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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Choque / Robin Cook
Choque / Robin Cook

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Choque

 

A célula do óvulo humano, ou o ócito, que tinha sido atraída pela ligeira sucção da ponta aguçada da pipeta, não se distinguia das suas cerca de sessenta irmãs. Era simplesmente a mais próxima da extremidade da pequena vareta de vidro quando esta entrou no campo de visão do analista. o grupo de oócitos estava suspenso numa gota de fluido de cultura, sob uma fina camada de óleo mineral, e debaixo da objectiva de um potente microscópio de dissecação. o óleo impedia a evaporação. Era sumamente importante que o ambiente destas células vivas permanecesse adequadamente estável.

Tal como os outros, o oócitofixado parecia saudável, com uma granulosidade apropriada do respectivo citoplasma. Também como os outros, a sua cromatina, ou ADN brilhava à luz ultravioleta como moscas diminutas numa bruma de sopa de ervilhas. A única prova da prévia rude aspiração da célula do seu folículo em desenvolvimento residia nos restos esfarrapados da corona radiata de células granulosas aderentes ao invólucro, comparativamente denso, denominado zona peflucida. Os oócitos haviam sido todos puxados prematuramente do seu ninho ovariano e encorajados a amadurecer in vitro. Nesse momento, estavam prontos para a penetração espermática, mas não seria o caso. Estes gâmetasfemininos não seriamfertilizados.

Surgiu outra pipeta no campo de visão. Parecia um instrumento mais letal, especialmente debaixo daforte ampliação do microscópio. Apesar de ter somente vinte e cinco milionésimos de um metro de diâmetro, parecia uma espada com a ponta afiada como uma agulha. Inexoravelmente, acercou-se do gâmeta imóvel e indefeso e entrou na zona pelucida da célula. Em seguida, com um toque experiente do analista no micrómetro que controlava a pipeta, a ponta desta mergulhou no interior da célula. Avançando para o ADN brilhante, aplicou-se uma ligeira sucção no interior da pipeta e o ADN desapareceu dentro da vareta de vidro.

Mais tarde, depois de verificar se o gâmeta e os seus irmãos tinham aguentado o suplício da enucleação tão bem como se esperava, a célula voltou a ser imobilizada. Introduziu-se outra pipeta afiada, desta vez com a penetração limitada à zona Peflucida, poupando a membrana celular do oócito, e em vez de aplicar sucção, inseriu-se uma leve quantidade defluido no que se chama espaço perivitelino. Junto com o fluido veio uma única célula adulta, mais pequena, em forma defuso, obtida do esfregaço de uma boca humana adulta.

O passo seguinte implicou suspender os gâmetas, com o seu par de células epiteliais adultas, em quatro mililitros de um meio defusão, e colocá-las entre os eléctrodos de uma câmara de fusão. Quando os gâmetas já estavam devidamente alinhados, enviou-se uma corrente eléctrica de noventa volts para o meio, durante quinze milionésimos de segundo. o resultado foi idêntico em todos os gâmetas. o choque fez com que asmembranas entreosgâmetas enucleadose respectivas células parceiras adultas se dissociassem momentaneamente, fundindo as duas células.

Na sequência do processo de fusão, as células foram colocadas num meio de activação. Sob estimulação química, cada gâmeta que estivera pronto para a fertilização antes da remoção do ADN fazia maravilhas agora, como seu complemento integral de cromossomas. Seguindo um misterioso mecanismo molecular, os núcleos adultos abandonaram os seus anteriores deveres epiteliais e regressaram ao seu papel embrionário. Após breve período, cada um dos gâmetas começou a dividir-se para formar embriões individuais, os quais brevemente ficariam prontos para implantação. o dador das células adultas havia sido clonado. Na realidade, havia sido clonado cerca de sessenta vezes...

 

                 

 

6 de ABRIL de 1999

- Sente-se confortável? - perguntou o Dr. Paul Saunders à sua doente, Kristin. overineyer, deitada na velha mesa de operações, vestida somente com a bata sem costas do hospital.

 

- Acho que sim - respondeu Kristin, embora não estivesse nada confortável. Os ambientes hospitalares causavam-lhe sempre uma ansiedade tolerável mas nunca agradável, e a sala em questão era particularmente pouco simpática. Tratava-se de um antigo bloco operatório cuja decoração era diametralmente oposta ao utilitarismo estéril de uma unidade médica moderna. Tinha as paredes cobertas por azulejos de um verde-bilioso, rachados e com borrões escuros, provavelmente de sangue que manchara a argamassa. Parecia mais um cenário de filme de terror gótico passado no século xix do que um espaço usado nos dias de hoje. Havia ainda níveis de assentos paraobservação que desapareciam naobscuridade, para além do alcance dos holofotes suspensos. Ainda bem que os assentos estavam todos vazios.

 

- «Acho que sim, não me convenceu - disse a Dr.Sheila Donaldson do outro lado da mesa de operação, em frente ao Dr. Saunders. Sorriu para a doente, ainda que o único efeito perceptível tenha sido as ruguinhas nos cantos dos olhos. Tinha o rosto oculto por uma máscara cirúrgica e um capuz.

 

- Quem me dera que isto acabasse - conseguiu Kristin dizer. Nesse momento, desejou não se ter oferecido para doação de óvulos. o dinheiro dar-lhe-ia uma liberdade financeira a que poucos dos seus colegas de Harvard poderiam aspirar, mas isso agora não parecia importante. o único consolo é que depressa estaria a dormir; a pequena intervenção seria indolor. Quando lhe tinham dito que escolhesse entre anestesia geral ou local, ela preferira a primeira sem hesitar um segundo. A última coisa que queria era estar acordada enquanto lhe metiam uma agulha de aspiração de 30 cm na barriga.
- Espero que possamos tratar disto ainda hoje - disse Paul, sarcástico, ao Dr. Cari S mith, o anestesista. Paul tinha muito que fazer naquele dia e só tinha reservado quarenta minutos para aquela intervenção. Entre a experiência que tinha da operação e a sua destreza com os instrumentos, considerava que estava a ser generoso ao atribuir quarenta minutos. o único obstáculo era Carl; Paul não podia começar enquanto a doente não estivesse adormecida, e os minutos passavam inexoravelmente.

 

Carl não respondeu. Paul estava sempre com pressa, Carl concentrou-se em pôr a cabeça do estetoscópio precordial no peito de Kristin. Já tinha o soro a funcionar, a manga da tensão arterial a jeito, as sondas de EM colocadas e o oxímetro do pulso no lugar. Satisfeito com os sons que ouvira através do auricular, esticou o braço e puxou a máquina da anestesia para junto da cabeça de Kristin. Estava tudo a postos.

 

- Pronto, Kristin - disse Carl, apaziguador. - Tal como lhe expliquei antes, vou dar-lhe um pouco de «leite de amnésia». Está preparada?

 

- Estou - respondeu Kristin. No que lhe dizia respeito, quanto mais depressa melhor.

 

- Boa soneca - desejou Carl. - Da próxima vez que falarmos será na sala de recuperação.

 

Era o comentário habitual de Carl para o doente antes de começar a anestesia, e era, com efeito, o curso natural das coisas. Porém, nesta ocasião, não seria assim. Jovialmente inconsciente da catástrofe iminente, Carl pegou no tubo de soro onde tinha inserido o agente anestésico. Com facilidade experimentada, deu à doente a dose predeterminada com base no seu peso, mas nivelada por baixo da dosagem recomendada. Era política da Clínica de Infertilidade Wingate, para anestesia de doentes externas, dar às doentes a quantidade mais baixa de qualquer medicamento apropriado. o objectivo era dar alta no mesmo dia, dado que as instalações da clínica para doentes internadas eram limitadas.

 

Carl observou atentamente enquanto a dose de indução de propofol entrava no organismo de Kristin, olhando e escutando os seus dispositivos de monitorização. Parecia estar tudo em ordem.

 

Sheila riu debaixo da máscara. «Leite de amnésia» era a alcunha que Carl dava na brincadeira ao agente anestésico propofol, administrado sob forma de líquido branco, e o termo nunca deixava de apelar ao sentido de humor dela,

 

- Podemos começar? - inquiriu Paul. Alternou o próprio peso de uma perna para a outra. Sabia que ainda não podia começar, mas queria comunicar a sua impaciência e insatisfação. Não o deviam ter chamado enquanto não estivesse tudo pronto. o seu tempo era valioso de mais para ele ficar ali expectante enquanto Carl mexia nos brinquedos dele.

Continuando a ignorar a impertinência de Paul, Carl concentrou-se na tarefa de testar o nível de consciência de Kristin. Satisfeito por ela ter atingido um estado apropriado, injectou o relaxante muscular mivacurium, que ele preferia a muitos outros devido ao seu rápido tempo de recuperação espontânea. Depois de o mivacuríum fazer efeito, introduziu destramente um tubo endotraqueal para poder controlar as vias respiratórias de Kristin. Depois sentou-se, ligou a máquina da anestesia e fez sinal a Paul de que tudo estava preparado.

 

- Já não era sem tempo - resmungou Paul. Ele e Sheila envolveram rapidamente a doente para a laparoscopia. o alvo era o ovário direito.

 

Carl sossegou, depois de ter introduzido os dados no registo de anestesia. Naquela altura, o seu papel era observar os monitores e manter a anestesia, titulando cuidadosamente o estado de consciência da doente com uma infusão de propofol contínua.

 

Paul movia-se rapidamente e Sheila antecipava cada movimento seu. Com Constance Bartolo, a enfermeira instrumentista, e Maorie Hickarn, a enfermeira volante, a equipa trabalhava com eficiência milimétrica. Nesta altura não havia conversa nenhuma.

 

A primeira finalidade de Paul era introduzir o trocarte da unidade de insuflação para encher a cavidade abdominal da doente com gás. Era a criação de um espaço cheio de gás que viabilizava a cirurgia laparoscópica, Sheila ajudava, prendendo duas pregas de pele em torno do umbigo de Krístin com pinças de compressas e puxando para cima a parede abdominal descontraída. Entretanto, Paul fizera uma pequena incisão no umbigo e começara a empurrar a agulha de insuflação Veress, com quase 30 cm. Nas suas mãos experientes, podia ouvir-se distintamente dois estalidos, enquanto a agulha passava para a cavidade abdominal. Segurando firmemente na agulha pelo rolo serrilhado, Paul activou a unidade de insuflação. Instantaneamente, o dióxido de carbono começou a fluir para a cavidade abdominal de Kristin, ao ritmo de um litro de gás por minuto.

 

Enquanto esperavam que entrasse a quantidade de gás adequada, deu-se a catástrofe. Carl estava preocupado a procurar nos monitores cardiovascular e respiratório sinais da crescente pressão intra-abdominal, e não reparou em dois Movimentos aparentemente inócuos: Kristin pestanejou e flectiu ligeiramente a perna esquerda. Se Carl ou um deles os tivesse notado teriam percebido que o nível de anestesia de Kristín era baixo. Ainda estava inconsciente, mas quase a acordar, e o desconforto da pressão crescente na barriga contribuiu para a despertar.

 

Subitamente, Kristin gemeu e soergueu-se. Carl agiu por reflexo, agarrando-lhe nos ombros e empurrando-a para baixo. Mas era tarde de mais. Ao levantar-se na mesa, forçara a agulha Veress na mão de Paul a penetrar mais fundo na sua barriga, furando uma grande veia intra-abdominal. Antes de Paul poder parar a unidade de insuflação, uma grande bolha de gás entrara no sistema vascular de Kristin.

 

- oh, meu Deus! - gritou Carl ao ouvir no auricular o começo do revelador murmúrio de rotação, enquanto o gás chegava ao coração dela; um ruído que parecia o ciclo de centrifugação de uma máquina de lavar. - Temos uma embolia de gás gritou. - Virem-na para o lado esquerdo!

 

Paul puxou a agulha ensanguentada e atirou-a para o chão. Ajudou Carl a virar Kristin, numa vã tentativa de manter o gás isolado no lado direito do coração. Depois, Paul inclinou-se para cima dela para a manter na posição. Mesmo estando ainda inconsciente, ela debatia-se.

 

Entretanto, Carl apressava-se a introduzir, o mais assepticamente possível, um cateter na veia jugular de Kri stin. Esta resistiu e debateu-se contra o peso que tinha em cima. A inserção do cateter era como tentar atingir um alvo em movimento. Carl pensou em aumentar o propofol ou em dar-lhe mais mivacurium, mas relutava em dispor desse tempo. Por fim, conseguiu pôr o cateter, mas quando puxou o êmbolo da seringa só trouxe uma espuma sanguinolenta. Repetiu a operação com o mesmo resultado. Abanou a cabeça, desalentado, mas antes de poder dizer alguma coisa, Kristin entesou-se e depois entrou em convulsões. o seu corpo foi sacudido por um ataque de grandes proporções.

 

Freneticamente, Carl tratou deste novo problema enquanto se debatia com a sensação de fracasso que o assaltava. Sabia muito bem que a anestesiología era uma profissão marcada por uma rotina repetitiva e entorpecedora, ocasionalmente devastada por episódios de puro terror, e este era o pior que podia acontecer: uma grande complicação com uma pessoa jovem e saudável que sofria uma intervenção meramente electiva.

 

Tanto Paul como Sheila se tinham afastado com as mãos enluvadas torcidas em frente ao peito. Junto com as duas enfermeiras, assistiam enquanto Carl lutava para acabar com o ataque de Kristin. Uma vez terminado, e com Kristin já deitada de costas e imóvel, ninguém disse palavra. o único som que se ouvia, além do ruído abafado do rádio que passava pela porta fechada da sala de esterilização, era a máquina da anestesia a respirar pela doente.

 

- Qual é o veredicto? - perguntou Paul, finalmente. A voz não tinha emoção e ressoava nos azulejos.

 

Carl expirou como um balão a esvaziar-se. Hesitante, estendeu as mãos com os dedos indicadores esticados e abriu as pálpebras de Kristin. Ambas as pupilas estavam muito dilatadas e não reagiram à luminosidade do holofote suspenso. Ele tirou a sua caneta luminosado bolso e apontou o feixe para os olhos de Kristin. Não houve reacção alguma.

 

- Não está com bom aspecto - resmungou Carl. Tinha a garganta seca. Nunca lhetinhaacontecido tal complicação.

 

- Ou seja? - inquiriu Paul, Carl engolia com dificuldade.

 

- Ou seja, eu acho que ela teve um enfarte. Quer dizer, há coisa de um minuto estava bem e agora passou-se, só Deus sabe como. Nem sequer respira sozinha, Paul acenou com a cabeça enquanto ponderava a questão. Depois tirou as luvas

 

e atirou-as para o chão, desatou amáscara e deixou-a cair nopeito. Olhou para Sheila. -Porque não continua com a intervenção? Pelo menos ganha prática. E faça dos dois lados.

 

- A sério? - indagou Sheila.

 

- Não é de desperdiçar - retrucou Paul.

- Que vai fazer? - perguntou Sheila.

 

- Vou procurar Kurt Hermann e ter uma conversinha com ele - disse Paul enquanto desatava e tirava a bata. - Mesmo que seja um incidente infeliz, não é que não tenhamos previsto tal catástrofe, e pelo menos tomámos medidas.

 

-Tenciona informar SpencerWingate? -perguntou Sheila. O Dr. Wingate era o fundador e director titular da clínica.

 

- Não sei - redarguiu Paul. - Depende. Prefiro aguentar e ver no que dá. o que sabe da chegada de Kristin overineyer à clínica hoje?

 

- Veio no carro dela - respondeu Sheila. - Está no estacionamento.

 

- Veio sozinha?

 

- Não. Tal como lhe dissemos, trouxe uma amiga - disse Sheila. - Chama-se Rebecca Corey e está na sala de espera.

 

Paul encaminhava-se para a porta e trocou um olhar com Carl.

- Lamento - disse este.

 

Paul hesitou um momento. Apetecia-lhe dizer ao anestesista o que pensava dele, mas mudou de ideias. Paul queria manter a cabeça fria e, se entrasse numa discussão com Carl naquele momento, ficaria alterado. Já bastava que Carl o tivesse feito esperar tanto tempo.

 

Sem sequer tirar a farda cirúrgica, Paul agarrou numa bata branca comprida na sala adjacente. Enfiou-a enquanto descia escada abaixo. Passando o primeiro andar, saiu para o relvado, que já dava sinais da chegada da Primavera. Com o casaco apertado à sua volta por causa do vento fustigante do início de Abril na Nova Inglaterra, apressou-se para a Portaria de pedra da clínica. Encontrou o chefe da segurança atrás de uma secretária velha e usada, debruçado sobre o calendário departamental para o mês de Maio.

 

Se Kurt Hermann ficou surpreendido pela chegada súbita do homem que geria a Clínica Wingate, não o demonstrou. Além de erguer o olhar, o único sinal de percepção da presença de Paul foi levantar a sobrancelha direita.

 

Paul puxou uma das cadeiras de costas direitas que enchiam o esparso gabinete e sentou-se em frente ao chefe da segurança.

 

- Temos um problema - disse Paul.

 

- Estou a ouvir - respondeu Kurt. A cadeira rangeu quando ele se recostou.

- Tivemos uma grande complicação com a anestesia. Uma catástrofe, mesmo.

- Onde está a doente?

 

- Ainda está no BO, mas sai daqui a pouco.

- Nome?

 

- Kristin Overineyer.

 

- Veio sozinha? - perguntou Kurt enquanto tomava nota do nome de Kristin.

- Não. Veio com uma amiga chamada Rebecca Corey. A Dr.a Donaldson diz que ela está na sala de espera.

 

- Como é o carro?

 

- Não faço ideia - admitiu Paul.

 

- Vamos descobrir- disse Kurt. Ergueu os olhos azuis-metálicos para encarar Paul.

 

- Foi para isto que vos contratámos - afirmou Paul, num tom cortante. Quero que trate disto e não quero saber mais nada.

 

- Fique descansado - disse Kurt. Pousou a caneta com cuidado, como se fosse algo frágil.

 

Por momentos, os doishomens olharam um para o outro. Depois, Paul levantou-se, virou-se e desapareceu na manhã desabrida de Abril.

 

8 de Outubro de 1999

23:15 h.

-Deixa-me ver se percebi -disse Joanna Meissner a Carlton Wiliams, Os dois estavam sentados às escuras dentro do jipe Cherokee de Carlton. numa zona de estacionamento proibido em Cambridge, Massachusetts. - Tu decidiste que era melhor só casarmos depois de tu acabares o estágio de Cirurgia, daqui a três ou quatro anos.

 

- Ainda não decidi nada - disse Carlton, na defensiva, - Estamos a debater isto agora.

 

Joanna e Carlton tinham ido jantar na Praça de Harvard, nessa noite de sexta-feira, e estavam a divertir-se até Joanna mencionar a questão problemática dos seus planos a longo prazo. Como sempre, a partir desse momento, o tom da conversa tinha-se deteriorado. Já tinham abordado o assunto várias vezes no passado, e a propósito do seu noivado. Tinham uma relaçãojá longa; conheciam-se desde ojardim de infância e só tinham namorado um com o outro desde o nono ano,

 

- Escuta - disse Carlton, apaziguador. - Só estou a tentar pensar no que é melhor para nós dois.

 

-   Oh, tretas! - saltou Joanna. Apesar de ter prometido a si própria manter a calma, Podia sentir a raiva a fervilhar, como se fosse um reactor nuclear prestes a explodir.

 

- Estou a falar a sério - disse Carlton. - Joanna, estou a trabalhar que nem um cão. Tu sabes quantas vezes estou de banco. Sabes as horas... Ser estagiário no Massachusetts, General Hospital é muito mais exigente do que eu imaginava,

 

- Mas que diferença faz? - estalou Joanna, incapaz de dissimular a irritação, que era dolorosamente óbvia. Não podia evitar sentir-se traída e rejeitada.

 

- Faz muita diferença - persistiu Carlton. - Estou esgotado. Não sou boa companhia. Não consigo ter uma conversa normal fora do âmbito do hospital. É patético. Nem sei o que se passa em Boston, quanto mais no mundo.

 

- Esse tipo de comentário podia ter alguma validade se nós saíssemos casualmente. Mas o facto é que nós namoramos há onze anos. E até eu abordar este assunto delicado de marcar a data esta noite, tu estavas a divertir-te e eras boa companhia.

 

- Porque gosto muito de te ver... - disse Carlton.

 

- Que reconfortante -interpôs Joanna, sarcástica. - o que eu acho ainda mais irónico nisto tudo é que foste tu quem me pediu em casamento e não o contrário. Só que já foi há sete anos. Eu diria que isto demonstra que o teu ardor arrefeceu significativamente.

 

- Não arrefeceu nada - protestou Carlton. - Eu quero casar contigo.

 

- Lamento, mas não és convincente, não ao fim deste tempo todo. Primeiro querias acabar o curso. Tudo bem. Não havia problema. Até achei apropriado. Depois achaste que podias fazer os primeiros dois anos de Medicina. Nem isso me incomodou, já que assim consegui fazer a maior parte do trabalho para o meu doutoramento. Mas depois pensaste que era melhor adiar as coisas até acabares Medicina. Estabelece-se aqui um padrão ou só eu é que o vejo? Depois veio a questão de passar o primeiro ano de estágio. E estúpida como sou até concordei nisso, mas agora é o estágio todo. E a bolsa de que falaste no mês passado? Depois disso até és capaz de querer esperar até abrir consultório.

 

- Estou a tentar ser racional acerca disto - disse Carlton. - É uma decisão difícil, e compete-nos aos dois pesar os prós e contras...

 

Joannajá não o ouvia. o seu olhar verde-esmeralda afastou-se do rosto do noivo que, reconhecia ela, nem a olhava enquanto falava, Aliás, evitara olhar para ela durante a conversa toda; tanto quanto se apercebera, ele só a olhara de soslaio durante o seu monólogo. Com ar ausente, olhou para longe. De repente, era como se uma mão invisível a tivesse esbofeteado. A sugestão de Carlton. de adiar novamente a data do casamento causara uma epifania, e ela deu por si a rir, não com humor mas de descrença.

 

Carlton parou a meio da sua enumeração dos prós e contras de casar mais cedo e não mais tarde.

 

- De que é que te estás a rir? - perguntou. Ergueu os olhos com que fixava as chaves na ignição e olhou para Joanna na obscuridade do carro. o rosto dela era uma silhueta contra a janela, iluminado por um candeeiro cuja luz brotava pelo vidro adentro. o seu perfil elegante e delicado estava recortado pelo cabelo lustroso e loiro como espiga de milho, que parecia brilhar à média luz. Lampejos como diamantes brilhavam nos seus dentes brancos, pouco visíveis através dos lábios entreabertos e cheios. Para Carlton, era a mulher mais bela do mundo, mesmo quando o atormentava.

 

Ignorando a pergunta de Carlton, Joanna continuou a rir suave e tristemente, à medida que a clareza da sua revelação se agudizava. Subitamente, conseguira reconhecer a pertinência daquilo que a sua companheira de quarto Deborah Cochrane e as suas outras amigas lhe andavam a apregoar desde sempre, nomeadamente, que o casamento de per si não devia ser a finalidade da vida dela. Afinal, estavam certas: ela tinha sido programada durante toda a sua educação suburbana típica de Houston. Joanna não podia crer que tinha sido tão estúpida durante tanto tempo e tão renitente em questionar um sistema que aceitara de olhos vendados. Ainda bem que, enquanto flutuava à espera de Carlton, tivera a esperteza de lançar as bases de uma carreira compensadora. Só lhe faltava a tese de doutoramento em Economia em Harvard, além de possuir extensas competências informáticas.

 

- De que é que te estás a rir? - insistiu Carlton. - Vá lá! Fala comigo.

 

- Estou a rir de mim própria - disse finalmente Joanna. Virou-se para encarar o noivo. Ele parecia perplexo, de sobrolho franzido.

 

- Não percebo - disse Carlton.

 

- É curioso - redarguiu Joanna. - Eu vejo tudo com grande clareza.

 

Olhou para o anel de noivado na mão esquerda. o solitário de diamante sugava a fraca luz circundante e devolvia-a aJoanna com surpreendente intensidade. A pedra pertencera à avó de Carlton. e Joanna ficara radiante ao recebê-la, devido ao seu valor

 

sentimental. Mas agora só lhe recordava a sua própria ingenuidade.

 

Uma súbita sensação de claustrofobia assaltou Joanna. Sem aviso, destrancou a porta, escorregou para fora do carro e ficou em pé, no passeio.

 

- Joanna! - chamou Carlton. Debruçou-se no tablier do carro e espreitou. O rosto de joanna Tinha uma expressão decidida. Os seus lábios habitualmente suaves estavam apertados com determinação sombria.

 

Carlton começou a perguntar a Joanna o que se passava, ainda que já calculasse. Ainda antes de acabar a frase, a porta do carro bateu-lhe na cara. Endireitou-se e procurou o comando do vidro dajanela do passageiro. Quando ajanela abriu Joanna virou-se para ele. o seu semblante não tinha mudado.

 

- Não me insultes a perguntar o que se passa - disse ela.

 

- Estás a ser pouco adulta nisto - afirmou Carlton, firmemente.

 

- Obrigada pela tua apreciação imparcial - retrucou Joanna. - Também te quero agradecer por tornares as coisas tão claras para mim. Fica muito mais fácil tomar decisões.

 

- Tomar decisões acerca de quê? - perguntou Carlton. A firmeza na voz que encontrara antes desaparecera entretanto. Agora balbuciava. Tinha um pressentimento acerca do que se seguia, junto com uma sensação de desânimo na boca do estômago.

 

- Acerca do meu futuro - di sse Joanna. - Toma! - estendeu o punho fechado com evidente intenção de dar algo a Carlton.

 

Carlton esticou a mão em concha. Sentia que lhe ia cair alguma coisa na mão. Olhou para baixo e viu o diamante da avó.

 

- Isto é para quê? - titubeou Carlton.

 

- Parece-me muito claro - disse Joanna. - Considera-te livre para acabares o estágio e o que mais a tua cabecinha desejar. Não quero pensarem mim como um fardo.

- Não estás a falar a sério? - indagou Carlton. Fora apanhado desprevenido pela viragem nos acontecimentos, e estava aturdido.

 

- oh, mas estou mesmo - disse Joanna. - Considera o nosso noivado oficialmente acabado. Boa noite, Carlton.

 

Joanna virou-se e caminhou pela Rua Craigie em direcção à Avenida Concord e à entrada do Craigie Arins. o apartamento dela ficava no terceiro piso,

 

Após breve luta com o comando da porta, Carlton saltou dojipe e correu atrás de Joanna, que já chegara à esquina. Algumas folhas vermelhas de ácer, caídas nesse mesmo dia, restolhavam debaixo dos seus pés. Apanhou a sua antiga noiva quando ela estava prestes a entrar no prédio. Estava ofegante. Segurava o anel de noivado na mão fechada.

 

- Está bem - conseguiu Carlton dizer. - Já te afirmaste. Toma lá o anel. Estendeu o braço.

 

Joanna abanou a cabeça. A sua determinação sombria desaparecera para dar lugar a um ténue sorriso.

 

- Eu não te devolvi o anel para fazer joguinhos. Nem estou realmente zangada. É evidente que não te queres casar agora e, de repente, eu também não. Deixemos o assunto. Ainda somos amigos.

 

- Mas eu amo-te - balbuciou Carlton.

 

- Sinto-me lisonjeada - disse Joanna. - E acho que ainda te amo, mas as coisas arrastam-se há demasiado tempo. Vamos seguir caminhos separados, pelo menos por agora.

 

- Mas...

 

- Boa noite, Carlton - disse Joanna. Pôs-se em bicos de pés e tocou com os lábios na face de Carlton, Momentos depois estava no elevador. Não olhara para trás. Ao rodar a chave na fechadura percebeu que tremia. Apesar da forma altiva como despachara Carlton, sentia as emoções em torvelinho logo à superfície.

 

- Uau! - exclamou a companheira de quarto, Deborah Cochrane. Olhou para abarra de ferramentas do seu computador para ver as horas. - É muito cedo para uma sexta à noite. Que é que te deu?

 

Deborah vestia roupas largueironas com o brasão de Harvard. Em comparação com a feminilidade de porcelana da sua companheira, parecia algo maria-rapaz, com cabelo escuro curto, uma tez mediterrânica e porte atlético. As suas feições ajudavam, sendo fortes e mais arredondadas do que as de Joanna, mas não menos femininas, No conjunto, as companheiras de quarto complementavam-se e enfatizavam o encanto natural uma da outra.

 

Joanna não respondeu, enquanto pendurava o casaco no armário do vestíbulo. Deborah observou-a a entrar na sala pouco mobilada e a cair no sofá. Sentou-se, enlaçou os joelhos com os braços e encarou o olhar inquisidor de Deborah.

 

- Não me digas que tiveram uma discussão - disse esta.

 

- Não foi bem uma discussão - retrucou Joanna. - Só uma separação de caminhos.

 

Deborah ficou de queixo caído. Conhecia Joanna há seis anos, desde caloiras, e Carlton. era algo fixo na vida de Joanna. No que lhe dizia respeito, não havia o menor vestígio de discórdia naquele relacionamento.

 

- Que é que aconteceu? - perguntou, espantada.

 

- Vi a luz, de repente - respondeu Joanna. Tinha um leve trinado na voz que Deborah notou logo. - Acabei o noivado e, muito mais importante, não vou contar com casamento nenhum, ponto final. Se acontecer, óptimo, se não, também não faz mal.

 

- Palavra de honra! - exclamou Deborah, incapaz de iludir a alegria na sua voz.

- Nem pareces a rapariguinha casadoira que só pensava em bolos e vestidos, e de quem eu aprendi a gostar. Por que é que mudaste de ideias? - Deborah considerava a marcha de Joanna para o casamento quase religiosa, na sua intensidade inabalável.

 

- Carlton queria adiar o casamento até acabar o estágio - explicou Joanna. Resumidamente, contou os últimos quinze minutos da sua saída com Carlton. Deborah escutava atentamente.

 

- E tu estás bem? - perguntou Deborah quando Joanna acabou. Inclinou-se para a frente para a olhar mais de perto.

 

- Melhor do que poderia imaginar - admitiu ela. - Sinto-me algo abalada, acho eu, mas, apesar de tudo, até estou bem.

 

- Então, isto pede uma comemoração - interpôs Deborah. Levantou-se e foi até à cozinha. - Ando a guardar aquela garrafa de champanhe a ocupar o frigorífico há meses - disse por cima do ombro. - Este é o momento de a abrir.

 

- Deve ser - conseguiu dizer. Não se sentia com vontade de comemorar, mas resistir ao entusiasmo de Deborah daria muito trabalho.

 

- Ora bem! - proferiu Deborah, saindo da cozinha com a garrafa na mão e duas taças na outra. Ajoelhou-se junto à mesinha e atacou a garrafa. A rolha saltou com um pop e ricocheteou no tecto. Deborah riu-se, mas reparou que Joanna não.

 

- Tens a certeza de que estás bem? - perguntou Deborah.

- Tens que convir que é uma grande alteração.

 

- Isso é um eufemismo -retrucou Deborah. -Conhecendo-te como conheço, é o equivalente à queda de São Paulo a caminho de Damasco. Foste programada para o casamento pelo ambiente social de Houston desde que não eras mais do que a luz dos olhos da tua mãe.

 

Joanna riu-se contra vontade.

 

Deborah deitou o champanhe depressa demais. As taças ficaram cheias de espuma e entornaram em cima da mesa. Decidida, Deborah pegou nelas e passou uma a Joanna. E depois fez Joanna brindar com ela.

 

- Bem-vinda ao século xxi! - declarou Deborah.

 

Ambas as mulheres ergueram as taças e tentaram beber. Tossicaram com a espuma e riram. Sem querer perder o momento, Deborah levou rapidamente as taças para a cozinha, lavou-as e regressou. Desta vez deitou o champanhe com mais cuidado, deixando-o correr pelos lados das taças, Quando beberam, estava quase todo líquido.

 

- Não é o melhor espumante - admitiu Deborah. - Mas não me espanta, Foi o David que mo deu, naquele tempo. Infelizmente, ele era forreta como o Tio Patinhas. Deborah tinhaacabado um relacionamento de quatro meses com o anteríor namorado,

 

David Curtis, na semana anterior. Totalmente ao contrário de Joanna, o relacionamento mais longo que tivera durara menos de dois anos e tinha sido no tempo da escola. As duas mulheres não podiam ser mais diferentes. Ao invés do meio social suburbano, sulista e abastado, com bailes de debutantes financiados por dinheiro do petróleo, que Joanna conhecera, Deborah crescera em Manhattan com uma mãe solteira e boémia que estava imersa na vida académica. Deborah nunca conhecera o pai, pois fora a perspectiva do seu nascimento que pusera termo à relação dos pais. A mãe só se casara muito mais tarde, quando Deborah já tinha entrado para a universidade.

 

- Nunca fui grande apreciadora de champanhe - disse Joanna. - Aliás, nem saberia dizer se é do bom ou não.

 

Revirou a taça entre os dedos, momentaneamente hipnotizada pela efervescência.

- Que aconteceu ao teu anel? - perguntou Deborah, reparando pela primeira vez que a jóia desaparecera.

 

- Devolvi-o - respondeu Joanna com ar casual.

 

Deborah abanou a cabeça. Estava abismada. Joanna adorava aquele diamante e tudo o que ele representava. Raramente o tirava do dedo,

 

- Estou decidida quanto a isto - declarou Joanna.

 

- Pois parece que sim - atalhou Deborah. Tinha ficado sem fala.

 

o telefone quebrou o curto silêncio. Deborah levantou-se para atender.

- Deve ser o Carlton, mas eu não quero falar com ele - disse Joanna. Deborah verificou a identificação do número.

 

- Tens razão, é o Carlton.

 

- Deixa o atendedor de chamadas ligado - disse Joanna.

 

Deborah voltou a sentar-se no sofá. As duas mulheres entreolharam-se enquanto o telefone continuava a tocar. Depois do quarto toque a máquina atendeu. Houve um silêncio enquanto corria a mensagem de atendimento. A seguir ouviu-se a voz ansiosa de Carlton, junto com algum ruído estático, enchendo a sala pouco mobilada.

 

- Tens razão, Joanna! Esperar que eu acabe o estágio é uma parvoíce.

 

-Eu nunca disse que era umaparvoíce - interpôs Joanna num sussurro forçado, como se o interlocutor pudesse ouvir.

 

- E sabes que mais? - continuava Carlton. - Vamos avançar e marcar para Junho próximo. Se bem me lembro, sempre quiseste um casamento em Junho. Bem, Junho estábem para mim. Seja como for, liga-me assim que receberes estamensagem, e depois podemos conversar, está bem?

 

o atendedor fez mais uns ruídos mecânicos antes de a luz vermelha na frente da consola começar a piscar.

 

- Isto mostra o pouco que ele sabe - disse Joanna. - A minha mãe nunca conseguiria organizar um decente casamento à moda de Houston em oito meses,

- Ele parece algo desesperado - disse Deborah. - Se lhe quiseres ligar e precisares de privacidade eu desapareço.

 

- Não quero falar com ele - disse rapidamente Joanna, - Agora não. Deborah inclinou a cabeça para um lado e estudou o rosto da amiga, Queria dar-lhe apoio, mas naquele momento não sabia bem como fazer esse papel.

 

- Não se trata de uma discussão entre nós - explicou Joanna. - Nem de um joguinho de namorados. Não estou a ser manipuladora e, com franqueza, sentir-me-ia constrangida se nos casássemos agora.

 

- Grande viragem,

 

- Exactamente - aprovou Joanna. - Cá está ele a tentar antecipar a data e eu a querer adiar. Preciso de tempo e espaço.

 

- Compreendo muito bem - disse Deborah. - E sabes uma coisa? Acho que és inteligente em não deixares que a situação se transforme num debate petulante. - o problema é que eu amo-o mesmo - disse joanna com um sorriso de esguelha. - Se houvesse debate, eu poderia perder.

 

Deborah riu-se.

 

- Concordo. Converteste-te tão recentemente a esta nova e mais sensata atitude perante o casamento que estás vulnerável a uma recaída. Precisas mesmo de tempo e espaço. E sabes? Acho que tenho a resposta.

 

- A resposta a quê? - indagou Joanna.

 

- Vou mostrar-te uma coisa - disse Deborah. Pôs-se de pé e tirou o jornal Harvard Crimson da sua secretária. Estava dobrado no sentido do comprimento na secção dos classificados. Passou o jornal a Joanna.

 

joanna varreu a página e leu o anúncio sublinhado, Ergueu o olhar para Deborah, interrogativamente.

 

- Querias que eu visse este anúncio da Clínica Wingate?

- Pois queria - respondeu Deborah, entusiástica.

 

É um anúncio a pedir dadoras de óvulos - disse Joanna. Precisamente - retrucou Deborah.

 

E em que é que isto é a resposta? - inquiriu Joanna.

 

Deborah rodeou a mesínha e sentou-se ao lado de Joanna. Apontou com o dedo indicador para a retribuição oferecida.

 

- o dinheiro é a resposta - disse. - Quarenta e cinco mil dólares o tiro!

 

- Este anúncio saiu no Crimson na Primavera e causou polémica - disse Joanna. -Depois nunca mais apareceu, Achas que é genuínoouque é umabrincadeira de estudantes?

 

- Acho que é genuíno - respondeu Deborah. - A Wingate é uma clínica de infertilidade em Bookford, Massachusetts, depois de Concord. Foi o que eu percebi na página deles na Internet.

 

- Por que é que pagariam tanto dinheiro? - perguntou Joanna.

 

- Na página dizem que têm clientes ricos dispostos a pagar pelo melhor. Pelos vistos, os clientes querem gente de Harvard. Deve ser como aquele banco de esperma na Califórnia, onde os dadores são todos laureados com o prémio Nobel. É loucura de um ponto de vista genético, mas quem somos nós para discutir?

 

- Nós não somos propriamente laureadas com o prémio Nobel - disse Joanna.

- Tecnicamente, nem sequer somos gente de Harvard. Por que é que achas que eles estariam interessados em nós duas?

 

- E por que não? - contrapôs Deborah. - Acho que estar numa pós-graduação equivale a ser aluno. Não me parece que só queiram não licenciados. Aliás, na página especificam que querem mulheres até vinte e cinco anos. Passamos à justa.

 

- Mas também diz que temos de ser emocionalmente estáveis, atraentes, não ter peso a mais, e ter porte atlético. Não estaremos a esticar a realidade um pouco?

 

- Olha, eu acho que somos perfeitas,

 

- Com porte atlético? - questionou Joanna com um sorriso. - Tu talvez, agora eu não. E emocionalmente estáveis. Isso é dizer muito, especialmente no meu estado actual.

 

- Bem, podemos tentar - disse Deborah. - Tu podes não ser a mulher com mais porte atlético da faculdade, mas vamos dizer-lhes que só queremos doar se formos as duas. Têm de nos aceitar a ambas. Tudo ou nada. E as nossas notas são

.

 

- Estás mesmo a falar a sério? - perguntou Joanna. Observou a sua companheira de quarto, que podia ser muito gozona quando estava para aí virada.

 

- A princípio não estava - admitiu Deborah. - Mas depois comecei a pensar nisso ao fim da tarde. Quer dizer, o dinheiro é sedutor, Já viste, quarenta e cinco mil por cabeça! Comesse dinheiro teríamos liberdade pela primeiravez na vida, mesmo enquanto escrevíamos atese. E agora que tu optaste por sair da segurança económica do objectivo casamento, a ideia devia ser ainda mais sedutora para ti. Precisas de líquidez, além da tuaformação, paramanteres a tua decisão e, com franqueza, paracomeçares aorganizar a vida de uma única pessoa. Este dinheiro poderia ser um começo.

 

Joanna atirou o jornal para a mesinha.

 

- Às vezes não sei quando é que estás a brincar comigo ou não.

 

- Ouve, não estou a brincar. Disseste que precisas de tempo e espaço. É o que este dinheiro pode comprar e muito mais. Fazemos assim: vamos à ClínicaWingate, damos-lhes uns óvulos e ganhamos noventa brasas. Tiramos cinquenta e compramos um apartamento com dois quartos em Boston ou Cambridge, o qual arrendamos para pagar o empréstimo.

 

- Por que é que haveríamos de comprar um apartamento para o arrendar?

- Deixa-me acabar - disse Deborah.

 

- Mas não seria melhor investir as cinquenta brasas? Lembra-te, eu sou a economista e tu és a bióloga.

 

- Tu até podes ir fazer um doutoramento em Economia, mas não sabes nada no que toca a ser mulher solteira no século xxi. Por isso, cala-te e escuta. Compramos um apartamento para começar a criar raízes, Nas gerações anteriores, as mulheres conseguiam isso com o casamento, mas agora temos de agir por conta própria. Um apartamento seria um bom começo e um bom investimento.

 

-Palavra de honra! -exclamou Joanna. - Estás mesmo mais avançada do que eu.

- Podes apostar que sim - redarguiu Deborah. - E há mais. Esta é a parte melhor: pegamos nas outras quarenta brasas e vamos para Veneza para fazer as nossas teses de doutoramento.

 

- Veneza! - gritou Joanna. - És louca, miúda!

 

- Ai sou? - perguntou Deborah. - Pensa só. Quando tu pensas que precisas de tempo e espaço, o que poderia ser melhor? Estaríamos em Veneza numa casinha amorosa e o Carlton aqui a fazer o estágio. Fazemos as teses e vivemos um pouco sem o querido doutor sempre em cima de ti.

 

Joanna parecia absorta, enquanto invocava imagens de Veneza. Já estivera na cidade mágica uma vez, mas só durante alguns dias, e tinha ido com os pais e irmãos, estava ela no secundário. Podia imaginar o brilho das águas no Grand Canal, reflectindo as fachadas góticas. Com igual clareza, podia recordar o bulício da Praça de São Marcos com as músicas concorrentes das duas casas de café em frente uma da outra. Naquela altura prometera a si própria que voltaria um dia àquela cidade tão romântica. Claro que a fantasia incluía Carlton, que não fora na altura, mas que ela já namorava.

 

- E há mais uma coisa - disse Deborah, interrompendo-lhe o breve devaneio de Joanna. - Ao doarmos uns óvulos, já que temos tantos que não farão falta, poderemos assim como que satisfazer os nossos impulsos de procriação.

 

- Agora vejo que estás a brincar comigo - disse Joanna.

 

- Não estou nada! - insistiu Deborah. - A nossa doação de óvulos significa que alguns casais que não podem ter filhos os vão ter, e essas crianças terão metade dos nossos genes. Vai haver umas «meias Joannas» e «meias Deborahs» por aí.

 

-Bem, acho que isso é verdade -concedeu Joanna. Visualizou uma rapariguinha algo parecida com ela. Era uma imagem agradável, até perceber que a rapariguinha estava com dois estranhos.

 

- Claro que é verdade - disse Deborah. - E a parte boa é que não temos que mudar fraldas nem perder noites de sono. Podemos tentar?

 

-Espera aí! -exclamou Joanna. Levantou as mãos como se quisesse proteger-se.

- Abranda um pouco! Supondo que nos aceitam, o que é pouco provável, dadas as condições do anúncio, eu tenho umas questões importantes.

 

- Por exemplo?

 

-Porexemplo, como é que doamos os óvulos? Quer dizer, qual é a intervenção? Tu sabes que eu detesto médicos e hospitais.

 

- Boa desculpa para alguém que namorou com um estudante de Medicina na última metade do século.

 

- É quando sou eu a doente que o problema começa - disse Joanna.

 

- o anúncio diz que há uma estimulação mínima - esclareceu Deborah.

- Isso é bom?

 

-É, pois -respondeu Deborah. -Geralmente têm de hiperestimular os ovários para que eles libertem mais óvulos, e a hiperestimulação pode causar problemas nalgumas pessoas, como uma tensão pré-menstrual infernal, Fazem a hiperestimulação com hormonas fortes. Acredites ou não, algumas hormonas vêm de freiras italianas na menopausa.

 

- oh, vá lá! - resmungou Joanna. - Não sou assim tão parva.

 

- Juro por Deus - afirmou Deborah. - As pituitárias destas freiras estão a dar àmanivela para produzir hormonas de estimulação das gónadas a grande velocidade. Extraem-nas da urina. Acredita!

 

- Está bem, acredito - disse Joanna, com uma expressão de nojo. - Mas voltemos ao assunto: por que é que achas que a Wingate não faz hiperestimulação?

- Acho que querem qualidade e não quantidade - disse Deborah. - Mas é uma suposição. Essa é uma pergunta razoável para lhes fazermos.

 

- Como é que obtêm os óvulos?

 

- Torno a fazer suposições, mas acho que seria por aspiração por uma agulha. Acho que a orientação se faz por ultra-som.

 

- Agh! - verbalizou Joanna com um arrepio. - Não gosto mesmo nada de agulhas, e deve ser uma bem grande, Onde é que a enfiariam?

 

- Na vagina, acho eu - alvitrou Deborah. Joanna voltou a estremecer,

 

- Oh, vá lá! - instou Deborah. - Acho que não seria brincadeira nenhuma, mas não pode ser assim tão mau. Há muitas mulheres que o fazem no quadro da fertilização in vitro e não te esqueças que falamos de quarenta e cinco mil dólares. Vale algum desconforto,

 

- Levaríamos anestesia?

 

- Não faço ideia - disse Deborah. - Outra questão para colocarmos.

- Não posso crer que estás decidida quanto a isto.

 

- Mas é uma situação em que todos ganham. Nós arranjamos muita massa e alguns casais conseguem ter filhos. É como ser pago para ser altruísta. - Quem me dera que pudéssemos falar com alguém que já tivesse feito-disse Joanna.

 

- Ouve, acho que talvez possamos - disse Deborah. - A questão da doação de óvulos surgiu num debate de grupo no laboratório de biologia em que eu fui instrutora no último semestre, Foi quando a Clínica Wingate colocou o primeiro anúncio no Crimson. Uma das caloiras disse que tinha sido entrevistada, aceite e que ia fazê-lo.

 

- Como se chamava?

 

- Não me lembro, mas sei onde procurar. Ela e a companheira de quarto estavam na mesma secção do laboratório, e eram ambas óptimas alunas. Deve estar no livro de curso. Vou buscá-lo.

 

Enquanto Deborah desaparecia no quarto, Joanna tentava assimilar o que acontecera na sua vida nos últimos trinta minutos, Sentia-se abalada e algo tonta. As coisas estavam a acontecer à velocidade da luz.

 

- Voilá! - chamou Deborah de dentro do quarto. Segundos depois, surgia à porta e ziguezagueou até à secretária. - Onde está a lista telefónica da faculdade?

- Segunda gaveta do lado direito - respondeu Joanna. - Como é que se chama?

- Kristin Overineyer - disse Deborah. - E a companheira de quarto era

 

Jessica Detrick. Eram colegas de laboratório e eu dei-lhes as melhores notas da turma. Pegou na lista e folheou as páginas.

 

- Que estranho! Não consta aqui. Como é possível?

- Talvez tenha abandonado o curso - sugeriu joanna.

 

- Não pode ser - refutou Deborah. - Como eu te disse, era uma aluna espectacular.

 

- Talvez aquilo da doação de óvulos tivesse sido de mais.

- Estás a gozar.

 

- Claro que estou a gozar - disse Joanna. - Mas é curioso.

 

- Agora tenho mesmo de aprofundar isto ou tu vais aproveitar a desculpa disse Deborah. Folheou rapidamente a lista telefónica, encontrou um número e marcou-o.

 

- Estás a ligar para quem?

 

- Jessica Detrick - respondeu Deborah, - Talvez ela nos possa dizer como entrar em contacto com Kristin, desde que a antiga companheira de quarto esteja no quarto a estudar numa sexta à noite.

 

Joannapôs-se à escuta depois de Deborah lhe ter feito o sinal de polegar para cima indicando que Jessica tinha atendido. o interesse de Joanna aumentou quando a expressão de Deborah se toldou e ela começou a dizer coisas como: «Oh, é horrível! », «Lamento ouvir isso! » E: «Que tragédia! »

 

Depois de concluir uma conversa algo longa, Deborah pousou o auscultador lentamente e virou-se para ver Joanna. Imersa em pensamentos, chupava absorta o interior da sua bochecha.

 

- Então? - perguntou Joanna. - Não me vais explicar? Qual é a tragédia?

- A Kristin overineyer desapareceu - respondeu Deborah. - Ela e outra caloira, chamada Rebecca Corey, foram vistas pela última vez por um funcionário da Clínica Wingate a darem boleia a um tipo logo à saída da clínica.

 

- Ouvi falar em duas alunas que desapareceram na Primavera passada- atalhou Joanna. - Nunca soube os nomes.

 

- Mas o que as terá feito dar boleia a alguém?

- Se calhar, conheciam-no.

 

- É possível - concedeu Deborah. Agora era a vez de ela estremecer. - Estas histórias causam-me arrepios.

 

- As mulheres nunca foram encontradas? E os corpos?

 

- Só o carro, que era da Rebecca Corey. Foi encontrado numa paragem de camiões junto da portagem de Nova Jérsia. Nunca mais ninguém as viu, nem as posses delas, como as bolsas e as roupas.

 

- A Kristin doou óvulos?

 

- Meia dúzia e a família abriu um processo, mas a clínica devolveu-os de livre vontade. Pelos vistos, a família queria ter voz activa na decisão de quem ficaria com eles. Que história triste!

 

- Lá se vai a hipótese de perguntarmos a alguém pelo processo de doação lamentou Joanna.

 

- Podemos sempre ligar para a clínica e pedir o nome de outra dadora - alvitrou Deborah.

 

- Se ligarmos para a clínica podemos fazer as nossas perguntas directamente a eles - disse Joanna. - Se correr bem, talvez possamos pedir uma referência.

 

- Então, estás disposta a tentar?

 

- Acho que não há mal em obter mais informação - disse Joanna. - Mas certamente que não me vou comprometer, excepto a uma eventual visita à clínica.

- Muito bem! - exclamou Deborah. Aproximou-se de Joanna e bateu com as suas mãos nas dela. - Veneza, aqui vamos nós!

 

15 de Outubro de 1999

7.05 h.

Era um lindo dia de Outono, com a folhagem verdejante a bordejar a Estrada, enquanto Deborah e Joanna seguiam para norte, desde Cambridge em direcção a Bookford, Massachusetts. o sol estava convenientemente por detrás delas, ainda que houvesse ocasionais lampejos de luz nos reflexos dos pára-brisas dos carros que se cruzavam com elas em direcção a Boston. As mulheres usavam ambas óculos-de-sol e bonés de basebol.

 

Não houvera mais conversa desde que tinham contornado Fresh Pond. Cada qual estava absorta nos seus pensamentos. Deborah ainda se espantava com a rapidez com que tudo se encaixara, como se o assunto com aClínicaWingate estivesse predestinado. Os devaneios de Joanna focavam mais o seu próprio âmago. Mal podia acreditar como a sua vida mudara numa semana e, mesmo assim, como se sentia apaziguada. No domingo, quando se achara emocionalmente capaz de falar com Carlton e de lidar com a insistência que esperava dele de casarem em Junho, ele estava tão zangado que se recusara a falar com ela. Ela telefonara e deixara mensagens sem qualquer resultado. Por conseguinte, não tinham falado a semana inteira, facto que convenceu ainda mais Joanna de que a sua súbita epifania relativamente ao casamento em geral, e a Carlton em particular, tinha sido apropriada. Depois de todos os episódios que ela tivera de aguentar, daquilo que interpretara como rejeição, parecia inadequado que Carlton agisse negativamente naquela instância. Na opinião dela, era mau sinal. A comunicação tinha grande prioridade no sistema de valores de joanna.

 

- Lembraste-te de trazer aquela lista de perguntas que escreveste? - indagou Deborah.

 

- Claro que lembrei - respondeu Joanna. Eram perguntas que versavam sobre o que aconteceria depois da recolha dos óvulos e se haveria limitações à prática de exercício, etc.

 

Deborah ficara impressionada com o acolhimento da Clínica Wingate, Ela e joanna haviam telefonado para o número que constava no anúncio do Harvard Cúmson na segunda-feira de manhã e, quando se identificaram como possíveis interessadas na doação de óvulos, tinham passado a chamada a uma Dr.a Sheila Donaldson, que por seu turno se oferecera para as visitar imediatamente. Em menos de uma hora, a médica chegava ao apartamento no Craigie Arins e impressionara-as com o seu profissionalismo. Explicara a totalidade do programa e respondera eficientemente a todas as perguntas que Deborah e Joanna lhe colocaram.

 

- Não consideramos ser necessário hiperestimular - dissera a Dr.a Donaldson no início da conversa. - Aliás, não estimulamos nada, Chamamos a isto a nossa abordagem «orgânica». A última coisa que queremos é causar problemas às nossas dadoras, como as hormonas sintéticas ou agrupadas podem fazer,

 

- Mas como é que têm a certeza de que conseguem mesmo alguns óvulos? perguntara Deborah.

 

- Por vezes não conseguimos - respondera a Dr.a Donaldson.

- Mas pagam à mesma, não pagam?

 

- Com certeza - replicara a Dr.a Donaldson.

 

- Qual é a anestesia usada? - indagara Joanna. Era a sua maior preocupação. -Isso é opção da dadora - dissera a Dr.a Donaldson. -Mas o Dr. PaulSaunders, o responsável pelas extracções, prefere uma anestesia geral ligeira.

 

Nessa altura, Joanna levantara os polegares para Deborah em assentimento. No dia seguinte à entrevista, a Dr.a Donaldson telefonara logo de manhã para dizer que ambas tinham sido aceites e que a clínica gostaria de fazer as intervenções o mais depressa possível, de preferência nessa semana, e que, fosse como fosse, gostaria de ter notícias delas nesse mesmo dia. Durante as horas que se seguiram, as mulheres haviam debatido os prós e os contras. Deborah estava inteiramente a favor de prosseguir, e o seu entusiasmo acabou por conquistar Joanna. Ligaram para a clínica e marcaram para essa sexta de manhã.

 

- Tens alguma reserva em relação a isto? - perguntou Joanna de repente, quebrando um quarto de hora de silêncio.

 

- Nem por sombras - disse Deborah. - Especialmente se me lembrar do apartamento na Praça Louisburg que fomos ver. Espero que ninguém o apanhe antes de termos o dinheiro nas mãozinhas.

 

- Também depende do vendedor nos querer fazer um segundo empréstimo atalhou Joanna. - Caso contrário, é acima das nossas possibilidades.

 

As mulheres haviam contactado mediadores imobiliários, tanto em Cambridge como em Boston, e visto vários apartamentos para venda. o da Praça Louisburg em Beacon Hill fora o que mais as impressionara.

 

Era uma das melhores zonas de Boston, central e junto ao metro da Linha Vermelha, que as levaria à Praça de Harvard rapidamente.

 

- Para dizer a verdade, estou espantada que o preço seja tão razoável.

 

- Deve ser porque fica num quarto andar sem elevador - disse Joanna. - E por ser tão pequeno, especialmente o segundo quarto.

 

- Sim, mas esse quarto tem a melhor vista de todo o apartamento, além do enorme guarda-roupa.

 

- Não achas que é aborrecido passar pela cozinha para ir para o quarto de banho?

- Eu passaria pelo apartamento de outra pessoa para ir para o quarto de banho, só pela oportunidade de morar na Praça Louisburg.

 

- Como é que vamos decidir quem fica com esse quarto? - perguntou Joanna.

- Eia, eu ficaria muito contente com o mais pequeno, se é isso que te aflige disse Deborah.

 

- A sério?

 

- A sério - disse Deborah.

 

- Talvez possamos trocar, de algum modo - sugeriu Joanna.

 

- Não é preciso - atalhou Deborah. - Fico muitíssimo bem com o quarto mais pequeno. Acredita!

 

Joanna virou a cabeça para olhar pela janela do passageiro. Quanto mais andavam para norte mais intensas eram as cores outonais. o vermelho dos bordos era tão brilhante que quase não parecia real, especialmente em contraste com o verde-escuro dos pinheiros ou abetos.

 

- Não estás hesitante, pois não? - indagou Deborah.

 

- Nem por isso - disse Joanna. - Mas é estonteante como tudo aconteceu tão depressa. Quero dizer, se tudo correr bem, na semana que vem por esta altura seremos não só senhorias como estaremos em Veneza. É um sonho.

 

Deborah tinha encontrado na Internet viagens incrivelmente baratas para Milão via Bruxelas. De Milão apanhariam o combóio para Veneza, onde chegariam a meio da tarde. Deborah encontrara também um alojamento com pequeno-almoço na sestière de San Polo, perto da ponte do Rialto, onde ficariam até encontrar um apartamento.

 

- Mal posso esperar! - exclamou Deborah. - Estou excitadíssima! Benvenuto a Italia, signorina!

 

Estendeu o braço e despenteou o cabelo de Joanna. Joanna inclinou-se, afastou a mão de Deborah e riu-se.

 

-Millegrazie, cara -disse num tom sarcástico de brincadeira. Depois inclinou a cabeça e passou os dedos pelo cabelo, na esperança de o arranjar novamente. Acho que estou um pouco siderada pela rapidez com que a Clínica Wingate está a fazer isto acontecer- disse, enquanto se mirava no espelho retrovisor para verificar o resultado dos esforços com o cabelo. Joanna era moderadamente obcecada com o cabelo e o seu aspecto geral, muito mais do que Deborah, que a costumava picar acerca disso.

 

- Talvez sejam os clientes que os estão a apressar - disse Deborah. Reajustou o espelho.

 

- A Dr.a Donaldson falou nisso? - perguntou Joanna.

 

- Não - respondeu Deborah. - Eu é que supus. Ela disse que a clínica só está interessada em duas dadoras, por isso temos sorte em ter ligado.

 

- Está ali um letreiro que diz que BookfÓrd. é na próxima saída - disse Joanna, apontando. o sinal era pequeno e estava à frente de uma pequena mata de carvalhos cor de laranja-incandescente.

 

- Eu vi - disse Deborah, e ligou o pisca.

 

Após mais vinte minutos numa estrada estreita de duas vias, ladeada por macieiras e muros que serpenteavam na paisagem de colinas ondulantes e campos de milho cor de ferrugem, as mulheres entraram numa vila típica da Nova Inglaterra. Nos arredores estava um enorme cartaz a dizer BEM-VINDO A BOOKFORD, MASSACHUSets, TERRA DOS BOOKFORD HIGHSCHOOL WILDCATS, CAMPEõES DE FUTEBOL ESTADUAL DA 2.a DIVISãO EM

 

1993. o caminho que saía da auto-estrada transformava-se na Rua Direita e dividia a cidade em duas direcções, norte e sul, Erguiam-se de cada lado os tradicionais grupos de lojas com fachada em tijoleira dovirar do século. A cerca de meio caminho, havia uma grande igreja branca com campanário e um relvado que se estendia até um edifício municipal de granito. Nos passeios seguia um tropel ruidoso e turbulento de miúdos com mochilas da escola, como aves migratórias sem asas rumo ao norte.

 

- É uma cidade gira - comentou Deborah, debruçando-se para ver melhor pelo pára-brisas. Abrandou para menos de trinta quilómetros por hora. - Parece quase gira de mais para ser verdadeira, como se estivesse num parque temático.

 

- Não vi nenhum letreiro da Clínica Wingate - comentou Joanna.

 

- Eia, sabes por que é que é preciso um milhão de espermatozóides para fecundar um óvulo?

 

- Acho que não - respondeu Joanna.

 

- Porque nenhum deles quer parar para perguntar o caminho. Joanna deu uma risadinha.

 

- Isso deve querer dizer que nós vamos parar.

 

- Nem mais - rematou Deborah, virando para um parque de estacionamento em frente ao armazém RiteSmart. Havia estacionamento em espinha de cada lado da Rua Direita, - Queres vir ou esperas aqui?

 

- Não vou deixar o gozo todo para ti - disse Joanna ao sair do carro.

 

As mulheres tiveram de se esquivar de crianças que corriam atrás umas das outras pelo passeio fora. Os seus gritos e guinchos quase chegavam ao limiar da dor e foi um alívio para ambas as mulheres fechar a porta da loja atrás delas. No interior pairava um sossego relativo, a que não era alheia a ausência de clientes. Nem havia funcionários à vista.

 

Depois de encolherem os ombros uma para a outra, pois não aparecia ninguém, as duas mulheres dirigiram-se ao balcão na parte de trás da loja. Havia lá uma campainha e Deborah tocou-a decididamente. Foi um barulho considerável no silêncio reinante. Em poucos segundos, apareceu pelas portas basculantes, como as dos bares nos westerns de Hollywood, um homem obeso e quase calvo, com uma bata de farmacêutico desabotoada no colarinho. Ainda que a loja estivesse fresca, havia gotas de suor na sua testa.

 

- Em que posso ajudar? - perguntou o dono, alegremente.

- Estamos à procura da Clínica Wingate - disse Deborah.

 

-Não há problema -retrucou o dono. -Fica no Hospital Estadual Psiquiátrico de Cabot.

 

- Perdão?! - exclamou Deborah, espantada. - Fica numa instituição psiquiátrica?

 

- Iep - respondeu o dono. - o velho Dr. Wingate comprou ou arrendou aquele lugar todo, não tenho a certeza. Ninguém sabe, e não é que interesse muito.

- Oh, percebo - disse Deborah. - Era uma instituição psiquiátrica.

 

- Iep - repetiu o dono. - Durante coisa de cem anos. Também era um sanatório para tuberculosos. Parece que as pessoas lá em Boston estavam ansiosas por banir os doentes mentais e os tísicos. Assim, a modos que os fechavam numa espécie de fortaleza. Tipo, longe da vista, longe do coração. Há cem anos, considerava-se que BookfÓrd ficava nas berças, Eia, pá, os tempos mudaram mesmo. Agora somos uma comunidade dormitória de Boston.

 

- Eles fechavam as pessoas num sítio? - indagou Joanna. - Não tentavam tratá-las?

 

-Acho que sim-replicou o dono. -Mas não havia assim grandes tratamentos naquele tempo, Bem, isto não é inteiramente verdade. Faziam-se muitas operações lá. Sabem, experiências como esvaziar pulmões de tuberculosos e lobotomias aos malucos.

 

- Parece-me horrível - disse Joanna, e estremeceu.

- Sim, deve ter sido - anuiu o dono.

 

- Bem, já não há doentes mentais nem tísicos - acrescentou Deborah.

 

- Pois claro que não - disse o dono. - o Cabot, como lhe chamamos por cá, está fechado há vinte, trinta anos. Acho que foi nos anos 70 que levaram os últimos doentes. Vocês lembram-se: foi quando os políticos começaram a pensar seriamente na saúde pública. Foi uma tragédia. Acho que levaram o resto dos doentes de volta para Boston e os deixaram ao deus-dará no parque de Boston Cominon.

 

- Acho que isso foi antes do nosso tempo - disse Deborah.

- Sim, deve ter razão - concordou o dono.

 

- Poderia dizer-nos como chegar ao Cabot? - inquiriu Deborah.

- Certinho e direitinho - disse o dono. - Vão em que direcção?

- Norte - disse Deborah.

 

- Perfeito - disse o dono. - Sigam até ao próximo semáforo e virem à direita, para a Rua Pierce, com a biblioteca pública na esquina. Do cruzamento pode ver-se a torre de tijoleira do Cabot. Fica a três quilómetros a leste da cidade, depois da Rua Pierce. Não tem nada que enganar.

 

As mulheres agradeceram ao farmacêutico e voltaram ao carro.

 

- Parece um ambiente encantador para uma clínica de infertilidade - disse Joanna, apertando o cinto de segurança.

 

- Pelo menos já não é um sanatório de tísicos e uma instituição psiquiátrica alvitrou Deborah, fazendo marcha-atrás para sair. - Por momentos, estive prestes a regressar a Cambridge.

 

- Talvez devêssemos - disse Joanna.

- Não estás a falar a sério, pois não?

 

- Não, não estou - admitiu Joanna. - Mas um lugar com uma história assim causa-me arrepios. Podes imaginar os horrores que lá passaram?

 

- Não, não posso - disse Deborah.

 

Paul Saunders pousou o memorando que Sheila Donaldson lhe tinha preparado e esfregou os olhos com os dedos das duas mãos, mantendo os cotovelos na mesa. Estava de volta ao seu gabinete no quarto andar da torre, depois de passar várias horas a verificar as suas culturas de embriões. Na sua maioria estavam a correr bem, mas não na perfeição. Ele temia que era por causa da idade e da qualidade dos óvulos, problema que esperava remediar em breve.

 

Paul era madrugador. Costumava saltar da cama antes das cinco e estava no laboratório antes das seis. Assim conseguia despachar muito trabalho antes da chegada das doentes, o que sucedia por volta das nove. Naquela manhã começava o seu dia cedo porque tinha marcado duas extracções de óvulos. Gostava de fazer as intervenções o mais cedo possível para que as dadoras tivessem tempo para recuperar da anestesia e ter alta no mesmo dia. As camas para doentes internadas eram só para emergências e, mesmo nesses casos, Paul preferia mandá-las para o hospital de cuidados breves mais próximo.

 

Tornou a pegar no memorando e, empurrando a cadeira, dirigiu-se às janelas. Eram monstruosas, de guilhotina, muito mais altas do que o seu escasso metro e sessenta e cinco. A vista consistia no grande relvado em frente à clínica que se estendia até à vedação de ferro-forjado e arame farpado que circundava todo o perímetro. À esquerda de Paul ficava a casa de pedra da Portaria, donde vinha o acesso alcatroado. Este avançava na direcção de Paul e depois virava à esquerda até desaparecer de vista no estacionamento a sul do edifício. À distância, podia ver o pináculo da igreja presbiteriana de Bookford, bem como as chaminés de alguns prédios mais altos, que irrompiam nas cores outonais. No horizonte ficava o sopé da serra de Berkshire, recortada sob forma de lampejos, cor de púrpura.

 

Paul releu o memorando, ponderou um pouco e tornou a olhar a vista. Tinha todas as razões para estar contente. As coisas não podiam correr melhor e só a ideia trouxe um sorriso à sua cara pastosa. Parecia incrível que, apenas seis anos antes, ele tivesse sido praticamente expulso de Illinois, perdido as regalias do hospital e mal tivesse conseguido manter a licença médica. o advogado na altura dissera-lhe que as coisas pareciam negras, e assim ele partira para leste, devido a uma barulheira estúpida por causa da facturação da Medicare e Medicaid. Claro que ele se tinha esticado, mas os colegas de Ginecologia e Obstetrícia tinham feito o mesmo. Aliás, ele limitara-se a copiar e a refinar uma prática já usada por outro grupo dentro do mesmo edifício hospitalar. Por que razão o Governo tinha ido atrás dele era ainda um mistério, coisa que o podia enfurecer se ele pensasse muito nisso. Mas já não era preciso, agora que as coisas estavam a ficar cor-de-rosa.

 

Quando chegara ao Massachusetts, e porque pensara ter dificuldade em obter a licença se a Ordem dos Médicos de Massachusetts soubesse dos problemas no Elinois, Paul decidira continuar a especialização com uma bolsa em infertílidade. Fora a melhor decisão da sua vida. Não somente evitara problemas com licenciamento, como também ganhara entrada num domínio que não tinha propriamente fiscalização, nem a nível profissional nem em termos de negócios. Além disso, era espantosamente lucrativo.

 

Paraele, a infertilidade era uma combinação ideal, especialmente porque estivera no lugar certo e no momento certo, por pura sorte, ao conhecer Spencer Wingate, um especialista em infertilidade já estabelecido, desejoso de se reformar, viver à grande, repousar sobre os louros, angariar fundos e realizar palestras. Agora, Paul mandava em tudo, tanto na pesquisa como na clínica.

 

Sempre que Paul pensava na ironia de ser ele um investigador esboçava um sorriso, porque nunca se imaginara naquele papel. Tinha sido o último do curso de Medicina e nunca tivera formação em investigação. Conseguira não ter uma única aula de Estatística. Mas não tinha importância. Em infertilidade, os doentes estavam desesperados o bastante para tentar qualquer coisa. Aliás, até queriam experimentar coisas novas. Paul achava que podia compensar com imaginação o que lhe faltava em experiência de pesquisa. Sabia que fazia progressos em várias frentes, o que acabaria por torná-lo rico e famoso.

 

Virando costas à vista que considerava agora o seu domínio, Paul apanhou um vislumbre fugidio da sua imagem reflectida no espelho de moldura barroca pendurado entre as duas janelas gigantescas. Olhando directamente para o reflexo, Paul passou a mão pelas faces. Ficou surpreso e preocupado com a lividez da sua tez, realçada pelo cabelo quase preto, até perceber que se devia grandemente à luz fluorescente das lâmpadas montadas no tecto alto. Riu-se da sua preocupação momentânea. Sabia que era pálido; com os horários que fazia a sua pele raramente via a luz do dia, muito menos o próprio sol, mas sabia que não tinha tão má cara como a que o espelho lhe devolvia. No reflexo, a tez igualava-se à madeixa branca que era a sua imagem de marca.

 

Regressou à secretária e prometeu a si próprio ir até à Florida durante o Inverno, ou talvez aproveitar um congresso de Ginecologia e Obstetrícia num local com bom tempo para apresentar algum do seu trabalho. Paul pensou também que devia arranjar tempo para fazer exercício, pois ganhara peso - particularmente no pescoço. Não fazia exercício há anos. Paul não era grande atleta, o que lhe trouxera aborrecimentos na escola secundária de South Side Chicago, onde o desporto tinha um papel social preponderante. Tentara entrar em algumas equipas, mas nunca dera resultado, o que fizera dele alvo de escárnio e maldizer.

 

- Eles que olhem para mim agora - disse Paul em voz alta, pensando nas pessoas que tinham feito pouco dele. - Devem estar a encher sacos de supermercado. Sabia que a vigésima reunião da escola era em Junho próximo e perguntava-se se

 

deveria ir só para alardear o seu sucesso na cara daqueles que tinham gozado com ele. Paul pegou no telefone e ligou para o laboratório. Quando atenderam, pediu para falar com a Dr.a Donaldson. Enquanto esperava, releu o memorando que tinha na mão.

 

- Que se passa, Paul? - perguntou Sheila, sem preâmbulo.

 

-Recebi o teu memorando -disse Paul. -As duas mulheres que vêm aí: achas que são boas candidatas?

 

-Excelentes -retrucou Sheila. - São ambas saudáveis, com hábitos normais; não têm problemas ginecológicos; não estão grávidas; negam uso de drogas ou medicações de qualquer espécie e estão ambas a meio do ciclo.

 

- E são mesmo formadas?

- Afirmativo.

 

- Então, devem ser inteligentes.

- Sem dúvida.

 

- Mas por que é que uma delas quer anestesia local? - perguntou Paul.

 

- Porque está a fazer doutoramento em Biologia - respondeu Sheila. - Sabe umas coisas de anestesia. Eu fiz sugestões, mas ela não mordeu a isca. Acho que o Carl poderá tentar.

 

- Mas tentaste? - insistiu Paul.

 

- Claro que tentei - disse Sheila, irritada.

 

- Está bem, Carl que fale com ela - redarguiu Paul. Desligou sem se despedir. Sheila conseguia aborrecê-lo com os óbvios ciúmes.

 

- Deve ser a torre que o farmacêutico falou - disse Deborah, apontando pelo vidro. Tinham virado da Rua Direita para a Rua Pierce e mal conseguiam discernir à distância a estreita estrutura de tijoleira elevando-se acima da paisagem circundante.

- Se fica a três ou quatro quilómetros tem de ser uma torre bem alta.

 

- Daqui, a silhueta parece-se um pouco com a torre da Galeria Uffizi, em Florença- disse Deborah. -Que apropriado.

 

Assim que deixaram a vila atrás delas, as árvores que ladeavam a estrada não deixaram ver mais nada da torre nem do próprio complexo Cabot até passarem por um celeiro vermelho em ruínas à direita. Na curva seguinte viram à esquerda um sinal para a Clínica Wingate, com uma seta apontada para um caminho de saibro. Entraram na estrada não alcatroada e viram logo a casa de granito da Portaria, com dois andares, entre as árvores. Era uma estrutura maciça e atarracada, com persianas nas janelas pequenas e um telhado de xisto com florões trabalhados em cada ponta das vigas-mestras. o madeiramento estava pintado de preto. Havia gárgulas de pedra nos cantos.

 

Acercaram-se e viram que a estrada seguia por baixo da casa, por um túnel, e que tinha a meio caminho um pesado portão de ferro entrelaçado. Além do portão podia ver-se um relvado aparado há pouco tempo, único sinal de que o local era utilizado.

Havia uma vedação de ferro-forjado e arame farpado de cada lado da Portaria que desaparecia nas árvores circundantes.

 

Deborah abrandou e depois parou.

 

- Palavra de honra - disse. - o farmacêutico não estava a brincar quando disse que os internados do Cabot estavam fechados numa fortaleza. Quase parece uma prisão.

 

- Não tem mesmo nada de acolhedor - acrescentou Joanna. - Como é que achas que conseguimos entrar? Vês algum intercomunicador ou teremos de usar algum telefone?

 

-Deve haver um monitor de vídeo, ou coisa assim - sugeriu Deborah. - Vou encostar ao portão.

 

Deborah avançou com o carro e entrou no túnel. Assim que parou novamente, abriu-se uma porta pesada, trabalhada e sem postigo, de onde saiu umhomem fardado com uma prancheta na mão. Aproximou- se da janela do condutor e Deborah baixou o vidro.

 

- Em que posso ajudar? - perguntou o guarda em tom agradável mas decidido. Tinha um chapéu brilhante com uma pala preta como um polícia.

 

- Viemos encontrar-nos com a Dr.a Donaldson - explicou Deborah.

- Os vossos nomes, por favor? - pediu o homem.

 

- Deborah Cochrane e Joanna Meissner - respondeu Deborah.

 

o homem consultou a prancheta, riscou os dois nomes e apontou com a caneta para além do portão. - Sigam aquele acesso para a direita até ao parque de estacionamento. Alguém estará lá à vossa espera.

 

- Obrigada - disse Deborah.

 

o homem não respondeu mas tocou na beira do chapéu. Com grande chiadeira, o pesado portão de ferro entrelaçado começou lentamente a abrir.

 

- Viste a arma que o guarda tinha? - perguntou Deborah num sussurro, depois de subir o vidro da janela. o guarda ainda estava lá de pé, à esquerda.

 

- Seria difícil não ver - retrucou Joanna.

 

- Já vi polícias armados em hospitais de cidades do interior - disse Deborah.

- Mas nunca numa clínica médica rural. Por que raio é que precisam de tanta segurança aqui, especialmente numa clínica de infertilidade?

 

- É de perguntar se querem manter as pessoas fora ou dentro.

 

- Nem brinques com isso - admoestou Deborah. Avançou pelo portão aberto.

- Achas que também fazem abortos? Já vi guardas em clínicas de aborto neste Estado.

 

- Não deve haver nada mais inadequado numa clínica de infertilidade.

 

- Acho que tens razão - anuiu Deborah.

 

Saindo do túnel e rodeando um maciço de árvores, as mulheres obtiveram a primeira visão desobstruída de Cabot. Era uma enorme estrutura de tijolo vermelho com quatro pisos, um telhado de xisto pontiagudo e inclinado atrás de uma cornija com ameias, pequenas janelas com grades e uma torre central imponente. A torre tinha janelas maiores, com vários vidros e sem grades.

 

Deborah abrandou.

 

- Que choque ver um edifício destes aqui no campo, sozinho. E que arquitectura curiosa, também. Vendo a torre mais de perto, eu diria que é cópia deliberada da Uffizi. É tão parecida que não pode ter sido por acaso. Se a memória não me falha, até tem o mesmo estilo de relógio, ainda que o da Uffizi funcione.

 

- Já vi outros edifícios vitorianos como este em Massachusetts - disse Joanna.

- Há outro em Worcester, em pedra, não em tijolo, e quase do mesmo tamanho. Só que está deserto. Ao menos este tem uso.

 

- A Clínica Wingate deve estar muitíssimo ocupada, para usar estes metros quadrados todos.

 

Joanna assentiu.

 

Seguindo o caminho para a direita do edifício, Deborah entrou num parque de estacionamento que tinha, surpreendentemente, muitos carros. As mulheres repararam que havia várias viaturas diferentes dos habituais Honda Civics ou Chevy Caprices. Um dos automóveis destacava-se particularmente entre os Mercedes, Porsches e Lexus. Era um Bentley descapotável cor de vinho.

 

- Valha-me Deus! - comentou Joanna. - Estás a ver o Bentley?

- É como a arma do guarda, seria difícil não ver.

 

A pintura metalizada resplandecia à luz da manhã.

 

- Fazes ideia de quanto custa aquele carro? - perguntou Joanna.

- Nem por sombras.

 

- Mais de trezentos mil dólares.

 

- Caraças! É obsceno, especialmente numa instituição médica.

 

Deborah estacionou num lugar marcado para visitantes. As mulheres saíram do carro e viram uma porta abrir-se em frente ao parque. Apareceu uma figura feminina alta, de cabelo castanho e bata branca, que acenou.

 

- Ora, este aceno é diametralmente oposto ao que vimos na casa do guarda disse Deborah. Devolveu o aceno enquanto ela e Joanna se dirigiam para a porta, a cinquenta metros de distância.

 

- Parece a Dr.a Donaldson.

 

- Acho que tens razão - disse Deborah.

 

-Espero que não nos venhamos a arrepender disto- disse Joanna, subitamente. Caminhava de cabeça baixa para ver onde punha os pés. - Tenho a sensação desconfortável de que vamos cometer um grande erro.

 

Deborah agarrou o braço da amiga e obrigou-a a parar.

 

- Que é que estás a dizer? Não queres continuar com isto? Se for o caso, temos de dar meia volta e regressar aBoston. Não quero que penses que te estou apressionar, porque não é verdade.

 

Joanna estreitou o olhar por causa da luz e observou a elegante médica à porta da clínica. Já estavam perto para perceberem que era a Dr.a Donaldson e que esta estava contente de as ver. Tinha no rosto delgado um sorriso largo e acolhedor.

 

- Fala comigo, miúda. - disse Deborah, apertando mais o braço de Joanna. Joanna encarou Deborah.

 

-Podes olhar-me nos olhos e dizer que estás confiante de que tudo correrá bem?

- Posso pois - afirmou Deborah. - Como já te disse dez vezes: só temos a ganhar.

 

- Estou a falar das intervenções - insistiu Joanna.

 

- Oh, valham-me os santinhos! Estas extracções são canja. As mulheres que fazem tratamentos de infertilidade passam por isto várias vezes, para além das toneladas de hormonas. Para nós não é nada de especial.

 

Joanna hesitou. Os olhos verdes moviam-se de Deborah para a Dr.a Donaldson e vice-versa, enquanto pesava a sua aversão a procedimentos médicos. Nem lhe agradava levar uma vacina. Suspirou, pigarreou e arvorou um sorriso.

 

- Está bem, vamos a isto.

 

- Tens a certeza? Quer dizer, não te sentes obrigada, pois não? Joanna abanou a cabeça.

 

- Estou bem. Vamos acabar com isto. As mulheres recomeçaram a caminhar.

 

- Por momentos assustaste-me - disse Deborah.

 

- Eu assusto-me a mim própria, às vezes - comentou Joanna.

 

15 de Outubro de 1999

7.45 h.

-Estimo que a vossa viagem de Boston tenha decorrido sem incidentes -disse a Dr.a Donaldson enquanto fechava a porta da clínica atrás delas.

 

Correu bem - respondeu Deborah, mirando uma sala de espera grande e vazia. A mobília parecia de estilo escandinavo, moderno e dispendioso, o que contrastava com os pormenores arquitectónicos do período vitoriano. Havia uma secretária de recepcionista em forma de U e vazia no meio da sala. Nas paredes havia cadeiras e sofás de pele estofados, e nas mesinhas baixas um monte de revistas actualizadas.

 

Percebi esta manhã que me esqueci de vos indicar o caminho - disse a Dr.a Donaldson. - Peço desculpa.

 

- Não tem importância - redarguiu Deborah. - Eu devia ter perguntado. Mas não nos atrapalhámos, parámos na farmácia e pedimos indicações.

 

Muito bem - disse a Dr.a Donaldson. Entrelaçou as mãos. - Agora vamos começar pelo princípio. Creio que nenhuma de vós comeu nada desde a meia-noite de ontem.

 

Deborah e Joanna assentiram.

 

Excelente! - exclamou a Dr.a Donaldson. - Vou ligar ao Dr. Smith, o nosso anestesista, para ele falar convosco. Entretanto, se quiserem despir os casacos para ficarem à vontade, já poderemos começar,

 

Enquanto a Dr.a Donaldson falava do telefone da recepção, Deborah e Joanna tiraram os casacos e penduraram-nos no bengaleiro.

 

Estás bem? - sussurrou Deborah ao ouvido de Joanna. Podiam ouvir a Dr.a Donaldson ao telefone.

 

- Sim, estou óptima - respondeu Joanna. - Por que perguntas?

- Estás tão calada. Não estás a mudar de ideias outra vez, pois não?

 

-Não! Estou enervada com este lugar -explicou joanna. -Muitas surpresas, como guardas armados. Até a mobília da sala de espera me incomoda.

 

- Compreendo o que queres dizer - anuiu Deborah. - Parece que custou uma fortuna, mas fica horrorosa no cenário.

 

-É estranho. Estas coisas não me costumam incomodar. Desculpa ser uma pilha de nervos.

 

- Tenta descontrair-te e pensa em beber café na Praça de S. Marcos. Voltando à sala, a Dr.a Donaldson indicou-lhes um sofá. Já sentadas, informou-as de que o Dr. Carl Smith estava a caminho. Em seguida, inquiriu se tinham dúvidas.

 

- Quanto tempo acha que vai demorar? - perguntou Joanna.

 

- Uma extracção leva apenas cerca de quarenta minutos - explicou a Dr.a Donaldson. - Depois têm de recuperar algumas horas para passar completamente a anestesia. Quando menos esperarem já estarão prontas.

 

- Vamos sofrer a intervenção ao mesmo tempo? - perguntou Joanna.

 

- Não - disse a Dr.a Donaldson. - A Menina Meissner vai primeiro porque quer anestesia geral ligeira. Claro que, se a Menina Cochrane quiser mudar para anestesia geral, podem decidir quem vai primeiro.

 

- Basta-me a anestesia local - afirmou Deborah.

 

- Como quiser - disse a Dr.a Donaldson. Olhou de uma mulher para a outra.

- Mais dúvidas, de momento?

 

- A clínica ocupa o edifício todo? - inquiriu Deborah.

 

- Não, credo. o edifício é enorme. Albergava uma grande instituição psiquiátrica, assim como um sanatório para tuberculosos.

 

- Já sabíamos - disse Deborah.

 

- A clínica de infertilidade ocupa dois andares nesta ala somente - explicou a Dr.a Donaldson. - Também temos alguns escritórios na torre. o resto das instalações está vazio, tirando camas velhas e muito equipamento antigo. É quase um museu.

- Quantas pessoas trabalham cá? - perguntou Joanna,

 

- Temos cerca de quarenta funcionários, mas o número tem vindo a aumentar. Para saber com exactidão, só falando com Helen Masterson, a directora de Recursos Humanos.

 

- Quarenta empregados é muito - opinou Joanna. - Deve ser uma dádiva dos céus, para uma pequena comunidade rural como esta.

 

- Dir-se-ia que sim - disse a Dr.a Donaldson. - mas, na realidade, temos um Problema crónico para recrutar pessoal. Temos sempre anúncios nos jornais de Boston, geralmente para técnicos de laboratório e pessoal administrativo com experiência. As senhoras estão à procura de emprego? -A Dr.a Donaldson sorriu provocadoramente.

- Não me parece - respondeu Deborah, com um risinho.

 

- o único departamento que não tem falta de gente é a quinta - acrescentou a Dr.a Donaldson. - Nunca tivemos problemas nessa área desde o primeiro dia.

 

- A quinta? - inquiriu Joanna. - Que quer dizer a quinta?

 

- A Clínica Wingate tem uma grande quinta de produção animal - explicou a Dr.a Donaldson. - É parte integrante do nosso esforço de investigação. Interessa-nos a pesquisa reprodutiva básica em espécies além do homo sapiens.

 

- Deveras? - indagou Joanna. - Que outras espécies?

 

-Espécies que sejam economicamente vantajosas -respondeu a Dr.a Donaldson. -Gado vacum, porcos, criação, cavalos. E, claro, também estamos desenvolvidos na reprodução de animais de estimação, como cães e gatos.

 

- Onde fica a quinta? - perguntou Joanna.

 

- Na propriedade logo atrás deste edifício principal, a que chamamos afectuosamente a «monstruosidade», e depois de um pinhal cerrado. o sítio é algo idílico. Há um lago, um dique e até um velho moinho, além dos celeiros, campos de milho, de forragem e cercados. A Instituição Cabot abrangia oitenta hectares, com alojamento para o pessoal e a sua quinta própria, para que fosse largamente auto-suficiente na alimentação. o facto de ter a quinta nas instalações foi determinante para arrendarmos a propriedade. A investigação torna-se muito mais eficiente por termos a quinta próxima do laboratório, isto sem falar no alojamento.

 

- Têm cá um laboratório? - perguntou Deborah.

 

- Com certeza - disse a Dr.a Donaldson. - E grande, Tenho muito orgulho nele, talvez por ter sido responsável pela sua instalação.

 

- Podemos fazer uma visita guiada? - indagou Deborah.

 

- Acho que se pode arranjar - replicou a dr.a Donaldson. - Ah, aqui vem o Dr. Smith.

 

As mulheres viraram-se para observar um homem grande e entroncado, de bata vestida, que entrava na sala de prancheta na mão. Naquele momento, a porta da frente abria-se e entrava um enxame de funcionários, em animada cavaqueira. Uma mulher dirigiu-se à recepção, enquanto o resto se amontoava no vestíbulo de onde Smith acabara de sair.

 

Depois de se apresentar e de apertar as mãos de ambas, o Dr. Smith sentou-se, cruzou as pernas e colocou a prancheta no colo.

 

- Ora bem - disse, puxando uma de muitas canetas que tinha no bolso do peito.

- Menina Cochrane, parece que prefere anestesia local.

 

- Correcto - assentiu Deborah.

 

- Posso perguntar porquê? - questionou o Dr. Smith.

 

- Sinto-me melhor com essa ideia - respondeu Deborah.

 

- Presumo que a informaram que preferimos anestesia geral ligeira para extracções de óvulos.

 

- A dr.a Donaldson assim mo disse - concordou Deborah. - Também disse que a decisão era minha.

 

- Nada mais verdadeiro - disse o Dr. Smith. - Não obstante, gostaria de lhe dizer por que preferimos tê-la a dormir. Com anestesia geral ligeira, procedemos à extracção sob observação laparoscópica directa. Com anestesia local e paracervical, a extracção processa- se com uma agulha guiada por ultra-som. Comparativamente, é como trabalhar no escuro. - o Dr. Smith parou e sorriu. - Há dúvidas acerca do que eu disse até agora?

 

- Não - disse Deborah, simplesmente.

 

- Há mais uma questão - continuou o Dr. Smith. - Com anestesia não podemos controlar a dor inerente à manipulação intra-abdominal, ou seja, se tivermos problemas para chegar a um dos ovários e tivermos de manobrar para isso, poderá sentir algum desconforto.

 

- Posso arriscar - redarguiu Deborah.

- Mesmo considerando a questão da dor?

 

- Acho que posso com isso - insistiu Deborah. - Prefiro estar acordada. o Dr. Smith olhou brevemente para a Dr.a Donaldson que encolheu os ombros. Em seguida, fez o apanhado do historial médico de ambas as mulheres. Quando terminou pôs-se de pé.

 

- Por agora basta-me. Agora vão mudar de roupa e encontramo-nos lá em cima.

- Vão dar-me um sedativo? - perguntou Joanna.

 

- Com certeza - respondeu o Dr. Smith. - Será administrado assim que a Puserem a soro. Mais perguntas por agora?

 

Nenhuma das mulheres respondeu e o Dr. Smith sorriu e saiu. A Dr.a Donaldson acompanhou-as a uma sala de espera mais pequena e separada. De um lado havia vários vestiários com portas de venezianas e do outro um conjunto de cacifos. Uma enfermeira pequenina e de rosto agradável reabastecia o equipamento das doentes. Encontravam-se várias macas junto às portas basculantes. No meio da sala, algumas cadeiras, um sofá e uma mesinha cheia de revistas.

 

A Dr.a Donaldson apresentou as mulheres à enfermeira, que se chamava Cynthia Carson. Por seu turno, esta deu-lhes indumentárias hospitalares, uma chave de cacifo Para cada uma, junto com a recomendação de que as prendessem nas batas, e abriu as portas de dois vestiários adjacentes. Nesse momento, a Dr.a Donaldson pediu licença para sair. Pouco depois, Cynthia saía também para ir buscar o soro, Disse que voltaria num instante.

 

- Não se calava com a história da anestesia geral! - exclamou Joanna do vestiário onde estava.

 

- Bem podes dizê-lo - anuiu Deborah.

 

As mulheres saíram dos respectivos vestiários, apertando o roupão fino com uma mão e agarrando as próprias roupas com a outra. Desataram a rir quando olharam uma para a outra.

 

- Espero não ter um ar tão patético como tu - conseguiu Joanna dizer.

- Lamento anunciar - replicou Deborah -, mas tens mesmo. Dirigiram-se aos cacifos para guardar os pertences.

 

- Por que é que não cedeste e aceitaste a anestesia geral? - perguntou Joanna.

- Não vais começar com isso também, pois não? - contrapôs Deborah.

 

- Achei que fazia sentido o que o anestesista disse - disse Joanna. Especialmente quando falou em dores da manipulação intra-abdominal. Foi o bastante para me fazer vertigens. Não achas que devias reconsiderar?

 

- Ouve lá! - saltou Deborah, batendo com a porta do cacifo e arrancando a chave. Encarou a amiga. Estava subitamente corada. - Já tivemos esta conversa. Não gosto que me ponham a dormir. Chama-lhe fobia. Tu não gostas de agulhas e eu não gosto de anestesia, está bem?

 

-Está bem! -disse Joanna. -Credo, tem calma! Eu éque devia estar enervada com isto, não tu.

 

Deborah suspirou. Fechou os olhos por segundos e abanou a cabeça.

 

- Desculpa. Não queria ser desabrida. Acho que também estou enervada,

- Não faz mal - apaziguou Joanna.

 

Nesse momento, Cynthia reapareceu com uma braçada de objectos, que despejou numa maca. Pendurou a garrafa de soro que tinha numa mão no respectivo suporte.

- Qual das duas é a Menina Meissner? - chamou.

 

Joanna ergueu a mão.

 

Cynthia deu uma palmada na maca, que tinha um lençol lavado.

 

- E se saltasse para cima desta geringonça para eu a pôr a soro? Depois dou-lhe uma bebida que a vai fazer sentir como se estivesse na passagem de Ano. Deborah estendeu a mão e deu uma apertadela no braço da amiga, enquanto

 

trocavam um olhar compassivo. Joanna fez o que lhe diziam. Deborah passou para o outro lado da maca.

 

Cynthia prosseguiu com os preparativos da colocação de soro com gestos económicos e experientes. Enquanto isso, ia falando distraidamente do tempo e, antes que Joanna pudesse começar a tremelicar, já Cynthia lhe fazia o torniquete no braço esquerdo, abaixo do cotovelo.

 

Joanna desviou o olhar e fez uma careta ao sentir a agulha a furar a pele. Logo a seguir já não havia torniquete e Cynthia punha um penso.

 

- Pronto, daqui já está - declarou Cynthia. Joanna virou-se. Estava surpresa.

 

- o soro já está colocado?

 

- Pois já - disse Cynthia alegremente, enquanto enchia duas seringas com fármacos. - E agora vem a parte gira. Porém, e só para ter a certeza: não tem alergia a medicamento nenhum, pois não?

 

- Não - disse Joanna.

 

Cynthia debruçou-se sobre o suporte do soro e tirou a tampa à primeira seringa.

- Que é que me vai dar? - perguntou Joanna.

 

- Quer mesmo saber? - perguntou Cynthia. Acabou a primeira e passou à segunda.

 

- Quero!

 

- Diazepam e fentanil.

 

- Troque isso por miúdos.

 

- Valium e um analgésico opiado.

 

- Valium conheço. E a outra coisa, o que é?

 

-É da família da morfina- explicou Cynthia. A enfermeira retirou rapidamente as compressas e outras coisas e deitou tudo num receptáculo específico. Enquanto registava algo na prancheta que estava na maca, a porta abriu-se e entrou outra paciente. Sorriu para as mulheres, dirigiu-se ao cabide da roupa, tirou um conjunto de indumentárias hospitalares e desapareceu num dos vestiários.

 

- Achas que é outra dadora? - perguntou Joanna.

- Não faço ideia - respondeu Deborah.

 

- Chama-se Dorothy Stevens - disse Cynthia em voz abafada, rodeando a maca e destravando as rodas. - É uma cliente da Wingate, que está cá para outra transferência embrionária, mais uma. A pobrezita já sofreu muitas desilusões.

 

- Eu vou já seguir? - perguntou Joanna quando a maca começou a andar.

- Vai, pois - disse Cynthia. - Disseram-me que a esperavam urgentemente quando fui buscar o material para o soro.

 

- Posso ir também? - perguntou Deborah. Tinha pegado na mão de Joanna.

- Receio que não - replicou Cynthia. - Deixe-se estar e descontraia-se. Quando menos esperar já lá está também.

 

- Eu fico bem - disse Joanna, sorrindo para Deborah. - Já sinto aquela coisa do opiado. Não é nada mau.

 

Deborah apertou a mão de Joanna. Antes de as portas se fecharem ainda viu Joanna a acenar por cima do ombro.

 

Deborah voltou à sala. Foi até ao sofá e sentou-se pesadamente. Tinha fome por não ter comido nada desde a noite anterior. Pegou em várias revistas, mas não se conseguia concentrar, muito menos com o estômago a dar horas. Tentou imaginar para onde levariam Joanna, naquele edifício enorme e antigo. Largou as revistas e olhou em seu redor. Lá estava a mesma disparidade entre comijas e madeiramentos e o mobiliário que ressaltava na sala de espera maior. Joanna tinha razão: Wingate era um sítio cheio de contrastes vagamente inquietantes. Deborah queria, tanto como Joanna, ver a extracção de óvulos pelas costas.

 

Abriu-se a porta de um dos vestiários e Dorothy Stevens saiu com a roupa na mão, Sorriu para Deborah antes de ir até aos cacifos para a guardar. Deborah observou-a e imaginou como seria enfrentar tratamentos de infertilidade e desilusões contínuos,

 

Dorothy fechou o cacifo e dirigiu-se aos assentos enquanto prendia a chave na bata. Pegou numa revista, sentou-se e começou a fôlheá-la. Aparentemente, sentiu o olhar de Deborah, porque ergueu os seus olhos incrivelmente azuis. Foi a vez de Deborah de sorrir. Depois apresentou-se e Dorothy fez o mesmo. Por momentos, as mulheres fizeram conversa ligeira. Após uma pausa, Deborah perguntou a Dorothy se ela era doente da Clínica Wingate há muito tempo.

 

- Infelizmente, sim - respondeu Dorothy.

- Tem sido uma experiência agradável?

 

- Não me parece que agradável seja o termo certo - replicou Dorothy. - Não tem sido um caminho fácil, nem por sombras. Mas devo dizer que aqui na clínica me avisaram. Seja como for, nem eu nem o meu marido vamos desistir, pelo menos por enquanto, até gastarmos o nosso crédito.

 

- Vai fazer uma transferência embrionária hoje? - indagou Deborah. Tinha relutância em admitir que já sabia.

 

- A nona - disse Dorothy. Suspirou e depois fez figas com os dedos.

- Boa sorte - desejou Deborah com sinceridade.

 

- Muita falta me faz.

 

Deborah imitou o gesto das figas.

 

- É a primeira vez que vem à Wingate? - perguntou Dorothy.

 

- É - admitiu Deborah. - Para mim e para a minha companheira de quarto.

- Estou certa de que ficarão satisfeitas com a escolha - disse Dorothy. - Vão ambas fazer in vitro?

 

- Não - disse Deborah. - Somos dadoras de óvulos. Respondemos a um anúncio no Harvard Crimson.

 

- Que maravilha! - proferiu Dorothy, sem esconder a admiração. - Que gesto bonito. Vão dar esperança a alguns casais desesperados. Aplaudo a vossa generosidade. Deborah sentiu-se súbita e desconfortavelmente venal. Queria mudar de assunto

 

antes que transparecesse o verdadeiro motivo da sua doação. Foi salva pelo abrupto regresso de Cynthia. A enfermeira entrou pelas portas basculantes sem qualquer aviso.

 

- Pronto, Dorothy! - chamou Cynthia com grande entusiasmo. - Está tudo pronto!Siga para a sala de transferência, que estão preparados para a receber. Dorothy ergueu-se, respirou fundo e saiu porta fora.

 

- Ela é muito corajosa - observou Cynthia quando a porta se fechou. - Espero bem que este ciclo seja bem conseguido. Ela merece mais do que ninguém.

 

- Quanto é que custa um ciclo? - perguntou Deborah. A preocupação com a sua venalidade trouxera a questão económica à superfície.

 

- Depende dos procedimentos envolvidos - disse Cynthia. - Mas em média custa entre oito e dez mil dólares.

 

- Minha nossa- comentou Deborah. - Isso quer dizer que Dorothy e o marido já gastaram quase noventa mil dólares!

 

- Talvez mais - continuou Cynthia - Isso não inclui o tratamento de infertilidade inicial ou quaisquer outros auxiliares que tenham sido indicados. A infertilidade é uma empresa dispendiosa para os casais, mesmo porque os seguros não costumam abrangê-la. A maioria dos casais tem de arranjar o dinheiro.

 

Entraram mais duas doentes e Cynthia deu-lhes toda a sua atenção. Pegou na papelada das mulheres, deu uma olhadela, pegou na indumentária e mandou-as para os vestiários. Deborah ficou surpreendida com a idade que uma delas aparentava. Não tinha a certeza, mas achou que a mulher parecia velha, com cerca de cinquenta anos. Sentindo-se inquieta, Deborah pôs-se de pé.

 

- Desculpe, Cynthia - disse. A enfermeira lia agora os papéis das doentes com mais atenção. - A Dr.a Donaldson disse-me que eu poderia fazer uma visita guiada ao laboratório. Com quem é que devo falar?

 

- Ora aí está um pedido que nunca me fizeram - comentou Cynthia. Reflectiu uns momentos. - Acho que deve tentar falar com Claire Harlow, nas Relações Públicas. Ela faz visitas guiadas a potenciais doentes, só não sei se inclui o laboratório. Se não se importar de andar por aí de roupão, pode ir à recepção da sala de espera principal e pedir que chamem a Menina Harlow. Não tem muito tempo, por isso não se afaste. Devem chamá-la dentro de quinze minutos ou coisa assim.

 

Apesar do aviso relativamente ao tempo, Deborah tinha de fazer alguma coisa. Seguindo a sugestão de Cynthia, voltou à sala de espera principal e pediu para contactarem asRelações Públicas. Enquanto aguardava, reparou que tinham chegado muitas doentes desde que ela e Joanna lá estavam. Não havia muita conversa. A maioria das mulheres folheava revistas. Outras olhavam absortas para o infinito.

 

Claire Harlow era uma mulher amável, obsequiosa e de boas falas, e pareceu contente por levar Deborah lá cima e mostrar-lhe o laboratório principal. Tal como a Dr.a Donaldson dissera, era enorme, estendendo-se na parte de trás do edifício quase pela totalidade da ala ocupada pela Wingate.

 

Deborah estava realmente impressionada. Já passara muitas horas em laboratórios de biologia e conhecia a maioria das coisas que via ali. o equipamento era o melhor e o mais recente disponível no mercado, e incluía coisas surpreendentes, como sequenciadores de AM automatizados. A outra surpresa era a pouca gente que estava na gigantesca sala.

 

- Onde estão os funcionários? - perguntou Deborah.

 

- Os médicos estão todos em várias intervenções clínicas, neste momento respondeu Claire.

 

Deborah caminhou ao longo de um balcão comprido que tinha mais microscópios de dissecação do que ela já vira num só lugar. Também eram mais potentes do que aqueles que Deborah tivera o prazer de utilizar.

 

- Podia trabalhar aqui um exército - comentou Deborah.

 

- Estamos sempre à procura de pessoal qualificado - disse Claire.

 

Deborah chegou ao fim do balcão e acercou-se dajanela, Dava para as traseiras do edifício e tinha uma vista impressionante, tanto mais que ficava no topo de uma colina, com campos relvados à frente e atrás do edifício. Para norte, no meio de um maciço de carvalhos laranja e bordos vermelhos, Deborah podia vislumbrar alguns edifícios de pedra, semelhantes à casa da Portaria mas com madeiramentos brancos.

- Aqueles edifícios fazem parte da quinta? - indagou Deborah.

 

- Não, são as instalações de alojamento - explicou Claire. Apontou para a direita na direcção sul, onde a propriedade descia ainda mais abruptamente a colina, e indicou a Deborah uma luminescência visível através de pinheiros velhos. Aquela cintilação ali é o sol reflectido na superfície do lago. As casas da quinta ficam em redor do lago.

 

-E paraque é a chaminé de tijolo a deitar fumo? -inquiriu Deborah, apontando para uma coluna de fumo que subia acima das árvores ainda mais para a direita. Também faz parte do complexo Wingate? o fumo era branco quando saía da chaminé mas tornava-se num cinza-purpúreo quando se esfumava ao longe em direcção a leste.

 

- Faz, com certeza - disse Claire. - É a velha central eléctrica para aquecimento e água quente. É uma estrutura muito interessante. Também era o crematório da Instituição Cabot.

 

- Crematório? - tartamudeou Deborah. - Por que diabo haviam de ter aqui um crematório?

 

- Por necessidade, acho eu - disse Claire. - Parece que antigamente havia muitos doentes abandonados pelas famílias.

 

Deborah encolheu-se só de pensar num hospital psiquiátrico isolado, com crematório próprio, mas antes de perguntar mais alguma coisa, o pager de Claire tocou. A mulher olhou para o painel de cristais líquidos.

 

- É para si, Menina Cochrane. Estão prontos para a sua intervenção. Deborah estava contente e ansiosa por acabar com aquilo, para ela e joanna se porem a caminho.

 

15 de Outubro de 1999

9:05 h.

Não houve período de transição. Num minuto, Joanna estava mergulhada no sono, no outro estava completamente acordada. Deu por si a olhar para um tecto alto, desconhecido, guarnecido com estanho trabalhado.

 

- Ora, ora, a bela adormecida acordou - disse uma voz.

 

Joanna virou-se em direcção à voz e encarou um rosto igualmente desconhecido. No momento exacto em que ia perguntar onde estava, a sua confusão instantânea deu lugar ao perfeito entendimento da situação.

 

- Vamos medir a tensão arterial - disse o enfermeiro, puxando o estetoscópio e colocando os auriculares nas orelhas. Era um indivíduo impecavelmente arranjado, da idade de Joanna, com bata cirúrgica vestida. o distintivo do nome dizia MYRON HANNA. Começou a insuflar a braçadeira do aparelho de tensão que já estava no braço esquerdo de Joanna.

 

Joanna observou o rosto do homem. Tinha os olhos fixos no manómetro enquanto tacteava a curva do cotovelo com a cápsula do estetoscópio. A braçadeira esvaziou- se e ela sentiu a pulsação pelo braço acima. o homem sorriu e retirou o aparelho.

 

- A sua tensão arterial está óptima - disse. Depois pegou-lhe no pulso para ver a pulsação.

 

Joanna esperou que ele acabasse.

 

- E a minha intervenção? - perguntou.

 

- A intervençãoj à acabou - respondeu Myron, enquanto registava as conclusões na prancheta.

 

- Está a brincar - disse Joanna. Não sabia avaliar a passagem do tempo.

 

- Não, está despachada - repetiu Myron. - E correu tudo bem, suponho. o Dr. Saunders deve estar satisfeito.

 

- Não acredito - disse Joanna. - A minha companheira de quarto disse-me que, quando se acorda da anestesia, fica-se com um mal-estar terrível.

 

- Isso hoje em dia é raro - disse Myron. - Não acontece com propofol. Não é? Foi isso que me deram?

- Foi!

 

- Que horas são?

 

- Passa pouco das nove.

 

- Sabe se a minha companheira de quarto, Deborah Cochrane, já acabou a intervenção?

 

- Está a decorrer neste momento - respondeu Myron. - E que tal sentar-se de lado na cama?

 

Joanna fez o que lhe pediam. Não se podia mexer muito devido ao soro que ainda tinha no braço direito.

 

- Como é que se sente? - perguntou Myron. - Tonturas? Desconforto?

- Estou óptima - afirmou Joanna. - Perfeitamente normal.

 

Estava surpresa, especialmente pela ausência de dor.

 

- Deixe-se estar sentada - sugeriu Myron. - Depois, se estiver bem, eu tiro-lhe o soro e mando-a lá para baixo para mudar de roupa.

 

- Por mim tudo bem - disse Joanna. Enquanto Myron registava a tensão arterial e a pulsação, ela olhou em seu redor. Havia mais três camas além da dela, todas desocupadas. A sala era antiquada; faltava-lhe a operação cosmética de que os outros cantos tinham beneficiado. Azulejos velhos nas paredes e soalhos, janelas e lavatórios antigos.

 

o simulacro de sala de recuperação recordava-lhe o arcaico teatro de operações onde sofrera a intervenção, e estremeceu só de pensar. Era o tipo de bloco operatóri o onde podia imaginar que se faziam lobotomias contra a vontade dos doentes vulneráveis. Quando a tinham levado para lá, o sítio lembrara-lhe um quadro arrepiante e muito antigo de uma aula de Anatomia que ela vira uma vez. Na pintura, nas filas de assentos que desapareciam na escuridão sentavam-se homens suspeitos contemplando um cadáver descamado e lívido.

 

Abriu-se a porta da sala de recuperação. Joanna virou-se e viu um homem baixo COM cabelo preto. A sua palidez fê-la pensar no velho quadro da aula de Anatomia. Reparou que ele parara e que o seu semblante de surpresa rapidamente mudara para irritação. Tinha uma bata branca comprida por cima de outra bata cirúrgica verde.

- Olá, Dr. Saunders - disse Myron, erguendo os olhos da secretária.

 

- Sr. Hanna, tinha-me dito que a doente ainda estava adormecida - estalou o Dr. Paul Saunders. Tinha o olhar fixo no de Joanna.

 

- Estava, sim, senhor, quando falámos - esclareceu Myron. - Acabou de acordar e está tudo bem.

 

Joanna sentiu-se intensamente desconfortável sob o olhar penetrante do homem. Joanna tinha reacções viscerais a figuras de autoridade, em parte graças ao seu pai, administrador de uma empresa petrolífera, emocionalmente distante e firme adepto da disciplina.

 

- A tensão arterial e a pulsação estão normais - observou Myron. Levantou-se e dirigiu-se para a porta, mas parou quando o Dr. Saunders ergueu a mão.

 

o médico avançou para Joanna com os lábios franzidos. Tinha um nariz largo que fazia com que os olhos parecessem muito juntos. Os traços mais característicos residiam nos olhos de cores diferentes e na madeixa de cabelo branco na testa, que se desvanecia no resto do seu penteado rebelde.

 

- Como se sente, Menina Meissner?- perguntou Paul.

 

Joanna reparou que o tom de voz era desprovido de emoção, semelhante ao tom que o pai usava para lhe perguntar como fora o dia de escola.

 

- Bem - respondeu, sem saber se o homem se importava ou se queria mesmo que ela respondesse. Ganhando coragem, perguntou: -É omédico que fez aextracção dos óvulos?

 

Ela tinha adormecido antes da chegada de Paul ao bloco operatório. -Sim-replicou Paul de uma forma que desencorajava mais perguntas. -Não se importa que eu veja o seu abdômen?

 

-Acho que não-disse Joanna. Olhou para Myron, que se acercou imediatamente do outro lado da cama. Disse-lhe para se deixar estar deitada e puxou o lençol até à cintura para lhe cobrir as pernas.

 

Paul puxou a bata para cima, com cuidado para não destapar a parte de baixo de Joanna, e contemplou o seu diafragma. Joanna levantou a cabeça para ver também. Tinha três pensos rápidos. Um logo abaixo do umbigo e os outros dois nos quadrantes inferiores, formando um triângulo equilátero.

 

- Não há sinais de hemorragia - disse Myron. - E o gás já foi absorvido. Paul assentiu. Cobriu novamente o abdômen de Joanna e virou-se para sair.

- Dr. Saunders. - chamou Joanna num impulso.

 

Paul parou e voltou-se.

 

- Quantos óvulos extraiu?

 

- Não me recordo bem - respondeu Paul. - Cinco ou seis.

- Isso é bom?

 

- É perfeitamente suficiente - afirmou Paul. Um fraco sorriso arvorou-lhe ao semblante até então sombrio. Depois saiu.

 

- Não é lá muito conversador - comentou joanna.

 

- É um homem ocupado - disse Myron. Puxou o lençol para expor as pernas dela. - Experimente levantar-se e ver como se sente. Acho que está pronta para eu lhe tirar o soro.

 

- É o Dr. Saunders que faz todas as extracções de óvulos? - inquiriu Joanna, sentando-se e deixando cair as pernas para o lado da cama. Depois levantou-se, enquanto segurava firmemente a bata atrás das costas com a mão esquerda.

 

- Sim, juntamente com a Dr.a Donaldson

 

- Acha que a vinda dele aqui quer dizer que a minha companheira de quarto já está despachada?

 

- Suponho que sim - disse Myron. - Como se sente? Algumas tonturas? joanna abanou a cabeça.

 

- Então, vamos tirar-lhe o soro e mandá-la embora.

 

Quinze minutos mais tarde, Joanna estava a tirar os seus pertences do cacifo. Havia mais quatro doentes com a bata hospitalar sentadas nos sofás e nas cadeiras, folheando revistas. Ninguém reparou nela. O cacifo de Deborah ainda estava trancado.

 

Quando Joanna entrou no vestiário que tinha usado anteriormente, Cynthia chegou com Deborah atrás. o rosto desta iluminou-se com um largo sorriso ao ver Joanna, e correu para se enfiar no vestiário com ela, fechando a porta.

 

- Como é que correu? - perguntou Deborah num sussurro.

 

- Não correu mal - respondeu Joanna, sem saber por que sussurravam. - o anestesista disse que eu poderia sentir um ardor no braço quando me desse o «leite de amnésia», mas eu não senti nada. Nem me lembro de ter adormecido.

 

- Leite de amnésia? - inquiriu Deborah. - Que diabo é isso?

 

-É o que o anestesista chamou ao medicamento que me deu-explicou Joanna.

- Foi tão rápido, como se alguém apagasse as luzes. Não senti mesmo nada durante a intervenção toda. E, ainda por cima, tenho a satisfação de afirmar que não senti náuseas nenhumas quando acordei.

 

- Nem mal-estar?

 

- Nada. E acordei da mesma maneira como adormeci: muito de repente. Joannaestalou os dedos para salientar a afirmação. - Toda a experiência foi benigna. E a tua?

 

-Canja, mesmo-replicou Deborah. -Como se fosse uma citologia de rotina.

- Sem dor?

 

- Alguma, acho, quando o anestésico local entrou, mas mais nada. o pior foi a humilhação de me olharem cá para dentro.

 

- Quantos óvulos extraíram?

 

- Não faço ideia - admitiu Deborah. - Suponho que só um. É o que nós mulheres produzimos por mês sem hiperestimulação hormonal.

 

- A mim tiraram-me cinco ou seis.

 

- Bem, estamos impressionadas -disse Deborah em tom brincalhão. - Como é que sabes?

 

- Perguntei - disse joanna. - o médico apareceu quando eu estava na sala de recuperação. Chama-se Dr, Saunders. Deves tê-lo visto, porque é quem faz as extracções com a dr.a Donaldson.

 

- Era um tipo baixo com uns olhos estranhos?

 

- Era. Acho-o estranho, também, e calado. Mas o mais esquisito é que ele pareceu-me enfurecido quando soube que eu já estava acordada.

 

- Estás a brincar! - exclamou Deborah.

- Estou a falar a sério.

 

- Eu só estou espantada porque ele também reagiu mal comigo.

 

- Ora esta! - exclamou joanna. - Então, o homem tem um problema, o que me deixa mais aliviada, porque já pensava que andava a imaginar coisas. Sabes como eu sou com figuras de autoridade.

 

- Sei muito bem - retrucou Deborah. - E achas que ele estava irritado porque tinhas acordado?

 

- Acho - confirmou Joanna, - Foi desabrido com o enfermeiro porque ele lhe dissera minutos antes, ao telefone, que eu estava a dormir. Acho que a ideia dele era entrar e sair sem me dizer nada. Ao invés disso, teve de comunicar comigo, mal ou bem.

- Absurdo - disse Deborah.

 

- o enfermeiro desculpou-o, dizendo que ele é um homem ocupado.

 

- Foi igualmente incorrecto comigo. Como toda a gente, começou a falar da anestesia geral e de como seria muito melhor. Mas eu disse que nem queria pensar no assunto. Então, enfureceu-se. E sabes que mais? Apercebi-me da razão por que me disseram para não comer nem beber depois da meia-noite. Achavam que me iam convencer.

 

- Não aceitaste, pois não?

 

- Nem por sombras! - proferiu Deborah. - Disse-lhes que estava pronta para me levantar e sair porta fora, e estive quase. Se não fosse a Dr.a Donaldson, que apaziguou as coisas, eu teria saído. Mas, enfim, correu tudo bem.

 

- Vamos embora daqui - disse Joanna.

 

- Estou contigo - replicou Deborah. Abriu a porta do vestiário, piscou o olho a Joanna e desapareceu,

 

Joanna ouvia Deborah lá fora na sala de espera a escancarar a porta do cacifo, enquanto ela despia a roupa do hospital e a atirava para um cabide mesmo ajeito. Por momentos, olhou-se ao espelho de corpo inteiro do vestiário. Só de pensar nas pequenas incisões tapadas pelos pensos fazia-a estremecer. Eram recordações diminutas de que alguém estivera a observar as suas entranhas.

 

o ruído de uma porta de cacifo a bater trouxe Joanna de volta à realidade. Receosa de fazer Deborah esperar, ela que era tão rápida a mudar de roupa, Joanna concentrou- se em vestir- se. Acabou e começou a escovar o cabelo, que amarrara num rabo-de-cavalo para a intervenção, mas que estava agora cheio de nós. Antes de terminar, ouviu Deborah na sala de espera

 

- Que tal vai isso aí? - perguntou esta através da porta.

 

- Quase pronta - respondeu Joanna. o cabelo dava mais trabalho do que o costume, com pontas soltas a bater-lhe no rosto. Tinha usado franja na escola, mas deixara-se disso na faculdade. Depois de uma última olhadela ao espelho, abriu finalmente a porta do vestiário. Deborah presenteou-a com uma expressão exasperada.

- Eu despachei-me - anunciou Joanna.

 

- Claro que sim - redarguiu Deborah. - Devias tentar cabelo curto como o meu. Poupava-te desgostos e é dez vezes mais rápido.

 

- Nunca! - declarou Joanna, meio a brincar, mas falava a sério. Apesar das dificuldades, estimava muito o seu cabelo comprido,

 

As duas mulheres gritaram um obrigada a Cynthia e esta acenou em reconhecimento. As mulheres sentadas nos sofás e cadeiras ergueram os olhos, algumas sorriram, mas todas voltaram à sua leitura antes que Joanna e Deborah saíssem aporta basculante.

 

- Acabei de me aperceber de que nos esquecemos de perguntar uma coisa disse Deborah enquanto seguiam o corredor principal.

 

- Tenho de perguntar ou vais dizer-me? - disse Joanna, suspirando, visto que Deborah não acabava o raciocínio. Achava ligeiramente irritante a tendência de Deborah de não acabar uma ideia sem a instarem a isso.

 

- Esquecemo-nos de perguntar como e quando é o pagamento.

- Em dinheiro é que não vai ser - disse Joanna.

 

- Eu sei disso! - resmungou Joanna.

 

- Será por cheque ou transferência - disse Joanna.

- Está bem, mas quando?

 

-Os contratos que assinámos estipulavam que receberíamos quando tivéssemos Prestado o nosso serviço, o que fizemos agora. Por isso pagam-nos agora.

 

- Estás mais confiante do que eu - disse Deborah. - Acho que devíamos Perguntar antes de nos irmos embora.

 

- Nem é preciso dizer - asseverou Joanna. - Acho que devíamos contactar a Dr.a. Donaldson, se ela não estiver na sala de espera principal.

 

As duas mulheres foram até à entrada da sala de espera e olharam em redor do grande espaço. Quase todos os assentos estavam ocupados. Havia áreas de conversa abafada, mas em geral a sala estava surpreendentemente calma para a multidão que tinha.

 

- Bem, nada de Dr.a. Donaldson - disse Deborah. Tornou a varrer a sala com o olhar para se certificar.

 

- Vamos tentar contactá-la - decidiu Joanna.

 

Juntas, aproximaram-se da recepção. A recepcionista era uma ruiva atraente, jovem, amplamente curvilínea, Tinha uns lábios cheios e protuberantes como as mulheres que enfeitavam as capas de revista dos quiosques de rua. A placa com o nome dizia ROCHELLE MILLARD.

 

- Desculpe - disse Joanna para chamar a atenção da mulher. Esta lia disfarçadamente um livro de capa mole que tinha no colo.

 

o livro desapareceu como que por magia.

 

- Em que posso ajudar? - perguntou Rochelle.

 

Joanna pediu-lhe que entrasse em contacto com a dr.a Donaldson.

- Chama-se Joanna Meissner? - indagou Rochelle. Joanna assentiu.

 

o olhar de Rochelle passou para Deborah.

- É a Menina Cochrane?

 

- Sou - respondeu Deborah.

 

- Tenho aqui algo para cada uma de vós que Margaret Lambert, a contabilista, cá deixou.

 

Rochelle abriu uma gaveta à sua direita e tirou dois envelopes de janela. Nenhum dos dois estava fechado. Entregou-os às mulheres surpreendidas.

 

Depois de trocarem um sorriso disfarçado e conspirador, as duas mulheres espreitaram para dentro dos envelopes. Momentos depois, os olhares encontravam-se com novos sorrisos.

 

- Bingo! - disse Deborah a Joanna. Esta riu-se. Depois virou-se para a recepcionista e disse: - Mille grazie, signorina. Partiamo a Italia.

 

- A primeira parte quer dizer mil obrigados em italiano - esclareceu Joanna.

- Do resto não estou certa. E não contacte a dr.a Donaldson, já não é preciso. Deixando a recepcionista confusa, Joanna e Deborah avançaram para a porta.

- Sinto-me um pouco como uma ladra, levando este tipo de dinheiro daqui -

 

disse Deborah em voz baixa, ao atravessarem a sala apinhada. Tal como Joanna, levava o envelope na mão. Evitou trocar olhares com as pessoas, temendo encarar alguém que tivesse hipotecado a casa para pagar o tratamento de infertilidade.

 

- Com tantas doentes aqui acho que a Wingate pode dar-se a este luxo redarguiu Joanna. - Estou com a distinta sensação de que este negócio é uma máquina de dinheiro. Aliás, são as potenciais doentes que nos pagam e não a Wingate.

 

- Ora aí está - disse Deborah. - Embora eu ache que pessoas picuinhas o bastante para exigir um óvulo de alunos de Harvard não estejam a contar tostões.

- Exactamente - concordou Joanna. - Concentra-te na ideia de que estamos a ajudar pessoas, e de que estas, agradecidas, nos ajudam a nós.

 

- É difícil sentirmo-nos altruístas quando recebemos um cheque de quarenta e cinco mil dólares - disse Deborah. - Talvez me sinta mais uma espécie de prostituta do que uma ladra, mas não faças confusão, não me estou a queixar.

 

- Quando os casais tiverem filhos, pensarão que fizeram o melhor negócio, mas de longe.

 

- Sabes, acho que tens razão - declarou Deborah. - Vou parar de me sentir culpada,

 

Saíram para a manhã agreste típica de Nova Inglaterra. Deborah estava acomeçar a descer as escadas quando se apercebeu de que Joanna hesitava. Olhou para a amiga e reparou que o rosto desta se contorcia.

 

- Que foi? - perguntou Deborah, preocupada.

 

- Tive agora mesmo uma dor na parte de baixo do abdômen - disse Joanna, e apontou com a mão esquerda para o sítio. - Até senti um espasmo no ombro.

- Ainda estás a sentir?

 

- Sim, mas está melhor.

 

- Queres voltar e falar com a Dr.a Donaldson?

 

Joanna tentou fazer pressão na barriga logo abaixo da anca esquerda. Sentiu algum desconforto até soltar. Depois sentiu outro golpe de dor. Escapou-lhe um gemido dos lábios.

 

- Estás bem, Joanna?

 

Joanna acenou com a cabeça. Tal como o primeiro espasmo, a dor era fugidia, deixando só uma moinha.

 

- Vamos contactar a Dr   a Donaldson - decidiu Deborah. Agarrou no braço de Joanna com a firme intenção de a levar de volta à Clínica Wingate, mas Joanna resistiu,

 

- Não estou assim tão mal - disse joanna. - Vamos para o carro.

- Tens a certeza?

 

Joanna voltou a assentir com a cabeça, retirando suavemente o braço da mão de Deborah, e começou a descer as escadas. A princípio, parecia melhor caminhar ligeiramente dobrada, mas depois de alguns degraus conseguiu endireitar-se e caminhar com relativa normalidade.

 

- Como te sentes agora? - indagou Deborah.

- Muito melhor - afirmou Joanna.

 

- Não achas que seria melhor voltarmos e falarmos com a Dr.a Donaldson, só para prevenir?

 

- Quero ir para casa - disse Joanna. - Além disso, o Dr. Smith avisou-me especificamente acerca deste tipo de dor, por isso não é como se não estivesse à espera.

 

- Ele avisou-te acerca da dor? - perguntou Deborah, surpresa. Joanna assentiu.

 

- Não estava certo de que lado eu iria sentir, mas disse que eu teria alguns fortes golpes de dor, o que bate certo. Só me surpreendeu porque só agora a senti.

 

- Deu algumas indicações sobre o que fazer?

 

- Disse que ibuprofeno devia bastar, mas se não fosse o caso para eu ir à farmácia e pedir que lhe telefonassem para o número da clínica. Disse que está disponível vinte e quatro horas por dia.

 

-É estranho que te tenham avisado acerca de dores -disse Deborah. -A mim ninguém me avisou, e não me dói nada. Acho que devias ter insistido em anestesia local, como eu fiz.

 

- Que gracinha - disse Joanna. - Gostei de estar a dormir durante aquele martírio. Valeu a pena uma dorzita e o pequeno desconforto de vir a tirar pontos.

- Onde é que tens pontos?

 

- Nos sítios de observação.

 

- Tens de voltar cá para tirar os pontos? - perguntou Deborah.

 

- Disseram-me que qualquer médico o poderia fazer - esclareceu Joanna. Se eu e o Carlton ainda falarmos, ele pode fazer-me isso. Ou, então, vou ao serviço de saúde.

 

Chegaram ao carro e Deborah contornou-o para abrir a porta à amiga do lado do passageiro. Até segurou no braço de Joanna enquanto esta entrava.

 

- Ainda acho que devias ter tido anestesia local - insistiu.

 

- Nunca me vais convencer - disse Joanna, convictamente. Disso tinha a certeza.

 

7 de Maio de 2001

13:50 h.

o avião estremeceu, indicando o início de um período de turbulência ligeira. Joanna ergueu os olhos do livro que estava a ler e olhou em redor da cabina para ver se havia mais gente preocupada. Não gostava de turbulência, pois lembrava-lhe de que estava suspensa muito acima da terra, e, não tendo uma mente científica, não considerava razoável que um objecto tão pesado como um avião pudesse realmente voar.

 

Ninguém reparara nos solavancos e nos barulhos, muito menos Deborah, sentada a seu lado a dormir um sono invejável. A companheira de quarto não estava no seu melhor. o cabelo quase negro que já lhe chegava aos ombros estava desgrenhado e a boca entreaberta. Conhecendo Deborah tão bem como conhecia, Joanna sabia que ela ficaria mortificada se pudesse ver como estava. Embora a ideia de acordar Deborah lhe passasse pela cabeça, Joanna não o fez. Ao invés disso, deu consigo a apreciar a transposição dos respectivos estilos de penteado - o de Deborah agora estava comprido enquanto Joanna passara os últimos seis meses de cabelo curto, ainda mais curto do que o de Deborah quando ambas viviam em Carabridge.

 

Joanna olhou para a janela e encostou o nariz ao vidro. Podia ver, a milhares de metros lá em baixo, o solo que não mudava nada desde há quinze ou vinte minutos atrás, uma tundra incaracterística pontilhada de lagos. Joanna consultara o mapa na revista da companhia aérea e sabia que sobrevoavam Labrador, acaminho do Aeroporto de Logan, em Boston. A viagem parecia interminável e Joanna estava impaciente e ansiosa por chegar. Já passara quase ano e meio desde que haviam partido, e Joanna queria muito pisar os velhos EUA. Resistira a voltar ao país, apesar das súplicas constantes da mãe, particularmente insistentes durante a época natalícia. As festas eram uma questão importante no lar dos Meissner, e Joanna sentia-lhes a falta, especialmente quando Deborah voltara a Nova Iorque para estar com a mãe e o padrasto. Porém, Joanna relutava em enfrentara maçadora lengalenga da mãe acerca da rematada catástrofe social que ela causara ao romper o noivado com Carlton Williams.

 

Tal como haviam planeado, ela e Deborah tinham ido para Veneza, Itália, para escapar à vertente enfadonha das suas vidas de estudantes pós-graduadas e para garantir que Joanna não tinha uma recaída para a crença de que o casamento era um objectivo necessário. A princípio tinham vivido quase uma semana no bairro de San Polo, perto da Ponte do Rialto, no alojamento com pequeno-almoço que Deborah descobrira na Internet. Depois disso, mudaram-se para a Dorsoduro Sestière, sob a recomendação de um casal de estudantes universitários que tinham conhecido no segundo dia de estada, quando tomavam café na Praça de São Marcos. Com alguma sorte e muita caminhada, conseguiram encontrar um apartamento com dois quartos e renda barata no último andar de um prédio modesto do século xiv, numa praça chamada Campo Santa Maigherita.

 

Sendo alunas aplicadas, as mulheres depressa se adaptaram aum horário rigoroso para lhes facilitar o trabalho. Todas as manhãs se obrigavam a sair da cama às sete, independentemente da animação da noite anterior. Depois do duche, saíam e caminhavam até um café típico italiano para tomarem cappuccinos acabados de fazer, o que era particularmente agradável nos meses estivais, quando se sentavam à sombra dos plátanos da praça. Em seguida, dirigiam-se ao rio di San Bamaba para acabarem a colazione com fruta fresca comprada nos vendedores flutuantes, ou verduriere. Meia hora depois, estavam de volta ao apartamento, sentadas aos respectivos computadores para trabalhar.

 

Trabalhavam sem parar até à uma hora da tarde. Só nessa altura desligavam as máquinas. Depois de se refrescarem e mudarem de roupa, seguiam para o restaurante que haviam escolhido para o almoço desse dia, o que incluía frequentemente um copo ou dois de vinho branco de Fritili. A seguir chegava o momento de passarem de empenhadas estudantes de doutoramento para turistas, Munidas de uma verdadeira biblioteca de roteiros, partiam para visitar os lugares pitorescos. Três tardes por semana, iam à universidade, onde frequentavam aulas de italiano, assiincomo palestras sobre arte veneziana.

 

A estada das mulheres em Itália não fora somente trabalho e turismo. Em termos sociais, tinham-se divertido imenso, saindo quase em exclusivo com italianos ligados de alguma maneira à universidade. o primeiro caso de Deborah fora um aluno de História de Arte que também era gondoleiro sazonal. joanna começara a sair com um ínstrutor da mesma área. Porém, nenhuma das duas se permitira envolvimentos sérios, mantendo, como dizia Deborah, uma atitude decididamente masculina em relação aos namoros.

 

Joanna suspirou ao recordar as vistas maravilhosas que contemplara e as experiências que reunira. Fora um ano e meio extraordinário, em qualquer aspecto, incluindo profissionalmente. As teses de doutoramento estavam prontas e aconchegadas nas bagagens de mão no compartimento por cima das suas cabeças. Graças ao correio electrónico, que facilitara o envio e a recepção de capítulos e revisões, as teses já tinham sido aceites. Só faltava defendê-las, e as duas mulheres estavam confiantes de que não seria problema. Ambas tinham entrevistas marcadas para a semana seguinte, à chegada: Joanna na Harvard Business School e Deborah na Genzyme.

 

Até Carlton as visitara por várias vezes. Da primeira vez, fora completamente inesperado, e enfurecera Joanna. Antes de partir para a Europa ela tentara várias vezes contactá-lo, mas ele dera-se ao trabalho de a evitar e recusara-se firmemente a devolver as mensagens dela. Depois de encontrarem o apartamento, Joanna escrevera-lhe para lhe dar a morada, de modo que ele pudesse escrever quando quisesse. Ao invés disso, ele aparecera-lhe à porta numa manhã chuvosa e enevoada de Inverno.

 

Não fora por qualquer sentimento de culpa pela distância que Carlton atravessara para a visitar e Joanna não o teria recebido dessa vez. Mesmo assim, deixou-o a secar noquarto dele, noPalácio Gritti, durante vários dias, antes de telefonar. Encontraram-se para almoçar no Harry’s Bar, escolha de Carlton, e ainda que a conversa tivesse sido difícil ao princípio, tinham conseguido chegar a uma espécie de entendimento, o que dera para começar uma correspondência, pelo menos. Isto, por seu turno, dera para mais duas visitas de Carlton a La Serenissima, como os venezianos de antanho chamavam à sua bela cidade. Cada visita era, para Joanna, mais agradável do que a anterior, embora não inteiramente confortável. A perspectiva daquele ano no estrangeiro fizera-a ver Carlton como alguém progressivamente limitado pela dedicação que a Medicina exigia. Todavia, o resultado último daquele contacto fora uma trégua, tendo eles admitido gostar um do outro mas sentir que o actual estado «descomprometido» era mais adequado, permitindo-lhes seguir com os seus próprios interesses.

 

Outra série de ruídos e solavancos fez com que Joanna olhasse novamente em redor do avião. Estava espantada por mais ninguém parecer incomodado. Nisto, a turbulência acabou tão repentinamente como começara. Joanna olhou pela janela outra vez, mas nada mudara. Questionou-se como é que o ar puro poderia fazer um avião portar-se como um veículo terrestre a rodar sobre buracos no pavimento.

 

Quando o voo acalmou, Joanna não conseguia sacudir a sensação incomodativa de que a sua vida não estava completa, apesar da alegria, das viagens e do estímulo intelectual. Deborah estava convencida de que a inquietude de Joanna tinha algo a ver com

 

a sua rejeição dos objectivos tradicionais femininos: casa, marido e filhos. Porém, Joanna localizara uma origem diferente. Ao ver a contínua relação amorosa que os italianos tinham com as crianças, ficara a pensar no destino dos óvulos que lhe haviam colhido.

 

Cada vez mais queria saber o que era feito deles. Durante muito tempo, Deborah ridicularizara a curiosidade dela, mas na véspera do regresso, a amiga surpreendera-a com uma espantosa reviravolta.

 

- Não seria interessante descobrirmos que tipo de crianças resultou dos nossos óvulos? - perguntara ela durante o último jantar veneziano das duas.

 

Joanna pousara o vinho e olhara fixamente para os olhos escuros da companheira de quarto, em busca de explicação. Estava confusa. Perguntara a mesma coisa um mês antes e provocara uma reacção brusca de Deborah, acusando-a de ser obsessiva.

 

- Quais é que achas que são as nossas hipóteses de descobrirmos alguma coisa?

- indagara Deborah, aparentemente alheia à reacção de Joanna.

 

- Pode ser difícil, considerando os contratos que assinámos - admitiu Joanna.

- Sim, mas isso foi mais para garantir o nosso anonimato - disse Deborah. Não queríamos que viessem atrás de nós a pedir assistência à criança ou coisa assim.

 

- Acho que funciona para os dois lados - contrapôs Joanna. - A Clínica Wingate não quer certamente que as dadoras andem atrás dos miúdos a pedir direitos maternos.

 

- Deves ter razão - disse Deborah. - É pena, mesmo assim. Seria interessante, nem que fosse para saber se podemos ter filhos. Sabes, não há garantias de fertilidade, hoje em dia. Estou certa de que todas as pessoas que vimos na Clínica Wingate poderiam atestar isso mesmo.

 

- Posso imaginar - anuiu Joanna, ainda perplexa com a viragem de Deborah.

- Eu própria gostaria de saber. E que tal ligarmos para a Wingate quando voltarmos para ver o que eles dizem? Não pode haver mal em perguntar.

 

- Boa ideia - concordara Deborah.

 

Fora há um dia e um oceano atrás. o sistema de intercomunicação do avião ganhava agora vida e trazia Joanna de volta ao presente. A voz do comandante anunciava que iriam começar a descida inicial para Boston, que ia ligar a sinalização dos cintos de segurança e que queria certificar-se de que toda a gente os tinha colocado.

Joanna verificou o próprio cinto. Usava-o sempre durante os voos, estivesse a luz acesa ou não. Olhou rapidamente para Deborah e viu que ela tinha o dela apertado. Voltou a sua atenção para a janela e reparou que algo mudara. A tundra dera lugar a uma densa floresta semeada de quintas espaçosas, Deduziu que estariam a sobrevoar o Maine, o que para ela era bom sinal. Significava que não faltava muito para o Massachusetts.

 

- Aqui vem o meu último saco - gritou Deborah, e correu para o carrossel das bagagens onde ela e Joanna esperavam as suas malas. Puxou o saco e carregou-o para o sítio onde ela e Joanna tinham empilhado todos os outros. Arrumaram tudo em dois carrinhos e puseram-se na fila para o controlo da alfândega.

 

- Ora cá estamos de volta - comentou Deborah enquanto passava a mão no longo e espesso cabelo. - Que belo voo. Pareceu muito mais curto do que eu esperava.

- Pois a mim não - lamentou Joanna. - Quem me dera ter dormido metade do tempo que tu dormiste.

 

- Os aviões dão-me sono - disse Deborah.

 

- Como se eu não soubesse! - disse Joanna com inveja.

 

Uma hora depois, as amigas já estavam no seu apartamento de dois quartos em Beacon Hill, acabado de vagar pelo inquilino que tinham arranjado durante a sua estada em Itália.

 

- E que tal lançar moeda ao ar para ver quem fica com que quarto? - sugeriu Joanna.

 

- Nem pensar - respondeu Deborah. - Eu disse que ficaria com o mais pequeno e basta-me perfeitamente.

 

- Tens a certeza?

 

- Absoluta. Para mim é mais importante ter um grande armário e uma bela vista do que espaço.

 

- A casa de banho é que é o problema - disse Joanna. A casa de banho tinha duas entradas: uma do vestíbulo e outra do segundo quarto, o que tornava este último muito superior na opinião de Joanna.

 

- Fico satisfeita com o segundo quarto, acredita!

- Está bem - disse Joanna. - Não vou discutir.

 

Uma hora depois já as mulheres haviam distribuído a mobília, desfeito parcialmente as malas, e até tinham feito as camas quando, como Deborah disse, «ficaram sem gás». Apercebendo-se de que já passava das dez da noite em Itália, sucumbiram as duas no sofá da sala. o sol brilhante daquela tarde de Primavera ainda entrava pelas janelas para desmentir o cansaço e o desfasamento horário das duas.

 

- Que queres fazer para o jantar? - perguntou Deborah em tom monótono. -Quero fazer outra coisa antes de pensarem comer -disse Joanna, Levantou-se e espreguiçou-se.

 

- Dormir uma sesta? - indagou Deborah.

 

- Não - disse Joanna. - Quero fazer uma chamada.

 

Atravessou a sala para pegar no telefone que jazia no chão. Não tinham mesa nenhuma no local onde estava a tomada do telefone. Podiam ter lá posto a secretária, mas tinham achado melhor colocá-la do lado oposto para evitar a luminosidade da janela a incidir no ecrã do computador.

 

- Se vais telefonar ao Carlton, eu vou vomitar.

 

Joanna olhou para a companheira de quarto como se esta estivesse louca.

- Não vou ligar ao Carlton. Por que diabo sugeres uma coisa dessas? Trouxe o telefone para perto do sofá, já que o cabo tinha sete metros.

 

- Tenho-me preocupado com uma recaída tua-disse Deborah. - Reparei nas cartas que tens recebido daquele médico estagiário chato e aflijo-me especialmente agora, que estamos de regresso a Boston e muito perto do hospital dele.

 

Joanna riu-se.

 

- Achas mesmo que eu não tenho personalidade, não achas?

 

- Considero-te insuficientemente fortalecida contra vinte e cinco anos de ensinamentos maternos.

 

Joanna soltou uma risadinha.

 

- Bem, para tua informação, nunca pensei em ligar ao Carlton. Quero é ligar para a Clínica Wingate. Tens o número?

 

- Vais ligar já? Acabámos de chegar.

 

-E porque não? -retrucou Joanna. - Há meses que penso nisso, e tu também, ou, pelo menos, assim o disseste.

 

- Atira-me aí a minha agenda - disse Deborah sem se mexer. - Está em cima da secretária.

 

Joanna assim fez e, enquanto Deborah procurava o número, sentou-se ao lado dela. Deborah encontrou o número, indicou-o com o dedo e mostrou-o a Joanna. Com o sistema de mãos livres activado, marcou os algarismos.

 

A chamada seguiu e foi rapidamente atendida. Joanna identificou-se como anterior dadora de óvulos e disse que queria falar com alguém responsável pelo programa. Não houve resposta.

 

- Ouviu o que eu disse? - inquiriu Joanna.

 

- Ouvi, sim- respondeu a telefonista. - Mas pensei que ia dizer mais alguma coisa. Não sei bem o que quer saber. Está interessada em ser novamente dadora?

 

- Talvez - disse Joanna. Olhou para Deborah e encolheu os ombros. - Mas de momento gostaria de falar com alguém acerca da minha doação anterior. Não há ninguém?

 

- Está tudo bem? - perguntou a telefonista. - Tem algum problema? -Não, não é isso - disse Joanna. - Tenho só algumas questões que precisam de resposta.

 

- Talvez seja melhor falar com a Dr.a Sheila Donaldson.

 

Joanna pediu à mulher que aguardasse e carregou no botão para cortar o som. Encarou Deborah.

 

- Que é que achas? Eu esperava uma secretária e não uma médica.

 

- Acho que as secretárias passariam à Dr.a Donaldson, por isso mais vale falar com ela directamente. Deve poupar-nos uma etapa.

 

- Deves ter razão - disse Joanna. Estendeu a mão para o telefone.

 

- Espera! - gritou Deborah. - Estás a pensar em doar óvulos outra vez?

- Nem por sombras - negou Joanna. - Mas achei melhor ficar do lado deles. Até pode dar jeito.

 

Deborah assentiu. Joanna premiu novamente o botão para activar o som e disse à telefonista para passar à Dr.a Donaldson.

 

- Prefere aguardar ou esperar que a doutora a contacte?

 

-Prefiro aguardar-disse Joanna. Momentos depois, ouvia-se música ambiente.

- Talvez devêssemos pensar em doar novamente - disse Deborah. - Não me importava de seguir o estilo de vida a que me habituei.

 

Sorriu provocadoramente.

 

- Estás a brincar - disse Joanna.

 

- Não necessariamente - contrapôs Deborah.

 

- Eu não repetiria - disse Joanna. - Agradeço as oportunidades que tivemos graças ao dinheiro, mas teve o seu preço emocional. Talvez pense nisso depois de ter filhos meus, se tal acontecer, Mas, claro, nessa altura já me acham muito velha.

 

Antes que Deborah pudesse responder, a voz da Dr.a Donaldson interrompeu a música. Identificou-se com alguma urgência e perguntou como poderia ajudar.

 

- Fui dadora de óvulos na vossa instituição - começou Joanna. - Já foi há algum tempo, mas gostaria de colocar uma questão...

 

-Qual é oproblema? -perguntou a Dr.a Donaldson, impaciente. -A telefonista deixou implícito que havia um problema.

 

- Pois eu disse-lhe especificamente que não havia problema nenhum.

- Há quanto tempo é que fez a doação?

 

- Há pouco mais de ano e meio.

 

- Como se chama? - perguntou a Dr.a Donaldson com a voz muito mais calma.

- Joanna Meissner. Fui com a minha companheira de quarto.

 

- Eu lembro-me - disse a Dr.a Donaldson. - Fui ao vosso apartamento em Cambridge. Lembro-me que tinha cabelo comprido, louro, e a sua companheira de quarto cabelo curto e escuro, quase negro. Eram estudantes de pós-graduação.

 

- Estou impressionada - disse Joanna. - Deve ver muita gente.

- Que gostariam de saber?

 

Joanna pigarreou e avançou.

 

- Gostaríamos de saber o que aconteceu aos nossos óvulos. Sabe, quantas crianças nasceram e até mesmo de que sexo.

 

- Lamento, mas essa informação é confidencial.

 

- Não é preciso nomes, nem nada assim - insistiu Joanna.

 

- Lamento, todas as informações, quero dizer, todas as informações desse tipo são estritamente confidenciais.

 

- Pode pelo menos dizer-nos se nasceram algumas crianças?- indagou Joanna.

- Seria reconfortante saber se os nossos óvulos eram saudáveis.

 

- Lamento, mas as nossas normas são rigorosas e impedem-nos a divulgação de informações de espécie alguma. Não sei como ser mais clara.

 

Joanna fez um ar exasperado.

 

- Estou, Dr.a Donaldson! - disse Deborah. Inclinou-se para falar directamente para o microfone do aparelho. - Aqui fala Deborah Cochrane, e estou aqui com a Joanna. E se as crianças precisassem de dados genéticos da mãe biológica, por qualquer razão, para um transplante de medula ou de rim?

 

Joanna estremeceu só de pensar.

 

-Temos um registo informatizado -respondeu a Dr.a Donaldson. -Na remota eventualidade de acontecer o que diz, poderíamos entrar em contacto consigo. Mas tratar-se-ia da única excepção, o que é altamente improvável. E mesmo que tal ocorresse, as partes implicadas ainda teriam a opção de manter anonimato. Não divulgaríamos informação alguma.

 

Deborah levantou os braços em sinal de desânimo.

 

- A única ocasião diferente disto é quando os clientes escolhem a sua própria dadora - continuou a Dr.a Donaldson. - Mas são circunstâncias totalmente diferentes, a que chamamos doação aberta.

 

- Obrigada, Dr.a Donaldson - disse Joanna.

- Lamento.

 

Joanna premiu o botão para desligar a chamada.

 

- Pronto, não há nada a fazer - disse Deborah, e suspirou.

 

- Não vou desistir assim tão facilmente - disse Joanna. - A possibilidade de ter por aí a minha progenitura tem-me gasto demasiada energia para desistir agora.

 

Puxou o cabo telefónico do aparelho, colocou o telefone no chão e foi até à secretária.

 

- Que tens em mente?

 

Joanna debruçou-se atrás do computador e ligou o cabo telefónico ao modem.

- Há muito tempo disseste-me que a Clínica Wingate tinha página na Internet e que tinhas lá ido buscar informação. Vamos ver o tipo de firewall que eles têm. Ficaste com o endereço?

 

- Fiquei, está nos Favoritos - disse Deborah. Saiu do sofá e acercou-se de Joanna. Esta era muito mais apta para mexer em computadores do que ela. - o que éfirewall?

 

-É o software que bloqueia o acesso não autorizado -explicou Joanna. Ligou-se à Internet e introduziu o endereço da Wingate. Instantes depois estava na página da clínica. Sentou-se numa cadeira e tentou entrar nos ficheiros da clínica.

 

- Pouca sorte, não? - disse Deborah por cima do ombro de Joanna, meia hora depois.

 

- Infelizmente, sim - disse Joanna. - Claro que nem tenho a certeza de que têm a página no servidor deles.

 

-   - Nem vou perguntar o que isso significa - disse Deborah. Bocejou e depois voltou ao sofá, onde se espreguiçou da cabeça aos pés,

 

Subitamente, Joanna desligou-se da Internet, puxou o cabo telefónico e voltou a ligá-lo ao telefone, Ligou para as informações para saber o número de DavidWashburn.

- E quem diabo é esse? - inquiriu Deborah.

 

- Um colega - esclareceu Joanna. - Tive algumas aulas de Informática com ele. Um tipo bem simpático, aliás, que até me convidou para sair algumas vezes.

- E por que raio lhe vais ligar agora?

 

- Porque ele é um geniozinho da informática - disse Joanna. - E a pirataria era um dos seus desportos favoritos quando caloiro.

 

-Vais chamar osprofissionais -comentou Deborah com um sorriso enviesado.

- Mais ou menos - anuiu joanna, e voltou à secretária para tomar nota do número. Assim que o fez, ligou imediatamente.

 

Deborah pôs as mãos atrás das costas e observou Joanna, enquanto esta fazia a chamada.

 

- Onde é que tu vais buscar tanta energia? - perguntou. - Eu estou de rastos.

- Este assunto já me consome há tempo de mais - disse Joanna, - Quero respostas.

 

7 de Maio de 2001

20:55 h.

- Que horas são? - perguntou Deborah, sonolenta.

 

- Quase nove - disse Joanna, olhando para o relógio. - Onde é que ele anda? A conversa com David Washbum tinha corrido bem. Depois de joanna lhe explicar o que estavam a tentar descobrir, ele manifestara vontade de ajudar, mas insistira em ir lá a casa para usar o computador delas.

 

- Não me posso dar ao luxo de permitir deixar um rasto electrónico até à minha máquina - explicara ele. - Estou com uma pena suspensa informal por ter metido algumas fotografias pornográficas na página do Ministério da Defesa com a legenda Façam amor e não guerra. Infelizmente, o FBI não achou graça nenhuma.

 

Deborah bocejou ruidosamente,

 

- Tens a certeza de que era esta noite?

 

- Absoluta - respondeu Joanna. - Disse-lhe que íamos comer qualquer coisa rápida mas que depois estaríamos em casa. Ele disse que estava óptimo, porque assim podia acabar o que tinha a fazer.

 

-Acho que não vou conseguir ficar acordada -disse Deborah. -Jápercebeste que são três da manhã em Itália, onde os nossos corpos acham que estão?

 

- E por que é que não te vais deitar? - sugeriu Joanna. - Eu espero por ele.

- Não estás cansada?

 

- Estou exausta - admitiu Joanna.

 

Deborah pôs os pés no chão, obrigou-se a sentar, mas antes que se pudesse levantar, um somestridente invadiu a sala. Ambas as mulheres se sobressaltaram. Era a primeira vez que ouviam a campainha da porta, e o volume estava muito mais alto do que pensavam.

 

- Não há receio de não ouvirmos isto - disse Deborah, abatendo-se sobre o sofá.

 

Joanna ergueu-se e foi rapidamente até ao painel da campainha da porta.

 

- Que faço agora? - perguntou, meio em pânico. Havia vários botões e uma área circular com furinhos no metal.

 

- Estás por tua conta.

 

Joanna premiu o primeiro botão. Ouviu-se uns estalidos.

 

- Quem é? Quem é? - perguntou ela com a boca junto aos furinhos.

- Sou eu, o David! - respondeu uma voz distante.

 

- Sobe - retrucou Joanna. Carregou no segundo botão enquanto premia também o primeiro. Ouviu um zumbido distante, seguido do ruído fraco da porta a abrir e a fechar.

 

- Bem, não foi assim tão difícil - disse Joanna. Foi até à porta do apartamento, abriu-a e saiu para o patamar. Debruçou-se no corrimão e espreitou para baixo. o vestíbulo parecia um búzio segmentado com uma escadaria em espiral até ao piso térreo.

 

David chegou ao cimo das escadas com um largo sorriso no rosto. Era um afro-americano alto e atlético. Hesitou um momento e depois abraçou-a.

 

- Como estás, miúda?

 

- Estou óptima - respondeu Joanna, retribuindo o abraço. Embora não o visse há mais de dois anos, ele parecia estar na mesma; tinha a mesma barba curta e desalinhada, os mesmos modos descontraídos e as mesmas roupas informais.

 

- Bem, que surpresa ter notícias tuas. Pareces óptima, mesmo óptima!

- Tu também - disse Joanna. - Não mudaste nem um bocadinho.

 

- Um pouco mais velho e mais esperto - disse David e soltou uma gargalhada. -E fico feliz por comunicar que a mãozinha para o basquetebol ainda funciona bem. Mas tu estás diferente. Aliás, pareces mais nova. Como é que é possível?

 

- Estás só a ser simpático - disse Joanna.

 

- Não, a sério! - persistiu David. Andou de um lado para o outro para ver Joanna de todos os ângulos.

 

- Vá lá! - protestou Joanna. - Estou a ficar embaraçada.

 

- Não há razão para embaraços - disse David. - Estás com óptimo aspecto. E já sei o que é. o teu cabelo está curto. Não sei se te reconheceria se te encontrasse na rua. Pareces ter dezasseis anos.

 

- Sim, sim! - exclamou Joanna. - Entra lá para conheceres a minha Companheira de quarto.

 

Joanna pegou no braço de David. Levou-o para dentro e apresentou-o a Deborah, que tentara endireitar-se. Depois Joanna pediu desculpa por não ter nada para lhe servir.

 

- Não faz mal - disse David. - Compensamos noutra ocasião. Vocês devem estar cansadas do regresso de Itália e tudo, por isso é melhor irmos direitos ao assunto. Despiu o casaco preto impermeável. Tirou do bolso uma mão-cheia de disquetes e mostrou-as.

 

- Trouxe algumas ferramentas, incluindo o meu programa massivo de descodificação de passwords. Onde está a vossa máquina?

 

Momentos depois, David entrava na página da Clínica Wingate na Internet. Com uma rapidez que fazia Deborah pestanejar de incredulidade, David navegava pela página. Os seus dedos moviam-se no teclado como se fosse um pianista num concerto.

- Até agora tudo bem - declarou ele.

 

- Podes dizer-me o que estás a fazer? - pediu Deborah.

 

- Por enquanto, nada - disse David, continuando a navegar. - Estou só a verificar umas coisas e a procurar buracos no firewall deles.

 

- Consegues ver alguns?

 

- Ainda não, mas eles estão lá.

- Como é que tens tanta certeza?

 

-Umdospapéis deurasite daWebédaracesso àrede de uma dada empresa. Aqui vemos que a Clínica Wingate configurou isto de maneira a que as pessoas enviem dados de saúde e recebam informações de volta. De cada vez que se estabelece um intercâmbio desses, existe a possibilidade de acesso não autorizado. Aliás, quanto mais interactivo for um site, mais fácil é de violar, ou seja, quanto mais tráfego, mais buracos.

 

Deborah acenou mas não tinha a certeza de compreender tudo. Só usava computadores para fazer investigação biológica, para usar a Internet e para enviar correio electrónico.

 

-E aspasswords? - questionou Deborah. Sempre que usava o computador do laboratório, tinha de introduzir uma password de que só ela tinha conhecimento. Não impedem a entrada de terceiros?

 

- Sim e não - disse David. - Essa é a ideia, mas nem sempre funciona como devia. Há muitos gestores de rede preguiçosos que nunca mudam as passwords do fabricante, o que diminui o número de tentativas. Para além disso, como num servidor da WWW não há limite para as tentativas que possas fazer, podes tentar um programa massivo de descodificação de passwords, como este que eu trouxe.

 

Deborah revirou os olhos para Joanna.

 

- Até é muito giro - disse David, percebendo a reticência de Deborah. - É como estar num salão de jogos intelectual.

 

- Não deve ser assim tão giro para quem sofre a pirataria - salientou Joanna.

- Geralmente, é inofensivo - disse David. - A maioria dos piratas que eu

 

conheço não tem más intenções. É como um concurso interminável entre eles e as pessoas que concebem a segurança. Ou, então, estão só a fazer um favor a alguém, como eu a vocês. Vocês só querem as informações a que têm direito, na minha opinião.

 

- Seria muito mais fácil se a clínica visse as coisas dessa maneira - disse Joanna.

 

De repente, David parou de digitar. Cofiou a barba, pensativamente.

 

- Bem, tenho de lhes dar crédito quando o merecem. Parece um sítio bastante coeso. Não há, realmente, buracos evidentes. Aliás, até me parece muito sofisticado. Têm um servidor de autenticação. Esta empresa tem muito dinheiro para gastar?

- Eu diria que sim - alvitrou Joanna.

 

-Tenho a impressão de que setrata de segurançadaboa, mesmo-disse David.

- o que quer dizer que temos de ser mais sofisticados também.

 

- Que é que pretendias fazer exactamente? - indagou Deborah.

 

- Gostaria que o servidor da Web nos reconhecesse e nos autenticasse esclareceu David, - Assim, poderíamos ver todos os ficheiros deles. Agora vou tentar encher a memória-tampão do formulário de novas pacientes e ver se posso lá meter alguns comandos ao nível do assemblador no espaço a seguir à memória-tampão, para saltar a autenticação. É como atravessar a CGL agarrado às saias do formulário do paciente.

 

- E se explicasses isso de forma a que nós percebêssemos? - pediu Deborah. David encarou Deborah. Esta observava por cima do ombro esquerdo dele.

- Foi isso que eu tentei fazer.

 

- Excelente! - exclamou Deborah, fingindo irritação. - Se é assim, vou até ao sofá e deito-me. Deixo os dois magos da informática entregues ao assunto, David olhou para Joanna por cima do outro ombro.

 

- Quero que saibas que, se eu fizer isto e se funcionar, vai haver um rasto electrónico até à tua máquina através do teu fornecedor de acesso à Internet. Se descobrirem a pirataria, podem vir atrás de ti, Tens algum problema com o caso?

 

Joanna matutou na questão por minutos. Sabia que o que estavam a fazer era, tecnicamente, infringir a lei, mas as informações eram importantes para ela, eram mesmo necessárias para a sua paz de espírito, face às alterações na sua vida. E quais seriam as hipóteses de repararem na intrusão, se eles se limitassem a descobrir os óvulos? Decidiu que as hipóteses eram realmente poucas.

 

- Que achas, Deborah? - perguntou Joanna.

 

- Estou disposta a deixar a coisa ao teu critério - disse Deborah. - Tenho curiosidade, pois tenho, mas não tanta como tu.

 

- Então, vamos a isso - declarou Joanna.

 

- Muito bem, miúda! - disse David alegremente, enquanto esfregava as mãos de contentamento pelo desafio. Estalou os dedos antes de se lançar ao trabalho. Os dedos voltaram a voar sobre o teclado. Fazia um ruído contínuo em vez de batimentos isolados. As imagens sucediam-se rapidamente no ecrã.

 

Ao fim de trinta minutos de intensa concentração, David parou. Respirou fundo com exasperação antes de flectir os dedos no ar.

 

- Não funciona, pois não? - perguntou joanna.

 

-Receio que não- admitiu David. - Isto nãoé uma configuração de brincadeira, posso garantir-vos.

 

- Que é que sugeres? David olhou para o relógio.

 

- Isto pode levar tempo. É uma página mais segura do que eu tinha pensado, e não me deixaenfiar comandos nenhuns. Pensei que fosse um ambiente Windows NT, mas agora parece Windows 2000 com Kerberos.

 

-Kerberos é ométodo de autenticação desenvolvido pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts? - inquiriu Joanna.

 

- Acertaste - disse David.

 

- E qual é a tua sugestão para obtermos mais facilmente as informações que queremos?

 

David riu-se.

 

- Deixa-me ficar aqui uma semana e eu tento meter-me lá dentro com utilitários como o LophtCrack. Tirando isso, sugiro que arranjem alguém dentro da Clínica Wingate que tenha acesso e que compreenda a vossa causa.

 

- São as únicas opções?

 

-Não, ainda há outra. Entrem vocês, ou eu, dentro da sala do servidor.-David voltou a rir-se. - Até é a maneira mais eficiente e à prova de negligência. Que diabo, provavelmente, só levaria dez minutos a criar um caminho vosso. Depois era canja, quer de um computador dentro da rede quer de outro fora dali, se fizessem a coisa bem feita.

 

Joanna acenou com a cabeça enquanto ponderava as opções. Sentia-se cada vez mais empenhada, como se, por enfrentar mais barreiras, mais quisesse conseguir. especialmente por imaginar uma rapariguinha algures por ali que se parecia com as fotos que tinha de quando era bebé.

 

David olhou para o relógio e depois para Joanna.

 

- Já passa das dez. Queres que continue ou não? Por mim tudo bem, só não posso prometer mais do que a certeza de que acabarei por entrar neste sítio. Só não sei o tempo que vou levar.

 

- Já fizeste muito - disse Joanna. - Obrigada. Olhava para a distância, absorta em pensamentos.

 

David reparou no olhar distante daqueles olhos verdes fixos. Esperou um pouco e depois acenou com a mão à frente dos olhos dela.

 

- Terra chama Joanna...

 

Joanna abanou a cabeça como se acordasse de um transe e sorriu.

 

- Desculpa - disse. - Estava só a pensar no que estavas a dizer relativamente à sala do servidor. Seria muito difícil lá chegar, depois de se entrar no edifício?

- Isso depende - disse David. - Evidentemente que se eles se preocupam com a segurança, não se deve poder lá entrar assim sem mais nem menos.

 

- Mas é, fisicamente, uma sala - disse Joanna. - Não se trata só de gíria informática acerca de algo que existe no ciberespaço.

 

- É uma sala verdadeira, pois então - confirmou David. - E tem hardware verdadeiro, o que inclui um teclado e um monitor para aceder ao processador.

 

- Como é que tu imaginarias a segurança da sala?

 

- Uma porta trancada - disse David. - Todas as que eu conheci tinham acesso por cartão magnético, tipo cartão de crédito, sabes?

 

- Interessante - comentou joanna. - E se eu lá entrasse, o que faria exactamente?

 

- Essa é a parte fácil - disse David. - Tens papel a jeito?

 

Joanna abriu uma das gavetas da secretária e tirou um bloco de notas. Passou-o a David, que começou a esquematizar os passos a seguir. Joanna observava atentamente. Por vezes pedia esclarecimentos, que David prestava de boa vontade.

 

- E pronto - disse David. Arrancou a página e entregou-a a Joanna. Esta tornou a olhar para os esquemas. Satisfeita por não ter mais dúvidas, dobrou o papel e meteu-o no bolso.

 

- Muito obrigada mesmo por teres vindo - disse Joanna.

 

- Eia, o prazer foi todo meu - disse David. Arrastou a cadeira e levantou-se.

- Sempre às ordens de uma antiga colega.

 

- A propósito, que tal vai a tua tese de doutoramento? - perguntou Joanna.

- Agora parecias a minha mãe - disse David com uma gargalhada. Juntou as disquetes numa pilha ordenada. - Infelizmente, sinto-me bloqueado no segundo Capítulo. E a tua?

 

- Muito bem - disse Joanna. - Está pronta.

 

- Pronta! - guinchou David antes de soprar uma baforada de ar pelos lábios franzidos. Os seus ombros descaíram visivelmente. - Que maneira de cortar as pernas a um amigo.

 

- Desculpa,

 

- Ora, a culpa não é tua,

 

- Talvez devesses pensar em mudar de ambiente - sugeriu Joanna. - Foi o que eu e a Deborah fizemos. Ela também já acabou.

 

- Talvez seja porque eu já não estou assim tão entusiasmado com os Processos Aleatórios nos Mercados dos Países do Terceiro Mundo. Mas, realmente, quem estaria? Seja como for, e sem querer ser indiscreto, está tudo bem contigo e com o teu noivo?

 

- Já não sou comprometida - disse Joanna. A postura de David melhorou.

 

- A sério? E há quanto tempo?

- Ano e meio.

 

- E como é que tens passado?

- Foi ideia minha.

 

- Fixe. E se nós jantássemos um dia destes?

- Gostaria muito - respondeu Joanna.

 

- Eu contacto-te - disse David. Vestiu o casaco e guardou as disquetes no bolso. A caminho da porta olhou de relance para o vulto enroscado de Deborah. Despede-te por mim da tua amiga.

 

- Não estou a dormir - disse Deborah. Obrigou-se a sentar e pestanejou repetidamente por causa da luz.

 

Depois de mais uns dedos de conversa, David deu finalmente as boas-noites e saiu. Deborah, que ainda estava sentada no sofá, observou Joanna a dirigir-se ao computador para o desligar.

 

- Não conseguiram entrar nos ficheiros da Wingate? - perguntou Deborah, bocejando abertamente.

 

- Ainda não - respondeu Joanna. o monitor apagou-se e a ventoinha do processador parou.

 

- David ainda vai tentar?

 

- Não, vou eu. - Joanna passou por Deborah e desapareceu na casa de banho.

- Estou confusa - declarou Deborah. - Tu chamaste David porque não conseguias fazê-lo. Ele deu-te algumas sugestões ou conselhos para poderes pensar que agora já consegues?

 

- Passámos ao plano B - gritou Joanna através do ruído da água corrente.

 

Deborah ergueu-se do sofá. Esperou um pouco para deixar passar uma onda de mal-estar. Tonta com o cansaço, foi até à sala de banho e encostou-se à ombreira da porta. joanna estava a lavar os dentes.

 

- Até tenho medo de perguntar, mas que diabo é o plano B?

 

-Vou arranjar um emprego temporário na ClínicaWingate - declarou Joanna no meio da espuma da pasta de dentes.

 

- Só podes estar a brincar - disse Deborah.

 

Joanna cuspiu para o lavatório e depois olhou para Deborah pelo espelho.

 

- Estou a falar a sério. A única maneira certa e rápida de entrar nos ficheiros da Clínica Wingate é chegar à sala do servidor, pelo menos foi o que disse David.

 

- Isto é uma loucura - disse Deborah. Já não tinha a voz ensonada. - Antes de mais, David não parece ser uma fonte de informação infalível. Quando cá chegou achava que podia entrar no computador da Wingate, e depois não conseguiu.

 

- Teria conseguido, só que levaria mais tempo. Ele sabe o que diz. Deu-me ideias muito específicas do que fazer, uma vez dentro da sala do servidor daWingate. Joanna continuou a lavar os dentes.

 

Deborah fez um gesto de exasperação e colocou as mãos nas ancas. Observou a companheira de quarto durante alguns minutos antes de dar réplica.

 

- Essa sala de servidor não vai estar trancada?

 

- Provavelmente - respondeu Joanna. Enxaguou a boca e colocou a escova de dentes dentro do copo com o cabo para baixo. - Tenho é que ser desenrascada. David acha que deve ter acesso por meio de cartão magnético. Tenho de arranjar um desses cartões. Joanna começou a lavar o rosto.

 

- Já pensaste como isto parece de loucos? - inquiriu Deborah,

 

- Não me parece nada louco - retrucou Joanna. - Quero saber se nasceram crianças dos meus óvulos e achei que também querias saber dos teus.

 

- Claro que quero saber, mas essa não é a questão.

- Pois eu acho que é mesmo esta a questão.

 

-Vamos ser práticas nisto-disse Deborah, tentando controlar a voz. -Como é que vais arranjar emprego na Clínica Wingate?

 

-Deve ser fácil -disse Joanna. -Lembra-te de que, quando lá fomos, disseram que estavam sempre à procura de gente, que a desvantagem da zona rural era a escassez de pessoal qualificado. Bem, eu sou boa em processamento de texto. Deve haver alguma coisa para eu fazer.

 

- Mas vão reconhecer-te - disse Deborah com uma veemência quase irritada.

- Acalma-te! - instou Joanna. Olhou para a companheira de quarto, que estava muito vermelha.

 

- Não percebes: vão reconhecer-te - repetiu Deborah. - As pessoas com quem lidámos ainda devem lá estar, desde a recepcionista aos médicos.

 

-Não acho que me vão reconhecer -contrapôs Joanna. -Só lá estivemos uma manhã há ano e meio atrás. Esta noite, David disse que não me teria reconhecido com o cabelo curto se me tivesse visto na rua, e conviveu comigo pelo menos três vezes por semana durante vários anos. E não vou usar o meu nome verdadeiro.

 

- Não podes arranjar emprego sem um número da Segurança Social - disse Deborah. - E o número e o nome têm de coincidir. Não vai dar certo.

Joanna acabou de secar o rosto e olhou-se ao espelho. Deborah tinha levantado um obstáculo que ela não previra. Precisava de um nome e de um número de Segurança Social. Pensou que podia pedir a uma amiga para passar por ela, mas desistiu imediatamente. Não podia implicar ninguém conhecido num esquema em que iria infringir a lei.

 

- Então? - indagou Deborah.

 

-Arranjo o nome e o número da Segurança Social de alguém que tenha morrido recentemente - declarou Joanna. Recordava-se vagamente de ter lido algo assim num romance, Quanto mais pensava nisso mais achava que podia dar certo.

 

Deborah ficara boquiaberta com esta sugestão de Joanna. Recompôs-se e disse:

- Não posso crer nisto. Estás mesmo obcecada.

 

- Prefiro chamar-lhe empenhada - disse Joanna. Passou por Deborah e foi até ao seu quarto. Deborah seguiu-a.

 

- Acho que vais é ficar internada na Penitenciária de Walpole - disse Deborah. Ou, então, numa instituição psiquiátrica. Tal é o empenho.

 

- Não vou assaltar um banco - disse Joanna. Desapertou o cinto e despiu as calças. - Só vou obter informações sobre a minha descendência,

 

- Não sei que tipo de delito é fazeres-te passar por alguém morto - disse Deborah -, mas sei que acesso não autorizado a ficheiros informáticos é crime.

- Eu também sei isso - admitiu joanna. - Mesmo assim vou fazê-lo. Joanna continuou a despir-se. Quando acabou, enfiou uma camisa-de-dormir

 

pela cabeça. Compô-la para cair a direito e depois pendurou as roupas. Finalmente. tornou a encarar Deborah, que permanecia à porta. Esta só lhe respondera à última declaração com um olhar misto de exasperação e incredulidade.

 

-E então? -inquiriu Joanna, quebrando o silêncio. -Vais ficar aíou tens mais para me dizer? Se tiveres, diz logo, Caso contrário, vou-me deitar. Amanhã vai ser um dia muito preenchido.

 

- Está bem - disse Deborah, zangada mas resoluta, Levantou uma mão e apontou um dedo a Joanna. - Se insistes neste plano idiota e louco, então, eu vou também.

 

- Perdão? - tartamudeou Joanna.

 

- Não te deixo ir para a frente com todo este tipo de sarilhos sem mim. Afinal, foi ideia minha, a de fazer doação de óvulos. Não és a única com sentimento de culpa, e eu nunca mais ficaria bem comigo mesma se te acontecesse algo que eu pudesse evitar.

 

- Não tens de vir comigo para me protegeres - disse joanna, a ficar ruborizada. Deborah fechou os olhos e estendeu as mãos com as palmas para baixo. -Isto não é uma discussão. Os dados foram lançados. Evidentemente que estás determinada nesta cruzada e eu também estou.

 

Os olhos de Deborah tremeram como se tivesse dificuldade em abri-los. Joanna aproximou-se e olhou a companheira de quarto nos olhos.

 

- Agora pergunto-te eu se estás a falar a sério.

 

- Estou a falar a sério - disse Deborah com um aceno de cabeça. - Também vou arranjar emprego. Com aquele laboratório enorme, devem estar tão desejosos de técnicos de laboratório como de pessoal administrativo.

 

- Então, vamos a isso - disse Joanna. Ergueu a mão com os dedos esticados e bateu na de Deborah.

 

8 de Maio de 2001

6:10 h.

Ainda habituadas ao fuso horário de itálía, as mulheres acordaram cedo, apesar do cansaço. Deborah foi a primeira a sair da cama. Pensando que Joanna ainda dormia, tentou não fazer barulho ao passar pela cozinha para a casa de banho. Assim que puxou o autoclismo, a porta do quarto de Joanna abriu-se.

 

- Pareces um farrapo - disse Deborah ao olhar a companheira de quarto.

- Tu própria já tiveste melhores dias - disse Joanna, - Que horas são?

- Seis e um quarto, mas a minha glândula pítuítária pensa que é meio-dia.

- Poupa-me os pormenores - disse Joanna. - Só sei que queria dormir até tarde e já estou acordada há uma hora, pelo menos.

 

- Também eu - disse Deborah. - E se fôssemos à Rua Charles tomar o pequeno-almoço? Preciso mesmo de café.

 

- Visto que a despensa está vazia, não temos grande alternativa.

 

Três quartos de hora depois já desciam para a praça e caminhavam pela Rua Mount Vernon abaixo em direcção à Rua Charles. Estava uma bela manhã de Primavera, com muitas flores brilhantes nas floreiras das janelas. Viram pouca gente até chegarem à Rua Charles, mas os pássaros, pelo contrário, estavam em grande azáfama. No final da Rua Charles e em frente ao parque de Boston Common, encontraram uma loja Starbucks aberta. Entraram, pediram cappuccinos e bolos. Levaram a comida para umapequena mesa de mármore junto à janela. Começaram a comer e a beber em silêncio.

 

- o café é bom - disse Joanna por fim. - Mas tenho de admitir que sabia melhor no Campo Santa Margherita.

 

- Nada mais certo - anuiu Deborah. - Mas está a revigorar-me.

 

-Ainda queres ir até à Clínica Wingate arranjar emprego? -perguntou Joanna,

- Com certeza - respondeu Deborah. - Estou decidida. Mas é melhor preocuparmo-nos agora com os pormenores. Como é que vamos arranjar nomes e números de Segurança Social de gente morta?

 

- Boa pergunta - retrucou Joanna. - Fiquei a pensar nisso esta manhã, deitada na cama. Há alguns anos atrás li um romance em que alguém fazia isso.

- E como é que fez?

 

- Estava dentro da coisa. Trabalhava num hospital e obteve a informação no registo hospitalar.

 

- E o que é que fez com ela?

 

- Era um arranjinho do Sistema de Saúde.

 

- Jesus! - exclamou Deborah. - Interessante, mas infelizmente não nos pode ajudar. Quer dizer, a menos que resolvas pedir ajuda ao Carlton.

 

- Acho que é melhor deixar Carlton fora disto - disse Joanna. - Se ele suspeitasse do que andamos a tramar, ia logo entregar-nos ao FBI.

 

Deborah bebeu mais um golo de café.

 

- Acho que devíamos dividir o problema em dois. Primeiro os nomes, depois os números da Segurança Social e tudo o resto que precisarmos, como datas de nascimento e até mesmo o nome de solteira das mães.

 

- Não vai ser difícil arranjar nomes - disse Joanna. - Eu cá, pelo menos, cheguei a essa conclusão enquanto estava deitada. Só temos de ir à biblioteca e procurar na necrologia do Globe.

 

- Boa ideia! - exclamou Deborah. Debruçou-se na cadeira com ar ansioso. Por que raio não pensei nisso? É perfeito. A necrologia costuma ter idades e até datas de nascimento. Isso vai ajudar a escolher nomes apropriados, porque têm de ser de mulheres da nossa idade, por mais estranho que isso possa parecer.

 

- Eu sei - disse Joanna. - É arrepiante. Também têm de ser mulheres que tenham falecido recentemente.

 

-Vai ser mais difícil arranjar números da Segurança Social - disse Deborah.

- Talvez eu tenha de ceder e pedir ajuda ao Carlton - disse Joanna. - Isto porque qualquer mulher da nossa idade que tenha falecido terá estado doente num hospitallocal. Se foro Massachusetts General Hospital e se arranjarmos umadesculpa para querermos o número da Segurança Social que não levante suspeitas ao Carlton, talvez ele ajude.

 

- São muitos «ses» e «talvez» - comentou Deborah.

- Pois são - concordou Joanna.

 

- Já sei - disse Deborah. Deu uma palmada no tampo da mesa. - Há dois anos, quando o meu avô morreu, a minha mãe teve de pedir uma certidão de óbito para tirar o nome dele da escritura da casa.

 

- E em que é que isso nos ajuda?

 

- A certidão de óbito é informação do domínio público - explicou Deborah. Riu de si para si. -Nem sei como não me lembrei logo disto. A certidão de óbito tem o número da Segurança Social.

 

- Meu Deus, é perfeito!

 

-Poisé-disse Deborah. -Primeiro vamos à biblioteca e depois à conservatória.

- Espera aí - disse Joanna. Debruçou-se com ar conspiratório. - Temos de nos certificar de que o número da Segurança Social não foi retirado. Sabendo como é a burocracia governamental, deve demorar algum tempo, mas temos de ter a certeza,

 

- Estás certíssima - disse Deborah. - poderia estragar-nos o disfarce se chegássemos à Wingate e eles verificassem que afinal uma de nós está morta. Soltou uma risada cavernosa.

 

-Eu sei o que podemos fazer - dísse Joanna. -Depois de irmos à conservatória, vamos ao MeetBaak. Abrimos contas com ambos os nomes. Somos cidadãs americanas e temos de apresentar números de Segurança Social, eles verificam e ficamos logo a saber.

 

- Parece boa ideia- disse Deborah. -A que horas achas que abre a biblioteca?

- Nove ou dez - disse Joanna. - Mas temos de discutir outra coisa. E se alterássemos mais o nosso aspecto? Acho que os nossos penteados diferentes são eficazes e talvez bastem nestas circunstâncias, mas era melhor irmos mais além, só para ficarmos mais seguras.

 

- Como a cor do cabelo?

 

- Cor do cabelo, mas também o estilo geral que nós temos. Temos ambas um ar colegial. Acho que devíamos arranjar outro tipo.

 

- Bem, eu cá estou disposta a mudar a cor do cabelo - disse Deborah. Sempre quis ser loura. Ouvi dizer que as louras se divertem mais.

 

- Estou a ver se falamos a sério - disse Joanna.

 

- Está bem, está bem - contemporizou Deborah. - E que mais tens tu em mente: furos em locais estratégicos da cara ou umas tatuagens selvagens?

 

Joanna riu-se contra vontade.

 

- Vamos pensar nisto a sério. Eu refiro-me à roupa e à maquilhagem. Há muita coisa a fazer.

 

- Sim - disse Deborah. - Já tive a fantasia de me vestir de prostituta; devo ter uma vertente exibicionista, só que nunca a levei adiante. Esta podia ser a grande oportunidade.

 

- Estás a gozar ou é a sério?

 

- É a sério - disse Deborah. - Bem podemos tornar a coisa mais divertida.

- Pensei em ir na direcção oposta - disse Joanna. - Do género, bibliotecária púdica.

 

- Não vai ser difícil - brincou Deborah, - Praticamente, já lá estás.

- Que gracinha - disse Joanna.

 

Deborah limpou a boca com o guardanapo e atirou-o para o pratinho dos bolos.

- Acabaste?

 

- Acabei - respondeu Joanna.

 

- Então, toca a pôr isto a andar - disse Deborah. - Quando vínhamos para cá passámos por um supermercado. Podíamos comprar as coisas básicas para não termos de comer sempre fora, não é? Nessa altura, já a biblioteca deve estar aberta.

 

- Parece-me um plano perfeito - arrematou Joanna.

 

As mulheres estavam na escadaria principal do velho edifício da Biblioteca de Boston, a olhar para a Trinity Church, do outro lado da Praça Copley, quando o porteiro da biblioteca abriu a porta. Eram nove horas. Como nenhuma das duas tinha estado antes na Biblioteca de Boston, ficaram, nas palavras de Deborah, estarrecidas com a arquitectura grandiosa e os vívidos murais de John Singer Sargent.

 

- Não poso acreditar que vivo na zona de Boston há seis anos e nunca aqui entrei

- disse Deborah ao entrar no vestíbulo de mármore que fazia eco. Virava a cabeça de um lado para o outro como se fosse um boneco para assimilar todos os pormenores.

- Tenho de concordar - disse Joanna.

 

Depois de perguntarem onde podiam consultar edições anteriores do Boston Globe, indicaram-lhes a sala dos microfilmes. Todavia, assim que perceberam que podia demorar um ano para que os jornais fossem microfilmados, preferiram ir até à sala da imprensa. Lá encontrariam os próprios jornais.

 

- Até que altura devemos retroceder? - indagou Deborah.

- Sugiro um mês e depois andar para trás - disse joanna.

 

As mulheres agarraram numa pilha de papéis de várias semanas e levaram-na para uma mesa vazia. Dividiram a pilha em duas e meteram-se ao trabalho.

 

- Isto não é assim tão fácil como eu pensava - lamentou Deborah. - Estava enganada quanto a idades e datas de nascimento. Há poucos anúncios de óbitos que as tenham.

 

- Temos mesmo que ver na necrologia - disse joanna. - Parece que a idade aparece sempre.

 

As mulheres analisaram a primeira pilha de jornais sem sucesso e foram buscar outra.

 

- Não há realmente muitas mulheres jovens - comentou Joanna.

 

-Nem homens - acrescentou Deborah. -Não é normal que pessoas da nossa idade morram com frequência. E mesmo que isso aconteça, geralmente, não são assim tão famosas que venham na necrologia. Por outro lado, também não queremos gente famosa, o que poderia dar problema, mas não vamos desistir ainda.

 

Depois de mais três idas às pilhas dejornais, tiveram êxito.

- Ah, aqui está uma! - disse Deborah. - Georgina Marks. Joanna espreitou por cima do ombro de Deborah.

 

- Quantos anos?

 

- Vinte e sete - respondeu Deborah. - Nasceu a 28 de Janeiro de 1973.

- Boa faixa etária - disse Joanna. - Diz aí de que faleceu ela?

 

- Diz, sim - respondeu Deborah. Ficou calada enquanto lia o resto do artigo. - Foi alvejada por acaso no parque de estacionamento de um centro comercial. Estava no lugar errado, à hora errada, claramente. Parece que havia uma briga de bandos rivais e ela apanhou uma bala perdida. Já pensaste o que é receber um telefonema a dizer que a tua mulher morreu enquanto fazia compras no centro comercial do bairro? - Deborah estremeceu. - Para piorar, diz aqui que era mãe de quatro crianças, incluindo um bebé de seis meses.

 

- Acho que é melhor não nos determos nos pormenores tristes - disse Joanna.

- Para nós, devem ser apenas nomes e não pessoas.

 

- Tens razão - concordou Deborah. - Pelo menos, não era famosa, tirando a maneira trágica como morreu, por isso deve ser um nome bom para o nosso objectivo. Acho que serei eu a Georgina Marks.

 

Escreveu o nome e a data de nascimento num bloco de notas que ela e joanna haviam trazido.

 

- Agora vamos procurar um nome para ti - declarou Deborah.

 

As mulheres voltaram a passar a necrologia a pente fino. Só depois de terem lido mais seis semanas de jornais é que Deborah conseguiu encontrar outro nome candidato.

- Prudence Heatherly, com vinte e quatro anos! - leu em voz alta. - Ora, este nome tem uma sonoridade interessante. É perfeito para ti, Joanna. Até parece de bibliotecária, por isso vai bem com o teu disfarce.

 

- Não acho graça nenhuma a isso - disse Joanna. - Deixa-me ler o óbito. Estendeu a mão para pegar no jornal, mas Deborah fugiu para fora do seu alcance. -Então, não era melhor não nos determos nos pormenores?- provocou Deborah.

- Eu não me quero deter - negou Joanna. - Só quero ter a certeza de que ela
não era uma celebridade local em Bookford. Além disso, acho que tenho de saber alguma coisa da mulher, se vou usar o nome dela.

 

- Pensava que eram só nomes e não pessoas.

 

- Por favor! - exclamou Joanna calmamente, como se estivesse a perder a paciência.

 

Deborah passou-lhe o jornal e observou o rosto da companheira de quarto enquanto esta via o óbito. o semblante de Joanna ficou mais carregado.

 

É mau? - inquiriu Deborah quando Joanna ergueu o olhar.

 

Eu diria que é tão mau como a história de Georgina - disse Joanna. Frequentava a universidade de Northeastern.

 

- Está a ficar demasiado perto de casa - declarou Deborah. - De que morreu ela, ou é melhor nem perguntar?

 

- Empurraram-na para alinha vermelha do Metro na estação da Rua Washington, Agora era a vez de Joanna estremecer,

 

- Foi um sem-abrigo que a empurrou, sem motivo aparente, Palavra de honra! Que tragédia, um pai receber uma chamada a dizer que a filha foi empurrada para a frente de um combóio por um vagabundo.

 

- Pelo menos, temos os dois nomes - disse Deborah. Tirou o jornal da frente de Joanna e voltou a dobrá-lo. Escreveu Prudence Heatherly no bloco de notas abaixo de Georgina e afadigou-se a empilhar os jornais. Joanna ficou imóvel por momentos, mas depois começou a ajudar. Juntas, as mulheres levaram os jornais de volta para o local de origem.

 

Quinze minutos depois, primeiro Deborah e depois Joanna saíam da biblioteca pela mesma porta onde haviam entrado. Mesmo que se sentissem abatidas, estavam satisfeitas com os progressos obtidos. Tinham levado uma hora e três quartos a conseguir os dois nomes,

 

- Vamos a pé ou apanhamos o metro? - perguntou Deborah.

- Vamos de metro - respondeu Joanna.

 

Era uma curta caminhada até à entrada da Rua BoyIston, e a linha-verde levava-as directamente ao Centro Governamental. Quando saíram para a rua estavam mesmo em frente à Câmara Municipal de Boston, edifício inusitadamente moderno, que pairava ameaçador como um enorme anacronismo,

 

- Poderi a dizer-me onde posso obter certidões de óbito? - perguntou Joanna à recepcionista, no balcão de informações do -vestíbulo. joanna aguardara alguns minutos antes de falar, A mulher estava envolvida numa conversa animada, embora em voz baixa, com a colega do lado,

 

- No piso de baixo na Conservatória - respondeu a mulher, sem olhar para cima nem interromper a conversa.

 

Joanna revirou os olhos para Deborah. As duas dirigiram-se à ampla escadaria para descerem. No andar debaixo encontraram facilmente a Conservatóría. O problema é que não havia ninguém para atender.

 

- Se faz favor? - chamou Deborah. - Alguém para atender? Uma cabeça de mulher surgiu por detrás de uma fila de armários.

- Posso ajudar? - disse.

 

- Queríamos umas certidões de óbito - declarou Deborah.

 

A mulher contornou a fila de armários, abanando de um lado e do outro. Tinha um vestido preto que lhe cingia o corpo amplo numa série de protuberâncias descendentes e horizontais. Trazia uns óculos pendurados numa corrente ao pescoço que caíam na saliência quase horizontal do peito. Aproximou-se do balcão e encostou-se.

 

- Preciso dos nomes e dos anos - disse numa voz entediada.

 

- Georgina Marks e Prudence Heatherly - disse Joanna. - Ambas falecidas este ano, 2001.

 

-Demora entre uma semana a dez dias para chegarem as certidões -esclareceu a mulher.

 

- Temos de esperar esse tempo todo? - indagou Joanna, desapontada. -Não, é o tempo que leva para as certidões de óbito cá chegarem à Conservatória depois de a pessoa falecer. Eu digo isto porque, se as pessoas tiverem morrido há pouco tempo, as certidões não estão cá.

 

- Ambas as pessoas já morreram há mais de um mês - esclareceu Joanna.

- Então, devem estar - disse a mulher. - Custa seis dólares cada uma.

 

- queremos ver as certidões - disse Joanna, - Não precisamos de as levar.

- Seis dólares, muito bem - interrompeu Deborah, dando uma cotovelada a Joanna para a calar.

 

Depois de escrever os nomes enquanto mirava Joanna com desconfiança, a mulher desapareceu calmamente por detrás dos armários.

 

- Para que foi a cotovelada? - lamuriou Joanna,

 

- Não quis que estragasses as coisas para poupar doze dólares - sussurrou Deborah. - Se a mulher suspeitar que só cá viemos para saber os números da Segurança Social pode ficar desconfiada. Eu ficaria. Portanto, pagamos, pegamos nas certidões e saímos daqui para fora,

 

- Deves ter razão - concedeu Joanna com relutância.

- Mas é claro que tenho - afirmou Deborah,

 

A funcionária regressou um quarto de hora depois com os documentos. Deborah e Joannajá tinham o dinheiro certo e tudo se resolveu. Cinco minutos depois estavam na rua, onde copiaram cuidadosamente os respectivos números da Segurança Social para um papel, Guardaram as certidões de óbito no bolso.

 

- Sugiro que tentemos memorizar os números enquanto caminhamos para o banco - propôs Joanna. - Pode dar nas vistas se não o fizermos. -Especialmente se sacarmos das certidões por acaso dentro do banco - alvitrou Deborah.

 

Joanna soltou uma risadinha.

 

- Também acho que devemos começar a tratar-nos pelos nossos nomes falsos. Se não esquecemo-nos em público e pode dar problema.

 

- Bem dito, Prudence - rematou Deborah com uma risadinha das suas. Demoraram só dez minutos a pé da Câmara Municipal até à Charles River Plaza, onde ficava a dependência local do Fleet Bank. As mulheres fizeram o caminho quase sempre caladas, enquanto tentavam fixar os respectivos números de Segurança Social, Quando chegaram à Charles River Plaza, Joanna deteve Deborah.

 

- Vamos conversar sobre isto antes de entrarmos - disse. - Devíamos abrir conta com uma quantia simbólica, porque depois não vamos conseguir reaver o dinheiro.

 

- o que sugeres?

 

- Não tem grande importância - disse Joanna. - E se forem vinte dólares?

- Por mim tudo bem - disse Deborah. - Mas é melhor ir ao Multibanco antes de entrar.

 

- Boa ideia - rematou Joanna.

 

Cada uma das mulheres levantou várias centenas de dólares antes de entrar no banco. Foram directamente ao balcão das informações. Era hora de almoço e o banco estava cheio de gente do hospital, de modo que as mulheres esperaram quase vinte minutos antes de ser atendidas. Todavia, a abertura de contas fez-se num ápice,já que a empregada era muito eficiente. Chamava-se Mary. o único obstáculo era a falta de documentos de identificação, mas Mary contornou-o, dizendo que poderiam apresentá-los no dia seguinte. À uma da tarde já Mary tinha pedido licença para activar as contas e imprimir talões. Joanna e Deborah estavam sentadas em cadeiras de vinil em frente à mesa de Mary.

 

- E se ela volta e diz que estamos mortas? - murmurou Deborah.

 

- É porque estamos mesmo - respondeu Joanna. - Mas foi para isso que cá viemos,

 

- Mas o que vamos dizer? Temos de dizer qualquer coisa.

 

- Dizemos que nos enganámos nos números, que vamos verificar e que depois voltamos.

 

-Hámeia hora atrás ísto tinha graça- queixou-se Deborah. -Mas agora estou nervosa. Não podemos contar uma história da carochinha como essa.

 

- Aí vem ela! - disse Joanna num sussurro forçado. Mary voltou com os talões de depósito na mão.

 

- Já está tudo tratado - comunicou ela, - Está tudo em ordem. - Entregou um talão a cada uma das mulheres, junto com um dos conjuntos de documentaçãoque tinha preparado antes, - Aqui têm. Deixaram o carro no estacionamento?

 

- Não, viemos a pé - respondeu Joanna. As mulheres tinham indicado a morada Hawthorne Place, número sete, que fazia parte do complexo residencial de Charles River Park atrás do hospital.

 

Minutos depois estavam de volta ao sol de Maio. Deborah estava eufórica.

 

- Conseguimos! - exclamou, enquanto se afastavam rapidamente do banco, -Tinha as minhas dúvidas, mas parece que temos bons nomes e bons números de Segurança Social.

 

- São bons por enquanto - disse joanna. - Coisa que vai mudar algures num futuro próximo. Vamos para casa, ligar para a Clínica Wingate e deixar o próximo passo para trás.

 

- E se almoçássemos qualquer coisa? - sugeriu Deborah. - Estou esfomeada. o café e o bolo que comemos às sete da manhã já desapareceram há muito.

 

- Eu também comia qualquer coisa - concordou Joanna. - Mas não nos vamos demorar.

 

- Clínica Wingate - disse uma voz agradável que vinha do telefone no apartamento de Joanna e Deborah. o aparelho estava no sofá entre as mulheres, uma de cada lado. Eram duas horas e trinta e cinco minutos e o sol já se reflectia no chão de madeira, filtrado pelas janelas da frente.

 

- Estou interessada num emprego na vossa instituição - disse Joanna. - Com quem devo falar?

 

As mulheres tinham atirado moeda ao ar para ver quem faria a chamada. joanna ganhara.

 

- Deve ser com Helen Masterson, directora de Recursos Humanos - disse a telefonista. - Quer que passe a chamada?

 

- Se faz favor - disse Joanna.

 

Ouviu-se a mesma música ambiente do dia anterior, mas não demorou muito tempo. Uma voz feminina, forte e profunda sobrepôs-se à melodia, o que sobressaltou as duas mulheres.

 

- Fala Helen Masterson, Disseram-me que está à procura de emprego.

- Sim, eu e a minha amiga - disse Joanna assim que se recompôs.

 

- E que tipo de experiência tem a senhora e a sua amiga? - perguntou Helen.

- Eu tenho vasta experiência de processamento de texto - respondeu Joanna.

- Como estudante ou num ambiente laboral?

 

- Ambos - disse joanna. Trabalhara nas férias na escola secundária duma sociedade de advogados de Houston com quem o pai tinha muitos negócios.

 

- São formadas?

 

- Somos, sim - afirmou Joanna. - Eu tenho uma licenciatura em Economia. A minha amiga, Georgina Marks, especializou-se em Biologia.

 

Joanna olhou para Deborah, que lhe fez sinal com os polegares erguidos.

- E ela tem experiência de laboratório?

 

Deborah acenou com a cabeça enfaticamente.

- Tem, sim - declarou joanna.

 

- Devo admitir que ambas parecem perfeitas para a Clínica Wingate - disse Helen. - Como é que souberam da nossa existência?

 

- Perdão? - titubeou Joanna, enquanto fazia uma careta de consternação para Deborah ver. Não tinha previsto tal questão. Deborah procurou o bloco de notas e o lápis no chão. Enquanto Helen repetia a pergunta, escreveu: «Uma amiga viu um anúncio.»

 

- Ouvimos falar - disse Joanna. - Uma amiga nossa viu um anúncio.

- No jornal ou na rádio?

 

Joanna hesitou. Deborah encolheu os ombros.

- Não sei bem - alvitrou Joanna.

 

- Bem, não tem importância, era só para saber qual deles é mais eficaz - disse Helen. - Vivem aqui em Bookford?

 

- Actualmente vivemos em Boston - disse Joanna.

- Então, até preferem vir ao contrário do trânsito.

 

- É essa a ideia, pelo menos por agora. Vamos as duas de carro.

 

- Por que é que querem trabalhar aqui em Bookford? - inquiriu Helen,

 

- Temos de arranjar emprego depressa - explicou Joanna. - Ouvimos dizer que a vossa instituição precisa de pessoal. Acabámos de chegar de uma longa estada na Europa e, com franqueza, precisamos de dinheiro.

 

- Parece que nos podemos ajudar mutuamente - disse Helen. - Posso enviar-vos, por fax ou correio electrónico, os questionários de emprego para preencherem, e podem devolvê-los da mesma maneira. Como é que preferem?

 

- Por correio electrónico - disse joanna. Indicou o endereço de correio que tinha, o qual, felizmente, não tinha associação nenhuma com o próprio nome.

 

- Envio-vos já a seguir - disse Helen. - Entretanto, acho que devíamos avançar e marcar entrevistas. Qual seria a data mais conveniente para si e para a sua amiga? Pode ser qualquer dia desta ou da próxima semana.

 

-Quanto mais cedo melhor-disse Joanna. Deborah assentiu. -Aliás, amanhã seria óptimo, se puder receber-nos.

 

- Sim, com certeza - disse Helen. - E saúdo a vossa disposição. Às dez horas, pode ser?

 

- Às dez está óptimo - concordou Joanna.

 

- Precisam de indicações para cá chegar? - perguntou Helen.

 

- Não deve ser preciso - retrucou Joanna. - Somos bastante expeditas.

- Então, amanhã cá vos espero - disse Helen antes de desligar.

 

Joanna terminou a ligação.

 

- Muito bem! - apreciou Deborah. - Acho que já entrámos.

 

- Também acho - corroborou Joanna. Retirou o cabo telefónico do aparelho e dirigiu-se ao computador. - Vamos entrar no correio electrónico para recebermos a mensagem assim que chegar.

 

Fiel à palavra dada, Helen enviou o e-mail minutos depois de terminar a chamada, e a mensagem apareceu no ecrã do computador pouco depois. Quinze minutos depois, Joanna e Deborah tinham preenchido os respectivos formulários de emprego no ecrã e tinham-nos devolvido à Clínica Wingate.

 

-Parece quase demasiado fácil -comentou Deborah ao encerrar o computador.

- Não nos agoures - admoestou Joanna. - Chama-me supersticiosa, mas não vou dizer nada disso enquanto não entrar na sala do servidor da Wingate. Ainda há muita coisa que pode correr mal.

 

- Queres dizer com um ou os dois números de Segurança Social?

- isso ou alguém como a Dr.a Donaldson reconhecer-nos amanhã. -Deixa-me adivinhar- disse Deborah. -Voltaste a pensar na ideia do disfarce.

 

- Nem nunca parei de pensar nisso - disse Joanna. - E temos o resto da tarde. Vamos a isso. Podemos ir ao centro comercial Galleria em Cambridge e, sem gastar muito, comprar roupa nova.

 

- Estou nessa - alinhou Deborah. - A desavergonhada modernaça... vou ser eu. Talvez encontre alguma coisa com a barriga de fora para combinar com um Wonderbra. Depois paramos na drogaria e compramos maquilhagem e colorante para o cabelo. Lembras-te da recepcionista quando fomos à Wingate doar óvulos?

- Seria difícil esquecê-la - disse joanna.

 

- Vou ensinar-lhe o que é ser espampanante - declarou Deborah.

 

- É melhor não exagerarmos nisto - avisou Joanna com cepticismo. - Não queremos chamar a atenção desnecessariamente.

 

- Fala por ti - disse Deborah. - Não queres que nos reconheçam, e eu vou garantir que tal não acontece, especialmente comigo.

 

- Mas queremos que nos dêem emprego - disse Joanna.

 

- Não te aflijas - apaziguou Deborah. - Não vou assim tão longe.

 

 

9 de Maio de 2001

8:45 h.

Spencer Wingate pôs de lado a revista que estava a ler e olhou pela janela para a extensão de campo lá fora. A Primavera chegara finalmente com uma indolência típica da Nova Inglaterra. A manta de retalhos dos campos e colinas ganhara uma profunda cor verde, embora se vissem manchas isoladas de neve e gelo nas ravinas e valas mais acentuadas. Havia muitas árvores frondosas sem folhas mas já cobertas de delicados botões verdes e amarelos prontos a rebentar, o que dava uma suavidade tal às colinas ondulantes que estas pareciam acolchoadas em espuma verde e diáfana.

 

- Quanto falta para aterrarmos em Hanscom Field? - indagou Spencer, alto o bastante para o piloto ouvir sobre o ruído dos motores a jacto. Spencer voava num Lear 45; era titular de uma quarta parte, embora não fosse do avião em que seguia agora. Há dois anos atrás tinha celebrado um acordo com uma empresa de propriedade fraccíonada e o serviço servira às mil maravilhas para as suas necessidades.

 

- Menos de vinte minutos, doutor - respondeu o piloto por cima do ombro. Não há tráfego, por isso voamos directamente para lá.

 

Spencer assentiu e espreguiçou-se. Estava ansioso para voltar ao Massachusetts, e a paisagem das quintas tradicionais do sul da Nova Inglaterra avivava o lume das suas expectativas, Passara o segundo Inverno consecutivo em Naples, na Florida, e desta vez aborrecera-se, especialmente durante os últimos meses. Agora mal podia esperar para voltar, e não era só devido ao decréscimo de lucro na Clínica de Infertilidade Wingate.

 

Três anos antes, com a clínica a funcionar e o dinheiro a entrar mais depressa do que ele alguma vez imaginara, sonhara em reformar-se parajogar golfe, escrever um livro que se tornaria num filme, sair com lindas mulheres e, regra geral, descontrair. Com esse objectivo em mente, começara a procurar um médico mais jovem para tomar as rédeas quotidianas do seu negócio florescente. Fortuitamente, encontrara um indivíduo interessado, acabado de sair do departamento de infertilidade duma instituição onde Spencer ensinara; o jovem parecera caído do céu.

 

Com os negócios encaminhados, Spencer voltara a sua atenção para a escolha do local para onde deveria ir. Seguindo o conselho de um doente que tinha vasta experiência no mercado imobiliário da Florida, encontrara um condomínio na costa oeste. Fechara negócio e viajara em direcção ao sol.

 

Infelizmente, a realidade não correspondera às suas fantasias. Podiajogar golfe, mas a sua mente competitiva achara o jogo menos compensador a longo prazo, especialmente porque nunca conseguira ultrapassar um nível de mediocridade exasperante. Spencer considerava-se um vencedor e era intolerável perder. Por fim, entendeu que havia algo basicamente errado com o desporto.

 

Por seu turno, a ideia de escrever revelou-se ainda mais um embuste. Descobrira que era um trabalho mais duro do que pensara e que exigia um grau de disciplina que ele não possuía. Pior ainda, não existia reacção imediata como a que ele recebia quando atendia doentes. Por conseguinte, e bem depressa, desistira da ideia do livro-filme por não ser adequada à sua personalidade mais dinâmica.

 

o ambiente social ainda fora a maior desilusão. Durante a maior parte da sua vida, Spencer sentira que precisara de sacrificar o estilo de vida que a sua aparência e o seu talento lhe deveriam ter proporcionado. Casara-se, no final do curso, com uma mulher que viera a reconhecer como sendo inferior, tanto intelectual como socialmente. Assim que os filhos, que tinham nascido logo, foram para a universidade, Spencer divorciara-se. Felizmente, fora antes de lançar a Clínica de Infertilidade Wingate. A sua mulher ficara com a casa, que não era nada de especial, e um pagamento único.

 

- Dr. Wingate? - gritou o piloto por cima do ombro. - Devo comunicar via rádio para pedir transporte?

 

- o meu carro deve lá estar- respondeu Spencer. - Diga para o trazerem para a pista.

 

- Sim, senhor! - disse o piloto.

 

Spencer voltou aos seus devaneios. Ainda que não houvesse escassez de mulheres bonitas, nem sempre conseguia conhecê-las, e as que conhecia não eram fáceis de impressionar. Spencer achava que era rico, mas em Naples havia sempre alguém muito mais à frente, tanto na riqueza como no respectivo aparato cénico.

 

Posto isto, a única parte do sonho original de reforma de Spencer que se realizara fora a oportunidade de descontrair. Porém, até isso perdera interesse depois daprimeira temporada. No início de Janeiro chegavam as notícias de que os lucros da clínica estavam em declínio. A princípio, Spencer pensara que devia ser uma aberração ou um truque de contabilidade, ter um volume de passivo significativo num mês, mas infelizmente a perda continuara. Spencer observara a questão o melhor que podia à distância. Não era que não entrasse dinheiro, antes pelo contrário. Era porque os custos de investigação haviam disparado, o que indicava que a liderança de Spencer era necessária no local. Na altura em que Paul Saunders entrara, Spencer dissera-lhe que encorajava a investigação, mas obviamente as coisas estavam fora de controlo.

 

- Disseram-me que o seu carro já se encontra em frente ao edifício JetSmart Aviation - gritou o piloto para Spencer. - E aperte o seu cinto de segurança. Vamos começar a descer.

 

Spencer mostrou ao piloto os polegares erguidos. Já tinha o cinto de segurança posto. Olhou pela janela enquanto o avião descia e viu o seu Bentley descapotável cor de vinho a brilhar ao sol da manhã. Adorava o carro. Pensou vagamente se não o deveria ter levado para Naples. Talvez tivesse tido mais sorte com as mulheres.

 

Joanna sempre gostara da Primavera, com as flores e a promessa de quentes e suaves noites de Verão no horizonte. A Primavera chegava sempre cedo a Houston, com uma avalanche de cores que transformava, de um dia para o outro, a paisagem monótona e simples numa terra encantada de azálcas, tulipas e cornizos. Enquanto conduzia para fora de Boston em direcção a Bookford, para norte, tentava concentrar-se nas boas recordações e na euforia que geravam, mas com dificuldade,

 

Primeiro, havia poucas flores à vista e, como tal, poucas cores, excepto a erva verde e o verde-claro dos rebentos das árvores. Segundo, estava irritada com Deborah, sentada a seu lado e trauteando alegremente a canção que tocava no rádio. Embora a companheira de quarto tivesse prometido que não iria assim tão longe com o disfarce, na opinião de joanna tinha passado das medidas. Agora tinha o cabelo louro, lábios e unhas postiças vermelho-brilhantes, e trazia um vestido decotado e muito curto, um soutien Wonderbra e saltos altos. o toque final consistia em brincos pendentes e um colar com um coração cravejado de brilhantes. Em flagrante contraste, Joanna usava uma saia azul-escura abaixo do joelho, uma blusa branca abotoada até ao pescoço, um casaquinho cor-de-rosa-pálido abotoado também até acima, e óculos com armação de plástico. Pintara o cabelo de um castanho- apagado.

 

- Duvido seriamente que consigas arranjar emprego - disse Joanna subitamente, quebrando um longo silêncio. - E eu talvez não consiga por tua causa.

 

Deborah desviou a atenção da janela para olhar para o perfil da companheira de quarto. Embora não respondesse imediatamente, inclinou-se e desligou o rádio.

 

Os olhos de Joanna desviaram-se brevemente para encontrar os de Deborah e voltaram à estrada.

 

- É por isso que estás tão calada? - perguntou Deborah. - Não disseste uma palavra praticamente desde que saímos esta manhã.

 

- Prometeste-me que não farias disto uma brincadeira - disse Joanna. Deborah olhou os seus joelhos durante um momento.

 

- Não é brincadeira nenhuma - disse. - Chama-se a isto tirar partido de uma oportunidade e gozar um pouco.

 

Chamas-lhe gozo e eu chamo-lhe um exercício de mau gosto.

 

É o teu gosto - retrucou Deborah. - E, ironicamente, o meu também. Mas nem toda a gente concordaria contigo, muito menos a população masculina.

 

- Não achas mesmo que os homens vão ficar excitados com o teu aspecto, pois não?

 

- Na verdade, acho mesmo que vão - disse Deborah. - Nem todos, claro, mas muitos. Já observei a reacção dos homens a mulheres assim vestidas. A reacção pode prender-se com motivos que não me interessam, mas existe, e por uma vez na vida vou experimentá-la.

 

- Acho que é um mito - contrapôs Joanna. - Penso que é uma distorção feminina, semelhante à ideia masculina de que as mulheres se excitam com músculos grandes e protuberantes.

 

- Ná! Não me parece que seja sequer parecido - disse Deborah, agitando a mão. - Além disso, tu falas da tua educação tradicional feminina, em que o namoro serve de prelúdio ao casamento. Deixa-me recordar-te mais uma vez que os homens podem encarar as mulheres e o namoro como sendo um jogo ou até mesmo um desporto. Eles encaram a coisa como divertimento, tal como, gostaria de te lembrar, pode fazer a mulher moderna do século xxi.

 

- Não quero entrar numa discussão acerca deste assunto - disse Joanna. - o problema é que temos uma entrevista com uma mulher e eu duvido que ela se divirta com a tua aparência. o certo é que não acredito que consigas emprego, pura e simplesmente.

 

- Também discordo disso - declarou Deborah. - A direcção de Recursos Humanos é chefiada por uma mulher, lá isso é verdade. Mas ela tem de ser realista em termos de recrutamento. Eu vou candidatar-me a um lugar no laboratório, não no atendimento ao público. Aliás, acharam adequado contratar aquela recepcionista ruiva que tinha uma roupa quase tão provocadora como a minha.

 

- Mas porquê correr o risco? - insistiu Joanna.

 

- A preocupação era, tu assim o disseste, se seríamos reconhecidas ou não - disse Deborah. - Confia em mim! Ninguém nos vai reconhecer. E, ainda por cima, dívertímo-nos. Não vou desistir de tentar que tu te soltes e de impedir que tenhas uma recaída social.

 

- Ah, pois! - exclamou Joanna. - Agora vais tentar convencer-me de que estares vestida como uma pega é para meu benefício. Por amor de Deus!

 

- Está bem, é mais para mim, mas um bocadinho para ti.

 

Na altura em que chegaram a Bookford e atravessaram a cidade, já Joanna se tinha reconciliado com a aparência de Deborah. Imaginara que, na pior das hipóteses, Deborah não arranjaria emprego, mas as dificuldades de Deborah não lhe afectariam as hipóteses. Não seria nenhum desastre se Deborah não conseguisse emprego. Afinal, Joanna tencionara ir para a Clínica Wingate sozinha. Fora Deborah que insistira em ir também.

 

- Lembras-te onde se deve virar? - perguntou Joanna. Não fora ela a conduzir na visita anterior, e quando era passageira tinha dificuldade em recordar pontos de referência.

 

- É à esquerda, depois da próxima curva - respondeu Deborah. - Lembro-me de que era depois deste celeiro à direita.

 

- Tens razão, lá está o sinal - disse Joanna, endireitando o volante depois da curva. Abrandou e entrou na estrada de cascalho. À frente encontrava-se a casa de pedra da Portaria. Havia uma fila de camiões a entrar no túnel e a barrar-lhes o caminho. Lá estava o guarda fardado, de prancheta na mão, aparentemente a conversar com o motorista dentro da cabina do primeiro camião.

 

- Deve ser a hora das entregas para a quinta - deduziu Deborah. Nas traseiras do último camião podia-se ler RAÇõEs ANIMAIS WElasTER,

 

- Que horas são? - perguntou Joanna. Estava preocupada com as horas porque tinham saído de casa vinte minutos mais tarde do que pretendiam, à espera que o verniz das unhas de Deborah secasse.

 

- São cinco para as dez - respondeu Deborah.

 

- Que óptimo! - comentou Joanna, em desespero. - Detesto chegar tarde a reuniões, especialmente se são entrevistas de emprego,

 

- Não podemos fazer mais nada - disse Deborah.

 

Joanna assentiu. Detestava comentários condescendentes como aquele, e sabia que Deborah sabia disso, mas não disse nada. Não lhe queria dar essa satisfação. Em vez disso, tamborilou os dedos no volante.

 

Os minutos passavam e o tamborilar de Joanna ganhou ritmo. Ela suspirou e olhou para o espelho retrovisor para ver como é que o seu cabelo tinha aguentado a viagem. Antes de poder ajustar o espelho vislumbrou um carro a virar da Rua Pierce e a entrar na estrada de cascalho. o carro aproximou-se delas, abrandou e parou imediatamente.

 

- Lembras-te daquele Bentley descapotável que vimos no parque de estacionamentoda clínica da outra vez que aqui estivemos? - perguntou Joanna.

 

- Vagamente - respondeu Deborah. o seu único interesse em carros residia no facto de a fazerem ir do ponto A para o ponto B, e nunca conseguira distinguir entre um Chevy e um Ford ou um BMW e um Mercedes.

 

- Acabou de parar atrás de nós - declarou Joanna.

 

- Oh - comentou Deborah. Virou-se para olhar para a parte de trás do carro.

- Ah, sim, agora me lembro.

 

- Será um dos médicos? - indagou Joanna enquanto mirava a viatura cor de vinhono espelho retrovisor. Porém, com o reflexo no pára-brisas não conseguia ver o interior do carro.

 

Deborah voltou a olhar para o relógio.

 

- Bem, já passa das dez. Mas que se passa? o estúpido do guarda ainda está a falar com o camionista. Que raio terão tanto para falar?

 

- Devem ser cuidadosos com quem deixam entrar.

 

- Pode bem ser, mas nós temos uma entrevista - disse Deborah. Destrancou a porta e deslizou para fora.

 

- Onde vais? - inquiriu joanna.

 

- Vou saber o que se passa - afirmou Deborah. - Isto é ridículo.

 

Bateu com a porta e rodeou o carro pela dianteira. Andando em bicos de pés para impedir que os saltos altos se enterrassem no cascalho, começou a andar em direcção à Portaria.

 

Apesar da sua anterior irritação, Joanna não pôde deixar de rir do andar da amiga, até reparar que a saia curta estava subida atrás por causa da electricidade estática das meias de vidro, Baixou o vidro da janela e debruçou-se.

 

- Eia! Marylin Monroe! Tens a cauda de fora!

 

Com os nós dos dedos polegares, Spencer esfregou os olhos para conseguir ver melhor. Tinha parado atrás do incaracterístico Chevy Malibu, irritado por ver que, agora que regressara finalmente, tinha o caminho impedido por um mini-engarrafamento. Vira as duas cabeças dentro do carro, mas não prestara atenção até que uma delas saíra.

 

Para Spencer, fora como ver uma miragem. A mulher parecia tal e qual a pessoa que ele procurara e nunca encontrara durante a suaestada emNaples. Nãoera somente atraente, com um corpo atlético e elegante, como também estava vestida num estilo espampanante que ele já não via desde as raras deslocações que fizera a South Beach, em Miami. Para tornar a inesperada situação ainda mais provocante, o vestido da mulher estava puxado para cima e mostrava um traseiro quase nu.

 

Encorajado pela sensação de estar no seu território, Spencer não hesitou, como teria feito se ainda estivesse em Naples. Abriu a porta do carro e saiu. Ouvira o chamamento da companheira da mulher, e agora a saia estava onde devia estar, embora ainda pairasse a meio da coxa, e como o tecido era aderente, ondulava sensualmente com o andar titubeante da mulher sobre o caminho de saibro.

 

Dando uma corridinha, Spencer dirigiu-se à Portada, todo acalorado. Passou pelo Malibu das mulheres e vislumbrou a companheira, o que bastou para lhe indicar que esta era de estirpe completamente diferente. Abrandou, passou oprimeiro camião e aproximou-se da mulher, que estava de costas para ele, a discutir com o guarda, de mãos na cinta.

 

-  Bem, faça com que recuem com os camiões para nos deixarem passar - dizia Deborah. - Temos uma entrevista com Helen Masterson, directora de Recursos Humanos, e já estamos atrasadas.

 

o guarda, de prancheta na mão, não se senti a intimidado. Erguera as sobrancelhas e tinha um meio sorriso no rosto, enquanto mirava Deborah através dos seus óculos de aviador. Ia começar a responder à sugestão dela quando Spencer o interrompeu.

 

- Mas qual é o problema aqui? - questionou Spencer, no tom mais autoritário que conseguiu arranjar. Sem se aperceber de que imitava a atitude de Deborah, colocou as mãos nas ancas.

 

o guarda olhou para Spencer e disse-lhe mais ou menos que ele não tinha nada a ver com isso e que voltasse para dentro da sua viatura. Utilizou os termos por favor e senhor, mas por pura formalidade.

 

- Estes camiões de rações não estão na lista dele - explicou Deborah com desprezo. - Parece que isto é o Forte Knox, pelo amor de Deus.

 

- Talvez um telefonema para a quinta possa resolver as coisas - sugeriu Spencer.

 

- Escute, senhor! - disse o guarda, pronunciando «senhor» como se fosse um epíteto. Apontou para o Bentley de Spencer com a prancheta numa mão enquanto pousava a outra no coldre da sua arma automática. - Quero-o dentro daquele carro imediatamente.

 

- Não se atreva a ameaçar-me - rosnou Spencer. - Para sua informação, sou o Dr. Spencer Wingate.

 

o semblante ameaçador do guarda tremeu ao encarar Spencer. Parecia que estava a ter um debate interno sobre a maneira de prosseguir. A atenção de Deborah passou do guarda para Spencer, na sequência da surpreendente proclamação. Deu consigo a olhar o aspecto do médico estereotipado nas telenovelas: alto, magro, de rosto anguloso, pele bronzeada e cabelo grisalho.

 

Antes que alguém pudesse reagir verbalmente, a pesada porta negra abriu-se. Apareceu um homem musculado, com uma camisola de lã negra, calças pretas e sapatilhas de desporto também negras. Tinha o cabelo louro-sujo cortado curto. Movia-se como se fosse em câmara lenta, fechando a porta atrás de si.

 

- Dr. Wingate - disse calmamente. - Devia ter-nos avisado de que vinha.

- Que se passa com os camiões aqui parados, Kurt? - inquiriu Spencer.

 

- Aguardamos a autorização do Dr. Saunders - respondeu Kurt. - Não constavam da lista e o Dr. Saunders gosta que o informemos das irregularidades.

- São camiões de rações, por Deus! - exclamou Spencer. - Eu autorizo. Mande-os para a quinta para podermos entrar.

 

- Muito bem - disse Kurt. Retirou um cartão de plástico do bolso e passou-o numa ranhura de acesso instalada num poste junto ao primeiro camião. o pesado portão de ferro-forjado, começou imediatamente a ranger e a abrir.

 

Em resposta ao movimento do portão, o primeiro camionista ligou o seu motor a gasóleo. No espaço confinado do túnel da Portaria, fez um ruído considerável, e uma fumarada ainda maior. Deborah saiu logo para fora, seguida por Spencer.

 

- Obrigada por resolver o problema - disse Deborah. Reparou que os olhos do médico, que percorriam o corpo dela de alto a baixo, eram quase do mesmo azul que os do guarda fardado de preto.

 

- o prazer foi todo meu - disse Spencer. Para seu desespero, a voz falhou-lhe ao tentar ocultar o nervoso miudinho por falar directamente com Deborah. De perto, e com tanto decote visível, podia ver que o tom moreno da pele dela não era do bronzeado, como ele pensara. Era a sua cor natural. Também reparou que as sobrancelhas e os olhos eram escuros. A combinação disso tudo com o cabelo louro dava-lhe a impressão de que ela era um espírito livre e sensual.

 

- Bem, adeus, doutor - disse Deborah, sorriu e começou a andar em direcção ao carro.

 

- Um momento - chamou Spencer. Deborah parou e virou-se.

 

- Posso saber como se chama?

 

- Georgina Marks - respondeu Deborah. Sentiu a pulsação acelerada. Era a primeira vez que usava aquele nome.

 

- É verdade que tem uma entrevista com Helen Masterson?

 

- Às dez horas - respondeu Deborah. - Infelizmente, estamos atrasadas por causa daquele guarda.

 

- Eu falo com ela e digo-lhe que a culpa não foi vossa.

- Obrigada, é muito simpático da sua parte.

 

- Estão à procura de trabalho aqui na clínica?

 

- Sim - disse Deborah. - Eu e a minha companheira de quarto estamos interessadas. Tencionamos vir de carro juntas.

 

- Interessante - disse Spencer. - Que tipo de trabalho procuram?

 

- Eu sou formada em Biologia Molecular - declarou Deborah, propositadamente vaga em relação ao nível. - Gostaria de trabalhar no laboratório.

 

- Biologia Molecular! Estou impressionado - disse Spencer com sinceridade.

- E em que universidade?

 

-Harvard - afirmou Deborah. Tinha debatido o assunto com Joanna enquanto preenchiam as candidaturas de emprego recebidas por correio electrónico. Como estavam preocupadas em serem reconhecidas pela associação de Harvard, haviam pensado em indicar outra universidade. Porém, haviam chegado à conclusão de que era melhor dizer a verdade para poderem obviar a qualquer questão específica sobre a sua formação académica.

 

- Harvard! - exclamou Spencer. Ficou momentaneamente embatucado. A biologia molecular já tinha sido surpresa bastante. Harvard só piorava as coisas, indicando que Deborah poderia não ter um espírito tão livre como ele pensara e que seria ainda menos fácil de impressionar. - E a sua companheira de quarto? perguntou, para mudar de assunto. - Também está à procura de trabalho no laboratório?

 

- Não, Prudence... Prudence Heatherly... gostarí a de trabalhar no escritório respondeu Deborah. - Tem experiência de processamento de texto e computadores em geral.

 

- Bem, estou certo de que poderemos aproveitar ambas - disse Spencer. - E deixo aqui uma sugestão: por que é que não vêm as duas ao meu gabinete depois de falarem com Helen?

 

Deborah inclinou a cabeça e semicerrou os olhos, como se avaliasse os motivos de Spencer.

 

- Talvez pudéssemos tomar café ou algo assim - propôs Spencer.

- Como é que posso encontrá-lo? - indagou Deborah.

 

- Basta pedir à Helen - explicou Spencer. - Como já disse, vou dar-lhe uma palavrinha a vosso respeito e direi que nos encontramos depois.

 

- Assim farei - disse Deborah. Sorriu e virou-se para voltar ao carro.

 

Spencerobservou-a a afastar-se. Reparou namaneira voluptuosa como as nádegas se moviam debaixo do tecido sedoso sintético da saia. Embora percebesse que não era uma roupa cara, achou que lhe ficava eroticamente a matar.

 

«Harvard » disse de si para si, admirado. Teria considerado a sua antiga escola secundária e alma mater, Sominerville Higli, mais provável e, em última instância, mais promissora.

 

- Como é que se consegue andar com sapatos destes o dia inteiro? - inquiriu Deborah ao entrar para o carro.

 

- Devias ter-te visto - riu Joanna. - É hilariante!

 

- Cuidado! - avisou Deborah. - Vais arruinar o meu amor-próprio. Joanna voltou a dar à chave na ignição quando o camião da frente se começou a mexer.

 

- Reparei que falavas com o cavalheiro do Bentley.

 

- Nunca vais adivinhar quem é - disse Deborah com ar tímido.

 

Joanna engrenou a mudança e começou a rodar lentamente. Para seu desgosto, Deborah, como sempre, esperava que ela perguntasse. Joanna resistiu durante uns minutos, mas a curiosidade venceu-a.

 

- Está bem, quem é? - perguntou,

 

- o Dr. Wingate em pessoa! E, ao contrário do que pensavas, ele ficou entusiasmado com a minha roupa.

 

-Entusiasmado ou desdenhoso? Há uma grande diferença, mesmo que não seja aparente.

 

-Entusiasmado, sem dúvida -afirmou Deborah. -E posso prová-lo: estamos convidadas para tomar café depois da entrevista.

 

- Estás a brincar?

 

- De modo algum - disse Deborah em triunfo.

 

Joanna mergulhou o carro no túnel. Spencer ainda lá estava, entre o homem de negro e o guarda fardado. Embora o portão estivesse aberto, começou a fechar-se, com a distância que Joanna deixara crescer entre ela e o camião. Spencer fez sinal para Joanna parar. Ela assim fez e baixou o vidro da janela.

 

- Fico à espera das senhoras mais tarde - disse. - Boa entrevista.

 

Puxou da carteira um cartão de plástico azul, similar ao que o homem de negro usara antes, e passou-o pela ranhura de acesso. o portão imobilizou-se, deu um solavanco e começou a abrir novamente. Spencer fez-lhes sinal que seguissem com um gracioso gesto de boas-vindas.

 

- Tem um ar muito distinto - comentou Joanna ao sair do túnel.

- Diria que sim - anuiu Deborah.

 

- Pode parecer estranho, mas tem enormes semelhanças com o meu pai.

 

- Agora és tu que estás a brincar - disse Deborah. Olhou para Joanna. - Não acho que se pareça nada com o teu pai. A mim parece-me um médico de uma telenovela.

- A sério - insistiu Joanna. - Tem a mesma compleição e a mesma cor. Até a mesma indiferença fria.

 

- Tu é que estás a ver a indiferença nele - disse Deborah. - Comigo foi tudo menos indiferente. Devias ter visto a ginástica que as órbitas faziam, graças ao decote que o meu Wonderbra criou.

 

- Não achas que se parece com o meu pai?

- Nadinha!

 

Joanna encolheu os ombros.

 

- É estranho, porque eu acho. Talvez seja alguma coisa subliminar.

 

o carro passou o maciço de coníferas a seguir ao portão, dando às mulheres a primeira vista panorâmica do velho edifício Cabot.

 

- Este sítio ainda é mais soturno do que eu me lembrava - disse Deborah. Debruçou-se para ver melhor pelo pára-brisas. -Nem me recordo daquelas gárgulas nas goteiras,

 

- Há tanto ornamento vitoriano que é difícil assimilar tudo de uma vez - disse Joanna. - Mas dá para perceber por que os funcionários lhe chamam monstruosidade. o caminho serpenteou até as levar ao estacionamento no lado sul. Assim que

 

chegaram ao cimo da colina, viram a enorme chaminé que se elevava a leste. Tal como acontecera da primeira vez que Deborah lá estivera, estava a deitar fumo.

- Sabes- disse Deborah-, aquela chaminé lembra-me uma coisa acerca deste sítio que me esqueci de te contar.

 

joanna encontrou um lugar para estacionar e parou o carro. Desligou a ignição. Contou silenciosamente até dez, à espera que Deborah acabasse um dos seus pensamentos diferidos sem que ela tivesse de perguntar quais eram.

 

- Desisto - disse, por fim. - Que é que te esqueceste de me contar?

 

- o Cabot tinha crematório próprio, incluído na central eléctrica. Fiquei com uma sensação estranha quando me disseram, a imaginar se os restos dos doentes poderiam ter sido usados para o aquecimento do sítio.

 

- Que ideia macabra - reagiu Joanna. - Por que diabo te lembraste de uma coisa dessas?

 

- Não pude evitar - disse Deborah. - o crematório, o arame farpado, os trabalhadores que eles devem ter tido na quinta... tudo isto me fez pensar nos campos de concentração nazis.

 

- Vamos entrar - disse Joanna. Não lhe apetecia agraciar tal ideia com uma resposta. Abriu a porta do carro e saiu. Deborah fez o mesmo do seu lado.

 

- o crematório também podia ser uma maneira de encobrir erros ou maldades de qualquer espécie - acrescentou Deborah.

 

- Estamos atrasadas - disse Joanna. - Vamos lá arranjar emprego.

 

9 de Maio de 2001

10:25 h.

O cheiro era quente, húmido, fétido e ofensivamente animalesco. Paul Saunders tinha uma máscara cirúrgica, mas não era para fins anti-sépticos. Simplesmente, não podia suportar o cheiro intolerável na cocheira onde tinha lugar o parto da porca. Estava de pé com Sheila Donaldson e Greg Lynch, o robusto veterinário que ele atraíra para longe do programa de Veterinária da Universidade de Tufts, com um avultado salário e a promessa de acções na Bolsa. Sheila e ele tinham batas cirúrgicas por cima da roupa e calçavam botas de borracha. Greg tinha um enorme avental e pesadas luvas, tudo de borracha.

 

- Pensei que tinha dito que este parto era iminente - queixou-se Paul. Cruzara os braços e tinha luvas nas mãos.

 

- Tudo indica que sim - disse Greg. - Além disso, hoje é o dia duzentos e oitenta e nove da gravidez. Há muito que devia ter sido.

 

Deu palmadinhas na cabeça da porca e o animal soltou um guincho alto e prolongado.

 

- Não se pode induzir? - sugeriu Paul, franzindo o sobrolho com o guincho agudo. Olhou por cima da grade da cocheira para Carl Smith, como se fosse perguntar se ele trouxera oxitocina ou outro tipo de estimulante uterino. Carl estava ao lado da máquina da anestesia que tinham comprado para a quinta. Estava lá em caso de emergência.

 

- É melhor deixar a natureza seguir o seu curso - disse Greg. - Está quase. Pode acreditar.

 

Assim que Greg acabou de falar, um repuxo de líquido amnióticojorrou no chão coberto de palha, seguido de outro guincho ensurdecedor. Paul e Sheila tiveram de sair do caminho para não ficarem encharcados no fluido tépido.

 

Paul revirou os olhos assim que recuperou a compostura.

 

- As indignidades que eu tenho de suportar em nome da ciência! - lamuriou-se. - É irreal!

 

- As coisas agora vão andar num instantinho - disse Greg. Colocou-se atrás do animal, tentando, em vão, não pisar os excrementos. o animal estava deitado de lado.

 

- Não tão depressa como eu gostaria - disse Paul. Olhou para Sheila. Quando é que foi a última ecografia?

 

- Ontem- respondeu Sheila. - E não gostei do tamanho dos cordões umbilicais que consegui visualizar. Eu disse-lhe, lembra-se?

 

- Sim, lembro-me - disse Paul, abanando a cabeça desanimado. - Por vezes, os fracassos que temos de sofrer nesta área afectam-me, especialmente nesta parte da investigação. Se neste lote tornam a vir nados-mortos, vou sentir-me perdido. Não sei que mais tentar.

 

- Podemos, pelo menos, tentar ser optimistas - sugeriu Sheila.

 

Ouviu-se um telefone a tocar. Um dos tratadores de animais que observava foi atender.

 

A porca tornou a guinchar.

 

- É agora - disse Greg. Introduziu a mão enluvada dentro do animal. - Já fez a dilatação. Dêem-me espaço.

 

Paul e Sheila ficaram assaz contentes por se afastarem tanto quanto a cocheira o permitia.

 

- Dr. Saunders, tenho de lhe entregar uma mensagem - disse o tratador. Regressara do telefone e pusera-se ao lado de Paul.

 

Paul fez sinal para o homem se afastar. o primeiro da ninhada estava a mostrar a cabeça, no meio dos guinchos da mãe porca. Logo a seguir, nasceu o primogénito. Porém, não parecia bem, e a criatura azulada mal conseguia respirar debilmente, o cordão umbilical era enorme, o dobro do tamanho normal. Greg deu-lhe um nó e preparou-se para o próximo.

 

Assim que começaram, os nascimentos sucederam-se rapidamente. Em poucos minutos, a ninhada inteirajuncava o chão coberto de palha, ensanguentada e imóvel. Carl fizera um gesto para agarrar no primeiro e tentar ressuscitá-lo, mas Paul dissera-lhe que não valia a pena, já que tinha muitas malformações congénitas. Durante algum tempo, o grupo contemplou em silêncio os deploráveis recém-nascidos. A porca ignorou-os instintivamente.

 

- A ideia de usar nfitocôndrias humanas não funcionou, obviamente - disse Paul, quebrando o silêncio. - É um desalento. Pensei que a minha ideia fosse brilhante. Fazia mesmo sentido, mas basta olhar para estas criaturas para perceber que todas têm o mesmo problema cardiopulmonar que o último grupo.

 

- Pelo menos, conseguimos que chegassem ao fim do tempo - disse Greg. Quando começámos ocorriam sempre abortos aos três meses.

 

Paul suspirou.

 

- Quero ver uma prole normal e não nados-mortos. Há muito que deixei de considerar um sucesso que eles cheguem ao fim do tempo.

 

- Vamos autopsiá-los? - perguntou Sheila.

 

-Acho que sim, para concluir- disse Paul, sem entusiasmo. - Sabemos qual é a patologia, evidentemente que é a mesma da outra vez, mas deve ficar documentada para a posteridade, Temos de saber como a eliminar, por isso voltamos ao proverbial esboço.

 

- E os ovários? - indagou Sheila,

 

- Nem é preciso dizer - disse Paul. - Tem de se fazer agora, enquanto estão vivos. A autópsia pode ficar para depois, Se for preciso, depois de extrair os ovários, pode pôr as criaturas na câmara frigorífica e autopsiá-las quando achar conveniente. Mas, assim que acabar as autópsias, ponha os cadáveres na incineradora.

 

- E a placenta? - inquiriu Sheila.

 

- Deve ser fotografada junto com a porca - respondeu Paul. Deu um toque na massa ensanguentada com a biqueira da bota. - Também devia ser autopsiada. Obviamente que também é anormal.

 

- Dr. Saunders - disse o tratador dos animais. - o telefonema...

 

- Pelo amor de Cristo, pare de me aborrecer com o telefonema! - gritou Paul. Porque se é por causa dos dois malditos camiões de ração, quero lá saber se ficam lá vinte e quatro horas. Deviam ter chegado ontem, não hoje.

 

- Não é por causa dos camiões - continuou o homem. - Aliás, já cá estão na quinta.

 

- o quê? - gritou Paul. - Eu dei ordens específicas de que não podiam entrar enquanto eu não autorizasse, e ainda não autorizei.

 

- Foi o Dr. Wingate que autorizou - rematou o tratador dos animais. - Era essa a razão da chamada. o Dr. Wingate está cá na clínica e quer falar consigo lá na monstruosidade.

 

Por momentos, os únicos sons no amplo celeiro foram uns mugidos distantes das vacas, guinchos de outros porcos e o ladrar dos cães. Paul e Sheila entreolharam-se, surpreendidos,

 

- Sabia que ele estava de regresso? - perguntou Paul a Sheila, por fim.

- Não fazia ideia - respondeu Sheila.

 

Paul olhou para Carl.

 

- Não olhe para mim - disse Carl, - Eu também não fazia ideia, Paul encolheu os ombros.

 

- Deve ser mais um desafio.

 

- Bem, é tudo, Menina Heatherly e Menina Marks - disse Helen Masterson, concluindo o seu monólogo enlatado. Recostou-se na cadeira com as palmas das mãos juntas como se estivesse a rezar. Era uma mulher rude, com um rosto carnudo e corado, covinha no queixo e um corte de cabelo curto e prático. Quando sorria, os olhos ficavam reduzidos a fendas. Joanna e Deborah estavam sentadas em frente à secretária dela cheia de tralha. - Se as condições, os regulamentos e os ordenados que vos propus forem aceitáveis, a Clínica Wingate tem o prazer de vos oferecer emprego.

 

Joanna e Deborah entreolharam-se rapidamente e assentiram com a cabeça.

- Parece-me bem - disse Deborah,

 

- A mim também - corroborou Joanna.

 

- Maravilha- rematou Helen com um sorriso, fechando quase completamente os olhos, - E agora, têm perguntas para mim?

 

-Temos - disse Joanna. -Gostaríamos de começar o mais depressa possível. Aliás, até queríamos que amanhã fosse o nosso primeiro dia. É possível? - Isso é muito difícil- disse Helen. -Não nos dá tempo, de processar as vossas candidaturas. - Hesitou um pouco antes de prosseguir. - Bem, acho que isso não nos deverá limitar, mesmo porque, com franqueza, estamos a crescer tão depressa que precísamos. de ajuda. Portanto, se eu conseguir que o Dr. Paul Saunders vos veja hoje,já que ele insiste em conhecer todos os novos funcionários, e obter despacho da segurança, por que não?

 

- o que significa despacho da segurança? - perguntou Joanna. Trocou um breve olhar com Deborah.

 

- É mesmo só para vos arranjar um cartão de acesso - explicou Helen, - Serve Para entrarem pelo portão da frente e para iniciarem sessão no vosso computador. Pode dar para muito mais, claro, consoante a programação.

 

As sobrancelhas de joanna ergueram-se à simples menção de computador. Foi um gesto que a directora de recursos humanos não percebeu, mas em que Deborah reparou,

 

-Tenho curiosidade acerca da configuração dos computadores - disse Joanna, Como penso que vou fazer muito processamento de texto, gostaria de saber mais Sobre isso. Por exemplo, o vosso sistema deve ter vários níveis de autorização.


-Não sou especialista em informática -disse Helen com uma risadinha nervosa.

- É melhor indicar-vos o nosso administrador de rede, Randy Porter, para obterem respostas decisivas. Mas, se bem compreendo, a resposta é afirmativa. A nossa rede local está configurada para reconhecer diversos grupos de utilizadores, cada qual com privilégios de acesso distintos. Não se aflijam, porque ambas terão, com certeza, os privilégios adequados à vossa função.

 

Joanna assentiu.

 

- Aflijo-me porque o sistema parece ser sofisticado. Será que eu poderia ver o equipamento em si? Deve dar-me uma boa ideia do que posso esperar.

 

- Não vejo nenhum impedimento - disse Helen. - Mais perguntas?

 

-Eu tenho uma questão -disse Deborah. - Encontrámo-nos como Dr. Wingate na entrada. Ele disse que iria falar consigo. Falou mesmo?

 

- Sim, falou - respondeu Helen. - Fiquei algo surpresa. E devo levar-vos ao gabinete dele quando acabarmos aqui. Mais perguntas?

 

Joanna e Deborah entreolharam-se antes de abanarem a cabeça.

 

- Então, eu tenho algumas perguntas também - declarou Helen. - Sei que tencionam ir e vir de carro de Boston, mas gostaria que pensassem nos simpáticos alojamentos que temos aqui nas instalações, que encorajamos o pessoal a usar, já que preferimos que os nossos funcionários vivam cá. Estariam dispostas a ver as unidades? Só demora alguns minutos, Temos um carrinho de golfe aí fora para nos levar até lá.

 

Joanna ia começar a recusar, mas Deborah sobrepôs-se dizendo que seria interessante ver os apartamentos, se tivessem tempo.

 

- Bem, isso leva-me à minha última pergunta - disse Helen. Olhou para Deborah. - Não sei como dizer isto, Menina Marks, mas costuma vestir de maneira tão... tão espampanante?

 

Joanna reprimiu uma risadinha enquanto Deborah balbuciava uma explicação para o seu estilo de roupa.

 

- Bem, talvez possa moderar isso um pouco - disse Helen, tentando ser diplomata. - Afinal, somos profissionais de saúde.

 

Sem esperar a resposta de Deborah, Helen pegou no telefone e marcou uma extensão. A subsequente conversa foi breve. Limitou-se a perguntar se «Napoleão» estava lá, escutou, acenando com a cabeça, e rematou dizendo que lá iria a seguir con, duas novas recrutas.

 

Helen levantou-se e as mulheres imitaram-na. Puderam assim vislumbrar os topos das divisórias que separavam a antiga enfermaria de tecto alto em pequenos cubículos de trabalho. Encontravam-se agora na área administrativa, no segundo piso, onde Joanna iria trabalhar. As janelas existentes em alguns cubículos davam para a frente do edifício, proporcionando uma vista imponente para ocidente. Não se viam muitas cabeças no labirinto de espaços de trabalho, como se toda a gente estivesse na pausa para café.

 

- Venham comigo - disse Helen, saindo do seu cubículo. Começou a andar pelo corredor central, enquanto falava por cima do ombro. - Vou levá-las para conhecerem o Dr. Saunders. É só uma formalidade, mas temos de ter a sanção dele antes de continuarmos.

 

- Lembras-te de quem é? - sussurrou Joanna para Deborah enquanto seguiam a directora de Recursos Humanos uns passos atrás. Helen abria caminho pelo corredor que separava a área administrativa do laboratório, situado na parte leste da ala.

 

- Claro que me lembro - disse Deborah. - Vai ser o primeiro teste.

 

- Ele não me interessa - disse joanna. - É a dr.a donaldson que me preocupa. o Dr. Saunders nem me olhou para a cara, pelo menos enquanto eu estive acordada.

- Para mim olhou o suficiente - disse Deborah - e não estava nada bem disposto, como eu te contei.

 

Helendeteve-se subitamente junto a uma porta que tinha um sinal a dizer PROIBIDA A ENTRADA.

 

- Por que não? - disse ela, depois de bater e sem explicação. Abriu a porta, que estava destrancada, e entrou. As mulheres seguiram-na. Os seis metros de corredor acabavam noutra porta. Helen tentou abri-la mas estava trancada. Sacou da carteira e tirou um cartão azul, semelhante ao que Spencer usara para abrir o portão. Verificando se a banda magnética estava na direcção certa, passou rapidamente o cartão numa ranhura instalada na parede junto à porta. Ouviu-se um clique. Helen voltou a tentar e a porta abriu-se.

 

Escancarou a porta e afastou-se para um lado. Olhou para Joanna.

 

- Esta é a sala do servidor. Ali está o nosso equipamento. Não vos posso dizer muito mais além disso.

 

Os olhos de Joanna varreram a sala sem janelas, cujo soalho fora levantado vinte centímetros para ocultar a instalação eléctrica. Havia quatro grandes unidades electrónicas verticais e uma pequena estante cheia de manuais. Mais importante ainda, havia uma consola de servidor com teclado, rato e um monitor apresentando uma protecção de ecrã activa, com raias douradas e tubarões azul-cinza a nadar de um lado para o outro.

 

- Impressionante - comentou Joanna.

 

- Bom, eu não percebo nada deste equipamento - admitiu Helen. - Já viu tudo? joanna assentiu.

 

- Eu terei acesso a esta sala com o meu cartão? - perguntou. Helen olhou-a como se ela tivesse dito algo sumamente estúpido.

 

- Claro que não! A admissão a espaços como este está reservada unicamente aos chefes de departamento. E por que é que haveria de vir cá?

 

Joanna encolheu os ombros.

 

- Só se tivesse algum problema que não pudesse resolver do teclado do meu computador.

 

- Nesse caso, teria de falar com Randy Porter, se o conseguir localizar, Tenho de admitir, ele costuma ser difícil de encontrar, quando não está no cubículo dele. Helen fechou a porta e esta trancou-se com um estalido.

 

- Vamos ver o nosso destemido líder - disse Helen. Voltou para o corredor principal e começou novamente o caminho. Estugou o passo, como se o desvio pela sala do servidor as tivesse atrasado. Joanna e Deborah tinham de se apressar para a acompanhar. Os saltos altos de Deborah ecoavam no soalho de granito como se fossem disparos de pistola automática. o tecto abobadado ampliava os ruídos, devolvendo vários ecos.

 

- Que achas? - murmurou Deborah, ofegante,

 

- Se não tivermos sorte e conseguirmos o acesso que precisamos aos ficheiros, terei de entrar e ficar dez ou quinze minutos naquela sala,

 

- Ou seja, precisamos de um cartão azul que abra a porta. Aparentemente, o nosso não vai dar. Como é que vamos arranjar isto?

 

- Temos de ser criativas - disse Joanna.

 

- Lamento ter de vos apressar desta maneira... - Helen chamou as mulheres de onde estava, a segurar numa pesada porta corta-fogo que dava da ala sul doedifício para a torre central. - o Dr. Saunders pode ser difícil de apanhar. Se ele sair do gabinete antes de chegarmos, teremos problemas em encontrá-lo, e se ele não vos conhecer não poderão começar amanhã.

 

Joanna e Deborah passaram pela porta corta-fogo que Helen deixou fechar atrás de si. As mulheres deram consigo num ambiente totalmente diferente. Em vez de granito, o soalho era de madeira de carvalho, e as paredes, ao invés de azulejos, estuque ou tijolo exposto, eram revestidas a mogno. Até havia umapassadeira oriental puida que se estendia pelo corredor abaixo.

 

- Vamos! - instou Helen. Conduziu as mulheres pelo corredor e através de uma entrada num gabinete exterior. Estava uma mulher sentada à secretária e atrás dela havia duas portas: uma fechada, a outra entreaberta. Também havia vários sofás e uma mesinha baixa.

 

-Não me diga que não apanhámos o Dr. Saunders?-perguntou Helen à assistente.

- Ainda cá está - respondeu a mulher, enquanto fazia um gesto por cima do ombro para a porta fechada. - Mas de momento está ocupado.

 

o rosto de Helen mostrou entendimento. Sabia muito bem de quem era o gabinete da porta fechada. Baixou a voz e disse:

 

- Fiquei chocada por saber que o Dr. Wingate cá estava.

 

- Você e toda a gente - sussurrou a assistente com um aceno de cabeça. Ninguém esperava. Chegou esta manhã sem se fazer anunciar. Tem sido um reboliço, como deve imaginar.

 

Era a vez de Helen acenar com a cabeça. Depois encolheu os ombros.

- Será interessante ver o que acontece.

 

- Grande verdade - corroborou a assistente. - Seja como for, o Dr. Saunders deve estar quase a sair. Será melhor sentarem-se todas.

 

Sorriu graciosamente para Joanna e Deborah.

 

Estas assim fizeram e, quase em simultâneo, a porta do gabinete fechado abriu-se com estrondo e bateu no calço. A diminuta figura de Paul Saunders encheu o umbral, mas ele concentrava a sua atenção no interior do gabinete de Spencer. Tinha o rosto corado e as mãos engalfinhadas em punhos.

 

- Não posso ficar aqui o dia todo a falar disto - cuspiu Paul. - Tenho doentes para atender e trabalho a fazer, mesmo que você não tenha.

 

A forma de Spencer materializou-se atrás de Paul e impeliu-o para fora do umbral da porta, obrigando-o a recuar para o vestíbulo. Spencer era quase trinta centímetros mais alto e o seu rosto bronzeado fazia Paul parecer ainda mais pálido do que o costume. Os olhos brilhavam com uma intensidade equivalente aos de Paul.

 

-Vou encarar esse tipo de impertinência como sendo fruto do calor do momento

- estalou ele.

 

- Que generoso da sua parte, considerando que é verdade.

 

- Eu tenho uma responsabilidade fiduciária para com esta clínica e respectivos accionistas - sibilou Spencer. - E quero que perceba que tenciono honrar esse dever. A Wingate é, antes de mais, uma instituição clínica, e assim tem sido desde o primeiro dia. A nossa investigação destina-se a ajudar aos nossos esforços clínicos e não o contrário.

 

- Essa é a atitude mais bota-de-elástico que eu já vi - ripostou Paul. - A investigação é um investimento no futuro: sacrifícios a curto prazo para benefícios a longo termo. Estamos posicionados na vanguarda da pesquisa em células embrionárias, que tem o potencial de ser a base da medicina do século xxi, mas temos de estar dispostos a dispensar algum lucro e a correr riscos a breve trecho.

 

-Voltaremos a esta discussão quando você tiver mais tempo -declarou Spencer, terminantemente. - Venha aqui ter depois da sua última doente!

 

Regressou abruptamente para dentro do gabinete, agarrou na beira da porta e fechou-a com estrondo.

 

Paul deu mais umpasso atrás como se fosse fustigado pela rajada da porta abater. Furioso por ter sido dispensado quando tivera a intenção de sair primeiro, deu meia volta. Dera um único passo para o seu gabinete quando reparou no público inesperado. Como uma torre num navio de guerra, a cabeça rodou em staccato, enquanto os olhos, como canos de espingarda, fixaram cada uma delas. Detiveram-se em Deborah e logo se suavizaram.

 

- A Sr.a Masterson tem novas recrutas para o doutor entrevistar - anunciou a assistente.

 

- Bem vejo - retrucou Paul. Os punhos cerrados soltaram-se e fez sinal para a porta aberta enquanto olhava para os sapatos de salto agulha, a míni-saia e o decote pronunciado de Deborah. - Entrem, entrem! - disse ele. - Gladys, ofereceu alguma coisa para beber às senhoras?

 

- Não me ocorreu - admitiu Gladys, franzindo o sobrolho.

 

- Temos de rectificar isso - disse Paul. - Talvez um café ou um sumo?

 

- Para mim não, obrigada - disse Deborah, tentando pôr-se de pé. Era muito difícil com os saltos altos, pois o sofá era demasiado fundo. Paul reagiu, rodeando a secretária de Gladys para lhe estender a mão, mas Deborah endireitou-se sem ajuda. Puxou a mini-saia para baixo, coisa que baixava ainda mais o decote já de si profundo. Paul olhou para Joanna.

 

- Eu também não quero nada -respondeu esta. Sentiu-se como o parente pobre quando Paul voltou imediatamente a sua atenção para Deborah e depois fez questão em conduzi-la graciosamente para o seu gabinete. Joanna e Helen seguiram-nos.

 

Paul acrescentou uma cadeira às duas que tinha em frente à secretária e fez sinal para todas as mulheres se sentarem. Ladeou a secretária e sentou-se também. Helen começou a apresentar as mulheres pelos nomes falsos e referiu as respectivas licenciaturas em Harvard, junto com os departamentos em que esperavam trabalhar.

 

- Maravilha! - disse Paul com um largo sorriso, revelando os dentes da frente pequenos, quadrados e separados, que combinavam com o largo e esborrachado nariz. - Maravilha! - repetiu, rindo. Sem tirar os olhos de Deborah, prosseguiu: Parece, Sr.a Masterson, que encontrou umas boas potenciais funcionárias. Tenho de a felicitar.

 

- Continuamos então com o processo de contratação? - perguntou Helen.

- Certamente. o mais possível.

 

- Ambas manifestaram interesse em começar já amanhã - disse Helen.

 

- Melhor ainda - disse Paul. - o zelo delas deve ser recompensado, já que necessitamos mesmo de ajuda, especialmente no laboratório. Será muito bem-vinda, Menina Marks!

 

-Obrigada -retrucou Deborah, algo constrangida pela atenção que recebia em detrimento de Joanna. - Estou ansiosa por utilizar o magnífico equipamento de que dispõem.

 

Assim que falou, Deborah sentiu a pulsação a acelerar e o rosto a enrubescer, Ocorrera-lhe, tarde de mais, que ainda não tinha visto o laboratório daquela vez. Felizmente, a única pessoa que parecera notar a asneira fora Joanna. Paul prosseguiu a conversa sem pestanejar.

 

- Deixe-me fazer-lhe uma pergunta sobre a sua experiência de laboratório, Menina Marks - disse Paul. - Já efectuou transferência nuclear?

 

- Ainda não - balbuciou Deborah. - Mas posso aprender,

 

- Nós fazemos muitas transferências nucleares - explicou Paul. - É parte integrante do nosso esforço de investigação. Como passo muito tempo no laboratório, terei muito gosto em lhe mostrar o método pessoalmente.

 

- Espero ser uma aluna atenta e dotada - disse Deborah, tendo recuperado a compostura. Pelo canto do olho, viu Joanna revirar brevemente os olhos.

 

- Ora bem - rematou Helen, após breve silêncio. Levantou-se. - É melhor irmos, se quisermos que a Menina Heatherly e a Menina Marks trabalhem amanhã. As mulheres levantaram-se e Paul imitou-as.

 

- Lamento que tenham presenciado a troca de palavras de há pouco - disse Paul. - Eu e o fundador da clínica temos, ocasionalmente, um desentendimento de somenos importância, mas é mais em estilo do que em substância. Espero que o episódio não influencie negatívamente a vossa impressão da instituição.

 

Cinco minutos depois, Helen conduzia as mulheres de volta à porta corta-fogo para a ala sul do edifício.

 

- Deduzo que o Dr. Wingate não costuma vir à clínica - disse Joanna a Helen.

- Não veio durante o último ano e meio - replicou esta, - Pensámos que se tivesse reformado mesmo e que vivesse na Florida,

 

- Existe algum atrito na relação dele com o Dr. Saunders? - inquiriu Deborah.

- Não sei dizer - respondeu Helen. Tal como fizera antes, assim que chegaram ao corredor da ala sul, que parecia ter a extensão de um campo de futebol, estugou o passo. Especialmente devido aos saltos altos de Deborah, as mulheres ficaram para trás.

 

-  Que entrevista estranha - disse Joanna em voz baixa. - o homem é bizarro, mas isso já nós sabíamos.

 

- Pelo menos não nos reconheceu - alvitrou Deborah.

 

- Verdade, mas não foi graças a ti.

 

- Que raio significa isso? - perguntou Deborah, num sussurro entrecortado pela respiração.

 

- Não me parece que devas atirar-te a estes homens como estás a fazer.

 

- Pelo amor de Deus! Não me estou a atirar a ninguém. Eles é que se estão a atirar a mim!

 

- Bem, e tu colaboras. Isto deve ser uma operação rápida e clandestina, e não uma paródia infindável.

 

- Estás com inveja.

 

- Era só o que me faltava. Não quero homens a olharem assim para mim.

 

- Eu digo-te o que acho que isto comprova - declarou Deborah, mas não acabou o raciocínio.

 

- Diz lá - pediu Joanna após breve silêncio, em tom jocoso.

- As loiras são mais divertidas!

 

Joanna fingiu que batia em Deborah, mas esta desviou-se. Ambas deram umas risadinhas. Na porta em frente estava Helen impacientemente à espera delas.

 

- Que achaste daquela pequena discussão entre os dois chefes? - indagou Deborah, enquanto ainda estavam longe dos ouvidos de Helen.

 

- Existem, obviamente, questões de gestão interessantes aqui - disse Joanna.

- Reparei que Helen se referiu ao Dr. Saunders como «Napoleão» ao telefone, e que lhe chamou «o nosso destemido líder» quando estava a falar connosco. Não demonstra lá grande respeito.

 

- Concordo - disse Deborah, - Também não acreditei na conversa de não saber de querelas entre os dois.

 

- Bem, não nos diz respeito.

- Pois não - anuiu Deborah.

 

A etapa seguinte do processo de contratação das mulheres foi avisita à segurança. Apesar da aflição de Joanna, foi um procedimento fácil. o sítio ficava num dos cubículos da área administrativa, onde estava um homem fardado como o indivíduo da prancheta no portão principal. Tirou fotografias rápidas de ambas as mulheres e criou cartões de plástico laminado de identificação da Clínica Wingate, dando instruções para que as mulheres se fizessem acompanhar deles sempre que estivessem nas instalações.

 

A segunda parte do processo de segurança implicava os cartões de entrada azuis. o homem tratou destes, introduzindo o nível de acesso predeterminado para cada uma, com base no material que Helen facultara num formulário apresentado no ecrã do computador. Demorou um pouco porque ele só escrevia com dois dedos. Assim que acabou, os cartões saíram automaticamente. Entregou-os às mulheres e dísse-lhes que tivessem cuidado com eles.

 

A seguir vinha o acesso informático, o que implicava ir a um cubículo diferente onde as mulheres foram apresentadas a Randy Porter. Segundo Helen, tinham tido sorte em apanhá-lo sentado ao computador. Randy era um tipo magro com cabelo cor de areia, que parecia ainda adolescente. Explicou às mulheres que, da primeira vez que se sentassem aos respectivos computadores e que passassem os cartões na ranhura existente em cima dos teclados, veriam uma linha de comandos a pedir-lhes que introduzissem uma password. Disse-lhes que deveriam seleccionar NOVA e depois inserir uma palavra secreta que só elas pudessem saber e de que se recordassem sempre.

 

- As passwords têm algum número específico de letras ou algarismos? perguntou Joanna.

 

- Isso é convosco - respondeu Randy. - Mas é melhor que tenham seis ou mais caracteres alfanuméricos. Vejam se é algo de que se podem lembrar, porque, se esquecerem a password, têm de vir ter comigo e isso pode levar tempo.

 

Helen soltou uma risadinha breve de corroboração.

- Mais dúvidas? - inquiriu Randy.

 

- Que tipo de sistema é? - perguntou Joanna.

 

- o sistema operativo é Windows 2000 Data Center Server.

- E o hardware?

 

- II3M Server xSeries 430 com um firewall Shiva- disse RaDdy. - É isso que quer saber?

 

- Obrigada - disse Joanna com simplicidade.

 

- Para mim isso é grego - comentou Helen. - Já está?

 

- Da minha parte, sim - declarou Randy. - A não ser que tenham mais dúvidas.

 

Saíram do cubículo do administrador de rede e Helen, olhou para o relógio. Era quase uma da tarde. Hesitou no corredor.

 

- Gostaria de vos apresentar aos respectivos chefes de departamento - disse Helen. - Mas são horas de almoço. Talvez possa convidar-vos a comer algo no nosso refeitório. A avaliar pela reacção do Dr. Saunders, estou certa de que ele não quer que passem fome.

 

Joanna começou a declinar o convite, mas Deborah interrompeu-a, dizendo:

- Parece-me uma óptima ideia.

 

- Excelente - disse Helen. - Eu estou cheia de fome.

 

o refeitório ficava no segundo andar de um pavilhão com dois pisos, anexo às traseiras da secção central do edifício, Helen levou as mulheres pelo mesmo caminho do gabinete do director, mas depois da porta corta-fogo viraram à direita e não à esquerda.

 

- Que raio! Por que é que quiseste comer aqui? - sussurrou Joanna para Deborah quando teve a certeza de que Helen já ia muito à frente para poder ouvir.

- Porque tenho fome - disse Deborah, irreverentemente.

 

- Quanto mais coisas fizermos aqui hoje e quanto mais tempo ficarmos, mais hipóteses teremos de ser reconhecidas.

 

- Não estou assim tão certa disso - contrapôs Deborah. - Aliás, quanto mais soubermos acerca deste sítio, mais hipóteses teremos amanhã, quando cá estivermos a sério.

 

- Eu gostaria que tu levasses isto mais a sério.

- Mas eu estou a levar! - exclamou Deborah.

 

Joanna mandou-a calar ao chegarem perto de Helen, que esperava por elas. o refeitório era semicircular, com as janelas que davam para as traseiras do edifício. Como o terreno era inclinado, a vista para leste expandia-se. Deborah recordou que o laboratório tinha uma vista semelhante, só que as janelas eram mais pequenas, diminuindo o impacte do panorama. Viam-se bicos de telhados e chaminés de algumas das casas de habitação acima das copas das árvores, assim como a enorme chaminé da central eléctrica. Também se via o topo vermelho de um silo, entre a central eléctrica e os alojamentos.

 

Helen deteve- se no limiar da porta enquanto observava os comensais, procurando obviamente alguém em especial. A sala era grande e, tal como o resto do edifício, tinha vários pormenores vitorianos, incluindo um lustre de cristal da época no centro. Em proporção com o seu tamanho, a sala estava pouco cheia. Só havia trinta ou quarenta pessoas sentadas junto a mesas amplamente separadas, As vozes causavam um leve burburinho.

 

Joanna ficou rígida quando viu a Dr.a Donaldson sentada com cinco pessoas que pareciam colegas. Virando as costas na direcção da médica, Joanna agarrou no braço de Deborah e fez sinal com a cabeça. Deborah percebeu imediatamente.

 

- Descontrai, mulher! - disse Deborah. A paranóia ansiosa de Joanna já a estava a deixar nervosa.

 

- Algum problema? - indagou Helen.

 

-Não, nada-redarguiu Joanna, inocentemente. Dardejou um olhar venenoso a Deborah.

 

-Láestão eles -declarou Helen, apontando para a direita. - Megan Finnigan, supervisora do laboratório, e Christine Parliam, chefe de escritório. Estão sentadas à mesma mesa, que conveniente! Vamos, vou apresentar-vos.

 

Joanna encolheu-se e tentou manter-se de costas para a dr.a Donaldson enquanto seguia Deborah, que, por seu turno, avançava atrás de Helen. Esta conduzia-as para uma das mesas junto à janela. Para desânimo de Joanna, o ruído dos saltos altos de Deborah no chão de parquet, combinado com a roupa provocadora, tinham chamado a atenção de toda a gente ali presente, incluindo a da Dr.a Donaldson.

 

Deborah não ligava à agitação que causava. Tinha a atenção virada para uma mesa onde as pessoas falavam castelhano, por onde passara à entrada na sala. Eram todas mulheres jovens, bem constituídas e morenas, e Deborah deduziu que fossem sul-americanas ou da América Central. Chamara-lhe a atenção porque pareciam todas grávidas - e todas em estado adiantado,

 

Na sequência das apresentações aos dois chefes de departamento, que já tinham acabado de comer e preparavam-se para sair, Helen levou Joanna e Deborah para uma mesa separada. Ali foram servidas por outra mulher que, como as jovens que haviam visto à entrada, pareceu a Deborah ser oriunda da América Central ou do Sul. Também ostentava uma gravidez adiantada como as outras.

 

Assim que o almoço foi servido, a curiosidade de Deborah venceu-a e esta interrogou Helen acerca das mulheres.

 

- São da América Central - disse Helen, corroborando a impressão de Deborah.

- Vêm da Nicarágua. É um acordo que o Dr. Saunders fez com um colega daquele país. Vêm durante alguns meses com visto de trabalho e depois regressam a casa. Tenho de admitir que nos resolveram um grande problema, pois cozinham, limpam e servem, coisas que não conseguíamos encontrar quem fizesse nesta zona.

 

- E trazem família?

 

- Não, vêm sozinhas. É uma oportunidade de fazerem bom dinheiro que depois mandam para casa.

 

- Mas parecem todas grávidas - observou Deborah, - É alguma coincidência? -Não é coincidência nenhuma-respondeu Helen. -É uma maneira de ganharem mais dinheiro. Mas comam! Gostaria muito de vos mostrar as habitações e assim convencer-vos a tirar partido delas. Sei que a renda vos agradará. É muito razoável, especialmente comparada com o que cobram em Boston.

 

Deborah olhou para Joanna para ver se esta escutava. Durante a maior parte da refeição, Joanna preocupara-se com a presença da Dr.a Donaldson e com a suposta necessidade de se manter de costas para a mesa que esta ocupara. Contudo, a Dr.a Donaldson já partira, e era óbvio que Joanna ouvira a conversa de Helen sobre as mulheres. Joanna devolveu o olhar de Deborah com um misto de consternação e incredulidade.

 

9 de Maio de 2001

14:10 h.

Após o almoço, Helen conseguiu meter as mulheres no carrinho de golfe, apesar da reserva de Joanna. Assim que a visita começou, até Joanna a achou interessante. As dimensões da propriedade eram impressionantes, e a maior parte consistia numa floresta densa e antiga. As residências do pessoal de primeiro escalão, como Wingate, Saunders, Donaldson e poucos outros, eram casas separadas, semelhantes à da Portaria no estilo, mas brancas em vez de negras, o que as tornava mais atractivas.

 

Até o alojamento dos funcionários médios era agradável. Tratava-se de casas de dois pisos agrupadas como numa aldeiazinha rural inglesa. A unidade de dois quartos que Helen mostrou às mulheres era muito acolhedora. As pequenas janelas da frente davam para uma praça central de empedrado, enquanto asjanelas maiores das traseiras davam para sul, com vista para a represa do moinho. Até a renda era atractiva: oitocentos dólares por mês.

 

Por insistência de Deborah, depois de deixarem o apartamento, Helen levou-as a dar uma volta na quinta e à central eléctrica, antes de as trazer ao edifício principal. A única desvantagem da visita foi que joanna e Deborah nunca conseguiram estar fora do alcance de Helen e, como tal, nãopuderam, falar à vontade. Só depois de Helen as deixar na antessala dos gabinetes do Dr. Wingate e do Dr. Saunders para esperarem pelo primeiro, elas puderam falar livremente.

 

- Que achas das mulheres grávidas no refeitório? - perguntou Deborah num sussurro, não fosse Gladys, a assistente, ouvir.

 

- Fiquei siderada - disse Joanna. - Não posso crer que dispõem de um grupo de mulheres imigrantes pagas para ficarem grávidas!

 

- Achas que é alguma experiência?

 

- Só Deus sabe! - retrucou Joanna com um arrepio.

 

- A questão é: o que é que fazem às crianças?

 

- Espero bem que voltem com as mães à Nicarágua - asseverou Joanna. Nem quero pensar noutra possibilidade.

 

- Só me vem à cabeça que as estão a vender - disse Deborah. - Não parece que sejam mães substitutas, pois estão todas muito adiantadas. A venda das crianças poderia ser um negócio lateral muito lucrativo. Sendo uma clínica de infertilidade, devem ter a clientela apropriada, e quando cá estivemos há ano e meio ficaste impressionada com o dinheiro que eles pareciam fazer.

 

- Fiquei impressionada com o dinheiro que deviam estar a fazer com o negócio da infertilidade - disse Joanna. - Com as cifras que circulam aqui, não é preciso estar no negócio dos bebés para sobreviver. Não faz sentido! Vender bebés é ilegal, pura e simplesmente, e a Helen Masterson foi muito clara acerca disso. Se fizessem alguma coisa contra a lei ela não teria sido tão franca.

 

- Deves ter razão - concedeu Deborah. - Tem de haver uma explicação racional. Talvez sejam mulheres que sofrem de infertilidade. Talvez consigam que elas venham para cá precisamente para as ajudarem a engravidar.

 

Joanna fez uma cara de descrença.

 

- Isso ainda é menos provável do que serem mães substitutas, e pelas mesmas razões.

 

- Pois bem, não me ocorre mais nenhuma explicação.

 

- Nem a mim - anuiu Joanna. - Vou ficar contente por saber dos meus óvulos e por virar as costas a esta organização. Senti-me esquisita neste sítio desde o primeiro dia em que cá viemos doar óvulos, e o dia de hoje só serviu para sublinhar essa impressão.

 

A porta do gabinete do Dr. Wingate abriu-se e o médico surgiu, com óculos de aros finos na ponta do nariz. Trazia na mão folhas de contabilidade, que continuou a examinar atentamente até as colocar na secretária da assistente. Não parecia satisfeito.

 

- Chame os contabilistas - resmungou para Gladys. - Diga-lhes que quero ver os quatro trimestres do ano passado.

 

- Sim, Sr. Doutor - disse Gladys.

 

Spencer deu um toque com os nós dos dedos nas folhas, como se matutasse no conteúdo, antes de olhar na direcção das mulheres. Respirou fundo e caminhou até onde elas estavam sentadas. Ao aproximar-se, o semblante desanuviou-se e arvorou-se-lhe ao rosto um sorriso fraco.

 

-Boa tarde, Menina Marks -disse, estendendo a mão para apertar a de Deborah, a qual reteve um pouco mais enquanto a fitava nos olhos. Virou-se para Joanna e disse: - Lamento, mas não me recordo do seu nome. A Georgina disse-mo, mas esqueci-me.

 

- Prudence Heatherly - disse Joanna. Apertou a mão de Spencer e encarou-o. Deborah tinha razão; o homem não se parecia com o pai, porém, havia algo nele que também era superficialmente atraente,

 

- Lamento tê-las feito esperar - disse, tornando a olhar para Deborah.

 

- Aproveitámos para nos sentarmos um pouco e descontrair-nos - disse Deborah. Podia ver que o bom doutor estava com dificuldade em tirar os olhos das suas pernas cruzadas. - A Sr.a Masterson manteve-nos muito ocupadas.

 

- Espero que a visita tenha sido bem sucedida.

 

- Foi, com certeza - retrucou Deborah. - Começamos a trabalhar amanhã.

- Excelente - disse Spencer. - Excelente mesmo.

 

Esfregava as mãos, agitado, e olhava de uma mulher para a outra, como se tentasse decidir algo. Puxou uma cadeira e sentou-se em frente a elas.

 

- Bem - disse. - Que querem tomar: café, chá ou um sumo?

- Água com gás seria agradável - redarguiu Deborah.

 

- Para mim também - juntou Joanna, com relutância. Sentia-se o parente pobre. Não tinha tido vontade de ir ao gabinete de Wingate e, agora que o tinha feito, era evidente que o homem estava descaradamente interessado em Deborah. Na opinião de Joanna, a maneira como ele olhava para a amiga chegava a ser repugnante.

 

Spencer disse à assistente para trazer as bebidas. Entrementes, fez conversa a respeito da clínica. Quando a assistente regressou, trazia só duas garrafinhas de San Pellegrino.

 

- Não vai tomar nada? - inquiriu Deborah.

 

- Não, estou bem assim - respondeu Spencer. Mas não parecia nada bem. Cruzava e descruzava as pernas enquanto as mulheres se serviam das águas, Estava obviamente nervoso com qualquer coisa.

 

-Estamos a tomar-lhe muito tempo? -indagou Joanna. - Talvez fosse melhor irmos e deixá-lo voltar ao trabalho.

 

- Não, não se vão embora - disse Spencer. - o tempo não é problema. o que eu gostaria, Menina Marks, era de ter uma palavrinha consigo em particular. Deborah tirou o copo dos lábios e olhou para Spencer. A proposta era tão inesperada que ela não sabia se tinha ouvido bem.

 

Spencer apontou na direcção do seu gabinete.

 

- Se pudéssemos passar àquele lado por um momento, eu agradecia. Deborah olhou para Joanna, que encolheu os ombros, indicando que não se importava, ainda que Deborah percebesse que a situação não lhe agradava.

 

- Está bem - declarou Deborah, voltando a olhar para Spencer. Pousou o copo na mesinha e, com um resmungo abafado, pôs-se de pé. Dirigiu-se ao gabinete de Spencer e este fechou a porta atrás deles.

 

-Vou direito ao assunto, Menina Marks -disse Spencer. Evitava, pela primeira vez olhar para ela, dirigindo a sua atenção para a enorme janela. - Tenho fomentado uma política silenciosa, aqui na clínica, de desencorajar ligações amorosas entre a administração e os funcionários. E como, tecnicamente, a menina só é minha funcionária a partir de amanhã, gostaria de convidá-la para jantar esta noite.

 

Assim que pronunciou a última palavra, vírou-se da janela e encarou-a, expectante. Deborah ficou momentaneamente sem fala, Estava a gostar do papel que desempenhava, mas não esperara atrair mais do que um segundo olhar. Não esperara que o chefe da clínica a convidasse para sair - um homem que ela imaginava casado e que tinha o dobro da sua idade.

 

- Há um restaurante agradável, não muito longe da cidade - disse Spencer, enquanto Deborah hesitava. - Não sei se já lá foi. Chama-se o Celeiro.

 

- Deve ser encantador - conseguiu dizer Deborah. - E é muito simpático da sua parte pensar em mim, mas há alguns problemas logísticos. É que eu e a minha companheira de quarto não vivemos cá, mas sini em Boston.

 

- Compreendo - disse Spencer, - Bem, talvez pudesse convencê-la a jantar cedo. Acho que abrem logo às cinco e meia, e já não falta muito. Assim, podia regressar a Boston por volta das sete ou oito horas.

 

Deborah olhou instintivamente para o relógio. Eram quase quatro da tarde.

 

- Gostei muito da nossa conversa desta manhã - acrescentou Spencer, encorajador. -Gostaria de continuá-la e de saber qual o aspecto da biologia molecular que a atrai mais, Quer dizer, temos, obviamente interesses em comum.

 

-Interesses em comum - ironizou Deborah de si para si, enquanto fitava os olhos azuis do homem. Sentia um toque de desespero neste médico bem sucedido... e algo atraente. Deborah decidiu apalpar terreno. - E o que diria a Sr.a Wingate acerca disto?

 

- Não há nenhuma Sr.a Wingate - reagiu Spencer. - Infelizmente, a minha mulher pediu o divórcio há alguns anos atrás. Foi inesperado. Olhando para trás, acho que me dediquei de mais ao trabalho e que negligenciei o meu casamento.

 

- Lamento - disse Deborah.

 

- Não faz mal - redarguiu Spencer, baixando o olhar. - Tenho de carregar essa cruz. A parte positiva é que, finalmente, resolvi essa situação e estou preparado para sair e para ter uma vida social até certo ponto.

 

- Bem, lisonjeia-me que tenha pensado em mim. Mas vim para BookfÓrd com a minha amiga e só temos um carro.

 

- Não lhe parece que ela poderia entreter-se por algumas horas?

 

Deborah não podia crer no que o homem estava a dizer. Será que ele acreditava mesmo que ela iria pedir à amiga para olhar para o tecto durante duas horas, enquanto eles jantavam? Era tão absurdamente egocêntrico que ela nem conseguia pensar numa resposta,

 

- Há muita coisa que ela podia fazer na cidade - disse Spencer. - Há um bar simpático e uma casa de pizzas muito boa. A livraria local é um espaço privilegiado e tem um café nas traseiras.

 

Deborah estava prestes a dizer ao bom doutor que fosse dar uma curva quando se conteve. Ocorreu-lhe, de repente, uma boa maneira de tirar proveito da situação. Em vez de despachar Spencer, disse:

 

- Sabe, o jantar no Celeiro começa a parecer tentador! o rosto de Spencer iluminou-se.

 

- Ainda bem, e estou certo de que a Penélope, ou como se chama ela, achará agradável a ídeia de conhecer a cidade. Quanto a sí, vai achar O Celeiro um restaurante surpreendentemente bom. A comida é caseira mas saborosa e a lista de vinhos até nem é má.

 

- Ela chama-se Prudence - disse Deborah. - E a ideia é que Prudence venha jantar também.

 

o semblante de Spencer toldou-se. Começou a protestar, mas Deborah ínterrompeu-o.

 

- Ela é uma óptima miúda - asseverou Deborah. - Não a julgue precipitadamente com base no seu aspecto. Pode parecer conservadora, mas deixe-me dizer-lhe: ela pode tornar-se muito divertida depois de beber uns copos.

 

- Tenho a certeza de que é encantadora - disse Spencer. - Mas eu esperava passar algum tempo sozinho consigo.

 

-Vai achar isto difícil de acreditar- afirmou Deborah. -Mas nós costumamos sair as duas com o mesmo homem, desde que ele tenha uma mente aberta. Improvisando na esperança de ser coquete, piscou o olho, enquanto passava a língua pelos lábios.

 

- A sério? - comentou Spencer, enquanto deixava a imaginação voar, Nunca tinha estado com duas mulheres, ainda que já tivesse visto tais episódios em filmes para adultos.

 

- A sério! - garantiu Deborah, tentando fazer a voz mais rouca. Spencer levantou ambas as mãos abertas com as palmas para cima.

- Bem, eu sou um homem de mente aberta! Vamos a isso!

 

- óptimo - exclamou Deborah. - Encontramo-nos no Celeiro às cinco e meia. E, --- faça-me um favor.

 

- Certamente - disse Spencer. - o que é?

 

- Não trabalhe muito o resto da tarde. Será melhor que não esteja muito cansado.

 

- Dou-lhe a minha palavra - declarou Spencer, levantando as mãos em sinal de rendição.

 

Joanna bateu com a porta do carro e pôs a chave na ignição, mas não ligou o motor. Ao invés disso, encostou a testa ao volante enquanto Deborah entrava do outro lado.

 

-Conta-me lá isso como deve ser -vociferou Joanna,- Acabaste de dizer que concordaste em nos encontrarmos as duas com este depravado nojento que achas que tem alguma fantasia sexual em mente? Díz-me que eu imaginei isto tudo!

 

- Não, não imaginaste nada - anuiu Deborah, - Mas a tua descrição do bom doutor espanta-me. Ainda esta manhã disseste que ele tinha um ar distinto.

 

- Eu estava a falar do aspecto dele e não do comportamento. E foi de manhã, não de tarde.

 

- Bem - disse Deborah, - Devias ter-me dado a tua opinião antes de eu ser levada ao gabinete dele,

 

Deborah sabia que estava a provocar Joanna, mas a amiga não lhe tinha dado hipótese de explicar a situação. Assim que haviam saído do gabinete de Wingate, Deborah falara nos planos para a noite e Joanna lançara-se imediatamente numa diatribe irritada. E em seguida, sem dar azo a mais nada, Joanna saíra intempestivamente da Clínica Wingate.

 

- Este carro vai direitinho a Boston - anunciou joanna. - Se queres cá ficar com aquele libertino, o problema é teu, mas eu acho que és maluca,

 

- Acalma-te, se faz favor! - exclamou Deborah.

 

- Estou muito calma - declarou Joanna. - Então, sais ou não?

 

-Cala-te e ouve! - ordenou Deborah. - Tive a mesma reacção que tu quando ele falou em jantar. Mas depois ocorreu-me que ele tem algo de que precisamos, algo essencial!

 

Joanna respirou fundo para se impedir de barafustar com deborah outra vez. Como sempre, deborah obrigava-a a perguntar.

 

- Está bem - concedeu por fim. - Que é que ele tem que nós precisamos?

- o cartão azul de acesso! - disse Deborah, triunfante, - Ele é mais do que chefe de departamento, é o fundador! o cartão azul dele abre, de certeza, a porta da sala do servidor, bem como qualquer outra porta em toda a casa.

 

Joanna levantou a cabeça do volante. o que Deborah dizia era indubitavelmente verdade, mas que importava? Olhou para a companheira de quarto.

 

- Ele não nos vai dar o cartão de acesso só porque vamos jantar com ele.

 

- Mas é claro que não - disse Deborah, - Nós vamos tirar-lho! Só temos de o embebedar e, enquanto uma de nós o distrai, a outra saca do cartão.

 

A princípio, Joanna pensou que deborah estava, como de costume, a brincar e que se iria rir e dizer que era a gozar. Mas ela não o fez. Devolveu o olhar de Joanna com um ar presunçoso.

 

- Não sei - disse Joanna. - Parece fácil, dito assim, mas difícil de pôr em prática.

 

-Tu própria disseste que teríamos de ser criatívas para entrar na sala do servidor

- declarou Deborah. - Isto é que é criatividade.

 

-Estás a partir de uma série de suposições - disse Joanna. - Como sabes que ele bebe? Até pode ser abstémio.

 

- Não temos de nos preocupar com isso - afirmou Deborah, -Ele mencionou que o restaurante onde vamos tem uma boa lista de vinhos, Decididamente, está a pensar em mulheres e em vinho,

 

- Não sei se é boa ideia - disse Joanna, relutante.

 

- Oh, vá là - instou Deborah. - Admite que é uma boa ideia! Lembraste-te de alguma coisa para entrar naquela sala?

 

- Não, mas...

 

- Mas nada - interrompeu Deborah. - E que é que temos a perder?

- A nossa dignidade.

 

- Oh, por favor! Deixa-te disso!

 

Nesse momento, a Dr.a Donaldson e Cynthia Carson saíam pela porta da clínica. Joanna abaixou-se subitamente e disse a Deborah que fizesse o mesmo.

 

- Que foi agora? - perguntou Deborah, imitando Joanna e agachando-se ao nível da janela.

 

- A Dr.a donaldson e Cynthia Carson acabaram de sair da clínica - sussurrou Joanna. Passaram alguns minutos. As mulheres escutaram o barulho de portas a abrir e a bater, seguido de pneus a rodar no pavimento de gravilha. Só depois é que se soergueram.

 

- Vou-me embora daqui - disse Joanna, depois de se assegurar de que a costa estava livre. Ligou o carro, engatou a mudança e saiu do lugar de estacionamento.

- Então - perguntou Deborah -, estás comigo ou não?

 

Joanna suspirou.

 

- Estábem -respondeu, - Vou tentar. Mas vai ser preciso mais do quejantar para arranjar aquele cartão, Temos de o convencer a levar-nos para casa dele.

 

- Provavelmente - admitiu Deborah. - Mas podemos ter sorte,

 

- Quanto à divisão de tarefas, que fique bem claro que tu o distrais e eu tiro o cartão.

 

- Temos de ver no que dá. Como eu já disse, ele está à espera de uma espécie de ménage à trois.

 

-Valha-meDeus! -exclamou joanna, enquanto aproximava o carro do portão para este se abrir. - As minhas amigas em Houston não iam acreditar!

 

As mulheres dirigiram-se à cidade e voltaram à drogaria RíteSmart para pedir indicações para o Celeiro. o empregado ganhara alguns quilos, mas estava tão bem disposto como há ano e meio atrás.

 

- o Celeiro fica a cerca de três quilómetros a norte da cidade - disse, apontando para a Rua Direita na direcção em que elas tinham vindo. - É um restaurante bom. Recomendo-vos o guisado, as batatas assadas e o cheesecake com calda de chocolate.

 

- Parece-me um manjar levezinho - ironizou Joanna enquanto voltavam à rua. As mulheres entretiveram-se a ver montras para matar o tempo, antes de se meterem no carro para irem para o restaurante. Era um estabelecimento engraçado, que fora realmente um celeiro. Havia muitas alfaias agrícolas obsoletas a enfeitar o terreno, incluindo algumas encostadas à lateral da casa. Lá dentro, as cocheiras do gado tinham sido convertidas em zonas de refeições com bancos altos. As únicas janelas davam para a frente, criando uma atmosfera acolhedora e pouco iluminada no interior.

 

- Menina Marks e Menina Heatherly? - perguntou a chefe de mesa antes que as mulheres pudessem proferir palavra. Depois de responderem afirmativamente, esta fez-lhes sinal que a acompanhassem. Agarrou em várias ementas e conduziu-as à cocheira mais recuada. Naquele recanto obscuro, à luz de velas, estava o Dr. Spencer Wingate, de blazer, lenço de pescoço e lenço de algibeira a condizer. Assim que vislumbrou joanna e Deborah, contornou a mesa, beijou galantemente a mão a ambas e gesticulou graciosamente para que se sentassem. A chefe de mesa colocou as ementas em frente de cada uma delas, sorriu e desapareceu.

 

- Espero que não se importem - disse ele. - Tomei a liberdade de pedir vinho enquanto esperava por vós.

 

Estendeu o braço e virou os rótulos de duas garrafas para as mulheres.

- Um branco seco e um tinto encorpado! Gosto dos tintos encorpados. Soltou uma risadinha.

 

Deborah piscou o olho a Joanna. Achou que a noite começava auspiciosamente.

- Gostariam de tomar um aperitivo antes do vinho? - perguntou Spencer.

- Não somos grandes bebedoras - disse Deborah. - Mas não se acanhe.

- Um Martini vinha mesmo a calhar - disse ele. - Têm a certeza de que não me fazem companhia?

 

Ambas as mulheres declinaram.

 

A noite progredia sem esforço. A conversa fluía facilmente, já que Spencer gostava de falar sobre Spencer. Quando serviram a sobremesa, já as mulheres tinham ouvido a história interminável e pormenorizada da Clínica Wingate e do seu êxito. Quanto mais Spencer falava, mais bebia. o único problema é que parecia não acusar o efeito do álcool que já absorvera.

 

- Tenho uma pergunta acerca da clínica - disse Deborah, quando Spencer fez finalmente uma pausa no seu monólogo para atacar o cheesecake ensopado em calda de chocolate. - Qual é a história das mulheres grávidas da Nicarágua?

 

- Há mulheres da Nicarágua grávidas? - inquiriu Spencer.

 

- Pareceu-nos que estavam todas grávidas - asseverou Deborah. - E todas igualmente adiantadas, como se tivessem engravidado porinfecção de bactérias no ar, Spencer riu-se.

 

- Gravidez como processo infeccioso! Essa é boa! Mas não está longe da verdade. Afinal, é provocada pela invasão de uns milhões de micro-organismos. Tornou a rír-se com o seu arremedo de humor.

 

- Quer dizer que não sabe das gravidezes? - indagou Deborah.

 

- Não sei nada sobre isso - assegurou Spencer. - o que aquelas senhoras fazem com o tempo livre é problema delas.

 

- Eu pergunto - prosseguiu Deborah - porque nos disseram que, para elas, a gravidez era uma maneira de ganharem mais dinheiro.

 

- Deveras? - inquiriu Spencer. - E quem lhe disse isto?

 

- A Sr.a Masterson - respondeu Deborah. - Perguntámos-lhe sobre elas ao almoço.

 

- Terei de lhe perguntar eu mesmo - disse Spencer, Arvorou-lhe ao rosto um sorriso fraco e breve, -Não tenho estado tão activamente envolvido na clínica como deveria, nos últimos anos, de modo que há certos pormenores que, com certeza, me escapam. Claro que sabia das senhoras nicaraguanas estarem connosco. É um acordo que o Dr, Saunders celebrou com um colega da Nicarágua, para resolver o nosso problema crónico de mão-de-obra.

 

- Em que tipo de investígação está o Dr. Saunders envolvido? - perguntou Deborah.

 

- Um pouco disto e um pouco daquilo - disse vagamente Spencer, - É um investigador muito criativo, A infertilidade é uma especialidade em franco progresso, que terá dentro em breve um grande impacte na generalidade da Medicina. Mas esta conversa está a ficar séria de mais. - Riu-se e, pela primeira vez, elas viram-no abanar um pouco antes de se endireitar. - Vamos aligeirar a coisa. Proponho que vamos daqui para minha casa e que ataquemos a minha adega. Que dizem as senhoras?

 

- Quanto mais depressa melhor - respondeu Deborah, e acotovelou joanna sub-repticiamente, pois achava-a demasiado calada e recatada.

 

- É uma óptima ideia experimentarmos mais vinhos - declarou Joanna. Quando trouxeram a conta, as mulheres observaram com interesse onde Spencer guardava a carteira. Ambas esperavam que fosse no bolso interior do casaco, mas não era. Para desgosto delas, ele guardava-a no bolso de trás das calças, e foi para lá que esta voltou assim que ele guardou o cartão de crédito.

 

Chegaram à parte da frente do restaurante e preparavam-se para sair quando Spencer pediu licença para ir à casa de banho.

 

- Vais ter de ser criativa para lhe tirar as calças - murmurou Joanna. Estavam de péjunto ao pódio da chefe de mesa. Ainda que praticamente não houvesse clientes à sua chegada, o restaurante agora estava quase cheio.

 

- Não vai ser preciso grande criatividade para lhe tirar as calças - murmurou deborah em resposta. - A criatividade vai chegar consoante as expectativas dele. Estou passada com o que ele bebeu e com o pouco que parece afectado. Ele bebeu dois Martinis, mais duas garrafas de vinho, tirando o pouquíssimo que nós bebemos as duas.

 

- Mas jà arrastava um bocadinho as palavras à sobremesa - observou Joanna.

- E abanava também - acrescentou Deborah. - Mas não é um grande efeito para tanto álcool. Para aguentar tão bem, ele deve ser mais esponja do que parece. Se eu bebesse tanto álcool, ficaria em coma durante três dias.

 

Spencer apareceu à porta da sala de banho masculina, sorriu quando viu as mulheres e começou a cambalear, numa rota enviesada, até colidir com o pódio da chefe de mesa. Agarrou-se a ele para se apoiar. A chefe de mesa, consternada, apareceu para ajudar.

 

- Ora bem! - exclamou Deborah num sussurro triunfante para Joanna, - É animador. Deve ter sido uma reacção retardada,

 

- Ele está bem? -perguntou a chefe de mesa quando as mulheres se aproximaram para amparar Spencer de ambos os lados.

 

- Vai ficar óptimo - disse Deborah, - Só está a descontrair um pouco.

 

- Será que as belas senhoras sabem onde é a minha casa? - perguntou Spencer, arrastando novamente as palavras.

 

- Pois claro que sabemos - afirmou Deborah. - A Sr.a Masterson disse-nos onde ficava há pouco.

 

- Então, proponho uma corrida - anunciou Spencer.

 

Antes que Deborah pudesse assimilar a ideia, já Spencer se soltara e saíra do restaurante.

 

Deborah e Joanna trocaram olhares antes de correrem atrás dele. Quando saíram para a luz mortiça da noite, já Spencer entrava para o seu Bentley. Podiam até ouvi-lo rir.

- Espere! - gritou Deborah. Correram para o carro, mas quando lá chegaram

 

já Spencer tinha o enorme motor a roncar. Deborah colocou a mão no fecho da porta do condutor, mas esta estava trancada. Arranhou o vidro. Tentou indicar que podia conduzir, mas Spencer limitou-se a rir mais, a apontar para a orelha porque não conseguia ouvir, e a acelerar para fora do estacionamento.

 

- Oh, bolas! -exclamou Deborah, enquanto ela e Joanna viam as luzes traseiras desaparecer na escuridão que se avolumava.

 

- Ele não devia conduzir - disse Joanna.

 

- Pois bem, não nos deu alternativa -replicou Deborah. - Espero que consiga lá chegar. Se não, é bom que sejamos as primeiras a dar com ele... não foi assim que planeei arranjar o maldito cartão!

 

As mulheres apressaram-se para o Chevy Malibu. Joanna fez-se à estrada o mais depressa que pôde. A seguir a cada curva, quase que esperavam deparar com o Bentley despistado num dos campos de trigo ceifado. Quando chegaram ao semáforo na esquina da Rua Direita com a Rua Pierce, começaram a desanuviar, percebendo que se Spencer chegara àquele ponto era porque iria conseguir.

 

- Que achaste da resposta dele à questão das nicaraguanas?- perguntou Deborah, ao virarem na Pierce e seguirem para leste.

 

- Pareceu-me verdadeiramente surpreso com a gravidez delas - disse Joanna.

- Também me pareceu - corroborou Deborah. - Começo a pensar que andam a acontecer coisas na Clínica Wingate de que o fundador não tem conhecimento.

 

- Tenho de concordar - disse joanna, - Ele bem admitiu que não tem estado envolvido como deveria nestes últimos dois anos.

 

Saíram da estrada principal e entraram na de gravilha que seguia para a casa da Portaria da Clínica Wingate. Estava às escuras, tirando uma luz quase imperceptível numa dasjanelas pequenas e de estores corridos. Assim que entraram no túnel debaixo da estrutura, os faróis do carro iluminaram o pesado portão e a maquineta dos cartões.

 

- Achas que o guarda vai aparecer? - perguntou Joanna enquanto abrandava o carro quase até parar.

 

Deborah encolheu os ombros.

 

- Acho que não, pois já é fora de horas. Por isso, vamos tentar um dos nossos novos cartões.

 

Deborah tirou o cartão de dentro da mochila e passou-o a Joanna. Esta baixou o vidro dajanela, debruçou-se e passou-o na ranhura. o portão acusou imediatamente e começou a abrir-se.

 

- Voilà! - proferiu Deborah. Pegou no cartão e guardou-o.

 

Joanna seguiu o caminho até virar num maciço de sempre-verdes. o edifício principal ficou visível. Só havia umas luzes visíveis nos primeiros dois andares da ala sul. o resto era uma enormidade negra com ameias que se elevavam contra o céu cor de púrpura.

 

- o sítio ainda parece mais sinistro à noite - comentou Joanna.

 

- Concordo plenamente - disse Deborah. - Parece um lugar que o conde Drácula acharia acolhedor.

 

Joanna passou o estacionamento e entrou no bosque mais adiante. Momentos depois, na obscuridade que se adensava, vislumbraram luzes entre o arvoredo, vindas das casas da hierarquia da Clínica Wingate. Conseguiram escolher uma que lhes pareceu de Spencer e meteram o carro pela respectiva vereda adentro. A parte de trás do Bentley que saía torta da garagem confirmou que estavam certas. Joanna desligou o motor do Malibu.

 

- Tens ideia de como devemos prosseguir a partir de agora? - indagou Joanna.

- Nem por isso - admitiu Deborah. - Excepto que vamos incentivar o álcool. Talvez seja melhor descobrirmos as chaves do carro enquanto aqui estamos e escondê-las.

 

- Bem pensado! - apoiou Joanna enquanto saía do carro.

 

As mulheres subiram pela entrada às escuras e puderam ouvir música rock a tocar. Aproximaram-se e o volume aumentou, mas, apesar do ruído, Spencer ouviu a campainha e escancarou a porta. Tinha as faces vermelhas e os olhos também. Despira o blazer e agora trazia um casaco de veludo verde-escuro muito enfeitado, Com um floreado exagerado em que teve de se agarrar ao puxador da porta para manter o equilíbrio, Spencer convidou-as a entrar.

 

- Podemos baixar a música um pouco? - gritou Deborah.

 

Com passos cambaleantes, Spencer dirigiu-se àestante. As mulheres aproveitaram para perscrutar o interior. Estava decorado como uma casa senhorial inglesa, com mobiliário de pele escura e grande de mais, alcatifas orientais vermelhas e paredes pintadas de verde-escuro. Havia quadros a óleo de caça à raposa e cavalos, cada qual iluminado individualmente, Os bibelôs eram maioritariamente parafernália de equitação.

 

- Bem - disse Spencer, depois de baixar o som. - Que é que as senhoras vão tomar antes de passarmos à acção?

 

Joanna revirou os olhos para Deborah.

 

- Vamos explorar a adega que mencionou há pouco - disse Deborah.

- Boa ideia - redarguiu Spencer, mal pronunciando os dês.

 

A cave parecia intocada desde meados do século xix, salvo a adição de várias lâmpadas eléctricas de baixa intensidade. Os blocos de granito das fundações expostos estavam negros de bolor. As divisórias consistiam em placas de carvalho mal aparadas, fixas com pregos enormes e antigos. o chão estava sujo. o ar era húmido e frio, devido a algumas poças de lama.

 

- Eu fico à espera aqui nos degraus - disse Joanna, enquanto varria com os olhos a masmorra mal iluminada, mas Deborah aventurou-se, apesardos saltos altos. Deborah temia que Spencer não conseguisse andar devido ao seu estado embriagado. Por várias vezes teve de o amparar para ele não cair.

 

A adega afinal era só mais um cubículo com divisórias, cujas portas imperfeitas estavam presas com velhos e enormes cadeados.

 

Spencer tirou do bolso uma chave do tamanho do polegar e correu o ferrolho. Dentro do compartimento havia uma meia dúzia de caixas postas ao acaso em prateleiras improvisadas. Spencer não hesitou. Abriu a primeira caixa e sacou de lá três garrafas.

 

- Estas chegam - declarou. Sem se preocupar com o cadeado, cambaleou de volta às escadas com as garrafas debaixo do braço.

 

- Estraguei os meus sapatos da Favya - queixou-se Deborah para Joanna, no gozo, enquanto subiam as escadas da cave.

 

Na cozinha, Spencer arranjou um saca-rolhas e abriu as três garrafas, todas com cabernet da Califórnia. Em seguida, tirou três copos de boca larga do armário e Deborah ofereceu-se para os levar. Spencer indicou o caminho de regresso à sala. Sentou-se no centro do sofá e fez sinal às mulheres para se sentarem de cada lado. Depois deitou o vinho e passou os copos às mulheres.

 

- Não é mau. Não é mesmo nada mau - disse, depois de beber um gole. - E agora? Como é que começamos? - riu-se. - Sou caloiro nesta coisa de três à mistura.

- Acho que é melhor bebermos um pouco - disse deborah. - Ainda a noite é uma criança.

 

- Brindo a isso - ajudou Joanna, Ergueu o copo e todos a imitaram.

 

Mais uma vez, as mulheres conseguiram que Spencer falasse, bastando perguntar-lhe pela infância. Só essa questão lançou-o num extenso monólogo à maneira de Horatio Alger. Enquanto falava, Spencer servia-se liberalmente de mais vinho, Tal como no restaurante, nem reparava que as mulheres quase não bebiam.

 

Quando já tinha desaparecido garrafa e meia de vinho e a história da vida de Spencer chegara à fase académica Deborah interrompeu para perguntar a Joanna se podia falar com ela. Joanna concordou e as duas foram até um canto da sala. Os olhos azuis de Spencer seguiram-nas com grande interesse e expectativa.

 

- Tens sugestões? - indagou Deborah em voz baixa. Com a música rock em pano de fundo, tinha a certeza de que Spencer não as poderia ouvir. - o homem é uma esponja. Além dos olhos e das faces, este vinho suplementar causou pouco efeito.

 

- Não tenho, a não ser...

 

- o quê? - instou Deborah. Estava a ficar desesperada. Eram quase nove horas e queria ir para casa dormir. Estava exausta e amanhã seria um grande dia.

 

- Diz-lhe para vestir uma coisa mais confortável, tipo pij ama de seda ou lá o que ele usar. É um lugar-comum que poderá funcionar e, se ele for na conversa, as calças e a carteira ficam no quarto, onde eu me posso desenvencílhar.

 

- Ou seja, tenho de ficar com ele sem calças - resmungou Deborah.

- Terei de te recordar que foi ideia tua? - ripostou Joanna.

 

- Está bem, está bem - disse Deborah. - Fala baixo! Mas se eu gritar, é bom que chegues cá num instante!

 

As mulheres voltaram e Spencer mirou-as, ansioso. Deborah tentou a deixa que Joanna sugerira. Spencer reagiu com um sorriso malandro. Acenou com a cabeça e tentou pôr-se de pé. As mulheres ajudaram-no imediatamente.

 

- Estou bem - protestou ele. Levantou-se sozinho e abanou ligeiramente. Depois, respirou fundo, olhou para as escadas e começou a andar, As mulheres observaram enquanto ele cambaleava e tropeçava, como se não entendesse onde estavam as diversas partes do seu corpo em dado momento.

 

- Retiro o que disse há bocado - anunciou Deborah. - o vinho está a fazer o efeito devido, afinal de contas.

 

Ambas as mulheres franziram o sobrolho quando Spencer embateu numa mesa e atirou uma série de soldadinhos de cavalaría ao chão. Apesar do embate, conseguiu manter a compostura e encaminhou-se para a escada. Com as mãos em ambos os corrimões, safou-se melhor nos degraus do que em campo aberto, até desaparecer de vista.

 

’HoratioAlger, escritor norte-americano (1832-1899) de obras de inspiração parajovens, tais como Ragged Dick (1867), cujos protagonistas são jovens rapazes indigentes qUe conseguem ficar ricos e famosos, graças a muito trabalho e grande virtude. (N, da T.)

 

- Vamos combinar o que faremos quando ele descer -disse Deborah, angustiada.

- Consoante o que ele trouxer, ou não, vestido, pode estar demasiado preocupado para falar mais do assunto preferido dele.

 

- Assim que ele descer, eu peço licença para ir à casa de banho - disse Joanna.

- Tu terás de mantê-lo ocupado.

 

- Há uma escada de serviço na cozinha - disse Deborah. - Assim, podes subir para o quarto.

 

- Eu vi - disse Joanna. - Vou o mais depressa possível.

 

- É melhor que o faças - avisou Deborah, Instintivamente, tentou puxar a mini-saia para baixo para tapar melhor as coxas, mas só conseguiu expor mais o decote.

 

- Como podes imaginar, sinto-me muito vulnerável com este traje.

- Não é de mim que vais receber consolo.

 

- Obrigadinha - disse Deborah. - Vamos sentar-nos, estou aflita dos pés. As mulheres sentaram-se e debateram a história da vida de Spencer. Acabado o assunto, falaram sobre o que fariam no dia seguinte com o cartão de acesso de Spencer.

 

- o nosso objectivo consiste em eu entrar na sala do servidor assim que possível para nos dar acesso aos ficheiros restritos - anunciou Joanna. - David disse que só demoraria quinze minutos, mais ou menos. Assim que acabar, podemos obter informações sobre os nossos óvulos a partir de qualquer computador, até mesmo de nossa casa.

 

- Vamos levar os telemóveis - disse Deborah. - Assim, eu posso montar guarda quando tu estiveres na sala do servidor e avisar-te se aparecer alguém,

 

- Não é má ideia - concordou Joanna. Deborah olhou para o relógio.

 

- Há quanto tempo é que o Casanova está lá em cima a vestir uma roupa mais confortável?

 

Joanna encolheu os ombros,

 

- Não sei. Cinco ou dez minutos.

 

- Quem me dera que se apressasse - disse Deborah. - Estou tão cansada que me podia deitar neste sofá e adormecer em dois segundos.

 

- Eu estou como tu - disse Joanna. - Deve ser o fuso horário. o nosso organismo ainda está na hora de Itália.

 

- Também estamos a pé desde as seis.

 

- É verdade - corroborou Joanna. - Diz-me lá o que pensas fazer amanhã na clínica enquanto esperas que eu entre na sala do servidor?

 

- Estou interessada em saber o que fazem exactamente com todo aquele equipamento sofisticado - declarou Deborah, - Queria saber os pormenores da investigação deles, o que inclui descobrir a verdadeira história das mulheres da Nicarágua.

 

- Vais ter cuidado, não vais? - avisou Joanna. - Faças o que fizeres, não estragues o nosso disfarce até conseguirmos a informação que queremos realmente.

- Vou ter cuidado - prometeu Deborah. Tornou a olhar para o relógio. - Santo Deus! Que raio estará ele a vestir, as meias do Super-Homem?

 

- Está demorado - anuiu Joanna,

- Que devemos fazer?

 

Joanna tornou a encolher os ombros.

 

- Atrevemo-nos a subir e procurar? E se ele estiver todo nu deitado à nossa espera?

 

-Ora esta! Que imaginação - comentou Deborah. -Estásmesmo preocupada? E o que é que ele pode fazer, saltar e dizer buuu? o homem saiu da sala com as pernas que pareciam ensopado de esparguete.

 

- Sabes - sugeriu Joanna, subitamente -, pode ter desmaiado.

 

- Que ideia feliz, e com certeza uma boa probabilidade. Ele já tomou dois Martinis e três garrafas e meia de vinho num período de três horas.

 

- Vamos lá acima ver, mas tu primeiro!

- Obrigada, amiguinha.

 

As mulheres foram até ao fundo da escada. Com a música a ribombar mesmo mais baixo, não se conseguia ouvir nada lá de cima. Mantendo-se muito juntas, subiram as escadas e hesitaram no patamar. Havia várias portas fechadas, mas ao fundo do corredor estava uma entreaberta. Via-se um jorro de luz projectado no soalho do vestíbulo. Além da música lá em baixo, não se ouvia mais som nenhum.

 

Deborah fez sinal a Joanna para a seguir, e as mulheres, sentindo-se como intrusas, dirigiram-se à porta aberta. Ao chegarem ao limiar puderam ver a totalidade de uma cama king size por desfazer. A única luz vinha da porta aberta de uma casa de banho mais ao fundo. Não havia sinal de Spencer.

 

-  Onde diabo está ele? - sussurrou Deborah, irritada. - Se calhar quer brincar connosco.

 

A sugestão anterior de Joanna viera-lhe à ideia.

 

- Procuramos nos outros quartos? - indagou Joanna.

- Vamos ver na casa de banho - propôs Deborah,

 

Não tinham dado mais de três passos para dentro do quarto quando Joanna apertou o braço de Deborah.

 

- Não me assustes! - queixou-se Deborah.

 

Joanna apontou para a cama. Do lado oposto viam-se os pés de Spencer embrulhados nas calças, As mulheres, algo agitadas, deram a volta à cama e olharam para baixo. Spencer estava deitado de borco com a camisa meio despida e as calças amarfanhadas em torno dos joelhos. Estava claramente a dormir e a respirar pesadamente,

 

- Parece que caiu - disse Joanna. Deborah assentiu.

 

- Acho que, com a pressa, tropeçou nas calças. Assim que ficou na horizontal apagou completamente.

 

- Achas que se pode ter magoado?

 

- Duvido - disse Deborah. - Não estava perto de nada para bater com a cabeça, e este tapete tem pelo menos cinco centímetros de espessura.

 

- Vamos a isso?

 

- Estás a brincar? - ironizou Deborah, - Mas é claro que vamos a isso. Ele não acorda.

 

Inclinou-se e, após breve busca e um puxão, sacou da carteira de Spencer. Este não se mexeu.

 

A carteira era invulgarmente volumosa. Deborah abriu-a e começou a vasculhar. o cartão azul de acesso não estava logo à vista, mas ela encontrou-o num dos compartimentos atrás dos cartões de crédito.

 

- Agrada-me que esteja escondido - comentou ela. Passou-o a Joanna, voltou a dobrar-se e inseriu a carteira no bolso onde a encontrara.

 

- Por que é que te interessa onde o tinha ele na carteira? - perguntou joanna, -Porque significa que não o costuma usar-explicou Deborah, -Não queremos que dê por falta dele até termos hipótese de o usar, Vamos embora! Vamos buscar as chaves do carro, escondê-las e sair daqui para fora.

 

- Sair daqui para fora é a melhor sugestão que fizeste o dia todo - disse Joanna,

- E quanto às chaves do carro, para quê? Ele só acorda daqui a doze horas e, quando o fizer, não vai ter vontade nenhuma de conduzir,

 

Kurt Hermann fitava a fotografia da nova funcíonária, Georgina Marks. Segurava-a na sua mão firme, debaixo do candeeiro de secretária com quebra-luz de vidro verde, Enquantolhe estudava o rosto, recordava a aparência do corpo todo, com os peitos prontos a saltar da parte da frente do vestido e a saia que mal conseguia tapar-lhe o traseiro. Para ele ela era uma abominação, uma afronta directa à sua mentalidade fundamentalista.

Ao seu estilo lento e deliberado, Kurt pousou a fotografia na secretária ao lado da da outra funcionária, Prudence Heatherly. Esta era diferente - obviamente uma fêmea temente da Bíblia,

 

Kurt estava sentado no seu gabinete na casa da Portaria deserta, onde passava frequentemente a noite. Junto ao gabinete, tinha um ginásio improvisado, onde podia afinar a sua compleição musculosa e sólida. Era um solitário empedernido, evitava a socialização. Vivendo nas instalações Wingate isso não era difícil, especialmente porque a instituição ficava numa aldeola que, na opinião dele, não tinha nada a oferecer.

 

Kurt trabalhava para a Clínica Wingate há pouco mais de três anos. Era um emprego perfeito, com intrigas e desafios suficientes para o manter interessado, mas pouco que fazer, ou seja, pouco trabalho duro, A sua experiência militar tornava-o especialmente qualificado para a vigilância. Alistara-se na tropa logo a seguir ao ensino secundário e entrara para as Forças Especiais, onde fora treinado para operações secretas. Aprendera a matar com as próprias mãos e com variadíssimas armas, e isso nunca o incomodara.

 

o Exército não fora o início da sua associação com o mundo militar. Kurt era filho de um militar e nunca conhecera outra vida. o pai estivera nas Forças Especiais e era um convicto adepto da disciplina, que exigia nada menos do que perfeição e obediência à mulher e ao filho. Tinham havido cenas feias na adolescência de Kurt, mas ele entrara na linha rapidamente. Depois, o pai morrera no rescaldo do Víetname, numa operação no Camboj a que permanecia confidencial até aos dias de hoje. Para horror de Kurt, após a morte do pai, a mãe embarcara numa série de casos amorosos, até casar com um agente de seguros janota,

 

A tropa fora boa para Kurt. Recebia apreço pelas suas capacidades e atitude e podia contar com o sistema para suavizar os pequenos atritos com a lei originados pelo seu comportamento agressivo. Havia várias coisas que Kurt não podia tolerar, mas a prostituição e a homossexualidade sob qualquer forma estavam no topo da lista, e Kurt não era homem para se coibir de agir segundo os seus princípios.

 

As coisas corriam bem na vida de Kurt até ele ser destacado para Okinawa. Naquela ilha agreste, ele admitia, as coisas tinham ficado fora de controlo.

 

Kurt debruçou-se lentamente e tornou a fitar os olhos de Georgina. Conhecera algumas mulheres como ela em Okinawa. Tantas, aliás, que ele sentira uma vocação religiosa para reduzir o seu número. Era como se Deus tivesse falado com ele directamente. Não era difícil livrar-se delas. Tinha sexo com elas num ambiente isolado e, depois, quando elas tinham a depravação moral de pedir dinheiro, ele Matava-as.

 

Nunca fora apanhado nem acusado, mas fora finalmente implicado por provas circunstanciais. o Exército resolvera o problema exonerando-o ao abrigo do plano de redução de efectivos da administração Clinton, que tivera mais incidência nos militares do que na função pública. Meses depois, Kurt respondia ao anúncio da Clínica Wingate e era imediatamente contratado.

 

Kurt ouviu o ranger do portão a abrir e seguiu o som do carro a acelerar pelo túnel fora. Empurrou a cadeira para trás e foi até àjanela. Abriu as persianas e viu os faróis traseiros de um Chevrolet recente, enquantoeste desaparecia pela estrada de gravilha. Olhou para o relógio.

 

Depois de fechar as persianas, Kurt regressou à secretária, Olhou Para o rosto da mulher que já lhe era familiar. Vira aquele carro a entrar depois do de Wingate e seguira-os até à casa deste último. Não era preciso ser muito esperto para saber o que se passava à porta fechada. Vieram-lhe imediatamente à cabeça os versículos bíblicos apropriados, e, enquanto os recitava, as mãos cerravam-se em punhos. Deus falava com ele novamente.

 

10 de Maio de 2001

7.10 h.

Estava mais uma manhã de Primavera linda e luminosa, quando as mulheres seguiam para noroeste, voltando a Bookford, de onde tinham saído somente nove horas antes. Estavam ambas exaustas. Ao invés da manhã anterior, não tinham acordado espontaneamente e tiveram de se arrastar para fora da cama ao som do despertador.

 

Ao chegar a casa na noite anterior, nenhuma delas se fora deitar, por mais que quisesse. Deborah sentira-se impelida a limpar os sapatos, enlameados na cave de Spencer. Também passara algum tempo a combinar acessórios com a roupa para o dia seguinte; apercebera-se tardíamente que teria de usar o mesmo vestido, pois todas as outras roupas tinham um estilo totalmente diferente, o que iria indicar que ela não era bem quem dissera ser.

 

Joanna pusera-se ao telefone com DavidWashburn para rever exactamente o que teria de fazer assim que entrasse na sala do servidor da Wingate. Por insistência de David, tivera mesmo de ir ao apartamento dele buscar software de descodificação massiva. Ele dissera-lhe que, quanto mais pensava nisso, mais achava que até a consola da sala do servidor iria exigirpass-word para o teclado funcionar. Mostrara-lhe como usar o software e fizera-a tentar várias vezes para se certificar de que ela estava familiarizada com o assunto. Quando Joanna chegara a casa já passava da meia-noite e Deborah dormia profundamente.

 

Fatigadas como estavam, conduziam em silêncio, escutando distraidamente as conversas matinais na rádio. Quando chegaram à entrada da Wingate, Deborah, de quem era a vez de guiar, usou o seu cartão de acesso, o portão abriu sem delongas e elas entraram. Como eram das primeiras funcionárias a chegar naquela manhã, havia lugares de estacionamento por onde escolher. Deborah parou num perto da porta principal.

 

- Estás com receio de encontrar Spencer? - perguntou Joanna.

 

- Nem por isso. Com a ressaca que ele vai ter, não me parece que dê as caras hoje,

 

- Deves ter razão. Além disso, provavelmente, não se vai lembrar de grande coisa da noite de ontem.

 

- Bem, boa sorte, sócia - desejou Deborah.

- Igualmente - disse Joanna.

 

- Esqueci-me de te perguntar se te lembraste do telemóvel.

- Claro que sim. E tu?

 

- Trouxe, pois! Até me lembrei de carregar a bateria. Vamos a isto! Firmemente decididas e com alguma ansiedade, as duas mulheres saíram do carro e entraram no edifício. Segundo as instruções que haviam recebido, dirigíram-se primeiro ao cubículo de Helen Masterson, onde preencheram mais papelada. Ficaram aliviadas por não terem surgido problemas com os números de Segurança Social falsos.

 

Saíram separadamente do espaço de Helen, Joanna encamínhando-se para o cubículo de Christine Parham, que era o terceiro a contar do de Helen, e Deborah atravessando a entrada principal para procurar o gabinete de Megan Finnigan.

 

Joanna não sabia bem como chamar a atenção de Christine. A mulher estava sentada à secretária, de costas viradas para a entrada do cubículo. Primeiro, Joanna esgravatou na divisória, mas como o material absorvia o ruído, o som fraco não bastou para atrair a chefe de escritório. Joanna chamou-a pelo nome.

 

Christine lembrava-se de Joanna da apresentação no refeitório no dia anterior. Também tinha uma cópia do questionário de emprego dela numa ponta da secretária.

- Entre e sente-se, Prudence! - disse Christine. Tirou algumas pastas de uma cadeira encostada à lateral da secretária. - Bem-vinda a Wingate.

 

Joanna sentou-se e observou a chefe de escritório. Era uma mulher com a mesma compleição de Helen Masterson, sólida e larga, commãos que pareciam pás, indicando que os antepassados poderiam ter sido agricultores. Tinha um rosto amigável, com faces naturalmente coradas que pareciam manchas de blush nas bochechas.

 

Com um estilo pragmático, Christine informou Joanna do que esperavam dela e de quais seriam as tarefas iniciais. Tal como Joanna previra, iria introduzirdados para fins de facturação da parte clínica da operação Wingate. Disseram-lhe que as suas responsabilidades seriam alargadas num futuro próximo se o trabalho na Wingate continuasse a ser mutuamente satisfatório.

 

- Perguntas? - perguntou Christine.

 

- Qual é a política do escritório sobre as pausas? - indagou Joanna, e sorriu.

 

- Isto deve soar como querer saber das férias no primeiro dia, mas acho que devo saber.

 

- É uma pergunta muito razoável - asseverou Christine. - Não somos rígidos em relação às pausas e encorajamos as pessoas a tirarem partido do que for melhor para elas. o mais importante é ter o trabalho feito. Em termos gerais, a maioria tira meia hora de manhã e meia hora de tarde, quer de uma vez quer em pequenos períodos. o almoço também é de meia hora, mas, como disse, não somos demasiado rigorosos.

 

Joanna assentiu. Agradava-lhe a ideia de poder tirar meia hora, especialmente se a pudesse coordenar com Deborah, Assim, tentaria entrar na sala do servidor. Se não desse resultado, voltaria à hora de almoço,

 

- Recordo-lhe que não se pode fumar - disse Christine. - Se o quiser fazer, terá de ir para o seu carro.

 

- Não fumo - garantiu Joanna. - Não há problema.

 

-Na sua candidaturadiz que tem muita experiência informática -disse Chrístine.

- Por isso não acho que tenhamos de falar no sistema. É bastante simples e sei que já falou com Randy Porter.

 

- Acho que não preciso de nada quanto a isso - disse Joanna.

 

- Bem, vamos a isso então - declarou Christine. - Tenho um cubículo para si e um monte de papelada.

 

Chrístine levou Joanna a um espaço encostado à parede comum à entrada principal. o cubículo era tão longe dajanela quanto possível. Tinha uma secretária de metal, uma estante, uma cadeira articulada, outra normal e um cesto de papéis. Em cima da mesa havia um tabuleiro a abarrotar, outro vazio, um teclado, um monitor, rato e um telefone. As paredes das divisórias estavam vazias.

 

- Não é lá muito confortável, Prudence - admitiu Christine. - Mas pode trazer os ornamentos que entender para personalizar o espaço.

 

- Está óptimo - disse Joanna. Pousou a bolsa na secretária e sorriu para a chefe de escritório.

 

Christine apresentou-a depois aos colegas dos cubículos adjacentes. Parecia um grupo agradável e acolhedor, todos estenderam logo as mãos por cima das divisórias à altura do peito, para cumprimentar Joanna.

 

- Bem, então - disse Christine -, acho que para já é tudo. Lembre- se de que eu estou aqui para ajudar, por isso, é só chamar.

 

Joanna respondeu que assim faria e acenou quando Christine se despediu. Virou-se para a secretária, tirou o telemóvel da bolsa e marcou imediatamente o número de Deborah, Ouviu a caixa de mensagens da amiga e deduziu que esta ainda estaria a ser apresentada. Deixou mensagem para Deborah ligar assim que pudesse.

 

A seguir, Joanna sentou-se à secretária. Passou o cartão na ranhura do computador e surgiu uma janela no monitor a pedir-lhe que inserisse uma nova password. Joanna escolheu o nome Amigo; era o seu restaurante preferido em Boston. Entrou na rede e passou um quarto de hora a ver que tipo de acesso tinha, Tal como esperara, era muito limitado e os ficheiros de dadoras que lhe interessavam estavam indisponíveis.

 

Nessa altura, Joanna olhou para o tabuleiro da papelada. Tinha intenção de despachar o máximo de trabalho possível, para que, quando tivesse oportunidade de entrar na sala do servidor, ninguém a viesse procurar para tratar de questões mundanas e laborais.

 

Joanna estava a trabalhar há pouco tempo quando percebeu concretamente a quantidade de dinheiro que a clínica podia fazer, só com uma pequena porção dos recibos daquela manhã. Mesmo sem conhecimento de custos, deduziu que o negócio da infertilidade era um investimento muitíssimo apelativo.

 

Deborah acenava de vez em quando com a cabeça para fingir que estava a ouvir. Estava sentada no gabinete de Megan Finigan, do tamanho de um selo de correio, junto à principal sala do laboratório. Havia prateleiras em todas as paredes, repletas de manuais, textos de base laboratorial e resmas de papéis soltos. A supervisora laboratorial era uma mulherzinha com cabelo cor de rato já grisalho que lhe caía continuamente para a vista. A cada minuto e meio, com regularidade matemática, ela abanava a cabeça para sacudir dos olhos as farrípas errantes. o tique dificultava a concentração de Deborah, e ela só tinha vontade de a agarrar pelos ombros e de lhe dizer que parasse.

 

Os pensamentos de Deborah dispersavam-se, enquanto a mulher elaborava o seu discurso enlatado sobre técnicas laboratoríais. Deborah perguntava-se como é que Joanna se estaria a sair.

 

- Tem dúvidas? - perguntou Megan subitamente,

 

Como se tivesse sido apanhada a dormitar, Deborah endireitou-se na cadeira.

- Não me parece - respondeu rapidamente.

 

- óptimo - retorquiu Megan. - Se lhe ocorrerem algumas, sabe onde me encontrar. Agora vou entregá-la a uma das nossas técnicas mais experientes, que se chama Maureen Jefferson. Vai treiná-la em transferência nuclear.

 

- Soa-me bem - disse Deborah.

 

- Por último - acrescentou Megan -, gostaria de sugerir que usasse uns sapatos mais razoáveis.

 

- Oh? - fez Deborah, inocentemente. Olhou para baixo, para os saltos altos, que tinham bom aspecto apesar dos rigores do dia anterior. - Não podem ser estes?

 

-Digamos que não são apropriados - disse Megan. -Não quero que escorregue nos mosaicos e parta uma perna.

 

- Eu também não quero - asseverou Deborah.

 

- Ainda bem que nos entendemos - afirmou Megan, Olhou de soslaio para a saia de Deborah, que não tapava nada das pernas, mas não fez comentários. Em vez disso, ergueu-se e Deborah imitou-a,

 

Maureen Jefferson era uma afro-americana de vinte e dois anos, cuj a tez era cor de café com muitas natas. Havia um toque de sardas no nariz. Usava cabelo apanhado que mostrava, em todo o seu esplendor, uma colecção impressionante de brincos. As sobrancelhas eram muito arqueadas, o que lhe dava um ar de estupefacção contínua.

 

Concluídas as apresentações, Megan despediu-se. A princípio, Maureen não disse nada, limitando-se a abanar a cabeça enquanto Megan desapareciapelo corredor fora. Só depois é que Maureen se virou para Deborah.

 

- Ela é realmente qualquer coisa, não é?

- Diz as coisas de cor - alvitrou Deborah.

 

- Eu diria que ela lhe fez um sermão sobre limpeza de laboratório.

- Não sei bem - confessou Deborah. - Não ouvi grande coisa. Maureen riu-se.

 

- Acho que nos vamos entender muito bem, miúda. Como é que a tratam, Georgina ou quê?

 

- Georgina - disse Deborah. Ao usar o nome falso sentia sempre a pulsação a acelerar.

 

-Os meus amigos chamam-me Mare, como a fêmea do cavalo - disse Maureen.

- Pois seja Mare - declarou Deborah. - Obrigada.

 

- Vamos ao trabalho. Tenho um microscópio de dissecação com duas cabeças para podermos olhar as duas para a mesma cultura. Vou buscar alguns óvulos à incubadora.

 

Enquanto Mare se ausentou, Deborah sacou do telemóvel e ligou-o. Viu que tinha mensagem, mas em vez de a ouvir, marcou logo o número de Joanna. Esta atendeu imediatamente.

 

- Ligaste? - indagou Deborah.

 

- Sim, mas a mensagem era só para me ligares.

 

Mare é a designação para égua na língua inglesa, (N. da T.)

 

- Que tal vai isso?

 

- Um tédio, mas tolera-se - disse Joanna. - A primeira coisa que fiz foi tentar aceder aos ficheiros de dadoras, mas sem sorte nenhuma.

 

- Não me espanta,

 

- o plano é o seguinte: vou fazer uma pausa de meia hora às onze. Podes encontrar-te comigo?

 

- Onde?

 

- Pode ser no bebedouro na entrada principal, junto à porta para a sala do servidor.

 

-Lá estarei - disse Deborah. Terminou a chamada e voltou a pôr o telemóvel na mochila. Enquanto falava, tinha olhado em redor do laboratório. Só havia mais cinco pessoas visíveis num espaço que comportaria cinquenta. Era óbvio que a Wingate esperava crescer expperiencialmente.

 

Mare regressou com uma placa de Petri coberta que continha uma pequena quantidade de líquido, A olho nu, o líquido era límpido e uniforme, mas na realidade tinha camadas. Por cima tinha uma película de óleo mineral e por baixo uma parte alíquota de fluido de cultura com cerca de sessenta óvulos.

 

Mare sentou-se de um dos lados do microscópio e fez sinal para Deborah puxar o banco do outro lado. Ligou a luz de origem e a ultra-violeta. Em seguida, ambas as mulheres se debruçaram para espreitar pelos orifícios oculares.

 

Durante a hora que se seguiu, Deborah assistiu a uma demonstração interactíva de transferência nuclear com recurso a micropipetas. A primeira parte implicava remover os núcleos dos óvulos. A segunda parte implicava colocar células adultas e menores logo abaixo da cobertura exterior dos óvulos. o processo exigia alguma subtileza, mas deborah cedo lhe tomou o jeito e no final da hora já o fazia quase tão bem quanto Mare.

 

- E assim acabamos o lote - disse Mare. Afastou-se do aparelho e descontraíu os músculos dos ombros tensos. - Tenho de admitir que apanhou o jeito mais depressa do que eu esperava.

 

- Graças a uma excelente instrutora - contrapôs Deborah. Descontraiu-se também. o manuseamento delicado das micropipetas exigia tal domínio que todos os músculos estavam rígidos.

 

- Vou arranjar-lhe outra placa de Petri que está a ser preparada enquanto eu levo este grupo que acabámos ao pessoal da fusão - disse Mare, - Não há razão para não trabalhar já sozinha. Geralmente leva um dia ou dois, mas vocêjá o faz como uma profissional,

 

- Acho que está a ser muito generosa - redarguiu Deborah. - Mas conte-me! Que tipo de óvulos são estes? São de bovinos ou suínos?

 

Deborah vira alguns gâmetas de diferentes espécies, quer em fotonúcrografias quer no laboratório em Harvard. Sabia que pareciam praticamente iguais exceptuando no tamanho, que podia variar consideravelmente. Pelo tamanho dos óvulos com que estava a trabalhar, calculou que eram de suínos, pois tinha a impressão de que os óvulos de bovinos eram maiores, mas era só um palpite.

 

- Nenhum dos dois - disse Mare. - Estes óvulos são humanos.

 

Ainda que Mare tivesse dito isto com descontracção, a informação atingiu Deborah como um martelo. Em todo o tempo que levara a trabalhar com as células, nunca lhe ocorrera que se tratava de óvulos humanos. Tremia só de pensar, especialmente porque lhe tinham pago quarenta e cinco mil dólares por um óvulo!

 

- Tem a certeza de que são óvulos humanos? - balbuciou Deborah.

 

- Tenho a certeza - disse Mare. - Pelo menos, é do que tenho conhecimento.

- Mas o que estamos aqui a fazer? - tartamudeou Deborah. - De quem são estes óvulos?

 

- Não nos compete a nós questionar isso - disse Mare. - Esta clínica de infertilidade tem muito trabalho entre mãos. Ajudamos asclientes a ficarem grávidas.

- Encolheu os ombros, - São óvulos de clientes e células de clientes,

 

- Mas ao fazer transferência nuclear, estamos a fazer clonagem - retorquiu Deborah. - Se são células humanas, estamos a clonar seres humanos! -Tecnicamente, talvez - disse Mare. -Mas faz parte do protocolo das células embrionárias. Em clínicas privadas, como a Wingate, temos permissão para fazer investigação de células embrionárias em material residual, que não é usado em tratamentos de infertilidade e que, de outro modo, seria destruido. Não recebemos subsídios do Governo, por isso, quem quer que seja contra este trabalho não tem que pensar que paga para isso nos impostos. E lembre-se: trata-se de gâmetas excedentes e as clientes que os produziram concordaram na sua utilização. Mais importante ainda, as células fundidas não chegam a ser verdadeiros embriões, As células embrionárias são colhidas na fase de blastocisto, antes de qualquer diferenciação celular.

 

- Compreendo - disse Deborah com um aceno de cabeça, mas não estava assim tão certa disso. Era uma situação para a qual não estava preparada e isso perturbava-a.

 

- Éía, tenha calma! - instou Mare. - Não é grande coisa, Já fazemos isto há anos. A sério! Pode crer!

 

deborah voltou a assentir, porém, sentia-se insegura acerca de tudo aquilo.

- Você não é uma daquelas malucas religiosas, pois não? - perguntou Mare. Debruçou-se para olhar Deborah nos olhos, Deborah abanou a cabeça. Pelo menos disso tinha a certeza.

 

Graças aos céus! - desabafou Mare. -Porque esta investigação em células embrionárias é o futuro da Medicina. Mas estou certa de que não tenho de lhe afirmar isto. - Deixou-se escorregar do banco. - Vou buscar mais óvulos - acrescentou. Se quiser, podemos falar mais sobre isto quando eu voltar.

 

- Óptimo - disse Deborah, grata por ter um momento para reflectir. Com os cotovelos no balcão do laboratório, Deborah pôs a cabeça nas mãos, Mantendo os olhos cerrados, tentou imaginar como é que a Clínica Wingate podia produzir tantos óvulos excedentes, Calculou que ela e Mare já tinham manuseado quatro ou cinco

 

dúzias e ainda era de manhã. Sabendo o que sabia sobre híperestimulação ovariana, conseguir ter tantos óvulos para investigação era extraordinário, Regra geral, só resultavam cerca de dez óvulos de um ciclo estimulado e a maior parte era utilizada para fertilização in vitro.

 

- Ah, Menina Marks - disse uma voz. Em simultâneo, deborah sentiu uma pal madinha no om bro, Ergueu o olhar e, mesmo estando sentada, deu consigo olhos nos olhos com o Dr. Paul Saunders. - Gosto em vê-la e está tão encantadora como ontem. Deborah forçou um sorriso.

 

Que tal está a achar o trabalho de laboratório? Interessante - declarou Deborah.

 

Vejo que a Menina Jefferson lhe está a mostrar os cantos à casa. É uma das nossas melhores técnicas, por isso está quase em tão boas mãos como se eu tivesse podido vir aqui logo de manhã, como tencionara.

 

Deborah assentiu. Tal presunção recordava-lhe Spencer, e deu consigo a pensar se seria um aspecto universal no carácter dos especialistas em infertilidade.

 

- Presumo - continuou Paul - que não tenho de lhe dizer como este trabalho é importante para as nossas clientes e para o futuro da Medicina em geral.

 

-A MeninaJefferson dísse-me que os óvulos onde fazemos transferência nuclear são óvulos humanos - disse Deborah. - Escusado será dizer que fiquei chocada, sabendo como são escassos os óvulos humanos.

 

-E ela disse que estava certa disso? - indagou Paul. o seu rosto pálido toldou-se. Acho que as palavras dela foram tenho a certeza.

 

São óvulos de suínos! - disse Paul. Passou os dedos pelo cabelo, absorto. Temos trabalhado muito com porcos, ultimamente. Sabe qual é a maior incidência da nossa investigação, actualmente?

- A Menina Jefferson falou em células embrionárias - disse Deborah.

 

Faz parte - concordou Paul. - Uma parte realmente importante, mas não necessariamente a mais importante. Neste momento eu estou vocacionado para saber como é que o citoplasma do oócito volta a programar o núcleo de uma célula adulta. É a base das actuais técnicas de clonagem animal. Sabe, como a ovelha Dolly foi clonada,

 

-Tenho conhecimento daDolly- afirmouDeborah. Inclinou-se para trás. Paul falava e o seu ardor aumentava, tal como evidenciava acordas suas faces normalmente pálidas, Progressivamente, ia aproximando a cabeça de Deborah de modo que esta podia sentir o fôlego quando ele pronunciava consoantes.

 

- Estamos numa encruzilhada fantástica das ciências biológicas - disse Paul, baixando a voz como se fosse participar um segredo industrial. Está com sorte, Menina Marks! Juntou-se a nós numa altura muito excitante e revolucionária. Estamos à beira de várias descobertas. Diga-me! Helen Masterson explicou-lhe qual é o nosso plano de acções para funcionários?

 

- Não me parece - disse Deborah. Encontrava-se agora tão inclinada para trás quanto conseguia, sem fazer perigar o próprio equilíbrio no banco de laboratório onde estava sentada.

 

- Nós, na administração, queremos que toda a gente lucre com a mina de ouro que esta área de investigação vai ser - disse Paul. - Por isso oferecemos acções bolsistas aos nossos valiosos funcionários, particularmente os que pertencem à parte laboratorial da operação. Assim que se der a primeira descoberta e nós a anunciarmos, provavelmente na Nature, tornar-nos-emos conhecidos. A Clínica Wingate irá de uma clínica estreitamente privada para uma empresa publicamente transaccionada. Acho que pode imaginar o que isso fará ao valor das nossas acções.

 

- Pois, deve subir - alvitrou Deborah. Paul estava agora tão próximo que ela podia ver paradentro das suas pupilas negras. Ocorreu-lhe por que é que os olhos dele eram tão estranhos. Não somente eram as íris de cores ligeiramente diferentes, como os cantos interiores cobriam o bastante da esclerótica para o fazer parecer algo estrábico.

 

- Até ao céu! - disse Paul, pronunciando cada palavra lenta e separadamente,

- Ou seja, toda a gente ficará milionária; toda a gente, claro, que tenha acções. De modo que o mais importante é manter sigilo. - Paul levou o dedo indicador aos lábios, no clássico gesto de silêncio, para enfatizar a sua ideia. - o sigilo é de superior importância. Por isso é que encorajamos a nossa gente, especialmente o pessoal de laboratório, a viver nas instalações, e desencorajamos conversa fiada fora da organização. Comparamos este esforço ao projecto Manhattan, quando se criou a bomba atómica. Fui claro?

 

Deborah assentiu. Paul recuara ligeiramente, embora ainda a tivesse presa ao seu olhar fixo sem pestanejar. Ela conseguiu assim endireitar-se no banco.

 

- Confiamos em si para não comentar com ninguém o que estamos aqui a fazer

- prosseguiu Paul. - Para seu próprio bem.

 

Hesitou.

- Sou uma pessoa de confiança - disse Deborah, vendo que ele esperava resposta.

 

- Não queremos que outra organização nos ultrapasse - continuou Paul, Muito menos depois deste trabalho todo. E há outras instituições a trabalhar no mesmo, aqui na zona de Boston.

 

Deborah assentiu. Conhecia bem a indústria de biotecnologia lock especialmente porque tinha uma entrevista dentro em breve com a Genzyme.

 

- Posso colocar uma questão? - indagou Deborah.

 

- Com certeza - disse Paul. Pôs as mãos nas ancas e oscilou nos calcanhares. A pose, combinada com a melena de cabelo negro, lembrou Deborah da alcunha que Helen Masterson lhe tinha dado: Napoleão.

 

- Estou curiosa acerca das empregadas nicaraguanas. Parecem todas grávidas do mesmo tempo. Qual é a ideia?

 

- Digamos por agora que elas ajudam - disse Paul. - Não é assim grande coisa, e poderei explicar mais tarde em pormenor.

 

Paul deixou de fitar Deborah para olharem redor do laboratório. Confiante de que ninguém dava por eles, tornou a concentrar-se em Deborah. Desta vez mirou-lhe as longas pernas e o decote pronunciado antes de a encarar novamente. Fora um breve inquérito visual que não escapara a Deborah.

 

- Agrada-me que tenhamos oportunidade de conversar - disse Paul, baixando a voz. - Gosto de falar com alguém igualmente inteligente e com quem tenho fortes interesses em comum.

 

Deborah reprimiu uma risada sardónica. Recordava-se distintamente do mesmo comentário ímane dos interesses em comum de Spencer e, intuitivamente, sentiu que estes iam levá-los à mesma finalidade. Não ficou desapontada. Logo de seguida, Paul disse:

 

- Adoraria ter oportunidade de lhe descrever toda a investigação excitante que tenho em mãos, incluindo o contributo das nicaraguanas, mas seria melhor em privado. Talvez pudéssemos jantar esta noite. Embora Wingate fique, infelizmente, longe de tudo, existe um bom restaurante de que iria gostar.

 

- Por acaso não é o Celeiro, pois não? - perguntou Deborah, secamente. Se Paul ficou surpreendido por Deborah saber o nome do restaurante, não deu parte de fraco. Pelo contrário, lançou-se numa acesa descrição da comida e da decoração romântica e de como gostaria de partilhar isso tudo com Deborah. Sugeriu ainda que, depois dojantar, fossem até à casa dele, onde lhe mostraria os protocolos de alguma das maiores experiências pioneiras que decorriam na Wingate.

 

Deborah reprimiu outra risada. Ser convidada para ir a casa de Paul ver protocolos de investigação era apenas uma variação da história da aranha e da mosca. Deborah não tinha interesse nenhum em sair com o idiota, apesar de sentir grande curiosidade sobre a investigação da Wingate. Declinou o convite, usando Joanna como desculpa, tal como fizera com Spencer no dia anterior. Para sua surpresa, a reacção de Paul era quase idêntica à de Spencer, sugerindo que Joanna se entretivesse enquanto eles jantavam. Deborah perguntava-se agora se a megalomania era um requisito para se ser especialista em infertilidade ou se a função a suscitava. Tornou a declinar enfaticamente.

 

- E se for outro dia? - implorava Paul. - Ou mesmo no fim-de-semana. Eu podia deslocar-me a Boston.

 

o regresso de Mare salvou Deborah do crescente desespero de Paul, Ela trouxe umaplaca de Petri para o balcão do laboratório e colocou-a no microscópio, antes de acusar com deferência a presença do Dr. Saunders.

 

- Então, como vai a nossa nova funcionária? - perguntou Paul, voltando, com surpreendente agilidade, para o tom condescendente do costume.

 

- Vai optimamente - disse Mare, - Nasceu para isto. Está pronta para ficar sozinha, tanto quanto me é dado a ver.

 

- óptimas notícias -retrucou Paul, Depois perguntou a Mare se lhe podia dar uma palavrinha em partícular, Mare concordou e os dois afastaram-se vários balcões de laboratório para Deborah não os ouvir.

 

Esta fingia estar interessada na placa de Petri acabada de chegar, mas observava pelo canto do olho Paul e Mare a conversar. Aliás, era só Paul que falava. Estava obviamente agitado, pois gesticulava enfaticamente.

 

o monólogo durou menos de um minuto e os dois voltaram para junto de Deborah

- Falo consigo depois, Menina Marks - disse Paul rigidamente antes de sair

- Entretanto, siga com isso!

 

- Vou preparar-lhe este novo grupo - disse Mare, sentando-se em frente a Deborah.

 

Deborah ajustou os olhos ao microscópio e, durante os minutos seguintes, ambas as mulheres trabalharam em conjunto, organizando os oócitos paraDeborah começar a extrair o ADN. Com o primeiro grupo, tinham começado por mover todos os óvulos para um lado. Antes, Mare tinha-lhe explicado que era para evitar perder algum, Quando acabaram, Mare inclinou-se para trás.

 

- Ora cá está - disse Mare, proferindo as primeiras palavras desde que Paul saíra. - Boa sorte! Se tiver dúvidas é só chamar. Vou para o outro balcão fazer mais um lote.

 

Deborah reparou na nova frieza na maneira como Mare a tratava. Quando a técnica laboratorial se levantou para sair dali, Deborah pigarreou e disse:

 

- Desculpe. Não sei como é que hei-de dizer isto...

 

- Então, não diga - redarguiu Mare. - Tenho de voltar ao trabalho. Começou a afastar-se.

 

- Coloquei-a numa posição difícil, de algum modo? - chamou Deborah. Porque se o fiz, peço desculpa,

 

Mare virou-se. o rosto suavizou-se um pouco.

- A culpa não é sua. Eu estava enganada.

 

- Acerca de quê?

 

- Destes óvulos - disse Mare. - São oócitos de porca.

 

- Oh, claro - retorquiu Deborah. - o Dr. Saunders já me disse,

- óptimo! Bem, tenho de voltar ao trabalho.

 

Mare apontou para o outro microscópio que preparara antes. Esboçou um sorriso fraco e continuou.

 

Deborah observou a mulher por momentos, enquanto se preparava para trabalhar. Em seguida, debruçou-se para as lentes do seu microscópio. Espreitou para a cultura, cujo lado esquerdo estava cheio de pequenos círculos granulares, cada qual com o seu maciço de ADN, mas a sua cabeça não estava virada para a tarefa entre mãos. Pensava na espécie dos óvulos. Apesar das negações de Paul e de Mare em contrário, deborah acreditava que estava a contemplar uma massa de oócitos humanos.

 

Meia hora depois já Deborah tinha retirado o núcleo a mais de metade dos óvulos debaixo da objectiva do seu microscópio, Precisando de descansar da intensidade do trabalho, inclinou-se para trás e esfregou os olhos. Abriu-os e sobressaltou-se, Estava tão concentrada que não se tinha apercebido de ninguém a aproximar-se, e ficou surpresa por ver o rosto contrito de Spencer Wingate, Lá ao fundo, Mare também erguera o olhar e aparentava estar igualmente surpreendida.

 

- Bom dia, Menina Marks - disse Spencer. A voz estava mais grave do que no dia anterior, Trazia vestida uma bata de médico branca e professoral, uma camisa branca engomada e uma gravata de seda circunspecta. A única mostra exterior da embriaguez da noite eram os olhos avermelhados.

 

- Posso falar consigo por um momento? - inquiriu Spencer.

 

- Certamente -respondeu Deborah, com algum desconforto, Pensou que ele viria perguntar pelo cartão de acesso, mas afastou logo a ideia como sendo pouco provável. Deslizou para fora do banco, deduzindo que Spencer quereria que se afastassem. Deu uma olhadela a Mare e percebeu que a mulher os observava, intrigada.

 

Spencer apontou para uma das janelas e Deborah foi até lá, Spencer acompanhou-a.

 

- Queria pedir desculpas por ontem à noite - começou Spencer, - Espero não ter sido um chato. Receio não me recordar de grande coisa, depois de termos chegado a minha casa.

 

-Não foi chato nenhum -disse Deborah com uma gargalhada forçada, tentando aligeirar a situação. - Foi até muito divertido.

 

-Não sei bem se isso é um elogio - disse Spencer. - É claro que a parte pior, quanto a mim, foi ter perdido a oportunidade.

 

- Não sei se o estou a perceber.

 

- Você sabe - continuou Spencer, baixando a voz ainda mais. - Consigo e com a sua amiga Penélope.

 

Piscou o olho sugestivamente.

 

- Oh, claro! - exclamou Deborah, percebendo que ele se referia à ridícula fantasia da ménage à trois. Sentiu imediatamente vontade de rir de Spencer como sentira antes com Paul, mas controlou-se e disse: - o nome dela é Prudence,

 

- Claro- disse Spencer, dando uma palmada na testa. - Não sei por que é tão difícil lembrar-me do nome dela.

 

- Nem eu - disse Deborah, - Mas obrigada pelas desculpas pela noite de ontem, ainda que não fossem necessárias. Agora é melhor voltar ao trabalho. Deborah deu um passo na direcção do balcão, mas Spencer colocou-se à frente dela.

 

- Pensei que podíamos tentar outra vez esta noite -propôs ele. - Prometo ser mais sensato com o vinho, Que acha?

 

Deborah fitou os olhos azuis do homem. Procurava uma réplica apropriada, o que era ainda mais difícil dada a falta de respeito que sentia por ele. Considerando o desentendimento a que assistira ao dia anterior entre Spencer e Paul, sentiu uma vontade súbita de lhe dizer que acabara de ser convidada pelo seu aparente rival, numa tentativa de avivar a desordem intramuros. Nestas circunstâncias pensou que seria o desencorajamento ideal. Mas conteve-se, Tendo em conta o que ela e Joanna tencionavam fazer, não era nada prudente tornar-se inimiga do fundador.

 

- Não vale a pena levarmos dois carros- acrescentou Spencer ao ver Deborah hesitar. - Podíamos encontrar-nos todos no estacionamento às cinco e quinze, -Esta noite não, Spencer- declarou Deborah navoz mais doce que conseguiu arranjar.

 

- Amanhã, então? - sugeriu Spencer.

 

-Deixe-me dizer qualquer coisa depois - pediu Deborah. -A Joanna... Quero dizer, a Prudence e eu temos de pôr o sono em dia.

 

Deborah sentiu as faces ruborizadas e quentes. Nunca se tinha enganado nos nomes até então, mas desta vez era grave, em frente ao fundador da clínica.

 

- Talvez no fim-de-semana - sugeriu Spencer, aparentemente sem perceber o lapso de Deborah. - Que acha?

 

- É uma possibilidade - acrescentou Deborah, rapidamente, tentando parecer convincente. - Gostamos mais de fazer a festa numa noite em que não tenhamos de acordar cedo na manhã seguinte.

 

- Concordo plenamente - disse Spencer. - Depois podemos todos dormir.

- Dormir até tarde soa muito bem - concordou Deborah com casualidade.

- o meu número directo é 888 - disse Spencer com outro piscar de olhos lascivo. - Vou ficar à espera de notícias.

 

- Eu contacto-o - replicou Deborah, sem intenção nenhuma de o fazer. Spencer saiu do laboratório. Deborah acompanhou-o com o olhar, mas depois, virando a atenção para Mare, reparou que a mulher ainda a olhava fixamente. Deborah encolheu os ombros como que dizendo que o comportamento das chefias era sempre impossível de explicar. Voltou ao seu banco e olhou para o relógio. Felizmente já não faltava muito para se encontrar com Joanna, e assim podiam continuar o que tinham ido lá fazer.

 

10 de Maio de 2001

10.55 h,

Aproximavam-se as onze horas e Joanna tinha ganho mais respeito pelas pessoas que faziam trabalho de escritório, Embora estivesse a apressar-se para despachar o máximo possível, podia perceber que a introdução de dados era um trabalho mais cansativo do que pensara, Era necessária. muita concentração para não cometer erros, e fazê-lo dia sim dia sim, durante trezentos e sessenta e cinco dias por ano, era difícil de conceber.

 

Faltavam exactamente cinco para as onze quando Joanna se levantou e se espreguiçou. Sorriu para a vizinha do cubículo adjacente, que se erguera ao ouvir a cadeira de Joanna a mexer. A mulher revelara-se uma coscuvilheira e fizera questão de espreitar Joanna periodicamente durante a manhã. o nome dela - Gale Overlook - parecera adequado a Joanna.

 

Joanna reflectira muito no seu plano; sabia o que tinha a fazer primeiro. Com a hora do encontro com Deborah achegar, Joanna agarrou nabolsa, que tinha o software de descodificação de pass words, no telemóvel e no cartão azul de Wín gate. Seguiu pelo corredor entre os cubículos. Dirigia-se ao espaço do administrador da rede informática. Esperava encontrá-lo no cubículo por uma simples razão: se ele lá estivesse, não poderia estar na sala do servidor.

 

Pouco antes, num ataque de ansiedade quanto a ser apanhada na sala do servidor, ocorrera a Joanna que provavelmente a única pessoa que lá ia seria Randy Porter. Como tal, se ele estivesse no cubículo, ela teria pouco a recear.

 

overtook», do verbo to overtook, vigiar, superintender. (N. da T.)

 

Sentiu uma onda de alívio ao passar pelo cubículo dele, pois Randy estava sentado ao computador. Virou à esquerda e dirigiu-se ao corredor principal. Lá estava Deborah, no sítio combinado. A cerca de seis metros ficava a porta da passagem que dava para a sala do servidor, com o sinal PROIBIDA A ENTRADA afixado.

 

- Espero que a tua manhã tenha sido tão interessante como a minha - disse Deborah quando Joanna se aproximou e bebeu um gole de água do bebedouro. -A minha foi tão interessante como olhar para a parede à espera que a tinta secasse

 

- retrucou Joanna. Olhou para ambos os lados do corredor para ver se ninguém reparava nelas. - Não aconteceu nada, mas eu também não queria que acontecesse.

- Fomos convidadas para jantar n’O Celeiro duas vezes - declarou Deborah, orgulhosamente.

 

- Quem é que te convidou desta vez?

 

- Spencer Wingate foi um. E às duas, não somente a mim.

- Encontraste-o mesmo?

 

- Encontrei. Foi ao laboratório pedir desculpa por ter desmaiado ontem à noite e implorou uma segunda oportunidade. Eu disse-lhe que estava ocupada mas que tu estavas livre.

 

- Que gracinha! - vociferou Joanna. - Que tal estava ele?

 

-Nada mal, vistas as coisas -respondeu Deborah. -E não parecia lembrar-se de grande coisa.

 

- Compreende-se - disse Joanna. - Estimo que o cartão azul não tenha vindo à baila.

 

- Nem uma palavra.

 

- Quem mais é que se atirou a ti?

 

- o segundo convite foi de Paul Saunders! Já pensaste em sair com ele?

 

- Sim, nos meus momentos de autodestruição - ripostou Joanna. - Mas não acredito mesmo nada que me incluísse nesse convite, a avaliar pela maneira como olhava para ti ontem no gabinete.

 

Deborah não refutou. Olhou rapidamente para ambos os lados do corredor para ver se ninguém reparava nelas.

 

- Vamos a isto - disse, falando mais baixo. - Tens algum plano específico para a nossa incursão na sala do servidor?

 

- Tenho, sim - afirmou Joanna. Também ela baixou a voz e contou a Deborah a sua ideia acerca de Randy Porter.

 

- Apoiado - disse Deborah. - Para dizer a verdade, estava preocupada com a maneira como te ia proteger. Sem outra saída da sala do servidor, mesmo que te dissesse que vinha alguém, tu não poderias sair.

 

- Precisamente - confirmou Joanna. - Agora, só tens de me dizer se Randy Porter sai do cubículo dele. Assim que ele o fizer, carregas na tecla para ligar no teu telemóvel,já configurado para o meu número. Se o meu telemóvel tocar, eu saio logo da sala do servidor.

 

- Parece-me um bom plano - asseverou Deborah, - Tentamos agora?

 

- Acho que sim - disse Joanna, - Se não funcionar por  qualquer razão, podemos repetir ao almoço. Se não der, tentamos outra vez à tarde. Senão, teremos de voltar amanhã.

 

- Vamos pensar de forma positiva - disse Deborah. Marcou o número de Joanna no teclado do telemóvel. - Não vou vestir esta roupa três dias seguidos! -Eu verifiquei Randy Porter antes de vir ter contigo -disse Joanna. -Estava no cubículo. Acho que estava na Internet, o que o deve manter ocupado.

 

- Tens tudo o que precisas? Joanna deu uma palmada na bolsa.

 

- Tenho o software, as instruções de Davíd e o cartão do Wingate. Esperemos que o cartão funcione, senão voltamos à casa da Partida.

 

- Deve funcionar - disse Deborah, - Vou agora para a área administrativa e tu fica por aqui, Se Randy Porter ainda estiver sentadinho ao computador, eu lígo-te e deixo tocar duas vezes. É o sinal para tu prosseguires.

 

As duas mulheres deram as mãos por momentos. Depois, Deborah seguiu rapidamente corredor abaixo, Quando chegou àentrada da área administrativa, parou e olhou para trás. Joanna ainda estava no bebedouro, encostada à parede de braços cruzados. Acenou e Deborah retribuiu o gesto.

 

deborah não se lembrava bem onde ficava o cubículo de Randy Porter naquela grelha labiríntica que enchia a antiga enfermaria hospitalar. Após breve busca sem qualquer sorte, passou a procurar mais sistematicamente. Por fim, encontrou o sítio e ficou contente por ver Randy sentado ao computador. Deborah não se permitiu olhar muito, mas achou que ele estava a jogar.

 

Procurou na bolsa e tirou o telemóvel. Com o número de Joanna já marcado, premiu a tecla de ligação, Escutou dois toques completos e desligou, Voltouaguardar o aparelho na bolsa.

 

De olho nocubículo de Randy Porter, dirigiu-se ao corredor principal. Nãohavia nenhum bom sítio onde parar sem atrair as atenções. Por conseguinte, manteve-se em movimento,

 

Joanna ligou o dispositivo de vibração assim que ouviu o sinal de Deborah. o ruído sobressaltara-a, mesmo que o esperasse, Estava claramente nervosa.

 

Após uma olhadela furtiva e final para o corredor, para se certificar de que ninguémavia, passou o mais rapidamente possível pela porta COMO díStiCO PROIBIDA A ENTRADA. A porta fechou-se atrás dela e deu consigo a ofegar como se tivesse corrido cem metros. A pulsação acelerava-se. Sentia-se algo tonta. De repente, a realidade de ser uma intrusa imobilizou-a, Joanna compreendeu tardiamente que não fora feita para coisas como assaltar salas de servidores; a execução era muito mais difícil do que a organização.

 

De costas para o corredor principal, Joanna respirou fundo várias vezes. Combinando a respiração controlada com um breve e reconfortante solilóquio, conseguiu acalmar-se o suficiente para prosseguir. Começou a avançar, lentamente a princípio, mas ganhando confiança assim que a tontura lhe passou. Chegou à porta da sala do servidor. Após um último olhar para a porta do corredor, sacou da bolsa o cartão de acesso de Wingate. Passou-o rapidamente pela ranhura. Todo e qualquer vestígio de preocupação com o bom funcionamento do cartão desapareceu ao ouvir o clique metálico. Abriu a porta, No instante seguinte estava lá dentro, apressando-se para a consola do servidor, o que Randy Porter mais gostava em computadores eram os jogos. Podia jogar o dia todo e querer mais em casa à noite. Era um vício. Às vezes só se deitava às três ou quatro da manhã porque na World Wide Web havia sempre alguém acordado e disposto a jogar. Mesmo às três ou quatro da manhã detestava desistir, só o fazendo porque sabia que pareceria um morto-vivo no dia seguinte no trabalho.

 

O que este trabalho na Clínica Wingate tinha de bom é que ele podia entreter-se durante o expediente. Tinha sido diferente quando o haviam contratado na Universidade do Massachusetts. Tinha feito muitas horas a instalar a rede local da Wingate e tinham-lhe pedido a melhor segurança possível. Isso exigira mais trabalho e até mesmo consultodoria externa. E por fim a página na Web: mais alguns meses para configurar e depois modificar até ficarem todos satisfeitos. Porém, agora corria tudo sem sobressaltos, ou seja, pouco tinha ele que fazer, excepto estar disponível em caso de falha de hardware ou software. Mesmo esses problemas deviam-se ao facto de as pessoas envolvidas serem tão parvas que não percebiam que tinham feito algo incrivelmente estúpido. Claro que Randy não dizia isso às pessoas. Era sempre educado e fingia que a culpa era da máquina.

 

O dia normal de Randy começava ao computador no cubículo. Com a ajuda do Windows 2000 Active Directory, verificava se todos os sistemas funcionavam normalmente e se todos os terminais estavam bloqueados, o que levava geralmente quinze minutos.

 

Após a pausa para café, voltava ao cubículo para osjogos da manhã, Para evitar ser apanhado por Christine Parham, a chefe de escritório, mudava-se frequentemente para computadores que não tivessem uso. Assim era difícil encontrá-lo, mas tal nunca originara problema algum, já que todos pensavam que ele andava a reparar o computador de alguém,

 

Às 11: 11 h. do dia 10 de Maio, Randy estava embrenhado em combate mortal com um adversário escorregadio e talentoso de alcunha GRiTo. o jogo, chamado Torneio Irreal, era o actual favorito de Randy. Nesse momento, estava embrenhado num momento de tensão em que ele ou GRITO se encontrava na iminêncía de morrer. As palmas das mãos de Randy estavam suadas de ansiedade, mas ele continuava, acreditando piamente que a sua experiência e traquejo lhe fariam levar a melhor.

 

Ouviu-se um bip súbito e inesperado. Randy reagiu, praticamente saltando na sua cadeira ergonómica. No canto inferior direito do ecrã surgira uma pequena janela, Dentro dela, aspalavras. SALA DO SERVIDOR INVADIDA piscavam insistentemente. Antes de Randy poder responder a isto, ouviu um ruído de tiroteio fatal que lhe chamou a atenção de volta à janela principal. Para seu desgosto, viu um tecto virtual, Segundos depois, o rosto do adversário aparecia, olhando para ele com um sorriso triunfante. Levou menos tempo do que um processador Pentium 4 para o cérebro de Randy perceber que tinha sido morto.

 

- Merda! - resmungou Randy! Era a primeira vez que fora morto em mais de uma semana e era uma grande desilusão, Olhou irritado para ajanelinha intermitente que o distraíra do jogo num momento crucial, Alguém abrira a porta da sala do servidor. Randy não gostava que as pessoas fossem à sala do servidor e andassem por lá a mexer. Considerava-a como o seu domínio, Não havia razão nenhuma para lá entrar, a menos que fosse a IBM a prestar assistência, e se isso acontecesse era responsabilidade dele estar lá dentro.

 

Randy saiu do Torneio Irreal e escondeu o joystick atrás do monitor para dar menos nas vistas. Depois levantou-se. Ia ver quem diabo estava na sala do servidor. Fosse quem fosse, era o responsável por ele ter sido morto.

 

Quando a vibração do telemóvel começou, o coração de joanna veio-lhe à boca. Tinhalutado contra a ansiedade desde que entrara na sala do servidor. Não conseguia usar o teclado eficientemente. Levava mais tempo a fazer tarefas simples, o que Só a tornava mais ansiosa - e ainda pior no uso das teclas.

 

Presumindo que a chamada era de Deborah, Joanna sabia que só tinha uns segundos para sair da sala do servidor antes de Randy Porter aparecer. Ainda desajeitadamente começou a sair do sistema. Só tinha que cancelar as janelas que abrira no ecrã, mas até isso parecia levar séculos, já que os seus movimentos com o rato eram tão sincopados, Finalmente, a última janela desapareceu, deixando o ecrã vazio. Rapidamente, Joanna atirou o software para dentro da bolsa; ainda nem tinha inserido o CD na unidade. o telemóvel vibrara minutos depois de ela se sentar à consola da sala do servidor e ela só estava nas fases iniciais de conseguir acesso.

 

Freneticamente, agarrou na bolsa em cima da mesa e correu para a porta da sala do servidor. Assim que a abriu, todavia, percebeu o barulho revelador da abertura da porta exterior. Totalmente em pânico, Joanna largou a porta e deu um passo atrás. Sentiu-se desesperada e completamente encurralada. Sem escolha, ziguezagueou pelas unidades electrónicas, cada uma do tamanho de armários arquivadores de quatro gavetas. Agachou-se atrás da última unidade, fazendo-se pequenina. Não era grande esconderijo, mas não tinha outra hipótese.

 

o coração de Joanna batia tão descompassado que ela tinha a certeza de que a pessoa que entrasse o poderia ouvir. Latejava mesmo nos ouvidos dela. Sentiu a transpiração a surgir nas mãos cerradas em punhos que tinha contra as faces. Tentou preparar-se para ser descoberta, pensando no que iria dizer. o problema é que não havia nada que ela pudesse dizer.

 

Assim que Randy saíra do seu cubículo a caminho da sala do servidor, começara a bufar silenciosamente a sua irritação. Estava mais zangado por ter sido interrompido e consequentemente morto do que por alguém ter entrado na sua sala do servidor, Quando chegou ao local, pensava mais em voltar ao Torneio Irreal e em desafiar o GRiTo do que em gritar à pessoa que violara o seu domínio.

 

- Mas que raio? - interrogou-se Randy quando chegou à porta aberta da sala do servidor e à sala vazia que se lhe deparou. Olhou para trás, para a porta exterior

que deixara entreaberta, pensando como é que teriam saído da sala. o seu olhar depois

varreu o interior da sala novamente. Estava tudo em ordem. Olhou para a consola da sala do servidor. Também estava como a deixara, com o monitor ostentando o screen saver. Depois agarrou na porta e abanou-a para trás e para a frente nos gonzos. Pensara por fim na possibilidade de ter deixado a porta mal fechada da última vez que lá estivera.

 

Encolhendo os ombros, Randy puxou a porta e fechou-a. Ouviu o clique reconfortante e depois tentou abri-la novamente. Estava seguramente trancada. Encolhendo outra vez os ombros, virou-se e, com a firme intenção de regressar ao cubículo e ao GRITo, apressou-se a sair da passagem.

 

- Está tudo bem! Está tudo bem! - repetia Deborah numa voz apaziguadora. Segurava Joanna pelos ombros, tentando acalmá-la. Joanna tremia e soluçava ocasionalmente. Estavam no laboratório, junto à janela onde Deborah falara com Spencer nessa manhã. Mare vira-as entrar, mas aparentemente reparara na agitação de Joanna e, respeitando a privacidade delas, não se aproximara.

 

Deborah ligara para o telemóvel de Joanna assim que vira a cabeça de Randy a assomar por cima da divisória, imediatamente antes de este correr para fora do cubículo. Deborah fizera a chamada em andamento porque Randy andava depressa. Os seus piores receios concretizaram-se quando viu Randy ziguezaguear para o corredor principal e virar na direcção da sala do servidor. Outro problema é que ela não vira Joanna, e a sua intuição dizia-lhe que esta não tivera tempo de sair da sala.

 

Quando Randy se dirigira logo para a porta exterior da sala do servidor e entrara, qualquer esperança minúscula de Deborah de que ele fosse a outro lado se desvanecera. Fora até à porta também mas não sabia o que fazer. Sem se conseguir decidir, não tinha feito nada.

 

Tinham sido minutos agonizantes. Deborah debatera-se a pensar se deveria entrar e tentar disfarçar qualquer situação que se verificasse. Até pensara em entrar à pressa, agarrar em Joanna e correr para o carro. Mas, para sua enorme surpresa, Randy reaparecera e parecia até mais calmo do que quando entrara.

 

Deborah debruçara-se rapidamente no bebedouro para evitar a impressão de que estaria a passear. Randy passara por ela e ela ouvira o ritmo dele a abrandar. Mas ele não parara. Quando se endireitara, já Randy ia longe. Dirigia-se para onde tinha saído, mas meio voltado para trás para a observar. Quando Deborah o encarou ele erguera os polegares em aprovação. Deborah corara ao aperceber-se de que expusera grande parte do seu traseiro ao debruçar-se no bebedouro relativamente baixo.

 

- Não fui feita para isto! - dizia Joanna zangada em resposta às tentativas de Deborah para a acalmar, ainda que não se percebesse bem com quem estaria ela zangada. Apertava os lábios, mas estes tremiam como se ela fosse chorar outra vez.

- A sério!

 

Deborah pedia-lhe que se acalmasse.

 

- Não fui feita para isto! - repetia joanna, baixando a voz. - Fui-me abaixo lá dentro. Foi patético.

 

- Peço licença para discordar - replicou Deborah. - Não sei o que fizeste, mas deu certo. Ele não te viu. Descontrai-te! Estás a ser muito dura contigo própria.

- Achas mesmo? - Joanna respirou fundo várias vezes.

 

- Absolutamente - asseverou Deborah. - Qualquer outra pessoa, incluindo eu, teriaestragado tudo. Mas tu conseguiste e estamos aqui as duas, prontas paramais uma tentativa.

 

- Mas eu não volto lá - lamuriou Joanna. - Podes esquecer.

- Queres mesmo desistir depois de tudo por que passámos?

 

É a tua vez - disse Joanna. - Tu vais à sala do servidor. Eu fico de guarda. Se pudesse, ia - afirmou Deborah. - o problema é que não tenho o teu à-vontade com computadores. E tu bem podias dizer-me o que fazer até ficares roxa que eu garanto que iria estragar tudo.

 

Joanna olhava para Deborah como se estivesse zangada com ela.

 

- Lamento não ser taradinha por computadores - disse Deborah. - Mas não acho que tenhamos de desistir. Ambas queremos saber o que aconteceu aos nossos óvulos e agora eu tenho mais um motivo.

 

- Suponho que me vais fazer perguntar o que é - resmungou Joanna. Deborah olhou para Mare para se certificar de que esta não estava atentar apanhar a conversa. Depois baixou a voz e contou a Joanna o episódio dos óvulos humanos versus óvulos suínos dessa manhã. Joanna ficou imediatamente intrigada, a despeito da sua agitação.

 

- Que estranho! - exclamou Joanna.

 

A expressão de Deborah sugeria que ela não achava estranho uma palavra suficientemente forte.

 

-É inacreditável -contrapôs. -Pensa nisso! Gastam noventamil dólares por meia dúzia de óvulos nossos e hoje têm várias centenas para eu brincar. Quero dizer, eu sou uma amadora nesta coisa da transferência nuclear, Isso é mais do que estranho.

- Está bem, é inacreditável - concedeu Joanna.

 

- Por isso, temos mais um motivo para abrir caminho para os ficheiros deles afirmou Deborah. - Quero descobrir que tipo de investigação anda esta gente a fazer e como é que conseguem estes óvulos.

 

Joanna abanou a cabeça.

 

- Pode ser uma motivação muito adequada, mas eu digo-te isto: não sei se me consigo convencer a voltar lá.

 

- Mas estamos melhor do que estávamos antes.

- Não vejo como - disse Joanna.

 

- Tanto quanto sei, o Sr. Randy Porter saltou do assento no preciso momento em que abriste a porta da sala do servidor. Isso indica que ele  a tem ligada ao computador dele. Quer dizer, faz sentido. Não pode ter sido coincidência.

 

- Suponho que isso pareça uma dedução razoável - concordou Joanna. - E em que é que isso nos ajuda?

 

- Significa simplesmente que temos de fazer mais do que vigiá-lo no cubículo - declarou Deborah. - Temos de o atrair lá para fora e mantê-lo ocupado.

 

Joanna assentiu enquanto pensava no que Deborah dizia. -E tu queres-me fazer crer que tens um plano para isso?

 

- Mas é claro que tenho - disse Deborah com um sorriso maroto. - Quando ele passou por mim há momentos, estava eu debruçada no bebedouro, quase que apanhou um torcicolo. A avaliar por esta reacção, seria de espantar que eu não o pudesse apanhar a jeito no refeitório ao almoço para conversarmos. Acho que consigo mantê-lo interessado, Depois, quando tu acabares na sala do servidor, podes ligar para o meu telemóvel para me safares dele.

 

Joanna tornou a assentir, mas não concordou imediatamente.

 

- Vamos fazer assim - explicou Deborah, sentindo a dúvida de Joanna. - Vai à área administrativa e vê se Randy Porter está no cubículo. Depois vai para o teu. Não quero saber se trabalhas ou não, não importa. o que importa é que vejas a que horas sai ele para almoçar. Assim que ele sair, telefona-me. Até posso interceptá-lo no corredor, pode ser mais fácil do que apanhá-lo já sentado. Assim que eu estabelecer contacto e se der certo, telefono-te. Então, vais para a sala do servidor e fazes o que tens a fazer. Quanto mais penso nisto mais me convenço de que é melhor à hora de almoço, Faz muito mais sentido. Quando acabares, vens directamente para o refeitório. Podes salvar-me e almoçar ao mesmo tempo.

 

- Fazes tudo parecer tão fácil - resmungou Joanna.

 

- Acho sinceramente que vai ser - replicou Deborah. - Que é que achas?

- Parece-me razoável. E se tu meteres conversa e ele não cair? Dizes-me logo?

- Mas é claro que te telefono imediatamente - garantiuDeborah, - E lembra-te!

 

Se ele estiver no refeitório, tu terás muito tempo para escapar. Não é a mesma coisa do que ele estar sentado no cubículo.

 

Joanna acenou com a cabeça várias vezes seguidas.

 

- Sentes-te melhor agora com a perspectiva de lá voltar?

- Acho que sim - balbuciou joanna.

 

- óptimo! - exclamou Deborah. - Agora vamos a isto. Se, por acaso, o Sr, Porternão estiver no seu cubículo quando lá chegares, é melhor telefonares-me. Podemos ter de ajustar o plano, se não o encontrarmos.

 

- Está bem! - disse Joanna, tentando ganhar coragem. Agarrou nas mãos de Deborah e depois virou-se para sair.

 

Deborah viu Joanna a sair, Sabia que a companheira se tinha apoquentado seriamente, mas também sabia que Joanna era resistente. Deborah estava confiante de que, assim que acalmasse, se poderia contar com ela para ter sucesso.

 

Deborah voltou ao seu microscópio e tentou trabalhar, mas era impossível. Estava animada de mais para uma tarefa tão árdua como retirar núcleos a oócitos. Também estava alerta para o caso de Joanna ligar a dizer que Randy Porter não estava no cubículo. Passaram-se cinco minutos sem nenhum telefonema e Deborah afastou-se do balcão do laboratório para se dirigir a Mare. A mulher ergueu os olhos das lentes do microscópio quando deu pela presença de Deborah.

 

- Tenho uma questão - disse Deborah. - De onde vêm estes óvulos todos? Mare fez sinal com o polegar por cima do ombro.

 

- Vêm daquela incubadora ao fundo do laboratório.

- E como é que entram na incubadora?

 

Mare deitou-lhe um olhar que não seria descaradamente irado, mas que também não era propriamente amistoso.

 

- Você faz muitas perguntas,

 

-É porque sou investigadora - afirmou Deborah. -Na qualidade de cientista, quando parar de fazer perguntas é altura de me reformar ou de escolher outra vocação.

- Os óvulos aparecem num elevador dentro da incubadora - respondeu Mare.

 

-Mas é tudo quanto sei. Nunca me senti encorajada a perguntar, nem tive intenção de o fazer.

 

- E quem poderá saber? - insistiu Deborah.

- Imagino que a Menina Finnigan saberá.

 

Com as mãos nos braços da cadeira, Randy ergueu-se devagarinho para ter uma vista mais expansiva da área administrativa. Queria ver se Christine estava no seu cubículo sem ela perceber que ele a estava a espreitar. Se ele se levantasse, ela poderia vê-lo, mas ao fazê-lo lentamente poderia parar assim que lhe vislumbrasse o cocuruto do cabelo grande e encaracolado. Bingo! Lá estava ela, e Randy tornou a descer.

 

Sabendo que a chefe de escritório estava perto, Randy baixou o volume das colunas do computador. Em casa queria os efeitos sonoros no máximo, mas no escritório tinha de ser realista, especialmente com Christine a pouca distância.

 

A seguír, Randy sacou do joystick. Assim que o pôs na posição que preferia, ajustou o rabo na cadeira. Parajogar em plena posse das suas capacidades, tinha de se sentir confortável. Com tudo pronto à sua maneira, agarrou no rato para entrar na Internet, mas deteve-se. Ocorrera-lhe outra ideia, por mais estranha que fosse.

 

Randy não somente tinha programado a porta da sala do servidor para ser alertado caso ela se abrisse, como também a programara de modo a que a ranhura para passar o cartão registasse a identidade do detentor do mesmo.

 

Com alguns breves cliques do rato, Randy abriu ajanela apropriada. Esperava ver como último na lista o seu próprio nome, desde quando fora verificaras coisas depois de Helen Masterson lá ter estado. Assim confirmaria a sua suspeita de que a porta se abrira sozinha por ele não a ter trancado bem. Porém, para seu espanto, o seu nome não era o último. o último nome era o do Dr. SpencerWingate, o aclamado fundador da clínica, às 11: 10 h. dessa manhã.

 

Randy olhou para aquilo com um misto de confusão e incredulidade. Como é que podia ser, pensava ele. Sendo alguém obcecado com as suas proezas em jogos de computador, ele mantinha um registo exacto dos triunfos e até dos raros fracassos. Depois de minimizar a janela actual, Randy abriu o registo do Torneio Irreal. Lá estava: ele fora morto às 11: 11 h.

 

Respirando fundo, Randy balouçou na cadeira, olhando o ecrã do computador enquanto reconstítuía na sua cabeça a sua corrida para a sala do servidor. Calculava que só tinha demorado um minuto ou dois a ir do cubículo para a sala do servidor, ou seja, tinha lá chegado às 11- 12 h. ou 11:13 h. Sendo assim, onde diabo estaria o Dr. Wingate, que entrara às 11: 10 h.? E, como se isto não bastasse, por que deixara o doutor a porta entreaberta?

 

Passava-se algo muito estranho, pensou Randy, especialmente porque se supunha que o Dr. Wingate estava semi-reformado, mesmo que corresse o boato de que ele andava por ali. Randy coçou a cabeça, pensando no que fazer, se é que faria alguma coisa. Devia reportar quaisquer lapsos na segurança ao Dr. Saunders, mas Randy não estava certo de que isto fosse um lapso. No que lhe dizia respeito, o Dr. Wingate era o maior naquela organização, por isso, comoé que alguma coisa acercadele constituiria um lapso de segurança?

 

Em seguida, Randy teve outra ideia. Talvez dissesse alguma coisa ao maluco do Kurt Hermann. o chefe da segurança tinha pedido a Randy que lhe programasse o computador de modo que ele também registasse todas as aberturas das portas com cartão. Significava isto que Kurtjá sabia que o Dr. Wingate entrara na sala do servidor. o que o chefe de segurança não sabia era que o doutor só lá tinha estado dois minutos e deixara a porta aberta.

 

- oh, merda! - disse Randy em voz alta. Preocupar-se com aquilo tudo era tão mau como trabalhar. o que ele queria mesmo era voltar ajogar com o GRiTo, por isso debruçou-se e agarrou no rato.

 

- Menina Finnigan! - chamou deborah. Estava à porta da supervisora do laboratório. Batera no umbral, mas a concentração de MeganFinnigan ao computador impedira-a de perceber, Mas a voz de Deborah conseguiu fazer-se ouvir, e a mulher ergueu a cabeça com uma expressão sobressaltada. Nisto, limpou apressadamente o ecrã.

 

- Preferia que batesse à porta - disse ela.

- Eu bati - reagiu deborah.

 

A mulher agitou a cabeça para se livrar dos cabelos incomodativos.

- Lamento. Estou muito ocupada. Em que posso ajudá-la?

 

- Encorajou-me a vir até si se tivesse dúvidas - atalhou Deborah. - Bem, tenho uma questão.

 

- E qual é ela?

 

- Estou curiosa acerca da proveniência dos óvulos com que estou a trabalhar. Perguntei a Maureen, mas ela disse que não sabia. Quer dizer, são muitos óvulos. Eu só não sabia que estavam disponíveis em tão grande número.

 

- A disponibilidade dos óvulos tem sido um dos factores limitativos da nossa investigação desde o primeiro dia -explicou Megan, -Envidámos grandes esforços para resolver o problema, e tem sido um grande contríbuto do Dr. Saunders e da Dr.a Donaldson para este campo. Mas o trabalho ainda não foi publicado e, até o ser, é considerado segredo industrial. - Megan sorriu condescendentemente e abanou a cabeça mais uma vez, o que era irritante para Deborah. - Depois de trabalhar cá durante algum tempo, e se ainda estiver interessada, estou certa de que poderemos partilhar consigo os nossos êxitos.

 

- Espero por esse dia - disse Deborah. - Outra questão: de que espécie são os óvulos com que trabalhamos?

 

Megan não respondeu imediatamente, pelo contrário, devolveu o olhar de Deborah de uma maneira que fez esta última sentir que a outra avaliava os seus motivos. A pausa foi longa o bastante para Deborah se sentir constrangida.

 

- Por que é que pergunta isso? - questionou Megan por fim.

 

- Porque tenho curiosidade, como já disse - respondeu deborah com simplicidade, As reacções de Megan às suas perguntas simples eram respostas já por si reveladoras. Deborah sentiu que não ia receber uma resposta dírecta e teve vontade de se ir embora nesse momento, Percebeu que se fizesse mais perguntas só iria atrair atenções indesejadas.

 

- Não tenho a certeza de qual é o protocolo com que a Maureen trabalha agora

- disse Megan. - Teria de saber, e agora estou muito ocupada.

 

- Compreendo - disse Deborah. - Obrigada pelo seu tempo.

- Não tem de quê - replicou Megan, com um sorriso falso.

 

Deborah ficou aliviada por voltar ao microscópio. A ida ao gabinete da supervisora não fora um impulso bom nem particularmente produtivo. Deborah voltou ao trabalho, mas só tinha conseguido retirar o núcleo a um oócito quando a sua Curiosidade, realçada pela curta conversa com Megan, lhe levou a melhor. Só de olhar para a massa de oócitos na cultura microscópica lhe dava vontade de saber a sua origem, especialmente se eram óvulos humanos, como Deborah desconfiava.

 

Inclinou-se para trás e olhou para Mare, que a ignorava desde a disputa verba com Paul Saunders acerca da identidade dos óvulos. Deborah olhou em redor do laboratório e convenceu-se de que nenhuma das cerca de doze pessoas reparava nela.

 

Agarrou na bolsa como se fosse à casa de banho e deslizou do banco. Dirigindo-se ao corredor principal e acreditando que só trabalharia na Wingate nesse dia, Deborah decidiu que a origem dos óvulos era um mistério grande de mais para ser ignorado. Não sabia se o poderia desvendar, mas pensou em saber o mais possível enquanto tivesse oportunidade.

 

Deborah avançou pelo corredor abaixo na direcção da torre central, até chegar à última das três portas que davam do corredor para o laboratório. Espreitou para dentro deste e viu Mare ao longe, debruçada no seu microscópio. Imediatamente à direita de Deborah ficava a incubadora onde a colega fora buscar as placas de Petri cheias de óvulos. Deborah foi até à porta de vidro, abriu-a e entrou.

 

o ar era húmido e quente. Um enorme termómetro e um indicador de humidade na parede indicavam exactamente 37 C com cem por cento de humidade, Havia prateleiras para as placas de Petri em ambos os lados da estreita sala. Ao fundo estava o elevador, mas este estava muito longe dos seus tempos iniciais, em que servia para trazer comida da cozinha da cave da instituição para as enfermarias. Era de aço inoxidável em vez da madeira habitual, com porta e prateleiras de vidro. Era grande para um elevador de cozinha, do tamanho de uma cómoda alta. Também tinha a sua própria fonte de calor e humidificação, para garantir a permanência da temperatura e humidade adequadas.

 

Deborah tentou abrir o elevador para ver se conseguia ver o poço, mas este era sólido e não deu de si. Era, obviamente, uma peça de equipamento de alta engenharia. Deborah recuou e observou a unidade. Deduziu que a parte de trás do poço era comum à parede do corredor principal.

 

Saindo da incubadora, voltou ao corredor principal para avaliar onde ficaria o poço do elevador. Depois, mediu a distância com passos para a escadaria junto à porta corta-fogo que dava para a torre central. Usou a velha escada de metal e subiu ao terceiro andar. Quando abriu a porta ficou surpreendida,

 

Embora recordasse vagamente a Dr.a Donaldson ter dito que a vasta e antiga instituição, salvo a pequena parte ocupada pela Wingate, era como um museu, não estava preparada para o que os seus olhos viam. Era como se, algures nos anos 20, toda a gente, profissionais e doentes juntos, tivesse saído dali e deixado tudo como estava. Havia mesas velhas, macas de madeira e cadeiras-de-rodas com ar de antiguidades alinhadas no vestíbulo escuro. Pendiam enormes teias de aranha dos lustres vitorianos, como guirlandas. Até havia velhas litografias de Currier e Ives mal pendurados nas paredes, o chão tinha uma espessa camada de pó e pedaços de estuque que caíam do tecto um pouco abobadado.

 

Supersticiosamente, Deborah cobriu a boca com a mão e tentou respirar superficialmente enquanto media a distância da escadaria. Sabia intelectualmente que os organismos de tuberculose e quaisquer outros miasmas que tivessem andado no ar já teriam desaparecido há muito, mas sentia-se vulnerável e esquisita.

 

Assim que fez uma ideia aproximada de onde estaria o poço do elevador, entrou na porta mais próxima. Deu consigo numa sala sem janelas, coisa que já esperava, que servira de despensa, com armários cheios de louça e baixelas da instituição, Até havia alguns velhos fornos com as portas entreabertas. Na obscuridade pareciam enormes animais mortos com a boca aberta.

 

As portas do poço do elevador estavam onde ela esperava que estivessem. Estavam concebidas para abrir verticalmente como um monta-cargas, mas, quando Deborah puxou a correia de lona puida, era óbvio que havia algum mecanismo de segurança para as manter fechadas enquanto não chegava o próprio elevador.

 

Sacudindo as mãos do pó, Deborah voltou à escadaria e subiu ao quarto e último andar. Encontrou o mesmo cenário que no anterior. Voltou à escada e desceu para o primeiro andar,

 

Quando Deborah emergiu da escadaria, soube instantaneamente que os óvulos não vinham dali. o primeiro andar tinha sido ainda mais renovado do que o segundo, para albergar as operações clínicas da Clínica Wingate, e a essa hora da manhã estava a todo o vapor com um fluxo constante de médicos, enfermeiras e doentes. Deborah teve de sair do caminho para deixar passar uma maca.

 

Evitando a multidão, Deborah mediu a distância da escadaria para onde achava que estaria o poço do elevador, atrás da parede do corredor. Saindo do corredor, deu consigo numa zona de tratamento de doentes. Onde deveriam estar as portas do poço do elevador, estava um armário de roupa. Era evidente que não havia abertura nenhuma para o elevador no primeiro andar.

 

Este simples processo de eliminação deixava só a cave para a origem dos óvulos. Deborah voltou à escadaria. Para ir lá abaixo ela teria de descer três lanços, em vez dos dois que separavam cada piso superior. Isto indicava-lhe que a cave teria um tecto mais alto, mas afinal não era o caso. Havia uma espécie de piso pouco elevado entre a cave e o primeiro andar, com uma miríade de canalizações e tubagens.

 

A cave parecia uma masmorra, com iluminação errática facultada por lâmpadas nuas. Paredes com tijolos à vista, tectos com arcadas e chão de lajes de granito. o desconforto que Deborah sentira no terceiro e quarto pisos só aumentou dentro da cave sombria. Também aqui havia uma variedade de recordações do seu passado de instituição psiquiátrica e sanatório para tuberculosos, mas estavam mais decrépitas por terem sido abandonadas em recantos escuros e húmidos. A sensação imediata de Deborah era que, se ainda pairassem velhos agentes infecciosos no edifício, seria aqui que eles estariam.

 

Fortalecendo-se contra o poder da imaginação, Deborah continuou a medir a distância da escadaria o melhor que pôde. A disposição daquele sítio não incluía o corredor central simples dos outros pisos. Era mais como um labirinto, exigindo-lhe que fosse mais criativa a julgar distâncias, enquanto avançava aos ziguezagues por entre maciços pilares de sustentação.

 

Ao passar por uma arcada e depois de contornar uma enorme cozinha com espaçosos balcões de metal, enormes fogões e lava-loiças de pedra, Deborah foi confrontada com algo inesperado: uma porta metálica simples e moderna, sem gonzos, puxador, nem mesmo fechadura.

 

Deborah estendeu os braços na obscuridade e tacteou a superfície brilhante da porta. Calculou que fosse de aço inoxidável. Todavia, e muito curiosamente, não era fria, mas confortavelmente quente ao toque. Deborah olhou em redor para o velho equipamento de cozinha e voltou à porta brilhante. A incongruência saltava à vista, Encostou aorelha à porta e pôde ouvir o ruído surdo de maquinaria lá dentro. Deixou-se ficar, à espera de ouvir vozes, mas nada. Afastou-se da porta e viu uma ranhura para cartões como a outra da porta da sala do servidor. Nesse momento, desejou ter o cartão de Wingate.

 

Após alguma indecisão e breve debate interior, Deborah estendeu a mão e bateu na porta, que ressoou, sólida. Não queria que alguém respondesse, e ninguém o fez. Ganhando confiança, empurrou a porta, mas esta era inamovível, Com o punho fechado, bateu a toda a volta para tentar saber onde seria o fecho. Não conseguiu.

 

Encolhendo os ombros perante barreira tão impenetrável, Deborah virou-se e voltou à escadaria. Era quase meio-dia, estava na hora de voltar lá acima para aguardar a chamada de Joanna. Deborah pouco aprendera com a sua investida, mas pelo menos tentara, Pensou que talvez, se tudo corresse bem, pudesse voltar nessa tarde com o cartão de Wingate. A porta de aço inoxidável e o que poderia estar por detrás aguçaram-lhe decididamente a curiosidade.

 

10 de Maio de 2001

12:24 h.

Já nessa manhã, Joanna tinha desenvolvido mais respeito pelos empregados de escritório que faziam introdução de dados. Agora tinha ainda mais respeito pelos ladrões. Não conseguia imaginar fazer uma coisa daquelas como modo de vida. Deborah convencera-a a voltar à sala do servidor com argumentos pertinentes e um plano que parecia ter funcionado. Joanna já estava na sala do servidor há quase vinte e dois minutos e ninguém a tinha incomodado. o seu maior inimigo fora ela própria.

 

o pânico paralisador que sentira na primeira visita voltara em dobro assim que ela entrara na porta exterior da sala do servidor, e só amainara um pouco para a deixar funcionar. Embora pouco eficientemente. A pior parte do episódio fora a espera agonizante que o software de descodificação massiva fizesse efeito e descobrisse a password para desbloquear o teclado do servidor. Enquanto decorria a execução, Joanna ficara reduzida a uma massa de ansiedade trémula e patética, assolada por ataques de medo intermitentes de cada vez que ouvia ruídos, fossem inócuos ou fabricados pela própria imaginação. Tinha-se enganado ao pensar que seria uma pessoa impassível debaixo daquela pressão que estava a sentir.

 

Assim que entrara no sistema, o seu terror melhorara um pouco, nem que fosse por fazer algo em vez de estar simplesmente à espera. o problema depois foram as tremuras, que dificultaram as operações com o rato e o teclado.

 

Enquanto avançava, Joanna agradecera silenciosamente a Randy Porter. o homem facilitara-lhe o trabalho não enterrando profundamente o que ela procurava em subpastas. Logo na primeira janela que Joanna abrira, encontrara uma unidade de servidor denominada Dados D que parecera promissora. Abrindo a unidade, tinham surgido várias pastas convenientemente etiquetadas. Uma delas chamava-se Dadora.

Ao clicar com o botão direito do rato na pasta e seleccionar Propriedades, reparou que o acesso era extremamente limitado. Com efeito, além de Randy como administrador da rede, só Paul Saunders e Sheila Donaldson estavam autorizados a entrar.

 

Confiante de que encontrara o ficheiro correcto, Joanna passou ao processo de se adicionar como utilizadora. Bastava introduzir a sua designação de conta e o domínio de escritório. Estava para clicar no botão Adicionar quando ouviu umaporta a abrir algures que lhe fez o coração saltar do peito e umas gotas de transpiração aparecerem na testa.

 

Durante vários segundos joanna ficou incapaz de se mexer ou de respirar, enquanto tentava distinguir sons de passos no corredor da sala do servidor. Mas não ouviu nada. Contudo, ainda esperava ter alguém atrás de si. Virou-se lentamente. Sentiu uma onda de alívio nas veias quando viu a entrada da sala do servidor vazia. Levantou- se e deu alguns passos para espreitar para a porta exterior da sala do servidor. Estava fechada.

 

- Tenho de sair daqui - gemeu Joanna. Voltou rapidamente ao teclado e, com mãos trémulas, clicou para se adicionar à lista de acesso ao ficheiro de dadoras. Tão rapidamente quanto pôde, Joanna fechou as janelas todas que tinha aberto

 

até voltar ao ambiente de trabalho do servidor e ao derradeiro pedido de password. Agarrou na bolsa e estava prestes a fugir quando se lembrou do software de David que estava na unidade de CD-ROM. Tremendo mais do que nunca, agora que estava a poucos segundos do sucesso, conseguiu tirar o CD e pô-lo na bolsa. Finalmente, podia sair dali.

 

Fechou a porta da sala do servidor e correu até à porta exterior. Infelizmente, não havia maneira de prever se seria, ou não, boa altura para aparecer no corredor principal. Tudo dependia de quem por lá andasse. Tinha de tentar e esperar pelo melhor. Num só movimento abriu a porta e saiu, fechando-a atrás de si. Tentando não entrar em pânico, evitou olhar de um lado para o outro do corredor e dirigiu-se ao bebedouro. Não era que tivesse sede, ainda que sentisse a boca seca. Só queria dar outro aspecto que não o de ladra a fugir.

 

Joannaendireitou-se. Tinha sido encorajador não ouvir vozes nenhumas enquanto bebia e agora que podia olhar parecia-lhe ter tido sorte ao escolher o momento de sair da sala. Era uma das poucas vezes que Joanna via o corredor completamente deserto.

 

Ansiosa por ver se tinha tido mesmo sorte com a pasta escolhida, mesmo que Deborah não estivesse com ela, Joanna apressou-se para o seu cubículo na área administrativa. Como era a hora de almoço, a área também estava deserta, o que era óptimo para Joanna. Correu para o cubículo, atirou a bolsa para cima da mesa e sentou-se. Desbloqueou o computador e, com uma destreza algo acrescida pelo que tinha tido que fazer na sala do servidor, Joanna rapidamente correlacionou uma unidade de rede com a pasta de dadoras. Ao clicar para efectivar o comando susteve o fôlego.

 

-Boa! -sibilou Joanna em voz alta mas entre dentes. Estava dentro do directório da pasta. Apetecia-lhe rir, mas conteve-se, e ainda bem que o fez.

 

- Boa o quê? - perguntou uma voz. Era uma inquisição e uma exigência. Que se passa?

 

Sentindo um pouco do mesmo terror que sofrera na sala do servidor, Joanna ergueu os olhos e olhou para a direita. Tal como temia quando ouvira a voz, deu consigo a olhar para o rosto franzido de Gale Overlook.

 

-  Que é que foi, ganhou a lotaria? - inquiriu Gale. Tinha uma maneira de falar que fazia parecer tudo depreciativo.

 

joanna engoliu em seco. Apercebeu-se instantaneamente de outra coisa algo cruel. Embora se considerasse esperta e tão capaz de dar réplica como as suas amigas, sentindo-se ansiosa e culpada, como era o caso, ficava completamente em branco. Só conseguiu tartamudear qualquer coisa.

 

- Que é que tem aí no ecrã? - indagou Gale, ainda mais interessada perante a agitação de Joanna. Gale mexeu a cabeça para tentar ver o ecrã através do reflexo. Ainda que Joanna tivesse ficado sem fala, teve a presença de espírito de fechar a janela do computador, ficando só o ambiente de trabalho à vista.

 

- Estava na Internet? - perguntou Gale, acusadoramente.

 

-Estava -respondeu Joanna, finalmente. -Estava a consultar algumas acções, para ver se subiam.

 

- Christine não vai gostar disso - asseverou Gale. - Ela não gosta que as pessoas usem a Internet por motivos pessoais durante o expediente.

 

- Obrigada por mo dizer - replicou Joanna. Levantou-se, sorriu secamente, agarrou na bolsa e saiu.

 

Joanna caminhava rapidamente. Zangada consigo própria por agir de modo tão suspeito e irritada com Gale Overlook por ser tão metediça, sentiu um efeito benéfico porconcentrar as suas angústias. Dirigia-se ao refeitório e já se sentia melhor. Quando chegou à porta corta-fogo que dava para a torre do edifício recuperara o suficiente para sentir até alguma fome.

 

Hesitou à entrada do refeitório e perscrutou a sala à procura de Deborah. Estava muito mais cheia do que no dia anterior, quando Helen Masterson as trouxera às duas. Os olhos de Joanna tropeçaram em Spencer Wingate e afastou rapidamente o olhar. Não estava com disposição para encarar o homem. Viu Paul Saunders; e Sheila Donaldson noutra mesa e desviou os olhos também. Depois viu Deborah sentada numa mesa para duas pessoas com Randy Porter. Pareciam absortos na conversa.

 

Joannaencaminhou-se paraDeborah, tentando mantero rosto afastado de Sheila Donaldson tanto quanto possível. Só quando Joanna chegou à mesa é que Deborah deu por ela e ergueu os olhos.

 

- Olá, Prudence, querida! - disse Deborah com ligeireza. - Lembras-te de Randy Porter, com certeza.

 

Randy sorriu timidamente e apertou a mão a Joanna, mas não se levantou. Esta não ficou surpreendida. Já se tinha acostumado há muito ao facto de muitos homens criados acima da Linha Mason-Dixon terem pouco traquejo na etiqueta social.

 

- Randy e eu estamos numa conversa interessante - disse Deborah. - Eu não fazia ideia de que o mundo dos jogos de computador pudesse ser tão cativante. Parece que tenho perdido mesmo muito. Não é, Randy?

 

- Absolutamente - declarou este. Recostou-se com um sorriso de satisfação.

- Bem, ouve, Randy - disse Deborah. - Já sei! Vou ao teu cubículo mais tarde e tu mostras-me o Torneio Irreal. Que achas?

 

-  Acho óptimo - disse Randy. Balouçava na cadeira como se concordasse constantemente consigo próprio.

 

-  Ainda bem que tivemos esta oportunidade para conversarmos, Randy acrescentou Deborah. - Foi giro.

 

Assentiu e sorriu, esperando que Randy percebesse a deixa, mas ele nada.

 

- Tenho mais alguns joysticks no carro - disse Randy. - Posso preparar as senhoras para um jogo em cinco segundos.

 

-Estou certa de que gostaríamos muito - disse Deborah, perdendo apaciência.

- Mas agora eu e a Prudence temos de conversar.

 

- Eia, por mim não há problema - disse Randy, mas não se mexeu.

- Queríamos privacidade - rematou Deborah.

 

- Oh! - exclamou Randy. Olhou para as duas mulheres com ar confuso, mas por fim percebeu a mensagem. Mexericou no guardanapo antes de se levantar. Encontramo-nos por aí.

 

- Certo! - disse Deborah.

 

Randy saiu e Joanna sentou-se no lugar dele.

 

-Não está lá muito bem treinado em competências sociais -comentou Joanna. Deborah deu uma risadinha curta e prazenteira.

 

- E tu deves achar que ficaste com a pior parte do trabalho na sala do servidor.

- Foi assim tão mau?

 

- É um verdadeiro cromo dos computadores - queixou-se Deborah. - Não sabia falar de mais nada. Mais nada mesmo! Mas são águas passadas, - Pigarreou, inclinou-se para a frente e, numa voz excitada mas baixa, perguntou: - Bem, que é que aconteceu? Conseguiste ou não?

 

Joanna inclinou-se também. Tinham as cabeças quase juntas.

- Já está.

 

- Fantástico! Parabéns! E que é que descobriste?

 

-Por enquanto nada -disse Joanna. -Só consegui verificarno meu computador que o que fiz na sala do servidor deu certo. Até vi o teu nome no directório.

 

- E por que é que não descobriste nada?

 

-Porque a coscuvilheira da minha vizinha me interrompeu -respondeu Joanna.

- Parece um sempre-em-pé, de cada vez que eu faço ou digo algo fora do normal. Pensei que ela estivesse a almoçar quando lá fui mas, infelizmente, enganei-me.

 

Uma das empregadas nicaraguanas apareceu e Joanna pediu sopa e salada. A escolha da comida foi sugestão de Deborah, porque seria o mais rápido.

 

- Mal posso esperar para voltar ao teu computador - disse Deborah assim que a empregada se afastou. - Estou mesmo obcecada com isto. E, por estranho que pareça, nesta altura estou tão interessada em saber da investigação como dos nossos óvulos.

 

- Vai ser complicado - atalhou Joanna. - Primeiro, temos de nos preocupar com a minha vizinha metediça. Acho que é melhor esperarmos que ela saia do cubículo para voltarmos à pasta das dadoras.

 

- Então, fazemos isso do laboratório - propôs Deborah. - Há muitos computadores disponíveis e isolados. Não teremos de nos preocupar com alguém a espreitar.

 

- Não podemos usar os computadores do laboratório - explicou Joanna. - o acesso que eu criei é só através do domínio do escritório.

 

- Valha-me Deus! - observou Deborah. - Mas por que é que isto tem de ser tão complicado? Mas está bem! Usamos o teu, e acho que devemos ignorar a tua vizinha e mais nada. Que diabo, eu posso pôr-me entre ela e o ecrã. Assim que acabares de comer, vamos embora.

 

- Há outro problema - disse Joanna. - Só criei acesso para a pasta das dadoras. Havia outras pastas na mesma unidade, como Protocolos de Investigação e Resultados de Pesquisa, mas eu não criei acesso a elas.

 

- Por que não, raios? - questionou Deborah, de sobrolho franzido.

 

- Porque tive medo de demorar mais tempo - disse Joanna.

 

- Oh! Mas que diabo! - queixou- se Deborah. - Tinhas as pastas à tua frente, como é que pudeste ignorá-las?

 

Deborah abanava a cabeça num espanto irritado.

 

-Tu não podes compreender como eu estava nervosa- disse Joanna. - Tenho sorte por ter conseguido fazer alguma coisa naquela sala.

 

- Quanto mais tempo é que teria levado? - indagou Deborah,

 

- Não muito - admitiu Joanna. - Mas digo-te, estava aterrorizada. Foi uma dura lição, mas aprendi que sou péssima a cometer crimes. Tu percebes que estamos a cometer um crime, não percebes?

 

- Deve ser - disse Deborah, absorta. Estava claramente desapontada.

 

- Se acontecer o pior e formos apanhadas - disse Joanna -, mas pelo menos pudermos provar que só queríamos informações sobre os nossos óvulos, acho que seremos tratadas com clemência. Mas de certeza que não seríamos se fôssemos apanhadas a entrar nos protocolos de investigação, fosse qual fosse a desculpa.

 

- Está bem, deves ter razão - disse Deborah. - Seja como for, tenho outro plano. Dá-me o cartão de acesso do Wingate!

 

- Porquê? - indagou Joanna. Olhou a companheira de quarto interrogativamente. Sabia que Deborah era impulsiva.

 

Antes de Deborah poder responder, a comida de Joanna chegou. A empregada serviu-a e afastou-se. Deborah então inclinou-se para a frente e contou a joanna a história da sua busca da origem dos óvulos ao investigar o poço do elevador. Contou como tinha encontrado a porta de aço inoxidável brilhante, completamente deslocada naquela cozinha decrépita e antiquada na cave. Quando acabou, disse simplesmente:

- Quero ver o que está por detrás daquela porta.

 

Joanna terminou de mastigar a salada e engoliu. Olhava para Deborah com exasperação.

 

- Não te vou entregar o cartão do Wíngate!

- o quê? - explodiu Deborah.

 

Joanna acalmou-a antes de olhar em redor para ver se o ataque de deborah tinha atraído as atenções. Felizmente não tinha.

 

- Não te vou dar o cartão do Wingate - repetiu Joanna quase num murmúrio.

- Viemos cá para descobrir a verdade acerca dos nossos óvulos. Foi esse o objectivo desde o princípio. Não importa o quanto tu achas interessante descobrir o que eles andam aqui a fazer, não nos podemos dar ao luxo de fazer perigar o motivo por que estamos aqui. Se aquela porta lá em baixo tem acesso por cartão como a da sala do servidor e tu lá vais, há boas hipóteses de alguém ser alertado para o facto, como aconteceu com a outra., e, se isso acontecer, a minha intuição diz-me que estaremos mesmo num sarilho.

 

Deborah devolveu o olhar de Joanna com irritação, mas o tempo passava e a sua expressão e indignação suavizaram-se. Mesmo que não gostasse de o ouvir, o que Joanna dizia batia certo. Porém, Deborah sentia-se frustrada. Minutos antes tinha pensado que tinha dois caminhos igualmente promissores para abordar o que ela considerava um importante mistério. A sua intuição proclamava que, na melhor das hipóteses, aClínicaWingate estava envolvida em pesquisas eticamente questionáveis e, na pior das hipóteses, estava mesmo a infringir a lei,

 

Como bióloga com conhecimento das questões biomédicas da actualidade, Deborah sabia que as clínicas de infertilidade como a Wingate trabalhavam num domínio sem fiscalização. Aliás, os clientes desesperados de tais clínicas suplicavam com frequência que se tentassem procedimentos não comprovados. Em tal ambiente, nãohavia cliente que se importasse de ser aproverbial cobaia, e ignoravam alegremente quaisquer consequências negativas para si próprios ou para a sociedade em geral, desde que houvesse a menor possibilidade de conceber uma criança. Tais clientes também tendiam a colocar os seus médicos num pedestal, o que os encorajava a pensar, numa espécie de presunção intelectual, que a ética ou até mesmo a lei não se lhes aplicava.

 

-Lamento não ter feito mais -contemporizou Joanna. -Acho que te desiludi. Quem me dera não ter estado tão nervosa na sala do servidor. Mas fiz o melhor que pude, dadas as circunstâncias.

 

-Claro que fizeste -anuiu Deborah, Agora sentia-se culpada por se ter zangado com Joanna, ela que tinha realizado um feito heróico. Independentemente da explosão de Deborah, esta questionava honestamente a sua própria capacidade de fazer o que Joanna conseguira, mesmo que tivesse conhecimentos de informática. Entreter Randy fora um aborrecimento, mas não um desafio de nervos.

 

- Devíamos estar a discutir onde é que vamos aceder ao ficheiro das dadoras disse Joanna, dando mais uma garfada no almoço.

 

- Explica-te! - instou Deborah.

 

- Gostava mais de o fazer hoje à noite em casa, através do modem - disse Joanna, - Seria mais seguro, mas também tem problemas.

 

- Tais como?

 

- Se detectarem o nosso download de um ficheiro protegido, podem rastreá-lo até ao nosso computador através do fornecedor de Internet.

 

- o que não é bom - disse Deborah.

 

-Também existe a possibilidade de que, se nos demorarmos, descubram o meu acesso e o eliminem antes de tirarmos partido dele.

 

- Agora é que me dizes - queixou-se Deborah. - Disto é que eu não tinha ideia. Quais são as probabilidades?

 

- Provavelmente, não são muitas - admitiu Joanna. - Randy teria de ter alguma razão para procurar.

 

- Parece que temos de o fazer aqui - disse Deborah.

 

- Concordo - anuiu Joanna. - Esta tarde. Mas acho que devíamos tentar ir embora logo depois. Se Randy detectar o download e deduzir que vem da rede, vai descobrir o caminho. Depois não iria demorar muito a chegar ao computador de Prudence Heatherly.

 

- Ou seja, temos de estar já bem longe - disse Deborah. - Está bem, já percebi! Então, já acabaste de comer?

 

Joanna olhou para a sopa e a salada meio comidas.

- Estás com pressa?

 

- Não diria que estou com pressa - explicou Deborah -, mas desde que estou aqui, incluindo a meia hora com o meu novo amigo Randy, que o chefe da segurança está a olhar para mim.

 

Joanna começou a virar-se mas Deborah estendeu o braço rapidamente e agarrou-lhe no pulso.

 

- Não olhes!

- Porquê?

 

- Não sei bem - admitiu Deborah, - Mas o homem causa-me arrepios e prefiro não dar a entender que reparei no olhar dele. Deve ser deste maldito vestido outra vez. o que era para ser uma brincadeira tornou-se numa grande chatice.

 

- Como é que sabes que é o chefe da segurança?

 

- Não tenho a certeza - admitiu Deborah. - Mas bate certo. Lembras-te de ontem, quando tentávamos entrar e os camiões estavam no caminho? Só quando ele chegou e deu ordem ao gUarda fardado para os deixar entrar é que o impasse se resolveu. Quando entrámos ele estava ao lado de Spencer. Lembras-te dele?

 

- Nem por isso - admitiu Joanna. - Lembra-te de que eu estava a olhar para Spencer, quando tive a ideia peregrina de que ele se parecia com o meu pai. Deborah soltou uma risadínha.

 

- Peregrina mesmo! Mas estamos a fugir do assunto. E a comida? Não comeste nada nestes últimos minutos,

 

Joanna atirou o guardanapo para cima da mesa e levantou-se.

- Estou pronta! Vamos embora.

 

À excepção do refeitório, Kurt Hermann pouco ia à Clínica Wingate propriamente dita, Preferia ficar na casa da Portaria, ou nos campos circundantes, ou no seu apartamento do aldeamento do pessoal. o problema é que ele sabia que aconteciam coisas na clínica que ele não aprovava, mas graças à sua formação militar conseguia compartimentar o seu raciocínio. Não indo à clínica, ela ficava longe da vista, longe do coração, e ele nem pensava nisso.

 

Todavia, surgiam ocasiões em que era necessário entrar na parte principal da clínica, e a sua actual preocupação com Georgina Marks era uma delas. Recorreu aos seus contactos e, com os factos que recolhera do formulário de candidatura dela, mais o registo do carro que conduzia, pediu informações sobre ela. A resposta era confusa, se não mesmo intrigante, Ele pensara inicialmente em abordá-la no refeitório à hora de almoço, mas mudara de ideias, Era óbvio, que ela deitara as garras ao jovem da informática com quem entrara, e a última coisa que Kurt queria era aguentar uma rejeição do tipo de pessoa que ela era.

 

Nisto, a situação alterou-se abruptamente. A amiga de Georgina aparecera, e de longe parecera a Kurt que o rapaz dos computadores fora despachado. Kurtprecisava de saber porquê.

 

- Ele não está no cubículo? perguntou Christine Parbom, a chefe de escritório. Kurt desviou o olhar para evitar responder torto a uma pergunta tão imbecil. Acabara de dizer à mulher que Randy Porter não estava no sítio. Lentamente, Kurt voltou a olhar para Christine. Não teve que responder,

 

- Quer que eu lhe envie uma mensagem? - indagou Christine.

 

Kurt limitou-se a assentir, Para ele, quanto menos conversa melhor. Tinha uma tendência contraproducente de dizer às pessoas o que pensava delas quando estava irritado, e Georgina Marks tinha-o irritado.

 

Christine fez a chamada. Enquanto esperava resposta, perguntou a Kurt se a segurança tinha problemas informáticos. Kurt abanou a cabeça e olhou para o relógio. Daria mais cinco minutos à sua missão. Se não encontrassem Randy Porter, deixaria instruções para o parvalhão se dirigir à casa da Portaria. Kurt não gostava de se ausentar do seu gabinete, Com a quantidade de informadores que tinha contratado a respeito de Georgina Marks e as respostas que aguardava, queria estar disponível para as receber pessoalmente.

 

- Está bom tempo - comentou Christine. Kurt não respondeu, e ela foi salva de ter de pensar em mais conversa fiada quando o telefone tocou. Era Randy a dizer que estava a trabalhar no computador de alguém na Contabilidade, mas que podia ir já, se fosse preciso. Christine disse-lhe que o chefe da segurança estava ali para falar com ele e que por isso era melhor apressar-se.

 

- Encontro-me com ele no cubículo - disse Kurt antes de Christine desligar, Esta transmitiu a mensagem.

 

Kurt encaminhou-se para a toca do administrador da rede. Sentou-se na segunda cadeira e olhou em redor, com desprezo, para as imagens de ficção científica que decoravam as divisórias. Agarrou no joystick que estava estupidamente atrás do monitor, como que escondido. Kurt pensou que faria bem ao miúdo uns meses na recruta, que era o que ele pensava de todos os jovens que não tivessem feito tropa.

 

- Olá, Sr. Hermann - disse Randy descontraidamente ao chegar ao espaço, A sua atitude ligeira para com pessoas como Kurt disfarçava uma cautela de cão perto de um dono imprevisível e mau. - Passa-se alguma coisa com os computadores da segurança?

 

Atirou-se para a cadeira como se esta fosse uma prancha de skate e teve de se agarrar à beira da mesa para não bater na parede,

 

- Os computadores estão bem - respondeu Kurt. - Estou aqui para falarmos da sua companhia ao almoço.

 

- Georgina Marks?

 

Kurt olhou para longe por um momento, como fizera recentemente com Christine. Ruminava por que seria que toda a gente lhe respondia essencialmente com a mesma pergunta. Era de dar em doido.

 

- Que quer saber sobre ela? - perguntou Randy, alegremente.

- Ela atirou-se a si?

 

Randy abanou a cabeça.

 

- Mais ou menos - disse. - Mais a princípio. Quer dizer, ela é que meteu conversa.

 

- Fez-lhe alguma proposta?

- Que quer dizer com isso?

 

Kurt voltou a desviar o olhar. Era um suplício falar com a maioria do pessoal, particularmente Randy Porter, que agia e parecia estar ainda na escola.

 

- «Fez-lhe alguma proposta» significativa: ofereceu-lhe sexo em troca de dinheiro ou serviços?

 

Randy sempre tivera a impressão de que o chefe da segurança era um gajo estranho, mas esta pergunta despropositada confirmou-lhe as suspeitas. Não sabia o que dizer, porque sentia que o homem estava zangado e que iria aos arames num instante.

 

- Não se importa de responder à pergunta? - rosnou Kurt.

 

- Por que é que ela me havia de oferecer sexo? - balbuciou Randy.

 

Kurt tornou a olhar para o horizonte. Outra pergunta a suscitar uma pergunta, o que infelizmente lhe recordava as conversas obrigatórias com um psiquiatra que o tinham obrigado a ter antes de sair do Exército. Respirou fundo e repetiu a questão lenta e ameaçadoramente.

 

- Não! - vociferou Randy. Depois baixou a voz. - Não se falou em sexo, Falámos sobre jogos de computador, Por que é que ela falaria em sexo?

 

- Porque sexo é o que aquele tipo de mulher faz.

- Ela é bióloga - disse Randy na defensiva.

 

- Que maneira estranha de uma bióloga se vestir - disse Kurt no gozo. - As outras biólogas são como ela?

 

Nesta altura da investigação, já Kurt não tinha a certeza se Georgina era bióloga ou até se se chamava Georgína, mas não falou nas suas desconfianças, Não queria que elas chegassem aos ouvidos da mulher e a alertassem antes de ele terminar as suas indagações, Acreditava piamente que ela estava na Wingate com segundas intenções, e a avaliar pela maneira provocante como se vestia, a prostituição era um bom motivo na lista de Kurt. Afinal, essa era a ideia original dele, e ela, aparentemente, já se tinha metido com Spencer Wingate no mesmo dia em que o conhecera ao portão.

 

- Gosto da maneira como ela se veste - disse Randy.

 

- Pois, aposto que sim - disparou Kurt. - Mas por que é que saiu tão de repente ao almoço? Ficou desconsolado com alguma coisa? Foi aí que ela lhe perguntou se estava interessado?

 

- Não! - protestou Randy. - Já lhe disse, não se falou em sexo, Tivemos uma agradável conversa, mas ela quis que eu me fosse embora, A amiga aparecera e elas queriam conversar, por isso eu vim para cima,

 

Kurt mirava a fraca figura do miúdo dos computadores. Da sua experiência em interrogatórios, sentia que o tipo dizia a verdade. O problema é que o que Randy dizia não batia certo com nenhuma das actuais crenças de Kurt a respeito da nova funcionária. o mistério adensava-se em vez de se deslindar.

 

- Há uma coisa que eu lhe queria contar - começou Randy, ansioso por desviar a conversa de Georgina Marks. Contou a Kurt o estranho episódio que implicava o Dr. Wingate e a sala do servidor,

 

Kurt assentia enquanto absorvia a informação. Não sabia o que pensar, nem o que fazer. Nos últimos anos sempre prestara contas a Paul Saunders e não a Spencer Wingate. Enquanto militar, abominava situações com hierarquias incertas.

 

- Diga-me se isso acontecer novamente - rematou Kurt. -E diga-me se tiver mais interacção com Georgina Marks ou até com a amiga. Escusado será dizer que esta conversa fica só entre nós. Faço-me entender?

 

Randy assentiu imediatamente.

 

Kurt levantou-se e, sem dizer palavra, saiu do cubículo de Randy.

 

Deborah desistiu de tentar trabalhar, Tínha a cabeça a andar à roda, era ímpossível concentrar-se e, dado que ela e Joanna abandonariam o local em breve, nem valia a pena. Já esperava há mais de uma hora pelo telefonema de Joanna a dizer que a vizinha metediça desaparecera, abrindo caminho para elas acederem ao ficheiro de dadoras, mas nunca mais. Parecia que a vizinha não arredava pé dali.

 

Deborah tamborilou os dedos no balcão, Nunca fora muito paciente e esta espera desnecessária estava a passar dos limites.

 

- Que se lixe! - disse, subitamente, em voz baixa. Afastou-se do microscópio, agarrou na bolsa e dirigiu-se à porta. Já tinha feito -vénias às apreensões e paranóias de Joanna tempo de mais, Afinal, que importava? Assim que soubessem o que queriam desapareceriam dali para fora. Além disso, e tal como Deborah sugerira, ela podia bloquear o ecrã com o próprio corpo de maneira a que a vizinha não visse.

 

Evitando olhar para as poucas pessoas do laboratório que conhecera, Deborah saiu para o corredor mais uma vez como se fosse à sala de banho. Minutos depois deslizava para o cubículo de Joanna. Esta estava obedientemente a trabalhar.

 

Sem um som, Deborah mexeu os lábios para perguntar:

- Em que direcção está Gale Overlook?

 

Joanna apontou para a divisória da direita.

 

deborah foi até lá e espreitou, Era um cubículo igualzinho ao de Joanna, só que não estava ocupado.

 

- Não está ali ninguém! - exclamou Deborah. Com um ar interrogativo, joanna espreitou também.

 

- Bem, diabos me levem! - disse. - Ela estava aí há dois minutos atrás.

- Muito conveniente -disse Deborah. Esfregou as mãos excitadamente. -E que tal fazeres a tua mágica já de seguida? Vamos saber da nossa descendência e fugir do galinheiro.

 

Joanna foi até à entrada do cubículo e olhou em redor. Satisfeita, regressou e sentou-se ao computador. Olhou hesitante para Deborah,

 

- Eu fico de guarda - assegurou Deborah, e acrescentou: - Depois deste esforço todo, é bom que valha a pena.

 

Com uns batimentos de tecla rápidos e uns cliques do rato, Joanna puxou a primeira página do directório do ficheiro de dadoras. Entre outros nomes no princípio do abecedário estava Deborah Cochrane.

 

- o teu primeiro - disse Joanna.

 

- Por mim, óptimo - anuiu Deborah.

 

Joanna clicou no nome de Deborah e surgiu um ficheiro. Ambas as mulheres leram o material, que incluía historial médico e informações básicas. No fundo da página estava uma notação sublinhada e a negrito em como a doente insistira em receber anestesia local para a extracção.

 

- Levaram mesmo a questão da anestesia a sério - comentou Deborah.

- Acabaste a página? - indagou Joanna.

 

- Acabei, vamos ao que interessa!

 

Joanna clicou na página seguinte. No topo tinha escrito NúMERO DE óVULOS OBTIDOS. Ao lado tinha um zero.

 

- Que diabo?! - questionou Deborah. - Isto indica que não me tiraram óvulos nenhums.

 

- Mas disseram-te que sim - disse Joanna.

- Pois claro que disseram - disse Deborah.

 

- Que estranho - comentou Joanna. - Vamos ver o meu ficheiro.

 

Voltou ao directório e desceu até chegar aos Ms. Encontrou o seu nome e clicou nele. Durante os trinta segundos seguintes leram o material, semelhante à primeira página de Deborah. Porém, na página seguinte, deparou-se-lhes uma surpresa maior do que a ausência de óvulos de Deborah. No ficheiro de Joanna dizia que lhe tinham tirado 378.

 

-Não seio que pensar disto -disse Joanna. -Disseram-me que tiraram cinco ou seis, não centenas,

 

- o que está a seguir a cada um? - perguntou Deborah. A letra era pequena de mais para poder ler.

 

Joanna aumentou a visualização. A seguir a cada óvulo estava um nome de uma cliente junto com uma data de transferência do embrião. Depois vinha o nome de Paul Saunders e uma breve descrição do resultado.

 

- Segundo diz aqui, cada um dos teus óvulos foi para uma receptora diferente

- disse Deborah. - Até isso é estranho. Eu pensava que cada cliente recebia vários óvulos, se os houvesse, para aumentar as hipóteses de implantação.

 

- Eu também pensava assim - corroborou Joanna. - Não sei que pensar disto. Quer dizer, não só são óvulos a mais, como nenhum deles teve êxito.

 

Percorreu a longa lista com o dedo, onde se alistava quer uma nota a dizer implantação falhada quer a data do aborto.

 

- Espera! Aqui está um que foi a termo - disse Deborah. Estendeu a mão e apontou. Era o óvulo trinta e sete. Tinha indicação de uma data de nascimento, 14 de Setembro de 2000, seguida do nome da mãe, morada, número de telefone e a indicação de que era um rapaz saudável.

 

- Bem, pelo menos houve um - disse Joanna com alívio.

 

- Aqui está outro - observou Deborah. - óvulo quarenta e Oito cOM data de nascimento de 1 de Outubro de 2000. Também era um rapaz saudável.

 

- Muito bem, dois - disse Joanna, Sentiu-se encorajada até percorrer o resto da lista com Joanna, Dos 378 óvulos, só havia mais dois positivos, 220 e 241, ambos implantados em Janeiro último. Cada qual com a indicação de que as gravidezes decorriam normalmente.

 

- Como é que podem ter implantado estes tão recentemente? - inquiriu Joanna.

- Acho que devem usar óvulos congelados - alvitrou Deborah.

 

Joanna recostou-se e olhou para Deborah.

- Eu não esperava nada disto.

 

- Bem podes dizê-lo - anuiu Deborah.

 

- Se isto for verdade, é uma taxa de sucesso de um em cem. Não é abonatório dos meus óvulos.

 

- Não é possível que te tenham tirado quase quatrocentos óvulos. Isto tem de ser alguma falsificação, sabe Deus por que motivo. Quase quatrocentos óvulos é o que tu produzirias a tua vida toda!

 

- Achas que foi forjado?

 

- Eu diria que sim - observou Deborah. - Acontecem coisas estranhas aqui, já sabemos. Nesse sentido, não me espantam mesmo nada algumas mentiras. Que diabo, acontece nas melhores instituições, quanto mais num sítio isolado como este. Mas digo-te: agora que deparámos com esta confusão, tenho ainda mais pena de não entrar nos ficheiros de investigação.

 

Joanna virou-se para o teclado e começou a digitar.

- Que estás a fazer agora? - indagou Deborah.

 

- Vou imprimir o ficheiro - respondeu joanna. - Depois pegamos nele e vamos embora. Estou de rastos com estes resultados.

 

- Tu estás de rastos! - exclamou Deborah. - Eles não me tiraram óvulos nenhums. Pelo menos, gostaram de ti o bastante para te atribuir crianças vivas. Joanna olhou para Deborah, Tal como desconfiava, a companheira de quarto

 

sorria. Joanna tinha de dar a mão à palmatória. Graças à personalidade brincalhona de Deborah, a amiga via sempre o lado engraçado das coisas. No que lhe dizia respeito, Joanna não estava nada divertida.

 

- Mas numa coisa reparei - disse Deborah. - Não há menção do dador de esperma junto a cada entrada dos teus óvulos.

 

- Deve ser o marido da doente - alvitrou Joanna. Acabou de configurar o comando de impressão e clicou no botão Imprimir. - Isto vai levar alguns minutos, pelo tamanho do ficheiro. Se queres fazer mais alguma coisa, faz agora, porque assim que tivermos o ficheiro, quero ir-me embora.

 

- Estou pronta - replicou Deborah.

 

- Que dia - lamentou Randy. Estava grato por se ter livrado de Kurt Hermann, mas perturbado por ter tido tal conversa. o homem parecia um tigre enjaulado, com o seu ar sossegado e a maneira lenta como se mexia e falava, Randy sacudiu-se, como se tivesse sentido uma onda de náusea por se lembrar da conversa com ele.

 

Randy voltara da reparação do computador na Contabilidade, que tivera de interromper por causa da chamada do chefe da segurança. Já eram duas da tarde e ele queria voltar ao seu cubículo. Aturar Kurt não fora a pior parte do dia: perder contra o GRITO era muito pior e Randy estava ansioso pela desforra.

 

Chegou ao cubículo e fez o truque do costume para ver se Christine andava por ali. Ficou contente por ver que não, o que era normal àquela hora da tarde, em que ela tinha reuniões com chefes de departamento. Assim, podia subir mais o volume do som. Sentou-se e puxou o joystick por detrás do monitor. Digitou a password para desbloquear o teclado. Assim que o fez, deparou com a mesma janelinha intermitente no canto inferior direito do ecrã, responsável pela sua morte nessa manhã. Alguém entrara outra vez na sala do servidor!

 

Com batimentos irritados, Randy abriu a janela apropriada. Era certo, a porta abrira às 12:02 h. e ficara aberta até às 12:28 h., ou seja, quem tivesse lá entrado permanecera vinte e seis minutos. Randy sabia que uma visita de vinte e seis minutos não era só uma espreitadela, o que o incomodava consideravelmente. Em vinte e seis minutos podia fazer-se realmente grandes estragos.

 

Em seguida, Randy puxou a pasta que lhe diria quem fora. Ficou chocado por ver que se tratava novamente do Dr. Spencer Wingate! Randy recostou-se e ficou a olhar para o nome do fundador, tentando decidir o que fazer, Participara a Kurt o primeiro incidente, mas o chefe da segurança não parecera impressionado, mesmo tendo pedido para o informar se o caso se repetisse.

 

Randy avançou outra vez. Decidiu que chamaria o chefe da segurança, mas só depois de ver se podia encontrar alguma coisa no sistema que tivesse sido alterado, Ocorreu-lhe imediatamente uma alteração nos níveis de utilizador. Com batimentos rápidos e movimentos do rato, acedeu ao Active Directory. Breves minutos depois teve a resposta. o Dr. Wingate adicionara Prudence Heatherly à lista de acesso à pasta Dadoras na unidade de dados do servidor.

 

Randy afastou-se novamente da mesa. Interrogava-se porque seria que o fundador da clínica iria adicionar o nome de uma nova funcionária a um ficheiro protegido a que nem ele próprio tinha acesso. Não fazia sentido, amenos que Prudence Heatherly fosse uma agente infiltrada a trabalhar para o Dr. Wingate.

 

- Isto é irreal - proferiu Randy, De certa forma, até se estava a divertir. Era como umjogo de computador em que ele tinha de descobrir a estratégia do adversário, Não era tão estimulante como o Torneio Irreal, mas, também, havia pouca coisa que o fosse, Deixou-se ficar sentado a ponderar.

 

Sem conseguir chegar a uma explicação plausível, Randy agarrou no telefone. Não tinha vontade de falar com Kurt, mas pelo menos era só ao telefone. Também decidiu dizer ao homem só os factos e nada das suas suposições. Quando marcou a extensão viu as horas, Eram catorze horas em ponto.

 

10 de Maio de 2001

14. 00 h.

Joanna tentou agir normalmente, apesar de sentir que estava a ser observada ao desceras escadas da entrada da Clínica Wingate e dirigir-se ao ChevyMalibu. Deborah já estava no carro e Joanna podia ver a silhueta da cabeça dela no lugar do condutor. Como o expediente ainda não terminara, decidiram que daria menos nas vistas se saíssem separadas. Até agora funcionara. Deborah, aparentemente, safara-se e ninguém detivera Joanna.

 

Joanna tinha a bolsa pendurada no ombro direito. Na mão esquerda trazia um espesso sobrescrito com a volumosa impressão do ficheiro de dadoras. Andava e tentava reprimir a vontade de desatar a correr. Sentia-se novamente uma ladra a escapar, só que desta vez trazia o produto do roubo,

 

Chegou ao carro sem incidentes e entrou para o lado do passageiro o mais rapidamente possível.

 

- Vamos embora daqui para fora! - proclamou ela.

 

- Não seria boa altura para o carro não pegar? - brincou Deborah ao mexer na ignição.

 

Joanna deu-lhe uma pancada a brincar, libertando a tensão que sentia.

- Nem sugiras uma coisa dessas, marota! Mexe-te!

 

Deborah afastou-se da mão de Joanna, arrancou com o carro e retrocedeu.

 

- Bem, conseguimos, se é que valeu a pena - disse Deborah, ao manobrar o carro pelo caminho cheio de curvas. -Acho que nos devemos congratular com isso, mesmo que o prémio seja uma grande desilusão.

 

- Não conseguimos enquanto não passarmos o portão em segurança - disse Joanna.

 

- Deve ser tecnicamente verdade - anuiu Deborah. Parou em frente ao portão, na linha branca indicada.

 

Joanna susteve a respiração durante o breve intervalo antes de o portão começar a abrir lentamente.

 

Momentos depois, Deborah acelerava pelo túnel debaixo da Portaria e para a liberdade.

 

Joanna descontraiu-se visivelmente e Deborah reparou nisso.

- Estavas mesmo aflita, há pouco? - perguntou.

 

- Estive aflita o dia todo - admitiu Joanna. Abriu o sobrescrito e retirou a papelada,

 

Deborah olhou para Joanna enquanto virava à direita, para a Rua Pierce, em direcção a Bookford.

 

- Que vais fazer, ler um bocadinho a caminho de casa?

 

- Na verdade, tenho uma ideia - anunciou Joanna. - E é mesmo boa, como tu decerto concordarás.

 

Começou a vasculhar nos papéis, à procura de duas páginas em especial, mas com cuidado para não pôr o resto fora de ordem. Demorou vários minutos.

 

- Vais contar-ma ou essa grande ideia é segredo? - perguntou Deborah, por fim. Estava ligeiramente agastada com o silêncio de Joanna.

 

Joanna sorriu de si para si. Apercebeu-se de que, por não ter concluído o raciocínio, sujeitara Deborah ao seu próprio maneirismo de discurso irritante. Apreciando a vingança, só respondeu depois de ter isolado as páginas adequadas e de ter colocado o resto no banco de trás.

 

- Voílà! - exclamou ela. Ergueu os papéis para Deborah os poder ver. Deborah desviou os olhos da estrada o tempo bastante para perceber que Joanna segurava nas páginas dos pormenores sobre as duas crianças que tinham supostamente nascido dos seus óvulos.

 

- Está bem, estou a ver o que tens aí. Qual é a grande ideia?

 

- Estas crianças devem ter ambas cerca de sete ou oito meses de idade - disse Joanna. - Quer dizer, se existirem,

 

- Sim, e depois?

 

-Temos nomes, moradas e números de telefone -continuou Joanna. - Sugiro que lhes telefonemos e, se eles quiserem, que os visitemos.

 

Deborah deitou uma olhadela a Joanna com uma expressão de completa incredulidade,

 

- Estás a brincar - disse. - Diz-me que estás a brincar.

 

-Não estou a brincar- asseverou Joanna. -Tu é que sugeriste que isto é falso. Vamos descobrir. Pelo menos, uma das moradas é já aqui em Bookford.

 

Deborah encostou o carro na estrada. Estavam em frente à Biblioteca pública, na esquina da Rua Direita com a Rua Pierce. Desengatou a mudança e virou-se para encarar Joanna.

 

- Lamento desapontar-te, mas não me parece que visitar estas pessoas seja boa ideia... de todo. Um telefonema é uma coisa, agora uma visita, não.

 

- Ligamos primeiro - propôs Joanna. - Mas se as crianças existirem, quero vê-las.

 

- Isso nunca fez parte do plano - contrapôs Deborah. - Só íamos saber se havia crianças. Nunca falámos em visitas. Não é saudável, nem acho que os pais o apreciem.

 

- Não lhes vou dizer que fui a dadora - disse Joanna. - Se é isso que te preocupa.

 

- Eu estou preocupada contigo - disse Deborah. - Saber que uma criança existe é uma coisa, vê-la na realidade é outra. Não acho que devas passar por isso. Isso é atrair desconforto emocional.

 

- Não me vai causar desconforto emocional nenhum - garantiu Joanna. Será reconfortante. Vai-me fazer sentir bem.

 

- Isso é o que o viciado disse com a primeira dose de heroína - disse Deborah.

- Se as crianças existirem e tu as vires, vais querer vê-las novamente, e isso não é justo para ninguém.

 

-Não me vais dissuadir disto -rematou Joanna. Sacou dotelemóvel e começou a marcar o número do Sr. e da Sr.a Harold Sard. Olhou para Deborah quando a chamada seguiu. Só o facto de tocar significava que o número era verdadeiro.

 

- Está, Sr.a Sard? - perguntou Joanna quando atenderam o telefone.

- Sim, quem fala?

 

- Fala Prudence Heatherly, da Clínica Wingate - disse Joanna. - Como vai o pequenito?

 

- Jason está óptimo - respondeu a Sr.a Sard. - Estamos muito contentes. Ele está a começar a gatinhar.

 

Joanna ergueu as sobrancelhas para Deborah.

 

- Já está a começar a gatinhar! Que maravilha! Ouça, Sr.a Sard, estou a ligar porque gostaríamos de acompanhar um pouco o Jason. Seria possível que eu e outra colega da Clínica Wingate os fôssemos visitar?

 

- Claro! - disse a Sr.a Sard. - Se não fosse o vosso trabalho duro, nós não teríamos esta alegria. Ele é uma bênção. Queríamos um filho há tanto tempo. Quando é que gostariam de cá passar?

 

- Daqui a meia hora dá-lhe jeito?


-Perfeitamente. Ele já acordou da sesta, deve estar bem disposto. Tem amorada?

- Tenho, mas davam-me jeito umas indicações - disse Joanna.

 

As indicações eram simples. Bastava virar à esquerda na Rua Direita, entrar na vila e virar na primeira a seguir à drogaria RiteSmart. A casa era ao estilo dos anos

60, com pisos de níveis diferentes, imitação de tijoleira saliente na fachada principal e a precisar seriamente de uma pintura. Em contraste, via-se um balouço de criança novinho em folha, resplandecendo à luz da tarde de um dos lados da modesta casa.

 

Deborah entrou no acesso e parou atrás de uma carrinha Ford. Reparou no balouço.

 

- Um balouço novo para uma criança de seis meses! Ora aqui está um papá ansioso!

 

- A mulher disse que queriam um filho há muito tempo.

 

- Não parece uma casa de alguém que possa pagar as somas que a Wingate cobra.

 

Joanna assentiu.

 

-Faz-nos pensar onde é que arranjaram o dinheiro. A infertilidade desespera os casais. Costumam pedir outra hipoteca da casa ou um empréstimo, mas ao ver esta casa não me parece que essas hipóteses sejam plausíveis.

 

Deborah virou-se para Joanna.

 

- Ou seja, provavelmente, ficaram com pouco dinheiro para o encargo financeiro que uma criança representa. Tens a certeza de que pretendes seguir com isto? É que pode ser muito desolador lá dentro, e perturbador. Aconselho-te a darmos meia volta e irmos embora, não faz mal a ninguém.

 

- Quero ver a criança - disse Joanna. - Confia em mim! Eu aguento-me. Abriu a porta e saiu. Deborah fez o mesmo do seu lado, e as duas dirigiram-se ao alpendre. De saltos altos, Deborah tinha de ter cuidado para evitar os muitos buracos no chão. Mesmo assim, perdeu o sapato e teve de se dobrar para o recuperar.

 

- Faz-me um favor e dobra os joelhos quando fizeres isso - pediu Joanna. Já estou a ver como é que atraíste a atenção do Randy no bebedouro.

 

- A tua inveja não tem limites - provocou Deborah. As mulheres subiram os degraus da frente.

 

- Estás pronta para isto? - perguntou Deborah com o dedo na campainha da porta.

 

- Toca lá à campainha! - exclamou Joanna. - Estás a empolar a situação! Deborah tocou à campainha, que se fez ouvir dentro da casa. o toque era uma melodia.

 

- Que toque simpático - disse Deborah, sarcástica.

 

- Não sejas tão crítica! - queixou-se Joanna.

 

A porta abriu-se e, através dovidro sujodopostigo, as mulheres puderam ver uma mulher algo obesa com uma bata vestida e um bebé de cabelo Preto ao colo. Quando a porta se abriu e elas puderam ver melhor, as mulheres ficaram ambas imediatamente boquiabertas. Deborah até se desequilibrou nos saltos altos, e só se agarrando ao corrimão é que conseguiu recuperar a compostura.

 

Paul Saunders tinha coisas mais importantes a fazer do que encontrar-se com Kurt Hermann. Até teve de adiar a autópsia que ia fazer com Greg Lynch nos porquinhos nados-mortos na quinta. Todavia, Kurt dissera que era crucial que falassem imediatamente, e Paul anuíra relutante, especialmente quando Kurt insistira que se encontrassem na casa da Portaria, longe de ouvidos alheios, Paul sabia que havia marosca, mas não estava preocupado. Confiava nas capacidades e na discrição de Kurt, pelas quais lhe pagava muito bem... mesmo muito bem!

 

Ao aproximar-se da estrutura atarracada, Paul recordou a última vez que lá estivera. Já passara mais de um ano desde o acidente da anestesía. Lembrava-se muito bem da eficiência e autodomínio com que Kurt lidara com a crise, e essa recordação contribuía para a compostura de Paul.

 

À porta, Paul raspou a lama que os sapatos tinham apanhado por ter passado pelo relvado ensopado que ainda recuperava da neve do Inverno. Uma vez lá dentro, encontrou o chefe da segurança à secretária do seu gabinete espartano. Paul puxou uma cadeira.

 

- Temos um problema de segurança - disse Kurt com a sua característica serenidade. Tinha os cotovelos na mesa e as mãos entrelaçadas no ar. Esticava os dedos indicadores para Paul, como que para enfatizar o raciocínio, mas de resto não havia mais sinal nenhum de emoção ou pânico.

 

- Estou a ouvir - disse Paul.

 

-Começaram hoje duas novas funcionárias -prosseguiu Kurt. - Uma Georgina Marks e uma Prudence Heatherly. Presumo que as entrevistou como costuma fazer.

- Claro - replicou Paul. Visualizou imediatamente Georgina e o seu corpo curvilíneo.

 

- Fiz alguma investigação. Elas não são quem disseram ser.

- Explique-se!

 

- Usaram nomes falsos - continuou Kurt. - Georgina Marks e Prudence Heatherly eram da zona de Boston, mas faleceram há pouco tempo.

 

Paul engoliu em seco para tentar aliviar a boca subitamente seca.


- Quem são? - perguntou, e limpou a garganta. - Temos alguma ideia?

 

- Sabemos o nome de uma delas - respondeu Kurt. - É Deborah Cochrane. o carro que conduzia está registado em nome dela. Ainda não se sabe o nome da outra, mas dentro em breve terei essa informação. A morada que deram é incorrecta, mas temos a morada verdadeira, pelo menos da Deborah Cochrane, e neste momento presumo que seja a morada correcta das duas.

 

- Parabéns por descobrir isto tão depressa - disse Paul.

 

- Ainda não é hora de desejar parabéns - disse Kurt. - Há mais. Ainda estou a ouvir- ripostou Paul. Estava nervoso. Ficara momentaneamente aflito ao pensar que, como Kurt era tão bom, se calhar já descobrira que ele convidara a mulher de nome Georgina para sair e que tinha levado tampa.

 

- Randy Porter descobriu que a mulher de nome Prudence Heatherly conseguiu descarregar e imprimir um dos seus ficheiros delicados. É um ficheiro chamado Dadoras.

 

- Valha-me Deus! - estalou Paul. - Como é que isso aconteceu? Aquele maluco informático assegurou-me que os meus ficheiros estavam seguros.

 

- Não sou assim tão entendido em computadores como deveria ser - admitiu Kurt - Mas Randy disse que ela teve a ajuda do Dr. Spencer Wingate, a quem eu creio que elas seduziram.

 

Paul teve de se endireitar segurando nos lados da cadeira. Sabia que Spencer não regulava bem, mas isto era de mais.

 

- Como é que ele a ajudou?

 

- Adicionando o nome dela como utilizadora do ficheiro - disse Kurt. Quase que tive de arrancar essa informação à força ao Randy, mas foi o que ele disse.

- Está bem! - exclamou Paul, sentindo as faces coradas. - Eu falo com Spencer para saber a versão dele, ainda que deva precisar da sua ajuda com ele também. Entretanto, trate das mulheres e seja tão eficiente como foi com aquela morte infeliz por anestesia, se é que me percebe. Não quero que estas mulheres saiam daqui de moto próprio e de preferência que não saiam mesmo. E quero o ficheiro que foi impresso.

 

Quando acabou estava praticamente a gritar.

 

- Infelizmente, as mulheres já foram - disse Kurt, mantendo a calma apesar do fervor crescente de Paul. - Assim que eu soube disto tentei apanhá-las e detê-las. Parece que assim que conseguiram o ficheiro desapareceram.

 

- Quero que as encontre e se livre delas! - vociferava Paul, enquanto apontava o dedo repetidamente a Kurt. Não quero saber como o faz, faça-o! E de maneira que não implique a Wingate. Temos de conter isto!

 

- Nem é preciso dizer - ripostou Kurt. - E, como já reflecti nisto, apraz-me dizer que creio ser muito fácil. Primeiro, temos a morada, ou seja, acesso rápido às mulheres. Segundo, as mulheres sabiam que o seu comportamento era criminoso, de modo que não devem ter contado a ninguém o que pensavam fazer. Aliás, pelo menos uma delas foi dadora cá, o que revela um motivo pessoal para querer o ficheiro e não alguma cruzada social. Tudo isto quer dizer que, embora seja uma grande falha de segurança, pode ser contida se agirmos depressa.

 

- Então, aja depressa - gritou Paul. - Quero isto tratado o mais tardar esta noite. Estas mulheres podem causar-nos uma grande dor de cabeça.

 

-Já tomei providências para ir aBoston - disse Kurt. Levantou-se e, ao fazê-lo, assegurou-se de que Paul reparava na pistola automática Glock que ele tirara da gaveta da secretária. Queria ter o crédito que a seriedade da situação lhe merecia. Porém, a reacção de Paul foi diferente da que Kurt esperava. Em vez de fingir que não via, Paul perguntou se ele lhe podia emprestar outra para essa noite. Kurt assim fez, com satisfação. Esperava que fosse o próprio Paul a resolver o problema Spencer Wingate. Afinal, ter dois potenciais comandantes às turras um com o outro podia ser uma situação complicada.

 

Joanna ainda tremia do choque inicial da realidade que se lhe deparava, e sentia que Deborah partilhava dos seus sentimentos com idêntica intensidade. A Sr.a Sard convidara-as a entrar e insistira em servir café. Mas Joanna não tocara na chávena. A casa estava tão suja que ela teve receio. Havia comida que parecia iogurte com semanas no sofá onde Joanna estava sentada. o chão estava atulhado de brinquedos e roupa suja. Pairava no ar o cheiro a fraldas sujas. Na cozinha, para onde Joanna espreitara ao entrar, a louça por lavar empilhava-se em vários sítios.

 

A Sr.a Sard mantivera uma conversa ininterrupta que incidia no bebé, o qual se agarrou a ela como um marsupial durante a maior parte da visita. Ela estava manifestamente contente com a visita inesperada, dando a Joanna a impressão de que ansiava por companhia.

 

- Então, o bebé tem sido saudável? - perguntou Joanna quando a Sr.a Sard parou para tomar fôlego,

 

- Bastante saudável - respondeu a Sr.a Sard. - Embora nos tenham dito há pouco que ele tem uma ligeira surdez de percepção.

 

Joanna não fazia ideia do que fosse surdez de percepção, e, embora não tivesse aberto a boca durante toda a visita, conseguiu perguntar o que era.

 

- É surdez causada por um problema no nervo auditivo - explicou Deborah.


Joanna fez um aceno, mas não estava muito certa de ter percebido. Mesmo assim não insistiu. Preferiu olhar para as próprias mãos, que tremiam. Tapou rapidamente uma com a outra, o que ajudou consideravelmente. Porém, queria mais que tudo sair dali,

 

-   Que mais posso dizer-lhes acerca deste fofinho? - indagou a sr.a Sard. Tirou orgulhosamente o bebé de cima do ombro e sentou-o no joelho.

 

Joanna pensou que ele era querido, como qualquer bebé, mas achava que seria mais bonito se estivesse mais asseado. o pij ama estava enxovalhado à frente, o cabelo estava sujo e havia papas secas agarradas tenazmente às bochechas.

 

- Bem, acho que temos as informações de que precisamos - disse Deborah. Levantou-se e uma Joanna agradecida imediatamente a imitou.

 

- Não querem mais café? - perguntou a Sr.a Sard com um tom desesperado na voz,

 

-   Acho que já abusámos da sua boa vontade - replicou Deborah.

 

A sr.a Sard tentou protestar, mas Deborah insistiu. Relutante, a Sr.a Sardacompanhou as visitas à porta e ficou no alpendre a vê-las afastarem-se. Quando chegaram ao carro, Deborah olhou para trás e a Sr.a Sard estava a abanar o braço do bebé para dizer adeus.

 

- Vamos embora daqui - desabafou Joanna assim que fecharam as portas. Evitou propositadamente olhar para a criança.

 

- Estou a tentar - disse Deborah. Ligou o motor e recuou no acesso. Conduziram alguns minutos sem falar. Estavam ambas gratas por se afastarem dalí.

- Estou horrorizada! - disse Joanna, quebrando finalmente o silêncio,

 

- Não sei como é que não se poderia estar - corroborou Deborah.

 

- o que me espanta é que a mulher age como se não percebesse - disse Joanna.

- Talvez não perceba, mas, mesmo que o faça, provavelmente quer um filho há tanto tempo que nem se importa, Os casais inférteis costumam estar desesperados.

- Tu percebeste logo? - perguntou Joanna.

 

- Evidentemente - afirmou Deborah. - Quase caí do maldito alpendre abaixo.

- Como é que associaste?

 

- Por tudo - respondeu Deborah. - Mas, se tiver que resumir, acho que a pista está na madeixa branca do cabelo do bebé, Quer dizer, salta à vista, especialmente num bebé de seis meses.

 

-Reparaste nos olhos da criança? -Joanna estremeceu como se sentisse arrepios.

- Com certeza - declarou Deborah. - Fazem-me lembrar um husky que os meus tios tinham, ainda que os olhos do cão tivessem cores ainda mais distintas.

 

- o que me incomoda mesmo é que se calhar o primeiro clone teve de ser clonado de um dos meus óvulos.

 

-Eu compreendo o que sentes -asseverou Deborah. -Mas o que me incomoda ainda mais é quem o fez e a quem clonou. Paul Saunders não é o tipo de pessoa de quem o mundo precise de uma cópia. Ao clonar-se a si próprio mostra que é ainda mais egocêntrico e presumido e arrogante do que eu alguma vez imaginei, embora eu aposte que ele alegaria que o fez em prol da ciência ou da humanidade, ou outra justificação ridícula.

 

- Pelo menos, não há nada meu naquela criança - disse Joanna. De momento, não conseguia ver além do aspecto pessoal da calamidade.

 

- Detesto dizer-te isto, mas acho que não é bem assim - disse Deborah. - o óvulo contribui com o ADN das mitocôndrias. A criança tem as tuas mitocôndrias.

- Nem vou perguntar o que são mitocôndrias - disse Joanna. - Não quero saber, porque não quero crer que haja algo meu naquela criança.

 

- Bem, sabemos agora por que é que a taxa de sucesso com os teus óvulos foi tão baixa. A clonagem por transferência nuclear é assim. Por outro lado, correu melhor do que com os indivíduos que clonaram a ovelha Dolly. Acho que fizeram duzentas tentativas antes de conseguirem uma positiva, Tu tens quatro positivas em menos de trezentas.

 

- Estás a tentar fazer uma piada doentia? - questionou Joanna. - É que se estás, eu não acho graça nenhuma.

 

- Estou a falar a sério - disse Deborah. - Devem estar a fazer alguma coisa bem feita. A estatística deles é mais de duas vezes superior.

 

- Não sou eu que os vou congratular - comentou Joanna. - Tudo isto me dá vómitos. Quem me dera não ter lá ido, sinto-me tão mal.

 

- Eu nunca diria algo como «eu bem te disse» - provocou Deborah. - Nunca faria uma coisa dessas. Seria demasiado cruel.

 

Joanna sorriu a despeito do seu desgosto. Era espantoso como Deborah conseguia sempre animá-la apesar das circunstâncias.

 

- Mas tenho outra sugestão, se tu fores capaz.

 

- Odeio perguntar o que tens em mente - disse Joanna.

 

- Acho que devíamos visitar a segunda criança, para ver se o nosso receio é justificado.

 

Conduziram em silêncio algum tempo, enquanto Joanna ponderava a sugestão.

- Não vai piorar as coisas - comentou por fim Deborah. - Já aguentámos o choque, e pode ajudar-nos a decidir o que vamos fazer, se é que faremos alguma coisa. É um busilis que evitámos laboriosamente.

 

Joanna assentiu. Deborah tinha toda a razão a este respeito, Não somente não tinham debatido o que iriam fazer, como a própria Joanna evitara propositadamente pensar nisso. Tirando a comunicação social, que as iria implicar também a elas, a quem poderiam contar? o problema é que tinham conseguido a informação cometendo um crime. Joanna não conhecia bem a lei, mas sabia que ao obter provas de modo criminoso afectava a sua utilidade. Ainda por cima, nem sabia se a clonagem humana efectuada por uma clínica privada era contra a lei no Estado do Massachusetts.

 

- Está bem - anuiu Joanna, impulsivamente. - Vamos tentar ver a segunda criança. Mas se for a mesma situação, não entramos.

 

Procurou a segunda folha de papel e agarrou no telemóvel.

 

o apelido da segunda criança era Webster, e os Webster viviam numa vila alguns quilómetros a caminho de Boston. Joanna fez a chamada. o telefone tocou mais de cinco vezes. Estava quase a desligar quando uma mulher quase sem fôlego atendeu.

 

A conversa com a Sr.a Webster foi quase idêntica à da Sr.a Sard, à excepção da primeira se encontrar ofegante. Explicou que correra para o telefone porque tinha acabado de tirar Stuart do banho. Mais importante ainda, convidou as mulheres a passarem por lá e deu indicações explícitas.

 

- Pelo menos, o bebé vai estar limpo - disse Joanna enquanto guardava o telemóvel.

 

Meia hora depois, as mulheres paravam no acesso a uma casa que era a antítese da dos Sard. Esta, em comparação, era uma mansão em tijolo ao estilo colonial, com enormes chaminés que sobressaíam como ervas daninhas num jardim. As mulheres miraram a casa e os relvados cuidadosamente aparados, ornamentados por erupções de magnólias e cornízos.

 

- Tenho de admitir que o Dr. Saunders tem gostos eclécticos na sua escolha de padrastos - comentou Deborah. - Quer dizer, se esta criança for outro clone.

- Vá lá! - instou joanna. - Vamos despachar isto.

 

As mulheres subiram as escadas de lajeado com alguma reserva. Nenhuma delas estava inteiramente certa de que queria avançar, mas ambas se sentiam impelidas. Joanna tocou à campainha.

 

Mais umavez, tanto Joannacomo Deborah souberam imediatamente que acriança era um clone de Paul Saunders, o bebé era idêntico ao dos Sard, com a mesma madeixa branca, as mesmas íris heterocrómicas e o mesmo nariz abatatado.

 

A Sr.a Webster era tão atenciosa como a Sr.a Sard, sem a aparente fome de companhia desta última. Convidou as mulheres a entrar, mas estas declinaram e insistiram em ficar no alpendre.

 

Dado que Joanna tivera tempo de recobrar emocionalmente do choque inicial, já pôde participar mais na breve conversa com a Sr.a Webster do que fizera com a Sr.a Sard. Do mesmo modo, deparar com uma criança limpa num ambiente mais propício ao bem-estar do bebé tornava o episódio mais tolerável. Por curiosidade, Joanna perguntou se o bebé tinha problemas de audição. Responderam-lhe que sim, e o problema parecia equivalente ao do bebé dos Sard.

 

Depois de sair da casa dos Webster, as mulheres ficaram silenciosas, cada qual absorta nos seus próprios pensamentos. Só quando chegaram à Estrada 2 e avançaram a velocidade de cruzeiro é que Deborah falou

 

Não quero bater mais no ceguinho, mas agora podes ver como fiquei desapontada por não conseguirmos entrar nos ficheiros de investigação da Wingate. A minha intuição diz-me que eles estão a fazer ali algo realmente errado e que esta clonagem em que tropeçamos é só a ponta do icebergue. Com a arrogância do Dr. Saunders, o céu é o limite. Clonar seres humanos já é errado o bastante.

 

- Não acho que seja errado acabar com o Saunders e companhia -disse Deborah. Aliás, se transpirar para a comunicação social que eles fazem clonagem, poderá haver uma debandada de casais inférteis à porta deles,

 

Que posso dizer? -balbuciou Joanna. - Como já disse, fiz o melhor que pude naquela sala do servidor.

 

Não te estou a censurar.

- Estás, sim!

 

Está bem, um pouco, talvez. É tão frustrante.

 

Tornaram a ficar em silêncio. o motor ronronava. À distância, podia-se ver o horizonte urbano de Boston.

 

Espera aí! - explodiu Deborah subitamente, sobressaltando Joanna. - o choque de descobrir a clonagem fez-nos esquecer os óvulos!

 

Do que é que estás a falar? - inquiriu Joanna.

- o número de óvulos que eles supostamente te tiraram - disse Deborah. COMO é que eles puderam tirar centenas, a menos que...

 

Deborah interrompeu-se e ficou a olhar para o vidro com uma expressão horrorizada. -

 

Amenos que quê? -exigiu Joanna. Naquelas circunstâncias achava ainda mais

irritante a mania de Deborah a deixar suspensa.

 

-Olha para o ficheiro de dadoras -disse Deborah, rapidamente -e vê se há mais dadoras que deram centenas de óvulos.

 

Resmungando entre dentes, Joanna inclinou-se para o banco de trás e trouxe o pesado ficheiro para cima do colo. Começou pelo princípio e não teve que folhear muito.

 

Há muitas. E aqui está uma ainda mais impressionante. Anna Alvarez deu quatro mil duzentos e cinco!

 

- Só podes estar a gozar!

 

- Não estou nada - asseverou Joanna. - Aqui está outra dadora aos milhares: Marta Arriaga. E mais outra: Maria Artiavia.

 

- Parecem nomes hispânicos.

 

-Pois parecem - concordou Joanna. - Aqui está outra, ainda mais espantosa: Mercedes Avila, supostamente, doou oito mil setecentos e vinte e um!

 

- Procura e vê se há indicação de que todos esses óvulos foram individualmente implantados como os teus.

 

Joanna virou a página do ficheiro de Mercedes Avila e percorreu a coluna com o dedo,

 

- Parece ser o caso.

 

-Então, é porque todas se destinavam aclones de transferência nuclear - disse Deborah. - Todas têm o nome de Paul Saunders; a seguir?

 

- A maioria - disse joanna. - Algumas têm o nome de Sheila Donaldson, também.

 

-Eudeviater adivinhado -disse Deborah. -Trabalham juntos. Mas diz-me! Se folheares os nomes, há muitos hispânicos ou foi só nos As?

 

Joanna fez o que Deborah indicou. Levou alguns niinutos.

 

- Sim, parece que há vários e todas deram milhares de óvulos,

 

- Será essa a ligação nicaraguana? - questionou Deborah com um arrepio.

- Como assim?

 

-Os embriões femininos têm o número máximo de óvulos nos ovários que terão durante a vida inteira da pessoa - explicou Deborah. - Li algures que, em dada etapa do desenvolvimento embrionário, o embrião feminino tem perto de sete ou oito milhões, enquanto ao nascer tem somente um milhão e na puberdade trezentos ou quatrocentos mil. As almas penadas de Paul Saunders e de Sheila Donaldson podem pensar que o embrião feminino é uma mina de ouro.

 

- Não sei se gosto do que estás a sugerir - disse joanna.

 

- Eu também não - corroborou Deborah. - Mas, infelizmente, bate certo. As mulheres da Nicarágua podem estar a deixar que lhes façam implantação e depois sujeitam-se a abortos às vinte semanas só para tirar os óvulos.

 

joanna desviou o olhar para a janela lateral enquanto estremecia com uma onda de repulsa. o que Deborah dizia era tão horrendo como a clonagem, com implicações no papel da mulher e na falta de santidade da vida humana. Reprimiu com dificuldade um torvelinho de emoções que ameaçavam borbulhar à superfície. Deu consigo a desejar nunca ter tido nada a ver com a Clínica Wíngate, Ter estado envolvida como dadora fazia-a sentir-se cúmplice.

 

- o problema, com este cenário a continuar, é que é legal. Poderia ser um desastre de relações públicas por acontecer numa clínica de infertilidade, mas seria difícil fazer alguma coisa se as mulheres não estiverem sob coacção.

 

- Pagar-lhes é uma forma de coacção! - estalou Joanna, - As mulheres são pobres e vêm de um país do Terceiro Mundo!

 

- Acalma-te! Estamos a tentar debater isto.

 

- Não me vou acalmar! - protestou Joanna. - E que ideia era essa a respeito dos meus óvulos que tu não acabaste? Odeio quando me deixas pendurada assim.

- Ah, pois, desculpa - disse Deborah. - A ligação nicaraguana despistou-me.

 

A única maneira que eu imagino para que eles possam ter tirado tantos óvulos foi removerem o ovário todo.

 

Joanna abanou como se Deborah a tivesse esbofeteado. Teve de sacudir a cabeça para se voltar a concentrar. Com voz trémula, Joanna pediu a Deborah que repetisse, não fosse ela ter percebido mal.

 

deborah tirou os olhos da estrada para olhar rapidamente para a companheira de quarto. Podia perceber pela voz de Joanna que esta estava emocionalmente instável.

- Estou só a pensar em voz alta - explicou Deborah. - Não te passes já da cabeça.

 

- Tenho o direito de me passar se tu sugeres que me tiraram o ovário - disse Joanna, calma e aparentemente controlada.

 

- Então, arranja tu uma explicação alternativa para tantos óvulos - desafiou Deborah. -Isto é uma sessão de troca de ideias para compensar a falta de informação. Joanna dominou-se e tentou arranjar outra explicação, como Deborah sugerira.

 

Só com a biologia da escola secundária e as conversas de balneário como bases de tecnologia reprodutiva, não tinha muito a que se agarrar.

 

- o máximo de óvulos obtidos por hiperestimulação ovariana, que eu saiba, é cerca de vinte - disse Deborah, - A obtenção de centenas indica-me alguma espécie de cultura de tecido ovariano.

 

- É possível cultivar tecido ovariano? - indagou Joanna. Deborah encolheu os ombros.

 

- Sabes, não faço a menor ideia. Sou bióloga molecular e não bióloga celular. Mas parece-me razoável,

 

- Se me tiraram um ovário - perguntou Joanna -, como é que isso me vai afectar?

 

-  Vejamos - disse Deborah, franzindo o rosto como se reflectisse profundamente. - Com metade da produção habitual de estrogéneo, o teu nível de testosteronaadrenal duplicaria relativamente. Significa isto que vais ficar com barba, perder o peito e ficar careca.

 

Joanna contemplou a companheira de quarto com renovado horror.

- Estou a gozar! - gritou Deborah, - É para te rires.

 

- Receio não achar graça nenhuma a isto.

 

- Na verdade, não vai fazer diferença - disse Deborah. - Talvez uma ligeira baixa estatística na tua fertilidade, visto que estás reduzida a ovular só comum ovário, mas nem estou certa disso.

 

- Mesmo assim, a ideia de nos arrancarem um ovário é horrorosa - disse Joanna, pouco apaziguada. - É como uma violação, só que ainda pior.

 

- Concordo plenamente - disse Deborah.

 

- Por que é que só mo fizeram a mim e não a ti?

 

- Outra boa pergunta - observou Deborah. - Eu diria que é porque eu me recusei alevar anestesiageral. Para extrair um ovário devem ter feito uma laparoscopia, no mínimo, e não apenas uma agulha guiada por ultra-som.

 

Joanna fechou os olhos, Desejou não ter sido tão cobarde a respeito de procedimentos médicos quando fizera a doação. Devia ter seguido o conselho de Deborah.

 

- Lembrei-me de uma coisa - anunciou Deborah.

 

Joanna ficou imóvel. Prometeu a si mesma que não iria perguntar. Seguiram em silêncio quase dois minutos.

 

- Não me vais perguntar?

 

- Se me quiseres dizer... - retrucou Joanna.

 

- Se pudermos provar que te retiraram um ovário, poderemos ter alguma coisa. Não digo que o tiraram, mas, se assim foi, podemos ter recurso legal. Quer dizer, tirarem-te o ovário sem o teu consentimento equivale tecnicamente a agressão e roubo, o que é crime.

 

- Pois, e como é que se consegue provar? - indagou Joanna, sem entusiasmo.

- o que seria preciso, abrir-me e vasculhar-me? Não, obrigada.

 

- Não me parece que fosse preciso abrirem-te - redarguiu Deborah. - Acho que se pode ver numa ecografia. Sugiro que telefones ao Carlton, lhe explíques o que quiseres e lhe digas que precisas que ele veja se te falta um ovário.

 

É algo irónico, tu sugerires que eu ligue ao Carlton - salientou Joanna. Não te estou a dizer que cases com ele, por amor de Deus! - barafustou Deborah. -Tira partido do facto de ele ser médico no hospital. Os médicos residentes dão-se uns com os outros, parece uma república académica, Estou certa de que ele poderá arranjar maneira de fazeres uma ecografia.

 

- Já estou em casa há três dias e ainda nem lhe liguei - lamentou Joanna. Sinto-me culpada por lhe telefonar assim de repente e pedir um favor.

 

- Oh, porfavor! -gemeu Deborah. -A tuaeducação sulista estáa reafirmar-se. Quantas vezes tenho de te dizer que os homens podem ser usados tal e qual como eles usam as mulheres ? Desta vez, em vez de o usares para te divertires, é para fazeres uma ecografia. Grande coisa!

 

Joanna imaginou como seria a conversa com Carlton. Na sua perspectiva, não seria tão fácil como Deborah a via. Entretanto, Joanna queria saber se fora ínteriormente violada ou não. Aliás, quanto mais pensava nisso mais tinha que saber.

 

- Está bem! - proferiu Joanna, e pegou no telemóvel. - Vou ligar-lhe.

- Linda menina - rematou Deborah.

 

10 de Maio de 2001

18:30 h.

A Praça Louisburg ficava ao cimo da encosta de Beacon Hill, subindo a Rua Mount Vernon. virando à esquerda, tanto para a entrada superior como inferior da praça. Era uma praça rectangular, formada por fileiras de casas de tijolo, maioritariamente de fachada angular, com janelas grandes com persianas. o centro da praça era um retalho de relva diminuta e pisada, cercado por uma vedação alta e imponente de ferro-forjado. As árvores eram ulmeiros centenários que tinham de algum modo sobrevivido aos danos da moléstia holandesa. Encontravam-se em cada extremo arbustos modestos com uma única peça de estatuária desgastada pelas intempéries.

 

Kurt encontrara a praça sem dificuldade, apesar do seu desconhecimento da cidade de Boston, em geral, e da profusão de estradas de um só sentido em Beacon Hill, em particular. Porém, o estacionamento era outra questão. o estacionamento da praça estava discretamente identificado COMO PRIVADo e tinha o aviso de que quem quisesse experimentar a restrição teria o veículo rebocado. Kurt não queria ser rebocado. Conduzia uma das carrinhas pretas da segurança da Clínica Wingate, mas sem marcas exteriores, com um compartimento separado na parte de trás. Neste compartimento havia uma variedade de coisas de que ele poderia precisar, assim como espaço para passageiros não cooperantes.

 

o plano de Kurt fora um mero esboço desde o princípio, pois presumia que levaria as mulheres de volta à Wingate. Pensara localizar as mulheres e depois improvisar, mas de momento ainda estava só no reconhecimento do terreno. Era a terceira vez que passava pela praça. Da primeira localizara o edifício, que era o primeiro à direita. Parara o suficiente para reparar que tinha cinco andares, um sótão e mais um piso parcialmente abaixo do nível do solo. Se havia ou não uma cave, ele não sabia. Tinha uma entrada à frente ao cimo de cinco degraus. Presumiu que havia outra porta nas traseiras, mas aí havia uma parede de tijolo até ao primeiro andar a tapar a visibilidade.

 

Na segunda passagem ele reparara no grau de actividade da zona. Havia obras de beneficiação um pouco por todo o lado, de modo que havia trabalhadores e viaturas das obras. Dentro da praça estavam várias crianças, dos quatro ou cinco aos onze ou doze anos. As respectivas amas ou entretinham-se a conversar ou estavam absorvidas com os seus meninos.

 

Desta terceira volta, Kurt tentava decidir onde estacionar a carrinha. A maioria dos trabalhadores das obras já tinha saído, de modo que havia espaços livres. Decidiu que o melhor seria na extremidade da Rua Mount Vernon, apesar do sinal de ESTACIONAMENTO PRIVADO - afinal, as viaturas da construção não tinham sido rebocadas. Rodeando novamente o quarteirão, encostou à cerca. Ao virar a cabeça para a direita podia ter uma vista desimpedida do edifício em questão.

 

Nessa altura, a única preocupação de Kurt era não ter avistado o Chevy Malibu. Decorara o número da matrícula quando fizera a investigação, de modo que não receava confundi-lo com outra viatura. Presumira que depararia com o carro quando desse a volta à praça ou nas ruas vizinhas. Tal não acontecera.

 

A despeito da adrenalina que lhe corria nas veias, Kurt mantinha-se aparentemente calmo. A experiência dizia-lhe que era perigoso ceder ao entusiasmo de uma tal missão. Era importante ser lento e metódico para não cometer erros e, em simultâneo, manter vigilância como uma cobra enroscada, pronta a atacar quando a oportunidade se apresentasse.

 

Meteu a mão no fundo das costas e tirou a Glock para voltar a verificar o carregador. Satisfeito, voltou a pô-la no coldre. Em seguida, verificou a faca que tinha atado à canela. No bolso direito das calças tinha vários pares de luvas de borracha e no da esquerda uma máscara de esqui. No bolso direito do casaco tinha uma colecção de ferramentas para abrir fechaduras, com as quais praticara até ficar apto; no bolso esquerdo tinha vários dispositivos de injecção automática que continham um poderoso tranquilizante.

 

Sentado na carrinha há mais de meia hora, Kurt decidira que chegara a altura. o nível de actividade na praça diminuíra, mas não estava tudo tão calmo que ele desse nas vistas como estranho que era. Kurt saiu da carrinha e trancou-a. Depois de uma olhadela final e casual em redor da zona, encaminhou-se para o número um da Praça Louisburg.

 

Com as chaves da carrinha na mão, Kurt subiu os degraus até à porta da frente do edifício. Segurando nas chaves como se estivesse com dificuldade, Kurt usava as ferramentas para abrir a fechadura. Levou mais tempo do que esperara, mas o canhão cedeu finalmente aos seus esforços. Sem olhar para trás, Kurt empurrou a porta e entrou no prédio.

 

Os guinchos das crianças abrincar na praça desapareceram ao fechar a porta. Sem pressas, Kurt guardou as ferramentas e começou a subir as escadas. Sabia, pelo painel exterior das campainhas, que Deborah Cochrane e Joanna Meissner habitavam no quarto andar. Presumiu que Joanna Meissner fosse Prudence Eatherly, mas tencionava confirmar tal ideia.

 

A cada lanço de escadas, a excitação de Kurt aumentava. Adorava realmente o tipo de acção que antecipava. Podia imaginar Georgina Marcs trajada com o seu vestido indecentemente provocante. Queria apanhá-la viva e queria tê-la na sua vivenda nas instalações Wingate.

 

Chegado ao terceiro lanço, Kurt calçou um par de luvas. Tocou na Glock com a mão direita, mas manteve a arma no coldre, Preparava-se para bater com a mão esquerda quando ouviu a porta do prédio a abrir-se. Kurt não entrou em pânico, como teria sucedido a alguém menos experiente. Limitou- se a ir até ao corrimão e a espreitar para a escada. Pensara que seriam as mulheres, mas não. Era um homem sozinho a arrastar-se escada acima depois de um dia de trabalho. Kurt não conseguiu ver o homem, excepto pelo braço que se agarrava ao corrimão.

 

Kurt preparou-se para um eventual confronto, Tencionava começar a descer as escadas como se fosse a sair, caso o indivíduo chegasse ao terceiro andar. Porém, o estratagema não foi necessário. o homem parou no segundo andar, abriu uma porta e desapareceu. A escada voltou à quietude sepulcral.

 

Kurt voltou à porta do apartamento do quarto andar. Bateu com força bastante para que os ocupantes ouvissem, se lá estivessem, mas sem perturbar os vizinhos. Aguardou, mas não obteve resposta e, não ouvindo ruído algum lá dentro, começou a trabalhar com as ferramentas para abrir a fechadura. Tal como costumava acontecer, a porta do apartamento era um desafio superior à porta exterior, principalmente porque tinha duas fechaduras: uma normal e uma lingueta.

 

A fechadura normal foi fácil, mas a lingueta exigiu paciência. Finalmente, deu de si e abriu-se. No instante seguinte, jà Kurt estava dentro do apartamento e de porta fechada. Com uma agilidade que contrariava os anteriores movimentos lentos e deliberados, Kurt percorreu o apartamento para se certificar de que estava vazio, Não queria que tivessem hipótese de ligar à Polícia. Para ser rigoroso, verificou todos os quartos e armários. Até espreitou para debaixo das camas.

 

Assim que ficou satisfeito por estar sozinho, verificou a outra saída. Era uma escada de incêndio que ziguezagueava pelas traseiras dacasa abaixo. o acesso fazia-se pela janela do quarto das traseiras. À saída do quarto, Kurt viu uma fotografia de um jovem casal. A mulher parecia-se suficientemente com Prudence Heatherly, apesar do cabelo mais comprido, para Kurt ter a certeza de que as duas mulheres que ele perseguia eram companheiras de quarto e que Joanna Meissner era Prudence Heatherly.

 

Chegado ao vestíbulo, Kurt entrou na sala. Foi até à secretária e procurou papéis que indicassem alguma associação à Clínica Wíngate. Não encontrou nada, mas reparou em coisas relativas aos nomes falsos que as mulheres tinham usado. Kurt dobrou cuidadosamente estes documentos e meteu-os no bolso.

 

Prosseguindo, Kurtencontrou uma foto de Georgina. Preferíachamar-lhe Georgína em vez de Deborah. Na fotografia, Georgina tinha um braço em redor de uma mulher mais velha, que Kurt assumiu ser a mãe dela. Ficou espantado ao ver como Georgina parecia diferente de cabelo escuro e roupa decente. A sua transformação lasciva era claramente obra do demónio,

 

Kurt pousou a fotografia e abriu a primeira gaveta da cómoda. Meteu a mão e tirou um par de cuequinhas de renda, Apesardas luvas de borracha que lhe embotavam o tacto, houve algo na lingerie que o excitou.

 

Saindo do segundo quarto, Kurt passou pela sala e dirigiu-se à cozinha. Abrindo a porta do frigorífico, sentiu-se desapontado. Esperara encontrar uma cerveja fresca, e o simples facto de não haver contribuiu para a sua irritação.

 

Voltando à sala, Kurt retirou a Glock de detrás das costas e pousou-a no chão, Em seguida, sentou-se no sofá e olhou para o relógio. Já passava das sete e ele interrogava-se quanto tempo teria de esperar pelo regresso de Georgina e de Prudence.

 

- Chama-se «Síndroma de Waardenburg» - disse Carlton. Acenou com a cabeça, como se concordasse consigo mesmo, e depois recostou-se com uma expressão de orgulho no seu rosto jovial. Ele e as mulheres estavam sentados a uma mesa de fórmica, no centro da cafetaría na cave do MGH, onde ele as trouxera para comerem alguma coisa, já que nenhum tinha jantado. Carlton estava de banco nessa noite e avisara-as de que o podiam contactar a qualquer momento em caso de urgência.

 

- E o que é a Síndroma de Waardenburg, em nome de Deus? - perguntou Joanna, impaciente. A resposta de Carlton sugeria que ele não ouvira uma palavra do que ela dissera. Acabara de descrever o choque que ela e Deborah haviam tido ao descobrir as duas crianças clonadas.

 

- A Síndroma de Waardenburg é uma anormalidade do desenvolvimento explicou Carlton. - Caracteriza-se pela madeixa branca, pela surdez de percepção, pelos epicantos dos olhos e pela íris heterocrómica.

 

Joanna olhou para Deborah. Esta revirou os olhos indicando que pensara a mesma coisa. Era como se Carlton estivesse noutro planeta.

 

- Carlton, escuta! -instou Joanna, tentando ser paciente. -Nós não estamos em rondas hospitalares como as que me descreveste no passado. Não te estamos a avaliar, por isso não tens de te evidenciar com estas minúcias médicas. É a floresta que é importante, não a árvore.

 

- Pensei que queriam sabero que tem este médico que me descreveram - disse Carlton. - É um mal hereditário que envolve a migração de células auditivas da crista neural. Não admira que os miúdos clonados o tenham. Os filhos legítimos dele também o teriam.

 

- Estás a tentar sugerir que estes miúdos que descrevemos não são clones? questionou Joanna.

 

- Não, provavelmente são clones - retrucou Carlton. - Com a baralhada genéticahabitual que ocorreria num óvulo fertilizado normalmente, haveriapenetração variável, até dos genes dominantes. Os miúdos não seriam idênticos. Haveria uma variação significativa das mesmas características.

 

- Estás a tentar ser abstruso de propósito? - inquiriu Joanna.

- Não, estou a tentar ajudar.

 

- Mas ainda achas que estas crianças são clones, certo? - interveio Deborah.

- Absolutamente, da maneira como os descreveram - admitiu Carlton.

 

- Não ficas chocado? - indagou Joanna. - Não estamos a falar de moscas da fruta ou mesmo de ovelhas. Estamos a falar de clonar seres humanos.

 

- Para dizer a verdade, não estou assim muito surpreendido - admitiu Carlton, Inclínou-se para a frente outra vez. - Na minha opinião, era uma questão de tempo. Assim que clonaram a Dolly, eu achei que a clonagem humana acabaria por acontecer, e precisamente no tipo de ambiente que descreveram: uma clínica de infertilidade sem base universitária. Muitos dos tipos da infertilidade, especialmente os independentes, têm vindo a alardear a clonagem e a ameaçar fazer o mesmo desde que a Dolly chegou ao domínio público.

 

- Estou chocada por te ouvir dizer isso - afirmou Joanna.

 

Antes que Carlton pudesse replicar, opagertocou. Depois de olhar para o painel de cristais líquidos, empurrou a cadeira.

 

- Deixem-me saber o que se passa, Volto já!

 

Joanna e Deborah observaram-no a abrir caminho por entre as mesas vazias em direcção a um dos telefones de parede.

 

-A tua analogia da floresta e das árvores vem muitíssimo a propósito-comentou Deborah.

 

joanna assentiu,

 

- É ele que diz que está muito isolado aqui. Com a cabeça cheia de entradas enciclopédicas como a Síndroma de Waardenburg, não admira que não esteja inclinado a pensar no que se passa no mundo ou nas questões éticas. A clonagem vai pelo mesmo caminho.

 

- Nem ficou interessado no que lhe contámos das mulheres da Nicarágua disse Deborah. - Nem a teu respeito, a bem dizer.

 

Joanna assentiu com relutância. Carlton não mostrara grande empanho. Quando chegaram, Joanna estava preocupada com ele e fizera questão de pedir desculpas por não o ter contactado durante os três dias desde que chegara a Boston, Embora Carlton tivesse sido educado a respeito da ausência de contacto, Joanna ainda se sentira culpada por lhe pedir um favor, mas a sensação passara perante a falta de reacção de Carlton aos seus receios.

 

As mulheres haviam decidido que era melhor contar tudo a Carlton desde a doação dos óvulos. Ele escutara atentamente e só interrompera quando a conversa chegara à parte dos empregos na Wingate com nomes falsos e disfarces.

 

-Esperem lá! -exclamara Carlton, e olhara para Deborah. -Foi por isso que pintaste o cabelo e trazes esse vestido justo e reduzido?

 

- Achei que não tinhas reparado - dissera Deborah, o que resultara numa gargalhada abafada de Carlton, como se não fosse possível ignorar. Nesse ponto, Joanna perguntara a Carlton a sua opinião acerca do disfarce dela. Para consternação de Joanna, ele ripostara: - Qual disfarce?

 

A única parte de toda a história que cativara mesmo o interesse de Carlton fora a situaçãodos óvulos, Quando ouvira o número de óvulos envolvidos, a reacção dele, tal como a de Deborah, fora suspeitar que a Wingate desenvolvera uma técnica bem sucedida de cultura de tecido ovariano,junto com ahabilidade de desenvolver oócitos extremamente imaturos. Dissera às mulheres que tal avanço seria um desenvolvimento científico estimulante.

 

Quando as mulheres lhe revelaram por que precisavam de uma ecografia para Joanna, para verificar se esta tinha sido privada de um ovário, ele concordara em ver o que podia fazer e fizera alguns telefonemas. o facto de não ter tido uma reacção emocional fora uma surpresa para ambas as mulheres.

 

- Não quero falar de ânimo leve - disse Deborah, enquanto ela e Joanna observavam Carlton ao telefone. -Mas ainda estou mais contente agora por to já não estares comprometida com este homem.

 

- Não estás a falar de ânimo leve - garantiu-lhe joanna.

 

Carlton acabou aconversa, desligou o telefone e aproximou-se delas, depolegares levantados em sinal de aprovação.

 

- Está tratado! - exclamou, quando chegou à mesa, mas fez questão de não se sentar. - Era uma das radiologistas residentes que está de banco. Já combinámos a ecografia.

 

- Para quando? - perguntou Deborah.

 

- Agora mesmo! - dísse Carlton. - A máquina já está ligada e pronta a funcionar.

 

As mulheres levantaram-se e pegaram nos seus pertences.

 

- Nunca fiz uma ecogra-fia - disse Joanna. - Vai custar muito? Não preciso de vos lembrar que detesto agulhas.

 

- Não te vai custar nada - garantiu Carlton. - Não há agulhas à mistura. A pior parte é o gel, mas só porque é pegajoso, e depois é solúvel em água.

 

Entraram para o elevador e subiram ao piso da Radiologia. Carlton segurou na porta para elas saírem e apontou na direcção a seguir. Após várias curvas no departamento labiríntico, chegaram à unidade de ecografia. A sala de espera estava deserta e havia um empregado a limpar o chão.

 

- Devo esperar aqui? - indagou Deborah.

 

- Não, de todo - respondeu Carlton. - Quanto mais gente melhor. Levou-as para além do balcão de atendimento, por um corredor com inúmeras portas de ambos os lados. Cada uma delas dava para uma unidade de ecografia separada, desocupada e às escuras, As mulheres seguiram Carlton quase até ao fim do corredor, onde se via luz muma das salas laterais.

 

Lá dentro, uma mulher com uma bata branca curta levantou-se e apresentou-se antes que Carlton pudesse fazer as honras da casa. Chamava-se Shirley Oaks. Tinha o cabelo apanhado, não muito diferente do de Joanna em estilo e na cor. Ao invés de Carlton, mostrou-se preocupada com a questão do ovário desaparecido.

 

Joanna agradeceu-lhe, mas depois deitou um olhar aflito a Carlton. Pedira-lhe que fosse o mais discreto possível.

 

- Não contei a história toda - redarguiu este em sua defesa. - Mas tinha que dizer o que procurávamos.

 

- Nem eu quero a história toda - atalhou Shirley. Deu uma palmadinha na marquesa para encorajar Joanna a deitar-se nela, Tinha acabado de cobri-la com papel novo do rolo à cabeceira. - Temos de ser rápidos - acrescentou. - Tenho outra intervenção a fazer e posso ser chamada a qualquer momento para uma urgência. Joanna começou a pedir desculpas, mas Shirley desencorajou-a.

 

- Será mais fácil se tirar a saia e desabotoar a blusa.

- Claro - disse Joanna.

 

- Eu espero lá fora para ficares à vontade - disse Carlton.

 

- Por mim não vale a pena - disse Joanna enquanto tirava a saia e a passava para as mãos de Deborah. - Não é nada que não tivesses visto já.

 

Joanna subiu para a marquesa e Shirley expôs-lhe o baixo ventre, afastando as fraldas da camisa e baixando um pouco as cuecas. Os três pontos dos orifícios da laparotomia de extracção dos óvulos mal se viam.

 

- Estas cicatrizes parecem-lhe normais para uma laparotomia? - perguntou Shirley a Carlton, enquanto se preparava para pôr o gel.

 

Carlton debruçou-se para ver melhor.

 

- Sim. Têm o tamanho usual e cicatrizaram normalmente.

 

- É possível extrair um ovário por uma incisão tão pequena? - perguntou Shirley.

 

- Com certeza - disse Carlton. - Uma pele jovem e saudável como a de Joanna é surpreendentemente elástica. Não seria problema algum.

 

- Vamos despachar isto - pediu Joanna.

 

- Claro - anuiu Shirley. Deitou uma generosa porção de gel na barriga de Joanna.

 

- Ahhh! Que frio! - gritou Joanna.

 

- Ah, pois, desculpe - disse Shirley. - Esqueci-me que costumamos aquecer isto, ou, pelo menos, as enfermeiras e os técnicos aquecem.

 

Shirley desligou as luzes num pedal e aplicou a sonda na barriga de Joanna. o monitor estava na ponta de um braço e numa posição em que toda a gente podia ver, incluindo Joanna.

 

- Muito bem, aqui vamos nós! - disse Shirley para si própria. - Lá está o útero. Parece bem e completamente normal.

 

TantoJoannacomo Deborah se admiraram como é que alguém conseguia distinguir alguma coisa naquele emaranhado de linhas brancas sobre fundo negro.

 

- Agora, vamos mover-nos lateralmente - continuou Shirley. - Podemos ver os ligamentos e as trompas e... lá está! o ovário esquerdo.

 

- Estou a vê-lo - disse Carlton, - Parece normal.

 

- Muito normal - disse Shirley. - Vamos voltar ao útero. Muito bem! Agora para a direita.

 

Joanna manteve os olhos no ecrã, esperando ver alguma coisa que pudesse reconhecer, mas a verdade é que pouco sabia das suas entranhas, e preferia assim, desde que tudo funcionasse normalmente,

 

Shirley movia a sonda num círculo estreito no lado direito da barriga de Joanna. Depois começou a fazer pressão até causar desconforto.

 

- Ah - queixou-se Joanna. - Começa a fazer doer!

 

-Só mais um segundo- disse Shirley. Depois parou, endireitou-se e olhou para Carlton. - Bem, tanto quanto posso ver, o ovário direito não está cá.

 

- Não poderá estar retroflectido ou algo assim? - perguntou Carlton.

 

- Não está lá - asseverou Shirley. - Podia apostar e tudo.

 

- Posso levantar-me? - perguntou Joanna.

 

- oh, pois claro - disse Shirley. Deu a Joanna alguns lenços de papel para limpar o gel da barriga e também a ajudou a levantar-se.

 

Joanna deslizou para fora da marquesa e abotoou a blusa.

 

- Quais são as hipóteses de a Joanna ter só um ovário de nascença? - inquiriu Deborah.

 

- A pergunta faz sentido - admitiu Carlton, mas encolheu os ombros. - Não sei.

- Falem com um dos ginecologistas de banco - sugeriu Shirley. - Eles devem saber.

 

- Boa ideia - disse Carlton.

 

- Se eu puder ajudar nalguma coisa, é só apitar - disse Shirley. - Tenho de ir. o grupo agradeceu à radiologista e esta saiu. Joanna agarrou na saia e alisou as rugas.

 

-Venham ao balcão quando estiverem prontas -disse Carlton. -Vou lá contactar a ginecologista.

 

Saiu para o corredor e desapareceu.

 

- Bem, os nossos piores medos confirmaram-se - disse Deborah. Segurou no braço de Joanna enquanto esta enfiava a saia.

 

Agora que estava sozinha com Deborah, Joanna sentiu-se emocionada e até chorou algumas lágrimas. Limpou-as com as costas da mão e disse:

 

- Nem sei por que estou a chorar agora. - Soltou um risinho. - Deve ser porque tive um longo e ínfimo relacionamento com aquele ovário e nem sequer sabia que ele tinha desaparecido.

 

Deborah sorriu.

 

- Estou impressionada como consegues fazer humor disto!

- Cansada como estou, é mais fácil rir do que chorar.

 

- Bem, eu estou furiosa! - vociferou Deborah. - o descaramento de Paul Saunders e Sheila Donaldsone. De quem quer que esteja também metido nisto. -Abriu os dedos para contar. - Pensa só no que eles andam a fazer: um, roubam ovários a mulheres confiantes; dois, clonam-se a si próprios uma barbaridade de vezes; três, engravidam mulheres nicaraguanas pobres e fazem-nas abortar para arranjar óvulos. E isto é só do que desconfiamos! Temos de fazer alguma coisa.

 

Joanna arranjou a saia e a blusa e calçou os sapatos.

 

-Eu seio que vou fazer. Vou para casa deitar-me. Ao fim de dez ou doze horas de sono, talvez possa pensar em algo apropriado para a Clínica Wingate.

 

- Sabes o que é que eu acho que devíamos fazer? - perguntou Deborah. Joanna pegou na bolsa. Não estava com disposição para alinhar no jogo de Deborah e não respondeu, limitando-se a sair da sala.

 

Deborah seguiu-a.

 

-Eu digo-te o que acho que devíamos fazer, mesmo que não queiras ouvir. Acho que devíamos voltar à Clínica Wíngate esta noite e ver o que está na sala dos óvulos. Pode muito bem lá haver provas íncriminatórias. Que diabo, até podemos encontrar o teu ovário. E, se não der certo, podemos meter-te outra vez na sala do servidor para sacar os ficheiros de investigação. A esta hora da noite não temos de lidar com Randy Porter.

 

Joanna parou e virou-se.

 

- É a ideia mais maluca que eu já ouvi nos últimos tempos. Por que é que, em nome de Deus, haveríamos de lá voltar esta noite!

 

- Porque podemos!

 

- Deves estar tão cansada como eu. Que resposta é essa?

 

- Ainda temos os cartões de acesso - explicou Deborah, - Saímos cedo hoje e de certeza que já descobriram, por isso estamos despedidas. Porém, com toda a burocracia, os cartões ainda devem estar operacionais, coisa que mudará amanhã. Eu ficaria deveras espantada se não funcionassem esta noite. E ainda temos o cartão do Spencer, que também não vai ser válido para sempre. o que quero dizer é que se não formos lá mais cedo, provavelmente, não haverá mais tarde. Temos esta oportunidade mínima que temos de aproveitar.

 

- Deves ter razão - disse Joanna, cansada. - Mas estamos ambas demasiado exaustas.

 

Virou-se e continuou pelo corredor abaixo. Deborah seguiu-a, tentando convencê-la de que tinham uma responsabilidade moral. Quando chegaram à sala de espera ainda estavam a discutir. Carlton teve de as acalmar para poder ouvir o telefonema que estava a fazer.

 

- Que é que as senhoras estão a discutir? - perguntou ele quando acabou a chamada. Joanna e Deborah entreolhavam-se, zangadas.

 

-Ela está a tentar persuadir-me a voltar à Clínica Wingate esta noite -explicou Joanna. - Quer entrar naquilo a que ela chama a sala dos óvulos e quer que eu entre nos ficheiros informátícos deles.

 

- As senhoras querem saber a minha opinião? - indagou Carlton.

 

- Depende - atalhou Deborah. - És contra ou a favor?

 

- Contra.

 

- Então, não queremos ouvir - rematou Deborah.

 

- Eu gostaria de ouvir - contrapôs joanna.

 

- Não me parece que devam infringir a lei mais do que já fizeram - disse Carlton. - Têm sorte em ter escapado. Deixem isto para os profissionais. Vão às autoridades!

 

- A quem, por exemplo? - desafiou Deborah. - À Polícia de Bookford? Que vão eles fazer... dar um tiro no pé Ao FBI? Não temos provas nenhumas de que existe algum aspecto interestadual nisto que justifique um mandado de busca, e estou certa de que Saunders e a donaldson tem planos de contingência para o caso de haver alguminquérito. Às autoridades médicas? Não vão fazer nada porque nunca fizeram. Para eles, as clínicas de infertilidade estão fora dos seus limites.

 

- Que é que soubeste da ginecologista? - perguntou Joanna.

 

- A ausência congénita de um ovário é um caso raro - disse Carlton. -Ela diz que nunca viu, nunca ouviu falar e nunca leu sobre isso, mas acha que poderia acontecer.

 

- Roubaram o raio do ovário! - insistiu Deborah. - Os factos estão à vista. Caramba, eu acho que devias ser tu a convencer-me a mim a voltar lá esta noite, em vez do contrário,

 

- Isso é porque eu tenho muito mais juízo do que tu.

 

o pager de Carlton tocou. Na sala de espera deserta, soava mais alto do que na cafetaria da cave. Ele agarrou no telefone que tinha mesmo à frente,

 

- Não me parece que seja de perder esta oportunidade - persistia Deborah.

- Está bem, eu voujá para aí! - disse Carlton e desligou. - Desculpem estragar a festa, mas era das Urgências. Houve um choque em cadeia na Storrow Drive e as ambulâncias devem estar a chegar.

 

Carlton acompanhou asmulheres ao elevador enquanto estas mantinham o debate em sussurros forçados por respeito aos restantes passageiros. Continuavam a discutir pelo corredor principal fora, até chegarem à saída do hospital.

 

- Tenho de me despedir aqui - disse Carlton, interrompendo-as e apontando para as Urgências. Depois, olhando paraJoanna, disse: - Gostei de te ver. E lamento isso do ovário.

 

- Obrigada por tratares da ecografia - disse Joanna.

- Fiquei contente por poder ajudar. Eu ligo-te depois.

 

-Está bem- replicou Joannna. Sorriu e ele retribuiu, Depois, acenou embaraçado, antes de desaparecer pelas portas basculantes.

 

Deborah fez o gesto de enfiar o dedo na garganta para vomitar.

 

- Oh, por favor! Ele não é assim tão mau.

 

-Quem disse?- contrapôs Deborah. - «E lamentoisso do ovário»! Que coisa mais insensível e anormal de se dizer! Parece que perdeste a tartaruga de estímação e não parte da tua identidade como mulher.

 

As duasmulheres saíram do hospital e dirigiram-se ao estacionamento na garagem, A tarde fizera-se noite e os candeeiros de rua estavam acesos. Ao longe, ouviam-se as sirenes de ambulâncias que se aproximavam.

 

- Os médicos assistem diariamente a tragédias mais pungentes do que perder um ovário - disse Joanna. - Ele não encara as coisas da mesma maneira do que tu e eu. Além disso, tu própria disseste que ter só um ovário não me afectará fisicamente.

 

- Mas ele estava comprometido contigo - retrucou Deborah. - Não és só mais uma doente. Olha, sabes que mais? Esquece. Ele é problema teu, não meu. Vamos voltar ao assunto em debate. Eu vou à Wingate esta noite, quer tu vás, quer não. Não posso fazer nada acerca da parte informática, mas posso entrar naquela sala dos óvulos e, se houver provas incriminatórias, vou encontrá-las,

 

- Tu não vais lá sozinha! - proibiu Joanna.

 

- Ai não? - questionou Deborah, altivamente. - Que é que vais fazer, esvaziar-me os pneus ou trancar-me no quarto? Porque vais ter que fazer uma coisa ou outra.

 

-Não posso crer que estejas tão decidida nesta tua ideia estúpida, idiota, ímbecil. - Ah... - arrulhou Deborah, sarcástica. -Estou a ficar com a ímpressão de que percebes o meu empenho! Estou impressionada. Que clarividência!

 

Irritadas uma com a outra e com a agudeza crescente dos respectivos comentários, as mulheres ficaram em silêncio enquanto subiam até ao piso da garagem onde tinham o carro, entravam nele e saíam dali.

 

o silêncio durou até que subiram a Rua Mount Vernon em direcção à Praça Louisburg. Joanna foi a primeira a falar.

 

- E que tal um meio termo? - indagou. - Estarias disposta a isso?

- Estou a ouvir - respondeu Deborah.

 

- Vou contigo, mas limitamos a investigação à sala dos óvulos ou seja lá o que for aquilo.

 

- E se não houver lá provas boas daquilo que eles andam a fazer?

- Teremos de correr esse risco.

 

- Qual é o problema de voltar à sala do servidor, se já lá estivermos? -Porque eu acho que Randy Porter já deve ter feito alterações ao sistema, pelo que voltar à sala do servidor se traduz num risco acrescido, com baixa probabilidade de dar resultado, Ele já deve ter detectado a entrada nos ficheiros protegidos a partir do meu download, e vai descobrir como fiz as coisas na consola da sala do servidor. Assim que conseguir, vai reforçar a segurança do teclado da sala do servidor. Duvido que consiga entrar no sistema.

 

- Por que é que não disseste isso antes?

 

- Porque acho que lá voltar é idiota, pura e simplesmente - ripostou Joanna.

- Mas não te vou deixar fazer isso sozinha mesmo que seja idiota, tal como tu não me deixaste lá ir arranjar emprego sozinha. Então, ficamos pelo meio termo, ou quê?

 

- Está bem, ficamos neste meio termo - disse Deborah, enquanto entrava num lugar de estacionamento no final da praça. Praguejou baixinho porque o lugar era tão estreito que sabia que ela e Joanna iriam ter dificuldade em sair do carro. Tudo por causa de uma carrinha preta estacionada onde ela costumava deixar o carro.

 

- Não vou conseguir sair do carro - disse Joanna, olhando a viatura do lado que estava a menos de dez centímetros de distância.

 

- Bem me queria parecer - disse Deborah. Olhou por cima do ombro e recuou, dando a Joanna ocasião de sair do carro. Depois, deborah voltou a avançar para o espaço, mas encostando-o ainda mais ao lado do passageiro. Abriu a porta contra a incómoda carrinha preta e conseguiu espremer-se para fora do carro.

 

10 de Maio de 2001

21:48 h.

Kurt sentiu uma renovada onda de adrenalina pelo corpo acima quando avistou um carro com ar familiar a subir a Rua Mount Vernon.

 

o tempo passava e ele ficara preocupado por ter deduzido erradamente quanto às mulheres voltarem logo para o apartamento. Pelas nove da noite ficara tão preocupado que começara a andar de um lado para o outro na sala, coisa que contrariava a sua habitual e praticada serenidade. Se pudesse ler alguma coisa, a espera seria mais suportável, mas não se atrevia a acender a luz. Kurt ficara reduzido a espreitar pela janela da frente, para a praça iluminada, pensando no que significaria a ausência das mulheres e quanto tempo teria de esperar antes de engendrar um plano alternativo.

 

Só estava à janela há cinco minutos quando o Chevy Malibu aparecera e se metera no lugar vago ao lado da sua carrinha.

 

Kurt estava muito confiante de que eram as mulheres, e ficou com a certeza quando o carro retrocedeu para deixar sair o passageiro, antes de voltar a entrar no sítio. A mulher que emergira era Prudence Heatherly, a decente. Kurt vislumbrara, rápida mas suficientemente, o rosto dela à luz do candeeiro de rua na esquina, quase por baixo de onde ele estava. Depois viu Georgina a sair do carro encostado à carrinha. Entrementes, um dos seios dela saiu para fora da roupa. Kurt viu-a rir enquanto se compunha.

 

- Puta! - sussurrou Kurt, enojado. A mulher era uma desavergonhada, mas ele depressa lhe mostraria as consequências de tal licenciosidade, Todavia, o que Kurt não se permitiu admitir foi que o breve lampejo de camalidade o tinha excitado.

 

Kurt estava prestes a sair dajanela para finalizar os preparativos para a chegada das mulheres quando a cena que decorria lá em baixo lhe chamou a atenção novamente.

 

Em vez de avançarem para a porta, as mulheres estavam a discutir e cada vez com mais intensidade. Mesmo à distância a que se encontrava e com o vidro de permeio, Kurt conseguia ouvir pedaços da conversa, a qual se tornara decididamente num aceso debate.

 

Fascinado por esta reviravolta inesperada, Kurt espremeu o nariz contra a vidraça para poder ver melhora cena. Georgina estava a meio caminho do carro para o prédio, mas Prudence ficara junto ao carro e apontava para ele repetidamente.

 

Subitamente, Georgina levantou as mãos em desânimo e voltou ao carro. Com tanta dificuldade como tivera a sair, espremeu-se para entrar no carro. Kurt observava, cada vez mais aflito, o carro a recuar para a estrada. Quando Prudence entrou também, ele rosnou de si para si. E depois, quando o carro desapareceu pela Rua Mount Vernon abaixo, desatou a praguejar.

 

Kurtvoltou a andar de um lado para o outro. A missão que ele assumira como fácil ameaçava ficar fora de controlo. Onde é que aquelas mulheres poderiam ir quase às dez da noite? Sugeriu a si mesmo que poderiam irjantar, mas depois descartou a ideia, pensando que o jantar é que as teria demorado tanto. E quanto tempo estariam fora? E voltariam sozinhas? A última pergunta era particularmente relevante.

 

Kurt não tinha respostas e os minutos passavam. Voltou à janela. As únicas pessoas à vista andavam a passear os respectivos cães. o Chevy Malibu desaparecera mesmo.

 

Kurt sacou do telemóvel. Embora embaraçado por não poder alardear sucesso, achou melhor relatar a situação ao comandante. Paul Saunders respondeu ao segundo toque.

 

- Pode falar? - questionou Kurt.

 

- Tanto quanto se pode num telemóvel.

 

-Afirmativo! -disse Kurt. - Estou em casa das clientes. Voltaram há minutos, mas foram-se embora sem entrar, para parte incerta.

 

Paul ficou calado mas depois perguntou:

- Foi difícil chegar a casa das clientes?

- Não - reportou Kurt.

 

- Então, volte para aqui - disse Paul. - Pode voltar às mulheres depois, Spencer é o problema em questão. Preciso da sua ajuda.

 

- Vou imediatamente - disse Kurt, não sem algum desapontamento, porque teria de lidar com Georgina mais tarde.

 

Kurt depois reflectiu e entendeu que deveria perder algum tempo a procurar uma chave sobresselente. Quando lá voltasse queria entrar mais depressa do que conseguira antes.

 

- Ainda não sei por que não me deixaste ir a casa mudar de roupa - queixou-se Deborah. - Só levava cinco minutos.

 

joanna e ela estavam nos corredores de uma farmácia aberta vinte e quatro horas e que mais parecia um minimercado. Não vendia só medicamentos e afins, mas também produtos para automóvel e detergentes.

 

- Ah, pois, cinco minutos! - disse Joanna, sarcástica. - Quando é que foi a última vez em que mudaste de roupa em menos de meia hora? E já passa das dez. Se vamos à Wingate, quero despachar-me depressa.

 

- Mas a mim não me agrada andar por aí a tropeçar de saltos altos quando estou a fazer trabalho de detectives.

 

- Então, calça os ténis - disse Joanna. - Já admitiste que tens as coisas da ginástica na bagageira.

 

- E vou andar de ténis e de mínivestido?

 

-Não vamos a uma passagem de modelos! Válá, Deborah! Játens oque queres? Vamos embora.

 

- Acho que sim - disse Deborah. Segurava em várias lanternas, pilhas e numa máquina fotográfica descartável. - Ajuda-me! Precisamos de mais alguma coisa? Não consigo pensar.

 

- Se vendessem bom senso, talvez devêssemos levar tudo o que tivessem.

- Que gracinha - ironizou Deborah. - Estás a ser chata, sabes? Está bem, vamos embora.

 

Na caixa, Deborah agarrou num pacote de pastilhas elásticas e nalguns chocolates, antes de pagar as compras. Num instante estavam dentro do carro e a sair da cidade. Como tinham passado a meia hora anterior a discutir, seguiram praticamente em silêncio. Não havia trânsito e levaram aproximadamente metade do tempo a fazer a deslocação. Bookford parecia deserta quando subiram a Rua Direita. Só viram dois casais à porta da pizzaria. o outro único sinal de actividade estava nos holofotes do campo de futebol da Pequena Liga atrás da Câmara Municipal.

 

- Estou quase a desejar que os nossos cartões não funcionem - disse Joanna ao fazerem a curva.

 

- Que pessimista - rípostou Deborah.

 

Chegaram à casa da Portaria, que parecia tão negra e pouco acolhedora como na noite anterior.

 

- Que cartão devemos usar? - perguntou Joanna, - Um dos nossos ou o do Spencer?

 

-Eu vou tentar com o meu -disse Deborah. Chegou o carro à ranhura de acesso e passou o cartão. o portão abriu-se imediatamente, -Tal comoeu desconfiava: não há problema com os cartões de acesso. o mais irónico é que eu nunca pensei vir a apreciar a ineficácia da burocracia.

 

Joanna não apreciava coisa alguma. Depois de entrarem na área e de começarem a subiro acesso, virou-se para trás e olhou desamparadamente para o portão a fechar-se. Agora que estavam lá dentro, não conseguia afastar a sensação de estarem a cometer um grande erro,

 

Quando o telemóvel tocou, Kurt estava absorto em pensamentos e ficou sobressaltado. Guinou involuntariamente o volante da carrinha e por momentos teve de se debater para endireitar a viatura. Ia a cento e trinta quilómetros por hora em direcção a norte pela Estrada 2 e quase a chegar à saída para Bookford.

 

Com a carrinha controlada, procurou em vão o telemóvel no bolso do casaco enquanto o toque insistente continuava. Desapertou rapidamente o cinto de segurança e conseguiu sacar do aparelho e atender.

 

- Temos contacto - disse uma voz.

 

Kurt reconheceu a voz. Era Bruno Debianco, o número dois de Kurt, que fazia a supervisão nocturna do espaço. Estivera nas Forças Especiais ao mesmo tempo do que Kurt e, tal como ele, fora exonerado em circunstâncias pouco honrosas.

 

- Estou a ouvir - respondeu Kurt.

 

- o Chevy Malibu com as duas mulheres acabou de passar o portão.

 

Um arrepio de excitação percorreu a espinha de Kurt. o ligeiro desânimo que sentia por ter recebido ordem de voltar e lidar com Spencer Wingate desapareceu num segundo. Ter as mulheres nas instalações tornava tudo tão fácil como uma caça ao peru.

 

- Recebido? - indagou Bruno quando Kurt não respondeu imediatamente.

- Recebido - disse Kurt com casualidade para encobrir a excitação. - Siga-as, mas não estabeleça contacto. Quero ter esse prazer. Fiz-me entender?

 

- Afirmativo. Sigo para o local - respondeu Bruno.

 

- Uma condição - disse Kurt, lembrando-se de repente. - Se tentarem encontrar-se com o Wíngate, detenha-as e impeça que tal aconteça. Entendido?

- Perfeitamente - disse Bruno.

 

- Estarei aí daqui a vinte minutos - acrescentou Kurt.

- Afirmativo. Sigo para o local - disse Bruno.

 

Kurt desligou. Um sorriso escancarou-se-lhe no rosto, A noite, que começara tão promissora, mas que ficara aquém das expectativas, assumia novamente tons alegres. Agora era um dado adquirido que ambas as mulheres estariam trancadas na cela que ele construíra na cave da sua habitação e que ficariam tentadoramente à sua disposição. Mantendo uma mão no volante, Kurt ligou a Paul.

 

- Boas notícias - disse Kurt quando Paul entrou em linha. - As mulheres voltaram à base de livre vontade.

 

- Excelente! - disse Paul. - Bom trabalho!

 

- Obrigado, Sr. Doutor- disse Kurt, Estava disposto a aceitar esse crédito, se Paul estava disposto a atribuir-lho.

 

-Trate das mulheres que depois enfrentaremos o problema Wingate - ordenou Paul. - Lígue-me quando estiver livre disso!

 

-Sim, senhor-disse Kurt. Tal como um cão de Pavlov em reflexo condicionado, Kurt sentiu uma vontade quase irresistível de fazer continência.

 

- Isto não é o que eu desconfiava - disse Deborah.

- Eu não sabia do que desconfiar - disse Joanna.

 

As mulheres estavam sentadas no carro no estacionamento da Clínica Wingate. A viatura estava virada para a extremidade da ala sul do edifício com o motor a trabalhar. o lugar de estacionamento ficava ligeiramente a leste, o que oferecia uma vista para as traseiras do edifício. Todas as janelas do segundo piso das traseiras dessa ala estavam inundadas de luz.

 

- o laboratório está todo aceso - disse Deborah. - Pensei que isto parecesse um cemitério à noite. Será que andam a trabalhar por turnos?

 

- Não deixa de fazer sentido - disse Joanna. - Se acontecem aqui coisas que eles querem manter em segredo, seria melhor que se dessem quando as multidões de doentes clínicos não estão cá.

 

- Sim, deve ser - disse Deborah.

- Bem, o que vamos fazer?

 

Antes de Deborah poder responder, as mulheres viram luzes de um automóvel na base do acesso e ficaram sobressaltadas,

 

- Ai, ai - disse Deborah. - Temos companhia!

 

- Que fazemos? - suplicou Joanna, meio em pânico,

 

- Para já, fica calma! - instou Deborah. - Não me parece que seja de fazer alguma coisa além de nos agacharmos o melhor possível.

 

Bruno viu o carro que ele sabia pertencer às mulheres ainda antes de perceber que era um Chevy Malibu. Estava parado junto à entrada da clínica. o que lhe chamou a atenção foi que, embora os faróis estivessem desligados, as luzes dos travões estavam acesas, Havia alguém sentado no carro com o pé no travão.

 

Quando a carrinha preta de Bruno contornou o limite do parque de estacionamento e os faróis varreram o carro em questão, ele conseguiu distinguir os cocurutos de duas cabeças no banco da frente. Bruno não parou, nem sequer abrandou. Continuou a atravessar o estacionamento e desceu para a estrada do outro lado como se fosse a caminho da zona habitacional.

 

Assim que achou que estava fora do alcance da vista delas, Bruno encostou à berma, desligou as luzes e o motor e saltou para fora da carrinha. Vestido de preto como Kurt, era invisível na escuridão, Correu estrada acima e rodeou o limite do parque de estacionamento. Em poucos minutos tinha o Chevy Malibu à vista e podia ver as duas mulheres ainda sentadas no banco da frente.

 

- Estou com os nervos em franj a - admitiu Joanna, - Por que é que não vamos embora? Tu própria admitiste que não esperavas que este sítio funcionasse desta maneira. Agora corremos o risco de nos encontrarmos com alguém, se formos lá dentro. Que é que vamos dizer?

 

- Acalma-te! - ordenou Deborah. - Tu é que insististe em vir também. Era só uma carrinha a passar. Não parou, nem abrandou. Está tudo bem.

 

- Não está nada bem - contrariou Joanna. - Agora também estamos a invadir propriedade alheia, para além do nosso rol de delitos. Acho que devíamos ir embora.

- Não saio daqui enquanto não tiver algo de concreto - disse Deborah. Podes ficar no carro, se quiseres, mas eu vou entrar, vou só calçar os ténis.

 

Deborah abriu a porta do carro e saiu para a noite agreste. Foi à bagageira, tirou os sapatos desportivos e voltou para dentro do carro.

 

- Vi mesmo agora alguém à janela do segundo andar - disse Joanna, nervosamente.

 

-Grande coisa- ironizou Deborah. Calçou as sapatilhas e apertou os atacadores,

- Vai parecer ridículo, com esta saia curta, mas que interessa?

 

- Não acredito que não te preocupe a possibilidade de encontrares alguém insistiu Joanna.

 

- Já chega! - estalou Deborah. - Vens ou não?

- Vou - disse Joanna, relutante.

 

- Que achas que devemos levar connosco?

 

- o menos possível - disse Joanna -, considerando que talvez tenhamos de correr. Talvez fosse melhor virares o carro para podermos sair daqui depressa, se for preciso.

 

- Não deve ser má ideia - anuiu Deborah, Deu à chave, ligou o carro e deu a volta. - Estás contente?

 

- Dizer que estou contente seria um enorme exagero.

 

- Vamos levar só as lanternas, os cartões de acesso e a máquina descartável propôs Deborah.

 

- óptimo - disse Joanna.

 

Deborah estendeu o braço e puxou o saco da drogaria que estava no banco de trás. Deu uma das lanternas a Joanna e guardou a outra, mais a máquina descartável.

- Estás pronta?

 

- Acho que sim - disse Joanna, sem entusiasmo.

 

- Espera aí - atalhou Deborah. - Tenho uma ideia.

 

Joanna revirou os olhos. Se Deborah esperava que ela ia adivinhar o que lhe ia na cabeça naquelas circunstâncias, estava maluca.

 

- Não queres saber qual é a minha ideia?

 

- Só se for alguma coisa para irmos embora daqui. Deborah brindou Joanna com uma careta exasperada.

 

- Não, minha esperta! Da primeira vez que viemos doar os óvulos, deixámos os casacos num bengaleiro onde havia batas brancas de médico. Acho que devíamos levar umas. Ficaremos com um ar mais profissional, especialmente eu, com esta mini-saia.

 

Por fim, as mulheres saíram do carro e apressaram-se pelo caminho acima. Ficaram algo surpreendidas por ser preciso cartão de acesso para entrar no edifício, mas, como no portão, os cartões funcionaram. Lá dentro encontraram a ampla recepção sombria e deserta. Esconderam-se no bengaleiro e, assim que fecharam a porta, acenderam as luzes.

 

A memória de Deborah não as traíra. Havia muitas batas brancas de médico, mas poucas em tamanhos pequenos. Levaram alguns minutos a descobrir duas que lhes servissem razoavelmente. Aproveitaram os bolsos para pôr as lanternas, os cartões e a máquina descartável. Assim equipadas, apagaram a luz e reapareceram na zona da recepção.

 

- Eu vou atrás de ti - sussurrou Joanna.

 

Deborah assentiu. Contornou obalcão da recepcionista vazio eentrou nocorredor principal, na penumbra, passando pelo vestiário das doentes à esquerda, onde, ano e meio antes, tinham envergado batas de hospital para as respectivas intervenções de extracção de óvulos. o destino de Deborah era a primeira escada, e chegaram lá sem encontrarem ninguém. o único barulho que se ouvia era o das Próprias passadas.

 

Ambas respiraram de alívio assim que entraram na escada. Sentiam-se mais seguras do que no corredor aberto, pelo menos até descerem os três lanços e abrirem a porta corta-fogo que dava para a cave escura e húmida.

 

- Não há luz! - exclamou Deborah. - Ainda bem que viemos preparadas. Sacou da lanterna e acendeu-a.

 

Joanna imitou-a e, assim que a luz incidiu na cave que parecia um mausoléu, susteve a respiração.

 

- Que foi? - perguntou Deborah.

 

- Meu Deus! Olha só para a parafernália de hospital velha e horrorosa! exclamou Joanna. Apontou o foco de luz para a profusão de cadeiras-de-rodas de madeira, bacios amolgados e mobília de hospital estragada. Uma antiga máquina de raios X portátil com uma cabeça protuberante destacava-se à luz da lanterna de Joanna, como um adereço de um filme antigo do Frankenstein.

 

- Eu não te falei disto? - perguntou Deborah,

- Não! - respondeu joanna, irritada.

 

- Não é preciso zangares-te - atalhou Deborah. - Parece que o resto do edifício está cheio de todo o tipo de equipamento dos velhos tempos de instituição psiquiátrica e sanatório de tuberculosos.

 

- Mete medo só de olhar - lamuriou Joanna. - Podias ter-me preparado para isto, pelo menos.

 

- Lamento - disse Deborah. - Mas a dr.a Donaldson disse-nos, quando cá viemos da primeira vez, que isto era como um museu. Lembras-te?

 

- Não! - vociferou joanna.

 

- Bem, anda lá - instou Deborah. - Não passa de um monte de tralha. Abriu caminho pelo corredor e dirigiu-se para norte. Quase imediatamente, o corredor virava à direita e depois virava outra vez. Havia pequenas aberturas com arcos de cada lado,

 

- Sabes para onde vais? - indagou joanna, que seguia logo atrás da amiga.

- Não propriamente - admitiu Deborah. - A escada por onde descemos não é a mesma por onde eu vim hoje à tarde, Mas, pelo menos, sei que vamos na direcção certa.

 

- Mas por que é que eu me deixei convencer a fazer isto? - resmungou Joanna imediatamente antes de soltar um grito abafado.

 

Deborah rodou nos calcanhares e apontou a lanterna ao rosto de Joanna. Esta desviou-se da luz e levantou a mão para se proteger do foco.

 

- Não me apontes essa coisa aos olhos!

 

-Que raio aconteceu? - inquiriu Deborah entre dentes assim que percebeu que Joanna estava inteira.

 

- uma ratazana! - balbuciou Joanna, - Vi uma ratazana enorme com olhos vermelhos ali atrás daquela secretária velha,

 

Credo, Joanna! - queixou-se Deborah. - Controla-te, mulher! Isto é um exercício clandestino. Estamos a tentar Passar despercebidas!

 

- Desculpa. Estou com os nervos à flor da pele, nesta masmorra cheia de lixo. Não posso evitar.

 

- Bem, domína-te, Ias-me matando de susto,

 

Deborah começou a andar, mas tinha dado poucos passos quando Joanna a agarrou e a obrigou a parar.

 

- Que é agora? - resmungou Deborah.

 

- Ouvi barulho atrás de nós - disse Joanna, e apontou a lanterna para trás delas. Esperava ver a ratazana outra vez, mas só viu a tralha por onde tinham passado. Pela primeira vez, reparou na amálgama de canalizações e tubagens.

 

- Vamos ficar aqui toda a noite se não colaborares - instou Deborah.

- Está bem - bradou Joanna.

 

Caminharam mais cinco minutos pelo corredor que serpenteava até chegarem a uma batedeira de cozinha grande e antiquada, montada no respectivo suporte com rodas. Estava coberta de pó. Tinha alguns utensílios de cozinha dentro da tigela. A cabeça da batedeira estava inclinada para trás e as pás batedoras faziam um ângulo de quarenta e cinco graus.

 

- Estamos perto - declarou Deborah, - A porta que eu procuro ficava do outro lado da cozinha, e não deve faltar muito para a cozinha propriamente dita. Contornaram a curva seguinte e confirmaram a ideia de Deborah, pois passaram

 

logo pela velha cozinha. Com a lanterna, Joanna pôde vislumbrar os fogões sujos e abertos e os enormes lava-louças de pedra Por cima das suas cabeças, as luzes faziam reflexos numa fileira de panelas enegrecidas e amolgadas e caçarolas penduradas sobre o balcão.

 

-Lá está -anunciou Deborah, e apontou para a frente. A porta de aço inoxidável destacava-se no ambiente obscuro e sujo como se resplandecesse. A superfície polida reflectia o foco de luz de Deborah,

 

- Tinhas mesmo razão quando disseste que estava deslocada aqui - disse joanna,

 

As mulheres aproximaram-se da porta. Deborah encostou o ouvido como fizera antes.

 

- Os mesmos ruídos que eu ouvi à tarde - disse. Depois indicou a Joanna que pusesse a mão na porta.

 

- Está quente - disse Joanna, e passou o cartão de acesso de Spencer Wingate a Deborah.

 

-Eu diria que devem estar 37 Celsius- disse Deborah. Pegou no cartão, mas não o passou pela ranhura de acesso.

 

- Então, entramos ou quê? - perguntou Joanna, visto que Deborah só olhava para a porta,

 

-É claro que vamos entrar- afirmou Deborah. -Só estou a tentar preparar-me para o que vamos encontrar.

 

Finalmente, depois de respirar fundo, passou o cartão pela ranhura. Houve uma ligeira demora, seguida do ruído de saída de ar, como se o espaço lá dentro tivesse uma pressão algo superior, A porta grossa e pesada começou lentamente a recuar para a parede.

 

10 de Maio de 2001

23:05 h.

Praguejando baixinho por ter batido com o queixo num objecto de metal desconhecido, Bruno recuou aos tropeções pelo corredor, às escuras e tacteando as paredes para se orientar. Tentava não tropeçar a todo o momento na tralha que atravancava o chão, mas era impossível, e ele fazia caretas de cada vez que chocava com alguma coisa, mais do barulho do que fazia do que da dor que causava. Assim que os dedos detectavam um canto, metia-se logo lá, para poder espreitar para o caminho que já tinha feito. Ao longe, a porta de aço inoxidável da sala de cultura fechou-se com estrondo, mil vezes mais depressa do que tinha aberto. Porém, no breve intervalo, Bruno pudera vislumbrar as duas mulheres paradas em frente ao espaço iluminado.

 

Com movimentos rápidos, Bruno sacou da sua lanterna, acendeu-a e segurou-a com os dentes. Direccionou o foco para o recanto onde se enfiara e não para o corredor atrás de si. Não queria que as mulheres reparassem na luz, caso abrissem a porta de repente. A seguir, debateu-se para tirar o telemóvel da algibeira. Tão depressa quanto pôde, procurou na agenda do aparelho pelo número da sala de cultura. Assim que este surgiu no ecrã, premiu o botão de ligação.

 

Embora a recepção de rede não fosse boa na cave da Wingate, ele conseguia ouvir o telefone a tocar no meio do ruído estático.

 

- Vá lá, atende! - instou em voz alta. Finalmente, entrou em linha uma voz.

- Sala de cultura, Cindy DrexIer.

 

- Fala Bruno Debianco. Consegue ouvir-me?

- Muito mal - respondeu Cindy.

 

- Sabe quem eu sou?

 

- Claro - respondeu Cindy. - É o supervisor da segurança.

 

-Então,escute! -ordenouBruno, falando tão alto quanto se atrevia. -Acabaram de entrar duas mulheres na sala de cultura. Não faço ideia de como conseguiram cartão de acesso. Está a vê-las?

 

Houve uma pausa.

 

- Ainda não - disse Cindy de volta ao telefone. - Mas eu estou longe da entrada.

- Isto é importante - continuou Bruno. - Mantenha-as ocupadas durante quinze ou vinte minutos. Seja criativa! Diga-lhes tudo o que elas quiserem saber, mas mantenha-as aí dentro. Está a compreender?

 

- Acho que sim - replicou Cindy. - Digo-lhes tudo?

 

- Tudo e mais alguma coisa, não importa - afirmou Bruno. - Mas não as assuste. Kurt Hermann está a caminho e irá pessoalmente encarregar-se delas. São intrusas não autorizadas.

 

- Farei o que puder - respondeu Cindy.

 

- Não peço mais nada - rematou Bruno. - Entraremos aí dentro assim que ele cá chegar.

 

Bruno desligou a chamada e marcou o número de Kurt. Ainda havia mais ruído de estática quando Kurt atendeu do que quando Bruno falara com a técnica da sala de cultura.

 

- Consegue ouvir-me? - perguntou Bruno.

 

- o suficiente - respondeu Kurt. - Que se passa?

 

- Estou à porta da sala de cultura na cave da Wingate - explicou Bruno. - As mulheres tinham um cartão e conseguiram entrar. Telefonei à técnica e disse-lhe para as entreter lá dentro. Vai poder apanhá-las facilmente.

 

- Elas viram-te?

 

- Não, não desconfiam de nada.

 

- Perfeito! Estou a entrar em Bookford. Estarei aí dentro de dez minutos; quinze, no máximo. Tens algemas contigo?

 

- Negativo - respondeu Bruno.

 

- Vai buscar umas à casa da Portaria! - ordenou Kurt - E espera-me ao portão! Apanharemos as mulheres juntos.

 

- Afirmativo. Sigo para o local.

 

Durante vários minutos, as mulheres ficaram imóveis, absorvendo o que as rodeava. Na linha da porta marcadamente moderna por onde tinham passado, ambas esperavam um submundo futurista. Em contrapartida, estavam num labirinto de salas com a mesma decoração do resto da cave, separadas umas das outras pelas mesmas arcadas de tijoleira. A diferença era a luz brilhante que jorrava de suportes fluorescentes recentemente montados, a temperatura ambiente e o conteúdo. Ao invés de material hospitalar e da cozinha decrépita, a sala onde estavam e as outras que podiam ver estavam cheias de equipamento de laboratório com ar moderno, a maioria sob forma de grandes incubadoras repletas de placas de cultura de tecido. A generalidade das incubadoras tinha rodas.

 

- Esperava algo mais dramático - disse Joanna.

 

- Eu também - disse Deborah. - Nem sequer é tão impressionante como o laboratório lá em cima.

 

- Parece que estamos nos trópicos. Qual é a temperatura, na tua opinião?

 

- Próxima da temperatura corporal - disse Deborah. Virou-se para a porta de aço inoxidável. Uma caixa laminada estava montada na parede à direita da porta. No painel, em maiúsculas, lia-se ABRIR E FECHAR.

 

- Antes de darmos uma volta quero ter a certeza de que podemos sair daqui afirmou Deborah. - Da maneira como esta porta se fechou depressa, quero certificar-me de que se vai abrir outra vez.

 

Empurrou o painel vermelho.

 

A porta abriu-se, tal como tinha acontecido momentos antes, e quando Deborah tornou a empurrar o painel, a porta pesada e isolada fechou-se num piscar de olhos. Era tão espantosamente silenciosa como era rápida a fechar.

 

Deborah ia fazer um comentário acerca da porta quando Joanna lhe agarrou freneticamente no braço e tartamudeou num murmúrio:

 

- Temos companhia!

 

A cabeça de Deborah rodopiou na direcção para onde Joanna olhava. Numa das arcadas estava uma mulher sorridente de meia-idade, com um rosto estreito e muito bronzeado, pés-de-galinha e rugas de expressão evidentes. A roupa que trazia era de algodão branco ultraleve. o cabelo estava preso num capuz do mesmo material, Tinha uma máscara cirúrgica atada ao pescoço e caída no peito.

 

- Bem-vindas à sala de cultura! - exclamou a mulher. - o meu nome é Cindy DrexIer. Como se chamam?

 

Joanna e Deborah entreolharam-se, confusas e algo amedrontadas.

 

- Somos novas funcionárias - conseguiu Deborah dizer após umas tentativas falhadas.

 

- Que bom - comentou Cindy. Avançou de mão estendida e apertou as mãos de cada uma das mulheres. - Como se chamam? - repetiu, olhando directamente para Joanna, a quem estava a cumprimentar.

 

Joannagaguejou, procurando desesperadamente alguma forma racional de decidir se usaria o seu nome verdadeiro ou o falso.

 

- Prudence - saiu-lhe, lembrando-se de que estavam a invadir propriedade privada.

 

- Georgina - imitou Deborah, rapidamente.

 

- Muito gosto em conhecê-las - disse Cindy. - Vieram para uma visita, não é? Joanna e Deborah trocaram outro olhar breve, mas agora já era de auspiciosa surpresa e não de pânico.

 

- Gostaríamos muito de fazer uma visita - declarou Deborah, - Ficámos tão hipnotizadas pela porta que tínhamos que ver o que havia cá dentro.

 

Deborah fez gestos constrangidos na direcção da porta de aço inoxidável.

 

- Não estou acostumada a orientar visitas - disse Cindy numa risada de autocomiseração -, mas farei o meu melhor. Aqui nesta sala, que era, a propósito, a antiga despensa da cozinha no tempo do Cabot, temos os óvulos prontos para a transferência nuclear de amanhã. Eles seguem para o laboratório no elevador que fica ao virar da esquina. Ficam nas incubadoras com as etiquetas vermelhas. Aqui, usamos um sistema de codificação por cores. As incubadoras com as etiquetas azuis são as células fusionadas que irão regressar à sala dos embriões.

 

- Que tipo de óvulos são? - perguntou Deborah. - Quer dizer, de que espécie?

- óvulos humanos, claro - respondeu Cindy.

 

- Todos?

 

- Sim, os óvulos animais são tratados na sala de cultura animal da quinta,

- De onde vêm tantos óvulos humanos? - inquiriu Deborah.

 

- Vêm daquilo a que chamamos a sala dos órgãos - respondeu Cíndy.

- Podemos vê-la? - indagou Deborah.

 

- Claro - disse Cíndy. - Acompanhem-me!

 

Cíndy apontou para a arcada por onde chegara e fez sinal às mulheres para a seguirem. Joanna e Deborah perfilaram-se atrás dela,

 

- Que sorte, termos deparado com ela - murmurou Deborah, aproximando a cabeça da de Joanna. - É quase demasiado fácil.

 

- Pois é! - sussurrou Joanna em resposta. - É demasiado fácil. Ela está a ser muito atenciosa. Não me agrada. Por mim, íamos embora agora!

 

- oh, por amor de Deus - lamuriou-se Deborah. - Sempre cínica! Vamos aproveitar esta sorte, descobrir o que pudermos e depois desaparecer.

 

Depois de passarem por várias salas de dimensões e conteúdos semelhantes à primeira, chegaram a uma sala consideravelmente maior. Por detrás de uma fila de incubadoras estava uma fila de mais de cinquenta portas de madeira antiga, cada qual com cerca de um metro quadrado, com pesados trincos como os dos frigoríficos de talho. Deborah hesitou.

 

- Desculpe, Cíndy - e apontou para as portas gastas. - Isto é o que parece? Cindy parou a caminho de uma sala ainda maior. Seguiu com o olhar o dedo levantado de Deborah.

 

- É daqueles velhos compartimentos de gelo que está a falar?

 

-Esta zonaera a morgue nos velhos tempos do edifício? -perguntou Deborah.

- Era, com certeza - disse Cindy. Recuou e, com algum esforço, afastou uma das incubadoras para expor as portas. Abriu uma e puxou o tabuleiro rolante de madeira manchado. - É interessante, não é? Tinham de carregar o gelo do outro lado. Eu não queria estar aqui se o gelo se acabasse. Já pensaram? - soltou uma gargalhada inquieta.

 

Deborah e Joanna entreolharam-se. Joanna estremeceu.

- Vamos despachar esta visita.

 

- Gostariam de ver o resto da morgue? - perguntou Cindy. - A velha sala de autópsias com uma tribuna ainda está intacta. No século xix deve ter servido de entretenimento, aqui neste fim de mundo, - Tornou a emitir um riso, desta vez mais cavo do que ansioso. - Naquele tempo demorava-se um dia inteiro de carruagem para Boston, e não havia assim muito para o pessoal fazer nos dias de folga. Eu mostro-vos.

 

Cindy lançou-se numa direcção oposta àquela para onde se encaminhava antes. Deborah seguiu-a, tentando em vão chamar-lhe a atenção. Joanna secundou-as, não querendo ficar para trás.

 

- Cindy! -chamou Deborah, estugando o passo. -Nós queríamos mesmo ver a sala dos órgãos!

 

Determinada em não ouvir ou ignorando Deborah, Cindy continuou até a um conjunto de portas duplas revestidas a cabedal e com pequenos postigos ovais. Abria uma, debruçou-se para a escuridão e carregou num interruptor. Seguiu-se um ruído abafado e as luzes grandes e antigas em forma de timbale acenderam-se. Estavam junto ao tecto alto e serviam de projectores para incidir numa velha mesa metálica de autópsias.

 

joanna, que viera nos calcanhares de deborah, deparou com o cenário e susteve a respiração. A disposição em anfiteatro das filas de assentos que desapareciam na escuridão era ainda mais semelhante à tétrica pintura da lição de anatomia do que o bloco operatório do andar lá em cima, onde ela sofrera a intervenção.

 

- É muito interessante - declarou Deborah com um tom de sarcasmo na voz, após breve olhadela pela sala. - Mas se não se importa, gostaríamos de ver a sala dos órgãos.

 

- E que tal ver os antigos instrumentos de autópsia? - indagou Cindy. - Eu e os outros técnicos estivemos um destes dias a dizer na brincadeira que devíamos enviá-los para Hollywood, para um filme de terror.

 

- Vamos ver a sala dos órgãos - disse Joanna, secamente.

 

- Por mim tudo bem - disse Cindy. Apagou a luz e encaminhou-se novamente pelo corredor. Olhou para o relógio, gesto em que Joanna reparou mas Deborah não. Era a terceira vez que Joanna via a mulher a fazer aquilo. Deborah estava ocupada a olhar para trás, por onde tinham vindo.

 

- A sala não fica para o outro lado? - perguntou Deborah a Cindy, que estava alguns passos à frente,

 

- Podemos lá chegar das duas maneiras -respondeu Cindy por cima do ombro.

- Mas este caminho é mais curto.

 

Deborah apanhou as outras e viu à frente um par de portas horizontais, como portas de elevador numa abertura do tamanho de uma pequena garagem. Ao passarem por elas, Deborah perguntou o que eram.

 

- É o antigo monta-cargas - replicou Cindy, e parou. - Os cadáveres vinham por aí dos pisos superiores.

 

- Que ideia animadora - comentou Joanna. - Vamos andando!

 

- Até nos deram muito jeito - disse Cindy, e deu palmadinhas nas portas, apreciativamente. - Costumávamos trazer o equipamento por aqui. Querem ver como funciona?

 

- Preferíamos ver a sala dos órgãos - afirmou Joanna. - Acho que sabemos como trabalha um monta-cargas.

 

- Por mim tudo bem - tornou a dizer Cindy.

 

Depois de passarem por um acesso estreito e abobadado com um metro quadrado que, explicou Cindy, entrava nos alicerces da torre de tipo italiano do edifício, as mulheres deram consigo no limiar da maior sala que já haviam visto no complexo subterrâneo. Media, pelo menos, trinta metros de comprimento por quinze de largura. Nela encontravam-se filas e filas de volumosos contentores em forma de aquário, de plástico, com mais de metro e meio de comprimento, um metro de profundidade e sessenta centímetros de largura. Cada qual continha várias esferas de vidro com cerca de trinta centímetros de diâmetro, submersas em líquido. Do cimo de cada esfera brotava um emaranhado de tubos e sondas eléctricas. À superfície do líquido flutuava uma camada contínua de minúsculas esferas de vidro.

 

Por momentos, as mulheres ficaram a absorver o espectáculo. Embora as paredes da sala ainda fossem de tijolo, o cenário fazia jus às suas expectativas de quando haviam entrado pela porta de aço inoxidável. Até o tecto era mais alto neste espaço, devido à ausência de canalizações e tubagens, como havia nas outras salas. A iluminação também era menos agreste, mas com a adição de um componente aparentemente ultravioleta.

 

Enquanto Deborah parecia embasbacada pelo panorama, Joanna reparou novamente em Cindy a olhar para o relógio. o que tornava aquele gesto repetitivo tão notável era a aparente hospitalidade da mulher em tudo o resto. Se estava tão preocupada com as horas, por que passaria tanto tempo com as mulheres? Era uma questão para a qual Joanna não tinha resposta imediata, mas que a incomodava cada vez mais.

- E isto o que é, exactamente? - inquiriu Deborah.

 

- Isto é a sala dos órgãos - explicou Cindy. - Estes tanques são banhos de líquido a uma temperatura constante. As mimúsculas esferas flutuantes destinam-se a impedir a evaporação da água, As esferas maiores encerram os ovários.

 

- Portanto - comentou Deborah -, podem manter aqui vivos ovários inteiros mediante, presumo eu, perfusão, etc., etc,

 

- É mais ou menos isso - disse Cindy. - Fizemos uma réplica do ambiente interno a que estão acostumados com oxigénio, nutrientes e estimulação endócrina. É claro que a remoção de detritos também é importante. Seja como for, quando fazemos a coisa certa, os ovários ovulam constantemente oócitos maduros.

 

- Podemos ver melhor? - perguntou Deborah. Cindy fez sinal para avançarem.

 

- Com certeza.

 

Deborah caminhou por uma ala entre duas filas de tanques e parou para contemplar uma das esferas maiores. o ovário era do tamanho de uma avelã espalmada, com uma superfície irregular e esburacada que se assemelhava à da Lua, Encontravam-se diminutas cânulas de perfusão ligadas às principais artérias ovarianas. Havia ainda fios sensores ligados a outros pontos do pequeno órgão.

 

-Temos também culturas celulares mais tradicionais de oogónia-disse Cindy.

- Posso mostrar-vos, se quiserem.

 

- Algumas das esferas contêm dois ovários em vez de só um - comentou Deborah.

 

- É verdade, mas a maioria é só um, como podem ver. E se fôssemos à sala de oogónia?

 

- o que significa existirem dois ovários? - perguntou Joanna.

 

- Isso é da alçada da Dr.a Donaldson -respondeu Cindy. -Eu sou meramente uma das muitas técnicas que supervisiona e cuida deles.

 

Joanna e Deborah trocaram outro olhar. Sentiam-se tão familiarizadas uma com a outra que, regra geral, uma podia saber o que a outra pensava.

 

- Vejo que cada esfera está etiquetada alfanumericamente - disse Joanna. Quer dizer que sabem a origem de cada ovário?

 

Pela primeira vez durante a visita, Cindy pareceu-lhes claramente constrangida com a pergunta. Gaguejou, titubeou e tornou a puxar o assunto para as culturas de oogónia, mas Joanna não se deixou confundir.

 

- Temos uma vaga ideia da origem de cada ovário - admitiu Cindy por fim.

- o que significa vaga ideia? - insistiu Joanna. - Se lhe déssemos um nome de uma dadora ovariana, poderia localizar o ovário?

 

- Creio que sim - disse Cindy, evasivamente. Olhou para o relógio e mudou o próprio peso de um pé para o outro.

 

- o nome em que estou interessada é Joanna Meissner - declarou Joanna.

- Joanna Meissner - repetiu Cindy. Olhou em redor como se não soubesse onde se encontravam as coisas. - Precisávamos de um computador.

 

- Tem um mesmo atrás de si - observou Joanna.

 

- oh, pois está! - exclamou Cindy, como se estivesse surpresa. Virou-se, desbloqueou o teclado com a suapalavra-passe e depois introduziu o nome de Joanna. o ecrã devolveu «JM699». Cindy escrevinhou o código num pedaço de papel e começou a andar. As mulheres acompanharam-na. Duas filas depois e dois tanques mais à frente parou e apontou. Na superfície da esfera de vidro estava escrito «JM699» com um marcador indelével.

 

Tanto Joanna como Deborah ficaram a olhar para o pequeno órgão. Estava significativamente mais esburacado do que oprimeiro que viram, e Joannaperguntou porquê.

 

-É um dos espécimes mais antigos - explicou Cíndy. - Está a chegar ao final da sua vida útil.

 

- Eu também tenho o nome de uma dadora - atalhou Deborah. - Kristin Overimeyer.

 

- Está bem - concordou Cindy, como se estivesse resignada com a situação. Regressou ao computador, já mais recomposta da sua pose anterior. Introduziu o nome sem hesitar e o computador devolveu imediatamente o código: K0432.

 

- Por aqui - indicou Cindy, gesticulando para as mulheres a acompanharem. Contornou a periferia da sala e virou-se para a primeira fila. Joanna puxou Deborah e sussurrou-lhe: - Sei qual é a tua ideia e é óptima!

 

Deborah limitou-se a assentir.

 

-Cá estamos -disse Cindy, quase com orgulho, parando num tanque específico. Apontou para a esfera do meio. - KO432. É um espécime duplo.

 

- Interessante - disse Deborah, após breve olhadela. - o espécime tem um número inferior ao anterior mas parece mais novo. Como é isso?

 

Cindy olhou para os dois ovários. Estava obviamente incomodada outra vez. Gaguejou um pouco antes de dizer:

 

- Não faço a menor ideia. Talvez tenha a ver com a forma de extracção, mas não tenho a certeza. A Dr.a Donaldson deve poder explicar,

 

- Tenho mais um nome - insistiu Deborah. - Rebecca Corey.

 

- Têm a certeza de que não preferem ver as culturas de oogónia? - perguntou Cindy. - Consideramos que é o domínio onde temos feito mais progressos. Dentro em breve, as culturas de oogónia irão tornar estas culturas ovarianas integrais obsoletas.

 

- É o último nome - prometeu Deborah. - Depois passaremos às culturas de oogónia.

 

Após mais uma olhadela para o relógio, Cindy repetiu o procedimento para obter o número de código e, em seguida, levou-as ao tanque imediatamente adjacente ao que continha os ovários de Kristin Overineyer. Apontou para a esfera apropriada, que, mais uma vez, era um espécime duplo.

 

Joanna e Deborah espreitaram para os ovários que, tal como os de Kristin, pareciam mais jovens do que o de Joanna. Ambas as mulheres estremeceram com a percepção de que estavam a contemplar os ovários de uma mulher que, supostamente, desaparecera junto com Kristin overineyer depois de pedir boleia a um desconhecido.

 

- A sala de cultura de oogónia éjá aqui ao lado - disse Cindy. - E se fôssemos até lá?

 

Joanna e Deborah ergueram os olhos em simultâneo e entreolharam-se, o terror patente no seu olhar revelava que partilhavam os mesmos pensamentos. Tinham descoberto muito mais do que haviam previsto, e era tão horrível como aterrorizador.

 

- Acho que já lhe tomámos muito tempo - disse Joanna, e sorriu de esguelha para Cindy.

 

- Sim - corroborou Deborah. -Foi interessante, mas é tempo de avançarmos. Se nos indicar a direcção certa para a saída, nós desaparecemos imediatamente.

- Eu tenho muito tempo - disse Cindy, rapidamente. - Não faz mal nenhum,

 

a sério! Até gosto do intervalo na minha rotina, e acho que deveriam ver tudo antes de se irem embora. Venham! Vamos ver as culturas de oogónia.

 

Tentou pegar no braço de Deborah, mas esta libertou-se.

 

- Queremos ir embora - declarou Deborah com mais ênfase.

 

- Mas assim perdem a parte mais importante - redarguiu Cindy. - Tenho de insistir!

 

- Insiste o caraças! - vociferou Deborah. - Vamos embora!

 

-Nós encontramos o caminho- afirmou Joanna, e comeÇou a andar para onde tinham vindo. Embora soubesse que poderia não ser o caminho mais curto, pelo que Cindy dissera antes, não se importava, Pelo menos, passaria Por pontos de referência reconhecíveis.

 

- Não as posso deixar andar por aí sozinhas - afirmou Cindy, - É contra o regulamento.

 

Agarrou no braço de Joanna com mais força do que usara com Deborah, obrigando-a a parar.

 

Joanna olhou para baixo, para a mão da mulher engalfinhada no seu braço.

 

- Vamos sair daqui - proferiu, categórica. - Tire as mãos de cima de Mim!

- Não posso deixar-vos por aqui sem supervisão - repetia Cindy.

 

- Então, leve-nos à saída! - estalou Deborah. Agarrou na mão de Cindy e tirou-a do braço de Joanna, empurrando a mulher para trás. Esta embateu num dos tanques de plástico, o que desencadeou um alarme sonoro e uma luz vermelha intermitente no painel de controlo do tanque.

 

Quando Cindy estendeu a mão para desligar o alarme, Joanna e Deborah desataram a correr tão depressa quanto permitia o estreito espaço entre os tanques. Assim que os deixaram para trás, o porte atlético de Deborah evidenciou-se, e esta ultrapassou Joanna, encorajando-a a seguir. Lá atrás podiam ouvir Cindy a gritar para elas pararem.

 

- Eu sabia que não devíamos ter vindo cá! - ofegou Joanna, tentando acompanhar Deborah,

 

- Cala-te e corre!

 

Passaram pelo túnel abobadado, pelo velho monta-cargas, pelo antigo poço das autópsias e por uma série de salas com incubadoras. Subitamente, Deborah parou. Joanna mal conseguiu evitar chocar com ela.

 

- Para que lado? - perguntou Deborah.

 

- Acho que é por ali - disse Joanna, apontando para sul. através de uma série de arcadas.

 

- Espero que tenhas razão - retrucou Deborah. Podiam ouvir o eco de Cindy que se aproximava, chamando por elas, mas o eco tornava impossível saber qual a direcção. Segundos depois aparecia a mulher, a correr por uma arcada, e chocou com elas. Agarrou-se às roupas de Joanna e Deborah o melhor que pÔde.

 

- Valha-nos Deus, mulher! - gritou Deborah. Com muita força, desenvencilhou-se da mulher, mas esta agarrou-se com ambas as mãos a Joanna. Deborah rodeou Cindy, cercou-a com os braços e puxou-a para longe de Joanna. Em seguida, atirou a mulher ao chão, onde esta foi embater com uma das incubadoras. Ouviu-se o som abafado mas inconfundível de vidro a partir-se.

 

Sem perder tempo a ver como estaria a mulher, Deborah agarrou na mão de Joanna e correu na direcção que esta sugerira. Para seu grande alívio, assim que passaram várias arcadas viram ao longe a porta de aço inoxidável. Deborah correu para a porta e deu uma pancada no painel ABRiR/FECHAR. A porta começou a abrir lentamente. Ambas as mulheres olharam por cima dos ombros para ver se Cindy teria recuperado, e lá estava ela. Deborah vírou-se para a porta e tentou acelerar a abertura, aplicando toda a sua força nela. Assim que a abriu o suficiente para alguém se poder esgueirar, Deborah empurrou Joanna para a fresta para poder ser ela a lidar com Cindy.

 

- Oh, não! - exclamou Joanna, recuando da abertura crescente da porta. Deborah, que se virara só para ver se Cindy estaria perto, rodopiou para ver o que causara o grito de Joanna e a sua saída da sala. Aquilo que viu por cima do ombro de Joanna suscitou-lhe um grito involuntário. Dois homens grandes e vestidos de preto dirigiam-se a elas pela cozinha decrépita mas presentemente iluminada. Tinham algemas numa mão e pistolas na outra. o homem louro que vinha à frente vira a porta a abrir e vira as mulheres, pelo que começara a correr. Deborah reconheceu-o. Era o homem que estivera a olhar para ela no refeitório e que ela supunha ser o chefe da segurança.

 

10 de Maio de 2001

23:24 h.

Deborah reagiu instintivamente, batendo outra vez no botão ABRiR/FECHAR e fechando a pesada porta de aço na cara dos homens. Em simultâneo, Cindy atacava-a por detrás, agarrando-apelo pescoço e tentando puxá-la para longe da porta. Deborah resistiu, mantendo a mão no botão.

 

- Tira-me esta doida de cima de mim! - gritou Deborah. Cindy gritava que a porta tinha de se abrir.

 

Joanna puxou os dedos de Cindy do pescoço de deborah e atirou-a para trás, mas a mulher recuperou rapidamente e voltou a carga para cima de Deborah.

 

- Joanna, carrega no maldito botão - bradou Deborah, enquanto afastava Cindy com uma mão.

 

Assim que Joanna pôs as mãos no botão, Deborah agarrou a persistente mulher com ambas as mãos. Embora Deborah não batesse em ninguém desde que esmurrara um colega no quinto ano, levantou o braço e deu um murro na cara de Cindy. Ao fim de quatro anos de desporto na universidade, Deborah estava significativamente mais forte e mais agressiva do que fora no quinto ano, e o golpe reduziu Cindy ao silêncio e à imobilidade. Segundos depois caía no chão em câmara lenta, os joelhos cedendo primeiro e ficando depois prostrada como um cone de gelado a derreter-se.

 

Deborah gritou com dores na mão, que abanou aflita durante um bocado. Dominou-se, agarrou na incubadora mais próxima e encostou-a à porta. Joanna percebeu logo o que Deborah tinha em mente e ajudou-a com a incubadora, de modo que esta continuava a exercer pressão no botão que mantinha a porta fechada, como ambas depreenderam. As mulheres ficaram encostadas à incubadora para esta não sair do sítio.

 

- Qual é o plano? - perguntou Joanna num sussurro forçado e aterrorizado.

- A única saída é o elevador dos óvulos ou o monta-cargas! Que achas?

 

- o monta-cargas! - respondeu Joanna. - Sabemos exactamente onde fica e devemos caber lá dentro.

 

A poucos passos dali, Cindy conseguira ficar numa posição meio sentada. Tinha uma expressão vaga e perdida no rosto, como um pugilista esmurrado muitas vezes,

- Ora bem! - exclamou Deborah antes de deitar uma olhadela a Cindy, que tentava pôr-se de pé. - Vamos a isso!

 

Ambas largaram a incubadora em uníssono e desataram a correr pelo labirinto das salas. Infelizmente, escolheram mal e deram consigo numa sala vazia. Tiveram de retroceder para voltar ao caminho. Ouviram atrás delas o som distinto de uma incubadora a chocar com outra, seguido dos gritos roucos dos homens.

 

-Que os céus nos ajudem se o monta-cargas não funcionar - formulou Deborah, ofegante.

 

Contornaram a curva final, passaram as portas da sala de autópsias e colidiram literalmente com as portas do monta-cargas. Havia uma pesada correia de lona a sair por entre a frincha horizontal das portas, à altura do peito. Deborah agarrou nela e Joanna ajudou também. Com o peso de ambas, as portas deram de si, a porta inferior baixou e a superior subiu. Quando abriu o suficiente para entrarem, as mulheres meteram-se lá dentro.

 

o elevador em si era uma jaula com dois metros quadrados e um emaranhado de fios e cabos. À direita e à altura do peito encontrava-se um painel de controlo com seis botões. o chão era de madeira tosca. Em cima, os cabos de sustentação subiam para a escuridão; a única luz que se via entrava pelas portas abertas, vinda do corredor. Ouviram passos perto dali aproximando-se rapidamente.

 

-   As portas! - gritou Deborah, agarrando na correia de lona atarraxada ao interior da porta de cima. Joanna agarrou-a também. Mais uma vez, com o peso de ambas, conseguiram pôr as pesadas portas em movimento. Lentamente a princípio, mas depois mais depressa, as portas começaram a fechar-se, mas antes chegaram os homens. Uma mão entrou pela estreita fresta e agarrou na bata branca de Deborah, puxando-a em direcção às portas, mesmo quando estas se fecharam e deixaram as mulheres às escuras. Com as mãos ainda a prenderem a correia de lona, Deborah sentiu-se içada contra a porta.

 

- Carrega num dos botões! - guinchou Deborah para Joanna, sem deixar de fazer força na correia. Sentiu que havia alguém lá fora a tentar abrir as portas, mas para o fazer tinha de içar Deborah.

 

Como se fosse cega, Joannatacteou em buscadopainel de controlo que vislumbrara antes de as portas terem extinguido a luz.

 

- Despacha-te! Raios! - vociferou Deborah. Sentia-se a elevar-se do chão. Joanna alargou cegamente a sua busca por entre o emaranhado de fios, Finalmente, deu com a mão no painel de controlo. Na escuridão, carregou no primeiro botão que os seus dedos encontraram.

 

Ouviu-se um ruído estridente e agudo, como galinhas a serem torturadas, e, com um solavanco, o velho monta-cargas começou a subir.

 

Deborah largou a correia a que estava agarrada, caiu de joelhos e começou a desembaraçar-se da bata de médico, que ainda estava entalada entre as portas. Um segundo depois, com um ruído agonizante de coisas trituradas e rasgadas, a bata desapareceu pela estreita abertura entre o elevador e a parede de pedra do poço.

 

- Que barulho foi aquele? - perguntou joanna, ofegante.

 

Deborah estremeceu na escuridão. Sabia que o barulho esmagador poderia ter sido do seu corpo, se ela não se tivesse desembaraçado da bata. Ofegante, disse:

- Era a minha lanterna e as chaves do carro a serem esmagadas na bata de médico.

 

- Perdemos as chaves do carro? - gemeu joanna com o peito a arfar.

 

- É a menor das nossas aflições, de momento - contemporizou Deborah. Graças a Deus que este elevador funcionou. Os homens quase que nos apanhavam, foi mesmo por uma unha negra.

 

A lanterna de Joanna acendeu-se. Ela apontou-a para o painel de controlo. o botão que premira era o do terceiro andar.

 

- Que fazemos? - indagou Joanna, muito tensa. - Vamos para o terceiro andar. É melhor ver se dá para mudar ou não?

 

- Isto não é um elevador de alta velocidade - queixou-se Deborah. - o terceiro andar deve ser melhor do que o primeiro e até mesmo que o segundo. Não quero deparar com os homens outra vez.

 

- Evidentemente - disse Joanna. Com a respiração mais controlada, era a vez de ela estremecer. - Agora, temos provas de que esta gente é capaz de matar, e já devem saber que nós sabemos. E aquela cabra da Cindy sabia o tempo todo que os homens vinham a caminho. Por isso foi tão atenciosa. Devíamos ter desconfiado assim que ela ofereceu a visita guiada. Que se passa connosco?

 

- Agora é fácil de falar - disse Deborah, ainda ofegante. - Nós tínhamos a ilusão de que eles aqui violavam a ética, não os dez mandamentos. Matar por causa de óvulos muda tudo.

 

- Temos de sair daqui!

 

-Pois -corroborou Deborah. -Mas sem as chaves do carro não vamos alugar nenhum, pelo menos no nosso carro. Acho que o melhor é tentarmos chegar a um telefone na Clínica Wingate, no primeiro ou segundo andar.

 

- o problema é que isso deve ser mesmo do que eles estão à espera - atalhou Joanna. - Pelo menos, era o que eu pensaria. Que dizes de nos escondermos um bocado para podermos pensar num plano?

 

- Talvez nos devêssemos esconder até de manhã - sugeriu Deborah. - Eu diria que há uma pequeníssima minoria de gente que sabe realmente o que se anda a fazer aqui dentro, e, se soubessem, ficariam tão horrorizados como nós. Poderíamos pedir ajuda a alguém.

 

- Eu acho que eles nos vão procurar até nos encontrarem esta noite. Temos de sair daqui.

 

- Mas como? Aqueles homens estavam armados, pelo amor de Deus!

 

- Por isso é que temos de descobrir um esconderijo. Temos de reflectir, não nos podemos precipitar.

 

-Uma coisa a nosso favor é o tamanho deste edifício e o facto de estar tão cheio de tralha- salientou Deborah. -Tem de haver sítios seguros para nos escondermos um bocado. A menos que chamem mais gente, vão levar a noite toda a procurar exaustivamente.

 

-Exacto -disse Joanna. -Eudiriaque vão fazer uma busca rápida e superficial, e que, se esta não resultar, então, começarão a procurar mais rigorosamente. Nessa altura teremos de estar fora daqui ou seremos apanhadas.

 

Deborah abanou a cabeça e respirou fundo.

 

- Lamento ter-nos metido nisto. A culpa é minha.

 

- Não é altura para recriminações - ripostou Joanna. - Mas, para que fique registado, tu não me obrigaste a vir cá. Eu vim de livre vontade.

 

- Obrigada - murmurou Deborah. joanna apagou a lanterna.

 

- É melhor deixarmos os olhos habituarem-se à escuridão. Não podemos andar aí a correr de luz acesa.

 

- Tens razão - balbuciou Deborah, tentando controlar-se.

 

Minutos depois, com umrangido e um solavanco finais, o elevador imobilizou-se. o silêncio sepulcral avolumou-se. As mulheres saltaram para a porta. Abriram-na o mais depressa que puderam, mas depararam com uma parede de trevas impenetráveis.

 

-Não há hipótese, tenho mesmo de acender a luz -disse joanna. o clique soou alto naquela quietude. Ela dardejou rapidamente o foco pelo espaço pequeno e sem janelas. Era o vestíbulo do monta-cargas com uma larga porta dupla.

 

- Eles depressa descobrem que o elevador está aqui no terceiro andar - disse Deborah. - Por isso já estão a caminho. Vamos procurar uma escada e subir ao andar de cima. É lá que devemos procurar um esconderijo até sabermos o que vamos fazer.

- Okay!

 

Deborah abriu uma das portas que davam para o corredor e Joanna saiu. Varreu rapidamente o espaço com o foco de luz. Ainda que já estivesse avisada acerca de toda a parafernália médica que atravancava o antigo hospital, Joanna sentiu-se siderada com a cena. Não esperava ver quadros emoldurados nas paredes, nem um carrinho de lavandaria com lençóis dobrados nas prateleiras.

 

- É como se tivesse havido um exercício de incêndio e toda a gente saísse para nunca mais voltar - alvitrou.

 

- Está ali um sinal de saída - disse Deborah, apontando para sul. - Deve ser uma escada. Vamos!

 

joanna pôs a mão à frente da lente da lanterna, para limitar a luz ao estritamente essencial, de modo que Deborah e ela não tropeçassem nas macas, carrinhos e velhas cadeiras-de-rodas. Moviam-se rapidamente. Chegaram à escada e Deborah abriu a porta, Escutaram uns segundos. Estava tudo sossegado.

 

- Vamos! - instou Deborah, lançando-se nas escadas.

 

Começaram a correr degraus acima, mas abrandaram imediatamente devido ao ruído que causavam. Os degraus eram de metal e reverberavam como timbales no espaço confinado.

 

Só tinham chegado ao patamar intermédio quando ambas as mulheres ficaram paralisadas. Ouviram uma porta algures a escancarar-se e a bater contra a parede. Joanna recobrou o suficiente para apagar a lanterna.

 

Nisto, o estrondo dos passos de alguém ressoou nos degraus de metal,junto com uma luz trémula escada acima. Um dos homens galgava os lanços de escada com uma lanterna na mão.

 

joanna e Deborah passaram para a parte de trás do patamar e espalmaram-se contra os tijolos da parede, à medida que o barulho e a luz vindos de baixo atingiam rapidamente um crescendo. Ao mesmo tempo, um dos homens de preto aparecia no patamar do terceiro andar, a seis metros de distância. Estava tão perto das mulheres que a respiração dele era claramente audível. Felizmente, não olhou para cima e concentrou-se em chegar ao corredor do terceiro andar e ao monta-cargas o mais depressa possível.

 

Assim que a porta da escada se fechou atrás do homem, Joanna e Deborah recomeçaram a subida ao quarto andar. Demasiado assustadas para acender a lanterna, tinham de se mexer devagar, tacteando, enquanto lutavam com o renovado pânico que sentiam. Era particularmente difícil andar no patamar do quarto andar, devido às pilhas de caixas de cartão vazias.

 

Chegaram ao corredor do quarto andar e Joanna tornou a acender a lanterna. Com a mão sobre o foco, começaram a andar para norte, tão depressa quanto o atravancado corredor permitia. Ambas sentiam instintivamente que, quanto mais longe estivessem da parte do edifício ocupada pela Clínica Wingate, mais seguras estariam. Do mesmo modo, tentavam mover-se em silêncio naquele chão de madeira antiga, por causa do homem que as procurava no andar de baixo.

 

Chegaram à porta corta-fogo que dava para a torre. Sem discussão, atravessaram a torre e a porta corta-fogo do outro lado, para a ala norte. À excepção de algumas tábuas que rangiam ocasionalmente, mantiveram silêncio, cadaqual consumida pelos próprios medos.

 

As enfermarias da ala norte eram uma réplica das da ala sul, dispostas no sentido do comprimento de cada lado do corredor, Cada enfermaria estava separada da adjacente por salas laterais, e cada qual tinha entre vinte e trinta camas. A maioria das camas só tinha colchões em cima, embora algumas tivessem cobertores roídos pelas traças,

 

- Ideias para o nosso esconderijo ideal? - sussurrou Joanna, nervosamente.

- Ainda não - respondeu Deborah. - Acho que podíamos entrar para dentro dos armários das arrecadações, mas poderia ser fácil de mais.

 

- Não temos muito tempo,

 

- Infelizmente, tens razão - anuiu Deborah. Indicou a Joanna que apontasse a luz para a sala entre as duas últimas enfermarias no canto a noroeste do edifício. Ao invés de uma arrecadação como a maioria das outras, esta sala era um pequeno bloco operatório, com uma marquesa de ferro e um lavatório. A parede em frente tinha um armário grande com portas de vidro para instrumentos. Empurraram uma porta e depararam com uma pequena arrecadação para a roupa branca que tinha um esterilizador grande e antiquado.

 

Deborah dirigiu-se logo ao esterílizador e, enquanto Joanna lhe apontava a luz, abriu a porta. Esta resistiu a princípio mas depois deu de si a ranger.

 

- E se for aqui? - propôs Deborah.

 

o esterilizador tinha quase um metro de diâmetro e metro e meio de profundidade. Joanna apontou a luz lá para dentro. Havia algumas caixas de aço inoxidável em cima de uma grelha de metal.

 

- Só caberia uma de nós, mesmo que tirássemos a tralha para fora - avaliou Joanna. - E, mesmo assim, seria difícil.

 

- Deves ter razão - disse Deborah. Largou o esterilizador e apressou-se para a porta que dava para o fim da enfermaria. Joanna seguiu-a de luz acesa, mas com a mão à frente do foco. Quando deborah empurrou a porta, Joanna apagou a luz. Entrava um pouco de claridade do luar pelas janelas, o bastante para iluminar os objectos grandes da sala.

 

A enfermaria tinha a mesma dimensão e decoração das anteriores, à excepção de um cilindro horizontal com quase dois metros de comprido em cima de uns pés de apoio. Encontrava-se no lugar de uma das camas e dava até à cintura, na parede interior da sala.

 

- Ora aqui está uma hipótese! - exclamou Deborah.

- o quê?

 

- o cilindro - explicou Deborah, apontando para o enorme objecto. Lembro-me de ler sobre isto. Chamava-se pulmão de ferro e era usado em pessoas que não conseguiam respirar, como os doentes com paralisia infantil em meados do século.

 

As mulheres aproximaram-se o mais depressa possível do antiquado ventilador. Parecera-lhes cinzento-claro, mas agora de perto viram que era amarelo. Tinha dos lados pequenas vigias de vidro redondas. A extremidade que dava para a enfermaria tinha dobradiças e uma gola de borracha preta que se ajustava à cabeça do doente para a selar. Acima da gola encontrava-se um pequeno espelho, orientado num ângulo de quarenta e cinco graus, e abaixo estava uma plataforma para a cabeça do doente.

 

Deborah destrancou a tampa da frente e Joanna olhou nervosamente em redor da sala. Afligia-se com a passagem dos minutos. Precisavam de um esconderijo, o mais cedo possível.

 

Deborah empurrou a porta do pulmão de ferro e esta guinchou com menos intensidade do que o esterílizador.

 

- Traz para aqui luz - pediu Deborah.

 

- Deborah, não podemos andar aqui a coscuvilhar - lamuriou-se Joanna.

- Traz para aqui luz! - repetiu Deborah. Quando Joanna o fez, a porta corta-fogo bateu ao longe, seguida do lampejo de uma lanterna no corredor principal.

 

- oh, Deus! - balbuciou Joanna, e apagou a luz.

 

- Bem, isto tem de servir - disse Deborah. - Vamos esconder-nos aqui. Agarrou numa cadeira entre as camas e encaixou-a em baixo da abertura do pulmão de ferro. Agarrou no braço de Joanna,

 

- Rápido! Tu primeiro e os pés para a frente!

 

Os lampejos de luz intensificavam-se na abertura para o corredor principal.

 

- Rápido! - repetia Deborah,

 

Com alguma relutância, mas sentindo-se sem opção, Joanna subiu para a cadeira. Segurou-se à berma superior do cilindro e meteu um pé lá dentro. Com Deborah a apoiar-lhe o rabo, conseguiu meter o outro pé e deslizou o corpo lá para dentro.

 

Deborah agarrou na cadeira e colocou-a no lugar original.

 

- Onde vais? - inquiriu Joanna num sussurro quando Deborah lhe desapareceu da vista.

 

Deborah não respondeu, mas reapareceu quase instantaneamente.

 

- Tenho de entrar sem a cadeira - disse. - Seria uma pista excelente. Usando a escora entre as duas pernas da frente do pulmão de ferro como degrau, Deborah ergueu-se, de modo que o peito se sobrepunha ao cimo do pulmão de ferro. Tacteando uma saliêncíano cimo da perna, onde estava soldada ao corpo do aparelho, conseguiu meteros dois pés na abertura do cilindro, mas depois ficou em dificuldades. Não conseguia descobrir como enfiar o resto do corpo sem cair para o chão, mesmo que Joanna lhe segurasse as pernas.

 

- Isto não vai dar certo - declarou Deborah. Torceu-se para um lado e caiu no chão.

 

- Tens de te despachar - admoestou Joanna num sussurro. A luz vinda do corredor era mais brilhante e agora acompanhada por vozes. Eram os dois homens que surgiam ao fundo do corredor.

 

Deborah meteu a cabeça e o mais que pôde do tronco para dentro do pulmão de ferro.

 

- Agarra-me e puxa - pediu a Joanna em desespero.

 

Com impulsos para a frente e a ajuda de Joanna, deborah conseguiu entrar para opulmão de ferro, mas não sem antes arranhar as coxas e as canelas naberma metálica do cilindro. Teve de esgatanhar para chegar ao fundo. Devido à exiguidade do espaço, as mulheres ficaram de lado, apertadas e com a cabeça nos pés uma da outra.

 

-Tenta fechar a porta o mais que puderes -murmurou Deborah das profundezas do ventilador.

 

Joanna estendeu a mão, agarrou na gola de borracha e puxou. A porta começou a fechar-se lentamente, mas assim que rangeu ela parou, mesmo atempo. Um foco de luz entrava na sala e dardejava de um lado para o outro. Porbreves momentos, ofoco varreu o interior do pulmão de ferro através das vigias de vidro do lado da porta. Depois descreveu círculos em torno da sala e debaixo das camas, procurando nos cantos.

 

Asmulheres sustiveram involuntariamente a respiração. Um dos homens percorreu rapidamente o centro da enfermaria, passando duas vezes a três metros do pulmão de ferro, meio aberto. Estava dobrado a vasculhar debaixo das camas e das mesas.

 

- Vês alguma coisa? - bradou subitamente o homem, sobressaltando as mulheres.

 

Da enfermaria do outro lado do corredor o Outro homem respondeu negativamente. momentos depois, podia ouvir-se o homem que entrara na enfermaria onde estavam as mulheres já na sala ao lado, a abrir e a fechar Portas de armários e praguejando em voz alta. Deborah ainda conseguia ver o lampejo da lanterna por uma das vigias, até que ele saiu do pequeno bloco operatório para a outra enfermaria.

 

Quase em uníssono, as mulheres soltaram o ar dos seus pulmões e respiraram fundo várias vezes. Para Deborah, o ar era pouco fresco.

 

- Foi por uma unha negra, como no monta-cargas - sussurrou Joanna.

 

- Devem estar a passar o edifício a pente fino, como tu disseste - alvitrou Deborah.

 

- Vamos ficar aqui sossegadas um bocado, para o caso de ele voltar - propôs joanna. - E é melhor começarmos a pensar no que vamos fazer quando sairmos daqui. o tempo arrastava-se, especialmente para Deborah, que começou a ficar com claustrofobia, apertada como estava na base do cilindro para uma só pessoa. Para ela, a situação era pouco propícia à reflexão. o cheiro do colchão velho e a poeira incomodavam-na. Em várias ocasiões teve de fazer um grande esforço para não espirrar. Por fim, começou a transpirar e a ficar progressivamente sem fôlego.

 

Após quase meia hora, Deborah não aguentava mais.

 

- Ouviste alguma coisa ou viste algumas luzes? - perguntou,

 

- A única luz que vejo é através das janelas - disse Joanna. - Há uma luz lá fora que não se via há bocado.

 

- Nada dentro do edifício?

 

- Nadínha - respondeu Joanna.

 

- Tenho de sair daqui - admitiu Deborah. - Empurra a porta e tenta sair sem fazer barulho.

 

Joanna empurrou a porta, que ficou quase escancarada, sem ruído algum.

- Vou sair - declarou Deborah. -Peço já desculpa se puser a mão nalgum sítio que tu não gostes.

 

Contorcendo-se e praguejando em voz baixa, deborah conseguiu esgueirar-se para fora do pulmão de ferro. Varreu a sala com os olhos reparando que a luz ambiente intensificara- se, como Joanna dissera. Depois limpou a testa com as costas da mão e passou os dedos pelo cabelo húmido até aos ombros. Sentia-se esfarrapada e exausta, mas sabia que a noite ainda era uma criança, com mais desafios, Veio-lhe à ideia a vedação de arame farpado e percebeu que, mesmo que saísse do edifício, não seria nada fácil abandonar as instalações.

 

- E se me chegasses essa cadeira? - pediu Joanna.

 

-Oh, desculpa - disse Deborah. Distraíra-se com as suas preocupações. Arrastou a cadeira até à boca do pulmão de ferro.

 

- Tiveste alguma ideia de como poderemos sair daqui? - perguntou Joanna enquanto se espremia para fora do ventilador.

 

- Não - confessou Deborah. - Apertada como estava naquele tubo, não consegui pensar. E tu?

 

- Ocorreu-me uma coisa - começou Joanna. - A central eléctrica pode ser uma maneira de se sair do edifício.

 

- Como assim? - indagou Deborah.

 

- Se lá estão a criar energia para aquecer a casa, ela tem de cá chegar continuou Joanna. - Tem de haver um túnel.

 

- Pois claro! - exclamou Deborah.

 

-Reparei que o monta-cargas tinha seis botões -explicou Joanna. -Sóvoltei a pensar nisso quando me lembrei de um túnel. o edifício deve ter uma subcave, Talvez devêssemos tentar lá ir. Quanto mais penso na ideia do telefonema da Clínica Wingate, mais me convenço de que é muito arriscado.

 

- Mas eu não vi acesso nenhum a uma subcave - atalhou Deborah. - Não havia nenhum na escada que usámos esta noite, nem naquela que eu usei esta tarde.

- Vamos ver ao monta-cargas - propôs Joanna.

 

- Não podemos usá-lo - contrapôs Deborah. - É muito barulhento.

 

- Não digo que usemos o elevador em si - explicou Joanna. - Geralmente, há uma escada nos poços de elevador. Não sei porquê, deve ser para manutenção.

- Onde é que aprendeste isso? - questionou Deborah. Estava impressionada.

- Graças ao Carlton - ilucidou Joanna. - Só gosta de filmes de acção sem miolos e eu já tive de aturar alguns. Há dezenas de cenas em poços de elevador.

- Acho que vale a pena verificar - disse Deborah. - Achas que esperámos o suficiente?

 

- Não podemos ter a certeza, mas como não podemos ficar aqui toda a noite, temos de lá ir. Deixa-me verificar o corredor.

 

- Está bem, faz isso - disse Deborah. - Quero ver o que é esta luz toda que entra pelas janelas dentro.

 

Enquanto Joanna se dirigia cuidadosamente à arcada que dava para o corredor, Deborah atravessou a enfermaria. Dobrando-se pela cintura para manter a cabeça baixa, Deborah aproximou-se da janela. Ergueu lentamente os olhos acima do parapeito e deparou com vários faróis de automóveis posicionados para iluminar o edifício. Embora os carros tivessem muito em baixo, no relvado, Deborah agachou-se rapidamente para não ser vista. Vislumbrara a silhueta de vários guardas fardados em contraluz. Tinham cães grandes em trelas. Os dois homens de preto tinham chamado reforços.

 

Deborah juntou-se rapidamente a Joanna, que a esperava na arcada, e contou-lhe o que vira.

 

- Isto não é bom sinal - disse Joanna, gravemente. - Esta gente não brinca em serviço.

 

- Eu acho que já sabíamos isso - retrucou Deborah.

 

- o que implica uma súbita necessidade de abandonarmos o edifício por via subterrânea - declarou Joanna. Ia abrir a boca para dizer que o corredor estava livre quando o som de um megafone vindo lá de fora a assustou.

 

11 de Maio de 2001

00:37 h.

- Joanna Meissner e Deborah Cochrane! - ecoou uma voz à frente do edifício.

- Não vale a pena prolongar esta charada. Não nos façam entrar no edifício com os cães, pois é o que faremos se não saírem de livre vontade. A Polícia de Bookford vem a caminho. Repito! Saiam imedíatamente.

 

-Lá se vão os nossos nomes falsos tão cuidadosamente elaborados - comentou Deborah.

 

- Se eu acreditasse que nos vão entregar à Polícia de Bookford, saía lá para fora num piscar de olhos.

 

- Não nos vão entregar a ninguém - disse Deborah.

 

- Precisamente - continuou Joanna. - Vá! Vamos ver o monta-cargas antes que eu perca a coragem.

 

Ganhando alguma familiaridade como edifício, as mulheres arrepiaram caminho pelo quarto andar até à escada que tinham usado antes. A princípio tentaram descer sem acender a lanterna, mas cedo perceberam que o risco de atirarem tralha invisível pela escada abaixo era maior do que o risco do foco de luz disfarçado. Tornaram a desligar a lanterna antes de entrarem no terceiro andar. No corredor ouviram novamente a mensagem no megafone,

 

Tiveram de apagar a luz outra vez na antecâmara do monta-cargas. o elevador estava exactamente como o haviam deixado, de portas entreabertas. Joanna apontou a luz para o interior. Através do emaranhado de fios na parte de trás, vía-se uma escada fixa à parede de tijolo do poço do elevador.

 

- Tinhas razão acerca da escada - disse Deborah. - Mas como é que lá chegamos?

 

Joanna alumiou a parede lateral do elevador. Havia traves de uma escada presas à parede da cabina. As traves levavam aum alçapão cheio de fios no tecto do elevador,

- Só temos de subir para cima do elevador - declarou Joanna.

 

- Ai, é só isso? - questionou Deborah, sarcasticamente. - Onde é que foste buscar este descaramento todo?

 

- Estou a fingir que sou a Deborah - disse Joanna. - Por isso, vamos a despachar antes que eu volte à minha pessoa,

 

Deborah soltou um risinho trocista.

 

As mulheres saltaram a porta inferior meio aberta, Joanna segurou na lanterna enquanto Deborah subia as traves da escada. Agarrada ao último, conseguiu empurrar o alçapão, que se abriu num ângulo de noventa graus,

 

Joanna passou-lhe a lanterna e Deborah pô-la em cima do elevador antes de se içar. o elevador abanou um pouco quando ela se pôs de pé, obrígando-a a agarrar-se aos cabos que estavam engordurados com o que parecia ser vaselina, Momentos depois, aparecia Joanna pelo buraco. Deixou-se ficar de gatas em vez de se levantar.

 

A escada percorria a parede traseira do elevador, a uma distância de trinta centímetros do aparelho propriamente dito.

 

- Bem, que achas? - perguntou Deborah.

 

- Acho que devemos tentar - afirmou Joanna. Apontou a lanterna para baixo. Não tinha intensidade suficiente parachegar ao fundo do poço e a luz esbatia-se numa névoa lúgubre.

 

- Tu primeiro - disse Deborah, - E fica com a luz.

 

- Não vou ser capaz de subir e segurar a lanterna ao mesmo tempo.

- Eu sei - disse Deborah. - Mas tens um bolso e eu não.

 

- Está bem - assentiu Joanna com resignação. Estava acostumada à líderança de Deborah em tais circunstâncias. Joanna apagou a luz, deixando-as na escuridão total. Meteu a lanterna no bolso e tacteou à procura da escada. Assim que se conseguiu agarrar, teve de se debater interiormente para abandonar a relativa segurança do elevador, especialmente quando este abanou um pouco durante a transição. Com ambas as mãos fortemente presas à trave da escada, tentou não pensar que estava suspensa numa escada vertical, quatro andares acima de um buraco negro.

 

- Isso vai bem? - sussurrou Deborah, às escuras, por não ouvir movimento algum.

 

Isto é lancinante - declarou Joanna. Estás na escada?

 

Estou - disse Joanna. - Mas tenho medo de me mexer. Mas tens que te mexer!

 

Joanna baixou um pé até à trave seguinte e depois o outro. Tinha mais dificuldade em largar uma das mãos. Por fim, lá conseguiu e depois repetiu o movimento com a outra mão. Lentamente a princípio, mas depois com confiança redobrada, desceu entre o elevador e a escada. Era muito apertado, o que dificultou consideravelmente o processo.

 

- Podes alumiar-me aqui para eu ver onde é a escada? - perguntou Deborah lá de cima.

 

- Não posso - disse Joanna. - Não consigo largar-me tanto tempo. Deborah resmungou uns palavrões enquanto estendia uma mão às cegas e mantinha a outra no cabo engordurado. Porém, a escada ficava longe de mais, e Deborah teve de se pôr de gatas como Joanna e rastejar até à beira do elevador. Por fim, agarrou-se à escada, passou o seu peso para lá e desceu atrás de Joanna.

 

As mulheres moviam-se devagar, particularmente Joanna. Embora fosse ganhando confiança, surgira outra preocupação ao sentir a corrosão das traves. Começou a temer que alguma trave estivesse tão enferrujada que cedesse sob o seu peso. Antes de passar o peso para qualquer trave, Joanna dava-lhe um pontapé para ver se iria aguentar.

 

A escuridão do poço ajudava Joanna, especialmente depois de passar a cabina do elevador. Sem poder ver, a altura era só um problema na sua cabeça e não aos seus olhos. Deborah tinha de abrandar de cada vez que apanhava Joanna.

 

Após um quarto de hora a descer, Deborah estava pronta para reconhecer o terreno.

- Consegues ver o fundo? - indagou num sussurro. Os músculos dos braços já se começavam a queixar e ela imaginava que se passaria o mesmo com Joanna.

 

- Deves estar a brincar - respondeu Joanna. - Nem consigo ver a ponta do nariz.

- Talvez fosse bom acenderes a luz só um segundo. Prende o braço em redor de uma trave.

 

- Acho que devia continuar até os meus pés tocarem no chão - disse Joanna.

- Queres descansar?

 

- Acho mesmo que devia continuar.

 

Passaram mais dez minutos até que o pé esticado de Joanna tocou no pavimento. Recolheu o pé.

 

- Chegámos - anunciou. - Aguenta aí!

 

Prendeu o braço na trave como Deborah sugerira, sacou da lanterna e acendeu-a. o fundo do poço estava coberto de detritos, como se tivesse servido de caixote do lixo durante anos.

 

- Consegues ver se estamos na subcave ou não? - perguntou Deborah.

 

- Não consigo - respondeu Joanna. - Desce para vermos se conseguimos abrir as portas.

 

Joanna afastou o lixo na base da escada com um pé antes de passar para o pavimento. Esperou que Deborah descesse o resto das escadas, mantendo a mão a cobrir o foco da lanterna.

 

- Credo, está um gelo aqui em baixo - disse Deborah, esfregando os braços assim que saiu da escada. - Parece mesmo uma subcave.

 

As mulheres encaminharam-se cautelosamente para as portas, pisando os pedaços de papel, os trapos e bocados de madeira entremeados com algumas latas. Joanna segurou na lanterna e Deborah meteu os dedos entre ambas as portas do elevador,mas por mais que tentasse, estas não abriam.

 

Joanna pousou a luz no chão para poder ajudar, mas as portas nem se mexeram.

- Isto não é bom - disse Joanna.

 

Deborah pegou na lanterna e recuou um passo. Varreu o foco pelo contorno das portas. Deteve-se numa alavanca que saía da parede em cima da junção das portas.

- Lá está o problema - disse Deborah. - Não vi muitos filmes de acção, mas

 

aquilo tem de ser um mecanismo de segurança para manter as portas trancadas enquanto a cabina do elevador não estiver mesmo em frente a elas.

 

-  Ou seja? - indagou Joanna.

 

- Ou seja, uma de nós tem de puxar aquilo para baixo enquanto a outra abre as portas.

 

- Tu és mais alta - disse Joanna. - Puxa tu o mecanismo que eu tento abrir as portas.

 

Momentos depois, as portas abriam-se, mas só depois de Joanna aplicar todo o seu peso na porta inferior é que abriram completamente. Deborah apontou a luz para o espaço à frente delas.

 

- É uma subcave, sim, senhora - declarou Joanna. Todo o piso consistia em intersecções de arcadas, nas quais havia um emaranhado de canos de esgoto de barro e condutas de aquecimento isoladas em ferro-forjado. Não havia portas nem divisórias, As paredes eram de tijoleira como na cave em cima, mas as arcadas eram menos pronunciadas e os pilares maiores.

 

Via-se uma passagem com um tecto abobadado mais alto do que o resto da subcave, que ia do monta-cargas até um corredor semelhante a todo o comprimento do edifício. Cabos eléctricos nus pendiam das abóbadas ligados a conjuntos de lâmpadas, mas estas estavam apagadas.

 

As mulheres pararam na intersecção e alumiaram nas duas direcções. Em cada uma via-se um estudo de perspectiva, com as arcadas sucedendo-se na escuridão até onde a fraca luz conseguia penetrar.

 

- Para que lado? - questionou Joanna.

 

- Eu diria para a esquerda - alvitrou Deborah. - Assim vamos para a secção da torre do edifício, que fica no meio.

 

- Mas se formos para a direita ficamos mais a caminho da central eléctrica retrucou Joanna. - A central fica a sueste,

 

Apontou para um ponto a quarenta e cinco graus do eixo do corredor principal,

- Como é que vamos decidir? - perguntou Deborah, olhando para os dois lados.

 

-Aponta a luz para o chão -disse Joanna. Ajoelhou-se. o soalho da passagem do monta-cargas, assim como o corredor principal, era de mosaico de cerâmica, enquanto o resto do pavimento da subcave era do mesmo tijolo que viam nas paredes e nas arcadas do tecto,

 

- Há, decididamente, mais movimento para a direita - disse Joanna. - o mosaico está mais gasto nessa direcção, o que indica não somente que o túnel é para a direita, mas também que este foi usado para algo mais do que aquecimento.

 

- Palavra de honra - comentou Deborah, olhando para baixo, - Acho que descobriste alguma coisa. Isto é mais um dos truques que aprendeste a ver filmes de acção com o Carlton?

 

- Não, isto é senso comum.

 

- Obrígadinha - disse Deborah, sarcástica.

 

As mulheres começaram a caminhar rapidamente para sul. Deborah mantinha a lanterna apontada para a frente. Os passos delas ecoavam devido à concavidade do tecto.

- Parecem catacumbas - comentou Joanna.

 

- Se calhar não devia perguntar, mas em que pensavas quando disseste que o túnel era usado para outras coisas além do aquecimento?

 

- Ocorreu-me que o túnel seria a via de transporte dos cadáveres da morgue para o crematório.

 

- Ora que ideia animadora - disse Deborah.

 

- Não é? -íronizou Joanna. - Acho que falámos depressa de mais. Parece que o corredor está a acabar.

 

A cerca de dez metros, a lanterna só iluminava uma parede de tijolo exposto.

- Está tudo bem - disse Deborah depois de darem mais uns passos. - o trilho vira para a esquerda.

 

Quando as mulheres chegaram à parede, repararam que o corredor abobadado virava abruptamente à esquerda em torno de um pilar em arco, mas que também descia e ficava algo íngreme. Corria um cano largo e isolado ao longo do corredor descendente.

 

- Graças às nossas capacidades detectivescas, acho que estamos a caminho da central eléctrica- disse Deborah quando começaram a descer, -Agora é sóesperar que as pilhas da lanterna se aguentem.

 

- Valha-me Deus! - exclamou Joanna. - Nem digas uma coisa dessas! Com apreocupação acrescida de ficarem às escuras nos subterrâneos, as mulheres estugaram o passo até quase correrem. Passados alguns metros, o túnel nivelava-se e ficava significativamente mais húmido. Até havia poças de água e algumas estalactites penduradas no tecto.

 

-Parece que já estamos a caminho de Boston - disse Deborah, -Nãodevíamos já ter lá chegado?

 

- A central eléctrica ficava mais longe do que parecia - asseverou Joanna. Sentindo-se impelídas, as mulheres apressaram-se em silêncio, cada qual remoendo uma preocupação muda com o que iriam enfrentar no final. Por exemplo, uma porta sólida e trancada prenunciaria a desgraça de as fazer retroceder o caminho todo.

 

- Vejo ali qualquer coisa - anunciou Deborah. Estendeu o braço para fazer avançar a luz. Momentos depois, as mulheres deram consigo num cruzamento inesperado; o corredor e a tubagem do aquecimento bifurcavam-se,

 

As mulheres pararam, coçando a cabeça figurativamente, Deborah apontou a luz para os dois túneis. Pareciam idênticos e todos os três se intersectavam no mesmo ângulo aproximado de cento e vinte graus.

 

- Não contava com isto - disse Joanna, nervosamente.

 

Deborah apontou a luz para o canto entre o túnel onde elas estavam e o novo túnel para a esquerda, à altura do peito via-se uma placa de granito. Com as costas da mão, deborah limpou a camada de bolor e revelou letras gravadas.

 

- Ora bem! - exclamou Deborah com renovado entusiasmo, - Um mistério resolvido: o túnel da esquerda vai para a quinta e para os alojamentos, o que quer dizer que o outro vai para a central eléctrica.

 

- Pois claro - afirmou joanna. - Vendo melhor, o tubo que vai para a central eléctrica tem um diâmetro maior.

 

- Espera aí - disse Deborah, estendendo a mão e agarrando Joanna que já começara a andar na direcção da central eléctrica. -Com estas opções, talvez fosse melhor pensarmos um pouco em qual será o melhor destino. Partindo do princípio de que conseguiremos subir à superfície em qualquer dos sítios, acho que devíamos.---

 

- Nem sequer sugiras que não vamos conseguir sair - interrompeu Joanna.

- Pronto, está bem! - apaziguou Deborah. - Vamos pensar onde é que preferimos sair: na central eléctrica ou na quinta. Assim que saírmos do edifício do hospital, o nosso problema passa a ser sair do terreno. Talvez a quinta fosse uma melhor ideia. Devem ter regularmente camiões de entregas, como Os que vimos no outro dia.

 

-Achei que tínhamos decidido desaparecer daqui esta noite -redarguiu JOanna.

- Seria o melhor, mas temos de ter uma alternativa, para o caso de não conseguirmos.

 

-Ainda acho que, se não sairmos esta noite, seremos apanhadas,

- Tens alguma ideia?

 

- Considerando a vedação de arame farpado, só nos resta sair pelo portão. Se arranjássemos um carro, aliás, um camião, talvez pudéssemos rebentar com ele.

- Hmmm, boa ideia - comentou Deborah. - E onde é que teríamos mais hipótese de arranjar um carro com as chaves dentro?

 

- Provavelmente, na quinta - alvitrou Joanna. - Mas é só um palpite.

 

- Eu diria a mesma coisa - corroborou Deborah. - Vamos tentar a quinta primeiro, pelo menos.

 

Com renovada determinação, as mulheres lançaram-se a caminho da quinta. Moviam-se rapidamente, evitando as poças de água o melhor que podiam, pois eram mais abundantes nesta parte do túnel. Ao fim de cem metros, depararam com outra bifurcação. Havia mais uma placa a indicar-lhes a quinta à direita e os alojamentos à esquerda. As mulheres optaram pela direita.

 

- Ao ver a indicação dos alojamentos lembrei-me de Spencer Wingate- disse Joanna. - Talvez fosse de considerar a hipótese de abordá-lo para pedir ajuda. deborah deteve-se e Joanna imitou-a. Com a luz apontada para a frente, Deborah encarou a companheira de quarto. As órbitas de Joanna perdíam-se na sombra.

- Estás a sugerir que falemos com Spencer Wingate?

 

- Sim - disse Joanna. - Vamos a casa dele, pelo menos sabemos onde é, e contamos-lhe o que descobrimos aqui. Contamos também que os seguranças nos querem apanhar e, provavelmente, adicionar-nos à colecção de ovários,

 

Deborah soltou uma risada sarcástica.

 

- Estranha altura para começares a desenvolver um sentido de humor macabro.

- De momento, é a única maneira que tenho de lidar com a realidade que enfrentamos.

 

- E tu baseias esta ideia de nos entregarmos nas mãos de Spencer Wingate na discussão que presenciámos entre ele e Paul Saunders?

 

- Nisso e na reacção dele à tua pergunta sobre as mulheres da Nicarágua explicou Joanna. - Nenhuma de nós acha mesmo que o Spencer sabe de tudo o que se passa aqui. Se ele for um ser humano normal, vai ficar tão horrorizado como nós.

 

- Tudo isso é um grande «se», e correríamos um enorme risco - avaliou Deborah.

 

- Já corremos tantos riscos só por estarmos aqui - disse Joanna.

 

Deborah acenou com a cabeça e olhou para a escuridão. Joanna tinha razão; tinham corrido mais riscos do que esperavam. Mas será que isso justificava o risco irreversível de abordar Spencer Wingate?

 

- Vamos ver o que se pode arranjar na quinta- propôs Deborah. - Deixamos a ideia do Spencer Wingate a marinar. De momento, encontrar um grande camião que nos leve daqui para fora parece-me a melhor ideia. Concordas?

 

- Concordo - rematou Joanna. - Só acho que temos de considerar todas as opções.

 

Para alívio das mulheres, o túnel entrava no complexo da quinta da mesma forma que saía do edifício do hospital, Desembocava sem impedimentos numa cave onde a tubagem do aquecimento se dividia em várias direcções antes de desaparecer pelo tecto. o corredor, também como no hospital, era adjacente ao túnel e dava para um elevador monta-cargas. As mulheres, porém, não tentaram abrir as portas do elevador, e foram à procura de escadas. Encontraram um lanço atrás do poço do elevador.

 

No topo das escadas, à porta, fizeram uma pausa. Deborah encostou o ouvido à porta e comunicou a Joanna o ruído sossegado de maquinaria ao longe. Depois de filtrar a luz, deborah abriu aporta lentamente. Pelo cheiro, perceberam imediatamente que estavam num celeiro, Não se ouvia nenhum som.

 

Deborah abriu a porta o suficiente para meter a cabeça e espreitar. A iluminação era difusa devido à irregularidade das lâmpadas nuas na estrutura de vigas e postes. Em frente, viam-se várias cocheiras e à esquerda portas fechadas. No meio do espaço havia pilhas enormes de caixas de cartão, fardos de palha e sacas de ração animal.

 

- Então? - sussurrou Joanna uns degraus abaixo nas escadas, - Vês alguma coisa?

 

-Há muitos animais nas cocheiras - disse Deborah-, mas não se vê ninguém, pelo menos ainda não.

 

Deborah abriu a porta e saiu para o chão de tábuas toscas coberto de palha. Alguns animais sentiram a sua presença e deram sinal, fazendo com que outros se pusessem de pé. Joanna juntou-se a Deborah e as duas continuaram a apreciar a cena.

 

- Até agora tudo bem - declarou Deborah. - Se têm turno da noite devem estar a dormir.

 

- Que cheiro - queixou-se Joanna. - Não sei como é que alguém consegue trabalhar neste ambiente.

 

- Aposto que são os porcos - disse Deborah, Deu consigo a olhar para uma enorme porca branca e cor-de-rosa. Esta parecia ter grande interesse em Deborah.

 

- Alguém me disse que os porcos são asseados - ripostou Joanna.

 

-Pois são, se os mantiverem limpos -disse Deborah. -Mas não se importam de andar na porcaria e os excrementos deles são terríveis.

 

- Estás a ver o mesmo que eu na parede atrás de ti? - perguntou Joanna e apontou,

 

Deborah olhou por cima do ombro e o rosto ilumínou-se-lhe.

 

- Um telefone!

 

As mulheres correram para o telefone. Deborah agarrou-o primeiro e levou o auscultador ao ouvido. Joanna olhava com grande expectativa, até que a expressão de Deborah se traduziu em desânimo. Deborah batia com a mão no botão de ligação, mas depois desligou.

 

- Nada feito! Desligaram as linhas.

 

- Não me espanta nada - declarou Joanna.

- Nem a mim - admitiu Deborah.

 

- Vamos procurar o camião - decidiu Joanna.

 

Deixando a porta das escadas entreaberta, as mulheres passaram pelas rações animais e o feno e dirigiram-se à porta mais próxima. Deborah abriu-a e apontou a lanterna.

 

- Jesus Cristo! - exclamou Deborah.

 

- Que foi? - indagou Joanna, tentando ver por cima do ombro de Deborah.

- É outro laboratório - anunciou Deborah, pasmada. Não esperava um laboratório, e a transição do celeiro para a supertecnologia numa única porta era estonteante. o laboratório não era tão grande como o do hospital, mas parecia quase tão bem equipado.

 

Deborah largou a porta e entrou na sala. Joanna seguiu-a, Deborah agitava o foco de luz de um lado para o outro, descobrindo coisas como sequenciadores de ADN, um microscópio electrónico e sintetizadores de polipeptídeos. Era o sonho de uma bióloga molecular tornado realidade.

 

- Não vamos procurar o camião? - instou Joanna.

 

- Vamos já - disse Deborah. Dírigiu-se a uma incubadora e olhou para as placas de Petri. Eram iguais às que ela usara no laboratório nesse mesmo dia, e deborah deduziu que também faziam transferência nuclear ali. Nisto, o foco de luz incidiu numa janela grande de vidro laminado que dava para uma sala separada.

 

Deborah começou a encaminhar-se para esta sala. Joanna seguiu-a para não ficar sozinha às escuras.

 

- Deborah! - bradou Joanna. - Estás a distraír-te.

 

- Eu sei - disse Deborah. - Mas de cada vez que acho que tenho uma ideia geral daquilo que se faz na ClínicaWingate, descubro que há muito mais coisas, Não esperava outro laboratório nesta quinta, e muito menos um tão bem equipado.

 

-Deixa isso para os profissionais -alegou joanna. - Já dispomos de informação suficiente para justificar um mandado de busca. Só temos de sair daqui.

 

Deborah apontou a luz da lanterna directamente para a divisória de vidro laminado para evitar o reflexo enquanto alumiava a outra sala.

 

Ora cá está mais uma surpresa. Parece uma sala de autópsias totalmente operacional, como as que se usam para cadáveres humanos, mas com uma mesa muito pequena, Que raio é que isto faz aqui num celeiro?

- Vamos embora! - suplicava Joanna cada vez mais irritada.

 

- Deixa-me só ver isto - pediu Deborah. - É só um segundo. Está ali um compartimento frigorífico, como na morgue,

 

Joanna revirou os olhos, frustrada, quando Deborah empurrou a porta da sala de autópsias e ficou a observá-la pela divisória de vidro a percorrer o compartimento. À excepção da luz da lanterna de Deborah, Joanna estava às escuras. Olhou para a porta do laboratório e acarinhou a ideia de ir procurar um camião sozinha, mas decidiu que seria estúpido, sem a lanterna.

 

Praguejando baixinho, Joanna seguiu a amiga até à pequena sala de autópsias com intenção de lhe exigir que ganhasse juízo, mas depressa desistiu. Deborah tinha puxado um tabuleiro do compartimento frigorífico e olhava fixamente para ele. Joanna não sabia o que era, mas percebeu que Deborah tremia pela maneira como segurava na lanterna.

 

- o que é? - perguntou joanna.

 

- Anda cá ver! - disse Deborah em voz trémula.

 

- É melhor dizeres-me - pediu Joanna. - Eu não sou bióloga como tu.

- Tens de ver isto - afirmou Deborah. - Não há maneira de descrever. Joanna engoliu em seco nervosamente. Respirou fundo, foi até Deborah e obrigou-se a olhar para baixo.

 

- Arghhh! - proferiu joanna, franzindo involuntariamente o lábio superior com repugnância. Deparara com cinco recém-nascidos com os cordões umbilicais inchados e uma espessa camada de lanugem escura. os rostos eram espalmados e largos com olhos pequeninos. Os narizes mal se viam, com as narinas em formato vertical. Os membros tinham extremidades em forma de pá com dedos minúsculos. As cabeças tinham uma melena de cabelo negro, acentuado com diminutas mas visíveis madeixas brancas.

 

- São os clones do Paul Saunders outra vez - cuspiu Joanna.   -   Acho que

- Receio que sim - disse Deborah. - Mas com uma nova acepção.

 

O que ele anda a fazer aqui é clonar as células dele com oócitos de porca e depois a gestação faz-se no útero da porca,

 

Joanna estendeu a mão e agarrou-se ao braço de Deborah. Precisava de apoio. Deborah tinha razão quanto à Clínica Wingate. Esta nova descoberta indicava que Paul Saunders e acólitos queriam dar um salto gigante no escuro, para além da racíonalidade e da própria ética. o egocentrismo e a presunção intelectual ultrapassavam simplesmente a compreensão de Joanna.

 

Deborah empurrou o tabuleiro para dentro do compartimento frigorífico e bateu com a porta.

 

- Vamos lá descobrir o maldito camião!

 

Com a indignação a ajudar a ultrapassar o choque da recente descoberta, as mulheres retrocederam para o celeiro. Ao saírem do laboratório, a sua presença agitou novamente os animais, Anteriormente haviam sido os porcos junto à porta das escadas, mas agora até as vacas se juntavam ao coro de ruídos.

 

As mulheres foram de porta em porta até encontrarem uma passagem que conduzia ao que elas pensavam ser uma garagem, Todavia, revelou-se algo muito maior. Com as luzes de duas placas de saída, puderam ver que se tratava de um hangar. Banhado pelo brilho avermelhado, encontrava-se um helicóptero turbo-jacto Aerospatial.

 

- Seria a resposta às nossas preces, se soubéssemos pilotar - disse Deborah. Deixou-se ficar a admirar o aparelho.

 

- Vamos - instou Joanna. - Acho que há uma garagem atrás deste edifício. Joanna tinha razão, e quando passaram pela outra porta, depararam com um tractor e um camião cisterna. Ambas correram para o camião.

 

- Que as chaves lá estejam! -rezava Deborah em voz alta enquanto subia para o degrau do camião e abria a porta. Atirou-se para dentro da cabina. Deborah verificou no volante e na coluna. Encontrou a ignição, mas não estavam lá chaves nenhumas.

 

- Maldição! - praguejou Deborah e bateu no volante com o punho fechado. Acho que podíamos fazer injecção directa nisto, se soubéssemos como.

 

Olhou para Joanna.

 

- Não olhes para mim - disse Joanna. - Não faço a menor ideia!

 

- Vamos voltar ao escritório que vimos no celeiro - sugeriu Deborah, Talvez lá estejam as chaves.

 

Deborah desceu do camião e as mulheres voltaram ao celeiro, olhando novamente para o helicóptero ao passarem pelo hangar.

 

Assim que entraram no celeiro os animais ficaram ainda mais agitados,

- Devem pensar que é a hora de comer - comentou Deborah.

 

As mulheres chegaram à porta do escritório quando ouviram o som inconfundível de um carro que se aproximava da porta do celeiro. Viram também a luz dos faróis a jorrar pela janela quando o carro virou para parar,

 

- oh, não! Vamos ter companhia! - gemeu Deborah,

- Volta para as escadas! - gritou joanna.

 

As mulheres desataram a correr para as escadas, mas não chegaram lá. A porta do celeiro abriu-se rapidamente e uma figura entrou de rompante. A primeira coisa que fez foi acender as luzes todas, estavam as mulheres a menos de seis metros do seu objectivo. Só puderam agachar-se atrás das caixas de cartão, fardos de palha e sacas de ração enquanto o homem fazia a ronda das cocheiras. Podiam ouvi-lo num monólogo contínuo com os animais, perguntando-lhes, entre outras coisas, quem era o culpado daquela agitação.

 

- Achas que devemos tentar chegar às escadas? - perguntou Deborah quando lhe pareceu que o homem estava bastante longe.

 

- Só se conseguires ver mesmo onde ele está e se está ocupado,

 

Lentamente, Deborah ergueu a cabeça até conseguir ver as cocheiras. Não via o homem, mas ouvia-o a falar com os animais. De repente, ele levantou-se e Deborah tornou a agachar-se.

 

- Não está tão longe quanto eu pensava - admitiu Deborah.

- Então ficaremos quietas - declarou Joanna.

 

- Podíamos tapar-nos com esta palha solta.

 

- Acho que é melhor ficarmos quietas e caladas - disse Joanna, - Não deve haver problema, a não ser que ele venha aqui buscar mantimentos.

 

- Se ele for ao escritório, passa por aqui e será um sarilho.

 

- Só temos de rastejar em redor das caixas, Não deve custar muito, e assim que ele entrar para lá, nós corremos para as escadas.

 

Deborah assentiu, mas não estava assim tão certa de que funcionasse. Era uma daquelas coisas que parecia fácil mas que devia ser uma complicação na prática. Subitamente, as mulheres ouviram o barulho de um segundo carro a chegar lá fora. Entreolharam-se, preocupadas. uma pessoa já era problema, duas poderiam representar uma desgraça iminente.

 

O recém-chegado entrou e bateu com a porta. As mulheres encolheram-se quando o ouviram chamar por Greg Lynch.

 

- Eia, fale baixo! - bradou Greg de uma das cocheiras. - Os animais já estão agitados de mais.

 

- Desculpe - disse o recém-chegado. - Mas temos uma emergência.

- Então?

 

- Estamos à procura de duas mulheres. Entraram com nomes falsos, introduziram-se nos ficheiros informáticos e na sala dos óvulos. Agora devem estar algures por aí.

 

- Não vi ninguém - disse Greg. - E o celeiro está fechado.

- Que faz aqui a estas horas?

 

- Há uma porca que está a chegar ao fim do tempo. Pelo monitor percebi que os animais estavam agitados e pensei que era ela a parir, mas está tudo bem,

 

- Se vir as mulheres quando voltar para casa contacte a segurança - disse o recém-chegado. -Elas estavam no edifício principal, masjá lá fomos. Conseguiram fugir, mas como não passaram pelo portão devem estar escondidas algures.

 

- Boa sorte.

 

- Vamos apanhá-las. Temos a equipa de segurança inteira nas buscas e os cães também. A propósito, os telefones não funcionam enquanto não as prendermos. Não queremos que contactem alguém para nos dificultar a vida.

 

- Não há problema - disse Greg. - Eu tenho o meu telemóvel,

 

Os homens despediram-se e as mulheres ouviram a porta do celeiro a abrir e a fechar.

 

- Isto vai de mal a pior - sussurrou Deborah. - Parece que estão a passar o terreno a pente fino.

 

- Não me agrada ter os cães no nosso encalço - disse Joanna.

 

- Pois a mim também não - afirmou Deborah. - Até me admira não terem pensado no túnel.

 

- Não sabemos se não foram lá.

 

-É certo - admitiu Deborah. - Mas tenho a sensação de que, nesse caso, este tipo que saiu o teria dito. Talvez o único caminho para a subcave na clínica seja o monta-cargas, e eles nunca adivinhariam que seríamos parvas o bastante para descer a escada,

 

- Atrevemo-nos a voltar lá?

 

- Se eles têm cães por aí não nos restam grandes hipóteses.

 

Quinze minutos depois, as mulheres ouviram Gregabocejarem voz alta, Depois falou, como se lidasse com um grupo de miúdos.

 

- Pronto, malta. Parem lá com isso! Quero que se acalmem todos porque não quero cá voltar esta noite.

 

Posto isto, Greg começou a assobiar baixinho, As mulheres repararam que o som aumentava e Deborah atreveu-se a uma espreitadela rápida.

 

- Vai para o escritório - anunciou num sussurro,

 

Seguindo a sugestão anterior de Joanna, as mulheres rastejaram, tentando manter a pilha de mantimentos entre elas e Greg. Era uma manobra difícil, como Deborah previra, pois não podiam olhar para cima. o homem vinha na direcção delas.

 

Assim que o som da porta do escritório a fechar chegou até elas, Deborah ergueu a cabeça.

 

- Pronto - sussurrou, quando viu a costa livre, e as duas ziguezaguearam para a porta das escadas. Quando chegaram ao fundo, Joanna fez sinal a Deborah para parar. Estavam ambas sem fôlego da tensão e do cansaço,

 

- Temos de decidir o que vamos fazer - disse Joanna, baixinho.

- Pensei que íamos à central de energia.

 

- Eu proponho que vamos ter com Spencer Wingate - disse Joanna. - Não havia chaves no camião aqui na quinta. Se houver outro na central de energia, nada garante que tenha chave. Aliás, o bom senso indica que não vai haver, e de cada vez que metermos a cabeça de fora arriscamo-nos a ser apanhadas. Acho que é altura de nos arriscarmos com o Wingate.

 

Deborah alternou o seu peso entre as duas pernas e mordiscou o interior da bochecha enquanto reflectia na sugestão de Joanna, Detestava tomar decisões que não deixavam uma alternativa disponível. Se Spencer Wingate estivesse combinado com a hierarquia actual da Clínica Wingate, estariam tramadas. Era tão simples quanto isso. Contudo, a situação complicara-se quando as tinham perseguido na sala dos óvulos e agora ficara insustentável.

 

- Pronto, está bem! - disse Deborah de repente. - Vamos atirar-nos à mercê de Spencer Wingate, dê lá no que der.

 

- Tens a certeza? Não quero sentir que te convenci a fazer isto.

 

- Não tenho a certeza de nada anão ser de que aindaexerço o meu livre-arbítrio. Deborah estendeu a palma da mão e Joanna bateu-lhe com determinação,

 

As mulheres voltaram aos túneis de aquecimento com a preocupação velada de que poderiam deparar com os perseguidores a qualquer momento. Todavia, chegaram ao ramal dos alojamentos sem incidentes, tirando o facto de que a luz da lanterna tinha menos intensidade.

 

A cerca de cem metros para além da bifurcação encontraram umaoutra. Aqui não havia placa de granito para as orientar.

 

- Caraças! - exclamou Deborah. Apontou a luz fraca para os dois túneis. Tens alguma ideia?

 

- Vamos para a esquerda. Sabemos que a aldeia fica entre os pavilhões e a quinta, por isso a aldeia deve ser para a direita.

 

Deborah fitou Joanna, pasmada.

 

- Impressionas-me novamente. De onde vêm todos estes recursos?

 

- Da minha educação tradicional sulista de que tu tanto escarneceste.

 

- Sim, claro! - disse Deborah, desdenhosamente.

 

Após mais cinco minutos a andar, as mulheres depararam com várias bifurcações seguidas.

 

- Acho que cada túnel vai para uma casa separada - alvitrou Deborah,

 

- Eu diria o mesmo - corroborou Joanna.

 

- Tens alguma ideia do que devemos tentar primeiro?

 

- Não - admitiu Joanna. - Mas faz sentido procurarmos por ordem.

 

A primeira cave onde as mulheres espreitaram depois de abrirem uma porta simples não era a de Spencer, pois fora alvo de alguns melhoramentos. Ambas recordavam claramente a cave de Spencer, de quando o haviam acompanhado à adega. Recuaram e tomaram o túnel seguinte. Este terminava numaporta de carvalho tosca.

 

- Este parece mais promissor - disse Deborah. Abanou a lanterna para tentar aumentar a luminosidade do foco. Tivera de o fazer de quando em vez nos últimos minutos.

 

Passou a lanterna a Joanna antes de empurrar a porta, que rangeu no umbral de granito. Em vez de se limitar a empurrar, Deborah tentou levantar a porta primeiro. Esta abriu-se com um ruído abafado. Deborah voltou a pegar na lanterna e, depois de a abanar mais uma vez, fez incidir a luz na cave. Deparou com a adega, que tinha o ferrolho ainda aberto.

 

- Cá está - anunciou Deborah. - Vamos embora!

 

As mulheres atravessaram o chão lamacento até aos degraus da cave. Subiram com Deborah à cabeça. No cimo das escadas hesitaram. Via-se luz pela frincha da porta.

 

- Acho que vai ter de ser com o que nos vier à ideia - sussurrou Deborah.

- Não temos opção - concordou Joanna, - Nem sabemos se estará acordado, Sabes que horas serão?

 

- Calculo - respondeu Deborah. - Por volta da uma.

 

- Bem, a luz está acesa, ele deve estar acordado. Vamos tentar não o assustar muito. Pode ter algum botão para ligar um alarme.

 

- Bem visto - disse deborah.

 

Deborah encostou o ouvido à porta antes de dar à maçaneta e abriu-a, Não havendo resposta, empurrou a porta e viu que estavam na cozinha.

 

- Estou a ouvir música clássica - disse Joanna.

- Pois é.

 

As mulheres aventuraram-se na cozinha às escuras. A luz vinha do candeeiro da sala de jantar. Tão silenciosamente quanto podiam, passaram para a sala de estar, onde se ouvia a música. Olhando para a lareira em frente, repararam que os soldadinhos de brincar que Spencer derrubara na noite anterior com a bebedeira tinham sido cuidadosamente arrumados no sítio.

 

Deborah ia à frente. Ambas as mulheres se dirigiam à sala de estar, à esquerda do vestíbulo, onde achavam que Spencer estaria. Por mero acaso, Joanna olhou para a direita, para o corredor escuro que dava para um escritório. Spencer estava lá, sentado à secretária, numa poça de luz do candeeiro de mesa. Parecia ocupado a estudar umas fotocópias,

 

Joanna tocou no ombro de Deborah. Esta virou-se e Joanna apontou freneticamente para a figura curvada de Spencer,

 

Deborah olhou para Joanna e os seus lábios pronunciaram silenciosamente a pergunta:

 

- Que fazemos?

 

Joannaencolheu os ombros. Não fazia ideia, mas depois achou melhor chamarem o homem, Fez o gesto de tocar na boca e depois apontou para Spencer.

 

Deborah assentiu. Aclarou a garganta e bradou:

 

- Dr. Wingate! - Mas a voz saiu-lhe trémula, confundindo-se com o coro da Nona Sinfonia de Beethoven que emanava da sala de estar.

 

- Dr. Wingate! - chamou Joanna com mais firmeza e mais alto para se sobrepor à música.

 

A cabeça de Spencer ergueu-se e rodou. Por momentos, o seu rosto empalideceu e ele ergueu-se tão depressa que a cadeira caiu para trás com estrondo.

 

- Não queríamos assustá-lo - disse Deborah, rapidamente. - Só queríamos falar consigo.

 

Spencer recuperou imediatamente. Sorriu com alívio ao reconhecer as mulheres e fez-lhes sinal para se lhe juntarem, enquanto se curvava para endireitar a cadeira. As mulheres dirigiram-se ao escritório. Ambas foram sensíveis à reacção de Spencer à sua presença, que até agora parecia auspiciosa. o receio inicial dele transformara-se em surpresa, com um toque de reconfortante prazer. Elas aproximaram-se e ele compôs o cabelo grisalho e ajustou o casaco de veludo. Mas assim que as mulheres chegaram à luz, o semblante dele evidenciou espanto.

 

- Mas o que é que aconteceu? - Antes de as mulheres poderem responder, ele tornou: - Como é que entraram aqui?

 

Joanna começou a explicar que tinham vindo pela cave enquanto Deborah se lançava num resumo da noite.

 

Spencer ergueu as mãos.

 

-Calma! Esperem lá. Uma de cada vez. Mas antes... precisam de alguma coisa? Estão com péssimo aspecto.

 

Pela primeira vez desde que começara a confusão, as mulheres olharam uma para a outra e para si próprias, e ficaram com um ar embaraçado no rosto. Deborah estava em pior estado, com o minivestido rasgado e arranhões nas coxas e nas canelas provocados pela abertura do pulmão de ferro, Um dos brincos pendentes desaparecera e o coraçãozinho da gargantilha perdera os brilhantes todos. Tinha as mãos negras da gordura dos cabos do elevador e o cabelo num emaranhado de nós.

 

Joanna ainda tinha a bata de médico, o que lhe protegera a roupa. Mas a bata estava suja por ter rastejado no chão do celeiro. Havia fios de palha a sairdos bolsos. Deborah e Joanna trocaram um dos seus olhares cúmplices. A combinação do seu aspecto e da ansiedade provocou-lhes uma gargalhada que as tomou de surpresa. Até Spencer deu consigo a sorrir.

 

- Gostaria de saber de que se riem, exactamente? - disse Spencer.

 

- De várias coisas - balbuciou Deborah. - Mas deve ser mais de tensão.

- Acho que é de alívio - disse Joanna. - Esperávamos que cá estivesse, mas não sabíamos se se importaria que aparecêssemos.

 

- Agrada-me que tenham aparecido - garantiu Spencer. - Posso trazer-lhes alguma coisa?

 

- Agora que pergunta, eu queria um cobertor- disse Deborah. - Estou gelada,

- E que tal um café? - indagou Spencer. - Faz-se num instante. Até alguma coisa mais forte. Também posso trazer uma camisola, ou coisa assim.

 

- Na verdade, queríamos falar já consigo - disse Joanna. - É urgente. Tornou a rir nervosamente.

 

-Este cobertor serve - disse Deborah. Pegou numa manta que estava num sofá e cobriu os ombros com ela.

 

- Bem, sentem-se - declarou Spencer, e fez sinal para o sofá.

 

As mulheres sentaram-se. Spencer agarrou na cadeira e sentou-se em frente a elas,

 

-Qual é a urgência? -perguntou. Debruçou-se para a frente, olhando para uma e para outra.

 

As mulheres entreolharam-se.

 

- Falas tu ou falo eu? - perguntou Deborah.

 

- Não quero saber - respondeu Joanna. - Não tem importância.

- Eu também não quero saber - retrucou Deborah.

 

- Mas tu sabes de biologia mais do que eu - redarguiu Joanna.

 

- É certo, mas tu sabes explicar melhor os ficheiros informáticos.

 

-Esperem lá! -atalhou Spencer, erguendo as mãos. -Não importa quem fala, mas comece alguém.

 

Deborah apontou para si própria e Joanna assentiu.

 

- Está bem - declarou Deborah. Olhou Spencer de frente. - Lembra- se de ontem à noite, quando o questionei sobre as mulheres nicaraguanas?

 

- Lembro - respondeu Spencer. Depois riu, algo embaraçado. - Não me lembro de muita coisa de ontem à noite, mas disso recordo-me.

 

- Bem, nós achamos que sabemos por que estão grávidas - disse Deborah. Achamos que é para produzir óvulos.

 

o rosto de Spencer toldou-se.

 

- Estão grávidas para produzir óvulos? É melhor explicar-se.

 

Deborah respirou fundo e começou a explicar. Na sequência dessa explicação, que ela admitiu ser uma suposição, disse que a Clínica Wingate estava definitivamente a obter óvulos com procedimentos ainda mais ilegais e ainda menos éticos. Explicou que a clínica extraía, sem consentimento, ovários inteiros a mulheres inocentes que achavam que só iam doar óvulos. Por fim, Deborah disse que deviam ter sido mortas pelo menos duas mulheres, visto que os seus ovários tinham sido extraídos e que elas nunca mais tinham sido vistas.

 

Spencer ficara boquiaberto à medida que Deborah prosseguia. Quando acabou, ele recostou-se na cadeira, claramente horrorizado com o que ouvia.

 

- Como é que souberam tudo isso? - perguntou, em voz embargada. Tinha a garganta seca e, antes que as mulheres respondessem, acrescentou: -Preciso de uma bebida. Posso servi-las também?

 

Joanna e Deborah abanaram a cabeça.

 

Spencer levantou-se meio cambaleante e dirigiu-se a um bar embutido na mobília. Abriu-o e serviu-se de uma boa dose de uísque puro. Bebeu logo um golo antes de voltar à cadeira. As mulheres observavam-no atentamente e repararam no tremor das suas mãos.

 

-Lamentamos contar-lhe isto tudo assim -disse Joanna, falando pela primeira vez. -Como fundador desta clínica para ajudar casais inférteis, deve ser perturbador saber o que se tem passado por aqui.

 

- Perturbador é eufemismo - redarguiu Spencer. - Têm de compreender que esta clínica é o culminar do trabalho de uma vida.

 

- Infelizmente, há mais coisas que deve saber - disse Deborah. Continuou a descrever a clonagem e como mulheres inocentes eram exploradas. Fez um relato rico e pormenorizado dos bebés quiméricos criados em porcas na quinta, que ela e Joanna tinham acabado de descobrir. Após este toque chocante e final, Deborah calou-se.

 

As mulheres observaram Spencer. Este estava claramente perturbado, passando as mãos repetidamente pelo cabelo e incapaz de estabelecer contacto visual com elas. Acabou com a bebida de um golo só e franziu o semblante.

 

- Agradeço-vos por terem cá vindo - disse, com dificuldade. - Obrigado.

- A nossa motivação não foi inteiramente altruísta - atalhou Joanna. Precisamos de ajuda.

 

Spencer ergueu os olhos e encarou Joanna.

- Que posso fazer?

 

- Pode ajudar-nos a sair daqui - replicou Joanna. - A força de segurança da Wingate está à nossa procura. Perseguem-nos desde que entrámos na sala dos óvulos. Devem ter uma boa noção do que nós sabemos.

 

- Querem que eu vos faça sair das instalações - disse Spencer.

- Exactamente - respondeu Joanna. - Temos de passar o portão.

- Não será difícil - disse Spencer. - Vamos no Bentley.

 

- Gostaríamos que percebesse exactamente como eles estão desesperados por nos apanhar - insistiu Deborah. - Quero dizer, é uma situação muito séria. Não podemos ser vistas. Estou certa de que o mandariam parar se desconfiassem.

 

- Devem ter razão - disse Spencer. - Para não corrermos riscos, podem esconder-se na bagageira. Não vai ser nada confortável, mas será só por cinco ou dez minutos, no máximo.

 

Joanna olhou para Deborah. Esta assentiu.

 

- Sempre quis andar num Bentley. A bagageira deve servir.

 

Joanna revirou os olhos. Não percebia a motivação de Deborah para fazer gracinhas naquela altura.

 

- Posso aguentar-me na bagageira. Aliás, nestas circunstâncias, sentir-me-ia mais segura na bagageira, mesmo.

 

- Quando é que querem fazer isso? - inquiriu Spencer. - o mais depressa possível, claro. Eles sabem que eu costumo sair bem tarde, à noite, mas depois das duas da manhã já é suspeito.

 

- o mais depressa possível - disse Joanna.

- Estou pronta - acrescentou Deborah.

 

- Vamos - rematou Spencer. Deu uma palmada nas coxas e pôs-se de pé. Spencer encaminhou as mulheres para a cozinha, onde pegou nas chaves do carro antes de entrar na garagem. Foi logo para a traseira do Bentley e abriu a bagageira. As mulheres ficaram espantadas com as reduzidas dimensões.

 

- É por causa do compartimento para a capota - explicou Spencer. Deborah coçou a cabeça.

 

- Vamos ter de nos enroscar.

 

Joanna acenou.

 

- Tu és maior, entra primeiro,

 

- Obrigadinha - ironizou Deborah. Entrou de cabeça e rodou para ficar de lado. Joanna seguiu-a, dobrando-se para caber ao lado de Deborah. Spencer fechou lentamente a porta para não entalar pernas e braços e depois abríu-a novamente.

 

- É mais confortável do que o pulmão de ferro - comentou Deborah.

- Qual pulmão de ferro? - perguntou Spencer.

 

- É uma outra história - replicou Deborah. - Vamos acabar este capítulo agora.

 

- Pronto, vamos a isso! - disse Spencer. - Não entrem em pânico. Eu paro e deixo-as sair assim que for aconselhável, está bem?

 

-Vamos a isso! -rematou Deborah, alegremente, tentando aligeirar a situação. A porta fechou-se com um clique delicado, Mais uma vez, as mulheres estavam encerradas na escuridão. A seguir, ouviram a porta da garagem a abrir e o motor do carro a arrancar.

 

- Parece que devíamos ter vindo falar com o Spencer mais cedo. Teríamos poupado alguns trabalhos.

 

As mulheres sentiram o carro a recuar na garagem, a virar e a avançar pelo acesso em direcção à estrada.

 

- Que maneira vergonhosa de sair deste sítio - vociferou Joanna.

- Mas, pelo menos, saímos.

 

- Senti pena do bom doutor - disse Joanna após uns momentos.

- o que lhe contámos apanhou-o mesmo de surpresa,

 

Seguiram em silêncio, enquanto as mulheres tentavam adivinhar onde estariam. Por fim, sentiram o carro parar, mas com o motor a ronronar.

 

- Devemos estar no portão - disse Deborah.

- Chiu! - ordenou Joanna,

 

A porta da bagageira estava tão bem isolada que as mulheres não ouviram nada até o motor acelerar outra vez, e mesmo assim era mais a vibração do que um ruído. Após breve distância, perceberam que rodavam em gravilha, Pouco depois, o carro parou e o motor extinguiu-se.

 

- Eu diria que nos devíamos afastar mais da casa da Portaria - disse Joanna, -Estava a pensar no mesmo - corroborou Deborah. - Mas, que diabo, já que estamos fora do portão, ao menos que avancemos com estilo.

 

Ouviram o desejado barulho da chave na bagageira, seguido do levantar da porta. Joanna e Deborah olharam para cima e os corações saltaram-lhes no peito. Spencer tinha desaparecido. Em vez dele, depararam com esgares de satisfação nos rostos do chefe de segurança da Wingate e do seu sequaz.

 

11 de Maio de 2001

9:35 h.

Spencer olhou pela janela do escritório para o enorme relvado viçoso. Ao longe via-se o campanário da igreja de BookfÓrd e umamão-cheia dechaminés sobressaindo entre as árvores em flor. Era umpanorama agradável e ajudava a acalmar otorvelinho das suas emoções. Não tinha memória de ter estado tão agitado. Para piorar as coisas, não dormia há mais de vinte e quatro horas e ainda não recuperara da sua farra alcoólica.

 

Spencer pigarreou e disse:

 

O que me preocupa não é só o que as mulheres sabiam mas como o descobriram. Virou-se da janela e encarou Paul Saunders e Sheila Donaldson, sentados calmamente em cadeiras de braços na frente da secretária.

 

- Quero dizer, fiquei siderado quando as mulheres me apareceram em casa, especialmente porque me tinham dito que estava um pequeno exército atrás delas. Se isso não é incompetência, não sei o que seja. Mas, mais importante ainda, se as duas descobriram num dia o que vocês andam a fazer aqui, qualquer pessoa pode fazê-lo,

- Spencer, acalme-se! - instou Paul. - Está tudo sob controlo.

 

- Sob controlo - repetiu Spencer, sarcasticamente. - Se isto é estar sob controlo não consigo imaginar o que seria descontrolado.

 

Voltou para a secretária e sentou-se pesadamente na cadeira.

 

- Concordamos plenamente - disse Paul com calma, - Sabemos que temos de arrancar às mulheres exactamente como é que descobriram essas coisas.

 

- Elas sabiam da gestação de clones em porcas - disse Spencer. - Você não me contou isso ontem à noite, Raios, e isso, afinal, é para quê?

 

- Para ficarmos livres da dependência das mulheres da Nicarágua – explicou Paul. -Assim que aperfeiçoarmos a técnica, será uma imensa fonte de novos óvulos, além das culturas de oogónia.

 

- Bem, e como diabo é que elas souberam disso? - rugiu Spencer,

- Vamos descobrir - garantiu Paul. - Confie em mim!

 

-Como é que podem estar tão confiantes? -inquiriu Spencer. -KurtHermann e os palhaços dele têm estado a torturar as mulheres desde as três da manhã e você admitiu há cinco minutos que ainda não sabem nada.

 

- Permíta-me discordar - interveio Sheila. - Eu é que estou a fazer o interrogatório, não o Kurt, e não é verdade que não descobrimos nada.

 

- Tem falado com as mulheres? - indagou Spencer,

 

- Exactamente - respondeu Sheila. - Dei ordens específicas para que me contactassem assim que as apanhassem. Tal como estamos a tentar dizer-lhe, partilhamos da sua preocupação relativamente aos métodos delas. E estamos a fazer progressos. Por exemplo, já sabemos que foi com o seu cartão de acesso que elas entraram na sala do servidor e na sala dos órgãos.

 

- Ah, compreendo -disse Spencer, olhando irritado para os seus dois supostos subordinados. - A culpa desta catástrofe é minha.

 

- Não é nossa intenção atribuir culpas - esclareceu Paul.

 

- Não é assim muita informação, ao fim de seis horas - retrucou Spencer,

- São mulheres extremamente inteligentes - explicou Sheila. -Reconhecem que a informação que têm é preciosa. Não são fáceis, nem por sombras, mas eu estou a ser paciente.

 

Estamos a usar o truque do polícia bom e policia mau - explicou Paul, Exactamente - corroborou Sheila. - Evidentemente, eu sou o polícia bom. Neste momento, está o Kurt a falar com elas pela primeira vez. Ele é o polícia mau, Assim que sairmos daqui, eu vou lá e intervenho. Estou confiante, de que descobriremos tudo o que precisamos até ao meio-dia, o mais tardar.

 

- Assim que tivermos a informação - disse Paul -, faremos as alterações operacionais apropriadas. Já começámos no que toca à segurança informática. A partir de agora, só Randy Porter é que poderá entrar na sala do servidor.

 

- Devemos encarar toda esta situação infeliz como uma aprendizagem aconselhou Sheila.

 

- Precisamente! - corroborou Paul. - E devemos encará-la também como mais umestimulo para mudarmos a clíníca toda, laboratórios de pesquisa e tudo, para fora de portas, como falámos ontem. Aliás, Spencer: o que achou dos planos que lhe dei ontem à noite acerca do Centro nas Baamas?

 

- Os planos parecem bons - admitiu Spencer, com relutância.

 

- E que é que acha, em geral, da ideia de irmos para o pé da praia - indagou Paul.

 

- Tenho de admitir que me agrada - disse Spencer. - Gosto da ideia de ter ainda menos regulamentações do que as que temos que enfrentar aqui, ainda que estas não nos tenham incomodado muito.

 

Acenou com a cabeça e continuou.

 

- Voltemos às mulheres. Que é que lhes vai acontecer quando souberem tudo?

- Não sei - respondeu Paul.

 

- Que é que quer dizer com isso? - exigiu Spencer, sentindo-se novamente irritado.

 

- Não quero saber - especificou Paul. - Deixo esse tipo de problemas a Kurt Hermann, é para isso que lhe pagamos.

 

- Deixa o problema para Kurt Hermann, mas fica com os ovários - ironizou Spencer. - É isso que quer dizer?

 

- A colheita dos ovários foi erro do passado - interrompeu Sheila. - Não há dúvida de que não o deveríamos ter feito. Compreendemos agora e isso não se irá repetir, A título explicativo, isso aconteceu quando nos debatíamos com uma carência extrema de óvulos.

 

- Carência que já não temos - acrescentou Paul. - Com a ligação nicaraguana, mais os avanços que temos registado na técnica de cultura de oogónia, temos agora à nossa disposição uma quantidade quase ilimitada de óvulos. Que diabo, até poderíamos obviar às necessidades de clonagem do país inteiro.

 

-Está a tentar sugerir que não estão perturbados com este episódio? -perguntou Spencer.

 

Paul e Sheila entreolharam-se.

 

- Encaramo-lo com toda a seriedade - respondeu Sheila. - É uma aprendizagem, como já disse. Mas conseguiu-se conter, tal como o episódio da catástrofe da anestesia. Mesmo que este episódio com as duas metediças não tivesse terminado tão auspiciosamente, ainda assim, poderíamos sair-nos bem.

 

- Ouça, Spencer - atalhou Paul, inclinando-se para a frente, esfregando as mãos e depois erguendo-as em gesto conciliatório. - Tal como eu disse ontem à noite na nossa conversa, em termos de investigação estamos virtualmente sentados em cima de uma mina de ouro. Com o que temos aprendido com o trabalho de clonagem relativamente à geração de células embrionárias, seremos os líderes biotecnológicos do século xxi. A clonagem e as células embrionárias vão revolucionar a Medicina, e nós estaremos na vanguarda.

 

- Faz tudo parecer tão cor-de-rosa - observou Spencer.

 

- É precisamente essa a expressão que eu uso para descrever a situação a nu mesmo - disse Paul. - É cor-de-rosa! Muito cor-de-rosa!

 

A fechadura da porta do gabinete de Spencer fez um ruído. Spencer, Paul e Sheila viraram-se para ver. Ficaram todos embasbacados pela interrupção, o rosto da assistente apareceu à porta.

 

- Que se passa, Gladys? - perguntou Spencer. - Eu disse para não sermos incomodados.

 

- É o Sr. Hermann - disse a assistente, humildemente. - Quer falar com o Dr. Saunders. Disse que era urgente.

 

Paul levantou-se, com uma expressão interrogativa no rosto. Pediu licença e acompanhou a assistente perturbada para fora da sala. Olhou para Kurt e toda a despreocupação e compostura que mantinha cuidadosamente se desvaneceram,

 

- Temos um problema grave - anunciou Kurt.

- Por que é que está sem fôlego?

 

- Porque vim a correr da Portaria.

 

Paul abriu aporta do seu gabinete e fez sinal paraKurt entrar. Fechou aporta atrás de si e indagou:

 

- Então?

 

- Está um promotor público na casa da Portaria - balbuciou Kurt, atabalhoadamente.

 

- Devagar! - ordenou Paul. - Que é que está lá a fazer?

 

- Tem um mandado de busca e já está a vasculhar a Portaria com mais uns agentes federais. Também exigiram entrar nas instalações.

 

- E como raio é que arranjou um mandado de busca? - vociferou Paul.

 

- Eu perguntei, Parece que foi um médico chamado Carlton Williams que apresentou queixa.

 

- Não sei quem é.

 

- O pai é um texano importante com conhecimentos no Ministério da Justiça. o problemaé que CarltonWilliams sabe que as mulheres estavam aqui ontem à noite e que não voltaram para casa.

 

- Merda! - estalou Paul. - Onde é que estão agora as mulheres?

- Na cave da Portaria.

 

- O procurador já as encontrou?

 

- Não sei. Eu corri para aqui assim que os consegui deixar por cinco minutos. Ameaçam chamar uma equipa de intervenção se não colaborarmos.

 

- Ameaçar é bom-disse Paul, recompondo-se. -Pelo menos, não apareceram com a equípa de intervenção, o que nos dá pelo menos meia hora, no mínimo. Vamos activar um código vermelho. Vá ter com Randy Porter. Ele que guarde tudo em Zip e apague os discos rígidos. Depois siga com Randy para o hangar e prepare o helicóptero. Eu levo o Dr. Wingate e a Dr.a Donaldson depois de destruirmos alguns papéis aqui e também a sala dos óvulos. Está bem?

 

- Afirmativo! - respondeu Kurt. Fez continência antes de sair a correr pelo corredor até à porta corta-fogo. Paul observou-o até ele desaparecer. Em seguida, respirou fundo várias vezes para ganhar serenidade. Quando achou que se tinha recomposto como deve ser, voltou ao gabinete de Spencer. Este e Sheila olhavam-no com ansiedade.

 

- Bem - disse Paul -, parece que nos vamos embora mais cedo do que esperávamos...

 

                                                                                            Robin Cook

 

 

                      

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