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TENHA PACIÊNCIA HOMEM de Deus! A coisa vai melhorar.
Azor falou calmo e apertou amigavelmente a mão de Doca que riscava impaciente a toalha suja, imunda mesmo, e quadriculada.
— Vamos, pegue um cigarro. Atirou a carteira em cima da mesa.
Doca retirou o lenço do bolso e começou a se enxugar. Primeiro os cabelos, os olhos, o nariz. O calor era tanto que poderia torcer o lenço para o suor cair na mesa.
Os olhos dos outros homens fixaram-se na carteira de cigarro.
Doca sentindo isso apanhou-a, devolvendo-a ao amigo.
— Guarde isso, porque senão as "piranhas" virão filar. E mesmo não vou querer fumar. Já não basta essa fumaceira que machuca até os olhos da gente?
Tudo era fumaça. A própria luz que saía dos bicos de carbureto vinha torva, fétida e nauseabunda.
Os homens sem dinheiro, de rostos barbados, de camisas de mangas arregaçadas, na maioria descalços, se encostavam às paredes de pau-a-pique olhando o ambiente, espiando os mais abonados que podiam se sentar e beber pelo menos uma cerveja quente. Sempre havia esperança de ser convidado.
No palco primitivo também iluminado por luz de acetileno uma mulher gorda, extremamente gorda, sentava-se num banco, perto de uma vitrolinha e esperava. O disco acabava, ela virava o outro lado e dava corda. Ficava assim indiferente uma eternidade. Só trocava o disco quando reclamavam aos berros.
— Oi, Tuta dos diabos, vareia essa porcaria.
Dobrava os seios opulentos e balançava as montanhas de carne dos braços ao se debruçar para apanhar outro disco no banco. Obedecia, sorria de um modo bonito e encostava-se na parede. Seus olhos fugiam de tudo e Tuta parecia se petrificar.
Se por acaso acontecia um momento de silêncio, ouvia-se lá fora uma música mais monótona ainda: a chuva grossa caindo.
Quando entrava um grupo no cabaré, formava-se uma torrente de ar que ampliava mais o cheiro da chuva no sapé, o azedo do suor dos homens e o veneno do carbureto.
Doca indagou com o olhar.
— E aquilo?
— É Tuta. Foi uma grande mulher. Você precisava ver.
— Como é mesmo o nome?
— Tuta. Doca riu bem humorado.
— Entendi outra coisa.
— Ela se chama Antonha. Mas o nome de guerra dela é Tuta. Ela acha que combina melhor com a profissão.
— Sabe de uma coisa, Azor. Eu não agüento esse calor, vou-me embora.
Azor olhou o relógio.
— 'Pera um pouco, seu moço. Garanto que não vai se arrepender. Mas vendo a irritação de Doca, levantou-se.
— Vou lá dentro falar com Suzi. Quando dá fé ela começa o espetáculo logo.
Todo o mundo tirou os olhos da mesa para acompanhar a caminhada de Azor por entre as cadeiras. Mexia com um e com outro. Gostavam dele, porque era o melhor patrão no barracão das castanhas. Gostava de ajudar. Nunca se via uma expressão de zanga em seu rosto. Sempre os olhos verdes estavam sorrindo. Tinha um tipo atarracado e ultimamente dera para engordar. Todo o mundo sabia o quanto ele gostava de comer.
Doca desviava a vista de um canto e dava com alguém olhando a sua mesa. "Diabos! Aquilo era o Purgatório, não havia dúvida". Ficava condenado a fixar somente o vulto inanimado de Tuta, que olhava para o alto contemplativamente.
Idiota de ter aceito aquele convite, logo no primeiro dia da chegada. Os olhos cansavam-se mais, queriam fechar-se por causa daquela luz fumacenta. Apertou-os por um momento e encostou o queixo numa das mãos. Mais um pouco e dormiria. Porém, teve que abrir os olhos rapidamente. Uma algazarra alegre despertara o ambiente. Risadas e assobios pareciam querer assustar até a chuva.
Azor voltava e trazia um homem pela mão.
Doca cocou a cabeça e comentou intimamente: "Só faltava isso agora".
O rapaz, se é que assim se pudesse chamar, deveria ter ultrapassado a casa dos trinta. Já de longe se descobria seu rosto maquilado. Os olhos brilhavam mais por causa do "rímel" e da sombra azulada. Parecia até usar pestanas postiças. Tinha aquele toque gracioso ao caminhar e dentro das calças apertadas ele agitava as nádegas, envaidecido pelos apupos e assovios.
Parou em frente à mesa de Doca e sorriu. O rosto gorducho e a boca sensual ampliada pelo batom foram-se transformando numa melosidade dengosa. Tentava disfarçar um começo de calvície deixando que os cabelos escuros caíssem para a frente. Ao se baixar, num meio gesto ele os recompunha de uma forma estudada para que continuassem a disfarçar aquele seu desgosto.
Azor apresentou o tipo.
— Pronto, Doca, trago Suzi para você conhecer.
Entregou a mão macia para o rapaz e fez o possível para não retirá-la enquanto sorria perto do rosto de Doca. Doca estava abismado.
— Como foi que você falou, Azor?
— Suzi, mesmo.
— Ah!
Suzi deu uma desmunhecada elegante e apontou o dedo em riste para o peito do homem.
— Não, meu bem, Suzi é só o meu nome... sabe como é? Um nome carinhoso com que os amigos me tratam. Mas meu nome de homem (suspirou infeliz) é Cléo.
Sentou-se sem cerimônia, arrastando uma cadeira.
Doca fazendo-se de desentendido, resolveu gozá-lo.. — Mas é Leo? Leo de Leão?
Tamborilou os dedos brancos e gorduchinhos na mesa e sorriu fazendo charme:
— E se fosse? O que é que teria? Você nunca viu homens magricelas se chamarem Hércules? Negras pretíssimas batizadas de Branca... Pois é. São mistérios da vida.
Num gesto meio atrevido pousou a mão na de Doca.
— Mas pra você, meu bem, eu sou Suzi.
Levantou-se e sem despregar os olhos dos olhos de Doca, comentou:
— Preciso ir, para apressar o "show".
Novamente os apupos e as vaias enquanto o corpo ondulante ia desaparecendo do cenário.
Doca balançou a cabeça desorientado.
— Também você me apronta cada uma!
— É divertido. Mesmo porque se você não fizer camaradagem com ele não conseguirá uma coisa mais tarde. E eu acho que você não vai se arrepender.
Duas biraias de cabelos oxigenados vieram para descer a luz dos carburetos e apagá-las.
Passavam pelos homens, ouviam propostas, levavam beliscões e bolinamentos. Já estavam acostumadas e sorriam.
Veio um silêncio tão grande que dava para ouvir lá fora o ininterrupto gotejar da chuva. O momento era de enorme ansiedade. Uma luz de fora penetrava no palco e o vozerio inquieto murmurou mais gemidos do que palavras.
Uma prostituta apareceu com um lampião Aladim e colocou-o sobre um banco, clareando um pouco o palco. Em seguida, outra mulher trazia outro lampião. O palco iluminou-se todo e podia-se perceber as silhuetas dos rostos, dos corpos, devorando o biombo improvisado por uma esteira. Um violão soltou um acorde e o público enlouqueceu. Palmas selvagens ecoaram.
Uma voz morna nasceu suavemente. Ninguém se continha mais.
— Chuva! Chuva Crioula!
— Queremos Chuva Crioula!
— Chuva! Chuva!
— Crioula! Crioula!...
Do biombo escapou uma mão. E a mão longa e bem feita de dedos alongados cobertos de anéis. Depois, o braço se atirou fora da esteira e a mão dobrou-se voltando para o biombo, e puxando outra mão igualmente cheia de jóias. Agora os anéis se confundiam com as pulseiras.
O público delirava.
— Chuva! Chuva! Chuva Crioula!
As mãos já agora entrelaçadas foram trazendo primeiro a cabeça de Esmeralda, depois num pulo felino ela toda no meio do palco.
Doca prendeu a respiração.
— O que é aquilo, meu Deus?
Os olhos devoravam a mulher que balançava o corpo para frente e para o lado como se imitasse a chama de um candeeiro.
Seus cabelos negros caíam sobre os ombros como se os mordessem.
O nariz afilado, os dentes brancos na boca sensual e rasgada. De entontecer eram os seus olhos, verdes como os de uma onça negra.
Azor cutucou os ombros de Doca.
— Valeu a pena?
Doca nem podia responder. Estava imantado ao corpo da mulher. O vestido branco-prateado era tudo que havia sobre o seu corpo. Os ombros lindamente torneados. Os seios duros, pontudos, arfantes, desafiando a cupidez dos machos. A cintura fina ampliava a curva dos quadris. Um corte na saia mostrava a perna direita que marcava o compasso da sua dança primitiva. Os pés descalços traziam os tornozelos rodeados de fios de pérola.
Ela parou um instante e riu mais. Mais ainda. Ainda mais. Agora era um pandemônio de gritos, assovios e palmas.
Com um gesto elegante ela pediu silêncio. Depois entreabrindo os braços perguntou sorrindo.
— Vocês queriam a Chuva Crioula? Pois bem, a Chuva está aqui.
— Cante, minha nega. Cante.
O violão gemeu um acorde grave. E Chuva Crioula, cantou. O estranho era que suas cantigas não tinham palavras. Só murmúrios, gemidos que traduziam toda a emoção que se comunicava ao público.
Doca também estava fascinado. Todos os homens entendiam, naquele cantarolar, as palavras que gostariam de ouvir.
Azor delirava com o encantamento de Doca.
— Não te disse?
Doca nem respondia. Pensava apenas: "Se fosse mais clara, seria branca; um pouco mais escura, seria negra".
Ela parava, ria e cantava. O tempo não contava agora. As duas mulheres desceram do palco enquanto Esmeralda também descia ondulante.
Os dois lampiões seguiam-na lado a lado e ela se tornava mais linda, mais desejada.
As mãos erguiam-se cobiçosamente perto do seu corpo, sem que a tocassem.
O violão continuava acompanhando lá no palco, mas ninguém se interessava por nada além de Esmeralda.
Ela cantarolava o que lhe vinha no pensamento. E sorria, caminhando lentamente e mais sinuosa.
Chegava ao seu destino. As mulheres pararam e ela também Olhava nos olhos de Doca e sorria. Os homens enciumados fizeram silêncio. Nada importava e ela ria.
Azor sacudiu o embaraço de Doca.
— Diga qualquer coisa. Ela está esperando. Fale. Pergunte. Invente, homem de Deus!
Quase gaguejando, indagou.
— Dona... por que chamam você de Chuva Crioula? Ela deu uma risada sadia que contaminou o ambiente. Alisou os braços, os ombros, os seios, as nádegas... Escondeu
as mãos entre as coxas antes de alisar as pernas e agachar-se para segurar os seus pés. Depois foi-se erguendo devagar e falou entre sorrisos.
— Vê? Eu sou crioula. Toda Crioula.
Continuou parada ante a desorientação de Doca. Esperava mais uma pergunta e ele sabia disso.
— Sim. Mas por que a Chuva?
Sem pressa alguma ela contornou a mesa de Doca. Postou-se atrás dele, abriu os braços e, enlaçando seus ombros, deixou que seus cabelos escorregassem na face de Doca, e, com os lábios macios, na orelha esquerda do rapaz, murmurou gostosamente:
— Crioula. Chuva. Chuva Crioula... é porque, meu bem, eu sou a Chuva da Noite.
SEGUNDO CAPÍTULO
O Amarelo e o Negro
NEM SABIA SE TINHA cinco ou seis anos. Também não significava nada. Menor ainda já estava sendo criada na realidade de que mulher nasceu para trabalhar.
Entretanto, amava ver o rio tão grande. O rio que parecia trazer, a cada dia, uma novidade para os seus olhos.
Não raro escutava a voz da mãe, gritando longe.
— Ande, Esmeralda. Não fique aí lavando a eternidade. Venha olhar as panelas...
Levava um pequeno susto e de novo se perdia em seus sonhos. Ficava batendo a roupa e torcendo, vendo a corredeira encher-se de espuma, que ia embora boiando.
O Rio, sim. Quando o tempo da seca aparecia, ia com Domício e Noraldino lavar a roupa na praia. Tudo facilitava o trabalho. O difícil era atravessar a canoa. Mas os irmãos, mais velhos que ela, tomavam conta disso.
Lavava, cantarolava e estendia a roupa na areia branca do rio. Descansava um pouco, mergulhando o corpo na água transparente e deixava que os cabelos longos e negros escorressem água em seus ombros. Os irmãos vinham nadar perto. Voltavam a pescar. Deixavam a pescaria e ferravam luta na areia.
Só retornavam se a fome dava horas.
Quando surgiam as grandes chuvas, quando o calor aumentava ao máximo e as nuvens se tornavam negras ensombrando o céu, dava até medo. Os quicês dos raios rasgavam o ventre das nuvens e a chuva desabalava machucando tudo. Até as plantas sofriam. Os pássaros, os grandes jaburus e socos buscavam lugar longe com gritos de pavor. Aí as águas engrossavam e comiam a areia branca tão dourada de sol. Os ruídos das árvores, arrastadas pela correnteza, batendo em tudo, tudo derrubando. E eram muitas. O som das grandes barrancas, das ribanceiras que vinham abaixo com o malinar das grandes cheias.
Quando dava uma estiada, precisavam suspender as pedras e a tábua de lavar roupa. Algumas vezes as águas, zangadas, chegavam bem perto do rancho. Mas nunca acontecia ser invadido.
Hoje era diferente e o dia estava sem chuva, mas com sol e vento.
Esmeralda trouxera a mobília suja e viera lavar o resto grudado do "de comer". Deixava as panelas e a frigideira mergulhadas e esperava o mundo de peixes vir reinar nos restos que se desgrudavam.
Agora passara os dias tristes da Semana Santa. A mãe não deixava que cantassem, falassem palavrões. E dizer diabo era pecado de inferno.
O sol quente das três horas embelezava o sábado de Aleluia. Mas Esmeralda não sentia vontade de cantar. Quando sabia que "ele" estava na roça ou longe de chegar para as refeições abria o peito a cantar as cantigas que a mãe ensinava. Mas perito "dele" nem falava, nem levantava o rosto para espiar os seus olhos duros e negros, e seu rosto sempre com a barba por fazer.
Por dentro, o coração pedia para cantar. Mas uma tristeza grande não deixava.
Já avistara Domício e Noraldino lá no alto da barreira amontoando pedras. Não se sentia bem vendo aquilo. Diziam que era um boneco mas não gostava de presenciar. Dava a impressão que doía no Judas.
Cada ano fabricavam um bonecão diferente e amarravam-no preso a uma forte estaca que por sua vez era fincada na canoa. Tudo muito resistente para agüentar o linchamento.
Quando ouviram som de foguetes longe, na curva do rio, no rancho do Tarumã de seu Deodato, foi aquela gritaria. O coração de Esmeralda se apertou. Apanhou a panela e a frigideira. Enrolou os talheres num pano e foi subindo a ladeira apressadamente.
Mas Domício interrompeu sua passagem.
— Você tem que ver, Dada.
— Não quero. Não gosto.
— Que boba! Ter medo de um boneco.
Retirou os trens da mão da irmã e puxou-a para perto do monte de pedras.
— 'Tá bem. Eu espio, mas não jogo pedra nele.
— Não jogue. Mas Deus dá sorte a gente na pescaria, na roça e na caça, a quem acerta nele...
Esmeralda não se convenceu. Mordeu os lábios emburrada. Baixou a cabeça e começou a ciscar o chão com os pés.
— Pronto. Lá vem o judas.
A canoa ao longe descia de bubuia, rodopiando meio desequilibrada, ampliando a fealdade do boneco. Parecia que ele dançava embriagado.
Contra o sol, avistava-se apenas o seu vulto disforme e monstruoso.
— Ela vai passar bem rente à barreira. O canal aqui é mais fundo e vai puxar a canoa.
De fato, a ubá veio se aproximando da beira e esbarrava nas ramas do sarão ou em tranqueiras ali acumuladas. Cada batida aumentava mais a tristeza da figura.
— Veja, Dada. É um bonecão.
— Não é, não. É gente mesmo.
— Sua boba! Não está vendo que ele está todo estourado e que sai capim, palha de banana e pedaços de pano?
Relutou mas criou coragem para fixar o judas que se aproximava. Ficou toda trêmula. Era grandão, mas parecia gente. A cabeça caía em direção ao peito e o chapéu de palha não desgrudava da cabeça.
Começou a desejar que o chapéu não caísse e ela não avistasse os olhos do boneco, que estava todo atirado. Massacrado com tiros, pedradas, pauladas, e até flechas de índio perfuravam o seu corpo.
— Agora, Domício.
Fizeram mira e bombardearam o judas. A canoa a cada pedrada balançava toda, perdia o rumo e voltava a cair na bubuia.
— Vamos, Noraldino. Vamos perseguir ele pela ribanceira. Esqueceram-se da irmã e aos gritos acompanhavam de carreira a embarcação.
Esmeralda sentou-se no chão ainda tremendo e teve vontade de chorar. Ficou ali esquecida do mundo, olhando a vida dos pequeninos seres que caminhavam no chão. Eram formigas de cores diversas, umas maiores, outras pequenininhas. Mas todas trabalhando, carregando coisas.
Assustou-se quando os irmãos suados se aproximaram dela.
Ainda comentavam excitados:
— Acertei cada uma!
— Eu também! Até pensei que fosse derrubar o chapéu do bruto, Começaram a mastigar pedaços de capim.
— Pena foi a canoa, não?
— Foi sim. Dava vontade da gente pegar ela. Uma canoa firme. A gente botava umas estopas nos buracos e ainda ia servir muito.
— É, sim. Mas cadê coragem? O diabo pegava a gente. O judas tem que afundar sozinho e a canoa do mesmo jeito.
— Vamos esquecer que a gente pensou assim. Esmeralda apanhou as louças e foi-se encaminhando para o rancho.
Nessa noite dormiu com febre e, da sua tipóia, parecia avistar o boneco sem chapéu, e de olhos em fogo espiando-a. De madrugada começou a gemer e a vomitar. A mãe veio com o candeeiro espiar. Mas a voz "dele" exclamou irritada:
— Essa negrinha 'tá é fazendo birra. A gente dá um duro danado na roça. Comido de mosquito e torrado de sol... e de noite nem dormir se pode.
— Calma, homem de Deus. Tenha paciência. Assim você vai acordar os outros.
Passou as mãos em sua face, nervosamente.
— Ela está ardendo em febre.
E antes que ouvisse novas pragas, retirou a menina da tipóia e se encaminhou para a cozinha.
Sentou-se, abrindo a porta, e espiou a noite tão cheia de estrelas. Ficou embalando a filha e falando doce.
— Dorme filhinha. Dorme. Mamãe está junto e ninguém vai-lhe fazer nada de maligno.
O céu é azul. A nuvem é branca. A flor do ipê selvagem, amarela. Quando cortava o dedo ou se arranhava o sangue surgia vermelho. Agora a noite era negra. Esmeralda olhava desesperada para as pernas e para as mãos. Como a noite.
Quando os irmãos brigavam com ela logo a chamavam de negrinha. No começo nem sabia o que era; depois foi descobrindo aos poucos que era diferente. Notava nas canoas que passavam muita gente que se parecia com a noite.
Ficou triste e começou a chorar. A mãe viera à sua procura estranhando a sua demora no rio. Encontrara-a com a cabeça escondida entre os braços, sentadinha no chão. Seu corpo franzino se sacudia de soluços.
— Por quê? Por que sou diferente?
— Isso não tem nenhuma importância, Dada.
— Tem sim, mãe, eu sou como a noite.
— E a noite não é tão bonita? A noite tem sempre estrelas no céu. A noite é dona da lua.
Ela, porém, não se conformava.
— Queria ser como eles. Igualzinha a eles.
— Olhe, minha bobinha, seus irmãos são brancos como o dia e você acha que é cor da noite. Mas seus irmãos não têm esses olhos verdes cor da selva como os da mamãe. Seus irmãos não têm o cabelo preto como você tem. Assim como os da mamãe.
Pegou na mão da menina e começou a levá-la para casa.
_ Você sabe por que se chama Esmeralda? Não? Pois, bem. Quando você era ainda um bebezinho, todo mundo se admirava da cor dos seus olhos. Ninguém tinha visto um verde tão bonito assim- Foi por isso que quis esse nome. Esmeralda é uma pedra rica da cor dos seus olhos.
Passou a mão carinhosamente na cabeça da filha.
— Você ainda é muito pequenina para saber dessas coisas, mas um dia saberá...
Esmeralda parou e olhou a mãe de um modo embaraçoso.
— Por que "ele" não gosta de mim? Por que "ele" só briga comigo e me empurra?
Sentiu um aperto no coração.
— Não é assim. João esperava outro filho e nasceu você. Um dia ele vai gostar muito de você. Ele bate nos outros, não bate?
Balançou a cabeça confirmando.
— Em você nunca deu uma palmada.
Ela não respondeu, mas enquanto caminhava começava a descobrir as coisas. Era por isso que ela não comia na mesa com os irmãos. Ajudava a mãe a servir as panelas. Depois, quando todos acabavam, podia comer sozinha na beira do fogão. Era por isso que seus irmãos todos os dias pegavam a canoa e viajavam mais de meia hora para estudar com a professora. Por isso que nunca a levavam para passear. Sua mãe deixava de sair para que ela não ficasse só. E quando apareciam visitas, os olhos ficavam grudados nela, olhando, olhando...
— Esmeralda está crescendo. Está ficando mocinha. Quando os irmãos voltavam da escola, quando almoçavam e "ele" sumia no trabalho, a mãe pegava a cartilha e começava pacientemente a ensinar-lhe o a-bê-cê.
Notava que a mãe não gostava mesmo de visitas. Fazia um ar de desânimo e demorava a se conformar quando uma canoa vinha no rio em direção ao seu porto.
No seu coração, sabia que ela era o motivo.
Chegaram perto da casa.
— E agora, filhinha? Está melhor? Fungou mas não soltou a mão da mãe.
— Mãe, eu hoje vi uma coisa.
— Então venha me contar, na cozinha. Assim você me ajuda a separar o arroz.
Sentaram-se e começaram a tarefa.
— Que foi que você viu?
— Duas mulheres lindas, lindas. Vinham numa canoa. Tinham um chapéu de palha. Uma porção de coisas bonitas brilhando no pescoço. Mas o que era bonito mesmo era o vestido delas. Eu gostaria de um dia ter um vestido daqueles.
— Como era?
— Como a flor do ipê.
Parou as mãos sobre o arroz e fitou quase chorando a menina.
— Falou alguma coisa com elas?
— Não, mas elas eram muito bonitas e eu queria falar com elas. Olhou a mãe com um sorriso ingênuo e os olhos verdes tinham adquirido o brilho da chuva na selva.
— Noro e Domício não deixaram. Me empurraram gritando e eu corri e fui me esconder na raiz da sapopemba. E ouvi tudo.
— Você devia ter obedecido aos seus irmãos.
— Eu queria, mas as mulheres eram tão bonitas! Pareciam o retrato de Nossa Senhora, no seu quarto.
— E você ouviu tudo?
— Tudo.
— Então por que não conta?
— Elas pararam a canoa firmando o remo na areia e riram pra eles.
— Conte.
— Meninos bonitos, aí no rancho não tão precisando de trabalho da gente? Elas falaram sem zangar. Mas aí, Noro e Domício começaram a...
Calou-se.
— Você não vai contar?
— Tudo, tudo?
— Claro.
— Aí eles disseram que elas eram vagabundas, que elas eram putas. Que fossem para o meio do inferno.
Olhou a filha e viu que ela crescera mesmo e que cada vez' mais se aproximava da sua grande tristeza.
— Eles não deviam ter feito assim.
— Eu também fiquei triste, mamãe, porque elas eram muito bonitas. Tocaram a canoa e gritaram para eles uma coisa que nunca ouvi: xibungo! Que é isso, mamãe?
— Não sei. Acho que você entendeu mal.
— Eles pegaram pedras e atiraram nelas. Mas não pegou porque a canoa já ia bem longe. Isso não se faz, não é?
— Não. Isso é maldade.
Calou-se e apanhou uma peneira para colocar o arroz escolhido.
— Precisamos encher uma bilha de água limpa na fonte. Esmeralda não se arredou. Queria saber mais.
— Mãe, por que aquelas mulheres andavam de canoa? Por que usavam aquele vestido tão lindo da cor da flor do ipê?
— Aquela cor se chama amarelo. É uma cor muito linda... Suspirou.
— Aquelas mulheres são as servidoras do rio, minha filha. Afagou com brandura os seus cabelos.
— Um dia você virá à saber o que é isso. Mas por enquanto ainda é muito cedo.
No fundo do coração, Esmeralda desejou que um dia pudesse ter um vestido amarelo tão lindo como aqueles...
TERCEIRO CAPÍTULO
Fábula do Veado e da Boneca
AZOR puxou A CORDA DO MOTOR e ouviu o ruído da hélice funcionando. Ficou contente. O bicho com ele não falhava nunca. Nada de lecar. Colocou o barco em posição de reta e principiou a baixada. Não ia viajar muito. Apenas procurou uma praia limpa e alta. A manhã anunciava-se morna e a água do rio levaria para longe o que de bebida ainda ficara no corpo.
Assobiou e o índio Xurupredo subiu de dentro da embarcação. Calado e grandão Xurupredo ficou inquirindo com o olhar. Piloteiro melhor jamais Azor encontrara.
— Pegue no leme e ache uma praia grande e mar pra gente se banhar. Agora eu vou lá dar um jeito no macho.
Falava sorrindo com sentido de gozação.
Em cima do toldo Doca dormia emborcado, espremendo o estômago. Junto da sua boca, colada na lona, apareciam as manchas dos últimos vômitos. Nem sentia que a embarcação viajava.
— Eta machão-pra-burro! Porre maior que esse ainda tô pra ver.
Voltou até a cabina e procurou numa pasta de papéis, um comprimido de Santa Cafiaspirina. Mergulhou a caneca no pote e retornou ao toldo conservando o mesmo sorriso de gozação que diminuía os seus olhos verdes.
Sacudiu com o pé as costas de Doca e em resposta veio um gemido dolorido.
— Pois é, desse gemer é que ninguém gosta. O outro que a gente geme montado nas coxas de uma égua crioula, esse você não quer dar.
Penalizou-se e ficou de cócoras. Dissolveu o comprimido n’água e desvirou o rosto do rapaz.
Estrema palidez invadia todos os seus traços.
— Ei, Doca, tome.
Abriu os olhos desorientado e o pequeno balanço do barco fê-lo segurar com força a barriga.
— Beba isso, seu jegue. Daqui a pouco tudo passa. O mundo pára de rodar e a dor de cabeça abre unha.
Sustentou a cabeça do homem que se sentara e empurrou o copo em sua boca entreaberta. Doca fez uma cara horrível e um engulho quase o fez vomitar de novo.
- Güente, homem. Güente, por amor de Deus. Doca se contorceu e obedeceu à ordem, mas não pôde evitar um sonoro arroto. Azor quase desmaiou.
— Isso já nem é mais estômago: é um vulcão. Evaporava-se um cheiro de conhaque de Alcatrão de São João da Barra, misturado com pinga, com cerveja choca, com pinga das irmãs vagabundas.
Doca gemeu.
Azor depositou sua cabeça no chão do toldo, riu com gosto, e demoradamente.
— Esses éguas da cidade acostumados com uísque "ingrês" chega aqui e bebe uma coisinha diferente e toca a dar vexame.
Falava porque a manhã estava linda e dava vontade de ser feliz. O vento que o barco fazia na carreira renovava no seu peito o amor sempre sentido pela selva. Pela beleza das árvores, o azul do céu, a paz do rião amigo. Mas sentia pena de Doca. Ele também já passara por tudo aquilo. E São João da Barra era mais teste pra homem ser homem do que doença venérea.
Ciente que em dez minutos o remédio faria efeito, deixou Doca adormecido e se postou perto do piloteiro.
— É fogo, não é Xurupredo?
— É.
Os riscos dos olhos olhavam longe estudando a praia que parecesse ao gosto de Azor.
— Lá.
— Então vamos.
Diminuiu a marcha da embarcação, enquanto com a zinga media a profundidade das águas, para não encalhar pesadamente.
O barco tocou na areia e Azor pulou n'água para suspender mais a sua proa.
— Legal!
Fez um sinal com o polegar para Xurupredo, confirmando que tudo estava bem.
Xurupredo abandonou o leme e pulou em terra. Dava prazer sentir a sola dos pés alisar a areia friinha.
— Enfiar zinga e amarrar?
— Não Xurupra, daqui ele não desgarra não.
Andou mais na praia e inspecionou o ambiente. Sabia não haver perigo, mas era hábito que o acompanhava desde mocinho.
Tirou a camisa e as calças e deixou-as jogadas no chão. Xurupredo acompanhou-o no gesto, libertando-se daquele calção gasto e sem cor exata.
— Banhar?
— Banhar, sim. Depois ele.
Mergulharam e ficaram um bom par de tempo olhando as nuvens brancas, o vôo dos jaburus e dos colhereiros lá longe. Olhavam como se os contassem porque a cada dia que passava as aves tão lindas desapareciam como por encanto.
— Agora vamos lá.
Pularam dentro do barco e se encaminharam para o toldo. Sem dizer nada desemborcaram Doca e começaram a despi-lo. Ainda soltava pequenos gemidos.
— Que é que vocês estão fazendo, bandidos?
— Nada. Te curando.
— Onde nós estamos?
— Numa praia. Você vomitou tanto no rio que os peixes foram pedir ao prefeito que despejassem você de lá. Até que uns mandis morreram intoxicados por sua causa.
— Pare de brincar, Azor. Tenha pena de um desgraçado de um moribun...
Não conseguiu concluir a frase. Como se fossem de mola, Xurupredo e Azor atiraram o homem dentro d'água.
— Agora ele sara.
Pularam ao mesmo tempo com medo que algo acontecesse. Nenhum dos dois ignorava que ele valia ouro.
Saiu do mergulho, tossindo, cuspindo água por todos os lados. Estava tão atarantado que nem sequer poderia soltar uns palavrões. Ameaçou sair do banho, mas quatro mãos o prenderam no mesmo lugar.
— Não, velhinho. Você só sai daqui quando tiver mesmo bonzinho.
Mergulharam outra vez sua cabeça.
— Vá respirando fundo que depois de três mergulhos você já é outro homem.
Demoraram mais uns minutos.
— Agora solte o bruto, Xurupredo.
Doca contornou o barco e foi deitar-se arfante na praia. Não dizia nada. Adquiria consciência de que os amigos haviam feito aquilo para o seu bem e recuperação.
Azor sentou-se a seu lado, enquanto Xurupredo subia para a cozinha do barco a fim de acender o fogareiro e fazer um café bem forte.
— E agora? Melhor?
— O estômago ainda meio embrulhado. Puta, que bebedeira!
— E que papelão.
— Foi?
_ Se foi!
Doca, com os olhos longe, tentava recuperar a memória.
— Que mulher!
_ Que mulher, sim. E que noite você perdeu.
— Perdi, mas vou recuperar.
Animou-se um pouco e falou entusiasmado.
— Nunca vi uma mulher com aquela cor ser tão linda! Virou-se sorrindo, sentando-se de uma vez e esquecendo do mal que o atacara anteriormente.
— Conte tudo, Azor.
— Uai. Você foi lá. Nem sei como conseguiu subir a escada. Caiu na cama e não viu nada. Chuva Crioula veio me buscar e eu carreguei você até o corredor. Quase que não dava tempo. Por pouco você vomitava no quarto da mulher. Agora se o corredor tiver vinte metros, fique certo que você sujou o bicho todinho.
— Que vexame!
— Eu que diga. Tive que descer você e ir até o barco chamar Xurupredo. Você pode não achar. Mas foi a coisa mais gozada que eu vi na vida. Xurupredo jogou você nos ombros, com a cabeça para baixo, com os braços balançando que nem folha de bananeira. Só de lembrar eu caio na risada.
— Desgraçado! Você parece que não tem pena de nada.
— De coisa séria tenho pena mesmo. Mas de porre, e que porre, acho o fim da picada.
Fizeram uma pausa e o cheiro do café chegava até eles. Logo em seguida Xurupredo apareceu com duas canecas.
— A dele 'tá sem açúcar.
Beberam com calma e Doca experimentava o estômago a cada sorvo. Quando acabou viu que tudo estava voltando ao lugar como antes.
— Sabe de uma coisa, Azor? Aquela mulher é linda!
— Que ovo de Colombo!
— Mas tão linda que vou tirar ela de lá. Vou levar comigo e montar uma casa de luxo, mas de luxo mesmo.
Azor deu um pulo.
— Epa lá! Xurupredo, vem cá. Ele ainda está bêbado, me ajude.
Pegaram no Doca pelos braços, arrastaram-no para dentro d'água e mergulharam demoradamente a sua cabeça. Saiu do caldo já vermelho e recuperado.
— Repete o que disse se é homem.
Vendo que tornariam a agir, calou-se sorrindo. E os três ao mesmo tempo soltaram uma grande gargalhada.
Na verdade, Suzi sentia-se completamente decepcionada.
Rolara sua impaciência horas e horas, esperando que Chuva acordasse, e no usual jamais se levantava antes do meio dia. Até que não se agüentou mais. Olhou o relógio e os ponteiros paravam em cima das dez e meia. Iria lá. Nas pontas dos pés, entreabriria a porta e se...
— Uai, meu São Cornélio, que é isso?
Chuva estava reclinada na cama, no travesseiro colocado em pé. O rosto limpo e brilhante. Os cabelos ainda umedecidos e amarrados para o alto denunciavam o recente banho.
O quarto todo arrumado e as janelas abertas mostrando lá fora a beleza do sol-macho.
— Que foi que te deu?
— Nada. Eu ia descer para tomar café lá embaixo.
— Audácia. Espere um pouco.
Saiu e foi recomendar um café novo e uma fatia dourada de mamão. Nem deixou que Palusaio executasse o serviço; veio apressado com a bandeja na mão. Durante a vida da sua mãe jamais servira um café na cama para ela. Porque além de achá-la fricoteira e chata, ela não saberia compreender certas sutilidades. Mil idéias se entrechocavam na sua caraminhola. Preferível nada deduzir e esperar Chu contar tudo.
Adoçou o seu café e ficou espiando a calma da mulher. A diaba estava cada vez mais linda. Os olhos eram dois mares daqueles que vira em Itapuã, na Bahia.
— Não tinha outra fruta? Uma manga? Um cupu?
— Deixe de frescura, que você não é dessas enjoadas.
— É que não sou sabiá pra viver comendo mamão todo o dia.
— Amanhã a gente muda. Arranja mamão vermelho. Mas esse é mais doce. Comece.
— Começar o quê?
— Pô, Chuva, você amanheceu sacuda hoje?
Ela deu uma risada gostosa e depositou a xícara na bandeja. Ia ser gozado Suzi duvidar da verdade.
— Não posso começar, porque não houve nada. Nada de nada...
— Mas Doca não veio para cá?
— Veio sim. Mas num porre tão grande, que se eu ainda fosse virgem continuava sendo.
— NÃO!...
— Pois foi. Só teve tempo de dizer que queria se casar comigo. Que eu era uma deusa... e emborcou na cama. Quando vi que ameaçava sujar o meu quarto, desci depressa e encontrei aquele amigo dele. Aquele que come por quatro...
- Azor.
- Pois é. Azor retirou o cara antes que empesteasse o meu reinado. Se você não acredita, dê uma espiada no corredor. Está tudo ainda fora do lugar. Tuta está piçuda da vida com o trabalho que vai ter.
- Que fracasso!
- De um jeito foi, mas de outro, dei o maior bamburro da minha vida.
Abriu a gavetinha do criado-mudo e tirou um monte de notas.
— Ele é dos bons. Vai pagando antes de brincar. Pegue a sua metade. Trabalhar assim de meia-praça até que dá gosto.
Suzi arregalou os olhos e ficou com o dinheiro na mão com uma expressão de incredulidade.
— Duzentos mil. Pomba!
Dividiu a quantia e colocou-a no bolso. Depois, sentindo um certo remorso, e também como gostava demais de Chuva, retirou o dinheiro e colocou no seu monte mais trinta contos.
— Lindai Boneca! Assim eu vou dar uma delas para a pobre da Tuta.
— Guarde para você sua louca! Um dia, isso vai custar muito, você fica velha e na bananosa.
— Não, querido, meu pé-de-meia já começou a estufar... Suzi retirou a bandeja e quase a jogou no chão.
Sentou-se na cama e colocou os pés de Chuva no seu colo. Alisava-os tão suavemente quanto era possível.
Chuva fechou os olhos por um minuto e sorriu. Como a vida parecia misteriosa e cheia de caprichos. Fazia cinco anos que chegara ali. Magra e ossuda. O rosto mais escuro e seco ampliava o tamanho dos seus olhos verdes. O que passara em Belém, só Deus ou o Diabo poderiam saber. Além dos sofrimentos aquele medo da polícia. Não da polícia que só funcionava em horas de briga na zona ou nos bordéis baratos. Era medo de outra polícia que viesse descobrir toda sua verdade. Foi quando Maria Baiana a chamou.
— Oi, filha. Você é muito nova nessa vida e se não se trata acaba pegando uma "pileumonia" galopante e embarca no raso do pé junto. Se eu fosse você ia prum lugar mais calmo. Aqui não dá, nega.
— Sim, senhora.
— Tem um home aqui que arrecada gado novo prum cabaré no interior. Quer ir?
De certo modo, se fosse, acalmava e esquecia seu mistério. Dependia do lugar. Por que se por falta de sorte voltasse para perto daquelas paragens donde fugira... Deus do céu!
— Oi filha. Tem muita gente que foram e se deu bem por lá. Me disseram até que gente que trabalhava aqui, lá até virou dama de honra e respeito. O cabaré lá é dos bons. Porque castanheiro e seringueiro, quando aparece, abre mão do ouro com facilidade.
Até agora não falara onde ficava o lugar. Cantava um trau-trau danado, mas não se explicava.
— Quer ir?
— Mas em que destino?
— Lá pro interior brabo, eu nunca fui por lá mas sei que fica perto do Camaquã, por cima... não por baixo mesmo do Pedral do Oratório.
Cocou a cabeça para afastar a confusão que fazia.
— Sei lá se é por cima ou por baixo, se o diabo do rio sobe ou desce. Camaquã fica antes da Pedreira do Oratório.
Bufou satisfeita e tomou um trago de cerveja gelada. Esmeralda acalmou o coração. De onde viera não havia nada com esse nome.
— O dono do cabaré é um senhor muito veado, mas boa gente. Trata muito bem as biraias. Nunca chegou uma lamúria de lá.
Aceitou. No dia seguinte ficou nua em frente dum homem que se chamava Gilberto, o qual, mais tarde, se chamaria Turquinha, apesar dos protestos e das ameaças.
— Está que é só osso e pele.
Disse aquilo, porém impressionando-se muito com o tamanho dos seus olhos verdes e o comprimento dos seus cabelos negros.
Passou a mão entre os seus cabelos o que a fez sentir-se como uma corça ameaçada.
— Você alisa isso?
Engoliu em seco; foi preciso Maria Baiana vir em seu auxílio.
— É natural, seu jegue. Não vê que a pobre não tem nem dinheiro pra encher a pança? Vai agora querer que tenha para alisar cabelo.
Pediu que desse meia volta. O que lhe causava uma tremenda humilhação.
— Puxa, nem bunda temi
— Olhe aqui, seu Gilberto. Eu sou puta velha na vida. Conheço gente como poucos. É só botar os zóios meu numa fêmea e já sei o que ela pode dar. A menina passou uma dureza que não foi mingau. Mas se encher aqui.
Deu uma palmada de leve nas nádegas de Esmeralda.
- Aqui e aqui, vai ficar uma mulher-dama de ninguém butar defeito.
Foi aceita. Viajou que não acabava mais e o tal do seu Gilberto toda hora enchia a sua barriga de comida. Durante o dia o torpor proporcionado peja monotonia da viagem dava-lhe um sono incontrolável. Acordava com a mesma mão lhe oferecendo comidas, frutas e doces até. Sentia que as forças renasciam e que o rosto se enchia e o busto também. Aquilo deu um prazer no contratador que um sorriso lhe abriu os lábios mais de uma vez.
Contudo no cabaré uma desagradável surpresa aguardava-a.
Seu Cléo perdeu as estribeiras.
_ Você 'tá maluco, Turquinha? Maluco de tudo!
Chegava a espumar de raiva.
_ Essas três a gente arrumando e inventando podem dar alguma coisa. Mas essa crioulinha magrela... Você está doido!
Esmeralda abaixou os olhos e desejou que a terra se abrisse para que pudesse desaparecer da maldade dos homens.
— Ela vai melhorar. É só engordar um pouco. Você não viu nada. Ela até que melhorou muito. Quando fiz o contrato a pobre só tinha osso e pele e pra variar pele e osso.
— Leve as três e arranche elas. A crioulinha fica comigo. Gilberto saiu e Súzi emburrada ficou espiando para fora, dando as costas para Esmeralda.
Um choro veio incomodar a raiva de Suzi. Agora, mais aquela! Ficava doente com choro de mulher. Com qualquer choro, mas o de mulher muito mais.
Virou-se para estourar, mas o que viu deu dó.
Os olhos da crioulinha eram imensamente grandes. Nunca vira uns tão verdes e tão lindos.
— Venha aqui perto.
Obedeceu, limpando as lágrimas com as costas das mãos.
— Levante a vista aqui na claridade.
Os olhos úmidos pareciam ter crescido mais. Comoveu-se com a desgraça da moça.
— Por que está chorando?
— Se o senhor quiser eu volto pra lá. A voz triste se tornava quente e bonita.
— Espere aí. Tive uma idéia.
Sentou-se na cama. Analisava Esmeralda com olhos de arpão.
— Que idade você tem?
— Dezoito.
Precisava aumentar dois anos para não se complicar.
— É mentira, mas não tem importância. Aqui ninguém se importa com isso. Você tem coragem mesmo?
— De quê?
— De uma coisa. Porque estou tendo uma idéia. Estou fazendo planos para você. Tem medo?
— De nada.
Dizia aquilo com convicção. De que adiantava ter medo, naquela porcaria de vida.
— Dispa-se.
Olhou o homem sem compreender.
— Não sabe o que quer dizer despir-se? Confessou a sua ignorância balançando a cabeça. Suzi sentiu pena mesmo e sorriu amistosamente.
— Estou dizendo para você tirar a roupa. Ficar pelada, sabe? Não precisou pedir mais. Esmeralda arrancou tudo que trazia sobre o corpo emagrecido. Aquele gesto decidido veio confirmar as suspeitas de Suzi. A pequena tinha tutano.
Mediu com os olhos parte por parte do corpo nu. Espantou-se. Sempre costumava fazer aquilo com o gado novo. Ou, melhor dito, com o gado usado. Porque tinha que haver uma dose de desconto nas mulheres que se enterravam ali. Apesar da prática, sentiu uma satisfação na alma. A crioulinha estava maltratada, faminta, quase esquelética, mas as medidas do corpo, o seu porte elegante, sua altura, a retidão das coxas, a colocação dos seios...
Soltou um assobio de prazer.
Enchendo aquele esqueleto de carne, tomando o cuidado suficiente, aquela garota que mentia a idade, transformar-se-ia numa fabulosa mulher. E a cor e os olhos, o cabelo liso, sedoso e natural... Valia a pena arriscar.
— Você sabe nadar?
Os olhos verdes se arregalaram. Ia pensar tudo. Ia pensar que ele na certa perguntaria se sabia fazer... Gaguejou ao responder afirmativamente.
— E pescar?
O homenzinho estava era maluco. Viera ali para ser puta e não mariscadora.
— Sei, sim, senhor.
— Então vista-se.
Obedeceu intrigada, mas foi logo esclarecida.
— Você durante alguns meses não vai fazer nada de vida de bordel, entendeu? Vai se alimentar bem, engordar, pescar no rio e tomar o banho que quiser. Durante esse tempo você terá casa e comida sem pagar nada. Depois, e tenho certeza disso, depois que você entrar no ritmo, dividirá comigo tudo que ganhar. Por enquanto divirta-se.
Chegou no corredor e gritou com vozinha efeminada por Turquinha.
A mão de Suzi apertou os seus pés e ela retornou à vida.
__ Dormiu, Chu?
_ Não. Estava pensando longe. Quando eu cheguei aqui franguinha e crioulinha, se lembra?
_ Se me lembro. No começo quase desisti. Até dar jeito, ensinar a andar, ensinar a vestir, ensinar a falar... Foi trabalho de doido mesmo.
— Mas valeu, não?
— Faria tudo de novo. Só que dessa vez eu não judiaria tanto de você.
Ficaram um momento em silêncio. Mas Súzi estava que não podia.
— E agora, Chu?
— Agora o quê?
— Falo de Doca. Puxa que homem, meu Deus!
— Ele volta, fique certo.
— Precisa voltar. É o maior partido dessas bandas. Rico de doer. Pela amostra você pode comprovar o que digo. Dizem que o pai dele é um dos maiores unhas-de-fome.
— Pois então. Ele volta. Pode procurar no porto para ver se o motor dele não está ancorado. Volta, não vai beber, vai dormir comigo, me oferecer uma porção de vantagem. Aposta?
— Não. Agora, cuidado. Não vai aceitando tudo que ele propuser.
— Diz isso por mim ou porque tem medo de perder a biraia que enche as noites do seu cabaré?
— Puxa, Chu. Posso ser mercenário com todo o mundo, mas com você a coisa é diferente.
— 'Tou brincando.
Jogou os pés da moça na cama e levantou-se.
— Sente-se do lado de cá. Vou enrolar os seus cabelos. Cadê os "bobs"? Você hoje tem de estar mais linda do que nunca.
Súzi começou a fazer o que prometera. Chuva ria da conversa mole dele. Era uma ladainha de recomendações de "não deves" ou "tome cuidado" que não acabava mais. No íntimo nem ligava para o sentido da conversa. Ouvia calada para passar o tempo. Nunca na vida deixaria o interior para voltar à cidade. Não podia contar-lhe o medo nem os seus grandes mistérios. De mais a mais tinha jurado abafar o amor em seu coração. Poderia amar a terra, o rio, o sol, a selva... os homens nunca. Estava longe o dia em que se apaixonaria por um homem. Não valia a pena.
Espreguiçou-se quando sentiu que Suzi acabara de enrolar os seus cabelos.
— Você tem a mão tão macia que quase cochilei.
— Mostre as unhas.
Entregou-lhe as mãos, uma de cada vez para que examinasse o verniz-sangue delas.
— Hoje não dá para retocar. Amanhã, talvez.
Caminhou até o armário e abriu a porta de par em par. Com os olhos corria minuciosamente todos os vestidos, analisando-os com prazer.
Retirou uma meia dúzia dos cabides e colocou-os com cuidado na cama. Sobretudo um de seda lilás que o deixava louco. Arrumou-o contra o corpo e foi-se mirar dengoso no espelho grande da porta. Suspirou.
— Eu mandei você fazer esse vestido porque é igualzinho a um que Shyrley Mac Laine usou.
Chuva, recostada de novo no travesseiro, divertia-se com o grotesco da cena.
— Ah! Os olhos achinesados de Shyrley! Se existir outra encarnação quero voltar com os olhos e a pele iguaizinhos aos dela.
Chuva riu mais.
— Quem é essa puta, agora?
— Que modos, Chu. Shyrley é pra mim a maior atriz de cinema.
Retirou outro vestido e dessa vez era um verde-claro com tons metálicos. Quase toda a semana Suzi tirava um dia para fazer aquela exibição e aquilo divertia muito Esmeralda.
— Suzi, experimente aquele amarelo lá do canto. Apanhou o vestido e novamente encostou ao corpo. Jogava a parte superior para cima e apertava femininamente a cintura.
— Hor-rro-ro-zinho! Detesto o amarelo. Eu fico parecendo mulher-macho. Essa cor horrível releva o sombreado da minha barba. Não, decididamente essa cor não orna pra mim.
— Mas vire-se. Quero ver de frente.
Suzi obedeceu e Chuva batia palmas soltando grandes gargalhadas.
— Servidora do rio. Servidora do rio!...
Embolou o vestido e jogou contra o rosto de Chuva. Fazia aquilo sem se zangar. Enjoou dos vestidos, porque sabia que com qualquer deles Chuva Crioula maravilharia as noites do cabaré. Cada um tinha sido estudado detalhe por detalhe. Cada decote possuía exatamente o tamanho que a cor pedia. Cada saia era cortada à altura exata da beleza das suas coxas.
Voltou a sentar-se perto dela. Chuva levantou a perna esquerda e com o pé roçava docemente a nuca de Suzi.
- Suzi!
Não se mexeu da posição porque aquele carinho agradava.
— Hum, querida?
— Você nunca teve vontade de ser homem, homem no duro?
— Se não fosse você eu xingava. Mas quer saber de uma coisa? No duro, no duro mesmo, eu não me sinto homem nem quando faço a barba.
— Você complica tudo. Uma vez me disse que não queria ser mulher. Agora diz que não se sente homem.
— Sei lá. Eu queria era continuar com a alma feminina que tenho. Agora gostaria de ter corpo de homem. Mas não bem homem, entendeu?
— E eu sei?...
— Olhe, eu queria ter corpo de homem mas sem as coisas feias que o homem tem. Por exemplo, não ter o peito peludo e ter de raspar como eu raspo. Ter as coxas lisinhas e nem uma sombra de barba. Gostaria que meu cabelo fosse louro cor de ouro velho. Gostaria, por exemplo, de ser como contei e que Doca se apaixonasse por mim. Ah filhinha! é difícil a gente ser feliz e se conformar com as coisas.
— Você, quando me mostrou as revistas do Carnaval do Rio de Janeiro, se lembra?
— Claro que lembro.
— Pois aí é que está. Você gostaria de se fantasiar e andar naquela coisa lá?
— Passarela, ignorante.
— Pois é. Como você se fantasiaria?
— De mulher, com aquelas plumas e pedrarias todas.
— Então, na verdade você gostaria de ser mulher.
— Mas que burrinha cretina. Eu gostaria de vestir a fantasia de mulher, mas sendo homem, isto é, com corpo de homem.
— Você está é lelé. Diabo é que entende você.
— Deixe pra lá. Vamos conversar coisa séria. Muito séria mesmo.
Retirou o pé de Chuva de seu pescoço, colocou-o com cuidado na cama e se aproximou mais dela. Alisou o seu rosto e sorriu.
— Sabe, Chu. Você precisa agarrar esse homem. Não deixar que ele agarre você. Você fica sendo dele somente nos dois ou três dias que ele aparecer. Não deixe que ele proíba que você trabalhe nos números do cabaré. Aí então será perfeito. A gente vai ganhar tanto dinheiro! Dinheiro mesmo, que eu vou poder até dar uma reforminha no frege.
— E vai ser assim, se ele quiser. Estalou os dedos convicto.
— Mas ele vai querer. Ele não é bobo não. Na cidade fica de pai de família carinhoso. Quando chegar aqui se rebenta todo. É pra isso e, portanto ele não vai fechar o bolso. Isso eu garanto.
Suzi esfregou uma mão na outra de contentamento.
— Você é uma diaba sabida. Saiu melhor do que eu esperava. Seus olhos se iluminaram de prazer.
— Se eu lhe pedir você faz uma coisa?
— Nunca nego nada a você.
— Vamos ver. Você prometeu. Hoje você podia usar a blusa de malha branca e a saia de cetim de prata.
— Endoidou mesmo?
— Por quê? Você prometeu.
— É que eu jurei que nunca mais usava aquele trem.
— Você fica linda.
— Fica linda, mas é o mesmo que não usar nada nos peitos.
— Ele cai na isca; se já está meio caidinho, vendo você assim fica é tarado sem salvação.
— Mas Suzi, você se lembra do que aconteceu naquela noite?
— Era diferente. Tinha um bando de turista americano. E nunca viram aquilo que você mostrou.
— Homem, é melhor mudar de idéia. Visto outra coisa provocante, mas aquela blusa não deu certo.
— Eu mando pedir a garantia do cabo Loló e dois soldados daqueles parrudos.
— E ele vem?
— Vem sim. Cabo Loló tem uma paixãozinha por mim. Até uma vez ele me disse em segredo que se eu quisesse...
Segredou uma coisa ao ouvido de Chuva.
— Verdade?
— Por que não? Só você é que tem o direito de apaixonar os homens?
Chuva ficou alisando a cama com os seus dedos longos.
— Assim mesmo ainda não sei, não. Fecho os olhos e parece que vejo aquela noite. Cadeira voando que nem manguari doido, garrafa estourando em todo canto até em cima de cabeça... 'Tá bem, mas se você garante que vem escolta...
— Loló não falha, se eu pedir. Depois, Chu, com Doca de olho em você, nojento nenhum vai piscar pro seu lado. Ninguém se mete a besta.
Chuva cocou a cabeça apreensiva.
- Tire a mão daí sua peste. Vais desmanchar minha manhã de trabalho? Chuva riu e obedeceu.
— Agora tem mais uma coisa.
- Suzi, pare de inventar, senão...
- É só um detalhe importante e você vai ficar mais linda ainda. Sabe o que eu faço? Vou encher o palco com aquelas velas grandes que eu tenho. Quando você entrar, como diz aquela bruxa da Divonise, o povo vai ficar "esbabacado".
- E que mais, Suzi? Eu conheço seu jeito quando fica inventando.
- Bom, eu tenho uma tinta dourada que é uma lindeza, feita pra isso mesmo.
- E o resto?
— Olhe, Chu, você não pode falhar. E se fizer o que eu aconselhar, Doca está no bolso mesmo.
— Seu ou meu?
— Nosso. A gente não é meia-praça?
— Então diga. Fica enrolando carretel a vida inteira.
— Chuvinha linda, a gente pode pintar de ouro o bico dos seus seios. Vai ser um sucesso. Vai ser a glória. Você tem medo?
Estava desafiando os seus brios.
— 'Tá bem. Eu aceito. Mas e o outro problema?
Deu um pulo de gazela até o armário aberto. Apanhou uma coisa e jogou-a ao lado de Suzi.
— Como é que vou fazer? Nunca fui mulher de segurar uma agulha.
Suzi suspendeu a blusa de malha, e algumas das grandes malhas estavam partidas. A costura das axilas tinha-se rebentado.
— Isso é a blusa. Agora veja a saia. Na hora do arranca-rabo quase que fiquei nua no palco.
— Que pena! um traje tão lindo! Só tinha um jeito. Se você falasse à Divonise. Ela tem máquina de costura e antes de coisar, trabalhava num atelier.
— Pois então você vai lá, pede a ela pra fazer, paga e pronto.
— Por amor de Deus, Chu! Não posso. Aquela bruxa renegada está de mal comigo.
— Alguma você aprontou pra ela.
— Foi ela que provocou. Começou na frente das outras a rebaixar minha moral. Aí eu peguei...
Segredou uma história comprida ao ouvido de Chuva. Chuva ia abrindo o sorriso e logo este se transformou em uma grande risada.
— Não diga.
— Juro que é verdade.
— Mas como é que você pode saber uma coisa dessas?
— Ora eu vi quando ela foi lá...
Tornou a segredar no ouvido de Chuva, que ria perdida-mente.
— Deus do céu. Você é a boneca mais louca do mundo. Como é que vai descobrir uma coisa assim, que é difícil até para outra mulher enxergar...
Acalmou-se e limpou os olhos. Rira tanto que chegara a chorar.
— Você não quer ir lá falar com ela? Eu pago o serviço.
— Não. Você pega e manda um recado que eu quero falar com ela.
— Tá bem. Então vou logo providenciar. Que é que você está rindo?
— De mim mesma. Estava pensando como é diferente a idéia que a gente faz de uma mulher-dama. Quando eu era mocinha conversava com duas irmãs que apareciam no sítio. Eram duas galinhas, sabiam de tudo. Elas que me disseram o que era um bordel. Mas eu não sabia completamente. Pelo jeito que contaram, eu pensava que ser mulher-dama era passar o dia todo... O dia todo, sabe como é? Abrir a porta, entrar o homem, deitar na cama e abrir as pernas. Quando acabasse, fazia tudo de novo até a noite se acabar...
— Você está é maluca. Se fosse assim, não havia xoxota que desse cabo. Era preciso até botar meia sola...
Riram da bobageira.
— Mas por que você pensou nisso agora?
— Quando é que eu ia imaginar que uma mulher-dama tinha uma máquina de costura e que podia ganhar uns tostões costurando pras outras?
— Na verdade ninguém pensa que as coitadas também são gente.
Levantou-se.
— Então tudo certo: pedra e cal?
— Certo.
Ergueu-se para colocar um pouco de ordem na bagunça que Suzi fizera do seu quarto. Ao pendurar o vestido verde no armário, sentiu um pavoroso arrepio que arranhou friamente todas as suas vértebras.
"Minha mãe tinha os olhos verdes." E era fitando seus olhos verdes que perguntava: "Mãe, agora pode me contar. A senhora me prometeu que quando eu crescesse me contaria tudo. Já sou quase mulher feita."
Os olhos desesperados que a fitavam tentando sem forças ocultar todo o mistério da sua vida. Toda a tortura da sua pele escura.
Era difícil acreditar, mas a mãe nunca mentira. Os tempos difíceis. Os castanhais que não produziam quase. O marido indo trabalhar dois meses fora. Tivera que enfrentar a dureza da solidão com dois filhos bem pequenos. Caminhar o dia inteiro entre a roça e a casa. Enxotar os papagaios e as capivaras. Cuidar da bóia e das crianças. Então um homem negro, grande e selvagem apareceu. Estava armado e descobriu a fragilidade daquela mulher e a sua solidão e abandono. Obrigou-a a tudo. Ficou vários dias no rancho e para evitar que assassinasse as crianças se submeteu.
Chuva tremulamente pendurou o cabide no armário.
— Da cor do homem e dos olhos verdes da mãe, foi que eu nasci.
Por que pensava naquilo? Por que dava aquela topada no passado que já deveria estar morto e sepultado? Por que viera justamente naquele momento? Queria esquecer, esquecer. Mas estava presa à sua condenação eternamente. As coisas podiam mudar, mas não desapareciam nunca.
Sentou-se desanimada na cama. Agora descobria porque voltara a pensar naquilo tudo. Na certa Doca iria querer ter direitos sobre ela. Na certa também perguntaria o porquê da sua cor, dos seus cabelos e dos seus olhos. E sorrindo com resignação na alma, contaria aquela história relatada centenas de vezes, que os outros sempre acabavam por acreditar:
"Eu fui deixada com poucos dias de vida na roda de um orfanato. É tudo que sei. É tudo que sou."
QUARTO CAPÍTULO
A História de Tuta
CALÇAVA UMA SANDÁLIA VERDE-CLARA cheia de "aigrettes". Era assim que falava com a mania de ser muito viajada e falar várias línguas. Vestira um "pegnoir" transparente e decotado: Na cabeça amarrara um lenço lilás. Entre os dedos meio gorduchos segurava uma comprida piteira com desenhos em relevo. Olhava-se no espelho e tentava fazer uns olhos lânguidos e adormecentes.
Chuva se deliciava com a cena. Lá estava Suzi de novo com a graça gozada da sua frescura.
— E hoje que é que você está querendo ser? Artista de cinema, não, porque você já foi na outra semana.
Suzi virou-se delicadamente, cruzou as pernas e ficou balançando a chinelinha no pé.
— Hoje eu gostaria de ser uma escritora famosa. Famosa em todo o mundo. Com retratos nas primeiras páginas dos jornais, capas de revista, com gente pedindo autógrafos ao descer do avião. Na entrada, no "hall", nas escadarias dos hotéis, nos camarotes dos teatros. Uma glória.
— E era bom isso?
— Se era, minha nega. Você não acredita, querida...
Falava de um jeito tão sofisticado que deixava Chuva imantada.
— Você não acredita. Faz algum tempo, eu tentei ser escritora de fama. Eu morava no Sul e trabalhava num jornal. Mas não deu pé. Não deu mesmo. Até que disseram que meu livro era bom. Mas foi só. Sucesso não é pro bico de qualquer um. Mas que ficava morrendo de inveja e soltando venenos incríveis contra quem fazia sucesso nesse ramo, isso eu fazia. Mesmo como jornalista eu viajei muito. Estive na França, na Itália, na Suíça e fiquei muito tempo na Áustria. Até que voltei para o Brasil e desisti. Vim rolando pela vida, e hoje estou aqui. Nada de autógrafos, nada de fama... É a vida.
Suspirou profundamente.
— E Doca, partiu?
— Saiu com Azor de madrugadinha. Aquele cara enche. É meu amor pra cá meu amor pra lá. Quer xamego toda hora. Felizmente tenho um mês de descanso pela frente.
- Burrudinha linda! Tivesse eu um homem daqueles, rico e lindo, pois sim que deixava ele ir embora.
- Pois comigo eu não vejo a hora do praga ir embora.
Espreguiçou-se.
- O dia está lindo e quente. Bom mesmo é dar um mergulho no rio. Vamos Suzi?
- Deus que me defenda! Tenho horror a sol. A gente fica cada vez mais enrugando a pele. Depois aquela mosquitada danada. Eu não, filha.
- Se tivesse um ventinho enxotava a mosquitada toda para
longe.
— Mas não tem e não arrisco minha beleza, 'tá? Chuva pediu:
— Suzi, escolhe pra mim um traje pra hoje de noite. Todavia Suzi não se mostrava muito inclinada a isso.
— Logo, eu procuro.
Tinha mudado a expressão do rosto e mandara para longe aquele tom de brincadeira que mantivera até o momento. Retirou o lenço dos cabelos e atirou-o sobre a cômoda de Chuva. Com a luz do dia e de cabelos secos, Chuva reparava que o tempo marchava na vida de Suzi. Os cabelos aumentavam o prateado das têmporas. Devia estar mentindo quando contava a idade, pelo menos diminuía uns cinco anos.
— Estou brincando, brincando, mas o que quero falar ainda não achei coragem.
Fitou Chuva e notou seu rosto apreensivo.
— É Tuta, não?
Afirmou lentamente com a cabeça.
— Não dá mais. 'Tá uma coisa!
— Mas você não vai mandar a pobre embora, vai? Abanou as mãos sem encontrar a solução numa resposta.
— Você vê, Chu, ela está de um jeito que não agrada ninguém; até afasta o pouco de homem que aparece por aqui.
— Ninguém é obrigado a dormir com ela.
— Aí é que está o problema. Você falou tudo. Ninguém é obrigado, mas fica sendo uma boca a mais a pesar.
Chuva sentiu que os seus olhos começavam a se molhar. Dominou a emoção.
— Mas você não tem nem sequer um pouco, sei lá... Você não disse que ela foi das primeiras que veio; quase quando você abriu o cabaré?
— Foi sim. Mas os tempos eram outros. Tuta era mulher madura, mas alegre, simpática e cheia de atrativos. Hoje a gente tem que ver a realidade.
— Desgraça mais desgraçada do que vida de puta estou pra ver! Por isso que faço o meu pé-de-meia pra assim que puder abrir a unha dessa miséria toda.
Suzi olhou a tristeza de Chuva e sorriu. Aquelas carnes e aquela mocidade ainda iam demorar muito. Uma chispa de maldade corroeu o seu pensamento.
— Que é que você quer? Quando podia ela era a figura principal do cabaré. Dei até pra ela a posição de primeira mulher. O melhor quarto da casa. Ela não se cuidou. Relaxou. Se tivesse se cuidado ainda poderia estar em ação. Você sabe qual era o quarto de Tuta?
— Não.
— Exatamente esse que nós estamos.
Bateu com o pé no chão. Dessa vez a sandalinha perdera o menear efeminado.
Chuva sentiu um arrepio incômodo.
— Esse?
— Esse.
— Quer dizer que quando a gente não presta pra nada vai mudando de quarto? Vai morando nos cubículos de baixo, desce a escada... E quando fica imprestável: pé na bunda.
— Com você não vai ter esse perigo. Você teve juízo e soube se defender.
— É verdade.
Dizia aquilo com ironia, com raiva, com desprezo.
— É verdade. Mas se você soubesse o nojo que às vezes me ataca e a vontade de sumir no mundo. Ir pro meio do inferno, pro eu da madrugada, mas ser gente limpa, gente sem marca de gado: novo ou velho.
Foi até a janela e mesmo vendo a beleza do sol iluminando o verde rico das árvores, já não sentia vontade de nadar no rio.
Tuta sempre tomara o seu partido. Não deixava no começo que ninguém judiasse dela. Sempre tivera também aquele sorriso bondoso. Achava que ela era mocinha demais, que caíra na vida muito cedo. Mesmo quando as outras implicavam com ela porque tinha ordem de nadar e pescar, de engordar sem-nada fazer, mesmo assim Tuta tomava sua defesa. Achando tudo muito certo. Parecia escutar a gargalhada desbocada da mulher quando os homens estranhavam o seu nome.
— É Tuta, mesmo. Antonha não é nome de mulher-dama; Tuta, sim.
Levantava a voz alegre para confirmar.
— É Tuta, sim. Tuta que faz verso, que faz rima com a profissão. Antonha é nome de cozinheira de birosca. Cozinheira de corrutela de garimpo.
Tuta. Tuta engordando sempre. Tuta envelhecendo.
_ Mulher, pare de comer. Assim você estoura.
— Mas que diabo eu como menos que vocês todas. Pô! Cada dia que passa eu diminuo a minha ração.
As outras ficavam espantadas. Começaram a reparar que ela falava a verdade. Sentia fome, mas beliscava. Comia comida de passarinho. Entretanto engordava sempre. O pior que os seios cresciam desmedidamente. Os braços rolavam grossas pelancas a cada movimento. E um buço sombrio e desagradável escurecia os seus lábios. Pêlos compridos teimavam em estourar pelo queixo por mais que os arrancasse continuadamente.
Um vestido novo não durava uma semana. Divonise se assustava com o tamanho das bainhas e das costuras que deixava de reserva. Ficava com pena da sina de Tuta. Tinha paciência e desfazia as reservas para alargar todo o vestido. Dera até para fazer mais folgado qualquer coisa que Tuta necessitasse, mesmo assim...
O pior era a voz de seu Cleo, reprovando toda hora a vida da mulher.
No começo somente com ironia, depois com rispidez. Mais tarde com todo o veneno. Com o estigma da maldade.
Tuta procurava consolo no quarto de Chuva. O quarto que também fora seu um dia.
— Chuva, eu não sei mais que fazer. Quanto mais seu Cleo implica comigo parece que a desgraça aumenta.
— Não tem nem um remédio pra isso?
— Tem nada, santinha. Isso é de família. Minha mãe também foi assim. O retrato de minha vó quase não cabia na moldura. Foi tirado até meio de lado pra que desse a impressão de que a velha tinha só um peitão. Se fosse de frente mesmo não entrava na máquina. Uma desgraceira.
Começava a fungar e Chuva recomeçava aquela história em que não acreditava muito.
— Você vai comigo. O sítio. Ela se conformava mais.
— Não foi relaxamento não, Chuva. Quando eu era mocinha de quinze anos. Quando ainda era virgem, eu vivia apavorada que fosse me acontecer o castigo da família. Procurei a velha Barnabéia que na minha terra tinha o dom de sarar tudo e evitar desgraça. Ela então mandou que eu achasse dois ninhos de rolinha pedrez. Fui que fui, e descobri no alto de uma serra. Peguei os bichos e levei para a velha Barnabéia. Ela mandou que eu tirasse a blusa e o corpinho. Fiz que fiz. Ela rezou os meus peitos novos e colocou não sei quantas vezes os ninhos no meu corpo, de um jeito que as rosas ficassem tocando na palinha suja. Primeiro era um e lá vinha reza e benzeção. Depois o outro. Em seguida os dois juntos. Foi dito e coisa. Conservei os peitos por muito tempo numa forma dura e bonita. Quando caí na vida. Eles foram crescendo no comum. Mas agora... Nem ninho de urubu-rei cabe neles... Quando peguei barriga e nasceu minha filha, eu disse: é agora. Mas não foi. Até pensei que o perigo da herança tinha passado. E agora, quando mais a vida é dura, a desgraceira apareceu. Fica seu Cleo me ameaçando de tudo no mundo.
— Perdeu a vontade de nadar?
— É.
Os pensamentos tristes estavam se formando em cadeia.
— Tomar banho no rio. Você não vai, Chuva? Você que é sempre tão animada pra ir.
O rosto de Margô sempre uma festa de prazer. Tudo era alegria. Tudo motivo de risos e brincadeira. Não deixava que ninguém ficasse de rosto fechado estando por perto. Gostava de todos os homens. Sempre inventava um encanto nos homens que a usavam. Pra ela ninguém era feio nem ruim. Dava um jeito em transformar tudo. Dizia que uma fada velha lhe ensinara isso numa noite de lua. Margô fora a única mulher-dama que Chuva nunca vira se queixar da profissão. Nunca, mesmo.
— Você não vai? Então vou na frente com Divonise.
Eram amigas unha e carne. Mas naquela tarde Divonise voltou só. Os homens, o leiteiro, todo o mundo que tinha canoa vasculhou o rio procurando o corpo. A notícia espalhou-se como vento, e na cidade diziam que era castigo dos céus. Gente achava que era feitiço de Boiúna. Sem ânimo na alma morta, Divonise não sabia explicar. Margô sempre rindo, nadou um pouco. Sacudiu os cabelos pintados de louro. Parecia criança brincando. Mergulhou e sumiu.
Ao entardecer as canoas voltaram zingando e na da frente vinha o corpo arredondado de Margô. Só não se encontrava nuinha porque um homem mais caridoso não se importando com os mosquitos cobriu-a com a camisa de xadrez fedida e suada.
Surgiu o problema de enterrar. Ninguém queria deixar a morta dormir no cemitério da cidade. As famílias fizeram força para que uma mulher-dama não repousasse entre os restos mortais dos entes queridos e decentes.
Cada uma deu um presente para Margô. Divonise e Tuta pentearam-lhe os cabelos deixando uma mecha teimosa caindo sobre o rosto. Como sempre gostara. As mãos de Divonise pareciam ter adquirido leveza de veludo quando pintou os seus lábios bem cor de sangue. Não queria que o sorriso se desmanchasse. Dormia sorrindo como vivera.
— Já que não querem deixar ela ser enterrada na cidade, quem vai dar o vestido sou eu. E vai ser um de que ela nunca teve vergonha. Um que não vai negar o que ela era e nunca reclamou de ser.
E Chuva ajudou a vestir o corpo com um vestido amarelo, cor de flor do ipê, cor de sol-ouro. Iria viajar pelas estrelas com o mais lindo vestido de Servidora do Rio.
Suzi chamou Chuva e caminhou a seu lado conversando quase em sussurro. Sua voz tinha perdido a afetação do falsete. Via-se que estava no possível, emocionado.
— Vai ser difícil, Chu. Quase impossível.
— Ninguém faz falta nesse mundo nojento. Logo você arranja outra. Não é problema.
— Não é isso que eu quero falar. Chamei você porque vai ser difícil convencer as outras.
Chuva com os olhos pisados de chorar olhou espantada para Súzi. Nem por leve podia imaginar o que ele queria dizer. Pararam, defrontando-se.
— O velório. Temos uma noite pela frente. Já que a gente não pode enterrar na cidade, tem que buscar um sítio alto para enterrar a pobre.
O silêncio de Chuva e seus grandes olhos sofridos afligiam ainda mais a conversa.
— Você não diz nada? Precisava colaborar.
— Só tem um sítio que ela.pode descansar em paz. Lá não tem perigo de jacaré escavoucar a cova.
— Eu sei. Também tinha pensado lá. No Pedral do Oratório.
— E o caixão?
— Ninguém quer fazer. O povo é supersticioso. Acham que foi castigo de Deus.
Chuva ficou tão revoltada, que sentiu necessidade de cuspir no chão.
— Puta não vale nem a merda que caga! Esses desgraçados todos pensam que nasceram pra semente. Pensam que um dia também não vão pro céu da boca das minhocas... Nojentos.
— Calma, Chu. Nada disso adianta. O problema que me aflige mais ainda não falamos.
— Tem mais desgraceira ainda?
— O velório. Aonde a gente vai fazer o velório?
Chuva chegou a soluçar de dor. Estava entendendo agora. E Suzi tinha razão. Não podia ser no cabaré. Era o lugar mais impróprio para aquilo. Mesmo porque, se soubessem que tinha havido velação de corpo lá o povo dava o pira. Embora achando inferior, correriam para a pensão de Ritinha Chupemba, que era longe do rio e que não deixava ninguém morrer afogado. No quarto, ainda pior. Homem nenhum pisava lá, sabendo ser quarto de mulher-morta. Na cozinha, o espaço era pequeno e seria doloroso demais, porque sempre estariam vendo na lembrança a figura sorridente de Margô.
Só havia um local. Armaram uma mesa lá longe no fundo, debaixo do mangueirão-solteiro. Acenderam as velas e muito pouca gente apareceu. A noite vendera as estrelas e o céu ameaçava. Só faltava mais essa. Um vento feio mexia nas folhas e apagava as velas. De madrugada uma nuvem mais forte despencou e para não molhar o vestido de Margô nem o seu penteado tão louro, arrumaram uma folha de zinco das grandes. E os pingos martelaram nela fanhosamente uma música monótona. Quando a chuva acabou, voltaram todos. Só Divonise não arredara o pé e ficou toda molhada e indiferente. Tuta até trouxe um copo de pinga para ela não se resfriar.
Quando o sol deu de si, ajeitaram as canoas do cortejo no rio. Juvenal veio com o irmão, e uns amigos mais chegados caridosamente apareceram.
Vestida de sol, vestida de servidora do rio, Margô adormecida descia a correnteza sem precisar servir a nojento nenhum. Fora depositada numa rede que se entreabria mostrando ao dia o seu sorriso sempre alegre. Não se encontrava de mãos postas. Divonise não deixara. Mãos postas é para segurar o terço, o rosário. Isso pra gente que podia ganhar a paz do cemitério. Divonise ia sentada perto do corpo e por vezes falava como se Margô escutasse.
— Tem nada, não, querida. Lá é melhor. Lá é mais bonito. O rio perto sempre vai cantar no pedral, música para o seu sono.
E sem caixão, sem flor, só com a tristeza das outras, Margô foi enterrada no Pedral do Oratório. Fizeram uma cruz, isso fizeram.
No dia de finados, sem que ninguém tivesse combinado,foram fazer uma visita e ajeitar a cruz se por acaso a chuva e o vento tivessem mexido nela. Quem sabia rezar rezou por alma de Margô, quem não sabia, apenas se ajoelhou.
— Quanto quer pelos pensamentos?
Chuva voltou à realidade. Nem sabia quanto tempo ficara fitando o rio que aparecia lá longe na calvície das folhas da mangueira. Os olhos doíam de ter fixado tanto tempo a claridade do sol forte. Virou-se para dentro e o quarto parecia mergulhado numa penumbra forçada.
_ Ora, não valem nada. Só estava pensando em Margô.
_ Puxa! Já não chega de assunto triste por hoje?
Subitamente, como se fosse a coisa mais natural do mundo, Chuva decidiu-se.
_ Eu vou embora.
Suzi chegou a dar um pulo. Nem um choque elétrico faria com que saltasse tanto e tão prestamente. Chegou quase a gaguejar.
— O que foi que disse, Chu?
_ O que você acabou de escutar. Vou embora daqui. Meio apalermado mal conseguia cadenciar os pensamentos.
— Quer dizer que você se decidiu?
— Que foi que eu decidi?
— Aceitar a proposta de Doca? Chuva riu.
— Você ficou foi bobo! Eu disse que ia embora. Só que ia embora.
— Mas se você quer ir embora, precisa pensar bem. Precisa achar a melhor maneira de ir embora. E com Doca é a melhor solução.
Chuva sabia que Suzi arquitetava um plano. Se esperasse um mês, na certa ganharia tempo. Ou tentaria dissuadi-la, ou procuraria um meio de ser bem reembolsado por Doca. Ela não ignorava que se saísse do cabaré, ele penaria para achar uma substituta. Por vezes Suzi se lamuriava de nunca mais ter encontrado uma mulher que acontecesse nas medidas de Margô.
— Não, querido, se eu for embora, vou só. Vou para um lugar de onde nunca mais se falará de mim. Só, compreendeu?
Sentiu-se meio apavorado, porque das outras vezes que Chuva conversara no assunto, não tomara um modo tão decidido. Precisava jogar com calma.
— Não sei. Você está bem. Mas dinheiro acaba. Jóia vendida também se acaba um dia. Se você fosse com Doca, a coisa era outra.
Um mal-estar arranhava seu coração. Não queria que Chuva se fosse porque gostava da moça. Ao mesmo tempo a alma se agoniava, pensando que se ela partisse Doca também desapareceria da região. Sem ela não haveria cabaré. Doca enjoaria do lugar. Deixaria Azor tomando conta de tudo. E se ele se fosse... Se ele se fosse...
— Por que você tomou essa decisão? Na certa está aborreci-dinha com coisas desagradáveis. Vamos conversar com calma que talvez tudo se resolva. Por que, Chuva? Sempre fomos tão amigos que não pode haver uma mágoa entre nós.
— Pois bem, lá vai. Resolvi sumir, porque a vida da gente não vale nada. Nada de nada.
Apertou com raiva os seios.
— Enquanto isso aqui estiver duro, a gente serve.
Colocou provocativamente a mão entre as pernas com tal violência que sentiu machucar-se.
— Enquanto isso estiver funcionando a gente presta, não é? Sentindo perder a partida, Suzi resolveu partir para a chantagem sentimental.
— Está bem, se assim você quer. Que remédio. Mas se fizer isso comigo, nunca mais poderei acreditar nas pessoas.
Ficou com os olhos cheios de lágrimas e dessa vez estava realmente sendo sincero.
— Só que eu pensei que você tivesse coração. Que guardasse por mim um pouco de gratidão e amizade.
— Pode falar. Um dia, mais cedo ou mais tarde, você jogaria no meu rosto tudo que fez por mim. Você não é melhor nem pior do que os outros. Pode falar.
Suzi encobriu o rosto com as mãos e sentou-se de uma só vez na beira da cama. Soluçava baixinho. Falava com a voz entrecortada.
— Não, Chuva. Não é isso. Eu não mereço o que está fazendo comigo. Você vai desgraçar a minha vida.
Deixou o infeliz se lamuriando e foi olhar novamente o dia onde o sol torrava o seu esplendor. Não adiantava mesmo. Era uma boba. Nunca se enraivecia e quando isso acontecia passava logo. Começava a se penalizar. Afinal, se não fosse Suzi, onde estaria agora? Tomou a decisão de não ser a primeira a ceder. Mas ganharia, ganharia a causa de Tuta.
Não demorou muito e Suzi acercou-se mansamente, como se fosse um gatinho amedrontado.
— Chu!
— O que é?
— Você não vai embora, não é? Não vai me deixar; vai, Chu?
— Às vezes bem que eu tenho vontade.
Tocou tremulamente nos ombros da moça. Ela virou-se, e atiraram-se ao mesmo tempo um nos braços do outro. Choraram como duas crianças. Depois ele desligou-se e tirou um lenço para limpar as lágrimas de Chuva.
— Agora tudo passou, não foi, meu amor? Puxou-a para a cama e fê-la sentar-se.
— Tudo vai voltar a ser como antigamente. Não quero que esses meus olhos de selva se estraguem por causa de uma discussãozinha boba.
Passou a mão com tamanho carinho nos cabelos e no rosto de Chuva, que ela deu o começo de um sorriso.
- Assim, sim. Agora eu vou lá embaixo. Vou fazer um café especial para a boneca mais linda do mundo. 'Tá?
Quando voltou, instantes depois, já trazia uma novidade.
- Sabe, Chu, amanhã o Dr. Umbelino vem fazer a visita de inspeção. Felizmente eu acho que não tem ninguém aqui com problemas.
Chuva reviu a figura do médico, velhinho, assanhado, sem-vergonha que dava dó. Mas muito simpático. Só que era preciso ajudá-lo a tirar a mão que parecia grudar-se em determinadas partes do corpo. Havia exames em que ele demorava mais do que se fazia preciso.
Serviu o café.
— Está bom?
Sorveu a bebida prazerosamente.
— Uma delícia.
Depositou a xícara na cama e olhou seriamente para Suzi.
— Escute, querido, eu vou ficar. Mas você tem que me prometer uma coisa.
— Já sei. Tuta.
Não disse nada. Levantou-se e foi abrir o armário.
— Que é que você quer vestir hoje?
Foi a vez de Chuva não responder. Virou-se meio sem jeito.
— Também, se você não quiser ir hoje, não tem importância. Pena que tem um bom partido esperando ansioso que Doca viajasse.
— Sim ou não, Suzi? Isso é que me interessa nesse momento. Cocou a cabeça e sentiu que não podia protelar.
— Você ganhou. A gente arranja um jeito dela ficar mesmo não podendo funcionar...
O sorriso veio aos lábios de Chuva.
— Tem um jeito de começar. A vitrolinha. Suzi entendeu o resto.
— Sim, a vitrolinha. No começo a vitrolinha. Depois, você me ajuda a convencer a mudar de quarto.
— Ajudo.
Silenciaram. Suzi não gostava de ceder nunca. E só em poucos minutos perdera duas partidas. Mas o resultado compensaria no final.
— E o vestido?
— Já pensei. Hoje quero o negro de tafetá. Aquele que tem a parte de cima feito de renda negra.
— Por que o preto? Ainda está triste ou zangada?
— Não é isso. É que estou enjoada de tanta cor clara. E mesmo porque com o preto eu vou usar o cordão grosso de ouro que ganhei de Doca. Como é mesmo que você chama o cordão?
— Trancelim.
— Pois vou com ele. Com a cruz...
— Maciça.
— Isso mesmo. Aqueles brincos daquele tamanho...
— Argolas africanas.
— E nos dois braços as duas pulseiras de ouro. As últimas. Suzi cruzou os braços. De fato aquilo à luz dos lampiões iriam sobressair no negro. Tinha gosto a diaba. Soubera bem aproveitar as suas lições. Sorriu ao perguntar.
— E o chifre que cor vai ser? Ou vai ser de ouro, também?
— Que chifre?
Imitou o que dizia com os dois dedos esticados na testa.
— O que você vai botar em Doca.
— Não sei por quê. Fui mais limpa com ele do que era possível. Sei que Doca se rala de ciúme. Mas o meu trato era ficar com ele quando viesse aqui. Isso faz tempo que cumpro. Depois, chifre a gente só bota mesmo quando gosta do cabra.
— E você não gosta, não é?
— Vou-lhe dizer pela... pela...
— Centésima vez?
— Não. Centésima eu sabia. O outro...
— Milésima vez.
— Pois é, por essa. Como homem, ele é bom e sabe ser homem. Mas daí eu ter amor, amor no duro, vai muita distância.
Suzi suspirou e Chuva riu.
— Já sei. Lá vem a ladainha de costume. Se tivesse um homem daqueles abandonava tudo, sumia com ele, levava até café na cama de manhã cedo...
— Fazia mesmo, sua burrudinha. Levava café, vivia a seus pés, virava cachorrinho obediente, até banho dava nele...
— Vamos deixar de conversa boba. E o meu cabelo?
— A gente o arruma bem pra cima. Assim você pode mostrar, deixar em evidência a vitrina da sua joalheria.
Chuva sentia uma grande impaciência. Rolava na cama. Apesar da noite prosseguir amena e agradável, não conseguia adormecer.
Cantara, dançara, exibira seu corpo bonito, suas jóias. Mas por dentro havia uma insatisfação terrível. Parecia que não voltara atrás na briga que tivera com Suzi. Parecia também que o coração insistia para que partisse, deixasse tudo de uma vez. Gritaram como sempre o seu nome. Quando voltava depois de uma pequena ausência, os homens vibravam mais. Mas se sorria, se cantava, se dançava, podia parecer a mesma, mas não se sentia como nas outras noites. Estava vazia, oca. E torcia desesperadamente para que as horas passassem.
Depois o quarto, o tal figurão, um homem meio calvo, um pouco gordo, muito bem educado, cheio de cerimônia. Bocejava muito ao se despir, dizendo que não estava acostumado àquelas extravagâncias, isto é, a ficar até altas horas da noite e que o barulho do cabaré o tinha aturdido muito. Mas que realmente ela era a mulher linda de que tanto se falava. Pediu para apagar a luz. Talvez porque se envergonhasse da brancura da sua pele, ou do peito excessivamente peludo, ou talvez das cuecas compridas, desajeitadas, que lhe chegavam ao joelho. Pior era o modo com que a tocava. Suas mãos rechonchudas caminhavam no seu corpo grotescamente. Tinha a impressão de estar sendo medida pela costureira e não por um homem que a desejava. A vantagem é que não se demorou. Tornava a bocejar continuadamente. Vestiu-se sem mesmo ter pedido para ir ao banheiro para se lavar, o que era estranho para um homem tão bem apessoado e fino. Nem sequer permitiu que acendesse o Aladim. Bastava a pequena claridade que penetrava por baixo da porta vinda do corredor. Apanhou o dinheiro que já separara na carteira como pessoa bastante organizada. Não permitiu que Chuva se vestisse para levá-lo até a escada. Apenas deixou que se enrolasse no lençol para lhe abrir a porta. Saiu meio apressado e a última impressão é que sua testa se encontrava molhada de suor. Entretanto, Chuva comprovou que fora bastante generoso.
A cama esquentava de um lado, virava para o outro. Procurou a rede certa de que seu embalo aliviaria o seu descontentamento. Sem dúvida o dia nascera com o pé esquerdo. Horrível, meu Deus!
Um estremecimento perpassou-lhe o corpo nu. Tão forte, que lhe doeu o bico dos seios. Precisou apertar-se com os dedos. Agora sabia a razão do seu mal-estar.
Já tardinha, depois das quatro, Tuta vinha-lhe trazer um cafezinho feito na hora...
Os dedos batendo na porta com certa ansiedade.
— Chuva!... Chuva!...
— Entre. A porta está só encostada.
Tuta não vinha só. Estava acompanhada de Divonise e Suzi, Vinham empurrando Palusaio na frente.
— Sente ali, Palusaio. Espere Chuva tomar seu café e você vai contar.
A índia estava impassível com as mãos abandonadas no regaço.
— Pronto, ordenou Divonise. Agora se não é mentira conte tudo igualzinho como contou pra gente.
Ficou indecisa sem saber como principiar.
— Ué, que é que deu? Ficou com medo à última hora? Palusaio não se decidia. O que causou certo constrangimento
nos presentes. Divonise indignava-se.
— Precisa ver, Chuva, a história que essa fêmea contou. É de arrepiar.
Aproximou-se, ameaçadora, de Palusaio.
— Conta logo, bicho ruim, como foi que você matou o filho.
— É pra contar tudo?
— Tudo.
Ela ficou mais aprumada na cadeira e falou como se não estivesse enxergando ninguém. Talvez conversasse sozinha com os seus fantasmas.
— Foi assim. Eu era moça-virgem na aldeia. Todo mundo andava nu. Aí um homem dormiu comigo. Eu peguei barriga. Mulher sem marido não pode ter filho. Quando nasce, parente bate com pau na cabeça e mata. Aí eu fugi e fui ter filho no mato no Posto do Serviço. Lá eu sabia, que não iam matar meu filho. Uma noite pari no meio do mato cercado de índias velhas. Doeu muito. Muito. Aí eu fiquei com um menino que botei o nome de Puiú. Quando não davam arroz e farinha no Posto, tinha que pescar e procurar comida. Foi difícil pra mim e pra meu filho. Ele cresceu e eu vi que não tinha juízo. Mexia com todo o mundo e judiava da criação dos outros. Qualquer bichinho. Podia ser papagaio, podia ser periquito. Ele ia lá e torcia o pescoço. E batia nos indiozinhos pequenos. E falaram que ele devia morrer. Que, se morresse, eu podia até arranjar um índio que chegasse de longe. Não adiantava bater nele. Puiú ficava cada vez mais louco. Numa tarde eu falei assim: "Meu filho, seu pai está aonde?" Ele mostrou o céu e disse: "Meu pai está lá na estrela". Eu falei: "Você precisa ir morar com o seu pai. Lá, você não vai sofrer muito". Ele disse que sim e sorriu. Ai, eu fui pedir uma enxada ao Encarregado do Posto. Puiú me ajudou a cavar o buraco. A gente estava muito cansada. E de noite, ficou pronto. Eu mostrei a ele o buraco. E ele se deitou quietinho. Ficou parado olhando as estrelas todinhas. Primeiro eu fui cobrindo a parte de baixo, depois foi o peito. Depois fui botando areia do lado da sua cabeça. Aí, foi que eu cobri todo o rosto dele.
Fez silêncio. Calou-se.
- Mas você não deu nem uma paulada no coitado?
- Não precisava. Quando fechei o buraco todo, fiquei bem uma hora esperando. Depois eu fui embora, porque sabia que ele morreu logo. Entreguei a enxada. Quando veio uma família e me levou pra Belém. Posso ir?
Levantou-se da cadeira. E como ninguém obstasse o seu caminhar, saiu do quarto.
O mal-estar parecia ter-se vestido de silêncio. Demorou para que Tuta encontrasse um desabafo.
— Isso não é gente. É bicho.
Divonise comentou enquanto Suzi limpava o suor frio das mãos.
— Mas será que isso é verdade mesmo? É uma história tão horrível que vou ficar arrepiada todo tempo que me lembrar dela.
Olharam para Chuva. Ela parecia outra pessoa. Seu rosto escuro acinzentara-se. Nem podia respirar.
— Bobagem, Chuva, não se impressione que isso deve ser mentira daquela égua safada.
— Quem sabe?
— Você acha, Chuva, que alguém pode fazer aquilo com o seu próprio filho?
— Quem sabe lá. Não vai ser a primeira nem a última mãe que mata um filho. Só a pessoa que mata sabe a razão por que está matando. Ela e Deus, se é que existe. Mãe mata filho. Filho mata mãe. Filho mata pai...
Nunca ninguém vira tamanha dureza atacar o rosto de Chuva. Na certa deveria ser o pavor da história. Precisava mesmo ter nervos para ouvir aquilo sem se apavorar.
E ninguém pôde compreender quando Chuva ficou com os olhos cheios d’água e murmurou quase chorando.
— Minha mãe tinha os olhos mais verdes do que os meus!...
QUINTO CAPÍTULO
A Viagem
ESMERALDA ESPREGUIÇOU-SE. O cabaré não abrira essa noite por falta de gente. O corpo nu e cheiroso não sofria o calor do ambiente. Mesmo porque o seu quarto era o mais bonito e espaçoso. Cora a coxa esquerda e a perna fora da rede, empurrava indolentemente o pé contra a cama. Cada balanço lhe trazia maior bem-estar. Nada de homens. Nada de suor. Nada de Doca. Principalmente nada de cama.
A chuva lá fora ritmava o balançar da rede. Sorriu lembrando-se de Suzi. Não fazia nem meia hora que saíra do quarto e sentia ainda no escuro a sua presença lamuriosa. O mundo cheio de mistérios de Suzi. Uma complicação completa. Uma hora Suzi desejava ser mulher, outra continuar como homem, mas gostando somente de pessoas do mesmo sexo. O medo a toda hora confessado de engordar muito. E, apesar do rosto meio balofo, seu queixo era estranhamente afilado. A testa larga que parecia aumentar por causa dos cabelos que principiavam a fugir, continuadamente, escondia com mechas que caíam sobre ela. Sorria já num princípio de sonolência. Se Suzi ficava doente, em vez de emagrecer sentia um apetite devorador. E com isso engordava e aumentava as olheiras disfarçadas com camadas de maquilagem cada vez maiores.
Balançou languidamente a rede. O gancho gemeu e acompanhou a cantiga da chuva martelando o chão.
Pobre Suzi! Aquela sua voz esganiçada, desagradável quando forçava o jeito de falar, para se dar a conhecer a todos, para mostrar a sua infeliz identidade.
— Você é uma idiota, Chu. Um homem como Doca e nem liga. O homem é capaz de matar por sua causa e você se sente bem quando ele viaja, desaparece por uns dias. Uma coisa daquelas, meu Deus. Aqueles olhos castanhos sombrios, o jeito de jogar os cabelos para trás como se fosse um urso. Aquela boca carnuda, os braços, as costas...
Esmeralda ria.
— ÊÉ isso. Até na cidade as mulheres morreriam de ciúme por um homem assim.
— Se fosse somente a boca, os cabelos, as costas...
- Sua cínica! E fica aí me contando os detalhes só para me ralar de agonia.
_ Por mim, pode ficar com ele.
_ Você diz isso, porque ele não me liga.
__ Pois se ligar, eu acho é bom.
_ Eu sei. Mas ele nem sequer me demonstra uma pequena intimidade. Nunca me chamou de Suzi. Nem sabe que eu existo.
_ E como ele chama você?
— Pelo nome completo. Chuva deu uma gargalhada.
— Ainda bem que não o chama de puto ou de xibungo. Gente assim macho-pra-burro gosta de tratar os veados de outro jeito.
— Por favor, Chu...
Sentou-se no chão e encostou seu rosto na mão de Suzi. Depois beijou-a com ternura.
— Assim você me judia, Chu. Nunca fale dessa palavra perto de mim. Pode me chamar de tudo, menos de puto.
Passou as mãos nos cabelos dele.
— 'Tá bem, 'tá bem. Só chamarei você desse nome quando eu tiver um ódio de morte. E como nunca vou me zangar com você...
— Chu!...
— Que é?
— Você não é capaz de amar mesmo? Nunca apareceu um homem que fizesse você sofrer e que você se apaixonasse?
— Que sofresse já. Mas amor mesmo, vai ser difícil aparecer um.
— Quer dizer que tanto faz dormir com qualquer um. Doca não faz diferença?
— Bom, já que eu tenho que dormir com um homem, nesse caso eu prefiro Doca, que é forte e limpo. Carinhoso de cansar a gente. Nas mãos dele eu pareço mesmo aquilo que você gosta de me chamar: Boneca. Nem preciso gastar o macio dos meus dedos. Mas quando a gente pega um gringo como aquele embaixador alemão, dá até ingrízia na gente. O bicho fedia azedo que precisei tomar dez banhos seguidos pra perder o cheiro de gambá.
Suzi riu. Até rindo, caprichava para dar "show".
— Eu fico pensando no modo de como você interpreta a vida.
— Já falei a você que quando eu ficar rica eu vou embora para bem longe onde ninguém me conheça.
— Se esse é o problema você já podia ir. Com as jóias, com o dinheiro que você tira dos homens. Uma verdadeira piranha de bolsos.
— Ainda é pouco. Quero mais. Vou comprar um sítio longe, longe de bordel, de puta, de seringueiro, castanheiro, apanhador de juta... Longe de tudo. Vou criar um mundo de bichos, porcos, galinhas.
Fez uma pausa e sua voz continuou cheia de tristeza:
— Minha mãe tinha os olhos verdes como os meus... Suzi chegou a se ajoelhar de espanto.
Viu que Esmeralda estava com os olhos cheios d'água.
— Mas que foi isso, meu bem?
— Nada. Por mais que a gente queira esquecer, às vezes, escapa.
— Você nunca falou de sua mãe, de ninguém, do seu passado.
— Tudo morreu. Minha mãe morreu de febre. Muitas vezes e com dificuldade de transporte, eu mandei um dinheirinho para ela.
— Nunca me falou.
— Pra quê? Faz um ano que meu irmão Noro, Noraldino... veio aqui me dizer.
Suzi olhava Esmeralda de uma maneira espantada.
— Mas quando?
— Veio sim. Veio morrendo de vergonha, porque sabia que eu era mulher-dama. Quando abri a porta do quarto, me senti até mal. Fechei depressa a blusa para esconder os meus peitos, pedi para ele esperar e fechei a porta desorientada. Lavei a pintura do meu rosto e vesti uma roupa mais decente.
Peguei as mãos dele com carinho e fui para baixo, no cantinho do bar.
Pedi uma cerveja para ele. Seus olhos quase não se levantavam e quando me olhavam, baixavam depressa ou mudavam de direção. Meu coração doía de angústia. Ele estava mais homem, meio careca, diferente daquele irmão tão alegre e louco que eu tinha.
Perguntei sobre sua família e ele contou tudo. Nem sei se é feliz ou se tem com que viver. Depois então ele não se conteve e falou emocionado.
— Dada, preciso te contar. Mamãe morreu. Faz seis meses. Fiquei ali sem saber o que dizer, nem falar. Seis meses e eu cantando e rebolando todas as noites para os olhos dos homens. Depois ele se levantou pra ir embora. Eu tinha dinheiro no bolso, mas fiquei com medo de oferecer.
— Não 'tá precisando de nada, Noro?
— Nada.
Devia estar, sim. Sua roupa era pobre demais.
— Em todo o caso, leve isso e quando passar em Belém compre presentes para os seus filhos. São três, não são?
Botei o dinheiro no bolso da camisa e ele se esqueceu que eu era uma puta para me abraçar como sua irmã.
Esmeralda calou-se.
- E depois?
- Foi indo embora devagar. Ainda vi que limpava o rosto com as costas da mão. Foi sumindo na chuva em direção ao porto. De longe me disse adeus.
- E você nem contou nada?
- Pra quê? Não havia necessidade. Minha vida comparando com a das outras biraias é muito boa e muito cheia de esperança. Mas naquela noite foi horrível. Nunca o cabaré esteve tão cheio. Fiquei cantando para os bêbados, para os homens, os homens que você acha que são uma maravilha, até quatro da manhã. Só quando cheguei no meu quarto é que pude chorar. Pois é.
- E não me contou nada. Nada.
— Não pense que mulher conta tudo, bobo. Bocejou compridamente.
— Já vou.
— Espere aí. A coisa vai mal, não?
— Sábado e domingo melhora. Até é bom que você descanse, porque assim fica mais bonita.
— Quer dizer que amanhã elas vão vestir a roupa de seda amarela e vão servir o rio.
— Parece.
— Qualquer hora dessas eu me dano e vou com elas.
— Isso nunca.
— Não sei por quê?...
— Essas mãos aí não nasceram para pegar em cabo de remo.
— Taí no que você se engana. Fui criada amassando remo e alisando zinga.
— Antes disso muita coisa vai acontecer. Vou mandar a Turquinha lá na cidade ver se me arranja uma remessa de gado novo. Até agora não encontrei nenhuma mulher que substituísse Tuta. Pelo menos na prática...
A curiosidade mordeu Esmeralda novamente.
— Suzi, você nunca me disse a verdade. A Turquinha é ou não é?
— Sei lá.
— Fale a verdade. Ele não se desgruda de você por nada.
— Tem paixão por mim. Pelo menos alguém me ama nessa V1da. Uma vez salvei-o de um grande apuro e ele nunca mais se esqueceu. Virou um capacho. Tudo que eu digo é lei. Agora se é ou se não é?...
— Nem com você...
Suzi bateu com os nós dos dedos no chão, isolando.
— Ora, meu bem, você sabe qual é o meu tipo. Levantou-se.
— Vamos dormir. A chuva está fazendo serenata. Esmeralda espreguiçou-se na rede.
Suzi olhou a beleza daquele corpo. Era mesmo uma estátua. Os seios duros com as rosetas mais escuras se espremendo no algodão da rede. As pernas rijas e bem torneadas se movimentando malemolentemente. Os pêlos negros e sedosos brilhando no remexer do corpo.
Suzi pensou por um momento: "Pena que eu não seja um homem..." Mas mudou de idéia rapidamente, sentindo um mal-estar gelado passando em suas vértebras.
— Vou apagar o lampião.
— Não, leve com você. Tenho uma lamparina e fósforo bem no pé da cama. E mesmo eu não vou levantar por nada.
Apanhou o lampião e aproximou-se da rede.
— Boa noite, boneca linda.
Esmeralda segurou o seu rosto com as mãos e suspendendo o pescoço beijou-o por duas vezes.
— Até amanhã, Suzi. Durma bem.
E antes que se afastasse deparou com os olhos verdes de Esmeralda que naquele momento estavam mais lindos que nunca.
Gado Novo.
Elas vinham sem jeito, empurradas da cidade, porque estavam usadas demais. Precisavam encontrar um lugar mais pobre, mais longe, onde ainda oferecessem algum atrativo.
Esmeralda sorriu.
Uma vez Turquinha trouxera um rebanho de gado novo. Novo porque era novidade no lugar. Elas, primeiro mataram a fome; segundo tiveram dois dias de descanso. E, por fim, um dia de folga para lavarem as roupas e se colocarem em dia. Raro que no meio do gado aparecesse gente muito nova. Tudo de meia-idade ou apresentando um corpo que parecesse isso. Velha, nunca. "Militriz" velha era o pior castigo. Não servia para nada. Quando muita sorte tivesse, encontraria o caminho da humilhação seguido por Tuta. Uma vez Suzi recomendara para que Turquinha arrebanhasse um lote de gente mais moça, mais conservada. Pagou caro pela experiência. Quando faltou dinheiro no cabaré e as noites ficaram sem gente, porque havia muita chuva lá fora, elas ficaram desesperadas. Não menos, Suzi. Nos dias que se seguiam nenhuma sabia ou queria praticar de servidora do rio. Um problema terrível, porque elas precisavam comer e beber. Suzi torcia as mãos de desespero. As meninas sozinhas resolveram o negócio. Foram aceitando convites de casamento. Convites paupérrimos, mas que davam a garantia de uma casa, de uma cama certa, de um só homem. Muito embora tivesse que ficar buchudas, lavar roupa, passar e cozinhar. Algumas até moravam ainda nas cercanias e eram apontadas como exemplares mães de família.
Com ela tudo acontecera diferente. Reinava no bordel, tinha regalias. Mesmo porque as outras sabiam que era ela quem atraía os homens e o dinheiro de que precisavam. Jamais brigara com alguma mulher ou tratara mal a qualquer delas. Ao contrário, sempre se prontificavam a servi-la com amizade.
Balançou a rede e bocejou. O sono custava a chegar. Os pensamentos desusavam com vagar em sua cabeça. A noite fora de folga. Tuta de manhã falara-lhe uma coisa. Que todos no cabaré iriam ter três dias de folga. A Semana Santa se aproximava e todos temiam muito os castigos de Deus. Contavam até que seu Honorato que rivalizara antes com Suzi em matéria de bordel, fora encontrado morto, crivado de flechas num castanhal bem perto, porque ofendera a Deus, dando uma festa com muita bebida e música numa quinta-feira da Paixão.
— Olhe, Chuva, vão fazer um Judas que é um colosso de marmo. Vão fazer o boneco mais bonito da região. Depois vão botar ele numa canoa, amarrado num mastro e vão soltar o barco na bubuia do rio para a malhação! Você nunca assistiu isso? É uma verdadeira lindeza.
— Sim, já vi muitas vezes, mas não gosto. Me faz mal. Prefiro não ver.
Lembrava-se da sua agonia quando criança que os irmãos a forçavam a esperar no rio. Mas não conseguiram nunca que acertasse nele qualquer coisa. Nem pedra, nem pau.
Tuta gorda, imensa, suada, vergada sobre a mesa de passar roupa, quase encostava os peitos imensos na tábua. Parava para tirar o cabelo do rosto molhado, limpar com as costas da mão o buço empapado e continuar. Vezes e vezes, abria o ferro para colocar novo carvão e soprar, jogando fagulhas no ar contra o calor sem vento.
— Diabos de merda! Enxugar toda a roupa de uma casa com o ferro não é doce, não. E o pior são esses dias sem sol. Com o sol a roupa seca logo e economiza o nosso cansaço.
Olhava a beleza de Esmeralda, com o seu corpo de estátua perfeito, que não engordava nunca, que jamais envelheceria tal a rigidez das carnes. Olhava-a agradecida, porque reconhecia que se não fosse ela, já estaria longe do cabaré, sem dinheiro, sem saúde, sem abrigo.
— Vou buscar uma coisa pra gente beber. Tuta sentou o ferro.
— Deixe que eu vou, minha santa.
— Fique aí. Num tira pedaço andar vinte metros e voltar. Retornou com um copo de refresco e entregou a Tuta, que
nem agradeceu. Emborcou a bebida, estalou a língua e secou os lábios.
— Nunca uma coisa chegou na hora tão certa. Esmeralda sorriu. Pobre velha.
— Tem algum vestido seu para alisar?
— Hoje, não. Pelo menos por mim você vai descansar, numa coisa.
— Sua roupa é tão limpa e tão cheirosa que nem cansa. Tanto faz lavar como não. Tudo tão asseado. Mas se fosse a roupa de...
— Não fale, Tuta. Não é preciso.
— Pois é. Porca e sebosa como aquela eu nunca vi... Baixou a cabeça no serviço e reparou que Esmeralda mantinha-se perto em silêncio.
— Quanto quer pelo que está pensando?
— Não era de muita valia. Estava pensando que foi noutro dia que soltaram o Judas e que já se passou um ano. A gente por aqui nem repara o tempo.
— Quando se é moça e bonita como você, Chuva... nem é preciso pensar no tempo.
— Mas de agora em diante eu vou ter que pensar. Estou bem e vou deixar essa vida, enquanto ainda sou moça.
— Vai aceitar a proposta de seu Doca? Esmeralda riu com gosto.
— Nunca. Essa conversa de montar uma casa para mim em Belém é lorota. Ele fala mais não cumpre, não. Lá ele tem mulher branca e filhos. Lá ele é um dos homens mais ricos da terra. Você acha que ele iria se preocupar comigo?
— E por que não?
— Por quê? Porque aqui é mais seguro para ele. Aqui ele tem a mulher, que necessita sem escândalo, sem fuxico. Paga bem, mas não se aborrece. E, minha amiga, para seguir um homem, só com muito amor. E esse ainda não foi parido.
— Você não gosta de seu Doca?
— Gosto. É um macho bom e de mão aberta.
— Qualquer uma que tivesse essa sua sorte, daria um bamburro de olhos fechados.
- É. Eu sei. Mas quero ir pra longe, comprar o meu sítio, gostar do rio, dos bichos, dos papagaios. Vou ter cada cachorrão amigo que dá gosto...
Encostou-se na porta e ficou olhando o rio sombrio debaixo da chuva, lá ao longe.
— Bem, já vou.
- Para o sítio dos sonhos.
- Não. Para o quarto mesmo. Quando eu for para o sítio, levarei você.
— Você já me prometeu isso muitas vezes. Faça isso, Chuva, e eu trabalharei para você como se fosse um cão, um burro de carga.
Chuva bateu amigavelmente a mão nas costas de Tuta e retirou-se.
Tuta ficou acompanhando a mulher com o ferro suspenso no ar e um sorriso de esperança imobilizado na boca velha e já murcha.
Esmeralda balançou a rede. Fazia calor, ela não dormia e ficava se lembrando de uma porção de coisas.
"Que diabo, tinha uma noite inteira para dormir, para descansar de tudo e os olhos fechados não adormeciam. Os pensamentos voltavam como se os vivesse novamente."
Levantou-se, e com a vista acostumada à escuridão nem precisou acender a lamparina. Foi até a mesa e derramou a água do jarro na bacia de louça. Umedeceu a testa, os ombros aquecidos pelos cabelos longos. Depois molhou os seios duros e aquela sensação de pouca frialdade enrijeceu gostosamente as suas rosetas escuras.
Apanhou o copo d'água e derramou a bilha fazendo aquele gorgolejo conhecido como se quisesse falar alguma coisa. Andou duas vezes pelo quarto e a moleza atraiu-a de novo para a rede.
Precisava dormir. Se pudesse ao menos cantarolar qualquer coisa, acalentava-se sozinha e acabaria por dormir. Um vento gostoso soprou pela janela e inundou o quarto.
Domício vinha correndo e se aproximando do rio. Gritava aos céus o seu nome.
— Dada!... Dadal...
Ela vinha remando calmamente, observando de longe o seu irmão tão agitado. Nem por isso apressou o ritmo da remada. Quando a canoa embicou no porto, ela se ergueu, pulou em terra, sungou a embarcação e amarrou a corda da proa numa raiz saliente.
Enquanto esperava o irmão que despencava pela ribanceira, retirou as folhas de banana que cobriam o peixe e suspendeu a fieira. A pesca fora razoável: pacu, tucunaré, piau. Dava um bom cozido. E com a farinha de puba aguçava até o desejo.
— Dada, mamãe quer falar com você. Está procurando o seu rumo desde cedo.
Ela olhou o céu e calculou três horas.
Domício segurou o remo e carregou a fieira de peixe.
— Que foi que aconteceu? O mundo está afundando?
— Veio carta da Vó. A mãe está numa agonia doida.
— Vamos lá.
Subiram a barreira, calmos e Esmeralda abanava-se com o chapéu de palha suado e desfiando em algumas partes.
Entrou no alpendre e se sentou no banco de tora de jatobá.
— Mano, me arrume uma caneca d'água bem fria. Domício obedeceu ao pedido e foi também avisar a mãe da sua chegada.
Ela apareceu enxugando as mãos no avental.
— Minha filha, onde estava você?
— Pescando, mãe.
— Mas tão longe?
— Não. No lago do Tarumã Grande. Estava duro de se pescar. Muito mosquito e a água estava muito limpa. Peixe fugia à toa, até no mexer da sombra da gente, respirando.
Sentou-se ao lado da filha.
— Você não é bugre, nem caboclo, Esmeralda. Ela riu e passou as mãos nas costas da mulher.
— Depois, você não é homem. Não devia sair assim tão longe. Qualquer hora dessas um bugre te enche de flechas.
— Bobagem, mãe, índio me conhece e sabe que não faço mal a eles.
— Mesmo assim, Esmeralda. Uma moça que só veste calça, só quer caçar e pescar, se embrenhar no mato a vida inteira. Se não fosse o seu cabelo...
Olhou as duas trancas negras amarradas com cordinhas de fibra de palmeira. O seu rosto ficava mais bonito com os cabelos presos e os olhos mais à vista se tornavam verdes e brilhantes.
— Mas, mãe. Era isso o motivo de todo o berreiro de Domício?
— Não. É coisa mais grave.
Mostrou a carta. Não se conteve e soltou um soluço. Os olhos se encheram de lágrimas.
- Minha mãe está morrendo e quer que eu vá até lá.
- E a senhora o que vai fazer?
- Preciso viajar madrugadinha. O mais cedo possível.
- Não tem nenhum motor descendo agora. Só daqui a quinze dias. Não vou esperar o motor, não. Vou com Noraldino e Domício.
Esmeralda estremeceu.
- E eu?
- Você fica cozinhando e tomando conta da casa.
_ Por que não eu em vez de Domício? Estou acostumada com o remo e com a zinga. Güento tanto como qualquer um dos dois.
— Não. Você precisa cozinhar. Esmeralda implorou.
— Mãe, por favor, não me deixe sozinha com "ele" nessa casa.
— Bobagem, menina. Ele agora não mexe mais com você e não vai-lhe tratar mal sabendo que precisa dos seus serviços.
— Mesmo assim eu queria por tudo no mundo ir.
— Você está dizendo tolice. João nem sequer mais liga para você. Deixou de há muito de lhe dizer coisas ruins.
Ficou meditando na sua tristeza. A mãe nem desconfiava que não ficava mais em casa por causa dele. Que preferia a solidão e a calma da selva, que procurava o rio carinhoso e amigo, porque "ele" dera de olhar para o seu corpo de um modo diferente. Nunca pudera confiar isso à sua mãe. Porém, desde que os seios começaram a perfurar suas camisas e se avolumarem, desde que as suas pernas engrossaram e as coxas ficaram macias e roliças, ele a olhava de uma maneira podre e vil.
— Hoje mesmo já vou preparar uma matula de viagem. Vamos parar na praia só para dormir quatro horas. Assim, descendo o rio, com quatro dias amanhecemos lá.
A tortura e o medo corroíam a alma de Esmeralda.
"E se contasse que ele por diversas vezes se escondia entre o sarão pesado para olhá-la se banhar? Verdade que nunca o vira. Mas sentia os seus olhos cobiçosos viajando cada parte do seu corpo. Quando sabia que ele se encontrava nas imediações, ia banhar-se longe, pegava a canoa e atravessava para as praias brancas e distantes. Mas como contar toda essa suspeita à sua mãe?"
— Quer dizer que eu fico?
— É por pouco tempo, minha filha. Mamãe melhorou, e eu volto o mais depressa possível.
— Sendo assim...
De madrugadinha, antes mesmo do despertar dos gaios, a canoa saiu do porto. Esmeralda ficou desamparada vendo o vulto da ubá perder-se no resto da escuridão.
Durante os três primeiros dias, ficou arredia e apavorada. Sabia que a qualquer momento, ele quebraria o silêncio. Por enquanto só o rosto barbado e os olhos seguindo todos os seus movimentos. A mãe não deveria tê-la deixado sozinha com aquele homem...
Veio para fora do rancho e espiou a noite estrelada. Parecia uma cuia de farinha de puba refulgindo. Não havia uma só nuvem negra prenunciando chuva. O coração batia no peito descompassado. Tudo nele era um susto grande a se aproximar. A cada batida, ele pedia que se apressasse, que se apressasse. Foi por isso que apanhou as varas de pesca sem se preocupar com as iscas. Sempre ficava algum peixinho na canoa. Pulou como uma sombra a janela do seu pequeno quarto e apanhou a coberta. Dormiria na praia. Bom que não precisasse ir à cozinha. Porque ele estava lá com os braços apoiados na mesa e tornando-se mais sombrio com a chama diminuída do lampião.
Nunca perdera a mania de trazer fósforo no bolso e foi com alegria que sentiu a caixa pesada na mão.
Deslizou sem ruído pela noite. Apanhou o remo fincado na areia e soltou a canoa. Remou sem ruído. Só um ouvido muito experimentado poderia escutar os seus movimentos. Respirou feliz olhando a noite estrelada. Nessa hora a mãe estaria pousando na praia junto dos dois irmãos.
Buscou a sombra das barreiras e as árvores da beira pareciam tocar negramente o céu. Remou uma meia hora e quando parou a canoa com o remo para colocá-la em posição reta, pensou ter ouvido um remar atrás. Ficou em suspenso escutando. Nada. O medo estava criando visões. Mas continuou remando com mais atenção. O silêncio voltou a acompanhar a sua viagem. A não ser os gritos assustados dos maguaris e das garças nas árvores, a não ser o resmungar dos jaburus e dos colhereiros nas praias, não havia outro rumor.
No escuro, avistou a praia grande. Com a vista acostumada poderia adivinhar suas areias brancas. Depois dela apareceria a ilha que procurava. Bordejou a praia, cortou o canal para a direita e foi-se aproximando da praia alta da ilha. Bastava circundá-la um pouco e um porto bom e alto seria o suficiente para a sua noite. Antes que a noite amadurecesse totalmente, poderia pescar.
O arranhado da canoa na areia lhe trouxe paz e segurança. Amarrou a proa sungada da canoa no remo enfiado no chão, apanhou a coberta e subiu para o alto da praia. Depois voltaria para buscar as iscas e as varas de pesca. Primeiro urgia apanhar uns toros de madeira seca para fazer a coivara da noite. Animal então não se aproximaria e gente que passasse longe pensaria estar vendo índio pousando na praia.
O ventinho frio da noite acabara de apagar o calor das remadas. Pronto, agora é só pescar e depois dormir. Antes que tomasse aquela decisão, resolveu deitar-se, e fitando os caminhos que as estrelas riscavam no céu e sentindo que o vento lhe acariciava os cabelos, fechou os olhos docemente. Nem poderia imaginar quanto tempo ficara assim. Mas um raspar de pés na areia, fê-la sentar-se assustada. Passou a mão na cintura, mas esquecera a faca de pesca na ubá.
Antes de o vulto aproximar-se dela, a voz chegou primeiro. Era ele.
— Você não devia ter vindo pescar sozinha tão longe e numa noite tão escura.
O coração só faltava sair pela boca; à custo dominou-se e respondeu:
— Não é a primeira vez e estou acostumada. Precisava demonstrar segurança e indiferença.
— Mas quando sua mãe está em casa, você não faz disso. Era verdade. Nunca fizera isso antes.
Ele sentou-se perto.
— Por isso vim ajudar.
Sua voz saía calma e compassada. Sentou-se perto dela.
— Não estou precisando de ajuda.
Quis levantar-se, mas as mãos fortes dele prenderam-lhe o pulso.
— Deixe-me. Vou contar tudo pra mamãe quando ela chegar.
— Por quê? Esmeralda, eu só quero ficar perto de você.
Viu que ele não a soltaria. Implorou, perdendo toda a sua selvageria costumeira.
— Por amor de Deus, me solte, me solte.
Pensou em gritar, mas de que adiantaria? Seria um grito a mais perdido na vastidão da selva. E as mãos a seguravam como ferro. Machucavam-lhe a carne. No desespero da distância, as únicas pessoas que poderiam socorrê-la, dormiriam em paz nas areias de outras praias.
Lutou enquanto pôde, as forças faltavam e a sua boca e seu nariz estavam abafados pelas mãos ásperas e violentas. Os olhos verdes cheios de lágrimas ainda avistaram lá no alto as estrelas brilhando indiferentes.
Voltou a si, sem saber o que doía mais em seu corpo. As suas costas ardiam arranhadas contra a areia. Até o respirar doía. Tentou sentar-se e gemeu. Suas pernas, suas entranhas eram brasas vivas. Gemeu comprida e loucamente.
Ele estava à seu lado e passou a mão sobre os seus cabelos.
— Isso passa. Logo passa.
Não teria voz nem para chamar pela morte, mas murmurou fracamente.
— Desgraçado!... Miserável...
A mão continuava alisando os seus cabelos e a sua fronte. Nem podia arremessá-la para o inferno. Principiou a chorar baixinho e até os soluços doíam no seu peito machucado.
— Você sabia que um dia eu faria isso.
Nem podia morder-lhe os dedos, porque sentia o nariz ferido e os dentes abalados doíam ao se chocar quando chorava mais forte.
Arrastou-se até a ponta da praia e rolou o corpo até alcançar a beira do rio. Precisava urgente lavar a podridão do corpo. A água fria fê-la recuperar um pouco de suas forças. Melhorou a dor das mãos e dos dedos meio endurecidos.
Foi-se puxando para dentro do rio. Aí a dor, o ardor do fogo incendiou-lhe pedaço por pedaço do corpo. Trincou os dentes para não uivar. No coração havia o desejo sincero de que todas as piranhas do rio viessem devorá-la. Talvez não doesse mais do que a dor que sentia no momento.
Ficou paralisada por um longo tempo e quando se lembrava de mexer seus membros a dor retornava cruel. Mas não tão cruel como a dor primeira.
A frialdade das águas arrepiava-lhe toda. Arrastou-se mais encorajada para perto da canoa e ficou deitada, desinteressada de tudo. Só olhando o céu. Nem chorar poderia, se tentasse.
Ele sentou-se perto e colocou a coberta dobrada no seu corpo nu. Como visse que Esmeralda tremia sem tomar a iniciativa de cobrir-se, ele mesmo desdobrou a coberta e colocou-a com cuidado sobre a moça.
— Daqui há pouco tudo isso passa e a gente volta para casa. Não entendia bem o que estava dizendo. Tudo parecia ter perdido o significado.
— Você está me ouvindo, Esmeralda?
Acariciou-lhe o rosto suavemente. Não era possível que aquelas mãos assassinas, ásperas e malvadas tivessem adquirido tanta maciez. Até a voz mudara estranhamente.
_ Feche os olhos, durma um pouco e você vai ver que tudo melhorará...
Ficou acariciando os olhos, os cabelos, os cabelos, os olhos, e Esmeralda adormeceu.
Quando entreabriu os olhos, a manhã anunciava-se avermelhando o nascente. O dia ia ser quente e sem chuva. A princípio nem sabia onde se encontrava. Mas deu com ele, que também olhava a manhã sorrindo para ela.
— Vamos. Vista-se. Eu calculo como você se sente.
Ela arrastou-se para o rio e dessa vez as águas frias não arderam tanto, mas deram uma sensação de que o corpo revivia.
Suas roupas estavam na canoa. Ela se vestiu devagar. Com medo da dor. Tudo se tornava mais suportável. Mas sentiu necessidade de sentar-se na canoa para conseguir enfiar as calças. Com cuidado apertou o cinturão com medo de ressuscitar a dor das entranhas.
Ele amarrou a canoa de Esmeralda na dele.
— Você está cansada. Vem na minha. Eu zingo e reboco a sua canoa. Deu a mão e ela aceitou.
— Olhe, você pode até deitar-se. Minha canoa é seca. Isso. Ela obedeceu sem dizer nada.
Com a coberta ele formou um travesseiro e apoiou a sua cabeça. Tornou a passar a mão na sua testa e nos seus cabelos. Não era possível aquele homem ser o mesmo bruto de horas antes.
— Nas outras vezes você não vai sofrer tanto...
SEXTO CAPÍTULO
As Piranhas
NA NOITE SEGUINTE, ELE JÁ JANTARA e continuava sentado com os braços apoiados na mesa. À luz do lampião, seu rosto parecera renovar-se. Talvez por ter tirado a barba crescida de vários dias.
Esmeralda colocara a mobília do jantar dentro de uma bacia. No dia seguinte carregaria tudo até a beira do rio para lavá-la.
A vontade de matá-lo passara. Estava mesmo perdida. Que adiantaria reagir? Talvez mais tarde criasse vontade de se vingar. Por enquanto não sentia coragem, nem ousaria tanto.
— Acabou? Então venha cá. Foi.
— Sente-se defronte de mim. Sentou-se.
Os dois rostos estavam quase separados pela manga meio encardida do lampião.
— Escute, Esmeralda. Eu sei que você pensou em tudo. Até em me matar, não foi?
Ela ergueu os olhos verdes pouco brilhantes e só muito tristes. Abanou a cabeça confirmando.
De repente ele é que foi tomado de um grande desespero e emoção. Atravessou a mesa com os braços e segurou-lhe as mãos convulsamente.
Falava e chorava seguidamente.
— Juro, Esmeralda, que eu não fiz isso por vingança. Juro por Deus, pela hóstia consagrada. Por tudo que for mais divino, que eu não quis me vingar. Mas eu não podia mais. Não podia mais. Você estava me deixando louco.
Soluçou desvairadamente.
— No começo, eu odiava você. Odiava a ponto de querer matá-la. Mas jurei que quando você crescesse eu me vingaria. Foi por isso que eu a tratei tão mal sempre. Foi por isso. Depois o tempo foi passando. Você ficou mulher. E eu não dormia mais. Eram seus olhos, seu corpo me martirizando o tempo todo. Então o meu ódio virou ao contrário. Eu queria você. Eu queria você. Minhas noites nos acampamentos dos castanhais eram passadas pensando só em você...
Esmeralda levantou-se e foi até junto do fogão. Voltou com unia caneca de café.
- Tome isso.
Enxugou o rosto molhado nas costas da mão e bebeu o café ainda morno. Não desviava os olhos dos olhos verdes de Esmeralda. E aquele seu gesto parecia não significar ódio.
Levou a caneca para a bacia e retornou ao lugar anterior com o lampião separando os seus rostos.
— Escute, Esmeralda, eu vou contar. Preciso contar o que foi minha vida. Todo mundo se desinteressa em olhar o outro lado das coisas.
E tentando acalmar-se recomeçou a falar mais compassadamente. E contou todo o desespero que o perseguira todos aqueles anos. A raiva que tivera da mãe dela. O difícil de acreditar em toda aquela história. E logo com um negro. No trabalho, na apanha das castanhas, muitas vezes ouvira cochichos que pareciam dizer: "E logo cora um negro?" Pouca gente acreditaria. Poderia crer na frente, mas por trás a maledicência humana transformava os fatos. Riam-lhe pelas costas. Sorriam-lhe com maldade. Sentia que por dentro o chamavam de corno e chifrudo. Tudo um inferno que nem a dureza da labuta, nem o perigo da selva e dos ataques dos índios, conseguiam disfarçar. Depois, ela nascia. A raiva. A vontade de estrangular o bebê. Vontade de arrancar a pele escura com o quicê de extrair seringa. O choro à noite. O carinho com que era tratado. A voz admoestando-lhe a todo instante: "A criança não tem culpa". "A criança não tem culpa". Sentia desejos de desaparecer, sumir no mundo, arranjar outra mulher. Esquecer tudo, abandonar tudo por que lutara... Mas, para quê? Nada se apagaria da sua lembrança. Nada se apagaria da sua memória por maior que fosse a sua viagem. Então, fez o plano de se vingar. A criança, se chegasse um dia a ser mulher, iria pagar. Não se importaria o preço daquele desejo e o preço era apenas o tempo de espera. Os filhos pareciam ter morrido para ele. Nem mais um carinho. Nem mais...
— E foi assim, Esmeralda. Eu no começo queria isso. Depois fui mudando.
Parou um pouco para fixar o rosto impassível de Esmeralda.
— Nunca mais. Nunca mais eu consegui dormir com a sua mãe. Fiquei todos esses anos à seu lado sem tocá-la, com nojo. Indiferente, como se estivesse ao lado de um paneiro de castanha.
Esmeralda ergueu-se e foi recostar-se na porta, olhando a noite estrelada e fresca. Talvez amanhã toda aquela calma, toda aquela beleza de noite se transformasse. Então poderiam vir as nuvens negras e a chuva de vários dias invadiria tudo. As chuvas trariam tudo de ruim. A febre, os mosquitos. Se chovesse iria estragar a viagem da sua mãe e de seus irmãos. Deu de ombros, indiferente. Que importava mais isso?
Voltou-se. Espreguiçou-se lentamente e caminhou para a mesa.
O homem angustiado tinha a cabeça escondida entre os braços e soluçava de novo.
Teve pena. Aproximou-se e colocando-se nas suas costas, passou-lhe as mãos sobre seus cabelos e sentiu uma sensação estranha arrepiar-lhe a alma. Admirou-se de como aprendera a fazer aquilo sem nunca ter pensado antes. Demorou os dedos entre os cabelos encaracolados do homem. Retirou-os lentamente, sentindo mesmo uma sensação macia e agradável.
Apanhou o lampião na mesa e debruçou-se falando ao seu
ouvido.
— Vamos.
Esmeralda não ignorava que aquele primeiro toque, aquele gesto de carinho tinha sido a primeira indicação do que a esperava no futuro. Às vezes em seu silêncio tomava-se de forte depressão e ficava a imaginar o que aconteceria dentro em breve. O tempo que conseguiria guardar o segredo de tudo aquilo. Outras vezes resignava-se consolando-se: Eu pedi que ela não me deixasse aqui. Eu pedi. De repente, assustava-se ao descobrir que estava contente com aquilo. Que já era mulher. Que conhecia um homem. Que um dia mais cedo, um dia mais tarde aconteceria aquilo. Pelo menos já passara por aquela dor e que seu corpo forte e acariciante lhe proporcionava agora momentos de maravilhoso prazer.
Sondava o rio esperando com medo, com agonia, o roncar de um motor... um remo ao longe brilhando contra o sol como faca de prata. Nem isso. Nem um ruído de remo cadenciando a sua espectativa.
Terminava de lavar na fonte, trazia a roupa para passar, mas agora não sentia mais aquela vontade de cantar. Ficava em silêncio torturando o seu medo com perguntas sem respostas. O silêncio viera habitar todos os cantos da casa. Faltava o bulício que os irmãos faziam sempre ou a presença calma da mãe.
Quando ele aparecia para o almoço, servia-lhe sem nada falar. Olhavam-se poucas vezes e pouco se sorriam. Nem pareciam os mesmos. Mas quando a noite reinava longamente, transformavam-se em outras criaturas. A noite se forrava de veludo, de gemidos, de carinhos. Nem sequer sentia remorsos de estar usando a cama da mãe, o homem da mãe. Era certo, ela não prestava mesmo para nada. Nem também comentavam o problema. A noite era o momento. O que surgiria depois e que surgiria na certa, ficava esquecido, longe, como se não tocasse a eles remediar a situação.
Somente olhando o rio calmo ou fitando o balançar das árvores é que Esmeralda se apavorava. Chegava a molhar o rosto de um suor frio, pegajoso. E se por acaso pegasse barriga? Isso, nunca. Que Nossa Senhora de Nazaré a protegesse. Pensava em fazer promessas, mas desistia desanimada. Que promessa poderia fazer? A principal não sentia coragem de cumprir. Estava presa, presa, cada vez mais presa. Melhor nesse caso matar-se.
E os dias passando, passando sem que a mãe e os irmãos chegassem. Cada vez ia ficando pior a situação. Cada vez mais perdia a vontade de fazer qualquer coisa, para que aquilo não continuasse. Sofria ao pensar no momento em que tivesse de fitar os olhos da mãe. Quando brincasse com um dos dois irmãos. E quando descobrissem a verdade? Eles eram já homens. O tempo os amadurecera. Podiam matá-la. Podiam tomar atitude semelhante com ele...
Voltou para a cozinha e recomeçou a passar as peças de roupa. O cabelo caía sobre os olhos e sem notar suspendia-os com paciência. Um cachorro latiu no portão. Recebeu a bofetada da realidade: eles tinham voltado.
A mãe caminhava devagar trazendo uma sacola. O cachorro fazia festas em suas mãos.
— Fica quieto, Leão.
Tingira suas vestes de preto e seus olhos vinham observando tudo com uma expressão de grande tristeza.
Durante o dia não falava com ninguém. Arrastava-se pela casa guardando um silêncio que proporcionava mal-estar. Trazia os olhos verdes pisados de tanto chorar. A cada instante limpava-os, na sua incontrolável dor. Quando parava os trabalhos caseiros, sentava-se em um canto, onde não perturbasse ninguém e não pudesse também ser perturbada, e rezava, rolando entre os dedos as contas opacas de um velho rosário.
Não parecia mais existir o mundo da casa. Nem sequer se interessara saber se tudo tinha corrido bem. Depois da sua dor, nada poderia existir de mais importante.
Esmeralda apavorava-se, observando tudo. Tinha vontade de contar-lhe o acontecimento, mas perdia a coragem enxergando o vulto escuro e abatido.
A certeza de que a tragédia estouraria a qualquer momento. Aquilo não podia permanecer como estava. Durante a refeição da noite tornava-se pior. Ele voltara ao mundo antigo. Também Parecia ter esquecido tudo. Nem sequer procurava uma oportunidade para olhá-la. Dizer pelos olhos o que o silêncio condenava. De certo modo doía um pouco aquela indiferença toda.
De noite na tipóia que se tornara incômoda e calorenta, via as horas passarem sem poder dormir. A rede guinchava nos ganchos a tal ponto que Noro reclamou.
— Dada, ou tu pára com essa rede ou vai botar óleo de carrapateira nos ganchos. Assim ninguém pode dormir.
Imobilizava-se e o calor vinha abraçar mais consciente o seu constrangimento.
Esperou que todos tivessem saído, depois do quebra-jejum e limpando a farofa de ovo dos pratos, criou coragem e falou para a mãe.
— Mãe, eu preciso contar uma coisa triste para a senhora. A mãe fez com a mão um gesto de negativa. Esmeralda sentiu-se irritada.
— Escute, mãe. A senhora precisa me ouvir. Os olhos da mãe se encheram de lágrimas. Esmeralda descontrolou-se.
— Mãe. Pare um pouco com essa choradeira. A senhora precisa me ouvir.
Segurou com força os ombros da mãe. A mãe desvencilhou-se e empurrou-a para longe. Quase gritando de dor, exclamava sem parar, enquanto andava apressada em direção do rio:
— Peste do diabo. Não respeita nem a dor alheia... Não adiantava. Era melhor morrer, sumir, fugir.
Apanhou o chapéu de palha. Apertou bem as trancas e saiu desorientada. Penetrou na mata e o coração parecia estalar de sobressalto. Não era medo da selva, mas de si mesma. Da sua desorientação. Caminhava como se fosse uma cobra, de raiva, enroscando-se nela mesma. Não passaria pela roça. Não adiantava nada falar com ele. Estava acabado. O que ele quisera conseguira. Não podia culpá-lo de nada. Fora para ele: "aquilo".
Penetrou no trilheiro escuro dos grandes castanhais. Nem parecia existir sol em cima daquela mataria escura. As grandes castanheiras já tinham derrubado os ouriços enormes e ameaçadores. Que caíssem das alturas todos os ouriços pesados e a matassem, esmagassem sua cabeça. Mas nada disso adiantava. Já passara o tempo do apanha. Não havia vento. E Deus na sua grande sabedoria só deixava cair os ouriços durante a noite. O corpo melava-se de suor. Já fazia tempo que andava. Não se importava com a beleza da selva, com as borboletas azulonas, com o grito dos pássaros. Nem o pio do mutum ou do jacobim interessavam-na agora.
Passou a mão na garganta e sentiu sede. De noite o corpo estaria cocando com as mordidas dos carrapatos pequenos. Era isso: sede. Parou para orientar-se e ficou feliz com a suspeita confirmada. Estava perto do igarapé. Precisava beber e banhar-se. Ali, a água era limpa e fresquinha. Não havia perigo de piranhas nem nada. §e subisse o igarapé e alcançasse o lago grande, sim, isso era perigoso porque lá com a secação do rio parecia ter-se reunido toda a maldita raça das piranhas. Eram as vermelhas, as queixo-de-burro. As pretas, as "sarafinas", as de papo amarelo. Credo! te esconjuro. Bicho malvado estava ali. No lago também, nas areias mornas da beira as arraias de fogo costumavam fazer ninho.
As árvores se rareavam e ela podia sentir a brisa gostosa que vinha do igarapé e fazia tabela no seu rosto gostosamente.
Parou um momento, perscrutando a calma do ambiente. Agora seu coração sossegara mais. Jogou o chapéu no chão. Desabotoou o cinturão e deixou as calças caírem desarrumadas. Abriu a blusa e imitou o gesto da calça. O corpo nu foi sendo invadido pelo vento da selva. Espreguiçou-se toda e alisou os seios, o ventre. Roçou as pernas demoradamente como se quisesse massagear o cansaço da caminhada.
Entrou n'água sem pressa e mergulhou o corpo novo nas águas. Que bom; os seios iam ficando enrijecidos com o mergulho compassado que fazia. Molhou a cabeça e pôs-se a esfregar parte por parte, livrando sua pele escura daquele suor pegajoso que a acompanhara.
Ajoelhou-se e ficou com a água atingindo a sua boca. Esqueceu-se de tudo para olhar a selva, o tronco das árvores. Todas elas tinham sido pequenininhas e levaram um mundo para atingirem aquele tamanho. As folhas como borboletas mortas balançando no espaço sem saber em que parte da água iriam cair. Tinha-se esquecido da sua decisão. Nem pensava mais em fugir. Fugir e perder aquela beleza da paisagem? Morar numa cidade grande onde não se ouvia o canto de um pássaro, nem mesmo o gritar angustiado de um urutau?
— Você não devia ter vindo tão longe assim! Nem sequer uma faca trouxe...
Deu um salto assustado e virou-se protegendo os seios com as mãos entreabertas.
Ele calmamente tinha-se despido e caminhava sorrindo para ela.
Nada mais falou. Tomou-a nos braços e apertou-a tentando suprir naquele aconchego a ausência de tantas noites.
— Como você sabia que eu vinha aqui?
— Sabia, sim. Muitas vezes eu segui você pela mata e olhava tudo de longe. Agora é diferente.
Soltou-a e mergulhou nas águas. Voltou para abraçá-la.
Esmeralda sentiu-se intraquila. Não sabia como agir nem o que dizer.
Ele tomou-lhe as mãos.
— Vamos? Relutou.
— Por que não?
— Ela voltou.
Nem reparou que esquecera de talar mãe.
— E daí? Ninguém sabe que estamos aqui. Venha: Puxou-a docemente e segurando a sua mão encaminhou-se para
junto das roupas. Sentou-se, mas sempre aprisionando a mão da moça.
— Venha.
Esmeralda ajoelhou-se, mas ainda relutava. Ele soltou-lhe a mão. Deitou-se e colocou a cabeça sobre os braços, sorrindo.
— Venha.
Não sabia negar. A vertigem transtornava o seu querer. Deitou-se abraçou-se a ele.
— Eu não queria...
— Por quê?
— É de dia.
— Qual é a diferença?
— De noite, o escuro perdoa os pecados da gente.
— Nenhum pecado se chama amor.
Puxou-a contra si e sentiu o fogo da volúpia. Os braços não sabiam onde escolher aquela carne macia para acariciar.
— Esmeralda, todas essas noites eu tenho ficado louco. Virou-a no chão e começou a lamber os seus olhos, apertar os seus seios e a gemer baixinho.
— Sem você, eu estou morrendo.
Pouco depois os dois olhavam o céu lá longe e tão azul. Nem sentiam vontade de se banhar. A languidez e a calma da selva parecia ter-se enraizado em seus corpos.
— E agora? Que é que a gente vai fazer?
— Já resolvi. Resolvi tudo.
Subitamente, Esmeralda sentiu-se medrosa. O coração estava-se adiantando para receber a notícia.
— Já resolvi tudo. Essa noite nós vamos embora. Soltou um gemido de espanto.
— Nós vamos embora sim, Esmeralda. Não há maneira da gente continuar vivendo assim. Vão acabar descobrindo.
- Mas eu não vou.
- Terá de ir.
- Não pode abandonar Mamãe logo agora que ela está morrendo de dor.
- Pois que morra.
Esmeralda não gostou daquelas palavras.
- Velha! Não vou passar o resto da minha vida dormindo junto de uma velha!
- Não, eu não vou. Nunca farei isso à minha própria mãe.
— Fará, sim. Hoje à noite você irá comigo. E não tente dizer que não que eu a matarei. Juro por Deus, Esmeralda.
Seus olhos estavam transtornados. Parecia ter enlouquecido. Esmeralda sentou-se.
— Meus irmãos virão atrás da gente. E só descansarão quando tiverem apagado a gente.
— Nunca. Eu conheço mais selva e mais rio do que eles. Iremos longe. Para Belém. Para Santarém, onde tenho amizade velha com donos de seringais. Iremos longe, tão longe que nem o diabo acha a pista da gente.
— Eu não vou.
— Vai, porque eu quero.
Segurou com força o pulso da moça.
— Está me machucando.
Soltou-a e ela ficou friccionando o pulso.
— Eu não vou. Ninguém manda em mim.
Ele segurou-a brutalmente. Sacudiu-a com uma brutalidade que ela não conhecia nem julgava possível.
— Você vai. Por que se eu for sozinho, descobrirão o que fez comigo. E será expulsa de casa. Virará puta de bordel barato. Eu quero você como minha mulher. Do contrário será mais uma putinha barata, mais uma negrinha sem-vergonha apodrecendo na zona.
O sangue ferveu. Aquilo doía mais do que a maior bofetada.
— Prefiro contar tudo lá em casa do que ir embora assim.
Sem soltá-la, ele despregou um braço e esbofeteou o rosto espantado de Esmeralda. Ela caiu no chão soluçando.
— Você vai aprender a obedecer. Eu não esperava fazer isso tão cedo.
Ela soluçava no chão. Ouviu que ele se encaminhava para o igarapé, o som das águas se movimentando.
Levantou a cabeça das suas roupas para as roupas dele. Seu corpo tremia de indignação. Viu o cabo escurecido da faca aparecendo na abertura da camisa jogada.
Estava de todo jeito perdida. Se voltasse para casa a desgraça estaria consumada. Acabariam descobrindo a verdade. Mas, se fosse com ele, o inferno apareceria em vida para sempre. Putinha! Negrinha! Todo o ódio da sua infância ressurgiu: Negrinha, pretinha, vagabunda...
Levantou o busto e reparou que ele se deitara de bruço, descansando do banho e da sua maldade.
Esticou o braço e puxou a faca. Retirou-a sem o menor ruído da bainha. Rastejou como um bicho. Nem respirar podia. Ele jamais iria descobrir a tempo o seu caminhar de raiva...
Somente ao exibir as mãos e os braços manchados de sangue foi que a mãe fugiu da sua grande dor.
— O que foi isso, menina?
— É sangue.
A mãe foi tomada de um ligeiro pavor e um estremecimento fê-la sentar-se do outro lado da mesa. Esmeralda seguiu o seu gesto alcançando o outro lado. Somente que agora era dia e não havia um lampião mortiço entre os dois rostos.
— Mãe. Eu matei ele. Matei antes que me matasse.
Os olhos da mãe tinham afugentado as lágrimas para longe. O que se via agora eram dois olhos verdes, duros, metálicos. O rosto como se petrificara e encarava a filha ouvindo toda a história.
E Esmeralda desabafou. Contou tudo até o plano da fuga para aquela noite. Pensou que a mãe a mataria. Em sua presença não se encontrava mais aquela mãe conformada e doce.
Somente uma palavra escapou da sua boca:
— Canalha.
Riu de um modo selvagem imitando a voz dele.
— Não. Você pode levar a menina. Eu me arranjo só. Depois você não vai demorar a vida inteira. É melhor levar a menina.
Olhou Esmeralda longamente. O seu coração parecia condená-la. "Ela não tem culpa. Mas desde que veio ao mundo, a desgraça veio morar na minha sombra".
Cruzou as mãos e por um momento olhou a mesa.
— Ele se vingou. Esperou anos e anos para fazer com você o que fizeram comigo.
Esmeralda parecia petrificada. A mãe tornara-se uma imagem de ódio.
Nem sentia vontade de respirar.
A mãe se ergueu decidida e cruzou os braços.
- Se você não o matasse eu o mataria agora mesmo. Mas como não se pode matar um morto duas vezes...
Entrou no quarto e retornou logo após. Passara um lenço escuro na cabeça e o prendia atrás da nuca.
- Vamos lá.
- Não, mãe. Eu não queria nunca mais voltar naquele lugar.
A mãe aproximou o rosto colérico.
— Você vai!...
Bebeu uma caneca d'água de uma só vez como se desejasse que a água fria amenizasse o ardor da alma.
— A gente vai lá para dar sumiço ao corpo. Senão você está perdida.
Encolheu os ombros e os soltou com indiferença.
— De qualquer maneira você já está perdida. Pegue a quarenta-e-quatro no quarto.
Obedeceu como um autômato.
— Como ele apareceu por lá?
Tremia toda ao responder. O medo de encontrar o corpo duro. 0 sangue escorrendo na areia. Parecia rever a cabeça batendo contra o chão e o estrebuchar da agonia que terminou com um uivo tremendo.
— Ele veio de canoa pelo lago e entrou no igarapé.
— Viu se tinha remo na canoa.
— Remo e zinga.
— Então vamos combinar. Porque não podemos dizer uma palavra no lugar. Alguém pode ouvir. A gente chega lá. Puxa a canoa para perto. Arrasta o corpo para dentro dela. Depois a gente apaga toda a sujeira e sangue que ficar na areia.
Sentiu sede novamente e novamente foi beber.
— A gente rema na canoa até o desaguadouro do igarapé com o lago. Fura o fundo dela e empurra na correnteza. Ela viajará mais de meia hora sem afundar. Depois, as piranhas e os jacarés acabarão com tudo.
Fechou as portas da casa. Apanhou o facão-jacaré na cozinha. Esmeralda parou a sua caminhada, segurando os ombros fortemente.
— Mãe. Esquecemos de uma coisa.
O olhar duro interrogando. Exigindo pressa.
— E Domício e Noraldino?
— Não saberão de nada. Foram pescar no Timbió e depois vão fazer espera de veado nos piquizeiros. Não chegarão aqui antes do meio-dia de amanhã.
Atônita, Esmeralda não conseguia descobrir como a mãe conhecia tudo aquilo.
Ela pareceu adivinhar os seus pensamentos.
— Só você pode conhecer as coisas da selva? Os outros não? Quando eu era moça e antes dos meninos nascerem eu trabalhava com ele por toda parte. No lugar em que vocês se encontraram. Lá mesmo. A gente ia passear todo domingo.
Esmeralda sentiu vontade de chorar. Não bastara ter violado a cama da mãe e sem saber usara também aquele lugar.
— Leve umas varas de pesca. Mas antes lave as manchas de sangue das suas mãos, dos braços e do rosto.
Virou Esmeralda e examinou as vestes. Queria saber se também se sujara de sangue em alguma parte.
— Na roupa não tem nada.
— Eu estava sem ela.
Assobiou para chamar o cão. Prendeu-o dentro da casa. Era perigoso que o animal visse aquilo.
Nas noites que seguiram veio muita gente para fazer visitas de pêsames.
— Os homens descobriram a ossada por causa dos urubus, de tardinha.
— Os homens passaram a noite com fachos e varejões remexendo os lagos.
— Ele devia ter bebido muito. A canoa furou nalguma tranqueira e afundou sem ele ver.
Esmeralda, calada. A mãe, calada. Nenhuma das duas chorava. Os vizinhos que chegaram de longe achavam que era dor demais para uma só pessoa.
— E as roupas?
— Ora os bichos destroem tudo...
Esmeralda começou a chorar baixinho, mas a mãe apertou o seu braço. Ela estava revendo quando viraram o corpo e começaram a vesti-lo. Ela sentia até o cheiro do sangue já talhado. E o corpo parecia ter ficado mais pesado. Fora difícil colocá-lo dentro da canoa.
Quando todo o mundo foi embora e que os irmãos foram acompanhar as visitas até o porto, a mãe falou decidida.
— Você vai embora no próximo motor. Vai subir o rio e procurar a sua própria vida.
Era melhor mesmo. Nunca mais poderia viver por todos aqueles lugares. O fantasma do medo, a superstição das almas. O remorso que estaria em cada canto que olhasse...
- A gente vai dizer aos outros que você foi estudar num asilo de freiras em Belém.
Poucos dias e Esmeralda subia o rio. Levava um embrulho de roupas. Era um pacote fechado numa lona velha com linha de pescar. Pouco dinheiro; mais que o da passagem.
Antes de embarcar apertou a mão dos irmãos. Beijou a mão da mãe. Ajoelhou-se para que ela a abençoasse e levantando os olhos úmidos para o alto observou demoradamente que a mãe tinha os olhos tão verdes como a selva.
Fim da primeira parte.
Segunda Parte
OLHOS VERDES
PRIMEIRO CAPÍTULO
O Rancho
Divonise TORCEU AS MÃOS de contentamento.
- Oba! Agora, só Sábado de Aleluia. E só de noite.
Deu uma risada gostosa e livre.
- Os homens, todos os homens do mundo que vão para a puta que pariu! Estou livre dessas pragas por três dias.
Rolou na cama como uma criança arteira. Dava palmadas em seu próprio corpo e soltava gargalhadas.
— Bunda você é minha. Peitos vocês são da mamãe...
— Essa biraia enlouqueceu!
Sentou-se na cama com o rosto radiante.
— Maluca está a mãezinha! Já imaginou você ficar livre dos homens? Dessa cambada de homens nojentos, sebosos? Fedorentos como porcos cabeludos, ossudos, ajumentados.
— Tu não vai com a gente?
— Onde é que vocês vão? Letícia apontou Olinda.
— A gente vai caçar os vestidos de seda amarelo e descer o rio.
— Vocês vão servir?
— Que jeito! O mar não 'tá pra peixe. Você mesmo viu que as noites do cabaré não tão dando nada.
— Isso é. Mas eu não vou. Vou é dormir que não acaba mais. Quando chegar o pôr do sol, vou pescar lá nas beradas do Capivara. Ora se vou.
— Então por que você não ajuda Olinda?
— Em que posso?
— A pobre nem não tem um vestido de seda amarela. E vocês duas têm o mesmo corpo.
Divonise olhou a outra. Era gado novo. Chegado de pouco. Não conhecia direito o costume da terra. Estava querendo aprender.
— Depende.
Olhou a outra com firmeza.
— Tu tem corpo limpo, garota?
— Tenho sim.
— Nem mau cheiro, nem sovaqueira?
— Sou tratada.
— 'Tá bem. Mas se você empestar o meu vestido mais tarde paga, 'tá?
— Aceito.
— Mas depois você me devolve limpinho e passado como recebeu.
Olinda concordou com a cabeça.
Sem se levantar da cama Divonise apontou o armário.
— Abre ele e apanha na outra porta. No fim. No último cabide. A outra obedeceu. Ficaram espiando a sua ação. Subitamente a porta abriu-se de chofre e Chuva Crioula entrou sorrindo.
Que diabo de tanta gargalhada aí? Eu até que estava deitada descansando, mas me deu uma vontade danada de saber o que é?
— É essa tarada da Divonise. 'Tava dizendo que ela é que vai dormir com ela esses dias. Que homem nenhum vai botar a mão em cima dela.
— E não vai mesmo.
Tornou a alisar o corpo nu e muito branco, com alegria.
— Pronto 'tá aqui o vestido.
Olinda experimentou-o sem enfiá-lo. Olhou-se no espelho do guarda-roupa. Seus olhos iluminaram-se de prazer. Não era preciso ser muito sabida para adivinhar o que se passava em sua cabeça. Um dia iria ter um vestido lindo daqueles.
Chuva reparou naquilo.
— Mas pra que a roupagem de canário?
— As trouxas vão servir.
O rosto de Esmeralda anuviou-se. Sem querer, revia-se menina. E as mulheres de vestido de flor de ipê desciam o rio. "Um dia eu vou ter um vestido daquela cor". E a mãe dissera que aquela cor bonita se chamava amarelo.
— Mas em plena Semana Santa?
— Que besteira. A gente vai. Lava, costura, cozinha e ganha uns cobrinhos. Se algum macho cismar e não se incomodar com os feriados, a gente dorme também. Que diferença faz?
Divonise deu uma daquelas gargalhadas escandalosas.
— Vai dizer que só é pecado na Semana Santa? Agora, mais estai Nos outros dias é boa ação?
E veio aquela vontade doida de experimentar como servidora.
— Eu acho que vou também. Não vai ser por falta de vestido amarelo. Tenho bem uns três.
— 'Tá trongola, mulher? Tu não foi feita pra isso não.
— Não sou melhor do que ninguém.
— Lá isso você é. E a gente quer que continue sendo, porque se um dia você deixa o cabaré, isso vira um frege cheio de mosca.
Divonise sorriu amistosamente para Chuva. _ Não, Princesa. Você vai ficar muito boazinha descansando. Nada de machucar esse corpo. Nada de ferir as mãos. _ Besteira. Eu fui criada na beira do rio. Remando e zingando. _ Princesa, isso foi há muito tempo. Letícia vasculhou a cômoda de Divonise. - Pô! Será que nenhuma dessas fêmeas tem um cigarro aí?
— Abre a gaveta da mesinha de cabeceira. Pegue um. Mas só um- E depois trate de limpar a cinza que cair no quarto, sua quenga!
Elas se xingavam por amizade. Tinham o costume de se tratar assim. Difícil uma delas interpretar a coisa como ofensa. Esmeralda tinha cruzado os braços e se encontrava meditativa. - Mudou de idéia, Chu? Sacudiu a cabeça negativamente.
— Mas isso é uma poia! A burra da mulher é linda. É a mulher mais famosa da redondeza. Escolhe o homem que quer. Tem um macho rico que lhe dá vestido, dinheiro e jóias. Um macho que ainda por cima a gente gostaria de dormir um ano e mais seis meses com ele. Tem tudo que quer e do melhor. Agora cisma de se vestir de amarelo, de descer o rio remando, procurando sofrimento e cansaço. Caçando trabalho de puta velha ou pobre...
Esmeralda não desistia.
— Posso ir na canoa de vocês? Letícia deu um pulo.
— Endoidou, quenguinha linda?
— E por que não?
— Nunca na vida. Primeiro, porque a canoa não pega mais de duas pessoas, segundo, porque se a Suzi me pega, me capa.
Riram da piada. Letícia colocou a mão na cintura e andou toda dengosa, imitando Suzi. Esmeralda insistia.
— Suzi está longe. Viajou, aproveitando a folga. Foi caçar gado novo.
— E a amiguinha dele?
Letícia tornou a andar se rebolando. Era engraçado o corpo nu fazendo aquelas evoluções.
— Seu Gilberto?
Parou no meio do quarto e falou enraivecida.
— Fico "santa" da vida, quando aquela bicha sonsa obriga a gente a chamar ela de seu Gilberto!
Chuva interferiu.
— Deixe de sacanear a infeliz. Pois se vocês querem a boa novidade, lá vai: "A Turquinha acompanhou a Suzi".
Enquanto Letícia saracoteava, pulou na cama de Divonise e começou a bater palmas aplaudindo a liberdade total.
— Pare com isso, sua égua. Vai desmontar as tábuas da minha felicidade.
Letícia parou ofegante e sentou-se ao lado da outra.
— Que horas vocês vão sair?
— Daqui "meiora", Chuva. Mas não insista, nega. Chuva ficou contrariada.
— Por que não vai pescar, quando Divonise for? Esmeralda olhou em desafio uma a uma todas as mulheres.
— Vocês não me conhecem. Quando quero uma coisa nem o diabo me impede. Pois eu vou servir. Nem que saia sozinha por esse mundo de Deus. Quero andar, passear, apanhar sol. Estou até mofada de viver de noite...
Virou as costas, apertou o "pegnoir" no peito, abriu a porta e caminhou sem ruído pelo corredor.
Não era a mesma mulher. O sol quente no rosto, apesar de estar beirando as duas e meia da tarde, o vento gostoso sobre os cabelos... Tudo alisando o seu corpo, a sua alegria, com as garras gostosas da liberdade.
Não se preocupava agora em servir. Estava descendo e a canoa deslizava leve. Mesmo assim sabia que as suas costas, os seus braços, doeriam quando chegasse a noite. Não fazia mais questão de seguir, de ir mais longe. Mesmo que não encontrasse uma casa, um rancho, um acampamento, dormiria na praia como fizera muitas vezes com os irmãos. Ficava contando as estrelas no oco do céu até fechar os olhos. Poderia mesmo permanecer sem medo na areia, fazer uma fogueirinha. Não havia perigo. O que poderia ter medo de perder já perdera há muitos anos. E também fora numa praia. Tanto tempo, não?
Voltou os pensamentos para coisas agradáveis, porque não queria estragar a beleza de sua fuga.
Reviu Tuta atarantada.
— Tuta! Mas você é ou não é minha amiga?
A pobre, balançando o corpo grande, suava por todos os cantos. Mal podia suspender as mãos para aparar os cabelos que caíam na testa molhada.
— Mas, Filhinha, isso não posso. A Suzi me mata se descobrir.
- Não mata coisa nenhuma. Depois eu estarei de volta antes dele chegar. Você sabe disso.
- Mesmo assim, meu bem, não posso.
- Pare com esse negócio de filhinha, de querida, de meu bem e mexa-se.
Tuta assustou-se. Nunca Chuva lhe falara assim. Esmeralda percebeu a maldade e voltou atrás.
— Estou brincando, Tuta. Dou minha palavra de...
Soltou uma gargalhada alegre para confirmar que a zanga se extinguira.
— De honra, não posso. 'Tá bem: dou a minha palavra de virgem que volto o mais depressa possível.
Sentou-se perto de Tuta. Falou emocionada, quase chorando.
— Puxa, Tuta. Você parece que nem tem coração. Não tem pena de uma desgraçada que vive presa num cabaré, trancada toda noite num quarto... Afinal eu só quero dar um passeio. Tomar sol, comer vento e me estender numa praia.
— Mas se você quer sair de servidora, não é só isso.
— Não importa. O que precisar eu faço. Depois, Tuta, os homens ficam com medo de pecado e não querem nada.
— Sozinha, nesse mundo de Deus?
— Fui criada assim. Já pensei em tudo.
Tuta levantou os olhos de boi manso para Esmeralda. Sabia que acabaria por ceder. Se não fosse ela o que seria da sua vida? Mas se acontecesse uma desgraça estava perdida.
— E se você encontra um homem sujo, empesteado por aí?
— Homem assim nem chega perto de mim. Olhe, Tuta, Juvenal, o leiteiro, tem duas canoas. E as duas são muito boas. Ele disse que quando eu precisasse de uma era só falar com ele.
— Você prometeu alguma coisa pra ele?
— Que besteira! É um meninão de treze ou quatorze anos. Ele ficou cheio de entojo, com peito lá em cima porque falou comigo. Já viu o que eu quero?
Tuta balançou a cabeça tristemente.
— Você faz assim. Diz que eu compro a canoa que ele quiser vender. Pago o dobro do que ela vale. Pra você eu dou o preço de uma canoa. Depois a canoa fica amarrada aqui perto. Fica de meia-praça. É metade sua e metade minha. Quando eu enjoar dou pra você.
Ela saiu resmungando para caçar Juvenal, o leiteiro.
Esmeralda sorria agora. Tudo acontecera mais fácil do que imaginava. Olhou satisfeita o uru coberto. Dentro havia latas de sardinha, um frito de frango com farofa, uma penca de banana amarelinha, amarelinha. Havia café numa garrafa térmica, uma faca afiada. Tudo, tudo. Tuta não era de esquecer nada. Prometeu que quando voltasse ia dar um mundão de presentes para a mulher. Ultimamente ela colocava patchuli nas suas roupas de cama e o seu quarto sempre vivia perfumado com erva-do-pará.
Remava, olhava a paisagem e voltava aos seus pensamentos. Tornava à realidade e enxergava, quase na proa da ubá o enrolado do cobertor e o volume de um travesseiro. Tuta não falhava mesmo. Na certa, até poder dormir ficaria rezando à sua Senhora de Nazaré para que nada acontecesse de grave à sua viagem.
O sol agora não era tão quente, mas tinha mais de três horas para ir-se deitar. Um começo de preguiça afrouxava o ritmo das suas remadas.
Instintivamente colocou a canoa para a beira. Antigamente ela nunca se enganara quanto aos canais. Se a praia se elevava em montes de areia dourada no meio do rio, o canal seria estrangulado e empurrado para junto da barreira da margem. Sorriu porque não perdera a prática daquelas coisas. Na realidade o canal beirava a sombra das grandes árvores. Depois viria, um amontoada de sarão e nova praia surgiria quando a barreira se acabasse. Voltaria para o centro porque o canal exigia aquilo. Canal de rio era como cobra, ficava sempre todo contorcido.
Entretanto, agora se enganava. A barreira se dividia e oferecia aos seus olhos um furo de rio. Que beleza. Fazia tempo que não via uma coisa assim.
A tentação de subir o furo atacou-a. Que importava mais aquilo? Enfiou o remo com força e desviou a canoa em sua direção. No começo, quando as águas atingiam o rio, ficavam mais duras de lidar. Passadas as primeiras remadas e encostando a embarcação bem no cantinho, podia vencer a subida sem dificuldade. Tornara a se enganar nos seus cálculos. A subida realmente fora fácil. A paralisia das águas agora demonstravam que não era um furo de rio, mas sim a entrada de um lago enorme. Que bom. Se o lago oferecesse um lugar limpo, onde pudesse ver que nas areias brancas não havia cama de arraia de fogo, encostaria a canoa e tomaria um delicioso banho. Depois então voltaria e faria pousada naquela praia alta que deixara atrás no rio..
Ainda era cedo para pensar em volta. Via-se atraída para mais longe. Nem sentia o peso do remo, nem o embalo da canoa. Apenas se fascinava pela calma e beleza do ambiente. No topo das árvores, muito longe, subia um fio de fumo.
— Deus do céu! Quem pode morar numa brenha dessas.
Avançou mais a canoa. Agora todos os seus sentidos tinham adquirido aquela acuidade da sua meninice. Fosse quem fosse iria até lá índio? E se fosse não sentia medo. Nunca antigamente se dera mal com qualquer índio. Estremeceu com um pensamento maligno. Certos homens contaminados de lepra se escondiam na selva, fugindo aos olhos de todo mundo...
Quase desistiu. Entretanto, o coração que batia sobressaltado instigava-a a avançar.
O lago fez uma curva e mostrou do lado direito uma barreira rala. Ali devia ser a subida para o lugar que soltava a fumaça.
Uma canoa mostrava o seu perfil sugada na areia. Aportou a sua junto. Uma pequena barreira cavada em forma de degraus mal feitos atingia um pequeno "trieiro". Como não aparecesse ninguém, levantou-se, espreguiçando-se, e pisou no chão firme, não deveria haver cachorro porque ele já teria dado o sinal. Mas em face das dúvidas assobiou. O assobio perdeu-se na calma da paisagem.
— Ora vamos lá!
O peito sobressaltava-se pela novidade da aventura. Será que iria mesmo servir? Andava com calma como se contasse as passadas. Levava os sapatos na mão e sentia um prazer antigo em pisar o chão gostoso e úmido com os pés descalços.
A trilha alargava-se e apareciam vários jatobás rotundos e escurecidos do tempo. A fumaça tornava-se mais volumosa. Em seguida apareceu a cara do rancho. Era simples, pequeno e de certo modo, mal feito.
Um homem na porta observava a sua caminhada. Parou sorrindo. O homem não demonstrava como os outros o efeito que causava. O vestido colante de seda amarela torneando, asfixiando quase a sua cintura fina. O decote descaradamente aberto mostrando o rego dos seios duros. A boca pintada de vermelho contrastando com os olhos verdes luminosos.
Parou e equilibrando-se de um modo gracioso calçou os sapatos. Riu de novo e recomeçou a caminhar mais ondulante e felina.
— Boa tarde, patrão.
Ele respondeu com timidez à sua saudação.
— Posso chegar?
Confirmou com a cabeça mantendo o mesmo silêncio.
Por dentro Esmeralda sentiu-se meio constrangida. Que teria aquele homem para recebê-la com tamanha cerimônia? Novamente em seus pensamentos voltou a imagem dos doentes de lepra. Mas não deveria ser esse o caso porque em nenhuma parte do corpo surgia uma indicação de doença. Uma bandagem, um curativo qualquer.
— Podia me arrumar um pouco de água fresca? Afastou-se da porta e ordenou com maciez.
— Entre, por favor.
Foi penetrando e descobrindo a pobreza do rancho. Praticarnente era um só cômodo e a cozinha de onde se escapava a fumaça denunciadora ficava no fundo.
— Sente-se.
O jeito era acomodar-se no banco rústico junto da mesa.
Ele veio com uma caneca de água que cantou ao ser mergulhada na bilha.
Aceitou-a. Bebeu-a devagar, sorriu e olhou o homem. Já passava dos quarenta anos e seus cabelos se manchavam nas têmporas. Os olhos possuíam um castanho claro luzidio e nunca se lembrava de ter visto uma expressão tão doce e simples.
— Hoje 'tá fazendo quente.
Só então ele falou, mas mesmo assim cocou o rosto barbado e a boca como se quisesse com esforço libertar as palavras.
— A gente precisa de uma boa chuva. E ela não vem faz mais de quinze dias.
Sentou-se na outra ponta do banco e ficou olhando para fora como se ela nada significasse.
— Ei, Patrão, o senhor mora sozinho aqui?
— É.
Mas não se virou. Aquilo intrigou mais Esmeralda. Talvez estivesse fugindo da lei.
— Olhe aqui, Patrão, por seu favor.
O rosto que a fitava parecia ignorar o que era a maldade.
— Bem, Patrão. A coisa é assim. O senhor não 'tá precisando de servidora?
O homem apenas sorriu e abanou as mãos.
— Será que o senhor não sabe o que é isso? Confirmou com a cabeça a sua ignorância.
— Mas não é possível! Não sabe mesmo o que é uma servidora do rio?
— Se acredita em minha palavra, sei não, dona.
Esmeralda perdeu até a fala. De certo modo aquilo a encantava. Será que num mundo cheio de tanta maldade ainda haveria um homem que ignorasse o papel que representava?
— Quanto tempo faz que mora aqui?
— "Tá inteirando dois anos.
— Nunca o senhor sai daqui?
— Quando tenho alguma coisa da roça pra vender viajo para a cidade. Quando tinha algum dinheiro também viajava para comprar alguma coisa mais de necessidade.
— E nunca cruzou, na viagem, com uma mulher que se parecesse comigo, que usasse um vestido amarelo assim como o meu?
- Que me lembre não.
- Então não sabe o que é uma servidora do rio?
- Falei a verdade.
Esmeralda riu com simpatia.
— E agora? Pois bem eu vou explicar. Servidora do rio é uma mulher que vem procurando acampamento. Qualquer um, pode ser de seringueiro, de castanheiro, de qualquer coisa. Pode também procurar um rancho como eu estou fazendo agora. Então a mulher para indicar o seu ofício se veste sempre de amarelo. Ela chega, se agrada, lava a roupa dos homens, costura elas, cozinha, limpa e varre tudo. E se agradar mais a qualquer homem, dorme com ele.
Ele riu suavemente.
_ É uma pena.
Procurou interessar-se na conversa.
— E de onde vêm as servidoras do rio?
— Uai, elas vêm da cidade, dos cabarés. Sabe, Patrão, nas épocas maludas, quando os cabarés não dão nada, ficam sem freguesia, tudo que é mulher-dama desembesta pelo mundo para servir o rio e apanhar um dinheirinho que "lá" não deu. Vida de zona é dureza, Patrão.
Ele cocou a cabeça e olhou-a sem medo algum.
— Eu não tenho roupa pra lavar, nem casa pra varrer, nem remendo pra costurar. Não tenho nem dinheiro para comprar um cachorro por companhia. Acho que a comida não ia chegar nem para duas bocas.
Estranha comiseração se passou na alma de Esmeralda. Aquele homem falava de uma maneira que doía a alma. Como é que podia existir na vida uma pessoa tão sem ninguém, tão sem nada?
Comentou, virando os olhos em direção a todos os pontos do rancho.
— Pelo jeito você é mais pobre do que o menino Jesus quando nasceu entre um boi e uma vaca.
— Um pouquinho mais, porque Ele nasceu com o coração cheio de amor, perdão e esperança.
Lembrou-se de Doca e comparou-o com o homem. Aquele homem de mãos magras e de rosto tão suave adquiria para ela um encanto tão grande, que afastava para longe toda a beleza de Doca, todo o seu dinheiro e sua fama de macho-pra-burro.
Decidiu contar-lhe a verdade.
— Olhe, Patrão. Eu não sou como as outras biraias não. Na verdade eu não vim buscar dinheiro, nem nada. Estava cansada de viver na noite e aproveitei a Semana Santa pra fugir do cabaré.
— A gente vê que a senhora é moça rica. Nos braços tem pulseira de ouro. No colo e nas orelhas tem jóias caras. Suas mãos são longas e finas. Quem tem necessidade não traz tudo isso consigo...
A surpresa foi grande. Então ele observava. Ele analisara tudo que ela portava...
Silenciaram um momento e Esmeralda foi olhar a tarde, o tempo se adiantara muito e o pôr do sol mostrava aquela exuberância incendiada. Dali daquela porta, daquele rancho tão pobre ele parecia indicar maior a beleza do céu tão alto. Virou-se interrogativamente.
— E agora?
— Agora o quê?
— O Patrão não vai me mandar embora. Tem que deixar eu pousando aqui.
— Sabe dormir em rede?
— Fui nascida nela.
— A minha não é muito boa, mas está limpa. A senhora dorme nela e eu me arrancho do lado de fora. Estou acostumado a dormir no duro.
Penalizou-se. Mas o coração pedia-lhe que ficasse. Não só pedia, implorava. Porque do contrário seria para ela fácil voltar até a praia e dormir como antigamente nas areias gostosas. Não se ia contrariar.
— Aceito.
— Minha comida também não é grande coisa. Nesse fogo aí estou esquentando uns pedaços de macaxeira que sobrou do almoço. É só. Não. Tem também um pouco de café requentado.
— Se eu fico, como vou ficar mesmo, ofereço-lhe um banquete. Tenho muita coisa na canoa.
Tornou a rir para ele. Engraçado era a sensação que sentia de o conhecer havia muito tempo. O constrangimento do começo se dispersara como a fumaça do rancho a se perder no espaço. — Está combinado?
Ele a encarou com o olhar súplice. Por pouco mais os olhos se encheriam d'água. E por pouco também num gesto intuitivo e maternal, Esmeralda não tomou sua cabeça para encostá-la em seu regaço. O homem estava virando um neném de acalentar.
— Eu queria lhe dizer uma coisa, moça.
Doía ter que contar-lhe aquilo. Ter que implorar-lhe.
— Eu não vou poder dormir com a senhora.
— Não tem importância, não.
— Também pediria por amor de Deus, que a senhora não me perguntasse por que e entendesse.
- 'Tá certo. Então eu vou mudar. Vou deixar de ser servidora Ao rio e vou virar uma pessoa que pede abrigo por uma noite.
Voltou até a porta e foi tomada de uma crise de pudor.
- O senhor fica aqui. Eu vou até o lago. Tomo um banho e trago uma porção de trem pra gente.
Ele concordou e Esmeralda descalçando os sapatos foi caminhando calma. Perdera a tentação dos requebros e ondulação. Estava sendo atingida por um gosto desconhecido e distante. Mas o seu coração aprovava feliz tudo aquilo.
Quando voltou era realmente outra pessoa. Tinha raspado dos lábios o vermelho escandaloso. Vestia uma camisa e as fraldas caíam por fora de uma calça de homem. Seus cabelos longos se dividiam em duas trancas amarradas simplesmente por pedaços de barbante. As jóias, o vestido e os sapatos tinham ficado enrolados num embrulho, bem no fundo da canoa.
O homem quase não a reconheceu.
Até o sorriso, sem os lábios pintados, adquirira mais doçura.
— Fica melhor assim? Não obteve resposta.
— Agora o senhor vem me ajudar a carregar as coisas da canoa. Eu tenho trem para dormir macio no chão. Não vai precisar abandonar a sua rede gostosa.
SEGUNDO CAPÍTULO
Histórias na Noite Calma
TUTA NUNCA IRIA ACREDITAR, quando contasse que dormia junto a um homem relativamente moço, simpático, bem educado, e que nada estava tendo com ele. Dos homens que se aproximavam dela, eram raros os que não lhe faziam ofertas ou propostas sem-vergonhas.
Balançou a rede e a rede cantou. Também sua alma estava cantando. Sentia-se ainda o cheiro do querosene do lampião recém-apagado. A noite agora se transmudava em outra. Não necessitava ser a Chuva da Noite. Nem desnudar seu corpo em ondas de lubricidade. Sorriu na sua conversa íntima. Já não ignorava que ele se chamava Daniel. E que podia tratá-lo de você. Estranha aquela situação. O homem não a queria, não a maltratava. Mas os olhos mansos faziam bem. Eram olhos de perdão e paz. Se pudesse nunca mais sairia dali. Estremeceu porque a figura forte e máscula de Doca se interpunha entre os seus pensamentos. O segredo de segurá-lo era não ceder. Para isso, Suzi a preparara bem. Não ir naquela conversa de montar uma casa em Belém do Pará, etc. Casa coisa nenhuma. Prisão. Gaiola. Demais a mais sentia aversão à cidade. Possuía um pavor incontrolável da Polícia e a cidade estava amontoada de meganhas. Doca viria, inspecionaria os seus seringais, os castanhais do pai que envelhecia e ia empurrando todo o serviço ao seu único herdeiro. Verdade que ultimamente ele morria de ciúmes dela. Quando aparecia na praça, proibia Chuva de exibir-se no cabaré. Chegava mesmo a reembolsar Suzi dos prejuízos e Suzi como não era boba, cobrava tudo em dobro. Mas quando Doca retornava à cidade, Chuva voltava ao cabaré com suas noites de calor, chuva e fumaça. Sem ela, o povo fugia de lá e ia procurar a pensão mais barata e mais cômoda de Ri tinha Chupemba.
Virou o corpo preguiçosamente na rede. Estava bom, estava calmo, estava tudo muito gostoso. Ouviu também que Daniel se remexia na sua. Que teria aquele homem de tão estranho e triste. Seus olhos bons denunciavam bem longe a sombra de uma tristeza crônica.
— Está acordado, Daniel?
— Ainda.
- Estou dando incômodo.
Ele riu.
- Não. É outra coisa.
- O quê?
No escuro ele parecia perder um pouco mais a timidez. Certificava-se que acabaria contando a história dos seus mistérios. Podia ser que ele não tivesse virilidade. Podia também estar malado com alguma mulher que o fizera sofrer muito. Sem esperar por aquilo, ele comentou:
- É a primeira vez que uma mulher dorme perto de mim.
- Nem sua mãe?
- Tive muito pouco conhecimento de mãe...
— Você fala de uma mulher comum ou de uma mulher-dama que nem eu?
— Nem uma nem outra. Nunca dormi perto de uma mulher. Calou-se e balançou a rede com mais pressa.
E agora? Estaria ele esperando por uma pergunta? Ou se perguntasse alguma coisa não ia machucá-lo? Não sabia o que pensar nem dizer.
— Mas não estou arrependido de ter deixado você pousar no meu rancho e se não tivesse aparecido aquela rede que sua amiga botou na canoa, também não estaria arrependido de emprestar a minha.
Ela se sentiu comovida. Tudo nele, grandeza e desinteresse.
— Daniel, eu estou pensando que você não sabe quem eu sou mesmo.
— Sei sim.
— Mas você sabe mesmo o que vem a ser uma mulher-dama?
— Está claro. Muito embora nunca tivesse contacto mais direto com uma... a gente sabe. Só uma vez...
Será que ele contaria uma coisa a esse respeito? Não, não devia ser o que pensava. Ele mesmo confessara que mulher alguma dormira perto dele.
— Uma vez o quê?
— Eu lhe falei que tivera muito pouco contacto com minha mãe. Pois eu nem me lembro bem dela. Fui colocado pequenininho, num asilo. Éramos muitos. Você deve saber e não vou contar porque todas as histórias de asilo são parecidas. Não que eu queira ou goste de reclamar. A vida é assim mesmo. Se a gente nasce é pra sofrer. Só uma coisa eu nunca perdoei. Tinha uma freira. Só essa. Alta e de expressões duras. Essa quase me deixou surdo. Até hoje eu tenho uma infecção crônica no ouvido, que quando volta a inflamar-se eu escuto com dificuldade.
— Que é que a freira fazia?
— A gente tomava banho numa banheira. Nem sempre, no frio, a água estava suficientemente quente. E ela não gostava de dar banho na gente. Penso que ela achava que corpo de homem era pecado. Sei lá. Os menores que não podiam tomar banho sozinhos eram banhados por ela. E eu estava no dormitório dos menores. Então, quando ela passava sabão na gente, principal, mente na cabeça, ela tirava a espuma enfiando a cabeça de todas as crianças com força e devagar. A gente quase morria. Saía tossindo e com os olhos vermelhos. Foi daí que eu peguei essa infecção. Nunca consegui me curar.
— Que peste!
— Era assim mesmo. No Nordeste, onde nasci, enjeitado, ou sei lá o quê, não passava de fruto do pecado.
— Mas você não contou o que tinha começado. Virou a conversa.
— Nós chegaremos lá. Quando eu fiquei maiorzinho, me aproximei dos grupos dos maiores para saber, para aprender. E um dia eles falaram sobre o Carnaval. Mas o Carnaval era comentado em segredo, baixinho, porque fedia a perdição e pecado. Coisas do capeta. E quanto mais se passavam os dias mais a minha curiosidade aumentava sobre aquela festa tão comentada. Aí aconteceu o que ninguém esperava. Uma senhora que vivia trabalhando para a gente. Ela era até camarada e se chamava Dona Magda, resolveu levar uma turma para ver o Carnaval. Escolheram os mais comportados e eu estava no meio dos predestinados. Então Dona Magda vestiu-nos um uniforme mais novo, calçou-nos os sapatos-tênis e fomos ver a vida lá fora. Demos as mãos dois a dois. De um lado éramos dirigidos por Dona Magda e do outro por uma peste de uma mulher franzina chamada Dona Conceição. Andamos como loucos até que fomos chegando na parte de baixo da cidade. Era uma loucura. Todo mundo cantava e dançava. Uma barulheira infernal. O cheiro que senti pela primeira vez do lança-perfume me deixava entontecido. Quando escureceu foi que ficou bonito. Nunca pensei que assim fosse a vida nas ruas. Tudo era Carnaval. E aquele ainda era o primeiro dia.
A gente ficou paradinha na beira de uma calçada espiando tudo. Eu beirava os meus oito anos. Tudo me fascinava. O confete parecendo chuva colorida. As serpentinas se desenrolando como cobras compridas. Naquele tempo ainda existiam os carros abertos e o pessoal fantasiado rodava devagarzinho cantando, jogando serpentina e atirando lança-perfume. Chamavam aquilo de corso. Os carros davam a volta lá perto do rio e retornavam novamente sem pressa. Só havia mesmo alegria. E eu achei lindo.
Mas todas as vezes que passava um certo carro, Dona Conceição reclamava quase xingando as mulheres que vinham nele.
- Lá vem o carro das quengas. A polícia não devia permitir isso no meio das famílias.
Não sabia o que era quenga, mas achava que as moças eram muito bonitas. Sobretudo uma muito clara, toda vestida de vermelho e que tinha um pente com uma mantilha na cabeça. Os homens ficavam malucos quando esse carro passava. Chamavam aquela mulher aos gritos: Maria Luísa! Maria Luísa! Avançavam e jogavam lança-perfume. Mais nela do que nas outras. Até que numa das voltas o corso se paralisou e o carro delas parou bem na minha frente. Foi então que meus olhos se deslumbraram- Parada e de bem pertinho ela ria e era linda. Parece que meus olhos atraíram o seu olhar. Ela riu docemente para mim e me chamou.
— Vem cá, meu filho.
— Nem respeitei as ordens do asilo. Mesmo que fosse para morrer eu acho que iria assim mesmo.
Ela se debruçou da capota e alisou meu queixo.
— Como você se chama?
— Daniel, senhora.
Ela sorriu mais bonito e afagou os meus cabelos.
— Você é um menino muito bonito.
— Não sabia o que falar. Meu desejo era que o carro nunca mais saísse dali. Por que Deus não deixava que a mulher abrisse a porta do carro e me levasse para longe do asilo? Fiquei olhando os seus cabelos longos e cheios de cachos que tocavam no seu ombro. Parecia de ouro.
O carro começou a rodar e ela me deixou, virando-se e me dando um terno adeus.
Ao contrário da mão suave da senhora o repelão da mão de Dona Conceição quase arrancou o meu ombro e rasgou a minha camisa.
— Você está louco, tipinho à-toa? Onde já se viu ir conversar com uma quenga! Que é que você está pensando?
Não podia contar para aquela malvada que eu pensava que ela era Nossa Senhora. Tão linda. Só Nossa Senhora que a gente rezava e que diziam que era a mãe dos homens seria capaz de me tratar daquele jeito com tanta ternura.
Daniel calou-se. Mas Esmeralda achava a história tão linda que queria encompridá-la.
— E que foi que teve?
— Nada. Fiquei escondido atrás dos maiores até a hora da volta. Não deixaram mais que eu visse Maria Luísa. Isso que eu queria contar. Foi esse o único contacto que eu tive...
— E no asilo?
— Me puseram de castigo por muitos dias.
Esmeralda balançou a rede, mas pouco tempo depois comentou com certa inocência.
— Quer ver que ela era mesmo Nossa Senhora? Daniel riu gostoso.
— Está caçoando? Pois olhe que lá no cabaré tem uma mulher uma velha mulher-dama que acha que as putas é que são as verdadeiras mães dos homens. Muito mais que Nossa Senhora.
— Você está doida, Esmeralda?
— Eu também não tinha pensado muito naquilo e não entendia bem. Mas Tuta explicou tristemente. Quando as pessoas xingam, nunca xingam Nossa Senhora. E como todo mundo xinga mais do que reza, então na verdade os homens são muito mais filhos das putas.
Daniel acabou concordando, mesmo porque ela naquela hora parecia uma menina ingênua e abandonada. Se ela resolvesse contar-lhe sua história certamente havia um ponto de contacto em suas vidas: abandono e solidão.
— Bom, Esmeralda, vamos dormir? Está ficando tarde.
— 'Tá certo, mas eu queria lhe pedir uma coisa, posso?
— Pode.
— E amanhã?
— Que é que tem amanhã?
— Você vai me mandar embora?
Ele guardou silêncio. Estava pensando e sem coragem de decidir. Ouviu que ela fungava na rede. Devia estar chorando aflitivamente.
— Eu ainda tenho o dia inteiro e toda a noite. Só preciso sair no sábado de manhã bem cedinho.
Soluçou.
— Deixe eu ficar, Daniel. Eu juro que ajudo você na roça.
— Amanhã eu não vou trabalhar. Vou pescar no Lago Iraque.
— Eu vou com você e ajudo. Eu já pesquei muito. Juro que não incomodo você em nada.
Daniel nada dizia.
— Eu sei que ninguém acredita em jura de biraia. Mas a gente também sabe respeitar os outros quando é preciso. Nem todo o tempo da nossa vida é feita de sacanagem e sujeira...
Soluçou mais forte. Aí ele se penalizou.
— Está bem, Esmeralda. Você pode ficar o tempo que quiser ou puder. Eu acredito no que você jurar.
Sentavam-se do lado de fora do rancho e espiavam a noite. A chuva se esquecera um pouco da terra dos homens e as estrelas dominavam cada partícula do céu.
Entretanto Esmeralda sofria. Era a sua última noite no rancho. Depois— e depois? Precisaria levantar-se bem cedo, sair do lago, entrar no rio e reencontrar a realidade da vida. Vida aquela meu Deus!
O dia inteiro tinham gastado na pescaria. E o sol e o vento, a selva e as aves, recriaram no seu íntimo uma nova concepção da beleza das coisas. A vida assim adquiria um significado. Cada momento fora vida. Não aquela diferente em que não via a marcha das horas. Era dormir até tarde e de noite o ter de deitar-se novamente. Uma vida-cama. Uma vida horizontal. Fazia bem o calor do sol que reinara um dia inteiro em seu rosto. Nem ligara para os mosquitos. O dia passara mais rápido do que desejara. E agora estava ali, começando a entristecer-se e a alastrar um desânimo corrosivo em seu sangue.
Apesar do silêncio da noite, parecia estar ouvindo a voz de Daniel quando voltavam ao entardecer no lago.
— A gente faz três votos na vida: obediência, castidade e pobreza. A obediência não pude cumprir, mas a castidade e a pobreza fizeram morada em minha sombra.
Recordava palavra por palavra. O menino que se criara com medo de tudo, com pavor do mundo lá fora. O capelão do asilo convencendo-o que ele nascera para ser somente de Deus. Rapazinho, levado para o seminário.
— Foi até bom, porque assim pude estudar e me preparar. Aprendi bem o francês.
A angústia dos últimos anos no seminário quando principiou a descobrir que não nascera para aquilo. E o medo de desistir?
— Mas não havia um jeito de fugir?
— Eu pensava em desistir um dia. Esperava por esse malfadado dia. O tempo foi passando e a coragem de rebelar-me desapareceu. Quando vi era um padre com os votos perpétuos de servir a Deus para sempre.
Daniel era um homem limpo e puro. Esmeralda se admirava que sendo forte resistira a tantas tentações.
— Não. Não é tão difícil assim. O corpo da gente se acostuma e morre. E quando a gente aprende isso desde cedo, não se torna incômodo ultrapassar as tentações.
Agora estava ali à seu lado. Passara dos quarenta e só nos dois últimos anos conseguira libertar-se. Mas não em todo o sentido porque se tornara escravo da consciência e da frustração.
Vinte e tantos anos perdidos de paróquia em paróquia. £je contara a luta que mantinha porque a orientação que vinha do alto tolhia qualquer esperança de criar alguma coisa diferente. Era difícil obedecer. Difícil conviver. A luta constante da alma contra as exigências das regras, de tudo que era proibido.
Por isso não queria andar com mulheres. Por isso conseguira manter intacto o seu condão de pureza. Nisso conseguia obedecer.
— E depois?
— Um dia não resisti. Olhei o meu rosto no espelho e descobri apenas minha expressão insatisfeita e as rugas contaminando minha pele. Meus negros cabelos estavam-se desbotando. Tantos anos perdidos de mim mesmo. Fui fugindo, mas o dedo do remorso me apontando o peito. Não perdera a minha angústia. Continuava dentro de mim convicto que a marca de fogo dos meus votos perpétuos nunca se apagariam da minha memória. Rezei torturado noites e noites, pedindo perdão a Deus da minha fraqueza. Mas a solidão não me deixava nunca. A princípio no meio das multidões das grandes cidades. Era bobagem. Aquilo nada resolvia. O homem nasce só, e só morre. Está condenado simplesmente à sua própria solidão. Talvez que, se buscasse um lugar mais simples, me perdoasse mais. E enquanto me afastava, os anos passavam e me empurravam para mais longe, contudo as garras da consciência me fisgavam cruelmente.
— Até que veio para cá?
— Foi. Meus últimos tostões deram para comprar esse pedaço de terra. Só então as visões do passado foram se desanuviando. Quando me sinto mais apegado à vida, quando a solidão me ataca mais, tudo retorna claramente como nos primeiros dias.
Lembrava-se que ele se calara e remara mais fortemente. Só recomeçou a falar quando passou o ímpeto daquela confissão.
— Agora você sabe, Esmeralda. Agora você sabe por que não posso dormir com nenhuma mulher. Compreende isso?
Seus olhos verdes enormes fitaram piedosamente a face bondosa de Daniel sorrindo com tristeza.
— Talvez assim possa salvar a minha alma.
Banharam-se no lago. Levaram os peixes já tratados para fritarem no jantar. Estavam ali. A noite linda, a vida calma, e a tristeza que viria dentro de poucas horas aniquilando tudo, tudo. Ainda bem que não contara a sua vida. Ninguém, só Deus, se realmente existia, e sua mãe, sabiam do seu passado.
Todo o mundo sufocava de problemas e aquele pobre já tinha os seus de sobra.
— Por que tamanho silêncio?
— Estava passando a ferro as minhas tristezas. Depois fiquei pensando nas suas palavras na canoa.
— Esqueça. Tudo está morto.
— Não. Não está e até que estou com medo.
— De quê?
— A alma.
— Que é que tem a alma?
Ela queria calar-se, mas não conseguia. Foi por isso que perguntou.
— Daniel, você acha que puta também tem alma?
— Que bobagem, Esmeralda. Claro que tem.
— Eu achava que não tinha não. É que Deus sempre foi muito ruim comigo. Primeiro, porque me faz nascer com uma cor desgraçada. Todo mundo pisava na gente...
— Mas hoje não. A cor fica muito bonita para você. E você sabe que é uma mulher muito bonita.
— Hoje, não, Daniel. Mas um dia eu posso falar de novo sobre a alma da gente?
— Claro. Mas por que não agora?
— Hoje, não. Prefiro conversar de outras coisas. Mas um dia eu volto.
— Está bem.
Levantou-se e foi beber água. Voltou com uma caneca d'água.
— Beba, está friinha.
— Você adivinhou. O sol do dia estava mais forte hoje. Até o ruído que ele fazia bebendo era suave. Acalmava. Sentou-se no mesmo lugar e encostou o queixo no joelho segurando as pernas com os braços.
— Daniel.
Precisava de muita força para contar.
— Eu não quero mais voltar para o cabaré. Ficou estupefato.
— Por quê?
— Porque já tenho algum dinheiro guardado e muitas jóias de bom preço. Você não pode nem adivinhar o que é a vida de uma "militriz". A brutalidade dos homens. O cheiro dos homens. O desejo dos homens. E a gente ali para tudo. Mesmo no meu caso, que Súzi só deixa que eu aceite para dormir com homens de bastante dinheiro. Que, além, disso não pedem abatimento. É horrível. Por mais que a gente se vista de sacanagem e se emputece de sem-vergonhice, nem sempre a gente deseja. E quanto mais o tempo passa menos a gente deseja e tem vontade de fazer. Mas tem que fazer. Parece que o corpo se torna brejo de caranguejo. Se a gente virasse de dentro pra fora era uma seboseira só. Mesmo que se lave o corpo mil vezes, aquela sensação de podre fica horas e horas. Daniel penalizava-se e Esmeralda continuava.
— E eu tenho que agradecer à minha sorte. As outras não podem estar fazendo escolhas não. Muitas vezes são obrigadas a dormir várias vezes com vários homens.
A voz estava-se emocionando e um som rouco nas palavras adivinhavam a aproximação das lágrimas.
— E o pior é quando não podem mais dormir com os homens e não têm mais nada que fazer na vida. A palavra puta parece queimar a gente como marca nos quartos do gado. A Tuta está assim. Ninguém daria trabalho a ela se saísse do cabaré. Por milagre, Suzi deixou que ela ficasse. Isso porque eu tive pena da pobre e exigi. A gordura encheu o seu corpo e tornou-se ruim para fazer o amor. Os olhos se empapuçaram das noites que não dormiu. As rugas do rosto passavam recibo da bebida vagabunda que sempre bebeu. Foi aí que ela passou a ser rebaixada. Virou empregada do puteiro, fazendo as coisas mais horríveis. Lavando sujo dos lençóis e porcarias dos homens. Uma desgraça. E o pior é que ela tem uma filha mocinha que é casada com um homem pobre e precisa da sua ajuda. Ela sabe que também tem um neto e nunca vai ver um dia. Por isso, ela guarda um retratinho dele. Um bichinho magrelinho, feinho de dar dó e ainda meio zarolho por cima. Mas, pra ela tem a boniteza dum menino Jesus de presépio...
Ergueu-se e tomou uma posição ereta.
— Daniel, você está-me escutando?
— Não perdi uma só palavra do que você falou. Esmeralda implorava.
— Daniel, você precisa me ajudar. Você é a única pessoa que pode fazer alguma coisa por mim.
Ele confundia-se. Não esperava que em dois dias pudesse acontecer tanta coisa. Não sabia o que responder.
— Você acha que apareceu assim na minha vida só por aparecer? O silêncio dele angustiava até as sombras da noite.
— Você pode me ajudar e eu ficarei agradecida a você pelo resto da minha vida. Escute bem...
Tomou uma respiração funda para reforçar a confissão que viria
— Não é de hoje que eu penso em sair daquela vida. Juro, e você já disse que acredita no que eu jurar. Pois bem. Muitas noites, quando tudo acabava e que nem o banho conseguia lavar a podridão, o mangue limoso do corpo da gente, eu fazia planos de um dia sair. Fugir. Sumir. Mas para onde, meu bom Deus? Em cada canto que chegasse todo mundo vendo o meu jeito descobria o que eu era. E na certa um bordel mais sujo, mais imundo estaria me esperando de braço aberto. Você não acredita que a gente pode querer mudar de vida?
— Acredito. Mas não quero influenciar nas suas decisões. Não quero fazer crer a você que sou o padre "confessando". Mas continue, eu escuto.
A separação que havia entre os dois, um pouco da penumbra que a noite oferecia criava a parede imaginária de um confessionário, embora Daniel não desejasse.
— Você é a única corda que pode me tirar do fundo.
— E que acha que eu poderia fazer?
— Ora, Daniel, você sabe. Você sabe. Você viveu muito mais do que eu e conhece nos seus estudos o que se passa no coração da gente. Eu viria para cá. Por um ano. Por seis meses, se você achar que um ano é muito. O tempo de esquecerem de mim. O tempo de eu mudar o meu jeito marcado. Depois eu iria embora para um lugar onde não houvesse perigo de amolar você ou de lhe dar trabalho.
Ele silenciara de novo.
— Amanhã eu vou lá e na primeira oportunidade apanho o que é meu e desapareço sem deixar uma pegada.
— 'Tá certo que venha para cá. Mas Esmeralda, eu sou um padre. O fato de ter abandonado a batina não significa nada. Eu jurei. Você é uma moça bonita e eu...
— Eu respeitarei você. Como fiz os dois dias que estou passando aqui. Nunca você vai ter um aborrecimento a esse respeito. Pela gratidão, por tudo que você fez por mim esses dias, por tudo de bom, eu nunca olharei para você que não seja com os olhos do muito obrigado.
Daniel sorriu no escuro. Tinha que ajudar aquela mulher. Se a sua vida fora um sofrimento contínuo e de certo modo brutal, a vida dela atingia uma gama da mais profunda desgraça.
— Pois, se o problema é esse, só posso dizer que venha. Não se pode negar um pedido de quem quer melhorar de vida.
Ela ajoelhou-se e deitou a cabeça em seus joelhos. Falava, chorava e sorria.
— Deixo tudo lá. Só pego minha roupa mais decente. Só pego minhas jóias e meu dinheiro. E eu vou ser boa, Daniel. Vou ser boa novamente. Eu sei que ninguém vem por aqui porque consideram que essas terras não prestam. Eu conheço a selva posso saber o que esse abandono significa. Pouca gente aparece por aqui. Nunca lá no cabaré alguém falou que já entrou nesse lago morto. Morto sim. A gente foi até lá nas cabeceiras e os peixes quase não existem. Foi gente que destruiu com bomba e armadilha de palmeira. Foi o abuso da rede. Foi a fome de matar dos mariscadores.
Sentou-se e sorriu. A noite não deixou que se visse o seu rosto inundado. Mas as lágrimas agora eram de felicidade.
— Garanto que vou servir você. Mas servir no sentido bom. Vou comprar coisas porque o meu dinheiro é pra isso. A gente melhora o rancho.
Pegou nas mãos de Daniel e encostou no rosto. E falou como se conversasse com a própria felicidade.
— Até um jardinzinho de flores eu vou fazer naquele canto acolá.
TERCEIRO CAPÍTULO
A Morada da Paz
ESMERALDA BALANÇAVA NA REDE, roçando a ponta do pé no chão batido. Não havia pressa nenhuma e a rede parecia mais soprada por um vento pequeno do que por um movimento humano.
Não importava o ardor das mãos que a impossibilitava de lavar as panelas e os pratos sujos do jantar.
O lampião no alto lançava uma luz branda, mas dava para enxergar o homem fazendo esse trabalho no canto do rancho, em cima de uma bacia velha. A mesa, às vezes, reclamava com um gesto mais forte. Podia fechar os olhos e continuaria a vê-lo meio encurvado. Todos os seus modos traduziam calma e conformação.
A alegria enchia o seu peito e foi por isso que Esmeralda cantou.
Sem se virar ele perguntou.
— Está contente hoje?
— Hoje mais que ontem.
— Que é que você cantava?
— Uma cantiga da minha terra, que eu aprendi com mamãe.
— É bem bonita.
Enxugou as mãos no pano e agora todo o material usado na refeição, a não ser uma panela de ferro que guardava o resto do arroz sobrado, estava em seus devidos lugares. Ou pendurados na parede ou emborcados na mesa.
— Vou sentar um pouco e depois faremos um curativo em suas mãos.
Respirou fundo e sorriu para Esmeralda.
— As capivaras estão tremendas. Começaram a invadir a roça, a derrubar o milho e mexer no arroz. O primeiro dinheiro folgado que eu tiver vou comprar uma vinte-e-duas na cidade.
— Eu já tinha pensado nisso. Quando passar mais uns dias eu vou lá e trago uma. Uma arma sempre faz falta num rancho assim no... no...
Calou-se e sentiu um calor no rosto. Não queria dizer aquela palavra. Na realidade não se sentia mais contente em dizer palavrões sem necessidade.
— No...No...fim da madrugada.
Daniel sorriu. Naquele sorriso ele revelava que nunca teria dinheiro suficiente para adquirir a tal arma. Tudo que possuía tudo que adquirira, tinha sido contado e recontado; nunca haveria sobras nem excessos.
— Quando tudo tiver passado e eu puder ir à cidade, vou comprar muita coisa que se precisa aqui. E não adianta dizer que não.
— Por que você vai fazer isso?
— Porque trouxe bastante dinheiro comigo. Porque é uma obrigação minha. Já que você divide a casa comigo e não cobra nada. E você é a pessoa mais pobre que eu já vi.
Ele balançou a cabeça simpaticamente. Não adiantava discutir, porque sabia que ela realizaria o prometido.
Apanhou um balde e encheu a jarra grande. Veio até a mesa e depositou a vasilha. Abaixou o lampião e colocou-o mais embaixo encompridando o cordão que o segurava.
— Venha cá e sente-se ao lado da luz. Vou buscar o pacote de algodão e o mercúrio-cromo. Vai doer.
Ela obedeceu, sentou-se no banco e estendeu as mãos em cima da mesa.
— Vai doer um pouco. Ofereceu-lhe as mãos.
— Que estrago, meu Deus! Bem que eu avisei. Você devia ter parado. Quanto mais o cabo da enxada encostar aqui será pior.
— Uma hora isso seca, caleja e passa.
— Mas durante dois dias você não vai retirar o tratamento. Se não parar um tempo, isso nunca cicatriza.
Começou a molhar suavemente o ferimento. A moça era corajosa. Vinha de um mundo diferente e aquelas mãos eram finas demais para tamanha barbaridade. Verdade que ele também no começo ficara com as mãos assim porque também viera de um mundo diferente. E ninguém chegara perto dele para fazer um curativo.
— Está doendo?
Levantou os olhos para Esmeralda e viu que estava mordendo os lábios e com os olhos molhados de lágrimas.
— Não disse que ia doer? Coragem que depois tudo passa.
As lágrimas desceram dos olhos, inundando o rosto de Esmeralda. Ele não sabia que ela chorava por outro motivo. Chorando porque aquela dor fazia bem. Ajudava a esquecer a vida que levara antes. Chorava porque aquele homem que não era nada seu, que nada queria dela, estava ali tratando das suas feridas. Chorava porque a bondade parecia sair dos cabelos branco'* que começavam a aparecer e brilhavam à luz do lampião. Desde que chegara ali naquele ambiente calmo, fora descobrindo uma coisa que antes nada significara. A consciência. A noção de que havia algo maior que o coração: a alma. E que Deus estava penetrando pela primeira vez em cada partícula do seu ser. Agora sentia uma necessidade de ser boa. Apenas boa. Porque tudo de bem que fizera na vida tinha sido causado pela piedade, ou melhor dito, por pena. Se tratava bem as mulheres com quem convivera, era por dó. Simplesmente isso. Sua situação sempre alcançara um privilégio diferente. Recordou-se, por um momento, de Tuta. Que estaria acontecendo com a mulher? Com a sua fuga, Suzi deixaria que ela continuasse a trabalhar no cabaré? Podia fechar os olhos e enxergar o vulto gordo, suado e sonolento tocando discos velhos na sua vitrolinha de corda que se constituía no seu tesouro, na sua pequena alegria. Pensou no desespero de Tuta com sua partida. Ninguém saberia de nada e Tuta ficaria afogada na desesperança. Na certeza de que perdera o sítio prometido...
— Quanto quer pelos seus pensamentos?
— Não valiam nada.
Deviam ser importantes, porque você nem viu quando passei o mercúrio-cromo e enfaixei suas mãos.
— Agora, pronto.
Esmeralda permanecia observando o rosto bondoso.
— Posso perguntar uma coisa?
— Por que não?
— Daniel, a gente tem mesmo alma? Uma vez já falamos disso.
— Evidente que temos. Por quê?
— Porque ultimamente, nesses dias que passaram eu comecei a sentir dentro de mim, uma coisa que nunca me incomodara.
— Isso é bom. Deus é extremamente misericordioso.
— É Deus que salva as almas da gente?
— É.
— E que Ele faz com tanta alma que salva?
— Pudesse eu responder... Na sua infinita bondade, em toda a sua misericórdia Ele deve saber o que fará.
— Mas nem toda alma pode ser salvar, pode, Daniel?
— Pode sim.
— Até a minha?
— Até a sua, por que não?
— Porque eu fui sempre má. Uma mulher podre e tenho um grande pecado na minha vida. Não, eu não vou salvar nunca a minha alma.
— Não existe nada fora do alcance do amor de Deus. — Daniel, você me ajuda a salvar a minha alma? Daniel sorriu.
— Quisera poder salvar a minha. Isso me faz muitas vezes de noite perder o sono. Por mais que eu me canse e trabalhe como um mouro.
— Que é um mouro?
— É um povo de um país distante.
— Você não quer voltar?
— Não. Nunca mais. Não seria a solução para os meus pesares e nunca mais iria dar certo.
Calou-se um pouco. Depois olhou-a profundamente nos olhos e perguntou?
— Você também seria capaz de voltar lá?
— Deus que me livre disso. Prefiro antes uma boa hora de morte. Você não sabe, Daniel, o que é ser uma puta? É a coisa mais triste, mais doída, mais desgraçada que pode aparecer na vida de uma fêmea...
Silenciaram alguns minutos.
Daniel encaminhou-se para a frente do rancho e recostou-se na porta espiando a noite. Estava abafada e relâmpagos longínquos indicavam a aproximação da chuva...
Pensava que o destino da sua vida era salvar as almas. Mas falhara. Agora se condoía por não ter certeza nem mesmo de salvar a sua. Fechou os olhos com força e falou no coração.
— Juro, meu Deus, que eu gostaria de salvar alguém... Descontraiu-se e escutou a rede de Esmeralda rangendo nos mourões do rancho. Voltou. Daqui a pouco precisaria dormir. Embora não tivesse vontade e sabendo que rolaria mil vezes na rede tentando conciliar o sono. Esmeralda pareceu adivinhar os seus pensamentos.
— Você precisa deitar. Amanhã tem que se levantar cedo e trabalhar sozinho.
— É verdade.
— Mas se quiser eu vou com você para roça.
— Nada disso, moça. Amanhã a senhora fica fazendo a bóia e caprichando. Faz tempo que eu não como quitute feito por uma boa cozinheira.
Antes que a chuva chegasse saiu da casa e se dirigiu ao bananal. Nas sombras, as bananeiras tornavam-se lúgubres e sinistras. As folhas recortadas se projetavam contra a escuridão do céu e pareciam mãos imensas querendo segurar o negror da noite. Voltou mais calmo e exato. Estava-se recuperando. Um vento amigo soprou em seus cabelos.
Na sala, desamarrou a trouxa da rede para esticá-la na outra parede.
— Já apanhou o candeeiro e fósforo?
- Está tudo debaixo da rede.
- Posso apagar o lampião?
- Quando quiser.
Ouviu-se o sopro e o ruído do corpo descansando na rede.
- Foi um dia duro hoje.
- Se foi.
— Carapanã na roça parecia querer devorar a gente. Calou-se. Impeliu um balanço e suspirou. O cansaço estava fazendo a sua vez.
Mas não se passaram cinco minutos e Esmeralda estava falando. Mais baixo, porque era hora do lampião dormir.
— Daniel! Está dormindo?
— Não. Ainda não. Estava só rezando.
— Um dia você me ensina a rezar?
— Quando você quiser. Era isso?
— Não.
— Então fale.
— É bobagem, mas vou falar mesmo. Você sabe que eu nunca vi uma rosa? Tinha uma vontade danada de ver uma.
Ele riu no escuro. Criança!
— Eu só vi nas revistas e num vestido amarelo cheio de rosas pretas.
— Eu vi muitas. É isso que quer saber? Vi muitas. É a flor mais bonita de todas. Tem vermelha, amarela, cor-de-rosa, branca... E tem um cheiro maravilhoso. Agora, boa noite, Esmeralda.
— Boa noite, Daniel.
Antes de adormecer, sorria sempre. Uma criança. Ninguém diria que viera de um bordel e praticara tantos atos na sua pequena vida. Rosas. Rosas. Rosas...
Fazia tempo que não sentia aquela paz. Paz em tudo. No coração, na vida, na ternura das coisas comuns. Tudo se perdera na distância como um pesadelo. Não se sentia a mesma mulher de outrora. Portanto ia cantar. Cantar como quando menina olhava o rio onde nascera. Colocou a bilha no ombro e sempre cantando se dirigiu para a fonte. Se fizesse vinte viagens para encher a jarra da casa, não se cansaria. Os pés estavam firmes e o chão se forrara de uma maciez inacostumada.
Desceu a barreira recortada em degraus endurecidos, mas onde se destacava a cor sangüínea do barro.
Sentou-se e olhou as águas. O corpo pediu primeiro um banho. E como se sentia feliz resolveu banhar-se. A nudez, a cor da pele escura e descansada não lhe causava mal-estar. O corpo se trans-mudara em outra coisa. Em um prazer diferente. Como se o pecado que sempre a atormentara se tivesse desligado e fosse pertencer a outrem.
Ficou um tempão mergulhada, com a boca semi-imersa, tal como se voltasse a ser criança e o rio tomasse a configuração do antigo rio.
Tão distraída se encontrava que não notava a canoa se aproximando. Como por milagre a luz do dia foi-se transformando num sol de fogo, que começou a avançar pela barreira. Uma luz de ouro que quase cegava e fazia a vista lacrimejar. Assustou-se e como a se defender apertou os seios nus dentro dos braços.
— Esmeralda, por que você fez aquilo?
Virou-se desesperada, pois reconhecia aquela voz. Era ele. Ele com o rosto sombriamente barbado, mas com olhos coruscantes O fogo dos seus olhos se escapando inundavam toda a paisagem,
Soltou um grito espavorido. Queria sair da água e correr, mas as pernas estavam paralisadas.
— Olhe as minhas feridas, Esmeralda.
Arrancou a camisa e mostrou as costas. Todo o corpo era de ouro, mas o local das facadas mostrava as beiras vermelhas e um sangue fininho escorrendo lentamente.
Precisava tapar os olhos, mas as mãos não obedeciam.
— Não adianta, Esmeralda. Você está mais linda com os cabelos presos. Você está cada vez mais bonita e eu vim buscar você.
À custo soltou um grito de horror.
— Não, por amor de Deus, suma, desgraçado!
Conseguiu atingir a beira da barreira e esgueirar-se do salto que ele dera para atravancar seus passos.
Como louca continuou correndo em direção ao rancho. Gritava por Daniel. Mas os seus gritos perdiam-se na selva morta e na distância sem eco.
O coração em sobressalto quase saía da boca no desespero da corrida.
Ouviu que era seguida. E que ele a perseguia cada vez mais de perto. Já escutava até o seu respirar cansado. A casa tinha-se distanciado léguas. Agora não podia parar. Os pés doíam contra o chão que se tornara calçado em pedra canga. Soltou um gemido quando avistou o rancho. Respirou mais forte e acelerou a corrida. Ele se aproximava mais e mais. Penetrou no rancho e fechou a porta. Foi até a cozinha. Tinha febre. Tinha sede.
— Um pouco d'água para mim também, Esmeralda. Acabara de transpor a parede e se encaminhava para ela. Estranho que o seu riso era bonito e os olhos, de onde fugira a luz de ouro, traziam uma expressão de confiança.
— Dê-me a água.
Ela estendeu-lhe a caneca e ele bebeu com morosidade. Bebia um gole e espiava a nudez de Esmeralda.
_- Eu vim buscar você, Esmeralda, e dessa vez nós vamos fazer uma viagem linda onde ninguém pode atrapalhar os planos da gente.
Sacudia a cabeça chorando, querendo dizer que não iria.
— Não. Você vai. Só você conseguirá cicatrizar as minhas chagas. Foi você, não, Esmeralda? Olhe.
Novamente o sangue se esparramava pelas costas e vinha contornando o peito. Escorrendo como um riacho em direção da barriga.
— Eu não posso fazer nada.
— Só você pode me curar, Esmeralda, e eu vim buscá-la. Não posso passar sem você.
Ela mexeu os lábios tremulamente e quis rezar, mas não encontrava as palavras de qualquer oração. Nunca aprendera mesmo a rezar. Da sua garganta escapou-se apenas um roufenho não.
— Olhe o que eu trouxe para você.
Por encanto em sua mão direita brilhava uma rosa toda de ouro.
— Não é linda?
Sabia que ele ia tocá-la completamente, que por nada desistiria daquilo. Ergueu as mãos para afastá-lo. Mas agora as mãos estavam enfaixadas sem força e doendo bastante.
— Que foi isso nas mãos, Esmeralda?
— Nada.
— Naquela hora você se feriu também?
Não conseguia desviar-se da rosa. Ele estendia a mão segurando a rosa e começava a alisar todo o seu corpo.
— Agora você vai comigo.
Chorando respondeu que não podia. Ele não iria entender que nunca mais faria amor. Que aquilo era pecado e precisava salvar a sua alma. No entanto a rosa não parava. O contacto com a maciez das pétalas ia diminuindo cada vez mais a sua resistência. Contra os seus seios elas adquiriam um estremecimento sugador e desconcertante. Estava sendo minada em todas as suas energias.
Ele soltou a rosa que batendo no chão se desfolhou transformando o chão em escamas douradas.
— Você é minha, Esmeralda. Nunca se esquece o primeiro amor na vida. E eu fui o seu primeiro homem.
Os lábios carnudos devoravam os seus, escorregavam pelo pescoço. As mãos fortes apertavam suas nádegas e as pernas se apertavam contra suas coxas.
— Você irá comigo. Dessa vez não poderá escapar. Minha canoa a levará tão longe onde ninguém conseguirá se aproximar
O corpo a enlaçando mais, cada vez mais. Quase não podia respirar. De repente começou a sentir uma coisa viscosa escorrendo entre os dois. Estremeceu de pavor. Era o sangue das suas feridas que encharcava os seus seios, o seu umbigo e caminhava em direção das suas pernas.
Conseguiu afastá-lo um pouco e gritou como enlouquecida.
— Me deixe! Por amor de Deus, me deixei Eu não vou cora você.
Um lampião aproximou-se da sua rede e de seu rosto. Daniel olhava os seus olhos esbugalhados e tentava acalmá-la.
— Não é nada, Esmeralda. Você teve um pesadelo. Um sonho mau.
Abraçou-se ao seu pescoço.
— Não deixe que ele me leve. Não deixe, Daniel.
— Acalme-se. Ninguém vai lhe fazer mal. Vou buscar um pouco d’água.
Voltou trazendo também um pano umedecido.
— Beba. Agora, sim. Passe o pano em seu rosto que acalmará. Ela então reviu o rancho. Aquele rancho. O rancho de sua paz.
Suspirou aliviada e sorriu.
— Agora que está tudo bem... Vou me deitar. Deixarei o lampião aceso perto de você.
Esmeralda não pôde mais dormir. Ficou embalando a rede com suavidade. Esperou que a luz do dia entrasse no rancho para levantar-se e apagar o lampião.
QUARTO CAPÍTULO
A Índia Palusaio
TUTA VIVERA OS ÚLTIMOS DIAS NUMA AGONIA DANADA. Fazia a limpeza da casa, lavava a roupa do bordel, demorava-se na cozinha em silêncio, mas todo o tempo ficava com os ouvidos alertas. A seu lado, ajudando como se fosse muda, Palusaio trabalhava como uma sombra. E era bom que a índia agisse assim. Se falavam com ela respondia sempre monossilabicamente. Seu português era limitado e truncado. Entendia tudo no seu viver arisco e difícil. Tuta não judiava dela, mas também não se apiedava. Não gostava de pensar no caso do filho que se chamava, como era mesmo? Ah, sim: Puiú.
Distraía-se um pouco do seu medo e trabalhava com mais afinco. Nem dava para reclamar do calor e do suor que escorria sobre a sua papada cada vez mais crescida. O corpo estava grudado, melado de suor, mas não sentia.
Levantou os olhos para Palusaio com pavor de que ela descobrisse o seu segredo. Mas seus traços impassíveis não demonstravam nada.
Ficou observando ainda mais Palusaio. Ela apenas levantou os olhos e sorriu. Um sorriso passivo onde os dentes da frente começavam a desaparecer.
Também, que idéia! Terem aceito aquela infeliz como mulher-dama de cabaré. No começo, Suzi vendeu bem o seu peixe. Inventou histórias incríveis e obscenas que despertavam a cobiça dos homens para Palusaio. Depois, aos poucos, foram descobrindo a farsa e a realidade se tornou positiva. Ela era apenas uma índia boba, sem sal, de busto pequeno e meio murcho e de coxas secas e ásperas. Deu no que deu. Ninguém se interessava por ela. Ficava como um fantasma num canto esperando pacientemente com um sorriso. Só em caso de grande necessidade um chofer ou um juteiro se utilizava dela. Tuta arrepiou-se ao pensar nos juteiros. Aquelas mãos, aqueles pés sempre enfiados n'água, amolecendo as unhas a tal ponto que precisavam ficar dias em descanso para que elas endireitassem, para que voltassem a endurecer. Cada vez mais as mãos iam-se descorando e as unhas ficando mais moles. Uma única vez dormira com um apanhador de juta e ficou tão impressionada com a sua história que resolveu nunca mais aventurar-se a ficar com eles. Os pobres com as mãos embranquecidas e com as unhas encarquilhadas até que pagavam mais para fazer o amor. Mas não dava, não. O pior era saber que sempre eles voltariam para a água e as mãos iam-se desgastando como sabão mergulhado na fonte.
Perdeu o fio dos seus pensamentos e a sua defesa ficou de prontidão. Alguém caminhava balançando o assoalho do corredor. E como o balanço se tornava pequeno, deveria ser Suzi de novo. Mas não era; era Letícia. Vinha até o fogão em busca de um café requentado.
— Que calor, meu Deus!
Bebeu o café pouco saboroso devagar. Depois, com as mãos enxugou o suor das axilas rapadas. Depois também abriu o "pegnoir" e cocou os seios suados.
Virou as costas e saiu da cozinha. A vida no bordel estava insuportável. Ninguém tinha paciência com ninguém e a calma voara para bem longe dali.
Novamente os pensamentos atacaram Tuta. Por onde andava aquela louquinha? Por onde? Sem Chuva, o cabaré acabaria dando o prego. Ela era a alma, a atração das noites. Bem que aconselhara que não fosse servir o rio. Mas que adiantava dizer não. Nada. O pior tornava-se em realidade: sem ela não teria mais um momento de segurança. Poderia ser enxotada a qualquer instante. Pé na bunda e rua. Até parecia ouvir o gritar esganecido de seu Cleo.
Entretanto, embora preferisse continuar ali labutando como escrava, já não se amedrontava tanto com o que viesse. Sim, porque... nem ela queria conversar consigo mesma aquele assunto. A paciência estava agonizando. E se aquele veado nojento viesse de novo torturá-la com perguntas, já nem saberia como agir.
Suspirou fundo, tão fundo que Palusaio levantou a vista para olhá-la com curiosidade.
— 'Tá doendo, Tuta?
— Não tenho nada, não. É esse maldito calor. Se ao menos viesse um pouco de chuva para aliviar.
Palusaio demorou a baixar os olhos. Diabo de índia desgraçada. Aquilo não era nem olho e sim duas riscas escondidas. Começou a desconfiar que a índia sabia de alguma coisa. Será que ela ouvira? Não. Não podia ser. Ela dormia longe do seu quarto, na parte de baixo, bem junto do mijador dos homens. Não podia ser. E sem motivo não teria curiosidade de observar tudo, porque a noite acontecera igual ao comum das outras noites.
— Não precisa ficar assim me olhando.
- Não. Só você engordou mais.
Irritou-se com aquela observação. A diaba da índia era sonsa. Sabia observar bem e feri-la nos pontos vulneráveis do seu desgosto.
- E você parece um aruanã seco ao sol. Cada vez mais preto e mais sujo. Trate do seu serviço com atenção.
Como poderia ter acontecido tudo aquilo?
Ainda longe da madrugada. A noite do sábado de Aleluia foi além das duas e meia. Depois a orquestra acabou. O povo se foi. Gente bêbada por todo canto. Vomitando o chão que amanhã lhe daria um trabalho danado e porco. Recolhera sua vitrolinha e os discos. Suzi e Turquinha com expressões de cansaço foram abaixando os lampiões, os aladins, os petromax, apagando-os e recolocando-os nos devidos lugares.
Depois, o silêncio. Embaixo os homens caídos no chão roncavam e tossiam. Como sempre, Chuva fizera um sucesso maluco. O sol dos dias feriados tinha-lhe trazido ao moreno escuro da pele um toque de ouro e vermelho. Estava linda. Mas lembrava-se também que Chuva voltara diferente. Que contara para os seus segredos uma história completamente louca. Se não fosse ela que tivesse contado, não acreditaria. Dissera que foi servir. Saiu num lago, saiu num rancho e encontrou um homem. Ficara dois dias com ele sem fazer nada. E que o homem era meio santo. Que o homem (persignou-se) era um padre que deixou a batina. Só ela mesmo. E o homem só poderia ser um santo inteiro porque ficar duas noites dormindo perto de uma mulher tão linda como Chuva, era impossível. Impossível.
— Tome, Palu, vai pendurar essas peças no varal lá fora. Mas veja se bota os pregadores direito. O trabalho é muito e não quero lavar tudo de novo.
Onde estava mesmo? Ah sim, Chuva viera diferente. Uma tristeza nos seus olhos grandes tornavam o seu verde cor de selva mais lindo ainda.
Entretanto no cabaré não demonstrou nada. Ou, se demonstrou, ela não observara. Também não estava de prontidão esperando que alguma coisa fosse acontecer. Chuva cantou como nunca. Conversou alegre com Suzi. Foi tomar café com ele no quarto e se interessou pelo gado novo que chegaria naqueles dias.
Quando tudo dormia e dormia pesado, ela caminhando descalça e sem fazer o menor barulho, chegou até a porta do seu cubículo e bateu com os nós dos dedos.
Que diabo seria aquilo, agora? Homem, nem que estivesse bêbado viria procurá-la para dormir.
Levantou-se com dificuldade da rede e perguntou colando rosto à porta.
— Quem é?
A voz que veio de fora, saiu tão baixinho que quase não se podia distinguir. Não hesitou em abrir a porta.
Chuva entrou e colocou a mão em sua boca para pedir silêncio.
— Não diga nada.
Falava com a boca grudada em seu ouvido.
— Não posso me demorar muito. Só você vai saber disso. Eu vou embora.
— Você está maluca, Chuva!
— Não. Estou sã. Mas enjoei dessa vida. Agora, pegue. Nesse embrulho tem dinheiro. Tudo para você. Um dia se eu tiver um sítio você vem morar comigo.
Relutou em aceitar.
— Não seja boba, Tuta. Você é minha amiga e vai precisar mais do que eu. Aí tem cinco mil cruzeiros. Cinco milhões. Eu fiquei com mais do que isso e ainda tenho jóias muito caras que valem muito dinheiro.
Tuta estatelara-se de surpresa e medo.
— É seu. Mas esconda. Nunca deixe que ninguém desconfie que você tem tanto dinheiro. Quando você cansar dos tratamentos maus de Suzi, você também pode mudar para outro lugar. Mas espere um tempinho senão o povo desconfia.
Estava falando com ansiedade.
— Se você gosta de mim, como sempre diz, nunca conte pra ninguém que me viu fugir.
— Juro, Chuva.
Não podia falar muito senão chorava. Não podia sequer pedir para que ficasse. Ficar pra quê? Se ela tinha o suficiente para se libertar, por que continuar numa vida nojenta daquelas? Para ficar velha, podre e imprestável... Não.
— Pois bem, Tuta, agora me ajude a levar essa mala até à canoa. Fica muito pesada pra mim.
— Vamos.
O resto da noite estava quente e não oferecia perigo de chuva. Saiu carregando a mala envolvida somente naquele camisolão que tornava o seu vulto mais grotesco e desajeitado.
No porto enfiou os pés n'água. A água fazia-lhe bem, mas o coração se apertava de angústia.
— Estou pronta. Vou sentar no jacumã e quando chegar lá, você empurra a proa da ubá.
Tuta soluçou.
Abraçou-se carinhosamente ao corpo gordo. Beijou com ternura as suas faces molhadas e pediu:
- Não, Tuta, não é hora de chorar. Eu estou indo para o encontro da minha felicidade.
Conseguiu vencer a emoção da voz e perguntar.
- É o padre?
Apertou-a mais fortemente.
— É.
Sentou-se na canoa e esperou pelo empurrão. A canoa se afastou da beira. Brecou-a com o remo e virou a proa em direção da descida do rio.
Foi-se perdendo na noite. E Chuva nem sequer virou-se para ver o vulto querido de Tuta perdendo-se na escuridão também.
A primeira vez.
— Tuta, você sabe de alguma coisa. Você sabei
— Não sei não senhor, seu Cleo.
— Mas ela confiava tudo a você, não confiava?
— Mas dessa vez Chuva guardou segredo completo.
Suzi percorreu a cozinha meia hora de cá pra lá e de lá pra cá.
— Não é possível, meu Deus. Como pode acontecer mais uma dessas comigo? Vida desgraçada! vida...
Sua voz esganiçada alcançava a gama do falsete. Mas via-se que estava desesperado. E não devia ser pelo prejuízo que adviria ao cabaré. Na realidade gostava da moça. O trabalho para ensinar-lhe modos, ensinar-lhe a falar. Dar aquela classe que nem nas grandes cidades se encontrava mais. Mulher como Chuva, jamais. A cor que combinava com o verde dos olhos. Aquele corpo duro que não envelheceria nunca. Ingrata.
Gritou com Palusaio que assistia à cena.
— Saia daqui, sua cara-de-bicho-de-goiaba! Suma...
Palusaio desapareceu com um sorriso nos lábios. Muito em breve ele viria a precisar dela.
Suzi teve um acesso de choro e se retirou com pressa da cozinha.
A segunda vez.
Via-se que chorara muito e voltava com atitudes mais calmas. Dentro dos olhos aparecia uma chama de humildade bem diferente da vez anterior.
— Tuta, por amor de tudo que é mais sagrado para você, por amor da sua filha e do seu netinho, me diga alguma coisa.
Tuta arrepiou-se toda.
— Acho bom não botar esse negócio de filha e neto no meio dessa seboseira.
— Você não entende, Tuta. Se ela não volta, a gente está sem salvação. Todo mundo vai se passar para a pensão de Ritinha Chupemba. Você não entende isso? Sou capaz até de precisar fechar o cabaré.
— Que bobagem. É só arranjar outra mulher bonita e ensinar o que Chuva fazia. Mulher é que não falta nesse mundo de Cristo. Basta dar um pulo lá no Belém. Lá no São Luís.
Fungou e assoou-se.
— Você sabe que não. Que não é tão fácil assim. Se foi um custo dos diabos a gente trazer a Olinda para substituir a falecida Margô que se afogou no rio. Você sabe. E até agora Olinda ainda não pegou a prática nem o prestígio de Margô. E se a gente juntar todo o gado do cabaré não chega nem aos pés de Chu.
Tossiu e passou as mãos nos olhos avermelhados.
— Olhe seu Cleo, eu nem num sei de nada. Não sei de nada mesmo. Se soubesse haveria de deixar o senhor nessa angústia, nessa agonia de ladainha que não acaba nunca?
Suzi retirou-se soluçante.
Tuta balançou a cabeça. Sujeitinho nojento 'tava ali. Por dentro até riu, pensando na beleza de Chuva que remava longe para a sua felicidade. Muito embora não compreendesse como uma pessoa poderia ser feliz, vivendo com um padre que deixara a batina. Pela descrição dela, o padre parecia meio mofino e perrengue...
A terceira vez.
Súzi reaparecia arrogante e vitoriosa. Puxava Palusaio pelo braço.
Empurrou a índia para o meio da cozinha e Tuta virou-se, deixando de prestar a atenção no fogão aceso.
— Você mentiu, Tuta!
Não se afobou e enxugou as mãos engorduradas na saia larga.
— Eu nunca minto. Não gosto disso.
— Você jurou pelo seu neto e por sua filha que não sabia de nada.
— Olhe aqui, seu moço. Eu não sei de nada e não jurei em vão em nome de minha filha e do meu neto. Deixe os meus em paz, senão a coisa engrossa.
Suzi bateu o pé no chão numa atitude desafiadora e prepotente.
— Você sabe, e sabe que sabe. Mas você tem que contar.
- Que é que eu sei? Vamos, diga.
Suzi empurrou Palusaio defronte a Tuta. Apertou o seu braço escuro e emagrecido.
— Conte o que você sabe, Palusaio.
A índia empalideceu. A fala não saía de modo algum.
— Vamos sua peste, fale.
Foi o mesmo que nada. Até os olhos da índia que quase não existiam tinham crescido de medo. Apenas balançou a cabeça para dizer que perdera a fala. Mas Cleo entendeu que ela negava o que lhe contara.
Deu uma rabanada histérica e saiu correndo como um doido pelo corredor.
Tuta puxou a índia pelo braço e obrigou-a a sentar-se num caixote no canto da cozinha. Ali ela não teria oportunidade de fugir. Puxou um tamborete e sentou-se incomodamente quase encostando sua cara na cara da mulher. Principiou a falar com calma e viu que Palusaio tremia.
— Agora me conte. Que foi que você falou lá pra ele? Silêncio.
— Diga logo, que eu não quero me zangar. A índia continuava muda.
— Pra fazer fuxico você sabe, não é sua desinfeliz! Mas você vai falar e já.
Levantou-se com uma leveza que ninguém podia supor. Foi até o fogão e voltou com uma panela de água fervendo.
Os olhos da índia fitavam espavoridos a fumaça fugindo da tampa.
— Ou você me diz ou eu cozinho você como um frango pelado. Permaneceu em pé na sua atitude ameaçadora. Aos poucos foi aproximando a panela do rosto da índia. Nem precisou perguntar mais. A índia descerrou os lábios.
— Eu falo. Eu falo.
Com os dedos magros apontou o fogão para que Tuta depositasse a panela. Tuta obedeceu e voltou a sentar-se defronte à índia.
— Assim é melhor. Eu não gosto de violência. Porque quando perco a cabeça o mundo se acaba.
— Eu vi.
— O que foi que você viu?
— Você soltar a canoa.
— Onde é que você estava?
— Calor muito e eu fui banhar. Quando estava dentro d’água, vi. Pensei que era homem e me escondi entre as canoas.
Tuta ficou perplexa por um momento. Como pudera ter acontecido aquilo. Que ela vira, vira. E agora? Teria um modo de fazê-la calar-se?
Só havia um. Amedrontando mais a desgraçada.
Levantou-se e apanhou o facão de carne. Passou os dedos no gume para sentir se estava afiado. Soltou um hum de satisfação.
— Bem. Você está vendo isso aqui?
De novo o pavor estampava-se no rosto da adversária.
— Pois bem. Isso é pra cortar a língua de mulher faladeira. Palusaio abanou a cabeça concordando.
— Então, responda o que vou perguntar, porque se você se enganar na resposta, te varo de lado a lado com esse facão.
Encostou a lâmina na barriga da índia. Sentiu a lâmina abalada com o tremor do seu corpo.
— Então, responda. O que foi que você viu? A voz vinha rouca de pavor.
— Não vi nada.
— Você viu Tuta soltar uma canoa no rio?
— Não.
— Viu Chuva Crioula viajar numa canoa?
— Não vi, não.
— Você estava tomando banho no rio de madrugada?
— Não estava, não.
— Quer dizer que você não viu nada, não escutou nada?
— Não.
— Está bem, mas se você continuar a falar sobre isso... sabe o que acontece?
Comprimiu mais o facão no ventre dela.
— Sei.
— Fale isso alto.
— Sei sim, senhora. Tuta retirou o facão.
— Bem. Nós agora já conversamos o que eu queria. Levantou-se e jogou o facão em cima da mesa com estardalhaço.
— Pode ir.
Palusaio levantou-se, mas quase não achava forças para caminhar. Foi direto à bilha e bebeu um grande trago de água. Ficou depois olhando Tuta sem coragem de passar por ela.
— Pode passar. Já disse que não tenho mais nada pra falar.
A índia foi-se esgueirando medrosamente. Ao passar por Tuta a mão pesada caiu sobre o seu ombro.
— Tem uma coisa de bom. Se você não abrir o bico, cada vez que Tuta comprar fumo-de-rolo, você ganha um pedaço.
A índia correu esbaforida.
Por uns meses, talvez mais do que o necessário, sentia-se garantida a respeito de Palusaio. Ela não tinha onde cair morta, e se permanecesse ali no cabaré, poderia controlá-la com facilidade. Ainda bem que não precisou ameaçar com a polícia. Porque a índia tinha medo que um dia a polícia viesse à saber a história de Puiú e a levasse pra morrer na cadeia...
A quarta e última vez.
Pleno calor do meio-dia e Tuta se derretia perto do fogão. Se de fato existisse inferno não poderia ser mais quente do que o momento. O calor da madeira lançando um pouco de fumaça sufocante enlouqueceria qualquer um. Nem tempo sobrava para ir até o rio e mergulhar o corpo na água que naquela parte do ano se tornava morna e gostosa. Podia até ficar sentada na areia com a água atingindo o pescoço por três horas e o corpo ainda sairia quente. Praguejava por dentro do seu mutismo. Porque, a cada palavrão que dissesse, poderia aumentar o seu escaldar.
Suzi penetrou na cozinha como um furacão. Vinha com os olhos transtornados. Apontava o dedo em riste para o corpanzil de Tuta.
— Olha, dessa vez é definitivo. Você vai ter que me contar tudo que sabe sobre Chu.
Deu aquela coisa na mulher. Petrificou-se, mas os olhos fagulhavam. Não dava mais pra agüentar um só desaforo. Mesmo que não tivesse o dinheiro dado por Chuva, na certa estouraria dessa vez. Não mediria as conseqüências da sua atitude.
— Olhe aqui, seu moço, dê sumiço logo porque eu não estou boa nem um pouco.
— Boa ou não, eu vim aqui decidido a saber toda a verdade. Sei que você amedrontou a índia para não falar. Mas comigo é diferente: ou me diz tudo ou rua. Vá gemer sua velhice noutra parte.
Era atrevido o rapaz. Tuta colocou as mãos na cintura e caminhou lentamente para perto dele. Ele não se assustou e apenas afastou-se um pouco para trás.
— Escute aqui seu fresquinho de merda! Eu já lhe disse que não sei de nada. E quando essa mulher aqui fala isso é porque é verdade.
Suzi parecia um franguinho arrepiado.
— Não venha com ameaças, não, porque o dono dessa casa sou eu. Quem manda aqui sou eu.
— Ah! É assim? O dono! Que grande dono, um puto muito nojento, metido a besta.
Numa rapidez inesperada, Tuta abotoou Suzi pela gola, suspendeu-o no ar e balançou-o como um boneco de feira.
— Pois bem, seu dono. Vá arranjar uma negra que faça o que eu faço e se sujeite a ganhar aquilo que eu ganho. Miserável do inferno!
Abaixou o corpo balofo, deixando que tocasse o chão. Mas foi só por um segundo. Tornou a suspendê-lo e, como quem joga um travesseiro de pena, empurrou-o para o fundo da cozinha. Ele bateu no chão, escorregou o corpo e ficou encostado na parede. Estava estarrecido. Não podia falar. Os olhos cresciam de apreensão. O pior é que Tuta fechara a saída com o volume do seu corpo.
O furacão veio morar na raiva de Tuta. Apanhou a vassoura e se aproximou soprando fogo.
— Não vou sujar minhas mãos numa pinóia como você. Desceu a vassoura sem dó. Suzi se encolhia, gemia, gritava, escondia a cabeça entre as mãos para proteger o rosto. Urrava, mas a vassoura não deixava que se levantasse.
Começaram a invadir a cozinha, atraídos por seus gritos. Nem homem nem mulher se atrevia a separar Tuta daquela surra. Muitos até estavam gostando. As biraias atraídas pelo zoadeiro, desceram de qualquer jeito para ver o que se passava. Porque o mundo vinha abaixo em pleno meio-dia. Chegavam até a rir da cena grotesca.
Tuta desancou o pau alguns segundos mais e sentiu-se satisfeita.
Pegou Suzi pela gola e suspendeu de novo o corpo amassado. Colocou-o na banqueta e deixou que gemesse um pouco. Afinal, tinha direito, porque as vassouradas pegaram grosso.
— Isso é pra você aprender a não se meter a besta comigo. Não vá dizer agora que eu não avisei. Agora você aprende que quem nasceu para penico não pode desejar ser panela de pressão.
— Sua bruxa gorda! Assassina! covarde! carrasca sem alma! Só eu melhorar vou falar com a polícia.
Tuta arreganhou os dentes começando a se zangar de novo.
— Quer mais, bicha fresca?""
Ele se encolheu e Tuta estourou de novo, mas dessa vez sem dar pancada.
— Pois bem, vá-se queixar na polícia, vá falar na casa do bispo, na casa do papa, na casa da mãe, na casa do caralho. Onde quiser, viu? x
Afastou-se e foi empurrando a mulherada, abrindo a passagem só com o vento do corpo imenso. Resmungava.
— Agora não fico nessa merda nem um dia mais. Vou-me embora.
Antes de sair da cozinha, apontou o dedo:
_ Trate de melhorar logo, porque eu vou arrumar os meus trens e vou embora de uma vez. Quero a minha conta.
Saiu.
Suzi entre soluços e gemidos olhava desolado o fogão. Logo as panelas iriam queimar a comida. Que fizera, grande idiota?
Divonise e Olinda ampararam Suzi e se encaminharam devagar para fora da cozinha e depois subiram para o quarto do rapaz.
Fizeram uma lavagem de salmoura principalmente no rosto, onde um olho quase se fechava de inchaço.
Deitaram-no na cama e retiraram-lhe os sapatos. Tudo isso era acompanhado de lamúria e pequenos soluços.
— Que foi que eu fiz, meu Deus?
Esganiçava a voz, porque nem naquele momento se esquecia de ampliar a sua frescura.
— Primeiro foi embora Chu. Agora essa megera dessa Tuta quer ir também.
— Não é Tuta que vai embora, não. É a cozinheira. É a lavadeira. É a arrumadeira. É a mulher que faz música na sua birosca quando tem pouco freguês e falta a orquestra.
— Ai, mulher! Não aumente mais as minhas penasl
— Eu só estou dizendo a verdade. Outra mulher pé-de-bode como aquela você pode fazer promessa de pé junto que não encontra nunca.
Suzi sentou-se desesperado na cama. Torcia as mãos como se quisesse arrancar as juntas dos dedos.
— Divonise, vai lá.
— Lá aonde?
— Falar com Tuta. Você sabe convencer.
— Mas convencer do quê?
— Convencer que ela não pode ir embora. Invente tudo, conte qualquer coisa. Diga que estou arrependido.
Choramingou.
— Vida, em que ponto eu cheguei! A ponto de pedir, implorar que uma infeliz daquelas não saia da minha casa.
Fingia mais tragédia para comover Divonise. Ela parecia não se ter decidido.
— Não vai?
— Ela não fica, Suzi. Você sabe disso.
— Diga que eu aumento o ordenado dela. Que eu peço desculpas.
— Aumenta em quanto?
— Cinqüenta cruzeiros. Divonise soltou uma gargalhada.
— Falo isso e ela me corta o esquerdo.
— Cem.
— Não. Só vou com uma condição. A pobre bem que merece. Tem uma filha pra ajudar e um netinho. Você dá só cinqüenta.
Foi a vez de Suzi espantar-se.
— Cinqüenta mesmo?
— Cinqüenta assim: cinqüenta para a cozinheira que ela é, cinqüenta para a arrumadeira, cinqüenta para a lavadeira, e... cinqüenta para a tocadora de música.
— Mercenárial
— Uai homem! Não tô pedindo pra mim. Mas se não for assim mande outra em meu lugar porque a fêmea lá tem mão pesada... Mas resolva logo, porque Tuta não tem muita traquitanda pra arrumar. Já deve... Certo?
— Certo.
Voltou a lamentar-se e a apoiar a cabeça no travesseiro.
— Ei, mulher, você endoidou?
Tuta estava acabando de enfiar o resto da roupa de qualquer jeito num sacolão escuro. Até a vitrolinha já estava fechada em cima da cama ao lado da pequena quantidade de discos.
Tuta não respondeu.
— Posso sentar?
— Sente.
Continuava entregue aos seus pertences.
— Você já pensou na bruta besteira que está fazendo?
— Agora é tarde. Perdi a cabeça. Também aquele porqueira de poia veio me caningar até eu ficar fula.
— Tudo tem remédio. Imagine, pra onde você pode ir? Não quis contar o segredo do dinheiro de Chuva.
— Agora, paciência.
— Quando souber de uma coisa, você vai cair durinha da silva.
E contou, pormenorizando a proposta.
A cama rangeu com o peso derrubado de Tuta.
— Verdade, mulher?
— Por que tinha que mentir?
Tuta examinou pacientemente os seus guardados.
— Então vou ter que desarrumar tudo?
— Não é muita coisa.
Tuta tamborilou os dedos nas grossas coxas e tomou uma decisão.
_ Dessa vez passa, eu fico. Mas você diz a ele que não me pise na cozinha por uma semana. Até que eu esqueça a raiva que fiquei daquele corno.
- Digo.
— Está bem. Então eu fico.
Olhou para Divonise que sorria e do sorriso foram parar nas gargalhadas. Estavam se lembrando de Súzi, pendurada no espaço pela gola, esperneando como gato bravo.
— Gozado. Ele estava era mesmo precisando de uns bons bofetes.
— Você não sabe que gente como ele gosta de apanhar e de sofrer?
Riram mais. Bruscamente Tuta parou. Parada dentro do quarto, quase colada à porta, Palusaio assistia a tudo.
Tuta levantou-se em direção à índia. O medo paralisara-lhe as pernas. Agarrou-a pelo pescoço e passou o dedo na boca da mulher.
— Olhe seu traste imundo: bico calado. Você já sabe do que eu faço quando me enfezo.
Chacoalhou a índia com força e soltou-a. Palusaio, apavorada, correu tontamente pelo corredor soltando estranhos ruídos.
Terceira Parte
ALELUIA!... ALELUIA!...
PRIMEIRO CAPÍTULO
Maria Begônia
TUDO NA TRISTEZA DE Suzi se resumia no depois que Chuva partiu. E depois que Chuva partiu pensou enlouquecer de saudade. Cada canto com que esbarrava encontrava-se marcado com vestígios da sua ausência. Sem ela as outras mulheres se transformaram em verdadeiras nulidades, em fantasmas sem a menor personalidade.
Mil vezes perguntara-se, mil vezes procurara eco em suas lembranças.
— Cadê Chuva, coração?
E coração nem respondia, ficava ralando nostalgias e enchendo os olhos de choro inútil.
E como precisava viver, criava a coragem de gente viajada, tentando conformar-se em inglês: "The show must..." Mas tudo era besteira; inútil recompor-se.
Abria o quarto que fora dela. "Cadê Chuva, saudade?" A cama arrumada do mesmo jeito que deixara. O armário abrindo-se e o cemitério de vestidos permanecia lá. Costumava sozinho levar os vestidos ao sol para que não se mofassem. Escondido no quarto, na penumbra, não sentia prazer em encostar todos os trajes em seu corpo como antigamente. Apenas pegava um de cada vez, e ele, como se fosse música, contava-lhe uma história. Estendia-o na cama e ficava horas e horas, emudecido, contemplando a solidão do seu vazio. Antes de recolocá-lo no cabide inútil, encostava o seu ouvido como se ouvisse o coração de Chuva palpitar lá dentro. "Cadê Chuva, tristeza?"
Até que emagrecera de tanto perguntar. Nada adiantava. O rio sim, o rio malvado levara-a para longe. O rio mudo que só guardava mistérios e distâncias.
E, se por acaso deixava de repetir o cadê, outro chavão arranhando como areia grossa, feria o seu desaponto: "Depois que Chuva partiu."
"Onde estaria aquela ingrata tão linda, tão cheia de vida? Por que fizera aquilo? Com que homem desaparecera?"
"Meu Deus!... Meu Deus!... Meu Deus!... É de deixar, qualquer um louco."
Se fosse coisa de pouco tempo, vá lá. Mas quase seis anos, e seis anos são um grande pedaço de vida. Principalmente arrastados lado a lado. Rindo cada segundo, brincando cada minuto sofrendo ou chorando cada hora.
Muitas vezes em sua solidão punha-se a falar, combinar coisa como se ela o escutasse, como se se encontrasse presente. Depois os dedos da realidade tocavam em seu peito e precisava tapar a boca com força para não gritar loucamente o seu desespero.
Entretanto, era preciso reagir, porque depois que Chuva par. tira, o cabaré perdera quarenta por cento do interesse. Quem poderia substituí-la no "show" da noite? Quem poderia ser tão Chuva? Então aquilo foi-se tornando um cabaré sensaborão, monótono, gagá. E os homens que constituíam a freguesia de Divonise, Letícia, Olinda e uma paulista recém-chegada, muito fresca e enjoada, a Odete, ficavam naquilo de freqüência de bordel. Nada mais. Nem adiantava funcionar a pequena orquestra porque sua música saía pelas janelas e ia embalar a indiferença das estrelas ou dos sapos coaxando nos poços do rio. Tanto se dava se Tuta remoía os seus disquinhos batidos e vesgos tentando ajudá-lo num convite aos homens, totalmente inútil. Estranho que depois que Chuva partira, tornara-se mais amigo de Tuta. Não, porque quisesse descobrir o segredo. Tuta morreria de pés juntos sem revelar nada de nada. Mas sim porque a mulher adorava Chuva e podiam conversar horas relembrando os momentos distantes: "Você se lembra quando?..." "E naquela vez quando..." "E quando ela levantava aqueles olhos verdes à luz das velas, se lembra?" "E que coração tão cheio de bondade..."
Os dois calavam-se com a garganta embargada e os olhos umedecidos.
Depois que Chuva partira desinteressou-se de tudo. Prometeu até um prêmio de dois mil cruzeiros para quem desse uma notícia. O rio ligou pr'aquilo? Pois, sim! Ficou mais calado ainda. Rio gostava era de comer prato, xícara, colher, faca, anzol, linha, mas dinheiro que era bom não lhe causava efeito.
Enchia-se de esperança, falando até com humildade com Palusaio.
— Quanto vestido se pode comprar com dois mil cruzeiros? Achava graça na ingenuidade.
— Pra você, miudinha como é, seca que nem farinha, deve dar pelo menos uns duzentos.
A risca dos olhos brilhava de felicidade. Passava um tempo e Palusaio voltava.
— Quanta canoa a gente pode comprar com dois mil cruzeiros? Ficava até aflito fazendo as contas para a índia.
- Se for pelo preço de duzentos cruzeiros por canoa, você pode comprar bem umas dez.
Nova chama de alegria nos seus olhos semi-fechados. Aí Suzi se irritava.
_- Mas afinal, Palusaio, você sabe de alguma coisa? Se não sabe por que fica de cri-cri chateando a minha paciência?
_- Não. Não sei. Mas se um dia eu descobrir...
_ Que é que tem?
— Você dá o dinheiro?
— Claro. Prometi.
— Mas eu não quero dinheiro não.
— E agora mais esta, São Cornélio. Então o que quer?
— Se índio aparece com muito dinheiro, caraíba pensa que foi roubado.
— Que diabo é caraíba?
— É branco na língua de índio. Eu quero assim: duas canoas — e contava nos dedos magros — e o resto tudo em vestido. Em corte de vestido. Você faz assim?
— Faço. Mas pra que é que você quer tanta canoa e tanto vestido?
— Vou embora pra bem longe. Vou vender a canoa e a fazenda lá embaixo da cachoeira de Taquaratipera, em aldeia de índio.
— Você conhece por lá?
— Tudo. Índio não me engana; sem dinheiro não vendo. Posso trocar por material de boneca, de arco trançado que branco compra passando de motor para vender no Belém. Eu vi. Eu sei.
Estranho que todo o mundo só pensava em partir. Até a infeliz indiazinha mirrada. Será que ela sentia remorsos de ter matado o filho?
— Não está escutando.
— Que foi que falou?
— Eu perguntei duas vezes se você conhece a cachoeira grande de Taquaratipera?
— A maior cachoeira que vi na minha vida foi a Cascatinha da Tijuca e era uma merdinha de cachoeira.
— Taquaratipera, não, seu Cleo. Taquaratipera a gente passa durante três dias. Ela é grande que na fala dos caraíbas ela tem mais de três léguas.
Suzi espantava-se de duas coisas. Primeiro porque a índia destramelara a língua, segundo porque cachoeira assim não podia ser.
— Ora, você está mentindo.
— Falo a verdade.
— Mas Palusaio, três léguas são dezoito quilômetros.
— É grandona, sim. Faz um barulho de estrondo, que nenhum foguete pode fazer.
— Fica muito longe essa taquara não sei quê?
— Três dias de viagem puxada.
— Que diabo que tudo que você fala dá em três?
— É assim, sim.
— Então 'tá bom, Palusaio. Ache o que eu quero e a gente conversa depois.
A índia não arredava o pé.
— E agora o que mais?
— Pra contar. O motor Balaio está parado no porto; chegou não faz três horas.
Virou-se e saiu. Nem precisava permanecer para comprovar a palidez de Suzi.
Um mês depois que Chuva partira, Doca não aparecera. Dois meses que Chuva partira e ele retornava. Sentiu-se mal e um enjôo no estômago crescia tanto que por mais vomitaria. Foi até a pia para refrescar-se. Qual seria a reação de Doca ao saber da verdade? Que faria? Não podia pôr-lhe a culpa. Ninguém poderia ser acusado disso. Chuva resolvera e sumira pra sempre. Não preparou uma história, nem desculpa. Ele que visse com os próprios olhos a falta que a mulher fazia na sua vida e no cabaré.
Mas respirou aliviado quando, de noite, Azor apareceu sozinho com a mesma vontade de petiscar e sorrindo na sua eterna expressão de gozador. De noite, e era a única diferença, seus olhos de verdes se transformavam em azul-escuros.
— Então, cadê a noiva?
— Por que pergunta, se você já sabe?
Cocou a cabeça e um pouco de preocupação alastrou-se em seus olhos redondos.
— Ih! rapaz, esse negócio vai dar um bode dos diabos.
Suzi imitou o gesto de Pilatos. Mas que seu coração respirava aliviado por estar defronte de Azor e não de Doca... nem se fala.
— O pior é que eu trouxe isso.
— O que é?
— Uns enfeites de ouro nesse pacote e nesse envelope um belo de um tutu. E, como não podia deixar de ser, uma carta apaixonada do noivo.
— Posso ler?
— Pode. A carta está aberta e se Chuva estivesse aqui você seria a primeira pessoa a escutar o conteúdo dela.
Leu, contendo qualquer manifestação de surpresa. A carta falava de amor eterno e outras baboseiras. Reconhecia sentir um pouco de ciúmes, porque se o que chamava de baboseira fosse com ele, a coisa seria outra. Para cúmulo da sua sorte, ele se ausentaria por seis meses. Tinha partido com a família para a Europa e teria de realizar uma porção de negócios, visto que o pai aos poucos descarnava em seus ombros a responsabilidade das transações comerciais. Mas quando voltasse, iria resolver de vez a situação. Queria que Chuva estivesse mais perto. Não precisava ser em Belém. Bastava uma cidade próxima.
Acabou de ler a missiva e ficou com ela balançando entre os dedos. Tinha seis meses para recuperar Chuva ou arranjar uma desculpa plausível. Até podia ser que na Europa, garanhão como Doca sempre fora, ele descobrisse um outro motivo de interesse por lá.
— Que vamos fazer disso?
— O dinheiro e as jóias você leva de volta. A carta, se ela aparecer ou se souber alguma vez do seu paradeiro, eu envio a ela.
— Não, fica tudo aí. Se ela aparecer um dia, você entrega.
E Azor ficou dois dias fazendo os pagamentos e acertando contas. Até achava bom que Chuva se encontrasse ausente porque podia virar o rabo do motor para a cidade e voltar para Belém, ficar mais com a família e os dois buchudos. Por sinal um já na escola e bem parrudo.
Dois meses depois que Chuva partira, traçou um plano, e até conseguir um pequeno êxito no seu empreendimento gastou léguas de calma e eternidades de paciência. Inventou em treinar Divonise para um "show", modesto é verdade, mas de certo bom gosto. A voz de Divonise era bonita, mas até botar aquela voz num compasso e fazer o seu casamento com o acompanhamento da pequena orquestra foi osso. Depois, ensinar-lhe os trejeitos característicos, o rebolar imitando a sensualidade, o virar dos olhos malemolentemente e sobretudo convencer que quando risse, disfarçasse a boca com qualquer coisa. Que medisse o tamanho da abertura dos lábios para não surgirem aqueles canibalescos caninos de ouro que faziam a glória das mulheres daqueles gerais, mas que atemorizavam até um vampiro distraído... foi obra de abnegação e de catequese martirizante.
Durou um mês e pouco. Conseguiu tapear o saco do tempo. Mas depois tornou a confirmar no mais fundo de sua alma, que aquela gente sentia era falta de Chuva. Mesmo que não fosse para dormir com ela, porque a crioula era cara, mas para pelo menos amenizar os olhos do desejo com aquela carnadura e beleza toda.
Aos poucos, o cabaré foi minguando de gente, minguando de gente, e Divonise respirou mais que satisfeita. Os guinchos da vitrolinha de Tuta retornaram a arranhar a alma abandonada da noite.
Letícia trazia o semblante preocupado; enrugava a testa num toque de insegurança e apreensão.
— Como é que ele está hoje, Tuta?
— Uma seda. Triste como sempre, mas de boa paz. Quando fui levar o café no quarto, ele estava assim. Só se mudou.
— As coisas mudaram muito, não é? Até café você leva no quarto. Quem diria?
— Pois é. Mas ele não é má pessoa. É questão de saber lidar.
— Você lidou bem com o cabo da vassoura. Fresco e bêbado vivem caçando bolacha. Depois que recebem ficam felizes.
— Também. Mas acho que foi mais por Chuva.
— Nunca vi uma pessoa guardar tanto uma lembrança.
— Sabe de uma novidade, Letícia?
— Vá contando.
— Sabe onde dormi ontem e vou continuar dormindo sempre? No quarto da falecida Margô. Estava mesmo fechado e ninguém queria dormir lá. Então seu Cleo me deu licença.
Letícia riu.
— Não tem medo, não?
— Medo de quê? Não é gente morta que faz mal pra gente.
— Então 'tá bem. Daqui a pouco nem me admiro que ele deixe você voltar a mariscar no cabaré. Ou que faça um "show" de macumba e pinte você de uma preta daquelas gordas que usam na Bahia.
— Cale a boca sua peste. Fica aí mangando da gente. Vai logo lá. Com essa conversa você se acalmou um pouco.
Empurrou a outra pelos ombros na porta da cozinha.
— Vá logo. Você é homem, ou não é? Deixe de bancar a frouxa. Ficou enxugando as mãos na saia e observando com simpatia
Letícia subir as escadas. Era a pequena do coração. Isto é, porque Chuva não estava mais. Tão quietinha, tão boazinha, tudo pra ela estava bom. Como não tinha mais Chuva era na cama dela que colocava os lençóis cheirosos a patchuli!
A cada degrau subido, o coração de Letícia batia mais descompassado. Quase pensava em desistir. Mas não. Viera para isso e iria falar de qualquer maneira. Uma decisão não se pode ficar protelando. Bateu de leve com os nós dos dedos na porta de Suzi.
A voz convidou lá de dentro para entrar.
Controlou-se e virou o trinco da porta. Suzi estava sentada numa cadeira de balanço e parecia ler. Retirou os óculos e sorriu para Letícia. Aquela mulher era tão calma que sua presença fazia bem.
- Você, Letícia?
Ficou vermelha como camarão. Apenas balançou a cabeça. Nada de voz sair. - Sente-se ali.
A fala saiu tão esquisita que até ela se espantou. _ Fico mesmo em pé. Minha demora é muito rápida. __ Você é quem sabe. Notou o estranho encabulamento da moça.
— Então, o que foi? Essa é a primeira vez que você vem ao meu quarto. Deve, pois, ser coisa muito importante.
Ela riu desajeitada. Mexia com as mãos como se pedisse ajuda, mas a voz continuava difícil. Deu um arranco e começou.
— Sabe, eu tenho um problema muito difícil. Calou-se e ficou mais corada ainda.
— Coisa de dinheiro?
— Não, senhor. Coisa pior.
— Coisa mais importante que dinheiro só a morte, minha filha. Começava a ficar intrigado com a atitude incômoda da mulher.
— Sabe, eu vou precisar deixar de pintar meu cabelo de loiro. Sorriu. Isso era mais importante que a morte?
— E daí? Ninguém proíbe. Se você julga que lhe fica melhor...
— Não, porque meu cabelo era castanho-escuro antigamente. Depois que escurecer ele, preciso me acostumar a usar coque.
Suzi avançou o corpo na cadeira. Aquilo era incrivelmente esquisito.
— Você acha que fica bem? Alguém lhe pediu? Confirmou com a cabeça.
Levantou-se e convidou-a para aproximar-se do espelho. Ficou por trás da moça, espiando.
— Pena. Seu cabelo tem uma ondulação natural muito linda. Prenda-o do jeito que você imagina, para a gente ver.
Ela obedeceu. Não ficava mal na realidade. Dava-lhe um aspecto mais velho talvez. Mas para a profissão o outro penteado lhe assentava mais.
Voltou para a cadeira e a moça se colocou na antiga posição.
— Pronto. Você pode fazer o que quiser.
— Não é só isso. Eu tenho que lhe contar que vou-me embora. Vou ficar mais dois meses para dar tempo do senhor arranjar uma mulher para o meu lugar.
Aí os olhos de Suzi voltaram a ter aquela tristeza dos últimos meses que se havia afastado por uns momentos. Chuva partira, Palusaio falara em viajar... Agora era Letícia também. Todo o mundo aos poucos tomava um rumo novo. Só ele não sentia vontade alguma de mudar-se dali. Guardou silêncio enquanto esperava pelo resto.
— Sabe como é. A idade na gente chega mais depressa. Eu me olho no espelho e vejo que já não sou a mesma. Mulher-dama que passa dos trinta se continua se esborracha. Meu busto está mais... o senhor sabe. E aqui...
Segurou as ancas com as duas mãos.
— Está engordando demais. Daqui a pouco eu acabo como Tuta.
— Acho que você está longe disso, mas vamos ver o que deseja mesmo.
— Nunca fui mulher de fazer pé-de-meia. Guardei pouco, porque nunca recebi muito. Eu sabia que não ia ser nunca uma grande mulher e fiquei sempre acomodada no meu canto. Por isso, vou precisar fazer assim com os meus cabelos e com a cor deles.
— Mas, meu São Cornélio dos Chifres Brilhantes, o que tem a ver isso com a sua partida?
— Tem sim, porque eu não vou embora por ir. Até que gosto da sua casa, onde todo mundo me tratou sempre bem, mas é que eu tive um pedido de casamento e vou aceitar.
— O quê?
Súzi deu um pulo de espanto.
— Casamento? Mas com quem, mulher? Com alguém que vai poder lhe dar uma vida calma e garantida?
— Até mais que isso. Vou ter um nome sério. Vou pra São Luís e virar uma senhora de família.
Suzi cocou a cabeça com as pontas dos dedos num gesto seu muito característico.
— E quem é o felizardo? Pode-se saber?
Aí foi que Letícia engasgou mesmo. O vermelho que passara, voltara agora como um poente incendiado.
— Você vai me contar, não vai? Se é para a sua felicidade, eu quero ser o primeiro a lhe desejar sucesso.
— O senhor não vai caçoar?
Cruzou as mãos sobre o coração e colocou os dedos em cruz na boca. Mas a sua língua era danada demais para deixar de fazer uma piada.
— Não sendo com o Dr. Umbelino, o que vier não me causa surpresa.
Foi a vez dos olhos de Letícia se arregalarem quase a ponto de estourar.
— Como foi que adivinhou? Alguém lhe contou?
Cleo tornou-se gago de espanto. Foi preciso acalmar-se um pouco para prosseguir na sua estupefação.
— Mas você endoidou mulher!
- Não, senhor. Não é de hoje que ele tem uma quedinha por mim.
__ 'Tá bem, 'tá bem. Mas o velho está velho demais pra você.
_ Não importa. Já conversamos muito. E se eu deixar essa vida, pgo vai existir mais homem pra mim. Ninguém. Já basta a montoeira que andou na minha cama. Vou, fico com meu velhinho... e pronto.
— Letícia, o que você acaba de me contar é tão fantástico, difícil de se acreditar.
Aí ela sorriu calma e feliz. Voltara a ser a mulher que espalhava paz para todo o mundo.
— Meu medo não era aceitar o casamento e sim de contar ao senhor. Eu vou sim. Estou meio cansada dessa vida. Acho que toda mulher-dama que chega na nossa idade perde a vontade de ser, de forçar sem-vergonhice. Acho que todas mesmo. Se não deixam tudo é porque nem sempre aparece uma oportunidade como a que me apareceu.
— Sim, senhora. Madame Dr. Umbelino Cristiano Generoso. Quem diria!
— Agora vou contar o finzinho da missa. Ele já preparou o espírito da família lá. Até que não é grande, não. São duas irmãs mais velhas: Dona Escolástica e Dona Aristotelina.
— Mais velhas do que ele? Poxal
— Ele tem oito anos de diferença das duas.
— Mas Letícia você já pensou bem? Bem mesmo? Isso não é família. É um museu histórico. Agüentar um velho e por cima duas velhas que não acabam mais.
— A gente não vai morar junto, não. Umbé, assim é que ele gosta que eu chame. Umbé vai viajar dentro de um mês para lá e arrumar uma casa. Elas escreveram que a melhor coisa que ele podia fazer, já que nem herdeiros tinha, era deixar a viuvez de lado e casar. Velho sozinho é o trem mais desinfeliz do mundo.
Letícia estava decidida e contente. Agora podia contar tudo que »e relacionava com a futura vida familiar.
— Dona Aristotelina é quase surda.
— Também com esse nome e com duzentos anos só podia ser surda mesmo. Agora me diga uma coisa, Letícia. Como é que você o chama mesmo?
— Umbé.
— Esse Umbé era mesmo viúvo.
— Três vezes sem choro nem vela.
— Danou-se.
Isolou com os dedos na madeira da cadeira de balanço. Riu gozadamente.
— Cuidado, cuidado.
O ambiente se tornara de tão bom humor que encorajava Letf cia a prosseguir.
— Olhe, seu Cleo. A coisa parece engraçada mas é séria mesmo As minhas futuras cunhadas só exigiram uma coisa. Aí o senhor pode rir o que quiser, mas eu vou aceitar a condição. O casamento tem que ser na igreja de véu e grinalda.
Suzi apertava a barriga para conter o riso. A vida tinha dessas coisas. Véu e grinalda. Ria a ponto de sair da cadeira e sentar-se no chão. Ria tanto que estremecia o chão e abalava os móveis.
Letícia também o acompanhava.
Quando conseguiram parar de rir e de chorar, de limpar os olhos e de assoar, foi que ela finalizou a história.
— Foi tudo combinadozinho, seu Cleo. Umbé pensa em tudo e apesar da idade tem uma cabeça segura. Ele vai dizer que eu trabalhei sempre como professora de interior. Por isso que preciso mudar o modo do penteado.
Agora Cleo passava a ver Letícia de outro modo. E de fato com o cabelo preso num coque, sem pintura e vestida mais sobriamente, poderia bem passar por uma professora já usada do sertão. Tudo muitíssimo bem bolado.
Refeito do riso e comedido nas palavras porque a história era séria e desejava de coração que tudo fosse dar certo.
— Escuta aqui, Letícia.
Com um carinho que ninguém podia imaginar, pegou o rosto da moça entre as mãos e beijou-o em ambas as faces.
— De coração, desejo tudo de melhor para você. Faça isso, minha filha. Garanta mesmo o seu futuro. Agüente as duas irmãs macróbias que é melhor do que viver uma vida que não se tolera mais. É melhor do que qualquer fuxico de cabaré.
Soltou-a e viu que ela estava com os doces olhos castanhos boiando nas lágrimas.
— Você merece mesmo. Nunca me deu um só aborrecimento durante todos os anos que ficou comigo.
Abriu-lhe a porta e com a voz até emocionada murmurou.
— Adeus Madame Dr. Umbelino Cristiano Generoso.
E ficou parado na porta acompanhando o vulto que descia a escada até vê-lo desaparecer.
— Ufa! Que calor dos infernos. Purgatório perto daqui deve ser sorvete ou picolé.
Caminhava escondendo os braços numa camisa de manga comprida. Um chapéu de abas grandes e de palha também caía-lhe sobre os óculos escuros de armação redonda e enorme.
Ia levantando a poeira da rua escaldante. Rua de duas horas da tarde bem debaixo do equador. O calor nesses dias tinha sido impiedoso. Uma canícula das maiores. Riu da palavra canícula. Era ridículo falar-se canícula. Tenha santa paciência meu São Cornélio dos Chifres Dourados. Canícula não é calor. Calor é uma coisa-macho-pra-burro. Canícula parece calor-bicha. Parece calor com sapatinhos de salto alto. Essa não. Sorriu e logo após ficava reclamando n'alma enquanto era forçado a caminhar.
Topou cruelmente com a realidade, com a finalidade da sua exaustiva caminhada. Fazia dois meses que Letícia partira para a sua caminhada. E agora já não achava tanta graça em pensar na moça tão boazinha se encaminhando para o altar vestida de noiva, de véu e de grinalda. Em compensação fazia seis meses que Chuva se fora. Precisava pelo menos, desde que Chuva era impossível, arrumar uma substituta para Letícia. Para tanto empreendia aquela jornada em pleno sol. Procuraria Ritinha Chupemba com quem mantinha distantes relações. Nem muito nem pouco amistosas. Uma vez aparecera por cordialidade em sua pensão e ficara com má impressão do relaxamento e sujeira. Um verdadeiro lixo. Entretanto vieram informações que Ritinha abrigava em suas hostes, uma mulher interessantíssima, que, pelo contado, não se encontrava satisfeita no lugar. E puta insatisfeita era a pior coisa do mundo. Melhor transferir, desguiar, indicar outro rumo. Quem sabe se não seria essa uma solução para melhorar as noites minguadas do cabaré? Ou se mexia procurando, ou o cabaré entrava no vinagre. A tartaruga ia para o lodo.
Pensamentos árduos que incomodavam tanto como o seu passeio forçado. Tão distraído se encontrava que nem ligou para as três buzinadas que soaram perto. Tratou de pegar mais o canto da estrada. Para sua surpresa um jipe parou a seu lado e a voz que surgiu tinha uma sonoridade amiga.
— Para onde vai debaixo de tanto sol, se mal lhe pergunte? Sorriu. À sua frente estava aquela beleza de rosto, de dentes, de
mocidade exultante do cabo Loló.
— Preciso dar um pulo na Ritinha Chupemba.
— Se quiser, monte aqui que eu levo você lá.
O coração sentiu um tremelique de esperanças e prazer. O diabo do cabo era lindo, tinha uns olhares declarativos, etc., etc. Mas nunca dava um jeito na hora H. Não ignorava que sua mulher era uma cearense daquelas de pegar queda-de-braço.
— Não comprometo?
— Por essas bandas, não tem perigo.
Subiu a seu lado no jipe, retirou os óculos, depois o chapéu, e abanou-se com suas abas largas.
— Chegou na hora. Esse sol nojento estava cansando a minha beleza. Então como vai a vida? A mulher, os filhos?
— Tudo na rotina de sempre.
— Não tem aparecido mais.
— Pobre de mim. Só posso chegar até sua casa se o sargento Bené me requisitar para uma escolta.
— E a última foi feia, não.
Estava se referindo à noite do quebra em que Chuva surgira quase nua naquela lindeza toda.
— Foi mesmo um horror.
Com o rabo do olho examinou o rosto do rapaz. Era bem moço e, sobretudo muito lindo. Mas o seu olhar não se desviava do caminho; quando muito para o espelhinho do veículo. Odiou que aquilo fosse um jipe e que os bancos se encontrassem tão afastados e com tanta porcaria no meio. Um tal de alavanca, de breque, sei o que mais. Não fora isso, assim como quem não quer dava uma aproximadinha. Mas controlou-se e disfarçou os seus projetos retomando a conversa.
— Mas já faz meses.
— Se faz. O diabo daquela Chuva Crioula era linda... Deu um fiu-fiu significativo.
— Pois é.
— Sumiu?
— Como o vento. Até hoje ninguém teve mais notícias dela.
— Mulher esquisita aquela. Esquisita e cara. A gente não sabia bem se ela era preta, mulata. Toda misturada. Tinha dentes lindos, nariz de branca, cabelos lisos como pouca mulher branca tem. Sei lá, mas era muito linda. Os olhos verdes. Aquele corpo, meu Deus.
Soltou um segundo fiu-fiu mais prolongado. Aquilo de certo modo irritava Suzi e mexia em seus brios. Fingindo um sorriso simpático comentou:
— Daqui a pouco aparece cachorro de todo lado.
— Nem vai dar tempo. O que é bom acaba logo.
Estaria se referindo à Chuva ou era um comentário simpático à sua pessoa.
— Pronto. Chegamos.
Ficou olhando Suzi nos olhos de um jeito que incomodava. Começou a saltar sem pressa nenhuma. Estendeu-lhe a mão graciosamente e convidou-o com charme.
— Apareça lá, coração. Apareça lá, uma tarde dessas.
Olhou o jipe perder-se na poeira. Só então se viu defronte à pintura amarela e agressiva do sobrado malcheiroso de Ritinha Chupemba.
Empurrou a porta e entrou. Subiu receoso os velhos degraus tendo o cuidado de contá-los, um por um, enquanto galgava a escada. Até o rangido denunciava velhice, sujeira e abandono, precisara ter muita coragem mesmo para pôr os pés ali pela segunda vez.
Esbaforido penetrou no que se poderia chamar de "hall". Fascinava-se com o mau gosto de tudo. Deveriam ter aberto o baú das coisas feias e despejado naquela casa. Naquela ante-sala as paredes estavam pregadas por quadros, cartazes, desenhos mal feitos e tudo por tudo era pornografia e sexo da forma mais despudorada possível. Que fossem figuras nuas vá lá! Mas aquelas coisas desproporcionadas, gordas, bundudas, chocavam quem tivesse o mínimo de apuro artístico. Penetrou no salão e as mesas ainda desarrumadas com sobras da noite passada continuavam na mesma. No fundo do salão, movido mais pela preguiça do que pelo calor, Ivonete, um garçom bicha de cabelos à última moda zulu esfregava uma vassoura. Ninguém sabia quem empurrava quem. Levantou o rosto espinhudo e sorriu. Suas sobrancelhas eram fininhas como rabo de lagartixa nova. Ainda por cima mal depiladas. Parou um instante apoiando-se com as duas mãos na vassoura.
— Quem é vivo sempre aparece.
— Pois é, boneca. E olhe que não me sinto muito vivo não. A caminhada e o sol quase me derreteram.
Riram-se. Porque Suzi quando precisava demonstrar simpatia, ninguém lhe passava as pernas.
— Ritinha está?
— Sente-se que vou falar com ela.
Nem teve tempo de abanar-se com o chapéu porque Ivonete já estava voltando e conduzia-o ao escritório.
No íntimo Suzi fazia um esforço danado para não demonstrar o nojo que aquela pocilga lhe proporcionava. O nojo vinha de tudo. Do cheiro azedo de suor grudado até nas cortinas. Do abafado exalando a mofo. E aquilo tudo ainda se misturando aos cigarros velhos esquecidos nos pires e cinzeiros desbeiçados. "Ser puta já é o diabo. Mas ser puta e suja, dá raiva". O coração segredou: "Controle-se, Suzi, não vá bancar a vaca agora e estragar tudo. Nunca se sabe quando se está junto de uma coisa boa que pode vir".
Ritinha reinava.
Vestia um "pegnoir" que além de velho, manchado, era amarelo. Os cabelos mal tingidos de acaju mostravam riscas esbranquiçadas nas raízes. O rosto inchado se ampliava mais porque as orelhas se empapuçavam suarentas. O decote soltava os seios imensos que pareciam cabaços d'água. Tinha impressão que a qualquer movimento ouviria o líquido sacolejar lá dentro. Fumava corno sempre fizera, uma cigarrilha Talvis. Aquilo conseguia a custo de grandes sacrifícios e a peso de ouro nas cidades mais distantes. Os dedos roliços ostentavam nas juntas nodosas anéis de pedras grandes e baratas. Ritinha gostava daquilo. De ornamentos. Durante a noite, maquilava-se forte. Principalmente nos lábios carnosos e nos olhos, para disfarçar as olheiras. Só se trajava de roupas berrantes, partindo do vermelho-aceso ao amarelo mais extravagante. Quem a visse à luz dos lampiões, com montes de colares, dedos reluzentes de pedrarias, brincos espaventosos, broches descomunais, pulseiras gigantes... Quem a visse assim coruscante, pensaria estar diante de um altar-mor com todos os seus aparatos.
Entretanto nada daquilo transparecia na cordialidade de Suzi. Nem por sombra, irritar Ritinha Chupemba, porque sua língua conservava com orgulho a fama de maior desbocação da paróquia.
— Sente-se, queridinha. Quer tomar uma limonada? Um refresco vai melhor porque cerveja sem gelo numa hora dessas envenena qualquer cristão.
— Você ainda não conseguiu ligar luz na sua casa?
— Conseguir? Quem sou eu? O diabo desses porcarias todos tem uma prevenção danada contra mim. O maior desfolosamento foi a pô da geladeira a "criosene" ter pecado. Quer?
Pensou nos copos imundos, nas mãos encardidas de Ivonete, mas aceitou.
Ritinha bateu palmas e berrou pelo garçom.
— Óie, sua bicha, capriche bem numa limonada, viu?
Os aguçados ouvidos de Suzi esperavam ouvir o ruído d'água que imaginara, mas nada aconteceu. Apenas o decote abriu-se mais e na pele rançosa de Ritinha surgiram grandes sinais. E bem abaixo, quase na barriga, pêlos longos, louros e enroscados. Como se fosse um homem. Ela nem se importava. Estava em sua casa e pronto.
— Sabe por que a procuro, Ritinha? Retirou a cigarrilha.
— Adivinho. Veio por causa da mulher.
— Exato. Isso mesmo.
— Olhe, rapaz, o negócio é o seguinte. Não é mulher pra minha pensão, não. Fica refugando freguês e isso na minha casa não admito não. Se queixa de tudo. Da comida, do quarto, do calor. Uma chata. Talvez que no seu cabaré que tem freqüência melhor que aqui, ela se dê bem.
— É bonita?
Tragou demoradamente. Suzi pensou que aquela mulher estava também apodrecida por dentro. Tragar fumo daquele tabaco era loucura.
— É bonita sim. Bonita mesmo. Você vai ver. Os olhos veludosos. Um cabelo que é uma lindeza de preto. Todo de ondas largas. O corpo muito cuidado e muito alvo. Se você fizer um "show" com ela meio nua, como sabe fazer, vai encher sua casa. Isso vai. Mas comigo não dá. Minha freguesia é mais pobre e modesta.
— Você tem contrato com ela?
— Nem dá. Aliás, com a frescura dela de não dormir com quem não agrada, já está me devendo uns bons par de dias.
— E como você quer fazer?
— Você me indeniza. Vê primeiro a mulher, e se gostar, leva. Luxúria comigo não dá mesmo.
— Donde ela veio?
— E eu sei. Mulher sendo desempesteada e limpa, nem precisa me contar o seu a-bê-cê. Mas o que é estranho, pelo pouco que resolveu dizer, não que eu perguntasse nada, essa nasceu mesmo pra ser meretriz.
— Como assim?
— Porque no geral, quando uma mulher cai na vida foi porque aconteceu um engano, uma desgraça, uma miséria qualquer. Essa não. É de família boa, estava casada com um coronel ainda moço e bem postado na vida. Aí deu a coisa, — diz ela — aquela vontade louca de ser puta. Um dia não agüentou. Para ajudar sua vontade nunca teve nenhum filho.
Ivonete apareceu com uma bandeja e a limonada.
— Foi pedir emprestado limão na casa da morte?
— Não, Dona Ritinha, é que faltou e eu fui na venda do seu Ornavino.
— Tá bem. Agora vai lá no quarto da Miss e diga que chegou a pessoa e que se arrume que vamos lá num pisco.
Ivonete retirou-se feliz. Estava dando o seu showzinho para a visita.
— Não posso passar sem essa coisa. Só que tem um defeito: vive inventando motivo para dar um pulo na venda de seu Ornavino. Perde a cabeça quando vê o filho do homem. E se visse que porcaria desengonçada que ele é! Vamos.
Ergueu-se bufante e apertou de qualquer maneira o "pegnoir" esbagaçado.
Saíram no corredor. Movimentaram-se até o fim.
— O último quarto, o da madame, é o mais ventilado de todos Nessa hora o gado está todo descansando.
Ritinha parou de supetão, quase provocando uma colisão.
— Tem uma coisa que eu não contei. Aqui não faz efeito, mas lá em sua casa você vai saber tirar partido. Ela usa uma coisa de um modo que eu nunca vi na minha vida de puta velha. Vou falar no teu ouvido porque não quero encrenca.
O odor acre de Ritinha Chupemba aumentou mais quando aproximou o seu corpo e o seu rosto. Cochichou ao seu ouvido. Os olhos de Suzi iam-se arredondando maravilhados.
— Já ouviu falar disso?
— Nunca na minha vida.
— Pois você vai ver.
Bateram os anéis e os dedos de Ritinha na porta. Uma voz preguiçosa e morna mandou que entrassem.
Realmente era uma bela mulher. Deveria ter casado muito cedo.
Sentaram-se os três e Suzi fez o convite. Mesmo que não quisesse aceitar, só ao saber que teria um quarto arejado e com um banheiro, com uma ducha bem friinha, se decidiu.
Tudo aceito, foi Ritinha Chupemba quem pediu:
— Não custa você mostrar o seu detalhe, custa?
Ela riu e foi abrir a janela para entrar mais luz. Para que se enxergasse melhor.
Afastou-se e deixou a roupa cair no chão. De costas o corpo era lindo, lindo mesmo. As nádegas duras e ensombradas. A espinha reta e os ombros mostrados pelos cabelos suspensos completavam a harmonia do conjunto. A pele tinha um brancor divino. As coxas juntas e fortes eram sustentadas por pernas bem torneadas e um pouco mais escurecidas que o resto.
Suzi pela prática adivinhava como eram os seios e até o bico róseo-pálido deles. O que queria era ver depressa o detalhe.
E não custou muito. Com graça encantadora virou-se sorrindo. Os olhos de Suzi fixaram-se ali. Perdera até a fala. Nunca vira isso. E como ornava bem naquele corpo lindamente branco.
— Viu?
Suzi gargalhou como há muito tempo não fazia.
— Mas é uma lindeza. Pena que homem não possa usar dessa forma.
— Que tal?
— Feito. Mais que feito. Amanhã mesmo ela já pode ir. A voz morna e sensual comentou.
- Se é mesmo pra ir, prefiro ir hoje mesmo quando a noite aparecer.
Ritinha concordou. Sentia-se feliz por se livrar daquele abacaxi. E sabia que ele estava tão alegre que nem botou barganha no preço que pedira.
A mulher vestiu-se devagar.
Suzi dela se aproximou.
— Olhe, minha filha, você vai ser um sucesso. Pode crer. Eu não sei que nome tem ou que nome você usa. Mas acho que arranjei um nome de guerra para você.
— Vai agradar?
— Não tem outro.
E fazendo uma voz teatral exclamou ciente da vitória:
MARIA... MARIA BEGÔNIA.
SEGUNDO CAPÍTULO
O Preço de uma Saudade: Apenas uma Canoa
DANIEL VOLTARA COM o BARCO CARREGADO. Sorria numa felicidade incontrolável.
Custara-lhe aceitar a proposta de Esmeralda. Mas quando ela queria uma coisa, era melhor ceder logo para economizar tempo. Afinal tudo fora a título de empréstimo e se por acaso quisesse mesmo ir embora poderia levar o que desejasse. Com a colheita, com o resultado do plantio, pagaria, aos pedaços e devagar.
Na véspera fizeram centenas de cálculos e planos. Tudo num caderno velho, anotando e riscando o que julgavam desperdício.
Com a vinda de Esmeralda seu rancho parecia outro. Tudo era zelado, limpo e consertado. Até uma horta conseguira fazer. Dizia que na sua terra era assim que se podia livrar das formigas. Nunca pensara em algo semelhante. Uma horta suspensa. E que trabalho que dera tudo aquilo. Depois o milagre se fez. Tomates não muito grandes, enfeitando com o seu vermelho. E tinha mais. Onde Esmeralda colocava as mãos, as coisas nasciam. Diferente dele. Também ela fora criada naquele ambiente. Estava de mãos dadas com todo o segredo da selva. Uma certa pena sempre aparecia em seu peito ao lembrar-se que ela falara em ir-se embora após um ano. O rancho, tudo, até ele, iriam sentir a sua ausência. Melhor seria deixar de lado essa idéia. Ainda havia muitos dias pelo horizonte.
Aportou ao entardecer. Estavam ricos. Tinham de tudo. Sortimento simples é verdade. Feijão, arroz, muita farinha, uma manta de jabá. Até o luxo de algumas latas de sardinha.
Gostaria de ver a alegria da moça desembrulhando tudo. Exclamando e sorrindo por qualquer motivo. E quando visse que conseguira comprar até uma espingarda vinte-e-dois, bateria palmas de alegria. Também ali naquela região uma arma custava os olhos da morte.
Quando ela chegou alegre junto da canoa, observou amedrontada.
— Mas você está louco! Encheu a canoa demais. Um banzeiro mais forte e virava tudo n'água.
— Bem, dessa vez, não houve banzeiro.
— Descanse um pouco e a gente já vai levando essa trenteira toda.
- Tem uma surpresa para você.
_- Onde?
__ Descubra aquele saco perto do jacumã.
picou indecisa em suspender a sacaria de juta.
_- Não é brincadeira, não, Daniel?
— Não. Eu não faria isso com você. Pode ver.
Mesmo assim relutava um pouco e com mil precauções e pontas de dedo suspendeu o saco.
Abaixou-se comovida e pegou o cachorrinho novo entre os braços. Olhou o focinho e pôs-se a afagá-lo todo.
— Sabia que você ia gostar. Vai servir de companhia pra gente.
— Como é que você conseguiu?
Não ignorava que por ali ninguém gostava de dar um bichinho lindo daqueles. Mesmo quando os vendiam, faziam com pena e reclamando.
— Ganhei. Como a compra que fiz foi grande, o homem me levou nos fundos e mandou escolher. Peguei esse mais escurinho porque deve sujar menos. Por falar nisso, trouxe muitas barras de sabão.
Botou o bichinho desperto no chão e ele cercava-a alisando-se em suas pernas.
— Agora vou ajudar você a levar os trens.
— Não precisa.
— Por que não? Você está cansado.
— Rio descendo não cansa nada. Depois, eu estava tão ansioso para chegar que nem senti as remadas.
— Em seis viagens a gente leva tudo.
Vergaram-se sob o peso das compras e caminharam sem pressa.
— Daniel?
— O que é?
— Que nome ele vai ter?
— Você vai arranjar um muito bonito. Eu não tenho prática disso. Nunca tive um bicho qualquer.
— Cachorro pra ser bom tem que ter nome de peixe.
— É assim?
— É. Não sei. Tinha vontade de botar o nome dele de Piranha.
— É bonito. Mas piranha não é nome de fêmea?
— É não. Quem vai lá saber quando Piranha é homem ou é mulher.
Calaram-se, porque o pouco da subida e o peso do material fazia-se sentir. E não havia mais dúvida de que o cão se chamaria Piranha mesmo.
Penetraram no rancho e foram levando tudo para a cozinha. Foi a vez de Daniel perguntar meio sem jeito.
— Esmeralda, você sabe mexer com arma de fogo?
— Facinho, facinho.
— Porque o homem me explicou, mostrou as balas, mas garanto que não aprendi muito.
— Fique certo que sei de tudo. Não tem mistério nenhum.
— Enquanto você arruma as coisas, vou buscando mais no porto — Sabe de mais uma coisa, Daniel?
Virou-se antes de se encaminhar ao porto.
— Com essa vinte-e-dois a gente vai melhorar e muito a nossa comida. Carne de queixada, lombo de capivara, mutum, jacobiru. Vai sê uma festa.
Sorriu e foi buscar o resto dos trens.
De noite conversaram. O que estava causando uma excitação incomum. Analisavam a todo instante o que possuíam. Faziam cálculos o tempo que duraria o grosso da compra.
Na sua rede, Esmeralda agasalhava o sono de Piranha. Soltou um suspiro prolongado.
— Que foi?
— 'Tava pensando. A vida até que é muito boa, a gente é que não está na altura dela.
Daniel riu deliciado.
— Você agora até que já deu para filosofar.
— Sempre pensei assim. Garanto. Balançou a rede mais fortemente.
— Daniel, você já notou? O ano está pra se acabar.
— Ainda falta muito tempo. Por quê? Está pensando mesmo ir embora?
— Sabe que nem quero pensar nisso. Fujo, espanto esse pensamento quando vem. Já reparou que a época passou e tracajá não desceu postura?
— É verdade. Já tinha prestado atenção.
— Nem as castanheiras deram mostra de querer florir. Nem os piquizeiros. Nem mesmo as árvores das mangabas. Está tudo lisinho, lisinho.
— Devem ter atrasado. Mas quando chegar a hora tudo aparece por sua vez.
— Talvez por que a chuva se esqueceu de chover. Olhe que faz tempo que a gente não tem uma boa chuvada.
— Quando uma coisa atrasa, as outras acompanham. Deve ser isso. Quando menos se espera, qualquer madrugada dessas a gente acorda com o barulho de uma chuvarada batendo na palha do rancho.
— Está-me dando sono.
- Durma em paz. E o cachorrinho?
- Esse já dormiu faz tempo.
Calaram-se.
Tinham coado café e acompanhavam-no com um frito de ovos. Estava tão cheiroso que quem passasse longe aspiraria o ar com desejos. Piranha na porta olhava a vida lá fora, acostumando-se com tudo no ambiente que tinha para viver de agora em diante. Súbito recuou assustado e se embarafustou nas pernas de Esmeralda.
— Que é isso? Está vendo alguma coisa?
Dirigiu-se à porta e observou o mato em volta e o caminho do porto. Nada. Mas uma pequena intranqüilidade incomodava-lhe o coração.
— Não foi nada. Ele é novinho e se assusta com qualquer movimento.
Daniel se preparava para sair. Apanhou o facão, trançou a espingarda no ombro e colocou o chapéu de palha sobre os cabelos.
— Enquanto você lava as coisas, eu vou andando na frente.
O cachorrinho acompanhou-o até à porta e logo recuou ganindo fino, sem prática.
— Deixe disso bobinho, ele vai agora, mas eu levo você comigo quando for.
O peito do bicho mostrava o coração batendo forte e agitado. Nem precisou pesquisar a causa de tudo porque um vulto estava parado na porta.
Dessa vez foi o seu coração que deu um salto. Com um pé avançado, Palusaio sorria.
— Que é que você quer?
— "Tá morando aqui, Chuva, 'tá?
Precisava acalmar-se, concatenar as idéias e inventar uma mentira qualquer. Preferia tudo na vida, mas não a presença daquela infeliz em seu rancho.
— Não. Estou só passeando. Amanhã vou embora pra longe.
— Sei.
Na sua pequena inteligência perguntava-se: Será que seu Cleo ainda dá o dinheiro da canoa e as fazendas?
— Chuva me dê uma caneca de café. Você estava tomando. Estou com fome.
Seus olhos avançavam pela casa analisando tudo.
— Não tem café.
— Na cozinha tem sim. Eu sinto.
Não adiantava discutir. Precisava agora comprar o silêncio da mulher.
— Como é que você veio parar aqui?
— Seu Cleo me manda pescar todo dia. Olhe. Puxou uma vara de pesca e mostrou-lhe.
— O rio lá em cima está bastante seco. Então a gente sai procurando lagoa, igarapé, tudo. Vai me dar café, Chuva? Eu estou andando desde de noite. Estou com fome.
— Venha. Sente-se ali.
Palusaio vestia-se andrajosamente. As costas estavam quase à mostra pelos rasgados e a saia comprida se encontrava esfarrapada em qualquer canto que observasse.
Despejou café numa caneca e o resto de frito da frigideira foi atirado no prato que usara antes. Tentava apressadamente esconder que ali haviam comido duas pessoas. Não foi suficientemente ligeira. Porque a índia sorria para ela.
— Está muito gostoso.
— Está, eu sei.
— Você casou, Chuva?
— Não pergunte tanto. Coma que é melhor.
Precisava escolher as respostas, mas o desânimo parecia devorá-la inteiramente.
— Acabei, Chuva. Você casou?
— Que casou coisa nenhuma. Imagine se gente como eu vai lá casar.
— E aquele homem que saiu daqui?
— É meu tio.
— Mas é muito moço.
— Como é que você sabe?
— Eu já vi ele sem chapéu.
A ordinária estivera então observando antes. E só se aproximara depois de se convencer de tudo.
— Escute, Palusaio. Por que você veio até aqui?
— Por nada, não. Foi só procurando peixe. Você quer que conte a seu Cleo que vi você?
Balançou os ombros indiferente.
— Tanto faz. Faz tanto tempo que ele nem vai querer saber de mim.
— É sim. Levantou-se.
— Vou já. Se o sol esquentar, peixe fica difícil em lagoa. Você sabe.
Esmeralda estava perdida. Palusaio escondia a verdade de tudo. Certamente fora mandada por Suzi. Bicha imunda. Puto. Era assim que ele não gostava que o chamassem.
Andou ligeiro e atravessou-se na porta impedindo que a índia saísse.
— Escute aqui, Palusaio. Melhor a gente conversar direito. Aquele meu tio é da Polícia. E se eu contar que você matou seu filho, vai ser ruim pra você.
Um momento de medo traduziu-se no leve tremor dos seus lábios.
— Portanto, acho melhor a gente fazer um trato. Você volta, mas não conta nada pra ninguém. Assim cada vez que você vier eu lhe dou um dinheirinho. Você está muito mal vestida. De vez em quando a gente lhe dá uma blusa. Que é que você diz?
— Cadê o dinheiro?
Esmeralda tirou uma chave do pescoço abriu a mala e voltou com cinco cédulas de dez.
— É pouco.
— Pouco? Cinqüenta mil?
— É sim. Me dê mais. Eu sou muito pobre, Chuva. Não deveria regatear. Atendeu à sua exigência.
— E a blusa?
Apanhou uma qualquer, meio amassada. Quase nunca a usava. Preferia vestir-se com camisas de homem de mangas compridas para evitar os mosquitos na roça.
— Agora, sim, Palusaio vai.
Saiu com vagar e logo mais perdia-se no mato.
Esmeralda sentou-se desanimada. Seria possível, meu Deus? Estava tudo tão bom, tão calmo, tão puro, em sua vida e agora aquela peste saltava aos seus olhos como um fantasma assustador.
Fechou a casa. Colocou o chapéu e saiu empunhando em uma das mãos o cabaço d'água e na outra o cachorrinho. Tentava sentir no contacto do bichinho, um calor esperançoso para a sua alma desmaiada.
Durante todo o trajeto imaginava mil planos, mas nada conseguia garantir-lhe que eles dariam certo.
Na entrada da roça relanceou a vista para descobrir Daniel debruçado no plantio.
Ele estava em pé, repousando no cabo da enxada, e olhava em sua direção como se a esperasse com ansiedade.
Encontraram-se na sombra do jatobá onde descansava a espingarda vinte-e-dois. Sentaram-se num tronco sem nada dizer. Pareciam contaminados pelo mesmo desespero.
— Daniel, você viu a índia?
— Vi. Não podia avisá-la. Apressei o passo enfiando mais o chapéu sobre os olhos para que não me visse.
— Não adianta. Ela viu tudo. Hoje não foi a primeira vez. Rondou bastante antes de se aproximar. A infeliz trabalha lá no cabaré Vou até beber um gole d'água para diminuir a minha agonia.
Limpando a boca na mão continuou.
— Aquela índia tem uma história horrível em sua vida. Para sua surpresa, Daniel sorriu.
— Eu sei. Aquela mulher matou um filho que era doidinho enterrando-o vivo.
Esmeralda assustou-se a ponto de apertar os seios com as mãos.
— Como é que você sabe disso?
— Muito simples. Quando decidi abandonar a batina, me foram oferecidas diversas oportunidades. O bispo fez de tudo para que não levasse avante o meu projeto e decisão. Passei então vários meses viajando entre aldeias de índio. Guardavam então a esperança de que eu me interessasse por algum lugar e me tornasse um agregado às missões. Eu estava no Posto do Serviço como hóspede quando aconteceu aquilo. Você acha que ela me viu?
— Se você de raspão reconheceu... quanto mais ela que andou espiando muitos dias...
— Então ela sabe que eu sou aquele padre.
— Daniel, que foi que você sentiu quando soube do filho enterrado?
— Na verdade, apenas fiquei muito triste. Eles têm o modo de ver as coisas diferentes da gente. Judiavam demais da pobre. Mulher que tem filho sem marido precisa matar a criança logo que nasça. É lei. Uma triste lei.
— Dá até arrepio.
Voltava aos seus pensamentos distantes. Disfarçadamente olhou as mãos calejadas e sentiu um frio como se um rastro de sangue estivesse brotando entre cada dedo.
Desde que Chuva partira, fazia muitos meses que Suzi não se sentia tão bem assim. Enquanto examinava tudo, tagarelava como nos velhos tempos. Tuta, abanando-se com uma ventarola de palha de buriti, até se admirava da transformação. Todos os detalhes do "show" estavam sendo armados. Não iria imitar a entrada de Chuva. Maria Begônia estaria parada no tablado como se fosse uma estátua transparente. Os braços suspensos e as coxas, entreabertas para que se avistasse bem no diáfano da sua túnica branca, o motivo que iria transtornar os homens. Satisfeita da sua obra, Suzi, mandou fechar todas as janelas do cabaré para que a penumbra já fizesse uma antecipação, um "traileur", da sua criatividade. Ninguém sabia ali, mas quando Marlene Dietrich fez uma apresentação em São Paulo, também colocava um ventilador para que o vestido branco se colasse no corpo inteiramente desnudo, isto é, sem nada embaixo do grande vestido branco. E fora aquela glória. Era só colocar os três lampiões Petromax na altura dos quadris e ligar o ventilador de pilhas. Ufal que para arranjar aquilo pagara uma boa gaita a Ritinha Chupemba. Até aquilo, tanto sacrifício para que o "show" abafasse e as noitadas do cabaré retornassem às noites de encantamento.
Quando acabou, sentou-se numa banqueta ao lado e limpou o suor que molhava o seu rosto e escorria pelo corpo. Agora um bom banho e esperar a noite. O seu bom humor persistia.
— Pronto, pode parar. Begônia, você está uma verdadeira maravilha.
Ela riu.
— Então posso ir tomar um banho e retirar os trajes.
— Pode, querida. Mas cuidado para não amassar os "plisses" da túnica.
Acompanhou o andar elegante de Maria Begônia até que saísse do palco. Era de fato uma bela mulher. Podia até não ser uma maravilhosa criatura. Em São Paulo, no Rio, muitas mulheres como ela se tornavam um espetáculo comum. Mas ali naquelas brenhas, naquela carência de beleza e graça, Begônia se ampliava no cenário.
Apagaram as luzes e o cabaré persistiu fechado. Ficara sem vontade de levantar-se. Descansava a vista e relaxava os músculos.
— Seu Cleo!
Virou-se, preguiçosamente. Reconhecia a voz baixinha de Palusaio. Encontrava-se mesmo de bom humor.
— Que é Cereja do Amor Divino?
— Preciso falar grande com senhor.
— Que é que impede?
A mulher arregaçou a saia e ficou de cócoras.
— De vera que o senhor ainda está interessado em saber de Chuva?
Felizmente a semi-escuridão não traía todo o palor aparecido em seu rosto. O coração que dizem que não dói, doeu.
— Que foi que você falou?
— Se o senhor ainda dá as canoas e os cortes de fazendas?... Silenciou um pouco, pensando com calma.
— Já faz muito tempo, não?
— O senhor prometeu, se lembra?
— 'Tá certo. Você viu Chuva?
Não ignorava que a índia não iria sem mais nem menos contar o segredo da sua descoberta, mas alguma coisa poderia falar Uma fisgada de saudade mordiscou-lhe as lembranças?
— Só respondo se o senhor prometer.
— Como é que vou saber se você falou a verdade?
— Estou falando. Se o senhor não quer, tem muita gente que quer saber. Até seu Gilberto vai gostar...
— Naquele tempo que eu prometi, eu gostaria de ir atrás dela e pedir que ela voltasse, você compreende, Palusaio? Agora, você mesmo acabou de presenciar o que estou fazendo. O cabaré não daria para duas mulheres como Chuva e Maria Begônia.
Calaram-se e a índia parecia decepcionada.
— Vamos combinar uma coisa. De qualquer jeito eu lhe dou uma canoa de presente. Você só me conta como ela está. Depois, se houver outra pessoa interessada você conta tudo.
Não havia resposta.
— Ora, pelo menos você ganha uma canoa. E uma canoa ninguém vai ganhando assim a qualquer hora.
— O senhor dá mesmo a canoa?
— Amanhã, se você quiser.
— Pois, bem. Eu vi Chuva. Não digo onde.
— Certo. E como ela está? Doente?
— Não.
— Magra?
— Não. Só que mais queimada de sol.
— Muito bonita ainda?
— Muito. Parece até que olho dela cresceu.
A saudade aumentou ainda mais. Chuva, Chuva. Nem mesmo Maria Begônia tomou conta do seu quarto, Chuva!
— Posso saber o que ela faz?
— Pode. É muito pra uma canoa só.
— Bandida! Que custa dizer isso? Eu já disse que não vou atrás dela. Já disse que Chuva Crioula foi embora, e não me interessa mais...
— Ela casou.
Aí o coração sobressaltou-se mesmo.
— Casou mesmo?
— Casou com um padre.
Suzi ergueu-se de um pulo. Tinha vontade de estrangular o gogó daquela miserável. Mas era só vontade, nunca que iria ter força pra tanto e ficaria com os dedos muito doloridos depois.
— Com um padre? Ora, você está mentindo.
— Estou não. É um padre sim.
— Mas ele usa batina, aquela saia preta?
— Não. Então como é que você sabe que é padre?
— Porque eu sei. Ele andou de padre muito tempo pelas aldeias de índios da minha terra.
Perdeu até a vontade de perguntar mais tal a violência da notícia. Até a certeza do sucesso da noite que viria, se transformou num gosto vazio na boca. Chuva! Estavam nas vésperas do Natal. E não sabia onde, casada com um padre. Os olhos se molharam. Mas se ela era feliz, pouco importava com quem ou perto de quem. No momento desejava apenas segurar em suas duas mãos e perguntar se realmente se encontrava feliz.
— Não diz mais nada?
— Não. Está bem. Não pretendo saber de mais nada.
— E amanhã? Você me dá a canoa?
— Vamos lá no meu escritório.
Sentiu-se acompanhado, abriu a porta do quarto e foi direto ao cofre.
Mexeu na combinação e os gonzos rangeram impertinentes. Lá dentro também existia um pacote de dinheiro de Chuva. Sorriu. Ela sempre gostava de guardar um pouco em seu quarto. Na pressa da partida deixara de retirar sua pequena fortuna. Um dia receberia tudo aquilo.
Entregou o dinheiro à índia e notou nela um fenômeno raro. Suas mãos tremiam.
— Só isso?
— Dá e sobra para uma canoa grande.
Ia impacientar-se porque a índia permanecia parada no mesmo canto.
— Não dou mais, já disse.
— Não é isso. Se Tuta sabe que eu contei me mata.
— Está bem. Ela não vai saber de nada. Pode ir.
Olhava a mulher caminhando em seus passos miúdos e ficava a se perguntar incrédulo. Será que todas as pessoas que viviam precisavam mesmo ter nascido? Se assim acontecesse, por que, que significado teria aquela vida, aquela índia tão miserável, onde o tempo impiedosamente e rápido devorava o seu corpo e dentro de dois anos se tanto, estaria se transformando em velhice triste e precoce.
Fechou o cofre sempre olhando o dinheiro de Chuva. Ali também guardava as jóias e a importância enviada por Doca.
Tuta impressionava-se com o abatimento de Suzi. Não parecia o mesmo homem de horas passadas. Os olhos estavam tumefactos de tanto que chorara.
— Mas que é isso?
— Nada.
Baixara a vista para a cama de Tuta e não conseguia desviá-la da vitrolinha e dos discos já preparados para entrar em função. Dali seriam levados até a beira do tablado. Como nos tempos passados.
— Mas nem fez a barba. Nem se banhou. O que foi?
— Nada, Tuta. Nada mesmo.
Só então notou a grande solidão do rapaz. Não tinha com quem falar e precisava falar. Uma pessoa não podia alcançar aquele estado de desespero e engolir tudo para si. Por isso viera procurá-la. Dava dó tamanho abandono.
— Mas precisa. Precisa ficar bem alinhado para assistir ao sucesso dessa noite. Vai ser tudo tão bonito e alegre como antigamente.
— Acredito.
E os olhos continuavam pregados na vitrolinha. Falava sem se virar.
— Logo, logo, a gente vai chegar no Natal.
Por que falava em Natal num momento desses?
— Depois, vem o Carnaval, não é?
— É sim. Sempre foi assim.
Sorriu com paciência porque aquelas datas não tinham significado nenhum para ela. Talvez o de lembrar-se um pouco mais da filha e do neto que crescera mais um ano.
— Logo depois vem a Semana Santa, a Páscoa.
Tocava não responder e aguardar até onde ele queria chegar.
— Pois é. Na Semana Santa faz um ano que Chuva foi-se embora.
Se não desviou os olhos da vitrolinha, também não recomeçou a chorar.
Aquela conversa estranha aumentava a sua capacidade de suar. Levantou-se do tamborete reforçado e apanhou a ventarola em cima da cômoda. Sentia que o corpo refrescara com o banho recém-tomado. E preferia suar mesmo quando fosse necessário naquele calorzão do cabaré.
— Tuta.
— Que foi?
Meu Deus, dava agonia aquele homem naquela posição de louco, falando sem se mexer, espiando não sei de que misterioso que havia na sua vitrolinha.
— Tuta, eu reconheço que fui um sujeito muito chato para você antigamente. Mas agora, tentei sempre melhorar. Acredito até que você seja minha amiga e me queira um certo bem.
— Quero mesmo, seu Cleo. O que passou morreu longe nas águas do rio.
— Por ser seu amigo é que vou lhe perguntar uma coisa. Dou-lhe minha palavra de honra que só quero saber isso. Sabendo, morrerá comigo.
O gordo coração de Tuta inquietou-se.
— Se puder lhe ajudo.
— Hoje eu soube de Chuva.
Parou até a respiração. Esperou em silêncio.
— É verdade. Eu soube dela. Não lhe direi como, mas soube. Me disseram que ela está casada com um padre.
Só então deixou de espiar a cama e olhou-a implorando.
— Só queria saber isso. Se você conhece a verdade e pode me contar...
Tuta torceu as mãos num movimento desesperado.
— Juro que o que me disser morrerá comigo. Não podia negar-se àquele apelo.
— É verdade, sim. Chuva vive com um padre que deixou a batina.
— Está bem. Era tudo que eu queria saber. Nada mais que o que acabo de ouvir. Obrigado. Deus lhe pague.
Tencionava sair.
— Espere aí, seu Cleo. Não fique assim numa noite dessas. O senhor vai fazer a barba, se vestir bonito, não vai?
— Creio que não. Vou ouvir o barulho do meu quarto. Hoje, não. Não dá. Está tudo bem preparado. Você depois me conta tudo. Amanhã quando essa tristeza for embora, eu vou ver o resultado do nosso trabalho.
— E não vai comer nada?
— Tem compota de cupu no meu quarto. Até amanhã.
No escuro do seu quarto ouviria as palmas e os assovios de aplausos. Seria a noite de Maria Begônia. Talvez a sua grande noite. Mas de olhos fechados ele estaria enxergando o biombo de palha trançada. As mãos escuras de Chuva puxando com suas jóias quase toda a nudez do corpo. E as vozes continuariam loucas perguntando.
— Por que você é Chuva Crioula?
E todo o seu corpo respondendo. Os olhos verdes de selva acompanhando a lindeza da sua voz.
— Eu sou a Chuva da Noite.
TERCEIRO CAPÍTULO
As Sete Pragas da Maldade
A COISA PEGOU FOGO QUANDO o Juiz Percival Polidênio Parnoplona chegou em casa suarento, tomou um banho de chuveiro demorado, sentou-se enrolado na toalha no terraço dos fundos e ficou espiando o pôr do Sol.
Até aí, nada. Os olhos muito azuis, a pele branca, leitosa, onde as veias no braço desenhavam riachos na sua total magreza. Os cabelos louros se transformando em brancos nas ondas muito largas. Era tão magro que as costelas davam a impressão de uma harpa abandonada.
D. Louise apareceu para sondar aquela extravagância.
— Está sentindo alguma coisa?
Mexeu com o dedo magro e comprido de um lado para outro, como se fosse um maestro regendo uma velha ópera.
Sempre evitava falar muito. Bastava os momentos de trabalho e obrigação onde todo o mundo ficava de olho duro em suas frases. No momento em que trocava o P pelo F. Por mais que cobrisse os lábios leporinos com os longos bigodes, não evitava que o seu defeito se manifestasse. Muita gente se habituara ao seu modo de falar. Mas fazia anos que ninguém pronunciava o seu nome com a imponência e tradição que tanto merecia. Gente mais humilde pensava mesmo que se chamava Fercival Folidenio Fanflona. Afinal havia coisas piores e menos edificantes na caprichosa vida.
Não gostava das modas atuais e apesar do contínuo calor da região trajava-se com uma elegância barroca que ampliava ainda mais seu vulto delicado e frágil.
— Quer alguma coisa?
O dedo metrônomo funcionou de novo.
— Homem de Deus desembuche. Quando você dá pra ficar nesse silêncio é que tem coisa por aí.
Decidiu-se afinal e movimentou os ombros.
— Hoje não janto em casa. Vamos comemorar na casa de Faulo Fefino. Vamos jogar uma fartida de truco.
— Mas comemorar o quê?
— Uma coisa farticular sua. Sei que vai haver um fato com tucufi. O frato forte da família.
Até aí, nada. Louise concordou. Afinal era uma coisa de homens, uma reunião sadia. Com algumas piadas, na certa. Uma pequena fes tinha como também ela costumava oferecer em sua casa, duas vezes por semana. Além da reunião das Senhoras de Caridade.
Todavia...To-da-vi-a no dia seguinte Poli repetiu a dose. Com o calor atuante, com a chuva que não vinha para refrescar um pouco, tornava-se gostoso os amigos se juntarem para um joguinho barato e sem malícia. Mesmo porque a mornidez da noite não permitia o sono antes das onze horas.
Aí D. Louise se encafifou. Tinha dente-de-coelho. Havia coisa no bozó.
— Você podia também convidar para que o joguinho fosse uma noite dessas aqui em casa. Não fazia mal.
— Ora, querida. Você não fode comfreender uma coisa dessas. Você que tem tanto cuidado com os seus tafetes, os seus móveis. Iriam sujar tudo.
— Ora, por isso não. A gente dá um jeito no alpendre. Oferece um bom dum açaí...
— Duvido. Todos sabem como você é exigente. Defois, iriam abusar da bebida... acabariam ferdendo a comfostura.
— Mas eu falei que oferecia um bom açaí.
— 'Tá vendo? Já não se sentiriam à vontade. Muitos gostam de rabo-de-galo, de uma finguinha. É a tal coisa. A gente custa a descobrir uma diversão que é tão rara. E lá vem você com suas desconfianças de semfre.
Resolveu concordar, mas que não estava contente não estava. E depois aqueles banhos demorados. A exigência dos colarinhos altos muito bem passados. As calças de linho branco quase estalando na goma. Hum! Até o vidro de Flor-de-Maçã chegara ao meio, quando a média era de um ano de duração. E tudo em uma semana... "Desensofrido coração, se aquietasse, porque coisa por coisa existe"...
Na casa de Dona Sueli de Vidal Negreiros e Sousa seria realizada a última reunião mensal das Senhoras da Caridade. O Natal tinha passado; missão cumprida. Costuras e bordados, roupas e aparelhos de bebês entrariam em férias por uma temporada. Apenas um bate-papo gostoso. Apenas o uso da tesoura para picotar a vida alheia.
Dona Sueli, viúva bem posta e com muita renda, por participar de várias sociedades em castanhais adjacentes, dava os últimos retoques na sala. Esperando apenas que o sol ainda quenteiro descesse mais para abrir as janelas para o quintal, afastando as redes e os crochês da cortina.
Gritou para a cozinha, chamando a empregada.
Sem cintura e continuamente desajeitada no avental de babados esperava pelas ordens da patroa.
— Maria Colota, está tudo bem?
— No gosto, Dona Sueli. Broinhas, sequilhos, café pronto para fazer.
Sorriu porque era considerada mestra nas suas aptidões culinárias. Quem viesse à sua casa, não raro saía levando receita de qualquer prato especial. Até o trivial se metamorfoseava em iguarias sempre louvadas.
— Está bem. Fique prestando atenção no atendimento da porta.
Às cinco horas a conversa atingia o auge da animação. Sentiam-se felizes e realizadas com a campanha árdua do Natal. Uma delas comentou a introspecção e tristeza de Louise.
— De fato. De fato, faz mais de uma semana que vivo contrariada. Acontece que estou ficando meio maluca com o que vem acontecendo com Poli. Não pára mais uma só noite em casa. Além de não me levar em suas andanças, fica em casa quase como um fantasma, sem dizer nada, sem ligar até para os alimentos. É um tal de jogar truco que vai até altas horas da noite.
— Truco?
Dona Fililinha pousou a xícara de café em cima da mesa.
— Ouvi falar certo?
— Truco. Exatamente truco.
Foi a vez de Dona Fililinha suspirar resignada.
— Pois não é que o meu Abel também inventou de jogar truco e chega tardíssimo em casa, trocando as pernas e as palavras! Ainda por cima me aparece com um hálito de embebedar até santo de madeira.
Marinete não se conteve e no esplendor da sua mocidade, soltou unia baita gargalhada.
— E vocês acreditam em truco? Conversa, minha gente. Está tudo indo para o lado da Ronqueira dos Cafundéus. Cabaré no duro. Cabaré legítimo.
Os olhos espantados se puseram nela. A maldade solta dava-lhe um frescor delicioso no rosto redondinho. Os lábios polpudos e úmidos cercavam-lhe a fileira de dentes muito alvos. Sentindo-se o centro das atenções exagerava os trejeitos dengosos do corpo "mignon".
— No cabaré daquele?...
— Dele mesmo. A homada 'tá louca se largando pra lá. E vocês ficam botando a mão no fogo por esse raio de truco.
Sorveu o café sem pressa alguma e observou a surpresa que se paralisara em cada riso amarelo, se desfazendo aos poucos.
Sueli de Vidal Negreiros e Sousa arriscou um aparte.
- Mas que foi que houve assim de importante por lá? Será que voltou para lá aquela negrinha nojenta?
— Nojenta a Chuva Crioula?
Marinete riu jogando a cabeça para trás num desafio maldoso.
— Você acha aquela mulher nojenta? Deus do céu que blasfêmia. Aquilo não era mulher e sim uma estátua. Uma vez na Rua do Comércio entrei até no bazar de Almanzur Chalita para espiar pela vitrine o seu passar. Como era linda de morrer. Um vestido simples. Uma blusa lisa. Só. Os seios duros roçando pra lá e pra cá soltinhos. As pernas bem feitas, a cintura esguia, os cabelos negros tão finos e tão lisos balançando ao vento. Cabelo que deixa muita gente de água na boca. Isso sem falar dos olhos. Na fazenda de meu avô em Pernambuco, ele tinha umas estátuas. Vocês já ouviram falar em estátuas de Tanagra?
— Balançaram a cabeça afirmativamente, mas Marinete não ignorava que jamais na vida tinham ouvido falar daquilo.
— Pois bem. A nojenta negrinha como você falou tem o corpo mais bonito do que as estátuas. Que olhos verdes. Que olhos!
Geralmente Marinete era a que tinha a conversa mais picaresca e engraçada. Ficavam fascinadas por suas histórias.
— Vocês precisavam ver no cabaré! Pombinho dizia que os homens perdiam a cabeça quando ela aparecia quase nua com os bicos dos seios pintados de ouro.
— Prostitutazinha canalha e sem-vergonha, isso sim.
— Não sei. Só sei que muito marido honesto, ficava pendurando os olhos do desejo no bico dos peitos da Negra.
— Você tem coragem mesmo. Deixar que seu marido vá a essas imoralidades e ainda venha lhe contar.
— Minha filha, é dando liberdade a Pombinho que eu o prendo cada vez mais.
Louise reclamou com voz roufenha.
— Lá vem você com o seu Pombinho. Posso passar uma eternidade e mais seis meses que não me acostumo. Você chamar seu marido de Pombinho.
Calaram-se um instante, porque no pensamento de todas elas a figura do marido de Marinete fazia pose. Um homão de quase dois metros de altura. Um portuguesão de grandes costeletas negras. De bastos cabelos ondulados a se esbranquiçarem nos lados. Um pedação de homem que poderia fazer até maus pensamentos... Pombinho!
— Que me importa o que vocês achem? É Pombinho, e pronto O fato de ir ao cabaré, o que significa? Nada. Na cabeça de vocês a mulher no casamento é tudo. Vá lá que seja. Mas a monotonia torna a mesma mulher uma espécie de usocapião. Por isso eu o solto. E, minha filha, vai ser muito difícil dele fugir de mim. Agora vocês ficam aí, do mesmo modo, iguaizinhas ao dia que se casaram. Resultado: quando tem novidade na Ronqueira dos Cafundéus, inventam o truco e se mandam para lá.
Dona Fililinha perguntou com voz meio embaraçada:
— Mas você não disse se a tal, se foi a tal Chuva Crioula que voltou.
Marinete estava com a porteira dos venenos entreaberta.
— Aquela, coitada, não volta mais.
— Morreu?
— Nada disso.
— Foi presa?
— Pois sim!
— Conta logo, mulher. Fica deixando a gente se ralar de curiosidade.
Olhou em volta deliciando-se com a expectativa da mulherada.
— Pois então, quem estiver em pé que se sente, porque lá vai a bomba. Chuva Crioula deixou tudo por amor. Está vivendo com um padre.
Dona Fililinha chegou a persignar-se.
— Cruz! Credo!
— Um padre mesmo?
— Um padre.
— Mas padre católico, dos que dizem missa, confessam, dão a bênção?
— Exatinho. Só que ele deixou a batina.
— Que desgraceira, meu São Tome! Logo um padre! Um padre e uma...
— Uma puta. Pode falar. Amor não liga pra isso.
Um mal-estar até certo modo distendido dominou o ambiente. Louise balançava a cabeça, incrédula.
— Fico impressionada; como você sabe de tudo isso?
— É fácil. Na venda de Pombinho se conversa de tudo. Primeiro, uma índia descobriu o casal, indo pescar nas terras do Lago Podre. Depois o homem mesmo veio fazer compras de material e mantimento. Encheu o barco. Dizem até que foi com o dinheiro dela.
— Já imaginaram o que os dois não devem fazer?
— Só se ela ensinar a ele...
— Pois, sim. Padre hoje em dia está muito evoluído.
— Sim, mas esse negócio de mulher da vida se apaixonar e abandonar tudo... não pega bem.
Marinete deu um muxoxo debochado.
— Ué! Tem muita gente assim na vida. Ela não é a primeira.
Soltava a flecha envenenada diretamente a Louise. Quem ignorava ali que Louise fora uma loucura quase adolescente de Percival Polidênio Pamplona? Entretanto o passado ficou longe em Paris. Tão esquecido como o fastígio e a loucura da borracha.
Sueli disfarçou intrometendo-se entre elas e passando de mão em mão a bandeja de sequilhos.
Na pausa que houve a conversa retornou aos primeiros momentos.
— Então não foi a Chuva Crioula que voltou?
— Nada disso. Agora é uma coisa deslumbrante.
Dona Fililinha repreendeu meio amuada a insistência daquilo.
— Não vejo por que a gente ficar falando num assunto tão desagradável como o da prostituição.
Marinete retornou com uma das suas tiradas sarcásticas.
— Quem está falando disso? Nós apenas estamos comentando sobre um jogo chamado truco que os maridos adoram. Mas podemos mudar, conversar de algo mais construtivo.
Entretanto, a viuvez de Dona Sueli de Vidal Negreiros e Sousa não permitiu que o assunto morresse.
— Conte o resto.
— Quem manda lá, quem é dona das noites no cabaré... é uma mulher que Pombinho viu. Que é lindíssima. Branca como as praias. Um corpo maravilhoso. E sabem o que ela faz? Nada. Apenas nada. Veste uma túnica branca transparente sobre o corpo. Colocam um ventilador. Cercam o palco de não sei quantos lampiões e ela deixa à mostra...
Nem respiravam de expectativa.
— Ah! Me esqueci de dizer que o nome dessa mulher é Maria Begônia.
— Certo. Você disse que ela mostrava... Marinete deu uma risada perversa e deliciosa.
— Mostra a begônia prós homens. Fez um gesto, apontando-se.
— A begônia, minhas filhas.
— Acho que lá todas mostram, não? Isso não é novidade.
— Todas mostram, deve ser. Mas a begônia de Maria Begônia é em forma de coração. 'Tá bem?
Dona Sueli ajudava Maria Colota a dar um jeito na casa. o silêncio agora parecia ter-se grudado em todas as coisas. E não fazia muito que a sala estourava de alegria e risadas. Aquela Marinete era doida. Uma doida cheia de novidades e muito espírito. Recebia a louça enxugada da empregada, mas o seu pensamento ficava enxergando o coração da Begônia. Um certo remoçamento roçou o seu sensualismo quase que adormecido. Quis mudar de idéia.
— O pessoal gostou muito dos seus sequilhos, Maria.
— O pessoal é fácil de se agradar.
— Sabe, Maria Begônia, a Marinete hoje estava engraçada de morrer.
A criada parará de lavar e enxugar e olhava espantada para ela.
— Uai! Que é que foi que aconteceu?
— A senhora me chamou de Maria Begônia.
— Foi? É que estou com a cabeça muito cansada.
Abriu o velho "etagère" para colocar os copos antigos nas suas prateleiras. Olhou as mãos brancas e esguias que se refletiam no mármore negro. Nunca fizera aquilo antes. Sentia prazer em ver os copos de cristal se tocando e emitindo pequenas falas de sino. Eram restos do passado. Restos de sua família. Sobras da grandeza da borracha. Poucos tinham seguido o exemplo dos Negreiros. Vindo para o interior. Deixando o fausto das cidades viciadas. Trazendo sobras da fortuna e empregando-se em lugares mais simples onde o dinheiro ainda valeria alguma coisa.
Retornou aos seus pensamentos anteriores e uma vontade louca de saber, saber qualquer coisa que apagasse os passos de solidão que caminhavam em sua alma.
— Maria Colota.
— Senhora.
— Você tem cinco filhos, não tem?
— A senhora sabe disso.
Entretanto olhava a patroa que se mostrava mais conversadeira e amiga. Mal podia adivinhar que Sueli invejava a sua família. O medo de estragar o corpo com a continuidade do parto, nunca lhe dera a oportunidade de ser mãe. Entretanto aquele casarão enorme, cheio de quartos vazios, habitado de sons mortos, daria para mais alguém, não só para ela e sua sombra esguia.
— Não se zangue se eu perguntar um pouco. Preciso conversar, somente conversar um pouco.
Olhou a mulher passada nos seus trinta anos, meio gorda, um tanto baixa, com o rosto calmo e tranqüilizado.
— Seu marido ainda procura muito por você?
— Procura de que jeito, Dona Sueli?
— Do jeito mesmo que você está pensando.
Maria Colota fez uma careta brejeira, sentindo-se ruborizar.
— Claro que procura, sim senhora. É um homem muito forte.
— E você gosta muito dele?
— Ora que pergunta, Dona Sueli! É meu marido. A gente lutou muito, labutou sempre junto. Por que a senhora?...
— Não se incomode. Só pra saber.
Dobrou a toalha grande. Os guardanapos precisavam ser lavados.
— Amanhã você leva tudo isso pra fonte. Mas o que desejava não fora satisfeito.
— Maria, você escutou a conversa de Dona Marinete?
— Do começo ao fim. Ela fala mesmo para todo mundo ouvir. Mesmo que a gente disfarce, a voz dela passa por qualquer vão.
— Não. Não tem nada que você ouça. Mas aquela história da Maria Begônia, você ouviu bem?
— Todinha. Eu já sabia disso. Na feira lá da Vazante todo mundo só conversa desse assunto. Tem uma mulher gordona que é empregada no cabaré, Dona Tuta, que quase não pode fazer as compras. É homem, é mulher, é mulher-moça-donzela, todo mundo perguntando se é verdade mesmo. Se a senhora quer saber a verdade mesmo, vai virar moda. Seu Armandinho Farmacêutico disse na venda de seu Pombinho, que já mandou buscar mais um mundão de gilete e não tem um só aparelho de fazer barba nem para herança.
— Será, Maria?
— Sem errar.
Fez uma pausa mais pensativa ainda. De repente, virou-se afobada para a empregada e perguntou aos borbotões, porque, se assim não fizesse, perderia a coragem.
— Me diga uma coisa, Maria. Mas sem mentir. Se você sentisse que seu marido estava esquecendo você... Se você descobrisse que fazendo o coração ele voltava para você... Você queria ter essa coragem?
Maria pensou um pouco para se decidir a responder. Mas afinal certificava-se que aquilo era uma conversa que morreria entre as duas.
— Sabe, Dona Sueli, meu marido não carece dessas coisas, não. Aí Dona Sueli escancarou os olhos de espanto pela sinceridade da confissão.
— Mas se eu visse que ele andava meio se afastando por causa disso, pode ficar certa que eu me danava toda de coração. Homem da gente tem que ser é da gente mesmo, Dona Sueli.
Ela sentou-se à mesa e ficou olhando o arrumar das últimas coisas. As mãos abandonadas no regaço não pareciam pertencer ao seu corpo.
— Mais alguma coisa, Dona Sueli?
— Nada mais. Encheu a moringa do meu quarto?
— 'Tá prontinha lá.
— Pode ir, Maria. Boa noite e amanhã pode chegar uma hora mais tarde.
Ouviu a porta da cozinha batendo. Os passos fortes caminhando no jardim e depois se perdendo na sombra emaranhada do mangueiral.
— É.
Saiu da cozinha, recolocou as cortinas do salão em ordem. Apagou as luzes, antes olhando longamente todos os móveis, espelhos e tapetes. Subiu a escada, alisando mais suavemente o corrimão lustroso de jacarandá. A escada começou a transformar as suas sensações. Eram os degraus que subiam nela. No vazio do seu corpo fiel e insatisfeito. Hoje mais ainda do que nos outros dias. Os degraus da sua viuvez inútil e dispersada. Também não havia pressa em chegar ao quarto. Nada de novo aconteceria. Nunca mais. Ninguém estaria esperando por ela do outro lado da porta. Parou no último degrau e alisou suas pernas. Maciamente colocou as mãos sobre o abandono do seu coração inexistente.
Passara o Carnaval, aproximava-se a Semana Santa puxada pelos esquálidos dedos da quaresma e os olhos apavorados olhavam o céu sem prenúncios de chuva. O rio até que começava a se estreitar e embarcação de maior calado não estava passando em certos travessões. Jamais acontecera aquilo naquelas paragens. No entanto, urgia que a chuva viesse. O calor dava para matar a criação. E até a selva amarelecia com saudades da chuva. Não podiam explicar o mistério porque os rádios não davam notícia de nada parecido pelas proximidades. E para aumentar a inquietação e recrudescer a angústia, a voz acusadora de Dominguinha das Fezes cantou desgraças pela cidade.
Voltara a se vestir com a sua túnica suja de estopa. No peito o grande e negro crucifixo, os cabelos desgrenhados já embranquecendo tocavam os calcanhares. Os pés descalços levantavam a poeira e não pareciam sentir o ardor da terra escaldante. Soava entre seus dedos amarelos a matraca da penitência e da acusação.
Fazia mais de dez anos que Dominguinha das Fezes não abandonava seu rancho e a sua solidão para acusar os pecados da terra. Seu vulto estremecia a quem olhava. O rosto cobria-se de poeira das cinzas colocadas nos cabelos.
Ninguém acreditava que aquela megera um dia fora jovem e muito bonita. Bastou que ela se iluminasse e se considerasse uma das bem-aventuradas do Senhor, para abandonar a todos e a tudo e seguir os desígnios do seu caminho. Diziam até que fizera uma temporada grande, acompanhando pelo nordeste a figura franzina de Frei Damião. A família a internara, mas de nada adiantou. O mais que conseguiram foi trazê-la para perto, para a terra de origem. E foi só. Envelhecia em orações e rezando a quem precisasse. Para Dominguinha das Fezes, abandonar seu esconderijo era porque algo de terrível estaria para se anunciar.
As pedras em fogo do calçamento do Comércio não lhe faziam diferença. Não olhava para canto algum e parecia contar os passos da sua terrível caminhada. O som cavo da matraca ultrapassava qualquer ruído e o povo se calava amedrontado a sua passagem. Punha-se ao sol do meio-dia, ajoelhada junto ao Cruzeiro e se não fosse o movimentar dos lábios, dir-se-ia que se encontrava adormecida. Quando o sol se punha e durante sete dias realizou a sua missão, erguia-se e agitava a matraca. Depois, abrindo os braços em cruz, Dominguinha das Fezes executava o seu pronunciamento.
E o mais estranho era sua voz adquirir uma doçura que mais parecia uma prece do que uma condenação. Não alterava a monotonia do seu sermão, mas a voz percorria por entre o povo, como se fosse uma espada de remorso.
— Ouvi, pecadores. A desgraça vai se abater sobre o povo. As sete pragas da maldade cairão sobre a cabeça de todos. Até os inocentes pagarão por isso. A semana do Senhor se aproxima e os ouvidos se fecharam aos Seus chamados. Abriram-se apenas para escutar as mensagens "herégicas" e "sataníferas" do pecado. Sodoma e Gomorra deixou a sombra da luxúria sobre, o corpo das mulheres. Elas vestiram os seus corpos com a mancha da imoralidade com que se cobriram as mulheres da vida. Tende piedade, tende piedade, Senhor. E ainda por cima, de todas essas desgraças o pecado se encarnou em toda a sua maldade na figura de uma prostituta que vive amancebada com um padre. Tende piedade, Senhor. É preciso expurgar da cidade, mandar para bem longe, o lodo do vício e da impureza!
Baixava os braços e a cabeça, e gemia por uns segundos, depois suspendia novamente as mãos para os céus e enumerava as sete pragas da Maldade.
— O rio secará as suas águas a ponto de desaparecerem os peixes.
— Os castanhais não produzirão mais frutos.
— O leite das seringueiras deixará de correr.
— As aves do céu dizimirão até a luz.
— Os gafanhotos devorarão o resto das colheitas.
— A chuva adormecerá no céu.
— A febre ceifará a vida de muitos inocentes. Abaixava os braços, ajoelhava-se e murmurava aos soluços.
— Tende piedade, Senhor. Senhor, tende piedade.
QUARTO CAPÍTULO
As Garras do Inútil
NÃO DIZIAM NADA. Sentados do lado de fora do rancho observavam o céu liso, sem nuvens. O vento nem existia. Tinha-se esquecido de soprar. Nem a prece de todos os caboclos juntos trariam água tão cedo para a terra.
— Chuva, Chuva!
— Que nada. Céu surdo, Deus com raiva, água morta, terra seca.
Desanimava qualquer palavra. Desanimava ter de voltar para a roça e ver até o chão se rachando. Se não caísse chuva dentro de um mês, todo o trabalho de meio ano se perderia.
O lago mostrava galhos secos espetando o calor do dia. Apenas um pequeno canal o ligava ao rio. E no rio, a mesma coisa. As areias invadiam tudo. Somente canoas podiam singrar a sua secura, assim mesmo procurando as sobras dos canais. Peixes morriam na estercura das lagoas. As garças, os jaburus, todos os grandes pescadores, estavam tão pesados e tão fartos que mal podiam alçar vôo quando alguma coisa se aproximava.
Já nem queriam lembrar o cansaço e o desespero dos três dias fazendo fogo e espetando com grandes varas a nuvem de gafanhotos. Donde viriam assim? De noite paravam, mas mal o sol se acendia, baixavam sobre a roça devorando tudo. Era preciso acordar antes deles, fazer fogo e bater panos, latas, obrigar Piranha a correr desesperado, latindo e rosnando com raiva. Ao meio dia estavam mortos. Até o cão se deitava arfante com a língua tocando no chão. Diminuído o fumo, lá vinham eles de novo com aquele ruído rascante. E se amontoavam por toda parte. As árvores, os arbustos, as cercas, o milharal, o plantio de arroz quase seco, até a carabina vinte-e-dois, tudo se cobria de vultinhos coruscantes, mexendo-se para lá e para cá, tentando acabar com o que houvesse. E foram três dias, três dias ininterruptos, devorados pelo sol de fogo, com o corpo e as forças se dissolvendo em suor, cora a garganta pedindo água e sem tempo para beber. Ali, ainda a plantação não alcançava grandes proporções. Mas em outras paragens o estrago deveria ser diabólico.
Passados os três dias, veio o vento. Como se obedecesse a uma ordem, foram-se levantando e subindo aos céus. Formaram uma nuvem tão grande que projetaram sombras compactas no chão.
E foram desaparecendo. Onde a vista podia alcançar, viam-se novos enxames levantando ao vento procurando os céus. Depois o silêncio. O silêncio das coisas mortas que ficavam. O ouvido doía com todo aquele silêncio. Talvez tanto como o desespero do coração.
— Hoje não tem mais.
— Mas vamos até a roça. Precisamos ver o que restou de tudo. Esmeralda comentou convicta.
— Não ficou foi nada.
— Talvez se viesse uma chuva, alguma coisa poderia ser recuperada e brotar de novo.
— Não sei.
Olhou o céu por todos os lados.
— Difícil mesmo que chegando uma chuva alguma coisa brote de novo.
O que esmagava Esmeralda era ter trabalhado tanto para que antes de partir deixasse Daniel quase num mar de prosperidade. Meu Deus! Trabalharam como escravos sem reclamar... e agora. Agora que se aproximava a sua partida o resultado se positivava tão malvado.
Evitavam tocar no assunto da sua partida. Mas ela prometera que só ficaria um ano. Um ano no máximo. Sabia que Daniel não iria interferir em seus planos. Já fora caridoso demais, deixando-a compartilhar do seu rancho e da sua calma. Da sua boca não sairia nunca um pedido para que se decidisse a permanecer mais.
— O pior é que estamos sem roça. Peixe no rio evaporou-se. Caça escondeu-se bem longe. E nosso abastecimento está nas últimas.
Esmeralda soltou um sorriso de tristeza.
— Quanto a isso a gente não se deve preocupar. Vamos dar um pulo na cidade e comprar mais mantimentos. Meu dinheiro ainda dá bastante.
— Guarde o que é seu para o que tem de vir. Depois, se o rio está desse jeito, se não desce ou sobe motores, toda a cidade deve estar racionando tudo o que tem. E o que se vender deve custar o seu peso em ouro.
— Já tinha pensado nisso.
Levantou-se e foi espiar o fogão. Depois voltou sem pressa alguma a procurar o mesmo posto.
— A gente pode esperar o sol esfriar e dar um pulo na roça.
— Também acho melhor. Vou aproveitar para encher as vasilhas d'água. Agora estão ficando cada vez mais longe os lugares de se achar água boa para beber.
Antes de se embrenharem pelos castanhais para atingir a roça, uma surpresa apareceu. O vulto de Palusaio surgiu devagar na clareira. Parou indecisa porque Piranha começou a latir.
Vendo que Esmeralda acalmava o cão, recomeçou os seus movimentos.
—Que quererá aquele diabo agora?
— Pelo menos a gente vai saber do que anda acontecendo na cidade.
— Isso é bom. Mas ela está cada vez mais suja, mais rasgada. Palusaio se postou bem em frente deles e sorriu.
— Eu voltei, Chuva.
Impressionante que ela desaparecera por muito tempo. Na certa, tinha se desinteressado à seu respeito. Devia ser isso.
— Posso sentar?
— Sente aqui nesse tronco.
— Você me dá uma caneca de água. Estou com sede. Estranhou que o hálito da índia fosse de cachaça pura. Antes ela não bebia nada.
Foi buscar água lá dentro. Esperou que ela bebesse com calma.
— Cadê a roupa que eu dei para você?
— Está guardada. Não podia vir por esse mato todo com ela. Acabava ficando assim como essa.
Na certa vendera tudo para beber. Índio quando se vicia em álcool, torna-se pior do que qualquer civilizado.
— Você agora deu para beber, Palusaio?
— Pouquinho só. É bom. A gente fica muito alegre.
— E lá na cidade?
— Está tudo morto.
— Morto, mas morto como?
— Ué! Morto.
— E Tuta?
— 'Tá lá. Gorda sempre.
— E Suzi?
— 'Tá lá. Morto também.
Começou a sentir uma tremenda inquietação pesando em sua alma. A índia não saberia dizer mais do que aquilo; era o suficiente para traduzir que o clima de desespero se tornava igual em qualquer parte. Entretanto sem que se esperasse, ela foi contando.
— Sabe, Chuva? Aquela mulher doida, aquela mulher santa, aquela mulher beata? Pois ela disse tudo que ia acontecer. Que estava chegando a Semana Santa e que tudo era pecado. Faz mais de mês que ela foi lá no Cruzeiro e chorou. E rezou. E disse.
— O que foi que ela disse?
— Que o rio ia secar. E o rio secou.
— Que a febre ia matar muita criança. E a febre matou quase tudo que era criança. Podia ser rica e podia ser pobre. Matou tudo quase.
— Que castanha não dava fruta. E castanha não criou ouriço.
— Que seringa não dava leite. E seringa secou sequinha.
— Que gafanhoto vinha do céu e comia tudo. E gafanhoto chegou do céu e comeu tudo, mas tudo mesmo.
— Que a chuva morria lá em cima. E a chuva morreu mesmo.
— Que ave do céu acabaria com a luz. E veio uma nuvem de tucano. Mas tanto, tanto que parecia formigueiro mexido. Eles sentaram nos fios e rebentaram tudo. A cidade ficou sem luz por sete dias e sete noites.
— E tudo que ela falou, foi acontecendo. Agora o povo vai fazer reza e procissão e todas as mulheres que ficaram igual às putas vão ter que andar sem sapato e com cinza na cabeça.
Esmeralda estava abismada. Nunca pensara que Palusaio pudesse saber tanta coisa e conversar tão bem. Pelo contato, e a índia não deveria mentir, na cidade as coisas haviam superado a desgraça do rancho. Mas os tucanos? Como podia ser? Nunca ouvira falar disso. Se fosse outra pessoa que não conhecesse bicho, vá lá. Mas a índia vivera muito na selva...
Levantou-se.
— Onde você vai? Me conte essa história de que as mulheres se tornaram mulher-dama...
— Foi sim. Eu não sei como foi. Mas todo mundo diz que quase toda mulher de família passou a usar no corpo coisa que só puta usava. E que foi pecado. Tem outro pecado mais grande, mas esse eu não sei contar para você. Agora eu vou.
— Pra onde?
— Vou ver se caço uns peixes. Depois, na volta, passo aqui e você vai me dar um prato de comida?
— 'Tá certo, venha.
Agora já não fazia força para disfarçar a sua embriaguez.
— De qualquer jeito, Daniel, a gente precisa dar um pulo lá na cidade e tentar conseguir alguma coisa. Pode ser arroz, pode ser feijão.
— Também esta semana não adianta. Se é como essa mulher conta, o povo deve estar completamente desorientado. Quando de fato passar a Semana Santa, com vagar e com calma, iremos lá.
Quem sabe se o bom Deus não manda pra gente um pouco de chuva pelo menos.
Falava aquilo por falar. Não se sentia nada convencido de suas palavras.
Esmeralda passeava no lago ressecado e sentia sob os pés a terra fender-se e esfarinhar-se. Deixara a comida no fogão e fazia apenas o tempo escoar-se. Por mais que remoesse os pensamentos não conseguia descobrir como as mulheres de família se transformaram em biraias. Chegava até a sorrir imaginando coisas. Mas a superstição gritava mais alto em seu íntimo e procurava desviar as idéias irreverentes. Agora é que se recordava de uma coisa. Palusaio saíra, dizendo que voltava para um prato de comida e sumira. Também aquilo não tinha importância. Era coisa de índio mesmo. Dera na telha e tomara outro rumo. E ainda por cima também dera para embriagar-se.
O lindo lago morrera. Morrera como na linguagem simples de Palusaio. Que diabo pensar tanto naquela infeliz. Melhor voltar ao rancho. Mesmo sem vento a sombra amiga protegia melhor.
Daniel achava desnecessário que fosse até a roça. Para quê? Para entristecer-se mais? Saíra com Piranha e voltaria com o sol das três horas. Traria novidades? Por certo nenhuma. Não voltando a chuva, tudo permaneceria na mesma e caminhando ainda para o pior.
Entrou. Espiou o fogão e as panelas afastadas das brasas. O bule dormindo também ao lado. Aí que fazia mesmo calor. Sentou na rede com as pernas apoiadas no chão. Olhou o teto sem motivo algum. Sua vista estava tremendo. Bocejou. Suspendeu as pernas e deu um leve arremesso na rede. Morna sonolência forçava seus olhos a se fechar.
Quando acordou ficou espantada do tanto que dormira. Pulou no chão. Apanhou uma caneca d'água, lavou os olhos e bebeu o que sobrara. Mas dormira tanto assim? ü Sol começava a baixar. Devia passar das quatro horas e Daniel não dera sinal da sua volta. Talvez estivesse num daqueles poços do rio se banhando. Não. Piranha sempre vinha na frente para saudá-la. Uma ligeira preocupação franziu-lhe o cenho.
— Vou lá.
Apanhou a vinte-e-dois, colocou o chapéu na cabeça e mesmo sem fechar a casa, partiu apressada. Quanto mais caminhava mais o coração se sobressaltava. Dentro de meia hora penetraria na roça. Mas a passagem pelos castanhais parados encheu-a de temor.
Por que isso? Ele costumava demorar-se às vezes. Talvez se distraísse procurando uma esperança...
Com o coração aos saltos chegou à roça. Assobiou pelo cão e nada ouviu em resposta. Gritou prolongadamente por Daniel. E o silêncio permanecia intacto. Gritava mais e esperava. O único ruído que se apercebia era o bater violento do seu coração. E veio um medo terrível. Um medo que não sabia explicar e talvez antes nunca sentido. Nem mesmo quando...
Benzeu-se para afastar o trágico pensamento. Correu alucinada pelo milharal seco, sempre gritando por Daniel. Chamava também pelo cão. Por pouco mais começaria a chorar. Não podia controlar as pernas e corria sempre, sem respirar ao menos compassadamente. Era atraída para o lugar onde outrora à sombra da grande árvore paravam para descansar, beber ou comer alguma coisa.
Dessa vez não parou. Atirou-se de joelhos e uivou tão selvagemente que a baba lhe escorria pela boca.
Piranha estava estirado no chão. A cabeça quase afastada do corpo, por um terrível golpe de facão ou mesmo de uma foice. Via-se que mesmo ferido o animalzinho ainda tentara lutar. Porque o rastro de sangue vinha de alguns metros.
Perdeu a fala e ficou soluçando perto do cão morto. Para evitar que ele incomodasse tinham-lhe crivado o corpo de balas.
Chorava e alisava o seu pêlo ensangüentado. Murmurava seu nome docemente.
— Piranha, Piranha.
Sentou-se e começou a se recompor. Precisava de ânimo para fazer qualquer coisa. Não fora índio quem carregara Daniel. Podia ver mais adiante marcas de pés calçados. Índio faria o contrário: mataria o homem e levaria o cão vivo. Uma onda de raiva começou a crescer por dentro. Então era isso. A presença de Palusaio. Talvez tivesse bebido ou talvez a tivessem embebedado para ter coragem de vir espionar. Daí não ter vindo buscar o prato de comida prometido. Alguém queria atraí-la até a cidade. Para tanto tinham levado Daniel. Pois se era isso, iria até lá. Não tinha medo, disso não tinha medo.
Um ruído estranho começou a aparecer. Ficou com os ouvidos atentos sem desviar os olhos do cachorro assassinado. O ruído aumentou mais e seus cabelos foram movimentados para a frente. Arrepiou-se toda. O vento voltara. Primeiro, de leve, sacudindo os milharais. Depois, levantando poeira do chão. Ergueu os olhos para o alto e nuvens negras estavam se acumulando. A chuva ia voltar e com toda a violência de um grande temporal.
Ergueu-se de um salto. Falou para o cachorro como a pedir perdão.
— Depois eu volto para enterrar você.
Ao longe estrondos se avolumavam como se o vento enlouquecido quebrasse montes de galhos secos. Para alcançar o rancho precisava correr.
Os castanhais tinham anoitecido por causa da tempestade. Chegou quase morta ao rancho. Foi fechando as janelas que batiam. As palhas do rancho assoviavam iradas. E a canoa? Nem pensou duas vezes. Saiu contra aquela ventania enfurecida e foi amarrar a canoa. Poderia vir uma grande chuva e o lago apanhar mais água. Encher mais depressa do que o esperado. Sem canoa sem cachorro e sem Daniel, ficaria perdida naqueles ermos.
Os raios sucederam-se com estampidos que até doíam no corpo. A chuva desceu grossa. E o cheiro da terra tão ressecada invadida agora pelas águas trazia um pouco de calma ao seu desespero. Mesmo assim não conseguiu dormir a noite inteira. Se cochilava era assaltada de pesadelos mais cruciantes do que o temporal lá fora ameaçando a natureza. O vento apagara o lampião. Até a rede precisava ser desarmada. Num canto da cozinha, perto do fogão, escondia todo o pavor que sentia das horas indiferentes a passar.
À ela pouco importava a desgraça se alastrando por toda a paisagem. As grandes árvores tombadas com a fúria do vendaval. Ranchos pobres achatados no chão. Centenas de canoas que se desgarraram, que se afundaram. Nada disso significaria ante o tamanho da sua raiva. Tinha sido Suzi. Fora Suzi que armara toda a cilada para que voltasse. Palusaio espionara tudo e o resultado já se adivinhava. Mas era possível, Meu Deus! Um ano depois e a vingança alcançava a maldade como se fosse apenas uma semana. Mas Suzi pagaria! Se pagaria! Nem sequer se emocionava ao rever um cenário tão conhecido. Que fosse tudo para o meio do inferno. Preferia jamais precisar olhar aquela cidade. E não faltava muito, da curva do rio já se avistavam as copas do grande mangueiral. Ali se realizara o velório de Margô.
Encostou a canoa no porto e amarrou-a bem. O céu ainda mostrava manchas negras ameaçando mais chuva.
A cada passo seu ódio aumentava. Entrou de supetão na cozinha e deparou com os olhos espantados de Tuta. A gordura ainda conseguia aumentar o seu corpo.
Tuta abriu-lhe os braços e ela se atirou neles. Não sabia se chorava ou se sorria. Não podia distinguir bem as suas sensações porque a raiva dominava tudo.
— Você veio, Chuva!
— Vim, sim. Mas vim do pior jeito possível. Onde está ele? Tuta segurou-a pelos ombros.
— Espere um pouco, Chuva.
Ela desvencilhou-se e ficou esperando a resposta.
— Não vá fazer o que você está pensando, Chuva. Por favor... Ele está sentado no cabaré. Mas por favor...
Chuva não a escutava. Quase corria para o lugar indicado. Tuta tentara acompanhá-la. Seu peso era demais, mas mesmo assim apressou os passos da sua grande gordura.
Então todo o ódio da vida, todo o nojo, toda a maldade se precipitou numa confusão, numa voragem que a devorava. Parou de supetão na porta e viu o estrago que havia no salão ido cabaré. As mesas se amontoavam quebradas umas sobre outras, num lado. Pouco restava do cabaré antigo. Só uma janela entreaberta, mostrava quase ao fundo um vulto de costas, apoiando-se na mesa a espiar pra fora em direção do rio. Era ele. Como é que odiava mesmo ser chamado?
"Por favor, Chu, de puto, não... isso dói"...
Aproximou-se sem sentir seus passos. Chegou-se sem o menor ruído. Aí a explosão da maldade estourou em um segundo.
— Puto! Seu puto vagabundo! Onde está Daniel?
O vulto não se mexeu. Parecia ter se encolhido todo. Chegou perto da mesa e começou a esmurrá-lo com se fosse parti-lo com a brutalidade das pancadas.
— Puto! Puto desgraçado. Melhor seria que você tivesse morrido com a gota serena, puto miserável!...
Suspendeu o corpo arfante, para recuperar novas forças e atirar tudo pelo chão. Mas o que seus olhos viram, encheram-na de horror. Levou as mãos à boca comprimindo o grito horrendo que ia nascer. Foi-se afastando de costas, virou-se desesperada e recomeçou a correr. Encontrou-se com Tuta e novamente atirou-se em seus braços para soluçar, para tremer como se a terça maligna enregelasse os seus membros e apertasse os seus ossos um por um.
— Venha comigo.
Embalava-a como a uma criancinha desprotegida.
— Eu avisei você. Avisei, mas você nem deu tempo para explicar mais.
Passava as mãos nos seus cabelos e tentava enxugar o suor frio escorregando em sua testa.
— Vamos comigo, vamos. Tuta vai tomar conta de você.
Levou-a devagar para o seu quarto. Deitou-a na cama e cobriu-lhe os pés enregelados. Apanhou um pouco de bebida em sua cômoda, calculou uns três dedos e deu para que bebesse.
— Isso faz bem. Beba devagar, sem pressa. Agora feche os olhos e descanse um minuto. O álcool vai-lhe fazer muito bem.
A cabeça zoava entontecida, mas o calor no corpo retornou.
— Está mais calma agora?
Tuta arrastara o seu reforçado tamborete e o aproximara da cama.
Gemeu baixinho.
— Tuta?
— Que é, meu bem?
— Que foi que fizeram com ele?
Nova onda de pranto sacudiu-a toda. Chorava mais calma.
Tuta apertou-lhe a mão amigavelmente. Depois, ainda sentindo a sua frialdade, escondeu-a entre os seus dedos gordos, para aquecê-la.
— Foi o que você viu? Coitadinho, não é?
Mas Tuta não chorava mais. Chorara na vida todas as suas lágrimas. Apenas aquela piedade enorme se rojava na sua tristeza.
— Quem fez tanta maldade?
— Seu Doca. Sentou-se de um ímpeto.
— Doca?
— Foi.
— Que grande miserável! Mas por quê?
— Por sua causa. Tudo por sua causa.
Tuta foi contando o que acontecera nos últimos meses. Contou do sucesso de Maria Begônia. A primeira volta de Doca maltratando Suzi. Esbofeteando-o e exigindo que quando viesse ali outra vez queria ver Chuva de volta. Levou três meses para cumprir as suas ameaças. Pouco depois do Natal dera-se a tragédia. Não encontrando Chuva, quebrou tudo. Parecia um louco. Se não dissesse pelo menos onde se encontrava a mulher o mataria. E como não fosse satisfeita a sua vontade, batera tanto nele que o aleijara.
— Ficou uma posta de sangue, Chuva. Foi preciso que cabo Loló o levasse de jipe até à fazenda de Coronel Jacundino. De lá veio um avião teco-teco que o levou pra Goiânia. Ficou dois meses no hospital. Quando voltou, veio se segurando numa bengala, quase se arrastando. O rosto todo inchado e cheio de marca de talho de operação. A vista direita foi vazada e não pode mais parar. Nunca mais parou. Sempre precisa de um paninho, de um lenço junto para enxugar.
Chuva chorava baixinho.
— E pensa que só foi isso que o malvado fez? Foi, não. Mandou fechar o cabaré com a jagunçada do castanhal. Não deixou que ninguém mais vendesse nada de comer pra gente. Ou quem vendesse cobrasse mais caro. Se não fosse a bondade de seu Pombinho que não tem medo de nada, a gente tinha morrido de fome. E logo depois vieram as sete pragas rogadas por Dominguinha das Fezes. Todo mundo foi indo embora. E ele entendia. Foi Olinda, foi Divonise. Só fiquei eu. Porque senão o pobre ia morrer à míngua.
— Mas ele sabia onde eu andava?
— Sabia. Palusaio foi que descobriu. Só quis saber de você, se estava bonita e feliz.
— E ele não contou nada a Doca, mesmo apanhando, mesmo morrendo?
— Nada. Juro que nada.
Calaram-se um pouco. Doía tanto tudo aquilo que Chuva se esquecera até de Daniel.
— Quem foi que contou pra Doca?
— Imagina.
— Palusaio?
— Não foi ela quem contou, não. Ela contou pra seu Gilberto e ele vendeu o seu segredo pra seu Doca.
— Turquinha?
— Foi.
Como era imunda a humanidade. E Súzi jurava de pés juntos que Turquinha se matava por ele. Estava-se vendo.
— Se eu pego aquele desgraçado, eu mato.
— À essa hora ele está longe. Pegou o dinheiro e abriu unha. Ficou com medo de tudo, da febre e de todas as outras pragas.
Chuva gemia baixinho.
— Tuta... e agora? Eu tenho que ir lá falar com ele. Mas ele não vai perdoar nunca. Eu chamei o nome com que ele mais se magoava.
— Pode ir. Ele não é mais o mesmo, Chuva. Você foi a pessoa que ele mais quis bem no mundo. Garanto que já lhe perdoou tudo e está doido pra que você volte lá.
Dessa vez foi ela quem se levantou e foi beber um trago de pinga.
Reclamou desensofrida.
— Arre, coração, qualquer hora dessas, você dá um estouro de tanta tristeza e a gente nem sente.
Voltou-se para a cama.
— Quer mais um?
— Não. Obrigada, Tuta.
Tremulamente, controlando-se mais, Chuva foi postar-se à janela olhando o sol maduro lá fora, ameaçado por novas nuvens de chuva.
— Não tenha medo. Vai lá. Ele não quer saber de mais nada na vida. É outra pessoa. Parece uma vela que a gente tocou fogo dos dois lados e vai-se gastando depressa pelas duas pontas.
— É. Depois que eu lavar o rosto e sentir confiança em minha força eu vou lá.
— É bom sim. O pobrezinho vive sentado naquele canto. Dali ele pode ver o rio inteiro. Sabe por quê?
— Não.
— Eu perguntei uma vez. E ele me disse que antes de morrer havia de ver você chegando pelo rio. Todos os seus dias eram pra ficar ali e esperar você.
Por mais que não quisesse, seus grandes olhos verdes se encheram de lágrimas novamente.
— Como antigamente?
Suzi sorriu e apesar do seu rosto massacrado o seu riso adquiria uma doçura inesperada.
— Como antigamente. Sente-se defronte a mim. Quero espiar pra você muito tempo. Como se pudesse recuperar todos os minutos da sua ausência. Oh, Chu!
Segurou as suas mãos. Alisou suas palmas e sentiu a grosseria dos calos. Correu os dedos para verificar suas unhas cortadas rentes e sorriu.
— O quanto pode o amor. Você está cada vez mais linda, Chu. A pele mais escurinha, o que serve para tornar os seus olhos mais verdes ainda.
Depois parecia não acreditar e tentava se convencer.
— Mas você veio, Chuva.
Para ele era importante que tivesse vindo. Nem exigia que fosse o verbo voltar. Ficaram conversando sem pressa alguma sobre o que tinha sido o rumo da sua vida. Primeiro Chuva contou o seu afinco em fazer a roça. Depois o desespero de ver perdido todo o seu sacrifício.
— Vamos falar de coisas mais alegres.
Veio então o episódio engraçado de Letícia partindo noiva e semi-virgem. O sucesso de Maria Begônia.
— Eu esperava muito tempo. Mas quando souberam que a atração era aquela, toda a cidade aderiu à moda. E você sabe, querida, quem tem um coração em casa, não vai procurar coração lá fora. Mesmo porque sempre o coração de casa é mais barato mais cômodo e mais sincero.
— E ela?
— Descobriu a mina. Concordei que se fosse. O seu reinado acabara. Parece que primeiro partiu para Camaquã. Até as mulheres imitarem a sua moda e o seu mistério, ia enchendo o seu pezinho de meia. Agora, você quer saber a verdade mesmo, Chu?
— Fale.
— Não sei se você vai acreditar.
— Acredito em tudo.
— Eu não podia ver o "show" de Begônia. Duas vezes que tentei, fechava os olhos e era você que surgia no lugar dela. E eu sofria demais.
Soltou as mãos e emocionada ergueu-se, contornou a mesa e foi colocar a cabeça de Suzi contra o seu peito.
— Meu querido, meu querido.
— Como antigamente?
— Como antigamente e para sempre.
Suzi estourava o coração de felicidade e Chuva olhava com uma piedade imensa aquele corpo que quase desaparecera. O branco descolorido, sem brilho, como se fossem de vidro os cabelos de Suzi. Tudo nele era aquilo, vidro, vidro fraco, tão fácil de se quebrar.
— Quando for de noite eu vou fazer uma coisa para você, quer?
— O que é?
— Todas aquelas roupas estão lá no quarto?
— No "seu" quarto.
— Pois eu vou vestir a saia de cetim, a blusa de malha transparente, vou pintar meus seios de dourado e vou cantar e dançar para você!
— Você faz isso?
— Faço. Por você eu faço.
— Só aceito com uma condição, se não for sofrer.
— Não vou sofrer. Combino com Tuta e ela traz o lampião... Subitamente Suzi sentiu um arrepio. Aquela mulher, aquela
mulher que era tudo em seu final de vida, iria dançar e cantar, mesmo sabendo?... Não se conteve e desabafou.
— Chu, você amava aquele homem?
— Você fala "amava"...
Um silêncio cortou por um momento o diálogo.
— Eu falei mesmo amava?...
Sentiu um nó na garganta e veio aquele esforço enorme para não chorar. Precisava conter-se para não estragar a felicidade de Suzi.
— Chu, pelo bem que lhe quero, não posso esconder a verdade. Não posso.
— Eu sei. Por mais que queira enganar-me, eu também sei.
— E a gente sempre pensando, sonhando com o impossível. Eu via Doca e pensava ter encontrado na vida, bem em minha frente, um Clark Gable em carne e osso. Entretanto...
Agora era Suzi quem chorava de leve.
— Sabe, Chu, aconteça o que acontecer, você não deve seguir esse homem. Ele não presta. Vai matá-la com o seu ciúme e sua maldade. Juro que eu seria capaz de matar você se soubesse que esse desgraçado a levará.
— Eu não vou. Também prefiro a morte.
— A verdade é outra, Chu. Quando eu fui levado morrendo para Goiânia, muito foi descoberto. Ele não mora em Belém, não. Ele mora mesmo é em Goiânia. Não tem toda essa riqueza que se apregoa por aí. Ao contrário todos os castanhais e bens do seu pai estão empenhados ao seu sogro. Ele se pela de medo do sogro, do pai e da mulher. Na realidade é um fanfarrão. Só é macho-pra-burro quando se trata de gente como eu e você. Eu descobri tudo.
— E por que sempre falava em me levar para Belém?
— Porque era um ponto longe. Você sabe. E lá ele a trancaria em vida. Lá não haveria perigo de nada.
Chuva sorriu tristemente.
— Agora, Suzi, eu vou lhe contar a minha verdade. Eu não amava Daniel. Não. Você e ele foram as duas únicas pessoas na vida que me trataram bem, que me enxergaram como gente. Eu não o amava. Era para mim como um irmão, como um pai.
— Verdade, Chu?
— Posso jurar por tudo quanto é mais sagrado. Mas eu só trago desgraça. Onde minhas mãos chegam, a desgraça se atrai.
— Não. Isso é bobagem. O destino da gente é que já vem traçado.
Chuva balançou a cabeça com pesar.
— Eu não posso falar muito. Mas minhas mãos fedem a sangue e desgraça. Pois bem, eu não "amava" Daniel. Só queria abandonar aquela vida que levava. E o mais triste é que já estava acabando o tempo. Um ano foi o que eu pedi para ficar no rancho dele. Um ano para que se esquecessem de mim para sempre. Você vê o que é a maldade.
Suzi exasperava-se no íntimo com a crueldade da vida. O que falavam dos dois, o que comentavam, os pecados cometidos naquele rancho entre uma puta e um padre. Meu Deus! Haviam derramado o sangue de um inocente. Toda a culpa das sete pragas foram praticamente atribuídas aos dois. E, no entanto... Mesmo que soubessem daquela verdade ninguém iria acreditar.
— Eu não amava aquele homem, Suzi. Pena que por mais um pouco ele estaria...
Calou-se sem vontade de mais nada. Suzi reativou a conversa.
— Chu. Eu pensei muito nessas horas. Muito. A gente tem momentos que precisa pensar depressa. O que você vai pedir a Doca?
— Ele: vivo ou morto. O corpo dele. Doca vem amanhã falar comigo.
— Na certa ele fará uma proposta. Entrega Daniel, certamente morto, mas você terá que partir com ele.
— Deve ser isso.
— Mas você não vai?
— Só se for para enfiar um punhal em suas costas.
— Ele não merece isso. Não tem um corpo digno nem de uma descarga de latrina, quanto mais um punhal. Você vai dormir aqui, não vai?
— Se você deixar.
— Ora, Chu. O seu quarto está lá. E eu é que faço questão que você fique.
— Preciso cumprir o que prometi. Sei o que você pensa. Mas a vida pra mim tem muito pouco significado essas horas...
— Mesmo sabendo, você vai dançar e cantar?
— Mesmo sabendo. E vou fazer pra você, só pra você, o "show" mais bonito do mundo.
— Obrigado. De noite, também, com calma eu vou contar um plano que livrará você das garras daquele criminoso. Você vai ver.
— Que dia é hoje, Suzi?
— Quinta-feira.
— Você falou com Doca?
— Falei sim. Fiquei até admirada com a calma com que consegui olhar para o seu rosto. Ainda bem que as pessoas não podem adivinhar o que se passa dentro da gente.
— E daí?
— Eu jurei que se me desse de volta o corpo de Daniel, eu iria com ele. Então ele me falou que sábado de manhã me "entregaria" Daniel. Sabe, Suzi, tem coisas que nem a gente vendo e ouvindo acredita. Com a cara mais lisa e sem-vergonha ele contou que não tinha culpa de nada. Que os seringueiros e os castanheiros iriam fazer justiça. Que precisavam da vida dele para pedir perdão a Deus da desgraça que os pecados da gente tinham trazido. Que até tinha pedido para que não fizessem aquilo. Bastava deportar o padre...
— Deportar é o mesmo que matar e jogar uma pessoa às piranhas.
Chuva admirou-se de novo da sua calma. E aquilo não podia ser coisa boa.
— Eu já vi matar um homem e jogar o seu corpo pras piranhas.
— Ele disse "sábado"?
— Sábado de manhã.
— E você falou como combinamos?
— Como combinamos. Que ele me dando o corpo no sábado, eu iria embora com ele na terça-feira de manhã. Que precisava ir buscar os meus trens, queimar o rancho...
Ficaram-se olhando como se adivinhassem o que pensavam.
— Nós não somos é merda nenhuma nessa vida, não Suzi? A gente fica sofrendo tudo que é desgraça, tudo que é maldade. Nem tem um jeito de se defender. Um miserável desses...
— Não, querida. Aqui se faz, aqui se paga. Um dia mais, um dia menos, ele também paga.
— Deve existir alguma coisa que persegue a gente, a sorte da gente. Você viu, Suzi? Desde que carregaram Daniel, que a chuva voltou. Tuta trouxe a notícia de que a febre estava cessando nas crianças. Eu sei que a maldição pesa na minha cabeça e na minha vida.
— Lá vem você com a sua história. Nada disso é verdade. Você passou tanto tempo em minha casa e só me deu alegria e felicidade.
Olhou Suzi penalizada. Entretanto agora...
— Quer dizer que ele entrega Daniel a você aqui no sábado de manhã?
— Entrega. Foi o que exigi.
— E vem buscar você sete horas da manhã aqui no cabaré, na terça...
— Foi o que exigiu. Compreendeu que eu precisava de tempo para buscar as minhas coisas..
— Não insistiu em acompanhar você até o rancho?
— Nem uma vez.
— Desconfia por quê?
— Não tenho certeza de nada.
— Medo. Ele tem medo de ir lá... porque...
— Por que o quê?
— Nada. Remorso. Deve ser isso. Você já imaginou como ele vai entregar Daniel?
— Já quebrei a cabeça mil vezes e não acerto. Pobrezinha não desconfiava de nada. Nem sequer se lembrava
que estavam na semana da Paixão.
— Nem ao menos concordou que você o visse antes?
— Sim. Falou que Daniel estava longe nos seringais, mas que no sábado garantia que Daniel aparecia. Se eu insistisse ele me levava lá de jipe.
— Isso é que ele queria. Afastar você pra longe. Nunca mais você poderia voltar...
— Eu sei.
— Olhe, Chuva, por todo o bem que eu lhe quero. Por todo o bem que você me quer, precisamos combinar tudo direitinho. Por favor, eu sei o tamanho da sua tristeza, mas vou repetir mais uma vez. Se ele lhe entregar Daniel...
— Levarei o corpo morto. Não esqueci que só o corpo morto vai me ser entregue. Então vou com o corpo na canoa e enterro no Pedral, perto de Margô.
— Certo.
— Você vai me dar as jóias, o resto do meu dinheiro para levar.
— Errado. Você vai levar isso e mais um pouco que eu quero lhe dar.
— Não precisa. O que tenho já basta. E você vai necessitar também.
— Prometemos não discutir mais isso. Livre do corpo, reme dia e noite. O mais que você puder. Só descanse nas praias quando não puder mesmo.
— Não é problema. Estou novamente acostumada à dureza. Depois, eu estarei quase indiferente. Só uma saudade levarei daqui: você. Pode ficar certo, que quando eu estiver num lugar seguro, mando avisar para que você venha.
Suzi tomou-se de gratidão e encostou o rosto em suas mãos. Sabia que aquilo era uma coisa impossível de se sonhar. Entretanto fazia bem ao coração escutar tais palavras.
— Isso tudo mais tarde, querida.
Tanta tristeza junta ao mesmo tempo, tanta expectativa e fora a chuva caindo grosso.
— Como chove, meu Deus!
— Estamos precisando. E assim o rio enchendo, favorece a sua viagem.
Qualquer conversa que estabelecessem acabava sempre naquele ponto.
— Você não quer dormir, querida?
— Acho que estou morta de cansaço.
— Pois então, por que não vai? Peça qualquer coisa na cozinha a Tuta. Descanse muito, porque dentro de dois dias, precisará de todas as suas energias. Depois, mande, por favor, Tuta vir falar comigo. Ela me ajudará a subir as escadas. Sempre fazemos assim.
— Então, boa noite?
— Boa noite, querida.
Ela o beijou com um carinho de espumas. Foi-se retirando deixando que os dedos escorressem sem pressa pelos seus cabelos tão maltratados.
A chuva aumentou lá fora. E fazia tanto ruído que não percebeu os passos de Tuta.
— O senhor me chamou? Já quer dormir?
— Não, agora. Preciso falar uma coisa muito importante com você.
— Eu achei que ainda era cedo e por isso não trouxe um mingauzinho que lhe preparei.
Sorriu.
— Depois, Tuta. Tem tempo. Sente-se bem defronte de mim. Tuta obedeceu pesadamente.
— Tuta, você tem medo de arma de fogo?
— Que pergunta! Por quê?
— Porque é muito importante.
— Bem. Gostar eu não gosto muito, não. Mas medo, que é bom, também não tenho.
— Então vá até ali na gaveta do móvel. Tem um revólver de cabo de madrepérola num coldre preto. Tem também uma carta e um embrulho. Pode me trazer tudo?
— Posso.
Voltou com a encomenda e depositou-a na mesa. Seus olhos ficavam atraídos pelo brilho do cabo do revólver à luz do lampião.
— Vamos começar por ordem.
Abriu o volume e segurou entre os dedos magros vários pacotes de notas amarradas. E eram notas altas. Devia haver muito dinheiro ali.
— Tuta, tudo isso é para você. Arregalou os olhos de tamanho espanto.
— Pegue. Bote perto de você. É seu. Se um dia você sair daqui pode comprar um pequeno sitiozinho como você sonhava cora Chuva.
— Mas por que isso?
— Não pode perguntar muito, 'tá? É pra você, já disse. Guarde enfurne, esconda. O que você faz por mim não tem preço.
Fitou o rosto do homem que de noite e a cada dia que passava parecia desaparecer. Não evitou que as lágrimas descessem em sua face.
— Pare com isso, Tuta. Pare com isso. A gente precisa falar com muita atenção. O negócio é muito importante para a vida de Chuva.
Puxou a carta em seguida e examinou-a à luz. Queria certificar-se do seu conteúdo e se estava bem colada.
— Essa carta é pra seu Doca. Terça-feira quando ele se retirar você a entrega.
— Escute, não tem medo que esse homem faça de novo uma maldade com o senhor?
— Nenhum. Mais do que ele já fez não é possível. Depois, não se esqueça de que o homem é medroso. Cagão, até.
Segurou a carta meio apreensiva.
— Agora é que vem o mais importante de tudo, Tuta. Por favor, preste mais atenção ainda. Quando seu Doca vier procurar Chuva, peça para que ele suba e vá até ao quarto de Chuva.
A porta estará aberta, só encostada. Quando ele descer, você se coloca sentada na porta da saída da cozinha e aponte o revólver para ele.
O coração de Tuta estremeceu de pavor. Será que ele queria que o matasse?
— Não. Sei o que está pensando. Mande que ele apanhe a carta em cima da mesa. E só abaixe o revólver quando ele acabar de ler. Se você quer salvar Chuva tem que fazer isso, promete?
Sem entender para que tudo aquilo, prometeu, jurando em cruz sobre o peito.
— Então faz de conta que aquela porta é a saída da cozinha. A carta está aqui. Doca vem de lá. Estamos ensaiando igualzinho como eu vi num estúdio de cinema. Então ele vem. Sente-se lá.
Tuta obedeceu.
— Agora indique com o revólver apontado para ele a carta em cima da mesa. Fale apenas uma palavra: leia.
— Leia.
Para espanto de Suzi nem uma vez o revólver tremera nas mãos gordas de Tuta.
— Perfeito, Tuta. Melhor do que eu esperava. Tuta veio de lá.
— Mas pra que tudo isso?
— Não posso contar mais nada. Mas se você é minha amiga faça como lhe pedi. Agora tem mais. Terça-feira você vai ter tanta raiva de seu Doca que o que vai lhe dizer fica por sua conta. Isso eu garanto. Ninguém vai precisar lhe ensinar.
Sorriu.
— Venha cá, Tuta. Me dê a sua mão.
Entregou-a sem saber por quê. E ficou sem ação completamente quando ele a ergueu e depositou um beijo respeitoso.
— Você merece isso. Agora leve tudo e esconda das vistas de Chuva. Isso é segredo entre nós dois. Precisa ainda ser mais bem guardado do que o que você guardou sobre Chuva. Certo?
Saiu com tudo nos braços, devagar e reclamando com o coração:
"Seu peste, qualquer dia eu arrebento sem esperar." Contudo, dentro do coração de Suzi espalhava-se uma alegria tão grande que jamais esperara encontrar até o fim dos seus dias.
QUINTO CAPÍTULO
O Poema de Amor de Chuva Crioula
CHUVA SUBIU AS ESCADAS COM UMA indiferença que não esperava. Desde cedo entreabrira a janela do quarto e olhava o dia que nascera lindo. Lindo, com um azul todo perfurado de vermelho e dourado. A chuva passara e o dia voltaria a ser quente. O rio enchera muito. Sua viagem seria muito mais fácil. As águas caminhariam mais depressa, mais barrentas e muito mais sujas. Entrou no quarto de Suzi. Também estava debruçado na janela espiando o dia. Voltou o corpo com dificuldade, limpou o olho sempre escorrente e sorriu pra Chuva.
— Veio?
— Não teve coragem e mandou o seu Azor.
— Está armada de toda coragem?
— Toda.
— Já desconfia de como o corpo virá? Balançou a cabeça afirmativamente.
— De uma coisa tenho certeza: ele está livre de toda a miséria humana. De toda dor, seja o tamanho que ela tiver. De qualquer jeito trago o corpo até minha canoa. Antes de partir de vez venho me despedir de você.
Sorriu resignadamente para Suzi. E Suzi pôde descobrir que com os cabelos lisos e amarrados para trás, sem uma pintura sequer, ela ficava mais linda. Seus olhos secos e brilhantes tinham adquirido a beleza da selva depois que a chuva parte.
Caminhava ao lado de Azor e não parecia sentir.
— Escute, moça, eu não tenho nada com essa história. Estremeceu e voltou à realidade.
— Que foi que o senhor falou?
— Eu estava lhe dizendo que não tenho nada com o que está acontecendo.
— Não?
Azor ficou meio sem jeito.
— A senhora fez mal em pedir o corpo. Antes tivesse deixado ele desaparecer por lá.
— Por quê?
— Porque não precisaria sofrer mais do que já sofreu.
— Não tem importância. O que vale é que ele está livre de tudo. Depois eu queria ter a certeza.
Parou um segundo e olhou fortemente os olhos verdes de Azor.
— Quer dizer que suas mãos também não estão manchadas de sangue?
— Juro pela felicidade dos meus filhos. Tomei até uma decisão. Essa será a última viagem que vou fazer, trabalhando para Doca.
— Está certo.
Caminharam mais e já agora várias pessoas olhavam para a sua passagem. Não queria encará-las nem temia o ódio com que se sentia atingida.
— Não devia ter querido o corpo do padre?
— Ficou combinado assim. Que eu só iria com Doca se ele me devolvesse Daniel.
— Mas só poderá vê-lo. O corpo não vai-lhe pertencer. Já basta a raiva que o povo tem da senhora. O corpo é do rio. Não entende?
— Está certo. Eu sei disso. Mas jurei comigo mesma que pelo menos eu cortaria a corda da canoa.
Depois sentiu vontade de confessar uma coisa a Azor.
— Quando eu era menina, nunca queria espiar uma canoa dessas. Nunca. Meus irmãos gostavam de atirar pedras e perseguir, eu não.
— Estamos chegando no trapiche. Tem muita gente. É melhor caminhai mais perto de mim.
— Sossegue. Não me farão nenhum mal. Eles sabem que você trabalha para Doca.
— Mesmo assim, não é bom facilitar.
Caminhou com os olhos fixos para a frente. O madeirame do trapiche oscilava com a chegada de mais gente. Ouvia os comentários dos espectadores.
— Parece gente mesmo!
— Nunca vi um igual a esse!
— Ela prometeu que soltava a canoa.
— Na certa está com remorso de tanto pecado...
— E da desgraça que trouxe na vida da gente!
Chuva parou antes de penetrar no meio daquela gentarada toda que apinhava o trapiche.
— Escute aqui, seu Azor. Diga ao Doca que terça-feira ele que venha me buscar no cabaré como prometeu. Pode dizer mais: que homem que tem um saco entre as pernas não manda outro em seu lugar.
— Pode ter certeza que terça-feira é ele que irá. Chuva estendeu a mão.
— Agora, me empreste a sua faca.
Exatamente às sete horas da manhã daquele dia de terça-feira, Doca caminhava. Suas passadas eram largas, mas uma tênue palidez cobria a sua face. O medo se alastrava em seu íntimo, por mais que procurasse calma e confiança.
Chegou ao cabaré e procurou a porta dos fundos. O vulto terrível e volumoso de Tuta o aguardava. A dureza dos olhos da mulher assustavam. Vinha provocado pelo deboche de Chuva. Estava ali e cumpriria o que prometera antes a si. Agora aquela mulher não lhe escaparia das mãos.
— Bom dia.
— Entre.
— Vim buscar Chuva.
— Suba. Ela está no seu quarto. O senhor sabe bem onde é. As pernas pesavam e o coração sobressaltava-se. Mas era só um pouco de tempo. O tempo de pegar a mulher e as coisas e caminhar de volta ao barco.
Parou diante da porta e suas mãos tremeram. Não podia negar-se que a sua atitude era definitiva. Tocou com os nós dos dedos na porta e não recebeu resposta. Rodou o trinco com violência e arremeteu-se para o interior do quarto. Precisou apoiar-se na cômoda para não cair. Em um segundo seu corpo se molhara de um suor frio e pegajoso. Não queria acreditar na realidade que seus olhos mostravam.
As velas do cabaré. As quatro grandes velas estavam acesas nos cantos da cama de Chuva Crioula. E no centro com o rosto branco ostentando um sorriso debochado, estava Cleo. As mãos postas, cruzadas de uma maneira grotesca. Não ficavam no centro do peito, porque os ossos aleijados não permitiam assim.
Quis gritar, mas a voz não saiu. Um vinco de luz acompanhava o caminho seco da contínua lágrima de Suzi. Agora não corria mais, mas em compensação formara um sulco brilhante que alucinava.
Arrastou-se até a porta e encheu o peito de um ar diferente daquele impregnado pelas velas. Veio cambaleante até a escada e desceu os degraus como se a cada passo fosse despencar. Não sabia como conseguira chegar até à cozinha. Uma voz terrível ordenou.
— Sente-se. Beba essa caneca de café.
Não sabia porquê, mas teve que obedecer. Sentou-se e deu com o corpo de Tuta bloqueando a saída. E os lábios tremeram ao ver o revólver calmamente apontado para o seu peito.
— Viu, seu assassino covarde, o que é ser homem? Viu quando um veado pode ser mais macho do que um cagão covarde como você? Beba, seu filho da puta.
Mal pôde gaguejar.
— Calma, mulher. Não fique me ofendendo assim.
— Ofendendo, seu desgraçado. Seu assassino de merda. Ofendendo. Nada que eu diga pode ainda dizer o nojo que eu tenho de você, seu cagão.
Não podia desobedecer àquela fala. A mulher não estava brincando e se saísse dali com vida, ainda seria muita sorte.
— Agora, abra essa carta e leia devagar. E veja se ainda é homem suficiente para chegar ao fim sem ter um chilique.
Rasgou o envelope e começou a ler.
— Falei pra ler essa merda em voz alta. E não me faça perder a paciência, seu frescão.
Concordou mais assustado.
"Doca"
Ao receber esta, Chuva Crioula estará longe, muito longe das suas mãos. Você è um assassino. Matou o Padre Daniel e me matou. Agora vai pagar com isso. Quando estive internado em, Goiânia, descobri toda sua vida. Por essa você não esperava, não é? Pois bem, Chuva foi levada até a fazenda do Coronel Jacundino e de lá foi de teco-teco para Goiânia. Tudo estudado e sem falhas. Ela leva uma carta para os jornais, outra para a polícia, outra para seu pai e outra para a sua mulher ELIANA. Eles vão saber quem você é. Pergunto de novo: por essa você não esperava, não é? Você me matou, desgraçou antes a minha vida, mas é aqui na terra, na terra, que você vai pagar por todas as suas maldades. A dois passos da minha morte eu amaldiçôo você. Que o câncer corroa cada parte do seu corpo. Que o remorso se alastre por sua alma como o fogo selvagem destruindo um doente. Que a maldição caia também sobre a cabeça dos seus filhos.
Agora, vire a direção do seu Barco para Goiânia e ande ligeiro. Porque, por mais ligeiro que você ande, sempre chegará muito tarde.
Adeus, covarde.
Cleo
Soltou a carta sobre a mesa como se tivesse recebido um violento choque elétrico. Encostou a cabeça na mesa e os tremores eram tantos que batia a testa duramente contra a madeira.
A voz de Tuta o esmagava mais.
— Isso que é um homem? Isso?
Suspendeu os olhos apatetados para a mulher. O cano do revólver ainda se encontrava apontado na mesma direção.
— Macho de poia! Só sabe bater nos desinfelizes e nos fracos. Suma da minha frente, antes que eu lhe estoure os miolos ou lhe dê um tiro na bunda.
Afastou-se da porta, abrindo a passagem. Doca tentou um gesto para apanhar a carta. Tuta atirou perto da sua mão, perfurando a mesa.
— Não. Essa carta só sai daqui para as mãos da Polícia. Vamos, desgraçado.
Saiu, cambaleando, e caiu de joelhos na areia lá fora. Respirava fundo, como para recuperar-se, mas no íntimo sabia que estava completamente perdido.
— Vamos, cão. Não rasteje como uma fêmea medrosa. Corra para Goiânia e vá lamber os pés da sua mulher e do puto do seu pai. Se demorar eu atiro.
Tuta enojada viu o vulto do homem caminhando cambaleante pelas sombras do mangueiral.
Fechou a porta e só então começou a tremer. Seu Cleo tinha razão. A raiva dera-lhe coragem. Tanta coragem que seria até capaz de matar.
Precisava fazer muita coisa agora. A vida iria recomeçar. Mas para quê? Em todo caso, compraria um sitiozinho, isso comprava. Subiu as escadas apoiando-se cansada nos joelhos.
No quarto de Chuva com os olhos cheios d'água pôs-se a examinar tudo com mais calma. Reclamava devagar.
— 'Taí, coração de manteiga, você disse que não me fazia chorar outra vez.
Olhou o homem morto. Como sumira. Como perdera tanta vida, tanta vivacidade. Pensara só em Chuva. Um pouco nela também. O vidro de veneno estava completamente vazio e o copo tinha uma mancha cinzenta no fundo. Tivera calma para realizar tudo. Fizera a barba. Vestira uma roupa de que gostava. Acendera as quatro velas. Bebera a morte, cruzara as mãos. E era tudo que sobrara de uma vida.
Agora precisava procurar o cabo Loló, para ajudá-la. Na certa também não deixariam que fosse enterrado no cemitério cristão. Além de ter-se matado, ainda era considerado o pai de todos os vícios da região.
— Não faz mal, seu Cleo. Vou arranjar um cantinho bem bonito e calmo perto de Margô. Lá no Pedral. O senhor gostava muito dela, não é?
Enxugou os olhos e fungou demoradamente.
— Agora eu entendo por que o senhor fez isso. O homem se dana em direção de Goiânia e Chuva foge do lado contrário do lado de Belém. Foi bem pensado. Tudo que o senhor queria era salvar a vida dela. Mas se o senhor tivesse mesmo escrito aquelas cartas, era capaz de acontecer alguma coisa praquele desgraçado.
Balançou a cabeça incredulamente.
— Não. Acho que não. Não vai acontecer nada a ele. Só acontece é com a gente que, como Chuva dizia, não vale nem a merda que caga.
Levantou-se com dificuldade.
— Agora vou fechar a janela pra que o vento não apague a luz das velas.
Olhou o dia lá fora tão azul e tão bonito. O verde substituíra o amarelo opaco da última seca. Até o rio brilhava mais ao sol porque recebera mais água. Naquela água Chuva estava indo embora. Foi então que se lembrou de uma coisa e o coração a traiu de novo. Chuva fora embora e nem sabia que ele estava morto. Morto, parado, quietinho e sorrindo.
Se por acaso encontrasse a canoa antes do Pedral do Oratório, enterraria o seu corpo junto ao túmulo de Divonise. Errara nos seus cálculos. Com a recente chuvarada o rio enchera muito e a outra canoa viajava depressa.
— Parece gente I
— Nunca vi um judas assim tão bem feito, dá até pena de se atirar nele!
— Espie, Dada. É apenas um boneco de palha!
Mas não gostava de espiar. Se caísse o seu chapéu, apareceriam os olhos pedindo piedade.
Doca pensara, vingara-se bem. Ninguém descobriria o corpo de Daniel. O medo do castigo, mesmo que gritasse que havia um homem morto embaixo daquelas roupas velhas, ninguém acreditaria nela. Pois se por sua causa viera tanta tragédia junta. Quem iria descascar o boneco e descobrir o crime? Se pudessem, sim, fariam outro judas dela.
Remava sem entusiasmo, nem mesmo a paisagem e o sol tão gostoso lhe dava vontade de nada. Necessitava, sim, pegar a canoa antes que a noite viesse.
Por isso, nem demorara no rancho. Apanhara a espingarda. Um pouco de roupa, o resto do dinheiro. Juntou as jóias do cabaré com as que Suzi lhe entregara numa bolsa de palha bem no fundo. Até certo esquecimento se apossava dela. Talvez por causa da dor de cabeça, que não cedia um só minuto. Quando saltara no caminho de casa é que notara o lago crescido pela chuva. Assobiou chamando Piranha, mas não teve resposta.
— Que é isso, agora?
— Isso o quê?
— Esqueceu-se que Piranha foi atirado?
— É verdade.
Levou tudo para a canoa. Inclusive uma pá e uma enxada. Depois que enterrasse o corpo se desfaria daquilo. Porque com o continuar das remadas a canoa pesaria cada vez mais.
Retornou ao rancho para incendiá-lo e novamente assobiou chamando o cão.
— Que bobagem! Que bobagem! Sentiu umedecerem-se os olhos.
— O cão morreu.
— Eu sei. Foi para afastar a saudade dele.
Derramou o querosene do lampião por todo canto. Até a palha do teto ficou pingando como se fosse uma pequena chuva de amadurecer mangaba.
O fogo se propagou rápido e da canoa não olhou pra trás.
Chegava mesmo a acreditar na sua má sorte. A desgraça que trouxera à sua casa. Depois, o cabaré de Suzi. Agora o rancho de Daniel.
O vento do rio afastava o começo do calor, soprava os borrachudos para longe.
Por que fora servir o rio? Por quê? E os olhos calmos de Daniel teriam visto a morte aproximar-se? Na certa. Doca era extremamente vingativo. Que Deus tivesse dado uma boa hora de morte para ele, que não merecia tanta maldade.
— Nos outros anos quem solta o judas é Dominguinha das Fezes.
— Hoje é ela.
— Promessa para purgar os seus pecados.
— Ela nem liga. Essa mulher não tem é sentimento.
As pedras alvacentas e luzidias do Pedral do Oratório se aproximavam. O rio corria mais naquele trecho. Que pena. Veio-lhe uma dúvida. Também como carregaria um corpo até aquela altura? A moleza que atingia os seus membros não conseguiriam tal empresa.
Levantou-se e, tirando o chapéu, abanou para a cruzinha mal feita do túmulo.
— Adeus, Margô. Já vou chegando.
Um nó na garganta quase a impedia de gritar.
— Adeus. 'Tou seguindo minha sina.
A fraqueza e o suor quase a obrigavam a deitar-se.
Talvez se comesse alguma coisa... Debaixo do banco da proa tinha uma sacola. A matula preparada por Tuta. Mas decidira não comer. Não demorar a canoa enquanto não descobrisse o corpo.
Só quando o sol beirava as três horas, avistou ao longe uma coisa estranha parada no meio das tranqueiras. Era ela. Tinha encalhado. Toda a sua languidez dissipou-se num segundo. Remou mais apressada como acompanhando o ritmo excitado do coração. Primeiro, amarrou a corda decepada na outra que se encontrava na proa da sua ubá. Respirou forte e olhou o judas. Estava pouco desfigurado. As mãos presas no mesmo canto. O mastro que segurava seu corpo em pé curvara-se um pouco. Talvez pelas pedras e pauladas que lhe foram atiradas. Duas flechas espetavam-se em seu peito.
— Não doeu, não foi, Daniel?
Desembaraçou a canoa aprisionada e com a ajuda da sua zinga, foi procurando a margem do rio, ou uma pequena praia que facilitasse mais. Nem acreditava quando seus pés formigando tocaram na água do rio.
Soltou a outra canoa e sugou-a para mais perto da margem. Puxou as flechas com força, porque estavam bastante enterradas. Suas pontas apareceram sem sangue.
— Não podia fazer melhor do que fiz, Daniel. Agora prepare-se, porque vou cortar as cordas que prendem você ao mastro.
Quando o corpo balançou solto quase virou a canoa. Mas conseguiu que pendesse para frente aparando um pouco a violência do corpo caindo n'água.
— Pronto. Só preciso agora apoiar mais minha ubá. De agora em diante você vai deitado, descansando.
Quando acabou, ficou admirada da força conseguida para realizar tudo.
Resolveu banhar-se e comer um pouco. Espiou depois para o sol, doeu-lhe os olhos, olhou o rio que brilhou forte fazendo-a quase fechar as pálpebras. E descobriu que naquela solidão toda, só existia Deus se escondendo, o corpo morto de Daniel e ela. O que era ela? Não sabia explicar: nem um pouco de Deus nem um pouco de Daniel.
— Vamos continuar. Prometi a Cleo que só pela madrugada descansaria um pouco. À tarde daqui a pouco chega e a viagem fica mais fácil de se fazer.
Passou a noite remando devagar, lutando contra o sono. E para não dormir conversava a sua tristeza.
— Eu não queria lhe fazer mal nenhum, você sabe, não? Olhava as estrelas tão bem arrumadinhas no chão do céu.
— Faltava tão pouco. Eu ia mesmo embora, viu? Com o coração rebentando, mas ia. O meu erro foi ter demorado demais. Mas eu queria deixar você com o sítio bem formado, dando coisas.
Um boto bufou perto da canoa, sem que sentisse o menor medo. Quando era mocinha, divertia-se até com aquilo.
— Se não tivesse vindo aquela seca... Se não aparecesse aquela praga de gafanhoto... Que barulho feio que eles faziam, não, Daniel?
Como a noite esfriava. Puxou a coberta e em vez de cobrir-se jogou-a sobre o corpo de Daniel. Assim era melhor, ele não sentiria frio e não precisava enxergar com a vista acostumada à escuridão, o rosto afilado apontando o queixo para as estrelas.
— Que gente malvada. Será que o povo era malvado mesmo ou Deus não liga pra gente? Nós nunca fizemos nada de mal. Eu só queria deixar aquela vida. Fiz uma força danada e deu no que deu. Ah! Se Deus olhasse mais para as putas, seria tão melhor! Ah! Se Nossa Senhora fosse mesmo a mãe dos homens como diziam, não aconteceria tanta coisa ruim assim...
Calava-se, remava, cochilava um pouco e tornava a colocar a canoa em prumo, procurando o norte no rio que descia.
O sol encontrou-a vergada sobre os joelhos dormindo. Não calculava o quanto viajara. Mesmo bubuiando uma ubá rende muito na descida.
Lavou o rosto e resolveu encostar a canoa para banhar-se. Extraordinário que o rio estava tão cheio como antigamente. Não havia vestígio de seca. Nem nas águas nem no verde deslumbrante da selva. Um pouco de medo a atacou. Será que Dominguinha das Fezes tinha razão? Que só naquele lugar a desgraça se abatera?
Bobagem. Por certo chovera mais ali e o rio se encontrava, dentro do seu normal.
A água encontrava-se tão fria, que não foi difícil espantar o incômodo da noite sacrificada.
Precisava apenas comer um pouco e recomeçar a viagem. Iria penar mais com o sol do meio-dia. Na certa, adormecendo, o vento levara o seu chapéu de palha. Paciência, não podia subir o rio para procurar apenas por um chapéu. Mormente agora que precisava afastar-se cada vez mais.
Ritmava as remadas para não se exaurir completamente. Como tudo mudara! A paisagem mostrava-se bárbara e abandonada. O rio como que engrossara e as barreiras se sucediam em lugar das praias. Depois as coisas retornariam ao comum. Viajar em rio grande dava sempre naquilo. Barreiras, curvas compridas onde a água rebojava e queria voltar na subida. Depois as praias enormes com léguas de comprimento, onde os jaburus, os colhereiros e as garças pescadoras mariscavam.
Novamente o sol esquentando lhe trazia o torpor aos membros, uma certa sensação de ausência de si mesma. Um esquecimento pesado que voltava a doer-lhe a cabeça.
Quase não tinha vontade de conversar. Olhava o corpo recoberto de Daniel e não se sentia encorajada a retirar-lhe a coberta e rever o seu rosto sombreado na palidez da morte.
Por mais que procurasse ainda não encontrara um único lugar que se prestasse para enterrar Daniel. Quando passasse no Pedral do Oratório, sim. Estremecia.
— Mas nós já passamos lá ontem. Ontem? Ou foi na semana passada?
O calor do meio-dia quando o vento virava trazia-lhe às narinas um cheiro horrível de carne apodrecendo.
— Que coisa, não, Daniel? Bem que disseram que muita criação morreu. O rio deve ter arrastado muito gado, muito bezerro por aqui. Bobagem falar isso com você. Você não sente nada. Seus olhos se Deus tem mesmo alguma bondade, só enxergam estrelas de noite e de dia...
Divagava a vista em todas as direções e sentia-se meio desorientada, precisava poupar-se bastante porque poderia estar já se aproximando das grandes cachoeiras.
— Taquaratipera tem três léguas de queda e descida.
— Tudo isso, Palusaio?
— É sim. No tempo da seca, ninguém passa ela. No tempo da cheia é aquela beleza. Mas precisa ser piloteiro bom.
Tentava reanimar-se, afastando para longe qualquer sonolência, qualquer desânimo.
— Sabe, Daniel, vou precisar enterrar você logo. Está aparecendo uma praia lá no fim do estirão. Cavo bem fundo. Coloco pedra e galharia em cima e bicho nenhum mexe no seu sono. Se demorar, não vou ter mais força pra nada.
E a praia branca e alta veio-se aproximando. Embicou a proa para um lugar fundo onde pudesse aportar.
Saiu quase cambaleando da canoa. Olhou a praia limpa de água corrente, sem perigo de piranha. Arrastou devagar os pés na areia para afastar qualquer arraia-de-fogo que se esquentasse no ninho, ao sol. O tocar da água em seus pés fez-lhe bem. Precisava andar mais para o centro da praia e procurar um bom local para abrir a cova.
O vento gostoso agitava-lhe os cabelos molhados.
Uma emoção dolorida tomou conta da sua alma. Ajoelhou-se na areia. Baixou a cabeça e falou chorando.
— Deus, por favor, tenha pena de mim. Tenha pena da minha desgraça e me ajude um pouco. Me ajude, por misericórdia, pelo tanto de vontade que tive de ser boa.
Foi sendo dominada pela fraqueza e chorando quase sem forças deitou-se encostando o rosto na areia. Não importava que o sol quente a matasse naquela praia. Queria era dormir, esquecer, descansar. Não se ergueria nunca mais dali. Nunca..
Um ruído de passos arranhava a areia. Se fosse índio bravo nem se incomodaria. Mas índio caminharia sem barulho. Talvez fosse Daniel que voltando da roça, viesse ajudá-la. Devia ser isso. Porque não existia mais ninguém na face da terra. Esperou na mesma posição os passos se aproximarem. Alguém se ajoelhava ao seu lado. Uma mão percorria os seus cabelos com uma ternura poucas vezes sentida.
— Esmeralda.
O coração sobressaltou-se. Não de medo. Ao contrário, de alegria.
— Eu vim ajudar você. Eu sabia que você sozinha não poderia passar as grandes corredeiras de Taquaratipera. Vamos, meu amor, levante-se.
Sua alma estourava de felicidade. Era ele. Ninguém sabia fazer uma carícia como ele. Ninguém. Virou o rosto cheio de areia e seus olhos verdes brilhavam com a força do sol do meio-dia.
— Você veio?
Ajoelhou-se, e aquelas mãos, aquelas mãos limparam o sujo do seu rosto.
Levantou-se e abraçou-se chorando contra o seu peito.
— Você veio. Você veio.
Foi beijando todo o seu rosto. Agora eram suas mãos fracas que o acariciavam todo. Os cabelos, os olhos, os ombros.
— Não chore mais.
Ela afastou-se e o observou.
— Não quero magoar as suas feridas.
— Veja bem.
Abriu a camisa e o peito estava bem pouco enfaixado.
— Estou quase bom. Quase. Pode me apertar que essa dor faz bem ao meu coração.
Tornou a abraçar o homem. Ele sorria.
— Não era você que dizia não amar homem algum?
— Era, querido. Mas eu amo você. Só amo você. Durante toda minha vida, com todos os homens que dormi, eu, sem saber, procurava você. Nunca houve outro em meu coração.
— Sempre o primeiro homem é o que deixa marca.
— Mas agora você é meu. Ninguém vai tomar você de mim. Não tenho medo dos olhos verdes de minha mãe. Não tenho.
— Os seus são mais lindos. Os seus são mais moços.
— E agora, o que a gente vai fazer? Apontou a canoa espreguiçada na praia.
— Você não pode viajar todo o tempo com um morto que apodrece. Nós vamos enterrá-lo aqui mesmo. Não era isso que você procurava?
Ficou um instante indecisa.
— É que eu. sozinha não achava lugar melhor.
— Melhor que esse não existe. Ele não sentirá mais nada, garanto.
Ficou olhando demoradamente o seu rosto. Não podia acreditar que ele tinha voltado. Que lindo o sol batendo nos seus cabelos grisalhos. Estavam até mais embranquecidos agora. E seu coração estremecia de amor. Aquele, sim, era o seu homem.
Ele estava perguntando uma coisa, mas não conseguia ouvi-lo tal a grandeza da descoberta do seu amor.
— Esmeralda, estou perguntando.
— Pode falar que estou ouvindo agora.
— Você gostava daquele homem?
— Gostava.
— Mas gostava com amor?
— Não. Só com gratidão, só com ternura. Nunca tive nada com ele. Apenas um amigo onde pude me apoiar. Como é que você soube que eu estava viajando nessa canoa?
— O meu amor me contou. Depois você estava me devendo isso. Eu sabia que um dia você viria a mim para continuar a nossa viagem. Eu sabia que uma canoa iria trazer você para mim. O amor nunca se engana, quando realmente é verdadeiro. Agora vamos enterrar aquele homem. Depois, a gente lava a canoa, para tirar aquele cheiro pregado nela. O sol faz o resto.
A tarde chegava calma e ela remava.
— Não, fique aí mesmo. Você não vai remar. Você prometeu que me ajudaria só nas grandes cachoeiras.
Sorriu para ele como nunca.
— Esmeralda, você está cada vez mais linda. Muito mais mulher.
— Pare com essa conversa e olhe a beleza da tarde. Olhe o sol que vai começar a se esconder atrás daquela sumaúma solteira. Só queria lhe pedir uma coisa. Mas isso se você não se zangar.
— Pode pedir. O que é?
— Eu prometi à Suzi que antes de ir embora fazia um "show".
— Quem é Suzi? Sorriu.
— É uma pessoa que eu gosto muito. Muito mesmo. Agora é difícil de explicar. Mais tarde, quando a gente for descansar na praia eu lhe conto tudo.
Pensou no vulto de Suzi fumando de piteira com os dedos enfeitados, com os olhos se fechando como aquela artista de cinema que não sabia repetir o nome. Pensava nele cheia de carinho e saudade. Se ele soubesse como estava feliz. Se pudesse dizer-lhe: "Pensei que não podia amar ninguém. Mas veja, estou viajando com quem eu sempre quis na vida."
Firmou o jacumã, brecou a canoa e fez com que a força da correnteza a empurrasse para a margem do rio. Procurou a areia de uma pequena praia. Aquilo bastava.
— Está ouvindo, querido?
— O quê?
— As palmas. Quando se aproxima a hora da minha entrada em cena, as palmas começam muito antes.
Apanhou o cestinho que guardava as jóias.
— Não demoro nada. Hoje vou dançar só para você. Vai ser a minha noite mais feliz.
Retirou a roupa, atirando-a no chão. Virou-se sorrindo para Suzi.
— Você sempre gostava mais daquela blusa de malha branca que me deixava quase nua. Pois hoje irei assim.
— Não vai pintar os seios de ouro?
— Não dá tempo. Não ouve como estão batendo palmas com mais força?
Começou a escolher as jóias. As jóias brilhavam mais do que todas as estrelas na noite.
— Por favor, Suzi, ajude-me a colocar as pulseiras, os colares.'
— Que tal?
— Nunca você esteve tão linda. Nunca seus olhos foram mais verdes e mais brilhantes. Só o amor pode transformar uma pessoa assim.
— Não quer as velas?
— Hoje não.
— Nem os lampiões?
— Nada disso, Suzi. Se pudesse, eu queria o próprio sol iluminando a minha noite e a minha dança. Foi bom você ter tirado o teto e a gente enxergar as estrelas. Quando fazem menos barulho, dá até pra se ouvir as águas da cachoeira.
Abraçou-se ao pescoço de Súzi. Beijou-lhe o rosto com alegria.
— Hoje eu sou feliz. Tão feliz que ninguém pode imaginar. Voltou com pressa para a embarcação e empurrou-a na força daquela correnteza que atraía como uma voragem.
— Que tal?
Não respondeu. Bateu palmas também, acompanhando a multidão entusiasmada.
— Esmeralda, olhe-me bem. Parou no meio do seu êxtase.
— Olhe-me bem. Não vê?
— Você retirou todos os curativos? Todos?
— Estou bem. Você me curou. Agora quando a gente chegar nas grandes cachoeiras eu poderei governar a canoa sem dor alguma. Vá. Dance e use esses olhos verdes que são meus, só para mim.
— Para sempre.
E os homens enlouqueciam com a sua nudez, apenas disfarçada pelas jóias de ouro. E os homens pediam que dançassem.
Ela dançou.
E os homens pediam que cantasse.
Ela cantou.
E o ruído era ensurdecedor. Aumentando sempre, numa barulheira infernal. E quando os homens perguntaram por que ela se chamava Chuva Crioula, quase não pôde responder, mas respondeu:
— Eu sou a Chuva da Noite, meu bem.
José Mauro de Vasconcelos
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