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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Chave Secreta / W. W. Shols
Chave Secreta / W. W. Shols

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Chave Secreta

 

Para impedir Thora de penetrar na fortaleza de Vênus e estabelecer contato com Árcon, Perry Rhodan seguiu a arcônida, mas não se lembrou de que os novos destróieres espaciais ainda não estavam em condições de irradiar mensagens em código que pudessem atingir o cérebro positrônico da fortaleza.

Acontece que um robô nunca age irrefletidamente, guia-se apenas pela lógica; e é assim que, face à aproximação não anunciada de Thora e Rhodan, o comandante dos robôs da fortaleza de Vênus manipula a Chave Secreta X, que fecha hermeticamente o planeta...

 

                                          

 

— Nem que os senhores se arrebentem — disse Reginald Bell depois de uma discussão cansativa — não voltaremos à Terra. Continuaremos na órbita de Vênus que estamos percorrendo. Entendido?

O pequeno grupo de pessoas que se encontrava na sala de comando acenou com a cabeça. Nenhum deles demonstrou qualquer entusiasmo com a decisão aparentemente tresloucada de seu comandante. Conformaram-se, porque era Bell que dava as ordens. E todos os membros do Exército de Mutantes estavam conscientes de que mesmo uma ordem aparentemente absurda devia ser executada.

Bell desempenhava as funções de comandante interino do Exército de Mutantes de Perry Rhodan. Nesta posição não podia se dar ao luxo de cometer enganos.

E aqui tudo indicava que um engano fora cometido.

— Parece que alguma coisa não está certa — prosseguiu Bell em tom irritado. Seu indicador estendido fez alguns movimentos ameaçadores para baixo. — Quem serve ao chefe da Terceira Potência, quem prestou juramento perante Perry Rhodan, não pode abandoná-lo, por piores que estejam as coisas. Os senhores querem voltar para a Terra. E depois? Sabem perfeitamente que nosso chefe está praticamente só ali embaixo, na selva de Vênus...

Wuriu Sengu, um mutante baixote, mas largo e robusto, arriscou uma objeção:

— Okura deve estar com ele: provavelmente Marshall e Thora também estão.

— Thora saiu sozinha numa nave — interrompeu Bell. — Se é que teve alguma companhia, foi a de um robô. Rhodan, Marshall e Okura seguiram-na em outra nave. Desde que sabemos que aquele cérebro positrônico da fortaleza de Vênus ficou maluco e, com base na chave secreta X, programada por Rhodan, subitamente não mais reconhece seu mestre e senhor e o repele com todos os recursos técnicos de que dispõe, não estou convencido de que Perry e Thora estejam juntos. Tudo indica que as naves deles caíram, e os dois estão expostos aos perigos da selva de Vênus.

Sengu tentou dissipar o pessimismo de Bell:

— O chefe aludiu ao fato de que Thora, a arcônida, está bem.

— Para sermos exatos — insistiu Bell — o chefe disse muito pouco. Não teve tempo para maiores explicações. O contato pelo rádio foi interrompido em dois minutos, e até agora estamos tentando em vão estabelecer novo contato. O cérebro positrônico da fortaleza de Vênus, além de erigir uma barreira de quinhentos quilômetros, impede nosso pouso e não permite qualquer comunicação com as estações de rádio situadas na superfície do solo. De qualquer maneira, os pequenos emissores e receptores de pulso com que Rhodan se acha equipado estão fadados ao fracasso. Acredito que nem mesmo nosso potente emissor de bordo consiga romper a barreira. Uma vez ajustado para uma situação de defesa, o cérebro positrônico dá cumprimento cabal à sua tarefa. É um produto da técnica arcônida. Não esqueçam este detalhe.

O mutante Tanaka Seiko fez um gesto respeitoso com a cabeça.

— Já falamos sobre isto. E agora o senhor mesmo reconhece que somos impotentes. Por que vamos ficar nesta órbita se não podemos fazer nada por Rhodan?

Bell fez uma pausa. Seu olhar duro passou de um para outro dos interlocutores mas, por causa da cor dos seus olhos, não conseguia ser tão penetrante como ele desejaria para se dar um aspecto autoritário.

Ali estavam os melhores homens do seu grupo de elite. Eram mutantes selecionados entre os membros do exército secreto de Rhodan, todos eles nascidos nos primeiros anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Vinham das regiões de Hiroshima e Nagasaki, onde as primeiras bombas atômicas da história da Humanidade haviam causado muita desgraça. Mais uma vez, porém, a artimanha da seqüência grandiosa dos acontecimentos históricos fez com que também ali surgissem as exceções que confirmariam a regra. Depois de vários decênios, constatou-se que o inferno desencadeado com o lançamento das primeiras bombas atômicas sobre o Japão não trouxe apenas a desolação, a morte e a doença. Em alguns casos, explicáveis certamente com base nas leis da genética, houve pequenas modificações nas características hereditárias, que se processaram segundo as leis causais da evolução. Os filhos das pessoas que sofreram esse tipo de influência vieram ao mundo com dons parapsicológicos.

Havia, por exemplo, Tanaka Seiko, que possuía um sexto sentido que lhe permitia a recepção de ondas de rádio: e ainda o espia, que era Wuriu Sengu, um homem que não tinha a menor dificuldade em enxergar através da matéria compacta.

O olhar de Bell se fixou em Tako Kakuta.

— Estou me referindo a você, Tako. Não acha que o cérebro positrônico deixou de considerar um fato?

— Está aludindo à minha capacidade de teleportação?

— Isso mesmo. O cérebro positrônico da fortaleza de Vênus tem dez mil anos. Nem por isso vou afirmar que seja pré-histórico. Afinal, foi montado pelos membros de uma expedição arcônida cujos conhecimentos técnicos naquela época já eram muito mais avançados que os da Humanidade dos nossos dias. Acontece que há dez mil anos ainda não existiam no planeta Terra os mutantes dotados de capacidade parapsicológicas. Logo, a conclusão que se impõe é a de que este cérebro não tem capacidade de ser programado para a defesa contra um teleportador.

— Então quer que eu...

Tako Kakuta se interrompeu. Lançou um olhar assustado para a tela de imagem, regulada para captar a superfície de Vênus. Sob a esfera de sessenta metros de diâmetro formada pela nave Good Hope-V — conhecida no código de comunicações como girino número cinco — deslizava, como que em câmara lenta, a paisagem virgem e selvagem do planeta Vênus. Não se percebiam os detalhes. Só vez por outra a espessa camada de nuvens permitia a visão da superfície do planeta. Eram florestas verde-escuras, um mar azul-escuro, que por vezes chegava a jogar reflexos, e uma rocha marrom-acinzentada, que na região da calota polar era coberta de grossas camadas de neve. A imagem apresentada pela tela mostrava muito menos do que o teleportador via com os olhos da lembrança e da fantasia. Tako permanecera em Vênus por longas semanas. Sabia que ali um labirinto o aguardava.

— Isso mesmo — disse Bell em tom sério. — Quero que desça e entre em contato com Rhodan. Se conseguir encontrá-lo, o resto será brincadeira. Juntamente com o chefe somos uma equipe invencível. Além do mais, vamos conseguir o que pretendemos. Levaremos Rhodan à fortaleza pelo caminho mais rápido, para que possa dar novas instruções ao cérebro.

— Naturalmente — disse Sengu com um tom de otimismo na voz. — Por que a idéia não nos acudiu antes?

— Foi porque muitas vezes somos inclinados a considerar uma barreira energética arcônida como algo de perfeito e absoluto. O contato com a tecnologia arcônida nos transformou em animais guiados pelo instinto, que no subconsciente chegam a acreditar na perfeição. Prepare-se, Tako! É apenas um pulo: você conseguirá.

— A distância chega a ser ridícula. Há tempo vivo pensando num salto e já teria descido por conta própria se...

— Se?

— Se não fosse a selva. Já a conheço. Mesmo um teleportador pode se perder nela, se ficar desorientado. Além disso, a gente está sujeita a se encontrar com vermes antropófagos de todos os tipos, diante dos quais até mesmo a reação instantânea de fuga de um teleportador será inútil.

— Está com medo?

— Sempre sinto um pouco de medo quando tenho que descer diretamente para o inferno. Mas não é isto que importa. Lá embaixo deve haver vários homens que, a qualquer momento, têm de estar preparados para defender sua vida. Acontece que preciso de um objetivo definido. Enquanto não o tenho, posso me teleportar uma infinidade de vezes sem encontrar Rhodan.

— Deixe isso por minha conta. O cérebro positrônico de bordo armazenou todos os dados relativos à manobra. Também dispomos da localização goniométrica da última mensagem transmitida por Rhodan. Encontra-se exatamente a cento e vinte quilômetros a oeste do grande mar primitivo, situado na região norte do planeta. Mais exatamente, está a oeste do braço de mar de quase trezentos e cinqüenta quilômetros de largura que penetra profundamente no continente norte.

— Os dados ainda são muito vagos.

— Sei disso. Acontece que não disse que você vai saltar neste minuto.

Bell afastou o teleportador com um gesto violento e se aproximou do cérebro positrônico de bordo.

— Venham todos! Prestem atenção para que Tako e eu não cometamos qualquer engano. Ponho a mão no fogo se não conseguirmos determinar a posição de Rhodan com uma margem de erro não superior a quinhentos metros. Se não aterrisar nos braços do chefe, Tako, você terá que se dar ao incômodo de chamá-lo.

— Naturalmente.

A interpretação dos dados armazenados foi mais rápida do que se esperava. Os círculos gravados no cérebro reagiram prontamente. Na lâmina milimetrada do último estágio da interpretação ótica, surgiu a projeção de uma reprodução fotográfica da superfície de Vênus, baseada em medições anteriores.

O mais difícil foi a sintonização individual de Tako Kakuta diante do problema.

Sua mente tinha de realizar uma pontaria muito exata, e para isso precisava de uma concepção concreta do lugar que desejava atingir através da teleportação.

Em Vênus só podia contar com esse recurso em escala bastante limitada. Vista de cima, a selva parecia um tapete infinito, que numa concepção ligeira oferecia um milhão de pontos geográficos equivalentes.

— Enxugue o suor, rapaz. Eu lhe dou uma ajuda.

Poucos segundos depois a rede cartográfica foi introduzida no aparelho. Muito embora ela só representasse um recurso criado na mente, que não retratava qualquer realidade na superfície do planeta, ela se revelou de alguma utilidade.

— A orientação está excelente — disse Tako Kakuta depois de algum tempo. — Faça o favor de não modificar a regulagem dos graus geográficos. O curso da nave também parece correto. Dentro de uns dez minutos deveremos atingir o ponto mais favorável para o salto.

Todos lançaram um olhar automático para seus relógios. Além dos cronômetros de bordo, que registravam o tempo segundo o calendário terrestre, os membros da tripulação traziam consigo os chamados relógios de Vênus. A rotação de Vênus é cerca de dez vezes mais lenta que a da Terra. Por isso a duração do dia de Vênus é dez vezes maior.

Naquele instante, o ponto que, segundo o cérebro positrônico da Good Hope-V, correspondia à posição atual de Rhodan, ficava na zona crepuscular móvel. Isso significava que para os amigos que se encontravam na superfície de Vênus um novo amanhecer começara a raiar há pouco tempo.

Os que se orientavam pelo tempo de Vênus encontravam-se pouco antes das setenta e oito horas.

Faltavam cinco minutos para alcançar a posição de salto mais favorável.

Enquanto os homens esperavam em silêncio, a tensão crescia. Mas se alguém que se encontrava a bordo acreditava que a intenção de Tako Kakuta era impossível, não o dizia. Depois que o cérebro da fortaleza de Vênus instalara todas as barreiras concebíveis, a teleportação de um mutante poderia representar a última possibilidade de transpor essas barreiras.

Faltavam três minutos.

Wuriu Sengu, o espia, soltou um gemido de contrariedade. Depois de vários segundos de extrema concentração, durante os quais aparentemente mantinha os olhos fitos no nada, descontraiu o corpo e, num gesto de desânimo, se atirou numa poltrona.

Essa demonstração de pessimismo, que facilmente poderia se transmitir aos outros, deixou Bell bastante aborrecido.

— O que houve, Wuriu?

— Procurei reconhecer alguma coisa embaixo da camada de nuvens. É claro que consigo ver mais que vocês. Para os outros a superfície de Vênus não passa de uma triste camada de nuvens e neblina, enquanto eu vejo nela um paraíso luminoso e colorido. Mas o que importa no momento são os detalhes; é claro que a uma distância destas não consigo reconhecê-los. Apenas sei que, a aproximadamente trinta quilômetros ao sul do ponto determinado pelo cérebro, existe um planalto quase totalmente livre de vegetação. Mas supõe-se que o chefe se encontre em meio à selva mais densa.

— Você quer dizer que, se foi inteligente, tentou atingir o planalto?

— Naturalmente. Para um náufrago representa a melhor proteção contra a fauna imprevisível do planeta.

— Talvez tenha razão. Mas lá embaixo os problemas devem parecer um pouco mais difíceis do que se apresentam quando vistos através de nosso cérebro positrônico. Seja como for, podemos confiar irrestritamente no resultado da localização goniométrica. Tenho certeza de que dentro de quinze minutos saberemos mais alguma coisa. Está preparado, Tako?

Faltava um minuto para atingir a posição de salto.

O teleportador confirmou com um aceno de cabeça.

Além do equipamento usual, trazia um traje arcônida especial afivelado às costas. Todos sabiam o que significava isso. Assim que tivesse encontrado Rhodan, esse traje os ajudaria a alcançar a fortaleza de Vênus no mais curto espaço de tempo. Uma vez lá, Rhodan poderia modificar a programação do cérebro positrônico. Com isso o domínio da Terceira Potência sobre o planeta seria imediatamente restabelecido. O traje especial arcônida representava um recurso técnico extraordinário. Relativamente leve, era facilmente adaptável acima da vestimenta comum e transformava seu portador num verdadeiro Ícaro, num homem voador, já que o neutralizador gravitacional nele embutido eliminava a gravidade de um planeta de média força de atração. O defletor de ondas luminosas e o campo protetor energético faziam com que o homem que o envergasse se tornasse invisível e invulnerável.

Ainda bem que esse tipo de pensamento restituía o otimismo aos homens. Assim que Tako Kakuta entregasse o traje a Perry Rhodan, o episódio do naufrágio teria chegado ao fim.

— Faltam dez segundos — disse Reginald Bell. — Prepare-se, Tako!

— Já vou saltar.

Para os membros do Exército de Mutantes o desaparecimento de um teleportador era um acontecimento a que estavam acostumados há anos. Apesar disso, na situação especial em que se encontravam, representava algo de extraordinário e misterioso. Um homem normal sai pela porta. Ou atira-se num poço antigravitacional. Mas um teleportador permanece no mesmo lugar. Através de um processo puramente mental de concentração, transfere-se para o chamado hiperespaço, desmaterializando-se da mesma forma que uma nave espacial no início do processo de transição. Volta a se materializar com a mesma rapidez no lugar de destino.

O corpo de Kakuta não se desvaneceu aos poucos: de repente tinha desaparecido. Um ligeiro ruído foi produzido pelo ar que preencheu o súbito vácuo.

Antes que alguém pudesse respirar, o lugar em que se encontrara Kakuta estava completamente vazio.

— Agora precisamos ter um pouco de paciência — disse Bell em tom professoral. Fez menção de imitar Wuriu Sengu, que se inclinara numa poltrona para aguardar confortavelmente. Mas antes que atingisse o lugar um grito fez com que voltasse a cabeça.

O espia, que se levantara de um salto, olhava perplexo para o corpo que se contorcia no chão da sala de comando.

Tako Kakuta se debatia num sofrimento indizível. Seu grito transformara-se num choro convulsivo, que logo foi. interrompido por fortes acessos de tosse.

Ralf Marten, o teleótico do Exército de Mutantes, deu um salto para trás quando Kakuta, de olhos fechados, segurou sua perna e procurou enlaçá-la num gesto de fúria e de súplica.

— Ficou louco! — exclamou Tanaka Seiko. — Vamos todos agarrá-lo de vez e amarrá-lo. Não sabe o que está fazendo.

Era verdade que o teleportador parecia não saber o que estava fazendo. Em compensação, os outros não sabiam o que deviam fazer. Kakuta sentia os efeitos de uma estranha experiência. Não poderiam tratá-lo ao mesmo tempo como doente e como malfeitor. E tudo indicava que estava antes doente que louco.

— Devemos ajudá-lo! — declarou Marten.

Sua atitude era de compaixão e desconfiança.

Também os outros homens alargaram o círculo em torno de Tako Kakuta. Procederam assim por puro instinto. Mas a razão teria de intervir.

— Ralf, concentre-se sobre seu cérebro — ordenou Bell. — Diga o que está vendo e ouvindo.

A mutação espiritual de Ralf Marten permitia-lhe desligar temporariamente seu próprio eu para receber determinadas impressões sensoriais através dos olhos e dos ouvidos, sem que a pessoa apossada por essa forma percebesse qualquer coisa.

Marten se concentrou. Foi acometido pela rigidez típica do mutante que está trabalhando. Logo voltou a se descontrair e sacudiu a cabeça.

— Tako não me diz nada. O que está vendo e ouvindo é indefinível. Não nos reconhece. Sua percepção está confusa como se fosse um...

Marten hesitou.

— Fale logo — insistiu Bell. — Acha que Tako está louco?

O teleótico acenou com a cabeça, numa atitude pouco convincente.

— Era exatamente isto que eu pretendia dizer. Acontece que não sou nenhum médico. Não atribua muita importância às minhas impressões.

— Ora, Tako, vá para o inferno! Você está nos confundindo ainda mais. O cérebro de Tako não pode deixar de retratar certos reflexos. Passou cinco segundos fora da nave. Não pode ter se transformado num idiota dentro de um espaço de tempo tão curto.

O teleótico deu de ombros; parecia perplexo.

— Não posso dizer mais nada que possa esclarecer o assunto. Se o cérebro dele reflete a breve experiência pela qual acaba de passar, no que diz respeito às impressões óticas e acústicas, só posso afirmar que essa experiência deve ter sido indefinível e maluca.

— Não o maltrate — recomendou Wuriu Sengu. — Afinal, não é nenhum telepata.

— Obrigado pela lição — retrucou Bell bastante contrariado. — Quer dizer que não temos outra alternativa senão aceitar a sugestão de Tanaka. Caímos todos ao mesmo tempo em cima... Um momento, está se acalmando.

De repente Tako Kakuta ficou quieto. Só a respiração rápida e forte traía sua excitação. Depois de algum tempo abriu os olhos e encarou os amigos, sem que neles se refletisse qualquer conhecimento.

— Tenham paciência! — pediu Bell. — Ao que parece o nervosismo está diminuindo. Não podemos livrá-lo das dores enquanto não soubermos qual é sua origem.

Bell se aproximou do teleportador.

— O que houve, Tako? Diga alguma coisa!

Demorou mais alguns minutos até que o japonês reagisse ao ambiente que o cercava. Os traços de seu rosto pareciam se tornar menos confusos.

— Meu Deus, Bell, por que não me ajuda?

— Ajudarei assim que me explicar o que há com você.

— Sinto dores.

— Onde?

— Em toda parte. Nas costas, na cabeça... Ninguém agüenta três horas naquele inferno.

Seus companheiros lançaram olhares indagadores. “Realmente está doido”, pareciam dizer seus rostos.

— Ficou fora de três a cinco segundos — constatou Tanaka Seiko. — Não é possível que, num espaço de tempo tão curto, tenha pousado em Vênus e retomado à nave.

— De qualquer maneira passou por uma experiência, e por uma experiência muito intensa — observou o comandante. — Dêem uma mão. Vamos colocá-lo no sofá do camarote ao lado.

Bell ajoelhou perto dele e abriu o fecho éclair do colarinho. Isso devia representar um alívio para Tako, pois ele disse com a voz bem perceptível:

— Obrigado!

Levaram-no ao camarote vizinho sem que ele se opusesse. Kakuta mantinha uma atitude totalmente passiva e inofensiva. Engoliu um comprimido de analgésico, conforme haviam mandado.

— Sente-se melhor? — perguntou Bell.

— Obrigado, estou um pouco melhor.

— Graças a Deus! Você se comportou de tal maneira que seus companheiros pensaram que estivesse louco. Já se sente em condições de relatar o que houve?

— Não há muita coisa a relatar. Não cheguei a descer. É impossível chegar à superfície do planeta.

— Ninguém esperava que nos poucos segundos em que esteve ausente pudesse ter chegado a Vênus. Além disso...

— Por que vive falando em alguns segundos? — perguntou Kakuta desconfiado. — O inferno me segurou por várias horas, antes conseguir me livrar dele.

— Está bem — interrompeu-o Bell. — Não vamos discutir ninharias. O que importa é saber qual foi o erro que cometeu.

— Como é que um teleportador pode cometer um erro? Você não está em condições de dizer aos seus olhos e ao seu cérebro como deve se processar o fenômeno da visão: da mesma forma eu não posso exercer qualquer influência sobre o fenômeno da teleportação. É um dom natural que funciona segundo suas próprias leis.

— Hum! — refletiu Bell em voz alta. — Se não cometeu nenhum erro, não adiantará repetir a experiência.

— Nem penso em repetir este tipo de experiência! Desculpe. Não interprete minhas palavras como uma manifestação de rebeldia às suas ordens. Não sei explicar.

— Você aludiu ao inferno.

— É o único nome que posso dar àquilo. Encontrava-me no nada. Apesar disso tudo eram martírio e dores. Só consigo encontrar uma explicação.

— Qual é essa explicação?

— O cérebro me repeliu. A chave secreta X repudia tudo que, de qualquer maneira, assume uma forma existencial. A energia de ordem superior inclui-se nessa classe. Depois que nosso pouso se tornou impossível, tivemos de nos conformar com uma interrupção total das comunicações radiofônicas. E agora temos de nos conformar com o fato de que os fluxos energéticos do espaço de cinco dimensões também são repelidos. Durante o estado de desmaterialização devo ter me encontrado num campo temporal de ordem superior.

— O que vem a ser isso?

— Veja a divergência sobre o tempo durante o qual estive ausente. Todos dizem que não estive fora da nave mais que cinco segundos. Na verdade estive a caminho muito mais que isso...

Para provar sua afirmativa Tako Kakuta ergueu o braço esquerdo onde, ao lado da pulseira de finalidade múltipla, surgiu o mostrador do cronômetro.

— Meu relógio está adiantado duas horas e meia. Esta prova é suficiente?

Foi suficiente. A tripulação da Good Hope-V refugiou-se numa atitude resignada. Nesse instante compreendeu de vez que não mais poderia prestar auxílio a Perry Rhodan, que se encontrava na selva de Vênus. Rhodan e o pequeno grupo de homens que o acompanhava dependiam exclusivamente de seus próprios recursos. Teriam de encontrar a solução.

 

John Marshall corria para salvar a vida.

Correr era sua principal ocupação nos últimos dias. Fugia dos homens do planeta Terra e dos animais de Vênus. Todo o planeta parecia conspirar contra sua pessoa.

Fungando caiu por cima de uma raiz que atingia a altura de seu joelho. Rolou por cima do ombro como um pára-quedista que toca o solo e se voltou para ver o bicho. A raiz oferecia bastante proteção, enquanto a ameaça só viesse da frente.

Olhou para cima. O tronco era liso. Os primeiros galhos ficavam a dez metros de altura. Era impossível subir. O bicho chegaria antes. E contra seus cem metros de comprimento provavelmente a mais alta das árvores de Vênus não representaria uma proteção segura.

A cabeça comprida e pontuda do verme branco e gosmento surgiu por entre a vegetação. A dois metros acima do solo, executou um movimento ligeiro para a direita e para a esquerda e arriscou mais um salto para a frente.

Marshall encontrara o bicho há cerca de uma hora. Desesperado, pegou a carabina automática de fabricação russa que trazia consigo. O susto pelo fato de que poderia revelar sua posição aos perseguidores humanos sobrepujou o medo que o monstro venusiano lhe causava. Há muito tempo o gigantesco verme gosmento era conhecido como uma subinteligência absoluta: suas perigosas reações eram atos puramente instintivos. Mas quem fosse enlaçado por ele não teria tempo para fazer o testamento.

Uma arma automática convencional era praticamente ineficaz contra a massa de carne nojenta daquele monstro, cujas dimensões pareciam infinitas. Por isso mesmo, passado o primeiro susto, Marshall pegara o radiador de impulsos e abrira um fogo ininterrupto de vinte segundos sobre aquela massa branca. O resultado foi apenas uma divisão do bicho que, transformado em dois, reiniciou a perseguição. A fuga consumiu as últimas energias de Marshall.

Naquele instante, estava deitado atrás da raiz, que se erguia diante dele como uma muralha protetora.

Que tal se atirasse bem de frente?

Era apenas uma idéia, e ao que tudo indicava até então ninguém a havia experimentado. Um ataque lateral resultava na divisão daquele corpo de cobra. E um ataque de frente? Penetraria por todo o corpo.

Era este o cálculo. Já não tinha forças para correr. Mas ainda lhe restavam forças para fazer pontaria e apertar o gatilho.

O telepata John Marshall ergueu a arma. A parte superior da raiz proporcionava um bom apoio, que permitiria uma pontaria segura.

A conta tinha que dar certo. Tinha que dar porque sua mente não podia conceber a idéia de que pudesse morrer longe de toda a civilização humana e sem qualquer pessoa que testemunhasse sua morte.

A cabeça do monstro balançava por cima da alça de mira. Mas ainda não se encontrava numa posição adequada para o tiro, já que o corpo estendido ainda formava um ângulo obtuso com o eixo do radiador de impulsos.

Quando o animal se encontrava a menos de vinte metros de distância, Marshall percebeu que, de repente, aquele ser mudara de intenções. Na verdade, falar de intenções em relação a um bicho dotado de tão reduzida capacidade cerebral já representava uma concessão. Não possuía qualquer inteligência digna de nota. Só agia através de reflexos condicionados. E isso fornecia a explicação do comportamento irracional do verme.

Deslizou em direção à árvore, passou do lado oposto do tronco de seis metros de diâmetro e, numa grotesca estupidez, prosseguiu seu caminho em direção à vegetação rasteira não muito distante.

John Marshall conteve a respiração. O que o obrigou a tanto não foi apenas a ansiedade, mas também o cheiro penetrante e inexplicável para um homem vindo do planeta Terra. O verme levou mais de quinze minutos para passar. Enojado, perplexo e aliviado, Marshall seguiu a extremidade posterior do monstro, que num movimento aparentemente inofensivo mergulhou na selva.

Em algum lugar o verme encontraria um buraco profundo repleto de pólipos. Mergulharia ali e viveria numa simbiose harmoniosa com aquelas criaturas.

Marshall enxugou o suor da testa. Mas a lembrança da ponta branca da cauda do verme logo o fez despertar. Há uma hora, quando cortara aquele animal com o radiador de impulsos, as duas extremidades pareciam enegrecidas e carbonizadas. Pouco depois a crosta devia ter caído, da mesma forma que na outra metade do verme logo voltara a crescer uma cabeça.

As peculiaridades incríveis da fauna de Vênus eram conhecidas há anos, e por isso Marshall sabia perfeitamente que ainda não se livrara do perigo.

Se aquele verme se transformara em dois, a culpa era dele mesmo. E o segundo verme surgiu no momento exato em que voltou a olhar para a frente.

O que teria levado o primeiro a ignorá-lo de repente? E isso depois de uma hora de perseguição intensa e metódica!

Uma única explicação acudiu a Marshall. Os movimentos do fugitivo irritaram a fera e sempre voltaram a despertar sua atenção sobre ele. Assim que se abrigou atrás da raiz e se manteve imóvel, o cérebro primitivo daquele ser deixou de reconhecer o objetivo. A tática de se fingir de morto tinha validade em qualquer mundo onde a luta da vida se desenvolvia segundo leis eternas.

Mas a nova esperança de Marshall logo se revelou enganosa.

O segundo verme não era mais inteligente que o primeiro. Apenas o acaso quis que rastejasse na direção, exata da raiz atrás da qual Marshall se abrigara.

Desta vez teria que se defender. No último instante, percebeu que não poderia participar do espetáculo apenas como espectador. O movimento rápido com que levantou o radiador de impulsos bastou para despertar a atenção do animal.

A cabeça branca e pontuda disparou para a frente. Os primeiros cinco ou seis metros do corpo formavam uma reta perfeita.

A conta estava dando certo.

No sentido longitudinal daquele corpo não havia qualquer divisão ou qualquer encapsulamento. Cada um dos anéis transversais do corpo poderia formar um novo organismo. Assim que fosse atingido pela energia mortal, morreria.

A certeza do êxito incutiu nova coragem naquele homem. Reunindo as últimas forças, saltou para fora do seu esconderijo e atacou. Como que tomado de uma sede de sangue, percorreu os quarenta e tantos metros do corpo do animal e, disparando ininterruptamente, traçou uma linha de fogo contínua sobre o corpo branco e descorado.

Perto da trilha gosmenta, que prosseguia por mais alguns quilômetros, as forças o abandonaram e ele caiu ao solo. Vencera. O que lhe restava era um desamparo total. Nem mesmo o cheiro nojento e penetrante evitou que adormecesse instantaneamente.

Quando despertou, o sol ainda se encontrava bem no oriente, atrás de um véu de neblina branquicenta. Seu primeiro olhar foi para o cronômetro. Dormira nada menos de seis horas do tempo terrestre. E continuava vivo.

Os nervos estavam um pouco mais calmos. E os membros obedeciam novamente à sua vontade.

Naquelas seis horas parecia ter dormido o sono inocente de uma criança. E toda criança tem um anjo de guarda. Mas, no futuro, Marshall não deveria confiar nesse anjo de guarda.

Olhou para o sol que se levantava a leste. Para uma orientação mais precisa, servia-se da bússola giratória embutida na pulseira de múltipla finalidade. A fuga do verme fez com que desse uma volta, desviando-se alguns quilômetros de sua rota. Bem, isso não lhe causava maiores preocupações. Apenas faria com que atingisse a costa um pouco mais ao norte. O que importava era que atingisse o mar. Não devia ficar a mais de trinta quilômetros. Face às suas forças minguadas, ainda era uma distância muito grande. Poderia significar que teria de marchar mais uns três ou quatro dias terrestres. Ou uma semana, talvez mais.

Preferiu não fazer cálculos mais exatos quanto ao futuro. A marcha pela selva privara-o de grande parte do seu otimismo.

A fome e a sede constituíam os fenômenos mais regulares. Sorveu um gole de água da garrafa que trazia de reserva; melhorara o sabor do líquido com alguns restos de chá concentrado. Sua refeição consistiu em duzentas e cinqüenta gramas de carne fria. Quando a carne acabasse, teria que se lançar novamente à caça. Mas isso teria tempo. Até que a fome voltasse a atacar.

Lambeu os restos da gordura dos dedos e pôs-se em marcha na direção leste. O mar devia ficar nessa direção. E no oeste as patrulhas do general Tomisenkow deviam estar à sua procura. Proteger-se dele parecia mais importante para essa gente do que se defender dos monstros venusianos.

Naquela área a vegetação rasteira era bastante escassa. O solo era menos úmido que nas baixadas. Nos primeiros quilômetros a marcha não foi cercada de maiores dificuldades. A visibilidade era boa. O dia venusiano que rompia, trazendo consigo um futuro incerto, constituía um desafio para uma espécie de balanço intermediário. Quem não sabe muito bem o que fazer dali por diante e formula indagações sobre o sentido que possam ter seus esforços, faz bem em procurar se lembrar de como tudo começou.

Fazia alguns anos que John Marshall, o telepata do Exército de Mutantes de Perry Rhodan, pisou pela primeira vez no solo de Vênus. Naquela oportunidade foi descoberta no hemisfério norte uma fortaleza misteriosa, construída por uma raça extraterrena, os arcônidas. A fortaleza datava da época em que os homens do planeta Terra começavam a aproveitar o invento da roda, a se arriscar cautelosamente mar afora em embarcações primitivas e a lançar as bases da geometria euclidiana.

Pelo que se dizia, naquela época os arcônidas de Vênus, cujo planeta natal ficava a milhares de anos-luz do sistema solar, chegaram a fundar uma colônia na Terra. Mas esta submergiu com a lendária Atlântida.

Muitos séculos depois, se verificou o segundo encontro entre os homens e os arcônidas. A primeira nave lunar americana, comandada pelo então major Perry Rhodan, descobriu na face oculta da Lua uma nave espacial arcônida que realizara um pouso de emergência. Os únicos sobreviventes entre os tripulantes da nave eram o chefe científico da expedição, chamado Crest, e Thora, a comandante da nave. Auxiliado pela supertecnologia arcônida, Rhodan instalou no deserto de Gobi um novo poder político neutro. Após isso, comandou a primeira expedição a Vênus, que descobriu a fortaleza situada no norte. As instalações inteiramente automatizadas e positronizadas levavam uma vida autônoma. O grande cérebro robotizado dirigia a defesa das fortificações segundo uma programação antiqüíssima. Rhodan foi o único que conseguiu regular sua freqüência cerebral de tal maneira que o cérebro reagisse melhor aos seus comandos que aos de um arcônida.

Vários anos de evolução terrena e de expedições importantes nas áreas interestelares fizeram com que o planeta Vênus, com sua fortaleza, recuasse para o segundo plano do interesse público.

Mas no Bloco Oriental surgiu um grupo de conspiradores que resolveu ignorar os acordos celebrados com Rhodan, dando causa a novas complicações.

Grande número de naves espaciais russas decolou em direção a Vênus, para transformar o planeta numa colônia do Bloco Oriental.

O empreendimento não foi bem sucedido. Enquanto na Terra as divergências políticas puderam ser reduzidas a uma medida tolerável, a expedição de conquista comandada pelo general Tomisenkow foi se transformando numa farsa. Não conseguiu se aproximar do cérebro positrônico instalado em Vênus. O combustível das naves espaciais fora suficiente apenas para a viagem de ida. Uma frota de abastecimento foi dizimada em virtude de um choque casual com a nave de Rhodan; quando atingiu Vênus, perdera grande parte de suas naves.

Os russos transformaram-se em prisioneiros de Vênus. Levaram uma vida selvagem. A expedição desagregou-se. Grupos de rebeldes separaram-se do grosso da tropa que se mantinha fiel ao comando de Tomisenkow. Alguns fanáticos paranóicos, como o tenente Wallerinski, acreditavam chegada a hora de implantar um novo tipo de pacifismo, que teria que ser imposto pela força das armas.

Muitas vezes Marshall refletira sobre a provável situação estratégica no planeta Vênus. Mas tudo não passava de suposições. Só de uma coisa tinha certeza: o general Tomisenkow conseguira reunir os remanescentes de suas tropas numa poderosa unidade. Era só a ele que devia temer, pois suas patrulhas grudavam-se nos seus calcanhares. Por duas vezes nos últimos dias mal e mal conseguira escapar aos seus perseguidores.

As forças desagregadas, como as dos pacifistas comandados pelo tenente Wallerinski, também poderiam se tornar perigosas. Mas só por acaso poderia haver um encontro com elas em meio à amplidão daquelas florestas e estepes.

Mas as preocupações da equipe de Perry Rhodan não eram apenas estas.

Foi só pela obstinação da arcônida Thora que se viram nessa situação complicada. Há anos Thora empenhava-se pelo regresso ao mundo distante de Árcon. Diante da falta de compreensão de Rhodan, apoderou-se de uma nave espacial terrestre e, acompanhada unicamente de um robô, decolou em direção a Vênus. Na pressa se esqueceu do sinal codificado de identificação, motivo por que a barreira instalada pelo cérebro positrônico frustrou seus planos. Perry Rhodan, que não pensara em outra coisa senão na imediata perseguição de Thora, teve destino igual ao dela.

Ambas as naves viram-se detidas pelo campo energético, que protegia a fortaleza num raio de quinhentos quilômetros. Suas naves caíram e, de uma hora para outra, viram-se numa situação igual à do corpo expedicionário russo. Thora logo fora aprisionada por Tomisenkow, e Rhodan ainda não conseguira libertá-la. Mais do que isso, durante um combate noturno foi atingido no ombro, o que o pôs fora de ação por algum tempo. Não estava em condições de realizar marchas prolongadas. Por isso só o mutante Son Okura, que tinha problemas de locomoção, permanecera em sua companhia.

Marshall recebera uma missão especial, que o levara à selva inteiramente só, e o obrigava a atingir o litoral do mar do norte.

Estacou. A debilidade física acelerava a transpiração, obrigando-o a recorrer, com freqüência cada vez maior, ao lenço para enxugar o suor.

Valeria a pena?

Lançou um olhar aflito para a pulseira de múltipla finalidade, que entre outros equipamentos incluía um potente mini-transmissor. Mas Perry Rhodan havia proibido expressamente o uso do rádio quando houvesse possibilidade de ser ouvido e localizado pelo goniômetro.

A missão especial também se ligava a um encontro havido há vários anos. Naquela oportunidade, a equipe de Rhodan encontrara na costa oriental do braço de mar de trezentos e cinqüenta quilômetros de largura uma espécie de focas semi-inteligentes, cuja mentalidade inspirava bastante confiança.

Depois que Rhodan fora ferido no ombro, os quinhentos quilômetros de marcha que o separavam da fortaleza de Vênus transformaram-se num infinito. Mesmo que a cura fosse rápida, era provável que, por mais algumas semanas, a ferida constituísse um sério fator negativo para o chefe da Terceira Potência. Para sobreviver a esse tipo de provação, o homem deve gozar de boa saúde.

Nessa situação, a melhor idéia que poderia ter acudido àqueles homens era a das focas. Se é que alguém poderia prestar um auxílio, seriam elas. E se havia alguém que pudesse entrar em contato com elas, era o telepata John Marshall, que atingiu o mar pelas noventa e quatro horas.

Quando saiu da vegetação, estacou subitamente. À súbita visão do mar, ficou desconfiado, pois o subconsciente já lhe incutira a idéia de que nunca atingiria seu destino. Mas pôs-se a correr. A praia estava coberta de juncos que iam até a altura dos joelhos. Seguia-se uma faixa de areia amarelenta e limpa. E depois vinha a água. Marshall só parou quando sentiu a mesma tocar seus tornozelos.

As focas!

Procurou se concentrar. Colocou todo o desespero de sua situação no grito telepático de socorro. Depois de dois minutos se descontraiu. Seu cérebro assumiu uma atitude passiva, sintonizando-se para a recepção.

As impressões que penetraram nele eram mais que assustadoras.

O ambiente aparentemente morto estava cheio de vida. Essa vida ocultava-se nos juncos e na água. E pensava. Eram pensamentos inumanos. Situavam-se muito abaixo do nível de inteligência compreensível. Não passavam de uma série de emoções, de reações instintivas situadas num primitivo nível animalesco. Não tinham a clareza de uma fórmula matemática; antes, deixavam o campo livre para as interpretações, como uma pintura abstrata. Apesar disso Marshall acreditou poder extrair de tudo isso uma interpretação inteligível.

Teve de compor essa interpretação com um misto de ganância, inveja, fome e agressividade. Era o concerto oferecido pelas almas das criaturas mais baixas. Os tons provenientes das criaturas mais desenvolvidas, das focas, achavam-se ausentes.

Decepcionado, Marshall esteve a ponto de abandonar o exercício cansativo da concentração. Subitamente, porém, um sinal de alarma soou em seu cérebro. Um pensamento concebido numa mente humana surgiu dentro de seu círculo de alcance. Era um pensamento mortífero, vindo da costa.

Por pouco não deu um salto e saiu correndo. Mas lembrou-se em tempo que naquela situação sua vida dependia de sangue-frio. O pensamento girava em torno do ato de matar. E a intenção era tão nítida que até mesmo a vítima, John Marshall, estava perfeitamente fixada.

“É o espião da Terceira Potência, o lacaio de Rhodan. Há dias você anda fugindo de nós. Mas agora chegamos ao mar e você não poderá prosseguir. Você tombará morto. Não merece nossa compaixão. Devia chamá-lo. Devia mostrar-lhe o cano da arma e o fogo, mas acontece que você é um dos homens de Rhodan. E com estes não se deve assumir o menor risco.”

Marshall sabia que atrás dele, na orla da floresta, existia uma mira, e que naquele instante sua omoplata esquerda dançava diante da mesma. O homem apontava a arma para seu coração... Assim que se virasse, o tiro seria disparado.

Não se virou: atirou-se na água.

Naquele lugar a água era tão rasa que não cobria seu corpo. Mas os juncos que cresciam na praia ofereciam certa proteção.

No momento em que se deixou cair o tiro foi disparado, mas o projétil passou por cima dele.

O pensamento que surgiu a seguir na orla da floresta foi uma idéia de pânico.

O assassino já não via sua vítima e pensou em fugir. A reação de Marshall despertou reações supersticiosas em sua mente. Mas logo o temor dos superiores e o medo da selva venusiana interpuseram-se nestes fragmentos de idéias.

“Preciso matá-lo! Preciso matá-lo, senão nunca mais conseguirei viver tranqüilo perto de Tomisenkow.”

John Marshall rastejou pela água rasa, rolou até a margem e se escondeu entre os juncos, onde permaneceu imóvel.

“Os Rhodan são feiticeiros! O medo é de enlouquecer. Só quando todos os Rhodan estiverem mortos teremos sossego e poderemos dormir sem pesadelos. Preciso matá-lo!”

A idéia foi se aproximando, e com ela o assassino. Também se atirara ao solo, abrigando-se nos juncos para lançar seu ataque. Mas a atividade de seu cérebro traiu sua posição. Ergueu a cabeça por cima dos juncos. Marshall conhecia a direção. Bastou-lhe girar sua arma por um centímetro para a esquerda e apertar o gatilho.

Quando se levantou e foi para junto do inimigo, só encontrou um morto.

— É estranho! Dizem que somos os Rhodan, quando só existe um homem que usa este nome.

Marshall sabia que estava só. Caminhando ereto, dirigiu-se para a vegetação protetora da selva. Um sorriso brincava em torno de seus lábios. Era um sorriso de orgulho. Na terminologia do inimigo, também ele era um Rhodan.

 

O General Tomisenkow transferira seu quartel-general para um ponto situado cinqüenta quilômetros a leste. Estava situado num planalto que se erguia em meio à selva com uma vegetação escassa. Isso facilitava sua defesa no caso de um ataque lançado por um dos grupos rebeldes. Era bem verdade que na selva encontraria um esconderijo melhor. Mas não estava muito interessado em ficar sem ser reconhecido. Todos sabiam que se instalara nessa área. E todos sabiam que a tropa que se mantinha fiel a ele era numericamente superior a todas as outras. E essa superioridade colocava-o numa posição em que não precisava temer um confronto aberto.

As barraquinhas e cabanas de plástico emergiam em meio à vegetação de pouco menos de dois metros de altura. Todo o perímetro do acampamento estava protegido por uma linha compacta de sentinelas.

De seis em seis horas a senha era modificada, o que dificultava bastante a infiltração de rebeldes. A patrulha que fora mandada no encalço do telepata John Marshall era composta de apenas doze homens e não dependia da senha. Tomisenkow conhecia pessoalmente cada um desses homens.

Subitamente o sargento Kolzov viu um pano branco que se erguia em meio à vegetação.

— Senha!

— Sou o tenente Tanjev do comando avançado. Preciso falar com o general.

— Levante os braços! Pode passar.

Um homem se levantou de um salto e se aproximou com os braços erguidos.

— Está bem, tenente. Vá na direção daquele arbusto redondo. O general mora à esquerda. Há alguma novidade?

— Não ouvi sua pergunta, Kolzov. Preciso falar com o general, não com o senhor.

O tenente Tanjev tinha o aspecto de um soldado sadio que há vários dias se mantinha numa atividade ininterrupta. E isso correspondia aos fatos. Tomisenkow recebeu-o sem demora. Ao entrar fez uma continência impecável.

“Os homens ainda estão em boas condições”, pensou Tomisenkow satisfeito. Recebeu Tanjev com um sorriso benévolo, atrás do qual se ocultava a curiosidade.

— Vejo que ainda está vivo, tenente. Quais são as novidades?

— Aquele homem chegou ao mar, general.

— Que homem?

— Como sabe, há quatro dias houve uma batalha de rebeldes ao sul do planalto. Conforme constatamos, pelo menos três elementos da Terceira Potência participaram.

— Isto são fatos conhecidos, tenente — interrompeu o general. — Acho que veio trazer alguma novidade.

— Pois um desses homens foi sozinho em direção ao leste, e saímos em sua perseguição conforme nos foi ordenado.

— Foram instruídos para matá-lo ou trazê-lo para cá. Já conseguiram?

O tenente Tanjev hesitou.

— Ainda não conseguimos capturá-lo, general. Não é fácil agarrar um homem só, quando o mesmo esteja prevenido.

— Quem poderia tê-lo prevenido? Em Vênus quase não há gente.

— O soldado Lvov cometeu um erro. Correu à frente do grupo por conta própria. Não gosto de pôr a culpa nos mortos.

— Quer dizer que Lvov está morto?

— Sim, general. Encontramos seu cadáver na praia.

— Quer dizer que aquele homem solitário do grupo de Rhodan foi o elemento mais capaz. Será que nem com uma superioridade de doze para um e com todas as vantagens estratégicas o senhor está em condições de cumprir uma missão destas?

A benevolência desapareceu por completo do rosto de Tomisenkow.

— Por que veio até aqui, tenente? Para anunciar seu fracasso?

— Vim pedir reforços, general. Atingimos o mar e, para estarmos seguros, devemos controlar pelo menos dez quilômetros de costa. Além disso, julgo necessário que cada grupo seja composto ao menos de três homens. Precisamos dessa superioridade, que na verdade nunca passará de uma inferioridade.

— O que quer dizer com essa frase contraditória, tenente?

Tanjev voltou a hesitar.

— General, o senhor sabe perfeitamente o que andam contando por aí...

— É aquela história do gigante e do feiticeiro, não é? — disse Tomisenkow em tom áspero. — Não venha me dizer que vai falar seriamente nos termos das fantasias propagadas pelas revistas de fim-de-semana. Se o grupo comandado pelo senhor é composto de gente ingênua, mandarei recolhê-lo ao acampamento e o substituirei por uma tropa composta de gente adulta.

— Às ordens, general! Cumpriremos nosso dever. Mas acho que os reforços são indispensáveis.

— Por causa dos dez quilômetros de costa?

— Sim, general — respondeu Tanjev em tom submisso.

— Muito bem; o senhor os receberá. Tomisenkow escreveu um bilhete.

— Apresente isto ao coronel Popolzak e escolha os melhores elementos. Espero que da próxima vez que se apresente possa comunicar uma ação bem sucedida. Obrigado.

— Obrigado, general. Mais uma pergunta. A suspensão das comunicações pelo rádio continua de pé? Num caso urgente uma mensagem radiofônica será mais apropriada...

— Pode retirar-se, tenente — interrompeu Tomisenkow. — Darei novas instruções quando julgar conveniente. A suspensão continua de pé. Tenho motivos para isto.

Dali a uma hora o tenente Tanjev saiu do quartel-general, acompanhado de vinte e cinco soldados.

Durante essa hora o general não quis falar com ninguém. As informações de Tanjev levaram-no a refletir, embora não o reconhecesse perante os outros. Ele mesmo achara instintivamente que havia algo de verdadeiro naqueles boatos que nunca silenciavam. Mas não havia nada de tangível. Era apenas o milagre dos êxitos de Perry Rhodan e da Terceira Potência, que já se prolongavam por dez anos. Devia haver alguma explicação para o fato.

Pensou em Thora, a arcônida aprisionada. E no robô R.17, que nunca saía de seu lado.

Sua mão se fechou. Deu uma pancada na mesa de lona e despedaçou-a. Nem por isso sua exaltação diminuiu.

Dirigiu-se à saída da barraca.

— Coronel Popolzak — gritou em meio ao amanhecer de Vênus.

O coronel engatinhou para fora da barraca vizinha.

— Às ordens, general.

— Venha cá! Preciso de cinco homens de absoluta confiança.

— Pois não. Logo os mandarei.

— Deixe-me terminar! Não quero ver estes homens. Ninguém deve vê-los. Daqui a pouco darei um passeio com a prisioneira, fora do acampamento.

Tomisenkow explicou mais alguns detalhes e dirigiu-se à cabana que abrigava Thora e seu robô.

— Olá, miss Thora. Posso entrar?

— Ah, é o general. Desde quando resolveu praticar a cortesia?

Saiu da cabana e, num gesto de desafio, atirou seu longo cabelo branco para a nuca. Tomisenkow evitou o olhar zombeteiro de suas pupilas avermelhadas. Esse tipo de duelo com aquela mulher sempre o deixara irritado.

— Quero convidar a distinta senhora para um passeio. Acho que concordará em desfrutarmos juntos esta linda manhã de Vênus.

— Vamos — respondeu Thora numa surpreendente concordância. — Deve ter um estoque daqueles assuntos com que costuma me entreter de forma tão agradável.

Tomisenkow sabia perfeitamente que até então nenhum dos assuntos por ele abordados havia sido do agrado da arcônida. E o assunto a ser tratado hoje seria ainda mais desagradável. A malícia voltou a animá-lo.

— Aguarde a surpresa, madame.

— Estou certa de que conseguirá surpreender-me, general. Por exemplo, esse canhão que traz nas costas...

Tomisenkow trazia um fuzil a tiracolo.

— Talvez tenhamos que penetrar em terreno difícil. Não preciso explicar à senhora, que conhece perfeitamente as condições reinantes em Vênus, que certos animais podem se tornar bastante perigosos.

— Na minha opinião o R.17 será suficiente.

— Talvez seja suficiente para proteger a senhora. Mas estou convencido de que não moverá um dedo se alguma coisa acontecer a mim. Por isso, peço-lhe que deixe por minha conta a escolha da maneira pela qual vou proteger minha pessoa.

As sentinelas postadas na saída do acampamento fizeram continência quando Thora, o general e R.17 passaram diante deles.

— Por que vamos nos afastar tanto? — perguntou a arcônida de repente. Estaria desconfiando de alguma coisa?

Tomisenkow conseguiu esboçar um sorriso.

— Não se preocupe, madame. Não nos afastaremos do acampamento mais que a distância de um tiro. Se estiver entrevendo a idéia de fugir com o auxílio de seu amigo artificial, ou mesmo de fazer algum mal à minha pessoa, deixe que eu a previna em tempo. Quero lhe falar a sós.

— Isso poderia ser feito na barraca do senhor.

— Deixe a decisão por minha conta. E procure se concentrar para dizer a verdade, no seu próprio interesse.

— Devo interpretar isso como uma ameaça?

— Sinta-se ameaçada enquanto não obedecer às minhas ordens. Conte alguma coisa sobre seus mutantes.

— Sobre quem?

— Sobre seus mutantes. Refiro-me àquelas pessoas misteriosas, sobre as quais a imprensa mundial andou publicando uma porção de tolices. Acontece que deve haver algo de verdadeiro em tudo aquilo. Sabe perfeitamente que dependemos um do outro. O próprio Rhodan dificilmente terá uma chance na selva de Vênus. Deixou sua superioridade técnica em casa. E antes que atinja a fortaleza do norte seu corpo apodrecerá nos pântanos.

— No entanto, o senhor acredita nos mutantes. Admitamos a hipótese de que estes realmente existem. Neste caso a superioridade de Rhodan não seria imensa? Mesmo sem os recursos tecnológicos? Ainda acontece que o senhor se engana ao acreditar que Rhodan veio a este planeta em minha companhia.

— Rhodan está aqui! — disse Tomisenkow em tom áspero. — Não adianta negar.

— O que acabo de lhe dizer é a verdade, general. O que adiantaria ratificar a mesma? Ao que parece está mais bem informado sobre o paradeiro de Rhodan do que eu. Se ainda se encontra na Terra, ele me tirará daqui antes que se passe mais um dia de Vênus.

— Pois antes que esse dia de Vênus chegue ao fim, teremos atingido as montanhas do norte. E assim que estivermos de posse da fortaleza, tenho todo o planeta sob meu controle. Se os planos secretos da senhora prevêem outra coisa, só posso ter pena, madame. Se unir-se a mim, levará o tipo de vida que lhe agrada. A outra alternativa seria continuar a ser minha prisioneira para sempre. E posso lhe assegurar que disponho de meios para tornar sua vida bastante desagradável.

— Não tenho a menor dúvida. Toda vez que me diz uma coisa desagradável, suas palavras correspondem à verdade. Acho que devemos voltar, general. Nossa palestra é inútil.

— E os mutantes?

— Conheço os mutantes da Terceira Potência — disse Thora. — Alguns deles sabem ler pensamentos. Outros podem influenciar os pensamentos de alguém. Os chamados teleportadores transferem-se de um lugar para outro por força do pensamento. A qualquer momento encontram-se no lugar em que querem estar. Se eu fosse uma teleportadora, poderia chegar à fortaleza de Vênus dentro de dois segundos.

— Rhodan é um mutante?

— Isso seria novidade para mim. Por que diz isso?

— Enviei uma patrulha que o vem perseguindo há dias. Rhodan já atingiu a grande baía do mar do norte. Está numa armadilha. Admitamos que não seja um mutante. Neste caso posso ter certeza de pôr as mãos nele dentro de dois dias terrestres.

Thora não deixou perceber quão profundamente a notícia que Tomisenkow acabara de dar-lhe a comovia. Embora ao sair da Terra praticamente tivesse fugido de Rhodan, acreditava que este seria o homem mais indicado para libertá-la. Depois que seus planos se frustraram com a queda sobre a selva de Vênus, já estava arrependida no seu íntimo da sua ação precipitada.

— Se acredita que ele se instalou em algum lugar da costa do mar do norte, vá buscá-lo. Não posso impedi-lo.

Naquele instante um tiro foi disparado nas proximidades. Uma bala ricocheteou e, assobiando, foi bater contra a rocha.

— Proteja-se! — gritou o general, mas correu mais uns vinte metros antes de se atirar ao solo.

Thora desapareceu imediatamente. Mas o robô continuava de pé e enviou um breve raio energético para a floresta, que logo começou a arder.

Seguiu-se uma salva de tiros de armas manuais.

Era evidente que o ataque se dirigia exclusivamente contra a arcônida, pois o fogo se concentrou sobre o lugar em que se abrigara.

No mesmo instante o robô saltou para a frente.

Ninguém acreditaria que pudesse ser tão ágil. Seu corpo foi cercado por uma camada tremeluzente, que parecia de ar quente.

“Será um campo energético?”, foi a pergunta que acudiu a Tomisenkow.

Pouco importava! Segurou o fuzil por baixo do braço e colocou um projétil superdimensional no cano; parecia uma granada de fuzil.

R.17 havia procurado um abrigo. A floresta foi coberta por um fogo energético ininterrupto. Logo depois os tiros das armas convencionais cessaram. O general completou a pontaria. Puxou o gatilho. O campo energético do robô revelou-se impotente contra a granada atômica.

R.17 volatilizou-se numa ligeira nuvem incandescente.

Poucos segundos depois Tomisenkow encontrava-se ao lado de Thora.

— Paço votos de que a senhora tenha passado sã e salva por tudo isso, madame. Posso ajudar?

O tom de voz e as palavras do general deixaram a arcônida ainda mais confusa. Não conseguiu dissimular o choque. R.17 ainda representava um certo apoio moral para ela, mesmo como prisioneira. O ataque parecera verdadeiro. Mas quando ouviu as palavras de Tomisenkow percebeu que se deixara cair numa armadilha.

Ignorou a mão que se estendia em seu auxílio e levantou-se sozinha.

— O senhor é um homem ordinário! Thora estava furiosa.

Isso fez com que Tomisenkow gozasse seu triunfo com mais intensidade. E nem desconfiava de que na boca daquela mulher a palavra homem representava uma ofensa muito grave.

— Vamos voltar, madame. Imagino que a perda de seu protetor metálico deve tê-la atingido profundamente e que a continuação do passeio não constituirá um bom descanso. Vá para a cama e descanse um pouco.

— Isso o senhor me paga, general.

— Por que justamente eu?

— O senhor não vai querer negar que essa manobra infame foi tramada pelo senhor.

— É claro que não. A senhora dá provas de sua elevada inteligência por ter descoberto isso tão depressa. Saiba perder esportivamente, madame.

Thora cuspiu diante dele. Vira algum homem fazer isso e pouco se importou com o fato de que um gesto desse tipo não ficava muito bem para uma dama. Aliás, não tinha o menor interesse em guardar as formalidades terrenas. Quando se enfurecia, perdia toda inibição.

Tomisenkow já conhecia sua prisioneira há bastante tempo; sabia que, enquanto ela se encontrasse nesse estado, não seria fácil conversar com ela. Sem dizer uma palavra deu-lhe as costas e se dirigiu ao acampamento. Cem metros atrás dele Thora passou pela sentinela. Um soldado seguiu-a a certa distância para verificar se realmente se recolhia à sua cabana.

O general mobilizou um grupo que se pôs a controlar o incêndio da floresta. O estoque de extintores a seco era muito reduzido, mas foi suficiente para manter o fogo sob controle. A flora suculenta de Vênus não era um combustível muito eficiente. Naquele planeta não se conheciam secas prolongadas que permitissem o resseca-mento das florestas e das estepes.

Tomisenkow era de uma obstinação proverbial. Voltou a se dirigir a Thora para perguntar sobre os mutantes.

— Fora, seu bárbaro! — gritou Thora e respirou profundamente para amontoar novos insultos sobre o russo. Mas o sorriso zombeteiro que seu rosto exibia tirou-lhe a fala. Deu-lhe as costas e não disse mais uma palavra.

O general usou uma linguagem mais gentil.

— Em certa oportunidade a senhora me ameaçou, dizendo que o R.17 poderia destruir toda a tropa sob meu comando. Levei suas palavras a sério. Será que vai me dizer que tudo não passava de um blefe inocente?

Thora não respondeu.

— Pois bem, seja o que quiser! — resmungou Tomisenkow. — Não acredite que continuarei disposto por toda vida a prestar contas à senhora. A senhora me ameaçou, e eu nunca ocultei o fato de que para mim o robô representava um obstáculo. Fui mais rápido, e a senhora se encontra sob meu poder, mais que antes. Ainda dispõe de duas horas para descansar. Depois levantaremos o acampamento e marcharemos na direção nordeste. A fortaleza de Vênus cairá. Não tenha a menor dúvida. E quem assumirá a herança de seus antepassados arcônidas serei eu, só eu. Com a senhora ou sem a senhora, pouco importa.

Não obteve resposta. Depois de algum tempo saiu, dando de ombros.

Ao passar pela praça central do acampamento, viu a tábua negra colocada junto aos alojamentos da companhia de prontidão. Popolzak mandara afixar outro papel em que estavam escritos os nomes dos cinco homens tombados no combate contra o R.17.

Tomisenkow procurou reprimir a indagação sobre a finalidade dessa ação. Quando entrou em sua barraca sentia dor de cabeça.

 

Dali a cinco horas terrestres seu pequeno exército se encontrava em marcha. A gravitação pouco intensa de Vênus tornava mais fácil aos homens carregar os preciosos equipamentos e os mantimentos que conseguiram salvar do pouso malogrado. Não era muito, se comparado com aquilo de que precisariam nos próximos meses. Tanto mais avarentos seriam no trato do que lhes restava. Quem deixasse para trás qualquer coisa, por desleixo ou comodidade, era chamado a prestar contas. Neste ponto as ordens de Tomisenkow eram inequívocas.

Há meses fora realizado um levantamento da situação. Dali em diante as vistorias e os controles eram realizados a curtos intervalos. Todo fósforo, todo pacote de alimento desidratado, todo cartucho era registrado. Quem disparasse um tiro tinha que dar contas e apresentar um relatório.

As unidades de vanguarda e de retaguarda eram as que conduziam menos carga. Deviam ser dotadas de maior grau de mobilidade. De cada vez que Tomisenkow fazia sua tropa empreender uma marcha mais prolongada, para transferir seu quartel-general mais um pedaço para o nordeste, voltava a surgir a indagação se sua disposição otimista se justificava face à força de combate de seu exército.

Nas baixadas pantanosas da selva não havia possibilidade de manter a coluna bem unida. Às vezes a vegetação era tão espessa que tinha de ser removida por meio de granadas atômicas. Tratava-se de armas limpas, cujo processo de fusão nuclear não causava qualquer radiação perigosa. Mas sempre havia o perigo de um incêndio na floresta. Assim a utilização das granadas atômicas tinha de ser reduzida a um mínimo, face à pequena reserva de substâncias extintoras de que dispunham.

O caminho aberto pelas primeiras unidades tinha que ser utilizado pelo restante da tropa. Por isso muitas vezes a coluna se estendia por vários quilômetros.

Vista a situação sob esse ângulo, Tomisenkow não tinha por que se orgulhar com o fato de que ainda dispunha de cerca de meio regimento. Durante a marcha sempre deixava um flanco exposto ao ataque até mesmo de um inimigo mais fraco. E seria uma arrogância dizer que um inimigo como Perry Rhodan era fraco.

Por isso Tomisenkow sempre se mantinha nas proximidades de Thora. E ele o fez com tamanha pertinácia que esta recuperou a fala. Deu a entender sem rebuços que não gostava de sua companhia.

— Infelizmente não posso considerar seus sentimentos. Preciso de um refém de que possa lançar mão se Rhodan atacar. E se tiver a idéia de tirá-la à força, devo ter a possibilidade de matá-la antes que isso aconteça.

Tamanha franqueza chocou Thora, que se refugiou na altivez que lhe era peculiar.

Eram cento e treze horas quando uma patrulha comunicou ter achado uma carabina automática russa. Um cabo apresentou a arma ao general.

— Descobrimos uma fogueira a cerca de três quilômetros ao sul, general.

— Uma fogueira?

— Sim, general, uma fogueira apagada. A lenha carbonizada já estava fria. Esta carabina estava oculta sob o capim, embaixo de uma árvore. O pessoal deve tê-la esquecido.

— E são nossos patrícios. É uma vergonha ver como essa gente se perde quando não é mantida sob controle. É o senhor que comanda a patrulha?

— Sim, general.

Antes que o cabo pudesse se dirigir ao coronel que marchava a cinqüenta metros dali, uma salva abafada de armas de infantaria soou na selva próxima.

— Procurem uma cobertura! — gritou alguém. A ordem era desnecessária. Num reflexo instintivo os homens atiraram-se ao chão e viraram-se para a direita. Enquanto caíam os fuzis foram empunhados automaticamente.

Depois do primeiro ataque, o silêncio passou a reinar. Até mesmo os pássaros de Vênus, que cantavam nas copas das árvores, suspenderam seu concerto. Alguns se afastavam, batendo ruidosamente as asas.

Outros estariam enfiando as cabeças sob as penas.

Alguns tiros foram disparados nas fileiras do grupo.

— Que diabo! — gritou Popolzak. — Só atirem quando virem alguma coisa. Todo tiro deve acertar o alvo.

A resposta veio em forma de uma rajada de metralhadora disparada pelo inimigo desconhecido.

— São uns idiotas — resmungou Tomisenkow, com o nariz dois centímetros acima do solo. — Com esta vegetação não conseguem atingir um homem por um tiro direto a uma distância de vinte metros. E esta folhagem gosmenta come as balas como o mata-borrão come a tinta. Oh, desculpe, madame!

Só agora o general percebeu que mantinha Thora apertada contra o chão. Enquanto a mão direita segurava a coronha da carabina automática, o braço esquerdo enleava a nuca da arcônida como se fosse uma tenaz.

— Se machuquei a senhora não foi por querer. A senhora é muito preciosa para que possa me arriscar a perdê-la dessa forma. Aqueles rebeldes são os que menos estão em condições de dizer quando a senhora deve morrer. São piores que assaltantes. Posso ajudar em alguma coisa?

— Solte-me e dê-me uma arma. Sei lidar com ela.

— Não tenho a menor dúvida — disse Tomisenkow, esticando as palavras. Num gesto hesitante pôs a mão para trás. Subitamente segurou uma pistola de seis tiros e passou-a a Thora.

— Tenha cuidado, madame. Está carregada e só se presta a uma luta corpo a corpo.

— Para mim basta — disse com uma expressão indefinível no rosto.

 

Son Okura, o visor de freqüências que tinha dificuldades de andar, e Perry Rhodan, chefe da Terceira Potência, não formavam a equipe mais adequada para uma marcha a pé em Vênus. Ainda mais quando o objetivo ficava a nada menos de quinhentos quilômetros em linha reta, e havia como obstáculo um braço de mar de trezentos e cinqüenta quilômetros de largura, que um belo dia também teria de ser vencido.

Desde o início a dificuldade de andar de que padecia Son Okura teve que ser incluída nos cálculos. A ferida no ombro de Rhodan só surgira posteriormente, quando os dois homens e John Marshall se viram envolvidos num combate entre os rebeldes e os pacifistas do tenente Wallerinski. Nem por isso Rhodan perdeu o bom humor. Tratava-se de uma perfuração direta na altura da axila. Nenhum osso e nenhum músculo importante havia sido atingido. Os medicamentos arcônidas apressaram a cura, mas apesar de tudo as pontadas e as coceiras que sentia a toda hora convenceram Rhodan de que ainda não se encontrava em plena forma.

— Deve se tratar!

As advertências de Okura eram obstinadas. Voltara a construir uma cabana numa árvore, fechando o chão e as paredes com trepadeiras e folhas largas. Para baixo a camuflagem era completa.

— Estas cabanas montadas em árvores servem para gente que saiba viver, mas não para pessoas que querem ir para a frente — resmungou Rhodan, contrariado.

— Acho que estamos de acordo: resolvemos andar seguros. Aliás, na situação desvantajosa em que nos encontramos, não temos outra alternativa.

— Tenho minhas dúvidas; é bem possível que estejamos participando de uma corrida. Se Tomisenkow e Thora chegarem antes de nós à fortaleza escavada na rocha, ninguém nos garante que não entrarão. Como arcônida, Thora é portadora de um cérebro reconhecido.

— Acredita que ela nos trairia?

— Tanto faz que haja traição ou não. Os homens do Bloco Oriental a têm nas mãos. Podem forçá-la.

— OK — disse Okura com um sorriso. — Estou convencido de que ganharemos a corrida. Com toda lentidão, ainda somos mais rápidos que o general Tomisenkow. Não conseguirá arrastar seu exército pela selva com a mesma rapidez dos corpos inválidos. Depois do patrulhamento que realizei ontem, tenho certeza de que os remanescentes do exército de Tomisenkow estão bem próximos. Isso significa que já recuperamos algum terreno e tenho certeza de que chegaremos à costa antes dele. Quanto a Marshall, não há dúvida de que não precisamos nos preocupar com ele.

— Gostaria de ter seu otimismo — disse Perry Rhodan. — Acontece que não devemos pensar apenas em termos táticos, mas também em termos estratégicos. Você se esquece das relações mais importantes entre os fatos.

— Não compreendo.

— Até aqui pensamos apenas nos homens com que nos encontramos diretamente. Mas vamos começar do início para descobrir as causas e o sentido de tudo aquilo.

— A causa de nossa presença neste planeta é a fuga de Thora.

— Muito bem. Agora pense nos russos.

— O Bloco Oriental invadiu o planeta Vênus sob o comando do general Tomisenkow. E nós lhes atrapalhamos os planos. A divisão de Tomisenkow está praticamente aniquilada. Ao que tudo indica só um pequeno grupo de homens continua a obedecer suas ordens.

— Continue. Mas não pense apenas nos desertores. Deve haver mais gente na superfície de Vênus.

Son Okura refletiu.

— Gente do Bloco Oriental?

Perry Rhodan fez que sim.

— É claro que sim, meu caro.

— Está aludindo à frota de abastecimento? Bem, já me lembrei disso. Deve estar lembrado de nosso encontro com o sargento Rabov, que foi morto durante um combate. Contou muita coisa, mas nunca aludiu ao pouso da frota de abastecimento.

— Pois é justamente isso! Provavelmente o próprio Tomisenkow não sabe nada a respeito disso. Mas tenho para mim que essa frota deve ter pousado. O Bloco Oriental mandou duzentas unidades. Destruímos trinta e quatro quando o campo energético de nossa nave atravessou, por coincidência, o centro da frota. É possível que outras naves tenham sido destruídas durante o pouso. Mas aposto que mais de cem veículos espaciais conseguiram descer em Vênus.

Son Okura empalideceu.

— Santo Deus! Isso significaria...

Não foi necessário terminar a frase. Ambos sabiam o que isso significava. Em algum ponto de Vênus devia haver outra tropa, que dispunha de um equipamento muito melhor.

— Não há dúvida de que a frota de abastecimento se destinava ao general. O fato de que até hoje não se apresentou a ele — prosseguiu Rhodan em tom indiferente — apenas prova que também este clube declarou sua independência. A independência parece grassar em Vênus como uma epidemia.

Não falaram mais no assunto, embora fosse muito interessante. Seus planos previam um repouso de seis horas. E no momento a restauração das forças era mais importante que todas as especulações estratégicas. Durante a marcha teriam tempo para as mesmas.

 

Dormiram o tempo previsto e puseram-se a caminho. Okura já não saberia dizer quantas cabanas construíra nas árvores de Vênus. Tornara-se mestre nessa arte. As construções iam ficando cada vez melhores e mais belas. Apesar disso tinham de ser abandonadas para sempre.

Falavam nesses pequenos aspectos sentimentais quando enjoavam de conversar sobre os grandes problemas. Geralmente calavam-se de vez depois que os primeiros quilômetros de marcha chamavam à sua lembrança o fato de que o planeta Vênus com suas selvas representava uma provação interminável.

No dia seguinte — por uma questão de hábito costumavam contar o tempo pelo calendário terrestre — ouviram tiros. Rhodan, que ia à frente, parou imediatamente. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ouviu-se outra salva.

— É uma batalha. Pelos meus cálculos é bem ao norte.

— Só pode ser no norte, pois é lá que Tomisenkow se encontra.

Seguiu-se a detonação de uma bomba ou de uma granada. Depois disso o silêncio voltou a reinar. Esperaram mais quinze minutos. Mas o tiroteio não se repetiu.

— O que acha, Son?

— Devem ter montado acampamento. Numa posição defensiva vai ser fácil para eles repelir os ataques de Wallerinski.

— Quem sabe se foi Wallerinski.

Formularam outras suposições, que não se aproximavam da verdade. Não sabiam que o general Tomisenkow acabara de destruir o robô R.17.

— Vamos ficar mais à esquerda — decidiu Rhodan. — Estamos a uma distância muito grande do pessoal do Bloco Oriental. A prudência não deve ser exagerada.

— A prudência nunca pode ser exagerada — declarou Okura.

A lição fez o chefe sorrir.

— É claro que não. Ainda existe a possibilidade de que alguém possa precisar de nós. Thora, por exemplo.

O plano de Rhodan foi executado. Depois de percorridos outros dez quilômetros, uma cabana foi construída numa árvore e ocupada imediatamente. Antes de dormir fizeram as tentativas rotineiras de estabelecer contato pelo rádio com Bell. Operavam obstinadamente as antenas escamoteáveis do tamanho de uma agulha. Mas tal qual nos dias anteriores, a Good Hope-V não respondeu.

— A chave secreta X — resmungou Rhodan. — Parece que é muito eficiente.

— Ou então Bell já regressou à Terra.

— Prometeu exatamente o contrário. Seja como for, dependemos exclusivamente de nós mesmos. Boa noite, Son.

— Boa noite, chefe.

 

Desta vez o tiroteio os despertou. Okura logo sentiu a mão de Rhodan, que se colocara em seu braço num gesto de advertência.

— Fique quietinho, rapaz! Estão bem à frente da nossa porta.

Realmente parecia que os tiros estavam sendo disparados bem embaixo da árvore. Mas era uma ilusão. A abóbada de folhas, formada pelas árvores de cerca de cinqüenta metros de altura, produzia efeitos acústicos perturbadores.

Espiaram pelas folhas da cabana.

— Não vejo nada — disse Okura.

— Com a visibilidade de que dispomos isso seria muito difícil — resmungou Rhodan em tom nervoso. — Gostaria de saber... ora, é lá!

Apontou com o dedo. Seu companheiro já havia visto o movimento. Eram homens que se deslocavam entre a vegetação rasteira, a uns cem metros de distância.

Mais alguns tiros foram disparados. De início eram isolados. Mas logo se seguiu uma salva.

— A batalha está sendo travada mais à esquerda, pelo menos a quinhentos metros daqui. Mas aquilo que se mexeu lá embaixo foi um homem.

— É claro que foi. Vi uma cabeça.

— Muito bem. Vou dar uma espiada.

— Fique aqui, chefe; será...

Rhodan interrompeu-o com um gesto.

— Não farão coisa alguma comigo. Sei me cuidar. Fique aqui e mantenha nossa posição. Aconteça o que acontecer, não se traia com um tiro. Aquilo que fica por ali quando muito é o alojamento de um grupo de rebeldes. Mas quem sabe se essa gente não tem alguma comida para nós. Temos necessidade premente de um reabastecimento de munições e mantimentos.

Son Okura estava acostumado a obedecer. Limitou-se a confirmar com um aceno de cabeça.

Perry Rhodan desceu pela borda da plataforma. Se não descesse muito depressa, o risco de ser descoberto não seria grande. A folhagem densa das trepadeiras que parasitavam as árvores fornecia-lhe uma excelente cobertura, que descia até o solo.

Teve que descer uns vinte metros. Para aliviar o ombro direito, colocou quase todo o peso do corpo sobre a mão esquerda.

Chegou ao solo sem ser visto, e aqui a visibilidade ainda era menor. Mas lembrava-se da direção que devia seguir e foi avançando. A batalha certamente desviaria a atenção daquela gente. Nos alojamentos dos rebeldes ninguém consideraria a possibilidade de que alguém pudesse se encontrar nas suas costas. Um perigo maior que o dos soldados desertores poderia provir dos animais de Vênus, e Rhodan teve bastante juízo para dedicar sua atenção também à vizinhança imediata.

Ao que parecia o destino resolvera ajudá-lo. Conseguiu se desviar das lagartas, dos besouros e das borboletas que dançavam no ar. Poderiam ser venenosas, mas não se interessavam por ele. Um ataque partido dali seria pura coincidência.

As trepadeiras representavam um obstáculo mais difícil. Às vezes formavam uma verdadeira cerca viva. Teve que se espremer entre elas, e por vezes via-se obrigado a dar ao seu corpo a configuração de uma cobra. Se quisesse cortar aquela vegetação resistente, gastaria muito tempo. Além disso, as plantas poderiam estar submetidas a uma espécie de tensão estática. Nos dias anteriores Rhodan via várias vezes uma trepadeira cortada chicotear o ar com um silvo, como a corda retesada de um arco de atirar. O barulho poderia traí-lo. E se um homem recebesse um impacto pouco feliz, isso poderia significar a morte.

Quando se encontrava a uns trinta metros do acampamento, fez uma pausa prolongada. As mãos e o rosto estavam arranhados. Pegou o lenço e enxugou o suor que lhe penetrava nos olhos; viu que havia sangue misturado ao mesmo.

Apenas uns arranhões e alguns pedaços de pele esfolada, foi o comentário silencioso que a descoberta provocou nele. Mas atrás desse comentário ocultava-se uma pergunta menos animadora. A selva misteriosa de Vênus poderia ser tratada com tamanho desdém? Era bem verdade que nos últimos anos, os botânicos haviam esclarecido muita coisa a respeito da flora de Vênus. Mas só uma fração reduzida das espécies existentes pôde ser classificada e determinada segundo seus componentes químicos. Qualquer espinho aparentemente inofensivo podia trazer em si o germe da morte.

Rhodan fez um esforço para se libertar dessas idéias. Concentrou-se sobre os homens que se encontravam à sua frente.

Há anos falava um russo excelente; por isso não teve a menor dificuldade em acompanhar a conversa daqueles homens. Era verdade que se mostravam bastante lacônicos. Apenas mencionaram que estavam cansados e achavam que o ataque de Wallerinski contra a tropa de Tomisenkow era muito arriscado. O resto da conversa foi conduzido em voz tão baixa que Rhodan não compreendeu nada.

Teria que chegar mais perto.

Seus movimentos tornaram-se mais cautelosos e já não avançava tão depressa. A intensidade do combate que se travava à distância aumentara ainda mais e dificilmente os rebeldes voltariam num breve espaço de tempo, a não ser que Wallerinski sofresse uma derrota grave e fosse levado de roldão pelas tropas de Tomisenkow.

Finalmente Rhodan viu uma pequena clareira. Ou melhor, um lugar em que o capim havia sido pisado. Não tinha mais de vinte metros de diâmetro. Mas acima desse lugar as copas das árvores fechavam-se numa cobertura espessa, não deixando penetrar mais luz que em qualquer outro lugar. As flores coloridas em forma de orquídeas que as trepadeiras ostentavam pareciam abandonadas naquela semi-escuridão.

Rhodan viu cinco homens.

Quatro deles dormiam, ou ao menos estavam estendidos no capim. O quinto, sentado, recostara-se a uma árvore e fumava um cachimbo.

O equipamento que aqueles homens vigiavam provocou a inveja de Rhodan. Pareciam dispor de uma grande profusão de armas manuais; além de algumas caixas, cujas inscrições eram bastante reveladoras, havia ao menos umas quarenta ou cinqüenta carabinas automáticas jogadas embaixo de uma árvore, bem perto do lugar em que Rhodan se encontrava.

— O presidente não devia ter tanta pressa com suas concepções — disse um dos homens deitados no capim. — Afinal, a idéia de impor a paz pela força nada tem de original.

— Você tem umas idéias esquisitas — disse outro. — Enquanto Tomisenkow não quiser a paz, nós temos que lhe dar uma lição.

— Quer dizer que só poderemos ser verdadeiros pacifistas quando todo mundo for?

— Que bobagem! Já somos verdadeiros pacifistas. Até parece que você andou dormindo durante as aulas.

O homem que fumava cachimbo fez um gesto aborrecido.

— Parem com essa conversa de adolescentes. No momento só importa o que o presidente consegue fazer. Esse tiroteio já está demorando demais. Quando um ataque não dá certo no primeiro instante, vejo as coisas pretas.

— Igor, você ainda vai se dar mal com esse tipo de conversa. O presidente sabe o que quer. Deposito toda confiança nele.

— O presidente se sentirá muito orgulhoso com isso, Mitja. Mas sei perfeitamente que para ele você não passa de um sabe-tudo. E o presidente não gosta desse tipo de gente.

— Pense o que quiser. Ele gosta de mim conforme desejo. Se está aludindo aos bons conselhos que lhe dei, posso lhe assegurar que Wallerinski ficou muito grato. O projeto da armadilha nas árvores será executado assim que chegarmos ao rio.

— Não diga! Você conseguiu convencê-lo? Por que resolveu atacar o general hoje?

— Pergunte a ele! De qualquer maneira meus conhecimentos táticos bastam para que eu saiba que, por aqui, uma armadilha nas árvores seria um jogo de loteria. Mas no rio o general não poderá deixar de usar a passagem situada acima das cataratas. Conforme deve estar lembrado, do lado oposto existe um desfiladeiro bem profundo. Terá que passar por lá. Basta que no momento exato nos encontremos em cima das árvores e...

— Calem a boca! — queixou-se outro dos homens. — Se cada um de vocês quiser gritar mais que o outro, o barulho fará com que as patrulhas de Tomisenkow estejam aqui antes dos nossos companheiros. Mitja, você está de sentinela. Abra os olhos e os ouvidos. E os outros vão ficar deitados. Se não estiverem gostando, contem ao presidente. Mas não me causem problemas.

O último dos interlocutores parecia ser um oficial subalterno. De qualquer maneira possuía certa autoridade. Perry Rhodan não gostou nem um pouco. Enquanto os homens conversavam, se distraíam. Mas agora o menor ruído poderia revelar sua presença.

De outro lado, porém, o barulho produzido pelas criaturas que habitavam a floresta ainda poderia ser usado como cortina sonora. Bastava aguardar o bater das asas de um pássaro ou o chamado de algum bicho que se encontrasse numa árvore para que Rhodan pudesse se mover sem ser ouvido. Apenas, a operação progredia mais lentamente do que fora planejada.

Com uma trepadeira da grossura de um dedo fez uma espécie de laço. Havia uma alça na ponta. Fez o artefato avançar centímetro por centímetro, até enfiar a alça por cima do cano de uma carabina. Com um puxão fechou a alça, que encontrou apoio no dispositivo de mira. Demorou uma infinidade até que conseguisse se apossar da arma. E ainda lhe faltava um suprimento suficiente de munições e mantimentos.

A presa seguinte que escolheu foi uma caixinha com a inscrição “extrato de carne”. O laço teria que ser um pouco maior. Conseguiu aproximá-lo do objetivo. Mas quando deu o puxão final, a caixa tombou ruidosamente.

A sentinela se levantou imediatamente.

— Stoj! — soou seu comando, embora não pudesse ver Rhodan. No mesmo instante os outros soldados puseram-se de pé e num gesto automático pegaram as armas.

Rhodan percebeu imediatamente que diante dessa bateria de carabinas prontas para disparar não teria a menor chance de fugir. Para compensar a inferioridade de forças teria que recorrer à inteligência e ao blefe.

Levantou-se calmamente, apontando o cano da carabina recém-capturada para o chão.

— Levante as mãos! — foi a ordem que recebeu.

Evidentemente não tomou conhecimento dessa ordem. Aparentemente contrariado, passou por cima de uma raiz e chegou mais perto das cinco sentinelas.

— Pare imediatamente!

Rhodan fez exatamente isso. Seu rosto exibiu um sorriso matreiro e a expressão de um superior insatisfeito.

— Quem está no comando? — indagou em tom autoritário, num russo impecável.

Sua atitude autoconfiante deixou os cinco perplexos. Nenhum deles se lembrou de repetir a ordem de levantar as mãos.

— Que diabo! Será que todo mundo perdeu a fala? — esbravejou Rhodan, prosseguindo na aplicação da mesma receita. — Que tiroteio é esse? Será que estes guerreiros de salão pertencem ao seu grupo?

Finalmente um dos homens do Bloco Oriental pôs-se a falar.

— Meu nome é Ilja Iljuchin, senhor.

— Não tem nenhuma graduação?

— As graduações foram abolidas desde que o presidente Wallerinski...

— Cale a boca!

Perry usou um tom cada vez mais arrogante, pois esperava que uma voz de comando retumbante não deixaria de produzir algum efeito.

— Fiquem sabendo que sou o comissário Danov, R. O. Danov. O governo do Bloco Oriental, formado há trinta dias, desembarcou unidades pesadas em Vênus, para restabelecer a paz e a ordem. A breve palestra que mantive com os senhores me deu a impressão de que na divisão de Tomisenkow surgiram costumes bastante estranhos, que dificilmente contarão com a boa compreensão do governo. Recomendo-lhes que procurem se lembrar imediatamente do seu juramento e dos seus deveres.

— Não pertencemos à divisão de Tomisenkow, comissário.

Rhodan viu Mitja dar um soco nas costelas do interlocutor. Mas nem por isso a confissão de amotinamento poderia ser retirada.

— Mais tarde falaremos sobre os detalhes. Por enquanto façam parar esse tiroteio estúpido. Qual foi o nome que disse há pouco? Wallerinski?

— Tenente Wallerinski, comissário.

— Muito bem! Esses dois aí seguirão imediatamente para informá-lo sobre a nova situação. A partir de hoje os comissários detêm todo poder de comando em Vênus. Quero que o tenente e seus companheiros estejam aqui o mais tardar dentro de trinta minutos. O que estão esperando?!

Rhodan olhara instintivamente para os dois pacifistas que lhe pareciam ter um caráter mais independente. Precisava se livrar deles por algum tempo. Obedeceram.

Sem esboçar o menor protesto, puseram-se a caminho em direção ao norte. Quando desapareceram entre a vegetação, Rhodan ainda tinha três inimigos diante de si. Essa alteração favorável da relação de forças deixou-o mais otimista.

— Soltem as carabinas. Enquanto não tiverem renovado seu juramento, não posso concordar que usem armas.

Por alguns segundos parecia que Rhodan estava forçando a situação, que os três pacifistas estavam percebendo o blefe. Os homens hesitaram. Mas logo teve início um jogo de que mal chegou a ter consciência.

Rhodan ainda mantinha o cano da arma abaixado. O aspecto que oferecia aos pacifistas não se tornaria mais convincente se, ao erguer a pesada carabina, esta lhe caísse da mão. O ombro ferido ainda não suportaria tamanho esforço.

Mas seus olhos não haviam sido afetados. A potência daquele olhar, que não podia ser confundida com a hipnose corriqueira, mas antes representava o resultado de um treinamento hipnótico arcônida, continuava intacta.

A hesitação daqueles homens poderia se tornar perigosa.

— Larguem as armas! — voltou a ordenar.

Proferiu estas palavras sem deixar se arrastar ao tom de berreiro de um oficial subalterno. Mal chegou a levantar a voz, mas esta não deixou de produzir o efeito desejado.

Os pacifistas obedeceram.

— Meia-volta volver!

Estas palavras foram proferidas no tom incisivo de um comando de pátio de quartel.

Mais uma vez os pacifistas, perplexos, obedeceram.

Rhodan abaixou-se, apanhou as armas e atirou-as para trás de si. Todas, com exceção de uma. Tratava-se de uma pistola leve, que conseguia manter erguida apesar das dores que sentia no ombro.

— Meia-volta volver! — foi o comando que soou a seguir. Mais uma vez fitou os três homens de frente. Desta vez a pistola conferia-lhe uma superioridade total. Até a experiência seguinte foi coroada de êxito, muito embora uma pessoa menos treinada para uma obediência cadavérica naquela oportunidade já lhe estaria causando problemas. Mas para aqueles homens Rhodan era o comissário R. O. Danov. Fizeram-lhe o favor de se amarrar uns aos outros com cipós finos, mas muito resistentes. Perry cuidou do resto. Amarrou-os a três árvores diferentes, com o rosto voltado para o norte, e ainda lhes colocou uma mordaça.

Depois de terem sido submetidos a esse tratamento, os três pacifistas poderiam chegar à conclusão de terem caído num golpe atrevido. Mas essa conclusão chegou cinco minutos depois da hora.

Por mais algum tempo ouviram ruídos atrás de si, e esses ruídos davam a entender que o estranho inimigo se mantinha ocupado com seus pertences. Depois de algum tempo o ruído dos passos e das trepadeiras tiradas do caminho às pressas se afastou.

Se não fossem as mordaças, a essa hora uma praga dramática sairia dos lábios dos três homens logrados.

 

Ao chegar à sua árvore, Perry Rhodan dispôs-se a transmitir o sinal convencionado para cima. Mas Son Okura já se encontrava a seu lado.

— Quando ouvi que você falava em voz alta, percebi que tinha sido descoberto. Foi por isso que desci.

— Pois terá que subir de novo para apanhar nossa bagagem. Temos que desaparecer o mais rápido possível. Deixe para lá; mais tarde explico.

O visor de freqüências arregalou os olhos para as duas carabinas pesadas, as pistolas e a sacola com conservas. Mas logo se pôs em movimento e foi buscar as bugigangas que se encontravam na cabana.

— Temos que levar tudo isto — disse Rhodan em tom indiferente. — Quanto antes. Dentro de vinte minutos Wallerinski encontrará três homens amarrados em seu acampamento, e se a essa hora não nos encontrarmos a uma distância razoável, nossa situação poderá se tornar bem difícil.

— Agüentarei alguns quilômetros — disse o pequeno Okura em tom confiante e pegou mais de metade da bagagem.

Encontravam-se numa baixada. Às vezes a floresta era tão densa que até parecia que fora montada por um gigante, segundo um modelo sofisticado. Por maiores que fossem os esforços, o deslocamento não poderia ser muito rápido. Apesar disso, cada passo que conseguiam dar representava mais um pedaço de segurança reconquistada. A selva venusiana tinha muita vitalidade e, segundo as concepções humanas, corria à frente do tempo.

Certa vez Reginald Bell afirmara que bastava olhar atentamente durante dois minutos para ver o crescimento das plantas. Isso correspondia à verdade. Dali a meia hora terrestre os perseguidores dificilmente reconheceriam o caminho aberto por Rhodan e Okura.

 

— Minha munição acabou — fungou Thora perto do general. Este passou-lhe dois pentes de balas.

— São os únicos que ainda tenho comigo. Quando tiverem acabado terá de rastejar duzentos metros para atingir nosso grupo de abastecimento, se é que este ainda se encontra em nosso poder. Só atire quando o inimigo estiver perfeitamente visível.

— Como queira, general.

A batalha já se prolongava por quinze minutos. Mais de trinta homens estavam reunidos em torno do general, assumindo uma formação defensiva.

Nenhum dos pacifistas de Wallerinski se arriscara a se aproximar dessa fortaleza em miniatura a menos de cinqüenta metros.

A ordem de economizar a munição não se dirigia apenas a Thora. Tomisenkow mandou que a mesma fosse transmitida de homem para homem.

— Só atirem quando tiverem certeza absoluta de que vão acertar. Não poderei arrancar munição do ar.

Ninguém pensou em levantar ou abandonar a posição defensiva. O contato com o restante da tropa havia sido interrompido. Mas o tiroteio ininterrupto que vinha de várias direções provava que, em outros pontos, posições semelhantes haviam sido instaladas. Tomisenkow estava convencido de que Wallerinski já não mantinha um controle exato da situação. Por duas vezes ouvira a voz do tenente ambicioso, que afinava de raiva, dar suas ordens ao longe.

— Ouça, madame. O presidente está ficando rouco de tanto gritar. É um presidente. Ouviu bem? Um rapazola desses quer ser presidente! Vênus está transformado num hospício. Olhe! É assim que se faz. Aposto como nem estava prestando atenção. Ali à esquerda, perto das três orquídeas roxas, está um morto. É um pacifista que resolveu brincar de guerra...

Tomisenkow encerrou suas palavras com uma risada áspera.

Dali a uma hora estava rouco como seu inimigo. Só cochichava quando transmitia suas ordens nervosas.

De repente Wallerinski suspendeu o combate. Suas ordens foram ouvidas nas posições de Tomisenkow.

— Pode ser uma armadilha — disse Thora.

Os outros partilharam a suspeita manifestada por ela e aguardaram mais algum tempo. Depois disso, o general despachou mensageiros para a frente e para trás e ordenou à tropa que se mantivesse bem unida. Os oficiais foram convocados para uma conferência. Os soldados e sargentos tiveram que recolher os mortos.

Era uma atividade cansativa, que atrasou a marcha por algumas horas. Mas não era a única desvantagem que sofriam.

— O senhor ainda passará por muitas decepções neste planeta — dissera Thora há pouco tempo. E agora lembrou-se dessas palavras.

Encontraram mais de cinqüenta mortos. Mais da metade pertencia ao grupo de Wallerinski. Mas nem por isso a tropa de Tomisenkow ficou completa.

— Estão faltando vinte e sete homens — declarou Tomisenkow durante a conferência de oficiais. — Pode dar alguma explicação, coronel?

Popolzak deu de ombros.

— Provavelmente alguns mortos não foram encontrados.

— Mas não podem ter sido vinte e sete.

— Talvez o resto se tenha unido a Wallerinski. O senhor estaria em condições de dizer com quem cada um dos seus homens simpatiza?

— Ora essa, coronel! Que falas heréticas são estas? Parece que até o senhor já foi infectado por este planeta.

— Todos estamos infectados, senhor general. Cada um segundo sua predisposição individual. O senhor também não escapou.

— Queira se explicar melhor!

— O senhor vive na ilusão de que ainda comanda uma tropa disciplinada. Carrega pela selva uma burocracia que mesmo em condições normais seria considerada uma superorganização. O que há atrás disso? Tudo está apenas no papel. E é com esses papéis cobertos de relatórios, prestações de contas e relações de objetos que o senhor se diverte na sua barraca de comando. Mas do lado de fora as coisas são bem diferentes. Os homens estão esfarrapados, não ligam para qualquer disciplina assim que se encontram fora das suas vistas e maldizem seu modo irrealístico de ver as coisas. Se este resto miserável de uma divisão aero-transportada ainda se encontra com o senhor, isso é devido somente ao instinto gregário dos homens. Se pudessem, já teriam fugido há tempo. Mas para onde quer que corram, o inferno se abrirá diante deles. Só ficam por medo e pelo instinto de auto-conservação. Mas não acredite que ainda pensam que o senhor é capaz de nos levar a um paraíso. Mesmo seus planos com a fortaleza de Vênus soam como uma fala impregnada de sonho e de lenda.

Depois da longa fala de Popolzak reinou um silêncio total.

O general empalidecera até a raiz dos cabelos. Sua resposta aniquiladora não veio.

— É verdade? — perguntou depois de algum tempo.

Falava muito baixo e, todos sabiam, ele não o fazia apenas para poupar suas cordas vocais cansadas.

Suas palavras não despertaram qualquer eco. Ninguém se atreveu a comentar o problema.

— Está bem — disse Tomisenkow depois de algum tempo. — Refletirei sobre suas palavras, coronel. Acho que a esta hora todos estamos tão nervosos que não podemos dar um tratamento objetivo ao tema.

A tropa prosseguiu em sua marcha.

Às cento e quarenta e três horas atingiram o rio e usaram a passagem que ficava acima das cataratas. O amplo desfiladeiro representava um convite para prosseguir na marcha.

De repente um cabo trouxe um bilhete que um soldado encontrara pregado a uma árvore.

— Não passe pelo desfiladeiro. general — leu Tomisenkow. — Os pacifistas instalaram-se nas árvores e planejaram um ataque maciço.

— Que diabo! Quem iria me escrever uma careta dessas?

Thora foi a única que poderia responder à pergunta, pois conhecia a letra. Mas preferiu não fazê-lo.

 

John Marshall sentia que havia chegado ao fim das suas forças.

Metade de uma manhã em Vênus representa muito mais que um dia inteiro na Terra. E durante todo esse tempo Marshall sempre voltara a se esforçar para despertar a atenção das focas.

Sabia que residiam na margem oposta do braço de mar. Essa distância, que era superior a trezentos e cinqüenta quilômetros, poderia induzir dúvidas até mesmo no otimista mais inveterado. Mas, de outro lado, o mar era o habitat natural dessas semi-inteligências animais. Não era de supor que nadassem muito longe e se aproximassem da margem em que Marshall se encontrava?

Por que não o ouviam?

Teriam seguido um instinto nômade e procurado outra região? Mas quando um bando de focas desse tipo abandona certa área, esta passa a ser ocupada por outro bando da mesma espécie. Em meio à vitalidade de Vênus não poderia existir um vácuo biológico.

John Marshall se afastara bastante. A dois quilômetros a oeste do ponto em que havia atingido o mar, uma península rasa penetrava profundamente na água. Não passava de um banco de areia. A vegetação cessava depois de cem metros. As pegadas das botas de Marshall formavam um rastro de um quilômetro, que parecia conduzir a uma solidão sem esperança, a um beco sem saída.

Encontrava-se na ponta da península. Estava cercado de água de três lados. O mar estendia-se até o horizonte. A cadeia montanhosa do norte escondia-se atrás da curvatura da terra.

Por que as focas não o ouviam?

A intensidade de seus chamados telepáticos foi se tornando cada vez menor. Intercalou pausas cada vez mais longas, para recuperar as forças. Mas não era apenas a debilidade física que reduzia seu poder de concentração: a depressão psíquica o afetava muito mais profundamente.

Por que não o ouviam?

A pergunta incessantemente repetida levou a novo choque, quando subitamente acreditou ter encontrado uma resposta. As freqüências não combinam! O emissor e o receptor devem estar sintonizados segundo os princípios mais elementares da física. Marshall se lembrou do primeiro encontro com as focas. Naquela oportunidade precisaram de uma bateria completa de instrumentos para possibilitar o contato entre os animais e os homens. A linguagem das focas era transmitida pela faixa do ultra-som e por isso mesmo não era perceptível ao ouvido humano. Tornava-se necessário transformar o ultra-som através de um conversor de freqüências: após isso a linguagem das focas tornava-se inteligível através de um analisador cerebral e de um codificador positrônico.

Por alguns segundos, Marshall parecia perplexo. Logo se deu conta de que não concluíra seu raciocínio sobre o problema. Afinal, não era possível que Perry Rhodan fosse um idiota para mandá-lo sozinho para a selva a fim de executar uma tarefa que não tinha as menores perspectivas de êxito.

“Sou um ótimo telepata”, foi esta a idéia que Rhodan impôs à sua mente. “Por isso posso dispensar esses recursos tecnológicos. As ondas de pensamento sempre são ondas de pensamento, a freqüência não muda. Isso aplica-se às focas e a mim. Têm de me ouvir. A não ser que sejam tão fleumáticas que resolveram ignorar meu pedido de socorro.”

Estendera-se na areia para ter um descanso total de pelo menos trinta minutos. Não mexeria um dedo. Não pensaria em nada.

Quando os trinta minutos haviam passado, cavou um buraco com a mão e enterrou os objetos que trazia consigo. O buraco se encheu de água. Mas as conservas e a carabina pesada eram imunes à umidade.

Aliviado da bagagem foi entrando mar adentro, até que conseguiu mergulhar completamente. Sabia do perigo que corria. A água gosmenta e viscosa, totalmente diferente da que conhecemos na Terra, corria quase como o óleo. Estava muito mais impregnada de algas e microorganismos que o nosso mar e poderia lhe reservar surpresas de que a ciência humana não desconfiava. Mas Marshall não tinha outra alternativa.

A água transmite as ondas sonoras com maior rapidez e intensidade que o ar. Por que a mesma coisa não poderia acontecer com as ondas emitidas por um cérebro telepático?

Mergulhou completamente e se concentrou. Procurou usar um vocabulário bem simples, para que as focas não tivessem dificuldade em compreendê-lo.

Durante as pausas que fazia punha a cabeça fora da água para respirar.

Repetiu o jogo cinco vezes. Da última vez, os projéteis disparados por uma carabina automática atingiram a água perto dele, obrigando-o a voltar a mergulhar imediatamente.

No mesmo instante esqueceu as focas. Atrás dele havia homens que eram muito mais perigosos que o mundo selvagem de Vênus com seus mistérios.

Uma vez embaixo da água, avançou para a direita até que os pulmões vazios o forçaram a vir à tona. Deitou de costas, para poder respirar sem pôr a cabeça toda fora da água. Seus olhos revirados captaram um grupo de seis homens, que se aproximavam pela península sem demonstrar a menor preocupação de se abrigar. Tinham consciência de sua superioridade. Ao que tudo indicava, já vinham observando Marshall há bastante tempo: provavelmente teriam percebido que deixou suas armas na ponta da península. Talvez acreditassem mesmo que já o haviam liquidado. Não atiravam mais e não corriam, apenas andavam apressadamente.

A altura do banco de areia ainda oferecia alguma proteção: desde que Marshall se comprimisse bem ao solo, não seria visto. Era evidente que não poderia permanecer na água nem mais um segundo. Se os homens do Bloco Oriental chegassem antes dele ao lugar em que se encontrava sua bagagem, não teria a menor chance.

Enquanto se encontrava na água, deslocou-se por meio de movimentos rítmicos dos pés até sentir chão firme embaixo das costas. Depois disso, girou o corpo para ficar de barriga para baixo e rastejou para a frente.

Ao abrir o buraco em que enterrara sua bagagem, formara involuntariamente um monte de areia, que agora poderia salvar sua vida.

Rastejou um pouco para a esquerda, até que o monte de areia ficasse exatamente na linha de visão dos seis homens. Depois voltou a rastejar para a frente e atingiu suas armas e sua bagagem sem ser visto.

Os seis homens se encontravam a pouco mais de duzentos metros.

Enterrou-se mais um pouco no chão molhado e segurou as duas armas que trazia consigo: a pesada carabina automática que havia apresado e o radiador de impulsos facilmente manejável. Quando sentiu a coronha encostada ao seu ombro teve uma sensação de alívio.

Respirar três vezes... apontar.

O cano descansava sobre o monte de areia. A pontaria era fácil.

Puxou o gatilho. No último instante atirou o cano para cima: não queria atingir ninguém. Seria um tiro de advertência. A decência exigia que ele o desse.

Será que a decência compensaria nessa luta implacável?

Marshall não sabia. Nem por isso estava arrependido do que havia feito.

Seus inimigos se assustaram. Se eles tivessem se virado e corrido, Marshall nunca teria concebido a idéia de fazer pontaria sobre suas costas. Mas a opinião daqueles seis homens era diferente. Jogaram-se ao chão e iniciaram o ataque.

A série de impactos produzidos pelas armas de infantaria atirou a sujeira para o alto. Marshall logo percebeu que o pequeno monte de areia que tinha diante de si não poderia substituir um abrigo subterrâneo. Não devia ter mais nenhuma consideração, se estivesse interessado em sair vivo daquela armadilha.

Os homens queriam matá-lo. Seus pensamentos eram idênticos aos do homem que teve que matar poucas horas antes.

Marshall largou a carabina e pegou o radiador de impulsos. Não via os inimigos.

Abriu um fogo ininterrupto de dez segundos, formado exclusivamente por energia térmica. A energia desprendida pela arma bastaria para incendiar uma parede de aço. E as chances do homem seriam muito menores num inferno desses.

Os seis homens deviam estar mortos. Apesar disso Marshall esperou mais uma hora antes de fazer qualquer movimento.

Já eram sete os homens que tivera que eliminar. Era evidente que com isso não liquidara o grupo inimigo. Ao que parecia haviam colocado toda uma tropa de choque no seu encalço. A floresta poderia ocultar uma companhia inteira.

Suas suspeitas logo se confirmaram. Um tiro isolado soou ao longe. Na costa surgiram dois homens que corriam apressadamente por um desfiladeiro.

A demonstração feita com a arma de impulsos térmicos tornara o inimigo mais cauteloso. Mas este não tinha necessidade de assumir qualquer risco. Marshall estava preso na armadilha. A península de cerca de oitocentos metros de comprimento só se ligava à terra firme por uma estreita faixa de terra. Se tentasse escapar por ali, se transformaria no alvo de atiradores de elite escondidos na floresta. E se atirasse às cegas para a floresta estaria fazendo a maior tolice que se poderia imaginar. Diante da selva de Vênus, até um radiador arcônida de impulsos térmicos não passava de um brinquedo ridículo.

John Marshall não teve outra alternativa senão melhorar sua posição atual. Deitado de lado, abriu com a carabina sulcos profundos na areia. Aos poucos foi se formando uma cavidade achatada, na qual se abrigaria deitado. A água que foi se infiltrando não deveria incomodá-lo.

Também o monte de areia foi reforçado, não tanto em altura, mas principalmente em largura. Sua massa devia ser suficiente para resistir ao projétil disparado por uma arma pesada de infantaria. Nem poderia pensar na possibilidade do inimigo se equipar com lança-granadas ou canhões leves.

Quem dera que as focas chegassem! Bem que estava precisando de um aliado. Mas será que ajudariam um homem a lutar contra outros homens? Sem dúvida, se este homem fosse um telepata.

O que lhe inspirava maiores esperanças era a lembrança de Perry Rhodan, que pretendia segui-lo lentamente em companhia de Son Okura. Onde estariam a esta hora?

Marshall apalpou a pulseira, que além de outros equipamentos continha um mini-transmissor. As comunicações pelo rádio haviam sido proibidas. Mas Rhodan permitira o uso do emissor em caso de emergência. Portanto, a decisão caberia ao próprio Marshall.

Será que o considerariam um covarde se expedisse um pedido de socorro? Hesitou alguns minutos. Por fim, num gesto decidido, puxou a rodinha que ativava o mini-transmissor. Com a unha puxou a antena. O aparelho já estava regulado para a freqüência combinada.

— Alô, Perry Rhodan! Aqui fala John Marshall. Estou chamando Perry Rhodan. Encontro-me numa situação de emergência.

Esperou.

Passaram-se dez segundos. O impulso transmitido pelo emissor causaria a ativação automática do receptor. Finalmente veio a resposta.

— Rhodan falando! O que houve, Marshall? Conseguiu alguma coisa?

— Não. As focas não dão sinal de vida. Tentei durante várias horas. Há gente do Bloco Oriental que está no meu encalço. Conseguiram me cercar. Encontro-me numa península em que não existe qualquer vegetação. Minha única proteção consiste num monte de areia. O inimigo está protegido na floresta. Tenho uma segurança relativa diante de armas leves de infantaria. Mas tenho de contar com a possibilidade de que a patrulha inimiga consiga trazer ou já disponha de morteiros. Não há dúvida de que estão atrás de mim. Pode fazer alguma coisa para me ajudar?

— Que diabo, John! Você está mesmo em maus lençóis. Ainda bem que me avisou. Neste momento reina a maior confusão nas fileiras de Tomisenkow e dos rebeldes. Por enquanto não nos preocuparemos com os goniômetros dos mesmos. Okura e eu conseguimos passar na frente das tropas do general. Já temos uma boa vantagem. Calculo que dentro de quatro horas poderemos chegar ao lugar em que se encontra. Agüente até lá. A partir das cento e cinqüenta horas transmita um vetor de rádio de dez em dez minutos, para que possamos tomar logo a direção correta. Não desanime, Marshall! Nós o tiraremos daí.

Pouco depois do fim da palestra radiofônica, os soldados que se encontravam na praia voltaram a atirar. Em três pontos, Marshall reconheceu o fogo dos canos das armas e respondeu prontamente com o radiador de impulsos térmicos.

A mil metros de distância a arma de radiações ainda atingia o alvo com mais de dois terços de sua energia. Na beira da floresta surgiu uma incandescência azulada que produziu uma forte condensação da suculenta vegetação. Num instante um pequeno trecho da linha costeira se cobriu de uma densa camada de neblina.

— Hum — fez Marshall, satisfeito. — Nem contava com este efeito da minha arma. Abrirei um pequeno fogo de barragem e envolverei essa gente na neblina. Isso os irritará e os manterá ocupados por algum tempo.

 

— Vamos, Okura! Somos dois inválidos, mas temos de aumentar nossa velocidade mais um pouco. Será que você consegue?

O mutante tentou esboçar um sorriso confiante, mas não conseguiu. Rhodan viu que o rapaz estava realizando um esforço que ultrapassava sua capacidade.

— Venha cá, Son. Passe as três carabinas, espingardas e o saco de mantimentos. É minha vez de fazer o papel de burro de carga.

— Não fale como se eu até aqui tivesse levado a carga sozinho. E não se esqueça do seu ombro.

— Bobagem! Meu ombro está em vias de se curar. Passe para cá essas bugigangas e pegue o facão. Nos quilômetros que se seguem você irá à frente. Terá bastante para fazer.

O gracioso japonês obedeceu. Continuaram a avançar pela selva.

Há muito haviam deixado para trás a passagem pelo rio.

Rhodan, que havia recebido o pedido de socorro de Marshall, não pôde permanecer por mais tempo nas proximidades de Thora. Tinha de chegar ao mar quanto antes. Só lhe restava fazer votos de que alguém da tropa de Tomisenkow tivesse encontrado o bilhete que continha a advertência sobre a armadilha montada por Wallerinski.

A hora já passara e não se ouvira nenhum tiro.

— É claro que encontraram o bilhete — asseverou Okura. — Se Tomisenkow tivesse passeado embaixo daquelas árvores em que Wallerinski se mantinha à espreita, já teríamos ouvido o barulho de outra batalha.

— Se for assim, por enquanto Thora está em segurança. Não demorará muito e nós a tiraremos de lá. Assim que a noite descer sobre o planeta, você será nossa arma mais potente, Okura...

Perry Rhodan estava aludindo à capacidade de ver as freqüências, de que Okura era dotado. Embora para enxergar normalmente Okura precisasse de óculos, ele possuía olhos que dificilmente outro homem conhecia. Sua visão penetrava profundamente nas faixas do ultravioleta e do infravermelho. Isso significava que enxergava muito bem de noite.

— Quando a noite descer sobre o planeta... — repetiu Okura. Pelo tom em que pronunciava as palavras, até parecia que ansiava pela noite. — Não sei por que, mas acho a divisão do tempo na Terra muito mais simpática que a que temos aqui. Até o anoitecer faltam mais de três dias. E até lá temos de libertar Marshall da situação crítica em que se encontra.

— Não é até lá — asseverou Rhodan em tom áspero. — Acho que o tempo de que dispomos é muito menor.

Os últimos quilômetros foram percorridos com uma relativa facilidade. Isso não dependia tanto da natureza do terreno, mas antes da rotina que adquiriram ao lidar com a selva.

Captaram regularmente o vetor transmitido por Marshall e isso lhes permitiu seguir pelo caminho mais curto.

Pelas cento e cinqüenta e duas horas, Rhodan afirmou que estava cheirando o mar.

— Muito cuidado, Son! — advertiu. — Esta floresta está cheia de combatentes sem escrúpulos.

Subitamente viram o mar junto de si. A visão os surpreendeu um pouco. Poucos minutos antes ainda se viram diante de uma vegetação densa e rebelde.

— Hum — resmungou Rhodan. — Não se vê muita coisa. Que neblina!

Okura sorriu.

— É uma neblina muito estranha, mas não me incomoda nem um pouco. Se não me engano ela vai se tornando cada vez mais densa para o lado esquerdo.

— Você não está enganado, Son. Consegue enxergar alguma coisa?

— Enxergo muito bem. A menos de trezentos metros daqui pelo menos vinte homens estão deitados na orla da floresta.

Estão simplesmente deitados no capim, porque acreditam que a neblina os protege contra a visão.

— E Marshall?

— A península fica pouco adiante.

— Ah, sim. Vejo a ponta lá fora. E vejo um ponto negro. Deve ser John. Não compreendo como a neblina pode se concentrar num espaço tão reduzido. No resto da área a visão é perfeita.

Okura não soube responder.

— Quer que avance sozinho? — perguntou. — Será fácil achar o meu caminho.

— Um momento: isso tem tempo. Rhodan enfiou as mãos numa sacola que tirara dos pacifistas. Retirou duas cargas explosivas.

— Acho que isso os despertará. Voltaram à floresta e aproximaram-se do grupo inimigo por trás. Colocaram as duas cargas explosivas num flanco do grupo e regularam os detonadores para uma diferença de trinta segundos. Depois retiraram-se apressadamente. Muito bem abrigados, acompanharam o desenrolar dos acontecimentos.

— Falta um minuto — murmurou Rhodan.

Okura confirmou com um aceno de cabeça.

A primeira carga explodiu.

— Levantaram-se e estão correndo confusamente de um lado para o outro. Gritam alguma coisa...

— Estou ouvindo.

— A maioria deles procurou uma cobertura no próprio local.

— E os outros?

— Três estão fugindo, para o oeste. Vão correndo pela praia. Um deles parece ser corajoso: caminha em direção à floresta. Está com a carabina em posição de atirar.

— Diz que isso é coragem? Esse sujeito ficou maluco.

Os trinta segundos passaram.

A segunda carga explosiva detonou. A confusão nas fileiras inimigas foi total. Todos esperavam novas detonações, cuja origem por enquanto era desconhecida. Face a isso teve início uma retirada geral para o oeste, que degenerou até que cada um corria o mais que podia. Corriam pela costa, pois na praia o deslocamento era mais fácil.

— O acesso à península está livre — disse Okura em tom exaltado.

— Vamos, meu filho — decidiu Rhodan. Assumiram suas posições no início da península.

— Verifique o terreno a oeste — ordenou Perry, mantendo-se ocupado com o rádio. — Venha, John. Libertamos a passagem. Você nos encontrará no ponto exato em que a península se liga à terra firme.

— Pelo sagrado Universo, chefe! Isso foi um trabalho bem feito. Já dispõe de peças de artilharia?

— As explicações ficam para depois. Antes de mais nada quero ver se ainda está inteiro.

Quando o vulto de John Marshall surgiu na neblina, novas detonações rugiram ao longe. Pela sua intensidade concluía-se que eram cargas de grosso calibre.

— O que foi isso? — gemeu Son Okura.

— Acho que foi um bombardeio — disse Rhodan em voz baixa, falando entre os dentes. — Vivo dizendo que alguns cavalheiros que se encontram em Vênus erraram nos seus cálculos.

 

Haviam escapado da armadilha de Wallerinski. Mas, quando o general Tomisenkow viu os quatro helicópteros que se lançavam ao ataque, soube que fugira da chuva para entrar no chuveiro.

A primeira salva de bombas caiu quase toda na selva. Apenas as últimas três detonações vinham da área em que Tomisenkow supunha sua vanguarda.

— Isso é traição. Chamarei essa gente a prestar contas...

— Procure se abrigar — interrompeu-o uma voz. Era o coronel Popolzak. — Espalhem-se pela floresta de ambos os lados do caminho.

Num instante o desfiladeiro bem visível parecia varrido. Apenas algum material deixou de ser retirado.

Mais uma vez as cargas de TNT foram lançadas em meio à confusão da selva, atirando para o ar uma mistura de galhos, árvores inteiras e cipós.

Dentro de dois minutos tudo chegou ao fim.

— Voltarão — afirmou Thora, que com uma repugnância indisfarçável removeu a sujeira de sua roupa.

— O que é que a senhora sabe? — berrou Tomisenkow.

Thora deu de ombros.

— Não sei nada, general. O ataque não foi desfechado pelo meu exército. Mas procure refletir intensamente. Deve ter reconhecido as insígnias dos aparelhos.

— Os helicópteros são do Bloco Oriental, madame. Conheço-os pelo tipo. São os maiores, os mais rápidos...

— Já sei. Os maiores, os mais rápidos e provavelmente os primeiros do mundo — respondeu Thora em tom zombeteiro.

— Cale-se! Eu lhe...

De tanto nervosismo ninguém deixava que o outro terminasse. O general interrompeu Thora. E o coronel Popolzak interrompeu o general.

— Deve haver mortos, general. Tem alguma ordem para mim?

— Não está em condições de decidir a respeito disso, coronel? Mande recolher os mortos e reúna a divisão. Preciso falar com todo mundo.

Tomisenkow olhou para a arcônida. Subitamente segurou-a pela mão.

— A senhora virá comigo.

Thora foi obrigada a segui-lo para a coluna de comunicações, que há vários meses só existia pelo nome. Os telegrafistas eram soldados de infantaria esfarrapados como os demais.

— Kossygin! — berrou Tomisenkow.

Um cabo surgiu entre um montão de aparelhos.

— Às ordens, general.

— A proibição das comunicações radiofônicas está suspensa. Ligue um microfone e um rolo de fio magnético para gravar o som.

— Não quer se comunicar em código?

— Que diabo! Não faça perguntas, cabo.

— Desculpe, general, que freqüência devo ligar?

— Ora essa! A freqüência normal! Acha que quero ter uma conversa particular? Fique aqui mesmo, madame. Não vai fugir para a selva justamente agora!

Thora só recuara alguns passos para sentar num tronco tombado. Para surpresa de todos, sorriu.

— Não se perturbe, general. Não vou fugir.

Kossygin fez uma prova, gravando e reproduzindo sua própria conversa.

— O emissor está preparado, general.

— Aqui fala o general Tomisenkow, comandante da divisão aerotransportada Vênus. Ordem destinada aos quatro helicópteros. Pousem imediatamente em minha área e se apresentem. Acusem o recebimento e declinem o nome do oficial que se encontra no comando.

Para surpresa geral a resposta foi imediata.

— Aqui fala o coronel Raskujan. Quero cumprimentá-lo, general. Infelizmente vejo-me forçado a decepcioná-lo se acredita que pode me dar ordens. Na verdade, sugiro que capitule. Incondicionalmente, compreendeu? Depois poderemos conversar tranqüilamente sobre os detalhes.

— Será que ficou louco, coronel? De onde veio a esta hora? Há um ano seu nome me foi indicado como o do subcomandante de uma frota de reforços. Será que levou doze meses terrestres para percorrer a distância da Terra até aqui?

— A viagem foi um pouco mais rápida. — disse Raskujan com uma risada irônica. — Permita que lhe dê alguns esclarecimentos sobre a situação atual. A frota de reforços pousou há onze meses na superfície de Vênus. Acontece que não havia mais qualquer divisão que merecesse o apoio trazido pela mesma. General, quero que fique sabendo que sou a única pessoa que dá ordens em Vênus.

— Isso é um ato de insubordinação! — fungou Tomisenkow para dentro do microfone que, de tanta exaltação, mal conseguia segurar. — O senhor foi destacado para o meu serviço pela autoridade espacial e tem o dever de se apresentar a mim.

— É o que acabo de fazer. Espero que não se incomode com a demora.

A voz de Raskujan porejava de ironia, o que fez com que o general perdesse o resto de autocontrole que ainda lhe sobrava.

— Repito pela última vez, coronel Raskujan. Apresente-se imediatamente. Não vou discutir os detalhes pelo rádio. Se não obedecer a esta ordem, será chamado a prestar contas perante a instância mais elevada.

— O senhor não está avaliando corretamente a situação — respondeu Raskujan, passando a usar um tom mais amável e objetivo. — A instância mais elevada sou eu. Veja no ano passado um trecho de história. É um pedaço de passado que devia lhe ensinar alguma coisa. Quem dispõe de todo poder em Vênus sou eu, o coronel Raskujan. O planeta está submetido às minhas ordens. Pode acreditar que disponho dos meios para impor minhas ordens a quem se opuser. Não confunda seu bando de assaltantes com a divisão que já foi, general. Repito minha oferta. Recomende aos seus soldados embrutecidos que se entreguem incondicionalmente. Estou disposto a transformar todos eles em pessoas decentes e civilizadas. Tratarei cada um, segundo sua capacidade e boa vontade. Com isto eu me despeço, senhor Tomisenkow. O senhor sabe como me encontrar.

O general ainda berrou para dentro do microfone alguma coisa que soava como traidor. Mas era evidente que o interlocutor já não estava recebendo a mensagem.

Subitamente aquele homem, submetido a uma série de provações que atingiam o limite de sua capacidade psíquica, mergulhou no silêncio. Pôs a mão no pescoço.

— Não force sua voz — aconselhou Thora com a frieza que lhe era peculiar.

Seu sorriso não dissimulava o fato de que a derrota daquele homem a alegrava.

— Como é que uma coisa dessas podia acontecer, madame? Esse sujeito, o tal do Raskujan, já serviu numa companhia comandada por mim. Conheço-o como a mim mesmo. Era um ótimo soldado, e nada fazia desconfiar de que um dia enlouqueceria.

— Em Vênus todo mundo enlouquece. Será que o senhor acha que ainda é normal?

— Acontece que eu sou general e ele é coronel. Isso devia bastar.

— Parece que em Vênus não basta, general. Já ouvi falar num ditado que corre pela Sibéria. “Moscou é longe”, costumam dizer. E nunca essa frase se aplicou melhor a qualquer pessoa que ao senhor e a seu rival. Aqui Raskujan começou tudo de novo. É outro planeta, outra vida. Os fatos são estes.

— Acontece que ele usa o mesmo uniforme que eu. Isto também é um fato.

— É possível que já tenha tirado o uniforme. Além disso, os termos que usou durante a palestra e os helicópteros que comanda causaram a impressão de que o senhor se encontra diante de um poderio militar perfeitamente organizado. Não há dúvida de que é o mais forte. Mas por que digo estas coisas? O senhor tem olhos que enxergam e sabe perfeitamente que os destroços de sua divisão não passam de um grupo embrutecido.

— Madame! — indignou-se Tomisenkow, mas interrompeu-se quando viu seu olhar gelado.

Parecia que entre os dois fora erguido um muro invisível que não permitia qualquer contato. As palestras ligeiras que mantinham vez por outra não podiam alterar esse fato.

O coronel Popolzak anunciou que a divisão se encontrava em forma.

Haviam encontrado trinta e oito mortos, que foram amontoados num lugar um pouco afastado.

— Tiramos suas armas e seus papéis e depositamos tudo no estado-maior.

— Está em ordem — disse Tomisenkow com um aceno de cabeça, como se aquele instante o mais importante fosse a exata contabilização.

— Está tudo em ordem, com exceção dos feridos — observou Popolzak.

Tomisenkow lançou-lhe um olhar irritado, como se nem tivesse pensado nessa possibilidade.

— Há quinze feridos — prosseguiu o coronel.

— O Dr. Militch não está cuidando deles?

— Está cuidando conforme pode. Mas como sabe quase não dispomos mais de medicamentos e ataduras.

— Tem de se arranjar conforme pode. Para isso é médico.

Popolzak nunca vira o rosto de Tomisenkow tão estreito e decaído como estava hoje. E nunca ouvira o chefe falar com tamanha indiferença nos mortos e nos feridos. O surgimento de Raskujan devia tê-lo excitado e deprimido terrivelmente.

O general revistou a tropa. Não se podia falar numa divisão formada diante de seu superior. Nem em número, nem pela apresentação dos homens. Os grupos estavam reunidos o mais próximo que a vegetação intensa permitia.

Dirigiu um discurso aos homens, no qual exprimiu sem rebuços tudo aquilo que já transmitira pessoalmente a Raskujan pelo microfone.

— Tivemos perdas — concluiu. — Mas não porque o coronel Raskujan, o desertor, seja o mais forte, mas apenas porque nos atacou à traição. Há um ano o governo do Bloco Oriental mandou que seguisse para Vênus a fim de nos apoiar. Empregaremos todos os meios de que dispomos para obrigá-lo a prestar a obediência que nos deve. Estamos prevenidos e saberemos nos adaptar à situação. Mais alguns quilômetros, e chegaremos ao mar. Nossa marcha prossegue pelas baixadas da selva, onde a visibilidade é nula. Os grupos de observação do inimigo não nos encontrarão antes de atingirmos nosso objetivo. A prisioneira arcônida garantirá nosso acesso à fortaleza de Vênus. No mesmo instante em que chegarmos lá, ajustaremos nossas contas com Raskujan. Nem que lance cem helicópteros contra nós. Não poderá resistir ao nosso poder e será obrigado a se submeter. Os destacamentos devem se preparar para iniciar a marcha. Os chefes de companhia devem se apresentar ao Dr. Militch. O transporte de todos os feridos que não podem se locomover deve ser garantido. Muito obrigado.

 

A neblina artificial já se desvanecera.

Rhodan, Marshall e Okura penetraram um trecho na floresta. Não se via mais nada dos homens do Bloco Oriental, que se retiraram em direção ao oeste. Mas havia o risco de que também penetrassem no mato e procurassem se aproximar sorrateiramente. Uma vez que, depois da detonação das duas cargas, não houve outras explosões no local, poderiam se reanimar.

Rhodan era de outra opinião.

— As duas cargas que detonamos aqui não passam de brincadeira em comparação com aquilo que acaba de acontecer ali na selva. Não há dúvida de que foram bombas. Não me consta que qualquer dos grupos que conhecemos disponha de armas de calibre tão grosso. Só há uma explicação, que já me ocorreu há bastante tempo.

— Está pensando na frota de reforço dos russos, não é?

— Isso mesmo. Conforme sabem, há tempo vivo quebrando a cabeça para descobrir onde pode ter ficado a frota que há cerca de um ano surpreendentemente lançamos numa confusão completa pouco antes de sua chegada a Vênus. Eram duzentas naves, e destruímos apenas trinta e quatro. Uma parte deve ter pousado em Vênus. Mesmo que grande parte das máquinas restantes tenha sido destruída no planeta, um cálculo grosseiro nos leva à conclusão de que algumas devem ter chegado.

— Acredita que elas se mantiveram escondidas por um ano? — perguntou Marshall em tom incrédulo.

— Por que não? Talvez isso se tornasse necessário por razões de ordem tática.

Naquele instante o ribombar de outra série de explosões atravessou a paisagem.

— Trata-se de bombas explosivas comuns — constatou Marshall. — Devem ser os russos. De qualquer maneira não se trata de uma expedição da Terceira Potência.

— Desista dessa esperança, John. Se Bell não consegue descer, nenhuma outra nave conseguirá. A barreira erguida pelo cérebro positrônico é intransponível. Por isso também se torna evidente que essa gente que agora está lançando as bombas já se encontrava aqui quando nós chegamos. E devem dispor de aviões.

Os dois mutantes não sabiam o que dizer.

— De qualquer maneira há um certo paradoxo naquilo.

— Só para quem não sabe o que há atrás disso — asseverou Perry Rhodan.

Subitamente estacou. Okura e Marshall também inclinaram a cabeça para o lado, como se prestassem atenção a um ruído distante.

Um rugido leve e abafado enchia o ar. Não era o ribombar do bombardeio.

— Olhem! — disse Okura de repente e apontou para o sudeste. Rhodan e Marshall não viram nada.

— São helicópteros. Santo Deus, não os reconhece mais?

— Pelo ruído parece que tem razão, Son. Mas devem estar voando naquelas nuvens baixas.

— Naturalmente. Desculpe, não me lembrava.

— Continue a observá-los. Estou interessado em saber que direção vão tomar.

Num gesto instintivo manipulou seu receptor. Fez o seletor de freqüências percorrer a faixa usual das ondas ultracurtas. O condensador seletivo pôs-se a funcionar automaticamente quando houve uma recepção.

Rhodan encostou a pulseira ao ouvido e testemunhou a palestra travada entre o general Tomisenkow e o coronel Raskujan. Marshall e Okura seguiram seu exemplo, pois ambos usavam uma pulseira igual à de Rhodan.

O diálogo breve e exaltado foi bastante instrutivo. Rhodan esboçou um sorriso de satisfação, mas logo se tornou sério.

— Tive razão. Seguiremos essa gente, desde que nos façam o favor de prosseguir por mais algum tempo nas suas transmissões pelo rádio. Uma das feições características de grande parte da Humanidade consiste no fato de sempre ter que viver na discórdia, esteja onde estiver. Aqui em Vênus temos alguns cidadãos comuns do planeta Terra, e já vivem quebrando a cabeça uns dos outros. Acontece que o cosmos está à nossa porta, e temos de aprender a lidar com essas coisas. Parece que a palestra chegou ao fim. Que pena!

— Não acha que devíamos escutar mais um pouco? — sugeriu Okura.

— É claro que sim. No momento não temos coisa melhor para fazer. Mas basta que um de nós cuide disso.

Penetraram mais um pedaço na floresta. Marshall e Okura, que tinham os melhores dons de observação natural, cuidaram da retaguarda. Rhodan observou o terreno em direção ao litoral e manteve seu receptor em atividade.

Os helicópteros já haviam desaparecido sobre o mar, atrás da linha do horizonte. Finalmente, depois de passados mais de noventa minutos, palavras voltaram a soar no éter. Tratava-se de uma ligeira palestra entre um dos pilotos e a base. Mas isso bastou para que Rhodan realizasse a localização goniométrica. O resultado foi registrado imediatamente na pequena bússola giratória que também se encontrava na pulseira, para que pudesse ser interpretado posteriormente.

— Já localizamos o quartel-general de Raskujan.

A exclamação despertou a atenção dos dois companheiros.

— Onde fica? É muito longe?

— Um momento! Não sou nenhum mágico! Com a antena goniométrica só posso determinar a coordenada. Temos a direção, e isso já vale muito.

Rhodan tirou o livro de anotações do bolso e desenhou um croqui da parte norte do planeta. Registrou o mar primitivo com o braço de trezentos e cinqüenta quilômetros que se estendia terra adentro, os acidentes da área em que se encontravam e o bloco continental com a tão cobiçada base de Vênus.

— No momento estamos aqui. Aqui, mais ao sul, foram lançadas as bombas, e os helicópteros voltaram por esta rota.

Traçou uma linha para o nordeste, que atravessava a enseada e prosseguia terra adentro no lado oposto.

— A segunda coordenada deve ser estimada — prosseguiu. — Mas como dispomos de uma série de dados, poderemos calcular a distância com um grau de precisão bastante satisfatório. Conhecemos o tempo de vôo dos helicópteros. Além disso, sabemos que seu percurso toca um ponto geográfico bastante crítico. Fica aqui...

Fez uma cruz na folha de papel e os dois amigos compreenderam imediatamente de que se tratava. A cruz ficava na periferia da abóbada energética de cinqüenta quilômetros de diâmetro que cercava a base de Vênus. E ficava no ponto exato em que doze meses antes Rhodan lançara um ataque contra as forças de Tomisenkow. Numa faixa de vários quilômetros, a paisagem fora transformada em terra morta. Toda a vegetação fora extinta.

— É a picada gigante — disse John Marshall em tom pensativo.

— É claro — confirmou Rhodan. — Para qualquer um que ande vagando por Vênus, o Eldorado só pode ser nossa base. Raskujan quer entrar na fortaleza, da mesma forma que nós e Tomisenkow. E foi por isso que durante um ano não se preocupou com os grupos esparsos. Está alojado nessa grota que transformamos em terra queimada. É o campo de pouso ideal para as naves espaciais e fica a poucos quilômetros da abóbada energética. Cavalheiros, tenho a impressão de que devemos cuidar de Thora. Thora e eu somos as pessoas-chaves para o acesso à fortaleza! Raskujan deve estar de olho em Thora.

— Mas nesse caso não poderia se lançar sem mais nem menos a um ataque contra Tomisenkow — objetou Okura. — Precisa de Thora viva.

— Naturalmente. Provavelmente soube através de outros grupos esparsos como anda a situação. Os colonos ou alguns desertores do grupo de pacifistas terão contado tudo. Por certo o bombardeio não passa de uma demonstração, através da qual pretende mostrar seu poder a Tomisenkow. Um helicóptero permite uma pontaria tão exata que até se pode errar o alvo de propósito. Se minhas suposições forem corretas, dentro em breve Raskujan tentará raptar Thora. Devemos nos antecipar a ele.

Fazia horas que não se via nem se ouvia nada da patrulha formada pelos homens do Bloco Oriental. Provavelmente se juntaram à sua tropa. O bombardeio seria um motivo mais que suficiente para isso.

Rhodan voltou a olhar para o relógio. O entardecer de Vênus já ia bem adiantado. Eram cento e sessenta e seis horas, e aqui no norte os dias eram mais curtos que as noites.

— Não temos muito tempo. Vamos embora, minha gente.

Voltaram a entrar na floresta. A direção em que encontrariam Tomisenkow e Thora era fácil de determinar. Avançaram com bastante rapidez.

Até que o lagarto das árvores atacou.

Rhodan já advertira os companheiros de que nas horas de crepúsculo deveriam dedicar uma atenção especial ao imprevisível mundo animal do planeta. Naquela hora do dia quase tudo estava de pé. Os animais diurnos preparavam-se para voltar aos seus ninhos ou cavernas. E os animais notívagos iam começando suas excursões.

Dez minutos depois de iniciada a marcha, Marshall teve que matar uma barata gigante de três pernas. O animal correu para cima deles com um terrível chiado. Só esse barulho nojento fizera com que fosse notado em tempo.

— Por que será que esse bicho faz um barulho desses ao atacar? — perguntou Marshall depois de tê-lo liquidado silenciosamente com o radiador de impulsos térmicos. — Assim ele só se trai.

— Certos animais assustam suas vítimas de tal maneira que as mesmas ficam rígidas de pavor. Uma tática dessas também serve para fazer presas. Se não fosse assim, essa espécie não se teria mantido até os dias atuais.

A explicação era convincente.

Trinta minutos depois começou o verdadeiro desastre.

Marchavam em fila indiana: Okura, Rhodan, Marshall.

O lagarto das árvores deixou que Okura passasse. Por algum motivo desconhecido o animal atacou o chefe.

Estendeu sua cauda preênsil de uma altura indefinível e numa fração de segundos deu várias voltas em torno do tórax de Rhodan. Este ainda conseguiu soltar um grito. Mas logo o animal lhe apertou o peito de tal maneira que nem conseguia respirar.

Num gesto instintivo Rhodan pôs ambas as mãos naquela cauda coberta de cabelos lisos. Deixara cair o fuzil no primeiro contato. Acontece que suas mãos representavam um instrumento ridículo em comparação com a força desenvolvida nos vários metros dessa parte do corpo do lagarto. Rhodan não pôde fazer nada.

Depois de dois segundos já se encontrava na altura da cabeça de Marshall.

Num gesto instintivo o mutante levantou o radiador de impulsos, mas não se atreveu a atirar. O crepúsculo que caía, e que sob a densa folhagem ainda espalhava uma escuridão muito maior, não permitia uma visibilidade adequada. E aquela cauda executava movimentos pendulares tão intensos que Marshall não podia se arriscar a atirar. A vítima foi arrastada para o alto aos solavancos.

— Okura! — gritou Marshall.

O japonesinho já se virara.

— Está bem, John. Largue a arma. Isto é para mim.

O visor de freqüência não experimentava tantas dificuldades de visão. Viu o laço tríplice daquele rabo de cobra. Viu o tronco do lagarto que ia engrossando progressivamente e que, vinte metros adiante, se perdia em meio à folhagem.

Até então só conheciam esse animal através de descrições. Pelo que se dizia seu aspecto era semelhante ao de um jacaré. Dali provinha o nome, tirado da biologia terrestre. Porém um exame mais detido logo revelara as diferenças.

A cauda preênsil tinha cerca de quatro vezes o comprimento do resto do corpo. Desempenhava uma função tão importante como o rabo dos macacos. O lagarto propriamente dito tinha o corpo curto e coberto de pêlos lisos como um castor. Vivia principalmente nas árvores. Até chegava a construir ninhos.

O lagarto simplesmente tirara Perry Rhodan do caminho. Este já se encontrava a uns sete ou oito metros acima do solo quando Okura conseguiu levantar seu radiador de impulsos térmicos.

O laço com o ser humano surgiu diante da alça de mira. Mas logo Okura viu a parte mais espessa da cauda. Puxou o gatilho. Um raio contínuo de cinco segundos fez com que executasse dois movimentos pendulares. A ponta da cauda se destacou do tronco e caiu ao chão.

Okura e Marshall saltaram para o lugar em que Rhodan se encontrava, para libertá-lo quanto antes. De início procuraram fazê-lo da mesma maneira pela qual se desata um cordão de sapato. Mas logo perceberam que aqui teriam de lançar mão de energias de outra espécie.

Ainda perceberam que um êxito inicial não deve tornar a pessoa despreocupada. Só pensavam em tirar o chefe do laço.

— Cuidado! — gritou Okura de repente e empurrou Marshall para o lado.

O animal furioso saltou de cima da árvore. Chegou ao solo perto de Rhodan. Apesar da pequena distância não se via se este fora atingido mais uma vez.

Agora o alvo era bem grande. Nem mesmo Marshall hesitou em atirar. A uma distância reduzidíssima levantou o radiador de impulsos térmicos e puxou o gatilho. O corpo se estendeu, empinou uma última vez e se imobilizou de vez.

— Está morto — disse Okura e voltou a saltar para a frente.

Com todo azar Rhodan ainda tivera muita sorte. Por poucos centímetros não fora esmagado pelo corpo daquele gigante.

— Chefe! — gritou Marshall e procurou apalpar a cabeça de Rhodan.

— Está inconsciente — disse Okura. — Vamos, John, ajude-me. Não poderemos abrir o laço com as nossas forças. Além de tudo a ponta do rabo está presa sob o corpo do animal.

— Estou vendo. Como poderei ajudar?

— Temos de nos arriscar a dar dois cortes térmicos para seccionar a cauda o mais perto possível do corpo de Rhodan. Só assim poderemos libertá-lo.

Marshall deu um aceno automático com a cabeça. Não se sentiu muito bem quando se pôs a executar essa tarefa. Mas não havia outra alternativa. Teve que reunir todo o sangue-frio e reduzir a abertura do foco ao mínimo.

— OK — disse depois de algum tempo. — Estou pronto.

— Pois atire — pediu Okura sem fazer o mesmo. — Aqui embaixo enxergo um pouco melhor, mas minha mão não está disposta a uma tarefa destas. Não quero ter meu chefe na consciência.

— Ah, então você não quer. Mas os outros...

— Não enlouqueça agora, Marshall. Se alguém de nós tem os nervos em bom estado, é você. Se acredita que sou um covarde, poderemos tirar a prova em outra oportunidade. Hoje não. Este seria o momento mais inadequado.

— Está bem — interrompeu Marshall e fez pontaria.

Ambos os tiros foram bem sucedidos.

— Então! — disse Okura, enquanto o atirador enxugava o suor da testa.

A libertação de Perry Rhodan foi uma questão de segundos. Com um gemido rolou para o lado e ficou deitado de costas. Sua respiração era regular.

— Será que quebrou alguma coisa na queda?

— Não acredito. Em Vênus uma queda de oito metros é muito menos perigoso que na Terra. Além disso, a ponta da cauda foi uma espécie de mola. Só o aperto no tórax...

Marshall interrompeu-se. Rhodan abrira os olhos e pusera a mão no ombro. Os amigos compreenderam imediatamente. Arrancaram sua camisa e viram que a ferida causada pelo tiro voltara a se abrir.

Um dos três pôs-se a praguejar. Lembraram-se dos remédios que já haviam se acabado há tempo.

— Sente dores? — perguntou Okura. Rhodan conseguiu esboçar um sorriso.

— Acho que conseguirei andar, meus caros. Apenas esta velha ferida... — interrompeu-se para cerrar os dentes por algum motivo desconhecido. — Ajudem-me a levantar. Quero experimentar as pernas.

As pernas estavam em ordem. Mas o braço direito estava insensível e imóvel. Rhodan só poderia usar a mão esquerda.

— Sinto muito. Vocês não poderão carregar a bagagem sozinhos. E nem devemos pensar em nos separar mais uma vez. Teríamos que caminhar pelo menos cinco horas para chegar ao lugar em que Tomisenkow se encontra. Vamos voltar ao mar.

— E Thora?

— Esperaremos por ela. É bem verdade que será um jogo arriscado. Raskujan pode ser mais rápido.

— Não há dúvida de que Raskujan será mais rápido. Possui helicópteros. Quanto a nós, nem sabemos se Tomisenkow passará por aqui com sua preciosa prisioneira.

— Sabemos, sim — afirmou Rhodan. — O objetivo de todos os grupos é a base de Vênus. Tomisenkow terá de passar por aqui. É claro que não sabemos se passará alguns quilômetros mais a leste ou a oeste. Mas a praia é visível por um longo trecho. Se tivermos de esperar até o escurecer, Okura nos garantirá uma vantagem ainda maior.

A decisão de Perry Rhodan foi acatada. Puseram-se a caminho para voltar à costa, onde se manteriam na expectativa.

— Talvez volte a chamar as focas — disse Marshall. — Quem sabe se a hora não é mais propícia.

Quando se encontravam a algumas centenas de metros da orla da floresta, voltaram a ouvir ruído de motores.

— Os helicópteros estão voltando! — exclamou Okura bastante exaltado. — Quem dera que já estivéssemos fora da floresta.

— Quer bancar o guarda de trânsito? — disse Rhodan com um sorriso. — Aliás, é bom que abra os ouvidos. Por enquanto só ouço um.

— Um único? Deve ser a patrulha de Raskujan, não é?

O ruído se tornou mais forte e mais abafado. O rangido mais lento das paletas horizontais deu a entender que o aparelho se dispunha a pousar.

— Se for um helicóptero de transporte que vai largar algumas centenas de soldados por aqui estaremos perdidos — observou Rhodan. Apesar disso prosseguiu na sua marcha. Queria lançar quanto antes um olhar sobre a faixa costeira.

 

Fazia várias horas que a divisão espacial dizimada, comandada pelo general Tomisenkow, se pusera a caminho. Com o discurso que, além do apelo a uma obediência determinada pelo juramento e da promessa de um futuro tranqüilo e poderoso, continha tudo que pode ser exigido de um bom propagandista, o general conseguira mais uma vez reunir a tropa desmoralizada em torno de si.

Depois que o coronel Popolzak e Thora não admitiram a menor dúvida quanto aos planos de Raskujan, Tomisenkow parecia ter se conformado com a idéia de que o coronel desertor não se apresentaria a ele. Deixara de fazê-lo durante um ano e também deixaria de fazê-lo no futuro. Thora permitiu-se mais uma de suas observações cínicas.

— Bem, acredito que dentro em breve Raskujan se apresentará ao senhor. No entanto, não o fará para capitular, mas para apontar a pistola contra seu peito.

Pouco depois se encontraram com a patrulha do tenente Tanjev, que se retirara do mar primitivo. Tanjev apresentou um relato minucioso dos acontecimentos. A detonação das duas cargas explosivas foi interpretada como um indício de que as tropas de Raskujan já deviam ter se fixado nos trechos da floresta que ladeiam a costa. Essa circunstância exigia um cuidado redobrado.

Também os homens do Bloco Oriental olhavam para o relógio com uma freqüência cada vez maior.

As pausas intercaladas na marcha se tornaram cada vez raras e mais breves.

Para a frente!, foi a única divisa. Deviam atingir a costa antes do anoitecer.

Thora, que ultimamente dera para desenvolver uma estranha predileção pelos provérbios humanos, veio a dizer posteriormente, face a um acontecimento inesperado, que nunca se deve fazer a conta sem o dono do restaurante.

Na ponta da coluna, que marchava a uns cem metros de distância, subitamente surgiu barulho. Logo depois ouviram-se vários tiros disparados por pistolas e carabinas automáticas.

— É Raskujan! — disse Tomisenkow em tom aflito, revelando o quanto esse problema o preocupava.

Acontece que não era o coronel.

Era a própria hostilidade de Vênus.

Popolzak ia à frente com um grupo de dez homens bem equipados. Marchavam bem juntos. Os três homens que iam à frente traziam facões largos e abriam o caminho. Seus golpes eram decididos e rotineiros. Os galhos e as trepadeiras saltavam para o lado no ritmo de suas batidas. As plantas costumam agir assim em silêncio, numa atitude fatalista.

Acontece que uma das plantas deu um grito e assumiu uma atitude defensiva. À primeira vista parecia ser uma árvore como qualquer outra. Só quando esboçou uma reação ruidosa e saltou para o lado, os homens perceberam que se encontravam diante de um vampiro-carata.

Tudo se passou num espaço de poucos segundos. O vampiro-carata costuma permanecer imóvel por dias, camuflando-se sob a forma de uma árvore. Esse disfarce constitui sua proteção mais segura contra os inimigos naturais. Mas quando é atacado reage com uma rapidez surpreendente. Possui outra arma, muito mais perigosa que seu disfarce. Suas folhas, que lembram as da palmeira carata, natural da América do Sul, estão semeadas no lado inferior com milhares de pequeninas glândulas venenosas. E o animal sabe agarrar sua vítima.

Cerca de uma dezena dessas folhas se estendeu enquanto o grito de dor ainda estava soando. A maior parte do grupo encontrava-se ao alcance daqueles braços venenosos. Os gritos de pavor dos homens misturaram-se aos sons aflitos emitidos pela árvore. Os corpos eram segurados com a força de tenazes de aço. Foram atirados para o alto e as glândulas venenosas procuravam instintivamente qualquer trecho de pele desprotegida. Assim que a encontravam, começavam a agir. Pequenos ganchos preparavam o processo destrutivo, riscando a carne até que sangrasse. Uma vez aberta uma veia da vítima, por minúscula que fosse, o veneno mortal penetrava no organismo.

Alicarim, o quirguiz, foi o último homem do grupo de vanguarda.

Era um talento natural, mesmo antes de ter freqüentado a escola dura de Vênus. Num gesto instintivo segurou o homem que ia à sua frente pela gola do uniforme e puxou-o para trás. No mesmo instante levantou a carabina e pôs o dedo no gatilho.

— Afaste-se, Boris, afaste-se.

Alicarim reforçou o apelo com um desesperado pontapé. Depois esvaziou o pente de balas para dentro da massa disforme. Pouco depois Boris participou do tiroteio. Só pararam quando o vampiro-carata e suas vítimas jaziam imóveis.

Tomisenkow correu para a frente.

— Alicarim! Será que ficou louco? Dê-me sua carabina.

O quirguiz obedeceu.

— Cuide bem dela, general. Ainda precisaremos.

— Seu assassino! — esbravejou Tomisenkow. — Acaba de matar oito dos meus melhores homens. Inclusive o coronel Popolzak...

— Se acredita que fiz isso porque gosto, está enganado. Ainda não viu que isto é um vampiro-carata?

O general estacou e olhou com mais atenção.

— É isso mesmo — confirmou Boris. — Não tivemos outra alternativa, general. Ninguém poderia fazer mais nada por esses homens.

O Dr. Militch realizou um breve exame, conforme mandava o regulamento, e confirmou as palavras de Boris.

Tomisenkow devolveu a carabina de Alicarim.

— Desculpe, Ali. Devemos muito ao senhor. Está disposto a assumir o comando na ponta? Eu lhe darei alguns elementos de primeira categoria.

— Obrigado, general. Pode confiar em mim.

A marcha prosseguiu. Não havia tempo para enterrar os mortos. Dentro de quatro horas teriam que chegar ao mar.

 

Son Okura inclinou a cabeça para trás.

— Você pode atingi-lo com uma pedrada — cochichou. — É um helicóptero pequeno. Apenas cinco homens desceram.

— Alguém ficou dentro do aparelho?

— Não: todos desceram.

— Está bem. Vamos até lá: eu mesmo vou avaliar a situação.

Rhodan viu que os soldados de Raskujan marchavam em direção ao mato. No mesmo instante concebeu seu plano.

— Vamos, Marshall, Okura. Nós lhes prepararemos uma recepção condigna.

— Eles não nos verão, chefe. Não vão penetrar na floresta no lugar em que estamos.

— Mas pretendem se instalar por aqui. Não me envergonhem. São nossos inimigos, e teremos que nos defrontar com eles. Além disso, precisamos do helicóptero.

Os outros compreenderam.

— Vamos voar naquilo até a base?

— Por que não? Dentro de três horas a ordem voltará a reinar em Vênus, se vocês não cometerem nenhum engano.

Rhodan pôs a mão em forma de concha na frente dos lábios.

— Fiquem onde estão e larguem as armas.

A reação dos homens do Bloco Oriental foi totalmente diferente. E totalmente confusa.

Os cinco homens se atiraram ao chão e dispararam cegamente. Como não vissem ninguém e só pudessem determinar a direção aproximadamente pelo ouvido, os tiros passaram longe do alvo.

— Não se pode conversar com essa gente — disse Rhodan num tom de desespero. — Temos de atirar todos ao mesmo tempo, John. Dentro de poucos segundos tudo deve chegar ao fim. Já localizou o alvo?

— Sim — cochichou Marshall com a voz rouca.

— Fogo! — comandou Rhodan.

Levantaram-se e saíram da floresta.

Okura seguiu-os sem que ninguém tivesse pedido. Sabia que os cinco soldados estavam mortos. Um furor cego contra uma arma arcônida de impulsos nunca poderia produzir bons resultados.

Correram em direção ao helicóptero e entraram.

— Um helicóptero! — regozijou-se Marshall. — Uma máquina em perfeito estado. Quase não consigo acreditar.

— Devemos aproveitar as oportunidades quando se oferecem. Tudo pronto para decolar? Os vidros estão fechados?

— Tudo em ordem. Mas será que com esse ombro vai conseguir?

— Não se preocupe com isso. Procure observar o que vai acontecer lá fora. Ainda falta muito para atingirmos nosso objetivo. E, se Raskujan manda um helicóptero a algum lugar, vocês podem ter certeza de que ali mesmo logo surgirão outros.

— Quer dizer...

— É isso mesmo. É impossível, por exemplo, que voemos por cima da enseada. Não temos coletes salva-vidas. E nesta situação não gostaria de ser derrubado por cima do mar primitivo. Logo, devemos seguir a linha do litoral. Isso representa uma volta de mais cem quilômetros. Mas a segurança deve vir antes de tudo...

Perry Rhodan controlou a reserva de combustível. Balançou a cabeça. Talvez desse mal e mal. Mas Okura encontrou um tanque de reserva, e o cálculo já parecia muito mais favorável.

Rhodan tinha algum conhecimento dos modelos russos; dentro de poucos instantes conseguiu controlar a máquina. O treinamento hipnótico arcônida e um bom treinamento básico terrestre fizeram dele um homem com uma capacidade de percepção instantânea. Decolou.

A máquina ergueu-se rapidamente e seguiu na direção norte-noroeste. As ondas do mar viscoso espumavam embaixo deles.

Ainda não tinham percorrido mais de dez quilômetros quando Marshall, em tom exaltado, anunciou a presença de outro helicóptero. Okura logo lançou os olhos pela lâmina de vidro inquebrável e confirmou a observação de seu companheiro.

— Isso pode se tornar bastante desagradável, se eles reconhecerem o curso estranho que estamos seguindo. Mas por enquanto não vamos nos preocupar com isso — disse Rhodan com uma confiança fingida. — Coloquem os rádios em posição de recepção. Talvez tenhamos de reagir pelo rádio.

Isso aconteceu dali a dois minutos. O outro helicóptero pediu a senha. Uma voz grossa afirmou que ele, Rhodan, falava com a voz muito estranha. Evidentemente o interlocutor estava aludindo ao seu companheiro, morto há quinze minutos.

Rhodan arranhou o microfone com a unha e numa voz furiosa e disfarçada se lamentou de que seu aparelho não devia estar em ordem. Logo interrompeu o contato.

— Agora podem pensar o que quiserem. Não lhes pudemos dar a senha. Em compensação simulamos um defeito. Só nos resta prosseguir no vôo e aguardar. De qualquer maneira devemos ficar em rigorosa prontidão. Mantenham-me informado sobre os movimentos do inimigo.

— Já posso lhe dar uma informação — disse Okura, pouco satisfeito. — Alteraram seu curso e vêm em nossa direção. Até voam em ângulo para ganhar tempo.

— Nesse caso também alteraremos nosso curso — disse Rhodan em tom irritado e girou para bombordo. O mar deslizou embaixo deles. Dali a pouco se encontravam em cima da selva. Mas isso não adiantou muito. O inimigo também retificou seu curso.

— Que diabo! Estão nos desviando. Rhodan resolveu voar ao encontro do outro helicóptero. Dessa forma se encontraria numa posição mais favorável e não despertaria tantas suspeitas. Era bem verdade que qualquer um perceberia que os homens da Terceira Potência já haviam despertado muitas suspeitas. O inimigo não abriu margem a dúvida quanto a isso. Na altura do litoral recebeu-os com uma rajada das armas de bordo. Rhodan conseguiu se desviar para baixo, mas não conseguiu evitar um impacto na cabina. Ninguém foi ferido, mas havia algo de errado no painel.

— O medidor de pressão do óleo! — exclamou Marshall. Todos viram que não funcionava mais. Mas não saberiam dizer se o dano atingia apenas o indicador ou a tubulagem de óleo.

Antes que pudessem refletir a este respeito, tiveram que se desviar diante de outro ataque.

— Por que não respondemos ao fogo? — perguntou Marshall em tom obstinado.

— Com quê? — respondeu Rhodan, também zangado. — Essa gente tem um canhão de bordo, nós não.

— Devemos abrir a cabina e usar o radiador de impulsos térmicos.

— Pois tente!

Marshall mexeu no fecho. Mas nesse instante o inimigo se aproximou do lado e de cima. Atirou uma bomba que errou o alvo. Mas o detonador foi ativado na superfície da água. Um estilhaço ou mais atingiram o helicóptero.

— Fomos atingidos! — gritou Okura. — A cauda pegou fogo.

Rhodan se virou. Poucas vezes os amigos o haviam visto tão exaltado.

— Vamos! Desçam! Não adianta insistir. Com esta geringonça só poderemos aterrizar no inferno, se o tanque de gasolina pegar fogo. Um momento! Levem suas armas. A água não afetará o radiador de impulsos.

Marshall abriu a cabina. Rhodan baixou até chegar perto da superfície da água. A posição era favorável.

— Saltem agora!

Perry foi o último a abandonar o aparelho. Normalmente não haveria qualquer risco a uma altura de vinte metros. Mas o ombro ferido transformou o salto numa tortura.

A água se fechou por cima dele. A uma profundidade de dois metros encontrou solo firme. Empurrou-se com o pé. As roupas dificultavam a natação. Mas a gravitação reduzida, que apenas atingia 0,85g, compensava a desvantagem.

Ao emergir, Rhodan viu que Marshall se encontrava nas proximidades. Okura nadava mais ao longe. O helicóptero balançou pouco acima das ondas e chegou à praia. Antes de atingir a floresta bateu no solo e explodiu.

Os homens do Bloco Oriental sabiam que os três homens haviam saltado antes. Voltaram ao ataque; pareciam perfeitamente tranqüilos. O grito de advertência de Okura foi desnecessário. Quando o helicóptero se encontrava a uma distância de cem metros, Marshall abriu fogo. Dentro de poucos segundos o aparelho se desmanchou numa incandescência rubra e branquicenta. A profunda alteração estrutural foi acompanhada somente por um ruído surdo. Algumas peças se desprenderam e pingaram na água como tochas incendiadas, extinguindo-se com um chiado. O resto caiu na praia e esfriou lentamente. Os três homens nadaram em direção à praia.

Okura, que se encontrava mais longe da terra firme, alcançou Rhodan dentro de poucos minutos.

— Posso ajudar, chefe? Não devia usar tanto o braço direito.

— Deixe isso para lá. Estou bem. Já temos chão sob os pés; podemos caminhar.

— Eu ainda não tenho — fungou o japonês, que quis imitar Rhodan. Este riu.

— Com seu tamanho você ainda tem um pouco de tempo.

Pouco depois, também o mutante sentiu chão firme embaixo dos pés. Dali a dez minutos chegaram à praia, onde Marshall já os aguardava. Com as roupas gotejantes, os três homens conferenciaram sobre seus planos.

— Por enquanto devemos pôr a roupa no varal. Senão acabamos pegando um resfriado.

Tiraram a roupa e estenderam-na sobre a areia. Se considerarmos que a temperatura média em Vênus é de cinqüenta graus centígrados, compreenderemos facilmente que, mesmo no fim da tarde e nas latitudes situadas bem ao norte, a areia ainda era bastante quente para fazer com que a roupa secasse dentro de poucos minutos.

Marshall aproveitou a oportunidade para realizar um exame minucioso da ferida de Rhodan.

— Perdeu mais um pouco de sangue, chefe.

Enquanto fazia essa observação, arrancou uma faixa de sua camisa e tirou uma embalagem colorida do bolso. Espalhou o resto do conteúdo sobre a faixa de pano.

— É a última atadura impregnada que lhe posso oferecer. E ai de você se não deixar que eu a coloque. Son, dê uma ajuda.

Rhodan não se opôs ao tratamento. Concluído este, voltaram a pôr as roupas.

— Quando o crepúsculo chegar, voltarei a chamar as focas — disse Marshall. — Até lá devíamos nos esconder um pouco. Tenho a impressão de que Tomisenkow não demorará a aparecer por aqui.

— Esse sujeito devia criar juízo e se aliar a nós — refletiu Okura.

— Podemos lhe fazer esta oferta. Ele nos entrega Thora e nós o ajudamos na luta contra Raskujan — disse Rhodan.

— Quer se colocar ao seu lado? — perguntou Marshall. — Raskujan não seria um aliado melhor para nós? Ele tem meios de nos levar à base dentro de poucas horas.

— Tem os meios, mas não tem vontade, meu caro. Não podemos cogitar de Raskujan como nosso aliado. Então deixaremos que ele nos blefe com o fato de que dispõe de um equipamento melhor e de uma tropa praticamente intacta. Mesmo depois de um ano de permanência em Vênus, Raskujan ainda nada em abundância. Praticamente ainda não se submeteu a nenhuma prova em Vênus. Com Tomisenkow a coisa é diferente. Dispondo apenas de recursos primários, conseguiu se manter na selva inóspita de Vênus. Além disso, a posição de Raskujan é injusta.

— Quer dizer que você também faz restrições morais contra ele? — perguntou Marshall.

— Naturalmente. Não passa de um desertor. As ordens que recebeu determinam que se coloque à disposição do general. Em vez disso, quer fazer o papel de comandante.

Conversaram mais algum tempo sobre o tema, enquanto os seletores de freqüência dos receptores embutidos em suas pulseiras deslizavam de um lado para outro. Suas suspeitas íntimas logo se confirmaram. Além dos dois helicópteros destruídos, muitos outros se encontravam no ar. As mensagens trocadas entre eles iam crescendo constantemente.

— Até parece que vão lançar uma ofensiva em grande escala.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Concordo com você, Son. Mas faremos o possível para ficarmos fora disso.

 

— ALARMA!

A mensagem percorreu a coluna de Tomisenkow de ponta a ponta.

Depois que Raskujan apareceu, trazendo clareza sobre a situação reinante em Vênus, nenhum dos grupos em luta achou mais necessário brincar de esconder por meio de uma suspensão das comunicações pelo rádio. Há muitas horas reinava vida nas faixas de ondas curtas e ultracurtas. Podiam correr livremente nas imediações do planeta, pois a barreira levantada pelo cérebro positrônico só impedia qualquer contato para fora. No interior da barreira toda e qualquer forma de comunicação se tornava possível.

O sargento Kossygin mantivera o aparelho portátil ligado o tempo todo para a recepção. Por isso pôde transmitir logo a advertência ao general.

A mensagem de alarma foi seguida imediatamente de instruções mais precisas. Tomisenkow explicou que era do interesse de cada um segui-las. Os homens se dividiram em grupos e procuraram se abrigar atrás de árvores espessas. As armas leves e semipesadas de infantaria foram colocadas em posição. As metralhadoras foram montadas em tripés e posicionadas para atirar em aviões.

Tomisenkow vigiou Thora com olhos de lince.

— Não me cause problemas a esta hora, madame — disse em tom áspero. — Nos próximos minutos não terei muito tempo. Não poderei lhe indicar cada passo que deve dar. Mantenha-se sempre perto de mim.

A linguagem lacônica e enérgica parecia produzir o efeito desejado. Aborrecida, confirmou com um aceno de cabeça e não esperou que Tomisenkow a segurasse brutalmente pela mão e a arrastasse por entre a vegetação. Seguiu-o espontaneamente.

O general se dirigiu ao posto de rádio.

— Dê-me um fone, cabo.

— As ordens!

Tomisenkow ouviu um chiado que subia e descia pela escala acústica, enquanto Kossygin procurava sintonizar o aparelho. Subitamente ouviu os sons familiares de sua língua materna.

— César para Lúculo. Espalhem-se de acordo com o plano A. Repito. Nada de bombardeios enquanto a posição do inimigo não tiver sido perfeitamente determinada. O estado-maior de Tomisenkow e principalmente essa arcônida devem cair em nossas mãos intactos. César aguarda resultados da exploração do terreno. Fim!

— César e Lúculo! — gemeu Tomisenkow. — Ouçam só o vocabulário usado por esse bando de desertores. Mantenha o receptor ligado, cabo.

Kossygin confirmou com um aceno de cabeça.

Conforme se depreendia das indicações de posição não codificadas, os primeiros helicópteros haviam atingido a costa ao sul. Pouco depois o ruído dos motores se tornou perceptível.

O ninho de metralhadora que ficava mais perto do posto de rádio era comandado pelo pequeno e atarracado Alicarim.

— Olá, Ali! Aguarde minhas ordens. Não atire antes.

— Às ordens, general.

Uma voz voltou a soar nos fones de ouvido.

— Lúculo para César. Tomisenkow abandonou o acampamento anterior. Sentido provável de seu deslocamento aproximadamente para o norte. A distância é de cinco a dez quilômetros da costa.

— César para Lúculo. Utilizar visores infravermelhos para a observação no solo. Concentrar-se numa faixa de dez quilômetros ao sul da costa sul.

Nesse momento o primeiro helicóptero trovejou exatamente sobre o lugar em que a tropa de Tomisenkow se encontrava. Os homens iam respirar aliviados quando o ruído se perdeu por cima da selva. Mas logo se ouviu a mensagem seguinte.

— Lúculo para César. Localizamos o inimigo. Tomisenkow suspendeu a marcha. É provável que tenha assumido uma posição defensiva. Transmitirei as coordenadas.

— César para todos. Orientem-se por Lúculo II. Realizem um vôo visual. O grupo de desembarque Otávio desembarcará na faixa costeira e se espalhará em direção ao sul. O grupo de desembarque Cícero saltará conforme o plano AB. Ainda não abram fogo.

Furioso, Tomisenkow arrancou o fone do ouvido.

— Quem foi o idiota que andou livremente por aí? Quero que ele se apresente imediatamente.

É claro que ninguém se apresentou.

— Quando os helicópteros se aproximarem de novo, abram fogo — ordenou Tomisenkow. Fechou os olhos por alguns segundos. Thora percebeu que se esforçava desesperadamente para recuperar o autocontrole. Numa situação dessas não convém que o comando esteja nas mãos de um louco furioso.

As tropas de Raskujan se concentraram cada vez mais em torno do ponto que correspondia às coordenadas fornecidas pelo observador Lúculo II. Alguns minutos depois, seis helicópteros passaram em vôo rasante sobre as posições de Tomisenkow.

— Fogo! — berrou o general em meio ao barulho infernal produzido pelos rotores.

Alicarim leu o comando nos seus lábios mais do que o ouviu. No mesmo instante a primeira rajada saiu do cano refrigerado a ar. Poucos segundos depois as metralhadoras que se encontravam em pontos mais afastados também começaram a atirar. O som entrecortado das mesmas se misturou ao barulho dos helicópteros.

Era evidente que o coronel Raskujan subestimara em muito o poder de fogo do inimigo. De outra forma nunca teria dado ordem para um vôo rasante tão despreocupado. Alguns homens de Wallerinski que vagabundeavam pela selva deviam ter fornecido um relato distorcido sobre os remanescentes da divisão espacial. E, ao que tudo indicava, esqueceram-se de mencionar que, apesar de todo embrutecimento, os homens de Tomisenkow ainda não haviam desaprendido a arte de atirar.

Para os helicópteros, sujeitos à já conhecida proibição de atirar, o fogo de metralhadora representou uma surpresa total. Era o oposto exato do primeiro ataque.

— Atingi um! — berrou Alicarim depois das primeiras três rajadas.

O rotor do primeiro helicóptero se desintegrou. Devia ter atingido a junta. O helicóptero caiu imediatamente e com um grande estrondo atingiu uma árvore de uns sessenta metros de altura. Os destroços caíram ao chão.

Alicarim visou outro alvo, quando a derrubada de um segundo aparelho foi anunciado pelos ocupantes de um ninho de metralhadora situado mais adiante.

— Tudo está correndo segundo o programa. Continue a atirar, Ali! Atire! Aquele gorducho que está bem em cima de nós...

Os êxitos alcançados entusiasmaram Tomisenkow. Apesar disso manteve-se abrigado, pois a todo instante contava com uma reação do inimigo.

Pouco depois uma forte detonação superou todo o ruído da batalha. Alicarim derrubara mais um inimigo. Atingira-o no tanque de combustível. A máquina explodiu no ar e os homens que se encontravam no solo encolheram a cabeça. Uma chuva de destroços aquecidos e incendiados despencava em todos os cantos.

Nuvens de fumaça subiram em meio à selva.

O general levantou a cabeça.

— Tudo bem por aí?

— Aqui não aconteceu nada, general. Ali vem o número quatro. Os Raskujan estão chovendo de todos os quadrantes do céu. Esse sujeito não vai esquecer a lição que recebeu.

O quirguiz só teria razão em parte. Raskujan extraiu as conclusões cabíveis dos resultados daquele combate; mas essas conclusões não determinavam a cessação completa dos ataques.

Os helicópteros que vinham depois deram meia-volta assim que viram o que estava acontecendo com os que iam à frente. O céu estava limpo. Desta vez a divisão espacial escapara sem perdas.

— Procure entrar em contato com Raskujan — disse Tomisenkow ao sargento-telegrafista. — E dê-me o microfone e o fone de ouvido.

— O coronel já está na onda, general — anunciou Kossygin. — Quer falar pessoalmente com o senhor.

— Passe para cá! Esta o senhor não esperava, não é, Raskujan? Recomendo-lhe que se submeta às minhas ordens. Se comparecer pessoalmente dentro de duas horas, esquecerei tudo que aconteceu até aqui. Dou-lhe minha palavra de oficial.

— Muito obrigado, general! Não posso prometer que o encontro seja possível dentro de duas horas. Mas irei até aí. Não tenha a menor dúvida. Mas recomendo-lhe que antes de nosso encontro largue toda e qualquer arma que tenha em seu poder. Eu lhe garanto que não sofrerá nenhum dano pessoal.

— Raskujan! Será que o senhor não compreende que está precipitando sua própria desgraça? Não haverá nenhuma visita como o senhor imagina. Temos armas e munições para rechaçá-lo mais cem vezes...

— Ora, Tomisenkow! Quando eu o ouço falar chego a ter vergonha de saber que já foi meu professor de estratégia. Não me importarei nem um pouco de lançar meu próximo ataque com bombas de todos os calibres. Estou em condições de destruir o senhor e seus homens dentro de poucos minutos. E o trecho de selva em que se encontra está cercado por todos os lados pelas minhas tropas. Reflita à vontade. O senhor pode morrer de fome e se desgastar aos poucos numa série de combates, ou então será razoável e permitirá que eu lhe indique uma habitação condigna numa das nossas naves espaciais.

— Muito obrigado pela oferta. Sua comodidade é um sinal de decadência que não me atrai nem um pouco. Meus homens e eu estamos praticamente casados com Vênus. Mas seus heróis de salão quebrarão os ossos na selva. Não deixe de aparecer, coronel! Será tratado segundo seu comportamento, como um oficial ou como um criminoso. Pense no assunto. Fim.

Tomisenkow largou o microfone e o fone de ouvido.

— Continue com o receptor ligado, Kossygin. Mas não responda mais. Quando surgir uma palestra interessante grave-a até o fim, para que eu possa ouvi-la depois. Continuaremos a marchar em direção ao litoral.

 

Dali a pouco começou a cair uma chuva ligeira, que logo se transformou num furacão. Isso perturbava a atividade de ambos os lados. Quando as nuvens começaram a se dissipar, o crepúsculo já começara a cair sobre o planeta. Os homens praguejaram. Faltavam quatro quilômetros para atingir o mar. E, de um instante para o outro, tinha-se de contar com a presença de uma patrulha de Raskujan. Daqui em diante teriam uma vantagem ainda maior, pois dispunham de todos os equipamentos que a tecnologia humana conseguira criar até aquela data.

A marcha pela selva prosseguiu. Alicarim manteve-se mais próximo do estado-maior. O grupo de vanguarda passara a ser comandado pelo tenente Tanjev, que conhecia a região por causa das atividades de patrulhamento que já exercera.

Ainda faltavam três quilômetros para atingir o mar.

Os uniformes estavam molhados e pesavam no corpo. O calor já diminuíra e o frio da noite começou a se fazer sentir. Os homens tremiam. A escuridão já reinava sob a folhagem espessa das árvores.

De repente ouviu-se um tiro. Seguiram-se mais dois, mais três. Exclamações e gritos. A seguir veio uma rajada de metralhadora, que cessou de repente após a detonação de algumas granadas de mão.

Novo fogo de infantaria à esquerda. Metralhadoras, carabinas e pistolas.

O eco ressoou nas copas das gigantescas árvores. A gritaria dos habitantes de Vênus em fuga se misturou ao ruído e desapareceu ao longe. O ruído da batalha aumentou. Os homens de Raskujan pareciam estar em toda parte. Também no flanco direito ouviram-se tiros. A retaguarda lançou mão dos morteiros para se defender; atirou as granadas a esmo em meio à vegetação imperscrutável.

O estado-maior de Tomisenkow, deitado no capim, comprimiu-se junto a um enorme cedro de Vênus. Naquela escuridão os homens se sentiam totalmente desorientados.

— O cerco é perfeito — constatou Alicarim, sem que pretendesse se salientar. — Para escaparmos sãos e salvos teremos de manter um silêncio profundo. Assim que atirarmos seremos descobertos.

— Já foram descobertos — disse subitamente uma voz vinda da escuridão. — Levantem as mãos e deixem as armas no chão. Estão sendo observados pelo visor infravermelho. Quem fizer um movimento equívoco ou proibido será morto imediatamente. Também estou me referindo à senhora, madame. Venha até aqui. Quase chego a acreditar que é a criatura sobre cuja cabeça nosso comandante colocou um prêmio bem apreciável.

 

Dez helicópteros pesados de transporte estavam enfileirados na praia, como se estivessem preparados para um desfile.

Perry Rhodan, Marshall e Okura puseram-se em marcha a partir do lugar em que seu helicóptero havia caído. Seguiram em direção ao sudeste, onde se anunciavam operações militares de grande envergadura. Venceram os dez quilômetros em menos de duas horas, pois na praia não havia praticamente nenhum obstáculo.

O sol desapareceu no ocidente atrás da muralha formada pela selva. A chuva cessou.

Okura foi o primeiro que percebeu a presença dos helicópteros.

— São dez máquinas, chefe. Tudo coisa pesada. Diria que são helicópteros de transporte de tropas. Em cada um deles cabem dois tanques de cinqüenta toneladas.

— Isso significa que o tiroteio que estamos ouvindo ali na selva já representa a esperada ofensiva de Raskujan. Façamos votos para que nada aconteça a Thora.

Pouco depois Rhodan deu ordem de parar. Agora ele mesmo e Marshall já reconheciam os contornos dos aparelhos.

— Naturalmente estão sendo vigiados...

— Chefe, o senhor tem coragem! Quer arriscar mais uma vez?

— O que vou arriscar?

— Bem, você está cogitando de nova tentativa de fugir num desses aparelhos. Devo confessar que o plano não deixa de ser tentador. Afinal, eles não poderão nos derrubar a toda hora. Um belo dia conseguiremos passar.

— Ou então cairemos para sempre na água ou na selva.

— Bem, então você acha que não devemos?

— Um helicóptero faz muito barulho, Son. Além disso, o pessoal logo notaria a falta de um deles. Teriam um cuidado danado. Não haveria a menor chance de passarmos.

— Se é assim, qual é a razão do seu otimismo? — perguntou Marshall sem disfarçar sua contrariedade.

— Vamos refletir, minha gente. O que se pode fazer com um helicóptero de transporte?

— Pode-se voar com ele ou deixá-lo no hangar. Até hoje não tive conhecimento de outra possibilidade de utilização.

— O que acha, Okura?

O japonês deu de ombros.

— Sei tanto quanto John. Um veículo aéreo decola, voa e pousa. Fora disso é inútil.

Rhodan esboçou um sorriso condescendente.

— Então isso vem a ser o Exército de Mutantes, a unidade de elite da Terceira Potência! Muito obrigado, cavalheiros.

— Um momento, chefe. Sua pergunta se referiu a um helicóptero. Até aí nossa resposta evidentemente é correta. Se cogitarmos das peças avulsas, o caso muda de figura. Pode-se, por exemplo, retirar alguns canhões ou uma instalação de rádio. Também deve haver munições e mantimentos.

— Já está melhor, Marshall. O que faz o piloto de um helicóptero quando cai sobre o mar?

— Desce os barcos infláveis pelo pára-quedas. É isso mesmo! Precisamos de um barco inflável.

— Já estava na hora, John. Então precisamos de um barco inflável. E vamos arranjá-lo...

Elaboraram seu plano de guerra e se aproximaram dos veículos estacionados.

— Vejo sentinelas — disse Okura depois de algum tempo.

— Quantos são?

— Vejo um grupo de três. Não descobri nenhum outro. Ao que parece se sentem seguros. Naturalmente tiveram conhecimento do duelo travado entre nós e seus colegas. Mas tenho certeza de que acreditam que estamos mortos tal qual seus companheiros. E nada têm a temer da parte de Tomisenkow.

— De qualquer maneira nós os observaremos por algum tempo — decidiu Rhodan.

O momento durou uma hora inteira. Depois disso tiveram certeza de que não havia outras sentinelas. A ação programada poderia ter início.

Rhodan teve de prometer que se manteria em segundo plano. A ferida no ombro era um motivo mais que suficiente para isso. Além disso, pretendiam fazer o possível para não matar os três homens. E os dois mutantes eram os mais indicados para uma observação bem discreta. Apesar da escuridão, Okura enxergava muito bem. E Marshall eventualmente conseguia ouvir pensamentos que não se traduzissem em palavras.

— Vamos, Son.

— Um momento.

O japonês voltou a limpar os óculos. Depois pegou sua arma de impulsos e os dois se puseram em marcha.

— Será que essa gente dispõe de um visor infravermelho? Se for assim, poderão nos ver a vários quilômetros de distância.

— Poderiam, mas não o fazem. Como vê estão fumando e conversando com as mãos nos bolsos.

Okura e Marshall deitaram e se arrastaram o que ainda faltava. As rodas de dois metros do primeiro helicóptero proporcionaram-lhes uma cobertura provisória.

As sentinelas encontravam-se embaixo do quarto helicóptero.

— Atire! — cochichou Okura. Marshall fez pontaria para a aleta do terceiro helicóptero e puxou o gatilho. O alvo entrou em incandescência e desvaneceu-se em pura energia. As sentinelas puseram-se a correr aos gritos e abrigaram-se atrás do último helicóptero.

— Vamos adiante. Cuidado!

Engatinharam embaixo dos helicópteros. Depois seguiram pela direita, onde o capim lhes fornecia um abrigo mais perfeito.

— Pare! — disse Marshall com a voz baixa. — Já basta.

— Alô. Vocês aí. Levantem-se e ponham os braços para cima.

Okura encolheu a cabeça, pois sua mensagem foi respondida com um tiro. Se o russo fez sua pontaria apenas de ouvido, aquele tiro era uma verdadeira obra de mestre.

— Não desista — insistiu Marshall.

— Se dentro de dez segundos vocês não se levantarem e vierem até aqui sem armas, transformaremos um dos helicópteros em ar. Vou contar...

Os homens do Bloco Oriental ainda não estavam convencidos. Voltaram a atirar. Depois de alguns segundos Okura atingiu um dos helicópteros que caiu aos pedaços e deixou de existir.

— Isto foi o segundo ato, cavalheiros. Marshall estava com o rosto grudado na areia. Infelizmente tinha que ler os pensamentos de três homens ao mesmo tempo, o que dificultava sua tarefa. De qualquer maneira identificou algumas idéias que traziam consigo ares de capitulação.

— Converse mais um pouco, Son. Daqui a pouco vão cair.

— Repito pela última vez. Levantem-se e venham para cá. Sem armas e com os braços levantados. Se agirem em conformidade com as minhas ordens, nada lhes acontecerá. Se quiséssemos matá-los, já o teríamos feito. Dentro de dez segundos mais um helicóptero vai desaparecer...

Okura contou em voz alta.

Quando chegou ao seis, um dos homens se levantou. No oito foi seguido pelos outros. Aproximaram-se conforme lhes fora ordenado: sem armas e com os braços levantados.

Foram amarrados e colocados em helicópteros.

Marshall disparou um tiro de sinalização com o radiador térmico. Breve-longo-breve. Era o sinal convencionado com Rhodan, que chegou pouco depois.

— Isto está liquidado, chefe. Os três estão amarrados no interior dos primeiros três helicópteros. Podemos examinar o conteúdo dos outros.

— Foi um serviço bem feito.

Conforme era de esperar, os helicópteros dispunham de um equipamento completo para a guerra. O barco inflável trazido pelos russos era uma maravilha de conforto. Tratava-se de um barco de plástico capaz de enfrentar o alto-mar, e que cabia num armário embutido. Uma vez inflado, pelo menos quinze pessoas cabiam nele. Os tubos de ar comprimido estavam ao lado do mesmo. Até havia um veículo de duas rodas para o transporte terrestre.

— Levem tudo para fora — disse Rhodan apressadamente, quando Marshall anunciava entusiasticamente suas descobertas.

— Encontrei remédios — exclamou Okura.

— Vamos levar — disse Rhodan laconicamente.

Depois de quinze minutos haviam levado para fora do helicóptero, além do barco e do motor de popa, uma caixa com mantimentos, vários tanques de combustível e a farmácia de bordo. Tudo foi colocado no carro de duas rodas.

Foram até a água pelo caminho mais curto. Depois seguiram paralelamente à costa. Marshall voltou para apagar a pista. Depois destruiu o helicóptero saqueado. Dessa forma os homens do Bloco Oriental nunca se lembrariam da possibilidade de que alguém lhes houvesse roubado um precioso barco de plástico.

O rastro de vários quilômetros que as rodas produziram na areia logo foi apagado pela água.

Quando Rhodan, Marshall e Okura desembarcaram numa pequena baía, podiam se sentir seguros de que ninguém havia adivinhado a finalidade de sua operação.

 

O crepúsculo que durara várias horas foi substituído pela noite.

Voltaram a ouvir as transmissões dos homens do Bloco Oriental e souberam que Tomisenkow e Thora haviam sido capturados vivos. Os cumprimentos triunfais que Raskujan e seus oficiais trocavam pelo rádio Fizeram com que um sorriso condescendente surgisse nos lábios de Rhodan.

— Esse homem nem imagina quanto seu triunfo passageiro me deixa satisfeito. Pelo menos podemos ter certeza de que nos próximos dias não se matarão com bombas. E esse coronel com toda sua arrogância bem que precisaria de um encontro com Thora. O orgulho dela lhe quebrará os dentes.

— Não me lembro de o ter visto tão malicioso — constatou Okura.

— Ora, Raskujan é meu inimigo. Portanto, meus desejos devem ser bem compreensíveis... Além disso, o novo aprisionamento de Thora poderá nos trazer vantagens de ordem tática. Aquela arcônida orgulhosa talvez distraia Raskujan um pouco, se conseguir se transformar num problema para ele. Até agora a fortaleza de Vênus tem sido seu único problema.

 

Inflaram o barco. Era imponente, e estavam satisfeitos com sua presa.

O exército invasor de Raskujan já se retirara há algumas horas. Só deixara atrás de si destroços e solidão.

Marshall e Okura trocaram a atadura da ferida de Rhodan.

— Como se sente, chefe?

— Obrigado, já estou melhor. Com este equipamento não tenho outra alternativa senão ficar logo curado, para que alcancemos a fortaleza de Vênus dentro de algumas horas. Acho que já passamos pelo pior. Vamos dormir um pouco. Daqui a duas horas colocaremos o barco na água.

Rhodan deitou de costas e fitou a espessa camada de nuvens. O vento abriu uma brecha e deixou entrever uma estrela.

— Veja só! — disse Rhodan. — O Universo ainda existe. Quase que me esqueço.

 

                                                                                            W. W. Shols  

 

                      

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