desferiu, acrescentando um sorrisinho maldoso.
Ele riu baixinho e acrescentou a título de informação já se preparando para descer e seguir adiante:
— O Franco está se fazendo de difícil como o adolescente que é. A culpa é minha, sempre o criei solto na fazenda, sem regras e disciplina. Nunca impus limites nem ao menos lhe dei uma palmada na bunda. Mesmo não sabendo que era meu filho legítimo, ainda assim, era a única criança que frequentava a minha casa...
— E ainda o resgatou da estrada, era a sua responsabilidade educá-lo. — ela interrompeu-o, pensativa: — É incrível como nunca percebeu a semelhança entre vocês dois.
Thales a olhou fixamente.
— Mas você percebeu e correu para dar a boa notícia a ele, não é mesmo?
— É verdade, adorei dizer ao vira-lata que o seu paizinho era um cachorrão com pedigree. Você perdeu uma bela cena, Thales, o Franco quase teve um surto psicótico. Me diverti muito! — mentiu. À época ela mesma quase tivera um infarto, Franco ameaçando-a expulsar da cidade a mando de Thales, dentro do seu quarto, sorrateiro e maldoso.
Ela percebeu o dar de ombros sutil dele e, em seguida, viu-o fechar a porta. Desceu para acompanhá-lo. Talvez precisasse proteger a amiga do veneno de seu futuro sogro.
A porta da casa escancarada e o diabo encostado contra a soleira, os braços cruzados em frente ao peito, a aba do chapéu quase lhe tapando os olhos, a boca apertada numa linha dura e obstinada. Não mexeu um músculo ao reconhecer o pai. Talvez porque seus músculos estivessem retesados o suficiente para paralisarem-no. Medo? Jamais. Essa palavra fora banida de sua existência desde que vira a mãe debaixo das rodas de uma carreta.
Ele estava imóvel era diante da expectativa do confronto com a única pessoa que amava e odiava na mesma medida. Devia tudo àquele homem que se aproximava devagar como um felino até a sua presa. Não era um ingrato. Afinal, fora aquele homem com ar altivo que o tirara do abandono, de viver sozinho vendendo laranjas roubadas à beira da 163. Ele o salvara. Ele dera-lhe a vida e a seta do destino em suas mãos. Um teto sobre sua cabeça e uma mãe emprestada que fazia a sua comida preferida. Ele o ensinara a se proteger e a atirar, pusera-o no meio dos pistoleiros, e eles também o criaram. Ele lhe dera um trabalho e, mais do que trabalho, ele o tornara à sua extensão, sombra, protetor. Um protegera o outro. Dois camaradas carentes tateando os bolsos de suas almas à procura do sentido, do sentido de amar quem não queriam amar. Porque Franco acreditava na injustiça de se manter um filho legítimo como empregado de fazenda fugindo da morte encomendada pelo próprio pai, e porque Thales jamais perdoaria a dupla traição. Franco dormira com Karen. Com tantas mulheres na região. Franco dormira com a única que não devia ter dormido. O mais leal e dedicado dos seus pistoleiros — o seu filho, sangue do seu sangue, e a vontade de vê-lo de joelhos, implorando por um amor que duramente fora enterrado com várias pás de terra.
— O Bronson me passou o recado. — antecipou-se Franco, ainda na mesma posição, mantendo a postura do “caubói entediado”.
— Como vai? — saudou-o com polidez o ex-patrão.
— Se Matarana não fosse a pior cidade do mundo, eu estaria muito bem. — retrucou com azedume.
— Peço perdão por não ter construído uma cidade mais agradável para você nascer. Apesar de que sua noção de mundo não é muito ampla, não é mesmo, Franco? — ironizou.
— O meu mundo é o que os meus olhos alcançam mesmo quando estou longe. — filosofou de forma displicente.
Thales endereçou um olhar divertido para Karen, como se dissesse: esse guri fala cada merda! Ao que ela intercedeu:
— A Nova está em casa?
— Sim, lá dentro. — respondeu desinteressado, já que sua atenção estava voltada para os homens dentro das camionetes. — Eles não são da Arco Verde. — afirmou quase como uma acusação.
Thales assentiu levemente, voltou-se e encarou o seu pequeno bando, respondendo com bastante placidez:
— Bem observado, Franco. Esse pessoal é da Lagosta do Brejo e outros virão de lá também. Em breve, teremos quase quarenta pistoleiros esfomeados por ação e, claro, por dinheiro. Todos sob a sua chefia. — encarou-o fundo nos olhos: — Retorne ao seu lugar de origem e de onde jamais deveria ter saído, filho.
Era apenas essa palavra que faltava para trazê-lo de volta, para que Franco baixasse a guarda e retornasse à sua vida de antes, sua vida de diabo encarnado. Era com isso que Thales contava, apelando aos sentimentos do rapaz.
Acontecia apenas que Franco não era mais um rejeitado e tampouco carente. Havia algum tempo que ele encontrara uma mulher que o amava. Bem, — Franco considerou as palavras ouvidas por alguns minutos, encarando o seu progenitor no mesmo nível — ele estava duro, queria casar e dar uma boa vida para a mulher que amava...
— Me torna gerente da Lagosta do Brejo. — lançou a proposta como um desafio.
Thales nem piscou.
— Não, Franco. Quero você debaixo dos meus olhos, e a Lagosta do Brejo fica bem longe daqui. — fez uma pausa, sorriu de um jeito como se somente ele soubesse sobre um segredo e, depois, fez uma perigosa promessa: — Você terá a Coração de Ouro.
— Como vai, Smurfette? — saudou-a Karen com um sorriso jovial.
Nova impulsivamente jogou-se nos braços da amiga e apertou-a com força.
— Como puderam atirar contra vocês? — perguntou, desolada.
— Atiraram contra a casa, amigona. Acho que a intenção era apenas a de nos assustar. Se quisessem dar cabo da gente, teriam entrado e feito o serviço.
Karen ainda estava aturdida com aquele abraço espontâneo, retribuiu o carinho meio que sem graça. Depois, riram nervosas. E Nova perguntou sobre Rodrigo.
— Ele está péssimo. — balançou a cabeça devagar, suspirando profundamente: — Acertaram um balaço na Bonnie e ela perdeu bastante sangue.
— Que merda!, ele é doido por ela. Para o Rodrigo, a Bonnie não é só um cão, é mais como uma filhinha.
Karen puxou uma cadeira e sentou pesadamente.
— E eu não sei? O Prefontaine já está em uma das baias da Arco Verde bem protegido. Ô diabo se tocarem num fiapo de crina dele, parto pra ignorância! — desferiu com severidade.
A noiva de Franco pegou um prato e começou a enchê-lo de comida.
— Garanto que ainda não almoçou.
— Ô mãezona, não estou com um pingo de fome. Quero saber mesmo é como você está com essa pessoa aí dentro e com o doido do seu noivo lá fora? — indagou ela de um jeito engraçado apontando para a barriga da amiga.
Nova arou o cabelo curto com os dedos, olhou ao redor à procura das palavras certas e então apenas disse o que resumia toda a situação:
— Acho que nada mudou.
Karen escorou os cotovelos sobre a mesa e fez um gesto com a mão para que a outra também se sentasse.
— Ele está lá fora com o Thales. Estão planejando uma ação de arrasar. — depois, baixou o tom de voz e confidenciou serenamente: — Sabe, amigona, eu posso evitar esse derramamento de sangue. Não quero que o Rodrigo se machuque, e tampouco que você fique sem o seu psicopata.
— Como assim? — perguntou, desconfiada.
— O Vitorino. — ajeitou-se na cadeira e revelou: — Ele é o cara que organiza as corridas de cavalo. E, além disso, é o braço direito do coronel. Digamos que o Vitorino, para o coronel, equivale ao Bronson para o Thales, e isso significa que quem está por trás desses atentados é ele, a mando, obviamente, do balofo de bombachas. — concluiu com um arquear de sobrancelha. — Vou preparar uma bela emboscada para esse filho de uma égua manca e cegueta. Pode deixar! E sabe o que acontecerá depois? — sem esperar pela reação de Nova completou com um sorrisinho: — Não faço a mínima ideia. Só que tenho de barganhar com o coronel. Não quero minha gente sendo vítima desse safado!
— Esse cara é muito perigoso, Karen. — ponderou a outra, mordendo o lábio inferior um tanto preocupada com a obstinação da amiga.
— Sim, ele é perigoso, anda armado, matou sei lá quantas pessoas e continuará matando se não dermos um basta. Mas tem uma coisinha que o enfraquece... ele é humano. E por isso mesmo deve ter uma etiqueta bem bonitinha na nuca com o seu preço. Não vejo o Vitorino montado numa picape último modelo nem vivendo em um casarão em suas próprias terras. Assim, se por acaso o coronel não se importar com um de seus braços, a gente negocia diretamente com o membro em questão. A gente compra a lealdade do pistoleiro. — ela sorriu autoconfiante. — Afinal, o Vitorino não faz parte da seita Dolejal, não é mesmo? Então pode ser muito bem comprado e delatar todas as imundícies para o nosso delegado.
Nova considerou o que acabara de ouvir. Parecia uma boa estratégia. Teoricamente, poderia dar certo. Os funcionários do coronel não eram leais como os de Dolejal. Pedro, o aliciador cara de cavalo, ainda mofava no presídio de Santa Fé. O coronel era conhecido por abandonar os seus antes que lhe prendessem o rabo. E a recíproca era verdadeira. Vitorino, sim, tinha um preço e poderia ser comprado por Thales. Após a negociação, era provável que ele cantaria até o hino nacional para Rodrigo. E depois? Processo judicial de anos? Proteção à testemunha?, já que Vitorino não estaria mais seguro em Matarana. O braço direito do coronel aceitaria piorar de vida? Agora Nova não estava mais tão certa sobre a eficiência do plano de Karen. E disse tudo isso a ela, que simplesmente respondeu:
— Eu pego o homem, apenas isso. Talvez o Rodrigo ou o Thales tenham ideias melhores sobre o que fazer com o pacote.
— Pacote?
— É, tenho que usar a gíria das ruas. — justificou-se de um jeito engraçado.
Nova riu baixinho, ainda que estivesse nervosa com a possibilidade de ter diante de si uma futura sequestradora de pistoleiro matador. Tentou uma última alternativa:
— Acho que seria melhor contar tudo ao Rodrigo sobre o Vitorino e deixá-lo fazer o seu trabalho.
Karen então lhe endereçou aquele olhar de fulminar como um raio.
— Jamais. Não sei se o Vitorino quer matar o Rodrigo ou coagi-lo a ficar do lado do coronel e não vou arriscar a sua integridade física pondo um diante do outro. A não ser que o pistoleiro esteja bem amarrado. Essa briga é minha, Nova! Mexeu com homem meu, mexeu comigo!
— Quer dizer, mexeu com a população masculina de Matarana, mexeu com você.
Quando ela se ergueu, a cadeira caiu para trás. Encarando os olhos sarcásticos de Franco, Karen mal percebeu que fechara os punhos.
— Se vai atacar a minha mulher, eu ataco a sua. — a voz de Thales soou calma e firme enquanto a sua presença, seguida atrás do filho, impunha-se como um gigante. Ele cruzou a cozinha e esticou o braço para cumprimentar a nora: — Como está, senhorita Monteiro? — indagou polidamente.
Ela sentiu um calafrio cruzar-lhe a espinha. Fosse pelo tom da voz sempre sereno e corrosivo, fosse pelo olhar sarcástico e ligeiramente desafiador, fosse pela sua importância na vida do homem que ela amava — Nova ainda o temia.
— Estou bem, senhor Dolejal. — respondeu, observando de esguelha o enfrentamento silencioso entre Karen e Franco, próximos o suficiente para se morderem a qualquer momento.
— O fato de ser um Dolejal não muda o que você é, Franco, — Karen falou baixo o suficiente para que todos sentissem a força daquelas palavras: — um desajustado, um perdido e um pau-mandado. Mais do que isso somente aos olhos da Nova, que vê bondade e beleza até onde Deus fez cagada.
Franco avançou um passo e parou. Mantinha a sombra de um sorriso, visto que ainda se dedicava à adoração do caos. A fúria reprimida da mulher à sua frente chegava-lhe como energia pura, elétrica, que o abastecia ao ponto de viciá-lo. Ele queria que ela fosse um homem para rolarem no chão até se queimarem ao sol do meio-dia na estação do estio. Mas Karen era uma mulher. Por mais que fosse uma vaca.
— Como está o seu namorado Rodrigo, ô dona vaca louca? — indagou sempre sorrindo.
Karen fechou o punho com força e desferiu-lhe um soco. Que atingiu o ar. Numa fração de segundo, dois braços puxaram-na para si, contra uma estrutura encorpada firme. O cheiro suave da colônia amadeirada penetrou-lhe as narinas e o reconhecimento foi imediato. Thales a conteve como Rodrigo o fizera dias atrás.
— Guarde sua munição para o inimigo, Franco. Não podemos fragmentar a nossa força, e vocês dois são os meus melhores soldados. — afirmou incisivo, apertando dois braços que traziam contra sua virilha um belo traseiro. A carne dela o excitava. O cheiro dela o entontecia. Puxou-a ainda mais para si, a mão aberta sobre o ventre, a quentura da pele sentida através da textura fina do tecido da camiseta. Pegava fogo por dentro, mas nada em sua face e voz o denunciava em chamas: — Além do mais, — completou insinuante: — não quero que a filha de um renomado desembargador mineiro pense que não somos civilizados.
Karen quase sorriu com prazer ao ver a reação de Franco. Ele se voltou para a noiva aturdido, os olhos estreitaram-se como se tentasse compreender o que a recente informação significava. Era evidente que Nova pouco falava sobre sua família e sua antiga vida em Minas Gerais. Eles viviam o tempo presente. Fato interessante, considerou Karen, ignorar o passado e a origem como um modo ingênuo de proteção. Tanto a vida detrás quanto a da frente sempre davam um jeito de cobrar os seus moradores.
— Não sabia que sua futura esposa vem de uma tradicional família mineira? — continuou Thales, agora, entretido em brincar com os sentimentos do filho, ao mesmo tempo em que aceitava o ligeiro afastamento da mulher entre os seus braços: — Tive de investigá-la, senhorita Monteiro. Sinto muito, mas é assim que agimos por aqui. Fiquei surpreso ao descobrir que inclusive há uma avenida em Belo Horizonte que leva o nome de seu avô paterno. Entendo agora que a sua relação com meu filho seja puramente afetiva, baseada no sentimento que for, isso não me cabe julgar, apenas Franco. Seja bem-vinda então à minha humilde família e mande lembranças a Sua Excelência. — finalizou com uma ponta de ironia e uma piscada de olho que acentuou o teor da revelação.
Ele puxou Karen pelo braço depois que ela endereçou um olhar significativo a Nova. Voltariam a se falar, com certeza, a respeito da ideia de pegar de jeito Vitorino. Mas não naquele momento. Quando a poeira abaixasse, a poeira da revelação sobre a família de Nova, Karen convidaria a amiga para um passeio no Ford. E esse dia seria logo após o próximo.
A noite Shania Twain sempre lhe rendia um bom dinheiro. Atrás de si, no palco, quatro músicos que trabalhavam no comércio em empregos de lascar. Eles tocavam com paixão e por um módico cachê. Isso realmente não importava. Valia a pena era estar naquele palco improvisado diante de mesas barulhentas, as pás dos ventiladores girando no teto, os janelões arreganhados exibindo a escuridão da rua, o balcão rústico de madeira, longo, à entrada do Bar do Gringo. Um coração country batia ali, entre as costelas de alvenaria e o assoalho riscado com as marcas das botas. E talvez somente a cantora e os caras da banda pudessem ouvi-lo. O resto enchia a cara com cerveja e a barriga com petiscos.
Não raras vezes Nova se voltava para o guitarrista e cantava de costas para o público, envolvida pela canção e insultada pela indiferença. No entanto, em algumas noites a plateia ficava realmente em silêncio, quase em santificada quietude. E ela podia cantar Parton, Wynette ou Fafá de Belém. Ninguém dava um pio, olhos fixos no palco, copos depositados suavemente sobre as mesas. O Gringo adorava. A presença do diabo loiro no recinto explicava tamanha consideração para com a cantora e a banda. Em uma dessas ocasiões, diante da barulhada infernal, o pistoleiro sacara sua Glock e dera um tiro para o alto. Bocas fecharam-se e olhos procuraram a origem do estampido seco. Encontraram dois olhos azuis que desafiavam quem fosse a continuar a ignorar a cantora e a sua música. Com o passar do tempo era visível a atitude dos frequentadores do Bar do Gringo ao observarem com atenção se o diabo loiro estava na cadeira em frente à mesa de canto — o seu lugar habitual, ou se tão-somente deixara a noiva no seu local de trabalho para buscá-la perto da meia-noite, antes do bar fechar.
Nova sinalizou para o baterista ao finalizar Don’t, a penúltima canção da lista do repertório da Noite Shania Twain, sorriu de leve e se voltou a fim de encaixar o microfone no pedestal. Fez uma careta engraçada ao perceber que o público estava bastante agitado em suas mesas. Talvez fosse o momento de cantar algo menos suave e romântico ou esperar que Franco retornasse do banheiro.
Discretamente cutucou com o antebraço o baixista e falou meio se rindo:
— Olha só, daqui a pouco teremos a atenção hipnótica do pessoal.
— Será que se aumentarem o couvert, eles perceberão que o som não é mecânico? —indagou com azedume.
Era uma dureza dar o melhor de si para quem esperava menos que isso, considerou Nova, entendendo a frustração do outro.
A cantora consultou o playlist perdendo a concentração ao notar que era observada. Ergueu a cabeça já estampando um sorriso no rosto e encontrou quem o seu coração sabia que encontraria. Franco avançava lentamente por entre as mesas, talvez para marcar a sua presença diante dos clientes do Gringo ou para ganhar tempo e paquerar a sua noiva. Ele vinha para ela com o seu andar ligeiramente gingado, a aba do chapéu caída para frente e uma fresta dos olhos, cúmplices e maliciosos, fincados nos dela. Ao se postar no seu lugar de costume, tirou o chapéu e o pôs sobre a mesa. Mantinha um sorriso de lado que, além de torná-lo ainda mais lindo, emprestava-lhe um ar de moleque travesso. Por isso foi fácil escolher a próxima canção, e ela começou From This Moment On. Somente para ele, não havia mais ninguém naquele lugar no fim do mundo, não havia mundo. Havia mais do que um mundo. Franco.
Era uma declaração de amor, uma prece ou um hino ao seu amor por ele. Cantou como se rezasse ao seu deus, ao deus com o qual dormia, acordava, se alimentava e para o resto de sua vida pretendia venerá-lo.
Franco entendeu a mensagem e aceitou de bom grado a oferenda. A voz de Nova entrava pelos seus ouvidos e enchia o seu coração de uma energia que o tornava indestrutível. Voltara da morte para viver aquele amor. Não havia outra explicação. Salvara a vida do pai ao receber o tiro em seu lugar. Morrera por alguns minutos. Talvez tenha morrido por ele naqueles minutos. Entretanto, retornara à vida porque Nova, naquela mesma época, chegava a Matarana. Para ele.
Quando a música terminou, o silêncio. Ela captou essa lacuna do vazio como algo distante, já que estava dentro dos olhos azuis do homem que não sorria mais.
Franco engoliu em seco. Tenso e expectante. De repente percebeu o absurdo da situação. Ele não voltara à vida por ela. Ele acabava de perceber que era a sua vida que se construíra, através da rejeição e da carência de afeto, para ser redimida e salva por ela.
Os aplausos irromperam a partir de uma palma, que foi acompanhada por todos os frequentadores do lugar. Até mesmo o Gringo, atrás do balcão, comoveu-se com a apresentação da sua cantora. Limpou os olhos cheios d’água com um guardanapo de papel.
Nova sentiu o sangue subir às bochechas. Jamais fora aplaudida em suas apresentações no bar. Envergonhada e, ao mesmo tempo, intimidada pela situação, encurvou-se ligeiramente em agradecimento à plateia eufórica. Sorriu sem jeito e escapou do palco pela escadinha lateral.
Franco afastou a cadeira para ela sentar e voltou a ocupar o seu lugar. Ele ainda estava sério, porém era um tipo de seriedade de quem acabava de ter um insight. Antes, tinha plena certeza sobre a importância daquela mulher pequena, carinhosa e leal que o olhava com olhos de seguidora de seita. Agora, contudo, descobria que era impossível viver sem ela.
Como era um Dolejal e temia perder o controle da situação, não importasse qual situação fosse, começou a fazer besteira.
— Então ainda não falou para sua família sobre mim? Vai esperar o baile de debutante da nossa filha?
Ela não esperava que depois de uma paquerada altamente erótica, seguida por um olhar carinhoso, viesse uma facada. Quase beijou a garçonete ao vê-la se aproximar com um bloquinho na mão:
— Quer beber alguma coisa, minha diva? –– perguntou a morena com bom humor.
Nova tentou sorrir, ainda que sentisse um par de olhos fixos sobre si exigindo-lhe uma resposta à altura de sua importância e da importância do que os dois viviam.
— Suco de laranja, Maíra. Obrigada.
Ela anotou o pedido, voltou-se para Franco e falou:
— Caramba, moço, você faz um bem danado para a nossa cantora, viu! Benzadeus! —exclamou com um sorriso amplo.
— Acha mesmo? — perguntou ele com indiferença e completou fitando a noiva: — Me sinto mais como uma joia guardada no fundo de um baú velho para ninguém ver que é falsificada.
Maíra endereçou um olhar intrigado à Nova que, em resposta, apenas deu de ombros. Não queria se prolongar em explicações e justificativas. Franco era assim mesmo, um homem de fases.
A garçonete entendeu a mensagem silenciosa. Era possível que já tivesse passado por sua vida um carinha complicado e cheio de charme, que recebesse um elogio como uma bajulação ou ofensa disfarçada. Voltou-se para o caubói de cara amarrada e fez o seu serviço:
— Vai beber o quê?
— Cerveja, como sempre.
Quando a garçonete se afastou, Nova tentou pegar a mão de Franco. Ele não deixou.
— Você está comigo, grávida de mim, estamos noivos e vamos nos casar. — começou, enumerando cada item com os dedos e continuou, agora, escorando-se displicentemente contra o encosto da cadeira: — Em relação a todas essas mudanças na sua vida, os seus pais sabem sobre o quê? Ou eles pensam que ainda vive com o doutor?
Ela engoliu em seco.
— Não contei nada.
Do outro lado da mesa ele fez um barulho parecido com um rosnado baixo. Era possível que o sentimento de eterna rejeição o cercasse sutilmente.
— Não posso condenar você por ter vergonha de me assumir para os seus pais, ainda mais para uma família importante... Fico imaginando que o seu pai terá um treco ao saber que trocou um médico por um merda. Espero que pelo menos eles tenham outros filhos para se ocuparem...
— Sim, minha irmã que está em Paris. — respondeu com naturalidade.
— Puta merda, Nova!, — exclamou baixinho — Se você fosse minha filha, eu vinha até Matarana te buscar de volta pra casa.
— É mesmo? Só que eu tenho 34 anos, não sou uma adolescente descabeçada e também não sou obrigada a enviar um relatório para Minas a cada mudança na minha vida. — ela parou, irritada. Precisou respirar fundo para continuar com desdém: — Além disso, o Cris já deve tê-los informado direitinho.
— Claro que sim. Já que você não fez a sua parte, coube a ele fazer a dele. — ironizou. — O que aconteceu entre nós não estava em seus planos, não é mesmo? Veio para cá com a intenção de fisgar de vez o doutor. Talvez até com o aval de sua família...Mas eu sou um besta ingênuo que me enfiei na sua frente como se você fosse alguém de Santa Fé ou daqui mesmo, uma mulher comum que tivesse disposta a ter uma vida comum com um camarada que esqueceu quase tudo que aprendeu na escola. Eu sou um trouxa, sabe, Nova? Nunca vi o que percebi hoje, quando o patrão falou sobre o seu pai ser um figurão, que você é muita areia pro meu caminhão. Não é isso que falam? Pois é a verdade dos fatos, dona. Jornalista combina com médico. Ou conhece alguma jornalista casada com pistoleiro?
— A gente precisa dessa merda toda? Falo sério, Franco. A gente precisa falar essas coisas um pro outro? Faz parte do nosso amor ficarmos nos machucando por tão pouco? — ela fincou os cotovelos na mesa, aproximou o rosto e perguntou sagazmente: — E o senhor, me diz, quando falou para o seu pai sobre a minha gravidez e o nosso casamento?
— Ele é o meu patrão. — afirmou enfático. — Não tenho família.
— Não, Franco, o Thales é o seu pai. E tenho certeza absoluta de que o seu pai só soube sobre nós através dos outros. E sabe por quê? Porque você também não gosta de dar satisfações sobre a sua vida a determinadas pessoas. Então não comece a me pôr contra a parede e vomitar os seus recalques. Para isso existe terapia. — ela falou sem elevar a voz, os olhos cheios de lágrimas que não transbordaram.
Ele sorriu sem jeito, baixou a cabeça contemplando as próprias mãos e tornou a fitá-la.
— Também não precisa me xingar. — resmungou com um meio sorriso envergonhado.
— Conseguiu estragar a minha noite. Pede a conta e vamos para casa.
Franco segurou-a pelo pulso antes de ela se levantar para sair.
— Me perdoa, princesa. Não sei o que me deu. — lamentou.
Ela voltou a se sentar meio que a contragosto. Sabia o que havia acontecido. Por isso voltara a se sentar. Franco fora influenciado pelas palavras venenosas do pai. Thales ainda o dominava terrivelmente.
— Olha para mim, Franco. — pediu e foi atendida: — O que você vê? Uma estranha que não conseguindo conquistar um antigo amor optou pelo primeiro camarada que estava à mão? Ou uma mulher que cansou de correr atrás de uma furada e teve muita sorte de encontrar o amor verdadeiro? O que é real, a parte que o seu pai o induz a ver ou a parte que somente você vê? Com quem você dorme? Com quem fez um filho?
— Me perdoa, não sei o que dizer... Sou um cara sortudo demais, é verdade. Você me deu tudo, princesa, e eu, porra!, já estou fazendo merda. Tem que ter paciência com o tosco aqui, sabe disso, né? — falou balançando a cabeça cheio de vergonha: — E ainda por cima nem homem direito sou, não consigo transar com você... Tento, quero, quero muito, mas aí penso na testa da nossa filha e...não dá, não dá...
— Que testa, Franco? O nosso bebê tem o tamanho de uma ervilha. — afirmou incisiva.
— Que seja , mas você pode abortar. Temos de resolver isso também.
— Para de se torturar! — exclamou, pegando-lhe a mão e emendando com ternura: — Não sei mais como fazê-lo entender o quanto você é importante pra mim. Sei que o seu passado é poderoso, mas, agora, o que importa é um dia depois do outro, e ficaremos juntos para sempre.
— É certo que sim, moça. — disse, pregando os olhos sérios nos dela; em seguida, considerou com bom humor: — O Bronson sempre diz que eu não sou um camarada fácil. É essa maldita genética estragada.
— Você é um doce, Franco.
A garçonete chegou e depositou os copos sobre a mesa. Piscou o olho, cúmplice, para Nova e saiu.
— Quero ficar bem perto de você hoje, Nova. Se eu fizer bem devagar e com cuidado, acho que não teremos problemas, né?
Ela sentiu um risco de fogo alcançar-lhe cada vértebra.
— Como assim, Franco? Não entendi. — fingiu, molhando as palavras no licor de cereja.
Ele captou a intenção e retomou, falando com a voz arrastada como se já estivessem na cama:
— Se por acaso eu fizer amor bem devagar, provando o seu gosto antes de me aconchegar dentro de você... se por acaso eu não resistir e for um pouco agressivo, terei de parar e recomeçar, até encontrar o ritmo certo para levar a dona comigo para aquele lugar que a gente é um só...quando entro em você, Nova.
Ela ficou sem ar.
Duas horas da madrugada, e Val rolava na cama. Desacostumada ao colchão, à suíte e ao ambiente silencioso da Arco Verde. Havia apenas o barulho suave do açude e de alguns pássaros. Vez ou outra se ouvia também pisadas na grama baixa ou nos cascalhos. Eram os seguranças fazendo a ronda ao redor da casa-sede. Outras vezes era possível captar sons no interior do casarão.
O anfitrião comportara-se ao longo da tarde e noite de acordo com o esperado de uma pessoa que viajara pelo mundo e dominava a etiqueta ao lidar com seus hóspedes. Conversara por um bom tempo com a vó de Karen na sala, após lhe trazer um drinque que havia aprendido a fazer em Dubai, conforme dissera com um sorriso polido. Era inquestionável que o poder de Thales Dolejal era o de ouvir e não o de falar, observou Val, enquanto o esquadrinhava durante o jantar e, depois, ao convidar todos para degustarem a sobremesa, um delicioso pavê de sorvete, às mesas ao redor da piscina. Sabrina pulara na água acompanhada por Johnny.
Era notável também o quanto o fazendeiro era suscetível a qualquer manifestação de Karen, a qualquer gesto ou postura, como se tivesse um radar preparado para captar fosse palavra, suspiro ou torcer de lábio. À mesa, considerou observar inclusive a cunhada. E durante o tempo inteiro ela mais estivera concentrada no celular, tentando falar com Rodrigo ou enviando um milhão de mensagens do que comendo ou conversando com alguém. Fora por ela que Val soubera que Bonnie se recuperaria do ferimento. Motivo de abraços e lágrimas de alívio entre os Malverde.
Apesar de toda a educação e polidez de Thales, Val ainda se mantinha na defensiva, investigando as suas intenções. Ele nunca tentara se aproximar dos demais membros da família Malverde. Agora posava de bom-moço e tudo o que representava em Matarana e o seu próprio passado eram simplesmente esquecidos. Não para Valéria.
Ao ouvir os roncos do seu estômago, resmungou baixinho e pulou da cama. Se estivesse na sua casa já teria assaltado a geladeira uma hora atrás. Pôs a cabeça para fora da porta e espiou o corredor na penumbra. Postou-se diante do espelho de corpo inteiro e considerou a roupa que vestia. Uma camisola de malha, comprida até os calcanhares, mangas curtas e gola redonda. Ponderou, incerta, se deveria pôr um roupão por cima, caso fosse pega em flagrante zanzando pela casa. Entretanto, o que poderia haver de sensual ou despudorado em uma roupa que um fantasma internado num hospital vestiria? Era verdade que seus peitões apertassem a malha e a sua bundona também. E em vez de voltar à dieta e aos exercícios nos equipamentos de academia do irmão, o que ela ia fazer? Cometer um assalto à mão armada cheia de dedos contra a geladeira. Deu de ombros indiferente ao levar em consideração o fato de que o seu corpo era saudável e ele não estava no mundo para agradar ninguém, a não ser a vontade de sua proprietária. Vontade que no momento era a de comer.
As portas dos quartos estavam fechadas e uma nesga de luz melancólica banhava as salas do andar térreo, iluminadas pelos refletores nos jardins e à frente do casarão. Alcançou a cozinha e notou que Irene e as demais empregadas haviam-se recolhido para seus quartos. Sabia que a governanta morava numa casa ao lado do casarão, vivia com o marido e um mundaréu de passarinhos engaiolados.
Preferiu manter-se no escuro. Abriu a geladeira e buscou com avidez o pastrame que comprara no mercado antes de ser obrigada a se esconder na Arco Verde. Conjecturou que um sanduíche duplo com provolone, requeijão e meia dúzia de azeitonas não mudaria a rotação do planeta nem aumentariam suas gordurinhas localizadas.
Ao se voltar com os braços ocupados com o pão de forma integral e os potes que recheariam a sua noite de emoção, quase desmaiou e se esqueceu de deixar de sorrir, visto que a antecipação em comer desenhava no seu rosto um sorriso perfeito de satisfação.
Ela reconheceu o homem vestido no roupão escuro, sentado à mesa, diante de um belo sanduíche e um copo de leite.
— Esse é melhor horário para se fazer uma boquinha. — disse Thales com um sorriso.
Sentindo-se uma pateta, Val recuou incapaz de encará-lo.
— Tudo o que peguei foi comprado por mim. Aliás, a comida no jantar foi feita por mim e pela cozinheira. O que eu não puder pagar com dinheiro, pago com meu trabalho. — afirmou com altivez.
Thales riu baixinho.
— Não nega a origem. — disse com ar divertido e fez um sinal com a mão indicando-lhe a cadeira à sua frente: — Sente-se, Valéria, e me faça companhia. Quer que eu prepare o seu lanche?
— Não, obrigada. — resmungou.
Ajeitou os mantimentos sobre a mesa e começou o festival de atrapalhadas. Primeiro, a faca caiu. Ela se curvou para pegá-la e acabou puxando a toalha com o prato de Thales. Ele o segurou enquanto via o copo virar e o leite se espalhar pela mesa. Constrangida, Val levantou o copo que escorregou de suas mãos até a ponta da mesa. Pulou para alcançá-lo antes que caísse e, com o impulso, bateu a barriga contra o móvel e gemeu.
Thales ergueu-se da cadeira aturdido por toda aquela confusão. Segurou-a pelos ombros obrigando-a a encará-lo:
— Por que está tão agitada, mulher? — perguntou, sério.
— Quer mesmo saber a verdade ou prefere que eu continue a desempenhar o papel da irmã compreensiva do seu suposto amigo? — perguntou num tom de acusação.
Ele franziu o cenho.
— Vamos por partes, ok? — pediu, ainda de posse de seus ombros — E prefiro começar pela parte do “suposto amigo”. — enfatizou.
Ela foi direto ao ponto.
— O único amigo que o meu irmão tem se chama Cristiano Bittencourt. Sei muito bem quais são as suas intenções. Antes da Karen ir morar com o Rodrigo, para você, ele significava meramente uma peça no seu esquema de Poderoso Chefão de Matarana, a extensão do seu poder na delegacia da cidade. Nada mais. E, depois da Karen se tornar a mulher dele, voltou a se aproximar para dar o bote e lhe roubar a antiga namoradinha. Nasci à noite, meu caro, mas não ontem. — avisou-o.
Thales soltou-se dela a fim de acionar o comutador. A lâmpada oscilou e depois clareou o ambiente. Ele precisava observar a feição alheia para prosseguir em uma conversação. Esquecera-se do quanto a irmã de Rodrigo era geniosa. E do quanto era formidável o corpo grande colado à camisola. Não era gostosa como Karen, mas era um bom corpo para se pegar numa cama. Ainda por cima, com cabelos longos, olhar feroz e determinada a ser correta como o irmão. Algo dentro dele se contorcia quando encontrava alguém empunhando a bandeira da virtude. Boa parte das vezes o “certinho” da história não passava de um legítimo hipócrita.
— Respeito e admiro o seu irmão como profissional. Mas você tem razão, o meu amigo de verdade também é o Cristiano. Pelo menos ele não roubou a minha mulher assim que teve oportunidade. — falou com serenidade e firmeza.
— Eu sabia. — afirmou com desdém — Essa papagaiada toda de proteção aos Malverde e Lisboa é só para separar o Rodrigo da Karen...
— Não, Valéria, — ele a interrompeu com secura: — não quero ver o seu irmão desaparecer como já aconteceu com outras pessoas. Você matou a charada que, na verdade, não era muito difícil de compreender. O Rodrigo me é útil vivo e no lugar em que está. — ele parou e varreu-lhe o rosto com olhar duro: — E agora a segunda parte da questão. Por que está tão agitada, mulher?
Valéria tivera muitos romances na vida. Todos, sem exceção, de curta duração. Envolvia-se com facilidade e cedia à paixão sem pensar em jogos de sedução. Acordava com a sensação de que fora com avidez demais ao pote e assustara o pretendente. E assustava. De repente eles se tornavam workaholics ou um parente adoecia gravemente ou uma viagem despontava no horizonte. Amores sem futuro — era o que sempre sobravam para ela.
— Só queria comer o meu sanduíche em paz. — balbuciou.
— Então... coma. — disse com um sorrisinho malicioso.
— Certo, é o que pretendo fazer. — falou com azedume.
— Precisa de ajuda? — perguntou, arqueando levemente a sobrancelha. Um gesto que valia pelas palavras não ditas.
— Não, obrigada, Thales, sei pôr um pão sobre o outro e enfiar o recheio no meio. — disse nervosa, ao que o ouviu rir com vontade e corou violentamente. — Não quis dizer isso... não me referi a sexo ou... — parou e baixou a cabeça, vencida.
Ele parou de rir e ergueu-lhe o queixo com o dedo em gancho para fitá-la com intensidade.
— Que pena.
Val encarou-o desconfiada. Ele só podia estar tirando sarro dela, o filho da mãe!
— Fico feliz por ter o poder de diverti-lo, me disseram que a última vez que você foi ao circo o palhaço entrou em depressão. — ironizou.
— Você é uma coisinha adorável, Valéria, e eu também ficaria muito feliz em poder diverti-la. — comentou com um sorriso arrogante.
Ela sentiu as bochechas pegarem fogo.
— Por acaso acha que sou uma vadia, é? — elevou a voz.
— Espera aqui, que já respondo... — ele falou, olhando por cima dela, para a porta de vidro.
Viu-o retesar os maxilares e se afastar em direção à saída. Curiosa, ela o seguiu. Uma porta dupla de vidro separava a cozinha do gramado que circundava a piscina. Thales caminhava a passos largos, os pés descalços, em direção à lateral do casarão.
Por um momento, Val temeu que ele tivesse visto um invasor. Olhou ao redor e reconheceu um ou outro segurança. Eles estavam em seus postos e de lá não saíram, mesmo com a obstinada perseguição do patrão a quem quer que fosse.
Antes que alcançassem o muro imponente que protegia a intimidade do jardim e piscina atrás da casa-sede, a irmã do delegado avistou a razão da repentina mudança no comportamento do fazendeiro.
Karen preparava-se para entrar no Maverick e partir.
— Aonde pensa que vai? — ele gritou, e alguns pássaros bateram asas e voaram.
Karen nem se deu ao trabalho de ver quem gritava, sabia antecipadamente que Thales poderia tentar detê-la. Contava com um ou outro obstáculo até deixar os limites da Arco Verde e seguir para o Scalpel. Precisava ver Rodrigo, uma vez que suas ligações eram rejeitadas sucessivamente. Uma única mensagem, curta e direta, fora-lhe enviada: “Bonnie conseguiu escapar”. Depois mais nada.
Ela não conseguia comer, dormir e muito menos pensar direito. A verdade era que por mais que fosse um policial treinado e armado, Rodrigo ainda era apenas um ser humano de carne e osso. E estava sozinho, longe de sua família, acuado num quarto de hotel.
Antes que abrisse a porta do automóvel, percebeu Thales atrás de si.
— Aonde pensa que vai? — repetiu, os lábios agora mal se descolando.
Virou-se e observou os sulcos profundos ao redor dos seus olhos e a expressão dura de quem já sabia a resposta.
— Preciso vê-lo. — disse apenas.
— Sabe que não pode. Ele me apoia na decisão de mantê-los protegidos aqui. —afirmou com convicção, as narinas dilatadas denunciavam o desprezo que sentia em ter de lidar com aquele assunto. — Volte para o seu quarto e engula um Lexotan, já que está sem sono. — ordenou.
Valéria esgueirou-se contra a parede para observar melhor a cena. Karen era um osso duro de roer e Thales não ficava atrás. Ambos eram tão parecidos que tinham tudo para se enquadrarem e viverem juntos. Ao passo que com Rodrigo, Karen tinha o seu oposto. Rodrigo era centrado, racional e romântico. Um cara meio fora de moda, um cavalheiro protetor e fácil de lidar. E Thales Dolejal era um ogro dos infernos, considerou Val, de olho no casal que se enfrentava mais uma vez, mas sem deixar também de se lembrar das palavras luxuriantes do fazendeiro, do olhar rastreando cada parte do seu corpo como uma marca de mão num vidro embaçado. O pior nisso tudo era que ela não sentira raiva ou repulsa em ser revirada do avesso, em ser tratada como um objeto sexual. Porém, deveria; pois sempre fora assim que os homens a trataram.
Podia chover sapos que ainda assim Karen entraria no seu Maveco e cruzaria a cidade até alcançar a 163 para bater à porta do quarto do delegado.
— Olha só, meu chapa, acho desnecessário dizer que manter pessoas em cativeiro é crime previsto no código penal.
— Pode falar o quiser, mas se sair por aquele portão não tem mais volta. Ficará por conta própria, sem a minha proteção. — declarou sem elevar a voz. Sempre contido e seguro de si.
Ela sorriu com prazer.
— Sabe o que faz com a sua proteção?
— Você se acha muito esperta, não? — indagou mordaz — Saiba que se for pega por algum capanga do Marau, o Rodrigo será obrigado a se expor para libertá-la. O coronel sabe que você dorme com o delegado. Isso significa que tudo o que ele está fazendo para proteger a sua família e se proteger terá sido em vão. E por sua culpa. — afirmou secamente.
— Ninguém vai me pegar.
— É mesmo? O Mendes conseguiu pegá-la com bastante facilidade e, inclusive, o Rodrigo estava bem perto e não pôde fazer nada para detê-lo. — ironizou.
— Às vezes você consegue se superar em canalhice, Thales. Talvez devesse ganhar mais um troféu. — disse com cinismo.
— Se sensatez é canalhice, então, sou sim um canalha. — considerou com tranquilidade e, em seguida, pegou-a pelo antebraço afastando-a do veículo. — Telefonarei para o Rodrigo, tenho certeza de que ele não rejeitará a ligação de um número que não seja o do seu celular. — um tom de maldade acompanhou a afirmação serena. — Vamos até o meu quarto.
Ela tentou se desvencilhar em vão.
— Nada de quarto com você.
— É onde está o meu celular, Karen. Não tenho intenção alguma de desvirginá-la. —debochou, apertando-lhe o braço.
— Está me machucando. — reclamou.
Ele soltou braço dela o suficiente para mantê-lo ainda em seu poder.
— Fica tão pequena correndo atrás do Rodrigo. — desferiu com menosprezo.
— Quem desdenha quer comprar. — zombou.
Ele se virou e fitou-a com raiva.
— Não sinto tesão por mulher que rasteja.
— A não ser que rasteje por você, não é mesmo?
— Nem por mim. Tenho a tendência a pisar sobre quem rasteja, porque é para isso que servem as pessoas fracas. Você já foi mais bonita e interessante. Havia fogo em seu olhar e paixão no seu corpo. Era uma mulher de verdade e não uma mulherzinha dependente de macho. — falou com dureza.
Karen riu até sentir as lágrimas deslizarem pela face.
— Jamais cogitaria que um dia veria Thales Dolejal com dor de corno. Pode falar o que quiser, a questão é que nada disso é pra você, meu bem. Pra você, eu fiz uma coroa de guampas!
O fazendeiro parou e a encarou sem mexer um músculo. Karen manteve o ar nos pulmões diante da intensidade daquele olhar. Havia tamanha dor que ela sentiu frio em pleno centro-oeste. Preparou-se para se desculpar, talvez tivesse acertado alguma artéria importante, cutucado um nervo inflamado. Atingira-lhe o limite, assim como acontecera com Rodrigo. Karen não sabia quando parar.
Valéria grudou-se à parede e fechou os olhos. Assombrada com o que acabara de ouvir. A ousadia de Karen assemelhava-se à ingenuidade de um homem-bomba que se explodia acreditando no paraíso e nas virgens. A cunhada era uma suicida em potencial. Restava a alguém, como Rodrigo, por exemplo, avisá-la sobre.
Thales soltou-lhe o cotovelo para lhe pegar a mão. A voz estava ligeiramente embargada quando ele mal abriu a boca para falar.
— Quero que se case comigo. — ele esperou por uma reação que não veio. Karen olhava-o paralisada. Por isso ele continuou: — Casa comigo, Karen, e eu a tornarei a mulher mais poderosa de Matarana. Terá todos aos seus pés, todos que a humilharam. Casa comigo porque eu amo você.
Valéria teve de tapar a boca com a mão para não deixar escapar um palavrão cabeludo. Sua antipatia por Thales Dolejal diminuiu bastante ao constatar que ele estava muito doente. Qual homem em sã consciência era maltratado por uma mulher e ainda assim lhe fazia uma declaração de amor? Um doente obsessivo — cogitou.
O Aeroporto de Santa Fé possuía um terminal de embarque e desembarque com a capacidade para cerca de quarenta passageiros por dia. O saguão lembrava as praças de alimentação de um Shopping Center com lojinhas de conveniência e Cafés. Um toque de sofisticação que parecia entreter a vista dos recém-chegados e que lutava bravamente para ofuscar o campo de terra batida que ladeava a pista do aeroporto.
Cris terminou de beber o seu café expresso e saiu em direção ao portão de desembarque. O voo vindo de Cuiabá estava atrasado. Fretando um jato particular da capital até Santa Fé, vindos de um voo comercial de Belo Horizonte, os pais de Nova em breve conheceriam a terra onde a filha decidira se enterrar.
Cumpria dessa forma a sua função de amigo de longa data, não apenas se preocupando com o rumo que Nova decidira tomar em sua vida, e sim agindo inclusive para o seu bem. Afinal, seus novos amigos em Matarana não a conheciam como ele, desde a infância. E, para eles, era fácil aceitar que ela se juntasse com um bandido emocionalmente instável.
Reconheceu de imediato o desembargador ladeado por sua esposa. Era um homem de quase sessenta anos, encorpado, grisalho e polido. Usava um terno escuro e caminhava com os ombros retos e o olhar tranquilo que parecia transpassar as pessoas. O pediatra receava que o doutor Guilherme Castilhos Monteiro – que, para Cris, era simplesmente Guilherme, fosse amolecer o coração assim que pusesse os olhos na filha. Porém, a senhora elegante de traços faciais clássicos vestida num conjunto de blusa e saia em tons pastéis, discreta até o último fio de cabelo, representava o papel da mãe tradicional, ou seja, a que desejava o melhor para a sua filha desde que estivesse de acordo com os seus próprios planos. Seria ela, Raquel Monteiro, a sua verdadeira aliada.
O maior trunfo de Cris era o conhecimento. Ele sorriu levemente ao se lembrar de uma das várias frases famosas de Sigmund Freud, “Só o conhecimento traz o poder”. Nova era uma pessoa como qualquer outra que precisava da aceitação alheia; principalmente, a dos pais. Como era a rainha soberana no coração do pai, cabia conquistar o coração materno. E Cris não era ingênuo quanto a isso, Nova se embrenhara no cerrado para ficar ao seu lado não apenas porque o amava, mas também para realizar o sonho de Raquel de vê-la casada com o filho mais velho dos seus amigos Bittencourt.
Ainda que explodisse várias vezes ao dia, visto que tinha pavio curtíssimo, Karen não conseguiu nem tentou refrear a fúria irrompida do âmago do seu ser. Coube-lhe apenas aceitar os desígnios de sua natureza agressiva e espalmar a mão na face do latifundiário.
Ele não tentou se proteger, permanecendo imóvel e impassível, somente os olhos viviam febrilmente aquele momento, fixos nela, embaçados pela água transparente que destacava as órbitas congestionadas.
— Desgraçado! — ela começou a gritar — Você teve dez anos para dizer que me amava! Fui louca por você e acabei me transformando nessa desajustada que não consegue fazer ninguém feliz! Eu sou assim porque você me fez assim! Tanta vontade de ser importante pra você e o que fez, hein, cretino? Matou os meus sonhos romanticamente idiotas e me tratou como uma mercadoria descartável! Não tem o direito de dizer que me ama! Jamais voltarei para você! Jamais me venderia para ter a merda do seu sobrenome! A única maneira de recuperar pelo menos o meu respeito é mantendo o Rodrigo a salvo do coronel e, se nem pra isso você serve, quero mais é que morra de uma forma lenta e dolorosa.
Antes de terminar de gritar ferozmente, ela já estava com os punhos fechados golpeando-lhe o peito. Seu corpo tremia em ondas que quase a tiravam do chão. Tentava machucá-lo, arrancar sangue, feri-lo ao ponto de vê-lo prostrado de joelhos. Era tamanho ódio, um ódio de anos nascido de um amor antigo, que irrompeu num choro convulso sem deixar de bater no ex-amante igual a um pugilista no saco de areia.
Ele aguentou os golpes sem se esquivar. A massa firme de seu corpo cedendo apenas milímetros para trás ao receber as pancadas. Não ergueu os braços para contê-la nem as mãos para se proteger. E quando um dos socos atingiu-lhe o nariz, o recuo da cabeça foi devido à força do ataque, e não ao instinto de proteção, haja vista que de suas narinas dois filetes de sangue deslizaram. Mas o que lhe causou maior impacto, revolvendo dentro de seu íntimo sentimentos obscuros e tensos, não foi a brutalidade de Karen ou as suas duras palavras. Ela chorava. E ele nunca presenciara o som e a dor do seu choro. Vendo-a tremendamente infeliz, puxou-a para si com força, apertou-a entre os seus braços num gesto de consolo e que também podia ser de posse. Presa e ajustada ao tórax firme, Karen começou a espernear, acertando-lhe chutes nas pernas. E isso ele também aguentava.
— Me perdoa. — ele pediu, quando, enfim, ela aceitou o seu domínio e chorou contra o tecido macio do seu roupão. — Nunca me relacionei com outra pessoa durante o tempo em que estive com você e pensei que na minha fidelidade já estivessem implícitos o amor e a lealdade. Sei que errei por não demonstrar o que sentia. Nos primeiros anos, fiquei apavorado com sua impetuosidade, com o seu cerco ao meu redor, e criei um sistema para contê-la. Você não me asfixiava nem me pedia nada, Karen, de jeito algum. Não a tornei uma espécie de amante eventual, como me disse outro dia, por desvalorizá-la. A verdade é que pouco sei lidar com as pessoas, não confio nelas, não acredito nelas. E achei que a tratando como um mero caso reduziria os seus efeitos sobre mim. Isso não justifica os meus atos, mas pode explicá-los, se tiver boa vontade para acreditar em mim. — ele parou, tentando reunir as palavras certas que representassem com exatidão os matizes nebulosos de sua alma, e murmurou para somente ela ouvir: — Não posso perdê-la uma segunda vez.
Aos poucos Karen tomou consciência do que acabara de ouvir e o que tal declaração significava. Era certo que um indivíduo poderoso, para obter tamanho destaque, deveria no mínimo ser persuasivo e obstinado. Enquanto ela se afastava dele o suficiente para conseguir abraçá-lo pela cintura, ponderava a respeito de seu próximo passo. Ele não mentia. Havia-se exposto como uma clareira ao sol a pino. Baixara a guarda, recolhera o ego, pisara sobre a arrogância e a superioridade que lhe eram peculiares. Ele a queria de volta. Amava-a. E um homem como Thales, quando amava, lutava com todas as armas para vencer. E mais uma vez Rodrigo se encontrava na linha de fogo.
Ela se separou um pouco do abraço, erguendo a cabeça para fitá-lo. Viu-o sangrando. Estranhou que sentisse compaixão e uma vontade considerável de limpá-lo e restituí-lo novamente ao seu posto de líder autoconfiante que era. Estava diante de um homem forte fragilizado. Olhos que mendigavam toldados por lágrimas que não caíam, presas no dique entre as pálpebras, no restinho de dignidade que ele tentava manter. Mesmo que demonstrasse estar devastado.
— Vamos lá para dentro limpar esse nariz. — falou como uma esposa ao marido amado que voltava aos pedaços de uma briga na rua.
Ela pegou-lhe a mão. Ele não se moveu do lugar.
— Quero que se case comigo. — insistiu com seriedade.
Karen suspirou profundamente.
— Não casarei nem com você nem com qualquer outro homem. — disse com indiferença. — Um pedido de casamento não é o entoamento de uma fórmula mágica para a felicidade. Já casei uma vez e não costumo repetir experiências ruins.
Ele ameaçou um sorriso.
— Nunca casou comigo. Quero lhe oferecer algumas garantias, direitos sobre minhas propriedades, por exemplo. — argumentou com bom senso e emendou insinuante: — Trata-se agora de um relacionamento afetivo, Karen, não mais de uma aventura erótica.
Thales levou a mão ao nariz e com o dorso limpou o sangue que já lhe atingia o lábio superior. Por um momento contemplou o vermelho vivo contra a sua pele clara e uma imagem que tentava esquecer retornou com ímpeto para ocupar a sua mente. Abraçado à figueira e amarrado ao seu tronco por duas voltas de cordas trançadas, ele sentia escorrer o sangue a cada rasgo que queimava e abria a pele de suas costas com os açoites do avô. Percebeu então que uma de suas mãos entrelaçava seus dedos entre os dedos de Karen. Desviou o olhar daquele gesto inédito entre ambos e a encontrou fitando-o talvez com o mesmo pensamento. Eles nunca haviam caminhado de mãos dadas.
Ela falou antes dele:
— Não podemos mudar o passado nem deixar de sermos quem somos. Estamos cansados demais para mudarmos...
— Quem pediu para você mudar? — perguntou, franzindo o cenho.
Karen desviou o olhar de Thales para um grupo de capangas vigiando-os ao longe, atentos. Era evidente que presenciaram o seu ataque ao patrão. Porém, inexplicavelmente, mantiveram-se a distância.
Aquela pergunta remetia novamente a Rodrigo. Era ele quem queria que ela mudasse.
— Thales, olha, preciso saber como está o Rodrigo.
— Eu também quero saber como está nosso amigo em comum. Tenho certeza de que ele apurou mais coisas sobre as ações do coronel. — considerou de um jeito neutro, mas fazendo questão de manter sua mão na dela enquanto se encaminhavam para retornar a casa.
— Será que quebrei o seu nariz? — perguntou com remorso.
Ele levou a mão ao nariz e o apertou, sorrindo jovialmente ao soltá-lo:
— Está inteiro, senhorita Lisboa.
Era uma novidade o sorriso, ela considerou para si.
— A gente já tinha acertado nossas pendências... — afirmou, ao que o sentiu puxá-la pela mão a fim de virá-la para si: — O que foi agora?
— Karen, o acerto de nossas pendências será diante de um Juiz de Paz com testemunhas e alianças. O que pensa sobre casamentos, teoricamente, é interessante, mas em termos práticos bastante limitado. Precisamos de garantias, todos nós, não apenas eu e você. Quero lhe dar segurança e conforto como jamais teve na vida. E se tiver de pedi-la em casamento todos os dias o farei. É claro que o próximo pedido será acompanhado de diamantes. — completou com um sorriso gentil.
Ela balançou a cabeça devagar já à entrada da cozinha.
— Qual a dificuldade para assimilar que eu amo o Rodrigo? — indagou emocionalmente exausta.
O fazendeiro contraiu os maxilares e foi toda a emoção que permitiu demonstrar. Logo depois, encarou-a com um olhar profundo e terno, sacudindo alguns alicerces dentro dela. Foi taxativo ao sentenciar:
— Todos os dias pedirei para que se case comigo.
— Thales... — começou, contrariada.
Ele interrompeu-a decidido:
— Nada importa.
— Pelo amor de Deus, acabei de dizer que amo outro homem! — exclamou impaciente.
— Me perdoa a sinceridade, Karen, mas não acredito em amores instantâneos. Ainda mais os nascidos no calor de uma separação recente, quando estamos carentes e confusos. O nosso amigo estava por perto, e não a culpo por aceitá-lo como suporte, assim como não culparia um acidentado por se tornar dependente de uma bengala. Agora você tornou a se fortalecer e é meio estranho que com pernas biônicas ainda prefira se arrastar com uma muleta. — ironizou para, em seguida, concluir com gravidade: — O Rodrigo também partilha dessa mesma opinião, tanto é que você está aqui debaixo do meu teto.
— Ele confia em mim. — afirmou.
— Confia? — indagou com escárnio, alçando a sobrancelha: — Confia mesmo? Por que deveria confiar se você jamais falou para ele sobre sua ligação com o Vitorino e as corridas em Belo Quinto e, inclusive, nas minhas terras? Ele sabe que você mente. Ninguém confia em você, Karen. A diferença é que eu a amo sem condições enquanto o suposto amor do Rodrigo é cheio de ressalvas.
Rodrigo acordou com o barulho do celular sobre o criado-mudo. Foi difícil abrir os olhos e voltar do sono profundo. Escorou-se nos cotovelos e atendeu o chamado, verificando antecipadamente a origem da ligação. Era o número da DP.
— Fala, Adele. — resmungou com a voz sonolenta.
— Oh, que judiaria, chefe, desculpe acordá-lo. — falou a escrivã em tom de lamúria. — Por mim, deixaria o senhor na cama... — ela pigarreou e prosseguiu: — Mas o problema é que deu merda na Vila Zumbi.
Ele arou o cabelo com os dedos e sentou-se devagar, apoiando as costas contra a guarda. Sentia um gosto amargo na boca e as pálpebras pesadas. Parecia que estivera desmaiado por horas. Bocejou alto e perguntou indiferente:
— Nada que meia dúzia de PMs possam resolver?
— Ah, sim, eles podem. Na verdade, foram eles que ligaram para a delegacia. — afirmou Adele e emendou com escárnio: — Me diz uma coisa, chefe, se o senhor tivesse o poder de prever o futuro e descobrisse que levaria um tiro entre os olhos numa noite de sexta-feira, ainda assim ficaria em casa, de pijama puído, dormindo com a cabeça sobre um travesseiro sem um tresoitão debaixo dele? Pois é, grande bosta ser cartomante!
O delegado previu que teria uma longa noite pela frente.
— A avó do Joaquim foi assassinada?
— Sim, Allison DuBois. — respondeu espirituosa.
— E o Joaquim?
— Foi embora com ela.
Depois de desligar o celular ainda ficou por um tempo olhando para o aparelho. Esfregou o rosto com as mãos. Enfiou-se debaixo da ducha, baixou a cabeça e permitiu que o jato forte de água quente lhe pressionasse a nuca. Ensaboou o corpo, os pensamentos distantes dali, levando-o pela BR-163, cruzando-a para o outro lado da rodovia. Eles não haviam sido mortos porque Joaquim andara na picape com a polícia. Outras vezes, fora até a vila e também conduzira para delegacia suspeitos de crimes menores.
Olhou-se no espelho percebendo que estava livre das olheiras de abatimento. Aproveitou para raspar o cavanhaque. Vestiu-se, pôs o chapéu e foi buscar a resposta racional para uma suspeita que o seu instinto exigia que se comprovasse.
Pouco antes do amanhecer retornou a Vila Zumbi. Meia dúzia de vizinhos pisavam sobre o gramado ralo, curiosos e amedrontados. Dois policiais militares procuravam afastá-los falando baixo e olhando-os de forma suspeita. Bastava viver naquele lugar para se tornar suspeito de algum ato ilícito. Os moradores mais próximos da casa de Iranilda tinham interesse em saber se a tragédia que a abatera poderia também acertar-lhes na telha, pensou o delegado, acenando levemente com a cabeça para os policiais e entrando na casa, enquanto ajustava as luvas de látex nas mãos e encontrava Adele já no corredor, em frente à porta do primeiro quarto.
— Os peritos de Santa Fé já estão a caminho. — informou logo que o viu e, antes que esboçasse sinal de surpresa, uma vez que a perícia criminal de Matarana dependia da boa vontade dos profissionais da cidade vizinha, ela atacou com rapidez: — Ainda assim é possível se ter uma boa ideia do que aconteceu por aqui. Agora vou dizer uma coisa, nunca vi tanto sangue fora do corpo! Se serve de consolo a alguém, ela morreu sem imaginar o que lhe acertou a cabeça.
Rodrigo seguiu-a pelo corredor, observando ao redor vestígios que fornecessem pistas sobre o crime brutal contra uma idosa. Não precisou se esforçar na busca para encontrar, diante da porta do próprio quarto, o ex-futuro médico caído no chão, a poça de sangue por baixo das costas espalhando-se como um véu de noiva, o tórax destroçado. Voltou-se para a escrivã constatando um fato:
— Pelo visto ele ouviu o tiro e saiu ao encontro da avó. Foi pego no meio do caminho.
Adele sacudiu a cabeça concordando e apontou em direção ao quarto de Iranilda, na posição onde se encontrava sua cama e ela sobre, de bruços, debaixo do lençol e do sangue espesso com pedaços do cérebro.
Não era uma boa visão aquela, a escrivã permitiu-se varrer o local do crime com os olhos, captando a destruição de uma cabeça humana por uma provável Taurus. O delegado completou os pensamentos da policial:
— Foi um tiro bem de perto e pelo estrago só pode ser uma .40. — ele torceu o lábio para baixo num ricto de desgosto: — Aparentemente nada foi roubado. Veja ao redor, tudo no seu lugar. — fez um gesto amplo com a mão e emendou com secura: — Foram executados.
— É, chefe, mas a porta dos fundos me confidenciou que ela foi arrombada por um pé de cabra.
— Interessante. — comentou sem muito entusiasmo, aproximando-se do corpo debaixo do molho vermelho. — Os ossos do crânio fraturaram. — observou, jogando o foco de luz da lanterna para a pasta emaranhada de sangue, miolos e cabelos ralos.
— Tenho aversão as .40. — comentou a escrivã, analisando cada parte do quarto a fim de detectar uma provável digital.
Rodrigo lembrou-se do seu tempo de academia e o que sabia sobre esse tipo de arma. A bala das .40 tinha um furo na ponta que se abria no momento em que atingia o alvo. Se, por exemplo, alguém atirasse contra uma melancia com um .38, conseguiria um buraco na fruta e ainda a manteria intacta como um todo. Já a bala da .40 estilhaçaria a melancia em vários pedaços. E era isso que esse tipo de projétil fazia no corpo humano, esmagando e rompendo tecidos, criando sulcos preenchidos pelo sangue das veias dilaceradas.
— Qual era o calibre das cápsulas que você juntou no alpendre lá de casa?
Ela se virou ligeiramente incomodada. Respondeu sem pestanejar:
— Pela minha cara o que o senhor acha?
Rodrigo sorriu levemente, era um sorriso triste.
— Imagina, então, como está a patinha da Bonnie. — suspirou resignado e completou insinuante: — Sabia que a Taurus é a arma predileta dos pistoleiros do coronel Marau? Além disso, o laudo do legista que fez a necropsia no corpo do Vilela apontou que ele foi morto também por uma .40. Ou seja, pode ter dedo do coronel aqui e na morte do corretor, há dois meses.
— Pois é, mas não temos como provar que somente os pistoleiros do Marau usam esse tipo de arma. — ponderou.
— É insustentável, eu sei. Bem, quero esperar os peritos por aqui. Antes, porém, vamos conversar com o Joaquim? Quem sabe ele não nos “fala” alguma coisa. — propôs o delegado com humor negro e uma ponta de razão. Afinal, as vítimas sempre tinham o que dizer sobre seus algozes, fosse por meio de impressões digitais ou material para análise de DNA.
O delegado aproximou-se da segunda vítima, caída de costas na poça de seu próprio sangue. Pela posição do corpo, constatou que de fato Joaquim fora surpreendido pelo assassino no corredor, assim que ambos saíam dos quartos. O tiro fora disparado contra o peito do rapaz, encharcando a sua camiseta de sangue, e jogando com brusquidão o seu corpo para trás. Joaquim ainda fitava o teto depois de morto, enquanto pouco acima de sua cabeça jazia uma 9 mm recentemente usada — constatou Rodrigo, impassível.
Endereçou a atenção à parede ao fundo, de onde, à saída da porta, possivelmente surgira o assassino logo após matar Iranilda. Se Joaquim acertara o alvo, não haveria marca no reboco da alvenaria. Aproximou-se e perscrutou o local, encontrando a marca de tiro no reboco da parede.
Depois de fazer todas as verificações necessárias na cena do crime, irrompeu porta a fora, encontrando Adele conversando com uma senhora baixa, enrolada no robe atoalhado e fumando nervosamente. Era uma das vizinhas e clientes da vidente. Falava e balançava a cabeça, revirava os olhos e descrevia Iranilda como uma boa mulher que criara o neto com rédeas curtas depois que a filha fugira com um policial, sim, ela repetiu para a escrivã:
— Um policial de Santa Fé, parece que se apaixonaram e deram o fora da vila, o pobre Joaquim ficou para trás. Iranilda fez o melhor que pôde para criar o neto...
Enquanto a senhora enrugada e de voz grossa de fumante tagarelava sem chegar a lugar nenhum, Rodrigo circundou o terreno ao redor da casa, um gramado baixo e verde, alcançando o quintal dos fundos. Entrou na garagem onde não havia automóveis. Nos fundos, uma bicicleta e um armário de cozinha, o compensado sugeria o cedro. Abriu suas portas e vasculhou os objetos guardados. Eram somente ferramentas encontradas em qualquer casa, chave de fenda, martelo, alicates e, até mesmo, lâmpadas e um pequeno serrote.
Ele parou com as mãos nos quadris e mascou três vezes o seu Trident. Olhava diretamente para outra porta. E, ao ultrapassá-la, quase ouvia a voz de Joaquim bem atrás de si, fazendo troça:
— Está morno, delegado... agora esquentou...está fervendo...
Olhou ao redor. Mesa, balança de precisão, rolos plásticos, colheres medidoras.
Ele sacudiu a cabeça devagar, bem devagar, com raiva do idiota morto no corredor da sua própria casa. O futuro médico traficando. Descobrir o que já suspeitava não o surpreendeu. Desde que o nome de Joaquim Santiago saíra da boca do neto do coronel Marau, ele sabia que havia, sim, algo de podre no reino de Matarana. Joaquim estava traficando óxi e, provavelmente, era abastecido por Vitorino com a pasta de coca. Restava saber se Vitorino agia sozinho ou em conluio com o coronel. Nesse ponto do raciocínio, o delegado torceu o canto dos lábios num esgar de desgosto. Não era um desgosto por ter de admitir que o coronel estivesse envolvido no caso, e sim porque infelizmente era improvável que o latifundiário se metesse com o tráfico de drogas. Assim, era possível que Vitorino agisse por conta própria, na moita, bem escondido das vistas do patrão. E Rodrigo apostava que as botas do braço direito de Marau haviam pisado o assoalho da casa da cartomante naquela madrugada. Acerto de contas, queima de arquivo ou simples execução de alguém pego pela polícia dois dias atrás, ele ainda não o sabia, mas a verdade era que os peritos encontrariam vestígios do pistoleiro na cena do crime.
Ao sentir a saliência debaixo das botas, olhou para baixo e percebeu que havia ainda outras camadas a serem descobertas. A portinha de um porão levou-o aos ingredientes necessários para se fabricar a droga.
Na delegacia, Rodrigo sentou-se detrás da sua escrivaninha e procurou se concentrar na nova situação que se estabelecera na Vila Zumbi. Retirou um celular do saco de provas. Investigou as ligações recebidas, mas se interessou pelas chamadas efetuadas. Cruzou a sala e falou pela fresta da porta entreaberta:
— Descubra para quem o Joaquim ligou quando voltou para casa ontem.
Adele aproximou-se e pegou o celular que lhe fora estendido.
— Certo, chefe. — em seguida, ela o fitou interessada: — E como foi com os peritos?
Ele coçou a cabeça nas mechas curtas perto da nuca. Fez uma careta de desagrado e respondeu:
— Nada conclusivo. De qualquer forma, terei uma conversa com o Vitorino. O Joaquim já havia mencionado o pistoleiro como intermediário dos bolivianos. A questão é que ele não está sozinho nisso. O camarada é conhecido por resolver tudo no tiro, tem um passado nebuloso que pode ser verdadeiro ou invenção para valorizar o seu salário como segurança. Só que, Adele, o Vitorino não tem cabeça para ser um empreendedor, seja do ramo que for, entende? Ele simplesmente é burro demais. Não consigo imaginá-lo organizando uma operação de tráfico internacional, lidando com os bolivianos, construindo uma infraestrutura em Matarana para alastrar a rede de distribuição de óxi. Sei lá, — deu de ombros e prosseguiu: — é muito para uma cabecinha tão limitada.
— Entendi, tem gente graúda por trás. — afirmou, arguta.
— Alguém que está se impondo à surdina. — constatou pensativo — Talvez um forasteiro ou nossos próprios bandidos. Veja se consegue alguma coisa com esse telefone, ok? — pediu, piscando o olho com charme.
Adele assentiu sem sorrir, compenetrada na missão de esclarecer um crime. E foi o que fez nas horas seguintes.
O abraço foi longo e apertado. Um abraço de cinco anos de saudade. Nova permitiu que as lágrimas rolassem pelo seu rosto maquiado. E enquanto ela se afastava centímetros da proteção carinhosa do pai, refletia sobre os motivos de pouco terem se falado desde a sua saída de Belo Horizonte. Um dos motivos estava ao lado dele, a mãe que a olhava de forma avaliativa, como sempre, medindo-a de alto a baixo, conferindo se a criatura que nascera de seu ventre fazia valer cada cromossomo cedido. O problema era que o mesmo olhar que media e comparava, exibia a frustração velada da descoberta. Nova então se sentia compelida a pular fora do ninho e procurar abrigo e calor no amor de um homem. Antes, representado pela figura protetora do pediatra; agora, pelo pistoleiro, o novo chefe da segurança armada de Thales Dolejal.
— Faz praticamente três meses que não nos falamos. — constatou o pai com desprazer, observando de esguelha o rapaz alto segurando um chapéu de caubói na mão; na cabeça, mechas loiras, irregulares, alcançando-lhe os ombros. A feição jovem, extremamente jovem, observou o desembargador, deixou-o intrigado sobre o recente comportamento da filha.
— A culpa é minha, pai, tanta coisa aconteceu nos últimos meses e tão rápido... Sinto que falhei com vocês. — disse, comovida.
— É, minha filha, parece que falhou mesmo conosco. — interrompeu a mãe, puxando-a para o seu abraço por direito.
Abraçou a mãe sem a mesma naturalidade que dedicara ao pai. Havia um vão entre os corpos que representava perfeitamente o relacionamento entre elas, a distância polida entre pessoas próximas.
Nova percebeu movimentos ao seu redor. Cris voltava com dois copos de uísque com gelo para os amigos dos seus pais. Ao passo que Franco mantinha-se na defensiva, atrás da noiva, analisando a cena como se assistisse a um filme de família, bizarro e com buracos no roteiro.
— Imagino que o Cris já os tenha atualizado, não é mesmo? — indagou com ironia, vendo o ligeiro aturdimento de Raquel. Impediu-a de responder ao retomar: — Então, vamos às apresentações. — virou-se para encontrar dois pedaços do céu fitando-a com atenção e gentileza e comunicou aos pais: — Esse é Franco, meu noivo e pai do meu filho.
Guilherme preferiu usar a máscara social que as pessoas bem-nascidas utilizavam em público. Não sorriu nem esboçou qualquer aversão ou antipatia. Estendeu a mão ao desconhecido que engravidara a sua filha.
— Como vai, Franco?
Franco não estava bem. Era inusitado o que sentia. Um misto de ansiedade e receio, talvez expectativa. Havia algo nos pais de Nova que o incomodava. Considerou primeiro que fosse a postura altiva, uma ligeira pose esnobe que lhes endureciam a nuca e a coluna. Porém, quanto a isso ele já estava acostumado, uma vez que o patrão também apresentava esse mesmo ar de quem nascera de uma concha de ouro mergulhada no mar de diamantes, e não que saíra de um lugar escuro meio que escorregando por entre as pernas de uma mulher gritando de dor.
— Muito bem, e o senhor? — apertou a mão do futuro sogro com firmeza, enfiando seus olhos nos olhos dele. Era estranho que visse em sua alma um poço de tristeza. E descobrisse com tamanha facilidade que era um alcoólatra.
O desembargador franziu o cenho, curioso, reconhecendo intimamente que acabara de sofrer uma invasão, como aquelas maquininhas dos filmes de ficção científica, rastreadores que invadiam sistemas cibernéticos a fim de recolher e roubar dados alheios.
Após o término das apresentações e cumprimentos, Cris indicou-lhes o amplo ambiente da sala principal. Foi quando Nova realmente observou o lugar onde o amigo agora vivia. Era sofisticado e com poucos móveis. Não havia quadros nas paredes nem objetos de decoração nas estantes aéreas. O janelão de vidro que separava a sala da sacada estava nu de cortina, exposto em seu vidro e esquadria de madeira nobre. O apartamento onde o médico morava refletia não apenas o seu gosto pessoal requintado — como antes o era o seu apartamento em Minas, refletia também a condição de sua situação atual. A solidão o seduzira para o interior de sua garganta seca.
O anfitrião manteve um sorriso simpático no rosto relaxado. Um rei que governava seus poucos súditos, os mais importantes, no meio da sala do seu reino. O filho de Dolejal debaixo do seu teto ainda lhe causava mal-estar. Contava que após avisar a amiga sobre a chegada dos pais — sem entrar em detalhes acerca de sua intromissão no evento, o rapaz se esgueirasse para o interior da Arco Verde como um cão sarnento a coçar as suas sarnas. Era-lhe nauseante vê-lo parado na sua sala, dentro de sua casa, sorrindo sem timidez para as pessoas que poderiam lhe tirar a mulher, caso fossem felizes em suas argumentações.
— O que faz da vida, Franco? — perguntou a futura sogra, aceitando o drinque do médico e tornando a se sentar no sofá, cruzando as pernas nuas até os joelhos, onde a barra da saia descansava.
Nova não permitiu que ele respondesse. Puxou-o pela mão, conduzindo-o até o sofá de dois lugares, posicionado diante de outros dois. A ideia no desenho da decoração era propiciar aos visitantes o aconchego de um lar, os móveis próximos para induzir conversas íntimas e calorosas.
— Acho que a senhora sabe que ele é segurança particular. — respondeu ela secamente, sentindo a quentura da coxa de Franco colada à sua.
— Sim, mas o que isso significa especificamente? Você fica na portaria de uma fazenda com uma prancheta anotando o nome de quem entra e quem sai? — perguntou Raquel a Franco.
Nova revirou os olhos, irritada. A mãe adorava se fazer de idiota para criar uma boa intriga. Viu quando o pai emborcou a bebida numa golada. Era possível que voltara a beber. Passara-se poucos minutos, e ela queria retornar a sua casa perto do Rio Verde. Virou-se para o noivo que se ajeitava no sofá e, sorrindo, prontamente respondeu:
— Não, senhora, quem fazia isso era o Bronson. O patrão põe o pessoal mais velho na portaria. Com o tempo, a gente perde o pique para correr e sacar rápido as armas. Mas um dia o Bronson falou pro patrão que a portaria era para os ignorantes, para os que não pensavam com muita força, sabe? Ele disse, olha, patrão, não quero ficar parado como segurança de puteiro, certo?, me põe com os camaradas, posso ser o braço direito do Franco. — ele parou, riu baixinho à lembrança da cena e continuou: — Mas eu acabei brigando com o patrão, e o Bronson ficou no meu lugar. Agora voltei a chefiar os pistoleiros e o Bronson foi treinar os índios para se protegeram dos brancos safados.
Era um encanto o modo como ele falava. Nova admirava-o embevecida com a espontaneidade do sorriso que acompanhava as palavras tão simples e tão cheias de verdade. O som melódico de sua voz, como se cada nota fosse banhada no mel, arrastada pela correnteza rouca de seu timbre. Às vezes, as sobrancelhas falavam junto, arqueando-se, acompanhando o movimento dos lábios. Noutras, ele franzia ligeiramente o nariz como um trejeito moleque, revelando uma parte do quê ele ainda o era.
— Frequentou alguma escola?
O disparo seco e direto veio do outro lado da sala. Cris trazia uma latinha de cerveja e o suco de laranja. E esperava pela resposta do seu arqui-inimigo.
— Sim, doutor, várias escolas, por sinal. — retrucou em desafio.
— Interessante, — começou o médico, — então se graduou em quê?
Nova apertou os dedos ao redor do copo. Queria mesmo apertar era o pescoço de Cris.
— Fui expulso de todos os lugares em que pus os pés. — afirmou Franco com naturalidade. — Dizem que os gênios não se adaptam ao sistema de ensino tradicional. — comentou espirituoso.
— Pura verdade, amor. — concordou Nova crédula na teoria — Você é um espírito livre. — aceitando de bom grado o beijo casto na testa.
— A educação formal é importante, faz parte da constituição do indivíduo. Não entendo como um espírito pode ser livre mergulhado na escuridão da ignorância. — objetou o pai.
Foi aí que ela percebeu que estava sozinha no meio de abutres. Relançou um rápido olhar a Franco, que sorvia com prazer sua cerveja, ignorando a secura ofensiva do comentário.
— É que, pai, o que parece escuro para alguns, pode ser excesso de claridade para outros. — afirmou com rispidez.
— Sofismas, Nova. — cortou a mãe, depositando o copo vazio sobre a mesinha de centro e endireitando os ombros antes de completar: — O que importa mesmo é como pretendem criar essa criança. Sinceramente, não reconheço a menina estudiosa, aplicada, que queria se tornar jornalista e viajar pelo mundo. De onde tirou essa vocação para cantora de bar, hein, minha filha? É algum tipo de fantasia juvenil? Ou é para nos punir por termos a deixado à mercê das babás quando era criança? O que fizemos foi tão grave assim para se autodestruir? Aliás, — começou, voltando-se para Cris: — isso vale para os dois. Nunca entendi porque vieram para esse lugar esquecido por Deus. É uma cidade feia e hostil. As pessoas são hostis, nos olham como se fôssemos saqueadores, verdadeiros bandidos. Elas nos encaram ostensivamente, teve uma que parou ao lado de nossa mesa no restaurante e perguntou se pretendíamos fixar residência na cidade e não parecia nem um pouco feliz com a nossa chegada. Acham o quê? Que vamos assaltar um banco? Estou simplesmente chocada.
—O povo daqui é meio desconfiado, sim, senhora. — considerou Franco, espichando as pernas enquanto aspirava no ar a energia negativa que o circundava. — É uma terra de forasteiros que detestam forasteiros. Eles têm medo de que os recém-chegados resolvam fazer o que eles próprios fizeram, que foi empilhar uma cédula sobre a outra enquanto compravam todo o chão da cidade.
— E por que todos andam armados? — perguntou ela, curiosa.
Ao que o desembargador interveio:
— Porte de arma é ilegal. Isso deve ser tratado com o delegado de polícia... Apesar de que em cidades pequenas a maioria é corrupta.
— Não o Rodrigo, nem pensar. — interferiu Nova antes que o pai falasse mais uma asneira. Em seguida, alisou o vestido com as mãos dando a impressão de que se dispunha a levantar-se e partir. — Aqui, em Matarana, as coisas são às claras. A gente usa arma e mostra. Não temos o hábito de apunhalar ninguém pelas costas. — emendou fitando Cris.
Ele corou ainda que sustentasse o seu olhar gelado.
— Bem, vamos passar à outra sala para almoçarmos. Fiz questão de pedir para que me trouxessem moluscos fresquinhos da capital. — ele se virou para Franco e perguntou fingindo interesse: — Aprecia escargot?
O pistoleiro sentiu os olhos da família Monteiro sobre si.
— O patrão gosta muito. — disse com simplicidade.
— E quanto a você, rapaz? — insistiu o médico forçando-se um sorriso.
Franco coçou a cabeça meio sem jeito.
—Talvez eu goste, custa nada experimentar.
Nova sorriu para ele e pegou a sua mão. A gente está vencendo essa parada, meu amor — era o que queria lhe falar. Mas não precisou. Ele falou por ela.
— Sei o que está tentando fazer, doutor, mas talvez só funcione com o seu Guilherme e a dona Raquel. Preparou um jantar com lesma só para me humilhar, mostrar para o pessoal da cidade grande que o caipira aqui não sabe comer direito. Vi o patrão arrancar o bicho de dentro da concha com um garfinho e com a outra mão ele segurava um tipo de pinça. Posso fazer isso também, tenho dez dedos e um pouco de neurônio para me ajudar na empreitada. Acho que não preciso de um diploma para “apreciar” um molusco. — e, virando-se para o casal, continuou calmamente: — E os senhores podem me perguntar o que quiserem. Estão no direito de vocês. Apareci do nada e roubei o coração dessa menina aqui. Não nego de jeito nenhum que pai e mãe são importantes. — deu de ombros e emendou sem constrangimento: — A minha mãe era uma pobre diaba e o meu pai é um camarada muito estranho. Pro inferno que me importo se eles me fizeram sem nunca terem se beijado. A verdade é que nunca me quiseram no mundo, não era para eu ter nascido. E agora vejo os senhores largarem casa e trabalho e virem atrás da filha porque ela corre perigo... isso é realmente bonito. — ele parou e fitou as próprias mãos ao dizer: — Meu pai quando veio atrás de mim foi para me oferecer trabalho, porque, para ele, sempre serei o seu melhor funcionário.
— Franco... — ela tentou interrompê-lo.
— Deixa, princesa, quero dizer aos seus pais que posso viver na escuridão da burrice, mas sou guiado pelo meu coração. Jamais machucaria a filha de vocês. Não se preocupem e não tenham medo do futuro dela. Voltem para casa e vivam as suas vidas. Não quero que incomodem a minha mulher e também não quero que me irritem ao ponto de eu perder a cabeça e dar uma boa surra nesse pilantra comedor de lesma. — afirmou com a voz baixa e perigosamente incisiva.
— Mostrou enfim a verdadeira face! — exclamou Cris de forma teatral. — Sabia que não aguentaria muito a pressão. Conto sempre com a sua instabilidade emocional, pois será ela que um dia o levará a ferir a Nova ou até mesmo matá-la, quando ela acordar do sonho de Cinderela e perceber que se uniu a um desequilibrado.
Guilherme fez um sinal de contenção com a mão para o pediatra.
— Espera, Cris, estamos ouvindo o seu lado desde quando nos buscou no aeroporto. — virou-se para a filha e indagou sereno: — Tem um jeito de eu falar com o pai do seu noivo?
Franco retesou os maxilares.
— Sou maior de idade. — disse, ofendido.
— Eu sei, mas gostaria muito de conversar com a sua família.
— Minha família é a sua filha e a sua neta. — assegurou, sério.
Nova beijou-lhe delicadamente na bochecha.
— Amor, você conheceu meus pais. — começou com doçura, o jeitinho de falar que amolecia a dureza do caubói: — Nada mais justo que os meus pais conheçam também o seu.
Ele pareceu desconcertado com o pedido, balançou o chapéu nas mãos considerando-o, um certo aborrecimento turvava-lhe o brilho dos olhos. Por fim, suspirou fundo, claramente contrariado, puxando do bolso traseiro do jeans o celular.
— Não posso prometer nada sem antes falar com o patrão. — declarou, erguendo-se subitamente e afastando-se em direção à sacada do primeiro andar da cobertura.
Cris observou a situação com a mesma frieza quando usara o bisturi no seu primeiro cadáver na faculdade. Guilherme fitava o vazio, o semblante carregado como se cogitasse a possibilidade de uma nova estratégia para ter a filha de volta ao lar. Raquel, por sua vez, exibia a feição de quem vencera uma batalha, ainda que perdesse desonrosamente a guerra. Mostrara o seu ponto de vista e situara o lugar dos Monteiro no universo, cabia agora à filha continuar chafurdando no lodo ou se permitir mudar o seu destino que, a bem da verdade, era tão-somente continuar o que deixara para trás. Por fim, Nova. Ele olhou para ela e, antecipadamente, sabia o que iria encontrar. Contudo, não de modo tão violento. Ele estava perdendo-a. A cada manobra sua para tê-la ele a perdia. Percebeu com clareza que ela e o seu noivo haviam criado um muro de contenção, um bloqueio que os blindavam contra os outros. E assim se tornavam inacessíveis.
Thales Dolejal desligou o motor da Silverado ao estacionar em frente ao casarão. Antes de atender ao celular, sem se voltar para a passageira, indagou com estudada naturalidade:
— Por que às vezes você desaparece, Virgínia?
Ela engoliu em seco. Trabalhava havia pouco tempo para o fazendeiro e não podia se dar ao luxo de perder a sua confiança. Se bem que parecia impossível que o senhor Dolejal confiasse em alguém. Talvez apenas em Bronson. Sim, com toda certeza, ele confiava no velhote — considerou a pistoleira.
— O Bronson sabe para onde vou quando me ausento. Ao me contratar, falei para ele a respeito de minha mãe. Ela tem Alzheimer e é cuidada por uma enfermeira que nem sempre aparece para trabalhar.
Jogou a mentira no ar.
Com um movimento quase imperceptível de cabeça, ele acatou a justificativa. E como ouviu a voz de Franco do outro lado da linha, passou-lhe despercebido o tremor das veias nas têmporas da mulher. Ela aproveitou para abrir a porta, descer e juntar-se aos demais seguranças.
— Falar com os pais da sua noiva? — repetiu Thales, entre intrigado e divertido, captando a hesitação do filho.
— Eles querem conhecer o senhor. — informou Franco, contrariado.
— Humm, entendi, Sua Excelência quer obter informações a respeito da árvore genealógica da família do pretendente à mão da... como você a chama mesmo?...— estalou a língua no palato e, depois, perguntou num tom de troça: — Ah, lembrei... à mão da “princesa”?
Era claro e límpido que se divertia com o fato de Franco precisar de sua ajuda.
Franco bufou exasperado.
— Vai receber os pais da minha noiva ou posso dizer que fui adotado pelo Rodrigo, e eles entram então em contato com ele?
Thales endureceu os lábios à recordação da noite na estrada quando Franco decidira romper qualquer vínculo com o seu passado na Arco Verde; em seguida, enfiara-se na vida do delegado, no grupo de amigos de Rodrigo e estreitara sua ligação com ele.
— Não tenho tempo para esse tipo de coisa.
— Era o que eu esperava. — disse Franco com secura.
— Mande-os virem agora para almoçarem na fazenda. É pegar ou largar. — determinou antes de encerrar a ligação.
Assim que pisou no tapete da sala principal, Irene aportou com um sorriso de reconhecimento e ofereceu-se para pegar-lhe a pasta executiva.
— Estão todos na sala de jantar esperando o senhor. — avisou-o.
— Está gostando de ter a casa cheia, não é mesmo? — perguntou com um esboço de sorriso.
Ele sabia que a governanta não via com bons olhos o seu estilo recluso e solitário de viver.
— Gosto muito, mas ainda falta o meu menino.
Thales serviu-se de uma dose de uísque puro, bebeu num único gole e voltou-se para a funcionária com o semblante sério.
— Daqui a pouco ele está chegando. — e emendou contrafeito: — O seu menino aprendeu a negociar o que quer em vez de sucumbir aos seus hormônios juvenis. Deve ter puxado à mãe.
Irene arreganhou os dentes num sorriso de satisfação. Não resistiu.
— Puxou ao pai, isso sim.
Thales encarou-a sem compreender o raciocínio da mulher que o ajudara a criar Franco. Era irritante ter de ouvi-la e aceitar a sua interferência na educação do filho, simplesmente porque ela era a única mulher no casarão, a mais velha e a que tentara se adonar do órfão recolhido da estrada. O correto era ser grato pelos anos de dedicação à fazenda e a Franco. Entretanto, recusava-se a aceitar que se colocasse no papel de intermediária entre ele e o filho, amenizando as coisas, pondo panos quentes.
Observou-a subir as escadas, a mão no corrimão, as costas encurvadas pelos anos de vida. Serviu-se de mais uma dose. Não era justo que descarregasse suas frustrações na velhinha, era uma boa pessoa. Ingeriu o resto da bebida e fitou a porta dupla que dividia o terceiro ambiente da sala principal com a sala de jantar.
Karen estava escorada na amurada da sacada. Atrás de si, a cortina de voile dançava ao sabor do vento morno, entrando e saindo de onde outras quatro pessoas dividiam a mesa de oito lugares, beliscando pãezinhos, torradas e azeitonas e bebericando seus drinques até a chegada do dono da casa. Uma decisão tomada pela líder do grupo, Val, que acreditava ser falta de educação começar a comer antes do anfitrião. A irmã de Rodrigo era muito chegada a “manuais de etiqueta”, considerava Karen com certo desdém.
Toldou os olhos com a mão, observando a posição dos pistoleiros ao longo da parte frontal da casa-sede. Precisava enganá-los ou enfrentá-los. Havia-se metido no tipo de situação que evitara a vida inteira. Estava num beco sem saída com as mãos atadas. Urgia libertar-se de qualquer prisão.
Sentiu uma presença ao seu lado. Abraçou o filho e deitou a cabeça em seu ombro.
— O Rodrigo quer que a gente fique aqui?
Ela se virou e tentou sorrir de um jeito confiante.
— Sim, Johnny, é o que ele quer.
— E quem está protegendo ele, mãe? — perguntou preocupado.
— Por incrível que pareça é a mesma pessoa que está nos protegendo no momento. — declarou.
Johnny sorriu satisfeito com a resposta.
— Poderei ir à aula amanhã?
— Sim, mas com escolta.
— Certo. É meio ostensivo, né? A Sabrina está adorando morar na Arco Verde e andar pela cidade com seguranças. — falou meio se rindo.
— Pois é, a Sabrina é desmiolada mesmo. — afirmou com azedume e emendou de forma reflexiva: — Isso é uma circunstância temporária. Tenho como resolver logo esse problema com o coronel, mas preciso escapar das garras do Dolejal. Sei como pegar o braço direito do Marau, é ele quem está por trás dos atentados contra o Rodrigo. Só que trancada aqui, nessa fortaleza, fico impedida de agir. — reclamou, pondo as mãos na cintura.
O garoto apoiou os antebraços na amurada de alvenaria, escorando meio corpo nela. Ficou quieto, absorto, por alguns minutos. Depois, sorriu e afirmou com convicção:
— Sei como tirá-la da fazenda sem ser vista.
Karen puxou-o para um forte abraço.
— Caramba!, Johnny, você é o único cara que me entende! — exclamou enternecida.
Valéria Malverde evitou encarar a figura altiva que entrou na sala exalando a fragrância amadeirada do tipo que somente as colônias caríssimas emanavam. Notas cítricas misturavam-se à composição, como se o cheiro de uma floresta morna de limões e eucaliptos esticassem seus braços para envolvê-la e num murmúrio rouco se impregnasse em sua pele como tatuagem.
Piscou os olhos seguidas vezes envergonhada com o rumo de seus pensamentos. Na verdade, preocupada com o rumo das sensações que se espalhavam pelo seu corpo. Nunca pensara em Thales Dolejal como homem. Via-o como alguém que trabalhava em excesso e evitava expor-se socialmente. Ele representava a força motriz de uma cidade sem escrúpulos; talvez nem fosse mesmo humano, apesar de tê-lo visto sangrar na última noite. Mais do que isso, vira-o implorar pelo amor de uma mulher. Sim, alienígena ele não o era. E tampouco Valéria insensível a tal visão.
Ele parou com as mãos nos bolsos laterais da calça social escura, impôs-se um ar descontraído tanto na postura, as pernas ligeiramente separadas, quanto na feição que esboçava a sombra de um sorriso, ainda que os olhos se mantivessem sérios e perscrutadores.
— Espero que tenham dormido bem. O silêncio aqui na fazenda às vezes incomoda o povo da cidade.
— Dormi como um bebê sem cólicas. — respondeu a avó de Karen, partindo com delicadeza um pedaço do pão caseiro. — O barulho do açude é como uma canção de ninar, senhor Dolejal.
— Por favor, dona Ninita, me chame de Thales. — corrigiu-a com charme.
A senhora concordou com um meneio de cabeça e afirmou sentindo-se bem à vontade:
— Então terá de me chamar de Ninita. Esse negócio de dona é coisa do seu filho.
Ele teve de concordar com um breve sorriso. Depois, observou que a sobrinha de Rodrigo estava à mesa e tamborilava os dedos demonstrando ansiedade.
— Espero que esteja tudo de acordo com o esperado. É uma situação inusitada, concordo, mas também passageira. Eu e o delegado estamos trabalhando para que em breve nossas vidas voltem ao normal. — ele parou até receber total atenção da garota e prosseguiu com gentileza: — Se está havendo algum transtorno em relação ao seu estágio, por favor, Sabrina, me informe. Conheço muito bem o administrador do hospital e posso conseguir alguns benefícios para você.
Sabrina corou ao receber seu quinhão de atenção exclusiva. Queria se enfiar debaixo da mesa. Porém, nem se mexeu ao balbuciar fitando um par de olhos azuis de matar:
— Obrigada, mas está tudo bom. — “Tudo bom?” foi isso mesmo que você falou, Sabrina-Tonga-Malverde?, recriminou-se mentalmente, aproveitando para emborcar o suco de laranja.
O latifundiário assimilou o constrangimento da garota, pois desviou seu interesse para a mãe dela.
— Se precisar de alguma coisa, Valéria, o que for, me procure. Não se sinta acanhada. Você está entre amigos. — falou de forma sugestiva.
Ela quase perguntou: para que tipo de coisa posso procurá-lo?
— É verdade que me sinto um peixe fora d’água e que essa loucura toda que aconteceu em menos de vinte e quatro horas tenha me abalado, mas não posso deixar de notar o seu desvelo e atenção para com a minha família e isso está tornando tudo menos difícil. — declarou séria, tentando impor um tom impessoal.
— Fico satisfeito em poder contribuir para o bem-estar dos Malverde.
Val percebeu um tom malicioso e insinuante na entonação de voz do fazendeiro, além de um suave toque de ironia. Thales não dava ponto sem nó, assim como não falava por falar, não gastava saliva à-toa. Era possível também que estivesse interpretando-o mal, distorcendo a verdadeira intenção e conotação de suas palavras.
— Infelizmente, teremos visitas. — ele parou e riu baixinho, como se tivesse percebido o próprio deslize e corrigiu-se: — A bem da verdade, preferia almoçar apenas com vocês. Entretanto, Franco está a caminho com sua noiva e família. Espero que não se importem de participar do evento.
Val mal descolou os lábios para responder que seria interessante conhecer a família de Nova, mas conteve-se ao ver que Thales já não mais lhe endereçava atenção. Karen havia arreganhado o janelão da sacada e avançava para a sala acompanhada por Johnny.
— Bom dia, Karen. — ele disse com calor na voz.
— Bom dia, Thales. Como foi a manhã no escritório, aniquilou muitas vidas? —debochou, sentando-se à mesa, seguida pelo filho.
Thales achou graça.
— De certa forma, sim, minha doce Karen. — devolveu-lhe o deboche e emendou a título de informação: — Estive a manhã inteira reunido com um grupo de texanos que em breve comprarão um bom lote de terras na região.
Ele sabia que a venda de terras brasileiras aos estrangeiros a irritava sobremaneira.
— E depois, me diz? O que acontecerá conosco quando o país inteiro estiver nas mãos dos gringos? Pensa que não leio jornais? Sei que 53 % das terras do centro-oeste já não são mais de brasileiros. Você não tem amor pelo seu país? É uma ganância sem limites, Thales, é só o que tenho a dizer. — declarou com mau humor.
Ele mantinha um leve sorriso nos lábios, demonstrando o quanto se divertia com o interesse de Karen pelo futuro do Brasil. Sentou-se à cabeceira da mesa e logo em seguida uma das empregadas da casa apareceu com uma garrafa de vinho. Thales observou atentamente o rótulo e aquiesceu, retomando a conversa deixada em suspenso.
— Não seja dramática. O governo brasileiro, em nome da tal soberania nacional, arranjou um jeito de conter a compra de terras por estrangeiros. O que dificulta um pouco os meus negócios, mas, é evidente, que não os põem ironicamente por terra. — comentou, sendo servido de vinho pela funcionária uniformizada.
— Claro que não, ainda mais quando arranjam documentos falsos. — afirmou Karen com raiva. — Sabe o que mais detesto nisso tudo? É que esses latifundiários de merda enriqueceram à custa da apropriação de terras devolutas. Não é mesmo, Do-le-jal? — soletrou em tom de troça.
Ele riu com vontade.
Por um momento todos se mantiveram em silêncio, expectantes, estranhando que a acusação provocasse tal reação. Ela fora taxativa, e Thales caíra na gargalhada. Ele, que nunca ria a menos se fosse para escarnecer do adversário. Contudo, lá estava o homem se divertindo como nunca.
Valéria relançou um rápido olhar a Karen que parecia decidida a manter a cara de poucos amigos.
Assim que conseguiu parar de rir, Thales afirmou sem rodeios:
— Você não é de todo idiota, Karen, deveria concorrer à prefeitura de Matarana, seus receios em relação ao país são bem convincentes. Agora, volte a fazer o que faz melhor, que é beber um bom vinho e deixar que os outros pensem por você. — desferiu com maldade.
Karen ergueu-se como se tencionasse encerrar a conversa da pior forma possível. Inesperadamente, Valéria viu-se obrigada a detê-la.
— A Nova está chegando com a família e ela precisará do nosso apoio. — enfatizou para, depois, reafirmar: — Ninguém quer aquele casamento, Karen. Pra falar a verdade, nem eu. Mas é a vontade da nossa amiga e temos de apoiá-la.
A menção a Nova e a amizade de ambas segurou a morena na cadeira. E a fez também emborcar outro cálice de vinho. A proximidade com Thales levava Karen a voltar aos péssimos hábitos, como a agressividade incontrolável e a ingestão excessiva de álcool. Era fato que ele provocava o que ela tinha de pior, observou a irmã do delegado.
O cheiro daquela cozinha era o cheiro de sua adolescência.
Ao mergulhar no ambiente azulejado das paredes, fincou o olhar sorridente no homem sentado na cadeira de rodas, descascando uma laranja e absorto em seus pensamentos. O marido de Irene era um sujeito tranquilo. Não era um deficiente físico por completo. Às vezes até dava suas voltas pela fazenda a pé. Tinha apenas as pernas fracas, ossos porosos e problemas de equilíbrio. À época de Onório Dolejal fora o capataz da Minuano, a humilde fazenda que se tornara a imensidão de terras que hoje era a Arco Verde.
Franco meio que se abaixou para beijá-lo no rosto.
— E, aí, Chicão? — cumprimentou-o jovialmente
O velho sorriu feliz da vida e largou de lado a sua sobremesa predileta.
— Que saudade, menino! — exclamou, apertando-lhe os braços como se quisesse atestar a sua materialidade, e, vendo o casal sofisticado parado logo atrás de Nova, comentou sem graça: — Não entre com as visitas pelos fundos, meu filho!
O segurança pouco se importou e, sorrindo, apontou o dedo para o marido da governanta e anunciou para os sogros:
— Aqui está o meu pai.
Nova franziu o cenho intrigada com a intenção daquela mentira. Por certo, uma travessura que não iria longe. Observou seus pais se aproximarem do senhor vestido com simplicidade no jeans velho e na camiseta com a propaganda de um fertilizante. Eles estavam visivelmente embaraçados. O pai do noivo de sua filha — que estudara nos mais caros colégios de Minas — era um pobretão, empregado de fazenda e bem próximo dos oitenta anos.
— Como está, senhor Dolejal? — indagou com polidez o desembargador, esticando a mão para cumprimentá-lo e apresentando-se: — Sou Guilherme Castilhos Monteiro e essa é a minha esposa, Raquel Matanza Monteiro, somos os pais da Nova. O senhor tem algum lugar, um quartinho talvez para conversarmos sobre o futuro dos nossos filhos?
Raquel abriu um leque de seda e começou a se abanar freneticamente. Embora as pás do ventilador no teto espalhassem o ar refrescante naquela parte da fazenda. A senhora sofisticada da alta roda mineira estava muito nervosa, agitada, observando ao redor a riqueza do agronegócio tão longe das mãos do rapazinho escolhido pela sua filha. Ela nem se dera conta que evitara falar sobre a gravidez em questão. Talvez se valesse de algum mecanismo de defesa para ignorar algo que abalava os seus princípios. Endireitou os ombros e ergueu o nariz. Por mais que se metessem com caipiras iletrados e detentores de baixo poder aquisitivo, os Monteiro possuíam classe e educação suficientes para suportar tal circunstância constrangedora.
Escorado com o quadril contra a pia de mármore, Franco segurava-se para não rir. Nada fora planejado. Apesar de estar se divertindo muito com a confusão. Endereçou um rápido olhar à noiva e recebeu uma piscadela cúmplice. Sim, ela também deixaria a coisa rolar.
O marido da governanta apertou a mão do senhor grisalho que usava um conjunto de calça e blazer escuro sobre a camisa bege. Formal, com ares de cidade grande e bem-apanhado — como dizia a sua esposa.
O fato de Franco tê-lo apresentado como seu pai não o impediu de ser educado com as visitas.
— Estou muito bem — respondeu um tanto hesitante em prosseguir com a farsa: — E o senhor? Fizeram uma boa viagem? — e assim ele continuava a meter os pés pelas mãos.
Raquel adiantou-se para responder, pois queria mostrar a todos que sabia se relacionar com pessoas de todos os níveis.
— Até Cuiabá foi uma beleza. É uma pena que não residam na capital.
— Mãe, as fazendas normalmente ficam no interior do estado. — comentou Nova atenuando a rabugice da progenitora.
— Eu sei, mas acho que seria mais confortável para o pai do seu noivo viver num lugar que tenha calçadas, por exemplo. — virando-se para Chicão, perguntou interessada: — Como o senhor consegue se deslocar, assim, no meio do mato?
Franco mexeu-se de onde estava, ajeitou o chapéu na cabeça dando um tapinha com a ponta dos dedos para trás na aba e fez um comentário jocoso:
— O Chicão é um camarada caseiro e quando quer passear pela fazenda, a peonada põe o velho em cima do lombo de um cavalo. Não tem erro, não, dona Raquel, ninguém derruba um Dolejal. — depois, percebendo que já chegara a hora de encerrar a brincadeira, revelou com azedume: — O Chicão é o meu pai de criação; o outro, o dos genes, está nos esperando para almoçarmos com ele.
Num átimo, o desembargador fechou a cara como se tivesse sido atingido por uma ofensa de dez toneladas. Era peso demais para alguém de sua estirpe levar nos cornos. Uma legítima molecagem — conjecturou Vossa Excelência, limpando o suor da testa com um lenço e fixando seus olhos baços, protegidos por pálpebras empapuçadas, no noivo da filha. Definitivamente, Nova havia-se envolvido com um moleque. Voltou-se para a esposa e declarou ofendido:
— Acredito que não preciso ir além dessa encenação.
Nova interveio conciliadora:
— Que encenação? O Franco apresentou o seu pai de criação, ora. Vocês não queriam conhecer a família dele? Ainda faltam a Irene e o Bronson.
Franco pensou em dizer-lhes que um bando de caminhoneiros que trafegavam na BR- 163, dez anos atrás, de certa forma, também o haviam criado. Bem, pelo menos alguns lhe pagaram refrigerantes e chocolates enquanto traçavam a sua mãe.
O celular vibrou e ele teve de atendê-lo.
— Por que ainda não veio me procurar se já está na fazenda? — perguntou Thales com rispidez.
— Já estamos indo, patrão. — respondeu contrariado.
— Talvez o Cristiano tenha lá suas razões, Guilherme, — começou Raquel, — porque isso não é brincadeira que se faça. — ela então se voltou para Franco: — Acredito, meu jovem, que seja engraçado fazer troça com as pessoas, mas, apesar de você ser novo, tenho certeza de que não é mais um adolescente.
Franco ficou sério de repente e baixou a cabeça como um menino que levava bronca da mãe.
— Pra quê tudo isso? — indagou Nova, irritada — Sabe o que eu acho? Vocês dois são esnobes demais pro meu gosto.
— Sua mãe está certa. — declarou Franco sem mais nem menos e continuou, agora, voltado para a mãe de sua noiva: — Peço desculpa pela brincadeira. Vou me comportar direito, juro.
Nova franziu o cenho ao analisar o comportamento do noivo. Ele acabava de falar como um filho falaria com a própria mãe. Projeção, transferência, o nome que tivesse não interessava, Franco ainda via nas mulheres mais velhas a imagem da mãe morta tão precocemente. Não precisou se virar para encontrar o olhar fixo de Raquel sobre si. Ela também tivera a mesma percepção.
— Uma vez o Cris se lambuzou de ketchup para fingir que tinha se ferido e sangrava e fez isso no seu aniversário de 25 anos. Ele brincou, curtiu um pouco, como se fala. E nunca pediu desculpas por ter assustado os próprios pais. — foi até o noivo e o abraçou pela cintura, falando-lhe baixinho: — Sou apaixonada pelo seu senso de humor, pistoleiro delícia.
Ele a apertou com força e fez de seus braços um cerco de proteção, um forte. E mesmo que com isso mostrasse a Raquel e a Guilherme que lhes roubara a filha para todo o sempre, ainda assim, com todo esse poder de vida e morte sobre alguém, ele não deixou de sorrir como um menino.
O sol bateu em cheio contra os seus olhos e Rodrigo se obrigou a abaixar a aba do chapéu a fim de enxergar a estrada de asfalto à sua frente. No rádio, as notícias não paravam de chegar. Então ele pegou um CD e o pôs para rodar, acionando a tecla que repetia uma única música — a que revestia o esqueleto daquele dia pesado de sangue. E era uma antiga música dos Almôndegas, no volume máximo, soprando o “Vento Negro” pelo prado.
O resto do sábado prometia ser daqueles que normalmente lhe testavam a resistência física e a vocação para defensor da lei. Acordara para investigar a morte de uma idosa e um guri. Ainda que estivessem metidos com o tráfico de drogas, para o delegado, era uma merda ver a vida ser ceifada de forma tão estúpida e violenta.
Endereçou um rápido olhar para o porta-luvas, sabendo que a posse do esperado mandado assinado pelo juiz permitiria a sua entrada na Coração de Ouro. E era para lá que ele se dirigia, as duas mãos no volante e a atenção dividida entre os veículos à sua frente e, através do retrovisor, aos que se mantinham na sua mira, atrás. Até aquele momento tudo parecia normal. Claro, dentro das idiossincrasias da dita normalidade mataranense, ele pensou, abrindo o porta-luvas e pegando os cigarros.
Com a boca puxou o cigarro da carteira pelo filtro e catou pelos bolsos da camisa xadrez, as mangas arriadas até os cotovelos, o isqueiro. Pôs fogo na ponta e tragou-o com prazer. Precisava disso. Precisava fumar e organizar os pensamentos. O dia seria longo porque emendaria com a noite e a cerimônia no clube campestre. Ele não queria ir. Detestava esse tipo de exposição pública. Queria, sim, era um pouco de paz.
Ao tentar ultrapassar uma Kombi, avistou no sentido oposto, dentro da picape, o galinho que abatera cartomante e neto na Vila Zumbi.
O delegado sorriu com tristeza. Por mais que os raios solares tingissem a cidade de calor e luz, ele sentia frio. Era o frio da morte. Quando se trabalhava perto da morte, olhando para ela e para o que ela fazia com os vivos, esse frio, o frio dela, impregnava cada poro de pele e não saía.
Girou o volante e ganhou o mato baixo do acostamento. Não iria à fazenda do coronel. O mal seria combatido sem trégua, ele decidiu, pondo-se na mesma estrada que Vitorino seguia.
Ela esperou a comida chegar carregada em bandejas pelas duas copeiras. Permaneceu na sua cadeira procurando não chamar a atenção dos demais. Até conseguiu rir baixinho da atrapalhada da mãe de Nova ao cumprimentar Valéria como se fosse a senhora Dolejal. A irmã de Rodrigo ficou vermelha, quase explodiu de vergonha, enquanto Thales lançou-lhe um significativo olhar e nele estava escrito em letras garrafais: A senhora Dolejal é você. Só que Karen não o deixou ler em seu olhar que tencionava fugir para encontrar o homem que amava.
Johnny sorveu um último gole do seu refrigerante, afastou a cadeira devagar, pediu licença e saiu da sala de jantar. Observou que todos se concentravam na conversa na outra ponta da mesa, onde Guilherme e Thales falavam trivialidades sociais, algo sobre o clima do centro-oeste e o fato de Matarana depender do Poder Judiciário de Santa Fé. A filha do casal fingia acompanhar com interesse o que lhe parecia desinteressante e o seu noivo contava seus causos de caubói junto ao ouvido de Ninita.
Karen calculou o exato instante de se levantar e partir. Sabia que não conseguiria sair de fininho como o filho. Por isso murmurou qualquer coisa, sorriu e ignorou o olhar penetrante do anfitrião à cabeceira da mesa.
Encontrou Johnny no corredor do primeiro andar, próximo ao lavabo, à esquerda do hall de entrada da casa.
— Fui até o refeitório dos seguranças e disse que o Bronson chegou e se enfiou no banheiro, mal pra diabo. Pedi pra ela não comentar com o Thales, porque não ia ser nada legal para um pistoleiro ser pego vomitando no lavabo do patrão.
— Vixe! A Virgínia acreditou nessa besteira? — indagou Karen preocupada, esgueirando-se atrás de uma coluna.
Johnny riu.
— Bom, ela está vindo para cá. — deu de ombros e emendou indiferente: — Ou acreditou ou quer me dar uma prensa.
— Certo, — disse Karen esfregando as mãos com ansiedade, — não tenho alternativa senão nocautear uma irmã. Apesar de que é por uma boa causa.
— Vê se não quebra nada, viu? Falo sério, mãe, sou contra violência. Se o Rodrigo não estivesse em perigo não me meteria nisso, não. — declarou carrancudo.
— Sei disso, Johnny, você é um bom garoto.
Ela bagunçou-lhe o cabelo num afago rápido e desajeitado. Depois se escondeu ao ver o cabelo preto esvoaçando por debaixo do chapéu enquanto sua dona cruzava o hall com determinação. O barulho das botas alcançou-lhe os ouvidos. Karen fez um sinal para o filho voltar à sala de jantar. Ele girou nos calcanhares e deixou a pistoleira plantada diante da porta aberta, intrigada.
Coube a Karen empurrá-la em direção ao balcão com as pias duplas. A mulher voltou-se com agilidade e a mão no coldre. Um gancho de esquerda a pôs no chão. Rapidamente, ela tornou a se pôr de pé e a mão sacou a Glock, destravando-a. Karen franziu o cenho diante da audácia da segurança de Thales.
— Não sabe lutar como mulher? Vai fazer o quê, atirar em mim, covarde? — provocou com um sorrisinho de escárnio.
Virgínia a detestava — foi o que Karen percebeu quando ela guardou a pistola no coldre e preparou o corpo para a luta.
— E você, Lisboa, vai se esconder atrás do patrão ou atrás do delegado? É fácil peitar todo mundo quando se tem as costas quentes, não é mesmo? — perguntou a pistoleira com rispidez.
Karen achou graça e falou:
— Bem, o que posso dizer?, não é pra qualquer uma ter os dois melhores homens da cidade aos seus pés. Mas se você me der suas roupas e me deixar sair da fazenda sem abrir o bico pro teu patrão, juro que não machucarei o teu rostinho. Você até que é bonita, Virgínia, devia tentar seduzir o Thales, ele adora mulher grandona. — declarou com ironia.
A segurança não estava para brincadeiras.
— Se eu meter a mão em você, Lisboa, o patrão vai comer o meu fígado e o delegado me mandará para o presídio de Santa Fé. — dizendo isso, pegou o radiocomunicador com a intenção de fazer justamente o contrário que Karen pedira.
— Espera! — exclamou ela, segurando a mulher pelo cotovelo — Temos de tentar nos entender, preciso pegar o desgraçado do Vitorino.
Karen não percebeu que as pupilas de Virgínia se dilataram, pois se chegassem a Vitorino estariam a poucos passos de Leonardo. Não, definitivamente, Karen Lisboa precisava ser mantida na Arco Verde.
Quando Virgínia já sabia o que fazer, levou um segundo soco e caiu no chão feito um saco de batatas.
Karen não era alguém que contava com a boa vontade dos outros.
— Senhor Dolejal, precisamos conversar sobre o futuro dos nossos filhos.
O senhor tem um quartinho?, a frase ainda reverberava na cabeça do desembargador.
O fazendeiro limpou a boca no guardanapo de linho e assentiu levemente, pondo-se de pé.
— Vamos até o meu escritório. — determinou; em seguida, dirigindo-se aos demais, disse polidamente: — Com licença. Fiquem à vontade, por favor.
Franco fez menção de acompanhá-los, erguendo-se sem muita vontade, praticamente se obrigando a participar de algo que o entediava demais. O futuro sogro fez-lhe um favor sem ao menos saber:
— Desculpa, garoto, mas a conversa é entre adultos.
Franco sorriu e endereçou um olhar divertido a Dolejal. O pai de Nova era um sujeito esquisito que, apesar de ser importante na sua profissão, não enxergava um palmo à sua frente quando o assunto era a sua filha. Talvez fosse apenas mais um tipinho controlador, conjecturou o pistoleiro. Atrás de si, Raquel ajeitava a bolsa no ombro e seguia em direção ao marido.
— Perdoe-me, senhora Monteiro, mas a conversa é entre homens. Aqui, em Matarana, ainda há o predomínio do patriarcado.
Por um momento a esposa do desembargador não esboçou reação, imobilizada por uma declaração absurdamente machista. Nova achou por bem chamar a mãe de volta à mesa:
— A Irene me falou que está trazendo um pavê maravilhoso.
— O que isso significa, Nova? — indagou Raquel, aturdida e apontando em direção aos homens que cruzavam a porta em direção ao escritório.
Nova se fez de desentendida:
— Significa que provaremos a sobremesa.
Franco abaixou-se ao lado da noiva, pegou-lhe a mão, beijou o seu dorso e falou:
— Tenho de pegar no batente, princesa. Com essa chateação de entrega de troféus, preciso ir até o clube campestre analisar o ambiente e arredores para planejar o posicionamento dos seguranças. A dona Rita quer tudo muito discreto. Bem, foi o que ela falou. Espero que não pense que a peonada irá vestir terno e gravata. — comentou espirituoso.
Ela o beijou nos lábios de leve e esfregou a ponta do seu nariz no dele.
— Vá, então, chefe da segurança. Assim que eu deixar meus pais no hotel, volto para casa e te espero para irmos juntos à cerimônia.
— Combinado. — ele deu uma olhada discreta ao redor e falou baixinho: — Percebeu que sua amiga se mandou?
— Sim, percebi. Na verdade, já sabia. Ela foi atrás do Vitorino.
— É uma louca. — murmurou, contrafeito.
— Não conte ao seu pai, Franco, por favor. — pediu a ele.
Franco detestava encobrir as sujeiradas de Karen. Claro que quando Nova interferia a favor da amiga tudo mudava de figura. Por isso ele concordou em ficar de fora do caso.
Acelerou o suficiente para ultrapassar um ônibus de turismo, cumprimentou com um aceno de cabeça o motorista, que retribuiu a gentileza e cedeu-lhe passagem. Quando usava a viatura da polícia era mais fácil conseguir trafegar livremente na rodovia.
Acionou o pisca ao verificar que a picape de Vitorino fazia o mesmo, antes de entrar numa estrada vicinal de chão batido. Reduziu a velocidade, não queria chamar a atenção do outro. Essa era uma das desvantagens de usar um veículo oficial, branco e azul, com as palavras que punham muita gente para correr: Polícia Civil de Matarana.
A poeira que se ergueu entre as camionetes ajudou-o a camuflar a perseguição. À tarde certamente choveria e aquela terra toda viraria lama. Mas ainda seca servia como uma cortina que dificultava a visibilidade. Quando se dissipou, o delegado percebeu que Vitorino havia estacionado sobre o acostamento no matagal. Parou a viatura e baixou o volume da música. Podia-se ouvir o tráfego na estrada principal, o motor dos caminhões e automóveis. Embora o movimento fosse tranquilo naquele trajeto de estrada.
Rodrigo desceu já com a arma na mão e destravada. Olhou ao redor e viu apenas o mato alto e verde. À sua frente, a poucos metros, a picape aparentemente abandonada. Vitorino percebera que era seguido pela polícia e escapara mato adentro, cogitou, ainda se aproximando do veículo. Ao chegar à porta, constatou através do vidro abaixado, que não havia ninguém. Suspirou exasperado e ajeitou o chapéu para trás, erguendo a cabeça e perscrutando o local.
Tinha raiva de si mesmo por ter alertado o pistoleiro. Não contava mais com o elemento surpresa, Vitorino voltaria para a Coração de Ouro, e o doutor Frozzen o representaria ao longo do inquérito. Era isso que aconteceria. Por um impulso imbecil ele perdera a chance de pegar o pistoleiro que, para livrar a própria cara — ou pelo menos tentar, com certeza, denunciaria o verdadeiro autor dos atentados e mentor da chacina na Vila Zumbi: Leonardo Marau. A última ligação que constava no celular de Joaquim fora para o filho do coronel. Era esse o homem que o delegado tinha de pôr detrás das grades.
De repente seus músculos se endureceram e um sopro frio na nuca levou-o a se voltar para trás, a automática apontada para a figura mirrada e sorridente que aumentara o volume de “Vento Negro” para encerrar a vida de Rodrigo Malverde em alto estilo.
A justificativa para o encontro fora as corridas. Karen dissera a Vitorino, ao telefone, que precisava de dinheiro, muito, a fim de recomeçar em Santa Fé. Para levantar a grana tinha de competir. Havia algum tempo que Vitorino estava fora do circuito. Claro, ela sabia o motivo. Não era fácil organizar atentados contra o delegado e competições de corrida. Mesmo assim o velho concordara com o encontro, marcara-o à saída de Matarana quase em Santa Fé, num lugar — segundo Vitorino, insuspeito. Como se encontros no meio do mato fossem mesmo inocentes, considerou ela, obrigando-se a acatar a decisão do filho da mãe.
Localizou o lugar ao ver o outdoor com a propaganda da prefeitura, divulgando o terceiro lugar de Matarana na produção nacional de grãos. Adentrou a estrada de chão, as pedrinhas batiam contra o assoalho. Não era a camionete mais nova da Arco Verde. Reduziu a velocidade, atenta. Ergueu os vidros das janelas e tirou a Glock do porta-luvas, pondo-a sobre as coxas. O jeans de Virgínia não combinava com o seu corpo, pernas e cintura estavam mais largas. Mas tal detalhe não atrapalhara quando Karen saiu da casa em direção à picape, o chapéu abaixado até a linha dos olhos, fingindo que era a segurança de Thales. Ultrapassara a porteira da Arco Verde sem problemas. Ao passo que a verdadeira segurança jazia desmaiada no lavabo de calcinha e sutiã.
Confusa, parou sem desligar o motor. Ao redor, o silêncio quebrado pelo barulho de alguns pássaros e o deserto verde a se perder de vista. À época do estio, aquela região mais se parecia com o deserto do Arizona do que com um pedaço de um país tropical. Embora os vestígios das queimadas fossem visíveis nos buracos de terra sem vegetação e as clareiras se abrissem com suas pernas de troncos secos, tortuosos, acompanhados pelas raízes expostas como fraturas de contínuas agressões.
Resolveu seguir pela estrada, mesmo que não lhe parecesse uma decisão inteligente. Deveria evitar se afastar da rodovia federal. O perigo de enfiar-se ainda mais para o interior, seguindo a estrada de chão batido cercada pela mata aberta, era o de se perder. Indecisa, novamente reduziu a velocidade, pegou o celular e ligou para Vitorino.
— Acho bom o delegado deitar a arma no chão bem devagar, aliás, as armas... sei que tem outra no cós traseiro da calça.
Rodrigo abriu os braços mostrando ao pistoleiro a intenção de lhe obedecer. Mas o seu rosto apresentava os sinais clássicos de alguém contrariado, mais que isso, furioso. Os ossos dos maxilares estavam tão apertados que era possível que quebrasse alguns dentes.
— Qual é o seu plano, Vitorino? Assassinar um delegado de polícia? — indagou num misto de ironia e desprezo.
O outro sorriu um sorriso amarelo, aproximando-se com cautela, de olho no policial.
— Não é o primeiro, Malverde, tenha a certeza disso. — informou-o serenamente e continuou, determinado a pegar as automáticas do delegado e jogá-las bem longe do seu alcance: — Já pus muito doutorzinho pra correr. Quando não seguem as regras do coronel é isso que dá. E pelo visto não vai desistir mesmo. Bem, fim da linha pra você também.
— Por que está se sujando pelos Marau? Sei que não é coisa do coronel, ele ameaça, tem os seus ataques de prepotência e acaba arranjando uma transferência para os oficiais da lei indesejáveis. Mas, que eu saiba não tem o hábito de executar autoridades. Sabe o que acontece quando um delegado é assassinado? Não é algo que se esconda debaixo do tapete. A polícia não sossega até descobrir o assassino, e você, “meu amigo”, deixou um rastro de sujeira por onde passou, desde a Vila Zumbi até dentro da Coração de Ouro.
Rodrigo queria ganhar tempo argumentando. Apostava que Vitorino fosse entregar Leonardo de bandeja e negociar sua rendição.
— Sabe quantas horas levo para cruzar a fronteira? — perguntou de forma retórica, destravando a sua pistola: — Meu tempo de vida útil em Matarana já se esgotou e matar um delegado rende uma boa aposentadoria. Entendeu a sua real situação, Malverde? — provocou-o, piscando o olho.
— Por que matou a cartomante e o neto?
— Pro inferno que vou responder!
— Se vou morrer, quero pelo menos ter algumas respostas. — conjecturou Rodrigo, impassível. Sentia-se estranhamente calmo.
Vitorino irritou-se.
— Está querendo me enrolar! Quer fazer com que eu me distraia. Acha que não sei o que faço? Mas vou dar as respostas que quer. É verdade, sim, que tem os seus direitos como futuro defunto. É o seguinte, ô delegado, aqueles dois pilantras compravam a pasta de coca de mim e resolveram bancar os esganados e negociar direto com os bolivianos. Aí, eu fui lá e mandei chumbo neles.
— Essa merda eu já sabia. Fez isso a mando do Leonardo Marau, não foi?
— Não, foi a mando de Deus. — debochou. — Limpei a cidade pondo aqueles lixos debaixo da terra.
Ele se preparou para falar mais alguma coisa, encerrar de vez o papo e levar o delegado para o meio do bosque e executá-lo. O toque do celular interrompeu-o. Manteve o braço erguido, apontando a arma para Rodrigo enquanto atendia a ligação:
— Olha, acho que está no caminho certo, é só avançar mais um ou dois quilômetros que me encontra. A primeira clareira que achar pelo caminho, estaciona e me telefona. Vou até você.
Antes de terminar a ligação, Vitorino olhou significativamente para Rodrigo, degustou a breve pausa que fez mantendo o vínculo entre ambos apenas através do olhar, como se antecipasse para si o prazer que sentiria a seguir.
— Acho que faremos um excelente negócio... Karen.
Rodrigo assimilou a informação com a mesma clareza profunda e inflamada de quando a mãe o comunicou sobre a morte de seu pai. A percepção de tudo ao redor, cada detalhe do cenário, do alto para baixo. Viu cada ranhura das folhas nas árvores, o balanço dos galhos que recebiam os pássaros para o descanso. O topo da cabeça do pistoleiro, os cabelos ralos, os poros do couro cabeludo. Tudo muito rápido, a velocidade de seus pensamentos supersônicos. Então ele se mexeu. Tomado por uma força que o levou a ignorar o treinamento e o bom senso, uma força que o impulsionava a salvá-la, a salvar aquela que vinha diretamente para os braços do seu assassino. E ele jurara protegê-la. Rodrigo cumpria suas promessas. Por isso ele tornou a se mover. Sem tirar os olhos do bandido, lançou o braço até o início da bota e puxou a Beretta.
Mas o delegado não era mais rápido que um projétil. O tiro o atingiu antes de se voltar e endireitar o corpo que, ao perder o equilíbrio e cair, projetou a cabeça contra a porta da picape, a mão armada e o tiro disparado contra um arbusto. Depois somente o silêncio.
Seguiu o combinado com Vitorino. Telefonou assim que se deparou com uma clareira. Desligou o motor e enfiou no cós traseiro do jeans a pistola. Avistou o pistoleiro dentro da sua picape, uma perna para fora, balançando-a com displicência.
Procurou imprimir uma postura leve, como alguém que ia apenas tratar de negócios ocasionais. Ela sentia a garganta seca. À medida que se aproximava do homem, compreendia que havia ido longe demais, a empreitada era maior do que imaginara. Ele tinha fama de matador e não era uma imagem criada pelas conversas de boteco. Engoliu um pouco de saliva e seguiu em frente. Só teria de tirá-lo da picape e desarmá-lo. Tinha um bom pedaço de corda na caçamba e poderia amarrá-lo e levá-lo direto à delegacia.
O problema era que o camarada parecia calmo demais. Fumava com uma mão no volante. Vitorino somente relaxava quando estava com os bolsos cheios de dinheiro, quando estava por cima, em vantagem. Não passava de um oportunista, um parasita. Porém, mesmo que desconfiasse de suas intenções, ele estava à sua espera, e ela tinha de detê-lo antes que ferisse Rodrigo.
— Então quer voltar a correr? — o pistoleiro perguntou de modo casual.
— Pois é, seria bom se conseguisse arranjar um adversário para mim, sabe, à altura, um cara disposto a mudar de ideia sobre as mulheres serem o tal sexo frágil, um cara bem machista seria o ideal — disse ela, de um jeito forçosamente leve.
Ele então pôs meio corpo para frente, mostrando-se totalmente, uma perna já no chão e pronta para receber o resto do corpo que tencionava sair da cabine. Antes, contudo, falou:
— Acontece, Karen, que você nunca me procurou para correr. Quando o Everaldo fugiu da cidade, fui eu quem procurou você e ainda recebi uma esnobada. Me diz, moça, refresca a memória desse velho, quantas vezes telefonei chamando para um encontro no Colono Tranquilo, hein? — indagou, ressentido.
Ela riscou a terra com o salto da bota, sem ter muito o que falar a respeito. Ele estava certo. Se não fosse a sua insistência, jamais teria voltado a competir. Everaldo tinha sido seu agente até se transformar num matador de aluguel.
O homem ajeitou o chapéu na cabeça e pôs as mãos nos quadris.
— Tem uma coisa que não entendo. Como pode um clã totalmente burro ainda se manter unido?
O tom provocador riscou-lhe a coluna vertebral com o mesmo efeito de um bisturi. Ergueu a cabeça e encarou a face enrugada do outro.
— Bebeu, Vitorino?
— Estou sóbrio desde que nasci, moça. O que me deixa puto é você achar que sou ingênuo ou idiota em acreditar que me procurou por causa das corridas. Sei que está acampada na Arco Verde e sei também que dorme com o delegado. O clã Dolejal resolveu fechar o cerco em torno de mim, sou a bola da vez, a parte fraca do cabo de guerra, não é? Como não conseguem destruir o coronel, então tentarão acabar com os oficiais subalternos. Estou muito tranquilo com a minha posição no mundo. — disse, com um sorrisinho debochado enquanto avaliava o efeito de suas palavras.
— O que sabe que poderia afetar o coronel? — ela perguntou sagazmente, pondo-se em alerta, cada músculo distendido como uma corda.
Ele riu com aspereza e falou com a raiva descansando debaixo da língua:
— Tudo, tudinho, sei até mais do que deveria saber. — deu dois ou três passos em direção a ela e parou, emendando de forma beligerante: — Mas sei ainda mais sobre Thales Dolejal, e é com isso que deveria se preocupar. Em vez de me atrair para uma armadilha, Karen, deveria se interessar em saber comigo, inimigo declarado da bicha cosmopolita, o que ele pretende fazer com o delegado quando ele deixar de ser útil. Sim, moça, o Dolejal tem planos para o Rodrigo. E é capaz de um dia desses o seu namoradinho aparecer por aí, quem sabe no meio do mato, morto à bala.
— Me conta uma novidade. — escarneceu.
O outro riu com vontade.
— Falo sério! O Dolejal está comprando as terras ao redor da Coração de Ouro e é certo que, junto com o delegado, conseguirá meter um processo pra cima do coronel...Sabe, né, quando se dá ouvidos a boatos... — cuspiu a saliva grossa e continuou: — O delegado cismou que tem gente do coronel trabalhando sem receber e agora ficou obcecado também com esses supostos atentados. Viu como são as coisas?, o fazendeiro mais patriota do centro-oeste está usando a polícia e os brios do caubói da lei para atingir o seu rival e, assim que se apossar das terras do coronel e se tornar o soberano entre os soberanos, bem, minha amiguinha, ele acabará com o delegado... se é que já não fez isso. Falou com o Rodrigo hoje? — perguntou com um sorriso sugestivo.
Atentados. Uma boa palavra, Karen considerou. Só quem sabia sobre os atentados eram os envolvidos neles e aqueles para os quais os envolvidos contaram a respeito. Vitorino acabara de confessar a sua culpa.
Quem sacaria sua arma mais rápido?, cogitou, sabendo antecipadamente a resposta. Ela era melhor com os punhos.
Ao perceber que o latifundiário endereçara mais uma vez os olhos para o celular e, em seguida, para o relógio de pulso, Guilherme parou de explanar a respeito da influência de um garoto de 22 anos com antecedentes criminais na educação de uma criança e como chefe de família de um lar cristão. E ele nem levara em consideração o apelido de Franco.
O escritório era tão sofisticado quanto o resto da casa. Um lugar mais apropriado para um executivo da Avenida Paulista. Era o sinal dos novos tempos, ponderou o juiz, a figura do rústico fazendeiro substituída pelo empresário do agronegócio, o executivo de escritório. No entanto, o perfil do homem à sua frente — culto, viajado e elegante, condizia a uma minoria por aquela região.
Thales tencionava encerrar logo aquele assunto. Começou a falar com as mãos cruzadas solenemente sobre a escrivaninha:
— Sim, o meu filho já foi preso por vandalismo ao pôr fogo em um banco de praça. O banco de madeira estava podre, e uma mulher de 85 anos se machucou quando ele quebrou. Digamos que o Franco se vingou do banco em questão. Na mesma época, o delegado Rodrigo Malverde, achando-se o xerife de um vilarejo do México, levou-o para cadeia porque ele o desacatou, e desacatar esse delegado é simplesmente argumentar contra as suas ordens. Bom, em outra ocasião, o Franco estava com um grupo de seguranças bebendo e conversando, eles falavam alto, riam alto, se divertiam como todos deveriam se divertir se não fossem idiotas, e isso também se configurou, para esse delegado, como desordem. Por isso o Franco é fichado por vandalismo, desordem e desacato. Fosse outra cidade ou outro o delegado, ele não teria tido qualquer problema com a polícia, pois, na verdade, era a polícia que tinha problemas com o meu filho. — falou com ironia, mantendo o semblante cerrado, visto que o exasperava revolver tais recordações e o entediava aquela conversa inútil.
— Ainda assim é muito desconfortável para mim, como representante da Justiça, ter um genro criminoso. Tenho uma reputação a zelar, o senhor deve entender a minha situação. Sempre fiz questão de manter incólume a minha imagem pública. — asseverou Guilherme, inflexível.
Thales controlou mais um bocejo. Quase suspirou aliviado quando o seu celular tocou. Pediu licença polidamente ao desembargador e saiu para o corredor, a fim de atender o telefonema de Bronson no corredor.
— Encontrou a espertinha?
O segurança relatou cada passo de Karen desde a sua escapada da fazenda.
— Ela se enfiou numa clareira com o Vitorino. — completou Bronson.
Ao que Thales captou algo no ar.
— E o delegado?
— Deixei um dos nossos de olho nele, mas o imbecil acabou perdendo ele de vista. O seu Rodrigo sempre dá um jeito de escapar da nossa vigilância, patrão. — resmungou. — Não sei como é que ainda está vivo.
— Nem merecia estar vivo. — comentou com descaso e determinou: — De qualquer forma, traga a Karen de volta nem que seja pelos cabelos. — ordenou.
— Certo, patrão. — acatou o homem sem se esquecer de considerar o pistoleiro da Coração de Ouro: — E o Vitorino?
Dolejal observou de perto a gravura caríssima que comprara em Roma. Era feia e triste. Às vezes ele acertava; outras não.
— Despacha.
Decidiu por fim e desligou o celular.
Voltou ao escritório e encontrou o funcionário público esparramado em sua cadeira estofada, fumando charuto com as pernas cruzadas como uma mulher. Já estava na hora de também despachá-lo:
— Vossa Excelência, o Franco é o meu único filho e herdeiro e tenho certeza absoluta de que ele sempre terá cacife para comprar uma reputação, mas ainda sendo um Dolejal, ele mandará tudo isso à merda. Não nos importamos muito com essas misérias moralistas e qualquer outra porcaria que os bem-nascidos se preocupam. Nós, e quando digo nós falo de mim e do meu filho, bem, nós, os malnascidos, apenas queremos nos manter vivos na terra dos homens de boa vontade, por assim dizer.
O desembargador estava vermelho, acabara de engolir uma granada sem pino.
— E mais uma coisa, — continuou o pai de Franco, — o seu futuro genro acredita que é um camarada que não merece a sua filha. Ele tem uns probleminhas de baixa autoestima, herança materna, por certo. Mas a questão é que não admito que o trate como alguém inferior como fez há pouco debaixo do meu teto. Não me importo com você, não passa de um lixo com uma esposa decadente e até entendo que vez por outra procure prostitutas nos becos de Belo Horizonte. — ele cravou os olhos no outro e prosseguiu implacável: — Sei que se utiliza de serviço terceirizado para a sua solidão existencial. — debochou, endereçando um sorrisinho maldoso. — Não subestime os caipiras, Guilherme. Quando descobri que o meu filho ia se casar com a jornalista, investiguei até o papagaio que vocês têm que, por sinal, é o único que pode repetir a palavra reputação sem perder a credibilidade.
Guilherme Castilhos Monteiro ergueu-se ofendido, endereçou um olhar raivoso ao fazendeiro sem emitir palavra, possesso.
Thales falou por ele, sorrindo com visível prazer:
— Seja bem-vindo a minha terra.
Ao voltar a si, Rodrigo percebeu que estava encrencado. Fora jogado contra o assoalho da viatura. O céu foi a sua primeira visão. Azul sem nuvens. Um sol sorridente cuspindo raios para todos os lados. Árvores baixas ao longo do acostamento da estrada de chão batido.
Sentou-se com dificuldade, as pernas esticadas, o ombro queimando de dor e pontadas agudas pouco acima da nuca. Virou o rosto em direção ao ombro e viu o buraco na camisa e a pasta de sangue espesso no tecido. Uma naca de seu ombro, quase na rótula, parecia ter sido puxada do corpo. O sangue descia espesso, assim como da parte detrás da cabeça.
Segurando-se na lateral da caçamba, ele se arrastou até a beirada para sair e ficar de pé. Pontos pretos turvaram-lhe a visão. Escorou-se no veículo procurando restabelecer-se. As mechas do seu cabelo estavam grudadas na testa e no pescoço e o suor devia-se à dor, latejante e intensa.
Com uma mão firmada na traseira da picape, sustentou o corpo dobrado a fim de pegar da bota a pistola. Vitorino acreditara que o havia posto na lona. Tal comportamento mostrava a grande diferença entre bandidos e mocinhos. O bandido, acreditando-se superior à autoridade, cometia erros estúpidos, como manter armado um policial combalido. Ao passo que a polícia, inerentemente superior ao criminoso, despojava-o até de suas cuecas. Por isso foi fácil imaginar que o pistoleiro sentia-se seguro após alvejá-lo, jogá-lo na traseira da viatura e levá-la de volta à estrada que circundava o bosque ao redor da clareira.
Afastou-se do suporte que o veículo proporcionava ao seu corpo alto e vacilante, tentou endireitar-se para voltar à clareira. Sentia que pisava em areia movediça, caminhava trocando as pernas. E ao pressentir que desfaleceria novamente, baixou a cabeça e permitiu que a onda de torpor passasse por cima de si, de suas costas e se dissipasse. O suor molhava-lhe a camisa, era um suor frio e grosso, que se misturava com o sangue morno. Tornou a caminhar sentindo que carregava uma rocha sobre os ombros. O corte na cabeça sangrava. Parou, debruçou-se sobre os joelhos, respirou fundo. Viu o próprio sangue pingar sobre a terra e ser engolido pelo solo arenoso. Obrigou-se a prosseguir na estrada deserta, arrastando debaixo das botas os grãos de areia.
Arrancou a camisa e amarrou-a ao redor da cabeça.
Karen esticou o braço e levou-o para trás, sem deixar de encarar o pistoleiro. Manteve um sorriso grudado nos lábios enquanto a mão tocava na Glock e puxava-a devagar, bem devagar, de dentro do jeans. Mal respirava. Tensa, coração na boca e coluna dura. Ela via que o homem acompanhava o movimento de seu braço em busca da automática. Ela sabia. Ele sabia.
Vitorino apontou o 38 que usara no delegado em direção à cabeça de Karen. Para esse tipo de serviço, a execução sumária, preferia a Taurus .40. Tinha o seu estilo de trabalhar. Afinal, não era um principiante. Se não fosse Leonardo sugerir que se desfizesse da arma usada para matar Iranilda e Joaquim, Karen Lisboa teria seu crânio estourado como um melão no tiro ao alvo. Miolos da vaca louca espalhados pela terra de seus antepassados.
— Quer um duelo? — indagou com escárnio o camarada que franzia o cenho para suportar o sol nos olhos.
Karen considerou a proposta sem deixar de segurar firme a Glock presenteada por Thales. Era um bom presente. O que será que ele lhe daria no Natal?, pensou, distraindo a mente do medo que gotejava suco gástrico no estômago.
— Como nos filmes de faroeste?
— É, sim, como nos filmes, só que um dos dois morre de verdade. — afirmou com um sorrisinho nojento e emendou como que a esnobando: — Se despediu do seu filho?
Ela cavou dentro de si um resto de coragem.
— E você, tem alguém para se despedir? Claro que não, vermes não se relacionam.
— Não sei por que está tão agressiva, sempre te tratei com respeito e consideração... Agora vamos fazer o seguinte, cada um vai para um lado da clareira, de costas, entendeu? Um de costas para outro, contamos até vinte e viramos já atirando. — ele poliu a arma com a manga comprida da camisa puída e disse: — Viu como sou bom pra você? Nunca dei essa chance para o pessoal que abati... nem mesmo para o delegado. — concluiu, observando o efeito da revelação.
Karen estremeceu, mas se manteve impassível.
— Mantenha o foco, Vitorino. Um homem não pode ser morto duas vezes. Aliás, nem você nem o Thales conseguem destruir aquele caubói. Ele é como Clint Eastwood nos filmes de Sergio Leone, nunca morre.
O velho forçou uma risada rápida.
— Se quer pensar assim... Vamos lá, Karen, vamos tornar o dia especial. Vire-se e comece a contar.
— Por acaso sabe contar até 20?
— É o medo que faz de você uma piadista?
Ela deu-lhe as costas com raiva e iniciou a contagem regressiva. Inconformada com a bestialidade da situação parou. As palavras de Rodrigo incitando-a a ser uma mulher normal e madura... Acontecia que naquele momento não dava para ouvi-lo. Nem testar sua feminilidade nem sua maturidade. Era matar ou morrer. Se desse tempo para disparar numa corrida louca, ela assim o faria como uma condenada à forca.
Olhou para o céu e pediu ajuda. A vontade de sacar o celular e telefonar para Rodrigo. Jamais o faria, jamais o poria frente a frente com o homem que queria matá-lo. Foi então que ela percebeu que fizera uma idiotice sem precedentes. E pagaria com a vida por isso.
Ao alcançar o número cinco, a voz falhou, engoliu um pouco de saliva e foi para o próximo número. Apertou com força a arma na mão, que tremia, transpirava, dificultando a aderência ao cano da pistola. Tirou os olhos fixos no mato queimado, calafrios estremeciam-lhe por entre os interstícios das vértebras e fitou a entrada da clareira como uma possível rota de fuga. Era certo que Vitorino atiraria em suas costas.
— Se parar de contar, atiro! — gritou o infeliz, de costas, encaminhando-se devagar até a sua extremidade da clareira. — Veja o lado positivo, não demorará a reencontrar seus pais. — falou num tom de troça.
Podia roubar. Seguir as regras de um jogo injusto jamais. E foi o que fez. O giro de 180 graus empunhando a Glock, o corpo meio encurvado já se preparando para se proteger, ela se voltou para acertá-lo pelas costas.
E ele fez o mesmo.
Mas ninguém disparou tiro algum. Elos de tensão tornavam a atmosfera pesada. A voz que ouviram era firme, grossa, de alguém que fumava havia anos.
— Mete o dedo no gatilho, Vitorino, e já pode fechar os olhos! — gritou Bronson.
Karen entendeu de duas formas a situação. Primeiro, Deus existia. Ainda assim se manteve em alerta, o pistoleiro apontava a arma em sua direção. Segundo, Ele enviara anjos armados para salvá-la. Vários deles, como pôde perceber. Duas picapes com uma dezena de seguranças da Arco Verde embolados nas carrocerias, de pé; outros saíam das cabines e se posicionavam para atirar no alvo.
Vitorino estava cercado.
— Acha que vou me entregar pra vocês? Mas não está me reconhecendo, não, Bronson? — debochou, apertando os olhinhos argutos.
— O patrão não quer que você perca a dignidade.
— Entendi. — o outro gritou.
— Põe a arma no chão pra gente poder conversar. — ordenou o braço direito de Dolejal e, voltando-se para Karen, determinou: — A senhora pega o volante e volta pra fazenda. É ordem do patrão.
Quando ela saísse para a estrada, Vitorino seria assassinado e depois enterrado em algum lugar. Queria interceder pelo velho, mesmo que quase sucumbira em suas mãos. A ideia original era prendê-lo e entregá-lo à polícia. Não concordava com um assassinato frio. Porém, não o defenderia. E também por dois motivos. Primeiro, o pistoleiro tentara matar Rodrigo em pelo menos duas circunstâncias. Segundo, porque jamais interferira nos negócios de Thales. Se ele queria Vitorino morto, Vitorino deveria ser morto. Era por isso que sobrevivera sozinha com o filho e a avó durante tanto tempo. Escolhera um lado, o mais forte. Não lhe cabia julgar o certo ou o errado. Esse julgamento de valores deixava para Rodrigo.
Saiu meio que emburrada do semicírculo que se formava ao redor do pistoleiro. Sabia que deveria entrar na camionete da fazenda e dar o fora. Mas não voltaria para a Arco Verde, tinha de encontrar Rodrigo. Precisava vê-lo, beijá-lo, tê-lo perto. Só não poderia revelar o destino de Vitorino. Não trairia Thales.
Enfiou a arma no cós do jeans e ajeitou o chapéu. Filetes de suor escorriam-lhe do couro cabeludo. Tensão pura. Respirou fundo. Tivera sorte mais uma vez. Até que percebeu uma sutil mudança no semblante dos seguranças e estalos de destravamento de armas ressoaram concomitante ao bater de asas de vários pardais. Voltou o corpo para trás, intrigada com o que provocara a alteração no rumo dos ventos.
— Esse assunto só diz respeito à polícia. Entenderam? — o delegado falou alto para ser ouvido por todos.
Karen precisou de alguns segundos para entender que o homem pálido, com o rosto encharcado de suor e a camisa estancando o sangue na cabeça era Rodrigo. Ele caminhava devagar, com dificuldade, a arma apontada diretamente para Bronson, as pálpebras semicerradas numa expressão que não admitia objeção à sua ordem.
Ela correu em sua direção e postou-se debaixo de um de seus braços, quando ele a protegeu trazendo-a contra seu tórax.
— Meu Deus, está sangrando...
— Isso é o de menos — falou baixinho, mantendo a cara amarrada para os demais. — Vitorino, deita a arma no mato, bem devagar! — ordenou, atento aos movimentos de todos os pistoleiros.
Bronson estava lá para cumprir uma ordem.
— Foi ele quem atirou no delegado? — perguntou, o jeitinho insolente não era a marca registrada do funcionário mais antigo de Dolejal. Por certo estava irritado por não levar a cabo a determinação do patrão.
Karen apertou-se a Rodrigo, enlaçando-o pela cintura, sem deixar de mirar o bando de camaradas que ainda se postavam para o ataque. Sentiu no seu corpo a tremedeira e fraqueza do corpo colado ao seu. Urgia que ele fosse logo para o hospital.
O delegado dispensou as explicações ao outro. Endereçou sua atenção a Vitorino, que levantava as mãos num gesto teatral de rendição, e falou de forma clara e direta:
— É claro que esse tiro não ficará impune, infeliz, — e virando a cabeça em direção a Bronson, afirmou com a cara de poucos amigos: — mas não será uma execução de gangue que vingará os meus ferimentos. Quero vocês todos fora daqui ou chamo reforços e começo a distribuição de algemas. O que preferem? — alteou a voz para que os outros o ouvissem.
Os pistoleiros esperavam a decisão do líder. E o líder encarava o rosto porejado de suor do delegado e os olhos cuspindo fogo de raiva, os maxilares projetados contra a pele, o desafio velado de quem esperava qualquer objeção para pôr em prática desejos antigos, como enjaular um punhado de foras da lei.
— Escuta só, delegado, quando chegamos aqui ele estava para acabar com a dona Karen. Com certeza, se não fosse a nossa chegada ela estaria morta. — argumentou Bronson, apelando para os seus sentimentos.
Rodrigo lançou um rápido olhar para Karen, abraçada nele e protegida pelo seu braço ao redor dos ombros dela, e tornou a encarar o outro:
— Sei muito bem o que esse desgraçado planejava fazer. Agora recolhe o teu bando e avisa o patrão que agradeço a interferência, principalmente porque salvaram a minha mulher desse imbecil, mas o resto da imundície é só comigo. — afirmou com seriedade.
Bronson por fim cedeu.
— Tudo bem, seu Rodrigo, estamos todos no mesmo barco. — resmungou, contrariado.
Fez sinal para os seus rapazes baixarem as armas e obedecerem à determinação da polícia. Era uma merda ter de retornar a Arco Verde e comunicar ao patrão que a ordem do delegado prevalecera.
— Precisamos ir para o hospital imediatamente. — assegurou Karen, abraçada a cintura de Rodrigo e servindo-lhe de apoio enquanto Vitorino era algemado. — O Thales tem um helicóptero, em menos de dez minutos está aqui...
Rodrigo puxou o prisioneiro pelo antebraço conduzindo-o em direção à viatura.
— O caso não é para uma UTI nem para usar o helicóptero do Thales.
— Certo, tudo bem, mas pelo menos me deixa trazer a viatura até aqui, quanto menos caminhar melhor. — considerou já se afastando dele.
— Isso, sim, é bom que faça. — assentiu com um sorriso fraco. — Mas iremos direto para o hospital, acho que a bateria do meu corpo está descarregando. — brincou.
Karen aquiesceu com a cabeça, preocupada. Correu para o lugar de onde o vira sair minutos atrás.
Forçando Vitorino a se sentar no mato, ele fez o mesmo e digitou o número da delegacia.
— Sabe que de uma forma ou outra já é um cara morto, né, ô delegado?
— É mesmo?
— É mesmo, quer limpar a cidade no meio de um tiroteio. Se não for morto por alguém do coronel será por um dos homens do Dolejal. É uma questão de tempo, só digo isso.
— Então não precisa dizer mais nada.
Valéria Malverde andava inquieta nos últimos dias. A tentativa de assassinato do seu irmão abalara-lhe os nervos. Ele e Sabrina eram a sua família, a extensão de si mesma e a razão de acordar todos os dias e viver.
Bateu à porta do escritório sentindo o coração pulsando na garganta. O que era isso? Lembrava-se vagamente de já ter se sentido dessa forma. Precisava falar com ele. Queria falar com ele. Era um homem doente, como um dia ela também o fora, que precisava de ajuda. Se ajudasse Thales Dolejal a se livrar da obsessão por Karen, também ajudaria o seu irmão e o manteria a salvo de qualquer vingança futura.
Sim, era um sacrifício que tinha de fazer pelos Malverde.
— Entre, — ele disse, sem se voltar para quem adentrava o seu escritório, concentrado em fingir que algo no notebook o interessava, os pensamentos direcionados para Vitorino ainda vivo. Ergueu os olhos para a figura parada à sua frente e falou sem sorrir: — É melhor que se sente, Valéria.
Ela não entendeu, já que fora sua a iniciativa de procurá-lo. Alisou o vestido com as mãos num tique que denunciava a sua ansiedade.
— Algum problema? — perguntou num fiapo de voz.
Thales encarou-a diretamente, impassível.
— Vai ou não se sentar?
Val deu uma olhada na cadeira em frente à escrivaninha dele. Manteve-se à porta entreaberta, como se, com isso, dependendo o que ele lhe dissesse poderia fugir corredor afora.
— Estou bem aqui, pode falar.
Ele esboçou um sorriso e falou com serenidade:
— Você é uma mula teimosa, Valéria.
— Obrigada, Thales. — agradeceu, irônica.
— O seu irmão levou um tiro e foi hospitalizado. — declarou sem emoção na voz e era mais como se tivesse dito que passaria o resto do dia no escritório do centro.
Por um momento, ela não entendeu o que ouvira. A calma e impessoalidade contradiziam a gravidade da notícia.
— Como? Não entendi...
— Vitorino atirou no seu irmão.
Ele se levantou de onde estava e foi até o bar. Serviu dois copos com uísque e gelo.
Aos poucos, Val assimilava a notícia, as pernas tremiam enquanto percebia que o carpete afundava.
— Como ele está? — foi o que conseguiu falar, endereçando o olhar para o homem que vinha em sua direção e estendia um dos copos.
— Beba e se acalme. Um tiro de raspão nunca matou ninguém. — falou com indiferença.
E foi essa indiferença para com a vida do seu irmão que a irritou. Ela ignorou o copo estendido e mirou a fúria dos seus olhos verdes nos dele, esbravejando mais histérica do que nunca:
— Como pode ser assim, me diz? Por mais que não considere o meu irmão como seu amigo, que tenha lá suas diferenças com ele, ainda assim ele sempre fez vista grossa para suas sujeiradas, mais especificamente para as expulsões dos amantes da Karen... Por Deus, homem, não tem alma dentro desse corpo? Nós nos conhecemos há mais de dez anos, Thales! Você conhece o Rodrigo há mais de dez anos, é tempo o bastante para se criar um vínculo, que não seja de amizade e lealdade, mas, pelo menos, de respeito à vida humana!
Ele sorveu a bebida mantendo os olhos nela. Depois que ingeriu o seu uísque, emborcou o que havia preparado para ela. Respirou fundo antes de perguntar com evidente menosprezo:
— Qual foi a parte do “tiro de raspão” que não entendeu?
Valéria sentiu seus olhos encherem-se de água. Apertou as mãos, nervosa. Não aguentava mais tanta pressão.
— Você é um monstro. — murmurou, resignada.
— Respeito a vida do seu irmão tanto que a protejo. Se não fosse por mim, ele já estaria morto. — considerou sem se abalar, sentando-se à beira da escrivaninha e cruzando os braços diante do corpo. Postava-se como um homem ponderado que falava com uma louca vertendo lágrimas.
Ela balançou a cabeça desacreditando nele.
— Tudo isso porque a Karen escolheu viver com ele... Tudo isso porque está doente. Será que não vê isso? Busque se curar, fale com um terapeuta, um padre, sei lá. Tente ser alguém melhor! — falou com raiva, o sangue subindo-lhe à face.
— E os seus recalques, Valéria? Guardou-os dentro da geladeira? Ou acha normal uma mulher trocar o sexo pela comida? Bem, eu não acho.
— Meu Deus, você é cruel... — constatou, incrédula.
Ele sorriu divertido com a observação quase balbuciada.
— Mas os monstros não são assim, minha cara? — ironizou.
Ainda quer curá-lo, Valéria? — ouviu a voz de sua consciência.
— Então, para você, sou uma gorducha assexuada?
— Não, — ele parou e olhou de cima abaixo para ela, ostensivamente, como os homens vulgares faziam para intimidar algumas mulheres, — é só uma hipócrita assexuada. — completou ferinamente.
Entendia quando Karen acertava-lhe um murro no meio da cara.
Ele riu baixinho. Era claro que deixá-la transtornada o divertia.
— É verdade, Valéria, que vivemos num mundo de falsas amabilidades, e sou uma peça obsoleta do sistema. Talvez falar a verdade me torne um insuportável. Veja, no entanto, que nesse caso a errada é você, nunca tivemos intimidade para que falasse o que falou para mim. Aceitei você em minha casa por causa da Karen. Aliás, por mim, os Malverde podem ir direto para o inferno. Agora, faça o favor de pegar o seu moralismo e a sua carinha de ofendida e zarpar fora do meu escritório. Vá bajular o irmãozinho e me deixa trabalhar em paz.
Ela não conseguia se mexer.
— Qual foi a última vez que alguém se importou com você?
— Essa não é difícil de responder, mas acontece que teria de considerar também os seus valores, ou melhor, falsos valores, claro. Quem se importa comigo é, na sua visão estreita, um psicopata. Viu como são as coisas? Nada é preto no branco, certo ou errado, bom ou mau. O sol que nos oferece vitamina D é o mesmo que nos garante um bom câncer de pele. Abra os olhos, o mundo é muito maior que o espaço entre o seu sofá e a televisão.
Um muro. Ele erguera um muro.
— Posso ir até o hospital sem escolta? — viu-se pedindo sua autorização.
Thales aquiesceu levemente com a cabeça, olhando-a de um jeito como se preferisse prolongar a conversa. Foi como ela percebeu.
— Desculpa a minha grosseria, é verdade que nos acolheu em sua casa, mesmo que tenha sido pela Karen. — disse Val, meio sem graça.
Ela queria prolongar a estada ali, sozinha com ele, sem a presença de Karen para desviar-lhe a atenção.
— Protejo muitas pessoas em Matarana, Valéria. Não me custa tê-los na minha fazenda.
— Eu sei, — assentiu indo pouco mais além, — mas é difícil levar em consideração o seu lado bom quando faz questão de mostrar o outro.
— Cada um escolhe o lado que quer ver, não escondo nenhum deles.
Ela lhe arrancava confissões que mulher nenhuma se interessara em saber. Era melhor então mantê-la distante, ele considerou.
— Quero que se sinta à vontade em minha casa. — erguendo-se e circundando a escrivaninha, emendou como se pensasse alto: — Imagino que os recentes acontecimentos tenham lhe tirado dos eixos, sua vida é bastante pacata e...
— Thales...
Ele parou entre o movimento de puxar a cadeira para trás e se sentar, fitou-a quando o chamou, alçando a sobrancelha, interrogativo.
— Não continue a falar, porque sei que acabará me ofendendo. — afirmou, procurando imprimir leveza à observação.
O sorriso demorou a se desenhar nos lábios, um sorriso preguiçoso e cheio de charme.
— Humm, tenho de me preocupar com você, Valéria, ou é uma feiticeira ou anda me analisando às escondidas.
Ela corou tremendamente. Ele riu com vontade.
— Acertei, não é mesmo? Você não é uma feiticeira.
Era estranho que alguém se sentisse tão bem em um hospital, mas era como Rodrigo se sentia deitado contra dois travesseiros, a sutura no ombro e a bandagem no corte na nuca, ainda meio grogue com a anestesia e totalmente à mercê de uma Karen carinhosa e dedicada.
— Casa comigo? — ele tentou, fitando-a com um sorrisinho travesso.
Ela devolveu-lhe o sorriso, sentando-se na beirada do leito e bagunçando o seu cabelo jovialmente.
— Acha que só porque levou um tiro vou mudar de ideia?
— Esperava que sim, — retrucou, adorando os afagos dela. — pensei que a proximidade da morte pusesse abaixo suas teorias contra nosso casamento.
— Certo, moço, até caso com você se me responder uma coisinha.
Ele parou de sorrir e franziu o cenho entre intrigado e expectante.
— O que quiser, é só mandar.
Karen ajeitou uma mecha do cabelo atrás da orelha e indagou sem rodeios:
— O que é mais importante: o amor ou o casamento?
— Por que um ou outro? A gente casa quando ama alguém, ora. — disse ele, rindo-se.
— Nem sempre, Rodrigo. As pessoas casam por vários motivos, nem sempre é por amor. Além disso, um não precisa do outro. Não vejo porque colocar os dois no mesmo balaio.
— Entendo seu ponto de vista, não aceito, mas entendo — suspirou resignado. — E também não quero começar uma discussão. — resolveu, ajeitando-se nos travesseiros. — Pelo menos as suas corridas ilegais acabaram, não é mesmo? — alfinetou-a, piscando o olho.
— Vitorino me entregou?
— Adele o interrogou e ele soltou o verbo... e inocentou o coronel. — declarou num misto de amargor e menosprezo. Detestava admitir a inocência do coronel nesse caso. O fato era que um Marau pelo menos estava envolvido.
— Olha, Rodrigo, achei que o Vitorino apenas organizasse as corridas, jamais me passou pela cabeça que se metesse com drogas. — explicou-se.
A bem da verdade, considerou Karen, ele intermediava as corridas e distribuía o dinheiro das apostas. Era somente isso que interessava a ela.
— Espero que não se meta em mais nenhuma atividade ilegal. Estou falando sério, Karen.
Ela aproximou seu rosto do dele, pretendendo silenciá-lo com um beijo.
— Espera, quero ouvir de você que não voltará a se envolver em atividades ilegais. — insistiu.
— Esse negócio de ilegalidade é relativo, Rodrigo. O que pode ser ilegal pra você, é legal para mim...
— Karen Lisboa! — nem precisou altear a voz para demonstrar firmeza.
— Mas é verdade.
— Ka-ren!
Ela riu baixinho.
— Certo, xerifão, se a tal atividade estiver enquadrada em algum artigo do código penal como algo ilícito, eu, Karen Lisboa, juro pela bandeira nacional que não me envolverei. Nem vou mais jogar no bicho.
Rodrigo apertou os olhos, desconfiado.
— Onde você faz suas apostas?
— Ei, delegado, quer um beijo meu ou prender um coitado que não tem onde cair morto?
— Sabia que o jogo do bicho é uma contravenção penal?, que por trás desse “coitado” tem um banqueiro, um camarada ligado ao crime organizado que inclui a agiotagem, assassinato por encomenda e todo o resto que já conhecemos? Karen, o que lhe parece inofensivo é simplesmente a ponta de um iceberg que sustenta a criminalidade. — ele parou e a encarou por alguns minutos. Tinha plena consciência de que falava com as paredes daquele quarto de hospital.
— Você está nu debaixo desse vestidinho sexy? — ela indagou com ar grave.
Ele perdeu o rebolado. Aturdido, levantou a ponta do lençol e examinou a roupa do hospital.
— É, parece que sim. — murmurou.
Ela sorriu e embarafustou a mão por baixo do lençol, deslizando-a por cima da roupa até encontrar o que tencionava pegar.
— Alvejado, mas não combalido. — sussurrou com deleite, apalpando-o.
Rodrigo prendeu o ar nos pulmões e pôs sua mão sobre a dela.
— É assim que resolve mudar de assunto?
— Não, — respondeu e passou a língua sobre a boca dele como se lambesse a ponta de um sorvete italiano: — é assim, quer ver?
Ele respondeu que sim, as palavras escaparam para dentro da boca de Karen. Eles estavam com saudade. Muita saudade. E era como se pegassem fogo, suas roupas queimavam, peles em brasa.
Ela o beijou com tamanha vontade que sentiu o gosto do sangue dele. Tentou se conter, afastou-se e respirou fundo. Mas ao vê-lo ainda de olhos fechados e os lábios inchados, mandou para o inferno qualquer atitude de contenção e chupou-lhe o lábio inferior para, em seguida, apropriar-se da sua língua, sugando-a com desespero febril, com o mesmo desespero que tencionava enviá-la direto para a cintura dele. Ouvia-o gemer baixinho dentro de sua boca, ofegava e apertava-a contra si num abraço para não largá-la jamais.
Num átimo, ela se afastou e saiu do leito.
— Não... vem, por favor... — ele pediu num gemido rouco.
Ela sorriu e baixou o zíper do jeans. Esperou que ele fizesse alguma objeção ou que citasse algum parágrafo do seu manual de escoteiro. Não esperou muito, mantinha os olhos grudados nele enquanto baixava a calça e deixava-a no chão.
— Podemos ser pegos... — ele murmurou a contragosto.
— Isso não é excitante? — ela brincou, puxando o lençol e erguendo a barra da bata.
— Se não formos pegos, sim. — considerou, arfando.
Ela riu baixinho ao tocar em um dos quadradinhos da sua barriga tanquinho, a musculatura se contraiu ao toque. Beijou seu abdômen até a extensão do caminho do pecado onde começavam os pelos.
— Karen...
Ele a chamou num fio de voz.
Sabia que o moço de família não relaxaria de todo. Por isso trancou a porta com uma cadeira. Tornou a subir no leito e beijou a testa do homem que a olhava num misto de desejo e admiração. Ela era maluca, e ele era louco por ela.
— Amo tanto você... — ele disse, a voz rouca.
Ela afastou a calcinha para o lado e o pôs dentro de si, embalou-o mexendo a cintura devagar, aumentando ritmo à medida que a febre atingia o auge.
— Aqui é o seu lugar, dentro de mim, entre minhas costelas e entre minhas pernas... em cada centímetro de pele, em cada partícula do meu ar...te amo demais, Rodrigo...demais...
Segurou-se na base de ferro da cama, acima da cabeça dele, e impulsionou o corpo para cima e para baixo, ofegante, aproximando-se do cume mais alto, tendo uma das mãos grandes e masculinas ao redor da sua cintura, firmando-a no deslocamento dos quadris.
Alguém tentou abrir a porta.
Por alguns segundos, eles pararam, ofegantes e contrafeitos. O seu homem estava descabelado e com as órbitas oculares injetadas de desejo, as narinas dilatadas e pronto para se jogar dentro dela.
— Tem gente, volta outra hora! — ela gritou.
Rodrigo riu e apertou-a contra si com o braço livre. Era verdade que sentiu uma fisgada no ombro, mas também era verdade que o seu corpo estava para explodir em mil fogos. Puxou-a para si e ergueu-lhe a camiseta, buscando os seios e chupando-os.
Ela fechou os olhos e suportou o magma da Terra derretê-la de ardor, devastada pelo orgasmo que arrancou um grito rouco da garganta. Grudou suas coxas contra as coxas dele, aguardando a passagem do Tsunami abandoná-la. E, antes que a calmaria lhe tomasse de assalto afastando os vestígios do desejo violento, sentiu-o estremecer debaixo de si, comprimindo a testa entre os seus seios.
Ao abrir os olhos assustou-se com o que viu. Uma mancha de sangue tingia de vermelho a brancura da bandagem. Nada melhor que tal visão para acabar de vez com a febre do desejo.
Desvencilhou-se dele e desceu da cama, vestindo-se com pressa.
Atordoado e ainda respirando pesadamente, ele arou os cabelos tentando entender a mudança repentina do seu comportamento.
— Vai pelo menos deixar o dinheiro do táxi e o número do seu telefone? — ele brincou, tentando se recompor.
Ela se aproximou com um sorriso nervoso, ajeitou-lhe a bata e o cobriu com o lençol.
— Tenho de chamar a enfermeira. — apontando para o ombro dele.
— Bem, terei de pensar rapidinho numa justificativa para esse sangramento. — falou, sorrindo.
— Deus Pai!, como você é bonito! — exclamou, parando à porta e admirando o rosto cheio de vida, os olhos castanhos cor de mel, radiantes, e a paixão estampada na cara.
Ele piscou olhou para ela.
— Almas gêmeas são parecidas até na fisionomia, li isso em algum lugar. — disse, apertando os olhos como se buscasse tal informação na memória.
— Sempre tem uma coisa bonita pra me dizer.
Voltou até ele e o beijou.
A enfermeira bateu à porta do consultório e, vendo-o terminando de prescrever a receita da última paciente, avisou-o sobre a chegada do delegado. E outro detalhe.
— Obrigado, Joana — Cris agradeceu e voltou-se para a mãe que carregava seu bebê com catapora. — É importante também que corte as unhas dela, quando as feridas começarem a secar, ela vai coçar. — pegou a menina de oito meses no colo e levou-a até a porta, acompanhado pela jovem de vinte e poucos anos.
— Acho que também contrairei catapora, não é, doutor? — ela considerou com um esboço de sorriso.
— Se ainda não teve, Clara, agora não escapa. — brincou, entregando-lhe a filha.
Assim que a paciente saiu, a enfermeira entrou, os olhos arregalados como alguém que se segurava para contar uma fofoca daquelas.
— Vou subir para dar uma olhada no delegado. — avisou-a.
— O Dr. Fontes já cuidou do seu amigo, doutor. — afirmou, postando-se no meio do consultório e enfim extravasando sua necessidade: — Nem sabe a confusão que está na recepção.
Cris sabia que não escaparia das garras da enfermeira. Cruzou os braços com displicência e sorriu de forma a convidá-la a relatar o evento.
— É incrível a popularidade do delegado. Assim que a cidade soube que ele levou um tiro e que se encaminhava para o hospital, começou a aglomeração de pessoas no saguão de entrada. Uma após a outra, preocupadas e solícitas. — ela fez uma pausa para recuperar o fôlego ou segurar uma risada, o médico não compreendeu a intenção do suspense. — Resumindo a história, temos 57 mulheres enlouquecidas querendo doar sangue para o delegado. Até as trigêmeas da Papelaria Rose, na segunda via, sabe? As solteironas de 80 anos que vieram fazer fortuna no centro-oeste e deram com os burros n’água. — riu-se.
Foi a vez de Cris rir e aproveitou para provocá-la:
— E o que está fazendo fora da fila?
Ela abriu um belo sorriso malicioso.
— Já doei, doutor. E como fui uma das primeiras e o nosso banco de sangue estava vazio, bem, tem sangue meu naquele corpão.
— As mulheres de Matarana me põem medo. — comentou sério, acompanhando a enfermeira até o segundo andar, dirigindo-se ao quarto do delegado.
Encontrou-o meio sentado meio deitado sobre os travesseiros, os olhos fechados, o rosto relaxado, o cabelo para todos os lados e uma mancha espessa de sangue na bandagem. Apontou para o ferimento e pediu para a enfermeira refazê-lo.
— Ué, fui eu que suturei o ombro... — declarou na defensiva.
Rodrigo abriu os olhos ao ouvir a voz da enfermeira.
— E aí, comandante? Como se sente? — perguntou o médico, com um olho no paciente e outro no trabalho da enfermeira.
— Pronto para receber alta. — respondeu sem perder tempo.
— O Fontes já viu os raios-X do super-homem? — fez troça dirigindo a pergunta à Joana.
— Ainda não. — ela tinha uma ruga funda no meio da testa enquanto avaliava o ferimento do paciente. — Os pontos soltaram. Isso nunca aconteceu comigo antes. — resmungou frustrada.
O médico contraiu os lábios num esgar de impaciência. Observou a outra sair do quarto para buscar os instrumentos e costurar o paciente outra vez.
— Imagino que ela deva ter ficado de olho no tal corpão que falou. — comentou Cris contrafeito.
Rodrigo riu baixinho e confessou:
— Não a culpe, ela fez tudo direitinho.
— É, deu pra ver.
— Eu e a Karen nos reconciliamos. — afirmou de modo sugestivo.
— É mesmo? Fico feliz por vocês. — ele não parecia feliz. — Foi então uma espécie de comemoração por ela ainda ter um namorado?
Rodrigo estreitou os olhos tentando captar o que viria a seguir.
— O que está rolando?
— O que está rolando? Vou lhe dizer o que está “rolando”. Poucos meses atrás a sua atual namorada também estava aqui nesse hospital, vítima de uma facada de um pistoleiro. Não sei como vocês conseguem levar a vida assim. Até entendo que você se envolva com essa gente, afinal é um policial. Mas não consigo aceitar ver meus amigos sendo feridos por esses bandidos.
— E nunca conseguirá aceitar, Cris. É por isso que estou limpando Matarana, para que ela se torne uma cidade pacífica como qualquer cidadezinha do interior. — ponderou, verificando que a revolta do médico ia além do banditismo dos pistoleiros.
— Os pais da Nova estão apavorados e partirão hoje à noite para Minas. — falou, suspirando resignado. — Tenho medo de um dia receber a Nova na emergência.
— Sei que não vai gostar de ouvir isso, mas tenho de dizer. É muito difícil que alguém faça mal a ela.
— Eu sei, por causa do filho do Thales. — considerou a contragosto.
Rodrigo assentiu levemente.
Uma batida suave na porta entreaberta chamou a atenção de ambos. Cris pensava que era a enfermeira e Rodrigo, Karen.
Era Rita e o seu vestidinho colado, os seios apertados querendo espiar por cima da roupa, o perfume agradável e os cachos loiros caindo-lhe sobre os ombros.
Automaticamente, Rodrigo e Cristiano entreolharam-se surpresos.
— Boa tarde, doutor, posso ver como está o nosso delegado?
Ela falava de um jeito estudado, como uma Marylin Monroe tupiniquim, a voz nasalada e quase infantil, arrastada, a intenção da sensualidade em cada sílaba pronunciada com delicadeza, quase um afago auditivo.
Cris pensou se ela também havia doado sangue. E depois considerou levá-la para cama um dia, talvez numa tarde de domingo, quando se sentia deprimido.
— Entre e sirva-se. — brincou e recebeu um olhar feroz do amigo. — Antecipo apenas, Rita, que o nosso delegado não poderá comparecer à cerimônia. É provável que receba alta amanhã ou depois. — ouviu-o resmungar contrariado e emendou com um sorriso amargo: — O senhor está sob a minha jurisdição, delegado. Aqui, o almofadinha manda nos caubóis.
Mais uma vez a referência a Franco, pensou Rodrigo, percebendo que a ferida no pediatra era mais profunda que a sua no ombro.
— Mudei a data do evento, será no próximo sábado. As pessoas estão muito abaladas com o atentado contra a sua vida, Rodrigo. — comunicou com um sorrisinho simpático.
— Obrigado, mas não era preciso. As personalidades mais importantes não estão hospitalizadas. — falou, levando em consideração a figura irritadiça do médico fitando-o gravemente. — O Cris, por exemplo, poderia me representar.
Rita intercedeu agitada.
— Já está tudo resolvido. Na verdade, era o que esperavam da organização do evento. Procure esquecer um pouco a cidade e se concentrar em si mesmo, na sua saúde.
Outra vez, Rodrigo e Cris entreolharam-se, agora, com malícia.
— Com certeza ele terá de se cuidar, por que daqui só sai quando estiver cem por cento. — afirmou o médico. — Bem, Rodrigo, volto mais tarde, tenho de fazer a minha ronda na ala pediátrica.
— Certo, volte mesmo... e traga cigarros. — brincou.
— Engraçadinho! — debochou. — Vou é mandar costurar com linha de aço esse ombro. — disse num tom camarada, atravessando a porta e ganhando o corredor do hospital.
Coube a Rodrigo voltar-se para Rita, que resolvera se aboletar na beirada do leito, próximo demais. Era certo que se Karen entrasse e a visse tão perto dele o tempo fecharia. Decidiu que o melhor era encerrar a visita o quanto antes.
— Obrigado por ter vindo, Rita. — começou, forçando-se um bocejo — Preciso tirar um cochilo.
— Vou esperar a enfermeira refazer os seus pontos. Alguém tem de cuidar de você. — olhou ao redor. — Está sem água?
Um homem experiente sabia que o rumo daquela prosa era uma briga entre mulheres puxando o cabelo uma da outra. Por isso respondeu prontamente:
— A Karen está trazendo água.
Boa atriz que era manteve o sorriso jovial.
— Como é bom ter os amigos por perto, não é mesmo? Acho então que nós duas poderemos nos revezar.
Antes que esboçasse qualquer reação, a porta foi afastada e ele desejou muito que fosse a enfermeira.
Era Karen.
Franco tamborilava os dedos ao volante, o cigarro no canto dos lábios, a aba do chapéu abaixada, parado diante do semáforo. O trânsito tranquilo numa das avenidas principais do centro. Aguardava o vermelho passar para o amarelo, depois o verde. Então ele aceleraria, trocaria as marchas e arrastaria os pneus no asfalto quente. Os olhos descansavam sobre qualquer coisa na paisagem monótona do começo de tarde. Considerava voltar para casa, passar a mão na sua mulher e levá-la para cama. Dormirem abraçados antes e depois de se enfiar dentro dela. E era isso que faria. Era dono de si mesmo, um animal desembestado pelo prado. Um maluco que vencera o Citotec e se pusera no mundo por um golpe de sorte.
Tragou o cigarro e expeliu a fumaça pela boca entreaberta. Um pouco do vento morno soprou-lhe o cabelo e Franco quase sorriu. Era um dia bom aquele. Para um camarada como ele os dias eram divididos entre bons e bacanas. A dureza do passado fora enterrada numa cova funda. Ainda assim era tocado, vez ou outra, pelo sopro frio detrás da orelha. E era o aviso de que nada era certo e definitivo na vida.
Uma olhada de esguelha captou a picape parada ao seu lado. O ronco do motor sugeria que o motorista exigia-lhe a atenção. Mas Franco detestava fazer vontade alheia. Não fora domesticado pelos homens; fora, outrossim, abençoado por uma mulher. O que não lhe tirava o veneno dos dardos.
O motorista acelerou e ultrapassou o sinal vermelho. Riscos de pneus tingiram a primeira camada de piche. A traseira da camionete resvalou de um lado para o outro tomada pela fúria da arrancada. E a poeira pulou para o alto como estrelas despedaçadas.
Franco riu e pôs Sympathy of Devil para rodar. Fazia algum tempo que não ouvia os tambores do seu batismo. Jogou a bagana pela janela, trocou as marchas e avançou na troca das cores do semáforo. Bocejou alto e seguiu pela avenida calmamente. Observou o comércio vazio, visto que se aproximava a hora de chover.
Ao parar no próximo sinal, percebeu que ladeava a mesma camionete. Seus olhos se cruzaram com os do motorista e Franco tocou de leve a aba do chapéu num rápido cumprimento. Voltou-se para frente, um casal de namorados atravessava a avenida. O motor ao lado soou forte, o rugido rouco e impaciente que ameaçava os pedestres. Tal atitude arrogante o fez observar melhor quem estava à direção. Estreitou os olhos buscando na memória o nome do dono da feição de filhinho da mamãe que comprava seu Stetson direto dos gringos, o nariz fino como o de uma mulher classuda e os olhos debochados de alguém que merecia levar um sarrafo só por usar os olhos daquele jeito, para olhar de forma presunçosa, do alto da Montanha da Imortalidade.
Outra vez o estranho arrancou e avançou em direção à estrada secundária, o asfalto esburacado, a linha reta em direção a Coração de Ouro.
Com uma mão no volante e a outra digitando as teclas do celular, Franco se manteve atento à traseira do veículo.
Os primeiros pingos de chuva despencaram grossos e explodiram silenciosamente sobre a estrada de chão batido. Ele subiu o vidro da janela ao seu lado e aguardou a ligação se completar enquanto via as luzes do freio da outra camionete se acenderem. Teve de reduzir a velocidade.
— Promete não ficar zangada? — perguntou meio se rindo.
— Não.
— Olha só, princesa, a cerimônia de hoje à noite foi transferida para o sábado que vem.
— Merda, Franco, e o nosso noivado?
— Pois é, teremos de ver outra data. — respondeu despreocupado. — Pena que seus pais já terão voltado para a civilização. — forçou-se um tom de lamento.
— Por mim, eles nem tinham vindo, ô gente chata. — suspirou com rispidez. — Ai, Franco, o nosso noivado está virando uma bagunça.
Ele riu baixinho.
— É só deixar comigo que vira bagunça mesmo.
— Vem pra casa agora. — pediu, a voz morna.
Ele sabia o que ela queria. Acelerou até ultrapassar a camionete do desconhecido vagamente familiar.
— Quer saber o motivo do adiamento, mocinha-nada-egoísta? — ralhou com brandura.
Foi a vez de ela rir.
— O Bronson me falou que o Rodrigo levou um tiro do segurança do coronel Marau e está no hospital. Antes que você desmaie, quero que saiba que o seu delegado preferido está passando bem, foi só um tirozinho de nada, viu?
— Meu Deus, a Val e a Karen sabem? — perguntou, preocupada.
— Acho que sim. — ele deu uma olhada pelo retrovisor e viu a camionete do desconhecido avançar perigosamente contra a sua traseira. — Amor lindo, tenho de desligar. Tira a calcinha e me espera, ok?
— Certo, só vou terminar de passar óleo de amêndoas no corpo e vestirei algo por cima. — declarou num tom insinuante.
— Para com isso, Nova, vou acabar batendo a bazuca no painel. — brincou.
Atrás, os faróis piscavam intermitentes. Franco reduziu a velocidade e jogou a picape para o lado, cedendo passagem ao desconhecido.
Emparelharam, e o outro tirou o chapéu como se fosse apresentar-se. Mas era apenas para mostrar o rosto, incitando a memória de Franco a funcionar. Sorriu, o desconhecido, virando totalmente a direção e se chocando contra a porta de Franco.
O barulho do choque entre os veículos não o surpreendeu tanto quanto a batida em si. Seu corpo balançou e, por um momento, ele perdeu o controle da direção. A picape deslizou para o acostamento, e ele teve de trazê-la de volta à estrada. Acelerou raspando a terra debaixo dos pneus e partiu para cima do outro. Não sabia que tipo de maluco encontrara, apesar de reconhecer que a sua cara não lhe era estranha. Talvez algum inimigo esquecido pelo tempo ou um idiota sem amor à vida, ele considerou, endireitando-se e diminuindo a velocidade até estacionar.
Desceu da picape, tirou um cigarro da carteira e o enfiou entre os lábios. Esperou tranquilamente. Viu quando o desconhecido acionou os freios, fez o contorno na pista e retornou. Escorou-se com displicência contra o capô. A fumaça saía de sua boca em fios densos e tortuosos. Perto dali, tuiuiús aterrissavam e decolavam como se estivessem em um aeroporto.
O desconhecido parou e pulou para fora.
— Não se lembra de mim, não?
Franco sorriu o mesmo tipo de sorriso que Dolejal pai dispensava a quem não o interessava.
O outro retribuiu o sorriso, mas de um jeito que demonstrava a sua superioridade de berço. E era como tivesse se forçado a descer alguns degraus no seu orgulho para ter aquela conversa, ali, à beira da estrada com aquele indivíduo que o analisava de cima a baixo com expressão de troça.
— Não sei se está se fazendo de esquecido ou é conveniente esquecer o passado. A verdade é que pouco me importa a intenção, caminhei muito para chegar aqui, no lugar onde tudo começou... É incrível como as pessoas não mudam, passam por tudo que é tipo de merda, mas a essência, sabe, não muda. O âmago, como dizem, é sempre a mesma porra imutável. Está acompanhando a minha linha de raciocínio, né? Me lembro de você, lembro que se metia a defensor da minoria, era o simpatizante das causas perdidas... — gargalhou, deitando a cabeça para trás.
Franco fumava com tranquilidade. Bocejou mais uma vez e comentou indiferente:
— Sinceramente, não sei quem é você.
— Olha bem para mim, Franco. — pediu, sem deixar de sorrir com arrogância. — Sabe quem eu sou, mas não quer admitir.
— Não costumo mentir. Isso significa que às vezes minto. E minto. — enfatizou alçando a sobrancelha, divertido. — Quando não gosto da pessoa, minto a valer. Se você é alguém do meu passado, nem deveria ter me procurado, sou o tipo de cara que enterra literalmente o passado, só que a pá que eu trazia na camionete deixei em casa. — debochou — O melhor a fazer é considerar que teve um dia bacaninha e cair fora.
— Você é muito convincente mesmo. — riu-se e estendeu a mão — Fomos colegas de escola. Na verdade, nunca entendi a mistura de classes sociais naquele colégio. Era esquisito estudar com um empregado de fazenda, o único pobre diabo, claro. Sou Leonardo Marau e essa cicatriz que sempre atraiu a mulherada foi presente seu, Franco, obrigado. — completou com um sorriso sem mágoa.
Foi a vez de Franco sorrir, aceitando a mão estendida e apertando-a com firmeza. Ouvira por alto que o filho do coronel retornara a Matarana, talvez fora Alberto ou o próprio coronel Rodrigues quem comentara o fato. O assunto não o interessava. Mas o que ocorrera poucos minutos atrás, sim.
— Por que bateu na minha picape? — perguntou ainda sorrindo e segurando a mão do outro na sua.
Leonardo tentou se desvencilhar sem sucesso.
— Queria chamar a sua atenção. Além disso, te dei um bom motivo para trocar de camionete. — comentou com estudado desdém.
— Acabou amassando a porta e terá de pagar o conserto, Marau. — afirmou, encarando-o com gravidade e soltando enfim a mão do outro.
— Pago o conserto, mas acho que merece uma novinha. — pôs as mãos nos quadris como os homens que se acham no topo de algo importante. — Vamos até a revenda do Vieira, quero te dar um presente em nome da nossa velha amizade.
— Essa é boa! — ele deu uma risada engraçada e endireitou o corpo, insinuando bater em retirada. — Um Marau presenteando um Dolejal. Ou acha que ainda sou um empregadinho de fazenda? — provocou.
— Sei quem você é e também sei quem eu sou. — começou Leonardo, falando num tom sério e adulto. — Por isso acho que deveríamos ser mais próximos, ignorar essa rivalidade idiota entre as nossas famílias, por exemplo. Somos melhores que os nossos pais. Tem alguma dúvida sobre isso?
Alcançando a porta do motorista aberta, Franco parou e se virou.
— Bateu na minha picape. — insistiu, veemente.
O outro ergueu os braços para o céu num gesto teatral.
— Já disse que conserto essa coisa velha e enferrujada. — metendo dois olhos argutos no seu interlocutor, indagou num tom de desafio: — Como pode ser filho de quem é e andar por aí como um Zé Ninguém? Você tem uma picape caindo aos pedaços, mora de aluguel numa casinha à beira do rio e trabalha como empregado do próprio pai. Não entendo como aceita pouco, quase nada da vida. — deu de ombros, inconformado.
— Estou bem com o que tenho. A parte da ganância deixo para os mais velhos. — ironizou.
— Mas pode ter mais, é o seu direito como filho legítimo de um dos colonizadores. Pode calar a boca dos que te chamam por apelidos idiotas e se tornar rico e poderoso. — a voz baixa, persuasiva.
Franco deu de ombros, indiferente.
— Já sou rico, tenho um lugar para voltar, uma mulher para chamar de minha, uma mira boa e inimigos bem vigiados. Que mais posso querer?
— Poder, Franco, e a liberdade que somente o poder traz. — falou de um jeito delicadamente massacrante, igual aos líderes de revolucionários. — Temos de nos unir, estamos no mesmo barco. Somos filhos de uma geração de abutres, podemos mudar o rumo de nossas vidas e nos livrarmos da prisão desses sobrenomes... eles são nomes de outros, não nossos, somos mais que filhos de fazendeiros manipuladores...Somos a nova geração. Entenda que o meu e o seu pai são tiranos dominadores que acreditam que filho, soja, algodão, terra, propriedade fazem parte dos negócios, nada mais. O meu quer que eu seja o advogado que ameaçará qualquer indicativo de processo dos empregados das fazendas. E o seu, Franco, quer transformá-lo num assassino, num justiceiro às avessas. Não precisei de muito tempo para analisar a sua situação, cara, o Dolejal manipula você à vontade, quando precisa, quando quer, quando é conveniente ter um filho com boa mira e uma cicatriz de tiro no peito. Na boa, meu chapa, você está mais fodido do que eu. — concluiu, balançando a cabeça em assentimento.
— Está me propondo algum tipo de sociedade?
— Quero lhe mostrar o futuro. — Leonardo cometeu o erro de pousar a mão no ombro de Franco. — Juntos, tomaremos o que é nosso e teremos tudo de Matarana.
Franco olhou para a mão em seu ombro e, depois, fitou o rapaz à sua frente. Unir-se a um Marau. Trair Thales Dolejal.
Sorriu para o filho do coronel.
— Eu sabia que poderia contar com o seu senso de justiça. — afirmou Leonardo, estendendo e apertando a mão de Franco.
A chuva parou e o cheiro da terra quente e molhada ganhou o ar, pungente.
Ao voltar para sua casa com a noiva e o bebê que ela esperava, o filho de Thales começou a arquitetar um meio de enganar a cobra que, enroscada no galho baixo de uma árvore, tentara seduzi-lo com munição de baixo calibre.
Sim, o patrão tinha razão, ele era um legítimo Dolejal.
E queria a Coração de Ouro.
Karen sentiu o sangue subir para a cabeça. Ver Rita empoleirada na cama, grudada braço com braço em Rodrigo, era uma experiência no mínimo paralisante. Procurou ignorá-la, concentrando-se no moreno visivelmente preocupado, os olhos expressavam ansiedade muda e alguma outra coisa que ela não soube analisar.
Entrou no quarto e se refestelou no sofá em frente ao leito. Fingir que não era uma louca psicopata doía-lhe o estômago.
— Não encontrei nenhuma enfermeira nesse andar. — comentou com simulada naturalidade, enviando ao namorado um olhar doce quase juvenil.
O namorado franziu a testa, intrigado com o seu comportamento. Relaxou por alguns segundos, percebendo que se a bomba não explodiu à entrada então demoraria para se armar de novo. Era só uma questão de tocar nos fios certos, ponderou.
— O Cris esteve aqui, me deu uma bronca e a Joana vai ter de refazer os pontos.
Rita, que estava quieta até a chegada de Karen, endireitou os ombros e se voltou para ela.
— Como vai, querida? Que susto ele nos deu, né? — indagou, buscando uma cumplicidade que jamais seria retribuída. — Esqueceu a água? Precisamos mantê-lo hidratado.
Rodrigo segurou o ar nos pulmões.
— Não tem água por aqui? — Karen se ergueu e olhou ao redor, dando a entender que a outra poderia ter escondido a água do paciente.
— Pois é, não tem, que coisa! Faz o seguinte, fica com ele que já volto com uma garrafinha de água mineral. Depois pode voltar para casa e descansar um pouco, passo a noite com o Rodrigo. Que tal, fica bom para você? — perguntou alegrinha, a sem noção.
Karen estava estranhamente calma e controlada. Ele achou por bem interferir.
— Não se incomode, Rita, preciso apenas dormir um pouco. Amanhã mesmo darei um jeito de receber alta. — foi incisivo.
— Ah, não, faço questão de lhe fazer companhia! — determinou a microempresária.
— Por mim, tudo bem. — disse Karen com seriedade e pondo-se de pé.
— Aonde vai? — ele perguntou, pegando-a pelo pulso ao passar pelo leito e puxando-a para si. — Aonde pensa que vai sem me beijar, hein? — indagou numa voz molhada no mel e um sorriso cheio de charme. — Me dá essa boca gostosa, moça.
Ela sorriu como uma menininha apaixonada. Foi beijada devagar e profundamente. A língua morna penetrando a sua boca e buscando e chupando a sua língua. Ele mergulhava fundo nela degustando-a com erotismo e terna sensualidade. Karen pôs as duas mãos ao redor do rosto dele, sentindo a aspereza dos pontos de barba. Teve de encurvar ligeiramente o corpo para baixo absorvida por todas as sensações e sentimentos que se permitia entregar.
Abriu os olhos antes dele. Sempre fazia isso, reservando-se o prazer de vê-lo ainda inebriado de paixão. Rodrigo era um bom homem, íntegro, cavalheiro, generoso. Sentia no fundo do seu coração o amor que ele lhe oferecia. E amava-o como somente mulheres impetuosas amavam — toda, inteira, até o talo.
Por isso saiu do quarto e foi buscar a maldita garrafa de água. A ideia era passar na confeitaria de Rita no dia seguinte e cobri-la de porrada.
Mas Rita não estava mais entre eles. Pelo menos no quarto, considerou Karen, rebolando faceira pelo corredor.
Debruçada sobre o parapeito da sacada do quarto, Valéria observava a movimentação naquela parte da fazenda.
A noite estava estrelada de forma incomum. Era como uma conspiração de pontos brilhantes que de tão belos provocava-lhe angústia. Tinha o peito cheio de um vazio pesado, uma pressão suave logo abaixo da garganta e bem próximo das costelas. E uma vontade louca de rir e chorar intercalando-se a suspiros profundos e momentos de introspecção. Acontecia alguma coisa dentro dela, uma rebelião de sentimentos, traidores de uma causa. Ela, que decidira evitar as complicaçõezinhas afetivas. Tanto tempo fugindo, evitando, se escondendo entre o fogão e a lavanderia cheia de roupas para lavar, entre as noites tranquilas assistindo a filmes sacanas com personagens masculinos devotos do amor.
Era tão fácil se apaixonar por homens inacessíveis, homens sem a secura do cotidiano e a beleza da projeção. Punha-se uma capa sobre os seus ombros e os tornavam mais que homens, a realização de todos os desejos românticos. Pobres coitados se contraíssem uma infecção intestinal ou não conseguissem acertar a cabeça de um prego na primeira martelada. E o que dizer dos ogros como Thales Dolejal?
E o que dizer dela, Valéria Malverde, na sacada, de madrugada, ignorando tudo o resto que não fossem os faróis de certa Silverado. Que trazia um ogro. Mas o que ela podia fazer se parte do seu cérebro era lógico. E gritava feito um maluco na camisa de força reivindicando o pleno domínio do seu corpo, mandando-a terminar de arrumar a mala, juntar os seus demais pertences e não olhar para trás a partir de amanhã, quando retornasse a sua casa com a filha e os Lisboa. Sim, mas havia a outra parte. Nebulosa, tépida e misteriosa. Completamente obsessiva ao lhe mostrar as mesmas cenas do mesmo filminho, que eram todas as conversas desde a primeira havia dez anos, com Thales.
Thales? Que nome diferente — ela pensou sem pensar, apenas sentindo o pensamento rolar, pegando-o no alto como uma bolha de sabão, assustando-se ao desconfiar de que havia contraído uma virose. Infectada na alma. Thales. Que nome bonito. Forte. Quem era Thales? Antes, antes de se debruçar no parapeito da sacada, Thales era Dolejal. Agora, a céu aberto, ela descobria que Thales era mais que um Dolejal ou o dúbio amigo de seu irmão. Thales era o nome da maldição que se instalara na parte mais profunda do seu cérebro, naquela cuja remoção de um tumor era impossível. O tipo de danação que a Valéria lúcida e machucada chamava de disfuncional.
Qualquer autoanálise sensata e bem articulada foi para o espaço quando o motor da camionete parou de roncar e uma porta fez um barulho seco de batida.
Ela pulou de onde estava e voltou correndo para o quarto. Tremia. Não passava de uma garotinha de 15 anos. O estômago ardia. Elétrica, pulava no mesmo lugar tentando descarregar a tensão. Tinha vontade de se amarrar nos pés da cama. Controlar-se de outro jeito parecia uma missão impossível. Queria vê-lo. Queria cheirá-lo corpo inteiro. Queria estar com ele. Só podia ser uma doida de pedra. Uma carente rejeitada um milhão de vezes. Uma mulherzinha. Fazia tanto tempo que não se sentia assim, tão eroticamente mulherzinha, tão feminina, tão cheia de medo e ansiedade. E esse era o problema. Ficara tanto tempo sem se sentir assim que, agora, nada de meias medidas. Sentia tudo de uma vez só, sem dosagem homeopática, sem equilíbrio, nada de maturidade. Se tivesse se apaixonado mais, por vários homens, não teria acumulado tanto de si para oferecer. Caíra na própria armadilha.
Olhou-se no espelho e não viu o que via sempre. No lugar de um corpo volumoso e violentado pelo excesso de álcool, ela viu os olhos verdes brilhando, as pálpebras caídas como as de uma chapada e uma sensualidade avassaladora brotando das pernas e braços nus, que o vestido de alças valorizava. Balançou-se como uma criança com roupa nova e sorriu.
Sorriu amplamente arreganhando os dentes, o chão centímetros abaixo dos pés descalços. E depois de sorrir, riu, riu muito.
Teria de descer e vê-lo, dizer um boa-noite. Respirar o mesmo ar que ele. E ser açoitada pelos olhos melancolicamente azuis. E por suas palavras.
Estava blindada. Estava apaixonada.
Estava era bem fodida.
Enquanto descia os degraus da escada, devagar e mal respirando, pensava na desculpa que daria ao encontrá-lo na cozinha.
No primeiro ambiente da sala — longe dos quartos onde se encontravam vó Ninita, Sabrina e Johnny, já que Karen ficara no hospital com Rodrigo, as luzes suaves dos abajures de pé, quase a escuridão, e Caetano Veloso. Reconheceu “Você não me ensinou a te esquecer”, e tal reconhecimento serviu como uma revelação.
O homem sentado no sofá, de costas para ela, erguendo e abaixando o copo com uísque, olhando um ponto vazio à frente, sabia que Karen pretendia jamais largar Rodrigo. Na alegria ou na tristeza. A verdade de uma vida e o risco de fogo do destino.
Cogitou dar meia-volta e retornar ao abrigo seguro do quarto. Mas não havia mais qualquer sistema de segurança que a protegesse. Ele era o invasor que quebrara os vidros de sua proteção, entrara em sua casa, revirara os seus móveis, bagunçara as suas gavetas e vedara os seus olhos com os dele.
Contrariando o bom senso, aproximou-se como se evitasse pisar sobre cacos de vidro. Mordia o lábio, um pé diante do outro. Já conseguia aspirar o cheiro de sua colônia e ver o perfil do rosto contraído numa expressão de uma dor que não era física. Era a dor da perda e a ruminação do luto.
Ele se voltou ao pressentir a sua presença. Ao redor das pálpebras delicadas rugas acentuavam-se por algum tipo de esforço. Por alguns minutos ele não parou de olhá-la. A face séria, os olhos rasos de lágrimas que se mantinham enfurecidas à beira das pálpebras, sem a intenção de se derramarem.
Valéria nunca conhecera alguém tão infeliz como Thales.
— Desculpe incomodá-lo, só vou dar uma passadinha na cozinha para beber um copo d’água.
— Desde quando abandonou a vodca? — indagou sem sorrir com a boca, apenas os cantos dos olhos expressavam a provocação.
Desde que percebi que a vodca, perto de você, era chá de camomila com mel.
Ela balançou os braços para frente e para trás, ao longo do corpo, sem jeito.
— Tenho sede, apenas. Não estou a fim de afogar as mágoas. — mencionou de maneira sugestiva, endereçando um olhar para o copo que se esvaziava rapidamente.
Ele acompanhou o seu olhar e quase sorriu. Teria de gastar muita energia para forçar a musculatura do rosto se estirar para os lados.
A música baixa e suave, a iluminação que lembrava aqueles sonhos esmaecidos e familiares, a tristeza impregnada de densidade, tudo aquilo era muito perigoso. O perfil do rosto dele, o nariz, a testa, o cabelo curto, os lábios duros, os ossos dos maxilares marcando a pele.
Sentou-se ao seu lado, mas não tão perto.
— Quer conversar? — indagou com brandura.
— Acabei de desabafar com Johnnie Walker. — respondeu sem muito interesse, pondo-se de pé e encaminhando-se ao bar. — Prefere a companhia de uma russa ou uma americana?
Ela cruzou as pernas e o avaliou criticamente. Sorriu e considerou experimentar a vodca russa.
Retornou com os dois copos.
— Sobre o quê conversaremos?
Pegou o copo de sua mão, os dedos se tocaram. Quase virou a bebida sobre si. Ele não achou graça.
Aprumou-se envergonhada e respondeu:
— Podemos falar sobre a sua tristeza.
— Acha que estou triste porque me pegou bebendo uísque? Se fosse suco de abacaxi, qual definição daria aos meus sentimentos? — arqueou a sobrancelha com ironia.
— Sei que não está bem e precisa de ajuda.
— Ah, é mesmo, preciso falar com um padre. — fez troça.
— Para falar a verdade, acho que enlouqueceria toda a cúpula da Igreja Católica.
— Não, Valéria, eu falo exatamente o que a pessoa precisa ouvir.
Por favor, para de me olhar assim — ela pedia sem falar.
— Mas normalmente usa esse dom para tirar as pessoas dos eixos.
Ele deu de ombros, indiferente.
— O que posso dizer? A fraqueza humana me diverte.
— Não sou forte como a Karen, Thales. — afirmou com brusquidão.
— Por que se comparou a ela?
Valéria percebeu o próprio deslize.
Ele manteve os olhos pregados nela, o copo a meio caminho da boca, o interesse perscrutando-lhe a expressão.
— Por que, Valéria? — insistiu.
— Só estou querendo dizer que jamais tentaria medir forças com alguém como você. Acho que não tenho muita bala na agulha. — brincou, sorrindo meio sem jeito.
— Não se iluda, a Karen não é uma mulher forte. A primeira dificuldade que teve veio pedir ajuda a mim, logo que o marido a abandonou. Se fosse forte, teria segurado as pontas sozinha.
— Está julgando a Karen? Apontando o dedo, Thales Dolejal? — perguntou com sarcasmo.
— De forma alguma, apenas instruindo-a, Valéria. A Karen é uma mulher como qualquer outra, só que um pouco mais vadia que as demais. E é esse o seu encanto, não?
Foi uma declaração dita com um amargo cinismo. Ele até tentou sorrir para disfarçar a revolta, a injustiça de perder quem tanto queria, não estava nos seus planos um nocaute no segundo round.
— Você sabe que é um cretino falando isso.
Thales se voltou para ela com um sorriso que expressava a surpresa de uma questão até então nem posta em consideração.
— É mesmo? Acha que só porque não trepa você também não é uma vadia? Pois lhe digo, senhorita Malverde, você também é uma delas. — afirmou com um sorriso sereno.
Certo, começava o tiroteio.
— Um homem tão viajado e tão ignorante.
— Uma vadia assexuada.
— Você é um legítimo idiota, Thales. Nem sei por que perco meu tempo tentando entendê-lo. — reclamou, ressentida.
Ele depositou o copo vazio sobre a mesa e disse sem rodeios ou qualquer entonação especial na voz:
— Não sabe mesmo? Bastaram dois dias debaixo do meu teto e tenho certeza absoluta de que está pensando num jeito de romantizar uma boa foda comigo. É ou não é? Até aceito, seria uma experiência interessante. Nunca comi uma dona de casa, sabia?
— Meu Deus, seu grosseirão! — ela tentou se erguer, mas foi impedida por uma mão firme ao redor do pulso que a puxou de volta ao sofá.
— Não banque a hipócrita comigo, já estou bem farto dessa pose toda dos Malverde, os certinhos e cheios de princípios. — uma veia pulsava grossa no meio de sua testa e os olhos chispavam fagulhas de raiva. — Eu não sou um monstro, Valéria? Um doente? Um amigo desleal? Sabendo de tudo isso, ainda assim quer se sentar ao lado do monstro e falar sobre sua tristeza? Sabe o que é realmente triste, mulher? Querer alguém como um miserável, como um faminto comendo farelos das calçadas, querer alguém com os punhos, com os dentes, com a alma, com o pau, Valéria. Querer de volta a mulher que o inferniza a cada minuto do dia simplesmente porque ela existe, ela existe, e não está comigo. A Karen é uma vadia egoísta, não vale um tostão, mas nunca foi hipócrita. E você, Malverde, é tudo o que mais desprezo numa mulher, é fraca, é dissimulada, é inexpressiva.
Valéria sentiu o gosto salgado das lágrimas na garganta.
— Seria tão mais simples se tivesse me convidado pra sua cama em vez de enfeitar a merda toda. — ele declarou secamente. — Volte para o quarto, quero ficar sozinho.
Ela se ergueu tão trêmula que temeu perder o equilíbrio.
Então fez o improvável.
— Só queria tentar diminuir a sua tristeza. — murmurou, sentindo-se completamente deslocada diante dele e na casa dele.
— Certo, a cultura da felicidade, todos alegrinhos e bem nutridos. Pouco me importo com suas intenções, a bem da verdade, nem lembrava mais que o Rodrigo tinha irmã.
Ela tentou manter um restinho de dignidade que lhe sobrara.
— Claro, amanhã mesmo não estarei mais aqui e retornaremos à rotina. Obrigada pela hospedagem. De qualquer forma, você foi um bom anfitrião.
Ele a encarou com a cara amarrada.
— Ofendida e resignada, essa é Valéria Malverde.
Podia ficar quieta ou responder. Bem, ele tinha a si mesmo para aguentar. E isso significava que era uma grande punição.
Atirou-se na cama sem conseguir chorar.
Virgínia segurava contra o inchaço no queixo um punhado de pedras de gelo envoltas num pano. Riscava a toalha de plástico com a ponta de uma faca, fazia o jogo da velha. Indecisa, apostava consigo mesma para resolver uma questão. A primeira diagonal de X decidiria, por ela, o lado a escolher. Dolejal ou Marau.
Precisava do emprego. Queria o homem.
Telefonou para Leonardo e avisou sobre a prisão de Vitorino.
— O idiota errou o tiro ou quis errar? — desconfiou o filho de Marau.
— Não tem como saber, ele vai ser levado para o presídio de Santa Fé. É só uma questão de tempo.
— Acho que o velho não vai abrir o bico. — considerou pensativo. — O problema é o coronel. Tenho de pensar numa boa explicação para a prisão do Vitorino.
— Posso cair fora? Acho que a coisa está meio fora de controle.
— Fica por aí, preciso que aguente mais tempo, estou para fechar negócio com o Dolejal júnior. — informou, animado.
— O quê?
— Foi isso mesmo que ouviu. Tenho uma leve impressão de que fiz a cabeça dele hoje, toquei na ferida, nos direitos que ele tem e tal. Sabe, né?, o Franco sempre foi meio burro. É possível, sim, que se una a mim para passar a perna no Dolejal.
— Quer pôr o Franco contra o próprio pai? — indagou entre incrédula e curiosa.
— Por que o espanto? Só estou dando um empurrãozinho, mas, cá entre nós, o Franco tem motivos de sobra para se adonar do patrimônio do Dolejal.
— Sabe o que é lealdade, Leonardo? Ele é leal ao pai, mesmo que não se deem bem. Para ter o Franco do seu lado só se o patrão aprontar com a dona Nova.
Silêncio do outro lado da ligação.
— Leonardo?
— O que o seu “patrão” pensa sobre a norinha?
— Não sei, ele não fala a respeito. — ela respirou fundo. — Precisa de mais alguma informação?
— Sim, todas as informações possíveis.
— Acabou.
— A gente se vê em Belo Quinto amanhã.
— Acabou, acabou tudo entre nós. Você é um filho da puta manipulador. Aqui, tenho emprego e lugar para morar, não quero ser descoberta e pôr tudo a perder. Ou você me assume ou some da minha frente. — foi incisiva.
Ele riu.
E ela o mandou à merda.
Foi para cama antes de Franco. Deixou-o na sala assistindo a um filme policial. Vestiu a camisola e se deitou debaixo do lençol fininho. Sabia que o sono demoraria a vir, ainda mais presa que estava a um pensamento obsessivo, a displicência do noivo para com o jantar de noivado de ambos. O que lhe dissera havia pouco ao celular a respeito da suspensão da cerimônia no clube campestre a intrigara. Ele não ficara chateado com o fato de ter desmarcado a data do noivado em função da solenidade que, no final das contas, fora cancelada. Um comportamento estranho para quem, semanas atrás, fazia questão de se casar.
Por que protelaria o jantar de noivado, evento que tornaria oficial o compromisso de ambos, se fora ele quem fizera questão de oficializar o relacionamento? Não entendia o pouco caso para algo que parecia ser muito importante para ele. Será que pensara melhor a respeito? Talvez após conhecer os futuros sogros. Raquel e Guilherme espantavam qualquer pretendente que não os interessassem. Ou, talvez, a reaproximação com Dolejal o tivesse influenciado a retomar a vida de antes, a vida de pistoleiro solteiro. Esse último raciocínio foi-lhe difícil aceitar, visto que ele continuava dedicado, fiel e próximo, junto, quase colado. Não queria pensar mal dele, desconfiar de suas intenções, sabia que ele a amava.
Percebeu quando ele desligou a televisão. Entrou no quarto, abriu uma das portas do guarda-roupa, ficou parado olhando para dentro e tornou a fechá-la sem retirar qualquer peça. Observou-o através das pálpebras semicerradas, fingindo que estava dormindo, deitada de costas com as mãos debaixo do rosto. Viu-o então quando se enfiou no banheiro e o barulho da ducha.
Ele parecia distraído, como se tivesse os pensamentos distantes e concentrados em uma tarefa importante. O retorno à chefia da segurança deixara-o tenso, sempre em alerta, potencializando suas paranoias.
Quando voltou filetes de água escorriam-lhe pelo tórax, o cabelo molhado sacudido pela toalha, desgrenhado. Apenas a cueca boxer preta aderindo à musculatura definida dos seus quase um metro e oitenta. Olhava diretamente para ela e com tamanha intensidade que quase a obrigou que assumisse enfim que estava acordada e sustentasse o seu olhar. Mas foi por poucos minutos. Em seguida, tornou a sair do quarto.
Alguma coisa o consumia por dentro, ela pensou, preocupada. Sentou-se na cama incerta se o procurava ou o permitia vir até ela e se abrir. Franco era tão dócil quanto arisco — uma combinação contraditória que somente ela consiga compreender e lidar. Afastou o lençol e parou ao ouvir o barulho da porta dos fundos abrir e se fechar.
Acendeu a lâmpada do abajur sobre o criado-mudo decidida a descobrir a razão do noivo sair de casa, em plena madrugada, usando apenas uma cueca.
Manteve a porta entreaberta ao vê-lo ao celular, fumando, zanzando de um lado para outro no quintal, a cabeça baixa e a voz num tom bastante sério.
— O homem que o patrão trouxe da capital é eficiente? Tudo tem que sair como determinei...
Ele ergueu a cabeça em direção a luz da lua que iluminou os lábios apertados e os maxilares tesos. Ouvia o interlocutor sem, no entanto, confiar de todo em suas palavras.
— Quero o serviço perfeito, sem amadorismo, entendeu? É só o que peço. Diz pro patrão que a minha parte será bem feita, como sempre.
Terminou a ligação e esmagou a bagana do cigarro contra a parede.
Nova voltou para o quarto rapidamente, cuidando para não pisar forte no assoalho de madeira. Deitou-se na cama e puxou o lençol até o pescoço.
Ele retornara à margem escura do rio, ela pensou, sentindo uma contração no estômago. O diabo loiro voltara à ativa e estava a serviço do “patrão”. O homem da capital seria um matador de aluguel? Céus, seus pais eram esnobes, mas os Dolejal eram da máfia! Ela começava a ficar apavorada.
Ouviu o ruído metálico do rompimento do lacre de uma lata de cerveja e os passos descalços pisando firme em direção à sala.
Afundou a cabeça no travesseiro ao se deitar de bruços. A agitação vista nele contaminara-a. Uma inquietude dos infernos mandara o seu sono às favas. E quase parou de respirar ao perceber que ele se sentara na beirada da cama aos seus pés.
Não conseguiria manter a respiração regular por muito tempo. A sensação de reconhecer um sentimento havia pouco experimentado, mais precisamente, há quase três meses. Era o medo que o atraíra para ele. O medo que sentia de quase tudo e o medo que sentia dele. O pistoleiro frio e implacável. O melhor da região, o justiceiro do cerrado. Não se apaixonara apenas pelo órfão rejeitado, o seu homem sensual e sensível, o líder. Apaixonara-se pelo diabo loiro.
Virou-se com lentidão como se acabasse de acordar. Piscou sonolenta e sorriu para o semblante sério que a fitava com intensidade. Franziu a testa, intrigada, e se sentou escorada nos cotovelos.
— Não me diga que a insônia voltou.
Antes de conhecê-la, ele dormia duas horas por noite.
— Não.
A resposta saiu num fiapo de voz. Os olhos dentro dos olhos dela, revirando-a.
— O que tem, Franco?
Ela não sabia se queria ouvir a resposta.
Ele fez uma careta estranha. Parecia acanhado e, ao mesmo tempo, contrafeito. Levou a mão até o tornozelo dela, por baixo do lençol, e o rodeou possessivo.
— Preciso da sua ajuda... — começou, enquanto punha o lençol para o lado, expondo a mão em sua perna deslizando com displicência para cima e para baixo. — Você é sensata e inteligente, precisa me ajudar. Não sei mais o que fazer.
Ela ergueu-se de todo, sentando-se na cama, em alerta. Estendeu o braço e acariciou o seu rosto com ternura:
— Estou aqui para o que precisar, sem condições. — afirmou, incisiva.
Ele trouxe a própria mão para junto do corpo, como se a dela o tivesse queimado. Tentou sorrir e desistiu.
— Não sei mais o que fazer...
Ela o interrompeu, pondo-se de joelhos e tapando-lhe a boca com a própria mão.
— Deixa tudo comigo, sou uma mosquinha insuspeita, resolvo tudo para você. — disse determinada a assumir qualquer ônus por ele.
Franco fitou-a com firmeza.
— Eu sei, princesa, sei que sempre resolve isso pra mim, mas decidi que não seria mais com tanta frequência. Aceitei fazer uma vez ou outra para não nos prejudicar... Ontem mesmo já foi uma loucura... — ele passou a mão pelo cabelo molhado de um jeito nervoso. — Só que não estou conseguindo cumprir a promessa que fiz a mim mesmo. Fico puto com minha fraqueza. Já tomei banho gelado, fumei, zanzei pelo pátio... Merda, Nova, estou queimando feito um bicho, eu só posso ser um bicho, estou duro de tesão, louco pra te pegar de jeito, te judiar a noite inteira... Diacho, que bosta de homem eu sou que não respeita uma mulher grávida? — ele parou e respirou fundo tentando se controlar — A verdade é que não estava nos meus planos comer a minha princesa dois dias seguidos.
Ela não esperava por isso. Ficou sem palavras, olhando-o, aturdida. Marcava um possível assassinato por telefone e quase suplicava para impedi-lo de transar com ela.
— Não sei o que dizer. — balbuciou.
Ele não gostou nada da resposta.
— Vou então voltar aos meus tempos de adolescência, se é que me entende.
— Pensei que precisasse de minha ajuda para outra coisa...
— Preciso de você para muita coisa, mas, agora, no momento, não consigo imaginar outra serventia para uma mulher gostosa seminua na minha cama.
Ela riu e se explicou.
— Pensei que quisesse minha ajuda como bandidona ou algo parecido.
Franco olhou-a de um jeito desconfiado.
— Ouviu minha conversa lá fora?
Nova balançou a cabeça assentindo levemente.
— E por que não fez as malas e saiu correndo?
— Porque fiquei excitada. — respondeu, olhando para a boca que se abriu num sorriso preguiçoso.
— Desse jeito não está me ajudando nadinha... — falou meio que gemendo e cravando os joelhos no colchão, de frente para ela.
— O que quer de mim, pistoleiro? — ronronou, afastando as pernas o suficiente para a barra da camisola subir e expor o fundilho da calcinha.
Ele a olhou com fome. Olhou para o vale entre as suas pernas e para o resto todo que lhe era oferecido. A cabeça desceu para tocá-la intimamente mas, de maneira estratégica, mudou o rumo e uma boca esfomeada grudou-se à dela. Teve a língua chupada enquanto duas mãos soltavam-lhe as alças da camisola. Pressa e urgência. E a roupa voou por cima da cama.
— Precisa me controlar...precisa, Nova... — pedia, ofegante, a voz rouca arrastando as palavras.
Ela demonstrou o quanto o ajudaria.
— Mostra quem manda, caubói. — ordenou entre um gemido arfante.
Ele se afastou e a encarou extasiado. Ela fora feita sob medida para ele, não havia qualquer dúvida disso.
— Quer me matar, só pode. — murmurou Franco.
Ele se enterrou dentro dela e se manteve quieto absorvendo o seu calor.
Nova deixou escapar um gemido grave, um som gutural e profundo. A pele salpicou-se de suor. Duas mãos pegaram-na pela cintura enquanto ele se mexia dentro dela, deslocando os quadris devagar, bem devagar, num ritmo de uma dança lenta e erótica. Quando o ritmo aumentava e as estocadas eram mais intensas, ele parava ofegante e retomava à cadência lânguida deslocando os quadris e se enfiando e se retirando, mantendo-a firme no arco de seus braços, a aspereza da barba contra o seu pescoço, a tepidez da língua chupando o lóbulo de sua orelha.
— Me deixa gozar...Franco... por favor. — implorou, virando a cabeça de lado para receber uma boca desesperada.
— Aguente firme...temos a noite inteira...
Ele acelerou o ritmo da penetração sem deixar de beijá-la com força. Abraçou-se a ela e a deitou de costas, mantendo-se entre as suas pernas, e sequestrando-a para outro lugar. E, lá, eles se amaram ainda mais.
Karen parou o Maverick em frente à casa de uma de suas amigas. Suspirou fundo, do jeito que algumas pessoas faziam a fim de incorporarem um personagem. Ela sempre fora uma mulher autêntica, ainda que lhe custasse paz de espírito, mas urgia que por algumas horas tivesse de encenar brilhantemente. Desafivelou o cinto e se voltou para outra de suas amigas.
— Sabe o que fazer, não é? Precisamos tirar a ratinha da toca. — brincou.
Valéria torceu o lábio, incerta.
— A ratinha vai pedir permissão para o ratão.
— É, eu sei, mas está tudo sob controle. — afirmou ela, com um sorriso sugestivo.
A namorada do xerife bateu à porta com força e sua amiga, seguindo-a ao lado, olhou-a com severidade, as sobrancelhas quase juntas.
— Que tal pegar uma tora e bancar a viking?
Karen riu consigo mesma, Val parecia ter acordado com o pé esquerdo inchado.
A porta foi aberta por alguém que resmungava baixinho e, quando recebeu os raios de sol na cara, quase derreteu como um vampiro. Nova estava enrolada num lençol, descabelada, a cara amassada e com um chupão no pescoço.
— Enquanto eu passo a noite no hospital com um interno teimoso feito uma mula, a senhorita gasta energia comendo psicopatas.
— Hoje o humor da Karen está beirando à debilidade mental — reclamou Val.
— Bom dia para as duas. O que aconteceu? — perguntou Nova, a mão toldando as pálpebras semicerradas, os olhos cheios de sono zanzando de uma para a outra: — O Rodrigo está bem?
— Ele está tão bem que conseguiu ter alta. O Cris, pra variar, está subindo pelas paredes, queria que ele ficasse uma semana internado.
— Mas é claro que ninguém escuta a voz da razão nessa cidade maluca. — declarou a irmã do delegado com mau humor — Como é que pode um camarada levar um tiro e sair do hospital vinte e quatro horas depois!
Karen virou o corpo totalmente para ela e afirmou categórica:
— Um tiro de raspão e isso significa que a bala não afetou nada importante. Pele é o que a gente mais tem, minha filha. Entendeu ou quer encrencar comigo? — desafiou com as mãos nos quadris e um olhar divertido.
— Vão ficar discutindo ou querem entrar e tomar um café? — sugeriu a dona da casa.
As duas fizeram menção de entrar ao mesmo tempo.
— Primeiro as damas. — disse Karen, com um sorriso debochado e cedendo passagem a Val.
Nova indicou-lhes a cozinha enquanto se dirigia de volta ao quarto,
— Vou pôr uma roupa. Adoraria se as meninas preparassem um café.
Karen olhou para Val e deu de ombros.
— Acho que essa indireta é para você.
Era evidente que se na própria casa Karen Lisboa mal lavava uma loucinha vez por outra, na casa dos outros, praticamente improvável que fizesse algo.
Valéria abriu as portas do armário à procura dos apetrechos para fazer o café e, por cima do ombro, alfinetou a cunhada:
— Quando o Rodrigo estiver em casa vê se cuida dele. O Lucas já voltou à delegacia e daqui a alguns dias o Vitorino seguirá para Santa Fé, assim o meu irmão não tem motivos para não descansar um pouco.
— Sim, senhora. — assentiu a outra, sentada à mesa, tamborilando os dedos. — Entendi a mensagem, vou me comportar como uma mulher madura, viu? O seu irmãozinho já havia me dado a dica.
Nova entrou na cozinha vestida numa bata curtinha, com detalhes em renda nas bordas das mangas e gola, e o jeans escuro. Calçava um chinelo sem salto. Percebeu o olhar profundo e sarcástico de Karen e a sua guinada de cabeça em direção a Val.
— Precisamos encontrar um bom homem para ela. — declarou bem-humorada.
Valéria quase deixou cair a xícara que segurava. Arregalou os olhos para Nova e depois para Karen.
— Estou bem sozinha. Só porque vocês têm os seus namoradinhos, não significa que eu esteja em desvantagem. — recriminou-as com azedume.
— De forma alguma, — rebateu Nova com gentileza e ajudando-a a encher a cafeteira com água, completou: — mas seria interessante vê-la com alguém passeando pela cidade, se divertindo e tendo uma companhia masculina para conversar. — contemporizou.
Val segurava o pote com café na mão, a colher enterrada no pó, a atenção desviada de uma amiga para outra.
— Não preciso de homem para viver.
Karen escorou as costas no encosto da cadeira.
— Mulher nenhuma precisa, Val, a gente quer ou não quer ter um homem. — assegurou serenamente.
A noiva de Franco tomou o pote das mãos da amiga e, com um sorriso, despejou o pó no filtro da cafeteira. De costas, considerou os possíveis pretendentes para a irmã do delegado.
— Sabe aquele farmacêutico da segunda via?, o que veio de Curitiba depois de se formar? Que eu saiba está solteiro da silva. É um bom partido para começar a desenferrujar. — brincou.
— Ele não é viado, não? Tem uma carinha de quem adora um gloss. — debochou Karen, observando que Valéria não estava satisfeita com o rumo da conversa. — Sabe de quem estamos falando, né, Valzinha? — provocou-a.
— Não me interessa saber.
Nova intercedeu censurando-a sem muito rigor:
— Qual é o problema de começar pelo menos uma amizade com o rapaz? Você é jovem, bonita, independente e gasta seus dias ao redor dos outros, como uma mãezona italiana da terceira idade.
— Chega desse papo, a gente veio aqui para passarmos o dia juntas... — começou Val, torcendo as mãos com ansiedade e sentindo o olhar de Karen sobre si. — Pensei em irmos para o salão da Giovana e nos darmos de presente um dia de realeza. Que tal, Nova? A gente podia ficar por lá o dia inteiro tratando da pele, do cabelo... e depois podíamos escolher umas roupas chiques para a cerimônia no clube campestre no próximo sábado.
Nova ligou a cafeteira, puxou a cadeira em frente a Karen e considerou o programa oferecido. Era verdade que adorava estar com elas, com aquelas duas adolescentes trintonas. O espírito de amizade e, mais do que isso, camaradagem, unia-as num vínculo forte e divertido.
— O que acha, Karen? Não consigo imaginar você num salão de beleza. — confessou, um sorriso se armando de animação.
Karen cruzou as pernas debaixo da mesa e enfiou os dedos nos cabelos, ajeitando-os num coque improvisado, preso pelas próprias mechas lisas e pretas.
— Meu homem voltou pra casa, e eu preciso passar uma lixa debaixo dos pés.
— Está virando uma mulherzinha, Karen Lisboa?! — brincou Nova, atirando o pano de prato na cara dela.
Karen riu até ficar vermelha.
— Certo, admito, quero fazer uma faxina geral! Pele, cabelo, maquiagem e até depilação. — voltando-se para a cunhada completou mordaz: — Você não precisa de depilação, porque nunca vi personagem de filme se interessar por gente de carne e osso. Ou talvez, sei lá, você mesma seja um personagem, né, Val?
— Não sei se conseguirei te aguentar o dia inteiro. — suspirou Valéria, resignada.
Karen se levantou, rodeou a mesa e puxou-a para um forte abraço.
— Se não fosse tão sensível, eu não implicaria tanto com a senhorita. — falou num tom divertido.
De repente as duas ouviram o que jamais pensariam ouvir de Nova.
— Por que não tenta coisa com o Cris?
Elas se entreolharam, e a mulher de Franco sorriu sem jeito.
— Foi só uma ideia. Ele é um bom homem, só não foi bom pra mim. Além do mais, Val, é próximo, conhecido, sabemos que não é nenhum doido ou pervertido.
— Mas não sabemos se é bom de cama. Ninguém aqui o experimentou. — concluiu Karen, séria.
— Só pode estar brincando, né, Karen? — exasperou-se Val. — Acha que estou à procura de sexo, digo, somente sexo? Se eu tiver que me meter em complicação de novo, não será só por causa de sexo casual.
— Ah, é?, mas com sexo casual não se tem complicação. — escarneceu a cunhada.
— Karen, espera um pouquinho, a Val está falando sério. — Nova teve de se segurar para não rir. — Presta atenção, você e o Cris se dão muito bem. E, além disso, ele é amigo do seu irmão. Lembro que quando íamos até sua casa, vocês dois ficavam conversando por horas na varanda e me deixavam à mercê do delegado delícia.
Karen deu olhada afiada na amiga.
— Não me provoca porque eu experimentei o teu pistoleiro, mas a senhora nunca degustou um tantinho sequer do meu delegado.
— É, nesse ponto, sou eu quem está em desvantagem... — considerou sem dar muita importância ao fato de ser amiga do ex-caso do noivo. — Mas acho que entendi o que quis dizer sobre o Cris. Bem, eu também não sei se ele é bom naquilo, mas, por outro lado, sempre foi chegado em praticar.
Nova falou de um jeito tão espontâneo que as outras não se aguentaram e riram.
A cafeteira roncou, e Val tomou a dianteira para servir as xícaras. Nova, por sua vez, adiantou-se para pôr na mesa o pão caseiro, as geleias e os frios.
— Por que estão me olhando desse jeito? — indagou ela, surpresa.
Valéria apontou com o dedo indicador para o pão, como se tivesse encontrado um rato morto.
— Acha que nós podemos nos empanturrar disso e depois entrar alegrinhas em um vestido novo?
— Jesus!, que vá à merda o vestido, esse pão está fofinho e cheiroso. Estou salivando! — exclamou Karen, cortando um pedaço do pão e enchendo-o de nata.
Nova acompanhou-a no gesto e coube a Val se manter na dieta.
— Acho que eu engordo porque como com culpa. — refletiu Val, tornando a se sentar e emborcando o café sem açúcar.
— É, amiga, o negócio é comer sem se sentir culpada. — afirmou Karen, piscando o olho de um jeito malicioso.
— Ou você pode substituir a palavra culpa pela responsabilidade. — ponderou Nova. — Coma com responsabilidade, Val. Permita-se também rompantes de loucura, é tão bom ficar doidinha de vez em quando.
Será que as amigas aceitariam numa boa se ela dissesse que estava doidinha por Thales Dolejal?
Terminaram o café e decidiram partir para o salão de beleza da filha do coronel Marau. Em seguida, passariam numa butique onde aceitava cartões de crédito de pessoas cujo sobrenome não era os da tradicional sociedade mataranense.
Lucas aspirou o cheiro da terra úmida e sorriu. Ele não sabia o que mais o agradava, o cheiro da cidade após uma boa chuva ou o da delegacia quando tinha um meliante perigoso atrás das grades. Sentira falta da DP, da rotina de policial do interior entrecortada por momentos de puro tédio seguidos por situações extremamente estressantes.
Retornou à sua mesa com uma caneca de café requentado e uma pilha de papéis para pôr em ordem. Adele era eficiente e havia-o posto em dia sobre os assuntos atuais tanto na área policial quanto na área relacionada às fofocas. Por isso Lucas estava a par da briga e reconciliação do delegado e Karen, assim como dos atentados e possíveis suspeitos. Além, obviamente, do acontecimento mais bombástico do ano, que era a tentativa de homicídio contra o seu chefe. No fundo, o agente tinha vontade de descer até a cela de Vitorino e dar uma prensa até arrancar o nome de quem ele protegia. Era da mesma opinião que o delegado, o pistoleiro do coronel era um pau-mandado, nada mais. Podia ser perigoso, matador, o escambau, mas não tinha tino nem motivo para dar cabo de uma autoridade. Ele fora mandado por alguém da Coração de Ouro. Lucas apostava no coronel Marau. Porém, o chefe e a escrivã estavam de olho na sua prole.
O telefone sobre sua mesa tocou e ele esticou o braço preguiçosamente para atendê-lo.
— Lucas, vou me atrasar um pouquinho. O camarada que vai instalar a minha parabólica acabou de chegar.
— Não esquenta, está tudo na santa paz. — retrucou o policial.
Assim que ele pôs o fone no gancho, o barulho de metal batendo contra metal o tirou da cadeira e o levou rapidamente até a entrada da delegacia. Dois carros haviam colidido frontalmente. E um minuto depois dezenas de pessoas se aglomeraram ao redor dos veículos.
Lucas não pensou duas vezes ao ouvir alguém gritar sobre um bebê preso nas ferragens retorcidas. Do seu celular, ligou para o hospital pedindo uma ambulância enquanto atravessava correndo o percurso entre a delegacia e a avenida principal. Era visível, pelas marcas dos pneus no asfalto, que um dos automóveis tentara frear antes de atravessar o canteiro e bater de frente contra o outro.
De repente o policial teve uma vertigem. Ele estava no meio de uma bagunça de gritos e pouco a pouco cada parte daquele cenário se separou em pedaços como vidros de um caleidoscópio. Não era uma vertigem de quem recém saíra do hospital; era a de um policial tomado por um insight. Lucas viu o motorista que batera contra o automóvel sair de fininho por entre as pessoas, sem olhar para trás. Poderia até considerar que ele quisesse evitar o flagrante e não prestar socorro. Por um momento, o policial manteve o olhar preso na figura que caminhava tranquilamente em direção a uma rua secundária. A maior parte dos pedestres concentrava a atenção no casal ferido e que sofrera o impacto da batida na parte lateral do seu carro. Por isso Lucas olhou para trás e viu o que poderia ser um bebê se não fosse uma boneca enrolada numa manta. E viu mais. Meia dúzia de transeuntes ao redor do carro da vítima atrapalhando a aproximação dos demais. Ainda que naquela hora do dia a avenida estivesse calma. Alguma coisa não se encaixava na cena.
Lucas cruzou o olhar com a vítima sentada ao lado do motorista atingido. O air bag protegera-os do impacto, e ela não tinha nem um arranhão sequer. E o motorista também parecia em perfeito estado. Assim que a mulher saiu do carro, meio vacilante, foi amparada pelas pessoas e conduzida a outro veículo. O motorista permaneceu sentado onde estava, conversando com um policial militar que acabara de estacionar a viatura e averiguar a situação.
O policial civil relatou ao PM sobre a fuga do causador do acidente e retornou à delegacia. Uma sensação estranha incomodava-o. Era como uma coceira debaixo da pele que também se chamava instinto. Nada racional e lógico; apenas o incômodo.
Ao pisar a bota esquerda na delegacia, a sensação se transformou em pensamento e o incômodo virou preocupação. Um raio de gelo cruzou-lhe a coluna vertebral e eriçou os pelos de sua nuca. Apertou os lábios com força tomado agora pela raiva. Encenação. Truque. Teatro. Antes de se tornar policial, ele fora ator. Era verdade que atuara em dois filmes pornôs. Mas arte era arte. E a base da arte era a invenção de uma verdade.
Diante da cela onde estava Vitorino, Lucas parou, pôs as mãos nos quadris e respirou fundo.
O acidente diante da delegacia fora uma brilhante encenação para chamar a atenção de todos — inclusive a do policial, enquanto o pistoleiro do coronel Marau era abatido a tiros dentro da sua cela.
Karen tinha lama na cara. Nova recebia o branco leitoso na ponta dos dedos. Val tingia o cabelo vermelho de preto. A última chamara a cabeleireira num canto e murmurara, apontando para a amiga mais alta:
— Quero que deixe o meu cabelo igual ao dela.
No fundo, sabia que algum mecanismo psicológico a induzira a imitar uma mulher bonita e desejada como Karen; à superfície, porém, Val sabia muito bem a razão de deixar de ser ruiva para se tornar morena. Entretanto, podia também evitar qualquer tipo de autoanálise e acreditar piamente que queria mudar o seu visual porque estava farta de ver a mesma cara diante do espelho ano após ano.
Giovana tratara-as com educação e sorrisos, sem disfarçar o prazer de ter a noiva de um Dolejal no seu salão de beleza. Ela pouco se importava com a rivalidade entre as famílias, esse assunto dizia respeito somente aos homens. Para a filha mais velha do coronel, Thales Dolejal combinava mais com o seu estilo de vida, relacionado à beleza e à sofisticação, do que o seu pai contando piadas machistas e arrotando à mesa. Particularmente, ela sempre acalentara o desejo de se aproximar da Arco Verde. Queria de verdade fazer parte daquele círculo de amigos restritos dos Dolejal. Queria mesmo era ter amigos.
O espelho em frente a uma das bancadas de mármore comportava a largura da parede. As três amigas, empoleiradas nas respectivas cadeiras, eram atendidas por profissionais uniformizadas e maquiadas como se fossem à parada gay. Karen ficou em dúvida se uma delas não era homem, mas não encontrou o gogó. Por fim, concentrou-se em ter a pele esfoliada para, depois, receber uma grossa camada de lama.
— Olha aqui, ô Val, minha amada, final do mês vamos abrir a confeitaria e quebrar a Rita. Ouviu bem? Minhas corridas foram pro brejo e agora terei de me comportar, senão alguém vai pedir um tempo... de novo.
— Até parece que vai se comportar. — resmungou a cunhada enquanto via o seu cabelo cor de fogo receber a primeira pincelada de tinta.
— Tem razão, é difícil acreditar. — ela tentou sorrir, mas estava com o rosto paralisado pela lama seca. — A questão é que o que eu entendo por bom comportamento talvez seja diferente do que está na cartilha do seu irmão. De qualquer forma, farei o possível para não confrontá-lo nas próximas semanas. — ela se virou para Nova e perguntou curiosa: — Por que não põe cílios postiços? Fez toda essa maquiagem de merda e não pôs cílios postiços.
Val intercedeu, olhando-as pelo espelho.
— Pra quê? Ela está linda e natural, não precisa de artifícios.
— Cílios postiços realçam os olhos, porra! — falou Karen simulando irritação.
Nova riu com vontade.
— Ah, vou experimentar então. Mas vai ser estranho fazer o almoço maquiada e com cílios postiços.
— Fazer o almoço? Que nada, moça. A gente vai passar o dia inteiro aqui e depois vamos torrar dinheiro comprando roupas. E, à noite, meu bem, iremos jantar no salão country com nossos vestidos lindos e nossas caras pintadas. — determinou Karen.
— Mas não deixei comida pro Franco... — comentou Nova preocupada.
— Então ele morrerá de fome. — rebateu Karen com deboche.
— Ele gosta da minha comida. Não vejo problema algum cozinhar para o meu amor, é um gesto de carinho.
— Não precisa justificar a submissa em você. — brincou Karen
— Não falei? Ela está impossível. — disse Val, vendo o cabelo vermelho desaparecer por baixa da massa compacta de tintura.
— Tudo bem, o Franco se vira, ele sabe fazer algumas coisas no fogão. Mas e o Rodrigo, coitado? Recebeu alta e ficará sozinho em casa?
— A Sabrina cuida direitinho do tio. Além disso, o Johnny está sempre ao redor dele. — comentou Karen despreocupada. — Mas, poxa vida!, já disse que o meu macho alfa não teve um infarto ou derrame, ele está totalmente recuperado.
— Não tem como estar cem por cento, madame. O Rodrigo se faz de forte pra passar bem. — disse Val.
Giovana surgiu ladeada pela funcionária que trazia uma bandeja de inox com uma garrafa de champanhe no balde com gelo. Com um gesto discreto de mão, sinalizou para a mulher deixar a bandeja sobre a mesa de mármore, ao lado da bancada com o espelho.
— Nada como um bom champanhe, não é mesmo? — era a filha do Marau, com um sorriso largo e um olhar astuto. — Verdadeiramente, estou muito feliz em tê-las no meu salão. Saibam que, para mim, vocês já são minhas clientes Vips. Eu até designei essa sala reservada, separada dos demais clientes, para que tivessem maior privacidade.
Nova e Karen se entreolharam de forma significativa, era óbvio que o tratamento dispensado à noiva do filho de Thales deveria chegar-lhe aos ouvidos. Pelo visto, em Matarana, Giovana representava a Suíça — um território neutro.
Val aceitou de bom grado a taça oferecida pela funcionária e sorveu a bebida como se tivesse sede. Ultimamente, a sede por álcool aumentara, mesmo que sempre fizesse parte de seu organismo, assim como a cafeína para o irmão. Os Malverde também possuíam seus vícios.
— Obrigada, Giovana. Fiquei bastante impressionada com o ótimo serviço e a atenção de suas funcionárias. — disse Nova com um sorriso simpático.
Giovana distribuiu mais dois ou três sorrisos intercalados com elogios e convites para retornarem, despediu-se e voltou ao escritório no mezanino.
— Dona Karen, a senhora já pode lavar o rosto para passarmos o hidratante de algas. — recomendou a funcionária morena, cabelo preso num coque baixo e o rosto excessivamente maquiado, indicando à cliente o corredor até o lavabo. — Vamos por aqui, por favor.
Karen levantou-se da cadeira e deu uma boa olhada na sua cara cheia de lama que deixava à vista apenas olhos, nariz e boca.
— Vê se não acabam com o champanhe, hein!
Nova ergueu as mãos como que se defendesse de uma acusação.
— Estou esperando um bebê, não bebo nada com álcool.
— Claro que não, minha filha, a pinguça aqui é a Val. Ouviu, dona Malverde? — provocou-a com bom humor.
Valéria sorriu e serviu-se de outra taça numa atitude explícita de afronta à cunhada.
— É só não demorar muito, mulher lama. — gracejou.
Assim que Karen saiu da sala, ela aproveitou para estender o assunto relativo ao consumo de álcool. Contudo, o alvo não era ela mesma.
— Esse tempo em que estive na Arco Verde percebi que o Thales está sempre com um copo na mão. Por acaso ele é meio alcoólatra? — sondou.
— Meio alcoólatra? — Nova indagou, intrigada. — Acho que não existe isso, Val. Ou se é alcoólatra ou não.
— Certo, certo. Mas ele é ou não bebum?
— Acho que não. Quando trabalhei para ele, escrevendo o livro sobre a colonização de Matarana, via-o praticamente todos os dias e não percebi nada de anormal quanto a isso. Sempre me pareceu sóbrio, equilibrado e, de certa forma, distante, distante de todos, para falar a verdade. Claro que agora com essa história do namoro da Karen com o Rodrigo, sei lá, pode ser que esteja bebendo um pouquinho a mais...
— Ou talvez tenha outro problema, algo relacionado ao seu trabalho. — considerou Val, pensativa.
— Não, nada em relação a trabalho o faria encher a cara. Ele é um homem de negócios, pragmático, jamais se deixaria levar pelos sentimentos. — falou, balançando a cabeça com convicção. — Mas qual o propósito da sua pergunta?
— Nada, só curiosidade. Eu o conheço há tanto tempo, mas ele é tão reservado e misterioso que às vezes é quase como um estranho, um forasteiro recém-chegado.
— Pois é, foi o que falei, ele é uma pessoa meio que distante de todos, fechado, parece que se protege com mil camadas de aço. Veja em relação ao Franco, por exemplo, procurou-o para tê-lo próximo outra vez. E em nenhum momento afirmou isso para o filho. Ele prefere se manter como o patrão leal ao pai protetor. O que custa dizer para o filho que o quer perto de si? Por que não faz isso?
Val observou a pasta escura e homogênea por sobre sua cabeça, o cabelo todo puxado para trás, e as costas protegidas pela capa de cetim. Cogitou acrescentar à face uma maquiagem parecida com a das funcionárias do salão, com direito a brilho vermelho nos lábios.
Voltou-se para Nova que se sentara no sofá, as pernas esticadas.
— Tudo bem?
— Tudo, só uma preguicinha.
Val sentou-se na beirada do mesmo sofá e sondou mais uma vez a amiga.
— Tenho uma teoria sobre o seu sogro.
— É mesmo?, me conta. — pediu Nova com um sorriso engraçado.
— Acho que ele está doente, sabe? Acho que por causa daquele desgraçado do avô dele, do espancador dos infernos, ele criou essa tal armadura de aço e se protege nela para não apanhar de novo. Sei que isso não passa de psicologismo, mas a gente faz de tudo para se proteger dos outros, é ou não é? Ele não é um homem mau. É claro que quando abre a boca parece uma metralhadora disparando bala pra tudo que é lado... Eu mesma já levei cada balaço! E não poupa ninguém, é bem democrático mesmo. Só que isto, esse comportamento agressivo e até meio antissocial, é culpa de uma alma perturbada, nas trevas, sabe? Tenho certeza de que ele não é o que aparenta ser; ele é bem melhor do que aparenta, ao contrário de muita gente. Acho que ele precisa de alguém que o aconselhe seriamente a procurar ajuda.
Nova interessou-se pelo o que a amiga dizia. Apesar de haver um pouco de exagero por parte de Val. Afinal, uma coisa eram problemas emocionais e outra, bem diferente, era constituição da personalidade. Thales Dolejal era antissocial, porque se sentia superior aos ditos caipiras mataranenses — palavras dele.
— Acha que o Franco deveria se aproximar mais do pai? — cogitou a contragosto. A bem da verdade, não queria jogar o noivo na arena com o leão.
— Bom, quem se importa com o Thales? A Karen? — ironizou.
— Sei, não, Val. Toda a vez que o Franco tentou uma reaproximação saiu ferido. Prefiro manter a integridade emocional do meu amor intacta. — deu de ombros, indiferente, e emendou: — O senhor Dolejal já é um caso perdido, mas o Franco não. — disse, resoluta.
— Talvez eu devesse falar sobre isso com o Cris. — cogitou baixinho, reflexiva. — Apesar do Franco, ambos são ótimos amigos.
— Que é isso, “apesar do Franco”? — perguntou Nova com secura. — Nesse caso, quem tem problemas é o seu amigo Cristiano, ouviu bem, Valéria?
Val riu sem jeito.
— Calma, Nova, não estou atacando o seu noivo. É que apesar do Franco ser filho do Thales, o Cris soube separar bem as coisas e manteve a amizade com ele, só isso. O mesmo não aconteceu em relação ao meu irmão. O Rodrigo preferiu se afastar do Thales...
— A decisão do Rodrigo foi certíssima! E a do Cris não me surpreende em nada, afinal, são situações completamente diferentes. Nunca tive um relacionamento com ele e, mesmo que tivesse, não o troquei pelo Thales. Se acha que com isso está provando algum tipo de superioridade ou altruísmo do Cris, engana-se completamente. E, se quer saber, Val, nesse ponto, acho que o Thales vale mais que o Cris. O seu amiguinho se presta a passar por bonzinho e, na verdade, é um farsante manipulador. Ao passo que o Thales não faz questão nenhuma de esconder quem é.
— Calma, Nova, desculpa. Não se irrita, pode fazer mal ao bebê.
— Olha só, a Karen a incentiva para ter um caso com Cris, e eu acho que não seria má ideia desde que antes os dois pusessem as cartas na mesa. Você diz o que quer da vida e ele faz o mesmo; se combinar, sigam em frente, boa sorte, amém! É esse o meu conselho.
A irmã do delegado mordeu o lábio inferior, incerta.
— Vou pensar a respeito, ainda que ele tenha virado um mulherengo safado. Mas... e quanto ao Thales?
— O que tem ele?
— O que acha dele como... como homem?
— Sei lá, Val, que pergunta!, é pai do meu noivo, só isso.
Val suspirou resignada.
— Acha, por acaso, que ele é o belzebu que pintam por aí?
Nova apertou os olhos, desconfiada. Preferiu ignorar um pensamento estranho que lhe ocorreu no momento. Valéria não dava ponto sem nó.
— Vou te dizer o que acho sobre Thales Dolejal. Do fundo do coração, para mim, ele é como um escorpião. Não há melhor definição que essa. Um escorpião que, quando ameaçado, ferroa quem o atacou. Só que a maior parte do tempo, ele mesmo se impinge as próprias ferroadas e absorve para si o veneno e a dor. Ele produz o próprio sofrimento e é por isso que se isola. É aí que entra a sua teoria da necessidade por um apoio emocional. O que ele faz para os outros é bem menos do que faz para si mesmo. E, pelo visto, as suas maiores vítimas são normalmente as que mais o atingem. É isso que penso sobre o pai do Franco.
Val absorveu por um momento as palavras da amiga, ditas de forma tão contundente que mereciam um minuto de silêncio.
— E sabe o que eu acho?
As duas se voltaram para uma Karen de rosto limpo e olhar zangado.
— Esse escorpiãozinho não passa é de um tirano narcisista, dominador e egocêntrico. Ele se acha o senhor feudal, o dono de tudo e destrói quem tenta detê-lo na sua obsessão imperialista. É movido pela competição e tem de ganhar sempre. Devia era ter apanhado mais, isso, sim. Como homem, se quer saber, Val, a única serventia é na cama. Se o seu objetivo é ser bem comida, então lhe indico o homem certo. Depois do Rodrigo, ele é o melhor. E para mulheres submissas, ele é melhor até que o Rodrigo. Você se vicia nele, é verdade, o Thales nos deixa viciadas nele. E, depois, ficamos loucas sem ele. Eu, que sou forte, virei uma cachaceira. E a texana emagreceu tanto que quase ficou invisível. Com ele, ficamos loucas. Se quiser perder a razão e uivar para a lua, sugiro que se meta com o Thales. Assim que ele se cansar da aventura, mete um pé na sua bunda e segue em frente. Se tiver sorte, Val, encontrará alguém equilibrado e amoroso como o Rodrigo para juntar os seus cacos e recomeçar. Mas isso nem sempre acontece, não é mesmo? Então por que brincar com a sorte. Ele exige tudo da mulher e não oferece absolutamente nada. É o cara perfeito para a vaca da Rita, mas não para alguém com a qual me importo...
— Só fiz uma pergunta. — falou Val, constrangida.
— Não, Val, fez várias. — apontou Nova sagazmente.
— A mulher para o Thales é a Rita. Sabe o que ele fará com ela? Picadinho de alpinista social. E quando ela estiver andando por Matarana trocando as pernas e em farrapos, eu vou rir é muito. Não há a mínima possibilidade de ser feliz com ele!
— Porque você não foi. — acusou Val com azedume.
— E quem foi, Valéria?
— Vai pagar para descobrir? — indagou Nova atenta à resposta.
— Não sei. — murmurou, fitando as próprias mãos.
Sentia-se vencida antes mesmo de tentar.
Nova se levantou do sofá e se espreguiçou.
— Colegas, estou louca por um suquinho de manga!
Ela sempre sabia como conduzir uma situação, pensou Karen, prontificando-se a resolver a questão. Apertou a campainha ao lado do sofá e aguardou a chegada de uma das atendentes.
— Somos Vips ou não somos? — brincou, sentando-se ao lado de Val e pondo o braço por sobre seus ombros: — O que está acontecendo com você, hein? Dois dias na Arco Verde e já pirou? Isso mostra o quanto está carente e desprotegida, que esse tempo todo guardando o pote de ouro foi muito mais perigoso do que se o tivesse leiloado em praça pública. Olha para mim, Val. — ela pegou-lhe o queixo e lhe ergueu o rosto para si: — Você e a Jasmine acompanharam a minha história com o Thales. Se a Nova tivesse se interessado pelo pai no lugar do filho, eu até entenderia, ela é romanticazinha, avoada e não sabe da missa a metade. Mas você não tem o direito de se iludir quanto ao Thales.
— Ô dona Karen, nunca me interessei pelo Dolejal pai, apesar de ser avoada, como mencionou. Só que eu sei metade da missa, sim. Aliás, a cidade inteira sempre soube, vocês dois nunca foram discretos.
Valéria respirou fundo.
— Vamos parar por aqui com essa conversa. — pediu ela. — Tem razão, Karen, passei tanto tempo evitando os homens que acabei me confundindo toda ao dividir o mesmo teto com um cara que não fosse o meu irmão. É perfeitamente justificável e até hormonal. — tentou rir da situação, mas era o mesmo que rir de si mesma.
Karen percebeu a ponta de tristeza na voz de Valéria. Endereçou um olhar preocupado a Nova. Precisamos fazer alguma coisa, dizia o olhar.
— Antes de irmos à butique, almoçaremos em um lugar bem chique. — sugeriu Nova.
— Hum, chique em Matarana? — brincou Karen.
— É, sua caipira esnobe. — alfinetou-a Nova e, lançando um olhar sugestivo a Val, completou: — O bom nisso tudo é que você é a única que poderá paquerar à vontade.
A atendente entrou na sala, e elas pararam de falar. Valéria saiu para lavar o cabelo e depois secá-lo e alisá-lo, como bem mandava o figurino.
Karen tornou a se sentar na cadeira alta em frente à bancada, enquanto era maquiada por uma garota que aparentava recém ter saído da adolescência.
— Querida, antes de me entupir de cores, pode trazer um suco de manga gelado? Se vocês não tiverem, dou a grana para comprar em algum lugar. O que não podemos é deixar de atender o desejo de uma grávida.
A menina aquiesceu com um sorriso e desceu a escada até o refeitório do salão. Sim, elas tinham suco de manga.
Era meio-dia quando Cris chegou à galeria comercial localizada no andar térreo do Dolejal Center. Havia algum tempo que evitava almoçar em casa. Ainda não se acostumara a dividir a mesa com outras três cadeiras vazias. Por isso almoçar no restaurante Arizona fora a solução para esse problema.
Estacionou o automóvel e buscou no porta-luvas os óculos escuros. Desligou o celular. Meia hora desligado do trabalho não mataria ninguém. Ao entrar no restaurante, percebeu os olhares femininos sobre si. Escolheu uma mesa num canto discreto, fitou o relógio e abriu o cardápio.
O garçom trouxe a água mineral com gás e voltou aos seus afazeres. O pediatra emborcou a bebida e viu quando a sua convidada surgiu à porta. Ela usava um vestido leve, até os tornozelos, flores miúdas, azuis e amarelas. Sandálias nos pés e o cabelo preso num elástico. Aproximou-se da mesa e esperou que ele puxasse a cadeira para ela.
— Me atrasei um pouquinho. — disse, embaraçada.
Ele sorriu com charme e fez um carinho com o dorso da mão na sua bochecha.
— Faz pouco tempo que cheguei. Gostei do vestido, Verônica. — disse, retirando os óculos e depositando-os sobre a mesa. — Com fome?
A bibliotecária entendeu o duplo sentido da pergunta. Era a terceira vez que saíam, depois de terem-se encontrado havia duas semanas. Alguém lhe dissera que o médico almoçava todos os dias no restaurante perto da biblioteca pública onde ela trabalhava havia quase mil anos. O que ela sabia sobre Cristiano Bittencourt? Que, ao contrário da sua malsucedida investida junto ao delegado, o médico, por sua vez, era um homem fácil. E para provar a sua teoria, ela almoçava com ele.
— Estou sempre faminta, doutor. — provocou-o com a voz arrastada.
Ele demorou com seus olhos nos dela, o semblante sério e avaliativo. Tinha pouco tempo, logo teria de voltar ao consultório, a agenda lotada. Considerou levá-la para sua cobertura. Fez sinal ao garçom, sem deixar de encará-la.
— Vamos comer na minha casa. — determinou.
Verônica sorriu e sentiu cócegas no estômago. Experimentaria um filé de primeira, considerou quase salivando, a carne saudável da região. Era o que ela queria: abatê-lo, abatê-lo. Ainda lhe sustentando o olhar — pendurado no gancho, o homem mal reconhecia a sua predadora — ela levantou, afastou a cadeira e falou baixinho, quase num rosnado sensual, que precisava retocar a maquiagem.
Ele assentiu com um sorriso de cumplicidade e observou-a balançar os quadris em direção ao toalete feminino. Esperou em torno de cinco, seis minutos e se encaminhou para a mesma direção, as mãos nos bolsos da calça social, a postura natural e relaxada.
Entrou no banheiro feminino e averiguou a possibilidade de haver pessoas nos reservados. Empurrou levemente cada porta até que uma delas não cedeu. Em seguida, ela foi aberta e uma mão de unhas curtas e pintadas de azul puxou-o para dentro.
— Preparado para o couvert?
Cris empurrou a mulher contra a parede e levantou o seu vestido até a altura da cintura. Puxou-lhe a calcinha para baixo, apossando-se do seu sexo. Ela gemeu e arfou.
— Não, Verônica, acho que vou almoçar por aqui.
Ele a virou de costas e a fez inclinar meio corpo para baixo. Baixou o zíper da calça e enfiou-se dentro dela, todo, até o fundo.
Verônica transpirou toda a água do corpo.
As estocadas fortes faziam suas coxas baterem contra as dela, era um barulho úmido, estalos que reverberavam pelo ambiente azulejado. Ele ofegava, a respiração alta e pesada enquanto imprimia ainda mais força aos golpes. Verônica sentia dor nos braços que apoiavam o seu corpo por sobre a tampa da privada abaixada. Os seios balançavam na cadência de cada arremetida funda e rápida. Gemia alto e era mais como o ganido rouco de um animal sendo alimentado.
Depois de se extravasarem, ela juntou a calcinha e vestiu-a. Tremia até mesmo debaixo da pele.
Ele lavou as mãos e o rosto com sabonete líquido. Puxou o papel toalha do suporte e secou-se; amassou-o e o jogou na lixeira de inox no chão. Não se olhou no espelho.
Quando Cris voltou à sua mesa, a fim de pagar a conta e levar a mulher para a sua casa e encerrar o serviço por lá, reconheceu aquela que ele tentava esquecer em trepadas eventuais em banheiros, motéis, juntando corpos desconhecidos nas ruas, caçando e sendo caçado para preencher o vazio.
Assustou-se ao ser pego pela cintura e se virou para receber um beijo da boca de Verônica. Ela estava agitada e era para estar calma. Marcas vermelhas no pescoço, pálpebras semicerradas, boca inchada e o cabelo, nas têmporas e na testa, úmido de suor.
— Está pálido, o que foi?
— Acabei de ver o meu passado.
Foi tudo o que ele disse.
Podia até não ser uma boa ideia — considerou Karen, mas a verdade era que o melhor restaurante de Matarana ficava no prédio comercial onde se localizava os escritórios de Thales. No último andar, ela sabia que ele tinha a vista panorâmica da cidade que fundara junto com o avô e um bando de pioneiros.
A entrada da galeria, no térreo, assemelhava-se ao saguão de um shopping center, como o que tinha em Santa Fé. Várias lojas chiques e quiosques vendendo perfumes e acessórios femininos dividiam o espaço com o Arizona ao fundo, as paredes envidraçadas, ladeadas pelo arco de entrada no hall dos elevadores. E foi de um dos elevadores que Thales apareceu acompanhado por Virgínia.
— O Franco era para estar com ele. — murmurou Nova, intrigada.
Karen intercedeu depois de levar uma cutucada da cunhada.
— Ele agora é o chefe da segurança e sua função não é andar ao lado do patrão.
— Como assim?
— Bom, Nova, é evidente que o Franco está na fazenda.
Val observou o semblante preocupado da amiga.
— Ele foi promovido, Nova.
A irmã do delegado percebeu que sua voz estava trêmula e pigarreou. Rever Thales sem uma devida preparação sacudiu-lhe os alicerces. De repente o chão não passava de uma grossa camada de espuma, os passos desencontrados, pisava sobre nuvens. Não estava deslumbrada, e sim apavorada. O coração martelando forte, tão forte que o sentia na garganta. Sabia-se atraente, maquiada e morena. Mas, ainda assim, vê-lo vestido como um homem de escritório, a calça e o blazer azul marinho, a camisa branca e os sapatos escuros, o cabelo curtíssimo e a pasta executiva, encantava-a, tudo nele exalava masculinidade e poder. O queixo erguido, as costas retas, o jeito de caminhar de quem se sentia o dono do mundo.
Thales avistou-as entre a entrada do restaurante e o hall dos elevadores. Parou e fez um sinal com a cabeça para Virgínia prosseguir em direção ao estacionamento. Olhou para as três com um esboço de sorriso e escolheu a nora para primeiramente dirigir a atenção.
— Como vai, senhorita Monteiro?
Quando a chamaria de Nova?, ela considerou.
— Estou bem, senhor Dolejal.
Ele sorriu um sorriso tímido.
— Já que entrará para família, sugiro que dispense as formalidades.
— Combinado. — ela apertou a mão estendida em sua direção. — O senhor, quero dizer, você também pode me chamar pelo meu nome, por favor.
— Com certeza, Nova. — assegurou para, depois, indagar interessado: — Onde está fazendo o seu pré-natal?
Ela ficou sem jeito. Jamais cogitaria ouvir tal pergunta do fazendeiro, embora fosse o avô de seu filho.
— Bem, tenho uma ficha de acompanhamento no hospital.
— No hospital? — ele arqueou a sobrancelha, surpreso. — Temos de mudar essa situação. Há uma excelente clínica particular em Santa Fé. Eles têm obstetras, os melhores da região. — ele retirou um cartão de apresentação do bolso interno do blazer e entregou-lhe. —Lá, com certeza, terá o melhor atendimento. O Franco já lhe disse que o parto será em Santa Fé? Ideia do seu noivo. Por mim, seria em Cuiabá. Mas ele não quer que viaje de avião. — balançou a cabeça, contrariado. — O Franco é um garoto excêntrico.
— Sim, ele é especial. — afirmou com um sorriso. — Muito obrigada pelo interesse. Só preciso agora convencer o seu filho a me deixar fazer uma ecografia.
Thales franziu a testa, intrigado.
— Outra excentricidade do Franco. — ela revelou num tom divertido.
— Pode marcar a sua ecografia, eu falo com ele a respeito. — asseverou sério e, virando-se para Val, indagou: — E você, como está?
O tom de voz que usou era incompatível com o lugar, com as roupas que vestia e com a circunstância. Contudo, combinava com o sorriso preguiçoso, com o olhar cheio de malícia e com a confusão de sentimentos dentro dela. Era um tom de voz usado por quem ainda não saíra da cama depois de ter feito amor. Eles ainda não tinham feito amor, mas parecia que sim. E não apenas para ela ficou tal impressão. Percebeu o olhar de Nova sobre si, ao passo que Karen, descaradamente, dava as costas a Thales.
— Estou bem. — balbuciou, encabulada.
Ele a olhou com intensidade e demora.
— Deixou de ser ruiva. — constatou com visível satisfação. — Tenho um fraco por morenas.
— Mas ficou noivo de uma loira. — afirmou Karen com acidez.
Thales voltou-se para ela com um sorriso sarcástico.
— Manifestou-se, Karen? Como está?
— Não interessa. A gente só veio almoçar.
Nova queria que um buraco abrisse debaixo dos seus pés.
— O que está esperando?, que eu ponha a comida na sua boca? — debochou de forma amarga. — O que mais quer que eu faça por você?
Ela o encarou com firmeza e falou sem pestanejar.
— Nada.
— Então continuarei a fazer a sua vontade e nada farei. — afirmou, ignorando-a explicitamente ao se postar entre ela e Val. — Quero que saiba que sinto falta de nossas conversas, Valéria. — em seguida, ele se aproximou e sussurrou-lhe ao ouvido de forma íntima: — Você está muito bonita.
Quando ele se afastou e a encarou tentando arrancar-lhe o vestido com os olhos, ela só foi capaz de agradecer o elogio num sussurro quase inaudível. E foi recompensada por um sorriso charmoso e seguro de si.
Ele se despediu das três e rumou em direção ao estacionamento.
— Puta merda, Val, o que foi isso? — perguntou Nova, espantada.
— Vou dizer o que foi, — interferiu Karen, irritada: — ele está dando o bote da naja pra cima da irmã do Rodrigo. É isso, a vingança do perdedor.
— É mesmo? Sou tão sem graça que o interesse de um homem como Thales por mim só pode ser em função de uma vingança?
Karen pôs as mãos nos quadris.
— Pense o que quiser, você já caiu na rede mesmo. Agora, vamos almoçar e esfriar a cabeça.
Ultrapassaram as portas duplas do restaurante no momento em que Cris e Verônica também o faziam.
— Cidade pequena é uma merda, não? — comentou Karen fazendo troça.
Cris assentiu, cumprimentando-as com um sorriso amarelo. Verônica e Val se abraçaram. Fazia um tempo que não se viam. O fracasso do jantar para aproximá-la de Rodrigo havia jogado um balde de água fria na amizade.
— Precisamos marcar um boliche. — disse Val, sem saber ao certo o que falar.
Ela acabava de ser açoitada por um tornado disfarçado de executivo da Avenida Paulista, que à simples presença já provocava curto-circuito nos seus neurônios. A forma como a abordara, o modo de olhá-la e o tom insinuante da voz, tudo, parecia mais com um teatro para Karen. Essa era a verdade.
“Sinto falta de nossas conversas”, ela também sentia, ainda que fosse fuzilada contra um paredão, ainda que se exaurisse emocionalmente, ainda que ele alimentasse a parte autodestrutiva de sua personalidade, ela sentia falta dele. Por isso, mergulhada nos próprios pensamentos, viu a boca de Verônica abrir e fechar e nada ouviu. Além do grito de uma necessidade.
— Desculpa, desculpa... Preciso ver uma coisa, já volto!
Dizendo isso, Valéria desvencilhou-se da amiga e arrancou em disparada a tempo de se livrar das garras de Karen em seu antebraço, tentando impedi-la de correr em direção ao corredor que conduzia a um par de elevadores até o estacionamento no subsolo.
— Pelo amor de Deus, Val! — ouviu o berro de Karen.
— Ela é adulta, fica aqui. — afirmou Nova, contendo-a antes que corresse atrás da cunhada.
— O que está acontecendo? — perguntou Cris diretamente a Nova.
— Não sei.
— Como está a sua gravidez?
— Excelente, estou muito feliz.
— Isso me reconforta. — em seguida, indagou interessado: — Teve notícias dos seus pais?
— Eu? Por que eu se eles são mais chegados a você e à sua família? — ironizou.
— Não é verdade, todos nós nos preocupamos com você. A gente precisa conversar. — pediu com ternura.
— Não.
— Não?
Karen resolveu novamente interferir, fez um sinal com o dedo em gancho, chamando a atenção de Verônica.
— Que tal uma bebidinha no bar, hein?
A outra se voltou para o médico e percebeu que mais uma vez estava sobrando. Estalou a língua no palato e decidiu reverter a situação.
—Tenho de voltar à biblioteca. — informou, secamente.
Cris voltou-se para ela e sorriu com gentileza, entregando-lhe a chave do seu automóvel.
— Pode me esperar uns minutinhos?
Ela retribuiu o sorriso, pegou a chave de sua mão e, endereçando um rápido olhar para Karen e depois para Nova, encaminhou-se para o estacionamento.
— Bem, pessoal, vou me refestelar lá dentro, no ar-condicionado. Não façam escândalos, ok? Aqui é a parte chique da cidade. — brincou Karen, piscando o olho.
Nova observou a amiga se afastar.
— Cada dia que passa você está mais bonita. — ele declarou com um sorriso.
— O que quer tanto falar comigo? — interrompeu os galanteios indo direto ao ponto. — Se é sobre o nosso passado, é melhor deixar como está, já falamos tudo o que tínhamos de falar.
— Vamos para um lugar tranquilo.
— Sua amiga está esperando-o no carro. Tenha, pelo menos, consideração pelos sentimentos dela. — falou num tom ressentido.
— Ela não é minha amiga; você é que é e sempre foi a minha melhor amiga. Pisei na bola, fiz o que não devia...
Ela fez um gesto de contenção com a mão.
— Já disse que não me interessa o passado. Minha vida começou faz pouco mais de dois meses, o resto sinceramente não me importa.
— Nova, me escuta, a gente veio para cá juntos. Nós temos uma história, crescemos juntos e amadurecemos juntos. Não posso negar que talvez a tenha iludido, mas o fiz por medo de assumir uma relação séria com você e depois fracassar. Não queria perdê-la. Para mim, era mais seguro não fazer nada do que tentar algo e não dar certo. Por favor, acredite, amo você. Preciso de você na minha vida! Não é possível que não sinta a minha falta! Porra, Nova, até quando me punirá?
Ele tinha lágrimas nos olhos e o rosto constrito pela dor. Era trágico e irônico. Tantas vezes ela também estivera assim. Por causa dele.
Karen perdoara Dolejal, ainda que o alfinetasse. A vida seguia, era verdade.
Como Franco se sentiria caso Cris voltasse à sua vida? E, mais que isso, por que arriscaria magoar ou irritar um homem como Franco para satisfazer a vontade de um homem como Cris?
Ela o olhou no fundo dos olhos.
— Meu melhor amigo, além de meu amor, é o Franco. A fila anda, Cris.
Ele retesou os maxilares, exasperado. Nada a fazer a não ser vê-la entrar no restaurante, bela e sorridente.
Ao sair do elevador, Val encontrou a semiescuridão do estacionamento. Olhou ao redor à procura da Silverado. Sentia-se inquieta, eletricidade pura debaixo da pele. Coçava, queimava. Um nó absurdo no estômago, uma ânsia por ar, por todo o ar que pudesse aplacar o paroxismo de sua alma. Síndrome do Pânico? A taquicardia, o suor frio e a tremedeira? Não, bem pior. Estivera próxima demais dele, aspirara o cheiro de sua pele e a colônia amadeirada que a massacrava de desejo, os pontos da barba por fazer, a marca indelével de sua intensa masculinidade. E ele olhara para ela. Olhara de verdade para ela. O azul melancólico com vestígios de luxúria. Sim, Thales, eu também sou uma mulher, uma fêmea, olhe para mim, continue olhando para mim!
Caminhou perdida por entre os automóveis. Parou, aterrorizada. O que fazia ali? O quê? Perseguindo um homem? Não se reconhecia. E sofria por não entender, por não se reconhecer, por não se aceitar necessitada de outro, de uma extensão de si também humana.
Voltou-se ao ouvir o ronco suave do motor de um veículo. A picape escura deslizou seus pneus lentamente até estacionar no meio da pista. À janela aberta, o motorista virou-se com o semblante intrigado.
— Está a minha procura, Valéria?
Ela não conseguia falar. Precisava correr, correr e correr. Mas não conseguia sair do lugar nem mexer os braços ou as pernas.
Ele torceu o lábio num esgar de contrariedade, abriu a porta e desceu, pondo-se centímetros diante dela.
— Está tudo sob controle na fazenda, se quer saber. — afirmou num tom baixo e sério, fitando-a desconfiado. — É isso que quer saber?
— Uma vez você me disse que odiava hipocrisia, mas também assumiu que falava o que as pessoas precisavam ouvir. — ela parou e o encarou com firmeza: — Quem é você, afinal?
Thales fechou a cara numa expressão severa, os maxilares contraídos e as sobrancelhas quase juntas.
— O que quer?
— Quem... é... você? — insistiu, enfatizando a questão.
— Um monstro doente, não? — debochou sem sorrir. — A resposta que busca não está em mim. Sinto muito por não poder ajudá-la.
— Só quero que não me use para atingir a Karen. Isso, sim, é hipocrisia. — afirmou com rispidez.
Ele quase sorriu; apenas os olhos refletiram um lampejo de divertimento.
— Não, isso é imaturidade. — ele deu de ombros e acrescentou num tom de descaso: — Se o que fala é por causa do elogio que fiz há pouco, fique tranquila, foi autêntico. Você está realmente bonita, perdeu aquele ar de cama, mesa e banho. — sorriu com charme — Apesar de que são lugares perfeitos para fazer sexo. Quer começar por onde, Valéria?
Ele baixou a cabeça e parou antes de tocar o rosto dela. Os lábios entreabertos num esboço de sorriso, como se esperasse que a iniciativa do beijo partisse de quem o mais desejava no momento.
— Vamos começar por onde? — insistiu, sussurrando, a voz rouca.
Valéria Malverde grudou seus lábios nos dele e puxou-lhe a nuca com força contra o seu rosto. Teve a língua chupada com sofreguidão enquanto dois braços apertavam-na ao redor das suas costas, trazendo-a para o tórax rijo. Ela sentia-o inteiro, dentro do arco de seus braços, toda a estrutura alta e forte, músculos compactos. E cada parte do seu corpo reviveu como quando a estação das chuvas se impunha em Matarana. A pele arrepiou-se e os bicos dos seios endureceram. Apertou-se ainda mais contra ele e enfiou uma perna entre as dele, o sexo duro e pronto contra o seu abdômen. Gemeu baixinho, rezava baixinho, chorava baixinho. E ele percebeu as suas lágrimas, que deslizaram por sobre os seus lábios. Por um momento Thales fitou-a gravemente e havia algo mais no seu semblante, algo que Valéria ainda não compreendia, porque aquele homem antes não existia para o seu mundo.
— É melhor que volte para junto de suas amigas. — falou Thales, a respiração pesada.
— Por quê? — ela queria mais, tudo, ele.
— É melhor que encontre um lugar seguro.
Ela balançou a cabeça negando aceitar o que não compreendia.
— Aproveite enquanto o monstro está adormecido e fuja, Valéria, fuja para a sua vida e me esqueça. — declarou com dureza.
— Vou curá-lo, Thales. — prometeu.
Ficaram-se olhando por muito tempo. Medindo-se e se avaliando. Ela viu o abismo escuro, o vácuo e o fim da luz. A escuridão revolta e a transparência acetinada da dor, de uma dor antiga e sedimentada. Ele viu a si mesmo antes de se tornar quem era, a pureza, a beleza da vertigem, os campos floridos e o frescor dos eucaliptos.
— Procure alguém do seu nível, Valéria Malverde. Porque quando a Karen se cansar do seu irmão, ela voltará para mim. E eu estarei esperando por ela. — afirmou com arrogância, sentindo prazer em vê-la perder o brilho, como uma flor linda e recém-colhida esmagada contra o asfalto.
Empurrou-a delicadamente pelos ombros e se afastou a tempo de não se contaminar com a ingenuidade e fraqueza da mulher que já deveria ter-se vacinado contra homens como ele. Antes que se posicionasse atrás do volante, ouviu uma voz alta e clara:
—O Rodrigo sempre lutará pela Karen. Nós, os Malverde, não desistimos facilmente. Escreva no seu diário de monstro ferido: eu sou a mulher da sua vida! E sugiro que comece a montar o seu arsenal de guerra, porque enfrentará uma daquelas!
Ele puxou a porta e a bateu com força, sem deixar de encará-la com firmeza, avaliando o grau de sua sanidade. Por dentro, explodia em fogos.
A butique Pomme fora criada por uma cearense casada com um catarinense. Eles haviam-se conhecido em Presidente Prudente durante um show de rock. Anos depois, decidiram tentar a sorte no centro-oeste e encontraram pelo caminho Matarana. Chegaram bem depois dos primeiros colonizadores, da eletricidade e da emancipação de Santa Fé. E, se tal fato não tivesse acontecido, amargariam retorno à terra natal num caminhão de mudança com os pneus carecas. Isso por que o que eles trouxeram, havia mais de uma década, não era algo inerente àquela cidade: a sofisticação. Era verdade que rolava dinheiro, na camada superior, com certa facilidade. No entanto, classe não se comprava no varejo, ainda que se fosse dono de várias extensões de terra e outros patrimônios. O dinheiro comprava a educação formal, mas não revestia de polidez e requinte um brucutu e tampouco lhe disfarçava os modos.
Quando o casal pisou na terra de ninguém, sofreu o golpe do menosprezo. Traziam roupas de grife, originais e caríssimas. Os fazendeiros andavam em camionetes luxuosas e enfiados em bermudas velhas e jeans puídos. Comiam churrasco e emborcavam cerveja, arrotavam alto e se vestiam melhorzinho apenas para as missas e cultos. Uma cidade cuja poeira se erguia na estação do estio e vestia os seus habitantes também com ela. E, então, um casal tipicamente urbano inaugura uma lojinha minúscula, com iluminação indireta, aparadores de mármore, roupas femininas no melhor estilo internacional, atendimento exclusivo com hora marcada e etiquetas douradas com preços em dólar — uma novidade que os mataranenses demoraram a se acostumar. O povo, a massa uniforme e vital da sociedade, jamais se acostumou. Mas aquela loja não era para eles. Uma dúzia de endinheirados a sustentava comprando artigos vindos diretamente de Paris, Dallas e Milão. Contrabando ou não, os proprietários viviam muito bem em um sobrado de dois andares, no centro, uma quadra depois da delegacia.
— O que estamos fazendo aqui? — Nova cochichou para Karen, perscrutando o recinto com decoração moderna e discreta. — Vixe!, não tenho dinheiro para esse tipo de lugar.
Karen sorriu e ajeitou o decote V do vestido que experimentava. Marcado nos seios e na cintura, caía com leveza um palmo abaixo dos joelhos. Um tecido delicado tingido num bordô sensual. Danielle, dona da Pomme, mencionara que os tais vestidos longuetes combinavam com qualquer evento formal, bastava não destoar dos acessórios e usar os calçados adequados.
Ela falava assim mesmo, como se lesse uma revista técnica de moda, nada parecido com aquelas revistas femininas com palpites e dicas de como se vestir, como encontrar um marido, como alcançar o orgasmo, como não se engasgar em público. A empresária dominava a sua arte, porque estudara durante anos o comportamento feminino.
Quando a morena, alta e elegante anunciou que precisava mostrar-lhes uma peça encantadora e saiu da salinha íntima com sofás e provadores, a chefona do clã dos Lisboa voltou-se para a amiga e comentou alegremente:
— É o coronel Marau que vai pagar nossos luxinhos.
— Como assim? — perguntou Nova, arregalando os olhos.
— Bom, ainda tenho grana no banco da venda do terreno com os bangalôs. — declarou com naturalidade, endereçando um olhar significativo para Valéria, que desfilava com seu vestido longo, soltinho, a frente única com as costas à mostra. O estampado no fundo escuro e o drapeado logo abaixo do busto disfarçava a barriguinha.
— Preciso urgentemente perder uns 10 kg. — resmungou Val, balançando o corpo em frente ao espelho, os pés calçados na sandália aberta totalmente escondida pelo tecido macio do vestido. — Meu Deus, é gente demais pra pouca roupa!
Nova virou-se para ela, encantada. A amiga estava maravilhosa e os seus complexos não a deixavam ver essa beleza radiante.
— Lynn, conhece? Tara Lynn! É uma modelo deslumbrante que tem o corpo igualzinho ao seu, é linda e sensual, exala erotismo, Val, assim como você.
Valéria fez um trejeito engraçado com o canto dos lábios, duvidando das palavras de Nova e acreditando no que encontrava refletido no espelho.
— Dick, amiga, conhece? Moby Dick, é como me sinto. — declarou em tom de lamento. — Tenho de parar de cometer crimes à noite, chega de assaltos à geladeira, e nunca mais provarei um maldito Macaron!
— Se pensa em fazer dieta por causa do Thales, é melhor continuar como está. Ele é meio tarado pelos tamanhos G. — insinuou Karen, fitando a cunhada através do espelho. Percebendo que Val baixou a cabeça embaraçada, emendou num tom de zombaria: — Além disso, se relacionando com um predador alfa acabará emagrecendo de qualquer forma.
— E por falar em Macaron, quando pretendem abrir a confeitaria? — intercedeu Nova diplomaticamente, ajustando as alças do seu tubinho preto.
Mas Karen estava disposta a retomar o que falava, voltando-se diretamente para a cunhada:
— Só espero não vê-la pela cidade trocando as pernas e em farrapos, digo, por dentro, em farrapos. Se isso acontecer, o seu irmão baterá de frente com o Thales e não será como o delegado íntegro e ponderado, e sim como homem. E, escute bem, dona sonhadora, se acontecer alguma coisa com o Rodrigo, eu acabo com o Thales sem hesitar, mato, enterro e ainda faço a dança da morte em cima da sua sepultura. Entendeu, agora, o perigo que é essa sua atração fatal por ele? — indagou com os maxilares retesados e os olhos duros sobre ela.
Nova olhava de uma para a outra, despojada de argumentos conciliadores. Era novidade o interesse de Val por Thales e também nada bom. Por outro lado, lembrava um pouco a sua relação com Franco e o quanto os seus amigos — inclusive a própria Valéria, tentaram dissuadi-la a levar a sério. Por isso se sentia compelida a apoiar a irmã do delegado.
— Todos nós somos adultos, inclusive o Rodrigo. A Val se relaciona com quem quiser e cabe a nós, suas amigas, apoiá-la. Se eles resolverem brigar, bem, isso está fora da nossa alçada. A tensão entre os dois não é de agora e não começou com a Val. Não é mesmo, Karen? — direta e seca.
Karen sorriu diante da ousadia da outra.
— Estou enfrentando a aluna do diabo loiro.
— Meus punhos estão no cérebro, amiga. — declarou Nova com um sorrisinho superior.
Val endereçou um olhar divertido à cunhada. Sim, a influência de Franco era visível.
— É, ele está fazendo um bom trabalho. — considerou Karen, contrafeita.
Nova sorriu satisfeita consigo mesma.
— Trouxeram batom? — perguntou ela.
As outras duas assentiram e foram convidadas a sacarem o cosmético de suas bolsas.
A noiva de Franco estendeu o seu batom para frente e para o alto e exclamou feliz da vida:
— Uma por todas e todas por uma!
Karen e Val se entreolharam, confusas. Depois, controlaram-se para não caírem na gargalhada, visto que Nova bradou sozinha.
— Ai, suas vacas, vamos de novo! — ordenou com o rosto em brasa.
Mesmo que se sentissem tolas e sem graça com a proposta da outra, Val e Karen ergueram para o alto os seus batons, tocando-os como se fossem as espadas de Athos, Porthos e Aramis.
— Uma por todas e todas por uma!
Bradaram.
Danielle entrou na sala trazendo num cabide um vestido esvoaçante e no rosto uma expressão carregada de curiosidade. Fitou as amigas que riam de posse de suas armas fatais, bastões para tingirem os lábios. Sabia, agora, que deveria desempenhar muito bem o seu papel. E assim o fez.
— Vocês estão magníficas! — exclamou com sinceridade e, posicionando o vestido branco em frente ao próprio corpo, disse: — Não pude resistir e tive de buscá-lo para que o vissem. Esse é nada mais nada menos que o vestido da Cinderela. Foi comprado por um fazendeiro da região, veio direto dos Estados Unidos, é um modelo inspirado no desenho da Disney. Olhem a perfeição dessa peça! Não é um sonho?
Nova foi a primeira a se aproximar para ver melhor se não era mesmo fruto de sua imaginação o vestido longo com a saia armada. Não ousou tocá-lo, tão branco e perfeito. A saia armada parecia ter sido feita para um baile em Viena. Imediatamente sua curiosidade se aguçou.
— Quem vai casar deve ser muito importante, né? Um vestido desses custa uma pequena fortuna.
— Isso é coisa de algum besta da alta roda, querida. — escarneceu Karen. — O que não falta por essas bandas é gente querendo aparecer e ostentar os seus milhões.
— Gastar uma nota preta num vestido de noiva me parece mais um gesto de amor e carinho. É muito romântico. — rebateu Val, aproximando-se do vestido e tocando-o com delicadeza.
Danielle ergueu-o ligeiramente e o avaliou sem disfarçar a admiração pela roupa.
— Qual mulher não gostaria de casar se sentindo uma princesa de contos de fada?
— Realmente, ele é lindo! — comentou Nova, admirando o decote bordado que deixava os ombros nus, acentuado pelo corpete cruzado marcando a cintura. — Meu Deus, e o que são esses microcristais na saia? Meninas, esse vestido é simplesmente gamante! — exclamou extasiada.
Val piscou o olho para Karen, discretamente, e se aproximou de Nova como quando a cobra enrolada no galho da árvore se contorceu até alcançar Eva.
— Por que não o experimenta? — perguntou, insinuante.
Antes que a amiga fizesse alguma objeção, Karen estava bem ao seu lado e também queria lhe oferecer a maçã.
— É o tamanho exato para uma Smurfette. Imagino que a mulher que o vestirá seja do seu tamanho, Nova.
Danielle pigarreou.
— Sim, ela tem o seu tipo físico. Se quiser, pode experimentá-lo no provador, sem problemas. Parece que o casamento da moça é somente daqui a seis meses.
Nova olhou de uma amiga para outra, indecisa.
— O que vocês acham?
— Esse vestido está pedindo o seu corpo, guria. — disse Karen com um sorriso malicioso.
— É evidente que não está pedindo os nossos, né, ô mulher do delegado? — brincou Val, pegando o cabide com o vestido de Danielle e levando-o consigo enquanto empurrava Nova pelo antebraço: — Vamos vestir essa belezura, princesa.
Rodrigo tinha de fazer uma ligação. Terminou de vestir o blazer escuro com a ajuda de Johnny. Ainda sentia uma fisgada rápida e aguda na altura do ombro e o esforço de pôr a camisa social e o paletó era uma tarefa incômoda. Manteve as botas por baixo da calça social, toldou a cabeça com o chapéu e rumou para o alpendre, onde Sabrina e vó Ninita aguardavam-no.
Antes de encontrá-las, bem vestidas para a ocasião, telefonou para Karen. Uma ruga funda marcava-lhe a testa.
— Amor, preciso resolver um problema na delegacia. Tudo bem por aí?
— Você está de licença médica, Rodrigo.
— Eu sei, mas tenho de voltar ao trabalho. Houve um assassinato “dentro” da delegacia. Entendeu?
Karen considerou por alguns minutos o que acabara de ouvir. Sentou-se no sofá diante dos provadores.
— O Vitorino?
— Sim, ele mesmo. Simularam um acidente de carro para distrair o Lucas e tirá-lo da DP. O atirador aproveitou a confusão e deu dois tiros no Vitorino. Resta saber se foi obra do Marau pai ou do Marau filho. — falou com a voz cansada.
— Marau filho? Como assim?
— Depois te conto, andei descobrindo que nem tudo de ruim que acontece em Matarana pode ser atribuído aos primeiros colonizadores. Pois bem, eles procriaram e parece que a semente também não rendeu bons frutos. — ironizou.
— Bom, não vejo como impedir que a Nova se case com uma dessas sementes ruins.
Rodrigo riu baixinho.
— Não há semente ruim por parte dos Dolejal, meu amor. O Franco é a semente dos bons e novos tempos para Matarana. Mas no caso dos Marau, o Leonardo é tão perigoso quanto o coronel.
— Puxa vida!, me sinto aliviada por isso! Quer dizer, bem, pelo Franco não ser tão ruim quanto o Thales.
— Quero o Thales bem longe de nós. — declarou com convicção.
Automaticamente, Karen endereçou um olhar cauteloso para o provador onde estava a irmã do delegado. Era evidente que alguma coisa acontecera no estacionamento do centro comercial. Valéria voltara com o rosto afogueado como se tivesse assado bife sobre a grelha debaixo do sol do meio-dia. Além disso, ela conhecia Thales, o homem Thales, o líder e autoconfiante troglodita, capaz de dobrar uma mulher sobre os seus ombros e levá-la para cama.
— Por aqui está tudo indo as mil maravilhas. Cinderela acaba de vestir-se para o baile. É melhor avisar o príncipe encantado. — brincou.
— O nobre está tão nervoso que não para de me telefonar, pobre diabo — riu-se.
— É bom que sofra um pouco, faz parte do processo de se tornar homem. — ironizou, ouvindo do outro lado do aparelho, a risada gostosa do delegado. — Aproveita e diz pra ele que o momento é agora. Já fizemos a nossa parte.
Rodrigo concordou e encerrou a ligação. Por um momento manteve os olhos presos no celular, a cabeça longe, um sorriso preguiçoso nos lábios e o peito estupidamente cheio de amor. Lidava com crimes, drogas, violência e morte.
E ainda assim não passava de um rapaz romântico.
Val terminou de fechar os botões traseiros do corpete do vestido e deu um passo para trás, a fim de avaliar o caimento da roupa. O que viu foi mais que a beleza do corte ou do tecido. Encontrou, diante do espelho, a elegância e a beleza de uma nobre. Havia também uma aura de luz ao redor da mulher vestida de noiva, uma luz brilhante que lhe escapava pelos olhos e através de seu sorriso de admiração. Ela estava em outro mundo e em outro nível, um palmo acima da realidade e deitada de braços abertos sobre a morna maciez dos sonhos. Nova não era mais a forasteira de Minas, a amiga do médico, a jornalista que cantava no bar do Gringo e vivia com um pistoleiro. Quem girava o corpo de um lado para o outro, avaliando o efeito do brilho dos delicados e minúsculos cristais na saia e o balanço do vestido contra as pernas nuas, era uma mulher modificada pelas circunstâncias.
— Não é lindo, Val? Me sinto uma adolescente no seu primeiro baile... — declarou com lágrimas nos olhos e um sorriso de plenitude.
— Quando a gente se apaixona parece que está sempre se preparando para o primeiro baile. — considerou Val, ajeitando a saia do vestido da amiga.
— A dona desse vestido é uma sortuda!
— Olha só isso, — disse Val, apontando para o objeto que Danielle trazia consigo na mão, — é uma tiara de cristal! Caramba, que raio de coisa bonita!
Danielle sorriu complacente, aproximando-se de Nova e ajeitando a tiara por entre as mechas curtas do cabelo dela.
— É linda, querida! Cristal Swarosvki! Se é para brincar de Cinderela, vamos fazer direitinho. — completou com espirituosidade. — Agora só faltam os sapatinhos.
— De cristal? — perguntou Nova, incrédula.
— Não, não. — riu-se Danielle. — Já temos bastante excentricidade com esse modelo da Disney.
Conduzida até o sofá, Nova deixou-se ser calçada pelas duas mulheres. O salto era alto e fino, o prateado na tira sobre a sandália fechada e ao redor dos tornozelos.
— Sabe, meninas, isso não se faz com uma noiva. — disse ela, sorrindo e erguendo-se sobre os saltos. — Eu não devia ter experimentado esse vestido, já tinha combinado com o Franco que a gente ia casar no cartório, num evento simples com apenas a presença das testemunhas. É o meu segundo casamento e não sou mais uma garotinha. Mas agora...sei lá, só penso no quanto gostaria que ele me visse assim...tão bonita!
— É só tirar umas fotos! Cadê o celular? — perguntou Val, olhando ao redor, à procura do bolsão da amiga.
Nova se virou para Danielle, visto que talvez fosse comprometê-la ao ser fotografada com o vestido de noiva de outra cliente.
— Sintam-se à vontade, — afirmou com um sorriso simpático e completou: — peço somente para que não postem as fotos na internet.
Franco olhou para o céu estrelado acima da sua cabeça e considerou que aquele era um bom momento para viver. Postou-se na calçada, ajeitou o chapéu preto que combinava com o terno escuro, a camisa social, a gravata e as botas da mesma cor. A roupa clássica o tornava mais alto e mais magro e ele não se parecia mais com o pistoleiro que sacava rápido e comia poeira da estrada. Longe também a aparência de executivo, tão evidente na postura do seu pai e patrão. Franco Dolejal tinha estilo próprio e era ele que dava sentido e vida à roupa, não o contrário.
Percebeu ao redor de si o pequeno burburinho que sua presença causava. O povo de Matarana sabia que por onde andava aquele rapaz algo acontecia. Algumas pessoas estremeciam alicerces com a mesma suavidade do bico do beija-flor por entre as pétalas de seu alimento. Um acontecimento natural, uma manifestação sem encenação ou imposição. Franco jamais passava despercebido, ainda que algumas vezes fizesse questão disso.
Leu a mensagem no seu celular e sorriu satisfeito. Era o sinal verde para entrar em ação. Endireitou os ombros e procurou ignorar as pessoas que saíam curiosas dos mercados, lojas e padarias e se plantavam na calçada diante da butique sofisticada da primeira via.
Entrou no saguão da Pomme, tirou o chapéu e segurou-o contra o corpo. Observou o efeito de sua chegada nas atendentes que de pronto se agitaram como pardais alçando voo sobre a roça. Sorriu, discretamente. O ambiente sofisticado intimidava-o um pouco; não o suficiente para detê-lo. A ideia era levar uma princesa para o seu castelo.
Ao avistar Karen descendo os degraus da escada em sua direção, sentiu-se estranhamente reconfortado.
— Está com a aparência de quem de fato é: o único herdeiro de um milionário do agronegócio. — ironizou com um sorrisinho de desdém.
Franco retribuiu o sorriso.
— A dona está enganada, não passo de um sujeito com muita sorte e amado por Deus.
Ela se aproximou o suficiente para tocar os lábios junto à orelha dele e murmurou:
— Mija fora do penico com a Nova, e eu tosto os teus bagos na churrasqueira lá de casa.
O pistoleiro riu baixinho.
— Engraçado, o Rodrigo me falou algo parecido. — em seguida, com a expressão séria e profunda, emendou: — Vocês dois não me conhecem. Nem vocês nem os pais da Nova ou o doutor. Nunca mais dê a entender que eu farei mal à minha mulher. Caso contrário, eu também tostarei os teus bagos, Karen Lisboa.
Foi a vez de Karen sorrir abertamente, divertindo-se com a provocação.
— Deus me livre, está cada dia mais parecido com o teu pai! Vamos, então, moleque, movimentar as coisas. — ela deu-lhe as costas e voltou a subir os degraus. Antes de desaparecer, já no andar superior, voltou-se: — Esqueceu o buquê, babaca!
Franco sentiu a testa porejar de suor frio. Num átimo, ao seu lado, uma das atendentes entregou-lhe o buquê de rosas brancas.
— Não se preocupe, senhor Franco, está tudo certinho como o combinado com aquele senhor esquisito da capital. — disse-lhe a moça com um sorriso confiante.
O senhor esquisito era o produtor de eventos de Cuiabá. Um camarada bem vestido e perfumado, contratado a peso de ouro por Thales Dolejal para que o seu único filho tivesse um casamento de acordo com o seu nível social. Mas, para Franco, o planejamento do seu casamento com Nova começara desde que descobrira que teriam o seu primeiro filho, e ele significava um presente, alguma coisa importante que ele queria e podia lhe dar, além do amor e do bebê. Se, para isso, entregava novamente a sua alma ao patrão, pouco importava.
— Tem alguém lá embaixo que quer vê-la.
Nova parou de sorrir para a câmara do seu celular e disse sem um pingo de hesitação:
— Não quero falar com o Cris. — voltou-se para a fotógrafa a sua frente e praticamente implorou: — Desce e resolve isso pra mim, Val. Vocês se entendem tão bem, e eu não quero fazer uma cena!
Val não sabia o que fazer, visivelmente, confusa. Foi preciso que a cunhada viesse em seu auxílio de forma incisiva.
— Está bancando a mulherzinha, Nova? Se escondendo atrás das amigas em vez de peitar os caras? Há pouco deu uma de diaba morena pra cima de mim e agora quer se enfiar debaixo do vestido da Val, me poupa!
— É, amiga, a Karen tem razão, vá dizer ao Cris que tudo isso aí é para o Franco. — sugeriu Valéria com um sorriso malicioso. — Veni, vidi, vici, poderosa!
Ela não estava muito satisfeita em seguir as orientações das amigas. O encontro em frente ao Arizona fora desgastante e, de certa forma, desnecessário. Cris sempre fora um homem equilibrado e razoável, por que, diabos, ainda insistia em bater na mesma tecla?
Ergueu ligeiramente a saia do vestido com as mãos e se encaminhou até a escada. Sentia todos os olhares queimando a sua nuca. Fechou a cara, não estava a fim de ser amistosa. Cansava repelir o ex-amigo, visto que não tinha mais argumentos para isso, todos já haviam sido usados. Se o estrago não fosse ainda maior, pediria auxílio de Franco para resolver a questão.
Precisou de meio minuto para dar forma e sentido à sensação de delicioso sufocamento, reconhecendo, enfim, a face bonita do seu futuro. Ele estava ali, inteiro. Nas mãos, flores. A expressão serena e o sorriso juvenil, orvalhado e pleno de admiração. Uma fina camada de água toldava os olhos dele e revestia de brilho o azul quase branco. Silencioso, valente e belo, diante da mulher que se atirou nos braços do destino — como antes e sempre, ao se jogar no rio para salvá-lo ou se pôr entre ele e o revólver de um policial ou desafiar os pais, os amigos e a cidade por ele —, ela se atirou nos braços dele consciente de que qualquer palavra dita naquele momento não teria força e verdade, pois a única verdade era a devoção a ele. Por todos os dias de sua vida.
Abraçaram-se durante uma eternidade. Aplacavam nesse abraço a saudade de eras, de épocas em que não conseguiram se encontrar, ainda que febrilmente o tentassem. Mas quando o amor era antigo, resistia a todas as intempéries e aguardava terno repouso no DNA dos amantes, como um vírus do bem à espera do gatilho para se desenvolver, eclodir, vingar; à espera do encontro prometido, quando todas as vidas passadas se encontravam dentro de duas pessoas.
Ela não conseguia falar e com um gesto de cabeça agradeceu-lhe o buquê e aceitou a sua mão estendida. Chorava e tremia tomada pela imperiosa necessidade de viver. Mais um pouco, levitava.
Ao sair da butique e ganhar a calçada, viu a charrete aberta e o condutor que segurava as rédeas de dois cavalos.
— Obrigada, amor da minha vida — conseguiu murmurar.
Franco baixou a cabeça e sorriu meio sem jeito. Ela estava tão bonita que se sentia aturdido.
— Eu sabia que esse era o vestido perfeito para você, mas jamais pensei que ficaria tão mais linda que na minha imaginação... — ele parou, tomou-lhe o queixo com o dedo em gancho e ergueu-lhe o rosto, indagando com seriedade e doçura: — A gente está indo casar e é para sempre. Quer mesmo me acompanhar nessa empreitada, dona?
Nova sorriu como uma criança que se sente querida e protegida.
— Sim, eu quero.
Foi depois de dizer o primeiro “sim” da noite, que ela percebeu o aglomerado ao redor da charrete, cercando-os à espera dos eventos. E não foi surpresa para ninguém que ouvissem palmas e vissem sorrisos encantados. Uma comoção de gentes com sacolas de supermercado, preparando-se para voltar às suas casas e contar sobre um homem que se transformara de suposto diabo para príncipe encantado e de uma forasteira indesejada, responsável por essa magia.
Karen observou com atenção o caubói ajudar sua noiva a subir no transporte alugado em Santa Fé. Tinha de dar o braço a torcer, aqueles dois não eram normais. Cutucou Valéria para soltar uma piadinha sobre a cena. Afinal, a caipirada que muitas vezes inventara histórias absurdas sobre o diabo loiro, agora, secava lagriminhas de emoção, bando de urubus, ela considerou. Só que não pôde compartilhar seus pensamentos, visto que a cunhada estava com o rosto afundado num lenço.
Vó Ninita ajeitou-se no tailleur azul-claro, aproveitando para dar uma olhada na roupa do neto ao seu lado. Ele usava uma camisa social branca e calça escura, tinha o cabelo lambido para trás e duro de gel, e era evidente que espalhara um pouco de pó compacto nas bochechas para disfarçar as espinhas. Havia algum tempo que a senhora setentona observava o repentino interesse de Johnny pela sobrinha de Rodrigo. Bem, ele estava numa idade em que os hormônios ordenavam voltar-se para outros interesses além do videogame e do futebol. E Sabrina era especialmente bonita e carismática.
O que também lhe chamava a atenção naquele momento era a decoração do lugar. Segundo o que dissera Karen, o profissional contratado para organizar o casamento optara pela parte mais fresca da fazenda, próxima ao açude. E lá construíra uma réplica do interior de uma igreja a céu aberto. Bancos de madeira de lei, lado a lado, dispostos em dois grupos separados por um caminho atapetado e com arranjos de rosas brancas e na cor champanhe por sobre colunas de vidro, ladeadas por vasos mais baixos. A iluminação romântica e intimista era feita pelas velas aromáticas flutuantes postas em tubos grandes, intercalando os arranjos florais. As luzes indiretas dos diversos sposts espalhados ao longo do caminho até o discreto altar revelavam e escondiam as árvores, o gramado baixo e as águas limpas e verdes do lago artificial dando um aspecto de sonho ao pequeno grupo convidado pelos Dolejal.
No altar, Irene e o marido como padrinhos do noivo. A governanta não parava de secar os olhos com um lencinho bordado, a mão carinhosamente sobre o ombro do marido na cadeira de rodas, bem vestido e sorridente, orgulhoso de presenciar o casamento daquele que também considerava como um filho seu. Os padrinhos da noiva eram os irmãos Malverde.
Os pais de Nova ignoraram o convite de casamento enviado pelo produtor de eventos de Cuiabá. Era verdade que os Dolejal foram incisivos sobre o retorno dos Monteiro a Matarana, ainda assim seriam bem-vindos, mesmo porque foram convidados por um dos donos da cidade. Como Guilherme e Raquel faziam oposição ferrenha ao noivo da filha, determinaram que a vergonha de tê-la casada com um pistoleiro filho de mafioso não se alastraria por Minas Gerais e adjacências. Nova, agora, estava por sua conta e risco.
Karen sentou-se ao lado da avó, ajeitou o vestido sobre as coxas e comentou baixinho:
— O Thales abriu bem a carteira, hein! Me deu até vontade de me enforcar com aquela belezura, ali, vestido de policial federal.
— É, mesmo? E por que não casa? — desafiou a avó.
— Não começa, vó, já basta o xerifão. — resmungou Karen.
— Bom, querida, tem uma loirinha a dois bancos daqui que está com o olhão vidrado na sua belezura. E, pela minha experiência, ela deve guardar uma corda bem forte pra amarrar homem, enquanto você deixa eles soltinhos no pasto à vista dos ladrões. Ééé, a tal liberdade feminina é uma conquista e tanto! Boa sorte, mulher liberada. — ironizou com um sorrisinho travesso.
Karen não estava gostando do rumo da prosa.
— Olha só, dona Ninita, ele me deu um beijão na frente dela, sacô? E sabe o que isso significa? Que ele, a parte que me interessa, deixou bem claro a Rita que nós dois temos coisa. Então não venha jogar lenha na fogueira!
— Pois é, tem mulher que se interessa ainda mais por homens assim, fiéis, que fazem declarações de amor em público... Elas veem nisso um desafio, algo para calibrar o ego, sabe? Corromper um bom homem e tirá-lo de outra mulher como uma espécie de bônus. Homens leais valem mais no mercado.
— Você está falando das vadias? Não se preocupe, avozinha, quando o lobo está comendo, o gato está miando. — declarou Karen, filosófica.
Vó Ninita virou-se para a neta, confusa.
— Hã?
— Hã, nada, vó! A Juíza de Paz se posicionou, vamos prestar atenção no casório. — determinou ela, ignorando a expressão de aturdimento no rosto de sua avó.
Karen lançou um longo olhar em direção ao altar. O namorado mantinha o chapéu de caubói puxado para frente, toldando parte de seus olhos que, vez por outra, colidiam com os dela. E quando isso acontecia, seus lábios ajeitavam-se num sorriso tranquilo. Um sorriso que afirmava categoricamente que um dia seriam eles, ali, diante da mulher vestida para casar.
Ao lado do padrinho, o noivo inquieto. Franco apertava o seu chapéu nas mãos, curvava a aba para baixo e tornava a erguê-la num tique nervoso. Virou-se para Rodrigo e tentou sorrir. Estava uma pilha de nervos. Era verdade que tudo estava perfeito. A atmosfera úmida e perfumada pelos eucaliptos e as diversas velas aromáticas. E principalmente a sua mulher, linda e perfeita. Ele a trouxera na charrete aberta, escoltados por duas picapes com os seguranças da fazenda até a entrada da casa-sede. No caminho, ela deitara sobre o seu peito e se abraçara a ele. Enquanto os cavalos riscavam a estradinha de chão batido, um atalho fora da BR-163, rememoravam o primeiro encontro de ambos no escritório de Dolejal. Franco ostentando o seu olhar desafiador e as suas armas. Nova tentando desmascarar a origem da verdadeira colonização de Matarana.
Aos primeiros acordes de Don’t Die Before I Do, Franco endireitou-se e ajeitou o chapéu na cabeça. Soltou os braços ao longo do corpo e para compensar a ansiedade que o fazia mordiscar o canto esquerdo do lábio inferior, ergueu ligeiramente o queixo com altivez. Rammstein, a escolha musical do noivo roqueiro, fez o resto espalhando pelo campo a música que anunciava a entrada da noiva.
Nova pôs a mão ao redor do antebraço de Thales. Olhou-o de soslaio, a discrição do terno azul-marinho e a camisa cinza clara, combinando com a gravata um tom mais escuro. Ele tinha o semblante sério e afável. Não havia rastro de emoção ou qualquer sentimento em relação ao fato de presenciar o casamento do seu único filho. Porém, fizera questão de levá-la ao altar no lugar do seu pai. Postou-se ao seu lado com a sofisticação que lhe era peculiar, mais do que isso, com a dignidade e altivez que o distinguia de todos. Não sorrira ou lhe enfeitara com elogios, tão-somente lhe oferecera o braço e a senha para sua nova vida:
— Seja bem-vinda à minha família.
Havia tamanha força e autenticidade em tal declaração que a emocionou. Sabia o quanto era importante para aquele homem o seu sobrenome. Era um clã, um feudo, onde apenas alguns, os escolhidos, podiam participar. Dentro da sociedade mataranense, Nova elevara-se ao nível máximo de reconhecimento e prestígio. Mas o que a fazia chorar — enquanto se encaminhava lentamente pelo tapete, conduzida pelo pai do seu futuro marido, era o sentimento de pertinência, pertencia àqueles dois homens de formas distintas, inexoravelmente, ligada a eles para todo o sempre.
— Obrigada, senhor Dolejal. — disse num fiapo de voz.
Viu-o sorrir levemente.
Thales parou diante do noivo, voltou-se para Nova e beijou-lhe o dorso da mão. Depois, virando-se para o filho, entregou-lhe a noiva.
— Faça o seu melhor. — determinou a Franco.
Ele assentiu, pegando a mão da noiva e repetindo o gesto do pai. Respirou fundo e não pôde conter o sorriso de admiração.
— Estou sem ar, princesa. — murmurou junto ao seu ouvido. — Sou um filho da mãe danado de sortudo. — declarou bem-humorado.
Ela sorriu e enganchou seu braço no dele.
— Somos dois danados de sortudos, meu amor!
Por um momento eles ficaram atentos ou ao outro. Quando, em seguida, a Juíza de Paz começou a sua breve exposição sobre o amor e o cotidiano.
Ao lado de Rodrigo, Valéria tentava impedir que seus olhos se fixassem na figura imponente sentada no primeiro banco diante do altar. Obrigou-se a prestar atenção na cerimônia civil. Vez por outra, endereçava um rápido olhar para o pai do noivo que se mantinha atento às palavras da Juíza. Ainda sentia na boca a maciez da boca de Thales e, assim, a vontade de tê-lo tornava-a sua refém. Mas uma refém sem ilusões, visto que havia anos trafegava pelas tais estradas da vida. Por isso lançou um olhar profundo e penetrante, daqueles que feriam sem tocar, e foi retribuída pela atenção do seu alvo.
Ele aceitou a invasão, ainda que por pouco tempo. Encarou-a diretamente sem mexer um músculo da face.
E foi assim que Valéria Malverde decidiu que para tê-lo definitivamente para si teria de submetê-lo a um tratamento de choque. Fazia muitos anos que não se interessava por ninguém, tampouco sentira falta de um homem, amor ou companheiro de cama. Mas agora tudo mudara. E ela o queria. E ela era uma mulher. E tinha suas armas. Teria Thales Dolejal de qualquer jeito, nem que fosse para deixá-lo em seguida. Precisava ao menos experimentá-lo. Talvez seus olhos tivessem revelado a sua intenção, porque o fazendeiro esboçou um esgar de arrogância, de quem se sabia desejado, antes de ignorá-la pelo resto da noite.
— A semente do amor vinga no solo que recebe adubo e luz do sol, e o que é essa luz senão o carinho e o ver-se-no-outro como extensão de si mesmo. A felicidade do outro é a minha felicidade, a tristeza de quem amo é a minha ruína, visto que o amor entre um homem e uma mulher, antes de tudo, é o amor pelo ser humano, pela humanidade inteira. Assim, chegamos ao momento em que Franco e Nova declaram esse amor, não apenas aos seus familiares e amigos, como também à eternidade de seus dias como seres nascidos para esse amor e para vivê-lo em toda a sua plenitude, juntos, através dos tempos.
A Juíza sorriu ao perceber que o padrinho estava distraído.
— As alianças? — insistiu, voltando-se para o delegado da cidade.
Rodrigo emergiu de um breve devaneio. Nele, Karen aceitava o seu terceiro ou quarto pedido de casamento. Constrangido, apalpou os próprios bolsos até encontrar a caixinha revestida de veludo com as alianças de Franco e Nova, aros de ouro, grossos, como as joias dos casamentos de antigamente. Entregou-a ao noivo que, agora, sereno e sorridente, balançou a cabeça meio que condenando amistosamente a atrapalhada do padrinho da noiva.
— A aliança de casamento significa a eternidade, o amor eterno. Um anel é um círculo completo, sem interrupção, sem início nem fim, o que significa o eterno. E é por meio da troca de alianças que Franco e Nova selam o compromisso que assumiram consigo mesmos e com o amor que os uniu. — declarou a Juíza, postando-se ao lado do noivo. — Franco, pode iniciar o ritual sagrado da troca de alianças.
Nova estendeu-lhe a mão esquerda e Franco deslizou o aro de ouro em seu dedo médio. Em momento algum deixou de fitá-la, a profundidade do azul convidando-a a viajar dentro dos olhos dele, cheios de emoção e paz.
Um vento morno soprou-lhe as mechas loiras, escondendo parcialmente o seu rosto, e tremeluzindo as velas. Ele não sorria mais, tomado que estava por um sentimento que o calava como um grito de agradecimento. E quando ela repetiu o seu gesto, as mãos pequenas e femininas trêmulas, Franco tocou-a no seu rosto e fez-lhe um carinho.
A Juíza sorriu e encerrou a cerimônia com a sentença de praxe:
— Eu vos declaro marido e mulher. Pode beijar a noiva!
Franco estendeu a mão e enganchou-a na parte detrás do pescoço de Nova, aproximou o corpo até tocá-la, baixou a cabeça e, separando-lhe os lábios com os seus, mergulhou dentro de sua boca. Um beijo profundo, que terminou num abraço longo, o tipo de abraço que era bem comum entre ambos, quando sentiam saudades um do outro várias vezes por dia.
Ele se afastou ao ouvir o barulho dos bancos e as pessoas se levantando e aplaudindo-os. Mas não se afastou totalmente. Ainda de posse do corpo dela entre os seus braços, trouxe-a para mais perto e beijou-lhe a testa, a ponta do nariz e o pescoço. Junto ao seu ouvido, murmurou um segredo:
— Da última vez que morri, eu vi você, dona.
Ela não sabia o que falar, posto que nem a vida nem os seus pais haviam-na preparado para receber um presente como Franco Dolejal e o filho dele.
Entrelaçaram-se os dedos e se voltaram para incitarem os primeiros passos sobre o caminho atapetado e se postarem, ao lado de Thales, a fim de receberem os cumprimentos dos convidados.
Nova apertou forte a mão do seu marido.
Após a cerimônia civil, os convidados escolhidos a dedo por Franco e um dos executivos de Thales Dolejal, encaminharam-se para as mesas dispostas ao longo do gramado, circundando a piscina. A tenda aberta, com suportes retangulares e caimento lateral para o tecido diáfano e branco, servia como o lugar onde os noivos e o pai do noivo dividiam a mesa retangular, de madeira de lei, que fora carregada até lá por meia dúzia de peões.
O produtor de Cuiabá gerenciava a movimentação dos diversos garçons e garçonetes e não relaxava nem um minuto sequer. Se fizesse muito bem o seu trabalho, era provável que os ricaços de toda a região norte do Mato Grosso contratassem-no. E, para eles, Andrei Fragoso puxava do bolso a tabela de preços VIP — Valores Impossíveis para os Pobres. Ainda assim, era um trabalho e tanto aquele. E, em momento algum, poderia se dar ao luxo de pisar na jaca com um fodão do agronegócio — conjecturou Andrei, de olho na equipe de filmagem que viera especialmente de São Paulo para fotografar e filmar o casamento do filho do latifundiário que despontava como um dos mais importantes do país. Era uma lástima o senhor Dolejal ser inacessível ao ponto de terem trocado quatro ou cinco palavras e ele logo o indicara para que tratasse sobre assunto com o seu diretor administrativo. Por outro lado, parecia que a falta de habilidade social não era um traço hereditário, uma vez que o noivo, Franco Dolejal, acompanhara todas as reuniões com evidente interesse e acatando sugestões como um verdadeiro líder no comando. Ele não queria ostentar nenhum tipo de luxo.
Andrei convivera ao longo de sua trajetória profissional com gente graúda, não aceitava trabalhar com pechincheiros ou com medíocres da classe média brasileira; trabalhava, sim, para os ricos, com mentalidade de ricos e conta bancária de ricos. E por isso tinha experiência o suficiente para perceber em Franco, o noivo apaixonado e encarregado da segurança da fazenda Arco Verde, as características de um soldado que supera o seu comandante, do subordinado que ultrapassa a chefia, do discípulo que põe na lona o mestre e do filho que vai muito além do pai.
As mesas redondas, para quatro lugares, recebiam a toalha de linho branco com listras grossas num dourado suave, o tecido deslizava até o chão e protegia a madeira da mesa ao receber os suportes de vime para os pratos, os talheres de prata, os cálices e o arranjo de flores do campo. As mesas retangulares para oito lugares ocupavam os espaços entre as mesas menores e o amplo palco baixo, diante da banda contratada para tocar covers da música country gringa. E a primeira a pôr os casais na pista foi On The Road Again, cantada por um sujeito de cabelos grisalhos e longos, ao estilo Willie Nelson. E até poderia sê-lo, se o moço não tivesse nascido em Goiás.
— É estranho que a prefeita e o seu arqui-inimigo da câmara dos vereadores estejam dividindo a mesma mesa. — comentou Val, com um sorrisinho irônico.
— Pelo visto, a disposição dos convidados em cada mesa foi organizada de forma estratégica. O fato dos Malverde e Lisboa ocuparem uma das mesas maiores não é coincidência. — afirmou Rodrigo, aceitando de bom grado a água mineral com gás oferecida pela garçonete, e continuou com bom humor: — Por outro lado, pôr na mesma arena dois leões que se detestam só pode ser fruto do bom humor dos Dolejal, resta-nos saber de qual deles foi a ideia.
— Só pode ter sido ideia do Thales. — declarou Karen — Olha ao redor, a maioria dessas pessoas estarão no clube campestre para a entrega do tal troféu de bom samaritano mataranense. Ele aproveitou o casamento do filho para a campanha eleitoral do seu candidato, estreitar os laços, sabe, com seus aliados.
— Vou dizer uma coisa... — começou Ninita, balançando seu drinque: — essa comida está uma delícia, a música fantástica e tudo cheira a muito dinheiro, dinheiro verde, minha querida, dólar, ok? Depois dizem que dinheiro não traz felicidade... Não sei de vocês, mas encontrei a felicidade sem esforço algum!
Valéria apertou levemente a bochecha da avó de Karen num trejeito brincalhão.
— É porque a senhora sabe viver.
— Nasci para ser rica, Val, gosto das coisas boas da vida. Mas aí casei com um pobre diabo e me ferrei. — completou, emborcando o resto da bebida azul.
— Vocês estão vendo de onde vem o meu lado cachaceiro e fora da casinha, né? — brincou Karen, emendando sugestivamente: — E tem gente que ainda quer ter filho comigo. Tive sorte com o Johnny, o próximo nasce torto como um bom Lisboa. — riu-se.
Rodrigo entendeu a indireta. Como a reconciliação era recente, preferiu manter o sorriso nos lábios e relevar o que ouvira. No lugar de uma objeção, beijou o ombro nu da namorada.
— Bom, pelo menos posso continuar fazendo a minha parte, não é? Nem que eu tenha de remendar esses pontos outra vez. — simulou um resmungo.
Karen sorriu e enlaçou-lhe o pescoço, beijando-o na boca, um beijo rápido, estalado.
— Pois é, temos de nos controlar, senão a sutura poderá inflamar. Hoje dormiremos como irmãos de sangue. Fingirei que você é a irmãzinha que nunca tive.
Ele riu baixinho e balançou a cabeça em negativo.
— Acha mesmo que ainda é o gene dominante da relação? — alçou a sobrancelha, divertido. — Sim, sim, tenho meus informantes, não adianta olhar feio pra Val... Escuta aqui, meu amor, pretendo pegá-la duro todas as noites, de um jeito ou de outro aprenderá a dançar, nem que seja apenas na horizontal — comentou, provocando-a.
— Tenho certeza de que sua próxima profissão será a de professor de dança. — afirmou ela, languidamente, os olhos postos na boca dele.
— Sei ensinar muito bem, com calma e rigor, mantendo uma boa cadência, você bem sabe. — afirmou com a serena segurança de quem dominava o assunto.
— Ai, meu Santo Onofre, o Johnny não precisa ouvir sacanagem! — exclamou Val, fitando o irmão e indicando com a cabeça o garoto.
— Não sou mais criança, Val. — disse Johnny, procurando não ser hostil, quando, na verdade, estava saturado de tratarem-no como uma criancinha.
Rodrigo sorriu para o enteado; depois, se voltou para Karen e perguntou sem rodeios:
— Ainda sabe mexer os quadris?
Ela semicerrou as pálpebras avaliando-o detidamente.
— Qual é a sua intenção, homem da lei?
Ele sorriu com charme.
— Convidá-la para dançar. Um tantinho, é claro, porque mal posso mexer o meu ombro.
— Ah, é? Agora sou eu a sua parceira de dança?, a estepe?
— Uma boa estepe, por sinal.
— Convida a Nova, ora!— exclamou, fingindo exasperação.
— Olha só para aqueles dois, passaram a noite inteira de mãos dadas, deve ter algum tipo de cola grudando-os. Acho que tão cedo o Franco não vai liberar a sua esposa para dançar com outro homem...
— Nem eu libero o meu namorido, pombas!
Rodrigo não gostou de ouvir outra vez aquela palavra. O “namorido” em questão já havia provocado uma briga feia. E ele simplesmente detestava ser chamado assim. Fechou a cara e ergueu-se da cadeira. A obstinação marcando-lhe fundo o vinco entre os olhos. Estendeu a mão a Karen e, quando ela a pegou, puxou-a contra si.
— Vamos dançar. — declarou, incisivo.
Karen percebeu que não era uma pergunta ou um convite; era uma ordem. Farejando uma incomodação no ar, acatou a determinação do caubói e o seguiu até a pista de dança, juntando-se aos demais casais. Ainda pôde ver de esguelha, Nova e Franco, sentados à mesa, o braço dele sobre os ombros dela, possessivamente, um sorriso bobo estampado no rosto.
— Espera aqui. — mandou Rodrigo, seguindo por entre os casais até os rapazes da banda.
Com toda a confusão das últimas semanas, ele se esquecera de que devia algo a si mesmo. Precisava mandar um recado simples e direto ao ex de Karen. Não aceitava mais a condição de estranho no ninho ou de alguém que fora desleal e oportunista. Karen era a sua mulher e ponto final. Se Thales quisesse jogar sujo para tê-la novamente, ele também o faria. Odiava jogos, mas isso não significava que não soubesse jogar. E por odiar jogos e ser obrigado a jogar, somente o fazia para vencer.
O recado ao amigo da Arco Verde foi dado de maneira nem um pouco sutil. Quando Girl, You’ll Be a Woman Soon começou a tocar, ele sabia que seria apenas a fagulha de um futuro e promissor incêndio.
Puxou a mulher pelo pulso e a trouxe contra o seu tórax. Sem se mexer, manteve os olhos duros nos dela, os maxilares tesos e as mãos descendo para as suas ancas, atraindo-as para o seu quadril.
Ela deixou escapar um gemido ao ter as pernas separadas pelas dele, uma delas encaixada bem abaixo do seu sexo, pressionando-o. Apertou-a entre os seus braços que a envolveram pelas costas até as mãos pararem e apertarem-na nas nádegas. E foi somente depois de firmar a sua posição de comando sobre ela, que começou a se mexer, a balançar devagar, às vezes flexionando ligeiramente os joelhos, sempre agarrado nela, mal a permitindo respirar, a boca colada no lóbulo da sua orelha, o hálito morno eriçando-lhe os pelos do pescoço.
Karen tentou acompanhá-lo, mas acabou por se deixar levar. Ele era experiente, um experiente dançarino, e a conduzia sem se soltar dela, levando-a de um lado para o outro, as mãos espalmadas em sua bunda eroticamente. Num instante ele a largou, e ela quase se desequilibrou. Estava arfando e úmida, e sem o suporte do corpo dele, sentiu-se zonza. Abraçou-se nele com força, e giraram lentamente enquanto suas bocas se comiam com fome.
Quando a música parou, ela quase não conseguiu se manter de pé. Os joelhos tremiam, a musculatura do corpo inteiro latejava.
Os outros casais haviam feito um semicírculo para vê-los.
Nova puxara Franco pela mão, sabia sobre os efeitos da dança altamente erótica de Rodrigo e era como a explosão de uma mina dentro do ventre, espalhando calor por debaixo da pele. Enquanto ela se divertia admirando a indecência daquela dança, Franco olhava além, como sempre, para além do imediato e posto. Um homem sofria como se um ácido lhe corroesse as veias, as linhas entre as pálpebras acentuadas, a boca apertada e os punhos cerrados sobre a mesa. Num segundo, ele se levantou. O filho cogitou deter o pai. No entanto, não foi preciso. O pai tomara uma decisão que faria Rodrigo Malverde se arrepender por desafiá-lo daquela forma. Virou-se para trás e procurou com os olhos o seu alvo. Não foi difícil encontrá-la. A hipócrita moralista que tencionava curá-lo. Tentou sorrir ao imaginar o dano que causaria.
Karen abraçou-se a Rodrigo.
— É sempre assim que dança? Por acaso, já cogitou fazer algo que não tenha conotação sexual? — murmurou.
Ele fitou-a sério e respondeu sem hesitar.
— Não.
Ela assentiu lentamente, assimilando a constatação. Vendo-o endereçar um olhar altivo a Thales, emendou com azedume:
— Entendi, a dança foi para ele.
O delegado desviou seus olhos da figura do fazendeiro e virou-se para ela com um esboço de sorriso:
— Estou apenas pondo cada um no seu devido lugar.
— Sei... — considerou ela, desconfiada. — E o meu lugar, por acaso é na sua cama?
— Claro que sim... e também na minha vida. — foi direto e preciso.
Aceitou o braço sobre os ombros, e voltaram para a mesa. Aos poucos as pessoas tomaram a pista e dançaram até o amanhecer, bem depois dos noivos saírem de fininho para a casa à beira do Rio Verde.
Rodrigo lançou um rápido olhar pelo retrovisor e viu os faróis do carro de Val, que trazia Sabrina, Johnny e vó Ninita. Ao seu lado, uma parede invisível separava-o de Karen. Amava-a, era a mais pura verdade. Era louco por ela, talvez desde antes do acidente e morte de Jasmine na BR-163. E amá-la, ainda à época de sua esposa estar viva, mesmo planejando divorciar-se dele, tornava esse amor pesado, dramático. Por um lado, tinha medo de perdê-la, fosse para a vida, na figura do ex-amante dominador ou para a maldita individualidade que se tornara um muro de proteção para Karen. Temia perdê-la também para a morte, andando agora com ele, como seu calcanhar de Aquiles. Decidido a pôr fim no tráfico de óxi e nos bandidos de Matarana, ele voltaria à ativa com tudo, arrebentando porteiras com ou sem mandados, revolvendo a lama que encobria os poderosos. Começaria por Thales Dolejal, em seguida, a família Marau responderia por suas ações. E, com isso, iria expor novamente a sua família.
Relançou um longo olhar à mulher no banco do passageiro e tornou a se concentrar na estrada.
— Minha licença termina semana que vem — começou; percebendo o movimento ao seu lado, voltou-se e a encarou: — e farei uma limpa na cidade. Entrarei na Coração de Ouro com os policiais militares e na Vila Zumbi com a Polícia Federal. Até o fim da próxima estação, aqui não será mais a terra de ninguém. Matarana se tornará apenas uma pacata e inofensiva cidadezinha do interior. E você bem sabe qual é o preço da paz.
Karen aquiesceu gravemente.
— De minha parte, pode deixar que irei proteger a nossa família.
— Acha que dá conta?
— Pode confiar em mim, xerife.
Ele esboçou um sorriso que não vingou.
— Mas precisa seguir as minhas ordens, entendeu? Caso contrário, apreendo a automática que o Dolejal lhe deu.
Ela corou e baixou a cabeça.
— Por que não me dá uma mais potente que a dele?
— Em casa lhe dou.
Karen virou-se para olhá-lo a fim de encontrar algum rastro de malícia ou luxúria. Contudo, ele mantinha os olhos fixos na estrada e o semblante amarrado. Sim, se referira ao armamento de verdade.
— Não vou desapontá-lo, Rodrigo.
— Sei que não. — ele reduziu a velocidade, desligou o rádio e acionou o pisca. Pouco antes de parar diante da garagem de casa, completou ainda sério: — E sei também que só o amor e uma cabana não levam um relacionamento adiante. Temos nossas limitações como pessoas, Karen, e nossas diferenças. E são elas que estão competindo contra o que sentimos um pelo outro. Não quero fazer merda e perdê-la, porque quero me casar com você, mas também não posso me iludir e fingir que isso não é importante para mim. Não sou seu namorido, esqueça isso, não quero mais ouvir essa palavra; sou o seu homem, o cara que vive com você. Temos de construir uma base bem sólida para o nosso relacionamento, senão a gente vai conseguir estragar direitinho. Quero, sim, que proteja a nossa família e aceito, sim, que ande armada pela cidade. — ele suspirou profundamente e continuou de forma incisiva — Estou apostando minhas fichas em você e em nós. Só que isso não basta. Por isso quero que aceite fazer terapia de casal.
Parou a picape diante do alpendre, girou a chave na ignição e voltou-se para ela à espera da objeção.
Karen fora pega de surpresa. Quem era aquele camarada mandão à sua frente? Por um momento rebelou-se à autoridade.
— E se eu não topar essa frescura? — desafiou, erguendo o queixo com altivez.
Os ossos dos maxilares de Rodrigo despontaram por debaixo da sua pele. E ele foi direto sem se permitir hesitar:
— Volto para o hotel e para a minha vida de homem solteiro.
Ela sentiu o suco gástrico jorrar fumegante no estômago.
— Está blefando.
— Quer apostar?
— Você não vive sem mim. — afirmou com arrogância, a raiva crescendo por perceber que ele viveria sem ela.
Ele arqueou uma sobrancelha em tom de desafio.
— Não quero viver sem você, isso é verdade.
— Não me provoca, Rodrigo. Por Deus, não tente me pôr contra a parede. Só porque voltamos não significa que deixarei de ser quem sou. Sempre fui clara com você, nunca o enganei...
— Pois é, minha amiga, a gente às vezes precisa levar um tiro para tomar jeito na vida, não é mesmo? — indagou com ironia.
— Confia muito no teu taco, né?
— Não, Karen, confio mais é no seu bom senso. Somos muito diferentes e temperamentais, e isso nada tem a ver com o nosso amor. Amo muito você, Lisboa, — ele balançou a cabeça se sentindo vencido: — e farei de tudo para que a gente não se destrua. Preciso que me ajude, parceira. — piscou-lhe o olho com charme.
O olhar terno e pedinte atravessou todos os escudos dela. Eles eram diferentes, opostos até. Entretanto, somente Rodrigo conseguia acalmá-la e compreendê-la. Ele tinha a chave de acesso, a senha, todos os códigos. Diante dele, ela se punha nua e verdadeira. Por isso os defeitos também apareciam.
— Tudo bem...aceito. — antes que ele entendesse errado ou distorcido, emendou rapidinho: — Aceito a terapia, não o casamento.
Ele sorriu e tocou-lhe no queixo com carinho.
— Uma coisa de cada vez.
Como não queria ouvir nada que o contrariasse, beijou-a longamente para calá-la. Sabia que teria várias guerras pela frente.
Dois Meses Depois
A primeira sala de cinema de Matarana foi inaugurada debaixo de fogos de artifício e uma cerimônia solene em que a prefeita cortou uma larga fita com uma tesoura sem fio. O Jornal do Cerrado documentou o evento, entrevistando e fotografando as autoridades presentes no local. Na estreia, Duro de Matar III. Havia, entretanto, a promessa de valorizar o cinema nacional. E como era uma promessa política, o próximo filme a estampar cartaz na vitrine envidraçada na galeria comercial era Duro de Matar IV.
O gerente do cinema trabalhava no almoxarifado da prefeitura. Era-lhe difícil conseguir filmes novos. A licitação da Secretaria de Cultura estava sob investigação de uma CPI na Câmara dos Vereadores. O rapaz dos filmes, como era chamado o gerente do cinema, aceitava as doações do projetista do cinema de Santa Fé, um senhor aposentado com problemas na bexiga.
Três semanas após inaugurar não havia mais filas diante do cinema. Além do mais, a novidade em Matarana era adquirir um potente aparelho de som para automóveis. Na praça central, os motoristas escolhiam a pior música criada por um terráqueo e elevavam o volume a mil. Ninguém conversava, porque o barulho era ensurdecedor.
Naquela tarde em especial, Franco decidira que levaria sua mulher ao cinema. Detestava lugares escuros e fechados. Nada relacionado a fobias. A preferência tinha a ver com a sua profissão. Como segurança particular, a máxima “ao entrar, veja por onde sair” tinha de ser levada no seu sentido literal. Sentar-se quieto numa cadeira por mais de uma hora, no escuro, num lugar cheio de gente, com ventilação artificial, ouvindo a língua enrolada dos gringos e tendo de se concentrar em ler as legendas, bem, não parecia um programa promissor. Antes ficar em casa rolando do sofá para a cama, acariciando a barriguinha redonda de Nova, ouvindo-a contar sobre as bizarrices dos clientes do bar do Gringo ou, simplesmente, pô-la na camionete e ganharem a estrada, se enfiando no meio das árvores para um piquenique ou no rio para um longo e refrescante banho. Mas Nova dissera-lhe certa vez que um pouco de cultura não doía. Apesar de ela não estar se referindo a Duro de Matar. Ele sabia que sua mulher espichava os olhos para a fachada do cinema toda a vez que cruzavam o centro. Afinal, ela vinha de uma cidade grande, e ele entendia que sentisse falta dos lugares que frequentara no passado. Por isso decidira levá-la ao cinema.
Abraçado à esposa, conduziu-a até as duas últimas cadeiras da terceira fila, próximo ao corredor. De lá, posicionava-se estrategicamente perto dos extintores enquanto não deixava de observar as saídas de emergência e a entrada para os banheiros. Era verdade que ficava de costas para a entrada da sala de exibição e por esse motivo não conseguia desfazer a ruga de preocupação no meio da testa.
— Cuidado é uma coisa; paranoia é outra. — murmurou Nova com um sorriso bem-humorado.
Ele se voltou e beijou-a na testa, aconchegando-lhe a cabeça junto ao seu ombro.
— A paranoia faz parte do meu armamento pesado, dona. E esse lugar tem tudo para ser uma boa armadilha, só faltam os ganchos no carpete para prenderem os meus tornozelos. — retrucou baixinho, mantendo a atenção concentrada no grupinho de estudantes fazendo barulho e se empurrando pelo corredor até se acomodarem nas cadeiras.
— Precisa aprender a relaxar, amor lindo, a gente veio aqui para se divertir. — ela afastou a cabeça e o fitou com um sorriso: — Vamos ver o filme e comer a nossa pipoca, ok? Aproveita a sua juventude, tente se divertir, senão vai acabar ficando igualzinho ao velho Bronson.
Ele sorriu desconcertado.
— Sou rabugento também?
— Um pouquinho. — brincou.
Foi a vez de ele rir, embora, antes de relaxar na cadeira e passar um braço por sobre os ombros dela, relançasse uma última vez o olhar desconfiado para as poucas pessoas sentadas em seus lugares.
A iluminação foi reduzida até quase a completa escuridão. Uma explosão de sons tremeu o piso acarpetado debaixo das botas de Franco. Ele bocejou e deitou a cabeça no topo da cabeça de Nova e aguardou, pacientemente, o início do filme. Ao conseguir enfim relaxar, percebeu que dormiria sentado. Ajeitou-se na cadeira e descansou uma mão sobre o ventre de sua mulher. Baixou a cabeça e indagou curioso:
— A Paola se mexe?
Nova riu baixinho.
— Quer dizer o Marcelo, né? — provocou-o. — Bem, já se mexe, sim, não é feito de gesso, gato, mas como deve pesar uns 20 gramas ainda não sinto. — completou sem disfarçar o tom irreverente.
— Que lindinha, a gente casa e não é mais respeitado. — rebateu, fingindo-se de ofendido; em seguida, completou: — Caramba, princesa, estou pregado de sono. É só apagar a luz que o meu cérebro entende que é hora de dormir. Acho que não existe uma cabeça mais trouxa que a minha.
— Dorme no meu ombro, mas tenta não roncar. — brincou.
— Olha quem fala! — exclamou, divertido, e a beijou na boca antes de se levantar: — Fica quietinha aqui que vou jogar uma água na cara e já volto.
Ele atravessou o corredor ao som do falatório em inglês, alcançou a entrada do hall que levava aos sanitários. Esfregou os olhos uma segunda vez antes de ultrapassar a porta do banheiro masculino.
Meia dúzia de reservados perfilados diante do espelho que tomava metade da altura da parede pintada de bege. Era pequeno e limpo, não cheirava a flores, mas ainda tinha aspecto de lugar novo.
Abriu a torneira de uma das cinco pias e juntou as mãos em concha para enchê-las com água fria. A aba do chapéu caiu para frente da sua testa, atrapalhando-o. Tirou o chapéu e o depositou ao lado, na bancada. Voltou a juntar a água e mergulhou o rosto nela. Aproveitou para umedecer o cabelo e a nuca. Quando seu corpo não estava em ação, a tendência era economizar energia ao máximo e a resposta a isso uma bela preguiça.
Manteve a cabeça baixa ao sentir um fio gelado percorrer toda a extensão de sua coluna. Era uma sensação conhecida essa. Os pelos de sua nuca se eriçaram soprados pelo bafejo morno de alguém que até poucos minutos atrás não estava ali. Surgira do nada depois de tanto tempo. Ele nem teve tempo de piscar os olhos para se livrar das gotas d’água em seus cílios e já sabia que o encontro teria de ser naquele momento. De certa forma, esperava pelo encontro, desejara-o até, ainda mais que estava sozinho.
Através do espelho Franco fitou o homem que usava dreads e apontava um .38. A hora do acerto de contas. Um dia Franco fora marcado para morrer. E o agenciador do matador de aluguel morrera antes dele. Agora o matador encarava-o com dureza, determinado a apertar o gatilho e encerrar o serviço.
— Alguma vez chegou a sair de Matarana?
Everaldo armou um sorriso desbotado.
— E deixar de acompanhar a sua ascensão... chefe? — ironizou, ajeitando o chapéu surrado no topo do crânio, as mechas de cabelo, duras e espetadas para abaixo, atiradas às costas. — Você agora é importante, é o filho do homem. Como essa vida é uma bosta mesmo, toda aquela sua pose irritando todo mundo, como se fosse o herdeiro do patrão, um merdinha insuportável e, no fim das contas, é mesmo a porra do filho do patrão...
Franco sorriu serenamente.
— Pra ver como Deus é irônico.
— Tem razão, tão irônico que estou aqui, apontando uma arma contra a sua cabeça.
— Aí já não vejo ironia divina alguma, meu amigo, vejo é uma idiotice tipicamente humana.
— Ei, quem tem a arma sou eu. — sacudiu-a rindo-se. — E, por falar nisso, deite todas as suas no balcão, calmamente, do jeito que gostaria que eu fizesse caso “você” não fosse um humano tipicamente idiota.
Ah, a adorável beleza do caos!, pensou Franco, e era um tipo de pensamento que emergia do fosso do cérebro como sais efervescentes. Então todo aquele sono era a proximidade da ação, da reação contrária ao fim, a onda magnética que empurra o guerreiro para trás a fim de impedi-lo de cruzar o portal. Acontecia, nesse caso, que o guerreiro era o portal.
Virou-se lentamente para o outro pistoleiro e viu, no fundo dos seus olhos, a mesma crença.
Muito devagar e sem deixar de sorrir todos os dentes alvos, desarmou-se. Obedecendo à ordem do outro, encurvou-se o suficiente para tirar de dentro da bota, o canivete novinho cuja lâmina partia um fio de cabelo em dois.
— E, agora, “chefe”? — indagou Franco em tom de deboche.
Everaldo se aproximou com cautela, ainda empunhando firmemente o .38 como um escudo de proteção e não uma arma de ataque. Com um safanão, jogou as automáticas e o canivete para o outro lado do balcão, longe do alcance de Franco. Ele temia piscar e perder o domínio da situação. Conhecia muito bem com quem estava lidando, fora-lhe seu subordinado à época em que trabalhara na Arco Verde. Franco era temido e odiado por boa parte dos pistoleiros da fazenda. Havia uma aura de arrogância e superioridade incompatível para com a origem de bastardo nascido de uma vadia de beira de estrada, criado na fazenda e protegido pelo homem mais poderoso da região. Era nesse ponto que o rapaz despertava a ira dos demais empregados. Por que Thales Dolejal escolhera-o para se postar ao seu lado, o esquerdo, a posição hierarquicamente mais importante? E por que, para ele, concedera a chefia da segurança, tornando os desafetos de Franco os seus empregados? Everaldo sabia que a vida era injusta e bagunçada. E quando Teobaldo Vilela chamou-o para um servicinho limpo, sem vestígios, custou-lhe compreender de onde partira a ordem para a execução de Franco. Qualquer um dos pistoleiros que o detestavam tinham armas, vontade e colhões para matá-lo. A intermediação de um corretor da morte apontava quase sempre para o risco de uma chantagem futura para o mandante do crime. Ou a queima de arquivo do agenciador. O que de fato acontecera a Teobaldo.
— Sabe, chefe, fiquei em Matarana para analisar o panorama. — começou, balançando o cano do revólver com displicência. — Saquei direitinho quem queria o Mendes morto. Mas, engraçado, não fechava com a segunda encomenda: você, Franco. Por que o patrão queria mandar você de volta para o inferno, hein?
— Coisas do coração, Everaldo, você não entenderia. — balançou a cabeça numa encenação de pesar.
— Ah, já sei, a piranha da Karen trepou contigo também. — declarou com um sorriso largo e satisfeito. — A potranca tem um fogo que ninguém apaga.
— Vai me matar hoje ou depois da Páscoa?
— Está sempre debochando dos outros, né, ô seu filho da puta? Tem a pose do patrão e a cara do patrão; como não percebi antes? — fitou-o com desprezo. — Qual é o teu valor morto? — ele fez uma pausa, descendo e subindo os olhos pelo corpo do caubói, avaliativo, reflexivo, determinado a abocanhar um pedaço de sol para iluminar o resto dos seus dias. — Nenhum, Dolejalzinho, e ainda terei o Bronson me caçando até arrancar o meu couro! Por enquanto, tenho que te manter vivo e consciente... Então, é o seguinte, pega o teu celular e liga para o papai.
Franco nem se mexeu, ainda sorria, os olhos cravados nos olhos do outro.
— Não se faça de sonso, desgraçado! Pega a porra do celular e liga pro patrão! Diz pra ele que você está comigo!
— Tenho uma leve impressão de que ele dirá para você me matar. Afinal, o combinado com o corretor não foi isso?
— Se ele te quisesse morto, você não estaria aqui falando comigo. O que não falta por essas bandas é gente querendo te esfolar e até de graça, camarada! Agora, faça o que eu mandei e depois cada um vai para o seu lado.
— O patrão não costuma conversar com chantagistas. — afirmou Franco, dando de ombros, indiferente. — Esse tipo de assunto sempre foi tratado por mim e o Bronson, sabe, o nosso faxineiro, por assim dizer.
— Está me ameaçando? Desarmado, com um revólver apontado pra tua cabeça e tendo a poucos metros a tua mulher grávida e inocente vendo o filminho do Bruce Willis? Sabe que atiro em você, abro a porta, caminho menos de trinta passos e arrebento a cabeça dela também, né? — falou irritado, projetando-se para frente e se cuspindo.
Franco estreitou os olhos perigosamente, toda a sua atenção, fria e calculista, perscrutando a mente do seu adversário.
— O que sabe sobre a minha mulher?
— Fiz o dever de casa, chefe. Nada mais. Aprendi a espreitar, vigiar e perseguir como você mesmo nos ensinou lá na fazenda. — respondeu, sagazmente.
O pistoleiro mais jovem fez um sinal em direção ao bolso da camisa xadrez que usava e retirou a carteira de cigarros; puxou um e ateou fogo na ponta, balançando o fósforo para cima e para baixo. Ofereceu um deles para Everaldo.
— Acha que me engana? Está ganhando tempo, só não sei para quê. — ele engatilhou a arma e crispou os lábios com raiva. — Já faz algum tempo que se enfiou no banheiro, talvez a esposinha apareça para ver se você está bem. Sabe como mulher é, né? Dizem que é instinto materno, que nós não sabemos nos cuidar, mas, no fundo, não passam de vacas enxeridas.
Franco tragou fundo o cigarro e exalou a fumaça sem pressa, observando-a se dissipar antes de alcançar o teto. Recebia contra o peito os elos de tensão exalados pelo corpo suado de Everaldo, um suor morno e azedo. Manteve a mente limpa, sem pensamentos, sem sentimentos. Apenas absorvendo a maciez volátil das asas dos insetos. Cogitou que fosse levitar tamanha paz e plenitude. Mas apenas ergueu a perna esquerda alto o suficiente para chutar o .38 que, antes de cair no piso de ardósia, branco e sujo, disparou um projétil contra o espelho, despedaçando-o.
Atordoado, Everaldo atirou-se contra o balcão, o corpo estendendo-se feito um arco flexível, os dedos quase tocando na Glock. Faltava pouco, bem pouco, já sentia a gelidez do cano da arma e a explosão na cabeça de Franco. Alcançou-a e se virou como uma enguia desesperada retirada da água, apertou o gatilho e atirou.
Horrorizado, percebeu o erro.
A parede de material foi perfurada.
Um braço rodeou-lhe o pescoço por trás e, com um apertão preciso e brusco, interrompeu o fluxo de oxigênio ao cérebro.
Franco permitiu que Everaldo escorregasse para o piso; deitou a cabeça dele e se aproximou do seu nariz; uma respiração com chiado, pesada.
Terminou de fumar, cruzando as pernas e se escorando contra a parede, próximo à única janela do recinto. Observou o beco do outro lado, úmido, um depósito a céu aberto de todos os lixos dos restaurantes, lanchonetes e padarias da rua. Cheirava mal; depois da chuva, o sol tostando o lixo molhado.
Acabou o cigarro, apagou-o debaixo do jato de água da torneira e guardou a bagana no bolso traseiro do jeans. Telefonou para Bronson.
— Encontrei o Everaldo.
— Quer negociar ou entregar para o patrão?
— Nem um, nem outro. Preciso que limpe o banheiro do cinema.
— É para já, garoto.
Abaixou-se e revistou os bolsos de Everaldo. Duas notas de dez reais, um maço de cigarros pela metade e uma medalhinha de Santo Antônio. Esboçou um sorriso sem muita vontade. Sim, a vida era bagunçada, injusta, irônica, uma bosta. Mas, na maior parte das vezes, bela. Deixou o santo com o bandido. Levantou-se suspirando resignado e encarou o homem que lutava consigo mesmo para abrir os olhos, as pálpebras tremiam, os músculos da face se repuxavam como se ferrolhos de portas de aço tivessem de ser rompidos para ele poder respirar e voltar e viver a vida que era bela.
A beleza da vida era viver somente entre os bons.
Franco estourou a cabeça de Everaldo com dois tiros.
Nova decidiu esperar mais cinco minutos antes de se encaminhar para o banheiro masculino. Olhou mais uma vez para a tela do celular, aguardando chegar o momento de tomar a iniciativa e procurar Franco. Puxou com os dentes frontais a cutícula do polegar, nervosa. E a tensão aumentou ainda mais quando percebeu a movimentação no corredor. A silhueta de Bronson, o chapéu, a barrigona e os ombros encurvados. Ele entrava no banheiro.
Respirou fundo tentando se controlar. Como sempre a dualidade. O que deveria fazer? O que acontecera a Franco? Ergueu-se num átimo, mas não prosseguiu no intento. Viu-o aparecer à porta, cedendo passagem a Bronson e se afastando, voltando pelo mesmo corredor que seguira antes.
Não conseguia ver o seu rosto, a iluminação da tela dificultava-lhe a visão. Esperou ele se sentar com displicência. Um braço descansou sobre os seus ombros, abraçando-a carinhosamente.
Por exatos vinte minutos nada falaram. O silêncio entre ambos falava por eles, já que não conseguiam se concentrar no filme.
Nova ergueu a cabeça e perguntou baixinho, junto ao ouvido do marido:
— Você está machucado?
Ele virou o rosto em sua direção e respondeu diretamente:
— Não.
— Precisa da minha ajuda?
— Não.
— Certo. — declarou, aceitando como certo tudo o que vinha dele, e emendou com um sorriso jovial: — Eu e o bebê estamos doidos por um Twix.
Franco ainda manteve a atenção voltada para ela. As orelhas como antenas avaliando a entonação da voz, as palavras e o sentido; o cérebro girando feito um doido. Experiente que era na arte de analisar o comportamento humano e, de certa forma, tirar proveito dessa percepção aguçada, ficou intrigado com a facilidade na aceitação dos fatos por parte de sua mulher. A tentação de contar a verdade brotou da necessidade de lhe ser leal sempre.
Um peso absurdo no coração.
E a certeza de que aqueles dois tiros também matariam o seu casamento.
Arriscou:
— Não posso viver sem você.
Ela sentiu o sangue gelar. Segurou o ar nos pulmões e pulou.
Para dentro da alma dele.
E nada falou.
Janice Diniz
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