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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CHOQUE MORTAL - P2 / Clive Cussler
CHOQUE MORTAL - P2 / Clive Cussler

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

DIAMANTES... UMA GRANDE ILUSÃO

30 de janeiro de 2000

Ilha Gladiator, mar da Tasmânia

A casa de Dorsett, na ilha, ficava numa selada entre dois vulcões extintos. A frente oferecia vista para uma lagoa, que se tornara um movimentado porto das atividades de mineração de diamante. Duas minas na encosta de ambos os vulcões estavam em operação quase contínua desde o dia em que Charles e Mary Dorsett voltaram casados da Inglaterra. Havia os que afirmavam que o império da família fora inaugurado naquela ocasião; outros, porém, conhecendo melhor a his­tória, sustentavam que tudo na verdade começara quando Betsy Fletcher achou aquelas pedras esquisitas e as deu aos filhos como brinquedo.

A moradia original, quase toda construída de madeira, com telhado de folhas de palmeira, fora demolida por Anson Dorsett, que projetou e construiu a vasta mansão que continuava existindo. Reformada por sucessivas gerações, foi finalmente ocupada por Arthur Dorsett. O estilo se baseava no modelo clássico — um pátio central cercado de varandas com portas que davam para trinta cômodos, todos mobiliados com antigüidades coloniais inglesas. A única instalação moderna visível era uma enorme antena parabólica, que se erguia num jardim exuberante, e uma grande piscina no centro do pátio.

 

 

 

 

Arthur Dorsett desligou o telefone, saiu do escritório e foi para a piscina, à beira da qual Deirdre, com um reduzidíssimo biquíni, estava languidamente estendida numa espreguiçadeira, a absorver com cui­dado o sol tropical na aveludada pele.

— É melhor que os meus superintendentes não a vejam assim — resmungou ele.

A moça ergueu lentamente a cabeça e olhou para o próprio corpo.

— Não sei qual é o problema. Estou de sutiã, não estou?

Depois, quando são estupradas, as mulheres se queixam.

Você não há de querer que eu ande por aí vestindo um hábito.

Acabo de falar com Washington — disse ele em tom sombrio. — Parece que sua irmã desapareceu mesmo.

Sobressaltada, Deirdre se sentou e toldou os olhos com a mão.

Suas fontes são fidedignas? Eu, pessoalmente, contratei os me­lhores detetives para vigiá-la, todos ex-agentes do serviço secreto.

Foi confirmado. Eles falharam e a perderam de vista depois de uma corrida maluca na periferia.

Não é possível que Maeve tenha conseguido despistar investiga­dores profissionais.

Pelo que me disseram, contou com ajuda.

Deirdre torceu os lábios, numa careta.

Quer que eu adivinhe? Dirk Pitt.

Dorsett fez que sim.

Esse cara está em toda parte. Boudicca o teve nas mãos, na mina da ilha Kunghit, mas o deixou escapar entre os dedos.

Senti que ele era perigoso quando salvou Maeve. Devia ter com­preendido quanto era perigoso quando frustrou meu plano de ser re­tirada do Polar Queen de helicóptero, depois de haver colocado o navio em rota de colisão com os rochedos. Pensei que estaríamos livres dele depois disso. Não imaginei que fosse se intrometer em nossas atividades no Canadá.

Dorsett fez um gesto para uma linda chinesa postada junto a uma das colunas que sustentavam o telhado da varanda. Usava um vestido de seda com aberturas laterais.

Traga-me um gim — ordenou. — Copo longo. Não gosto de miséria quando bebo.

Deirdre ergueu seu copo vazio.

Outro collins.

A garota se apressou a preparar os coquetéis. Notando que o pai estava interessadíssimo no traseiro da moça, Deirdre revirou os olhos.

Francamente, papai, ir para a cama com as criadas! O mundo espera coisa melhor de um homem com a sua fortuna e o seu status.

Há coisas que ultrapassam os limites das classes sociais — disse ele com seriedade.

Que mais sabemos de Maeve? Ela certamente contratou Dirk Pitt e seus amigos da ANPS para ajudá-la a recuperar os gêmeos.

Dorsett desviou a atenção da empregada chinesa que se afastava.

Ele pode ser esperto, mas não vai invadir a ilha Gladiator tão facilmente como entrou em nossa propriedade de Kunghit.

Maeve conhece a ilha melhor do que qualquer um de nós. Vai encontrar um meio.

Mesmo que cheguem a desembarcar — ele ergueu o dedo, apon­tando pelo arco da porta do pátio para a direção geral das minas —, não conseguirão aproximar-se a menos de duzentos metros da casa.

Deirdre sorriu com maldade.

Acho mais seguro preparar uma boa acolhida.

Nada de acolhida, minha filha. Não aqui, na ilha Gladiator.

Você tem outro plano. — Foi mais uma afirmação que uma per­gunta.

Dorsett fez que sim.

— Com a ajuda de Maeve, eles, sem dúvida, pensarão num meio de passar pela segurança. Mas, infelizmente, não terão tempo de empregá-lo.

Como assim?

Vamos cortar-lhes o passo, como se diz, antes que tenham chegado à praia.

Muito bem pensado, meu pai.

Ela se levantou e foi abraçá-lo. Sentiu-lhe o cheiro. Desde a infância conhecia o perfume daquela colônia cara, um produto especial, impor­tado da Alemanha, com um odor almiscarado e sóbrio que lembrava pastas de couro, o cheiro indefinido das salas de reuniões na lã de um finíssimo terno.

Dorsett a empurrou com relutância, irritado com a crescente sensação de desejo pela própria filha.

Quero que você coordene a missão. Como sempre, Boudicca en­trará em ação.

Aposto a minha participação na Dorsett Consolidated que você sabe onde encontrá-los. — Sorriu com malícia para ele. — Qual é o cionograma?

Desconfio que Pitt e Maeve já saíram de Washington.

Ela o encarou.

Já? Tão depressa?

— Como Maeve não tem sido vista em casa e Pitt não põe os pés há dois dias no escritório da ANPS, é óbvio que estão juntos e à procura dos gêmeos.

Onde devo estender a armadilha? — perguntou ela com um brilho felino nos olhos, certa de que seu pai tinha a resposta. — Num aero­porto? Num hotel de Honolulu, de Auckland ou de Sídnei?

Ele sacudiu a cabeça.

Nada disso. Eles não nos farão o favor de viajar em linhas co­merciais nem de se hospedar em hotéis afastados. Vão tomar um pe­queno barco ou um jatinho da frota da ANPS e usar as instalações da agência como base.

Eu não sabia que os americanos tinham uma base permanente para estudos oceanográficos na Nova Zelândia nem na Austrália.

Não têm — retrucou Dorsett. — Mas contam com um navio de pesquisas, o Ocean Angler, que está num projeto de estudo do fundo do mar em Bounty Trough, a oeste da Nova Zelândia. Se tudo correr conforme o plano, amanhã, a esta hora, Pitt e Maeve estarão chegando a Wellington e encontrando o navio da ANPS no porto.

Deirdre encarou o pai com indisfarçável admiração.

Com sabe disso?

Ele sorriu com orgulho.

Tenho minha própria fonte na ANPS, a quem pago muito bem para que me mantenha informado sobre as descobertas de pedras pre­ciosas submarinas.

Nesse caso, nossa estratégia consiste em mandar Boudicca e sua tripulação interceptar o navio de pesquisas e fazer com que desapareça.

Não seria inteligente — disse Dorsett, sem rodeios. — Boudicca soube que Dirk Pitt, de algum modo, descobriu a "operação limpeza" dos escombros dos navios afetados e identificou nosso iate. Se man­darmos um barco da ANPS para o fundo do mar, eles desconfiarão imediatamente de que estamos por trás disso. Não. Precisamos dispen­sar um tratamento mais delicado ao caso.

Não temos muito tempo. Só vinte e quatro horas.

Se você partir depois do almoço, poderá jantar em Wellington. John Merchant e sua equipe de segurança estarão a sua espera no ar­mazém fora da cidade.

Pensei que John Merchant ainda estivesse na ilha Kunghit com uma fratura no crânio.

Apenas uma ruptura no couro cabeludo. O bastante para enlou­quecê-lo de desejo de vingança. Insistiu muito em participar da matança.

E você e Boudicca?

Bem, eu vou de iate e devo chegar por volta de meia-noite — respondeu Dorsett. — Ainda teremos dez horas para os preparativos.

Isso significa que seremos obrigados a pegá-los durante o dia.

Dorsett a segurou com tanta força pelos ombros que ela se encolheu.

Estou contando com você para superar os obstáculos, minha filha.

Foi um erro achar que podíamos confiar em Maeve — disse Deirdre com rancor. — Voce devia saber que ela viria atrás dos filhos na primeira oportunidade.

A informação que ela nos passou antes de desaparecer teve sua utilidade — murmurou Dorsett, tentando desculpar-se pelo equívoco, coisa que não lhe era nada fácil.

Se Maeve tivesse morrido na ilha Seymour, não estaríamos com este problema agora.

A culpa não é exclusivamente dela. Maeve não sabia que Pitt havia entrado na ilha Kunghit. Ele jogou a rede, mas, seja qual for, nenhuma informação que tenha conseguido obter pode nos prejudicar.

Apesar do pequeno contratempo, Dorsett não estava muito preocu­pado. As minas se situavam em ilhas cujo isolamento impedia protestos organizados. Seus vastos recursos tinham sido mobilizados. A segu­rança fora reforçada, para que os jornalistas fossem mantidos a quilô­metros das minas. Os advogados da empresa estavam trabalhando in­tensamente a fim de contornar os possíveis empecilhos legais, ao passo que o setor de relações públicas vinha tratando de rotular os relatos das mortes no oceano Pacífico como boatos infundados espalhados pelos ecologistas e, ao mesmo tempo, tentavam atribuir a culpa a hipotéticas experiências secretas do Exército americano.

Dorsett falou com renovada calma:

Daqui a vinte e três dias, qualquer furacão que o almirante San­decker possa levantar morrerá de morte natural quando fecharmos as minas.

Precisamos ter cuidado para não dar a impressão de estar reco­nhecendo a nossa culpa ao encerrar as atividades, papai. Podemos ficar expostos a uma montanha de processos movidos pelos ecologistas e pelos familiares das vítimas.

Não se preocupe, minha filha. E humanamente impossível reunir provas de que nossos métodos de mineração são a causa das conver­gências ultra-sônicas que exterminam a vida orgânica. Seriam necessá­rios meses e meses de testes científicos. Dentro de três semanas, os cientistas nada terão a estudar. Fizemos planos para remover todo ves­tígio de nossas escavações. A praga acústica, como insistem em chamá-la, será "manchete de ontem".

A chinesinha voltou com a bebida numa bandeja, serviu-os e, silen­ciosa como um fantasma, recolheu-se à sombra da varanda.

Agora que Maeve nos traiu, que pretende fazer com Sean e Michael?

Vou providenciar para que ela não torne a vê-los nunca mais.

Dá pena — disse Deirdre, passando o copo gelado na testa. Dorsett tomou o gim como se fosse água. Deixando o copo de lado, olhou para a filha.

Como assim? De quem você está com pena, de Maeve ou dos gêmeos?

De nenhum deles.

De quem, então?

Deirdre exibiu um sorriso malévolo.

Dos milhões de "peruas" do mundo inteiro, quando descobrirem que seus diamantes valem menos do que vidro.

Nós vamos acabar com a festa — disse Dorsett com uma garga­lhada. — Isso eu lhe prometo.

 

Wellington não podia ficar num lugar mais bonito, observou Pitt à janela do avião da ANPS. Cercada por uma enorme baía e um labirinto de ilhas, por montanhas baixas, entre as quais o monte Vitória era o pico mais alto, e uma vegetação exuberante, o porto se orgulhava de ser um dos mais lindos do mundo. Aquela era a quarta viagem que ele fazia à capital da Nova Zelândia em dez anos, e raramente a tinha visto sem chuva e ventania.

O almirante Sandecker dera com apreensão e muita relutância a sua bênção à missão de Pitt. Considerava Arthur Dorsett um homem ex­tremamente perigoso, um cúpido psicopata capaz de matar sem sombra de remorso. Sua colaboração consistiu em autorizar uma aeronave da ANPS a transportar Giordino e Pitt, com Maeve, à Nova Zelândia, onde usariam um navio de pesquisas como base de operações para o resgate, embora sob a rigorosa condição de que nenhuma vida corresse perigo na tentativa. Pitt concordou alegremente, sabendo que as únicas pessoas a se arriscar seriam os três, posto que o Ocean Angler estava a uma distância segura da ilha Gladiator. De acordo com o plano, valer-se-iam de um batiscafo para chegar à lagoa, desembarcar e ajudar Maeve a recuperar os filhos antes de voltar ao navio. Tratava-se de um plano sem tecnicidade, pensou Pitt, divertido. Uma vez na praia, tudo de­penderia de Maeve.

Olhou para o corpulento Giordino, que, pilotando o jatinho Gulfstream, ia vestido como que para passar longas férias ao sol numa praia exótica. Os dois eram amigos íntimos desde o dia em que se conheceram e trocaram socos na escola primária. Tinham jogado no mesmo time de futebol do ginásio e, mais tarde, no da Academia da Força Aérea. Recorrendo descaradamente à influência do pai — George Pitt, senador pela Califórnia — para que os mantivessem juntos, Dirk conseguiu treinar com Al na mesma escola de vôo e participar do mesmo esquadrão tático no Vietnã. No que dizia respeito às mulheres, no entanto, eram bem diferentes. Ao contrário do companheiro, que se sentia mais â vontade nas relações estáveis, Giordino preferia as aventuras fugazes.

Pitt se levantou, voltou ao compartimento de passageiros e olhou para Maeve, que havia dormido intermitentemente durante a longa viagem de Washington e parecia nervosa, cansada. Mesmo com os olhos fechados, mudava constantemente de posição no estreito sofá, mostran­do que ainda não havia transposto o umbral do sono inconsciente. Ele estendeu o braço e a sacudiu com delicadeza.

Já vamos aterrissar em Wellington — disse.

Maeve abriu os lindos olhos azuis.

Estou acordada — murmurou com voz sonolenta.

Como se sente?

Ela se levantou e fez um gesto afirmativo.

Pronta para o que der e vier.

Giordino inclinou o avião numa curva suave e foi descendo devagar até que os pneus tocassem o solo, erguendo um pouco de fumaça. Taxiou rumo à área reservada às aeronaves particulares.

Está vendo algum carro da ANPS? — gritou por cima do ombro para Pitt.

O familiar branco e turquesa não estava em parte alguma.

Deve ter se atrasado — disse Pitt. — Ou talvez nós é que tenhamos chegado adiantados.

Quinze minutos adiantados, segundo o painel — respondeu o italiano.

Uma caminhonete se aproximou, e o funcionário na carroceria fez um sinal para que ele o seguisse a um espaço aberto entre um avião de carreira e um jatinho executivo. Obedecendo, Giordino parou quando as extremidades de suas asas ficaram niveladas com as dos aviões e iniciou o procedimento de desligar os motores.

Pitt abriu a porta de passageiros e desceu os poucos degraus. Maeve o seguiu, pondo-se a caminhar de um lado para outro, a fim de flexionar os músculos e as articulações, rígidos e tensos após a longa viagem. Olhou para o estacionamento em busca do transporte.

Pensei que o pessoal do navio viesse nos buscar — disse entre dois bocejos.

Devem estar chegando.

Giordino passou a bagagem para fora, trancou o avião e, quando um súbito aguaceiro lavou o aeroporto, foi com Pitt e Maeve buscar abrigo sob uma das asas. Quase tão depressa quanto começou, a chuva se deslocou para o outro lado da baía, e o sol apareceu em meio â branca massa de nuvens em movimento. Poucos minutos depois, um micro-ônibus Toyota, com as palavras Porto Transporte pintadas nas laterais, apareceu espirrando a água das poças. O motorista desceu e, correndo, aproximou-se do avião. Era magro, simpático e vestia-se como um falso caubói.

Um de vocês se chama Dirk Pitt?

Sou eu.

Muito prazer, Carl Marvin. Desculpe o atraso. O furgão que temos a bordo do Ocean Angler ficou sem bateria, e tive de pedir emprestado o ônibus da capitania do porto. Espero que não tenha sido um incômodo para vocês.

De jeito nenhum — disse Giordino com azedume. — Nós achamos uma delícia o tufão que passou quando estávamos esperando.

O motorista não fez caso do sarcasmo.

Faz muito tempo que chegaram?

Há uns dez minutos — disse Pitt.

Marvin colocou as malas no bagageiro do microônibus e arrancou assim que os passageiros se sentaram.

A doca onde o navio está ancorado não fica longe daqui — disse cordialmente. — Não vamos demorar.

Pitt e Maeve sentaram-se juntos e foram de mãos dadas, conversando em voz baixa, feito namoradinhos. Giordino se instalou no banco da frente, bem atrás do motorista. Passou a maior parte da viagem estu­dando uma fotografia aérea da ilha Gladiator, que o almirante Sandecker havia tomado emprestada do Pentágono.

O tempo passou depressa. Não tardou para que deixassem a estrada principal e entrassem na movimentada zona portuária, que ficava bem perto do centro da cidade. Uma frota de cargueiros internacionais, re­presentando boa parte das companhias asiáticas de navegação, estava ancorada junto aos longos cais flanqueados por gigantescos armazéns. Ninguém deu atenção ao tortuoso caminho entre edifícios, navios e enormes guindastes que o motorista tomou, passando a observar os passageiros pelo espelho retrovisor quase com a mesma freqüência com que fazia curvas e dobrava esquinas no porto.

O Ocean Angler está do outro lado do próximo armazém — disse, fazendo um gesto vago na direção de um objeto invisível através do pára-brisa.

Estará pronto para zarpar quando embarcarmos? — quis saber Pitt.

A tripulação só está esperando a sua chegada.

Giordino olhou, desconfiado, para a nuca do motorista.

Qual é a sua função no navio? — perguntou.

A minha? — disse Marvin sem se voltar. — Sou fotógrafo, trabalho com a equipe de filmagem.

Gosta de navegar com o capitão Dempsey?

Ele é boa gente. Tem muita consideração pelos cientistas e por seu trabalho.

Giordino reparou que Marvin os fitava pelo retrovisor. Ficou sorrindo até que este voltasse a prestar atenção à rua. Então, protegido pelo respaldo do banco a sua frente, escreveu no verso de um recibo de combustível de avião, que lhes haviam dado quando abasteceram em Honolulu, antes de partir para Wellington, dobrou-o e, disfarçadamente, jogou-o por cima do ombro, no colo de Pitt.

Absorto em seu diálogo com Maeve, este não tinha registrado as palavras trocadas entre o motorista e Giordino. Desdobrou despreocupadamente o papel e leu a mensagem:

ESTE CARA É UM IMPOSTOR.

Pitt se inclinou para a frente e falou em tom normal, sem olhar com desconfiança para o motorista.

Por que resolveu bancar o estraga-prazeres?

Giordino se voltou e falou em voz baixa:

O amigo aqui não é do Ocean Angler.

Como assim?

Eu o enganei, dizendo que Dempsey é o capitão.

Paul Dempsey está no comando do Ice Hunter. O capitão do Angler é Joe Ross.

Mais uma coisa. Você, eu e Rudi Gunn organizamos os projetos de pesquisa da ANPS e distribuímos o pessoal antes de ir para a An­tártida, certo?

Certo. E daí?

Pois o cara aí na frente não só tem um carregado sotaque texano como diz ser fotógrafo da equipe de filmagem do Ocean Angler. Per­cebeu?

Percebi — murmurou Pitt. — Não recrutamos nenhuma equipe de filmagem para esse projeto. A bordo, só há técnicos em sonar e uma equipe de geofísicos para pesquisar o fundo do oceano.

E esse cara está nos levando diretamente para o inferno — disse Giordino, olhando para fora, na direção de um armazém do cais, pouco adiante, com um enorme letreiro pintado na porta dupla: Dorsett Con­solidated Mining Ltd.

Como eles temiam, o motorista entrou por ali, passando entre dois homens que envergavam o inconfundível uniforme do serviço de se­gurança da Dorsett Consolidated. Estes apertaram rapidamente o botão que fechava as portas do armazém e trataram de seguir o microônibus.

Em resumo, parece que eles nos pegaram — disse Pitt.

Qual é o plano agora? — perguntou o italiano, já sem se preocupar com o tom de voz.

Não houve tempo para uma reunião. O micro-ônibus continuava avançando no escuro interior do armazém.

É jogar o amiguinho Carl para fora e sair logo daqui.

Giordino não esperou um segundo. Com quatro ligeiríssimos passos, estava aplicando uma sufocante gravata no homem que se apresentara como Carl Marvin. Com uma rapidez incrível, arrancou-o do volante, abriu a porta do ônibus e o jogou para fora. Como num número en­saiado, Pitt saltou sobre o assento do motorista e tomou o controle do veículo. Pisou com força no acelerador, avançando instantaneamente sobre um grupo de homens armados, que se espalharam como folhas secas na ventania. Diretamente à frente do ônibus, havia duas pilhas de caixas de papelão com eletrodomésticos japoneses. Embora cons­ciente do iminente impacto, Pitt não mudou de expressão. E as caixas, assim como uma infinidade de tostadeiras, liqüidificadores e cafeteiras, foram para os ares feito estilhaços de granada de morteiro.

Fazendo o microônibus derrapar, Pitt entrou bruscamente por um amplo corredor, entre pilhas de caixotes de mercadoria, fez mira numa grande porta de ferro e se abaixou sobre o volante. Com um estrondo metálico que arrancou a porta dos trilhos, fazendo-a subir toda retorcida, o Toyota saiu do armazém para o cais; Pitt teve de virar rapidamente a direção para não colidir com a base de um altíssimo guindaste.

Aquela região do porto estava totalmente deserta. Não se viam navios ancorados a carregar e descarregar. Operários ocupados em consertar parte do cais estavam em horário de almoço; sentados lado a lado numa longa barricada de madeira, que bloqueava um caminho que saía do molhe, preparavam-se para comer. Pitt buzinou e girou o volante com violência, a fim de não atropelá-los; os sobressaltados trabalhadores sentiram um calafrio ao ver o veículo avançar depressa em sua direção. Pitt quase conseguiu contornar a barricada sem tocá-la, mas uma ponta do pára-choque traseiro esbarrou num dos suportes verticais, fazendo girar a estrutura e espalhando os pobres operários em todas as direções.

Desculpem o mau jeito! — gritou ele pela janela.

Lamentava não ter prestado mais atenção. Só então percebeu que o motorista impostor tinha tomado um caminho tortuoso e confuso jus­tamente para confundi-los. Um plano bem elaborado. Ele não tinha idéia do rumo a tomar para sair na estrada que levava à cidade.

Um longo caminhão com carreta atravessou a sua frente, bloqueando-lhe a passagem. Num ziguezague maluco, Pitt se contraiu desesperadamente ao volante, tentando evitar o choque com o gigantesco veí­culo. Ouviram-se um estrondo, o barulho estridente do vidro partido e o torturado gemido do metal quando o micro-ônibus, escapando to­talmente ao controle, colidiu de lado com a frente do caminhão. Com muita dificuldade, Pitt conseguiu corrigir a trajetória, mas, agastado ao ver jorrar um líquido diante pára-brisa quebrado, deu uma dura pan­cada no volante. O impacto tinha deslocado o radiador, soltando as mangueiras. Não era o único problema. O pneu direito havia estourado e a suspensão dianteira saíra do alinhamento.

Você faz questão de bater em tudo o que atravessa o seu caminho, não? — perguntou Giordino com irritação. Sentado no chão, do lado ainda não amassado do microônibus, protegia Maeve com o braço enor­me.

Foi distração minha — disse Pitt. — Alguém se machucou?

O suficiente para processá-lo por sevícia — respondeu Maeve, sem perder o bom humor.

Giordino pôs a mão num galo que lhe crescia a um lado da cabeça e olhou com tristeza para Maeve.

Seu velho é incorrigível. Soube que a gente ia chegar e preparou uma festa-surpresa.

Alguém da ANPS está metido nisto. — Pitt olhou rapidamente para Maeve. — Espero que não seja você.

Eu não! — disse ela com firmeza.

Giordino foi para a traseira do ônibus e olhou pela janela, para ver se estavam sendo perseguidos. Dois furgões pretos, desviando-se do caminhão avariado, vinham no seu encalço.

Vem vindo um monte de gente para cá.

Mocinhos ou bandidos? — perguntou Pitt.

Detesto ser portador de más notícias, mas nenhum deles está de quepe branco.

É isso que chama de identificação positiva?

Quer que eu seja mais específico? Pois bem, os dois furgões têm o logotipo da Dorsett Consolidated Mining nas portas.

Não!

Se você quiser, quando eles estiverem mais perto, peço ao mo­torista que venha lhe mostrar os documentos.

Não, obrigado. Eu tenho espelho retrovisor.

Com os estragos que fizemos, devia haver uma dúzia de radio-patrulhas no nosso encalço — resmungou Giordino. — Por que a polícia não está cumprindo o seu dever de patrulhar o porto? Eles deviam vir prendê-lo por imprudência ao volante.

Se eu o conheço bem, meu pai deve tê-los subornado para que tirassem folga hoje — disse Maeve.

Sem refrigeração, o motor esquentou rapidamente e começou a soltar nuvens de vapor. Pitt mal conseguia controlar o veículo semidemolido. As rodas dianteiras, ambas deslocadas para fora, pelejavam para andar em direções opostas. De súbito, apareceu diante do ônibus uma estreita ruela entre dois armazéns. Numa última cartada, Pitt resolveu entrar por ali. E, ao ver que a viela conduzia a um molhe deserto, cuja única saída era aquela pela qual acabava de passar, compreendeu tarde de­mais que a sorte não estava a seu lado.

Fim da linha — suspirou.

Giordino olhou para trás novamente.

Os caras também notaram. Até pararam para festejar.

Maeve?

Ela foi para a frente do ônibus.

Sim? — disse calmamente.

— Quanto tempo você consegue reter a respiração?

Não sei. Um minuto talvez.

Al? Que eles estão fazendo?

Vêm vindo para cá. Estão com uns porretes bem feios na mão.

Querem nos pegar vivos. Muito bem, sentem-se e segurem-se.

Que vai fazer? — perguntou Maeve.

Nós vamos nadar um pouco, meu amor. Al, abra todas as janelas. Quero que esta coisa afunde como um tijolo.

Espero que o mar esteja morno — disse o italiano ao abrir as janelas. — Detesto água fria.

Pitt se dirigiu a Maeve.

Respire fundo e retenha o máximo de oxigênio na corrente san­güínea. Expire e volte a inspirar quando mergulharmos.

Aposto que sei nadar melhor do que você debaixo da água — desafiou ela com valentia.

Pois tem uma boa chance de prová-lo agora — respondeu Pitt, sem ocultar sua admiração. — Não perca tempo esperando um bolsão de ar. Saia pela janela a sua direita e nade para baixo do cais assim que parar de entrar água no ônibus.

Pitt pegou sua maleta de lona, abriu o zíper, tirou um embrulho de náilon e o enfiou na cintura, criando um curioso volume na frente da calça.

Que diabos você está fazendo? — quis saber Maeve.

É o meu estojo de emergência. Nunca saio de casa sem ele.

Estão chegando — anunciou Giordino, sem perder a tranqüilidade.

Pitt vestiu um blusão de couro, fechou-o até o pescoço, voltou-se e segurou o volante.

Lá vamos nós!

E, acelerando, ajustou o câmbio automático em low. Com o pneu dianteiro direito totalmente no chão e soltando uma densa fumaça, que a tudo encobria, o amassado ônibus deu um salto à frente e começou a ganhar velocidade para mergulhar. Não havia parapeito no cais, ape­nas uma viga horizontal de madeira, que funcionava como meio-fio para os veículos. As rodas da frente receberam toda a força do impacto. A já debilitada suspensão dianteira partiu-se quando o chassi sem rodas tombou sobre ela, os pneus traseiros a girar furiosamente, queimando borracha e empurrando para o mar o que restava do Toyota.

O ônibus pareceu cair em câmara lenta até o momento em que a frente, mais pesada, atingiu estrepitosamente a água. A última coisa que Pitt se lembraria de ter ouvido, antes que o pára-brisa caísse para dentro e a água salgada entrasse pela porta, foi o sonoro chiado do superaquecido motor ao ser inundado.

O microônibus oscilou, ficou um instante suspenso e então afundou no verde mar da baía. Quando correram à beira do cais e olharam para baixo, os seguranças de Dorsett só conseguiram ver uma nuvem de vapor, uma massa de bolhas a murmurejar e uma mancha de óleo que se dilatava lentamente na superfície. As ondas provocadas pelo impacto encresparam a água, espalhando-se rumo aos pilares sob o molhe. Eles ficaram aguardando, na expectativa de ver emergirem as cabeças; po­rém, das profundezas não lhes chegou sinal de vida.

Pitt calculou que, naquelas docas que acomodavam grandes navios cargueiros, a profundidade da água devia ser de pelo menos quinze metros. Com as rodas para baixo, o ônibus desceu até a lama do fundo, agitando os sedimentos, que se levantaram numa espiralada nuvem. Largando o volante, ele foi para a traseira ver se Giordino e Maeve não estavam feridos e se haviam conseguido sair pelas janelas. Tendo constatado satisfeito que ambos haviam escapado, saiu pela abertura e mergulhou na cegante neblina do areão em suspensão. Ao irromper num lugar limpo, descobriu que a visibilidade era melhor do que es­perava e que a temperatura do mar tinha caído um ou dois graus. A maré cheia trazia água cristalina, que lhe permitia distinguir facilmente cada pilar do cais. Calculou que tinha uns vinte metros de visibilidade.

Reconheceu os vultos indistintos de Maeve e Giordino cerca de qua­tro metros mais adiante, nadando impetuosamente no vazio. Olhou para cima, mas a superfície era apenas um borrão de luz difusa que vinha do céu nublado. Então a água escureceu consideravelmente quan­do ele começou a nadar entre as colunas, sob o molhe. Na escuridão, perdeu os outros dois de vista; seus pulmões começaram a se contrair, ressentindo a crescente falta de ar. Ele nadou em ângulo rumo à su­perfície, permitindo que a flutuabilidade de seu próprio corpo o levasse para cima. Ia com a mão erguida para não bater a cabeça em alguma coisa dura ou cortante. Finalmente emergiu em meio a um mar de sujeira flutuante. Respirou muitas vezes o ar salgado, depois olhou a sua volta à procura de Maeve e Giordino, que já estavam boiando a pouca distância, mais atrás.

Aproximaram-se. Pitt sentiu admiração por Maeve ao vê-la sorrindo.

Perdeu — sussurrou ela, para não ser ouvida pelos homens de Dorsett, lá em cima. — Aposto que quase se afogou tentando me ul­trapassar.

O velhinho aqui ainda está em boa forma — murmurou ele.

Acho que ninguém nos viu — cochichou o italiano. — Eu já estava quase sob o molhe quando me livrei da nuvem de areia.

Pitt apontou para a direção geral da área principal do cais do porto.

A melhor opção é nadar por baixo do píer até achar um lugar seguro onde sair.

E se entrarmos no primeiro navio que encontrarmos? — sugeriu Giordino.

Maeve não concordou. Seus longos cabelos loiros flutuavam como algas douradas num lago.

Se os capangas de meu pai seguirem a nossa pista, ele encontrará um meio de obrigar a tripulação a nos entregar.

Giordino olhou para ela.

Não acha que a tripulação nos abrigaria até colocar-nos sob a proteção das autoridades locais?

Pitt sacudiu a cabeça, espalhando gotas de água.

Se você fosse o capitão de um navio ou o chefe da guarda por­tuária, acreditaria em três ratos quase afogados ou na palavra de um representante de Arthur Dorsett?

Provavelmente não em nós.

Se conseguíssemos chegar ao Ocean Angler...

E a primeira coisa que eles esperam que façamos — disse Maeve.

Quando estivermos a bordo, os homens de Dorsett terão de suar muito para nos tirar de lá.

Só um problema — lembrou Giordino. — Não temos a menor idéia de onde o Ocean Angler está ancorado.

Pitt endereçou ao amigo um ar de censura.

Detesto quando você está lúcido.

Ele tem casco turquesa e cabinas brancas como o Ice Hunter? — indagou Maeve.

Todos os barcos da ANPS têm a mesma cor — respondeu o ita­liano.

Então eu o vi. Está no píer 16.

Eu desisto! Onde fica o píer 16?

É o quarto ao norte daqui — respondeu Pitt.

Como você sabe?

Pelos letreiros nos armazéns. Vi o número 19 antes de saltar do píer 20.

Agora que sabemos onde estamos e aonde devemos ir, é melhor começar a nadar para lá — propôs Giordino. — Se eles não forem completamente idiotas, logo mandarão mergulhadores procurar os cor­pos no ônibus.

Cuidado com os pilares — avisou Pitt. — Abaixo da superfície, estão cheios de colônias de mariscos. As conchas cortam como navalha.

Foi por isso que você trouxe o blusão de couro? — quis saber Maeve.

A gente nunca sabe quem vai encontrar — disse Pitt secamente.

Sem nada ver, não havia como calcular a distância que deviam per­correr para chegar ao navio de pesquisas. Poupando energia, foram nadando lenta e continuamente, de peito, pelo labirinto de pilares, tra­tando de afastar-se dos homens de Dorsett lá em cima, no molhe. Che­garam à base do píer 20, passaram por baixo da área dos armazéns principais, que se comunicava com todas as docas, e rumaram para norte, para o píer 16. Já se havia passado quase uma hora quando Maeve avistou, na água, o reflexo do casco turquesa abaixo do cais.

Chegamos — gritou, feliz.

Não comemore tão cedo — alertou Pitt. — A doca pode estar toda tomada pelos gorilas de seu pai.

O casco do navio se encontrava a apenas dois metros dos pilares. Pitt nadou até ficar exatamente em baixo da rampa de embarque. Er­guendo a mão, segurou uma saliência do reforço dos pilares e saiu da água. Trepando pelas vigas divergentes, até chegar à borda superior da doca, assomou vagarosamente e examinou as cercanias. A área pró­xima da rampa de embarque estava deserta, porém havia um furgão da segurança de Dorsett parado no outro lado da entrada mais próxima do píer. Ele contou quatro homens num espaço aberto entre pilhas de contêineres de cargueiro e vários automóveis estacionados perto dos navios ancorados em frente ao Ocean Angler.

Descendo abaixo da borda da doca, disse a Maeve e Giordino:

Nossos amigos estão vigiando a entrada do píer a uns oito metros daqui, longe demais para impedir-nos de subir a bordo.

Não foi necessária nenhuma outra palavra. Pitt os ajudou a subir na viga. Depois, a um sinal dele, os três seguraram a trave horizontal de madeira, que servia de meio-fio, treparam e, contornando dois gi­gantescos cabeços de amarração, Maeve à frente, subiram a rampa em disparada.

Uma vez na segurança do navio, os instintos de Pitt começaram a fazer hora extra. Ele acabava de cometer um grave erro, e não havia como consertá-lo. Percebeu isso ao ver os homens que vigiavam a doca caminhar lenta e metodicamente na direção do Ocean Angler, como se apenas tivessem saído para dar uma volta. Não havia gritaria nem confusão. Eles agiam como se tivessem esperado o tempo todo que sua presa aparecesse de súbito e fosse buscar refúgio no navio. Olhando para o convés, onde não havia sinal de movimentação humana, com­preendeu que algo estava muito errado. Alguém da tripulação devia ser visto num navio em atividade. Os batiscafos robotizados, o equi­pamento de sonar, o longo guindaste para descer às profundezas, os sistemas de busca estavam abandonados. Era rara a ocasião em que um engenheiro ou cientista não estivesse lidando com os cobiçados aparelhos. E ele soube que o impensável tinha acontecido quando uma porta se abriu no tombadilho e uma figura familiar saiu ao convés.

— Que prazer revê-lo, senhor Pitt — disse John Merchant com um amplo sorriso. — Você não desiste mesmo, hein?

 

Naqueles primeiros minutos de frustração, Pitt se sentiu invadido por uma quase tangível onda de derrota. Primeiro, pelo fato de ter sido capturado sem esforço, e irremediavelmente, naquela armadilha. Segundo, porque Maeve acabava de cair nas garras do pai. Terceiro, porque ele e Giordino com toda certeza seriam assassinados. Era uma pílula amarga demais para engolir.

Era também dolorosamente óbvio que, contando com a ajuda de um agente infiltrado na ANPS, os homens de Dorsett tinham chegado pri­meiro ao Ocean Angler e, mediante um subterfúgio qualquer, subjuga­ram temporariamente o capitão e a tripulação, assumindo o controle do navio até agarrá-los. Era tão previsível, tão transparente, que Arthur Dorsett tomaria medidas extraordinárias, elaboraria uma estratégia su­plementar para o caso de Pitt e Giordino escaparem do armazém e, de algum modo, conseguirem refugiar-se no barco... Pitt achava que devia ter antecipado a situação e tratado de subir a bordo com um plano alternativo, mas subestimara o malvado barão do diamante. Que Dor­sett, qual um pirata, invadisse um navio ancorado no porto de uma grande cidade simplesmente não passara por sua cabeça.

Ao ver o pequeno exército de homens fardados sair dos esconderijos, alguns com cassetetes da polícia, outros empunhando armas com balas de borracha, compreendeu que a esperança estava perdida. Mas não irremediavelmente. Pelo menos enquanto tivesse Giordino a seu lado. Voltou-se para ver como o amigo reagia ao choque terrível. Ele parecia suportar uma aula chatíssima no colégio. Não apresentava reação. Limitava-se a olhar intensamente para Merchant, como que a tomar-lhe as medidas para o caixão: um olhar fixo, Pitt reparou, e estranhamente parecido com o que Merchant lhe estava endereçando.

Pitt abraçou Maeve, cuja postura soberana começava a claudicar. Seus olhos azuis estavam desolados. Eram os olhos muito abertos e vidrados de quem sabia que o mundo acabava. Depois, baixando a cabeça, escondeu o rosto nas mãos e se pôs a soluçar. Não tinha medo por si própria, mas pelo que seu pai haveria de fazer com os meninos. Principalmente agora, quando ficara flagrante que ela o enganara.

Que você fez com a tripulação? — perguntou Pitt a Merchant, notando o curativo em sua cabeça.

Convenci os cinco homens que ficaram a bordo a permanecer no alojamento.

Pitt o fitou, intrigado.

Só cinco?

Só. Os outros foram convidados a uma festinha oferecida pelo senhor Dorsett no mais luxuoso hotel de Wellington. Em homenagem aos bravos exploradores das profundezas, ou coisa que o valha. Uma empresa de mineração como a Dorsett Consolidated tem grande inte­resse nos minerais que possam ser descobertos no fundo do mar.

Vocês se prepararam bem — disse Pitt com frieza. — Quem, da ANPS, lhes contou que íamos chegar?

Não sei como se chama. É um geólogo que mantém o senhor Dorsett informado sobre os seus projetos de mineração submarina. É apenas um, dentre muitos, que fornece à empresa informações sobre os negócios e os governos no mundo inteiro.

Uma rede de espionagem privada.

E das melhores. Nós os estamos seguindo desde que vocês de­colaram de Langley Field, em Washington.

Os guardas que os cercavam nada fizeram para prendê-los.

Não vão nos algemar?

Meus homens têm ordens de atacar e ferir a senhorita Dorsett se você e seu amigo tentarem fugir. — Os dentes de Merchant brilharam ao sol entre os lábios finos. — Não são ordens minhas, claro. São da senhorita Boudicca Dorsett.

Um doce de mulher — disse Pitt causticamente. — Aposto como adorava torturar as bonecas quando era menina.

Ela tem planos interessantíssimos para o senhor.

Como vai sua cabeça?

Muito bem. Não me impediu de atravessar o oceano para buscá-lo.

Mal posso agüentar o suspense. Aonde vamos?

O senhor Dorsett não demora. Vocês todos serão transferidos a seu iate.

Pensei que a mansão flutuante ainda estivesse na ilha Kunghit.

Estava. Há alguns dias. — Merchant sorriu, tirou os óculos e, com uma pequena flanela, lustrou meticulosamente as lentes. — O iate dos Dorsett tem quatro motores turbodiesel ligados a jatos aquáticos, que produzem um total de dezoito mil HP, coisa que permite à em­barcação de oitenta toneladas navegar a cento e vinte quilômetros por hora. Você vai ver que o senhor Dorsett é um homem de gosto singular.

Na verdade, ele deve ter uma personalidade tão fascinante quanto o caderno de endereços de um monge enclausurado — disse Giordino de pronto. — Que faz para se divertir, além de contar diamantes?

Por um breve instante, Merchant fuzilou Giordino com os olhos, e seu sorriso desapareceu; logo, ele se recompôs e seu olhar sem vida retornou como que aplicado por um maquiador.

O humor, cavalheiros, tem seu preço. Como a senhorita Dorsett pode testemunhar, o pai não acha muita graça em piadinhas satíricas. Sou capaz de jurar que amanhã, a esta altura, vocês não terão motivo algum para sorrir.

Arthur Dorsett era muito diferente do que Pitt imaginava. Esperava que um dos homens mais ricos do mundo, pai de três mulheres belís­simas, fosse razoavelmente bonito e tivesse certo grau de sofisticação. No entanto, a pessoa que estava a sua frente, no salão do mesmo iate a que o haviam arrastado na ilha Kunghit, não passava de um gigante do folclore teutônico. Parecia saído de uma caverna subterrânea.

Dorsett era pelo menos meia cabeça mais alto do que Pitt e duas vezes mais largo dos quadris aos ombros. Não ficava bem sentado a uma escrivaninha. Era evidente que Boudicca herdara dele os olhos negros e vazios. Dorsett tinha rugas na pele curtida do rosto, e suas mãos ásperas, riscadas de cicatrizes, indicavam que ele não tinha medo de trabalho pesado. As pontas do bigode basto e hirsuto ainda guar­davam vestígios do almoço. Porém o que mais parecia incompatível com um homem de sua estatura internacional eram os dentes amarelecidos e irregulares, que pareciam as teclas de marfim de um velho piano. Quando fechados, seu lábios ainda escondiam tanta feiúra, mas, curiosamente, ele raramente os fechava, mesmo quando não estava fa­lando.

Encontrava-se diante da escrivaninha de madeira lavrada, com tampo de mármore, flanqueado por Boudicca, a sua esquerda, com calça de brim, uma blusa amarrada pouco acima do umbigo e estranhamente abotoada até o pescoço, e por Deirdre, sentada numa cadeira revestida de seda, com uma elegante blusa de gola rulê sob a camisa que fazia jogo com a saia. Cruzando os braços e sentando-se na escrivaninha, com um pé no carpete, Dorsett sorria como um monstruoso bruxo velho. Seus olhos sinistros examinaram cada detalhe de Pitt e Giordino, espetando-os como agulhas da cabeça aos pés. Voltou-se para Merchant, que estava de pé atrás de Maeve, a mão enfiada por baixo do paletó esporte de tweed, segurando o coldre com a pistola automática.

Muito bem, John — grunhiu. — Você previu cada movimento deles. — Erguendo a grossa sobrancelha, olhou fixamente para os dois prisioneiros sujos e molhados antes de voltar a encarar Maeve, que tinha o cabelo ensopado grudado na testa e no rosto. Depois, abrindo mais o sorriso medonho, fez um gesto afirmativo para Merchant. — Mas, pelo que vejo, nem tudo correu como você esperava. Parece que eles estão saindo de uma fossa.

Adiaram o inevitável, tentando fugir pelo mar — disse Merchant com polidez. A segurança e a soberba se espelhavam em seus olhos. — Mas, no fim, vieram cair diretamente nas minhas mãos.

Algum problema com a guarda portuária?

As negociações e as compensações foram fáceis — gabou-se Mer­chant. — Quando o seu iate se aproximou do Ocean Angler, os cinco tripulantes detidos foram soltos. Tenho certeza de que qualquer queixa formal que os funcionários da ANPS venham a apresentar esbarrará na indiferença burocrática das autoridades locais. O país deve muito à Dorsett Consolidated por sua contribuição à economia.

Você e seus homens serão recompensados — anunciou Dorsett com um gesto de aprovação. — Todos os envolvidos receberão um generoso prêmio.

E muita gentileza sua, patrão — ronronou Merchant.

Por favor, deixe-nos a sós agora.

Merchant olhou desconfiado para Pitt e Giordino.

É preciso vigiar esses homens com cuidado — protestou com brandura. — Não o aconselho a arriscar-se com eles.

Acha que vão tentar dominar o iate? — Dorsett soltou uma gar­galhada. — Dois homenzinhos indefesos contra uma dúzia de seguranças armados? Ou teme que pulem no mar e nadem até a praia? — Pela ampla janela, apontou para a estreita faixa do cabo Farewell, na ilha do Sul da Nova Zelândia, que desaparecia rapidamente na esteira do iate. — Atravessar quarenta quilômetros de mar infestado de tuba­rões? Eu duvido.

Meu dever é protegê-lo e aos seus interesses — disse Merchant, afastando a mão da arma, fechando o paletó e caminhando lentamente para a porta. — E eu o levo a sério.

Seu trabalho será recompensado — retrucou Dorsett, já impa­ciente.

Assim que Merchant saiu, Maeve gritou violentamente para o pai:

Eu exijo que você me diga se Sean e Michael estão bem, se o seu estúpido superintendente de mina não lhes fez nenhum mal!

Sem dizer uma palavra, Boudicca avançou um passo, estendeu a mão num gesto que Pitt tomou por uma manifestação de carinho, porém esbofeteou a irmã com tanta força que quase a derrubou. Maeve recuou tropegamente e foi segura por Pitt, enquanto Giordino se colocava entre as duas mulheres.

Bem mais baixo, o italiano precisou erguer a cabeça para encarar Boudicca. Foi como se estivesse olhando para o alto de um edifício. A cena se tornou ainda mais cômica porque ele teve contornar a barreira dos seios volumosos.

Eu sei uma coisa de você — gracejou. Pitt conhecia bem o olhar do amigo, que tinha muita habilidade para julgar as aparências e os caracteres. Devia ter visto alguma coisa, alguma esquisitice infinitesimal, que lhe escapara. E estava se expondo a um risco que, em sua avaliação, justificava-se. Rindo com malícia, percorreu Boudicca dos pés à cabeça. — Quer apostar comigo?

Apostar?

Isso mesmo. Aposto como você não raspa as pernas nem as axilas.

Fez-se silêncio, não tanto pelo choque quanto pela curiosidade. De súbito, com o rosto retorcido de cólera, Boudicca ergueu o punho para bater. Giordino permaneceu como estava, simplesmente esperando a pancada, sem esboçar o menor movimento para esquivar-se ou defen­der-se.

A giganta bateu com mais força do que muitos boxeadores olímpicos. Seu punho cerrado atingiu o italiano na face e no queixo. Foi um soco violento, demolidor, não o que se podia esperar de uma mulher, e teria nocauteado qualquer homem. E qualquer homem passaria mais de vinte e quatro horas inconsciente, ou seja, qualquer um dos que ela havia esmurrado com descontrolada fúria. Giordino foi arremessado para o lado, recuou um passo, sacudiu a cabeça, como que para se recuperar, e depois cuspiu um dente no caríssimo tapete. Incompreensivelmente, porém, além do alcance do entendimento, avançou até ficar uma vez mais debaixo do saliente busto de Boudicca. Não havia animosidade em seu olhar, nenhuma expressão de vingança. Limitou-se a fitá-la, pensativo.

Se você tiver um mínimo de decência e senso de lealdade, vai me dar uma chance de devolver a porrada.

Divertida e confusa, Boudicca esboçou um sorriso enquanto massageava a mão dolorida. A indignação não tardou a dar lugar à fria hos­tilidade. E ela o fitou com os olhos de uma cascavel pronta para inocular a mortífera peçonha.

Você não passa de um idiota — resmungou com desdém.

E, ato contínuo, agarrou-lhe o pescoço com uma só mão. Giordino manteve os braços colados ao corpo, não esboçou o mais leve movi­mento para detê-la. Seu rosto foi perdendo a cor e seus olhos começaram a saltar das órbitas. Mesmo assim, nada fez para defender-se. Ficou olhando para ela sem mudar de expressão.

Pitt se lembrava bem da força da mão de Boudicca; os hematomas em seus braços o atestavam. Confuso com a inusitada demonstração de passividade do amigo, afastou-se de Maeve e estava disposto a dar um pontapé na rótula da giganta quando Dorsett gritou:

Largue-o! Não suje as mãos nesse rato!

O italiano continuou como uma estátua num parque quando a mu­lher lhe soltou a garganta e, esfregando a mão, recuou um passo.

Da próxima vez — rosnou —, meu pai não estará por perto para lhe salvar a pele encardida.

Você já pensou em se tornar profissional? — perguntou Giordino roucamente, apalpando de leve as marcas descoradas no pescoço. — Conheço um circo que a contrataria sem pestanejar e...

Pitt pousou a mão no ombro do amigo.

Antes de pedir revanche, vamos ouvir o que o senhor Dorsett tem a dizer.

Você é mais esperto do que seu companheiro.

Só quando se trata de evitar a dor e de lidar com criminosos.

É isso que você pensa de mim? Que sou um criminoso comum?

Considerando que é responsável pelo assassinato de centenas de pessoas, a resposta seria um desqualificado sim.

Dorsett deu de ombros e se sentou à escrivaninha.

Lamentavelmente foi necessário.

Pitt sentiu raiva dele.

Não me lembro de nenhuma justificativa para tirar a vida, a sangue frio, de homens, mulheres e crianças inocentes.

Para que perder o sono por conta de algumas mortes quando, no Terceiro Mundo, milhões morrem de fome e doença ou nas guerras?

Deve ser pela educação que eu recebi — respondeu Pitt. — Minha mãe me ensinou que a vida é um dom.

A vida é um investimento, nada mais — riu Dorsett. — As pessoas são como ferramentas velhas que, depois de usadas, são jogadas no lixo ou destruídas porque já não têm serventia. É pena que um homem como você seja tão limitado por princípios morais. Está condenado a perseguir uma miragem, um mundo perfeito que nunca existiu e nunca existirá.

Pitt se sentiu diante de um louco varrido.

Você também persegue uma miragem.

Dorsett sorriu sem humor.

Ledo engano, senhor Pitt. Eu a terei nas mãos antes de morrer.

Sua filosofia de vida é doentia e distorcida.

Até agora eu me dei muito bem com ela.

Qual é a sua desculpa para não deter as mortes em massa causadas pelas atividades ultra-sônicas de suas minas?

Extrair mais diamantes. Que outro motivo eu teria? — Dorsett encarou Pitt como se estivesse estudando um espécime num vidro. — Dentro de poucas semanas, farei felizes milhões de mulheres, oferecendo-lhes a mais preciosa das pedras por um preço que qualquer men­digo é capaz de pagar.

Como samaritano, você não convence muito.

Os diamantes não passam de pedaços de carbono. Sua única uti­lidade prática reside no fato de ser a substância mais dura conhecida pelo homem. Por isso é essencial no acabamento dos metais e na per­furação das rochas. Você sabia que a palavra "diamante" vem do grego, senhor Pitt? Significa indomável. Os gregos, e mais tarde os romanos, o utilizavam como proteção contra os animais e os inimigos. Suas mu­lheres, contudo, não o adoravam como as de hoje. Além de espantar os maus espíritos, os diamantes eram usados como um teste do adultério. No entanto, no que diz respeito à beleza, pode-se obter o mesmo brilho num cristal.

Quando Dorsett falava em diamantes, seu olhar não vacilava, mas o pulsar a um lado de seu pescoço denunciava os profundos sentimentos que o ligavam ao tema. Discursava como se tivesse subido repentina­mente a um plano superior, que poucos podiam conhecer.

Você também sabe que o primeiro anel de noivado de brilhante foi dado pelo arquiduque Fernando, da Áustria, a Maria de Borgonha em 1477, e que a crença segundo a qual a "veia do amor" vai diretamente do cérebro ao terceiro dedo da mão esquerda tem origem no Egito?

Pitt olhou para ele com indisfarçável desprezo.

O que eu sei é que o excedente atual de pedras brutas está sendo retido pelos produtores da África do Sul, da Rússia e da Austrália, a fim de elevar artificialmente os preços. E também sei que é o cartel, essencialmente um monopólio dirigido pela De Beers, que determina os preços. Portanto, como poderia um único homem desafiar todo o sindicato e provocar uma queda de preços súbita e drástica no mercado do diamante?

O cartel ainda vem comer na minha mão — disse Dorsett com desprezo. — Historicamente, sempre que uma empresa de mineração ou uma nação tentou esquivar-se dele e comercializar as pedras no mercado livre, o cartel reduziu brutalmente os preços. Sufocado pela concorrência e somando prejuízos, o rebelde acabava retornando ao curral. Tenho certeza de que o cartel vai repetir esse ato. Quando per­ceberem que estou fazendo dumping com milhões de diamantes a dois centavos de dólar, sem me preocupar com os ganhos, será tarde demais para que possam reagir. O mercado já terá sofrido um colapso.

Qual é a vantagem de dominar um mercado em colapso?

Não estou interessado em dominar o mercado, senhor Pitt. Eu quero destruí-lo de uma vez por todas.

Pitt notou que Dorsett não o fitava diretamente. Mantinha o olhar impassivelmente fixo num ponto atrás de sua cabeça, como se estivesse diante de uma aparição que só ele podia ver.

Se é que entendi bem, você está cortando a sua própria garganta.

Parece, não é mesmo? — Dorsett apontou o dedo para Pitt. — E exatamente o que eu quero que todos pensem, até os meus colaboradores mais próximos e as minhas filhas. Mas a verdade é que vou ganhar muito dinheiro. Muito!

Como?

Dorsett exibiu os dentes grotescos num sorriso diabólico.

A resposta não se acha nos diamantes, mas no mercado das gemas coloridas.

Meu Deus! — exclamou Maeve, como se estivesse testemunhando uma revelação. — Agora eu entendo! Você quer monopolizar o mercado de gemas coloridas!

Ela começou a tremer, tanto pela roupa molhada quanto pelo medo que a invadiu. Pitt tirou o blusão de couro ensopado e lhe cobriu os ombros.

Dorsett fez que sim.

Isso mesmo, minha filha. Nos últimos vinte anos, seu velho e sábio pai foi armazenando a produção de diamante ao mesmo tempo em que comprava discretamente os direitos sobre as maiores minas de gemas coloridas do mundo. Mediante a complexa formação de empresas testas-de-ferro, eu hoje controlo em segredo oitenta por cento do mer­cado.

Suponho que o que você chama de gemas coloridas são os rubis e as esmeraldas — disse Pitt.

Exatamente, e uma série de outras pedras preciosas e semi-preciosas, inclusive a safira, o topázio, a turmalina e a ametista. Quase todas muito mais raras do que o diamante. As jazidas de tsavorita, pedra preciosa descoberta no Quênia, berilo ou esmeralda vermelha, e a opala de fogo mexicana, por exemplo, estão se tornando cada vez mais difíceis de encontrar. Certas gemas coloridas são tão raras que passaram a ser procuradas por colecionadores e raramente transformadas em jóias.

Por que o preço de tais pedras não se equipara ao do diamante?

Porque o cartel sempre conseguiu aviltá-las — contou-lhe Dorsett com o fervor de um amante corroído pelo ciúme. — Durante décadas, a De Beers empregou verdadeiras fortunas em sofisticadas pesquisas para estudar e controlar os mercados internacionais. Gastaram-se mi­lhões na publicidade do diamante, que impôs a imagem do valor eterno. Para manter os preços, a De Beers criou uma demanda de diamantes sincronizada com a oferta crescente. Assim, o mito do homem expri­mindo seu amor por uma mulher por intermédio de um brilhante foi divulgado via uma habilidosa campanha publicitária, que atingiu o cume com o slogan "O brilhante é eterno". — Com gestos teatrais, co­meçou a passear na sala. — Como a produção de gemas coloridas está fragmentada entre milhares de produtores independentes, uns concor­rendo com os outros, jamais existiu uma organização unificada que as promovesse. O comércio foi prejudicado pela falta de consciência do consumidor. Pretendo mudar isso tudo quando o preço do diamante despencar.

Quer dizer que mergulhou de cabeça na produção de gemas co­loridas.

Não só na produção — declarou Dorsett. — Ao contrário da De Beers, eu vou lapidá-las e comercializá-las na Casa Dorsett, minha rede de lojas de comércio a varejo. As safiras, as esmeraldas e os rubis podem não ser eternos, mas, quando eu tiver entrado em cena, farão com que qualquer mulher que os use se sinta uma deusa. A joalheria atingiu um novo esplendor. Até mesmo um famoso ourives renascentista, como Benvenuto Cellini, proclamou que o rubi e a esmeralda eram mais glo­riosos do que o diamante.

Era uma concepção desconcertante, e Pitt teve o cuidado de consi­derar as possibilidades antes de perguntar:

Há décadas que as mulheres acatam a idéia de uma inegável associação do brilhante com o amor e as relações duradouras. Você acredita mesmo que conseguirá desviar esse interesse para as gemas coloridas?

Ora, por que não? — Dorsett se mostrou surpreso com a dúvida de Pitt. — A idéia do anel de noivado de brilhante só se impôs no fim do século 19. É tudo uma questão de estratégia para reformar as atitudes sociais. Tenho uma agência de publicidade muito criativa, com filiais em trinta países, pronta para lançar uma campanha promocional in­ternacional em uníssono com minha operação para derrubar o cartel. Quando eu terminar, as pedras coloridas serão as gemas de maior pres­tígio na joalheria. O brilhante passará a ser usado apenas como enfeite secundário.

O olhar de Pitt foi de Boudicca para Deirdre e desta para Maeve.

Como a maioria dos homens, não sou capaz de julgar os pensa­mentos íntimos das mulheres nem suas emoções, mas tenho certeza de que não vai ser fácil convencê-las de que o brilhante não é o seu melhor amigo.

Dorsett soltou uma gargalhada.

São os homens que compram pedras preciosas para as mulheres. E, por mais que queiram impressionar suas amadas, eles têm uma noção muito mais apurada de valor. Ofereça-lhes o fato de que o rubi e a esmeralda são cinqüenta vezes mais raros do que o diamante, e eles os comprarão.

É verdade mesmo? — perguntou Pitt com ceticismo. — Uma esmeralda é cinqüenta vezes mais rara do que um diamante?

Dorsett fez um solene gesto afirmativo.

E quando se esgotarem as jazidas de esmeralda, o que vai acabar acontecendo com o tempo, a diferença será muito maior. Atualmente, pode-se dizer com segurança que a esmeralda vermelha, que vem só de uma ou duas minas do Estado de Utah, é um milhão de vezes mais rara.

Monopolizar um mercado e destruir outro... Deve haver outros motivos, que não o simples lucro.

Não se trata de "simples lucro", meu caro Pitt. Trata-se de lucros num nível jamais conhecido na história. Estamos falando de dezenas de bilhões de dólares.

Pitt teve dúvidas quanto à soma assombrosa.

Você não chegaria a tanto, a menos que dobrasse o preço das gemas coloridas.

Quadruplicar estaria mais próximo da verdade. Claro, o aumento não ocorrerá de um dia para outro, porém em elevações graduais num período de anos.

Pitt se aproximou até ficar diante de Dorsett, olhando-o de perto.

Não tenho nada contra o seu desejo de bancar o rei Midas — disse tranqüilamente. — Faça o que bem entender com o preço do diamante. Mas, pelo amor de Deus, cesse as escavações ultra-sônicas em suas minas. Chame seus superintendentes e ordene que detenham todas as atividacies. Faça isso agora, antes que esteja irremediavelmente perdido.

Fez-se um estranho silêncio. Todos os olhares se voltaram para Dorsett, na expectativa de uma explosão de cólera por ter sido desafiado. Ele passou longos segundos encarando Pitt; depois, voltou-se para Maeve.

Seu amiguinho está impaciente. Ele não me conhece, não tem idéia da minha determinação. — Tornou a olhar para Pitt. — O assalto ao cartel do diamante está marcado para o próximo 22 de fevereiro, daqui a vinte dias. Para que dê certo, eu preciso de cada grama, de cada quilate que minhas minas conseguirem produzir até lá. A cobertura mundial de imprensa, o espaço publicitário nos jornais e o tempo na televisão já estão agendados. Não pode haver alterações, não haverá alterações em meus planos. Se alguns pés-de-chinelo precisam morrer, que morram.

Distúrbio mental, pensou Pitt, eram as únicas palavras capazes de descrever a sinistra malignidade dos olhos pretos de Dorsett. Distúrbio mental e indiferença absoluta pela mais vaga idéia de remorso. Trata­va-se de um homem sem consciência. Pitt sentia arrepios só de olhar para ele. Quantas mortes Arthur Dorsett já não teria nas costas? Muito antes de começar a escavar diamantes com ultra-som, quantos homens que atravessaram seu caminho rumo à riqueza e ao poder tinham pe­recido? Sentiu um calafrio ao constatar que se achava diante um psicopata, do mesmo nível de um assassino serial.

Você pagará por seu crime, Dorsett — disse Pitt com voz calma porém fria. — Certamente pagará pela tristeza insuportável e pela ago­nia que vem causando.

Quem será o anjo vingador? — rosnou Dorsett. — Você, por acaso? O senhor Giordino, aqui presente? Eu não acredito em castigo divino. A possibilidade é remota demais. A única certeza na qual posso apostar, senhor Pitt, é a de que você não estará aqui para ver.

Executar as testemunhas com um tiro na cabeça e jogá-las ao mar. É essa a sua política?

Um tiro em sua cabeça e outro na do senhor Giordino? — Não havia sinal de emoção na voz de Dorsett. — Seria vulgar demais. E sobretudo clemente demais. Jogá-los ao mar? Bem, esta conclusão é inevitável. Em todo caso, vocês dois podem ter certeza de que eu lhes proporcionarei uma morte brutal e lenta.

 

Depois de navegar mais de trinta horas a uma rapidez incrível, os poderosos motores turbodiesel passaram a ronronar suavemente, e o iate foi perdendo velocidade até derivar ao sabor das ondas mansas. Fazia tempo que a última paisagem do litoral da Nova Zelândia tinha desaparecido na esteira da luxuosa embarcação. Ao longe, os raios co­meçaram a fender as nuvens negras acumuladas a norte e a oeste, e trovões sacudiram o horizonte. A sul e a leste não se viam nuvens, o céu estava azul e limpo.

Pitt e Giordino haviam passado a noite e a metade do dia seguinte trancafiados num minúsculo compartimento da casa das máquinas. Mal tinham espaço para se sentar, mesmo com os joelhos dobrados junto ao queixo. Pitt passou a maior parte do tempo acordado, a lucidez apurada com o barulho das rotações dos motores e o chape-chape das ondas. Sem a menor intenção de refrear seus impulsos, o italiano soltou as dobradiças da porta e deu com os fuzis automáticos de quatro guar­das apontados para a sua barriga. Derrotado, pegou no sono antes mesmo que a porta fosse recolocada.

Irritado e culpando-se pela situação em que os três se encontravam, Pitt censurava-se constantemente, muito embora, na verdade, não se pudesse atribuir-lhe responsabilidade alguma. A menos que se exigisse que ele tivesse adivinhado o pensamento de John Merchant. Fora pego desprevenido porque não avaliara o desejo frenético de Arthur Dorsett de atrair Maeve a suas garras. Ele e Giordino eram reféns secundários, mero e insignificante incômodo naquela cruzada desvairada para uma acumulação absurda de riqueza. Havia algo de estranho e nefasto na­quela fixação num plano tão implacável para recapturar a filha caçula e matar os homens da ANPS. Pitt estava se perguntando obscuramente por que Giordino e ele tinham sido mantidos vivos quando a porta avariada se abriu com um rangido e John Merchant se postou na soleira. Ao ver seu carrasco, Pitt consultou automaticamente o relógio Doxa que trazia no pulso: eram onze e vinte da manhã.

Hora de fazer baldeação — anunciou Merchant alegremente.

Vamos mudar de barco?

Vão.

Espero que o serviço lá seja melhor do que aqui — bocejou Gior­dino. — Você se encarrega de nossa bagagem, não?

Merchant se limitou a dar de ombros.

Depressa, cavalheiros. O senhor Dorsett não gosta de esperar.

Cercados por um pequeno exército de guardas munidos de uma variedade de armas destinadas a provocar ferimentos físicos, mas não a matar, foram levados ao convés de popa. Ambos ficaram ofuscados pela luz da manhã. Caíam as primeiras gotas da chuva que as pesadas nuvens anunciavam.

Protegido por uma saliência, Dorsett banqueteava à mesa com uma grande variedade de iguarias servidas em baixela de prata. Dois co­missários uniformizados o ladeavam, um deles prestes a entrar em ação ao mais leve sinal de que o cálice do patrão reclamava mais vinho, o outro a postos para trocar os talheres. Sentadas à esquerda e à direita do pai, Boudicca e Deirdre não se deram ao trabalho de erguer os olhos da comida quando Giordino e Pitt foram levados a sua divina presença. Pitt olhou a sua volta em busca de Maeve, porém não a viu.

Lamento que já tenham de partir — disse Dorsett, mastigando um pedaço de torrada com caviar. — E uma pena não poder ficar para o almoço.

Você não sabe que se deve boicotar o caviar? — admoestou-o Pitt. — O esturjão está quase extinto.

Dorsett deu de ombros.

Então é por isso que está custando uns dólares a mais.

Pitt se voltou e olhou para o mar vazio, que começava a se agitar com a aproximação da tempestade.

Ouvi dizer que vamos para outro barco.

Isso mesmo.

Onde está?

Boiando aí ao lado.

Sei — disse Pitt calmamente. — Entendo. Você pretende nos deixar à deriva.

Dorsett pegou o guardanapo e limpou a boca com o requinte de um mecânico a esfregar as mãos sujas de graxa.

Peço desculpas pela embarcação tão pequena e ainda por cima sem motor, mas é o que posso oferecer.

Um toque de sadismo. Agrada-lhe pensar que vamos sofrer, não é mesmo?

Giordino olhou para os dois moderníssimos botes salva-vidas mo­torizados presos ao convés superior.

— A sua generosidade é comovente.

Deviam estar agradecidos. Estou lhes dando uma chance de so­breviver.

Abandonados numa região em que não existe tráfego marítimo, pouco antes do começo de uma tormenta? — riu Pitt. — O mínimo que você poderia fazer era fornecer papel e caneta para escrevermos o nosso testamento.

Acabou a conversa. Adeus, senhor Pitt. Senhor Giordino, bon voyage. — Dorsett fez um sinal a John Merchant. — Leve a escória da ANPS a seu barco.

Merchant apontou para um portão aberto na amurada.

Nada de confete nem serpentina? — protestou o italiano

Pitt chegou à beira do convés e olhou para baixo. Na água, junto ao iate, flutuava um pequeno bote semi-inflável de três metros de com­primento e dois de largura; seu casco de fibra de vidro, em forma de V, parecia robusto. O compartimento central, contudo, dificilmente transportaria quatro pessoas, já que o tubo de flutuação externo, de borracha sintética, ocupava a metade da embarcação. O motor de centro tinha sido retirado; os cabos de controle ainda pendiam do painel. Um vulto com um blusão de couro estava encolhido a bordo.

Pitt não foi capaz de conter a raiva. Agarrando Merchant pelo co­larinho da japona de iatismo, empurrou-o com a facilidade de quem afasta de si um espantalho e, sem dar tempo a que o detivessem, re­tornou com passos decididos à mesa do almoço.

Poupe pelo menos Maeve — disse. — É sua filha.

Dorsett sorriu sem o menor vestígio de humor.

Ela preferiu adotar o nome de seus ancestrais. Que sofra como eles.

Seu filho da puta! — rosnou Pitt com fúria animal. — Seu delin­qüente escroto...

Foi tudo o que conseguiu dizer. Um dos guardas de Merchant lhe desferiu uma violenta coronhada nas costas, pouco acima do rim. Ele se sentiu consumido por uma dor aguda, mas a raiva extremada o ajudou a manter-se de pé. E, avançando, agarrou a toalha de mesa com ambas as mãos, puxou-a e a jogou para cima. Voaram copos, facas, colheres, bandejas e os deliciosos pratos de gonrmet, espalhando-se rui­dosamente no convés. A seguir, arremeteu contra Dorsett por cima da mesa, embora não com a mera intenção de esmurrá-lo ou estrangulá-lo. Sabendo que só teria uma única chance de atingi-lo, esticou os indica­dores e tratou de estocá-los enquanto era atacado pelos guardas. En­louquecida, Boudicca desferiu um golpe feroz, visando-lhe o pescoço, mas só conseguiu atingi-lo no ombro. Um dos dedos de Pitt errou o alvo, apenas arranhando a testa de Dorsett. O outro o acertou em cheio, e o que se ouviu foi um grito bestial de agonia. Depois, ele sentiu a chuva de pancadas em todos os ossos do corpo; mas logo não sentiu mais nada, e o combate desigual sumiu nas trevas.

Pitt acordou com a sensação de estar num poço sem fundo, numa cova no centro da terra ou, pelo menos, nas entranhas de uma caverna subterrânea, onde só existia a escuridão eterna. Desesperado, buscou uma saída às cegas, mas era como tatear num labirinto. Perdido no meio de um pesadelo, condenado a errar para sempre no negrume, pensou. Então, de súbito, com a fugacidade de um piscar de olhos, avistou um pequenino ponto de luz na distância. Estendeu a mão na sua direção e a viu transformar-se em nuvens escuras a deslizar no céu.

Louvado seja, Lázaro voltou da morte. — A voz de Giordino parecia vir de muito longe, parcialmente encoberta pelo ruído do tráfego do centro da cidade. — Só para morrer de novo, a julgar pelo tempo que está fazendo.

Ao recobrar a consciência, Pitt desejou voltar ao labirinto de onde acabava de sair. Cada centímetro quadrado de seu corpo doía e latejava. Seus ossos pareciam quebrados da cabeça aos pés. Tentou sentar-se, mas parou a meio caminho e gemeu. Maeve lhe roçou a face e passou o braço por baixo de seu ombro.

Vai doer menos se você não se mexer.

Ele a fitou. Seus olhos azuis estavam muito abertos, cheios de preo­cupação e carinho. Como por encanto, Pitt sentiu aquele amor derra­mar-se sobre ele, e a agonia cessou como que drenada de suas veias.

É... parece que eu fiz tudo errado, não? — murmurou.

Maeve sacudiu lentamente a cabeça; seus longos cabelos loiros ba­lançaram.

Não pense assim. É por minha culpa que você está aqui.

Os garotos de Merchant trabalharam bastante antes de jogá-lo para fora do iate — disse Giordino. — Você parece ter sido atropelado por um buldôzer.

Pitt se sentou com esforço.

E Dorsett?

Depois do que você fez, acho que ele vai ficar parecendo um pirata de verdade quando puser um tapa-olho. Agora, só falta a mão de gancho.

Boudicca e Deirdre carregaram-no para dentro durante a luta — disse Maeve. — Se Merchant tivesse compreendido a verdadeira gra­vidade do ferimento de meu pai, não sei o que teria feito com você.

Pitt percorreu o mar vazio com os olhos inchados e semicerrados.

Foram embora?

Tentaram nos abalroar antes de partir, fugindo da tempestade — disse Giordino. — Por sorte os flutuadores de nossa jangada... sem motor, isto não passa de uma jangada mesmo... bateram no casco do iate e voltaram. Não caímos no mar por um triz.

Pitt tornou a olhar para Maeve.

Então eles nos largaram aqui, à deriva, como aconteceu com sua tetravó, Betsy Fletcher.

Ela o fitou, intrigada.

Como sabe dela? Eu nunca lhe contei.

Sempre investigo a mulher com quem pretendo passar a vida.

Uma vida bem curta, aliás — disse Giordino, apontando com apreensão para noroeste. — A menos que meu curso noturno de me­teorologia não tenha valido nada, estamos justamente no caminho do que por aqui chamam de tufão, ou ciclone talvez, depende da distância em que nos encontramos do oceano Índico.

As nuvens escuras, os relâmpagos e os ameaçadores trovões bastaram para desanimar Pitt quando ele olhou para o mar e ouviu o uivar da ventania cada vez mais forte. A margem entre a morte e a vida tinha a espessura de uma folha de papel. O sol já se pusera e o mar estava cinzento. O pequeno bote não tardaria a ser tragado pela tormenta.

Pitt não hesitou mais.

A primeira ordem do dia é providenciar uma âncora. — Virou-se para Maeve. — Vamos precisar do blusão de couro, de corda e de alguma coisa pesada, para evitar que o barco vire na agitação do mar.

Sem uma palavra, ela tirou o blusão, enquanto Giordino se punha a vasculhar um pequeno compartimento debaixo de um banco. Achou uma fateixa enferrujada amarrada a dois pedaços de corda de náilon, um de cinco metros, outro de três. Pitt estendeu o blusão aberto e nele amontoou todos os sapatos, a fateixa, algumas peças do motor e várias ferramentas velhas que o italiano encontrara. Depois, fechou o zíper, deu nós nas mangas, na abertura da cintura e da gola e amarrou a trouxa improvisada na corda mais curta. Jogou-a no mar e, quando afundou, atou firmemente a outra extremidade no painel com os inúteis cabos de controle do motor inexistente.

— Deitem-se no fundo da barca — ordenou, prendendo a outra corda no painel central. — A coisa vai ser brava. Enrolem a corda na cintura e amarrem a ponta para que não nos percamos se ela virar e cairmos no mar.

Por cima dos flutuadores de borracha sintética, olhou uma última vez para as vagas ameaçadoras que, vindas do horizonte, erguiam-se e desabavam com estrondo. O mar estava horroroso e lindo ao mesmo tempo. Os relâmpagos incendiavam as nuvens negras e avermelhadas, e a trovoada chegava como o rufar de mil tambores.

A tempestade se abateu sobre eles sem piedade. Acompanhada de uma chuva torrencial que cobria totalmente o céu e transformava o mar num caldeirão de espuma fervente, a força da ventania os atingiu dez minutos depois. As gotas açoitadas pelo vento, que uivava com a força de mil lobos, feriam-lhes a pele. A isto acrescentavam-se os jorros das ondas, que se erguiam a três metros de altura. Não tardou para que atingissem os sete metros, agitadas e confusas, arremetendo contra o bote em todas as direções. O vento aumentou sua impetuosidade ao mesmo tempo em que o mar redobrava o temível ataque à frágil em­barcação e seus miseráveis passageiros. O bote girava em espirais, jo­gado sobre a crista das ondas para logo mergulhar nos abismos que se abriam. Não havia uma linha divisória entre a água e o céu; era impossível saber onde começava um e terminava a outra.

Milagrosamente, a âncora não foi arrebatada. Cumpriu o seu dever, evitando que o mar enfurecido virasse o bote e jogasse todos naquelas águas assassinas, de onde não havia retorno. As vagas cinzentas se precipitavam sobre eles, enchendo de espuma o interior da barca, ensopando-os, porém tendendo a puxar o centro de gravidade para o fundo e, assim, outorgando-lhes uma fração a mais de estabilidade. Os movimentos giratórios e o constante erguer-se e cair do bote faziam remoinhar a carga de água ao redor de seus corpos, e eles se sentiam como que dentro de um liqüidificador.

Até certo ponto, o tamanho reduzido da embarcação foi uma bênção. Os flutuadores de borracha sintética fizeram-na boiar como uma rolha. Por mais violenta que fosse a tormenta, o resistente casco não se partiria em pedaços, e, se a âncora o segurasse, não viraria. Como as palmeiras, que se curvavam ante a força do vento, agüentaria. Os vinte e quatro minutos seguintes passaram como vinte e quatro horas, e, enquanto todos lutavam desesperadamente para não perder a vida, Pitt mal con­seguia acreditar que a tempestade não os tivesse vencido. Era um mis­tério. Não havia palavras capazes de descrevê-lo.

As infinitas muralhas líquidas despejavam-se na barca, deixando os três sufocados e ofegantes até serem jogados para cima, na crista da onda seguinte. Não havia necessidade de tirar a água do bote; o peso ajudava a impedir que virasse. Num segundo, eles lutavam para não flutuar e ser jogados fora da barca, enquanto, no outro, preparando-se para o frenético movimento seguinte, quando despencariam na depres­são, pelejavam para não ser arremessados no ar.

Com Maeve no centro, ambos a protegê-la com o braço, Pitt e Gior­dino comprimiam os pés nas laterais, para firmar-se. Se um deles caísse para fora, não haveria chance de resgate. Ninguém conseguiria sobre­viver sozinho no mar encapelado. A chuva, por outro lado, tinha re­duzido a visibilidade a uns poucos metros, e eles poderiam rapidamente se perder de vista.

A luz de um relâmpago, Pitt relanceou Maeve. Parecia convencida de que se encontrava no inferno e devia estar sofrendo o tormento dos condenados. Ele desejou consolá-la com palavras, mas não seria ouvido com o uivar do vento. Amaldiçoou o nome de Dorsett. Santo Deus, como devia ser terrível ter um pai e duas irmãs que a odiavam a ponto de lhes roubar os filhos e, depois, tentar assassiná-la como castigo por ser boa, gentil e recusar-se a participar de seus atos criminosos! Era muito errado e terrivelmente desleal. Ela não podia morrer, disse Pitt consigo, não enquanto ele estivesse vivo. E, segurando-lhe o ombro, apertou-o afetuosamente.

Depois olhou para Giordino. A expressão deste era estóica. Sua apa­rente indiferença em meio a tal inferno dava segurança ao amigo. "O que tiver se ser, será", estava escrito em seus olhos. Não havia limite para a sua resistência. Pitt sabia que Giordino iria muito além dos limites do entendimento, morreria até, antes de soltar o barco e Maeve. Jamais se renderia ao mar.

Como se suas mentes trabalhassem juntas e simultaneamente, o ita­liano ergueu o olhar para ver como Pitt estava se agüentando. Havia dois tipos de homem, pensou, os que viam o diabo à espera de sua alma e morriam de medo, e os que se entregavam à desesperança e o encaravam como um alívio da miséria terrena. Seu amigo de tantos anos não se encaixava em nenhum deles. Era capaz de encarar o diabo e lhe dar uma banana, parecia poder continuar para sempre. Giordino já não tinha motivos para se assombrar com sua firme coragem e seu amor pelo perigo. Pitt florescia no desastre e na calamidade. Alheio à frenética agitação das vagas, não parecia um homem à espera do fim, que acreditava nada poder fazer contra a cólera do mar. Seus olhos buscavam a chuva e a espuma quase com tranqüilidade, quase como se ele estivesse seco e bem acomodado em seu apartamento no hangar, concentrado em outra coisa, desprovido de peso, no vácuo. No mar ou debaixo dele, pensou Giordino pela milésima vez, Pitt se sentia em casa, em seu elemento.

A escuridão chegou e passou, uma noite de tormento que parecia não ter fim. Constantemente ensopados, eles estavam entorpecidos pelo frio, que lhes cortava a pele como centenas de navalhas. O amanhecer foi um alívio: era medonho ouvir o rugir e o arremeter das ondas sem vê-las. O raiar do sol amortalhado em convulsivas nuvens encontrou-os ainda presos à vida pelo mais débil dos fios. Ansiavam pela luz do dia. Porém, quando ela enfim chegou, era estranhamente cinzenta e veio iluminar um mar terrível, como nos antigos filmes em branco e preto.

A despeito da selvagem turbulência, a atmosfera era quente e opres­siva, um salgado cobertor denso demais. O passar do tempo não tinha relação com os mostradores de seus relógios. O velho Doxa de Pitt e o Aqualand Pro novo em folha de Giordino eram à prova de água até duzentos metros de profundidade, e continuavam funcionando; todavia, o pequeno relógio digital de Maeve tinha parado.

Pouco depois que o mar entrou em convulsão, Maeve mergulhou a cabeça no fundo do tubo de flutuação e rezou, pedindo que vivesse para rever os filhos. Não queria perecer sem lhes deixar uma lembrança querida, algo mais do que a vaga noção de que se havia perdido e estava sepultada na indiferença do mar. Sofria pelo destino deles nas mãos do avô. No começo, sentiu mais medo que em qualquer outro momento da vida, um medo que, qual fria avalanche de neve, chegava a asfixiá-la. Depois, o temor começou a ceder gradualmente, à medida que ela percebia que a pressão dos braços dos homens, a suas costas, não diminuía. O autocontrole dos dois era extraordinário, e sua força parecia contagiá-la. Com homens como aqueles a protegê-la, uma fagulha cresceu e nutriu a imperceptível porém cada vez mais firme con­vicção de que conseguiria viver para ver um novo amanhecer.

Pitt não estava tão otimista. Tinha plena consciência de que sua energia e a de Giordino estavam se esgotando. Seu pior inimigo era a ameaça invisível da hipotermia e da fadiga. Alguma coisa teria de ceder, sua tenacidade ou a violência da tormenta. O esforço constante para não se afogar lhes tirara tudo o que tinham para dar. Após semelhante combate contra os elementos, a exaustão estava a ponto de vencê-los. Mesmo assim, ele se recusava a reconhecer a inutilidade de tudo e, lançando mão das derradeiras reservas de força, segurava-se com fir­meza ante cada vaga que os engolfava, por mais que soubesse que a hora da morte estava muito próxima.

 

Mas Pitt, Maeve e Giordino não morreram.

Ao entardecer, o vento arrefeceu e, pouco depois, o mar começou a serenar. Sem que eles soubessem, o tufão desviara-se repentinamente de seu primitivo curso noroeste para sudeste, rumo à Antártida. A velocidade do vento reduziu sensivelmente de mais de cento e cinqüenta quilômetros por hora a menos de sessenta, e o mar, abrandando sua fúria, diminuiu para menos de três metros a distância entre a crista das ondas e as depressões. A chuva foi decaindo para um chuvisco leve e não tardou a se transformar num nevoeiro a pairar sobre as rebaixadas ondas. No alto, uma gaivota solitária se materializou do nada, pouco antes que a escuridão tornasse a envolver o oceano e cercar o pequeno bote, e gritou como que assombrada por vê-lo ainda flu­tuando.

Uma hora mais tarde, o céu ficou limpo de nuvens, e o vento mal tinha força para inflar as velas de uma pequena jangada. Era como se a tormenta tivesse sido um pesadelo noturno, que desaparecera com a primeira e fugidia luz do amanhecer. Eles tinham vencido apenas uma batalha na guerra contra os elementos. Os mares bravios e os ventos cruéis não conseguiram levá-los ao fundo. O que a terrível tempestade não fora capaz de destruir em sua fúria assassina foi recompensado com clemência.

Era quase místico, pensou Maeve. Se estivessem fadados a perecer, não teriam sobrevivido à tormenta. Por algum motivo, tinham sido mantidos vivos.

Fatigados e abatidos, os três, encolhidos no bote, não trocaram pa­lavras. Consolados pela calmaria que se seguiu à tormenta, exaustos além dos limites da resistência humana, foram tomados por uma ex­trema indiferença para com as circunstâncias e dormiram profunda­mente.

As ondas mantiveram um moderado balanço até a manhã seguinte, um resto da tempestade; então, o mar se tornou plácido e liso como um lago. A neblina desapareceu, e a visibilidade se estendeu aos mais remotos confins do horizonte vazio. Agora, o oceano decidira realizar pelo desgaste o que não tinha conseguido mediante a violência frenética. Eles despertaram lentamente para um sol de que se haviam esquecido nas últimas quarenta e oito horas, mas que os estava castigando com inexorável severidade.

A tentativa de sentar-se impingiu uma vaga de dor a todo o corpo de Pitt. Os rigores do mar se acrescentaram aos ferimentos e contusões provocados pelos capangas de John Merchant. Ofuscado pela intensa claridade do sol refletida na água, ele mudou lentamente de posição. Nada mais havia a fazer senão deixar-se ficar no bote e aguardar. Mas aguardar o quê? A esperança remota de que um navio aparecesse no horizonte e viesse diretamente em sua direção? Estavam à deriva numa parte morta do mar, longe das rotas marítimas, por onde raramente passava um barco.

Arthur Dorsett tinha escolhido a dedo o lugar onde abandoná-los. Se por milagre chegassem a sobreviver ao tufão, a sede e a fome os liquidariam. Pitt não estava disposto a permitir que morressem, muito menos depois do que tinham passado. E jurou vingar-se, jurou viver unicamente para matar Arthur Dorsett. Pouca gente merecia tanto mor­rer. Pitt jurou abandonar seus códigos normais, seus padrões de ética e moralidade caso voltasse a encontrar com aquele facínora. Tampouco esqueceu Boudicca e Deirdre. Também elas pagariam pelo depravado tratamento dispensado à irmã mais moça.

Está tão calmo aqui — disse Maeve. Acercou-se de Pitt, que a sentiu tremer. — Tenho a impressão de que a tempestade ainda está caindo dentro de minha cabeça.

Algo aliviado com a sensação de que as ondulações do mar tinham quase desaparecido, Pitt esfregou os olhos irritados pelo sal ressecado. Olhou para os dela, intensamente azuis, agora narcotizados pela fadiga e nublados pelo prolongado sono. Viu neles um brilho.

É Vênus surgindo das águas — disse em voz baixa.

Ela se sentou e sacudiu os cabelos ásperos de sal.

Não me sinto precisamente uma Vênus — sorriu. — E certamente não me pareço nada com ela. — Tirou o suéter e roçou delicadamente as marcas vermelhas deixadas pelo constante atrito da corda de náilon que a salvara.

Giordino abriu lentamente um olho.

Se vocês dois não calarem a boca para que eu possa dormir, vou me queixar ao gerente do hotel.

Vamos dar um mergulho na piscina e, depois, tomar o café da manhã na varanda — disse Maeve com inesperado bom humor. — Não quer vir conosco?

Prefiro chamar o serviço de quarto — resmungou o italiano, apa­rentemente exausto pelo mero ato de falar.

Já que estamos todos tão animados — disse Pitt —, sugiro que continuemos trabalhando para sobreviver.

Que chance temos de ser resgatados? — perguntou ingenuamente Maeve.

Nenhuma — respondeu Pitt. — Pode apostar que seu pai nos largou na parte mais esquecida do mar. O almirante Sandecker e a turma da ANPS não têm a menor idéia do que nos aconteceu. E, mesmo que tivessem, não saberiam onde nos procurar. Se quisermos corres­ponder a nossa expectativa de vida normal, teremos de fazê-lo sem ajuda externa.

A primeira tarefa foi a de puxar a âncora de estabilidade e retirar os sapatos, as ferramentas e as outras coisas do blusão de Pitt. A seguir, fizeram o inventário de todos os itens, aparentemente inúteis ou não, com que contariam durante a longa viagem que os aguardava. Por fim, Pitt tirou o pequeno embrulho que escondera dentro da calça pouco antes de mergulhar com o ônibus no cais.

Que encontrou no bote? — perguntou a Giordino.

Não dá para abrir uma loja de ferragens. O compartimento em­baixo do banco tinha um total de três chaves de boca de diferentes tamanhos, uma chave de fenda, uma bomba de combustível, quatro velas de ignição, várias porcas e parafusos, estopa, um remo de madeira, uma peça de náilon para cobrir o bote e uma coisinha que vai tornar a viagem bem mais divertida.

O quê?

Giordino lhe mostrou uma pequena bomba manual.

Isto, para encher os tubos de flutuação.

De que comprimento é o remo?

Tem pouco mais de um metro.

Mal dá para erguer uma vela.

É verdade, mas, amarrando-o ao painel, podemos utilizá-lo como pau de barraca e estender o náilon sobre ele, fazendo um toldo que nos dê um pouco de sombra.

E não se esqueçam de que o náilon também vai ser útil para recolher água, se voltar a chover — lembrou Maeve.

Pitt olhou para ela.

Você não trouxe nada que possa ter alguma utilidade?

Ela sacudiu a cabeça.

Só a roupa. Minha irmãzinha Frankenstein não me deixou trazer sequer o batom.

De quem será que ela está falando? — murmurou Giordino.

Pitt abriu o pequeno embrulho à prova de água e tirou um canivete suíço, uma velha e muito usada bússola de escoteiro, um pequeno tubo de fósforos, uma caixa de primeiros-socorros do tamanho de um maço de cigarros e uma pequena pistola automática Mauser calibre 0.25, com um pente extra.

Maeve observou a minúscula arma.

Você podia ter matado John Merchant e meu pai.

O general Pickett teve melhor chance, em Gettysburg, do que eu com aquele pequeno exército de guardas de segurança.

Você sempre anda com esse estojo de sobrevivência?

Desde os tempos de escoteiro.

Em quem pretende atirar aqui neste mar deserto?

Em quem não, em quê. Num pássaro, se aparecer.

Tem coragem de matar um pássaro indefeso?

Pitt a fitou.

Só porque a idéia de morrer de fome não me agrada muito.

Enquanto Giordino enchia de ar os tubos de flutuação, antes de começar a armar o toldo, Pitt examinou cada centímetro quadrado do bote, em busca de defeitos ou rupturas nos flutuadores de borracha sintética e algum dano estrutural no casco de fibra de vidro. Mergulhou no mar e passou as mãos no fundo, mas não encontrou sinais de avaria. A embarcação parecia ter uns quatro ou cinco anos, e devia ter sido usada para levar Dorsett a terra quando ancorava o iate perto de uma praia sem cais. Pitt ficou aliviado ao descobrir que, embora um tanto usada, a barca se encontrava em excelentes condições. O único problema era a falta do motor.

Tornando a subir a bordo, tratou de manter a todos ocupados com pequenas e estranhas tarefas, a fim de distraí-los da dura situação e da sede cada vez mais intensa. Estava decidido a manter alto o moral. Não tinha ilusões quanto ao tempo que aquilo podia durar. Ele e Gior­dino, certa vez, tinham vagado durante quase sete dias, sem água, em pleno deserto do Saara. Lá, fora um calor seco; agora, era a pesada umidade que lhes sugava a vida.

O italiano estendeu a cobertura de náilon para protegê-los dos raios ardentes do sol, prendendo-o no remo que fixara no painel de controle e atando os cantos nas laterais dos flutuadores com pequenos pedaços cortados da corda. Inclinou uma das bordas, de modo que toda a água de chuva escorresse numa caixa de gelo de isopor que Maeve encontrou debaixo de um banco. Depois de lavar bem o isopor havia muito tempo sem uso, ela fez o possível para arrumar o interior do bote e torná-lo mais habitável. Pitt passou boa parte do tempo destrançando um pedaço da corda de náilon para transformá-lo numa linha de pesca.

O único alimento possível num raio de dois mil quilômetros ou mais era o peixe. Se não pescassem nenhum, morreriam de fome. Ele im­provisou um anzol com o fuzilhão da fivela do cinto e o prendeu à extremidade da linha. Amarrou a outra ponta no centro de uma das chaves de boca para poder segurá-la com as duas mãos. O problema era a isca. Não contavam com minhocas, pedaços de carne, de peixe nem queijo. Debruçando-se nos tubos de flutuação, Pitt toldou a vista com a mão e olhou para a água.

Já havia hóspedes curiosos reunidos à sombra do bote. Os que viajam pelos mares em navios ou barcos equipados com grandes motores, rui­dosos exaustores e rápidos hélices freqüentemente se queixavam de que não existia vida visível no oceano aberto. Mas para os que flutuavam perto da superfície, derivando em silêncio, a água se transformava numa vitrine aberta para o outro lado, para os cidadãos das profundezas, que eram muito mais numerosos e variados do que os animais que vagueavam em terra firme.

Cardumes de peixes parecidos com o arenque, do tamanho do dedo mínimo de Pitt, nadavam rapidamente e formigavam sob o bote. Ele reconheceu o pompano, o golfinho que não se devia confundir com a toninha e seus parentes maiores, o dourado, com sua testa alta e a longa barbatana que lhe percorre a parte superior do corpo multicolor e iridescente. Um par de cavalas grandes traçava círculos, atacando ocasionalmente os peixes menores. Havia também pequenos tubarões, entre os quais um martelo, um dos mais estranhos habitantes do mar, com um olho de cada lado das nadadeiras, como se tivessem sido em­purrados para dentro da cabeça.

Que vai usar como isca? — quis saber Maeve.

A mim mesmo — respondeu Pitt. — Estou me oferecendo como guloseima aos peixes menores.

Como assim?

Fique olhando.

Foi com indisfarçável mal-estar que ela o viu arregaçar a perna da calça e, com toda calma, extrair um pequeno pedaço de carne da coxa. Depois, prendeu-a ao anzol improvisado. Tudo foi feito com tanta na­turalidade que Giordino só se deu conta ao ver algumas gotas de sangue no fundo do bote.

Que é isso? Aderiu à auto-flagelação? — perguntou.

Você está com a chave de fenda?

O italiano sorriu.

Está querendo que eu complete a cirurgia?

Há um pequeno tubarão debaixo da barca — explicou Pitt. — Vou atraí-lo à superfície. Quando eu o agarrar, enfie a chave de fenda no alto de sua cabeça, entre os olhos. Se acertar, talvez consiga perfurar-lhe o cérebro, do tamanho de uma ervilha.

Maeve não gostou da idéia.

Por acaso pretende trazer um tubarão a bordo?

Se tivermos sorte — respondeu Pitt, rasgando um pedaço da ca­miseta e enrolando-o no pequeno ferimento que não parava de sangrar.

Ela engatinhou para a proa e se agachou atrás do painel, tratando de manter distância.

Espero que você não resolva lhe oferecer nada para morder.

Com Giordino ajoelhado a seu lado, Pitt desceu lentamente à água a isca humana. As cavalas a cercaram de imediato, mas ele sacudiu a linha para assustá-las. Alguns dos pequenos peixes avançaram rapida­mente para mordiscar, mas logo fugiram quando o martelo, sentindo a presença do sangue, arremeteu contra a presa. Pitt puxava a linha toda vez que ele se acercava e, assim, foi atraindo-o lentamente para junto do bote. Já com o braço erguido, a empunhar o a chave de fenda como um punhal, Giordino acompanhava atentamente a operação. O tubarão finalmente se aproximou do costado, roçando nos tubos de flutuação; o cinza-escuro de seu dorso matizava-se em tons cada vez mais claros até o branco da barriga, a barbatana dorsal assomava fora da água como o periscópio de um submarino. Escolhendo o momento certo, o italiano descreveu um arco com a chave de fenda, atingindo a dura cabeça do peixe. Nas mãos de outro homem, a ferramenta di­ficilmente teria penetrado o esqueleto cartilaginosos, mas Giordino con­seguiu enterrá-la até a empunhadura.

Inclinando-se, Pitt passou os braços por baixo da barriga do tubarão, atrás das guelras, erguendo-o para que seu amigo o ferisse novamente. Caiu de costas no barco, segurando nos braços o peixe-martelo de um metro e meio. Agarrando-lhe a barbatana dorsal e prendendo-lhe a cauda com as pernas, não o soltou mais.

As terríveis mandíbulas não paravam de abrir-se e fechar-se, mas só acharam o ar para abocanhar. Encolhida atrás do painel, Maeve deixou escapar um grito ao ver os pontiagudos dentes triangulares rangendo a poucos centímetros de suas pernas encolhidas.

Como que a lutar com um jacaré, Giordino jogou todo o peso do corpo no peixe, que se debatia desesperadamente, comprimindo-o no fundo da barca, sentindo nos braços a aspereza de lixa de sua pele.

Embora gravemente ferido, o tubarão-martelo exibia uma incrível vitalidade. Imprevisível, era agressivo num momento e estranhamente dócil no outro. Por fim, passados mais de dez minutos de inútil aba­lar-se, o tubarão parou, vencido. Os dois homens o soltaram e trataram de tomar fôlego. O combate tinha agravado os ferimentos de Pitt, que se sentia nadando num mar de dor.

— Vocês terão de cortá-lo — balbuciou para Giordino. — Estou me sentindo fraco como um gatinho.

Descanse — disse o outro. Havia paciência e afetuosa compreensão em sua voz. — Depois da surra que levou no iate e da luta com a tormenta, é um milagre que ainda não tenha entrado em estado de coma.

Muito embora Pitt houvesse afiado as lâminas do canivete suíço como verdadeiras navalhas, Giordino precisou segurá-lo com ambas as mãos e empregar muita força para cortar o duro ventre do tubarão. Valendo-se de seus conhecimentos de zoóloga submarina profissional, Maeve o orientou para que lhe extraísse o fígado e fizesse uma incisão em seu estômago, onde encontrou um dourado e vários arenques recém-devorados. Depois, ela lhe ensinou a separar com eficiência a carne da pele.

É melhor comer o fígado agora — aconselhou. — Começará a apodrecer quase imediatamente e é a parte mais nutritiva do peixe.

E o resto da carne? — perguntou Giordino, lavando a faca e as mãos na água do mar. — Neste calor, não vai demorar muito para que apodreça.

— Temos todo o sal do oceano a nossa disposição. Corte a carne em tiras e pendure-as por aí. Quando estiver seca, aproveitaremos o sal cristalizado no náilon e a salpicaremos para conservá-la.

Eu detestava fígado quando era menino — disse Giordino, já meio verde de nojo. — Acho que ainda não estou com fome para comê-lo cru.

Faça um esforço — disse Pitt. — Precisamos nos manter na melhor forma física possível. Já provamos que somos capazes de obter alimento. O grande problema agora é a falta de água.

O anoitecer trouxe uma estranha quietude. Uma meia-lua pairava sobre o oceano, deixando uma senda prateada rumo ao horizonte norte. Ouviram o piar de uma ave no céu estrelado, mas não conseguiram avistá-la. As baixas temperaturas comuns nas latitudes meridionais che­garam com o pôr-do-sol, aliviando-lhes um pouco a sede, e todos vol­taram o pensamento a outras coisas. As ondas, que batiam ritmicamente no bote, mergulharam Maeve em quimeras de tempos melhores com os filhos. Giordino imaginou-se de volta a seu apartamento de Was­hington, sentado num sofá, o braço nos ombros de uma bela mulher, uma caneca gelada de cerveja na mão, os pés apoiados na mesa de centro, a assistir um filme antigo na televisão.

Tendo descansado a maior parte da tarde, Pitt estava bem desperto e se sentia revitalizado o bastante para imaginar o rumo que estavam tomando e prever o tempo, observando a forma das nuvens, a altura e o movimento das ondas e a cor do pôr-do-sol. Quando escureceu, pôs-se a estudar as estrelas e tentou calcular a posição aproximada da embarcação no mar. Quando trancafiado no porão do iate, notara, com a ajuda da velha bússola, que a tripulação de Dorsett mantivera um curso de duzentos e quarenta graus a sudoeste durante vinte e nove horas e quarenta minutos. Lembrou-se de que John Merchant lhe dissera que o iate alcançava uma velocidade de cento e vinte quilômetros por hora. Multiplicando esse valor pelo tempo da viagem, concluiu que tinham percorrido aproximadamente três mil e seiscentos quilômetros desde a hora em que partiram de Wellington até o momento em que foram deixados à deriva. O cálculo os colocava em algum lugar ao sul do mar da Tasmânia, entre as praias baixas da Tasmânia e a Nova Zelândia.

O enigma seguinte a decifrar era a distância a que tinham sido ar­rastados pela tormenta. Era praticamente impossível estimá-la com um grau mínimo de precisão. A única certeza era que a tempestade viera de noroeste. Em quarenta e oito horas, podia tê-los transportado a uma distância considerável para sudeste, longe de qualquer possibilidade de avistar terra. Ele sabia, pela experiência de outros projetos, que as correntes e os ventos predominantes naquela parte do oceano Indico dirigiam-se ligeiramente para sudeste. Se estivessem derivando em al­gum lugar entre o paralelo quarenta e o cinqüenta, acabariam chegando à desolada vastidão do Atlântico Sul, por onde não passava navio al­gum. A ocorrência de terra mais próxima seria na extremidade da Amé­rica do Sul, as uns treze mil quilômetros dali.

Olhou para o Cruzeiro do Sul, uma constelação que não era visível além dos trinta graus de latitude norte, que passava pelo norte da África e a ponta da Flórida. Descritas desde a Antigüidade, suas cinco bri­lhantes estrelas tinham orientado marinheiros e aviadores na imensidão do Pacífico desde as primeiras viagens dos polinésios. Milhões de qui­lômetros quadrados de solidão, pontilhados apenas pelas ilhas, ou seja, pelos cumes de gigantescas montanhas que se erguiam invisíveis no fundo do mar.

Por mais que quisesse imaginar, por maior que fosse o seu desejo de sobreviver e apesar de toda a ajuda que a boa sorte pudesse oferecer, a verdade era que dificilmente voltariam a pisar em terra firme.

 

Hiram Yaeger nadava nas profundezas azuis do mar, a água a passar num veloz borrão, como se ele se encontrasse a bordo de um avião a jato, a voar entre nuvens tingidas. Deslizou à borda de precipícios apa­rentemente sem fundo, pairou sobre vales de vastas cadeias de mon­tanhas que se elevavam dos negros abismos até a superfície banhada de sol. Sinistra e ao mesmo tempo bela, a excursão lhe dava a sensação de percorrer o espaço vazio e profundo.

Era domingo e ele trabalhava sozinho no décimo andar do prédio deserto da ANPS. Depois de nove horas seguidas a olhar fixamente para o monitor do computador, Yaeger se recostou na cadeira e pro­curou descansar a vista. Finalmente, tinha dado os últimos retoques num programa complexo que ele mesmo criara, usando algoritmos de síntese de imagens, para mostrar a propagação tridimensional das ondas sonoras no mar. Com uma tecnologia única de computação gráfica, penetrara num universo onde poucos já tinham viajado. O drama do som de alta intensidade a percorrer a água, gerado pelo computador, havia custado a ele e a sua equipe uma semana de cálculos. Utilizando hardware especial e um enorme banco de dados sobre as variações da velocidade do som no Pacífico, tinham conseguido aperfeiçoar um mo­delo fotográfico que lhes permitia acompanhar os raios acústicos ao lugar onde ocorreriam zonas de convergência. As imagens subaquáticas eram expostas em seqüência extremamente rápida, a fim de criar a ilusão de movimento dentro e ao redor dos mapas tridimensionais da velocidade do som, acumulados num período de mais de trinta anos de estudo dos dados oceanográficos. Eram as imagens de computador levadas a sua mais requintada forma.

Ficou de olho numa série de luzes, que partiam do amarelo, avan­çavam pelos diferentes matizes do alaranjado e terminavam num ver­melho intenso. A medida que piscavam, em seqüência, elas lhe diziam quão próximo ele estava do ponto no qual os raios acústicos conver­giriam. Um mostrador digital fornecia-lhe a latitude e a longitude. O mais importante em seu sistema de imagens era a disposição das zonas dinâmicas de convergência. Ele tinha inclusive a possibilidade de pro­gramar a imagem de modo a elevar seu ponto de vista acima da su­perfície da água e apontar quaisquer navios cujas conhecidas rotas devessem atravessar aquela parte do oceano em tempo previsível.

A luz vermelha à direita brilhou, e ele digitou o programa que re­tirava da água a imagem, oferecendo-lhe uma vista da superfície do ponto de convergência. Esperava ver horizontes vazios, porém a figura que apareceu na tela era bem diferente: uma enorme massa de terra montanhosa e coberta de vegetação. Yaeger percorreu uma vez mais toda a seqüência, partindo dos qualro pontos espalhados no oceano, que representavam as ilhas mineiras da Dorsett Consolidated. Dez, vin­te, trinta vezes, tornou a percorrer o cenário inteiro, na pista dos raios acústicos, até seu ponto de encontro final.

Por fim, convencido de que não havia erros, afundou na cadeira e sacudiu a cabeça.

— Oh, meu Deus! — murmurou. — Oh, meu Deus!

Era à custa de muito esforço que o almirante Sandecker folgava aos domingos. Viciado no trabalho, impunha-se dez quilômetros de corrida todas as manhãs e exercícios leves depois do almoço para dar vazão ao excesso de energia. Dormia apenas quatro horas por noite e se en­tregava a mil atividades capazes de deixar prostrada a maior parte dos homens. Divorciado havia muito tempo, com a filha vivendo do outro lado do mundo, em Hong Kong, em companhia do marido e dos três filhos, ele nada tinha de solitário. Era considerado um partido e tanto pelas mulheres mais velhas e sem compromisso de Washington, as quais o inundavam de convites a jantares íntimos e coquetéis. Por mais que apreciasse a companhia das damas, o seu verdadeiro amor, a sua autêntica paixão era a ANPS. A agência por ele criada e transformada numa instituição gigantesca, reverenciada e respeitada em todo o mun­do, substituía a sua família.

Aos domingos, ia navegar no rio Potomac, no velho bote de baleeiro que ele comprara e reformara. A proa arqueada fendeu as águas pardacentas quando ele desviou de um pedaço de madeira flutuante. A embarcação de oito metros tinha história. Sandecker documentou sua cronologia desde 1936, quando foi construída num pequeno estaleiro de Portsmouth, no Maine, e depois transportada a Newport News, na Virgínia, onde a colocaram a bordo do recém-inaugurado avião de car­reira Enterprise. Durante a guerra e em muitas batalhas no Pacífico Sul, foi o bote pessoal de desembarque do almirante Buli Halsey. Em 1958, quando o Enterprise "se aposentou", o velho barco ficou abandonado à ferrugem num depósito atrás do estaleiro de Nova York. Lá, Sandecker o encontrou e comprou. Restaurou-o com dedicação até que recobrasse a aparência com que tinha saído do estaleiro do Maine.

Ouvindo o ruído suave do antigo motor diesel Buda, de quatro ci­lindros, ele ia refletindo sobre os acontecimentos da semana anterior e preparando as ações para a seguinte. Sua maior preocupação era a praga acústica inspirada pela ilimitada ambição de Arthur Dorsett, que vinha devastando o oceano Pacífico. Tal problema estava intimamente ligado ao imprevisível seqüestro de Pitt e Giordino e a seu subseqüente desaparecimento. Ele se sentia profundamente perturbado porque ne­nhum dos dilemas apresentava a menor possibilidade de solução.

Os membros do Congresso que abordara tinham recusado seu pedido para que se tomassem medidas drásticas a fim de deter Arthur Dorsett antes que sua culpa se tornasse impossível de ser comprovada. Para eles, simplesmente não havia provas suficientes que o vinculassem às mortes coletivas, raciocínio alimentado pelos muito bem pagos lobistas de Dorsett. Droga, pensou frustrado o almirante, os burocratas só se decidem a agir quando é tarde demais. A única esperança era persuadir o presidente a tomar uma atitude. Porém, sem o apoio de dois ou mais eminentes membros do Congresso, dificilmente o conseguiria.

Caía uma neve fina, que tingia de branco as árvores desfolhadas e a relva seca. Seu barco era o único a navegar naquele dia frio. O céu da tarde era de um azul glacial, e o ar gelado penetrava os ossos. Sandecker ergueu a gola de uma velha e puída japona da Marinha, puxou até as orelhas o boné preto de lã e rumou com o bote a um píer perto da margem de Maryland, onde costumava ancorá-lo. Ao se apro­ximar, viu um sujeito sair do confortável calor de um jipe de tração nas quatro rodas e atravessar o cais. Mesmo a quinhentos metros de distância, não teve dificuldade para reconhecer o andar apressado e oscilante de Rudi Gunn.

Atravessando a correnteza, diminuiu1 a velocidade do velho diesel Buda até quase parar. Acercando-se da doca, distinguiu o ar sombrio atrás dos óculos de Gunn. Refreando um calafrio de medo, colocou o pára-choque de borracha no lado de bombordo do casco. A seguir, jogou uma corda para Gunn, que puxou o bote a uma posição paralela ao cais e depois amarrou a proa e a popa aos cabeços fixados na madeira cinzenta.

O almirante pegou um encerado, e Gunn o ajudou a cobrir a em­barcação. Ao terminar, Sandecker subiu no píer; nenhum dos dois tinha dito uma palavra. Gunn olhou para o bote de baleeiro.

Quando quiser vendê-lo, sou o primeiro da fila.

Sandecker contemplou-o e compreendeu que estava aflito.

Você não veio aqui só para admirar o meu barco.

Gunn foi até a beira do cais e ficou olhando com tristeza para as águas turvas do rio.

As últimas notícias, depois que Dirk e Al foram levados do Ocean Angler, em Wellington, não nada são boas.

Desembuche.

Dez horas depois que o iate de Dorsett sumiu de nossas câmeras de satélite...

Os satélites de reconhecimento o perderam de vista? — atalhou Sandecker, irritado.

Nossas redes de inteligência militar não consideram o hemisfério sul precisamente um viveiro de atividades hostis — retrucou Gunn asperamente. — Com o orçamento como está, nenhum satélite capaz de fotografar a Terra em detalhes se encontra numa órbita que cubra os mares ao sul da Austrália.

Eu devia ter levado isso em conta — resmungou o almirante, decepcionado. — Continue, por favor.

A Agência Nacional de Segurança interceptou um telefonema, via satélite, de Arthur Dorsett, a bordo de seu iate, com o superinten­dente de operações da ilha Gladiator, um tal Jack Ferguson. A mensa­gem dizia que Dirk, Al e Maeve Fletcher tinham sido abandonados à deriva num pequeno bote, muito abaixo do paralelo cinqüenta, onde o oceano Indico se encontra com o mar da Tasmânia. Não forneceu a posição exata. Dorsett acrescentou ainda que estava retornando a sua ilha particular.

Ele colocou a própria filha em perigo de vida? — murmurou Sandecker com incredulidade. — Não é possível. Tem certeza de que entenderam corretamente a mensagem?

Não paira nenhuma dúvida.

Mas isso é homicídio a sangue-frio! Significa que eles foram jo­gados numa latitude atingida por ventanias a maior parte do ano!

Pior do que isso — disse Gunn solenemente. — Dorsett os deixou à deriva no caminho de um tufão.

Há quanto tempo?

Há mais de quarenta e oito horas.

Sandecker sacudiu a cabeça.

Mesmo que tenham conseguido sobreviver, vai ser dificílimo encontrá-los.

Praticamente impossível, se levarmos em conta que nem a nossa Marinha nem a australiana tem um navio disponível para as buscas.

Você acredita nisso?

Gunn fez que não.

Nem de longe.

Que chances eles têm de ser vistos por um barco em trânsito?

Estão longe de todas as rotas marítimas. Com exceção das raras embarcações que transportam a logística da estação de pesquisa do subcontinente, por lá só passa um baleeiro de vez em quando. O mar entre a Austrália e a Antártida é um deserto. As possibilidades de serem encontrados são as mais remotas.

Rudi Gunn parecia vencido e cansado. Se fossem um time de futebol, no qual Sandecker tivesse o papel de treinador e Pitt e Giordino o de atacantes, Gunn seria o meio de campo, que armava as jogadas para a linha de frente. Era indispensável e sempre se mostrava animado; o almirante ficou surpreso ao vê-lo de tal modo deprimido.

Parece que você não tern muita esperança de que eles sobrevivam.

Três pessoas à deriva num pequeno bote, assediadas por ventos fortíssimos e um mar furioso? Se, por milagre, sobrevivessem ao tufão, teriam de enfrentar a sede e a fome. Dirk e Al já voltaram da morte em mais de uma ocasião, mas temo que dessa vez a natureza lhes tenha declarado guerra.

Se conheço bem Dirk — disse Sandecker com irrefutável firmeza —, ele vai dar uma banana para a tempestade e sobreviver, nem que seja obrigado a remar até San Francisco. — Enfiou as mãos no fundo dos bolsos da puída japona. — Alerte todos os navios de pesquisa da ANPS num raio de cinco mil quilômetros e mande-os para a região.

Com o seu perdão, almirante, acho isso pouco, e é tarde demais.

Não vou parar por aí. — Os olhos de Sandecker fuzilaram. — Vou exigir uma busca maciça, do contrário a Marinha e a Força Aérea vão se arrepender do dia em que nasceram.

Yaeger localizou o almirante em seu restaurante predileto, uma chur­rascaria meio retirada nos arredores de Washington, onde, sombrios, ele e Gunn jantavam. Quando o receptor compacto celular Motorola Iridium emitiu os bipes em seu bolso, Sandecker parou de comer o filé mignon e, depois de tomar um gole de vinho, atendeu.

Aqui é Sandecker.

Hiram Yaeger, almirante. Desculpe incomodá-lo.

Não precisa pedir desculpas, Hiram. Sei que você não me pro­curaria fora do escritório se não fosse urgente.

O senhor tem condições de vir ao centro de dados?

Não dá para dizer por telefone?

Não, senhor. As comunicações por celular têm ouvintes indese­jáveis. Sem querer ser dramático, preciso falar com o senhor em par­ticular. É muito grave.

Rudi Gunn e eu estaremos aí dentro de meia hora.

Sandecker desligou, guardou o telefone no bolso do paletó e voltou a comer.

Problemas? — quis saber Gunn.

Se li corretamente as entrelinhas, Hiram obteve novos dados sobre a praga acústica. Quer nos contar tudo no centro de dados.

Espero que a notícia seja boa.

Duvido. A julgar por seu tom de voz, desconfio que descobriu uma coisa que nenhum de nós gostará de saber.

Yaeger estava afundado na cadeira, os pés estendidos, a contemplar a imagem de um enorme aparelho de vídeo ligado a um terminal de computador, quando Sandecker e Gunn entraram em seu escritório par­ticular. Ele se voltou e os cumprimentou sem se levantar.

Que houve? — perguntou o almirante sem perda de tempo.

Yaeger endireitou o corpo e fez um gesto na direção da tela de vídeo.

Descobri um método de estimar a posição das convergências de energia acústica emanada das atividades mineiras de Dorsett.

Bom trabalho, Hiram — disse Gunn, puxando uma cadeira e olhando para a tela. — Conseguiu determinar onde ocorrerá a próxima convergência?

Yaeger fez que sim.

Consegui sim, mas primeiro quero explicar o processo. — Digitou uma série de comandos e se reclinou na cadeira. — A velocidade do som na água do mar varia com a temperatura e a pressão hidrostática nas diferentes profundidades. Quanto mais fundo você estiver e, por­tanto, maior for a coluna de água acima, tanto mais depressa se desloca o som. Há cem outras variáveis que eu poderia mencionar, relacionadas com as condições atmosféricas, as estações do ano, o nível de propagação da zona de convergência e a formação de refração acústica, mas vou limitar-me ao mais simples para ilustrar minha descoberta.

A imagem na tela apresentava uma carta do oceano Pacífico, com quatro linhas verdes que, partindo dos lugares onde se encontravam as minas de Dorsett, cruzavam-se na ilha Seymour, na Antártida.

Comecei trabalhando em sentido inverso, a partir do ponto onde ocorreu a praga acústica. Tomando o núcleo do fenômeno, ou seja, a ilha Seymour, que está próxima da ponta da península Antártica, no mar de Weddell, que é parte do Atlântico Sul, concluí que os raios sonoros, nas profundezas do oceano, refletiram-se na montanhosa geo­logia do fundo do mar. Foi acidental, algo que não se conforma com os padrões normais. Tendo estabelecido um método, calculei a ocor­rência do fenômeno mais elementar, isto é, o que exterminou a tripu­lação do Mentawai.

Foi perto da ilha Howland, praticamente no centro do oceano Pacífico — comentou Sandecker.

Muito mais fácil de computar do que a convergência da ilha Seymour — disse Yaeger enquanto digitava os dados que alteraram a tela, levando-a a exibir quatro linhas azuis a partir, respectivamente, das ilhas Kunghit, Gladiator, Komandorskie e de Páscoa. As quatro convergiam na ilha Howland. A seguir, incluiu linhas vermelhas adi­cionais.

Esta é a zona de convergência onde a frota de pesca russa foi liquidada, a nordeste do Havaí — explicou.

Onde você fixou a próxima zona de convergência? — quis saber Gunn.

Se as condições se mantiverem estáveis nos próximos três dias, o lugar será este aqui.

As linhas, agora amarelas, encontraram-se novecentos quilômetros ao sul da ilha da Páscoa.

Não há muito perigo de que uma embarcação seja atingida nessa parte do oceano — refletiu Sandecker. — Em todo caso, para garantir, vou mandar um alerta a todos os navios para que evitem a região.

Gunn se aproximou mais da tela.

Qual é sua margem de erro?

Mais ou menos doze quilômetros — respondeu Yaeger.

E a circunferência ao redor do lugar onde ocorrem as mortes?

Estamos calculando um diâmetro de quarenta a noventa quilô­metros. Depende da energia dos raios sonoros depois de haver percor­rido longas distâncias.

Deve ser enorme o número de animais marinhos atingidos numa área tão vasta.

Em até quanto tempo você é capaz de antecipar uma ocorrência de uma zona de convergência? — indagou Sandecker.

As condições do oceano são difíceis de prever. Não posso garantir uma projeção exata para mais de trinta dias. Depois disso, começa um jogo de azar.

Você calculou algum outro lugar de convergência além do pró­ximo?

Daqui a dezessete dias. — Yaeger olhou de relance para uma enorme folhinha com a fotografia de uma linda moça de saia justa, sentada diante de um computador. — 22 de fevereiro.

Numa data tão próxima?

Com expressão glacial no olhar, Yaeger fitou o almirante.

Deixei o pior para o fim. — Correu os dedos no teclado. — Ca­valheiros, minha previsão é de uma catástrofe de magnitude assombrosa em fevereiro.

Sandecker e Gunn não estavam preparados para aquilo. O que mos­trava a tela do vídeo era um acontecimento impensável, sobre o qual eles não tinham nenhum controle. Tratava-se de uma verdadeira rede de desastres, impossíveis de deter. Ficaram olhando hipnotizados para as quatro linhas roxas que se encontravam e cruzavam na tela.

Não há possibilidade de um engano? — perguntou Gunn.

Refiz os cálculos mais de trinta vezes — disse Yaeger com ex­pressão de fadiga —, tentando encontrar uma falha, um erro, uma va­riante que provasse o meu equívoco. No entanto, por mais que vire e revire, o resultado é sempre o mesmo.

Por Deus, não! — sussurrou Sandecker. — Aí não, com tanto lugar neste vastíssimo oceano!

A não ser que um fenômeno natural imprevisível venha a alterar o mar e a atmosfera — disse Yaeger pausadamente —, a zona de convergência ficará a aproximadamente quinze quilômetros da cidade de Honolulu.

 

Este presidente, ao contrário de seu predecessor, tomava decisões rápida e firmemente, sem vacilar. Recusava-se a participar de reuniões infindáveis, que pouco ou nada resolviam, e, em particular, detestava estar cercado de assessores a lamentar ou festejar suas decisões. Tam­pouco deixava-se encantar por entrevistas coletivas visando a construir defesas contra a crítica da imprensa ou agradar ao público. Estava de­cidido a realizar o máximo possível em quatro anos. Se fracassasse, nenhuma retórica, nenhuma desculpa o ajudaria a vencer as eleições seguintes. Os figurões do partido arrancavam o cabelo e lhe suplicavam que buscasse apresentar uma imagem mais positiva, porém ele dava de ombros e continuava cuidando dos negócios do governo no interesse do país, sem se preocupar com as pedras no caminho.

O fato de Sandecker haver solicitado uma audiência com o presidente não impressionou o chefe de cerimonial da Casa Branca, Wilbur Hutton, homem impermeável a tudo quanto não viesse das lideranças do Con­gresso ou da vice-presidência. Os próprios membros do gabinete tinham dificuldade para despachar com o chefe de Estado. Hutton executava seu trabalho como um guardião excessivamente zeloso do Poder Exe­cutivo. Formado pela Universidade Estadual do Arizona e doutor em economia por Stanford, era grandalhão e musculoso como um leão-de-chácara, e não se deixava intimidar facilmente. Com o escasso cabelo loiro cortado rente e a face sempre vermelha, tinha o hábito de manter os olhos claros voltados para a frente. Raramente olhava para os lados. Ao contrário de muitos assessores da Casa Branca, era respeitado pelos membros do Pentágono. Servira na infantaria, tinha uma extensa lista de atos de bravura na Guerra do Golfo e devotava grande simpatia aos militares. Os generais e almirantes podiam contar muito mais com a sua boa vontade do que os políticos de terno escuro.

Jim, que prazer em vê-lo — disse ele a Sandecker, muito embora este tivesse aparecido sem se anunciar. — Sua solicitação de audiência com o presidente parece urgente, mas ele está com a agenda lotada. Você perdeu a viagem.

Sandecker sorriu; depois ficou sério.

Minha missão é muito delicada para que a pudesse explicar por telefone, Will. Não há tempo para os trâmites normais. Quanto menos gente souber do perigo, melhor.

Hutton apontou uma cadeira e foi fechar a porta.

Desculpe a minha frieza, mas eu escuto essa história o dia inteiro.

Vou lhe contar uma que você nunca ouviu. Daqui a exatamente dezesseis dias, todos os homens, mulheres e crianças da cidade de Honolulu e a maior parte da ilha de Oahu vão morrer.

Hutton cravou o olhar em Sandecker.

Ora, Jim, de que você está falando?

Meus cientistas e os analistas de dados da ANPS desvendaram o mistério por trás da ameaça que vem matando gente e devastando a vida animal no oceano Pacífico. — Sandecker abriu sua pasta e colocou um envelope na escrivaninha de Hutton. — Leia. É o relatório de nossas descobertas. Nós a chamamos de praga acústica porque as mortes são provocadas por ondas sonoras de alta intensidade que se concentram por refração. Essa energia extraordinária se propaga no mar até con­vergir na superfície, matando pessoas e animais num raio de noventa quilômetros.

Hutton ficou calado e, por um breve instante, perguntou-se se o almirante não estava maluco. Mas só por um brevíssimo instante. Co­nhecia Sandecker havia muito tempo para não tomá-lo por um homem sério e sensato, dedicado ao trabalho. Tirou o relatório do envelope, abriu-o e examinou seu conteúdo enquanto o almirante esperava pa­cientemente. Por fim, olhou para ele.

Seu pessoal tem certeza disso?

Absoluta.

Sempre há a possibilidade de erro.

Não há erro — contestou Sandecker com firmeza. — Minha única concessão é uma probabilidade de menos de cinco por cento de que a convergência ocorra a uma distância segura da ilha.

Ouvi boatos, no Congresso, segundo os quais você andou pro­curando os senadores Raymond e Ybarra por causa disso, mas não conseguiu convencê-los a apoiar uma ação militar contra a Dorsett Con­solidated.

Não consegui convencê-los da gravidade da situação.

E agora quer falar com o presidente.

Para salvar dois milhões de vidas humanas, eu peço audiência até com Deus.

Hutton olhou fixamente para Sandecker, a cabeça inclinada para um lado, o olhar desconfiado. Ficou algum tempo tamborilando com um lápis no tampo da escrivaninha, ciente de que não podia fazer pouco-caso daquele homem.

Espere um pouco — ordenou. Entrando por uma porta que dava no Salão Oval, demorou-se uns dez minutos. Ao voltar, fez um gesto para que Sandecker o acompanhasse. — Por aqui, Jim. O presidente vai recebê-lo.

O almirante olhou para ele.

Obrigado, Will. Fico lhe devendo um grande favor.

Quando Sandecker entrou no Salão Oval, o chefe de Estado contor­nou a velha escrivaninha que tinha sido do presidente Roosevelt e lhe apertou cordialmente a mão.

Almirante Sandecker, que prazer!

Estou muito agradecido, excelência.

Will me disse que é um caso urgente, relacionado com as mortes no Polar Queen.

E com muitas outras.

Conte ao presidente o que você me contou — disse Hutton, en­tregando ao chefe de Estado o relatório sobre a praga acústica.

Sandecker apresentou o caso com toda veemência. Foi firme e vi­brante. Acreditava apaixonadamente nas avaliações e conclusões de seus subordinados. Depois de uma pausa enfática, solicitou uma inter­venção militar nas minas de Arthur Dorsett.

O presidente ouviu com interesse até que ele concluísse. Depois pas­sou cinco minutos em silêncio, lendo o relatório. Por fim, ergueu os olhos.

Almirante, o senhor sabe, é claro, que eu não posso destruir ar­bitrariamente uma propriedade particular em território estrangeiro.

Sem falar nas vidas que uma ação militar pode custar — acres­centou Hutton.

Se detivermos as atividades de uma única mina da Dorsett Con­solidated — argumentou Sandecker — e evitarmos que a energia acús­tica parta dessa fonte, poderemos debilitar a convergência e, com isso, livrar dois milhões de homens, mulheres e crianças, que moram nas imediações de Honolulu, de uma morte horrível.

O senhor precisa compreender, almirante, que a energia acústica não é uma ameaça que o governo está preparado para enfrentar. É uma coisa totalmente nova para mim. Vou precisar de tempo para que meus conselheiros, na Câmara Nacional de Ciência, investiguem as des­cobertas da ANPS.

A convergência ocorrerá dentro de dezesseis dias — lembrou Sandecker lugubremente.

Eu lhe darei uma resposta em quatro — garantiu o presidente.

Teremos bastante tempo para executar um plano de ação — com­pletou Hutton.

O presidente lhe estendeu a mão.

Muito obrigado por me informar do problema, almirante. Prometo dar toda atenção a seu relatório.

Obrigado, excelência. Eu não poderia pedir mais.

Do lado de fora do Salão Oval, Hutton lhe disse:

Não se preocupe, Jim. Vou encaminhar pessoalmente a sua ad­vertência aos canais competentes.

Sandecker fitou nele o mais penetrante dos olhares.

Só lhe peço que cuide para que o presidente não deixe isso de lado. Do contrário, não sobrará ninguém para votar nele em Honolulu.

 

Quatro dias sem água. O inclemente calor do sol e a umidade cons­tante lhes sugavam do corpo a transpiração. Pitt não os deixava pros­trar-se inativos na vastidão deserta, coisa que lhes podia deprimir a energia física e o pensamento criativo. O monótono bater das ondas no bote quase os enlouqueceu até que, finalmente, tornaram-se imunes a isso. A ingenuidade era a chave da sobrevivência. Pitt havia estudado uma infinidade de relatos de naufrágios e sabia que muitos marinheiros, em circunstâncias semelhantes, morreram de letargia e desesperança. Orientou Maeve e Giordino a que só dormissem à noite e procurassem manter-se tão ocupados quanto possível durante as longas horas do dia.

Deu certo. Além de bancar o açougueiro do barco, Maeve amarrou um lenço de seda numa corda, jogou-o pela popa do bote e o arrastou no mar. Qual fina rede, o lenço reuniu uma coleção variada de plâncton e formas microscópicas de vida marinha. Horas depois, dividiu os es­pécimes em três montes na tábua de um banco.

Giordino se serviu do duro aço da lâmina do canivete suíço para cavar uma farpa no anzol improvisado com a fivela do cinto de Pitt. E assumiu a função de pescador, ao passo que Maeve, recorrendo a seus conhecimentos de biologia e zoologia, dedicou-se a limpar e a dissecar habilidosamente a pesca do dia. A maioria dos náufragos teria simplesmente mergulhado o anzol no mar e esperado. Giordino, ao contrário, procurava seduzir sua presa. Tendo escolhido os pedaços mais apetitosos — para o peixe ao menos — das entranhas do tubarão, começou a jogar a linha como um caubói a laçar um bezerro, imprimindo-lhe lentos movimentos giratórios e sacudindo-a metro a metro, buscando dar vida à isca. Aparentemente, um jantar em movimento atraía mais a presa, e, assim, ele não tardou a fisgar o primeiro pescado. Um pequeno atum mordeu a isca e em menos de dez minutos estava dentro do bote.

Os anais estavam repletos de relatos de náufragos que tinham mor­rido de fome cercados de peixes, simplesmente porque lhes faltara ha­bilidade para capturá-los. Não era o caso de Giordino. A medida que ia pegando o jeito para a coisa e aperfeiçoava seu sistema ao nível de uma sofisticada ciência, passou a pescar com o virtuosismo de um ve­terano. Se contasse com uma rede, teria enchido o barco em poucas horas. O mar sob o barco parecia um aquário. Peixes de todos os ta­manhos e de cores luminosas haviam se reunido para escoltar os três. Os menores, vivamente coloridos, vinham e atraíam os maiores, os quais, por sua vez, chamavam a atenção dos enormes tubarões, que se faziam bastante incômodos, chocando-se com o bote.

Ameaçadoras e ao mesmo tempo graciosas, as feras das profundezas deslizavam de um lado para outro junto à embarcação, as barbatanas triangulares a cortar a superfície da água como um cutelo. Acompa­nhados de seu séquito de lendários peixes-pilotos, rolavam de lado ao passar por baixo do bote. Pitt se lembrou de um quadro de Winslow Homer, uma gravura pendurada na classe da escola primária que fre­qüentara. Chamava-se Golf Stream. Na cena, via-se um negro flutuando num pequeno veleiro desmastreado, cercado por um cardume de tubarões, com um remoinho no fundo. Era a interpretação de Homer da luta desigual entre o homem e as forças da natureza.

O velho e experimentado método descrito pelos náufragos e pelos antigos navegadores, de mastigar a umidade do peixe cru, fazia parte das refeições, assim como a carne do tubarão, seca e retorcida pelo sol. A dieta de sushi foi enriquecida por dois peixes-voadores de bom ta­manho que os três encontraram debatendo-se no fundo do barco durante a noite. O sabor oleoso da carne fresca e crua não chegaria a ser laureada com um prêmio de gastronomia, mas serviu para diminuir a agonia da fome e da sede. Os estômagos vazios ficaram satisfeitos com apenas algumas mordidas.

A necessidade de refrescar o corpo também era atendida mediante rápidos mergulhos a intervalos de horas, enquanto os outros se punham a vigiar os tubarões. A deliciosa sensação que experimentavam ao se deitar com a roupa molhada à sombra do toldo do bote ajudava-os a combater a miséria da desidratação, assim como o tormento das quei­maduras do sol. Ajudava também a dissolver a camada de sal que rapidamente se acumulava em seus corpos.

Os elementos da natureza tornaram bastante simples a tarefa de navegar. Os ventos do Oeste os levava para leste. A corrente, na mesma direção, colaborava. Para determinar sua posição aproximada, uma es­timativa grosseira na melhor das hipóteses, Pitt se norteava pelo sol e pelas estrelas, com a ajuda de um quadrante improvisado com lascas da madeira do remo.

O quadrante, instrumento para determinar a latitude, era empregado pelos antigos navegantes. Com a extremidade de um dos braços da cruz à altura dos olhos, o outro era deslocado para frente e para trás, até que uma ponta ficasse exatamente entre o sol ou uma estrela e o horizonte. O ângulo da latitude era então lido nas chanfraduras enta­lhadas na madeira. Uma vez encontrado o ângulo, o marinheiro estava em condições de estabelecer grosseiramente a latitude, sem nenhuma outra referência. Saber a longitude em que se encontravam, uma vez que haviam sido arrastados para leste, era outra coisa.

O céu noturno exibia uma infinidade de estrelas, verdadeiros pontos luminosos da bússola celeste, que giravam de oriente para ocidente. Depois de fixar suas posições durante algumas noites, Pitt conseguiu registrar um diário de bordo rudimentar, inscrevendo seus cálculos no náilon de cobrir o barco com um pequeno lápis que Maeve descobriu fortuitamente sob um dos tubos de flutuação. O primeiro obstáculo era que ele não tinha tanta familiaridade com as estrelas e constelações do hemisfério sul quanto com as visíveis ao norte do equador, de modo que foi preciso acostumar-se.

O leve bote era sensível ao soprar do vento e avançava constante­mente na água como se tivesse velas. Ele mediu a velocidade, amarrando um de seus tênis de sola de borracha a uma corda de cinco metros e jogando-o diante da embarcação. Depois contava os segundos que o barco demorava a ultrapassar o calçado, retirando-o da água antes que flutuasse além da popa. Descobriu que estavam sendo arrastados pelo vento do oeste a pouco menos de três quilômetros por hora. Estendendo o náilon como vela e usando o remo como um curto mastro, constatou que podiam aumentar a velocidade a cinco quilômetros, ou seja, a mesma que eles teriam se pudessem sair do bote e caminhar em passo normal a seu lado.

— Aqui estamos, à deriva, sem remos, feito carga inútil jogada no grande mar da vida — murmurou Giordino, com os lábios gretados pelo sal. — Agora só falta imaginar um meio de governar esta coisa.

Não diga mais nada — respondeu Pitt, servindo-se da chave de fenda para extrair as dobradiças do assento de fibra de vidro que tam­bém servia de tampa de um pequeno compartimento. Em menos de um minuto, ergueu a peça retangular, que tinha mais ou menos o mesmo tamanho e a mesma forma da porta de um armário de cozinha. — O problema está resolvido.

Como pretende prendê-lo? — quis saber Maeve, já começando a acostumar-se ao infinito repertório de invenções de Pitt.

Com as dobradiças dos outros bancos, posso parafusá-lo na barra que sustentava o motor de popa, de modo a poder deslocá-lo de um lado para outro. Depois, prendendo duas cordas na extremidade su­perior, podemos manejá-lo como o leme de qualquer navio ou avião. Isto se chama tornar o mundo um lugar mais habitável.

Você é o máximo — disse Giordino estoicamente. — Licença poé­tica, lógica elementar, alegria de viver, sensualidade, não falta nada.

Pitt olhou para Maeve e sorriu.

O que mais me agrada em Al é sua teatralidade.

Pois bem, agora que adquirimos uma partícula de controle, grande navegante, qual é o nosso destino?

Isso é com Maeve. Ela conhece melhor as águas que estamos singrando.

Se rumarmos diretamente para o norte — disse ela —, podemos chegar à Tasmânia.

Pitt sacudiu a cabeça e apontou para a vela improvisada.

Não temos cordame para navegar a vento largo. Com nosso fundo achatado, seríamos levados cinco vezes mais a leste que a norte. Chegar ao extremo sul da Nova Zelândia é uma possibilidade, embora remota. Teremos de desfraldar a vela para rumar ligeiramente a nordeste, di­gamos um curso de setenta e cinco graus segundo minha bússola de escoteiro.

Quanto mais ao norte, melhor — disse ela, cruzando os braços no peito para aquecer-se. — As noites são muito frias aqui no sul.

Sabe se há ocorrência de terra neste rumo? — perguntou Giordino a Maeve.

Não muita. São poucas as ilhas ao sul da Nova Zelândia e ficam muito separadas umas das outras. Podemos passar facilmente entre duas delas sem vê-las, principalmente à noite.

Talvez sejam nossa única esperança. — Pitt consultou a bússola.

Você se lembra de sua localização aproximada?

A ilha Stewart fica pouco abaixo da ilha do Sul. Depois vem a Snares, a Auckland e, novecentos quilômetros mais ao sul, as Macquaries.

A Stewart é a única que me soa vagamente familiar — disse Pitt, pensa tivo.

As Macquaries não valem a pena. — Maeve estremeceu instinti­vamente. — Seus únicos habitantes são os pingüins, e neva com fre­qüência.

Deve ser banhada por correntes frias da Antártida.

Se não encontrar nenhuma delas, estaremos em mar aberto até a América do Sul — disse Giordino sem entusiasmo.

Pitt toldou a vista com a mão e examinou o céu vazio.

Se o frio da noite não nos matar, sem chuva vamos ficar desidratados muito antes de pôr os pés em terra firme. Nossa melhor opção é continuar na direção das ilhas do sul, na esperança de topar com uma delas. É questão de guardar os ovos em vários diferentes cestos.

Então vamos tentar as Macquaries — propôs Giordino.

De fato, são a nossa maior esperança.

Com a providencial ajuda do italiano, Pitt não demorou a desviar o rumo para os setenta e cinco graus apontados pela bússola magnética. O leme rudimentar funcionou tão bem que conseguiram chegar a quase sessenta graus. Animados com a idéia de que tinham uma partícula de controle sobre o destino, sentiram emergir um leve otimismo, que aumentou quando Giordino anunciou de súbito:

Vem vindo um aguaceiro em nossa direção!

As nuvens pretas que se haviam formado no ocidente estavam se aproximando rapidamente, como se um gigante tivesse resolvido de­senrolar um tapete sobre eles. Em poucos minutos as gotas começaram a tamborilar no bote. E foram se tornando mais pesadas e concentradas, até que a chuva caiu torrencialmente.

Abram todos os compartimentos, tudo quanto possa reter a água

ordenou Pitt, apressando-se a arriar a vela. — Vamos inclinar o náilon durante um minuto para que o sal acumulado escorra. Depois, vamos transformá-lo numa espécie de funil que canalize a chuva para o isopor.

Em seguida, todos voltaram o rosto para as nuvens, abrindo muito a boca e tratando de enchê-la, engolindo o precioso líquido feito vorazes filhotes de pássaro a exigir comida dos pais. O cheiro fresco e o gosto puro tinham a doçura do mel nas gargantas ressecadas. Nenhuma sen­sação podia ter sido mais agradável.

O vento passava correndo sobre o mar, e, nos doze minutos seguintes, eles festejaram o deslumbrante dilúvio. Os tubos de flutuação de bor­racha sintética rufavam qual tambores com as gotas. A água logo encheu a caixa de isopor e transbordou no fundo do bote. A chuvarada salva­dora cessou tão repentinamente quanto havia começado. Não se havia desperdiçado uma gota. Eles tiraram a roupa e a torceram, recolhendo na boca toda a água possível antes de armazenar o que restava no fundo da embarcação em cada recipiente que conseguiram imaginar. Com a chuva e a ingestão de água fresca, o estado de espírito melhorou.

Quanto será que armazenamos? — perguntou Maeve.

Dez ou doze litros — calculou Giordino.

Podemos acrescentar uns três litros, misturando-a com a água do mar — disse Pitt.

Maeve o encarou.

Tem certeza? Beber água misturada com sal não é o melhor re­médio contra a sede.

Nos dias de calor escaldante nos trópicos, as pessoas têm a ten­dência a tomar muita água mas continuam com sede. O corpo absorve mais líquido do que precisa. O que nosso organismo exige, quando sua muito, é sal. Pode ser que sua língua retenha o desagradável gosto do água salgada, mas, acredite, misturada com água potável, mata a sede sem que você se sinta enjoada.

Após uma refeição de peixe cru e a substituição dos líquidos do corpo, eles se sentiram quase humanos outra vez. Maeve achou uma pequena quantidade de graxa sob o painel, onde outrora ficavam os controles do motor, e o misturou com o óleo que tinha espremido do pescado, para fazer uma espécie de filtro solar. Divertidos, eles batiza­ram a mistura de Armadura Fletcher para a Carne, a qual recebeu nota seis. A única aflição que não conseguiam remediar eram as feridas que o atrito provocado pelo constante movimento da embarcação ia formando em suas pernas e costas. A loção improvisada por Maeve ajudou, mas não resolveu o problema.

Uma ventania chegou durante a tarde, encrespando o oceano e empurrando-os a nordeste, ao sabor das imprevisíveis e caprichosas vagas. A âncora feita com o blusão de couro foi lançada uma vez mais, e Pitt arriou a vela para que não fosse levada pelas rajadas. A ventania durou até as dez horas da manhã seguinte; depois, abrandou. Assim que o mar serenou, os peixes retornaram. Agitando a água e arremetendo contra o bote, pareciam enlouquecidos pela interrupção. Os mais vo­razes e agressivos banquetearam-se com os parentes menores. Durante quase uma hora a água ao redor da embarcação ficou tinta de sangue, enquanto os peixes empreendiam sua infinita luta de vida ou morte que os tubarões sempre venciam.

Extremamente cansada de ser atirada de um lado para outro na barca, Maeve não tardou a adormecer e sonhar com os filhos. Giordino também fez a sesta, e um de seus sonhos foi uma fantástica refeição. Pitt não dormiu. Deixando de lado a exaustão, tornou a içar a vela. Consultou o sol com a ajuda do quadrante improvisado e estabeleceu a rota com a bússola. Instalando-se à popa numa posição confortável, segurou as cordas atadas ao leme e tratou de manter a embarcação no rumo nordeste.

Como costumava acontecer quando o mar estava calmo, ele não pen­sou na sobrevivência nem no mar que o cercava. Depois de refletir sobre a situação, seu pensamento sempre se voltava a Arthur Dorsett. Ele contraiu todos os músculos do corpo para dominar a raiva. Ninguém podia infligir horrores impensáveis a pessoas inocentes, inclusive à pró­pria filha, sem sofrer algum tipo de punição. E agora mais do que nunca. Os rostos maldosos de Dorsett e suas filhas, Deirdre e Boudicca, o atraíam. A mente de Pitt não tinha lugar para o sofrimento dos últimos cinco dias, para nenhuma emoção relacionada ao tormento da morte próxima. Só era capaz de pensar obsessivamente em vingança. Vingança ou execução, não havia diferença. Dorsett não podia e não haveria de continuar seu reinado de crueldade, sobretudo depois de tantos assas­sinatos. Precisava ser castigado.

A mente de Pitt estava fixa não em um, mas em dois objetivos: salvar os filhos de Maeve e matar o perverso mercador de diamantes.

 

Pitt estava conduzindo a pequena embarcação no vasto oceano havia oito dias. Ao anoitecer, Giordino se encarregava dos deveres da nave­gação, enquanto seu amigo e Maeve jantavam uma combinação de peixe cru com a carne seca do tubarão. A lua cheia surgiu no horizonte como se fosse uma enorme esfera âmbar; a seguir diminuiu, tornou-se branca e começou a atravessar o firmamento. Depois de tomar vários goles de água para tirar o gosto de peixe da boca, Maeve se aninhou nos braços de Pitt e olhou para a seta dourada, no mar, que levava à lua. Cantarolou os versos de Moon River e depois, calando-se, olhou para o rosto forte do namorado, examinando-lhe o duro contorno do maxilar, as sobrancelhas escuras e grossas, os olhos verdes e brilhantes. Tinha o nariz bem delineado, com evidentes sinais de haver sido quebrado mais de uma vez. As rugas no canto dos olhos e a leve curvatura dos lábios davam a impressão de que ele sempre estava sorrindo, bem-hu­morado. Um homem junto ao qual qualquer mulher se sentiria bem; um homem que não representava ameaça alguma. Uma estranha mis­tura de firmeza e sensibilidade tornava-o incrivelmente atraente.

Maeve ficou calada, como que hipnotizada, até que ele se voltasse repentinamente e visse a expressão de fascínio em seu rosto. Ela não fez menção de desviar o olhar.

Você não é um homem comum.

Ele se mostrou intrigado.

Por que está dizendo isso?

As coisas que você diz, as coisas que faz. Nunca vi ninguém tão sintonizado com a vida.

Ele riu com evidente prazer.

Eu também nunca ouvi palavras assim de uma mulher.

Conheceu muitas? — perguntou ela com curiosidade de menina.

Muitas?

Mulheres.

Nem tanto. Eu sempre quis ser um conquistador como Al, mas raramente tive tempo.

Já foi casado?

Não. Nunca.

Quase?

Uma vez, quem sabe.

Que aconteceu?

Ela foi assassinada.

Era visível que Pitt não tinha conseguido ultrapassar o abismo entre a dor e a doce lembrança. Maeve se arrependeu de ter feito a pergunta, ficou sem jeito. Sentia-se instintivamente atraída por ele e desejava fin­car-se em sua mente. Sabia que Pitt era do tipo que esperava algo mais profundo do que uma relação física casual. O flerte hipócrita não o atraía.

Chamava-se Summer — prosseguiu ele em voz baixa. — Foi há muito tempo.

Eu lamento.

Tinha olhos acinzentados e o cabelo ruivo. Parecia-se muito com você.

Obrigada.

Pitt ia lhe perguntar sobre seus filhos, mas se conteve, sabendo que aquilo prejudicaria a intimidade do momento. Duas pessoas sozinhas, isto é, quase sozinhas, num mundo dominado pela lua, pelas estrelas e pelo mar negro, inquieto, num mundo desprovido de seres humanos e terreno sólido, onde milhares de quilômetros de um nada fluido os rodeava, era muito fácil esquecer a realidade e imaginar-se a velejar na baía de uma ilha tropical.

Você também é incrivelmente parecida com sua tetravó — disse.

Ela ergueu a cabeça e o fitou.

Como pode saber se me pareço com ela?

O retrato de Betsy Fletcher no iate.

Preciso lhe falar de Betsy um dia — disse Maeve, encolhendo-se em seus braços como um gatinho.

Não precisa — sorriu Pitt. — Sinto que a conheço quase tão bem quanto a você. Uma mulher heróica, presa e enviada à colônia penal de Botany Bay, sobrevivente da jangada do Gladiator. Ajudou a salvar a vida do capitão "Durão" Scaggs e de Jess Dorsett, um salteador preso, que veio a se casar com ela e era o seu tetravô. Depois de desembarcar no que ficou conhecido como a ilha Gladiator, Betsy descobriu uma das maiores minas de diamante do mundo e fundou uma dinastia. Lá no meu hangar, tenho um dossiê completo sobre os Dorsett. A começar por Betsy e Jess, seguindo seus descendentes e chegando até você e suas graciosas irmãs.

Ela endireitou o corpo novamente, e uma raiva súbita brilhou em seus olhos azuis.

Você andou me investigando, seu bandido. Provavelmente com ajuda da CIA!

Pitt sacudiu a cabeça.

Não a você. Interessavam-me as crônicas da família Dorsett de mercadores de diamante. E a pesquisa feita por um senhor muito dis­tinto, que ficaria indignado se soubesse que você se referiu a ele como agente da CIA.

Você não sabe tanto quanto imagina sobre a minha família — disse ela com arrogância. — Meu pai e seus ancestrais sempre foram muito reservados.

Pode ser — disse ele com voz branda. — Mas há um membro de seu clã que me intriga mais do que todos os outros.

Qual?

O monstro marinho da lagoa.

A pergunta a tomou totalmente de surpresa.

Você não está falando de Basil, está?

Ele ficou um momento confuso.

De quem?

De Basil. Não se trata de um monstro marinho. E uma serpente. Há uma grande diferença. Eu a vi com meus próprios olhos em três ocasiões.

Pitt deu uma boa gargalhada.

Basil? O bicho se chama Basil?

Você não acharia tanta graça se ele o pegasse.

Pitt sacudiu a cabeça.

Não posso acreditar que estou ouvindo uma zoóloga dizer que acredita em serpentes marinhas.

Para começar, serpente marinha é um nome errado. Não são ser­pentes de verdade, como as cobras.

Existem histórias fantásticas de turistas que juram ter visto animais estranhos em todos os lagos, do Ness ao Champlain, mas, que eu saiba, os últimos relatos de casos ocorridos no oceano datam do século pas­sado.

O que se vê no mar não tem a publicidade que tinha antigamente. As guerras, os desastres naturais e os massacres passaram a ocupar as primeiras páginas dos jornais.

Isso não calaria os tablóides.

As rotas marítimas dos navios modernos estão bem fixadas — explicou Maeve com paciência. — Os antigos veleiros passavam por mares pouco freqüentados. Os baleeiros, que perseguiam baleias em vez de percorrer a distância mais curta entre dois portos, relatavam essas aparições com muita freqüência. Por outro lado, os veleiros eram silenciosos e conseguiam aproximar-se das serpentes ainda na super­fície, ao passo que os navios modernos, a diesel, podem ser ouvidos debaixo da água a quilômetros de distância. O fato de as serpentes serem grandes não significa que não sejam ariscas e medrosas, infatigáveis viajantes dos oceanos, que se recusam a ser capturadas.

Se não são ilusões nem cobras, que são então? Dinossauros?

Ora, seu cético — disse ela muito séria, com um toque de desafio na voz. — Estou escrevendo minha tese de doutorado justamente sobre a criptozoologia, a ciência dos animais lendários. Para sua informação, há quatrocentos e sessenta e sete casos de aparições, eliminadas as alucinações, as fraudes e os relatos de segunda mão. Estão todos catego­rizados em meu computador, na universidade; a natureza das aparições, inclusive as condições do tempo e do mar na ocasião das ocorrências; distribuição geográfica, características particulares, cor, forma, tamanho. Mediante técnicas de computação gráfica, posso acompanhar a evolução do animal. Respondendo a sua pergunta, elas provavelmente evoluíram a partir dos dinossauros, do mesmo modo como os jacarés e os croco­dilos. Mas não são em hipótese alguma dinossauros. O plesiossauro, a espécie que mais freqüentemente se acredita que tenha sobrevivido como a serpente marinha dos nossos dias, nunca passou dos dezesseis metros, muito menor do que Basil.

Tudo bem. Vou guardar meu julgamento até que você me con­vença de que existem mesmo.

Há seis espécies primárias — prosseguiu ela. — A maioria dos relatos refere-se a um animal de pescoço comprido, com uma corcova principal e a cabeça e as mandíbulas parecidas com as de um cachorro grande. Depois, vem uma que é sempre descrita com cabeça de cavalo, com crina, e olhos enormes e redondos. Dizem também que têm uma barbicha de bode sob o maxilar inferior.

Barbicha de bode... — repetiu Pitt com cinismo.

Depois, vem uma variedade com verdadeiro corpo de serpente, como uma enguia. Outra tem a aparência de uma gigantesca lontra marinha, e há ainda as que são conhecidas por suas ásperas e gigantescas barbatanas triangulares. O tipo de que se fala com mais freqüência tem várias corcovas dorsais, cabeça oval e um focinho enorme, como o dos cães. Essa serpente é quase sempre descrita como preta em cima e branca embaixo. Algumas têm nadadeiras ou barbatanas como a das focas ou tartarugas, outras não. Algumas têm caudas enormes e muito longas, outras apenas um cotó. Muitas parecem ter pêlo; várias, no entanto, apresentam uma pele lisa como seda. As cores variam do cinza-amarelado ao marrom e ao preto. Quase todas as testemunhas concordam em que a parte inferior de seu corpo é branca. Diferentemente da maioria das verdadeiras cobras aquáticas e das terrestres, que nadam agitando o corpo para os lados, a serpente marinha se desloca mediante ondu­lações verticais. Parece que se alimenta de peixe, só surge em tempo calmo e foi observada em todos os mares, exceto nas águas do Ártico e do Antártico.

Como você sabe que esses relatos não têm origem num engano? — argüiu Pitt. — Eles podem ter visto tubarões, aglomerados de algas marinhas, cetáceos nadando em fila indiana ou mesmo um polvo gi­gante.

Na maioria dos casos havia mais de um observador — respondeu Maeve. — Muitos eram capitães de navio de indiscutível integridade. O capitão Arthur Rostron foi um deles.

Conheço o nome. Estava no comando do Carpathia, o navio que salvou os sobreviventes do Titanic.

Ele viu uma criatura que parecia estar em grande dificuldade, como se estivesse ferida.

Os testemunhos podem ser absolutamente sinceros, mas equivo­cados — insistiu Pitt. — Enquanto não levarem uma serpente ou ao menos um pedaço dela para que os cientistas a dissequem e estudem, não há prova.

Por que não podem existir répteis de vinte a trinta metros de comprimento, com forma de serpente, se viveram no mar na era Mesozóica? O mar não é uma vidraça de cristal. Não podemos ver as suas profundezas e escrutar os horizontes longínquos, como em terra. Quem sabe quantas espécies gigantes ainda desconhecidas pela ciência habi­tam os mares?

Estou até com medo de perguntar — disse Pitt com um sorriso. — Em que categoria se encaixa Basil?

Eu a classifiquei como "mega-enguia". Ela tem corpo cilíndrico, de trinta metros de comprimento, terminando numa cauda com uma ponta. Sua cabeça é ligeiramente achatada, como a da enguia comum, mas com uma enorme boca canina e dentes afiados. É azulada, tem barriga branca, e seus olhos muito pretos são do tamanho de uma travessa. Ondula o corpo horizontalmente, como as demais enguias e cobras. Em duas ocasiões a vi erguer a parte dianteira do corpo uns dez metros fora da água. Depois caiu com um grande estrondo.

Quando a viu pela primeira vez?

Quando tinha uns dez anos — respondeu Maeve. — Deirdre e eu estávamos passeando de barco na lagoa, um pequeno veleiro que mamãe nos havia dado, quando, de repente, tive a estranha sensação de estar sendo observada. Senti um calafrio. Deirdre agiu como se nada tivesse acontecido. Eu me voltei lentamente e vi bem ali, a uns vinte metros da popa, uma cabeça enorme e um pescoço cerca de três metros acima da água. Os dois olhos pretos e brilhantes estavam fitos em nós.

Qual era a grossura do pescoço?

Quase dois metros de diâmetro, do tamanho de um tonei de vinho, como meu pai costuma descrevê-lo.

Ele também a viu?

Toda a família viu Basil mais de uma vez. Em geral quando alguém estava para morrer.

Continue.

O animal parecia um dragão saído do pesadelo de uma criança. Eu fiquei petrificada, não fui capaz de dizer uma palavra nem de gritar. Deirdre não olhou. Sua atenção estava concentrada em me dizer quando virar de bordo, para que não saíssemos do recife exterior.

E a serpente se aproximou?

Não. Só ficou olhando para a gente, não fez menção de seguir o veleiro nem de molestar-nos quando nos afastamos.

Deirdre não a viu?

Dessa vez não, porém, mais tarde, viu-a em duas oportunidades.

Como reagiu seu pai quando você lhe contou o que tinha visto?

Ele riu e disse: "Finalmente vocês ficaram conhecendo Basil!"

Quer dizer que a serpente aparecia quando havia uma morte?

É uma lenda familiar, mas tem um fundo de verdade. Basil foi vista na lagoa, pela tripulação de um baleeiro que lá havia ancorado, no dia do enterro de Betsy Fletcher; mais tarde, quando minha tia-avó Mildred morreu; e, depois, quando faleceu minha mãe. Ambas tiveram morte violenta.

Coincidência ou destino?

Maeve deu de ombros.

Quem sabe? A única coisa que sei com certeza é que meu pai matou minha mãe.

Dizem que seu avô, Henry, também matou a irmã, Mildred.

Ela o encarou, surpresa.

Você também sabe disso? — Olhou para o lugar onde o mar negro se encontrava com as estrelas, o luar a lhe iluminar os olhos, que pareciam mais escuros e tristes. — As últimas três gerações dos Dorsett não foram exemplos de virtude.

Sua mãe se chamava Irene.

Maeve fez que sim.

Como ela morreu? — perguntou Pitt com delicadeza.

Ela teria morrido de qualquer jeito, de tristeza pelo abuso a que era submetida pelo homem que amava desesperadamente. Mas, quando estava passeando nos penhascos com meu pai, escorregou e caiu no mar. — Uma expressão de ódio se estampou em seu rosto delicado. — Ele a empurrou — disse friamente. — Meu pai a empurrou e matou!

Pitt a estreitou nos braços e sentiu-a trêmula.

Fale-me de suas irmãs.

A expressão de ódio desapareceu, e suas feições tornaram-se deli­cadas novamente.

Não tenho muito a contar. Nunca fui apegada a nenhuma delas. Deirdre era a mais traiçoeira. Quando queria alguma coisa minha, sim­plesmente a roubava e fingia que sempre tinha sido dela. Era a queridinha do papai, creio que por serem muito parecidos. Deirdre vive num mundo de fantasia criado por seus próprios enganos. Não con­segue dizer a verdade mesmo quando não há motivo algum para mentir.

Ela nunca se casou?

Uma vez, com um jogador profissional de futebol, um caça-dotes que achou que ia passar a vida gastando o dinheiro do sogro e fazendo o que bem entendesse. Infelizmente, logo depois de pedir divórcio e exigir uma pensão que se comparava ao orçamento cia Austrália, ele caiu providencialmente de um dos iates da família. Nunca acharam o corpo.

Parece que não vale a pena aceitar convites para ir navegar com os Dorsett — disse Pitt com um leve sorriso.

Tenho medo de pensar em todas as pessoas que papai eliminou, gente que estava atravessada em seu caminho de fato ou só em sua imaginação.

E Boudicca?

Não a conheço realmente — disse ela, distante. — E onze anos mais velha. Logo depois que nasci, papai a matriculou num internato exclusivo. Ao menos foi o que me contaram. Pode parecer esquisito, mas minha irmã sempre foi uma estranha para mim. Eu tinha quase dez anos quando a vi pela primeira vez. Só sei que ela tem uma paixão por moços jovens e bonitos. Papai não gosta muito, mas pouco faz para impedi-la de transar por aí.

Ela é uma moça forte.

Uma vez, eu a vi lutar com papai, quando ele estava bêbado e batendo em mamãe.

Estranho que todos eles tenham sempre esse ódio assassino pelo único membro decente e amável da família.

Quando fugi da ilha onde fomos mantidas virtualmente prisio­neiras após a morte de mamãe, papai não conseguiu aceitar a minha independência. O fato de eu ganhar a vida e pagar os meus estudos, sem tocar num tostão da fortuna Dorsett, o deixava furioso. Depois, quando eu estava morando com um rapaz e fiquei grávida, decidi ir até o fim, mesmo sabendo que seriam gêmeos, em vez de optar pelo aborto. Não quis me casar, e meu pai e minhas irmãs cortaram todos os meus vínculos com o império Dorsett. Tudo isso parece loucura, e eu não consigo explicá-la. Mudei legalmente de sobrenome, adotando o de minha tetravó, e continuei vivendo feliz por estar livre de uma família tão perturbada.

Maeve fora vítima de forças cruéis sobre as quais não tinha o menor controle, e Pitt sentiu pena dela. Ao mesmo tempo, porém, respeitava-lhe a força de vontade e a coragem. Era uma mulher adorável. Seu olhos azuis tinham a sinceridade de uma criança. Ele jurou a si mesmo que moveria montanhas para salvá-la.

Ia dizer alguma coisa, porém, na escuridão, avistou uma ebulição na crista de uma onda gigantesca, que se erguia diante deles e que parecia rebentar em todo o seu campo, visual. Pitt sentiu um arrepio na nuca ao ver três vagas iguais rolarem atrás da primeira.

Gritando, para alertar Giordino, empurrou Maeve para o chão. A onda desabou em cima do bote, inundando-o de espuma e pressionando-o para baixo a estibordo. O lado oposto foi erguido no ar, e o bote tombou na profunda depressão que se abriu nas águas. A segunda vaga pareceu tocar as estrelas antes de se precipitar com a força de um trem de carga. O bote mergulhou na negra tempestade, submergindo totalmente. Vendo-se à mercê do mar enlouquecido, a única opção de Pitt, para não morrer, era agarrar-se com toda força ao tubo de flutuação, repetindo o que fizera durante o tufão. Ser jogado para fora significava ficar para sempre no mar.

A pequena embarcação mal tinha conseguido voltar à superfície quando as duas últimas vagas a atingiram em violenta sucessão, fa­zendo-a girar num infernal remoinho. Os desamparados passageiros foram jogados para baixo e uma vez mais submersos. Logo, viram-se a deslizar no dorso liso da última onda, e o mar serenou como se nada tivesse acontecido. As tumultuosas vagas passaram e desapareceram na noite.

Mais uma graciosa demonstração dos humores do mar — esbra­vejou Giordino, firmemente agarrado ao painel. — Que foi que fizemos para que ele ficasse tão bravo?

Pitt soltou Maeve imediatamente e a ajudou a sentar-se.

Você está bem?

Ela tossiu muito antes de balbuciar, ofegante:

Espero... ainda estar viva. Que foi que nos atingiu, afinal?

Pode ter sido um abalo sísmico no fundo do mar. Não é preciso um tremor de grande magnitude para provocar uma série de gigantescas ondas.

Maeve empurrou dos olhos as mechas molhadas de cabelo.

Graças a Deus que o barco não virou e nenhum de nós foi jogado ao mar.

Como ficou o leme? — quis saber Giordino.

No mesmo lugar. Nosso mastro improvisado também sobreviveu, mas a vela está rasgada.

A comida e a reserva de água também continuam em bom estado — informou Maeve.

Quer dizer que saímos sem um arranhão? — perguntou o italiano, mal podendo acreditar.

Não por muito tempo — disse Pitt com ar sombrio.

Maeve olhou à sua volta.

Não estou vendo nenhuma avaria séria que não possa ser repa­rada.

Nem eu — concordou Giordino depois de constatar os tubos de flutuação.

E que vocês não olharam para baixo.

A forte luz do luar, puderam ver a aflição no rosto de Pitt. Olharam na direção para a qual ele apontava e compreenderam que já não havia esperanças de sobrevivência.

Ao longo de todo o fundo do barco havia uma rachadura, que já começava a fazer água.

 

Rudi Gunn não era dado a suar nem se deixava encantar pela excitação do esporte. Confiava em suas faculdades mentais, num regime de disciplinados hábitos alimentares e em seu metabolismo para se manter jovem e forte. Uma ou duas vezes por semana, quando lhe dava vontade, andava de bicicleta antes do almoço, ao lado de San­decker, que corria diariamente dez quilômetros num dos muitos cami­nhos do parque Potomac. O exercício não era de modo algum feito em silêncio. Enquanto um corria e o outro pedalava, os assuntos da ANPS eram discutidos como se eles estivessem conversando no escritório.

Qual é o recorde de sobrevivência no mar? — perguntou o al­mirante, arrumando a faixa na testa.

Steve Callahan, um iatista, sobreviveu setenta e seis dias quando seu barco afundou perto das ilhas Canárias — respondeu Gunn. — Foi o mais longo tempo de um homem sozinho numa balsa inflável. O Guinness atribui o recorde de sobrevivência no mar a Poon Lin, um comissário chinês que ficou à deriva num bote quando seu navio foi torpedeado no Atlântico Sul durante a Segunda Guerra Mundial. So­breviveu cento e trinta e três dias e foi resgatado por um pesqueiro brasileiro.

Algum deles teve de enfrentar uma tormenta?

Gunn sacudiu a cabeça.

Nem Callahan nem Poon Lin toparam com uma tempestade com intensidade que chegasse aos pés do tufão que atingiu Dirk, Al e a senhorita Fletcher.

Já faz duas semanas que Dorsett os abandonou — disse Sandecker, ofegante. — Se tiverem sobrevivido à tormenta, devem estar sofrendo muita sede, sem falar na exposição aos elementos da natureza.

Pitt é um homem de muitos recursos — disse Gunn sem hesitar.

Com Giordino, eu não me surpreenderia se eles estivessem agora numa praia do Taiti, descansando numa cabana de sapé.

Sandecker se fez a um lado do caminho para dar passagem a uma mulher com um carrinho de bebê que ia na direção contrária. Reto­mando a corrida, murmurou:

Dirk sempre diz que o mar não revela facilmente os seus segredos.

As coisas já podiam estar resolvidas se as equipes de resgate da Austrália e da Nova Zelândia tivessem apoiado os esforços da ANPS.

Arthur Dorsett é muito poderoso — disse Sandecker com raiva.

Recebi tantas desculpas dizendo que eles estavam ocupados em ou­tras missões de resgate, que poderia construir um muro com elas.

É verdade. O poder desse homem é impressionante. — Gunn parou de pedalar e se deteve ao lado do almirante. — O suborno de Dorsett fala fundo no bolso de muitos amigos no Congresso dos Estados Unidos e nos parlamentos da Europa e do Japão. Muita gente famosa trabalha para ele.

Sandecker ficou vermelho, não por causa do esforço físico, mas de­vido à desesperança. Não conseguia conter a raiva e o ressentimento. Parando, curvou o corpo, apoiou-se nos joelhos e ficou olhando para o chão.

Eu trocaria a ANPS pela chance de pôr as mãos no pescoço desse canalha.

— Tenho certeza de que você não é o único — disse Gunn. — Deve haver milhares que o detestam, desconfiam dele e até o odeiam. Mesmo assim, nunca o traem.

Não admira. Quando não providencia acidentes fatais para os que se interpõem em seu caminho, ele os compra, enchendo de dia­mantes cofres bancários na Suíça.

Muito persuasivos, os diamantes.

Mas ele não influenciará o presidente.

Não, mas o presidente pode ser levado a mudar de opinião por maus conselheiros.

Não se a vida de mais de um milhão de pessoas estiver em perigo.

Nenhuma resposta ainda? — perguntou Gunn. — O presidente disse que tomaria uma decisão em quatro dias. Já passaram seis.

Ele compreendeu muito bem a urgência da situação...

Ambos se voltaram ao ouvir a buzina de um carro com o logotipo da ANPS. O motorista parou do outro lado da rua paralela ao caminho do parque. Baixando a janela do lado do passageiro, gritou:

Telefonema da Casa Branca para o senhor, almirante!

Sandecker olhou para Gunn e sorriu.

Sua excelência deve ter sentido as orelhas arder.

Aproximou-se do automóvel e pegou o telefone celular que o mo­torista lhe ofereceu.

É Wilbur Hutton, senhor. A linha é segura.

Will?

Olá, Jim, acho que não tenho boas notícias para você.

Sandecker ficou tenso.

Como assim?

Depois de muito considerar o assunto, o presidente decidiu adiar as ações relativas à praga acústica.

Mas por quê? — balbuciou o almirante. — Ele não prevê as con­seqüências?

Os especialistas da Câmara Nacional de Ciência não concordam com a sua teoria. Foram convencidos pelos relatórios da autópsia dos patologistas australianos do Centro de Controle de Enfermidades de Melbourne. Os australianos provaram, conclusivamente, que as mortes a bordo do navio de passageiros foram provocadas por um tipo raro de bactéria parecida com a que causou a pneumonia aguda.

É impossível!

Só sei o que me contaram — reconheceu Hutton. — Os australianos desconfiam que a água do sistema dos umidificadores da calefação do navio estava contaminada.

Não me importa o que dizem os patologistas. É loucura o presi­dente não fazer caso de minhas advertências. Pelo amor de Deus, Will, peça, rogue, suplique ou faça o que for necessário para convencê-lo a usar seu poder para deter as atividades das minas de Dorsett antes que seja tarde demais.

Sinto muito, Jim. O presidente está com as mãos atadas. Nenhum de seus conselheiros científicos considerou suas provas convincentes o bastante para arriscar um incidente internacional. Muito menos num ano eleitoral.

É uma maluquice! — disse Sandecker, desesperado. — Se o meu pessoal estiver com a razão, o presidente não conseguirá eleger-se nem para lavar o mictório público.

É a sua opinião — disse Hutton com frieza. — Devo acrescentar que Arthur Dorsett se dispôs a abrir suas minas a uma equipe inter­nacional de investigadores.

Quanto tempo demora para que se constitua uma equipe dessas?

Leva tempo. Duas ou três semanas, pelo menos.

Neste caso, haverá pilhas de cadáveres em Oahu quando eles começarem.

— Feliz ou infelizmente, é uma questão de opinião. Você é minoria.

Eu sei que você fez o que pôde, Will, e estou agradecido.

Por favor, entre em contato se tiver alguma informação nova. Minha linha está sempre aberta para você.

Obrigado.

Até logo.

Sandecker devolveu o telefone ao motorista e se voltou para Gunn.

Fomos logrados.

Gunn o encarou, chocado.

O presidente não reconhece a situação?

Derrotado, o almirante fez que sim.

— Dorsett comprou os patologistas. Eles mandaram um relatório falso, afirmando que a causa da morte dos passageiros do navio foi a contaminação do sistema de aquecimento.

Nós não podemos capitular! — exclamou Gunn, furioso. — Temos de encontrar outros meios de deter a loucura de Dorsett a tempo.

Na dúvida — disse Sandecker com um olhar fuzilante —, aposte em alguém mais esperto do que você. — Tornou a pegar o telefone e digitou um número. — Existe um homem que deve ter a solução.

 

O almirante Sandecker se abaixou e colocou a bola no chão do clube de golfe Camelback, em Scottsdale, no Arizona. Eram duas da tarde, e o céu estava azul e límpido. Fazia apenas cinco horas que correra ao lado de Rudi Gunn, em Washington. Ao aterrissar no aeroporto de Scottsdale, tomou emprestado o carro de um amigo, um velho oficial reformado da Marinha, e foi diretamente para o campo de golfe. Em janeiro fazia frio no deserto. Por isso, vestiu uma calça de lã e um pulôver de cashmere de mangas compridas. Havia dois campos no clube, e ele estava jogando no que se chamava Indian Bend.

Apontou a trezentos e sessenta e cinco verdes metros de distância, moveu duas vezes o taco, preparando-se, e então, sem esforço, deu a tacada. A bola se ergueu no ar, desviou-se um pouco à direita, bateu, rebateu, rolou e foi parar a cento e noventa metros.

Bela jogada, almirante — disse o dr. Sanford Adgate Ames. — Foi um erro desafiá-lo a um amistoso de golfe. Não imaginava que os velhos marinheiros levassem a sério os jogos de campo.

Com a longa e cerdosa barba grisalha, que lhe cobria a boca e lhe chegava até o peito, Ames parecia um velho explorador do deserto. Seus olhos estavam ocultos por um par de óculos bifocais de lentes azuis.

Os velhos marinheiros fazem muita coisa esquisita — retrucou Sandecker.

Pedir ao dr. Sanford Adgate Ames que fosse a Washington para uma reunião de alto nível teria sido o mesmo que rogar a Deus que mandasse um siroco derreter a calota polar. Impossível. Ames detestava tanto Nova York quanto Washington e se recusava peremptoriamente a visitar as duas cidades. Ofertas de jantares ou prêmios em sua ho­menagem não o tiravam de seu valhacouto no monte Camelback, no Arizona.

Sandecker precisava daquele homem, e com muita urgência. Engo­lindo o sapo, solicitou um encontro com o "mestre do som", como Ames era conhecido entre os colegas cientistas. Ele concordou, mas com a rigorosa condição de que o almirante levasse seus tacos, pois a discussão seria realizada no campo de golfe.

Altamente respeitado na comunidade científica, Ames estava para o som assim como Einstein para o tempo e a luz. Insensível, egocêntrico, brilhante, tinha escrito mais de trezentos trabalhos sobre quase todos os aspectos conhecidos da oceanografia acústica. Em quarenta e cinco anos, seus estudos e análises incluíam fenômenos que iam das técnicas de sonar e radar à propagação acústica e à reverberação sob a superfície. Outrora importante conselheiro do Ministério da Defesa, foi obrigado a renunciar depois de apresentar veementes objeções aos testes de ruídos no oceano que estavam sendo realizados no mundo inteiro para medir o aquecimento global. Seus cáusticos ataques a experiências nucleares também provocaram a animosidade do Pentágono. Os representantes de uma infinidade de universidades foram bater a sua porta na espe­rança de contratá-lo como professor, porém Ames recusou, preferindo pesquisar com uma pequena equipe de quatro estudantes que ele pa­gava do próprio bolso.

Que tal jogar a um dólar o buraco, almirante? Ou você só faz apostas altas?

É a sua vez, doutor — sorriu Sandecker.

Ames se aproximou da bola, estudou o campo como se estivesse apontando um fuzil e deu a tacada. O almirante notou que, apesar dos quase setenta anos, o alcance da estirada era poucos centímetros menor do que a de um homem muito mais jovem e ágil. A bola voou e foi cair numa sand trap pouco além da marca dos duzentos metros.

Como caem depressa os poderosos — ele filosofou.

Sandecker não desistia facilmente. Sabia que seria batido. Ames ficara famoso nos círculos de Washington como craque no golfe. E diziam que, se não houvesse se dedicado à física, teria se tornado jogador profissional.

Entraram num carrinho de golfe e foram atrás das bolas, Ames ao volante.

Em que lhe posso ser útil, almirante?

Você está inteirado dos esforços da ANPS para identificar e neu­tralizar o que chamamos de praga acústica?

Ouvi boatos.

Que achou?

Difícil de acreditar.

A Câmara Nacional de Ciência e o presidente são da mesma opinião — resmungou o almirante.

Eu não os condenaria.

Você não acredita que o som possa percorrer milhares de quilô­metros sob a água, depois emergir e matar?

Originando-se em quatro fontes acústicas de alta intensidade, con­vergindo na mesma região e provocando a morte de todos os mamíferos em seu raio de alcance? Não é uma hipótese sobre a qual eu recomen­daria aprofundar-se, a menos que já não me importasse conservar o prestígio entre meus pares.

Hipótese uma ova! — explodiu Sandecker. — já morreram mais de quatrocentas pessoas. O coronel Leigh Hunt, um dos melhores pa­tologistas do país, provou conclusivamente que a causa das mortes são as intensas ondas sonoras.

Não é o que diz o relatório da autópsia feita na Austrália.

Você é um fingido, doutor — sorriu o almirante. — Está perfei­tamente a par do problema.

Eu me interesso por tudo o que se relaciona à acústica.

Chegaram primeiro à bola de Sandecker, que escolheu o marco nú­mero três e a enviou a uma sand traip vinte metros adiante do gramado. E ainda lhe foram necessárias duas tacadas para sair da situação des- vantajosa e duas outras para que sua bola rolasse para dentro do buraco, marcando um bogey duplo. Quando estavam se dirigindo à segunda baliza, o almirante se pôs a relatar minuciosamente as suas descobertas. Os oito buracos seguintes foram jogados em meio a uma discussão intensa, durante a qual Ames o questionou sem clemência, levantando uma série de argumentos contra a hipótese do assassinato acústico.

No nono buraco, Ames se serviu de um novo taco, especial, para colocar a bola a pouco mais de um metro do objetivo. E viu divertido quando Sandecker, com uma desastrada tacada, mandou a sua para longe do buraco visado.

Você seria um bom adversário se jogasse com mais freqüência, almirante.

Cinco vezes por ano me bastam. Não sinto que valha a pena passar seis horas correndo atrás de uma bolinha.

Oh, eu não diria isso. Desenvolvi alguns de meus conceitos mais criativos quando estava relaxando no clube de golfe.

Quando Sandecker finalmente conseguiu encaçapar sua bola, volta­ram para o carrinho. Ames lhe ofereceu uma lata de refrigerante dietético, que tirou de uma pequena caixa de isopor.

Afinal, o que você está esperando que eu lhe diga? — perguntou.

Sandecker o encarou.

Não me interessa o que pensam os cientistas enclausurados em torres de marfim. As pessoas estão morrendo no mar. Se não detivermos Dorsett, outras morrerão e numa quantidade em que nem quero pensar. Você é o melhor especialista em acústica do país. Quero que me oriente para acabar com esse massacre.

Quer dizer que sou a sua última instância? — A mudança sutil no tom amigável de Ames não chegou a ser a mais séria do mundo, mas foi inconfundível. — Quer que eu encontre uma solução prática para o seu problema?

Para o nosso problema — corrigiu Sandecker delicadamente.

  1. Agora eu entendo. — Ames ergueu a lata de refrigerante e ficou olhando para ela com curiosidade. — Você acertou quando me chamou de fingido, almirante. Tracei um plano completo quando você estava vindo para cá. Não é uma perfeição. A chance de sucesso é de cinqüenta por cento, mas não posso lhe oferecer coisa melhor, a menos que passe meses e meses pesquisando.

Sandecker mirou o cientista com um brilho de esperança nos olhos e, tentando dissimular a excitação, perguntou:

Você concebeu um plano para finalmente acabar com as atividades das minas de Dorsett?

O velho barbudo sacudiu a cabeça.

Soluções armadas ficam fora de meu território. Estou me referindo a um método de neutralizar a convergência acústica.

Como seria possível?

Muito simples. A energia das ondas sonoras pode ser refletida, não pode?

É óbvio que sim.

Se vocês já sabem que são quatro raios separados que se propa­garão na direção da ilha de Oahu e já conseguiram determinar a data aproximada da convergência, suponho que seus cientistas também es­tejam em condições de prever com adequada precisão o ponto da con­vergência.

Sim, estão.

Pois a solução é essa.

Essa? — Toda esperança que Sandecker nutria desapareceu de súbito. — Eu devo ter deixado escapar alguma coisa.

Ames deu de ombros.

Ora, almirante, por que complicar se é possível simplificar?

A resposta mais simples é preferível à mais complexa, eu sei.

— Pois bem. Meu conselho também é muito simples. A ANPS deve construir um refletor parecido com uma antena parabólica, mergulhá-lo no ponto de convergência e desviar de Honolulu as ondas acústicas.

Sandecker procurou não mostrar nenhuma emoção, mas seu coração tinha disparado. A chave do enigma era ridiculamente simples. Decerto, a execução de um projeto de redirecionamento não seria nada fácil, mas era possível.

Se a ANPS puder construir e empregar um refletor a tempo — ele perguntou a Ames —, para onde redirecionaríamos as ondas acústicas?

O cientista ostentou um sorriso malicioso.

A escolha mais óbvia seria uma parte desabitada do oceano, o sul da Antártida por exemplo. No entanto, já que a energia de conver­gência diminui à medida que viaja, por que não mandá-la de volta à fonte?

A mina de Dorsett na ilha Gladiator — disse Sandecker, procu­rando não deixar transparecer o terror na voz.

Ames fez que sim.

Uma escolha tão boa quanto qualquér outra. A intensidade da energia não teria força para matar seres humanos na viagem de volta. Mas pode ser que lhes cause uma tremenda dor de cabeça.

 

Era o fim da linha, pensou Pitt com amargura. Tinham conseguido o máximo que se podia esperar de um ser humano. Aquele era o fim dos bravos esforços, dos futuros desejos, amores e alegrias de cada um deles. Acabariam todos na água, como alimento de peixe, seus pobres restos mortais perdidos a milhares de metros no desolado fundo do mar. Maeve não tornaria a ver os filhos, Pitt seria lamentado pela mãe, o pai e os muitos amigos da ANPS. A cerimônia fúnebre em memória de Giordino, pensou ele com um derradeiro resquício de humor, contaria com um numerosíssimo público de mulheres chorosas, todas ca­pazes de ganhar um concurso de misse.

O pequeno bote que os levara tão longe, em meio a tanto caos, estava literalmente partindo-se em pedaços. A rachadura no fundo do casco aumentava uma fração a cada onda que erguia o barco em sua crista. Os tubos de flutuação os manteria na superfície, mas quando o casco se partisse e os pedaços se separassem, seriam jogados irremediavel­mente na água, procurariam agarrar-se aos escombros e ficariam à mercê dos onipresentes tubarões.

Por enquanto, o mar estava bastante sereno e as ondas não alcan­çavam mais de um metro. Porém, se o tempo mudasse e o mar se encapelasse, a morte não se limitaria a olhá-los nos olhos. A caveira com a foice os tomaria rapidamente nos braços, sem sombra de hesi­tação.

Pitt se inclinou sobre o leme, ouvindo o ruído agora familiar do esforço para jogar fora a água que penetrava na embarcação. Com os olhos intensamente verdes, doloridos e inchados, escrutou o mar ilu­minado pelo sol matinal, que ia passando do alaranjado a um amarelo incendiado. Procurou, já sem esperança, um pedaço de terra no limpo e reto horizonte que os cercava ao longe. Procurou em vão. Não se via um barco, um avião, uma ilha. A não ser por umas poucas nuvens deslocando-se a sudeste, o mundo de Pitt estava vazio como as planícies de Marte. O bote não passava de uma ponta de alfinete na vastidão do oceano.

Como haviam pescado o suficiente para abrir um restaurante espe­cializado em frutos do mar, a fome não os atormentava. Seu suprimento de água, se conservado, bastaria para pelo menos seis ou sete dias. O grande sofrimento era o cansaço e a falta de sono provocados pelo esforço ininterrupto de se livrar da água e manter o barco à superfície. Cada hora que passava era uma miséria. Sem um recipiente ou sequer uma garrafa, foram obrigados a tirar com a concha das mãos a água que entrava até que Pitt improvisasse um vaso com o impermeável do pacote de utensílios que conseguira trazer, apesar da vigilância dos seguranças de Dorsett. Amarrado a um par de chaves, de modo a formar um receptáculo côncavo, permitia jogar um litro de água do mar por vez.

No começo, dividiram-se em turnos de quatro horas, pois Maeve exigiu participar do esforço. Ela trabalhou com valentia, combatendo a rigidez que logo lhe atacou as articulações dos braços e dos pulsos, seguida de terríveis dores musculares. Não lhe faltava coragem nem disposição, mas ela não tinha a força natural dos homens. Os turnos se dividiram, então, segundo a resistência de cada um. Maeve passou três horas devolvendo a água para o mar; foi então substituída por Pitt, que lutou cinco horas a fio. Depois, Giordino entrou em ação e só concordou em ser substituído oito horas mais tarde.

Conforme se alargava a rachadura, a água ia deixando de infiltrar-se para começar a jorrar feito uma fonte. O mar passou a entrar mais depressa do que podia ser jogado fora. Encurralados e sem possibilidade de alívio à vista, eles começaram a perder lentamente o ânimo.

Maldito Arthur Dorsett!, pensou Pitt. Maldita Boudicca, maldita Deir­dre!

A terrível fadiga e a inutilidade de tudo não tinham sentido. Ele e Maeve não representavam uma ameaça tão grande assim para os fa­náticos sonhos imperiais de Dorsett. Sozinhos, jamais teriam podido detê-lo ou sequer tornado mais lenta a realização de seus objetivos. Fora um ato de puro sadismo abandoná-los no oceano.

Maeve se agitou no sono, murmurando algo; depois ergueu a cabeça e olhou semiconsciente para Pitt.

É a minha vez de trabalhar?

Só daqui a cinco horas — mentiu ele com um sorriso. — Continue dormindo.

Giordino parou um momento e olhou para o amigo. Estava com o coração partido por saber que muito em breve Maeve seria dilacerada e devorada pelas máquinas mortíferas no fundo do mar. Sombrio, rei­niciou o trabalho e prosseguiu sem cessar, jogando milhares de litros de água no oceano.

Só Deus sabia como conseguia continuar. Devia estar com as costas e os braços martirizados. Sua vontade de ferro e sua resistência ultra­passavam em muito os limites do entendimento. Pitt era mais forte do que a maioria dos homens, mas diante de Giordino não passava de um menino olhando para um campeão olímpico de halterofilismo. Quando, vencido pela exaustão, Pitt lhe entregou o recipiente, o italiano recomeçou como se pudesse trabalhar para sempre. Jamais aceitaria a derrota. Forte e irredutível, provavelmente morreria tentando estrangular um tubarão-martelo.

O perigo tornava Pitt mais lúcido. Numa última e desesperada ten­tativa, arriou a vela, estendeu-a na água, passou-a por baixo do casco e amarrou as cordas nos tubos de flutuação. Comprimida na rachadura pela pressão da água, a peça de náilon reduziu em cerca de cinqüenta por cento a velocidade da infiltração, mas se tratava, na melhor das hipóteses, apenas de um adiamento, que lhes daria umas poucas horas suplementares de vida. A menos que o mar se tornasse absolutamente calmo, imaginou Pitt, o esgotamento físico da tripulação e a ruptura do bote ocorreriam pouco antes do anoitecer. Consultando o relógio, constatou que o pôr-do-sol não tardaria mais de quatro horas e meia.

Segurando delicadamente o pulso de Giordino, tirou o recipiente de sua mão.

Minha vez — disse com firmeza.

O italiano não ofereceu resistência. Fez um gesto de agradecimento, deixou-se tombar junto a um tubo de flutuação e pegou no sono ime­diatamente.

O náilon estava contendo razoavelmente o fluxo de água. Pitt tra­balhou a tarde toda, mecanicamente, sem noção do tempo, mal notando a passagem do sol brutal, sem se deixar abater por seus raios incle­mentes. Labutava como um robô, sem sentir a dor nas costas e nos braços, atordoado, prosseguindo sempre como que sob o efeito de urr narcótico.

Maeve tinha saído do estado de letargia. Sentando-se, olhou eston- teada para o horizonte atrás de Pitt.

Não acha lindos os coqueiros? — murmurou.

Sim, lindíssimos — concordou ele com um sorriso tenso, acredi­tando que ela estivesse com alucinações. — Mas é perigoso ficar debaixo deles. Pode cair um coco em sua cabeça.

Uma vez eu estive em Fiji — disse ela, sacudindo o cabelo solto — e vi um coco quebrar o pára-brisa de um carro.

Maeve parecia uma menininha a vagar perdida num bosque, já sem esperança de encontrar o caminho de volta para casa. Pitt desejava poder fazer ou dizer alguma coisa que a confortasse. Mas nada havia a fazer naquele mar imenso. A compaixão e a impotência o encheram de amargura.

Não acha que devia rumar um pouco mais a estibordo? — per­guntou ela com indiferença.

A estibordo?

Maeve o encarou como se estivesse em transe.

  1. Do contrário você vai acabar passando pela ilha e deixando-a para trás.

Pitt estreitou os olhos. Lentamente voltou-se e olhou por cima do ombro. Após quase dezesseis dias a calcular sua posição pelo sol, e sofrendo o clarão refletido pela água, sua vista estava tão cansada que ele apenas conseguiu olhar um momento para a distância. Depois, fe­chou os olhos. Não viu senão as ondas verde-azuladas.

Voltou-se novamente.

Já não temos como controlar o bote — explicou. — Eu arriei a vela e a coloquei sob o casco para vedá-lo.

Oh, por favor — pediu ela. — Está tão perto. Não podemos de­sembarcar e pisar terra firme ainda que só alguns minutos?

Ela o disse com tanta calma, tão racional em seu sotaque australiano, que Pitt sentiu um frio na espinha. Será que estava mesmo vendo alguma coisa? A razão dizia que Maeve estava fora de si. Mesmo assim, um resto de esperança misturado com o desespero fez com que ele se co­locasse de joelhos e se firmasse, apoiando-se no tubo de flutuação. Nesse momento, o bote foi erguido na crista de uma onda e ele pôde ver rapidamente o horizonte.

Não havia montanhas nem coqueiros.

Pitt pôs o braço nos ombros de Maeve. Lembrou-se de quanto era forte e corajosa. Agora, parecia pequena e frágil, mas mesmo assim sua graça luzia com intensidade. Então notou que ela não estava olhando para o mar, mas para o céu.

Pela primeira vez notou um pássaro com as asas estendidas, a planar na brisa. Toldando a vista com a mão, estudou o intruso alado. Devia ter um metro de envergadura, com as penas esverdeadas, salpicadas de manchas marrons. A parte superior do bico era curva e pontiaguda. Devia ser um parente feioso do papagaio.

— Você também o está vendo! — exclamou Maeve, excitada. — Um papagaio da Nova Zelândia, o mesmo que levou meus ancestrais à ilha Gladiator. Os marinheiros que naufragaram nas águas do sul juram que esse pássaro mostra o caminho dos portos seguros.

Giordino olhou para cima, encarando o papagaio mais como comida que como emissário divino, mandado por fantasmas, para guiá-los à terra firme.

— Peça-lhe que nos conduza a um bom restaurante — murmurou, cansado. — De preferência algum que não ofereça frutos do mar no cardápio.

Pitt não deu resposta ao invencível humor do italiano. Ficou obser­vando os movimentos da ave, que continuava pairando sem fazer a menor tentativa de voar em círculos ao redor do barco. Depois, como que tomando fôlego, afastou-se para sudeste. Pitt pegou imediatamente a bússola e tratou de determinar o curso do pássaro; ficou olhando para ele até que se tornasse um ponto no céu e desaparecesse.

Os papagaios não eram aves aquáticas como as gaivotas e os petréis, capazes de voar grandes distâncias sobre o mar. Aquele podia ter se perdido, mas não era provável, pois não tentara pousar no único objeto flutuante à vista. O que significava que a ave não estava cansada. Sabia exatamente onde se encontrava e aonde estava indo. Parecia ter um plano. Talvez estivesse viajando de uma ilha a outra. Sim, talvez. Pitt tinha certeza de que, do alto, aquele pássaro podia ver alguma coisa que os miseráveis náufragos no bote semi-destruído não conseguiam.

Aproximou-se do painel e se levantou, segurando-se com ambas as mãos para não cair no mar. Uma vez mais forçou os olhos inchados para escrutar a distância. Já tinha familiaridade com as nuvens no ho­rizonte, que davam a ilusão de terra. Acostumara-se aos brancos tufos de algodão a pairar na borda extrema do mar, com suas formas irre­gulares e suas manchas acinzentadas, criando falsas esperanças antes de mudar de forma e afastar-se, arrastados pelo vento. Aquela vez era diferente. Uma nuvem solitária permanecia estacionária no horizonte, enquanto as outras passavam por ela. Elevava-se debilmente no mar, porém sem sinais de massa. Não havia indicações de vegetação verde porque a nuvem, em si, não era parte da ilha. Tinha se formado a partir dos vapores da areia abrasada pelo sol que, depois, se conden­savam numa camada mais fria de ar.

Pitt reprimiu todo sentimento de excitação e prazer ao se dar conta de que a ilha se achava a umas cinco horas de distância. Não havia como chegar lá, mesmo com a vela uma vez mais içada e a água a brotar no fundo do bote. Depois, suas frustradas esperanças se resta­beleceram quando ele compreendeu que não se tratava do topo de uma montanha submarina que subira à superfície após um milhão de anos de atividade vulcânica, para acolher uma vegetação exuberante em suas colinas e vales. Era uma rocha baixa e plana, a sustentar algumas árvores difíceis de identificar, que, de algum modo, resistiam ao clima frio da­quelas latitudes distantes das zonas tropicais meridionais. Claramente visíveis, as árvores se aglomeravam nos pequenos espaços de areia que enchiam as gretas da rocha. Pitt percebeu então que a ilha estava muito mais próxima do que parecera à primeira vista. Não se encontrava a mais de oito ou nove quilômetros de distância. As copas das árvores pareciam um tapete felpudo no horizonte.

Calculando a direção da ilha, notou que coincidia precisamente com o rumo tomado pelo papagaio da Nova Zelândia. A seguir, tomou a direção do vento e concluiu que a corrente os levaria pouco além da ex­tremidade norte da terra. Teriam de velejar para sudeste, mais a estibordo, como Maeve imaginara, surpreendentemente, em sua alucinação.

Esta linda moça merece um prêmio — anunciou. — Terra à vista.

Maeve e Giordino se levantaram com esforço, agarraram-se a Pitt e olharam para a distante esperança de salvação.

Não é uma miragem — disse Giordino com um amplo sorriso.

Eu disse que o papagaio nos levaria a um porto — sussurrou Maeve.

Pitt não se deixou dominar pela excitação.

Ainda não estamos lá. Teremos de recolocar a vela no mastro e trabalhar como loucos para tirar a água do barco, se quisermos pisar naquela praia.

Giordino calculou a distância que os separava da ilha e ficou muito sério.

O bote não agüenta. Vai se partir em dois antes que tenhamos percorrido a metade do caminho.

 

Içaram a vela e, na tentativa de evitar que a rachadura se alargasse, usaram toda corda disponível para amarrar o barco. Com Maeve ao leme, Giordino a jogar feito um louco a água no mar e Pitt tentando empurrá-la com as mãos para o lado, o barco avariado aproou direta­mente para a pequena e achatada ilha, a poucos quilômetros de dis­tância. Afinal, estava comprovado o talento de navegador de Pitt.

A fadiga atordoante, a insuportável exaustão tinham desaparecido como por encanto. Ele e Giordino haviam penetrado uma zona em que já não eram mais os mesmos, uma região psicológica na qual o outro mundo, de estresse e sofrimento, não tinha sentido. Pouco importava que seus corpos estivessem fadados a pagar muito caro depois, contanto que sua férrea determinação e a recusa a aceitar a derrota os ajudassem a percorrer a distância que separava o bote da atraente praia. Ambos sabiam perfeitamente da dor que lhes gritava nos ombros e nas costas, mas essa consciência não passava de um débil protesto da mente. Era como se o tormento estivesse em outro lugar.

O vento inflou a vela, empurrando a embarcação no rumo do solitário afloramento no horizonte. Porém o mar implacável não estava disposto a deixá-los escapar. A corrente lhes oferecia resistência, opunha-se àque­la viagem à praia e tratava de arrastá-los num arco que passava muito além dos limites da ilha, ameaçando levá-los de volta à imensidão do Pacífico.

— Acho que não vamos conseguir — disse Maeve com medo.

Olhando para a frente enquanto trabalhava furiosamente para jogar fora a água do bote, Pitt não tirava os olhos da terra cada vez mais próxima. A princípio, acreditara que se tratasse apenas de uma ilha. Contudo, quando estavam a uns dois quilômetros de distância, notou que eram duas. Um braço de mar de cerca de cem metros de largura separava uma da outra. Conseguiu distinguir também uma corrente que passava entre elas. Avaliando a encrespação da superfície e a es­puma que se formava, compreendeu que a brisa estava a seu favor, levando o barco num ângulo mais agudo por cima da corrente hostil. Ainda bem, pensou com otimismo. E também ajudava o fato de a água muito fria daquela latitude não permitir a formação de bancos de coral capazes de emboscá-los e despedaçar a embarcação.

Pelejando febrilmente com a água, ele e Giordino começaram a ouvir um estrondo ameaçador, que se tomava cada vez mais alto. Numa breve pausa, ambos sentiram um arrepio ao perceber que se tratava do barulho inconfundível dos vagalhões arremetendo contra as rochas. As ondas assassinas estavam arrastando velozmente o bote para o abra­ço fatal. A feliz expectativa de tornar a pôr os pés em terra firme deu subitamente lugar ao medo de ser esmagado. Em vez de um paraíso seguro, Pitt deparava com um par de perigosíssimos penhascos que assomavam abruptamente no oceano, cercados e batidos pela impetuo- sidade das ondas compactas. Não eram atóis tropicais com convidativas praias de areia e nativos amistosos a acenar, como a abençoada Bali Ha'i de luxuriante vegetação. Não havia sinal de habitantes naquelas ilhas. Estéreis, castigadas pelo vento e desertas, pareciam um misterioso posto avançado de rochas vulcânicas. A única vegetação era composta de alguns aglomerados de plantas baixas, sem flores, e de árvores de aspecto estranho, aparentemente atrofiadas.

Ele mal podia acreditar que estivesse em guerra com a água e as pedras pela terceira vez desde que salvara Maeve na península Antár­tica. Durante um breve instante, seu pensamento retornou ao quase impossível resgate do Polar Queen e da fuga da ilha Kunghit com Mason Broadmoor. Em ambas as ocasiões, contara com a força mecânica para escapar. Agora, estava combatendo a fúria das águas com um barco inundado e uma vela pouco maior do que um lençol.

Lembrou-se de haver lido em algum lugar que a primeira conside­ração do bom marinheiro, em mares violentos, era a preservação da estabilidade do barco. Não podia permitir que a embarcação fizesse água, pois ficaria com a flutuabilidade afetada. E desejou que o autor daquelas linhas estivesse a seu lado.

— Se você não estiver vendo um trecho de praia onde possamos desembarcar — Pitt gritou para Maeve —, procure passar pela brecha entre as duas ilhas.

As adoráveis feições de Maeve, queimadas pelo sol, tornaram-se ten­sas. Ela fez que sim em silêncio, segurou com mais firmeza as cordas do leme e concentrou toda a sua força na tarefa.

As muralhas denteadas que se elevavam além da impetuosa arre­bentação pareciam mais ameaçadoras a cada minuto que passava. A água continuava entrando alarmantemente a bordo. Alheio à agitação do mar, Giordino só se dedicava a evitar o naufrágio. Cessar de tirar a água podia ter conseqüências fatais naquele momento. Dez segundos de infiltração ininterrupta no bote rachado, e eles afundariam a qui­nhentos metros da praia. E, então, se não fossem devorados pelos tu­barões, seriam esmagados entre as ondas e as rochas. Continuou lutando sem parar, a fé depositada nas mãos do velho amigo e de Maeve.

Pitt estudava a cadência das vagas que os erguiam e tornavam a baixar, medindo o rebentar das cristas à proa e à popa, tentando calcular sua velocidade. O intervalo entre elas se reduziu a uns nove segundos, a uma velocidade de aproximadamente vinte e dois nós. As ondas que­bravam num ângulo oblíquo à linha denteada do litoral e refluíam com muita força numa curva ampla. Não era preciso que um velho capitão de clíperes viesse lhe contar que, com aquela vela extremamente pre­cária, eram mínimas as possibilidades de manobrar e passar pelo canal. Outro problema era o refluxo das ondas em ambas as ilhas, que transformava a entrada da passagem num verdadeiro remoinho.

Ele sentia nos joelhos apoiados no fundo do bote a pressão de cada onda que se erguia e lhe calculava a massa pelas vibrações no casco. A pobre embarcação estava sendo cruelmente arrojada num tumulto jamais imaginado pelos que a projetaram. Pitt não se atreveu a lançar a âncora improvisada, como recomendava todo manual de navegação em mares bravios. Sem motor, parecia-lhe mais vantajoso viajar com as ondas. A resistência da âncora certamente partiria o barco quando a imensa pressão do mar os empurrasse.

Voltou-se para Maeve.

Procure manter-se no azul mais escuro da água.

Estou fazendo o possível.

O bramido das ondas chegava com uma batida constante, e não tardou para que eles vissem a espuma arremessada para o alto e lhe ouvissem a zoada. Sem controle direto e manual, estavam desampara­dos, à mercê dos caprichos do mar inquieto. Os vagalhões se tornaram ainda mais altos. De perto, a brecha entre os afloramentos de rocha parecia uma armadilha insidiosa, uma sereia calada a atraí-los a um falso refúgio. Era tarde demais para dar meia-volta e tentar contornar as ilhas. Estavam aprisionados e não havia retorno.

As ilhas e o borbulhante caldeirão de bruxa junto a suas praias ma­lignas ficavam escondidos atrás do flanco das ondas que passavam por baixo do barco. Uma lufada de vento fresco se ergueu, jogando-os na direção de uma fenda na muralha de pedra, que lhes ofereceu a única chance de sobreviver.

O mar se tornava mais nervoso à medida que eles se aproximavam. O mesmo aconteceu com Pitt quando ele calculou que a crista das ondas chegava a dez metros de altura antes de se encrespar e esboroar-se. Maeve lutava com o leme para manter o curso, mas o bote já não obedecia e em breve se tornou ingovernável. Estavam totalmente ao sabor do oceano.

Agüente firme! — gritou Pitt.

Olhando rapidamente para a popa, calculou sua posição em relação ao movimento vertical do mar. Sabia que as ondas atingiam velocidade máxima pouco antes de chegar à crista e desabar. E avançavam como gigantescos caminhões em fila. O bote caiu numa depressão, mas, por sorte, o vagalhão rebentou pouco depois de passar por eles; então, a uma velocidade altíssima, foram levados no dorso da onda seguinte, que, quando se desboroou, espalhou-se em todas as direções sob a força do vento que lhe varria a crista. O barco tornou a cair, para ser imediatamente puxado pelo mar, que se ergueu sob eles a uma altura de oito metros, enrolou-se e se precipitou sobre suas cabeças. O bote não se rompeu nem virou nem afundou. Caiu de chapa, chocando-se ruidosamente com o fundo da depressão.

Os três se viram sob uma muralha de pressão hidráulica. Era como se o barco estivesse sendo transportado, debaixo da água, por um ele­vador descontrolado. A submersão total pareceu durar minutos, mas não deve ter passado de alguns segundos. Pitt manteve os olhos abertos e viu Maeve apagar-se feito uma visão surrealista no líquido vazio, o rosto incrivelmente sereno, os cabelos loiros espalhados ao redor da cabeça. E tudo se tornou nítido e claro quando retornaram à superfície.

Três outras ondas rolaram sobre eles com menor ímpeto, e então o mar começou a se acalmar. Pitt sacudiu a cabeça, espalhando gotas brilhantes ao redor e cuspindo a água salgada que lhe entrara na boca.

O pior já passou! — gritou com alegria. — Chegamos ao canal!

As ondas que entravam pela passagem entre as ilhas mal alcançavam os três metros de altura. Assombrosamente, apesar da ferocidade do mar, o bote continuou flutuando, e inteiro. O único dano visível ocorrera à vela e ao mastro improvisado, que tinham sido arrancados. Ainda presos ao barco pela corda, estavam flutuando a pouca distância.

Embora com água até o peito, Giordino seguia trabalhando inces­santemente para esvaziar a embarcação. Cuspindo e esfregando o sal dos olhos, continuou sua atividade como se não existisse amanhã. O casco estava definitivamente partido em dois e mal se mantinha com as cordas apressadamente amarradas e as presilhas dos tubos de flu­tuação. Mas ele só reconheceu a derrota quando a água lhe chegou às axilas. Ofegante, atordoado, exausto, olhou a sua volta.

E agora? — murmurou.

Sem esperar a resposta de Pitt, mergulhou o rosto na água e examinou o fundo do canal. A visibilidade excepcional, apesar da falta de uma máscara de mergulhador, permitiu-lhe avistar areia e pedras a apenas dez metros. Cardumes de peixes vivamente coloridos nadavam tran­qüilamente por ali, sem fazer caso da estranha criatura a flutuar acima deles.

Não há tubarões — disse com alívio.

Eles raramente nadam em ondas de arrebentação — disse Maeve com um acesso de tosse. Estava sentada, com os braços estendidos sobre o tubo de flutuação da popa.

A corrente que passava pelo canal os estava levando para perto da ilha do norte. A terra firme se encontrava a apenas trinta metros de distância. Pitt olhou para Maeve e sorriu.

Aposto como você nada bem.

Sou australiana — disse ela com bom humor. — Lembre-me de lhe mostrar minhas medalhas de natação um dia desses — acrescentou.

Al está esgotado. Consegue rebocá-lo até a praia?

É o mínimo que eu poderia fazer pelo homem que nos livrou dos tubarões.

Pitt fez um gesto na direção na praia mais próxima. Não havia areia, mas a rocha se achatava ao se encontrar com a água, formando uma espécie de plataforma.

Acho melhor ir para lá.

E você? — Ela torceu os cabelos com ambas as mãos. — Quer que eu volte para buscá-lo?

Ele sacudiu a cabeça.

Tenho coisa mais importante a fazer.

Que coisa?

Ainda não instalaram hotéis aqui. Vamos precisar da reserva de comida que guardamos. Vou puxar o que restou do bote e o que está dentro dele.

Pitt ajudou a rolar Giordino por cima do tubo de flutuação semi-afundado; Maeve o segurou pelo queixo, como um salva-vidas, e, puxando-o, começou a nadar para a praia. Pitt ficou a observá-los um momento, até ver Giordino esboçar um sorriso e acenar. O vagabundo, pensou, está se aproveitando para chegar à praia sem esforço.

Tornando a unir o cordame da vela improvisada, atou-o a uma longa corda de náilon; amarrou na cintura a outra extremidade. E nadou rumo à praia. O peso morto, demasiado, obrigava-o a deter-se, puxar a corda, avançar uma curta distância e então repetir o processo. A corrente colaborava, empurrando a embarcação num arco na direção da praia. Depois de nadar uns vinte metros, Pitt finalmente sentiu terra firme sob os pés. Agora contava com apoio para arrastar o bote até a plataforma rochosa. E ficou agradecido quando Maeve e Giordino vie­ram ajudá-lo a salvar a embarcação.

Você se recuperou depressa — disse ao italiano.

Minha capacidade de recuperação é a maravilha dos médicos de toda parte.

Acho que esse cara me enganou — resmungou Maeve, simulando hostilidade.

Nada como estar em terra firme para sentir a alma rejuvenescida.

Pitt se sentou e descansou, muito fatigado para dançar de alegria por ter saído da água. Colocou-se lentamente sobre os joelhos antes de se levantar. Durante alguns momentos, teve de apoiar-se no chão para se firmar. As quase duas semanas que passara sujeito ao balanço do barco lhe haviam afetado o equilíbrio. O mundo girava, toda a ilha oscilava como se flutuasse no mar. Maeve voltou a sentar-se imedia­tamente, enquanto Giordino plantava os pés na rocha e se agarrava a uma árvore próxima, de densa folhagem. Passados alguns minutos, Pitt se levantou vacilante e ensaiou uns trôpegos passos. Sem caminhar desde o seqüestro em Wellington, sentia as pernas e os tornozelos en­torpecidos e rígidos. Só depois de percorrer, cambaleante, uns vinte metros e voltar, suas articulações começaram a ganhar flexibilidade e a funcionar como deviam.

Depois de puxar o barco para mais longe do mar e descansar algumas horas, jantaram o peixe seco e tomaram a água de chuva represada nas depressões da rocha. Com a energia restaurada, passaram a explorar a ilha. Toda ela, assim como sua vizinha do outro lado do canal, tinha a aparência de um sólido cone de rocha vulcânica que, explodindo no fundo do mar, acumulara-se ao longo das eras até alcançar a superfície e adquirir, mediante a erosão, a forma de um monte baixo.

Giordino contou os passos de uma praia a outra e anunciou que o refúgio tinha apenas cento e trinta metros de largura. O ponto mais alto era um platô que não passava dos dez metros. A rocha fazia uma curva em forma de gota, estendendo-se para norte e para sul, com o arco voltado para oeste. Da extremidade arredondada até a outra, em ponta, o comprimento não chegava a um quilômetro. Cercada de mu­ralhas naturais que desafiavam as ondas, a ilha parecia uma fortaleza permanentemente assediada.

Acharam a pouca distância, jogados numa ilhota que o mar entalhara na rocha, os restos despedaçados de uma embarcação, evidentemente levada para lá pela violência de uma tempestade. O veleiro de bom tamanho se achava virado para o lado de bombordo, metade do casco e da quilha esmigalhada por uma óbvia colisão com as pedras. Devia ter sido um belo barco, imaginou Pitt. A parte superior do casco fora pintada de azul e a inferior de alaranjado. Os três se aproximaram e o examinaram antes de ir ver a parte de dentro.

Um belo barco — observou Pitt. — Tem uns doze metros, bem construído, com casco de teca.

Um brigue Bermuda — disse Maeve, passando a mão na madeira gasta e castigada pelo sol. — Um colega no laboratório marinho de Saint Croix tinha um igual. Costumávamos ir de ilha em ilha com ele. lira um veleiro e tanto.

Giordino olhou para a pintura e os remendos do casco.

A julgar por seu estado, deve estar aqui há uns vinte ou trinta anos.

Só espero que quem quer que ficou abandonado neste lugar de­serto tenha sido resgatado — disse Maeve em voz baixa.

Pitt olhou para aquele árido lugar.

Decerto nenhum marinheiro sensato teria vindo para cá de pro­pósito.

Os olhos de Maeve brilharam, e ela estalou os dedos como se algo lhe tivesse ocorrido.

São as tetas!

Pitt e Giordino se entreolharam, como se não pudessem acreditar no que acabavam de ouvir.

Você disse "tetas"? — perguntou o italiano.

É um antigo conto australiano sobre um par de ilhas parecidas com os seios de uma mulher. Dizem que aparecem e desaparecem.

Lamento contradizer a lenda da sua terra — disse Pitt com ironia, — mas esta rocha não sai daqui há mais de um milhão de anos.

E eu nunca vi glândulas mamárias com esta forma — murmurou Giordino.

Ela fez uma careta para os dois.

Só sei que me contaram que há um par de ilhas lendárias no sul do mar da Tasmânia.

Ajudado por Giordino, Pitt trepou no casco tombado e, engatinhando pela escotilha, entrou na cabine.

Limparam isto aqui — gritou lá de dentro. — Tudo o que não estava parafusado foi retirado. Dê uma olhadela no costado para ver se ele tem nome.

Maeve contornou o barco até a proa e olhou para as letras apagadas, apenas legíveis.

Dancing Dorothy. Chamava-se Dancing Dorothy.

Pitt desceu do barco.

Seria bom procurar o que foi retirado daqui. Pode ser que a tri­pulação tenha deixado alguma coisa útil para nós.

Retomando a exploração, demoraram pouco mais de meia hora para percorrer toda a costa da ilha em forma de gota. Depois foram para a região central. Avançaram separados, para cobrir um território maior. Maeve foi a primeira a avistar um machado cravado no tronco podre de uma árvore de aparência grotesca.

Giordino o retirou e empunhou.

Isto pode vir a calhar.

Que árvore esquisita — disse Pitt, examinando o tronco. — Como será que se chama?

Murta-da-Tasmânia — esclareceu Maeve. — Na verdade é uma espécie de faia falsa. Pode chegar a seis metros de altura, mas aqui não há suficiente marga arenosa para sustentar suas raízes. Por isso, todas as árvores desta ilha são anãs.

Continuaram explorando cuidadosamente. Poucos minutos mais tar­de, Pitt topou com uma pequena garganta que se abria para uma sa­liência plana no lado protegido contra o vento da ilha. A um lado da parede rochosa, viu a ponta de latão de um arpão. Alguns metros adian­te, chegaram a uma confusa pilha de troncos em forma de cabana, com o mastro de um veleiro ao lado. A estrutura tinha uns três metros de largura por quatro de comprimento. O telhado de toras misturadas com galhos não fora danificado pelos elementos. O construtor desconhecido tinha erigido um ótimo abrigo.

Do lado de fora da cabana havia uma infinidade de suprimentos e utensílios abandonados. Uma bateria e os restos corroídos de um rádio-telefone, um equipamento de orientação, um receptor sem fio para obter a previsão do tempo e sinais para ajustar o cronômetro, uma pilha de enferrujadas latas de comida já abertas e esvaziadas, um botezinho de teca intato, equipado com um pequeno motor de popa, e uma miscelânea de instrumentos náuticos, pratos e talheres, algumas panelas, um fogão de propano, além de uma variedade de itens retirados no barco naufragado. Espalhados ao redor do fogão e ainda distinguíveis, havia espinhas de peixe.

Os inquilinos anteriores fizeram muita desordem no acampamento — disse Giordino, ajoelhando-se para examinar um pequeno gerador a gás para carregar as baterias do barco, as quais tinham alimentado os instrumentos eletrônicos de navegação e o equipamento de rádio espalhados no lugar.

Talvez ainda estejam na cabana — murmurou Maeve.

Pitt sorriu.

Por que você não vai olhar?

Ela sacudiu a cabeça.

Eu não. Entrar em lugares escuros e sinistros é trabalho de homem.

As mulheres eram criaturas realmente enigmáticas, pensou Pitt. De­pois de haver enfrentado tantos perigos durante semanas, Maeve estava com medo de entrar na cabana. Ele se inclinou e passou pela porta baixa.

 

Depois de passar duas semanas expostos à luz intensa do dia, os olhos de Pitt tardaram um ou dois minutos para se adaptar à penumbra do interior da cabana. Além do raio de sol que entrava pela porta, a única iluminação vinha das frestas entre os troncos. O ar estava pesado e úmido, carregado do ranço da sujeira e da madeira podre.

Embora não houvesse fantasmas e assombrações espiando nas trevas, Pitt deparou com as cavidades oculares vazias de um crânio ainda preso a um esqueleto. Estava deitado de costas num beliche retirado do veleiro. Pitt identificou os restos mortais como de homem, devido à forte saliência da testa. Tinha perdido dentes. Faltavam três. Mas não pareciam haver sido arrancados; deviam ter caído. Um short esfarra­pado lhe cobria a pélvis, e seus pés ainda calçavam um par de sapatos de sola de borracha. O único vestígio da antiga aparência do morto era um tufo de cabelo vermelho caído atrás do crânio. As mãos do esqueleto estavam cruzadas sobre a caixa torácica e seguravam um diário de bordo de couro.

Uma rápida olhadela no interior da cabana bastou para que Pitt constatasse que o proprietário construíra o abrigo com eficiência, uti­lizando as instalações do barco destruído. As velas do Dancing Dorothy estavam estendidas no teto, forrando-o contra o vento e a chuva que penetravam nos ramos entrelaçados do telhado. Numa escrivaninha, encontravam-se cartas náuticas do Almirantado Britânico, uma pilha de livros sobre pilotagem, tabelas de maré, luzes de navegação, sinais de rádio e um anuário náutico. Havia também uma estante repleta de brochuras e livros com instruções técnicas sobre o funcionamento dos instrumentos eletrônicos do barco e sua parte mecânica. Um belo estojo de mogno, contendo um cronômetro e um sextante, estava numa mesinha de madeira ao lado do beliche. Debaixo dela, além de um binóculo amarrado a uma malagueta, havia uma bússola portátil e outra de na­vegação, que devia ser a do veleiro.

Aproximando-se do esqueleto, Pitt retirou delicadamente o diário de bordo e saiu da cabana.

Que você achou? — perguntou Maeve cheia de curiosidade.

Deixe-me adivinhar — pediu Giordino. — Um velho baú com um tesouro de pirata.

Pitt sacudiu a cabeça.

Não desta vez. O que encontrei foi o homem que trouxe o Dancing Dorothy de encontro às rochas. Não conseguiu sair da ilha.

Morreu? — quis saber Maeve.

Bem antes que você nascesse.

Giordino entrou na cabana e ficou olhando para o esqueleto.

Como será que ele se afastou tanto das rotas de navegação?

Pitt abriu o diário de bordo.

A resposta deve estar aqui.

Maeve olhou para as páginas.

Você consegue entender a caligrafia depois de tanto tempo?

Consigo. O diário está conservado e legível. — Pitt se sentou numa pedra e examinou várias folhas antes de erguer a vista. — Ele se chamava Rodney York e era um dos doze tripulantes de um veleiro que estava participando de uma competição. Deviam fazer uma viagem sem escalas ao redor do mundo. Partiram de Portsmouth, na Inglaterra, e eram patrocinados por um jornal de Londres. Saíram de lá no dia 24 de abril de 1962.

Coitados, passaram trinta e oito anos perdidos — disse Giordino solenemente.

Em seu nonagésimo sétimo dia no mar, ele estava dormindo quan­do o Dancing Dorothy se chocou — Pitt fez uma pausa, olhou para Maeve e sorriu — com o que ele chama de as ilhas Miséria.

York não devia conhecer o folclore australiano — riu-se Giordino.

É óbvio que ele inventou o nome — disse Maeve com ar sério.

Segundo o relato — prosseguiu Pitt —, York fez uma boa média durante a passagem pelo sul do oceano Indico, depois de contornar o cabo da Boa Esperança. A seguir, tirou proveito da corrente para atra­vessar o Pacífico em linha reta e rumar para a América do Sul e o estreito de Magalhães. Imaginava que estava liderando a corrida quando seu gerador encrencou e ele perdeu contato com o resto do mundo.

Isso explica muita coisa — disse Giordino, olhando para o diário por cima do ombro de Pitt. — Por que ele estava navegando nesta parte do mar e por que não pôde mandar coordenadas para uma equipe de resgate. Examinei o gerador quando chegamos aqui. O motor está em péssimo estado. York tentou consertá-lo mas não conseguiu. Vou tentar também, mas duvido que consiga.

Pitt deu de ombros.

Seria querer demais obter socorro com o rádio de York.

Que escreve ele depois do naufrágio? — indagou Maeve.

Ele não era nenhum Robinson Crusoe. Perdeu a maior parte do suprimento de alimento quando o veleiro bateu nas rochas e virou. Quando o barco foi jogado na praia, depois da tempestade, recuperou algumas latas, mas consumiu-as logo. Tentou pescar, mas mal conseguiu capturar peixe suficiente para não morrer de fome, mesmo contando os camarões das pedras que achou e os cinco ou seis pássaros que conseguiu abater. Por fim, suas funções orgânicas começaram a falhar. York sobreviveu cento e trinta e seis dias neste horrível fim de mundo. A última coisa que escreveu é: "já não consigo ficar de pé nem andar. Fraco demais para fazer outra coisa senão ficar deitado aqui e morrer. Quanto eu queria tornar a ver um amanhecer na baía Falmouth, em Cornwall, minha terra natal... Mas não verei. Quem encontrar este diário de bordo e as cartas que escrevi, separadamente, a minha esposa e minhas três filhas, por favor, faça com que elas as recebam. Peço-lhes perdão pelo grande sofrimento que sei que devo ter lhes causado. Meu fracasso não foi tanto por erro quanto pela má sorte. Estou com a mão muito cansada para continuar escrevendo. Palavra que não capitulei depressa demais".

Ele deve ter pensado que seria encontrado pouco tempo depois de morrer — disse Giordino. — É incrível que tenha ficado décadas inteiras aí, sem que um navio ou um barco de pesquisa tenha tido a curiosidade de desembarcar para instalar um instrumento meteoroló­gico neste lugar.

O perigo de um desembarque em meio à arrebentação, com essas rochas hostis, anula a curiosidade científica.

Maeve estava com lágrimas nos olhos.

Sua pobre esposa e suas filhas devem se estar se perguntando até hoje como ele morreu.

O último registro de terra avistada por York foi o cabo sul da Tasmânia. — Pitt tornou a entrar na cabana e voltou um minuto depois

com a carta do Almirantado, que mostrava o sul do mar da Tasmânia. Estendeu-a no chão e passou algum tempo a estudá-la. — Agora entendo por que York chamava estas rochas de Miséria. É o nome que lhes dá a carta do Almirantado.

Até que ponto coincide com os seus cálculos? — quis saber Gior­dino.

Pitt pegou o compasso que tinha trazido da escrivaninha e mediu a posição aproximada que calculara com seu tosco quadrante.

Imaginei que estivéssemos a uns cento e vinte quilômetros mais a sudoeste.

Nada mal, considerando que você não sabia exatamente em que lugar Dorsett nos expulsou do iate.

É — disse Pitt com modéstia —, até que não me saí tão mal assim.

Onde estamos, afinal? — perguntou Maeve, agora ajoelhada e olhando para a carta náutica.

Pitt bateu o dedo num minúsculo ponto preto em meio a um mar de azul.

Aqui, nesta manchinha, a aproximadamente novecentos e sessenta e cinco quilômetros a sudoeste de Invercargill, na Nova Zelândia.

Parece tão perto quando a gente olha no mapa... — disse ela.

Giordino tirou o relógio e limpou o vidro na camisa.

Não tão perto assim. Basta imaginar que ninguém se lembrou de procurar o pobre Rodney aqui em quase quarenta anos.

Veja a coisa pelo lado bom — disse Pitt com um sorriso malicioso. — Finja que você inseriu trinta e oito moedas num caça-níqueis de Las Vegas e não ganhou. A lei das probabilidades diz que tem uma chance de ganhar com as duas próximas moedas.

Sem chance — disse Giordino com seu eterno bom humor.

Por quê?

O italiano olhou pensa ti vo para dentro da cabana.

Onde vamos arranjar duas moedas aqui?

 

São nove dias contados — declarou Sandecker, olhando para os homens com a barba por fazer e as mulheres de aspecto cansado ao redor da mesa de sua sala particular de reuniões.

Aquele que, poucos dias antes, era o asseadíssimo lugar de encontros do almirante com seus colaboradores mais próximos tinha se transfor­mado num caos absoluto. Fotografias, cartas náuticas e ilustrações ra­biscadas às pressas espalhavam-se desordenadamente nas paredes re­vestidas de teca; o tapete azul-turquesa estava cheio de pedaços de papel, e a mesa feita com os restos de um navio, coberta de copos descartáveis, blocos de anotações com cifras e cálculos apressados, uma bateria de telefones e um cinzeiro transbordando de pontas de charuto. Sandecker era o único fumante ali, e o ar-condicionado funcionava ao máximo para combater o cheiro de tabaco.

O tempo está contra nós — disse o dr. Sanford Adgate Ames. — É humanamente impossível construir e instalar um refletor antes da catástrofe.

Do Arizona, o físico e seus assistentes conversavam com o almirante e o pessoal da ANPS como se estivessem na mesma sala, sentados à mesma mesa. O inverso era verdadeiro. Os especialistas de Sandecker pareciam encontrar-se no próprio local de trabalho da equipe de estu­dantes de Ames. Mediante a tecnologia do vídeo holográfico, suas vozes e imagens eram transmitidas de um extremo a outro do país, com som e luz transportados por fibras ópticas. Tudo aquilo, combinado com os recursos da informática, tinha simplesmente anulado os limites do tem­po e do espaço.

Uma dedução válida — concordou o almirante. — A menos que possamos utilizar um refletor já existente.

Ames tirou os óculos bifocais e, erguendo-os contra a luz, examinou as lentes azuladas. Constatando satisfeito que estavam limpas, voltou a colocá-los.

Segundo os meus cálculos, vamos precisar de um refletor para­bólico de uns dezoito metros de diâmetro, ou talvez mais, com um vácuo entre as superfícies, para refletir a energia sonora. Não sei onde você vai encontrar quem fabrique isso antes do dia fatal.

Sandecker encarou o fatigado Rudi Gunn. Este também olhou para ele através das grossas lentes dos óculos que agigantavam seus olhos vermelhos de sono.

Alguma idéia, Rudi?

Já examinei todas as possibilidades lógicas — respondeu Gunn. — O doutor Ames tem razão. E impossível fabricar um refletor a tempo. Nossa única alternativa seria achar um já existente e levá-lo ao Havaí.

Seria preciso desmontá-lo, embarcar peça por peça e, depois, tor­nar a montá-lo — disse Hiran Yaeger, desviando o olhar de um laptop ligado a seu banco de dados, no décimo andar. — Nenhum avião co­nhecido é capaz de transportar uma coisa desse tamanho.

Se esse refletor, supondo que exista, for encontrado em algum lugar dos Estados Unidos — insistiu Ames —, terá de ir de navio.

Mas que navio há de ser grande o suficiente para levar uma coisa de tais dimensões? — perguntou Gunn, sem se dirigir a ninguém em particular.

Um petroleiro ou um porta-aviões — respondeu tranqüilamente o almirante, como se estivesse falando consigo mesmo.

Gunn concordou de pronto.

Isso! O convés de um porta-aviões é mais do que suficiente para transportar a cúpula de um refletor do tamanho proposto pelo doutor Ames.

A velocidade de nossos porta-aviões nucleares de última geração ainda é confidencial, mas o Pentágono deixou vazar que eles chegam a navegar a cinqüenta nós. Tempo de sobra para ir de San Francisco a Honolulu antes da data fatídica.

Setenta e duas horas — informou Gunn —, da partida até a ins­talação no local.

Sandecker olhou para o calendário com as datas assinaladas.

Isso nos dá exatamente cinco dias para providenciar o refletor, viajar a San Francisco e instalá-lo na zona de convergência.

É pouco, mesmo que já tivéssemos o refletor à mão — disse Ames com firmeza.

A que profundidade ele precisa ser montado? — perguntou Yaeger à imagem de Ames.

Instantaneamente, como se tivesse recebido uma deixa, uma bela moça de vinte e poucos anos entregou uma calculadora ao físico. Ele digitou alguns números, conferiu os resultados e depois ergueu a vista.

Para que as zonas de convergência sobrepostas possam se en­contrar e emergir, o centro do refletor deve ser colocado a cento e setenta metros de profundidade.

A corrente é o nosso grande problema — queixou-se Gunn. — Vai ser um pesadelo tentar manter o refletor no lugar tempo suficiente para repelir as ondas sonoras.

Mande os nossos melhores engenheiros se ocuparem do problema — ordenou Sandecker. — Eles terão de projetar algum sistema de cordames que mantenha o refletor estável.

Como podemos ter certeza de que, ao reenviar as ondas sonoras, conseguiremos fazer com que retornem diretamente a sua origem na ilha Gladiator? — quis saber Yaeger.

Impassível, Ames torceu as pontas do bigode, que se estendiam além da barba.

Se os fatores que propagaram a onda sonora original, tais como a salinidade, a temperatura da água e a velocidade do som, permane­cerem constantes, a energia refletida deve retornar à fonte pelo caminho original.

Sandecker se voltou para Yaeger.

Quantas pessoas há na ilha Gladiator?

Yaeger consultou o computador.

Os relatórios da inteligência, baseados em fotografias de satélites, sugerem uma população de aproximadamente seiscentas e cinqüenta pessoas, mineiros em sua maioria.

Trabalho escravo importado da China — resmungou Gunn.

Mesmo que não os matemos, não vamos ferir todos os seres vivos na ilha? — indagou Sandecker.

Sem hesitar, outro estudante passou a Ames uma folha de papel. Ele a estudou um momento antes de responder:

— Se nossas análises estiverem corretas, as zonas de convergência superpostas das quatro ativiciades separadas de mineração espalhadas no Pacífico produzirão um fator de energia de vinte e oito por cento ao atingir a ilha Gladiator. Não é suficiente para ferir ou prejudicar seres humanos nem animais.

Tem uma idéia das reações físicas?

Os únicos incômodos seriam dores de cabeça e tontura. Talvez um pouco de enjôo também.

O perigo maior está em não conseguir instalar um refletor no local antes da convergência — disse Gunn, olhando para a carta na parede.

Pensativo, Sandecker tamborilou os dedos na mesa.

O que nos devolve ao ponto de partida.

Uma mulher de pouco mais de quarenta anos, vestindo um elegante e conservador tailleur azul-marinho, olhou contemplativamente para uma das pinturas do almirante, a que ilustrava o famoso porta-aviões da Segunda Guerra Mundial, Enterprise, durante a batalha de Midway. Chamava-se Molly Faraday. Analista da Agência Nacional de Seguran­ça, transferira-se para a ANPS, a pedido de Sandecker, a fim de coor­denar o setor de inteligência. De cabelos castanho-claros e olhos escuros, tinha muita classe. Seu olhar viajou do quadro na parede ao almirante e nele se fixou.

Acho que tenho a solução para os nossos problemas — disse com serenidade.

O almirante fez que sim.

Você está com a palavra, Molly.

Ontem — disse ela —, o porta-aviões Roosevelt, da Marinha, apor­tou em Pearl Harbor para abastecer e consertar um dos elevadores do convés de vôo. Depois, vai se reunir à Décima Frota, perto da Indonésia.

Gunn olhou para ela, intrigado.

Tem certeza?

Molly sorriu com doçura.

Eu tenho cá as minhas fontes de informação.

Eu sei o que você está pensando — disse Sandecker. — Mas, sem o refletor, não vejo como um porta-aviões em Pearl Flarbor pode resolver nosso dilema.

O porta-aviões é uma vantagem extra — explicou Molly. — Minha primeira lembrança foi um centro de coleta de informações de satélite na ilha havaiana de Lanai.

Eu não sabia que Lanai tinha esse tipo de instalações — disse Yaeger. — Minha esposa e eu passamos lá a lua-de-mel e percorremos toda a ilha ser ver nenhum equipamento relacionado com satélites.

O prédio e o refletor parabólico ficam dentro do vulcão extinto de Palawai. Nem os nativos, que sempre quiseram saber o que havia lá dentro, nem os turistas chegaram perto o bastante para verificar.

Fora sintonizar os satélites que estiverem passando — quis saber Ames — qual é o seu objetivo?

Os satélites soviéticos que estivessem passando — corrigiu Molly. — Felizmente, os antigos chefes militares soviéticos tinham mania de enviar seus satélites espiões para as bases militares das ilhas havaianas depois de passar pelo continente norte-americano. Nosso trabalho con­sistia em penetrar em seus transmissores-receptores com poderosos si­nais de microondas e sabotar suas fotografias. Pelas informações que a CIA conseguiu obter, os russos nunca imaginaram por que as foto­grafias de reconhecimento de seus satélites sempre chegavam borradas e fora de foco. Quando o governo comunista se desintegrou, equipa­mentos mais modernos tornaram os de Palawai ociosos. Devido a suas enormes dimensões, a antena foi utilizada mais tarde para transmitir e receber os sinais dos testes no espaço remoto. Atualmente, parece-me que sua tecnologia ultrapassada tornou o equipamento obsoleto, e o lugar, embora ainda muito bem guardado, está bastante abandonado.

Yaeger foi diretamente ao centro da questão.

De que tamanho é o refletor parabólico?

Molly mergulhou a cabeça nas mãos. Ficou assim um momento, depois ergueu a vista.

Se não me falha a memória, tinha uns oitenta metros de diâmetro.

Mais do que precisamos — disse Ames.

Você acha que a ANS nos emprestará o equipamento? — per­guntou Sandecker.

São capazes de lhe pagar para que o leve embora.

Você vai ter de desmontá-lo e transportar as peças a Pearl Harbor de avião — disse Ames. — Isto é, se conseguir que lhe emprestem o porta-aviões Roosevelt para que possa montá-lo e mergulhá-lo na zona de convergência.

O almirante olhou para Molly.

Eu usarei meu poder de persuasão no Ministério da Marinha se você se encarregar da Agência Nacional de Segurança.

Vou cuidar disso imediatamente — garantiu Molly.

Um homem calvo, com óculos sem aro, sentado perto da extremidade da mesa, ergueu a mão.

Sandecker fez-lhe um gesto afirmativo e sorriu.

Você anda muito calado, Charlie. Deve estar com alguma coisa em mente.

O dr. Charlie Bakewell, geólogo-chefe da ANPS, tirou um chiclete da boca e o embrulhou num pedaço de papel antes de jogá-lo no cesto de lixo. Fez um gesto para a imagem holográfica do físico.

Pelo que eu entendo, doutor Ames, a energia sonora por si não é capaz de destruir o tecido humano. Porém, ampliada pela ressonância que vem da câmara rochosa submetida ao assédio do equipamento acústico de perfuração das minas, sua freqüência se reduz a ponto de se propagar a enormes distâncias. Quando elas se encontram numa determinada região do oceano, o som produzido é intenso o bastante para afetar o tecido humano.

O senhor está essencialmente certo.

Neste caso, se nós refletirmos a superposição de zonas de con­vergência, fazendo com que ela retorne pelo oceano, parte da energia não será refletida também pela ilha Gladiator?

Ames fez que sim.

É verdade. Se a energia atingir o nível submerso da ilha, sem subir à superfície, e espalhar-se em várias direções, qualquer possibi­lidade de matança ficará drasticamente reduzida.

É o momento do impacto com a ilha que me preocupa — disse Bakewell, sem alterar o tom de voz. — Há quase cinqüenta anos, eu mesmo conferi os exames geológicos na ilha Gladiator feitos pelos geó­logos contratados pela Dorsett Consolidated Mining. Os vulcões, nas extremidades opostas da ilha, não estão extintos e sim inativos. Inativos há menos de setecentos anos. Nenhum ser humano presenciou a última erupção, mas as análises científicas da rocha vulcânica a situam apro­ximadamente na metade do século 12. Nas décadas posteriores, suce­deu-se uma alternância de períodos de passividade e de pequenos dis­túrbios sísmicos.

Onde você está querendo chegar, Charlie? — indagou Sandecker.

A questão, almirante, é que, se uma força catastrófica de energia acústica colidir com a base da ilha Gladiator, pode ser que provoque um desastre sísmico.

Uma erupção? — perguntou Gunn.

Bakewell se limitou a balançar afirmativamente a cabeça.

Em sua opinião, quais são as possibilidades de que isso aconteça? — inquiriu Sandecker.

Não há como prever nenhum nível de atividade sísmica ou vul­cânica, mas conheço um vulcanologista qualificado que lhe dará uma probabilidade de um para cinco.

Uma chance de erupção em cinco — disse Ames, olhando para Sandecker. — Neste caso, almirante, receio que a teoria do doutor Ba­kewell coloque o nosso projeto na categoria do risco inaceitável.

Sandecker não hesitou um segundo para responder:

Lamento, doutor Ames, porém acredito que mais de um milhão de habitantes de Honolulu, fora dezenas de milhares de turistas e mi­litares estacionados nas bases próximas de Oahu, têm prioridade sobre seiscentos e cinqüenta mineiros.

Não podemos alertar a direção da Dorsett Consolidated para que a ilha seja evacuada? — perguntou Yaeger.

Temos de tentar — respondeu o almirante com firmeza. — Mas, conhecendo Arthur Dorsett, ele dispensará as advertências como uma ameaça inconseqüente.

Suponha que a energia acústica desvie-se para outra parte — sugeriu Bakewell.

Ames duvidou.

Se a intensidade desviar de seu caminho original, existirá o risco de que ela retenha toda a sua energia e atinja Yokohoma, Xangai, Manilha, Sídnei, Auckland ou qualquer outra cidade litorânea densamente povoada.

Fez-se um breve silêncio; todos na sala voltaram-se para Sandecker, inclusive Ames, que se encontrava a trezentos e vinte quilômetros de distância. O almirante brincou distraído com o charuto apagado. O que ninguém sabia era que ele não estava pensando na possível destruição da ilha Gladiator. Toda sua tristeza e sua fúria se prendiam ao fato de Arthur Dorsett haver abandonado seus melhores amigos num mar fu­rioso. No fim, o ódio se sobrepôs a outras considerações. Ele olhou fixamente para a imagem de Sanford Ames.

Compute seus cálculos, doutor, para apontar o refletor para a ilha Gladiator. Se não detivermos a Dorsett Consolidated o mais de­pressa possível, ninguém mais a deterá.

 

O elevador particular de Arthur Dorsett, no centro comercial de jóias, subiu sem fazer ruído. A única evidência do movimento era a progressão dos números dos andares, piscando acima da porta. Quando o carro parou na suíte de cobertura, Gabe Strouser saiu ao saguão que dava para o pátio aberto onde Arthur o esperava.

Aquele encontro com o magnata dissidente do diamante não lhe dava prazer algum. Ele o conhecia desde menino. A íntima associação entre os Strouser e os Dorsett tinha durado mais de um século; então, Arthur rompeu com a Strouser & Filhos. A ruptura não foi amigável. Ele ordenou friamente a seus advogados que informassem Gabe de que os serviços de sua família já não seriam solicitados. E o tiro de misericórdia veio numa conversa telefônica. Foi um insulto que magoou Strouser profundamente, e ele nunca perdoou Dorsett.

Para salvar a antiga e veneravel empresa da família, foi obrigado a transferir sua vassalagem para o cartel da África do Sul e acabou mu­dando a sede da firma de Sídnei para Nova York. Com o tempo, as­cendeu à posição de um respeitado diretor. Como as leis antitruste impediam o cartel de fazer negócios nos Estados Unidos, este passou a atuar sob a cobertura dos respeitáveis mercadores de diamantes da Strouser & Filhos, que passaram a ser a sua extensão americana.

Gabe não estaria ali, agora, se a direção do cartel não tivesse entrado em pânico ao saber dos rumores sobre a ameaça da Dorsett Consolidated Mining de soterrar o mercado sob uma avalanche de pedras a preços drasticamente aviltados. Tinham de agir com determinação e rapidez se quisessem evitar um desastre. Profundamente escrupuloso, Strouser era o único membro do cartel ao qual a diretoria podia confiar a missão de dissuadir Dorsett de derrubar os preços estabelecidos.

Arthur Dorsett deu um passo à frente e apertou vigorosamente a mão de Strouser.

Há quanto tempo, Gabe! Quanto tempo!

Obrigado por me receber, Arthur. — O tom de voz de Strouser, embora invariável, não dissimulava sua aversão pelo interlocutor. — Lembro-me de que seus advogados me ordenaram que nunca mais tentasse entrar em contato com você.

Dorsett deu de ombros com indiferença.

São águas passadas, meu caro amigo. Vamos esquecer o que acon­teceu e tratar de relembrar o passado durante o almoço. — Apontou para uma mesa posta sob um caramanchão protegido com vidro à prova de balas, que oferecia uma vista majestosa do porto de Sídnei.

Em contraste com o rude e grosseiro magnata da mineração, Strouser, com mais de sessenta anos, era um homem extremamente atraente. Sua densa cabeleira grisalha, o rosto oval, de pômulos altos, e o nariz bem torneado fariam inveja a muitos atores de Hollywood, sem falar em sua constituição atlética e na pele homogeneamente bronzeada. Bem mais baixo do que o gigantesco Dorsett, era dono de dentes incrivel­mente brancos e de um sorriso acolhedor. Pousou no antigo sócio os olhos verdes como os de um gato pronto para fugir do ataque de um mastim. Seu elegantíssimo terno de lã, embora convencional, apresen­tava detalhes sutis que lhe tiravam a aparência antiquada. A gravata era de finíssima seda, e os sapatos italianos, feitos sob medida, brilha­vam como um espelho. As abotoaduras, ao contrário do que se podia esperar, não eram de brilhante, mas de opala.

Ele ficou algo surpreso com a amistosa recepção. Dorsett parecia estar representando um papel numa peça de segunda classe. Strouser viera preparado para um confronto desagradável. De modo algum es­perava uma boa acolhida. Mal se sentou, Dorsett fez um gesto para o garçom, que tirou uma garrafa de champanhe de um balde de gelo de prata de lei e lhe serviu uma taça. Curiosamente, seu anfitrião preferiu tomar uma cerveja diretamente do gargalo.

Quando os mandachuvas do cartel disseram que iam enviar um representante à Austrália para conversar comigo — disse Dorsett —, não imaginei que fosse você.

Devido a nossa longa associação, a diretoria achou que eu podia ler o seu pensamento. Pediram-me que me informasse sobre os boatos que andam circulando por aí, segundo os quais você está decidido a vender as pedras a baixíssimo preço a fim de encurralar o mercado.

Não os diamantes de grau industrial, dizem, mas as gemas de boa qualidade.

Onde você ouviu isso?

Você comanda um império de milhares de pessoas, Arthur. Os empregados descontentes sempre deixam vazar alguma coisa.

Vou mandar a minha segurança investigar. Eu não trato com traidores, muito menos quando estão em minha folha de pagamento.

Se o que andam dizendo tem um fundo de verdade, o mercado do diamante está à beira de uma crise profunda — explicou Strouser.

Minha missão é apresentar-lhe uma oferta substancial para manter suas pedras fora de circulação.

Não há escassez de diamante, Gabe, nunca houve. Por outro lado, você sabe que não pode me comprar. Nem uma dúzia de cartéis seria capaz de me obrigar a manter minhas pedras fora de circulação.

Você cometeu uma loucura ao insistir em atuar fora da Organi­zação Central de Venda, Arthur. Perdeu milhões por não colaborar.

Os investimentos a longo prazo costumam pagar enormes divi­dendos.

Então é verdade? Você passou todo esse tempo acumulando, à espera do dia em que poderia obter um lucro rápido?

Dorsett o fitou e sorriu, exibindo os dentes amarelados.

Claro que é verdade. Com exceção da parte referente ao lucro rápido.

Tenho de reconhecer que você é uma candura.

Não tenho nada a esconder. Agora não.

Não pode continuar seguindo um caminho separado, como se a rede não existisse. Todo mundo sai perdendo.

Dizer isso é fácil para você e seus amiguinhos do cartel, uma vez que retêm um controle monopolista sobre a produção mundial de dia­mantes.

Por que explorar o mercado por mero capricho? — disse Strouser.

Por que cortar nosssa garganta o tempo todo? Por que destruir uma indústria estável e próspera?

Dorsett ergueu a mão, interrompendo-o. Fez um sinal para o garçom, que servia uma salada de lagosta. Depois, olhou fixamente para Strou­ser.

Não se trata de capricho. Tenho mais de cem toneladas de dia­mantes acumuladas em armazém espalhados no mundo inteiro e outras dez, em minhas minas, prontas para embarcar quando eu der a ordem.

Daqui a alguns dias, quando cinqüenta por cento delas estiverem la­pidadas, pretendo vendê-las, pela rede de lojas a varejo Casa Dorsett, a uma média de dez dólares o quilate. As pedras brutas serão vendidas aos comerciantes a cinqüenta centavos o quilate. Quando eu tiver ter­minado, o mercado estará arrasado, e o diamante perderá seu prestígio como símbolo de luxo ou investimento.

Strouser ficou assombrado. Sua impressão inicial era a de que a estratégia de mercado de Dorsett consistia em baixar temporariamente os preços, a fim de obter um lucro rápido. Agora, percebia as verdadeiras dimensões de seus planos.

Você vai deixar milhares de varejistas e atacadistas na miséria, inclusive você mesmo. Que vai ganhar colocando a corda no próprio pescoço?

Sem fazer caso da salada, Dorsett acabou de tomar a cerveja e pediu outra ao garçom antes de prosseguir:

Estou na situação em que o cartel se manteve durante cem anos. Vocês controlam oitenta por cento do mercado mundial do diamante. Eu controlo oitenta por cento do mercado de gemas coloridas.

Strouser se sentiu como que caindo de um trapézio.

Eu não sabia que você possuía tantas minas de gemas coloridas.

Ninguém sabia. Você é o primeiro, fora de minha família, a receber tal informação. Foi um processo longo e tedioso, envolvendo dezenas de empresas, acordos e negociatas. Comprei participação em todas as grandes minas produtoras de pedras coloridas do mundo. Quando de­cidi derrubar os valores do diamante, planejei levar as gemas coloridas ao primeiro plano a preços favoráveis, de modo a estimular a demanda. Depois, fui aumentando lentamente os preços a varejo, recolhendo os lucros e expandindo o negócio.

Você sempre foi um prestidigitador, Arthur, um verdadeiro artista. Mas não há de destruir o que demorou um século para ser construído.

Ao contrário do cartel, não pretendo suprimir a concorrência no varejo. Minhas lojas compelirão lealmente.

Você está provocando uma luta que ninguém pode ganhar. Antes que consiga demolir o mercado do diamante, o cartel vai quebrá-lo. Recorreremos a todas as manobras internacionais, financeiras e políticas imagináveis para detê-lo.

Isso é tolice, meu caro — disse Dorsett com veemência. — Já se foi o tempo em que os compradores tinham de se ajoelhar em seus todo-poderosos escritórios de venda de Londres e Joanesburgo. Já se foi o tempo em que era preciso lamber as suas botas para ser um com­prador registrado, obrigado a aceitar o que vocês oferecessem. Não é mais preciso esgueirar-se nos becos para ludibriar a sua máquina e, a duras penas, obter pedras brutas. Acabou-se o tempo em que a polícia internacional e empresas de segurança contratadas perseguiam as pes­soas que vocês etiquetavam como criminosas simplesmente porque se dedicavam ao que vocês tinham resolvido classificar como contrabando, um mito artificial, inventado, e a vender no que você e seus comparsas chamavam de mercado ilícito do diamante. Acabaram-se as restrições para criar uma demanda enorme. Vocês fizeram lavagem cerebral em governos para que aprovassem leis que confinavam em seus canais e unicamente em seus canais o comércio internacional do diamante. Leis que proibiam qualquer pessoa de vender legitimamente uma pedra que tivesse encontrado em seu próprio quintal. Agora, depois de muito tempo, a ilusão do diamante como objeto valorizado será dada como morta em questão de dias.

Você não pode nos bater — disse Strouser, esforçando-se para não perder a calma. — Nós não vacilaremos em gastar centenas de milhões de dólares em publicidade para promover o romantismo dos brilhantes.

Acha que não levei isso em conta? — Dorsett riu. — Meu orça­mento publicitário eqüivale ao seu, promovendo a qualidade das gemas coloridas. Vocês farão a propaganda da venda de um único brilhante como anel de noivado, ao passo que eu promoverei o prisma, o espectro, um novo mundo da moda, marcado pelas jóias coloridas. Minha cam­panha se baseia no tema "Derrame cores sobre ela com amor". Mas isso é só a metade, Gabe. Também pretendo domesticar o grande pú­blico, instruí-lo sobre a verdadeira raridade das gemas coloridas em oposição ao fornecimento barato e superabundante de diamantes. No fim, terei desviado significativamente o interesse dos compradores para outras jóias.

Strouser se levantou e jogou o guardanapo na mesa.

Você é uma ameaça! Vai destruir milhares de pessoas e seu ganha-pão! — disse com firmeza. — Mas nós vamos impedi-lo de destruir o mercado.

Não seja idiota — disse Dorsett, exibindo os dentes. — Suba a bordo. Largue o diamante e entre no negócio das gemas coloridas. Seja esperto, Gabe. A cor é a grande onda do futuro no mercado de jóias.

Strouser fez um esforço enorme para controlar a raiva.

Minha família comercia diamantes há dez gerações. Eu respiro diamantes. E não darei as costas a essa tradição. Suas mãos estão sujas, Arthur. Eu, pessoalmente, vou combatê-lo em todos os terrenos, até que você não signifique mais nada no mercado.

Tarde demais — disse Dorsett com frieza. — Assim que as gemas coloridas dominarem o mercado, a loucura do diamante desaparecerá da noite para o dia.

Não, se depender de mim.

Que vai fazer quando sair daqui?

Vou alertar a diretoria quanto ao que você está pretendendo fazer, de modo que possamos planejar um conjunto de ações imediatas ca­pazes de acabar com o seu plano antes que seja realizado. Ainda não é tarde demais para detê-lo.

Dorsett continuou sentado, olhando para Strouser.

Você está muito enganado.

Sem compreender o significado do que acabava de ouvir, Strouser voltou-se para ir embora.

Já que você não quer dar ouvidos à razão, nada mais tenho a dizer. Passe um bom dia, Arthur.

Antes que você se vá, Gabe, eu gostaria de lhe dar um presente.

Não quero nada de você! — retrucou Strouser com indignação.

Ora, você vai apreciar. — Dorsett soltou uma gargalhada. — Ou melhor, pensando bem, acho que não vai apreciá-lo tanto assim. — Fez um gesto. — Agora, Boudicca, agora.

Como num passe de mágica, a giganta apareceu repentinamente atrás de Strouser e lhe prendeu os braços junto ao corpo. O comerciante de diamantes se debateu instintivamente um minuto, depois relaxou e olhou para Dorsett.

Que significa isto? Eu exijo que você me solte.

Dorsett o fitou e abriu os braços num gesto de impotência.

Você não almoçou, Gabe. Não posso deixá-lo ir embora com fome. Não quero que saia por aí, dizendo que não sou hospitaleiro.

E loucura pensar que consegue me intimidar.

Não vou intimidá-lo — disse Dorsett com sadismo. — Vou dar-lhe de comer.

Strouser se viu desamparado. Sacudindo a cabeça com repulsa, re­começou a luta desigual para se livrar do abraço de Boudicca.

A um gesto de Dorsett, ela o levou de volta à mesa, obrigou-o a sentar-se, agarrou-lhe o queixo com uma das mãos e inclinou sua cabeça para trás, o rosto para cima. Então, Dorsett pegou um enorme funil de plástico e o enfiou na boca de Strouser. A expressão de irritação dos olhos do mercador de diamantes passou para a de choque, depois para a de pavor. Seus gritos abafados de nada serviram. Boudicca o segurou com mais força.

Pronto, papai — disse ela com um sorriso cruel.

Já que você respira diamantes, meu velho amigo, também pode comê-los — disse Dorsett, pegando um recipiente parecido com uma chaleira, que estava na mesa, e começando a verter uma grande quan­tidade de brilhantes cristalinos, de um quilate, na garganta de Strouser, enquanto, com a outra mão, tapava-lhe as narinas. A vítima se debateu e esperneou furiosamente, mas estava com os braços firmemente imo­bilizados, como que no poder de uma jibóia.

Apavorado, Strouser tentou engolir os brilhantes, mas eram muitos. Em breve sua garganta ficou bloqueada e as convulsões de seu corpo se tornaram menos frenéticas. Ele procurou o ar, mas estava asfixiado.

O vidrado da morte se espalhou em seus olhos, congelando-lhe o olhar ao mesmo tempo em que as pedras reluzentes lhe escapavam pelos cantos dos lábios e iam cair na mesa e no chão.

 

Depois de dois dias fora do mar, todos se sentiam ressuscitados. O acampamento de York foi arrumado, e inventariados todos os artigos e objetos. Maeve recusou-se a entrar na cabana mesmo depois de ha­verem sepultado Rodney York numa pequena garganta parcialmente coberta de areia. Com as velhas velas encontradas no interior da ha­bitação, construíram um abrigo e logo se viram mergulhados na rotina da existência.

Para Giordino, o maior achado foi uma caixa de ferramentas. En­tregou-se de imediato ao trabalho no rádio e no gerador, mas não tardou a capitular, frustrado, depois de seis horas de inútil labor.

Muitas peças estão quebradas ou demasiado corroídas para um conserto. Após tantos anos, as baterias estão mais mortas do que um dinossauro fossilizado. E, sem um gerador para carregá-las, o rádio-telefone, o equipamento de orientação e o receptor sem fio não têm ser­ventia alguma.

Não podemos fabricar novas peças com as coisas que encontramos espalhadas por aí? — perguntou Pitt.

Giordino sacudiu a cabeça.

Nem o engenheiro-chefe da General Electric conseguiria reparar este gerador. E, mesmo que conseguisse, o motor que o liga está total­mente destruído. Há uma fenda na caixa de manivela. York não deve ter percebido e pôs o motor em funcionamento quando o óleo tinha vazado, queimando o suporte e travando os pistons. Seria preciso que uma oficina mecânica inteira o colocasse em ordem novamente.

O primeiro projeto de Pitt como pau-para-toda-obra residente foi encontrar três pedaços de madeira bastante granulosa. Retirou-os de uma trave lateral do beliche que servira de leito de morte a Rodney

York. A seguir, com a capa dura dos romances encontrados na prateleira de livros, fez um molde da testa de cada um, pouco acima das sobran­celhas. Marcou as linhas do molde na borda dos blocos de madeira, recortou-os, abrindo em cada um deles um arco para o nariz. Segurando os blocos firmemente entre os joelhos, cinzelou e lixou depressões na parte de dentro da madeira. Depois, retirando o excesso do lado de fora, abriu duas fendas horizontais nas paredes côncavas. Embebeu o produto final no óleo de uma lata encontrada junto do motor de popa e fez dois buracos nas extremidades, nos quais amarrou um barbante de náilon.

Eis aqui, senhoras e senhores, os fantásticos óculos de sol do coronel Thadeus Pitt, segredo revelado por um esquimó agonizante pouco antes de atravessar o oceano Glacial Ártico no lombo de um urso-polar.

Maeve pôs o dela e o prendeu atrás da cabeça.

Que maravilha! Eles realmente tapam o sol.

Espertinhos, esses esquimós — disse Giordino, olhando pelas fen­das. — Você não pode aumentar um pouco esses buracos? E como se eu estivesse olhando por uma fresta da porta.

Pitt sorriu e lhe entregou o canivete.

Pode adaptar os óculos a seu gosto pessoal.

Falando em gosto — anunciou Maeve junto à pequena fogueira que acendera com os fósforos de Pitt —, venham. Hoje vamos jantar cavalas grelhadas com os mariscos que encontrei enterrados nos bolsões de areia que a maré cheia encobre.

Bem agora que eu me acostumei a comer peixe cru! — gracejou Giordino.

Maeve serviu o peixe e os moluscos nos velhos pratos de York.

Amanhã, se contarmos com um bom atirador em nosso grupo, comeremos carne de ave.

Está querendo que atiremos nos pobres passarinhos indefesos? — perguntou Giordino, fingindo-se horrorizado.

Contei pelo menos vinte alcatrazes pousados nas pedras — disse ela, apontando para a praia do norte. — Se vocês se esconderem, eles se aproximarão o bastante para que possam ser alvejados com a pistola.

Uma passarinhada faria bem ao meu estômago atrofiado. Se eu não providenciar o jantar de amanhã, vocês podem me enforcar — prometeu Pitt.

Você não vai tirar mais nenhum coelho da cartola, fora os óculos de sol? — quis saber Maeve.

Pitt tornou a se deitar na areia, com as mãos sob a nuca.

Foi bom você falar nisso. Depois de passar a tarde pensando intensamente, cheguei à conclusão de que devíamos nos mudar para um clima mais ameno.

Maeve olhou para ele com incredulidade.

Mudar-nos? — Voltou-se para Giordino em busca de apoio, mas ele lhe endereçou um olhar absolutamente neutro e continuou masti­gando um pedaço de cavala. — Temos dois barcos quebrados, incapazes de atravessar uma piscina. Que está sugerindo?

Elementar, minha cara Fletcher — disse ele com um sorriso nos lábios. — Construir um terceiro barco.

A expressão de Giordino, ao contrário, era séria e intensa.

Não acha que dá para consertar o barco de York?

Não. O casco está muito avariado. Não teríamos como repará-lo com os limitadíssimos recursos de que dispomos. York era um mari­nheiro experimentado e obviamente sabia que não havia como fazer o Dancing Dorothy flutuar novamente. Em todo caso, podemos utilizar o convés superior.

Por que não ficamos aqui mesmo? — insistiu Maeve. — Temos mais recursos do que o pobre Rodney. E nossa capacidade de sobre­vivência é muito maior do que a dele. Podemos nos alimentar de peixes e pássaros até que passe um navio.

Esse é o problema — disse Pitt. — Não conseguiremos viver somente da caça e da pesca. A julgar pela queda dos dentes de Rodney, ele morreu de escorbuto. Imagino que a falta de vitamina C e de uma dúzia de outros nutrientes foi enfraquecendo-o até que seu organismo parasse de funcionar. Em tal estágio de erosão física, a morte chega em pouco tempo. Se passar um navio e mandar um equipe para cá, o que vão encontrar serão quatro esqueletos no lugar de um. Acredito firmemente que é do nosso interesse fazer todo esforço possível para ir embora daqui enquanto ainda formos fisicamente capazes.

Dirk tem razão — disse Giordino a Maeve. — Só voltaremos a ver as luzes de uma cidade se sairmos desta ilha.

Construir um barco? — perguntou ela. — Com que material?

Estava de pé, firme e graciosa, os braços e as pernas esbeltos e bron­zeados, a carne rija e jovem, a cabeça ligeiramente inclinada. Pitt ficou encantado, como quando estavam a bordo do Ice Hunter.

O tubo de flutuação de nosso bote por um lado, a parte superior do barco de York por outro. Basta acrescentar alguns troncos para que em pouco tempo tenhamos uma embarcação capaz de enfrentar o ocea­no.

Preciso ver para crer — disse Maeve.

Pois não — respondeu Pitt com bom humor. E se pôs a desenhar um diagrama na areia. — A idéia é prender os tubos de flutuação do bote sob a superestrutura do barco de York. Depois, construiremos uma estrutura com troncos de murta, que nos dê estabilidade. E o nosso barco de três cascos estará pronto.

Parece-me bem possível — disse Giordino.

Vamos precisar de mais de cento e trinta metros quadrados de vela — prosseguiu Pitt. — Temos um mastro e um leme.

Giordino apontou para a barraca.

As velas de York estão puídas e rasgadas. Afinal, ficaram quarenta anos à mercê dos fungos. O primeiro vento forte que soprar acabará com elas.

Já pensei nisso. Os marinheiros polinésios teciam velas com folhas de palmeiras. Acho que podemos usar os galhos folhados das murtas para o mesmo fim. E temos muita corda sobrando para prender a es­trutura no casco central.

Quando tempo vai demorar para construir essa embarcação? — perguntou Maeve com crescente interesse.

Acho que uns três dias, se trabalharmos bastante.

Tão depressa?

A construção não é complicada, e, graças a Rodney York, temos as ferramentas necessárias.

Vamos continuar navegando para leste ou rumaremos para nor­deste, tentando chegar a Invercargill? — quis saber o italiano.

Pitt sacudiu a cabeça.

Nem uma coisa nem outra. Com os instrumentos de navegação e as cartas náuticas de Rodney, acho que não teremos dificuldades em rumar à ilha Gladiator.

Maeve o encarou como se ele tivesse enlouquecido.

Essa é a coisa mais absurda que você já disse na vida.

Pode ser. Mas acho que devemos terminar o que começamos a fazer: pegar os seus filhos.

Por mim, tudo bem — disse Giordino sem hesitar. — Eu gostaria muito de ter uma revanche com King Kong ou como quer que sua irmãzinha se chame quando não está prensando carros num desmanche.

Eu fico muito agradecida, mas...

Sem "mas" — disse Pitt. — No que nos diz respeito, trata-se de um acordo já fechado. Vamos construir nosso barco hermafrodita, rumar para a ilha Gladiator, pegar os garotos e fugir para o lugar seguro mais próximo.

Lugar seguro! Será que você não entende? — A voz dela era de súplica, quase desesperada. — Noventa por cento da ilha é cercada de penhascos verticais e precipícios impossíveis de galgar. A única zona de desembarque é a praia que rodeia a lagoa, e está fortemente guar­dada. Ninguém consegue passar pelo recife sem levar um tiro. Meu pai construiu defesas que nem mesmo uma força cie assalto armada conseguiria penetrar. Se você tentar, certamente vai morrer.

Não se preocupe com isso. Al e eu sabemos entrar e sair de ilhas com a mesma sutileza com que entramos e saímos do quarto de uma dama. É questão de escolher bem o lugar e a hora.

As patrulhas de meu pai irão vê-los muito antes que consigam entrar na lagoa.

Pitt deu de ombros.

Não faz mal. Eu tenho um remédio caseiro infalível para enganar patrulhas.

Posso saber qual é?

Muito simples. Aparecemos onde eles menos estiverem esperando.

O sol deve ter cozinhado o cérebro de vocês dois. — Ela sacudiu a cabeça, derrotada. — Acha que meu pai vai convidá-los para tomar um cafezinho? — Maeve sentiu-se muito culpada. Viu claramente que era responsável pelos terríveis perigos e pelo tormento que aqueles dois homens incríveis vinham enfrentando. No entanto, eles continua­vam dispostos a arriscar a vida por Michael e Sean. A onda de desânimo que a invadiu logo se transformou em resignação. Aproximando-se, ajoelhou-se entre Pitt e Giordino e abraçou a ambos. — Obrigada — murmurou. — Que sorte a minha, ter encontrado dois homens mara­vilhosos como vocês!

Temos o hábito de ajudar mocinhas em perigo... — Vendo as lágrimas brotarem nos olhos dela, Giordino, genuinamente constran­gido, tratou de desviar o olhar.

Pitt beijou a testa de Maeve.

Não é tão difícil quanto parece. Confie em mim.

Eu queria tê-los conhecido há cem anos — sussurrou ela com a voz embargada. Fez menção de dizer mais alguma coisa, porém, levantando-se, afastou-se rapidamente para ficar a sós.

Giordino olhou para Pitt com curiosidade.

Posso perguntar uma coisa?

Claro.

Queria muito saber como vamos entrar e sair dessa maldita ilha.

Entraremos com a pipa e a fateixa que encontrei entre as coisas de York.

E para sair? — perguntou Giordino, totalmente confuso, mas sem vontade de insistir no assunto.

Pitt jogou um tronco seco de murta na fogueira e ficou olhando para as fagulhas, que subiram em espirais.

Isso — disse ele com a calma de um menino pescando num rio tranqüilo —, essa parte do plano, prefiro deixar para quando chegar a hora.

 

A embarcação com que fugiriam da ilha foi construída numa rocha plana, num pequeno vale a salvo da brisa, a trinta metros da água. Estenderam troncos de murta no chão, formando uma espécie de trilho, a fim de deslocar sua estranha criação até as águas relativamente calmas entre as duas ilhas. O esforço não foi cruel nem exaustivo. Estavam em melhor forma do que quando chegaram, de modo que não tiveram dificuldade para trabalhar à noite, quando o ar estava mais frio, e des­cansar algumas horas no calor do dia. A construção decorreu tranqüilamente, sem grandes interrupções ou recuos. Quanto mais perto chegavam do fim, mais o entusiasmo vencia o cansaço.

Maeve se encarregou de tecer duas velas com os ramos folhados. Para facilitar, Pitt decidiu fixar o mastro que York salvara de seu veleiro para içar uma vela de ré na mezena e uma vela redonda no mastro principal. Maeve teceu primeiro a vela maior. Levou algumas horas praticando e, no final da tarde, quando já dominara a técnica, passou a urdir um metro quadrado em meia hora. No terceiro dia, esse tempo havia baixado a vinte minutos. O tecido resultou tão resistente e firme que Pitt lhe pediu que fizesse uma terceira peça, triangular, que seria içada à frente do mastro principal.

Juntos, ele e Giordino retiraram do veleiro a cabine e a montaram sobre a parte dianteira da superestrutura. Esta foi então amarrada aos tubos de flutuação do pequeno bote, que passou a servir de casco central. A tarefa seguinte consistia em assentar os altos mastros de alumínio, cuja altura foi reduzida a fim de compensar o casco bem mais curto e a falta de uma quilha. Como não se podiam prender elos de corrente nos flutuadores de borracha sintética, passaram por baixo do casco o cordame que sustentava os mastros e o prenderam com esticadores.

Quando pronta, a embarcação híbrida ficou com a aparência de um veleiro por cima de um barco hovercraft.

No dia seguinte, Pitt reinstalou o leme do veleiro de York para na­vegar na superfície, equipando-o com uma cana comprida, sistema mais eficiente para governar uma embarcação de três cascos. Quando o leme estava firmemente instalado no lugar, girando como devia, ele se ocu­pou do motor de popa de quarenta anos, limpando-lhe o carburador e os injetores antes de regular o dínamo.

Giordino cuidou das amuradas. Cortou e aparou duas robustas murtas, cujos troncos se curvavam perto do topo, e colocou-as ao longo do casco. Estendeu-os com a parte curva voltada para a frente, como um par de esquis. As amuradas foram então amarradas a travessas laterais, que cruzavam o casco junto à proa e pouco atrás da cabine. O italiano ficou bastante satisfeito ao constatar, empurrando fortemente as amu­radas com o ombro, que eram sólidas, rígidas e dificilmente cederiam.

Quando estavam sentados ao redor da fogueira, ao amanhecer, precavendo-se da friagem das latitudes meridionais, Pitt se pôs a estudar as cartas náuticas e celestes de York. Ao meio-dia, orientou-se pelo sol com a ajuda do sextante e, mais tarde, à noite, localizou várias estrelas. Depois, com o auxílio do almanaque e das tabelas do Método Breve, que esmiuçava os cálculos trigonométricos, exercitou-se em fixar a po­sição em que se encontravam, até que suas cifras coincidissem preci­samente com a latitude e a longitude das ilhas Miséria registradas no mapa.

Acha que pode acertar na mosca a ilha Gladiator? — perguntou-lhe Maeve durante o jantar da ante-véspera da partida.

Se não for na mosca, há de ser bem perto. Aliás, estou precisando de um mapa detalhado da ilha.

Como detalhado?

Com todas as edificações, todos os caminhos e estradas, se possível em escala.

Vou fazer um mapa de memória o mais exato possível — prometeu ela.

Giordino estava se deliciando com a coxa de um alcatraz que Pitt conseguira abater com sua miniatura de pistola automática.

A que distância você calcula que estamos?

A precisamente quatrocentos e setenta e oito quilômetros em linha reta.

Então é mais perto do que Invercargill.

Esta é a melhor parte da história.

Quantos dias demoraremos a chegar? — quis saber Maeve.

É impossível dizer — respondeu Pitt. — A primeira parte da viagem será a mais difícil, navegando na direção do vento até que apanhemos uma corrente favorável nas proximidades da Nova Zelân­dia. Sem uma quilha que os impeça de ser empurrado de lado, os barcos de três cascos não se prestam a navegar contra o vento. O grande desafio virá depois de havermos zarpado. Não temos idéia de suas qualidades de navegação. Pode ser que a embarcação não siga a direção do vento, e nós podemos acabar sendo levados para a América do Sul.

Não é uma idéia tranqüilizadora — disse Maeve, pensando com horror no que seriam outros noventa dias de sofrimento no mar. — Quando penso nisso, acho preferível permanecer em terra firme e acabar como Rodney York.

A véspera da partida foi um dia de atividade febril. Os últimos preparativos incluíam a manufatura da vela alta de Pitt, que foi dobrada e guardada na cabine juntamente com cento e cinqüenta metros de corda leve de náilon retirados do barco de York e que tinham mantido sua força integral. Levaram a bordo os escassos víveres de que dispu­nham, assim como os instrumentos de navegação, as cartas e os livros. Comemoraram com gritos e aplausos, na rocha nua, quando o motor de popa tossiu e começou a funcionar depois de décadas e de quase quarenta puxões na corda de ignição, coisa que deixou o braço de Pitt em petição de miséria.

Você conseguiu! — gritou Maeve com entusiasmo.

Ele fez um gesto de modéstia.

Não é grande coisa para quem restaura automóveis antigos. O problema principal era o distribuidor entupido. E o carburador imundo.

Muito bem, compadre — cumprimentou-o Giordino. — O motor virá a calhar quando estivermos nos aproximando da ilha.

Por sorte as latas estavam vedadas e não deixaram que o combustível evaporasse em todos esses anos. Mas a gasolina engrossou, parece um verniz, de modo que teremos de ficar de olho no filtro. Não vou achar graça nenhuma se tiver de limpar o carburador de meia em meia hora.

Quantas horas de combustível York nos deixou?

Seis, talvez sete.

Mais tarde, com a ajuda de Giordino, Pitt montou o motor numa travessa, na popa da superestrutura. O toque final consistiu em instalar a bússola bem à frente da cana do leme. Uma vez presas aos mastros, as caranguejas e os botalós com laços em espiral, as velas de ramos trançados podiam ser içadas ou arriadas com facilidade. Todos recua­ram alguns passos e ficaram admirando o barco. Parecia razoavelmente eficiente, mas de modo algum podia ser considerado bonito. Era feio, atarracado, e as amuradas intensificavam sua aparência grotesca. Pitt duvidava que uma embarcação mais esquisita tivesse singrado os sete mares.

Não chega a ser precisamente um modelo de elegância — brincou Giordino.

E dificilmente vencerá numa competição de iatismo — acrescentou Pitt.

Vocês homens não conseguem ver a beleza interior — disse Maeve. — E ele ainda não tem nome. O que é uma injustiça. Que tal se o batizarmos de Morrer Nunca?

Combina com ele — disse Pitt —, mas não com as superstições dos marinheiros. Para dar sorte, precisa ter nome de mulher.

Que tal Linda Maeve? — propôs Giordino.

Sei lá — sorriu Pitt. — Meio sentimental e fora de moda, mas bonito. Eu voto a favor.

Maeve riu.

Sinto-me lisonjeada, porém a modéstia pede algo mais apropriado. Proponho Dancing Dorothy II.

Dois votos contra um — decidiu Giordino solenemente. — Fica sendo Linda Maeve.

Aceitando a derrota, Maeve pegou uma velha garrafa de rum, que Rodney York jogara fora, e a encheu de água do mar para a cerimônia de inauguração.

Eu te batizo Linda Maeve — disse, rindo, e quebrou a garrafa num dos troncos de murta presos aos tubos de flutuação. — Que singres os mares com a velocidade de uma sereia.

Agora vamos trabalhar — convocou Pitt.

Passou para fora as cordas atadas à parte dianteira do casco central. Cada um enrolou uma extremidade na cintura, firmou o pé e se inclinou para a frente. Devagar, o barco começou a deslizar sobre os troncos no chão, que serviam de trilhos. Ainda debilitados pela falta de boa alimentação e pelo excesso de esforço físico, os três não tardaram a esgotar as energias arrastando o barco ao precipício de dois metros que terminava na água.

Maeve, como era de esperar, lutou até não mais poder; a seguir, apoiou as mãos nos joelhos, o coração disparado, a respiração ofegante, e tratou de tomar fôlego. Pitt e Giordino empurraram o enorme peso morto mais dez metros antes de soltar as cordas e tombar pouco adiante dela. O barco ficou precariamente equilibrado na borda das extremi­dades de dois troncos que se inclinavam para baixo, para as ondas mansas.

Passaram-se vários minutos. O sol percorrera um quarto de sua tra­jetória no horizonte leste, e o mar se mostrava inocente, sem sinal de turbulência. Pitt desenrolou a corda da cintura e a jogou a bordo.

— Creio que é inútil adiar o inevitável. — Subiu na super-estrutura, baixou o motor de popa e puxou a corda da partida. Desta vez, con­seguiu ligá-lo na segunda tentativa. — Vocês dois podem ter a bondade de dar um último empurrão em nosso iate de luxo?

Depois de tanto trabalho para excitar os hormônios — resmungou o italiano —, que é que eu vou ganhar em recompensa?

Um gim-tônica por conta da casa — respondeu Pitt.

Promessas, promessas. Isso é sadismo da pior espécie — protestou o outro. E, passando o braço musculoso pela cintura de Maeve, fez com que ela se levantasse. — Vamos, moça bonita, chegou a hora de dizer adeus a este inferno de pedra.

Os dois se aproximaram, esticaram os braços, apoiados na popa, e, lançando mão das forças que lhes restavam, empurraram. O Linda Maeve começou a se deslocar com relutância; logo, quando a parte dianteira se inclinou na borda dos trilhos, foi tomando velocidade, e a popa se ergueu. O barco vacilou dois segundos e então mergulhou com estron­do, espirrando água para os lados antes de boiar na superfície. Tinha sido providencial a idéia de ligar previamente o motor, pois Pitt adquiriu controle imediato contra o fluxo da corrente. Tratou de virar rapida­mente para a borda da colina baixa. Assim que a proa bateu de leve na rocha, Giordino tomou Maeve pelos pulsos e a baixou delicadamente à superestrutura. A seguir, saltou e, ágil como um ginasta, foi cair de pé ao lado dela.

Com isto, termina a parte divertida do programa — disse Pitt, revertendo o motor.

Vamos içar minhas velas? — perguntou Maeve, sem ocultar o orgulho por sua obra.

Ainda não. É melhor navegar com o motor até o lado da ilha protegido contra o vento, onde o mar é mais calmo. Depois testaremos o vento.

Giordino ajudou Maeve a passar pela superestrutura e entrar na cabine. Sentaram-se para descansar um momento, enquanto Pitt pilotava o barco pelo canal, rumo às ondas que rugiam ao norte e ao sul das duas ilhas desertas. Mal chegaram ao mar aberto, apareceram os tubarões.

Olhem — disse Giordino —, nossos amigos voltaram. Aposto que estavam com saudade da gente.

Maeve se inclinou e estudou as longas formas cinzentas em movi­mento, pouco abaixo da superfície.

Um novo grupo de acompanhantes — comentou. — Estes são tubarões-makos.

A espécie que tem dentes irregulares e recortados, da qual só um ortodontista pode gostar?

Exatamente.

— Por que eles me perseguem? — gemeu o italiano. — Nunca pedi tubarão num restaurante.

Meia hora depois, Pitt deu a ordem:

Vamos experimentar as velas e ver que tipo de barco construímos.

Giordino desdobrou as velas trançadas, que Maeve tinha dobrado cuidadosamente, como sanfona, e começou a içar a principal, enquanto ela se encarregava da mezena. Ambas inflaram, e Pitt, segurando a cana do leme, virou de bordo e tomou o rumo norte, contra o forte vento do oeste.

Qualquer iatista teria morrido de rir se visse o Linda Maeve singrando os mares. Um projetista de barcos profissional teria ficado escandali­zado. Mas o veleiro de aparência peculiar acabaria rindo por último. As guigas afundavam na água, mantendo-lhe a estabilidade. A embar­cação se deixava governar assombrosamente bem e se mantinha aproada sem ser arrastada de lado. Para maior segurança, seria preciso resolver alguns problemas com o cordame. Mesmo assim, ela se fez ao mar como se lá tivesse nascido.

Pitt olhou uma última vez para as ilhas Miséria. Depois, voltou-se para o embrulho feito com um pedaço de vela, que continha o diário de bordo e as cartas de Rodney York. jurou que, se saísse vivo da aventura que o esperava, levaria aquele testamento aos familiares do pobre navegador inglês, na esperança de que estes organizassem uma expedição e fossem buscá-lo, a fim de sepultá-lo perto de Falmouth Bay, em sua querida Cornualha.

 

No décimo andar de uma estrutura modernista de vidro, construída em forma de pirâmide na periferia de Paris, um grupo de catorze ho­mens estava reunido à volta de uma longa mesa de ébano. Riquíssimos, muito sérios, impecavelmente vestidos e ostentando enorme poder, os diretores do Conselho Multilateral de Comércio, conhecido pelos ini­ciados simplesmente como Fundação, uma instituição dedicada ao de­senvolvimento de um governo econômico global único, apertaram-se as mãos e se entretiveram em conversas particulares antes de se sentar para cuidar dos negócios. Normalmente, encontravam-se três vezes por ano. Todavia, aquela era uma sessão de emergência, para discutir a recente e inesperada ameaça a suas operações mundiais.

Os homens na sala representavam grandes empresas multinacionais e altos escalões governamentais. Só um membro da direção do cartel sul-africano estava inteiramente envolvido com a venda de diamantes de qualidade. Um industrial belga, de Antuérpia, e um construtor de Nova Délhi, na Índia, atuavam como intermediários entre a Fundação e o gigantesco fluxo ilícito do diamante industrial para o Bloco Islâmico Fundamentalista. Milhões desses diamantes industriais menores eram vendidos clandestinamente ao bloco, para a fabricação de instrumentos de precisão e do equipamento necessário para a construção de sistemas nucleares. Os diamantes maiores, de qualidade mais exótica, eram utilizados para financiar sublevações na Turquia, na Europa Ocidental, na América Latina, em vários países do sul da Ásia e em todo lugar onde houvesse organizações políticas subversivas capazes de favorecer muitos outros interesses da Fundação, inclusive a venda de armas.

Embora todos aqueles homens, verdadeiras celebridades em seus respectivos ramos, freqüentassem os noticiários, nenhum deles era iden­tificado como membro da Fundação. Tratava-se de um segredo com­partilhado unicamente pelos que estavam reunidos naquela sala e seus colaboradores mais íntimos. Atravessavam oceanos e continentes, ur­dindo suas teias em todo tipo de lugar, cobrando tributos e acumulando lucros assombrosos.

Ouviram com atenção e em silêncio quando o presidente, um multimilionário banqueiro alemão, apresentou um relatório sobre a crise que atingia o mercado do diamante. Calvo e soberbo, falava devagar, num inglês fluente, idioma que todos os presentes compreendiam.

Cavalheiros, graças a Arthur Dorsett, estamos enfrentando uma gravíssima crise numa área vital de nossas atividades. Segundo a ava­liação de nossa rede de inteligência, o mercado do diamante está ru­mando para águas turbulentas. Não se enganem quanto a isso. Se Dor­sett despejar cem toneladas de diamantes no mercado a varejo, a preços que qualquer mendigo pode pagar, como está disposto a fazer, este setor da Fundação entrará em colapso total.

Quando isso deve ocorrer? — perguntou o xeique de um rico país produtor de petróleo do mar Vermelho.

Tenho informações seguras de que oitenta por cento das reservas de Dorsett estarão à venda em sua cadeia de lojas em menos de uma semana — respondeu o presidente.

Quanto arriscamos perder? — quis saber o chefe de um vasto império eletrônico japonês.

Treze bilhões de francos suíços, para começar.

Santo Deus! — O líder francês de uma das maiores lojas de moda feminina do mundo deu um soco na mesa. — E esse troglodita aus­traliano tem poder para isso?

O presidente balançou a cabeça.

Ao que tudo indica, ele tem muito diamante armazenado.

Não devíamos ter permitido que Dorsett atuasse fora do cartel - disse o ex-secretário de Estado americano.

O mal já está feito — concordou o membro do cartel do diamante.

Talvez o mundo da gema nunca volte a ser o mesmo.

Não podemos neutralizá-lo antes que suas pedras sejam distribuídas nas lojas? — indagou o homem de negócios japonês.

Enviei um emissário com uma oferta generosa para comprar seu estoque, para que ele seja mantido fora de circulação.

Alguma resposta?

Ainda não.

Quem você enviou? — perguntou o presidente.

Gabe Strouser, da Strouser & Filhos, um respeitado comerciante internacional de diamantes.

Um bom homem e um excelente negociador — disse o belga de Antuérpia. — Já fizemos muitas transações. Se alguém pode dobrar Dorsett, esse alguém é Gabe Strouser.

Um italiano que possuía uma frota de cargueiros de contêineres deu de ombros, sem emoção.

Se me lembro bem, as vendas do diamante caíram drasticamente no começo dos anos oitenta. Os Estados Unidos e o Japão passaram por uma severa recessão, e a demanda reduziu, provocando uma su­perprodução. Quando a economia mudou, nos anos noventa, os preços voltaram a subir. Não é possível que a história se repita?

Compreendo o que está dizendo — disse o presidente, encostando-se na cadeira e cruzando os braços. — Mas desta vez sopra um vento glacial, e todos os que dependem do diamante para viver vão congelar. Descobrimos que Dorsett aplicou mais de cem milhões de dólares em promoção e propaganda nos maiores países compradores de diamante. Se ele vender, como acreditamos que venderá, por cen­tavos de dólar, os diamantes de grande valor serão coisa do passado, pois o público sofrerá uma verdadeira lavagem cerebral para acreditar que não valem mais do que vidro ordinário.

O francês disse, com ar sombrio:

Sei que minhas modelos decerto procurariam outra bugiganga qualquer como investimento eterno. Se não os brilhantes, eu teria de lhes comprar carros esporte caríssimos.

Que está por trás da estranha estratégia de Dorsett? — quis saber o executivo-chefe de uma grande empresa de transportes aéreos do sudeste asiático. — Ele certamente não é burro.

Burro como uma hiena à espera de que o leão adormeça depois de haver devorado só a metade da presa — retrucou o presidente ale­mão. — Meus agentes na rede bancária mundial souberam que Dorsett comprou setenta, talvez oitenta por cento, das maiores minas produtoras de gemas coloridas.

Ouviu-se um murmúrio ante essa última informação. Todos à mesa reconheceram e assimilaram imediatamente o grande plano de Arthur Dorsett.

Diabolicamente simples — murmurou o magnata japonês da ele­trônica. — Ele quer puxar o tapete sob o mercado do diamante para depois empurrar para cima os preços dos rubis e das esmeraldas.

Um empresário russo, que acumulara grande fortuna comprando a preço de banana minas fechadas de alumínio e cobre, na Sibéria, para a seguir reabri-las usando a tecnologia ocidental, mostrou suas dúvidas:

Parece-me, como se diz no Ocidente, que Dorsett está despindo um santo para vestir outro. Ele espera realmente ganhar com as gemas coloridas o suficiente para compensar suas perdas com o diamante?

O presidente fez um sinal para o japonês, que respondeu:

A pedido de nosso presidente, solicitei que os analistas financeiros examinassem os números em nosso sistema de dados. Por incrível que pareça, a Dorsett Consolidated Mining Limited espera ganhar um mí­nimo de vinte bilhões de dólares americanos. Talvez vinte e quatro bilhões, dependendo da recuperação econômica prevista.

Caramba! — exclamou um inglês que possuía um império gráfico. — Nem consigo imaginar o que eu faria com um lucro de vinte e quatro bilhões de dólares!

O alemão riu.

— Eu compraria as suas empresas com eles.

Eu estaria disposto a me aposentar por muito menos do que isso.

O membro norte-americano tomou a palavra. Além de ex-secretário de Estado e reconhecido chefe de uma das famílias mais ricas dos Es­tados Unidos, era um dos criadores da Fundação.

Alguém sabe onde se encontram as reservas de diamante de Dor­sett neste momento?

Com uma margem de erro de poucos dias — respondeu o sul-africano —, creio que as pedras que não estiverem sendo lapidadas estão a caminho de suas lojas.

O presidente passeou o olhar do armador italiano ao magnata asiático da aviação.

Algum dos cavalheiros presentes tem conhecimento dos proce­dimentos de transporte de Dorsett?

Duvido seriamente que ele vá transportar seus diamantes por mar — disse o italiano. — Quando o navio ancorar num porto, teria de providenciar transporte terrestre.

Se eu fosse Dorsett, enviaria as pedras por ar — concordou o asiático. — Desse modo, poderia distribuí-las de imediato a pratica­mente todas as cidades do mundo.

Podemos deter um ou dois de seus aviões — disse o industrial belga -, mas, sem conhecer o cronograma dos vôos, seria impossível impedir o transporte.

O asiático sacudiu a cabeça negativamente.

Acho a idéia de interceptar um único vôo muito otimista. Dorsett provavelmente fretou uma frota de aviões na Austrália. Acho que es­tamos querendo trancar a porta depois de arrombada.

O presidente se voltou para o representante sul-africano do cartel do diamante.

Parece que a grande farsa acabou. O valor artificialmente criado do diamante, afinal, não é eterno.

Em vez de se mostrar desiludido, o sul-africano sorriu.

Não é a primeira vez que nos declaram mortos. Minha diretoria e eu consideramos este um golpe sem importância, nada mais. O dia­mante é eterno, cavalheiros. Ouçam bem as minhas palavras: o preço das pedras de qualidade voltará a subir quando o brilho das safiras, das esmeraldas e dos rubis se apagar. O cartel honrará os seus com­promissos com a Fundação através de outros interesses minerais. Não vamos ficar sentados em nosso próprio túmulo, à espera de que o mer­cado se recupere.

O secretário particular do presidente entrou na sala e lhe falou em voz baixa. Este fez que sim e olhou para o sul-africano.

Acabo de ser informado que a resposta às negociações de seu emissário com Arthur Dorsett chegou na forma de um pacote.

Estranho que Strouser não tenha entrado em contato direto co­migo.

Mandei trazer o pacote — disse o presidente. — Acho que estamos ansiosos para saber se o senhor Strouser teve êxito em sua negociação com Arthur Dorsett.

Poucos momentos depois, o secretário voltou, segurando com ambas as mãos uma caixa quadrada com uma fita vermelha e verde. O pre­sidente fez um gesto na direção do sul-africano. O secretário se apro­ximou e depositou a caixa na mesa, diante dele. Havia um cartão preso à fita. Ele abriu o envelope e leu em voz alta:

 

Existem a pedra-pomes e a pedra-sabão e há o granizo e a pedra-mármore.

Mas na boca de Strouser há uma pedrinha barata como o esterco, uma jóia que vale menos do que bosta.

 

O sul-africano olhou gravemente para a caixa.

Não parece ser coisa de Gabe Strouser. Ele não é de brincadeiras.

E também não se pode dizer que escreva bem versos — comentou o modista francês.

Vamos, abra a caixa — pressionou o indiano.

O representante do cartel do diamante desatou a fita, abriu a caixa e olhou dentro dela. Subitamente empalidecido, ele se levantou de um salto tão brusco que derrubou a cadeira. Correu tropegamente à janela, abriu-a com um safanão e vomitou.

Assombrados, todos se apressaram a inspecionar o misterioso con­teúdo da caixa. Alguns reagiram como o sul-africano, outros recuaram horrorizados, e aqueles que tinham ordenado crimes brutais em sua ascensão à riqueza e ao poder ficaram olhando firmemente, sem de­monstrar emoção, para a cabeça ensangüentada de Gabe Strouser, os olhos grotescamente saltados, os diamantes a lhe cair da boca.

Parece que as negociações de Strouser não tiveram sucesso — disse o japonês, refreando a bile que lhe subia à garganta.

Depois de alguns minutos, o presidente chamou o chefe da segurança da Fundação e o mandou levar embora a cabeça. A seguir, encarou os membros que, recuperados, voltaram a se sentar em seus lugares.

Peço-lhes que mantenham em rigoroso segredo o que acabamos de ver.

E esse carniceiro? — gritou o russo, vermelho de raiva. — Dorsett não pode ficar impune depois de haver matado um representante da Fundação!

Concordo — disse o indiano. — A vingança tem prioridade ab­soluta.

Seria um erro agir precipitadamente — opôs-se o presidente. — Não seria inteligente chamar a atenção, deixando-nos levar pelo desejo de vingança. Basta um engano ao executar Dorsett para que nossas atividades fiquem abertas à inspeção. Acho melhor atacar Arthur por outro lado.

O presidente tem razão — disse o holandês em seu inglês lento mas eficiente. — A melhor coisa a fazer no momento é tratar de conter Dorsett e deixar para agir quando ele claudicar e cometer um erro. Um homem com aquele caráter acaba sempre cometendo um grande erro. E a curto prazo.

Que você sugere?

Esperar.

O presidente franziu a testa.

Não entendo. Pensei que a idéia fosse partir para a ofensiva.

Ao se desfazer de suas reservas de diamante, Dorsett ficará sem cobertura alguma — explicou o holandês. — Vai demorar no mínimo um ano para elevar os preços das gemas e obter lucros. Nesse meio tempo, mantemos o controle do mercado do diamante, conservamos o nosso estoque e tratamos de assumir o controle da produção restante de gemas coloridas. Competiremos com ele. Meus espiões industriais me informaram que Dorsett se concentrou nas gemas conhecidas pelo público, negligenciando as pedras mais raras.

Pode nos dar um exemplo de pedra mais rara?

A alexandrita, por exemplo, ou a tsavorita e o berilo vermelho.

O presidente olhou para os outros à mesa.

Sua opinião, cavalheiros.

O publicista inglês se inclinou para a frente, os punhos cerrados.

Uma grande idéia. Nosso especialista em diamante encontrou um meio de bater Dorsett em seu próprio terreno. Isso também nos permitirá tirar vantagem da queda temporária do preço do diamante.

Quer dizer que concordamos? — perguntou o presidente com um sorriso nada satisfeito.

Todos ergueram a mão, e catorze vozes disseram sim.

 

CATÁSTROFE NO PARAÍSO

16 de fevereiro de 2000 - Honolulu, Havaí

Confortavelmente instalado num sofá surrupiado de um dos dois hotéis de luxo em reforma na ilha havaiana de Lanai, um sargento de cabelo acinzentado, do Corpo de Fuzileiros, com um short desbotado e uma camisa florida, tomava sua lata de cerveja e assistia no video­cassete ao velho épico de John Wayne No Tempo das Diligências. Tinha na cabeça um capacete de realidade virtual comprado numa loja de aparelhos eletrônicos de Honolulu. Conectando-o ao VCR, podia "en­trar" na tela e misturar-se aos atores nas cenas do filme. Estava deitado ao lado de John Wayne no alto da diligência durante uma cena emocionante de perseguição, atirando nos índios inimigos, quando uma alta campainha interferiu na ação. Tirando com má vontade o capacete, ele passou os olhos pelos monitores de segurança que focalizavam as áreas estratégicas das instalações que vigiava. O monitor três mostrou um carro aproximando-se pela estrada de terra, em meio a uma plan­tação de abacaxi, que levava ao portão de entrada. O sol do fim da manhã brilhou no pára-choque dianteiro; o traseiro parecia arrastar uma nuvem de poeira.

Há vários meses naquele serviço, o sargento tinha convertido sua rotina numa fina ciência. Nos três minutos que o automóvel demorou para subir a estrada, teve tempo de vestir uma farda bem-passada e colocar-se em posição de sentido junto ao portão, à entrada do túnel que conduzia ao centro do vulcão extinto.

Observando melhor, viu que se tratava de um carro da Marinha. Inclinou o corpo para a frente e gritou pela janela lateral:

— Esta zona é de segurança. Vocês têm autorização para entrar?

O motorista de uniforme branco de recruta da Marinha apontou por cima do ombro com o polegar.

O comandante Gunn, aí atrás, está com os documentos necessários.

Proficiente e objetivo, Rudi Gunn não perdera seu precioso tempo procurando obter autorização para desmontar a gigantesca antena pa­rabólica instalada no coração do vulcão Palawai, em Lanai. Desenredar o intrincado novelo da burocracia a fim de localizar o departamento que tinha jurisdição sobre a antena e, depois, enfrentar o departamento que operava o equipamento de comunicações espaciais teria demorado pelo menos um mês. A provação seguinte, praticamente impossível, seria encontrar um burocrata disposto a assumir a responsabilidade de autorizar que a parabólica fosse retirada e temporariamente emprestada à ANPS.

Gunn eliminou os trâmites inúteis simplesmente mandando a gráfica da ANPS falsificar um formulário de solicitação, em três vias de apa­rência perfeitamente oficial, autorizando a agência a transferir a antena a outro lugar, na ilha havaiana de Oahu, no âmbito de um projeto secreto. O documento recebeu então as assinaturas de vários operários da gráfica, sob nomes e títulos fictícios. O que normalmente teria de­morado boa parte do ano, para acabar sendo oficialmente indeferido, tardou menos de hora e meia, a maior parte da qual foi gasta na escolha dos tipos gráficos.

Quando Gunn, envergando a farda de comandante da Marinha, che­gou ao portão do túnel de entrada e exibiu a autorização para desmontar e remover a antena, o sargento responsável pelas instalações abando­nadas mostrou-se diligente e colaborador. E se tornou ainda mais co­laborador ao avistar as deslumbrantes formas de Molly Faraday no banco traseiro. Se acaso pensara em chamar um oficial superior para confirmar a autorização, a idéia se lhe evaporou quando ele viu um comboio de enormes caminhões de carroceria plana e um guindaste móvel que seguiam o carro. A ordem para uma operação daquele porte só podia ter vindo de uma altíssima autoridade.

Que bom que vou ter companhia — disse com um amplo sorriso. — E muito aborrecido ficar aqui em cima sem uma alma com que conversar quando a gente está de serviço.

Quantos vocês são? — perguntou docemente Molly pela janela traseira.

Só três, madame, em turnos de oito horas.

E que fazem quando não estão de serviço?

Em geral vamos à praia ou tentamos paquerar alguma garota nos hotéis.

Ela riu.

De quanto em quanto tempo podem sair da ilha?

Uma vez por mês. Cinco dias de licença em Honolulu, depois voltamos a Lanai.

Quando foi que alguém de fora visitou as instalações pela última vez?

Se chegou a notar que estava sendo interrogado, o sargento não o demonstrou.

Um cara com credenciais da Agência Nacional de Segurança an­dou por aqui há uns quatro meses. Ficou menos de vinte minutos. Vocês são os primeiros a aparecer depois disso.

Vamos terminar de desmontar a antena e partir tarde da noite — disse Gunn.

Senhor, posso perguntar onde ela vai ser remontada?

E se eu lhe disser que vai virar sucata?

Eu não me surpreenderia — disse o sargento. — Sem manutenção nem conserto durante tantos anos, esse disco velho deve estar enfer­rujado e corroído.

Gunn notou, divertido, que o fuzileiro, aproveitando a oportunidade de falar com desconhecidos, estava tentando alongar a conversa.

Podemos passar e começar o trabalho, sargento?

O fuzileiro bateu continência e rapidamente apertou o botão que abria o portão elétrico. Quando o automóvel passou e desapareceu no túnel, ficou observando e acenando para os motoristas dos caminhões e do guindaste. Ao ver desaparecer o último veículo no interior do vulcão, fechou o portão, entrou no corpo da guarda, tornou a vestir o short e a berrante camisa esporte e ligou o videocassete. Tendo reco­locado o capacete de realidade virtual, voltou a fita até se ver na dili­gência com John Wayne, fugindo dos índios.

Até agora tudo bem — disse Gunn a Molly.

Que maldade a sua dizer a esse rapaz tão simpático que íamos sucatear a antena — censurou ela.

Eu simplesmente disse "e se".

Se formos apanhados depois de ter falsificado documentos oficiais, pintado um carro usado para que parecesse um veículo oficial da Ma­rinha e roubado propriedade do governo... — Molly se interrompeu e sacudiu a cabeça. — Seremos enforcados numa praça pública de Was­hington.

Pagarei o preço com satisfação se conseguirmos livrar dois milhões de pessoas de uma morte horrível — disse Gunn sem remorso.

Que vamos fazer depois de desviar a onda acústica? — quis saber ela. — Trazemos a antena de volta e tornamos a montá-la?

Eu não tenho outra escolha. — Ele a encarou como que tomado de surpresa pela pergunta; depois sorriu com malícia. — A menos que aconteça alguma coisa inesperada, é claro. Pode ser que ocorra um acidente e a antena vá parar no fundo do mar.

A parte de Sandecker no projeto não ia nada bem. Por mais que recorresse à velha camaradagem entre os almirantes, não conseguira convencer uma única autoridade a lhe emprestar temporariamente o porta-aviões Roosevelt e sua tripulação. Em algum lugar da cadeia de comando entre o presidente e o almirante que comandava as operações da frota do Pacífico alguém havia bloqueado a sua solicitação.

O almirante andava de um lado para outro, no gabinete de seu colega John Overmeyer, em Pearl Harbor, com a ferocidade de um urso que acabava de perder o filhote para um zoológico.

Com os diabos, John! — gritou ele. — Quando eu saí do escritório do almirante Baxter, na Junta de Comando, ele me garantiu que a au­torização para usar o Roosevelt no transporte de um refletor acústico já estava dada. Agora você vem me dizer que não, que eu não posso usá-lo.

Overmeyer, com a aparência teimosa e vigorosa de um fazendeiro de Indiana, ergueu as mãos, exasperado.

Não ponha a culpa em mim, Jim. Posso lhe mostrar a ordem.

Quem a assinou?

O almirante George Cassidy, comandante do distrito naval de San Francisco.

Que diabos esse burocrata que administra balsas tem a ver com a história?

Cassidy não administra balsas — impacientou-se Overmeyer. — É o chefe de todo o comando logístico do Pacífico.

Ele não é seu superior — afirmou Sandecker com irritação.

Diretamente não, mas, se ficar zangado, todos os transportes que levam abastecimento aos meus navios, daqui até Cingapura, podem ser inexplicavelmente adiados.

Não me enrole, John. Cassidy não se atreveria a comprar essa briga, e você sabe muito bem disso. A carreira desse homem iria para o espaço se ele tivesse a petulância de atrasar o abastecimento de sua frota.

Talvez você tenha razão — disse Overmeyer. — Mas isso não altera em nada a situação. Não posso lhe emprestar o Roosevell.

Nem por míseras setenta e duas horas?

Nem por setenta e dois segundos.

Sandecker parou de caminhar subitamente, sentou-se numa cadeira e olhou nos olhos de Overmeyer.

Seja franco comigo, John. Quem puxou o meu tapete?

Evidentemente constrangido, Overmeyer desviou a vista.

Não posso dizer.

A neblina está começando a se desfazer — disse Sandecker. — Será que George Cassidy sabe que está bancando o vilão?

Não é de meu conhecimento — respondeu Overmeyer com sin­ceridade.

Então, quem no Pentágono está sabotando a minha operação?

Não foi de minha boca que você ouviu isso.

Nós servimos juntos no Iowa. Você sabe que eu nunca fui de revelar os segredos de um amigo.

Eu seria o último homem a duvidar de sua palavra — disse Over­meyer sem hesitação. Dessa vez, sustentou o olhar de Sandecker. — Não tenho prova alguma, compreende? Mas um amigo do centro de teste de armas navais deu a entender que foi o presidente em pessoa que proibiu que atendessem a sua solicitação quando algum dedo-duro do Pentágono deixou vazar à Casa Branca o seu pedido de empréstimo de um porta-aviões. Esse meu amigo também deu a entender que os cientistas próximos ao presidente acham a sua teoria da praga acústica uma grande tolice.

Será que não entra na cabeça acadêmica desses caras que muita gente e um número incalculável de animais marinhos já morreram por causa disso?

Parece que não.

Sandecker afundou na cadeira e deixou escapar um longo suspiro.

Apunhalado pelas costas por Wilbur Hutton e o Conselho Na­cional de Ciência do presidente.

Sinto muito, Jim, mas circulam rumores em Washington segundo os quais você não passa de um biruta fanático. Pode ser que o presidente esteja querendo afastá-lo da ANPS para colocar um cupincha em seu lugar.

Sandecker sentiu-se com a cabeça na guilhotina.

E daí? Minha carreira não tem importância. Será que ninguém consegue me ouvir? Será que você consegue me ouvir, almirante, quan­do eu lhe digo que você e todos os homens sob o seu comando, na ilha de Oahu, estarão mortos dentro de três dias?

Overmeyer fitou Sandecker com muita tristeza nos olhos. Era difícil acreditar que aquele homem estivesse ficando louco, principalmente porque era seu amigo.

Jim, para ser franco, você me aterroriza. Quero confiar em seu julgamento, mas existe muita gente inteligente achando que a sua praga acústica tem tanta chance de ocorrer quanto o fim do mundo.

Se você não me emprestar o Roosevelt — disse Sandecker sem alterar a voz —o seu mundo deixará de existir sábado que vem às oito horas da manhã.

Overmeyer sacudiu a cabeça.

Lamento, Jim. Estou com as mãos atadas. Acreditando ou não em suas previsões, você sabe perfeitamente que não posso desobedecer ordens do comandante-em-chefe.

Já que não consegui convencê-lo, acho melhor ir embora. — San­decker se levantou, foi até a porta e voltou-se. — Sua família está aqui em Pearl Harbor?

Minha mulher e duas netas que vieram nos visitar.

Deus permita que eu esteja errado, amigo, mas, em seu lugar, trataria de tirá-las da ilha enquanto ainda é tempo.

Por volta de meia-noite, só a metade do gigantesco disco fora des­montada. O interior do vulcão estava iluminado com um brilho incan­descente e nele ecoava o barulho dos geradores, das batidas do metal e das vozes da equipe ocupada no desmonte. O ritmo se manteve ace­lerado do começo ao fim. Os homens e mulheres da ANPS suavam, lutando com conexões travadas, soldadas pela ferrugem que a falta de cuidado e manutenção espalhara. Ninguém pensou em comer e muito menos em dormir. Só se distribuiu um café preto como o mar que os rodeava.

Assim que uma pequena parte do disco de fibra de vidro reforçada com aço era retirada da estrutura principal, o guindaste a apanhava e a colocava na carroceria de um dos caminhões. Quando cinco partes estavam uma sobre a outra e amarradas, o caminhão saía do interior do vulcão e se dirigia ao porto de Kaumalapau, na costa oeste, onde as peças da antena eram carregadas num pequeno navio para serem transportadas a Pearl Harbor.

Rudi Gunn estava sem camisa, suando muito devido à umidade daquela noite abafada, dirigindo uma equipe que trabalhava extenuantemente para soltar da base o cubo da roda principal da antena. Con­sultava a cada instante um conjunto de plantas do mesmo tipo de antena usado em outras instalações de localização espacial. As plantas tinham sido fornecidas por Hiram Yaeger, que invadira o sistema central de computadores da empresa que originalmente projetara e construíra os gigantescos discos.

Molly, que vestira uma confortável camisa cáqui e short, estava sen­tada perto de uma pequena barraca, operando as comunicações e ten­tando resolver todos os problemas que surgiam durante o desmonte e o transporte das partes à doca de embarque. Ela se levantou e entregou a Gunn uma garrafa de cerveja gelada.

Acho que você está precisando molhar a garganta.

Gunn agradeceu e passou a garrafa na testa.

Devo ter tomado vinte litros de líquido desde que chegamos.

Queria que Pitt e Giordino estivessem aqui — disse ela com tris­teza. — Sinto a falta deles.

Gunn olhou para o chão.

Todos sentimos a falta deles. Sei que o almirante está com o coração partido.

Molly mudou de assunto.

Como está indo?

Ele apontou com o queixo para a antena semi-desmontada.

Ela está resistindo a cada passo. As coisas estão indo um pouco mais depressa agora, pois aprendemos como atacá-la.

Que vergonha — murmurou ela, passando o olhar pensativo pelos trinta homens e quatro mulheres que havia tanto tempo lutavam com afinco para desmantelar e levar a antena, sua dedicação e seu incansável esforço concentrados na magnífica tentativa de salvar muitas vidas. — Que vergonha se tudo isso der em nada.

Não perca a confiança em Jim Sandecker — disse Gunn. — Ele pode estar sendo sabotado pela Casa Branca; porém, mesmo que não consiga o Roosevelt, aposto um jantar com você, à luz de velas e tudo, que encontrará um substituto.

Combinado — sorriu ela. — E uma aposta que terei prazer em perder.

Às quatro horas da madrugada, Molly recebeu um telefonema de Sandecker. Sua voz não mostrava o menor cansaço.

Quando acham que vão terminar?

Rudi acha que estaremos colocando a última parte a bordo do Lanikai...

A bordo do quê?

Do Lanikai, um pequeno cargueiro de navegação costeira que fre­tamos para levar a antena a Pearl Harbor.

Esqueça Pearl Harbor. Em quanto tempo vocês vão sair daí?

Dentro de cinco horas — respondeu Molly.

É muito. Lembre Rudi que nos restam menos de sessenta horas.

Se não for a Pearl Harbor, aonde iremos?

Rumem para a baía de Halawa na ilha Molokai — respondeu Sandecker. — Achei outra plataforma onde instalar o refletor.

Outro porta-aviões?

Coisa melhor.

A baía de Halawa fica do outro lado do canal, a menos de cem quilômetros. Como conseguiu isso?

Os que não esperam presentes da fortuna conquistam o destino.

O senhor está muito misterioso, almirante — disse Molly, intri­gada.

Diga a Rudi que pegue tudo e parta para a Molokai até no máximo dez horas da manhã.

Ela acabava de desligar o telefone portátil quando Gunn entrou na barraca.

Estamos desmontando a última parte — disse, cansado. — Logo vamos sair daqui.

O almirante telefonou — informou ela. — Deu ordens para que levemos a antena à baía de Halawa.

Na Molokai? — perguntou Gunn com curiosidade.

Isso mesmo.

Que tipo de navio você acha que ele tirou da cartola?

Eis a questão. Não tenho a menor idéia.

Tomara que dê certo — murmurou Gunn. — Do contrário teremos de fechar o circo.

 

Não havia luar, porém o mar flamejava com uma espectral fosforescência verde-azulada sob o cintilar das estrelas que, de um horizonte a outro, pontilhavam o céu como as luzes de uma cidade infinita. O vento tinha mudado de direção, passando a soprar do sul e a empurrar com força o Linda Maeve para noroeste. A vela verde e amarela de folhas trançadas estava inflada, e a embarcação ia saltando nas ondas qual mula a correr com puros-sangues. Pitt não esperava que aquele barco feio e desajeitado pudesse navegar tão bem. Não chegaria a conquistar um troféu, mas podia fechar os olhos e imaginar-se um iatista de primeira classe, singrando os mares despreocupado do resto do mun­do.

As vagas já não tinham a aparência hostil de antes, nem as nuvens se mostravam ameaçadoras. A friagem da noite também ia diminuindo à medida que eles rumavam para o norte, onde a água era mais quente. O mar os testara com crueldade e rudeza, e eles tinham sido aprovados com distinção. Agora, o tempo cooperava: permanecia estável e cle­mente.

Algumas pessoas se cansavam de olhar para o mar mesmo quando instaladas no conforto de uma praia tropical, mas Pitt não figurava entre elas. Sua alma inquieta e as águas caprichosas eram uma só coisa, inseparáveis em seus humores inconstantes.

Maeve e Giordino já não pareciam lutar pela vida. Seus momentos de calor e prazer, quase anulados pela adversidade, vinham se tornando mais freqüentes. O inabalável otimismo de Pitt, seu riso contagiante, seu apego irredutível à esperança e sua força de caráter os sustentavam e ajudavam-nos a enfrentar o pior que a natureza lhes podia oferecer. Em momento algum notaram o menor sinal de depressão na conduta daquele homem destemido, fosse qual fosse a situação. Por mais tenso que se mostrasse ao se orientar pelo sextante ou ao observar preocupado uma súbita mudança no vento, não deixava de sorrir.

Ao perceber que estava ficando perdidamente apaixonada por ele, Maeve ofereceu resistência. Todavia, quando finalmente aceitou o ine­vitável, entregou-se por completo aos seus sentimentos. Continuamente surpreendia-se observando cada movimento dele, cada expressão que se estampava em seu rosto quando calculava a posição com a ajuda das cartas náuticas dos mares do sul de Rodney York.

Ela lhe tocou o braço.

Onde estamos? — perguntou docemente.

Ao amanhecer, vou marcar nosso curso e calcular a distância que nos separa da ilha Gladiator.

Por que não descansa um pouco? Você só dormiu duas horas depois que saímos das Miséria.

Prometo tirar uma longa sesta quando estiver chegando ao fim da viagem — disse ele, olhando para a bússola na escuridão.

Al também não dorme — prosseguiu ela, apontando para o ita­liano, que não cessava de examinar a situação das cordas que manti­nham presa a estrutura do barco.

Se o vento continuar e meus cálculos não estiverem muito errados, devemos avistar nossa ilha depois de amanhã bem cedo.

Ela ergueu os olhos para o vasto campo de estrelas.

O céu está lindo hoje.

Como certa moça que eu conheço — disse ele, fitando-a. — Uma mulher esplendorosa, de olhos muito puros e azuis, de cabelos que parecem uma chuva de moedas de ouro. É inocente, inteligente, nasceu para o amor e a vida.

Deve ser muito atraente.

Isso não é nada. Acontece ainda que o pai dela é um dos homens mais ricos do sistema solar.

Ela arqueou as costas e se achegou, sentindo a firmeza do corpo dele. Roçou os lábios nas rugas de seus olhos e em seu queixo forte.

Você deve estar muito impressionado com ela.

Impressionado? Por que não? — disse ele pausadamente. — Afi­nal, é a única garota nesta parte do oceano Pacífico que me deixa louco de desejo.

Mas sou eu a única garota nesta parte do oceano Pacífico.

Ele a beijou de leve na testa.

Neste caso, você tem o solene dever de satisfazer minhas fantasias mais íntimas.

Eu o faria com prazer se estivéssemos a sós — disse ela com paixão na voz. — Mas por enquanto tenho de sofrer.

Eu se eu pedisse a Al que fosse dar uma volta?

Ela se afastou e riu.

Ele não iria muito longe. — Secretamente, Maeve estava sentindo uma onda de felicidade por saber que não havia nenhuma mulher de carne e osso entre eles. — Você é um homem muito especial — sus­surrou. — Do tipo que toda mulher sonha encontrar.

Ele deu um riso solto.

Nem tanto. Poucas vezes tirei uma mulher do sério.

Talvez seja porque elas perceberam que você é inatingível.

E fácil me conquistar se jogarem as cartas certas — gracejou ele.

Não foi o que eu quis dizer. O mar é a sua amante. Vi isso em seu rosto durante a tempestade. Você não parecia estar lutando com ele, parecia estar seduzindo-o. Que mulher pode competir com um amor tão vasto?

Você também ama o mar — disse ele com ternura — e a vida que há nele.

Maeve respirou o ar da noite.

É verdade. Não posso recusar-me a dedicar a vida a ele.

Giordino os interrompeu ao sair da cabine, anunciando que um dos tubos de flutuação estava perdendo ar.

Passe a bomba — ordenou. — Se eu conseguir encontrar o furo, vou tentar remendá-lo.

Com o Linda Maeve está se saindo? — perguntou Pitt.

Como uma dama num concurso de dança — respondeu o italiano. — Ágil e flexível, com todas as articulações funcionando no ritmo.

Se ele agüentar até chegar à ilha, vou doá-lo a um museu. Será exposto como o barco mais impossível que acabou dando certo.

Se toparmos com outra tempestade — disse Giordino —, tudo estará perdido. — Calou-se e, distraído, olhou para o horizonte negro a sua volta, onde as estrelas se fundiam com o mar. De súbito, ficou tenso. — Estou vendo uma luz a bombordo.

Pitt e Maeve se levantaram e olharam para a direção apontada pelo italiano. Viram uma luz esverdeada, indicando o lado de estibordo de um navio, e uma fileira de luzes brancas de mastro. Parecia estar muito longe, rumando para nordeste.

Um navio — confirmou Pitt. — A uns cinco quilômetros de dis­tância.

Não vão nos ver — disse Maeve com ansiedade. — Não temos luzes.

Giordino desapareceu na cabine para voltar logo depois.

O último foguete de Rodney York — anunciou, erguendo-o no ar.

Pitt olhou para Maeve.

Você quer ser resgatada?

Ela olhou para o mar escuro que rolava sob o barco e sacudiu a cabeça lentamente.

Não é uma decisão que eu possa tomar.

Al, que você diz? Uma boa refeição e uma cama limpa não o tentam?

Giordino sorriu.

Não tanto quanto a idéia de um novo encontro com o clã Dorsett.

Pitt pôs o braço no ombro de Maeve.

Sou da mesma opinião.

Dois dias — murmurou ela, agradecida. — Não consigo acreditar que, em dois dias, vou ver meus filhos novamente.

Pitt ficou um momento calado, pensando no desconhecido que os esperava. Depois disse delicadamente:

Você vai revê-los e abraçá-los. Prometo.

Nenhum deles tivera realmente a intenção de se desviar de seu ob­jetivo. As mentes de Pitt e de Giordino funcionavam como se fossem uma só. Tinham entrado numa região na qual já não faziam caso da própria vida. Estavam tão determinados a chegar à ilha Gladiator que não se importaram quando as luzes do navio foram diminuindo e, pouco a pouco, desapareceram na distância.

 

Quando o cargueiro de navegação costeira com a antena desmontada entrou na baía de Halawa, na Molokai, todas as mãos se alinharam na amurada e todos os olhos se voltaram fascinados para a estranha em­barcação ancorada no porto. O navio de duzentos e vinte e oito metros de comprimento, com um bosque de gruas e um mastro de carga de vinte e três andares no centro, parecia ter sido projetado e construído por um exército de engenheiros bêbados e operários hipertônicos. Um enorme heliponto estava suspenso na popa como mero acessório se­cundário. A alta superestrutura do convés se erguia na extremidade da popa, dando ao navio a aparência geral de um petroleiro. Porém ali cessava toda semelhança. A parte central do casco estava ocupada por um enorme conglomerado de maquinaria, com o aspecto de uma gigantesca pilha de ferragem. Um verdadeiro labirinto de escadas de aço, andaimes e tubulações se acumulava ao redor do mastro de carga, que se erguia e arranhava o céu feito uma torre de lançamento de pesados foguetes espaciais. A casa elevada do castelo de proa não mos­trava sinal algum de portinholas, só uma fileira de janelas parecidas com clarabóias, à frente. A pintura descorada apresentava rupturas por onde aflorava ferrugem. O casco era azul-marinho, e a superestrutura, branca. A maquinaria outrora tivera uma miríade de cores, predomi­nando o cinzento, o amarelo e o alaranjado.

Agora que eu vi isto, posso morrer feliz! - exclamou Gunn.

Molly, a seu lado, olhava com assombro.

Como foi que o almirante conseguiu arranjar nada menos do que o Glomar Explorer?

Nem me arrisco a adivinhar — murmurou Gunn, maravilhado como um menino ante o primeiro avião.

O capitão do Lanikai saiu à porta da casa do leme.

O almirante Sandecker está ao telefone navio a navio, comandante Gunn.

Este acenou e, saindo do tombadilho, pegou o telefone.

— Você está uma hora atrasado — foram as primeiras palavras que ouviu.

Desculpe, almirante. A antena não estava em sua forma mais perfeita. Mandei a tripulação fazer os reparos e a manutenção durante o desmonte, para que tenhamos menos trabalho para remontá-la.

Boa idéia — concordou Sandecker. — Peça ao capitão para fundear o navio aqui ao lado. Vamos começar a transferir as partes da antena assim que ele lançar âncoras.

Por acaso é o famoso Glomar Explorer que eu estou vendo? — perguntou Gunn.

Ele mesmo, com algumas alterações — respondeu Sandecker. — Pegue uma lancha e venha a bordo. Estou esperando no escritório do capitão. Traga a senhorita Faraday.

Já estamos indo.

Originalmente proposto pelo diretor delegado da Defesa, David Packard, um dos antigos donos da Hewlett-Packard, grande fabricante de produtos eletrônicos, e baseado num velho navio de pesquisa das pro­fundezas, projetado por Willard Bascom e chamado Alcoa Seaprobe, o Glomar Explorer acabou sendo uma joint venture da CIA, da Global Marine Inc. e da Howard Hughes, através de sua empresa irmã que, por fim, tornou-se a Summa Corporation.

A construção ficou a cargo do estaleiro Sun & Dry Dock Company, em suas instalações de Chester, na Pensilvânia, e a gigantesca embar­cação foi imediatamente envolta em segredo, com a ajuda de falsas e desorientadoras informações. Foi batizada quarenta e um meses depois, no fim do outono de 1972, uma notável proeza da tecnologia para um navio concebido de modo inteiramente inovador.

Tornou-se, então, famosa por ter recuperado um submarino russo, classe Golf, naufragado, que se encontrava a cinco quilômetros de pro­fundidade em pleno Pacífico. Apesar das reportagens dizendo o con­trário, o submarino foi inteiramente resgatado e examinado pedaço por pedaço, uma façanha colossal da espionagem, que pagou generosos dividendos em conhecimento sobre a tecnologia e as atividades dos submarinos soviéticos.

Após seu breve momento de fama, ninguém sabia ao certo o que fazer com o Explorer, de modo que ele finalmente desapareceu nas mãos do governo dos Estados Unidos e foi incluído no "programa naftalina" da Marinha, ou seja, ficou guardado. Até pouco antes, tinha mofado durante mais de duas décadas no fundo da baía de Suisan, a nordeste de San Francisco.

Ao pisar no convés do imenso navio, Gunn e Molly tiveram a im­pressão de estar caminhando no centro de uma usina hidrelétrica. Vista de perto, a maquinaria era precária. Nada restava do forte esquema de segurança que acompanhou o navio em sua primeira viagem. Eles foram recebidos, no alto da rampa de acesso, pelo segundo oficial.

Nenhum guarda? — perguntou Molly.

O oficial sorriu e lhes indicou uma escada que levava a um convés abaixo da casa do leme.

Como se trata de uma operação comercial e não estamos em missão secreta para tirar do fundo do mar um navio de guerra de uma potência estrangeira, as medidas de segurança não são necessárias.

Pensei que o Explorer estivesse aposentado — disse Gunn.

Esteve até há cinco meses — respondeu o oficial. — Então, foi emprestada à Deep Abyss Engineering para a exploração do cobre e do magnésio no fundo do mar, duzentos quilômetros ao sul das ilhas havaianas.

Já começaram as atividades? — quis saber Molly.

Ainda não. Pelos padrões atuais, boa parte do equipamento do navio é antiquada, e temos de fazer algumas importantes alterações, especialmente na eletrônica. No momento, os motores principais não estão funcionando bem. Assim que forem reparados, partiremos.

Gunn e Molly trocaram um olhar apreensivo, mas evitaram expressar a preocupação. Como que sintonizados na mesma onda, ambos se per­guntaram como um navio que mal funcionava podia levá-los aonde deviam ir a tempo de desviar a praga acústica.

O oficial do navio abriu a porta de um espaçoso e elegante camarote.

Este alojamento foi reservado para Howard Hughes caso ele vi­sitasse o navio, coisa que parece que nunca aconteceu.

Sandecker se aproximou e os cumprimentou.

Uma obra extraordinária. Vocês dois estão de parabéns. Suponho que o desmonte acabou se tornando um trabalho bem mais difícil do que havíamos calculado.

A ferrugem atrapalhou muito — admitiu Gunn. — As conexões deram trabalho o tempo todo.

Nunca ouvi tanto palavrão — disse Molly com um sorriso nos lábios. — Os engenheiros ficaram furiosos, acredite.

A antena se prestará aos nossos objetivos? — perguntou o almi­rante.

Se o mar não se enfurecer e acabar desmantelando tudo — res­pondeu Gunn —, acho que consegue fazer o trabalho.

Sandecker se voltou e apresentou um homem baixo, atarracado, de pouco mais de quarenta anos.

Capitão James Quick, estes são minha auxiliar Molly Faraday e o comandante Rudi Gunn.

Bem-vindos a bordo — disse Quick, apertando-lhes as mãos. — Quantos mais vêm com vocês?

Contando a senhorita Faraday e eu, somos uma equipe de trinta e um homens e cinco mulheres — respondeu Gunn. — Espero que o número não cause problemas.

Quick fez um gesto para tranqüilizá-lo.

Não se incomode. Temos tantos alojamentos vazios que não sa­bemos o que fazer com eles. E há comida para dois meses.

O segundo oficial disse que vocês estão com problemas nos mo­tores.

É verdade — confirmou Sandecker. — O capitão me disse que ainda não definiu a hora da partida.

Quer dizer que o problema é grave — murmurou Gunn.

Um obstáculo totalmente imprevisto, Rudi. Eu lamento.

Quick pôs o quepe e se dirigiu à porta.

Vou reunir os operadores de grua e mandar que comecem a trazer a antena de seu navio.

Gunn o seguiu.

E eu vou dirigir a operação no Lanikai.

Assim que ficaram a sós, Molly olhou para Sandecker com todo respeito.

Como foi que o senhor conseguiu convencer o governo a lhe emprestar o Glomar Explorer?

Passei por cima de Washington e fiz à Deep Abyss Engineering uma oferta irrecusável.

Molly o encarou.

O senhor comprou o Glomar Explorer?

Eu o fretei — corrigiu ele. — Custou-me um braço e a metade de uma perna.

E o orçamento da ANPS consegue bancar essa despesa?

As circunstâncias impunham uma negociação rápida. Eu não tinha como pechinchar com tantas vidas em jogo. Se conseguir provar que estamos com a razão quanto à convergência acústica mortal, arrancarei o dinheiro do Congresso. E, por segurança, consegui uma cláusula re­ferente ao desempenho do navio.

Achar o Explorer logo depois de a Marinha se haver recusado a ceder o Roosevelt foi tropeçar numa mina de ouro.

O que a sorte dá, a sorte toma. — Sandecker sacudiu lentamente a cabeça. — O Explorer está na Molokai porque os eixos dos hélices ficaram avariados durante uma viagem à Califórnia. Se vai conseguir zarpar a tempo e levar-nos à zona de convergência é uma questão em aberto.

As enormes gruas de estibordo, usadas para içar maquinário, não tardaram a ser estendidas para fora, sobre o convés de carga aberto do Lanikai. Os cabos desceram; presas aos ganchos, as partes da antena foram içadas a bordo do Glomar Explorer e empilhadas em seqüência numerada, para facilitar a montagem, numa área aberta do convés.

Duas horas depois, a transferência havia terminado e as peças esta­vam amarradas a bordo do Explorer. O pequeno navio cargueiro levan­tou âncoras, apitou para se despedir e começou a sair do porto: estava cumprida a sua missão no projeto. Gunn e Molly acenaram quando o Lanikai, empurrando lentamente as águas verdes da baía, rumou para alto-mar.

Os membros da equipe da ANPS receberam alojamento e uma me­recida refeição, preparada na luxuosa cozinha do Explorer, antes de se recolher nos camarotes, que não eram usados desde que o navio res­gatou o submarino soviético das águas profundas do Pacífico. Tendo assumido o papel de dona de casa, Molly ia de um a outro membro da equipe, buscando certificar-se de que ninguém adoecera nem se ferira durante o desmonte da antena.

Gunn voltou ao luxuosíssimo camarote outrora reservado ao excên­trico Howard Hughes. Sandecker, o capitão Quick e outro homem, que foi apresentado como Jason Toft, o engenheiro-chefe do navio, estavam sentados ao redor de uma pequena mesa.

Aceita um conhaque? — ofereceu Quick.

Sim, obrigado.

línvolto em fumaça de charuto, Sandecker tomou um gole do líquido dourado de seu copo. Sua expressão não era precisamente de euforia.

O senhor Toft acaba de me informar que o navio não poderá zarpar antes que cheguem peças importantes do continente.

Gunn sabia que o almirante estava agitadíssimo por dentro, muito embora exteriormente se mostrasse frio como um balde de gelo. Olhou para Toft.

Quando espera que cheguem essas peças, engenheiro?

Estão vindo de Los Angeles agora, de avião — respondeu o homenzinho barrigudo e de pernas curtas. — Deve aterrissar dentro de quatro horas. O helicóptero do navio está aguardando no aeroporto de Hilo, na maior ilha do Havaí, para trazer as peças diretamente ao Ex­plorer.

Qual é exatamente o problema? — quis saber Gunn.

Os mancais de escora — explicou Toft. — Por algum motivo estranho, talvez porque a CIA tenha apressado a construção, os eixos dos hélices não foram corretamente balanceados. Durante a viagem de San Francisco para cá, a vibração acabou fazendo rachar os tubos de lubrificação, de modo que o fluxo de óleo aos mancais foi cortado. Devido ao atrito, à fadiga do metal, ao desgaste ou ao que for, o eixo de bombordo parou quando estávamos a umas oitocentas milhas da Molokai. O hélice de estibordo mal conseguiu nos trazer até aqui e, pouco depois, seu mancal de escora também encrencou.

Como já lhe disse, estamos trabalhando com prazo mínimo.

Compreendo perfeitamente o seu dilema, almirante. Minha equipe da casa das máquinas vai trabalhar como louca para o navio zarpar, mas não pode fazer milagre. Devo avisá-lo de que os mancais de escora são apenas uma parte do problema. Os motores, embora tenham sido pouco usados, já que levaram o navio da Costa Leste ao meio do Pacífico e depois de volta à Califórnia, nos anos 70, passaram vinte anos sem receber o menor cuidado e estão num estado lastimável. Mesmo que consigamos fazer um eixo funcionar, não há garantia de que não volte a encrencar quando sair do porto.

O senhor tem as ferramentas necessárias para o serviço? — per­guntou Sandecker, pressionando Toft.

O mancal de estibordo já foi removido. Não será difícil substituí-lo. No entanto, o de bombordo só pode ser consertado num estaleiro.

Gunn se dirigiu ao capitão Quick.

Não compreendo por que a empresa não fez os reparos necessários num estaleiro quando o Explorer saiu da "aposentadoria" em San Fran­cisco.

A culpa é do pessoal da contabilidade — disse Quick, dando de ombros. — O engenheiro Toft e eu recomendamos muito que o barco fosse submetido a uma revisão antes de zarpar para o Havaí, mas a gerência não me deu ouvidos. Ele só ficou no estaleiro para que se removessem boa parte das antigas gruas e as instalações do sistema de sondagem. Quanto ã manutenção padrão, disseram que era desper­dício de dinheiro e que qualquer falha mecânica podia ser reparada no mar ou depois que chegássemos a Honolulu, o que obviamente não conseguimos fazer. E, ainda por cima, estamos com falta de pessoal. A tripulação original era de cento e setenta e dois homens; pois estou com sessenta pessoas a bordo, a maior parte operadores de grua e mecânicos para manter a maquinaria. Doze são geólogos, engenheiros navais e especialistas em eletrônica. Ao contrário dos projetos da ANPS, almirante, a nossa é uma operação pé-de-boi.

Sinto muito, capitão — disse Gunn. — Entendo a sua situação.

Quando poderemos zarpar? — perguntou Sandecker a Toft, es­forçando-se por dissimular o cansaço das últimas semanas.

Em trinta e seis horas, talvez um pouco mais.

A sala ficou em silêncio. Todos se voltaram para o almirante, que, por sua vez, cravou no engenheiro o olhar frio de um criminoso serial.

Vou lhe explicar mais uma vez — disse sem rodeios — e da maneira mais cândida possível. Se não estivermos no lugar da conver­gência, com a antena posicionada na água, daqui a trinta e cinco horas, morrerão mais pessoas do que as que habitam alguns países pequenos. Não se trata da fantasia de um lunático nem do roteiro de um filme de ficção científica. Trata-se da vida real, e eu não estou disposto a ficar olhando para um mar de cadáveres e dizer "Puxa, se eu tivesse me esforçado um pouco mais, teria conseguido evitar isto". Custe a mágica que custar, engenheiro, a antena precisa estar na água, na po­sição correta, depois de amanhã antes das oito horas.

Não vou prometer o impossível — disse Toft com ar muito sério. — Mas, se não conseguir resolver o problema a tempo, não será por falta de esforço de meu pessoal.

Esvaziou o copo e saiu da sala, batendo a porta.

Acho que o senhor deixou o meu engenheiro-chefe zangado — disse Quick a Sandecker. — Não foi um tanto exagerado jogar toda a culpa nele se a operação não der certo?

Sandecker olhou pensativo para a porta fechada.

A situação é das mais difíceis, capitão. Eu não planejei as coisas assim, muito menos para que a culpa recaia sobre os ombros do en­genheiro Toft. Mas, queiramos ou não, esse homem tem nas mãos o destino de todos os seres humanos da ilha de Oahu.

As três e meia da tarde seguinte, exausto e sorridente, Toft entrou na casa do leme e anunciou a Sandecker, a Gunn e ao capitão Quick:

O mancal de escora de bombordo foi substituído. Podemos zarpar, mas a velocidade máxima que alcançaremos será de cinco nós, com uma pequena margem a mais ou a menos.

Sandecker agarrou a mão do engenheiro.

Deus o abençoe, Toft!

A que distância fica a zona de convergência? — perguntou Quick.

A oitenta milhas marítimas — respondeu Gunn sem hesitação, já que tinha repassado o trajeto mentalmente mais de doze vezes.

Uma margem mínima — disse o capitão com desconforto. — Navegando a cinco nós, vamos demorar dezesseis horas, o que significa que estaremos chegando poucos minutos antes das oito.

Oito horas — repetiu Gunn num quase sussurro. — Exatamente a hora em que Yaeger previu a convergência.

Uma margem mínima — ecoou Sandecker —, mas o engenheiro Toft nos deu uma chance de lutar.

O rosto de Gunn adquiriu um ar sombrio.

Espero que o senhor tenha se dado conta, almirante, de que, se chegarmos à região e formos atingidos pela convergência, todos pode­mos morrer.

Sandecker olhou para os outros três homens sem mudar de expres­são.

Sim — disse em voz baixa — todos podemos morrer.

 

Pouco depois de meia-noite, Pitt observou as estrelas pela última vez e, à luz da meia-lua, marcou a carta náutica. Se seus cálculos es­tivessem certos, avistariam a Gladiator em algumas horas. Pediu a Mae­ve e Giordino que se mantivessem em alerta enquanto ele se outorgava o luxo de uma hora de sono. E foi com a impressão de que acabava de adormecer que sentiu Maeve sacudindo-o delicadamente.

Seus cálculos foram perfeitos — disse ela, sem ocultar a excitação. — A ilha está à vista.

Um belíssimo trabalho de navegação, compadre — parabenizou-o o italiano. — E chegamos mais depressa do que você esperava.

Ainda bem — riu Maeve. — As folhas mortas já estão começando a desprender das velas.

Pitt olhou para a noite, porém não viu mais do que o reflexo das estrelas e da lua no mar. Chegou a abrir a boca para dizer que não estava vendo nada quando um facho de luz passou no horizonte, se­guido de um forte brilho avermelhado.

Sua ilha tem farol? — perguntou a Maeve.

Sim, um farol pequeno à beira do vulcão do sul.

Pelo menos não se pode dizer sua família não fez nada pela navegação marítima.

Maeve riu.

Meus bisavós não estavam preocupados com os marinheiros per­didos quando o construíram. Seu objetivo sempre foi o de alertá-los para que desviassem da ilha e não pensassem em desembarcar.

Naufragaram muitos barcos por aqui?

Ela olhou para as mãos e as uniu.

Quando eu era menina, papai sempre falava nos navios que ti­nham sido jogados contra as rochas.

E os sobreviventes?

Ela sacudiu a cabeça.

Nunca se falou em tentativas de salvamento. Ele sempre dizia que as pessoas que pusessem os pés na ilha Gladiator sem ser convi­dadas tinham encontro marcado com Satanás.

Como assim?

Queria dizer que os gravemente feridos eram assassinados, e os sobreviventes mais capazes, obrigados a trabalhar nas minas até a morte. Ninguém jamais conseguiu fugir de lá para contar as atrocidades.

Você conseguiu.

Não adiantou — disse ela com tristeza. — Ninguém aceitou a minha palavra contra a de minha família. Quando tentei explicar a situação às autoridades, meu pai simplesmente as comprou.

E os operários chineses que trabalham nas minas hoje em dia? Quantos ainda estão inteiros?

Maeve estava com a expressão tensa.

Quase todos acabam morrendo devido ao calor extremo no fundo das galerias.

Calor? — Pitt ficou curioso. — De onde vem esse calor?

O vapor sobe pelas brechas nas rochas.

Giordino olhou pensativo para Pitt.

O lugar perfeito para fundar um sindicato.

Vou desembarcar dentro de umas três horas — disse Pitt. — Até lá, temos tempo de mudar de idéia, evitar a ilha e fugir para a Austrália.

Neste mundo violento e implacável — disse o italiano —, não vale a pena viver sem um bom desafio de vez em quando.

Falou a espinha dorsal dos Estados Unidos — sorriu Pitt. Depois, olhou para a Lua, como que a avaliá-la. — Acho que temos luz suficiente para fazer o serviço.

Você ainda não explicou como iremos para a praia sem ser vistos pelos guardas de meu pai.

Primeiro, fale-me dos penhascos que rodeiam a ilha Gladiator.

Maeve o fitou, intrigada; depois deu de ombros.

Não há muito a dizer. Os penhascos cercam toda a massa de terra, com exceção da lagoa. Na praia ocidental, as ondas são violen­tíssimas. O lado leste é mais calmo, embora também perigoso.

Existe alguma enseada, na margem oriental, com praia de areia e aberturas naturais na rocha que penetrem os penhascos?

Lembro-me de duas. Uma delas tem uma boa entrada, mas a praia é minúscula. A outra é mais estreita, porém com um trecho mais largo de areia. Se está pensando em desembarcar numa delas, é melhor mudar de idéia. As escarpas se erguem quase verticalmente a uns cem metros de altura. Nem mesmo um alpinista profissional dotado das últimas técnicas e do melhor equipamento seria louco de tentar escalar aqueles rochedos de madrugada.

Pode nos guiar à enseada estreita, com a praia mais espaçosa?

Você não me escutou? — disse Maeve. — É mais fácil escalar o Evereste com um furador de gelo. Sem falar nos guardas. Eles patrulham os rochedos de hora em hora.

Também durante a noite?

Papai não dá chance aos ladrões de diamantes — disse ela, como se estivesse explicando uma coisa a uma criança.

Como é a patrulha?

Dois homens que fazem o circuito completo da ilha durante o seu turno. São seguidos por outra dupla no espaço de uma hora.

Eles conseguem ver a praia do alto do penhasco?

Não. O rochedo é íngreme demais para que se possa olhar dire­tamente para baixo. — Maeve o fitou, os olhos muito abertos e interrogativos ao luar. — Porque está fazendo tantas perguntas sobre o lado de trás da ilha? A lagoa é o único caminho por onde se pode entrar.

Pitt se voltou para Giordino.

Esta moça tem um corpo irresistível, mas a cabecinha é a de um cético.

Não se aborreça com isso — respondeu o italiano, bocejando. — As mulheres também não costumam acreditar em mim.

Pitt olhou para as rochas nas quais os sobreviventes dos naufrágios prefeririam ter se afogado a passar as indizíveis misérias a que eram submetidos os escravos das minas de diamante de Dorsett. Durante muito tempo, ante os penhascos da ilha Gladialor, que se elevavam na escuridão, ninguém no Linda Maeve se moveu nem falou. Pitt olhou para as costas de Maeve, estendida de bruços na proa, atenta às pedras no mar. Olhou também para Giordino, viu-o balançar a cabeça lenta­mente, esperando o aviso para ligar o motor de popa.

A luz do luar estava mais clara do que ele se atrevera a esperar. Era suficiente para iluminar as íngremes paliçadas, mas escassa o bas­tante para evitar que o Linda Maeve fosse visto pelos vigias no penhasco.

Por outro lado, o mar estava colaborando. Sua superfície lisa não apre­sentava mais do que pequenas ondulações à brisa suave. Sem vento do leste, Pitt achou melhor fazer planos de penetrar na ilha com cuidado e voltou a embarcação num curso paralelo à linha do litoral. A setenta metros, uma mancha branca e horizontal, adornada de fosforescência, cresceu na escuridão. Acompanhava-a o suave rufar do mar de encontro às rochas.

Ao contornar a extremidade da ilha, com o pequeno veleiro protegido da luz do farol pela encosta do vulcão, Pitt se sentiu como um presidiário dos velhos filmes, tentando pular um muro varrido pelos holofotes dos carcereiros. Curiosamente, todos passaram a cochichar como se, apesar do rumor das vagas, pudessem ser ouvidos.

A que distância estamos da enseada? — ele perguntou a Maeve.

Acho que a um quilômetro do farol — respondeu ela, sem se voltar.

O barco tinha desviado consideravelmente depois de virar de leste para norte, ao longo da costa; ante a dificuldade para manter um curso estável, Pitt fez um sinal para que Giordino ligasse o motor. Os três corações dispararam subitamente quando o italiano puxou a corda dez, vinte, trinta vezes sem sucesso. Parou, massageou o braço cansado, olhou ameaçadoramente para o antigo motor de popa e se pôs a falar com ele:

Se você não pegar agora, eu vou espedaçá-lo e jogá-lo no mar peça por peça. — Então, segurando a corda com firmeza, puxou com toda força. O motor tossiu, roncou, o exaustor bufou alguns segundos, e finalmente começou a funcionar, com um rosnado constante. O italiano enxugou o suor do rosto e abriu um sorriso de satisfação. — Mais uma manifestação da lei de Giordino — disse, tomando fôlego. — No fundo, todos os motores têm medo de banho de mar.

Agora que o amigo pilotava a embarcação com o motor de popa, Pitt arriou as velas e foi buscar o papagaio na cabine. Habilmente, desenrolou um rolo de corda fina que estava no convés. Depois, amarrou nela, pouco abaixo do lugar onde estava atada a pipa, uma fateixa encontrada no acampamento de York. Então, sentou-se e aguardou, sabendo, no íntimo, que seu plano tinha uma única chance de dar certo e muitas de fracassar.

Passar a bombordo — avisou Maeve, apontando para a esquerda. — Há pedras uns cinqüenta metros a nossa frente.

Passando a bombordo — confirmou Giordino, puxando a cana do leme e aproando num ângulo de vinte graus na direção da praia. E, até colocar o barco em segurança, ficou de olho na água branca que rodopiava em torno de várias rochas negras que emergiam.

Viu alguma coisa, Maeve? — perguntou Pitt.

Não tenho certeza. Nunca tentei localizar essa droga de enseada no escuro.

Pitt examinou as ondas. Estavam se tornando mais verticais e mais próximas umas das outras.

Está ficando raso. Mais uns trinta metros e teremos de virar para o mar aberto.

Não, não — disse Maeve com entusiasmo na voz. — Acho que estou vendo uma fenda nos rochedos. Tenho certeza. E a enseada que leva à praia maior.

A que distância?

A sessenta ou setenta metros — ela respondeu, colocando-se de joelhos e apontando para os penhascos.

Então Pitt a viu também. Uma abertura vertical na face das paliçadas, que mergulhava na escuridão onde o luar não chegava. Umedeceu o dedo e testou o vento. Continuava constante, vindo do leste.

Dez minutos — rogou consigo mesmo. — Só preciso de dez mi­nutos. — Voltou-se para Giordino. — Al, você consegue nos manter numa posição estável a uns trinta metros da entrada?

Vai ser difícil, por causa das ondas.

Faça o possível. — Olhou para Maeve. — Pegue o leme e rume diretamente para os vagalhões. Combine seus esforços com os de Al para evitar que o barco gire de costado.

Pitt desdobrou o papagaio improvisado. Estendida, a superfície me­dia quase dois metros e meio de altura. Ele o segurou sobre a lateral do barco, satisfeito ao vê-lo saltar-lhe das mãos quando a brisa soprou em sua superfície curva. Deu linha, e a pipa foi subindo, mergulhando no céu da madrugada.

Maeve percebeu subitamente a genialidade do plano.

O gancho! — exclamou. — Você está tentando erguê-lo com o papagaio até prendê-lo no alto dos penhascos e usar a corda para gal­gá-los!

A idéia é essa — respondeu ele, observando a forma obscura da pipa apenas visível ao luar.

Controlando habilmente a alavanca Frente/Ré do motor de popa, Giordino executava um trabalho de mestre, mantendo a embarcação no mesmo lugar. Não falou nem tirou os olhos do mar para acompanhar as ações do amigo.

liste havia rogado por um vento constante, porém obteve mais do que isso. A brisa do mar, encontrando a resistência das altas paliçadas, desviava-se numa curva ascendente, subindo ao topo da alcantilada muralha. O enorme papagaio puxou, e a corda quase lhe escapou das mãos. Ele usava uma das mangas de seu surrado blusão de couro como luva protetora, para evitar que o fio lhe cortasse as mãos. O empuxo quase lhe destrancou os braços, obrigando-o a cerrar os dentes e a segurar com firmeza. Estava com o pensamento acossado por mil possibilidades nefastas. Tudo podia frustrar-lhe os planos: uma brusca mu­dança na direção do vento, que esmagasse a pipa nas rochas; a perda do controle do barco por parte de Giordino, sob o ímpeto das ondas; a fateixa não se prendendo ao rochedo; uma patrulha que aparecesse na hora errada e os descobrisse...

Repelindo toda idéia de fracasso, tratou de apurar ao máximo os sentidos. Na escuridão da noite, apesar da ajuda do luar, não tinha como julgar com precisão se a fateixa havia chegado acima da borda do penhasco. Sentiu, por baixo do couro do blusão, o nó que tinha feito para marcar quando a corda tivesse se alçado a cem metros. Cal­culou grosseiramente vinte metros a mais antes de soltá-la. Livre da resistência ao vento, a pipa começou a ziguezaguear e a cair.

Pitt experimentou um grande alívio no espírito e no corpo ao dar uma série de puxões na corda e senti-la presa. A fateixa tinha cravado os ganchos na pedra à primeira tentativa e estava firmemente presa.

Aproxime mais o barco, Al. Já temos como subir.

O italiano estava esperando aquela ordem. Sua luta por manter a embarcação numa posição fixa, apesar das constantes arremetidas das ondas, era um modelo de destreza e sensibilidade. Com alegria, em­purrou a alavanca do motor para a posição Frente, aumentou a acele­ração e conduziu o Linda Maeve, por entre as rochas, até a entrada da fenda que se abria na base do penhasco.

Maeve retornou à proa, a observar o mar, guiando Giordino pelas águas negras que se mostravam mais serenas à medida que eles pene­travam a enseada.

Olhem a praia! — exclamou. — Estão vendo aquela faixa de areia a uns quinze metros, a estibordo?

Um minuto depois, a proa tocou a areia macia. Pitt olhou para Maeve.

As colinas encobriam a luz do luar, de modo que suas feições eram pouco visíveis.

Você está em casa.

Ela ergueu a cabeça e olhou entre os rochedos, para a estreita nesga de céu estrelado que parecia a anos-luz de distância.

Não, Dirk, ainda não.

Pitt não tinha soltado a corda com a fateixa presa no alto do rochedo. Depois de colocar o blusão de couro nos ombros de Maeve, deu um forte puxão na corda.

Vamos sair daqui antes que passe uma patrulha.

É melhor eu subir primeiro — disse Giordino. — Sou o mais forte.

Quanto a isso não há dúvida — sorriu Pitt. — De todo modo, acho que seria a sua vez.

Ah, sim, claro — lembrou-se o italiano. — Preciso compensar aquela ocasião em que eu fiquei impotente feito uma lesma, quando um terrorista cortou a sua corda de segurança enquanto você nadava naquela depressão nos Andes...

Tive de subir usando um par de chaves de fenda.

Conte-me essa história outra vez — pediu Giordino com sarcasmo. — Nunca me canso de ouvi-la.

Mais tarde. Fique de olho na patrulha.

O italiano fez que sim e, segurando a corda fina, deu-lhe um violento puxão, para testar sua imobilidade.

Essa coisa agüenta o meu peso?

Pitt deu de ombros.

Tomara que sim.

Giordino olhou feio para ele e começou a subir pela parede quase perpendicular do rochedo. Não tardou a desaparecer na escuridão; Pitt, por sua vez, ficou segurando a extremidade da corda para mantê-la tesa.

Procure umas rochas salientes e amarre o barco pela proa e pela popa — ordenou a Maeve. — Se as coisas não derem certo, vamos precisar do Linda Maeve para dar o fora.

Ela o fitou, intrigada.

De que outra maneira você esperava escapar?

Eu sou meio preguiçoso. Tenho esperança de conseguir roubar um dos iates de seu pai, ou talvez um avião.

Acaso você tem algum exército no qual eu ainda não reparei?

— Está olhando para a metade dele.

A conversa cessou quando eles contemplaram a escuridão, especu­lando sobre os progressos de Giordino. O único sinal de seus movi­mentos eram as vibrações na corda.

Passados trinta minutos, ele parou para tomar fôlego. Sentia dores nos braços, como se mil demônios o estivessem espicaçando. A subida tinha sido bastante rápida, considerando a irregularidade das rochas. Teria sido impossível subir sem a corda. Mesmo com ferramentas ade­quadas ao alpinismo, tendo de avançar no escuro, metro a metro, ta­teando em busca de apoio, cravando estacas e prendendo as cordas, a escalada teria durado umas seis horas. Ele descansou um único minuto e recomeçou a penosa ascensão. Embora cansado, continuou subindo, contornando saliências, aproveitando-se de outras. Estava com a palma das mãos esfolada de tanto segurar a fina corda de náilon conservada por Rodney York, de tanto seguir galgando. Uma corda que mal sus­tentava a sua corpulência, mas que não podia ser mais grossa, pois tinha de erguer a fateixa e enganchá-la no cume do rochedo. Se fosse um pouco mais pesada, o esforço teria sido inútil.

Deteve-se para olhar para a sombria borda do cume projetada contra o firmamento. Cinco metros, calculou, cinco metros para chegar. Estava respirando com dificuldade, o peito e os braços machucados no atrito com as pedras invisíveis na escuridão. Sua força colossal estava a ponto de esgotar-se. Os últimos metros teriam de ser escalados unicamente por conta de sua força de vontade, indestrutível e sólida como a rocha que escalava. E ele seguiu em frente. Recusava-se a deter-se novamente enquanto fosse capaz de prosseguir. Então, de súbito, o chão do topo da colina abriu-se ante seus olhos, estendendo-se horizontalmente. Bas­tava um último esforço, subir e deixar-se cair, ouvindo as batidas do coração, o dilatar-se dos pulmões, a sugar e expelir o ar com avidez de moribundo.

Nos três minutos seguintes, ele ficou estendido e imóvel, fruindo o prazer de haver realizado o último e doloroso esforço.

Olhando ao redor, descobriu que estava deitado num caminho que chegava até a beira do precipício. Poucos metros mais adiante, erguia-se um hostil aglomerado de árvores e arbustos. Não vendo sinal de luz ou movimento, examinou a corda e constatou que a fateixa estava bem presa a uma saliência da pedra. Era incrível, mas idéia maluca de Pitt tinha dado certo. Satisfeito, colocou-se de pé. Desamarrou o papagaio e o ocultou na vegetação perto do caminho; depois, voltou à beira do precipício e puxou duas vezes a corda, cujas ondulações desapareceram na escuridão.

Lá embaixo, Pitt se voltou para Maeve:

É a sua vez.

Acho que não vou conseguir — disse ela, nervosa. — Tenho medo de altura.

Ele fez um laço, passou-o pelos ombros dela e o prendeu em sua cintura.

Segure firme na corda, incline o corpo, afastando-se do rochedo, e procure subir como que caminhando encosta acima. Al vai puxá-la lá do alto.

Pela pressão na cintura, Maeve sentiu que começava a subir. Fe­chando os olhos, começou á andar como lagartixa na face vertical do rochedo.

Lá no alto, com os braços muito entorpecidos para erguer Maeve com as próprias mãos, Giordino acabava de descobrir uma reentrância lisa na pedra, que não danificaria nem cortaria as fibras de náilon. Ali inseriu a corda, passou-a por cima do ombro e, inclinando o corpo para a frente, avançou tropegamente pelo caminho, puxando o peso de Maeve.

Ela não demorou doze minutos para aparecer na borda, os olhos firmemente fechados.

Bem-vinda ao cume do Evereste — saudou-a o italiano com um sorriso.

Graças a Deus que cheguei! — gemeu ela agradecida, abrindo os olhos pela primeira vez desde que começara a subir. — Duvido que consiga fazer isso novamente.

Giordino a desamarrou.

Fique vigiando enquanto eu ajudo Dirk. As colinas ao norte são bem visíveis, mas o caminho, no sul, fica encoberto por um aglomerado de rochas a uns cinqüenta metros daqui.

Eu sei — disse Maeve. — Elas têm o interior côncavo e uma espécie de parapeito natural. Deirdre e eu costumávamos brincar ali e fazer de conta que éramos rainhas. Chama-se o Castelo. Há um pequeno lugar de descanso com um telefone para os guardas.

Temos de trazer Dirk para cá antes que passe a próxima patrulha — disse Giordino, descendo cuidadosamente a corda.

Pitt teve a impressão de haver sido içado ao cume do penhasco no tempo que se demora para fritar um ovo. Porém, menos de dez metros antes de chegar à borda, sua ascensão se deteve bruscamente. Nenhuma palavra de aviso ou encorajamento, nada mais que o silêncio. Só podia significar uma coisa: a sorte os abandonara, uma patrulha devia estar se aproximando. Sem poder ver o que estava acontecendo lá em cima, pressionou o corpo na pequena greta, rígido e imóvel, tentando escutar os ruídos da noite.

Ao ver uma luz sair de trás da parede do Castelo, Maeve avisou Giordino imediatamente. Este tratou de enrolar depressa a corda num tronco, para manter a tensão, de modo que Pitt não fosse jogado de volta à praia; espalhou terra e folhas secas sobre a parte visível da corda, mas não teve tempo de esconder a fateixa.

E Dirk? — cochichou Maeve, nervosa. — Pode não imaginar o que está acontecendo e nos chamar.

Ele compreenderá que algo está errado e ficará quietinho feito um camundongo — respondeu Giordino, enquanto a empurrava para trás de uma moita junto ao caminho. — Esconda-se aí e não se mexa enquanto os guardas não tiverem ido embora.

O facho solitário de luz crescia inexoravelmente. Tendo percorrido cem vezes aquele circuito nos últimos quatro meses, sem ver nada de extraordinário, os dois homens deviam estar relaxados e distraídos. A inação rotineira levava ao tédio e à indiferença. Eles deviam ter passado, vendo simplesmente as rochas de sempre, as mesmas curvas no cami­nho, ouvindo o mesmo ruído abafado das ondas a quebrar nas pedras lá embaixo. Mas aqueles homens eram muito bem treinados e muito bem pagos. Entediados sim, mas não letárgicos.

Giordino sentiu o coração disparar ao ver que os guardas iam exa­minando cada centímetro do caminho. Afinal, ele não podia saber que Dorsett oferecia um prêmio de vinte e cinco mil dólares pela mão decepada de qualquer ladrão de diamante apanhado. O que era feito do resto do corpo não se sabia, e muito menos se discutia. Aqueles homens levavam seu trabalho a sério. Notaram algo e detiveram-se bem diante de Maeve e Giordino.

Ei, ali há uma coisa que a outra patrulha não viu ou que não estava aqui há uma hora.

Que está vendo? — perguntou o outro.

Parece um gancho de barco. — O primeiro guarda se ajoelhou e afastou a apressada camuflagem. — Ora, ora, está preso a um corda que desce pelo rochedo.

É a primeira tentativa de entrar na ilha pelo rochedo depois da­quele grupo de contrabandistas canadenses que pegamos há três anos.

Com medo de se aproximar demais da beira do abismo, o guarda apontou a lanterna para a face do penhasco, mas nada viu. Seu colega sacou uma faca, disposto a cortar a corda.

Quem estiver lá embaixo, esperando para subir, vai ficar muito decepcionado.

Maeve engoliu em seco quando Giordino saiu de trás da moita.

Porra, será que vocês não têm nada melhor a fazer do que ficar passeando por aí de madrugada?

O primeiro guarda ficou paralisado, a mão que empunhava a faca erguida no ar. O segundo se voltou e apontou para o italiano o fuzil de assalto Bushmaster M-16.

Fique onde está. Do contrário eu atiro.

Giordino obedeceu, mas retesou os músculos da perna, pronto para saltar. O medo o invadiu ao pensar que, em questão de segundos, Pitt podia estar se precipitando nas pedras lá embaixo. Porém o guarda ficou pálido e baixou a arma. Seu colega olhou para ele.

Que há com você?

Calou-se de repente ao ver uma mulher entrar no facho de luz da lanterna. Sua expressão não era de medo e sim de raiva.

Baixem essas armas, seus idiotas, e comportem-se como foram treinados! — ela gritou.

O guarda apontou a lanterna para Maeve. Passou um momento pa­ralisado pela surpresa, olhando atentamente para o seu rosto. Por fim murmurou:

Senhorita Dorsett?

Fletcher — corrigiu ela. — Maeve Fletcher.

Eu... Disseram-me que a senhora tinha morrido afogada.

Estou com cara de quem morreu no mar? — Com a blusa e o short rasgados, Maeve não tinha certeza do efeito de sua aparência sobre os guardas. Mas sabia, sem dúvida, que não parecia a filha de um miliardário rei do diamante.

Posso lhe perguntar o que está fazendo aqui a esta hora da ma­drugada? — perguntou o guarda, educadamente mas com firmeza.

Meu amigo e eu resolvemos dar uma volta.

O segurança com a faca não acreditou.

A senhora me desculpe — disse, segurando a corda com a mão livre, pronto para cortá-la com a outra —, mas alguma coisa aqui está muito esquisita.

Maeve se aproximou e o esbofeteou de pronto. A surpreendente manifestação de autoridade fez hesitar ambos os guardas. Com a rapidez de uma serpente ao dar o bote, Giordino atacou o segurança mais pró­ximo, arrebatando-lhe o fuzil e arremetendo com a cabeça em seu es­tômago. O homem dobrou o corpo numa violenta convulsão e caiu de costas. Perdendo o equilíbrio, o italiano tropeçou nele. No mesmo ins­tante, Maeve avançou contra o segurança que ia cortar a corda de Pitt, mas ele desferiu uma forte bofetada com o dorso da mão, que a atingiu na lateral da cabeça e a deteve. A seguir, deixando cair a faca, pegou o fuzil e, com o dedo no gatilho, apontou-o para o peito de Giordino.

Este compreendeu que era um homem morto. Caído sobre o outro segurança, não tinha tempo para defender-se. Era impossível fazer al­gum movimento antes que ele disparasse. Não lhe restava senão enri­jecer o corpo e esperar o impacto da bala.

Mas não se ouviu nenhum disparo, nenhum projétil lhe rasgou a carne.

Sem que ninguém notasse, uma mão segurando uma arma assomou na beira do precipício e arrancou o fuzil das mãos do guarda. E, antes que tivesse tempo de respirar, este foi jogado no espaço. Seu derradeiro grito de pavor ecoou no escuro vazio. Depois, ficou abafado e silenciou como se coberto por uma mortalha.

Então, iluminada pela lanterna caída, a cabeça de Pitt apareceu na borda do rochedo. Seus olhos brilharam no clarão da luz e um leve sorriso passou por seus lábios.

— Acho que esse cara não vai nos dar mais trabalho.

 

Maeve abraçou Pitt.

Você não podia ter chegado em momento mais oportuno.

Por que não usou essa sua pistolinha? — perguntou Giordino.

Pitt tirou a minúscula arma do bolso de trás e a segurou na palma da mão.

Como o guarda com a lanterna não me viu escondido na fenda da rocha, esperei um minuto e, então, tratei de subir sozinho até o cume para ver o que estava acontecendo. Quando vi que você ia levar um tiro, não tive tempo para sacar a pistola e mirar. Então, fiz a única coisa que podia fazer.

Ainda bem que foi assim — disse Maeve ao italiano. — Do con­trário você não estaria vivo para contar a história.

Giordino não bancou o sentimental.

Na próxima oportunidade, eu me livro desse lixo. — Olhou pra o chão, onde o guarda continuava encolhido em posição fetal, segurando o abdômen. Pegou o M-16 e examinou o pente de balas. — Bela aquisição para o nosso arsenal.

Que faremos com ele? — indagou Maeve. — Vamos jogá-lo ao mar?

Não seja tão radical — respondeu Pitt. Instintivamente, olhou em ambas as direções do caminho que passava pelos penhascos. — Ele não pode nos fazer mal agora. É melhor amordaçá-lo, amarrá-lo e deixar que seus amigos o encontrem.

A próxima patrulha só vai aparecer daqui a uns cinqüenta minutos — disse Giordino, puxando rapidamente a corda de náilon ainda presa na borda do precipício. — Isso nos dá uma boa vantagem.

Minutos depois, o segurança, com os olhos arregalados de medo, vestindo unicamente a cueca, estava pendurado no ar pela fateixa, dez metros abaixo da borda do rochedo. A corda de náilon estava firme­mente enrolada em seu corpo, feito um casulo.

Com Maeve a guiá-los, seguiram pela trilha. Giordino se armara da pequena pistola, enquanto Pitt, com a farda do guarda, levava o Bush­master M-16. Já não se sentiam expostos e desamparados. Era irracional, pensou Pitt, pois devia haver outros seguranças vigiando as minas e a praia. E esse não era o pior problema. Agora que não podiam retornar ao Linda Maeve, teriam de procurar outro meio de transporte, um plano que Pitt sempre trouxera consigo, muito embora não tivesse a menor idéia de como executá-lo. Em todo caso, não era a preocupação prio­ritária no momento. O que importava, antes de mais nada, era achar os filhos de Maeve e tirá-los das mãos do avô maluco.

Tinham percorrido cerca de quinhentos metros quando ela ergueu a mão e apontou para a vegetação densa.

Vamos atravessar a ilha por aqui. Há uma estrada a trinta metros de onde nos encontramos. Se tomarmos cuidado e não formos vistos, podemos acompanhá-la até o alojamento central dos empregados da Dorsett.

Onde estamos, em relação aos vulcões que dominam cada extre­midade da ilha? — quis saber Pitt.

Estamos a meio caminho entre eles e a lagoa.

Onde você acha que seus filhos devem estar?

Quem me dera saber! — respondeu ela com voz distante. — Pri­meiro, pensei na mansão, mas não é impossível que meu pai os tenha deixado sob vigilância no prédio da segurança. Ou, pior, eles podem estar com Jack Ferguson.

Não dá para ficar andando por aí feito turistas à procura de um restaurante.

Também acho — concordou Giordino. — A melhor coisa é en­contrar alguém com autoridade, que possa nos dar as respostas, e lhe torcer o braço.

Pitt alisou a jaqueta da farda roubada.

Se ele estiver na ilha, acho que sei exatamente quem é esse cara.

Vinte minutos depois, seguindo por uma estrada tortuosa que atra­vessava a ilha, eles se aproximaram do complexo que abrigava os en­genheiros e os guardas. Mantendo-se escondidos em meio à vegetação, observaram o campo vigiado dos operários chineses. Luzes fortes ilu­minavam os barracões e os pátios, rodeados por uma alta cerca eletri­ficada, por sobre a qual passavam várias fileiras de arame farpado. A área estava tão fortemente protegida por sistemas eletrônicos de vigi­lância que não eram necessários guardas circulando no perímetro.

Cem metros mais adiante, Maeve se deteve e, com um gesto, mandou Giordino e Pitt se esconder atrás de algumas moitas baixas que orlavam um caminho pavimentado de concreto. De um lado, ele terminava numa entrada de automóveis que passava pelo enorme portão em arco da residência da família Dorsett. A curta distância, na direção oposta, o caminho se bifurcava. Uma larga avenida descia a ladeira para o porto, no centro da lagoa, onde as docas e os armazéns tinham aparência sinistra sob a luz amarelada das lâmpadas de mercúrio. Pitt tomou um minuto extra para examinar um enorme barco amarrado junto ao cais. Mesmo àquela distância, não havia dúvida, tratava-se do iate de Dorsett. Ficou particularmente satisfeito ao ver um helicóptero pousado no convés superior.

A ilha tem uma pista de pouso? — perguntou a Maeve.

Ela sacudiu a cabeça.

Papai se recusou a construir uma; prefere que todo transporte se faça por mar. Usa o helicóptero para ir e voltar do continente australiano. Por que quer saber?

Estou raciocinando por eliminação. Nosso meio de transporte para sair daqui se encontra lá, no iate.

Ah, espertinho, você estava o tempo todo com isso em mente.

Eu fui simplesmente arrebatado por uma orgia de inspiração — disse Pitt com um sorriso. — Quantos homens vigiam o iate?

Só um, que controla o sistema de segurança do porto.

E os tripulantes?

Quando o barco está ancorado na ilha, papai exige que a tripulação permaneça nos alojamentos.

Pitt reparou que a outra bifurcação da estrada fazia uma curva na direção do complexo principal. Dentro dos vulcões, as minas eram pura atividade, mas a região central da Dorsett Consolidated Mining estava deserta. O cais onde se achava o iate dava a impressão de estar total­mente ermo, sob as luzes instaladas num armazém próximo. Todos pareciam na cama, dormindo, o que não se podia considerar extraor­dinário às quatro horas da manhã.

Mostre-me o alojamento principal da segurança — pediu Pitt a Maeve.

Os engenheiros e os empregados de meu pai moram no aglome­rado de construções próximo da lagoa. A casa que você quer fica na esquina sul do complexo da segurança. As paredes são pintadas de cinza.

Compreendo. — Pitt enxugou o suor da testa com a manga da jaqueta. — Há outro modo de chegar lá sem ser a estrada?

Há um caminho nos fundos.

Vamos embora. Falta pouco para amanhecer.

Ficaram na sombra atrás da vegetação que orlava a estrada e as árvores caprichosamente enfileiradas a ambos os lados do pavimento. Havia altos postes de iluminação a cada cinqüenta metros, como nas ruas de qualquer cidade. A não ser pelo suave crepitar do mato e das folhas secas sob seus pés, os três avançaram sem fazer barulho rumo à casa cinzenta na esquina do complexo.

Ao chegar a um aglomerado de arbustos perto da porta dos fundos, Pitt cochichou ao ouvido de Maeve:

Você já esteve lá dentro?

Só uma ou duas vezes, quando menina. Papai às vezes me pedia para levar um recado ao chefe da segurança daquele tempo — respon­deu ela num sussurro.

Sabe se a casa tem um sistema de alarme que detecta intrusos?

Maeve sacudiu a cabeça.

Não consigo imaginar quem haveria de querer invadir o prédio da segurança.

Alguém dorme lá?

Eles ficam alojados em diferentes complexos.

Então vamos entrar pela porta dos fundos.

Tomara que topemos com uma cozinha — murmurou Giordino. — Não gosto de ficar me esgueirando no escuro com o estômago vazio.

A geladeira é sua.

Pitt saiu das sombras, aproximou-se furtivamente da porta dos fun­dos e espiou por uma janela. O interior só estava iluminado pela débil luz de uma lâmpada, no corredor que terminava numa escada para o primeiro andar. Estendeu a mão e girou lentamente a maçaneta. A lingüeta se deslocou com um clique apenas audível. Respirando fundo, ele empurrou um pouco a porta e, vendo-a girar nas dobradiças sem rangido, abriu-a completamente e entrou num pequeno hall que dava para uma cozinha também pequena. Pitt a atravessou e, em silêncio, fechou a porta corrediça que se abria para o corredor. Acendeu a luz. A um sinal seu, Maeve e Giordino reuniram-se a ele.

Oh, graças a Deus — murmurou o italiano em êxtase ao ver a cozinha bem decorada, em cujas prateleiras viam-se utensílios caros, dignos de um chef.

Ar quente — sussurrou Maeve alegremente. — Há semanas que não sinto um pouco de ar quente.

Já estou pronto para provar o presunto e os ovos — sorriu o italiano.

Primeiro o mais importante — disse Pitt.

Tornando a apagar a luz, abriu a porta do corredor, empunhou o fuzil de assalto e passou. Inclinou a cabeça para escutar: ouviu apenas o zumbido do aparelho de calefação. Colando o corpo à parede, avançou pelo corredor pouco iluminado e, com o máximo cuidado para evitar que os degraus rangessem, começou a subir a escada atapetada.

Lá em cima, encontrou duas portas fechadas, uma em frente à outra. Experimentou a da direita. Tratava-se de um escritório particular, com computador, telefones e arquivos. A escrivaninha estava incrivelmente em ordem, não se via nada fora do lugar, exatamente como a cozinha. Pitt sorriu. Esperava menos do morador. Seguro agora, foi para a porta da esquerda, abriu-a com um pontapé e acendeu a luz.

Uma bela asiática que não passava dos dezoito anos, com longos cabelos sedosos espalhados no lençol, fitou com os olhos arregalados de medo o homem armado que acabava de irromper no quarto. Abriu a boca para gritar, mas não emitiu senão um gemido.

O sujeito que se achava na cama com ela era um velho conhecido. Estava deitado de lado, os olhos fechados, e não fez menção de voltar-se e olhar para Pitt. Este não teria notado o levíssimo movimento não fosse a aparente indiferença do homem. Apertou o gatilho de leve, mandando duas rápidas balas para o travesseiro. Abafados pelo silenciador, os tiros foram dois pequenos estalidos. Só então o homem na cama ergueu o corpo e olhou para a mão, que sangrava com a palma perfurada.

A moça gritou, mas nenhum dos dois pareceu importar-se. Espera­ram pacientemente que ela silenciasse.

Bom dia, chefe — disse Pitt alegremente. — Desculpe o incômodo.

Ainda ofuscado pela luz, John Merchant olhou para o intruso.

Meus guardas devem ter ouvido os gritos e virão correndo para cá — disse ele calmamente.

Duvido. Conhecendo-o como o conheço, sou capaz de apostar que gritos de mulher em seu quarto são considerados coisa rotineira pela vizinhança.

Quem é você? O que quer?

Já se esqueceu de mim? Que ingrato!

Merchant piscou, forçou a vista e então, reconhecendo-o, ficou bo­quiaberto.

—• Você não pode... Você não pode ser... Dirk Pitt!

Nesse momento, Maeve e Giordino entraram no quarto. Detiveram-se atrás de Pitt e ali ficaram sem nada dizer, olhando para os dois na cama, para o drama que se encenava.

Só pode ser um pesadelo — balbuciou Merchant.

Você sangra quando está sonhando? — perguntou Pitt, enfiando a mão embaixo do travesseiro, apoderando-se da pistola automática nove milímetros que o chefe da segurança tinha tentado pegar e jogando-a para Giordino.

Achou que o homenzinho desagradável acabaria aceitando a situa­ção; todavia Merchant estava assombrado demais ante os fantasmas das três pessoas que supunha mortas.

Eu os vi com meus próprios olhos abandonados no mar pouco antes do tufão — disse com voz trêmula. — Como podem ter sobre­vivido?

Fomos engolidos por uma baleia — disse Giordino, enquanto fechava as cortinas. — Não lhe fizemos bem ao estômago, e você pode imaginar o que aconteceu.

Vocês enlouqueceram. Entreguem as armas. Não sairão vivos da ilha.

Pitt apontou o fuzil para a testa de Merchant.

A única coisa que eu quero saber de você é o paradeiro dos filhos da senhorita Fletcher. Onde eles estão?

Os olhos de Merchant brilharam com um ar de desafio.

Não vou lhes dizer nada.

Então vai morrer — disse Pitt friamente.

Estranhas palavras na boca de um engenheiro naval e oceanógrafo, um homem que põe mulheres e crianças num pedestal e que é tão respeitado por sua palavra e sua integridade.

Você fez a lição de casa direitinho.

Você não vai me matar — disse Merchant, readquirindo o controle das emoções. — Não é um assassino profissional. Não tem estômago para isso.

Pitt deu de ombros.

Desconfio que um de seus guardas, o que eu joguei do alto do penhasco há cerca de meia hora, não concordaria com você.

Merchant olhou impassível para Pitt, sem saber se devia ou não acreditar nele.

Não sei o que o senhor Dorsett fez com os netos.

Pitt deslocou o fuzil da testa para o joelho de Merchant.

Maeve, conte até três.

Um — começou ela calmamente. — Dois... três.

Pitt puxou o gatilho, e um projétil esmigalhou a rótula de Merchant. A amante começou a gritar, mas Giordino lhe tapou a boca com a mão.

Será que você pode ficar quieta? Precisamos de um pouco de sossego.

Merchant se transformou por completo. Toda a malignidade daquele homenzinho repulsivo foi subitamente substituída por uma expressão de dor e de medo. Com a boca retorcida, disse, horrorizado:

Meu joelho! Você acabou com o meu joelho!

Pitt encostou o cano da arma no cotovelo de Merchant.

Estou com pressa. Se não quiser ficar com dois aleijões, sugiro que fale. E trate de dizer a verdade, do contrário vai ter muita dificul­dade para escovar os dentes daqui por diante.

— Os filhos da senhorita Fletcher trabalham nas minas com os outros operários. Ficam com os outros, no campo vigiado.

Pitt se voltou para Maeve.

Que você acha?

Ela fitou Merchant nos olhos, o rosto marcado pela emoção.

É mentira. Jack Ferguson, o capataz de meu pai, está com os meninos. Ele não os perderia de vista.

Onde esse cara mora? — perguntou Giordino.

Numa casa de hóspedes perto da mansão, para poder atender prontamente os chamados de meu pai.

Pitt sorriu friamente para Merchant.

Que pena, John, a resposta estava errada. Isto vai lhe custar o cotovelo.

Não, por favor, não! — murmurou Merchant com os dentes cer­rados de dor. — Você ganhou. Os gêmeos ficam no alojamento de Ferguson quando não estão trabalhando nas minas.

Maeve avançou uns passos e colocou-se diante de Merchant. Estava agitada e amargurada com o sofrimento que seus filhos eram obrigados a suportar. Dominada pela raiva, esbofeteou-o várias vezes.

Dois meninos de seis anos obrigados a trabalhar nas minas! Você não passa de um monstro, de um sádico!

Giordino tomou-a delicadamente pela cintura e a levou de volta ao centro do quarto. Ela começou a chorar.

No rosto de Pitt refletiam-se pena e raiva. Aproximando o cano da arma do olho esquerdo de Merchant, disse:

Mais uma pergunta, meu caro John. Onde dorme o piloto do helicóptero?

Ele quebrou o braço, está na clínica da mina — respondeu Mer­chant com mau humor. — Nem pense em obrigá-lo a levá-los embora da ilha.

Pitt acenou com a cabeça e sorriu significativamente para Giordino.

E eu preciso dele? — Olhou a sua volta e apontou para o armário.

Vamos deixá-los lá dentro.

Pretende matar-nos? — perguntou Merchant lentamente.

Vontade não me falta. Mas, para economizar balas, você e sua amiguinha vão ficar trancados no armário. Amarrados e amordaçados, claro.

O medo de Merchant ficou evidente pelo tique no canto da boca.

Vamos morrer asfixiados lá dentro.

Se preferir, posso dar um tiro na cabeça de cada um agora mesmo. A escolha é sua.

Merchant não disse mais nada nem ofereceu resistência quando, jun­tamente com a moça, foi amarrado com a roupa de cama rasgada em tiras e brutalmente jogado dentro do armário. Giordino colocou a me­tade dos móveis do quarto diante da porta, a fim de impedi-los de empurrá-la por dentro.

Já sabemos o que queríamos saber — disse Pitt. — Vamos para a mansão.

Você disse que eu podia assaltar a geladeira — protestou o italiano.

Meu estômago está roncando.

Agora não há tempo. Deixe para comer mais tarde. Giordino sacudiu a cabeça, contrariado, e enfiou na cinta a pistola

automática nove milímetros de Merchant.

Tenho a impressão de que há uma conspiração para me fazer morrer de fome.

 

Sete horas da manhã. Céu azul, visibilidade ilimitada e um mar de ondas baixas a rolar qual demônios silenciosos a praias invisíveis, onde poderiam quebrar e morrer. Era um dia normal nas águas tropicais do Havaí, um dia quente, úmido e com uma brisa suave, geralmente cha­mada de vento alísio. Era sábado, e as praias de Waikiki, bem como o lado da ilha voltado para o vento, começavam a despertar com as primeiras aves, que se preparavam para o mergulho matinal. Em breve, seriam seguidas por milhares de habitantes locais e turistas em busca de algumas horas agradáveis nas ondas debilitadas pelos recifes.

O Glomar Explorer, com apenas um de seus enormes hélices funcio­nando em aceleração máxima, rumava firmemente para a região da convergência acústica mortal. As ondas sonoras já avançavam em gran­de velocidade, vindas de quatro fontes. Deviam estar navegando com meia hora de atraso, porém o engenheiro-chefe Toft levara sua tripu­lação além dos limites da exaustão. Ele praguejava e lutava com o motor do único hélice em funcionamento, extraindo um nó a mais de veloci­dade. Jurou levar a tempo o navio a seu encontro com o destino, e estava conseguindo.

Na ala estibordo da ponte de comando, Sandecker olhava com o binóculo para uma versão comercial do helicóptero SH-60B Sea Hawk, da Marinha, com o logotipo da ANPS, que, aproximando-se pela proa, descreveu um círculo e foi pousar no heliponto do gigantesco navio. Um minuto depois, reuniram-se a Sandecker na ponte de comando.

Como foi a coisa? — perguntou ele com ansiedade.

O dr. Sanford Adgate Ames fez um gesto afirmativo e sorriu.

Quatro grupos de instrumentos detectores de sinais acústicos re­motos foram colocados sob a superfície, nos devidos lugares, a trinta quilômetros da zona de convergência.

Nós os deixamos diretamente no caminho estimado dos canais sonoros — acrescentou Gunn, que viera com Ames.

Estão em condições de medir a aproximação final e a intensidade do som? — indagou o almirante.

Ames fez que sim.

Os dados de telemetria dos modems submarinos serão transmitidos pela conexão de satélite flutuante de superfície ao processador e ao terminal de análise aqui a bordo do Explorer. O sistema funciona como os programas de localização acústica submarina.

— Felizmente o tempo e a corrente estão do nosso lado — disse Gunn. — Em vista disso, as ondas sonoras devem se encontrar como foi previsto.

Seremos avisados com antecedência?

O som se desloca na água a uma média de mil e quinhentos metros por segundo — respondeu Ames. — Imagino que vinte segundos depois de passar pelos modems as ondas sonoras atingirão o disco re­fletor sob o navio.

Vinte segundos — repetiu Sandecker. — É muito pouco tempo para se preparar mentalmente para o desconhecido.

Como ninguém sobreviveu para descrever a verdadeira intensi­dade da convergência, minha melhor estimativa de sua duração, até que sejam totalmente desviadas para a ilha Gladiator, é de aproxima­damente quatro minutos e meio. Qualquer um a bordo que não consiga chegar ao abrigo isolado terá uma morte horrível.

Sandecker se voltou e apontou para as montanhas verdes de Oahu, a apenas quinze quilômetros de distância.

As pessoas no litoral vão sofrer algum efeito?

Devem sentir uma breve mas aguda dor de cabeça, mas não so­frerão seqüelas permanentes.

Pela janela da ponte de comando, Sandecker olhou para o grande volume de máquinas apontadas para o céu, no meio do navio." Infinitos quilômetros de cabos e mangueiras hidráulicas enfileiravam-se na pla­taforma, vindas dos guindastes e das gruas. Equipes de homens e mu­lheres, sentados ou de pé em plataformas suspensas no ar como as usadas pelos limpadores de janelas dos arranha-céus, ocupavam-se em religar o número aparentemente infinito de conexões do enorme escudo refletor. A grua gigante sustentava a moldura principal do disco, en­quanto os guindastes a sua volta erguiam a seus lugares as peças me­nores, numeradas. Graças à previsão de Rudi Gunn quanto a limpar e lubrificar os conectores, todas as peças se encaixavam rápida e facil­mente. A operação estava funcionando como um relógio. Faltava apenas instalar duas partes.

O almirante voltou o olhar para a jóia do Pacífico, distinguindo de imediato os detalhes de Diamond Head, os hotéis espalhados ao longo da praia de Waikiki, a torre Aloha, em Honolulu, as residências meio encobertas pelas nuvens que pareciam sempre pairar sobre o monte Tantalus, os jatos comerciais aterrissando no aeroporto internacional, as instalações de Pearl Harbor. Não havia espaço para erro. Se a ope­ração não se realizasse de acordo com o plano, a bela ilha se tornaria um vasto campo de extermínio.

Então, ele olhou para o homem que estudava os números digitais no sistema de navegação computadorizado do navio.

Capitão Quick?

O comandante do Glomar Explorer ergueu a vista.

Sim, almirante Sandecker?

A que distância estamos do lugar?

Quick sorriu. Era a vigésima vez que o almirante lhe fazia aquela pergunta.

A menos de quinhentos metros. Ou seja, faltam vinte minutos para que comecemos a colocar o navio exatamente nos números que o seu pessoal computou para o sistema global de posicionamento.

Quer dizer que teremos só quarenta minutos para instalar o escudo refletor?

Graças ao engenheiro Toft e sua equipe da casa das máquinas. Do contrário não teríamos chegado a tempo.

Sim — concordou Sandecker. — Nós lhe devemos muito.

Passaram-se longos minutos; todos, na casa das máquinas, estavam com um olho no relógio e outro nos números digitais vermelhos do sistema global de posicionamento, os quais finalmente se reduziram a uma fileira de zeros, indicando que o navio se encontrava exatamente no lugar onde os raios sonoros deviam convergir e explodir com ini­gualável intensidade. O projeto seguinte consistia em manter a embar­cação no lugar preciso. O capitão Quick se concentrou em programar as coordenadas no sistema de controle automático do navio, que ana­lisava as condições do mar e do tempo e controlava os equipamentos da proa e da popa. Num espaço de tempo incrivelmente curto, o Glomar Explorer conseguira estacionar e era capaz de flutuar imóvel na água, resistindo ao vento e à corrente num fator de desvio de menos de um metro.

Diversos outros sistemas entraram também em ação. As atividades eram febris. As equipes de engenheiros e técnicos, especialistas em sis­temas eletrônicos e cientistas trabalhavam simultaneamente para colocar o disco refletor exatamente no caminho das ondas acústicas. O pessoal da ANPS, em plataformas muito acima do convés, fez as últimas co­nexões e prendeu o disco da antena no gancho da grua que o desceria ao mar.

Os sistemas de engenharia a bordo do Glomar Explorer tinham sido originalmente construídos para içar objetos pesados do fundo do mar, não para descer objetos mais leves porém maiores. Os procedimentos foram apressadamente alterados para a complexa operação. Os defeitos menores foram superados com rapidez. Cada movimento era coorde­nado e executado com precisão.

O operador do guindaste foi aumentando a tensão do cabo de aço até que o escudo ficasse suspenso no ar. A equipe da ANPS deu o sinal combinado, indicando que a montagem do refletor estava com­pleta. Toda a unidade começou, então, a descer ao mar diagonalmente pela abertura retangular, com poucos centímetros de folga. A velocidade de imersão era de dez metros por minuto. Os cabos que sustentavam o disco na profundidade e no ângulo precisos para repelir as ondas sonoras e desviá-las rumo à ilha Gladiator demoraram quinze minutos para chegar a sua extensão máxima.

— Faltam seis minutos e dez segundos para a convergência — trovejou a voz do capitão Quick pelos alto-falantes do navio. — Todo o pessoal a bordo se dirigirá ao compartimento de armazenagem da casa das máquinas, no fim do navio, e lá entrará, de acordo com as instruções recebidas. Façam isso imediatamente. Eu disse imediatamente. Corram, não andem.

De súbito, todos começaram a descer as escadas e andaimes, correndo como um grupo de maratonistas na direção da sala da bomba e de propulsão, nas entranhas profundas do navio. Ali, vinte membros da tripulação já estavam ocupados em isolar do som o compartimento com todo tipo de material disponível. Toalhas, cobertores, colchões, assim como as almofadas das cadeiras de convés e tudo quanto pudesse servir a esse propósito foram colocados no teto, no chão e nos anteparos, para abafar o ruído invasor.

Quando estavam descendo às pressas pelos corredores dos conveses inferiores, Sandecker disse a Ames:

Esta é a parte mais difícil da operação.

Eu sei o que você está pensando — respondeu o cientista, descendo agilmente dois degraus a cada vez. — A ansiedade de saber se come­temos um pequeno erro de cálculo que nos colocou no lugar errado na hora errada. A frustração de não saber se deu certo caso não sobre­vivamos à convergência. Os fatores desconhecidos que atormentam a gente.

Chegaram ao depósito da casa das máquinas, que tinha sido esco­lhido para resistir à convergência por causa de suas portas impermeá­veis à água e à ausência total de condutores de ar. Dois oficiais do navio se puseram a contar as pessoas e distribuir-lhes protetores de ouvido.

Almirante Sandecker, doutor Ames, por favor, coloquem isto nos ouvidos e procurem não andar.

Sandecker e Ames encontraram os membros da ANPS reunidos a um canto do compartimento e se colocaram ao lado de Rudi Gunn e Molly Faraday, que tinham chegado pouco antes. Aglomeraram-se ime­diatamente ao redor dos sistemas de monitorização integrados aos mo­dems de alarme e a outros sensores submarinos. Só o almirante e Gunn se demoraram a pôr os amortecedores de som, para conferir os últimos segundos.

No compartimento, não tardou a dominar um estranho silêncio. Sem poder ouvir, ninguém falava. O capitão Quick se colocou em cima de um caixote, para que todos o pudessem ver. Ergueu dois dedos, indi­cando que faltavam dois minutos. O operador da grua, que tinha o caminho mais longo a percorrer, foi o último a entrar. Satisfeito porque todos no navio tinham sido contados, o capitão ordenou que se vedasse a porta. Vários colchões foram colocacios à saída para abafar o som que se infiltrasse no compartimento fechado. Quick ergueu um dedo, e a tensão começou a se formar até que passasse a pairar como uma mortalha sobre o grupo de pessoas aglomeradas, muito próximas umas das outras. Todos estavam de pé.

Gunn calculara que os noventa e seis homens e mulheres tinham menos de quinze minutos para ficar encerrados no compartimento até que se esgotasse o ar respirável e eles começassem a se asfixiar. A atmosfera já estava começando a ficar pesada. O único outro perigo imediato era a claustrofobia. Não teriam como lidar com um caso de histeria. Ele piscou para Molly, tentando encorajá-la, e começou a mo­nitorar o tempo enquanto quase todos os demais olhavam fixamente para o capitão do navio como se ele fosse o maestro de uma orquestra sinfônica.

Quick ergueu ambas as mãos e as cerrou. Tinha chegado a hora da verdade. Tudo dependia dos dados analisados pela rede de computa­dores de Hiram Yaeger. O navio estava estacionado precisamente como mandavam as instruções, o disco refletor encontrava-se na posição exata calculada por Yaeger e conferida pelo doutor Ames e sua equipe. Toda a operação tinha sido executada até os últimos detalhes. Só uma súbita e extraordinária alteração da temperatura do mar ou um fenômeno sísmico imprevisto, que alterasse sensivelmente a corrente marítima, poderia provocar um desastre. As enormes conseqüências tinham sido simplesmente eliminadas da mente da equipe da ANPS.

Decorreram cinco segundos, depois dez. Sandecker começou a sentir na nuca o espicaçar do desastre. Então, repentina e ominosamente, os sensores acústicos a trinta quilômetros de distância começaram a re­gistrar a chegada das ondas sonoras pelo caminho previsto.

— Santo Deus! — murmurou Ames. — Os sensores foram além da escala. A intensidade é maior do que eu calculei!

Temos vinte segundos — gritou Sandecker. — Ponham os pro­tetores de ouvido.

O primeiro sinal da convergência foi uma pequena ressonância cuja magnitude cresceu rapidamente. Os anteparos isolados vibraram ao mesmo tempo em que um zumbido penetrou nos protetores de ouvido. As pessoas agrupadas na sala fechada experimentaram uma leve sen­sação de desorientação e vertigem. Mas ninguém teve náuseas nem entrou em pânico. O desconforto foi suportado com estoicismo. San­decker e Ames entreolharam-se. Sentiam-se realizados nas trêmulas águas do mar.

Cinco longos minutos mais tarde, tudo havia terminado. A resso­nância desaparecera, deixando atrás de si um silêncio quase sobrena­tural.

Gunn foi o primeiro a reagir. Tirou os protetores da cabeça, agitou os braços e gritou para o capitão Quick:

A porta. Abra a porta e deixe entrar um pouco de ar.

Quick entendeu a mensagem. Os colchões foram jogados a um lado, a porta foi destravada e aberta. O ar que penetrou na sala, embora cheirando ao óleo da casa das máquinas, foi bem-vindo por todos, que, ao mesmo tempo, retiravam os protetores de ouvido. Aliviados com o fim do perigo, gritaram e riram como torcedores a comemorar a vitória de seu time favorito de futebol. Depois, lentamente e em ordem, saíram da sala de armazenagem e subiram a escada do tombadilho em busca de ar fresco.

A reação de Sandecker foi quase sobre-humana. Ele subiu, rumo à casa do leme, a uma velocidade que teria quebrado recordes. Pegou um binóculo e correu para a ponte de comando. Tomado de ansiedade, apontou as lentes para a ilha, a apenas quinze quilômetros de distância.

Os carros estavam passando pelas ruas como de costume e uma enorme multidão de banhistas caminhava tranqüilamente nas praias. Só então ele se permitiu exalar um longo suspiro de alívio junto à amurada, o corpo trêmulo de emoção.

Um formidável triunfo, almirante — disse Ames, apertando-lhe a mão. — Você provou que os maiores cientistas do país estavam equi­vocados.

Contei com a bênção dos seus conhecimentos e do seu apoio, doutor — disse Sandecker, com a sensação de que um enorme peso lhe havia sido retirado dos ombros. — Tudo o que fiz foi graças a você a sua equipe de brilhantes jovens cientistas.

Tomados de entusiasmo, Gunn e Molly foram abraçar o almirante, atitude considerada impensável em outra ocasião.

O senhor conseguiu! — disse Gunn. — Quase dois milhões de vidas foram salvas graças a sua teimosia.

Nós conseguimos — corrigiu-o Sandecker. — Do começo ao fim foi o trabalho de uma equipe.

A expressão de Gunn se tornou sombria.

Pena que Dirk não estivesse aqui para ver.

Sandecker fez que sim solenemente.

Foi ele o grande responsável por todo o projeto.

Ames examinou a série de instrumentos instalados durante a viagem.

O refletor foi posicionado com perfeição — disse, contente. — A energia acústica foi desviada exatamente como pretendíamos.

Onde está ela agora? — perguntou Molly.

Combinada com a energia das atividades de mineração das outras três ilhas, as ondas sonoras estão retornando à ilha Gladiator mais de­pressa do que um avião a jato. Sua força combinada atingirá a base submersa dentro de uns noventa e sete minutos.

Eu queria muito ver a cara dele.

De quem? — perguntou Ames inocentemente.

De Arthur Dorsett — respondeu Molly — quando sua ilha par­ticular começar a balançar e a vibrar.

 

Os dois homens e a mulher se agacharam em meio a um aglomerado de arbustos junto à grande entrada em arco aberta num muro alto, de rocha vulcânica, que cercava toda a área da residência de Dorsett. Mais adiante, um caminho de tijolos contornava um imenso e bem-cuidado relvado, passando sob a imponente estrutura da porte-cochère, que se prolongava na frente da casa e protegia as pessoas ao descer do carro. O caminho inteiro e a mansão eram iluminados por lâmpadas fortes, estrategicamente dispostas no terreno. A entrada estava bloqueada por um grosso portão de ferro que parecia ter sido tirado de um castelo medieval. Com quase cinco metros de espessura, o arco abrigava um pequeno escritório do serviço de segurança.

Não há outro lugar por onde entrar? — perguntou Pitt em voz baixa.

Não. Esta é a única entrada — cochichou Maeve.

Não existe uma manilha de escoamento ou uma ravina que passe por baixo do muro?

Não. Quando menina, eu vivia pensando em fugir de meu pai, mas nunca encontrei outra saída.

E há detectores de segurança?

Raios laser no alto do muro, com sensores térmicos infravermelhos instalados a diferentes intervalos no chão. Qualquer coisa maior que um gato faz disparar o alarme no escritório da segurança. As câmeras de televisão são acionadas automaticamente e focalizam o invasor.

Quantos guardas?

Dois à noite, quatro durante o dia.

Não há cães de guarda?

Ela sacudiu a cabeça na escuridão.

Papai detesta animais. Nunca o perdoarei por ter pisoteado um passarinho com a asa quebrada de que eu estava tratando.

O velho faz o que pode para manter uma imagem de barbaridade e malvadeza — comentou Giordino. — Ele também pratica o caniba­lismo?

É capaz de qualquer coisa, como você já deve ter reparado.

Pitt olhou pensativo para o portão, procurando observar cautelosa­mente a atividade dos guardas, que, lá dentro, mostravam-se satisfeitos, a monitorar o sistema de segurança. Por fim, levantando-se, amassou e desarrumou o uniforme antes de se voltar para Giordino.

Vou tentar enganá-los. Esperem até que o portão esteja aberto.

Colocou o fuzil no ombro e tirou o canivete suíço do bolso. Com a lâmina menor, fez um pequeno corte no polegar, espremeu-o para que sangrasse mais e espalhou sangue no rosto. Ao chegar ao portão, ajoe­lhou-se, segurou as grades com ambas as mãos e começou a gemer baixinho, como se estivesse com muita dor.

Socorro. Acudam, por favor.

Um rosto apareceu atrás da porta e logo desapareceu. Segundos mais tarde, ambos os vigilantes saíram correndo do escritório e abriram o portão. Pitt deixou-se cair em seus braços.

Que aconteceu? — perguntou um deles. — Quem lhe fez isso?

Uma gangue de chineses abriu um túnel para fugir do campo. Eu vinha vindo pela estrada do porto, e eles me atacaram pelas costas. Acho que matei dois antes de fugir.

É melhor alertar o prédio principal da segurança — gritou um dos vigilantes.

Ajude-me a entrar primeiro — gemeu Pitt. — Acho que me fra­turaram o crânio.

Os guardas o ajudaram a levantar-se, apoiaram-lhe os braços em seus próprios ombros e, meio carregado, meio arrastado, levaram-no ao escritório. Devagar, Pitt contraiu os braços até que ambos os pescoços estivessem presos em suas articulações. Quando eles se juntaram mais para passar pela porta, deu um passo convulsivo para trás, prendeu os dois vigilantes numa apertada gravata e empregou toda a força dos bíceps e dos músculos dos ombros. Ouviu-se o baque das duas cabeças em colisão. Ambos caíram inconscientes no chão, para assim ficar pelo menos nas duas horas seguintes.

Seguros de não ser detectados, Giordino e Maeve passaram correndo pelo portão aberto e se reuniram a Pitt no escritório. O italiano carregou os vigilantes como se fossem espantalhos recheados de palha e os co­locou sentados a uma mesa, diante de uma fileira de monitores de vídeo.

Quem passar pensará que pegaram no sono quando estavam as­sistindo a um filme.

Pitt examinou rapidamente o sistema de segurança e desligou os alarmes, enquanto Giordino amarrava os guardas com suas próprias gravatas e cintas. Então, Pitt se voltou para Maeve.

Onde fica o alojamento de Ferguson?

Há duas casas de hóspedes num pequeno bosque atrás da mansão. Ele mora numa delas.

Você não sabe em qual?

Ela sacudiu os ombros.

E a primeira vez que venho para cá desde que fugi para Melbourne. Se não me falha a memória, ele mora na casa mais próxima da mansão.

Chegou a hora de repetir o número da invasão — disse Pitt. — Tomara que não tenhamos perdido o jeito.

Caminharam em passo constante, sem pressa. Estavam debilitados pela dieta inadequada e por tudo quanto haviam passado nas semanas anteriores. Chegaram ao suposto alojamento de jack Ferguson, o su­perintendente das minas de Dorsett na ilha Gladiator.

Quando se aproximaram da porta da frente, o céu começava a clarear a leste. A procura estava demorando muito. Com o amanhecer, a pre­sença do trio certamente seria detectada. Tinham de agir depressa se quisessem achar os meninos, chegar ao iate e fugir no helicóptero par­ticular de Arthur Dorsett antes que se dissipasse o que restava da es­curidão.

Não seria uma entrada furtiva desta vez, nada de se esgueirar si­lenciosamente na casa. Pitt foi até a porta, arrombou-a com um ruidoso pontapé e entrou. Bastou uma rápida olhadela com a ajuda da lanterna tomada dos guardas no penhasco para que ficasse sabendo tudo que precisava saber. Ferguson morava lá, sem dúvida. Na escrivaninha ha­via um monte de cartas endereçadas a ele e uma agenda com anotações. Dentro do armário, Pitt encontrou calças de homem e paletós cuida­dosamente passados.

Ele não está — disse. — Jack Ferguson viajou. Não há nenhuma mala aqui, e a metade do guarda-roupa está vazia.

Ele não pode ter viajado — murmurou Maeve, confusa.

De acordo com as anotações na agenda, Ferguson está visitando outras minas de seu pai.

Cada vez mais desesperada, ela olhou para a sala vazia.

Meus filhos não estão aqui. Chegamos tarde demais. Oh, meu Deus, tarde demais! Eles devem ter morrido!

Pitt a tomou nos braços.

Eles estão tão vivos quanto nós dois.

Mas John Merchant...

Giordino se colocou na soleira da porta.

Nunca confie num homem com olhinhos pequenos.

E tolice perder tempo aqui — disse Pitt, passando pelo italiano. — Os meninos estão na mansão. Sempre estiveram lá.

Como você pode saber que Merchant mentiu? — desafiou-o Mae­ve.

Ele sorriu.

Ora, Merchant não mentiu. Foi você quem disse que os meninos moravam com Ferguson na casa de hóspedes. Merchant simplesmente confirmou. Imaginou que fôssemos otários o bastante para acreditar nisso. Bem, talvez tenhamos sido, mas só durante um segundo.

Você sabia?

É evidente que seu pai não tocaria em seus filhos. Pode até amea­çar, mas aposto quanto você quiser que eles estão presos no que foi o seu quarto e estiveram lá o tempo todo, com um monte de brinquedos, cortesia do vovozinho.

Maeve o fitou, confusa.

Ele não os obrigou a trabalhar nas minas?

Duvido. Dorsett explorou os seus instintos maternais, mentiu que os garotos estavam sofrendo para fazê-la sofrer. O canalha queria que você morresse acreditando que ele os escravizaria, que os deixaria nas mãos de um capataz sádico, trabalhando até a morte. Pense bem. Como Boudicca e Deirdre não têm filhos, os gêmeos são seus únicos herdeiros. Livrando-se de você, ele imaginou que poderia educá-los e moldá-los a sua imagem e semelhança. Coisa que, para você, seria pior do que a própria morte.

Maeve ficou um longo momento olhando para Pitt; sua expressão passou da incredulidade para a compreensão. Então ela estremeceu.

Como posso ter sido tão tola?

Um bom título para uma canção — disse Giordino. — Lamento interromper a conversa esclarecedora, mas parece que o pessoal lá na casa está começando a dar sinais de vida. — Apontou para as luzes que iluminavam as janelas da mansão.

Meu pai sempre acorda de madrugada — contou Maeve. — E nunca deixou que eu e minhas irmãs continuássemos dormindo depois do amanhecer.

O que eu não daria para tomar o café da manhã com eles! — resmungou Giordino.

Não quero ser repetitivo — disse Pitt —, mas temos de dar um jeito de entrar sem chamar a atenção dos moradores.

Todos os cômodos da mansão dão para as varandas interiores, com exceção de um. O escritório de papai tem uma porta lateral que dá para a quadra de squash.

Que é isso? — perguntou o italiano.

Uma quadra onde ele joga squash — respondeu Pitt. Depois, voltou-se para Maeve. — Onde fica o seu quarto?

O meu? Do outro lado do jardim, passando pela piscina, na ala leste. É a segunda porta à direita.

Então está decidido. Vocês dois tratem de ir procurar os garotos.

E você? Que vai fazer?

Vou tomar emprestado o telefone de seu pai e lhe dar uma boa despesa com um telefonema internacional.

 

A atmosfera a bordo do Glomar Explorer era de festa. Reunidos no espaçoso salão contíguo à cozinha, a equipe da ANPS e o pessoal do navio comemoravam o sucesso em repelir a praga acústica. O almirante Sandecker e o dr. Ames se achavam sentados de frente um para o outro, tomando um champanhe da reserva particular do capitão Quick para as ocasiões especiais.

Depois de alguma reflexão, decidiu-se retirar a antena/refletor da água e desmontá-la, caso as desastrosas atividades mineiras da Dorsett Consolidated não fossem detidas e se tornasse essencial interceptar ou­tra convergência acústica a fim de salvar vidas. O disco refletor foi içado e, uma hora depois, o histórico navio iniciava sua viagem de volta à Molokai.

Sandecker se levantou ao ser informado pelo oficial de comunicações do navio que havia um importante telefonema de seu geólogo-chefe, Charlie Bakewell. Foi para um lugar tranqüilo do salão e tirou do bolso o celular compacto.

Alô, Charlie.

Parabéns — disse Bakewell com voz clara e animada.

Foi por pouco. Mal havíamos posicionado o navio e mergulhado o refletor quando ocorreu a convergência. Onde você está agora?

No observatório vulcânico Joseph Marmon, em Auckland, Nova Zelândia. Tenho uma informação recente para você, da equipe de geo-físicos. Sua última análise do impacto dos raios sonoros na ilha Gladiator é muito animadora.

Eles conseguiram computar as repercussões?

Lamento dizer que a magnitude prevista é bem pior do que ima­ginei a princípio — respondeu Bakewell. — Acabo de saber que os dois vulcões da ilha chamam-se monte Scaggs e monte Winkleman, em homenagem a dois dos sobreviventes da jangada do Gladiator. Fa­zem parte de uma cadeia de vulcões potencialmente explosivos que cercam o oceano Pacífico, conhecida como Anel de Fogo, e ficam pró­ximos de uma placa tectônica parecida com as da falha de San Andreas, na Califórnia. A maior parte das atividades vulcânicas e dos terremotos são provocados pelo deslocamento de tais placas. Os estudos indicam que a atividade principal desses vulcões ocorreu entre 1225 e 1275, quando ambos entraram simultaneamente em erupção.

Pelo que me lembro, você disse que a probabilidade de uma erupção provocada pelo impacto da convergência era de um para cinco.

Depois de consultar os especialistas aqui no observatório, concluí que é quase certo que haja erupção.

Não posso acreditar que os raios acústicos que atravessarem a ilha tenham força para causar uma erupção vulcânica — disse Sandecker com incredulidade.

Os raios em si não — respondeu Bakewell. — Mas acontece que nós não levamos em consideração que as atividades mineiras de Dorsett tornaram os vulcões mais vulneráveis a tremores externos. Mesmo uma perturbação sísmica pequena pode suscitar atividade vulcânica nos montes Scaggs e Winckleman, pois todos esses anos de escavação re­moveram boa parte dos depósitos ancestrais, os quais continham a pres­são gasosa vinda de baixo. Em outras palavras, se Dorsett não suspender as escavações, é só uma questão de tempo para que os garimpeiros acabem "destampando" o canal principal, provocando uma explosão de lava derretida.

Uma explosão de lava derretida — repetiu Sandecker automati­camente. — Santo Deus, que foi que nós fizemos? Centenas de vidas serão sacrificadas!

Não tenha tanta pressa para confessar seus pecados — disse Ba­kewell seriamente. — Não consta que haja mulheres e crianças na ilha Gladiator. Você já livrou incontáveis famílias, em Oahu, da extinção certa. Sua atitude certamente chamará a atenção da Casa Branca e do Departamento de Estado para a ameaça. Garanto que haverá sanções e ações judiciais contra a Dorsett Consolidated Mining. Sem a sua in­tervenção, a praga acústica prosseguiria, e não sabemos que outra cidade portuária seria atingida pela próxima zona de convergência.

Mesmo assim... eu podia ter ordenado que dirigissem as ondas sonoras para um lugar inabitado — disse lentamente o almirante.

Elas podiam ter atingido mais um pesqueiro ou transatlântico. Nós concluímos juntos que essa era a medida mais segura. Sossegue, Jim, você não tem motivos para se condenar.

Você está querendo dizer que eu não tenho outra escolha senão aprender a conviver com isso.

Para quando o doutor Ames estima a chegada da onda sonora na ilha Gladiator? — indagou Bakewell, tentando distrair Sandecker do sentimento de culpa.

Ele consultou o relógio.

Faltam vinte minutos para o impacto.

Ainda há tempo. Podemos alertar os habitantes para que deixem a ilha.

Meu pessoal, em Washington, já tentou avisar a direção da Dorsett Consolidated Mining quanto ao perigo potencial — disse o almirante. — Mas, por ordem de Arthur Dorsett, todas as comunicações entre as minas e o mundo exterior foram interrompidas.

Parece até que Dorsett queria que acontecesse alguma coisa.

Ele não quer correr o menor risco de interferência antes de atingir seu objetivo.

Pode ser que não ocorra erupção alguma. Talvez a energia dos raios sonoros se dissipe antes do impacto.

Segundo os cálculos do doutor Ames, é muito difícil que isso aconteça — disse Sandecker. — Qual é o seu cenário na pior das hi­póteses?

O monte Scaggs e o monte Winkleman são descritos como vulcões arredondados, que formaram montes de ladeiras suaves em seu último período de atividade. E raro que esse tipo de vulcão seja altamente explosivo como os cônicos, mas o Scaggs e o Winkleman não são vulcões arredondados comuns. Sua última erupção foi bastante violenta. Os especialistas, aqui no observatório, prevêem explosões ao redor da base ou nos flancos dos montes, que produzirão rios de lava.

Alguém na ilha conseguiria sobreviver a tal cataclismo?

Depende do lado em que ocorrer a violência. Praticamente não há chance alguma se as erupções estiverem voltadas para o lado ha­bitado da ilha, a oeste.

E se estiverem voltadas para leste?

Neste caso, as chances de sobrevivência seriam ligeiramente su­periores, mesmo com repercussões de atividade sísmica suficientes para derrubar a maior parte ou, quem sabe, todos os prédios da ilha.

Há perigo de as erupções provocarem uma ressaca?

Nossos analistas não prevêem uma perturbação sísmica com força para provocar uma ressaca monstruosa — explicou Bakewell. — De­certo, nada com a magnitude do holocausto de Cracatoa, perto de Java, em 1883. O litoral da Tasmânia, da Austrália e da Nova Zelândia não será atingido por ondas com mais de um metro e meio de altura.

Pelo menos isso — suspirou Sandecker.

Volto a telefonar quando tiver mais informações — disse Bakewell.

Tomara que não aconteça nada do que eu lhe disse.

Obrigado, Charlie. Tomara mesmo!

O almirante desligou o telefone e ficou onde estava, pensativo. A ansiedade e a preocupação não transpareciam em seu rosto, nenhum tremor nas pálpebra, sequer os lábios apertados, mas tudo eram sombras sob a superfície. Ele só notou a aproximação de Rudi Gunn quando este lhe tocou o ombro.

Almirante, há outro telefonema para o senhor. E do escritório de Washington.

Sandecker pegou o telefone e tornou a falar.

Alô.

Almirante? — disse a voz familiar de Martha Sherman, sua se­cretária de muitos anos. Seu tom de voz normalmente formal denun­ciava nervosismo e entusiasmo. — Por favor, fique na linha, vou trans­ferir uma ligação.

É importante? — perguntou ele, irritado. — Não estou com humor para assuntos oficiais hoje.

Pode ter certeza, almirante, o senhor vai gostar deste telefonema - informou ela alegremente. — Um momentinho, estou transferindo.

Houve uma pausa.

Alô! — disse Sandecker. — Quem está falando?

Bom dia, caríssimo almirante. Que história é essa de ficar pas­seando no Havaí?

Sandecker não era homem de se deixar abalar facilmente, mas na­quele momento estremeceu como se o chão tivesse desaparecido sob seus pés.

Dirk, pelo amor de Deus, é você?

O que sobrou de mim — respondeu Pitt. — Estou com Al e Maeve Fletcher.

Não posso acreditar que vocês estejam vivos! — disse o almirante, com uma descarga elétrica a lhe percorrer as veias.

Al está pedindo que o senhor guarde um charuto para ele.

Como vai o diabinho italiano?

Azedo porque eu não o deixei comer.

- Quando soubemos que Arthur Dorsett os tinha abandonado no mar, no caminho de um tufão, movi montanhas para desencadear uma operação gigantesca de resgate, mas a tremenda influência daquele ban­dido frustrou os meus esforços. Depois de quase vinte dias sem notícias, pensei que os três tivessem morrido. Conte-me como conseguiram so­breviver até agora.

É uma longa história. Prefiro que o senhor me conte as últimas novidades sobre a praga acústica.

É uma história muito mais comprida do que a sua. Darei os de­talhes quando nos encontrarmos. Onde vocês estão?

Conseguimos chegar à ilha Gladiator. Estou no escritório de Arth­ur Dorsett, usando o telefone dele.

Sandecker ficou atordoado.

Você está brincando!

É a mais pura verdade. Vamos pegar os filhos de Maeve e fugir para a Austrália pelo mar da Tasmânia — disse ele com a naturalidade de quem estivesse a caminho da padaria para comprar um filão.

Um medo terrível substituiu a anterior ansiedade de Sandecker, um medo acompanhado de uma desesperadora sensação de impotência. A notícia chegara de modo tão inesperado, tão repentino, que ele ficou vários segundos incapaz de falar. Por fim, a voz indagadora de Pitt lhe penetrou o estado de choque:

Alô! Almirante! O senhor está me ouvindo?

Pitt, escute bem o que vou lhe dizer! — pediu Sandecker com urgência. — Vocês estão correndo um perigo terrível! Saia já da ilha! Vá embora agora! Entendeu?

Houve uma breve pausa.

Desculpe, almirante, eu não estou...

Não tenho tempo para explicar — atalhou Sandecker. — Só posso dizer que uma onda sonora de incrível intensidade atingirá a ilha Gladiator em menos de vinte minutos. O impacto provocará uma ressonância sísmica que provavelmente causará a erupção dos dois vulcões da ilha. Se o fe­nômeno ocorrer no lado ocidental, ninguém sobreviverá. Você e os outros devem fugir para o mar enquanto há tempo. Dê o fora. Até logo!

E, sem esperar resposta, o almirante desligou. Só conseguia pensar numa coisa: sem querer e sem saber, estava provocando a morte de seu melhor amigo.

 

A terrível notícia atingiu Pitt como um coice. Pela enorme janela panorâmica ele olhou para o helicóptero pousado no iate, atracado no píer da lagoa. Calculou a distância em menos de um quilômetro. Ima­ginou que, carregando duas crianças pequenas, levariam mais de quinze minutos para chegar ao cais. Sem meios de transporte, um carro ou um caminhão, era um tempo escassíssimo. O período de espera trans­correu como se nunca tivesse existido. Giordino e Maeve já deviam ter encontrado os meninos. Era preciso que os houvessem encontrado. Do contrário, alguma coisa terrível teria acontecido.

Voltou o olhar primeiro para o monte Winkleman; a seguir percorreu a ilha e se deteve no monte Scaggs. Ambos se mostravam passivos e serenos. Vendo o exuberante bosque nas ravinas que cortavam as ver­tentes, achou difícil imaginar os dois morros como ameaçadores vulcões, gigantes adormecidos prontos para espalhar a morte e o desastre num fluxo de gases e rocha fundida.

Com brusquidão, mas sem exagerada pressa, levantou-se da cadeira de couro de Dorsett e contornou a escrivaninha. Parou abruptamente no centro da sala quando a porta de duas folhas, que dava para o interior da casa, se abriu e Arthur Dorsett entrou. Vinha com uma xícara de café na mão e uma pasta cheia de papéis debaixo do braço. Estava com a calça amassada, uma camisa social que um dia fora branca mas que agora era amarelada e uma gravata-borboleta. Parecia perdido em pensamentos. Notando outra pessoa no escritório, ergueu a vista, mais curioso do que surpreso. Ao ver o intruso fardado, pensou em primeiro lugar que se tratasse de um de seus seguranças. Chegou a fazer menção de perguntar o motivo de sua presença, mas logo contraiu todos os músculos do corpo em petrificado espanto. Sua face ficou pálida feito máscara, esculpida pela confusão e pelo susto. A pasta lhe escapou e caiu, os papéis se espalharam no chão como um baralho. As mãos lhe penderam junto ao corpo, e o café molhou sua calça.

Você morreu! — ele balbuciou.

Não imagina a satisfação que tenho em lhe provar o contrário — disse Pitt, contente ao ver que Dorsett estava com um curativo no olho. — Ora, o que é isso? Parece até que você viu um fantasma.

A tempestade... não é possível que você tenha sobrevivido à fúria do mar. — Um brilho em seu olho são mostrou que ele estava come­çando a recobrar o autocontrole. — Como conseguiu?

Um bocado de pensamento positivo e meu canivete suíço.

E Maeve... morreu? — Ele hesitou ao falar, examinou o fuzil nas mãos de Pitt, o cano apontado para o seu coração.

O fato de saber que isso há de lhe causar desgosto e incômodo me dá uma enorme alegria, mas ela está vivinha da silva e passando muito bem. Aliás, neste exato momento, deve estar dando o fora daqui com seus netos. Diga uma coisa, Dorsett, como se justifica assassinar a própria filha? Acaso um mulher que simplesmente estava tentando encontrar-se como pessoa representava uma ameaça tão grande? Ou será que você estava querendo que os filhos dela fossem só seus, de mais ninguém?

Era essencial que o império fosse mantido por meus descendentes após a minha morte. Maeve se recusou a ver as coisas assim.

Tenho uma notícia para lhe dar. Esse império que você adora tanto vai para o espaço daqui a pouco.

Dorsett não compreendeu o que Pitt estava querendo dizer.

Pretende me matar?

Pitt sacudiu a cabeça.

Não sou eu o seu carrasco. Os vulcões da ilha vão entrar em erupção. Aliás, será um final que combina bem com você: tudo consu­mido pela lava.

Dorsett esboçou um sorriso. Tinha recuperado a calma.

Que bobagem é essa?

Complicado demais para explicar. Eu mesmo desconheço os de­talhes, mas quem me informou tem muita autoridade. Você vai ter de acreditar em minha palavra.

Você é um louco varrido.

Ai dos que não têm fé.

Se pretende atirar — disse Dorsett com um brilho de ódio no olho preto —, atire de uma vez.

Pitt sorriu. Maeve e Giordino ainda não tinham chegado. Por en­quanto, precisava de Arthur Dorsett vivo para o caso de os dois terem sido capturados pelos guardas.

Desculpe, mas estou sem tempo. Faça o favor de se virar e subir a escada para os quartos.

Meus netos... Você não pode pegar os meus netos — murmurou ele.

Seu netos não. Os filhos de Maeve.

Você não vai conseguir passar pelos guardas.

Os dois do portão estão, digamos, impedidos.

Então vai ser preciso matar-me a sangue-frio, e eu aposto tudo o que tenho como você não tem peito para isso.

Por que vocês insistem tanto em acreditar que eu não agüento ver sangue? — Pitt colocou o dedo no gatilho do fuzil. — Vamos an­dando. Do contrário eu lhe arranco as orelhas.

Arranque, seu covarde filho da puta! — gritou ele. — Você já me arrancou um olho.

Parece que você não entendeu. — A hostilidade e a invencível arrogância de Dorsett provocaram muito ódio em Pitt, que, sem vacilar, ergueu um pouco o fuzil e apertou o gatilho. A arma disparou com um estampido abafado pelo silenciador, e um pedaço da orelha de Dorsett foi cair no tapete. — Agora comece a subir essa escada. Qualquer movimento seu que me desagrade, e eu lhe meto uma bala na espinha.

Não se via sinal de dor no olho negro e bestial de Dorsett. Pelo contrário, ele sorriu um sorriso ameaçador, que fez Pitt estremecer in­voluntariamente. Então, devagar, levou a mão à orelha dilacerada e se voltou para a porta.

Nesse momento, Boudicca entrou no escritório. Vinha com sua pos­tura altiva, as formas perfeitas envoltas num penhoar de seda que ter­minava bem acima dos joelhos. Não reconheceu Pitt fardado nem se deu conta de que seu pai estava em perigo.

Que foi isso, papai? Tive a impressão de ouvir um tiro... — Então ela viu o sangue escorrendo entre os dedos de Dorsett. — Mas... você está machucado!

Temos visitantes indesejáveis, minha filha.

Como se tivesse olhos na nuca, ele sabia que a atenção de Pitt estava momentaneamente voltada para Boudicca. Esta, por sua vez, ao se apro­ximar apressada para examinar a ferida, viu de relance o rosto dele. Sua primeira expressão foi de confusão, depois espanto. Arregalou os olhos. Acabava de reconhecê-lo.

— Não... não é possível!

Foi a distração que Dorsett esperava. Girando o corpo num movi­mento brusco, deu uma violenta pancada no cano do fuzil, afastando-o para o lado. Num ato reflexo, Pitt apertou o gatilho. Um rajada perfurou o retrato de Charles Dorsett acima da lareira. Fisicamente debilitado e mal conseguindo manter-se em pé devido à falta de sono, Pitt teve uma reação tardia. Os esforços excessivos e a exaustão das últimas três semanas estavam finalmente cobrando o seu tributo. E, como que em câmera lenta, ele viu o fuzil sendo arrancado de suas mãos e jogado contra a vidraça da janela.

Dorsett avançou feito um rinoceronte enraivecido. Pitt agarrou-se a ele, fazendo o possível para não cair. Contudo, o homem bem mais pesado aproximou de seu rosto as gigantescas mãos, com a evidente intenção de lhe cravar os polegares nos olhos. Pitt virou a cabeça, porém um punho lhe atingiu a têmpora. Fogos de artifício explodiram em seu cérebro, e ele se sentiu invadido por uma onda de tontura. Desesperado, agachou-se e rolou no chão, para escapar à saraivada de socos que se seguiu, e saltou na direção oposta quando Dorsett tornou a arremeter. Graças a seus braços e ombros musculosos, o velho magnata do diamante já tinha mandado mais de um homem para o hospital. Durante sua rude juventude nas minas, ele se gabava de nunca ter precisado recorrer a facas nem a armas de fogo. Sua corpulência e sua força ex­traordinária bastavam para liquidar quem perpetrasse a insensatez de enfrentá-lo. Mesmo numa idade em que os homens, em.sua maioria, se tornavam flácidos, ele continuava rijo como granito.

Pitt sacudiu a cabeça para enxergar melhor. Sentia-se como um bo­xeador na lona, desesperadamente agarrado às cordas à espera do gongo que o salvasse, lutando para recuperar a lucidez. Eram poucos os es­pecialistas em artes marciais capazes de derrubar a massa irresistível de puros músculos de Dorsett. Pitt estava começando a pensar que a única coisa que poderia detê-lo era um rifle de caçar elefantes. Se Gior­dino aparecesse! Pelo menos, contava com uma pistola automática. A mente de Pitt trabalhava febrilmente em busca de uma atitude, de um movimento viável, rejeitando todos os que com certeza resultariam em fraturas nos ossos. Entrincheirando-se atrás da escrivaninha, tentou ga­nhar tempo; olhou para Dorsett e forçou um sorriso que fez seu rosto doer. Muito tempo antes ele aprendera, em numerosas brigas de bar e outras pancadarias, que as mãos e os pés não podiam com cadeiras, garrafas de cerveja ou quaisquer outras coisas duras o suficiente para rachar um crânio. Olhou a sua volta em busca da arma mais próxima.

E agora, velhote, você vai me morder com esses dentes podres?

O insulto surtiu o efeito desejado. Com um rugido insano, Dorsett lhe desferiu um pontapé na virilha. Errou por uma fração de segundo; o sapato apenas roçou o quadril de sua vítima. Então ele saltou por cima da escrivaninha. Calmamente, Pitt recuou um passo, agarrou um abajur de metal e bateu com a força revitalizada pelo ódio. Dorsett tentou aparar o golpe com o braço, mas não foi suficientemente rápido. O abajur bateu em seu pulso antes de lhe atingir o ombro com tanta violência que lhe fraturou a clavícula. Ele deixou escapar um berro de animal ferido e avançou com a negra malevolência do olhar intensificada pela dor e pelo ódio. E desfechou um violento soco. Pitt se esquivou e, ao mesmo tempo, bateu com a base do abajur, atingindo Dorsett entre o joelho e a canela. No brusco movimento, porém, a arma im­provisada lhe escapou das mãos. Ouviu-se um baque no tapete. Dorsett tornou a investir contra ele, como se não estivesse ferido. Ofegante, com as veias do pescoço dilatadas e o olho esbugalhado, não conseguia conter a espuma de saliva que se acumulava nas comissuras de sua boca escancarada. Na verdade, dava a impressão de estar rindo. Devia ter enlouquecido. Murmurando palavras incoerentes, saltou sobre Pitt. Não conseguiu alcançá-lo. A perna esquerda lhe falhou, fazendo-o es­corregar e cair de costas. A pancada que acabava de receber lhe havia quebrado a tíbia. Dessa vez, Pitt reagiu como um gato. Com a rapidez de um raio, subiu na escrivaninha, flexionou o corpo, pulou e foi cair com os dois pés no pescoço exposto de Dorsett. O rosto maligno, com o único e negro olho a brilhar e os dentes amarelos, pareceu contrair-se de espanto. Sua mão gigantesca se cerrou e segurou o vazio. Ele se pôs a espernear e bracejar cegamente. Um resfolegar de fera agonizante lhe escapou da garganta, um horroroso gorgolejar que saía pela traquéia esmagada. Então, seu corpo amoleceu sem vida, e o olho que lhe restava perdeu o brilho, apagou-se.

Pitt conseguiu manter-se de pé, respirando com dificuldade por entre os dentes cerrados. Ergueu os olhos para Boudicca que, estranhamente, não tinha esboçado um único gesto para ajudar o pai. Ela olhou para o cadáver com a expressão ao mesmo tempo descomprometida e fas­cinada da testemunha de um fatal acidente de trânsito.

Você o matou — disse enfim, sem alterar a voz.

Pouca gente merecia morrer mais do que ele — respondeu Pitt, tomando fôlego e roçando os dedos no galo que lhe crescia na cabeça.

Boudicca desviou a atenção do cadáver estendido no chão, como se ele não existisse.

Eu devia agradecê-lo, senhor Pitt, por me entregar a Dorsett Con­solidated Mining Limited numa bandeja de prata.

Estou comovido como o seu pesar.

Ela sorriu, entediada.

Você me fez um favor.

A filhinha querida fica com o espólio. E Maeve e Deirdre? Cada uma delas tem direito a um terço dos bens.

Deirdre receberá a sua parte — disse Boudicca secamente. — Quanto a Maeve, se é que ainda está viva, não receberá coisa nenhuma. Papai já a tinha excluído.

E os gêmeos?

Ela deu de ombros.

As crianças pequenas estão sujeitas a muitos acidentes.

Parece que você não chega a ser uma titia apaixonada pelos so­brinhos.

Pitt ficou tenso com o que os esperava. Em poucos minutos ocorreria a erupção. Duvidava que ainda tivesse força para lutar com mais um membro da família Dorsett. Lembrou-se de sua surpresa quando Bou­dicca o ergueu e o comprimiu na parede do iate, na ilha Kunghit. Seus bíceps chegaram a doer com a lembrança. De acordo com Sandecker, a onda acústica atingiria a ilha em questão de minutos. Seguir-se-ia a erupção dos vulcões. Já que tinha de morrer, era melhor tentar lutar para sair. Afinal, ser espancado até a morte por uma mulher era menos atemorizador do que acabar cremado em lava ardente. Que teria acontecido a Maeve e a seus filhos? Ele não conseguia acreditar que algum mal lhes tivesse passado; contavam com Giordino. Era preciso avisá-los do iminente cataclismo. Talvez ainda houvesse uma possibilidade, por remota que fosse, de fugir vivos da ilha.

No fundo, ele sabia que não era páreo para Boudicca, mas precisava agir enquanto tivesse a pequeníssima vantagem da surpresa. Ainda estava pensando nisso quando, abaixando a cabeça, precipitou-se para a frente, atravessou o escritório e entrou com o ombro no estômago da giganta. Ela foi colhida de surpresa, mas isto fez pouca diferença, quase nenhuma. Recebeu o impacto, deixou escapar um grunhido e, embora recuando alguns passos, manteve-se de pé. E, antes que Pitt conseguisse recuperar o equilíbrio, agarrou-o pelo peito com ambos os braços, girou o corpo, descrevendo um semi-círculo, e jogou-o de encontro a uma estante de livros, cuja porta de vidro ele estilhaçou com as costas. Por incrível que fosse, Pitt conseguiu equilibrar-se nas pernas bambas e não caiu. Ofegando, tentou tomar fôlego. Parecia que todos os ossos de seu corpo estavam partidos. Tratou de suportar a dor e atacou no­vamente. Conseguiu atingi-la com um uppercut que lhe tirou sangue. O murro teria deixado qualquer mulher inconsciente durante uma se­mana, porém Boudicca simplesmente enxugou com o dorso da mão o sangue que lhe escorria da boca e abriu um sorriso medonho. Depois, cerrando os punhos e tomando postura de pugilista, avançou contra Pitt. Não era precisamente a pose mais adequada a uma dama, ele chegou a pensar. Mas, aceitando o desafio, inclinou o corpo para se esquivar de um poderoso cruzado de direita e, com a última força que lhe restava, esmurrou uma vez mais. Sentiu que atingira carne e osso, mas foi colhido por uma tremenda pancada no peito. Chegou a acreditar que seu coração tinha sido esmagado. Não era plausível que uma mulher pudesse bater com tanta força. Ele lhe havia dado um soco capaz de quebrar a mandíbula de um urso; todavia Boudicca continuava sorrindo com a boca ensangüentada e pagou com uma bofetada, com as costas da mão, que o jogou na lareira de pedra, arrancando-lhe todo o ar dos pulmões. Ele caiu e ali ficou um bom momento, numa posição grotesca, atormentado pela dor. Como que envolto em neblina, colocou-se de joelhos, levantou-se e ficou oscilando, tentando recompor-se para um último golpe.

Boudicca avançou e lhe aplicou uma violentíssima cotovelada na caixa torácica. Pitt chegou a ouvir o seco estalido de uma, talvez duas costelas, sentiu a pontada aguda e, curvando-se, apoiou as mãos nos joelhos. Olhou atordoado para o estampado do tapete. Sentiu vontade de ali se deitar e ficar para sempre. Talvez já estivesse morto e a morte não passasse daquilo, de uma estampa florada no tapete.

Desesperado, compreendeu que não agüentaria mais. Tateou em bus­ca do ferro de atiçar fogo, mas estava com a vista embaçada, com os movimentos por demais descoordenados para achá-lo e pegá-lo. Viu vagamente Boudicca inclinar-se, segurar-lhe uma perna e jogá-lo vio­lentamente no chão, onde ele colidiu com a porta aberta. Então, ela se aproximou, agarrou-o pelo colarinho e, com a outra mão, desferiu um forte murro que o atingiu pouco acima do olho. Pitt ficou estendido, à beira da inconsciência, morrendo de dor, percebendo, ainda que sem senti-lo de fato, o sangue que lhe saía de um corte acima do olho es­querdo.

Qual gato a brincar com o rato, Boudicca não tardaria a se cansar e a matá-lo. Tonto, mas recorrendo quase miraculosamente a uma força que ele não sabia que possuía, Pitt conseguiu colocar-se lentamente — e decerto pela última vez — de pé.

Boudicca o esperava junto ao cadáver do pai, os lábios arreganhados num sorriso de antecipação. A sensação de completo domínio se pa­tenteou em seu rosto.

Chegou a hora, meu caro, de ir encontrar-se com meu pai — disse ela num tom grave, glacial, cruel.

Que merda de companhia me espera... — A voz de Pitt saiu apagada, entrecortada.

Nesse momento, ele viu Boudicca mudar de expressão e sentiu uma mão empurrá-lo delicadamente para o lado. Giordino, que acabava de entrar no escritório de Dorsett, olhou com desprezo para a giganta e disse:

Essa vaca brava é toda minha. Faço questão.

Maeve apareceu à porta, segurando as mãos de dois garotinhos loiros. Olhou para o rosto ensangüentado de Pitt, para Boudicca e para o corpo sem vida do pai.

Que aconteceu com papai?

Ficou com dor de garganta — murmurou Pitt.

Desculpe o atraso — disse Giordino calmamente. — Topei com uns criados excessivamente fiéis ao patrão. Trancaram-se num quarto com os meninos, e precisei arrombar a porta. — Não explicou o que fez com os empregados. Entregou a Pitt a nove milímetros roubada de John Merchant. — Se ela ganhar, mate-a.

Com todo prazer — respondeu Pitt sem sombra de clemência no olhar.

Já não havia vestígio de confiança nos olhos de Boudicca. Tampouco de esperança de simplesmente ferir seu adversário. Dessa vez, ia lutar pela própria vida e estava disposta a recorrer a todos os golpes sujos das brigas de rua que seu pai lhe ensinara. Aquele não seria um con­fronto civilizado entre boxeadores ou lutadores de caratê. Ela deu alguns passos, feito uma loba, preparando-se para desferir um golpe mortal e ao mesmo tempo atenta à pistola na mão de Pitt.

Quer dizer que você também voltou da morte? — sibilou feito uma víbora.

Não consegui esquecer você — disse Giordino, projetando os lábios para lhe atirar um beijo.

Pena que tenha sobrevivido apenas para vir morrer em minha casa...

Foi um erro. Boudicca desperdiçou meio segundo numa conversa desnecessária. Tempo mais que suficiente para que Giordino saltasse com os dois pés em seu peito. O duro impacto lhe dobrou o corpo e lhe arrancou um gemido de dor. Porém, incrivelmente, ela conseguiu não só manter-se em pé como agarrar os pulsos do italiano. E jogando-se para trás, por cima da escrivaninha, puxou-o consigo até ficar deitada de costas no chão, com Giordino de bruços no tampo da mesa, acima dela, aparentemente desamparado, os braços estendidos e bem presos.

Boudicca olhou para ele e, tendo a vítima segura em suas tenazes de aço, voltou a exibir o sorriso maligno. Aumentou a pressão; tinha a intenção de dobrar e quebrar-lhe os pulsos com sua força descomunal. Era uma jogada astuta. Podia deixar Giordino fora de combate ao mesmo tempo em que, escudando-se nele, apanhava o revólver carregado que Arthur Dorsett costumava guardar na última gaveta da escrivaninha.

Esperando um sinal do amigo para atirar, Pitt não tinha ângulo para apontar a pistola automática para Boudicca. Apenas consciente, fazendo um esforço enorme para não perder os sentidos, ainda estava com a vista embaciada pelo murro na testa. Encolhida a seu lado, Maeve ten­tava evitar que os filhos presenciassem a cena brutal.

Giordino parecia imobilizado, de bruços na mesa, como que a aceitar a derrota sem oferecer combate, ao passo que Boudicca continuava dobrando-lhe os pulsos lentamente para trás. Seu penhoar se abrira e escorregara; Maeve, que nunca tinha visto a irmã sem roupa, ficou assombrada ao ver nus aqueles ombros compactos, fortíssimos, de mús­culos gigantescos. Depois, seu olhar se fixou no corpo do pai estendido no tapete. Não ficou triste, apenas chocada com aquela morte inespe­rada.

Então, devagar, enfeixando forças, Giordino ergueu as mãos e os braços como que a levantar um haltere. A expressão de incompreensão de Boudicca deu lugar a outra, de choque. Seguiu-se a de incredulidade, e seu corpo tremeu quando ela empregou inutilmente toda a força de que era capaz para deter a dele, implacável. De repente, já não pôde continuar segurando-o; teve de soltá-lo. Tentou de imediato atingir-lhe os olhos, mas o italiano previra o golpe e lhe desviou as mãos com um safanão. Antes que ela tivesse tempo de se recuperar, passou pela escrivaninha e caiu escarranchado em seu peito, as pernas a lhe prender os braços no chão. Neutralizada por uma força inesperada, Boudicca começou a debater-se freneticamente, tentando escapar. Em seu deses­pero, procurou alcançar a gaveta com o revólver, mas os joelhos de Giordino mantinham seus braços efetivamente colados ao corpo. Então, contraindo todos os músculos, agarrou-lhe a garganta com ambas as mãos.

Tal pai, tal filha — rosnou. — Vá encontrar-se com ele no inferno.

Boudicca compreendeu com pavorosa certeza que não haveria re­torno nem perdão. Estava presa de fato. Seu corpo se convulsionou, aterrorizado, quando as mãos enormes do italiano começaram a lhe espremer a vida. Tentou gritar, mas não conseguiu emitir mais do que um guincho estridente de roedor. Aquelas mãos não a soltaram quando seu rosto se contorceu, seus olhos saltaram, sua pele adquiriu uma coloração azulada, roxa. A expressão de Giordino, que normalmente costumava exibir um sorriso bem-humorado, permaneceu inexpressiva, e ele continuou apertando e apertando.

O drama durou até que o corpo da giganta se contraísse e enrijecesse, até que sua energia escoasse totalmente e ela finalmente afrouxasse. Sem lhe soltar o pescoço, Giordino ergueu do chão aquele enorme ca­dáver de mulher e o estendeu sobre a escrivaninha.

Com mórbido fascínio, Maeve o viu rasgar o penhoar de seda e desnudar o corpo de Boudicca. Então, chocada com o que viu, ela soltou um grito e escondeu o rosto.

Não podia ser diferente, compadre — disse Pitt, esforçando-se para adaptar as idéias ao que estava presenciando.

Giordino inclinou ligeiramente a cabeça, os olhos frios e distantes.

Eu sabia. Fiquei sabendo no momento em que ela me esmurrou no iate.

Precisamos ir embora já. A ilha inteira vai se transformar em cinzas e fumaça.

Como é que é? Você pode me explicar? — pediu Giordino, confuso.

Depois eu faço um desenho. — Pitt se voltou para Maeve. — Há algum meio de transporte na casa?

Na garagem deve haver uns carrinhos que papai usa... usava para ir de uma mina a outra.

Pitt pegou um dos meninos no colo.

Quem é você?

Assustado com o sangue que lhe escorria da testa, o garoto balbuciou:

Michael. — Apontou para o irmão, que estava no colo de Giordino. — Ele é Sean.

Você já viajou de helicóptero, Michael?

Não, mas sempre tive vontade.

Pois vai viajar agora.

Ao sair, apressada, do escritório, Maeve se virou e olhou pela última vez para o pai e para Boudicca, que ela sempre considerara uma irmã mais velha, que se mantinha distante e raramente mostrava mais do que animosidade. Seu pai guardara o segredo, suportando a vergonha e ocultando-o do mundo. Foi terrível descobrir, depois de tantos anos, que Boudicca era um homem.

 

Numa garagem anexa à mansão, encontraram os veículos que Dor­sett usava na ilha, modelos compactos de um carro de fabricação aus­traliana chamado Holden. Adaptados ao gosto do dono, não tinham portas, a fim de facilitar a entrada e a saída, e eram pintados de amarelo-claro. Pitt ficou agradecido porque Arthur Dorsett tinha deixado a chave no contato do primeiro da fila. Embarcaram precipitadamente, Pitt e Giordino na frente, Maeve e os filhos atrás. Pitt ligou o motor e engatou a primeira. Pisou no acelerador ao mesmo tempo em que sol­tava a embreagem, fazendo o carro dar um salto para a frente.

Ao chegarem à entrada em arco, Giordino desceu correndo e foi abrir o portão. Mal tinham chegado à estrada quando deram com um furgão aberto, cheio de guardas de segurança, que vinha em sentido contrário.

Tinha de acontecer justamente agora, pensou Pitt. Já deviam ter dado o alarme. Mas logo se deu conta de que era a hora da troca da guarda. Aqueles certamente vinham substituir os homens amarrados no escri­tório da segurança.

Acenem para eles e sorriam — mandou Pitt. — Finjam que somos apenas uma família feliz.

O motorista uniformizado do furgão diminuiu a velocidade e ficou olhando, curioso, para os passageiros do Holden. Depois balançou a cabeça e os cumprimentou sem reconhecer ninguém, mas supondo que eram convidados da família Dorsett. O furgão estava parando à entrada da mansão quando Pitt apertou o acelerador e rumou em alta velocidade para a doca que se estendia lagoa adentro.

Eles caíram — disse Giordino.

Pitt sorriu.

Só até descobrirem que os caras do turno noturno não estão dor­mindo à toa.

Saíram da estrada principal, que servia as duas minas, e se dirigiram à lagoa. Agora, era uma linha reta até o porto. Não havia carros nem caminhões entre eles e o iate. Pitt não perdeu tempo consultando o relógio, mas sabia que faltavam quatro ou cinco minutos para o cataclismo previsto por Sandecker.

Eles vêm vindo atrás de nós — gritou Maeve, assustada.

Pitt não teve necessidade de olhar pelo espelho retrovisor para con­firmá-lo. Tampouco foi preciso que lhe contassem que sua fuga à li­berdade estava correndo um grave perigo devido à pronta reação dos guardas. A única questão que lhe ocupava a mente era se conseguiriam levantar vôo antes que os guardas se aproximassem o bastante para alvejá-los no ar.

Através do pára-brisa, Giordino apontou para o único obstáculo à frente, um guarda parado fora do escritório da segurança, observando-lhes a rápida aproximação.

E esse aí?

Pitt lhe devolveu a pistola automática de Merchant.

Se eu não conseguir assustá-lo, atire nele.

— Se você não o quê...?

Não conseguiu dizer mais nada. Pitt entrou a mais de cento e vinte quilômetros por hora no cais; a seguir, afundou o pé no freio, fazendo com que o veículo derrapasse diretamente rumo ao escritório. Sem saber para que lado pular, o assustado vigilante ficou um instante paralisado e acabou mergulhando na água, a fim de não ser esmagado pelo pára- choque dianteiro do carro.

Muito bem! — admirou-se Giordino quando Pitt corrigiu a tra­jetória e freou bruscamente diante da rampa de embarque do iate.

Depressa! — gritou. — Al, corra ao helicóptero, desamarre as cordas de segurança e ligue o motor. Maeve, pegue os meninos e fique esperando escondida no salão. Será mais seguro lá dentro se os guardas chegarem antes que tenhamos conseguido decolar. Espere até que a hélice comece a girar, depois corra para lá.

E você, que vai fazer? — perguntou Giordino, ajudando Maeve a tirar as crianças do carro e fazendo-os subir correndo a plataforma.

Vou soltar as espias do iate para evitar que eles abordem.

Pitt estava suando quando acabou de puxar dos cabeços as pesadas amarras e as jogou na água. Olhou ainda uma vez para o caminho que levava à mansão de Dorsett. O motorista do furgão tinha calculado mal a curva para sair da estrada principal e derrapara de lado num brejo. Com isso, os homens da segurança acabaram perdendo preciosos segundos até conseguir retomar o caminho da lagoa. Ouviu-se então o ronco do motor do helicóptero e, quase exatamente no mesmo mo­mento, um disparo no interior da embarcação.

Apavorado, Pitt subiu correndo a rampa de embarque. Praguejou e sentiu na boca um gosto de veneno por ter cometido a loucura de mandar Maeve e os meninos subir a bordo sem examinar previamente o barco. Procurou a nove milímetros, mas lembrou-se de que a havia entregue a Giordino.

Oh, meu Deus! — murmurou quando estava atravessando cor­rendo o convés. Abriu porta do salão com violência e entrou.

Ficou desnorteado ao ouvir Maeve suplicar:

Não, Deirdre! Por favor, os meninos não!

E viu a cena terrível. Maeve no chão, as costas apoiadas na estante de livros, os meninos encolhidos e chorando de medo em seus braços. Uma mancha vermelha se dilatava, em sua blusa, ao redor de um pe­queno orifício na altura do umbigo.

Parada no centro do salão, Deirdre apontava uma pequena pistola para os garotos. Seu rosto e os braços nus estavam brancos como o marfim polido. Trajando um Emanuel Ungaro que lhe realçava a beleza, mostrava os olhos frios e os lábios muito apertados. Olhou para Pitt com uma expressão capaz de congelar o álcool. Quando falou, sua voz adquiriu uma qualidade peculiarmente perturbada:

Eu sabia que você não tinha morrido.

— Você é mais louca do que seu pai e seu irmão depravado — disse Pitt com frieza.

Eu tinha certeza de que você voltaria para destruir minha família.

Pitt foi avançando lentamente, até conseguir escudar Maeve e os meninos com o próprio corpo.

Digamos que é uma cruzada para erradicar um mal. Perto dos Dorsett, os Bórgia pareceriam aprendizes — disse ele, tentando ganhar tempo enquanto se acercava. — Eu matei seu pai. Sabia disso?

Ela fez lentamente que sim, a mão que empunhava a arma branca e fria como o mármore.

Os criados que Maeve e seu amigo trancaram no armário sabiam que eu estava dormindo no iate e me chamaram. Agora você vai morrer, como meu pai. Mas primeiro quero ter o prazer de acabar com Maeve.

Pitt se voltou lentamente.

Mas ela já está morta — mentiu.

Deirdre se inclinou para o lado, tentando ver a irmã atrás de Pitt.

Então você vai me ver liquidando seus adoráveis gêmeos.

Não! — gritou Maeve atrás de Pitt. — Meus filhos não!

Deirdre estava transtornada quando ergueu a pistola e avançou um passo, contornando Pitt, para atirar na irmã e nos sobrinhos.

Uma raiva cega expungiu todo vestígio de bom senso no momento em que Pitt, num salto, arrojou-se sobre ela. Por rápido que fosse, viu a pistola automática apontada para seu peito. Não tinha ilusão de con­seguir. A distância que os separava era grande demais para que chegasse a tempo. A dois metros dele, Deirdre não podia errar.

Pitt mal sentiu o impacto das duas balas que lhe penetraram a carne. Havia nele ódio e malícia suficientes para anestesiar qualquer dor, para conter qualquer choque. Derrubou Deirdre com um impacto esmagador, que lhe distorceu as delicadas feições, transformando-as numa horrenda máscara de agonia. Foi como chocar-se com um arbusto novo. Suas costas se curvaram quando ela, comprimida pelo peso de Pitt, tropeçou numa mesinha de centro. Ouviu-se o estalo horrível de um galho seco quando sua espinha se partiu em três lugares. O berro estranho e sel­vagem não inspirou nele compaixão alguma. Com a cabeça inclinada para trás, ela pousou em Pitt os olhos castanhos que ainda retinham um ar de profundo desprezo.

Você vai pagar... gemeu, cheia de ódio, vendo aos círculos de sangue alargaram-se na ilharga e no alto do peito de Pitt. — Vai morrer.

Deirdre continuava empunhando a arma; tentou apontar para ele novamente, mas seu corpo se recusou a obedecer os comandos do cé­rebro. Ela havia perdido toda a sensibilidade.

Pode ser — disse ele pausadamente, olhando para ela e dando-lhe um sorriso duro como a alça de um caixão, seguro de que sua coluna vertebral estava irreparavelmente fraturada. — Mas é melhor do que ficar paralítico o resto da vida.

Arrastando-se, afastou-se de Deirdre e foi ter com Maeve. Sem fazer caso do próprio ferimento, ela tentava confortar os filhos, que conti­nuavam chorando e tremendo de pavor.

Está tudo bem, meus queridos — dizia com ternura. — Tudo vai ficar em ordem agora.

Pitt se ajoelhou diante dela e lhe examinou o ferimento. Havia pouco sangue, nada mais do que um pequeno orifício que não parecia maior do que a estocada de um pequeno objeto pontiagudo. Ele não podia saber onde o projétil se expandira dentro de seu ventre, dilacerando-lhe os intestinos e um labirinto de vasos sangüíneos, para lhe perfurar o duodeno e alojar-se num disco entre duas vértebras. Ela estava com hemorragia interna e, a menos que fosse socorrida imediatamente, mor­reria em questão de minutos.

Pitt sentiu no coração toda a amargura do mundo. Instintivamente, quis gritar a sua dor, mas tudo o que lhe saiu da garganta foi um triste gemido vindo das entranhas.

Giordino não podia esperar mais. O dia estava clareando, e o céu, a leste, começava a se tingir dos tons alaranjados do sol nascente. Sal­tando do helicóptero para o convés, curvou-se sob a hélice em movi­mento exatamente quando o furgão com os seguranças acabava de en­trar no cais. Que diabos teria acontecido a Pitt e Maeve? perguntou-se com ansiedade. Pitt não perderia tempo desnecessariamente. As espias estavam boiando frouxamente na água, e o iate, arrastado pela maré vazante, afastara-se uns trinta metros do píer. Era vital apressar-se. A única razão pela qual os guardas não tinham atirado no helicóptero nem no iate era o medo de danificar a propriedade de Dorsett. Agora, eles se encontravam a apenas cem metros de distância, e continuavam aproximando-se.

Giordino estava tão absorto em seus perseguidores e tão preocupado com a demora dos amigos que não notou o súbito bater de asas dos pássaros, que descreviam círculos confusos no céu. Tampouco ouviu um estranho zumbido, não sentiu o tremor da terra, não viu a repentina agitação da água da lagoa quando as ondas acústicas, com assombrosa velocidade, colidiram com as rochas subterrâneas da ilha Gladiator.

Só quando se achava a poucos passos da porta do salão principal, olhou para os guardas por cima do ombro. Estavam todos como que grudados no cais, cujas tábuas se ondeavam como o próprio mar. To­talmente esquecidos da perseguição, eles apontavam para uma fumaça cinzenta que começava a se erguer e a espalhar-se acima do monte Scaggs. Giordino chegou a ver uma pequena multidão saindo do túnel de entrada na encosta do vulcão. Vendo igual agitação no monte Winkleman, lembrou-se imediatamente na advertência de Pitt. A ilha estava a ponto de explodir em fumaça e cinzas.

Irrompeu no salão, deteve-se bruscamente e deixou escapar um ge­mido de desespero ao ver o sangue brotando nas feridas do peito e da cintura de Pitt, o buraco no ventre de Maeve e o corpo de Deirdre Dorsett quase totalmente dobrado para trás, por cima da mesa baixa.

Santo Deus, que aconteceu?

Pitt olhou para ele sem responder.

A erupção começou?

Há fumaça nos montes, e o chão está tremendo.

Então é tarde demais.

Giordino se ajoelhou imediatamente ao lado de Pitt e olhou para o ferimento de Maeve.

Parece grave.

Ela o fitou, implorando:

Por favor, leve os meninos embora e deixe-me aqui.

O italiano sacudiu a cabeça.

Não posso fazer isso. Ou vamos todos, ou não vai ninguém.

Pitt estendeu a mão e agarrou o braço do amigo.

Não há tempo. A ilha inteira vai explodir a qualquer momento. Não vou conseguir. Pegue as crianças e dê o fora daqui. Faça isso agora.

Como atingido por uma granada, Giordino ficou entorpecido de in­credulidade. A letárgica indiferença e o eterno sarcasmo desapareceram por completo. Seus ombros largos se encolheram. Nada na vida o havia preparado para abandonar o melhor amigo, de tantos anos, à morte certa. Sua expressão era de torturada indecisão.

Não posso deixar nenhum de vocês. — E, inclinando-se, estendeu os braços para carregar Maeve. Olhou para Pitt e piscou. — Já venho buscá-lo.

Maeve agitou as mãos.

Não está vendo que ele tem razão? — murmurou debilmente.

Pitt lhe entregou o diário de bordo e as cartas de Rodney York.

Dê um jeito de fazer com que a família de York receba isto — disse com uma calma glacial. — E agora, pelo amor de Deus, leve esses meninos daqui. Vá embora!

Atormentado, Giordino sacudiu a cabeça.

Você não desiste, hein?

Lá fora, o céu desaparecera repentinamente, e em seu lugar via-se uma nuvem de cinzas que nascia no centro do monte Winkleman com um trovejar aterrorizador. Tudo escureceu quando a terrível massa ne­gra se espalhou feito um gigantesco guarda-chuva. Ouviu-se então uma explosão mais forte, que fez jorrar no ar milhares de toneladas de lava derretida.

Giordino sentiu a alma dilacerada. Finalmente, fez que sim e virou a cabeça. Havia uma curiosa compreensão em seu olhar martirizado.

Está bem. — Lembrou-se de uma última pilhéria. — Já que nin­guém me quer aqui, eu vou embora.

Pitt lhe segurou a mão.

Adeus, amigo. Obrigado por tudo o que fez por mim.

Até qualquer hora — murmurou o italiano com voz entrecortada e lágrimas nos olhos. Parecia um homem muito velho, tomado de um solene e doloroso choque. Ia dizer alguma coisa, atrapalhou-se com as palavras, pegou os filhos de Maeve, cada um debaixo de um braço, e se foi.

 

Charles Bakewell e os especialistas do observatório vulcânico de Auckland não podiam ver o interior da terra como viam a atmosfera e, em grau menor, o mar. Foi-lhes impossível prever exatamente os fatos, em sua seqüência e magnitude, quando a onda acústica vinda do Havaí atingisse a ilha Gladiator. A diferença da maior parte das erupções e dos terremotos, não houve tempo para estudar os fenômenos precursores daquela onda, tais como os tremores de terra, as flutuações dos rios subterrâneos e as alterações no comportamento dos animais domésticos e silvestres. A dinâmica foi caótica. Os cientistas só tinham certeza de que um grande distúrbio se preparava e de que as quentíssimas fornalhas das profundezas da ilha estavam a ponto de irromper na superfície.

De fato, a ressonância criada pela energia das ondas acústicas abalou as já debilitadas entranhas do vulcão, provocando as erupções. As ca­tástrofes se seguiram em rápida sucessão. Vinda de muitos quilômetros abaixo da superfície da ilha, a rocha superaquecida e liqüefeita dila­tou-se, subindo imediatamente pelas fissuras abertas pelos tremores. Hesitando unicamente para deslocar as rochas mais frias que o cerca­vam, o fluxo formou um reservatório subterrâneo de material derretido, conhecido como câmara de magma, onde se acumulavam imensas pres­sões.

O estímulo para o gás vulcânico era o vapor de água incandescente, que tornava possível a formação da onda que jogaria o magma na superfície. Quando a água entrou em estado gasoso, seu volume au­mentou instantaneamente quase mil vezes, criando a energia astronô­mica necessária para produzir uma erupção vulcânica.

A expulsão de fragmentos de rocha e cinzas pela coluna de gás em ascensão produziu a fumaça comum a toda erupção violenta. Embora não tivesse ocorrido combustão alguma, foi o reflexo do brilho de uma descarga elétrica da rocha incandescente no vapor de água que deu a impressão de fogo.

No interior das minas de diamante, os operários e supervisores fu­giram pelos túneis de saída ao primeiro tremor de terra. A temperatura nas galerias aumentou com velocidade incrível. Nenhum guarda tentou deter a debandada. Tomados de pânico, eles mesmos lideraram a horda numa corrida louca para o lugar que erroneamente consideraram o mais seguro: o mar. Os que fugiram para o alto da selada entre os dois vulcões tiveram, sem o saber, as melhores chances de sobrevivência.

Qual gigantes adormecidos, os vulcões gêmeos da ilha tornaram a despertar depois de séculos de inatividade. E rivalizaram em violência. O monte Winkleman foi o primeiro a entrar em erupção, com uma série de fissuras abertas ao longo de sua base, por onde brotaram longos rios de magma que, emergindo pelas rupturas, jorravam altos no ar. A cortina de fogo foi se espalhando à medida que se abriam passagens nas fissuras. Enormes quantidades de lava derretida se derramaram num fluxo implacável pelas vertentes e se disseminaram como um leque devastador, a aniquilar toda a vegetação que encontrassem no caminho.

A ferocidade da súbita tormenta jogou as árvores sobre as outras, para logo esmagá-las e incendiá-las, sendo que seus restos carbonizados foram varridos até a praia. As poucas árvores ou arbustos que escapa­ram ao infernal rolo compressor ficaram enegrecidas e mortas. O solo já estava coberto de pássaros que, asfixiados pelos gases e pela fumaça com que o monte Winkleman infestara a atmosfera, caíam do céu.

Como que guiado por mão divina, o lodo fatal inundou o complexo da segurança, mas passou a quase quinhentos metros do campo de detenção dos trabalhadores chineses, poupando desse modo a vida dos trezentos mineiros. Apesar de terrível em extensão, ele avançava a uma velocidade menor do que a de um homem correndo. O magma expelido pelo monte Winkleman, embora tivesse causado perdas incalculáveis, cobrou poucas vidas.

Chegou, porém, a vez do monte Scaggs.

Do fundo de suas entranhas, o vulcão que tinha o nome do capitão do Gladiator soltou um rugido gutural como o de cem trens cargueiros passando por um túnel. A cratera vomitou uma gigantesca nuvem de cinzas, muito maior do que a do monte Winkleman, que espiralou e girou no céu, espalhando-se numa negra massa mortífera. Por ominoso e atemorizador que parecesse, este foi apenas o prólogo do drama que se armava.

O flanco ocidental do morro não resistiu à pressão profundamente arraigada que subia de milhares de metros. A rocha liqüefeita, agora transformada numa pasta incandescente, irrompeu na superfície. Com incomensurável pressão, e abrindo uma fenda denteada no alto da ver­tente, liberou um inferno de vapores e lodo em ebulição, tudo acom­panhado de uma tremenda explosão, que espargiu o magma em milhões de fragmentos.

Uma gigantesca agitação de lava ardente foi disparada do flanco do morro como fogo de artilharia. Uma enorme quantidade de magma candente foi ejetada num fluxo piroclástico, uma tumultuosa combina­ção de fragmentos incandescentes de rocha e gás a altíssimas tempe­raturas que se deslocavam no chão qual um melado grosso, porém a velocidades que excediam os cento e sessenta quilômetros por hora. Ganhando ímpeto, ela se precipitou em avalanche pela encosta do vul­cão, com um rugido contínuo, desintegrando a ladeira e provocando um temível vendaval de enxofre.

O efeito do vapor superaquecido do fluxo piroclástico, à medida que avançava implacavelmente, era devastador, a tudo envolvia numa chuva de fogo e lodo escaldante. O vidro derreteu-se, as construções de pecira ficaram arrasadas, todo organismo vivo se reduziu instanta­neamente a cinzas. O férvido horror nada deixou de reconhecível em sua esteira.

A horrenda defluxão ultrapassou o toldo sinistro de cinzas que ainda cobria a ilha, e o magma em fogo mergulhou no coração da lagoa, fazendo ferver a água e criando uma incrível turbulência de vapores que ergueu no céu espiraladas colunas de fumaça branca. A outrora bonita lagoa não tardou a ficar soterrada sob uma feia camada de cinzas; o barro sujo e os detritos chegaram à frente do catastrófico fluxo da morte.

A ilha usada pela ambição de homens e mulheres, uma ilha que muitos acreditavam que merecia morrer, foi aniquilada. O pano desceu sobre sua agonia.

Giordino tinha levantado vôo com o helicóptero Augusta Mark II, de fabricação britânica, e alcançou uma distância segura da ilha Gla­diator antes que a golfada de rocha em brasa caísse no porto e no iate.

Não conseguia ver toda a extensão da devastação, encoberta pela imensa nuvem que atingira uma altura de três mil metros acima da ilha.

As incríveis erupções não foram somente uma cena de terrível malevolência, mas também de assombrosa beleza. Nelas havia qualquer coisa de irreal. Giordino teve a impressão de estar olhando para o pró­prio inferno.

A esperança retornou quando ele viu o iate colocar-se subitamente em movimento e singrar as águas da lagoa rumo ao canal aberto no recife. Gravemente ferido ou não, Pitt tentava afastar-se do porto. No entanto, por maior que fosse, a rapidez com que percorria o mar não era suficiente para vencer a nuvem de gases e as cinzas incandescentes que tudo ia carbonizando em seu caminho para a lagoa.

E a esperança não tardou a desaparecer, e foi com horror que Gior­dino viu o resultado da corrida desigual. O inferno avançou sobre a agitada esteira do iate, diminuindo cada vez mais a distância, até fi­nalmente encobrir a embarcação, tornando-a absolutamente invisível ao Augusta Mark II. A trezentos metros de altitude, a impressão era a de que ninguém tinha sobrevivido mais de alguns segundos naquele fogo infernal.

Giordino foi dominado pela angústia. Como era difícil estar vivo enquanto a mãe dos meninos, que viajavam no banco do co-piloto, e um amigo-irmão pereciam no holocausto lá embaixo! Praguejando con­tra a erupção, praguejando contra a sua impotência, ele desviou a vista daquele horrendo panorama. E foi com o rosto pálido que continuou voando, mais por instinto do que por experiência.

Sua dor, ele sabia, jamais teria remédio. A confiança e o bem-hu­morado otimismo que sempre o acompanharam tinham morrido com a ilha Gladiator. Ele e Pitt haviam percorrido um longo caminho, um sempre contando com o outro nos momentos de perigo. Pitt não era do tipo que morria, dissera Giordino em numerosas ocasiões, quando parecia que seu amigo já estava com o pé na cova. Pitt era indestrutível.

Uma chispa de fé começou a se acender dentro dele. Olhou para o mostrador dos tanques de combustível. Estavam cheios. Tendo exami­nado o mapa numa prancheta pendurada acima do painel de instru­mentos, decidiu rumar para oeste, na direção de Hobart, na Tasmânia, o lugar melhor e mais próximo onde aterrissar com as crianças. Quando os gêmeos estivessem a salvo, nas mãos das autoridades, reabasteceria e voltaria à ilha Gladiator, mesmo que fosse apenas para resgatar o corpo de Pitt e entregá-lo a seus pais em Washington.

Não ia abandonar o velho amigo. Não o fizera em vida e não o faria na morte. Curiosamente, começou a sentir-se mais à vontade. Depois de calcular o tempo de vôo até Hobart e de volta à ilha, pôs-se a con­versar com os garotinhos, que, já sem medo, olhavam com interesse para o mar.

Atrás do helicóptero, a ilha se tornou uma silhueta indistinta, com o mesmo contorno que uma vez, cento e quarenta anos antes, apresentou aos macilentos sobreviventes da jangada do Gladiator.

 

Quando teve certeza de que Giordino levantara vôo e estava a salvo no ar, Pitt se levantou com esforço, umedeceu uma toalha na pia do bar e a enrolou na cabeça de Maeve. A seguir, começou a empilhar sobre ela as almofadas, as cadeiras e todo móvel que conseguisse car­regar, até encobri-la por completo. Sem poder fazer mais para protegê-la do mar de fogo que se acercava, foi cambaleante para a casa do leme, segurando o lugar onde a bala, tendo perfurado o músculo abdominal, fizera uma pequena perfuração em seu cólon, para se alojar na bacia. O outro projétil havia resvalado numa costela, perfurado um pulmão e saído pelos músculos das costas. Lutando para não mergulhar de vez na negra e fantasmagórica mancha que lhe embaciava a vista, examinou os instrumentos e controles do painel da embarcação.

Ao contrário do helicóptero, os tanques de gasolina do iate estavam quase vazios. A tripulação de Dorsett só o abastecia quando um ou mais membros da família anunciava que ia viajar. Pitt achou as ala­vancas certas e pôs a funcionar os enormes motores turbodiesel Blitzen Seastorm. Mal começaram a funcionar, ligou os transmissores Casale V e empurrou os aceleradores. O convés trepidou sob seus pés quando a proa se ergueu e a água atrás da popa se agitou em espuma. Tomou o controle manual do leme, a fim de rumar para alto-mar.

As cinzas quentes se estenderam como um grosso cobertor. Ele che­gou a ouvir o crepitar e o rosnar da iminente tempestade de fogo. Rochas em chamas se precipitavam como granizo, chiando em nuvens de vapor ao atingir a água e afundar. Caíam infinitamente do céu depois de haver sido jogadas a uma grande distância pela tremenda pressão que saía do monte Scaggs. Depois de engolfar o porto, a coluna fatal deu a impressão de partir em perseguição do iate, rolando na lagoa feito um monstro encolerizado, vindo das profundezas do inferno. E não tardou para que estivesse sobre ele com toda a sua fúria, descendo sobre a embarcação numa massa em torvelinho de duzentos metros de altura antes que Pitt houvesse conseguido escapar da lagoa. O barco foi arremessado para a frente como se tivesse recebido um violentíssimo golpe da popa. O radar e as antenas de rádio foram arrancados, assim como os botes salva-vidas, as amuradas e os móveis do convés. O iate continuou atravessando a ardente turbulência como uma baleia ferida. Rochas incandescentes caíam no teto da superestrutura e nos conveses, transformando o outrora belíssimo iate numa ruína flutuante.

O calor na casa do leme abrasava como se tivessem espalhado uma untura quente nas costas de Pitt. Respirar tornou-se uma agonia, princi­palmente devido ao pulmão perfurado. Ele rogou com fervor que Maeve ainda estivesse viva no salão. Procurando desesperadamente o ar, com a roupa começando a queimar-se, o cabelo chamuscado, continuou segu­rando a roda do leme. O ar superaquecido lhe entrava dolorosamente pela garganta e pelos pulmões; cada inspiração era um martírio. O bramido da tempestade de fogo, em seus ouvidos, se misturava às batidas de seu coração e ao correr do sangue em suas veias. Os únicos recursos com que contava para resistir ao incandescente assalto eram o roncar constante dos motores e a sólida construção do iate.

Quando as janelas à sua volta começaram a se partir e esmigalhar-se, pensou que fosse morrer. Todo o seu pensamento, cada nervo, estava concentrado em seguir tocando o barco para a frente, como se a sua força de vontade, por si só, bastasse para obrigá-lo a avançar mais depressa. Mas então, o pesado manto de fogo se adelgaçou de súbito e começou a desfazer-se à medida que a embarcação avançava rumo ao mar aberto. A água cinzenta e suja foi se tornando verde-esmeralda, e o céu, safira. A onda de fogo e lodo escaldante finalmente perdera o ímpeto. Ele respirou o ar puro e salgado como um nadador enchendo os pulmões antes de mergulhar sem máscara nas profundezas. Sem saber da gravidade de seus ferimentos, preferiu não pensar nisso. E tratou de suportar a dor extrema com estoicismo.

Naquele momento, seu olhar foi atraído pela cabeça e pela parte superior do corpo de um imenso animal marinho que subiu à superfície a estibordo. Parecia uma enguia gigantesca, com uma cabeça redonda de uns dois metros de espessura. A boca semi-aberta exibia dentes afiadíssimos, em forma de presas arredondadas. Se estivesse esticado, Pitt calculou que seu corpo ondulado deveria alcançar trinta ou os qua­renta metros. E ele percorria a água numa velocidade pouco inferior à do iate. 


Quer dizer que Basil existe! — ele murmurou na casa do leme vazia, as palavras agravando o ardor em sua garganta.

Basil não era uma serpente marinha tola, concluiu. A enorme enguia estava abandonando seu escaldante hábitat, na lagoa, para buscar re­fúgio em alto-mar.

Logo que atravessou o canal, Basil mergulhou nas profundezas do oceano e, com um colear da cauda, desapareceu.

Pitt despediu-se dela com um aceno e voltou a prestar atenção ao painel. Os instrumentos de navegação já não estavam funcionando. Ten­tou enviar tanto pelo rádio quanto pelo telefone por satélite um pedido de socorro, mas ambos os aparelhos estavam mudos. Nada mais parecia funcionar, a não ser os poderosos motores, que continuavam impelindo o iate nas ondas. Sem conseguir ligar o navegador automático, ele aproou o barco para a costa sudeste da Austrália, amarrou o leme e regulou o acelerador a pouco além do ponto morto, para conservar as gotas de combustível que restavam. Um navio de resgate que viesse socorrer as vítimas da catástrofe da ilha Gladiator acabaria avistando o castigado iate, pararia e mandaria alguém investigar.

Com trôpego esforço, foi ter com Maeve. Receava profundamente encontrar seu corpo todo queimado. Vacilante, passou pela soleira da porta que separava o salão da casa do leme. O cômodo parecia ter sido varrido por um maçarico. O espesso e durável revestimento de fibra de vidro tinha contido boa parte do calor terrível, que no entanto pe­netrara pela vidraça das janelas. Era notável que o material inflamável dos sofás e das poltronas, embora muito chamuscado, não se tivesse incendiado.

Ele olhou de relance para Deirdre. Seu cabelo tão bonito se trans­formara numa pasta escura, seu olhos abertos estavam vidrados, a pele adquirira a cor de uma lagosta cozida. Sua roupa caríssima fumegava um pouco. Ela parecia uma boneca jogada num forno e, segundos de­pois, retirada. A morte a poupara de passar o resto da vida presa a um corpo imóvel.

Sem fazer caso da dor e dos ferimentos, ele afastou furiosamente os móveis empilhados sobre Maeve. Ela precisava estar viva, pensou de­sesperado. Devia estar esperando por ele em toda a sua dor por haver perdido uma vez mais os filhos. Pitt tirou a última almofada que a cobria e olhou para ela com temor. Experimentou uma deliciosa sen­sação de alívio ao vê-la erguer a cabeça e sorrir.

Maeve! — exclamou roucamente, inclinando-se e tomando-a nos braços. Só então viu a enorme poça de sangue que escorrera entre suas pernas e se havia espalhado no tapete. Estreitou-a mais, aninhando-lhe a cabeça em seu ombro, sentindo na face o roçar de seus lábios.

Suas sobrancelhas — ela sussurrou com um leve sorriso.

Que há com elas?

Estão chamuscadas. Seu cabelo também.

Não posso estar lindo e irresistível o tempo todo.

Para mim, sim. — Seus olhos se umedeceram, cheios de tristeza e preocupação. — Será que meus filhos se salvaram?

Ele fez que sim.

Al decolou minutos antes que a tempestade de fogo chegasse. Devem estar a caminho de uma praia segura.

Ela estava pálida como o luar. Parecia uma frágil boneca de porce­lana.

Eu nunca lhe contei que o amo.

Eu sabia — murmurou ele, lutando para não chorar.

Você também me ama, mesmo que só um pouquinho?

Eu a amo com todo o meu coração.

Ela roçou os dedos em seu rosto machucado.

Meu bom amigo, sempre disposto a me ajudar. Abrace-me com força. Quero morrer nos seus braços.

Você não vai morrer — disse ele, incapaz de evitar que seu coração se partisse em cacos. — Vamos viver uma longa vida juntos, singrando os mares e criando um punhado de meninos que saberão nadar como peixes.

Dois marinheiros perdidos, querendo ver o mundo.

E há tanto a ver no mundo... — sorriu Pitt.

Leve-me com você, Dirk, leve-me aonde você for... — Sua ex­pressão era quase de felicidade.

Seus olhos se fecharam lentamente. O corpo amoleceu como uma delicada flor ante um vento gelado. O rosto ficou sereno como o de uma criança dormindo. Ela acabava de atravessar o rio e estava espe­rando na outra margem.

Não! — gritou Pitt, como um animal ferido a uivar na noite.

Sentiu que sua vida também se esvaía. Já nada lhe interessava. Não havia mais por que resistir à negra bruma que o envolvia. E, abando­nando a realidade, ele abraçou a escuridão.

 

O plano de Giordino de retornar depressa à ilha Gladiator se frustrou quase desde o começo. Depois de usar o sofisticadíssimo sistema de comunicações por satélite do Augusta, para entrar em contato com San­decker a bordo do Glomar Explorer, no Havaí, comunicou-se com uni­dades de resgate em terra e ar tanto na Austrália quanto na Nova Zelândia, e foi a primeira pessoa a anunciar o desastre ao mundo. Du­rante o resto do vôo a Hobart, foi continuamente assediado por altos funcionários do governo australiano e jornalistas da televisão, exigindo relatos sobre a erupção e uma avaliação dos danos.

Ao se aproximar da cidade principal da Tasmânia, passou pelas co­linas baixas que limitam Hobart, cujo distrito comercial ficava na mar­gem ocidental do rio Derwent. Localizando o aeroporto, chamou a torre. Os controladores de vôo o orientaram para pousar numa área militar a meio quilômetro do terminal. Ao sobrevoar a pista de aterrissagem, ficou admirado com a multidão que se agitava no lugar.

Quando desligou o motor e abriu a porta de passageiros, tudo ocorreu de forma ordenada. Os funcionários da imigração subiram a bordo e tomaram as providências necessárias para que ele pudesse entrar na Austrália sem passaporte. As autoridades do serviço social assumiram a custódia dos filhos de Maeve, garantindo-lhe que os entregariam ao pai assim que o localizassem.

Então, quando ele finalmente pôs os pés no solo, morrendo de fome e exausto além de todos os limites, viu-se cercado por um exército de repórteres, que, segurando microfones diante de seu nariz e apontando câmeras para seu rosto, crivaram-no de perguntas sobre a erupção.

A única resposta que ele se dignou a dar, com um sorriso, foi a que confirmava Arthur Dorsett como uma das primeiras vítimas do holo­causto.

Por fim, livrando-se dos jornalistas e chegando ao escritório da polícia do aeroporto, Giordino telefonou para o consulado norte-americano, que, embora com relutância, concordou em pagar o reabastecimento do helicóptero, mas unicamente por razões humanitárias. Seu vôo de volta à ilha Gladiator foi novamente adiado quando o diretor da Defesa Civil da Austrália lhe solicitou que ajudasse a transportar no Augusta alimento e remédios para a ilha. O italiano concordou de boa vontade e ficou andando impaciente no asfalto, junto ao helicóptero que, en­quanto era reabastecido, tinha removidos os bancos de passageiros, para que houvesse mais espaço para as provisões que ele ia levar a bordo. Ficou agradecido quando um dos funcionários da Defesa Civil lhe mandou um saco cheio de sanduíches de queijo e várias garrafas de cerveja.

Para sua surpresa, um carro se aproximou e o motorista lhe notificou a iminente chegada de Sandecker. Ele olhou para o homem como se estivesse diante de um louco. Fazia apenas quatro horas que se comu­nicara com o almirante no Havaí. A confusão ficou esclarecida quando aterrissou na pista um caça supersônico F-22A, da Marinha dos Estados Unidos. Giordino ficou vendo o aparelho capaz de velocidades incríveis taxiar rumo ao lugar onde ele havia estacionado o helicóptero. A capota se abriu, e Sandecker, com macacão de piloto, desceu pela asa. Sem esperar que lhe trouxessem uma escada, pulou no asfalto. Com passos largos, foi diretamente ao encontro de Giordino e o apertou num abraço de urso.

Albert, não imagina como estou contente por vê-lo!

Eu preferia não ser o único a recebê-lo aqui — disse o italiano com tristeza.

É inútil ficar nos consolando. — Sandecker estava com o rosto cansado e enrugado. — Vamos procurar Dirk.

Não quer se trocar primeiro?

Eu tiro o macacão quando estivermos indo para lá. Posso devol­vê-lo à Marinha na volta.

Menos de cinco minutos depois, com duas toneladas de material no compartimento de carga improvisado, eles estavam no ar, a caminho do mar da Tasmânia e dos restos fumegantes da ilha Gladiator.

 

Os barcos de resgate da Marinha da Austrália e da Nova Zelândia tinham sido imediatamente mandados para a ilha com material hospi­talar e pessoal médico. Todos os navios comerciais, num raio de duzentas milhas marítimas, foram convocados a prestar os socorros pos­síveis no local do desastre. Surpreendentemente, não se perderam tantas vidas quanto se suspeitou a princípio. A maioria dos operários chineses escapou ilesa da chuva de fogo e do rio de lava. A metade dos super­visores de mina sobreviveu, embora só sete dos oitenta seguranças de Arthur Dorsett tivessem sido encontrados vivos e com graves queima­duras. Posteriormente, a autópsia revelaria que quase todos morreram sufocados ao inalar cinza.

No final da tarde, a erupção tinha perdido substancialmente a força. O magma continuava escorrendo nas fissuras dos vulcões, porém em pequena quantidade. Os vulcões se haviam convertido em meras som­bras de sua forma anterior. O Scaggs tinha quase desaparecido, dei­xando apenas uma vasta e horrenda cratera. O Winkleman conservava sua massa compacta, porém estava reduzido a um terço da altura an­terior.

O toldo de cinzas seguia pairando sobre os vulcões quando Giordino e Sandecker chegaram à ilha devastada. Era como se a maior parte do lado oeste da massa de terra tivesse sido arrasada por um gigantesco ancinho. A lagoa era um pântano entupido de escombros e pedras-pomes flutuantes. Pouco sobrou das minas da Dorsett Consolidated. O que não ficou enterrado na cinza emergia como as ruínas de uma ci­vilização havia mil anos extinta. A destruição da vegetação foi prati­camente total.

O coração de Giordino quase parou quando ele não viu sinal do iate na lagoa. O porto estava queimado e afundara na água coberta de cinzas junto aos armazéns demolidos.

Sandecker ficou horrorizado. Não tinha idéia das dimensões da ca­tástrofe.

Tanta gente morta... — murmurou. — Por minha culpa, tudo por minha culpa!

Giordino pousou nele um olhar compreensivo.

Para cada habitante morto, há dez mil pessoas que lhe devem a vida.

Mesmo assim... — disse o almirante com voz embargada.

Giordino sobrevoou um navio de resgate que já estava ancorado na lagoa. Começou a diminuir a velocidade, preparando-se para descer num espaço aberto pelos engenheiros do Exército australiano, que ti­nham sido os primeiros a saltar de pára-quedas no local da catástrofe. A hélice ergueu um remoinho de cinzas, obstruindo-lhe a visão. Ele parou no ar e começou a descer lenta e cautelosamente. Pilotando às cegas, aterrissou o Augusta com um baque forte. Respirou fundo e suspirou ao desligar o motor.

A nuvem de cinza ainda não se havia dissipado quando um major do Exército australiano, coberto de poeira da cabeça aos pés e acom­panhado de um ordenança, aproximou-se correndo e abriu a porta.

Major O'Toole — apresentou-se com um largo sorriso. — Prazer em vê-los. Vocês são o primeiro socorro a chegar à ilha.

Nossa missão é dupla, major — disse Sandecker. — Além de trazer suprimento, estamos procurando um amigo que foi visto pela última vez no iate de Arthur Dorsett.

O'Toole encolheu os ombros e sacudiu a cabeça.

Deve ter afundado. Vai demorar para que a maré limpe a lagoa a ponto de se poder fazer buscas submarinas.

Não perdemos a esperança de que tenha conseguido ir para alto- mar.

Ele se comunicou com vocês?

Sandecker sacudiu a cabeça.

Eu lamento — disse o major. — É muito difícil que tenha con­seguido escapar da erupção.

Eu também lamento. — Sandecker ficou um momento distraído, pensativo, esquecido da presença do oficial australiano parado à porta. Mas logo se recompôs. — Podemos ajudá-lo a descarregar o aparelho?

Qualquer ajuda será bem-vinda. Quase todos os meus homens estão ocupados em localizar sobreviventes.

Com o auxílio de um dos oficiais de O'Toole, as caixas de alimento e medicamento foram retiradas do compartimento de carga e empilha­das a certa distância do helicóptero. A frustração e a tristeza calaram todas as palavras entre Giordino e o almirante quando eles voltaram para a cabine e se prepararam para retornar a Hobart.

Exatamente quando o rotor começou a funcionar, O'Toole veio cor­rendo, agitando as mãos. Giordino abriu a janela lateral e pôs a cabeça para fora.

Queria avisá-los — gritou o major. — Meu oficial de comunicações acaba de receber um relatório de um navio de resgate. Eles avistaram um barco perdido derivando a aproximadamente vinte e quatro qui­lômetros a noroeste da ilha.

A tristeza estampada no rosto do italiano esvaneceu-se.

Eles pararam para procurar sobreviventes?

Não. O barco estava muito danificado e parecia abandonado. O capitão achou prioritário chegar à ilha com uma equipe de médicos.

Obrigado, major. — Giordino se voltou para Sandecker. — O senhor ouviu?

Ouvi — respondeu o almirante com impaciência. — Ponha logo esta geringonça no ar.

Não era preciso apressá-lo. Dez minutos depois de decolar, eles avis­taram o iate quase exatamente onde o capitão do navio de resgate in­dicara, boiando passivamente em meio às ondas mansas. Deslocava-se lentamente na água, com um adernamento de dez graus a bombordo. A parte superior parecia ter sido varrida por uma gigantesca vassoura. Seu outrora vistoso casco safira estava enegrecido, e os conveses, co­bertos de cinza escura. Dava a impressão de estar chegando do inferno.

O heliponto parece em ordem — comentou o almirante.

Giordino se alinhou com a popa do iate e começou a descer lenta­mente, com uma ligeira inclinação. O mar sem espuma indicava pouco vento, mas o movimento e a adernação do iate dificultaram o pouso. Ele reduziu a aceleração e pairou num ângulo adequado ao da embar­cação, sincronizando o pouso com o instante em que ela balançasse com um vagalhão. No momento exato, o Augusta inclinou-se, pairou alguns segundos e desceu no convés superior. O italiano acionou imediatamente os freios, para evitar que o helicóptero escorregasse e caísse no mar, e desligou o motor. Agora, que tinha pousado são e salvo, pensou no temor do que haveriam de encontrar.

Saltou primeiro e amarrou rapidamente o aparelho. Hesitando um momento para tomar fôlego, ambos atravessaram o convés chamuscado e entraram no salão principal.

Ao ver os dois vultos inertes encolhidos a um canto, Sandecker sa­cudiu a cabeça, desacorçoado. Fechou e apertou os olhos, refreando uma onda de angústia. Era tão horrenda e cruel aquela cena que ele não conseguiu se mover. Não havia sinal de vida. Com o coração di­lacerado, ele ficou olhando, confuso e triste. Os dois deviam estar mor­tos, pensou.

Pitt tinha Maeve nos braços. Um lado de seu rosto era uma máscara de sangue seco, que escorrera da ferida provocada por Boudicca. Seu peito e sua ilharga também estavam manchados de vermelho-escuro. A roupa rasgada, as sobrancelhas e o cabelo completamente chamus­cados, as queimaduras no rosto e nos braços, tudo lhe conferia a imagem de um homem mutilado por uma explosão. Devia ter tido uma morte horrível.

Maeve parecia haver morrido sem saber que seu sono seria eterno. Com um brilho de cera nas belas feições, lembrava uma vela branca e ainda não queimada, uma bela adormecida que beijo algum voltaria a despertar.

Giordino se ajoelhou perto de Pitt, recusando-se a acreditar que o velho amigo estivesse morto. Sacudiu-lhe delicadamente o ombro.

Dirk! Fale comigo, compadre.

Sandecker tentou afastá-lo.

Ele morreu — disse num triste sussurro.

Nesse instante, tão inesperadamente que os dois homens ficaram paralisados pela incredulidade e o choque, Pitt abriu lentamente os olhos. Olhou para Giordino e o almirante sem compreender, sem reconhecê-los.

Seus lábios tremeram quando ele murmurou:

Oh, Deus, perdoai-me, eu a perdi.

 

A POEIRA ASSENTA

Na sala, desta vez, nada havia da tensão da reunião anterior, em Paris. A atmosfera estava descontraída, quase festiva. Os diretores do Conselho Multilateral de Comércio mostraram-se bem mais consensuais para discutir suas mais recentes negociações internacionais.

Todas as cadeiras ao redor da longa mesa de ébano estavam ocu­padas. O presidente fez uma pausa, esperando que cessassem as con­versas paralelas, para então dar início aos trabalhos.

Cavalheiros, de nossa última reunião para cá aconteceu muita coisa. Na época, estávamos confrontados com uma ameaça. Agora, gra­ças a um capricho da natureza, o plano de destruir o mercado de dia­mante morreu juntamente com Arthur Dorsett.

Há males que vêm para bem — disse o diretor do cartel do dia­mante, rindo. Mal conseguia acreditar na sensação de triunfo que pro­vava nem no alívio que sentia por ver-se livre de uma ameaça tão grave sem ter precisado envolver-se numa guerra custosa.

Isso mesmo! Isso mesmo! — ecoaram as vozes.

Tenho o prazer de informar — continuou o presidente — que o preço de mercado dos diamantes subiu dramaticamente nos últimos dias, ao passo que o das gemas coloridas sofreu uma queda substancial.

O homem grisalho, chefe de uma das famílias mais ricas dos Estados Unidos e ex-secretário de Estado falou, da outra extremidade da mesa:

Quem garante que os diretores da Dorsett Consolidated Mining não levarão a cabo os planos de Arthur de despejar diamantes no mer­cado por meio de sua vasta cadeia de joalherias?

O industrial belga de Antuérpia fez um gesto e disse:

Arthur Dorsett era um megalomaníaco. Seu sonho de grandeza não incluía os outros. Ele dirigia suas atividades extrativas e as operações de venda sem o auxílio de uma equipe diretora. Arthur era um time de um só homem. Não confiava em ninguém. Ocasionalmente, contratava um conselheiro de fora, um especialista qualquer, espremia-o, tirava dele o que fosse possível e depois jogava-o na rua. Dirigia a Dorsett Consolidated sozinho, não compartilhava o comando com nin­guém.

O armador italiano sorriu.

— Tenho vontade de subir nos vulcões que acabaram com Arthur Dorsett e seu império do mal e esvaziar uma garrafa de champanhe em cada cratera!

— Os havaianos costumam fazer exatamente isso na cratera do Kilauea — disse o americano.

Acharam o corpo dele? — quis saber o magnata japonês da ele­trônica.

O presidente sacudiu a cabeça.

Segundo as autoridades australianas, ele não chegou a sair da mansão, que estava exatamente no caminho do fluxo de lava. Seu corpo, ou o que resta dele, encontra-se sob vinte metros de cinza vulcânica e lava endurecida.

É verdade que suas três filhas também morreram? — perguntou o italiano.

Uma delas morreu na casa, com Arthur. As outras duas foram encontradas mortas num iate incendiado. Tudo indica que estavam ten­tando fugir do holocausto. Devo acrescentar que há um toque de mis­tério no caso. Minhas fontes, no governo australiano, dizem que uma das filhas morreu baleada.

Assassinada?

Segundo os boatos, elas se mataram.

O chefe do império eletrônico japonês voltou-se para o diretor do cartel do diamante.

Agora que Arthur Dorsett está morto, o senhor pode nos dizer quais são as perspectivas de seu mercado?

Impecavelmente vestido, o rei do diamante sul-africano sorriu.

Não poderiam ser melhores. Os russos acabaram se mostrando muito aquém da ameaça inicialmente prevista. Suas tentativas de con­turbar o mercado saíram pela culatra. Depois de vender boa parte do estoque de pedras brutas aos lapidadores de Telavive e Antuérpia a preços reduzidos, porém ainda substancialmente mais elevados do que pretendia Arthur Dorsett, suspenderam a produção. A crise da indústria russa levou a produção de diamante a uma virtual paralisação.

Ea Austrália e o Canadá? — indagou o holandês.

As minas australianas não são tão grandes quanto originalmente se supunha, e o rush do diamante canadense decaiu muito. Eles não têm apresentado pedras de qualidade, nem em grande quantidade. Atualmente, não existe um só projeto de construção de uma grande mina comercial no Canadá.

As mudanças radicais na estrutura política da África do Sul não tiveram efeito em suas atividades?

Nós trabalhamos em estreita colaboração com Nelson Mandela desde o fim do apartheid. Posso dizer com segurança que, em breve, ele vai introduzir um novo sistema de tributação que nos trará grandes vantagens.

O representante do cartel do petróleo debruçou-se na mesa.

Tudo isso parece animador, mas os seus lucros lhe permitirão ajudar a atingir o objetivo do Conselho Multilateral, de uma ordem econômica mundial única?

Fique descansado — respondeu o sul-africano. — O cartel honrará todos os compromissos. A demanda de diamante no mundo está au­mentando e nossos lucros devem se expandir nos primeiros dez anos do novo século. Sem dúvida, podemos fazer a nossa parte quanto aos encargos monetários.

Quero agradecer ao cavalheiro da África do Sul por seu relatório confidencial — disse o presidente.

Que será da Dorsett Consolidated daqui por diante? — quis saber o xeique.

Legalmente — respondeu o presidente —, tudo passará para as mãos dos dois netos de Arthur.

Que idade têm eles?

Uns seis ou sete anos.

Tão meninos?

Eu não sabia que uma de suas filhas era casada — disse o cons­trutor indiano.

Não era — replicou o presidente. — Mesmo assim, Maeve Dorsett teve dois filhos. O pai é de uma rica família de criadores de ovelhas. Meus informantes dizem que se trata de um homem inteligente e sen­sato. Já foi nomeado tutor dos meninos e autorizado a administrar as propriedades imobiliárias.

O holandês olhou para o presidente.

Quem foi nomeado para administrar as empresas dos garotos?

Um nome que vocês todos conhecem bem. — O presidente fez uma pausa e sorriu com ironia. — Até que os herdeiros atinjam a maioridade, as atividades cotidianas da Dorsett Consolidated e suas filiais serão dirigidas pela família Strouser.

Não deixa de ser um castigo — comentou o americano.

Que planos há para o caso de o mercado do diamante entrar em colapso? Não podemos controlar os preços eternamente.

Eu respondo à pergunta — interveio o sul-africano. — Quando já não tivermos condições de controlar os preços do diamante, aban­donaremos as caríssimas atividades mineiras e iremos nos concentrar nas pedras produzidas em laboratórios.

E essas imitações são boas? — indagou o publicista britânico.

Os laboratórios químicos já estão produzindo esmeraldas, rubis e safiras cultivados com as mesmas propriedades físicas, químicas e ópticas das pedras extraídas do solo. São tão perfeitas que os mais experientes gemólogos têm dificuldade para detectar diferenças. O mes­mo vale para os diamantes criados em laboratórios. É a nova onda do futuro, se quiser chamar assim.

A sala ficou um momento em silêncio. Todos refletiam sobre os lucros potenciais. Então, o presidente sorriu e fez um gesto com a cabeça.

Ao que tudo indica, cavalheiros, seja qual for o lado para o qual oscile o pêndulo, nossos ganhos futuros estão garantidos.

Pitt tivera sorte, como não cessavam de dizer todas as enfermeiras do hospital de Hobart, na Tasmânia. Depois de enfrentar a peritonite provocada pela perfuração no cólon, e uma vez removida a bala, que lhe deixou uma visível depressão na bacia, ele começou a sentir que voltava à vida. Assim que seu pulmão melhorou, permitindo-lhe res­pirar normalmente, passou a comer feito um leão esfaimado.

Giordino e Sandecker ficaram por lá até que a equipe médica os convencesse de que Pitt estava em plena recuperação, fato comprovado por seus pedidos, ou melhor, suas exigências, de algo para beber que não fosse suco de fruta nem leite. Exigências de que ninguém fez caso.

Então, o almirante e Giordino levaram os filhos de Maeve a Melbourne e os entregaram ao pai, que viera da fazenda de sua família, no interior, para o enterro de Maeve. Alto e forte, australiano até a medula, com di­ploma universitário em criação de animais, ele prometeu a Sandecker e a Giordino que criaria os meninos num ambiente sadio. Embora tivesse con­fiança na competência da Strouser & Filhos e no modo como administraria a Dorsett Consolidated Mining, teve a sensatez de contratar advogados que defendessem os interesses dos gêmeos. Satisfeitos por saber que estes se encontravam em boas mãos e que Pitt em breve estaria em condições de voltar para os Estados Unidos, o almirante e Giordino retornaram a Washington, onde aquele foi recebido em festa e teve de comparecer a inúmeros banquetes como o herói que oferecera um combate unilateral para livrar Honolulu de um trágico desastre.

As intenções do presidente ou de Wilber Hutton de afastá-lo da direção da ANPS desapareceram. Segundo se dizia na capital do país, o almirante continuaria à cabeça de sua amada Agência Nacional de Pesquisas Subaquáticas muito tempo depois que a atual administração deixasse a Casa Branca.

O médico entrou no quarto e deu com Pitt parado à janela, olhando pensativo para o rio Derwent, que atravessava Hobart.

Você devia estar na cama — disse com seu sotaque australiano.

Pitt o encarou seriamente.

Eu passei cinco dias num colchão em que nem mesmo uma pre­guiça agüentaria ficar. Já fiz a minha parte. Agora vou dar o fora daqui.

Você sabe que não tem roupa. Os trapos que estava usando quando o trouxeram para cá foram para o lixo.

Então eu vou embora com o roupão e este ridículo camisão de hospital. Aliás, quem inventou esta porcaria devia enfiá-la no cu, até que as alças cias costas lhe saíssem pelas orelhas.

Já vi que é perda de tempo discutir com você. — O médico deu de ombros. — É um milagre que seu corpo ainda esteja funcionando. Raramente se vê um cara com tantas cicatrizes. Vá embora, se quiser. Vou ver se a enfermeira arranja uma roupa decente para que você não acabe sendo preso por bancar o turista americano.

Desta vez Pitt não viajou num jato da ANPS. Teve de se contentar com um vôo comercial da United Airlines. Quando entrou no avião, ainda rígido e sentindo uma dor aguda no lado, as comissárias e o único comissário de bordo olharam para ele com indisfarçável curio­sidade, vendo-o procurar o número da poltrona. Uma delas, de cabelos castanhos bem-cuidados e com preocupação nos olhos quase tão verdes quanto os dele, aproximou-se.

Quer que o ajude a procurar seu lugar, senhor?

No hospital, Pitt tinha passado um bom minuto olhando-se no es­pelho antes de tomar o táxi para o aeroporto. Achava que, se tivesse se candidatado ao papel de zumbi num filme de terror, o diretor o teria contratado sem pestanejar: a cicatriz avermelhada na testa; os olhos fundos, vagos e vermelhos no rosto pálido; os movimentos de um velho de noventa anos assolado pela artrite. Sua pele estava cheia de quei­maduras, as sobrancelhas tinham desaparecido e seu cabelo preto, outrora denso e crespo, parecia ter sido tosquiado por um barbeiro louco.

Quero sim, obrigado — respondeu ele, mais por timidez do que por interesse.

O senhor é Dirk Pitt? — perguntou ela, apontando para um assento vazio à janela.

No momento, eu preferia ser qualquer outra pessoa, mas sou eu mesmo, Pitt.

O senhor é um homem de sorte — sorriu a moça.

Foi o que me disseram as enfermeiras.

— Não, o que estou querendo dizer é que tem amigos que estão muito preocupados com o senhor. A tripulação foi avisada de que estaria neste vôo e pediram que o deixássemos o mais à vontade possível.

Como, diabos, Sandecker sabia que ele tinha fugido do hospital, fora diretamente ao aeroporto e havia comprado uma passagem no balcão?

Pitt deu pouco trabalho aos comissários de bordo. Dormiu durante quase toda a viagem, despertando apenas para comer, assistir a um filme em que Clint Eastwood fazia papel de avô e tomar um champanhe. Só se deu conta de que estava no Dulles International quando os pneus tocaram o solo, e ele acordou.

Desceu do ônibus que o levou da aeronave ao terminal algo surpreso e decepcionado, porque ninguém viera esperá-lo. Se Sandecker tinha avisado a tripulação do avião, decerto devia saber a que horas chegaria. Nem mesmo Al Giordino esperava na calçada quando ele foi tropegamente para o ponto de táxi. Um caso típico de esquecimento e desin­teresse, pensou, deprimido.

Eram oito horas da noite quando Pitt desceu do táxi, digitou o código do sistema de segurança do hangar e entrou. Acendeu as luzes, que se refletiram na pintura e no cromo da coleção de carros.

Topou com um objeto alto, que quase chegava ao teto, um objeto que não estava lá quando partira. Passou um bom tempo olhando, fascinado, para o totem. Uma águia habilidosamente entalhada abria as asas no alto. A seguir, em ordem descendente, vinham um urso cinzento com seu filhote, um corvo, uma rã, um lobo, uma espécie de animal marinho e uma cabeça humana, na base, que se parecia remo­tamente com ele. Leu um bilhete pregado na orelha do lobo.

 

Por favor, aceite esta coluna comemorativa em sua homenagem como sinal de nossa gratidão por tudo o que fez para impedir a destruição de nossa sagrada ilha. A mina Dorsett foi fechada e, em breve, os animais e as plantas retornarão a seu lar. Agora, você é um membro honorário da tribo haida.

Seu amigo,

Mason Broadmoor.

 

Pitt ficou profundamente comovido. Receber uma obra-prima de tal significado era um privilégio raro. Sentiu muita gratidão por Broadmoor e seu povo pelo generoso presente.

Depois, caminhou ao redor do totem e sentiu o coração quase parar. A incredulidade lhe nublou os olhos verdes. Logo, porém, a admiração deu lugar a um vazio e a muita tristeza. Bem atrás dele, em meio aos automóveis clássicos, encontrava-se nada menos que o Linda Maeve.

Castigado, quase destruído, lá estava ele, cheio de glória. Pitt não foi capaz de imaginar como o barco fiel conseguira sobreviver à erupção e percorrera os milhares de quilômetros até Washington. Era como se tivessem feito um milagre. Aproximando-se, estendeu a mão e lhe tocou a proa para verificar se não se tratava de uma alucinação.

No momento em que a ponta de seus dedos roçaram a dura superfície do casco, pessoas começaram a sair de trás do vagão Pullman estacio­nado junto a uma parede do hangar, assim como de dentro dos carros e do apartamento do andar superior, onde estavam escondidas. De repente, ele se viu cercado por uma pequena multidão de rostos fami­liares, todos gritando "surpresa" e "seja bem-vindo".

Giordino o abraçou com delicadeza, sem se esquecer de seus ferimentos. O almirante Sandecker, sempre arredio a manifestações emocionais, aper­tou-lhe calorosamente a mão e virou o rosto quando as lágrimas lhe inun­daram os olhos. Rudi Gunn estava lá, com Hiram Yaeger e outros quarenta amigos e colegas da ANPS. Também seus pais tinham vindo cumprimen­tá-lo. O senador George Pitt, da Califórnia, e a esposa, Barbra, ficaram chocados com o aspecto abatido do filho, mas se comportaram bravamente, fazendo de conta que ele estava em forma. Julien Perlmutter se encarregou da comida e da bebida. A congressista Loren Smith, amiga íntima havia quase dez anos, beijou-o com ternura, triste por ver seu olhar cansado, eivado de dor e sem brilho.

Pitt olhou para o pequeno barco que o servira com tanta lealdade. E, sem hesitar, voltou-se para Giordino.

Como vocês conseguiram?

O italiano exibiu um sorriso de triunfo.

Quando o deixei no hospital, na Tasmânia, voltei para a ilha com outra carga de suprimento. Ao passar rapidamente pelas colinas do leste, vi que o Linda Maeve tinha sobrevivido à erupção. Com a ajuda de alguns engenheiros australianos, prendemos o barco ao cabo do helicóptero. Eu o icei ao topo do penhasco, onde desmontamos o casco. Deu um pouco de trabalho, mas as partes que não couberam no heli­cóptero foram amarradas sob a fuselagem. Então, voltei à Tasmânia, onde consegui convencer o piloto de um avião cargueiro que vinha para os Estados Unidos a trazê-lo. Com a ajuda da equipe da ANPS, consegui montá-lo antes da sua chegada.

Você é um amigão — disse Pitt com sinceridade. — Não sei como hei de agradecê-lo.

Sou eu quem deve agradecê-lo — respondeu o italiano.

E uma pena que eu não tenha podido ir ao enterro de Maeve, em Melbourne.

O almirante e eu comparecemos, com os meninos e o pai. Como você pediu, eles tocaram Moon River quando o caixão baixou à sepultura.

Quem fez o discurso?

O almirante leu as palavras que você escreveu — disse Giordino com tristeza. — Não houve quem não chorasse.

E Rodney York?

Mandamos as cartas e o diário de bordo à Inglaterra pelo correio. A viúva de York ainda mora com a família em Falmouth Bay, uma velhinha adorável de quase oitenta anos. Telefonei para ela depois. Ficou felicíssima por finalmente saber como York morreu. A família pretende levar os restos mortais para a Inglaterra.

Estou contente em saber que ela agora conhece a história — disse Pitt.

Ela pediu que lhe agradecesse a atenção.

Pitt já estava ficando com os olhos marejados quando Perlmutter o salvou, oferecendo-lhe um cálice de vinho.

Você vai gostar, garotão. É um excelente chardonnay da vinha de Plum Creek, em Colorado.

Passada a surpresa, a festa se prolongou animadamente até depois de meia-noite. Os amigos continuaram a chegar e a partir até que Pitt começasse a lutar para se manter acordado. Por fim, a mãe insistiu para que ele fosse se deitar. Todos lhe desejaram boa-noite, um pronto restabelecimento e decidiram retirar-se.

Não apareça no trabalho enquanto não estiver em plenas condições — recomendou Sandecker. — A ANPS pode se agüentar um tempo sem você.

Há um projeto de que eu gostaria de participar dentro de mais ou menos um mês — disse Pitt, com o velho ar de bucaneiro nos olhos.

Que projeto?

Pitt riu.

Quero ir para a ilha Gladiator quando a água da lagoa estiver limpa.

Que espera encontrar lá?

Basil.

Sandecker o fitou, intrigado.

Quem, diabos, é esse Basil?

Essa. É uma serpente marinha. Acho que vai voltar para casa quando a lagoa estiver livre de cinzas e escombros.

Sandecker pôs a mão no ombro de Pitt e lhe endereçou um olhar normalmente reservado às crianças que afirmam ter visto o bicho-papão.

Trate de descansar, meu rapaz. Depois nós falamos nisso.

O almirante se voltou e saiu, sacudindo a cabeça e resmungando baixinho. A deputada Loren Smith se aproximou de Pitt e lhe segurou a mão.

Quer que eu fique com você? — perguntou em voz baixa.

Pitt lhe beijou a fronte.

Obrigado, mas acho que prefiro ficar sozinho.

Sandecker ofereceu uma carona a Loren, que aceitou alegremente, pois tinha vindo de táxi. Viajaram em silêncio até que o carro atraves­sasse a ponte rumo à cidade.

— Nunca vi Pitt tão desanimado — disse Loren com tristeza. — Não imaginava que fosse viver para dizer isso, mas ele perdeu todo o entusiasmo pela vida.

Isso passa — garantiu o almirante. — Algumas semanas de re­pouso, e ele voltará a ser o que era.

Não acha que Pitt já passou da idade de bancar o aventureiro destemido?

Não sou capaz de imaginá-lo sentado atrás de uma escrivaninha. Ele nunca vai deixar de singrar os mares, de fazer o que mais ama na vida.

Por que ele é assim?

Alguns homens já nascem inquietos — filosofou Sandecker. — Para Dirk, cada hora tem um mistério a ser desvendado; cada dia, um desafio a enfrentar.

Loren olhou para o almirante.

Você o inveja, não?

Ele concordou.

É claro que sim. E você também.

Por quê?

A resposta é simples — disse o almirante com sabedoria. — Há um pouco de Dirk Pitt em cada um de nós.

Quando todos partiram e Pitt se viu sozinho no hangar, em meio à coleção de tesouros mecânicos, cada um dos quais fazia, de um ou de outro modo, parte de seu passado, caminhou com passos rígidos até o barco que havia construído com Maeve e Giordino, nas ilhas Miséria, e entrou na cabine. Passou muito tempo ali, perdido em lembranças.

Ainda estava sentado no Linda Maeve quando os primeiros raios do sol banharam o telhado enferrujado do velho hangar que ele chamava de lar.

 

                                                                               Clive Cussler 

 

 

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