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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CÉU SEM ESTRELAS / Violet Winspear
CÉU SEM ESTRELAS / Violet Winspear

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CÉU SEM ESTRELAS

 

A lancha atracou no embarcadouro da ilha de Bayaltar, nas águas do Mediterrâneo.

A população da ilha era composta de uma variedade de nacionalidades, mas, na maioria, eram opulentos espanhóis que construíram suas mansões entre as altas e frondosas árvores tropicais, e que comandavam o comércio e a sociedade locais.

Angie estava sentada na lancha, com o coração aos saltos, tomada por um tumulto de emoções. Há seis anos, ela havia dado seu adeus a Bayaltar e agora retornava. Não mais como uma colegial de dezesseis anos, mas como uma mulher adulta, trazendo na bagagem seu uniforme de enfermeira. A ela estava reservada uma importante missão na residência de Carlos de Zaldo, o governador geral da ilha.

A lancha balançou de encontro ao deck, e o sol, caindo em cheio sobre a superfície do mar, criava tonalidades maravilhosas. Um suspiro de nostalgia subiu à garganta de Angie. Nem a desconfortável trepidação do barco, nem os anos de ausência, conseguiram diminuir a sensação de encantamento que sempre sentira por Bayaltar.

Parecia muito próximo o tempo em que ela freqüentara a ilha, passando parte das férias de verão e de inverno com a família do governador. Maya de Zaldo cursara a mesma escola que Angie, na Inglaterra, e as duas garotas tinham se tornado amigas íntimas. Depois que sua tia Kit morreu, Angie ficou sozinha no mundo e a família de Maya fora muito gentil convidando-a a passar algum tempo com eles. Logo simpatizara com todos e para Angie aquela enorme mansão era o lugar mais fascinante e encantador do planeta.

A estirpe dos De Zaldo era muito rica e poderosa, considerada um dos expoentes da aristocracia local. Don Carlos era a própria imagem do fidalgo espanhol e, ao lado dos filhos, vivia com muito luxo, num estilo de vida bem diferente do que Angie havia conhecido ao lado da tia. Ela tivera sorte em estudar no Convento da Santa Virgem, graças a um dote feito quando nascera. Só depois que a “tia” morrera, veio a saber que, de fato, ela era sua mãe. Quem era seu pai e se ele ainda vivia em algum lugar da Inglaterra, fora sempre um mistério que Angie nunca tentou desvendar. Se Kitty Hart tivera um caso amoroso no passado e preferira intitular-se “tia” da própria filha, Angie respeitava esse desejo. Tinham sido pobres, mas unidas por uma grande e sincera afeição que tinha deixado ternas recordações.

Mas as lembranças de Bayaltar haviam sido mais perturbadoras, reavivadas há uma semana, quando Maya lhe telefonara contando que Rique de Zaldo fora gravemente ferido durante uma missão militar e que no momento estava novamente em casa, necessitando dos cuidados de uma enfermeira.

— Por favor, conte tudo! — pedira Angie, apertando nervosamente o fone.

— Foi terrível! — Maya dissera aquilo com desespero na voz. — Fragmentos da bomba atingiram seu rosto e a cabeça e… oh, Angie, o coitado do Rique perdeu a visão. Ele está cego!

Angie fitou com um olhar embaraçado as vagas do mar que jogavam a lancha de encontro ao deck de atracação. Como se lembrava dos olhos de Rique! Nas últimas férias que passaram com a família, tivera a certeza de que seu coração estava reservado unicamente para ele, mesmo que jamais viesse a gostar dela.

Seis anos já tinham se passado e, no entanto, ela sentiu uma grande emoção quando o táxi entrou pela Ramblas de las Virtudes que saía diretamente da grande praça onde, nas noites de sábado, a banda de música tocava e as pessoas sentavam-se nos bares ao ar livre para bater papo e saborear um cafezinho ou aperitivo. Pela rua principal, enfileiravam-se bazares e lojas onde ela e Maya costumavam fazer compras, quando não havia ainda nenhuma sombra para tapar o sol da felicidade. Naquela época não imaginaria que seu retorno a Bayaltar seria tão triste e doloroso.

Ao subir a ladeira pedregosa que levava à residência, Angie começou a pensar se tinha havido alguma modificação nos sentimentos que sempre a tinham ligado a Rique, durante a longa separação, enquanto ele servira o Exército Espanhol, e ela trabalhara como enfermeira na Inglaterra., O táxi entrou pela alameda que levava a Casera de Nusta, onde antigas e altas palmeiras sombreavam o caminho com suas largas folhas. Agora estavam passando pela rua dos Santos que ladeava o cemitério e a capela espanhola, cujo repicar de sinos ecoava pela superfície do mar. Os muros eram cobertos de hera e jasmins que perfumavam o ar ao cair a tarde.

O amor por aquelas paragens crescera junto com o amor secreto que ela sentia pelo filho mais velho do governador. Ninguém conhecia seu segredo… nem mesmo o próprio Rique.

Uma hora após o telefonema de Maya, Angie tomara todas as providências para a viagem a Bayaltar, onde deveria cuidar do homem que se tornara inesquecível para ela. Tinha plena certeza de que Rique nem desconfiava de seus sentimentos. Naquela época, ela era uma adolescente tímida e desajeitada, que ficava profundamente constrangida na companhia do rapaz que, a seus olhos, já parecia adulto e um tanto altivo. Os filhos de Carlos de Zaldo tinham constantes oportunidades de constatar a importância da posição do pai na ilha, mas, mesmo assim, não eram esnobes. Aquele ar arrogante era natural em Rique e fazia parte de seu semblante moreno e romântico, realçado por olhos de um cinza-metálico. Dois olhos penetrantes que formavam um belo contraste com os cabelos castanho-escuros e as espessas sobrancelhas escuras. Não podia imaginá-lo cego… todo seu ser recusava-se a vê-lo dessa maneira. Logo ela, que o tinha conhecido cheio de vitalidade, seguro de si, com tanta força, coragem e energia!

Angie sentiu-se repentinamente tensa quando avistou a Residência, como era chamada, com seus altos muros brancos, os arcos em forma de ferradura, e a torre de vigia onde sempre havia um guarda de sentinela.

Quando o táxi chegou perto do portão principal, ela olhou fascinada para aquela casa. Um outro guarda, postado ao lado da entrada, veio ao encontro do carro para as averiguações de praxe. Angie debruçou-se na janela do táxi e identificou-se. Logo, permitiram-lhe que entrasse pelo portão até a porta da frente da mansão que se abria para um pátio. O pátio era fechado e os pequenos balcões, protegidos por grades de ferro batido.

A Residência tinha a atmosfera de encantamento dos contos de fadas.

Quando Angie entrou no pátio, toda a antiga magia que aquele ambiente exercia sobre ela voltou à tona. Lembrou-se logo das brincadeiras que faziam pelas escadarias da torre, com suas fendas de vigia sempre batidas pelo vento. Um de seus lugares prediletos era o jardim de inverno com a fonte que esparramava água pelo tanque de mármore verde, onde nadavam peixinhos que pareciam recortados em leve seda colorida. Lá, a atmosfera era sempre fresca e as poltronas de junco, de espaldar alto, convidavam ao repouso. O táxi foi embora e Angie olhou ao redor.

Precisava de alguns minutos para recompor-se e preparar-se antes de encarar Rique frente a frente, não só como enfermeira, mas também como 3 a mulher que o amava. Não ia ser fácil, pois em vez de ir ao encontro do bem-sucedido oficial de exército, iria defrontar-se com um homem ousado cuja carreira estava encerrada.

— Os médicos estão absolutamente certos de que ele vai ficar cego para sempre? — perguntara a Maya. — Os nervos ópticos podem estar intatos e com o tempo e cuidados especiais, quem sabe…

— Eles disseram a papai que não esperássemos por milagres — Maya a interrompera no telefone, aos prantos, provocando-lhe também uma torrente de lágrimas. — Oh, Angie, mal tenho coragem de olhar para ele!

— Acredito…

— Todo um lado de seu rosto foi atingido. Mais tarde vão fazer-lhe uma plástica e os médicos garantem que voltará a ter o aspecto normal. Mas é de cortar o coração ver meu irmão nessas condições.

Um passarinho gorjeou e o sol, em declínio, tingiu o céu de escarlate. Os pensamentos de Angie foram interrompidos quando ela ouviu Maya gritar por seu nome.

— Angie! Graças a Deus você veio!

As duas garotas se abraçaram efusivamente sob aqueles balcões, testemunhas de suas gargalhadas, e cantorias, quando tudo eram flores e risos.

— Como está ele? — sussurrou Angie.

— Ele… ele está tão mudado! — Maya suspirou de tristeza. — Tornou-se agressivo e sarcástico. Não deixa que ninguém se aproxime. A maior parte do tempo fica sentado no jardim de inverno, com os olhos voltados para o tanque como se pudesse ver os peixinhos, enquanto sua mente parece vaguear, martirizando-o, sem minuto de descanso. À noite, ouço-o tropeçando por aí, pois ainda não se acostumou a andar pela casa. Mas se alguém tenta socorrê-lo, ele se revolta e diz coisas ofensivas. Só Deus sabe o quanto Rique era equilibrado. Você se lembra, não lembra, Angie?

Angie lembrava-se… e como! Fez um esforço enorme para reter as lágrimas que estavam queimando seus olhos.

— Já disseram a Rique que vou ser sua enfermeira?

Maya assentiu, mas uma sombra baixou sobre seu semblante e ela mordeu os lábios.

— Diga com franqueza, ele não gostou da idéia, não é verdade?

Angie não estava surpreendida com isso. Rique era orgulhoso e nada poderia enfurecê-lo mais do que ficar submetido a alguém que o vigiasse o tempo todo.

Angie pegou a mala e foi com Maya para dentro da casa. Aspirou fundo aquele cheiro inconfundível de cera de abelha que tornava os móveis de mogno tão lustrosos e davam tanto realce aos entalhes artísticos da madeira. Misturado àquele aroma, captou o perfume característico das longas e escuras cigarrilhas que os espanhóis apreciavam tanto.

— Parece que foi ontem que estive aqui…

— Por que ficou tanto tempo sem vir? Não acredito que você estivesse tão ocupada a ponto de não poder tirar uma folga para nos fazer uma visita.

— Ficaria admirada se soubesse como é agitada a vida de uma enfermeira.

Na verdade, ela se afastara daquela família por causa de Rique. E, por causa dele, agora estava de volta.

As duas moças passaram sob os pesados candelabros de cobre, pendurados nas paredes do hall por grossas correntes. Toda a mobília era incrustada de madrepérola e prata, e o soalho coberto de imensos tapetes persas que davam o colorido ao mobiliário antigo.

Parecia que tudo ali combinava com a figura morena de Maya de Zaldo, com seus longos e negros cabelos presos por um coque que realçava seus grandes olhos cor de âmbar e seus traços latinos. Todavia, contrastavam com os cabelos loiros de Angie e seu rosto de pele alva e perfeita.

Os olhos âmbar fitaram os olhos azul-esverdeados de Angie com curiosidade.

— Você cresceu tanto Angie!

— Não tenho palavras para exprimir como fiquei contente em revê-la. Acho que Rique vai permitir que você o ajude.

— Vou fazer o possível para que me aceite — Angie comentou e acrescentou um sorriso às palavras para aliviar a inquietação da amiga. — Uma das coisas que aprendi é ser firme para com pacientes teimosos.

— Acho estranho você ter estudado enfermagem — disse Maya pensativamente. — Papai sempre gostou muito de você, talvez porque o faça recordar de mamãe que, apesar de ter sangue latino, era loira, de pele clara e olhos acinzentados, que Rique herdou.

— Lembro do retrato de sua mãe que ficava na saleta. Ela era bem mais bonita do que eu.

— Sempre quis ter cabelos como os seus, Angie. Por que você cortou aquelas tranças tão lindas?

— Porque Rique tinha a mania de puxá-las. — Angie tornou a sorrir. — Falando sério, prefiro meus cabelos mais curtos. Ficam melhor com a touca de enfermeira.

Angie olhou em torno, no hall, onde os vitrais coloridos das janelas filtravam os últimos raios do sol poente.

— Estou feliz de ver que a casa continua a mesma. Nada parece mudado.

— Só Rique mudou.

O olhar de Maya voltou-se para o lado do jardim de inverno e Angie sentiu sua pulsação acelerar. Será que ele estaria lá naquele momento, sentado na semi-obscuridade, fumando a cigarrilha cujo aroma havia invadido o hall? Como ansiava revê-lo; no entanto, como temia o momento em que teria de enfrentar aquele rosto mutilado e aqueles olhos cegos que a fariam sentir-se novamente como uma acanhada colegial.

— Quando verei Rique? Ele foi avisado de que eu chegaria hoje? Maya confirmou.

— Ele não participa das nossas refeições. Sente-se constrangido por ser desastrado e prefere comer sozinho em seu quarto ou, às vezes, no jardim de inverno. Ele está lá agora, você já deve ter imaginado, não?

— Senti o cheiro da cigarrilha. Devo ir até lá segurar o touro pelos chifres? Vamos ter de enfrentar a situação, mais cedo ou mais tarde.

Maya olhou para Angie, perplexa.

— Não me diga que está nervosa por Rique? Você parece ser uma pessoa calma.

— Sou bem treinada, mas Rique sempre me intimidou. Faz tempo que não nos vemos, ele tornou-se um soldado, viu gente morrer das piores maneiras e foi, por sua vez, vítima dessa violência. Ele é seu irmão, mas é também um homem amargurado e pode ressentir-se de precisar ficar à minha mercê, para que eu o trate e vigie-o.

— Vigiá-lo? — Maya interrompeu surpreendida.

— No caso de levar algum tombo.

Não poderia deixar Maya perceber que uma de suas atribuições era ficar atenta a qualquer sintoma no estado geral da saúde de Rique e também em seu comportamento psicológico. Maya amava muito o irmão e Angie não queria causar-lhe maiores preocupações.

— Acho que você nunca pensou em voltar a Bayaltar em circunstâncias tão tristes, não é mesmo? — Maya tinha um olhar sombrio e desanimado.

— Era a última coisa que teria desejado na vida.

Angie não pôde evitar de alterar o tom de sua voz. Ver Rique novamente iria causar-lhe uma grande dor e um grande abalo e ela rezou para conseguir dominar-se durante a próxima meia hora.

— Venha dar um alô para ele.

Maya a conduziu em direção ao jardim de inverno e o cheiro da cigarrilha aumentou, misturado ao perfume das plantas que abundavam por ali. A única luz que iluminava o ambiente provinha de uma sombria arandela. O junco da cadeira rangeu e um par de longas pernas estiraram-se quando o homem que estava sentado virou a cabeça em direção a elas. Os olhos cegos pareciam procurar algo naquela penumbra. Angie viu o perfil desfigurado e os cabelos raspados no lugar de onde tinham sido retirados os fragmentos da bomba.

Como enfermeira, já tinha visto rostos mais massacrados, mas aquele era o rosto de Rique e, como mulher apaixonada, seu impulso foi atirar-se em seus braços e afundar a cabeça em seu peito.

— Quem é?

— Sou eu, Maya.

— Quem está com você?

— Adivinhe, amigo mio.

A irmã foi até perto da cadeira e inclinou-se para beijá-lo.

Ele a repeliu bruscamente e Angie percebeu a expressão de seus olhos que não enxergavam, mas que ainda estavam intatos e brilhantes. Sentiu um enorme alívio ao constatar que a bomba não tinha destruído o fascínio deles.

— Tornamos a nos encontrar, Rique de Zaldo — disse Angie em espanhol, pois aquela família tinha lhe dado a oportunidade de ter aulas da língua castelhana.

— Então, é a minha pequena irmã de caridade? — replicou ele, em inglês, com o tom de voz irônico. — Como pode ver, nunca estive em melhor forma, parecendo um morcego cego em sua caverna, e tão desvairado quanto um rato hidrófobo. Bienvenida, Angie.

Ela chegou perto e viu sua mão estendida, tentando agarrar a bengala branca que estava encostada ao braço da cadeira. Num movimento desastrado, deixou-a cair ao chão e soltou uma imprecação em espanhol.

— Não se amofine. — Ela colocou-lhe gentilmente a mão sobre o ombro. — Você parece tão tranqüilo aqui, ao som da água da fonte. É um lugar muito relaxante!

— Um lugar “taciturno”. — Ele enfatizou a palavra. — Agora que sou uma ruína humana, preciso de lugares tranqüilos. Assim evito de derrubar os móveis pela janela, quando dou minhas topadas. Bem, nina, como tem aproveitado seus dias? Divertindo-se em amaciar travesseiros e esticar roupas de cama?

— Eu gosto do meu trabalho, amigo.

Não sabia por quê, mas sentia-se sem jeito para pronunciar o nome dele. Não era mais a amiguinha adolescente da irmã e ela pôde perceber o ressentimento daquele homem, que a considerava alguém que tinha invadido a privacidade da casa de seu pai, só para vê-lo naquelas condições deploráveis.

— Você parece ser muito dedicada! — Seus lábios crisparam-se com amargura. — Como é? Vai querer sofrer junto comigo?

— Não, vou confortar você…

— Dando-me maçãs de presente?

— Se apreciá-las, sim.

— Pregando-me mentiras?

— Não.

— Você já está mentindo, enfermeira.

— Dizer mentiras aos meus pacientes nunca foi um de meus pecados, amigo.

— Você é isenta de pecados, Angie? — Deu uma breve risada. — Diga-me, Maya, será que sua amiguinha transformou-se numa daquelas escrupulosas e severas missionárias? Você acha que ela vai me dar umas palmadas no traseiro se eu não comer todo o espinafre ou se entornar o caldo?

— Angie não é nada disso, Rique. Não comece a implicar com ela. O dr. Romaldo insistiu para que você tivesse uma enfermeira e se não tivéssemos contratado Angie, você poderia cair nas mãos de um verdadeiro dragão. Não tenho que Presumir que Angela é a encarnação de seu próprio nome. Não será muito prudente de sua parte ser um ángel comigo. Se cuidar, Angie, posso fazê-la passar por maus bocados.

— Estarei muito ocupada, mas cuidando de você — ela respondeu, cada vez mais convencida de que deveria agir com firmeza se quisesse ser realmente útil. Seria muito pouco sensato mostrar-se ressentida ou insegura com aquelas agressões.

— Quer dizer que você pretende ser a luz de meus olhos?

Rique estirou-se para trás e sua cabeça repousou no espaldar da poltrona. Parecia atormentado e cada milímetro de seu rosto exprimia uma profunda revolta pela desgraça que o tinha atingido.

— Para el infierno! — ele rosnou. — Você deve ser muito simplória para pensar que vou me submeter docilmente a tudo isso. — Encostou a mão na testa. — Essa bomba devia ter feito o serviço completo! Os dois homens que estavam a meu lado não sobreviveram à explosão. Salvaram-se de acordar num hospital apenas para constatar que não enxergavam mais e que nunca mais enxergariam na vida! Você pensa que não sei disso?

— Oh, Rique!

A irmã segurou-lhe a mão carinhosamente, mas ele retraiu-se.

— Não me trate como uma criança indócil! Esses médicos andaram tirando lascas metálicas da minha cabeça e eu poderia ter me transformado num débil mental, você sabe muito bem disso. E eu também sei. Portanto é melhor parar de querer iludir-me, dizendo que é só uma questão de tempo e que eu voltarei a ser um homem novamente e não um zumbi vagando na escuridão, hermana. Como posso descrever esta sensação? A própria escuridão é menos escura. É uma noite eterna sem a promessa de um novo dia. E um túnel subterrâneo sem uma luz no seu final. E um túmulo onde tenho de continuar respirando.

Angie tinha ouvido o suficiente. Mais uma palavra e ela cairia ali mesmo, ajoelhada a seus pés. Mas reagiu

— Pare de assustar sua irmã com essa conversa! — reprovou Angie. Seja grato por ainda estar vivo e capaz de sentir o sol sobre a pele, ouvir os passarinhos cantando e sentir o amor de uma família sensacional como a sua. Esses outros dois soldados que morreram, bem que gostariam de estar no seu lugar.

— Para serem guiados por mãos alheias?

Seus olhos cegos pareceram dilatar-se e ela pôde notar neles amargura mesclada a uma expressão de surpresa, como se nunca alguém tivesse se atrevido a falar daquela maneira com ele.

— Angie, há um prato de comida à minha frente e não sei se estou comendo um mingau ou uma paella. É preciso ver uma fatia de presunto defumado, por exemplo, para saber o que se vai saborear. E assim acontece com um pedaço de queijo ou uma batata frita e até com uma mulher, eu presumo. Quando um homem abraça uma mulher, quer ver a expressão do seu olhar…

— Oh, Rique, não se atormente assim!

Com um soluço incontido, Maya correu para fora, deixando Angie sozinha, frente a frente, com aquele homem angustiado. Um homem que tinha a figura do antigo Rique de Zaldo, mas cujos olhos pareciam queimar na agonia de seu sofrimento, olhos cinzentos e belos herdados de sua linda mãe, que Angie, infelizmente, não chegara a conhecer.

— Maya ainda é muito infantil — resmungou Rique. — Papai a protegeu demais. Mas você, Angie, você que está acostumada a conviver com pessoas doentes e transtornadas, deve saber melhor o que estou sentindo. Por Dios, não consigo me desligar daquela sua figura de estudante e não posso imaginá-la como uma mulher adulta, de uniforme e touca de enfermeira. Você me permitiria que a tocasse para tentar “vê-la”?

A primeira reação de Angie foi recusar. Sentir aquelas longas mãos morenas percorrendo-a por inteiro, era mais do que podia suportar na sua condição de mulher adulta e apaixonada. Rique pareceu sentir sua indecisão e a interpretou mal.

— Receia sentir repulsa por ser tocada pelas mãos de um cego?

— É claro que não. — Seu protesto saiu com voz débil e ele o considerou como uma forma de rejeição. Deu uma risada sarcástica.

— Se não me falha a memória, nos velhos tempos você tinha o hábito de ficar retraída na minha presença, como se eu tivesse o dom de acabar com sua alegria. Você sempre arregalava os olhos como se estivesse com medo que eu mordesse. O que a motivou a aceitar esta missão de caridade, se ainda conserva aversão por mim?

Angie quase deixou escapar um grito de protesto àquela acusação e foi a muito custo que se conteve para não rodeá-lo com seus braços amorosos. Com toda a força de sua alma, desejou acariciar aquele rosto sofrido e desejou ainda mais que Rique não acreditasse que ela sentia pena dele. Deu um passo à frente, como se fosse se deixar levar por seu impulso irresistível, mas lembrou-se em tempo de que aquele gesto poderia ser interpretado como uma manifestação de mera piedade. Rique iria odiá-la se pensasse que Angie tinha pena dele… Zombaria se] desconfiasse que ela o amava.

— Posso assegurar, meu caro amigo, que já lidei com casos bem piores do que o seu. — Angie expressou-se naquele tom frio e impessoal que as enfermeiras usam diante de demonstrações de autopiedade. — Queimaduras graves, por exemplo, em adultos e crianças vítimas de incêndios. Seguramente, não sentiria repulsa por uma simples cegueira e, se quiser, fique à vontade para analisar minhas feições.

— Como você é generosa, enfermeira — ironizou ele. — Mas eu acho que posso me lembrar muito bem de sua carinha encabulada e de seus olhos azuis da cor do céu.

— Não tenho olhos da cor do céu — ela replicou. — Você deve estar lembrando de outra moça na cabeça.

— Isto me soa como uma censura — ele sorriu. — Ah, agora me recordo perfeitamente! Seus olhos são da cor do mar, lá pelas três horas da tarde, quando não há uma só brisa para encrespar a superfície das águas. São frios e claros como o gelo, não são? Certa vez, Seb pintou seu retrato, mas eu me lembro de que ele não conseguiu captar a expressão de seus olhos.

O tempo retrocedeu tão rapidamente em sua memória que Angie parecia estar segurando o retrato que o irmão dele havia pintado. Seb queria ser artista plástico, mas em vez disso tornara-se diretor de cinema e fazia filmes na Itália e na Califórnia.

— Seb nunca procurou entrar em contato com você? — A voz de Rique parecia mais irônica. — Você se entendia bem melhor com ele do que comigo.

— É que tínhamos quase a mesma idade — defendeu-se Angie, omitindo de contar a Rique que o irmão a procurara em Londres, quando fora fazer uma conferência sobre cinema. Tinham almoçado juntos e assistido a um show. Era verdade que ela se sentia mais à vontade na companhia de Sebastian de Zaldo. Ele não lhe acelerava as batidas do coração, nem a tornava ridiculamente tímida como Rique fazia.

— Não vai me dizer que está corando?

— Por que haveria de corar? — perguntou ela, enquanto sentia o sangue queimar-lhe o rosto.

— Os britânicos sentem aversão por assuntos pessoais, não é mesmo? Não somos todos assim? Sempre achei os espanhóis também reservados nessas questões. Pura verdade, Angie. Temos nossos esconderijos na alma, que não revelamos nem compartilhamos com ninguém. Algum dia, você sonhou em se expor totalmente a alguém? A meu irmão, por exemplo? Por acaso, voltou à ilha com esperança de revê-lo?

— Você sabe perfeitamente por que estou aqui, Rique… — Ela exultou. Finalmente, tinha pronunciado aquele nome e, com isso, conseguira derrubar uma barreira que a estava separando dele. Podiam agora enfrentar-se como dois adultos. — Sempre achei Seb mais acessível do que você, é claro.

— É claro! — repetiu Rique, sarcástico. — Seb é muito mais agradável para com as mulheres do que eu.

Ela olhou para Rique, cujas feições eram um tanto selvagens quando comparadas aos bonitos traços do irmão dele. Rique parecia bem mais velho do que Seb, apesar de haver só três anos de diferença. Seu rosto era mais marcado, como o de alguém que já tivesse provado o gosto do perigo. Sempre fora assim, mas agora uma chama terrível consumia-lhe a alma.

Angie podia sentir as pulsações fortes de seu próprio coração… Ser enfermeira de Rique não ia ser fácil. Ele não era uma pessoa razoável e fácil de se levar, como Seb. Estava machucado não só no físico, como na alma. Era um revoltado e um solitário, debatendo-se em suas próprias trevas.

— Os dias de felicidade terminaram para todos nós — disse ele, desconsolado. — Quando brincávamos ao sol, nem podíamos imaginar o que nos esperava. Quem diria que eu iria chegar a este ponto, e que a jovem Angie Hart seria um dia minha guia e minha protetora? O destino nos prega cada peça!

Estranhas e torturantes peças, ela pensou. Apertou a garganta com a mão, para tentar impedir um soluço. Era doloroso pensar em Rique naqueles tempos de alegria e despreocupação, quando a máquina fotográfica de Seb fixara para sempre sua imagem pulando entre as ondas, ou correndo atrás da bola na quadra de tênis.

— Quer me fazer um grande favor? — ele disse devagar. — Volte para o lugar de onde veio, pois quero você aqui, tanto quanto você quer ficar! Posso saber o que sente, melhor do que se a estivesse vendo, e posso adivinhar a expressão de seu rosto e de seus olhos, neste momento.

— Como pode ter tanta certeza do que sinto ou deixo de sentir? — ela retrucou, ofendida.

— As mulheres não são basicamente iguais? Não estão todas sempre em busca de romance e de um amor estável? De alguém” que seja seu dono e amante? Será que você é diferente, ou as enfermeiras testemunham tantas misérias humanas que acabam se tornando feras? Será que tanto realismo acaba por secar a fonte do amor?

Na verdade, Angie tinha raciocinado sobre isso durante a viagem a Bayaltar, mas agora que estava ali, face a face com Rique, sabia que seu coração ainda pertencia a ele e era capaz de sentimentos muito profundos.

— Ferimentos e sentimentos possuem um extraordinário poder de recuperação. Não adianta você querer me sugestionar com seus sarcasmos. — E acrescentou: — Maya me contou que você não faz suas refeições junto com a família.

— Não estou disposto a dar um show do tipo comédia pastelão. — O olhar cego dirigiu-se à altura dos ombros de Angie. — É terrível para um homem sentir-se transformado num bebê desamparado que precisa de babador para comer. Na segunda vez que derramei a sopa na camisa, preferi comer sozinho para não dar mais espetáculos.

— A coordenação de seus movimentos vai melhorar com o tempo — afirmou ela gentilmente. — Além disso, estou segura de que sua família entenderá perfeitamente o fato de você parecer desajeitado. Estão sofrendo com você e por você.

— Pensa que não percebo? Eu não queria nem voltar para casa, mas meu pai insistiu. Teria preferido ficar no Hospital Militar até sentir-me apto, mas ele não quis ouvir meus argumentos. Vou até a Espanha, e me trouxe de volta. Dios, ele é um hombre valiente!

— E você puxou a ele! Não precisa fazer da cegueira um obstáculo.

— E não é? É como se as paredes tivessem se fechado sobre mim e eu não pudesse encontrar a saída. E a cegueira não é o único problema. Precisa se lembrar de que fui atingido no cérebro. O que você vai fazer, Angie, se de repente eu me tornar violento e começar a destruir tudo ao meu redor? Você se encarregará de me colocar numa camisa-de-força quando eu enlouquecer?

— Não vai acontecer nada disso! — exclamou ela. — Pare de dizer absurdos.

— Você não gosta de ouvir as verdades? Imagine se um dia destes, quando estivermos sozinhos, você se veja com minhas mãos em torno de sua garganta, sendo estrangulada? Dizem que quando alguém perde a razão, volta-se contra a pessoa que mais o ajudou.

— Você está dizendo coisas chocantes só para me amedrontar — censurou, mas sentiu-se aliviada por ele não poder ver seu olhar aflito, quando ela fitou as cicatrizes das têmporas, no lugar onde os estilhaços tinham penetrado. Se algum dos fragmentos da bomba tivesse, de fato, se localizado no cérebro, num lugar inacessível ao bisturi, Rique certamente devia estar se sentindo às portas da morte e da loucura, pois era bastante inteligente para compreender as conseqüências de tal tipo de ferimento.

— Eu é que estou amedrontado, Angie.

As cinzas de sua cigarrilha caíram sobre o suéter preto. Angie percebeu que ele poderia se queimar e, pegando um cinzeiro, sacudiu para dentro o resíduo, ainda incandescente.

— Gracias, mi muchacha.

Repentinamente, ele segurou-a pelo pulso e puxou-a para si. Angie perdeu o equilíbrio e ele imediatamente passou-lhe os braços pela cintura. forçando-a a ajoelhar-se junto dele, enquanto uma expressão de selvagem zombaria invadia seu rosto.

— Por favor, não faça isso — reagiu ela.

— Com medo de um pobre cego?

Sua mão viajou pelo corpo de Angie até alcançar o pescoço, e seus dedos afundaram-se nos cabelos sedosos, na altura da nuca.

— Posso sentir que você está tremendo, Angie. Por que veio a Bayaltar? Curiosidade? Lealdade piegas? Tédio de seu trabalho em Londres? Em busca de novas emoções?

— Você tem uma língua viperina, Rique!

Lutoupara livrar-se dele mas Rique era mais forte. Além disso, ela estava enfraquecida por aquela proximidade e por aquele contato tão íntimo. Conscientizou-se da lassidão que a envolveu e do irreprimível desejo de estar nos seus braços e de beijar-lhe os olhos cegos. Precisava urgentemente lutar contra as duas fraquezas que a dominavam, mesmo porque ele a puxava cada vez mais para perto, a ponto de ela sentir seu hálito e perceber o leve tremor de seus lábios.

— Talvez um beijo seu venha me adoçar um pouco a vida, não é? Súbita e brutalmente, ele encontrou sua boca e esmagou os lábios frementes de encontro aos dela, emudecendo o grito de protesto que lhe subira à garganta diante da insolência daquele beijo. Mas Rique continuava a beijá-la mais e mais, até fazê-la perder o fôlego. Depois,. com uma espécie de gargalhada sinistra, empurrou-a. Ela caiu para trás, olhando-o, consternada, e passando a mão sobre os lábios machucados.

— Agora você sabe o que a espera se teimar em ficar aqui.

Angie viu aqueles olhos, que apesar de cegos pareciam lançar chispas vindas diretamente do inferno… o inferno que ela escolhera partilhar com ele.

— Você não é o primeiro paciente difícil que me aparece pela frente! — afirmou ela, com bravura.

— Difícil? — Ele deu uma risada debochada. — Sou apenas difícil?

— Intratável e rebelde, se preferir — acrescentou.

— E você pretende me domesticar, enfermeira?

— Tigres não podem ser domesticados, mas podem ser domados.

— Com um chicote? — Aquela idéia pareceu diverti-lo. — O quadro de minha enfermeira, cavalgando-me e empunhando um chicote, parece-me muito tentador. Prefiro isto a ter uma mão consoladora me afagando a testa e a ouvir afirmações mentirosas de que um dia despertarei com o sol brilhando nos meus olhos. Prove que tem firmeza suficiente para enfrentar-me. Diga o que ninguém ainda teve coragem de dizer-me… diga que vou ficar no reino das trevas até o fim de meus dias.

De todo o coração, Angie gostaria de dizer-lhe que não ficaria nas trevas para sempre. Tal como os outros, queria afirmar-lhe que tudo era uma questão de tempo e que logo ele poderia livrar-se daquela bengala branca. No entanto, não podia transigir.

— Ainda não falei com o dr. Romaldo, portanto não conheço os detalhes do seu caso. Só sei que a fé e a esperança podem produzir milagres e que deixar-se arrastar para esse inferno que você criou não leva a nada. Existem coisas bem piores do que a cegueira.

— Concordo. A loucura, não é mesmo? O delírio que pode transformar um homem num animal. Por isso, há pouco, você me chamou de tigre.

— Chamei, mas não com essa intenção.

— “O rugido do tigre será ouvido… Ecoando entre as torres e as cúpulas…” — ele citou. “Algo soberbo, impetuoso, irresistível…”, ela completou mentalmente os versos da inspirada escritora Charlotte Bronté e que tão bem se adaptavam ao caso de Rique.

Ele resistiria a todos os esforços que ela pudesse fazer para ajudá-lo a conformar-se com a cegueira, embora tivesse coragem suficiente para lutar, se encontrasse uma motivação. Mas, como uma sombra traiçoeira, escondida num vão, pronta para manifestar-se, havia o aspecto mais apavorante do que sua noite eterna, sem lua.

Rique de Zaldo vivia pensando, aterrorizado, que algum fragmento de metal tivesse se alojado em seu cérebro, e que um dia isso pudesse levá-lo a loucura. Angie sabia que ele preferiria morrer se isso acontecesse, e sabia também que o amava o bastante para atender a esse desejo.

Quer dizer então que voltou para Bayaltar com a intenção de ajudar a reerguer-me?

Claro que não vou encorajá-lo a ficar chocando seus fantasmas, como Hamlet — assegurou ela, com firmeza.

— Se eu tiver vontade, você não tem nada com isso — resmungou — e como já disse, preferiria mil vezes que você voltasse a cuidar de fraldas, mamadeiras e penicos. Tudo o que quero é ser deixado em paz.

— Para poder vegetar à vontade? Nunca julguei você um desertor, Rique. Pensei que seu lema fosse que um homem que aceita um desafio, já pode se considerar vitorioso.

— Aquele que ousa demais, acaba perdendo a parada — respondeu ele tristemente, passando os dedos sobre as pestanas.

— Você não perdeu tudo — argumentou Angie. — Tem todos os outros sentidos e cabe a você fazer com que eles se desenvolvam a seu favor.

— Você sabe que não é só a cegueira. — A voz tornou-se opressiva, como se estivesse sob forte tensão.

— Eu sei, Rique. Posso imaginar como se sente.

— Pode mesmo? Você é jovem e saudável e não passa as noites acordada, contando as horas. Não fica deitada no escuro, esperando que o equilíbrio de sua mente a abandone de uma hora para outra.

— Amigo — ela segurou a mão dele —, você não está sozinho. Pode me chamar a qualquer hora do dia ou da noite e eu estarei a seu lado. Esta mão é toda sua e pode apertá-la quando e quanto quiser.

— Só sua mão? — perguntou, caçoando, mas depois completou seriamente: — Poupe-me de sua piedade!

— Não estou com pena de você.

— Pode acreditar que está, Angie.

— Você foi sempre muito orgulhoso, Rique.

— É meu sangue espanhol. Olhe, há uma garrafa e um copo na mesinha ao lado. Poderia me servir uma dose?

Angie pegou a garrafa e examinou o rótulo. Era um conhaque espanhol fortíssimo. Rique ouviu-a despejando o líquido.

— Eu disse uma dose de bebida e não uma colher de chá. Isso não é remédio.

— Também acho. A bebida não é remédio que ajude a resolver os problemas de ninguém.

Ela passou-lhe o copo e observou a maneira ansiosa como ele o segurou.

— Pode não resolver os problemas, mas me auxilia, ajuda a conviver com eles. Salud

— Agora tenho de desfazer as malas. Encontro você mais tarde.

— Sem dúvida. — Ele tragou o conhaque sofregamente. — Não vou a parte alguma, exceto, talvez, para o inferno.

— Rique…

— Não me repreenda, Angie. Vá desfazer as malas e guardar suas tralhas.

Ela deu um suspiro conformado e o deixou imerso na semi-obscuridade do jardim de inverno.

 

Angie deixou Rique sozinho, com sua revolta e seu conhaque, e foi em direção ao hall. Por um momento parou, com a fisionomia sombria e o olhar fixo sobre um púcaro de cobre, sem vê-lo.

Podia sentir um estremecimento interno motivado pelo reencontro com Rique, pelo diálogo agressivo e pelo beijo a que tivera que resistir com todas as suas forças. Por que resistira, se o amava tanto? Com tristeza, encontrou a resposta: ele não a beijara porque gostava dela ou porque a desejava. Apenas tentara alarmá-la para que desistisse e voltasse para Londres. Mas Rique não sabia que ela era tão obstinada quanto ele… e, seguramente, não tinha a mínima idéia de quanto o amava. O amor estava alojado ali, em seu coração, dolorosamente vivo e real.

— Posso mostrar onde é seu quarto de dormir?

Angie teve um visível sobressalto e voltou-se para ver quem estava falando com ela. Logo reconheceu a jovem, vestida elegantemente com uma blusa finíssima de renda e uma saia longa de veludo verde-musgo. Junto ao pescoço, um camafeu de ônix contrastava com sua pele morena pálida como uma pétala de flor de lótus. As pálpebras eram pesadamente sombreadas e havia reflexos verdes em seus olhos quando fitou Angie.

Isabel Ferrandos era uma parente distante dos de Zaldo e fora adotada pela família quando criança. Era considerada quase uma irmã de Maya e dos rapazes, mas Angie sempre suspeitara de que ela almejava um parentesco mais estreito com Rique de Zaldo. Mas isso fora nos velhos tempos, antes de Rique ser ferido e ter perdido a visão. Angie sabia por instinto que Isabel tinha um temperamento egoísta e não era do tipo de querer um marido cego e mutilado que necessitasse de sua assistência permanente.

— Esqueceu-se de mim? — O sorriso de Isabel não podia ser considerado amistoso. — Pois eu me lembro perfeitamente de você. Seus cabelos ainda são claros, mas, naturalmente, agora você ajuda a manter a cor com tintura.

— Felizmente não preciso me preocupar com esse tipo de futilidade.

Por sua vez, o sorriso de Angie tinha uma ponta de ironia, quando ela analisou o elaborado penteado da outra e os cabelos visivelmente tingidos de acaju.

— Quer dizer que virou enfermeira?

Os brincos de pedraria verde cintilavam nas orelhas de Isabel. Ela parecia um figurino ambulante pronta para participar do jantar que era sempre a rigor, na imensa sala, cuja mesa oval era coberta por toalhas de renda, pratarias e cristais caros.

— Estou surpreendida que tenha tido nervos e estômago para dedicar-se à enfermagem. — Isabel continuou: — Você sempre me pareceu uma criatura muito tímida e frágil. pensar que agora, justamente você, vai tomar conta de Rique. Chegou a vê-lo?

Angie confirmou. Mas ela não estava com vontade de discutir os problemas de Rique com Isabel. Voltou-se na direção da escadaria.

— Preciso subir para desfazer as malas e preparar-me para o jantar. Sabe se Maya me reservou o antigo quarto?

— Não. Ela convenceu don Carlos de que seria melhor você ficar num quarto mais próximo ao de Rique, na eventualidade de ele precisar de você durante a noite. Seu aposento vai ser aquele pegado à suíte dele. Espero que tanta proximidade não a perturbe se é que ele ainda a deixa encabulada.

— Seria um absurdo uma enfermeira ser acanhada.

Angie encaminhou-se para a escadaria de mogno. Podia sentir Isabel subindo junto a seus calcanhares e ouvir o roçar da saia de veludo pelos degraus.

Sei o caminho, se é que Rique ainda dorme no apartamento de canto, com vista para o mar.

Quando você esteve no quarto de Rique? — A pergunta de Isabel era meio maliciosa.

— Todos nós estivemos, nos tempos de escola, quando eu vinha passar as férias aqui. Entrar e sair de quartos era normal e inocente naquela época.

— Sem dúvida você deve ter pensado isso. Talvez nunca tenha notado que Rique não era um inexperiente e inofensivo colegial. E por falar nisso, você disse que encontrou com ele. Qual foi a impressão que teve?

Angie parou no alto da escada e pensou: Na verdade, eu nunca considerei Rique “inexperiente e inofensivo”. Ele sempre lhe dera a impressão de ser um homem seguro de si, que sabia o que queria.

— Rique passou por um verdadeiro inferno e pretendo dar o melhor de mim para ajudá-lo a recuperar-se — disse Angie, mantendo suas emoções sob rédeas. — Sei que ele se tornou um homem amargo e intratável, mas fui treinada para esse tipo de coisas. Ele não consegue mais intimidar-me ou deixar-me nervosa.

— Achei curioso que você se dispusesse tão depressa a voltar para Bayaltar para tratar de Rique. Foram razões profissionais que a fizeram vir ou algum motivo mais pessoal? — insistiu ela.

— Vim porque Maya e o pai pediram-me. Don Carlos foi sempre muito amável para comigo e eu queria retribuir sua hospitalidade.

Angie seguiu adiante e virou pelo corredor da galeria com aquela presteza própria das enfermeiras atarefadas. Mas Isabel não se deu por vencida e seguiu-a até o quarto onde Angie iria dormir e que era separado do de Rique apenas por uma porta. Assim, ela poderia ouvi-lo caso, durante a noite, ele precisasse de algum calmante ou analgésico. Tinham-lhe dito que Rique ainda sentia muitas dores de cabeça.

Angie abriu a porta, acendeu as luzes e aspirou o refrescante odor de lavanda que rescendia das roupas de cama feitas de linho, imaculadamente limpas. Era um quarto encantador, de estilo antigo, com tapetes coloridos espalhados pelo soalho de tábuas largas, e uma cama com dossel e cortinados de renda.

Angie deu um suspiro de pura satisfação. Estava finalmente na mesma casa que Rique e apesar das dificuldades que a esperavam, não trocaria esse momento por nenhum possível convite que um milionário charmoso pudesse fazer-lhe para passar a vida num paraíso tropical, em meio ao luxo e ao lazer.

Isabel encostou-se a um dos pilares da cama e ficou observando Angie desfazer as malas. Tinha arrumado tudo às pressas e trouxera poucas roupas, suficientes apenas para suas necessidades mais imediatas. Na ilha havia várias lojas e ela sempre poderia comprar alguma peça adicional para completar seu guarda-roupa. Sentiu o olhar de Isabel sobre ela,; quando começou a tirar suas “tralhas” como Rique as havia denominado — da mala e a pendurá-las no armário.

— A maior parte do tempo você vai usar seu uniforme, não é? — comentou Isabel, enquanto passava levemente os dedos, com unhas pintadas de vermelho, sobre a pelerine de enfermeira que Angie depositara sobre a cama, ao lado de um vestido azul-marinho.

— A maior parte do tempo estarei em serviço.

— Que conscienciosa! Sempre pensei que as enfermeiras passassem a vida marcando encontros amorosos com os médicos ou com os pacientes que se interessassem por elas.

— Esse tipo de coisa acontece mais nos seriados de televisão do que na vida real.

Angie colocou alguns frascos de água de colônia e perfumes sobre a penteadeira.

— Na verdade, a vida das enfermeiras não é muito movimentada; em geral, sobra muito pouco tempo para romances com aqueles médicos altos, morenos e charmosos que só existem nas fotonovelas.

— Rique não é médico, mas é alto, moreno e charmoso — murmurou Isabel, com os olhos pregados em Angie. — Você nunca notou?

— Claro. — Angie procurou ser bem natural — Ele puxou muito ao pai, não acha? Com exceção dos olhos… refiro-me à cor e não à presente condição.

— Não é uma condição permanente, é?

Isabel fez a pergunta, admirando suas próprias mãos, finas e longas, que faziam crer que a única preocupação em sua vida era massageá-las com cremes e loções.

— Ainda não discuti o caso de Rique com o dr. Romaldo.

Angie colocou a escova e o pente sobre a penteadeira enfeitada com babados de renda e relanceou o olhar para o espelho, notando que seu rosto estava tenso e abatido — resultado de sua preocupação com Rique.

Gostaria que Isabel fosse embora, mas a jovem era persistente e estava curiosa para conhecer as razões que tinham levado Angie de volta a Bayaltar.

— Vocês, da classe médica, são sempre tão discretos assim? — Os olhos de gato lançaram chíspas. — Don Carlos deve ter levado isto em consideração quando a contratou, pois não pense que foi Rique quem a chamou!

— É a última coisa que me passaria pela cabeça.

Angie suspendeu uma mecha de cabelos que teimava em cair-lhe sobre à testa.

— Por quê? Rique não gostou de sua vinda?

— Atualmente, Rique está de mal com o mundo.

— Quer dizer que já andou mostrando as garras a você?

Isabel sorriu, como se ficasse realmente feliz em imaginar Rique de

Zaldo sendo agressivo e sarcástico para com Angie. Mas ela nem se abalou. Sabia, de longa data, que Isabel era ciumenta e possessiva.

— Eu gostaria de ser enfermeira. — Isabel olhou em volta de todo quarto e seu olhar parou na porta de comunicação com o apartamento de Rique. — Don Carlos não aprovaria que eu trabalhasse fora, assim como não permite que Maya o faça. Ele tem muito dinheiro e uma posição de destaque como governador, além do fato de sentir prazer em nos ver circulando pela casa. Uma das qualidades dos homens latinos é serem assim protetores em relação às mulheres. Por ser também latina, não me oponho a essa atitude. Mas as inglesas parece que não gostam muito de ser protegidas. Na minha opinião, os homens são mais fortes, mais capazes, por que não deverão comandar? Acho estúpido as mulheres não desejarem proteção. Você é desse tipo, Angie? É do tipo que pensa que não precisa de um homem que tome conta de você?

— Sou do tipo que não se considera uma retardada. — Angie fechou a mala e guardou-a no maleiro. — Acredito que um homem e uma mulher precisam ser companheiros em todos os sentidos. Um relacionamento sem senhores ou escravos.

— Então, você não gostaria de ser dominada por alguém, vamos dizer, assim como don Carlos?

— Don Carlos é um gentleman. Mas nem ele poderia me convencer de que o melhor para uma mulher é ser resguardada sob uma redoma como se fosse uma flor exótica.

— Jura? Você parece tão segura que estou começando a acreditar que está dizendo a verdade. Pois minha convicção é que uma mulher, seja ela latina ou não, tem sempre vontade, como direi, de sentir-se dominada por] um homem. Acredito que todas as mulheres, que são mulheres de fato, sintam esse desejo de serem possuídas com exclusividade. E os latinos são mestres nisso!

— Tenho certeza que são! — disse Angie secamente.

— Você ainda é virgem, não é, Angie?

A pergunta foi inesperada e, sem querer, ela corou. Sentiu-se mortificada pelo olhar debochado de Isabel, que devido aos costumes latinos, deveria, ela sim, corar e ser ainda virgem. Angie não podia negar que havia conservado sua integridade. Teria se mantido virgem por causa de Rique? Porque ele sempre estivera presente em sua mente e em seu coração? Certamente haviam surgido oportunidades e suas colegas tinham sido mais condescendentes com os eventuais namorados.

Isabel pôs-se a rir ao observar, com seus olhos de lince, as reações de Angie, que ficara visivelmente perturbada.

— Você sempre foi uma garota diferente e vejo que não mudou muito, apesar do aspecto externo. Bem que tive a intuição de que você voltou para Bayaltar só para ficar perto de Rique, mesmo que ele não ligue a mínima para você.

A moça espanhola avançou para os lados de Angie que precisou fazer força para não recuar, tão ameaçadora era a atitude da outra.

— Rique pode ser cego, mas tem boa memória. Portanto é bom que se cuide, para não deixar transparecer o que sente por ele.

Angie lutou consigo mesma para sustentar o olhar penetrante de Isabel, e com grande dificuldade tentou manter a voz serena quando disse:

— Preocupo-me com ele tanto quanto Maya e o pai se preocupam. Ele é filho de don Carlos, que me abriu as portas desta casa quando eu era apenas uma menina sem parentes para visitar durante as férias. Sou muito grata à bondade dele e é por isso que estou aqui, Isabel, e apreciaria muito que guardasse para si mesma essas opiniões ridículas. Se disser essas coisas a Rique, você estará sendo cruel.

— Cruel? — repetiu ela. — Por que você diz isso?

— Porque Rique acredita que se tornou uma figura digna de pena e eu já vou ter um trabalho terrível para ganhar seu respeito e confiança sem que ninguém interfira, jogando-o contra mim. Ele precisa do auxílio competente e efetivo que eu, na minha profissão, posso dar-lhe. Portanto vou pedir que você pare com essas insinuações e indiretas.

— Se isso a deixa feliz, Angie, está bem.

Isabel escancarou a porta que dava para o corredor e por cima do ombro ainda lhe lançou uma frase maldosa, mas num tom falsamente suave.

— Eu acho que você está apaixonada por ele. Que outro motivo a faria voar de Londres para estar ao lado dele nesta hora de necessidade? — Isabel ficou um instante parada, na soleira da porta, e insolentemente completou: — Pois eu vou contar o que Rique necessita. Não é de uma enfermeira com seu uniforme engomado, para segurar-lhe a mão e tranqüilizá-lo. Você vai dormir no quarto ao lado, portanto não se surpreenda se uma noite dessas ele vier demonstrar quais são suas verdadeiras necessidades. Você é uma enfermeira experiente apesar de querer se mostrar um anjinho inocente aos meus olhos. O que ele quer mesmo é alguém para abraçá-lo no escuro e que o faça parar de pensar em seus dissabores. O sexo tem um grande poder, Angie. Pode bloquear a mente para as duras realidades da vida e mantê-las afastadas. Sabe disso, não sabe?

— E você, sabe? — vingou-se Angie.

— Iria estranhar se eu não soubesse. — Isabel deu uma risadinha de exímia conhecedora, escarnecendo dos ignorantes. — Você só vinha passar as férias com a família de Rique. Eu vivi aqui a maior parte de minha vida e cresci ao lado dele. Pode imaginar o resto. Como você sabe, Rique foi sempre muito visado pelo sexo oposto. As mulheres até se viravam na rua para olhá-lo e nunca puseram obstáculos aos seus avanços. Houve exceções, é claro: aquelas mulheres por quem ele não se sentiu atraído. Possivelmente, você pode ser enquadrada nesta categoria, minha cara Angie. Os homens latinos gostam de olhares quentes e não gelados como o seu. Além disso, você parece estar sempre avisando: “Não me toque”. Sabia desse seu predicado?

Angie não quis perder tempo respondendo e Isabel, erguendo as sobrancelhas, desapareceu pelo corredor, deixando suas palavras repercutindo nos ouvidos de Angie. O raciocínio da outra sobre as noites escuras e solitárias era bastante lógico, mas, por experiência própria, Angie sabia que Rique nunca tomaria qualquer liberdade com ela, a não ser o recente atrevimento que tinha por finalidade única tentar assustá-la e fazê-la desistir de sua missão.

Angie estava resolvida. Nada a faria abandonar aquela difícil tarefa. Nem a implicância de Rique, nem as maldosas insinuações de Isabel de que ela e Rique haviam sido mais íntimos do que se podia esperar de dois irmãos.

Pensando nisso, Angie sentiu uma punhalada no peito. Se fosse verdade, ela teria de conviver com essa realidade. Entretanto, se fosse verdade mesmo, ela teria suspeitado algo quando ainda era adolescente. No mínimo, Isabel não gostara de saber que Angie iria dormir tão próxima de Rique.

Suspirou. Pobre Rique! As noites deveriam parecer sem fim para ele, principalmente quando estivesse com insônia. Vivia vinte e quatro horas do dia na escuridão, sozinho consigo mesmo, olhando para dentro. Certamente haveria momentos que deveria sentir vontade de tocar, abraçar, beijar e amar alguém, até que todos aqueles temores torturantes se esvaíssem como a espuma do mar que se dissolve na areia.

Ainda angustiada por esses pensamentos, Angie foi até o banheiro — o salón de baño — como era chamado naquela casa, uma descrição muito exagerada, que sempre a divertira muito. No idioma espanhol tudo era grandioso, como se quisesse traduzir a grandiosidade de seus homens, como se a coragem e a audácia dos antigos conquistadores ainda circulassem nas veias de seus varões.

Fora essa impetuosidade que levara Rique a permanecer no exército, para engajar-se numa missão especial, após ter completado o serviço militar obrigatório e ter sido desligado com a patente de tenente. Ela gostaria de tê-lo visto com seu uniforme de oficial, alto e garboso, marchando altivamente de cabeça erguida. Agora, ele precisava andar cabisbaixo, às apalpadelas, e essa idéia trouxe a Angie uma dor imensa.

Com um gesto de raiva, abriu a torneira de água quente para encher a banheira. Como o destino era cruel! Ele parecia um lobo faminto, sempre à espreita, pronto para saltar na garganta das pessoas, matando-lhes os sonhos e as esperanças!

A água escorria para dentro daquela banheira tamanho gigante mais apropriada para acomodar as longas pernas de Rique do que o corpo dela. Tapetinhos felpudos cobriam o mosaico do pavimento e imensas toalhas macias e coloridas estavam dependuradas nos cabides de metal. O grande espelho da parede estava embaciado com o vapor, quando Angie tirou a roupa e entrou naquela água convidativa, onde tinha colocado punhados de sais de banho.

Afundou-se na banheira, apoiando comodamente a cabeça numa almofadinha inflável de borracha. Naquela posição, seu braço não alcançaria a torneira, mas os longos braços morenos de Rique não teriam dificuldade em alcançá-la. A figura dele não lhe saía da mente e ela deu asas à imaginação. Lembrou-se dos músculos cuja força sentira ao ser abraçada e beijada até seus lábios arderem. Naquela proximidade, sentira todo o vigor e o anseio daquele corpo viril, e a selvageria que dele emanava no seu desejo de machucar e castigar quem pudesse ver a luz do sol e a beleza da vida.

As lágrimas que retivera por tanto tempo correram livremente, inundando-lhe as faces. Permitiu-se chorar, sabendo que aquele desabafo lhe restituiria um pouco da calma e do equilíbrio necessários para enfrentar sua dura tarefa. Por vários e torturantes minutos, as lágrimas quentes e sofridas brotaram seguidamente. Não queria aparecer à mesa de jantar com os olhos inchados, pois o olhar agudo de Isabel logo perceberia que ela havia chorado por Rique.

Vamos parar com isso, sua boba!, disse para si mesma. Ela queria guardar consigo os sentimentos que tinha por Rique e não poderia expor-se à maledicência de Isabel.

Quando era mais jovem, a moça espanhola sempre fora uma criadora de casos. Maya lhe confidenciara como ela acabara com sua amizade com um músico que tocava e cantava no Castelo de Madrigal, um suntuoso hotel turístico da ilha. Isabel sempre fora inclinada a fazer mexericos entre don Carlos e os filhos, e Angie não esquecera como ela era mandona com Maya, quando esta era criança, nem da mania que tinha de apoderar-se dos pertences dela, jamais os devolvendo. Era um traço de seu caráter que poderia se estender aos homens, agora que estavam todos adultos.

Angie saiu da banheira e envolveu-se numa enorme toalha felpuda. Limpou o espelho embaciado e examinou o rosto para ver se não tinham ficado sinais de pranto. Um pouco de maquilagem esconderia os ligeiros traços da crise de choro.

Amarrou o cinto do roupão e saiu para o corredor, mas logo deu um grito de susto quando colidiu com uma figura alta, com uma bengala branca estendida à sua frente.

— Rique! — Encolheu-se junto à parede — Eu… eu não vi você!

— Logo a mim vem dizer isto! — Tocou-a com a ponta da bengala. — Estou sentindo o cheiro de meus sais de banho, portanto suponho que você os andou usando.

— Não sabia que eram seus! — Sua pele estava arrepiada com aquela proximidade. — Vi o vidro na prateleira e peguei-o.

— Já está se sentindo à vontade, como se estivesse em sua casa? — Os lábios de Rique dobraram-se num trejeito de desprezo, suas sobrancelhas escuras juntaram-se, formando uma profunda ruga. Seus olhos transmitiam uma crítica severa, como se ele pudesse realmente vê-la. seu olhar era tão perturbador que Angie fechou mais a frente do penhoar, num gesto involuntário e absurdo.

— Ouvi um leve ruído de tecido sobre a pele. Você acabou de tomar banho e está só de roupão, e deve estar corando. Infelizmente não posso enxergar, mas consigo imaginar. Está com os cabelos úmidos e acabou de fechar mais o decote do roupão. Deve ser uma garota muito casta, para sentir necessidade de se resguardar diante de um cego!

— É que eu… — Ficou ainda mais vermelha. — Eu ainda não me acostumei com a idéia de que você…

— De que sou cego como um morcego? — Ele a interrompeu. — Masatravés do nariz, dos ouvidos e na memória ainda me lembro de como são as mulheres. De que cor é o roupão?

— É rosa — disse ela.

— E tem aquelas mangas soltas, do tipo oriental, que mostram os braços se você os levanta?

— Sim, tem mangas largas.

Angie estava magnetizada por aquele rosto. Uma parte de seu ser quis retrair-se quando ele se aproximou. Viu a mão estender-se, às apalpadelas, mas ficou quieta quando ele encontrou seu ombro.

Ficou muda e parada, sentindo que um demônio se apoderava dela à medida em que os toques progrediam. Algo nela pedia que Rique continuasse, exposta e sensível como estava, só com o roupão sobre o corpo nu e os cabelos em desarranjo. Cada nervo de seu corpo parecia senti-lo, perigoso e, ameaçador, apesar dos olhos cegos.

— Precisa concordar que isto não é justo — ele murmurou. — Você pode me enxergar, mas eu não posso ver você. A última vez que a vi, você era quase uma criança de sandálias e short de algodão.

— Rique, é melhor acabar logo com isto.

Angie nunca se sentira tão vulnerável em sua vida. sob o toque daqueles dedos longos e sensíveis que percorriam seu rosto, seu pescoço e baixavam até o decote do roupão, passando por cima do tecido e apalpando todas as curvas de seu corpo.

De repente, ele a empurrou de encontro à parede e sua respiração tornou-se ofegante quando lhe desnudou um ombro e pousou os lábios sobre aquela carne macia.

Oh, Deus! Na véspera da viagem ela ficara com insônia, imaginando o que sentiria se Rique de Zaldo um dia a estreitasse em seus braços… e naquele momento ela estava em seus braços, mas ele não murmurava as loucas palavras de amor que sonhara ouvir. Tudo o que estava acontecendo era somente a manifestação da sensualidade reprimida e exacerbada de Rique da qual ele procurava um alívio através daquele contato carnal.

Bem que Isabel dissera que aquilo poderia acontecer e, de repente, Angie sentiu-se vulgar.

— Já basta! — ela falou, arquejante. — Você vai longe demais com a desculpa de seu estado físico.

— Só Deus sabe até onde iria, se não fosse minha cegueira.

— O que quer dizer com isto?

Angie apertou mais o roupão contra o corpo, sentindo as pernas fracas e trêmulas.

— Posso entender por que me rejeita. É a segunda vez, não é? — Sua boca tinha um vinco de amargura. — Qual é a moça que quer ser beijada Por um homem que tem duas pedras opacas em lugar de olhos?

Rique! — O horror daquelas palavras a atingiu como se fossem, de fato, duas pedras pontiagudas. — Como pode dizer uma coisa destas?

Pelo menos isso para mim é muito claro! — Virou-se na direção das escadas, em vez de ir para o lado de sua suíte — Dios! Parece que perdi o sentido de direção. Pode me guiar até meu quarto, enfermeira?

Lógico que posso. Angie ergueu a bengala, que tinha caído no chão, e colocou sua mão sobre o braço de Rique para que ele a acompanhasse. Abriu a porta e automaticamente acendeu as luzes. O vinco da boca de Rique tornou-se mais acentuado quando ele ouviu o clique do interruptor.

— Não preciso de luz, a não ser que você fique comigo.

— Você vai ficar bem aqui, sozinho? Preciso me vestir para o jantar. Rique, por que você não desce também e janta em companhia de sua família?

— Prefiro jantar sozinho.

Ele começou a andar pelo quarto, onde os móveis estavam estrategicamente encostados nas paredes para evitar que ele desse topadas. A cama estava colocada entre as duas janelas onde as cortinas balançavam ao sabor da brisa noturna.

Angie sentiu o cheiro do mar e imaginou que, no silêncio da noite, ele deveria ficar ouvindo também o barulho.

— Não devia ficar longe das pessoas que o amam. Devia saber quanto sua família se aflige por você.

— Eles têm é pena de mim — disse secamente. — A maioria das pessoas, mesmo as bem intencionadas, tornam-se impacientes com os cegos e os deficientes físicos. A vida já é difícil e a tendência é desprezar tudo o que venha a ser entrave ou preocupação. Angie, você acabou de ter uma demonstração do quanto é maçante uma pessoa como eu. Não a culpo pela sua reação. Você está aqui porque meu pai quis que viesse, estamos entendidos? Só espero que não se arrependa de ter cedido a um impulso de gratidão, sentindo-se na obrigação de compensar as férias que passou aqui conosco. O tempo de escola já acabou. E eu não estou mais para brincadeiras.

— Não fale como um derrotista, Rique — ela pediu. — Sei que você passou e está passando por maus momentos e compreendo que nós que enxergamos não podemos calcular o quanto deve ser terrível não poder ver. Mas você ainda está em pleno vigor físico!

— Por quanto tempo? — Ele quis saber. — Quanto tempo leva para uma pessoa ficar louca? Você, que é enfermeira, pode me dizer, se tem coragem!

— Rique! — segurou-lhe o braço e sentiu os músculos tensos como cordas. — Você se fecha demais para com as pessoas e também lamenta-se demais. Você está vivo e tem de ficar de bem com a vida, nem que seja aos poucos. Por acaso, já saiu lá fora? Desde que chegou, já foi alguma vez até a cidade?

— Diabos! Não! — Ele tirou-lhe a mão do braço rudemente. — Não pretendo andar por aí, cambaleando por entre a multidão, empunhando uma bengala, com todo o mundo me olhando e comentando: — “Lá vai o pobre diabo! Sinto muito por ele, desde que não se aproxime!” Ah, sim, é isso o que dizem entre eles, Angie. Pensam que podemos contagiá-los.

— Não diga bobagens! — ela exclamou, com o peito apertado pela dor.

— Bobagens? — Sua expressão era assustadora. -— Quando toquei em você agora há pouco, você ficou tremendo como se eu fosse um leproso. Vá… vá vestir-se. Vá para o seu jantar. Se tivesse um pingo de bom senso, voltaria para a Inglaterra e viveria sua vida. Maya não tinha o direito de arrastá-la até aqui e obrigá-la a suportar a minha companhia. Sei bem o que sou. Sei qual é a minha aparência. Posso sentir minhas cicatrizes.

— Não são tão feias quanto pensa, Rique. Uma pequena cirurgia plástica fará maravilhas.

— E transformará a besta em príncipe encantado? — ele caçoou. — Apresse-se, menina, ou chegará atrasada para o jantar.

— Não sou uma menina, Rique.

— É assim que me lembro de você. Minha memória ainda funciona.

— Você já deve ter descoberto que estou bem crescidinha.

— Descobri o que me interessava descobrir, ou seja, que uma moça detesta ser tocada por um cego. Não me trate como um débil mental antes do tempo. É uma ordem, enfermeira.

— E você não se comporte como um prepotente — ela retrucou. — Acho isso odioso!

— Não ligo a mínima para o que você acha ou deixa de achar de mim! Não pense que andei lhe dando uns apertões porque sinto alguma coisa por você. Se quer saber, você nunca foi o meu tipo.

— Sei disso, Rique. Portanto não me trate como uma idiota. — Disse isso em tom rude, mas ficou aliviada porque ele não podia ver a decepção estampada em seus olhos. — Sei que sua única intenção era me fazer desistir do emprego, mesmo antes de começar. Mas não sou de desistir tão fácil. Você só quer ferir, morder como uma fera raivosa. Pois morda, mastigue, engula e faça bom proveito.

Ela conseguiu emudecê-lo por uns dois segundos antes que Rique desandasse numa risada sarcástica.

Muito bem! Parece que você cresceu mesmo, Angie Hart! Claro que cresci, Rique de Zaldo! Ou você pensava que eu ia chegar aqui, de olhos arregalados, carregando um baldinho e uma pazinha de brincar na areia?

— Acho que pensei. — Ele ficou ruminando as palavras dela. — É assim que você aparece nas brumas de minha memória: de short,descalça, com aquelas duas tranças penduradas… O que você fez com suas tranças?

— Cortei, porque sabia que você iria querer puxá-las de novo.

— É uma pena. Seriam úteis para eu me segurar nelas, quando me guiasse por aí.

— Isto se quiser ser guiado. Cabe a você aprender a se virar sozinho. Muitos cegos são incrivelmente auto-suficientes.

— Que ótimo para eles!

— Você é inteligente, Rique. Logo vai aprender a se adaptar a uma nova forma de vida.

— Minha antiga forma de vida era o que me convinha, nina mia. —.! Seu rosto estava rígido pela resistência que opunha às palavras de Angie.— Eu era um excelente soldado e pretendia continuar sendo. Pela Virgem Santíssima! Você pode ter crescido em altura, mas continua a ter as mesmas ilusões de uma colegial. Antes, eu possuía tudo o que queria e agora não tenho nada. Sinto como se aquela maldita bomba tivesse me atirado no limbo. E você vem com esses seus ditados como se fossem as 5 respostas a todos os meus problemas. Começar a viver novamente, você diz… De que jeito? Tecendo cestinhas?

Angie suspirou, sabendo que naquele momento não adiantava querer argumentar com ele. Rique precisava antes aprender a aceitá-la e a confiar nela como uma amiga. Isso levaria tempo.

— Você vai saber fazer coisas melhores — disse tranqüilamente. — Agora vou para o meu quarto. Você tem alguém que o ajude a barbear-se e a vestir-se?

— Sim. Juanito. Lembra dele? Sempre trabalhou para meu pai.

— Sim, eu me lembro. A propósito, não se esqueça das coisas que eu lhe disse.

Angie virou-lhe as costas e deixou-o lá, entregue a seus amargos pensamentos, convivendo com seus problemas e revoltando-se contra uma vida que considerava inútil e acabada.

Sentiu-se desafiada. Não podia permitir que alguém como Rique se transformasse num recluso. Batalharia por ele até o fim. Faria com que reagisse, mesmo arriscando a ser odiada por ele.

 

Angie estava dando os últimos retoques na maquilagem quando o gongo soou pela Residência, anunciando o jantar. Aquele som, tão familiar a seus ouvidos, projetou-a ao passado e ela recordou-se do ruído que os rapazes faziam nas escadarias, apostando corridas, para ver quem chegava primeiro à mesa. Don Carlos sempre os repreendia pela falta de classe e distinção, mas com sorriso sempre tolerante.

“Até parece que não comem há uma semana!”, costumava dizer. “E vocês, rapazes, têm o apetite de recrutas depois de uma marcha forçada!”, acrescentava.

Essas agradáveis lembranças fizeram Angie sorrir quando apertou o fecho do colar de pérolas que Carlos de Zaldo lhe dera de presente no último Natal que ela passara na ilha.

Alisou a longa saia do vestido, de corte simples, mas confeccionado com um belo tecido lilás que realçava a cor de sua pele e lhe dava o porte distinto que sua profissão requeria.

Já no corredor, relanceou o olhar para a porta do quarto ao lado, atestando pensar que Rique estava lá, jantando sozinho.

Mas era melhor que, naquela noite, o deixasse em paz. Talvez no dia seguinte ele estivesse de humor mais ameno para aceitá-la melhor. Por enquanto, estava ainda muito ressentido de ter de precisar de uma enfermeira e rebelava-se como uma criança no primeiro dia de escola.

Angie desceu pelas suntuosas escadarias até o hall, onde um homem alto e garboso, de cabelos prateados e finos bigodes escuros, parecia estar esperando por ela.

Era o respeitado governador geral da ilha, que havia transmitido ao filho seus traços autoritários. Só os olhos eram diferentes. Enquanto os do pai eram negros e vivos, os do filho tinham uma tonalidade agora ainda mais esmaecida pela cegueira.

A evidente feminilidade de Angie pareceu aquecer o coração do arrogante don Carlos e a antiga admiração voltou a iluminar sua severa fisionomia.

— Minha querida nina! —— Estendeu os dois braços na direção de Angie. — Que satisfação vê-la novamente! E como você ficou encantadora depois de moça. Minha casa é toda sua. Seja bem-vinda!

Quando aquelas mãos quentes seguraram as suas e as levaram para junto dos finos bigodes, Angie sentiu-se realmente bem-vinda.

— Estou feliz em revê-lo, señor. — Mas gostaria de estar aqui como visitante e não como enfermeira.

— Oh, sim. — Ele tornou-se sombrio. — Já viu meu filho, não é?

Que impressão teve?

— Que ele está se isolando, e isso é a pior coisa que poderia acontecer-lhe. Acho que minha primeira tarefa, don Carlos, será convencê-lo a sair de casa e a dar umas voltas pela ilha para que se habitue a seu novo mundo. Ele é muito orgulhoso e tem medo de provocar piedade e sentir o repúdio das pessoas. Mas não é rejeição que ele provoca. As pessoas têm é receio de ser mais um obstáculo em seu caminho, por isso se retraem.

— Vejo que andou meditando bastante sobre o assunto, minha querida.! — As mãos poderosas de don Carlos apertaram as suas. — Deve haver; uma saída para que ele torne a enxergar! Èu diria, sem querer fazer predições, que Rique é justamente a menina de meus olhos e eu não suportaria a desgraça de vê-lo cego para sempre.

— Se o caso dele não tiver cura, señor, isso tem de ser encarado] objetivamente — disse Angie, com ponderação. — O senhor deve ter conversado bastante com o cirurgião que o operou. Ele deu-lhe alguma esperança? O pai de Rique lançou um olhar perdido pelo hall e sacudiu a cabeça.

— Os médicos são exasperantes. Nunca se comprometem com uma resposta definitiva. O que me disseram é que Rique teve sorte por ainda estar vivo. Fui informado de que os estilhaços da bomba penetraram, em parte, no cérebro. Mas o cirurgião não estava seguro sobre as possíveis conseqüências. Todavia, permitiram-me trazê-lo de volta para casa, desde que eu providenciasse uma enfermeira que cuidasse dele. Maya logo sugeriu você, e foi muita sorte nossa que pudesse ter vindo. Estou muito grato a você, Angie. Foi bondade de sua parte vir ajudar os velhos amigos num momento de necessidade como este.

— Os amigos são para isso, señor. — Sorriu timidamente, lutando contra as lágrimas que teimavam em reaparecer. — Vou fazer o melhor possível para ajudar Rique a adaptar-se à cegueira.

— Dios! — Aquele rosto másculo estava transtornado pela dor. — Por que foi acontecer uma coisa destas a meü filho? Meu menino lutou bravamente em várias batalhas e chegou a receber uma condecoração por bravura. Mas isto… isto com que tem de lutar agora, isto o abateu e o derrotou, Angie. As coisas que ele tanto apreciava eram tão materiais, tão físicas! Você sabe que ele era apelidado el capitán? Como poderá agora fazer as coisas de que tanto gostava, como nadar?

— Ele está perfeitamente apto para nadar — disse Angie entusiasticamente. — O mar não tem os obstáculos da vida comunitária, como ruas cheias de trânsito e pessoas atribuladas com negócios. Nadar seria muito bom para ele, señor. E seria um progresso, não acha?

— Não tínhamos pensado nisso. — Don Carlos sorriu, mas seu sorriso tinha uma ponta de tristeza. — Sim, minha menina, seria alguma coisa, mas não seria tudo. Sempre tive muitas ambições para meu primogênito, Angie, e esse deve ter sido o meu grande pecado. O pecado do orgulho!

— O senhor pode orgulhar-se de todos os seus filhos!

— Sim, mas Rique chegou primeiro e ele era tudo o que um homem espera de um filho. Tinha todas as qualidades para retransmitir à sua descendência: o arrojo, a coragem e a impavidez que levam os espanhóis a enfrentar os touros na arena. Eu era muito apegado ao irmão de Rique, mas ele agora pertence ao mundo artístico. Apesar de nunca ter interferido na vida de meus filhos, devo confessar que achei estranho que ele tenha escolhido a profissão de cineasta.

— Mas Sebastian revelou-se um grande diretor de cinema e é muito conceituado na Inglaterra. De minha parte, adoro cinema, e certamente há bem menos crueldade na produção de um filme do que numa tourada.

— Ah, vocês, britânicos, odeiam touradas! — Uma fileira de dentes muito brancos apareceu sob os bigodes escuros, num sorriso de zombaria que lembrava por demais o de Rique. — No seu país ainda caçam cervos? O que você me diz disso, hein?

— Abomino que os matem. — Os olhos azul-esverdeados refletiam toda a revolta que ela sentia por aquele esporte assassino. — Este mundo é cruel, difícil de ser aceito pelas pessoas que têm sensibilidade, e só] espero que aqueles que causam sofrimento a quem quer que seja, um dia encontrem o próprio inferno que criaram.

— Maya e eu estávamos certos quando chamamos você — disse dom Carlos. — Você é un angelito, um anjinho, como os espanhóis costumam chamar as pessoas de bom coração. Mas, por que estou explicando isto?! Você conhece bem nosso idioma e também estudou num colégio católico, como meus filhos. Continua a seguir a doutrina?

— Não totalmente — confessou Angie. — A enfermagem é muito absorvente, principalmente quando se trabalha num hospital. Só espero que minha profissão compense minhas falhas quando falto à missa ou deixo de me confessar.

— Tenho certeza de que você tem bem poucos pecados para confessar! — disse don Carlos com bom humor.

— Assim espero, señor. Mas não acho que vivo em função de merecer um nome. Não quero parecer pretensiosa.

— Acredito que Rique também não gostaria, concorda?

— Plenamente — afirmou Angie. Por alguns instantes o pai de Rique a deteve, como se estivesse admirando sua juventude e fragilidade, tão contrastante com a virilidade latina dele próprio.

— Permita que lhe mostre uma coisa.

Ele a levou pela mão até uma tapeçaria colorida, suspensa no fundo do hall. Representava as figuras mitológicas do dragão e do unicórnio junto duma alva jovem amarrada a uma árvore, tendo uma coroa de cachos de uva em sua cabeleira loira.

— Comprei esta linda peça há um ano. — Don Carlos fixou o olhar sobre a figura da donzela. — Sua inocência está sendo desafiada. É uma mulher dividida entre o desejo e a pureza. O dragão simboliza o desejo, 1 unicórnio o sonho de amor inatingível. Comprei a tapeçaria pelo tema por achar que se destacaria bastante neste lugar. O que você acha?

— É fascinante, señor., Angie olhou-o de soslaio, imaginando se ele suspeitava que fora o coração que a levara a Bayaltar. Don Carlos era um homem muito perspicaz. Qual seria seu objetivo ao mostrar-lhe a tapeçaria? Uma indireta para fazê-la compreender que Rique era inalcançável? Don Carlos era espanhol até a raiz dos cabelos e um homem riquíssimo. Angie não duvidava de que ele pretendesse casar seu primogênito com uma moça latina, do mesmo nível social. Talvez, já tivesse pensado em alguém… talvez fosse a sensual Isabel, que ele tinha educado à maneira dele desde criança, a escolhida para “ser a futura dona daquela casa, a que ocuparia o lugar de dona Francisca, irmã viúva de don Carlos. Podia até ser que, vendo o futuro incerto de Rique, o pai quisesse apressar o casamento, assim, se as conseqüências trágicas do ferimento se manifestassem, ele poderia contar com um neto, no caso de vir a perder seu filho.

— Venha, você deve estar com fome, com toda movimentação da viagem.

Don Carlos escoltou Angie até o lindo salão de jantar que pouco mudara desde a última vez que ela tinha estado ali. As imensas janelas em arco eram adornadas com belas cortinas de veludo, drapeadas, e a mobília escura, de aspecto imponente, era tão bem envernizada que chegava a refletir as luzes das arandelas. A mesa, impecavelmente posta, exibia uma rica toalha de renda e um centro de gardênias.

O coração de Angie ficou pequeno de tristeza ao ver a cadeira onde Rique costumava sentar-se. Don Carlos percebeu e explicou:

— Rique é um homem feito. Não posso dar-lhe ordens, como se fosse uma criança, para que se sente à mesa conosco. Fico mortificado, mas ele prefere encerrar-se no quarto, longe de nós.

— Rique sempre foi independente. — Fora dona Francisca quem falara, depois de ter feito uma pomposa mesura a Angie, com sua cabeça majestosamente penteada. Era uma mulher muito compenetrada da posição do irmão e que levava muito a sério as etiquetas sociais. — Já lidou com algum paciente igual a Rique, enfermeira Hart?

Angie sentiu um calafrio diante do tom de voz de dona Francisca. Era como se ela fizesse questão de colocar Angie em seu devido lugar. Como se não achasse conveniente que a enfermeira do sobrinho se sentasse à mesa, junto com a família.

— Não. — Angie abriu o guardanapo de linho e o apoiou no colo. — Não como o sr. Rique. Ele não é um estranho como os outros e por isso não posso agir impessoalmente com relação a ele. Sem querer, ele sempre me volta à memória como era antigamente.

Acha que meu sobrinho mudou muito?

Claro que mudou! — Foi Maya quem respondeu, olhando ressentida para a tia. — Se a senhora tivesse perdido a visão, certamente não seria uma pessoa amável e gentil. Dona Francisca empertigou-se toda, esticando o pescoço onde pendia um camafeu com o retrato do falecido marido. Seu vestido púrpura era confeccionado com uma seda cara, e seus dedos rebrilhavam, cobertos de anéis de brilhantes que atestavam sua riqueza. Morava na Residência, mas não como dependente. Tinha seu apartamento completo numa das alas da mansão, mobiliado com os móveis que trouxera da sua casa em Madri. Era o tipo da mulher sem filhos que se mostra muito severa para com os jovens.

— Rique escolheu a carreira militar, Maya, sabendo dos riscos que ela representa. Não teria se exposto assim, se tivesse aceito o oferecimento do meu finado marido para ser advogado em seu escritório. Carlos há de concordar comigo que Rique é inteligentíssimo e seria muito habilidoso na carreira jurídica. Está no nosso sangue, mas O espírito de luta também está no nosso sangue, hermana — interrompeu o irmão.

— E veja o resultado! Tão moço e já cego, cheio de cicatrizes e transformado num eremita! Se fosse meu filho…

— Acontece que ele é meu filho — disse don Carlos. — E eu me orgulho muito dele. Cumpriu seu dever para com a nação e tenho muitasesperanças de que se recupere totalmente.

— Rezo muito para que isso aconteça, todos os dias peço a la Virgem que lhe conceda um milagro. Ele é seu herdeiro, Carlos, e como tal devia ter pensado, antes de arriscar-se daquele modo só para conseguir uma condecoração.

— Basta! — Don Carlos lançou à irmã um olhar de advertência. — O que está feito, está feito. Foi o destino. Vamos jantar!

— Como você disse, irmão, foi o destino. Mas de qualquer forma, seria mais cortês da parte de Rique. fazer um esforço para sentar-se; conosco à mesa. Saberíamos perfeitamente desculpar seus modos desastrados.

— Angie precisa agradá-lo para que ele se resolva a nos fazer companhia — disse Isabel, do outro lado da mesa. — Você acha que vai poder manejá-lo? Ele é muito independente e às vezes pode ser tão obstinado quanto um touro. Você tem pulso bastante firme, Angie?

— Na Inglaterra costuma-se dizer que antes de correr precisamos aprender a andar — replicou Angie. — Meu paciente é cego e por agora está vivendo num mundo completamente diferente do nosso. Um mundo de sons e odores que ele precisa começar a conhecer, e também de obstáculos que lhe entravam os passos. Se quiser entender o mundo de Rique, sugiro que ponha uma venda nos olhos e procure movimentar-em seu próprio quarto. Será uma experiência chocante e aterradora. Isabel olhou para Angie com ódio e quis atacá-la:

— Noto que tem pensado muito nos problemas de Rique. Por acaso, também andou colocando uma venda nos olhos?

— Sim — respondeu Angie com simplicidade. — Procurei manter-me em total escuridão por muitas horas. Mas sabia que a qualquer momento que eu quisesse, poderia tirar a venda. Com Rique é diferente. Ele tem de se conscientizar de que a luz apagou-se para sempre. E sendo ele um homem ativo e cheio de energia, a adaptação é muito penosa.

— Acho que se eu fosse Rique viveria escondida — disse Maya, muito chocada.

— Pois eu não vou encorajá-lo a esconder-se — completou Angie suavemente. — Ele precisa ser estimulado a aceitar a cegueira como se ela fosse um desafio, uma batalha a vencer. Rique seguiu a carreira militar justamente porque o exército lhe oferecia essas duas coisas. Desde que ele aceite que a escuridão pode ser conquistada, como se fosse um inimigo, ele a conquistará.

— Você acredita que ele vai lutar, Angie? — Lágrimas tremeluziam nos olhos de Maya. — Ah, como eu adorava vê-lo de uniforme! Assentava-lhe tão bem! Ainda me lembro da última vez em que esteve aqui de licença e fomos jantar no Castillo de Madrigal, na noite em que o apresentei a Roddy…

Parou de súbito e ficou olhando o prato de sopa. Seus lábios tremeram e Angie viu quando uma lágrima rolou pela sua face.

— Não posso suportar isto! — Maya estava emocionada. — A gente está tão feliz e, de repente, aparece uma nuvem negra no nosso céu e tudo fica tenebroso. Ando sempre apreensiva, esperando qual vai ser nossa próxima desgraça. Até parece uma maldição!

— Chega! — Don Carlos bateu o punho na mesa, fazendo tilintar os cristais. — Proíbo você de falar deste modo! Vamos, Maya, coma e procure afastar esses pensamentos pessimistas de sua cabeça. Esqueça aquele guitarrista. Ele não é homem para você. Já disse isso várias vezes, e você tem de obedecer-me.

Você fala comigo como se eu fosse uma criança! — protestou ela.

— Já lhe dei ordens para esquecê-lo — don Carlos insistiu. O pai de Maya estava intransigente. — Somos católicos praticantes e sempre Vivemos dentro da doutrina da Igreja, portanto repito, minha jovem, não permiitirei qualquer tipo de relacionamento com um homem divorciado.

— Você nunca teria sabido que ele é divorciado se Isabel não tivesse lhe contado — replicou Maya, com rancor. — Ela adora fazer mexericos.

— Pois eu gostei que Isabel tivesse o bom senso de contar-me.

Os olhos de don Carlos faiscaram através das gardênias, fitando a filha, e Angie notou novamente como Rique era parecido com ele. Não só no físico, mas também na arrogância. Seus julgamentos eram inabaláveis como colunas de bronze.

Então, o problema de Maya estava explicado. O jovem por quem estava interessada era divorciado. Não era à toa que ela tentara manter segredo do pai. E esse era o tipo de fofoca a que Isabel nunca renunciaria.

Angie a viu ali, sentada, muito sorridente, feliz da vida.

— Roddy não foi culpado pelo divórcio — argumentou Maya. — A mulher dele apaixonou-se por um cantor de outro conjunto musical.

— Cantores! —— Os lábios do pai fizeram uma curva de desprezo.

São todos da mesma laia!

— Você é muito preconceituoso, papai! E muito autoritário. Quer sempre dirigir minha vida e vai acabar por arruiná-la. E pensar que você foi o primeiro a apaixonar-se à primeira vista!

— Sua mãe era um ángel e não tinha nada em comum com esse mocinho bonitinho que fica nos palcos fazendo barulho e macacagens. Do outro lado, Maya, como pode afirmar que ele se apaixonou por você a primeira vista? Ele já teve uma esposa e certamente a amava quando casou com ela.

—— O casamento deles foi um erro. — O garfo tremeu nas mãos de Maya quando ela serviu-se de rosbife. — Acontece com os seres humanos. Ela era mais velha do que Roddy e praticamente o seduziu.

— Naturalmente foi isso o que ele lhe contou e você, uma moça tão bem criada, culta e inteligente, acreditou. Posso assegurar-lhe, minha querida, que logo que recuperar seu bom senso, vai entender a tolice que quer cometer. Você tem meu sangue, Maya, e meu maior desejo é que se una a um jovem de sangue e costumes espanhóis.

— Como o filho de um de seus compadres? — desafiou ela.

— Não seria pior do que aquilo que você escolheu. Maya lançou-lhe um olhar raivoso, enquanto Isabel saboreava voluptuosamente a carne e tomava grandes goles de um vinho produzido na ilha, que tornava rubros os copos de cristal.

Angie sentiu-se triste e preocupada. Como tinha dito Rique, os tempos das brincadeiras tinham terminado e a idade adulta havia trazido problemas e sofrimentos que antes não existiam. Observou Maya, comia aqueles pratos deliciosos com fastio. Ela era uma filha obediente que, por certo, não faria oposição ao pai. Mas as críticas ao jovem músico a tinham aborrecido visivelmente.

A sobremesa estava sendo servida: sorvete de baunilha com ameixas e uma calda de licor. Era o doce predileto dos rapazes, mas, como ambos estavam ausentes, Angie comeu sem entusiasmo. Nada mais lhe parecia doce naquela casa. Ao terminar o jantar, Maya recusou-se a tomar o café na sala de visitas e anunciou que ia dar uma volta. O pai não a impediu, mas ficou contrariado.

— Meus filhos me dão mais trabalho agora que estão crescidos do que quando eram crianças. Como posso fazer Maya entender que se sou irredutível é para seu próprio bem?

— Tem certeza de que é para o bem dela? -— Angie fez a pergunta impensadamente. — Bem, o que quero dizer é que não seria melhor se todos tivessem o direito de cometer seus próprios erros?

Don Carlos franziu a testa de um jeito muito parecido com o de Rique quando suas opiniões eram contestadas.

— Está querendo dizer que estou sendo muito duro para com minha filha? Acha que eu deveria permitir que ela se encontrasse com esse jovem que já se divorciou de uma mulher e tem uma vida instável de artista? Dios, eu estaria falhando com meu dever de pai, se me deixasse comover pelas lágrimas. Maya foi muito protegida e mimada e não amadureceu emocionalmente.

— Ela parece sentir-se tão infeliz. Gracias. — Angie aceitou a xícara de café que lhe fora oferecida e que continha um pouco de conhaque espanhol. Sentara-se numa das macias poltronas estofadas que davam à sala um aspecto muito confortável. As janelas em arco estavam abertas para os jardins onde predominavam os jasmineiros.

Isabel encontrava-se junto ao piano, cujas teclas de marfim, com o tempo, tinham amarelecido. Correu seus longos dedos pelo teclado e começou a tocar uma melodia que Angie logo reconheceu. Era uma canção francesa que eles costumavam cantar na adolescência, quando ainda não entendiam o significado da letra.

 

           Plaisir d'amour ne dure qu’un moment,

           Chagrin d'amour dure toute la vie.

 

— “O prazer do amor dura só um instante” — don Carlos cantarolou, enquanto sentava-se numa enorme poltrona de braços e examinava o conhaque que despejara num copo redondo. — “As tristezas do amor duram toda a vida.” — Esquentou o copo com as mãos em concha e levou-o às narinas para aspirar o perfume da bebida. — Pode ser que seja assim para algumas pessoas, mas eu não gostaria que isso acontecesse com Maya ou com qualquer um de meus filhos. — Ergueu o copo e degustou o conhaque com a classe de um conhecedor. Seus olhos estavam postos em Angie, que se sentiu tensa e inconfortável.

O que o pai de Rique queria dizer com aquele comentário? A presteza com que ela atendera ao chamado para cuidar do filho, teria lhe despertado a suspeita de que Angie era vítima de um amor que causaria mais dor do que prazer?

— Este conhaque está guardado em toneis de carvalho desde o tempo de meu pai. Em vez de sentir o prazer de degustá-lo e de ficar ao lado de sua amiga, minha desmiolada filha prefere andar por aí, sozinha. A juventude, tal como este conhaque, tem que amadurecer para conseguir aprimorar-se.

— Um conhaque que agora estamos consumindo. — Angie teve o arrojo de evidenciar.

Uma faísca iluminou os olhos de don Carlos e ele levou os dedos à ponta do bigode.

— Presumo que você pretenda ser sempre assim, destemida, com meu filho. A propósito, como ele tem reagido a isso?

— Por exemplo, señor, acho que ele gostaria de pendurar minha cabeça numa forca.

— Ah, é tão sério assim?

Angie sorriu de leve e enquanto sorvia seu café, ficou analisando don Carlos por baixo das longas pestanas que embelezavam seus olhos azul-esverdeados.

Todos os traços de don Carlos eram de fidalgo de antiga nobreza; castelhana. Tinha uma expressão no olhar que transmitia força e poder,] Mas não era um déspota que comandava com mão de ferro. Possuía um grande charme, que sabia usar quando lhe era conveniente, em benefício dos interesses da ilha. Salvaguardava os turistas da exploração, mal protegia os comerciantes como se fossem membros da família. Era um legítimo representante dos antigos senhores, mas sem a mesma crueldade e orgulho. Safiras negras cintilavam nos punhos de sua camisa, quando ele estendeu o braço para apanhar um charuto de uma caixa de madeira que estava sobre a mesa a seu lado. Como a maioria dos latinos, tinha uma grande vitalidade, e se não fossem os cabelos prateados ninguém adivinharia sua idade.

Nesse momento, dona Francisca voltou. Tinha subido para buscar seu bordado. Poderia ter mandado uma criada, mas Angie desconfiou de que ela fora chamar Rique. Se esperara persuadi-lo a descer, pelo jeito não fora bem-sucedida.

Don Carlos levantou-se para oferecer uma bebida à irmã e Angie susteve a respiração diante de seu porte e altura. Rique teria essa aparência na meia-idade, Se vivesse até lá.

— Gracias, Carlos. Dona Francisca tomou o copo das mãos do irmão e depositou-o na mesinha ao lado. Abriu a cesta de costura que trouxera e tirou de dentro algo esvoaçante. Quando o irmão voltou à sua poltrona e ao seu charuto, ela ficou encarando Angie com aqueles olhos escuros e críticos. Por um longo tempo, ninguém falou.

— Vejam — disse, por fim, dona Francisca. — É o véu de comunhão que pertence à nossa família há muito tempo. Pode ser que seja apenas superstição, mas existe uma crença de que estes véus têm o poder de aliviar e até de curar as pessoas que tenham sofrido um ferimento ou uma moléstia grave. Confesso, enfermeira Hart, que várias vezes tentei convencer meu sobrinho a colocar o véu sobre o rosto, mas ele se recusa. A sua simples menção, começa a rir.

— E não é para menos — disse don Carlos.

— Você e Rique são dois descrentes — exclamou a irmã.

— Oh, hermana! Não estamos vivendo na Idade Média para acreditar em magia. Rique não está com uma simples verruga que pode desaparecer repentinamente. Essas mulheres crédulas!

— Somos mesmo! E que fariam vocês, homens, sem nós? Vamos lá! Não temos nada a perder e o véu foi bento, lembra-se?

—— Como pode um membro de nossa família ter essas tendências, é um mistério! — Ele sacudiu a cinza do charuto com impaciência. — Você não se dá conta de que não devia estar usando uma coisa dessas para feitiçarias? Acho que você sabe que certos ancestrais nossos eram ousados de fazer bruxarias.

— Isso foi há muitos séculos. No tempo da inquisição. — Dona francisca suavizou a voz. — Tenho provas concretas de que o véu tem Poderes extraordinários. Veja o caso daquela empregada, a Pilar. Ela sofria de horríveis dores nas costas e com o véu as dores cessaram. E tinha sobrinha que tinha tendência a abortar? Usamos o véu e ela deu à luz a gêmeos! A gêmeos, estou dizendo!

Um milagre! — exclamou o irmão, olhando sarcasticamente para a fumaça do charuto. — É um mero caso de reação da natureza, que compensou as perdas. A natureza tem dessas coisas.

Angie estava acompanhando o diálogo e achou que um pouco de diplomacia não ia fazer mal a ninguém. As senhoras espanholas eram, en« geral, supersticiosas. Além do mais, dona Francisca estava mostrando que se preocupava com Rique e isso enterneceu Angie, mais do que tudo.

— Dona Francisca, a senhora quer que eu tente fazer Rique usar o véu? — ofereceu gentilmente.

A velha senhora apertou a relíquia entre as mãos.

— Pode ser que adiante, pode ser que não. Mas o caso é que Rique não deixa que se aproximem com ele. Já tentei, mas ele jogou o véu no chão.

— Deu uma prova de seu bom senso — resmungou don Carlos.

— Rique anda impaciente como um tigre enjaulado. E também muito sensível. Um véu tocando sua pele pode provocar-lhe reações inesperadas.

A irmã de don Carlos olhou para Angie com respeito.

— Você parece tão jovem, e no entanto é tão compreensiva.

— O que compreendo, señora, é que alguém com fé e esperança pode ajudar um paciente a sarar. Deve ter percebido que a audição e o tato de] Rique ficaram— mais aguçados. Eu poderei cobrir o travesseiro com o véu sem que ele perceba, e ele dormirá com o rosto encostado nele.

— Vocês vão continuar por muito tempo com esses absurdos? — perguntou don Carlos.

Angie enviou-lhe um olhar significativo para que ele compreendesse suas intenções. Queria que don Carlos entendesse que, mesmo daquela forma ingênua, a irmã estava demonstrando interesse por Rique.

— Qual seria o prejuízo, señor?

Don Carlos soltou uma baforada de fumaça.

— Mujeres! Que estranhas criaturas vocês são! Bem, mas depois não vão querer culpar Rique se ele rasgar esse véu em pedaços.

— Então você concorda, Carlos? — perguntou a irmã, suplicante.

— Se está com vontade de brincar de mágica. — Descansou a cabeça no espaldar da poltrona. — O que você acha disso, Isabel?

A moça, que estava de pé, deixou-se cair numa cadeira, com um jesto gracioso, sentàndo-se sobre uma perna encolhida. Aquela pose lembrou a Angie um quadro de El Greco que retratava um gato siamês.

— Não sabia que enfermeiras entendiam de magia negra — murmurou ela ferina. — Isso não a aflige, Angie? Ver Rique ser destituído de seu lado masculino?

Angie analisou meticulosamente Isabel. O longo pescoço e o brilho animal de seus olhos atraíam e repeliam ao mesmo tempo.

— Rique tem de aprender a viver num mundo diferente. E quando ele descobrir que possui poderes maiores que os nossos, então estará em plena posse de sua força novamente.

— Ouvindo você falar, Angie, a gente chega a pensar que o conhece a fundo. Bem, até me atreveria a dizer que o conhece intimamente.

Os olhos de Isabel transmitiam uma suspeita que irritou Angie. Ela procurou responder seriamente:

— Trabalho como enfermeira há quase cinco anos. Sei que a coragem e a força de vontade podem fazer maravilhas. Se eu não tivesse confiança na minha competência, não estaria aqui para ajudar Rique.

— Ora, deixe disso! -— Isabel deu uma risada de mofa. — Acho que você deixaria amputar suas pernas e braços para poder estar ao lado dele.

— Isabel! — As sombrancelhas de don Carlos se fecharam, formando uma profunda ruga na testa. — Que tolices você está dizendo?

— Angie sabe. Pergunte a ela.

Don Carlos olhou para sua protegida, depois desviou o olhar para Angie, que ficou vermelha e gelada, como se o anfitrião tivesse repentinamente se transformado em inquisidor.

 

Em toda sua vida, Angie nunca havia sido exposta a uma situação tão embaraçosa. Chegou a sentir aversão por Isabel que, tal qual uma víbora, deixara escapar seu veneno.

Don Carlos manteve seu olhar atônito sobre Angie. Ela ia ser 1 enfermeira do filho, ia dormir no quarto pegado ao dele e, em virtude de sua profissão, deveria circular livremente por esse quarto, a qualquer hora] do dia ou da noite. O governador era um homem muito cônscio das normas morais e das convenções sociais. Agora, devido ao comentário maldoso de Isabel, havia uma sombra de dúvida pairando em seu semblante. Angie sabia que ele estava indagando intimamente se não cometera um grande erro ao contratar uma enfermeira tão jovem para seu filho. Naquele momento, parecia estar examinando Angie em todos os detalhes, desde o vestido lilás, até os louros cabelos que formavam uma auréola ao redor de seu rosto, de pele fresca e olhos luminosos.

— Esta sala está parecendo um túmulo! Uma bengala branca apareceu no limiar da porta e Angie sentiu o coração disparar quando viu Rique.

— Meu filho! — disse don Carlos, levantando-se. — Tome um conhaque conosco. Venha, venha.

— Vocês estavam aí sentados, brincando de estátuas? Rique ergueu a bengala à sua frente, enquanto avançava pela sala

Angie quis avisá-lo para que tomasse cuidado com os móveis, mas a garganta estava fechada desde a hora em que Isabel fizera aquela insinuação.

— Cuidado! — Apesar do aviso do pai, Rique tropeçou numa mesa baixa, de quinas salientes, machucando-se.

Soltou uma imprecação:

— Diabos! — E fustigou raivosamente a bengala no ar, no momento em que Angie se precipitou para ajudá-lo a encontrar o rumo perdido.

A bengala apanhou-a em cheio no braço e ela não pôde reprimir um grito de dor.

— Dios! Em quem eu acertei? Angie esfregou o braço dolorido. Isabel ria baixinho.

— Em mim — disse Angie. — Mas não foi nada.

— Em você, Angie? — Ele ficou parado, com o olhar perdido na direção de onde tinha vindo a voz. — Machuquei muito você?

— Não se preocupe, vou sobreviver, amigo.

— Você tem é que aprender a não bancar o anjo da guarda!

— Disso eu não desisto.

— Quanta coragem! — Seu tom de voz era profundamente irônico. — Pois eu aposto que, se eu quiser, posso fazer de você uma covarde.

— Está avisando que vai pôr um sapo na minha cama? Você já fez isso quando éramos adolescentes.

— Agora que somos adultos, preciso pensar em algo mais aterrador para pôr em sua cama. Que tal um homem?

Um sorriso cruel assomou aos lábios de Rique.

— Uma boa bengalada no lugar certo, até que não lhe faria mal — disse ela atrevidamente.

— Por quê? Estou sendo um menino muito travesso, enfermeira?

— Está é tentando dificultar meu trabalho ao máximo.

— Você estava ciente de que lidar comigo não ia ser um mar de rosas. Foi você quem quis vir. Eu não a chamei. Aliás, você seria a última pessoa no mundo que eu desejaria ter perto de mim. Pergunte a meu pai. Ele já lhe disse qual foi a minha reação quando me contaram que você ia chegar da Inglaterra?

Sem querer, Angie olhou interrogativãmente para don Carlos. Ele abriu os braços, desalentado, como se quisesse desculpar-se.

Só posso assegurar-lhe que não é nada de pessoal contra você, Angie. No seu atual estado de espírito, Rique ressente-se de qualquer Florence Nightingale que lhe apareça pela frente.

— Papai, não precisa pôr panos quentes. Eu não a queria de forma alguma por perto. Acha que eu toleraria ser pajeado por uma mocinha, se eu tivesse pelo menos metade de um olho?

— Sou uma enfermeira capacitada e não tenho medo de enfrentar esta situação — disse Angie, ressentida.

Ele a estava humilhando deliberadamente perante o pai, e ela só não ficaria com o coração estraçalhado se tivesse juízo e fosse embora daquela casa. Não sabia a que estado emocional estaria reduzida quando terminasse sua missão…

— Exijo que seja polido com Angie — don Carlos disse com severidade. — Foi muita bondade dela vir até aqui, incumbir-se desta árdua tarefa. Você é meu filho e conheço-o como a palma de minha mão. Sei que, se lhe der na veneta, pode fazer com que uma mulher padeça as torturas do inferno. E você o fará sem piedade.

— Está ouvindo o que meu pai está dizendo, Angie ? — Rique virou a cabeça, procurando-a com seus olhos sem luz. — Não espere piedade, se resolver levar adiante esta sua árdua tarefa.

— Não sou do tipo que se deixa intimidar facilmente. Você deveria conhecer algumas das enfermeiras-chefes com quem trabalhei!

— O que eram? Dragões, expelindo fogo pelas narinas? Repentinamente ele pareceu abatido. — Alguém aqui vai me dar um conhaque? Já estou cheio de toda esta conversa sobre bravura! Eu sou um exemplo ambulante do prêmio que se concede aos bravos.

— Vamos. — Don Carlos guiou o filho até uma cadeira e colocou o copo em sua mão. — Vou servir-lhe uma boa dose de conhaque e você vai comportar-se como uma pessoa civilizada.

— Hoje em dia não podemos mais dar-nos ao luxo de ser civilizados — Rique fitou o vácuo, agoniado, e Angie tremeu por ele. — O mundo ficou louco, e o diabo anda solto por aí, acendendo fogueiras por toda parte. Fogueiras que vão acabar com a humanidade.

— Rique rio. — A tia levantou-se, com dificuldade, da poltrona e bateu carinhosamente em seu joelho. — Esqueça as guerras. Você agora está em casa, a salvo, entre nós, nesta linda ilha, longe de todos esses horrores. Tudo o que lhe peço, querido, é que fique bom logo.

— Sua tia tem razão, Rique. — O pai despejou uma dose generosa de conhaque no copo dele. — O demônio nunca abandonou a humanidade, sempre lhe demos combate. Temos orgulho de você, hijo. Você soube honrar sua farda.

— Sei que orgulho é o que não falta nesta casa! — Rique engasgou-se com o conhaque e derramou um pouco da bebida no carpete. — Talvez, com um pouco de sorte, um dia destes numa queda fatal eu quebre o pescoço. Qualquer coisa seria melhor do que esta maldita treva. Repentinamente deu uma gargalhada amarga.

50

— Por acaso, meu anjo de misericórdia está me olhando criticamente? Alguma coisa me diz que está.

— Como você é astuto, Rique! — intrometeu-se Isabel. — Você está captando as vibrações no ar muito rapidamente.

— São as vantagens do treinamento para a contra-espionagem. — Ergueu o copo para aspirar o cheiro do conhaque. — Maya está na sala? Se estiver, parece muito quieta.

— Sua irmã foi dar uma volta. — Angie viu que o rosto de don Carlos exprimia uma profunda tristeza. — Ela acha que está com o coração partido porque não aceitei seu envolvimento com aquele jovem cantor. Minha opinião é que quando um homem se divorcia uma vez, é capaz de divorciar-se duas! Tudo é questão de hábito. O casamento deles está fora de cogitação.

— Acho que você está sendo um espanhol por demais tradicionalista, papai — murmurou Rique. — O que é o divórcio de tão condenável, quando as pessoas estão por aí, matando-se com bombas?

Angie sentiu-se deprimida, constatando que Rique estava obcecado com as imagens da violência de que fora vítima. Todos os assuntos acabavam convergindo para o mesmo ponto. Por certo, em sua mente ainda deviam repercutir os estouros das granadas e os gritos dos camaradas moribundos. Talvez ele tivesse pesadelos à noite.

— Sei muito bem o que é melhor para Maya — disse don Carlos, com firmeza. — Ela sempre teve segurança em casa, e deverá continuar a ter segurança no casamento.

— Pode ser que ela tenha espírito aventureiro… — sugeriu Rique.

— Se ela quiser casar, não há problema — concordou o pai. — Mas com o homem certo.

— O homem certo para você, pai, pode não ser o homem certo para ela — contrariou Rique.

— Por acaso, você está me censurando?

— Longe disso. Estou só emitindo minha opinião. O amor pode ser uma coisa muito dolorida, se é que é amor o que ela sente por esse rapaz.

— O que ela sente é mero entusiasmo. — Don Carlos despejou mais conhaque no copo de Rique. — É comum aos jovens. Uma espécie de treino para o verdadeiro amor. E quando este chega, meu filho… Digo, se

Maya realmente amasse esse cantor, ela me desafiaria, em vez de ficar argumentando comigo. Ela até fugiria com ele!

— Talvez esteja fazendo isso mesmo, neste exato momento. — A boca de Rique se crispou quando seus lábios tocaram a bebida.

— Maldição! — Os olhos de don Carlos fuzilaram. — Quando eu puser as mãos nela, Maya não vai poder sentar durante uma semana!

— Isso no caso de você conseguir apanhá-los.

Rique estava sorrindo abertamente, levando a melhor com o pai. Angie sentiu-se esperançosa. Por um instante que fosse, ele se esquecera de seus problemas. Prometera hastear uma bandeira no dia em que Rique passasse uma hora, pelo menos, sem pensar em si mesmo. Essa seria a forma pela qual a batalha seria vencida. Palmo a palmo.

— Posso assegurar-lhe que aqueles dois descabeçados não vão sair da ilha — afirmou don Carlos, muito exaltado. — Minha filha jamais casará com esse… adúltero! Ela sabe muito bem disso. Sabe que, neste ponto, quero ser obedecido.

— Pai, nem por um minuto você abdica de sua prepotência espanhola? — Rique riu baixinho. — No fundo, você demonstra essa afeição por Maya, só para que ela case com alguém de sua escolha, confesse.

— Ay! Mais tarde, você vai fazer a mesma coisa com sus hijos, posso garantir-lhe.

— Meus filhos! — Instantaneamente, uma máscara trágica desceu sobre o rosto de Rique. — Se pretende ser avô, vai ter de contar com Seb e Maya.

Rique deu um profundo suspiro de dor e Angie aproximou-se dele, pondo-lhe a mão sobre o ombro.

— É hora de ir deitar-se — disse calmamente.

Logo ela sentiu uma tensão nos músculos daquele ombro. Ele estremeceu e pôs-se de pé, a seu lado. Angie tinha boa estatura, mas sua-cabeça batia à altura do queixo de Rique.

— Você vai ninar-me e segurar minha mão até que eu durma? — perguntou com cinismo.

Isabel deu uma risadinha malévola.

— Isso é tudo o que você precisa para que o façam adormecer?

Ele dirigiu os olhos para os lados de Isabel que, mesmo sabendo-o cego, exagerou a pose lânguida, recostando-se mais sensualmente junto ao parapeito da janela, com as cortinas drapeadas formando uma moldura para sua figura exótica. Ele pareceu ignorar a provocação implícita daquela frase e explicou, com seriedade:

— É estranho… mas quando não se pode distinguir o dia da noite, tem-se menos sono. Suponho que, de uma certa forma, a luz do dia canse os olhos. É o tipo da canceira que eu sentiria de bom grado.

— Meu filho — amor e sofrimento mesclavam-se na fisionomia de don Carlos —, com a ajuda de Deus, você há de enxergar novamente!

— Quando? Nos meus sonhos? a voz de Rique era de um desalento total. — Pensa que não pedi para me darem o veredicto quando me tiraram as bandagens dos olhos? Pensa que não insisti em saber a verdade, quando não consegui ver mais? Dios! Não estou aceitando isto! Eu sou humano. Quero partilhar da vida e do amor, mas não desta forma.

— Rique, meu filho, se eu pudesse, daria a você meus próprios olhos! — Aquelas palavras pareciam partir do fundo da alma de don Carlos.

— Pai, estas foram as palavras mais bondosas que já pronunciou na vida. — Rique sorriu, mas seus olhos estavam vazios. — Perdoe-me por ter sido tão rude. Mas não posso viver de mentiras, mesmo que sejam misericordiosas. De agora em diante, vamos encarar as coisas sem subterfúgios. Eu estou cego. As imagens não são apenas imperfeitas. Elas simplesmente não existem!

Neste momento, dona Francisca deu um forte soluço e pegando num lencinho, escondeu o rosto.

— Tia, não faça isso. — Ele percebeu que fora a tia quem irrompera em pranto. — Lembre-se do que me disse quando voltei para casa. Foi escolha minha ir para a guerra. Sempre fiz as coisas a meu modo e sempre as farei. Portanto enxugue essas lágrimas e pare de chorar.

— Rique, eu vou acompanhá-lo até seu quarto.

Isabel segurou o braço de Rique, sem uma só lágrima a embaciar-lhe os olhos. Ao fazer isto, fitou Angie desafiadoramente, como que dizendo: O que vai fazer ele com uma enfermeira? Ele precisa é de uma mulher.

— Buenas noches — ele despediu-se e saiu de braço dado com Isabel, deixando Angie frustrada e com a sensação de que teria feito melhor ficando na Inglaterra, com as lembranças do Rique que conhecera no Passado.

Ele positivamente não a queria a seu lado. Não como homem. Só seus ferimentos precisavam de sua atenção e dedicação… Suas paixões, quando retornassem, seriam satisfeitas por outra mulher. Isabel, por exemplo, que ele lembrava como uma mulher adulta e não como uma colegial de tranças e pés descalços, sujos de areia.

Teve um sobressalto quando don Carlos segurou-lhe as mãos entre as dele olhando-a profundamente.

— Seja tolerante para com ele, Angie. Faça isso por mim.

— Pelo senhor?

— Por mim. — Roçou de leve os lábios pela mão de Angie. — Agora vá dormir. Você teve um dia agitado. Deixe Isabel tratar dele esta noite.

— Muito bem, señor.

Angie não se atrevia a decifrar aquelas palavras, mas elas pareciam confirmar o que já tinha imaginado antes. Don Carlos estava querendo facilitar o casamento do filho com sua protegida.

— Boa noite — ela sussurrou.

— Buenas noches, minha menina. Tenha um bom descanso.

Ela saiu da sala, sentindo que repouso era a última coisa que teria nessa primeira noite que passaria na Residência, como enfermeira de Rique de Zaldo.

Chegando ao corredor, ficou surpreendida ao ver Isabel saindo do quarto de Rique. Passou por Angie ereta, com o rosto inexpressivo, sem dizer uma palavra. Viu a porta do quarto escancarada e relanceou um olhar para dentro. Ele estava lá, com a cabeça curvada para trás e os punhos cerrados, como se quisesse esmurrar a escuridão que o cercava, acertando num alvo que lhe trouxesse a luz.

Angie hesitou um pouco antes de entrar no quarto. Seus passos foram abafados pelo carpete, mas parece que ele ouviu o farfalhar de seu vestido.

— Vá embora Isabel — disse com raiva. — Vá procurar alguém que lhe diga o quanto você é sedutora.

— Sou eu — esclareceu Angie.

Ele hesitou por um momento, mas depois refez-se.

— Ah, é você? Então, vai ajudar-me a tirar a roupa e vai colocar-me na cama? — A medida em que falava, foi desafivelando o cinto das calças.

Impassivelmente, Angie passou-lhe o pijama,

— Vista isto — ela ordenou.

— Até parece um sargento dando instruções! Você pretende comandar-me por controle remoto, mostrando aos outros os truques que eu posso aprender?

— Pretendo convencê-lo a reintegrar-se na sociedade — afirmou ela — Mas você parece que não está muito disposto a cooperar. Muitos médicos que conheço também têm uma língua sarcástica, mas você ganha, estourado, o primeiro prêmio.

— Fico contente em saber que ainda sou merecedor de prêmios.

Deu um nó no cordão das calças do pijama e ficou parado, de peito nu, na frente de Angie. Os pêlos de seu tórax eram tão escuros quanto seus cabelos. Um dos estilhaços deixara uma feia cicatriz no lado esquerdo do peito e, àquela visão, ela estremeceu. Rique tinha razão em ser tão amargo e agressivo. Mas seu bom senso lhe dizia que ela não estaria ajudando em nada se alimentasse a auto piedade do rapaz.

— Para mim é difícil conceber a idéia de que sou sua enfermeira. Você foi sempre tão arrogante. Parecia sempre estar no topo do mundo!

— E agora caí alguns degraus, não é?

Repentinamente, ele ergueu um braço e, como se tivesse um radar na ponta dos dedos, encontrou-a e puxou-a para si. Angie não lutou. Era inútil querer medir forças com ele. Rique era muito forte e vigoroso. Resolveu fingir indiferença, quando sentiu aquele peito marcado e aqueles braços nus se fecharem em torno dela.

— Você disse que caiu alguns degraus e isso me fez pensar que… oh, pensei numa coisa tão feia — censurou ela.

— Ótimo que tenha pensado. — Rique a estreitou com mais força. — Você achava que seria fácil manejar-me só porque sou cego?

— E você achava que a cegueira iria torná-lo menos homem? Os músculos premidos de encontro a ela estremeceram.

— Quem lhe deu o direito de dissecar meus pensamentos e minhas sensações? Tome cuidado e não queira penetrar na minha mente. Pode descobrir coisas das quais não vai gostar muito.

— Como já lhe disse antes, não sou mais uma colegial para surpreender-me tanto.

Olhou para os músculos retesados daquele corpo moreno e sentiu, através da seda do vestido, o coração dele, batendo descompassadamente. De súbito, foi tomada por um desejo irresistível de pousar os lábios sobre aquela carne inquieta. Como reagiria ele, se Angie desse vazão a esses Perigosos impulsos? Rique a rejeitaria ou a jogaria na cama para desabafar seus rancores reprimidos sobre ela? Angie sentiu fraqueza nas pernas. Nunca antes deixara seus pensamentos irem tão longe, tão sem freios. Arrepiou-se quando os dedos de Rique tocaram seu pescoço.

— Sua pele é macia como seda — começou ele brandamente, mas, em seguida, repeliu-a. — Ora, vá para o inferno, Angie! Você não passa de Uma sirigaita muito intrometida que pensa que vai conseguir tirar-me deste buraco negro onde vivo. — Olhou em torno, como que perdido, e continuou: — Na verdade, você sente e age como uma colegial. Não Preciso de boas intenções.

— E do que você precisa, Rique?

— Quer realmente saber, pequena?

— Sim e vou procurar não desmaiar de susto.

— Quero uma mulher de má vida e uma espingarda carregada de chumbo. Traga-me ambos e você estará me prestando um grande favor.

— Vou trazer-lhe é um chocolate quente ou um chá de camomila. — Aquelas palavras debochadas tinham-na abalado. — Como tem dormido ultimamente? — perguntou, para dizer alguma coisa.

— Com dificuldade. Com os olhos abertos ou fechados, tenho sempre o mesmo pesadelo. Começa com uma bomba explodindo na parede, junto de minha cabeça, e termina com a mão ensangüentada arranhando meu rosto. É suficiente para a primeira sessão ou está disposta a ouvir mais alguns detalhes horríveis?

— Deite-se, Rique. Eu vou buscar o chocolate pra você.

— Preferiria um bom uísque.

— Já bebeu o bastante por hoje.

Angie arrumou as cobertas e ajeitou os travesseiros. Em cima da mesinha de cabeceira viu um maço de cigarros, um isqueiro, um relógio com números em relevo, para que ele pudesse ler as horas, e uma pilha de cartas ainda fechadas.

— Por que não pediu para alguém ler estas cartas para você?

— Não são importantes. Pelo menos agora não são mais.

Pela resposta, pareceu a Angie que deviam ser cartas de uma mulher Pegou os envelopes manuscritos e analisou a letra. Três delas tinham traços femininos, mas a quarta era escrita com uma letra esparramada com tinta preta, os selos displicentemente colados a um canto.

— Acho que uma delas foi escrita por um homem. Talvez seja algum amigo do Exército. Posso ler a carta para você, depois que tiver trazido chocolate?

Ele ficou olhando na direção da voz, com a testa franzida.

— Não quero que se incomode. — Decidiu por fim. — Jogue as cartas numa gaveta qualquer.

Angie obedeceu, mas guardou só três cartas na gaveta. A quarta, ficou junto do relógio. Viu uma caixa de remédio e abriu-a. Dentro havia pequenas pílulas, que ela imaginou servirem para aliviar as dores de cabeça e ajudá-lo a dormir.

— Não vai vestir o paletó do pijama?

— Sinto muito calor. — Ergueu uma sobrancelha. — Geralmente durmo sem nada no corpo, mas hoje, em consideração a seus pudores…

— As enfermeiras são obrigadas a ver muitas coisas, portanto não faça cerimônia. — Encaminhou-se até a porta. — Não vou demorar. Se estiver dormindo quando eu voltar, não vou incomodá-lo.

Rique apalpou o travesseiro antes de enfiar-se debaixo das cobertas.

— Traga-me um uísque e eu prometo ficar acordado para receber o beijinho de boa noite.

— Esta noite já teve sua cota de álcool — retrucou ela. — Talvez por isso tenha pesadelos.

— Então, hoje, como um menino comportado, vou ser obrigado a tomar chocolate quente?

— Ou camomila, de preferência. É um bom calmante.

Angie fechou a porta com um sorriso e encaminhou-se para a cozinha, no andar térreo. Quantas recordações de infância lhe traziam aquela cozinha cheirosa, os potes de conservas, os vidros com cerejas em calda, ameixas e damascos, que eram usados nas deliciosas tortas que todos saboreavam depois do banho de mar, acompanhadas de limonada gelada. Só Rique, por ser mais velho, podia tomar sangria. Angie deu um suspiro de saudade enquanto preparava o chocolate. Encontrou alguns biscoitos numa lata, colocou tudo numa bandeja e subiu pela escada dos fundos, para evitar encontrar-se com alguém.

Levar a Rique aquele lanche noturno tinha um sabor de coisa proibida, muito íntima. Angie tinha acesso à cabeceira dele por ser sua enfermeira e com as portas fechadas, com apenas a luz tênue do abajur iluminando o quarto, pareceu-lhe que aquele homem ali deitado pertencia só a ela.

Rique aceitou a bebida quente, sem comentários, e ela, sentando aos pés de sua cama, começou a abrir o envelope que deixara perto do relógio.

Os ouvidos afiados de Rique captaram o ruído de papel rasgado.

— Já lhe disse para jogar essas cartas numa gaveta, sua cabeça-dura.

— É falta de educação não tomar conhecimento das cartas que nos escrevem — contestou ela. — Não vou ler as que lhe enviou sua amiguinha, portanto sossegue. A carta que abri é de um homem chamado Torcal.

— Torcal de Byas! — exclamou ele, eufórico.

— Então? Posso ler?

Rique deu uma mordida num biscoito e enrugou a testa.

— Estivemos internados juntos no hospital. Bem que imaginei.

Angie começou a ler em voz alta a carta daquele companheiro de nome tão estranho. Dava notícias de que já estava andando e dizia que gostaria de saber se poderia fazer uma visita. Ambos haviam passado por uma experiência traumatizante, com suas vidas destruídas por graves ferimentos e, às vezes, dois homens que têm pela frente um futuro incerto, podem encontrar consolo repartindo seus temores e esperanças.

Angie tornou a colocar a carta no envelope e estudou as reações fisionômicas de Rique.

— Parece uma boa pessoa — comentou ela. — Seu ferimento foi muito grave?

— O impacto de uma granada o castrou!

— Oh, meu Deus! — Apesar de ser uma enfermeira acostumada com a desgraça alheia, ela empalideceu. — Por que… por que as pessoas são tão cruéis umas com as outras? Por que tem de haver tanto ódio neste mundo?

— Seria bom responder a esta carta — sugeriu ela cautelosamente. — Se quiser ditar a resposta amanhã, eu mesma poderei colocá-la no correio.

— Não! — Ele sacudiu a cabeça. — Se eu não responder, Byas não virá a Bayaltar.

— E por que não deveria vir? Afinal ele está pedindo que um amigo lhe estenda a mão.

— Dios! E você acha que eu estou em condições de estender a mão a alguém? Um cego guiando um aleijado! Você está sugerindo que fiquemos chorando juntos o que perdemos: um, a visão, e o outro a virilidade?

Angie viu que ele apalpava a mesinha de cabeceira em busca do maço de cigarros, mas forçou-se a não ajudá-lo. Ele conseguiu pegar um cigarro, levou-o aos lábios e começou a procurar o isqueiro. Dessa vez, Angie colaborou, acendendo o cigarro para ele. Rique deu uma profunda tragada e seus olhos pareciam fixá-la.

— Chorar não faz mal a ninguém. A não ser que você se considere hombre demais para isso.

— Aproxime-se um pouco mais desta cama, enfermeira, e vou dar-lhe uma demonstração do meu machismo. Você mesma disse que a cegueira não torna um homem menos potente. — Soltou a fumaça pelas narinas — Então você me aconselha a responder à carta de Torcal?

— É a coisa mais bondosa que poderia fazer, amigo -

— Mas pode não ser a mais sábia, Angie. Pode ser que você se veja às voltas com duas almas penadas.

— Espero poder dar conta do recado. Eu não escolheria ser enfermeira se não me dispusesse a ajudar às pessoas. Isso não significa que me considere virtuosa.

— Meu Deus! Salve-me de uma enfermeira muito virtuosa! — Deu um sorriso cínico. — Apesar do chocolate quente, acho que não vou pegar no sono tão já. Ligue o rádio. Talvez retransmitam a tourada de Madri.

— Tourada!

— Sei que vocês ingleses detestam touradas.

— É um espetáculo cruel.

— Pode ser. Mas a vida é cruel. Faça o que lhe pedi, enfermeira, para não deixar seu paciente nervoso.

— Que Deus me ajude!

Ela girou o botão do rádio até sintonizar o som inconfundível da narrativa de uma corrida de toros. Rique ficou atento, fumando e ouvindo.

— Esse touro é astuto! — comentou ele, para si. — Ei, Angie, você ainda está aqui comigo?

— Estou imaginando a aflição desses pobres cavalos encapuzados.

— Sei exatamente como eles se sentem.

Angie mordeu os lábios pelo comentário que fizera. Ele era tão grande, saudável e forte, que a fazia esquecer que era cego. Estava tão absorvida nesses pensamentos que levou um choque quando Rique falou:

— Não se martirize, Angie. Eles vão poupar esse touro valente. Não vão dar-lhe a estocada final.

O rádio começou a tocar La Virgen de La Maçarena. Será que a Virgem pouparia Rique, que também tinha sido tão valente na arena da guerra?

— Pode desligar agora. Você foi corajosa por ter agüentado até o fim. Aquelas palavras podiam ter um terrível significado oculto e produziram um calafrio em Angie quando ela desligou o rádio e o quarto ficou silencioso. Passou a mão pela testa de Rique e sentiu-a quente e úmida.

— Sua cabeça está doendo?

— Um pouco, nas têmporas. Mas não quero tomar essas malditas Pílulas. Elas me fazem dormir, mas é um sono agitado, cheio de Pesadelos. Você não gostaria de meus sonhos, Angie. Espero que os seus sejam lindos, cheios de amor e romance.

— Pois é… nós, enfermeiras, temos sonhos lindos!

Ela imaginava quais seriam os sonhos de Rique, mas até que a lembrança do impacto da bomba não se diluísse na memória dele, não havia nada a fazer. De repente, Rique surpreendeu-a com uma pergunta:

— Tem algum fã esperando por você na Inglaterra? Alguém em especial, com quem você anda de mãos dadas e faz planos para o futuro? Algum jovem médico, por exemplo?

— Ninguém em especial.

Olhou para ele, sentindo um nó na garganta. Sua vontade era dizer-lhe que só ele existia para ela e que seus planos eram acariciar aquelas cicatrizes que, estranhamente, não tinham prejudicado sua bela aparência. Não podia ser comparado ao irmão, Seb, pois possuía uma atração maior. Tinha aquele fascínio do toureiro que, apesar de marcado pelos chifres do touro, enfrenta a arena com garbo e elegância.

— Você deve estar morta de cansaço — disse de súbito. — Mas antes de recolher-se poderia guiar-me até o banheiro?

— Claro que sim — ela respondeu prontamente. — Banheiros são traiçoeiros no seu caso, cheios de saliências que podem feri-lo.

— E quando escovo os dentes, arrisco sempre cuspir fora da pia — ele brincou, puxando as cobertas para o lado e levantando-se tão precipitadamente que se chocou de frente com Angie. — Mas nem todas as saliências são desagradáveis, não é?

Ela corou enquanto segurava a mão dele e a colocava sobre seu braço para conduzi-lo melhor.

Como era esbelto e alto! E que tez morena mais sedutora. Que charmoso deveria ficar fardado! Pensou naquelas cartas que tinham permanecido na gaveta. A mulher que as escrevera devia representar algo de muito importante em sua vida, antes que a cegueira o tivesse transformado num insociável.

— Rique, a partir de amanhã, você vai aprender a “ver” pelo tato todas as dependências da casa, desde o térreo até o sótão.

— Você está brincando!

— Estou falando sério.

Angie levou-o até o banheiro e recomendou, de forma pouco romântica:

— Use o sanitário e depois escove os dentes.

— Está bem, enfermeira, mas eu gostaria muito que você me ajudasse.

— Deixe de ser inconveniente. Agora vou sair.

Quando, finalmente, ele saiu do banheiro, Angie notou que estava com um respingo de pasta de dente no queixo. Da maneira mais natural possível, limpou-o com um lenço.

— Rique, eu estava falando sério a respeito de fazer um reconhecimento pela casa — insistiu ela enquanto o levava novamente para o leito.

— Mas, Angie, eu morei nesta casa a vida toda.

— Sei disso. Mas naquela época você enxergava. Ele. baixou as pálpebras.

— Você está sendo dura. Lembro-me de você como uma mocinha mais meiga e dócil! Penso até que, naquele tempo, eu conseguia desconcertá-la.

— Todos nós crescemos, Rique. Ou você pensa que eu continuei a ser criança enquanto você se tornava um homem?

— É… parece que não. Os fantasmas não a assustam mais.

— Os meus fantasmas eram risonhos e inofensivos e me dão saudades. Todas as vezes que eu precisava ir embora de Bayaltar, tinha impressão que o sol se apagava.

— Então foi o nosso sol brilhante e acalentador que a trouxe de volta, Angie?

— Foi, entre outras coisas — confirmou ela.

— Que outras coisas?

— Meus… meus amigos, por exemplo. Sempre fui tão bem recebida aqui, principalmente depois da morte de minha tia.

Mesmo com Rique ela manteve seu segredo em relação àquela que fora sua mãe.

— Você nunca teve uma família grande, não é? Era órfã, Angie?

— Digamos que sim.

— Uma órfã que fez de nós a sua família?

— Sempre me deu prazer considerá-los como tal. Seu pai é um homem muito generoso e hospitaleiro. Um legítimo representante do povo espanhol.

— De fato.

A mão de Rique encontrou uma das colunas de madeira entalhada da cama e seus dedos começaram a seguir a linha dos arabescos.

— Então, a seu pedido, enfermeira, vou ter de começar a engatinhar Pela casa, como quando era um bebê?

— Pois vai ficar admirado de quanto era distraído no passado, meu amigo. Vou conduzi-lo por aí e você notará quantas coisas lhe passavam desapercebidas.

— Vai colocar-me uma coleira no pescoço?

— Não será preciso. O tato será seu mestre e os dedos seus olhos. Quando praticar bastante, vai aprender a reconhecer os objetos que lhe servirão de sinalização, qualquer que seja o ambiente em que se encontre.

— Seu quarto está no programa?

— Deveria ser incluído — disse aquilo o mais profissionalmente possível. — Haverá momentos em que você precisará de mim e…

— E…

Ela hesitou. Era quase impossível manter-se neutra com relação a Rique. Tudo o que ele dizia tinha um duplo sentido para ela, e Angie ficava continuamente perturbada.

— Deus do céu! Que vida é esta que um homem precisa ficar andando às apalpadelas, em busca do que deseja? — ele revoltou-se inesperadamente. — Angie, você sabe que, para mim, você é menos do que uma sombra?

— Você diz cada coisa tão lisonjeira! Sempre pensei que os latinos fossem galanteadores para com as mulheres, mesmo que sejam simples enfermeiras.

— Diga-me uma coisa, nina mia, você tornou-se uma moça bonita?

— Não acho.

— Bem, esse é o tipo de julgamento modesto que nunca esperei ouvir de uma mulher. Na primeira oportunidade, pedirei a Seb para descrevê-la para mim. — A fisionomia de Rique tornou-se sombria. — E pensar que nunca mais poderei ver meu irmão! Maldita bomba que não acabou comigo! Para os outros foi rápido: uma luz incandescente e depois… o vazio. Há momentos em que tenho vontade de arrancar das órbitas estes olhos inúteis.

— Rique… — Angie sentiu-se no dever de consolá-lo. Bem que podia deixar a porta de comunicação aberta, mas se don Carlos descobrisse a poria de lá para fora, ela e sua bagagem.

— Sabe em que estou pensando, Angie?

— Não. Mas pode contar-me.

— Que nunca mais verei a carne macia de uma mulher!

— Mas poderá tocá-la e… senti-la.

Hesitou por um instante, mas depois pegou corajosamente numa das mãos dele e colocou-a em seu braço, na parte mais macia, bem acima do cotovelo.

— Hummm! sua pele é fresca e gostosa. — Moveu os dedos apreciadores, numa espécie de carícia.

Ele estava tão próximo que seria fácil para sua sensível audição ouvir o ritmo acelerado da respiração de Angie. Por precaução, ela retraiu braço e distanciou-se.

— Vou esticar as roupas da cama para que se deite. Você parece exausto.

— Acho que pareço repulsivo. Meu aspecto a assusta?

— A tão pouca distância, um falcão também me assustaria.

— Um falcão tem a vista tão perfeita que pode enxergar um pardal a quilômetros de distância.

— Rique, você precisa parar de repisar esse assunto.

— Falar é fácil! Que sabe você, que só veio para cá porque pensou que precisava retribuir, de alguma forma, a generosidade que recebeu no passado?

— Isso não é verdade, Rique.

Ela abraçou-se à coluna da cama para evitar de abraçá-lo.

— E qual é a verdade? Meu pai, o governador, é um homem atraente. Você tem alguma queda por ele?

— Oh, você diz cada coisa!

Angie retraiu-se como se ele lhe tivesse dado uma bofetada.

— Você não tem o direito de ser cruel para com os outros só porque… Pense um pouco, Rique. Pense no que deve estar sofrendo seu amigo Torcal de Byas.

— Tem razão. — O rancor pareceu desvanecer-se do rosto de Rique. — Você vai ajudar-me a escrever para ele, não vai? Torcal deve estar vivendo num inferno, e como temos pontos em comum, podemos fazer companhia um ao outro. — Ergueu a cabeça com ansiedade. — As janelas estão abertas? Sinto-me sufocado, se não respiro a brisa vinda do mar.

Angie foi até a janela e abriu as venezianas de par em par aspirando profundamente. O ar estava perfumado pela vegetação que circundava a casa: eucaliptos, cedros, magnólias e jacarandás floridos. Os jardins da residência eram semi-selvagens e se espalhavam por um platô que se debruçava na direção do mar.

Por seis anos, aquela casa vivera na imaginação de Angie. Agora ela estava ali, real, ao alcance de seus olhos, com seus velhos muros, a Piscina semi-escondida pelo arvoredo, e a capela particular, que se erguia junto a um pequeno claustro coberto de trepadeiras. E ainda havia as Ceadas mouriscas, com suas grades de ferro batido, parecendo bordados, entremeadas de elegantes esculturas.

Aquele retorno era uma mistura de alegria e tristeza. Rique não poderia mais percorrer todos aqueles recantos, fazendo estrepolias. Agora, a palavra do dia era “cuidado!” Em certo sentido, aquela advertência também era adequada a ela.

— Ainda está aí, muchacha?

— Sim estou. — Virou-se para ele. — Até que não precise mais de mim.

Ele acomodou-se melhor entre os lençóis alvos e Angie imaginou que, talvez, Rique fosse descendente de mouros, tão moreno parecia de encontro à fronha branca.

— Angie… Você me concederá o golpe de misericórdia, se um dia eu ficar louco?.

O coração de Angie pareceu saltar pela boca, que se tornou tão seca que ela não pôde falar.

— Responda-me — ele insistiu. — Você faria isso por mim?

— Eu… eu não sei — respondeu debilmente.

— Ficou chocada, Angie?

— Essa é uma conversa derrotista. Você só deve pensar em melhorar… em sentir-se bem outra vez.

— Com que finalidade? Seus olhos opacos percorreram o quarto e se fixaram numa parede onde

havia um quadro pendurado. Angie tinha certeza de que aquela era uma pintura de Seb, do tempo em que ele pretendera ser artista plástico. Rique nunca fora indeciso sobre o que queria da vida… e agora, estava pedindo a ela que o matasse caso aqueles estilhaços viessem a perturbar sua razão. Estremeceu como se pingos gelados de chuva tivessem caído sobre sua espinha.

— Rique, você não é um homem acabado. É um lutador, portanto deixe de dizer asneiras.

Não pôde continuar, pois lágrimas quentes explodiram em seus olhos, molhando suas faces. Furtivamente, ela enxugou-as.

— E o que faz um lutador, quando não tem olhos para fazer pontaria?

— Ele sossega e procura realizar uma vida construtiva.

— Fazendo o quê?

— Muitas coisas.

— Assim como?

— Você poderia estudar advocacia.

— Para isso é preciso crânio.

— Você é muito inteligente, sempre foi, Rique.

— Era. Agora o que tenho no cérebro é uma bomba-relógio pronta para explodir a qualquer momento. Tenho de encarar essa realidade e você precisa fazer o mesmo. Por isso, vai prometer-me que porá um revólver em minha mão quando eu quiser dar cabo de mim.

— Nunca farei uma coisa dessas — ela gritou, alarmada.

— Eu estou ordenando! — Sua expressão era aterrorizante. — Ninguém mais poderia fazer isto e você tem de ajudar-me se eu sentir que estou ficando irremediavelmente louco. Dios! Naquele hospital havia muita gente assim, urrando como bichos furiosos. As próprias famílias tinham horror de vê-los naquele estado. Eu não suportaria nunca uma coisa dessas!

— Rique! — Ela correu para o lado dele tão rapidamente que, antes que pudesse raciocinar, tinha aconchegado a cabeça dele junto ao peito, para consolá-lo. — Meu pobre querido. Você não deve pensar em dizer coisas tão horríveis. Não vou permitir!

Ele afundou o rosto em seus seios e apertou-a de tal forma que Angie mal podia respirar.

— Como pode fazer com que eu pare de pensar? Nem eu mesmo posso! Sou um homem desesperado! Estou afundado na escuridão até por dentro, e só um tiro de misericórdia pode terminar com esse sofrimento.

— Não! Por favor!

Ela sacudiu a cabeça veementemente e seus cabelos dourados misturaram-se aos cabelos negros de Rique. Ele tremia como se estivesse com febre, e Angie o acariciou murmurando palavras carinhosas, como se faz a uma criança que esfolou o joelho. Mas ele, reagindo como um homem, procurou sua boca com os lábios ardentes. Angie deixou que ele a beijasse e com a mente fria e o coração escaldante, soube que permitiria a Rique que fizesse qualquer coisa que o aliviasse daquele tormento.

Por minutos intermináveis seus lábios mantiveram-se colados um ao outro, até que ele a empurrou com tal violência que ela quase caiu de costas.

— Você viu? Eu só sirvo para magoar as pessoas e não gostaria de ter na consciência o sacrifício de sua virtude. Vá para sua cama, Angie. De repente, me senti muito cansado e com sono.

Angie não argumentou. Virou o quebra-luz para o lado oposto. Um raio de luar iluminou o rosto de Rique.

— Se precisar de alguma coisa durante a noite, não faça cerimônia, Pode chamar-me. Estou no quarto ao lado. Enfermeiras dormem como os gatos, com um olho aberto e outro fechado. Fique com Deus, Rique.

Saiu silenciosamente do quarto e fechou a porta.

Quando entrou em seu dormitório, deixou-se cair sentada na beira da cama e descalçou os sapatos. Estava esgotada emocionalmente, mas sabia que deveria manter-se alerta toda a noite, como um gato, atenta aos mínimos ruídos que ouvisse no quarto de Rique.

Seu estado de espírito era bem pior do que a família de Zaldo imaginava. Com um soluço de angústia, Angie rolou pela cama, de um lado para o outro, para acalmar o sofrimento que sentia.

Sem dúvida, aquilo era amor… amor destituído de romance, de céus estrelados, de música suave à meia-luz, de beijos doces. Era um amor por um homem revoltado, emocionalmente desequilibrado, numa situação desesperadora.

Mas a partir do dia seguinte, ela o guiaria para a luz do sol, faria com que sentisse seus raios quentes e vivificantes sobre a pele; levaria Rique até o mar; o acompanharia pela cidade; faria com que ele sentisse novamente a vibração da vida. Juntos, viveriam cada hora como se fosse um dia. E com essa disposição, Angie ajoelhou-se junto a um nicho que abrigava uma linda Madona e pediu fervorosamente que la Virgen tivesse piedade de Rique de Zaldo.

 

Os dias de Angie começavam cedo, pois ela estava habituada a levantar-se ao alvorecer. Diariamente, costumava tomar primeiro um banho de chuveiro, depois vestir seu uniforme branco, prendia a touca e calçava seus sapatos de salto baixo, antes de deslizar para o quarto de Rique a fim de verificar se ele ainda dormia. Em algumas manhãs, o encontrava ainda estendido em meio às cobertas revoltas, que eram o sinal de que tivera um sono agitado. Em outras, já o encontrava desperto, recostado na cama, fumando uma de suas cigarrilhas prediletas. O fato de conseguir acender sozinho a cigarrilha provava que ele estava com boa coordenação motora. Era um tênue fio de esperança a que Angie se agarrava, mas, no momento, não o obrigava a esforçar-se muito, limitando-se a acompanhá-lo pela casa para fazer o reconhecimento dos cômodos pelo tato.

Ele precisava aprender a usar seus outros sentidos, de forma que nunca se sentisse perdido, sendo capaz de movimentar-se pelos corredores e Pelas escadas confiantemente. Angie estava feliz por ele ter se interessado Por aquele “jogo” — era assim que o chamava — e por já estar quase dominando todo o andar térreo.

A família e os empregados já estavam acostumados a ver aquela dupla. Patrulhando a casa, com Rique andando atrás de Angie, usando as mãos Para memorizar as saliências, as reentrâncias, os ângulos e os objetos. Ele Podia até enganar um estranho que o visse circulando, pois qualquer um Meditaria que estava enxergando.

Ainda havia muitos empecilhos que Angie combatia. Rique ainda estava sujeito a cair em profundas depressões; ainda tinha crises que o levavam a beber em demasia e a responder com agressividade todas as vezes que ela tentava convencê-lo que aquilo lhe fazia mais mal do que bem.

— Ora, vá para o inferno, Angie, e não me aborreça com seus sermões. — Ele se revoltava, sem esbravejar, mas com um timbre de voz tão debochado que era pior do que se gritasse.

Ela tentava deixar as garrafas de bebida fora de seu alcance, mas Rique sempre dava um jeito de conseguir uma e Angie suspeitou de que era Isabel quem lhe dava o conhaque espanhol que ele tanto apreciava. O “fogo líquido”, como ele o chamava.

Angie pensou em relatar suas suspeitas a don Carlos, mas não tinha temperamento para isso e, além do mais, não queria que o pai de Rique pensasse que ela não estava conseguindo controlar a situação. Sua esperança era que Rique bebesse menos, logo que descobrisse que estava fazendo progressos e que aprendesse a combater os medos e frustrações de seu mundo de trevas.

Naquela manhã, Angie ligou o rádio e o deixou tocando baixinho, enquanto se preparava para enfrentar o novo dia. Em seu estilo inimitável, Ray Charles estava cantando never stop loving you, e a canção encheu o coração de Angie de tristeza. “Nunca vou deixar de amar você”, ela repetiu mentalmente.

Com o pente na mão, ficou olhando o céu azul, sem nuvens, e o mar coalhado dos pequenos reflexos dourados de sol. A música terminou e ela deu um suspiro. Às vezes, a letra de uma canção popular podia emocioná-la tanto quanto uma obra-prima da música erudita. Refletiu que a vida real não era muito diferente dos melodramas. A prova é que ela estava ali, na mansão de um fidalgo espanhol, amando e cuidando de um soldado cego que poderia estar condenado à morte. Daria para escrever uma ópera!

Quando falara com o dr. Romaldo para pedir instruções a respeito de Rique, perguntara se ele tinha chances de recuperação. O médico espanhol abrira os braços, num gesto de desalento e dúvida.

— Quem pode saber? Achei melhor não alimentar esperanças em dom Carlos. Rique ainda conserva dentro do crânio partículas de metal tão infiltradas, que uma nova operação para retirá-las não seria recomendável. O cirurgião previu que ele poderá ter uns seis meses de vida normal. A natureza, com suas reações inesperadas, pode prolongar esse prazo por… Dios. Só Deus sabe. Rique tem fuerza. Puxou ao pai. Mas o que ele precisa, mais do que tudo, é desejar enfrentar este mundo que ele não pode mais ver.

O mar lá fora parecia uma pintura de Tumer, pensou Angie. Rique poderia sentir o cheiro da maresia, poderia ouvir os gritos estridentes das aves marinhas em busca de peixes, mas nunca seus olhos conseguiriam ver a beleza daquela paisagem. Só teria vagas lembranças da praia, talvez incluindo a figura desajeitada de uma adolescente de dezesseis anos, de longas tranças e pés descalços.

Muito elegante em seu uniforme de enfermeira, Angie entrou no quarto de Rique e encontrou-o no terraço, encostado ao parapeito. Vestia um robe de seda, que estava entreaberto no peito e tinha os olhos postos naquele mar rebrilhante. Uma cigarrilha pendia de seus lábios.

— Bom dia, Rique. Teve um bom descanso?

— Nada mau. A manhã está com cheiro bem gostoso.

— Torcal de Byas chega hoje — Angie lembrou. — Prometemos ir recebê-lo no cais.

— Não esqueci. — Ele sorriu ligeiramente. — Por que você sempre parece tão mandona quando está de uniforme?

— É a influência que os uniformes exercem sobre as pessoas. Tenho certeza de que você era bem enérgico com os homens que estavam sob seu comando, quando envergava a farda.

— Bem observado — ele murmurou. — Que tal tomarmos nosso desjejum no terraço?

— Boa idéia!

Rique ainda não estava muito propenso a tomar suas refeições com a família, apesar de ter consentido em jantar com eles no salão por uma ou duas vezes. Angie sempre tomava o café da manhã com Rique. Em seguida, vinha o camareiro para ajudá-lo a fazer a barba e a vestir-se. Mas ele estava ficando tão desenvolto nessas duas atividades, principalmente Porque usava um barbeador elétrico, que poderia muito bem dispensar o criado. Mas tinha sido idéia do pai manter um camareiro particular e Rique concordara.

Havia um profundo vínculo entre don Carlos e seu primogênito, apesar de Angie ter notado que Rique era um tanto formal e cerimonioso com o Pai. Só com ela se permitia desabafar seus temores e suas incertezas que, por vezes, o atormentavam durante a noite, fazendo-o acordar banhado de suor.

“Não conte a ninguém”, Rique implorava, “não quero que meu pai se aborreça ainda mais. Ele já tem trabalho e responsabilidades suficientes com que preocupar-se. Esses meus pesadelos serão um segredo entre nós dois, está bem?”

— O que lhe apetece esta manhã? — perguntou Angie.

Ele meditou um pouco, com os olhos voltados diretamente para o sol, sem piscar.

— Bem… café, suco de laranja, presunto defumado, tomates e, talvez, uns biscoitos de amêndoas. E pão com manteiga. Angie arregalou os olhos, admirada e satisfeita.

— Ótimo! Parece que esta manhã você está com um apetite e tanto!

— Estou mesmo. Acho que é todo esse exercício de reconhecimento da casa que você me obriga a fazer. Até você já deve conhecer cada tijolo desta construção, pelas vezes que me fez apalpar as paredes.

— É uma esplêndida casa antiga — disse ela sorrindo. — Uma perfeita combinação do estilo espanhol e do mourisco, assim como você.

— Eu sou assim? Minha mãe era tão clara quanto você.

— Sei disso. Mas, tal como seu pai, você parece mais…

— Pareço mais um árabe?

— Sim. Sim. A cor de sua pele e o formato dos olhos. — Ela interrompeu-se, toda confusa. — Bem, vou mandar preparar o desjejum.

— Angie…

— Que foi?

— Meus olhos parecem cegos?

— Não.

— Não é que me importe com isto. Mas é que hoje, quando formos à cidade, não gostaria que as pessoas ficassem me olhando como um bicho raro.

— É claro que as mulheres vão fazer isso, mas não porque você seja cego.

Apressadamente, Angie dirigiu-se para o interfone e pediu a refeição, incluindo chá e torradas para ela.

Quando voltou, encontrou Rique postado entre as duas janelas, e seu coração deu um salto. Aquela figura tão querida e atraente sempre a surpreendia. Como ela adorava olhar para ele! A convivência só tinha feito aumentar cada vez mais o seu amor.

— Quando uma mulher elogia um espanhol,está tentando o diabo. será que o que você disse faz parte da terapia?

— É um pouco de cada coisa. Você é uma cópia de seu pai, portanto deve saber qual é a sua aparência.

— Você gosta muito de meu pai, não é Angie?

— Gosto sim, muitíssimo — admitiu ela. — Ele personifica tudo o que os britânicos admiram nos espanhóis. Tem uma bela figura, um coração cheio de calor humano, e possui aquela cortesia que as mulheres atribuem a verdadeiros cavalheiros.

— Você tem uma queda por cavalheiros, não é?

— A maioria das mulheres tem — respondeu, sem hesitação. — Sem o cavalheirismo, o mundo estaria perdido. A honra e a integridade desapareceriam e, sem elas, seria impossível a vida em comum.

— Pensei que as mulheres de hoje em dia achassem que abrir portas, beijar mãos e colocar alianças nos dedos antes da noite de núpcias fossem coisas superadas.

— Engano seu — disse Angie. — Algumas de minhas colegas no hospital tiveram aventuras amorosas e se arrependeram amargamente quando se apaixonaram de verdade. Não queriam passar por levianas.

— Coisa que você nunca foi, não é?

— Coisa que eu nunca quis ser, pelo menos não por simples capricho.

— Pelo visto, você está se guardando para o verdadeiro amor, uma atitude que meu pai aprovaria, encantado.

— E você, Rique, não aprova? Não acredito que casasse com uma mulher que tivesse pertencido a outro homem.

— Houve um tempo… — Ergueu os ombros e saiu para o terraço, continuando a falar desanimadamente: — Nunca mais casarei, seja com quem for. Nenhuma mulher é obrigada a ter o ânimo e a paciência necessários para lidar com um homem cego. A mulher não deve ser a protetora e sim a protegida.

— Ela poderia amá-lo tanto que não ia se importar com isso.

Angie seguiu-o até o terraço e sentiu um aperto na garganta quando o viu debruçado perigosamente no parapeito. Da forma mais despreocupada possível, pegou-o pelo braço e o fez sentar-se numa das cadeiras de vime.

— Bela droga de marido eu seria! — exclamou, enquanto se acomodava. — Não. Cabe a Seb dar continuidade ao nome da nossa família, e você, Angie, seria a parceira ideal para ele. Posso falar com meu pai para acertar esse casamento?

— Não se atreva a fazer uma coisa dessas!

Tentou evitar um tom muito agressivo, que denunciasse o quanto se sentira magoada com aquela sugestão. Ele não podia ver e certamente não devia sentir que era ele o dono de seu coração e de seus sentimentos.

Decerto, Rique interpretava como parte das obrigações de uma enfermeira o carinho e os cuidados que ela lhe proporcionava.

— Estou tentado a atrever-me. Assim, você faria parte da família… seria minha hermana do coração. Não gostaria?

— Não! — gritou com todo seu ser — Oh, não!

— Pensei que ia ficar mais entusiasmada com essa perspectiva, minha querida.

— Pois não fiquei.

— Não se anima com a idéia de ter um irmão como eu, ou um marido como Seb?

— Não gosto da idéia dos outros quererem dirigir minha própria vida, mas obrigada da mesma forma.

— Prefere deixar tudo nas mãos do destino?

— É mais aconselhável, não acha?

— Sou espanhol com uma pitada de sangue mouro — ele caçoou, E, como tal, não acho que as jovens saibam o que é melhor para elas. Meu irmão é uma pessoa sensacional e não seria nada extraordinário você vir a amá-lo.

— Ele pode não estar disposto a amar-me — contestou ela, exasperada. — Escute, acho que deveríamos mudar de assunto para evitar uma discussão.

— Não se faça de desentendida. Ou pensa que não sei que você fez um programa com Seb naquela vez em que ele esteve na Inglaterra a negócios? Ele contou tudo a Maya e ela a mim, o irmão mais velho que ela sempre toma por confidente. Maya parecia eufórica com a idéia de você e Seb virem a formar um belo casal. Devo confessar que eu também me entusiasmei com a idéia e tenho certeza de que meu pai concordaria com sua entrada na família.

Para Angie, os limites de sua paciência já estavam sendo ultrapassados.

— Está bem. Saí com Seb umas duas vezes e ele continua a ser aquela pessoa maravilhosa dos velhos tempos. Mas preste atenção, Rique, eu odiarei você por toda a vida se começar a pôr minhocas na cabeça de seu irmão. Se você insinuar, mesmo de leve, que pretendo casar com ele! Você não tem que se meter neste assunto. Estamos entendidos?

— Ah, você não quer que um cego meta seu sensível nariz onde não é chamado?

— Agora você está apelando!

— Não sou muito simpático, não é, Angie?

— Neste momento, não está sendo nem um pouquinho — ela concordou.

— Não tenho a metade da simpatia de Seb, nem a terça parte da cortesia de meu pai. Se você veio para Bayaltar em busca dessas qualidades, está pagando um preço muito caro tendo que suportar-me.

— Talvez eu tenha voltado exclusivamente por sua causa — ela arriscou a dizer.

-— Você deve ser uma masoquista inveterada, pois eu só posso infligir-lhe castigos. Não sou como Seb, que tem todos os sentidos intactos, que tem oportunidade de viajar pelo mundo todo… um mundo cheio de luzes de refletores, festas, carros de luxo e estréias cinematográficas. A perspectiva de uma vida assim não lhe parece excitante?

— Ah, fico frenética, só de ouvir — disse ela, com ironia. — Por favor, pare com essa história de bancar o santo casamenteiro comigo. Não nasci na Espanha. Sou uma enfermeira bem britânica, com uma profissão e toda uma carreira pela frente. Vamos parar por aqui e tomar nosso café, antes que ele esfrie, e eu esquente.

Maria, a criada, levou a bandeja até a mesa do terraço. No meio dela, havia um vasinho de cristal com um botão de rosa.

— Que lindo! — exclamou Angie.

— Foi don Carlos que apanhou no jardim para a señorita. Ele disse que o faz lembrar da canção Rosa da Inglaterra.

— Ah, sim, conheço essa música. — Angie ficou escarlate como a rosa, ciente de que Rique estava prestando atenção em tudo. — Por favor, agradeça a don Carlos por mim, Maria.

— Si señorita.

Rique ficara o tempo todo em silêncio, de punhos cerrados, e Angie apressou-se em despachar a criada.

— Gracias Maria. Está tudo muito apetitoso.

A moça retirou-se com um sorriso, enquanto Angie despejava café na xícara de Rique.

— Rosa da Inglaterra? — ele murmurou baixinho.

— É uma espécie rubra como uma labareda — explicou Angie displicentemente. — Vou prendê-la na lapela do Vestido quando formos à cidade. Bem, aqui estamos, amigo, você tem um farto café da manhã à sua frente.

Ele conseguiu encontrar o açúcar, que despejou no suco de laranja, e localizou facilmente a xícara de café.

— Hum… está delicioso! — comentou, ao saborear o suco. Você está tomando a mesma coisa?

— Não. Pedi suco de laranja, chá e torradas. Também estão ótimos.

— Angie, nunca ninguém lhe disse que você tem um lindo timbre de voz?

Ela parou de beber e ficou olhando para o rapaz sem encontrar resposta.

— O silêncio fala mais alto do que as palavras — disse Rique significativamente. — Tenho a impressão de que quando as pessoas podem ver as fisionomias não prestam atenção nas inflexões da voz. Estou aprendendo rápido, não estou?

— De fato, suas percepções estão excelentes.

Todas aquelas ferroadas irônicas tinham algo a ver com a insinuação anterior: de que ela deveria casar com Seb.

Angie pensou que o amor tinha tantos altos e baixos que até parecia uma montanha-russa. As alturas tornavam as pessoas superexcitadas e as descidas terrivelmente prostradas. Pelo menos, com ela era assim. Não conseguia encontrar um meio-termo feliz. Com relação a Rique, ou tudo era sol, ou tudo era sombra.

Muito solícita, ela retirou o copo usado, e colocou o pão e a manteiga ao alcance das mãos de Rique. Quando comiam sozinhos, ele raramente era desastrado. Como que fascinada, ela viu aquelas mãos longas e morenas partirem o pão e segurarem a faca com destreza, para passar a manteiga numa das fatias. Depois ele localizou o presunto e apanhou um pedaço que levou à boca. Para quem enxergava bem, aquilo poderia parecer uma brincadeira de criança, mas, para Rique, eram pequenas vitórias. Mostravam que ele poderia ser dono de suas ações e que, um dia, conseguiria sair à rua sozinho, só com a ajuda da bengala.

Um cão pastor estava sendo treinado na Inglaterra para ele, mas só dentro de algumas semanas seria despachado para Bayaltar. Don Carlos não quis comprar o cão na Espanha, pois havia um surto de hidrofobia e ele não queria arriscar.

Angie tocou de leve as pétalas aveludadas.da rosa vermelha. Eu nunca saberei quem é meu pai, pensou, com tristeza, e chegou a invejar Maya por ter um pai como don Carlos, mesmo que ele a proibisse de se unir a um homem divorciado. Agora o jovem cantor estava fazendo uma temporada num hotel da Costa do Sol, e o fato de Maya não o ter seguido significava que ainda preferia a segurança do teto paterno. Angie não a condenava.

Lá longe, quando estava na Inglaterra, aquela casa parecia-lhe um sonho esquecido… mas, estando lá, a cada dia ela redescobria partes desse sonho.

Quando Rique preferia ficar sozinho no jardim de inverno, fumando e meditando, ela perambulava por conta própria e, certa vez, aventurou-se a subir na torre de vigia onde o guarda encarregado da vigia estava gozando sua siesta em vez de zelar pela casa. Parecia improvável que naquele clima de paz e tranqüilidade de Bayaltar, alguém pudesse fazer algum mal à família do governador, mas Rique era a prova viva dos perigos a que estava exposto o povo basco, onde um bando de fanáticos apelava para a violência, indiscriminadamente, a fim de balançar o poder

Às vezes, Rique falava no assunto e Angie não tentava impedi-lo e ficava ouvindo, aliviada por ele não poder ver o efeito que aquele tipo de conversa causava nela. Ele descrevia cenas de sangue e dor como a daquele jovem soldado que morrera pronunciando o nome da mulher amada. A esposa, conforme contara Rique, estava prestes a ter um bebê.

— Quer pôr um pouco mais de café na xícara? — Aquele pedido quebrou o fio de seus pensamentos. — Angie, você ainda está aí?

— Estava pensando na vida.

Ela despejou mais café para ambos e adicionou creme ao seu. Rique gostava de café forte e puro

— Estava pensando em Torcal de Byas? Ele não era soldado, era jornalista. Estava tentando conseguir material para a sua coluna de notícias quando foi ferido. Foi levado para o hospital porque era o mais próximo e com condições para tratar desse tipo de acidente. O que ele vai ter que padecer para reajustar-se é de dar pena.

— É casado?

— É viúvo. Acho que isso o levou ao campo de batalha. Só falou na mulher uma vez, mas pude notar que ainda não estava conformado com a morte dela. Ele a levou numa dessas viagens em busca de notícias. Era a Primeira vez que viajavam juntos. Ela foi atropelada por uma motocicleta, quando atravessava uma rua. Ficou em estado de coma por sete semanas Tentaram de tudo para salvá-la. Antes de morrer, Byas ainda conversou com ela. Estavam casados há somente três meses.

— Pobre homem! — Angie sentiu um calafrio percorrê-la. — Teve uma dose bem grande de sofrimento!

— Realmente. Parece que a bondade tem um preço que, às vezes, é a Própria crucificação. Conversei isso com meu pai, mas acabamos discutindo. Ele é um espanhol católico até os ossos.

— E você não é, Rique?

— Em alguns sentidos pode ser que eu seja. Você, que é enfermeira, deve ter notado que o sofrimento atinge muito mais os bons do que os maus. Nunca se perguntou o porquê?

— Sim. Talvez seja uma espécie de provação. Minha própria tia era uma criatura muito bondosa, mas sua vida foi uma trabalheira sem fim, repleta de amarguras que acabaram com ela. Talvez o egoísmo seja um escudo protetor que os altruístas não sabem usar. Mas mesmo assim, eu não gostaria de ser egoísta. E você?

Rique pegou um biscoito, mas em vez de comê-lo partiu-o em pedacinhos.

— Quando fico sentado no jardim de inverno, penso em muitas coisas. À cegueira cria uma espécie de tela mental, onde as imagens e as lembranças se sobrepõem, uma após a outra, e eu fico pensando o que leva as pessoas a seguirem certos caminhos que, às vezes, as conduzem à morte. Faz parte da natureza humana ser capaz de planejar e levar adiante seus planos. Acho que as pessoas deviam pressentir o futuro que as espera.

Rique suspirou e seus olhos a procuraram numa escuridão onde Angie não tinha rosto ou forma, era apenas uma voz que ele ouvia, ou a mão que ocasionalmente ele apertava.

— Se eu tivesse aceito o trabalho no escritório de advocacia de meu tio, não estaria, a esta hora, me sentindo em frente de um paredão sem portas, como que encurralado. Eu poderia encontrar uma saída para um jardim florido, por exemplo, onde alguém estivesse à minha espera.

Você pode cheirar e tocar as flores, Rique. Dê-me a sua mão.

Na mão espalmada, Angie depositou o botão de rosa que o pai dele mandara para ela.

— Sua rosa? — Ele levou a flor ao nariz e aspirou-lhe o perfume. Como você disse, posso sentir o aveludado das pétalas e o aroma inconfundível da rosa. Mas, para mim, esta flor continua sendo uma rosa negra.

Aquelas palavras ficaram ressoando na mente de Angie, enquanto ela se vestia para ir com Rique até a cidade, ao encontro do correspondente de guerra com quem ele fizera amizade no hospital.

Para Rique, as rosas continuariam a ser negras e para Torcal de Bya nunca mais haveria relações sexuais. Porque o cumprimento do dever levava, com tanta freqüência, à adversidade? Era tão injusto!

Penteou os cabelos soltos e escolheu uma bolsa e sandálias que combinassem com seu vestido de malha creme. Ao examinar-se no espelho, achou que estava com uma aparência distinta. Quando passou pelo quarto de Rique para ver se ele já estava pronto, o criado particular avisou-a de que ele já tinha descido e que a esperava lá embaixo.

Angie o encontrou na sala de estar. Vestia um terno claro e uma camisa um pouco mais escura que seu tom de pele. Sua aparência não podia ser melhor. Era difícil acreditar que aquele homem era cego.

— Está muito elegante!

— E você, que roupa está usando? Só espero que não esteja de uniforme!

Ele projetou a bengala no espaço e respirou fundo, reconhecendo o perfume Blue Grass que ela estava usando. Depois veio em sua direção e com a ponta dos dedos percorreu o tecido do vestido e, conseqüentemente, as formas que ele cobria.

— Parece bonito. De que cor é?

— Creme.

— Está usando a rosa?

Seus dedos se moveram pelos ombros dela, até encontrar a flor presa à lapela por um broche em forma de ferradura, que pertencera à mãe de Angie, a quem ela sempre chamou de tia Kit. Estava entre seus parcos pertences e junto ao documento que revelava o segredo de seu nascimento.

A mão de Rique pousou sobre seus cabelos, mas ele a retirou bruscamente, dando um passo para trás, quando seus ouvidos aguçados captaram o ruído de passos, bem antes dela. Aliás, não eram só seus ouvidos que estavam ficando cada vez mais sensíveis. Muitas vezes, ele se desviava de um obstáculo pouco antes de ir ao encontro dele, como se tivesse um sentido extra a adverti-lo. Angie sabia que aquele fenômeno denominava-se “visão facial” e era conseqüência das vibrações emanadas da matéria e que atingiam a pele do rosto. Aquela reação a deixava eufórica, mas ainda não tinha comentado nada com ele. Estava esperando o momento oportuno, quando Rique estivesse suficientemente calmo para aceitar que a visão facial era um dom que nem todas as pessoas cegas Possuíam.

— Meu querido irmão. — Era Maya quem entrara na sala. —: Como você está alinhado! Onde Angie vai levá-lo?

— Estamos indo para o centro, para receber um amigo meu que vai Passar uns tempos na ilha. Você tem algum compromisso?

— Não. — Ela enfiou as mãos nos bolsos dos jeans um tanto surrados.

Há pouco o que fazer por aqui. É um tédio total. Já não é mais como nos velhos tempos, quando íamos velejar ou explorar novos lugares. Às vezes, sinto que não nos restou a mínima parcela de alegria nesta casa.

— Não diga bobagens — censurou o irmão, com severidade. — Você é jovem e saudável e fica aí, perturbando todo o mundo com essa sua primeira contrariedade amorosa. Se esse guitarrista gostasse de você para valer, a teria levado com ele e você teria ido, a despeito da opinião de papai. Minha proposta, garota, é que você vista algo adequado e venha conosco conhecer o meu amigo.

Maya parou para pensar.

— Vocês vão almoçar com ele na cidade?

Rique não respondeu e Angie resolveu tomar as rédeas da situação.

— Até que seria uma boa idéia. Que tal, Rique?

Ele segurou a bengala de tal maneira que parecia querer desfechá-la sobre a cabeça de Angie, por ter sugerido um almoço num lugar público.

— Acho que não é o caso…

— E agora, quem é que está sendo um chato? — provocou Maya. — Meu caro Rique, quem estará ligando se você deixar cair uma batata ou se colocar pimenta no pudim? Você é você, e não existe ninguém nesta ilha para dar-lhe uma mãozinha se precisar. Portanto os outros que se danem. Vamos almoçar na Casa de las Palmas, onde costumávamos ir, lembra-se? Vamos, diga que sim!

Por alguns momentos, o ambiente ficou tenso, como se fosse desabar uma tempestade.

— Pois muito bem — Rique concordou, inesperadamente. — Iremos todos à Casa de las Palmas, se você parar de lamuriar-se por causa daquele guitarrista.

Angie respirou, aliviada, quando Maya passou os braços pelo pescoço do irmão e exclamou:

— Você é um amor!

Rique passou a mão pela cabeça da irmã.

— Esse penteado está parecendo um ninho. Vá dar uma boa escovadela nesses cabelos e vista algo que levante o ânimo de um homem que passou por maus pedaços. Não demore! Angie e eu esperaremos por você no carro..

Maya sorriu para Angie.

— Ele é assim tão mandão, Angie?

— Um demônio. Mas está melhorando aos poucos. Uma destas tardes vou levá-lo lá para cima, na torre de vigia, para descrever-lhe o pôr-do-sol. É uma cena fantástica, não acha?

— E tão romântica:— murmurou Maya. — As escadas que levam à torre são muito estreitas e íngremes. Você acha que ele tem fôlego para tanto, na idade dele?

— Não amole e vá vestir-se! — ordenou Rique, impaciente. — Os homens de minha idade estão no auge!

— Estão mesmo, Angie?

Maya saiu da sala rindo, enquanto Rique apalpava o mostrador de seu relógio de pulso.

— Esse tal cantor feriu o amor-próprio de minha irmã. Papai é um homem muito sagaz ao analisar as pessoas. Acho que ele o teria aceito, apesar de divorciado, se acreditasse realmente na sinceridade dele. No fundo, Maya é uma moça ingênua e pertence a uma família de projeção. Possivelmente, ele queria dar o golpe do baú. Quem sabe da próxima vez ela seja mais feliz no amor.

— Que Deus o ouça — disse Angie, com um meio sorriso, passando o braço no de Rique para levá-lo-até o Mercedes que estava estacionado à porta.

Quando já estavam acomodados nos assentos, Angie comentou: Você é bem latino nas suas atitudes em relação às mulheres, não é verdade? Creio que algumas vezes você se ressente de ter de aceitar a minha ajuda.

— É natural — disse ele, girando o volante que estava à frente de Angie. — Como você acha que posso sentir-me tendo uma mulher na direção do carro e da minha vida?

— Sei que não é fácil, mas você está fazendo disso um cavalo-de-batalha. — Angie ponderou por um minuto e depois fez a tão desejada revelação: — Já deve ter percebido que desenvolveu uma sensibilidade facial e isso é muito importante. É uma espécie de sétimo sentido.

— Dios! E eu deveria sentir-me no sétimo céu por causa disso? — Rique mostrava-se sarcástico. — Eu quero é “ver” as coisas e não apenas senti-las como se fossem teias de aranha roçando-me o rosto.

— É essa a sensação”?

— Mais ou menos.

— Você deveria sentir-se maravilhado — ela incentivou. — Esse é um Poder muito especial. É a capacidade de sentir as vibrações dos corpos Materiais, mesmo os inanimados.

— Existem certos corpos que me fazem vibrar mais do que isso. Não são portas fechadas ou muros de tijolos. São macios, quentes e cheios de curvas… Mas eu não devo ter maus pensamentos, não é mesmo? Não é recomendável para a minha saúde.

— Rique, eu nunca interferi em seus pensamentos, sejam eles quais forem.

— Você acha que não? — ele resmungou. — Tem horas em que eu gostaria de que você fosse pajear alguma velha gagá.

— O que é que há, Rique? — Angie relanceou-lhe um olhar ressentido. — Por que você está querendo brigar comigo? O que foi que eu disse ou fiz que o desagradou?

Ele ficou mudo por um instante, mas em seguida deu um suspiro fundo.

— É esse seu jeito maldito de ser tão otimista! Você acha que isto é vida para um homem? Maldigo a hora em que nasci. E você fica aí, tagarelando sobre sensibilidade facial, como se fosse um terceiro olho! Quer que eu seja franco, enfermeira? Se eu não voltar a enxergar novamente, quero que se dane a minha vida. Não pretendo passar o resto dela vivendo-a pela metade.

— Rique!

— Sou capaz de estrangulá-la com minhas próprias mãos se você disser mais uma vez que posso sentir o calor do sol, mesmo que não o possa ver brilhando no céu. É o mesmo que afirmar que posso sentir um beijo. De acordo! Mas o que eu quero é ver a expressão de desejo no rosto de uma mulher. Dá para entender?

— Dá para entender perfeitamente, especialmente quando você usa essa sua voz cavernosa, e também torna-se evidente que você está se flagelando só porque Maya insistiu para irmos almoçar num restaurante. As pessoas estarão muito ocupadas saboreando sua própria comida e não vão ter tempo de observar de que jeito você come.

— Então eu fiz o meu ángel perder a calma?

Enquanto falava, estendeu a mão sobre a coxa de Angie que ficou tensa àquele toque íntimo.

— Quente, macia e arredondada. Sua sensualidade deve estar um pouco amortecida, se não corresponder a esta carícia.

— Minha sensualidade só compete a mim, não é da sua conta. —Angie retirou a mão dele com raiva, pois detestava ser apalpada daquele jeito tão atrevido.

— Não adianta vir com essas conversas idiotas, pois não vou nunca dizer-lhe covardemente que a vida não vale a pena ser vivida. Seu amigo Torcal tem muito mais motivos de queixar-se do que você, que, pelo menos, pode casar e ter filhos!

— Uma esposa e crianças que nunca poderei ver? — deu uma breve risada. — Um dia desses, o dr. Rómaldo vai encontrar coragem suficiente para dizer-me aquilo que estou cansado de saber. Ele vai apenas confidenciar-me que esta lasca de metal que tenho no cérebro vai abalar minha mente até a loucura. Casar, Angie, com essa ameaça à minha frente, pendurada sobre minha cabeça como uma espada? Você deve estar delirando!

— Não, Rique, por favor. — Ela tapou-lhe a boca com a mão. — Quando você fala assim, só consegue magoar-se e me magoar também.

— Quer dizer que a desapontei, ángel? Você pensava que eu me tornaria um paciente dócil e compreensivo?

— Pois parecia estar ficando. — Ela percorreu as cicatrizes da têmpora com dedos carinhosos. — Não se deixe abater, Rique. Você tem um potencial enorme de combatividade. Pense que esta é a batalha mais importante e decisiva de sua vida. Não quer ser um vencedor?

— Estou em condições de desigualdade. O inimigo está dentro de minha cabeça e eu não posso combater um adversário que não enxergo.

— Não seja mórbido — suplicou ela.

— Você estaria soltando fogos de artifício se estivesse na minha pele?

— Talvez…

— Não existe talvez para este caso. A realidade é que as rosas dos jardins para mim são negras e as mulheres não têm rostos.

— Rique — ele não podia ver o sofrimento estampado no rosto de Angie —, você está tentando fazer com que eu chore?

— Não! Só estou tentando fazê-la compreender de uma vez por todas tudo o que penso.

— Mas eu compreendo, acredite-me!

— Então, diga-me o que vou fazer de minha vida, supondo que ainda tenha uma vida pela frente?

— Já lhe disse. Deveria seguir a carreira de advogado. Você tem talento para isso.

— Por quanto tempo? Mesmo agora que estamos discutindo sobre meu improvável futuro, aquele estilhaço pode estar a caminho de meus centros nervosos, levando-me em direção à loucura.

— Mesmo que isso fosse verdade — ela forçou-se a dizer —, você não deveria passar os dias sentado, à espera que isso aconteça. Você foi um soldado treinado para aproveitar todas as chances. Sempre soube que algumas daquelas balas, disparadas durante a luta, poderiam ter seu endereço.

— É um raciocínio fácil para você, Angie, mas o fato é que a angústia deste suspense está me matando aos poucos. Se estou dormindo, tenho aqueles sonhos horríveis que você já conhece. Se estou acordado, martirizo-me, tentando ver o céu estrelado pela janela. Não pode imaginar a sensação de vazio e de solidão que sinto! Nunca soube o que era medo, antes que este destino cruel me apanhasse em sua rede.

— Meu querido!

Sem mais suportar a angústia que aquelas palavras estavam lhe provocando, ela aproximou-se dele com a intenção de selar-lhe a boca com um beijo.

— Não faça isso! — ele a repeliu. — Não quero sua piedade!

— Você é forte demais para inspirar piedade. Eu só queria compartilhar de sua dor.

— Você não sabe o que está dizendo — disse grosseiramente. — Assim como não posso compartilhar de seu céu azul, você não pode compartilhar de meu céu negro. Não se torne sentimental, enfermeira. Ainda a prefiro otimista.

Ele virou o rosto para o lado oposto. Angie observou a distinção de seu perfil bem talhado e viu os músculos de seus maxilares latejando. Todo seu ser refletia uma dor sem tamanho.

O silêncio prolongou-se até que Maya chegou e acomodou-se no banco de trás. Tinha refeito o penteado e trajava um vestido exuberantemente alegre e colorido.

— Como é? Deu uma melhorada? — indagou Rique.

— Esse seu amigo é assim tão charmoso e importante que mereça tanto todo esse trabalho?

Angie ficou nervosa com aquela pergunta. O que Rique lhe havia confidenciado sobre Torcal de Byas era por demais pessoal e deprimente para ser contado a Maya. Como a vida da jovem fora sempre muito mais resguardada do que a de Angie, ela poderia ficar chocada com a revelação, e seria difícil para Maya se comportar com naturalidade se soubesse de tudo!

Angie levou o Mercedes na direção da estrada que desembocava no centro de Bayaltar. Uma bruma flutuava sobre o mar que estava bastante calmo, com cintilações cor de pérola.

— Como está o mar hoje? — perguntou Rique, ignorando a curiosidade de Maya sobre Torcal.

— Está lindo como se o seu pintor predileto o tivesse transferido para uma tela. Ainda considera Turner o melhor paisagista?

— Não costumo mudar de opinião.

— Às vezes, você sabe ser tão arrogante, Rique! — Maya inclinou-se para a frente e beliscou o pescoço do irmão. — Seu amigo é parecido com você?

— A única coisa que temos em comum são as cicatrizes.

— Até que gosto de suas cicatrizes — disse Maya, abraçando-o pelas costas. — Você fica mais durão, o irmão todo-poderoso, aquele que tomava conta da turma nos velhos tempos. Que dias dourados eram aqueles! Quantas risadas e quantas brincadeiras, lembra-se querido?

— De quase tudo. Existem uns vácuos, principalmente logo depois que voltei para casa, do hospital. Mas agora posso reconstituir os fatos com mais clareza. Só não consigo recordar se Angie era bonita ou feiosa.

— E isso faz diferença?

Angie.fez a pergunta sorrindo, enquanto dirigia o carro num cruzamento onde um paredão coberto por trepadeiras levava à Capella dos lilases, com seu velho adro e um antigo sino de bronze no alto da torre. Algumas árvores sombreavam a capela que pertencia ao cemitério onde Rosa de Zaldo estava enterrado. Angie apressou-se a sair dali.

— Como você imagina que ela seja? — Maya perguntou ao irmão.

— Sua figura está enevoada, perdida numa época longínqua, quando ainda usava tranças e tinha olhos tímidos.

— Gostou da descrição que ele fez de você, Angie?

Maya deu uma risadinha, mas lançou um olhar de cumplicidade à amiga, como se repentinamente tomasse consciência de que agora eram todos adultos e sujeitos a emoções e esperanças que não podiam ser confidenciadas com a leviandade da adolescência.

— Todos nós temos algo com que somos obrigados a conviver pelo resto da vida.

Angie disse aquilo com uma indiferença que estava longe de sentir. Levou o carro para a área de estacionamento, junto às docas, onde lanchas atracavam para o embarque e desembarque de passageiros. Escorregou do assento e deu a volta para ajudar Rique. Quando ele pôs a mão no ombro de Angie para deixar-se conduzir, voltou ao assunto:

— Realmente. Sempre me lembro de você como uma criança. Mas agora, Angie, você se transformou em alguém que não conheço.

— O que é que vocês dois estão cochichando? — quis saber Maya, olhando para Angie e depois para o irmão.

— Só estava perguntando à minha enfermeira se minha roupa está em ordem — disse, em tom de gozação. — Uma das peculiaridades da cegueira é que as roupas perdem seu significado social. Se eu tivesse vindo à cidade de pijama, para mim dava na mesma.

— Oh, Rique!

Se ele havia feito aquele comentário para divertir Maya, o efeito tinha sido o contrário. Os lábios da irmã tremeram e seus olhos ficaram marejados de lágrimas.

— Não posso suportar quando… quando você fala assim.

— Pensei que estivesse sendo engraçado. Enxugue os olhos, nina. Ah, sim, eu sei que você está se derretendo. Angie, quer informá-la sobre meu ouvido de gato e também sobre meu poder de captar as vibrações dos objetos e pessoas que me rodeiam? Aquilo que você chama de sétimo sentido?

— Verdade? — Maya ficou ali, parada, meio confusa, parecendo uma criança com uma lagrimazinha deslizando pelo rosto.

— Rique! Mas isso é ótimo, não acha?

— Certamente que é, hermana. — Seu tom de voz era forçadamente casual. — Espero que seja um meio da natureza para compensar-me a falta de visão. Bem, agora vamos ao encontro de Torcal?

 

O sol estava abrasador e o mar reluzia junto ao porto onde os pescadores descarregavam suas redes abarrotadas de peixes, ao som de canções e gritarias. Casinholas enfileiravam-se ao longo do cais, com suas fachadas semi-encobertas por trepadeiras. íngremes becos de oficinas de sapateiros e artesões, vielas sinuosas com casas avarandadas e centenas de plantas emaranhando-se pelos gradis de ferro formavam a paisagem pitoresca do porto de Bayaltar.

A história da ilha perdia-se nos tempos mais remotos e os sinos das igrejas badalavam no alto dos minaretes das antigas mesquitas. Ainda se viam mulheres totalmente vestidas de preto, com os rostos velados até os olhos, fazendo compras nos bazares, enquanto que as moças espanholas, de olhos escuros e amendoados, serviam-se nas lojas modernas da Rambla de las Virtudes.

Como a ilha situava-se no Mediterrâneo, sofrera inúmeras invasões que tinham deixado marcas nos tipos raciais da população e nas linhas arquitetônicas dos edifícios. Não era difícil para alguém, com um pouco de imaginação, visualizar piratas mouros saqueando o comércio e pulando os muros das casas espanholas para raptar as donzelas guardadas a sete chaves.

Angie estava absorvendo aquela atmosfera romântica, enquanto esperava, ao lado de Rique e Maya, a chegada da lancha do meio-dia.

— Como é ele? Maya interrogou o irmão.

— Como posso saber, nina, Nós nos conhecemos no hospital, quando eu já não enxergava mais, e não ficaria bem eü perguntar às enfermeiras que tipo de homem era meu companheiro de enfermaria.

— Por que não? A mim me parece perfeitamente normal uma pergunta dessas.

— Minha querida e inocente irmãzinha! — Rique deu uma risadinha maliciosa. — Não me admira que você se encante com um animador de shows. Nem eu nem Torcal somos desmunhecados!

— Oh, agora compreendo! — disse Maya, enrubescendo,

— A lancha já está atracando — Angie avisou.

Os passageiros começaram a desembarcar e Angie ficou observando, imaginando como seria Torcal de Byas. Ele tinha sofrido tanto que bem poderia ser uma pessoa fechada e amarga.

O deck foi se esvaziando aos poucos, e ela notou um homem parado, com uma valise na mão. Teve a impressão de que era Torcal de Byas que, por alguma razão, estava hesitando em aproximar-se e apresentar-se. Será que estava constrangido com Maya, que parecia tão jovem e descontraída em seu vestido esvoaçante? Teria se tornado um homem avesso à companhia de mulheres? Levando em consideração as circunstâncias, isso seria bem compreensível.

— Diabos! — Rique apalpou os ponteiros do relógio. — Será que ele não chegou na lancha do meio-dia?

— Parece-me que já o vi — arriscou Angie. — Talvez ele não esperasse que você estivesse acompanhado de duas moças.

— Torcal sabe que sou cego e que iria precisar de alguém que me guiasse para não cair dentro d'água. Vá buscá-lo.

Não foi necessário, pois ele deve ter ouvido Rique falar e encaminhou-se em direção a eles. Era muito alto e estava vestido com uma jaqueta bege e calças marrons. Quando chegou mais perto, Angie ouviu a respiração de Maya tornar-se alterada. Percebeu logo a razão. Torcal de Byas tinha o mesmo porte, a mesma tez morena e o mesmo tipo másculo de Rique. A única diferença é que ele tinha olhos azuis bem claros, que faziam um bonito contraste com a cor de sua pele.

Ele pousou aqueles olhos quase celestes sobre Angie e em seguida olhou para Maya, e, por uma fração de segundo, sua expressão pareceu torturada.

— Torcal? — Rique estendeu a mão, ao ouvir som de passos. —-Como vai essa força, amigo?

— Eu estou bem. — Os dois homens apertaram-se as mãos vigorosamente. — E você me parece bem melhor, Rique. Se não fosse pela bengala, eu pensaria que sua vista alcança até a costa da Espanha!

— Ficaria muito grato a Deus, se assim fosse.

Rique estava olhando diretamente para o outro homem, graças a seu senso de direção. A cicatriz na têmpora parecia bem mais atenuada e o sol emprestava às suas pupilas radiações que davam a ilusão de que estava vendo.

— Deixe que eu lhe apresente las muchachas — disse Rique. — A morena é minha irmã Maya, de quem você já ouviu falar. A jovem loura é minha enfermeira, Angie Hart.

— Muito prazer em conhecer as duas.

Torcal sorriu, mas novamente Angie viu aquela expressão de profundo sofrimento em seus belos olhos azuis.

Ela sabia o porquê daquele lampejo de angústia e quando percebeu que Maya o admirava, fascinada, seu coração apertou-se.

Tendo terminado recentemente um romance, Maya estava vulnerável, e não havia nenhum sinal aparente de que aquele homem, a quem ela via pela primeira vez, tivesse sido vítima de uma mutilação tão grave. Angie só pudera notar em seu rosto magro os resquícios do choque e da dor que ele sofrera, porque era enfermeira e porque Rique lhe havia confidenciado o terrível drama, contando com sua discrição.

— Você é um sujeito de sorte, Rique, protegido assim por duas jovens tão encantadoras.

— Sabe, señor Byas, que é um espanhol pouco comum? Seus olhos são tão azuis! — disse Maya, sorrindo timidamente para ele.

— Minha mãe era escocesa — esclareceu ele. — Meu pai a conheceu em Aberdeen, quando foi comprar um touro reprodutor. Os touros espanhóis são excelentes para a arena, mas sua carne não é das melhores para o açougue. Portanto, ele introduziu a linhagem escocesa, na criação de gado e na família.

— Estou certa de que essa iniciativa teve muito sucesso, señor — afirmou Maya, muito alegre.

— Por favor, pode me chamar simplesmente de Torcal.

— E… acho melhor. E, você, pode me chamar de Maya.

— Um nome asteca. Combina bem com você. — Virou-se para Angie. — Pelo que posso ver, a senhorita é uma autêntica representante da raça inglesa. Seus cabelos denunciam. São tão louros!

Ao ouvir esse comentário, Maya olhou afoitamente para a amiga..— Rique contou-me que o conheceu no hospital. Teve ferimentos muito graves, Torcal?

— Sim, fui gravemente ferido — inconscientemente, ele repuxou os músculos do maxilar, num tique nervoso.

— E já se restabeleceu completamente?

— Sim — respondeu resumidamente, e mudou logo de assunto. — Fiz uma reserva no Castillo de Madrigal. É um bom hotel?

— Excelente — garantiu Rique. — E, agora, que tal irmos todos almoçar? Minha irmã sugeriu que fôssemos até a Casa de las Palmas. É um restaurante típico que freqüentávamos muito. Espero que aprove a escolha.

— Eu preferiria que vocês fossem meus convidados.

— Em absoluto — contradisse Rique, com firmeza. — Quando um amigo meu visita Bayaltar pela primeira vez, faço questão de ser o anfitrião. Angie, dê-me o braço, por favor.

— Si, señor.

Quando pegou a mão de Rique e ajeitou-a sobre seu antebraço, Angie sorriu para Torcal. Enquanto caminhavam rua acima, viu Maya muito entretida, conversando animadamente com o visitante. Mais uma vez pensou: ele é muito atraente e Maya está predisposta a consolar-se de sua recente desilusão.

Perdida em seus devaneios, Angie tropeçou num degrau da ladeira e Rique a reprovou:

— Pensei que fosse eu quem não enxergasse por onde anda.

— Pois bem. Você é um fenômeno e eu sou uma desastrada!

Ela riu, mas por dentro estava angustiada. Possivelmente nem passara pela cabeça de Rique que a irmã pudesse entusiasmar-se pelo amigo. Nunca o vira e não sabia quanto Torcal era parecido com ele — o tipo do homem que chama a atenção de qualquer mulher.

— Poderíamos deixar o carro no estacionamento, continuando a pé até o restaurante — sugeriu Angie. — Fica numa praça perto daqui.

Rique deu uma parada brusca.

— As Ramblas vão estar cheias de gente a esta hora!

— E daí? — Ela apertou firmemente a mão de Rique. — Você tem de acostumar a andar entre as pessoas. Portanto pare de ser neurótico e vamos andando.

— Você, às vezes, tem a suavidade de um ouriço — ele resmungou. — Só lhe peço que não deixe que me atropelem. Nós deveríamos ter um daqueles sininhos que os leprosos usam para abrir caminho.

— Não seja mórbido — ela criticou. — Além do mais, essa moléstia deixou de ser contagiosa faz tempo e atualmente tem até cura.

— O que não é meu caso.

Ela olhou-o com uma simpatia que não pudera transmitir na voz, e guiou-o por entre o povo que percorria, apressado, as estreitas calçadas das Ramblas, com”aquela despreocupação dos que enxergam, sem avaliar a suprema graça de ter olhos que lhes permitia transitar com segurança por entre a multidão.

Angie percebeu que todo aquele movimento e o barulho do trânsito estavam deixando Rique confuso. Sabia que aquilo lhe atacava os nervos, mas o restaurante já estava à vista e logo ele estaria acomodado tomando um drinque.

— Nunca havia notado antes que as pessoas andam com tanta afobação — observou ele. — Parece um estouro de boiada!

Angie deu uma risada, pois um simples sorriso seria inútil para Rique.

— É a hora do rush e a maioria das pessoas está indo almoçar. Só espero que não tenhamos de esperar muito por uma mesa.

Chegaram à praça onde os cafés e restaurantes ao ar livre avançavam pelas calçadas, em meio a uma profusão de plantas e toldos de listras coloridas. No centro da praça, jorrava uma água cristalina de uma fonte de mármore.

Para completar o quadro, as folhas das palmeiras imperiais que ladeavam a praça contrastavam com o azul do céu.

— Gostei daqui — disse Torcal, com entusiasmo. — Rique, não sabia que esta sua ilha era um lugar tão pitoresco.

— As paisagens daqui não mudam, o que no meu caso é uma vantagem. Meu pai se esforça ao máximo para que a ilha não se deixe contaminar por turismo em larga escala. Imagine se começassem a surgir por aí aqueles monstruosos hotéis que estão invadindo toda a Espanha! Seria um horror! A última vez que visitei Ibiza, nem a reconheci, com todos aqueles arranha-céus.

— Mais tarde, gostaria de conhecer don Carlos — disse Torcal. Chegaram à Casa de las Palmas cujas mesas invadiam a calçada, mas o

interior do restaurante, com sua entrada em arco, era mais fresco e acolhedor. Além disso, a maioria das mesas externas estavam ocupadas e eles resolveram entrar. No balcão, vendia-se café em grão, biscoitos e pães.

— Que aroma delicioso, não acha?

Maya olhou para Torcal com vivacidade. Ele retribuiu com um breve sorriso, e seus olhos adquiriram uma estranha coloração sob a luz das lamparinas vermelhas do salão. Encontraram uma mesa vaga para quatro, embaixo de uma tenda com adornos de ferro batido.

Angie olhou ao redor e sua memória reavivou-se. O local tinha mudado pouco durante todos aqueles anos e, quando examinou o cardápio, ela encontrou vários pratos que já provara, principalmente as famosas sardinhas na brasa.

— Bem. o que querem tomar? — perguntou Rique. — Eu vou tomar uma dose dupla de rum.

— Eu prefiro um coquetel de pisco com limão — pediu Torcal

— Não é muito azedo? — quis saber Maya

— Faz meu gênero

— Será que eu vou gostar, Torcal?

Angie notou que Maya pronunciara o nome do rapaz com uma certa hesitação, como se ela tivesse a intuição de que ele não era tão acessível quanto os outros homens.

— Se quiser, experimente. Mas eu acho que uma sangria seria melhor para seu gosto.

— Que gosto você pensa que eu tenho?

Fazendo aquela pergunta, tornou-se ligeiramente corada, como ficam as moças quando estão interessadas por alguém. Angie ficou aliviada por Rique não poder ver as reações da irmã. Mas seus ouvidos sensíveis já deviam ter captado o tom insinuante de sua voz.

— Você é muito jovem — disse Torcal, com indulgência. — Na sua idade, as coisas doces da vida ainda não tiveram tempo de azedar.

— É o que você pensa…

Ficou claro que ela estava se lembrando do guitarrista e do amor frustrado.

— Pois eu gostaria de tomar uma sangria — disse Angie. — Engraçado, as palavras espanholas soam tão bem! Como é tão mais bonito dizer, por exemplo, hermano do que irmão!

— Também acho — concordou Torcal. — Estou admirado, pois você tem muito pouco sotaque estrangeiro. Posso chamá-la de Angie, não posso?

— Claro que sim! É que aprendi espanhol quando vinha a Bayaltar. nos tempos de estudante

— Então você… ah, entendo!

Depois disso. Torcal emudeceu, e quando o garçom” aproximou-se para atender à mesa dirigiu-se diretamente a Rique. A bengala branca estava escondida ao longo do banco que ele compartilhava com Angie

— O que vão pedir, señor

Rique virou-se, procurando localizá-lo, e Angie percebeu que ele estava muito orgulhoso e satisfeito por ter sido julgado uma pessoa normal. Pediu as bebidas sob o olhar apreciativo de Torcal.

Repentinamente o rapaz encarou Angie ansiosamente, como se tivesse tido uma súbita suspeita de que Rique lhe revelara o que tinha acontecido com ele. Angie percebeu e resolveu tomar a iniciativa da conversa:

— Em que lugar da Espanha você mora? — ela perguntou, mantendo a fisionomia neutra.

— Tenho um apartamento em Madri, mas minha família vive em Andaluzia, numa estância de muitos alqueires.

— Ouvi dizer que Andaluzia tem um encanto especial e ainda não foi contaminada pelo “progresso”, como as outras partes da costa espanhola.

— De fato, é uma região perdida no tempo. Assemelha-se muito a Bayaltar. A influência moura ainda permanece inalterada, dando-lhe um toque de mistério. O sol lá é muito quente e luminoso, as fontes são frescas e repousantes, e as mulheres ainda usam véus para cobrir o rosto.

— Que é que você acha desse costume? — perguntou Maya.

— Faz parte do cenário. E você, Rique, qual é a sua opinião?

— Para mim, atualmente, todas as mulheres se escondem por detrás de um véu!

— Oh, perdão! Não tive intenção…

Torcal estava constrangido e pesaroso por ter falado sem pensar.

— Ora, deixe disso, amigo. Prefiro que as pessoas esqueçam que sou cego, portanto fique despreocupado.

— Depois destas férias, você vai ter de voltar para o hospital?

Maya estava falando com Torcal e olhando para ele como se estivesse hipnotizada, sem lembrar-se de que, até há pouco, declarara estar perdidamente apaixonada por outro homem. Apoiara um cotovelo sobre a mesa e o queixo na palma da mão, e parecia mergulhada naqueles dois lagos azuis que eram os olhos de Torcal.

— Não. Tudo o que puderam fazer por mim já fizeram. — Havia uma ponta de ironia em sua voz.

— E você, sente-se melhor? — Maya parecia ansiosa. — Pelo menos, sua aparência está ótima.

— Sinto-me bem, obrigada. — Pareceu aliviado quando o garçom aproximou-se com os drinques e colocou-os sobre a mesa. — Chegaram na hora. Estou com muita sede!

Com muito tato, da maneira mais natural e espontânea possível, Angie colocou o copo de rum na mão de Rique.

— Salud! — Ele ergueu o copo, tomando um longo gole. — Que tal está a sangria?

— Parece o néctar dos deuses!

Realmente estava uma delícia. Era uma mistura de vinho tinto, conhaque, pedaços de laranja e abacaxi, suco de limão e gelo moído.

Durante o almoço, os dois homens conversavam sobre as várias experiências pelas quais tinham passado e Maya ficou muito atenta ao diálogo, como se quisesse saber tudo sobre aquele homem que entrara em sua vida tão inesperadamente.

Deus do céu!, pensou Angie, a irmã de Rique terá problemas reais caso se envolva sentimentalmente com Torcal de Byas. Mesmo que ele se enamorasse dela, nunca poderia proporcionar-lhe um relacionamento normal, de homem e mulher. Duvidava muito que Rique fosse encorajar um romance entre eles sem contar ao pai a que risco Maya estaria expondo-se. Com Torcal, a irmã não poderia ter filhos, e mesmo que Rique considerasse o outro um grande amigo era certo que terminaria a amizade, caso Maya se apaixonasse por ele. Rique era um homem muito sensual e considerava o amor carnal importante, tanto para o homem como para a mulher, e nunca permitiria que Maya fizesse um casamento desse tipo.

Angie meditou sobre isso, muito quieta. Mesmo com aquele verdadeiro banquete, não conseguiria livrar-se da sensação de depressão. Parece que Rique adivinhou seu estado de ânimo, pois pediu ao garçom uma garrafa de vinho de uma marca especial que, como disse ele, tinha o poder de afogar qualquer tristeza.

— Vamos sair daqui trocando as pernas — disse Maya, rindo. — Faz tempo que não o vejo assim tão animado, Rique. O mérito será do vinho ou de Angie?

— Responda você, Angie — provocou Rique. — O que me diz? As honras devem ser suas?

— Eu diria que sim. — Torcal olhou para Angie com aquele sorriso triste que contrastava com a luminosidade de seus olhos azuis. — A enfermeira que me arrumaram não tinha nada a ver com a sua, Rique. Devia ter, pelo menos, dois metros de altura e parecia uma betoneira russa.

— Tem horas que eu acho que Rique merecia ter um tipo desses como enfermeira — disse Maya. — Você precisa ver como, às vezes, ele é ingrato para com Angie. E ela tem uma paciência! Até fica lendo para ele durante a tarde.

— E o que tem isso? — Rique levou o copo de vinho ao nariz para aspirar-lhe o aroma. — Temos uma considerável coleção de romances na biblioteca. Minha mãe adorava ler e eu acho que é uma boa maneira de passar o tempo. Qual é mesmo o título do livro que estamos lendo agora?

— O Último Chá do General Yen. Estou adorando o enredo. É muito original e romântico.

— Você é romântica? — perguntou Torcal.

— Bem… acho que tenho uma boa dose de romantismo, apesar de que isso está fora de moda em nossos dias. Os livros modernos, assim como as peças de teatro e os filmes, nos fazem sofrer com uma realidade que já nos massacra diariamente. Para nós, enfermeiras, é duro agüentar. Particularmente, eu prefiro mais as obras que nos façam esquecer as desgraças. Mas suponho que você, como jornalista, prefira o lado realista da vida, não é mesmo?

— Você acha? — Torcal tornou-se reflexivo. — Meditei muito quando estava naquela cama de hospital e cheguei à conclusão de que talvez fosse melhor para mim voltar para a casa paterna, em Andaluzia, e ficar em contato com a natureza. Meu pai está envelhecendo e eu gostaria de sossegar um pouco. Pode ser que eu resolva sujar as mãos de terra, em vez de tinta de caneta.

— É uma excelente idéia — aprovou Rique. — Você poderia sempre voltar à sua profissão, caso não se adaptasse. Bem que eu desejaria essa espécie de alternativa.

— Rique, detesto quando você fala desse jeito — protestou Maya.

— Você está ficando muito descrente.

— Pode ser. Mas há de convir que não há muita coisa que eu possa fazer.

— Poderia estudar advocacia, conforme Angie sugeriu.

— E como faria para ler os livros e as apostilas? Duvido que exista esse material em braile.

— Acho que existem fitas gravadas sobre a matéria. Poderíamos pesquisar…

— Poupe-se o trabalho — ele retrucou, incisivo. — Não estou assim tão interessado. Então, todo mundo almoçou bem?

— Foi fora de série — disse Torcal, com entusiasmo. — E o clima da ilha estimula ainda mais o apetite. Desde garoto não comia uma torta de chocolate com tanto prazer.

— Estava uma delícia, não é?

Maya o tinha convencido a experimentar aquela sobremesa que era uma especialidade da casa. Tomou mais um gole de vinho e olhou para Torcal como se quisesse descobrir se ele a achava tão doce e apetitosa quanto a torta.

Angie apertou o cálice de vinho com força. Não tinha mais dúvidas de que Maya se deixara enfeitiçar pelo encanto daqueles olhos azuis e pelo charme de um homem mais velho do que ela. Podia compreender aquela atração, pois sentira a mesma coisa por Rique.

Mas, pelo menos, Angie tinha uma profissão a que agarrar-se quando terminasse aquele interlúdio e voltasse aos hospitais da Inglaterra para um trabalho tão intenso que não lhe sobraria tempo para lamúrias. Levou o cálice aos lábios e tomou um longo gole do vinho. Não queria pensar no momento em que deveria deixar Rique. Gostaria que o tempo parasse para sempre e que os quatro pudessem continuar ali, como estavam agora, na atmosfera acolhedora do restaurante. Mas no momento em que essa idéia lhe atravessou a mente, Rique pediu-lhe para chamar o garçom a fim de pagar a conta.

— Traga a nota para mim — pediu Torcal ao garçom. — Faço questão, Rique. Há muito tempo não como tão bem, até esqueci dos meus problemas.

— Se insiste…

O jeito como Torcal tinha dito aquilo estimulou a curiosidade de Maya, que colocou sua mão sobre a dele, como para querer confortá-lo de algo que ela não sabia o que era.

— Por quanto tempo vai ficar aqui? — indagou.

— Ainda não fiz meus planos.

— Sabe, conheço cada palmo desta ilha, os recantos mais bonitos, e faço questão de mostrá-los. É um lugar muito interessante para ser visitado, com muitas praias. Temos uma praia junto à residência. Gosta de nadar?

— Não muito. — Ele retirou a mão. — Gosto de praticar iatismo, mas não nado.

— Acho a natação um esporte maravilhoso. Com certeza você aprendeu a nadar quando criança.

— Aprendi, mas não é um esporte que me atrai.

— Maya, você parece uma sarna! — Rique chamou-lhe a atenção, rispidamente. — Torcal veio a Bayaltar para descansar — Portanto deixe que ele escolha seus próprios divertimentos, que não precisam obrigatoriamente incluir seus programas turísticos.

— Eu… eu sinto muito. Não pretendia ser insistente. — Logo os olhos de Maya ficaram marejados de lágrimas e ela levantou-se, propondo: — Angie, você vem comigo?

As duas foram em direção ao toalete das senhoras e Maya queixou-se, muito ressentida:

— Rique não precisava falar comigo daquele jeito só porque me ofereci para mostrar a ilha a Torcal.

— É que seu irmão sabe melhor o que o amigo sofreu e imagina que ele possa estar com os nervos abalados ainda.

Pouco depois, quando as duas estavam em frente ao espelho retocando a maquilagem Maya comentou:

— Torcal é tão atraente! É um tipo muito interessante! Tem uns olhos que dão arrepios na espinha. O que achou dele?

— Cativante, sem dúvida, mas é um enigma. Seja prudente, Maya. Pode ser que você esteja fazendo uma transferência dos sentimentos que tinha por…

— Não! — Maya a interrompeu, sacudindo a cabeça com veemência. — Com Roddy está tudo acabado. E nem há termos de comparação entre os dois. Torcal é um verdadeiro homem. Tão envolvente e sedutor, assim como… como um oceano profundo!

— Nesse ponto, estou de acordo. Você foi criada numa praia, portanto sabe bem que com o mar não se brinca.

— Está querendo me dizer que há algum mistério nele? — Maya olhou a amiga interrogativamente.

— Existem pessoas com as quais devemos ter cautela.

— Você não acha ele e Rique parecidos?

— Ele e Rique passaram por situações traumatizantes que podem trazer resultados imprevistos.

— Rique ficou cego e posso entender a amargura que sente, mas Forcal… qualquer um pode ver que ele se recuperou totalmente. Se tem alguma cicatriz, está bem oculta.

— Não é bem assim — disse Angie, com calma. — Cicatrizes nem sempre são visíveis, o que não quer dizer que não existam.

— Angie, o que foi que Rique lhe contou sobre Torcal? Ele revelou-lhe algo, não foi? E deve ser alguma coisa muito séria. Ele tem algum problema?

— Parece que sim.

— Estou desconfiando de que você sabe de toda a verdade e não quer contar-me. Por que não, Angie? Você está de olho nele?

Angie levou um susto.

— Pelo amor de Deus, Maya! O que é isto? Num dia você morre deamores por um guitarrista, no dia seguinte já acha que está apaixonada por um homem que mal conhece. O amor não vai chegando assim, de uma hora para outra. Leva tempo para alguém apaixonar-se de verdade. Você está confundindo amor com atração.

— Está falando por experiência própria? — Os olhos cor de âmbar de Maya faiscavam de ciúme. — Você está amando?

— Já estou cansada dessa conversa.

Angie foi na direção da porta, decidida, e estava quase abrindo-a, quando Maya segurou-lhe o braço com os dedos tensos.

— Nunca tivemos segredos uma para com a outra, mas ultimamente você anda tão reservada! Parece que sua profissão tornou-a mais adulta e séria. Por que você deveria saber de coisas que eu não sei?

— Se quer ser tratada como adulta, comporte-se como tal — retrucou Angie. — Já sabemos que Torcal é um homem atraente, mas passou por uma experiência traumatizante, e você não vai querer imaginar que ele veio a Bayaltar com intenção de envolver-se sentimentalmente com alguém. Não se afobe, Maya. Ele, antes, tem de chegar a uma conclusão sobre… sobre ele mesmo.

— O que é que está me escondendo? — insistiu Maya. — Por acaso, ele é divorciado?

— Não. É viúvo. Sua esposa morreu num acidente, poucos meses depois de casados.

— Meu Jesus! — Maya exclamou. — Não é à toa que eu senti que ele se afasta das pessoas, ao mesmo tempo que gostaria de tê-las por perto. Pobre Torcal, deve ter medo de ser feliz e ser atingido novamente pela fatalidade. Adoraria poder ajudá-lo.

— Maya, você é quem poderia ser atingida novamente. — Angie encarou a amiga com a fisionomia preocupada. — Torcal tem uma bela aparência, mas tudo o que lhe aconteceu é recente e ele está sofrendo muito.

— Ele tem alguma coisa que me toca, que me atinge bem aqui — Maya apontou para o coração. — Quando ele me olha com aqueles olhos claros… fico enlouquecida! Nunca me aconteceu uma coisa destas. Você entende do que estou falando?

— É lógico que entendo — Angie afirmou com segurança. — Mas não faça confusão de sentimentos. Como ele foi ferido, pode ser que lhe inspire uma espécie de ternura, assim como a que sinto pelo seu irmão.

— É diferente. Você conhece Rique desde criança e o considera como irmão. Você já faz parte da família!

— Sim… talvez.

Aquela afirmação doeu fundo, pois nem por um segundo Angie considerara Rique um irmão. Quando ele se.apoiava em seu braço para ser guiado, seu corpo reagia àquele contato. Quando ele caía naquela melancolia profunda, ninguém sabia o quanto ela batalhava para levantar o seu ânimo. Angie sentia na própria carne todas as dores e angústias dele. Estava tão sintonizada com ele, que era capaz de acordar durante a noite, sem ser chamada, pressentindo que Rique estava desperto, precisando de atenção. Quantas vezes descera de penhoar, em plena madrugada, para preparar-lhe uma bebida quente e reconfortante. Ninguém sabia que, às vezes, ela passava a noite toda em claro, sentada ao lado da cama de Rique, velando seu sono agitado.

— Você deve estar pensando que sou volúvel — disse Maya. — Ainda mais você, que é o tipo da criatura capaz de amar um homem até a morte, mesmo sem ser amada.

— No caso de nós estarmos falando de amor e não de fantasias — Angie enfrentou a outra corajosamente —, é preciso esclarecer que o amor não é uma chave mágica que nos faz entrar no reino do romance e do encantamento. Muitas vezes o amor exige sacrifícios, tolerância e ternura, de uma qualidade muito especial. Não acho que você seja volúvel, Maya. Mas acredito que tenha uma imaginação romântica muito exaltada e que veja Torcal como um belo herói de capa e espada, ao invés de vê-lo sob o prisma da realidade, como um homem cujas emoções e cujo corpo foram literalmente massacrados.

— Quer dizer que você está me prevenindo para não me apaixonar por ele? É isso?

— Estou apenas aconselhando.

— Dispenso seus conselhos!

Uma faísca de raiva acendeu os olhos de Maya.

— Você também gostou dele e pretende afastar-me, assustando-me com suas alusões e indiretas. Vi como você olhou para Torcal durante o almoço. E pensar que depois de todos estes anos, iríamos brigar por causa de um homem! Não quero desentender-me com você, Angie, mas, em relação a Torcal, melhor seria que você se metesse com sua própria vida!

— Pois muito bem — disse Angie tranqüilamente. — É isso mesmo o que farei. Mas depois não vá correr para Rique se acontecer alguma coisa que a venha ferir mais tarde.

— O que está insinuando? — irrompeu Maya. Quê, por acaso, Torcal é um homem violento?

— Não é isso, Maya.

— Então o que há com ele para você fazer tantas objeções? Quero saber, conte-me

— Não cabe a mim contar-lhe.

— Rique sabe, não é? Pois vou perguntar a ele.

— Você não vai fazer nada disso! — De repente, Angie sentiu-se tomada de raiva. — Você tornou-se uma moça caprichosa, Maya, e quer tudo o que lhe agrada, como uma criança numa confeitaria. Esses dois homens sofreram as penas do inferno, portanto não aborreça Rique, e deixe Torcal em paz se ele assim o preferir. Comece a comportar-se como uma mulher!

Maya ficou olhando para Angie de boca aberta, como se as palavras que queria dizer tivessem ficado travadas pela explosão da amiga

— A bobona aqui está começando a entender — disse, por fim. — É Rique quem a preocupa tanto. É Rique! E… eu… eu acho que você está apaixonada por ele!

— Estou cuidando dele e ele é só meu paciente. — Angie aprumou-se e guardou o batom na bolsa, evitando olhar para Maya. — Ele está fazendo progressos e não quero que tenha aborrecimentos, e por certo vaificar bastante aborrecido se souber que você se enamorou de Torcal.

— Você é que se enamorou pelo meu irmão, não é verdade? — Maya alcançou Angie e segurou-lhe a mão que estava fechando a bolsa. — Não sei como não adivinhei isto antes. Ninguém poderia ser tão dedicada como você tem sido, se não estivesse apaixonada. Quando telefonei para que viesse ser sua enfermeira, você não hesitou nem por um segundo! E eu que pensei que era uma prova de amizade! Mas, na verdade, o tempo todo… você… Oh, nem sei o que dizer, Angie. Ele sabe disso?

Angie rendeu-se.

— Não sabe e nem deve saber, Maya. Portanto, prometa-me nunca deixar escapar uma palavra sequer! —— E por que ele não pode saber?

— Porque se ele ficar bom eu não sou a moça adequada para ele. Assim como Torcal de Byas não é o homem apropriado para você, Maya.

— Você parece tão segura do que diz! — Maya parecia estar cedendo. — Você acha que ele ainda está apaixonado pela falecida esposa?

Angie assentiu, pois esse era o argumento mais fácil e mais à mão para desenganar Maya, e até poderia ser verdade.

— Rique também pensa assim?

— Também. Agora vamos indo? Eles devem estar estranhando nossa demora.

— Angie, eu gostaria de ter a sua força espiritual. Angie sorriu ligeiramente.

— Isso vem com a maturidade e, por favor, o que dissemos aqui é um assunto estritamente confidencial. O que eu posso sentir por seu irmão é problema meu

— Angie, explique-me só mais uma coisa: por que você acha que não é adequada para ele?

— Porque ele é filho de Carlos de Zaldo e seu pai há de querer para ele uma moça do mesmo nível social e de sangue espanhol. — E continuou, num tom casual: — Além do mais, seu irmão nunca demonstrou o mínimo interesse por mim. Nunca fui seu tipo. Sabe, Maya, eu sou vítima da imagem que ele faz de mim. Ele ainda me vê como aquela adolescente de trancinhas. Você pode imaginar um homem adulto e vivido como Rique apaixonado por uma imagem daquelas? Cada dia que passa, ele sente-se mais seguro, dominando a cegueira, e ao mesmo tempo sua saúde geral melhora. Vai chegar o dia, e não vai demorar muito, em que, apesar da falta de visão, ele vai tornar a ser aquele Rique arrogante, prepotente e autoritário, seguro de si. Minha missão estará terminada, e tudo o que vai me restar será dizer-lhe adios, dar meia-volta e ir embora para minha terra. Veja bem, existem coisas que não podem ser do jeito que a gente quer. Não pense que a dependência que Rique sente com relação a mim seja um meio fácil para se chegar até ele. Rique, de fato, chama por mim nas noites de insônia, quando está atormentado, e eu poderia tornar-me indispensável. Mas odeio a dependência, não é do meu feitio.

— Em vez disso, você prefere O Último Chá do General Yen. — Inesperadamente, lágrimas assomaram aos olhos de Maya, e como faziam no tempo de estudantes, as duas se abraçaram, emocionadas. — Estou contente de ser ainda sua amiga.

— Eu também — disse Angie. — Mas agora vamos ao encontro deles antes que Rique mande alguém vir buscar-nos.

Maya deu uma gargalhada e enxugou a última lágrima.

— Você o conhece a fundo, não?

— Conheço-o bem demais — respondeu Angie, com amargura, sentindo seus próprios olhos arderem, a ponto de desaguarem num pranto sentido.

— Acha que serei desagradável se eu convidar Torcal para um pequeno giro? Prometo não ser uma “sarna”. Compreendo que ele deve ter passado por maus pedaços e essa é uma das razões pelas quais gosto dele. Quero ajudá-lo a esquecer seus dissabores.

Mas ela sabia que, para Torcal, não haveria meios para esquecer. Se Angie tinha conseguido entender bem o estado de espírito da amiga, não podia, de jeito nenhum, encorajar uma jovem vibrante e cheia de vida como Maya a apaixonar-se por ele.

— Seja sua amiga — propôs Angie. — Assim como sou de Rique. Aceite o fato de que é isso o que ele espera de você.

— E se ele esperar mais do que isso, existe alguma razão assim tão terrível para que eu deva recusar-me?

— Pode ser que exista — disse Angie, com cautela.

— Está bem — Maya assentiu com um levantar de ombros. — Viverei intensamente cada dia, assim como você faz, Angie, e não pedirei a lua, se meu destino é ter somente um punhado de estrelas. Se isto é ser adulta eu já sou uma.

Foram ao encontro dos dois homens e, de forma casual, Maya convidou Torcal para dar um passeio com ela. Iriam visitar uma iglesia próxima e uns bazares.

— Você vai sentir-se como se estivesse no Marrocos!

— Como posso resistir? — Torcal bateu de leve no braço do amigo. — Você se incomoda se eu tomar sua irmã como guia durante uma horinha?

— De forma alguma — retrucou Rique. — Vá com ela olhar os arredores.

— Gracias, Rique.

Quando o par se afastou, Rique disse:

— Angie, precisamos evitar que Maya comece a alimentar idéias sobre Torcal. Espero que ele entenda.

— Tenho certeza de que ele entende — Angie hesitou por um momento. — Mas seria assim tão desastroso se eles se enamorassem?

— Nenhum homem tem o direito de amar uma mulher se não pode dar-lhe um amor completo. Não falo só por ele, mas por mim também. Não estou julgando Torcal e excluindo minhas próprias limitações. Se uma mulher está apta a amar, tem de fazê-lo de uma forma integral. Em matéria de amor, tem que ser tudo ou nada!

Angie examinou o rosto triste de Rique, onde o sol batia em cheio, sem que ele ao menos piscasse. Aqueles olhos que não podiam ver o brilho do sol não viam também a palidez das faces de Angie. O que aconteceria se ela se arriscasse a contar-lhe que o amava, com ou sem limitações? Será que ele a consideraria um estorvo e a mandaria embora? Pediria ao pai para dispensá-la? Ou aceitaria seu amor para transformá-la numa vítima, baseado na filosofia de que só se pode machucar as pessoas a quem realmente amamos?

A tentação era muito grande… Rique acreditava que iria morrer num futuro próximo e isso poderia torná-lo inabalável. Seria arriscar-se ao ridículo inutilmente. De qualquer forma, ela não iria confessar seus sentimentos enquanto estivessem ali, naquela praça tumultuada, sob um sol abrasador. De repente, teve um sobressalto.

— Rique! Você nem imagina quem vem vindo! — ela anunciou, estupefata.

Quem atravessava a praça naquele momento era um homem de bela figura, muito alto e elegante, vestindo um terno esporte de linho branco. Bateu amistosamente no ombro de Rique, quando se aproximou, com os olhos negros muito abertos de surpresa.

— Meu irmão! E.eu que esperava encontrar um pobre inválido! Não sabia que você estava tão bem! Ninguém me escreveu para contar-me que você voltou a enxergar.

— Seb! — O nome foi pronunciado por Angie, quase num sussurro, pois a emoção enfraquecera sua voz.

— Seb? — Rique repetiu o nome. — É você?

Sebastian de Zaldo ficou parado, observando o irmão, e pouco a pouco seu entusiasmo arrefeceu. Olhou interrogativamente para Angie, que meneou a cabeça.

— Por todos os santos! — Seb respirou fundo, os braços estendidos para o irmão. — Você está com tão ótima aparência que eu pensei…

— As aparências enganam, hermano. Na verdade, estou apenas imaginando que você deva estar com a mesma boa aparência de sempre. Como chegou assim, tão inesperadamente? Veio na lancha?

— Não — Seb ainda olhava insistentemente para o irmão como se não pudesse acreditar que aqueles olhos tão vivos e expressivos não enxergavam. — Vim no helicóptero da empresa e acabei de almoçar com o piloto. Oh, Rique, você está incrivelmente bem e é duro acreditar que você não possa…

— É duro acreditar que sou cego? — Rique nunca parecera tão sarcástico. — Você deveria ter empregado a palavra certa, irmão, pois assim vai ser enquanto eu viver.

— Eu… eu nem sei o que dizer-lhe, meu velho.

Seb passou o braço pelo ombro do irmão, num gesto protetor.

— Então não diga nada, Seb. Só admita os fatos.

— Você já consultou especialistas?

— Já fui examinado por uma meia dúzia. Você acha que nosso pai deixaria por menos? Agora satisfaça-me uma curiosidade: que tal é minha enfermeira?

Seb deu um sorrisinho malandro e percorreu com os olhos a esbelta figura de Angie.

— Bonita não seria bem o termo— Seb informou o irmão com os olhos pregados em Angie. — Eu diria que ela é linda! Já tinha achado isso em Londres, e agora, que a revejo aqui na ilha, só posso confirmar minha opinião.

— Fico contente — murmurou Rique. — Vocês dois devem formar um belo par. Que pena que não os possa ver juntos, lado a lado.

Angie estremeceu ao ouvir aquelas palavras. Sua vontade era atirar-se nos braços de Rique e gritar-lhe o que seu coração dizia em silêncio: Rique! é só você que eu quero… só você que eu amo… agora e sempre!

 

Angie estava tomando chá gelado com limão, sentada à sombra de um jacarandá todo florido, num dos recantos do pátio. Através da folhagem, e logo abaixo do platô onde fora erguida a Casera de Nusta, pequenas luzes rebrilhavam sobre a água do mar, como se fossem lantejoulas.

A Casa da Virgem do Sol fora o nome dado ao lugar pelo primeiro Carlos de Zaldo que ali fundara seu lar, após o retorno de viagens sucessivas, feitas num dos navios do rei Felipe da Espanha, como capitão de esquadra. Com ele, trouxera a noiva, uma jovem de sangue peruano, em cuja homenagem batizara a casa.

O atual clã dos Zaldo era descendente direto dessa união e todos eles apresentavam, cada um a seu modo, uma impetuosidade e uma força férrea que nunca diminuíra através das gerações.

Até mesmo Sebastian, que enveredara pelo caminho da indústria cinematográfica, após sua volta à ilha, mostrava ser a personificação dos antigos conquistadores, quando Drake, durante o reinado da rainha Elizabete I, fora incumbido de derrotar e desbaratar as galeras da Armada Espanhola. A vitória britânica havia sido parcial e relativa. Apesar de ter afundado inúmeros navios, ele não pudera dobrar o orgulho dos espanhóis, um povo que acreditava convictamente na lealdade, solidariedade e união da família. Sebastian tinha, de forma evidente, esses traços em sua personalidade.

Decidira que Rique poderia muito bem voltar a praticar alguns de seus esportes favoritos, tais como cavalgar, pescar em alto mar e talvez exercitar-se no arco e flecha.

— Você deve estar tão louco quanto esses personagens de seus filmes — objetou Rique. — Como poderei saber onde estou levando o cavalo ou para onde estou atirando as flechas?

— Com o tempo você aprenderá — assegurou Seb. — O principal é praticar. Isso não é uma olimpíada e quem vai estar lá ligando se você acertar ou não no alvo? Essa idéia não o entusiasma?

Rique dera um sorriso e o coração de Angie disparara na expectativa de que ele aceitasse.

— Pois muito bem — ele concordara. — Nessa brincadeira, vou acabar quebrando o pescoço, mas será melhor do que morrer numa cama.

Angie não esqueceria a cara de mártir que ele fizera ao dizer isso, nem do olhar de inquietação que Seb lhe lançara.

— Cristo! Eu deveria dar-lhe um soco no queixo quando você fala dessa maneira! Nenhuma droga de bomba terrorista vai conseguir matá-lo, Rique. Você precisa acreditar nisto.

— Já que você acredita tanto, acredite também por mim. Aliás, você e Angie.

O gelo tilintou no copo de Angie e ela tomou mais um gole de chá. A brisa vinda do mar alvoroçou as folhas dos eucaliptos e passarinhos voaram. Ela olhou ao redor do pátio e seus olhos pousaram na esguia torre de vigia que se entrevia mais ao longe, entre as copas das tílias.

Desde que Seb chegara, Rique o instigava constantemente a fazer companhia a Angie. “Por que você e Angie não vão caminhar um pouco na praia?”, ou então: “Hoje à noite bem que vocês dois poderiam ir até a cidade”.

— Por favor Rique! — ela reclamara. — Seu irmão é adulto o suficiente para escolher suas próprias companhias.

Mas Seb parecia ter prazer na companhia dela, e Angie tinha de admitir que ele era um sedativo para os sofrimentos que Rique lhe infligia. Seb era encantador, mas não era nem um pouco presunçoso. Tinham dançado no El Moroco e velejado no Catalina — a escuna de don Carlos —, gostava dela e não fazia segredo disso, enquanto Angie escondia seu próprio segredo no fundo da alma. Em Maya ela podia confiar, mas ultimamente a jovem se esgueirava para dentro e para fora da casa, com olhar ausente e sonhador. Não contara a ninguém que estava se encontrando com Torcal, mas para Angie era claro que os dois se viam com freqüência.

Em certa ocasião, o jornalista viera jantar na residência e don Carlos ficara muito bem impressionado com ele. Rique não fizera comentários, mas Angie notara a tensão de seus maxilares. Sabia que Rique gostava de Torcal, mas, se fosse necessário, não hesitaria em dizer ao amigo que Maya merecia um amor pleno e gratificante. Seria tão severo e rude com Torcal quanto era consigo mesmo.

Angie continuava ali, sentada na espreguiçadeira de vime, com os pensamentos zumbindo em sua cabeça como as abelhas que pousavam nas flores do pátio. Não ouvia nada a não ser o eco das palavras de Rique. Não sentia nada, a não ser a mistura de dor e prazer das últimas semanas passadas ao lado dele.

Suspirou e desejou ardentemente que houvesse cura para o amor. Mas, tal como certas moléstias, não havia remédio para minorar seus sofrimentos. A única forma de encontrar um pouco de alívio e paz seria desligar-se da causa de seus males.

— Tão quieta e tão perdida em sonhos!

Ela olhou em volta e viu Seb encostado ali, num jacarandá. Havia uma inquietante gentileza naqueles olhos negros. Ele se parecia com Rique, mas era como se tivesse sido moldado numa matriz de contornos mais amenos, e mesmo sua pele não era tão intensamente morena quanto a do irmão.

Quando Rique olhava para uma mulher, mesmo com os olhos cegos, transmitia uma sensação de perigo. Essa ameaça parecia não fazer parte da natureza de Seb e era certo o que Rique dissera dele, Seb era muito mais amável e gentil, e nunca teria sido um soldado por opção, pronto para combater e matar.

— A sua beleza sempre me surpreende. — Tirou o charuto da boca e sorriu. — É uma beleza legítima. Esses seus cabelos cor de ouro me dão uma sensação de frescor. Já vi tanto artificialismo nestes últimos anos de cinema, que olhar para você, Angie, é um repouso para os olhos.

— Você gosta de sua atividade — ela afirmou, aceitando o elogio com uma indiferença que não teria tido, se partisse de Rique.

Só de pensar que Rique pudesse um dia dizer-lhe algo tão lisonjeiro, seu coração vibrava. Mas o maior louvor que já recebera dele fora a declaração de que a considerava a mulher menos bisbilhoteira que jamais conhecera… o que era uma forma velada de dizer-lhe que ela não lhe interessava e que era bom manter-se à distância.

— Gosto muito. Eu me sinto, muitas vezes, gratificado pelo meu trabalho, como você deve sentir-se, por ajudar alguém da forma como você tem ajudado Rique.

— Tudo o que tenho feito é ajudar Rique a ajudar-se. Sua mente é muito perceptiva e seus dedos têm uma sensibilidade excepcional, por isso ele faz tantos progressos.

— Mas ainda está muito amargo e inconformado. — A fisionomia de Seb ensombreceu. — Outro dia, enquanto estávamos cavalgando, fiz um comentário sobre os efeitos salutares do sol e ele contestou: “Noite… dia, que diferença faz? Para mim, dá tudo na mesma!” Fiquei profundamente chocado. É uma situação muito dura para quem sempre foi um homem de ação. Rique era um soldado e tanto e teria chegado aos pontos mais elevados. Agora, pobre rapaz, sente-se por baixo, num buraco sem saída. Dios! E como deve ser escuro dentro daquele buraco! Nem sei como ele consegue suportar.

— Rique tem de suportar isso, Seb. Tem de aprender a conviver com a escuridão.

— Seb percebeu a seriedade do olhar de Angie.

— Ele não acredita que vai conseguir superar, não é mesmo? O que lhe disse o médico? Quais são as suas chances de recuperação?

— O dr. Ronaldo está inseguro. Rique ainda tem no crânio fragmentos de metal, que podem causar uma infecção ou mesmo deslocarem-se… — Abriu os braços num gesto eloqüente. — Alguns pacientes nessas condições jogam esses perigos para o fundo do inconsciente, mas Rique não se esquece deles nem por um minuto sequer.

— Meu irmão não deve ser um paciente fácil. — Seb teve um lampejo de curiosidade nos olhos. — Como você contorna a situação, Angie, quando ele tem suas crises de depressão?

— Realmente não é fácil. — Ela sorriu. — Estou contente por você ter convencido Rique a praticar equitação. Agora, quanto ao arco e flecha, tenho minhas dúvidas.

— Se você está acostumada às flechadas verbais que ele desfere, pode avaliar que não será difícil para ele dominar as flechas que partem do arco. Rique costumava ser um bom arqueiro, lembra-se?

— Há muito pouca coisa que eu esqueci das férias que passei aqui em

Bayaltar. Adorava vir para cá.

— A gente se divertia, não é, Angie? — Seu sorriso era nostálgico. —

Éramos tão jovens e despreocupados!

— Aqueles verões eram sempre ensolarados e alegres!

— Foi muito bom você ter vindo quando papai chamou-a. Para ele foi um golpe duro, Rique foi sempre seu predileto. É o primogênito! Além disso, eles tinham muitas afinidades, ou melhor, têm. Veja só, eu estava usando o verbo no passado, como se a cegueira de Rique o tivesse transformado num outro homem.

— Num certo sentido, ele é outro homem — observou Angie. — Devido às atuais circunstâncias,. seu irmão agora é um homem irascível. Nunca foi assim, mas agora não pode mais andar por aí, com aquela desenvoltura que costumava ter. Tem receio de encontrar algum obstáculo pela frente. Também não pode mais avaliar as pessoas pela aparência ou pelos gestos, e precisa valer-se da agudeza de seus ouvidos para fazer julgamentos. Tornou-se uma pessoa ponderada, Seb, pois necessita usar mais a concentração e o raciocínio.

— Você o admira muito, não é Angie?

— Claro que o admiro. Ele é muito valente

— E o que você acha de mim, querida?

Era a primeira vez que Seb a chamava de “querida”, mas não era a primeira vez que a olhava como se estivesse com vontade de abraçá-la. Por que seu coração pendia tanto para Rique se ele a rejeitava como mulher? Seb era igualmente atraente e não havia sombra de dúvida no apelo de seu olhar

Subitamente, ele veio para junto dela e estirou-se na espreguiçadeira, a seu lado.

— Seus olhos me fascinam — disse ele com ternura. — São tão expressivos nas suas mudanças da tristeza para a alegria! E gosto também desses lábios feitos para o beijo…

— Seb! — ela censurou, sentindo-se sufocar. — Não diga essas coisas!

— Por que não? Estou sendo sincero, e você é uma moça livre, sem compromisso, e pode ouvi-las. O que há? Não gosta de meu tipo? Não sou de jogar fora, não acha? — brincou.

— Pelo contrário, você é um belo hombre.

— E também sou bonzinho para com os animais. Para desespero de meu irmão, estou odiando as touradas. Ou você é daquelas mulheres que gostam de demonstrações de machismo?

— Estou trabalhando aqui como enfermeira e você não deveria…

— Desde nosso tempo de criança, devia saber que eu gostava de você, Angie. E agora, quando a olho, tenho vontade de fazer isto! — Estendeu a mão e emaranhou aqueles cabelos sedosos entre os dedos. — Você cresceu exatamente do jeito que eu imaginava.

— Sem qualquer surpresa? — Ela sorriu timidamente

— Para ser franco, muitas. Você parece envolta em mistério. Estou aqui com você e, no entanto, não a sinto a meu lado. Gostaria de poder adivinhar seus pensamentos. — Passou-lhe a mão pela testa e olhou-a profundamente dentro dos olhos. — Os sonhos vagueiam por essa cabecinha, como peixinhos num aquário. Quais são seus sonhos, Angie. Você é tão tranqüila e eficiente em seu trabalho, tem um autodomínio admirável. Consegue ser atenciosa e cuidadosa. Existe uma chama que emana de você que eu gostaria de atiçá-la e transformá-la numa fogueira de paixão. Aquela vez, em Londres, você me disse que não existia nenhum homem em sua vida. Alguma coisa mudou?

— Não existe ninguém que eu espero… bem, com quem eu espero compartilhar minha vida.

— O que a fez viajar para este lado do mundo?

— E o que lhe importa? Não estou acostumada a ser interrogada sobre minha vida particular.

— Você é muito discreta, não é, querida?

— Sou. E acho que seria melhor não adquirir o hábito de chamar-me desse jeito.

— De “querida”?

— Pode escapar na frente de seu pai.

— E você acha que meu pai desaprovaria caso seu filho do meio seapaixonasse por uma moça inglesa?

— Sim, acho, e além disso você não deve falar-me em… em amor.

— Amor é uma das melhores coisas para se falar na vida… e também

para se fazer.

Ele chegou mais perto e, inesperadamente, seus lábios tocaram os dela. Não era um beijo exigente e sensual e, em consideração à velha amizade que os unia, ela não reagiu.

— Doçura — ele sussurrou. — Você cheira à lavanda dos jardins ingleses. — Desta vez, não vou deixá-la escapar.

— Por favor, Seb.

Ela não lutou e nem opôs resistência, mas foi tomada pelo pânico diante daquela demonstração inesperada de sentimentos. Tivesse sido outro homem e não Seb, ela exigiria que ele a deixasse em paz, com aquela frieza que as mulheres sabem usar quando querem livrar-se de homens ardentes e indesejados. Mas ele era irmão de Rique e Angie não era o tipo de moça capaz de ferir alguém que lhe fosse querido.

Ele esfregou o rosto em seus cabelos e seus lábios ficaram brincando

nas orelhas de Angie.

— Sei bem que tipo de mulher você é: sensual, mas ainda ingênua. Você protege com unhas e dentes sua integridade moral e isto é a coisa que mais aprecio em seu caráter. Angie, minha querida, eu a quero muito, mas não vou tentar demolir suas defesas. Só quero que saiba o que sinto por você, e pretendo deixá-la à vontade para pensar.

— Seb… — Ela estremeceu levemente, ciente de que suas defesas estavam sendo abaladas em seus alicerces. A gentileza de Seb, sua proximidade, seu calor, comparados com a distância gelada que Rique lhe impunha, eram tentadores. Parecia-lhe estar se aconchegando junto a uma lareira, depois de suportar uma tempestade de neve.

— Sempre admirei seus lindos cabelos, Angie. Os lábios de Seb pousaram suavemente sobre eles.

— Pensei que os espanhóis gostassem de cabelos compridos, como um símbolo de submissão feminina — ela disse, da forma mais descontraída possível.

— Você tinha cabelos longos, nina, e sempre pode deixar que cresçam novamente.

— Não dá para usar cabelos compridos com a touca de enfermeira.

— Pois eu gostaria que você desistisse da profissão. Queria tê-la só para mim, para poder amá-la… amá-la… amá-la…

— Amor? — ela murmurou. — Afinal, o que é o amor?

— Uma abertura do coração… um vendaval de emoções…

— Parece um tanto primária essa sua definição.

— É um sentimento primário e natural que pode nos trazer muita felicidade. Você deveria ter meditado um pouco mais sobre o amor, querida.

— Uma enfermeira anda sempre muito atarefada e quando cai na cama, exausta, não tem tempo para devaneios.

— É assim que você define o amor, querida? Um devaneio? Que pessoas pouco românticas são vocês, ingleses. Por que têm sempre de esconder suas emoções por trás de uma máscara de indiferença?

— É o nosso jeito. Os espanhóis são como as palmeiras, e nós como os carvalhos. As palmeiras propalam sua presença, balançando as altas folhagens e nós, os carvalhos, nos escondemos sob as nossas copas. Somos o que somos, Seb.

— Não gostaria que você fosse diferente. — Ele segurou-lhe o queixo e procurou seus olhos. — O que a leva a crer que meu pai se oporia, se eu escolhesse uma jovem inglesa?

— Ele é espanhol até a raiz dos cabelos e acho que gostaria que seus três filhos escolhessem pessoas do mesmo sangue.

— Pode ser que ele espere isso de Rique. Mas, afortunadamente, não sou o primogênito. A não ser que o imprevisível aconteça, e Rique morra. Mas isso não vai acontecer, não é mesmo, Angie?

Angie varreu para longe de sua cabeça aquela hipótese horrível. Como poderia ela continuar a viver e a respirar, se Rique se fosse para sempre?

Ela até poderia suportar uma vida longe dele, desde que soubesse que estava vivo.

— Uma enfermeira é treinada para ser objetiva. Se tudo correr bem, Rique pode viver mais cinqüenta anos.

— Que os anjos digam amém — completou Seb.

— Nenhum de nós conhece o próprio destino, Seb. Eu mesma posso morrer amanhã.

— Pois eu conheço o meu — disse ele, com uma certa arrogância. — Meu pai nunca se conformou com minha vida artística. Estou aqui em casa só de passagem. Apesar de nossas divergências, ele até está querendo que eu organize um churrasco, regado a vinho. Você acha que Maya vai convidar esse jornalista com quem andou se encontrando? Que acha dele?

— É um homem encantador — disse, com cautela.

— Pena eu não ter estado presente no dia em que ele veio jantar aqui. Pelo que disse tia Francisca, ele é mais velho do que Maya. Você acha uma desvantagem o homem ser mais velho e experiente?

— Não posso falar por Maya.

— Acho que isso não passa de uma amizade passageira que terminará quando ele for embora de Bayaltar. Assim mesmo, minha irmãzinha parece muito envolvida. Você considera Torcal um conquistador?

— Não. Mas é um homem interessante e insinuante e pode, sem qualquer intenção, provocar o interesse de sua irmã.

— Eu diria que ele causou uma grande impressão nela. As moças são propensas a devaneios, quando se apaixonam. Devaneios… Não foi o termo que você empregou?

— Só espero que… — Angie mordeu os lábios. — Bem, Torcal é viúvo e poderia não ser bom para Maya viver com ele.

— Acha que o coração dele foi enterrado junto com a esposa?

— Sim. acho.

— Sabemos o que acontece quando alguém muito querido morre. Mas a vida tem de continuar, e Maya ainda pode fazê-lo muito feliz. Por que você duvida tanto? Não acredita que as pessoas possam amar novamente?

— Não acredito que possam amar com a mesma intensidade.

— Pode ser verdade. Mas as pessoas precisam de companheirismo. Não é bom ficar sozinho.

— Estar sozinho não significa ser solitário.

— Você não nasceu para ficar sozinha. Mais uma vez, Seb a puxou para junto de si e ela submeteu-se, permitindo um beijo, sem entretanto senti-lo. Percebendo essa frieza, ele aumentou a pressão contra sua boca e a jogou de encontro às almofadas da espreguiçadeira.

— Que cena mais «romântica! — irrompeu uma voz. — Talvez seja melhor não interrompê-los.

— Interromper quem? — a segunda voz era masculina.

— Angie e seu irmão, meu caro, agarradinhos, um nos braços do outro, à sombra do jacarandá. Não seria justo estragar-lhes o divertimento.

Angie gelou nos braços de Seb. O abraço desfez-se lentamente e ele voltou-se para o lado de Isabel e Rique. Angie sentou-se e ajeitou os cabelos, muito envergonhada, vendo o sorriso de escárnio da outra. Aquela cena seria um prato cheio para Isabel, que não hesitaria em ir correndo relatar a don Carlos que surpreendera Angie em idílio com seu filho Sebastian. Seria o suficiente para provocar imediata demissão da enfermeira e seu afastamento de Rique.

Seb levantara-se e estava encarando o irmão.

— Não se precipite com conclusões erradas. Rique, Angie e eu estamos planejando casar.

Nem que um raio tivesse caído na cabeça de Angie naquele instante, ela se sentiria tão atordoada. Continuou sentada, sem forças, mal acreditando nas palavras de Seb.

Isabel deu uma sonora gargalhada.

— Bem, congratulações para ambos! — Segurou no braço de Rique e o manteve a seu lado. — Não são boas notícias, meu querido? Só espero que seu pai abençoe esta união.

Rique estava com os olhos sobre o irmão, com expressão atônita.

— Você não perdeu tempo, não é, Seb?

— Graças a você. Foi você quem ajudou Angie a decidir-se, fazendo com que ficássemos juntos a maior parte do tempo. Até parecia que estava planejando que isto acontecesse!

No intervalo silencioso que se seguiu, Angie sentia, com imensa dor, as batidas violentas de seu coração. Estava disposta a negar a afirmativa de Seb, mas antes queria ouvir a resposta de Rique. Ele precisava negar que desejava ver o irmão casado com ela.

— Pois muito bem — Rique encolheu os ombros e deu um sorriso sem graça. — Confesso ter bancado o cupido. Meus parabéns, Seb!

— Não!

Angie teve a impressão de que pronunciara aquela palavra em voz alta, mas, se o fez, Rique não ouvira, pois naquele instante, virara-se para Isabel, convidando-a para tomar chá com ele.

— Vamos, Isabel. — Rique convidou. — Vamos deixar os dois pombinhos arruinando em paz.

Só então Angie se levantou, olhando irritada para Seb.

— Como se atreveu a dizer uma coisa destas?

— Você conhece Isabel — ele replicou. — Ela iria logo inventar uma história para papai e a colocaria em maus lençóis.

— Sei disso. Mas eu me defenderia a meu modo. — Angie estava tremendo, sem controle. — Saiba que não tenho qualquer intenção de casar com você, ou com quem quer que seja. Portanto é melhor dizer logo a verdade a Rique.

— Compreendo. — Seb segurou-a dolorosamente pelo pulso. — Então é meu irmão quem a preocupa? Poderia saber por quê?

— Porque ele é meu paciente. Porque não quero ser mandada embora daqui antes de ter cumprido minha missão. Sei bem o quanto seu pai é severo e intransigente em questões de moral, mas tenho certeza de que « poderei convencê-lo da verdade, não importa o que Isabel possa inventar. Você aproveitou-se de uma situação!

— Foi justamente o que fiz, querida. Mas a gente tem de fazer com que as coisas aconteçam, ou elas não acontecem nunca. Portanto vamos admitir que eu me aproveitei da situação para que você se decidisse. Eu aquero, Angie…

— Seb, por acaso já se perguntou se eu quero você?

— Você bem que gostou de meus beijos!

— Não, apenas fui forçada.

— Seja honesta, Angie. Se você não quisesse, poderia me ter repelido com um pouco mais de energia.

— Nem precisava. Um homem vivido sabe muito bem quando seus beijos não são correspondidos.

— E quem é o felizardo que conseguiu que você correspondesse? — Seus dedos pareciam garras de aço, apertando-lhe o pulso, seus olhos negros a fuzilavam. — Por acaso foi Rique? Oportunidades é que não lhe faltaram, entrando e saindo de seu quarto, a qualquer hora do dia ou da noite, bancando o anjo da guarda! Vamos lá; eu quero saber. Eu exijo saber!

— Ora, deixe-me em paz. — Ela lutou para desvencilhar-se dele, mas aqueles dedos pareciam algemas. — Nunca pensei que você fosse assim. Sempre acreditei que era bom e generoso.

— Sou um homem, Angie. E não me sinto muito generoso neste momento. Quero que você diga na minha Cara que Rique não significa nada para você.

— Você está sendo detestável, Seb.

— Diga-me, antes que eu lhe quebre o pulso!

— Quanta gentileza de sua parte!

— Não estou pretendendo ser gentil. Exijo uma resposta à minha pergunta.

— Pois que seja. — Ela afastou uma mecha de cabelo da testa, com a mão livre. — Para Rique, eu nada significo como mulher. Está satisfeito?

— Suponho que deveria dar-me por satisfeito. — Largou-lhe o pulso e examinou as marcas vermelhas. — Nenhuma mulher jamais me levou a este extremo de crueldade. E você, agora, está satisfeita?

— Oh, Seb! — Ela esfregou o pulso dolorido. — O que acho é que já não podemos ser amigos.

— Nós não somos amigos. Somos homem e mulher em face de uma questão fundamental. A questão é a seguinte: agora você está convencida de que vamos nos casar? De minha parte, sei muito bem o que quero, mas você parece uma garota naquela fase de heroísmo romântico. Pretende dedicar toda sua vida ao bravo guerreiro que volta ao lar depois da batalha, ferido e cego. O repouso do guerreiro! O que vai acontecer-lhe, quando Rique não precisar mais de seus préstimos? Ou ainda pior do que isso…

— Por favor, não continue, Seb!

Angie sentiu o sangue desaparecer de seu rosto.

— Sua pequena idiota! — exclamou Seb. — Mesmo que quisesse, Rique nunca poderia ter você. Há muito tempo meu pai decidiu que Isabel entraria para a família, casando com ele. E a mesma falta de sentimentalismo que fez de Rique um soldado tornará possível que ele aceite um casamento arranjado. Você os viu há pouco, muito íntimos como, aliás, estávamos nós, mesmo que não queira admitir.

Angie suspirou, desconsolada.

— Mesmo assim, Seb…

— Pelo menos faça uma tentativa

Seb segurou o pulso que havia machucado, beijou-o primeiro e depois fez deslizar por ele uma pulseira de ouro que, na Espanha, eqüivale a um anel de noivado. Angie deu-se conta de que ele comprara aquela valiosa pulseira com a intenção antecipada de propor-lhe casamento… e de esta proposta ser aceita. Olhou-o surpreendida e tentou compreender por que imaginara que Seb seria menos resoluto que Rique.

— Por favor, tire essa pulseira de meu braço — ela pediu.

— Se quiser tirá-la, faça-o você mesma, querida.

— Você está fazendo um jogo…

— Concordo.

— E pretende levá-lo adiante?

— Por que não? Amanhã à noite, durante o churrasco, pretendo anunciar nosso noivado.

— Seb, minha resposta será sempre a mesma.

— E minha recusa em aceitar essa resposta também será sempre a mesma. Raciocine, Angie. Eu posso dar-lhe amor e meu irmão só poderá dar-lhe tristeza. Ele vai casar com Isabel, não percebe? Ele foi treinado a vida toda para obedecer ao chamado do dever.

Sim, é isso mesmo, Seb tem razão, pensou Angie, e sentiu-se gelada, como se estivesse morta.

— Está com frio? — perguntou Seb. Ela confirmou com um gesto.

— Então, deixe que eu a aqueça

Tornou a abraçá-la e ela deixou-o agir, numa atitude passiva. Aquele corpo junto ao dela era quente e forte e um ligeiro odor de fumo de charuto impregnava suas roupas. Angie sentiu uma súbita necessidade de conforto e amparo, mas não teve aquela sensação de desejo que Rique conseguia provocar nela.

Pouco mais tarde, quando voltou para seu quarto, ficou surpreendida ao ver que o bracelete de ouro ainda estava em seu braço. Girou-o pelo pulso. Quando Rique se apoiasse em seu braço para ser guiado, por certo o sentiria ali. Talvez fosse isso mesmo o que ela queria, agora que Isabel iria ser sua futura esposa, conforme os projetos de don Carlos.

— Oh, Senhor! O que devo fazer? — Angie deixou-se cair na cama e abraçou o travesseiro. Talvez fosse melhor sugerir a don Carlos que arranjasse uma enfermeira para substituí-la, isso mesmo. Talvez, no dia seguinte à noite, depois da festa, ela iria procurar falar com don Carlos, explicando-lhe que queria voltar para a Inglaterra, dando como desculpa saudade da terra natal. Ele era um homem bom e tolerante. Por certo, compreenderia suas razões.

Ouviu uma batida. Respirou fundo, levantou-se, e com os nervos tensos abriu a porta do quarto com uma vaga esperança de encontrar Rique no corredor.

Mas era Maya quem estava lá.

— Angie, preciso falar urgentemente com você! — Parecia muito agitada e ansiosa.

— Então entre, Maya.

Ela entrou-e aproximou-se da cama. Vestia um traje de montaria, de corte severo que evidenciava ainda mais suas formas femininas. Trazia na mão um chapéu e calçava botas de pelica preta. Estava extremamente atraente e, Angie imaginou, estivera cavalgando na companhia de Torcal.

— Você está linda! — Angie sorriu-lhe. — Fez um passeio gostoso? Maya fez que sim, e sentou-se desanimadamente numa cadeira ao lado da cama.

— Mas parece também um pouco aborrecida. O que há com você? — acrescentou Angie.

— Como a gente pode saber se está realmente apaixonada, Angie? Eu pensava sinceramente que amava aquele guitarrista, mas agora percebi que era somente um entusiasmo passageiro e também uma forma de rebelião contra as idéias de meu pai. Sempre me senti protegida e resguardada, mas, apesar disso, estava escrito que eu iria perder a cabeça por alguém… e agora tenho certeza de que perdi meu coração.

— Por acaso… — Angie hesitou. — Por acaso, foi por Torcal?

A moça inclinou a cabeça e olhou para a biqueira das botas.

— Você já sabia o que aconteceu com Torcal, não sabia? Era por isso que você e Rique não queriam que eu alimentasse nossa amizade. Torcal percebeu e acabou me contando tudo. Ficou surpreendida?

— Teria ficado surpreendida se ele não lhe contasse.

— Ele é tão correto, tão maravilhoso! — Maya esforçou-se para ser convincente. — Quero passar minha vida ao seu lado, e declarei a ele minha intenção. Não poderia suportar que ele fosse embora de Bayaltar sem mim. Não suportaria, Angie! Oh, Angie, você deve estar me considerando uma louca varrida!

— Não. Ele é um homem atraente, é íntegro e de bom caráter e posso entender perfeitamente seus sentimentos. Mas quais são os sentimentos dele com relação a você?

— Ele me disse que não poderíamos casar. — Os olhos de Maya encheram-se de lágrimas. — Insiste que preciso esquecê-lo para procurar um rapaz que possa amar-me e dar-me filhos. Mas eu não quero nenhum outro homem. Só quero Torcal! Não me importo com nada! Meu único desejo é viver ao seu lado, e fazê-lo feliz. Meu coração me diz que conseguirei.

— Você tem consciência, Maya, que, além da questão de filhos, ele nunca poderá proporcionar-lhe tudo o que uma mulher espera do homem que ama? — Angie abriu os braços, num gesto de interrogação, sem perceber que a pulseira reluziu, chamando a atenção da amiga. — Você sabe do que estou falando, não é? — acrescentou. Maya disse que sim, e uma lágrima rolou pela sua face morena.

— Mas eu gosto tanto dele, que morrerei se não puder ficar a seu lado. Neste caso, vou para um convento! Juro, Angie! Eu já disse isso a ele, e vou dizer também a meu pai.

— Minha querida, você precisa compreender que Torcal pesa todos os inconvenientes de um relacionamento em que a compaixão substitui a paixão. Ele é mais velho do que você e um dia poderá aparecer em sua vida algum jovem saudável pelo qual você sinta atração. Imagine Torcal numa situação dessas. Tente imaginar!

— Angie… — Maya relanceou o olhar pelo bracelete. — Você está apaixonada?

— Estou.

A confissão de Angie escapou de seus lábios, antes mesmo que ela percebesse o que estava dizendo. Agora Maya iria querer saber por quem ela estava apaixonada e ela não poderia mencionar o nome de Rique.

— Por quem? — Maya fez a esperada pergunta e segurou o braço de Angie para admirar a jóia. — Quem lhe deu isto?

Angie não podia fugir à evidência.

— Foi o Sebastian. — Durante aquela declaração, desejou ardentemente que o irmão de Rique desaparecesse nas profundezas da terra por ter complicado sua vida daquele jeito. — Mas não tire conclusões precipitadas. Conforme as próprias palavras de seu irmão, estamos apenas fazendo uma tentativa. Não quer dizer que seja uma decisão definitiva.

— É muito linda. — Maya apalpou o bracelete melancolicamente. — Se Torcal me desse uma pulseira de noivado dessas, eu estaria dando pulos de contentamento. Acho você um tanto indiferente. Isso faz parte de uma fleuma britânica? Você nunca permitiria que Seb lhe desse um objeto desses, se não tivesse sérias intenções de casar com ele, você conhece nossos costumes.

— Ele… ele pegou-me de surpresa. — Angie deu um sorriso amarelo. — Seus dois irmãos são teimosos e nunca aceitam um não. Só para agradar a Seb usarei a pulseira por uns dois dias e depois a devolverei.

— Por que devolver? Ele é um rapaz muito bacana, você não acha? É também um bom partido e vocês dois sempre se deram bem, desde crianças. Prefiro mil vezes ter você como cunhada do que Isabel! O coração de Angie se apertou dolorosamente.

— Então é verdade que ela e Rique vão casar?

— Um daqueles-arranjos de família! — Maya fez um muxoxo. — Você sabe o que penso dela, mas o que importa é a felicidade de Rique.

Angie sentiu uma agonia tão grande, que parecia estar morrendo.

— Você acha que ele… que ele ama Isabel?

Angie esperou pela resposta tomada de pavor. Ficou um pouco aliviada quando Maya meneou a cabeça e comentou:

— Nas famílias espanholas é comum esse tipo de arranjo com os primogênitos.

— Parece tão injusto! E se ele gostasse de alguma moça de sua escolha, teria que renunciar para satisfazer as exigências da família?

— Acontece freqüentemente. O amor é um sentimento que faz sofrer e, às vezes, é melhor não se deixar envolver em suas malhas. São coisas da vida, mas quando olho para tia Francisca é que vejo como a mocidade pode ser desperdiçada. Quando a vejo com aqueles bordados intermináveis, imagino-me na idade dela, quase à beira da morte, com minhas esperanças e sonhos desfeitos. Isso é o que vai acontecer, se eu não ficar com Torcal. Você não sente a mesma coisa com relação a meu irmão?

Quase que Angie disse que sim, mas percebeu em tempo que Maya referia-se a Seb.

— Gosto muito dele, mas não o amo.

— Você afirma isso com muita segurança. — Por um instante, Maya susteve o fôlego. — Agora me lembro o que andamos conversando um dia destes. Rique é sua paixão, mas ele pertence a Isabel. Oh, Angie, nós duas formamos uma bela dupla de sofredoras!

— Talvez seja para o nosso bem. Pelo menos, temos a consolação de amarmos homens honrados.

— Gostaria que Torcal fosse um pouco menos honrado. Queria tanto cuidar dele! Queria ajudá-lo a esquecer todas as desgraças que o atingiram. A perda da esposa tão jovem e a perda de sua virilidade. Desejaria embalá-lo em meus braços com muito amor, até que toda tristeza desaparecesse de seus olhos. É isso que você gostaria de fazer com Rique?

Angie assentiu, sem mencionar as noites que passara ao lado dele, velando seu sono atormentado. Mais de uma vez o embalara nos braços para acalmá-lo, segurando-lhe a cabeça junto aos seios, como se faz com as crianças carentes de afeto.

Isabel satisfaria suas necessidades físicas e se deleitaria em ser nora do governador, mas nunca entenderia as depressões de Rique. Ela amava a si mesma mais do que a qualquer homem, Angie tinha certeza disso.

Repentinamente, Maya ergueu-se da cadeira.

— Quer saber de uma coisa? Não vou deixar-me influenciar pelas opiniões alheias. Sei que Torcal precisa de mim e irei com ele para Madri, quer ele queira, quer não!

Angie também levantou-se e encarou a amiga apreensivamente.

— Você não está sendo ajuizada, Maya, sabendo das circunstâncias que envolvem seu caso.

— E você, seria ajuizada, se Rique a quisesse?

— Não — teve de admitir.

— Então, apóie-me. — Os olhos de Maya exprimiam uma resolução inabalável. — Se Torcal não quiser levar-me, eu o seguirei até o inferno mesmo contra sua vontade. Serei sua sombra até que ele admita que fomos feitos um para o outro. Eu o quero de qualquer jeito, assim como você quer Rique, mesmo sendo cego. No amor verdadeiro, não esperamos receber e sim dar. Você bem sabe que estou certa, não é, Angie?

— Está. — Angie segurou Maya pelos ombros e estudou sua fisionomia. — Quando Torcal vai partir?

— Ele pretende deixar a ilha amanhã à noitinha, durante a festa. Fez amizade com um hóspede do hotel que tem uma lancha e que vai levá-lo até Córdoba. Vou telefonar ao amigo dele, e perguntar se pode levar-me junto. Pedirei a ele que não diga nada a Torcal, alegando que é uma surpresa que quero fazer-lhe. Sairei da festa junto com Torcal dizendo-lhe que quero ir ao cais para despedir-me. Talvez ele faça um carnaval quando eu embarcar, mas não poderá jogar-me no mar. — Maya sorriu. — Pelo menos, espero que não jogue.

Pouco depois, Angie encontrava-se sozinha no quarto, pensando que Maya, para seu bem ou para seu mal, tinha encontrado coragem para enfrentar seu destino.

— Vá com Dios! — sussurrou Angie. — Que Dios a proteja!

 

O quarto estava iluminado pela fraca luz do pôr-do-sol e as vidraças das janelas reverberavam como rubis. À distância, ouvia-se o som grave dos sinos de uma capela espanhola.

Os sinos e o céu purpúreo deram a Angie a impressão de estar num teatro, como se o pano de cena estivesse prestes a levantar-se para o espetáculo de danza y musica que logo mais teria lugar no pátio da Residência.

Durante todo o dia, os empregados da casa haviam estado atarefadíssimos, preparando mesas, suspendendo lanternas chinesas por entre as árvores e abrindo toneis de vinho. O clima era de excitação e expectativa, pois toda a vez em que o governador dava uma festa, era sempre uma coisa sensacional, com danças flamengas e muita comida e boa bebida.

O sol desapareceu por completo e sua auréola dourada diluiu-se no céu. Logo as lanternas seriam acesas e os convidados começariam a chegar.

Mas Angie demorava-se no quarto, já às escuras. Pela manhã, comprara aquele vestido de seda azul-turquesa, numa das lojas da Ramblas. Delicados brincos de opala pendiam de suas orelhas; ela se perfumara com uma colônia Chanel e fizera um penteado diferente.

Afundada em seus pensamentos, Angie não percebeu que havia mais alguém no quarto, até que sentiu duas mãos pousarem sobre ela.

— Não precisa sobressaltar-se — a voz era de Rique. — Se a assustei deste jeito é sinal que você está no escuro.

— De fato, estou.

O toque inesperado daquelas mãos fizera seu coração disparar, mas ela permaneceu quieta, sentindo na escuridão aquela presença perturbadora.

— Você está com um perfume gostoso, como uma garota pronta para ir a uma festa. — Angie sentiu a respiração dele em seus cabelos. — Foi você mesma quem disse que minhas mãos seriam minha visão e que meus outros sentidos se tornariam cada vez mais aguçados.

Os sentidos dela também se intensificaram com aquela proximidade, havia ainda o odor da brisa noturna que entrava pela janela aberta e o rádio, tocando baixinho uma canção que falava sobre o encantamento do anoitecer e de um estranho surgindo na multidão. Era do repertório de Frank Sinatra.

Rique nunca seria um estranho, mas logo estaria afastado dela, em meio à multidão de gente que lotaria o pátio da casa, de braço com outra mulher — uma mulher de cabelos escuros enfeitados com uma flor.

— Uma mulher parece tão estranhamente frágil e delicada quando um homem só pode tocá-la e não consegue vê-la. Qual a cor de seu vestido, Angie?

— Azul… azul-turquesa.

— Azul é uma cor bem inglesa. Fria e distante, como o céu e o mar. A noite está cheirando bem… sinto o perfume dos jasmins e do mar… Estou contente por termos uma noite linda para a festa de Seb. E você… você está muito apaixonada por ele?

A pergunta atingiu-a em cheio e travou-lhe a garganta.

— Invadi um terreno proibido? — Ele retirou as mãos dos quadris de Angie e ela sentiu a dor de uma perda. — Respeito sua reserva, Angie, mas só queria afirmar que vocês dois têm minha inteira simpatia e aprovação.

Aquelas palavras, para ela, tinham o efeito de lâminas cortantes ferindo-a cruelmente. Mas Angie encontrou um certo consolo ao dizer:

— Estou usando a pulseira que Seb me deu, e espero que seu pai também aprove. Gostaria de apalpá-la?

— Se você quiser… — Angie segurou-lhe a mão e conduziu-a para o pulso contornado pelo bracelete. Um substituto espanhol dos grilhões das escravas mouras, pensou ela.

— É de ouro? — Ele quis saber.

— De que mais poderia ser? — Angie sentia-se morrer sob o toque daqueles dedos em seu braço. — Bem mais difícil de quebrar, não é mesmo?

— Você quer mesmo casar com Seb, não quer? — Os dedos circundaram seu pulso, formando, com a pulseira, um duplo grilhão.

— Estou mesmo querendo casar. Ele é bonito, é um homem que sabe o que quer, um homem de sucesso. São qualidades que qualquer moça apreciaria. Além disso, sempre fomos muito amigos, desde a adolescência. Você não percebe tudo isto, na sua astuta sabedoria?

— Angie, o que há de errado com você?

Subitamente, ele a segurou pelos ombros e a sacudiu. Ambos ficaram parados, naquela escuridão, olhos nos olhos, sentindo-se perdidos, mas por razões diferentes.

— Por que deveria haver algo de errado comigo? Afinal, hoje ficarei oficialmente noiva de um homem maravilhoso.

Sua agonia de amor por aquele que a enlaçava tinha chegado ao auge. Mesmo assim, ela diria qualquer coisa que pudesse preservar intacto seu orgulho.

— Isabel deve ter descrito para você um quadro bem realista de Seb e de mim, beijando-nos apaixonadamente à sombra do jacarandá… Mal podemos esperar a hora de estarmos finalmente juntos! É muita sorte a minha, ele não ser o primogênito que, por tradição, seria obrigado a casar com uma moça espanhola.

— Quer dizer que esse é o destino dos filhos mais velhos? — A voz de Rique era evidentemente cínica. — Você está tremendo, Angie. O que há? Paixão reprimida? Preciso providenciar para que vocês dois casem o mais breve possível. Quero estar presente ao casamento, antes que seja tarde.

— Rique, pelo amor de Deus! — Libertou-se dele com um safanão. — Por que você tem sempre de repisar esse assunto de morte? Até parece que você anseia por morrer.

— Sei que nunca mais voltarei a enxergar — disse ele sombriamente. — Forcei o dr. Romaldo a confessar-me que o nervo óptico foi atingido irremediavelmente. Como qualquer ser humano, eu estava vivendo na esperança de um milagre!

— O milagre, Rique, já aconteceu. Você sobreviveu e está fisicamente apto a continuar sobrevivendo por muitos anos. O dr. Romaldo também deve ter-lhe dito isto, não disse?

Rique sacudiu os ombros e ela ouviu o roçar do tecido da roupa dele. A lua cheia apareceu no céu e enviou sua luz opalina para dentro do quarto. E ela pôde ver aquele rosto moreno, de traços marcados pelo sofrimento que evidenciavam a força e o orgulho que o ajudariam a combater o silencioso inimigo que se escondia dentro de sua cabeça — um inimigo alerta, feito de aço, que, às vezes, o espicaçava na escuridão da noite.

Se ao menos ela tivesse sido escolhida para lutar ao lado dele! Mas esse direito pertencia a Isabel que, por certo, seria impaciente e intolerante e até covarde nas horas em que ele fosse tomado pelo terror de sentir-se perdido em suas trevas eternas,

— O pior cego é aquele que não quer ver — ela exclamou. — Você não sente sua própria força? Não percebe que a cegueira não diminuiu sua coragem…

— Palavras… só palavras, Angel. Mas você mesma já foi testemunha de meus pesadelos. Devo admitir que sentirei muita falta de seu apoio, quando Seb a levar embora. Mas, naturalmente, não tenho direito de interpor-me entre dois apaixonados

Angie sentiu-se impelida à negar aquela afirmativa. Estava prestes a cair em pranto. Pousou a mão sobre o peito, numa tentativa de conter a avalanche que destruiria suas defesas.

O rádio continuava a tocar, mas agora a música era outra

— Como está a noite? — perguntou Rique.

— Suave e tépida — ela murmurou. — Há uma lua cheia no céu e as estrelas estão visíveis.

— Então é uma noite feita sob medida para um casal romântico. — Não havia sarcasmo em sua voz, e sim uma nota de melancolia. — Dizem que a lua excita as mulheres. Lua cheia? É a garra do diabo.

— Rique… — Ela agarrou-se à manga de seu paletó. — Não o abandonarei, amigo, até ter certeza de que não precisa mais de mim.

— É muita generosidade de sua parte, mas creio que meu irmão está impaciente para tê-la só para si. Já aprendi bastante sobre o que devo fazer para sobreviver nesta prisão tenebrosa. Você é livre, minha cara. livre para encontrar sua felicidade ao lado de Seb. Bem, agora é melhor descermos para a festa.

— Está bem

Com um nó na garganta, Angie foi desligar o rádio O que ela precisava agora era de muita música alegre e muito vinho para atordoar-se. Nada de músicas tristes, bastava sua agonia

— Que canção mais linda! — ele comentou. — Não sou grande conhecedor de música. As canções que os soldados cantam são muito diferentes. Só em ocasiões especiais, são sentimentais. Essa era alemã, não era?

— Liebesschmen — ela informou

— Tem alguma coisa a ver com amor, não tem?

— Agonia de Amor, seria a tradução.

Ele ficou silencioso por um instante e Angie olhou-o embevecida.

— Esta noite, Angie, será para você uma gloriosa noite de amor e não de agonia. E eu quero fazer uma farra! Estou precisando de um bom vinho e de muita música… música flamenga!

— E nada de mulheres? — ela sussurrou, segurando-lhe o braço.

— Só a bela Isabel.

A luz das lanternas ofuscava o luar, e Angie ficou contente com isso. O som das guitarras e das castanholas era tão vivaz e alegre que expulsou o pesar para longe. Com a ajuda do sherry dourado que ela estava tomando em companhia de Seb.

Ele vestia uma camisa de seda, mas tirara o paletó, e as calças pretas, muito justas, realçavam suas longas pernas de bailarino espanhol. Parecia tão latino quanto os artistas flamengos que davam um show de zapateado, acompanhados pelas jovens ciganas, com seus trajes coloridos com babados sobrepostos. Enormes brincos de argola balançavam ao ritmo da música contagiante e era rara a mulher da festa que não exibia uma camélia ou um cravo vermelho nos cabelos escuros.

Angie era uma das exceções. Prendera no vestido a rosa rubra que don Carlos lhe dera quando, beijando-lhe a mão, lhe perguntara:

— Sebastian disse-me que a quer por esposa. É verdade, Angie? E você, quer Seb por marido, minha filha?

Vendo Rique por perto, ao lado de Isabel, ela havia dito sim… mas com o coração gritando por outro nome.

— Então esta festa veio no momento mais oportuno.

Don Carlos sorriu, mas seu olhar pousou sobre o filho cego, cujos olhos refletiam a luz das lanternas, sem que ele as enxergasse.

Angie notou uma expressão de piedade e consternação nos olhos do pai. Ali estava o filho predileto daquele homem e que nunca mais poderia ver as saias esvoaçantes das mulheres que bailavam com frenesi o zapateado flamengo.

Por quase todo o tempo, Seb manteve Angie perto de si, insistindo para que ela experimentasse o churrasco de carne de porco e de cabrito, e saboreasse morangos e cerejas.

Ela comeu, bebeu, sorriu e conversou. Mas não perdeu de vista o momento em que Torcal despediu-se de Rique. Enquanto eles trocavam abraços e cumprimentos, Maya procurou Angie entre a multidão e lançou-lhe um olhar de entendimento. Ela ia embora com Torcal. Angie sorriu-lhe e acenou-lhe compreensivamente, deixando transparecer que desejava a melhor sorte do mundo para a amiga. Maya ia fazer uma viagem nada amena, mas dificilmente são amenas as emoções do amor. São emoções tão profundas e perigosas como o próprio mar que ela enfrentaria.

— Dios te proteja — Seu coração sussurrou. — Vá com Dios!

— Você ficou tão quieta, de repente! — Seb acariciou-lhe o rosto e ficou surpreendido ao senti-lo molhado de lágrimas. — O que há, minha querida? Não está gostando da festa?

— É uma festa maravilhosa. É que a música me emociona demais.

— E por quem você está triste? Por Rique?

— Acho que sim — confessou.

Angie forçou um sorriso e ficou olhando para a moça que fazia evoluções sobre um tablado de madeira, sacudindo a saia com o salero próprio das espanholas. Logo, um jovem dançarino aderiu e a dupla ficou bailando sensualmente, incentivada pelos olé da platéia.

A música acelerou e logo todo o pátio estava absorvido pela eterna luta entre o homem e a mulher. Ela fugia… ele a perseguia. Ela caçoava… ele se zangava. Ela sorria e massacrava o tablado com o sapateado… e ele corria em círculos, tentando capturá-la.

Durante os aplausos que se seguiram, Angie procurou pelo pátio e finalmente viu Rique debruçado sobre Isabel, tentando ouvi-la, enquanto ela se abanava languidamente com um precioso leque espanhol, todo de plumas, que combinava com a cor do vestido. Isabel ostentava um penteado alto, enfeitado por um pente espanhol e uma alva camélia. Seus olhares insinuantes davam a entender que ela e Rique formavam o par ideal.

Ele levantou o cálice de vinho para um brinde e sorriu daquela forma peculiar, com os olhos voltados para Angie. Mas ele não podia enxergá-la. Para ele, só uma mulher ao alcance da mão podia significar algo. Essa mulher era Isabel.

— Foi sensacional a dança desses dois, não? — Seb sorriu para ela, com os olhos escuros exprimindo admiração. — Você está tão linda esta noite, Angie! A luz das lanternas tornou seus olhos mais brilhantes. Ou será o efeito das lágrimas?

— Oh! não sei…

— Você está precisando de um pouco mais de vinho. — Ele pegou o copo de Angie. — Vou enchê-los e você vai ficar aí quietinha me

esperando. Sabe que seus cabelos estão cheios de florzinhas de jasmim? Até parece uma grinalda de noiva!

Ela o viu afastar-se para o lado dos toneis, e voltou-se para prestar atenção em Rique-, Era como se tivesse um sexto sentido que a alertava de que alguma coisa não ia bem.

Uma das ciganas o estava empurrando, exigindo que Rique lhe mostrasse seus conhecimentos de sapateado. Era evidente que não tinha percebido que ele era cego. Repentinamente Rique desencadeou sua fúria.

— Vá procurar um homem que saiba onde está pisando e deixe-me em paz!

Em seguida, lançou-se pelo pátio a esmo, com a intenção de furtar-se aos olhares dos curiosos. E antes que Angie desse um grito de alerta, ele bateu violentamente no tronco de uma árvore. Ouvia-se um murmúrio entre os que tinham presenciado a cena. Angie correu para onde Rique tinha caído. Não se importou com mais nada e atravessou o pátio em desabalada carreira. Só Rique importava… o pobre Rique, perdido nas trevas, blasfemando como um estivador.

— Está tudo bem, querido, estou chegando! — E logo ela estava ali, amparando-o. — Estou com você!

— Angie!

— Você está bem? — Ela passou-lhe a mão pela testa e viu sangue em seus dedos. — Oh, você machucou-se!

— Não foi nada. — Ele agarrou-se a ela e suplicou: — Por favor, Angie, tire-me daqui. Vamos embora!

Isabel ouviu.

— O que é isto? — perguntou, histérica. — Que espetáculo você está dando, Rique! Quem você pensa que é?

— Eu sou um coitado que sabe muito bem o que está acontecendo e o que estou sentindo. — Rique virou-se para Isabel, procurando-a enquanto suas sobrancelhas se tingiam de sangue. — Todo mundo está olhando? Então, todo mundo viu o que acontece comigo quando não tenho Angie para socorrer-me. Seb, está aí?

Seb estava ali, com os copos de sherry na mão, olhando para Angie… Angie, com os braços prestativos e amorosos, amparando seu irmão.

— Sinto muito, Seb — disse ela. — Nunca poderia casar com você. Bem dentro de seu coração, você sabia disso, não sabia?

— Acho que sim. — Ergueu um dos copos e tomou toda a bebida de um só gole. — Então aquelas lágrimas eram para Rique? Eram todas para ele, não eram?

Angie não conseguiu responder. Gostaria de ter dito que não só as lágrimas eram para Rique, mas ela inteira — como enfermeira, guia e amante.

Parecia ser claro para todos que, quando Rique precisara de socorro, não chamou Isabel. A jovem espanhola ainda estava abanando freneticamente o leque, com um ar de quem está muito mais aborrecida com as conseqüências da cegueira do que com a tragédia que ela significava para Rique.

— Seb, diga aos músicos que continuem a tocar, e que os bailarinos continuem a dançar. E veja se todos estão se divertindo — ordenou ele tranqüilamente. — Onde está nosso pai?

— Parece que foi atender ao telefone. Algo relacionado com May a.

— Maya não está aqui?

— Saiu em companhia de Torcal de Byas.

— Maya foi com ele — disse Angie serenamente. — Já sabe tudo a seu respeito e não se importa. Ela o ama.

Rique suspirou fundo.

— Vamos, Angie. Leve-me daqui. Vamos até a praia e você caminhará a meu lado, segurando-me pela mão. Promete?

— Oh, sim! — Seus olhos estavam brilhando, desta vez de alegria. — Vou dar um jeito nesse arranhão e pôr um esparadrapo.

— Essa porcaria de arranhão não é mortal — ele exclamou e deu uma risadinha. — Vai ser preciso muito mais do que isso para matar-me, não é mesmo?

— E eu, fico sozinha? — perguntou Isabel.

— Procure alguém que lhe diga dia e noite que você é linda, maravilhosa e sedutora! — Rique segurou a mão de Angie e pediu: — Angie, vamos indo?

— Vamos até a lua, se você quiser.

Isabel deu uma risada debochada e virou as costas. Angie e Rique foram andando na direção da praia, entre os vinhedos e os jasmineiros, aspirando o aroma da madrugada.

— Aqui estamos.

Caminharam pela areia juntos, até a orla do mar.

Céu e mar tinham a suavidade da seda e a lua cheia estava ainda incrustada no firmamento, como um broche de prata, enfeitando a noite. Tudo era tão tranqüilo! A paz parecia emanar daquele mar sem fim.

— Não é maravilhoso? — murmurou Rique.

— Parece uma criação de Turner — disse Angie baixinho.

— É curioso como as pessoas falam baixo, à noite. Em que você está pensando, Angie?

— Que o mar, as árvores e o céu vão durar mais do que todos nós e que, por isso, é importante aproveitarmos ao máximo nossas vidas.

— Você sabia que Maya ia embora com Torcal?

— Sim. Ela o ama de verdade.

— E você me ama de verdade, nina?

— Até a eternidade. Até que a última estrela desapareça do céu.

— Elas não são visíveis para mim, minha menina, mas se você segurar minha mão nunca mais a largarei e as verei através de você.

— Aqui está minha mão, Rique. Oh, meu querido, por que você me rejeitou tanto? Devia ter compreendido o que eu sentia por você. Devia ter adivinhado durante aquelas noites que passei ao seu lado, conversando até que seu sono chegasse, varando as madrugadas.

— Mas é que você… você é tão jovem!

— Sou uma mulher, Rique. Aperte-me nos braços e saberá.

Ele a envolveu com a força de um homem vigoroso, e a ansiedade de um homem necessitado de amor.

— Não fui feito para você. Seb poderia dar-lhe muito mais do que eu.

— Se é assim, ainda há tempo de voltar para ele. — Angie fingiu tomar uma decisão. — Ainda não tirei a pulseira de noivado!

— Tire essa droga de pulseira imediatamente!

Ela riu e obedeceu, enfiando o bracelete no bolso das calças de Rique.

— Vou dar-lhe uma pulseira com um sininho. Assim vou sempre saber por onde você anda. Angie… beije-me, meu amor!

Ela passou os braços pelo pescoço de Rique e esfregou suavemente os lábios de encontro aos dele.

— Rique, eu o amo tanto! Você é o único homem com quem casaria!

— Está me fazendo uma proposta de casamento, amada? — Ele riu e continuou aquele jogo amoroso. — Você ama realmente seu pobre mendigo cego?

— O amor é cego! Não é o que dizem por aí? É por isso que as pessoas têm tanta necessidade de se apoiar umas nas outras. E eu preciso tanto de você!

— Então fique comigo, Angie. Fique comigo para sempre, meu amor!

— É tudo o que quero e que sempre quis.

— Diga-me só uma coisa, seja bem sincera: você sentiu alguma coisa quando beijou Seb?

— Foi ele quem me beijou — ela corrigiu.

— Você quer dizer que ele a forçou?

— Sim.

— E qual a razão dessa pulseira?

— Para ser franca, foi uma provocação que fiz a você. — Acariciou o rosto de Rique com ternura. — Você parecia estar me jogando nos braços de seu irmão! Mas eu pretendia devolvê-la. Até pensei em ir embora, porque não estava mais agüentando amar você sem ser correspondida.

— Eu amei você, amor, desde o momento em que voltou à ilha. E esse amor foi aumentando à medida em que me forçava a reconciliar-me com a vida. Ainda a vejo como uma menina de longas tranças, mas, quando a toco, sinto que você é uma mulher, e que a desejo como nunca desejei qualquer outra. Estou totalmente preso a você, mas, assim mesmo, eu teria coragem de permitir que se fosse caso…

— Não diga mais nada, querido. — Ela pousou a mão em seus lábios. — Não pense que tenho medo de compartilhar de suas trevas. O que quero é iluminá-las, dentro de minhas possibilidades. Sempre fui apaixonada por você, desde o tempo em que usava tranças. Sempre desejei ser sua. Rique, quero ser toda sua, se você me quiser.

— Minha! — ele exultou. — Meus olhos, minha alma, minha Angie! Parecia que o mar e a lua brilhavam mais naquele momento mágico.

Angie repousou a cabeça no ombro de Rique e suspirou de felicidade.

Ela tinha vindo a Bayaltar para ficar, e caberia a Rique anunciar ao pai que ele escolhera uma moça inglesa como esposa.

Teve o pressentimento de que don Carlos, que a estimava tanto, não iria opor-se. E a receberia como filha com todo o carinho do mundo!

 

                                                                                Violet Winspear  

 

                      

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