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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CHRISTINE - P.2 / Stephen King
CHRISTINE - P.2 / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Seu sobretudo pairou por um instante sobre o piso cimentado manchado de óleo, depois ele se ergueu. — Recebemos comunicação de algo desta natureza... o quebra-quebra em seu carro, quero dizer...

— Oh, na verdade eles não o reduziram a cacos — disse Arnie. Começava a sentir-se em uma espécie de corda bamba e voltou a tocar Christine. A solidez do carro, sua realidade, tornaram a confortá-lo. — Eles bem que tentaram, entenda, mas não fizeram um trabalho completo.

— Ok. Acho que não estou bem a par do jargão atual. — Junkins riu. — De qualquer modo, quando o caso veio a mim, o que acha que perguntei? "Onde estão as fotografias?" Foi o que perguntei. Imaginei que fosse um descuido, entender? Então, telefonei para a Delegacia de Polícia de Libertyville e me disseram que não havia fotografias.

 

 

 

 

— Claro — respondeu Arnie. — Um cara da minha idade só consegue seguro de responsabilidade e, mesmo assim, com dedução de setecentos dólares. Se eu tivesse seguro contra danos, teria feito um bocado de fotos. Então, como não tinha, para que as fotos? Francamente, não ia querer nenhuma para meu álbum de recordações.

— Tem razão — disse Junkins e caminhou preguiçosamente até a traseira do carro, os olhos perscrutando em busca de vidros quebrados, arranhões, traços de culpa. — Sabe o que mais achei curioso? Você nem ao menos deu parte do crime! — Ergueu os olhos escuros e questionadores para Arnie, fitando-o de perto, e então esboçou um pequeno e falso sorriso de perplexidade. — Nem ao menos deu parte! "Poxa", falei, "o filho da mãe! E quem comunicou o fato?" O pai do cara, eles me disseram. — Junkins meneou a cabeça. — Não entendi isso, Arnie, e sou franco em dizer. Um sujeito se esgota, reformando um carro velho até que ele valha uns dois, talvez cinco mil dólares, e então aparecem alguns caras e fazem um baita de um estrago no carro...

— Eu já disse que...

Rudy Junkins ergueu a mão e sorriu tranqüilizadoramente. Por um fantástico segundo, Arnie pensou que ele fosse dizer "Paz", como Dennis, quando a situação às vezes ficava um pouco pesada.

— Desculpe. Danificaram um pouco o carro.

— Certo — disse Arnie.

— De qualquer modo, segundo o que disse sua namorada, um dos perpetradores... bem, defecou no painel de instrumentos. Achei que você devia ter ficado louco da vida com isso. Achei que deveria dar parte desse fato.

O sorriso se esfumou, e Junkins fitou Arnie com seriedade, inclusive, consternação. Os olhos cinzentos e frios de Arnie se fixaram nos castanhos de Junkins.

— Merda pode ser lavada — declarou ele finalmente. — Quer saber de uma coisa, Sr. Rudy? Posso lhe contar uma coisa?

— Certo, filho.

— Quando eu tinha um ano e meio, peguei um garfo e risquei uma escrivaninha antiga que minha mãe comprara, depois de economizar cinco anos para isso. Economizando de seu dinheiro para despesas pessoais, foi o que me disse. Acho que fiz o diabo na escrivaninha, em bem pouco tempo. Naturalmente, não me lembro de nada, mas ela disse que só conseguiu ficar parada, espiando para aquilo e chorando. — Arnie sorriu de leve. — Até agora, nunca pude imaginar minha mãe agindo dessa forma. Agora, creio que posso. Talvez eu esteja amadurecendo um pouco, não acha?

Junkins acendeu um cigarro.

— Acho que não entendi aonde quer chegar, Arnie. Não percebi o que quer dizer.

— Minha mãe falou que preferia manter-me de fraldas até os três anos, a ver-me fazer aquilo. Porque, disse ela, merda se lava, desaparece. — Arnie sorriu. — A gente dá descarga e ela vai embora.

— Da maneira como "Penetra" Welch se foi? — perguntou Junkins.

— Não sei de nada disso.

— Não?

— Não.

— Palavra de escoteiro? — perguntou Junkins.

A pergunta era humorística, mas não os olhos, que continuavam sondando Arnie, em busca da menor falha, de um piscar crucial.

Mais abaixo, no corredor, o sujeito que colocava seus pneus de inverno deixou uma ferramenta cair no concreto. Ela bateu contra o chão e emitiu um som musical. O sujeito praguejou, quase como em coro:

— Vá à merda, sua puta!

Junkins e Arnie olharam ao mesmo tempo para lá, rapidamente, e o momento se desfez.

— Claro, palavra de escoteiro — respondeu Arnie. — Escute, acho que o senhor tem que fazer isto, é o seu trabalho...

— Certo, é o meu trabalho — assentiu Junkins, suavemente. — O rapaz foi atropelado três vezes, para a frente e para trás. Virou uma posta de carne. Teve que ser recolhido com uma pá.

— Por favor — disse Arnie, sentindo-se mal. Seu estômago revirou-se lentamente.

— Ora, por que não? Afinal, não é assim que se faz com merda? Recolhê-la em uma pá?

— Não tive nada a ver com aquilo! — gritou Arnie.

O homem do outro lado, o que estava às voltas com seu silencioso, olhou para eles, sobressaltado. Arnie baixou a voz.

— Sinto muito. Só queria que o senhor me deixasse em paz. Sabe muito bem que nada tive a ver com aquilo. Já vistoriou o carro inteiro. Se Christine tivesse atropelado esse cara, tantas vezes e com tanta intensidade, estaria toda arrebentada. Já vi como é, na TV. E quando tinha aulas de Mecânica de Automóveis, há dois anos, o Sr. Smolnack explicou que, em sua opinião, os dois melhores meios para destruir a frente de um carro seriam atropelar um alce ou uma pessoa. Claro que era um tipo de piada, mas ele não estava brincando... se entende o que quero dizer.

Arnie engoliu em seco e ouviu um "clique" em sua garganta, que também estava seca.

— Sem dúvida — disse Junkins. — Seu carro me parece perfeitamente legal. Você é que não está, filho. Parece um sonâmbulo. Parece absolutamente fodido. Desculpe pelo termo. — Ele jogou o cigarro fora. — Sabe de uma coisa, Arnie?

— O quê?

— Acho que você mente mais depressa do que um cavalo pode trotar. — Junkins bateu no capô de Christine. — Talvez eu devesse dizer, mais depressa do que um Plymouth pode correr.

Arnie olhou para ele, a mão pousada no espelho externo, do lado do passageiro. Não disse nada.

— Não creio que esteja mentindo sobre matar o rapaz Welch, mas acho que mente sobre o que eles fizeram com seu carro; sua namorada disse que eles fizeram um estrago dos diabos e, raios, ela é muito mais convincente do que você. Chorou, enquanto me contava. Disse que havia vidros quebrados por todos os lados... Por falar nisto, onde comprou os vidros de substituição?

— No McConnell's — respondeu Arnie prontamente. — No Burg.

— Ainda tem o recibo?

— Joguei fora.

— Bem, mas eles devem lembrar de você. Um pedido tão grande...

— É possível — disse Arnie —, mas em seu lugar não contaria muito com isso, Rudy. Eles são os maiores especialistas em vidros para automóveis, a oeste de Nova Iorque e leste de Chicago. Cobrem uma boa área. Fazem um bocado de negócios, muitos deles relativos a carros velhos.

— Ainda assim, devem ter um comprovante.

— Paguei em dinheiro.

— Bem, seu nome deve constar da remessa.

— Não — respondeu Arnie e sorriu friamente. — A encomenda foi despachada em nome da Garagem de Darnell. Desta forma, consigo um desconto de dez por cento.

— Você cobriu todas as brechas, não?

— Tenente Junkins...

— Está mentindo também sobre o vidro, embora... raios me partam, eu não saiba por quê.

— O senhor não sabe mesmo de nada — respondeu Arnie, irritadamente. — Desde quando é crime comprar vidros de reposição, se alguém quebra nossas janelas? Ou pagar em dinheiro? Ou conseguir um desconto?

— Desde nunca — disse Junkins.

— Pois então por que não acaba com isso?

— O mais importante — disse Junkins — é que, para mim, você mente quando diz que não sabe nada sobre o que aconteceu ao rapaz Welch. Você sabe de alguma coisa. E eu gostaria de descobrir o quê.

— Não sei de nada — insistiu Arnie.

— E quanto a...

— Não tenho mais nada a lhe dizer — cortou Arnie. — Sinto muito.

— Está bem — disse Junkins.

Ele desistiu tão rapidamente que Arnie ficou desconfiado em seguida. O policial remexeu no paletó esporte que usava por baixo do sobretudo e tirou a carteira. Arnie viu que ele usava uma arma em um coldre de ombro e desconfiou de que Junkins pretendia fazê-lo ver a arma. Pegou um cartão e o estendeu, dizendo:

— Posso ser encontrado em qualquer destes números, caso queira falar comigo. Sobre alguma coisa. Qualquer coisa.

Arnie guardou o cartão no bolso da camisa.

Junkins deu mais uma lenta passada em torno de Christine.

— Que diabo de trabalho de restauração! — repetiu. Olhou frontalmente para Arnie. — Por que você não deu parte?

Arnie deixou escapar um baixo e trêmulo suspiro.

— Porque pensei que isso seria o fim — declarou. — Achei que eles se dariam por satisfeitos.

— Entendo — disse Junkins. — Imaginei que pudesse ser isso. Boa noite, filho.

— Boa noite.

Junkins começou a afastar-se, depois se virou e voltou.

— Pense no que lhe disse — falou. — Você está realmente com uma aparência infernal, entende o que quero dizer? Tem uma bela garota. Ela está preocupada com você, ficou abalada com o que aconteceu a seu carro. Seu pai também está preocupado com você. Pude perceber isso ao telefone. Reflita no que lhe falei e ligue para mim, filho. Dormirá melhor depois.

Arnie sentiu algo trêmulo por trás dos lábios, algo diminuto e lacrimoso, que doía. Os olhos castanhos de Junkins eram gentis. Ele abriu a boca — só Deus sabe o que teria dito —, mas então uma monstruosa pontada de dor o atingiu nas costas, fazendo-o retesar-se subitamente. Teve também o efeito da bofetada em um histérico. Sentiu-se mais calmo, de cabeça limpa novamente.

— Boa noite — repetiu. — Boa noite, Rudy.

Junkins ficou olhando para ele por mais um momento, perturbado, antes de ir embora.

Arnie começou a tremer de alto a baixo. O tremor começou em suas mãos, espraiou-se pelos braços até os cotovelos e, de repente, abrangia todo seu corpo. Agarrou-se cegamente à maçaneta e deslizou para o interior de Christine, para os reconfortantes cheiros de carro e de estofamento novos. Ligou a chave, as luzes do painel acenderam-se e ele tateou em busca do botão do rádio.

Ao fazer o movimento, seus olhos caíram na etiqueta oscilante de couro, tendo impressas as letras RDL. Seu sonho lhe voltou à mente, com uma terrível e súbita intensidade: o cadáver putrefato sentado onde ele se sentava agora, as órbitas vazias olhando pelo pára-brisa, os ossos dos dedos aferrados ao volante, o riso vazio dos dentes da caveira, quando Christine arremeteu contra "Penetra" Welch, enquanto o rádio, sintonizado na WDIL, irradiava "Last Kiss", por J. Frank Wilson e os Cavaliers.

De repente sentiu-se mal, nauseado outra vez, uma náusea que flutuava entre seu estômago e o fundo da garganta. Arnie escorregou para fora do carro e correu para o banheiro, as pisadas latejando loucamente nos ouvidos. Foi bem a tempo: vomitou e tornou a vomitar, até nada mais sobrar dentro dele senão saliva amarga. Havia luzes dançando diante de seus olhos. Os ouvidos zumbiam e os músculos abdominais latejavam fatigadamente.

Olhou para seu rosto pálido e espectral no espelho manchado, para os círculos escuros em torno dos olhos e a mecha solta de cabelo caída sobre a testa. Junkins estava certo. Tinha uma aparência infernal.

Entretanto, todas as suas espinhas tinham desaparecido.

Ele riu como louco. Não desistiria de Christine, por nada do mundo. Aí estava uma coisa que jamais faria. Ele...

De repente, ficou nauseado outra vez, mas nada havia para vomitar, somente aquelas ondas secas que torturavam e comprimiam, aquele sabor intenso de vômito na boca outra vez.

Precisava falar com Leigh. Subitamente, sentia necessidade de falar com ela.

Entrou no escritório de Will, onde o único som provinha do relógio pregado à parede, anunciando novos minutos. Discou o número dos Cabot, que sabia de cor, mas precisou tentar duas vezes, tal o tremor de seus dedos.

A própria Leigh atendeu, com voz sonolenta.

— Arnie?

— Preciso falar com você. Preciso vê-la, Leigh.

— São quase dez da noite, Arnie. Acabei de sair do chuveiro e fui para a cama... Estava quase dormindo...

— Por favor — disse ele e fechou os olhos.

— Amanhã — disse ela. — Não pode ser essa noite, meus pais não me deixariam sair, já é muito tarde...

— São apenas dez horas. E hoje é sexta-feira.

— Para falar a verdade, eles não querem mais que eu saia com você, Arnie. Gostaram de você no início, meu pai ainda o aprecia... mas os dois acham que você ficou meio esquisito. — Houve uma longa, longuíssima pausa de parte de Leigh. — Eu também acho — completou ela, finalmente.

— Isto significa que não quer mais me ver? — perguntou ele, em voz sem inflexão. Seu estômago doía, as costas doíam, todo ele doía.

— Não. — Agora, uma levíssima censura pontilhou a voz dela. — Eu estava começando a pensar que você não queria me ver... não na escola, e à noite você está sempre na garagem. Trabalhando em seu carro.

— Já está pronto. — disse ele. E então, com um monstruoso esforço: — É que eu queria o carro para... aiii, droga!

Ele tocou as costas no lugar onde sentira outra intensa pontada de dor, mas sua mão encontrou apenas um pedaço do colete ortopédico.

— Arnie? — ela gritou alarmada. — Está tudo bem com você?

— Sim, está. Senti uma pontada nas costas.

— O que é que ia dizer?

— Amanhã — disse ele. — Vamos tomar um sorvete no Baskin-Robbins. Podemos também fazer algumas compras de Natal e jantar. Depois, por volta das sete, levo você para casa. E não estarei esquisito. Prometo.

Ela riu um pouco e Arnie sentiu um imenso alívio. Era como um bálsamo.

— Seu bobão!

— Isto quer dizer que aceita?

— Sim, quer dizer que aceito. — Leigh fez uma pausa, depois continuou suavemente: — Falei que meus pais não concordam em que continue vendo você muitas vezes. Não disse que era essa a minha vontade.

— Obrigado — disse ele, lutando para manter a voz firme. — Obrigado por isso.

— Sobre o que você queria falar comigo?

Christine. Quero falar com você sobre ela — e sobre meus sonhos. E sobre por que estou com uma aparência infernal E por que agora estou sempre querendo ouvir a WDIL, sobre o que fiz naquela noite, depois que todos se foram... a noite em que machuquei minhas costas. Oh, Leigh, eu quero...

Outra pontada de dor nas costas, como garras de gato.

— Acho que acabamos de resolver o assunto — respondeu.

— Bem. — Uma ligeira e cálida pausa. — Ótimo.

— Leigh?

— Hum?

— Agora teremos mais tempo. Prometo. Todo o tempo que você quiser.

Para si mesmo, ele disse: Porque agora, com Dennis no hospital, você é tudo que me resta, tudo que resta entre eu... eu e...

— Está bem — disse Leigh.

— Eu te amo.

— Tchau, Arnie.

Diga o mesmo!, ele quis gritar, de repente. Diga o mesmo, preciso que você também diga.'

Entretanto, em seu ouvido soou apenas o clique do telefone.

Ficou sentado à mesa de Will por muito tempo, de cabeça baixa, procurando controlar-se. Leigh não precisava repetir que o amava, a cada vez que ele lhe dizia isso, precisava? Afinal, ele não estava tão necessitado assim daquela segurança. Ou estaria?

Levantando-se, ele foi até a porta. O mais importante de tudo é que Leigh ia sair com ele no dia seguinte. Fariam as compras de Natal que haviam planejado, no dia em que aqueles bostas tinham retalhado Christine. Passeariam e conversariam. Ia ser muito bom. Leigh diria que o amava.

— Ela dirá — sussurrou Arnie, parado à porta.

Entretanto, um pouco além, no lado esquerdo da garagem, Christine parecia uma muda e estúpida negação, com a grade do radiador ressaltando-se para diante, como se caçasse alguma coisa.

Então, a voz sussurrou do fundo de sua consciência, a sombria e questionadora voz: Como foi que machucou as costas? Como foi que machucou as costas? Como foi que machucou as costas, Arnie?

Era uma pergunta à qual se esquivava. Ele temia a resposta.

 

Leigh e Christine

Meu bem passou em um Cadillac zerinho,

Ela disse: "Ei, venha cá, paizinho,

Eu nunca vou voltar! "

Meu bem, meu bem, não ouve o meu pedido?

Volte, doçura, volte para mim!

Ela disse: "Bolas pra você, paizão,

Eu nunca vou voltar!"

— The Clash

 

O dia era cinzento e ameaçava nevar, mas Arnie conseguira ambas as coisas — os dois tinham se divertido e ele não estava esquisito. A Sra. Cabot estava em casa, quando foi buscar Leigh, e a acolhida inicial foi fria. Depois de bastante tempo — talvez uns vinte minutos — Leigh desceu, usando uma suéter cor de caramelo que se ajustava adoravelmente ao busto e calças novas cor de uva, que se ajustavam adoravelmente a seus quadris. A inexplicável demora, em uma garota que quase sempre se mostrara pontual, devia ter sido deliberada. Arnie a interrogou mais tarde e Leigh negou, com uma inocência de olhos talvez um pouco arregalados demais, porém, de qualquer modo, funcionando a contento.

Arnie podia ser sedutor quando queria e, enquanto esperava por Leigh, atirou-se à tarefa com vontade, envolvendo a Sra. Cabot. Antes que Leigh finalmente aparecesse descendo a escada, o cabelo oscilando em um rabo-de-cavalo, sua mãe já se rendera. Tinha oferecido uma Pepsi-Cola a Arnie e ouvia atentamente os casos que ele contava sobre o clube de xadrez.

— É a única atividade extracurricular realmente civilizada de que já ouvi falar — disse ela a Leigh, sorrindo aprovadoramente para ele.

— TEDIOOOOSA! — trombeteou Leigh.

Passou um braço pela cintura de Arnie e o beijou sonoramente na face.

— Leigh Cabot!

— Desculpe, mamãe, mas ele fica interessante manchado de batom, não acha? Um momento, Arnie, vou pegar um lenço de papel. Não toque o lugar.

Remexeu em sua bolsa à procura do lenço. Arnie olhou para a Sra. Cabot e revirou os olhos. Natalie Cabot levou a mão à boca e sorriu sufocadamente. A reconciliação entre ela e Arnie era total.

Arnie e Leigh foram ao Baskin, onde finalmente se desfez um inicial constrangimento que restava da conversa telefônica da véspera. Arnie tinha um vago receio de que Christine não se portasse à altura ou que, a qualquer momento, Leigh encontrasse algo desagradável a dizer sobre o carro. Ela jamais gostara de andar em seu carro. As duas preocupações, no entanto, foram desnecessárias. Christine funcionou como um fino relógio suíço, e as únicas coisas que Leigh teve a dizer a respeito estavam mescladas de alegria e admiração.

— Eu jamais acreditaria — comentou, quando saíram do pequeno pátio de estacionamento da sorveteria e se juntaram ao fluxo do trânsito, em direção ao Monroeville Mall. — Você deve ter trabalhado neste carro como um escravo!

— Acho que não foi tão difícil como imagina — disse Arnie. — Quer ouvir música?

— Por que não?

Arnie ligou o rádio — The Silhouettes seguiam através de "Get a job", sonolenta e cadenciadamente. Leigh fez uma careta.

— Hum... A DIL. Posso mudar?

— À vontade.

Leigh sintonizou uma estação de rock de Pittsburg e pegou Billy Joel. "Talvez você tenha razão", admitia Billy, jovialmente, "Eu devo estar maluco". Em seguida, ele dizia a Virgínia, sua namorada, que as garotas católicas começavam muito tarde — era o programa Block Party Weekend. Vai ser agora, pensou Arnie. Ela começará a ratear... vai parar... qualquer coisa. Christine, no entanto, limitou-se a continuar rodando.

A rua de pedestres estava congestionada por uma confusão de compradores, mas todos mostravam boa disposição; a última, frenética e por vezes desagradável corrida de Natal ainda distava duas semanas. O espírito natalino era recente o bastante para ser novidade, permitindo que apreciassem os ouropéis em cordões estendidos através das amplas alamedas do lugar, sem que ninguém se aborrecesse ou mostrasse tendências a Ebenezer Scroogey. O insistente retinir dos sinos dos papais-noéis do Exército da Salvação, por enquanto, ainda não eram uma culposa irritação; eles preferiam cantar as boas-novas e boa vontade, em vez de enveredarem pela monótona e metálica cantoria de Os pobres não têm Natal, os pobres não têm Natal, os pobres não têm Natal, que Arnie tinha a impressão de sempre ouvir, à medida que o dia estava mais próximo e que tanto as balconistas como os papais-noéis do Exército da Salvação ficavam mais apoquentados e de olhos mais fundos.

Caminharam de mãos dadas, até ficarem impossibilitados pelo número crescente de embrulhos. Então Arnie se queixou, alegremente, de que Leigh o transformara em seu burro de carga. Ao descerem para o nível inferior, em direção ao B. Dalton, onde Arnie queria comprar um livro sobre fabricação de brinquedos, para o pai de Dennis Guilder, Leigh percebeu que começara a nevar. Ficaram por um instante na escada, contemplando a vidraça, observando tudo como crianças. Arnie lhe tomou a mão e Leigh o fitou, sorrindo. Ele podia sentir o perfume de sua pele, limpa e com leve cheiro de sabonete; podia sentir a fragrância de seus cabelos. Moveu a cabeça ligeiramente para diante; Leigh moveu a dela um pouquinho, aproximando-se. Beijaram-se de leve e ele lhe apertou a mão. Mais tarde, depois da visita à livraria, permaneceram acima do rinque no centro da rua de pedestres, contemplando os patinadores que deslizavam, evoluíam e faziam piruetas, ao som de músicas natalinas.

Foi um dia excelente, até o momento em que Leigh Cabot quase morreu.

 

Ela teria morrido, sem a menor dúvida, se não fosse o carona. Então, já rodavam de volta e um prematuro crepúsculo de dezembro há muito se tornara escuro pela nevada. Firme sobre as rodas como sempre, Christine ronronava com facilidade através dos dez centímetros de neve solta e recém-caída.

Arnie fizera reserva para um jantar antecipado na British Lion Steak House, realmente o único bom restaurante de Libertyville, mas o tempo voara e os dois haviam concordado em uma refeição ligeira, no McDonald's da JFK Drive. Leigh prometera à mãe estar em casa às oito e meia, porque os Cabots iam "receber amigos" e, quando deixaram a rua de pedestres, já faltavam quinze para as oito.

— Não faz mal — disse Arnie. — De qualquer modo, estou quase falido mesmo.

Os faróis iluminaram o carona, de pé no cruzamento da Rota 17 com a JFK Drive, faltando ainda oito quilômetros para Libertyville. Seus cabelos negros batiam nos ombros, estavam salpicados de neve, e havia uma mochila entre seus pés.

À medida que se aproximavam, o carona ergueu um cartaz, pintado em letras com tinta luminosa, que dizia: LIBERTYVILLE. PA. Quando chegaram mais perto, ele virou o cartaz. Do outro lado estava escrito: UNIVERSITÁRIO NÃO-PARANÓICO.

Leigh começou a rir.

— Vamos dar uma carona a ele, Arnie.

— Justamente quando eles se dão ao trabalho de anunciar sua condição não-paranóica — disse Arnie — é que a gente deve ter mais cuidado. Mas tudo bem, vá lá!

Desviou o carro para a beira da estrada. Naquela noite, ele daria a lua a Leigh, se ela pedisse.

Christine rodou maciamente para o acostamento, os pneus quase não deslizando. No entanto, ao parar, a estática crepitou no rádio, que até então vinha irradiando um rock pesado. Quando a estática diminuiu, os Big Bopper cantavam "Chantilly Lace".

— O que houve com o programa Block Party Weekend? — perguntou Leigh, quando o carona correu para eles.

— Não sei — respondeu Arnie, embora soubesse.

Aquilo já acontecera antes. Às vezes, tudo quanto o rádio de Christine captava era a estação WDIL, pouco importando que botões fossem apertados ou por mais que se manuseasse o convertor FM, sob o painel de instrumentos; era a WDIL ou nada.

De repente, ele decidiu que fora um erro parar para o carona.

Agora, contudo, era tarde demais para recuar; o sujeito já abrira uma das portas traseiras de Christine, atirava sua sacola para dentro e entrava depois dela. Uma rajada de ar frio e de neve entraram com ele.

— Poxa, cara, obrigado! — Ele suspirou. — Meus dedos das mãos e dos pés já se mandaram pra Miami Beach, faz uns vinte minutos. Para algum lugar eles foram mesmo, e me deixaram aqui porque não os sinto mais.

— Agradeça à patroa — disse Arnie, lacônico.

— Obrigado, madame — disse o carona, levando os dedos, galantemente, à aba de um chapéu invisível.

— Não foi nada — Leigh sorriu. — Feliz Natal.

— O mesmo para vocês — disse o carona —, embora pareça que tal coisa nem exista, quando se fica em pé lá fora, tentando pegar uma carona numa noite assim. O pessoal dispara perto da gente e depois desaparece. Voom — Ele olhou em torno apreciativamente. — Um belo carro, cara. Um diabo de carro bonito!

— Obrigado — respondeu Arnie.

— Você mesmo o restaurou?

— Eu mesmo.

Leigh olhava para Arnie, perplexa. Sua expansividade anterior fora substituída por um laconismo que não lhe era comum. No rádio, os Big Bopper terminavam e entrava Richie Valens, com "La Bamba". O carona sacudiu a cabeça e riu.

— Primeiro os Big Bopper, depois Richie Valens. Deve ser a noite dos mortos no rádio. A boa e velha WDIL!

— O que quer dizer? — perguntou Leigh. Arnie desligou o rádio.

— Eles morreram em um desastre de avião. Com Buddy Holly.

— Oh! — exclamou Leigh, baixinho.

Talvez o carona também sentisse a mudança no ânimo de Arnie; o rapaz permaneceu calado e meditativo no banco de trás. Lá fora, a neve começava a cair mais rapidamente e mais compacta. Era a primeira boa tempestade da estação.

Por fim, os arcos dourados da lanchonete piscaram, em meio à neve.

— Quer que eu vá até lá, Arnie? — perguntou Leigh.

Arnie mergulhara em uma quietude quase pétrea, rejeitando a insistência de Leigh em manter conversa, com meros grunhidos.

— Eu vou — respondeu ele, manobrando o carro. — O que vai querer?

— Só um hambúrguer e batata frita, por favor.

Antes, ela tinha pensado na refeição completa — Big Mac, algo para beber e até mesmo os biscoitos, mas seu apetite parecia ter-se reduzido a zero.

Arnie estacionou. À luz amarelada que vinha do interior do prédio baixo de tijolos, o rosto dele pareceu esverdeado, de certa forma até doentio. Virou-se para trás, o braço apoiando-se no encosto.

— Quer que traga alguma coisa pra você? — perguntou ao carona.

— Não, obrigado — disse o rapaz. — Os velhos me esperam para o jantar. Não posso desapontar minha mãe. Ela mata um carneiro gordo cada vez que venho em c...

A batida da porta cortou sua palavra final. Arnie já se afastava, encaminhando-se apressadamente para a porta marcada ENTRE, as botas chutando pequeninos jatos de neve recém-caída.

— Ele é sempre carrancudo assim? — perguntou o carona. — Ou só fica esquisito de vez em quando?

— Ele é muito agradável — respondeu Leigh, com firmeza.

Ficara subitamente nervosa. Arnie desligara o motor e levara as chaves, deixando-a sozinha com o estranho no banco traseiro. Podia vê-lo pelo espelho retrovisor e, de repente, aqueles compridos cabelos negros, emaranhados pelo vento, o chumaço de barba e os olhos escuros deram-lhe uma aparência selvagem, como de algum membro do bando de Manson.

— Onde é que você estuda? — perguntou ela.

Seus dedos davam puxadelas nas calças e forçou-os a parar.

— Pitt — disse o carona, e nada mais.

Seus olhos encontraram os dela no espelho e Leigh desviou rapidamente os seus para o colo. Calças cor de uva. Usara-as porque, certa vez, Arnie tinha dito que gostava delas — talvez por serem as mais apertadas que tinha, ainda mais justas do que suas Levi's. Subitamente ela desejou estar usando outra coisa, algo que não pudesse ser considerado provocante, nem por algum exagero da imaginação: um saco de cereais, talvez. Tentou sorrir — era uma idéia engraçada, sem dúvida, um saco de cereais, dava vontade de rir, ha-ha-ho-ho, e bater nos joelhos — só que nenhum sorriso lhe veio aos lábios. Não conseguia afastar aquela imagem da mente: Arnie a deixara sozinha com o estranho (Por castigo? Tinha sido idéia dela recolhê-lo.) e agora estava assustada.

— Vibrações negativas — disse o carona de repente, fazendo-a conter a respiração.

As palavras dele eram decididas e conclusivas. Pelo vidro da janela, Leigh podia ver Arnie de pé, o quinto ou sexto da fila. Ainda demoraria um pouco, até chegar ao balcão. Viu-se imaginando o carona enlaçando subitamente sua garganta com as mãos. Claro que poderia alcançar a buzina... mas a buzina soaria? Leigh duvidou disso, sem qualquer razão lógica. Ficou pensando que poderia alcançar a buzina e fazê-la soar noventa e nove vezes, satisfatoriamente. Entretanto, na centésima, estaria sendo estrangulada por aquele carona por quem intercedera — e a buzina não soaria. Porque... porque Christine não gostava dela. De fato, achava que Christine a odiava. Simples assim. Uma loucura, mas algo bem simples.

— Co... como disse?

Olhou para trás, pelo espelho retrovisor. Seu alívio foi imenso, ao perceber que o carona nem olhava para ela. Os olhos dele vistoriavam o carro. Tocou o forro do banco com a palma da mão, depois esfregou de leve a forração do teto com as pontas dos dedos.

— Vibrações negativas — disse ele e meneou a cabeça. — Não sei por que, mas estou captando vibrações negativas nesse carro.

— É mesmo? — perguntou ela, esperando que a voz soasse neutra.

— Hum-hum. Fiquei preso num elevador certa vez, quando ainda criança. Desde então, tenho acessos de claustrofobia. Nunca tive nenhum em carro antes mas, poxa, estou tendo um agora. Dos piores. Acho que você poderia acender um fósforo na minha língua, tão seca está minha boca.

Ele deu uma risada, breve e constrangida.

— Se já não fosse tão tarde, eu sairia daqui e caminharia. Sem ofensa para você ou para o carro de seu cara — acrescentou depressa.

Quando Leigh olhou pelo retrovisor, os olhos dele nada tinham de selvagem, estavam apenas nervosos. Aparentemente, o carona não brincava a respeito da claustrofobia e não o achava mais com qualquer semelhança com Charlie Manson. Perguntou-se por que fora tão idiota... só que agora sabia — como e por quê. Sabia perfeitamente bem.

Era o carro. Estivera absolutamente bem o dia inteiro, rodando em Christine, mas agora o nervosismo e antipatia anteriores haviam retornado. Ela apenas transmitira tais sentimentos ao carona, porque... bem, porque alguém pode ficar assustado e nervoso por causa de algum cara recém-recolhido na estrada, mas era loucura ter medo de um carro, uma construção inanimada de aço, vidro, plástico e cromado. Aquilo não era apenas um pouco excêntrico, era loucura.

Não está sentindo um cheiro? — perguntou ele, de repente.

— Cheiro de quê?

— Um cheiro ruim.

— Não, não sinto cheiro nenhum. — Os dedos dela agora beliscavam a barra da suéter, arrancando fiapos de lã. O coração batia desagradavelmente no peito. — Deve ser parte do seu acesso de claustrofobia.

— Hum... acho que sim.

Só que ela sentia o cheiro. Por sob os novos e agradáveis cheiros de couro e estofamento, havia um leve odor: algo assim como ovos podres. Um leve... um vaguíssimo odor.

— Você se importa se eu baixar a janela um pouquinho?

— De modo nenhum.

Leigh precisou esforçar-se um pouco para manter a voz firme, com naturalidade. De súbito, em sua mente surgiu a foto que estivera no jornal da manhã anterior, uma foto de "Penetra" Welch, tirada do anuário escolar. Na legenda, estava escrito: Peter Welch, vítima de fatal incidente de atropelamento e fuga que, segundo a polícia, pode ter sido assassinato.

O carona baixou o vidro de sua janela uns sete centímetros e no carro penetrou uma brusca rajada de ar frio, carregando o cheiro. No interior do McDonald's, Arnie chegara ao balcão e fazia o pedido. Ao olhar para ele, Leigh experimentou uma tão estranha onda de amor e medo que a mistura a deixou nauseada — e, pela segunda ou terceira vez ultimamente, desejou ter-se ligado a Dennis primeiro, Dennis que parecia tão seguro e sensato...

Leigh procurou pensar em outra coisa.

— Diga apenas se o frio está incomodando — disse o carona, em tom de desculpa. — Sei que sou meio esquisito. — Deu um suspiro. — Às vezes acho que nunca devia ter desistido das drogas, entende?

Leigh sorriu.

Arnie caminhava para eles, segurando um saco branco de papel, escorregou ligeiramente na neve e então entrou no carro.

— Aqui dentro está frio como uma geladeira — grunhiu.

— Desculpe, cara — disse o carona, tornando a subir o vidro.

Leigh esperou, para ver se aquele cheiro voltaria, mas agora só conseguia sentir o odor do couro, do estofamento dos bancos e o vago perfume da loção de barba de Arnie.

— Pegue o seu, Leigh.

Entregou-lhe um hambúrguer, batatas fritas e uma Coca pequena. Tinha comprado um Big Mac para si mesmo.

— Queria agradecer a carona, cara — disse o rapaz, do banco traseiro. — Vou ficar na esquina da JFK com Center.

— Está bem — respondeu Arnie, lacônico, ligando o motor.

A neve agora caía mais pesadamente e o vento começara a ulular. Pela primeira vez, Leigh sentiu Christine derrapar um pouco, ao dirigir-se para o meio da rua, agora quase deserta. Estavam a menos de quinze minutos de casa.

Afastado aquele cheiro, Leigh descobriu que seu apetite voltara. Devorou metade do hambúrguer, bebeu um pouco de Coca e conteve um arroto, com as costas da mão. A esquina de Center com a JFK, marcada com um monumento sobre a guerra, surgiu à esquerda, e Arnie manobrou, pisando levemente nos freios, para que Christine não derrapasse.

— Tenha um bom fim de semana — disse Arnie.

Sua voz agora soava mais com a naturalidade costumeira. Divertida, Leigh concluiu que tudo quanto ele precisava era mesmo de comer alguma coisa.

— O mesmo para vocês dois — disse o carona. — E um Feliz Natal.

— Para você também — disse Leigh.

Deu outra dentada no hambúrguer, mastigou, engoliu... e o sentiu alojar-se a meio caminho, em sua garganta. De repente, não conseguia mais respirar.

O carona estava saindo. O ruído da porta, ao abrir-se, era muito alto. O som do clique do ferrolho foi como o tambor da fechadura de uma caixa-forte, retornando ao lugar. O som do vento assemelhou-se ao apito de uma fábrica.

(sei que isso é idiota, Arnie, mas não consigo respirar)

Estou sufocando!, ela tentou dizer, mas emitiu apenas um som gorgolejante e vago que, tinha certeza, o vento havia coberto. Apertou a mão em torno da garganta e a sentiu inchada, latejando contra os dedos. Quis gritar. Nenhuma respiração para gritar, nenhuma respiração

(Eu não posso, Arnie)

afinal, e conseguia sentir a coisa ali, uma pelota quente de hambúrguer e pão. Tentou tossir para expulsá-la, mas foi inútil. As luzes do painel, circulares, de um verde brilhante

(gato, como os olhos de um gato, oh, Deus, não posso RESPIRAR) vigiando-a...

(Meu Deus, não consigo RESPIRAR não consigo RESPIRAR não consigo)

Seu peito começou a latejar, buscando ar. Leigh tentou tossir novamente para livrar-se da pelota de pão e hambúrguer, mal mastigada e presa em sua garganta, mas era impossível. Agora, o ruído do vento era maior do que o mundo, maior do que qualquer som que já ouvira antes e, finalmente, os olhos de Arnie se desviavam do carona para ela; ele se virava em câmara lenta, os olhos se arregalando quase comicamente. Até mesmo sua voz parecia demasiado alta, como um trovão, a voz de Zeus falando a algum pobre mortal, vinda de trás de um maciço de nuvens carregadas:

— LEIGH... VOCÊ ESTÁ... DIABO, O QUÊ?... ELA ESTÁ ASFIXIADA! OH MEU DEUS, ELA ESTÁ...

Fez um gesto na direção dela, em câmara lenta, mas então recuou as mãos, imobilizado pelo pânico.

(Oh me ajude pelo amor de Deus faça alguma coisa estou morrendo oh Deus vou morrer engasgada com um hambúrguer McDonald's Arnie porque você não ME AJUDA?)

e, naturalmente, ela sabia por que, ele recuava porque Christine não queria que ela tivesse qualquer socorro, era esta a maneira de Christine livrar-se dela, a maneira de Christine livrar-se de qualquer outra mulher, da concorrência, e agora os instrumentos do painel eram realmente olhos, enormes olhos frios que a espiavam engasgar-se até a morte, olhos que ela só conseguia ver através de um.crescente emaranhado de pontos negros, pontos que explodiam e se espalharam quando

(mamãe oh céus estou morrendo agora e ELA ME VÊ ELA ESTÁ VIVA VIVA VIVA OH MEU DEUS DO CÉU CHRISTINE ESTÁ VIVA)

Arnie se moveu para ela outra vez. Agora ela começava a remexer-se no banco, seu peito se ondulava espasmodicamente, enquanto apertava a garganta. Seus olhos se dilatavam. Os lábios começaram a azular. Arnie lhe batia inutilmente nas costas e gritava algo. Agarrou-a pelo ombro, parecendo querer puxá-la para fora do carro, quando então, de repente, pestanejou e enrijeceu o corpo, as mãos indo involuntariamente para o final das próprias costas.

Leigh se contorceu e remexeu-se. O bloqueio em sua garganta parecia imenso, quente e pulsante. Tentou tossir a pelota para fora, agora mais fracamente. O volume continuou entalado. O ulular do vento começava a diminuir, tudo começava a esfumar-se, mas sua necessidade de ar não parecia tão urgente. Talvez estivesse morrendo e, de súbito, isto não parecia tão ruim. Nada era tão ruim, exceto aqueles olhos verdes que a vigiavam, do painel de instrumentos. Não eram mais frios. Agora cintilavam de ódio e triunfo.

(ó Deus eu me arrependo sinceramente de ter-Vos ofendido eu me arrependo de ofender-Vos este é meu ato meu ato de de)

Arnie se inclinara sobre ela. A porta de Leigh se abriu subitamente e ela escorregou para fora, em meio a um vento brutal e cortante. O ar a reviveu parcialmente, fez com que a luta pela respiração se tornasse de novo importante, mas a obstrução persistia... não cedia.

De muito longe, a voz de Arnie trovejava consternada, era a voz de Zeus: O QUE ESTÁ FAZENDO? TIRE AS MÃOS DE CIMA DELA! Braços em torno dela. Braços fortes. O vento em seu rosto. A neve turbilhonando em seus olhos

(ó Deus ouça-me como pecadora este é meu ato de contrição eu me arrependo sinceramente de ter-Vos ofendido OH! OUUU! o que você está FAZENDO minhas costelas doem o que o que você)

e, de repente, havia braços em torno dela, apertando, e duas mãos duras se juntavam em um nó, logo abaixo de seus seios, no plexo solar. E também de repente um polegar se ergueu, o polegar de um carona pedindo uma corrida, com a diferença de que o polegar se enfiou dolorosamente contra seu esterno, no meio do peito. Ao mesmo tempo, a pressão dos braços aumentou brutalmente. Ela se sentiu agarrada.

(Ohhhhhhh você está quebrando minhas COSTELAS)

por um besouro gigantesco. Todo o seu diafragma pareceu expandir-se e algo lhe voou para fora da boca, com a força de um projétil. Algo que foi cair sobre a neve: uma pelota molhada, de pão e carne.

— Largue-a! — gritava Arnie, enquanto saía de trás do volante e dava a volta por trás de Christine, até onde o carona mantinha o corpo flácido de Leigh, como uma marionete em tamanho grande. — Largue-a, você a está matando!

Leigh começou a respirar, em profundos e entrecortados haustos. Sua garganta e os pulmões pareciam queimar em rios de fogo, a cada vez que aspirava o frio, maravilhoso ar. Quase não percebia que soluçava.

O rude besouro relaxou a pressão e as mãos a soltaram.

— Você está bem, garota? Está...

Então Arnie passava por ela, avançando para o carona. O rapaz se virou, seus compridos cabelos flutuando ao vento, e Arnie o esmurrou na boca. O carona foi atirado para trás, suas botas escorregaram na neve e ele aterrissou de costas. A neve recente, fina e seca como açúcar, voejou em torno dele.

Arnie avançou, de punhos fechados, olhos cerrados.

Ela tomou outra convulsiva respiração — oh, doía, era como ser espetada por facas — e gritou:

— O que está fazendo, Arnie? Pare com isso! Arnie se virou para ela, atônito.

— O quê? Leigh?

— Ele salvou minha vida, por que está batendo nele?

O esforço era demasiado e os pontos negros começaram novamente a espiralar-se diante de seus olhos. Ela poderia ter-se recostado contra o carro, mas não queria chegar perto dele, não queria tocá-lo. O painel de instrumentos. Acontecera qualquer coisa com o painel de instrumentos. Algo.

(olhos que se transformavam em olhos) sobre o que não queria pensar.

Cambaleando, procurou um poste de iluminação e agarrou-se a ele como bêbada, de cabeça baixa e arfando. Um braço macio e vacilante se envolveu em sua cintura.

— Leigh... minha querida, você está bem?

Virando ligeiramente a cabeça, ela viu o rosto assustado e infeliz de Arnie. Não se contendo mais, prorrompeu em lágrimas.

O carona aproximou-se deles com cautela, enxugando a boca ensangüentada na manga do blusão

— Obrigada — disse Leigh, entre respirações rápidas e arquejantes. A dor diminuía um pouquinho agora e o frio vento cortante refrescava seu rosto esbraseado. — Eu estava sufocando. Acho que... Acho que teria morrido, se você não tivesse...

Era esforço demais. Os pontos negros voltaram, todos os sons se extinguiram no interior de um fantástico túnel de vento. Baixando a cabeça, ela esperou que aquilo passasse.

— É a Manobra de Heimlich — explicou o carona. — Fazem a gente aprendê-la, quando se trabalha em um café. Na escola. Fazem a gente praticar em um boneco de borracha. Daisy Mae é como o chamam. Eu pratiquei, mas nunca se tem a menor idéia se a coisa... sabe como é, vai ou não funcionar em uma pessoa de verdade. — A voz dele era trêmula, passando do grave para o agudo e retornando ao grave, como a de um garoto entrando na puberdade. Uma voz que parecia querer rir ou chorar, algo assim, e, mesmo à claridade incerta, em meio à neve que caía fortemente, Leigh pôde ver o quanto o rosto dele estava pálido. — Nunca pensei que um dia viesse a pôr em prática a Manobra de Heimlich. E funcionou que foi uma beleza. Viu como aquele maldito pedaço de carne voou longe?

O carona enxugou a boca e olhou apaticamente para a fina camada de sangue na palma da mão.

— Sinto muito tê-lo esmurrado — disse Arnie. Parecia quase chorando. — Eu estava apenas... apenas...

— Certo, cara, eu entendo. — Ele bateu no ombro de Arnie. — Não foi nada. Você está bem, garota?

— Estou — disse Leigh.

Sua respiração se normalizava. As batidas do coração ficavam mais ritmadas. Apenas as pernas estavam em mau estado, eram como de pura borracha. Meu Deus, pensou ela. Eu agora podia estar morta. Se não tivéssemos dado carona a esse sujeito e se nós quase não...

Ocorreu-lhe que tinha sorte por estar viva. O clichê a envolveu forçosamente, com um estúpido e inegável poder que quase a fez desmaiar. Leigh começou a chorar com mais intensidade. Quando Arnie a guiou de volta ao carro, acompanhou-o, com a cabeça em seu ombro.

— Bem — disse o carona, hesitante —, acho que vou indo.

— Um momento — disse Leigh. — Como é seu nome? Você salvou minha vida, eu gostaria de saber como se chama.

— Barry Gottfried — respondeu. — Às suas ordens. Novamente, ele levou os dedos à aba de um chapéu imaginário.

— Leigh Cabot — disse ela. — Este é Arnie Cunningham. Obrigada novamente.

— Sem dúvida, obrigado — acrescentou Arnie.

No entanto, Leigh não sentiu um agradecimento real em sua voz — apenas aquele tremor. Ele a fez entrar no carro e, subitamente, o cheiro a envolveu, atacou-a: nada fraco desta vez, era muito mais do que um vago odor subterrâneo. Era um cheiro de podre e decomposição, forte e nauseante. Leigh sentiu um medo louco invadir-lhe o cérebro e pensou: É o cheiro da fúria dela...

O mundo girou diante dela. Inclinando-se para fora do carro, Leigh vomitou.

Então, tudo à sua volta ficou cinzento por um momento.

 

— Tem certeza de que está bem? — perguntou Arnie, talvez pela centésima vez.

Seria também uma das últimas, percebeu Leigh, com certo alívio. Estava cansada, muito cansada. Havia um persistente e doloroso latejar em seu peito, outro nas têmporas.

— Agora estou ótima.

— Oh, ainda bem, ainda bem!

Arnie se movia indecisamente, como se quisesse ir, mas sem certeza de que o momento era apropriado; talvez ainda não, pelo menos até que repetisse a pergunta que agora parecia eterna. Estavam parados diante da casa dos Cabot. Retângulos de luz amarelada se filtravam das janelas e jaziam perfeitos sobre a neve recente e sem marcas. Christine fora estacionada junto ao meio-fio, com as luzes de sinalização acesas.

— Você me assustou, quando desmaiou daquele jeito — disse Arnie.

— Não desmaiei... Apenas fiquei tonta por alguns minutos.

— Mesmo assim, fiquei assustado. Eu te amo, você sabe. Ela o fitou com ar grave.

— Ama mesmo?

— É claro que amo! Leigh, você sabe que te amo!

Ela respirou fundo. Estava fatigada, mas aquilo tinha que ser dito e dito nesse momento. Porque, se não falasse agora, o que havia acontecido pareceria absolutamente ridículo na manhã seguinte — talvez mais do que ridículo —, a idéia teria um toque de pura loucura. Um fedor que ia e vinha, como o de um "bolor fétido" em uma história gótica de horror? Instrumentos no painel que se transformavam em olhos? E, acima de tudo, a insana sensação de que o carro realmente tentara matá-la?

Na manhã seguinte, até mesmo o fato de que quase morrera engasgada não passaria de uma vaga dor no peito e a convicção de que aquilo não fora nada, realmente, que não oferecera perigo de vida.

Exceto que tudo era verdade, e Arnie sabia disso — sim, parte dele sabia — e tinha que ser dito agora.

— Sim, acredito que me ame — disse ela, lentamente. Olhou para ele com firmeza. — Só que não vou mais a parte alguma com você nesse carro. E, se me ama de verdade, terá que se livrar dele.

A expressão de choque no rosto de Arnie foi tão intensa e repentina como se ela o tivesse esbofeteado.

— De que... de que está falando, Leigh?

Aquela expressão de levar uma bofetada seria causada pelo choque? Ou parte dela proviria de culpa?

— Você ouviu o que eu disse. Não acredito que se livre do carro, nem sei se isso seria mais possível pra você, mas se quiser me levar a algum lugar, Arnie, iremos de ônibus. Ou pegaremos carona. Ou voaremos. O fato é que nunca mais andarei em seu carro. É uma armadilha mortal.

Pronto. Tinha dito, saíra de sua boca.

Agora, o choque no rosto dele transformava-se em raiva — a espécie de raiva cega e obstinada que Leigh vira em seu rosto tantas vezes ultimamente. Uma raiva não somente devido a coisas grandes, mas também a pequenas: uma mulher atravessando a rua com o sinal de trânsito amarelo, um guarda que detinha o tráfego pouco antes da vez de ele passar. E a sensação que agora provocava em Leigh tinha o poder de uma revelação — a de que a raiva de Arnie, corrosiva e tão inadequada ao restante de sua personalidade, estava sempre associada ao carro. A Christine.

— Se você me ama, terá que se livrar dele — repetiu Arnie. — Sabe com quem você se parece?

— Não, Arnie.

— Com minha mãe. Ela vive dizendo isso.

— Sinto muito.

Ela não ia retirar o que dissera, e muito menos se defenderia com palavras ou encerraria aquilo, simplesmente entrando em casa. Talvez fosse capaz disso, se não sentisse algo por ele. Suas impressões iniciais — de que por trás do quieto acanhamento de Arnie Cunningham ele era bom, decente e delicado (talvez até mesmo sexy) — não haviam mudado muito. Era aquele carro, tudo se resumia nisso. Ali estava a mudança. Era como testemunhar uma forte mente sendo lentamente suplantada pela influência de alguma maligna e corrosiva droga de dependência.

Arnie passou as mãos através dos cabelos polvilhados de neve, um gesto característico de perplexidade e raiva.

— Está bem, você quase morreu engasgada no carro. Posso compreender que não se sinta muito bem com relação a ele. Entretanto, foi o hambúrguer, Leigh, isso é tudo. Ou, talvez, nem mesmo isso. Podia ser que você estivesse tentando falar enquanto mastigava ou respirasse justamente no segundo errado, alguma coisa assim. Poderia até acusar Ronald McDonald. As pessoas se engasgam com sua comida de vez em quando, nada mais. Às vezes, morrem. Você não morreu. Graças a Deus por não ter morrido. Mas quanto a responsabilizar meu carro...!

Sim, tudo soava perfeitamente plausível. E era plausível. Exceto que havia algo, por trás dos olhos cinzentos de Arnie. Um algo frenético, que não era precisamente uma mentira, mas... racionalização? Um desvio ansioso da verdade?

— Arnie — disse ela —, estou cansada, meu peito dói e estou morrendo de dor de cabeça. Creio que só tenho forças para dizer isso uma vez apenas. Você quer ouvir?

— Se for sobre Christine, está gastando seu tempo — disse ele, e aquela expressão obstinada, inflexível, estava novamente em seu rosto. — É loucura culpá-la e sabe bem disso.

— Sim, eu sei que é loucura, como sei que estou gastando meu tempo — replicou Leigh. — Mas mesmo assim, estou pedindo pra você me ouvir.

— Pois bem, estou ouvindo.

Ela respirou fundo, ignorando a tensão no peito. Olhou para Christine, deixando escapar uma fita de vapor branco na neve espessa que caía, depois desviou os olhos apressadamente. Agora, eram as luzes de sinalização que se assemelhavam a olhos: os olhos amarelos de um lince.

— Quando me engasguei... quando estava sufocando... o painel de instrumentos... as luzes dele mudaram. Elas mudaram. Eram... não, não vou chegar a tanto, mas pareciam olhos.

Ele riu, um latido curto no ar frio. Na casa, uma cortina foi puxada de lado, alguém espiou para fora e a cortina voltou ao lugar.

— Se aquele carona... aquele tal Gottfried... se ele não estivesse lá, eu teria morrido, Arnie. Eu teria morrido. — Leigh perscrutou os olhos dele e decidiu-se. Uma vez apenas, disse para si mesma. Só preciso dizer isto uma vez. — Você me disse que trabalhou na cantina do ginásio de Libertyville, durante três anos. Eu vi o pôster da Manobra Heimlich pregado à porta da cozinha. Você também deve ter visto. No entanto, não o aplicou em mim, Arnie. Estava muito disposto a bater nas minhas costas, mas isso não funciona. Tive um emprego em um restaurante, em Massachusetts, e a primeira coisa que nos ensinam, antes mesmo de ensinarem a Manobra Heimlich, é que bater nas costas de uma vítima engasgada não funciona.

— De que está falando? — perguntou ele, em voz baixa, quase sem fôlego.

Leigh não respondeu, apenas olhou para ele. Arnie sustentou-lhe o olhar por somente um momento, porque então seus olhos — enfurecidos, confusos, quase acossados — se desviaram dos dela.

— A gente esquece coisas, Leigh. Tem razão, eu deveria ter aplicado a Manobra. Entretanto, se também fez o curso, sabe que pode aplicá-la em si mesma. — Ele entrelaçou as mãos, formando um todo, com um polegar para fora, o qual pressionou no diafragma, como demonstração. — Apenas, na tensão do momento, a gente esquece...

— Sim, a gente esquece. E você parece esquecer de muita coisa, quando está nesse carro. Como, por exemplo, de ser Arnie Cunningham.

Arnie meneava a cabeça.

— Você precisa de tempo para refletir no que está dizendo, Leigh. Precisa de...

— Tempo é precisamente algo de que não preciso! — exclamou ela, com um vigor, que chegara a duvidar que ainda possuía. — Nunca tive uma experiência sobrenatural na vida, nem mesmo acreditava nessas coisas, mas agora me pergunto apenas o que está acontecendo, o que há com você. Aquelas luzes pareciam olhos, Arnie. E mais tarde... depois de tudo... havia um cheiro. Um cheiro horrível de podre.

Arnie encolheu-se.

— Você sabe do que estou falando.

— Não. Não faço a mínima idéia.

— Pois você se encolheu de repente, como se o diabo tivesse puxado sua orelha.

— Está imaginando coisas, Leigh — disse ele caloroso. — Um bocado de coisas.

— Aquele cheiro estava lá. E há também outras coisas. Às vezes, seu rádio só pega aquelas estações de músicas antigas...

Outra cintilação nos olhos dele e uma ligeira torção no canto esquerdo da boca.

— E algumas vezes, quando estamos nos entendendo bem, o rádio só emite estática, como se não gostasse do que acontece. Como se o carro não gostasse, Arnie.

— Você está perturbada — disse ele, com sinistra determinação.

— Sim, estou perturbada — respondeu Leigh, começando a chorar. — Você não está? — As lágrimas lhe escorreram lentamente pelas faces. — Penso que isto é o fim para nós, Arnie; eu amei você, mas acho que acabou. Acredito realmente que tenha acabado, e isso me deixa tão triste, tão magoada... Seu relacionamento com seus pais transformou-se em um... campo de batalha, com você viajando para Nova York e Vermont, Deus sabe com que finalidade, a mando de Will Darnell, aquele porco gordo e esse carro... esse carro...

Ela não conseguiu dizer mais. Sua voz extinguiu-se. Deixou os embrulhos caírem e abaixou-se às cegas para recolhê-los. Exausta e chorando, só conseguiu espalhá-los ainda mais. Arnie abaixou-se para ajudá-la e Leigh o empurrou com rudeza.

— Deixe meus embrulhos em paz! Eu mesma apanho!

Ele se ergueu, com o rosto pálido e tenso. Tinha uma expressão de pura fúria, mas os olhos... oh, para Leigh, seus olhos pareciam perdidos.

— Está bem — disse ele, a voz enrouquecida agora por suas próprias lágrimas. — Muito bem! Junte-se a todos eles, se quiser. Pode ficar com todos eles, os outros bostas. Quem se importa?

Arnie deixou escapar uma respiração trêmula e um soluço solitário lhe brotou da garganta, antes que pudesse fechar a boca brutalmente, com a mão enluvada.

Começou a caminhar de volta ao carro; avançava cegamente para o Plymouth, e Christine estava lá.

— Fique com eles, porque você está louca! Fora de si! Então, vá e façam seus jogos! Não preciso de vocês! Não preciso de nenhum de vocês!

Sua voz se elevou a um grito agudo, em diabólica harmonia com o vento:

— Não preciso de vocês, portanto, fodam-se!

Apressou-se para o lado do motorista, seus pés deslizaram e ele estendeu a mão, buscando apoio em Christine. Ela estava lá e não o deixou cair. Arnie entrou no carro, acelerou, os faróis dianteiros acenderam-se em intenso clarão branco, e o Fury afastou-se do meio-fio, os pneus traseiros derrapando em uma névoa de neve.

Agora, as lágrimas vinham rápidas e firmes, enquanto ela ficava espiando as luzes traseiras se distanciarem, tornando-se pontos vermelhos e piscando, quando o carro dobrou a esquina. Seus embrulhos jaziam espalhados no chão.

Então, de repente, sua mãe estava ali, absurdamente vestida em uma capa de chuva aberta, com botas de borracha verdes e a camisola de flanela azul.

— O que há de errado, meu bem?

— Nada — soluçou Leigh.

Quase morri engasgada, senti o cheiro de algo que podia ter vindo de uma sepultura recentemente aberta e acho que... sim, acho que, de certa forma, aquele carro está vivo... mais vivo a cada dia. Acho que ele é como alguma espécie de horrível vampiro, um vampiro que está se alimentando da mente de Arnie. De sua mente e de seu espírito.

— Nada, não houve nada de errado. Tive uma discussão com Arnie, foi só. Quer me ajudar a pegar minhas coisas?

As duas recolheram os embrulhos de Leigh e entraram. A porta fechou atrás delas e a noite pertenceu ao vento, à neve que caía rapidamente. Pela manhã, haveria uma camada de mais de vinte centímetros.

 

Arnie ficou rodando em seu carro, até pouco depois da meia-noite. Depois disso, não teve lembrança do que fez. A neve enchera as ruas, agora desertas e fantasmagóricas. Não era uma noite para o grande carro americano. Não obstante, Christine se movia através da crescente tempestade com surpreendente facilidade e firmeza, sem ao menos estar com pneus para neve. De vez em quando, a sombra pré-histórica de um removedor de neve surgia na bruma e logo desaparecia.

O rádio estava ligado. Só dava a WDIL, em todo o dial. Irradiava o noticiário. Eisenhower predissera, na convenção AFL/CIO *, um futuro de trabalho e administração marchando harmoniosamente para um porvir conjunto. Dave Beck negara que o Sindicato dos Motoristas de Caminhão fosse uma fachada para negócios escusos. Eddie Cochran, o cantor de rock, perdera a vida em um acidente automobilístico, quando seguia para o Aeroporto Heatrow, de Londres; uma cirurgia de emergência durante três horas, não conseguira salvar-lhe a vida. Os russos trombeteavam seus ICBM, os mísseis balísticos intercontinentais. A estação WDIL tocava músicas antigas durante toda a semana, mas eles se mostravam realmente dedicados nos fins de semana. Poxa, noticiário dos anos 50! Aquilo era

(nunca ouvi nada igual antes) realmente uma idéia e tanto. Era (totalmente insano) uma idéia e tanto, sim, senhor!

A meteorologia prometia mais neve.

Em seguida, música novamente: Bobby Darin cantando "Splish-Splash", Ernie K-Doe cantando "Mother in Law", os gêmeos Kalin cantando "When". Os limpadores de pára-brisa marcavam o ritmo.

Arnie olhou para sua direita, e lá estava Roland D. LeBay, como passageiro forçado.

Roland D. LeBay, com suas calças verdes e uma desbotada camisa de sarja do Exército, espiando através das órbitas escuras. Um besouro, ataviado, dentro de outro.

Você tem de fazê-los pagar, disse Roland D. Lebay. Tem de fazer esses bostas pagarem, Cunningham. Cada um dos fodidos bostas!

— Certo — sussurrou Arnie. Christine cantarolava através da noite, rompendo a neve com rodas firmes, seguras. — Tem razão.

E os limpadores de pára-brisa assentiram, para diante e para trás, de um lado para outro.

 

Agora, Este Breve Interlúdio

Rode para o México naquele velho Chrysler, rapaz.

- Z. Z. Top

 

No Ginásio de Libertyville, o treinador Puffer havia sido substituído pelo treinador Jones e o futebol dera lugar ao basquete. Entretanto, nada mudara realmente: os cestinhas não se saíam muito melhor do que os artilheiros de futebol do ginásio — o único que sobressaía era Lenny Barongg, um craque em três esportes, sendo o basquete o principal deles. Lenny persistia obstinadamente, conseguindo a marca vitoriosa que lhe era necessária se quisesse obter a bolsa de estudos para atletismo em Marquette pela qual vinha batalhando.

Sandy Galton sumiu da cidade de repente. Um dia estava lá, no outro sumira. Sua mãe, uma bêbada contumaz de quarenta e cinco anos, que não parecia ter menos do que sessenta, não ficou muito preocupada. O mesmo sucedeu ao irmão mais novo de Sandy, que tomava mais droga do que qualquer outro garoto do Ginásio Gornick. No Ginásio de Libertyville corria o romântico boato de que ele se mandara para o México. Havia outro boato também, este menos romântico: que Buddy Repperton envolvera Sandy em alguma coisa, de maneira que ele decidira ser mais seguro sair de circulação.

Os feriados do Natal aproximavam-se e o ambiente escolar ficou mais inquieto e ruidoso, como sempre acontecia, antes de uma folga mais demorada. A maior parte do corpo estudantil recebia seu costumeiro diploma pré-natalino. Apreciações de livros eram entregues com atraso e, freqüentemente, apresentando uma suspeita semelhança com o escrito na sobrecapa dos mesmos (afinal, quantos estudantes veteranos de inglês estarão aptos para avaliar O Apanhador no Campo de Centeio, "este candente clássico da adolescência pós-guerra"?). Os projetos de aulas eram deixados pela metade ou nem eram feitos, a porcentagem dos períodos de castigo por beijar e namorar nos corredores subia às alturas, enquanto as sessões de maconha aumentavam, quando os alunos do Ginásio de Libertyville se entregavam a uma leve diversãozinha pré-natalina. Assim, boa parte dos estudantes estava alta; era alta a ausência de professores, como também estavam no alto as decorações de Natal pelos corredores e salas de aula.

Leigh Cabot não estava por cima. Falhara em um exame pela primeira vez, em sua carreira de ginasiana, recebendo um D em uma prova de datilografia. Ela não conseguia estudar, sua mente divagava até Christine, vezes sem conta — até o verde painel de instrumentos que se tornara odioso, até aqueles reluzentes olhos-de-gato que a viam morrer sufocada.

De um modo geral, no entanto, a última semana de aulas antes dos feriados de Natal era um período bem-humorado, quando eram perdoadas infrações que mereciam punição em outra época, quan­do professores durões às vezes até davam uma ajudazinha na prova em que todos se tinham saído mal, quando garotas que haviam sido inimigas ferrenhas faziam as pazes e quando rapazes que repetidamente se envolviam em brigas, por insultos reais ou imaginários, faziam o mesmo. O mais indicativo da brandura do ambiente, no entanto, talvez fosse simplesmente o fato de que a Srta. Saco-de-Ratos, a Medusa da Sala de Estudos 23, fosse vista sorrindo... não apenas uma, porém várias vezes.

No hospital, Dennis Guilder estava moderadamente animado — trocara os gessos de tração que o prendiam ao leito por outros que lhe permitiam caminhar. A fisioterapia não significava mais a tortura que havia sido. Perambulava oscilante por corredores ostentando fieiras de ouropel e enfeitados com figuras natalinas, as muletas fazendo ecoar um ruído surdo ao longo da caminhada, às vezes em compasso com as alegres canções de Natal, irradiadas pelos alto-falantes suspensos.

Era uma caesura, uma trégua de bonança, um interlúdio, um período de calmaria. Durante seus aparentemente intermináveis passeios pelos corredores, para baixo e para cima, Dennis refletia que as coisas podiam ter sido piores — muito, muito piores.

E, em muito breve, elas o seriam.

 

Buddy e Christine

Bem, lá está ele na distância

E vem arremetendo contra mim

Não sei como resistir

E nada poderá livrar-me.

Até um homem cego de um olho poderia ver

Que algo ruim acontecerá comigo...

The Inmates

 

Na terça-feira, 12 de dezembro, os Terriers perderam de 54 a 48 para os Bucaneiros, no ginásio de Libertyville. Em sua maioria, os torcedores saíram para o imóvel negror da noite não muito decepcionados: cada cronista esportivo da área de Pittsburg previra outra derrota para os Terriers. O resultado mal poderia ser encarado como um transtorno. Além disso, havia Lenny Barongg, para orgulho da torcida dos Terriers: conseguira marcar, sozinho, 34 pontos fantásticos, estabelecendo um novo recorde para a escola.

Buddy Repperton, contudo, estava decepcionado.

Por causa disto, Richie Trelawney também fazia o possível para demonstrar sua decepção. O mesmo acontecia a Bobby Stanton, no banco traseiro.

Nos poucos meses após sua expulsão do ginásio, Buddy parecia ter envelhecido. Parte disso ficava por conta da barba. Ele agora se assemelhava menos a Clint Eastwood e mais a algum inveterado bebedor e jovem ator, uma versão do Capitão Ahab. Nas últimas semanas, Buddy andara bebendo demais. E sonhava coisas tão terríveis, que mal podia recordar. Despertava suado e trêmulo, com a sensação de ter escapado por pouco de algo horrendo, algo sombrio, que se movia silenciosamente.

Não obstante, a bebida acabara com aquilo. Cortara os sonhos certeiramente, pelos malditos joelhos. Com infernal precisão. Tudo aquilo acontecia porque trabalhava à noite e dormia de dia.

Ele baixou o vidro da janela de seu maltratado e amassado Camaro, varando o ar frio, e jogou fora uma garrafa vazia. Virando-se por sobre o ombro, disse:

— Outro coquetel Molotov, cavalheiros.

— É pra já, Buddy — disse Bobby Stanton respeitosamente, passando outra garrafa de Texas Driver para a mão de Buddy.

Buddy os obsequiara com uma caixa da beberagem — suficiente para paralisar toda a Marinha egípcia, dissera ele — depois do jogo. Ele arrancou a tampa, dirigindo momentaneamente com os cotovelos, e em seguida bebeu metade da garrafa. Estendeu-se a Richie, deixando escapar um longo e sonoro arroto. Os faróis do Camaro iluminaram a Rota 46, que seguia para noroeste tão reta como um barbante, através da Pensilvânia rural. Campos cobertos de neve jaziam sonhadoramente a cada lado da estrada, cintilando em um bilhão de pontos de luz, que arremedavam as estrelas no negro céu invernal. Ele se encaminhava — de um modo um tanto casual e meio bêbado — para as Squantic Hills. Nesse ínterim, poderia escolher qualquer outro destino, mas não o fazendo, as montanhas eram um lugar excelente e reservado para ficarem altos tranqüilamente.

Richie devolveu a garrafa a Bobby, que tomou um bom gole, embora detestasse o sabor de Texas Driver. Acreditava que, quando ficasse um pouco mais embriagado, estaria pouco ligando para o gosto da beberagem. Poderia ficar de ressaca e vomitar tudo no dia seguinte, mas o amanhã estava a mil anos de distância. Bobby ficava entusiasmado apenas por estar na companhia deles; era somente um calouro, ao passo que Buddy Repperton, com sua fama quase mística de arrogância e maldade, era uma figura que ele encarava com uma mistura de medo e respeito.

— Palhaços fodidos — disse Buddy com voz pastosa. — Que cambada de palhaços fodidos! Vocês chamam àquilo de jogo de basquete?

— São todos uma cambada de retardados — concordou Richie. — Menos o Barongg. Trinta e quatro pontos! Não é para qualquer um!

— Não vou com a cara daquele crioulo — disse Buddy, envolvendo Richie em um longo e calculista olhar embriagado. — Está querendo se juntar ao bando?

— Claro que não, Buddy — disse Richie prontamente.

— Ainda bem.

— O que vai querer primeiro? — perguntou Bobby repentinamente, no banco traseiro. — As boas ou as más notícias?

— Primeiro as más — disse Buddy. Estava em sua terceira garrafa de Driver e não sentia qualquer dor, somente uma raiva aflitiva. Havia esquecido, pelo menos no momento, que tinha sido expulso do colégio. Concentrava-se apenas no fato de que a velha equipe da escola, aquela cambada de fodidos cretinos retardados o decepcionara. — Sempre as más primeiro.

O Camaro rodava para noroeste a mais de cem por hora, na fita asfaltada de duas faixas, que era como um risco de tinta preta através de um enladeirado piso branco. O terreno começava a elevar-se ligeiramente, à medida que se aproximavam das Squantic Hills.

— Bem, as más novas são que um milhão de marcianos acabaram de aterrissar em Nova Iorque — disse Bobby. — Agora, quer ouvir as boas?

— Não tem boas notícias — disse Buddy, em voz lenta e pesarosa.

Richie gostaria de dizer ao garoto que não devia tentar alegrar Buddy, quando ele estava em semelhante estado de ânimo, porque isso só piorava a situação. O melhor a fazer era deixar que as coisas seguissem seu curso natural.

Buddy andava assim desde que "Penetra" Welch, aquele imbecil quatro-olhos caipira fora atropelado por algum psicopata, na Drive, JFK.

— As boas notícias são que eles comem negros e mijam gasolina — disse Bobby, explodindo em uma gargalhada.

Riu durante algum tempo, antes de perceber que ninguém lhe fazia coro. Então, calou-se subitamente. Erguendo o rosto, viu os olhos injetados de Buddy espiando-o, acima da barba anelada. Aquele olhar avermelhado e perscrutador, flutuando no espelho retrovisor, provocou-lhe um desagradável calafrio de medo. Ocorreu-lhe, então, que talvez se tivesse calado um ou dois minutos atrasado.

Atrás deles, dois faróis piscavam a uma distância de uns cinco quilômetros, parecendo insignificantes fagulhas amarelas na noite.

— Acha isso engraçado? — perguntou Buddy. — Solta uma maldita piada racista como essa e acha engraçado? Sabia que você é um babaca preconceituoso?

Bobby ficou de boca aberta.

— Bem, mas você disse...

— Eu disse que não topo Barongg. De um modo geral, acho que os crioulos são tão bons quanto os brancos.

Buddy considerou a idéia.

— Bem, quase tão bons.

— Mas...

— Vigie sua língua ou vai voltar andando para casa — grunhiu Buddy. — Com uma fratura. Depois vai poder escrever EU ODEIO NEGROS em seus fundilhos.

— Oh! — sussurrou Bobby, com voz assustada. Era como estender o braço para acender uma lâmpada e receber a chicotada de um choque elétrico. — Sinto muito.

— Me dê essa garrafa e feche a matraca.

Bobby estendeu-lhe alegremente a garrafa de Driver. Sua mão tremia.

Buddy acabou com a bebida. Passaram por uma placa de sinalização: PARQUE ESTADUAL SQUANTIC HILLS — 5 KM. O lago do centro do parque estadual era como uma zona de praia muito procurada no verão, mas o parque ficava fechado de novembro a abril. A estrada que serpenteava através do parque até o Lago Squantic, no entanto, era mantida em conservação por manobras periódicas da Guarda Nacional e acampamentos dos Escoteiros Exploradores, mas Buddy descobrira uma entrada lateral que contornava o portão principal e depois se unia à estrada do parque. Ele gostava de penetrar no silencioso e invernoso parque estadual, para rodar com seu carro e beber.

Atrás deles, as fagulhas gêmeas na distância tinham aumentado para círculos — dois faróis dianteiros, a uns dois quilômetros dali.

— Mande outro coquetel Molotov, seu porco racista ordinário.

Bobby estendeu-lhe uma garrafa cheia e permaneceu prudentemente calado. Buddy virou fundo, arrotou e depois passou a garrafa para Richie.

— Não, obrigado, cara.

— Vai beber ou pode se ver tomando um clister com ela.

— Certo, cara — disse Richie, desejando ardentemente ter ficado em casa naquela noite. Bebeu, enquanto o Camaro continuava correndo, seus faróis varando a noite.

Buddy olhou pelo retrovisor e avistou o outro carro, que agora se aproximava depressa. Uma espiada no velocímetro disse-lhe que estava a cento e poucos. O carro mais atrás devia estar perto dos cento e dez. Buddy sentiu algo — uma curiosa espécie de reviver os sonhos que não conseguia recordar inteiramente. Um dedo gelado parecia pressionar seu coração de leve.

À frente deles, a estrada se bifurcava, a Rota 46 seguindo para leste, em direção a New Stanton, a outra estrada indo para o Parque Estadual Squantic Hills. Um enorme aviso laranja alertava: FECHADA NOS MESES DE INVERNO.

Quase sem diminuir a velocidade, ele guinchou para a esquerda e disparou para o alto da montanha. A estrada que ia para o parque não estava tão bem conservada, e árvores frondosas tinham impedido que o sol quente da tarde derretesse a neve que a cobria. O Camaro derrapou ligeiramente, antes de ganhar a estrada de novo. No assento traseiro, Bobby Stanton deixou escapar um som baixo e inquieto.

Buddy ergueu os olhos para o retrovisor, esperando ver o outro carro continuar pela 46 — para a maioria dos motoristas, afinal, a estrada para a qual ele se desviara era apenas um beco sem saída — mas, em vez disso, o carro na traseira passou para o desvio ainda mais depressa do que ele e agora vinha não muito distante, a menos de cento e cinqüenta metros. Seus faróis eram quatro cintilantes círculos brancos, que iluminavam em cheio o interior do Camaro.

Bobby e Richie se viraram para olhar.

— Quem será esse merda? — murmurou Richie.

Buddy sabia. De repente, ficou sabendo. Era o carro que atropelara "Penetra". Oh, sim, era ele. O psicopata que abotoara "Penetra" estava atrás do volante daquele carro — e agora estava atrás dele, Buddy.

Pisou fundo no acelerador e o Camaro começou a voar. A agulha do velocímetro subiu para cento e dez, movendo-se gradualmente para perto de cento e vinte e cinco. As árvores passavam por eles como borrões, escuros garranchos na noite. As luzes atrás deles não se atrasaram; na verdade, até ganhavam em velocidade. Os faróis duplos se fundiram em dois enormes olhos brancos.

— Cara, quer diminuir um pouco? — pediu Richie. Estendeu a mão para seu cinto de segurança, agora francamente amedrontado. — Se continuarmos nessa velocidade...

Buddy não respondeu. Inclinou-se sobre o volante, alternando olhares para a estrada à frente com outros para o espelho retrovisor, onde aquelas luzes continuavam crescendo.

— A estrada faz uma curva mais adiante — disse Bobby, em voz rouca. E a curva se aproximou, os guardrails refletindo em cromados à luz dos faróis do Camaro. Ele gritou: — Buddy! Olhe a curva! Olhe a curva!

Buddy diminuiu a marcha e o motor do Camaro roncou seu protesto. A agulha do tacômetro marcou 6.000 rotações por minuto, dançou brevemente na linha vermelha de 7.000 e depois caiu para um nível mais normal. Os canos retos de descarga do Camaro pipocaram como fogo de metralhadora. Buddy girou o volante e o carro flutuou para a margem escarpada. As rodas traseiras deslizaram pela superfície de neve dura. No último instante possível, Buddy o desviou de volta, pisando firme no acelerador e deixando o corpo balançar livremente, enquanto a roda traseira esquerda do Camaro se chocava contra o banco de gelo, nele escavando um buraco de neve revolvida do tamanho de um caixão, antes de saltar fora. O carro patinou para o outro lado. Buddy seguiu seu movimento, em seguida tornando a pisar no acelerador. Por um instante, pensou que o carro não responderia, que continuaria patinando e simplesmente ficariam derrapando estrada acima, a cento e vinte por hora, até chegarem a um trecho nu, onde capotariam.

O Camaro, no entanto, conseguiu equilibrar-se.

— Deus do céu, diminua! — uivou Richie.

Buddy debruçou-se sobre o volante, careteando por entre a barba, arregalados os olhos injetados. A garrafa de Driver estava presa entre suas pernas. Vamos! Vamos, seu assassino louco filho da mãe! Vamos ver se consegue fazer o mesmo, sem capotar!

Um momento mais tarde, os faróis reapareceram, mais perto do que nunca. O riso careteado de Buddy vacilou e desapareceu. Pela primeira vez, sentiu um doentio formigamento subindo pelas pernas até as virilhas. Medo — medo de verdade — o envolveu por completo.

Bobby ficara olhando para trás, quando o carro atrás deles fazia a curva, depois se virou para diante, o rosto atônito, incrédulo.

— Ele nem mesmo derrapou — disse. — É impossível! Isso é...

— Quem será, Buddy? — perguntou Richie.

Estendeu o braço para tocar o cotovelo de Buddy, e sua mão foi empurrada com tal força que os nós dos dedos se chocaram contra sua janela.

— Não vai querer me tocar — sussurrou Buddy. A estrada se desenrolava reta à frente dele, não de asfalto escuro, mas branca pela neve compacta e traiçoeira. O Camaro rodava sobre tal superfície escorregadia a uns cento e quarenta por hora. Entre as margens que chegavam à altura do peito, eram visíveis apenas seu teto e a bola alaranjada de pingue-pongue, espetada no topo da antena do rádio. — Não vai querer me tocar, Richie. Não a esta velocidade!

— Será que ele é... — a voz de Richie vacilou e ele não pôde continuar.

Buddy concedeu-lhe um olhar. O terror de Richie lhe subiu à garganta, quente e viscoso como óleo, ao ver o medo nos pequeninos olhos avermelhados do companheiro.

— Sim — respondeu Buddy. — Acho que é.

Ali em cima não havia casas; já se achavam em propriedades do Estado. Nada ali em cima, exceto as altas margens nevadas e o escuro entrelaçamento das árvores.

— Ele vai bater na gente! — guinchou Bobby, no assento traseiro. Sua voz era estridente como a de uma velha. Entre seus pés, as garrafas remanescentes de Texas Driver chocalharam furiosamente em sua caixa de papelão. — Buddy! Ele vai bater na gente!

O carro atrás deles chegara a uns dois metros do pára-choque traseiro do Camaro; este era inundado pelos faróis altos do outro com uma luz tão potente que seria possível ler-se as menores letras impressas em um jornal. Pouco depois, houve um baque surdo.

O Camaro ziguezagueou na estrada, enquanto o outro carro ficava ligeiramente para trás. Buddy teve a sensação de que flutuavam repentinamente e soube que estavam por um fio de uma terrível derrapagem, a frente e a traseira deslizando com rapidez pela superfície, até se chocarem contra algo e capotarem.

Uma gota de suor, quente e ardente como uma lágrima, resvalou para dentro de um olho.

Pouco a pouco, o Camaro voltou a equilibrar-se.

Quando sentiu que recuperara o controle, Buddy deixou o pé direito comprimir maciamente o acelerador, até o fundo. Se era Cunningham, naquela banheira enferrujada 58 — Ah! Aquilo não fizera parte dos sonhos de que mal conseguia lembrar-se? — o Camaro o fecharia.

O motor agora trovejava. A agulha do tacômetro voltara a beirar a linha vermelha, em 7.000 rotações por minuto. O velocímetro passara a marca dos cento e sessenta e as margens geladas e altas da estrada desfilavam por eles em fantasmagórico silêncio. A estrada à frente assemelhava-se à tomada de um filme em ponto de vista que fora insanamente acelerado.

— Oh, meu Deus — balbuciava Bobby —, oh, meu Deus, por favor, não deixe que eu morra, oh, meu Deus, por favor...

Ele não estava lá na noite que arrebentamos o carro do Cara de Cona, pensou Buddy. Ele nem mesmo sabia o que estava acontecendo. Pobre filho da mãe, sem sorte. Ele não lamentava realmente por Bobby, mas se lhe fosse possível ter pena de alguém, seria daquele pobre calouro com merda na cabeça. À sua direita, Richie Trelawney sentava-se rígido e pálido como uma lousa de sepultura, os olhos ressaltando-se no rosto. Richie sabia bem do que se tratava.

O carro murmurou atrás e para eles, os faróis crescendo no espelho retrovisor.

Ele não pode estar ganhando!, gritou a mente de Buddy. Não pode! No entanto, o carro atrás dele ganhava velocidade e Buddy pressentiu que se preparava para o ato final. Sua mente correu como um rato engaiolado, à procura de uma saída, sem que houvesse alguma. A fenda na margem esquerda, coberta de neve, marcando a pequena estrada lateral que ele geralmente usava para ultrapassar o portão e entrar no parque estadual já estava à vista. No entanto, Buddy estava com o tempo, espaço e opções esgotados.

Houve outro baque macio e, novamente, o Camaro ziguezagueou — agora a uma velocidade acima de cento e setenta e cinco. Não há esperança, cara, pensou Buddy, fatalisticamente. Tirou as duas mãos do volante e agarrou seu cinto de segurança. Pela primeira vez na vida, Buddy o colocou em torno da cintura.

Ao mesmo tempo, no assento traseiro, Bobby Stanton gritava, em um guincho do mais puro pânico:

— O portão, cara! Oh, meu Deus, Buddy, a casinholaaaaaaa...

O Camaro tinha arrostado uma final e íngreme subida. O lado mais distante serpenteava para um ponto em que a estrada se bifurcava, formando a entrada e saída do parque estadual. Entre as duas vias, levantava-se uma pequena casinhola de porteiro em uma ilha de concreto — na época do verão, uma senhora permanecia ali, em uma cadeira de campanha, cobrando um dólar de cada carro que entrava no parque.

Agora, a casinhola era inundada de espectral claridade, quando os dois carros desceram para ela, o Camaro encaminhando-se firmemente para a passagem, quando a derrapagem piorava.

— Foda-se, Cara de Cona! — gritou ele. — Fodam-se! Você e o cavalo que está montando! Buddy torceu todo o volante, girando-o pela maçaneta auxiliar que exibia um oscilante vermelho tinto em álcool.

Bobby tornou a gritar. Richie Trelawney aferrou o rosto com as mãos e seu último pensamento na terra foi uma constante repetição de Cuidado com vidro quebrado cuidado com vidro quebrado cuidado com vidro quebrado...

O Camaro deu uma volta completa sobre si mesmo, e agora os faróis do carro que o seguia fulguraram diretamente neles, e Buddy começou a gritar, porque era realmente o carro de Cara de Cona, seria impossível enganar-se quanto àquela grade do radiador, ela parecia ter pelo menos um quilômetro de comprimento, só que não havia ninguém ao volante. O carro estava absolutamente vazio.

Nos últimos dois segundos antes do impacto, os faróis de Christine se desviaram para o que agora era a esquerda do carro de Buddy. O Fury disparou para a via de entrada, tão firme e certeiramente como uma bala disparada de um rifle. Chocou-se contra a barreira de madeira e a enviou girando e girando pela noite escura, os redondos refletores amarelos cintilando no negror noturno.

O Camaro de Buddy Repperton bateu de traseira na ilha de concreto em que se levantava a casinhola do porteiro. A beirada de concreto, com vinte centímetros, arrancou tudo que encontrou debaixo do carro, deixando os torcidos destroços de canos de descarga e do silencioso sobre a neve, como alguma curiosa escultura. A traseira do Camaro primeiro ficou encolhida como uma sanfona, para então ser demolida. Bobby Stanton foi demolido juntamente com ela. Buddy mal tomou consciência de algo batendo em suas costas, como um balde de água tépida. Era o sangue de Bobby Stanton.

O Camaro rodopiou no ar, como um estropiado projétil, em uma confusão de fragmentos voadores e pisos estilhaçados, um farol ainda brilhando maniacamente. Desenhou um sessenta e três completo, para então cair com um baque estrondoso de vidros fragmentados a rolar sobre si mesmo. A parte lateral se soltou e o motor deslizou para trás, em um ângulo que esmagou Richie Trelawney, da cintura para baixo. Houve uma repentina explosão de fogo, que brotou do tanque de gasolina arrebentado, quando o Camaro finalmente pousou no chão.

Buddy Repperton estava vivo. Havia sido cortado em várias partes por vidros esvoaçantes — uma orelha fora decepada com precisão cirúrgica, deixando um buraco vermelho no lado esquerdo da cabeça — e uma perna estava quebrada, mas ele continuava vivo. Seu cinto de segurança o salvara. Manuseou o fecho e ele cedeu. O crepitar do fogo assemelhava-se a papel sendo amassado. Ele pôde sentir o ardente calor.

Tentou abrir a porta mas emperrara.

Ofegando roucamente, atirou-se pelo espaço vazio onde estivera o vidro da janela...

... e lá estava Christine.

O Plymouth parara a uns quarenta metros de distância, enfrentando-o no final de uma longa e deslizante marca de derrapagem. O ruído do motor era como o lento ofegar de algum gigantesco animal.

Buddy passou a língua pelos lábios. Algo em seu lado esquerdo repuxava e apunhalava a cada respiração. Ali estava qualquer coisa desarranjada também. Costelas.

O motor de Christine acelerava e diminuía; acelerava e diminuía. Fracamente, como algo provindo de um pesadelo de lunático, Buddy pôde ouvir Elvis Presley cantando "Jailhouse Rock ".

Pontos laranja-rosados de luz na neve. O súbito e crescente crepitar do fogo. Aquilo ia explodir. Ia...

Explodiu. O tanque de gasolina do Camaro explodiu, com estrondoso ruído. Buddy sentiu uma rude mão empurrá-lo pelas costas e voou pelos ares, aterrissando na neve sobre seu lado ferido. Estava com o blusão em fogo. Grunhiu e rolou sobre a neve para apagá-lo. Depois tentou ficar sobre os joelhos. Atrás dele, o Camaro era uma pira ardente na noite.

O motor de Christine agora acelerava e diminuía, acelerava e diminuía, mais depressa, com maior urgência.

Buddy finalmente conseguiu ficar de gatinhas. Espiou para o Plymouth de Cunningham, através das mechas suadas de cabelo que lhe caíam sobre os olhos. O capô ficara ondulado, quando o carro investira contra a barreira e, do radiador, pingava uma mistura de água e anticongelante, que fumegava sobre a neve como a recente pegada de um animal.

Buddy tornou a passar a língua pelos lábios. Sentiu-os como a pele estorricada de um lagarto. Suas costas estavam quentes, como se estivessem sido razoavelmente queimadas pelo sol; podia sentir o cheiro de roupa chamuscada mas, na imensidão de seu choque, não percebia que tanto o blusão como as duas camisas por baixo dele não existiam mais.

— Escute — disse, mal percebendo que falava. — Ei, escute...

O motor de Christine rugiu, ao avançar para ele, a traseira rabeando, quando os pneus dançavam sobre a neve pulverizada. O capô ondulante era como uma bocarra em um gélido rosnado.

Buddy esperou, apoiado nas mãos e joelhos, resistindo ao incontrolável desejo de rolar e fugir imediatamente, resistindo — o mais que podia — ao pânico selvagem que destruía seu autocontrole. Ninguém no carro. Uma pessoa mais fantasista do que ele talvez enlouquecesse.

No último segundo possível, ele rolou para a esquerda, gritando quando as extremidades estilhaçadas do osso na perna quebrada bateram no chão. Sentiu algo como uma bala passar por ele a centímetros de distância, houve o calor e a fumaça da descarga, cuspida em seu rosto por um momento, e então a neve ficou vermelha, quando as lanternas traseiras de Christine piscaram.

O Plymouth manobrou, derrapando, para voltar à carga.

— Não! — gritou Buddy. A dor era dilacerante no peito. — Não! Não! N...!

Saltou, com cegos reflexos assumindo o controle e, desta vez, a bala passou mais perto, arrancando couro de um sapato e deixando seu pé esquerdo instantaneamente entorpecido. Ele se virou alucinadamente sobre as mãos e os joelhos, como um bebê de pouca idade. O sangue agora lhe escapava da boca, de mistura ao muco que escorria livremente do nariz; uma das costelas partidas penetrara em um pulmão. O sangue corria pela face, brotando do buraco na cabeça, onde estivera a orelha. O ar congelado saía em jatos pelo nariz. A respiração era feita entre sibilantes soluços.

Christine fez uma pausa.

Seu cano de descarga expeliu vapor branco; o motor latejava e ronronava. O pára-brisa era um espaço negro e opaco. Atrás de Buddy, os remanescentes do Camaro expeliam chamas oleosas para o céu. Um vento afiado como navalha as sacudia e abanava. Sentado no inferno do banco traseiro, Bobby Stanton tinha a cabeça de lado, uma careta endurecida na face que escurecia.

Está brincando comigo, pensou Buddy. Brincando comigo, eis o que esse carro está fazendo. De gato e rato.

— Por favor! — cacarejou ele. Os faróis dianteiros piscavam, transformando o sangue que lhe escorria pelo rosto e dos lados da boca em um negror próprio de isento. — Por favor... eu... vou dizer a ele que sinto muito... Ficarei diante dele sobre meus malditos joelhos e mãos, se é isso o que quer... mas, por favor... por fa...

O motor rugiu. Christine saltou para ele, como antiga predestinação de sombria era. Buddy gritou e tornou a girar de lado. Desta vez, o pára-choque bateu em sua carne, quebrou sua outra perna e o jogou para a frente da ribanceira, no lado da estrada do parque. Ele se chocou contra ela e esparramou-se, como um frouxo saco de cereal.

Christine rodou de volta para ele, mas Buddy entrevira uma chance, uma escassa oportunidade. Começou a subir penosamente a rampa, cavando na neve, com mãos nuas que já não possuíam qualquer sensação, escavando com os pés, ignorando as tremendas pontadas de dor nas pernas fraturadas. Agora, sua respiração vinha em pequenos gritos, enquanto os faróis ficavam mais brilhantes e aumentava o rugido do motor; cada punhado de neve atirava a própria sombra negra e deformada — e Buddy podia senti-lo, podia senti-lo atrás de si, como algum horrível tigre devorador de homens...

Houve um rangido e um som metálico. Buddy gritou, quando um de seus pés foi enterrado na neve pelo pára-choque de Christine. Arrancou-o da neve, mas deixando o sapato nas profundezas do buraco.

Rindo, balbuciando e chorando, Buddy chegou ao topo da rampa, amontoada ali por algum limpa-neves da Guarda Nacional, dias antes. Vacilou no pináculo, girou os braços para manter o equilíbrio e escapou por pouco de rolar pela ribanceira.

Virou-se para encarar Christine. O Plymouth manobrara na estrada e agora arremeda de novo, os pneus traseiros patinando, escavando a neve. Bateu contra a rampa, uns trinta centímetros abaixo do ponto em que Buddy se empoleirara, fazendo-o balançar e provocando uma pequena avalancha de neve. O choque emperrou mais o pára-choque, mas Buddy não foi tocado. Christine deu marcha à ré de novo, através de uma névoa de neve espumante, o motor agora parecendo rugir de frustrada cólera.

Buddy gritou em triunfo e fez um gesto obsceno para o carro, espetando o dedo médio no ar. Foda-se! Foda-se! Foda-se! Um spray de sangue e saliva voou de seus lábios. A cada arquejante respiração, a dor parecia mergulhar mais fundo em seu lado esquerdo, entorpecente e paralisante.

Christine rugiu para diante e tornou a colidir com o monte de neve.

Desta feita, uma boa porção da rampa, afrouxada pela primeira arremetida do carro, começou a deslizar para baixo, sepultando o franzido e rosnante focinho de Christine. Buddy quase veio abaixo também. Salvou-se apenas ao deslocar-se rapidamente para trás, deslizando sobre a barriga, puxando-se com mãos que se cravavam na neve como garras sangrentas. As pernas agora eram um agonizante sofrimento e ele ficou de lado, arquejando como um peixe na praia.

Christine atacou novamente.

— Saia daqui! — gritou Buddy. — Vá embora, maldita FILHA DA PUTA!

Ela tornou a colidir contra o monte de neve, agora com força suficiente para ficar com o capô coberto até o pára-brisa. Os limpadores entraram em ação, formando arcos para trás e para diante, expulsando neve derretida.

Christine tornou a dar marcha à ré, e Buddy percebeu que uma nova investida o faria cascatear para o capô do carro, juntamente com a neve derrubada. Deixou-se cair para trás do monte e foi rolando até o lado mais distante da rampa, gritando a cada vez que suas costelas quebradas batiam contra o solo. Parou finalmente sobre neve solta, olhando para o céu escuro, as estrelas frias. Seus dentes começaram a castanholar. Estremecimentos percorreram-lhe todo o corpo.

Christine não atacou novamente, mas ele podia ouvir o murmúrio macio de sua máquina. Não atacava, mas esperava.

Buddy olhou para o monte de neve, avolumando-se contra o céu. Um pouco além, o clarão do Camaro incendiado começara a diminuir um pouco. Quanto tempo se passara, desde a colisão? Ele não sabia. Seria possível alguém avistar o fogo e vir salvá-lo? Também não sabia responder.

Ele percebeu duas coisas simultaneamente: o sangue fluía de sua boca — fluía em uma quantidade assustadora — e estava sentindo muito frio. Ficaria congelado e morreria se não aparecesse alguém.

Tomado de medo, esforçou-se e, aos poucos, conseguiu ficar sentado. Tentava decidir se rastejaria até a estrada para espiar o carro — era pior ficar ali, sem vê-lo — quando olhou para o alto da ribanceira. Sua respiração ficou entrecortada, depois suspensa.

Havia um homem parado ali.

Só que não era bem um homem, era um cadáver. Um cadáver em decomposição, trajando calças verdes. Não tinha camisa, mas um colete ortopédico para as costas, manchado de bolor cinzento que envolvia seu torso escurecido. Ossos brancos reluziam através da pele repuxada do rosto.

— Você é um imbecil, seu bosta — sussurrou a aparição iluminada pelas estrelas.

Buddy perdeu o que lhe restava de controle e começou a gritar histericamente, os olhos esbugalhados, os cabelos compridos parecendo emaranhados em um grotesco capacete em tomo do rosto sangrento e sujo de fuligem, quando as raízes de cada fio se enrijeceram e eriçaram. O sangue lhe fluía da boca aos borbotões, encharcando o frangalho de gola que sobrara do blusão; ele tentou deslizar para trás, agarrando-se outra vez à neve com as mãos e escorregando de nádegas, quando a coisa veio em sua direção. Uma coisa sem olhos. Os olhos haviam desaparecido, comidos de sua face, só Deus sabia por quais contorcidas coisas. E ele podia sentir o cheiro daquilo, oh, Deus, sentia o cheiro e era um fedor de tomates podres, um fedor de morte.

O cadáver de Roland D. LeBay estendeu as mãos apodrecidas para Buddy Repperton e sorriu.

Buddy gritou. Buddy urrou. E de repente enrijeceu, seus lábios formando um O decisivo, contraídos como se quisesse beijar o horror que caminhava trôpego para ele. Suas mãos engalfinharam-se e arranharam o lado esquerdo de um farrapo do blusão, acima do coração, que finalmente fora perfurado pelo toco afiado de uma costela quebrada. Caiu para trás, os pés convulsos chutando montículos de neve, a última respiração exalada em um longo jato branco da boca frouxa... como a descarga de um automóvel.

Na ribanceira, a coisa que ele tinha visto piscou e desapareceu. Sem deixar rastros.

No extremo oposto, o motor de Christine ganhou intensidade, passando para um crepitante bramido do escapamento, como um berro de triunfo que reverberou nas severas terras altas cobertas de neve das Squantic Hills e depois ecoou de volta.

Na margem extrema do Lago Squantic, a uns quinze quilômetros dali, um jovem que saíra para uma corrida de esqui pelas montanhas, à luz das estrelas, ouviu o som e parou de repente, as mãos imobilizadas sobre os bastões e a cabeça de banda.

De repente, a pele de suas costas ficou inteiramente arrepiada, como se uma locomotiva houvesse acabado de passar sobre sua sepultura. E embora sabendo que aquilo era apenas um carro em alguma parte, na outra margem — nas noites invernais, ali o som era levado longe pelo vento —, seu primeiro pensamento foi de que algo pré-histórico havia despertado e perseguido a presa até o fim: um grande lobo — ou, talvez, um tigre dentes-de-sabre.

O som não se repetiu, e ele seguiu seu caminho.

 

Darnell Cogita

Meu bem, deixe-me rodar em seu automóvel

Ei, benzinho, deixe-me ir em seu automóvel!

Diga para mim, meu benzinho,

Diga-me: como se sente?

— Chester Burnett

 

Will Darnell ficou na garagem até depois de meia-noite, na noite em que Buddy Repperton e seus amigos encontraram-se com Christine, nas Squantic Hills. Seu enfisema havia piorado nesse dia, e quando piorava assim ele receava deitar-se, embora costumeiramente estivesse sempre predisposto a dormir.

O médico lhe dissera não haver a menor probabilidade de sufocamento e morte durante o sono, mas com a idade chegando e o enfisema lentamente aumentando a pressão em seus pulmões, o medo de Will ia crescendo. O fato de seu medo ser irracional, de nada adiantava. Embora ele não houvesse entrado em uma igreja de qualquer religião desde os doze anos de idade — há quarenta e nove anos —, ele ficara morbidamente interessado pelas circunstâncias que cercavam a morte do Papa João Paulo I, dez semanas antes. João Paulo havia morrido na cama, onde fora encontrado, pela manhã. Já com o corpo enrijecendo, provavelmente. Aquela era a parte que mais amedrontava Will: já enrijecendo, provavelmente.

Chegou à garagem às nove e meia da noite, dirigindo seu Chrysler Imperial 1966 — o último carro que pretendia possuir. Mais ou menos a essa mesma hora, Buddy Repperton percebia as fagulhas gêmeas de faróis distantes, em seu espelho retrovisor.

Will devia estar valendo mais de dois milhões de dólares, porém o dinheiro não lhe dava mais tanto prazer, se é que já dera. O dinheiro nem ao menos continuava parecendo totalmente real. Nada parecia real, exceto o enfisema. Aquilo era hediondamente real e Will acolhia, prazeroso, qualquer coisa que lhe afastasse a mente do assunto.

No momento, era o problema de Arnie Cunningham — isso afastara sua mente do enfisema. Supôs que tal acontecesse porque deixara Cunningham ficar por ali, quando todos os seus mais fortes instintos o aconselhavam a expulsar o garoto da garagem porque, de certa forma, ele era perigoso. Havia qualquer coisa acontecendo com Cunningham e o seu 58 refeito. Algo bem singular.

O garoto não estava ali nesta noite. Ele e todo o clube de xadrez do Ginásio de Libertyville estavam em Filadélfia, onde ficariam durante os três dias do Torneio de Outono dos Estados do Norte. Cunningham achara graça naquilo: estava muito mudado, não era mais o garoto cheio de espinhas e de olhos grandes que Buddy Repperton atacara, o garoto que Will prontamente (e erradamente) classificara como um bebê chorão e talvez um maldito veado.

Para só citar uma mudança, ele se tornara cínico.

Cunningham lhe dissera, na tarde da véspera, em seu escritório, enquanto fumava charutos (o garoto aprendera a gostar deles e Will duvidava que seus pais soubessem), que faltara a tantas reuniões do clube de xadrez que, segundo o regulamento, não continuava como membro. Slawson, o conselheiro estudantil, estava a par disso, mas fechava os olhos por interesse, até o final do Torneio dos Estados do Norte.

— Já perdi mais reuniões do que qualquer outro, mas também acontece que sou quem joga melhor, e o bosta sabe... — Arnie pestanejava e levara as duas mãos à parte inferior das costas, por um momento.

— Devia procurar um médico para uma olhada nisso — falou Will.

Arme piscou, de repente parecendo ter muito mais idade do que quase dezoito anos,

— Não preciso de mais nada além de uma boa trepada cristã, para estirar as vértebras.

— Quer dizer que você vai a Filadélfia?

Will ficara desapontado, muito embora estivesse se aproximando a folga para Cunningham; isto significava que teria de utilizar Jimmy Sykes nas próximas duas noites — e Jimmy não distinguia seu traseiro de um sorvete.

— Claro. Não vou perder três dias de sucesso — disse Arnie. Notando o rosto irritado de Will, sorriu. — Não se preocupe, cara. Isto aqui fechará para o Natal, todos os seus fregueses regulares estarão comprando brinquedos para os filhos, em vez de jogos de velas e carburadores. Este lugar vai virar um deserto até o ano que vem, e você sabe disso.

Aquilo era verdade, sem dúvida, mas Will não precisava que nenhum garoto petulante viesse lhe dizer.

— Quer ir a Albany para mim, depois que voltar? — perguntou. Arnie o estudou cuidadosamente.

— Quando?

— Este fim de semana.

— No sábado? — É.

— O que vai ser?

— Você levará meu Chrysler a Albany, aí está toda a maldita coisa. Henry Buck tem quatorze carros usados, limpos, e quer ver-se livre deles. Henry diz que são limpos. Dê uma espiada neles. Eu lhe darei um cheque em branco. Se parecerem bons, faça o negócio. Se parecerem fria, diga a ele para ir trepar com uma rosquinha.

— E o que vou estar levando?

Will o fitou por um longo momento.

— Está ficando com medo, Cunningham?

— Não. — Arnie esmagou a metade do charuto no cinzeiro. Olhou, para Will, defensivamente. — Talvez eu apenas ache que as coisas estão indo mais longe, a cada viagem que faço. É coca?

— Mandarei Jimmy fazer o serviço — disse Will brusco.

— Me diz apenas o que é.

— Duzentas embalagens de Winstons.

— Está legal.

— Tem certeza? Tem mesmo? Arnie riu.

— Será uma trégua do xadrez.

 

Will estacionou o Chrysler no boxe mais perto de seu gabinete, o que tinha SR. DARNELL — NÃO BLOQUEIE! pintado dentro de seus limites. Saiu e bateu a porta, arquejante, lutando para respirar. O enfisema estava alojado em seu peito, e naquela noite parecia ter levado o irmão junto. Não, ele não se deitaria, pouco importando o que tivesse dito aquele doutor de merda.

Jimmy Sykes varria apaticamente, com uma enorme vassoura. Era alto e desengonçado, com vinte e cinco anos. Seu ligeiro retardo mental o fazia parecer uns oito anos mais novo. Começara a usar o cabelo no estilo ducktail, dos anos 50, imitando Cunningham, a quem idolatrava. Excetuando-se os fracos uissht, uissht, das cerdas da vassoura no concreto manchado de graxa, tudo ali dentro era silêncio. E solidão.

— Isto aqui está um bocado esquisito esta noite, não, Jimmy? comentou Will, com voz arquejante. Jimmy olhou em torno.

— Sim, Sr. Darnell. Ninguém apareceu, desde que o Sr. Hatch levou seu Fairlane, e isso.foi há meia hora atrás.

— Eu só estava brincando — disse Will, novamente desejando que Cunningham estivesse ali. Era impossível conversar com Jimmy, exceto em um nível de Ivo-viu-a-uva. Ainda assim, talvez o convidasse para uma xícara de café com Courvoisier para melhorar o sabor. Fariam um trio. Ele, Jimmy e o enfisema. Ou então uma quadra, uma vez que o enfisema trouxera o irmão aquela noite. — O que me diz de... de...

Interrompeu-se subitamente, notando que o boxe vinte estava vazio. Christine se fora.

— Arnie esteve aqui? — perguntou.

— Arnie? — repetiu Jimmy, piscando idiotamente.

— Arnie, Arnie Cunningham — disse Will impaciente. — Quantos Arnies você conhece? O carro dele não está aqui.

Jimmy relanceou os olhos em torno, até o boxe vinte.

— Oh, é mesmo. Will sorriu.

— O herói foi desbancado no bendito torneio de xadrez, hein?

— Oh, foi? — perguntou Jimmy. — Poxa, isso é ruim, não?

Will conteve o ímpeto de agarrar Jimmy, sacudi-lo e dar-lhe uns tapas. Bem, não ia se aborrecer, aquilo só contribuía para dificultar-lhe a respiração e acabaria tendo de encher os pulmões com aquele coisa de sabor horrível, de seu inalador.

— Bem, o que foi que ele disse, Jimmy? O que ele disse quando você o viu?

Will soube repentinamente, no entanto — com absoluta certeza — que Jimmy não tinha visto Arnie. Jimmy por fim entendeu o que Will pretendia.

— Oh, eu não vi o Arnie. Só vi Christine saindo pelo portão, se o senhor me entende. Rapaz, ficou um carrão, né? Ele consertou tudo como por encanto.

— Exato — concordou Will. — Como por encanto. — A palavra já lhe ocorrera antes, relacionada a Christine. De repente, mudou de idéia quanto a convidar Jimmy para um café com brandy. Ainda olhando para o boxe vinte, falou: — Pode ir para casa agora, Jimmy.

— Bem, Sr. Darnell, o senhor disse que eu ia trabalhar seis horas essa noite. E as seis horas só terminam às dez.

— Eu marco seu cartão às dez.

Os olhos estonteados de Jimmy iluminaram-se, ao ouvir aquela inesperada, quase inaudita generosidade.

— Fala sério?

— Exatamente. Falo sério. Seja bonzinho e dê o fora, Jimmy. Ok?

— É pra já — disse Jimmy, pensando que, pela primeira vez naqueles cinco ou seis anos que trabalhava para Will (era difícil saber o tempo correto, embora sua mãe estivesse a par de tudo, da mesma forma como sempre sabia sobre todos os seus pagamentos de impostos), o velho ogre se impregnava do espírito natalino. Como naquele filme sobre os três fantasmas. Acrescentando seu próprio espírito natalino, Jimmy exclamou: — Puxa, são uns bons quatorze minutos, chefinho!

Will pestanejou e caminhou pesadamente para seu escritório. Contornou a máquina de café e sentou-se atrás de sua mesa, espiando enquanto Jimmy guardava a vassoura, apagava a maioria das luzes fluorescentes que pendiam do teto e vestia seu pesado capote.

Will inclinou-se para trás e pensou.

Afinal de contas, seus miolos é que o tinham mantido vivo durante todos aqueles anos, vivo e sempre um passo à frente; jamais fora atraente, por toda a vida adulta foi gordo, com uma saúde sempre péssima. Em certa primavera de sua infância, a um acesso de escarlatina seguiu-se um caso brando de pólio, que o deixara com apenas uns setenta por cento da capacidade do braço direito. Quando jovem, suportava uma praga de furúnculos. Aos quarenta e três anos, seu médico descobrira uma grande excrescência esponjosa debaixo de um braço. Não era maligna, mas a remoção cirúrgica o mantivera na cama pela maior parte de um verão e, como resultado, tivera úlceras de decúbito. Um ano mais tarde, uma pneumonia dupla quase o matara. Agora, havia um diabetes incipiente e o enfisema. Não obstante, seu cérebro sempre permanecera excelente e alerta, um cérebro que o deixara sempre um passo à frente.

Reclinado em sua cadeira, ele pensou em Arnie. Supôs que uma das coisas que o tinham impressionado favoravelmente em Cunningham, após ele ter enfrentado Repperton naquele dia, era uma certa similaridade com o adolescente Will Darnell, de muitos anos antes. É lógico que Cunningham nada tinha de doente, mas sofrera com as espinhas, era hostilizado e solitário — três coisas que haviam sido reais, na vida do jovem Will Darnell.

Cunningham também tinha miolos.

Miolos e aquele carro. Aquele estranho carro.

— Boa noite, Sr. Darnell — disse Jimmy. Ficou parado à porta por um instante e então acrescentou, hesitante: — Feliz Natal.

Will ergueu a mão em um aceno de despedida. Jimmy saiu. Will ergueu o corpo volumoso da cadeira, apanhou a garrafa de Courvoiser em seu armário e a deixou perto da máquina de café. Depois tornou a sentar-se. Em sua mente desenrolava-se uma rudimentar cronologia.

Agosto: Cunningham aparece com um desmantelado Plymouth 58 e o deixa no boxe vinte. O carro parece familiar e, realmente, é familiar. Trata-se do Plymouth de LeBay. E Arnie não sabe — nem precisa saber — que, certa vez, Rollie LeBay também havia feito viagens ocasionais a Albany, Burlington ou Portsmouth para Will Darnell... com a diferença de que, naquela época remota, Will possuía um Cadillac 54. Carros diferentes para transporte e o mesmo porta-mala de fundo falso, com compartimento secreto destinado aos "fogos de artifício", cigarros, bebidas e maconha. Naquele tempo, Will nunca ouvira falar em cocaína. Supunha que apenas os músicos de jazz de Nova Iorque a tivessem.

Fins de agosto: Repperton e Cunningham entram em choque e Darnell expulsa Repperton. Está farto dele, de sua permanente fanfarronice, de estar sempre querendo bancar o galo do terreiro. Repperton tem infringido as normas e, embora fazendo para Nova Iorque e Nova Inglaterra todas as viagens que Will deseja, anda descuidado, e o descuido é perigoso. Ele mostra também tendência a correr demais, passando do limite legal, já tendo recebido multas por excesso de velocidade. Basta apenas um tira curioso e irão todos parar nos tribunais. Darnell não tem medo de ser preso — não em Libertyville —, mas isso o deixaria mal. Houve uma época em que pouco ligava para as aparências, mas agora está mais velho.

Will levantou-se, serviu-se de café e misturou uma dose de brandy. Fez uma pausa, refletiu no assunto e mediu uma segunda dose, com a tampa da garrafa. Sentou-se, tirou um charuto do bolso da camisa, contemplou-o e o acendeu. Foda-se, enfisema. Fique com isto.

A fragrante fumaça elevou-se em torno dele, e com o bom café quente com brandy à sua frente Darnell olhou para sua sombria e silenciosa garagem, cismando mais um pouco.

Setembro: O garoto pede que ele consiga um adesivo de inspeção e empreste uma chapa de matrícula de concessionário, para que possa levar a namorada a um jogo de futebol. Darnell concorda — diabo, houve uma época em que ele vendia um adesivo de inspeção por sete dólares e nem mesmo dava uma olhada no carro que o usaria. Além do mais, o carro do garoto está parecendo em condições. Um pouco precário, talvez, e também fazendo um bocado de barulho, mas afora isso dá uma excelente impressão. Cunningham tem feito um formidável trabalho de restauração no Plymouth.

E isso é francamente estranho, considerando-se que ninguém o viu trabalhando realmente no carro.

Bem, é verdade que ele fez pequenos reparos. Trocou lâmpadas de faroletes. Mudou pneus. O garoto nada tem de idiota quanto a carros: sentado nesta mesma cadeira, Will certo dia o viu trocar a forração do assento traseiro. Entretanto, ninguém o viu trabalhando no sistema de escapamento do carro, que era uma ruína total, quando ele chegou aqui com o 58, pela primeira vez, em fins do verão passado. Tampouco alguém o viu fazendo lanternagem, embora a lataria do Fury já apresentasse um caso avançado de câncer, quando o garoto o trouxe para a garagem. E, agora, ela está como que nova em folha.

Darnell sabia o que Jimmy Sykes pensava, porque o interrogara uma vez. Jimmy achava que Arnie fazia o trabalho mais difícil à noite, depois que todos iam embora.

— É muita mão-de-obra, para um maldito trabalho noturno — comentou Darnell, em voz alta.

De repente, sentiu um calafrio que nem mesmo o café com brandy conseguiu dissipar. Sim, era muita mão-de-obra noturna. Devia ter sido. Porque, durante o dia, o garoto parecia apenas ficar ouvindo a música melosa da WDIL. Isso e muita andança sem rumo ali dentro, indo de um lado para outro.

"Acho que ele faz o serviço sério à noite", tinha dito Jimmy, com a mesma ingênua confiança da criança explicando como Papai Noel desce pela chaminé ou como a fada-da-dentição coloca a moeda de vinte e cinco centavos debaixo de seu travesseiro. Will não acreditava em Papai Noel nem na fada-da-dentição, como tampouco acreditava que Arnie fizesse os reparos de Christine à noite.

Dois outros fatos incômodos rolaram por sua mente, como bolas de bilhar procurando uma caçapa para repousarem.

Uma das coisas, era seu conhecimento de que Arnie andara dirigindo o carro na parte dos fundos, muitas vezes, antes que fosse licenciado para o trânsito. Ficava apenas rodando lentamente, indo e vindo pelas estreitas alamedas entre os milhares de carros destroçados nos fundos da garagem do comprimento de um quarteirão. Rodando a dez quilômetros por hora, indo e vindo, indo e vindo, após o anoitecer, depois que todos tinham ido para casa, contornando o grande guindaste com o ímã redondo e a grande caixa do compressor de sucata. Rodando. Quando Darnell o interrogara a respeito, Arnie respondera que esteve checando uma trepidação na direção. A mentira, contudo, não convencia. Ninguém jamais checou trepidação na direção rodando a dez por hora.

Era aquilo que Cunningham fazia, quando todos tinham saído. Era aquele o seu trabalho noturno. Rodando nos fundos da garagem, abrindo caminho por entre o ferro-velho, os faróis piscando vacilantes, em seus encaixes comidos pela ferrugem.

Depois, havia o caso do odômetro. Girava para trás. Cunningham lhe apontara aquilo, com um leve sorriso acanhado. Rodava ao contrário e a uma velocidade extremamente rápida. Arnie lhe dissera imaginar que o odômetro recuava cerca de dez quilômetros para cada quilômetro realmente rodado. Will ficara francamente espantado. Já ouvira falar na regulagem recuada de odômetros, no negócio de carros usados, tendo ele próprio feito um bocado disso (além de encher transmissões com serragem para sufocar gemidos fatais e despejar caixas de aveia em radiadores nas últimas, a fim de obstruir temporariamente os vazamentos), mas nunca vira um odômetro rodar para trás espontaneamente. Julgava tal coisa impossível. Arnie se limitara a dar um breve e curioso sorriso, dizendo que devia ser algum defeito mecânico.

Era um defeito, claro, pensava Will. Um diabo de defeito!

Os dois pensamentos se entrechocaram indolentemente e rolaram em direções diferentes.

Rapaz, ficou um carrão, né? Ele consertou tudo como por encanto.

Will não acreditava em Papai Noel nem na fada-da-dentição, mas estava pronto a admitir que havia coisas bem estranhas no mundo. Um homem prático podia admiti-lo e até lançar mão disso, se pudesse. Um amigo seu, residindo em Los Angeles, alegara ter visto o fantasma da esposa, antes do grande terremoto de 67, e Will não tinha nenhum motivo em particular para duvidar da alegação (embora duvidasse completamente, se o amigo tivesse algo a ganhar com o ocorrido). Quent Youngerman, outro amigo, alegara ter visto o pai morto há muito tempo, parado ao pé de seu leito de hospital, depois que ele, Quent, um operário especializado em chapas de aço, sofrera uma terrível queda do quarto andar de um prédio em construção, na Wood Street.

Will passara a vida inteira ouvindo histórias semelhantes, como sem dúvida acontecia com quase todas as pessoas. E como provavelmente fazia a maioria dos racionais, ele as guardara em uma espécie de arquivo aberto, não acreditando nem desacreditando, a menos que o contador da história fosse um evidente lunático. Ele as punha naquele arquivo aberto porque ninguém sabia de onde a gente vinha, quando nascia, e ninguém sabia para onde a gente ia, quando morria. Nenhum ministro unitarista e .nenhum daqueles que bradavam o segundo nascimento de Jesus, nenhum papa ou cientista do mundo o convenceria do contrário. Só porque algumas pessoas eram fanáticas nesse assunto não queria dizer que soubessem alguma coisa. Fatos assim, ele deixava naquele arquivo aberto, porque jamais lhe sucedera algo realmente inexplicável.

Exceto, talvez, algo como o que acontecia agora.

Novembro: Repperton e seus amigos do peito fazem misérias com o carro de Cunningham, no aeroporto. Quando o Plymouth chega no caminhão-reboque, dá a impressão de que ficou inteiramente arruinado. Ao olhar para ele, Darnell pensa: Ele nunca mais tornará a rodar. Ponto final; nunca mais rodará dez centímetros. No fim do mês, o rapaz Welch é morto na estrada JFK.

Dezembro: Um detetive da Polícia Estadual começa a rondar por ali. Junkins. Fica rondando e, certo dia, fala com Cunningham. Depois, aparece outro dia, quando Cunningham não está lá, e quer saber se o garoto mente sobre a extensão do dano causado por Repperton e seus chapas (dos quais o falecido e não-pranteado Peter "Penetra" Welch era um) em seu Plymouth. Porque vem me perguntar, inquiriu Darnell arquejando e tossindo, através de uma nuvem de fumaça do charuto. Fale com ele, o maldito Plymouth é dele, não meu. Eu apenas dirijo este lugar para que trabalhadores mantenham seus carros rodando e continuem botando comida na mesa de suas famílias.

Junkins ouve o discurso pacientemente. Sabe que Darnell faz um bocado mais, além de dirigir uma garagem tipo faça-você-mesmo e um ferro-velho de automóveis. Entretanto, Darnell sabe que ele sabe, de modo que fica tudo bem.

Junkins acende um cigarro e diz: Vim perguntar a você, porque já falei com o garoto e ele não me contou. Por um instante, enquanto falava com ele, pensei que queria me dizer; tive a impressão de que está verde de medo por causa de alguma coisa. Então, pareceu mudar de idéia e ficou de boca fechada.

Darnell diz: Se está pensando que Arnie fez o serviço naquele rapaz, por que não diz logo?

Junkins responde: Não é o que estou pensando. Os pais dele disseram que o garoto estava em casa, dormindo. Não me pareceu que fosse uma mentira para protegê-lo. No entanto, Welch foi um dos caras que arrebentaram seu carro, temos absoluta certeza disso, como estou certo de que ele mente sobre a extensão do dano. Não sei por que ele mente, e é isso que está me deixando louco.

É uma pena, respondeu Darnell, sem senti-la em absoluto.

Junkins pergunta: Qual foi a extensão do dano, Sr. Darnell? Quero a sua opinião.

Darnell então diz sua primeira e única mentira, durante a entrevista com Junkins: Sequer saber, eu não reparei.

É claro que reparou, e ele sabe por que Arnie mente, tentando minimizar o fato. Aliás, este tira também saberia por que, se não fosse tão evidente que procurava pressionar, em vez de tentar ver as coisas. Cunningham mente porque o dano foi horrível, o dano foi muito pior do que este tira estadual possa imaginar. Aqueles bandidos não apenas arrebentaram o 58 de Cunningham, acabaram com ele. Cunningham mente porque, embora ninguém o visse trabalhando muito, durante a semana após o caminhão-reboque trazer Christine de volta ao boxe vinte, o carro estava praticamente como novo — ainda melhor do que estivera antes.

Cunningham mentiu para o tira, porque a verdade era inacreditável.

— Inacreditável — repetiu Darnell em voz alta, e bebeu o resto de seu café.

Olhou para o telefone, estendeu o braço para ele, mas depois desistiu. Tinha uma ligação a fazer, mas era melhor terminar a análise daquilo primeiro — ter todos os seus patos enfileirados.

Ele próprio era o único (além de Cunningham, é claro) que poderia avaliar como era incrível o que tinha acontecido: a completa e total regeneração do carro! Jimmy tinha o miolo mole e os outros sujeitos iam e vinham, nenhum deles sendo um freguês regular. Houve, porém, comentários sobre o trabalho espetacular que Cunningham havia feito; vários caras que tinham feito reparos em seus veículos, naquela semana de novembro, tinham usado a palavra incrível. Vários deles também pareciam inquietos. Johnny Pomberton, que comprava e vendia caminhões usados, naquela semana estivera tentando colocar em condições de rodar uma velharia que adquirira. Johnny entendia de automóveis e caminhões melhor do que qualquer um em Libertyville, talvez em toda a Pensilvânia. Comentara com Will, franca e abertamente, que não podia acreditar naquilo. É como vodu, tinha dito Johnny Pomberton, dando em seguida uma risada sem graça. Will se limitara a ficar quieto, parecendo polidamente interessado. Após um ou dois segundos, o velho meneou a cabeça e afastou-se.

Sentado em seu escritório e contemplando a garagem, espectralmente silenciosa, no fraco período anual das semanas anteriores ao Natal, Will refletiu (não pela primeira vez) que quase todas as pessoas aceitariam qualquer coisa que viesse acontecer debaixo dos próprios olhos. Em um sentido bastante real, nada havia de sobrenatural ou anormal: o que acontecera, acontecera, e ponto final.

 

Jimmy Sykes: Como por encanto.

Junkins: Ele mente a respeito, mas raios me partam se eu sei por quê.

Will puxou a gaveta de sua mesa, comprimindo sua volumosa barriga, e encontrou a agenda para 1978. Folheou-a até achar o lembrete, em sua própria caligrafia garatujada: Cunningham. Torneio de xadrez. Philly Sheraton 11-13 dez.

Ligou para a telefonista de auxílio, conseguiu o número do hotel e fez a chamada. Não ficou muito surpreso, ao sentir as pulsações cardíacas aumentarem de ritmo quando o telefone tocou e o atendente da recepção o atendeu.

Como por encanto.

Alô? Filadélfia Sheraton.

— Alô — disse Will. — Parece que vocês estão realizando um torneio de xadrez aí, e...

— Torneio dos Estados do Norte, senhor — interrompeu o atendente. Parecia ativo e quase insuportavelmente jovem.

— Estou ligando de Libertyville, Pensilvânia — disse Will. — Suponho que aí se hospeda um estudante do ginásio daqui, chamado Arnold Cunningham. É um dos rapazes do torneio de xadrez. Gostaria de falar com ele, se for possível.

— Um momento, senhor, enquanto verifico.

Clunk. Will teria que esperar. Recostou-se em sua cadeira de molas e ficou assim pelo que lhe pareceu muito tempo, embora o ponteiro vermelho de segundos no relógio do escritório só tivesse feito uma volta. Ele não vai estar lá e, se estiver, como a minha...

— Alô?

A voz era jovem, um tanto curiosa e indiscutivelmente de Cunningham. Will Darnell sentiu uma reviravolta peculiar na barriga, mas nada se revelou em sua voz, era velho demais para isso.

— Oi, Cunningham — disse. — É Darnell.

— Will?

— Hã-hã.

— O que deseja, Will?

— Como está se saindo, garoto?

— Ganhei ontem e perdi hoje. Um jogo bobo, mas não conseguia ficar atento a ele. O que há?

Sim, era Cunningham — ele mesmo, sem sombra de dúvida.

Will jamais ligaria para alguém sem um bom motivo ou um pretexto para proteger-se, a fim de não ser apanhado desprevenido. Disse tranqüilamente:

— Tem um lápis aí, garoto?

— Claro.

— Há uma firma na North Broad Street, United Auto Parts. Será que poderia ir até lá e ver o que eles têm, em matéria de pneus?

— Recauchutados? — perguntou Arnie.

— De primeira mão.

— Tudo bem, darei uma passada. Estarei livre amanhã, do meio-dia às três da tarde.

— Ótimo. Pergunte por Roy Mustungerra e diga meu nome.

— Soletre isso.

Will soletrou o nome.

— É tudo?

— Sim, tudo... ah, faço votos para que vá a forra.

— Há uma boa chance — disse Cunningham, e riu.

Will despediu-se e desligou. Era Cunningham, não havia a menor sombra de dúvida quanto a isso. Cunningham estava em Filadélfia esta noite — e Filadélfia ficava a quase quinhentos quilômetros de distância.

A quem ele teria fornecido chaves extras do carro?

O garoto Guilder.

Claro! Só que o garoto Guilder estava no hospital.

Sua namorada.

Bem, ela não tinha carteira de motorista, nem mesmo permissão para dirigir. Arnie lhe contara.

Alguém mais.

Não havia mais ninguém. Ninguém mais era íntimo de Cunningham, além do próprio Will — e Will sabia muito bem que ele nunca lhe dera uma duplicata das chaves.

Como por encanto.

Merda!

Will reclinou-se novamente em sua cadeira e acendeu outro charuto. Enquanto fumava, com a ponta caprichosamente cortada pouco antes caída no cinzeiro, ele ergueu os olhos para a fumaça flutuante, e mergulhou em profundas cogitações. Não conseguia entender. Cunningham estava em Filadélfia e seguira para lá no ônibus da escola, mas seu carro sumira da garagem. Jimmy Sykes o vira saindo, mas sem ver quem o dirigia. Francamente, o que significava tudo aquilo? O que acrescentaria aos fatos?

Aos poucos, sua mente se foi desviando para outros canais. Will recordou os próprios dias escolares, quando tivera o papel principal na peça encenada pelos veteranos do ginásio. Will fazia o sacerdote que é levado ao suicídio pela luxúria que sentia por Sadie Thompson, a jovem que pretendia salvar. Sua representação foi delirantemente aplaudida. Aquele havia sido seu único momento de glória, em uma vida ginasiana desprovida de vitórias esportivas ou acadêmicas, talvez até mesmo o ponto alto de sua juventude. O pai de Will era um bêbado, sua mãe uma criada, o único irmão um vagabundo, cujo momento de glória acontecera em algum ponto da Alemanha, seu único aplauso o firme martelar do fogo dos canhões alemães.

Will pensou em sua única namorada, uma pálida loura chamada Wanda Haskins, cujas bochechas alvas eram pontilhadas de sardas, dolorosamente profusas ao sol de agosto. Era quase certo que se teriam casado — Wanda fora uma entre as quatro jovens com quem Will Darnell trepara (ele excluía as prostitutas da contagem). Sem dúvida, era a única que chegara a amar (sempre supondo que isso existisse — e, como em relação aos eventos sobrenaturais de que ouvia falar às vezes, que, porém, jamais testemunhara, podia duvidar de sua existência, não podia refutá-la), mas o pai dela era do Exército e Wanda havia sido uma cria do Exército. Aos quinze anos — talvez faltando apenas um para a mística divisão de equilíbrio do poder, das mãos dos velhos para as dos novos — ela e a família se mudaram para Wichita, o que significou o fim do romance.

Havia um certo batom que ela usava e, naquele tão distante verão de 1934, tivera um sabor de framboesas frescas para Will Darnell, então ainda um jovem bastante esguio, ambicioso e de olhos límpidos. Tinha sido um sabor que fizera a mão esquerda avançar para a ereta e entusiástica base do pênis no meio da noite... e, mesmo antes de Wanda Haskins consentir, os dois haviam dançado aquela doce e especial melodia nos sonhos de Will Darnell. Sim, haviam dançado na cama estreita de rapazinho, demasiado pequena para suas pernas em crescimento.

E agora pensando naquela dança, Will parou de cogitar e começou a sonhar. Então, cessando dê sonhar, começou a dançar novamente.

 

Despertou de um sono que não chegara de fato a ser profundo, umas três horas mais tarde; foi acordado pelo ruído da enorme porta da garagem subindo barulhentamente e também pela claridade da luz interna acima da porta — não fluorescente, mas uma lâmpada fortíssima de 200 velas — que se acendera.

Will fez a cadeira voltar rapidamente à posição normal. Seus sapatos bateram contra o tapete embaixo da escrivaninha (com o nome BARDAHL escrito nele, em letras salientes de borracha) e foi mais o choque de agulhadas e alfinetadas nos pés, acima de qualquer outra coisa, que o despertou completamente.

Christine se movia lentamente, cruzando a garagem em direção ao boxe vinte, para o qual se esgueirou.

Naquele momento, ainda não de todo convencido de que despertara, Will a observou com curiosa falta de excitamento, algo que talvez só aconteça àqueles convocados diretamente de seus sonhos. Sentou-se ereto atrás da mesa, os braços semelhantes a presuntos, plantados sobre seu sujo e rabiscado mata-borrão — e ficou espiando.

O motor acelerou uma, duas vezes. O novo e reluzente cano de descarga expeliu fumaça azul.

Então, o motor parou.

Will continuou sentado, sem se mover.

Sua porta estava trancada, mas havia um intercomunicador, sempre ligado, entre o escritório e a comprida área da garagem, semelhante a um celeiro. Por aquele mesmo intercomunicador, ele ouvira o início da luta entre Cunningham e Repperton, disputando o título, no agosto passado. E pelo intercomunicador ele agora ouvia o tiquetaquear metálico do motor esfriando. Nada mais ouviu.

Ninguém saiu do Christine, porque não havia ninguém para sair.

Ele colocava coisas assim em um arquivo aberto, porque jamais lhe sucedera algo realmente inexplicável... exceto, talvez, algo como o que acontecia agora.

Will vira Christine cruzar o piso de cimento até o boxe vinte, a porta automática chocalhando ao fechar-se contra a fria noite de dezembro do exterior. Examinando o caso mais tarde, peritos poderiam dizer: A testemunha admite que cochilou e depois adormeceu, admite que estava sonhando... o que alega ter visto, evidentemente nada mais era do que uma extensão de seu sonho, um estímulo externo provocando uma faixa subjetiva de imagens provenientes do sonho...

Sim, eles poderiam dizer isso, da mesma forma como Will poderia sonhar que dançava com Wanda Haskins, uma jovem de quinze anos... mas na realidade era um homem de cabeça firme, com sessenta e um anos, um homem que, havia muito, se alijara de quaisquer atitudes românticas.

E ele tinha visto o 58 de Cunningham deslizar através da garagem vazia, o volante movendo-se sozinho, quando o carro se dirigiu para seu boxe costumeiro. Ele tinha visto os faróis se apagarem e ouvira o motor de 8 cilindros, quando morrera.

Agora, sentindo-se estranhamente sem ossos, Will Darnell levantou-se, vacilou, foi até a porta do escritório, tornou a vacilar, para depois abri-la. Saiu e caminhou à frente das filas de carros estacionados obliquamente, até o boxe vinte. Suas pisadas ecoavam atrás dele e depois extinguiam-se em mistério.

Ficou parado ao lado do carro, com sua carroceria pintada em dois tons vivos, vermelho e branco. O trabalho de pintura era cuidadoso, limpo e perfeito, sem a menor mácula de um diminuto defeito ou o mais leve toque de ferrugem. O vidro estava imaculado e intacto, não havendo nele uma só ligeiríssima arranhadura, causada por um fragmento de pedra que voasse ao acaso.

O único som ouvido agora era o lento gotejar da neve derretida, pingando dos pára-choques traseiro e dianteiro.

Will tocou o capô. Estava quente.

Experimentou a porta ao lado do motorista e ela se abriu sem dificuldade. O cheiro que veio do interior foi um agradável odor de couro novo, plástico novo e novos cromados — exceto que parecia haver um outro cheiro, mais desagradável, por sob aquele. Um cheiro de terra. Will aspirou fundo, mas não conseguiu classificá-lo. Pensou brevemente em nabos velhos, nos depósitos para vegetais que seu pai tinha no porão, e seu nariz se franziu.

Inclinou-se. Não havia chaves na ignição. O odômetro marcava 52.107,8.

De repente, a fenda vazia da ignição, incrustada no painel de instrumento, começou a girar. Por si mesma, a fenda negra passou de ACC para START. O motor aquecido pegou imediatamente e funcionou com firmeza, repleto de alegre potência de alta octanagem.

O coração de Will titubeou em seu peito. A respiração ficou presa. Ofegando e tossindo ruidosamente em busca de ar, apressou-se a voltar ao escritório, a fim de usar o inalador sobressalente, que tinha em uma gaveta da mesa. Insuficiente e impotente, sua respiração soava como vento de inverno, passando por baixo da fresta de uma porta. Seu rosto adquirira um tom de vela antiga. Os dedos aferraram a carne mole da garganta e a puxaram incessantemente.

O motor de Christine parou novamente.

Não houve mais nenhum som, além do tiquetaquear do metal esfriando.

Will encontrou o inalador, enfiou-o fundo na garganta, apertou o disparador e aspirou. Pouco a pouco, a sensação de que havia sobre seu peito um carrinho de mão carregado de blocos de cimento dissipou-se. Sentando-se em sua cadeira giratória, ele ouviu agradecido o saudável e esperado rangido de protesto das molas. Cobriu o rosto momentaneamente com as mãos gordas.

Nada realmente inexplicável... até agora.

Ele vira.

Ninguém estivera dirigindo aquele carro. Ele chegara à garagem vazio, cheirando a algo parecido com nabos apodrecendo.

Ainda assim, a despeito de seu terror, a mente de Will começou a trabalhar e ele se perguntou como poderia usar o que sabia, em seu próprio benefício.

 

Desfazendo Conexões

Bem, mister, quero um conversível amarelo.

Um DeVille quatro portas,

Com rodas raiadas cromadas

E um estepe Continental.

Com potente direção,

E freios também potentes;

Quero um motor poderoso,

Com decolagem a jato...

Quero um rádio de ondas-curtas,

Quero TV e telefone,

Entenda, é pra falar com meu bem

Quando eu rodar por aí.

— Chuck Berry

 

Os restos carbonizados do Camaro de Buddy Repperton foram encontrados no final da tarde da quarta-feira, por um guarda do parque. Uma senhora idosa, que morava com o marido na cidadezinha de Upper Squantic, telefonara para o posto dos guardas, na margem do lago que dava para o parque.

Segundo ela, sofria demais de artrite e, às vezes, não conseguia dormir. Na noite anterior, julgara ter visto chamas partindo das proximidades do portão sul do parque. A que horas? Ela admitiu ter sido por volta de quinze para as dez, porque estivera vendo o Filme da Noite de Terça-feira, na CBS, e o filme ainda não passara da metade.

Na quinta-feira, uma foto do carro queimado apareceu na primeira página do Keystone de Libertyville, abaixo de uma manchete que dizia: TRÊS MORTOS EM ACIDENTE DE AUTOMÓVEL NO PARQUE ESTADUAL DAS SQUANTIC HILLS. Era mencionada uma fonte da Polícia Estadual como tendo dito que: "A bebida provavelmente fora um fator" — uma forma oficialmente opaca de dizer que os remanescentes estilhaçados de mais de meia dúzia de garrafas contendo uma mistura de uísque e vinho, vendida sob o nome de Texas Driver, haviam sido encontrados no local do acidente.

A notícia foi um impacto particularmente rude no Ginásio de Libertyville; os jovens sempre sentem a maior dificuldade em aceitar informações desagradáveis sobre a própria mortalidade. E a temporada de férias talvez tornasse o golpe ainda mais duro.

Arnie Cunningham ficou terrivelmente deprimido com o fato. Deprimido e amedrontado. Primeiro, "Penetra"; agora, Buddy, Richie Trelawney e Bobby Stanton. Bobby Stanton, um infeliz calouro do qual nunca ouvira falar — o que um novato como esse tinha de estar fazendo em companhia de sujeitos como Buddy Repperton e Richie Trelawney? Não saberia que estava se aventurando em um cova de tigres, sem maior proteção além de uma pistolinha de esguichar água? Achou inexplicavelmente difícil aceitar a versão transmitida pelos boatos, segundo a qual Buddy e seus amigos tinham apenas ficado muito desiludidos com o jogo de basquete e haviam saído de carro, rodando e bebendo, até encontrarem o amargo fim.

Arnie não conseguia livrar-se da sensação de que, de certa forma, estava envolvido naquilo.

Leigh parara de falar com ele desde a discussão. Ele não lhe telefonara — parte por orgulho, parte por vergonha e também esperando que ela ligasse primeiro, que tudo voltasse a ser como era... antes.

Antes de quê?, sussurrava sua mente. Bem, antes de ela quase ter morrido sufocada em seu carro, para início de conversa. Antes de você tentar agredir o cara que salvara a vida de Leigh.

Entretanto, Leigh queria que ele vendesse Christine. Algo simplesmente impossível... não era? Como podia fazer isso, depois de ter investido naquilo tanto tempo, esforço e sangue — sim, era verdade, inclusive lágrimas?

Era uma velha cantilena e não queria mais pensar nisso. O sinal encerrando as aulas daquela quinta-feira, que parecia interminável, soou finalmente, e ele saiu para o pátio de estacionamento dos estudantes — praticamente correu para lá — e quase mergulhou em Christine.

Ficou quieto, sentado ao volante, e soltou uma longa, trêmula respiração, espiando os primeiros flocos de neve de uma tarde perturbada caírem e rolarem através do capô reluzente. Procurou suas chaves, tirou-as do bolso e ligou Christine. O motor zumbiu confiantemente e ele começou a rodar, os pneus girando e esmagando a neve em camadas. Pensou que, eventualmente, precisaria colocar pneus para neve, mas a verdade é que Christine não parecia precisar deles. Ela possuía a melhor tração de todos os carros que já dirigira.

Arnie estendeu a mão para o botão do rádio e sintonizou a WDIL. Sheb Wooley cantava "O Púrpura Comedor de Gente". Aquilo conseguiu finalmente trazer um sorriso a seu rosto.

Apenas ficar ao volante de Christine, no controle, já fazia com que tudo parecesse melhor. Fazia com que tudo parecesse manobrável. A notícia de Repperton, Trelawney e o bostinha, morrendo daquele jeito, havia sido um terrível choque, sem dúvida. Após os ressentimentos do verão passado e daquele outono, era natural que ele se sentisse um tanto culpado. Entretanto, a verdade pura e simples é que estivera em Filadélfia. Nada tinha a ver com aquilo; era impossível.

De fato, vinha apenas se sentindo deprimido por coisas gerais. Dennis estava no hospital. Leigh se portava idiotamente — como se seu carro ficasse dotado de mãos e lhe empurrasse aquele pedaço de hambúrguer garganta abaixo, pelo amor de Deus! Além do mais, hoje tivera que deixar o clube de xadrez.

A pior parte disso, talvez houvesse sido a maneira como o Sr. Slawson, o conselheiro estudantil, aceitara sua decisão sem ao menos tentar dissuadi-lo. Arnie fornecera um punhado de desculpas sobre sua falta de tempo naquela época e como seria forçado a cortar algumas de suas atividades; o Sr. Slawson se limitara a concordar, dizendo: Ok, Arnie, continuaremos aqui, na Sala 30, caso você mude de idéia. O Sr. Slawson o fitara com seus olhos azuis desbotados, aumentados pelas lentes espessas dos óculos ao tamanho de repulsivos ovos cozidos, e neles havia algo — seria censura?

Talvez sim. Entretanto, o sujeito nem mesmo tentara persuadi-lo a ficar. Devia, pelo menos, tentar, porque Arnie era o melhor que o clube de xadrez do Ginásio de Libertyville tinha a oferecer, e Slawson sabia disso. Se houvesse tentado, talvez o fizesse mudar de idéia. A verdade é que agora tinha um pouco mais de tempo, já que Christine estava... estava...

O quê?

... bem, reconstituída de novo. Se o Sr. Slawson tivesse dito algo como: Ei, Arnie, não seja precipitado, vamos refletir um pouco, nós podemos usá-lo realmente. Se o Sr. Slawson tivesse dito qualquer coisa assim, claro, ele poderia reconsiderar. Só que não Slawson. Apenas nós continuaremos aqui, na Sala 30, caso mude de idéia... e blablablá e quac-quac-quac, aquele merda filho da mãe, um bosta igual aos outros. Não era sua a culpa, se o Ginásio de Libertyville fora derrotado nas semifinais. Ele ganhara quatro jogos antes disso e venceria nas finais, se tivesse tido uma chance. Barry Qualson e Mike Hicks, esses dois bostas é que tinham deitado tudo a perder; os dois jogavam xadrez como se talvez pensassem que Ruy Lopez era alguma nova marca de refrigerante ou coisa assim...

Ele rasgou a embalagem e o papel interno de uma goma de mascar, dobrou a goma dentro da boca, fez uma bolinha com o envoltório e a jogou com precisa pontaria no saquinho para lixo, pendurado ao cinzeiro de Christine. "Bem no traseiro do vagabundinho", murmurou e então sorriu. Era um sorriso duro, sem saliva. Mais acima, seus olhos se moveram incansavelmente de um lado para outro, observando com desconfiança um mundo cheio de motoristas loucos, pedestres idiotas e imbecilidade generalizada.

Arnie rodou sem rumo por Libertyville, os pensamentos continuando a fluir nessa suave paranóia, de modo amargamente confortador. O rádio transmitiu um fluxo sistemático de velhas melodias e, hoje, todas pareciam ser instrumentais — "Rebel Rouser", "Wild Weekend", "Telstar", o selvagem ritmo de Sandy Nelson em "Teen Beat", e "Rumble", por Linc Wray, o maior de todos eles. Suas costas o incomodavam, mas não muito. O tom sombrio da tarde intensificou-se brevemente para uma nuvem de neve cinza-escura. Ele acendeu os faróis e, com a mesma rapidez, a neve afinou-se e as nuvens se romperam, espalhando-se através de faixas ao sol invemal, distante e gelidamente belo do fim da tarde.

Arnie rodou em seu carro.

Ele despertou de seus pensamentos — agora sobre Repperton, que talvez chegara a um final perfeitamente justificável — e ficou chocado ao perceber que era quase seis e quinze, e escurecera. O Gino's Pizza aproximava-se pela esquerda, com seus pequenos trevos de néon verde cintilando no escuro. Arnie manobrou para junto do meio-fio e saiu. Começou a atravessar a rua, mas então percebeu que deixara as chaves de Christine na ignição.

Inclinou-se para apanhá-las... e, subitamente, o cheiro o assaltou, o cheiro sobre o qual Leigh lhe falara, o mesmo que ele negara.

Estava ali agora, como se houvesse saído quando ele deixara o carro — um cheiro forte de carne apodrecida, que levou água a seus olhos e lhe fechou a garganta. Arrancou as chaves e recuou, trêmulo, olhando para Christine com algo semelhante a horror.

Havia um cheiro, Arnie. Um cheiro horrível de podre... Você sabe do que estou falando.

Não, não faço a mínima idéia... está imaginando coisas, Leigh

Bem, se Leigh imaginava coisas, ele também.

Arnie se virou de repente e cruzou a rua até o Gino's, como se o demônio o perseguisse.

 

Lá dentro, ele pediu uma pizza que realmente não queria, trocou algumas moedas de vinte e cinco centavos por outras de dez e esgueirou-se para a cabine telefônica, ao lado da vitrola automática. A vitrola tocava uma barulhenta música do momento, que Arnie nunca ouvira antes.

Ligou primeiro para casa. Seu pai atendeu, em uma voz estranhamente apática — Arnie nunca ouvira Michael falar daquele jeito —, e sua inquietação aumentou. Seu pai parecia o Sr. Slawson. Aquela tarde e o começo de noite da quinta-feira começavam a ganhar tons marrons de pesadelo. Além das paredes envidraçadas da cabine, rostos estranhos passavam sonhadoramente à deriva, como balões soltos, nos quais alguém desenhara cruelmente rostos humanos. Deus trabalhando com um lápis mágico.

Bostas, pensou, desconexamente. Todos uma cambada de bostas!

— Olá, papai — disse vacilante. — Escute, eu... bem, acho que perdi a noção do tempo. Sinto muito.

— Está tudo bem — respondeu Michael. Sua voz era quase um zumbido e Arnie sentiu a própria inquietação aprofundar-se para algo semelhante ao medo. — Onde está você, na garagem?

— Não... bem, no Gino's. Gino's Pizza. Papai, você está bem? Parece um tanto esquisito.

— Estou ótimo — respondeu Michael. — Acabei de jogar seu jantar no triturador de lixo, sua mãe está chorando lá em cima e você comendo uma pizza. Estou ótimo. Aproveitando seu carro, Arnie?

A garganta de Arnie movimentou-se, mas não emitiu som algum.

— Papai — conseguiu dizer finalmente. — Acho que não está sendo muito justo.

— Creio que não estou mais muito interessado no que você considera justo ou não — disse Michael. — A princípio, talvez tivesse alguma justificativa para o seu comportamento. No último mês, entretanto, você se tornou alguém que não compreendo em absoluto, e está acontecendo algo que compreendo ainda menos. Sua mãe também não compreende, mas percebe, e isso a tem magoado profundamente. Sei que ela guarda para si mesma parte dessa mágoa, mas duvido que isso modifique a intensidade do sofrimento.

— Papai, eu apenas perdi a noção das horas! — exclamou Arnie. — Pare de fazer um drama de uma coisa tão insignificante!

— Esteve rodando por aí?

— Estive, mas...

— Já percebi que então é isso que costuma acontecer — disse Michael. — Virá para casa esta noite?

— Sim, vou mais cedo — disse Arnie. Passou a língua pelos lábios. — Vou apenas dar uma passada na garagem, porque tenho uma informação que Will me pediu para conseguir, quando estive em Filadélfia e...

— Desculpe, mas também não estou muito interessado nisso — respondeu Michael, em voz ainda polida, ferinamente apática.

— Oh — murmurou Arnie.

Estava muito assustado agora, quase tremendo.

— Arnie?

— Diga — sussurrou Arnie.

— O que está acontecendo?

— Não sei o que quer dizer.

— Tenha dó! Aquele detetive foi procurar-me em meu gabinete. Andou procurando Regina também. Deixou-a muito perturbada. Não creio que tivesse tal intenção, mas...

— O que foi dessa vez? — perguntou Arnie enfurecido. — Aquele filho da mãe, o que foi dessa vez? Eu vou...

— Vai o quê?

— Nada. — Arnie engoliu algo que tinha o sabor de um bolo de poeira. — O que foi dessa vez?

— Repperton — disse seu pai. — Repperton e aqueles outros dois rapazes. O que pensava que fosse? A situação geopolítica no Brasil?

— O que aconteceu a Repperton foi um acidente — disse Arnie. — Pelo amor de Deus, por que ele queria falar com você e mamãe, sobre uma coisa que foi um acidente?

— Eu não sei. — Michael Cunningham fez uma pausa. — Você sabe?

— Como iria saber? — gritou Arnie. — Eu estava em Filadélfia, como poderia saber de algo a respeito? Estava jogando xadrez, não... não... não fazendo outra coisa — terminou ele, em tom queixoso.

— Uma vez mais, Arnie — disse Michael Cunningham. — Está acontecendo alguma coisa? Arnie pensou no cheiro, naquele fedor intenso de podre. Leigh se sufocando, apertando a garganta,

ficando azulada. Ele lhe dera pancadas nas costas, porque é o que se faz, quando alguém se engasga, não havia isso de Manobra Heimlich, porque ainda não tinha sido inventada e, por outro lado, era como deveria terminar, só que não dentro do carro... na beira da estrada... em seus braços... Ele fechou os olhos e o mundo inteiro pareceu agitar-se, girar doentiamente.

— Arnie?

— Sim, está acontecendo algo — disse ele, através dos dentes fechados, sem abrir os olhos. — Nada mais do que um bando de pessoas me pressionando, porque finalmente consegui algo para mim, e consegui sozinho.

— Muito bem — disse seu pai, aquela voz sem brilho de novo recordando terrivelmente a do Sr. Slawson. — Estarei aqui, se quiser falar sobre isso. Sempre estive, embora talvez não desse a entendê-lo tão claramente como deveria. Não esqueça de beijar sua mãe quando voltar, Arnie.

— Claro, claro. Escute, pap... Clique.

Arnie ficou imóvel na cabine, ouvindo estupidamente o som do nada absoluto. Seu pai desligara. Não houve nem mesmo o som para discar, porque aquela era uma muda... fodida... cabine telefônica. Enfiou a mão no bolso e espalhou as moedas sobre a pequena prateleira metálica, onde poderia vê-las. Escolheu uma de dez centavos, quase a deixou cair e por fim a introduziu na fenda. Sentia-se nauseado e com calor. Tinha a sensação de que havia sido eficientemente repudiado.

Discou de cor o número de Leigh.

A Sra. Cabot atendeu, reconhecendo sua voz imediatamente. Sua agradável e um tanto sexy voz de venha-cá-seu-fascinante-estranho, em seguida se tornou dura ao telefone. Aquela voz lhe dizia que ele tivera sua última chance com ela e a deixara escapar.

— Leigh não quer falar com você e nem vê-lo — disse ela.

— Por favor, Sra. Cabot, se eu pudesse, ao menos...

— Creio que já fez o suficiente — respondeu friamente a mãe de Leigh. — Ela voltou para casa chorando, aquela noite, e tem chorado desde então. Passou por uma espécie de... experiência com você, da última vez que saíram juntos, e só peço a Deus que não tenha sido o que imaginei. Eu...

Arnie sentiu um riso histérico borbulhando dentro dele. Leigh quase morrera sufocada com um hambúrguer... e sua mãe receava que ele houvesse tentado violentá-la.

— Eu tenho que falar com ela, Sra. Cabot!

— Será melhor desistir.

Arnie procurou imaginar algo mais para dizer, algum meio de passar pelo dragão de guarda na entrada. Sentiu-se como um vendedor de escovas e vassouras tentando entrar e falar com a dona da casa. Sua língua não se moveu. Ele daria um péssimo vendedor. Logo ouviria aquele clique brusco e depois o silêncio imperturbável novamente.

Então, percebeu que o telefone mudava de mãos. A Sra. Cabot disse algo, em ríspido protesto, ao que Leigh respondeu de volta; as palavras eram demasiado baixas para que ele as captasse. Em seguida, a voz de Leigh.

— Arnie?

— Oi — disse ele. — Leigh, eu só queria telefonar para dizer-lhe quanto lamentei o...

— Está bem — disse Leigh. — Acredito e aceito suas desculpas, Arnie. Só que não quero... não posso mais sair com você. A menos que as coisas mudem.

— Peça-me algo fácil — sussurrou ele.

— É tudo quanto eu... — A voz dela ficou brusca, afastando-se ligeiramente do telefone. — Por favor, mamãe, pare de me dizer o que devo fazer! — A mãe dela disse algo que demonstrou seu descontentamento, houve uma pausa e novamente a voz de Leigh, baixa. — É tudo quanto posso dizer Arnie. Por mais estranho que possa parecer, continuo pensando que seu carro tentou me matar aquela noite. Não sei como isto poderia acontecer, mas por mais que pense no caso, não consigo mudar de idéia. Sei que foi como digo. Você entende, não?

— Desculpe falar assim, Leigh, mas nunca ouvi nada tão babaca. Christine é um carro! Pode soletrar isso? C-A-R-R-0, carro! Não é nada...

— Sim — respondeu ela, a voz agora tremulando em direção às lágrimas. — Esse carro o capturou, ela o pegou e acho que ninguém mais pode libertá-lo, senão você mesmo.

As costas dele pareceram despertar subitamente e começaram a latejar, enviando a dor em uma lancinante radiação que parecia ecoar e amplificar-se em sua cabeça.

— Não é verdade, Arnie?

Ele não respondeu, não podia responder.

— Livre-se desse carro — disse Leigh. — Por favor. Li o que aconteceu àquele Repperton, no jornal dessa manhã, e...

— O que eu tenho a ver com aquilo? — perguntou Arnie, em uma voz que parecia um grasnido. E, pela segunda vez: — Aquilo foi um acidente!

— Não sei o que foi. Talvez eu não queira saber. Enfim, não é mais conosco que estou preocupada. É com você, Arnie. Receio por você. Devia... não, você tem que se livrar desse carro.

Arnie sussurrou:

— Diga apenas que não vai me deixar, Leigh. Ok?

Agora, ela estava ainda mais perto das lágrimas — talvez até já estivesse chorando.

— Quero que me prometa, Arnie. Tem que prometer e depois cumprir. Então, nós... nós nos veremos. Prometa que vai se desfazer desse carro. É tudo o que quero de você, nada mais.

Ele fechou os olhos e viu Leigh caminhando para casa, de volta da escola. E, um quarteirão abaixo, estava Christine, indolentemente, junto ao meio-fio. Esperando por ela.

Abriu os olhos rapidamente, como se tivesse visto o demônio em um quarto escuro.

— Não posso fazer isso — respondeu.

— Então parece que não temos muito a conversar, concorda?

— Não! Não, ainda temos muito que falar. Nós...

— Adeus, Arnie. Vejo você na escola.

— Espere, Leigh!

Clique. E o mortal silêncio absoluto.

Um momento de fúria quase insana passou sobre ele. Teve um súbito e incontido impulso de girar o fone negro pelo fio, dando voltas e mais voltas acima da cabeça, como o laço de um gaúcho, estilhaçando os vidros da maldita câmara de tortura da cabine telefônica. Eles o abandonavam, todos eles. Os ratos desertando do navio que naufragava.

Você precisa estar decidido a ajudar-se, antes que alguém mais possa fazê-lo.

Mentira cretina! Eram ratos abandonando um navio que afundava. Nenhum deles, desde o bosta do Slawon, com seus grossos óculos de aros de chifre e seus esquisitos olhos de ovo cozido, àquele merda nojento do seu velho que estava tão saturado de trepar que devia dar uma navalha à puta com quem se casara e convidá-la a cortar fora a cona e àquela cadela barata em sua casa elegante com as pernas cruzadas porque talvez estivesse menstruada e por isso se engasgara com o maldito hambúrguer e àqueles bostas com seus malditos carros de luxo e os porta-malas cheios de tacos de golfe àqueles malditos funcionários que eu gostaria de entortar neste torno mecânico eu jogaria golfe com eles e encontraria o buraco certo para enfiar aquelas bolinhas brancas em você pode apostar seu traseiro nisto mas quando eu der o fora daqui ninguém vai me dizer o que fazer e tudo será à minha maneira minha minha minha minha minha MINHA...

Arnie caiu em si, repentinamente, assustado e de olhos arregalados, respirando com força. O que tinha acontecido com ele? Era como se alguém mais estivesse ali naquele momento, alguém com uma raiva louca da humanidade em geral.

Não apenas alguém mais. Era LeBay.

Não! Não é verdade, de maneira nenhuma!

A voz de Leigh: Não é verdade, Arnie?

De súbito, algo muito semelhante a uma visão surgiu em sua mente cansada e confusa. Estava ouvindo a voz de um sacerdote: Arnie, aceita esta mulher como sua..

Entretanto, não era em uma igreja; era um depósito de carros usados, com vividas e multicoloridas flâmulas de plástico agitadas por uma brisa persistente. Havia cadeiras de campanha dispostas no local. Era o depósito de Will Darnell, e Will estava a seu lado, na condição de padrinho. Não havia nenhuma garota a seu lado. Christine estacionara junto dele, cintilando em um sol de primavera, até mesmo seus flancos brancos pareciam reluzir.

A voz de seu pai: Está acontecendo alguma coisa?

A voz do pastor: Quem entrega esta mulher a este homem?

Roland D. LeBay se levantou de uma das cadeiras de campanha, como o esqueleto da proa de um navio fantasma, vindo do Hades. Sorria — e, pela primeira vez, Arnie viu quem estivera sentado ao lado dele: Buddy Repperton, Richie Trelawney, "Penetra" Welch. Richie Trelawney estava enegrecido e estorricado, faltando-lhe a maior parte dos cabelos. O sangue havia escorrido pelo queixo de Buddy Repperton e se coagulara em sua camisa, como hediondo vômito. O pior, no entanto, era "Penetra" Welch: fora estripado como uma sacola de lavanderia. Sorriam. Todos eles sorriam.

Eu, grasnou Roland D. LeBay. Sorriu, e uma língua, coberta do limo da sepultura, pendeu do buraco fedorento de sua boca. Eu a entrego, e ele tem o recibo como prova. Ela é toda dele. A cadela é o ás de espadas... e é toda dele.

Arnie percebeu que estava gemendo na cabine telefônica, com o fone aferrado ao peito. Fazendo um tremendo esforço, conseguiu evadir-se por completo da alucinação — visão, fosse lá o que fosse — e dominou-se.

Desta vez, quando quis recolher as moedas da prateleira, deixou metade delas cair ao chão. Enfiou dez centavos na fenda e folheou apressadamente o catálogo telefônico, até encontrar o número do hospital. Dennis. Dennis estaria lá, Dennis sempre estivera. Dennis não o abandonaria. Dennis o ajudaria.

A moça da mesa telefônica atendeu e ele pediu:

— Quarto 42, por favor.

A ligação foi feita. O telefone começou a tocar. Tocou... e tocou... e tocou. Quando ele já ia desistir, uma suave voz feminina perguntou:

— Segundo andar, ala C, com quem deseja falar?

— Guilder — disse Arnie. — Dennis Guilder.

— O Sr. Guilder se encontra na Fisioterapia neste momento — informou a voz feminina. — Poderá falar com ele às oito horas.

Arnie pensou em dizer-lhe que era importante — muito importante — mas, de repente, sentiu uma insuportável necessidade de sair da cabine telefônica. A claustrofobia era como uma gigantesca mão pressionando seu peito. Ele podia sentir o cheiro do próprio suor. Um cheiro acre, amargo.

— Senhor?

— Tudo bem. Ligarei mais tarde — disse Arnie.

Desligou e quase pulou para fora da cabine, deixando suas moedas espalhadas na prateleira e no chão. Algumas pessoas se viraram para olhá-lo, pouco interessadas, depois voltando a atenção para o que comiam.

— A pizza está pronta — disse o atendente do balcão.

Arnie olhou para o relógio e viu que ficara quase vinte minutos na cabine. Havia suor por todo o seu rosto. As axilas estavam como uma selva. Tinha as pernas trêmulas — os músculos das coxas estavam a ponto de deixá-lo cair ao chão.

Pagou a pizza, quase deixando a carteira cair, quando enfiou nela os três dólares de troco.

— Tudo bem com você? — perguntou o atendente. — Parece um pouco pálido.

— Estou ótimo — disse Arnie.

Agora tinha a sensação de que ia vomitar. Pegou rapidamente a pizza em sua caixa branca, com a palavra GINO'S impressa no topo e fugiu para a fria e cortante claridade da noite. As últimas nuvens tinham desaparecido e as estrelas piscavam como diamantes lapidados. Ele parou na calçada por um momento, primeiro contemplando as estrelas, depois Christine, estacionada no outro lado da rua, esperando fielmente.

Ela nunca discutiria nem se queixaria, pensou Arnie. Nunca faria exigências. Pensou também que poderia entrar nela a qualquer hora e repousar no estofamento macio, descansar em seu calor. Ela nunca se recusaria. Ela... ela...

Ela o amava.

Sim, ele sentia que isso era verdade. Da mesma forma como, às vezes, intuía que LeBay não a teria vendido a mais ninguém, fosse por duzentos e cinqüenta ou dois mil dólares. Ela estivera lá, quieta, aguardando o comprador certo. Um comprador que...

Um comprador que a amaria do jeito como ela era, sussurrou a voz interior.

Sim, era isso. Era exatamente isso.

Arnie ficou imóvel, com a pizza esquecida entre as mãos, uma fumacinha branca levantando-se preguiçosamente da caixa gordurosa. Olhou para Christine e foi envolvido por tal confuso turbilhão de emoções que era como se houvesse um ciclone em seu corpo, reordenando tudo que ele simplesmente não destruíra. Oh, ele a amava e odiava, odiava-a e a acarinhava, necessitava e precisava fugir dela. Ela era sua, ele era dela e

(Eu os declaro marido e mulher, juntos e unidos a partir deste dia, para todo o sempre, até que a morte os separe)

contudo, pior era o horror, o terrível e paralisante horror, a percepção de que... de que...

(como foi que machucou as costas aquela noite, Arnie? Depois que Repperton — o falecido Clarence "Buddy " Repperton — e seus cupinchas acabaram com ela? Como foi que machucou as costas, para agora ter que usar esse fedorento colete ortopédico o tempo todo? Como foi que machucou as costas?)

A resposta surgiu — e Arnie começou a correr, tentando deixar para trás a revelação, chegar a Christine antes que visse a coisa nitidamente e ficasse maluco.

Disparou para Christine, em uma corrida a pé, movida por suas confusas emoções e alguma terrível e recente conscientização; correu para ela, como correria o viciado para sua droga, quando fica trêmulo e os tremores pioram tanto, que não o deixam pensar em mais nada além do alívio; correu, como correria o maldito para a provação a ele destinada; correu, como corre o noivo para onde a noiva o espera.

Correu, porque dentro de Christine nada daquelas coisas importava — nem sua mãe, seu pai, Leigh, Dennis ou o que quer que ele próprio houvesse feito com suas costas naquela noite depois que todos haviam saído, naquela noite em que retirara seu Plymouth do aeroporto, quase inteiramente destruído, e o levara de volta à Garagem de Darnell onde, já sem ninguém lá dentro, pusera a transmissão de Christine em ponto morto e a empurrara, empurrara-a, até que começasse a rodar sobre os pneus murchos, empurrara-a, até que passasse pela porta e ele ouvisse o vento de novembro sibilando rispidamente em torno das carcaças e carros abandonados no ferro-velho, com seus vidros trincados e tanques de gasolina furados; empurrara-a, até o suor lhe escorrer em regatos, até o coração disparar em seu peito como um cavalo fugitivo, até suas costas clamarem por socorro; empurrara Christine, o coração bombeando como se devido a algum infernal gasto de combustível; empurrara-a e, no interior do carro, o odômetro começara a girar lentamente em sentido contrário, empurrara até uns quinze metros além da porta, até suas costas começarem francamente a latejar, mas continuou empurrando até as costas gritarem em protesto, e empurrou ainda, forçando os músculos, juntamente com os pneus vazios e dilacerados, as mãos ficando entorpecidas e as costas gritando, gritando, gritando. E então...

Alcançou Christine e atirou-se dentro dela, tremendo e ofegando. Sua pizza caiu no chão. Apanhou-a e a colocou sobre o assento, agora sentindo a calma que o invadia lentamente, como um bálsamo tranqüilizante. Tocou a roda do volante, deixou as mãos deslizarem sobre ele, traçando sua curva deliciosa. Tirou uma das luvas e apalpou o bolso, em busca das chaves. As chaves de LeBay.

Ainda podia recordar o sucedido naquela noite, mas isso agora já não lhe parecia tão terrível; agora, sentado ao volante de Christine, até parecia maravilhoso.

Tinha sido um milagre.

Recordava como, de repente, ficara mais fácil empurrar o carro, porque os pneus se inflavam como por magia, no ângulo perfeito, sem uma só perfuração, inflando e inflando. Os vidros quebrados haviam começado a recuperar-se do nada, entretecendo-se de baixo para cima, com diminutos sons rogaçantes e cristalinos. Os amassados começaram a inflar-se e estufar, recuperando a forma antiga da lataria.

Arnie simplesmente empurrara o carro até ele ficar apto para rodar, e então o dirigira, cruzando por entre as filas de carros velhos, até o odômetro recuar além do que Repperton e seus amigos haviam feito. Então, Christine ficou ok.

O que podia haver nisso de tão terrível?

"Nada", disse uma voz.

Arnie olhou em torno. Roland D. LeBay estava sentado no banco do passageiro, usando um terno negro de frente trespassada, camisa branca e gravata azul. Havia uma fileira de medalhas, pendendo em ângulo de uma lapela do paletó — era o terno com que havia sido sepultado, Arnie adivinhou isso, mesmo sem ter chegado a vê-lo realmente. Apenas, LeBay parecia mais jovem e decidido. Um homem que não admitia brincadeiras.

— Dê partida — disse LeBay. — Ligue o aquecimento e vamos motorar.

— Certo — disse Arnie, e girou a chave.

Christine começou a rodar, os pneus rangendo sobre a neve acumulada. Naquela noite, ele dirigira o carro até quase todo o dano ter sido reparado. Não, não reparado — negado. Negado era a palavra certa para o que havia ocorrido. Então, ele o recolocara no boxe vinte, deixando o restante para ser feito manualmente.

— Vamos ouvir um pouco de música — disse a voz a seu lado. Arnie ligou o rádio. Dion cantava "Donna, a Prima Donna". — Vai comer essa pizza, ou não?

A voz parecia ter-se modificado ligeiramente.

— Claro — respondeu Arnie. — Quer um pedaço? Um olhar de soslaio:

— Nunca digo não a um pedaço de alguma coisa.

Arnie abriu a caixa da pizza com uma das mãos e tirou um pedaço.

— Aqui est...

Ele arregalou os olhos. A fatia de pizza começou a tremer, com os longos filetes de queijo pendendo, agitando-se como os de uma teia de aranha, dilacerada pelo vento.

Quem estava sentado ali não era mais LeBay. Era ele.

Era Arnie Cunningham, por volta dos cinqüenta anos, não tão velho quanto LeBay, naquele dia de agosto em que ele e Dennis o tinham conhecido, não tão velho, mas caminhando para lá, amigos e vizinhos, caminhando para lá. Seu eu mais idoso usava uma camiseta levemente amarelecida e calças jeans sujas, manchadas de óleo. Os óculos eram de chifre, unidos em uma das curvaturas por fita isolante. O cabelo era curto, começando a recuar. Os olhos cinzentos estavam foscos e injetados de sangue. A boca mostrava todos os indícios de uma acre solidão. Porque aquilo — aquela coisa, aparição, fosse lá o que fosse — era solitário. Arnie podia senti-lo.

Solitário, exceto por Christine.

A versão dele próprio e de Roland D. LeBay poderia ter sido traduzida como pai e filho: a semelhança era enorme.

— Vai dirigir? Ou vai ficar olhando para mim? — perguntou a coisa.

De repente, a figura começou a envelhecer, diante dos olhos pasmos de Arnie. Os cabelos cor de chumbo embranqueceram, a camiseta se gastou e rasgou, o corpo sob ela encurvou-se com a idade. As rugas percorreram a face, afundando-se como linhas cortadas pelo ácido. Os olhos recuaram nas órbitas e as córneas amareleceram. Agora, somente o nariz se projetava para diante e aquele era o rosto de um velho corvo carniceiro, mas continuava sendo o seu rosto, oh, sim, ainda o seu rosto.

— Viu algo esquisito? — crocitou aquele sept... não, octogenário Arnie Cunningham, enquanto seu corpo se torcia, enrugava e encarquilhava, no assento vermelho de Christine. — Viu algo esquisito? Viu algo esquisito? Viu algo...

A voz se esganiçou e ganhou estridência, em um agudo ganido senil. A pele se rompeu em úlceras e tumores de superfície, enquanto por trás dos óculos cataratas leitosas cobriam os dois olhos, como anteparos sendo puxados para baixo. A coisa se decompunha diante dos próprios olhos de Arnie, desprendendo aquele mesmo cheiro que já sentira antes em Christine, o mesmo que Leigh sentira, só que agora era pior, era o cheiro forte, estonteante, sufocante da decomposição em alta velocidade, o cheiro de sua própria morte. Arnie começou a uivar como Little Richard no rádio, cantando "Tutti Frutti", e agora os cabelos da coisa caíam em punhados de fiapos alvos, as clavículas salientaram-se através da pele reluzente e estirada, acima da frouxa gola redonda da camiseta, salientaram-se através dela como grotescos lápis brancos. Os lábios encolhiam, afastando-se dos últimos dentes remanescentes que jaziam em seu caminho e assemelhavam-se a lousas de sepulturas, aquilo era ele, aquilo estava morto, no entanto, vivia — como Christine, aquilo vivia.

— Viu algo esquisito?— balbuciou aquilo, de modo incoerente. — Viu algo esquisito? Arnie começou a gritar.

 

Junkins Outra Vez

Os pára-lamas raspavam os postes da amurada,

Os caras a meu lado eram lívidos Fantasmas.

Um deles disse: "Diminua, eu vejo manchas,

E as linhas na estrada me parecem pontos. "

— Charlie Ryan

 

Arnie chegou à Garagem de Darnell cerca de uma hora mais tarde. Seu carona — se realmente houver algum carona — há muito desaparecera. O cheiro também se dissipara; sem dúvida, tinha sido apenas impressão. Quando se anda muito tempo perto dos bostas, raciocinou ele, tudo começa a ter cheiro de merda. E isso os torna felizes, naturalmente.

Will estava sentado diante da escrivaninha, em seu gabinete envidraçado, comendo um hoagie. * Acenou com a mão gordurosa, porém não saiu de lá. Arnie buzinou, depois estacionou.

Tudo tinha sido uma espécie de sonho. Nada mais simples. Alguma louca espécie de sonho. Telefonar para casa, telefonar para Leigh, tentar ligar para Dennis e ouvir aquela enfermeira informando que ele estava na Fisioterapia — era como ser negado três vezes, antes de o galo cantar, ou algo semelhante. Uma ligeira alucinação. E por que não, após toda a maldita tempestade de provações que vinha atravessando desde agosto? Afinal de contas, tudo consistia em uma questão de perspectiva, não? Durante toda a vida, ele tinha sido uma coisa para as pessoas, mas agora começava a sair da concha, transformava-se em um ser normal, com preocupações normais e corriqueiras. Não era de admirar que as outras pessoas se ressentissem com isso, porque quando alguém se modifica

(para o melhor ou para o pior, para riqueza ou para pobreza)

é natural que os demais se portem um pouco esquisitos quanto a isso. A mudança lhes transtorna as perspectivas.

Leigh falara como se o julgasse louco e aquilo não passava de uma idiotice da pior espécie. Ele estivera sob tensão, é claro, mas tensão era uma parte natural da vida. Se a Srta. Importante-Oh-Tão-Convencida Leigh Cabot pensasse o contrário, estava caminhando diretamente para uma trepada abismai, nas mãos do campeão permanente de violação que é a Vida. Provavelmente, ela terminaria tomando Dexedrina, para começar a manhã com toda força e Nembutal ou Quaalude, para diminuir a pressão à noite.

Oh, mas ele a desejava — ainda agora, pensando nela, sentia um enorme, incontido e indizível desejo envolvê-lo como vento frio, fazendo-o apertar firmemente o volante de Christine entre as mãos. Era um desejo forte, grande e elementar demais para ter nome. Tinha sua própria força.

Não obstante, ele agora estava bem. Tinha a sensação de... haver cruzado a última ponte, ou coisa assim.

Voltara a si, parado no meio de uma estreita via de acesso, além do mais distante extremo do pátio de estacionamento do Monroeville Mall — isto significando que se encontrava, aproximadamente, a meio caminho para a Califórnia. Ao sair e espiar atrás do carro, tinha visto um buraco feito através de um banco de neve — e havia neve derretida espalhada sobre o capô de Christine. Aparentemente, perdera o controle, começara a derrapar através do pátio de estacionamento (o qual, embora com a temporada natalina de compras estivesse em pleno movimento, permanecia misericordiosamente vazio naquela parte remota) e colidira com o banco de neve. Era muita sorte não ter sofrido um acidente. Uma bruta sorte.

Ficou parado ali por um momento, ouvindo o rádio e olhando pelo pára-brisa para a meia-lua que flutuava acima. Bobby Helms estivera cantando "Jingle Bell Rock", um som da temporada, como diziam os disc jockeys, e ele sorrira um pouco, sentindo-se melhor. Não conseguia recordar exatamente o que tinha visto (ou julgara ver) e, na verdade, nem queria. Fosse lá o que fosse, havia sido a primeira e última vez. Tinha certeza disso. Os outros o deixavam irritado, imaginando coisas. Provavelmente ficariam deliciados, se soubessem... só que não lhes daria essa satisfação.

Tudo ia melhorar. Voltaria às boas em casa — de fato, poderia começar já nessa noite, vendo um pouco de TV com os pais, justo como nos velhos tempos. E reconquistaria Leigh. Se ela não gostava do carro, pouco importando quão estranhos fossem seus motivos, tudo bem. Talvez, dentro em breve, ele até comprasse outro carro e lhe diria que negociara Christine. Poderia manter Christine ali, em estacionamento pago. O que Leigh ignorasse, não a magoaria. E Will. No próximo fim de semana faria a última viagem para Will. Aquela história já estava passando dos limites, podia perceber isso. Que Will o considerasse um covarde, se assim quisesse. Uma acusação de crime por transporte interestadual de cigarros e álcool sem licença não pareceria tão pesada em seu programa para cursar uma faculdade, pareceria? Uma acusação de crime federal. Não. Não era tão fria assim.

Ele riu um pouco. Sentia-se melhor. Purgado. A caminho da garagem, comeu a pizza, embora estivesse fria. Estava faminto. Achou curioso que faltasse um pedaço da pizza — de fato, aquilo o deixou algo inquieto —, mas logo se acalmou. Sem dúvida, ele o comera durante aquele estranho período em branco, talvez até o tivesse jogado fora pela janela. Poxa, aquilo tinha sido esquisito! Agora, acabara-se toda essa merda. Ele tornou a rir, um pouco menos trêmulo.

Na garagem, saiu do carro, bateu a porta e começou a caminhar para o escritório de Will, a fim de informar-se sobre o que queria que ele fizesse, aquela noite. De repente, ocorreu-lhe que o dia seguinte era o último em que teria aulas, antes das férias de Natal, o que lhe deu mais vivacidade ao passo.

Foi quando se abriu a porta lateral da garagem, a que ficava ao lado da maior, para entrada de carros, e surgiu um homem. Era Junkins. Outra vez.

Viu Arnie olhando para ele e ergueu a mão.

— Oi, Arnie.

Arnie olhou para Will. Através do vidro, Will deu de ombros e continuou comendo seu sanduíche.

— Olá — disse Arnie. — O que posso fazer pelo senhor?

— Bem, eu não sei — respondeu Junkins. Sorriu e então seus olhos deslizaram para além de Arnie, observando Christine, avaliando, procurando algum dano. — Quer fazer algo por mim?

— Não quero fazer merda nenhuma — disse Arnie.

Podia sentir a cabeça começando a latejar de raiva novamente. Rudy Junkins sorriu, aparentemente sem se ofender.

— Só passei por aqui. Como está?

Estendeu a mão. Arnie apenas olhou para ela. Sem ficar nem um pouco constrangido, Junkins deixou a mão cair, caminhou até Christine e recomeçou a examiná-la. Arnie o espiou, apertando tanto os lábios que ficaram lívidos. Sentia um acesso de puro ódio, a cada vez que Junkins tocava Christine com uma das mãos.

— Ei, talvez devesse comprar um bilhete para a temporada ou coisa parecida — disse Arnie. — Como para os jogos dos Steelers.

Junkins se virou e o fitou inquisitivamente.

— Deixa pra lá — Arnie falou carrancudo. Junkins prosseguiu com seu exame.

— Sabe— disse —, foi uma coisa infernalmente estranha o que aconteceu com Buddy Repperton e com aqueles dois rapazes, não?

Foda-se, pensou Arnie. Não vou dar papo a esse bosta.

— Estive em Filadélfia. Torneio de xadrez.

— Eu sei — respondeu Junkins.

— Céus! Esteve realmente verificando o que eu. fazia!

Junkins tornou a caminhar até ele. Agora não havia sorriso em seus lábios.

— Exatamente — disse. — Andei checando seus movimentos. Três dos rapazes que, segundo creio, estiveram envolvidos na destruição de seu carro, agora estão mortos, juntamente com um quarto que, aparentemente, apenas tomava parte no passeio da noite de terça-feira. É muita coincidência. Grande demais para mim. Pode ter certeza de que o estive checando.

Arnie olhou para ele, a surpresa suplantando a raiva, hesitante.

— Pensei que tivesse sido um acidente... que eles tinham bebido demais, estavam em alta velocidade e...

— Houve outro carro envolvido — cortou Junkins.

— Como é que sabe disso?

— Em primeiro lugar, havia marcas de pneus na neve. Infelizmente, o vento as tinha deformado o suficiente para que não pudéssemos ter uma foto decente. Entretanto, uma das barreiras do Parque Estadual das Squantic Hills foi quebrada e encontramos nela traços de tinta vermelha. O Camaro de Buddy não era vermelho. Era azul.

Junkins avaliou Arnie com os olhos.

— Também encontramos traços de tinta vermelha engastados na pele de "Penetra" Welch, Arnie. Pode explicar isso? Engastados. Sabe com que força um carro tem de atingir um sujeito para que engaste tinta em sua pele?

— Pois eu acho que o senhor deveria ir lá para fora e começar a contar carros vermelhos — replicou Arnie friamente. — Passaria de vinte, antes de chegar a Bassin Drive, posso garantir.

— Sem dúvida — retrucou Junkins —, mas enviamos nossas amostras ao laboratório do FBI, em Washington, onde possuem amostras de cada tonalidade de tinta já usada em Detroit. Recebemos a resposta hoje. Tem alguma idéia de qual seria? Quer adivinhar?

O coração de Arnie batia loucamente em seu peito, e nas têmporas soavam batidas correspondentes.

— Uma vez que veio até aqui, imagino que a tonalidade fosse vermelho-outono. É a cor de Christine.

— Acertou em cheio, rapaz. Merece um prêmio — disse Junkins.

Acendeu um cigarro e contemplou Arnie através da fumaça. Junkins abandonara qualquer simulação de bom humor e seu olhar era frio.

Arnie levou as mãos à cabeça, em um exagerado gesto de cólera.

— Vermelho-outono, e daí? Christine foi pintada por especificação do comprador, mas houve Fords de 1959 a 1963 pintados em vermelho-outono, bem como Thunderbirds. A Chevrolet ofereceu a mesma tonalidade de 1962 a 1964 e, durante algum tempo, em meados dos anos 50, era possível conseguir-se um Rambler vermelho-outono. Há meio ano tenho estado trabalhando em meu 58 e consegui livros sobre carros. Não se pode fazer um trabalho de restauração sem esses livros, ou estamos fodidos, antes mesmo do começo. Vermelho-outono era uma escolha bastante popular. Eu sei disso — olhou fixamente para Junkins — e o senhor também. Não é?

Junkins nada disse. Limitou-se a ficar olhando para Arnie, daquela maneira fixa, grave e inquietante. Ninguém jamais olhara assim para Arnie, em toda a sua vida, mas ele identificou o olhar. Supôs que qualquer um o identificaria. Era um olhar de franca e forte suspeita. Deixou-o assustado. Alguns meses antes — talvez até mesmo semanas — provavelmente ficaria apenas assustado, mas agora estava também enfurecido.

— Está realmente me impressionando. Afinal, que diabo tem contra mim, Sr. Junkins? Por que não sai do meu traseiro?

Junkins riu e caminhou em largo semicírculo. O lugar estava completamente vazio, exceto por eles dois e Will em seu escritório, terminando o sanduíche, lambendo o azeite que lhe escorrera para as mãos e observando-os detidamente.

— O que tenho contra você? — exclamou ele. — O que acha de assassinato em primeiro grau, Arnie? Não acha um pouco forte?

Arnie ficou muito quieto.

— Não se preocupe — disse Junkins, sem parar de andar. — Nada de cenas de tira durão por aqui. Nada de ameaças sobre ir até a cidade, exceto que, no caso presente, a cidade seria Harrisburg. Nada de ler-lhe os seus direitos. Tudo ainda está ótimo para o nosso herói, Arnold Cunningham.

— Não compreendo nada do que está...

— Você., compreende.. MUITO BEM! — Junkins rugiu para ele. Havia parado perto do gigantesco volume amarelo de um caminhão, outro dos trabalhos de Johnny Pomberton, em andamento. Olhou fixamente para Arnie. — Três dos rapazes que arrebentaram seu carro estão mortos. Em ambas as cenas do crime, foram recolhidas amostras de tinta vermelho-outono, levando-nos a crer que o veículo usado pelo perpetrador nos dois casos era, pelo menos em parte, pintado de vermelho-outono. E, poxa, acontece apenas que o carro depredado por aqueles rapazes era quase todo vermelho-outono! No entanto, você fica aí, empurrando os óculos para cima do nariz e declara que não compreende o que estou falando.

— Eu estava em Filadélfia, quando aquilo aconteceu — respondeu Arnie, com calma. — Será que não pensou nisso? Não pensou mesmo nisso?

— Filho — disse Junkins, jogando fora o cigarro. — Aí está a pior parte da coisa. A parte que realmente fede.

— Pois eu gostaria que o senhor fosse embora daqui, que me prendesse ou fizesse alguma coisa. Porque tenho de assinar o ponto e trabalhar um pouco.

— Por enquanto — disse Junkins —, tudo que posso fazer é falar. Da primeira vez, quando Welch foi morto, presumia-se que você estivesse em casa, dormindo.

— Uma desculpa fraca, eu sei — disse Arnie. — Acredite, se soubesse que esta merda ia me cair na cabeça, contrataria um amigo doente para me fazer companhia.

— Oh, não! A justificativa foi boa — respondeu Junkins. — Seus pais não tinham motivos para duvidar de sua história. Posso afirmá-lo, depois que falei com eles. E álibis, os verdadeiros, em geral têm mais furos do que um terno do Exército da Salvação. Quando começam a parecer armaduras é que me deixam nervoso.

— Meu Deus do céu! — exclamou Arnie, quase gritando. — Eu estive em um maldito campeonato de xadrez! Já faz quatro anos que pertenço ao clube de xadrez!

— Até o dia de hoje — disse Junkins, e Arnie tornou a ficar imóvel. Junkins assentiu. — Oh, sim, estive falando com o conselheiro do clube. Herbert Slawson. Ele disse que você nunca perdeu uma reunião nos primeiros três anos, inclusive esteve presente em uma dupla, mesmo com um resfriado. Você era seu melhor jogador. Então, este ano, começou a faltar desde o começo e...

— Eu tinha que trabalhar em meu carro... e arranjei uma garota...

— Ele me disse que você perdeu os primeiros três torneios e que ficou muito surpreso ao ver seu nome na folha dos que viajariam para o encontro dos Estados do Norte. Supunha que houvesse perdido qualquer interesse pelo clube.

— Já lhe disse...

— Sim, você disse. Muito ocupado. Carros e garotas, justamente as duas coisas que mais ocupam o tempo dos rapazes. Entretanto, você recuperou o interesse por tempo suficiente para ir a Fila... e então abandonou o clube. Isto me soa muito estranho.

— Não vejo nada de estranho nisso — replicou Arnie, mas sua voz parecia distante, quase perdida no turbulento latejar do sangue em seus ouvidos.

— Tolice. É como se você soubesse o que estava para acontecer e se protegesse com um álibi, incontestável.

O estrondo em sua cabeça agora parecia as batidas firmes das ondas, cada uma delas acompanhada por uma fosca pontada de dor. Estava começando a ficar com dor de cabeça — por que aquele indivíduo monstruoso, com seus perscrutadores olhos castanhos, não ia embora de uma vez? Nada daquilo era verdade, nada. Não precisava armar coisa alguma, nenhum álibi, nada. Ficara tão surpreso como qualquer pessoa, ao ler no jornal o que havia acontecido. É claro que ficara. Nada de estranho estava acontecendo, a menos que fosse esta paranóia de lunático e

(afinal, como foi que machucou suas costas, Arnie? E, por falar nisso, viu algo esquisito? Viu)

fechou os olhos e, por um momento, o mundo pareceu cambalear em sua órbita e ele viu aquele rosto esverdeado, sorridente e flutuando à sua frente, dizendo: Dê partida. Ligue a calefação e vamos motorar. E enquanto estamos nisto, vamos pegar os bostas que arrebentaram nosso carro. Vamos untar os Cabecinhas de pica, filho, o que me diz? Vamos dar neles com tanta força que o retalhador de defuntos no hospital da cidade terá de usar pinças para retirar os fragmentos de tinta de suas carcaças. O que me diz? Encontre alguma música dos velhos tempos no rádio e vamos rodar. Vamos...

Arnie tateou às suas costas, tocou Christine — sua dura, fria e tranqüilizadora superfície — e as coisas voltaram a encaixar-se no lugar. Ele abriu os olhos.

— De fato, existe mais um detalhe — falou Junkins —, porém muito subjetivo. Nada que se pudesse colocar em um relatório. Você está diferente desta vez, Arnie. Mais duro, de certa forma. Quase como se tivesse envelhecido vinte anos.

Arnie riu e ficou aliviado ao ouvir seu riso soando com naturalidade suficiente.

— Acho que está com um parafuso frouxo, Sr. Junkins. Junkins não se juntou a ele na risada.

— Hum-hum. Eu sei disso. A coisa inteira está frouxa, mais frouxa do que tudo que já investiguei, em meus dez anos de detetive. Da última vez, pensei que poderia chegar até você, Arnie. Senti que você estava... Sei lá! Parecia perdido, infeliz, olhando em tomo à procura de uma saída. Agora não sinto mais nada disso. É quase como se estivesse falando com uma pessoa inteiramente desconhecida. E uma pessoa não muito agradável.

— Já estou cheio de falar com o senhor — disse Arnie, e começou a caminhar para o gabinete de Will.

— Quero saber o que aconteceu — disse Junkins, atrás dele. — E vou descobrir, pode acreditar!

— Faça-me um favor e fique longe daqui — disse Arnie. — O senhor está louco.

Entrou no escritório, fechou a porta e percebeu que suas mãos não apresentavam o menor tremor. O aposento estava impregnado dos cheiros de charuto, azeite e alho. Passou diante de Will sem falar, pegou seu cartão de ponto no escaninho e o marcou no relógio: ka-thud! Então espiou pela parte envidraçada da sala e viu Junkins parado lá fora, olhando para Christine. Will nada disse. Arnie podia ouvir o ruidoso resfolegar da respiração do homenzarrão. Uns dois minutos mais tarde, Junkins foi embora.

— Tira — disse Will, e deu um longo arroto, que soou como uma serra de cadeia.

— Certo.

— Repperton?

— Hum-hum. Ele acha que tive algo a ver com aquilo.

— Mesmo você estando em Fila? Arnie meneou a cabeça.

— Ele parece nem se preocupar com o detalhe.

Então é um tira esperto, pensou Will. Sabe que os fatos estão errados, e sua intuição lhe diz que há algo ainda mais errado do que isso. Então, irá mais fundo no assunto do que iria qualquer outro tira, mas poderá levar um milhão de anos e nunca se aproximar da verdade. Will recordou o carro vazio, rodando sozinho para o boxe vinte, como um estranho brinquedo movido a corda. A fenda vazia da ignição, girando para START. O motor acelerando por uma vez, como um rosnado de aviso, para não morrer.

E — ao rememorar aquelas coisas, Will não se sentiu com confiança suficiente para encarar Arnie, embora tivesse quase uma vida inteira de experiências nas mentiras de rotina.

— Se os tiras estão de olho em você, não vou mandá-lo a Albany.

— Pouco importa se você me mande ou não a Albany, mas não precisa se preocupar com o cara. É o único tira que já me procurou e está louco. Interessa-se apenas por dois casos de atropelamento e fuga.

Os olhos de Will agora se fixaram nos de Arnie, cinzentos e distantes. Os de Will mostravam uma desbotada falta de cor, as córneas eram levemente amareladas: os olhos de um gato idoso, que já vira milhares de camundongos estripados.

— Ele está interessado em você — disse. — Será melhor eu mandar Jimmy.

— Você gosta da maneira como Jimmy dirige?

Will olhou para Arnie por um momento e depois suspirou.

— Está bem — disse. — No entanto, se vir esse tira, caia fora. E se for apanhado segurando uma sacola, Cunningham, é a sua sacola. Entendeu bem?

— Claro — respondeu Arnie. — Vai querer que eu faça algum trabalho esta noite?

— Há um Buick 77 no boxe quarenta e nove. Verifiquei o acionador de arranque. Cheque o solenóide. Se tudo parecer bem, cheque isso também.

Arnie assentiu e saiu. Os olhos atentos de Will desviaram-se dele, não o viram caminhar para Christine. Sabia que não haveria problema, quanto a enviá-lo a Albany aquele fim de semana. O garoto também sabia disso e iria em frente, de qualquer jeito. Tinha dito que faria o trabalho e, por Deus, ele o faria mesmo. E se acontecesse alguma coisa o garoto se viraria sozinho. Will tinha certeza disso. Já se fora o tempo em que Arnie não suportaria a carga, mas esse tempo, agora, era passado.

Will ouvira tudo pelo intercomunicador.

Junkins estava certo.

O garoto agora estava mais duro.

Will começou a olhar novamente para o 58 de Arnie. Arnie iria a Nova Iorque no Chrysler de Will. E — enquanto ele estivesse ausente — Will vigiaria Christine. Vigiaria Christine para ver o que acontecia.

 

Arnie em Apuros

Com assentos de Naugahyde separados

Dianteiros e traseiros,

Tudo cromado, cara, até o macaco,

Piso na gasosa e ela dispara

Waaaaahhhk...

Vou deixar você olhar,

Mas não toque em minha máquina,

Feita de encomenda.

— The Beach Boys

 

Na tarde seguinte, Rudolph Junkins e Rick Mercer, da divisão de detetives da Polícia Estadual da Pensilvânia, tomavam café em um sombrio e pequeno gabinete, onde a tinta das paredes descascava. No exterior caía uma mistura de chuva e neve.

— Tenho certeza de que será neste fim de semana — disse Junkins. — Nos últimos oito meses, aquele Chrysler tem rodado a cada quatro ou cinco semanas.

— Procure apenas compreender que agarrar Darnell e essa idéia fixa em sua cachola sobre o garoto são duas coisas diferentes.

— Pois para mim, são a mesma coisa — replicou Junkins. — O garoto sabe de algo. Se o deixar assustado, posso descobrir o que seja.

— Acha que ele teria algum cúmplice? Alguém que usou seu carro e matou aqueles rapazes, enquanto ele estava no torneio de xadrez?

Junkins abanou a cabeça.

— Não, infelizmente. Ele só tem um amigo íntimo, que está hospitalizado. Não sei o que pensar, exceto que o carro esteve envolvido... e ele também.

Junkins largou sua xícara de plástico com o café e apontou para o homem sentado do outro lado da mesa.

— Assim que conseguirmos fechar aquela garagem, vou querer seis técnicos do laboratório vasculhando tudo, de popa à proa, por dentro e por fora. Vou querer aquele carro em um elevador, sendo checado em busca de amassados, mossas, pintura nova e... sangue. Eis aí o que realmente quero, Rick. Apenas uma gota de sangue.

— Você não vai muito com o garoto, hein? — comentou Rick.

Junkins deu uma risadinha desnorteante.

— Sabe? Cheguei a gostar dele, quando o vi pela primeira vez... Sim, gostei dele e tive pena. Dava a impressão de querer proteger alguém que lhe tivesse feito algo. Desta vez, no entanto, não gostei dele em absoluto.

Junkins ficou pensativo.

— Também não gostei daquele carro. E da maneira como ele o toca, sempre que eu o julgava encurralado. Era muito esquisito.

Rick respondeu:

— Lembre-se apenas de que quem queremos agarrar é Darnell. Ninguém em Harrisburg tem o menor interesse em seu garoto.

— Eu me lembrarei — disse Junkins. Tornou a pegar sua xícara e olhou para Rick com ar grave. — Porque ele é um meio para chegar ao meu objetivo. — Vou pegar quem matou aqueles rapazes, nem que seja a última coisa que faça!

— Talvez nem seja neste fim de semana — disse Rick. Mas foi.

Dois policiais à paisana, do Esquadrão de Crimes do Estado da Pensilvânia, permaneceram na cabine de uma pickup Datsun, de quatro anos antes, na manhã do sábado, 16 de dezembro, vigiando quando o Chrysler preto de Will Darnell passou pela grande porta da garagem e ganhou a rua. Caía uma gelada chuvinha, mas não o bastante para nevar. Era um daqueles dias nevoentos, quando é impossível apontar-se onde terminam as nuvens mais baixas e começa a verdadeira neblina. O Chrysler exibia adequadamente suas luzes de estacionamento. Arnie Cunningham era um motorista seguro.

Um dos policiais levou um walkie-talkie à boca e falou

— Ele acabou de sair no carro de Darnell — disse. — Vocês aí, fiquem em seus calcanhares. Seguiram o Chrysler até a I-76. Quando viram Arnie tomar a rampa leste, sinalizando para

Harrisburg, manobraram para a rampa oeste, na direção de Chio e relataram o fato. Deixariam a I-76 pela faixa de saída e retomariam à sua posição original, perto da Garagem de Darnell.

— Ok — respondeu a voz de Junkins —, vamos fazer uma omelete.

 

Vinte minutos mais tarde, quando Arnie rodava para leste a uma velocidade tranqüila e legal de 80 quilômetros, três policiais, com a papelada adequada em punho, bateram à porta de William Upshaw, que morava no sofisticado e requintado subúrbio de Sewickley. Upshaw atendeu à porta em seu roupão de banho. De trás dele, chegaram os gemidos do desenho animado das manhãs de sábado na TV.

— Quem é, meu bem? — perguntou sua esposa, da cozinha.

Upshaw olhou para os papéis, documentos do Tribunal de Justiça, e teve a impressão de que ia desmaiar. Um deles determinava a apreensão de todos os registros de impostos de Upshaw relacionados a Will Darnell (pessoa física) e Will Darnell (pessoa jurídica). Os documentos tinham a assinatura do procurador-geral da Pensilvânia e de um juiz do Supremo Tribunal.

— Quem é, bem? — tornou a perguntar sua esposa.

Um filho de Upshaw veio espiar, de olhos arregalados. Upshaw tentou falar, mas de sua boca saiu apenas um grasnido rouco. Acontecera. Ele sonhara com aquilo e, finalmente, acontecera. A casa em Sewickley não o protegera disso; a mulher que ele mantinha a prudente distância, no reinado da Prússia, não o protegera disso. Estava ali: podia lê-lo no rosto liso daqueles tiras em seus ternos Anderson-Little, adquiridos em liquidações. Pior do que tudo, um dos homens era agente federal — Álcool, Tabaco e Armas de Fogo. Este lhe exibiu uma segunda identificação que o proclamava como agente de algo denominado Força-Tarefa Federal do Controle de Drogas.

— Segundo nossas informações, o senhor mantém um escritório em sua casa — disse o tira federal.

Aparentava — o quê? Vinte e seis? Trinta anos? Teria espremido os miolos algum dia, tentando descobrir o que fazer, quando se tem três filhos e uma esposa com gosto algo exagerado por coisas finas? Bill Upshaw duvidava muito. Quando se tem tais preocupações, o rosto não fica tão liso. Um rosto só permanece assim quando podemos nos dar ao luxo de nobres pensamentos: lei e ordem, certo e errado, bons e maus sujeitos.

Abriu a boca para responder ao tira federal, mas emitiu apenas outro grasnido rouco.

— A informação é correta? — perguntou pacientemente o federal.

— Sim, é — crocitou Bill Upshaw.

— E outro escritório no número 100 de Frankstown Road, em Monroeville?

— Sim.

— Bem, o que é? — perguntou Amber, e surgiu no corredor.

Ao ver os três homens de pé na entrada, ela fechou mais a gola do roupão caseiro. Os desenhos animados retumbaram.

Upshaw pensou, de repente e com certo alívio: É o fim de tudo.

O garoto que viera ver quem chegava para visitá-los tão cedo, em uma manhã de sábado, de súbito prorrompeu em lágrimas e correu para a segurança dos Superamigos, no Canal 4.

 

Quando Junkins recebeu a notícia de que Upshaw havia sido intimado e apreendidos todos os documentos pertinentes a Darnell, tanto na residência dele como em seu escritório de Monroeville, partiu chefiando meia dúzia de tiras no que, supunha, seria chamada uma batida, nos velhos tempos. Mesmo durante o temporada de férias, a garagem mantinha uma moderada atividade no sábado (embora não se transformasse, de modo algum, no lugar fervilhante dos fins de semana do verão), de forma que, quando Junkins levou até a boca um alto-falante movido a pilhas e começou a usá-lo, talvez umas vinte e quatro cabeças se viraram para ver o que era. Vinte e quatro cabeças, que teriam motivos de sobra para conversas a respeito, até o Ano-Novo.

— Aqui é a Polícia Estadual da Pensilvânia! — anunciou Junkins, pelo alto-falante.

As palavras ecoaram e reverberaram. Mesmo em tal momento, ele percebeu que tinha os olhos fixos no Plymouth vermelho e branco, estacionado vazio no boxe 20. Durante seu trabalho, já tocara em meia dúzia de armas assassinas, algumas vezes no local do crime, porém mais freqüentemente no banco das testemunhas, mas só olhar para aquele carro já lhe dava calafrios.

Gitney, o homem do Imposto de Renda que o acompanhava naquela particular incursão, franziu a testa, incitando-o a prosseguir. Nenhum de vocês sabe o que isto significa. Nenhum de vocês. Entretanto, tornou a erguer o alto-falante até a boca.

— Esta firma está fechada! Eu repito, esta firma está fechada! Vocês podem retirar seus veículos, se estiverem em condições de rodar... do contrário, por favor, saiam daí, rápida e calmamente! Esta firma está fechada!

O alto-falante emitiu um clique amplificado, ao ser desligado.

Junkins olhou para o escritório e viu que Will Darnell falava ao telefone, com um charuto apagado na boca. Jimmy Sykes estava em pé junto à máquina automática de Coca e seu rosto abobado era um retrato de confusa perplexidade — não parecia muito diferente do filho de Bill Upshaw, no momento antes de se debulhar em lágrimas.

 

— Entende os seus direitos, segundo acabei de ler?

O policial encarregado era Rick Mercer. Atrás dele, a garagem estava vazia, exceto por quatro tiras uniformizados que faziam o trabalho burocrático a respeito dos carros apreendidos, quando a garagem fora fechada.

— Certo — disse Will.

Seu rosto estava composto; o único sinal de perturbação era a respiração mais sibilante, a rápida subida e descida do peito enorme sob a camisa branca de gola aberta: e a maneira como segurava constantemente seu inalador em uma das mãos.

— Tem algo a dizer-nos neste momento? — perguntou Mercer.

— Não, até que meu advogado esteja aqui.

— Seu advogado pode juntar-se a nós em Harrisburg — disse Junkins.

Will olhou iradamente para ele e nada disse. Lá fora, mais policiais uniformizados tinham terminado de afixar selos em todas as portas e janelas da garagem, exceto sobre a pequena porta lateral. Enquanto não cessasse o embargo, todas as entradas e saídas seriam efetuadas por ali.

— Nunca ouvi falar em nada mais louco — disse Will Darnell, por fim.

— Vai ficar ainda mais louco — disse Marcer, sorrindo sinceramente. — Você ficará fora de circulação por bastante tempo, Will. Um dia, talvez seja incumbido de dirigir a oficina mecânica da prisão.

— Sei quem é você — disse Will, olhando para ele. — Seu nome é Mercer. Conheci bem seu pai. Foi o tira mais desonesto que já existiu no Condado de King.

O sangue fugiu do rosto de Rick Mercer e ele ergueu a mão.

— Pare com isso, Rick — disse Junkins.

— Tudo certo — disse Will. — Divirtam-se à vontade, caras. Façam suas piadas sobre a oficina mecânica da prisão. Em duas semanas, estarei aqui de novo, trabalhando. E se não sabem disso, são ainda mais imbecis do que parecem.

Olhou em torno, fitando-os com seus olhos inteligentes, sardônicos... e encurralado. De repente, levou o inalador à boca e aspirou fundo.

— Tirem este saco de merda daqui — disse Mercer. Ainda estava pálido.

 

— Você está bem? — perguntou Junkins.

Estavam sentados dentro de um Ford do Estado, com chapa fria, uma hora mais tarde. O sol resolvera mostrar-se e brilhava de maneira ofuscante, dissolvendo a neve e encharcando as ruas. A Garagem de Darnell permanecia silenciosa. Os registros da firma — e o Plymouth restaurado de Cunningham — estavam seguramente encerrados lá dentro.

— Aquilo que ele disse sobre meu pai... — disse Mercer, em voz espessa. — Meu pai se matou, Rudy. Um tiro na cabeça. E eu sempre pensei... lá no colégio... — Ele deu de ombros. — Muitos tiras fazem isso. Melvin Purvir fez também, você sabe. Foi ele quem pegou Dillinger. No entanto, a gente se pergunta...

Mercer acendeu um cigarro e expulsou a fumaça para baixo, em um longo e trêmulo jato.

— Ele não sabia de nada — disse Junkins.

— Uma ova, que não sabia — disse Mercer. Desceu o vidro de sua janela e jogou o cigarro fora. Depois pegou o microfone sob o painel. — Central, aqui é Móbile Dois.

— Dez-quatro, Móbile Dois.

— O que está acontecendo com nosso pombo-correio?

— Está na Interestadual 84, aproximando-se de Port Jervis.

Port Jervis era o ponto de cruzamento entre a Pensilvânia e Nova Iorque.

— Tudo pronto em Nova Iorque?

— Afirmativo.

— Diga a eles novamente que eu o quero a nordeste de Middletown, antes de o pegarem, e que seu bilhete de pedágio seja apreendido como evidência.

— Dez-quatro.

Merter recolocou o microfone no lugar e sorriu de leve.

— Assim que ele passar para Nova Iorque, nada no mundo impedirá que isto seja um caso federal... mas ainda faltam alguns retoques. Não é uma beleza?

Junkins não respondeu. Não achava beleza nenhuma naquilo desde Darnell, com seu inalador, ao pai de Mercer dando um tiro na cabeça. Junkins experimentava uma estranha sensação de inevitabilidade, uma impressão de que as coisas terríveis ainda não haviam terminado — estavam apenas começando a acontecer. Sentia-se a meio caminho através de uma história sombria, cujo final talvez se revelasse demasiado terrível. Exceto que precisava chegar àquele final agora, não? Sem dúvida.

Persistia a horrenda sensação, a terrível imagem: da primeira vez que falara com Arnie Cunningham, falava a um homem que se afogava, e da segunda vez que falara com ele o afogado emergira — e Junkins falava com um cadáver.

 

O céu encoberto a oeste de Nova Iorque começava a clarear, e o ânimo de Arnie ficou melhor. Era sempre bom afastar-se de Libertyville, afastar-se de... de tudo. Nem mesmo o fato de saber sobre o contrabando no porta-mala., era capaz de diminuir aquela euforia. E, pelo menos, não havia drogas desta vez. Lá no fundo de sua mente — quase indistinguível, mas estava lá — assentava-se a vaga especulação sobre como as coisas seriam diferentes e como sua vida mudaria, se apenas se livrasse dos cigarros e seguisse em frente. Se ao menos pudesse deixar para trás aquela deprimente embrulhada.

Só que, evidentemente, não faria nada disso. Claro que era impossível abandonar Christine, depois de ter investido tanto nela.

Arnie ligou o rádio e cantarolou junto com uma melodia atual. O sol, enfraquecido por ser dezembro, mas ainda tentando ser rigoroso, libertou-se inteiramente das nuvens, e ele sorriu.

Ainda sorria quando o carro da Polícia Estadual de Nova Iorque emparelhou com o dele, na faixa lateral, e o acompanhou. Do alto-falante do teto do carro começou a ecoar: Aqui é para o Chrysler! Encoste, Chrysler! Encoste, Chrysler!

Arnie olhou para o lado, o sorriso desaparecendo de seus lábios. Viu os óculos escuros. Óculos de tira! O terror que se apoderou dele era mais forte do que poderia imaginar, quanto a qualquer emoção — e não estava aterrorizado por si mesmo. Sua boca ficou inteiramente seca. A mente disparou a funcionar de maneira confusa. Viu-se pisando no acelerador e voando dali, talvez o tivesse feito, se dirigisse Christine... mas não estava em seu carro. Viu Will Darnell avisando que, se fosse apanhado levando um saco, o saco era seu. E, acima de tudo, viu Junkins, Junkins com aqueles argutos olhos castanhos — e soube que aquilo era obra dele.

Desejou que Rudolph Junkins estivesse morto.

— Encoste, Chrysler! Não estou falando apenas para ouvir a minha voz! Encoste imediatamente! Não posso dizer nada, pensou Arnie, incoerentemente, enquanto manobrava para o acostamento.

Seus colhões formigavam, o estômago se revolvia furiosamente. Podia ver os próprios olhos no retrovisor, aterrorizados por trás da muralha dos óculos — aterrorizados, mas não por ele. Não por ele. Christine. Arnie temia por Christine. O que eles poderiam fazer a Christine.

Sua mente agoniada pelo pânico girou em um caleidoscópio de imagens superpostas. Formulários de solicitação para a universidade, com o veredicto: REJEITADO — CONDENADO POR CRIME estampado sobre eles. Grades de prisão, aço azulado. Um juiz inclinando-se de uma alta bancada, o rosto branco e acusador. Chefões homossexuais em um pátio de prisão, ansiosos por carne fresca. Christine seguindo no transportador, até o compressor de carros, no ferro-velho atrás da garagem.

E então, quando freou o Chrysler e o estacionou, o carro da Polícia Estadual parando logo atrás dele (e mais outro, surgindo como por mágica, parando à sua frente), do nada irrompeu um pensamento impregnado de desalentado consolo: Christine pode cuidar de si.

Houve outro pensamento, quando os tiras saíram e caminharam para ele, um segurando na mão um mandado de busca. Este outro também pareceu nascer de lugar nenhum, mas reverberou com os tons ásperos de Roland D. LeBay, o som da voz de um velho:

E ela cuidará de você, rapaz. Tudo quanto tem afazer é continuar acreditando nela e ela cuidará de você.

Arnie abriu a porta do carro e saiu, um momento antes que algum dos tiras pudesse abri-la.

— Arnold Richard Cunningham? — perguntou um dos tiras.

— Sim, sou eu — respondeu Arnie, calmamente. — Estava indo muito depressa?

— Não, filho — disse outro tira —, mas vivemos em um mundo de sofrimento e dá tudo no mesmo.

O primeiro tira deu um passo em frente, tão formal quanto um oficial do Exército.

— Tenho comigo um documento legal permitindo a revista deste Chrysler Imperial 1966, em nome do povo do Estado de Nova Iorque, da Comunidade da Pensilvânia e dos Estados Unidos da América. Além disso...

— Bem, isso cobre inteiramente toda a maldita linha de frente, não é mesmo? — disse Arnie. Suas costas latejavam dolorosamente e ele comprimia o lugar com as duas mãos. Os olhos do

policial arregalaram-se ligeiramente quando ele ouviu a voz idosa saindo da boca daquele rapazinho, mas prosseguiu.

— Além disso, tenho permissão para apreender qualquer contrabando encontrado no decorrer desta revista, em nome do povo do Estado de Nova Iorque, da Comunidade da Pensilvânia e dos Estados Unidos da América.

— Ótimo — disse Arnie.

Nada daquilo parecia real. Luzes azuis cintilaram em confusão. Pessoas passando em seus carros se viravam para espiar, mas ele não sentiu nenhuma vontade de desviar-se, de esconder o rosto — e aquilo era algo como que um alívio.

— Dê-me as chaves, garoto — disse um dos tiras.

— Por que você mesmo não as pega, seu bosta? — disse Arnie.

— Não está se ajudando muito, garoto — disse o tira.

No entanto, também ele o fitou com certa surpresa e um leve temor, pelo mesmo motivo; por um instante, a voz do rapazinho parecera quarenta anos mais velha, a voz de um sujeito muito mais duro, em nada semelhante ao garoto magricela à sua frente.

O tira inclinou-se, pegou as chaves e três companheiros seus encaminharam-se prontamente para o porta-mala. Eles sabem, pensou Arnie, resignado. Enfim, aquilo nada tinha a ver com a obsessão de Junkins, envolvendo-o com Buddy Repperton, "Penetra" Welch e os outros (pelo menos, não diretamente, emendou com cautela). Aquilo dava a impressão de uma operação bem planejada e bem coordenada contra o contrabando de Will, desde Libertyville a Nova Iorque e Nova Inglaterra.

— Garoto — disse um dos tiras —, gostaria de responder a algumas perguntas ou prestar uma declaração? Se pretende, eu lerei agora os seus direitos.

— Não — replicou Arnie tranqüilo. — Não há nada a dizer.

— A situação poderia ficar bem mais fácil para você.

— Isto é coação — disse Arnie, sorrindo de leve. — Veja bem o que diz ou terminará fazendo um belo furo em sua própria ficha.

O tira ficou vermelho.

— Se quer bancar o idiota, é com você.

O porta-mala do Chrysler foi aberto. Eles haviam tirado o pneu sobressalente, o macaco e várias caixas de peças pequenas — parafusos, porcas, molas, coisas assim. Um dos tiras estava quase inteiramente dentro do porta-mala, ficando para fora apenas suas pernas envoltas em tecido cinza-azulado. Por um momento, Arnie esperou vagamente que não encontrassem o compartimento secreto, mas logo rejeitou a idéia — provinha apenas de sua parte infantil, a parte que agora desejava destruir, porque ultimamente toda essa parte lhe causava sofrimento. Eles o encontrariam. Quanto mais depressa o encontrassem, mais depressa terminaria aquele imbecil espetáculo de beira de estrada.

Como se algum deus ouvisse seu desejo e decidisse concedê-lo rapidamente, o tira no porta-mala exclamou, triunfante:

— Cigarros!

— Muito bem — disse o tira que havia lido o mandado de busca. — Feche o porta-mala. — Virou-se para Arnie e fez a leitura do aviso sobre seus direitos. — Entendeu bem os seus direitos, conforme os li?

— Entendi — disse Arnie.

— Quer prestar algum esclarecimento?

— Não.

— Entre no carro, filho. Você está preso.

Estou preso, pensou Arnie e quase explodiu em uma gargalhada, de tão tolo o pensamento. Aquilo era um sonho, do qual logo despertaria. Preso. Sendo encaminhado para um carro da Polícia Estadual. As pessoas olhavam para ele...

Lágrimas desesperadas e infantis, salgadas e quentes, aninharam-se em sua garganta e a fecharam.

O peito coçou — uma, duas vezes.

O tira que lera seus direitos tocou-lhe o ombro, e Arnie o encolheu, com uma espécie de desespero. Sentiu que se pudesse mergulhar profundamente e rapidamente dentro de si, ficaria bem — mas a compreensão o deixava fora de si.

— Não me toque!

— Será como você quer, filho — disse o tira, afastando a mão. Abriu a porta traseira do carro policial e convidou Arnie a entrar.

A gente chora em sonhos? Claro que sim — ele já não lera sobre pessoas despertando de sonhos tristes com lágrimas no rosto? Entretanto, fosse ou não sonho o que sucedia agora, ele não ia chorar.

Em vez disso, pensaria em Christine. Não em sua mãe ou seu pai, não em Leigh ou Will Darnell, não em Slawson — todos os miseráveis bostas que o haviam traído.

Pensaria em Christine.

Arnie fechou os olhos e inclinou o rosto pálido, espectral, em direção às mãos, assim permanecendo. E, como sempre, pensar em Christine fazia tudo melhorar. Após um momento, conseguiu endireitar o corpo, contemplar a paisagem que desfilava às margens da estrada e refletir em sua situação.

 

Michael Cunningham recolocou lentamente o fone no gancho com infinito cuidado —, como se menos cautela o fizesse explodir e ele, Michael, fosse atirado para o alto, em seu estúdio no andar de cima, crivado de fragmentos de granada negra.

Recostou-se à cadeira giratória atrás de sua mesa, sobre a qual estavam sua máquina de escrever IBM-Corretora Selectric II, um cinzeiro com os dizeres UNIVERSIDADE HORLICKS em azul e ouro, quase ilegíveis no fundo sujo, e o manuscrito de seu terceiro livro, um estudo sobre os encouraçados Monitor e Merrimac. Estava no meio de uma página quando o telefone tocara. Agora, apertando a alavanca de liberação do lado direito da máquina de escrever, puxou a folha solta de sob o rolo, observando clinicamente sua ligeira curvatura. Colocou-a sobre o manuscrito, no momento pouco mais de uma selva de correções a lápis.

Lá fora, o vento gemia em torno da casa. A manhã cálida e nublada dera lugar a uma frígida e límpida noite de dezembro. O degelo inicial estacara de imediato e seu filho estava preso em Albany, acusado de contrabando: Não, Sr. Cunningham, não se trata de maconha, são duzentos pacotes de cigarros Winston, sem selagem de impostos.

Do andar de baixo, ele podia ouvir o zumbido da máquina de costura de Regina. Agora teria que se levantar, ir até a porta, abri-la, caminhar corredor abaixo até a escada, descer os degraus, passar pela sala de refeições e chegar à salinha cheia de plantas, outrora lavanderia, mas agora uma sala de costura e ficar parado enquanto Regina erguia os olhos para ele (estaria usando seus óculos para vista cansada) e então anunciar: Regina, Arnie foi preso pela Polícia Estadual de Nova Iorque.

Michael tentou iniciar o processo, levantando-se da cadeira, mas esta pareceu senti-lo temporariamente fora de guarda. Girou e inclinou-se muito para trás sobre seus rodízios, no mesmo instante, e Michael precisou aferrar-se à borda da mesa para não cair. Tornou a deslizar pesadamente para a cadeira, o coração batendo com dolorosa rapidez em seu peito.

De repente, foi envolvido por tão complexa onda de desespero e pesar que gemeu em voz alta e agarrou a testa comprimindo as têmporas. Os antigos pensamentos retornaram, tão previsíveis como os mosquitos de verão, e também tão enlouquecidos. Seis meses antes, tudo estava bem. Agora, seu filho estava na cela de uma prisão, em algum lugar. Quais teriam sido os momentos da ruptura? Como poderia ele, Michael, ter mudado as coisas? E, exatamente, qual a história dessas coisas? Onde a enfermidade começara a penetrar?

— Meu Deus...

Comprimiu mais forte, ouvindo o gemido do inverno fora de suas janelas. Ele e Arnie haviam colocado as janelas extras para inverno, ainda no mês anterior. Havia sido um bom dia, não? Primeiro, Arnie segurando a escada e olhando para cima; depois que descera, Arnie subira, e ele ficara gritando para o filho tomar cuidado, com o vento agitando seus cabelos e as folhas mortas, acastanhadas, atiradas em seus sapatos desbotados. Certo, tinha sido um bom dia. Mesmo depois da chegada daquele carro infernal, parecendo ensombrecer tudo na vida do filho, como uma moléstia fatal, houve bons dias. Não houve?

— Meu Deus... — repetiu, em uma voz fraca e lacrimosa, que desprezou.

Imagens espontâneas surgiram em seus olhos. Colegas observando-o de soslaio, talvez sussurrando no clube da faculdade. Discussões em coquetéis, com seu nome agitado inquietamente, subindo e descendo, como um corpo afogado. Arnie só faria dezoito anos dentro de dois meses e, supunha, não poderia ter o nome impresso nos jornais, mas todos acabariam sabendo. A notícia se espalharia.

De repente loucamente, viu Arnie aos quatro anos, encarapitado em um triciclo vermelho, adquirido por ele e Regina em um bazar de caridade (aos quatro anos, Arnie os chamava "Babá de calidade da mamãe"). A tinta vermelha do triciclo era pontilhada de escamas de ferrugem, as rodas estavam com as borrachas gastas, mas Arnie o adorara e, se pudesse, até o teria levado para a cama. Michael fechou os olhos e o viu andando no triciclo, subindo e descendo a calçada, em seu macacão de sarja azul, o cabelo caindo nos olhos. Então, seu olho mental pestanejou, vacilou ou fez qualquer coisa, e o enferrujado triciclo do bazar de caridade era Christine, a tinta vermelha cheia de ferrugem, os vidros das janelas branco-leitosos pela idade.

Ele rangeu os dentes. Alguém que o observasse poderia pensar que estava sorrindo loucamente. Esperou até controlar-se um pouco e então se levantou e desceu para o andar térreo, a fim de contar o sucedido a Regina. Ele lhe contaria, e ela refletiria no que deviam fazer, como sempre acontecera. Regina lhe roubaria a iniciativa, com isto roubando qualquer bálsamo que, atualmente, fazer as coisas proporcionava, deixando-o apenas com um doentio pesar e a certeza de que, agora, seu filho era alguém importante.

 

A Chegada da Tempestade

Ela pegou as chaves de meu Cadillac,

Saltou para o meu gatinho e o levou para longe.

— Bob Seger

 

Naquele inverno, a primeira das grandes tempestades do nordeste chegou a Libertyville na véspera do Natal, abrindo caminho através do terço superior dos E.U.A. e deixando para trás uma ampla e facilmente previsível trilha da tormenta. O dia começou com um sol brilhante, a temperatura a dois graus centígrados, mas os locutores matinais já haviam previsto alegremente sombras e tristezas, apressando os que ainda não haviam encerrado as compras de última hora a aproveitarem até o meio da tarde. Os que planejavam viagens ao velho lar, para um Natal à moda antiga, eram aconselhados a um novo planejamento, caso a viagem não fosse feita em quatro a seis horas.

— Se vocês não pretendem passar o Dia de Natal na faixa de acostamento da I-76, em algum ponto entre Bedford e Carlisle, fariam melhor saindo de casa bem cedo ou não saindo, em absoluto — aconselhou o locutor da FM-104 a seus ouvintes (uma boa parte dos quais estava demasiado embriagada, para chegar a pensar em ir a qualquer lugar), e então reiniciou o Programa de Natal, com "Santa Claus is Corning to Town", na versão de Springsteen.

Por volta de 11 da manhã, quando Dennis Guilder finalmente deixou o Hospital Comunitário de Libertyville (segundo as normas hospitalares, ele só teria permissão de usar as muletas quando realmente fora do prédio; até então, teria que ser empurrado em uma cadeira de rodas por Elaine), o céu começara a espumar de nuvens e havia um feérico, fantasmagórico anel em torno do sol. Dennis atravessou cautelosamente o pátio de estacionamento em suas muletas, o pai e a mãe amparando-o de cada lado, nervosos, a despeito de o pátio haver sido escrupulosamente limpo do menor traço de neve e gelo. Fez uma pausa ao lado do carro da família e ergueu ligeiramente o rosto, na brisa refrescante. Estar fora do hospital era como uma ressurreição. Dennis achava que poderia ficar ali por horas e ainda não se dar por satisfeito.

 

Era aproximadamente uma daquela tarde quando a camioneta da família Cunningham chegou aos arredores de Ligonier, cento e quarenta e quatro quilômetros a leste de Libertyville. A esta altura, o céu adquirira um tom uniforme e sugestivo cinza-ardósia e a temperatura caíra seis graus.

Havia sido idéia de Arnie que eles não cancelassem a tradicional visita de véspera do Natal a tia Vickey e tio Steve, respectivamente, irmã e cunhado de Regina. As duas famílias haviam criado um pouco o informal ritual de revezamento no correr dos anos, com Vicky e Steve indo à casa dos Cunningham em alguns anos e os Cunningham indo a Ligonier em outros. A viagem deste ano fora combinada em inícios de dezembro. Havia sido cancelada após o que Regina teimosamente chamava "o problema de Arnie", mas no início da semana anterior Arnie começara a insistir incessantemente sobre a viagem.

Por fim, após uma longa conversa telefônica com sua irmã na quarta-feira, Regina concordara com a vontade de Arnie — em especial porque Vicky parecera calma e compreensiva, sem a menor curiosidade sobre o que tinha acontecido. Aquilo era importante para Regina, mais importante, talvez, do que ela consentisse em admitir. Nos últimos oito dias, desde que Arnie havia sido preso em Nova Iorque, ela tivera que enfrentar um fluxo aparentemente interminável de mórbida curiosidade, mascarada como simpatia. Conversando com Vicky ao telefone, ela finalmente se descontrolara e havia chorado. Tinha sido a primeira e única vez, desde a prisão de Arnie, que ela se entregava a tão amargo luxo. Arnie estava na cama, dormindo. Michael, que vinha bebendo demais e, como pretexto, apelava para o "espírito da época", tinha ido ao O'Malley's para uma ou duas cervejas com Paul Strickland, outro rejeitado de fábrica, no jogo político da faculdade. Provavelmente, aquilo terminaria chegando a seis cervejas, talvez umas oito ou dez. E se mais tarde ela fosse ao estúdio no andar de cima, iria encontrá-lo ereto em sua cadeira atrás da mesa, olhando o escuro, com os olhos secos, mas injetados de sangue. Se tentasse falar com ele, a conversa de Michael seria terrivelmente confusa, centralizando-se demais no passado. Ela supunha que o marido vinha tendo um muito brando colapso mental. Não permitiria a si mesma luxo idêntico (algo em que já pensara, em seu furioso e sofrido estado emocional) e, todas as noites, sua mente martelava a arquitetar planos e esquemas, até as três ou quatro da madrugada. Todos aqueles esquemas e pensamentos orientavam-se em uma direção: "Superamos isto". As duas únicas opções que permitia à sua mente eram deliberadamente vagas. Regina pensava no "problema de Arnie" e em "Superarmos isto".

Entretanto, ao falar com a irmã por telefone, dias após a prisão do filho, seu férreo controle fraquejara brevemente. Ela chorava no ombro de Vicky, pelo interurbano, e a irmã a confortara com naturalidade, fazendo-a odiar-se por todas as suas alfinetadas baratas contra ela, no correr dos anos. Vicky, cuja única filha largara os estudos antes de terminar o ginásio, para casar e ser dona de casa, cujo filho único se contentara com uma escola técnica profissionalizante (jamais uma coisa semelhante para o seu filho! — pensara Regina, com secreto júbilo); Vicky, cujo marido vendia... seguros de vida, entre tantas outras coisas estranhas. E Vicky (Oh, também tão esquisito!) vendia cerâmica e louça. No entanto, havia sido para Vicky que tivera coragem de chorar, com Vicky é que expressara, pelo menos em parte, sua torturada desilusão, sua mágoa e seu terror; sim, e também o terrível constrangimento, ao saber que os outros comentavam e que, durante anos, eles haviam desejado vê-la entregar os pontos — e agora estavam satisfeitos. Havia sido Vicky, talvez sempre houvesse sido Vicky. Regina decidiu então que, se afinal haveria um Natal para eles, naquele ano infeliz, seria na casa de Vicky e Steve, uma residência suburbana e comum, em estilo de rancho, no alegre subúrbio classe média de Ligonier, onde a maioria das pessoas ainda possuía carros americanos e chamava de "comer fora" uma ida ao McDonad's.

Mike, é claro, concordaria sem discutir com sua decisão. Ela não esperava e nem suportava mais do que isso.

Para Regina Cunningham, os três dias seguintes à notícia de que Arnie estava "em apuros" haviam sido um exercício permanente para manter o controle, uma longa luta pela sobrevivência. Sua sobrevivência, a sobrevivência da família, sobrevivência de Arnie — ele podia não acreditar nisso, mas ela descobrira que não tinha tempo para preocupar-se. O sofrimento de Mike jamais entrara em suas equações; o pensamento de que um poderia confortar o outro, jamais lhe passara pela mente, nem como especulação. Regina cobriu calmamente a máquina de costura, após Mike ter descido para comunicar o ocorrido. Fez isso e, em seguida, foi ao telefone, começando a agir. As lágrimas que mais tarde derramaria, conversando com a irmã, ainda estavam a mil anos de distância. Passara ao lado de Michael como se ele fosse uma peça do mobiliário. Ele a seguira em passo incerto, como havia feito durante todos os anos de seu casamento.

Regina telefonou para Tom Sprague, advogado da família. Ao saber que o problema era criminal, Sprague prontamente indicou-lhe um colega, Jim Warberg. Ela ligou para Warberg e foi atendida por um serviço de recados telefônicos, que não revelaria o número da residência do advogado. Regina ficou junto ao telefone por um instante, tamborilando os dedos levemente contra os lábios, e depois tornou a ligar para o advogado da família. Sprague não queria fornecer o número do colega, mas acabou cedendo. Quando Regina finalmente desligou, Sprague sentiu-se zonzo, quase chocado. Ela geralmente causava tal reação, quando crivava o interlocutor de perguntas.

Telefonou para Warberg e este respondeu que não podia cuidar do caso, em absoluto. Regina baixou novamente sua lâmina de bulldozer. No fim, além de aceitar o caso, Warberg terminou concordando em partir imediatamente para Albany, onde Arnie permanecia detido, a fim de ver o que se podia fazer. Falando com a voz franca e espantada do homem que se encheu de Novocaína e depois foi atropelado por um trator, o advogado informou conhecer um profissional perfeitamente à altura em Albany, capaz de resolver tudo. Regina foi inflexível. Warberg partiu para lá, em um avião particular, e deu notícias quatro horas mais tarde.

Comunicou que Arnie estava sendo mantido em Albany por uma acusação em aberto. Seria extraditado para a Pensilvânia no dia seguinte. A ação policial havia sido coordenada pela Pensilvânia e por Nova Iorque, juntamente com três agências federais: a Força-Tarefa Federal do Controle de Drogas, a Divisão do Imposto de Renda e o Departamento do Álcool, Tabaco e Armas de Fogo. O alvo principal não era Arnie, peixinho miúdo, mas Will Darnell e quem quer mais com quem Darnell estivesse negociando. Tais indivíduos, segundo informou Warberg, com seus suspeitos laços de envolvimento com o crime organizado e o desorganizado contrabando de drogas no novo Sul, eram os peixes graúdos.

— É ilegal deter alguém por uma acusação em aberto! — replicara Regina prontamente, valendo-se de profusa reserva de informações fornecida pelos programas criminais de TV.

Warberg não se sentia precisamente eufórico por estar onde se encontrava, já que havia planejado uma noite tranqüila no lar, lendo um livro. Replicou bruscamente:

— Em seu lugar, eu estaria de joelhos, agradecendo a Deus pelo que eles estão fazendo! O garoto foi apanhado com a mala do carro entulhada de cigarros sem selagem e, se eu os pressionar muito, ficarão felizes em acusá-lo, Sra. Cunningham. Se quer um conselho, a senhora e seu marido devem ir a Albany. Rapidamente.

— Se não me engano, disse que ele seria extraditado amanhã...

— Oh, sim, ficou tudo arranjado. Se vamos jogar duro com esses sujeitos, devemos nos dar por satisfeitos se o jogo for aqui, em nosso Tribunal. No caso presente, extradição não é problema.

— O que é então?

— Aquela gente quer brincar de derrubar todas as peças do dominó. Eles querem jogar seu filho contra Will Darnell. Arnold não está falando. Quero que os dois sigam para lá, e o convençam de que falar só irá beneficiá-lo.

— Irá mesmo? — perguntou ela, hesitante.

— Diabo, é claro! — vociferou Warberg, ao telefone. — Eles não querem botar seu filho na cadeia. Arnold é menor, filho de uma família de bem, sem qualquer ficha criminal anterior, nem mesmo um registro escolar de problemas disciplinares. Ele pode sair disto sem nem mesmo enfrentar um juiz. No entanto, vai ter que falar.

Assim, eles partiram para Albany. Regina foi conduzida por um curto e estreito corredor de ladrilhos brancos, iluminado por fortes lâmpadas enfiadas em pequenas cavidades no teto e cobertas por uma grade de arame. O lugar cheirava vagamente a Lysol e urina. Regina procurou convencer-se de que seu filho estava preso ali, seu filho, mas admitir isso foi bastante difícil. Aquilo não parecia real. Tinha muito mais semelhança com uma possível alucinação.

Quando viu Arnie, tal possibilidade desapareceu rapidamente.. O anteparo protetor contra choques também desapareceu e ela sentiu um medo frio e avassalador. Foi nesse momento que primeiro agarrou-se à idéia de "Superarmos isto", da mesma maneira como um afogado se aferra ao salva-vidas. Aquele era Arnie, era o seu filho, não em uma cela de prisão (foi a única coisa que a pouparam de ver, mas ela ficava grata por, inclusive, favores insignificantes), porém em um pequeno aposento quadrangular, cujo único mobiliário eram duas cadeiras e uma mesa marcada por queimaduras de cigarros.

Arnie a encarara fixamente e seu rosto parecia terrivelmente lívido, tinha uma aparência de caveira. Ele tinha ido ao barbeiro apenas uma semana antes e cortara o cabelo surpreendentemente curto (após anos, usando-o comprido imitando Dennis), mas agora a luz do teto brilhava com crueza sobre o que sobrara, fazendo-o parecer momentaneamente calvo, como se lhe tivessem raspado a cabeça para abrir-lhe a boca.

— Arnie! — disse Regina, e caminhou para ele.

Chegou até meio caminho. Arnie desviou os olhos, comprimindo os lábios, e ela parou. Uma mulher mais fraca ter-se-ia desfeito em lágrimas, porém Regina era de outra cepa. Deixou que a frieza voltasse, que a envolvesse novamente. Frieza era tudo o que poderia ajudar agora.

Em vez de abraçá-lo — evidentemente algo que Arnie não desejava —, sentou-se e disse a ele o que tinha de ser feito. Arnie recusou-se. Regina lhe ordenou que abrisse o bico com a polícia. Ele tornou a recusar. Ela argumentou. Arnie recusou-se. Ela fez um discurso bombástico. Ele se recusou. Ela suplicou. Ele se recusou. Finalmente, ela se limitou a ficar ali sentada apática, com uma dor de cabeça latejando nas têmporas. Perguntou a ele por que preferia ficar calado. Arnie recusou-se a explicar.

— Pensei que você fosse esperto! — bradou ela, finalmente. Estava quase louca de frustração. O que odiava, acima de tudo, era não conseguir o que queria, quando sentia uma necessidade absoluta de ter a vontade satisfeita, precisava tê-la. De fato, tal coisa nunca lhe acontecera, desde que saíra de casa. Até o momento presente. Era insultante ser derrotada tão calma e despreocupadamente por aquele menino que, um dia, mamara em seus seios. — Pensei que você fosse esperto, mas vejo que é um burro! Você... seu idiota! Eles o porão em uma cela! Quer ir para cadeia, no lugar desse Darnell? É isto o que deseja? Ele rirá de você. Rirá de você!

Regina não podia imaginar nada pior, e o aparente desinteresse do filho quanto a alguém rir ou não dele a deixou ainda mais enfurecida. Levantou-se da cadeira e afastou os cabelos de sobre a testa e os olhos, no gesto inconsciente da pessoa se dispondo a lutar. Respirava rapidamente e tinha o rosto corado. Para Arnie, ela tanto pareceu mais jovem quanto mais velha como jamais a vira.

— Não estou fazendo isso por Darnell — disse ele tranqüilo — e também não vou para a prisão.

— Quem é você, Oliver Wendell Holmes? — replicou ela, ferozmente, embora houvesse certa dose de alívio em sua fúria. Pelo menos, Arnie dizia algo. — Eles o pegaram com o carro dele, lotado de cigarros no porta-mala! Cigarros ilegais!

Arnie respondeu, com a mesma tranqüilidade:

— Os cigarros não estavam no porta-mala. Estavam em um compartimento debaixo do porta-mala. Um compartimento secreto. E aquele era o carro de Will. Will me disse que pegasse seu carro.

Regina olhou para ele.

— Está dizendo que não sabia da existência dos cigarros?

Arnie a fitou com uma expressão que, simplesmente, ela não conseguia aceitar, tão estranha nele a achou. Era desprezo, desacato. Bom como ouro o meu menino, bom como ouro, pensou ela, alucinadamente.

— Eu sabia e Will também, mas eles têm que provar, não têm? Ela conseguiu apenas fitá-lo, admirada.

— Se eles me acusarem disso, de algum modo — disse Arnie — minha sentença será suspensa.

— Arnie! — exclamou ela, por fim. — Você não está raciocinando direito. Talvez seu pai...

— Meu raciocínio está perfeito — cortou Arnie. — Não sei o que você está fazendo, mas estou raciocinando direito.

Ao falar, Arnie a encarou, e seus olhos cinzentos eram tão horrivelmente apáticos que Regina não suportou mais, e levantando-se saiu dali. Na pequena sala verde da recepção, passou às cegas perto do marido, sentado em um banco com Warberg.

— Vá você — disse a ele. — Veja se o faz voltar à razão!

Regina continuou andando sem esperar resposta e só parou no exterior do prédio, com o frio ar de dezembro pondo cor em suas faces quentes.

Michael entrou na outra sala para falar com o filho, porém não teve melhor sorte; quando saiu, tinha apenas a garganta seca e um rosto parecendo dez anos mais velho do que ao entrar.

No motel, Regina contou a Warberg o que Arnie tinha dito, e perguntou-lhe se havia alguma possibilidade de ele estar certo.

Warberg refletiu na pergunta.

— Sim, é uma defesa possível — afirmou —, mas seria muito mais viável se Arnie fosse o primeiro dominó da fila. E ele não é. Há um negociante de carros usados, aqui em Albany, chamado Henry Buck. Era o receptor. Também foi agarrado.

— E o que disse ele? — perguntou Michael.

— Não tenho meios de saber. Quando tentei falar com seu advogado, ele se recusou. Acho isso um mau sinal. Se Buck falar, acusará Arnie. Aposto tudo o que possuo como Buck pode testemunhar que seu filho sabia da existência daquele compartimento secreto... e isso é mau.

Warberg olhou fixamente para eles.

— Compreendam, o que seu filho disse é, em realidade, apenas uma meia esperteza, Sra. Cunningham. Falarei com ele amanhã, antes de o transferirem para a Pensilvânia. Espero fazê-lo ver que, nisto tudo, há uma possibilidade do caso não recair em seus ombros.

 

Os primeiros flocos de neve começaram a cair do céu carregado em torvelinhos, quando eles dobraram para a rua de Steve e Vicky. Será que ainda está nevando em Libertyville?, perguntou-se Arnie, e tocou as chaves em sua etiqueta de couro, dentro do bolso. Provavelmente estava.

Christine continuava na Garagem de Darnell, apreendida. Aquilo era bom. Pelo menos, estava resguardada do mau tempo. Ele a recolheria de novo. Com calma.

A semana anterior parecia um confuso pesadelo. Seus pais, argumentando com ele na saleta branca, pareciam possuir os desconexos rostos de estranhos: eram cabeças falando em língua estrangeira. O advogado que haviam contratado, Warley, Warmly ou qualquer coisa, ficara insistindo sobre algo que denominavam a teoria do dominó, bem como sobre a necessidade de cair fora do "maldito prédio, antes que tudo caia sobre sua cabeça, garoto — há dois Estados e três agências federais movimentando as bolas da demolição".

Arnie, no entanto, estava mais preocupado com Christine.

Parecia-lhe cada vez mais claro que Roland D. LeBay estava com ele ou pairando em algum lugar próximo — talvez se estivesse aglutinando dentro dele. A idéia não o atemorizou, ela o confortou. Entretanto, era preciso ser cuidadoso. Não sobre Junkins, Arnie sentia que Junkins tinha apenas suspeitas, e todas se orientando para direções erradas, irradiando-se a partir de Christine, em vez de convergirem para ela.

Com Darnell, porém... podia haver problemas com Will. Sim, verdadeiros problemas.

Naquela primeira noite em Albany, depois que seus pais haviam retornado ao motel, Arnie fora levado para uma cela, onde adormecera com surpreendente facilidade e rapidez. Então, tivera um sonho — não realmente um pesadelo, mas algo que parecia muito inquietante. Acordou cautelosamente no meio da noite, com o corpo banhado de suor.

Havia sonhado que Christine fora reduzida, em escala, a um pequenino Plymouth 58, não maior do que a mão de um homem. Estava na alameda de um depósito de carros velhos, circundada por um cenário em escala, espantosamente perfeito — havia uma rua de plástico que podia ser Basin Drive e uma outra que podia ser a JFK, onde "Penetra" Welch havia sido morto. Um pequeno prédio, que parecia exatamente o Ginásio de Libertyville. E casas de plástico, árvores de papel...

...mais um gigantesco, imenso Will Darnell, que estava nos controles, os quais indicavam quão rápida ou lentamente o pequenino Fury rodava por tudo aquilo. Sua respiração sibilava, entrando e saindo dos pulmões lesados, com um som de vendaval.

Você não quer abrir a boca, guri, disse Will. Inclinava-se para aquele mundo em escala reduzida, como o Descomunal Admirável Homem. Você não quer abrir a boca para assustar-me, porque estou nos comandos. Eu posso fazer isto...

E, lentamente, Will começava a girar o botão de controle, em direção à palavra RÁPIDO.

Não! Arnie tentou gritar. Não, não faça isso, por favor! Eu a amo! Por favor, você a mataria!

Nos trilhos da alameda, a diminuta Christine corria pela Libertyville em miniatura, cada vez mais depressa, a traseira rabeando nas curvas, enquanto ela chiava no ponto mais extremo da força centrífuga, aquele mistério de forma côncava. Agora, ela se tornara apenas um borrão de branco-sobre-vermelho, o motor emitindo um agudo e furioso zumbido Por favor!, gritou Arnie. Por favooooor!

Afinal, Will começara a girar o controle para trás, parecendo soturnamente satisfeito. O carrinho ia diminuindo a velocidade.

Se começar a acalentar idéias, basta recordar onde está seu carro, guri. Fique de bico calado, e ambos viveremos para ver outro dia. Já estive em apuros piores do que este...

Arnie estendera o braço para apanhar o carrinho, libertá-lo daquela pista de corrida. O Will do sonho empurrara sua mão.

De quem é o saco, guri?

Will, por favor...

Quero ouvir o que vai dizer.

O saco é meu.

Não se esqueça disso, guri.

Arnie despertara com isso nos ouvidos. Naquela noite, não houve mais sono para ele.

Seria tão improvável assim que Will soubesse... bem. que soubesse de algo sobre Christine? Não. Ele via muita coisa por aquela parede envidraçada, mas sabia como ficar de boca fechada — pelo menos até a hora certa de abri-la. Podia saber o que Junkins ignorava, que a regeneração de Christine em novembro não havia sido apenas estranha, como totalmente impossível. Ele adivinhava que muitos reparos jamais haviam sido feitos, pelo menos não por Arnie.

O que mais Will saberia?

Com uma rastejante friagem que subiu de suas pernas para a raiz do estômago, Arnie finalmente percebeu que Will poderia ter estado na garagem, na noite em que Repperton e os outros haviam morrido. De fato, isso era mais do que possível. Era provável. Jimmy Sykes não regulava bem da cabeça e Will não confiaria nele sozinho na garagem.

Você não quer abrir sua boca. Você não quer assustar-me, porque eu posso fazer isto...

Entretanto, mesmo supondo que Will soubesse, quem iria acreditar nele? Era muito tarde para agora querer iludir-se, e Arnie não conseguia mais libertar-se da inconcebível idéia... e nem mesmo queria. Quem daria crédito a Will, se ele resolvesse contar a alguém que, às vezes, Christine manobrava a si mesma? Que ela deixara a garagem por si mesma, na noite em que "Penetra" Welch fora morto, e na outra em que acidentara e matara aqueles bandidos? A polícia acreditaria nisso? Eles dariam boas gargalhadas, isso sim. E Junkins? Estava esquentando, mas Arnie não acreditava que ele fosse capaz de aceitar tal história, mesmo querendo. Arnie lhe vira os olhos. Portanto, se Will soubesse, de que lhe adiantaria tal conhecimento?

Então, com crescente horror, Arnie compreendeu que não importava. Will estaria fora da prisão, sob fiança, no dia seguinte ou no outro. Então, Christine seria sua refém. Ele poderia incendiá-la — já incendiara inúmeros carros nos velhos tempos, como Arnie bem sabia, ao ficar sentado no escritório dele, ouvindo-o recordar — e depois de incendiada, ao se tornar uma carcaça carbonizada e inútil, havia o aparelho compressor, nos fundos, atrás da garagem. A massa queimada de Christine seguiria pela esteira rolante e se transformaria em um comprimido cubo de metal.

Os tiras haviam lacrado a garagem.

Bem, isso não adiantava muito. Will Darnell era raposa bem velha, estaria preparado para qualquer contingência. Se quisesse entrar lá e incendiar Christine, ele o faria... embora fosse muito mais provável, Arnie pensou, que contratasse um especialista em seguros para fazer o serviço — um sujeito que atiraria montes de mechas incendiárias dentro do carro e, em seguida, acenderia um fósforo.

Mentalmente, Arnie podia ver as chamas surgindo. Podia sentir o cheiro do estofamento chamuscado.

Ficou deitado no beliche da cela, com a boca seca e o coração batendo descompassadamente no peito.

Você não quer abrir a boca. Você não quer assustar-me...

Claro, se Will tentasse algo e se descuidasse — se sua concentração falhasse, por apenas um momento —, Christine o pegaria. De certa forma, no entanto, Arnie não achava que Will se descuidaria.

 

No dia seguinte, ele havia sido levado de volta à Pensilvânia, acusado e depois afiançado por uma soma nominal. Haveria uma audiência preliminar em janeiro e já se falava em um júri principal. O caso do contrabando era matéria de primeira página em todo o Estado, embora Arnie fosse identificado apenas como "um jovem" cujo nome "era mantido em sigilo pelo Estado e pelas autoridades federais, em vista de sua condição como menor".

De qualquer modo, o nome de Arnie era do conhecimento geral em Libertyville. A despeito de seu recente e exuberante crescimento em drive-ins, cadeias de lanchonetes e boliches, Libertyville continuava sendo uma cidade universitária, onde todos sabiam da vida de todos. Aquelas pessoas, em sua maioria associadas à Universidade Horlicks, sabiam quem andara dirigindo para Will Darnell e quem havia sido preso após a divisa com o Estado de Nova Iorque em um carro com o porta-mala entulhado de cigarros contrabandeados. Era este o pesadelo de Regina.

Arnie foi para casa sob a custódia dos pais — e fiança de mil dólares —, após uma breve permanência na prisão. Em verdade, aquilo não passava de um grande e fedido jogo de Monopólio. Seus pais tinham vindo com o cartão de Saia da Cadeia. Como se esperava.

 

— Por que está sorrindo, Arnie? — perguntou Regina.

Michael dirigia a camionete a uma velocidade que poderia ser acompanhada por alguém a pé, procurando a casa de campo de Steve e Vicky, através dos redemoinhos da neve.

— Eu sorria?

— Sim — disse ela, e tocou-lhe o cabelo.

— Sinceramente, não me lembro — respondeu ele, de forma tão apática que Regina afastou a mão.

 

Tinham vindo para casa no domingo e seus pais o deixaram a sós, fosse por não quererem conversar com ele ou porque estavam profundamente desgostosos com o filho... podendo ainda haver uma combinação de ambas as coisas. Arnie pouco estava ligando para aquilo, eis a verdade. Sentia-se desgastado e exausto, um espectro do que era antes. Sua mãe fora para a cama e dormira a tarde inteira, após tirar o telefone do gancho. Seu pai encerrava-se sem necessidade no gabinete de trabalho, usava a máquina elétrica por algum tempo e depois a abandonava.

Arnie ficou na sala de estar, vendo uma partida de futebol de desempate, sem saber quem estava jogando e nem se importando, satisfeito em ver os jogadores correndo de um lado para outro, primeiro ao brilhante calor do sol californiano, mais tarde em uma mistura de chuva e neve, que transformara o campo em poças de lama e apagara as linhas.

Por volta de seis da tarde, ele cochilou.

E sonhou.

Tornou a sonhar, nessa noite e na seguinte, na cama em que dormia desde pequeno, o olmo lá de fora jogando para o quarto sua sombra familiar (um esqueleto a cada inverno, que ganhava nova e miraculosa roupagem a cada maio). Não eram sonhos como aquele do gigantesco Will, inclinando-se para a alameda entre os carros velhos do pátio. Só conseguia recordá-los por alguns momentos, depois de acordar. Talvez fossem apenas isso. Uma figura à margem da estrada; um dedo descarnado, tamborilando em uma palma putrefata, como uma lunática paródia de instruções; uma inquietante sensação de liberdade e... fuga? Sim, fuga. Nada mais, exceto...

Sim, ele fugia daqueles sonhos e retornava à realidade, com uma imagem repetitiva: estava ao volante de Christine, dirigindo lentamente, através de terrível nevasca. A neve era tão espessa que literalmente não enxergava nada além do capô. O vento não ululava, seu som era mais grave e sinistro, um rugido baixo. Então, a imagem mudava. A neve deixava de ser neve, era papel picado caindo. O rugido do vento era o rugido de enorme multidão comprimida nas calçadas da 59 Avenida. Todos o aplaudiam. Aplaudiam Christine. Aplaudiam, porque ele e Christine tinham... tinham...

Escapado.

A cada vez que este confuso sonho recuava, ele pensava: Quando isto terminar, eu vou embora. Vou embora, com toda a certeza. Vou rodar até o México. E o México, quando ele imaginava seu sol inalterável e sua quietude rural, parecia mais real do que os sonhos.

Pouco depois de acordar do último de tais sonhos, acudira-lhe a idéia de passar o Natal com tia Vicky e tio Steve, exatamente como nos velhos tempos. Acordara com essa idéia e ela se firmara em sua cabeça com peculiar persistência. Parecia uma idéia excelente, importantíssima. Sair de Libertyville, antes...

Bem, antes do Natal. O que mais poderia ser?

Assim, começou a falar nisso com os pais, sendo mais particularmente insistente com Regina. Na quarta-feira, ela entregou os pontos repentinamente e concordou. Arnie sabia que ela falara com a irmã, e Vicky não assumira atitudes de mandona, portanto estava tudo certo.

Agora, na véspera do Natal, Arnie sentia que tudo em breve estaria absolutamente perfeito.

 

— Lá está, Mike — disse Regina —, e você vai entrar direitinho por ela, como sempre faz, cada vez que viemos aqui.

Michael soltou um grunhido e manobrou para a entrada de carros.

— Eu já tinha visto — respondeu, no tom perpetuamente defensivo que sempre parecia usar com a esposa.

Ele é um burro, pensou Arnie. Ela fala com ele como a um burro, o comanda como a um burro e ele zurra como um burro.

— Você está sorrindo de novo — disse Regina.

— Estava pensando no quanto amo vocês dois — respondeu Arnie.

Michael olhou para ele, surpreso e comovido; nos olhos de sua mãe surgiu um brilho suave, que poderia ter sido provocado por lágrimas. Eles realmente acreditavam. Os bostas.

 

Eram umas três da tarde daquela véspera de Natal e a neve permanecia caindo em rajadas esporádicas, embora tais rajadas começassem a soldar-se, uma as outras. Segundo os meteorologistas, o atraso na chegada da tempestade nada prenunciava de bom. Ela se tinha compactado, o que tornava as coisas ainda piores. Havia previsões de possíveis acúmulos, variando de trinta a quarenta e cinco centímetros, com fortes desvios dos ventos mais fortes.

Leigh Cabot estava na sala de visitas de sua casa, diante de uma pequena árvore de Natal natural em que já começavam a despontar as agulhas (em sua casa, ela era a voz do tradicionalismo e, durante quatro anos, havia vencido a vontade do pai, que preferia uma árvore artificial, bem como a da mãe, que optava por um ganso ou galinha assada na época dos feriados, em vez do peru tradicional do Dia de Ação de Graças). Leigh estava sozinha em casa. Seus pais tinham ido à residência dos Stewarts, para os drinques de véspera de Natal. O Sr. Stewart era o novo chefe de seu pai e os dois davam-se bem. A Sra. Cabot esforçava-se em promover aquela amizade. Nos últimos dez anos, os Cabots se haviam mudado seis vezes, começando tudo de novo e, dentre todos os lugares onde tinham morado, sua mãe gostara mais de Libertyville. Queria continuar ali, e a amizade do marido com o novo chefe poderia contribuir bastante para realizar esse seu desejo.

Absolutamente só, e ainda virgem, pensou ela. Era uma idéia totalmente idiota mas de qualquer modo, Leigh se levantou de repente, como se tivesse sido espetada. Foi à cozinha, demasiado consciente dos pequeninos ruídos do país das maravilhas em fórmica: relógio elétrico, o forno onde estava sendo assado um presunto (virá-lo às seis, se eles ainda não tiverem voltado, recordou-se), um baque seco do congelador da Frigidaire, indicando a fabricação de mais um cubo de gelo.

Abriu a geladeira, viu uma embalagem de seis Cocas, ao lado da cerveja de seu pai e pensou: Afaste-se de mim, Satanás! Mesmo assim, ela apanhou uma lata. Pouco importava, se lhe estragasse a pele. Agora não ia mais sair com ninguém. E daí, se lhe nascessem espinhas?

A casa vazia a deixava inquieta. Isso jamais acontecera antes; Leigh sempre se sentira satisfeita e absurdamente competente quando seus pais a deixavam só — sem dúvida, uma reminiscência da infância. A casa sempre lhe parecera confortadora, mas agora os sons da cozinha, o uivo do vento aumentando lá fora, até mesmo o rumor de seus chinelos no linóleo — tais sons pareciam sinistros, até amedrontadores. Se tudo tivesse ocorrido de maneira diferente, Arnie poderia estar ali, com ela. Seus pais, especialmente sua mãe, tinham gostado dele. A princípio. Agora, naturalmente, depois do sucedido, sem dúvida sua mãe até lhe lavaria a boca com sabão, se soubesse que estivera pensando nele. No entanto, ela pensava nele. Pensava nele quase o tempo todo. Perguntando-se por que Arnie mudara. Perguntando-se como ele estaria aceitando o sucedido. Perguntando-se se ele estaria legal.

O vento aumentou de tom até uivar, em seguida diminuindo um pouco, recordando-lhe — sem qualquer motivo, naturalmente — o motor de um carro, acelerando e depois desacelerando.

Sem retorno da Curva do Homem Morto, sussurrou sua mente, de modo estranho. Então, sem o menor motivo (lógico) ela foi até a pia e despejou a Coca no ralo, perguntando-se se iria chorar, vomitar ou o quê.

Leigh percebeu, com uma surpresa crescente, seu estado de quase terror.

Sem o menor motivo.

Lógico.

Afinal, seus pais haviam deixado o carro na garagem (carros, estava com carros no cérebro). Não gostava de pensar no pai tentando voltar para casa, ao sair da residência dos Stewarts, dirigindo um tanto zonzo devido a três ou quatro martínis (exceto que eles sempre o chamavam martunis, em típica atitude gozadora de adultos). Eram apenas três quarteirões de distância e eles dois haviam saído bem agasalhados e risonhos, como duas crianças grandes, preparando-se para fazer um boneco de neve. A caminhada de volta os tornaria sóbrios. Seria bom para ambos. Seria bom se...

O vento tornou a intensificar-se — zumbindo em torno das calhas e depois murmurejando — e, de súbito, Leigh viu seus pais embriagados caminhando pela rua, entre nuvens de neve solta, um amparando o outro para que nenhum caísse sobre o traseiro, rindo muito. Papai talvez beliscasse mamãe, através de suas calças para a neve. A maneira como ele às vezes a beliscava, quando ficava um pouco tonto de bebida, era algo que sempre deixara Leigh irritada, porque parecia um ato demasiado juvenil, para ser praticado por um adulto formado. Naturalmente, é claro, ela os amava. Seu amor era uma parte da irritação, e sua exasperação ocasional com eles constituía uma grande parte do amor que lhes dedicava.

Os dois estariam caminhando juntos, através de uma neve tão espessa como fumaça, e então dois enormes olhos verdes se abriam na brancura atrás deles, parecendo flutuar... olhos que se assemelhavam terrivelmente aos círculos dos instrumentos do painel de um carro, os mesmos que vira, quando quase morrera sufocada... e aqueles olhos iam crescendo... perseguindo seus indefesos, risonhos e empilecados pais.

Leigh respirou bruscamente e voltou à sala. Chegou até o telefone, quase o tocou, mas então afastou-se e retornou à janela, de onde ficou olhando para a brancura, os cotovelos apoiados nas palmas em concha.

O que lhe competia fazer? Telefonar para eles? Dizer-lhes que estava sozinha em casa, que ficara pensando no carro velho e algo sorrateiro de Arnie, sua namorada de aço chamada Christine e, por isso, queria que eles voltassem para casa, por temer pelos dois e por si mesma? O que devia fazer?

Seja esperta, Leigh. Esperta.

A superfície negra da rua, após ter sido limpa, desaparecia novamente sob neve recente, mas devagar. Só agora tinha começado a nevar com mais intensidade e o vento tentava limpar a rua periodicamente com fortes rajadas, as quais enviavam membranas de neve pulverizada, que subia e se fundia ao céu cinza-alvacento da tarde borrascosa, como fantasmas de fumaça que se contorciam lentamente...

Oh, mas o terror estava ali, era real — e ia acontecer alguma coisa. Ela sabia. Ficara abalada, ao saber que Arnie fora detido por contrabando, mas essa reação nada significava, diante do choque, do medo doentio que sentira ao abrir o jornal dias antes e ver o que acontecera a Buddy Repperton e aqueles outros dois rapazes — um dia em que seu primeiro, louco, terrível e, de certa forma, exato pensamento, havia sido: Christine.

E agora pendia fortemente sobre ela a premonição de mais uma negra ameaça, não conseguia libertar-se daquilo, era ridículo, Arnie estivera na Filadélfia, como membro de um torneio de xadrez, ela fizera perguntas a respeito do dia certo — e uma coisa nada tinha a ver com a outra, e não ia mais pensar naquilo, ligaria todos os rádio e a televisão, para encher a casa de sons e impedi-la de pensar naquele carro que fedia como uma sepultura, naquele carro que tentara liquidá-la, assassiná-la...

— Oh, que droga! — sussurrou. — Por que não paro com isso?

Seus braços enrijeceram com os arrepios.

Voltou bruscamente para junto do telefone, encontrou o catálogo e, como fizera Arnie certa noite, duas semanas antes, Leigh ligou para o Hospital Comunitário de Libertyville. A voz agradável de uma recepcionista informou que o Sr. Guilder recebera alta naquela manhã. Leigh agradeceu e desligou.

Ela ficou pensativa na sala de visitas, olhando para a pequena árvore de Natal, os presentes, a manjedoura a um canto. Em seguida, procurou o número dos Guilders no catálogo e discou.

— Leigh! — exclamou Dennis, agradavelmente surpreso. O fone na mão dela estava frio.

— Posso ir aí falar com você, Dennis?

— Hoje? — perguntou ele, sem entender.

Pensamentos confusos passaram pela mente de Leigh. O presunto no forno. Tinha que desligar o forno às cinco horas. Seus pais estariam em casa. Era véspera de Natal. A neve. E... e ela não pensou se seria seguro sair aquela noite. Caminhar pelas calçadas, quando alguma coisa podia estar espreitando, dentro da neve. Qualquer coisa. Não podia, principalmente nessa noite, e isso era o pior. Ela não pensou se seria seguro estar fora de casa nessa noite.

— Leigh?

— Não, esta noite, não — respondeu. — Estou tomando conta da casa para meus pais. Os dois foram a um coquetel.

— Certo, os meus também — disse Dennis alegre. — Eu e minha irmã estamos jogando Parcheesi. Ela está roubando.

Uma voz soou fracamente:

— Não estou roubando coisa nenhuma.

Em outra época, aquilo seria engraçado. Não agora.

— Depois do Natal. Na terça-feira, talvez. Dia vinte e seis. Está bem assim?

— Claro — respondeu ele. — É sobre Arnie, Leigh?

— Não — disse ela, apertando o telefone com tanta força que sua mão ficou entorpecida. Precisou esforçar-se para controlar a voz. — Não... Não se trata de Arnie. Quero conversar com você sobre Christine.

 

Desaba a Tempestade

Minha máquina é envenenada, com tração nas quatro rodas,

Tem um motor Roadrunner, em um Ford 32,

Sim, e noite alta, quando estou sem fazer nada,

Juro que penso em seu rostinho, quando a deixo rodar.

Bem, olhe lá longe, vê aquelas luzes da cidade?

Vamos, queridinha, venha motorar esta noite.

— Bruce Springsteen

 

Pelas cinco horas daquela tarde, a tempestade havia embranquecido a Pensilvânia, varando o Estado de uma fronteira à outra, uivando, com a goela ululante cheia de neve. Não houve nenhuma correria final de compras às vésperas do Natal. Em sua maioria, os exaustos e abatidos balconistas e todos os que lidavam com vendas agradeceram o imprevisto à Mãe Natureza, embora perdessem as horas extras de trabalho. Saboreando drinques diante do agradável fogo de lareiras acesas pouco antes, eles comentavam que já teriam serviço de sobra na terça-feira, quando começassem as devoluções.

A Mãe Natureza não parecia tão maternal assim naquela tarde, quando um prematuro crepúsculo foi substituído por absoluta escuridão e depois por uma noite de nevasca. Naquela noite, ela foi uma terrível feiticeira pagã, uma megera comandando o vento, e o Natal não significava nada para ela; arrancou todos os ouropéis da Câmara do Comércio e os enviou piruetando para o alto do céu escuro, soprou a grande cena de natividade à frente do posto policial, atirando-a para um monte de neve, onde as ovelhas, as cabras, a Mãe de Deus e o Menino só seriam encontrados no próximo janeiro, que os revelaria. E, como cusparada final no olho da temporada dos feriados, arrancou a árvore de doze metros à frente do Edifício Municipal de Libertyville, enviando-a através de uma enorme janela para dentro do gabinete do Avaliador de Impostos da cidade. Muitos disseram mais tarde que o lugar fora bem escolhido.

Às sete da noite, os limpa-neve não davam mais conta do recado. Às sete e quinze, um ônibus abriu caminho laboriosamente pela Main Street, tendo mais atrás uma fila de carros seguindo sua traseira prateada, como filhotes acompanhando a mãe. Então a rua ficou vazia, exceto por uns poucos carros estacionados obliquamente, que já haviam ficado enterrados até os pára-choques, após a passagem dos veículos limpa-neve. De manhã, a maioria deles estaria sepultada por completo. No cruzamento de Main Street e Basin Drive, um sinal de trânsito, cuja luz não dirigia ninguém em absoluto, foi torcido pelo vento e dançou suspenso em seu cabo. Houve um súbito e crepitante som elétrico e a luz apagou. Dois ou três passageiros do último ônibus da cidade atravessavam a rua nesse momento; olharam para cima e andaram mais depressa.

Lá pelas oito da noite, quando os Cabots finalmente chegaram em casa (para Leigh um imenso mas não falado alívio), as estações locais de rádio transmitiam um pedido da Polícia Estadual da Pensilvânia, para que todos se mantivessem afastados das ruas e estradas.

Às nove horas, quando Michael, Regina e Arnie Cunningham, munidos de ponche quente com rum (reconhecidamente uma Especialidade da Temporada, obra de tio Steve), estavam em torno da televisão com tio Steve e tia Vicky, para verem Alastair Sim em Uma canção de Natal, uma extensão de sessenta e cinco quilômetros da auto-estrada de pedágio da Pensilvânia havia sido fechada pela neve impelida e amontoada pelo vento. Por volta de meia-noite, toda ela estaria intransitável.

Às nove e meia, quando os faróis dianteiros de Christine se acenderam subitamente na solitária garagem de Will Darnell, colocando um brilhante arco na escuridão interior, Libertyville estava com todas as ruas impedidas, exceto pela passagem ocasional de algum veículo limpa-neve.

Na garagem silenciosa, p motor de Christine disparou e morreu.

Disparou e morreu.

No assento dianteiro vazio, a alavanca de mudança baixou para DRIVE.

Christine começou a mover-se.

O dispositivo eletrônico, preso no pára-brisa, zumbiu brevemente. Seu som sussurrante se perdeu no ulular do vento, mas a porta o ouviu; chocalhou obedientemente para cima em seus trilhos. A neve foi soprada para o interior e rodopiou como poeira na garagem.

Christine partiu para o exterior, espectral dentro da neve. Dobrou à direita e desceu a rua, seus pneus cortando fundo a neve, com firmeza e precisão, sem patinar, derrapar ou vacilar.

Um sinal se acendeu — um olho âmbar e pestanejante na neve. Ela dobrou para a esquerda, em direção à estrada JFK.

 

Don Vandenberg sentava-se atrás da mesa, no escritório do posto de gasolina de seu pai. Seus pés e seu pênis estavam erguidos. Ele lia um dos livros pornográficos do pai, um volume altamente mordaz e provocante, intitulado As Trepadas de Pammie. Pammie já havia trepado com todo mundo, excetuando-se o leiteiro e o cachorro. O leiteiro vinha subindo a rua e o cachorro jazia aos pés dela. quando a sineta tocou, indicando um freguês.

Don ergueu os olhos, impaciente. Telefonara para seu pai às seis horas, quatro horas atrás, perguntando se não seria melhor fechar o posto — não haveria aquela noite movimento suficiente que pagasse a eletricidade consumida pelo letreiro. Já em casa, aquecido, com bebida nas tripas e seguramente abrigado, ele respondera para mantê-lo aberto até meia-noite. Se jamais houvesse um Scrooge, pensara Don ressentido, ao bater com o telefone no gancho, esse era seu velho.

O simples fato era que Don não gostava mais de ficar ali sozinho, durante a noite. Tempos atrás — e não fazia muito — ele teria companhia à vontade. Buddy estaria lá, e Buddy era como um ímã, atraindo os outros com sua bebida, sua coca ocasional, mas acima de tudo pela simples força de sua personalidade. Agora, no entanto, todos se tinham ido. Todos eles.

Havia vezes, no entanto, que Don imaginava o contrário. Por vezes (quando estava sozinho, como naquela noite), tinha a impressão de que poderia erguer os olhos e vê-los sentados ali — Richie Trelawney de um lado, "Penetra" Welch do outro e Buddy entre eles, com uma garrafa de Texas Driver na mão e um baseado atrás da orelha. Horrivelmente pálidos, todos três parecendo vampiros, tinham olhos vidrados, como os de um peixe morto. Então, Buddy erguia a garrafa e sussurrava: Tome um gole, seu filho da mãe— logo estará morto, como nós.

Algumas vezes tais fantasias eram tão reais que o deixavam com a boca seca e as mãos trêmulas.

E Don estava perfeitamente a par dos motivos. Eles nunca deveriam ter arrebentado o carro do Cara de Cona aquela noite. Cada um dos que haviam tomado parte na brincadeira tivera morte horrível. Todos eles, quer dizer, exceto ele próprio e Sandy Galton. Sandy se enfiara em seu velho e estropiado Mustang, no qual desaparecera para qualquer lugar. Durante aqueles longos turnos da noite, Don freqüentemente pensava que gostaria de fazer o mesmo.

Lá fora, o freguês tocou a buzina.

Don bateu com o livro em cima da mesa, perto da máquina de cartões de crédito, suja de graxa. Depois lutou para enfiar sua jaqueta esforçando-se para ver o carro e perguntando-se quem seria louco o bastante para aventurar-se na rua, debaixo de semelhante tempestade. Devido à neve que o vento fazia esvoaçar, era impossível deduzir algo sobre o carro ou o motorista; Don não conseguiu ter certeza de nada, excetuando-se os faróis e o formato da carroceria, que era comprida demais para um carro novo.

Algum dia, pensou ele, enfiando as luvas e dando um relutante adeus à sua ereção, seu pai instalaria bombas automáticas e toda aquela merda teria fim. Se havia pessoas birutas o suficiente para saírem de casa em noites iguais àquela, que bombeassem sua própria gasolina.

A porta quase foi arrancada de sua mão. Precisou segurá-la com todas as forças, para que não escapasse e batesse de volta na lateral de concreto do prédio e talvez estilhaçasse a vidraça. Esforçou-se tanto que quase caiu sentado sobre o traseiro. A despeito do uivo persistente do vento (que estivera tentando não ouvir), havia subestimado inteiramente a potência da tempestade. A própria profundidade da neve — além de vinte centímetros — o ajudou a manter-se de pé. Esse carro fodido deve estar com pneus para neve, pensou ressentido. Se o cara me vier com cartão de crédito sou bem capaz de quebrar a espinha dele.

Abriu caminho penosamente na neve, aproximando-se do primeiro conjunto de ilhas. O filho da mãe estacionara no conjunto mais distante. Naturalmente. Don tentou erguer, os olhos uma vez, mas o vento lhe jogou neve no rosto, em uma lambada fedorenta, e ele baixou a cabeça depressa, deixando que o topo do capuz da jaqueta recebesse o impacto maior.

Cruzou pela frente do carro, banhado por um momento pela luz brilhante, mas fria, dos faróis dianteiros duplos. Caminhando com dificuldade, chegou ao lado do motorista. As luzes fluorescentes da ilha em que ficava a bomba transformavam o carro em uma espalhafatosa mancha borgonha de branco-sobre-púrpura. As bochechas de Don já estavam entorpecidas. Se o cara quiser um dólar de gasolina e me pedir para checar o óleo, vou dizer pra ele enfiar no rabo, pensou, e levantou a cabeça para as ferroadas da neve, quando o vidro da janela foi descido.

— Em que posso a... — começou ele, e a palavra ajudá-lo se tornou um grito alto, sibilante e impotente: — aaaaaaahhhhhhh..!

Inclinando-se para fora da janela, a menos de quinze centímetros de seu próprio rosto, estava um cadáver putrefato. Seus olhos eram enormes órbitas vazias, os lábios mumificados tinham sido repuxados para trás, sobre alguns poucos dentes amarelados. Uma das mãos, alvacenta, jazia sobre o volante. A outra, estalando horrivelmente, adiantava-se para tocá-lo.

Don chapinhou para trás, seu coração uma máquina desembestada no peito, seu terror uma monstruosa rocha quente na garganta. A coisa morta acenou para ele, sorrindo, enquanto o motor do carro roncava subitamente, ao ser acelerado.

— Encha o tanque — sussurrou o cadáver. A despeito de seu choque e seu horror, Don viu que ele usava os esfarrapados remanescentes de um uniforme do Exército, manchado de bolor. — Encha, seu bosta!

Os dentes da caveira sorriram, iluminados pela luz fluorescente. Mais no fundo daquela boca, cintilou um pedacinho de ouro.

— Tome um gole, filho da mãe— sussurrou outra voz roucamente, e Buddy Repperton inclinou-se para diante no assento traseiro, estendendo uma garrafa de Texas Driver para Don. Vermes afloraram e se torceram em seu sorriso. Besouros rastejaram no que lhe restava de cabelo. — Acho que está precisando.

Don gritou agudamente, o som esganiçando-se ao partir de sua garganta. Girou sobre si mesmo e correu através da neve, em grandes saltos como um desenho animado; tornou a guinchar, quando o motor do carro clamou toda a potência de seus cilindros. Olhando por sobre o ombro, ele viu que era Christine, o automóvel parado perto das bombas, a Christine de Arnie, que agora se movia, soltando neve em jatos com seus pneus traseiros. As coisas que ele vira haviam desaparecido — o que, de certa forma, ainda era pior. As coisas tinham sumido. O carro se movia sozinho.

Don virou-se para a rua e agora escalava o monte de neve formado pelos limpa-neve que passavam. Desceu pelo outro lado. Ali, o vento havia varrido o pavimento, deixando-o limpo de tudo, exceto de um ocasional montículo de neve. Don escorregou em um deles. Seu pé escapuliu e ele caiu de costas, com um baque surdo.

Um momento depois, a rua era inundada por luz branca. Don rolou sobre si e ergueu o rosto, os olhos apertados loucamente nas órbitas, em tempo de ver os imensos círculos brancos dos faróis de Christine, quando ela irrompeu através do monte de neve e arremeteu sobre ele, como uma locomotiva.

 

À semelhança da Gália, todo o setor de Libertyville Heights era dividido em três partes. O semicírculo mais próximo da cidade, sobre os baixios das montanhas, tinha sido conhecido como Liberty Lookout — até meados do século XIX (uma Placa do Bicentenário, na esquina das Ruas Rogers e Tacklin, recordava o fato) — e era a única área realmente pobre da cidade. Tratava-se de uma zona superlotada de edifícios e construções com estruturas de madeira. Varais de roupas enfileiravam-se desordenadamente pelos quintais que, em estações mais temperadas, pululavam de crianças e brinquedos baratos — na maioria dos casos, tanto as crianças como os brinquedos estavam em péssimas condições. Essa vizinhança, que outrora pertencera à classe média, fora cada vez mais negligenciada desde que, em 1945, cessaram os empregos de guerra. O declínio instalou-se lentamente a princípio, depois ganhando velocidade nos anos 60 e início dos 70. Agora chegava o pior, embora ninguém se aventurasse a afirmá-lo, pelo menos em público, quando o declarante poderia ser citado. Os negros se mudavam para lá. O fato era comentado, em particular nas melhores partes da cidade, entre churrascos e drinques: os negros, que Deus nos ajude, os negros estão descobrindo Libertyville. A área, inclusive, até já ganhara um nome — não era mais Liberty Lookout, mas Low Heights, isto é, o lado inferior de Heights. Era um nome que para muitos tinha um sabor arrepiante de gueto. O editor do Keystone tinha sido discretamente informado, por vários de seus anunciantes de peso, que o uso impresso de tal frase, que assim ficaria legitimada, os deixaria muito aborrecidos. E o editor, cuja mãe nunca criara idiotas, jamais a imprimiu.

Heights Avenue partia de Basin Drive, em Libertyville propriamente dita, para então começar a subir. A avenida seguia destramente por entre Low Heights, deixava esta zona para trás e então embrenhava-se por um cinturão verde, penetrando a seguir em uma área residencial. Esta parte da cidade era conhecida simplesmente como Heights. Tudo isto talvez pareça um tanto confuso — Heights-isto e Heights-aquilo —, mas os moradores de Libertyville sabiam do que estavam falando. Mencionar Low Heights significava pobreza, gentalha e coisas assim. Abandonado o adjetivo "Low", significava a direção contrária à pobreza. Era ali que se situavam as belas e antigas residências, em sua maioria elegantemente distanciadas da rua e, algumas das mais refinadas, erguidas atrás de espessas sebes de seixos. Os impulsionadores de Libertyville e os endinheirados residiam nesse setor — o dono do jornal, quatro médicos, a rica e amalucada neta do homem que inventara o sistema ejetor disparo-rápido, para pistolas automáticas. Em sua maioria, os demais residentes eram advogados.

Além desta área dos poderosos da cidadezinha respeitável, Heights Avenue passava através de uma zona de bosques, em realidade demasiado densa para ser chamada de cinturão verde. No ponto mais alto de Heights, a Stanson Road se ramificava para a esquerda e ia morrer no Embankment, um terrapleno acima da cidade e do drive-in de Libertyville.

No outro lado desta montanha baixa (mas também conhecida como Heights) situava-se uma vizinhança razoavelmente antiga da classe média, onde casas de quarenta e cinqüenta anos envelheciam lentamente. Quando esta área começava a transformar-se em zona rural, Heights Avenue passava a ser County Road Nº 2.

Às dez e meia daquela véspera de Natal, um Plymouth 1958, pintado em duas cores, começou a subir pela Heights Avenue, suas luzes abrindo caminho através da densa escuridão entupida de neve. Os residentes veteranos de Heights diriam que nada — exceto, talvez, um veículo com tração nas quatro rodas — conseguiria subir a Heights Avenue aquela noite, mas o fato é que Christine seguiu em frente, desenvolvendo uns constantes cinqüenta quilômetros por hora, os faróis dianteiros sondando o terreno, seus limpadores de pára-brisa movendo-se ritmicamente para um lado e para outro, totalmente vazia no interior. As marcas frescas de seus pneus eram as únicas, em lugares que chegavam quase a trinta centímetros de profundidade. O vento persistente as enchia com rapidez. De vez em quando, seu pára-choque dianteiro e o capô explodiam através da crista de um monte de neve acumulada pelo vento, focinhando a neve pulverizada para os lados, sem nenhuma dificuldade.

Christine passou pela ramificação da Stanson Road e seguiu até a terraplenagem do Embankment, onde Arnie e Leigh haviam tido um encontro certa vez. Chegou ao alto de Libertyville Heights e começou a descer para o extremo mais distante, a princípio através de bosques escuros, cortados apenas pela fita branca que assinalava a estrada, depois pelas casas suburbanas, com suas aconchegantes luzes na sala de estar e, em alguns casos, exibindo alegres guirlandas de luzes natalinas. Em uma daquelas casas, um homem jovem que acabara de desempenhar o papel de Papai Noel e que tomava um drinque de comemoração com a esposa, olhou casualmente para fora e viu os faróis que iam passando. Apontou-os para ela.

— Se aquele sujeito subiu até Heights esta noite — comentou, com um sorriso —, deve ter vindo empurrado pelo demônio.

— Esqueça — respondeu ela. — E agora que as crianças já tiveram a sua parte, o que eu vou ganhar de Papai Noel?

Ele tornou a sorrir.

— Daremos um jeito nisso — respondeu.

 

Num lugar mais distante da rua, quase onde os Heights deixavam de ser os Heights, Will Darnell estava sentado na sala da casa simples de dois pavimentos, que lhe pertencera por trinta anos. Usava um surrado e desbotado roupão azul por cima da calça do pijama, a enorme barriga projetando-se como uma lua intumescida. Assistia à conversão final de Ebenezer Scrooge, junto à Bondade e à Generosidade, mas em realidade nada via. Sua mente seguia mais uma vez à deriva, através das peças de um quebra-cabeça que se tornava cada vez mais fascinante: Arnie, Welch, Repperton, Christine. Will envelhecera uma década naquela semana ou pouco mais, após a incursão policial. Tinha dito àquele tira Mercer que estaria de volta aos negócios, no mesmo lugar, dentro de duas semanas. No entanto, tinha suas dúvidas. Parecia-lhe que, ultimamente, sua garganta vivia viscosa, devido ao sabor do maldito inalador.

Arnie, Welch, Repperton... Christine.

"— Rapaz!" — chamou Scrooge, de sua janela, como uma caricatura do Espírito do Natal, em sua camisola e touca de dormir. — "Aquele belo peru continua exposto na vitrine do açougueiro?"

"— Qual?" — perguntou o garoto. — "Aquele do meu tamanho?"

"— Sim, sim" — respondeu Scrooge, rindo sufocadamente, selvagemente. Era como se os três espíritos, em vez de salvá-lo, o tivessem enlouquecido. — "Aquele do seu tamanho!"

Arnie, Welch, Repperton... LeBay?

Por vezes, ele achava que não fora a ação policial que o deixara tão prostrado, que o fazia sentir-se exausto e amedrontado o tempo todo. Tampouco era o fato de haverem atuado contra seu contador favorito ou porque o pessoal dos impostos federais estivesse metido naquilo e, desta feita, para valer. Os homens dos impostos não eram o motivo por ter começado a esquadrinhar a rua, antes de sair de casa pela manhã; o Gabinete do Procurador-geral do Estado nada tinha a ver com os súbitos olhares que passara a deitar para trás, sobre o ombro, quando vinha de carro para casa à noite, voltando da garagem.

Já analisara infinitamente o que tinha visto aquela noite — ou o que julgava ter visto. Vezes e vezes sem conta, tentando convencer-se de que aquilo não tinha sido real em absoluto... ou que era absolutamente real. Pela primeira vez, em anos, via-se duvidando dos próprios sentidos. E, à medida que o evento recuava no passado, ficava mais fácil acreditar que tinha adormecido e sonhara tudo aquilo.

Will não tinha visto Arnie desde a ação policial e nem tentara telefonar para ele. A princípio, havia pensado em usar seu conhecimento sobre Christine como arma para manter fechada a boca de Arnie, caso ele enfraquecesse e quisesse falar — Deus sabia que o garoto podia ir longe, a fim de enviá-lo para a prisão, se cooperasse com os tiras. Somente depois que a polícia agiu por toda parte, Will percebeu o quanto o garoto sabia, o que lhe valeu alguns amedrontados momentos de auto-avaliação (algo mais se tornaria perturbador, sendo tão estranho à sua natureza): teriam todos eles sabido tanto? Repperton e todos os bandidos clones de Repperton, estendendo-se no correr dos anos? Poderia ele, realmente, ter sido tão estúpido?

Não, acabou decidindo. Era apenas Cunningham. Porque Cunningham era diferente. Parecia captar as coisas quase intuitivamente. Não costumava contar vantagens, beber ou mentir. De uma forma singular, Will se sentia quase paternal em relação a ele — não que vacilasse em colocar o garoto em seu devido lugar, caso ele tivesse a mais remota idéia de virar o barco. E tampouco vacilaria agora, garantiu a si mesmo.

Na TV, um mal-acabado Scrooge em preto e branco estava em companhia dos Cratchit. O filme chegava ao fim. Aquele bando, todos eles, pareciam amalucados, eis a verdade, mas Scrooge era, sem a menor dúvida, o pior. A expressão de louca alegria em seu olhar não diferia muito da de um homem que Will conhecera vinte anos antes, um sujeito chamado Everett Dingle, que saíra da garagem para casa, certa tarde, e assassinara toda a família.

Will acendeu um charuto. Qualquer coisa valia a pena, para tirar o sabor do inalador de sua boca, aquele gosto infecto. Ultimamente, respirar parecia mais difícil do que nunca. Os malditos charutos ainda pioravam a situação, mas ele estava velho demais para mudar.

O garoto não tinha falado — pelo menos, ainda não. Eles tinham apanhado Henry Buck, Will ficara sabendo por seu advogado. Henry, com sessenta e três anos, avô, negaria Cristo três vezes, se lhe prometessem liberação ou suspensão da pena, em troca de suas declarações. O velho Henry Buck estava vomitando tudo quanto sabia o que, felizmente, não era grande coisa. Estava a par dos "fogos-de-artifício" e cigarros, mas isso constituía apenas dois elos do que, certa vez, havia sido urna cadeia de seis ou sete elos, abrangendo bebida, carros roubados, armas de fogo com abatimento (incluindo-se algumas metralhadoras, vendidas a fanáticos por armas e caçadores homicidas, que queriam ver se elas "realmente dilaceram um alce, como me contaram"), e antigüidades roubadas da Nova Inglaterra. E, nos últimos dois anos, cocaína. Este último havia sido um engano; Will agora sabia disso. Aqueles colombianos lá de Miami eram tão loucos como ratos em uma casa de drogas. Por falar nisto, eles eram os ratos da casa de drogas. Graças a Deus, Arnie não fora agarrado levando meio quilo de coca.

Bem, os tiras iam feri-lo desta vez — a que ponto, muito ou pouco, dependia bastante daquele especial garoto de dezessete anos e, talvez, de seu também especial carro. As coisas estavam tão delicadamente equilibradas como um castelo de cartas — e Will hesitava entre fazer ou dizer alguma coisa, temendo que a situação mudasse para pior. E sempre havia a possibilidade de que Cunningham lhe risse na cara e o chamasse de louco.

Will levantou-se, com o charuto preso entre os maxilares, e desligou o aparelho de televisão. Devia ir para cama, porém seria bom tomar um brandy primeiro. Ele agora vivia cansado, mas o sono custava a chegar.

Virou-se na direção da cozinha... e foi quando a buzina começou a soar fora da casa. O som chegou até ele acima do uivo do vento, em buzinadas curtas e imperativas.

Will parou de repente na porta da cozinha e apertou com firmeza o roupão em torno da barriga volumosa. Seu rosto ficou atento, concentrado e vivo, subitamente o rosto de um homem muito mais novo. Ficou ali por um momento mais.

Três outras buzinadas bruscas e breves.

Deu meia-volta, tirando o charuto da boca, e caminhou lentamente pela sala de estar. Um quase sonhador senso de déjà vu passou sobre ele como água tépida. Misturado a uma impressão de fatalismo.

Sabia que era Christine lá fora, antes mesmo de erguer a cortina e espiar. Viera buscá-lo, e pensou que já parecia saber disso.

O carro estava no início da alameda que vinha até a garagem, pouco mais do que um fantasma, nas membranas da neve que soprava. A claridade dos faróis brilhava em cones que se alargavam e por fim desapareciam dentro da tempestade. Por um momento, Will teve a impressão de haver alguém ao volante, mas piscou de novo e viu que o carro estava vazio. Tão vazio como quando retornara à garagem, naquela noite.

Fom! Fom! Fom-fom!

Quase como se estivesse falando.

O coração de Will bateu pesadamente em seu peito. Virou-se bruscamente para o telefone. Chegara, afinal, o momento de telefonar para Cunningham. Ligar para ele, e dizer-lhe que acorrentasse seu demônio de estimação.

Estava a meio caminho quando ouviu o motor do carro gritar. Era um som semelhante ao brado estridente de uma mulher, farejando traição. Um momento depois, houve um forte rangido. Will retornou à janela, a tempo de ver o carro dando marcha à ré, do enorme monte de neve que fechava o final de sua entrada para a garagem. O capô de Christine estava pulverizado de neve e ligeiramente ondulado. O motor tornou a acelerar. As rodas traseiras giravam sobre a neve pulverizada e então aderiram ao solo. O Plymouth saltou através da rua nevada e arremeteu novamente contra o monte de neve. Mais neve foi atirada para o alto, desgarrando-se ao vento como fumaça de charuto, jogada diante de um ventilador.

Jamais conseguirá, pensou Will. E mesmo que consiga invadir a entrada da garagem... e daí? Está pensando que vou sair e fazer seu jogo?

Com a respiração sibilando mais agudamente do que nunca, ele voltou para junto do telefone, verificou o número da casa de Cunningham e começou a discá-lo. Seus dedos ficaram nervosos, errou os números, praguejou, atingiu o dispositivo de desligar, começou outra vez.

Lá fora, o motor de Christine acelerou. Um instante depois houve um rangido, quando ela atingiu o monte de neve pela terceira vez. O vento uivou, e a neve atingiu a grande janela envidraçada, como areia seca. Will passou a língua pelos lábios e tentou respirar mais devagar. No entanto, sua garganta se comprimia, podia senti-lo.

O telefone começou a tocar no outro extremo. Três vezes. Quatro.

O motor de Christine gritou. Depois o baque forte, quando atingiu os montes de neve que os limpa-neve de passagem haviam empilhado nas duas extremidades da entrada para carros semicircular.

Seis toques. Sete. Ninguém em casa.

— Merda! — sussurrou Will, e bateu com o telefone no gancho.

Seu rosto estava pálido, as narinas tremulavam, dilatadas, como as de um animal farejando o fogo a favor do vento. Seu charuto se apagara. Atirou-o ao tapete e tateou no bolso do roupão de banho, enquanto quase corria para a janela. Sua mão encontrou a forma confortadora do inalador e os dedos se fecharam em torno do dispositivo que o fazia funcionar.

As luzes dos faróis brilharam momentaneamente em seu rosto, quase o cegando, e ele ergueu a mão livre para proteger os olhos. Christine colidiu de novo contra o banco de neve. Pouco a pouco ia abrindo caminho para a entrada de carros. Will a viu recuar para a rua e desejou, ferozmente, que um limpa-neve aparecesse nesse instante e batesse no carro, fazendo-o capotar.

Nenhum limpa-neve apareceu. Christine atacou de novo, o motor uivando, as luzes ofuscando através do relvado coberto de neve. Bateu contra o monte, empurrando punhados de neve violentamente para os lados. A dianteira se inclinou e, por um momento, Will pensou que o carro ia tornar a arremeter contra o que restara do monte congelado. Então, as rodas traseiras perderam a tração e giraram freneticamente.

Christine deu marcha à ré.

Will teve a sensação de que sua garganta adquiria o diâmetro de um alfinete. Seus pulmões lutaram por ar. Pegou o inalador e começou a usá-lo. A polícia. Tinha que chamar a polícia. Eles viriam logo. O 58 de Cunningham não poderia pegá-lo. Estava seguro em sua casa. Estava...

Christine retornou, acelerando através da rua. Desta vez, colidiu contra o monte de neve e o transpôs facilmente, a dianteira a princípio se alteando, inundando a fachada da casa de luz, depois baixando com um rangido. Estava na entrada da garagem. Sim, tudo bem, mas não conseguiria ir mais longe, ela... o car...

Christine não diminuiu a marcha. Ainda acelerada, cruzou tangencialmente a entrada de carros semicircular, prosseguiu empurrando a neve mais solta e mais baixa do lado do jardim e rugiu diretamente para a janela envidraçada, onde Will Darnell continuava olhando para fora.

Ele recuou aos tropeções, arquejando com dificuldade, e esbarrou em sua poltrona.

Christine colidiu contra a casa. O janelão envidraçado explodiu, deixando entrar o vento ululante. O vidro voou em flechas mortais, cada uma delas refletindo as luzes dos faróis do carro. A neve entrou, lançando-se sobre o tapete, em erráticas espirais. Os faróis dianteiros iluminaram momentaneamente a sala com a claridade artificial de um estúdio de televisão e então recuou, o pára-choque dianteiro entortado, o capô levantado no ar, a grade esmagada em um gotejante sorriso cromado, cheio de presas.

Will estava de gatinhas, lutando penosamente para respirar, o peito pesando como uma pedra. Tinha a vaga sensação de que, se não tropeçasse na poltrona e caísse, provavelmente seria cortado em tiras pelo vidro que voara para todos os lados. Seu roupão se abrira, adejando atrás dele quando se levantou. O vento que entrava em rajadas pela janela caiu sobre o Guia de TV na mesinha ao lado da poltrona, e a revistinha voou através da sala até o pé da escada, as páginas velozmente folheadas. Will segurou o telefone com as duas mãos e discou 0.

Christine recuou, sobre seu próprio trajeto através da neve. Recuou toda a distância até o achatado banco de neve no início da entrada de carros. Então avançou, acelerando rapidamente e, nesse momento, o capô começou a desamassar-se imediatamente, a grade a regenerar-se. Tornou a chocar-se contra a parede da casa, abaixo do janelão. Mais vidro voou; madeira estilhaçada rangeu e estalou. O pára-brisa de Christine, agora rachado e leitoso, parecia espiar para dentro da casa, como um olho alienígena e gigantesco.

— Polícia! — pediu Will à telefonista.

Sua voz era quase inaudível, apenas um murmúrio sibilante. O roupão esvoaçou ao gélido vento que penetrava pela janela arrombada. Ele viu que a parede abaixo da janela estava quase desmoronada. Pontas quebradas de sarrafos salientavam-se como ossos fraturados. O carro não poderia entrar ali, poderia? Poderia?

— Por favor, senhor, quer falar mais alto? — pediu a telefonista. — A ligação não está muito boa.

Polícia, disse Will, mas agora sua voz nem chegava a sussurro, era apenas um silvo de ar. Deus do céu, ele estava sufocando, asfixiando-se; seu peito era uma caixa-forte trancada. Onde estava seu inalador?

— Alô? — chamou a telefonista, indecisa.

Lá estava ele, no chão. Will deixou o telefone cair e agachou-se para pegar o inalador.

Christine atacou de novo, rugindo através do jardim e agora colidindo com a parte lateral da casa. Desta vez, toda a parede ruiu, como uma explosão de granada, atirando fragmentos de vidro e ripas. Inacreditavelmente, como em um pesadelo, o radiador amassado e deformado de Christine estava em sua sala de estar, ela entrara, Will podia sentir o cheiro do escapamento e do motor aquecido.

O chassi de Christine agarrou-se em algo e ela recuou pelo buraco estilhaçado, com um rangido de tábuas arrancadas, a parte dianteira agora apenas uma ruína, polvilhada de neve e reboco. Entretanto, voltaria dentro de poucos segundos e, desta vez, conseguiria... conseguiria...

Will agarrou o inalador e correu às cegas para a escada.

Estava apenas na metade dos degraus, quando o uivo acelerado do motor que avançava foi ensurdecedor. Ele se virou para olhar, mais amparando-se no corrimão do que o agarrando.

A altura em que se encontrava nos degraus emprestava à cena uma certa aparência de pesadelo. Ele viu Christine cruzar o jardim coberto de neve, viu o capô levantar-se tanto que a dianteira do carro agora assemelhava-se à bocarra de imenso crocodilo vermelho e branco. De repente, o capô se soltou com estrondo, quando o carro tomou a colidir contra a casa, naquele momento fazendo mais de sessenta e cinco por hora.

Christine arrancou o restante da estrutura da janela, atirando mais tábuas estilhaçadas através da sala de estar. Os faróis altearam-se ofuscantes e então ela estava dentro, ela estava em sua casa, deixando atrás de si um imenso buraco na parede, com um fio elétrico pendendo para o tapete, como uma negra artéria amputada. Pequenas nuvens da embutida fibra de vidro isolante dançavam ao vento frio como borlas leitosas.

Will gritou, mas não ouviu o próprio grito, em meio ao ensurdecedor rugido do motor de Christine. O silenciador Seats que Arnie colocara nela — uma das poucas coisas que ele realmente colocara nela, pensou Will, loucamente — pendia da entrada da casa, juntamente com a maior parte do cano de escapamento.

O Fury rugiu através da sala de estar derrubando de lado a confortável poltrona de Will, deixando-a caída ali, como um pônei morto. O piso sob Christine rangeu inquietamente e uma parte da mente de Will gritou: Isto mesmo! Afunde! Afunde! Deixe a maldita coisa cair na adega! Vejamos se ela consegue sair de lá! Esta imagem foi então substituída pela de um tigre em um buraco no chão, que havia sido escavado e depois camuflado por espertos nativos.

O assoalho, no entanto, suportou o peso — pelo menos durante aqueles momentos — sem dar sinais de ruir.

Christine rugiu para ele, através da sala de estar. Em sua esteira deixava marcas ziguezagueantes de impressões nevadas dos pneus, sobre o tapete. Chocou-se contra a escada. Will foi atirado à parede. O inalador escapou de sua mão e saltitou pelos degraus, de um em um, até chegar ao último.

Christine deu marcha à ré através do aposento, as tábuas rangendo sob seu peso. Sua traseira colidiu com a TV Sony e o tubo de imagens implodiu. Ela tornou a rugir para diante, batendo na parte lateral da escada novamente, agora estilhaçando ripas e arrancando reboco. Will pôde sentir toda a estrutura afrouxar-se debaixo dele. Houve uma terrível sensação de estar pendurado. Por um momento, Christine ficou exatamente abaixo dele; olhando para baixo, ele viu as entranhas oleosas no compartimento do motor, sentiu o calor que subia dele. Ela tornou a recuar e Will embarafustou pelos degraus, ansiando por ar, aferrando a gorda salsicha que era seu pescoço com os olhos esbugalhados.

Chegou ao topo da escada, um instante antes de Christine bater novamente na parede e transformar o centro dos degraus em confusa ruína. Um longo estilhaço de madeira caiu dentro do motor. O ventilador o mastigou e cuspiu fora serragem mal triturada e pequenas farpas. Toda a casa estava impregnada do cheiro de gasolina e de fumaça do escapamento. Os ouvidos de Will retiniam com o forte trovejar daquela máquina impiedosa.

Christine deu marcha à ré. Agora, seus pneus mastigavam tiras esfarrapadas do tapete.

Pelo corredor, pensou Will. O sótão. Será seguro no sótão. Sim, o sót.. ob, Deus., oh, Deus., oh, meu DEUS...

A dor final chegou subitamente, aguda como uma ferroada. Como se um pingente de gelo lhe houvesse perfurado o coração. Seu braço esquerdo ficou bloqueado pela dor. E não conseguia respirar, o peito se movia inutilmente. Ele tropeçou para trás. Um pé dançou sobre o nada e então caiu de costas na escada, em duas grandes reviravoltas que lhe fraturaram ossos, as pernas voando acima da cabeça, os braços agitando-se, o roupão azul enfunado e trapeando.

Aterrou em um monte enovelado ao pé dos degraus, e Christine precipitou-se para ele: esmagou-o, recuou, tornou a esmagá-lo, arrancou o pesado pilar de sustentação da escada, no final dos degraus, quebrou-o como se fosse um graveto, deu marcha à ré e tornou a esmagar o homem.

Debaixo do assoalho, chegou o crescente gemido dos suportes, estilhaçando-se e ruindo. Christine fez uma pausa no meio da sala por um momento, como se ouvisse. Dois de seus pneus estavam vazios e um terceiro quase fora do aro. O lado esquerdo do carro fora amassado para dentro e grandes partes dessa área já estavam sem pintura.

De repente, Christine começou a recuar. O motor guinchou e ela disparou da sala em marcha à ré, saindo pelo buraco desigual na parede lateral da casa de Will Darnell, a traseira rebaixando-se vários centímetros, antes de pousar na neve. Os pneus giraram no mesmo lugar, encontraram apoio e a puxaram. Ela recuou meio adernando até a rua, o motor tossiu e falhou, uma fumaceira azul pendia no ar à sua volta, o óleo gotejava e se espalhava.

Na estrada, ela manobrou e tomou a direção de Libertyville. A alavanca de mudança caiu para DRIVE mas, a princípio, a transmissão danificada não quis engatar; quando engatou, Christine rodou lentamente, afastando-se da casa. Mais atrás, na casa de Will, uma enorme mancha de luz refletiu-se na neve revolta, em um formato que não tinha a menor semelhança com o uniforme retângulo iluminado passando através de uma janela. A forma da claridade na neve era absurda e estranha.

Ela se moveu lentamente, cambaleando de um lado para outro sobre os pneus inúteis, como uma velha bêbada seguindo por um beco. A neve caía pesadamente, transformada em linhas inclinadas pelo vento.

Um dos faróis, estilhaçado na última e destrutiva arremetida de atropelamento, piscou e acendeu.

Um dos pneus começou a reinflar-se, depois o outro.

As nuvens de fedorento óleo queimado começaram a diminuir.

O som incerto e engasgado do motor normalizou-se.

O capô desaparecido começou a reaparecer, partindo da base do pára-brisa, assemelhando-se fantasticamente a uma estola ou xale que fossem tricotados por agulhas invisíveis; o metal se construía do nada, cintilante aço azulado, em seguida escurecendo para vermelho, como que impregnado de sangue.

As rachaduras do pára-brisa começaram a desfazer-se, em sentido inverso, deixando atrás de si uma superfície de imaculada uniformidade.

Os outros faróis acenderam-se, um após outro; agora, Christine se movia rápido, confiante, através da noite tempestuosa, por trás do escarnecedor corte de suas luzes seguras.

O odômetro girava maciamente ao contrário.

 

Quarenta e cinco minutos mais tarde, Christine repousava na escuridão do boxe vinte, na Garagem Faça-Você-Mesmo, do falecido Will Darnell. O vento uivava e gemia nos montes de sucata nos fundos da garagem, carcaças enferrujadas que talvez possuíssem seus próprios fantasmas e suas próprias funestas lembranças, enquanto a neve pulverizada redemoinhava por entre os assentos rasgados e esfarrapados e os pisos sem tapetes.

O motor de Christine dava lentos gastos estalidos, esfriando-se.

 

Christine — Canções adolescentes sobre Morte

 

Leigh Faz uma Visita

James Dean, naquele Mercury 49,

Júnior Johnson Bonner, nos bosques da Carolim,

Inclusive Burt Reywlds, naquele negro Trans-Am,

Todos se reunirão no Rancho Cadillac.

— Bruce Springsteen

 

Faltando uns quinze minutos para Leigh chegar, peguei minhas muletas e caminhei com dificuldade até a poltrona mais próxima da porta, a fim de ter certeza de que me ouviria, quando gritasse para ela entrar. Em seguida, tornei a pegar meu exemplar do Esquire e voltei a ler um artigo intitulado "O Próximo Vietnã", que fazia parte de um trabalho escolar. Ainda não conseguira digeri-lo bem. Estava nervoso e assustado, em parte — grande proporção, creio — era simples ansiedade. Eu queria vê-la outra vez.

A casa estava vazia. Não muito depois de Leigh telefonar, naquela tempestuosa tarde da véspera de Natal, chamei meu pai de lado e perguntei-lhe se não poderia levar mamãe e Elaine a algum lugar, na tarde do dia vinte e seis.

— Por que não? — concordou ele, bastante amável.

— Obrigado, papai.

— Tudo bem, mas você me deve uma, Dennis.

— Papai!

Ele piscou solenemente.

— Eu coço suas costas e você coca as minhas.

— Que grande sujeito! — exclamei.

— Muito nobre — concordou ele.

Meu pai, que nada tem de tolo, perguntou se aquilo tinha algo a ver com Arnie.

— Ela é namorada dele, não é?

— Bem — respondi, não muito certo sobre como estaria a situação, mas também pouco à vontade, por motivos pessoais — ela tem sido. Não sei a quantas andam agora.

— Problemas?

— Não fiz um bom trabalho cuidando dele, hein?

— Isso é muito difícil de se fazer da cama de um hospital, Dennis. Muito bem, tomarei providências para que sua mãe e Ellie estejam fora de casa, na tarde de terça-feira. Apenas, seja cauteloso, está bem?

Depois disso, ponderei o que, exatamente, ele quereria dizer com sua última frase; certamente não estaria preocupado quanto a eu tentar atacar Leigh, ainda com uma coxa no gesso e outra meia forma de gesso nas costas. Talvez receasse apenas que algo andasse terrivelmente fora dos eixos, com meu velho amigo de infância subitamente transformado em um estranho — e um estranho que saíra da prisão sob fiança.

Quanto a mim, tinha toda certeza de que alguma coisa não andava bem, e isso me deixou um bocado assustado. O Keystone não é publicado no Natal, mas todas as três redes de televisão filiadas de Pittsburgh, bem como os canais independentes, haviam relatado a história do que tinha acontecido a Will Darnell, juntamente com bizarras e aterradoras tomadas de sua casa. O lado que dava para a rua havia sido demolido. Era a única palavra que se encaixava ali. Aquele lado da casa parecia ter sido atravessado por um tanque Panzer, manobrado por algum nazista enlouquecido. A história havia estado nas manchetes da manhã — POSSÍVEL ASSASSINATO NA ESTRANHA MORTE DE FIGURA PROVAVEL­MENTE LIGADA AO MUNDO DO CRIME. Isto já era ruim o bastante, mesmo sem outra foto da casa de Will Darnell, com aquele enorme buraco feito em um dos lados. Entretanto, tinha-se que ir à página três, para ler o restante. A outra notícia era menor, porque Will Darnell havia sido uma figura talvez "ligada ao mundo do crime", enquanto que Don Vandenberg fora apenas um reles atendente de posto de gasolina, evadido da escola.

ATENDENTE DE POSTO DE GASOLINA MORTO EM UM ATROPELAMENTO E FUGA, NA VÉSPERA DE NATAL, dizia o cabeçalho. Seguia-se apenas uma coluna. A história terminava com o Chefe de Polícia de Libertyville teorizando que o motorista provavelmente estaria bêbado ou drogado. Nem ele nem o Keystone faziam qualquer tentativa para relacionar as mortes, separadas entre si por quase 15 quilômetros, na noite de uma fortíssima nevasca que interrompera todo o tráfego no Ohio e oeste da Pensilvânia. Entretanto, eu era capaz de relacioná-las. Não queria fazê-lo, mas era impossível deixar isso de lado. E meu pai não estivera olhando estranhamente para mim várias vezes, durante a manhã? Certo. Por uma ou duas vezes, tive a impressão de que ia dizer qualquer coisa — não tinha idéia do que lhe responderia, se ele falasse; a morte de Will Darnell, por mais estranha que fosse, nem por isso era tão estranha quanto minhas suspeitas. Então, ele havia se calado sem falar. Era um alívio erguer-se uma barreira sobre os acontecimentos.

A campainha tocou às duas e quinze.

— Entre! — gritei, levantando-me de qualquer modo em minhas muletas. A porta se abriu e a cabeça de Leigh apareceu.

— Dennis?

— Eu mesmo. Pode entrar.

Ela entrou, parecendo muito bonita em uma jaqueta para esquiar, vermelho vivo e calças azul-escuras. Leigh empurrou para trás o capuz forrado de pele do agasalho.

— Sente-se — disse ela, abrindo o zíper da jaqueta. — Vamos, imediatamente, é uma ordem! Você parece uma cegonha gigante nessas coisas.

— Continue — respondi, tornando a sentar-me, com um baque deselegante. Quando estamos engessados, nunca é como nos filmes: a gente não consegue sentar-se como Cary Grant, preparando-se para tomar um coquetel no Ritz, em companhia de Ingrid Bergman. Tudo acontece de repente, e se a almofada onde aterramos não emitir um som alto e insultuoso, como se a repentina descida nos tivesse assustado no melhor momento, podemos considerar-nos felizes. Tive sorte desta vez. — Estou tão carente de elogios, que chego a ficar doente.

— Como vai, Dennis?

— Remendando-me aos poucos — falei. — E você?

— Tenho andado melhor.

Ela falou em voz baixa e mordeu o lábio inferior. Às vezes, isto pode ser um gesto sedutor em uma garota, mas não naquele momento.

— Pendure seu agasalho e sente-se.

— Certo.

Seus olhos pousaram nos meus, e fitá-los era um pouco demais. Desviei o rosto, olhando para outro lugar e pensando em Arnie. Ela pendurou o agasalho e retornou lentamente para a sala de estar.

— Seus pais... ?

— Consegui que o velho levasse todo mundo — respondi. — Imaginei que talvez — dei de ombros — a gente devesse conversar em particular.

Ela parou junto do sofá, olhando para mim através da sala. Fui novamente atingido pela simplicidade de sua boa aparência — o adorável corpo jovem, delineado nas calças azul-escuras e uma suéter em um tom mais leve, um azul-pólvora, formando um conjunto que me levava a pensar em esquiar. Leigh amarrara os cabelos em um rabo-de-cavalo frouxo, que pendia sobre seu ombro esquerdo. Os olhos eram da cor de sua suéter, talvez um pouquinho mais escuros. Uma beldade americana bem nutrida, diria qualquer um, exceto pelos malares altos, que pareciam um tanto arrogantes, rememorando talvez alguma ascendência mais antiga e mais exótica. Em sua árvore genealógica poderia existir um viking, umas quinze ou vinte gerações anteriores.

Talvez não fosse bem isso o que eu estava pensando.

Ela me viu observando-a por tanto tempo e enrubesceu. Desviei os olhos.

— Está preocupado com ele, Dennis?

— Preocupado? Assustado seria uma palavra melhor.

— O que sabe sobre aquele carro? O que ele lhe contou?

— Não muito — respondi. — Escute, quer beber alguma coisa? Parece que há algo na geladeira... Estendi a mão para minhas muletas.

— Nada disso, fique aí! — ordenou ela. — Eu bebo alguma coisa, mas posso ir apanhar. E você?

— Quero uma soda, se sobrou alguma.

Ela foi até a cozinha e fiquei olhando sua sombra na parede, movendo-se lentamente, como uma bailarina. Houve um peso momentâneo acrescentado ao meu estômago, quase.como uma náusea. Penso que a isto se chama apaixonar-se pela garota do melhor amigo.

— Vocês têm um produtor automático de gelo. — A voz dela chegou até mim. — Também temos um. É formidável!

— De vez em quando ele dá a louca e joga cubos de gelo por todo o chão — respondi. — Como Jimmy Cagney, em Fúria Sanguinária: "Tomem, seus sujos!". Isso deixa minha mãe louca.

Eu estava tagarelando. Ela riu. Cubos de gelo tilintaram nos copos. Logo ela voltava, com dois copos de gelo e duas latas de soda.

— Obrigado — falei, pegando a minha.

— Não, eu é que lhe digo obrigada. — Agora seus olhos azuis estavam escuros e graves. — Obrigada por você estar perto. Se tivesse que enfrentar isso sozinha, não creio que... Oh, eu não sei!

— Ora, vamos lá — animei. — A coisa não é tão ruim assim.

— Não é? Já soube sobre Will Darnell? Assenti.

— E sobre aquele outro? Don Vandenberg?

Isto significava que também ela estabelecera a relação. Assenti novamente.

— Estive lendo. É Christine que preocupa você, Leigh?

Durante muito tempo, fiquei em dúvida se ela responderia ou não. Se seria capaz de responder. Pude vê-la lutando com a questão, os olhos baixos para o copo que segurava nas duas mãos. Por fim disse, em voz muito baixa:

— Acho que ela tentou me matar.

Não sei o que eu esperava, mas certamente não era aquilo.

— O que está querendo dizer?

Ela começou, primeiro vacilante, depois mais depressa, até despejar toda a história. É uma história que vocês já leram, portanto, não vou repeti-la aqui; basta dizer que tentei relatá-la o mais exatamente possível, segundo o que ela me contou. Leigh não brincava sobre estar assustada. Via-se isso na lividez de seu rosto, no retardamento ou arquejos de sua voz, na maneira como as mãos acariciavam constantemente a parte superior dos braços, dando a impressão de que sentia frio, apesar da suéter. E então, quanto mais falava, mais apavorado eu ficava.

Leigh terminou, ao relatar como as luzes do painel de instrumentos pareciam transformar-se em vigilantes olhos, enquanto ela quase perdia os sentidos. Riu nervosamente ao comentar isto, como se achasse o detalhe um evidente absurdo, mas não a acompanhei no riso. Estava recordando a voz seca de George LeBay, nós dois sentados em cadeiras baratas de pátio, diante do Hotel Rainbow, enquanto ele me contava a história de Roland, de Verônica e Rita. Rememorei aqueles fatos, e minha mente estabelecia inexprimíveis conexões. Luzes acendiam-se. Não gostei do que elas revelavam. Meu coração começou a bater pesadamente no peito e não riria com Leigh, nem que disso dependesse minha vida.

Leigh me contou o ultimato que lhe dera — ela ou o carro. Descreveu a furiosa reação de Arnie. Aquela havia sido a última vez que saíra com ele.

— Então, ele foi preso — disse ela — e comecei a pensar... pensar sobre o que aconteceu a Buddy Repperton e aqueles outros rapazes... e o "Penetra" Welch...

— E agora, Vandenberg e Darnell.

— Sim, mas isso não é tudo. — Ela bebeu um gole de seu copo e depois o encheu. A beirada da lata castanholou brevemente na borda do copo. — Na véspera de Natal, quando liguei para você, papai e mamãe tinham ido tomar uns drinques na casa do chefe de meu pai. Então, comecei a ficar nervosa. Estava pensando sobre... oh, nem sei sobre o que pensava.

— Acho que sabe.

Ela pousou a mão na testa e a esfregou, como se estivesse ficando com dor de cabeça.

— Sim, acho que sei. Pensava que o carro podia estar lá fora. Ela. Lá fora, pegando eles dois. Entretanto, se Christine estava fora da garagem, na véspera de Natal, suponho que havia muito para mantê-la ocupada, sem prejudicar meus pa... — Leigh bateu com o copo sobre a mesinha, sobressaltando-me. — Ora, por que fico falando nesse carro, como se fosse uma pessoa? — exclamou. As lágrimas começaram a descer por seu rosto. — Por que fico fazendo isso?

Naquela noite, vi claramente como tudo terminaria, se me dispusesse a consolá-la. Arnie estava entre nós — e parte de mim também estava. Eu o conhecia há muito tempo. Muitíssimo tempo.

Só que isso fora antes — e isto era agora.

Equilibrei-me nas muletas e abri caminho até o sofá, deixando-me cair ao lado dela. As almofadas suspiraram. Não foi um chiado, mas esteve bem perto disso.

Minha mãe conserva uma caixa de lenços de papel na gaveta da mesinha de canto. Tirei um lenço, olhei para ela, depois tirei um bom punhado. Entreguei-lhe os lenços e Leigh me agradeceu. Então, não gostando muito de mim mesmo, passei um braço por seus ombros e a apertei.

Ela se retesou por um instante... e então permitiu que a puxasse para meu ombro. Estava trêmula. Ficamos apenas sentados daquela maneira, ambos receando até o menor movimento, creio. Receando que pudéssemos explodir. Ou outra coisa qualquer. No outro lado da sala, o relógio tiquetaqueava imponentemente sobre a lareira. A claridade brilhante do inverno, penetrando pelas janelas arqueadas, nos permitia uma visão da rua em três sentidos. A tempestade amainara por volta do meio-dia do Dia de Natal, e agora o firme céu azul sem nuvens parecia negar que até existisse semelhante coisa como a neve — porém os montículos parecidos a dunas que rolavam pelos gramados dos jardins, abaixo e acima na rua, como os dorsos de grandes animais sepultados, confirmavam o fato.

— O cheiro — falei afinal. — Como pode estar certa disso?

— Estava lá! — exclamou, afastando-se de mim e sentando-se ereta. Recolhi meu braço, com uma sensação mesclada de desapontamento e alívio. — Estava lá, realmente... um cheiro horrível de podre. — Ela me encarou. — Por quê? Você também o sentiu?

Neguei com a cabeça. Nunca o sentira. Não realmente.

— Então, o que sabe sobre aquele carro? — perguntou. — Porque você sabe alguma coisa. Posso ver no seu rosto.

Era a minha vez de pensar, firme e demoradamente. Por estranho que possa parecer, o que me veio à mente foi uma imagem de fissão nuclear, vista em algum livro didático de ciências. Uma história em quadrinhos. Ninguém espera vê-las em livros didáticos de ciências, mas como me disse alguém certa vez, existem outros desvios e rodeios ao longo da trilha da educação pública... De fato, esse alguém havia sido o próprio Arnie. A história em quadrinhos mostrava dois átomos "envenenados" avançando velozmente um contra o outro, em seguida se chocando. Rápido! Em vez de um punhado de destroços (e uma ambulância de átomos para recolher os nêutrons mortos e feridos), massa crítica, reação em cadeia e o diabo de um "big bang".

Decidi, então, que a analogia daquela história em quadrinhos não era assim tão estranha. Leigh possuía certos dados de que eu não dispunha antes. O contrário também era verdadeiro. Em ambos os casos, boa parte daquilo era suposição, uma outra era constituída de sentimentos subjetivos e circunstâncias... mas tudo em quantidade suficiente para realmente amedrontar. Perguntei-me brevemente o que faria a polícia, se soubesse o que sabíamos. Pude adivinhar: nada. É possível levar-se um fantasma a julgamento? Ou um carro?

— Dennis?

— Estou pensando — respondi. — Não sente cheiro de madeira queimada?

— O que é que você sabe? — insistiu ela. Colisão. Massa crítica. Reação em cadeia. Cataplan!

A questão era, segundo eu pensava, que se reuníssemos nossos dados, teríamos que tomar alguma iniciativa ou contar para alguém. Fazer alguma coisa. Nós...

Recordei meu sonho: o carro estacionado lá, na garagem de LeBay, o motor acelerando e diminuindo, tornando a acelerar, os faróis acendendo-se, o guincho dos pneus. Tomei as mãos dela nas minhas.

— Está bem — falei. — Ouça. Arnie: ele comprou Christine de um sujeito que agora está morto. Um sujeito chamado Roland D. LeBay. Nós a vimos em seu gramado certo dia, quando voltávamos do trabalho para casa. Então...

— Você está fazendo o mesmo — cortou ela suavemente.

— O mesmo, o quê?

— Chamando o carro de ela. Assenti, sem largar suas mãos.

— Sim, eu sei. E difícil parar. A questão é que Arnie a queria ou melhor, queria o carro, seja lá o que este for, desde a primeira vez que o viu. Hoje em dia acho... eu não sabia então, mas sei agora... que LeBay esperava por Arnie, ele o queria como dono de Christine; acho que até lhe daria o carro de presente, se fosse o caso. É como se Arnie visse Christine e soubesse, e então LeBay viu Arnie e soube a mesma coisa.

Leigh libertou as mãos das minhas e recomeçou a esfregar incessantemente os cotovelos.

— Arnie disse que pagou...

— Sim, é claro que pagou. E ainda está pagando. Isto é, se restou algo de Arnie, afinal.

— Não entendo o que quer dizer.

— Vou mostrar a você — respondi —, em alguns minutos. Primeiro, preciso fazer um retrospecto.

— Está bem.

— LeBay tinha mulher e uma filha. Isto foi por volta dos anos 50. Sua filha morreu na beira da estrada. Morreu sufocada. Com um hambúrguer.

O rosto de Leigh ficou branco, depois mais branco ainda. Por alguns momentos, pareceu tão leitosa e translúcida como vidro embaciado.

— Leigh! — exclamei vivamente. — Você está bem?

— Estou — respondeu ela, com arrepiante placidez. Sua cor não melhorou. A boca se moveu em horrível careta, que talvez pretendesse ser um sorriso tranqüilizador. — Estou ótima. — Levantou-se. — Por favor, onde é o banheiro?

— No fim do corredor — falei. — Leigh, você está com uma cara horrível!

— Preciso vomitar — respondeu ela, naquela mesma voz plácida.

Caminhou para a porta. Movia-se desajeitadamente agora, como uma marionete, perdida toda a graça de dançarina que eu vira antes em sua sombra. Saiu lentamente da sala, mas quando ficou fora de vista o ritmo de seus passos acelerou-se; ouvi a porta do banheiro ser escancarada e depois os sons. Recostei-me contra o encosto do sofá e coloquei as mãos sobre os olhos.

 

Quando voltou continuava pálida, mas recuperara um pouco da coloração antiga. Lavara o rosto e ainda havia algumas gostas de água nas faces.

— Sinto muito — falei

— Está tudo bem. Apenas... me assustou um pouco. — Ela esboçou um ligeiro sorriso. — Acho que a história ainda não acabou, não é? — Seus olhos se fixaram nos meus. — Responda-me uma coisa apenas, Dennis. O que você disse é verdade? Verdade mesmo?

— É — respondi. — Pura verdade. E ainda há mais. Acha que vai querer ouvir o resto?

— Não, mas conte assim mesmo — respondeu ela.

— Podemos passar por alto — falei, sem muita convicção. Seus olhos graves, angustiados, se prenderam nos meus.

— Acho que seria mais... mais seguro... falarmos tudo.

— A esposa dele suicidou- se, pouco depois da morte da filha.

— O carro...

— ... estava envolvido.

— Como?

— Leigh...

— Como?

Eu lhe contei — não me limitando a falar na menininha e sua mãe, mas falando também sobre o próprio LeBay, segundo ouvira de seu irmão George. Seu infindável estoque de raiva. As crianças que riam de suas roupas e de seu corte de cabelo. Sua fuga para o Exército, onde roupas e cabelos eram iguais para todos. A oficina mecânica. O despeito constante contra os bostas, particularmente aqueles bostas que lhe traziam seus carros de luxo para serem consertados à custa do governo. A Segunda Guerra Mundial. O irmão Drew, morto na França. O velho Chevrolet. O velho Hudson Hornet. E, através de tudo isso, aquela firme e imutável pulsação latente: a raiva.

— Aquela palavra... — murmurou Leigh.

— Que palavra?

— Bostas. — Ela precisou forçar-se a dizê-la, o nariz enrugando-se em lastimável e quase inconsciente repugnância. — Ele a usa. Arnie.

— Eu sei

Entreolhamo-nos e suas mãos tornaram a encontrar as minhas.

— Você está gelada — falei.

Mais um inteligente comentário de Dennis Guilder, aquela fonte de sabedoria. Eu tinha um milhão deles.

— Estou. Tenho a impressão de que nunca mais esquentarei.

Eu quis passar os braços em torno dela, mas não o fiz. Tinha receio. Arnie ainda estava muito presente em tudo. O terrível naquilo — sim, terrível— era como cada vez mais parecia que ele estava morto... morto ou vítima de algum estranho encantamento.

— O irmão dele falou mais alguma coisa?

— Nada que pareça encaixar-se.

Entretanto, a recordação brotou como bolha em água parada e estourou: Ele era obcecado e tinha raiva, mas não era um monstro, tinha dito George LeBay. Pelo menos... não creio que fosse. Eu tivera a sensação de que, perdido no passado como ele estivera, quase me diria algo mais... porém, percebera a tempo onde estava e que falava a um estranho. O que pretenderia dizer?

Quase em seguida, tive uma idéia monstruosa. Rejeitei-a. Ela se foi... mas era difícil livrar-me dela. Como empurrar um piano. E eu ainda podia ver seus contornos nas sombras.

Percebi que Leigh me observava atentamente e me perguntei quanto do que estivera pensando se revelaria em meu rosto.

— Você tem o endereço do Sr. LeBay? — perguntou ela.

— Não. — Refleti por um instante e então recordei o funeral, que agora parecia infinitamente distante, perdido no tempo. — Mas acho que o Posto da Legião Americana de Libertyville deve ter. Eles sepultaram LeBay e entraram em contato com o irmão. Por quê?

Leigh apenas meneou a cabeça e foi até a janela, de onde ficou espiando para o dia ofuscante. Fim do ano, pensei ao acaso.

Ela se virou para mim, e fiquei novamente surpreso com sua beleza tranqüila, sem intimações, exceto pelos malares altos e arrogantes, o tipo de malares que se poderia esperar em uma dama que, provavelmente, carregasse um punhal à cinta.

— Você disse que me mostraria uma coisa — disse. — O que era?

Assenti. Agora não podia parar mais. Começara a reação em cadeia. Seria impossível interrompê-la.

— Vá lá em cima — pedi. — Meu quarto é a segunda porta à esquerda. Procure na terceira gaveta da cômoda. Vai ter que procurar debaixo de minhas cuecas, mas elas não mordem.

Ela sorriu — apenas um pouquinho, mas já era alguma coisa.

— E o que vou encontrar? Um pacotinho de droga?

— Desisti disso o ano passado — repliquei, sorrindo também. — Este ano passei para o Quaalude. Financio o vício vendendo heroína no ginásio.

— O que é afinal?

— O autógrafo de Arnie — disse —, imortalizado em gesso.

— Autógrafo de Arnie? Assenti.

— Em duplicata — acrescentei.

Ela os encontrou, e cinco minutos depois estávamos novamente no sofá, olhando para dois pedaços de molde de gesso. Pusemo-los lado a lado sobre a superfície de vidro da mesinha de café, ligeiramente esfiapados nos lados, um pouco sujos pelo uso. Outros nomes ficaram pela metade em um deles. Eu havia guardado os moldes e mesmo orientara o enfermeiro onde cortá-los. Mais tarde, eu recortara os dois quadrados, um da perna direita, outro da esquerda.

Olhamos para eles em silêncio:

 

 

Leigh me fitou, inquisitiva e perplexa.

— São pedaços dos seus...

— Meus moldes de gesso. Exatamente.

— Isso é... alguma brincadeira ou o quê?

— Não é nenhuma brincadeira — afiancei. — Eu o vi assinando os dois moldes.

Agora que tinha dito, sentia uma espécie de relaxamento, de estranho alívio. Era bom poder partilhar aquilo com alguém. Estivera me roendo e cutucando a mente por muito tempo.

— Não há a menor semelhança entre as duas assinaturas.

— Nem precisa me dizer — respondi. — Entretanto, Arnie também não é muito igual ao Arnie de antigamente. E tudo isso nos leva de volta àquele maldito carro. — Dei uma forte pancada no pedaço de gesso da esquerda. — Essa não é a assinatura dele! Conheci Arnie a vida inteira, vi seus trabalhos de casa, vi quando assinava requisições de materiais, seus recibos de pagamento, e digo que essa não é a assinatura dele! A da direita é dele. Essa daqui, não. Quer fazer uma coisa para mim amanhã, Leigh?

— O quê?

Eu lhe disse. Ela concordou lentamente.

— Para nós.

— Como?

— Farei por nós. Porque temos que fazer alguma coisa, não?

— Claro — assenti. — Acho que sim. Posso fazer uma pergunta pessoal? Ela afirmou com a cabeça, os olhos azuis fixos nos meus.

— Como tem dormido ultimamente?

— Não muito bem — respondeu. — Maus sonhos. E você?

— A mesma coisa. Nada muito bom.

Então, por não me conter mais, passei as mãos por seus ombros e a beijei. Houve uma hesitação momentânea e pensei que ela fosse recuar... mas então o queixo se ergueu e Leigh devolveu o beijo, plena e firmemente. Talvez houvesse nisso uma espécie de sorte, porque eu estava praticamente imobilizado.

Quando o beijo terminou, ela fitou meus olhos interrogativamente.

— Contra os sonhos — falei.

Pensei que a frase me sairia tola e falsa, da maneira como aparece no papel, mas em vez disso soou trêmula, quase dolorosamente franca.

— Contra os sonhos — repetiu ela, gravemente, como se fosse um talismã.

Desta vez, ela inclinou a cabeça para mim e tornamos a nos beijar, observados por aqueles dois informes pedaços de gesso, que nos fitavam como brancas escleróticas cegas, com o nome de Arnie escrito neles. Beijamo-nos pelo simples conforto animal proveniente do contato animal — bem, isso e algo mais, começava a ser algo mais —, e então nos abraçamos sem falar e não creio que estivéssemos brincando sobre o que estava acontecendo conosco — pelo menos, não inteiramente. Era como também podia ser o velho e bom sexo — pleno, maduro, efervescente de hormônios adolescentes. E talvez ainda houvesse a chance de ser algo mais pleno e mais agradável do que apenas sexo.

Contudo, havia algo mais naqueles beijos — eu sabia disso, ela sabia e, provavelmente, você também. Aquela outra coisa era uma espécie de vergonhosa sensação de traição. Eu podia sentir dezoito anos de lembranças clamando — a fazenda de formigas, os jogos de xadrez, filmes, as coisas que ele me ensinara, as vezes que eu o protegera, impedindo que o molestassem. Bem, talvez não o tivesse protegido, no final. Talvez o tivesse visto como era pela última vez — um triste, angustiante final, por falar nisso — naquela noite do Dia de Ação de Graças, quando ele me levara os sanduíches de peru e cerveja.

Penso não ter ocorrido a nenhum de nós dois que, até então, nada de imperdoável havíamos feito a Arnie — nada que pudesse enfurecer Christine. Agora, contudo, estava feito.

 

Trabalho de Detetive

Bem, quando as veias se romperem

E eu ficar perdido na ponte do rio,

Todo arrebentado na estrada

E à margem da água,

Virão médicos pela rodovia,

Prontos a costurar-me com linha,

E se eu cair doente,

Sei que ela vem pôr um lençol

na minha cama.

— Bob Dylan

 

O que aconteceu nas mais ou menos três semanas seguintes, foi que eu e Leigh bancamos os detetives — e nos apaixonamos.

No dia seguinte, ela foi à Prefeitura e pagou cinqüenta centavos pela xerox de dois documentos — estes são enviados para Harrisburg e depois uma cópia é remetida de volta à cidade.

Desta vez, minha família estava em casa, quando Leigh chegou. Ellie aproveitou as menores oportunidades para cair em nossa pele. Estava fascinada por Leigh e fiquei secretamente feliz quando, cerca de uma semana após o Ano-Novo, começou a amarrar o cabelo para trás, como Leigh usava. Tive vontade de gozá-la por causa disso... mas resisti à tentação. Talvez eu estivesse crescendo um pouquinho (mas não o suficiente para deixar de surrupiar um de seus petiscos, quando o descobri escondido atrás dos recipientes de pirex para sobras, dentro da geladeira).

Exceto pelas incursões ocasionais de Ellie, eu e Leigh ficamos a maior parte do tempo com a sala de estar para nós naquela tarde seguinte — vinte e sete de dezembro — após terem sido cumpridas as amenidades sociais. Apresentei Leigh a meus pais, mamãe serviu café e conversamos. Elaine falou quase o tempo todo — tagarelando sobre sua escola e crivando Leigh de perguntas sobre a nossa. A princípio fiquei aborrecido, porém grato depois. Meus pais são o máximo, em matéria de classe média polida (se mamãe estivesse sendo conduzida à cadeira-elétrica e tropeçasse no capelão, certamente lhe pediria desculpas), e percebi claramente que gostaram de Leigh. Entretanto, também ficou óbvio — para mim, pelo menos — que estavam perplexos e um tanto constrangidos, perguntando-se onde Arnie se encaixaria naquele quadro.

Acho que eu e Leigh nos perguntávamos o mesmo. Por fim, eles fizeram o que fazem os pais em geral, quando não entendem tais situações — aceitaram tudo como coisa de crianças e foram tratar da própria vida. Papai foi o primeiro a desculpar-se alegando que sua oficina no porão estava na confusão costumeira de pós-Natal e precisava dar um jeito naquilo. Mamãe disse que ia escrever um pouco.

Ellie olhou solenemente para mim e perguntou:

— Dennis, Jesus tinha um cachorro?

Caí na gargalhada, Ellie também. Leigh ficou espiando para nós, rindo, sorrindo polidamente, da maneira como fazem os estranhos, ante uma piada de família.

— Dê o fora, Ellie — falei.

— E se eu não der? — perguntou ela, mas era apenas rotina, implicância de garota, porque já estava se levantando.

— Faço você lavar minha roupa de baixo — respondi.

— Nem morta!— declarou ela, imponente, e saiu do aposento.

— Minha irmãzinha... — comentei. Leigh sorria.

— Ela é ótima.

— Se tivesse que aturá-la em tempo integral, garanto como mudaria de idéia. Vejamos o que você conseguiu.

Leigh colocou as cópias em xerox sobre a superfície de vidro da mesa de café, onde os moldes de gesso haviam estado na véspera.

Era o novo registro de um carro usado, um Plymouth 1958, sedã de quatro portas, vermelho e branco. Estava datado de 1º de novembro de 1978 e assinado por Arnold Cunningham. Seu pai revalidara a assinatura:

 

 

— Você acha isto parecido com quê?

— Com uma das assinaturas em um daqueles pedaços de gesso que você me mostrou — disse ela. — Qual?

— É a maneira como ele assinou, logo depois que fui acidentado em Ridge Rock — respondi. — É como ele sempre assinou. Agora, vejamos a outra.

Ela a colocou ao lado da primeira. Era a folha do registro de um carro novo, um Plymouth 1958, sedã de quatro portas, vermelho e branco. Estava datado de 1º de novembro de 1957 — senti um certo choque ante aquela exata similaridade e, ao olhar para o rosto de Leigh, percebi que o mesmo acontecera com ela.

— Observe a assinatura — disse Leigh, em voz baixa. Observei.

 


Aquela era a caligrafia que Arnie usara na noite do Dia de Ação de Graças: ninguém precisaria ser gênio ou grafólogo para ver isso. Os nomes eram diferentes, porém a grafia era exatamente a mesma. Leigh estendeu a mão e eu a tomei na minha.

O que meu pai fazia no porão, em sua oficina, era fabricar brinquedos. Imagino que isto possa lhes parecer um tanto singular, mas acontece que é um hobby para ele. Talvez seja mais do que isso — suponho que houve uma época em sua vida, em que teve que fazer a difícil escolha entre ir para uma faculdade ou trabalhar por conta própria, como fabricante de brinquedos. Se for verdade, acho que ele escolheu o meio mais seguro. Às vezes me parece ver isto em seus olhos, como um velho fantasma que ainda não repousou de todo, mas provavelmente seja apenas imaginação minha, que antigamente era menos ativa do que hoje.

Eu e Ellie éramos os principais beneficiados, mas Arnie também encontrou vários brinquedos fabricados por meu pai, debaixo de várias árvores de Natal e ao lado de vários bolos de aniversário. O mesmo acontecia com a melhor amiguinha de infância de Ellie, Aimée Carruthers (que há muito se mudou para Nevada e, atualmente, é mencionada nos tons melancólicos reservados aos que morreram jovens e insensatamente), e muitas outras.

Agora, meu pai doava a maior parte do que fazia ao Fundo 400, do Exército da Salvação. Antes do Natal, o porão sempre me recordava a oficina de trabalho de Papai Noel — até pouco antes do Natal, ficava entulhado de caprichosas caixas de papelão, contendo trenzinhos de madeira, móveis em miniatura, relógios com ponteiros que realmente marcavam as horas, bichinhos de pano, um ou dois pequenos teatros de marionetes. Seu interesse centralizava-se nos brinquedos de madeira (até a Guerra do Vietnã, ele fizera batalhões de soldadinhos, porém nos últimos cinco anos, mais ou menos, os viera abandonando aos poucos e, mesmo agora, não tenho certeza de que estivesse cônscio da mudança), mas sendo versátil, penetrava em todos os campos. Na semana seguinte ao Natal, havia uma pausa. A oficina parecia terrivelmente vazia, com apenas o cheiro adocicado da serragem para recordar-nos que os brinquedos haviam estado lá.

Nessa semana, ele varria, limpava, azeitava seus instrumentos e se preparava para o ano seguinte. Então, quando o inverno ia passando por janeiro e fevereiro, começariam a surgir de novo os brinquedos e o aparente lixo que se transformaria em partes de brinquedos — trens e bailarinas com articulações de madeira e círculos vermelhos nas bochechas, uma caixa cheia de estofamento que pertencera ao velho sofá de alguém e que mais tarde seria o recheio de um urso (os ursos de meu pai sempre se chamavam Owen ou Olive — eu acabara com seus ursos Owen entre a infância e o segundo ano primário, enquanto Ellie dera cabo de um mesmo número de ursos Olive), pequenos enrolados de fios, botões e olhos isolados, sem corpos, espalhados por sobre a bancada de trabalho, como algo saído de uma sensacionalista história de terror. Mais tarde, surgiriam as caixas das lojas de bebidas e os brinquedos seriam novamente guardados nelas.

Nos últimos três anos, ele recebera três prêmios do Exército da Salvação, mas os mantinha escondidos em uma gaveta, como que envergonhado deles. Eu não entendia isso na época, e não entendo agora, pelo menos inteiramente, mas sei que não era vergonha. Meu pai nada tinha de que se envergonhar.

Depois do jantar daquela noite, com dificuldade fui descendo a escada, agarrado ao corrimão com um braço e usando a outra muleta como bastão de esqui.

— Dennis — disse papai, amável, mas ligeiramente apreensivo — quer que o ajude?

— Não, eu me arranjo.

Ele deixou a vassoura ao lado de um pequeno punhado amarelo de pó de serra e farpas de madeira, para ver se eu realmente me saía bem na descida.

— Então, que tal um empurrão?

— Ha-ha, muito engraçadinho!

Terminei de descer, arrastei-me para a grande poltrona que ele mantém a um canto, perto de nossa antiga televisão preto-e-branco, e me sentei. Pluft!

— Como está indo? — perguntou ele.

— Bastante bem.

Ele pegou um punhado de cavacos de madeira com um pano de pó, atirou-o em sua cesta de lixo, espirrou e apanhou um pouco mais.

— Não sente dor?

— Não. Bem... um pouco.

— Precisa tomar cuidado com degraus. Se sua mãe visse o que acabou de... Sorri

— Eu sei. Ela gritaria.

— Onde está sua mãe?

— Ela e Ellie foram à casa dos Renneke. Dinah Renneke ganhou uma coleção completa dos discos de Shaun Cassidy, no Natal. Ellie está roxa de inveja.

— Pensei que Shaun tivesse passado de moda.

— Talvez ela receie que a moda esteja voltando.

Papai riu. Houve um silêncio amistoso por um momento, eu sentado, ele fazendo a limpeza. Eu sabia que papai ia acabar tocando no assunto, e assim foi.

— Leigh costumava sair com Arnie, não é? — perguntou.

— Costumava — respondi

Ele olhou para mim, depois prosseguiu com seu trabalho. Pensei que fosse perguntar se eu julgava aquilo prudente ou talvez mencionar que um sujeito roubar a garota de outro não era a melhor maneira de incentivar uma amizade. Entretanto, não disse nem uma coisa nem outra.

— Mal temos visto Arnie ultimamente. Será que ficou envergonhado da confusão em que se meteu?

Minha impressão era de que papai não acreditava nisso, em absoluto. Estava apenas jogando verde.

— Não sei — respondi

— Não creio que ele tenha muito com que se preocupar. Agora, com Will Darnell morto... — Papai sacudiu o pano de pó acima da cesta de lixo e as aparas de madeira deslizaram para dentro dela com um pluft macio. — Enfim, duvido muito que eles até se dêem o trabalho de instaurar processo.

— É mesmo?

— Não há nada sério contra Arnie. Pode ser multado e o juiz provavelmente lhe fará um sermão, porém ninguém vai querer colocar uma marca negra permanente na ficha de um jovem e decente suburbano branco, destinado a cursar uma faculdade e assumir um próspero lugar na sociedade.

Papai me dirigiu um olhar agudo e questionante. Eu me remexi na poltrona, sentindo-me repentinamente pouco à vontade.

— Sim, acho que sim — respondi.

— A menos que ele não seja mais assim, hein, Dennis?

— Não é não. Arnie mudou.

— Quando foi a última vez que o viu?

— No Dia de Ação de Graças.

— E ele estava bem?

Sacudi a cabeça lentamente, de súbito sentindo vontade de chorar e soltar tudo o que sabia. Já me sentira assim antes e ficara calado; desta vez também consegui calar-me, porém por uma razão diferente. Recordei o que Leigh me dissera, quanto a ficar nervosa por causa dos pais, na véspera do Natal. E agora, a mim parecia que quanto menos pessoas soubessem de nossas suspeitas, tanto melhor... para elas.

— O que há de errado com ele?

— Não sei.

— Leigh sabe?

— Não. Não há nenhuma certeza. Temos... algumas suspeitas.

— Quer falar sobre isso?

— Quero. Por um lado, eu quero, mas acho que seria melhor não falar.

— Está bem — disse ele. — Não fale por enquanto.

Varreu o chão. O som das cerdas duras sobre o concreto do piso era quase hipnótico.

— Talvez fosse melhor você ter uma conversa com Arnie, o quanto antes.

— Sim, já pensei nisso.

Entretanto, eu não ansiava nem um pouco pelo encontro. Houve outro período de silêncio. Papai terminou de varrer e depois passou os olhos em torno.

— Parece que fiz um bom serviço, não?

— Excelente, papai.

Ele sorriu com certa tristeza e acendeu um Winston. Desde seu ataque do coração parara de fumar quase completamente, mas mantinha um maço por perto e de vez em quando fumava um — em geral quando estava tenso.

— Droga, isto aqui parece deserto como o diabo!

— Hum... também acho.

— Quer uma ajudazinha para subir, Dennis? Ajeitei-me nas muletas.

— Não é para se desprezar.

Ele olhou para mim e deu uma risadinha abafada.

— Long John Siver. Só falta o papagaio.

— Vai ficar aí parado, rindo, ou me ajudar?

— Ajudar, é claro.

Passei um braço por seu ombro, de certa forma sentindo-me novamente criança — aquilo provocou lembranças esquecidas de papai me levando para cima, para minha cama nas noites de domingo, depois que eu começava a cochilar, quando o Programa de Ed Sullivan ia pelo meio. Até o cheiro da loção de barba era o mesmo.

No alto da escada, ele disse:

— Interrompa-me, se eu estiver sendo muito indiscreto, Denny. Leigh não está mais saindo com Arnie, está?

— Não, papai.

— Está saindo com você?

— Eu... bem, realmente não sei. Acho que não.

— Ainda não, é o que quer dizer.

— Bem., é sim, acho que é isso.

Eu começava a sentir-me constrangido e ele devia ter percebido, mas insistiu.

— Seria correto afirmar que ela rompeu com Arnie porque ele não era mais o mesmo?

— Sim, creio que seria correto dizer isso.

— Ele sabe sobre você e Leigh?

— Papai, não há nada para saber... pelo menos por enquanto.

Ele pigarreou, pareceu considerar aquilo, e não disse nada. Soltei-me dele e procurei ajeitar minhas muletas. Talvez tivesse demorado um pouco mais do que o necessário nisso.

— Vou lhe dar um conselho de graça — disse meu pai finalmente. — Não deixe o Arnie saber o que há entre você e ela... e nem se incomode em protestar, quanto a não haver nada. Estão tentando ajudá-lo de alguma forma, não é isso?

— Não sei se existe alguma coisa que eu ou Leigh possamos fazer por Arnie, papai.

— Eu o vi umas duas ou três vezes — disse papai.

— Você o viu? — perguntei sobressaltado. — Onde? Meu pai deu de ombros.

— Oh, na rua. No centro da cidade. Afinal, Libertyville não é tão grande assim, Dennis. Ele...

— O quê?

— Mal pareceu reconhecer-me. E parece mais velho. Agora que ficou sem as espinhas, parece muito mais velho. Eu costumava pensar que saíra ao pai, mas agora... — Ele se interrompeu de repente. — Dennis, já pensou que Arnie possa estar tendo alguma espécie de colapso nervoso?

— Já — respondi.

No entanto, eu desejaria ter-lhe dito que havia outras possibilidades. Possibilidades piores, que talvez levassem meu pai a pensar se não seria eu quem estava tendo um colapso nervoso.

— Seja cauteloso — disse ele. Embora não mencionasse o que sucedera a Will Darnell, de repente tive a forte intuição de que pensava naquilo. — Seja cauteloso, Dennis.

Leigh telefonou para mim no dia seguinte e disse que seu pai recebera um chamado de Los Angeles, sobre negócios de fim de ano e que, no impulso do momento, propusera levar a família, para que se afastassem do frio e da neve.

— Mamãe não fala em outra coisa e eu, simplesmente, não encontro um motivo para me recusar a ir — disse ela. — Serão apenas dez dias e as aulas só vão começar a oito de janeiro.

— Parece uma excelente idéia — respondi. — Divirta-se por lá..

— Acha que eu deveria ir?

— Se não for, seria bom examinar sua cabeça.

— Dennis?

— O que é?

A voz dela baixou um pouco.

— Vai tomar cuidado, não vai? Eu... bem, ultimamente tenho pensado muito em você.

Ela desligou em seguida, deixando-me surpreso e satisfeito — embora permanecesse a sensação de culpa, um pouco menor agora, mas ainda existente. Papai perguntara se eu estava tentando ajudar Arnie. Estaria? Ou talvez me limitava a espionar uma parte de sua vida, que ele rotulara de proibida... e roubava sua namorada enquanto isso? E, exatamente o que, Arnie faria ou diria se descobrisse?

Minha cabeça latejava com tantas perguntas e pensei que talvez até fosse bom Leigh afastar-se de Libertyville durante alguns dias.

Como ela tinha dito sobre nossos pais — parecia mais seguro.

 

No dia 29, sexta-feira, o último dia útil do ano velho, liguei para o Posto da Legião Americana de Libertyville e pedi para falar com o secretário. Eu conseguira seu nome, Richard McCandless, com o porteiro do prédio, que também me fornecera o número de telefone onde o encontraria. Descobri que o número pertencia a uma boa casa de móveis de Libertyville, em nome de David Emerson. Disseram-me que esperasse um momento, e então ouvi a voz de McCandless, grave e rouca, parecendo ser de um homem forte e sessentão — como se ele e Patton houvessem aberto caminho para Berlim, através da Alemanha, ombro a ombro e talvez abocanhando no ar as balas inimigas, à medida que avançavam.

— McCandless — disse ele.

— Sr. McCandless, meu nome é Dennis Guilder. Em agosto passado, os senhores providenciaram um funeral em estilo militar, para um homem chamado Roland D. LeBay...

— Ele era seu amigo?

— Não, apenas um mero conhecido, mas...

— Então creio que não ferirei seus sentimentos com o que vou dizer — respondeu McCandless, a voz soando como se cascalhos chocalhassem em sua garganta. Parecia uma mistura de Andy Devine e Broderick Crawford. — LeBay não passava de um grande filho da mãe e, se minha vontade prevalecesse, a Legião não levantaria um dedo para sepultá-lo. LeBay abandonou a organização em 1970, mas se não a abandonasse, nós o expulsaríamos. Aquele homem foi o bastardo mais brigão que já existiu.

— É mesmo?

— Pode ter certeza. Ele começava uma discussão com alguém e fazia aquilo transformar-se em briga. Não se podia jogar pôquer com o cretino e, certamente, não se podia também beber com ele. Era impossível a convivência com ele; antes de mais nada, porque LeBay não se dava com ninguém. E não precisava ir muito longe para exaltar-se e brigar. Um louco filho da mãe, se perdoa a minha franqueza. Quem é você, rapaz?

Por um insano momento, pensei em citar Emily Dickinson para ele: "Não sou ninguém! Quem é você?".

— Um amigo meu comprou um carro de LeBay, pouco antes dele morrer..

— Quê! Não me diga que foi aquele 57!

— Bem, em realidade, era um 58...

— Certo, certo, 57 ou 58, vermelho e branco. Era a única maldita coisa com que ele se preocupava. Tratava o carro como se fosse uma mulher. Sabia que foi por causa desse carro que ele deixou a Legião?

— Não, não sabia — respondi. — O que aconteceu?

— Ah, merda. Uma velha história, garoto. Bem, estou enchendo seus ouvidos de sujeira, mas o caso é que vejo tudo vermelho, sempre que penso naquele filho da mãe do LeBay. Ainda tenho as cicatrizes nas mãos. Tio Sam ficou com três anos de minha vida durante a Segunda Guerra Mundial e isso só me rendeu uma condecoração, um Coração Púrpura, embora permanecesse em combate todo aquele tempo. Abri caminho a duras penas através de metade daquelas merdinhas de ilhas do Pacífico Sul. Eu e mais cinqüenta outros caras sujeitamos Guadalcanal e uma carga banzai... dois milhões de fodidos japoneses avançando contra nós, excitados até os olhos e agitando aquelas espadas que recortam de latas de café, e nunca tive um arranhão. Duas balas passaram certeiras a meu lado, e pouco antes de finalizarmos a carga, o sujeito mais perto de mim teve as tripas rearrumadas por cortesia do Imperador do Japão, mas as únicas vezes que vi a cor de meu próprio sangue, lá no Pacífico, era quando me cortava fazendo a barba. Então...

McCandless riu.

— Ora, que merda, lá vou eu outra vez! Minha mulher diz que um dia toda essa merda me cairá na boca, de tanto eu arreganhá-la. Como é mesmo o seu nome?

— Dennis Guilder.

— Ok, Dennis, sujei seus ouvidos, agora suje os meus. O que deseja?

— Bem, meu amigo comprou aquele carro e o restaurou... para uma espécie de exibição, seria o termo. Um carro de exposição.

— Hum-hum, justo como LeBay — disse McCandless, e minha boca ficou seca. — Ele adorava aquele carro fodido, posso lhe garantir. Não dava uma merda pela mulher... sabia o que aconteceu com ela?

— Sim — respondi

— Ele a levou a isso — disse McCandless, carrancudamente. — Depois que a filha deles morreu, a esposa não recebeu dele o menor consolo. Aliás, não acredito que ele também desse a mínima merda pela criança. Desculpe, Dennis, mas não consigo me conter. Falo assim o tempo todo. Sempre. Minha mãe costumava dizer: "Dickie, sua língua é presa no meio e solta nas extremidades." O que foi que você disse que queria?

— Eu e meu amigo fomos ao funeral de LeBay — expliquei — e depois que a cerimônia terminou, apresentei-me a seu irmão...

— Parecia um sujeito decente — cortou McCandless. — Professor em Ohio.

— Exatamente. Conversamos e ele me deu a impressão de ser um homem bastante correto. Contei-lhe que faria em minha prova final de inglês um trabalho sobre Ezra Pound...

— Ezra o quê?

— Pound.

— Merda, quem é? Estava no funeral de LeBay?

— Não, senhor. Pound foi um poeta.

— Um o quê?

— Poeta. Também já morreu.

— Oh — disse McCandless, demonstrando dúvida.

— De qualquer modo, LeBay, eu me refiro a George LeBay, disse que me enviaria algumas revistas sobre Ezra Pound, para a minha prova, se eu quisesse. Bem, acontece que eu poderia usá-las, mas esqueci o endereço dele. Pensei que o senhor poderia ter.

— Claro, deve estar nos registros; tudo isso é registrado. Odeio ser um maldito secretário, mas meu ano termina em julho e nunca mais quero o cargo. Sabe o que quero dizer? Um fodido, nunca mais!

— Espero não estar incomodando muito.

— Não, diabo, não! Quero dizer, afinal, para que serve a Legião Americana, não é mesmo? Para ajudar os outros. Me dê seu endereço, Dennis, e vou enviar um cartão com a informação.

Forneci-lhe meu nome e endereço, desculpando-me por tê-lo perturbado em seu trabalho.

— Não, nem pense nisso — respondeu ele. — De qualquer modo, estou em minha maldita folga para o café.

Por um momento, senti-me tentado a perguntar-lhe o que ele fazia na casa de móveis de David Emerson, onde a elite de Libertyville comprava. Seria um vendedor? Eu podia vê-lo mostrando a mercadoria a alguma jovem elegante, dizendo: Veja aqui este fodido e lindo sofá, madame, e aqui esta maldita poltrona, posso lhe garantir que não tínhamos nada disto em Guadalcanal, quando aqueles fodidos japoneses drogados caíram sobre nós, com suas espadas de lata.

Sorri ligeiramente, mas o que ele disse em seguida logo me deixou sério.

— Andei umas duas vezes naquele carro de LeBay. Não pude gostar dele. Raios me partam se sei por que, mas o caso é que nunca fui com ele. E nunca mais entrei nele, depois que sua esposa... você entende. Céus, aquilo me dava arrepios.

— Acredito que sim — falei, e minha voz parecia vir de muito longe. — Escute, o que aconteceu, quando ele saiu da Legião? O senhor não disse que tinha algo a ver com o carro?

Ele riu, parecendo um pouco satisfeito.

— Não está mesmo interessado nessa velha história, está?

— Bem... estou. Claro que estou. Meu amigo comprou o carro, lembre-se.

— Sendo assim, vou contar. Sim, foi uma maldita coisa curiosa. Alguns companheiros mencionam isso de vez em quando, se temos alguma folga. Não fui o único com cicatrizes nas mãos. Falando francamente, foi algo de arrepiar.

— Como aconteceu?

— Ah, uma brincadeira de criança. Bem, na verdade, ninguém gostava do filho da puta, você entende. Era um estranho, um solitário...

Como Arnie, pensei.

—... e todos tínhamos bebido — terminou McCandless. — Foi após a reunião, e LeBay se mostrara um sujeito ainda mais cretino que de costume. Havia um grupo nosso no bar, compreenda, e podíamos dizer que LeBay se dispunha a voltar para casa. Estava pegando seu blusão e discutindo com Anderson "Cachorrinho" sobre um detalhe de beisebol. Quando LeBay ia embora, era sempre do mesmo jeito, garoto. Ele saltava para aquele Plymouth, dava marcha à ré e depois pisava. Aquela coisa disparava do pátio de estacionamento como um foguete, jogando cascalho para toda parte. Então a idéia foi de Sonny Bellerman... quatro de nós saímos pela porta dos fundos e fomos para o pátio de estacionamento, enquanto LeBay gritava com "Cachorrinho". Ficamos atrás do canto mais distante do prédio, porque sabíamos onde ele terminava a marcha à ré do carro, antes de disparar para diante. Ele sempre o chamava por um nome de mulher, já lhe disse, era como se fosse casado com a maldita coisa.

'"Fiquem de olhos bem abertos e cabeça baixa, ou ele nos verá', disse Sonny. 'E não se movam, enquanto eu não mandar.' Estávamos todos um tanto ou quanto de pileque, entenda.

"Então, uns dez minutos depois, lá vinha ele, bêbado como um gambá e apalpando os bolsos à procura das chaves. Sonny disse: 'Fiquem atentos, caras, e bem agachados!'

"LeBay entrou no carro e deu marcha à ré. Tudo perfeito, porque parou para acender um cigarro. Enquanto fazia isso, nós agarramos o pára-choque traseiro daquele Fury e levantamos as rodas traseiras do chão, para que quando ele tentasse seguir em frente, jogando cascalho para todos os lados, como sempre, você me entende, as rodas ficariam apenas girando, sem ir a lugar nenhum. Entende o que quero dizer?"

— Entendo — respondi.

Era uma brincadeira de criança. Tínhamos feito aquilo de vez em quando nos bailes do colégio. Certa vez, de molecagem, tínhamos impedido a partida do Dodge do treinador Puffer, suspendendo do chão suas rodas de tração.

— No entanto, tivemos uma espécie de choque. Ele acendeu o cigarro e depois ligou o rádio. Era outra coisa que nos deixava loucos da vida, aquela maneira como ele sempre ficava ouvindo rock and roll, como se fosse algum garotão, e não um fodido coroa, já podendo candidatar-se à aposentadoria da Segurança Social. Então, ele puxou a alavanca para "dirigir". Não podíamos ver, porque estávamos todos agachados, para não sermos surpreendidos. Recordo que Sonny Betertnan ria baixinho e, pouco antes de acontecer, cochichou: "Estão pra cima, homens?", e eu cochichei de volta: "Seu pau está pra cima, Bellerman." Ele foi o único que se machucou de verdade, entenda. Por causa da aliança. E eu juro por Deus, aquelas rodas estavam para cima! Tínhamos a traseira daquele Plymouth uns dez centímetros fora do chão.

— O que aconteceu? — perguntei.

Enfim, pela maneira como marchava a história, eu julgava adivinhar o que sucedera.

— O que aconteceu? Ele arrancou como sempre, foi o que aconteceu. Igualmente como se as quatro rodas estivessem pousadas no chão. O carro atirou cascalho para os lados e puxou aquele pára-choque traseiro de nossas mãos, levando consigo um metro de pele esfolada. Arrancou a maior parte do dedo anular de Sonny Bellerman; sua aliança ficou presa no pára-choque, entenda, e aquele dedo saltou como rolha, saindo de uma garrafa. E ouvimos LeBay rindo enquanto se afastava, como se soubesse o tempo todo que estávamos ali. Ele poderia saber, compreenda; se tivesse ido ao banheiro, ao terminar a forte discussão com "Cachorrinho", ele bem podia ter olhado pela janela, enquanto nos esgueirávamos, podia ter-nos visto de pé atrás do prédio, esperando por ele.

"Bem, isto foi o fim para ele e a Legião. Nós lhe mandamos uma carta, dizendo que não o queríamos mais lá, e ele saiu. E agora, veja só como este mundo é gozado: foi justamente Sonny Bellerman que se levantou na reunião, pouco depois da morte de LeBay, afirmando que devíamos fazer por ele o que era devido, pouco importando o que acontecera. 'Certo', disse Sonny. 'O cara era um sujo filho da puta, mas lutou na guerra como nós. Então, por que não lhe darmos aquilo a que tem direito?' Então, foi o que fizemos. Eu não concordei. Acho que Sonny Bellerman é muito mais cristão do que eu jamais seria."

— Talvez não tivessem levantado as rodas traseiras do chão — falei, pensando no que acontecera aos sujeitos que tinham rebentado Christine, em novembro. Eles haviam perdido muito mais do que a pele dos dedos.

— Nós levantamos, tenho certeza — afirmou McCandless. — Quando recebemos a saraivada de cascalho, ele veio das rodas dianteiras. Até hoje, não consigo imaginar como ele conseguiu aquilo. É muito esquisito, acho eu. Gerry Barlow, que estava em nosso grupo, quando suspendemos o carro, sempre comentou que LeBay devia ter, de certa forma, conseguido adaptar uma tração nas quatro rodas. Entretanto, não acredito que se possa fazer essa conversão. O que me diz?

— Concordo plenamente — respondi. — Não creio que isso possa ser feito.

— Certo, jamais poderia — assentiu McCandless. — Nunca. Bem, ei, acho que gastei a maior parte de minha folga para o café, garoto. Vou voltar e beber outra meia xícara, antes de esgotar o tempo. Mandarei o endereço para você, se tivermos. Acho que temos.

— Obrigado, Sr. McCandless.

— Foi um prazer, Dennis. Cuide-se.

— Certo. Use e não abuse, está bem? Ele riu.

— Era o que costumávamos dizer no 59 de Combate.

Desligou. Recoloquei lentamente o fone no gancho e meditei sobre carros que continuam se movendo mesmo depois de erguidas do chão suas rodas com tração. Uma coisa esquisita. Sim, era realmente esquisito, e o Sr. Candless ainda tinha as cicatrizes para prová-lo. Isso me fez recordar algo dito por George LeBay. Também ele tinha uma cicatriz, resultante de sua associação com Roland D. LeBay. E, à medida que envelheceu, sua cicatriz aumentou.

 

Véspera do Ano-Novo

Por que esse jovem e arrojado astro

morreu em seu carro?

Ninguém sabe o motivo...

Pneus chiando, o fogo rugindo,

e acabou-se o jovem astro,

Oh, como puderam deixá-lo morrer?

No entanto, um jovem se foi, mas sua

lenda persiste,

Porque ele morreu sem motivo...

— Bobby Troup

 

Liguei para Arnie, na véspera do Ano-Novo. Eu tivera uns dois dias para refletir e não queria realmente vê-lo, mas era preciso. Seria impossível decidir qualquer coisa enquanto não o visse de novo, pessoalmente. E até ver Christine outra vez. Eu mencionara o carro a meu pai, durante o café, de passagem, como por casualidade. Ele me disse que certamente todos os carros apreendidos na Garagem de Darnell, àquela altura, já teriam sido fotografados e entregues aos donos.

Foi Regina Cunningham quem atendeu, em voz fria e formal:

— Residência dos Cunningham.

— Oi, Regina, sou eu, Dennis.

— Dennis! — Ela pareceu satisfeita e surpresa. Por um instante, era a voz da antiga Regina, a que dava para mim e Arnie sanduíches de manteiga de amendoim recheados com pedacinhos de bacon (manteiga de amendoim e bacon, em pão integral, é claro). — Como vai você? Soubemos que já teve alta do hospital.

— Vou me virando — falei. — E você? Houve um breve silêncio, depois ela disse:

— Bem, você sabe como andaram as coisas por aqui.

— Problemas — respondi. — Sim, eu sei.

— Todos os problemas que não tivemos em anos anteriores — enfatizou ela. — Acho que estavam todos amontoados em um canto, esperando por nós.

Pigarreei de leve e não disse nada.

— Queria falar com Arnie?

— Sim, se ele estiver por aí. Após outra breve pausa, ela disse:

— Eu me lembro como, nos velhos tempos, vocês dois viviam correndo um para a casa do outro, na véspera do Ano-Novo. Queriam ver a entrada do Ano-Novo. Não era assim que diziam, Dennis?

Ela parecia quase tímida, e isso nada tinha a ver com a antiga Regina, sempre marchando a todo vapor.

— Bem... sim — respondi. — Coisas de crianças, eu sei, mas...

— Não! — exclamou ela, viva e rapidamente. — De modo algum! Se Arnie já precisou de você, Dennis, se ele já precisou de algum amigo, este é o momento. Ele... está lá em cima, dormindo. Tem dormido demais. Além disso, não... ele não... não...

— Não o que, Regina?

— Ele não se inscreveu para a faculdade! — explodiu ela, mas baixou a voz imediatamente, como se Arnie pudesse ouvi-la. — Nem uma! O Sr. Vickers, conselheiro de orientação do colégio, telefonou para mim e me disse! Arnie alcançou 700 pontos de média, quase podia entrar para qualquer universidade do país... pelo menos poderia, antes deste... deste problema... — Sua voz tremulou em direção às lágrimas, mas ela conseguiu controlar-se de novo. — Converse com ele, Dennis. Se pudesse ficar algumas horas com ele esta noite... beberem juntos algumas cervejas e... e então apenas falar com ele...

Ela se interrompeu, mas eu podia perceber que havia algo mais. Algo que ela precisava dizer e não podia.

— Por favor, Regina — falei. Eu não gostava da antiga Regina, a dominadora compulsiva que parecia dirigir a vida do marido e do filho de maneira a ajustar-se à sua própria programação, porém gostava ainda menos desta mulher angustiada e chorosa.. — Vamos, se acalme, está bem?

— Eu receio falar com ele — declarou ela, por fim. — Michael também não tem coragem... Arnie... parece explodir, se alguém o contraria em alguma coisa. A princípio, era apenas sobre o carro; agora é também sobre a universidade. Converse com ele, Dennis, por favor. — Houve uma outra breve pausa e então, quase por casualidade, ela soltou o que lhe roia o coração: — Acho que nós o estamos perdendo.

— Não, Regina, escute...

— Vou chamá-lo — disse ela, abruptamente, largando o fone.

A espera pareceu alongar-se. Apertei o fone entre o queixo e o ombro e fiquei batendo com os nós dos dedos contra o gesso que ainda me cobria a parte superior da perna esquerda. Lutei contra um ansioso desejo de simplesmente desligar o telefone e fugir de toda aquela confusão.

Então, tornaram a erguer o fone no outro lado.

— Alô? — disse uma voz circunspecta.

O pensamento que me atravessou a mente, com absoluta segurança, foi: Esse não é Arnie.

— Arnie?

— Está me parecendo Dennis Guilder, a boca que anda como um homem — disse a voz. Agora ela parecia a de Arnie, claro, mas ao mesmo tempo não parecia. A voz dele não ficara mais grave, mas dava a impressão de ter-se enrouquecido, como por usá-la demais ou gritar muito. Era alheia, como se eu estivesse falando com um estranho que exibia uma excelente imitação de meu amigo Arnie.

— Cuidado com o que está dizendo, seu cacete — falei.

Eu sorria, mas minhas mãos estavam frias. Geladas.

— Compreenda — disse ele, em tom confidencial —, sua cara e meu traseiro mostram uma suspeita semelhança.

— Já notei a semelhança mas, da última vez, pensei que fosse o contrário — repliquei. Então, um pequeno silêncio caiu entre nós, já havíamos completado o que, conosco, significavam as amenidades. — Bem, o que está fazendo esta noite? — perguntei.

— Pouca coisa — respondeu. — Nada de encontros ou coisa assim. E você?

— Bem, estou em plena forma — falei. — Vou pegar Roseanne e levá-la ao Estúdio 2000. Você pode ir conosco e, se quiser, segurar minhas muletas enquanto dançamos.

Ele riu um pouquinho.

— Tenho uma sugestão — disse eu. — Talvez nós dois pudéssemos ver o Ano-Novo, como antigamente. O que acha?

— Ótimo! — exclamou ele. Parecia gostar da idéia, mas ainda não era bem o velho Arnie. — Ver Guy Lombardo e toda aquela turma bacana. Tá legal.

Fiz uma pausa momentânea, ainda incerto sobre o que dizer. Respondi por fim, cautelosamente:

— Bem, talvez Dick Clark ou qualquer outro. Guy Lombardo já morreu, Arnie.

— É mesmo? — ele pareceu perplexo, vacilante. — Oh. Oh, sim, acho que morreu mesmo. E Dick Clark ainda pinta por aí, não?

— Certo — respondi.

— Vou ter que maneirar, Dick, com um bom ritmo, você poderá dançar — disse Arnie, mas não era a voz dele, em absoluto.

Minha mente efetuou uma súbita e hedionda conexão

(o melhor cheiro do mundo... exceto, talvez, o de uma cona)

e senti que a mão se apertava convulsivamente sobre o fone. Acho que quase gritei. Eu não estava falando com Arnie, mas com Roland D. LeBay. Estava falando com um morto.

— Aqui é Dick, tudo bem — ouvi-me dizendo, como que à distância.

— Como está indo, Dennis? Você pode dirigir?

— Não, ainda não. Acho que vou pedir ao velho para me levar. — Fiz uma breve pausa, depois mergulhei de cabeça: — Pensei que você talvez pudesse me trazer de volta, se já está com seu carro. Pode ser?

— Claro! — ele pareceu sinceramente excitado. — Vai ser muito bom, Dennis! Excelente! Daremos algumas boas risadas. Como nos velhos tempos.

— Certo — respondi. E então, juro por Deus, como saiu quase sem sentir, acrescentei: — Como na oficina mecânica.

— Sim, isso mesmo! — replicou Arnie, rindo. — Um barato! Até lá, Dennis.

— Tudo bem — respondi, automaticamente. — Até lá.

Desliguei, fiquei olhando para o telefone e, de repente, comecei a tremer de alto a baixo. Nunca havia sentido tanto medo na vida como naquele momento. O tempo passa: a mente reconstrói suas defesas. Imagino que um dos motivos sobre a existência de tão pouca convincente evidência a respeito de fenômenos psíquicos é porque a mente se põe a funcionar, reestruturando a evidência. Uma pequena porção é melhor do que muita insanidade. Questionei mais tarde o que ouvira ou me fiz acreditar que Arnie não entendera bem meu comentário, mas naqueles poucos momentos, após colocar o fone no gancho, tinha certeza: LeBay se apossara dele. De algum modo, morto ou não, LeBay estava nele.

E LeBay assumia o comando.

 

A véspera do Ano-Novo foi um dia frio, de céu límpido. Papai me deixou em casa dos Cunningham faltando quinze para as sete e ajudou-me a caminhar até a porta dos fundos — muletas não foram feitas para o inverno ou aléias cobertas de neve.

A camioneta dos Cunningham não estava ali, mas Christine descansava na entrada para carros, seu brilhante revestimento vermelho e branco recamado por uma condensação de cristais de gelo. Havia sido liberada, juntamente com os demais carros embargados, somente naquela semana. Só em olhar para aquele carro fui tomado de uma estranha sensação de medo, como uma dor de cabeça. Não queria voltar para casa naquele carro, nem nessa noite, nem nunca. Preferia meu Duster, comum e fabricado em série, com os assentos cobertos de vinil e o idiota adesivo no pára-choque: CARRO DO STAFF DA MÁFIA.

A luz da entrada dos fundos foi acesa e vimos a silhueta de Arnie caminhar para a porta. Ele nem mesmo parecia Arnie. Tinha os ombros caídos e os movimentos pareciam mais velhos. Falei para mim mesmo que devia ser tudo imaginação, produto das suspeitas que acalentava e, naturalmente, eu estava cheio de merda... e sabia disso.

Ele abriu a porta e se inclinou para fora, em uma velha camisa de flanela e jeans.

— Dennis! — exclamou. — Olá, amigão!

— Oi, Arnie — falei.

— Olá, Sr. Guilder.

— Oi, Arnie — disse meu pai, levantando a mão enluvada. — Como tem passado?

— Hum... Sabe como é, não muito bem, mas tudo vai mudar. Ano-Novo, vida nova, sai a velha merda, entra a nova merda, certo?

— Creio que sim — disse meu pai, parecendo algo chocado. — Tem certeza de não querer que eu volte para apanhá-lo, Dennis?

Eu queria que ele voltasse, mais do que tudo. No entanto, Arnie olhava para mim e sua boca ainda sorria, mas os olhos eram opacos e vigilantes.

— Não é preciso, Arnie me levará para casa... se aquela banheira enferrujada ainda conseguir rodar.

— Oh-oh, veja lá o que diz de meu carro — disse Arnie. — Christine é muito sensível.

— É mesmo? — perguntei.

— Claro que é — disse Arnie, sorrindo. Virei a cabeça e desculpei-me:

— Sinto muito, Christine.

— Ótimo! Assim está melhor.

Por um momento, nós três ficamos ali, eu e meu pai ao pé dos degraus da porta da cozinha, Arnie na soleira mais acima, nenhum de nós parecendo saber o que dizer em seguida. Senti uma espécie de pânico — alguém precisava dizer qualquer coisa, ou então toda aquela ridícula representação de que nada mudara acabaria ruindo pelo próprio peso.

— Muito bem, garotos — disse meu pai, afinal —, fiquem sóbrios. Se forem além de duas cervejas, ligue para mim, Arnie.

— Não se preocupe, Sr. Guilder.

— Estaremos muito bem — falei, exibindo um sorriso que eu sabia forçado e falso. — Volte para casa e durma seu merecido sono para descansar sua beleza, papai. Está precisando.

— Oh-oh — respondeu meu pai. — Veja lá o que diz de meu rosto. Ele é muito sensível. Papai voltou para o carro. Fiquei vendo-o ir-se, com minhas muletas sob as axilas. Observei-o enquanto cruzava por trás de Christine. Então, quando manobrou na entrada para carros e tomou a direção de casa, eu me sentia um pouco melhor.

 

Bati a neve da ponteira de cada muleta, cuidadosamente, enquanto ainda estava na soleira. A cozinha dos Cunningham tem piso ladrilhado e uns dois quase-acidentes me ensinaram que, sobre superfícies lisas, duas muletas com neve podem transformar-se em patins para gelo.

— Você sabe realmente manobrar esses bichinhos — comentou Arnie, vendo-me cruzar pela cozinha.

Tirou do bolso da camisa de flanela um maço de Tiparfilos, escolheu um, enfiou na boca a boquilha de plástico branco e o acendeu, com a cabeça inclinada para um lado. A chama do fósforo brincou momentaneamente em seu rosto, como tiras de pintura amarela.

— É uma capacidade que perderei com satisfação — respondi. — Quando foi que começou com os charutos?

— Na Garagem de Darnell — respondeu. — Só não fumo diante de mamãe. O cheiro a deixa fora de si.

Arnie não fumava como um cara aprendendo o hábito — parecia um homem, veterano de vinte anos naquilo.

— Pensei em fazer um pouco de pipoca — disse. — O que acha?

— É uma boa. Tem cerveja?

— Afirmativo. Tem uma embalagem de seis na geladeira e mais duas lá embaixo.

— Grande! — Sentei-me cuidadosamente à mesa da cozinha, estirando a perna esquerda. — Onde estão seus pais?

— Foram a uma reunião de fim de ano na casa dos Fassenbach. Quando é que vai tirar esse gesso?

— Talvez no final de janeiro, se tiver sorte. — Agitei minhas muletas no ar e exclamei dramaticamente: — Tiny Tim voltou a andar! Que Deus nos abençoe, a cada um de nós!

A caminho do fogão, com uma frigideira, um saco de milho de pipocas e uma garrafa de óleo, Arnie riu e balançou a cabeça.

— O mesmo velho Dennis. Não arrancaram muita coisa de você, seu bosta.

— Você não deu muito as caras no hospital pra me visitar, Arnie.

— Levei uma ceia de Ação de Graças pra você, que diabo queria mais, sangue? Dei de ombros. Ele suspirou.

— Às vezes, penso que você era o meu amuleto, Dennis.

— Largue do meu pé, seu cérebro de borracha.

— Falo sério. Estive em maus lençóis, desde que você se arrebentou, e ainda continuo. Fervendo em água quente. É um milagre que não pareça uma lagosta.

Ele riu com vontade. Não era o riso que se esperaria de um jovem em apuros, mas o de um homem — sim, um homem — que está se divertindo imensamente. Arnie colocou a frigideira no fogo e despejou o óleo dentro dela. Seu cabelo, mais curto do que costumava ser e penteado para trás, em um estilo novo para mim, caiu sobre a testa. Ele o jogou para trás com um gesto brusco da cabeça e acrescentou a pipoca ao óleo. Colocou ruidosamente uma tampa na frigideira. Depois foi à geladeira. Pegou uma embalagem de seis cervejas. Colocou-a à minha frente, com um baque surdo, retirou duas latas e as abriu. Entregou-me uma e ficou com a sua. Ergui a minha.

— Um brinde — disse Arnie. — Morte aos bostas do mundo, em 1979! Baixei minha lata lentamente.

— Não posso brindar a isso, cara.

Vi uma fagulha de raiva nos olhos cinzentos. Uma fagulha que pareceu piscar neles, como falsificado bom humor, para então desaparecer.

— Bem, então a que pode brindar... cara?

— Que tal um brinde à universidade? — perguntei calmamente.

Ele me fitou com ar carrancudo, o bom humor anterior desaparecido como que por encanto.

— Eu devia imaginar que ela encheu você com esse lixo. Minha mãe é uma mulher que não se detém diante de nada, para conseguir o que quer. Você sabe disso, Dennis. Ela beija até o traseiro do diabo, se for preciso.

Larguei minha lata de cerveja, ainda cheia.

— Bem, ela não beijou meu traseiro. Apenas disse que você não fez nenhuma inscrição ainda e que estava preocupada.

— A vida é minha — disse Arnie. Seus lábios se torceram, modificando o rosto, tornando-o incrivelmente feio. — Faço o que bem entendo.

— E a universidade não está em seus planos?

— É claro que sim, mas quando eu me decidir. Diga isso a ela, caso pergunte. Quando chegar o momento. Não esse ano. Definitivamente não. Se ela está pensando que vou para a Universidade de Pittsburgh, para a Horlicks ou Rutgers, bancar o calouro e ficar berrando como louco nos jogos de futebol do colégio, deve estar maluca. Não, depois de toda a merda que passei esse ano. Não dá, cara.

— E o que vai fazer?

Vou cair fora — respondeu ele. — Entrar em Christine e motorar por aí, esquecendo essa cidadezinha de programa único. Você entende? — Sua voz começou a alterar-se, ficando estridente, fazendo com que o horror me invadisse novamente. Sentia-me impotente contra aquele medo efeminado e só desejava que não transparecesse no meu rosto. Porque agora não era apenas a voz de LeBay, mas até mesmo seu rosto, pairando sob o de Arnie como alguma coisa morta, preservada em formol. — Minha vida tem sido uma tempestade de merda este ano e acho que o maldito Junkins continua atrás de mim, a todo vapor. Seria melhor tomar cuidado, antes que alguém acabe com ele...

— Quem é Junkins? — perguntei.

— Não importa — respondeu Arnie. — Não é importante. — Atrás dele, o óleo começou a chiar. Um punhado de milho estourou — ploft! — contra a tampa. — Tenho que agitar aquilo, Dennis. Vai querer um brinde ou não? Para mim, não faz diferença.

— Está bem — falei. — Que tal um brinde a nós?

Ele sorriu, aliviando um pouco a constrição em meu peito.

— A nós, legal, é uma boa pedida, Dennis. A nós. Não podia ser outra coisa, hein?

— Claro — respondi, com voz algo enrouquecida. — Não podia ser outra coisa. Fizemos tintim com as latas de cerveja e bebemos.

Arnie foi para o fogão e começou a agitar a frigideira, onde o milho explodia velozmente. Deixei uns dois goles de cerveja deslizarem pela minha garganta. Àquela altura, cerveja ainda era mais ou menos novidade para mim e nunca ficara embriagado com ela, porque gostava do sabor e alguns amigos — Lenny Barongg era o principal deles — me tinham dito que quando a gente fica tropeçando, levantando, vomitando pela camisa abaixo, leva semanas sem conseguir olhar para a coisa. Infelizmente, desde então venho descobrindo que isso não é a pura verdade.

Arnie, entretanto, bebia como se a Proibição fosse ser reinstaurada a primeiro de janeiro; esvaziara sua primeira lata, antes mesmo da pipoca terminar de estourar. Amassou a vazia, piscou para mim e disse:

— Veja como coloco bem no traseiro do vagabundinho, Dennis.

A alusão me escapôu, de maneira que apenas dei um sorriso forçado, quando ele jogou a lata na cesta do lixo. Ela acertou primeiro a parede, antes de cair na cesta.

— Cesta — falei.

— Perfeito — disse ele. — Quer me passar outra?

Entreguei-lhe a lata, imaginando, que diabo, meus pais planejavam ver a entrada do Ano-Novo em casa e, se Arnie ficasse realmente bêbado e incapaz de dirigir, eu podia ligar para papai. Arnie, bêbado, talvez dissesse coisas que jamais diria estando sóbrio e, por outro lado, eu não queria voltar com ele para casa em Christine.

A cerveja, entretanto, não pareceu afetá-lo. Ele terminou de preparar a pipoca, despejou-a em uma grande tigela de plástico, derreteu meia barra de margarina, despejou-a sobre as pipocas, salgou e disse:

— Vamos para sala ver TV. O que acha?

— Para mim, está ótimo.

Peguei minhas muletas, apoiei-as sob as axilas — ultimamente havia a sensação de que estava ficando calejado debaixo dos braços e então tateei pelas três cervejas que ainda estavam sobre a mesa.

— Eu volto para apanhar — disse Arnie. — Vamos. Antes que você acabe derrubando tudo. Sorriu para mim, e naquele momento não era outro senão Arnie Cunningham, a tal ponto que

meu coração se confrangeu um pouco ao olhar para ele.

Havia um especial de véspera de Ano-Novo passando na TV, bastante chato. Donny e Marie Osmond cantavam, ambos mostrando seus gigantescos dentes brancos, em sorrisos amistosos mas, ao mesmo tempo, parecendo o riso de tubarões. Deixamos a TV ligada e conversamos. Falei a Arnie sobre as sessões de fisioterapia e como estava me exercitando com pesos. Depois de duas cervejas, confessei-lhe que receava nunca mais tornar a caminhar direito. Deixar de jogar futebol pela escola não me incomodava, porém aquilo, sim. Ele assentia, calma e compreensivamente, enquanto eu falava.

Eu poderia terminar aqui, e dizer que jamais passara uma noite tão peculiar em minha vida. Coisas piores aguardavam, mas nada era tão estranho, tão... tão desconexo. Era como posar para um filme, cujas imagens estão quase — mas não inteiramente — fora de foco. Por vezes ele me parecia Arnie, mas em outras não havia a mais remota semelhança. Ele adquirira modos que eu nunca percebera antes — girar as chaves do carro nervosamente sobre o retângulo de couro ao qual estavam afixadas, estalar os nós dos dedos e, ocasionalmente, morder a polpa do polegar com os incisivos superiores. Houve ainda aquele comentário sobre "colocar bem no traseiro do vagabundinho", quando atirou fora a lata de cerveja. E, embora houvesse bebido cinco cervejas, quando eu ainda terminava a minha segunda, apenas sorvendo uma atrás da outra, ele ainda não parecia bêbado.

Além disso, havia os gestos que eu sempre associara a Arnie, que pareciam ter desaparecido completamente: o puxão rápido e nervoso do lóbulo da orelha quando falava, o estiramento súbito das pernas, terminando com os tornozelos brevemente cruzados, seu hábito de exprimir satisfação, deixando o ar sibilar através dos lábios franzidos, em vez de rir abertamente. O último ocorrera uma ou duas vezes. No entanto, era mais freqüente indicar sua jovialidade em uma série de esganiçadas risadinhas sufocadas, que eu associava a LeBay.

O especial terminou às onze da noite e Arnie girou o botão da TV, até encontrar uma festa-dançante em algum hotel de Nova Iorque, onde insistiam em mostrar Times Square, na qual já se amontoara uma boa multidão. Não era Guy Lombardo, mas bem próximo disso.

— Você não vai mesmo para a universidade? — perguntei.

— Não este ano. Eu e Christine iremos para a Califórnia, logo depois da formatura do colégio. Para aquelas praias douradas de sol.

— Seus velhos já sabem?

Ele pareceu sobressaltar-se à idéia.

— Diabo, não! E não vá contar a eles! Preciso tanto que eles saibam disso, como preciso de um peru de borracha.

— O que pretende fazer por lá? Ele deu de ombros.

— Trabalhar consertando carros. Sou tão bom nisso como em qualquer coisa. — Então, ele me deixou atônito, ao dizer, casualmente: — Espero convencer Leigh a ir comigo.

A cerveja entrou pelo buraco errado e comecei a tossir, pulverizando minhas calças. Arnie me bateu duas vezes nas costas, com força.

— Você está bem?

— Estou — consegui dizer. — A cerveja entrou no canal errado. Arnie... se pensa que ela vai com você, está vivendo num mundo de sonho. Leigh está às voltas com requerimentos para a universidade. Tem um punhado deles, cara. Ela está seriamente envolvida nisso.

Os olhos dele estreitaram-se imediatamente e tive a desagradável sensação de que a cerveja me traíra, fazendo-me falar mais do que devia.

— O que mais sabe sobre minha garota?

De repente, eu me sentia como se houvesse caído em um enorme campo, fortemente minado.

— Ela não fala em outra coisa, Arnie. Quando começa com o assunto, ninguém consegue fazê-la calar-se.

— Companheiro... Não está se intrometendo, está, Dennis? — Ele me observava atentamente, os olhos cheios de suspeita. — Você não faria uma coisa dessas, hein?

— Não — respondi, mentindo da maneira mais absoluta e completa. — Não sei como pode imaginar uma coisa dessas.

— Então, como sabe tanto sobre o que ela anda fazendo?

— Eu a vi por aí — respondi. — Falamos sobre você.

— Ela fala sobre mim?

— Sim, mais ou menos — repliquei, com naturalidade. — Disse que vocês dois tiveram uma discussão sobre Christine.

Era a coisa certa a dizer. Ele relaxou.

— Foi uma discussãozinha de nada. Sem nenhuma importância. Ela virá me procurar. E se quer ir para a universidade, há boas universidades na Califórnia. Nós nos casaremos, Dennis. Vamos ter filhos e toda essa merda.

Lutei para manter o rosto impassível.

— Ela já sabe disso? Ele riu.

— Nem desconfia! Ainda não, mas vai saber. Dentro em breve. Eu a amo e nada pode acontecer para nos atrapalhar. — O riso extinguiu-se. — O que ela disse sobre Christine?

Outra mina.

— Disse que não gostava do carro. Acho que... bem, talvez estivesse um pouco enciumada. Novamente, era a coisa certa a dizer. Ele relaxou ainda mais.

— Sim, claro que é isso. Enfim, ela vai aparecer, Dennis. O verdadeiro amor nunca transcorre tranqüilamente, mas ela vai aparecer, não se preocupe. Se tornar a vê-la, diga que vou telefonar. Ou dê o recado, quando as aulas recomeçarem.

Pensei em dizer-lhe que, naquele exato momento, Leigh estava na Califórnia mas decidi ficar calado. Perguntei-me o que este novo e desconfiado Arnie faria se soubesse que eu beijara a garota com quem pensava casar, que a abraçara... que estava me apaixonando por ela.

— Veja, Dennis! — exclamou Arnie, apontando para a TV.

A câmera mostrava Times Square novamente. A multidão era um imenso — mas ainda crescente — organismo. Passava pouco de onze e meia. O ano velho estava nas últimas.

— Veja aqueles bostas!

Ele cacarejou sua risada estridente e excitada, terminou a cerveja e desceu para pegar uma nova embalagem de seis. Fiquei sentado, pensando em Welch e Repperton, em Trelawney, Stanton, Vandenberg e Darnell. Pensei em como Arnie — ou quem quer que ele se tornara — julgava que ele e Leigh haviam tido apenas uma briguinha de namorados sem importância e em como encerrariam o ano letivo casando-se, como naquelas melosas baladas de amor dos anos 50.

E, oh, Deus, tive um grande calafrio.

 

Vimos o Ano-Novo entrar.

Arnie arranjou umas duas bombinhas e estalos de festa — do tipo que estoura e solta então uma nuvem de pequenas serpentinas de papel crepom. Erguemos um brinde a 1979 e conversamos mais um pouco sobre assuntos neutros, como a decepcionante derrota dos Phillies nos desempates e as chances dos Steelers de fazerem toda a caminhada até a Grande Taça.

A tigela de pipoca baixara até o milho sem estourar e os caroços queimados, quando decidi fazer uma das perguntas que estivera evitando.

— O que acha que aconteceu a Darnell, Arnie?

Ele me fitou vivamente, depois tornou a olhar para a TV, onde casais dançavam, com confetes do Ano-Novo nos cabelos. Bebeu mais um pouco de cerveja.

— As pessoas com quem negociava calaram a boca dele, porque podia falar demais. É o que acho que aconteceu.

— As pessoas para quem .ele trabalhava?

— Will costumava dizer que a Gangue do Sul era ruim — explicou Arnie —, mas que os colombianos ainda eram piores.

— Quem são os...

— Os colombianos? — Arnie riu cinicamente. — Caubóis da cocaína, é isso que eles são. Will costumava comentar que eles matam um sujeito até mesmo se o cara olhar para suas mulheres da maneira errada e algumas vezes, quando olham da maneira certa. Talvez tenha sido coisa dos colombianos. O negócio foi feito bastante bem do jeito deles.

— Você estava entregando coca para Darnell? Arnie deu de ombros.

— Eu entregava muamba para Will. Só transportei coca para ele uma ou duas vezes, e dou graças a Deus por não estar levando nada pior do que cigarros sem selagem, quando me pegaram. Eles me pegaram com a mão na massa, cara. Uma boa merda. Entretanto, se a situação fosse a mesma, provavelmente eu faria tudo de novo. Will podia ser um velho filho da mãe, sujo e nojento, mas era legal, em certo sentido. — Seus olhos ficaram velados, estranhos. — Sim, de certo modo era legal. Só que sabia demais. Aí está por que o liquidaram. Sabia demais... e, cedo ou tarde, terminaria dando com a língua nos dentes. Acho que foram os colombianos. Uns filhos da puta.

— Não pesquei nada. E nem é da minha conta, acho. Ele olhou para mim, sorriu e piscou.

— Era a teoria do dominó. Pelo menos, assim devia ser. Havia um sujeito chamado Henry Buck. Supõe-se que ele me acusaria. Então, eu acusaria Will. E depois... a grande jogada... Will certamente acusaria os caras lá do Sul, que lhe vendiam a droga, as bolinhas, cigarros e bebida. Eram eles que Jun... que os tiras realmente queriam. Especialmente os colombianos.

— E acha que eles o mataram? Arnie me fitou opacamente.

— Eles ou a Gangue do Sul, lógico. Quem mais poderia ser? Sacudi a cabeça.

— Bem — disse ele —, tomamos outra cerveja e levo você em casa. Eu adorei essa noite, Dennis. Realmente adorei.

Havia um toque de verdade naquilo, mas Arnie jamais faria um comentário enfático como: "Eu adorei essa noite, realmente adorei". Nunca o velho Arnie.

— Hum... eu também, cara.

Eu não queria outra cerveja, mas aceitei assim mesmo. Desejava adiar o momento inevitável de entrar em Christine. De tarde, parecera um passo necessário — experimentar, eu mesmo, a atmosfera daquele carro... se houvesse alguma atmosfera para experimentar. Agora, a idéia parecia aterradora, uma loucura. O segredo do que eu e Leigh nos estávamos tornando, um para o outro parecia um enorme ovo quebradiço em minha cabeça.

Diga-me, Christine, você pode ler pensamentos?

Senti um riso aloucado subindo em minha garganta e despejei cerveja sobre ela.

— Escute — falei —, vou ligar para o velho vir me buscar, se você quiser, Arnie. Ele ainda deve estar de pé.

— Não há problema — disse Arnie. — Eu conseguiria caminhar três quilômetros em linha reta, não se preocupe.

— Eu só pensei...

— Aposto como está louco para voltar a dirigir, não está?

— Bem, estou, é claro.

— Nada melhor do que a gente estar atrás do volante de nosso próprio carro — disse Arnie, e então seu olho esquerdo baixou na piscada remelosa de um velho devasso. — Exceto, talvez, uma cona.

 

Chegara a hora. Arnie desligou a TV e fiz minha penosa caminhada de muletas através da cozinha, levei algum tempo para conseguir vestir minha velha jaqueta de esqui, esperando que Michael e Regina chegassem de sua festa e adiassem as coisas por algum tempo mais — talvez Michael sentisse o cheiro de bebida no hálito de Arnie e me oferecesse uma carona. Ainda estava bem clara em minha mente a lembrança da tarde em que eu deslizara para trás do volante de Christine, quando Arnie estava em casa de LeBay, negociando com o velho filho da mãe.

Arnie pegara umas duas cervejas na geladeira — "Para a estrada", intimou. Pensei em dizer-lhe que se fosse apanhado embriagado, por estar em liberdade sob fiança, provavelmente iria para a cadeia antes de piscar um olho. Depois decidi ser melhor ficar calado. Saímos.

A primeira manhã de 1979 — madrugada, aliás — estava terrivelmente fria, o tipo de frio que faz a umidade do nariz congelar em segundos. Os bancos de neve, à margem da entrada para carros, cintilaram como bilhões de diamantes. E lá estava Christine, as vidraças negras embaciadas pela neve. Olhei para o carro. A Gangue, dissera Arnie. A Gangue do Sul ou os colombianos. Soava melodramático, mas possível — não, mais: soava plausível. Entretanto, a Gangue liquidava pessoas a tiros, empurrava-as de janelas, estrangulava-as. Segundo a lenda, Al Capone se livrara de um pobre otário com um bastão de beisebol recheado de chumbo. Só que... dirigir um carro sobre o gramado nevado de um sujeito, atirá-lo contra a parede de sua casa e entrar em sua sala de estar...

Os colombianos, talvez. Arnie tinha dito que os colombianos eram loucos. Mas loucos assim? Eu não acreditava.

Christine reluzia à luz que vinha da casa e à luminosidade das estrelas. E se tivesse sido ela? E se ela descobrisse que eu e Leigh tínhamos nossas suspeitas? Pior ainda, e se descobrisse que nós andávamos de namorico?

— Precisa de ajuda nos degraus, Dennis? — perguntou Arnie, sobressaltando-me.

— Não. Posso me entender com a escada — respondi. — Prefiro uma mãozinha na alameda.

— Não tem problema, cara.

Desci os degraus da cozinha em diagonal, aferrando o corrimão com uma das mãos e sustendo as muletas na outra. Na alameda, apoiei-me sobre elas, dei uns dois passos e então escorreguei. Uma pontada imprecisa de dor correu por minha perna esquerda acima, aquela que ainda não valia nada. Arnie me agarrou.

— Obrigado — falei, contente pela chance de parecer amedrontado.

— Vá com calma.

Chegamos ao carro, e Arnie perguntou se eu podia entrar sozinho. Respondi que podia. Ele me deixou e passou pela frente do capô de Christine. Segurei a maçaneta com mão enluvada e uma impotente sensação de medo, de repulsa, me envolveu por completo. Só então comecei a acreditar, bem lá no fundo, sentir onde uma pessoa vive. Porque a maçaneta estava viva em minha mão. Eu a sentia como uma fera viva, que estivesse adormecida. Aquela maçaneta não parecia de aço cromado; Santo Deus, ela dava a sensação de pele. Como se eu pudesse apertá-la e despertar a fera, rugindo.

Fera?

Certo, que fera?

O que seria? Alguma espécie de Ifrit? Um carro comum que, de certa forma, se tornara a perigosa, fedorenta morada de um demônio? Uma sobrenatural manifestação da prolongada personalidade de LeBay, uma demoníaca casa mal-assombrada que rodava sobre pneus Goodyear? Eu não sabia. Sabia apenas que estava assustado, aterrorizado. Achava que não conseguiria ir em frente com aquilo.

— Ei, você está bem? — perguntou Arnie. — Consegue entrar?

— Consigo — respondi roucamente.

Apertei o polegar sobre o botão abaixo da maçaneta, abri a porta, virei-me de costas para o banco e deixei o corpo cair sobre ele, as pernas rigidamente estendidas. Segurei a perna e a girei. Era como mover um móvel. Meu coração martelava no peito. Puxei a porta e a fechei.

Arnie girou a chave e o motor ganhou vida — como se a máquina estivesse quente, em vez de gelada. Então, fui assaltado pelo cheiro, parecendo vir de toda parte, mas principalmente parecendo emanar do estofamento: o fedor forte, doentio e apodrecido de morte e decomposição.

 

Não sei como descrever aquela ida para casa, aqueles cinco quilômetros rodados, que não duraram mais de dez ou doze minutos, sem dar de mim mesmo a impressão de um fugitivo de hospício. Não há meios de ser objetivo a respeito; apenas estar aqui e tentar, é bastante para me deixar gelado e ardente ao mesmo tempo, febril e indisposto. Não é possível separar o que era real e o que minha mente podia ter elaborado: nenhuma linha divisória existia entre o objetivo e o subjetivo, entre a verdade e a horripilante alucinação. Entretanto, nada foi produto da embriaguez, posso garantir — se não outra coisa, pelo menos isto eu posso garantir. Qualquer tonteira que a cerveja pudesse ter provocado, evaporou-se imediatamente. O que se seguiu foi uma lúcida excursão pela terra dos amaldiçoados.

Para início de conversa, nós recuamos no tempo.

 

Por um momento, não era Arnie quem dirigia, em absoluto; era LeBay, putrefato e fedendo a sepultura, metade esqueleto e metade carne apodrecida, esponjosa, botões esverdinhados e corroídos. De sua gola subiam larvas, abrindo caminho lentamente. Pude ouvir um lento zumbido e, a princípio, pensei que fosse algum curto-circuito em qualquer das luzes no painel de instrumentos. Só mais tarde comecei a pensar que poderia ter sido o som de moscas, procriando em sua carne. Era inverno, sem dúvida, mas...

Em certas ocasiões, parecia haver outras pessoas no carro, conosco. Olhei uma vez pelo espelho retrovisor e vi um manequim de cera de uma mulher, fitando-me com os olhos vivos e cintilantes de um troféu empalhado. Penteava os cabelos no estilo pajem, em moda nos anos 50. Suas faces pareciam demasiado pintadas com rouge e recordei que o envenenamento por monóxido de carbono, presumivelmente, emprestava a ilusão de vida e de pele corada. Mais tarde, tornei a espiar pelo espelho e tive a impressão de ver uma menininha lá, o rosto escurecido pela asfixia, os olhos esbugalhados como os de um animal empalhado, cruelmente comprimido. Fechei os olhos e, ao abri-los, Buddy Repperton e Richie Trelawney surgiram no espelho retrovisor. O sangue se coagulara em placas secas sobre a boca, queixo, pescoço e a camisa de Buddy. Richie era uma massa carbonizada — mas com olhos vivos e atentos. Buddy estendeu o braço lentamente. Segurava uma garrafa de Texas Driver na mão enegrecida. Tornei a fechar os olhos. Depois disso, não olhei mais para o espelho.

Recordo que o rádio transmitia rock: Dion e os Belmonts, Ernie K-Doe, os Royal Teens, Bobby Rydell ("Oh, Bobby, oh... everything's cool... we're glad you go to a swinging' school...")

Recordo ainda que, por um momento, parecia haver um dado vermelho de isopor pendendo do espelho retrovisor, depois ali havia sapatinhos de criança, em seguida, nem uma coisa nem outra.

Acima de tudo, recordo ter insistido na idéia de que tais coisas — o fedor de carne putrefata e os estofados bolorentos — existiam apenas em minha mente, que eram como as miragens que atormentam a consciência de um fumador de ópio.

Eu era alguém mais ou menos drogado, tentando manter uma espécie de conversa racional com uma pessoa lúcida. Sim, porque eu e Arnie conversávamos; lembro-me disso, mas não do que dizíamos. Procurei controlar-me. Mantive a voz normal. Tinha reações. E aqueles dez ou doze minutos pareceram durar horas.

Já disse que é impossível ser objetivo sobre aquela corrida; caso tenha existido alguma progressão lógica de eventos, agora ficou perdida para mim, bloqueada. Aquela jornada através da noite negra e gelada foi, de fato, como uma viagem por uma avenida, a caminho do inferno. Não consigo recordar tudo o que aconteceu mas, ainda assim, recordo mais do que desejaria. Saímos da entrada para a garagem, em marcha à ré, e penetramos no parque de diversões de um mundo louco, onde eram reais todos os arrepios de medo.

 

Falei que recuamos no tempo, mas teríamos realmente recuado? As ruas atuais de Libertyville conti­nuavam lá, porém eram como uma tênue capa velando um filme — como se a Libertyville de fins dos anos 70 houvesse sido desenhada sobre plástico transparente, cobrindo um tempo que, de certa forma, era mais real. Pude sentir que o tempo estendia suas mãos mortas para nós, tentando capturar-nos, pren­der-nos para sempre. Arnie parava em cruzamentos onde a via era preferencial para nós; em outros, embora as luzes de trânsito estivessem vermelhas, seguia suavemente com Christine, sem ao menos reduzir a marcha. Na Rua Principal, vi a Joalheria Shipstad e o Teatro Strand, ambos demolidos em 1972, a fim de darem lugar ao novo Banco Comercial da Pensilvânia. Os carros estacionavam ao longo da rua — reunidos em grupos aqui e ali, onde aconteciam as festas de comemoração do Ano-Novo —, todos parecendo anteriores aos anos 60... ou de antes de 1958. Buicks de portas alongadas. Uma camioneta De Soto Firelite, de comprida carroceria azul, parecendo recém-saída da linha de montagem. Um cupê Dodge Lancer 57, de quatro portas. Fords Fairiane, com suas características traseiras, cada uma com enormes dois pontos de lado. Pontiacs nos quais a grade do radiador ainda não fora fendida. Ramblers, Packards e alguns Studebakers, com a dianteira em forma de bala, e um Edsel, fantástico e novo em folha.

— Sim, este ano será melhor — disse Arnie.

Olhei para ele. Levava a lata de cerveja aos lábios e, antes de tocar a boca, seu rosto transformava-se no de LeBay, uma figura em decomposição, extraída de alguma história em quadrinhos de terror. Os dedos que seguravam a lata eram apenas ossos. Posso jurar para quem quiser, que eram apenas ossos — e as calças jaziam achatadas contra o assento, como se dentro delas nada mais houvesse além de cabos de vassoura.

— Será mesmo? — falei, respirando o desagradável e asfixiante miasma do carro o mais lentamente possível, tentando não sufocar.

— Será — disse LeBay, só que ele agora era Arnie novamente, e quando paramos em um sinal vermelho vi um Camaro 77 passar em disparada. — Tudo quanto peço é que fique do meu lado um pouco, Dennis. Não deixe minha mãe arrastá-lo para essa merda. As coisas vão ser diferentes.

Ele era LeBay de novo, sorrindo um sorriso descarnado e eterno, ante a idéia de que as coisas seriam diferentes. Senti meu pensamento oscilar. Sem dúvida, logo começaria a gritar.

Baixei os olhos, desviando-os daquele rosto horrendo, e vi o que Leigh tinha visto: instrumentos do painel de controle que não eram instrumentos em absoluto, mas verdes olhos luminosos, esbugalhando-se para mim.

 

Em algum ponto, o pesadelo terminou. Paramos junto ao meio-fio, em um local da cidade que nem mesmo reconheci, um setor que podia jurar nunca ter visto antes. Havia construções nos lotes de terreno por toda parte, algumas casas já com três quartos edificados, outras apenas nas estruturas. A meio caminho do quarteirão, mais abaixo, iluminado pelos faróis de Christine, um cartaz dizia:

 

PROPRIEDADES MAPLEWAY

VENDA EXCLUSIVA DOS CORRETORES DE LIBERTYVILLE

Um bom lugar para criar seus filhos

Pense nisto

 

Bem, aqui estamos — disse Arnie. — Acha que pode fazer a caminhada sozinho, cara? Olhei indeciso em torno, para aquele projeto de urbanização deserto e coberto de neve. Depois concordei. Era melhor ficar ali, de muletas e sozinho, do que naquele terrível carro. Senti um largo sorriso plastificado em meu rosto.

— Claro que posso. Obrigado.

— Sem suar — disse Arnie. Terminou sua cerveja e LeBay a atirou em uma sacola de lixo. — Outro soldado morto.

— Sim — respondi. — Feliz Ano-Novo, Arnie.

Procurei a maçaneta e a abri. Perguntei-me se conseguiria sair, se meus braços trêmulos agüentariam as muletas.

LeBay olhava para mim, sorrindo.

— É só ficar do meu lado, Dennis — disse ele. — Sabe o que acontece aos bostas que não ficam.

— Sim, claro — sussurrei.

Eu sabia perfeitamente. Botei minhas muletas para fora do carro e icei o corpo para elas, pouco ligando para qualquer gelo existente no solo. Elas me manteriam. E, imediatamente, o mundo sofreu uma reviravolta, uma completa transformação. Surgiram luzes — só que, evidentemente, elas haviam estado ali o tempo todo. Minha família se mudara para as Propriedades Mapleway em junho de 1959, um ano antes de meu nascimento. Ainda morávamos ali, mas a área não era mais conhecida como Propriedades Mapleway, desde 1963 ou 64, no máximo.

Fora do carro, eu olhava para minha casa, em minha rua perfeitamente normal — apenas outra parte de Libertyville, Pensilvânia. Tornei a olhar para Arnie quase esperando ver LeBay novamente, motorista de táxi vindo do inferno, com sua carga de muitos mortos, trazida das profundezas da noite.

No entanto, era apenas Arnie, usando seu blusão do ginásio, com seu nome costurado acima do bolso do peito. Arnie, parecendo tão pálido e tão sozinho. Arnie, com uma lata de cerveja pousada na virilha.

— Boa noite, cara.

— Boa noite — respondi. — Tome cuidado quando voltar para casa. Não vai querer que o apanhem, não?

— Não me apanharão — disse ele. — Cuide-se, Dennis.

— Pode deixar.

Bati a porta. Meu horror fora substituído por uma profunda e terrível angústia — como se ele tivesse sido sepultado. Sepultado vivo. Fiquei espiando, enquanto Christine se afastava do meio-fio e começava a descer a rua. Espiei, até vê-la dobrar a esquina e desaparecer de vista. Então, comecei a subir a entrada para minha casa. A alameda estava em boas condições. Meu pai se dera ao trabalho de despejar sobre ela quase um saco de cinco quilos de Halite a fim de torná-la antiderrapante, preocupado comigo.

Eu já fizera três quartos da caminhada até a porta quando uma espécie de fumaça cinzenta pareceu flutuar para mim e envolver-me. Tive que parar e abaixar a cabeça tentando me recuperar. Posso perder os sentidos, aqui fora, pensei confusamente, e morrer congelado em minha própria calçada, onde um dia eu e Arnie brincamos de amarelinha, pique e estátua.

Por fim, pouco a pouco, o acinzentado começou a clarear. Senti um braço em torno de minha cintura. Era papai, de roupão e chinelos.

— Dennis, você está bem?

Se eu estava bem? Eu havia sido trazido para casa por um cadáver!

— Estou — respondi. — Apenas um pouco tonto. Vamos entrar. Você vai acabar congelando aqui fora.

Ele subiu os degraus comigo, o braço ainda em torno de minha cintura — e era bom senti-lo ali.

— Mamãe ainda está acordada? — perguntei.

— Não. Ela viu o romper do ano e depois foi para a cama. Ellie também. Você está bêbado, Dennis?

— Não.

— Pois não me parece bem — disse ele, batendo a porta atrás de nós.

Deixei escapar uma risada que parecia um breve e louco ganido. As coisas ficaram novamente cinzentas... porém apenas por pouco tempo, agora. Quando recuperei o controle, papai olhava para mim, muito preocupado.

— O que aconteceu lá?

— Papai...

— Fale comigo, Dennis!

— Não posso, papai.

— O que há com ele? O que há de errado com ele, Dennis?

Apenas balancei a cabeça e não era por causa da loucura daquilo tudo, de receio por mim. Agora eu temia por todos eles — meu pai, minha mãe, Elaine, os pais de Leigh. Temia horrivelmente por eles.

E só ficar do meu lado, Dennis. Sabe o que acontece aos bostas que não ficam.

Teria eu ouvido realmente aquilo?

Ou aquilo estava apenas em minha mente?

Meu pai ainda olhava para mim.

— Não posso.

— Está bem — disse ele. — Por enquanto. Acho eu. Ainda assim, preciso saber uma coisa, Dennis, e quero que você me diga. Tem algum motivo para crer que Arnie estivesse envolvido, de qualquer modo, na morte de Darnell e na daqueles rapazes?

Pensei no rosto sorridente e putrefato de LeBay, as calças frouxas em torno de algo que só poderiam ser ossos.

— Não — respondi, e era quase a verdade. — Arnie, não.

— Certo — disse ele. — Quer ajuda na escada?

— Posso dar um jeito. Vá para a cama também, papai.

— Sim, irei logo. Feliz Ano-Novo, Dennis... e se quiser falar comigo, ainda estarei aqui.

— Não há nada para dizer — respondi. Nada que eu pudesse dizer...

— De certa forma — disse ele —, não acredito muito.

 

Fui para o quarto, enfiei-me na cama e deixei a luz acesa. Não consegui dormir. Aquela foi a mais longa noite de minha vida e por várias vezes pensei em levantar-me e ir para junto de mamãe e papai, como fazia quando era criança. Em certo momento, cheguei realmente a surpreender-me saindo da cama e tateando pelas muletas. Deitei-me outra vez. Sim, eu receava por todos eles, mas isso não era o pior. Não era mais.

Eu receava perder a razão. Aí estava o pior.

O sol acabava de despontar no horizonte, quando finalmente adormeci e tive um sono agitado, por umas três ou quatro horas. Quando acordei, minha mente já começava a tentar curar-se da irrealidade. Meu problema era que, simplesmente, eu não podia mais dar ouvidos àquela canção de ninar. Os versos se apagaram para sempre.

 

George LeBay Novamente

Naquela noite fatídica, quando o carro

ficou preso

Nos trilhos da ferrovia,

Eu a puxei para fora e você estava salva,

Mas você fugiu correndo...

— Mark Dinning

 

Na sexta-feira, cinco de janeiro, recebi um cartão de Richard McCandless, secretário do Posto da Legião Americana de Libertyville. Escrito nas costas, em manchada caligrafia a lápis, estava o endereço da residência de George LeBay em Paradise Falls, Ohio. Fiquei com o cartão no bolso traseiro das calças a maior parte do dia, tirando-o ocasionalmente e olhando para ele. Não queria telefonar para George LeBay; não queria voltar a falar com ele sobre seu louco irmão Roland; não queria que aquela alucinada situação persistisse, em absoluto.

Naquela tarde, meus pais foram ao Monroeville Mall com Ellie, que queria gastar parte do dinheiro ganho no Natal em um novo par de esquis. Meia hora depois que eles se foram, peguei o telefone e coloquei o cartão de McCandless à minha frente. Uma ligação para a telefonista situou Paradise Falls na área de código 513 — oeste do Ohio. Após uma pausa para refletir, disquei 513 e pedi à telefonista de auxílio o número de LeBay. Anotei-o no cartão, fiz nova pausa para refletir — agora uma pausa mais longa —, e então ergui o fone do gancho uma terceira vez. Disquei metade do número de LeBay e então desliguei. Foda-se, pensei, tomado de um nervoso ressentimento que não me lembrava de ter sentido antes. Já chega o que houve, portanto, foda-se, não vou ligar para ele. Estou cheio disso tudo, lavo minhas mãos de toda essa situação nojenta. Que ele vá para o inferno, em seu próprio carro restaurado. Foda-se!

— Foda-se! — sussurrei e afastei-me dali, antes que a consciência começasse a pesar novamente.

Fui para o andar de cima, tomei um banho de esponja e fui me deitar. Adormeci profundamente antes de Ellie e meus pais voltarem, continuando a dormir muito bem por toda a noite. Foi uma boa coisa, porque demorei muito tempo para voltar a dormir tão bem assim. Muito tempo mesmo.

 

Enquanto eu dormia, alguém — alguma coisa — matou Rudolph Junkins, da Polícia Estadual da Pensilvânia. Estava no jornal, quando me levantei na manhã seguinte. INVESTIGADOR DO CASO DARNELL ASSASSINADO PERTO DE BLAIRSVILLE, bradavam as manchetes.

Meu pai estava lá em cima, tomando uma ducha. Ellie e duas amigas davam risadinhas na varanda, entretidas em jogar Monopólio. Minha mãe elaborava uma de suas histórias no quarto de costura. Eu estava sozinho à mesa, petrificado e assustado. Ocorreu-me que Leigh e sua família voltariam da Califórnia no dia seguinte, no outro começariam as aulas e, a menos que Arnie (ou LeBay) mudasse de idéia, ela seria ativamente perseguida.

Empurrei lentamente o prato, com os ovos que fritara para mim. Não os queria mais. Na noite anterior, parecera possível deixar de lado toda aquela horrenda e inexplicável situação envolvendo Christine, com a mesma facilidade com que deixava meu café da manhã de lado. Agora, eu me perguntava como pudera ser tão ingênuo.

Junkins era o homem que Arnie mencionara na véspera do Ano-Novo. Nem brincando, eu poderia acreditar que não fora. O jornal dizia que ele estivera encarregado da investigação sobre Will Darnell na Pensilvânia, dando a entender que alguma sombria organização criminosa estava por trás do assassinato. Arnie apontaria a Gangue do Sul. Ou os malucos colombianos.

Eu pensava diferente.

O carro de Junkins havia sido encontrado em uma solitária estrada rural, e castigado a tal ponto que só serviria para o ferro-velho,

(Aquele maldito Junkins continua atrás de mim, a todo vapor. Seria melhor tomar cuidado, antes que alguém acabe com ele.. É só ficar do meu lado, Dennis. Sabe o que acontece aos bostas que não ficam...) com Junkins ainda em seu interior.

Quando Repperton e seus amigos morreram, Arnie estava na Filadélfia, jogando xadrez. Quando Darnell foi morto, ele estava em Ligonier com os pais, visitando parentes. Álibis à prova de fogo. Imaginei que ele teria outro para Junkins. Sete — sete mortes agora, todas formando um círculo mortal em torno de Arnie Cunningham e Christine. Certamente, a polícia podia ver isso; só um cego perderia tão explícita cadeia de motivação. O jornal, entretanto, não dizia que alguém estava "auxiliando a polícia nas investigações", como colocariam tão delicadamente os ingleses.

Evidentemente, a polícia não tem o hábito de transmitir tudo o que sabe aos jornais. Eu estava a par disto, porém cada instinto meu dizia que os tiras estaduais não investigavam Arnie seriamente, em conexão com este último assassinato por automóvel.

Arnie estava a salvo de suspeitas.

O que Junkins teria visto à sua retaguarda, naquela estrada rural, nos arredores de Blairsville? Um carro vermelho e branco, pensei. Talvez vazio, talvez dirigido por um cadáver.

Um calafrio me percorreu a espinha e fiquei com os braços arrepiados.

Sete pessoas mortas.

Aquilo tinha que acabar. Sem mais qualquer outro motivo, senão o de que matar pode tomar-se hábito. Se Michael e Regina discordassem dos planos loucos de Arnie sobre a Califórnia, então um deles, talvez ambos, poderiam ser as próximas vítimas. Supondo-se que ele procurasse Leigh no colégio na próxima terça-feira, que lhe pedisse para casar com ele... e ela simplesmente dissesse não? O que poderia Leigh ver junto ao meio-fio, esperando, quando voltasse para casa à tarde?

Meu Deus do céu, eu estava assustado.

Minha mãe surgiu nesse momento.

— Você não está comendo, Dennis. Ergui os olhos.

— Andei lendo o jornal. Acho que não tinha muita fome, mamãe.

— Precisa comer direito ou não ficará bom. Quer que prepare sua aveia? Meu estômago comprimiu-se à idéia, mas sorri e abanei a cabeça.

— Não. Comerei um pouco mais no almoço.

— Promete?

— Prometo.

— Você se sente bem, Denny? Ultimamente me parece tão cansado, tão abatido...

— Estou ótimo, mamãe.

Ampliei o sorriso, para mostrar-lhe o quanto estava ótimo. Então, pensei nela, saindo de seu Reliant azul, no Monroeville Mall, e dois carros atrás; havia um outro, branco e vermelho, esperando. Mentalmente, eu a via passar diante dele, com a bolsa debaixo do braço, vi a alavanca de transmissão de Christine cair subitamente para DRIVE...

— Tem certeza? Não é a perna que o incomoda, é?

— Não.

— Está tomando suas vitaminas?

— Estou.

— E seu chá de botões de rosa?

Comecei a rir. Ela pareceu irritada por um instante, depois sorriu.

— Você é um tratante, Dennis Guilder — disse, com seu melhor sotaque irlandês (que é bastante bom, uma vez que sua mãe nascera no velho torrão) —, e não tem jeito mesmo!

Ela voltou para o quarto de costura e, após um momento, recomeçaram as explosões irregulares de sua máquina de escrever. Recolhi o jornal e olhei para a foto do carro amassado de Junkins. O CARRO DA MORTE, dizia a legenda.

Tente isto, pensei: Junkins tem um interesse muito maior do que apenas descobrir quem vendia excitantes ilegais e cigarros a Will Darnell. Junkins é um detetive estadual, e um detetive estadual trabalha em mais de um caso, ao mesmo tempo. Poderia estar querendo descobrir quem matou "Penetra" Welch. Ou podia estar...

Peguei as muletas, fui até o quarto de costura e bati à porta.

— O que é?

— Lamento incomodar, mamãe...

— Não seja tolo, Dennis.

— Você vai hoje ao centro da cidade?

— Poderia ir. Por quê?

— Porque eu gostaria de ir à biblioteca.

 

Por volta das três horas da tarde daquele sábado, a neve recomeçara a cair. Eu sentia uma ligeira dor de cabeça após ficar forçando a vista na tela de microfilmes, mas conseguira o que queria. Meu pressentimento estava certo — não que isso significasse um grande salto intuitivo.

Junkins havia sido encarregado do caso de atropelamento e fuga que vitimara "Penetra" Welch, certo... mas também fora incumbido de investigar o que acontecera a Repperton, Trelawney e Bobby Stanton. Ele teria de ser um tira muito tapado, para não ler o nome de Arnie nas entrelinhas do que sucedia.

Recostei-me na cadeira, desliguei a máquina e fechei os olhos. Procurei ser Junkins, por um minuto. Ele desconfia do envolvimento de Arnie naquelas mortes. Não de patrociná-las, mas de envolvimento nelas de algum modo. Desconfia de Christine? Talvez sim. Nos filmes de detetives na TV, eles sempre são os maiores para identificar armas, máquinas de escrever usadas na redação de notas de resgate e carros envolvidos em atropelamentos e fugas. Fragmentos de tinta, arranhados na pintura, talvez...

Surge o caso do contrabando de Darnell. Para Junkins, isso é excelente. A garagem será fechada e embargado tudo que estiver nela. Talvez Junkins suspeite...

De quê?

Esforcei-me em imaginar. Sou um tira. Acredito em respostas legítimas, respostas saudáveis, respostas rotineiras. Então, de que suspeito? Após um momento, surge a idéia.

De um cúmplice, naturalmente. Suspeito da existência de um cúmplice. Tem de haver um cúmplice. Ninguém, em seu juízo perfeito, desconfiaria que o carro estivesse fazendo aquilo sozinho. Então...?

Então, depois de fechada a garagem, Junkins leva para lá os melhores técnicos e laboratoristas que consegue. Eles examinam Christine de ponta a ponta, procurando provas do que aconteceu. Raciocinando como Junkins — pelo menos, tentando —, penso que tem de existir alguma evidência. Atingir um corpo humano não é como atingir um travesseiro de penas. Bater contra a barreira de estrada nas Squantic Hills, também não é como bater contra um travesseiro de penas.

Então o que descobrem aqueles peritos em homicídios por veículos?

Nada.

Não encontram amassados, nenhuma pintura retocada, nenhuma mancha de sangue. Não encontram fragmentos marrons da pintura da barreira na estrada das Squantic Hills — que foi quebrada — encravados no carro. Em resumo, Junkins não encontra a mais remota evidência de que Christine foi usada em cada crime. Agora, saltando à frente, para o assassinato de Darnell. Junkins retorna à garagem no dia seguinte, a fim de checar Christine? Eu voltaria, se fosse ele. A parede de uma casa também não é um travesseiro de penas — e um carro que acabou de rompê-la deve apresentar danos importantes, danos que, simplesmente, não poderiam ser reparados da noite para o dia. E, quando ele chega, o que encontra?

Apenas Christine, sem o menor problema no pára-choque.

Isto conduz a outra dedução, esta explicando por que Junkins nunca deixou alguém vigiando o carro. Eu não entendia por que ele nunca suspeitou do envolvimento de Christine. No fim, porém, a lógica o orientara — e talvez o tivesse matado, também. Junkins não pusera alguém vigiando Christine, porque o álibi do carro, embora mudo, era tão à prova de fogo como o de seu dono. Se ele inspecionara Christine, imediatamente após o assassinato de Will Darnell, deve ter concluído que o carro não podia estar envolvido, por mais persuasiva que a evidência em contrário pudesse parecer.

Nem um arranhão naquele carro. E por que não? Simplesmente porque Junkins não tinha todos os fatos. Refleti no odômetro que girava para trás e recordei Arnie dizendo: Apenas um defeito. Pensei no ninho de rachaduras do pára-brisa, parecendo cada vez ficar menor e recuar — como se também recuasse para dentro. Pensei na extravagante substituição de peças que não demonstrava qualquer ritmo ou razão. Por último, evoquei aquela fantástica corrida de pesadelo, ao voltar para casa na noite de domingo — carros antigos que pareciam novos, estacionados no meio-fio, diante de casas onde havia festas, no Teatro Strand, ainda intacto em toda a sua solidez de tijolos amarelos, o projeto de urbanização pela metade, já completado e ocupado pelos suburbanos de Libertyville vinte anos atrás.

Apenas um erro.

Refleti que ignorar aquele erro era o que tinha realmente matado Rudolph Junkins.

Porque, vejamos: quando temos um carro durante algum tempo, ele vai-se estragando, pouco importa quantos cuidados lhe dediquemos e, em geral, os estragos acontecem ao acaso. Um carro sai da linha de montagem como um bebê recém-nascido, e precisamente como um recém-nascido começa a rodar entre corredores indígenas, no correr dos anos. As pedradas e flechadas de punição que o acertam ao acaso, arriam uma bateria aqui, arruínam uma barra de direção ali, congelam um mancal acolá. A bóia do carburador emperra, um pneu fura, há um curto na parte elétrica, o estofamento começa a deteriorar-se.

É como um filme. E, se pudermos rodar o filme para trás...

— Deseja mais alguma coisa? — perguntou o funcionário encarregado da Seção de Microfilmes atrás de mim, e eu quase gritei.

 

Mamãe me esperava no saguão principal e tagarelou a maior parte do caminho para casa, falando sobre o que escrevia e suas novas aulas, de dança de discoteca. Assenti e respondi com acerto, a maioria das vezes. Enquanto isso, pensava que, se Junkins levara seus técnicos, altamente especializados em carros, se ele os trouxera de Harrisburg, certamente todos haviam deixado de enxergar um elefante, enquanto procuravam pela agulha. Aliás, eu não podia censurá-los. Carros não costumam rodar ao contrário, como acontece com filmes. E não existem fantasmas, espectros ou demônios, preservados em óleo para motor.

Acredite em um, acredite em todos, pensei — e estremeci.

— Quer que ligue o aquecedor, Denny? — perguntou minha mãe, com ar jovial.

— Você quer, mamãe?

Pensei em Leigh, que devia chegar no dia seguinte. Leigh, de rosto adorável (acentuado pelos malares oblíquos, quase cruéis), o corpo jovem e docemente sensual, ainda não deteriorado pelas forças do tempo e da gravidade; como aquele Plymouth de muito tempo atrás, enviado em 1957 por uma transportadora de Detroit, em certo sentido, ela ainda estava no período de garantia. Então pensei em LeBay, morto e não-morto ao mesmo tempo, e recordei sua lascívia (seria aquilo lascívia ou apenas uma pulsão para estragar as coisas?). Recordei Arnie, comentando com tranqüila certeza que eles iam casar-se. Em seguida, com impotente nitidez, visualizei a noite de núpcias. Vi Leigh erguendo os -olhos, na penumbra de algum quarto de motel, para ver apenas um pútrido e sorridente cadáver, reclinado sobre ela. Eu a ouvi gritar, enquanto Christine, uma Christine enfeitada com serpentinas de papel crepom e letreiros de RECÉM-CASADOS, escritos com espuma de sabão, aguardava fielmente do lado de fora, além da porta trancada. Christine — ou a terrível força fêmea que a animava — saberia que Leigh não ia durar muito... e ela, Christine, estaria próxima, depois que Leigh se fosse.

Fechei os olhos, procurando afastar aquelas imagens, mas isso apenas as intensificou.

Tudo começara com Leigh querendo Arnie, e progredira logicamente, até o ponto em que Arnie a queria de volta. Entretanto, não terminara aí, terminara? Porque agora, LeBay possuía Arnie... e ele desejava Leigh.

Entretanto, LeBay não ia tê-la. Não a teria, se eu pudesse impedir.

Naquela noite, telefonei para George LeBay.

 

— Perfeitamente, Guilder — disse ele. Parecia mais velho, mais cansado. — Lembro-me muito bem de você. Tagarelei até cansá-lo, diante de meu quarto, naquele hotel que acredito tenha sido o mais depressivo do universo. O que posso fazer por você?

Por seu tom, parecia esperar que eu não quisesse demais. Vacilei. Devia contar-lhe que seu irmão voltara do mundo dos mortos? Que nem mesmo a sepultura fora capaz de exterminar seu ódio pelos bostas? Que ele se apoderara de meu amigo, que o escolhera, tão definitivamente como Arnie escolhera Christine? Devíamos discorrer sobre mortalidade, sobre tempo e amor rançoso?

— Guilder? Você desligou?

— Estou com um problema, Sr. LeBay, e não sei ao certo como falar-lhe a respeito. Tem relação com seu irmão.

Algo novo surgiu então em sua voz, algo tenso e controlado.

— Não imagino que tipo de problema poderia ter, relacionado a meu irmão. Rollie está morto.

— Pois é justamente isto. — Agora, eu era incapaz de controlar a voz, que tremulava para uma oitava mais alta e depois caía novamente para um tom grave. — Não acredito que ele esteja morto.

— De que está falando? — A voz era tensa, acusadora e... amedrontada. — Se esta é a sua maneira de pilheriar, eu lhe asseguro que não poderia ter pior gosto.

— Falo sério. Permita-me, apenas, contar ao senhor parte do que vem acontecendo, desde que seu irmão morreu.

— Escute, Guilder, tenho vários maços de provas para corrigir e um romance que pretendo terminar, de maneira que não tenho tempo a perder com...

— Por favor— pedi. — Por favor, Sr. LeBay, por favor, ajude-me e ajude meu amigo. Houve uma longa, longuíssima pausa, e então LeBay suspirou.

— Conte a sua história — disse, e depois, após uma breve pausa, acrescentou: — Maldito seja!

 

Transmiti a história para ele, à maneira de um moderno telegrama interurbano. Podia imaginar minha voz passando através de postos de conexão computadorizados, cheios de circuitos miniaturizados, para finalmente chegar aos ouvidos do homem.

Contei-lhe o problema de Arnie com Repperton, a expulsão de Buddy e sua vingança. Falei sobre a morte de "Penetra" Welch, sobre o que acontecera nas Squantic Hills e o que acontecera durante a tempestade da véspera de Natal. Falei sobre as rachaduras no pára-brisa, parecendo recuar, e um odômetro que girava ao contrário, com a máxima certeza. Falei sobre o rádio que parecia transmitir apenas a WDIL, uma estação que transmitia músicas antigas, pouco importando para onde se movesse o ponteiro do dial — o que provocou um leve grunhido surpreso em George LeBay. Falei sobre a assinatura em meus moldes de gesso, expliquei como a assinatura de Arnie, feita na noite do Dia de Ação de Graças, combinava com a de seu irmão, no formulário original do registro de Christine. Falei sobre o constante uso de Arnie da palavra "bostas". Sobre a maneira como ele passara a pentear o cabelo, no estilo cheio de brilhantina dos anos 50. De fato, contei-lhe tudo, exceto o que acontecera comigo, quando Arnie me trouxera para casa, naquela madrugada de Ano-Novo. Pensara contar-lhe também isto, porém não pude. Jamais comentei uma vírgula daquilo com ninguém, até descrevê-lo aqui, quatro anos depois.

Quando terminei, houve silêncio na linha.

— Sr. LeBay? Ainda está me ouvindo?

— Eu não desliguei — disse ele, finalmente. — Guilder... Dennis... não é minha intenção ofendê-lo, mas deve compreender que, o que está sugerindo, transcede quaisquer possíveis fenômenos psíquicos, estendendo-se até... — A voz dele extinguiu-se.

— Até a loucura?

— Não é bem a palavra que eu empregaria. A julgar pelo que diz, você esteve envolvido em um terrível acidente de futebol. Ficou dois meses no hospital, sofrendo dores atrozes por algum tempo. Bem, não seria o caso de sua imaginação...

— Sr. LeBay — interrompi —, seu irmão nunca usou uma frase com o termo vagabundinho?

— Como?

— Vagabundinho. Como quando se joga uma bola de papel em uma cesta de papéis e, acertando, a gente diz "Cesta"? Só que, em vez disso, "Veja como coloco bem no traseiro do vagabundinho." Seu irmão costumava dizer isso?

— Como é que você sabe? — E então, sem me dar tempo para responder: — Ele empregou a frase em alguma das ocasiões em que o viram, não?

— Não.

— Você é um mentiroso, Guilder.

Não respondi. Estava trêmulo, de joelhos bambos. Nenhum adulto já me dissera aquilo, em toda a minha vida.

— Sinto muito, Dennis, mas meu irmão está morto. Era um desagradável, talvez até mesmo um perverso ser humano, porém está morto e todas essas mórbidas fantasias e idéias...

— Quem era o vagabundinho? — consegui perguntar. Silêncio.

— Seria Charlie Chaplin?

Não pensei que ele fosse dar alguma resposta. Então, por fim, em voz opressa, ele disse:

— Somente em segunda-mão. Ele aludia a Hitler. Havia uma passável semelhança entre Hitler e o pequeno vagabundo de Chaplin. Chaplin fez um filme chamado O Grande Ditador. É provável que você nunca o tenha visto. De qualquer modo, era um nome bastante comum para ele, durante os anos de guerra. Você ainda era muito novo, para poder lembrar. Entretanto, isso nada significa.

Foi a minha vez de ficar em silêncio.

— Nada significa! — gritou ele. — Nada! São fantasias e sugestões, nada mais! Procure entender isto!

— Há sete pessoas mortas, aqui no oeste da Pensilvânia — respondi. — Não é apenas uma fantasia. Há as assinaturas em meus moldes de gesso. Também não são fantasias. Eu guardei esses moldes, Sr. LeBay. Posso enviá-los para o senhor. Dê uma olhada neles e me diga se uma das assinaturas não foi feita na caligrafia de seu irmão.

— Poderia ser uma falsificação, consciente ou não.

— Se acredita nisso, procure um perito em grafologia. Eu pago.

— Você mesmo poderia fazer isso.

— Sr. LeBay — falei —, eu não preciso mais ser convencido.

— Certo, mas então, o que quer de mim? Que eu partilhe suas fantasias? Não farei isso. Meu irmão está morto. O carro dele não passa de um carro.

Ele mentia, eu podia senti-lo. Senti-o, mesmo pelo telefone.

— Quero que me explique uma coisa que me disse, na noite em que conversamos.

— O que poderia ser?

A voz soava desconfiada. Passei a língua nos lábios.

— O senhor disse que ele era obcecado e furioso, mas que não era um monstro. Pelo menos, segundo disse, não acreditava que fosse. Então, tive a idéia de que mudou inteiramente de assunto... porém, quanto mais eu penso nisso, mais acredito que não mudou de assunto, não. Sua frase seguinte foi de que ele nunca as agredira. A esposa e a filha.

— Francamente, Dennis. Eu...

— Ouça, se o senhor ia dizer alguma coisa, pelo amor de Deus, diga agora! — exclamei. Minha voz entrou em colapso. Enxuguei a testa, e a mão ficou molhada de suor pegajoso. — Não é mais fácil para mim do que para o senhor, Arnie está obcecado por uma garota, o nome dela é Leigh Cabot, mas acho que não é Arnie quem está obcecado por ela, de maneira alguma. Acho que é o seu irmão, seu irmão morto, agora, fale comigo, por favor!

Ele suspirou.

— Falar com você? — perguntou. — Falar com você? Falar sobre velhos acontecimentos... não, essas antigas suspeitas... isso seria quase o mesmo que despertar um espírito maligno adormecido, Dennis. Por favor, eu não sei de nada.

Eu podia ter-lhe dito que o espírito maligno já fora despertado, mas ele sabia perfeitamente.

— Diga-me sobre o que suspeita.

— Telefonarei mais tarde para você.

— Sr. LeBay... por favor...

— Telefonarei mais tarde — repetiu ele. — Agora, preciso ligar para minha irmã Márcia, no Colorado.

— Se isso pode ajudar, eu ligarei...

— Não. Ela nunca falaria com você. Só comentamos o assunto entre nós, uma ou duas vezes, se tanto. Espero que sua consciência esteja limpa nisto tudo, Dennis. Sim, porque está nos pedindo para abrir velhas feridas, para fazê-las sangrar novamente. Portanto, vou perguntar mais uma vez: está bem certo do que disse?

— Estou — sussurrei.

— Eu ligo mais tarde — disse ele, e desligou.

Passaram-se quinze minutos, depois vinte. Dei volta à sala em minhas muletas, incapaz de sentar-me e ficar quieto. Espiei para a rua lá fora através da vidraça, uma rua varrida pelo vento, um estudo em brancos e pretos. Aproximei-me do telefone por duas vezes e não ergui o fone, temendo que ele pudesse estar tentando ligar para mim, ao mesmo tempo, e receando mais ainda que não ligasse. Da terceira vez, justamente quando pousei a mão sobre ele, a campainha tocou. Puxei-a rapidamente, como se houvesse sido picado, mas depois o ergui do gancho.

— Oi? — exclamou a voz afogueada de Ellie, no andar de baixo. — É você, Donna?

— Por favor, Dennis Guilder... — começou a voz de LeBay, parecendo mais velha e mais cansada do que nunca.

— Já atendi, Ellie — avisei.

— Tá legal, e daí? — replicou ela, atrevida, antes de desligar.

— Alô? Sr. LeBay? — perguntei, com o coração em disparada.

— Falei com ela — anunciou ele, em voz soturna. — Márcia me disse para fazer o que achasse melhor. No entanto, está amedrontada. Juntos, você e eu, conspiramos para amedrontar uma velha senhora que nunca fez mal a ninguém e que nada tem a ver com isto.

— É por uma boa causa — falei.

— Será?

— Se eu pensasse o contrário, não teria telefonado para o senhor — respondi. — Vai ser franco comigo ou não, Sr. LeBay?

— Sim, mas para você e mais ninguém — disse ele. — Se comentar com outra pessoa, negarei tudo. Entendido?

— Certo.

— Muito bem — ele suspirou. — Em nossa conversa do verão passado, Dennis, eu lhe disse uma mentira sobre o que acontecera e outra mentira a respeito do que eu... do que eu e Marcy sentimos quanto a isso. Mentíamos para nós mesmos. Se não fosse por sua causa, creio que continuaríamos mentindo entre nós sobre aquele... aquele incidente à beira da estrada... pelo resto de nossas vidas.

— Fala da garotinha? Da filha de LeBay?

— Sim — disse ele lentamente. — De Rita.

— O que aconteceu realmente, quando ela se sufocou?

— Minha mãe costumava chamar Rollie de sua changeling * — disse LeBay. — Eu lhe contei isso?

— Não.

— Não, claro que não. Segundo lhe disse naquela época, achava que seu amigo seria mais feliz livrando-se do carro, porém é a coisa que uma pessoa pode dizer em defesa das próprias crenças, porque o irracional... o irracional se intromete nisso.

Ele fez uma pausa e não o apressei. George LeBay diria ou não o que tinha a dizer. Nada mais simples.

— Minha mãe dizia que ele era um bebê de gênio excelente, até os seis meses de idade. E então... ela dizia que foi então que o duende Puck apareceu. Que Puck levou seu afável bebê para brincar com ele, substituindo-o por um changeling. Ela ria, ao falar nisso. No entanto, nunca comentava em presença de Rollie ou quando ele estava por perto... e seus olhos jamais eram felizes, Dennis. Creio que... bem, era sua única explicação para o que ele era, para o fato de ser tão intocável em seu ódio... tão egoísta em seus raros e simples objetivos.

"Havia um garoto — esqueci seu nome — um garoto maior, que surrou Rollie três ou quatro vezes. Um valentão. Ele começava pelas roupas de Rollie e perguntava se usara as peças de baixo um ou dois meses seguidos. Rollie lutava com ele, xingava-o e o ameaçava, mas o valentão ria dele, segurava-o à distância com seus braços mais compridos e o surrava até cansar-se, ou até o nariz de Rollie deitar sangue. Então, Rollie ficava sentado na esquina, fumando um cigarro e chorando, com sangue e ranho secando no rosto. E se eu ou Drew nos aproximávamos, ele nos espancava para valer.

"A casa do valentão pegou fogo certa noite, Dennis. O valentão, o pai do valentão e o irmãozinho do valentão foram mortos. A irmã do valentão sofreu queimaduras horríveis. Presumia-se que o incêndio se originara no fogão da cozinha — e talvez assim fosse, realmente. Entretanto, as sirenes dos bombeiros me despertaram e eu ainda estava acordado, quando Rollie entrou no quarto em que dormíamos, subindo pela latada de hera junto à parede. Havia fuligem em sua testa e ele cheirava a gasolina. Ele me viu deitado, com os olhos abertos, e disse: "Se contar alguma coisa, George, mato você." Desde aquela noite, Dennis, tentei convencer-me de que cumpriria a palavra, caso eu contasse que ele estivera lá fora, espiando o incêndio. Bem, talvez fosse apenas isso."

Eu tinha a boca seca. Parecia haver uma bola de chumbo em meu estômago. Os cabelos da nuca estavam eretos.

— Que idade seu irmão tinha na época? — perguntei, em voz rouca.

— Ainda não fizera treze anos — disse LeBay, com falsa e terrível calma. — Certo dia de inverno, coisa de um ano mais tarde, houve uma briga durante um jogo de hóquei. Um sujeito chamado Randy Throgmorton abriu uma fenda na cabeça de Rollie, com seu bastão. Bateu nele até deixá-lo sem sentidos. Nós o levamos ao velho Dr. Farner... Rollie já recuperara os sentidos então, porém continuava grogue, e o médico deu doze pontos em seu couro cabeludo. Uma semana mais tarde, Randy Throgmorton caiu através do gelo, na lagoa Palmer, e afogou-se. Estivera patinando em uma área claramente marcada por avisos de GELO FINO. Aparentemente.

— Está dizendo que seu irmão matou essas pessoas? Está dando a entender que LeBay matou a própria filha?

— Não que ele a matou, Dennis, nunca pensei nisso. Ela morreu asfixiada. Estou sugerindo que ele podia tê-la deixado morrer.

— O senhor disse que ele a virou de cabeça para baixo... que bateu nas costas dela, tentou fazê-la vomitar...

— Foi o que Rollie me contou no funeral — disse George.

— Então, o que...

— Eu e Márcia comentamos o caso mais tarde. Somente aquela vez, compreenda. Durante o jantar daquela noite. Rollie me dissera: "Eu a suspendi por suas botas e tentei arrancar o filho da puta de lá, a tapas, Georgie. Só que a coisa estava muito no fundo da garganta". E o que Verônica disse a Márcia foi: "Rollie a suspendeu no ar pelos sapatos e tentou arrancar de lá o que quer que a estava sufocando dando-lhe tapas, mas a coisa estava muito no fundo da garganta." Eles contaram exatamente a mesma história, empregando exatamente as mesmas palavras. Sabe o que isso me levou a pensar?

— Não.

— Pensei em Rollie, escalando a janela do quarto e cochichando para mim: "Se contar alguma coisa, Georgie, mato você."

— Bem, mas... por quê? Por que ele iria?

— Mais tarde, Verônica escreveu para Márcia, dando a entender que Rollie pouco fizera para salvar a filha. E que, já bem no fim, ele a colocara novamente no carro. Para que não ficasse ao sol, explicara. Na carta, entretanto, Verônica disse ter pensado que Rollie desejava que a menina morresse no carro.

Eu não queria dizer aquilo, mas era preciso.

— Está sugerindo que seu irmão ofereceu a filha como uma espécie de sacrifício humano? Houve uma longa, reflexiva e tenebrosa pausa.

— Não. Ele não o faria, de alguma forma consciente — disse LeBay. — Não mais do que sugiro ter ele assassinado a filha conscientemente. Se conhecesse meu irmão, veria o quanto é ridículo suspeitar dele como tendo parte com feitiçaria, bruxaria ou pactos com demônios. Rollie acreditava apenas nos próprios sentidos... exceto, imagino, sua própria vontade. Apenas sugiro que ele poderia ter tido alguma... alguma intuição... ou que poderia ter sido dirigido a fazer o que fez. Minha mãe dizia que ele era um changeling.

— E Verônica?

— Não sei — disse ele. — O veredicto policial foi de suicídio, embora ela não deixasse qualquer nota explicando seu ato. Sim, poderia perfeitamente ser suicídio. Não obstante, a pobre mulher tinha feito alguns amigos na cidade e muitas vezes me pergunto se talvez não tivesse dado a entender a qualquer deles, como fez com Márcia, que a morte de Rita não havia sido bem como ela e Rollie tinham contado. Eu me pergunto se Rollie descobriu. Se contar alguma coisa, Georgie, mato você. Não há prova de nada, evidentemente. No entanto, eu gostaria de saber por que ela quis morrer daquele jeito... e fico surpreso ao pensar em como uma mulher sem o menor conhecimento sobre carros, saberia o suficiente para pegar uma mangueira, adaptá-la ao cano de descarga e enfiá-la através da janela do carro. Procuro não meditar muito nessa coisa. Às vezes me fazem perder o sono.

Refleti nas coisas que ele tinha dito e nas que não dissera — o que deixara nas entrelinhas. Intuitivo, ele dissera. Tão egoísta em seus raros e simples objetivos. Suponhamos que Roland LeBay houvesse percebido, de algum modo que não admitiria nem para si mesmo, que estava investindo seu Plymouth com algum poder sobrenatural? E suponhamos que ele estivesse apenas esperando pela chegada do herdeiro certo... e então...

— Isto responde às suas perguntas Dennis?

— Creio que sim — respondi, lentamente.

— O que vai fazer?

— Creio que o senhor sabe.

— Destruir o carro?

— Vou tentar — respondi.

Então, olhei para minhas muletas, descansando contra a parede. Minhas malditas muletas.

— Você pode destruir também seu amigo.

— Eu posso salvá-lo — repliquei. George LeBay comentou, em voz lenta:

— Eu me pergunto se isso ainda será possível.

 

A Traição

Havia sangue e vidro por toda parte,

E não vi mais ninguém além de mim

Quando a chuva caiu, forte e fria,

Vi um rapaz, jazendo à beira da estrada,

Ele pediu "Por favor, senhor,

quer me ajudar?"

— Bruce Springsteen

 

Eu a beijei.

Seus braços passaram em torno de meu pescoço. Uma de suas mãos frias pressionou minha nuca de leve. Para mim, não havia mais dúvidas sobre o que estava acontecendo; quando se afastou ligeiramente, com os olhos semicerrados, pude ver que também ela não tinha dúvidas.

— Dennis — ela murmurou, e tornei a beijá-la. Nossas línguas se tocaram suavemente. Por um instante, seu beijo intensificou-se e pude sentir a paixão denunciada por aqueles altos malares. Então, ela ofegou um pouco e recuou. — Já chega — disse. — Acabaremos presos por atentado ao pudor ou coisa assim.

Era dezoito de janeiro. Estávamos estacionado no pátio atrás do Kentucky Fried local, com os restos de um excelente jantar de galinha espalhados à nossa volta. Estávamos em meu Duster e só isso já era um grande acontecimento para mim — era a primeira vez que eu estava ao volante, desde o acidente. Naquela mesma manhã, o médico retirara o enorme molde de gesso de minha perna esquerda e o substituíra por um aparelho ortopédico. Em tom grave, ele me aconselhara a não retirar o aparelho, mas eu podia notar que estava satisfeito sobre a maneira como as coisas estavam indo. O médico atribuía isso à sua técnica superior; minha mãe, ao pensamento positivo e canja de galinha; o treinador Puffer, ao chá de botões de rosa.

Quanto a mim, achava que Leigh Cabot tinha muito a ver com aquilo.

— Precisamos conversar — disse ela.

— Não. Vamos namorar um pouco mais — respondi.

— Conversamos agora. Namoramos depois.

— Ele começou de novo? Ela assentiu.

No correr das quase duas semanas, desde minha conversa telefônica com LeBay — as duas primeiras do turno letivo de inverno —, Arnie estivera agindo para uma aproximação com Leigh, e agindo com tal intensidade que eu e ela ficamos assustados. Eu lhe contara minha conversa com George LeBay (mas não, como já disse, minha terrível volta para casa com Arnie, na madrugada de Ano-Novo) e tornara o mais claro possível que, de modo algum, ela devia simplesmente romper com ele. Isso o tornaria enfurecido e, naquela época, se Arnie se enfurecia com alguém, coisas desagradáveis aconteciam a tal pessoa.

— Isso é como enganá-lo — comentou Leigh.

— Eu sei — respondi, mais rispidamente do que pretendia. — Não gosto da situação, porém não quero aquele carro em ação novamente.

— E depois? Meneei a cabeça.

Em verdade, eu começava a sentir-me como o Príncipe Hamlet, adiando indefinidamente. Claro que sabia o que tinha de ser feito: Christhie precisava ser destruída. Juntamente com Leigh, já havia discutido maneiras de como fazê-lo.

A primeira idéia partira dela — coquetéis Molotov. Encheríamos algumas garrafas de vinho com gasolina, acenderíamos os pavios ("Pavios? Que pavios?", perguntei. "Lenços de papel fariam o mesmo", respondeu ela prontamente, de novo aumentando minha curiosidade sobre seus antepassados de malares altos) e as jogaríamos pelas janelas de Christine.

— E se as portas estiverem trancadas, com os vidros levantados? — perguntei. — Em geral, é como costumam ficar, você sabe.

Ela me fitou como se eu fosse um perfeito idiota.

— Está dizendo que a idéia de bombardear o carro de Arnie é certa — respondeu —, mas tem escrúpulos apenas em quebrar alguns vidros?

— Não — repliquei —, mas quem chegará perto do carro o suficiente para quebrar os vidros com um martelo, Leigh? Você?

Ela olhou para mim, mordendo o carnudo lábio inferior. Não disse nada. A idéia seguinte fora minha. Dinamite. Leigh refletiu nisso e meneou a cabeça.

— Eu poderia conseguir sem muito esforço, acho — falei.

Eu continuava vendo Brad Jeffries de tempos em tempos e ele ainda trabalhava para a Penn-DOT, que tinha dinamite suficiente para mandar o Estádio Three Rivers à lua. Pensei que poderia apanhar a chave certa, sem Brad saber de nada — ele geralmente ficava meio tocado, quando via os jogos dos Pingüins pela televisão. Eu pegaria a chave dos explosivos na prateleira, durante o terceiro período de um tempo, e a devolveria no terceiro período de outro. Era bastante remota a possibilidade de que ele precisasse de explosivos em janeiro e, desta forma, desse por falta da chave. Era um embuste, outra traição — porém um meio de resolver a situação.

— Não — disse ela.

— Por que não?

Para mim, a dinamite parecia constituir o tipo da destruição total que o momento exigia.

— Porque agora Arnie deixa o carro estacionado na entrada da garagem da casa dele. Você quer mesmo explodir um carro e mandar estilhaços de metal por todo um bairro? Arriscar-se a que um pedaço de vidro arranque a cabeça de alguma criança?

Pestanejei. Não tinha pensado nisso mas, quando ela falou, a imagem se destacou nitidamente, em toda a sua hediondez. Isso me fez pensar em outras coisas. Acender uma banana de dinamite no cigarro e depois jogá-la contra o objeto a ser destruído... bem, podia ser muito legal nos faroestes do canal 2, na tarde de sábado, mas a situação se modificava radicalmente na vida real. Ainda assim, apeguei-me à idéia o mais que pude.

— E se agíssemos à noite?

— Continuaria muito perigoso — replicou ela. — E você sabe muito bem. Está em sua cara. Houve uma longa, demorada pausa.

— O que me diz do compressor de ferro-velho, na Garagem de Darnell? — arriscou Leigh por fim.

— Continuam as objeções básicas de antes — falei. — Quem dirigiria Christine até lá? Eu, você ou Arnie?

Foi aí que as coisas pararam.

— O que vai ser para hoje? — perguntei a ela.

— Ele me convidou para sairmos à noite — respondeu Leigh. — Boliche, desta vez. — Nos dias anteriores havia sido cinema, sair para jantar, ir ver TV na casa dele, propostas de encontros para estudar. Christine estava em todos os planos, como meio de transporte. — Ele começa a irritar-se com minhas recusas e meu estoque de pretextos está acabando. Se vamos mesmo fazer alguma coisa, terá de ser logo.

Assenti. Uma coisa era o fracasso em encontrarmos um método satisfatório. Outro impedimento que nos continha era minha perna. Agora que retirara o gesso, eu recebera ordens estritas do médico para usar as muletas, mas já havia testado a perna esquerda sem elas. Sentia alguma dor, porém não tanto quanto eu temia.

Essas coisas pesavam, claro — porém o melhor de tudo dizia respeito a nós dois. À descoberta um do outro. E, embora isto pareça sórdido, acho que deveria acrescentar algo mais, se é que pretendo esclarecer tudo com a mais absoluta franqueza (e havia prometido a mim mesmo, quando comecei a relatar a história, que a interromperia se não pudesse manter a verdade). O sabor do perigo acrescentara algo ao que eu sentia por Leigh — e, acho, ao que ela sentia por mim.

Ele era meu melhor amigo, mas havia ainda uma vil e insensata atração, na idéia de que nós dois nos víamos sem que ele soubesse. A cada vez que a tomava nos braços, sempre que minha mão deslizava pela curvatura firme de seus seios, eu sentia isso. A traição. Poderiam me dizer por que havia tal atração? Pois havia. Pela primeira vez na vida, eu me apaixonara por uma garota. Já escorregara antes, mas agora eu levara o grande trambolhão. E o adorava. E adorava Leigh. No entanto, aquela constante sensação de traição... era algo rastejante, ao mesmo tempo vergonhoso, e também uma louca espécie de incentivo. Podíamos comentar entre nós dois (e assim fazíamos) que ficávamos de boca fechada para proteger nossas famílias e a nós mesmos.

Isso era verdade.

Porém não toda a verdade, Leigh. Não, não era toda a verdade.

 

De certo modo, nada pior podia ter acontecido. O amor abranda o tempo de reação, emudece a noção de perigo. Minha conversa com LeBay acontecera doze longos dias antes e meus cabelos da nuca não ficavam mais eriçados ao refletir no que ele tinha dito — e, pior ainda, no que havia sugerido.

O mesmo era verdadeiro — ou não — quanto às poucas vezes em que conversei com Arnie ou o vi pelos corredores. De certa estranha maneira, era como se estivéssemos novamente em setembro e outubro, quando nos havíamos afastado, simplesmente, porque Arnie andava muito ocupado. Ao conversarmos, ele se mostrava amável, embora fossem frios os olhos cinzentos atrás dos óculos. Esperei que uma lamentosa Regina ou um angustiado Michael ligassem para mim, com a notícia de que Arnie finalmente parara de brincar com eles e desistira da idéia de ir para a universidade no outono.

Tal não aconteceu, e foi o próprio Boca de Motor — nosso conselheiro de orientação — quem me disse que Arnie levara para casa um punhado de informações impressas sobre a Universidade da Pensilvânia, a Universidade Drew e a Estadual da Pensilvânia. Eram as universidades em que Leigh estava mais interessada. Eu sabia disso e Arnie também.

Duas noites antes, eu ouvira, sem querer, uma conversa de mamãe e minha irmã Ellie, na cozinha.

— Por que Arnie não vem mais aqui, mamãe? — perguntara Ellie. — Ele e Dennis brigaram?

— Não, querida — respondera minha mãe. — Não creio que tenham brigado. Só que, quando amigos ficam mais velhos... às vezes se afastam.

— Isso nunca irá acontecer comigo — dissera Ellie, com a firme convicção dos que acabaram de fazer quinze anos.

Fiquei sentado na sala, perguntando-me em que, de fato, consistia tudo aquilo: alucinação, provocada por minha longa permanência no hospital, segundo LeBay sugerira, e um simples crescente afastamento, um espaço que crescia entre dois amigos de infância. Era possível observar-se uma certa lógica nisso, perceber-se o distanciamento que nascera entre nós, mesmo não se levando Christine em consideração.

Desta forma, os fatos cruéis ficavam de fora, mas era confortador. Acreditar nisso permitiria que eu e Leigh levássemos nossas vidas rotineiras — envolvidos em nossas atividades escolares, esforçando-nos um pouco mais para as Provas de Progressos Escolásticos de março e, naturalmente, saltando para os. braços um do outro assim que seus pais ou os meus saíssem da sala. Queríamos ter liberdade para namorar, porque éramos dois adolescentes excitados, completamente atraídos um pelo outro.

Eram coisas que me acalentavam... que nos acalentavam. Estávamos sendo cautelosos — em verdade, tão cautelosos como adúlteros, em vez de apenas dois jovens —, mas eu havia retirado o gesso da perna nesse dia, pudera usar novamente as chaves de meu Duster, em vez de apenas ficar olhando para elas e, movido por um impulso, ligara para Leigh, perguntando se ela gostaria de ir comigo ao mundialmente famoso Colonel's, para comermos um pouco de seus também mundialmente famosos frangos crocantes. Ela ficara eufórica.

Assim, pode-se ver como nossa cautela diminuiu, como nos tornamos um pouquinho indiscretos. Estávamos sentados no pátio de estacionamento, com o motor do Duster ligado para termos um pouco de calor, e conversávamos sobre a forma de darmos um fim àquele velho e infinitamente esperto monstro feminino, como duas crianças brincando de caubói.

Nenhum de nós viu Christine, quando ela estacionou à nossa retaguarda.

 

— Tudo indica que ele esteja se aprontando para um longo cerco — falei.

— Como assim?

— As universidades que vem escolhendo. Ainda não pensou nisso?

— Não entendi — respondeu ela, intrigada.

— São as universidades que mais interessam a você — falei pacientemente.

Leigh olhou para mim. Olhei também para ela, tentando sorrir, mas não conseguindo.

— Está bem — falei. — Vamos discutir o caso mais uma vez. Coquetéis Molotov estão fora. A dinamite parece arriscado, mas se nós...

Uma respiração ofegante de Leigh me interrompeu de estalo juntamente com a expressão de assustado horror em seu rosto. Ela olhava através do pára-brisa, a boca aberta, os olhos arregalados. Virei-me naquela direção e o que vi foi tão espantoso que, por um momento, também fiquei imobilizado.

Arnie estava parado diante de meu Duster.

Havia estacionado bem atrás de nós e tinha ido apanhar seu frango, sem perceber quem estava ali — e por que deveria? Estava quase escuro, de maneira que um Duster de quatro anos, sujo de lama, fica muito semelhante a qualquer outro. Arnie tinha ido, voltava com o frango frito e retornava a seu carro... mas parara diante do meu, ficara olhando através do pára-brisa para nós dois, sentados muito juntos e abraçados, fitando-nos profundamente dentro dos olhos, como dizem os poetas. Apenas uma coincidência — uma sombria, terrível coincidência. Exceto que, agora, parte de minha mente estava absolutamente convicta de que havia sido Christine... de que havia sido ela que o conduzira até ali.

Houve, então, um longo e gélido momento de silêncio. Um pequeno gemido escapou da garganta de Leigh. Arnie tinha parado a meio caminho do pequeno pátio de estacionamento, trajando seu blusão do ginásio, calças jeans desbotadas e botas. Um cachecol de cor lisa fora enrolado em torno do pescoço. Ele erguera a gola do blusão e as lapelas negras emolduravam um rosto que se torcia lentamente da expressão de terrível incredulidade para uma pálida careta de ódio. A sacola de listras vermelhas e brancas, tendo impressa o rosto sorridente do Colonel — o Coronel — escapou de uma de suas mãos enluvadas e caiu no piso nevado do pátio de estacionamento.

— Dennis — sussurrou Leigh. — Dennis... Oh, meu Deus!

Ele começou a correr. Pensei que vinha para o carro, talvez pretendendo arrancar-me dali e agredir-me. Eu podia me ver apoiado fracamente na perna ainda não de todo boa, sob as luzes do pátio que tinham sido acesas justamente naquele minuto, enquanto Arnie — cuja vida eu salvara durante todos aqueles anos, desde o jardim da infância — acabava com a minha raça. Ele correu, a boca torcida em um esgar que eu jamais vira antes — mas aquele não era o seu rosto. Agora era o rosto de LeBay.

Arnie não parou em meu carro, ele continuou correndo. Virei-me no assento, e então avistei Christine.

Abri minha porta e lutei para sair, agarrando-me à calha da porta para apoio. O frio me deixou imediatamente com os dedos dormentes.

— Dennis, não — gritou Leigh.

Consegui ficar em pé, justamente quando Arnie escancarou a porta de Christine.

— Arnie! — gritei. — Ei, cara!

Houve um movimento brusco e seco de sua cabeça. Os olhos dele estavam arregalados, opacos e fixos. Um fio de saliva começava a escorrer de um canto da boca. A grade do radiador de Christine também parecia rosnar.

Ele ergueu os dois punhos e os sacudiu para mim.

— Seu bosta! — A voz era aguda e incerta. — Fique com ela! Você a merece! Vocês são uns merdas! Que fiquem um com outro! Não ficarão assim por muito tempo!

As pessoas tinham acudido às janelas envidraçadas do Kentucky Fried Chicken e do vizinho Kowloon Express para verem o que estava acontecendo.

— Arnie! Vamos conversar, cara...

Ele saltou para o carro e bateu a porta com força. O motor de Christine rugiu e seus faróis ganharam vida, os ofuscantes olhos brancos de meu sonho, espetando-me como a um besouro em um cartão. E, acima deles, havia o rosto terrível de Arnie, o rosto de um demônio enfurecido. Aquele rosto, cheio de ódio e fantasmagórico, habitou meus sonhos desde então. Um rosto que desapareceu em seguida, sendo substituído por uma caveira, uma sorridente caveira.

Leigh deixou escapar um grito agudo, estridente. Também tinha se virado para espiar, portanto, percebi que aquilo não era apenas imaginação minha. Ela vira o mesmo que eu.

Christine projetou-se com um rugido, os pneus traseiros girando e atirando neve para trás. Arnie não arremeda contra o Duster — era a mim que visava. Creio que sua intenção seria esmagar-me como geléia entre os dois carros. Fui salvo por minha perna esquerda, ainda em más condições, pois falhou e caí de costas dentro do carro, batendo com a anca direita no volante e fazendo a buzina soar.

Uma onda de vento gelado fustigou-me o rosto. O brilhante flanco vermelho de Christine passou a uns noventa centímetros de mim. Disparou rugindo pela alameda de saída do pátio e entrou na JFK Drive como um foguete, sem diminuir a marcha, a traseira rabeando. Desapareceu em seguida, ainda acelerando.

Olhei para a neve e vi as marcas recentes, ziguezagueantes de seus pneus. Mais uns dez centímetros, e Christine colidiria contra minha porta aberta.

Leigh chorava. Usei as mãos para colocar minha perna esquerda dentro do carro, bati a porta e a abracei. Seus braços me procuraram às cegas e então me apertaram, com a força do pânico.

— Não era... não era ele que...

— Pssst, Leigh. Não se preocupe. Não pense mais nisso.

— Não era Arnie que estava dirigindo aquele carro! Era uma pessoa morta! Era urna pessoa morta!

— Era LeBay — falei. Agora que falara, senti uma espécie de calma irreal, em vez da trêmula reação que seria mais natural, isso e a culpa de, finalmente, ter sido apanhado com a garota de meu melhor amigo. — Era ele, LeBay. Você acabou de conhecer Roland D. LeBay.

Ela chorou, tomada de medo, de choque e de horror, apertando-se contra mim. Fiquei satisfeito em tê-la. Minha perna esquerda latejava monotonamente. Ergui os olhos para o espelho retrovisor e vi a vaga vazia, pouco antes ocupada por Christine. Agora que acontecera, parecia-me que quaisquer outras conclusões seriam impossíveis. A paz das duas últimas semanas, a alegria pura de ter Leigh a meu lado, tudo isto agora parecia ser a situação antinatural, a situação falsa — tão falsa como a mistificada guerra entre a conquista da Polônia por Hitler e o devastador assalto da Wehrmacht contra a França.

Então, comecei a ver o final das coisas, como ele seria.

Ela ergueu para mim o rosto lavado de lágrimas.

— E agora, Dennis? O que vamos fazer?

— Agora, vamos dar um fim nisso.

— Como? O que quer dizer?

Falando mais para mim do que para ela, respondi:

— Ele precisa de um álibi. Temos de estar prontos, para quando ele se afastar daqui. A garagem. A Garagem de Darnell. Vamos encurralar aquele carro lá dentro. Tentar matá-lo,

— Dennis, de que está falando?

— Ele deixará a cidade — falei. — Não entende? Todas aquelas pessoas que Christine matou... bem, elas formam um círculo em torno de Arnie. Ele sabe disso. Ele fará com que Arnie torne a sair da cidade.

— Está falando de LeBay? Assenti, e Leigh estremeceu.

— Precisamos matá-lo. Você sabe disso.

— Sim, mas... como? Por favor, Dennis... como faremos? Por fim, eu tinha uma idéia.

 

Preparativos

Há um matador na estrada,

Seu cérebro se contorce como um sapo...

— The Doors

 

Levei Leigh até sua casa e lhe disse para telefonar-me, se visse Christine rodando pelos arredores.

— E o que você fará? Virá até aqui com um lança-chamas?

— Uma bazuca — falei, e ambos começamos a rir histericamente.

— Abaixo o 58! Abaixo o 58! — gritou Leigh e rimos ainda mais.

Não obstante, por todo o tempo em que ríamos, estávamos meio mortos de medo... talvez mais do que meio. Enquanto ficávamos ali, rindo, eu me sentia perturbado por Arnie, perturbado pelo que ele tinha visto e pelo que eu havia feito. Creio que Leigh sentia o mesmo. No entanto, há momentos em que só nos resta rir. Às vezes, é apenas o que fazemos. E quando o riso se solta-, nada pode sufocá-lo. O riso continua, cumprindo o seu dever...

— E o que digo a meus pais? — perguntou Leigh quando, finalmente, conseguimos controlar-nos. — Preciso dizer alguma coisa a eles, Dennis! Não vou deixar que se arrisquem a serem atropelados na rua!

— Não diga nada — falei. — Não diga nada, mesmo.

— Mas...

— Em primeiro lugar, eles não acreditariam em você. Em segundo, nada irá acontecer, enquanto Arnie permanecer em Libertyville. Aposto minha vida nisso.

— Só isso, bobão? — sussurrou ela.

— Não. Aposto minha vida, a de minha mãe, meu pai e minha irmã.

— Como saberemos, se ele deixar a cidade?

— Eu vou cuidar disso. Você ficará doente amanhã. Não irá à aula.

—Já estou doente — disse, em voz baixa. — Dennis, o que vai acontecer? O que está planejando?

— Eu telefono pra você mais tarde, esta noite. — Beijei-a. Seus lábios estavam frios.

Quando cheguei em casa, Elaine enfiava sua jaqueta relutantemente, murmurando surdas imprecações contra pessoas que mandam outras comprar pão e leite no Tom's justamente quando vai começar Dance Fever na TV. Ela se dispunha a me xingar também, mas se alegrou, quando me ofereci para dar-lhe uma carona até o mercado, ida e volta. Ellie também me dirigiu um olhar suspeito, como se tão inesperada gentileza com a irmã menor assinalasse o início de alguma doença. Herpes, talvez. Perguntou se eu me sentia bem. Apenas sorri com suavidade e lhe disse para entrar no carro antes que eu mudasse de idéia, embora a esta altura minha perna direita doesse e a esquerda latejasse furiosamente. Eu podia falar e insistir com Leigh sobre como Christine não atacaria, enquanto Arnie estivesse em Libertyville, e racionalmente, sabia que assim seria. Entretanto, isto não modificou o instintivo peso no estômago, quando pensei em Ellie caminhando os dois quarteirões até o Tom's e cruzando as escuras ruelas suburbanas, com sua berrante jaqueta amarela. Eu ficava vendo Christine, estacionada em uma daquelas ruas, agachada no escuro como um velho e maldito cão de caça.

Ao chegarmos ao Tom's, dei-lhe um dólar.

— Compre chocolate e uma Coca para cada um de nós.

— Você está se sentindo bem mesmo, Dennis?

— Estou. E se gastar meu troco naquele jogo de Asteróides, quebro o seu braço.

Aquilo pareceu sossegá-la. Ellie saiu, e fiquei encurvado atrás do volante do Duster, pensando na terrível enrascada em que estávamos metidos. Não podíamos contar a ninguém — aí estava o pesadelo. E aí residia a força de Christine. Poderia chegar até meu pai, em sua oficina de brinquedos e dizer que o que Ellie chamava de "aquele velho e horroroso carro vermelho de Arnie Cunningham" agora se dirigia sozinho? Poderia ligar para os tiras e lhes dizer que um sujeito morto queria matar minha namorada e a mim? Não. A única coisa a nosso favor, além do fato de que o carro não se moveria enquanto Arnie não tivesse um álibi, era que ele não queria testemunhas — "Penetra" Welch, Don Vandenberg e Will Darnell haviam sido liquidados sozinhos, de madrugada, Buddy Repperton e seus dois amigos tinham sido mortos em local isolado.

Elaine chegou, com uma sacola apertada contra o busto florescente, entrou no carro, entregou meu chocolate e minha Coca.

— O troco — pedi.

— Você é um sovina — respondeu, mas colocou vinte e poucos centavos em minha mão estendida.

— Eu sei, mas gosto de você assim mesmo — falei.

Puxei seu capuz para trás, desmanchei-lhe o cabelo e depois a beijei na orelha. Ela pareceu surpresa e desconfiada — mas então sorriu. Não era má pessoa, minha irmã Ellie. Imaginá-la atropelada na rua, simplesmente porque eu me apaixonara por Leigh Cabot, depois que Arnie perdera a cabeça e a deixara... Francamente, eu não podia permitir que isso acontecesse.

Em casa, subi penosamente para o andar de cima, depois de dizer olá para mamãe. Ela queria saber como estava a perna e respondi que em ótimo estado. No entanto, quando cheguei ao andar de cima, a primeira parada foi no armário de remédios que havia no banheiro. Tomei duas aspirinas para amenizar a dor nas pernas, que agora pareciam cantar Ave-Maria. Depois fui até o quarto de meus pais, onde fica a extensão do telefone, e me sentei na cadeira de balanço de mamãe, com um suspiro.

Ergui o fone do gancho e fiz a primeira de minhas ligações.

— Dennis Guilder, o flagelo do projeto de extensão da estrada! — exclamou Brad Jeffries, alegremente. — É bom falar com você, rapaz. Quando é que vai aparecer, para vermos os Pingüins outra vez?

— Não sei — respondi. — Já me cansei de ver aleijados jogando hóquei. Mas se você estiver interessado em um bom time, como os Voadores...

— Céus, ter que ouvir isto de um garoto que nem mesmo é meu filho! — exclamou Brad. — Acho que o mundo está mesmo caminhando para o inferno.

Tagarelamos um pouco mais, chutando de um lado para outro, e então lhe disse o motivo do telefonema. Ele riu.

— O que há, Denny? Querendo negociar por conta própria?

— É possível — repliquei, pensando em Christine. — Somente por algum tempo.

— Não quer falar a respeito?

— Bem, ainda não. Conhece alguém que tenha um troço desses para alugar?

— Claro que sim, Dennis. Escute, só há um sujeito que poderia fazer negócio com você, nas bases que mencionou. Johnny Pomberton. Vive perto de Ridge Road. Ele tem mais rodantes do que Carter tem pílulas para o fígado.

— Ok — respondi. — Obrigado, Brad.

— Como vai Arnie?

— Acho que está bem. Não o tenho visto tanto quanto antes.

— Um cara curioso, Dennis. Nem em minha pior suposição pensaria que ele ia durar todo o verão por aqui, assim que botei os olhos nele. No entanto, se mostrou decidido como o diabo.

— Certo — respondi. — Tudo isso e ainda mais.

— Diga olá para ele, quando se encontrarem.

— Direi, Brad. Não se preocupe.

— Apareça, Dennis. Venha qualquer noite e esvazie algumas latas de cerveja comigo.

— Vou aparecer. Boa noite.

— Boa noite, Denny.

Desliguei e fiquei olhando para o telefone por um ou dois minutos, indeciso, sem muita vontade de fazer a ligação seguinte. No entanto, era preciso fazê-la; seria a ligação central para toda aquela lamentável e estúpida situação. Peguei o fone e disquei de cor o número dos Cunningham. Se Arnie atendesse, eu simplesmente desligaria, sem nada dizer. No entanto, tive sorte, foi Michael quem respondeu.

— Alô?

Sua voz soava cansada e um pouco amortecida.

— Aqui é Dennis, Michael.

— Ei, olá! — ele parecia sinceramente satisfeito.

— Arnie está aí?

— Lá em cima. Chegou em casa, vindo de algum lugar, e foi direto para seu quarto. Parecia bastante carrancudo, mas isto não tem sido incomum ultimamente. Quer que o chame?

— Não — falei. — Está tudo bem. Era com você mesmo que eu queria falar. Preciso de um favor seu.

— Muito bem, é só dizer. — Percebi que aquela voz algo mortiça era... Bem, Michael Cunningham devia estar a meio caminho de um pileque. — Você nos prestou um favor dos diabos, enfiando um pouco de juízo nele, sobre universidade.

— Não acredito que ele tenha ouvido uma vírgula do que falei, Michael.

— Bem, a verdade é que algo aconteceu. Ele se candidatou a três universidades, só este mês. Regina acha que você caminha sobre a água, Dennis. E, só para nós, ela anda muito envergonhada sobre a maneira como o tratou, quando Arnie nos falou sobre seu carro a primeira vez. Enfim, você conhece Regina. Ela jamais conseguiria dizer "sinto muito".

Eu sabia disso perfeitamente. Perguntei-me o que ela pensaria, se soubesse que Arnie — ou o que quer que controlasse Arnie — tinha tanto interesse pela universidade quanto um avaro por fundos mútuos. Ou se soubesse que ele apenas seguia as pegadas de Leigh, perseguia-a, obcecado por ela. Era perversão sobre perversão — LeBay, Leigh e Christine, em um hediondo ménage a trois.

— Ouça, Michael — falei. — Eu gostaria que você me telefonasse, caso Arnie decidir deixar a cidade por algum motivo. Especialmente dentro destes primeiros dias ou durante a semana. De dia ou à noite. Preciso saber se Arnie vai deixar Libertyville. E tenho que saber antes dele ir. É muito importante.

— Por quê?

— Prefiro não explicar por enquanto. É muito complicado e ia parecer... bem, você acharia meio louco.

Houve um longo, demorado silêncio. Quando o pai de Arnie tornou a falar, sua voz era quase um sussurro.

— É algo sobre esse maldito carro dele, não é?

Até onde ele suspeitaria? Quanto saberia? Se Michael fosse como a maioria das pessoas que eu conhecia, talvez desconfiasse um pouco mais quando bêbado, do que sóbrio. No momento, eu não tinha certeza. No entanto, achava que Michael suspeitara, mais do que ninguém exceto, talvez, do que Will Darnell.

— Certo — respondi. — É isso mesmo.

— Eu sabia — disse, em voz opaca. — Eu sabia. O que está acontecendo, Dennis? O que ele anda fazendo? Você sabe?

— Não posso falar mais, Michael. Pode me telefonar se ele programar alguma viagem para amanhã ou depois?

— Está certo — disse ele. — Telefonarei.

— Obrigado.

— Dennis — disse Michael. — Acha que terei meu filho de volta?

Ele merecia a verdade. Aquele pobre e angustiado homem merecia a verdade.

— Não sei — respondi, mordendo o lábio inferior até que doesse.

— Acho que... bem, talvez já seja um pouco tarde para isso — concluí.

— De que se trata, Dennis? — ele quase gemeu. — Drogas? Alguma espécie de drogas?

— Direi quando puder — respondi. — É tudo o que posso prometer. Sinto muito.

 

Não foi difícil convencer Johnny Pomberton.

Era um homem animado e falante, de modo que logo desapareceram quaisquer temores de que ele não fizesse negócio com um adolescente. Tive a impressão de que Johnny Pomberton faria negócios com o próprio Satã, acabado de subir dos infernos e ainda com cheiro de enxofre, se a proposta fosse boa e dentro da lei.

— Claro — repetia ele. — Claro, claro.

Mal se iniciava uma proposta, e Johnny Pomberton já estava concordando, o que chegava a ser um pouco enervante. Eu tinha uma história que serviria de bom pretexto, mas não acredito que ele chegasse a ouvi-la. Limitou-se a dar-me um preço, aliás um preço bastante razoável.

— Está bom para mim — falei

— Claro — concordou ele. — Quando é que virá?

— Bem, o que me diz de amanhã, às nove e meia...

— Claro — interrompeu ele. — Até lá, então.

— Mais uma pergunta, Sr. Pomberton.

— Claro. E me chame de Johnny.

— Ok, Johnny. E sobre a mudança automática?

Johnny Pomberton riu alegremente — com tal vivacidade que mantive o fone um pouco afastado do ouvido, algo deprimido. Aquele riso era resposta suficiente.

— Em uma dessas coisinhas? Você deve estar brincando. Para quê? Não pode dirigir com uma mudança comum? De pedal?

— Naturalmente. Foi como aprendi — falei.

— Claro! Quer dizer que não haverá problemas, certo?

— Acho que não — respondi, pensando em minha perna esquerda, que estaria pressionando o pedal, ou tentando pressionar. Só de apertá-lo um pouco essa noite, já a fizera doer como o diabo. Esperei que Arnie demorasse alguns dias, antes de viajar para fora da cidade mas, de algum modo, era difícil acreditar que aquilo estivesse nas cartas. Tinha de ser amanhã, pelo fim de semana no máximo, e minha perna esquerda teria que se conformar com a situação. — Bem, boa noite, Sr. Pomberton. Eu o verei amanhã.

— Claro. Obrigado por ligar, garoto. Já pensei no que lhe serve. Vai gostar dela, duvido que não goste. E se não começar a me chamar de Johnny, vou dobrar o preço.

— Claro — falei e desliguei com ele ainda rindo. Vai gostar dela. Duvido que não goste.

Ela novamente — eu estava me tornando morbidamente cônscio daquela forma casual de tratamento... e infernalmente preocupado com isso.

A seguir, fiz minha última ligação para os preparativos. Havia quatro Sykes no catálogo. Encontrei o que procurava, na segunda tentativa: o próprio Jimmy atendeu. Apresentei-me como amigo de Arnie Cunningham e a voz dele animou-se. Gostava de Arnie, que raramente zombava dele e jamais "o agredira", como Buddy Repperton tinha feito, quando trabalhava para Will. Ele quis saber como ia Arnie e, mentindo novamente, falei que Arnie estava ótimo.

— Poxa, isso é bom — disse ele. — Arnie levou algum tempo com o traseiro em apuros. Eu sabia que aquela muamba, aqueles cigarros, não iam dar em boa coisa para ele.

— Estou telefonando por causa de Arnie — falei. — Você se lembra de quando Will foi detido e eles fecharam a garagem, Jimmy?

— Claro que me lembro — suspirou Jimmy. — Agora, o coitado do Will está morto e fiquei sem emprego. Minha mãe vive dizendo que tenho que ir para a escola técnica vocacional, mas acho que não dou pra isso. Eu me daria melhor como porteiro ou coisa assim. Meu tio Fred é porteiro lá na universidade e disse que talvez tenha uma vaga, porque o outro porteiro, bem, ele sumiu, deu o fora e...

— Arnie disse que ficou sem seu jogo completo de chaves-de-boca, quando fecharam a garagem — interrompi. — Estava atrás de alguns daqueles pneus velhos, nas prateleiras mais altas. Ele deixou o jogo lá, para que ninguém roubasse.

— E ainda está lá? — perguntou Jimmy.

— Acho que sim.

— Que azar!

— Sabe, aquele conjunto de chaves vale uns cem dólares.

— Caramba! Aposto como não está mais lá. Aposto como um daqueles tiras ficou com ele.

— Arnie acha que o jogo continua lá. Só que ele não pode nem chegar perto da garagem, por causa da enrascada em que se meteu.

Era mentira, mas achei que Jimmy não daria pela coisa e assim aconteceu. De qualquer modo, meu amor-próprio não ficou muito satisfeito ao aproveitar-me assim de um sujeito quase retardado.

— Que merda! Bem, olha só, eu vou até lá e descolo as ferramentas. Claro! Amanhã cedo, a primeira coisa que vou fazer. Ainda tenho minhas chaves para entrar na garagem.

Deixei escapar um suspiro de alívio. O que eu queria não era o imaginário jogo de chaves-de-boca, mas as chaves de Jimmy.

— Aí é que está, Jimmy, eu mesmo gostaria de ir pegar as chaves para Arnie. Faria uma surpresa a ele, entende? E sei direitinho onde ele as deixou. Você poderia revirar aquilo tudo o dia inteiro e talvez não as encontrasse.

— É mesmo, é verdade. Nunca fui muito bom para encontrar coisas, era bem como Will dizia. Ele sempre repetia que eu nunca encontraria meu traseiro, nem usando as duas mãos e uma lanterna.

— Que nada, cara, ele falava assim por brincadeira. Bem, a verdade é que eu gostaria de ir buscar o jogo de chaves de Arnie.

— Bem, tá legal.

— Pensei que se fosse aí, pegar suas chaves, amanhã... Bem, eu pegaria o conjunto de Arnie e devolveria as chaves pra você antes do anoitecer.

— Olhe, só que eu não posso. Will dizia para nunca emprestar minhas chaves a ninguém e...

— Está certo, mas a garagem agora está vazia. Lá só ficaram as ferramentas de Arnie e aquele ferro-velho nos fundos. O Estado logo estará colocando a garagem à venda, com tudo que tiver dentro. Se eu for pegar as ferramentas depois disso, seria como roubar, entende?

— Oh! Bem, se for assim, acho que pode ser. Se você trouxer as chaves de volta. — Então ele acrescentou algo absurdamente tocante: — Sabe? Elas são tudo que tenho para me lembrar de Will.

— Você as terá de volta. Prometo.

— Ok — disse ele. — Se for para Arnie, acho que está legal.

 

Pouco antes de ir para a cama, agora do andar de baixo, fiz uma ligação final — para uma sonolenta Leigh.

— Estará tudo terminado, qualquer noite destas. Você topa?

— Claro — disse ela. — Acho que sim. O que planejou, Dennis?

Eu lhe contei, ponto por ponto, quase esperando que ela encontrasse uma porção de falhas em minha idéia. No entanto, quando terminei, Leigh apenas perguntou:

— E se não funcionar?

— Caberá a você fazer a lista de honra. Não creio que seja necessário pintar-lhe o quadro.

— Não — disse ela. — Acho que não.

— Eu deixaria você fora disso, se pudesse — falei. — Acontece que LeBay desconfiaria de uma armadilha e, portanto, a isca tem que ser boa.

— Eu não admitiria que você me deixasse de fora — disse ela. Falava com firmeza. — Isto também tem a ver comigo. Eu amei o Arnie. Amei de verdade. E quando a gente começa a amar alguém... acho que nunca esquece inteiramente. Não é, Dennis?

Refleti em todos aqueles anos. Os verões de leitura, nadar e jogar Monopólio, scrabble, xadrez chinês. As fazendas de formigas. As vezes em que eu impedira que o humilhassem, de todos aqueles jeitos que as crianças eliminam um estranho, o garoto que é um pouco esquisito, que não se afina bem com o grupo. Houve vezes em que eu precisava me esforçar muito, para impedir que o maltratassem, vezes em que me perguntara se minha vida não seria mais fácil e melhor se eu apenas largasse Arnie de mão, deixando-o de lado. Entretanto, assim não seria melhor. Eu precisava dele, a fim de fazer com que me sentisse bem comigo — e ele o fizera. Tínhamos jogado limpo sempre e, oh, merda! O que acontecia agora era muito amargo, sim, realmente muito mais amargo.

— Tem razão — respondi e, de repente, tive que pôr a mão sobre os olhos. — Acho que não dá mesmo pra esquecer. Eu também amei o Arnie. E talvez, mesmo a essa altura, ainda não seja também tarde demais para ele.

Eu gostaria de rezar: Bom Deus, permita que eu salve Arnie, só mais uma vez. Apenas esta última vez.

— Não é a ele que odeio — disse ela, em voz baixa. — Eu odeio aquele homem, LeBay... nós vimos mesmo aquela coisa hoje à tarde, Dennis? No carro?

— Sim — respondi. — Creio que vimos.

— Odeio os dois: ele e essa maldita Christine. Será para logo?

— Falta pouco. Acho que sim.

— Está bem. Eu amo você, Dennis.

— Também amo você.

E, como se viu, tudo terminou no dia seguinte — sexta-feira, dezenove de janeiro.

 

Arme

Eu rodava em meu Stingray, tarde da noite,

Quando um XKE se aproximou pela direita,

Ele baixou a janela do reluzente e novo Jag,

E me desafiou ali para uma corrida.

Eu disse: "Topo, chapa, minha máquina é legal,

Partimos da esquina de Sunset com Vine,

Mas lhe faço uma proposta (se você tem peito):

Vamos disputar todo o trajeto...

até a Curva do Morto. "

— Jan e Dean

 

Iniciei aquele longo e terrível dia indo até a casa de Jimmy Sykes em meu Duster. Eu imaginara poder ter algum problema com a mãe dele, mas tudo correu bem. Ela parecia um pouco mais retardada que o filho. Convidou-me para comer bacon com ovos (que rejeitei, porque meu estômago dava nós miseráveis) e ficou falando de minhas muletas, enquanto Jimmy revirava seu quarto à procura do molho de chaves. Fiquei de conversa fiada com a Sra. Sykes, que era aproximadamente do tamanho do Monte Etna, mas o tempo ia passando e uma angustiante certeza se criava dentro de mim: Jimmy perdera suas chaves em algum lugar, e tudo ia por água abaixo, antes mesmo de começar. Ele voltou, abanando a cabeça.

— Não consegui encontrar — disse. — Devo ter perdido em algum lugar. Que droga!

A Sra. Sykes — quase cento e cinqüenta quilos, envolvidos por um desbotado vestido caseiro, os cabelos presos em rolinhos cor-de-rosa, disse então, com um jeito prático que achei formidável:

— Já procurou em seus bolsos, Jim?

Uma expressão admirada passou pelo rosto de Jimmy. Ele enfiou a mão no bolso de suas calças verdes de brim e depois, com um sorriso envergonhado, puxou um molho de chaves. O chaveiro era um daqueles vendidos na loja de novidades do Monroeville Mall — um grande ovo frito de borracha. O ovo estava sujo de graxa.

— Oh, aí estão vocês, babaquinhas — disse.

— Cuidado com sua linguagem, rapazinho — disse a Sra. Sykes. — Basta mostrar a Dennis qual a chave que abre a porta, e guarde essa linguagem suja em sua cabeça.

Jimmy terminou entregando-me três chaves, porque não estavam etiquetadas e ele não podia distinguir qual a que servia. Uma delas abria a grande porta de aço, de enrolar, da entrada, outra abria a porta dos fundos, que dava para o comprido pátio de carros velhos, e a terceira era do escritório de Will.

— Obrigado — falei. — Devolvo assim que puder, Jimmy.

— Tá legal — disse Jimmy. — Diga alô a Arnie por mim.

— Eu digo.

— Tem certeza de que não quer bacon com ovos, Dennis? — perguntou a Sra. Sykes. — Há de sobra.

— Obrigado — respondi —, mas preciso ir andando.

Eram oito e quinze e as aulas começavam às nove. Arnie geralmente chegava às oito e quarenta e cinco, segundo me dissera Leigh. Eu tinha apenas o tempo indispensável. Ajeitei-me nas muletas e fiquei em pé.

— Ajude-o a sair — ordenou a Sra. Sykes. — Não fiquei aí parado! Comecei a protestar e ela acenou para que me fosse.

— Não vai querer cair em cima do traseiro, antes de chegar a seu carro, Dennis. Podia tornar a quebrar a perna.

Riu ruidosamente ao terminar de falar, e Jimmy, a encarnação viva da obediência, praticamente me carregou até o Duster.

 

O céu daquele dia era de um gélido cinza pesado e o rádio previa mais neve para o final da tarde. Dirigi através da cidade até o Ginásio de Libertyville, tomei a via que conduzia ao pátio de estacionamento dos alunos e estacionei na primeira fila. Não era preciso Leigh me dizer que Arnie costumava estacionar na última. Eu necessitava vê-lo, tinha que jogar a isca diante de seu nariz, mas o queria o mais longe possível de Christine quando o fizesse. Com ele afastado do carro, o jugo de LeBay parecia mais fraco.

Fiquei lá sentado dentro do carro, com a chave virada para ACCESSORY, por causa do rádio, e contemplei o campo de futebol. Parecia impossível que já trocara sanduíches com Arnie naquelas arquibancadas cobertas de neve. Era difícil acreditar que eu mesmo já correra e suara naquele campo, com vestimentas acolchoadas, capacete e calças justas, estupidamente convicto de minha invulnerabili­dade física... talvez até mesmo de minha imortalidade.

Não me sentia mais assim.

Os alunos iam chegando, estacionavam seus carros e encaminhavam-se para o prédio, conversando, rindo e brincando. Afundei no assento, não querendo ser reconhecido. Um ônibus aproximou-se da entrada principal e despejou um bando de garotos. Um pequeno grupo de friorentos rapazes e garotas reuniu-se na área de fumar, onde Buddy desafiara Arnie, naquele dia do outono passado. Um dia que, agora, também parecia terrivelmente distante.

Meu coração disparava no peito e eu me sentia miseravelmente tenso. Uma parte de mim desejava com ânsia que Arnie não aparecesse. Então, avistei o familiar vulto vermelho-e-branco de Christine, vindo da School Street, a encaminhar-se para a entrada de veículos dos alunos, rodando a uns uniformes trinta por hora, o cano de descarga expelindo uma leve fumaça branca. Arnie estava ao volante, usando seu blusão do colégio. Não olhou para mim; simplesmente, dirigiu-se até seu costumeiro lugar, nos fundos do estacionamento, e lá parou o carro.

Fique encolhido e ele nem o verá, sussurrou aquela traiçoeira e ansiosa parte de minha mente. Passará a seu lado, como os outros, e irá embora.

No entanto, em vez disto eu abri a porta do Duster e passei as muletas para o lado de fora. Apoiando o peso nelas, icei-me e fiquei em pé sobre a neve compacta do pátio de estacionamento, sentindo-me um pouco como naquele velho filme Dupla Indenização, com Fred MacMurray. Do colégio, chegou o rrrinnng do primeiro sinal, fraco e sem importância pela distância — Arnie estava mais atrasado do que nos velhos tempos. Minha mãe costumava dizer que ele era irritantemente pontual. Talvez LeBay não tivesse sido.

Ele veio em minha direção, com os livros debaixo do braço, a cabeça baixa, esgueirando-se por entre os carros. Passou por trás de um furgão, saindo temporariamente de meu campo visual, depois tornou a aparecer. Então ergueu a cabeça e seus olhos se fixaram diretamente nos meus.

Ao me ver, arregalou os olhos e fez uma automática meia-volta, em direção a Christine.

— Você se sente meio nu, quando não está ao volante não é? — perguntei.

Ele me encarou. Seus lábios se encurvaram ligeiramente para baixo, como se houvesse provado algo de sabor desagradável.

— Como vai a sua cona, Dennis? — perguntou.

George LeBay não dissera, mas deixara entrever que seu irmão era extraordinariamente bom para agredir os outros, através de seus pontos fracos.

Dei dois passos arrastados para diante, apoiado nas muletas, enquanto ele ficava parado, sorrindo com os cantos da boca para baixo.

— Como se sentia você, quando Repperton o chamava de Cara de Cona? — perguntei. — Gostou tanto que resolveu usar em mais alguém?

Parte dele pareceu ser atingida por aquilo — algo que talvez estivesse apenas em seus olhos —, mas o sorriso desdenhoso e vigilante permaneceu nos lábios. Estava frio ali fora. Eu não pusera as luvas e minhas mãos estavam ficando dormentes, nas barras cruzadas das muletas. Nossa respiração formava pequenas nuvens.

— Ou que tal no quinto ano, quando Tommy Deckinger costumava chamar você de Hálito de Peido? — perguntei, alteando a voz. Ficar irritado com ele não tinha sido parte do plano, mas agora a raiva estava ali, sacudindo-me por dentro. — Você gostava? E lembra-se de quando Ladd Smythe era aluno-patrulheiro e jogou você no chão? Lembra-se de como tirei o chapéu dele e lhe enfiei dentro das calças? Onde é que você estava, Arnie? Esse cara, LeBay, só apareceu há pouco tempo. E eu, eu sempre estive presente!

Aquele recuo.novamente. Desta vez ele completou a volta, o sorriso vacilando, os olhos em busca de Christine, da maneira como procuramos um ente querido em um apinhado aeroporto ou rodoviária. Ou como um drogado procuraria o seu fornecedor.

— Precisa dela tanto assim? — perguntei. — Cara, você teve os colhões fisgados direitinho, hein?

— Não sei do que está falando — disse ele, em voz rouca. — Você roubou minha garota. Nada vai modificar isso. Agiu pelas minhas costas... me enganou... você não passa de um bosta, como todos os outros. — Ele agora me fitava, de olhos arregalados, doridos e brilhando de raiva. — Pensei que podia confiar em você, mas você é pior do que Repperton ou qualquer um deles! — Deu um passo para mim e gritou, com total fúria pela perda: — Você a roubou, seu bosta!

Arrastei-me em outro passo para diante com as muletas. Uma delas escorregou ligeiramente, sobre a neve dura do piso. Éramos como dois relutantes adversários, aproximando-se um do outro.

— Não se pode roubar o que foi jogado fora — falei.

— De que está falando?

— Estou talando da noite em que ela sufocou em seu carro. Da noite em que Christine tentou matá-la. Você disse a Leigh que não precisava dela. Você disse pra ela se foder.

— Eu nunca disse isso! É mentira! É uma maldita mentira!

— Com quem estou falando? — perguntei.

— Não interessa! — Seus olhos cinzentos eram enormes, atrás dos óculos. — Não interessa quem seja o cara com quem esteja falando! Isso tudo não passa de uma mentira nojenta! Aliás, eu não esperava outra coisa daquela cadela asquerosa!

Outro passo para mais perto. O rosto pálido dele era marcado com acentuadas manchas vermelhas.

— Quando escreve seu nome, não parece mais a sua assinatura, Arnie.

— Cale a boca, Dennis!

— Seu pai diz que é como ter um estranho em casa.

— Estou avisando, cara!

— Por que se preocupa? — perguntei brutalmente. — Eu sei o que vai acontecer. Leigh também sabe. A mesma coisa que aconteceu a Buddy Repperton, Will Darnell e a todos os outros. Porque você não é mais Arnie. Está aí, não, LeBay? Vamos, mostre-se e me deixe vê-lo! Já o vi antes. Eu o vi na véspera do Ano-Novo, tornei a vê-lo ontem, lá onde vendem frango frito. Sei que você está aí, por que não pára de se foder por aí e aparece?

E ele apareceu... mas agora no rosto de Arnie, e era ainda mais hediondo do que todas as caveiras e esqueletos jamais imaginados pelas revistas de horror em quadrinhos. O rosto de Arnie mudou. Um rosnado brotou em seus lábios, como uma rosa putrefata. Então o vi, como devia ter sido quando jovem, e quando um carro era tudo que um jovem precisava ter; tudo o mais se seguiria automaticamente. Vi o irmão mais velho de George LeBay.

Só recordo uma coisa sobre ele, mas lembro disso muito bem: sua raiva. Ele estava sempre enraivecido.

Ele caminhou para mim, encurtando a distância entre onde estivera e onde eu estava parado, apoiado nas muletas. Seus olhos eram enevoados, além de todo alcance. Aquele sorriso de escárnio estava impresso em seu rosto, como algo marcado a fogo.

Tive tempo de pensar na cicatriz no braço de George LeBay, descendo do cotovelo ao pulso. Ele me empurrou, depois voltou e me jogou ao chão. Eu podia ouvir aquele LeBay de quatorze anos gritando: De agora em diante, fique fora do meu caminho, seu maldito imbecil, fique fora do meu caminho, ouviu?

Era LeBay que eu encarava agora — e LeBay não era dos que se conformam facilmente em perder. Aliás, ele não aceitava a derrota, isso nunca.

— Lute com ele, Arnie — falei. — Ele já esteve no comando por tempo demais. Lute com ele, mate-o, faça-o ficar lon...

Ele esticou o pé e chutou minha muleta direita, arrancando-a de mim. Lutei para permanecer em pé, cambaleei, quase consegui... e então ele chutou a muleta esquerda. Caí sobre a neve dura e compacta. Ele deu outro passo e ficou acima de mim, o rosto, duro e alienado.

— Você queria, agora vai ter — disse vagamente.

— Certo, certo — arquejei. — Lembra-se das fazendas de formigas, Arnie? Você está aí, em algum lugar? Esse otário sujo nunca teve uma fodida fazenda de formigas na vida. Nunca teve um amigo em toda a vida!

De repente, aquela dureza se rompeu. O rosto — o rosto dele se turvou. Não sei mais como descrever o que vi. LeBay estava ali, enfurecido ao ser posto de lado por um motim interno. Então, surgiu Arnie abatido, cansado, envergonhado mas, acima de tudo, desesperadamente infeliz. Em seguida, novamente LeBay, o pé se estirando para chutar-me, enquanto eu jazia caído na neve, rastejando para pegar minhas muletas, sentindo-me impotente, inútil e entorpecido. Depois foi novamente Arnie, meu amigo Arnie, jogando para trás o cabelo caído na testa, naquele gesto familiar e aturdido. Era Arnie, dizendo:

— Oh, Dennis... Dennis... me desculpe... sinto muito.

— É tarde demais para se desculpar, cara — falei.

Peguei uma muleta, depois a outra. Ergui-me pouco a pouco, escorregando duas vezes, antes de me suster novamente sobre elas. Minhas mãos, agora, eram como peças de mobiliário. Arnie não fez qualquer movimento para ajudar-me; ficou recostado contra o furgão, os olhos arregalados e chocados.

— Dennis, eu não consigo entender — sussurrou. — Às vezes, parece que nem estou mais aqui. Ajude-me, Dennis! Ajude-me!

— LeBay está aí? — perguntei.

— Ele sempre está aqui — grunhiu Arnie. — Oh, Deus, sempre! Exceto...

— O carro?

— Quando Christine... quando ela roda, então, ele está com ela. É a única vez em que ele... ele...

Arnie silenciou. Sua cabeça descambou para um lado. O queixo rolou sobre o peito, em um giro frouxo. Seu cabelo pendeu para a neve. A saliva escorreu de sua boca e caiu sobre as botas. Então, ele começou a chorar baixinho e esmurrou o furgão atrás, com as mãos enluvadas.

— Vá embora! Vá embora? Vá embooooraaaa!

Por uns cinco segundos, nada aconteceu — nada, exceto o estremecimento de seu corpo, como se uma cesta de serpentes houvesse sido despejada dentro de suas roupas; nada, exceto aquele lento, horrível girar do queixo sobre o peito.

Pensei que Arnie talvez estivesse vencendo, que conseguia expulsar o velho e nojento filho da puta. Entretanto, quando ergueu o rosto, Arnie se fora. Era LeBay quem estava ali.

— Tudo vai acontecer exatamente como ele disse — falou LeBay. — Não se meta, rapaz. Talvez eu não o atropele.

— Vá à Garagem de Darnell esta noite — disse eu. Minha voz estava rouca, tinha o peito seco como areia. — Nós brincaremos. Levarei Leigh comigo. Leve Christine.

— Eu é que escolho hora e lugar — replicou LeBay, e sorriu com a boca de Arnie, mostrando os dentes jovens e fortes de Arnie... uma boca ainda a anos da indignidade das dentaduras. — Você ignora quando e onde, mas saberá... chegado o momento.

— Pense bem — falei, como que por casualidade. — Vá à garagem esta noite... ou eu e ela começaremos a contar tudo amanhã.

Ele riu, um som horrendo e insolente.

— E aonde isso os levará? Ao hospício de Reed City?

— Oh, claro que não nos darão crédito de início — repliquei. — Eu concordo com você nisso. De qualquer modo, essa história de mandarem as pessoas para um asilo de loucos, assim que começam a falar sobre fantasmas e demônios... Ha-ha, LeBay! Talvez isso acontecesse no seu tempo, antes dos discos voadores, de O Exorcista e daquela casa em Amityville. Só que, hoje, muita gente acredita nessa história.

Ele ainda sorria, mas seus olhos me fitaram com uma sombra de suspeita. Era isso e algo mais. Pensei ter também percebido uma primeira fagulha de medo.

— E o que você não parece perceber, é quantas pessoas sabem que existe algo errado.

Seu sorriso vacilou. Claro, ele já deveria ter percebido e ficado preocupado. Entretanto, matar talvez seja uma febre; após certo tempo, talvez simplesmente seja impossível parar e contar a despesa.

— Seja qual for a espécie de estranha e nojenta vida que ainda tenha, está toda presa àquele carro — falei. — Você sabia disso e planejou usar Arnie, desde o princípio... exceto que "planejou" é a palavra errada. Sim, porque na verdade você nunca planejou nada, não é mesmo? Apenas seguiu suas intuições.

Ele emitiu um som que parecia um rosnado e se virou para ir.

— De fato, você quer refletir sobre isso — falei quando já se ia. — O pai de Arnie sabe que há algo sujo por trás de tudo isto. O meu também. E imagino que exista algum policial, em qualquer lugar, querendo ouvir, o que for, sobre como seu amigo Junkins morreu. E tudo leva de volta a Christine, Christine, Christine... Cedo ou tarde, alguém a levará para aquele compactador nos fundos da garagem, apenas por uma questão de princípios.

Ele se virou para trás e me fitou, com uma viva mistura de ódio e medo nos olhos.

— Nós falaremos e muitos rirão da gente, não duvido. Entretanto, tenho dois pedaços de moldes de gesso com a assinatura de Arnie. Somente uma não é dele. É sua. Eu vou levá-la aos tiras estaduais e vou ficar infernizando a vida deles até que consigam um especialista em grafologia para confirmar o que afirmo. Todos vão começar a ficar de olho em Arnie. Começarão também a ficar de olho em Christine. Vê o quadro?

— Filho, você não me perturba nem um pouquinho.

Seus olhos, contudo, diziam o contrário. Eu o atingia, sem dúvida nenhuma.

— Eu lhe digo que será assim — insisti. — As pessoas são racionais apenas na superfície. Elas atiram sal sobre o ombro esquerdo, quando derrubam o saleiro, não passam debaixo de escadas; acreditam na sobrevivência após a morte. E, cedo ou tarde... provavelmente mais cedo, comigo e Leigh gritando a plenos pulmões... alguém irá transformar aquele seu carro em sucata. Em uma lata de sardinhas. E estou quase apostando que, quando isso acontecer, você irá embora com ele.

— Não aposte nisso! — rosnou ele.

— Estaremos na garagem esta noite — falei. — Se você for bom, poderá acabar conosco. Bem, isso não significará exatamente o fim, mas você terá uma certa pausa para respirar... tempo suficiente para dar o fora da cidade. Entretanto, não creio que seja tão bom, meu chapa. Essa coisa já foi longe demais. Vamos livrar-nos de você!

Arrastei-me de volta para o Duster e entrei no carro. Usei as muletas mais desajeitadamente que de costume, tentando dar-lhe a impressão de estar com maior incapacidade física do que realmente estava. Já o tinha abalado, mencionando as assinaturas; era tempo de dar o fora, antes que a situação piorasse para o meu lado. Havia, no entanto, mais uma coisa. Algo que, sem a menor dúvida, deixaria LeBay frenético.

Puxei a perna esquerda com as mãos, bati a porta e inclinei-me para fora. Fitei-o dentro dos olhos e sorri.

— Ela é grande na cama — falei. — Pena que você nunca vá descobrir.

Com um furioso rugido, ele avançou contra mim. Subi o vidro da janela e apertei o botão que trancava a maçaneta. Então, sem pressa, liguei o motor, enquanto ele batia os punhos enluvados contra o vidro. Seu rosto se contorcia em terrível rosnado. Nada havia de Arnie agora. Nem o menor sinal de Arnie, naquele rosto. Meu amigo se fora. Senti uma angústia sombria, mais profunda do que lágrimas ou medo, mas mantive aquele lento, insultante e canalha sorriso em meu rosto. Depois, vagarosamente, ergui meu dedo médio para o vidro.

— Foda-se, LeBay — falei.

Arranquei, deixando-o parado no pátio, sacudido por aquela fúria incontrolável que seu irmão me contara. Aquilo era o principal com que eu contava, para atraí-lo à garagem essa noite. Ainda veríamos.

 

Petúnia

Algo quente escorria de meus olhos,

Mas encontrei meu bem assim mesmo, aquela noite,

Abracei-a com força e demos nosso último beijo...

— J. Frank Wilson and the Cavaliers

 

Dirigi por uns quatro quarteirões, antes que a reação começasse. Então, fui obrigado a parar. Tremia horrivelmente. Nem mesmo o aquecedor, ligado ao máximo, podia acabar com os tremores. Minha respiração vinha em penosos e pequenos arquejos. Encolhi-me para ver se me aquecia, mas era como se nunca mais me aquecesse, nunca mais. O rosto, aquele rosto horrível, e Arnie sepultado em algum ponto do interior, ele está sempre aqui, dissera Arnie, sempre, exceto quando... o quê? Quando Christine rodava por si mesma, é claro. LeBay não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo. Isto ficava além, mesmo, de seus poderes.

Por fim, fui capaz de recomeçar a dirigir e nem mesmo tive consciência de que estivera chorando, senão quando olhei para o retrovisor e vi os círculos molhados sob meus olhos.

Faltavam quinze para as dez, quando cheguei ao local de trabalho de Johnny Pomberton. Ele era um homem alto, de ombros largos, usava botas verdes de borracha e vestia um grosso blusão de caça, quadriculado em preto e vermelho. Um velho chapéu, com a copa suja de graxa, estava meio de lado na cabeça calva, enquanto ele estudava o céu.

— O rádio disse que vem mais neve por aí. Não tinha certeza de quando você chegaria, rapaz, mas a trouxe para fora assim mesmo. O que acha dela?

Firmei as muletas debaixo dos braços e saí de meu carro. O sal para estradas rangia debaixo das ponteiras de borracha das muletas, mas a caminhada era segura. Estacionado à frente da pilha de lenha de Johnny Pomberton estava um dos veículos de aparência mais estranha que eu já vira na vida. Um cheiro fraco e picante, não exatamente agradável, emanava dele até onde nós estávamos.

Outrora, muito tempo atrás em sua carreira, aquele veículo havia sido um produto GM — ou, pelo menos, assim anunciava o gigantesco escudo em seu nariz. Agora, tornara-se um pouco de tudo. Uma coisa, sem a menor dúvida, continuava sendo: enorme. O topo da grade do radiador ficaria ainda uma cabeça acima de um homem alto. Para trás e acima, a boléia se amoldava como um imenso capacete quadrado. Mais atrás, suportado por dois conjuntos de rodas duplas de cada lado, havia um corpo longo e tubular, como o de um caminhão-tanque de gasolina.

Exceto que eu jamais vira um caminhão-tanque que, como aquele, fosse pintado de rosa-vivo. A palavra PETUNIA havia sido escrita no flanco, em letras góticas com meio metro de altura.

— Não sei o que pensar disso — falei. — Para que é?

Pomberton enfiou um cigarro Camel na boca e o acendeu com um rápido roçar da unha coriácea do polegar na ponta de um fósforo de madeira.

— Chupa-cocô — disse ele.

— O quê? Ele sorriu.

— Vinte mil galões de capacidade — explicou. — Ela é uma piada, é Petúnia.

— Não saquei — respondi, mas começava a entender.

Naquilo tudo havia uma absurda e sombria ironia que Arnie — o antigo Arnie — teria apreciado. Quando telefonara, eu havia perguntado a Pomberton se ele dispunha de um caminhão grande e pesado para alugar — e aquele era, no momento, o maior veículo em seu pátio. Seus quatro caminhões basculantes estavam trabalhando, dois em Libertyville e mais dois em Philly Hill. Pomberton explicara que tinha uma motoniveladora, mas esta sofrera um colapso nervoso pouco depois do Natal. Segundo ele, estava tendo um problema dos diabos para manter seus veículos rodando, desde que a Garagem de Darnell havia sido fechada.

Petúnia era essencialmente um carro-tanque, nem mais, nem menos. Sua função era bombear sistemas de esgoto.

— Quanto é que ela pesa? — perguntei a Pomberton. Ele atirou longe o cigarro.

— Vazia ou cheia de merda? Engoli em seco.

— Como está agora?

Ele jogou a cabeça para trás e riu.

— Acha que eu ia alugar um veículo carregado? — Ele pronunciou veícu cargado. — Nada disso, ela está vazia, seca como um osso, e toda lavada com mangueira. Pode apostar. Ainda um pouco cheirosa, não?

Eu funguei. Sim, estava cheirosa, certamente.

— Podia ser muito pior — falei. — Imagino.

— Claro — disse Pomberton. — Fique certo disso. O pedigree original da velha Petúnia se perdeu há muito, mas em seu registro atual diz que pesa nove toneladas, PBV.

— O que significa isso?

— Peso bruto do veículo — disse ele. — Se eles param a gente na divisa do Estado, e o veículo pesa mais de nove toneladas, a CCI — Comissão de Comércio Interestadual — fica preocupada. Vazia, ela provavelmente pesa por aí, não sei bem, coisa de quatro a quatro e meia toneladas. Tem cinco marchas, com um diferencial de duas velocidades, o que dá a você dez marchas para diante... se puder afundar um pedal.

Ele analisou minhas muletas de alto a baixo, com expressão duvidosa, e acendeu outro cigarro.

— Você pode pisar um pedal?

— Claro — falei, com ar sério. — Se não for muito duro. Muito bem, mas por quanto tempo? Essa era a questão.

— Bem, isso é lá com você e não quero me meter. — Ele me fitou com interesse. — Vou lhe dar dez por cento de desconto, se pagar em dinheiro, porque em geral não explico as transações em dinheiro a meu tio favorito.

Remexi minha carteira e encontrei quatro notas de vinte e quatro de dez.

— Quanto foi que disse sobre o aluguel de um dia?

— Que tal acha noventa pratas?

Entreguei noventa a ele. Viera preparado para pagar cento e vinte.

— E o que vai fazer com aquele seu Duster? Aquilo nem me passara ainda pela cabeça.

— Será que não posso deixá-lo aqui? Só por hoje?

— Claro — disse Pomberton. — Pode deixar a semana inteira, que para mim não faz diferença. De qualquer modo, é melhor botar o carro nos fundos. Deixe também as chaves, para o caso de precisar manobrá-lo.

Manobrei o Duster e o levei para os fundos, onde havia uma selva de canibalizadas peças de caminhão, apontando fora da neve alta, como ossos sob areia branca. Levei quase dez minutos para retornar, caminhando de muletas. Podia ter vindo mais depressa, mas não queria abusar da perna esquerda. Preferia poupá-la para a embreagem de Petúnia.

Aproximei-me de Petúnia, sentindo o medo enovelar-se em meu estômago, como uma pequena nuvem negra. Não tinha dúvidas de que ela conseguiria deter Christine — se esta realmente aparecesse à noite, na Garagem de Darnell, e se eu conseguisse dirigir o maldito veículo. Nunca dirigira nada tão grande em minha vida, embora no verão passado tivesse passado algumas horas em um bulldozer, e Brad Jeffries me deixasse experimentar o caminhão de carga umas duas vezes, terminado o trabalho do dia.

Pomberton ficou parado, em seu blusão xadrez, as mãos enfiadas fundo nos bolsos das calças de trabalho, espiando-me com analisadores olhos. Cheguei até o lado do motorista, agarrei a maçaneta e escorreguei um pouco. Ele deu um ou dois passos em minha direção.

— Pode deixar, eu me arranjo.

— Certo — disse ele.

Enfiei novamente a muleta debaixo do braço, a respiração congelando-se em rápidos e pequenos haustos, e abri a porta. Segurando-me à maçaneta interna com a mão esquerda e equilibrando-me na perna direita como uma cegonha, atirei as muletas dentro da cabine e depois as segui. As chaves estavam na ignição, o sistema de mudança impresso na alavanca. Bati a porta, empurrei o pedal com a perna esquerda — sem muita dor, até ali, tudo bem — e botei Petúnia em marcha. Seu motor soava como um campo cheio de carros de corrida, em Philly Plains.

Pomberton chegou mais perto.

— É um pouco barulhenta, não? — gritou.

— Se é! — gritei de volta.

— Sabe de uma coisa? — berrou ele. — Duvido como o diabo que você consiga um I em sua licença de motorista, rapaz!

Um I na licença para dirigir significa que o Estado testou a gente em grandes caminhões. Eu tive um A para motocicletas (para grande desgosto de minha mãe), mas não um I.

Sorri para ele.

— Você não checou, porque eu parecia de confiança.

— Claro! — ele sorriu também.

Acelerei um pouco. Petúnia deu dois altíssimos estouros, que eram quase tão barulhentos como morteiros.

— Incomoda-se se eu perguntar para que quer o caminhão? Sei que não é da minha conta, claro.

— Preciso dele para fazer justamente o que é sua função.

— Como é? Não entendi.

— Quero me livrar de um pouco de merda — respondi.

 

Fiquei um pouco assustado, na pequena ladeira que partia do local de trabalho de Pomberton, mas, mesmo inteiramente vazio, aquele grande veículo rodava bem. Eu me sentia incrivelmente alto — capaz de olhar de cima para os tetos dos carros que passavam por mim. Dirigir pelo centro comercial de Libertyville me deixava tão em evidência como um filhote de baleia nadando em um tanque para peixinhos dourados. Não entendia por que o bombeador de esgotos de Pomberton tinha sido pintado naquele rosa tão vivo. Isso me valeu alguns olhares curiosos.

Minha perna esquerda começava a doer um pouco, mas manejar o sistema de mudança de Petúnia — com o qual não estava familiarizado —, naquele trânsito de pare-e-siga, me manteve a mente alheia a isso. Uma dor mais surpreendente se desenvolvia em meus ombros e pelo peito; originava-se, simplesmente, de dirigir Petúnia através do trânsito. O veículo não era equipado com direção hidráulica, de maneira que o volante pesava realmente.

Dobrei da Rua Principal para a Walnutt, e entrei no pátio de estacionamento, atrás da Western Auto. Desci cautelosamente da cabine de Petúnia, bati sua porta (a esta altura, meu nariz estava quase acostumado ao fraco odor que ela desprendia), ajeitei as muletas sob as axilas e caminhei para a entrada dos fundos.

Tirei as três chaves da garagem que estavam no chaveiro de Jimmy e as entreguei na seção de confecção de chaves. Por um e oitenta, consegui duas cópias de cada. Guardei as chaves novas em um bolso e o chaveiro de Jimmy em outro, já com suas chaves originais. Saí pela porta da frente para a Rua Principal e fui até o Libertyville Lunch, onde havia telefone público. Lá no alto, o céu ficara mais cinzento e carregado do que nunca. Pomberton estava certo. Haveria neve.

Depois que entrei, pedi um café com creme e consegui troco para a cabine telefônica. Entrei na cabine, fechei a porta desajeitadamente e liguei para Leigh. Ela respondeu ao primeiro toque.

— Dennis! Onde está você?

— No Libertyville Lunch. Está sozinha?

— Estou. Papai foi trabalhar, e mamãe fazer compras na mercearia. Dennis, eu... eu quase contei tudo a ela. Comecei a pensar em quando ela fosse estacionar na A&P, depois atravessando o pátio de estacionamento e... Sei lá, o que você disse sobre Arnie ter que deixar a cidade parecia não ter importância. Claro que faz sentido, mas parecia não importar. Sabe do que estou falando, não?

— Sei — respondi, pensando em como dera carona a Ellie na véspera, quando ela fora ao Tom's, embora minha perna estivesse doendo como o diabo. — Sei exatamente o que quer dizer.

— Não posso continuar assim, Dennis. Vou acabar biruta. Ainda está querendo experimentar a sua idéia?

— Ainda — falei. — Deixe um bilhete para sua mãe, Leigh. Diga a ela que precisou sair por algum tempo. Não explique mais nada. Se você não chegar a tempo do jantar, seus pais certamente telefonarão para minha casa. Talvez eles decidam que nós dois fugimos.

— Até que não seria má idéia — disse ela, e riu de um jeito que me deixou arrepiado. — Vou até aí.

— Ei, mais uma coisa. Existe algum analgésico em sua casa? Darvon? Alguma coisa assim?

— Sobrou um pouco de Darvon, da vez que papai distendeu um músculo nas costas — disse ela. — É a sua perna, Dennis?

— Está doendo um pouco.

— Um pouco, como?

— Está tudo bem.

— Nada de muito grave?

— Tudo legal. Aliás, depois desta noite, darei a ela um bom repouso, certo?

— Certo.

— Venha para cá, o mais depressa que puder.

 

Ela chegou quando eu pedia uma segunda xícara de café. Usava uma jaqueta de pele com franjas e jeans desbotados. Os jeans estavam enfiados em botas surradas. Ela conseguia parecer sexy e prática ao mesmo tempo. Várias cabeças se viraram quando entrou.

— Está muito bonita — falei e beijei-lhe a têmpora.

Ela me entregou um frasco de cápsulas cinzentas e rosadas.

— Pois você não me parece muito animado, Dennis. Tome.

A garçonete, uma mulher de seus cinqüenta anos, com cabelos grisalhos, chegou com meu café. A xícara assentou placidamente, uma ilha em uma pequena poça marrom no pires.

— Por que não estão na escola, garotos? — perguntou ela.

— Tivemos uma dispensa especial — respondi sério. Ela me encarou com firmeza.

— Café, por favor — pediu Leigh, tirando as luvas. Quando a garçonete se afastou do balcão, com uma audível fungadela, Leigh se inclinou para mim e disse: — Não seria engraçado se fôssemos apanhados em flagrante pelo inspetor de alunos?

— Hilariante — falei.

Pensei que, apesar da radiância que o frio lhe emprestara, Leigh não estava parecendo tão bem assim. Aliás, creio que nenhum de nós ostentaria sua melhor aparência enquanto aquilo tudo não terminasse. Havia pequenas linhas de tensão em torno de seus olhos, como se ela houvesse dormido mal à noite.

— Muito bem, o que faremos?

— Logo sairemos daqui — falei. — Espere até ver sua carruagem, madame.

 

— Meu Deus! — exclamou Leigh, olhando para a magnificência rosa viva de Petúnia. Seu vulto agigantava-se silenciosamente no pátio de estacionamento da Western Auto, miniaturizando um furgão Chevrolet de um lado e um Volkswagen do outro. — O que é isto?

— Um chupa-cocô — respondi impassível.

Ela olhou para mim, perplexa... mas então se dobrou em um acesso de gargalhadas histéricas. Era bom vê-la rir assim. Quando lhe havia contado meu encontro com Arnie, aquela manhã, no pátio de estacionamento dos alunos, as linhas de tensão em seu rosto ficaram mais e mais tensas e os lábios haviam perdido a cor, tanto os comprimira.

— Bem, parece um tanto ridículo — falei olhando para Petúnia.

— Um comentário bastante suave—replicou ela, ainda rindo e soluçando —, mas fará o trabalho, se é que alguma coisa o fará. É, acredito que dará conta do recado. Aliás... está até apropriada, não é?

— Foi o que também pensei — concordei.

— Bem, vamos entrar — disse ela. — Estou com frio. Entrou na cabine à minha frente, franzindo o nariz.

— Argh! — exclamou. Eu sorri.

— Vai acabar se acostumando com o cheiro — falei.

Estendi-lhe minhas muletas e escalei penosamente a subida até o volante. A dor em minha perna esquerda amenizara para o antigo latejar monótono, substituindo as séries de agudas ferroadas de antes. Eu havia tomado dois Darvon no restaurante.

— Acha que sua perna vai agüentar, Dennis?

— Terá que agüentar — respondi e bati a porta.

 

Christine

Como falei pro

meu amigo, porque estou

sempre falando: John, eu

disse, mas seu nome era

outro, que escuridão em

volta da gente, o que

podemos fazer contra

isso, ou melhor, a gente

precisa comprar um carro grande,

dirija, ele disse, pelo

amor de Deus, vê lá

por onde tu tá indo.

— Robert Creeley

 

Eram mais ou menos onze e meia quando deixamos o pátio de estacionamento da Western Auto. Os primeiros flocos de neve começavam a cair. Dirigi pela cidade, rumo à casa dos Sykes, fazendo a mudança com mais facilidade, agora que o Darvon começava a agir.

A casa estava às escuras e fechada. A Sra. Sykes devia estar no trabalho, e Jimmy talvez recebendo sua pensão do fundo de desemprego, ou coisa assim. Leigh encontrou um envelope amassado em sua bolsa, riscou seu endereço sobrescritado e escreveu Jimmy Sykes à frente, em sua bela e inclinada caligrafia. Colocou o chaveiro de Jimmy dentro do envelope, dobrou a aba e o enfiou pela fenda para cartas, na porta da frente. Enquanto fazia isso, deixei Petúnia em ponto morto, dando descanso à minha perna.

— E agora? — perguntou ela, tornando a entrar na cabine.

— Falta um telefonema — respondi.

 

Encontrei uma cabine telefônica perto do cruzamento da JFK Drive com Crescent Avenue. Desci cautelosamente da boléia do caminhão, segurando-me até que Leigh me passasse as muletas. Então, caminhei com cuidado para o telefone, através da neve que espessava. Vista pelo vidro sujo da cabine telefônica, além da neve que caía em redemoinhos, Petúnia parecia um estranho dinossauro cor-de-rosa.

Liguei para a Universidade Horlicks e a telefonista transmitiu a ligação para o gabinete de Michael. Arnie me dissera, certa vez, que seu pai tinha preguiça de deixar o gabinete para almoçar e que preferia comer lá mesmo, levando o almoço em um saco de papel. Então, quando a chamada foi atendida ao segundo toque, eu o abençoei pela informação.

— Dennis! Tentei pegá-lo em casa! Sua mãe disse...

— Para onde ele vai?

Senti um frio no estômago. Só então — naquele exato momento — é que tudo começava a parecer inteiramente real para mim e fiquei pensando que a louca confrontação no pátio do colégio caminhava para um desfecho.

— Como soube que ele ia viajar? Tem que me contar e...

— Agora não há tempo para perguntas e, de qualquer modo, eu não saberia responder a nenhuma. Para onde ele vai?

A voz de Michael soou lentamente:

— Ele e Regina irão à Penn State hoje à tarde, logo após as aulas. Arnie telefonou para ela de manhã, perguntando se podia acompanhá-lo. Disse que... — Michael fez uma pausa para pensar. — Disse que caíra em si subitamente. Que pensou nisso hoje cedo, quando ia para o colégio, foi uma idéia repentina, de que poderia perder a universidade se não tomasse providências definitivas sobre isso. Já decidira que a Penn State era a melhor, e queria que Regina o acompanhasse, para falar com o deão da Faculdade de Artes e Ciências, bem como com algumas pessoas dos Departamentos de História e Filosofia.

A cabine estava fria. Minhas mãos começavam a entorpecer. Leigh estava lá no alto, na casa de navegação de Petúnia, espiando ansiosamente para mim. Você sabe como arranjar as coisas, Arnie, pensei. É bem um jogador de xadrez. Ele manipulava a mãe, puxando os cordões e fazendo-a dançar. Senti certa pena dela, mas não tanta como deveria ter sentido. Quantas vezes Regina havia sido a manipuladora, fazendo outros dançarem em seu palco, como em um teatrinho de marionetes? Agora, enquanto ela estava meio angustiada, com medo e vergonha, LeBay acenara diante de seus olhos com uma coisa — a única — que, sem sombra de dúvida, a faria sair correndo: a possibilidade de que a situação pudesse voltar ao normal.

— E isto faz sentido para você? — perguntei a Michael.

— É claro que não! — explodiu ele. — Também não faria sentido para ela, se Regina estivesse com as idéias em ordem. Do jeito como são hoje as admissões à faculdade, a Penn State só o matricularia em julho, se ele tivesse dinheiro para a anuidade e os pontos suficientes exigidos para sua entrada. Arnie tem as duas coisas. Ele falava como se estivéssemos nos anos 50 e não nos 70.

— Quando é que eles partem?

— Ela irá encontrá-lo no colégio, após a sexta aula. Pelo menos, foi o que disse, quando telefonou para mim. Arnie pedirá dispensa das outras aulas.

Aquilo significava que eles estariam deixando Libertyville em menos de uma hora e meia. Portanto, fiz a última pergunta, embora já soubesse a resposta:

— E eles não irão em Christine, certo?

— Certo. Irão na camioneta. Regina estava delirante de alegria, Dennis. Delirante. Isso de Arnie querer ir com ela a Penn State... bem, parece coisa inspirada. Nem cavalos selvagens impediriam Regina de aproveitar semelhante chance. O que está acontecendo, Dennis? Por favor!

— Contarei tudo amanhã — respondi. — É uma promessa. Palavra. Enquanto isso, faça uma coisa para mim. Pode ser um assunto de vida e morte para minha família e a família de Leigh Cabot. Você...

— Oh, meu Deus! — exclamou ele, em voz rouca. Falava no tom do homem que acaba de entrever a luz. — Ele esteve fora, todas as vezes... exceto quando o rapaz Welch foi morto. Então, Arnie estava... Regina o viu dormindo e tenho certeza de que não mentia sobre isso... Dennis, quem tem dirigido aquele carro? Quem está usando Christine para matar pessoas, quando Arnie não está aqui?

Quase lhe contei, mas o frio era intenso na cabine telefônica e minha perna começava a doer novamente. Por outro lado, minha resposta suscitaria perguntas, dúzias de perguntas. No fim, talvez a única coisa que eu conseguisse fosse sua recusa em acreditar.

— Ouça, Michael — falei, com a maior circunspecção. Por um estranho momento, senti-me como Mister Rogers, na TV. Um grande carro dos anos 50 irá liquidá-los, moças e rapazes... Pode soletrar Christine? Eu sabia que poderia! — Você tem que ligar para meu pai e para o pai de Leigh. Faça com que as duas famílias se reúnam na casa de Leigh. — Eu estava pensando em tijolos, bons e sólidos tijolos. — Creio que você devia ir para lá também, Michael. Fiquem todos juntos, até que eu e Leigh cheguemos lá ou telefonemos. Tem que dizer a eles, de minha parte e de Leigh: não devem sair de dentro de casa, depois de... — Fiz os cálculos: se Arnie e Regina deixassem o ginásio às duas, quanto tempo demoraria para que o álibi dele fosse a toda prova? Depois de quatro horas desta tarde. Depois das quatro, nenhum de vocês deve ir à rua. A qualquer rua. Em hipótese alguma.

— Dennis, eu não posso, simplesmente...

— Tem que poder — falei. — Faça tudo para convencer meu velho e então os dois procurem convencer os Cabots. E fique longe de Christine, Michael.

— Eles partirão diretamente da escola — disse Michael. — Arnie acha que o carro poderá ficar no pátio de estacionamento dos alunos.

Eu podia sentir novamente em sua voz a certeza da mentira. Depois do que acontecera no outono passado, Arnie seria tão capaz de abandonar Christine em um estacionamento público, como aparecer nu para a aula de Cálculos.

— Está bem — respondi —, mas se, por acaso, você olhar pela janela e a vir na entrada para carros, fique longe. Entendeu?

— Entendi, mas...

— Telefone primeiro para meu pai. Prometa.

— Está bem, eu prometo, Dennis, mas...

— Obrigado, Michael.

Desliguei. Minhas mãos e os pés estavam dormentes de frio, mas eu tinha a testa pegajosa de suor. Empurrei a porta da cabine telefônica, abrindo-a com a ponteira de uma muleta, e caminhei penosamente até Petúnia.

— O que disse ele? — perguntou Leigh. — Prometeu?

— Sim — respondi. — Prometeu, e meu pai fará com que fiquem todos juntos. Tenho certeza absoluta disso. Se Christine for atrás de alguém esta noite, irá atrás de nós.

— Certo — disse ela. — Ainda bem.

Liguei o motor de Petúnia e saímos dali. O palco estava montado — da melhor maneira que eu pudera, afinal — e agora nada mais podia fazer, senão esperar e ver o que aconteceria.

 

Rodamos através da cidade em direção à Garagem de Darnell, por entre uma neve ligeira que caía insistentemente. Manobrei para o pátio de estacionamento, pouco depois de uma hora daquela tarde. A edificação comprida e desajeitada, com suas laterais de aço corrugado, estava inteiramente deserta, e as rodas enormes de Petúnia afundaram-se na neve que se amontoara, até pararmos diante da porta principal. Os avisos pregados àquela porta ainda eram os mesmos de muito antes, daquela longínqua tarde de agosto, quando Arnie levou Christine para lá, pela primeira vez: POUPE SEU DINHEIRO! SEU KNOW-HOW, NOSSAS FERRAMENTAS! Vaga na Garagem, Alugada por Semana, Mês ou Ano e BUZINE PARA ENTRAR, mas o que realmente significava alguma coisa era o novo aviso, contra a janela escura do escritório: FECHADO ATÉ SEGUNDA ORDEM. A um canto da fachada nevada, havia um velho Mustang amassado, com aquelas portas adoradas pelos fanáticos dos anos 60. Agora, jazia silencioso e inútil, sob uma roupagem de neve.

— Isso dá calafrios — disse Leigh, em voz baixa.

— Também acho. — Entreguei-lhe as chaves que mandara fazer na Western Auto, aquela manhã.

— Uma delas deve dar.

Ela pegou as chaves, saiu e caminhou até a porta. Fiquei de olho nos dois espelhos retrovisores, enquanto Leigh manipulava a fechadura, mas nenhum de nós parecia estar chamando uma atenção indevida. Suponho que haja certa psicologia envolvida quando se vê um veículo tão grande e evidente

— isso torna difícil de engolir a idéia de algo clandestino ou ilegal.

Leigh deu um puxão súbito na porta, levantou-se, tornou a puxar e então voltou ao caminhão.

— Consegui girar a chave, mas não consigo levantar a porta — explicou. — Acho que ficou congelada no chão, grudada pela neve.

Era só o que faltava, pensei. Formidável. Nada daquilo seria conseguido com facilidade.

— Sinto muito, Dennis — disse ela, parecendo ler em meu rosto.

— Ora, está tudo bem — falei.

Abri a porta do motorista e executei outra de minhas cômicas saídas deslizantes.

— Tome cuidado — disse ela, ansiosa, caminhando a meu lado, com o braço em minha cintura, enquanto eu caminhava cautelosamente sobre as muletas, através da neve até a porta. — Lembre-se de sua perna.

— Sim, mamãe — respondi, sorrindo um pouco.

Fiquei de lado, diante da porta, de maneira a abaixar-me para a direita, mantendo o peso fora da perna em más condições. Inclinado para a neve, com a perna esquerda no ar, a mão esquerda aferrada às muletas, a direita agarrando a maçaneta da porta de aço de enrolar, eu devia parecer um contorcionista de circo. Puxei, e senti a porta ceder um pouco... mas não o suficiente. Leigh tinha razão: ela congelara bastante na parte inferior. Era possível ouvir-se o gelo estalando.

— Agarre também e ajude-me — pedi.

Leigh colocou as duas mãos sobre a minha direita e puxamos juntos. O som estalante ficou um pouco mais alto, porém o gelo ainda não cedera de todo, na base da porta.

— Quase conseguimos — falei. Minha perna direita latejava dolorosamente e o suor me escorria pelo rosto. — Vou contar. Quando disser três, dê tudo que puder. Certo?

— Certo — disse ela.

— Um... dois... três!

Aconteceu que a porta ficou livre do gelo de repente, com absurda, incrível facilidade. Pareceu voar para cima em seus trilhos e cambaleei para trás, minhas muletas escapando. A perna esquerda se dobrou sob meu corpo e caí sobre ela. A neve alta amaciou um pouco a queda, mas ainda assim senti a dor, uma espécie de relâmpago prateado, que pareceu disparar para cima, partindo da coxa e fazendo todo o trajeto até as têmporas, antes de retornar ao ponto inicial. Trinquei os dentes para não gritar e só a custo me contive. Então, Leigh ficou de joelhos na neve, a meu lado, o braço em torno de meus ombros.

— Dennis! Você está bem?

— Ajude-me a ficar em pé.

Ela precisou fazer a maior parte do esforço e ambos estávamos ofegando como corredores quando consegui novamente levantar-me e ajeitar as muletas debaixo dos braços. Agora, eu precisava realmente delas. A perna esquerda me torturava.

— Você não conseguirá pisar na embreagem daquele caminhão, Dennis. Não agora...

— Conseguirei. Ajude-me a voltar, Leigh.

— Você está branco como um fantasma! Acho que devemos procurar um médico.

— Negativo. Ajude-me a voltar.

— Dennis...!

— Leigh, ajude-me a voltar!

Fizemos a caminhada de volta até Petúnia, centímetro por centímetro, deixando para trás pegadas arrastadas e desajeitadas sobre a neve. Estendi os braços, aferrei-me ao volante e icei o corpo, roçando de leve no estribo com a perna direita... e ainda assim, no fim, Leigh teve que ficar atrás, colocar as duas mãos em meus fundilhos e empurrar para cima. Afinal me vi ao volante de Petúnia, acalorado e tremendo de dor. Minha camisa estava molhada de neve derretida e suor. Até aquele dia de janeiro de 1979, eu ignorava que dor em certo grau pode fazer-nos suar.

Tentei empurrar a embreagem com a perna esquerda e aquele raio prateado de dor surgiu novamente, fazendo-me jogar a cabeça para trás e trincar os dentes, até que diminuiu um pouco.

— Vou até o fim da rua, encontrar um telefone e chamar um médico, Dennis. — O rosto de Leigh estava pálido e assustado. — Você fraturou a perna novamente, não foi? Quando caiu?

— Não sei — respondi — mas você não fará nada disso, Leigh. Serão os seus pais ou os meus, se não terminarmos com isso agora. Você sabe que é assim. LeBay não vai parar. Ele tem um desejo de vingança superdesenvolvido. Não vamos parar agora!

— Você não pode dirigir isso!— gemeu ela.

Ergueu os olhos para a boléia, agora chorando. O capuz de sua jaqueta havia caído para trás, em nosso esforço mútuo para colocar-me no assento do motorista, onde agora me encontrava, em total inutilidade. Eu podia ver um chuveiro de flocos de neve em seu cabelo louro-escuro.

— Vá lá dentro — falei. — Veja se encontra uma vassoura ou um cabo comprido de madeira.

— De que vai adiantar? — perguntou ela, chorando ainda mais.

— Consiga o que estou pedindo, e então veremos.

Ela penetrou na goela escura da porta aberta e desapareceu de vista. Apalpei a perna e fiquei gelado de terror. Se realmente tornara a fraturá-la, havia uma forte possibilidade de ficar usando um calcanhar artificial pelo resto da vida. Entretanto, não sobraria tanta vida assim, caso não pudéssemos dar um fim em Christine. Bem, aquela idéia nada tinha de animadora.

Leigh voltou, com uma vassoura de cerdas inclinadas.

— Acha que serve? — perguntou.

— Para nos levar até lá dentro, sim. Então, veremos se encontramos coisa melhor.

O cabo era do tipo de rosca. Segurei-o, torci-o e joguei para um lado a extremidade com as cerdas. Mantendo-o na mão esquerda, ao longo do lado do corpo — apenas mais uma maldita muleta —, empurrei a embreagem com ele. Conseguiu firmar-se por um instante no pedal, depois escorregou.

A embreagem saltou de volta. O topo do cabo quase me bate na boca. Vai indo bem, Guilder. Enfim, não havia outro jeito.

— Vamos, entre — falei.

— Dennis, você tem certeza?

— Tanta quanto posso ter — respondi.

Ela me olhou por um momento, depois assentiu.

— Está bem.

Deu a volta para o lado do passageiro e entrou. Bati minha porta, apertei a embreagem de Petúnia com o cabo de vassoura e engrenei em primeira. Eu tinha a embreagem pressionada pela metade, e Petúnia começava a rodar para diante, quando o cabo de vassoura tornou a escorregar. O tanque-séptico rodou para dentro da Garagem de Darnell com uma série de corcoveios bruscos e, quando afundei o pé direito no freio, o motor afogou. Estávamos com a maior parte do veículo no interior.

— Preciso de alguma coisa com uma base maior, Leigh — falei. — Este cabo de vassoura não funciona.

— Vou ver o que encontro.

Ela saiu e começou a caminhar pelos cantos da garagem, procurando. Olhei em torno. Dava calafrios, Leigh tinha dito, e estava com razão. Os únicos carros remanescentes eram quatro ou cinco velhos soldados, feridos tão gravemente que ninguém se preocupou em reclamá-los. Todos os espaços em diagonal que restavam, com seus números em tinta branca, estavam vazios. Olhei para o boxe vinte e depois desviei os olhos.

As altas prateleiras de pneus também estavam quase vazias. Sobravam alguns, carecas, colocados uns sobre os outros, como gigantescos biscoitos escurecidos pelo fogo, mas era tudo. Um dos dois elevadores estava parcialmente erguido, com um aro de roda preso sob ele. O diagrama para alinhamento das rodas dianteiras, na parede da direita, reluzia fracamente em branco e vermelho, os dois alvos para os faróis dianteiros assemelhando-se a olhos injetados. E sombras, sombras por toda parte. Mais acima, aquecedores em forma de enormes caixas apontavam suas persianas para cá e para lá, como sinistros bastões enferrujados.

Tudo ali dentro dava a impressão de um lugar morto.

Leigh usara outra das chaves de Jimmy para abrir o escritório de Will. Eu podia vê-la andando de um lado para outro, através da janela que Will usava para vigiar seus fregueses... aqueles "Zés" trabalhadores que tinham de manter seus carros rodando — para que pudessem blablablá. Ela apertou alguns interruptores e as luzes fluorescentes do teto se acenderam em gélidas fileiras brancas. Isto significava que a companhia de eletricidade não havia cortado o fornecimento. Eu precisava fazê-la apagar as luzes novamente — não podíamos nos arriscar a chamar a atenção — mas, pelo menos, teríamos algum calor.

Ela abriu outra porta e desapareceu de vista temporariamente. Olhei para meu relógio. Era uma e meia da tarde.

Leigh voltou, e a vi segurando um escovão de cabo, com uma grande esponja amarela na extremidade inferior.

— Acha que pode servir?

— Está perfeito — falei. — Entre, garota. Vamos trabalhar.

Ela tornou a subir para a boléia, e empurrei o pedal da embreagem, usando o esfregão.

— Muito melhor — falei. — Onde o encontrou?

— No banheiro — disse ela, e franziu o nariz.

— A coisa estava ruim, lá dentro?

— Imundo, fedendo a charuto e com uma pilha de livros bolorentos a um canto. Do tipo vendido naquelas lojinhas ordinárias.

Então, era isso o que Darnell deixara para trás, pensei: uma garagem vazia, uma pilha de livros pornográficos e um fedor-fantasma de charutos. Tornei a sentir frio e pensei que, por minha vontade, veria aquele lugar nivelado por um buildozer, e depois aterrado. Não podia afastar a impressão de que era uma espécie de sepultura sem marca — o local onde LeBay e Christine haviam matado a mente de meu amigo e se apossado de sua vida.

— Mal posso esperar para me ver fora daqui — disse Leigh, olhando nervosamente em torno.

— É mesmo? Pois eu começo a gostar. Estava pensando em me mudar para cá. — Acariciei-lhe o ombro e fitei seus olhos profundamente. — Podemos iniciar uma família — sussurrei.

Ela ergueu o punho fechado.

— Quer que eu comece com um nariz sangrando?

— Não, de modo nenhum. Afinal, eu também mal posso esperar para dar o fora daqui. Dirigi o resto que faltava de Petúnia para dentro da garagem. Podia manejar bastante bem a embreagem, usando o esfregão... em primeira pelo menos. O cabo tinha uma tendência e envergar e eu teria preferido algo mais grosso, mas aquilo tinha que servir, até podermos encontrar qualquer coisa melhor.

— Precisamos apagar as luzes novamente — falei, desligando o motor. — As pessoas erradas poderiam vê-las.

Leigh saiu e as apagou, enquanto eu manobrava Petúnia em um amplo círculo, para então dar marcha à ré cautelosamente, até quase encostar a traseira na janela entre a garagem e o escritório de Darnell. Agora, o enorme focinho do veículo apontava diretamente para a porta aberta da fachada, pela qual havíamos entrado.

Com as luzes apagadas, as sombras apoderaram-se de tudo novamente. A claridade que vinha pela porta aberta era fraca, amortecida pela neve, alvacenta e sem força. Espalhava-se pelo concreto rachado e sujo de graxa, como uma cunha, morrendo simplesmente a meio caminho através do piso.

— Estou com frio, Dennis — gritou Leigh, do escritório de Darnell. — Ele marcou os interruptores para o aquecimento. Posso ligar?

— Vá em frente! — gritei para ela.

Pouco depois, a garagem sussurrava com o som dos aquecedores. Recostei-me no assento, passando de leve as mãos sobre a perna esquerda. O tecido de meu jeans se estirava maciamente sobre a coxa, liso e sem uma ruga. A filha da mãe estava inchando. E doía. Céus, como doía!

Leigh voltou e subiu para meu lado. Repetiu o quanto era terrível o meu aspecto e, por algum motivo, minha mente se rebelou, levando-me a evocar a tarde em que Arnie levara Christine para a garagem, o marido da rainha do be-bop gritando para ele tirar aquele lixo da frente de sua casa e Arnie me dizendo que o cara era um fanático por Robert Deadford. Recordei como havíamos rido escondido. Fechei os olhos, contra a ferroada das lágrimas.

 

Sem mais nada a fazer além de esperar, o tempo custou a passar. O relógio marcou quinze para as duas, depois duas horas. Lá fora, a neve se intensificara um pouco, mas não demasiado. Leigh desceu da boléia e apertou o botão que fazia descer a porta da entrada. Aquilo tornou o interior ainda mais sombrio.

Ela voltou, tornou a subir e comentou:

— Há um dispositivo engraçado, ao lado da porta, dá para ver? Parece o dispositivo eletrônico de abrir garagem que nós tínhamos, quando moramos em Weston.

Sentei-me ereto, repentinamente.

— Oh! — gemi. — Meu Deus!

— O que foi?

— Então é isso! Um dispositivo para abrir a porta da garagem! E há um transmissor, um dispositivo semelhante, em Christine. Arnie o mencionou para mim, na noite de Ação de Graças. Você tem que quebrá-lo, Leigh. Use o cabo do esfregão.

Assim, ela tornou a descer, ergueu o cabo do esfregão e ficou abaixo do dispositivo da célula fotoelétrica, olhando para cima e batendo nele com o cabo. Parecia uma mulher tentando matar um besouro quase no teto. Afinal, foi recompensada com um estalido de plástico e trincar de vidro.

Ela retornou lentamente, deixou o esfregão a um lado e subiu para a boléia.

— Não acha que era tempo de me contar o que tem em mente, Dennis?

— O que quer dizer?

— Você sabe — disse ela, e apontou para a porta fechada. Cinco janelas quadradas, em uma fila de três quartos de sua altura, para cima, permitiam a entrada de uma claridade mínima, através dos vidros sujos. — Quando escurecer, você pretende abrir a porta outra vez, não é?

Eu admiti. Em si, a porta era de madeira, mas reforçada com tiras articuladas de aço, como a porta interna de um elevador antigo. Permitiria a entrada de Christine mas, uma vez fechada, o carro não conseguiria despedaçá-la, para sair novamente. Pelo menos, era o que eu esperava. Senti um arrepio, ao pensar em como havíamos deixado passar o detalhe do elevador eletrônico da porta.

Abrir a porta ao escurecer, sim. Deixar Christine entrar, sim. Fechar a porta novamente. Então, eu usaria Petúnia para destruí-la até a morte.

— Está bem — disse Leigh. — Uma armadilha. No entanto, quando ela... quando ele entrar, como fará para tornar a fechar a porta e manter o carro preso aqui dentro? Talvez haja um botão no escritório de Darnell, mas eu não o vi.

— Que me conste, lá não há nenhum — falei. — Portanto, você terá que ficar junto à porta, para apertar o botão que a fecha. — Apontei. O botão manual ficava ao lado direito da porta, meio metro abaixo da caixa do dispositivo elétrico. — Você se encostará à parede, fora de vista. Quando Christine entrar... sempre se supondo que entre... você apertará o botão que faz a porta descer e ficará de lado rapidamente. A porta desce. E, bam! A ratoeira está fechada.

Leigh ficou séria.

— Fechada para Christine, mas para você também. Nas palavras do imortal Wordsworth, um erro.

— Isso é de Coleridge, não de Wordsworth. Não há outro jeito, Leigh. Se você ainda estiver lá, quando aquela porta descer, Christine irá atropelá-la. Mesmo que houvesse um botão no escritório de Darnell, bem... Você viu no jornal o que aconteceu com a parede lateral da casa dele.

O rosto dela era obstinado.

— Estacione perto do interruptor. Então, quando ela entrar, eu estico o braço pela janela e aperto o botão que baixa a porta.

— Se estacionar lá, ficarei à vista. E se este tanque ficar à vista, Christine não entrará.

— Não estou gostando disso! — explodiu Leigh. — Não quero deixá-lo sozinho! É como se você me enganasse!

De certa forma, era justamente o que eu tinha feito e, por mais válido que fosse, hoje não faria a mesma coisa. Naquela época, entretanto, eu tinha dezoito anos, e não há maior porco-chauvinista do que um porco-chauvinista de dezoito anos. Passei um braço por seus ombros. Ela resistiu por um momento, rígida, mas depois amoleceu.

— Não há outra maneira — falei. — Se não fosse por minha perna... ou se você pudesse dirigir um veículo de mudança padronizada...

Dei de ombros.

— Tenho medo por você, Dennis. Eu quero ajudar.

— Já está ajudando de sobra. Você é quem ficará realmente em perigo, Leigh... Estará fora da boléia, no chão, quando ela entrar. E eu vou ficar sentado aqui dentro, para esfacelar a cadela, fazê-la em pedaços.

— Só espero que seja mesmo assim — disse ela. Pousou a cabeça em meu ombro. Acariciei-lhe os cabelos. Esperamos.

Em imaginação, eu podia ver Arnie saindo do edifício principal do Ginásio de Libertyville, com os livros debaixo do braço. Via Regina esperando por ele, na camioneta dos Cunningham, radiante de felicidade. Arnie sorria remotamente e se submetia ao seu abraço. Arnie, você tomou a decisão acertada... não sabe o quanto eu e seu pai estamos aliviados, o quanto ficamos felizes. Sim, mamãe. Quer dirigir, querido? Não, dirija você, mamãe. Está bem.

Eles dois partiriam para a Penn State, através da neve ligeira, com Regina dirigindo, Arnie no banco do passageiro, as mãos entrelaçadas rigidamente sobre o colo, o rosto pálido e sério, livre das espinhas.

Enquanto isso, no pátio de estacionamento dos alunos, no Ginásio de Libertyville, Christine esperava silenciosamente, na entrada para carros. Esperava que a neve caísse mais intensamente. Esperava o escurecer.

Às três e meia mais ou menos, Leigh atravessou o escritório de Darnell para usar o banheiro e, enquanto esteve ausente, engoli em seco mais duas cápsulas de Darvon. Minha perna era um pesado e firme tormento.

Pouco depois disso, perdi a noção coerente do tempo. Acho que o analgésico me entorpeceu. Tudo começou a parecer como um sonho: as sombras que se adensavam, a claridade fria penetrando pelas janelas e transformando-se lentamente para um cinza-sujo, o zumbido dos aquecedores no alto.

Creio que eu e Leigh fizemos amor... não da maneira comum, não com minha perna daquele jeito, mas por uma espécie de doce substitutivo. Parece-me recordar sua respiração aprofundando-se em meu ouvido, até quase ofegar; parece-me recordar seu sussurro para que eu tomasse cuidado, por favor, fosse cuidadoso, porque já perdera Arnie e não suportaria perder-me também. Parece-me recordar uma explosão de prazer, que fez a dor desaparecer brevemente, mas de modo tão total que nem todo o Darvon do mundo conseguiria fazer... mas, brevemente, é a palavra certa. Aliás, tudo havia sido muito breve. Então, acho que cochilei.

A coisa seguinte que recordo com certeza foi Leigh sacudindo-me para que despertasse e cochichando meu nome insistentemente em meu ouvido.

— Hum? O que foi?

Eu me estirara, e a perna fora tomada por uma dor vitrificada, apenas esperando para explodir. Minhas têmporas doíam, e os olhos pareciam grandes demais para as órbitas. Pestanejei várias vezes para Leigh, como uma grande e imbecil coruja.

— Está escuro — disse ela. — Acho que ouvi alguma coisa.

Pestanejei de novo e vi que ela parecia tensa, amedrontada. Então, olhei para a porta — e ela estava completamente aberta.

— Diabo, como foi que...

— Fui eu que abri — disse ela.

— Bolas! — exclamei, estirando-me um pouco e piscando vivamente, com a intensidade da dor na perna. — Não foi muito esperto, Leigh. Se ela tivesse vindo...

— Não veio — disse Leigh. — Começava a escurecer, aí está, e a nevar mais forte. Então, saí, abri a porta e voltei para cá. Achei que você acordaria logo... Ouvi como murmurava e... e fiquei pensando: "Vou esperar até que fique bem escuro, vou esperar até que fique bem escuro," mas vi que enganava a mim mesma, porque fez quase meia hora que escureceu e eu apenas imaginava poder ver alguma claridade. Acho que era porque desejava vê-la. Então... ainda agora... penso que ouvi algo.

Seus lábios começaram a tremer e ela os comprimiu com força.

Olhei para meu relógio, e vi que faltavam quinze para as seis. Se tudo tivesse corrido bem, meus pais e minha irmã agora estariam em companhia de Michael e dos pais de Leigh. Pelo pára-brisa de Petúnia, olhei para o quadrado escuro de neve, onde ficava a porta da garagem. Podia ouvir o vento zunindo. Uma fina camada de neve já fora soprada para o cimento do interior.

— Foi apenas o vento que ouviu — falei inquieto. — Está andando e falando lá fora.

— Pode ser, mas...

Assenti, relutante. Não queria que ela abandonasse a segurança da alta boléia de Petúnia, mas se não fosse naquele momento, talvez nunca saísse dali. Eu não a deixaria sair e ela se deixaria persuadir. E então, quando e se Christine viesse, tudo que teria a fazer era dar marcha à ré e sair novamente da garagem.

E esperar por ocasião mais oportuna.

— Está bem — falei —, mas lembre-se... fique recuada, naquele pequeno nicho à direita da porta. Se Christine aparecer, talvez fique parada lá fora por um instante. — Farejando o ambiente como um animal, pensei. — Não fique com medo, não se mova. Não a deixe percebê-la. Fique calma e espere, até ela entrar. Então, aperte o botão e afaste-se rapidamente. Você entendeu?

— Entendi — sussurrou ela. — Acha que vai dar certo, Dennis?

— Dará, se ela chegar a aparecer.

— Não estarei com você, até tudo terminar.

— Acho que sim.

Ela se inclinou, pousou levemente a mão esquerda no lado de meu pescoço e beijou-me na boca.

— Tome cuidado, Dennis — pediu —, mas mate-a! Bem, afinal, Christine nem é mulher, mas uma coisa. Mate essa coisa, Dennis!

— Matarei — respondi.

Ela me fitou nos olhos e aquiesceu.

— Faça isso por Arnie — disse. — Liberte-o.

Acariciei-a com intensidade e ela retribuiu. Depois deslizou do assento. Bateu em sua pequena bolsa de mão com o joelho, fazendo-a cair no piso da boléia. Fez uma pausa, a cabeça de lado, uma expressão pensativa e temerosa nos olhos. Então sorriu, abaixou-se, pegou a bolsa e começou a remexer rapidamente em seu interior.

— Lembra-se de Morte d'Arthur, Dennis? — perguntou.

— Mais ou menos.

Clássicos da Literatura Inglesa, de Fudgy Bowen, era uma das aulas que eu, Leigh e Arnie havíamos tido juntos, antes de meu acidente no futebol. Uma das primeiras coisas com que deparamos nas aulas tinha sido Morte d'Arthur, de Malory. Não atinava por que Leigh me fizera a pergunta, naquele momento.

Ela encontrou o que queria. Era uma fina echarpe de náilon, do tipo que uma garota usa na cabeça, nos dias em que cai uma garoa.

Leigh a amarrou em torno do braço direito de minha jaqueta.

— Ora, o que é isso? — perguntei, sorrindo um pouco.

— Seja meu cavaleiro — disse ela, e sorriu também, mas os olhos estavam sérios. — Seja meu cavaleiro, Dennis.

Peguei o rolo do esfregão que ela encontrara no banheiro de Will, meus olhos passaram de leve sobre a marca impressa "O-Cedar" e fiz um desajeitado cumprimento com ele.

— Perfeitamente — respondi. — Chame-me apenas Sir O-Cedar!

— Faça piadas com isso, se quiser — disse ela —, mas não brinque realmente a respeito. Certo?

— Certo — falei. — Se é o que deseja, serei seu perfeito, maldito e gentil cavaleiro. Ela riu um pouco e aquilo foi melhor.

— Lembre-se daquele botão, menina. Aperte com força. Não queremos que aquela porta apenas dê um arroto e pare nos trilhos. Sem escapatória, ok?

— Ok.

Ela saiu de Petúnia. Pude fechar os olhos e vê-la como era então, naquele límpido e silencioso momento, pouco antes de tudo dar terrivelmente errado — uma garota alta e bonita, de compridos cabelos louros, cor de mel puro, ancas esguias, pernas compridas e aquelas surpreendentes maçãs do rosto nórdicas, agora usando uma jaqueta de esquiar e calças jeans desbotadas, movendo-se com a graciosidade de uma dançarina. Ainda posso ver o quadro e sonhar com ele porque, naturalmente, enquanto nos ocupávamos em montar o cenário para Christine, ela se ocupava em montar o seu para nós — aquele velho e infinitamente astuto monstro. Pensaríamos mesmo que éramos capazes de superá-la em astúcia tão facilmente? Acho que sim.

Meus sonhos acontecem em terrível câmara lenta. Posso ver o suave, adorável movimento de seus quadris, enquanto ela caminha; posso ouvir o som oco de suas botas sobre o cimento manchado de graxa; posso até perceber o macio, seco uish-uish do interior acolchoado de sua jaqueta, roçando contra a blusa. Ela está caminhando lentamente, de cabeça erguida — agora, ela é o animal, mas não predador; caminha com a graça cautelosa de uma zebra, aproximando-se de uma fonte d'água, ao escurecer. É o andar de um animal que pressente o perigo. Tento gritar-lhe, através do pára-brisa de Petúnia. Volte, Leigh, volte depressa, você tinha razão, ouvi alguma coisa, ela está lá fora agora, lá fora na neve, com os faróis apagados, agachada, volte, Leighl

Ela parou de repente, as mãos enrijecendo-se em punhos, e foi então que súbitos e selvagens círculos de luz brotaram para a vida, na escuridão nevada do exterior. Eram como olhos brancos que se abriam.

Leigh ficou imóvel, hediondamente exposta em terreno aberto. Estava a uns nove metros da porta, ligeiramente à direita do centro. Virou-se na direção dos faróis e pude ver a expressão atordoada e incerta de seu rosto.

Eu também ficara tão aturdido que aquele primeiro momento vital passou em branco. A seguir, os faróis saltaram para diante e pude ver o formato escuro e alongado de Christine atrás deles; ouvi o crescente, furioso urro de seu motor, quando ela partiu em nossa direção, cruzando a rua onde estivera esperando o tempo todo — talvez mesmo desde antes do escurecer. A neve caiu afunilada de seu teto e rodopiou à frente do pára-brisa, em finíssimas redes que eram derretidas quase instantaneamente pelo descongelador. Ela alcançou o concreto que levava à entrada, ainda ganhando velocidade. Seu motor era um brado de fúria.

— Leigh!— gritei, e aferrei a ignição de Petúnia.

Leigh dobrou à direita e correu para o botão na parede. Christine rugiu para o interior, quando Leigh já alcançava o botão e o apertava. Ouvi o chocalhar da porta no alto, descendo pelos trilhos.

Christine entrou em ângulo para a direita, buscando Leigh. Arrancou uma grande nuvem de madeira seca e lascas da parede. Houve um rangido metálico, quando parte do pára-choque direito se afrouxou — um som semelhante à gargalhada alta de um bêbado. Fagulhas cascatearam pelo piso, quando ela descreveu uma longa curva torcida. Perdera Leigh, mas não a perderia, ao atacar novamente; Leigh estava encurralada naquele canto do lado direito, sem mais lugar algum onde esconder-se. Poderia correr para fora, porém eu não tinha certeza, mas um medo terrível de que a porta não descesse com velocidade suficiente para cortar o caminho de Christine. Enquanto descia, a porta poderia atingi-la no teto, mas isso não a deteria e eu sabia.

O motor de Petúnia rugiu e apertei o botão dos faróis. Suas luzes acenderam-se, banhando a porta que se fechava, e também Leigh, que se encostara à parede, de olhos arregalados. Sua jaqueta ficou com uma estranha cor azul, quase elétrica, à luz dos faróis. Minha mente informou, com nauseante e precisa certeza, que seu sangue pareceria púrpura.

Vi quando ela ergueu os olhos para cima, durante um momento, voltando-os em seguida para Christine.

Os pneus do Fury chiaram violentamente, quando arremeteu para Leigh. Subiram volutas de fumaça das novas marcas negras sobre o concreto. Tive tempo apenas para registrar o fato de que havia gente no interior de Christine: um punhado de pessoas.

No mesmo instante em que Christine rugiu para ela, Leigh saltou, com incrível elasticidade. Minha mente, parecendo funcionar à velocidade aproximada da luz, perguntou-se por um instante se ela pretendia passar por cima do Plymouth em um salto, como se calçasse botas de sete léguas, e não o tipo comum.

Em vez disto, ela alcançou e agarrou os enferrujados suportes de metal de uma prateleira no alto, quase dois metros e meio acima do solo, mais de noventa centímetros acima de sua cabeça. Era uma prateleira que corria pelas quatro paredes. Na noite em que eu e Arnie havíamos levado Christine para lá, toda a prateleira estava entulhada de pneus recauchutados ou carecas, à espera da recauchutagem — de certo modo divertido, aquilo me recordara as prateleiras bem estocadas de uma biblioteca. Agora, quase mais nada havia ali. Segurando-se naqueles suportes angulosos, Leigh girou as pernas enfiadas nas calças jeans, como um garoto que quisesse jogá-las sobre os próprios ombros no que costumávamos chamar de "pulo do gato", no primário. O nariz de Christine amassou-se contra a parede diretamente abaixo dela. Se Leigh houvesse sido mais lenta em suspender as pernas, agora as teria esmagadas, à altura dos joelhos. Um pedaço de cromado voou pelo ar. Dois dos pneus remanescentes saltaram da prateleira e ricochetearam loucamente no cimento, como gigantescos biscoitos de borracha.

A cabeça de Leigh bateu contra a parede, em um golpe de atordoante força, quando Christine deu marcha à ré, com todos os quatro pneus soltando borracha e expelindo fumaça azul.

É de se perguntar o que fazia eu, durante todo este tempo. Minha resposta é que não houve "todo esse tempo". Quando usei o esfregão para afundar a embreagem de Petúnia e engrenar em primeira, a porta da entrada acabava de descer, batendo contra o solo. Tudo aconteceu no espaço de segundos apenas.

Leigh ainda se suspendia nos suportes da prateleira dos pneus, mas agora apenas pendia de lá, a cabeça baixa e aturdida.

Soltei a embreagem, e uma parte isolada de minha mente comandou: Vá com calma, cara — se soltar a embreagem e o motor afogar, ela está morta.

Petúnia começou a rodar. Acelerei o motor até vê-lo roncar, e comprimi a embreagem até o fundo. Christine rugiu novamente para Leigh, o capô ondulado até quase metade, por causa do primeiro ataque, o metal brilhante surgindo sob a tinta solta, nos pontos mais pronunciados das curvaturas. Era como se o capô e a grade estivessem providos de dentes de tubarão.

Atingi Christine a uns três quartos para a parte fronteira e o Plymouth girou, um dos pneus saltando fora do aro. O 58 bateu contra um monturo de velhos pára-choques e peças de sucata a um canto. Ali houve um estrondo terrível, quando o carro se chocou contra a parede, e depois o som quente de seu motor, diminuindo e acelerando, acelerando e diminuindo. Toda a parte esquerda dianteira ficara amassada mas ela continuava funcionando.

Pisei fundo no freio de Petúnia, com o pé direito, e mal consegui evitar que eu próprio esmagasse Leigh. O motor de Petúnia engasgou. Agora, o único som na garagem, era a máquina uivante de Christine.

— Leigh! — gritei, acima do barulho. — Corra, Leigh!

Ela ergueu os olhos, estonteada, e então pude ver tranças pegajosas de sangue em seu cabelo — era tão púrpura como eu imaginara. Ela largou os suportes, caiu de pé, cambaleou e se dobrou sobre um joelho.

Christine foi em sua procura. Leigh levantou-se, deu dois passos vacilantes e isso a tirou de campo aberto, colocando-a atrás de Petúnia. Christine deu uma guinada e atingiu a dianteira do caminhão-tanque. Fui atirado brutalmente para a direita. A dor rugiu através de minha perna esquerda.

— Suba! — gritei para Leigh, tentando esticar-me ainda mais e abrir a porta. — Suba! Christine recuou e, quando tornou a arremeter, cortou pela direita, escapando de meu campo visual, por trás da traseira de Petúnia. Pude vê-la somente de relance, no espelho retrovisor do lado de fora da janela do motorista. Então, ouvi apenas o chiado de seus pneus.

Mal tendo consciência do que fazia, Leigh simplesmente vagou, segurando a cabeça com as mãos entrelaçadas na nuca. O sangue escorria por entre seus dedos. Passou pela frente do radiador de Petúnia e então parou.

Eu não precisava ver, para adivinhar o que aconteceria em seguida. Christine tornaria a acelerar, voltaria contra o flanco do caminhão e esmagaria Leigh na parede.

Desesperado, apertei a embreagem com o esfregão e liguei o motor novamente. Ele pegou, tossiu, engasgou. Senti o cheiro de gasolina no ar, intenso e pesado. Eu tinha afogado o motor.

Christine reapareceu no espelho retrovisor. Investia para Leigh, que recuou aos tropeções, escapando de ser alcançada por pouco. Christine afocinhou a parede, com força incrível. A porta do passageiro se abriu, e o horror foi completo; a mão que não segurava o cabo do esfregão foi até minha boca e gritei através dela.

Sentado no lado do passageiro, como um grotesco boneco em tamanho natural, estava Michael Cunningham. Sua cabeça, pendendo flacidamente do talo do pescoço, caiu para um lado quando Christine acelerou, a fim de investir de novo contra Leigh. Então vi que seu rosto mostrava um corado acentuado, próprio do envenenamento por monóxido de carbono. Ele não seguira meu conselho. Christine se dirigira primeiro à residência dos Cunningham, como eu mais ou menos suspeitara. Michael voltara da escola para casa, e lá estava ela, parada na entrada da garagem — o restaurado Plymouth 58 de seu filho. Michael caminhara para o carro e, de alguma forma, Christine o tinha... o tinha apanhado. Teria Michael talvez entrado naquele carro e se sentara ao volante por um momento, como eu havia feito naquele dia, na garagem de LeBay? Era possível. Apenas para ver que vibrações conseguiria captar. Então, devia ter captado algumas terríveis vibrações, durante seus últimos minutos na Terra. Teria Christine ligado o motor sozinha? Rodado para dentro da garagem? Talvez. Talvez. E, lá, Michael descobrira que era impossível desligar o maldito motor em aceleração ou sair do carro? Poderia ter virado a cabeça e visto o verdadeiro espírito que movia o Fury 58 de Arnie? Teria, então, se recostado no assento do passageiro e desmaiado de terror?

Não importava agora. Leigh era mais importante do que tudo.

Ela também o vira. Seus gritos agudos, desesperados e estridentes, flutuavam na atmosfera impregnada da fedorenta fumaça do escapamento, como balões histericamente brilhantes. De qualquer modo, pelo menos aquilo interrompera seu atordoamento.

Virando-se, ela correu para o escritório de Will Darnell, o sangue espalhando-se mais atrás, em gotas como moedas, enquanto corria. Sangue que já encharcava a gola de sua jaqueta — demasiado sangue.

Christine recuou, raspando borracha no chão e deixando vidro espalhado para trás. Quando ela guinou em um apertado círculo para perseguir Leigh, a força centrífuga tornou a escancarar a porta do passageiro — mas não antes de eu ver a cabeça de Michael dobrar-se para o lado contrário.

Christine ficou quieta por um instante, o nariz apontado em direção a Leigh, o motor acelerando. Talvez LeBay saboreasse o momento antes de matar. Se foi isso, fico satisfeito, porque se Christine tivesse arrancado imediatamente, teria liquidado Leigh. Do jeito como foi, tive alguns segundos de tempo. Girei a chave de novo, gaguejando algo em voz alta — uma oração, talvez, e então o motor de Petúnia tossiu para a vida. Afrouxei a embreagem e pisei no acelerador, quando Christine investiu de novo. Desta vez, atingi seu lado direito. Houve um grito agudo de metal dilacerado, quando o pára-choque de Petúnia colidiu contra seu pára-lama. Christine girou sobre si mesma e bateu na parede. Vidro quebrado. Seu motor acelerou, enfurecido. Ao volante, LeBay se virou para mim, sorrindo com ódio.

Petúnia afogou de novo.

Desfiei uma série de todos os palavrões conhecidos, quando torci novamente a chave na ignição. Se não fosse pela maldita perna, se não fosse pela queda na neve, aquilo tudo já teria terminado; seria apenas uma questão de encurralar Christine e fazê-la em pedaços, contra os blocos de concreto das paredes.

Ainda quando eu tentava o motor de Petúnia, mantendo o pé fora do acelerador para não tornar a afogá-la, Christine começou a recuar, com um ensurdecedor rangido de metais. Deu marcha à ré entre o radiador de Petúnia e a parede, deixando para trás um bom e retorcido pedaço de sua lataria vermelha, despojando o pneu dianteiro da direita.

Consegui ligar Petúnia e encontrei a marcha à ré. Christine havia recuado até o ponto mais distante da garagem. Todos os seus faróis estavam apagados. O pára-brisa se avariara em uma galáxia de trincados. O capô encolhido parecia rosnar.

Seu rádio estava a todo volume. Pude ouvir Ricky Nelson cantando "Waitin in School".

Olhei em torno, à procura de Leigh, e a vi no escritório de Will, espiando para a garagem. Seu cabelo louro se misturava ao sangue. Mais sangue lhe escorria pelo lado esquerdo do rosto, encharcando a jaqueta. Ela está sangrando demais, pensei, incoerentemente. Sangrando demais, mesmo para um ferimento na cabeça.

De olhos arregalados, ela apontava para um ponto além de mim, os lábios se movendo silenciosamente, atrás do vidro.

Christine chegou rugindo em disparada pelo piso vazio, ganhando velocidade.

E o capô perdia as ondulações, alisava-se, para tornar a cobrir a cavidade do motor. Dois faróis piscaram, depois firmaram a luz. O pára-lama e o lado direito da lataria — vi apenas de relance, mas juro que é verdade — eles estavam... se refazendo, o metal vermelho surgindo do nada e deslizando em uniformes curvas automotivas, que cobriam o pneu direito dianteiro e o lado direito do compartimento do motor. As rachaduras no pára-brisa corriam em direção oposta e desapareciam. E o pneu que saíra do aro estava novo em folha.

Tudo parece novo em folha, pensei. Que Deus nos ajude!

Ela corria diretamente para a parede entre a garagem e o escritório. Retirei apressadamente o esfregão da embreagem, esperando interpor o corpo do caminhão-tanque, mas Christine passou por mim. Petúnia recuou para nada mais senão puro ar. Oh, eu estava me saindo muito bem! Recuei todo o espaço que pude e bati nos amassados armários de guardar ferramentas, alinhados mais atrás. Eles caíram ao chão, com desarmônicos sons metálicos. Pelo pára-brisa, vi Christine bater na parede entre a garagem e o escritório de Will. Ela nem diminuiu a velocidade; arremeteu com a potência máxima.

Jamais esquecerei os momentos seguintes — eles permanecem hipnoticamente claros em minha memória, como se vistos através de uma lente. Leigh percebeu a vinda de Christine e recuou aos tropeções. Seu cabelo ensangüentado estava colado à cabeça. Caiu sobre a cadeira giratória de Will e dali para o chão, ficando fora de vista, atrás da escrivaninha. Um instante mais tarde — e quero dizer uma fração de segundo — Christine se chocou contra a parede. O janelão que Will usava para manter sob observação as idas e vindas dentro de sua garagem, explodiu para o interior. O vidro voou como uma nuvem de lanças mortíferas. A dianteira de Christine entortou-se com o impacto. O capô subiu e depois se soltou, voando sobre o teto do carro, para aterrar no concreto com um som metálico, muito semelhante ao produzido pelos armários de ferramentas.

Com o pára-brisa estilhaçado, o corpo de Michael Cunningham voou através da enorme abertura, as pernas sacolejando, sua cabeça parecendo uma achatada e grotesca bola de futebol. Foi lançado através da janela de Will, bateu na escrivaninha com um baque surdo de saco pesado de cereal e deslizou para o chão. Seus sapatos foram projetados à distância.

Leigh começou a gritar.

Sua queda provavelmente a salvara de ser terrivelmente retalhada ou morta pelos estilhaços de vidro que voavam, mas quando se ergueu de trás da mesa, tinha o rosto contorcido de horror e fora tomada da mais pura histeria. Michael havia deslizado sobre a escrivaninha, e seus braços tinham caído sobre os ombros dela. Quando Leigh lutou para levantar-se, parecia estar valsando com o cadáver. Seus gritos eram histéricos. O sangue, ainda fluindo, cintilava com um brilho fatal. Ela empurrou Michael e correu para a porta.

— Não, Leigh! — gritei, enquanto tornava a apertar a embreagem com o esfregão. O cabo se partiu irremediavelmente em dois, deixando-me com um toco de quinze centímetros de comprimento. — Ohhhh.. MERDA!

Christine recuou da janela quebrada, deixando água, anticongelante e óleo empoçados no chão.

Pisei na embreagem com o pé esquerdo, agora mal sentindo a dor, segurando o joelho esquerdo com a mão esquerda, enquanto manejava a alavanca de mudança.

Leigh escancarou a porta do escritório e correu para fora.

Christine se virou contra ela, o nariz esmagado e rosnante mantendo-a em mira.

Acelerei o motor de Petúnia e parti rugindo para Christine. Quando o amaldiçoado carro dos infernos cresceu no pára-brisa, vi o rosto purpúreo e inchado de uma criança, pressionado à janela traseira, olhando para mim, como a pedir-me que parasse.

Colidi com força. O capô do caminhão subiu e ficou arreganhado como uma boca. Sua traseira rabeou, e Christine saiu deslizando de banda, passando por Leigh, que correu em fuga, os olhos parecendo engolir seu rosto. Lembro-me do sangue pulverizado ao longo das franjas de pele do capuz de sua jaqueta em gotículas, como um orvalho maligno.

Eu estava na minha agora. Estava por cima. Mesmo se, terminando aquele trabalho, me cortassem a perna na virilha, ia dirigir Petúnia.

Christine bateu na parede e ricocheteou de volta. Pisei na embreagem, manobrei a mudança para marcha a ré, recuei uns três metros, pisei de novo na embreagem, e fiz a mudança para primeira. Christine acelerou o motor e tentou esgueirar-se ao longo da parede. Cortei para a esquerda e atingi-a novamente, achatando-lhe o meio, como se fosse uma vespa. As portas saltaram das molduras, em cima e embaixo. LeBay estava ao volante, agora uma caveira, então um apodrecido e fedorento camafeu humano, depois um homem, saudável e vigoroso na casa dos cinqüenta, com cabelos que embranqueciam, cortados rente. Olhou para mim com seu sorriso demoníaco, uma das mãos no volante, a outra em um punho crispado, que sacudiu em minha direção.

Mesmo assim, o motor de Christine não morria.

Dei marcha à ré de novo. Agora, minha perna estava como ferro em brasa e a dor subia todo o trajeto até a axila esquerda. Era um inferno. A dor estava em toda parte. Eu podia senti-la

(Meu Deus, Michael, por que não ficou em casa) no pescoço, nos maxilares, nas

(Arnie? Cara, sinto tanto, por desejar o que desejo)

têmporas. O Plymouth — o que sobrara dele — dava bêbadas estocadas mais abaixo, no lado da garagem, espalhando ferramentas e sucata, arrancando suportes e derrubando as prateleiras suspensas. As prateleiras batiam no concreto, em pancadas que pareciam bofetadas, sons que ecoavam como aplausos do demônio.

Tornei a calcar a embreagem e pisei no acelerador. O motor de Petúnia trovejou e eu me firmei no volante, como um homem tentando permanecer montado em um mustangue selvagem. Atingi Christine no lado direito, e esmaguei toda a lataria perto do eixo traseiro, empurrando-a contra a porta, que estremeceu e sacolejou. Debrucei-me sobre o volante, que me batia no estômago, me cortava a respiração e me jogava contra o assento, ofegante.

Agora eu via Leigh, encolhida no canto mais distante, as mãos apertando o rosto, puxando-o para baixo, transformando-o em uma máscara de feiticeira.

O motor de Christine ainda funcionava.

Ela rastejou lentamente para Leigh, como um animal cujas patas traseiras foram fraturadas em uma armadilha. E, enquanto rodava, pude ver sua regeneração, a maneira como revivia: um pneu que se inflava repentinamente, redondo e cheio, a antena de rádio que se rearticulava com um prateado tuingggg, o metal que se formava em torno da traseira arruinada.

— Morra! — gritei para o carro.

Eu berrava, meu peito doía. A perna não funcionava mais. Abracei-a com as duas mãos e a empurrei contra a embreagem. Minha visão ficou desfocada e cinzenta, com aquela agonia de metal incandescente. Eu quase podia sentir os ossos esfacelando-se.

Acelerei, mudei para primeira novamente e investi. Enquanto fazia isto, ouvi a voz de LeBay, pela primeira e única vez, aguda e frustrada, impregnada de uma terrível, interminável fúria.

— Seu BOSTA! Foda-se, seu miserável BOSTA! DEIXE-ME EM PAZ!

Você devia ter deixado meu amigo em paz — tentei gritar, mas tudo que saiu foi um ofegar ferido, dilacerado.

Atingi Christine em cheio, na traseira. O tanque de gasolina se rompeu, quando a traseira do carro se encolheu para dentro e para cima, em uma espécie de cogumelo metálico. Houve uma lambida amarela de fogo. Protegi o rosto com as mãos — mas então desapareceu. Christine ficou ali, um refugiado de uma pista de corridas destruída. Seu motor funcionava entrecortadamente, falhava, pegava de novo — e então morreu.

O lugar ficou silencioso, exceto pelo ronco grave do motor de Petúnia.

Depois, Leigh corria pelo piso, gritando e gritando meu nome, gritando e chorando. De repente, fiquei estupidamente cônscio de que usava sua echarpe rosa em torno de minha manga.

Baixei os olhos para ela, e então o mundo ficou cinzento de novo.

Pude sentir suas mãos em mim, mas depois nada além da escuridão, quando perdi os sentidos.

 

Voltei a mim uns quinze minutos mais tarde, com o rosto molhado e misericordiosamente fresco. Leigh estava em pé no estribo de Petúnia, o estribo do motorista, passando em meu rosto um trapo molhado. Agarrei-o em uma das mãos, tentei chupá-lo e depois cuspi. O trapo tinha um sabor intenso de óleo.

— Não se preocupe, Dennis — disse ela. — Corri para a rua... parei um removedor de neve... assustei o homem como o diabo, pelo que parece... com todo esse sangue... ele disse... uma ambulância,., ele disse que ia providenciar... Dennis, você está bem?

— Pareço bem? — sussurrei.

— Não — disse ela, e prorrompeu em lágrimas.

— Então, não — engoli em seco, havia um doloroso bloco seco na garganta —, não faça perguntas bobas. Eu amo você.

Ela me afagou desajeitadamente.

— Ele disse que também ia chamar a polícia.

Eu mal a ouvi. Meus olhos tinham encontrado a torcida e silenciosa sucata — o que sobrara de Christine. Sucata era a palavra correta; ela mal parecia um carro. Entretanto, por que não se queimara? Uma calota jazia caída a um lado, como uma ficha de prata amassada.

— Há quanto tempo você parou o limpa-neve? — perguntei, em voz rouca.

— Talvez há uns cinco minutos. Depois peguei o pedaço de pano e o molhei naquele balde lá. Dennis... graças a Deus terminou!

Punk! Punk! Punk! Eu continuava olhando para a calota. As amassaduras começavam a desfazer-se.

De repente, ela se ergueu sobre a borda e rolou para o carro, como uma moeda. Leigh também viu aquilo. Seu rosto ficou tenso. Os olhos arregalaram-se, começaram a esbugalhar-se. Seus lábios formaram a palavra Não, mas não emitiram som algum.

— Entre aqui comigo — falei, em voz baixa, como se aquela coisa pudesse ouvir-nos. Quem sabe? Talvez ouvisse mesmo. — Entre no lado do passageiro. Você vai pisar o acelerador, enquanto eu piso a embreagem com o pé direito.

— Não... — Desta vez, era um sussurro sibilante. Sua respiração saiu assobiando, em pequenos arquejos. — Não... não...

Os destroços do carro estremeciam de alto a baixo. Era a coisa mais terrível, mais fantasmagórica que eu já vira, em toda a minha vida. Estremeciam inteiramente, estremeciam como um animal que ainda não... está inteiramente... morto. Metal batia nervosamente contra metal. Conexões de peças crepitavam ritmos de jazz contra suas ligaduras. Enquanto eu espiava, um contrapino torto que jazia no chão ficou reto e executou meia dúzia de cabriolas, indo aterrar nos destroços.

— Entre — falei.

— Não posso, Dennis. — Seus lábios tremeram descontroladamente. — Não posso... mais... aquele corpo... era o pai de Arnie. Não posso, não agüento mais, por favor...

— Você tem que entrar — insisti.

Ela me fitou, depois olhou temerosa para os obscenamente trêmulos restos daquela velha prostituta que LeBay e Arnie haviam partilhado. Então, deu a volta pela dianteira de Petúnia. Uma peça de cromado se deslocou e arranhou-lhe profundamente a perna. Leigh gritou e correu. Subiu rapidamente para a boléia e apertou-se contra mim.

— O q-que tenho que fazer?

Fiquei meio pendurado para fora da boléia, seguro ao teto, e empurrei a embreagem com o pé direito. O motor de Petúnia ainda funcionava.

— Pise no acelerador e mantenha o pé aí — falei. — Não importa o que acontecer. Movendo o volante com a direita e segurando-me com a mão esquerda, manobrei a embreagem e rodamos para diante. Esmagamos e tornamos a esmagar a sucata, desintegrando-a. Em minha cabeça, eu tinha a impressão de ouvir outro grito de fúria. Leigh agarrou a cabeça com as mãos.

— Não posso, Dennis! Não posso fazer isso! Essa... essa coisa... está gritando!

— Tem que fazer — falei. Ela retirara o pé do acelerador e agora eu ouvia sirenes cortando a noite, aumentando e diminuindo. Agarrei-a pelo ombro e uma explosão de dor me subiu pela perna. — Nada mudou, Leigh. Você tem que fazer!

— Aquilo gritou para mim!

— Nosso tempo está se esgotando e ainda não terminamos. Só mais um pouquinho!

— Tentarei — sussurrou ela, tornando a apertar o pedal.

Engatei a mudança para marcha à ré. Petúnia recuou uns seis metros. Embreei de novo, passei para primeira... e Leigh gritou, de repente:

— Não, Dennis! Não! Olhe!

A mãe e a menininha, Verônica e Rita, estavam em pé diante da sucata amassada e destroçada de Christine, de mãos dadas, os rostos solenes e angustiados.

— Elas não estão lá — falei. — E, se estiverem, é tempo de voltarem para... — Mais dor em minha perna e o mundo ficou cinzento.... — voltarem para o lugar a que pertencem. Fique com o pé no pedal!

Soltei a embreagem, e Petúnia tornou a rodar para diante, ganhando velocidade. As duas figuras não desapareceram, como fazem os fantasmas nos filmes de TV; pareceram gritar para todos os lados, cores brilhantes que se desbotavam para esmaecidos rosas e azuis... e então desapareceram por completo.

Batemos novamente contra Christine, espalhando para longe o que sobrara dela. O metal rangeu e se dilacerou.

— Não estão lá — sussurrou Leigh. — Não estão realmente lá. Está bem. Está bem, Dennis. Sua voz vinha de muito longe, percorrendo um sombrio corredor. Passei para marcha à ré e

fomos para trás. Depois para a frente. Esmagamos os metais; tornamos a esmagá-los. Quantas vezes? Não sei. Batíamos violenta e estrondosamente no que restava de Christine e, a cada vez que o fazíamos, outra onda de dor me subia pela perna e as coisas ficavam um pouco mais escuras.

Por fim, ergui os olhos turvos e vi que o ar, fora da porta, parecia cheio de sangue. Só que não era sangue, mas uma luz vermelha pulsante, refletindo-se na neve que caía. Pessoas batiam na porta, lá fora.

— Acha que chega? — perguntou Leigh.

Olhei para Christine — apenas, aquilo deixara de ser Christine. Era um monte disperso de metal partido e torcido, pedaços de recheio do estofamento e cintilante vidro quebrado.

— Tem que chegar — falei. — Deixe-os entrar, Leigh. E, enquanto ela se foi, tornei a perder os sentidos.

 

Depois, houve uma série de imagens confusas; coisas que entravam em foco por um instante, para então se esfumarem ou desaparecerem de todo. Posso me lembrar de uma padiola, sendo rodada para fora da traseira de uma ambulância. Posso recordar suas alças laterais sendo erguidas e como as luzes fluorescentes do teto arrancaram frios reflexos de seu cromado; posso recordar alguém dizendo:

— Corte isso, tem que cortar, para ao menos darmos uma espiada nisso! Também recordo mais alguém — creio que Leigh — dizendo:

— Não o machuquem, por favor, se for possível, não o machuquem!

Recordo ainda o teto de uma ambulância... tinha que ser uma ambulância, porque havia dois recipientes de intravenosos, suspensos na periferia de minha visão. Recordo a fria fricção de anti-séptico e, em seguida, a picada de uma agulha.

Depois disso, as coisas se tornaram extremamente estranhas. Em algum ponto, bem dentro de mim, eu sabia que não estava sonhando se nada mais o provava, a dor pelo menos fazia isso — mas tudo aquilo parecia um sonho. Eu estava bastante dopado e isso era parte da situação... mas o choque também fazia parte. Não é brincadeira. Minha mãe estava lá, chorando, em um quarto desgostosamente semelhante àquele quarto de hospital onde eu passara todo o outono. Então, meu pai estava lá, e o pai de Leigh estava com ele, os dois parecendo possuir um e o mesmo rosto, ambos tão tensos e severos, que bem poderiam ter sido personagens de Franz Kafka. Papai se inclinava sobre mim e perguntava, em uma voz de trovão, reverberando através de camadas de algodão:

— Como é que Michael foi parar lá, Dennis?

Era o que eles realmente queriam saber: como Michael tinha ido parar lá. Oh, pensei, oh, meus amigos, eu poderia contar-lhes cada história... Então, o Sr. Cabot perguntava:

— Em que foi que meteu minha filha, rapaz? — E eu recordo ter respondido:

— Não é bem em que foi que eu a meti, mas de que foi que ela o tirou.

Até hoje, ainda acho que foi uma resposta bastante inteligente, consideradas as circunstâncias e dopado como me encontrava. Elaine apareceu lá, brevemente, e tenho a impressão de que segurava, zombeteiramente fora de meu alcance, uma barra de chocolate ou coisa assim. Também vi Leigh, oferecendo sua fina echarpe de náilon e pedindo que eu levantasse o braço, a fim de que ela a amarrasse. Só que eu não podia, meu braço era um pedaço de chumbo.

Arnie também estava lá mas, claro, tinha que ser um sonho.

Obrigado, cara, ele disse e, horrorizado, percebi que a lente esquerda de seus óculos estava estilhaçada. O rosto me parecia legal, mas aquela lente estilhaçada... aquilo me assustou. Obrigado. Você fez bem. Sinto-me melhor agora. Daqui em diante, acho que tudo vai ficar legal.

Não enche, Arnie, falei — ou tentei falar — mas ele tinha sumido.

Foi no dia seguinte — não o dia vinte, mas no domingo, vinte e um de janeiro — que comecei a recuperar-me um pouco. Minha perna esquerda estava de novo no gesso, em sua velha e familiar posição, entre todas aquelas roldanas e pesos. À esquerda de minha cama, havia um homem que eu nunca vira antes, lendo um livro de bolso com uma história de John D. MacDonald. Ao me ver olhando para ele, baixou o livro.

— Bem-vindo à terra dos vivos, Dennis — disse brandamente.

Em gestos deliberados, marcou com uma caixa de fósforos de papelão a folha onde interrompera a leitura, deixou o livro sobre o colo e dobrou as mãos em cima dele.

— Você é médico? — perguntei.

Evidentemente, não era o Dr. Arroway, o médico que cuidara de mim da última vez; ele seria uns vinte anos mais novo e teria, no mínimo, uns oito quilos a menos. Parecia um sujeito duro.

— Inspetor da Polícia Estadual — disse ele. — Meu nome é Richard Mercer. Rick, se preferir. Estendeu a mão e, estirando a minha, desajeitada e cautelosamente, eu a toquei. A verdade é que não poderia apertá-la. Minha cabeça doía e me sentia sedento.

— Escute — falei. — Não me incomodo nem um pouco de falar com você e responderei a todas as suas perguntas, mas gostaria de ver um médico. — Engoli em seco, ele me fitou com preocupação, e então soltei: — Preciso saber se vou tornar a andar de novo.

— Se for verdade o que disse aquele Dr. Arroway — falou Mercer — você estará em forma dentro de quatro a seis semanas. Não tornou a fraturar a perna, Dennis. Apenas a distendeu seriamente, foi o que ele disse. Sua perna inchou como uma salsicha, rapaz. Ele também disse que teve muita sorte, em sair desta com tão pouco.

— E quanto a Arnie? — perguntei. — Arnie Cunningham? Sabe se... Os olhos dele cintilaram, vacilantes.

— O que foi? — perguntei. — O que houve com Arnie?

— Escute, Dennis — ele disse, depois hesitou. — Não sei se é este o momento.

— Por favor, Arnie está... morto? Mercer suspirou.

— Sim, está morto. Ele e a mãe sofreram um acidente na auto-estrada Pensilvânia, devido à neve. Se é que foi um acidente.

Tentei falar, e não pude. Fiz um movimento para o jarro de água na mesa de cabeceira, pensando o quanto era melancólico estar em um quarto de hospital e saber exatamente onde tudo se encontrava. Mercer me encheu um copo e colocou nele o canudinho dobrado. Bebi, e me senti um pouquinho melhor. Melhor na garganta, quero dizer. Nada mais parecia melhor, de maneira nenhuma.

— O que quis dizer com se foi um acidente?

— Bem — disse Mercer —, era a noite de sexta-feira e a neve não estava tão forte assim. A classificação da estrada foi a dois: deserta e molhada, visibilidade reduzida, dirija com cautela. A julgar pela força do impacto, supomos que eles não iam a mais de setenta. O carro deu uma guinada através da linha divisória da estrada e bateu em um caminhão. Era a camioneta Volvo da Sra. Cunningham. Explodiu.

Fechei os olhos.

— Regina... ?

— Também morta no local. Se vale alguma coisa, eles provavelmente não...

—... sofreram — completei. — Tolice. Eles sofreram demais. — As lágrimas me ameaçavam, mas consegui sufocá-las. Mercer nada disse. — Todos os três — murmurei. — Oh, Deus, todos os três!

— O motorista do caminhão fraturou um braço. Foi o pior para ele, no acidente. Disse que havia três pessoas no carro, Dennis.

— Três?

— Exatamente. E ele disse que pareciam lutar. — Mercer me encarou. — Estamos seguindo a teoria de que recolheram um carona de maus instintos, que fugiu depois do acidente e antes da chegada da Polícia Rodoviária.

Era uma hipótese ridícula, para quem conhecesse Regina Cunningham. Ela seria mais capaz de usar calças compridas em um chá da universidade do que dar carona a um desconhecido. Na mente de Regina Cunningham, estava firmemente impresso aquilo que se pode ou não fazer. Como que em cimento, poder-se-ia dizer.

Havia sido LeBay. A questão é que ele não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo. Por fim, ao ver que rumo tomavam as coisas na Garagem de Darnell, ele abandonara Christine e tentara voltar para Arnie. O que aconteceu depois, fica no terreno das suposições. Entretanto, concluí no momento — e ainda penso o mesmo — que Arnie lutou com ele... e venceu uma jogada, pelo menos.

— Morto — falei, e agora as lágrimas vieram.

Eu estava demasiado fraco e deprimido para contê-las. Afinal, fora impotente para impedir que ele morresse. Para impedir daquela última vez, quando realmente importava. Outros, talvez, poderiam morrer, mas não Arnie.

— Conte-me o que aconteceu — disse Mercer. Deixou seu livro na mesa de cabeceira e inclinou-se para diante. — Conte-me tudo o que sabe, Dennis, do começo ao fim.

— O que foi que Leigh disse? — perguntei. — E como está ela?

— Passou aqui a noite de sexta-feira, sob observação — informou Mercer. — Teve uma concussão e um corte no couro cabeludo, que precisou de doze pontos. Não houve marcas no rosto. Uma sorte. É uma garota muito bonita.

— Ela é mais do que isso — falei. — É linda.

— Não quis dizer nada — comentou Mercer, e um sorriso relutante, creio que de admiração, repuxou seu rosto para a esquerda. — Nem para mim e nem para seu pai. Ele está, poderíamos dizer assim, de saco cheio com tudo isso. Ela disse que você decidirá o que falar e quando. — Ele me fitou pensativo. — Porque, segundo ela, foi você que acabou com isso.

— Não fiz nada tão importante — murmurei.

Eu ainda tentava admitir a idéia de que Arnie possivelmente estivesse morto. Era impossível, não? Quando tínhamos doze anos, havíamos ido juntos para o Acampamento Winnesko, em Vermont. Então, fiquei com saudades de casa e disse a ele que ia telefonar, pedir a meus pais que fossem lá me buscar. Arnie respondeu que se eu fizesse isso contaria para todo mundo na escola que eu voltara cedo para casa porque eles me tinham apanhado comendo meleca em meu beliche, depois das luzes apagadas, e me expulsado do acampamento. Nós dois tínhamos subido na árvore do meu quintal, até o último galho, e nele gravamos nossas iniciais. Ele costumava dormir na minha casa e ficávamos acordados até tarde, vendo Filme de Terror, encolhidos no sofá, debaixo de um velho edredom. Tínhamos comido juntos todos aqueles sanduíches clandestinos com Pão Maravilha. Aos quatorze anos, Arnie me procurara, assustado e envergonhado, porque estava tendo aqueles sonhos sexuais e pensava que eles o faziam molhar a cama. No entanto, eram as fazendas de formigas que minha mente continuava repisando. Como ele poderia estar morto, se havíamos feito aquelas fazendas de formigas? Santo Deus, aquelas fazendas de formigas pareciam ter acontecido apenas uma ou duas semanas antes! Então, como é que ele podia estar morto? Abri a boca para dizer a Mercer que era impossível Arnie ter morrido — aquelas fazendas de formigas tornavam absurda a própria idéia. Então, tornei a fechá-la. Não podia contar-lhe aquilo. Ele era apenas um cara qualquer.

Arnie, pensei. Ei, cara — não é verdade, certo? Meu Deus do céu, nós ainda temos muita coisa para fazer. Ainda nem mesmo fomos juntos ao drive-in, levando nossas garotas!

— O que aconteceu? — tornou a perguntar Mercer. — Conte-me, Dennis.

— Você não ia acreditar — respondi, em voz empastada.

— Talvez se surpreenda com o que eu acreditaria — disse ele. — E também você pode ficar surpreso, com o que sabemos. Um sujeito chamado Junkins era o investigador principal deste caso. Foi morto não muito longe daqui. Era meu amigo. Um bom amigo. Uma semana antes de morrer, contou-me acreditar que, em Libertyville, estava acontecendo algo em que ninguém acreditaria. Então, foi morto. Isto torna o assunto uma questão pessoal para mim.

Mudei cautelosamente de posição.

— Ele não lhe contou mais nada?

— Junkins me disse que julgava ter descoberto um antigo assassino — prosseguiu Mercer, sem tirar os olhos dos meus. — Entretanto, segundo ele, isso não fazia muita diferença, porque o criminoso estava morto.

— LeBay — murmurei.

Pensei que, se Junkins descobrira isso, não era de espantar que Christine o tivesse matado. Porque, se Junkins chegara até aí, estivera bem perto de toda a verdade.

— LeBay foi o nome que ele mencionou — disse Mercer. Inclinou-se um pouco mais para mim. — E vou lhe dizer uma coisa, Dennis: Junkins era um motorista dos diabos. Quando mais jovem, antes do casamento, costumava correr com stocker * em Philly Plains, e obteve algumas vitórias. Ele saiu da estrada fazendo uns cento e noventa, em um carro-patrulha Dodge, de motor ajustado. Quem quer que o estivesse perseguindo... e nós sabemos quem era... tinha de ser um demônio no volante.

— Sim — falei. — Ele era.

— Vim aqui por minha conta. Levei duas horas esperando que você acordasse. À noite passada, fiquei aqui até me chutarem para fora. Não há nenhum taquígrafo comigo, não tenho um gravador e lhe garanto que não estou usando um microfone. Quando tiver que prestar depoimento, se chegar a isso, a jogada será diferente. Agora, no entanto, somos apenas nós, eu e você. Preciso saber, Dennis. Porque costumo visitar a esposa de Junkins e seus filhos de vez em quando. Sacou?

Refleti naquilo. Refleti durante um longo tempo — quase cinco minutos. Ele ficou sentado e quieto, esperando que me decidisse. Assenti finalmente.

— Está bem, mas repito que não vai acreditar.

— Isso ainda veremos — disse ele.

Abri a boca, ainda sem idéia de como começar.

— Ele era um perdedor, compreenda. Todo ginásio tem dois, pelo menos, é como uma lei nacional. Sacos de pancadas de todos. Só que às vezes... às vezes eles encontram algo a que agarrar-se e sobrevivem. Arnie tinha a mim. Depois teve Christine.

Olhei para ele e, se tivesse visto o menor brilho indevido naqueles olhos cinzentos, tão perturbados como os de Arnie... bem, se eu tivesse visto isso, creio que fecharia a boca ali mesmo. Diria a ele que registrasse em seus livros o que lhe parecesse mais plausível, e dissesse aos filhos de Junkins o que, diabo, lhe parecesse mais agradável.

No entanto, ele apenas assentiu, fitando-me atentamente.

— Eu só queria que compreendesse isso — falei, e então senti um nó na garganta, que me impediu de dizer o que talvez devesse ter dito em seguida: Leigh Cabot apareceu mais tarde.

Bebi mais um pouco d'água e engoli com força. Falei durante as duas horas seguintes.

 

Finalmente, terminei. Não houve nenhum grande clímax; eu estava simplesmente seco, com a garganta dolorida por falar tanto. Não perguntei se ele acreditava em mim. Não perguntei se ia trancar-me em um asilo de loucos ou dar-me uma medalha de mentiroso. Sei que acreditou em boa parte de tudo, pois o que eu sabia se ligava perfeitamente ao que era do seu conhecimento. Ignoro o que pensou do restante — Christine e LeBay, o passado estendendo as mãos para o presente. Como ignoro até hoje.

Uma pequena pausa de silêncio surgiu entre nós. Por fim, ele bateu com as mãos nas coxas, fazendo um som vivo, e levantou-se.

— Bem! — exclamou. — Imagino que seus pais estejam esperando para visitá-lo.

— Sim, é provável.

Ele pegou sua carteira e tirou um pequeno cartão comercial, com seu nome e número de telefone.

— Em geral, posso ser encontrado aqui. Caso contrário, alguém me dará o recado. Quando estiver com Leigh Cabot novamente, poderia dizer-lhe o que me contou e pedir a ela que entre em contato comigo?

— Está bem, se é o que deseja. Direi a ela.

— Ela confirmará sua história?

— Sim.

Ele me olhou fixamente.

— Vou lhe dizer uma coisa, Dennis — falou. — Se está mentindo, não sabe que mente.

Saiu do quarto. Só tornei a vê-lo mais uma vez, e foi durante o triplo funeral de Arnie e seus pais. Os jornais publicaram um trágico e bizarro conto de fadas; o pai morto em um acidente de carro, na entrada da garagem de sua casa, enquanto a mãe e o filho são mortos na auto-estrada Pensilvânia. Paul Harvey o usou em seu programa.

Não houve qualquer menção à presença de Christine na Garagem de Darnell.

 

Minha família foi visitar-me aquela noite e, a essa altura, eu já me sentia muito melhor mentalmente — em parte por haver desabafado com Mercer, imagino (ele foi o que um de meus professores de psicologia na universidade chamou de "um estranho interessado", o tipo de pessoa com quem temos facilidade de falar), porém, principalmente devido a uma visita-relâmpago do Dr. Arroway, no final da tarde. Ele estava furioso e irritado comigo. Sugeriu que, da próxima vez, enfiasse a maldita perna em uma serra elétrica, o que nos pouparia um bocado de tempo e preocupações... mas também me informou (acho que com má vontade) que não houvera nenhuma lesão permanente. Era a sua opinião. Avisou que eu não havia melhorado minhas chances de, um dia, participar da Maratona de Boston, e saiu.

Portanto, foi alegre a visita da família — devido principalmente a Ellie, que tagarelou sem cessar sobre aquele iminente cataclismo, seu Primeiro Encontro. Um cabeça-dura, careta e com espinhas, chamado Brandon Hurling, a convidara para patinarem juntos. Papai os levaria de carro. Muito atraente.

Papai e mamãe se juntaram à conversa, mas ela ficava enviando ansiosos olhares de "não-se-es­queça" para o velho. Ele ainda permaneceu um pouco no quarto, depois que ela saiu com Elaine.

— O que aconteceu? — perguntou. — Leigh contou ao pai uma história maluca, sobre carros que se dirigem sozinhos, garotinhas que já morreram e não sei mais o quê. Ele ficou fora de si.

Assenti. Estava cansado, mas não queria que Leigh passasse maus bocados com os pais — ou que os deixasse pensando que a filha mentia ou ficara biruta. Se ela me protegera com Mercer, eu teria de protegê-la com seus pais.

— Está certo — falei. — É uma história e tanto. Pode mandar mamãe e Ellie tomarem um malte ou qualquer coisa? Bem, acho que seria melhor sugerir que as duas fossem a um cinema.

— É tão comprida assim?

— Hum-hum. Tão comprida assim

Ele olhou para mim, com ar preocupado.

— Está bem — disse.

Pouco depois, eu contava minha história uma segunda vez. Agora a estou contando pela terceira. E, segundo dizem, a terceira vez é a definitiva. Descanse em paz, Arnie. Amo você, cara.

 

Epílogo

 

Se esta fosse uma história de ficção, suponho que a terminaria contando como o cavaleiro de perna quebrada da Garagem de Darnell cortejou e conquistou a dama loura... aquela do cachecol rosa de náilon e de arrogantes malares nórdicos. Entretanto, isso jamais aconteceu. Leigh Cabot agora é Leigh Ackerman; mora em Taos, no Novo México, e está casada com um representante das máquinas IBM. Vende produtos de beleza, em suas horas de folga. Tem duas garotinhas, gêmeas idênticas, motivo por que talvez não tenha muitas horas de folga. Continuo mantendo contato com ela, pois minha afeição pela dama nunca chegou a terminar. Trocamos cartões de Natal e também lhe envio um cartão de aniversário, já que ela tampouco esquece o meu. Coisas assim. Em certas ocasiões, parece que tudo aconteceu há mais tempo do que somente quatro anos.

— O que houve conosco? Sinceramente, não sei. Saímos juntos durante dois anos, dormimos juntos (extremamente satisfatório), fomos juntos para a mesma universidade (Drew) e nos tornamos amigos. Seu pai se calou sobre nossa louca história, depois que o meu conversou com ele, embora depois disso sempre me considerasse uma pessoa um tanto ou quanto estranha. Creio que ele e a Sra. Cabot ficaram aliviados quando eu e Leigh tomamos caminhos diferentes.

Pude sentir isso quando começamos a afastar-nos, e me doeu — doeu um bocado. Eu ansiava por ela, da maneira como continuamos a ansiar por alguma substância da qual não mais sentimos nenhuma dependência física... balas, fumo, Coca-Cola. Fiquei com dor-de-cotovelo por ela, mas penso que de forma consciente, algo que desapareceu com rapidez quase indecorosa.

Talvez eu entenda o que aconteceu. O sucedido naquela noite, na Garagem de Darnell, era um segredo nosso e, naturalmente, apaixonados precisam ter seus segredos... mas aquele não era dos melhores. Foi algo frio e antinatural, algo que beirava a loucura, e pior ainda do que loucura, já que chegava à borda da sepultura. Houve noites, após o amor, em que ficávamos juntos na cama, nus, corpo contra corpo, e aquela coisa estava entre nós: o rosto de Roland D. LeBay. Eu lhe beijava a boca, os seios ou o ventre, cálido pela crescente paixão, mas de súbito ouvia a voz dele: Esse é o melhor cheiro do mundo... exceto o de cona. E eu gelava, minha paixão se tornava fumaça e cinzas.

Sabe Deus que houve vezes em que eu podia também ver isso no rosto dela. Os amantes nem sempre vivem felizes para sempre, mesmo quando agiram da maneira que parecia correta e da melhor forma que puderam. Aí está algo mais que levamos quatro anos para aprender.

Então, nos afastamos. Um segredo precisa de dois rostos onde ricochetear; um segredo precisa ver-se refletido em outro par de olhos. E, embora eu a amasse, todos os beijos, todas as carícias, todos os passeios de braços dados, através das folhas que caíam em outubro... nada disso poderia comparar-se ao fantástico simples ato de ela atar sua echarpe em torno de meu braço.

Leigh deixou a universidade para casar — e então foi adeus, Drew e olá, Taos. Assisti a seu casamento, sem qualquer peso na consciência. Um grande sujeito. Tinha uma Honda Civic. Nenhum problema com ele.

 

Nem mesmo precisei me preocupar quanto a jogar futebol. Drew nem ao menos tem uma equipe. Em vez disto, a cada semestre matriculei-me em uma matéria extra e freqüentei o curso de verão por dois anos, época em que estaria suando ao sol de agosto, dando em cima dos adversários, se as coisas houvessem acontecido de modo diverso. Como resultado, graduei-me mais cedo — de fato, três semestres mais cedo.

Quem me vê na rua, não nota o menor defeito, mas se caminhar comigo por uns sete ou oito quilômetros (na verdade, faço quatro quilômetros diários; isso de fisioterapia é algo que vicia), perceberá que começo a puxar ligeiramente para a direita.

Minha perna dói em dias chuvosos. E também em noites nevadas.

Em certas ocasiões, quando tenho pesadelos — agora não são mais tão constantes —, desperto suando e agarrado àquela perna, onde ainda existe uma saliência dura de carne, acima do joelho. Felizmente, todas as minhas inquietações sobre cadeiras de roda, aparelhos ortopédicos e calcanhares artificiais foram em vão. Por outro lado, deixei de gostar tanto de futebol.

Michael, Regina e Arnie Cunningham foram sepultados no jazigo da família, no cemitério de Libertyville Heights — ninguém compareceu ao enterro, além de membros da família: os parentes que Regina possuía em Ligonier, alguns de Michael, residentes em New Hampshire e Nova Iorque, e uns poucos outros.

O funeral teve lugar cinco dias após aquela infernal cena na garagem. Os ataúdes estavam fechados. O próprio fato daqueles três caixões de madeira, alinhados em um estrado tríplice, como soldados, atingiu meu coração como uma pá de terra fria. A lembrança das fazendas de formigas não pôde resistir ao mudo testemunho daqueles ataúdes. Chorei um pouco.

Depois, rodei minha cadeira pelo corredor até eles e pousei a mão, instintivamente, sobre o ataúde do centro, sem saber se era ou não o de Arnie, mas isso não fazia diferença. Fiquei assim por bastante tempo, a cabeça baixa, até quando uma voz soou atrás de mim.

— Quer que o empurre até a sacristia, Dennis?

Girei o pescoço. Era Mercer, parecendo muito correto e representativo da lei, em um terno de lã escura.

— Certo — respondi. — Dê-me apenas um minuto, ok.

— Está bem. Vacilei, depois disse:

— Os jornais disseram que Michael foi morto em casa. Que o carro passou por seu corpo, depois que ele escorregou no gelo, ou coisa assim.

— Exato — respondeu ele.

— Obra sua? Mercer hesitou.

— Torna as coisas mais simples. — Seu olhar desviou-se, até onde Leigh estava sentada com meus pais. Ela falava com mamãe, mas olhava ansiosamente para mim. — Uma garota muito bonita — disse.

Mercer já fizera o mesmo comentário antes, no hospital.

— Um dia vou casar com ela — falei.

— Não seria surpresa para mim — replicou Mercer. — Alguém já lhe disse que você tem a coragem de um tigre?

— Acho que o treinador Puffer disse isso. Uma vez — falei. Ele riu.

— Está pronto para aquele empurrão, Dennis? Já ficou aqui por tempo demais. Esqueça isso.

— É mais fácil falar do que fazer. Ele concordou.

— Sim, acho que sim.

— Pode me dizer uma coisa? — perguntei. — Eu preciso saber.

— Responderei, se puder.

— O que você fez... — Precisei parar e pigarrear. — O que fez com... as peças soltas?

— Eu mesmo cuidei disso — respondeu Mercer. Sua voz era jovial e quase alegre, mas o rosto estava sério, muito sério. — Fiz com que dois sujeitos da polícia local juntassem tudo e colocassem no compressor, aquele nos fundos da Garagem de Darnell. Ficou um cubinho deste tamanho. — Ele afastou as mãos, a uns cinqüenta centímetros uma da outra. — Um dos sujeitos sofreu um ferimento sério. Precisou levar pontos.

Mercer sorriu subitamente — e foi o sorriso mais amargo e mais frio que já vi.

— Ele disse que aquilo o mordeu.

Em seguida, empurrou-me corredor abaixo, até onde minha família e minha namorada esperavam por mim.

 

Bem, aí está a minha história. Exceto pelos sonhos.

Estou quatro anos mais velho, e o rosto de Arnie começa a ficar indistinto para mim, uma fotografia acastanhada, em um antigo anuário escolar. Parece incrível que tenha acontecido, mas assim foi. De algum modo, atravessei este período, a transição de adolescente para adulto — seja lá o que for; possuo um diploma universitário, onde a tinta está quase seca, e leciono História no ginásio intermediário. Comecei o ano passado, e dois de meus alunos originais — ambos tipo Buddy Repperton — eram mais velhos do que eu. Estou solteiro mas existem algumas damas interessantes em minha vida, e dificilmente penso em Arnie.

Exceto nos sonhos.

Esse sonhos não são a única razão pela qual escrevi tudo isso. Existe outra, que explicarei em um momento, mas mentiria se afirmasse que os sonhos não constituem uma boa parte da razão. Talvez isto seja um esforço para lancetar a ferida e limpá-la. Também é possível que eu apenas não seja rico o suficiente para me dar o luxo de um analista.

Em um dos sonhos, vejo-me de volta à cerimônia do funeral. Os três ataúdes estão em seu estrado tríplice, mas não há ninguém na igreja, além de mim. No sonho, estou novamente de muletas, em pé no início do corredor central, com a porta às minhas costas. Não quero seguir em frente, ir até lá, mas as muletas me puxam, movendo-se sozinhas. Toco no ataúde do meio. Ele se abre repentinamente ao contato e, jazendo no interior acetinado, não está Arnie, mas Roland D. LeBay, um cadáver putrefato, em uniforme do Exército. Quando o cheiro nauseante de podre... me atinge, o cadáver abre os olhos; suas mãos pútridas, enegrecidas e pegajosas por alguma excrescência fungóide, tateiam para cima e encontram minha camisa, antes que eu possa recuar. Então, elas me puxam, até que seu rosto feroz e fedorento fica apenas a centímetros do meu. Ele começa a crocitar, mais e mais: Não suporta o cheiro, hein? Nada cheira tão bem... exceto uma cona... exceto uma cona... exceto uma cona... Tento gritar, mas não posso, porque as mãos de LeBay se fecharam em um pernicioso, apertado anel em torno de minha garganta.

No outro sonho — e este, de certa forma, ainda é pior — eu termino de dar uma aula ou estou atuando como inspetor em uma sala de estudos do Ginásio Norton, onde leciono. Recoloco meus livros em minha pasta, guardo nela as minhas provas e deixo a sala, dirigindo-me à aula seguinte. E lá, no corredor, apertada entre os armários cinza-industrial dos alunos, está Christine — nova em folha e cintilante, repousando sobre quatro pneus novos de banda branca, um enfeite cromado da Vitória Alada no capô, empinado em minha direção. Christine está vazia, mas seu motor acelera e diminui... acelera e diminui... acelera e diminui. Em certos sonhos, a voz que vem do rádio é a de Richie Valens, morto há muito tempo em um desastre de avião, com Buddy Holly e J. P. Richardson, The Big Bopper. Richie está gritando "La Bamba" em ritmo latino. Quando Christine arremete subitamente para mim, deixando marcas de borracha no piso do corredor e arrancando portas abertas dos armários a cada lado, com suas maçanetas, vejo que em sua dianteira há uma placa exibicionista — um sorridente crânio branco, sobre campo inteiramente negro. Acima da caveira estão impressas as palavras O ROCK AND ROLL JAMAIS MORRERÁ.

Então acordo — algumas vezes gritando, mas sempre agarrando minha perna.

 

Os sonhos, contudo, agora têm sido menos regulares. Em uma de minha aulas de Psicologia — tive muitas delas, talvez ansiando compreender coisas que não podem ser compreendidas — li que as pessoas sonham menos à medida que ficam mais velhas. Acredito que, agora, tudo irá bem comigo. No último Natal, quando enviei a Leigh meu cartão anual, acrescentei uma linha à nota costumeira no verso. Abaixo da assinatura, movido por um impulso, garatujei: Como tem manejado aquilo? Então, selei o cartão e o remeti, antes que me arrependesse. Um mês mais tarde, recebi um cartão-postal, mostrando o novo Centro de Artes de Taos. Nas costas, havia o meu endereço e apenas uma linha seca: Manejando o quê? L.

De um jeito ou de outro, creio termos descoberto coisas que temos de saber.

Mais ou menos pela mesma época — parece que meus pensamentos se concentram nisso, com mais freqüência, justamente por volta do Natal — escrevi uma nota para Rick Mercer, porque a questão permanecera em minha mente, atormentando-me cada vez mais. Eu lhe perguntava o que tinha sido feito do bloco de sucata de metal que, uma vez, fora Christine.

Não recebi resposta.

O tempo, entretanto, tem-me ensinado a lidar também com isso. Venho pensando menos em tais assuntos. Realmente.

 

Assim, aqui estou eu, no finalzinho de tudo, velhas lembranças e velhos pesadelos, amontoados em um ordenado punhado de páginas. Em breve, tais páginas serão postas em uma pasta, essa pasta irá para meu arquivo, a gaveta será trancada — e isso significará o fim.

Bem, eu disse que havia algo mais, não? Uma outra razão para anotar tudo.

Seu egoístico objetivo. Sua fúria interminável.

Foi algo que li no jornal, algumas semanas atrás — apenas um item fornecido pela AP, creio que por ser bizarro. Seja franco, Guilder, posso ouvir Arnie dizendo — portanto, serei franco. Pois foi esse item que me impeliu a prosseguir, mais do que todos os sonhos e antigas lembranças.

A notícia dizia respeito a um indivíduo chamado Sander Galton, cujo apelido — podemos supor logicamente — deve ter sido Sandy.

Este Sander Galton foi morto na Califórnia, onde trabalhava em um cinema drive-in, em Los Angeles. Estava aparentemente sozinho, fechando tudo por aquela noite, após terminado o filme. Encontrava-se no bar. Um carro derrubou uma parede, derrubou o balcão, amassou a máquina de pipocas e o pegou, quando ele tentava abrir a porta para a cabine de projeção. Os tiras deduziram que era o que fazia, no momento em que o carro o atropelou, porque encontraram a chave em sua mão. Li a notícia, intitulada ESTRANHO ASSASSINATO POR AUTOMÓVEL EM LOS ANGELES — e pensei no que Mercer me tinha dito, aquela última coisa: Ele disse que aquilo o mordeu.

Claro que é impossível mas, de início, tudo era impossível.

Fico pensando em George LeBay, no Ohio.

Na irmã dele, no Colorado

Em Leigh, no Novo México.

E se a coisa começar outra vez?

E se a coisa estiver vindo para leste, terminar o serviço?

Deixando-me para o fim? 

Seu egoístico objetivo.

Sua fúria interminável.

 

 

* Federação Americana do Trabalho e Congresso das Organizações Industriais (N.T.)

* Grande sanduíche com pão de crosta dura, cortado no sentido do comprimento e contendo várias espécies de carnes frias e também às vezes pimentão e tomate. (N.T.)

* Criança boba, feia ou de mau gênio, que se acredita ter sido trocada, ao nascer, pelas fadas. (N.T.)

* Carro antigo, com o motor original recuperado com peças de outros carros, usado em provas de velocidade, onde são permitidas colisões (N.T.)

 

 

                                                                  Stephen King

 

 

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