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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CHANTAGEM WHISKY E BALA / Herman Tellgon
CHANTAGEM WHISKY E BALA / Herman Tellgon

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

" Histórias do F.B.I."

 

CHANTAGEM WHISKY E BALA

 

Millionários, detectives privados e agentes do F.B.I poderemos dizer que são uma mistura explosiva e emocionante... Mark London, agente do F.B.I não queria comprometer a sua carreira por uma caso de amor. Linda, a causadora de paixão carnal arrebatadora, era casada com um empresario de sucesso que exercia esta profissão para ocultar a traição que fazia ao seu pais, dois detectives particulares habituados a chantagear todos, encontraram a morte, pois não conseguiram controlar a sua ambição.

 

              

Despertei com o tilintar do telefone. E como na noite anterior enchi a cara de uísque e cerveja, tive a impressão de que um pos­sante martelo hidráulico me triturava os miolos.

Acendi a luz para ver o relógio. Não mais do que onze da manhã. Levantei-me com uma praga.

Minha vontade era erguer o fone e mandar pro diabo quem quer que fosse. Mas um agente do FBI não pode obedecer a seus impulsos... Não a todos, pelo menos.

Atravessei o quarto até a mesinha. Pela milé­sima vez, pensei em mudar a instalação do apa­relho, colocando-o ao alcance da mão, sem neces­sidade de levantar-me.

A sensação era de ter engolido uma bola de bilhar. E o pior é que a danada subia e descia em meu estômago, a cada passo que dava. En­golindo saliva, levantei o fone.

 

Uma voz apressada de mulher começou a cas-catear:

- Mark! É você? Preciso vê-lo! Agora! É ur­gente! Roubaram meu carro! Por Deus! Imagine que deixei nele a valise das jóias! Cinquenta mil dólares, meu caro! Além disso...

A princípio, não reconheci a voz exclamativa. Fiquei tão furioso que teria estrangulado a im­portuna. Mas, de repente, percebi. De um golpe, recuperei toda a minha serenidade. Os vapores etílicos se dissiparam, como se eu nunca tivesse bebido outra coisa senão limonada.

Era Linda. Morena sensacional, dona de umas cadeiras que algum dia se plasmariam em mo­numento. Quando andava, essa guria era capaz de tontear um cosmonauta.

De cada mil homens que a vissem, novecentos e noventa e nove sentiriam vontade de levá-la a uma ilha deserta, para uma temporadinha. O restante... bem, um sujeito dessa espécie não merece que a gente se ocupe com ele.

Não obstante, interrompi bruscamente a catadupa:

- Diabos! Explique isso de uma vez, beleza. Que está acontecendo? Incêndio no Capitólio? Que negócio é esse de carro e de valise das jóias?

Tentei tomar fôlego. O martelo hidráulico marretava meu cérebro com mais força do que nunca.

Linda gemeu:

- Escute, Mark, você tem de vir, vir mesmo, sabe? Não é só pelo carro e as jóias... Também por causa das suas cartas... As que me es­creveu da Europa. Eu... eu estou com medo! Se Lim chegar a lê-las...

Amigos, Linda é casada. É certo que logo se divorciará, mas isso não queria dizer que as tais missivas não assumissem, assim, importân­cia da maior gravidade.

De um lado, minha condição de agente fe­deral não permite o menor escândalo. De outro, Linda era ambiciosa. E Lim Derby, seu marido, milionário. Uma sentença favorável a Linda po­deria significar uma bolada de sustança. Do contrário...

Vocês perguntarão como é possível que eu fosse escrever cartas comprometedoras a uma mulher casada. Isso também eu me pergunto há tempos. A única explicação possível é que todo homem, ainda o mais inteligente, o mais vivo, coisa que me preso de ser, tem seu dia de re­tardado.

Controlei meus nervos para não explodir. Disse, apenas:

- Está bem, beleza. Irei agorinha.

Abri o chuveiro frio e me coloquei debaixo, durante alguns minutos. Depois, seguindo o sá­bio conselho do similia similibus, virei dois tra­gos de whisky puro. Com isso recuperei a ca­pacidade de raciocínio e me achava agora ao volante do carro, um Ford Sedan, modelo de ontem mas ainda muito legal, enfrentando os obstáculos do trânsito.

Os Derby possuem uma casa em Hoboken, na zona residencial de Parch Golden. Uma des­sas mansões rodeadas de amplo jardim, com uma galeria de céspedes salpicada de estátuas, o que sempre me faz lembrar um cemitério à moda antiga.

Meu apartamento fica em Charles St., uma ruazinha próxima ao Canal St., de onde sai o Holland Tunnel.

Gastei no trajeto cerca de duas horas. As ruas estavam entupidas de veículos, com uma humanidade amalucada ao volante, empenhada em morrer antes do prazo normal.

Linda me esperava. Como sempre, ao vê-la perdi a fala por momento. Trajava um vestido de côr vermelha que se lhe colava ao corpo como uma segunda epiderme, Uma negra paina caía-lhe sobre os ombros. Seus olhos verdes bri­lhavam, excitados, inquietos.

Beijei-a. Durante alguns minutos, seus lábios se abriram, se fecharam, mordiscaram, tão gu­losos. E minha vontade naufragou. Esqueci tudo.

Desprendi-me, por fim, de seus braços. Está­vamos no salãozinho particular de Linda, uma espécie de boudoir, decorado pela fantasia de mulher endinheirada, mas sem idéias próprias.

- Bem - perguntei - que aconteceu? Quan­do o carro desapareceu? E por que, diabos, você precisava levar as suas jóias e essas cartas?

Notei que ela estava assustada, prestes a cho­rar. Mas não pensei que isso era arrependi­mento. Conheço Linda melhor do que ninguém. O que a preocupava, na verdade, era que Lim chegasse a inteirar-se do nosso romance e a pensão que esperava receber se transformasse em nuvem.

Contou-me uma história absurda, que só po­deria ocorrer a uma mulher.

Pelo que me dizia, decidira fazer um fim-de-semana na montanha, num pequeno refúgio que seu marido possuía. E como pensava em estar só - não lhe perguntei como poderia ser de outra maneira, a menos que estivesse comigo ou com Lim - acrescentou que "era a melhor ocasião para reler aquelas cartas que lhe recor­dariam as horas deliciosas passadas comigo". Tais eram as suas palavras, de fabricação pró­pria.

Aquela fábula me soou falso do princípio ao fim. Mas como não encontrei explicação melhor, aceitei-a assim mesmo.

Não obstante, era evidente o desaparecimento do carro e que, no seu interior, estavam as ben­ditas cartas.

Assim, me dispus a iniciar a investigação com­petente. Não creiam que iria ser fácil. Tarefas desse tipo pertencem à Polícia Metropolitana, não ao FBI.

Mas naquele caso particular o assunto de­via ficar em minhas mãos. Despedi-me de Linda. Dessa vez tive serenidade suficiente para me manter afastado, de forma a não chegar até mim o excitante perfume que se desprendia de seu corpo.

Antes de mais nada, parei no primeiro bar, para um whisky que reforçasse o meu moral. Depois, examinei atentamente as possibilidades de solucionar a embrulhada.

Não me demorei em chegar ao seguinte re­sultado: possibilidade = 0. Nova York é uma ci­dade de mais de quinze milhões de habitantes, com a média diária de mil veículos roubados. A maior parte, irrecuperável.

Melhor seria se o carro de Linda jamais apa­recesse. Mas eu não podia confiar, ficar à mar­gem, enquanto a sorte se poria contra mim, fazendo com que descobrissem o segredo.

Só uma solução. Resolvi aproveitá-la, ainda que sem grande entusiasmo. Encaminhei-me à Chefatura Superior da Polícia Metropolitana e procurei o inspetor Carlton.

Era um velho amigo. Um desses homens em que se pode confiar, na certeza de jamais se ser traído.

Entretanto, sou de opinião de que se deve evitar qualquer tipo de confidencia, seja com quem seja. Essa é a melhor fórmula de conser­var os amigos e o próprio prestígio.

- Claro que devia ter-me lembrado disso an­tes de escrever cartas a Linda. Não obstante, com uma mulher é outra coisa. Justamente o tipo de complicação capaz de acabar com a in­teligência de qualquer um...

A figura de urso polar de Carlton recortou-se no umbral da entrada de seu gabinete, um bu­raco empoeirado e escuro, onde o inspetor pas­sava a maior parte de sua vida.

O cabelo era de um cinzento crespo, a cabeça vigorosa, enquanto longos bigodes lhe caíam mongólicos, de ambos os lados da boca.

Foi logo rugindo:

- Com mil demônios! Será que os marcianos desembarcaram em Manhattan e os rapazes de Hoover precisam de nossa ajuda? Ou perdeu nas corridas e vem em busca de um banqueiro?

Espremeu minha mão em sua manopla direita, arrastando-me para seu gabinete. Havia ali uma datilografa, tão usada e murcha quanto o mo­biliário.

Ela também me saudou afetuosamente, pois me conhecia quase tão bem quanto Carlton. Ambos   moram   entre   Bovery   e   Chinatown, quando eu era menino. Conheceram meu pai, patrulheiro da Metropolitana e mais tarde sar­gento, morto num encontro com a quadrilha de Al Capone. Sabiam de mim tudo que deviam saber... salvo aquelas coisas que aconteceram depois de meu ingresso nas Forças Federais. O inspetor continuou falando.

- Entre, Vermelhão. Deveras, me alegro em vê-lo. Isso me faz voltar aos velhos tempos, quando eu era jovem e você se ocupava em roubar caramelos no armazém do judeu Mosen. Lembra-se, Mira? Mark era um verdadeiro de­mônio. Mais de uma vez tive de persegui-lo, em­bora sem grandes resultados, confesso, pelas ruas do bairro. Esse pilantra é culpado, noventa por cento, pela minha úlcera. Lembro-me de quando...

Era sempre assim. Minhas visitas a Carlton acabavam-se transformando numa série de his­tórias, "os tempos antigos", como ele as cha­mava, acompanhadas de risos de Mira e uma ou outra exclamação meio aborrecida de minha parte.

Mas aquela vez interrompi-o.

- Ouça, Tom - era o nome do inspetor - vim falar-lhe de um assunto muito importante. Lamento, mas gostaria de fazê-lo a sós e já.

Mira saiu do gabinete. Pareceu-me aborrecida, mas isso não importava muito no momento. Carlton falou:

- Deve ser importante o que você vai dizer, Mark. Do contrário, não teria despedido Mira dessa forma. Que bicho o mordeu?

Desfiei a história preparada. À medida que a ia desenvolvendo, notei a fragilidade do enredo. Não obstante, era o melhor que me ocorria.

- Ouça, Urso Velho, trata-se de um caso de que estou encarregado. É uma história complicada, dessas que só se vêem no cinema, mas que algu­mas vezes são verdadeiras. Há um pouco de tudo nela: altas finanças, espionagem, nomes impor­tantes envolvidos... Já sabe o que quero dizer, não?

O inspetor, calado, limitou-se a olhar-me, im­passível, os olhos semifechados, defendidos pelas espessas sobrancelhas acinzentadas que forma­vam um círculo alvacento ao seu redor.

Continuei:

- O caso é o seguinte: temos de encontrar um carro. Bem, eu tenho de encontrá-lo, com­preende? É um "Jaguar" importado, côr verde, matrícula...

O rosto curtido do inspetor ia tomando um tom avermelhado mais intenso, que eu aprendera, de há muito, a relacionar com um ataque de raiva.

De repente, estalou: 

- Pelos chifres do diabo! Acabe de uma vez com essa conversa, Mark! Está-me tomando por um idiota? Que diabo se passa com você? E quero que me diga a verdade, Vermelhão. Que aconteceu com você, pessoalmente, sim?

Eu devia ter sabido desde o começo que não poderia enganar o Velho Urso.

Ele não chegara ao cargo que ocupava por mera casualidade ou favor especial. Devia-o a seu olfato para reconhecer as verdades ocultas, ou mentiras que constituem o fundo das per­sonalidades humanas. Nenhum outro policial da cidade contava com uma tão vasta série de êxito, em seu ativo.

Apesar disso, tentei manter minha atitude.

- Ora essa! Que está dizendo? Acha que o estou enganando, Velho Urso? Como pode pen­sar isso de mim? Irei embora agora mesmo e pedirei a ajuda de qualquer dos homens da Me­tropolitana, entre os que conheço. Por sorte, são muitos. Portanto...

Pouco a pouco me fui silenciando. Tom me olhava. Quando, enfim, me calei de todo, disse:

- Bem, Vermelhão. Comecemos do princípio. Não se esqueça de que o conheço bem. Sei quando está tentando enganar-me ou quando diz a verdade. Sempre que o cabelo do seu co­curuto fica revolto é que você está querendo passar gato por lebre. E agora você está com um redemoinho maior do que em qualquer ou­tra época de sua vida. Vamos, Mark, dê logo o serviço completo. Que é que há?

Não tive outro remédio. Portanto, segui suas instruções.

 

Tom Carlton ouviu-me sem interromper uma só vez. Parecia, mais do que nunca, um urso imerso em sono hibernal. Contei-lhe tudo. Já que a história que eu in­ventara falhara, achei que o melhor seria mos­trar-me tão claro quanto possível.

Quando terminei, produziu-se um silêncio que durou bastante tempo. Suportei-o, refreando meus nervos a ponto de explodir. Por fim, a voz do inspetor estalou: - Com mil demônios! Quando você acabou com a quadrilha de Nicky "Dinamite", enfrentando-o a peito nu para que seus coiotes o metralhassem à vontade, julguei-o louco. Mas fiquei or­gulhoso de uma loucura assim. Depois, em vá­rias vezes, você deu provas de ser o sujeito mais raçudo que conheço. Mas o que eu não podia imaginar era que você, além disso, era um tolo.

Conseguiu enganar-me, Vermelhão. Por certo que sim.

Eu nada disse. O fato é que estava de acordo com ele, pelo menos na parte substancial do seu discurso.

Depois de uma pausa, Tom prosseguiu:

- Mas não vou ficar aqui a fazer-lhe sermão, Mark. Acho que essa dona deve ser um bocado gostosa. Eu também fui jovem e cometi erros. Recordo que uma vez...

Estava prestes a resvalar para o caminho das recordações, mas eu o atalhei a tempo. Grunhiu algumas vezes. Por fim, perguntou:

- Bem, Vermelhão, que quer de mim?

Já disse que ele era um desses homens em quem se pode confiar. Expliquei.

Quando terminei, notei que estava de pleno acordo. Pôs-se logo em atividade. Podia desen­volver mais trabalho em uma hora do que dez homens durante um dia todo.

Ligou o telefone. Emitiu uma fieira de ordens pelo fio. Em poucos momentos, os milhares de homens da Metropolitana estariam alertados para o possível aparecimento de um carro ma­trícula "The Empire State N.Y. A-4226."

Não ficou nisso a colaboração do inspetor. Quando bateu o telefone, deixou a poltrona atrás de uma mesa atulhada de papéis, grunhindo ou­tra vez:

- Vamos,  Vermelhão,  acompanhe-me. Obedeci.  Enquanto  caminhávamos  ao  longo dos mal iluminados corredores da Chefatura, em direção à saída, perguntei:

- Pra onde me leva, Velho Urso?

- Quer encontrar esse carro, não? E recupe­rar as cartas, não é assim?

- Por certo.

- Então? Você já ouviu o que ordenei aos rapazes. Mal consigam qualquer informação, o mais ligeiro indício de que tenha aparecido, de­verão comunicar-mo e abster-se de investigar mais a fundo. Isso faz com que evitemos a in­discrição de algum patrulheiro desejoso de pro­moção. São a pior praga com que se pode tro­peçar, esses cretinos!

Depois daquele desabafo, o inspetor voltou ao tema de minha pergunta.

- Há nesta cidade um sujeito que vive como um marechal e que se dedica exclusivamente à venda e compra de carros roubados. Vamos vê-lo agora. Ele não sabe, mas terá de colaborar se quiser continuar a exercer suas "honestas" atividades, sem dificuldades. Dessa forma, abran­gemos todas as possibilidades... as previsíveis, pelo menos.

Não estranhem, amigos. Coisas assim acon­tecem em toda parte, em todas as cidades gran­des, onde, por maior que seja a eficácia dos agentes da lei, não é possível abarcar a gama completa dos atos delituosos que se cometem diariamente.

Há ocasiões em que a polícia é obrigada a re­correr à colaboração daqueles que normalmente deveriam estar no fundo das grades. Serve-se dos maus elementos, dos receptadores de obje­tos roubados, dos "passadores" de droga, geral­mente viciados também, capazes de qualquer baixeza pela promessa de uma prise de cocaína, ou um "baseado" de marijuana, de maconha, ou dos chamados "cafiaspirinos", invertidos se­xuais. Todos eles, de algum modo, constituem uma espécie de força policial invisível, não custeada pelos contribuintes, pelo menos de ma­neira direta.

Atravessamos a cidade que parecia um formi­gueiro, a sereia a todo vapor. Sou um motorista sem nervos, mas o Urso Velho consegue eriçar-me o cabelo, quando pega num volante.

A casa de negócios de Daff (O Pulga) era nas imediações do Armazém 3, onde a United Fruit tem o seu império instalado. Na imensa área, havia dezenas de veículos de marcas, tipos e idades diferentes, um "Ford" de bigode ao lado de um "Cadillac" do ano, um "Jaguar" impor­tado na frente de um "Chevrolet" de três tem­poradas, coisas assim, todos com o pára-brisa enfeitado com o cartão do preço bem visível. Ao fundo do recinto descoberto via-se o barracão da oficina. Uma estreita escadinha de madeira, pegada à parede, levava ao escritório do Pulga.

Não precisamos de subir. Um sujeitinho mirrado, totalmente careca, andando aos pulinhos, veio logo ao nosso encontro.

Se a visita do inspetor o inquietava, não acusou mesmo. Ao contrário, um sorriso amplo e acolhedor distendeu-lhe a linha estreita dos lábios.

Ficou exultante:

- Salve, salve! O inspetor Carlton! Muito bem, hoje é dia de sorte. Tive um sonho ontem muito bom. O dois de paus e o três de espadas. Repelem-se os dois e isso significa boa sorte. Salve, salve!

Teria continuado debulhando incoerências, se o inspetor não o interrompesse com um ladrido:

- Feche o bico, Pulga! Não vim aqui para ouvi-lo dizer asneiras. Trata-se de algo sério. Quero que...

Não pôde continuar porque, naquele momen­to, surgindo do mesmo ponto de onde Pulga saíra, uma mulher convulsionou o ambiente.

Eu jamais havia visto nada semelhante. Des­prendia-se dela uma tal corrente de sexualidade, que seria capaz de perturbar um regimento de múmias.

Era baixota, gordinha, morena, de lábios grossos e olhos enormes. Olhava para os homens como se eles fossem, cada um uma mina de ouro.

Gritou, numa vozinha fina, de gata intranquila:

- Daff, minha vida, por que você foi embora? Não gosto que meus amigos me deixem só Tenho medinho...

Então, a inquietação que corroía o ânimo de Pulga se manifestou exteriormente. Voltou-se para a vênus de bolso que o interpelava e cacarejou, furioso:

- Saia já daqui, íris! Não vê que estou com uns amigos e não posso perder tempo com você, agora? Vamos! Dê o fora!

Toda a doçura desapareceu do rosto redondo de íris. Gritou, histérica:

- Não me fale assim, Daff! Não estou dis­posta a aturá-lo. Se crê que, por quatro mise­ráveis centavos que me dá, tem o direito de me tratar como um trapo, está muito enganado. Farei com que um amigo meu lhe esquente os cornos, antes de...

Um rugido do inspetor acabou com a dis­cussão.

- Com mil demônios! Fora daqui, vampiro de botequim! Deixe de grasnar como uma gralha tonta. Fora!

Quando Tom se expressava daquela forma, ninguém era capaz de resistir-lhe.

A mulher retirou-se assustada. E Pulga vol­tou a recompor seu sorriso, adotando uma ati­tude de homem vivido.

- Lamento, inspetor. São coisas da vida, compreende? Essa sujeita anda sempre à pro­cura de "grana" e trata de tirá-la à base de xarope, em vez de vinagre. Eu já tratarei disso, quando...

Interrompeu-se ao observar a careta de fúria que se plasmava no rosto do inspetor. Apressou-se em dizer:

- Bem, inspetor. Sinto-o. Disse que queria algo de mim, não é verdade? Já sabe que sem­pre estou à sua disposição. De que se trata?

Em poucas palavras, o inspetor expôs os fa­tos. O Pulga protestou, indignado com o que definiu como "falsas imputações que lhe fa­ziam os inimigos":

- Asseguro-lhe, inspetor, que nunca com­prei um carro roubado, ao menos que eu sou­besse. Meus negócios são honestos. Por certo que sim. O que acontece é que há muitos sujeitos invejosos de minha prosperidade. Eu...

- Chega, diabos! Deixe dessa conversa fia­da, Pulga. Conheço-o muito bem.

Carlton agarrou o receptador pelo braço di­reito e o atraiu a si até quase encostar rosto com rosto.

- Vai fazer o que lhe disse, Pulga, ou, do contrário, terá  de correr desta cidade. Estou disposto a tornar-lhe a vida impossível. E você sabe muito bem que isso não me seria difícil. Assim, fique alerta para o caso de algum de seus rapazes "encontrar" esse carro e trazê-lo. Quero que o consiga como se se tratasse de alto segredo de Estado. Não vai cuidar de nada sem me avisar imediatamente. Entendido?

Pulga recuou ao se livrar do inspetor. Perdera a corda toda. Devia ter notado que o caso era sério.

Prometeu:

- Está bem, inspetor. Não se preocupe. Se isso chegar a acontecer, saberei cumprir suas instruções.

Com um gesto, o inspetor o manteve no lu­gar, quando ele já se dispunha a nos acom­panhar.

Voltamos à viatura. Carlton levou-me para o centro da cidade. A meu pedido, deixou-me na esquina de Wall Street e Broadway, com um conselho de despedida:

- Tenha cuidado, Vermelhão. Um homem pode enganar-se, mas não deve fazê-lo com muita frequência. Nisso tudo há algo que não estou gostando.

Tampouco a mim agradava. Vi-o afastar-se e tive o pressentimento que nosso próximo en­contro não tardaria. Combinamos permanecer em estreito contato para que eu ficasse a par do que ocorria.

Voltei a meu carro. Depois me dirigi para o bar Kandy, propriedade de um sul-americano que sabia fazer coquetéis melhor que qualquer outro barman da cidade.

Ocupei um tamborete em frente ao balcão. Kandy apressou-se em me saudar, do outro ex­tremo do balcão, onde sacudia uma coqueteleira.

Meu estômago parecia a pista de Indianápolis depois de um dia de corridas. E minha garganta mais seca do que o deserto.

Pedi uma salada de frango e uma jarra de cerveja. Acrescentei duas aspirinas, pois a ca­beça me doía intensamente. Pouco depois co­mecei a notar que recuperava algo de minha vitalidade. Os efeitos da ressaca desapareciam.

Quando terminei, saí para meu apartamento. Tomei um banho frio, fechei cuidadosamente as janelas e fui dormir. Não há nada melhor para afastar preocupações do que um bom sono.

E fui novamente despertado pelo telefone. Desta vez me levantei disposto, sereno, com a cabeça leve.

Ergui o fone. A voz de Carlton:

- Bem, Vermelhão, venha logo pra aqui. Acho que encontramos o que você procura.

Havia em suas palavras um acento relutante que me inquietou. Ou talvez eu estivesse espe­rando uma surpresa desagradável. Inquiri:

- Que aconteceu, Velho Urso?

- Não sei... ainda. Mas vou dizer-lhe uma coisa: esse carro apareceu abandonado, numa rua secundária, perto de Battery Park. O agen­te que me deu a informação disse que todas as portas estavam fechadas. E que há um homem no seu interior. Morto!

Lentamente, deixei o fone no gancho. Vesti-me. De nada valia fazer suposições diante de fatos concretos.

Obriguei-me a manter a mente alheia ao que acabava de ouvir. Logo estaria em condições de apreciar as coisas de uma maneira direta, com a evidência de um cadáver entre as mãos.

 

O doutor Mason tirou o charuto que aper­tava entre os dentes e disse: - Bem, inspetor, já podem levar esse homem.

Carlton fez um sinal. Os padioleiros transpor­taram o cadáver para a ambulância. Pouco de­pois ficávamos a sós.

Estávamos na sala de operações do Depósito Judicial. A luz do "néon" espargia uma clari­dade leitosa sobre a parede de azulejos amare-lo-claros.

Mason tomou a palavra:

- Pouco posso dizer-lhes além do que já sa­bem. Esse homem morreu em consequência de forte pancada na cabeça. Estou inclinado a crer que, para matá-lo, empregaram uma cha­ve inglesa ou algo parecido. Do exame de seu corpo, a única coisa que se faz evidente é a sua boa conservação, apesar da idade. Devia exercer, possivelmente, uma profissão ativa, ao ar livre, que exigia extraordinária condição fí­sica.

Fez uma pausa, que aproveitou para reacen­der o charuto e chupou-o avidamente. Finalizou:

- Em definitivo, não creio que minhas in­formações sirvam para muito. Simplesmente, a única coisa que lhes posso dizer é que está morto. Pouca coisa, não?

Tinha razão. Mas, em geral, os informes mé­dicos numa investigação policial, apesar das afirmações de certos escritores célebres, não costumam ter maior importância.

Abandonamos o depósito. A noite era calma. As estrelas brilhavam sobre nossas cabeças. Por momentos imaginei que aquela era uma das poucas zonas da cidade de onde podiam ser vistas claramente.

O Velho Urso murmurou:

- O caso se está complicando cada vez mais, Vermelhão. Esta manhã, você procurava umas jóias e umas cartas. Agora, tem um cadáver entre as mãos. Imagino que você vai querer levar avante, pessoalmente, esta investigação, não é?

Assim era. Dada minha condição de agente federal, aquilo estava fora de minha esfera de ação. Mas, graças à colaboração do Velho Urso,  poderia agir pelo menos nos primeiros passos da investigação.

O inspetor Carlton prosseguiu:

- Bem, que pensa fazer? De saída, você fica responsável pelo caso. Mas advirto que preciso estar a par de todos os seus passos. Meus ra­pazes não vão piar sobre o assunto. Do contrá­rio... ficarão mudos para sempre. De qualquer forma, quero saber de tudo. Você tem o nome desse tal sujeito marcado, sob suspeita. Não ê muito, mas o suficiente para começar o tra­balho. Quando pensa fazê-lo?

Encolhi os ombros. Disse apenas:

- Não vou perder um instante sequer. São dez da noite. Faltam muitas horas para ama­nhecer.

Carlton aconselhou:

- Tenha cuidado, Vermelhão. Já lhe disse que nesse caso há aspectos que não estou gostando. O que aconteceu agora reforça minha opinião.

Subiu para o carro e arrancou como uma bala. Fiz o mesmo, rumando na direção dos indícios que, junto com o nome do assassinado, havía­mos recolhido na carteira de motorista encon­trada no bolso interno de seu paletó.

Tratava-se de uma ruazinha situada aos fun­dos do Teatro de Pulgas, na Broadway, cha­mada Fish Street.

O nome do indivíduo era Duncan Malley. Mo­rava no número dois de Fish Street.

O edifício era de um tipo de construção mui­to em voga no período compreendido entre as duas guerras, de fachada lisa, com janelas pe­quenas, reboco de cimento e argamassa e apa­rência pretensamente moderna.

Havia um quadro à entrada com os nomes dos inquilinos. Duncan Malley aparecia como o do apartamento B, do terceiro andar.

Subi pelo elevador. Fiquei batendo um tempo enorme, sem obter resposta. Tornei a descer.

O encarregado do prédio mostrava-se numa divisão de vidro, no centro de um vestíbulo muito amplo, pois devia vigiar toda uma série de compartimentos de características iguais às do ocupado por Malley.

Era um indivíduo de meia-idade, muito alto, magro, encurvado, com o peito encolhido e as­pecto enfermiço.

Ao ver-me, tirou os óculos, tipo Truman, e deixou de lado um "comic" que estava lendo. Seus olhos eram apagados, desprovidos de vivacidade.

- Que deseja?

- Procuro Duncan Malley. Bati em sua por­ta e ninguém responde. Sabe alguma coisa a respeito dele?

Notei que o sujeito estava decidido a entrin­cheirar-se em fria hostilidade, produto da vida moderna, misto de desconfiança e desprezo.

Esfreguei-lhe no nariz meu cartão de agente federal. Teve um sobressalto. Era a clássica rea­ção de qualquer pessoa ante a presença física de um representante da lei. Não sei se já ob­servaram, mas, em geral, os cidadãos conside­ram os homens encarregados de sua defesa como inimigos. Talvez exista nisso um fundo de razão, pois alguns emissários da ordem cos­tumam julgar-se a si mesmos indivíduos alheios ao rebanho, desobrigados de cumprir a lei como os demais.

Adverti-o:

- Escute, amigo. Trata-se de uma investiga­ção. Quero que me diga a verdade, e rapida­mente.

O camarada tinha uma vozinha vacilante que, agora, com a surpresa de ver-me interrogado por um agente de FBI, se desfazia, trêmula, aos arrancos.

Ficou excitado:

- Claro que lhe direi a verdade. Nada tenho a ocultar. Eu... não sou mais que o encarre­gado deste edifício. E não conheço Malley mui­to bem... Sei apenas que é um detetive parti­cular, ou coisa parecida... Mora sozinho. Mas possivelmente deve encontrar-se em seu escri­tório ... Nunca costuma chegar cedo... É um homem agradável. Aconteceu-lhe... ?

Antes que começasse a fazer perguntas, in­terrompi-o:

- Onde fica o escritório de Duncan?

- Bem... Acho que... Não fica muito longe daqui... Tem uma sala alugada na Broadway... No quarenta e dois... É um prédio só de es­critórios. .. Lá poderá...

Tudo que eu podia obter daquele homem já tinha conseguido. De maneira que dei meia vol­ta e me afastei, deixando-o continuar a leitura das fantásticas historietas de quadrinho, onde poderia encontrar uns agentes federais muito diferentes do que somos na realidade.

Nessas historietas, geralmente os federais costumam aparecer como heróis de carne e osso, mas inteiramente desprovidos de humanidade.

Segundo os fabricantes de tais engenhos, um federal carece inteiramente de problemas, de ambições ou ideais, de laços de nenhuma espé­cie com outras pessoas e, portanto, sem nenhu­ma possibilidade de erros.

O quarenta e dois da Broadway ficava a pe­quena distância do Teatro de Pulgas, embutido entre um cabaré e o Hotel Manhattan.

Havia um balcão de recepção e, por trás dele, uma loura falsificada, com curvas suficientes para Jazer descarrilar o "Nova York - Chicago".

Acerquei-me. A jovem possuía uns olhos de um azul-pálido tão frio e penetrante como uma verruma.

Disse-lhe:

- Procuro Duncan Malley. Conhece-o? Mostrei meu cartão de agente federal. A loura passou-lhe um olhar indiferente e depois, virou-se para mim, de novo. Com duas interrogações sugestivas:

- Que fez dessa vez esse gorila? Assaltou o correio, ou coisa parecida?

Repliquei, ao pé da letra:

- Duncan costuma, por acaso, violar as leis federais, garota? Ou isso é apenas um simples comentário seu?

Refletiu. Certamente pensava que se estava expondo a ser acusada de conivência ou algo parecido, pois apressou-se em dizer:

- Vamos, não se zangue. Conheço bem Dun­can. Não é mau rapaz, na verdade. Talvez um tanto brusco. Mas isso, segundo as fitas de ci­nema, é próprio dos detetives... particulares, não é mesmo?

De certo pensava englobar os policiais em ge­ral, sem estabelecer nenhuma diferença. Mas lembrou-se a tempo de quem eu era.

Então, resolvi dizer-lhe:

- Você parece conhecer muito bem Duncan, menina. Como é ele? A que se dedica, especial­mente?

Colocou-se na defensiva:

- Engana-se, inspetor. Nada sei sobre Malley. Para mim, ele não é mais do que "o homem que aluga o escritório número vinte, do pri­meiro andar". Vejo-o entrar e sair. Nunca me dirigiu um olhar que valesse a pena ser ci­tado. Para ele, tanto faria eu estar atrás deste balcão quanto um marciano. Compreende o que quero dizer? Malley tem um sócio e uma "se­cretária". Donovan, o sócio de Malley, é edu­cado, amável. A "secretária" é metida a vampiresca. Dos três, eu ficaria com Donovan, em­bora não pense que ele seja melhor que os ou­tros. Simplesmente, ele vive na terra, olha com cuidado onde pisa, para não esmagar os pobres vermes espalhados por aí. Duncan e a "secre­tária". ..

Estão percebendo? Nada sabia sobre Duncan, dissera, mas suas palavras davam a entender muita coisa.

Em primeiro lugar, que Malley lhe interessa­va a ponto de ficar enciumada e ofendida com o seu desinteresse. Depois, sabia, ou suspeitava, que a secretária do investigador era algo mais do que uma simples auxiliar. E, por fim, que o sócio, Donovan, procedia de outra forma com ela.

Cortei bruscamente a torrente de veneno que instilava, inquirindo:

- Muito bem, boneca. Se alguma vez a ope­rarem de úlcera, saberei que o culpado foi Duncan Malley. Diga-me, agora: Viu-o subir? Quem está no escritório?

Olhou-me com ódio. Mas o FBI conta com uma arma poderosa em suas relações com o público: a fama que Hollywood lhe tem pro­porcionado.

Ela teria gostado de poder mandar-me para o inferno, disso estou seguro. Mas limitou-se a encolher os ombros, enquanto dizia:

- Hoje não vi Duncan. Quanto aos outros dois... é possível que ainda estejam lá em cima. Não os vi sair.

Antes de me separar da recepcionista, adver­ti-a:

- Tome nota disso, garota. Não pense em utilizar esse telefone, para avisar o escritório de Malley de minha visita. Eu o saberia, mal você tocasse no fone, percebe? Tenho maus bofes. Quando me aborreço, costumo ficar uma fera. Você se arrependeria, entendido, beleza?

Deixei-a. Minhas palavras davam-lhe a en­tender que a linha telefônica estava intercep­tada. Não se atreveria a "dar o serviço".

A difusão que o cinema e a novela têm dado das técnicas policiais em todo o mundo é uma coisa útil... às vezes. Basta adotar um tom misterioso, falar com meias palavras, para que todos entendam o que se quis dizer e até o que não se disse.

O elevador era uma carcaça claudicante, que produzia sons asmáticos ao subir. Havia um ascensorista, que devia ser contemporâneo de Buffalo Bill. Com o tempo, parecia ter desen­volvido uma técnica própria para dormir em pé. Tenho certeza de que poderia estar viajan­do em companhia da Sofia Loren, sem se dar conta disso.

O primeiro andar era, na realidade, o quarto. Porque, na Broadway, há o truque de se nume­rar os andares dos imóveis partindo de um tér­reo, sobreloja, primeira sobreloja, segunda sobreloja, etc. Dessa forma, como as casas não são muito altas, dá-se a impressão, aos possí­veis visitantes, de que não terão de enfrentar uma desagradável escada de Jacó. Todo o mun­do sabe que os elevadores, nessa parte enve­lhecida da cidade, andam quase sempre enguiçados.

Na porta de vidro do escritório estava escrito o seguinte: "Malley & Donovan - Investigações. Reserva-Eficácia-Rapidez".

Girei a maçaneta. Não estava trancada. E penetrei na pequena sala-de-espera, onde exis­tiam duas cadeiras e uma mesinha com uma pilha de revistas atrasadas. Em frente, outra porta. Novo letreiro: "Direção". E mais em­baixo: "Privativo". Aproximei-me. Ia abrir, quando alguém me evitou esse trabalho. A por­ta girou nos fonzos.

Uma dessas morenas que a gente pensa só existir mesmo na imaginação dos desenhistas de calendário, de pele clara e olhos violeta, de cujo corpo se desprendia Sexo, assim mesmo, com maiúscula, quase se chocou comigo.

Ia saindo e dizendo para alguém que estava lá dentro:

- ...e não estou gostando nada dessa au­sência de Duncan. Você deveria...

Ao ver-me, interrompeu a frase e estancou. Deu um passo atrás, visivelmente perturbada.

Segui-a.

Entrei, fechando a porta às minhas costas.

Ela retrocedeu ainda mais, desobstruindo a linha de vista de um homem que ocupava a mesa do gabinete, mesmo em frente à porta de entrada.

Imaginei que Duncan Malley devia ter sido, em vida, um tipo interessante.

A secretária era aquela criatura suficiente­mente assobiável para transtornar a mente de qualquer mortal. E o sujeito diante dos meus olhos, Donovan, ostentava uma certa pinta de milionário arruinado, desses que os rabiscadores de romances mambembes usam sempre quando precisam de um personagem para se­duzir casta donzelinha desprotegida e abando­ná-la no quinto capítulo das suas histórias rebarbativas.

 

Há mulheres belas,  esculturais,   elegantes e... bombons! A secretária de Malley, aquele pecado de morena, pertencia ao último tipo da classificação.

Qualquer coisa indefinível, na sua estrutura, gritava um alerta instantâneo a todos os ho­mens.

Aquela morena deixava a gente assim, como à beira de um abismo, só que todo mundo desejoso de pular dentro dele, imaginando a do­çura dos seus braços.

Entretanto, Donovan reclamava toda a minha atenção. Ao contrário do que sugeria, era homem eficiente, rígido, rápido de decisões, reagiu como uma centelha, mal notou minha entrada sem-cerimônia. Levantou-se automàticamente, arrastando para trás a cadeira, e sua compleição dava idéia de corpo bem treinado, de atleta.

Levantou o queixo belicosamente, mas um tanto sarcástico:

- Que história é essa? Entre, amigo... Não se incomode de bater... Afinal de contas, isto não passa de um escritório privativo. Não tem importância, não é? Ora...

Sua ironia não era das mais sutis, certamente, mas isso não parecia importar-lhe. Ia falando e se aproximando, ameaçadoramente:

- ... Naturalmente vem propor-me um segu­ro de vida. Se é assim, acho melhor fazer pri­meiro um para si mesmo. Vai precisar mais...

Existe uma classe de fanfarrão insuportável. Aquele Donovan, justamente, era senhor de to­das as piores características da espécie. Supo­nho que já notaram isso, pelas primeiras rea­ções do tipo.

Donovan não podia adivinhar o motivo da minha presença. Logicamente, devia tomar-me por um cliente. Os detetives particulares estão acostumados a lidar com gente esquisita, até mesmo amalucada. Talvez o que me fizesse es­quecer as boas maneiras, entrando sem mais aquela, fosse um assunto urgente, de vida ou morte. Seria mais lógico se pensasse assim. Mas aquele pinta-braba era a figura clássica do valentão que procura exibir coragem aos fracos, inconsequentes, sobretudo se há mulher no local.

Mas tratei de conciliar. Não convinha dar-me a conhecer como agente federal. Não devia dei­xar aquela carta fora do baralho.

Falei, então, na base do bom-môço:

- Ouça, amigo, não fique nervoso. Isso faz mal à pressão. Esqueça o que disse sobre aquela história de seguro. Não creio que...

Donovan continuou avançando. Chegou qua­se a me tocar. Estendeu sua direita, me agar­rando na lapela do paletó. E era um paletó do último modelo, que comprara há pouco.

Resmungou:

- Vamos, cabelo-de-fogo. Deixe as explica­ções para outro momento. Não gosto que nin­guém entre aqui sem bater. É muito mal feito, sabe? De modo que você vai sair bonitinho e esperar lá fora. É possível que o receba mais tarde... Ou talvez não, quem sabe?

Era forte como um touro. Suas mãos empur­rando provavam isso. Ia me afastando pouco a pouco em direção à saída, com firmeza, sem excessiva rudeza mas inexoravelmente.

Foi naquele exato momento que lobriguei um lampejo de ironia nos olhos da secretária. Cer­tamente, achava a cena muito divertida. As mu­lheres sempre estão inclinadas a admirar tipos como Donovan, embora esses indivíduos, com a aparência de homens decididos, encubram às mais das vezes um perfeito covarde.

Meus bons propósitos se diluíam como uma nuvem ao vento. Senti uma onda encarnada subindo do estômago à cabeça. Vi tudo ver­melho.

Judô é arma de defesa e ataque. E sou um faixa-preta autêntico, dos raros existentes no mundo, sem falsa modéstia.

Com o polegar e o indicador, apertei o punho de Donovan.

Sondei um ponto particularmente sensível.

E ataquei-lhe um beliscão feroz.

Com um grunhido selvagem, um impressio­nante grito de dor impossível, o valentão caiu de joelho, gemendo e chorando. Aí, aproveitei a chance, suspendi meu joelho com vontade, esmagando-lhe o nariz bem feito.

Com as fuças escorrendo sangue, o gigante pulou para trás e saiu correndo, como acossado por um furacão. Chocou-se contra a mesa. Caiu de cara no chão, já sem vontade de arrotar valentia.

O ar maroto da secretária transformou-se em medo. Aproveitei o momento psicológico para interrogá-la:

- Escute, bombom, vim à procura de Dun­can Malley. Ao que estou pensando, esse garotão - apontei o gemebundo Donovan - é o sócio da firma, apenas sócio. E onde se encontra o chefe? É o diabo! Preciso falar com o chefe! É urgentíssimo! Não posso esperar...

Quando se surpreende alguém com a guarda baixa, pode conseguir-se tudo o que se deseja. E a linda secretária não seria uma exceção. A não ser por sua beleza.

Documente, informou-me:

- Eu... Eu... Lamento, senhor... Duncan não está... Justamente há dois dias não sabe­mos nada dele... Duncan está trabalhando num caso de divórcio... Procura provas por conta de uma mulher que...

Um rugido feroz, saído da garganta de Do­novan, interrompeu-a:

- Cale o bico, Bella! Sua ordinária! Vai contar a esse sujeito todos os segredos do es­critório?! Vou...!

Conseguira ficar em pé. Podia ser um garotão mofino, mas tinha peito, ao fim. Seria uma exceção dos indivíduos de sua espécie?

Não tentou lutar outra vez. Mas sua mão desapareceu sob a axila esquerda.

Não esperem nunca quando observarem al­guém fazer um movimento desse. Pode ser uma coceirinha à-toa, mas também pode ser que não seja, ou que a comichão resulte na puxada de um espalha-brasa.

Num segundo, saquei meu revóver do regu­lamento. Enfiei-o na boca do estômago de Do­novan, aconselhando:

- Quietinho com as patas, cervo que tomou fermento! Quer ter uma indigestão de chumbo?

Pelo visto, esse não era o seu desejo, pois que se imobilizou completamente. E com um gritinho escapando da garganta de Bella.

Continuei:

- Bem, amigo, acho que devo explicar-lhe o que me trouxe aqui e a razão disso tudo. Direi o seguinte: Duncan está morto. Atiçaram-lhe a cabeça com a forca suficiente para enviá-lo ao outro mundo. É por isso que vim. Preciso saber o mais possível a respeito dos negócios de Dun­can. Essa preciosidade morena estava contando direitinho, quando interromperam. Eu...

As mulheres, como sempre, fazem o mais inesperado e no pior dos momentos.

Eu havia descuidado por um instante a vigi­lância. Bella aproveitou. O olhar de assombro e receio de Donovan se transformou em triun­fo. Percebi que isso se devia a algo que estava ocorrendo fora de meu controle.

Fixei o olhar na secretária. O panorama havia mudado por completo. Já não estava assustada.

Ao contrário, empunhava uma pistola de ta­manho diminuto, embora de calibre suficiente para matar um elefante naquela distância.

Ouvi-a dizer:

- Solte a artilharia, gorila! Alojarei uma ba­la em seu cérebro, se não o fizer!

Compreendi que era capaz de cumprir a pro­messa. Mas naturalmente eu não estava dis­posto a me deixar surpreender por uma mulher.

Durante um momento, sustentei seu olhar. Depois, inclinei a cabeça, dando a entender que estava derrotado.

Foi o bastante para mostrar-se confiante. E, um segundo depois, eu saltava em direção a Donovan, que esperava qualquer coisa menos aquilo. Agarrei-o pelo pescoço e coloquei-o na minha frente, como um escudo protetor.

Depois, chamei a atenção da pequena:

- Que me diz agora, bombom? Atreve-se a disparar esse brinquedo, com o risco de trans­formar seu amiguinho em peneira?

Esse é o mal das mulheres. Não sabem ser suficientemente duras. Se meu oponente fosse um homem, o estratagema não teria êxito. Há mil maneiras de evitar um truque semelhante. Mas ela...

Donovan tremia nas minhas mãos. Ouvi-o dizer:

- Por Deus, Bella! Não vá...

Podia ter-se poupado aquela demonstração de fraqueza. Bastaria olhar a moça nos olhos, para perceber que não havia perigo.

Lentamente, a loura deixou cair a arma. Juro que me enamorei dela, naquele momento! Pa­recia uma madona de Rafael, embora a pistola destoasse um pouco do quadro.

Aprovei:

- Muito bem, amigos! Assim é melhor. Vo­cê, bombom, empurre com o pé a pistola... Até aqui. Depois, continuaremos conversando.

Ela obedeceu. Abaixei-me sem me descuidar de Donovan e recolhi a arma. Decidi que havia chegado o momento de esclarecer a situação.

Falei:

- A coisa é mais simples do que parece. Acho que começamos mal. Convém voltar ao princí­pio. Disse-lhes que Duncan está morto, de ma­neira que

Donovan interrompeu-me com um grunhido:

- Dê esse osso a outro cachorro, cabelo-de-fogo! Se pensa que assim conseguirá inteirar-se de qualquer assunto desta agência, está muito enganado. Duncan está tão vivo quanto qual­quer um de nós. E quando voltar, se souber que traímos sua confiança...

Com o fim de evitar maiores demoras recor­ri ao mágico talismã da minha identidade de agente do FBI. Esfreguei-lhe na cara o cartão, mas fazendo com que Bella pudesse ler tam­bém. Observei uma súbita contração em Do­novan. E ainda mais, que a moça ficou rígida, mais alerta do que nunca.

Reafirmei:

- Sim, Donovan, Malley virou presunto. E é certo que o mataram em consequência de algo que tem suas raízes no caso que estava investigando. A menos que seja você ou esta preciosi­dade quem o tenha liquidado. Assim se você não pretende gramar umas grades por uma longa temporada, vá soltando a máquina fa­lante e comece a cantar. É o melhor.

Houve um momento de silêncio. Dei-lhe tem­po para que pudesse refletir sobre a situação. Afinal, Donovan decidiu:

- Está bem. Você diz que Duncan está morto. Não vou dizer o contrário, já que é um agente do FBI quem afirma. Mas, antes de continuar, terá de dar-me umas quantas explicações. Não me julgue tão idiota que não saiba quais são meus direitos. Sou detetive particular licencia­do. Como é que o FBI está intervindo num caso assim? Que tipo de lei federal invoca para me­ter-se num caso que logicamente deveria ser da competência da Polícia Metropolitana? Quando tiver explicado tudo isso satisfatoriamente, Bella e eu colaboraremos em tudo quanto fôr necessário.

Aquilo era justamente o que eu temera acon­tecer: dar com um desses sujeitos que estão a par de todos os seus direitos e os invocam a cada passo.

Semelhante praga de indivíduos são, em re­gra geral, a espécie mais odiada pela Polícia de todos os países.

Nossa tarefa, como agentes da lei, nunca é simples. Por princípio, reconheço a necessidade de proteger os cidadãos contra possíveis arbi­trariedades e ilegalidades.

Mas quando há um cadáver em jogo, não gos­to de perder tempo discutindo se a Constituição, ou um decreto qualquer autoriza a usar sapa­tos amarelos no inverno ou sobretudo no verão. Quando um homem morreu, as barreiras legais devem abrir-se por completo, permitindo que a investigação se leve a cabo sem outros obstá­culos além daqueles opostos pela argúcia posta em prática pelos assassinos.

De modo que me aproximei de Donovan. Ain­da não havia guardado meu revólver. Com voz que traduzia toda a raiva que me dominava, adverti:

- Ouça, verme, não vou começar a discutir os seus direitos. Nem tão pouco lhe explicarei por que o FBI está intervindo nisto. Só lhe direi uma coisa: solte a língua ou se arrepen­derá pelo resto da vida.

Levantei o gatilho de meu revólver. Coloquei o dedo indicador na devida posição. Colei o cano em seu estômago.

Ladrei:

- Dê logo o serviço, inseto!

A pele de seu rosto adquiriu um tom amarelo-sujo. Murmurou:

- Isso é uma violência! Vai custar-lhe caro!

- Fale! Que caso Duncan estava investigando quando o mataram?

Aumentei a pressão do cano do revólver em sua barriga. Se ele tivesse resistido um pouco mais, ter-me-ia vencido.

Mas os nervos lhe falharam. Murmurou:

- Está bem. Direi. Não tenho outro remédio. Mas isto não ficará assim. Vai arrepender-se...

Começava a falar novamente como uma gralha. Para refrescar-lhe a memória apelei para o melhor argumento de que dispunha naquele momento.

Com o canto da mão livre, acabei de arruinar a linha clássica de seu nariz. Quero dizer que com ela golpeei na raça.

Começou a sangrar como boi esfaqueado no matadouro. Outra vez grasnou como velha his­térica. Quando percebi que estava disposto a fa­lar, ordenei:

- Deixe de choro, alma sebosa! Quer que continue o tratamento?

O desgraçado falou, então, atropelando:

- Duncan trabalhava para uma sujeita que seguia os passos do marido. Não é mais do que um caso sem importância. O fulano se divertia com outras e, ao que parece, tem gaita bastante para comprar um transatlântico. Ela queria ob­ter uma boa pensão-de-alimento. Isso é tudo. Não sei mais nada.

Naturalmente, aquilo prometia pouco. Olhei para Bella. Estava pálida, serena, cheia de ira. Seus olhos procuravam fulminar-me.

Entretanto, concordou num gesto mudo com o que Donovan dissera. Imaginei que ia fra­cassar, seguindo aquela linha de investigação. Não obstante, perguntei:

- Qual é o nome dessa sujeita? E o marido? Como se chama?

- Linda Waldy. Seu marido é Jim Derby. Um milionário. Industrial. Possui várias fábri­cas em...

Donovan falava ainda, mas suas palavras iam se convertendo em meus ouvidos num ru­mor sem qualquer significação.

Linda Waldy e Jim Derby! Era isso que Dun­can investigava!

O círculo se fechava e eu no mesmo ponto de partida.

 

Cheguei ao "Bad Egg" uma hora mais tarde. Telefonara a Linda marcando o encontro. Pelo tom de sua voz, deduzi que ela per­cebia a verdade: seus planos maquiavélicos não iam muito bem. Ou talvez fosse a raiva que ainda me dominava, refletindo-se nas minhas pa­lavras, dando aquela impressão.

"Bad Egg" era o restaurante da moda, em Nova York. Se me perguntarem por que, não sa­berei responder. A decoração é simples, apro­veitando utensílios do tempo das diligências, com os garções vestidos de pele-vermelha, ou de cowboy, evocando o velho Oeste lendário. Como vêem, a idéia não é nada original. Buracos dessa espécie proliferam na cidade, como cogumelos depois das grandes chuvas.

Mas os fregueses começaram a lotar o salão. Resultado: preços exorbitantes e atmosfera irrespirável. E Linda garantia que nenhum outro lugar, na cidade imensa, lhe agradava tanto.

Quando cheguei, ela já estava me esperando. Ocupava uma mesa discreta, ao fundo, não dis­tante das grelhas. Não obstante a passagem constante dos garçons, a possibilidade de con­versar sem olhares ou ouvidos curiosos compen­sava.

Linda vestia um modelo cinza, com laivos de vermelho. Exibia generosamente as pernas. E seus olhos verdes faiscavam. Minha pressão re­bolou indócil.

Esse é o mal de enfrentar-se uma mulher bo­nita.

A gente já se planta vencido de cara, com a predisposição de acreditar em tudo que a da­nada invente.

Confesso que sou assim.

Uma dona bem apanhada me deixa sempre ao sabor das suas variações.

Só que, depois, retomo o autocontrole. Vou pelo chamado bom-senso, o senso comum dos mortais sem complicações.

Não obstante o impacto inicial, pretendi man­ter-me firme. Não ia permitir que a boneca me levasse no bico. Se tinha alguma coisa a ver com a morte de Duncan, iria cantar direitinho. Nós dois estávamos naquela jogada.

Sentei-me. Um garçon atendeu imediatamente. Pedi o meu martini. Linda já havia jantado. No momento, eu só precisava de algum trago para manter-me em forma. Quando o garçon se afastou, tomei a palavra:

- Não vou perder tempo com cerimônias, Linda. Vou lhe dizer uma coisa: jamais pude imaginar que você pretendesse brincar comigo. Vocês, mulheres, são muito propensas a agir como a velha mãe Eva. Mas Adão aprendeu muito desde que foi expulso do Paraíso. Tome nota de minhas palavras, garota. Servirão muito na conversa "amistosa" que vamos ter.

Assumiu uma atitude de perfeita inocência. Só que a mim, então, isso já não podia impres­sionar. A cilada que preparou mudava comple­tamente todas as minhas perspectivas. E talvez também a lembrança de Bella, a secretária de Duncan Malley. Admirou-se:

- Meu Deus, Mark! Que está acontecendo? Por que me fala com tanta dureza? Não estou entendendo...

Atalhei-a:

- Deixe de representações, Mata-Hari. Você sabe muito bem a que me refiro. Trata-se dessa história que você me contou a respeito do roubo do carro. Você sabia que eu ia defrontar-me com um cadáver e me envolveu num risco que po­deria acabar comigo à menor bobagem que fi­zesse. Mas o que não consigo compreender é se você é uma tola, ou simplesmente uma insensata. Não percebeu que qualquer tropeço de minha parte, iria implicá-la também? Vamos! Que tem a me dizer?

Vi a incerteza em suas pupilas. E notei que ia mentir. É a arma favorita das mulheres e das crianças.

Mas ela gemeu:

- Oh, Mark! Como lamento! Eu... Eu não sabia que essa coisa tão horrível ia acontecer. Duncan Malley morto! Eu só quis que você re­cuperasse o carro, juro! Sei que fui uma tonta deixando as cartas, mas como podia imaginar uma coisa assim?

Olhava-me nos olhos, fixamente. Ninguém po­deria assegurar que por trás de seu rosto mara­vilhoso houvesse alguma maldade, ou deslize.

Admiti que não mentia. Entretanto, me enga­nara em alguma coisa, sem a mínima dúvida. Ela conhecia Duncan Malley. Utilizava-o para espionar seu marido!

Então asseverei:

- Bem, creio que você diz a verdade, Linda. Não obstante, há um fato que não está nada claro. Refiro-me à identidade do homem que foi encontrado morto, assassinado, em seu carro. Você o conhecia. De certo modo, era um em­pregado seu. Que diz a isso?

Precipitou-se, numa avalancha de fúria:

- Esse porco! Sim, era um porco. Não me importa nada que tenha morrido. Merecia isso. Qualquer uma das suas inúmeras vítimas de chantagem, tê-lo-ia enviado ao inferno. Aquele canalha!

Parou para tomar fôlego. Eu nada mais disse. Esperei que continuasse. As pessoas que se ex­pressam sob fortes emoções costumam ser sin­ceras porque não medem as palavras.

Logo depois, Linda prosseguiu:

- Contarei tudo, Mark. Devia tê-lo feito an­tes, mas... Sei quanto lhe tem sido desagra­dável a falsa situação em que nos colocamos. Por isso, quis mantê-lo longe de uma coisa que o teria nauseado...

Fez nova pausa. Percebi que sua mente re­trocedia no tempo. Sua voz soou tensa, ao continuar:

- Duncan era um chantagista! Foi ele quem apareceu, um dia, há vários meses. Você estava fora, na Europa. Talvez, se não fosse assim, eu lhe teria confiado tudo. O que aquele homem horrível disse me pôs à beira da loucura. Meu marido, Lim, o havia contratado para espionar-me. O canalha sabia do nosso romance, Mark! Tinha até fotografias. Seria o fim de todas as nossas esperanças!

Deixei passar em silêncio aquela surpreenden­te afirmação de Linda a respeito de seus planos de extorsão contra o marido. De nada vale re­bater certas coisas quando a pessoa que as afirma já fez suas próprias suposições e crê firmemente no que diz.

- ...E então Duncan me propôs o seguinte: ocultaria aquelas provas de Lim, disposto a co­laborar comigo e proporcionar-me a ocasião de espremê-lo - foram estas as suas palavras - se me mostrasse generosa. Com meios termos, deu a entender que podia colocar Lim em mi­nhas mãos, visto que ele, por sua vez, se entre-tinha em aventuras pouco recomendáveis... Eu... Meu Deus! Que podia fazer, Mark?

Comentei:

- Suponho o que você fez, Linda. Acho que estou começando a conhecê-la bem. Você pagou a esse porco. Entrou numa sórdida combinação com um chantagista asqueroso. E imagino que obteve os frutos desejados, não é assim?

Ela levantou o rosto raivosa. Não elevou o tom de voz, mas tive a sensação de que gritava. E confirmou:

- Sim. Por certo que aceitei a proposta. Acha, então, que eu devia me sacrificar? Quem é você para se fazer de tão puritano? É muito cômodo receber sempre o melhor, sem dar nada em troca. O nosso caso tem sido maravilhoso, Mark, mas quem mais perde com ele sou eu. Você se limitou a trair um amigo, afirmando, isso sim, que tudo isso o transtornava profun­damente. Pode culpar-me só a mim?

Silenciou. Permanecemos assim algum tempo. Linda havia ganho aquela fase do combate.

Tinha razão, agora eu a compreendia. Não lhe podia jogar aos ombros a responsabilidade pelo que sucedera. As coisas nunca são tão sim­ples como aparentam.

Meu papel, naquele caso...

Deixei, pois, de lado as recriminações. De nada serviria mais falar sobre isso. Restava somente esclarecer o assassinato de Duncan Malley.

À luz das novas perspectivas que as revela­ções de Linda apresentavam, as possibilidades se ampliavam numa escala gigantesca.

Um homem, como teria sido o detetive par­ticular, dispunha certamente de inimigos que deviam odiá-lo a ponto de desejar-lhe a morte.

E seriam legião. Porque o número de otários é infinito. Um chantagista tem sempre campo amplo para suas atividades. É só olhar em volta.

Portanto, concordei:

- Está bem, Linda. Dividamos as censuras. A nada conduzem nem nada solucionam. Diga-me, agora: acaso Duncan lhe forneceu nomes ou provas, de algum gênero, contra Lim?

A pergunta a surpreendeu:

- Que importa isso, Mark? Não compreendo... Interrompi-a:

- Deixe que seja eu quem julgue se tem ou não importância. Limite-se a dar a informação que pedi. —

Senti que me tornava brusco. Mas o antigo sentimento que Linda me inspirava desaparecera como se nunca houvesse existido.

Ela me lançou um olhar que refletia assom­bro e dor, ao mesmo tempo. Em outra ocasião, teria conseguido impressionar-me. Agora, só servira para provocar em meu íntimo uma onda de enfado.

Insisti:

- Vamos, beleza. Não temos tempo a perder. Esta é uma corrida contra relógio. Cada minuto perdido pode significar o desastre. Vamos, solte o que sabe!

Parecia aceitar agora a situação, em sua ver­dadeira gravidade. Linda sabia muito bem em que momento poderia empregar a arma infalível de sua feminilidade e beleza e quando devia comportar-se como um verdadeiro "cérebro".

Documente, falou:

- Está bem, Mark, farei como manda. Na verdade, Malley nunca foi muito claro. Costu­mava apresentar-se como esses detetives de no­vela que sempre usam meias palavras e estão cheios de mistérios. Apenas quando pedia di­nheiro - e isso era algo que acontecia amiúde - Duncan se mostrava preciso. Não obstante...

Fez uma pausa. Acendeu um cigarro e envol­veu-se numa nuvem de fumo azulado.

Estava mais sedutora do que nunca. E, no entanto, senti que era dura como o aço, que jamais se desviaria um milímetro da linha de conduta que considerava mais conveniente a seus interesses. Prosseguiu:

- ...Não obstante, pouco a pouco, consegui tirar-lhe algumas informações. Tudo que cheguei a saber é o seguinte: Lim tem uma amiguinha. Chama-se Olga Woldoba e é bailarina. Trabalhou na Companhia de Coreografia Ucraniana, que aqui esteve há alguns anos. Segundo me disse Malley, ela e Lim se conheceram logo após sua chegada aos Estados Unidos. Ao que parece...

Sua voz se transformou num murmúrio con­fuso, sem qualquer significado para mim.

Aquele nome de Olga Woldoba ressoou em meu cérebro como uma clarinada. Enfim, havia con­seguido alguma coisa a que aferrar-me!

Porque aquela mulher há tempos que estava sendo submetida a observação pelo Federal Bureau of Investigations!

Eu, como todos os agentes em função, recebia o boletim secreto mensal, onde são resumidos os casos do momento. Não que o assunto da Woldoba fosse narrado em todos os detalhes. O boletim não é confeccionado assim.

O normal é dar um resumo, sem nomes nem dados exatos, para que algum agente possa soli­citar um informe mais completo, se desejar.

O objetivo desse boletim é familiarizar todos os homens do FBI com o trabalho de qualquer um de seus companheiros a fim de que, se num dado momento algum homem cair, possa ser substituído, sem prejuízo para a investigação em curso.

Havia lido no boletim, tempos atrás, que se suspeitava da existência de uma bem organizada rede de espionagem nos Estados Unidos.

Aquilo coincidira com a ida de dois agentes federais para a Rússia. Interessei-me pelo caso. A pessoa que os serviços especiais do FBI vigia­vam com maiores probabilidades de obter algum resultado era, precisamente, Olga Woldoba.

Suspeitava-se que ela pertencia à organização e que atuara em vários casos de colheita de informações super secretas. Entretanto, até o momento, ao menos que eu soubesse, nada se podia afirmar de concreto, nem a favor nem contra isso.

Atrás de Woldoba existia uma série de homens e mulheres que cairiam ao mesmo tempo que ela... se isso chegasse a ocorrer.

Os agentes do FBI apontaram, principalmente, como o suspeito número um e talvez o chefe de toda a organização, o doutor Pedro Ivanoff, um biólogo russo, naturalizado norte-americano há muitos anos.

A voz indignada de Linda me fez voltar à realidade:

- ...Puxa, Mark! Que está lhe acontecendo? Não me ouve? Há pouco você ficou furioso porque demorei a dar uma informação e agora...

Tinha razão. Mas eu não lhe podia explicar o motivo da aparente contradição de rainha conduta.

Limitei-me a dizer:

- Está bem, boneca. Creio que por esta noite chega. Já tenho material suficiente para começar. Mais tarde voltarei a conversar com você... Se precisar de novos dados.

Levantei-me para sair. Linda me reteve pelo braço. Murmurou, convidativa:

- Oh, Mark! Para onde você vai agora? Gos­taria tanto que ficasse comigo! Poderia acom­panhar-me até em casa. Lim não estará e eu... Meu Deus! Sinto tanto sua falta, quando você está longe de mim!

Linda jogava com cartas marcadas. Sabia que os últimos acontecimentos me haviam afastado dela. E não era por causa da embrulhada que sua imprevisão nos colocara, mas sim por sua falta de sinceridade, de lealdade. Obteve o efeito contrário. Suas palavras despertaram em mim o desejo de voltar-me para Bella, a secretária de Duncan Malley.

Embora fosse muito tarde, decidi entrevistar-me com a morena. Mas antes precisava obter certos dados. E isso eu só poderia conseguir recorrendo ao Velho Urso, o inspetor da Metropolitana Tom Carlton.

 

O telefone tocou do outro lado da linha várias vezes, antes que atendessem.

Depois do clássico ruído, a voz do Velho Urso me chegou roufenha, pastosa, como a de um homem a quem acabaram de arrancar brus­camente do sono.

- Alô? Quem está falando?

- Alô, Velho Urso! Estava dormindo? Resmungou e por fim, falou:

- Com todos os diabos! É você outra vez, Vermelhão? Que quer agora?

Aconselhei-o, calmo:

- Vamos, Velho Urso. Fique tranquilo. Lem­bre-se de que já não é muito jovem e suas arté­rias não são eternas. Não gostaria de gastar dinheiro comprando flores para seu enterro. Eu...

Ouvi um espécie de uivo do outro lado do fio. Imaginei o inspetor tão furioso quanto um leão com dor de dentes.

- Pelos chifres de satanás! - grunhiu ele. - Não continue falando assim, Vermelhão, diga de uma vez o que quer ou desligarei, negando-me a me meter em suas embrulhadas. E quanto a isso de que não sou jovem, aposto o que quiser como ainda sou capaz de...

Sorri. O Velho Urso reagia perfeitamente, de acordo com seu temperamento. Via-se desde logo que, apesar dos anos, podia comparar-se com qualquer homem no pleno gozo das suas faculdades. Apenas seu humor ia se tornando cada vez mais azedo.

Deixei que acabasse as descomposturas e falei:

- Ouça, Tom. Preciso de informações. Mas antes quero dizer umas tantas coisas. Vou subir. Estou falando do bar da esquina. Ponha a den­tadura postiça e a peruca e abra-me a porta. Até já, Velho Urso.

Antes de desligar, ouvi como gritava, furioso, ante a insinuação da peruca e dentadura.

Voltei ao balcão e bebi o resto do uísque do copo. Depois, encaminhei-me para o edifício de apartamentos onde Carlton morava.

Era um solteirão impenitente. As mulheres para ele haviam sido simples acidentes, belos objetos para afagar e acariciar, sem nunca com­prometer-se.

Na realidade, Carlton estava casado com a Metropolitana. Seu único e verdadeiro amor era o uniforme azul. Vivera sempre dentro dele, desde simples patrulheiro e tenho a certeza de que se lhe propusessem começar de novo a vida, teria escolhido a polícia outra vez.

Não tive de apertar o botão da campainha para que abrisse a porta de entrada. Já o havia feito, quando cheguei no edifício.

Subi ao quarto andar. O ascensor rangia de forma sinistra, como se uma legião de escravos estivesse nos porões, puxando-o pelas polias.

Carlton se metera num pijama de seda, amarelo berrante, com o cabelo mais revolto que de cos­tume. Ao contrário, o bigode parecia mais ereto, numa disposição belicosa que lhe revelava bem o estado de ânimo.

Recebeu-me num silêncio digno e severo. Ocupei uma das poltronas existentes no "living". O inspetor permaneceu de pé.

Observei:

- Bem, Velho Urso, eu não tenho culpa que os anos arruínem o cabelo e a dentadura da gente. Reconheço que me enganei no seu caso. Parece que não usa peruca. Quanto aos dentes...

Veio para mim como um terremoto. Gritou:

- Vermelhão do diabo! Deixe as brincadeiras de uma vez! Ou quer que o atire na rua pela janela?

Quase lhe disse que isso seria impossível, já que seu apartamento não tinha nenhuma janela, com exceção de uma abertura que dava para um pátio interno.

Mas compreendi que ele tinha razão. Então disse:

- De acordo, Tom. Irei ao assunto. Preciso de informações acerca de uma mulher. É urgente. As coisas se complicaram mais, desde que nos separamos. Por um lado, melhoraram. Por outro, parece que a morte de Duncan Malley tem pro­fundidade maior do que um simples crime.

Tom Carlton é um homem que sabe combinar trabalho com comodidade. Enquanto me ouvia, abrira um pequeno bar, que ocupava um dos cantos do "living".

Preparou dois uísques com água. Deu-me um. Depois, sentou-se numa poltrona.

E começou a falar:

—-Explique-se, Vermelhão. Não estou enten­dendo uma só palavra de tudo que disse.

Com poucas frases contei-lhe o resultado de minhas averiguações. Não era um procedimento normal aquele, mas tão pouco era comum que uma investigação me afetasse de forma tão direta.

É certo que, agora, depois de surgir o nome de Olga Woldoba, podia agir na qualidade de agente do FBI. Apesar disso, teria de trabalhar em colaboração com o Velho Urso, até ver termi­nado o caso.

Quando terminei, o inspetor refletia. Eu podia, sem me enganar, desenhar-lhe, o pensamento: continuava convencido de que Linda me enganava, isso era evidente, e, por outro lado, não via utilidade numa entrevista com a secretária de Malley.

Para ele, seria mais prático atacar o problema de frente, deixando de lado a psicologia e outros métodos habituais dos investigadores modernos.

Resmungou depois:

- Diabo, Vermelhão! Que maluquices está pro­jetando? Não seria melhor levar esse Donovan à Chefatura e tirar-lhe a informação, empregando um "hábil interrogatório"?

Já podem imaginar o que significava para o Velho Urso um "hábil interrogatório": quatro policiais vigorosos, um quarto acolchoado, focos potentes. Terceiro grau, em definitivo.

Tais métodos costumam dar resultado, não nego, mas naquela ocasião não serviriam.

Donovan era um tipo duro. Sabia bem a que se expunha, enganando-me. Não é recomendável brincar-se com o Federal Bureau of Investigations. Não obstante, ele o fez.

Possivelmente, Donovan ter-se-ia protegido de forma a não ser surpreendido de novo com a guarda baixa.

E um bom advogado é capaz de enredar um caso até deixar loucos todos os que nele intervém.

Então, eu falei:

- Ouça, não podemos nos afastar demasiado da raia. Já o fiz e começo a pensar que foi um equívoco. Entretanto, penso que essa pequena, Bella, é o ponto sensível por onde se pode atacar. Deu-me a impressão de não estar inteirada das verdadeiras atividades dos sócios. Mas conhece o bastante de Donovan e Malley para dar-nos uma informação completa a respeito deles e as relações que os ligavam. É muito importante saber se Donovan levará adiante os "negócios" de Malley ou se, ao contrário, os abandonará. Em qualquer caso, se eu conseguir a colaboração da moça, terei dado um grande passo. Não acrescentei que Bella me interessava por si mesma. Isso nada tinha a ver com o trabalho. Por fim, Carlton deixou de grunhir. Disse:

- Está bem. A bola está no jogo e cabe a você impulsioná-la. Leve o caso como julgar melhor. Sabe que conta com meu apoio total.

Entrou em seu quarto por uns momentos. Pouco depois, tornou a sair. Vestira-se rapidamente. Murmurou:

- Você está me encurtando a vida em vários anos, Vermelhão. Eu já estava há duas semanas sem poder dormir. E agora vem você e...

Deixou a frase sem concluir. Permaneceu em silêncio até entrarmos no carro. Então, falou:

- Seria melhor que fôssemos no meu, Mark. Vai-se mais depressa nele.

Neguei-me:

- Não, Tom. Ainda sou jovem para pensar em suicidar-me. Além disso, que significam dois ou três minutos a mais ou a menos?

Como vi que acedia de má vontade, decidi dar-lhe uma lição. Engrenei a marcha pisando ao mesmo tempo a embreagem. Apertei fundo o acelerador. Depois, larguei o freio de mão. O resultado foi que saímos feito uma flecha. Continuei pisando o acelerador durante todo o trajeto. Havia pouco trânsito àquela hora, mas os retardatários que tiveram a desgraça de atravessar nosso caminho devem ter envelhecido em coisa de segundos.

Carlton nada disse até que paramos em frente à chefatura. Comentou:

- Você deve comprar um carro novo, Verme­lhão. Essa sua carcaça anda menos do que uma tartaruga.

O pior de tudo é que falava sério. Não havia outro remédio senão aceitá-lo como um caso de loucura mansa. Encolhi os ombros e não respondi.

Fomos diretamente ao arquivo. Havia lá uma seção destinada aos atestados de antecedentes de todos aqueles que haviam solicitado, obtendo ou não, licença de investigadores particulares. Era de supor que também estariam os dados relativos a seus empregados.

O encarregado do arquivo era um velho po­licial, anterior até aos tempos de Carlton e meu pai. No seu crânio apenas uma nuvenzinha embranquecida que até podia ser poeira, despren­dida dos papéis que guardava.

Ao ver-nos entrar, mostrou a dentadura postiça, totalmente de ouro, num sorriso de boas-vindas. Os óculos se sustinham com dificuldade sobre o nariz chato.

Disse, alegre:

- Salve, o inspetor Carlton e Mark London! Isso significa que terei meu trabalho decuplicado. E o pior, sem que ninguém me agradeça.

O Velho Urso rouquejou:

- Cale o bico, rabugento. Tenho a certeza de que seria capaz de dar metade de seu soldo para que alguém o faça trabalhar um pouco. A última vez que você teve de procurar algum processo, deve ter sido lá pelo fim da Primeira Guerra Mundial.

De minha parte, completei:

- Da próxima vez que vier, Pete, trarei o baralho. Você me deve uma revanche.., com cartas não marcadas. Lembra-se?

Deu uma gargalhada. De quando em quando, eu me reunia com os homens da Metropolitana, que eu conhecia, e jogávamos uma partida. Pete era habitualmente o ponto. Ganhava sempre.

Carlton foi direto ao assunto. Pediu:

- Vamos, Pete. Procure-nos os dados de um tal Duncan Malley, detetive particular. Tire tudo quanto exista sobre ele e sua agência.

Pete desapareceu ao fundo da sala estreita, ladeada de estantes repletas de papéis situada nos porões do edifício da Chefatura.

Depois de algum tempo, reapareceu. Trazia uma pasta volumosa nas mãos. Abriu-a.

No cabeçalho da primeira página lia-se: "Dun­can Malley. Solicitação para abertura de uma agência de investigação particular. Nome co­mercial: Malley & Donovan."

Carlton decidiu:

- Bem, Vermelhão, aí o deixo. Pode estudar os papéis até que os saiba de memória. Quando terminar e se precisar de mais alguma coisa, estarei no meu gabinete, se possível que lá con­siga dormir um pouco.

Afastou-se sem nada mais dizer. Pete, por sua vez, desapareceu discretamente. Concentrei minha atenção na pasta de Duncan Malley.

Os rapazes da Metropolitana haviam feito um trabalho magnífico. Estava ali a história com­pleta de Malley, Donovan e Bella Barclay.

Ouvi a tossinha de Pete, roufenho, denunciando seus pulmões senis. Pareceu-me sentir também um ruído de ratos.

Pouco a pouco fui deixando de notar aqueles rumores, à medida que me aprofundava no exame dos documentos.

Os lacônicos e livres informes que constituem o coroamento do trabalho dos agentes da lei, possuem maior força do que qualquer relato imaginado pelos homens.

Com rápidos traços se delineia o perfil de um homem. É definido e classificado. Estudando-os, se poderá predizer, com poucas probabilidades de erro, o caminho de muitos indivíduos, antes que eles mesmos se decidam a segui-lo.

 

Apertei o botão da campainha, insistentemen­te. Ao cabo de algum tempo, alguém do outro lado, abriu. Através da fresta deixada pela corrente de segurança, apareceu o rosto de Bella. Vi alguma coisa mais. Vestia um "baby-doll" branco, trans­parente, que permitia adivinhar as exuberantes curvas de seu corpo. A cabeleira negra caía sobre os ombros, numa cascata sedosa, brilhante.

No momento, não me reconheceu. Logo, um esgar de furor e inquietação se estampou em suas faces.

Antes que dissesse alguma coisa, me adiantei, advertindo:

- Poupe as palavras, belezoca. Vim conversar com você e o conseguirei, por bem ou recorren­do a uma ordem judicial, se for necessário.

Apesar de tudo, Bella mostrou-se furiosa. Ain­da que não tenha elevado a voz, soube imprimir às suas palavras a necessária energia. Disse:

- Você é o homem mais cínico e desprezível que conheci em toda a minha vida! Não abrirei a porta. Terá de vir provido de uma ordem ju­dicial, do contrário, será preciso derrubar a porta.

Isso foi o que afirmou, mas no seu tom, apesar da violência que empregava, notei certa hesita­ção. Claro que eu sabia os motivos disso. Por essa razão, limitei-me a dizer:

- Que lhe parece, bombom, se falássemos um pouco acerca de "Trovão" Mickey?

Ela empalideceu. Foi como se houvesse recebi­do uma tijolada na cabeça. Um tom amarelado se estendeu sobre sua pele morena.

Sem falar, tirou a corrente de segurança, franqueando-me a entrada. Sua beleza lucrava quan­do se transformava na mulher que realmente era e deixava o papel de durona de fita de cinema, o que sem dúvida devia ser uma técnica apren­dida junto a Malley e Donovan.

Fechei a porta às minhas costas. Ela caminhou à minha frente. Fomos a um salãozinho, de pe­quenas dimensões, decorado e mobiliado com gos­to perfeitamente feminino.

Observei, todavia, que havia ali um pequeno bar. Não gosto de incomodar ninguém. Por isso, eu mesmo o abri, descobrindo uma garrafa de uísque. Havia copos também.

Para evitar servir-me várias vezes, pus logo uma boa talagada. Completei-a com um nada de água. Depois defrontei-me com Bella.

Ela recobrara seu espírito de luta. Para sabê-lo, bastou observar o brilho de seus olhos. Mantinha-os fixos em mim. E neles pude ler que me con­siderava em nível mais baixo do que os proto-zoários. Bella rompeu fogo, dizendo com sar­casmo:

- Não faça cerimônia, "tira". Porte-se como se estivesse em sua casa. Precisa de mais alguma coisa para ficar à vontade?

Eu respondi:

- No momento, nada, bombom. Mas se fosse o caso... não duvide que o faria.

Ela teve um ataque de fúria. Gritou:

- Amaldiçoado! Que quer de mim? Veio aqui, comportando-se como um carrasco. Você pensa que pode dominar todo o mundo, mas neste país ainda há leis que protegem os cidadãos da vio­lência. Não me importa nada o que você sabe ou pensa saber de mim. Você mencionou "Tro­vão" Mickey. Mas eu nada tenho que me en­vergonhe, seu policiazinho. Vou lhe dizer que...

O volume de sua voz ia aos poucos diminuin­do e a violência, como uma tempestade, extra­vasava em seu íntimo.

Não julguem que me alterei. Permaneci tran­quilo, tomando o uísque em pequenos goles e deixando que meus olhos se deleitassem com o maravilhoso espetáculo de seu corpo.

Por fim, calou-se. Seus ombros se foram en­colhendo, como se sobre eles gravitasse enorme peso.

Inclinou a cabeça. E de novo a vi na minha frente, vencida, esperando quem sabe lá que espécie de catástrofe ou súbito golpe do des­tino.

Com um fio de voz, murmurou: - Está bem, polícia. Você ganhou. Que quer de mim?

Fiquei com pena. Bella pertencia à imensa le­gião dos fracassados, dos seres sem culpa, mas que foram arrastados na cruel engrenagem da vida.

Na verdade, era prisioneira de fantasmas que ela mesma havia criado. Sem libertar-se de cer­tos tabus, a ninguém é possível gozar a vida plenamente.

Bella, como muita gente, elevava de forma absurda, acima de sua própria vida, algumas ex­pressões que, afinal se descobre, nada signifi­cam: valorização pessoal, opinião dos outros, medo a esse monstro informe que é o edifí­cio aparente da lei, com seus servidores sem coração, dedicados unicamente em perseguir os outros.

E, no entanto, Bella possuía todo o necessário para triunfar: juventude, energia, beleza!

Só lhe faltava audácia, capacidade para deci­dir e compreender que a terra é o feudo dos lobos e que é preciso converter-se num deles, ou fazer-lhes frente para aniquilá-los. Depois dessas considerações intimas, falei:

- Ouça-me atentamente, bombom. Vou deixar minhas cartas viradas para cima, para que você saiba em que se apegar. Realmente, é uma tática errada, mas não quero fazer jogo sujo com você, entendido?

Silenciei. Bella nada disse, mas notei que havia conseguido interessá-la. Continuei:

- O Federal Bureau of Investigations tem meios que lhe permitem conhecer a história de todo o mundo, a história verdadeira, entende? Não pense que sejam disfarces e mentiras para impressionar a platéia. Não é isso. Nós sabemos a verdade, justamente o que todos se esforçam por ocultar, pequenos segredos, tolas fraquezas, histórias que se fossem publicadas fariam um menino se divertir...

Bebi um trago. Bella havia acendido um ci­garro e continuava de pé à minha frente, como se deitasse raízes no tapete.

- Seu caso, Bella, não tem muita importân­cia. Não há a mínima possibilidade de obrigá-la a fazer o que não deseja. Estou a par do que se passou entre "Trovão" Mickey e você. Sei que o conheceu em Chicago, logo depois de chegar à cidade, e que foi sua noiva. Li tudo a respeito do assalto que "Trovão" levou a cabo e a forma como a envolveu no caso.

Cada uma de minhas palavras parecia uma chicotada sobre o corpo de Bella. Ela estreme­cia, refletindo em seu rosto a angústia que lhe atormentava o espírito. Dava a impressão de estar preparada para fugir, à menor oportu­nidade.

Prossegui:

- ... O juiz acreditou que você nada tinha a ver com as verdadeiras atividades de "Trovão", que você era apenas uma provinciana que o pa­tife havia enganado...

Ela explodiu:

- Meu Deus! Essa é a verdade, juro! Não conheci bem Mickey. Pensei que era um homem honesto. Eu... eu... Oh! Por Deus! Terei de explicar tudo novamente? Será que aquele pe­sadelo me há de perseguir a vida inteira?

Deixei que passasse algum tempo. Bella aquie­tou-se, abatida em silêncio, amargamente. Reatei a conversa:

- ...Eu disse que ia pôr as cartas para cima, bombom. Note bem isto: eu também acredito que você seja honesta. Sei que nada teve a ver com os crimes de "Trovão", apesar de todas as aparências em contrário. E lhe direi mais: vou pedir-lhe que me ajude, que ajude a justiça. Mas antes de você tomar uma decisão, saiba que não está obrigada a nada disso. Pode aceitar ou mandar-me ao diabo. Em qualquer caso, sua história passada em nada influirá, com­preendido?

Houve um silêncio denso. Notei que Bella pro­curava a cilada que adivinhava em minhas pala­vras. Mas, afinal, inquiriu:

- Que deseja de mim? Acho... Acho que pos­so ajudá-lo. Se procura a pessoa que matou Duncan Malley, de nada servirá minha colabora­ção. Sou apenas uma empregada e na verdade...

Com um gesto silenciei-a. Disse:

- Eu lhe fiz uma pergunta, bombom. Quero que me responda. Está disposta a colaborar co­migo?

As mulheres dificilmente respondem de uma maneira direta o que lhes é perguntado.

Bella não podia senão proceder de forma igual. Perguntou, por sua vez:

- Por que mencionou "Trovão" Mickey? Se não o tivesse feito, talvez eu estivesse mais dis­posta a ajudá-lo.

Precisamente, aquela era uma pergunta que me convinha responder. Servia de base às infor­mações que lhe devia dar a respeito de Duncan Malley e seu sócio, Fred Donovan. Portanto, res­pondi:

- É muito simples, bombom. Já uma vez você esteve metida numa trapalhada por fiar-se em aparências. "Trovão" Mickey era um gangster e você não sabia. Quem lhe garante que Malley e Donovan sejam melhores? Ficou silenciosa por breves instantes. Por fim:

- Está insinuando que esses dois homens se­jam criminosos?

Parecia haver superado o momento crítico an­terior. Seus olhos brilhavam de novo. E em sua voz notei um tom de desafio. Expliquei:

- É isso justamente, bombom. E agora ouça: Duncan Malley é um ex-policial, expulso por su­borno e coação. Conseguiu a licença de detetive particular graças a determinadas influências. Fred Donovan está fichado como chantagista. As mesmas pessoas que protegeram Malley agi­ram também em seu favor. A agência, em rea­lidade, não é senão o biombo de uma série de atividades sujas, que sairão agora à superfí­cie, por causa da morte de Duncan. Entretanto, antes que isso aconteça, quero completar uma investigação a respeito dos casos de que a agên­cia se ocupava ultimamente. Especialmente aque­le em que Malley trabalhava ao ser assassinado. É preciso caçar seu assassino que não pode ser senão alguém a quem os dois sócios, numa ou noutra ocasião, "espremeram". Quero dizer, sub­meteram a chantagem, compreende?

Vi um fulgor de pânico no olhar de Bella. Adivinhei o que pensava e disse:

- Lembre-se do que lhe prometi antes. Qual­quer que seja sua decisão, jamais sua história será recordada. São águas passadas. Apenas, se chegar a provar que você tem a ver com a morte de Malley...

Ela refletiu alguns instantes. Finalmente, disse:

- Está bem, "tira". Trabalharei para você. Que devo fazer?

- Antes de tudo, guardar meu nome, bombom. Chamo-me Mark London. Depois, assegurar-se de que tem consciência do perigo a que se expõe. Vou encomendar-lhe a vigilância sobre Donovan. Quero saber o que ele faz, se pensa continuar com a agência, se se põe em contato com os antigos clientes... tudo, enfim, que possa servir para agarrá-lo. Se foi ele quem mandou Malley para o outro mundo... Isso significa que você estará justamente no centro da possível explo­são. Donovan é um tipo perigoso. Seus antece­dentes revelam que quando se vê encurralado se transforma numa fera.

Bella comentou:

- Você tem uma maneira de animar, que deixa a gente de cabelos em pé... Acha que Donovan pode matar-me?

Encolhi os ombros e disse:

- Não sei. Desde logo, você ficará sob guar­da. Ainda que você não me veja, eu não estarei longe de você. Se isso puder servir-lhe de con­solo...

Uma luz irônica se acendeu em suas pupilas. Murmurou:

- Saber que me vigia é o que mais me pode preocupar, Mark. Por acaso você é da gente se fiar?

Havia chegado o momento de fazer algo que desejava, com todas as minhas forças. Levan­tei-me. Deixei o copo sobre o tapete. Vazio.

Aproximei-me dela. Ela não se mexeu. Es­treitei-a em meus braços. Uni meus lábios aos seus.

Durante alguns instantes, permaneceu rígida, tensa, sem corresponder à carícia.

Depois, seus músculos se afrouxaram. Abriu os lábios. Senti que seus braços passavam ao redor de meu pescoço.

Amigo, não posso dizer o que aconteceu na meia hora seguinte. Foi como eu tivesse inge­rido uma beberagem anestesiante. Poderia ter caído uma bomba a um metro de mim, eu nem teria notado.

Os lábios de Bella, seu corpo, eram então as coisas mais importantes. Não tinha razão?

 

Na manhã seguinte, entrei em contato com os agentes do FBI D. W. Carber e Felton Clancy. Esses dois homens eram os encar­regados do caso Ivanoff-Woldoba.

Depois de me ouvir atentamente, Felton assoviou baixinho, enquanto Carber parecia intranquilo. Foi este quem explicou:

- Ouça, London. Você acabou de tocar num assunto que constitui para nós, cada vez que é lembrado, um verdadeiro sinapismo. Perdemos quase um ano nas pegadas dessa mulher, Olga Woldoba. Desde que foi apontada como possível suspeita, não tem dado um passo sem ser estu­dada e observada. Mas o balanço de nosso tra­balho é zero. Rastreamos milhares de pistas, inclusive Lim Derby, pois as relações entre ambos são conhecidas desde o momento que se inicia­ram. Não há nada pior do que relações extra-maritais. E há muitos outros homens em sua vida. Demais, seria a palavra exata. Perguntei:

- Que há com esse médico russo, Peter Ivanoff?

Felton foi quem se encarregou de responder:

- Zero. E o resultado, somado ao de Olga, é zero. Podem ser espiões. É possível que te­nham tirado deste país todos os segredos fecha­dos a sete chaves. Mas não temos nem a mais mínima prova, nada em que nos apoiar, a menos do fato de haver nascido na Rússia constituir-se evidência suficiente.

Fez-se uma pausa. Carter finalizou:

- Continuamos vigiando, com a esperança de que, em algum momento, cometam um deslize... se é que haja alguma coisa de certo em toda essa história. Quanto ao mais, o caso é seu, se quiser. Talvez um homem novo, com a mente desintoxicada, possa descobrir a verdade.

Naturalmente eu não pensava achar tantas facilidades. Com tato, salientei que cada um de nós tínhamos nossas próprias pulgas para matar, e que as minhas eram singularmente re­sistentes aos mais poderosos inseticidas.

- ...Não obstante - assegurei - vou se­guir um pouco as suas pegadas. Talvez consiga descobrir um ninho de espiões. Se for assim, vocês terão sua parte na presa, rapazes.

Deixei-os com um novo problema: se eu estava louco, ou se sabia algo que não lhes queria re­velar, com a pretensão de acrescentar lauréis à minha carreira de agente federal.

Rumei para o edifício "Cristal", onde Lim Der­by tinha seus escritórios. Trata-se da última palavra na técnica quanto a linhas de constru­ção.

Há ali umas dessas novas garagens giratórias que, segundo seus inventores, resolvem o pro­blema do estacionamento, nas imediações dos grandes edifícios.

A verdade é que, se um dia falhar um dos enormes rolos que constituem sua principal no­vidade, se produziria quase uma catástrofe na­cional. Centenas de carros ficariam bloqueados, sem possibilidade de escapar da cilada mecâ­nica.

Derby & Son ocupa o primeiro andar do edi­fício. Seus auxiliares formam um exército. Má­quinas calculadoras, um cérebro eletrônico, de­zenas e dezenas de máquinas de escrever, trans­formam aquele lugar numa colmeia rumorosa.

Os seres humanos se agitam entre suas pare­des de vidro num esbanjamento de selvagem energia, trabalhando incansáveis, disciplinados. E em cada grão de seu esforço há em potencial dinheiro e poder para o homem que os maneja: Lim Derby.

Não que haja sido ele o criador de semelhante império. Isso se deveu ao esforço de várias gerações, que foram acumulando riquezas para os descendentes.

Todavia, Lim tem capacidade suficiente para fazer o papel de herdeiro de tal cargo com bas­tante brilho.

Conheço-o bem. Frequentamos juntos o Claremont Center, onde ambos fizemos o curso de Direito.

Os Derby pertencem ao tipo de capitalista que teme os exageros do fastígio e procura disfar­çar-se com ações igualitárias.

Enviam seus filhos a escolas públicas, deixam que vendam o jornalzinho da universidade, que lavem pratos e participem das competições es­portivas.

Enquanto isso, permanecem eles à frente de suas empresas, obtendo de cada dólar o rendi­mento gordo, vivendo o sonho dourado das mil e uma noites, sufocando seus concorrentes para acumular mais e mais poder, mais e mais ri­queza.

Quanto ao mais, esses camaradas têm o sorri­so fácil e as maneiras corteses. Falam, com grandes rasgos, da pátria, da religião e da mo­ral... Mas peçam-lhes um dólar emprestado e os conhecerão logo.

Fiz-me anunciar. Lim tinha uma secretária com carroçaria de luxo. Era um espetáculo vê-la andar, inclinar-se para falar ao telefone ou le­vantar a cabeça para perguntar o nome da gente.

Não foi preciso esperar. Com um sorriso que parecia indicar que eu era um sujeito de sorte em poder entrevistar-me com o chefe supremo, fez-me entrar na secretaria.

O gabinete de Lim poderia servir para disputar uma competição de baseball. A mesa do grande chefe se perdia lá no fundo, frente a um imen­so painel de cristal que tomava toda a parede.

Enquanto percorria as dezenas de metros que separavam a porta do trono de Lim, observei o sorriso frio dos seus lábios.

Era alto, esbelto, com um corpo forte, bem treinado. Sua cabeleira loura formava ao redor da cabeça uma espécie de halo que disfarçava a dureza das feições e a mandíbula de lutador.

Acolheu-me com a cordialidade de sempre. E, como sempre, o sorriso estava ausente de seus olhos. Se você gosta de caça-submarina, repare nos olhos de um tubarão. Era assim Lim Derby.

Com um sorriso mecânico:

- Não podia acreditar que fosse verdade quan­do Ester, minha secretária, disse que queria me ver. Mark London, o terror dos criminosos, em pessoa! Alegro-me deveras em vê-lo, Mark.

Havia uma poltrona niquelada daquele lado da mesa do gabinete, com a forma mais estranha que já vira. Parecia um polvo de três patas. Lim pediu que me sentasse nela. Obedeci. Veri­fiquei, admirado, que era tão cômoda como umas pantufas de feltro numa noite de inverno, em frente de uma boa lareira.

- Obrigado, Lim. Também estou contente de vê-lo, ainda que tenha de confessar que não foi a simples amizade que me trouxe aqui. Vim para falar-lhe de Duncan Malley.

Ataquei a fundo, de pronto. Lim Derby não é homem com quem se possa lidar empregando meias-tintas.

Antes de ter decidido vê-lo, Lim já sabia que eu o faria. Tem a seu serviço muitos homens e até uma verdadeira agência de informações.

O estranho é que, contando com tais medidas, fosse recorrer a um Dunean Malley para inves­tigar a vida de sua esposa.

Entretanto, não me era difícil encontrar uma explicação para o caso contraditório.

Linda era o grande equívoco de Lim Derby. Casara-se com ela muito jovem, quando não tinha ainda plenamente desenvolvidas as facul­dades de homem de negócios.

Depois, ao descobrir que mulher era Linda, sentiu que não era fácil deixá-la de lado ou des­cartar-se dela sem mais nem menos.

Eram duas individualidades fortes, enérgicas, ambiciosas. Ao se converterem em inimigos, começaram a procurar as mútuas debilidades, com o fim de tirar partido.

Ao contrário do que Linda acreditava, não era o dinheiro a principal razão por que Lim procurava obter o divórcio sem ter de pagar pesada indenização.

Lim lutava simplesmente porque a idéia de ser derrotado não cabia em seu código. Ter os ou­tros dominados, escravos de seus desejos, encai­xava-se perfeitamente com o conceito que Lim Derby fazia de si mesmo e da importância que ostentava.

Sobressaltou-se de repente. Esperava, sim, que o nome de Malley aparecesse durante o trans­curso daquela entrevista, mas contava com maior diplomacia de minha parte.

Respondeu muito depressa, sem medir bem as palavras nem o tom de voz, que lhe saiu aguda, descomposta.

- Dunean Malley? Não sei de quem está falando, Mark. Acaso o conheço?

- Por certo que sim, Lim. Trata-se do homem que você contratou para seguir Linda. Um de­tetive particular, ou ao menos tal era a profis­são que dizia ter...

Deixei passar alguns instantes em silêncio para lhe dar tempo de reagir ao primeiro impacto e assestar-lhe o golpe seguinte.

Quando senti que recuperara a presença de espírito costumeira e que se dispunha a con­tra-atacar, acrescentei:

- ...Morreu, Lim. Alguém o assassinou à noite passada. Deram-lhe um golpe na cabeça. Um tipo de morte não muito espetacular, mas talvez a mais efetiva de todas... sobretudo se não se quer deixar nenhum rasto da arma em­pregada.

Desta vez Lim não se surpreendeu. Não obs­tante, aparentou surpresa. Não podia dar a en­tender que estava inteirado do fato e de como havia ocorrido.

Porque Lim, sem dúvida, conhecia todas as circunstâncias do caso.

Teria sido um bom ator se quisesse. Seu gesto de homem que acaba de recordar-se de alguma coisa que havia esquecido foi quase perfeito. Exclamou:

- Caramba! Espere um pouco, Mark. Você disse... Duncan Malley?

- Sim. É esse exatamente o nome.

Saiu de trás da monumental mesa do escri­tório. Reconheci sua postura habitual dos mo­mentos em que se dispunha a pronunciar uma longa enumeração de fatos.

Explicou:

- Bom, sinto que você não vai me acreditar, mas lhe asseguro que, assim de pronto, não sabia de quem falava. Agora lhe direi. Claro que conhecia Duncan Malley. Perfeitamente. Trata-se de um sujeito que fiz expulsar daqui não faz muito tempo. Um asqueroso e repug­nante chantagista. Nem mais nem menos, Mark. Se você tiver tempo, eu lhe contarei todo o caso. É algo de feio, desagradável. O breve contato que tive com Malley me deu a sensa­ção de ter caído num esgoto.

Parou de falar por um momento. Seus olhos, sem brilho, se cravavam em meu rosto, impas­síveis, desafiantes.

Era um repto que ele me lançava. Com isso, tentava obrigar-me a decidir se devia continuar ou não. Talvez supunha que, devido às circuns­tâncias, eu me veria obrigado a lhe servir de tapume.

Mas isso era justamente o que eu pretendia: fazê-lo definir sua posição, descobrindo seu jo­go na partida entabulada.

Então lhe disse:

- Não se preocupe. Tenho todo o tempo ne­cessário. E, além do mais, por que não acreditar em você? Precisamente meu ofício é remover todas as coisas desagradáveis, comuns aos ho­mens. Você diz que Duncan Malley era um chantagista. Isso significa que existe um motivo de chantagem. Ou talvez no seu caso não seja assim. Por isso você fez que o expulsassem, não é verdade? Ou foi, talvez, farol de sua parte? Vamos, continue explicando.

Ele asseverou:

- De acordo. Você é quem manda. Duncan Malley apresentou-se aqui há, aproximadamen­te, uns dois meses. Conseguiu que o recebesse, pois se mostrava insistente e misterioso. Não há ninguém que resista ao aviso de que alguém conhece um segredo, vital para si próprio. Foi isso que Duncan salientou. "Tinha uma infor­mação vital para mim." Então o recebi. Aqui mesmo, neste gabinete. Não sei se você o co­nheceu vivo. Era um sujeito grande, gordo, até certo ponto impressionante. Acho que havia sido um policial. Mal se viu em minha frente, ex­travasou seu saco de veneno.

Parou de repente. Ele gostava de efeitos tea­trais, já lhes disse.

Fiquei exultante:

- Vamos, diga logo, que é que Malley vendia?

- Segundo ele, Linda me enganava. E o nome de seu... digamos, seu amigo, era Mark Lon­don. Que lhe parece?

Aquilo não me impressionou. Sua linha de ataque estava clara. Não iria acusar-me aber­tamente. Limitar-se-ia a insinuar. Aquilo seria uma partida de xadrez de desenvolvimento lento.

Inclinei a cabeça como se o que acabava de dizer eu já tinha previsto e carecia de impor­tância. E eu disse então:

- Não se interrompa agora. Que foi que aconteceu, depois?

Vi que minha atitude o desconcertava por um momento. Não obstante, se lançara por um caminho de onde não mais podia recuar.

Continuou, portanto:

- Que diabo queria que eu fizesse? Não acre­ditei, absolutamente, em semelhante calúnia.. Linda e você! Caramba! Ninguém pode desconfiar dos amigos, não é verdade? E tão pouco da própria mulher. Linda não tem nenhum motivo para me enganar. Não creio que haja outra, mulher a quem o marido trate tão bem, quanto ela. Assim, eu disse a Duncan umas tantas coi­sas e o pus no olho-da-rua. Procurou tornar a ver-me novamente. Não o recebi. Nem sequer quando disse à minha secretária que tinha umas fotografias capazes de me fazer saltar come se me tivessem aplicado um ferro quente no peito. Não tornei a vê-lo.

Terminou bruscamente. Havia soltado a sua história. E eu podia acreditar ou não.

Em qualquer caso, Lim supunha achar-se na posse da chave-mestra capaz de manter-me pri­sioneiro de sua vontade.

Acendi um cigarro. Por seu lado, Lim não tinha esse vício. Os homens como ele desdenham as pequenas satisfações, perseguindo objetivos de maior envergadura.

Deixei sair uma voluta de fumaça. Senti que seus nervos estavam refreados, que se mantinha em expectativa, esperando ver a maneira pela qual eu reagiria.

Falei depois de breves instantes:

- Bem, Lim. Há neste caso aspectos muito variados. Observe: Malley não só tentou es­premê-lo, como até o conseguiu no caso de Lin­da. Com você, fracassou. Tinha de ser assim. Um chantagista jamais tem êxito quando en­frenta um homem de nervos bem equilibrados, de vida exemplar...

Fiz uma pausa, sublinhando a última frase. Vi que Lim se contraía sob o impulso da raiva. Continuei:

-...As mulheres são mais impressionáveis. Esse sujeito sabia jogar muito bem com suas cartas. Atemorizou Linda, fazendo-lhe ver que poderia enredá-lo, contando-lhe uma história acerca de minhas supostas relações com ela. Pode ser até que lhe mostrara alguma dessas fotografias de que você falou. É fácil fazer composições fotográficas capazes de enganar um perito. Observe bem. Tudo isto eu soube mais tarde, quando Linda decidiu recorrer a mim. Não me disse a verdade, entende? As mulheres gostam de mostrar-se misteriosas, ainda nos ca­sos em que arriscam a felicidade ou a própria vida. Precisam alimentar seu fundo de romantismo e são capazes de complicar a coisa mais simples. Ela apenas me comunicou que Malley a incomodava, que recorria a mim por ser seu amigo e, além do mais, agente da lei. Imaginei que talvez existisse um motivo real para a chantagem. Então procurei Malley.

Lim continuou impassível. E o único sinal de impaciência que pude observar nele era que dava voltas continuamente a um abre-cartas de ouro, com a forma de Mercúrio.

Finalizei:

- ...Cheguei tarde, Lim. Alguém lhe dera, antecipadamente, um passaporte para o outro mundo. E, o que é pior, Linda me disse que lhe haviam roubado o carro, onde estavam suas jóias. Suspeitava de Malley. Encontrei, a um só tempo, Malley e o carro. O chantagista es­tava morto, no interior do veículo. Mas o co-frezinho de jóias havia desaparecido.

Um intervalo bastante longo. Agora Lim olhava a revolvida superfície de sua mesa de gabinete. Parecia concentrado em pensamentos profundos.

Por fim, sem levantar a cabeça, inquiriu:

- Que o fez vir aqui, Mark? Acredita, acaso, que eu ou Linda tenhamos algo que ver com a morte desse homem? Se for assim, você deve estar louco. Um chantagista não tem apenas uma ou duas vítimas. Trabalha com uma extensa rede. Procure outros caminhos trilhados por Malley e é certo que encontrará o assassino. Mas existe ainda outra possibilidade: que seja você mesmo que o tenha matado. Se for certo que você se entendia com Linda... Bem, não creio que uma coisa dessa lhe favorecesse mui­to... não é verdade?

Inclinei a cabeça, assentindo. Manifestei, de­pois:

- Por certo que não. Mas isso não me im­pedirá de seguir a pista do homem ou da mulher que matou Duncan Malley. É certo que há cri­mes que até merecem prêmios. Mas não se pode estabelecer tal norma. Se assim fosse, as ruas de todas as cidades do planeta estariam juncadas de cadáveres. Porque os patifes, Lim, são incontáveis, neste mundo.

 

Dinamizei o equipamento técnico do FBI precisava conhecer, minuciosamente, cada um dos movimentos dos diferentes perso­nagens do drama.

Não foi difícil encher o escritório de Lim de microfones, câmaras de televisão microscópicas, fitas gravadoras, máquinas fotográficas... Vá­rios homens do Federal Bureau of Investigations se misturaram aos empregados da Derby & Son e cumpriram sua tarefa à perfeição.

Com referência a Linda, também não houve dificuldade. Tirei-a de casa durante o tempo em que a equipe de técnicos lá esteve trabalhando. Não foi uma entrevista agradável, por certo. A sombra de Duncan Malley havia obscurecido por completo nossas relações.

O escritório de Donovan também foi objeto de nossa atenção... E começou a vigilância.

De quando em quando, eu me avistava com Bella. Em parte para ouvir seus informes e em parte porque eu estava enamorado dela. Por sua vez, a moca correspondia.

O primeiro lance do jogo foi dado por Dono­van. Uma chamada de Bella me informara:

- Ouça, Mark. Donovan se entrevistará com Derby esta noite. Em nosso escritório.

- Obrigado, beleza. Vê-la-ei mais tarde.

Havíamos centralizado o posto de escuta nu­ma sala situada no mesmo andar do de Dono­van. Encaminhei-me para lá sem perda de tempo.

Antigamente, era preciso uma caravana para executar uma façanha dessa. Agora, limitei-me a pôr em marcha um dos gravadores e escutar.

A colheita de informações era parca mas substanciosa. Ouvi a conversa telefônica que Lim e Donovan trocaram.

Primeiro, a voz fria, sem matizes, de Lim:

- Que anda procurando, Donovan? Já lhe disse, mais de uma vez, que me recuso a man­ter contato com você. Farei com que...

- Não me fale nesse tom, Derby! Tenho-o nas mãos. Sei que se entrevistou com Duncan na noite em que o mataram. Meu sócio tinha algo para você. E, além do mais, não pense que as fotografias que você sabe, se tenham perdido. Tenho-as eu, Derby. Terá de soltar um monte de guita, se quiser...

- Está bem, Donovan, irei vê-lo esta noite, em seu escritório. Discutiremos as condições.

Um "clic" seco e o zumbido do gravador.

Consultei meu relógio. Eram dez horas. Lim não tardaria a chegar, para a sua entrevista com Donovan.

Conectei a câmara de televisão. A tela se iluminou e pude ver o interior do escritório de Donovan. Ele estava só.

Parecia nervoso. Fumava continuamente. Ain­da se viam em seu rosto os sinais das "carícias" que eu lhe fizera.

Pouco mais tarde, ressoaram umas batidazinhas na porta de entrada. Donovan alteou-a

- Entre!

Lim entrou. Não havia perdido nada de sua frieza. Era quase impossível notar que aquele era um momento crítico para ele.

Como de seu costume, foi direto ao assunto. Inquiriu:

- Que diabo está tentando, Donovan? Antes de continuar quero que saiba: sou um péssimo inimigo. Agora, pode falar.

Donovan parecia impressionado. E era lógico que assim fosse. Lim Derby era uma potência. Enfrentá-lo requeria coragem a toda prova.

O bandido murmurou:

- Não penso em ser inflexível, senhor Der­by. Sei até onde posso chegar. Eu me conten­tarei com uma parte do melão. Quero dizer que preciso de dinheiro.. Será por uma só vez. Por­tanto ... Bem, não me esqueço do que aconte­ceu com Dunean.

Observei a reação de Lim, atentamente. Cra­vou o olhar em Donovan e exclamou:

- Que quer dizer com isso, Donovan? O outro se apressou em dizer:

- Nada... nada, por certo. Somente que não desejaria enganar-me. Isso é tudo.

Lim pareceu conformar-se com aquelas pala­vras. Mudou de assunto. Inquiriu:

- Quero ver se é certo que tem essas foto­grafias, Donovan. E, naturalmente, pagarei... se me entregar os negativos e todas as cópias obtidas...

Inclinou-se para a frente. Em seu rosto, pela primeira vez, plasmou-se uma expressão de maldade que até a mim impressionou.

Continuou dizendo:

- ...E não se engane. Você pensa que me tem irremediavelmente nas mãos. De certo mo­do, isso é exato. Mas, por sua vez, também está comprometido. É possível que conseguirá arrui­nar-me. Mas, antes, eu o enviarei ao inferno, entendido?

Donovan nada disse. Abriu a gaveta central de sua mesa de trabalho.

Tirou um pacote. Entregou-o a Lim que de­sembrulhou. Era uma série de fotografias.

Manobrei os comandos de televisão para en­focar diretamente os pequenos retângulos de cartolina que Lim observava.

Pude examiná-los ao mesmo tempo que ele. Não me admirei que nada tinham a ver comigo nem com Linda.

Eram fotos em que Lim aparecia em compa­nhia de uma loura estupenda, que logo reconhe­ci. Tratava-se de Olga Wolboda. Em várias de­las aparecia um outro homem. Quase dei um salto ao verificar que era o doutor Ivanoff, de quem se suspeitava pudesse ser o chefe de uma organização de espionagem.

Perguntarão que importância podia ter o fato de Lim lidar com aquelas pessoas, do ponto de vista da segurança nacional.

Explicarei: o Governo dos Estados Unidos confia seus programas de construção de novos engenhos, tanto para uso civil quanto militar, às empresas privadas.

A Derby & Son, precisamente, trabalhava, en­tão, e sempre o fizera, nas novas técnicas de lançamento de mísseis, por meio de submarinos. Os "Polaris", por exemplo.

O desenvolvimento dessas novas armas é um assunto que afeta, portanto, a segurança nacio­nal. Se Ivanoff, através de Olga Woldoba, havia conseguido informações secretas de Derby, isso provocaria um escândalo de proporções imensas. Naturalmente,  supondo  que  existisse  a  orga­nização de espionagem de que se suspeitava. Ouvi a voz de Lim:

- Onde estão os negativos? Donovan grasnou:

- Primeiro a guita, Derby. Depois lhe entre­garei todo o material e desaparecerei tão rápido quanto um foguete. Não voltará a ouvir falar de mim, isso eu lhe garanto.

Lim asseverou então:

- Suponho que não quererá um cheque, não é verdade?

- Isso mesmo. "Papiros" verdes. Cem mil amarrados. É esse meu preço.

Lim não vacilou. Disse, apenas:

- De acordo. Amanhã, a essa mesma hora, voltarei. Trarei o dinheiro. Tenha tudo prepa­rado.

Sem dizer mais nada, Lim se retirou. Durante alguns instantes contemplei a imagem de um Donovan ao mesmo tempo satisfeito e preocupa­do. Sem dúvida, temia Lim Derby, embora o negócio fosse bastante produtivo para compen­sar aquele temor.

De repente, seu olhar se fixou na negra si­lhueta do aparelho telefônico que estava sobre a mesa, à sua esquerda.

Tive o pressentimento de que a sorte me ia bafejar. Se aquele patife se pusesse em comuni­cação com Linda...

Levantou o fone. Discou um número. Embora não pudesse ver qual fosse, pela posição de seus dedos deduzi que se tratava do de Linda.

Pus então em funcionamento outro dos enge­nhos que o departamento técnico do FBI havia montado.

Tratava-se de um pequeno aparelho de televi­são que conectava a imagem de quem quer que falasse por telefone com o escritório de Donovan.

A campainha soou várias vezes antes que atendessem. Depois, produziu-se o clic caracterís­tico. E na tela, gêmea daquela onde se refletia a imagem de Donovan, apareceu o rosto mara­vilhoso de Linda.

Ouvi sua voz: - Alô? Quem fala?

Talvez fosse pura imaginação, mas me pareceu que esperava a resposta com medo, como se soubesse que ia ouvir notícias desagradáveis.

Donovan:

- Olá, beleza. Sou Fred Donovan. Não está gostando de ouvir de novo minha doce voz?

Linda exclamou, preocupada:

- Donovan! Que... que quer de mim?

A voz do chantagista assumiu um tom metálico, ao dizer:

- Vamos, pequena. Não se faça de tola. Sabe muito bem o que quero. "Guita", compreende? "Papiros" de mil, se isso lhe for mais claro. O fato de meu sócio Ducean Malley estar em outro "bairro" não significa que você tenha acabado de pagar, entendido?

Houve um silêncio. Se Donovan tivesse então visto o rosto de Linda como eu, certamente te­ria renunciado a prosseguir no "negócio". A morte se retratava ferozmente nele.

Por fim, Linda inquiriu:

- Que pretende, coiote asqueroso? Não pode assustar-me. Paguei tudo que aquele porco do Malley quis. Consegui as provas. Não soltarei nem mais um centavo.

- Há, há! - riu Donovan. - Nunca pensei que você fosse tão imbecil, beleza. Duncan a levou no beiço. Acaso você não sabe que se pode tirar de uma fotografia quantas cópias sejam ne­cessárias? Malley manejava a máquina como um artista. E também os fixadores e reveladores. De minha parte, conheço a técnica quase tão bem quanto um profissional. Quer ver publicadas na imprensa suas exibições particulares de "streep-tease"?

Jamais pensei que uma bela mulher pudesse transformar-se num monstro, como Linda se transformou.

Donovan prosseguia:

- Você já contou uma bonita história a esse idiota do London. Suas cartas de amor! Se ele pudesse ver algo do que eu tenho reservado, pensaria estar na lua. Você acaso gostaria que isso acontecesse?

Silêncio.

Linda devia achar-se tão a gosto como se es­tivesse sentada sobre brasas. Donovan rugiu:

- Vamos, fale de uma vez. Que resolve? Com um fio de voz, Linda murmurou:

- Quanto?

A resposta de Donovan veio sem vacilações. Informou:

- Não quero enganá-la. Penso tirar um bom bocado, já que será o último. E essa vez é para valer. E quando tiver a grana em meu poder, sairei do país como um foguete. Quero cinquen­ta das grandes. Em notas que não estejam em série, entende?

Linda não pareceu admirar-se. Disse apenas:

- Não poderei ter esse dinheiro senão amanhã. Donovan se mostrou generoso.

- Ora! Que importa isso? Amanhã está bem. Irei recolhê-lo pessoalmente, beleza. Será sem­pre um prazer vê-la. Há poucas mulheres tão maravilhosas. De fato. Tenho passado muitas noites de vigília contemplando seus encantos. É pena que você faça demonstrações quase públicas. Há uma fotografia sua, tomada no "Club dos 70", capaz de fazer louco um comando de frios britânicos, dando como exemplo sujeitos pouco inflamados. Se não fosse por isso...

Linda desligou. E Donovan também o fez, contemplando o fone com um sorriso canalha.

Eu, por minha vez, desconectei. As telas se apagaram. Uma obscuridade semelhante fez-se em minha mente.

Apesar de meu contato diário com o que havia de pior, sempre existia alguém capaz de me surpreender com seus atos.

Com esforço, obriguei-me a manter o cérebro desanuviado. Saí dali.

Agora iria entrevistar-me com Donovan, obser­vá-lo de perto, não através da imagem delineada da televisão.

 

Procedi da mesma maneira que na visita an­terior. Porque, como então, a porta estava aberta.

Donovan estava só, dessa vez. Seus olhos se abriram, enormes, ao ver-me aparecer e refle­tiam uma expressão de pânico.

Entretanto, uma vez mais demonstrou audá­cia. Suas mãos desapareceram debaixo da mesa. Notei que abria a gaveta do centro. Não espe­rei mais. Tenho suficiente experiência para sa­ber que é melhor antecipar-se e verificar depois que se enganou do que esperar e dar de cara com um revólver.

Meu 38 espetou, num segundo, o estômago de Donovan. Adverti-o:

- Deixe as mãos quietinhas, abutre! Eu não gostaria de chumbar-lhe as tripas!

Imobilizou-se. Ordenei, então;

- Ponha as patas dianteiras na mesa, Dono­van. Já!

Obedeceu. Uma expressão de intenso ódio fulgurava em suas pupilas. Deixou escapar um uivo de raiva:

- Maldito pé-chato! Que procura agora? Aproximei-me ainda mais. Parecia fascinado, acometido de paralisia. De novo observei um brilho de medo em suas pupilas. Parei a curta distância. Apenas a mesa do gabinete nos separava. Ordenei:

- Saia daí, pilantra! E não tente qualquer golpe, a menos que pretenda suicidar-se.

Moveu-se lentamente. Observei grossas gotas de suor deslizando em sua testa, embora a noite fosse bem mais fria.

Ficou de costas para a janela que dava para a Broadway. Um anúncio de massa de sopa lançava seus lampejos intermitentes, vermelhos, azuis e brancos, para o interior do escritório.

Cheguei-me até à mesa. A gaveta central es­tava aberta. Puxei-a.

Donovan falou entre dentes:

- Não toque em nada daí, maldito pé-chato! Isso lhe custará caro...

Era a primeira vez que me chamavam pé-chato. Geralmente, tal apelido é dado aos ho­mens da Metropolitana, mais precisamente aos patrulheiros, por causa das intermináveis horas de serviço que devem prestar na rua, perambulando de um lado a outro, desejando a todo momento chegar em casa para trocar de sapa­to ou deitar-se, o que é preferível.

- Vou dar-lhe um conselho, mocinho. Não faça com que eu me aborreça. Se isso acontecer, você pensará que um rolo-compressor lhe pas­sou por cima.

Guardei a 38, havia pedido a meu alfaiate que me preparasse um coldre apropriado para ele, no bolso da direita, uma espécie de caixa for­rada de pele.

Não façam caso desses teóricos que afirmam ser o coldre de axila o mais cômodo. Não é exato.

O cinema tem popularizado uma série de coi­sas falsas e absurdas. Uma delas é essa do col­dre subaxial. Nem um só dos grandes gangsters do passado, nem tão pouco os de agora, consi­dera isso eficiente.

Durante um breve instante desviei a vista de Donovan para o interior da gaveta. Lá estava o envelope, contendo as fotografias que transfor­maram Lim Derby num manso cordeiro. Jul­guei, pelo tamanho, que devia existir algum outro documento.

Donovan se transformou numa fera. Deu um salto em minha direção, por cima da mesa. Desviei-me para um lado, mas apesar disso nos­sos corpos se chocaram como duas balas de canhão em plena trajetória.

Rodamos em direções opostas. Levantei-me um segundo antes que Donovan o fizesse.

Podia tê-lo fuzilado então, com prazer. Mas não gosto de atirar num homem desarmado. Então, resolvi lutar.

Donovan, por sua vez, não me deu tempo de pensar muito. Para ele, a partida terminaria naquela jogada. Se falhasse, não só perderia o dinheiro, que já tinha ao alcance da mão, como ainda se veria privado da liberdade.

Recebi-o com um direto no queixo que o fez estancar em seco. Seguidamente, lancei meus dois punhos procurando seu corpo.

Esquivou-se muito bem. Por sua vez, cruzou o punho direito e me alcançou no olho, fazendo-me ver, literalmente, as estrelas.

Agarrei-o pelo punho, numa chave de judô. Mas Donovan já havia experimentado antes meus conhecimentos nessa classe de técnica e já a conhecia bastante para evitá-la.

Quando o conseguiu, avançou para mim e en­dereçou-me um de seus joelhos ao ventre. Ami­gos, se nunca experimentaram semelhante ca-rícia, não sabem o que é dor.

Tem-se a impressão de que algum animal sel­vagem e raivoso cravou seus dentes na própria carne. Os músculos afrouxam e se perde o moral de luta.

Saber que aquilo significava a morte e meu treinamento como faixa-preta de judô vieram em meu auxílio.

Deixei-me cair ao chão e rolei até um canto. Donovan me seguiu como uma sombra. Mas aqueles segundos bastaram para recuperar-me. Quando toquei a parede fiquei em pé. Donovan procurava acertar-me um pontapé no peito.

Desviei-me para um lado, na conta. Seu sa­pato golpeou a parede. Com o canto da mão direita, atingi, na junção do pescoço com a cabeça, meu adversário.

É um golpe quase mortal. Um gemido irrom­peu do peito do chantagista. Seu corpo se en­colheu com a contração dos nervos paralisados.

Foi simples acabar com ele. Encaixei um gan­cho de esquerda, seguido de um golpe de co­tovelo, invenção minha. Abateu-se como um por­co no matadouro.

Durante alguns instantes permaneci ofegante, sentindo dor pelo corpo todo. O olho direito e o ventre, sobretudo, eram os focos de irradiação.

Por fim convenci-me de que de nada valia ter pena de mim mesmo. A dor não se iria acal­mar por imobilidade. Então resolvi voltar à baila.

Tirei o envelope da gaveta e abri. Várias de­zenas de fotografias apareceram. Fui olhando lentamente. O assombro e o nojo iam aos poucos me invadindo.

Aquilo seria uma bomba se fosse publicado! Não se tratava apenas de Lim Derby e sua mu­lher. Havia outro material altamente explosivo.

No que se referia a Linda, eu jamais teria po­dido imaginar nada parecido, nem mesmo em sonhos.

Umas cinco fotografias dela. Só e acompanha­da. Em trajes de Eva ou semi-nua. Os tipos com que aparecia retratada tinham sempre em co­mum a aparência sirniesca.

Lim também estava profusamente represen­tado. Junto dele se achava Olga Woldoba, uma fêmea maravilhosa, que lhe sorria numa espé­cie de êxtase e adoração.

Mas havia duas delas que certamente obri­gavam Lim a ser conciliador com os chanta­gistas. Numa, Lim aparecia com o doutor Ivanoff. Devia tratar-se de um banquete, pois estavam sentados a uma longa mesa e havia muitos outros convidados. Lim e Ivanoff mos­travam-se amistosos e alegres.

Ao pé da fotografia, alguém, Malley talvez, havia escrito: "Memorial Day. Lim recebeu hoje um cheque de Ivanoff, no Valor de um milhão de dólares."

A outra mostrava Lim e o doutor saindo de uma casa. Embora procurassem ocultar a ca­beça, eram facilmente reconhecíveis.

O mesmo punho que anotara na foto anterior, escrevera agora: "Beaver Street 11. Mora aqui a amante de Solsky, o adido militar russo. Faz uma semana, concluíram com êxito as provas do sistema de direção do míssil Glider II. Derby & Son estavam encarregados da fabricação. Lim Derby recebeu outro cheque de Ivanoff."

Continuei o exame do material de "trabalho" de Donovan e Malley. Um profundo estupor ia se apoderando de mim.

Parecia impossível que tudo aquilo fosse cer­to. E, sobretudo, que a C.I.A, a que correspon­dem as tarefas de informações deste país, nada houvesse descoberto a respeito. Claro que os fracassos da Central Investigations Agency, em vários casos, não muito distantes, justificavam semelhante ignorância.

Se não foram capazes de coordenar um plano inteligente em relação à invasão de Cuba, tendo todas as vantagens de seu lado, parecia nor­mal que, enfrentando autênticos profissionais da espionagem, fracassassem redondamente.

Vi dezenas de personalidades das ciências, das finanças, da arte e da política, em atitudes com­prometedoras, umas de caráter político, outras pessoais, mais ou menos como as de Linda.

Imaginei que, do ponto de vista de um chan­tagista, aquilo valeria milhões. E também que a morte de Malley havia tardado em demasia.

Qualquer um dos que ali estavam comprome­tidos teria liquidado o bandido há muito tempo.

Tornei a repassar as fotografias. Pouco a pouco, apoderou-se de mim uma sensação de irrealidade. Como podia ser possível tal fracasso dos serviços de inteligência do país, por pouco eficientes que fossem? E, na verdade, a C.I.A. não trabalhava mal.

Por outro lado, havia o fato de o FBI também intervir no assunto. Os homens encarregados de vigiar Ivanoff e Woldoba eram magníficos agentes, de comprovada habilidade, capazes de seguir a pista de uma formiga nas areias do deserto.

Concluí que aquilo precisava de esclarecimen­to. Poderia admitir-se uma falha. Era possível que Lim Derby houvesse escorrido através das malhas da rede de vigilância estabelecida em torno do biólogo russo. Linda, por sua vez, era um caso especial, assim como os daqueles que pagavam ou pagariam chantagem por causa de suas inclinações mais ou menos hedonistas.

Mas os personagens implicados na questão de segurança nacional, forçosamente deviam ter sido descobertos. Por conseqüência, havia um erro de perspectiva^ no quadro que eu contem­plava.

Olhei para o ponto onde Donovan jazia, ainda inconsciente. Ninguém melhor do que ele pode­ria aclarar-me as dúvidas. E o faria, ainda que tivesse de submetê-lo a torturas.

Começava a alegrar-me cada vez mais, por entrar naquele caso de maneira pouco formal, mais como pessoa do que como agente do FBI. Porque isso me permitiria certas liberdades que estariam fora de nosso alcance nas investiga­ções oficiais.

Aproximei-me de Donovan. Continuava sem sentidos, mas sua respiração era tranquila, como se estivesse dormindo.

Inspecionei o escritório. Uma pequena porta, situada à direita da de entrada, dava para o ba­nheiro.

Arrastei para lá o chantagista. Coloquei-o de­baixo da torneira. Abri-a e mantive Donovan sob o jorro da água, fazendo com que ela caísse em sua nuca.

Não tardou a espernear e ofegar, como um peixe fora d'água. Mantive-o assim ainda algum tempo. Começou a lançar pragas e gemidos. Com admiração, notei que a voz lhe saía com uma espécie de trêmulos femininos, como se de re­pente sua integridade viril houvesse dado lugar a seu verdadeiro caráter.

Arrastei-o de novo para o gabinete. Continua­va chiando, mas não tentava a menor resistên­cia. Era um boneco em minhas mãos.

Utilizei meu cinto e o dele para atar-lhe as mãos e os pés. Depois, tirei-lhe os sapatos e as meias. Submetia-se a tudo sem protestar.

Naturalmente, o golpe que eu lhe havia apli­cado, momentos antes, justificava perfeitamente aquela atitude, porque afeta principalmente os centros motores nervosos.

Não obstante, ao ver que eu desarmava o soquete da lâmpada de mesa e deixava os fios a descoberto, balbuciou:

- Meus Deus! Que... que vai fazer? Ficou louco?

Encolhi os ombros e expliquei:

- Eu acho que sim, poltrão. Qualquer um teria perdido a razão vendo o que há nesse en­velope. É possível que, com a falta de inteligên­cia própria de todos os criminosos, você não te­nha notado. Mas seria melhor guardar uma bom­ba atômica do que semelhante material. Há aí explosivo suficiente para fazer voar meia cidade.

Levei-o a um ponto onde ficasse perto do fio da soquete que acabava de desarmar. Falei de novo:

- ...Fiquei tão louco que vou aplicar-lhe uma corrente elétrica entre as unhas dos pés a fim de que você me explique tudo isso. Porque supo­nho que tentará resistir, que não quererá colabo­rar sem que antes tenha de convencê-lo para que o faça, não?

Estremeceu convulsivamente. O suor começou a deslizar pelo seu rosto em bátegas. E seus olhos se empanaram de lágrimas. Com uma vozinha afogada, gemeu:

- Oh, meu Deus! Não faça isso! Você é um homem branco, não um selvagem. Deixe-me! Não sei de nada! Não sei de nada!

Tomei o fio nas mãos. Aproximei-o dele. Um grito histérico saiu-lhe do peito. De fato, amigos. Começou a chorar como uma mulherzinha. Desde o princípio me havia pare­cido que era um tipo equívoco. Possuía, sem dú­vida, uma capa de rudeza. Mas, diante de uma decisão fria como a que eu demonstrava, sua au­têntica debilidade moral reaparecia.

Senti náuseas. Tinha mais uma vez a prova de que os marginais, os que se colocam do outro lado da barreira da lei, são sempre covardes. E muitos deles invertidos sexuais.

Em geral, aceita-se o pressuposto da fraqueza moral desses indivíduos. Existe, certamente, mas não no grau que se imagina.

São débeis quanto à própria pessoa, incapazes de resistir à dor, quando se vêem em situação crítica.

Mas, intrinsecamente, o fundo de sua personali­dade é cruel, insano. Não lhes importam nada os sofrimentos alheios. Acho até que se comprazem fazendo o mal. Dessa madeira é que saem os verdugos e os tiranos.

Pressionei-o:

- Miserável, homem de meia-tijela! Pare de se lastimar como uma velha! Você tem em suas mãos a possibilidade de fugir às carícias que tanto o apavoram. Solte a língua e fale! Do con­trário. ..

Ele sentiu que minhas palavras não eram sim­ples ameaça, e que eu estava pronto para come­çar o baile.

Por fim, cedeu e gritou:

- Falarei! Direi tudo que você quiser! Mas afaste isso de mim! Não posso suportá-lo!

- Está bem. Comece a destilar o veneno. Silenciou uns instantes para recobrar alento.

Depois disse:

- Que é que quer saber, London? Não com­preendo. ..

Atalhei-o:

- Comece do princípio, homem de fancaria. Quero saber tudo que se refere as essas fotogra­fias. Suspeito que haja algum truque nessa su­jeira. Vamos, adiante.

Ele explicou:

- Foi idéia de Dunean. Eu não fiz mais do que tentar aproveitar-me dela. Tudo começou quando êle descobriu os manejos de Lim Derby e esse russo, o doutor Ivanoff. De alguma ma­neira conseguira provas de que Derby estava vendendo material técnico secreto aos russos. Inclusive, conseguira fotografias dele. Isso acon­teceu ao vir Derby a este escritório, pretendendo que obtivéssemos provas suficientes acerca da vida de sua mulher, pois queria divorciar-se dela. A coisa não foi difícil. Linda é uma hetaira, louca por homens, e não se recaia o bastante. Mas Duncan dedicou também ao marido a sua atenção. Quem tinha o dinheiro era ele. Se, en­quanto fizéssemos o trabalho, conseguíssemos detê-lo em nossas mãos, o negócio ia ser estupendo. E, mal começamos a investigar, descobrimos a traição de Derby...

Silenciou alguns instantes. Notei que pouco a pouco recobrava a confiança em si mesmo. E que ao contar seus repugnantes manejos van­gloriava-se, de certo modo, deles.

Não me admirei disso. A vaidade é coisa comum entre os criminosos. Mais de uma vez vi coisa parecida. Assassinos que contam seus crimes como se se tratasse de obra de arte, ladrões que se envaidecem de sua habilidade, homossexuais que buscam fazer uso de seus ademanes até com os  policiais  encarregados  de  interrogá-los.

- ... Foi como encontrar uma mina de dia­mantes ...

A desilusão se transformava em fel, no meu paladar. Eu aprendi que jamais chegamos a co­nhecer nossos semelhantes, particularmente as mulheres.

À parte o fato de que o sentimento que me unira a Linda fora puramente material, atração de seu fascinante corpo de mulher, vivera com­pletamente iludido sobre seu caráter. Sabia que era egoísta, brutal às vezes, quando imaginava em perigo seus interesses. Mas nunca cheguei a suspeitar o abismo de degradação que as pala­vras de Donovan revelavam.

O chantagista continuou:

- ...Duncan viu então uma nova derivação para o negócio. Notou que era possível fazer pressão sobre qualquer um, se se pudesse assus­tar para dobrá-lo. Não eram necessárias provas autênticas de verdadeiros delitos. Bastava fabri­cá-las. Todos os homens e mulheres, sobretudo se ocupam posição proeminente, temem mais do que tudo o escândalo.

O que Donovan dizia agora atraiu minha aten­ção, fazendo-me esquecer os aspectos pessoais do caso.

- ... Duncan era um fotógrafo hábil. Não lhe foi difícil fazer uma série de montagens fotográ­ficas de personalidades conhecidas, apresentando-as em situações capazes de arrasar qualquer repu­tação. Percebeu, London? Mesmo sendo mentira, a publicação de uma foto dessa espécie sempre deixa algo de tenebroso. Por isso, muitos paga­vam. Outros, mais corajosos, ofereciam resistên­cia a Duncan, embora sem denunciá-lo às auto­ridades. Essa gente prefere resolver certos casos de maneira pessoal. Assim, evitam-se os mexeri­cos e suspeitas dos outros. Isso atualmente é mui­to simples.

Deixei de escutá-lo. Tinha razão. Conseguimos acabar com a autoconfiança das pessoas. O medo e a suspeita se instalavam em nós.

Há no mundo um vasto campo de ação para os amorais e os bandidos. Sempre houve. Mas nun­ca tanto como agora.

Donovan encerrou o seu discurso. Cravei nele os meus olhos resolutos e não tive papas na lín­gua:

- Bem, sobejo de gente, você se livrou de coisa muito desagradável. Mas não pense que escapará das grades. Isso, não! Farei tudo que estiver ao meu alcance para que você passe guardado o maior tempo possível. Ê o que prometo. E não costumo faltar.

Dirigi-me ao telefone. Precisava deixar aquele sujeito sob custódia. De minha parte, devia cuidar ainda de outras providências.

Ao pensar nisso, senti náuseas. Iria remover um depósito de água pútridas.

Amassa escura do edifício "Cristal" se erguia na silenciosa First Avenue, semelhante a uma singular montanha de contornos cúbi­cos.

O inspetor Carlton murmurou junto de mim:

- Ouça, Vermelhão, eu deveria ir com você. Tem tido muita sorte até agora, mas não se deve brincar com a morte, constantemente. Der­by sabe que você vai vê-lo. É um homem em de­sespero. E Linda, que sabe o que arrisca na partida, não ignora que não o enganou. Pretende, por acaso, suicidar-se?

Saí do carro, dizendo:

- Nada disso, Velho Urso. Mas há coisas que só podem ser resolvidas pessoalmente.

Apontei para o arranha-céu e prossegui:

- Aí dentro estão duas pessoas, que, sem querer, devo arruinar. Ela me iludiu, sem dúvi­da alguma, mas, quem pode dizer onde termina a ilusão e onde começa alguém a querer ignorar as coisas? Quanto a Lim... Bem, durante muito tempo considerei-me um miserável em enganá-lo. Em certo sentido, devo-lhe uma reparação... É um traidor e pagará pelo seu crime. Mas quero fazê-lo à minha maneira.

Os largos ombros de Carlton se encolheram, filosoficamente.  Ouvi-o  murmurar:

- Bem, não estou entendendo nada do que diz. Vocês, os rapazes que estudaram, vivem cheios de idéias esquisitas. Não obstante, você pode agir à vontade. O campo é seu.

O Velho Urso era assim. Claro que conhecia minhas razões, mas não ia dar o braço a torcer, compreendem? É uma espécie de vaidade de homem rude, plasmada nas piores circunstâncias.

O edifício estava deserto, em semi-escuridão. A atividade e as luzes que reinavam ali durante o dia deram lugar ao silêncio e à tranquilidade.

Subi as escadas até o primeiro andar. O imen­so recinto, dividido por anteparos, que era o coração do império de Lim Derby, parecia povoa­do por uma legião de monstros estranhos, mesas, máquinas de escrever, calculadoras, arquivos, de onde emanava uma energia hostil e ameaçadora.

Segui até o escritório de Lim. A porta ficara aberta. Um retângulo de luz de "néon" filtrava-se pelos vidros.

Não tratei de amortecer meus passos. Teria sido fácil, já que o pavimento era uma dessas coisas modernas, resvaladiças e assépticas.

Mas de que serviria isso? O homem e a mu­lher que lá me aguardavam nada fariam contra, mim enquanto não tivessem a certeza de que suas mentiras foram descobertas. Aí, então...

Atravessei o umbral.

Lim estava de pé, perto da janela que dava para a First Avenue. Linda ocupava a pol­trona junto à mesa do gabinete. Ambos manti­nham os olhos fixos em mim.

Adiantei-me vários passos e parei no centro do salão. Não houve necessidade de palavras. Mal me viram, certificaram-se da verdade: o espetáculo havia terminado. O pano estava pres­tes a descer.

Foi Lim quem rompeu o silêncio:

- Salve, London! Sempre imaginei que acaba­ria sendo descoberto. Mas não julguei que seria você a fazê-lo. Você parecia muito entretido com Linda. Claro que a culpa foi minha. Cometi a hediondez de pretender livrar-me dela. Não per­cebi que, ao fazê-lo, estava cavando, com minhas próprias mãos, a sepultura em que seria enter­rado.

Tudo aqui assumia o aspecto fantástico de uma dessas pinturas surrealistas, em que as pessoas e as coisas aparecem diluídas numa at­mosfera de névoa e imprecisão.

E o efeito ainda aumentou com a intervenção de Linda. Falou também sem alterar-se, como se debatesse uma questão puramente acadêmica e não um caso de traição, sangue e chantagem.

- Você cometeu muitas idiotices, Lim. Mas a maior delas foi não me ter dado a liberdade quando eu pedi, aceitando as minhas condições. Era tudo uma questão de dinheiro. Você quis salvar as aparências, provar que era homem in­vencível, que ninguém poderia zombar de você nem vencê-lo, em nenhuma circunstância. Agora vai perder tudo. E eu também. Isso jamais es­quecerei.

Estive quase dando uma gargalhada, apesar do momento trágico que vivíamos. Era realmen­te engraçado que aquelas duas pessoas não com­preendessem o que iria acontecer. Talvez ima­ginassem que minha presença lhes serviria de ajuda e que eu os deixaria escapar.

Resolvi esclarecer as coisas, pondo os pingos nos ii:

- Acho melhor que se calem. Estão sendo insensatos, pelo menos. Vamos direto ao assunto. Estou aqui para prendê-lo, Lim. Você matou Duncan Malley. Sei que limpou a cidade de um verme repugnante, mas você terá de pagar por isso... E ainda mais, muito mais: você é um traidor, você foi abominável traindo este país, a nossa pátria. Pagará por isso, inapelavelmente. E quanto a você, Linda, você receberá o castigo mais indicado. Toda a sua vida, até aqui, tem sido conduzida a um objetivo único: dinheiro. Agora, se quiser alcançá-lo, terá de industrializar seus deleites com os homens. Você terá um ofício, sim, o mais antigo que se conhece: o da prosti­tuição.

Antes que Linda pudesse articular alguma coi­sa, uma débil gargalhada brotou da garganta de Lim:

- Você parece acreditar no que diz, Mark. E não o compreendo, já que sempre supus que fosse inteligente. Pensa que me vou deixar levar como um cordeirinho? Não. Isso você não conse­guirá nunca. Antes, terá de matar-me!

Senti que dizia a verdade. E vou confessar uma coisa: imaginei que seria essa a melhor solução. Porque há situações que só podem ser sanadas desaparecendo a causa que as origina.

Disse-lhe, então:

- A verdade é que eu não afastara semelhan­te possibilidade, Lim. Mas seria preciso acreditar que você, além de traidor, fosse um covarde. E ainda não estou convencido de que não seja as­sim. De qualquer modo, saberemos logo.

Com um rápido movimento, produto de longo treinamento, tirei meu revólver. Assestei-o na direção de Lim.

Convidei:

- Vamos, Lim! Venha comigo!

Um sorriso sem expressão abriu seus lábios. Lentamente, sem apressar-se, introduziu sua mão direita no bolso correspondente. Tirou-a de novo, empunhando um pistola.

Eu nada disse. Esperei que levantasse a arma, apontando-a para mim. Observei que o dedo in­dicador se encurvava sobre o gatilho pouco a pouco. Murmurei, então:

- Prefere assim, Lim? Ele respondeu, calmo:

- Sim.

Adiantei-me numa fração de segundo. Cravei-lhe uma bala na testa. Ouvi um projétil sibilar junto a meus ouvidos. E um grito de Linda.

O corpo de Lim saltou para o ar como uma mola subitamente libertada. Tornou a cair como um novelo, a cabeça entre os joelhos, em atitude semelhante à de um muçulmano em oração.

Sai dali sem olhar para Linda. Pensam que o que me aconteceu com essa doida serviu de li­ção? Se fôr assim, estão enganados.

Nenhum homem jamais aprende a manter-se afastado das mulheres. Elas são como um veneno, um droga maligna que se apodera da gente e à qual não é possível renunciar, embora saibamos todas as terríveis consequências a que nos expo­mos.

O Velho Urso me esperava à saída. Interro­gou-me com um olhar. E eu disse:

- Está tudo acabado, Velho Urso. Lim Derby morreu.

Inclinou a cabeça assentindo:

- Foi melhor assim.

Depois de uma pausa, perguntou:

- Que pensa fazer agora, Vermelhão? - Respondi com a maior naturalidade:

- Direto a um encontro com um bombom, Velho Urso! A vida deve continuar. E nós ho­mens temos o direito de nos enganar. É possível que eu torne a recorrer a você, em alguma outra ocasião. Isso não aconteceria se as mulheres desaparecessem de repente da face da terra, não é certo?

- Com os diabos! Você ficou louco, Vermelhão? Que faríamos sem elas? A vida seria mortal­mente enfadonha. Pode ser que, às vezes, sejam elas como o veneno... Mas, em outras, são a vida! Que tal se só desaparecessem as feias?

 

                                                                                             Herman Tellgon 

 

 

                      

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