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CHAMADA DE SUICIDIO / Michael Connelly
CHAMADA DE SUICIDIO / Michael Connelly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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AS COISAS ESTAVAM DEVAGAR no turno da noite. Hora de fazer submarino - rodar perto da central de modo que, ao fim da patrulha, pudessem entrar rapidamente no estacionamento dos fundos, entregar a viatura e se mandar. Jerry Edgar dirigia. Foi ideia dele fazer submarino. Ele sempre tinha um lugar aonde ir, mesmo à meia-noite. Harry Bosch não tinha lugar algum a não ser uma casa vazia.
Quaisquer que fossem os planos de Edgar, eles mudaram quando a dupla recebeu uma chamada do comandante do turno e foi enviada ao condomínio Orchidia Apartments.
- Quinze minutos - murmurou Jerry Edgar. - Quinze minutos e a gente ia ficar livre.
- Não esquenta - Harry Bosch disse. - Se não for nada a gente encerra em quinze minutos.
Edgar saiu da La Brea para pegar a Franklin e se viu a menos de dois minutos do lugar. Bosch e Edgar eram os detetives do turno da noite na Divisão de Hollywood, parte de uma nova equipe de resposta circulante instituída pelo comandante. O capitão LeValley queria uma equipe de detetives para rodar até qualquer local de crime violento em vez de puxar os relatórios das patrulhas na manhã seguinte. No papel era uma boa teoria; Bosch e Edgar haviam de fato resolvido dois assaltos à mão armada e um estupro em suas quatro primeiras horas cobrindo o período noturno. Mas na maior parte do tempo preenchiam relatórios e faziam pouco mais que passar casos adiante aos investigadores apropriados, no dia seguinte.
O ar da noite estava límpido e fresco. Mantinham os vidros no alto e as expectativas lá embaixo. Chamada de suicídio. Precisavam fazer uma confirmação para o sargento de patrulha na cena e depois poderiam ir embora. Com um pouco de sorte ainda conseguiriam estar de volta à central lá pela meia-noite.

 

 

 


 

 

 


O Orchidia era um conjunto de prédios de apartamento cor-de-rosa numa travessa da Orchid, erguido na encosta da colina atrás do pátio de estacionamento do Magic
Castle. O condomínio existia desde que Bosch se entendia por gente. No passado, era um lugar onde os estúdios hospedavam as novas starlets que tinham acabado de
assinar um contrato. Hoje em dia as pessoas que moravam ali tinham de se virar sozinhas.

Na frente, havia duas radiopatrulhas com as luzes azuis piscando. Uma van da Divisão de Investigação Científica e a perua do legista também já haviam chegado. Isso
revelou a Bosch que o sargento na cena esquecera os detetives circulando no turno da noite ou achara que não eram necessários. Disse a Edgar para estacionar atrás
da radiopatrulha sem a barra de luzes no teto. Esse seria o carro do sargento. Bosch queria ter certeza de que não iria a lugar algum até que ele quisesse.

Quando desceram Edgar olhou para Bosch por cima do teto da viatura.

- Odeio o turno da noite em Hollywood - disse. - Todos os suicidas aparecem à noite.

Era verdade. Esse seria o terceiro suicídio que eles averiguavam em quatro noites.

- Em Hollywood, tudo aparece à noite - disse Bosch.

Havia um patrulheiro na entrada, que anotou os números de distintivo de Bosch e Edgar e então indicou o apartamento 6. A porta da frente estava aberta e quando os
dois entraram havia uma grande agitação. Era o fim de turno para todos e todo mundo estava com pressa. Bosch viu o sargento da guarda, que era na verdade uma mulher
chamada Polly Fulton, esperando em um corredor que muito provavelmente levava a um quarto.

- Detetives - disse ela. - Fico feliz que tenham resolvido aparecer. É bem ali.

- Como assim, a gente acabou de receber a chamada - disse Edgar.

- Sério? - respondeu Fulton. - Eu chamei faz pelo menos quarenta e cinco minutos. A guarda deve estar abarrotada de trabalho.

Gesticulou para que passassem por ela, o que eles fizeram. O corredor terminava em três portas: um closet, um banheiro e um quarto. Entraram no quarto e viram que
toda a atividade estava centrada em uma mulher nua, deitada. Dois investigadores do legista, um técnico forense, um fotógrafo e outro patrulheiro se reuniam em volta
da cama.

A mulher estava de barriga para cima, os braços encostados ao lado do corpo. Era jovem e bonita; continuava assim mesmo depois de morta. O cabelo era loiro e engrinaldava
seu rosto, com uma curva sob o queixo. Sua pele era muito clara e os seios eram fartos, mesmo ela estando deitada. Uma leve linha de descoloração podia ser vista
passando ao longo da curva inferior de cada seio. Cicatrizes cirúrgicas.

Havia um diamante em forma de gota pendendo de uma corrente de prata entre os seios. Sua barriga era lisa e os pelos pubianos estavam aparados e cortados num perfeito
triângulo invertido.

Edgar emitiu um leve assobio de fiu-fiu entre os dentes.

- Puxa, mas que desperdício bancar a Marilyn Monroe - comentou. - Uma gata dessas.

Ninguém respondeu. Bosch apenas ficou olhando para a mulher na cama enquanto pegava um par de luvas de látex. Ele sabia que a primeira reação era sempre achar que
a beleza resolvia todos os problemas. A mesma coisa com o dinheiro. Mas já presenciara suicídios suficientes para saber que nem uma coisa, nem outra era verdade.
Muito pelo contrário.

- Lizbeth Grayson - disse a sargento -, 24 anos. Não durou muito aqui na Cidade dos Anjos. Ainda está com a carteira de motorista do Oregon na bolsa.

Fulton se aproximou de Bosch e falou enquanto ambos olhavam para o corpo. Não havia constrangimento pelo fato de a mulher estar nua e exposta. Era trabalho policial.

Fulton segurava uma prancheta. A carteira de motorista de Lizbeth Grayson estava presa ali. Bosch notou que era de Portland.

- O que mais? - ele perguntou.

- É uma atriz... e não são todas? Tem uma gaveta cheia de fotos profissionais ali. Parece que fez uma ponta sem fala em Seinfeld, no ano passado. Você sabe, eles
filmam aqui, mesmo sendo pra parecer Nova York. Enfim, o currículo está atrás da última foto. Não conseguiu muitos trabalhos... pelo menos, não o tipo de trabalho
que gostaria de pôr no currículo.

Bosch quase pôde sentir os olhos de Fulton recaindo sobre o pequeno triângulo perfeito de pelos pubianos. Sabia o que ela estava pensando. Os seios com silicone
e a depilação esmerada indicavam um determinado estilo de vida e outros meios de renda. Bosch voltou a olhar seu rosto. Lizbeth Grayson não precisara de mais nada
na vida além daquele rosto. Imaginou se alguém além de sua mãe algum dia lhe dissera isso.

- Enfim - disse Fulton -, no criado-mudo achamos um frasco vazio de Percodan que sobrou da cirurgia dos seios no ano passado e um bilhete de “Adeus, mundo cruel”.
Tudo bem dentro do roteiro, detetive. Não vamos perder nosso tempo com isso.

Bosch mudou o foco de sua atenção para a mesinha ao lado da cama e foi até lá.

- Obrigado, sargento.

Na mesa de cabeceira havia um copo vazio com resíduo branco no fundo, um frasco de comprimidos e um bloco de notas. Mais nada. Bosch se curvou para examinar o frasco,
que estava de pé sobre o móvel. Era um analgésico prescrito para Lizbeth Grayson oito meses antes. Tomar em caso de dor. Ele se perguntou se essa dor incluía a necessidade
de acabar com tudo. Pegou sua caderneta e escreveu o nome do médico que prescrevera a medicação e presumivelmente realizara a cirurgia de implante de silicone.

Em seguida, olhou para uma caderneta com espiral aberta sobre a mesa de cabeceira, ao lado do frasco de comprimidos. Havia quatro linhas escritas a lápis na página.

 

Não adianta mais nada

Pra mim chega

Pra mim chega

Pra mim chega!

 

Observou por um momento, prestando atenção nas palavras grifadas e entendendo que o sublinhado punha a ênfase numa palavra diferente a cada frase. Levou a mão à
caderneta para ver se havia algo escrito nas outras páginas.

- Ainda não, detetive.

Bosch virou e viu o fotógrafo da perícia às suas costas. Era Mark Baron. Haviam trabalhado em muitas cenas de crime juntos. Baron fez um gesto na direção de sua
câmera.

- Ainda não fotografei nada disso - avisou a ele. - Não quero que tirem do lugar.

- Ok, espera aí um segundo.

Bosch se curvou para olhar sob a mesa de cabeceira. O móvel não tinha gavetas, mas havia uma prateleira, sobre a qual estava uma pilha de revistas People. Não havia
nada no tapetinho sob a peça. Ele ficou de joelhos e ergueu a barra do lençol. Havia um par de pantufas sob a cama, mas só isso.

Bosch se levantou e deu um passo para trás a fim de que Baron se aproximasse e pudesse tirar suas fotos. Voltou até Fulton.

- Quem encontrou?

- O senhorio. Ele disse que recebeu um recado do agente dela e depois outra ligação de sua professora de atuação. Estavam preocupados. Ela perdeu um teste importante
ou qualquer coisa assim, hoje. O senhorio tem uma chave mestra e entrou. Disse que a professora foi muito convincente.

- Ela estava exposta desse jeito ou coberta?

- Estava coberta. O pessoal do legista fez isso.

Bosch balançou a cabeça.

- Onde está o senhorio?

- Voltou para o apartamento dele. Ele mora no prédio. O cara estava branco.

- Traz ele aqui.

- Esse caso é bem simples, certo? Todo mundo vai ser liberado daqui a pouco, não é?

Bosch olhou para Fulton. Até ela ia virar abóbora à meia-noite.

- Vai buscar o senhorio, por favor.

Fulton saiu e Bosch foi até a cômoda, onde Edgar verificava o conteúdo da gaveta superior. Havia várias fotos diferentes. Uma pilha delas, reluzentes 20x25, mostrava
Lizbeth Grayson em poses e roupas variadas. Independentemente do que estivesse vestindo ou de qual fosse sua expressão facial, era impossível disfarçar sua beleza
com a caracterização. Bosch imaginou que isso abria algumas portas, mas mantinha outras fechadas. Ela nunca teria sido levada a sério como atriz, com um rosto daqueles.

- Cara, essa mina tava com tudo - disse Edgar. - Por que ia querer se matar desse jeito?

- Talvez não quisesse.

Edgar largou de volta na gaveta a foto que estava examinando e olhou para Bosch.

- Harry, o que você viu?

Bosch abanou a cabeça.

- Por enquanto nada. Só estou dizendo. Estou fazendo a pergunta, sabe como é?

- Não vai viajar em cima disso. Você quer falar com o senhorio, beleza. Vamos falar com ele e dar esse assunto por encerrado.

- Só o que estou dizendo é que você não pode cuidar disso com uma ideia preconcebida, sabe? É contagioso.

Bosch se aproximou de um dos investigadores do legista, que estava guardando o equipamento numa caixa de ferramentas. Bosch também já o conhecia. Nester Gonzmart.

- O que está parecendo, Nester?

- Está parecendo que a gente vai cair fora daqui, chefe.

- Qual a avaliação da hora do óbito?

- A gente tirou a temperatura do fígado. Vou cravar entre meia-noite e quatro da manhã.

- Então vinte e quatro horas no máximo. Algum trauma?

- Nem uma unha quebrada, cara. A cena tá limpa. Às vezes é difícil acreditar, mas pra mim está parecendo o que é. Vamos receber o toxicológico daqui a umas duas
semanas e o Perc vai aparecer na tela. Escuta o que estou te falando.

- Não se esquece de me mandar.

- Pode deixar, Harry.

Ele apertou os fechos da caixa de ferramentas e saiu do quarto. Bosch sabia que voltaria com a maca. Lizbeth Grayson iria dar um passeio até o centro.

- Pessoal? - disse Baron. - Será que todo mundo pode dar uma saidinha até o corredor, para eu usar minha grande angular?

Bosch foi para o corredor, perguntando-se onde estaria Fulton com o senhorio.

- Obrigado - disse Baron.

Fulton estava na sala com um sujeito pequeno, magro e provavelmente tão velho quando o prédio. Foi apresentado como Ziggy Wojciechowski. Ele contou para Bosch e
Edgar o momento em que encontrou Lizbeth Grayson sem vida. Era a mesma história que Fulton já relatara.

- A porta estava trancada? - perguntou Bosch.

- Estava. Eu tenho uma chave mestra para todos os apartamentos. Então a usei.

Bosch relanceou a porta da frente e viu a corrente de segurança pendendo do batente.

- A corrente não estava passada?

- Não, sem corrente.

- Ela pagava o aluguel ou alguém pagava pra ela?

Era sempre proveitoso fazer uma mudança brusca de assunto, algo inesperado para a pessoa que respondia às perguntas.

- Ãhn, ela pagava. Sempre pagava com um cheque.

- E quanto a namorados?

- Não sei. Não fico espionando meus inquilinos. O Orchidia oferece privacidade. Não me intrometo.

- E quanto a namoradas?

- A mesma resposta, detetive. Eu não...

- Senhor Wojciechowski, quando o senhor veio ao apartamento e a encontrou?

O senhorio pareceu um pouco confuso com o modo como as perguntas eram disparadas.

- Devia ser lá pelas dez e quinze. Eu tinha começado a assistir ao noticiário no canal 5, Hal Fishman. A professora dela ligou outra vez e eu finalmente disse que
ia dar uma verificada, assim a mulher parava de me ligar.

- Quando o senhor entrou, as luzes estavam acesas?

Wojciechowski não respondeu, enquanto considerava a pergunta.

- Pense em quando entrou. O que o senhor enxergou? Dava para ver alguma coisa ou o senhor teve de acender as luzes?

- Deu pra ver a luz no fim do corredor. O quarto dela. A luz estava acesa.

Bosch fez que sim.

- Ok, senhor Wojciechowski, por enquanto é só isso. Talvez a gente volte a conversar mais tarde.

Observou o homenzinho sair do apartamento. Edgar se aproximou para que pudessem falar em voz baixa.

- Não estou gostando da expressão no seu rosto, Harry. Já vi isso antes.

- E?

- Estou vendo que você está apaixonado. Você quer que isso seja algo que não é.

- A corrente não estava na porta.

- E daí? Ela estava sendo prestativa. Sabia que precisava entregar o quarto e não queria que ninguém arrombasse a porta. A gente já viu isso mais de cem vezes, é
fácil.

- A luz do quarto estava acesa.

- E daí?

- As pessoas nunca deixam a luz acesa. Querem que seja como se estivessem indo dormir à noite. Querem ir tranquilas.

Edgar fez que sim.

- Tudo bem, concordo. Mas não é suficiente. É uma anomalia. Sabe o que é isso? Um caso que desvia da norma. O que a gente tem aqui é um desvio da norma. Não uma
coisa que...

Houve um clarão súbito. Bosch virou e viu Baron vindo do corredor para a sala. Ele havia disparado uma foto na direção de Bosch e Edgar.

- Desculpem por isso - disse. - Bati sem querer. Vão querer que eu fotografe mais alguma coisa? Já terminei com a Marilyn Monroe ali dentro.

- Não - disse Edgar. - Tá liberado, Mark.

Baron, um homem baixo, largo na cintura, bateu uma continência fajuta e saiu pela porta de entrada do apartamento. Bosch olhou feio para Edgar. Não gostou de ver
o membro mais novo da dupla tomando a decisão sobre liberar a cena do crime. Edgar o interpretou corretamente.

- Olha, Harry, isso é o que é. A gente já finalizou aqui. Vamos dar por encerrado e esperar o toxicológico.

- A gente ainda não terminou. Estamos só começando. Vai lá e traz o Baron de volta. Quero que ele fotografe tudo neste lugar.

Edgar bufou de impaciência.

- Olha, parceiro, pode até ser que você tenha se convencido de alguma coisa, mas você não me persuadiu, nem ninguém mais, de q...

- Cadê o lápis?

- O quê?

- Na mesinha de cabeceira. Não tem um lápis junto com a nota de suicídio. Se ela escreveu a nota e tomou os comprimidos, então onde está o lápis?

- Sei lá, Harry. Talvez numa gaveta da cozinha. Que diferença faz?

- Você está dizendo que ela escreve uma nota de suicídio e levanta nua para guardar o lápis numa gaveta da cozinha? Escuta só o que você está falando, Jerry. Esta
cena não faz sentido e você sabe disso. Então, o que quer fazer a respeito?

Edgar olhou para Bosch por um momento e então balançou a cabeça, como que dando o braço a torcer.

- Vou buscar o fotógrafo - disse.

Bosch olhava para Lizbeth Grayson na tela de tevê. Ela chorava, e estava linda, interpretando uma personagem.

- Tentei com ele de todas as formas que conheço - dizia ela. - Não adianta mais nada. Pra mim, chega.

- Para bem aí - disse Bosch.

Gloria Palovich pausou o vídeo. Bosch olhou para ela. Fora a professora de atuação de Lizbeth Grayson.

- Quando isso foi gravado? - ele perguntou.

- Na semana passada. Era pra leitura de ontem. Por isso eu fiquei tão preocupada. Ela trabalhou durante quase duas semanas para se preparar para esse teste. Fez
fotos novas. Estava dando o melhor de si pra isso. Quando não apareceu... eu sabia que tinha alguma coisa errada.

- Ela tomava notas durante os ensaios?

- O tempo todo. Era uma aluna maravilhosa.

- Que tipo de notas?

- A maior parte sobre sotaque e pronúncia. Qual a melhor maneira de usar o diálogo para transmitir as emoções.

Bosch balançou a cabeça. Percebeu que a nota de suicídio de Lizbeth Grayson era tudo menos uma despedida. Pelo contrário. Era parte dos esforços de uma jovem para
obter sucesso e triunfar.

Ele olhou em torno do estúdio de atuação. Sentiu-se desconfortável, como se tivesse deixado passar alguma coisa na conversa. Então se lembrou. As fotos que vira
na gaveta da cômoda no apartamento de Lizbeth Grayson não eram novas. Ele examinara a mulher morta na cama e nenhuma foto na gaveta a mostrava com o mesmo penteado.
Elas eram antigas.

Bosch olhou para a professora.

- Você disse que ela tirou fotos novas. Tem certeza?

Palovich fez que sim enfaticamente e apontou um lugar acima da cabeça de Bosch.

- Absoluta. Ela se sentia tão bem em relação ao que fazia que não media esforços. Ia atrás disso em todas as frentes.

Bosch virou e olhou para o quadro de avisos cobrindo a parede atrás dele. Estava coberta com uma infinidade de fotos. Todos os alunos de Palovich, presumiu. Encontrou
a foto de Lizbeth Grayson e era de fato uma fotografia recente. O cabelo loiro fazendo a curva sob o queixo e o sorriso fácil.

Bosch sentiu a raiva vir à tona. Alguém colhera essa flor quando estava prestes a desabrochar.

Foi até lá e puxou a tachinha que prendia a foto no quadro. Examinou-a por um momento em sua mão. Não havia cópias dessa foto no apartamento. Ele tinha certeza disso.

- Quando ela tirou essa foto, você sabe? - perguntou.

- Na semana passada, eu acho - respondeu Palovich. - Ela trouxe a pilha e me deu a primeira, de cima, para pôr no quadro.

- Tinha uma pilha?

- É, normalmente a encomenda é de uma centena. Nunca é demais. Você precisa espalhar suas fotos por aí ou então nunca vai ser chamado.

Bosch concordou com a cabeça. Trabalhara em Hollywood tempo suficiente para saber como funcionava. Virou a foto. Havia uma relação com os créditos de atuação de
Lizbeth Grayson no verso. Também estavam listados seus telefones de contato por intermédio de um agente chamado Mason Rich.

Tornou a virar a foto para olhar novamente.

- Por que as fotos profissionais que a gente vê são sempre em preto e branco, enquanto tudo hoje em dia é colorido? - perguntou.

- Acho que é porque o preto e branco mostra melhor o contraste que a câmera de cinema vai pegar - respondeu Palovich.

Bosch fez que sim com a cabeça, ainda que não tivesse compreendido a resposta e não soubesse coisa alguma sobre contraste e fotografia.

O retrato enquadrava Grayson a partir do esterno. Ela usava uma blusa de gola decotada e Bosch pôde ver a correntinha em torno de seu pescoço. A foto cortava acima
do pingente de lágrima de que ele se lembrava na noite anterior.

Virou e olhou para a tela da tevê. A imagem continuava pausada e seu olhar foi atraído na mesma hora para a corrente em torno do pescoço de Lizbeth Grayson. Ela
estava usando a camisa aberta por cima de uma regata branca, com a palavra crunch estampada. Mas o pingente, claramente visível na corrente, não era um diamante.
Era uma pérola.

Bosch apontou a tela.

- Está vendo a pérola?

- Estou, ela sempre usava isso.

- Sempre?

- É, tinha sido da avó dela. Ela acreditava que dava sorte. Uma vez, na aula, a gente fez uns esquetes biográficos. Foi nesse dia que ela contou para nós todos.
Nas aulas a gente tem alter egos com nomes alternativos. O dela era Pearl. Quando eu a chamava, se usasse o nome Pearl, ela respondia como esse alter ego. Está entendendo?

- Acho que sim. Você tem alguma fita dela como Pearl?

- Acho que sim. Posso dar uma olhada.

- Não sei se é significativo ou não. Eu aviso. Alguma vez viu Lizbeth usando um pingente de diamante?

Palovich pensou por um momento e então abanou a cabeça.

- Não, nunca.

Bosch abanou a cabeça e agradeceu-a por seu tempo. Perguntou se podia levar a foto e ela consentiu. Na porta do estúdio, ela o deteve com uma pergunta.

- Acha que ela fez isso consigo mesma, detetive Bosch?

Bosch a fitou por um longo momento antes de responder. Sabia que devia manter suas suposições e teorias para si mesmo. Mas percebeu que a mulher precisava da resposta.

- Não, não acho.

Ela abanou a cabeça. A alternativa do suicídio era de certo modo mais horrível de contemplar.

- Quem faria uma coisa dessas? - perguntou. - Quem teria coragem?

- Não sei - ele disse. - Mas vou descobrir.

Bosch estava na sala de análise criminal na companhia de uma policial chamada Kizmin Rider. Haviam trabalhado juntos antes e era uma das policiais mais rápidas no
teclado de um computador que ele já vira. Sem dúvida, iria subir rápido no departamento e ele sabia que estava sendo preparada para a administração. Mas da última
vez em que trabalharam juntos, ela lhe confidenciara que na verdade queria ser detetive.

Quando ficou tudo pronto, Bosch lhe disse o que queria.

- Estou procurando suicídios nos últimos cinco anos - disse Bosch. - Mulheres jovens.

- Não vai ser pouca coisa.

Ela digitou e entrou no banco de dados do departamento. Em menos de um minuto, obtivera um resultado.

- Oitenta e nove suicídios de mulheres entre vinte e trinta anos.

Bosch balançou a cabeça, tentando pensar em maneiras de estreitar a busca.

 

- Você tem pelo método? - perguntou.

- Tenho. O que você está procurando?

- Comprimidos.

- Então seria overdose.

Ela digitou e a resposta veio em segundos.

- Cinquenta e seis.

- E que tal profissão? Acho que estou procurando somente atrizes.

- Isso ia ser um saco de gatos: show business.

Ela digitou e a resposta veio antes que Bosch pudesse respirar.

- Vinte e seis.

- Mulheres brancas?

Tec-tec-tec.

- Vinte e três.

Bosch fez que sim. Não conseguia pensar em mais nada para refinar a busca por casos semelhantes ao suicídio simulado de Lizbeth Grayson.

- Pode imprimir os nomes e números de cada caso pra mim?

- Sem problema.

Trinta segundos mais tarde Bosch tinha a lista e estava pronto para descer até o arquivo e puxar as pastas.

- Precisa de alguma ajuda com isso, Harry? - perguntou Rider.

- Você quer dizer que talvez esteja com vontade de fazer um pouco de trabalho de detetive?

Ela sorriu.

- Eu não ia achar ruim - ela disse. - É meio que um porre ficar aqui em cima olhando pro computador o dia inteiro.

Bosch olhou seu relógio. Quase hora do almoço.

- Vamos fazer o seguinte: vou lá puxar as vinte e três pastas, daí a gente se encontra na cafeteria para almoçar. Podemos ver isso lá. Acho que uma ajuda vai ser
bem-vinda porque na opinião do meu parceiro essa é a investigação mais inútil em que eu já me meti. Ele está cuidando dos nossos trabalhos atrasados enquanto eu
faço isso. E está perdendo a paciência.

Ela continuou a sorrir.

- Vou pegar uma mesa e a gente se vê.

Bosch abriu sua maleta e tirou a pasta de Grayson.

- Comece por isso aqui.

Na cafeteria, Bosch pôs a pilha de pastas sobre a mesa na qual Rider estava sentada. Havia meio sanduíche de atum em um prato ao seu lado e ela olhava para os últimos
documentos na pasta sobre Grayson.

- Você tem certeza de que pode fazer isso? - ele perguntou.

- Sem problema. O que a gente está procurando?

- Ainda não sei. Mas se você leu essa pasta, sabe que tem inconsistências no caso Grayson. A nota de suicídio foi plantada e uma joia desapareceu. Um colar de prata
com uma pérola de pingente.

Rider franziu o rosto.

- E a autópsia?

- Isso foi ontem. Estamos esperando o toxicológico.

- Ela foi estuprada?

- Nenhuma escoriação. Nenhum DNA recuperado.

- O que você acha que aconteceu, Harry?

- O que eu acho que aconteceu? Acho que alguém drogou a menina e se aproveitou dela quando ela não tinha como resistir. Daí deixou que sofresse a overdose. Agora
me pergunta o que eu consigo provar.

- O que você consegue provar?

- Nada. Foi por isso que puxei essas pastas.

- Está procurando o quê?

- Às vezes você não sabe o que está procurando até que encontre - explicou ele. - Mas estou convencido de que Lizbeth Grayson foi assassinada com um planejamento
tão cuidadoso que não foi a única vez que isso aconteceu.

- O cara já atacou antes.

Rider apontou o queixo para a pilha de pastas finas.

- É isso que estou pensando - disse Bosch. - Então estou procurando alguma coisa em comum entre ela e qualquer uma dessas outras suicidas.

Rider franziu o rosto.

- E a gente vai saber quando vir - ela disse.

- Assim espero.

Puseram mãos à obra. Bosch dividiu a pilha em duas e ambos começaram a trabalhar nas pastas. Quando um terminava uma, punha na pilha para que o outro a lesse. Dessa
maneira os dois passavam por todas as pastas. Como os casos eram de suicídio, as pastas eram finas e compostas na maior parte de relatórios de autópsia e toxicológicos.
Todas continham fotos das vítimas na cena da morte e a maioria continha uma foto da vítima quando viva, também.

Hollywood sempre esmagara boa parte das jovens que chegavam com seus sonhos e esperanças. Desde que a atriz Peg Entwistle desistira de suas aspirações cinematográficas
e pulara do “H” do letreiro de Hollywood, muitas outras foram pelo mesmo caminho - mas de modos que não chamaram tanto a atenção. É o segredo obscuro da indústria.
Ela transforma muita gente frágil em pó. O pó é soprado para longe.

As pastas continham histórias tragicamente semelhantes. Jovens cujas vidas ruíram quando não conseguiram determinado papel e perceberam que nunca conseguiriam. Jovens
que haviam sido vítimas de abuso por homens, na maioria, mas nem sempre. Jovens que eram claramente frágeis mesmo antes de chegar a Hollywood, que tinham vindo como
mariposas atraídas pela luz, procurando preencher o vazio dentro de si com uma improvável aposta na fama e na fortuna.

Mas havia também pastas que continham apenas perguntas. Suicídios sem explicação, envolvendo mulheres com participações crescentes e motivos para ter esperanças
quanto a suas vidas e carreiras. Algumas deixavam bilhetes com uma ou duas linhas, mas Bosch não sabia dizer se eram de fato notas de suicídio ou possíveis anotações
de testes ou papéis que estavam fazendo.

Bosch examinou as fotos, muitas das quais eram serviço profissional, e os créditos listados nos versos. Não descobriu nada em comum com Lizbeth Grayson além do fato
de que as mulheres eram jovens e esperançosas. Não havia nenhuma escola de atuação ou agente em comum. Nenhuma peça de destaque no teatro ou trabalho como extra
no mesmo filme. Ele não enxergou ligações e começou a pensar que talvez Jerry Edgar estivesse com razão. Estava perseguindo algo que não existia.

Quando chegou na penúltima pasta, Rider falou:

- Harry, está encontrando alguma coisa?

- Não, ainda não. E já estou ficando sem pastas.

- O que você vai fazer.

- Preciso decidir se deixo pra lá ou se continuo. Se eu continuar, vou precisar trabalhar por conta própria. Em homicídio eles chamam isso de caso hobby. Você trabalha
nele quando sobra tempo. O próximo passo é conduzir uma investigação de campo; sair por aí e conversar com as pessoas que conheciam essas mulheres, examinar os apartamentos,
ver se alguém ainda está com as posses delas. Já posso dizer agora mesmo que meu tenente não vai me liberar pra fazer isso. Vou ter que fazer como hobby.

- Quem é o tenente em Hollywood? É o Pounds?

- Esse mesmo. Pounds. Não exatamente uma mente aberta.

Rider sorriu e balançou a cabeça.

- Olha, desculpa ter feito você desperdiçar seu horário de almoço - disse Bosch.

- Imagina - ela disse. - Além do mais, eu ainda não terminei.

Mostrou as cinco pastas restantes que precisava examinar. Sorriu e balançou a cabeça. Bosch gostou de sua confiança. Ficaram em silêncio e voltaram a mergulhar na
investigação.

Em dez minutos Bosch encerrara com as pastas e não encontrara nada capaz de fazer daquele caso algo mais do que um hobby. Perguntou a Rider se ela queria uma xícara
de café, mas ela disse que não. Levantou para pegar uma para si. A cafeteria começava a esvaziar e a ficar silenciosa após a agitação do almoço. Quando voltou à
mesa, Rider estava de pé. Bosch achou que tinha terminado e que se preparava para ir embora. Mas ela se levantara porque ficara empolgada.

- Acho que encontrei uma coisa - disse.

Bosch pôs seu café na mesa e olhou o que conseguira. Ela estava segurando duas fotos profissionais. Eram de duas mulheres diferentes.

- Essa primeira é de um caso do ano passado - disse Rider. - O nome dela era Nancy Crowe. Morava na Kester Avenue, em Sherman Oaks. Essa outra é Marcie Conlon. Morreu
faz cinco meses. Também de overdose. Morava em Whitley Heights.

- Ok.

Bosch olhou para as fotos. As mulheres tinham aparência completamente diferente. Crowe tinha cabelo preto curto e pele muito branca. Conlon era loira e bronzeada.
Só de olhar as fotos Bosch já percebia que Crowe era uma atriz séria, ao contrário de Conlon. Mas ele sabia também que estava fazendo uma generalização grosseira,
de modo que isso não era algo que fosse dizer em voz alta.

- Dá uma olhada.

Ela pôs as fotos na mesa, lado a lado.

- O que é igual?

Bosch viu na mesma hora o que estivera o tempo todo ali e simplesmente passara batido em seu exame de tudo o que as pastas continham. Na foto de Crowe, ela fazia
uma pose estudada, olhando pela quina de uma parede de tijolos. Bosch supôs que era para parecer misteriosa, a foto transmitindo profundidade de caráter e talvez
contribuindo para não fazer dela uma beleza estonteante. Na foto de Conlon, ela ficava com as costas apoiadas numa parede de tijolos. Sua pose era para ser sedutora,
até mesmo sexualmente intrigante, e contrapunha a beleza suave de suas feições à rusticidade da parede de tijolos.

- O muro - disse Bosch.

Usando o dedo, Rider apontou os tijolos iguais em ambas as fotos. Estavam lascados ou raspados de algum modo que os tornava únicos. Não havia dúvida de que as duas
atrizes tinham posado diante do mesmo muro de tijolos.

- Mas agora olha isso - ela disse.

Virou as fotos e sob a lista de créditos no verso estava o nome do fotógrafo. Os nomes eram diferentes, mas ambos seguidos pela mesma locação. Hollywood & Vine Studios.

- Então você tem fotógrafos diferentes usando o mesmo estúdio - disse Bosch.

Estava pensando em voz alta, tentando dar o próximo passo.

- Você olhou nas outras pastas que também tinham fotos? - perguntou.

- Não, acabei de descobrir essa ligação.

- Bom trabalho.

Bosch voltou rapidamente à pilha de pastas e logo começaram a separar todas as fotos profissionais, quando havia.

- Toda atriz na cidade precisa tirar fotos - disse Rider enquanto trabalhavam. - É tão certo quanto a morte e impostos. Você anda pelo Hollywood Boulevard e tem
anúncios de fotógrafos em cada poste.

Em cinco minutos tinha seis fotos de atrizes mortas com créditos de seis diferentes fotógrafos, mas todas tiradas nos Hollywood & Vine Studios. A foto de Lizbeth
Grayson - a que Bosch pegara com a professora de atuação - era uma das seis.

Bosch distribuiu as seis fotos lado a lado e olhou para elas.

- Poderia ser apenas uma coincidência? - perguntou Rider. - Talvez os Hollywood & Vine Studios sejam um lugar que todos os fotógrafos usam.

- Talvez - disse Bosch, continuando a examinar as fotos.

- Quem sabe a gente possa checar se...

- Espera aí um minuto - disse Bosch, excitado.

Pegou uma das fotos e olhou-a detidamente. Era de uma atriz chamada Marnie Fox. Ela supostamente cometera suicídio por overdose seis semanas antes. Ele balançou
a cabeça e a pôs de volta. Em seguida pegou a pasta de Grayson.

- O quê? - quis saber Rider.

Da pasta ele puxou uma das fotos de Lizbeth Grayson morta e a colocou ao lado da de Marnie Fox. Agora era sua vez.

- O que você está vendo aqui que é igual? - perguntou.

Rider se aproximou para olhar as fotos mais de perto. Ela percebeu rápido.

- O pingente. As duas estão usando o mesmo tipo de pingente.

- E se não forem réplicas? - perguntou Bosch. - E se estiverem usando o mesmo colar? Um pingente de diamante que o assassino tira de uma vítima e em seguida põe
na próxima. E dessa vítima ele pega o pingente de pérola e põe...

- Na vítima seguinte - terminou Rider.

Bosch começou a empilhar as pastas de volta, de modo que pudesse carregá-las.

- E agora? - Rider perguntou. - Hollywood & Vine Studios?

- Isso mesmo.

- Vou junto.

Bosch olhou para ela.

- Tem certeza? Não precisa de autorização?

- Vamos dizer que estiquei o horário do almoço.

No caminho Rider fez uma lista com os nomes dos fotógrafos e a entregou a Bosch. Quando chegaram a Hollywood, usaram o estacionamento do Henry Fonda Theater e Bosch
encontrou um telefone público para ligar para Jerry Edgar. Ele o atualizou sobre o caso e seu parceiro pareceu ofendido por estar trabalhando com a ajuda de uma
analista da corporação, mas Bosch lembrou a Edgar que o parceiro não se mostrara interessado no palpite de Bosch sobre Lizbeth Grayson. Devidamente constrangido,
Edgar disse que iria encontrá-los nos Hollywood & Vine Studios.

O estúdio fotográfico ficava no terceiro andar de um velho prédio de escritórios no canto nordeste dos Hollywood & Vine. O edifício fora modernizado recentemente,
com os andares demolidos por dentro e transformados em lofts. Isso era atraente para a indústria de cinema. A maior parte dos nomes na lista de salas do prédio,
no saguão de entrada, era de produtoras, escritórios de gerenciamento de talentos e várias outras empresas na órbita de Hollywood. Bosch presumiu que ter um endereço
tão imerso no mito como o cruzamento entre Hollywood Boulevard e Vine Street era uma vantagem para todas elas.

Aguardaram Edgar no saguão por dez minutos e Bosch foi ficando impaciente. A Divisão de Hollywood ficava a menos de cinco minutos dali. Apertou o botão do elevador
e disse a Rider que não iam mais esperar. Na subida, combinaram como proceder com a visita ao estúdio fotográfico. Saíram do elevador e se aproximaram de um balcão,
no qual estava um jovem de cabeça baixa lendo um roteiro. Ele chegou ao fim da página antes de erguer o rosto.

Bosch mostrou o distintivo e perguntou seu nome. Ele disse que era Louis Reineke e soletrou. Bosch pediu para ver um fotógrafo chamado Stephen Jepson e Reineke lhe
disse que Jepson não estava. Bosch prosseguiu pela lista de seis fotógrafos. Nenhum estava lá e nenhum podia ser contatado, segundo Reineke. O rapaz foi ficando
cada vez mais nervoso à medida que Bosch perguntava sobre os fotógrafos.

- Então nenhum desses fotógrafos está aqui e você também não tem informações para contatar ninguém - disse Bosch.

- A gente aluga o espaço por hora - disse Reineke. - Os fotógrafos vêm, pagam por uma hora ou pelo período que quiserem e se mandam. Não tem necessidade de pegar
o telefone deles. Vocês são da corregedoria ou qualquer coisa assim?

Bosch estava ficando irritado porque sua pista parecia dar num beco sem saída.

- Somos de homicídios - disse ele. - Cadê o gerente do estúdio?

- Ele não está. Só tem eu aqui.

- Tudo bem, quando foi a última vez que algum desses seis apareceu para fotografar?

- Preciso checar os registros.

Ele se curvou atrás do balcão e abriu uma gaveta. Tirou um grande livro-razão dali e o abriu. O livro parecia listar os aluguéis do espaço do estúdio por data, hora
e fotógrafo. Reineke retrocedeu com o dedo pelas colunas e finalmente parou.

- Ele esteve aqui sexta passada - disse. - Fotografou por uma hora.

- Ele? Qual deles?

Reineke baixou o rosto para o livro.

- É desse Stephen Jepson que estou falando.

Havia qualquer coisa fora de lugar na conversa com Reineke. Era como se estivessem se esquivando um do outro.

- Então, como funciona? - perguntou Bosch. - Ele simplesmente entrou aqui e disse que queria um espaço para bater fotos?

- Pode crer, isso mesmo. Ou quem sabe ligou antes pra ter certeza de que o horário não estava reservado. Às vezes acontece.

- Ele ligou?

- Não lembro.

- Podemos ir lá atrás dar uma olhada no estúdio?

- Claro. Não tem ninguém usando agora. Tenho um horário às três e depois às quatro.

Contornaram o balcão e passaram por uma porta ao espaço do loft. Havia três diferentes áreas equipadas para fotografar, com tripés de iluminação e telas retráteis,
que serviam como fundo. Havia peças usadas de mobília como objetos de cena. Havia fiações correndo pelo teto e cortinas pretas permitindo que as diferentes áreas
de foto fossem divididas para dar privacidade. Bosch viu a parede de tijolos das fotos ao longo do ambiente. Adivinhou que a sessão de Stephen Jepson na sexta fora
com Lizbeth Grayson.

Bosch estava olhando para a parede quando se lembrou de algo errado na conversa que tivera com Reineke. Virou e olhou para o jovem leitor de roteiro.

- Por que você perguntou se a gente era da corregedoria?

Reineke fez um beicinho e abanou a cabeça, conforme olhava para a porta e depois de novo para o balcão.

- Perguntei? Sei lá. Acho que só perguntei por perguntar.

- Por que você ia pensar que a gente podia ser da corregedoria?

Reineke não olhou para ele. A reação clássica do mentiroso.

- Sei lá. Eu chutei, eu acho.

- Não, Louis, isso é mentira. Por que perguntou sobre a Divisão de Corregedoria?

- Olha, cara, foi só zoeira. Só estava pensando em alguma coisa pra perguntar.

- Liga pro gerente, Louis. Fala pra ele que é bom estar aqui às três, porque você vai pra central com a gente. Vamos pôr você numa sala por um tempo e quando você
terminar de zoar e tiver vontade de dizer a verdade, daí a gente conversa.

- Não, cara, vou perder meu emprego aqui. Não posso ir pra central agora!

Bosch fez um gesto em sua direção.

- Vamos indo.

- Tá bom, tá bom, eu falo. Não devo nada praquele cara, afinal.

- Que cara?

Reineke abriu mão de toda hesitação.

- Os caras que você perguntou. São todos um cara só. Um policial.

- Policial? - perguntou Bosch.

- Acho que sim. Ele diz que é. Tira fotos pra polícia. Todas as cenas de crime.

- Ele contou isso pra você?

- É, me contou. Disse que é por isso que usa todos aqueles nomes diferentes quando vem aqui. Porque isso é tipo fazer um bico, e não é autorizado. Quando você veio
me perguntar sobre todos aqueles nomes, achei que devia ser tipo a corregedoria, que estavam atrás dele.

Bosch olhou para Rider e depois de novo para Reineke.

- Louis, liga pro gerente. Você ainda precisa vir até a central para ver umas fotos.

- Ah, sem essa, cara! Eu falei pra você tudo que eu sei. Eu nem mesmo sei qual é o verdadeiro nome do fulano.

- Mas você sabe como é a cara dele. Vamos lá.

Bosch o segurou pelo braço e começou a conduzi-lo em direção à porta que dava no balcão. Quando se aproximaram, Edgar entrou no estúdio.

- Até que enfim - disse Bosch.

- Onde é a cena do crime? - perguntou Edgar.

- Não tem cena de crime nenhuma - disse Bosch. - Estamos levando o rapaz aqui para dar uma olhada numas fotos.

- Que estranho.

- O quê?

- Acabei de cruzar com o Mark Baron, o fotógrafo da perícia, saindo do elevador. O cara estava com pressa. Achei que ia pegar a câmera.

Encontraram o fotógrafo policial Mark Baron em seu apartamento em West Hollywood. A porta estava destrancada e entreaberta. Bosch chamou seu nome e entraram. Edgar
e Rider estavam com ele.

Ao escutar Reineke contando a Bosch e Rider sobre o policial que usava nomes falsos para fotografar jovens aspirantes a uma carreira em Hollywood, Baron voltara
correndo para casa, entrara no banheiro e pegara a arma que guardava numa caixa sob a cama. Ele sentou na beira da cama e encostou o cano na carne sob o queixo.
Puxou o gatilho e explodiu o topo de sua cabeça.

Bosch não olhou por muito tempo para o corpo do fotógrafo morto. Em vez disso, seus olhos foram atraídos para as paredes do quarto. Três das quatro paredes estavam
cobertas do chão ao teto com uma colagem de fotos de cena de crime. Todas de mulheres mortas. Ao lado de cada foto havia uma da mulher em vida. A mesma jovem, viva
e posando para ele.

- Ai, meu Deus - murmurou Rider. - Há quanto tempo ele estava fazendo isso?

Bosch esquadrinhou o quarto e as fotos de todas as diferentes mulheres. Não queria nem imaginar.

- Melhor ligar e avisar o capitão - disse Edgar.

Saiu do quarto. Bosch continuou a olhar. Finalmente, encontrou a foto profissional de Lizbeth Grayson na parede. Uma foto dela morta na cama estava presa ao lado.

Bosch se perguntou quais daquelas fotos Baron apreciara mais. Mortas ou vivas?

- Melhor ligar para a minha sala e avisar onde estou - disse Rider.

Bosch fez que sim. Ela saiu dali e deixou Bosch sozinho.

- Ainda quer ser uma detetive? - perguntou, embora soubesse que já se fora.

 

Cielo Azul

RUMANDO PARA O NORTE, o ar-condicionado do carro não demorou a pedir arrego, depois de Bakersfield. Era setembro e fazia calor enquanto eu atravessava a metade do
estado. Logo comecei a sentir a camisa grudando no vinil do banco. Puxei a gravata e desabotoei o colarinho. Nem sabia por que pusera uma gravata, para começo de
conversa. Não estava a trabalho e não ia a lugar algum que exigisse uma.

Tentei ignorar o calor e me concentrar no modo como encararia Seguin. Mas isso era como o calor. Eu sabia que não havia maneira de lidar com ele. De algum modo,
sempre fora o contrário. Seguin é que lidava comigo. De um jeito ou de outro, essa história ia terminar nessa viagem.

Dobrei o pulso enquanto segurava o volante e olhei a data em meu Timex. Exatamente dez anos do dia em que eu conhecera Seguin. Desde que olhara pela primeira vez
nos olhos verdes e frios do assassino, eu sabia que estava olhando para o abismo.

O caso começou na Mulholland Drive, a estrada sinuosa que acompanha o espinhaço das montanhas Santa Mônica. Um grupo de jovens encostara à beira da estrada para
tomar cerveja e apreciar a vista enevoada e poluída da Cidade dos Sonhos. Um deles avistou o corpo. Aninhada entre os arbustos de montanha e o entulho de latas de
cerveja e garrafas de tequila jogadas por quem passava farreando, a garota estava nua, braços e pernas esticados para fora, numa espécie de ostentação grotesca de
sexo e morte.

A chamada chegou para mim, detetive Harry Bosch, e meu parceiro, Frankie Sheehan. Na época, estávamos destacados para a Divisão de Roubos-Homicídios do DPLA.

A cena do crime era traiçoeira. O corpo ficara engastalhado num declive com pelo menos sessenta graus de inclinação. Um escorregão e a pessoa podia despencar por
toda a encosta montanhosa, indo parar talvez na jacuzzi ou no pátio de algum figurão lá embaixo. Vestimos macacões e arneses de couro e fomos baixados até o corpo
por bombeiros do 58º Batalhão.

A cena estava limpa. Nada de roupas, identificação, evidências físicas ou pistas, além da garota assassinada. Não tínhamos sequer fibras que pudessem ser úteis.
Era incomum num homicídio.

Examinei a garota atentamente e determinei sua idade em 15 anos, no máximo. Mexicana, ou de descendência mexicana, tinha cabelo e olhos castanhos e tez escura. Dava
para ver que fora linda, quando viva. Morta, era de partir o coração. Havia sido estrangulada, as marcas dos polegares do assassino claramente demarcadas no pescoço,
a hemorragia petequial criando um fatídico avermelhado em torno de seus olhos. O rigor mortis viera e se fora. Estava flácida. Com isso percebemos que fora assassinada
há mais de vinte e quatro horas.

Nosso palpite era de que fora jogada na noite anterior, o criminoso acobertado pela escuridão. Isso significava que permanecera morta em algum outro lugar por doze
horas ou mais. Lá era a verdadeira cena do crime. O lugar que precisávamos encontrar.

Quando virei o carro para o interior, na direção da baía, o ar finalmente começou a ficar mais fresco. Margeei o lado leste até Oakland e então cruzei a ponte para
San Francisco. Antes de atravessar a Golden Gate, parei para um hambúrguer no Balboa Bar & Grill. Sou levado a San Francisco duas ou três vezes por ano, em meus
casos. Sempre como no Balboa. Dessa vez, sentei diante do balcão, relanceando de vez em quando a tevê para ver os Giants jogando em Chicago. Estavam perdendo.

Mas na maior parte do tempo fiquei passando e repassando o velho caso na cabeça. Estava encerrado agora, e Seguin nunca mais voltaria a ferir outra pessoa. A não
ser ele mesmo. Sua última vítima seria ele próprio. Mas mesmo assim o caso não me saiu da cabeça. Um assassino foi pego, julgado e condenado, e agora estava prestes
a ser executado por seus crimes. Mas continuava a haver uma pergunta não respondida que não parava de me incomodar. Foi o que me pôs na estrada para San Quentin
em meu dia de folga.

Eles o chamaram de caso da Garotinha Perdida, nos jornais. Isso porque não sabiam o nome dela. Impressões digitais colhidas no corpo não bateram com nenhuma impressão
arquivada nos computadores. A garota não combinava com nenhuma descrição de casos abertos envolvendo pessoas desaparecidas, em lugar algum do condado de Los Angeles,
tampouco nos bancos de dados criminalísticos nacionais. O desenho que um artista fez do rosto da vítima, exibido nos noticiários e nos jornais, não resultou em nenhuma
ligação de ente querido ou de algum conhecido. Esboços enviados por fax para quinhentas centrais de polícia por todo o Sudoeste e para a Polícia Judicial Estadual
mexicana não obtiveram resposta. A vítima permaneceu não reclamada e não identificada, seu corpo guardado na geladeira do legista enquanto Sheehan e eu trabalhávamos
no caso.

Foi dureza. A maioria das investigações começa pela vítima. Quem era a pessoa em questão, e onde ela vivia, se torna o cerne da questão, o ponto de apoio. Tudo parte
desse centro. Mas não dispúnhamos dessa informação, nem da verdadeira cena do crime. Não tínhamos nada e estávamos indo rapidamente a lugar algum.

Tudo isso mudou com Teresa Corazon. Era a assistente do legista designada para o caso oficialmente conhecido como Mulher Não Identificada nº 90-91. Quando preparava
o corpo para uma autópsia, ela se deparou com um indício que nos levaria primeiro para McCaleb e depois para Seguin.

Corazon descobriu que o corpo da vítima fora aparentemente lavado com um poderoso alvejante industrial antes de ser descartado na encosta da colina. Foi uma tentativa
do assassino de destruir qualquer traceologia. Porém, isso foi em si mesmo tanto um indício como uma evidência traceológica. O agente de limpeza podia auxiliar a
revelar a identidade do assassino ou ajudar a ligá-lo ao crime.

Entretanto, foi outra descoberta feita por Corazon que transformou o caso para nós. Quando fotografava o corpo, a assistente do legista notou uma impressão na pele
sobre a parte posterior do quadril esquerdo. A lividez pós-morte indicava que o sangue assentara na metade esquerda, significando que o corpo ficara apoiado sobre
o lado esquerdo no intervalo de tempo entre a paralisação do coração e o descarte do corpo no declive à beira da Mulholland. A evidência indicava que durante o período
em que o sangue assentou, o corpo ficara sobre o objeto que deixou a impressão no quadril.

Usando luz em ângulo para examinar a impressão, Corazon descobriu que podia claramente ver o número 1, a letra “J” e parte de uma terceira letra, que podia ser a
haste superior esquerda de um “H”, um “K” ou um “L”.

- Uma placa - disse eu quando ela me chamou à mesa da autópsia para ver a descoberta. - Ele pôs o corpo em cima de uma placa de carro.

- Exato - disse Corazon.

Formulamos a teoria de que o assassino da garota sem nome escondera o corpo no porta-malas de um carro até que escurecesse e fosse seguro jogá-lo fora. Depois de
limpar o corpo cuidadosamente, o criminoso o guardou no carro, deixando sem querer que ficasse parcialmente em cima de uma placa que fora tirada do veículo e também
enfiada no porta-malas. Essa parte da teoria era de que a placa fora removida e possivelmente substituída por outra roubada, como uma medida extra de segurança para
ajudar o assassino a evitar ser detectado caso seu carro fosse visto por algum cidadão desconfiado no mirante de Mulholland.

Embora a impressão na pele não fosse indicativa do estado emissor da placa, decidimos trabalhar com porcentagens. Junto ao Departamento de Veículos Motorizados estadual
obtivemos uma lista de todos os carros registrados no condado de Los Angeles portando uma placa que começasse com 1JH, 1JK e 1JL.

A lista continha mais de 3 mil nomes de proprietários. Em seguida, cortamos quarenta por cento desses nomes ao eliminar as mulheres. Os nomes restantes foram lentamente
inseridos no computador do National Crime Index e obtivemos uma lista de 46 homens com registros criminais, indo dos delitos menores aos mais graves.

Na primeira vez em que examinei a lista de 46 nomes eu soube. Tive certeza de que um deles ali pertencia ao assassino da garota não identificada.

A Golden Gate fazia jus ao nome no sol da tarde. A ponte estava repleta de carros indo para ambas as direções e a rampa de saída dos turistas no lado norte tinha
a placa de PÁTIO LOTADO erguida. Segui em frente pelo túnel pintado nas cores do arco-íris e através da montanha. Não demorou até que pudesse avistar San Quentin
no alto, à direita. Lugar de aspecto tenebroso num cenário idílico, o presídio abrigava os mais perigosos criminosos que a Califórnia tinha a oferecer. E eu iria
encarar o pior dentre os piores.

- Detetive Bosch?

Dei as costas para a janela, na qual estivera contemplando as lápides brancas do cemitério de veteranos, do outro lado da Wilshire. Um homem de camisa branca e gravata
bordô segurava a porta para os escritórios do FBI. Parecia ter trinta e poucos anos, com corpo magro e aspecto saudável. Estava sorrindo.

- Terry McCaleb?

- O próprio.

Apertamos as mãos e ele me convidou a entrar, conduzindo-me por uma sucessão de corredores com painéis de madeira e portas, até chegarmos à sua sala. Pelo aspecto
podia muito bem ter servido de armário de produtos de limpeza, um dia. Era menor que uma solitária de prisão e tinha espaço apenas para uma mesa e duas cadeiras.

- Ainda bem que meu parceiro não quis vir junto - disse eu, me espremendo ali dentro.

Frankie Sheehan referia-se à atividade dos especialistas em perfil criminológico como charlatanice e picaretagem federal. Quando eu decidira, uma semana antes, contatar
McCaleb, o especialista do FBI no escritório de Los Angeles, houve uma pequena discussão a respeito. Mas eu era o mais velho da dupla; a decisão cabia a mim.

- É... as coisas são meio que reguladas por aqui - disse McCaleb. - Mas pelo menos tenho minha privacidade.

- A maioria dos policiais que conheço gosta de estar numa sala de esquadrão. Eles apreciam o ambiente de camaradagem, eu acho.

McCaleb apenas balançou a cabeça, e disse:

- Prefiro ficar sozinho.

Apontou a cadeira da visita e sentei. Notei a foto de uma jovem presa na parede acima de sua mesa. Parecia ser da mesma idade da vítima que eu investigava. Achei
que se fosse a filha de McCaleb, talvez servisse como uma pequena vantagem a meu favor. Algo que o faria pôr um empenho extra no meu caso.

- Não é minha filha - disse McCaleb. - É um caso antigo. Na Flórida.

Apenas olhei para ele. Não seria a última vez que parecia saber o que passava por minha cabeça, como se eu estivesse dizendo meus pensamentos em voz alta.

- Então, ainda nenhuma identificação no seu caso, certo?

- Não, por enquanto nada.

- Isso sempre dificulta as coisas.

- Bem, você deixou um recado dizendo que tinha revisado a pasta?

- É, isso mesmo.

Eu enviara cópias do murder book e de todas as fotos da cena do crime uma semana antes. Nós não tínhamos gravado a cena do crime em vídeo, e isso preocupava McCaleb.
Mas eu conseguira uma filmagem da cena com um repórter de tevê. O helicóptero de sua estação sobrevoara o local, mas não levara nenhuma imagem ao ar devido à natureza
impactante de seu conteúdo.

McCaleb abriu uma pasta em sua mesa e a consultou antes de falar.

- Antes de mais nada, você está familiarizado com nosso Programa de Detenção de Criminosos Violentos, o ViCAP?

- Eu sei o que é. Essa é a primeira vez que submeto um caso a vocês.

- É, você é uma raridade no DPLA. A maioria não quer nada com a gente ou não confia na ajuda. Mas se aparecer mais alguns como você, quem sabe eu consigo uma sala
maior.

Fiz que sim. Eu não ia dizer a ele que era desconfiança e suspeita institucionais que impediam a maioria dos detetives do DPLA de procurar a ajuda dos federais.
Era uma determinação tácita vinda do próprio chefe de polícia. Diziam que dava para escutar o chefe praguejando em voz alta em sua sala toda vez que chegavam notícias
de que o FBI efetuara uma prisão dentro dos limites da cidade. Era bem sabido no departamento que o esquadrão de roubo a bancos monitorava rotineiramente as transmissões
de rádio do esquadrão de bancos do FBI, e muitas vezes ia atrás dos suspeitos antes que os federais tivessem chance.

- Sei. Bem, só quero resolver o caso - eu disse. - Não me interessa realmente se você é um médium ou o Papai Noel; se tiver alguma coisa que me ajude, estou escutando.

- Bom, acho que talvez eu tenha.

Ele virou a página na pasta e pegou uma pilha de fotografias da cena do crime. Não eram as fotos que eu lhe enviara. Essas eram ampliações 20 x 25 das fotos de cena
do crime originais. Ele as fizera por conta própria. Percebi que McCaleb havia certamente gastado algum tempo com aquilo. Isso me levou a pensar que talvez o caso
o tivesse fisgado do modo como me fisgara. Uma garota sem nome deixada morta na encosta da colina. Uma garota que ninguém aparecera para reclamar. Uma garota com
quem ninguém se importava.

Em meu íntimo, secretamente, eu me afligira por ela e reclamara seu corpo. E agora talvez McCaleb também o fizesse.

- Deixe que eu comece primeiro dando minha visão geral sobre o que acho que você tem aqui - disse McCaleb.

Ele procurou entre as fotos por um momento, separando um still obtido da gravação para o noticiário. A imagem mostrava uma cena aérea do corpo nu, os braços e as
pernas esticados na colina. Peguei meus cigarros e sacudi um para fora do maço.

- Você talvez já tenha chegado a essas mesmas conclusões. Se for o caso, desculpe. Não quero desperdiçar seu tempo. A propósito, não pode fumar aqui.

- Não se preocupe com isso - disse eu, guardando os cigarros. - O que você conseguiu?

- Seja ou não o verdadeiro local do homicídio, a cena é muito importante, na medida em que fornece uma via de acesso para o modo de pensar do assassino. O que estou
vendo aqui sugere o trabalho do que chamamos de assassino exibicionista. Em outras palavras, esse é um assassino que queria que o crime fosse visto, que fosse bastante
divulgado, e em virtude disso instilasse horror e medo na população geral. Ele extrai sua gratificação da reação do público. É uma pessoa que lê jornais e assiste
aos noticiários à espera de qualquer informação ou atualização na investigação. É um modo de saber quem está ganhando o jogo. Então, quando nós o acharmos, creio
que vamos encontrar recortes de jornal e, quem sabe, até vídeos contendo notícias de tevê sobre o caso. Isso tudo provavelmente vai estar no quarto dele, porque
seria útil na consumação de suas fantasias masturbatórias.

Notei que disse nós em referência aos investigadores do caso, mas não reagi. McCaleb prosseguiu como se estivesse falando consigo mesmo e não houvesse mais ninguém
na sala.

- Um componente da fantasia do assassino exibicionista é o duelo. A exibição de seu crime para o público inclui mostrá-lo para a polícia. Na verdade, ele está lançando
um desafio. Está dizendo: “Sou melhor do que você, mais inteligente e mais esperto. Prove que estou errado, se for capaz. Pegue-me, se for capaz.” Está entendendo?
Ele está duelando com você na arena da mídia.

- Comigo?

- É, com você. Nesse caso em particular, você parece ser o representante da mídia. É seu nome que aparece nas matérias de jornal incluídas na pasta.

- Sou o detetive principal do caso. Sou eu quem conversa com os repórteres.

McCaleb concordou com a cabeça outra vez.

- Ok - eu disse. - Tudo isso é bom em termos de entender quanto esse cara é pirado. Mas o que você tem que vai nos ajudar a apontar para o cara certo?

McCaleb fez que sim com a cabeça.

- Você sabe o que dizem os corretores de imóvel? Localização, localização, localização. É o mesmo pra mim. O lugar que ele escolheu pra jogar a vítima é significativo
na medida em que mexe com suas tendências exibicionistas. Você tem as Hollywood Hills aqui. Tem a Mulholland Drive e a vista da cidade. Essa garota não foi largada
ali ao acaso. Esse lugar foi escolhido, talvez com tanto cuidado quanto ele a selecionou para ser a vítima. A conclusão é que ali é um lugar ao qual nosso assassino
deve estar familiarizado, pela rotina de sua vida, mas, no entanto, não foi escolhido por questões de conveniência. Ele optou por esse ponto, quis esse ponto, porque
era o melhor para divulgar sua obra para o mundo. Era parte da pintura. Significa que ele pode ter vindo de longe para deixá-la ali. Ou talvez more a alguns quarteirões.

Notei o uso de nosso, como em nosso assassino. Eu sabia que se Frankie tivesse vindo comigo ele teria perdido as estribeiras, a essa altura. Deixei para lá.

- Você examinou a lista que eu te passei com os 46 nomes?

- Examinei; olhei tudo. E acho que seus instintos são bons. Os dois suspeitos potenciais que você destacou preenchem o perfil que construí pra esse homicídio. Perto
de 30 anos, com um histórico de crimes de natureza cada vez mais violenta.

- O zelador de Woodland Hills tem acesso rotineiro a materiais de limpeza industriais; poderíamos comparar alguma coisa com o produto usado no corpo da vítima. É
o nosso suspeito preferido.

McCaleb fez que sim, mas não disse nada. Parecia estar estudando as fotografias, que estavam agora espalhadas pela mesa.

- Você prefere o outro, não é? O construtor de cenários de Burbank.

McCaleb virou e olhou diretamente para mim.

- É, ele é meu preferido. Os crimes dele, embora sejam menores, se encaixam melhor nos modelos de amadurecimento de predadores sexuais que temos visto. Acho que,
quando conversarmos, teremos de dar um jeito de fazê-lo na casa dele. Vamos conseguir uma percepção melhor. Nós vamos saber.

- Nós?

- É. E precisamos fazer isso rápido.

Apontou o queixo para as fotos sobre sua mesa.

- Isso não foi um lance isolado. Seja quem for o autor, vai fazer de novo... se é que já não fez.

Eu fora responsável por mandar muitos homens para San Quentin, mas nunca estivera lá antes. No portão, mostrei a identificação e recebi um folheto com instruções
orientando-me a ir para um estacionamento cercado por alambrado, reservado a veículos das autoridades. Em uma porta próxima marcada APENAS PESSOAL DA LEI fui conduzido
pela grande muralha da prisão e minha pistola foi requisitada e trancada em um cofre para armas. Recebi uma ficha vermelha de plástico com o número 7 impresso.

Depois que meu nome foi registrado no computador e as autorizações previamente arranjadas foram anotadas, um guarda que não se deu ao trabalho de se apresentar me
acompanhou através de um pátio de recreação vazio até um prédio de tijolos que com o tempo escurecera tanto quanto uma lareira enegrecida. Era a casa da morte, o
lugar onde Seguin receberia a injeção fatal dali a uma semana.

Passamos por uma gaiola de controle e um detector de metal e fui entregue a um novo guarda. Ele abriu uma porta de aço sólida e me indicou um corredor.

- Última à direita - disse ele. - Quando quiser sair, acene para uma das câmeras. A gente vai estar de olho.

Ele me deixou ali, fechando a porta de aço com um ruído de trovão que pareceu reverberar por meus ossos.

Frankie Sheehan não estava feliz com aquilo, mas eu era o detetive sênior da dupla e a decisão cabia a mim. Permiti que McCaleb viesse conosco nas entrevistas. Começamos
por Victor Seguin. Ele era o primeiro na lista de McCaleb, o segundo na minha. Mas havia alguma coisa na intensidade do olhar e das palavras de McCaleb que me levou
a dar o braço a torcer e começar por Seguin primeiro.

Seguin era um construtor de cenários que morava em Screenland Drive, em Burbank. Era uma casa pequena com muita madeira, algo que você esperaria encontrar no lar
de um marceneiro. Ao que parecia, quando Seguin não encontrava trabalho na indústria cinematográfica, ficava em casa construindo lindos canteiros e jardineiras para
as janelas e outros espaços da casa.

O Ford Taurus de placa número 1JK2LL4 estava estacionado na entrada. Pus a mão no capô quando passamos pelo carro em direção à porta. Estava frio.

Às oito da noite, no momento em que a luz sumia do céu, bati na porta da frente. Seguin atendeu de calça jeans e camiseta. Descalço. Vi seus olhos se arregalarem
quando me reconheceu. Ele sabia quem eu era antes que eu segurasse o distintivo e dissesse meu nome. Senti o dedo frio da adrenalina percorrendo minha espinha. Lembrei-me
do que McCaleb dissera sobre o assassino rastreando a polícia enquanto a polícia o rastreava. Eu aparecera na tevê falando sobre o caso. Estivera nos jornais.

Sem deixar transparecer nada, eu disse calmamente:

- Senhor Seguin, esse carro na entrada é seu, não é?

- É, é meu. O que tem ele? O que está acontecendo?

- Precisamos perguntar umas coisas sobre ele, se não se incomoda. Podemos entrar por alguns minutos?

- Bem, não. Primeiro eu quero saber o q...

- Obrigado.

Passei pela porta, forçando-o a recuar um passo. Os outros vieram atrás de mim.

- Ei, espera aí um minuto, o que é isso?

Havíamos combinado antes de chegar. Eu conduziria o interrogatório. Frankie era o apoio. McCaleb disse que só queria observar. A sala era um show de marcenaria muito
além da conta. Três paredes eram cobertas por estantes. Uma cornija de madeira grande demais para o ambiente fora construída em torno da pequena lareira de tijolos.
Um gabinete para a TV do chão ao teto fora construído para servir de divisória entre a área de estar e o que parecia um pequeno cubículo servindo de escritório.

Balancei a cabeça com aprovação.

- Belo trabalho. O senhor dispõe de bastante tempo livre no seu ramo?

Seguin fez que sim, relutante.

- Montei a maior parte disso quando a gente teve a greve, faz dois anos.

- O que o senhor faz?

- Sou construtor de cenários. Olha, o que isso tem a ver com o meu carro? Vocês não podem simplesmente invadir minha casa desse jeito. Eu tenho direitos.

- Por que não senta, senhor Seguin. Acreditamos que seu carro pode ter sido usado para cometer um crime sério.

Seguin sentou numa poltrona macia posicionada no melhor ângulo para a tevê. Notei que McCaleb estava andando pela sala, examinando os livros nas prateleiras e as
várias bugigangas enfeitando a cornija e outras superfícies. Sheehan sentou no sofá, à esquerda de Seguin. Olhou para ele friamente, sem dizer uma palavra.

- Que crime?

- Um assassinato.

Deixei que absorvesse isso. Mas a mim parecia que Seguin se recuperara de seu choque inicial e estava disposto a jogar duro. Eu já vira isso antes. Ele ia tentar
o confronto.

- Além do senhor, mais alguém dirige o seu carro, senhor Seguin?

- Às vezes. Quando alugo para alguém.

- E três semanas atrás, dia 15 de agosto, o senhor alugou?

- Não sei. Preciso checar. Acho que não quero responder mais pergunta nenhuma e acho que gostaria que vocês fossem embora, já.

McCaleb sentou à direita de Seguin. Eu continuei de pé. Olhei para McCaleb e ele acenou a cabeça levemente, apenas uma vez. Mas eu sabia o que estava me dizendo:
é ele.

Olhei para meu parceiro. Frankie não vira o sinal feito por McCaleb porque não tirara os olhos de Seguin. Eu tinha de tomar uma decisão. Acreditar em McCaleb ou
recuar. Olhei para McCaleb outra vez. Ele olhou para mim, a expressão mais intensa que já vira.

Fiz um gesto para Seguin se levantar.

- Senhor Seguin, preciso que fique de pé, por favor. Está sendo detido sob suspeita de homicídio.

Seguin lentamente se levantou e então fez um movimento súbito na direção da porta. Mas Sheehan estava pronto para isso e o dominou, pressionando seu rosto contra
o tapete antes que avançasse um metro. Frankie puxou seus braços às costas e o algemou. Depois eu o ajudei a pôr Seguin de pé e o levamos para o carro, deixando
McCaleb para trás.

Frankie ficou com o suspeito. Assim que pude, voltei à casa. Encontrei McCaleb ainda sentado na poltrona.

- O que foi?

McCaleb esticou o braço para a prateleira mais próxima.

- Isso aqui é a poltrona de leitura dele - disse.

Puxou um livro da estante.

- E esse é seu livro favorito.

O livro estava muito manuseado, a lombada rachada e as páginas gastas por repetidas leituras. Enquanto McCaleb o folheava, pude ver parágrafos e frases que haviam
sido grifadas a mão. Estiquei o braço e fechei o livro, de modo a ler a capa. Chamava-se The Collector.

- Já leu? - perguntou McCaleb.

- Não. O que é?

- É sobre um cara que rapta mulheres. Ele as coleciona. Guarda as mulheres em sua casa, no porão.

Balancei a cabeça.

- Terry, a gente precisa sair daqui e conseguir um mandado de busca. Quero fazer isso direito.

- Eu, idem.

Seguin estava sentado na cama, em sua cela, olhando para um tabuleiro de xadrez sobre o vaso. Não ergueu o rosto quando me aproximei das barras, embora eu percebesse
que minha sombra pairou sobre o tabuleiro.

- Com quem você está jogando? - perguntei.

- Alguém que morreu sessenta e cinco anos atrás. Eles puseram o melhor momento dele, este jogo, num livro. E o cara continua vivo. Ele é eterno.

Então olhou para mim, seus olhos ainda os mesmos - frios, verdes, assassinos -, o corpo pálido e debilitado após dez anos passados em espaços confinados e sem janela.

- Detetive Bosch. Eu não estava esperando você a não ser na semana que vem.

Abanei a cabeça.

- Na semana que vem eu não venho.

- Não quer ver o show? A glória dos justos?

- Não faz muito meu gênero. Antigamente, quando usavam gás, talvez valesse a pena assistir. Mas ver um babaca numa mesa de massagem levando um pico e indo pra terra
do nunca? Nah. Vou ver o jogo dos Dodgers contra os Giants.

Seguin se levantou e chegou perto das barras. Lembrei as horas que havíamos passado na sala de interrogatório, próximos desse jeito. O corpo estava exaurido, mas
os olhos, não. Eles não haviam mudado. Aqueles olhos eram o arquétipo de todo o mal que eu já conhecera na vida.

- Então, a que devo a honra da sua visita aqui hoje, detetive?

Sorriu para mim, com seus dentes amarelados, as gengivas tão cinza quanto às paredes. Eu sabia que minha ida até lá fora um erro. Sabia que ele não ia me dar o que
eu queria.

Duas horas depois que pusemos Seguin no carro, dois outros detetives da DRH chegaram com um mandado de busca assinado para a residência e o veículo. Como estávamos
na cidade de Burbank, eu notificara devidamente as autoridades locais sobre nossa presença e uma equipe de detetives e dois patrulheiros de Burbank chegaram à cena.
Enquanto os patrulheiros mantinham Seguin sob vigilância, o resto de nós começou a busca.

Nos espalhamos. A casa não tinha porão. McCaleb e eu fomos para o quarto principal e Terry imediatamente observou que os pés da cama tinham rodinhas instaladas.
Ele se ajoelhou, empurrou a cama para o lado e encontrou um alçapão no piso de madeira. Estava trancado com um cadeado.

Enquanto McCaleb saía do quarto para procurar a chave, tirei minhas ferramentas da carteira e comecei a trabalhar na fechadura. Eu estava sozinho no quarto. Lutando
com a fechadura, eu a bati contra o fecho de metal e achei que tinha ouvido um ruído vindo do lado de lá da portinhola, em resposta. Era distante e abafado, mas
para mim era o som aterrorizado da voz de uma pessoa. Senti meu corpo sendo tomado de terror e esperança.

Apliquei toda a minha habilidade na fechadura e levei trinta segundos para abri-la.

- Pronto! Terry, consegui!

McCaleb voltou correndo para o quarto e abrimos a porta, revelando uma chapa de compensado com aberturas nos quatro cantos, para enfiar o dedo e erguer. Em seguida
puxamos a madeira e ali, sob o assoalho, encontramos uma jovem. Estava vendada e amordaçada, com as mãos algemadas às costas. Um sujo cobertor cor-de-rosa cobria
sua nudez.

Mas estava viva. Ela virou e se encolheu no estofamento à prova de som que forrava o compartimento parecido com um caixão. Era como se estivesse tentando escapar.
Percebi então que achara que a abertura da porta significava ser seu algoz voltando a procurá-la. Seguin.

- Tudo bem - disse McCaleb. - Estamos aqui para ajudar.

McCaleb esticou a mão no compartimento e delicadamente tocou em seu ombro. Ela se assustou como um animal, mas depois ficou calma. McCaleb em seguida deitou de bruços
no chão e esticou os braços ali dentro para começar a remover a venda e a mordaça.

- Harry, chama uma ambulância.

Levantei e me afastei da cena. Senti um aperto no peito, uma clareza de pensamento descendo sobre mim. Em todos os meus anos eu falara pelos mortos muitas vezes.
Eu vingara os mortos. Eu me sentia à vontade com eles. Mas nunca tivera uma participação tão clara na retirada de alguém dos braços estendidos da morte. E, nesse
momento, soube que fizera exatamente isso. E eu sabia que, acontecesse o que acontecesse depois, e aonde quer que minha vida me levasse, eu sempre teria esse instante,
que seria uma luz capaz de me guiar para fora do mais negro dos túneis.

- Harry, o que você está fazendo? Vai chamar uma ambulância.

Olhei para ele.

- Claro, já estou indo.

Eu me aproximei das barras e olhei para ele.

- Seu tempo está acabando. Você esgotou suas apelações, tem um governador que precisa mostrar pulso firme contra o crime. Já era, Victor. Daqui a uma semana, chegou
a hora da agulha.

Esperei por uma reação, mas não houve nenhuma. Ele apenas olhou para mim e esperou pelo que sabia que eu iria perguntar.

- Hora de se abrir. Fala pra mim quem era ela. Conta pra mim onde você a pegou.

Ele se aproximou um pouco mais das barras, perto o bastante para eu sentir o cheiro de podridão em seu hálito. Não recuei.

- Todos esses anos, Bosch. Todos esses anos e você ainda precisa saber. Por que isso?

- Porque preciso, simplesmente.

- Você e McCaleb.

- O que tem ele?

- Ah, ele também veio me ver.

Eu sabia que McCaleb se afastara dessa vida. O trabalho destruíra seu coração. Ele passara por um transplante e, da última vez que tive notícias suas, estava num
barco, com uma linha de pesca na água.

- Quando ele veio?

- Faz uns meses. Apareceu para um papinho. Disse que estava de passagem. Queria saber a mesma coisa. Quem era a garota, de onde veio? Ele me contou que vocês chegaram
até a dar um nome pra ela, durante o julgamento. Cielo Azul. Muito lindo, muito poético, detetive Bosch.

- Ele lhe contou isso?

- Contou, bem aí onde você está.

- Vai me dizer ou não?

Ele sorriu e se afastou das barras. Foi até o tabuleiro de xadrez e baixou o rosto, como se estivesse considerando uma jogada.

- Sabe, eles costumavam me deixar ter um gato. Sinto falta daquele gato.

Pegou uma das peças, mas então hesitou e a pousou de volta no mesmo lugar. Virou e olhou para mim.

- Sabe o que eu acho? Acho que vocês dois não conseguem aguentar o pensamento daquela garota não ter um nome, não vir de uma casa com a mamãe e o papai e o irmãozinho.
A ideia de ninguém ligar e ninguém sentir falta dela, isso deixa um vazio em vocês, não é?

- Só quero encerrar o caso.

- Ah, mas está encerrado. Você não veio aqui por causa disso. Está aqui por que quer. Admita, detetive. Assim como McCaleb veio por conta própria. A ideia de ver
aquela belezinha - aliás, se você gostou dela depois de morta, devia ter visto quando estava viva -, a ideia de ver o corpo sem ser reclamado por ninguém, num túmulo
sem identificação, todo esse tempo, isso anula tudo o que você faz, não é?

- É uma ponta solta. Não gosto de pontas soltas.

- É mais do que isso, detetive. Eu sei.

Não disse nada. Senti vontade de ir embora. Essa ideia, que me passara pela cabeça, de fazer com que me contasse, agora parecia absurda.

- Se uma árvore cai na floresta e ninguém escuta, ela faz algum barulho?

Ele deu um sorriso largo.

- Se uma garota é assassinada na cidade e ninguém dá a mínima, faz diferença?

- Pra mim faz.

- Exato.

Ele voltou a se aproximar das barras.

- E você precisa que eu traga alívio pra esse fardo seu dizendo um nome, arrumando pra ela uma mamãe e um papai que se importem com isso.

Estava a um palmo de mim. Eu podia esticar os braços através das barras e agarrar sua garganta, se quisesse. Mas era isso que ele queria que eu fizesse.

- Bom, não vou soltar você, detetive. Você me enfiou na minha jaula. Eu enfiei você na sua.

Recuou e apontou para mim. Baixei o rosto e percebi que segurava fortemente as barras de aço da cela com as duas mãos. Minha cela.

Olhei de novo para ele e seu sorriso estava de volta, tão livre de culpa quanto um bebê.

- Engraçado, não é? Lembro-me desse dia, hoje faz dez anos. Sentado na traseira da viatura enquanto vocês bancavam os heróis. Tão cheios de si por salvar a garota.
Aposto que nunca pensou que chegaria nesse ponto, pensou? Salvou uma, mas perdeu a outra.

Encostei a cabeça nas barras.

- Seguin, você vai queimar. Você vai queimar no inferno.

- É, acho que sim. Mas ouvi dizer que o calor purifica.

Riu alto e olhou para mim.

- Não sabia disso, detetive? Precisa acreditar no céu para acreditar no inferno.

Dei as costas para as barras abruptamente e voltei na direção da porta de aço. Acima dela vi a câmera. Acenei que abrissem a porta e apertei o passo quando me aproximei.
Precisava cair fora dali.

Escutei a voz de Seguin ecoando pelas paredes atrás de mim.

- Vou ficar com ela perto de mim, Bosch! Vou guardar ela bem aqui comigo! Pra sempre juntinhos! Pra sempre minha!

Quando cheguei à porta de aço, bati com ambos os punhos até que escutei o fecho eletrônico estalar e o guarda começar a deslizá-la.

- Tudo bem, colega, tudo bem. Qual a pressa?

- Só me deixa sair logo daqui - eu disse ao passar por ele.

Eu ainda podia escutar a voz de Seguin ecoando no corredor da morte quando voltei a atravessar o pátio ao ar livre.

 

A grande bolada de um dólar

O TELEFONE TOCOU após o horário costumeiro para assassinatos. Bosch olhou o relógio ao rolar na cama e se sentar. Eram 5h45 da manhã, um pouco tarde para uma chamada
de homicídio.

Era o tenente Larry Gandle com as informações.

- Harry, quero você e o Ignacio nesse caso. A Pacific passou ele pra gente. Mulher, 38 anos de idade, o nome é Tracey Blitzstein. Foi baleada hoje de manhã no carro.
Um tiro na cabeça. Tinha estacionado na entrada de casa.

O nome soava ligeiramente familiar, mas Bosch não conseguiu situar de imediato.

- Quem é e por que estão passando pra nós?

- É meio que uma estrela da tevê. Jogadora de pôquer. Usa o nome de Tracey Blitz. O marido dela também joga, pelo que me disseram. Então, se você assiste esse tipo
de coisa na tevê a cabo, já deve ter visto a mulher algumas vezes. Ela tem bastante projeção. Aparece nos comerciais. Era muito bonita, e aparentemente a melhor
coisa que a espécie feminina tinha a oferecer na arena do pôquer profissional.

Bosch balançou a cabeça. Ele só assistia pôquer na tevê quando tinha insônia e reprisavam a World Series of Poker, na ESPN. Sabia como o torneio era popular. Mas
não era por nada disso que conhecia o nome de Tracey Blitz. Anos antes, ele surgia ocasionalmente na conversa com sua ex-esposa, que também ganhava a vida com o
pôquer. Eleanor Wish, sua ex, sempre chamara o mundo do pôquer profissional de Clube do Bolinha e afirmava que uma mulher nunca ganharia a World Series. Dizia que
uma tal de Tracey Blitz tinha o talento e o conhecimento para vencer o principal torneio, mas que os homens simplesmente não deixariam. Eles subconscientemente poriam
sua testosterona para trabalhar em conjunto, caso necessário, e a eliminariam, se um dia chegasse à mesa da final. Tinha a ver com a questão do macho dominante,
dizia Eleanor.

Agora Tracey Blitz nunca teria a chance de pôr a mão na taça. Ela fora eliminada da competição de uma forma diferente e mais definitiva.

Bosch perguntou a Gandle sobre a localização da cena do crime e recebeu um endereço de Venice Beach, nos canais.

- O que mais, tenente? - perguntou Bosch. - Alguma testemunha?

- Ainda não... não faz nem uma hora que estamos nisso. Me disseram que o marido estava em casa, dormindo. Ele acordou, saiu e encontrou o carro com a mulher dentro.
Não viu nenhum suspeito nem veículo de fuga.

- Onde está o marido?

- Mandei levarem para Parker Center.

- Quem é? Você disse que ele também joga?

- É, só que não no mesmo nível da esposa. O nome é David Blitzstein.

Bosch pensou um pouco, sua cabeça ficando mais clara conforme deixava o sono para trás e se concentrava no que ouvia.

- Vai ser só eu e o Ignacio? - perguntou, referindo-se ao parceiro.

- Vocês estão no comando. Vou avisar Reggie Sauer e ele pode coordenar de Parker Center e pajear o marido até vocês chegarem lá no centro. Também podem contar com
a equipe da Pacific enquanto precisarem.

Bosch balançou a cabeça. Isso não seria de grande ajuda. Em geral, quando detetives de divisão eram substituídos pela Especial de Homicídios, ficavam ressentidos.
Era raro que continuassem por perto para ajudar.

- Sabe o nome de alguém da Pacific?

- Só um.

Gandle lhe deu o nome e o celular do detetive principal na Divisão Pacific que recebera a primeira chamada às 5h01 daquela manhã. Bosch ficou impressionado com a
velocidade das decisões e com sua entrada no caso, menos de uma hora após o início. Isso era um bom sinal. Disse ao tenente que manteria contato conforme o progresso
do caso e então desligou. Ligou para Ignacio Ferras na mesma hora, tirou-o da cama e o pôs a caminho. Ferras morava a mais de uma hora de Venice, e Bosch lhe disse
para não perder tempo.

Então ligou para a detetive da Pacific cujo nome Gandle fornecera. Kimber Gunn atendeu rapidamente e Bosch se identificou e explicou que acabara de ser chamado para
pegar o caso dela. Desculpou-se, mas disse que estava só seguindo ordens. A transferência do caso não era novidade para Gunn, mas Bosch preferia pisar com calma
nesse tipo de terreno. Nunca trabalhara com Gunn antes e ela o surpreendeu. Ofereceu sua ajuda e disse que estava aguardando suas ordens.

- Uma ajuda seria bem-vinda - respondeu Bosch. - Estou provavelmente a meia hora da cena do crime e meu parceiro mora em Diamond Bar. Ele vai demorar até mais do
que eu.

- Diamond Bar? Talvez seja melhor você falar com ele. Está mais perto de Commerce do que de Venice.

- Commerce? Por que Commerce?

- Segundo o marido da vítima, ela passou a noite jogando pôquer no cassino de cartas em Commerce. Ele disse que ela ligou quando estava saindo e que contou que tinha
faturado alto.

- Ele disse quanto foi?

- Disse que foi mais de 6 mil dólares em dinheiro. Meu parceiro e eu, a gente...

- Vocês o quê?

- A gente não quer se meter no seu caso, mas estamos achando que tem muita cara de que a mulher foi seguida desde o cassino.

Bosch pensou a respeito por alguns segundos antes de responder.

- Vamos fazer o seguinte, espera eu ligar pro meu parceiro e mandar ele pra lá, daí eu volto a ligar pra você.

Desligou o celular e ligou para Ferras, que ainda não saíra de casa. Bosch lhe contou o que acabara de escutar e o instruiu a ir para o cassino em Commerce e começar
sua parte da investigação por lá. Então ligou de novo para Gunn.

- O que mais disse o marido da vítima, detetive Gunn?

- Disse que pegou no sono depois que ela ligou. Daí acordou quando escutou o carro chegando, um Mustang incrementado com escapamento aberto. Faz um belo barulho.
Ele estava deitado na cama e escutou quando o motor foi desligado, mas ela não entrou na casa. Ele esperou alguns minutos e depois saiu pra verificar. Encontrou
a mulher morta no carro. Não viu ninguém nem outros veículos. Foi isso. Pode me chamar de Kim, aliás.

- Ok, Kim. Alguém checou o marido no computador?

- Meu parceiro. Nenhuma ficha.

- E a ATF?

- A gente também verificou. Nenhuma arma de fogo. Nem ela.

Bosch segurava o fone entre o ombro e o queixo enquanto abotoava a camisa.

- Alguém coletou amostra?

- Está falando do GSR? Imaginamos que seja uma decisão sua. O marido está cooperando. A gente não queria estragar isso.

Ela tinha razão em esperar que Bosch tomasse a decisão. Conduzir um exame de resíduo de pólvora ficara mais complicado e difícil em anos recentes. Era uma área legal
nebulosa e as escolhas feitas no momento pelos detetives seriam questionadas e revisadas repetidamente durante o processo por supervisores, repórteres, promotores,
advogados de defesa, juízes e júris.

O problema em questão era que esse tipo de teste deixava o elemento de sobreaviso de que ele era um suspeito. Logo, devia ser tratado como tal - seus direitos constitucionais
tinham de ser lidos e era preciso lhe oferecer a oportunidade de buscar aconselhamento legal. Isso era um balde de água fria na cooperação.

Além do mais, uma diretiva recente do Gabinete da Promotoria concluiu que o teste de GSR era uma técnica de coleta de evidências invasiva que só devia ser realizada
de forma voluntária ou depois que um mandado de busca fosse aprovado por um juiz, mais uma medida que claramente deixaria a pessoa avisada de que era suspeita. Assim,
lá se iam os dias em que um detetive podia casualmente dizer a um indivíduo para se submeter a um teste de GSR como parte rotineira de uma investigação. Um teste
de GSR se tornara uma maneira indiscutível de rotular alguém como suspeito.

Segundo Gunn explicara, David Blitzstein se mostrava cooperativo no momento. Era cedo demais na investigação para rotulá-lo como tal.

- Ok, vamos segurar isso um pouco mais - disse Bosch. - Onde está seu parceiro?

- Levando Blitzstein para o centro. Vai voltar depois.

- Qual é o nome dele?

- Glenn Simmons.

Bosch não o conhecia. Até agora, não conhecia ninguém no caso e isso era um empecilho. Grande parte do trabalho dizia respeito a personalidades e relacionamentos.
Sempre ajudava já conhecer as pessoas.

- A perícia ainda não apareceu na cena? - perguntou ele.

- Acabaram de chegar. Vou ficar de olho nas coisas até você chegar aqui.

Bosch olhou seu relógio. Eram seis horas e ele sabia que sua promessa de estar lá em meia hora era um pouco otimista. Tinha de parar no caminho para pegar um café.

- Melhor ainda - disse -, por que não conversa com a vizinhança antes que todo mundo comece a sair para o trabalho e a escola. Veja se alguém viu ou escutou alguma
coisa.

Ele quase pode vê-la concordando com a cabeça ao telefone.

- Já tem um bocado de vizinhos na rua por aqui, assistindo - disse Gunn. - Não deve ser muito difícil obter alguma informação.

- Ótimo - disse Bosch. - A gente se vê daqui a pouco.

A cena do crime já era um vespeiro de atividade quando Bosch chegou. Ele estacionou a meia quadra do lugar e se situou ao se aproximar a pé. Percebeu que as casas
do lado esquerdo da rua davam fundo para um dos canais de Venice, enquanto as da direita, menores e mais velhas, não. Isso resultava nas casas da esquerda serem
um pouco mais valiosas do que as da direita. E criava uma divisão econômica na mesma rua. Os moradores da esquerda tinham dinheiro, suas casas eram mais novas, maiores
e em melhores condições do que as da direita, do outro lado da rua. A casa onde Tracey Blitzstein vivera era uma das do canal. Quando ele chegou mais perto das luzes
brilhantes montadas pela perícia em torno de um Mustang preto, uma mulher saiu do meio do grupo e foi em sua direção. Usava calça azul-marinho e um suéter preto
com gola rulê. Estava com um distintivo preso no cinto e se apresentou como Kim Gunn. Bosch lhe passou o café extra que trouxera e ela se mostrou quase radiante
ao pegar. Parecia nova demais para ser detetive de homicídio, mesmo num esquadrão divisional. Bosch imaginou que devia ser boa no que fazia ou dotada de ligações
políticas - ou as duas coisas.

- Você só pode ser filha de tira - disse Bosch.

- Por que diz isso?

- Fiquei sabendo que seu nome completo é Kimber Gunn. Só um policial poria um nome desses numa criança.

Ela sorriu e balançou a cabeça. Kimber era o nome de uma empresa que fabricava armas, em particular as pistolas táticas utilizadas pelos esquadrões especializados.

- Você adivinhou - ela disse. - Meu pai foi um SWAT do DPLA nos anos 1970. Mas eu me saí melhor do que ele. O nome dele é Tommy Gunn.

Bosch balançou a cabeça. Lembrava-se de ter ouvido esse nome quando chegou ao departamento e era um patrulheiro.

- Ouvi falar dele. Mas não conheci.

- Bem, e eu ouvi falar de você. Então acho que estamos quites.

- Você ouviu falar de mim?

- Pela minha amiga, Kiz Rider. A gente se encontra nas reuniões da BPO.

Bosch concordou com a cabeça. Rider agora era sua ex-parceira, e trabalhava no gabinete do chefe de polícia. Também fora eleita recentemente presidente da Black
Peace Officers Association, um grupo que monitorava a imparcialidade racial nas contratações e exonerações, bem como nas promoções e rebaixamentos do departamento.

- Sinto saudade de trabalhar com ela, e não digo isso de muita gente - disse Bosch.

- Bem, ela diz a mesma coisa sobre você. Quer dar uma olhada na cena do crime agora?

- Quero, vamos.

Começaram a andar na direção das luzes e do Mustang parado.

- Já conseguiu alguma coisa com os vizinhos? - perguntou Bosch.

Gunn fez que sim.

- O que não falta é testemunha - ela disse. - Quando David Blitzstein começou a gritar na rua, acordou todo mundo. Levei os menos desequilibrados para prestar depoimento
na central.

- Alguém escutou a arma?

- Não.

Bosch parou e olhou para ela.

- Ninguém?

- Ninguém que a gente tenha encontrado, e isso inclui o próprio Blitzstein. Subi e desci a rua toda e ninguém escutou tiro nenhum. Todo mundo escutou o homem gritando
e um monte de gente olhou pela janela e viu o cara parado na rua. Ninguém escutou nem viu uma arma. Ninguém escutou nem viu um veículo de fuga também.

- Você quer dizer, se teve um.

- Se teve um.

Bosch começou a andar outra vez na direção do Mustang, mas parou novamente.

- Qual sua opinião sobre o marido? - perguntou ele.

- Como eu disse, até agora se mostrou cooperativo. Você está pensando no marido?

- No momento estou pensando em todo mundo. O que esse cara estava usando quando foi até o meio da rua e gritou por socorro?

- Calça jeans. Sem camisa, sem sapato.

- Algum sangue nele?

- Não que eu tenha visto.

O celular de Bosch zumbiu. Era seu parceiro.

- Harry, estive conversando com o gerente da sala de carteado. Ele disse que Tracey Blitz ganhou uma bela grana ontem à noite.

- Quanto é uma bela grana?

- Ela trocou seis mil e quatrocentos em fichas.

Isso batia com o que David Blitzstein contara a Kimber Gunn.

- Eles têm câmeras no estacionamento? - perguntou Bosch.

- Aguenta aí.

Ferras pôs a mão sobre o aparelho e Bosch escutou um diálogo abafado. Então Ferras voltou à linha.

- Têm - informou Ferras. - Ele vai me mostrar, vamos ver se ela foi seguida quando saiu do estacionamento.

- Ótimo. Me mantém informado.

Bosch desligou.

- Era o meu parceiro, no cassino - disse para Gunn. - Ele confirmou que ela ganhou seis mil e quatrocentos dólares ontem à noite. Ele vai checar as câmeras para
ver se foi seguida quando saiu.

Gunn balançou a cabeça.

- Vamos dar uma olhada na vítima - disse Bosch.

Bosch examinou a cena do homicídio em silêncio por vários minutos, tentando captar nuances de motivação. Tracey Blitzstein tinha uma ferida de contato no lado esquerdo
da cabeça, logo acima do ouvido. Havia um ferimento de saída explosivo abrangendo grande parte da face direita superior. Seu corpo estava atrás do volante do Mustang,
preso no banco pelo cinto de segurança. Ela foi assassinada antes de ter feito qualquer gesto para descer do carro.

Sua pequena bolsa de mão estava em seu colo, o zíper aberto. Sua cabeça estava abaixada, virada ligeiramente para a direita e o queixo colado ao peito. Havia borrifos
de sangue e pedaços de cérebro no painel, no volante, no banco e na porta do passageiro. Mas pouco sangue respingara dos ferimentos sobre suas roupas ou bolsa. A
morte viera instantaneamente, o coração sem chance de bombear sangue dos ferimentos.

Bosch percebeu que todos os vidros do Mustang estavam intactos. Acreditava que o significado disso era que o tiro fatal fora disparado pela porta aberta do motorista.
Bosch também tinha um Mustang. Ele sabia que quando o carro estava com alguma marcha engatada, as portas travavam automaticamente. Isso significava que não foi o
atirador que abriu a porta. A vítima fez isso. Ela provavelmente estacionara, desligara o motor e então abrira a porta para descer antes de tirar o cinto. Foi quando
a abriu que o assassino se aproximou, talvez mais por trás do carro, e disparou o tiro fatal em sua cabeça, de uma posição ligeiramente atrás. Ela, é provável, não
viu o assassino nem percebeu que estava vindo.

Bosch notou um marcador amarelo de evidência na porta do passageiro. Havia um apoio de braço acolchoado com um furo. As etiquetas amarelas eram usadas para marcar
localizações de evidência balística. Ele sabia que o projétil que matara Tracey Blitzstein fora detido pela porta do carro.

Bosch viu outro marcador amarelo no capô. Assinalava a localização de um cartucho de bala que fora encontrado na fenda entre o capô e o para-lama frontal direito
do carro. Era muito provavelmente o cartucho ejetado da arma usada pelo assassino. Cartuchos de bala eram em geral ejetados da câmara de uma arma descrevendo um
arco à direita e para trás da arma. Isso era parte do projeto, porque quase todas as automáticas eram fabricadas para atiradores destros e um arco de ejeção direita-trás
lançaria o cartucho para longe do atirador.

Mas um cartucho poderia facilmente ser redirecionado para frente após ricochetear em outro objeto. E se um canhoto estivesse disparando a arma, esse objeto poderia
ser o próprio atirador. Bosch era canhoto e tinha experiência pessoal nisso - certa vez um cartucho incandescente o atingiu no olho após ter sido ejetado quando
ele praticava no estande de tiro. Ele sabia que, dependendo da posição do atirador e de como a arma foi empunhada, havia uma possibilidade nesse caso de que o cartucho
tivesse atingido o atirador e depois rebatido para frente - talvez para aterrissar no capô dianteiro do carro onde o assassino acabara de atirar.

Bosch balançou a cabeça consigo mesmo. Tinha o palpite de que estava procurando um atirador canhoto.

- O que foi? - perguntou Gunn.

- Por enquanto, nada. Só uma teoria.

Um assistente de legista chamado Puneet Pram estava trabalhando na cena junto com a equipe de peritos da Divisão de Investigação Científica do DPLA. Enquanto alguns
legistas mantinham um comentário contínuo do que estavam fazendo e vendo numa cena de crime, Pram era um investigador forense muito calado. Bosch estivera em cenas
de crime com ele antes e sabia que não conseguiria extrair muita coisa até a autópsia. Donald Dussein, o chefe da equipe forense, era bem diferente, uma figurinha
carimbada no departamento. Conhecido por uma variedade de apelidos, de Pato Donald a D-ao-Quadrado, era em geral bastante acessível - a ponto de conformar os fatos
com a teoria e confundir seu papel na cena do crime. Bosch também trabalhara com ele e sabia que teria de mantê-lo à rédea curta e com o pé no chão.

E mal Dussein começou seu relatório, Bosch teve de fazer exatamente isso.

- Duas coisas, primeiro - disse Dussein. - O ferimento de contato na cabeça. Nítido e muito limpo. Limpo demais, se você me perguntar.

- Tudo bem, então, estou perguntando - disse Bosch. - O que você quer dizer com “limpo demais”?

- Bem, Harry, já vi um bocado desses na minha vida. E esse aqui parece trabalho de atirador profissional. Estou falando de um assassino de aluguel. Considerando
esse mundo de jogatina e grana em que a vítima vivia e um disparo como esse, tudo se encaixa...

- Espera um segundo aí, DD. Que tal você se ater à perícia e deixar que eu cuide do trabalho de detetive? Preciso dos fatos, não de teorias. Agora, como assim, o
ferimento de contato está limpo demais? O que você está tentando dizer?

Colocado em seu devido lugar, Dussein balançou a cabeça.

- O padrão de queimadura é pequeno demais - explicou. - Sabe, normalmente, quando você encosta o cano da arma na lateral da cabeça e puxa o gatilho, o resultado
é uma queimadura de 8 a 13 centímetros no cabelo e na pele. Os gases aquecidos que saem do cano se espalham e queimam. Estão entendendo?

- Estamos - disse Bosch.

- Ok, bem, não tem queimadura aqui. A gente tem um ferimento de contato, mas nenhuma queimadura. Não teve escape de gases e você sabe o que isso quer dizer.

Bosch fez que sim. Ele sabia. Significava que a arma usada para matar Tracey Blitzstein provavelmente estava equipada com um supressor de som - um silenciador, que
teria recanalizado o som do disparo. Ao fazê-lo, teria recanalizado também a explosão de gases quentes. Teria feito com que recuassem pelas cavidades do dispositivo
acoplado na direção do atirador, deixando o cabelo da vítima incólume, a não ser pela área imediata do ferimento.

- Isso explicaria por que nenhuma das testemunhas escutou o tiro - disse Bosch.

Dussein fez que sim.

- O que você está dizendo, que o assassino usou um silenciador? - perguntou Gunn.

- É isso que estou dizendo - afirmou Dussein.

Ele fez um gesto na direção do corpo.

- Não tem queimadura. Este é um ferimento de contato sem queimadura. Estou dizendo pra vocês, o atirador usou um supressor de som.

Bosch balançou a cabeça. Decidiu que seria melhor seguir adiante com o resto do relatório.

- Ok - disse. - Vamos conversar sobre a balística.

Dussein fez que sim, pronto para seguir em frente.

- Demos sorte nisso - disse ele. - O projétil se chocou contra o forro da porta e foi recuperado em boas condições. Temos também a cápsula, encontrada na frente
do veículo. Federal, calibre quarenta. Com a bala e o cartucho vamos ser capazes de fazer a comparação com uma arma. Vocês só precisam encontrar a arma.

Bosch assentiu.

- Fiquei me perguntando como o cartucho foi parar no capô - ele disse.

- Essa é uma boa pergunta - disse Dussein. - Quer ouvir minha teoria?

- E que tal se eu disser a minha?

Bosch foi até a porta aberta do Mustang e esticou o braço esquerdo dentro do carro, parando a um palmo da cabeça da vítima.

- Estou pensando que o atirador possivelmente era canhoto. Nessa posição o cartucho poderia ter rebatido em seu corpo e depois ricocheteado para frente, por cima
do teto, e caído no capô.

- Exatamente minha teoria.

Dussein sorriu. Bosch apenas concordou com a cabeça.

- E quanto à bolsa? - perguntou. - Ainda não temos nada?

- Me deem mais cinco minutos e então ela é de vocês - respondeu Dussein.

Bosch balançou a cabeça outra vez e recuou. Sinalizou para Gunn e se afastaram do agrupamento, de modo a poder conferenciar privadamente.

- Me conta mais uma vez o que as testemunhas falaram sobre o marido quando viram o cara na rua?

- Disseram que estava no meio da rua, pedindo socorro, gritando para que alguém chamasse a polícia e pedisse uma ambulância. O sujeito que mora do outro lado da
rua foi o próximo a chegar à cena e ver a vítima. Percebeu que não tinha esperança e levou David pra sua casa. Eles estavam sentados na varanda quando a polícia
chegou.

Gunn apontou para a casa velha do outro lado da rua, com uma varanda percorrendo toda sua extensão.

- O vizinho também arrumou umas roupas pra ele - acrescentou. - Uma camiseta e chinelos. Blitzstein não chegou a entrar na casa em nenhum momento antes de ser levado
pro centro.

- Ok, ótimo. Não vamos deixar ninguém entrar na casa até a gente estar com um mandado de busca.

Olhou em torno pela cena do crime. Gunn se aproximou mais um pouco e falou em voz baixa.

- Você está mesmo achando que é ele, não? O marido. Bem que eu queria saber o que deixei escapar.

Bosch abanou a cabeça.

- Não sei. Você provavelmente não está deixando escapar nada. As coisas simplesmente não parecem certas pra mim. Você sabe se David Blitzstein é canhoto ou destro?

- Não sei. Quer que ligue pro meu parceiro? Ele provavelmente ainda está levando o homem. Ele pode perguntar.

- Não, seria dar muita bandeira. Vamos deixar isso de lado por enquanto. Até a gente...

Não terminou. Até a gente o quê? Ele ainda não sabia.

- O que não parece certo com a cena do crime? - disse Gunn, pressionando-o. - Me ensine um pouco.

- É só uma sensação, só isso. A porta estava trancada naquele carro quando ela parou. Eu sei disso, tenho um Mustang e as portas travam automaticamente.

- Certo, estava trancada, mas ela abriu.

Bosch abanou a cabeça.

- Isso é o que eu não entendo. Eu conheço esse tipo de mulher. Fui casado com uma. Alguém como ela, uma mulher que vive num mundo exclusivamente masculino, que joga
cartas toda noite e ganha muito dinheiro... alguém que conhece os perigos que acompanham tudo isso... Não consigo imaginar essa mulher abrindo a porta antes de tirar
o cinto de segurança. Ela não ia abrir a porta até que estivesse pronta para se mover.

Gunn digeriu o argumento de Bosch e assentiu.

- Mas ia abrir pra alguém da confiança dela - disse.

Bosch apontou um dedo em sua direção como uma arma e balançou a cabeça.

- Só tem um problema com esse cenário - disse ela. - Onde está a arma? Falei com pelo menos uma dúzia de testemunhas que viram Blitzstein no meio da rua de calça
jeans e mais nada.

Bosch estava preparado para isso.

- A arma pode estar em qualquer lugar. Pode estar na casa ou no canal atrás da casa. Não faz diferença, porque a arma e o disparo não determinam o momento da morte.
As testemunhas não olharam pela janela porque escutaram um tiro. Olharam porque Blitzstein estava aqui fora, gritando na rua.

Bosch viu a chama da compreensão brilhando nos olhos de Gunn.

- Você está dizendo que ele teve tempo de se livrar da arma porque ninguém sabe o intervalo entre o momento em que ela foi disparada com o silenciador e em que ele
saiu pela rua e começou a acordar a vizinhança.

Bosch balançou a cabeça.

- Isso é outra coisa. Ele aqui fora na rua, gritando socorro, como se quisesse que os vizinhos vissem. Sei lá, se fosse minha esposa nesse carro com os miolos pra
todo lado... Acho que eu não ia parar no meio da rua sem sangue nenhum em mim. Não vejo como pode ser desse jeito.

Seu celular zumbiu e ele enfiou a mão no bolso para atender.

- Veja se o Dussein terminou lá com a bolsa - disse. - Estou com um cara em Parker Center esperando pra trabalhar. Vou pôr ele no mandado de busca pra casa.

- Pode deixar.

Bosch abriu seu celular. Era Ignacio Ferras.

- Harry, olhei todas as fitas da área de entrada do cassino e do estacionamento. Pra mim parece que tinha alguém seguindo ela.

Bosch parou de repente. Isso invalidaria completamente a teoria que acabara de desenvolver com Gunn.

- Tem certeza, Ignacio?

- Bem, nada é certeza, mas tenho uma gravação dela saindo do cassino com um segurança. O cara acompanhou ela até o carro. Daí continuou no estacionamento até ela
sair. Tudo lindo e maravilhoso. Mas daí, em intervalos de trinta segundos, mais dois carros saíram e foram na mesma direção que ela. Para a entrada da via expressa,
no fim da quadra.

- Dois carros...

- É, dois.

- Ok, mas os carros não entram e saem do estacionamento ali a intervalos regulares? Mesmo no meio da noite? E provavelmente a maioria dos carros que sai vai para
a via expressa, certo?

- É, eles vão. O tempo todo, o cassino funciona vinte e quatro horas. Mas depois que eu vi esses dois carros saindo assim que ela foi, voltei as fitas para identificar
os motoristas. Descobri que um deles saiu alguns minutos antes da vítima. Ele entrou no carro e deu um tempo antes de sair. Acho que estava fumando. Isso permitiu
que a vítima saísse primeiro.

- Ok, e quanto ao segundo carro?

- Aí é que está, Harry. Não consegui encontrar ninguém saindo do cassino que eu pudesse ligar a esse carro. Não de início. Então precisei voltar uma hora para encontrar
o cara. Ele saiu uma hora antes da vítima e ficou lá no carro sentado, esperando por ela.

Bosch começou a andar de um lado para outro pela rua enquanto digeria tudo isso.

- Você também olhou as fitas com esse cara dentro do cassino? - ele perguntou.

- Olhei. E o cara não estava jogando, Harry. Só assistindo. Ele andava pra lá e pra cá, agindo como se fosse um jogador, mas nunca jogando de verdade. Estava assistindo
as mesas e na última hora ficou vendo ela jogar. A vítima. Não tirou o olho dela, daí saiu e ficou esperando no estacionamento.

Bosch balançou a cabeça devagar. Estava percebendo que o caso tomava uma direção completamente nova. Kimber Gunn então começou a se aproximar, mas ele ergueu um
dedo de modo que pudesse finalizar a ligação.

- Ignacio, você pegou as placas dos carros que saíram atrás de Tracey Blitzstein?

- Peguei, elas aparecem na fita. O primeiro carro estava registrado no nome de Douglas Pennington, em Beverly Hills. O segundo, no de Charles Turnbull, em Hollywood.

Beverly Hills e Hollywood ficavam no lado oeste, assim como Venice. Se Pennington e Turnbull estivessem voltando para casa depois do cassino em Commerce, teriam
tomado a mesma direção de Tracey Blitzstein. Isso era explicável - pelo menos no que respeitava a Pennington. Mas a atividade de Turnbull no cassino e depois sua
espera no estacionamento por uma hora não era - ainda.

- E você jogou o nome deles no computador? - Bosch perguntou ao parceiro.

- Joguei, os dois limpos. Quer dizer, Turnbull está cheio de multas de todo tipo, mas é só isso.

Bosch fitou Gunn nos olhos enquanto tentava pensar sobre o que fazer. Ela ergueu as sobrancelhas. Ele podia perceber que ela pressentia uma mudança nos ventos da
investigação.

- Harry, o que você quer que eu faça agora? - perguntou Ferras.

- Vai pra Parker Center. Vou pôr o Sauer num mandado de busca pra casa da vítima. Com sorte a gente tem isso assinado e pronto pra seguir na altura em que você chegar.
Pega o mandado e vem pra cena. Depois a gente pensa no que fazer.

- E quanto ao Turnbull?

- Me dá o endereço dele. Vou ver o que eu descubro por lá agora mesmo.

Depois que encerrou a ligação e desligou, Gunn falou primeiro.

- Já verifiquei a bolsa. Levaram o dinheiro. O que está acontecendo?

- Você tem um carro do serviço aqui?

- Tenho, é uma viatura caindo aos pedaços, do galpão da Pacific.

- Ótimo. Você dirige. Eu conto o que está rolando no caminho. Tudo que acabei de falar pra você, aquilo que a gente conversou, acaba de ir embora pelo ralo.

O endereço que Ferras dera a Bosch como sendo domicílio de Charles Turnbull levava a um prédio de tijolos na Franklin. A caminho do lugar, Bosch deixou Gunn a par
do que Ferras descobrira no cassino, em Commerce.

Não tinham qualquer referência sobre Turnbull além do que Ferras lhes passara, mas, quando chegaram à entrada do edifício, uma nova dimensão se descortinou. Junto
à campainha do apartamento 4B dizia INVESTIGAÇÕES TURNBULL. Antes de apertar o botão, Bosch ligou para Jim Sauer em Parker Center e lhe pediu para jogar o nome Charles
Turnbull no computador das empresas e licenças do estado. Minutos mais tarde ele desligou.

- Ele tem uma licença de investigador particular faz dezesseis anos - contou a Gunn. - Antes disso, foi policial em Santa Monica.

Bosch apertou o botão das Investigações Turnbull. Sem resposta, apertou mais duas vezes, cada uma mais demorada que a anterior. Abrira seu celular outra vez e estava
pedindo auxílio à lista para um número de Turnbull quando uma voz sonolenta e irritada soou no alto-falante acima do painel de botões.

- Quem é?

Bosch se aproximou do interfone.

- Senhor Turnbull?

- O que foi? São oito horas da manhã!

- DPLA, senhor Turnbull. Precisamos falar com o senhor.

- Sobre o quê?

- É uma situação de emergência, envolvendo um de seus clientes. Podemos subir?

- Que cliente?

- Podemos subir?

Não houve resposta por cinco segundos e então seguiu-se um zumbido de cigarra e a porta da entrada se destrancou eletronicamente. Eles tomaram o elevador para o
quarto andar e no caminho Bosch soltou a tira de segurança em seu coldre. Gunn fez o mesmo.

- É uma Kimber? - perguntou Bosch.

- É, Ultra Carry.

Bosch balançou a cabeça, aprovando. Era a mesma arma que ele carregava.

- Boa arma. Nunca trava.

- Espero que a gente não tenha que descobrir.

Quando desceram do elevador, havia um homem parado no corredor, de jeans e camiseta branca. Ele usava um roupão puído por cima da roupa, o que ocultava grande parte
de sua cintura e qualquer coisa que pudesse trazer escondida ali. Estava descalço e seu cabelo castanho escuro estava todo amassado de um lado. Fora tirado da cama.

- Turnbull? - perguntou Bosch, enquanto usava a mão direita para mostrar o distintivo.

- Do que se trata? - quis saber o homem.

- Não aqui no corredor. Podemos entrar, senhor Turnbull?

- Tá bem.

Indicou a eles a porta aberta do apartamento B, mas Bosch sinalizou que entrasse primeiro. Bosch queria manter Turnbull diante de seus olhos o tempo todo.

- Sentem aí, se encontrarem um lugar pra isso - disse Turnbull quando entraram. - Café?

- Um café até que vai bem - disse Bosch.

- Aceito - respondeu Gunn.

Ambos permaneceram de pé. O apartamento era mobiliado com móveis modernos, mas estava atulhado com o trabalho de Turnbull. Havia pastas empilhadas na mesinha de
centro e espalhadas sobre um sofá. Sem a menor sombra de dúvida a sala era seu centro de operações.

Bosch o seguiu à cozinha minúscula, mais uma vez de modo a manter contato visual. Turnbull falou enquanto enchia de água uma cafeteira de vidro.

- Qual é o cliente que se estrepou? - perguntou Turnbull.

- Como assim?

- Você disse que era uma emergência. Então, qual é o cliente que se estrepou?

Bosch decidiu jogar verde.

- David Blitzstein - disse.

Turnbull estava prestes a entornar a água no compartimento de fervura da cafeteira elétrica, mas parou com a jarra de vidro no ar. Ele balançou negativamente a cabeça.

- Nunca ouvi falar - disse. - Não é meu cliente.

- Sério? Mas o senhor estava trabalhando para ele ontem à noite - disse Bosch.

Turnbull sorriu.

- Recebeu informação errada, detetive.

Turnbull despejou a água e ajustou a jarra de vidro sob o cone da cafeteira.

- Possui uma arma, senhor Turnbull? Sabe que posso descobrir com um telefonema.

- Vocês provavelmente já fizeram isso. Sim, possuo, mas quase nunca ando com ela. É uma relíquia. Dos meus tempos na polícia. Uma Smith and Wesson, calibre trinta
e oito. Um revólver. Nenhum tira usaria uma dessas hoje em dia.

Uma arma de tambor. Nada de cápsulas ejetadas. O calibre errado e o tipo de arma errado para o assassinato de Blitzstein.

- Vamos verificar para ter certeza. Pode me mostrar?

Turnbull recostou em um balcão da cozinha e cruzou os braços, num gesto de frustração.

- Claro, eu mostro pra você, assim que o banco no fim da rua abrir às nove, porque está numa caixa de depósito. Como eu falei, dificilmente uso. Agora, ou vocês
dois pegaram a pista errada, ou sou eu que não estou enxergando alguma coisa que está bem na minha cara. Não conheço nenhum David Blitzstein. Não sei do que você
está falando.

Bosch instintivamente acreditou nele. Também percebeu que alguma coisa estava errada. Estavam de fato na pista errada. Decidiu tentar uma abordagem direta.

- Tudo bem, vamos parar com a dança. O senhor esteve no cassino em Commerce ontem à noite. Por quê?

Turnbull ergueu as sobrancelhas. Era a primeira coisa que fazia sentido para ele.

- Eu estava trabalhando. Mas não para David Blitzstein nem contra David Blitzstein.

- Então vamos começar por quem contratou o senhor.

- Um advogado chamado Robert Suggs. Eu trabalho bastante pra ele. Processos de divórcio.

- Tudo bem, então, o que o senhor estava fazendo.

- Seguindo um indivíduo pra outro indivíduo, um cliente de Bob Suggs.

Bosch fez sinal com a cabeça de que compreendia.

- Senhor Turnbull. Acho que cometemos um engano aqui, mas precisamos ter certeza. O indivíduo que o senhor estava seguindo, qual o nome dele?

- Eu teria que ligar para o Suggs antes de poder dizer.

- Seria Douglas Pennington, de Brentwood?

Bosch percebeu a entregada no olhar de Turnbull. O nome era familiar para ele.

- Não posso dizer - disse Turnbull.

- Acabou de fazer isso - disse Bosch. - Olha, entendo sua posição. Eu mesmo passei dois anos como investigador particular, sei como é. Mas estamos trabalhando num
homicídio aqui. Então vamos encontrar um campo neutro no qual o senhor pode ajudar a gente e ajudar a si mesmo encerrando logo esse assunto. Vamos esquecer os nomes.
Vamos tratar dos indivíduos. Conta pra gente o que puder sobre o caso em que estava trabalhando ontem à noite.

O café começou a pingar na cafeteira e o cheiro invadiu o apartamento. Bosch sentiu uma pontada de vontade. Sua carga de cafeína da primeira xícara do dia já deixara
de surtir efeito havia muito tempo.

- Um indivíduo contratou meu empregador pra iniciar o processo de desligamento matrimonial. A única coisa é que o marido desse indivíduo ainda não sabe. A gente
está no que chamamos de estágio de caça-coleta. Ela falou pra gente que acha que o marido tem uma amante. Uma ou duas vezes por semana ele fica fora quase a noite
inteira, dizendo que estava jogando pôquer. Ela notou que a conta bancária tinha sido desfalcada em oito a dez mil por mês, com saques que ele tem feito.

- Então o senhor estava seguindo ele ontem à noite - disse Bosch.

Turnbull fez que sim.

- Isso está correto.

- E aconteceu de ele estar mesmo jogando pôquer.

- Correto também.

- Quanto ele perdeu?

- Mais ou menos dois paus. Jogou na mesa das apostas altas e uma mulher limpou ele. Em certo sentido, a mulher dele tinha razão. Ele deu seu dinheiro pra outra mulher.

Turnbull sorriu e então estalou os dedos, apontando para Bosch.

- Blitz. Escutei a mulher que estava limpando a mesa ser chamada de Blitz. É ela, o homicídio?

Virou para um armário, mas ficou de olho em Bosch. Abriu a porta e pegou três xícaras. Pôs as xícaras no balcão, junto à cafeteira.

- É, ela mesma - disse Bosch.

- Ela saiu na mesma hora que o meu cara, então as câmeras no estacionamento deram a ideia pra você de que eu estava seguindo ela, não ele.

- Alguma coisa do tipo.

Turnbull apertou o interruptor na cafeteira e puxou a jarra de vidro. Serviu as três xícaras e perguntou se alguém queria açúcar ou leite em pó. Ninguém queria.

- Claro - ele disse. - Vocês são policiais.

Bosch bebeu da xícara que lhe foi servida e o café estava forte e quente, bem a seu gosto. Ele relaxou um pouco. Turnbull era um beco sem saída na questão de ser
um suspeito, mas ainda podia ser útil como testemunha.

- O senhor saiu para o estacionamento cerca de uma hora antes do seu cara - ele disse. - Por quê?

- Porque eu estava cansado de agir como se tivesse alguma coisa a fazer ali. Precisava começar a jogar ou cair fora. Não jogo pôquer. Não me interesso. Então eu
saí e sentei no carro.

- Viu alguma coisa incomum por lá?

- Não, só gente indo e vindo.

- E quanto à mulher, quando ela saiu? O senhor a viu?

- Vi. Meu cara já tinha saído e estava sentado no carro, fumando e tentando esfriar a cabeça depois de perder toda aquela bufunfa. Daí ela saiu, acompanhada por
um segurança. Achei que era uma boa ideia. Ela provavelmente carregava uma puta grana, pelo jeito como estava jogando. Limpando todo mundo. Não só meu cara.

Bosch assentiu.

- E depois o quê?

- Depois nada. Fiquei olhando, porque meu cara estava no carro dele e pensei que se talvez fosse acontecer alguma coisa, eu ia ver acontecer bem ali. Mas ela entrou
no carro e se mandou. Daí meu cara saiu e eu fui atrás dele.

- Mais nada envolvendo a mulher no estacionamento?

- No estacionamento, não.

- Como assim?

- Bem, não sei se quer dizer alguma coisa. Mas já estive no lugar de vocês, faz um puta tempo, e sei que vocês querem saber tudo sobre tudo. Então vou contar tudo.
Na via expressa ela quase perdeu o controle do carro.

- O que aconteceu?

- Não tenho muita certeza, mas acho que estava fazendo alguma coisa, pode ser que tenha deixado cair ou tentado pegar algo, e com isso deu uma guinada pra fora da
faixa e depois voltou a andar normal. Foi como se estivesse dirigindo embriagada, mas ela não tinha bebido nada. Quando fiquei vendo o jogo lá na sala de carteado,
ela só tomou água mineral.

- Não era um celular? Ela não baixou o rosto enquanto dirigia?

- Acho que não era celular, não. Provavelmente eu teria visto a luz. Enfim, quando ela deu a guinada, eu estava bem atrás dela, daí acendi o farol alto pra ver se
estava tudo bem. Não vi celular nenhum. Ela estava meio curvada, como se tivesse deixado cair alguma coisa no vão da porta. Aí se endireitou no banco quando dei
o farol alto. Olhou pra mim no retrovisor e eu abaixei os faróis.

Bosch pensou nisso por alguns instantes, perguntando-se o que Tracey Blitzstein estivera fazendo. Então se deu conta de que ela talvez tivesse cometido o mesmo engano
que ele, tomando Turnbull por alguém que a seguia, e estivesse escondendo o dinheiro que ganhara sob o banco, uma precaução para não ser roubada.

- Acha que ela viu o senhor saindo do estacionamento do cassino? - perguntou.

- Não sei. É possível.

- Existe alguma chance de ela ter pensado que o senhor estava na cola dela? Ou de achar que o cara que o senhor estava seguindo estivesse seguindo ela?

Turnbull tomou um gole de café e pensou um pouco antes de responder.

- Se ela achou que tinha alguém na sua cola, teria sido eu. Todo mundo ia na mesma direção, mas meu cara ia na frente dela. Então, se ela ficou de olho no retrovisor,
ia ter me visto. Se eu tivesse faturado uma grana daquelas, não ia tirar o olho do retrovisor.

Bosch balançou a cabeça e pensou a respeito de tudo por alguns momentos.

- Quando exatamente ela deu aquela guinada de uma faixa para outra? - perguntou em seguida.

- Quase na mesma hora em que a gente entrou na rodovia. Como eu disse, meu cara foi na frente de nós dois. Daí eu fiquei atrás dela e meio que usei seu carro pra
me proteger e não ser visto, caso ele estivesse de olho no retrovisor. Então não é difícil que ela tivesse achado que eu estava atrás dela, não dele.

Turnbull serviu mais café em sua xícara e depois ofereceu a jarra, mas tanto Bosch como Gunn recusaram o repeteco.

- Acabei de me lembrar de uma coisa - disse Turnbull. - Tem a ver com a mulher pensar que eu estava seguindo ela.

- O que foi? - perguntou Bosch.

- Uns dez minutos depois de dar a guinada, ela meio que fez uma manobra evasiva. Na hora achei que talvez tivesse cochilado na direção e quase perdido a saída, mas
agora estou entendendo. Ela estava tentando descobrir se tinha alguém na cola.

- Exatamente o que ela fez?

- A gente estava na dez, indo para oeste, certo? Bom, a gente estava subindo por La Cienega e no último segundo ela de repente corta duas faixas pra pegar a saída.

- O senhor quer dizer, como se estivesse tentando ver se alguém ia seguir ela pela rampa?

- É, se eu iria fazer a mesma manobra brusca através da pista. Foi uma boa sacada. Tanto para revelar alguém na cola como para despistar, se fosse o caso.

Bosch fez que sim e olhou para Gunn, para ver se tinha qualquer coisa a acrescentar ou perguntar, mas ela ficou calada.

- O senhor voltou a vê-la depois disso? - perguntou Bosch.

- Não, depois disso, não - disse Turnbull. - Ela sumiu na noite.

Em mais de um sentido, pensou Bosch. As perguntas haviam terminado. Precisava sair dali e fazer uma ligação.

- Senhor Turnbull, pedimos desculpa por tê-lo acordado depois de trabalhar a noite toda - disse. - Mas o senhor foi de grande ajuda e somos gratos por isso.

Turnbull ergueu as mãos, dando a entender que era o mínimo que podia fazer.

- Só fico feliz por não ser mais um suspeito - disse Turnbull. - Boa sorte na caça ao criminoso.

Bosch pousou a xícara vazia no balcão.

- Obrigado pelo café, também.

Bosch pegou o celular assim que saíram do prédio e iam para o carro. Ligou para o parceiro.

- Sou eu - disse. - Ainda não chegou na cena?

- Acabei de chegar. Estou com o mandado de busca pra a casa.

- Ótimo. Mas antes de entrar, quero que procure Dussein, o cara da perícia.

- Ok.

- Fala pra ele que é para desmontar o interior do Mustang, se precisar, mas que eu acho que o dinheiro desaparecido continua lá em algum lugar.

- Você quer dizer que ela não foi seguida?

- Ainda não sei o que aconteceu, mas quando estava voltando pra casa, acho que pensou que estava sendo seguida. Acho que escondeu o dinheiro no carro em algum lugar,
algum lugar ao alcance, enquanto dirigia. Talvez debaixo do banco, mas imagino que Dussein já olhou ali.

- Ok, eu cuido disso.

- Me liga de volta se conseguir alguma coisa.

Bosch fechou o celular. Não falou nada até voltarem ao carro.

- Acho que estamos focando de novo no marido - disse. - O que Turnbull contou reforça a teoria. Se ela estava com medo ou achou que tinha alguém seguindo, não ia
abrir a porta até ficar pronta pra entrar rapidinho em casa.

Gunn balançou a cabeça.

- Me esqueci de mencionar um negócio sobre a bolsa - disse ela.

- A bolsa da vítima? O que tem ela?

- Tinha uma lata pequena de spray de pimenta ali dentro. Ela não chegou a tirar.

Bosch pensou nisso por um momento e viu como se encaixava na atual teoria.

- Mais uma vez, se ela achou que tinha sido seguida, e mesmo se acreditou que tinha despistado o perseguidor com a manobra na via expressa, não teria aberto a porta
e deixado o spray de pimenta na bolsa a menos que se sentisse segura.

- A menos que alguém estivesse ali para fazer com que se sentisse segura.

- O marido. Talvez estivesse segurando a arma totalmente à vista e ela pensou que fosse por proteção. Quando abriu a porta, ele apontou.

Gunn fez que sim, como se acreditasse no cenário, mas então bancou a advogada do diabo.

- Mas a gente não tem como provar nada disso. Não temos nada. Nenhuma arma, nenhum motivo. Mesmo se o dinheiro for encontrado no carro, não vai fazer diferença.
Não impede que ela tenha sido seguida até em casa e não vamos poder fazer a acusação.

- Então é um caso dois por dois.

- O que isso quer dizer?

- Quer dizer que vai se resumir ao que acontecer dentro de uma das salinhas em Parker Center. Vamos conversar com ele e esperar que cometa um engano.

- Ele é um jogador de pôquer profissional, lembra?

- Claro que lembro.

Levou meia hora para irem de Hollywood a Parker Center devido ao horário de pico do trânsito matinal. Na sala da Divisão de Roubos-Homicídios no terceiro andar,
Bosch observou David Blitzstein através do vidro espelhado por cinco minutos enquanto se preparava para o interrogatório. Blitzstein não parecia um homem pranteando
a perda da esposa. Para Bosch, parecia mais um tigre enjaulado. Estava andando de um lado para outro. Havia pouco espaço para fazer isso com a mesa e duas cadeiras
ocupando a maior parte da sala de dois metros e meio por dois e meio, mas Blitzstein andava de uma parede à parede oposta, indo e voltando repetidamente. Cada vez
que o padrão o deixava a poucos centímetros do vidro espelhado e ele fitava seus próprios olhos, também estava inadvertidamente fitando os olhos de Bosch, do outro
lado.

- Ok - disse Bosch finalmente. - Estou pronto.

Estendeu seu celular para Gunn.

- Fique com isso. Se meu parceiro ligar com alguma notícia, entre e diga que o capitão está ao telefone.

- Entendido.

Foram para a sala dos detetives e Bosch encheu dois copos de isopor com café. Adicionou quatro saquinhos de açúcar em um e levou os dois para a sala de interrogatório.
Entrou e pôs o café superdoce de um lado da mesa enquanto sentava do outro lado com o seu.

- Por que não senta, senhor Blitzstein - disse. - Tome um café. Vai ser um longo dia para o senhor.

Blitzstein se aproximou e sentou.

- Obrigado - disse. - Quem é você? O que está acontecendo com minha esposa?

- Meu nome é Harry Bosch. Fui designado detetive principal no caso de sua esposa. Sinto muito por sua perda. Lamento mantê-lo esperando, mas pretendo tirar o senhor
daqui o mais rápido possível, de modo que possa estar com sua família e começar a fazer os arranjos para o velório.

Blitzstein balançou a cabeça, agradecendo. Pegou seu copo de café e tomou um gole. Seu rosto se contraiu, mas ele não se queixou. Isso era bom sinal. Bosch queria
que continuasse bebendo. Esperava levá-lo a ficar chapado de açúcar. As pessoas muitas vezes confundiam barato de açúcar com clareza de pensamento. Bosch sabia que
na verdade o barato fazia com que assumissem riscos e cometessem erros.

Blitzstein pôs o copo na mesa e Bosch notou que usara a mão esquerda. Esse foi o primeiro erro.

- Só preciso repassar os fatos mais uma vez antes de liberar o senhor - disse Bosch.

- Já contei tudo que sabia praquela garota negra.

- Está se referindo à detetive Gunn? Bem, isso foi meio que preliminar. Antes de eu ter sido chamado. Preciso ouvir algumas coisas com meus próprios ouvidos. Além
do mais, agora temos a vantagem de ter examinado a cena do crime e conversado com as testemunhas.

As sobrancelhas de Blitzstein se elevaram por um momento e ele tentou encobrir a reação pegando o copo e tomando mais café. Mas Bosch agora tinha um de seus gestos
denunciadores e o registrou devidamente.

- Puxa, isso é excelente! - exclamou ele. - Quer dizer que há testemunhas?

- A gente fala sobre as testemunhas daqui a uns minutos - disse Bosch. - Primeiro quero escutar sua versão dos fatos outra vez. Desse modo fico sabendo diretamente
pelo senhor, em vez de ser em segunda mão pela detetive Gunn. Assim o caso não é adulterado por nada que qualquer outra pessoa tenha dito ou alegado ter visto.

- Como assim, “alegado ter visto”?

- É só uma maneira de dizer, senhor Blitzstein - disse Bosch.

Blitzstein soltou o ar em exasperação e começou a recontar a mesma história que contara a Gunn quatro horas antes. Não acrescentou novos detalhes e não deixou nada
de fora que aparecera no primeiro relato. Isso era incomum. Histórias verdadeiras se desenvolvem à medida que alguns detalhes são lembrados e outros, esquecidos.
Uma história falsa, que tenha sido ensaiada na cabeça, em geral permanece constante. Bosch sabia disso e sentiu sua desconfiança de Blitzstein movendo-se por um
terreno mais sólido.

- Certo, então quanto tempo o senhor demorou pra chegar no carro depois do tiro?

- Não sei, porque não escutei. Mas acho que não demorei muito. Eu tinha escutado o carro chegando. Esperei e como ela não entrou em casa, saí pra ver o que estava
acontecendo.

- Então, se alguém tiver dito que achou que o senhor já estava no carro quando o tiro foi disparado, esse alguém estaria errado?

- O quê? Já estava no... de jeito nenhum, eu não estava lá quando aconteceu o tiro. Nem vi quem foi. O que você está tentando dizer?

Bosch balançou negativamente a cabeça.

- Não estou tentando dizer nada. Estou tentando obter o quadro mais claro possível do acontecido. Como o senhor pode imaginar, a gente obtém visões conflitantes.
As pessoas dizem coisas diferentes. Tive um parceiro uma vez que falava que se você pusesse vinte pessoas numa sala e um homem pelado entrasse correndo e saísse,
você ia ter doze pessoas dizendo que o homem era branco, sete que diriam que era negro e pelo menos uma alegando que era uma mulher.

Blitzstein sequer sorriu.

- Vamos fazer o seguinte - disse Bosch. - Por que não me conta sua teoria sobre o que aconteceu lá?

Blitzstein nem precisou pensar a respeito.

- Simples. Ela foi seguida até em casa. Ganhou um monte de dinheiro e alguém do cassino a perseguiu e a matou por isso.

Bosch balançou a cabeça, como se tudo se encaixasse.

- Como sabe que ela ganhou um monte de dinheiro?

- Porque ela me contou, quando ligou da gaiola pra avisar que estava voltando pra casa.

- Que gaiola?

- Gaiola do dinheiro. Ela estava trocando as fichas e eles deixam que use o telefone porque é cliente regular. Ela esqueceu o celular ontem à noite. Me ligou e disse
que estava voltando pra casa.

- Parecia assustada por carregar todo aquele dinheiro?

- Na verdade, não. Era mais comum ela ganhar do que perder e ela sabia tomar suas precauções.

- Ela portava arma?

- Não. Na verdade... acho que tinha uma lata de spray de pimenta na bolsa.

Bosch balançou a cabeça.

- Já achamos. Mas só isso, só o spray de pimenta?

- Até onde eu sei.

- Ok, e quanto ao senhor? O senhor joga por lá? Costuma ir com ela?

- Eu costumava ir. Mas não vou mais ou menos há um ano.

- Por quê?

- Fui meio que banido daquele cassino. Houve um desentendimento no ano passado.

Bosch tomou mais um gole de café e se perguntou se devia ir atrás disso ou se era apenas um despistamento que Blitzstein esperava que mordesse. Decidiu avançar com
cautela.

- Qual foi o desentendimento?

- Não tem nada a ver com essa história.

- Se tem a ver com a sala de carteado em Commerce, então tem a ver com essa história, sim. Se o senhor quer me ajudar a encontrar o assassino da sua mulher, precisa
responder minhas perguntas e deixar que eu decida o que interessa e o que é ou não é importante. Qual foi o desentendimento?

- Tudo bem, eu falo, já que você precisa saber. Me acusaram de trapacear e não tinha nada que eu pudesse fazer pra me defender. Eu não estava trapaceando, e é a
interpretação deles contra minha palavra. Fim de papo. Deram um pé na minha bunda e não vão me deixar voltar. Banido pro resto da vida.

- Mas eles não tiveram um problema por sua esposa continuar a frequentar o lugar?

Blitzstein abanou a cabeça com veemência.

- Claro que não. Ela era uma atração, cara. Ela chamava os negócios por lá. Quando está jogando, você tem todos esses caras aparecendo do nada pra jogar contra a
mina do campeonato mundial e dos comerciais da ESPN. Todos querendo pôr ela pra correr. É coisa de macho. Tipo demarcar território, gozar na cara dela. É a mesma
coisa com qualquer mulher no circuito.

Bosch ficou em silêncio por um momento. Isso não era nenhum despistamento de Blitzstein. Bosch estava começando a entender pelo menos em parte a motivação para o
assassinato. Blitzstein sabia que a morte de sua mulher - uma jogadora muito admirada e conhecida - seria atribuída a alguém que a tivesse seguido desde o cassino
em Commerce, desse modo a sala de carteado sofreria um grande golpe na imagem que poderia prejudicar seus negócios e reputação. Como que recebendo uma deixa, o fel
de Blitzstein veio à tona e contribuiu para a ideia que Bosch fazia do crime.

- E, quer saber de uma coisa? - disse ele. - Se vocês descobrirem que alguém seguiu ela até em casa, eu vou meter aqueles filhos da puta no pau por causa disso.
Vai ser a maior bolada que vou ganhar na vida.

Bosch simplesmente fez que sim, esperando que Blitzstein falasse mais. Mas o outro devia ter percebido que já falara demais. Ficou em silêncio e Bosch começou a
ir por outra direção.

- Como o senhor descreveria seu relacionamento com sua esposa?

- Como assim?

- Sabe como é, se vocês eram felizes um com outro, se o casamento estava ficando um tédio, se o fato de ela ser uma celebridade do pôquer e o senhor, não, era algo
incômodo?

Bosch fitou intensamente seu interlocutor quando disse essa última parte. Blitzstein reagiu na mesma hora.

- A gente estava numa boa. A gente continuava apaixonado, e eu estava pouco me lixando pra quem era a celebridade e quem não era. Quer saber qual é o segredo do
pôquer? Vinte por cento talento e oitenta por cento sorte. Umas pessoas são mais talentosas que outras, mas a sorte é sempre o principal.

Mais uma vez Bosch aguardou alguns momentos para ver se ele falaria mais, só que ele não o fez. Bosch continuou.

- Tudo bem, a sala de carteado em Commerce é proibida. Então onde o senhor joga? No Hustler ou na sala de carteado do Hollywood Boulevard?

- Nada disso, eu não jogo mais em lugar nenhum. Eles estão todos juntos nesse negócio. Você é banido de um e eles põem sua foto na parede em todos os outros lugares.
Essa porra é inconstitucional, mas não tem nada que eu possa fazer a respeito.

- Então o senhor participa de jogos particulares?

- Quando consigo entrar, é isso mesmo. Enquanto isso, gerencio a carreira da minha mulher.

Bosch pensou em sua ex e nas histórias que ela contava sobre os jogos particulares, os itens pessoais, chaves de carro e armas que às vezes iam parar no centro da
mesa, como aposta.

- O senhor alguma vez ganhou alguma coisa que não fosse dinheiro, nesses jogos particulares?

- Do que você está falando?

- Minha ex-esposa é uma jogadora, talvez o senhor até a conheça. Eleanor Wish?

Blitzstein hesitou e então fez que sim.

- É, eu me lembro dela. Acho que a Tracey me contou que ela estava em Hong Kong ou Macau ultimamente. Eu estava até pensando ir até lá pra dar uma conferida nos
cassinos.

Bosch viu uma abertura e aproveitou.

- Quando o senhor começou a pensar nisso?

- No quê?

- Mudar para Hong Kong ou Macau.

- Não bota palavras na minha boca, cara. Eu disse que estava pensando em ir pra lá e dar uma conferida, não me mudar pra lá. Por que eu ia pensar em me mudar pra
lá?

- Porque o senhor foi banido aqui. Por acaso o banimento se estende a Las Vegas? Talvez o senhor estivesse pensando em levantar acampamento.

- Olha, cara, isso não é da sua conta. Eu não estava pensando em me mudar pra lugar nenhum. A gente tem uma casa aqui e eu era feliz. Um monte de coisas estava acontecendo
pra Trace e eu cuidava da carreira dela. Não preciso me defender de você.

Bosch ergueu as mãos, num gesto de rendição.

- Claro que não precisa. Enfim, voltando ao que eu estava perguntando antes. Pois é, minha esposa joga em Macau. Ela gosta. Costumava me contar sobre esses jogos
particulares no qual participava quando estava por aqui. Disse que a pessoa podia ganhar qualquer coisa, às vezes. Era como uma casa de penhor. As pessoas apostavam
joias, carros, armas. O senhor alguma vez ganhou qualquer coisa assim?

Blitzstein encarou Bosch por um longo momento, seus olhos passando de gelados a faiscantes, num fogo lento.

- Vai se foder, detetive. Quero um advogado.

- Qual o problema?

- Problema nenhum, tirando que você está tentando meter na minha bunda. Me dá uma porra de telefone que eu quero chamar um advogado.

Bosch recostou na cadeira.

- O senhor sabe que, assim que me disser que esse papo terminou, não posso mais conversar com você nem ajudá-lo. Tem certeza de q...

- Ajudar? É, me ajudar a ir pra prisão por uma coisa que eu não fiz. Vai se foder. Me dá o telefone. A gente já encerrou por aqui.

Bosch tamborilou com os dedos na mesa por um momento e então concordou com a cabeça.

- Tudo bem, vamos fazer do seu jeito. Vou trazer o telefone.

Levantou vagarosamente, dando a Blitzstein uma última chance de mudar de ideia, e então saiu da sala, uma vez que ele não mudou.

Gunn veio ao seu encontro no corredor.

- Bem, você chegou perto - disse ela. - Você me convenceu; ou melhor, ele me convenceu, mas acho que ainda não temos o suficiente pra uma acusação.

- Pode ser que não. Meu parceiro ligou?

- Ai, merda! Seu celular! Onde está? Eu... eu acho que deixei lá na sua mesa quando a gente pegou o café.

Foram para a sala do esquadrão e Bosch pegou seu celular. Havia três chamadas perdidas de Ferras no tempo em que permanecera na sala de interrogatório com Blitzstein.
Retornou a ligação na mesma hora.

- Harry, onde você tava?

- Num interrogatório. Conseguiu alguma coisa?

- O grande prêmio, cara. A gente conseguiu tudo.

- Me fala.

- Você tinha razão. A porta do motorista tem um compartimento secreto. O apoio do braço solta da porta e abre. O fecho ficava escondido atrás da tela da caixa de
som, na porta.

- O que vocês encontraram?

- A gente encontrou o dinheiro, a arma, uma camisa de ginástica e luvas. Está tudo lá. A arma também tem silenciador. Serviço caseiro. No compartimento tinha também
um bracelete que ela deve ter guardado. É de quando ela ganhou um torneio classificatório para a World Series of Poker em 2004.

Bosch olhou para Gunn. Estava irritado. Tudo isso era informação que podia ter usado antes que Blitzstein fechasse o bico e pedisse um advogado. Ele se virou e voltou
a falar com Ferras.

- Você já lançou a arma no computador?

- Já, acabei de fazer isso. É um beco sem saída. O dono original prestou queixa de roubo nove meses atrás em Long Beach. Um vendedor de armas chamado Kermit Lodge.
Disse que a arma foi furtada da mesa numa feira de armas em Pomona.

Bosch sabia que não era um beco sem saída. Se encontrassem uma ligação entre o dono original da arma e Blitzstein, então o beco sem saída poderia se tornar uma evidência
integral. Mas isso era para mais tarde. Perguntou a Ferras sobre a camisa de ginástica e as luvas.

- É um pulôver plástico de manga comprida. Você sabe, para suar e perder peso.

- E as luvas?

- Só essas luvas básicas de trabalho. Parecem novas. Tem blowback na camisa e nas luvas. O negócio, Harry, é que o atirador sabia sobre o compartimento secreto.
Ele matou a mulher depois enfiou a arma, a camisa e as luvas no compartimento. O marido, Harry. Ele atirou nela, escondeu tudo e então começou a gritar por socorro.

- É, agora a gente só precisa provar. Ele acabou de pedir um advogado.

Ferras não respondeu e no silêncio Bosch pensou em algo. Uma última alternativa a tentar.

- Que tipo de luvas de trabalho são essas? Couro, plástico, algodão?

- Algodão.

Bosch sentiu uma pequena centelha de esperança. As luvas e a camisa tinham sido usadas pelo assassino, de modo a evitar o blowback - contaminação de sangue, miolos
e resíduo de pólvora - em seu corpo. Mas blowback vem em todos os tamanhos - incluindo microscópicos - e algodão é poroso.

- Ok, eu quero que você deixe a cena - disse Bosch. - Vai até Long Beach e pega o vendedor de armas. Traz ele aqui pra DRH.

- Pegar ele pra quê?

- É só falar que ele denunciou o roubo de uma arma e que a gente recuperou e precisa que ele venha até o centro pra fazer a identificação. Deixa ele no escuro. Só
traz ele aqui.

- Ok, vou nessa.

- Perfeito.

Bosch desligou o telefone.

- O que eles conseguiram? - perguntou Gunn.

- Tudo.

Ele a atualizou sobre o que conversara na ligação e ela se desculpou na mesma hora por esquecer seu celular. Sabia que ele podia ter usado a informação sobre o compartimento
secreto para pressionar Blitzstein. Parecia óbvio que teria sabido sobre ele, porém em nenhum momento ele mencionara isso ao discutir as precauções que ela tomava.

- Deixa pra lá - disse Bosch. - Agora já foi.

- Então o que a gente faz a seguir?

De início Bosch não respondeu. Ele tirou o dinheiro que carregava no bolso. No maço havia três notas de um dólar. Examinou-as e perguntou a Gunn se ela tinha notas
de um. Ela pegou seu dinheiro e lhe mostrou duas.

Bosch escolheu uma das duas notas de um dólar de Gunn e lhe deu a sua, em troca. Então enfiou os dólares em um bolso e devolveu o resto do dinheiro ao outro.

- Ok - disse. - Agora vamos ver que tipo de jogador de pôquer é David Blitzstein.

Bosch voltou à sala de interrogatório e pôs o celular na mesa diante de Blitzstein.

- Aqui está o telefone - disse. - Mas já que vai ligar para um advogado, preciso ler seus direitos constitucionais e me assegurar de que os compreendeu plenamente.
É o procedimento.

- Então vamos logo - disse Blitzstein. - Quero fazer a ligação.

Bosch sacou um cartão de visita e sentou à mesa de interrogatório, diante de Blitzstein. O cartão tinha os direitos Miranda escritos no verso. Leu em voz alta, depois
orientou Blitzstein a ler e também assinar. Observou enquanto o suspeito assinava com a mão esquerda.

Bosch empurrou o telefone através da mesa para ele.

- Para quem o senhor vai ligar? - perguntou Bosch.

Isso pareceu fazer Blitzstein hesitar.

- Sei lá - ele disse. - Não conheço nenhum advogado de defesa criminal.

Bosch olhou para o teto, como que considerando a questão.

- Vamos ver... Johnnie Cochran morreu. E Maury Swann está na cadeia. Tem Dan Daly e Roger Mills. Eles são bons. Tem também o Mickey Haller. Ouvi dizer que voltou
à ativa.

- Haller. Já ouvi falar dele. O cara aparece bastante na tevê, então deve ser bom.

Bosch encolheu os ombros.

Blitzstein apertou um botão no telefone e depois teclou 411. Pediu o número de Haller para a operadora do auxílio a listas. Então desligou sem agradecer e teclou
o número de Haller. Alguém atendeu e o transferiu. Houve um longo silêncio antes que Blitzstein estivesse com o advogado de sua escolha na linha. Após alguns minutos
de um diálogo com frases curtas, ele desligou.

- Ele está vindo pra cá - disse Blitzstein. - Vai me tirar daqui.

- Isso mostra um bocado de confiança em alguém que o senhor nunca conheceu - disse Bosch.

- Tenho de confiar em alguém. Vocês estão tentando jogar a culpa em mim.

- A gente procura as evidências e vai aonde elas nos levam. Não ficamos tentando jogar a culpa em cima de ninguém, a menos que a pessoa tenha feito por merecer.

- Entendo.

- Enfim, é só o que estou dizendo. O senhor pediu um advogado e não podemos mais falar sobre o caso. Essas são as regras.

- Certíssimo. Você já pode ir, agora.

- Não é bem assim. Tenho de ficar aqui até o advogado chegar. Isso também é uma regra. Já aconteceu de algumas pessoas ferirem a si mesmas depois que a gente deixou
elas sozinhas. Daí tentam jogar a culpa na gente.

- Sabe, até que não é uma má ideia. Quem sabe eu devia dar um tiro no meu olho e dizer que foi você.

- Tente uma coisa dessas e pode ter certeza de que vai preencher a denúncia no hospital.

Ficaram sentados em silêncio desconfortável por longos três minutos depois disso. Finalmente, Bosch começou.

- Quer mais um café?

- Não, tinha gosto de óleo.

Bosch assentiu e deixou que mais trinta segundos se passassem.

- Quando começou a jogar pôquer?

Blitzstein deu de ombros.

- Quando eu era criança. Meu velho era um bebedor de cerveja que jogava com os colegas de copo na garagem, duas vezes por semana. Eu ficava assistindo e ele me deixava
cuidar da mão dele quando saía pra dar uma mijada.

- Começando cedo desse jeito, deve ter jogado um bocado ao longo dos anos.

- Mais do que consigo lembrar.

- Nunca joguei contra minha esposa. O senhor alguma vez jogou contra Tracey?

- A gente tentava evitar. Se conhecia bem demais. Sabia das expressões denunciadoras um do outro.

Bosch balançou a cabeça.

- Sempre quis enfrentar um profissional - disse ele. - O que me diz?

Blitzstein abanou a cabeça, confuso.

- Do que você está falando?

Bosch se curvou sobre a mesa conforme tirava o dinheiro do bolso.

- Já jogou pôquer de mentiroso?

Blitzstein fez um gesto de desdém com a mão esquerda.

- Não jogo desde os 13 anos.

Bosch ergueu a nota que tinha trocado com Gunn. Dobrou-a em sua mão de modo que Blitzstein fosse incapaz de ler o número serial.

- Cinco seis - cantou.

O objetivo no pôquer de mentiroso era prever a quantidade total de quaisquer letras ou algarismos específicos nos números seriais de todas as notas de um dólar no
jogo. Se Blitzstein mordesse a isca, esse total seria resultante de apenas duas notas. Cinco seis era uma cantada alta.

Blitzstein abanou a cabeça.

- Não jogo com amadores.

- Com todos esses cassinos pondo você pra fora, eu diria que é só o que te restou. Seis seis.

- Jesus - disse Blitzstein, num tom exasperado.

- Vamos lá, Mister Pro. O que você tem?

- Tenho uma hora pra passar nesta sala e acho que sua intenção é me deixar maluco.

- Então acho que ganhei por WO.

Bosch fez menção de guardar a nota. Blitzstein se curvou para a frente.

- Espera aí um segundo, meu querido.

Levou a mão ao bolso de sua calça jeans e tirou seu dinheiro. Encontrou uma nota de um dólar e a amassou no punho fechado.

- Você chama seis seis? Então vou chamar sem nem olhar. Sei que está blefando. Você dá uma entregada federal.

- Ah é, qual?

- Você desvia o olhar no exato momento em que devia encarar o oponente sem nenhum vacilo.

- Tem certeza?

Blitzstein largou sua nota na mesa e Bosch fez o mesmo. Bosch tinha cinco seis em seu número serial. Abriu cuidadosamente a nota de Blitzstein e viu que tinha um
seis. Bosch pegou as duas notas da mesa.

Segurou a de Blitzstein no alto e sorriu.

- Vou mandar emoldurar!

Guardou-a no bolso da camisa, enfiou o dólar da vitória no bolso da calça e sorriu.

- Agora posso contar pra todo mundo que ganhei de um jogador de pôquer profissional.

- Sei, espero que isso te deixe contente.

Dessa vez Bosch fitou seu oponente sem vacilar. E viu a entregada de Blitzstein. Um rápido instante em que sua confiança o deixou e ele se perguntou se não havia
caído numa armadilha.

- Me deixa contente - disse Bosch. - Muito contente.

Bosch e Gunn foram para o laboratório da perícia no quarto andar e perguntaram à mulher atrás do balcão se um técnico forense chamado Ronald Cantor estava trabalhando.
Deram sorte. Cantor estava no laboratório; então passaram pela porta após o acionamento da cigarra.

Cantor era um operador de MEV. Seu trabalho era analisar evidências coletadas com um microscópio eletrônico de varredura. O tempo normal de espera para esse tipo
de análise particular ia de quatro a seis meses. Mas havia caminhos não oficiais para contornar a situação. Os ratos de laboratório, como eram chamados, tinham intervalos
pela manhã, no almoço e à tarde. O que faziam nesses intervalos era da conta deles. Era um tempo pessoal. Se quisessem, por exemplo, podiam tirar os casos de ordem
e pôr a evidência sob a lente do microscópio. Tudo dependia do incentivo para fazer tal coisa.

Ronald Cantor tinha esse incentivo, no que dizia respeito a Bosch. Cinco anos antes Bosch solucionara o assassinato de sua sobrinha de 9 anos, que fora raptada no
jardim de sua casa em Laurel Canyon por um homem que lhe pediu ajuda para encontrar um cachorro perdido. Embora devastada com a perda da menina, a família Cantor
ficara eternamente agradecida a Bosch, sobretudo porque não só ele resolveu o caso, como também os poupou da agonia de presenciar o julgamento. Durante a captura
do assassino, Bosch baleara o homem, numa luta por se apoderar da arma de Bosch. Desde esse dia, o detetive tinha tratamento VIP quando precisava agilizar as coisas
no microscópio eletrônico de varredura.

- Ronnie, tudo bem com você? - disse Bosch quando se aproximou.

- Tudo bem, Harry. Essa é sua nova parceira?

- Por hoje, vamos dizer que sim. Detetive Gunn, esse é Ronnie Cantor, especialista no MEV. Já fez sua pausa da manhã, Ronnie?

- Ainda não, só começando a pensar em tomar um chocolate quente, na verdade.

- Bom, tenho uma coisinha aqui que eu esperava que você pudesse dar uma olhada bem rápido. Estamos com um cara lá embaixo numa das salas e a gente precisa bater
o martelo na próxima hora. Ou segura ou solta. Você podia dar uma mão enquanto eu desço e vou buscar um chocolate.

Cantor girou no banquinho para se afastar da mesa na qual estava trabalhando e olhou diretamente para Bosch.

- O que você tem? - ele perguntou.

Com dois dedos, Bosch puxou a nota de um dólar de Blitzstein do bolso da camisa e a segurou no alto.

- Merda - disse Cantor. - Você estava carregando isso no seu bolso?

- Só por alguns minutos. Estava no bolso do suspeito e ele acabou de me dar. Estou procurando tudo que der para encontrar. GSR, sangue, qualquer coisa. A gente acha
que ele matou a mulher hoje de manhã, mas estamos com alguma dificuldade em passar do achismo para a certeza. Ele tem um advogado peso pesado vindo pra cá nesse
exato momento.

Cantor pegou uma pinça na mesa do laboratório e usou-a para tirar a nota da mão de Bosch.

- Você consegue? - insistiu Bosch.

- Claro que consigo. Mas a possibilidade de contaminação é muito alta.

- É extraoficial. Se encontrar alguma coisa, vamos dar voz de prisão e fazer tudo de novo de acordo com o protocolo.

- Então tá bem.

- Ótimo, Ronnie. Vou buscar o chocolate quente e já volto.

Gunn se ofereceu para buscar a bebida, mas Bosch lhe disse para ficar no laboratório e observar Cantor trabalhar. Disse que podia aprender alguma coisa. Buscar chocolate
quente não ia acrescentar nada.

Bosch saiu por quinze minutos e quando voltou com dois cafés pretos e um chocolate, Cantor disse que terminara de analisar a nota de um dólar.

Pôs o copo de isopor contendo sua bebida em um canto e entregou o laudo. Falou sem inflexão, usando o tom de voz e as palavras que empregava quando prestava algum
depoimento no tribunal.

- A análise do MEV exibe amostras quantificáveis de material de escorva, pólvora, projétil e os produtos de sua combustão. Embora as quantidades identificadas na
análise sejam baixas, eu teria confiança em testemunhar que a última pessoa a manusear esta cédula disparou recentemente uma arma de fogo.

Bosch sentiu uma pontada de empolgação. Por um momento visualizou a cena de Tracey Blitzstein sentada sem vida em seu carro. Balançou a cabeça para si mesmo. O assassino
dela não ia se safar com o crime.

- Obrigado, Ronnie - disse.

- Não terminei - disse Cantor. - A análise adicional revela ainda partículas microscópicas de sangue no material examinado.

Bosch ergueu seu café para Cantor.

- Um brinde, cara. A gente vai enquadrar esse sujeito.

Bosch e Gunn saíram rapidamente do laboratório. Enquanto aguardavam o elevador, conversaram sobre o que fazer em seguida. Primeiro, acusariam oficialmente David
Blitzstein de homicídio e o mandariam para uma cela sem direito a fiança. Mickey Haller não conseguiria sair com ele nesse dia. Isso era uma certeza. Segundo, pediriam
outro mandado de busca que lhes possibilitasse usar discos de fita adesiva e esfregaços quimicamente tratados para coletar resíduo de pólvora nas mãos e nos braços
do suspeito. Requisitariam ao juiz, além disso, permissão para conduzir um teste com Luminol, que também revelaria borrifos de sangue microscópicos no corpo do suspeito.

Um alívio surgiu no rosto de ambos. Sentiam-se bem com o rumo tomado pelo caso. Menos de quatro horas após o início da investigação, estavam prestes a dar uma voz
de prisão.

- Isso foi rápido - disse Gunn. - Você foi rápido, Harry. Kiz Rider tinha razão a seu respeito.

- Sério? O que ela disse?

- Ela me falou para nunca jogar pôquer com você.

Bosch sorriu. O elevador abriu e eles entraram.

 

 

                                                   Michael Connelly         

 

 

 

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