— Vem tempestade aí.
O coronel fala para quebrar o silêncio. Ele encosta o olho bom numa rachadura na parede do compartimento, observando o horizonte. O outro também está aberto, embora mal consiga enxergar através da película de sangue vermelho. Nenhuma novidade. Há anos que o olho esquerdo está assim.
Sigo seu olhar, espiando entre as ripas frouxas de madeira. Nuvens escuras se agrupam quilômetros adiante, tentando se esconder atrás dos morros cobertos de vegetação. Ao longe, uma série de trovões. Não dou a mínima. Só espero que a tempestade não atrase o trem e não nos force a passar um segundo a mais escondidos debaixo do assoalho falso de um veículo de carga.
Não temos tempo para tempestades ou conversa fiada. Faz dois dias que não durmo e meu rosto é a prova disso. Não quero nada além de sossego e algumas poucas horas de descanso antes de voltarmos à base em Trial. Por sorte, não há muito o que fazer por aqui além de deitar. Assim como o coronel, sou alta demais para ficar de pé neste espaço. Ambos temos que ficar jogados pelo compartimento pouco iluminado, com as costas encostadas onde der. Logo virá a noite e apenas a escuridão para nos fazer companhia.
Não posso reclamar do meio de transporte. Na viagem para Solmary, passamos metade do caminho numa balsa carregada de frutas. Depois de uma parada longa demais no lago Neron, grande parte da carga apodreceu. Passei a primeira semana de operações lavando roupa para tirar o fedor. E jamais me esquecerei da confusão antes de iniciarmos a Operação Lagoa, em Detraon. Três dias num caminhão de gado, para então descobrir que a capital de Lakeland estava definitivamente fora do nosso alcance. Perto demais do Gargalo e da frente de guerra para ter defesas fracas, uma realidade que menosprezei conscientemente. Mas eu não era oficial na época, e não cabia a mim a decisão de tentar infiltrar uma capital prateada sem ter informações ou apoio adequados. Cabia ao coronel. Naquela época, ele era apenas um capitão com o codinome Carneiro e muito para provar, muito por que lutar. Eu, pouco mais que uma soldada recém- juramentada, apenas o seguia. Também tinha coisas para provar.
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Ele mantém os olhos fixos na paisagem. Não para observar o horizonte, mas para não me encarar. Tudo bem. Também não gosto de olhar para ele.
Com ou sem afinidade, formamos uma boa equipe. O Comando sabe, nós sabemos, e é por isso que continuam nos mandando juntos para as missões. Detraon foi nosso único passo em falso numa marcha infinita pela causa. E por eles, pela Guarda Escarlate, deixamos nossas diferenças de lado sempre.
— Alguma ideia do nosso próximo destino? — Assim como o coronel, não vou aguentar o silêncio pesado.
Ele se afasta da parede, franzindo a testa, ainda sem me encarar.
— Você sabe que não é assim que funciona.
Já sou oficial há dois anos, além de outros dois como soldada da Guarda e uma vida inteira à sombra dela. Sinto vontade de cuspir um “É claro que sei como funciona”.
Ninguém sabe mais do que o necessário. Ninguém sabe nada além de sua operação, seu esquadrão e seus superiores imediatos. A informação é mais perigosa do que qualquer arma que possuímos. Aprendemos isso depois de décadas de rebeliões fracassadas, todas reveladas por um prisioneiro vermelho nas mãos de um murmurador prateado. Nem o mais bem treinado dos soldados é capaz de resistir a um ataque à sua mente. São sempre descobertos, e os segredos, revelados. Assim, meus agentes e soldados se reportam a mim, sua capitã. Eu me reporto ao coronel, e ele ao Comando, seja lá quem forem. Só sabemos que precisamos continuar em frente. Esse é o único motivo para a Guarda ter durado tanto tempo, para ter sobrevivido enquanto todas as organizações clandestinas pereceram.
Mas nenhum sistema é perfeito.
— O fato de você ainda não ter recebido novas ordens não significa que não faça ideia de qual vai ser o próximo passo — digo.
Um músculo se retrai no rosto dele. Não sei se ele queria fechar a cara ou abrir um sorriso, mas duvido que fosse a segunda opção. O coronel não sorri há muitos anos, não de verdade.
— Tenho minhas suspeitas — ele responde depois de um longo momento.
— Que são?
— Minhas.
Cerro os dentes, bufando. Típico. Mas, sendo sincera comigo mesma, provavelmente é melhor assim. O número de vezes em que quase fui descoberta pelos cães de caça dos prateados serviu para me conscientizar de como o sigilo é vital para a Guarda. Só a minha mente já contém nomes, datas, operações e informações suficientes para desfazer os dois últimos anos de trabalho em Lakeland.
— Capitã Farley.
Não usamos títulos e nomes na correspondência oficial. Meu nome é Ovelha em tudo que pode ser interceptado. Mais uma defesa. Se uma das nossas mensagens cair em mãos erradas, se os prateados decifrarem nossos códigos, vão ter bastante trabalho para nos rastrear e descobrir nosso vasto e dedicado sistema de comunicações.
— Coronel — respondo, e ele finalmente me encara.
Um brilho de arrependimento aparece no seu olho bom, que ainda conserva um tom azulado familiar. O resto dele mudou muito ao longo dos anos. Dá pra notar que ele ficou mais duro, uma massa rija de músculos debaixo de roupas esfarrapadas. O cabelo loiro, mais claro que o meu, começou a rarear. Há algumas mechas brancas nas têmporas. Não acredito que não notei isso antes. Ele está ficando velho. Mas não lento. Nem burro. O coronel continua rápido e perigoso como sempre.
Fico imóvel sob seu olhar silencioso e breve. Tudo é um teste. Quando ele abre a boca, sei que passei.
— O que você sabe sobre Norta?
Abro um sorriso.
— Então finalmente decidiram expandir.
— Eu fiz uma pergunta, Ovelhinha.
O apelido é risível, já que tenho quase dois metros.
— Outra monarquia, igual a Lakeland — disparo. — Os vermelhos têm que trabalhar ou são recrutados. A maior concentração populacional é no litoral, e a capital é Archeon. Está em guerra com Lakeland há quase um século. Mantém uma aliança com Piedmont. O rei é Tiberias, Tiberias...
— Tiberias VI — ele completa como um professor. Não que eu tenha passado muito tempo na escola para saber como um professor se comporta. Culpa dele. — Da Casa Calore.
Idiotas. Não têm cérebro suficiente nem para dar nomes diferentes aos filhos.
— Ardentes — acrescento. — Reclamam para si a chamada coroa flamejante. Uma oposição conveniente aos reis ninfoides de Lakeland.
Lakeland é uma monarquia que conheço bem demais, depois de viver muito tempo sob seu domínio. A dinastia é tão interminável e invencível como as águas do seu reino.
— De fato. Estão em lados opostos, mas são terrivelmente semelhantes.
— Se é assim, vai ser fácil nos infiltrarmos lá.
Ele arqueia a sobrancelha e gesticula para o espaço sufocante em que estamos. Parece querer rir.
— Você chama isto de fácil?
— Não levei nenhum tiro hoje, então, sim, chamo de fácil — respondo. — Além disso, Norta tem o quê? Metade do tamanho de Lakeland?
— Populações comparáveis. Cidades densas, infraestrutura mais avançada...
— Melhor ainda para nós. É mais fácil se esconder nas multidões.
Ele range os dentes, irritado.
— Você tem resposta para tudo?
— Sou boa no que faço.
Lá fora, outro estrondo de trovão, mais perto desta vez.
— Então o próximo destino é Norta. Para fazer o que fizemos aqui — insisto.
Meu corpo já começa a vibrar de ansiedade. Era o que eu esperava. Lakeland é apenas uma engrenagem da máquina, uma nação em meio a um continente. Uma rebelião limitada por suas fronteiras fracassaria, esmagada pelos outros reinos. Mas uma união maior, que estivesse em dois reinos, que fizesse desmoronar mais um apoio dos malditos prateados, teria uma chance. E uma chance é só o que peço por cumprir meu dever.
A pistola ilegal na minha cintura nunca pareceu tão confortável.
— Você não pode esquecer, capitã — ele começa, fixando os olhos nos meus. Preferiria que desviasse o olhar. Ele é tão parecido com ela. — Não pode esquecer nossas verdadeiras habilidades. Quem éramos quando começamos, de onde viemos.
Sem aviso prévio, bato o pé contra as tábuas sob nós. Ele não se move. Minha raiva não é surpreendente.
— Como posso esquecer? — rebato. Resisto à vontade de mexer na longa trança loira sobre meu ombro. — Meu espelho me lembra todo dia.
Nunca ganho discussões com o coronel. Mas desta vez parece que empatamos, pelo menos.
Ele desvia o olhar para a parede. Os últimos raios de sol penetram pela madeira e iluminam o sangue do seu olho ferido. Um brilho vermelho sob a luz fraca.
Seu suspiro vem carregado de lembranças.
— O meu também.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO AO COMANDO
Responsável: Coronel CENSURADO
Designação: CARNEIRO
Origem: Trial, LL
Destinatário: COMANDO em CENSURADO
De volta a TRIAL com OVELHA.
Relatos de contra-ataque prateado em ADELA, LL, confirmados.
Solicito autorização para enviar FERIADO e equipe para observar/ responder.
Solicito autorização para iniciar a análise de possíveis contatos em NRT.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: General CENSURADO
Designação: BATEDOR
Origem: CENSURADO
Destinatário: CARNEIRO em Trial, LL
Permissão para o envio de FERIADO concedida. Apenas observação. OPERAÇÃO OLHO VIVO.
Permissão para a análise de possíveis contatos em NRT concedida.
OVELHA assumirá a frente da OPERAÇÃO TEIA VERMELHA, entrando em contato com redes de contrabando e agentes clandestinos em NRT, focando o mercado negro em torno dos ASSOBIADORES. As ordens anexas devem ser lidas apenas por ela. Partir para NRT ainda esta semana.
CARNEIRO assumirá a frente da OPERAÇÃO MURALHA. As ordens anexas devem ser lidas apenas por você. Partir para Ronto ainda esta semana.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
Trial é a única cidade grande na fronteira de Lakeland. Suas muralhas e torres detalhadamente esculpidas dão vista para o lago Redbone e para o coração rural de Norta adiante. Sob o lago há uma cidade perdida, que foi arrasada e saqueada por mergulhadores ninfoides. Enquanto isso acontecia, os escravos de Lakeland construíram Trial nas margens, como se zombassem das ruínas alagadas e da terra desolada de Norta.
Costumava imaginar quem seria idiota para lutar nessa guerra prateada, já que eles insistem em restringir o campo de batalha à área abandonada do Gargalo. A fronteira ao norte é longa, sinuosa, segue o curso do rio e é quase toda coberta de florestas, mas apesar de estar sempre bem defendida, nunca é atacada. Claro, no inverno se torna uma região de frio e neve brutais, mas e no final da primavera e no verão? E agora? Se Norta e Lakeland não estivessem lutando há um século, eu esperaria que a cidade fosse atacada a qualquer momento. Mas não aconteceu, nem vai acontecer.
Porque, afinal, a guerra não é uma guerra.
É um extermínio.
Soldados vermelhos são recrutados, lutam e morrem aos milhares, ano após ano. Dizem-lhes para lutar pelo rei, para defender sua família e o país, que certamente seria dominado e destruído se não fosse pela coragem forçada deles. E os prateados ficam sentados confortavelmente, movendo suas legiões de brinquedos de um lado para o outro, trocando golpes que nunca parecem mudar muita coisa. Os vermelhos são pequenos demais, limitados demais, desinformados demais para perceber. É doentio.
Essa é apenas uma das mil razões por que acredito na causa e na Guarda Escarlate. Mas acreditar não torna mais fácil suportar a dor de um tiro. Não como da última vez que voltei a Irabelle, com o abdome sangrando, incapaz de andar sem a droga da ajuda do coronel. Pelo menos tive uma semana para descansar e me recuperar. Agora duvido que vou ficar aqui mais do que alguns dias antes de nos mandarem a campo de novo.
Irabelle é a única base decente da Guarda na região, pelo menos de acordo com meu limitado conhecimento. Existem abrigos espalhados pelo curso do rio e no interior das florestas, mas Irabelle é com certeza o coração do nosso grupo. Meio subterrânea e completamente ignorada, a maioria de nós chamaria Irabelle de lar se fosse preciso. Mas a maioria de nós não tem um lar. Não temos nada além da Guarda e dos vermelhos ao nosso lado.
A estrutura é muito maior do que nossas necessidades; é fácil um forasteiro — ou invasor — se perder lá dentro. Perfeito para quem precisa de silêncio. Isso sem falar que boa parte das entradas e dos corredores é equipada com comportas. Uma ordem do coronel e todo o complexo vai por água abaixo, inundado como o mundo antigo que existia ali. Isso torna Irabelle úmida e fresca no verão, mas muito fria no inverno, com paredes que parecem lâminas de gelo. Independente da estação, gosto de andar pelos túneis, de patrulhar solitária as passagens de concreto esquecidas por todos, menos por mim. Depois do tempo no trem, evitando o olhar rubro e acusador do coronel, o ar fresco e o túnel diante de mim são o mais próximo da liberdade que já cheguei.
Giro a pistola no dedo, num equilíbrio cuidadoso que sou boa em manter. Não está carregada. Não sou idiota. Mas seu peso letal já me agrada. Norta. A pistola não para de girar. As leis de porte de arma são mais rígidas do que em Lakeland. Só caçadores registrados têm permissão para andar armados. E são bem poucos. Apenas mais um obstáculo que estou ansiosa para superar. Nunca estive em Norta, mas suponho que seja igual a Lakeland. Igualmente prateada, perigosa e ignorante. Mil carrascos para um milhão com a corda no pescoço.
Há muito tempo parei de me perguntar por que tudo isso ainda é tolerado. Não fui criada para aceitar a jaula do domador, ao contrário de muitos. O que enxergo como uma rendição enlouquecida é a única chance de sobrevivência para tantos outros. Acho que devo ao coronel minha crença inabalável na liberdade. Ele nunca me deixou pensar o contrário. Nunca me deixou aceitar de onde viemos. Não que eu vá lhe dizer isso algum dia. Ele já fez coisas demais para merecer meu agradecimento.
Assim como eu. É justo, suponho. E não acredito em justiça?
O som de passos me faz virar a cabeça. Escorrego a pistola para a cintura, com o cuidado de mantê-la escondida. Um camarada rebelde não se importaria com a arma, mas um oficial prateado com certeza sim. Não que eu espere que algum oficial nos encontre aqui embaixo. Nunca encontram.
Indy nem se dá ao trabalho de me cumprimentar. Detém-se a uns metros de distância; as tatuagens são evidentes sobre a pele bronzeada, mesmo à pouca luz. Espinhos subindo por um lado, do punho até a cabeça raspada, e rosas serpenteando pelo outro braço. O codinome dela é Feriado, mas Jardineira combinaria mais. Outra capitã que responde ao coronel. Somos dez sob o comando dele, cada um com um número maior de soldados comprometidos com seus respectivos capitães.
— O coronel quer você na sala dele. Novas ordens — ela diz. Em seguida, continua com a voz mais baixa, embora ninguém possa nos ouvir nos fundos de Irabelle. — Não está contente.
Abro um sorriso sarcástico ao passar por ela. É mais baixa do que eu, como a maioria das pessoas, e precisa se esforçar para não ficar para trás.
— E alguma vez ele já esteve contente? — ironizo.
— Você sabe o que quero dizer. É diferente.
Seus olhos escuros cintilam e deixam um medo raro transparecer. A última vez que vi esse medo foi na enfermaria, quando ela estava diante do corpo de outra capitã. Saraline, codinome Misericórdia, que acabou perdendo um rim durante uma incursão de rotina atrás de armas. Ainda está se recuperando. O cirurgião estava tremendo, para dizer o mínimo. Não é culpa sua. Não é seu trabalho. Mas fiz o que pude mesmo assim. Não sou daquelas que não consegue ver sangue e eu era a melhor médica disponível. Ainda assim, foi a primeira vez que segurei um órgão humano na mão. Pelo menos ela está viva.
— Ela está andando — Indy acrescenta, como se pudesse ler a culpa na minha expressão. — Devagar, mas está conseguindo.
— Que bom — comento, sem completar dizendo que ela deveria ter voltado a andar semanas antes. Não é culpa sua, ecoa na minha cabeça de novo.
Quando chegamos ao pátio central, Indy se separa de mim e volta à enfermaria. Não sai do lado de Saraline por nada, exceto para missões e, ao que parece, para dar recados do coronel. Chegaram juntas à Guarda, próximas como melhores amigas. Depois, como mais do que amigas. Ninguém liga. Não há regras contra a intimidade na organização, desde que todos cumpram o dever e voltem vivos. Até o momento ninguém em Irabelle foi burro ou sentimental o bastante para arriscar nossa causa por algo tão mesquinho.
Deixo Indy com suas preocupações e tomo a direção oposta, onde sei que o coronel me espera.
A sala dele daria uma excelente tumba. Sem janelas, apenas paredes de concreto e uma lâmpada que parece sempre queimar na hora errada. Há lugares muito melhores em Irabelle para cuidar das coisas, mas o coronel gosta do silêncio e do ambiente fechado. Apesar da estatura mediana, o teto baixo o faz parecer um gigante. Provavelmente é por isso que ele gosta tanto da sala.
A cabeça dele raspa o teto quando ele levanta para me cumprimentar.
— Novas ordens? — pergunto, já sabendo a resposta.
Faz dois dias que estamos aqui. Sei muito bem que não devo esperar uma folga, mesmo depois do sucesso absoluto da Operação Lagoa. As passagens centrais de três lagos, todos dando acesso ao interior de Lakeland, agora nos pertencem, e ninguém vai sequer desconfiar. Não sei qual é o grande plano por trás disso — isso é problema do Comando, não meu.
O coronel desliza uma folha de papel dobrada por cima da mesa. As bordas estão lacradas. Preciso romper a fita com o dedo. Estranho. Nunca tinha recebido ordens lacradas antes.
Meus olhos percorrem a página e se arregalam a cada palavra lida. Ordens do Comando. Saíram do topo, passaram pelo coronel e vieram direto para mim.
— Isso aqui é...
Ele ergue a mão para me interromper.
— O Comando disse que só você deve ler. — A voz dele está controlada, mas capto sua irritação mesmo assim. — A operação é sua.
Preciso cerrar o punho para manter a calma. Minha própria operação. O sangue lateja nas minhas orelhas, impulsionado pelos batimentos cardíacos cada vez mais acelerados. Travo a mandíbula para não sorrir. Olho de novo para as ordens para ter certeza de que são reais. Operação Teia Vermelha.
Depois de um tempo, me dou conta de que falta uma coisa.
— Não há menção ao senhor aqui, coronel.
Ele ergue a sobrancelha do olho ruim.
— E você esperava que tivesse? Não sou sua babá, capitã — vocifera. A máscara de controle ameaça cair e ele se concentra na mesa impecável, espanando um grão de pó inexistente.
Ignoro o insulto.
— Muito bem. Suponho que o senhor tenha as próprias ordens.
— Tenho — ele diz rápido.
— Então temos motivos para comemorar.
— Você quer comemorar por ser a nova garota propaganda? — O coronel quase ri. — Ou prefere brindar a uma missão suicida?
Então eu paro de conter meu sorriso.
— Não vejo as coisas assim. — Devagar, dobro as ordens de novo e guardo o papel no bolso do casaco. — Esta noite, brindo à minha primeira missão independente — continuo. — E amanhã, parto para Norta.
— Só você deve ler as ordens, capitã.
Ao chegar à porta, lanço um olhar desafiador por cima do ombro.
— Como se o senhor já não soubesse. — O silêncio dele é a única confirmação de que preciso. — Além disso, ainda terei que prestar contas ao senhor, que depois retransmitirá ao Comando — acrescento. Não resisto à tentação de lhe dar uma leve cutucada; ele merece, já que fez o comentário sobre ser minha babá. — Como se diz? Ah, sim: você é o intermediário.
— Cuidado, capitã.
Aceno com a cabeça e, sorridente, giro a maçaneta.
— Sempre, senhor.
Felizmente, ele quebra o silêncio desconfortável.
— A equipe de transmissão está esperando no seu alojamento. Melhor começar logo.
— Tomara que eu esteja pronta para as câmeras — brinco com uma vaidade fingida.
Ele balança a mão, oficialmente me dispensando. É o que faço, de muito bom grado, zanzando entusiasmada pelos corredores de Irabelle.
Para minha surpresa, a empolgação que pulsa dentro de mim não dura muito. Saio correndo em direção ao alojamento, querendo caçar os soldados sob meu comando e contar a boa nova. Mas logo diminuo o ritmo, e minha satisfação deu lugar à relutância. E ao medo.
Há um motivo — além do mais óbvio — para nos chamarem de Carneiro e Ovelha. Jamais fui mandada para qualquer lugar sem o Coronel. Ele sempre estava lá, como um salva-vidas que eu nunca quis, mas com quem já tinha me acostumado. Ele salvou minha vida tantas vezes que já perdi a conta. E com certeza é o motivo de eu estar aqui e não num vilarejo congelante, perdendo dedos a cada inverno e amigos a cada recrutamento. Não enxergamos muitas coisas da mesma forma, mas sempre cumprimos a missão e permanecemos vivos. Conseguimos o que ninguém mais consegue. Sobrevivemos. Agora preciso fazer isso sozinha. Agora tenho que proteger outros e carregar a vida deles — e também a morte — nas minhas costas.
Desacelero o passo, o que me dá mais uns instantes para me recompor. As sombras frescas são calmas e convidativas. Apoio o corpo contra a parede de concreto liso e deixo o frio percorrer meu corpo. Preciso ser como o coronel na hora de escolher os soldados. Sou a capitã, a comandante, e preciso ser perfeita. Não há lugar para erros e hesitações. Seguir em frente, a todo custo. Vamos nos levantar, vermelhos como a aurora.
O coronel pode não ser uma boa pessoa, mas é um líder brilhante.
Isso sempre foi o suficiente. E agora vou dar o meu melhor para ser assim. Penso melhor no meu plano. Deixo os outros esperarem um pouco mais.
Entro no alojamento sozinha, de cabeça erguida. Não sei por que fui escolhida, por que o Comando quer que eu seja a pessoa a gritar nossas palavras. Mas tenho certeza de que há um bom motivo. Uma jovem erguendo uma bandeira é uma figura muito marcante — mas também difícil de entender. Os prateados podem enviar a mesma quantidade de homens e mulheres para morrer no campo de batalha, mas um grupo rebelde liderado por uma mulher é facilmente subestimado. Exatamente o que o Comando quer. Ou simplesmente preferem que eu seja identificada e executada, e não um deles.
Um membro da equipe de transmissão — fugitivo de uma favela, a julgar pelo pescoço tatuado — gesticula para a câmera que já está preparada. Outro me entrega um cachecol vermelho e uma mensagem datilografada, que não será pronunciada por muitos meses.
Mas quando ouvirem a mensagem, quando ela ecoar através de Norta e Lakeland, vai cair com a força de um martelo.
Encaro as câmeras sozinha, com o rosto escondido e palavras de aço.
— Vamos nos levantar, vermelhos como a aurora.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO AO COMANDO
Responsável: Coronel CENSURADO
Designação: CARNEIRO
Origem: Trial, LL
Destinatário: COMANDO em CENSURADO
OPERAÇÃO OLHO VIVO liderada por FERIADO enfrentou oposição em ADELA.
Abrigo de ADELA destruído.
Resumo da OPERAÇÃO OLHO VIVO:
Mortos em ação: R. INDY, N. CAWRALL, T. TREALLER, E. KEYNE (4).
Prateados mortos: Zero (0).
Número de baixas civis: desconhecido.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Dia 4 da OPERAÇÃO TEIA VERMELHA, fase 1
Responsável: Capitã CENSURADO
Designação: OVELHA
Origem: Harbor Bay, NRT
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO
Livre movimentação pelas regiões de ADERONACK, GREATWOODS e COSTA DO PÂNTANO.
Movimentação difícil pela região de BEACON. Presença maciça de tropas de NRT.
Contato feito com MARINHEIROS. Entrada em HARBOR BAY com a ajuda deles.
Haverá encontro com EGAN, líder dos MARINHEIROS. Avaliação em breve.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
Qualquer bom cozinheiro dirá que sempre há ratos na cozinha.
No reino de Norta não é diferente. Pelas suas rachaduras e fendas rastejam aqueles que a elite prateada chamaria de “vermes”. Ladrões, contrabandistas, desertores, adolescentes fugindo do recrutamento ou idosos fracos tentando escapar do castigo pelo “crime” de ficarem velhos e improdutivos — todos vermelhos. Concentram- se nos bosques e nos vilarejos do interior, bem mais ao norte e mais perto da fronteira com Lakeland, encontrando segurança em lugares onde nenhum prateado de respeito se dignaria a morar. Mas em cidades como Harbor Bay, onde os prateados mantêm casas bonitas e leis horríveis, os vermelhos recorrem a medidas mais desesperadas. E eu preciso fazer o mesmo.
Não é fácil chegar perto de Egan. Seus supostos sócios conduzem meu tenente, Tristan, e eu por um labirinto de túneis debaixo das muralhas da cidade litorânea. Damos várias voltas, para me confundir e despistar qualquer um que tentasse nos seguir. Tenho quase certeza de que Melody, a ladra de voz suave e olhar perspicaz que caminha à frente, vai nos vendar. Em vez disso, ela deixa a escuridão fazer seu trabalho e, quando saímos do subterrâneo, mal sei reconhecer o verdadeiro norte, muito menos o caminho para fora da cidade.
Tristan não é de confiar nos outros; já aprendeu muito nas mãos da Guarda Escarlate. Ele paira ao meu lado, com uma mão no bolso da jaqueta, sempre segurando o punhal que carrega consigo. Melody e seus homens riem da ameaça indiscreta. Abrem seus casacos para revelar suas próprias armas cortantes.
— Não se preocupe, espichado — ela diz, arqueando as sobrancelhas diante da altura descomunal de Tristan. — Vocês estão bem protegidos.
Ele fica vermelho de raiva, mas não solta o punhal. Também carrego uma faca na bota, sem falar da pistola enfiada na parte de trás das calças.
Melody continua caminhando e nos conduzindo por um mercado que vibra com o barulho e um cheiro forte de peixe. Seu corpo robusto vai cortando a multidão, que se abre para deixá-la passar. A tatuagem no bíceps — uma âncora azul envolta por uma corda vermelha — basta para deixar todos alertas. Ela é dos Marinheiros, a rede de contrabando que o Comando me mandou averiguar. E, a julgar pela maneira como dá ordens ao próprio destacamento, os três que a obedecem, Melody é bem ranqueada e respeitada.
Sinto que ela está me examinando o tempo todo, mesmo quando olha para a frente. Foi por isso que decidi não trazer o resto da equipe comigo para conhecer o chefe dela. Tristan e eu somos suficientes para avaliar a operação que Egan lidera, julgar os motivos dele e fazer um relatório para o Comando.
Egan, ao que parece, adota uma postura diferente.
Espero uma fortaleza subterrânea bem parecida com a nossa em Irabelle, mas Melody nos leva para um farol antigo com paredes castigadas pelo tempo e pela maresia. Antes, sua luz guiava os navios até o porto, mas agora o farol está longe demais da água, já que a cidade se expandiu por cima da baía. Por fora, parece abandonado, com janelas lacradas e portas bloqueadas. Os Marinheiros não ligam nem um pouco. Nem se incomodam em esconder sua aproximação, embora todos os meus instintos clamem por discrição. Em vez disso, Melody nos conduz de cabeça erguida pelo mercado de rua.
A multidão se move conosco, como um cardume de peixes, oferecendo camuflagem. Nos acompanha ao longo de todo o caminho até o farol e a uma porta gasta e trancada. A ação me deixa de olhos arregalados. Os Marinheiros parecem bem organizados. Inspiram respeito, isso é óbvio, sem falar na lealdade. Ambos são valores admiráveis para a Guarda Escarlate, que nem o dinheiro nem a intimidação podem comprar de verdade. Meu coração salta no peito. Os Marinheiros realmente parecem aliados viáveis.
Uma vez seguros dentro do farol, ao pé de uma escada espiralada que parece infinita, sinto um nó de tensão se desfazer no meu peito. Não sou nova na atividade de infiltrar cidades prateadas e circular pelas ruas com segundas intenções, mas com certeza não é uma situação que me agrada. Especialmente sem o coronel ao meu lado como um escudo rude e eficaz contra qualquer coisa que pudesse acontecer.
— Vocês não têm medo dos guardas? — pergunto enquanto um dos Marinheiros fecha a porta por onde entramos. — Eles não sabem que vocês estão aqui?
Melody ri mais uma vez. Ela já subiu uns dez degraus da escada e responde sem interromper os passos.
— Ah, eles sabem que estamos aqui.
Os olhos de Tristan quase saltam das órbitas.
— O quê?! — ele questiona, pálido, pensando o mesmo que eu.
— Eu disse que os agentes de segurança sabem que estamos aqui — ela repete, e sua voz ecoa pelo lugar.
Quando piso no primeiro degrau, Tristan segura meu punho.
— Não deveríamos estar aqui, capi... — ele murmura, esquecendo o combinado.
Não lhe dou a chance de dizer meu nome, de ir contra as regras e os protocolos que nos protegeram por tanto tempo. Em vez disso, meto o antebraço na garganta dele e o empurro da escadaria com toda força. Ele cede e tomba, esparramando toda a sua estatura por vários degraus.
Meu rosto cora de calor. Não gosto de fazer isso, seja na frente de estranhos ou não. Tristan é um bom tenente, ainda que superprotetor. Não sei o que é mais prejudicial: mostrar aos Marinheiros que pode haver discórdia na nossa hierarquia ou que temos medo. Espero que seja a segunda opção. Dou de ombros, calma, recuo e estendo a mão para Tristan, mas sem me desculpar. Ele sabe por quê.
Sem mais uma palavra, ele me segue escada acima.
Melody nos deixa passar. Sinto seus olhos acompanharem cada um dos meus passos. Com certeza está me observando agora. E eu deixo, com postura e rosto impassíveis. Faço o máximo para ser igual ao coronel: ilegível e inabalável.
No topo do farol, em vez das janelas lacradas, há uma vista ampla de Harbor Bay. Literalmente construída sobre outra cidade, mais antiga, Harbor Bay era um emaranhado de ruas velhas. As vias estreitas e curvas eram mais adequadas para cavalos do que veículos, e precisávamos nos espremer em becos para evitar atropelamentos. Daquele ponto privilegiado, consigo ver que tudo gira em torno do famoso porto, com becos, túneis e esquinas esquecidos demais para uma patrulha completa. Somando isso à alta concentração de vermelhos, Harbor Bay é o lugar perfeito para a Guarda Escarlate começar. Nosso serviço de inteligência identificou a cidade como a base mais viável para a rebelião em Norta quando chegar a hora de pegar em armas. Diferente da capital, Archeon, onde a sede do governo exige controle e ordem absolutos, Harbor Bay não é tão fiscalizada.
Mas também não é indefesa. Há uma base militar construída sobre a praia, dividindo o semicírculo perfeito de terra e ondas ao meio. Forte Patriota. Uma parada para o Exército, a Marinha e a Aeronáutica de Norta, o único lugar que serve aos três ramos das forças militares prateadas. Como o resto da cidade, as paredes e os prédios do Forte são brancos, e a parte de cima termina em telhados azuis e altos obeliscos prateados. Já que tenho uma vista privilegiada, tento memorizar a construção. Quem sabe não será útil um dia? E graças à guerra inútil travada ao norte, o Forte Patriota ignora completamente tudo que acontece na cidade. Os soldados se fecham atrás dos muros enquanto os agentes de segurança mantêm a cidade na linha. De acordo com os relatórios, eles protegem os seus, os cidadãos prateados, mas os vermelhos de Harbor Bay basicamente governam a si mesmos, com grupos próprios para manter a ordem. São três bandos em particular.
A Ronda Vermelha atua como polícia, fazendo o possível para instaurar uma espécie de justiça vermelha, defendendo e aplicando leis com as quais os agentes prateados não se importam. Ela resolve disputas e crimes cometidos entre vermelhos com o intuito de evitar novos abusos por parte das mãos impiedosas dos prateados. O trabalho da Ronda Vermelha é conhecido e até tolerado pelas autoridades da cidade, e é por isso que não vou procurá-los. Por mais nobre que seja a causa deles, estão muito próximos dos prateados para o meu gosto.
A gangue idolatrada dos Piratas me deixa igualmente desconfiada. Tudo indica que são violentos, uma característica que costumo admirar. O negócio deles é sangue, e agem como um cão raivoso. Cruéis, implacáveis e burros, seus membros são quase sempre executados e logo substituídos. Detêm o controle de um setor da cidade mediante assassinatos e chantagens, e muitas vezes se estranham com o grupo rival, os Marinheiros.
Que devo avaliar por mim mesma.
— Suponho que você seja Ovelha.
Me viro, dando as costas para o horizonte que se estende em todas as direções.
O homem que suponho ser Egan está apoiado na janela oposta, sem consciência ou sem medo da mera vidraça velha que o separa de uma longa queda. Como eu, ele blefa, mostrando as cartas que quer enquanto esconde o resto.
Vim até aqui apenas com Tristan para passar uma determinada imagem. Egan, com Melody de um lado e uma tropa de Marinheiros do outro, escolhe demonstrar força. Para me impressionar. Bom.
Ele cruza os braços, exibindo seus músculos e cicatrizes; cada braço tem uma tatuagem de âncora. O coronel me vem à mente, embora eles não se pareçam em nada. Egan é baixo, atarracado, tem o peito estufado e a pele bronzeada. Do cabelo longo e danificado pela maresia pende uma trança embaraçada. Não duvido que tenha passado mais da metade da vida num barco.
— Ou pelo menos é esse o codinome que botaram em você — Egan continua, com um sorriso sem vários dentes. — Estou certo?
Dou de ombros, displicente.
— O meu nome importa?
— Nem um pouco. Só suas intenções. Que são...?
Imitando o sorriso dele, avanço até o centro do ambiente, com cuidado para evitar o buraco redondo onde a lâmpada do farol costumava ficar.
— Acho que você já sabe.
Minhas ordens afirmavam que o contato já havia sido estabelecido, mas sem especificar até que ponto. Uma omissão necessária para garantir que alguém de fora não pudesse usar a correspondência contra nós.
— Sei. Conheço bem os objetivos e as táticas da sua gente, mas estou falando com você. Por que você está aqui?
Sua gente. Registro as palavras na minha mente. Mais tarde vou decifrá-las. Queria muito enfrentar uma briga em vez desse jogo insuportável de esconde-esconde. Prefiro um olho roxo a um quebra- cabeça.
— Meu objetivo é estabelecer canais abertos para a comunicação. Vocês são um grupo de contrabandistas, então é bom para nós dois termos amigos do outro lado da fronteira — digo, para em seguida abrir outro sorriso vitorioso e correr os dedos pela minha trança. — Sou apenas uma mensageira, senhor.
— Ah, não acho correto chamar uma capitã da Guarda Escarlate de apenas uma mensageira.
Dessa vez Tristan fica quieto. É a minha vez de reagir, apesar do meu treinamento. Egan não deixa de notar meus olhos arregalados ou minhas bochechas coradas. Seus companheiros, Melody em especial, têm a audácia de trocar risinhos entre si.
Sua gente. A Guarda Escarlate. Ele já nos encontrou antes.
— Então não sou a primeira.
Outro sorriso.
— Nem de longe. Passamos mercadorias para vocês desde... — Ele encara Melody, fazendo uma pausa para criar suspense. — Dois anos, não é?
— Desde setembro de 300, chefe — ela responde.
— Ah, sim... Parece que você não sabia nada disso, Ovelha.
Luto contra o ímpeto de cerrar os dentes e urrar. Discrição, diziam as ordens. Duvido que jogar um criminoso arrogante do alto de sua torre decadente seja considerado discreto.
— Não é o nosso estilo. — É a única explicação que dou. Porque, embora Egan se considere superior e bem mais informado do que eu, está enganado. Ele não faz ideia do que somos, do que fizemos e de quanto mais planejamos fazer. Não é sequer capaz de imaginar.
— Bom, seus camaradas pagam bem, isso é certo — ele diz enquanto agita uma pulseira de prata toda trabalhada, trançada como uma corda. — Espero que você faça o mesmo.
— Se você fizer o que pedirmos, sim.
— Então vou fazer o que pedirem.
Um aceno de cabeça basta para pôr Tristan em movimento. Ele dá dois passos largos e desajeitados para o meu lado, tão rápido e tosco que Egan começa a rir.
— Caramba, mas você é comprido! — Egan diz. — Como te chamam? Varapau?
Um canto da minha boca treme, mas não sorrio. Por Tristan. Não importa o quanto ele coma ou treine, parece incapaz de ganhar músculos. Não que faça muita diferença para o cargo dele. Tristan é um atirador de elite, não um lutador. É mais valioso a cem metros de distância com um bom rifle. Não vou contar para Egan que o codinome dele é Caveira.
— Solicitamos um resumo e uma introdução à chamada rede dos Assobiadores — Tristan diz, fazendo as exigências no meu lugar. Outra tática que adotei do coronel. — Procuramos contatos viáveis nessas áreas-chave.
Ele entrega um mapa, comum exceto pelos pontos vermelhos em cidades importantes e entrepostos espalhados pelo país. Sei tudo de cor. Os subúrbios industriais da Cidade Cinzenta e da Cidade Nova, a capital Archeon, Delphie, a cidade militar de Corvium, e muitos vilarejos e aldeias entre elas. Egan nem olha para o papel, mas assente mesmo assim. É uma demonstração de confiança.
— Algo mais? — pergunta com a voz rouca.
Tristan me encara, como se me desse uma última chance para renegar a ordem final do Comando, mas permaneço firme.
— Em breve vamos requisitar seus serviços de contrabando.
— É fácil. Com a rede dos Assobiadores, o país inteiro está aberto para vocês. Podem enviar lâmpadas daqui para Corvium e de volta para cá se quiserem.
Não consigo segurar e abro um sorriso largo.
Mas a animação de Egan parece diminuir um pouco. Ele sabe que não vai ser simples.
— Qual é a carga?
Com um gesto rápido, atiro um saquinho de tetrarcas aos pés dele. Todas as moedas são de prata. São suficientes para convencê-lo.
— As pessoas certas.
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É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Dia 6 da OPERAÇÃO TEIA VERMELHA, fase 1
Responsável: Capitã CENSURADO
Designação: OVELHA
Origem: Harbor Bay, NRT
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO
Líder EGAN dos MARINHEIROS aceitou os termos. Vão assumir o transporte da região de Beacon assim que começarmos a fase 2 da TEIA VERMELHA.
Aviso: MARINHEIROS têm conhecimento da organização da GE. Outras células estão ativas em NRT. Pedir mais esclarecimentos?
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Dia 6 da OPERAÇÃO TEIA VERMELHA, fase 1
Responsável: Coronel CENSURADO
Designação: CARNEIRO
Origem: CENSURADO
Destinatário: OVELHA em Harbor Bay, NRT
Desconsiderar. Foco na TEIA VERMELHA.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
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É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Dia 10 da OPERAÇÃO TEIA VERMELHA, fase 1
Responsável: Capitã CENSURADO
Designação: OVELHA
Origem: Albanus, NRT
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO
Contato firmado com a rede dos ASSOBIADORES desde a região de BEACON até CAPITAL VALLEY. Tudo a favor da fase 2.
Tentando ir para o norte seguindo o RIO CAPITAL.
Vilarejo de ALBANUS, centro vermelho mais próximo de SUMMERTON (casa de verão do rei Tiberias + seu governo).
Importante? Avaliação em breve.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A população chama o lugar de Palafitas. Dá pra ver por quê. O nível do rio ainda está alto por causa do gelo que derreteu na primavera, e boa parte da cidade ficaria debaixo d’água se não fossem os pilares que suspendem as construções. Uma arena coroa o topo de um morro, um lembrete firme de quem é o dono deste lugar e quem governa este reino.
Diferente de cidades maiores como Harbor Bay ou Haven, não há muros, portões nem checagem de sangue. Meus soldados e eu entramos de manhã com o resto dos comerciantes que percorrem a Estrada Real. Um policial prateado confere nossas identidades falsas com uma olhadela desinteressada antes de gesticular para seguirmos em frente, deixando um bando de lobos entrar em sua vila de ovelhas. Se não fosse a localização e a proximidade do palácio de verão do rei, eu não olharia para Albanus duas vezes. Não há nada de útil aqui, apenas lenhadores exaustos e suas famílias, praticamente sem forças para comer, muito menos se rebelar contra o regime prateado. Mas Summerton fica a alguns quilômetros rio acima, o que torna Albanus digna da minha atenção.
Tristan decorou o vilarejo antes de entrarmos, ou pelo menos tentou. Não seria bom consultar mapas em público e deixar todo mundo saber que não somos daqui. Ele vira à esquerda rápido. O resto de nós vai atrás, passando do pavimento da Estrada Real para a estrada de barro vermelho que acompanha a margem úmida do rio. Nossas botas afundam, mas ninguém escorrega.
As casas de palafita se erguem à nossa esquerda, pontilhando a rua Marcher, se não me engano. Crianças sujas e entediadas nos observam passar enquanto jogam pedras no rio. Mais ao longe, pescadores içam redes reluzentes e enchem os barcos com a pesca do dia. Riem um para o outro, felizes por trabalharem. Felizes por terem um emprego que os poupa do recrutamento para a guerra inútil.
A Assobiadora de Orienpratis, uma cidade que vive da pedreira na beira de Beacon, é o motivo para estarmos aqui. Ela nos assegurou que outro Assobiador operava em Albanus, dando cobertura para roubos e outras atividades não legalizadas da cidade. Mas ela só comentou sobre a existência do Assobiador, não disse onde encontraríamos esse homem ou mulher. Não por não confiar em mim, mas por não saber. Como a Guarda Escarlate, os Assobiadores usam seus próprios segredos como escudo. Assim, mantenho os olhos abertos e atentos.
O mercado de Palafitas pulsa de atividade. Vai chover logo, e todo mundo quer resolver seus assuntos antes do temporal. Jogo a trança por cima do ombro esquerdo. Um sinal. Sem olhar, sei que meus rebeldes se dividem nos pares de costume. As ordens são claras. Cobrir a extensão do mercado. Ficar atento a possíveis pistas. Encontrar o Assobiador se conseguirem. Com seus pacotes de contrabando inofensivo — miçangas de vidro, pilhas, pó de café bolorento —, vão tentar negociar e vender até chegarem à fachada da operação do Assobiador. E eu farei o mesmo. Minha bolsa pende da cintura, pesada mas pequena, escondida por um pedaço da barra da camisa de sisal fora da calça. Dentro da bolsa, balas de revólver. Variadas, de calibres diferentes, aparentemente roubadas. De fato, vieram do estoque do nosso novo abrigo em Norta, uma ótima caverna nos recônditos da região de Greatwoods. Mas ninguém na cidade pode saber disso.
Como sempre, Tristan se mantém próximo, mas está mais relaxado. Cidades pequenas e vilarejos não são perigosos, não para os nossos padrões. Apesar de os policiais prateados patrulharem o mercado, são poucos e desinteressados. As punições são reservadas aos corajosos, aqueles que ousam encarar um prateado nos olhos ou criar uma confusão tão grande a ponto de obrigá-los a deixar a preguiça de lado e se meter.
— Estou com fome — digo ao virar para uma barraca que vende um pão grosseiro.
Os preços são astronômicos se comparados com o que costumamos pagar em Lakeland, mas então lembro que Norta não é um bom lugar para o cultivo de grãos. O solo deles é muito pedregoso para as fazendas prosperarem. Como esse homem se sustenta vendendo um pão que ninguém consegue comprar é um mistério. Na verdade, seria um mistério, para outra pessoa.
O padeiro, magro demais para a profissão, mal nos encara. Não parecemos clientes promissores. Chacoalho as moedas no bolso para chamar sua atenção.
Ele finalmente levanta a cabeça; seus olhos são úmidos e grandes.
O som de moedas a essa distância das cidades maiores o surpreende.
— O que você está vendo aqui é tudo o que tenho.
Nada de papo furado. Já gosto dele.
— Esses dois — digo, apontando para os melhores pães que ele tem. O padrão não é muito elevado.
Ainda assim, ele ergue as sobrancelhas. Pega os pães e os embrulha num papel velho com a eficiência do hábito. Quando entrego as moedas de cobre sem chorar um desconto, a surpresa dele aumenta. Assim como a suspeita.
— Não conheço vocês — ele sussurra, desviando o rosto e olhando para a direita, ao longe, onde um policial repreende um bando de crianças subnutridas.
— Somos negociantes — Tristan explica. Ele se inclina para a frente, apoiando-se nas tábuas frágeis da barraca de pão. Uma das mangas da camisa sobe um pouco, deixando o punho à mostra. Uma fita vermelha que dá a volta completa aparece, a marca dos Assobiadores, conforme tínhamos descoberto. É uma tatuagem falsa. Mas o padeiro não sabe disso.
Os olhos do sujeito se detêm em Tristan por apenas um instante antes de se voltarem para mim. Ele não é tão tonto quanto parece.
— E o que vocês querem negociar? — ele pergunta, entregando um dos pães para mim. Ele segura o outro, à espera.
— Uma coisinha aqui, outra ali — respondo. E então assovio, um som suave e baixo, mas inconfundível. A melodia única de duas notas que a outra Assobiadora me ensinou. Inofensiva para quem não sabe de nada.
O padeiro não sorri nem confirma nada. Seu rosto não revela qualquer sentimento.
— É melhor negociar de noite — ele simplesmente diz.
— Concordo.
— No fim da rua Mill, depois da curva. Um trailer — o padeiro acrescenta. — Depois do pôr do sol, mas antes da meia-noite.
Tristan assente. Ele sabe onde fica o lugar.
Faço o mesmo, num minúsculo gesto de agradecimento. O padeiro não agradece. Em vez disso, agarra meu outro pão e o põe de volta no balcão. Num único movimento, ele arranca o embrulho de papel e dá uma mordida provocadora. As migalhas se espalham por sua barba rala, e cada uma delas é um recado. Minha moeda foi trocada por algo mais valioso que pão.
Rua Mill, depois da curva.
Contendo um sorriso, jogo a trança por cima do ombro direito.
Meus soldados espalhados pelo mercado inteiro interrompem as buscas. Movem-se como se fossem um, como um cardume que segue o líder. Tento ignorar os resmungos de dois rebeldes enquanto saímos do mercado; aparentemente alguém bateu a carteira deles.
— Todas as baterias sumiram num segundo. Nem percebi — Cara reclama enquanto vasculha sua sacola.
Lanço um olhar para ela.
— E o comunicador? — pergunto, seca. Se o transmissor dela, um rádio minúsculo que passa nossas mensagens por estalos e bipes, estiver perdido, teremos um grave problema.
Felizmente, ela balança a cabeça e dá um tapinha num volume embaixo da camisa.
— Ainda está aqui — ela diz.
Me forço a apenas acenar com a cabeça enquanto engulo meu suspiro de alívio.
— Ei, umas moedas minhas estão faltando! — outra rebelde, Tye, a fortona, resmunga enquanto enfia as mãos cheias de cicatrizes nos bolsos.
Quase começo a rir dessa vez. Entramos no mercado em busca do ladrão dos ladrões, e meus soldados tão bem treinados acabam vítimas de um trombadinha qualquer. Em outro dia, talvez eu ficasse com raiva, mas hoje esse leve percalço sequer me incomoda. Umas moedas perdidas não são nada no panorama geral. Porque, no fim das contas, apenas algumas semanas atrás o coronel chamou nossa missão de suicida.
Mas estamos indo bem. E continuamos muito vivos.
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É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Dia 11 da OPERAÇÃO TEIA VERMELHA, fase 1
Responsável: Capitã CENSURADO
Designação: OVELHA
Origem: Albanus, NRT
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO
ASSOBIADOR de ALBANUS/ PALAFITAS vai colaborar na fase 2.
Tem olhos dentro de SUMMERTON/ Palácio de Verão do rei.
Também falou de contatos no Exército Vermelho em CORVIUM. Vamos atrás.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
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É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: Coronel CENSURADO
Designação: CARNEIRO
Origem: CENSURADO
Destinatário: OVELHA em Albanus
Não está nas ordens. Perigoso demais. Continuar TEIA VERMELHA.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
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É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Dia 12 da OPERAÇÃO TEIA VERMELHA, fase 1
Responsável: Capitã CENSURADO
Designação: OVELHA
Origem: Siracas, NRT
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO
Objetivo da TEIA VERMELHA é introduzir a GE em NRT via redes existentes. Exército está nas ordens.
Contatos no Exército Vermelho indispensáveis. Vamos atrás. Passar mensagem para o COMANDO.
A caminho de CORVIUM.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
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É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: Coronel CENSURADO
Designação: CARNEIRO
Origem: CENSURADO
Destinatário: OVELHA em Siracas
Pare. Não vá p/ CORVIUM.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
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É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: General CENSURADO
Designação: BATEDOR
Origem: CENSURADO
Destinatário: OVELHA em Siracas, CARNEIRO em CENSURADO
Seguir p/ CORVIUM. Avaliar contatos no Exército Vermelho p/ conseguir informações e fase 2/ remoção de ativos.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
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É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Dia 12 da OPERAÇÃO TEIA VERMELHA
Responsável: Capitã CENSURADO
Designação: OVELHA
Origem: Corvium, NRT
Destinatário: COMANDO em CENSURADO, CARNEIRO em CENSURADO
Entendido.
Claramente não é tão perigoso.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
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É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO AO COMANDO
Responsável: Coronel CENSURADO
Designação: CARNEIRO
Origem: CENSURADO
Destinatário: COMANDO em CENSURADO
Favor notar minha forte oposição aos desdobramentos da TEIA VERMELHA. OVELHA precisa de rédea curta.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
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É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: General CENSURADO
Designação: BATEDOR
Origem: CENSURADO
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO
Anotado.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
Dá para sentir o cheiro do Gargalo daqui. Cinzas, fumaça, cadáveres.
— O dia está devagar. Nenhuma bomba ainda — Tye comenta com os olhos fixos no horizonte a noroeste. As nuvens escuras só podem vir da frente de combate dessa guerra inútil.
Tye serviu nas linhas de batalha, mas no lado oposto ao que estamos agora. Lutou pelos senhores de Lakeland e perdeu uma orelha para o frio congelante do inverno nas trincheiras. Ela não esconde a deformidade. Puxa todo o cabelo loiro bem para trás, para que todos vejam o toco arruinado que a suposta lealdade lhe valeu.
Tristan faz uma terceira varredura na área, estreitando os olhos pelo telescópio de seu rifle longo. Está deitado de barriga para baixo, parcialmente oculto pelo mato pegajoso da primavera. Seus movimentos são lentos e metódicos, bem treinados na zona de tiro em Irabelle e nas florestas fechadas de Lakeland. Os pequenos arranhões no metal do cano brilham contra a luz do sol. São vinte e dois no total, um para cada prateado morto por aquela arma até agora. Apesar de todos os tiques paranoicos, o dedo de Tristan surpreende pela firmeza no gatilho.
Da nossa posição elevada, temos uma vista privilegiada das florestas ao redor. O Gargalo está alguns quilômetros a noroeste, coberto de nuvens apesar do sol da manhã, e Corvium fica mais um pouco ao leste. Não há mais cidades por perto, nem mesmo animais. A região é próxima demais das trincheiras para qualquer criatura que não seja um soldado. Mas eles se concentram na Estrada de Ferro, a via principal que passa por Corvium e termina na frente de batalha. Ao longo dos últimos dias, aprendemos muito sobre as legiões vermelhas, sempre em movimento para substituir os soldados derrotados, sempre voltando na semana seguinte trazendo os mortos e feridos. As tropas chegam ao amanhecer e no começo da noite. Nos mantemos longe da estrada, mas ainda podemos ouvi-los marchar. Cinco mil em cada legião — cinco mil irmãos e irmãs vermelhos resignados à condição de alvos vivos. As caravanas de suprimentos são mais difíceis de prever; só aparecem quando necessário, sem seguir qualquer programação. Os veículos de transporte são tripulados por soldados vermelhos e oficiais prateados inúteis. Não há qualquer honra em comandar veículos cheios de comida estragada e curativos usados. As caravanas de suprimentos são um castigo para os prateados e um alívio para os vermelhos. E o melhor de tudo: são pouco protegidas. Afinal, o inimigo está firme do outro lado do Gargalo, em Lakeland, separado por quilômetros de terra arrasada, trincheiras e explosões de artilharia. Ninguém olha para as árvores ao passar. Ninguém imagina que existe outro inimigo, já dentro de suas muralhas de diamante.
Não consigo avistar a Estrada de Ferro do alto desta serra — a folhagem das árvores obscurece a avenida pavimentada —, mas não queremos observar a estrada hoje. Não vamos reunir dados sobre a movimentação das tropas. Vamos falar diretamente com elas.
Meu relógio interno me diz que estão atrasadas.
— Pode ser uma armadilha — Tristan murmura, sempre ansioso para manifestar seus medos.
Ele se mantém alerta, o olho firme contra o telescópio. Espera uma armadilha desde o momento em que Will Whistle (como o sobrenome denuncia, o Assobiador em Palafitas) nos falou dos contatos no exército. E agora que vamos nos encontrar com eles, seus nervos estão mais à flor da pele do que o normal, se é que isso é possível. Não é um instinto ruim, mas não ajuda nada no momento. O risco faz parte do jogo. Não vamos chegar a lugar nenhum se pensarmos apenas na própria pele.
Mas há um motivo para só três de nós esperarmos.
— Se for uma armadilha, a gente escapa — comento. — Já enfrentamos coisa pior.
Não é mentira. Todos temos nossas cicatrizes e assombrações. Algumas nos levaram até a Guarda Escarlate, e outras vieram por causa dela. Conheço a dor de ambas.
Minhas palavras são mais para Tye do que para Tristan. Como todos os que escaparam das trincheiras, ela não está nem um pouco feliz em retornar, ainda que não vista o uniforme azul de Lakeland. Não que ela vá reclamar disso em voz alta, mas dá para perceber.
— Movimento.
Tye e eu nos agachamos e viramos na direção do olhar de Tristan. A mira do rifle se move no ritmo de uma lesma, acompanhando alguma coisa entre as árvores. Quatro sombras. Estamos em menor número.
Eles surgem com os braços erguidos, exibindo as mãos vazias. Diferente dos soldados na estrada, os quatro estão com os uniformes do avesso, preferindo o marrom manchado e as costuras pretas à cor de ferrugem usual. É uma camuflagem melhor para a floresta. Isso sem falar que esconde seus nomes e hierarquia. Não vejo nenhum tipo de insígnia ou distintivo. Não faço ideia de quem são.
Uma brisa calma sopra pelo mato como um lago atingido por uma só pedra, ondulando em círculos verdes que se desfazem contra os quatro que se aproximam em fila única. Olho bem para os pés deles. Eles têm o cuidado de pisar nas pegadas do líder. Se alguém checasse, acharia que apenas uma pessoa veio por esse caminho, não quatro. Espertos.
Uma mulher está à frente. O queixo lembra uma bigorna e ela não tem os dois dedos que vão no gatilho. É incapaz de atirar, mas, a julgar pelas marcas de cansaço no rosto, ainda é soldada. Seu cabelo foi raspado por inteiro, assim como o da garota esbelta e bronzeada logo atrás.
Dois homens vêm pela retaguarda. Ambos jovens, talvez no primeiro ano de serviço. Nenhum deles tem cicatrizes ou ferimentos visíveis, então não podem estar se fingindo de feridos em Corvium. Provavelmente são soldados da caravana de suprimentos. Têm sorte de apenas carregarem caixas de munição e comida. Embora o segundo, bem no fim da fila, pareça magro demais para o trabalho manual.
A mulher careca para a três metros de distância, ainda com as mãos para cima. Perto demais para o gosto de nós duas. Forço-me a levantar do mato e diminuo a distância entre nós. Tye e Tristan permanecem imóveis. Não se escondem, mas também não avançam.
— Somos nós — ela diz.
Apoio a mão no quadril, com os dedos a centímetros da pistola presa ao cinto. Uma ameaça clara.
— Quem nos enviou? — pergunto para testá-la. Atrás de mim, Tristan enrijece como uma cobra. A mulher tem coragem para desviar os olhos do rifle, mas os outros não.
— Will Whistle de Palafitas — ela responde. E não para por aí, embora isso baste por enquanto. — Filhos tirados das mães, soldados mandados para o abatedouro, incontáveis gerações de escravos. Cada um deles enviou vocês.
Batuco levemente com os dedos. O ódio é uma faca de dois gumes, e essa mulher já foi ferida pelos dois lados.
— Will Whistle é o suficiente. E vocês são?
— Cabo Eastree, da Legião Torre, como o resto. — Ela gesticula para trás, apontando os três que ainda observam Tristan. Aceno com a cabeça e o dedo dele no gatilho relaxa um pouco. Mas não muito. — Somos tropas de apoio, destacadas para Corvium.
— Will me disse isso — minto rápido. — E o que ele falou de mim?
— O bastante para nos fazer vir até aqui. O bastante para arriscarmos o próprio pescoço — soa a voz do jovem no fim da fila. Ele se inclina para o lado, desviando-se de seu companheiro. Abre um sorriso torto, desafiador e frio. Seus olhos brilham. — Você sabe que seremos executados se formos pegos aqui, certo?
Outra brisa, mais forte do que a anterior. Forço um sorriso vazio.
— Ah, isso é tudo?
— Melhor sermos rápidos — Eastree diz. — Sua turma pode proteger seus nomes, mas isso não adianta pra nós. Eles têm o nosso sangue, o nosso rosto. Estes aqui são soldado Florins, soldado Reese e...
O do sorriso torto dá um passo para fora da fila antes de ela conseguir dizer seu nome. Ele se aproxima, mas não estende a mão para nos cumprimentar.
— Meu nome é Barrow. Shade Barrow. E é melhor vocês não me deixarem morrer.
Lanço um olhar cerrado para ele.
— Não prometo nada.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Dia 23 da OPERAÇÃO TEIA VERMELHA, fase 1
Responsável: Capitã CENSURADO
Designação: OVELHA
Origem: Corvium, NRT
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO
Dados de CORVIUM anexos: estatísticas do forte, mapa da cidade, diagrama dos túneis, cronograma do exército.
Avaliação preliminar. Mais promissores: Cabo E (ansiosa, raivosa, tudo ou nada) e Ajudante B (bem relacionado, auxiliar de oficial novo em CORVIUM). Possíveis recrutas ou fase 2.
Ambos parecem prontos para se unir a nós, mas não sabem da presença da GE em NRT, LL. Ter dois agentes dentro de CORVIUM é de valor incalculável. Seguiremos em frente. Solicitação de recrutamento rápido?
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: Coronel CENSURADO
Designação: CARNEIRO
Origem: CENSURADO
Destinatário: OVELHA em Corvium
Solicitação negada. Cabo E e Ajudante B não são essenciais.
Deixar CORVIUM. Continuar avaliando contatos dos ASSOBIADORES/ ativos para a fase 2 da TEIA VERMELHA.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: Capitã CENSURADO
Designação: OVELHA
Origem: Corvium, NRT
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO
Dados de CORVIUM são vitais para toda a causa da GE. Solicitação de mais tempo no local. Passar ao COMANDO.
Acredito muito que Cabo E e Ajudante B são fortes candidatos.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: General CENSURADO
Designação: BATEDOR
Origem: CENSURADO
Destinatário: OVELHA em Corvium, CARNEIRO em CENSURADO
Solicitação negada. Ordens para continuar a avaliação da fase 1 para início da fase 2/ remoção de ativos.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO AO COMANDO
Responsável: Capitã CENSURADO
Designação: OVELHA
Origem: Corvium, NRT
Destinatário: BATEDOR em CENSURADO
Forte oposição. Muitos ativos militares em CORVIUM, precisam ser avaliados para o início da fase 2.
Solicitação de mais tempo no local.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: General CENSURADO
Designação: BATEDOR
Origem: CENSURADO
Destinatário: OVELHA em Corvium
Solicitação negada. Saia daí.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
Seguindo o protocolo, ateio fogo na carta, uma fina tira de papel. Os pontos e traços que detalham as ordens do Comando se desfazem, consumidos pela chama. Conheço a sensação. A raiva quente se agita dentro de mim. Mas mantenho uma expressão impassível, por Cara.
Ela observa tudo, com os óculos grossos equilibrados no nariz. Seus dedos coçam, prontos para digitar a resposta para as ordens que ela é incapaz de ler.
— Não precisa — digo, dispensando-a com um gesto. A mentira hesita por um instante em meus lábios. — O Comando cedeu. Vamos ficar.
Aposto que o olho ruim do coronel está dando voltas no crânio neste exato momento. Mas suas ordens são idiotas, limitadas, e agora o Comando pensa como ele. Devem ser desobedecidos em nome da causa, em nome da Guarda Escarlate. Cabo Eastree e Barrow são indispensáveis para nós, sem contar que ambos estão arriscando a própria vida para conseguir a informação de que preciso. A Guarda lhes deve um juramento, quando não uma retirada na fase 2.
Eles não estão aqui, sujando as mãos, digo a mim mesma. Ajuda a aliviar a culpa pela desobediência. O coronel e o Comando não entendem o que Corvium significa para as forças armadas de Norta, nem o quão importante será essa informação. Só o sistema de túneis já vale o meu tempo — ele conecta cada uma das partes da cidade-fortaleza, permitindo não apenas a movimentação de tropas clandestinas, mas uma infiltração fácil em Corvium. Graças ao posto de Barrow como ajudante de um alto oficial prateado, também sabemos dados menos requintados... Sabemos quais oficiais preferem a companhia forçada de soldados vermelhos. Sabemos que existe uma briga entre a família do general Lord Osanos, o ninfoide que governa a região e comanda a cidade, e a do general Lord Laris, comandante de toda a esquadra aérea de Norta. Sabemos quem é vital para os militares e quem só usa a patente para se mostrar. A lista não acaba. Rivalidades mesquinhas e fraquezas a serem exploradas. Uma série de articulações apodrecidas que podemos golpear.
Se os membros do Comando não veem isso, é porque são cegos.
Mas eu não sou.
E hoje é o dia em que vou por meus próprios pés lá dentro, do outro lado das muralhas da cidade, para ver o que Norta tem de pior a oferecer para a revolução de amanhã.
Cara fecha o transmissor e volta a pendurá-lo no pescoço. O dispositivo está com ela o tempo todo, aninhado perto do coração.
— Nem mesmo para o coronel? — ela pergunta. — Para provocar?
— Hoje não — respondo forçando um sorriso, o que a deixa satisfeita.
E me convence. As duas últimas semanas foram uma mina de ouro de informações. As próximas duas com certeza serão iguais.
Saio do cômodo abafado e lacrado que usamos para as transmissões pisando forte. Essa é a única parte da casa abandonada que tem as quatro paredes e o telhado intactos. O resto da construção cumpre bem seu papel de abrigo para nossas operações em Corvium. A sala principal, um grande quadrado, tem paredes de tijolos, embora uma delas tenha desmoronado junto com o telhado de latão enferrujado. E o ambiente menor, provavelmente um dormitório, não tem mais nada do telhado. Não que a gente se importe. A Guarda Escarlate já passou por coisa pior, e as noites têm sido bem quentes para a época, ainda que úmidas. O verão está chegando a Norta. Nossas barracas de plástico protegem da chuva, mas não do ar úmido. Não é nada, digo a mim mesma. Um leve desconforto. Mas o suor escorre pelo meu pescoço mesmo assim. E ainda não é nem meio-dia.
Tentando ignorar a sensação grudenta, enrolo a trança no topo da cabeça, como se fosse uma coroa. Se o tempo continuar assim, pode ser que a corte fora.
— Ele está atrasado — Tristan diz de seu posto atrás de uma janela sem vidro. Seus olhos nunca param. Estão sempre atentos, caçando.
— Ficaria preocupada se não estivesse — comento. Barrow não chegou no horário nenhuma vez nas duas últimas semanas, em nenhum dos encontros.
Cara se junta a Tye no canto, deixando o corpo cair sentado e alegre no chão. Em seguida, começa a limpar os óculos com o mesmo esmero com que Tye limpa as pistolas. São parecidas, loiras de Lakeland. Como eu, não estão acostumadas com o calor de maio e se espremem na sombra.
Tristan não se afeta tanto. Nasceu em Piedmont, filho de um inverno brando e um verão lamacento. O calor não o incomoda. Na verdade, o único indício em seu corpo da mudança de estação são as sardas, que parecem aumentar. Pontilham cada dia mais os braços e o rosto dele. Seu cabelo também está maior. Parece um esfregão vermelho-escuro desgrenhado.
— Foi o que eu falei para ele — Rasha diz do outro canto, enquanto faz tranças no cabelo para tirá-lo do rosto negro. Com cuidado, ela reparte os cachos pretos em partes iguais. O rifle dela, não tão longo quanto o de Tristan, mas usado com a mesma maestria, está escorado na parede ao lado dela. — Estou começando a achar que ninguém dorme em Piedmont.
— Se você quer saber mais sobre meus hábitos de sono, Rasha, é só perguntar — Tristan dispara. Desta vez, ele lança um olhar por cima do ombro, só por um segundo, para encontrar os olhos negros dela. Ambos trocam olhares significativos.
Tenho que me controlar para não bufar.
— Deixem isso para a floresta, vocês dois — resmungo. Já é bem difícil dormir no chão sem ouvir uma barraca chacoalhando. — As sentinelas ainda estão lá fora?
— Tarry e Shore estão patrulhando o morro. Não voltam antes do anoitecer. O mesmo vale para Grande Coop e Martenson — Tristan conta o resto da equipe nos dedos. — Cristobel e Pequeno Coop estão cerca de um quilômetro à frente, nas árvores. Esperando o seu amigo Barrow faz um tempo, e pelo visto a espera vai longe.
Confirmo. Tudo em ordem então.
— O Comando está feliz até aqui?
— Mais feliz é impossível — minto com toda a sutileza que tenho. Felizmente, Tristan não tira os olhos do relógio e não percebe meu pescoço ficando vermelho. — Estamos passando boas informações. Com certeza vale o nosso tempo.
— Estão pensando em aceitar Eastree ou Barrow?
— Por que está perguntando isso?
Ele dá de ombros.
— Acho que estamos gastando muito tempo com uma dupla que não vamos recrutar. Ou você sugere que os levemos para a fase 2?
Tristan não quer ser enxerido. É um bom tenente, o melhor que já vi, leal até os ossos. Não sabe o que está cutucando, mas machuca mesmo assim.
— Ainda estou pensando nisso — murmuro, caminhando devagar para longe das perguntas dele. — Vou dar uma volta na propriedade. Me chame se Barrow der as caras.
— Entendido, chefe — a voz dele ecoa pela sala.
É uma batalha conseguir dar passos regulares, e a sensação é de que se passa uma eternidade até eu chegar à segurança das árvores. Respiro fundo para me acalmar. É o melhor a fazer. Mentir para eles, desobedecer às ordens... É o melhor. Não é culpa sua se o coronel não entende. Não é culpa sua. O velho mantra me estabiliza, reconfortante como uma bebida forte. Tudo o que fiz e que vou fazer é pela causa. Ninguém pode alegar o contrário. Ninguém jamais questionará minha lealdade, não quando eu lhes entregar Norta numa bandeja de prata.
Devagar, um sorriso aparece em minha cara habitualmente fechada. Minha equipe não sabe o que vem pela frente. Nem mesmo Tristan. Não sabem o que o Comando planejou para este reino nas próximas semanas, ou o que fizemos para botar as coisas em ação. Sorrindo, me lembro da câmera ligada. Das palavras que disse diante dela. Logo o mundo vai ouvi-las.
Não gosto dos bosques daqui. Calmos demais, silenciosos demais. O cheiro de cinzas fica grudado no ar. Apesar de as árvores viverem, este lugar está morto.
— Boa hora para uma caminhada.
Minha pistola encosta na cabeça dele antes de eu sequer pensar.
Por algum motivo, Barrow nem treme. Apenas ergue os braços, fingindo se render.
— Você é um tipo especial de idiota — digo.
Ele ri.
— Devo ser. Afinal, continuo voltando ao seu clube de rebeldes esfarrapados.
— E está atrasado.
— Prefiro dizer que estou em desvantagem cronológica.
Grunhindo mal-humorada, baixo a arma, mas não tiro a mão dela. Olho bem para ele. Geralmente, o uniforme está do avesso para servir de camuflagem, mas dessa vez ele nem se deu ao trabalho. O casaco puído é vermelho e escuro como sangue e se destaca em meio ao verde.
— Mandei dois olheiros esperarem você.
— Eles não devem ser muito bons — ele diz com aquele sorriso de novo. Outra pessoa acharia Shade Barrow animado, aberto. Mas há algo frio por baixo. Uma rigidez de ferro. — Vim do jeito de sempre.
— Mesmo? — zombo, dando um tapa na jaqueta dele.
Aí está. Os olhos dele brilham como âmbar congelado. Shade Barrow tem segredos, como todo mundo.
— Vou avisar meu pessoal que você está aqui — digo, recuando um passo do corpo esguio de Barrow. Os olhos dele seguem meus movimentos, me analisando devagar. Só tem dezenove anos e pouco mais de um ano no serviço militar, mas o treinamento certamente o marcou.
— Você quer dizer que vai avisar o seu cão de guarda?
Um canto da minha boca se levanta.
— O nome dele é Tristan.
— Tristan, certo. Cabelo ruivo, sempre colado no rifle.
Barrow abre espaço para mim, mas me segue pelo caminho até a sede da fazenda.
— Engraçado — ele continua. — Nunca esperei encontrar um sulista entre vocês.
— Sulista? — minha voz não vacila apesar da especulação não tão vaga de Barrow.
Ele aperta o passo, quase ao ponto de pisar no meu calcanhar. Me seguro para não lhe dar um coice no joelho.
— Ele é de Piedmont — Barrow continua. — Tem que ser, com aquele sotaque. Não que seja segredo. Assim como o restante do seu bando. Todos de Lakeland, não é?
Lanço um olhar por cima do ombro.
— De onde você tirou essa ideia?
— E você é do extremo norte, imagino. Mais longe do que os mapas registram — ele insiste. Tenho a sensação de que está se divertindo, como se montasse um quebra-cabeça. — Vocês vão adorar quando chegar o verão de verdade, com dias longos e carregados de calor. Nada como uma semana de nuvens negras que não chovem e uma brisa que parece capaz de sufocar.
— Não me surpreende que você não esteja nas trincheiras — digo ao tocar a maçaneta. — Não precisam de poetas na linha de frente.
O idiota tem a cara de pau de piscar pra mim.
— Bom, não podemos ser todos uns brutos.
Apesar dos muitos alertas de Tristan, sigo Barrow desarmada. Se for pega em Corvium, posso implorar dizendo que sou uma simples vermelha de Norta no lugar errado e na hora errada. Mas isso não seria possível se estivesse portando minha pistola de Lakeland ou uma faca de caça bem gasta. Nesse caso, seria executada no ato, não apenas por portar armas sem permissão, mas por ser claramente de Lakeland. Provavelmente me deixariam cara a cara com um murmurador só pra garantir, e esse é o pior destino de todos.
Enquanto a maioria das cidades cresce para os lados, com bairros e cidades menores circundando seus limites, Corvium se ergue solitária. Barrow para um pouco antes do fim da linha da floresta e olha para o norte, para a paisagem limpa ao redor da montanha. Meus olhos varrem a cidade-fortaleza em busca de qualquer detalhe útil. Eu tinha me debruçado sobre os mapas roubados de Corvium, mas ver o lugar ao vivo é completamente diferente.
As muralhas são de granito preto com espinhos de ferro reluzente incrustados, bem como outras “armas” facilmente domadas pelos poderes dos prateados. Trepadeiras verdes tão grossas quanto troncos se enrolam pelas dez ou doze torres de vigia. Um fosso de água escura alimentado por canos rodeia a cidade inteira. Espelhos estranhos pendem entre ganchos de metal que descem dos parapeitos como presas. Suponho que sejam para os sombrios, para que possam concentrar seu poder de dominar a luz. Claro, isso sem contar as armas tradicionais. As torres de vigia escuras como petróleo também estão repletas de armas pesadas e de uma artilharia pronta para disparar contra qualquer pessoa ou coisa nos arredores. E, atrás das muralhas, os edifícios sobem cada vez mais alto, especialmente por causa do espaço apertado. Também são pretos, com o topo dourado e prata, uma sombra sob a luz intensa do sol. De acordo com os mapas, a cidade em si é organizada como uma roda, com vias dispostas feito raios, todas partindo da praça central usada para reunir as tropas e realizar as execuções.
A Estrada de Ferro corta a cidade ao meio, de leste a oeste. O trecho oeste é tranquilo; ninguém nas ruas agora no fim da tarde. Mas o trecho leste vibra com os veículos, a maioria de prateados, levando nobres e oficiais para longe da fortaleza. Ao final da fila, vai um comboio vermelho de entregas que retorna aos mercados de Rocasta, a cidade mais perto para arranjar suprimentos. São veículos motorizados, carroças e até mesmo pessoas a pé, fazendo todo o trajeto de trinta quilômetros para voltar em alguns dias. Tiro a luneta do bolso da jaqueta para acompanhar a fileira irregular.
Uma dúzia de veículos, o mesmo número de carroças, talvez trinta vermelhos a pé. Todos vão devagar para permanecerem juntos. Vão levar pelo menos nove horas para chegar ao destino. Um desperdício de contingente, mas duvido que se importem. Entregar uniformes é mais seguro do que usá-los. Observo o último membro da caravana deixar o portão leste.
— O portão da reza — Barrow cochicha.
— Hum?
Ele dá um tapinha na minha luneta e explica:
— Chamamos de portão da reza. Quando você entra, reza pra sair. Quando sai, reza pra nunca mais voltar.
Não consigo segurar um riso irônico.
— Não sabia que Norta era religiosa — digo, e ele apenas nega com a cabeça. — Então pra quem vocês rezam?
— Acho que pra ninguém. São só palavras no fim das contas.
De alguma forma, sob a sombra de Corvium, os olhos de Shade Barrow encontram um pouco de calor.
— Se você me levar até lá, te ensino uma oração minha. — Vamos nos levantar, vermelhos como a aurora. Por mais irritante que Barrow seja, tenho a sensação crescente de que logo mais será um escarlate.
Ele inclina a cabeça, me encarando com a mesma intensidade com que o encaro.
— Combinado.
— Embora eu não tenha ideia de como você planeja fazer isso. Aquela caravana era a nossa melhor chance, mas infelizmente você chegou... Como foi que você disse? Em desvantagem cronológica?
— Ninguém é perfeito, nem mesmo eu — ele responde com um sorriso de idiota. — Mas eu disse que ia colocar você lá dentro hoje, e sempre cumpro minha palavra. Cedo ou tarde.
Olho pra ele de cima a baixo, medindo sua postura. Não confio em Barrow. Não é do meu feitio confiar em ninguém de verdade. Mas o risco faz parte do jogo.
— Você vai me fazer levar um tiro?
O sorriso dele aumenta.
— Acho que você vai ter que descobrir.
— Muito bem, e o que vamos fazer?
Para a minha surpresa, ele estende a mão. Seus dedos são longos, e eu apenas observo, confusa. Será que ele quer que a gente pule o portão como crianças risonhas? Franzindo a testa, cruzo os braços e viro de costas.
— Bom, vamos começar...
Uma cortina de escuridão cobre minha vista quando Barrow joga um cachecol por cima dos meus olhos.
Eu gritaria se pudesse, para avisar Tristan, que nos segue a quinhentos metros de distância. Mas, de repente, o ar é espremido dos meus pulmões, e tudo parece encolher. Não sinto nada além de um mundo cada vez mais apertado e a pressão do peito de Barrow contra minhas costas. O tempo gira em falso, tudo cai. O chão dança sob meus pés.
Bato forte contra o concreto, o que faz meu cérebro chacoalhar ainda mais. Minha visão fica embaçada, pontos pretos contra um fundo ainda mais escuro. Tudo ainda gira. Preciso fechar os olhos de novo para me convencer de que não estou girando também.
Minhas mãos apalpam algo viscoso e frio quando tento levantar, e torço para que seja água. Não consigo. Caio para trás. Abrindo os olhos na marra, me deparo com uma escuridão azul e úmida. As manchas diminuem, primeiro devagar e depois somem completamente.
— Mas que m...?
Viro de bruços e vomito tudo o que tinha na barriga.
A mão de Barrow surge nas minhas costas fazendo gestos circulares que ele acha que vão aliviar a dor. Mas o toque me deixa arrepiada. Depois de botar tudo pra fora, dou uma cusparada e levanto mesmo com os pés trêmulos. Minha intenção é pelo menos conseguir me afastar dele.
Ele estende a mão para me apoiar, mas eu a afasto com um tapa, desejando ter trazido a faca.
— Não encosta em mim — rosno. — O que foi isso? O que aconteceu? Onde estou?
— Cuidado! Você está virando uma filósofa.
Dou uma cusparada de bile ácida nos pés dele.
— Barrow! — sibilo.
Ele suspira incomodado, como um professor de crianças.
— Trouxe você pelos dutos de água. Alguns deles estão na beira da mata. Precisei vendar seus olhos, claro. Não posso entregar todos os meus segredos de graça.
— Dutos o cacete. Estávamos lá fora há um minuto. Nada se move tão rápido.
Barrow faz o possível para conter um sorriso.
— Você bateu a cabeça — ele diz depois de um longo momento. — Desmaiou quando começamos a escorregar.
Isso explicaria o vômito. Contusão. No entanto, jamais me senti tão desperta. Toda a dor e náusea dos últimos segundos passaram de repente. Apalpo minha cabeça meticulosamente em busca de um galo ou algum ponto dolorido, mas não encontro nada.
Ele observa meu exame com uma atenção intensa.
— Ou você acha que percorreu o meio quilômetro até chegar na fortaleza de Corvium de outra maneira?
— Não, imagino que não.
À medida que meus olhos se adaptam à pouca luz, percebo que estamos numa despensa abandonada ou esquecida, a julgar pelas prateleiras vazias e pelos dois dedos de água no chão. Evito olhar para o monte de vômito fresco.
— Aqui, vista isso — ele diz ao tirar uma muda de roupa encardida de algum lugar no escuro; um canto escondido, mas fácil de achar. A roupa voa até mim e bate contra o meu peito, levantando uma pequena nuvem de pó e fedor.
— Maravilhoso — murmuro ao desdobrar as peças e ver que se trata de um uniforme do regimento. Está bem gasto, remendado e com marcas de sabe-se lá o quê. A insígnia é simples: uma única barra branca com contornos em preto. Um soldado da infantaria, recrutado. Um cadáver ambulante. — De que defunto você arrancou isso?
O choque frio faísca dele mais uma vez por um instante.
— Vai servir — ele responde. — Isso é tudo com que você precisa se preocupar.
— Muito bem.
Jogo os ombros para trás e me livro da jaqueta sem muita cerimônia, arrancando a calça gasta e a camisa em seguida. Minha roupa de baixo não é nada especial. Não combina, mas está limpa, felizmente. Barrow, contudo, olha para o lado, com a boca um pouco aberta.
— Em boca aberta entra mosca, Barrow — provoco enquanto visto a calça do uniforme. Sob a luz escassa, parece vermelha e gasta como canos enferrujados.
— Desculpe — ele balbucia e então vira o rosto, seguido do corpo, na minha direção. Como se eu ligasse para privacidade. Acho graça que ele esteja ficando vermelho.
— Não sabia que os soldados tinham tanta vergonha do corpo feminino — continuo enquanto fecho o zíper da camisa do uniforme. É apertado, mas serve. Obviamente foi feito para alguém mais baixo e com ombros mais estreitos.
Ele volta a olhar para os lados. Agora até suas bochechas estão vermelhas, e ele parece mais jovem. Não, percebo. Agora ele parece ter a idade que tem.
— Não sabia que as pessoas eram tão liberais em Lakeland.
Abro um sorriso tão frio quanto o olhar dele.
— Sou da Guarda Escarlate, garoto. Tenho mais com que me preocupar do que ter vergonha do meu corpo.
Algo treme entre nós. Uma corrente de ar, quem sabe, ou talvez seja apenas minha dor de cabeça voltando. Deve ser isso.
E então Barrow começa a rir.
— O quê?
— Você me lembra a minha irmã.
É a minha vez de sorrir.
— Você a espia sempre, é?
Ele não cai na provocação, ignorando meu comentário.
— O seu comportamento, Farley. O seu jeito. Vocês pensam igual.
— Ela deve ser uma garota brilhante.
— Com certeza ela acha que é.
— Muito engraçado.
— Acho que vocês duas seriam grandes amigas — ele diz. Depois inclina a cabeça refletindo por um segundo. — Ou acabariam se matando.
Pela segunda vez em poucos minutos, encosto em Barrow contra minha vontade. Não com a mesma gentileza dele quando esfregou minhas costas. Na verdade, dou um soquinho no braço dele.
— Vamos começar, então — digo. — Não gosto de andar por aí com roupas de mulheres mortas.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
— Capitã, responda às ordens. O COMANDO não vai tolerar isso. CARNEIRO.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO AO COMANDO
Dia 29 da OPERAÇÃO MURALHA, fase 2
Responsável: Coronel CENSURADO
Designação: CARNEIRO
Origem: CENSURADO
Destinatário: BATEDOR em CENSURADO
Dois dias sem contato com OVELHA.
Solicito permissão para interceptar.
OPERAÇÃO MURALHA à frente do cronograma. Ilha #3 operacional, mas o transporte é problemático. É preciso mais barcos do que pensamos.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: General CENSURADO
Designação: BATEDOR
Origem: Comando em CENSURADO
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO
Interceptação permitida. Enviaremos mais info sobre a localização dela.
Usar força se necessário. Ela foi sugestão sua e será erro seu se continuar assim.
Passe TEIA VERMELHA para fase 2. Colabore com outras equipes para começar a remoção.
Analisaremos outras opções de transporte para #3.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
— Farley, melhor entrar na linha ou é a sua cabeça em jogo. CARNEIRO.
Outra mensagem queimada.
— Encantador — murmuro enquanto observo as palavras do coronel arderem.
Dessa vez, Cara não se dá ao trabalho de perguntar. Mas os lábios dela se contorcem numa linha fina, contendo uma torrente de perguntas. Já se passaram cinco dias desde que mandei minha última mensagem, oficial ou não. É óbvio que ela sabe que alguma coisa está acontecendo.
— Cara... — começo, mas ela ergue a mão para me interromper.
— Não tenho autorização — ela responde. Seus olhos encontram os meus com uma ferocidade incrível. — E não me importo por qual caminho você vai nos levar, desde que acredite que é o certo.
Sinto um calor dentro de mim. Faço o máximo para não demonstrar, mas um sorriso discreto acaba escapando mesmo assim. Minha mão encontra o ombro dela no menor dos toques de agradecimento.
— Não banque a sentimental comigo, capitã — ela ri ao guardar o transmissor.
— Entendido.
Endireito o corpo e me viro para o resto da equipe. Estão agrupados na esquina do beco fumacento, a uma distância respeitável para me dar espaço para a correspondência privada. Para disfarçar nossa presença, Tristan e Rasha estão sentados na sarjeta, de frente para a rua. Mendigam comida ou dinheiro com a mão estendida e a cabeça coberta por um capuz. Todos passam reto, olhando para outro lugar.
— Tye, Grande Coop — chamo. A dupla em questão dá um passo à frente. Tye inclina a cabeça, direcionando o ouvido bom para mim. Grande Coop faz jus ao apelido, com o tronco do tamanho de um tonel e quase dois metros e meio de puro músculo. Ele é quase o dobro do irmão, Pequeno Coop. — Fiquem com Cara e aprontem o segundo rádio.
Tye estende o braço, se coçando para pôr as mãos na nossa mais nova aquisição: um rádio de segurança de última geração feito pelos técnicos. Roubamos três dos estoques de Corvium graças à mão leve de Barrow. Passo um rádio adiante e mantenho o segundo aparelho comigo. Barrow ficou com o terceiro, para o caso de precisar entrar em contato. Não que ele já tenha usado. Não que eu esteja vigiando a comunicação dele. Barrow geralmente só aparece quando quer trocar informações, sempre sem avisar, passando por todos os olheiros que ponho ao redor da casa da fazenda sem ser visto. Mas hoje estamos além até de seu alcance. Quarenta quilômetros a leste, no meio de Rocasta.
— Quanto aos outros, Cristobel e Pequeno Coop, vocês ficam de guarda. Procurem um lugar alto e se escondam. Os sinais são os de sempre.
Cris mostra um sorriso com dentes faltando — castigo por “caçoar” do seu senhor prateado quando ainda era uma criada de doze anos numa mansão em Trial. Pequeno Coop demonstra a mesma ansiedade. O tamanho e o comportamento tímidos — sem falar da parede de músculos que é o irmão — escondem um agente habilidoso com nervos de aço. Sem precisar de mais nada, ambos se põem a trabalhar. Pequeno Coop se segura numa calha e sobe pelas paredes do beco, enquanto Cris trepa numa cerca e a usa para tomar impulso até o beiral estreito de uma janela. Ambos desaparecem em questão de instantes para nos seguir dos telhados.
— Os demais, atenção aos alvos. Mantenham os ouvidos atentos. Decorem os movimentos. Quero saber tudo, de aniversário a tamanho do sapato. Coletem o que conseguirem no tempo que temos.
As palavras são familiares. Todo mundo sabe por que quis essa ronda. Mas também serve de grito de guerra, mais um nó para nos manter unidos. Mais um nó para atá-los à sua desobediência, você quer dizer.
Cerro o punho, cravo as unhas na palma da mão, onde ninguém pode ver. A dor apaga o pensamento. A brisa que sopra pelo beco faz o mesmo. Fede a lixo, mas pelo menos é fresca. Vem do lago Eris, ao norte.
— Quanto mais soubermos do comboio de suprimentos de Corvium, mais fácil será nos infiltrar — digo. Um motivo tão bom para ficarmos aqui como qualquer outro, apesar de o coronel só me pedir para voltar. — Os portões fecham ao pôr do sol. Voltem para o ponto de encontro em uma hora. Entendido?
Eles assentem ao mesmíssimo tempo, com olhos vivos, brilhantes e ansiosos.
Algumas quadras adiante, o relógio da torre soa nove vezes. Me ponho em movimento sem nem pensar, passando pelos meus rebeldes que formam uma fila atrás de mim. Tristan e Rasha são os últimos a entrar. Meu tenente parece nu sem o rifle, mas sei que carrega uma pistola em algum lugar, provavelmente na base das costas, acumulando o suor.
Partimos em direção às ruas, mais especificamente para uma das avenidas principais do setor vermelho da cidade. Estamos seguros por enquanto, cercados apenas por casas e comércios vermelhos, com poucos ou talvez nenhum policial prateado para nos ver. Como Harbor Bay, Rocasta conta com a própria Ronda Vermelha para proteger aquilo com que os prateados não se importam. Embora estejamos indo para o mesmo lugar, minha equipe se divide nas duplas habituais e se dispersa. Não dá para perambular pelo centro da cidade parecendo uma tropa de choque, muito menos uma gangue. Tristan ficar por perto de novo, e eu nos conduzo ao destino: a Estrada de Ferro. Como Corvium, Rocasta também é cortada ao meio pela estrada, que avança direto pelo seu cerne como um rio que corre por um vale. À medida que nos aproximamos do acesso principal, o trânsito começa a aumentar. Criados atrasados se apressam para a casa dos senhores, vigias voluntários voltam do turno da noite, pais arrastam crianças para escolas decrépitas.
E, claro, mais agentes de segurança a cada esquina. Seus uniformes sóbrios, pretos com detalhes prata, se destacam sob o sol cruel do fim da primavera, bem como as armas e os cassetetes reluzentes em suas cinturas. Engraçado eles sentirem necessidade de usar uniforme, como se corressem o risco de serem confundidos com um vermelho. Com um de nós. Sem chance. A pele deles basta para distingui- los, com um fundo azul e cinza, drenada de toda vida. Não existe um vermelho vivo tão frio quanto um prateado.
Dez metros à frente, Rasha para tão rápido que seu parceiro, Martenson, quase tropeça nela. Uma tarefa difícil, considerando que ela tem quase vinte centímetros a mais do que o velhinho grisalho. Do meu lado, Tristan fica tenso, mas não rompe a formação. Conhece as regras. Nada está acima da Guarda, nem mesmo o afeto.
Legionários prateados arrastam um menino pelos braços. Os pés dele chutam o ar. Ele é pequeno, parece ter menos de dezoito anos. Duvido que sequer precise fazer a barba. Faço o possível para bloquear o som de suas súplicas, mas não consigo ignorar o lamento da mãe. Ela segue os três, com outros dois filhos logo atrás, enquanto o pai, solene, acompanha à distância. As mãos dela agarram a camisa do filho, numa última tentativa de impedir o recrutamento.
Todos na rua parecem prender a respiração enquanto observam a tragédia.
Um estalo e a mãe cai para trás, levando a mão à bochecha inchada. O legionário sequer levantou um dedo, nem chegou a desviar os olhos do seu trabalho lúgubre. Deve ser um telec e usou seu poder para afastar a mulher com um tapa.
— Quer uma coisa pior? — ele vocifera quando a mulher ameaça se levantar.
— Não! — o garoto diz, usando suas últimas palavras livres para suplicar.
Isso não vai durar. Isso não vai continuar. É por isso que estou aqui.
Mesmo assim, fico enojada por não poder fazer nada pelo garoto e pela mãe. Nossos planos começam a dar certo, mas não rápido o bastante para ele. Talvez ele sobreviva, digo a mim mesma. Mas um olhar para os braços finos e os óculos esmagados sob o pé de um dos legionários me diz o contrário. O garoto vai morrer como tantos outros. Numa trincheira ou num fim de mundo, sozinho até o fim.
— Não consigo assistir isso — resmungo e viro para outro beco.
Depois de um longo momento de estranha hesitação, Tristan vem atrás.
Espero que Rasha se atenha às regras como ele, mas entendo. Ela perdeu dois irmãos para o recrutamento de Lakeland e fugiu de casa antes de ter o mesmo destino.
Rocasta não é uma cidade murada e não tem portões para afunilar as saídas da Estrada de Ferro. É fácil entrar, mas isso dificulta um pouco a nossa tarefa. A maior parte do comboio de suprimentos volta pela Estrada, mas alguns pedestres que o acompanham se dispersam, tomando atalhos até seus destinos. Em outro dia, minha equipe passaria horas seguindo-os até suas casas, só para observá-los dormir depois da longa jornada. Não é o que faremos agora. Porque hoje é a Primeira Sexta. Hoje é a Efeméride de julho.
Uma tradição ridícula de Norta, ainda que eficaz, a julgar pelas informações coletadas. Arenas em quase todas as cidades e vilarejos projetam grandes sombras e vertem sangue uma vez por mês. Os vermelhos são obrigados a comparecer, a sentar e assistir aos guerreiros prateados trocando golpes e exibindo seus poderes com a empolgação de artistas. Isso não existe em Lakeland. Os prateados não sentem necessidade de se exibir para nós, e a lendária ameaça de Norta basta para manter todos aterrorizados.
— Também fazem isso em Piedmont — Tristan sussurra.
Ele se inclina sobre a cerca de concreto que ladeia o caminho até a entrada da arena. Nossos olhares varrem a área em sincronia; um de nós sempre atento às nossas posições, o outro observando o bando de agentes direcionando as pessoas para as presas escancaradas da Arena Rocasta.
— Chamam de Ato, não de Efeméride. E não tínhamos apenas que assistir. Às vezes faziam vermelhos lutarem também — ele continua. Sinto o tremor do ódio em sua voz, mesmo em meio ao caos organizado que é o espetáculo de hoje.
Toco seu ombro do modo mais gentil que consigo.
— Lutarem um contra o outro?
Matar vermelhos ou ser morto por prateados? Não sei o que é pior.
— Os alvos estão se movendo — ele apenas resmunga.
Mais uma conferida nos agentes, agora ocupados com um bando de crianças encardidas que atrapalham a passagem do público.
— Vamos — digo. E deixe essa ferida apodrecer com as outras.
Saio da parede ao lado dele e me enfio na multidão, com os olhos fixos nos quatro uniformes mais à frente. Não é fácil. A essa distância de Corvium, há um monte de soldados vermelhos, ou marchando para assumir seu posto no Gargalo ou passando para outros comboios como o que seguimos. Mas os quatro homens cansados até os ossos — três de pele bronzeada e um de pele negra — se mantêm próximos uns dos outros. Seguimos cada passo deles. Eram os ocupantes de uma carroça do comboio, mas não sei ao certo o que transportavam. Estava vazia quando voltaram com o resto. A julgar pela falta de segurança e de prateados, sei que não se tratava de um carregamento de armas ou munições. Os três bronzeados são irmãos, imagino, por conta dos traços e trejeitos parecidos. É quase cômico vê-los cuspir e coçar o traseiro em sincronia. O quarto — um sujeito corpulento com olhos azuis lívidos — está absorto nas próprias coceiras, apesar de sorrir mais que os outros três juntos. Acho que se chama Crance, pelo que consegui ouvir da conversa.
Atravessamos os arcos de entrada da arena como gatos matreiros, perto o bastante para ouvir os alvos, mas não para sermos notados. Sobre nossas cabeças, luzes elétricas toscas piscam, iluminando a câmara de teto alto que liga a esplanada de fora ao interior. A multidão engrossa à esquerda, onde diversos vermelhos esperam para apostar no combate. Sobre ela, as placas anunciam os lutadores prateados e a proporção das apostas.
Flora Lerolan, oblívia, 3/1
Maddux Thany, pétreo, 10/1
— Esperem um segundo — Crance diz, fazendo o resto do grupo parar nas bancas de aposta. Sorrindo, um dos bronzeados se junta a ele. Os dois enfiam a mão no bolso à procura de um trocado para apostar.
Sob o pretexto de fazer o mesmo, Tristan e eu paramos a não mais que uns metros dali, escondidos pela grande multidão. As apostas são populares entre os vermelhos de Rocasta, onde uma próspera economia militar evita que a maioria passe fome. Há várias pessoas bem de vida por aqui — comerciantes e empresários orgulhosos de suas roupas limpas. Escolhem um lutador e entregam punhados de moedas de cobre — às vezes até alguns tetrarcas de prata. Aposto que o caixa da Arena Rocasta não é nada desprezível, e tomo nota para passar a informação ao Comando. Se eles ainda me derem ouvidos.
— Vamos, veja as chances! É dinheiro fácil! — Crance diz ao apontar para as placas sobre as janelas das bancas, ainda com um sorriso contagiante. Os dois que vão atrás não parecem muito convencidos.
— Você sabe alguma coisa sobre os pétreos que não sabemos? — o mais alto pergunta. — Ele vai ser explodido em pedregulhos pela oblívia.
— Como quiser, Horner. Mas não camelei de Corvium até aqui pra ficar entediado na arquibancada.
Com o volante da aposta na mão, Crance se retira, seguido pelo amigo, e deixa Horner e o outro sujeito esperando. Por algum motivo, apesar de seu tamanho, Crance é incrivelmente bom em cortar pelo meio da multidão. Bom demais.
— Observe os dois — sussurro, tocando de leve o cotovelo de Tristan. Em seguida saio dali também, com o cuidado de manter a cabeça baixa. Há câmeras o bastante aqui para me deixar alerta. Se as próximas semanas forem como o planejado, talvez eu comece a esconder o rosto.
Vejo quando Crance passa o volante pela janela da banca. A manga da camisa sobe quando ele enfia o braço pela grade e uma tatuagem fica à mostra. Ela quase some na pele escura dele, mas o formato é inconfundível. Já vi uma assim antes: âncora azul, corda vermelha.
Não somos o único grupo trabalhando no comboio. Os Marinheiros já têm uma pessoa lá dentro.
Isso é bom. Podemos trabalhar com isso. Me afasto da multidão às cotoveladas, com a mente em chamas. Podemos pagar pela informação deles. Menos envolvimento da Guarda e o mesmo resultado. E há chances de o Marinheiro estar trabalhando na missão sozinho. Poderíamos tentar juntá-lo a nós. Aí teríamos olhos dentro dos Marinheiros. Poderíamos mexer os pauzinhos, absorver a gangue na Guarda.
A cabeça de Tristan desponta sobre a multidão, ainda observando os dois alvos. Tenho que segurar o ímpeto de correr para o lado dele e contar tudo.
Mas um obstáculo surge entre nós. Um homem careca com um brilho familiar de suor na testa. É de Lakeland. Antes que eu possa correr ou gritar, sinto uma mão agarrar meu pescoço por trás. Com força suficiente para me manter calada mas ao mesmo tempo me deixar respirar. Com certeza força o bastante para me arrastar pela multidão, com o Careca acompanhando de perto.
Outra pessoa talvez se agitasse ou tentasse lutar, mas não sou burra. Há agentes prateados por toda parte aqui, e não quero mesmo me arriscar a receber a “ajuda” deles. Em vez disso, confio em mim mesma e em Tristan. Ele tem que continuar vigiando e eu tenho que dar um jeito de me libertar.
A multidão nos arrasta como uma correnteza, e ainda não consigo enxergar quem está me conduzindo. O corpo do Careca praticamente me esconde por completo, assim como o cachecol que meu captor enrola no meu pescoço. Curiosamente, é vermelho. E então começamos a subir os degraus. Chegamos bem acima do nível da arena, até grandes bancos de concreto que parecem completamente abandonados.
Só então sou liberada e forçada a sentar.
Me viro furiosa, com os punhos cerrados e prontos para atacar, apenas para deparar com o coronel me encarando, bem preparado para a minha raiva.
— Quer acrescentar “agressão ao seu superior” à sua lista de transgressões? — ele pergunta, quase num ronronado.
Não, não quero. Fecho a cara e baixo os punhos. Ainda que fosse capaz de ganhar uma briga com o Careca, não quero tentar a sorte com o coronel e sua força bruta. Em vez disso, levo a mão ao pescoço para massagear a pele dolorida sob o cachecol vermelho.
— Não vai ficar roxo — ele diz.
— Então está fazendo errado. Pensei que você quisesse mandar uma mensagem. Nada diz tanto “é melhor entrar na linha” quanto um hematoma no pescoço.
O olho vermelho dele brilha.
— Você para de responder e acha que vou deixar passar? Sem chance, capitã. Agora me diga o que está acontecendo aqui. Onde está sua equipe? Vocês desertaram? Alguém fugiu?
— Não, ninguém fugiu — digo por entre os dentes. — Nenhum deles. Ninguém desertou também. Todos ainda seguem as ordens.
— Que bom que alguém segue.
— Ainda estou na operação, quer você veja isso ou não. Tudo o que faço aqui é pela causa, pela Guarda. Como o senhor disse, coronel, aqui não é Lakeland. E apesar de a rede dos Assobiadores de Will Whistle ser prioridade, Corvium também é. — Preciso sibilar para que minha voz seja ouvida sobre o ruído do público cada vez maior. — Não podemos ficar quietos aqui. As coisas são muito centralizadas. As pessoas vão notar, vão nos eliminar antes mesmo de estarmos prontos. Precisamos atacar rápido, com força; atacar onde os prateados não podem se esconder de nós.
Estou ganhando terreno, mas não muito. Porém é suficiente para evitar que a voz dele trema de raiva. Ele está irritado, mas não furioso. Ainda é possível argumentar.
— É exatamente para isso que você gravou aquele vídeo — ele diz. — Você se lembra, não?
Uma câmera e um cachecol vermelho cobrindo metade do meu rosto. Uma pistola numa das mãos e uma bandeira nova em folha na outra, recitando palavras decoradas como uma oração. E nós vamos nos levantar, vermelhos como a aurora.
— Farley, é assim que agimos. Ninguém tem todas as cartas na mão. Ninguém sabe qual é o jogo. É a única forma de seguirmos vivos — ele continua. Se viessem de outra pessoa, as palavras poderiam parecer uma súplica. Mas não é assim com o coronel. Ele não pede. Apenas ordena. — Mas acredite em mim quando digo que temos planos para Norta. E não são tão diferentes do que você quer.
Os guerreiros da Efeméride marcham sobre a areia cinza e estranha lá embaixo. Um deles, o pétreo da família Thany, tem a barriga estufada e é quase tão largo quanto alto. Como não precisa de armadura, seu peito está nu. Já a oblívia passa toda a imagem de seu poder. Vestida com placas vermelhas e laranja, dança como uma chama ágil.
— E esses planos incluem Corvium? — sussurro, voltando-me para o coronel. Preciso fazê-lo entender. — O senhor acha que sou cega a ponto de não notar se houvesse outra operação nesta cidade? Porque não há. Não há ninguém aqui além de mim. Ninguém mais parece se importar com a fortaleza por onde cada vermelho destinado a morrer passa. Cada um dos vermelhos. E o senhor acha que este lugar não é importante?
Lembro da cabo Eastree. O rosto cinza, os olhos cinza, a determinação sólida. Falava de escravidão, porque é isso que há neste mundo. Ninguém ousa dizer, mas é isso que os vermelhos são. Escravos e moribundos.
Pela primeira vez, o coronel dobra a língua. Ótimo. Senão eu seria capaz de cortá-la.
— Reporte para o Comando e peça que outra pessoa continue a Teia Vermelha. Ah, e informe a eles que os Marinheiros também estão aqui. Não têm a mesma visão curta que o resto de nós.
Parte de mim espera um tapa por insubordinação. Em todos estes anos, jamais falei com ele desse jeito. Nem mesmo... nem mesmo no norte. No lugar congelado que todos costumávamos chamar de casa. Mas eu era criança na época. Uma garotinha fingindo ser caçadora, estripando coelhos e fazendo caretas para me sentir importante. Já não sou mais assim. Tenho vinte anos. Sou capitã da Guarda Escarlate. E ninguém, nem mesmo o coronel, pode me dizer que estou errada agora.
— E então?
Depois de um longo momento, ele abre a boca.
— Não.
Lá embaixo ocorre uma explosão comparável à minha raiva. Os suspiros da multidão acompanham o ritmo da luta. Todos observam a delicada oblívia tentar corresponder às apostas. Mas o Marinheiro tinha razão. O pétreo vai ganhar. É o combate de uma montanha contra o fogo, e a montanha vai resistir.
— Minha equipe vai ficar do meu lado — aviso. — Você vai perder dez excelentes soldados e uma capitã por ser orgulhoso, coronel.
— Não, capitã, ninguém vai assumir a Teia Vermelha no seu lugar — ele diz. — Mas vou solicitar ao Comando uma operação para Corvium, e quando a equipe estiver formada, vai assumir o controle.
Quando. Não se. Mal posso acreditar no que ele está dizendo.
— Enquanto essa hora não chega, você permanece em Corvium e continua trabalhando com seus contatos. Passe toda informação pertinente pelos canais de costume.
— Mas o Comando...
— O Comando tem a mente mais aberta do que você pensa. E por algum motivo tem você em alta conta.
— Não sei se você está mentindo.
Ele apenas dá de ombros. Os olhos dele voltam a fitar o centro da arena para ver o pétreo despedaçar a jovem oblívia.
De alguma forma, o fato de ele agir racionalmente me machuca mais do que qualquer outra coisa. É difícil odiá-lo em momentos como este, quando lembro de como ele costumava ser. E então, claro, me lembro do resto. O que ele fez com a gente, com a família dele. Com a minha mãe e a minha irmã que não eram tão horríveis como nós, que não conseguiram sobreviver ao monstro que ele criou.
Desejo que ele não fosse meu pai. Já desejei isso tantas vezes.
— Como vai a Operação Muralha? — balbucio para manter os pensamentos sob controle.
— À frente do cronograma — ele diz sem um pingo de orgulho, como quem apenas enuncia um fato. — Mas o transporte pode ser um problema quando passarmos à remoção.
Teoricamente, essa é a segunda fase da minha operação. Remover e transportar ativos considerados úteis à Guarda. Não apenas vermelhos capazes de se juntar à causa, mas que saibam disparar uma arma, dirigir um veículo, ler, lutar.
— Eu não deveria saber... — começo, mas ele me corta. Tenho a sensação de que ele não tem com quem conversar, a julgar pelo Careca. Agora que fui embora.
— O Comando me deu três barcos. Três. Acham que três barcos podem ajudar a povoar e tornar funcional uma ilha inteira.
Uma luz se acende num canto do meu cérebro. No centro da arena, o pétreo ergue os braços rochosos em vitória. Os curandeiros de pele tratam a oblívia; consertam seu maxilar quebrado e seus ombros esmagados com toques rápidos. Crance vai ficar feliz.
— O Comando já mencionou pilotos alguma vez? — me pergunto em voz alta.
O coronel se volta para mim, com uma sobrancelha arqueada.
— Pilotos? Pra quê?
— Acho que meu homem infiltrado em Corvium pode nos arranjar algo melhor do que barcos. Ou pelo menos um jeito de roubar algo melhor do que barcos.
Outro homem sorriria, mas o coronel apenas assente.
— Vá em frente.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO AO COMANDO
Responsável: Coronel CENSURADO
Designação: CARNEIRO
Origem: Rocasta, NRT
Destinatário: COMANDO em CENSURADO
Fizemos contato com OVELHA. Equipe ainda de pé, sem perdas.
Avaliação: CORVIUM merece uma operação própria. Sugestão: MISERICÓRDIA. Recomendamos pressa. OVELHA vai abrir mão e voltar à TEIA VERMELHA.
OVELHA passando informações vitais para MURALHA e remoção/ transporte.
Retornando ao posto.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: General CENSURADO
Designação: BATEDOR
Origem: COMANDO em CENSURADO
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO, OVELHA em Corvium, NRT
Sugestão de CORVIUM sob análise.
Capitã Farley volta à TEIA VERMELHA em dois dias.
COMANDO dividido quanto à punição.
À espera das informações.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: Capitã CENSURADO
Designação: OVELHA
Origem: Corvium, NRT
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO, COMANDO em CENSURADO
Solicito uma semana.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
— Você é especialmente burra, menina. CARNEIRO.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: General CENSURADO
Designação: BATEDOR
Origem: COMANDO em CENSURADO
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO, OVELHA em Corvium, NRT
Cinco dias. Sem mais negociações.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
De alguma forma, a casa da fazenda abandonada começa a parecer um lar.
Mesmo com o teto caído, as barracas estragadas pela umidade e o silêncio da floresta. É o lugar em que passei mais tempo com exceção de Irabelle, mas lá sempre foi a nossa base. Embora os soldados sejam o mais próximo de família que tenho, jamais consegui enxergar o concreto frio e as passagens labirínticas como mais do que um ponto de parada. Um lugar para treinar e esperar a próxima missão.
O mesmo não se aplica à casa arruinada à beira do campo de batalha, à sombra de uma cidade fantasma.
— É isso — digo a Cara e me apoio mais uma vez na porta do armário.
Ela assente e guarda o transmissor.
— Bom ver você toda falante de novo.
Antes de eu poder rir, a batida seca de Tristan faz a porta improvisada tremer.
— Temos companhia — avisa.
Barrow.
— O dever me chama — resmungo ao trombar com Cara quando passo por ela no cômodo apertado. Abro a porta e me surpreendo ao me deparar com Tristan tão perto, pilhado como sempre.
— Os olheiros o avistaram desta vez, finalmente — ele diz. Normalmente ele estaria orgulhoso, mas algo na situação o deixa à flor da pele. Nunca vemos Barrow se aproximar. Então por que hoje? — Ele disse que é importante...
A porta da casa se escancara atrás de Tristan e revela o rosto vermelho de Barrow, que chega ao lado de Cris e Pequeno Coop.
Um olhar apavorado é o bastante.
— Se espalhem — disparo.
Eles sabem o que isso quer dizer. Sabem para onde ir.
Um furacão se agita na casa e leva o clima de lar embora. Armas, pistolas, provisões, aparelhos: tudo desaparece dentro de sacolas e mochilas num ritmo treinado. Cris e Pequeno Coop já foram para as árvores, subir o mais alto que puderem. Seus espelhos e assovios de pássaro vão transmitir a mensagem para os outros na floresta. Tristan supervisiona o resto enquanto carrega o rifle.
— Não dá tempo. Eles estão vindo agora! — Barrow ruge, de repente ao meu lado. Ele me segura pelo cotovelo sem nenhuma delicadeza. — Vocês precisam ir!
Dois estalos do meu dedo. A equipe obedece e solta tudo o que já não está empacotado. Acho que vamos ter que roubar umas barracas em breve, mas essa é a menor das minhas preocupações. Outro estalo e eles voam como balas. Cara, Tye, Rasha e o resto passam pela porta e a parede caída e correm em direções diferentes a toda velocidade. A floresta os engole por inteiro.
Tristan me espera porque é seu trabalho. Barrow espera porque... não sei por quê.
— Farley — ele sibila e dá um cutucão no meu braço.
Lanço um último olhar pela casa para garantir que não esquecemos nada e trato eu mesma de escapar para as árvores. Os rapazes acompanham meu ritmo por entre as raízes retorcidas e os arbustos. Minha pulsação lateja nos ouvidos, batendo como um tambor alucinado. Já passamos por coisa pior. Já passamos por coisa pior.
Então ouço os cães.
Farejadores controlados por algum animos. Sentem nosso cheiro, nos perseguem... Os lépidos vão nos alcançar. Se tivermos sorte, pensarão que somos desertores e nos matarão na floresta. Se não... Não quero nem pensar nos horrores que a cidade negra de Corvium abriga.
— Corram para a água! — digo com esforço. — Vão perder nosso cheiro!
Mas o rio fica a quase um quilômetro de distância.
Minha única esperança é que gastem um tempo revistando a casa, o que nos daria o tempo necessário para escapar. Pelo menos os outros estão mais longe, bem espalhados. Nenhuma matilha pode seguir todo mundo. Mas eu, a última a sair da casa, com o cheiro mais forte? Presa fácil.
Apesar do protesto dos meus músculos, aperto o passo e corro mais rápido do que nunca. Mas depois de apenas um minuto — apenas um minuto — começo a me cansar. Se ao menos pudesse correr tão rápido quanto o meu coração...
Tristan diminui o ritmo para me acompanhar, embora não precise.
— Há um riacho mais perto — ele diz, apontando para o sul. — Um braço do rio. Você vai pra lá.
— Do que está falando?
— Eu consigo chegar no rio. Você não. E eles não são capazes de seguir nós dois.
Arregalo os olhos. Quase tropeço de tão confusa, mas Barrow me agarra e segura firme até eu passar por cima de uma raiz torta.
— Tristan... — balbucio.
Meu tenente apenas sorri e dá um tapinha no rifle preso nas costas. Então aponta de novo.
— Por ali, chefe.
Antes de eu conseguir detê-lo, antes de eu conseguir lhe dar a ordem para não ir, ele salta pelas árvores, contando com as pernas longas e os galhos baixos para vencer os piores trechos do solo esburacado. Não posso gritar. Na verdade, não consigo nem ver direito o rosto dele; apenas um emaranhado de cabelo vermelho reluzindo em meio ao verde.
Barrow praticamente me empurra. Ele parece aliviado, mas não deve estar. Especialmente quando um cão late a menos de cem metros. E as árvores sobre nós começam a se curvar, os galhos descendo como dedos vorazes. Verdes. Animos. Lépidos. Os prateados vão nos pegar.
— Farley. — De repente ele segura meu queixo e me força a encarar seu rosto absurdamente calmo. Há medo, cintilando em seus olhos dourados, claro. Mas não o bastante para a situação. Não grande como o meu. Estou aterrorizada. — Você tem que me prometer que não vai gritar.
— Quê?
— Prometa.
Avisto o primeiro cão. Um farejador do tamanho de um pônei, salivando. Ao lado dele, um borrão cinza como vento sólido. Lépido.
Mais uma vez, sinto Shade apertar o corpo contra o meu, e em seguida uma sensação menos agradável. O mundo encolhendo, a tontura, o mergulho no vazio. Tudo isso se mistura e se contrai, e acho que começo a ver estrelas verdes. Ou talvez árvores. No começo, caio sentindo uma onda de náuseas familiar. Desta vez, aterrisso num rio em vez de concreto.
Começo a pigarrear e cuspo água e bile, lutando contra a vontade de gritar ou vomitar ou ambos.
Barrow está agachado ao meu lado e ergue a mão.
— Ah, não grite.
Vem o vômito.
— Imagino que isso seja melhor no momento — ele sussurra, tendo a delicadeza de olhar para qualquer outra coisa que não o meu rosto verde. — Desculpa, acho que preciso treinar mais. Ou talvez você seja sensível demais.
A correnteza borbulhante do rio limpa o que não consigo limpar, e a água fria me ajuda mais do que uma caneca de café puro. Retomo a atenção e olho para os lados, para as árvores inclinadas sobre nós. Salgueiros, não carvalhos como segundos atrás. Não estão se mexendo, percebi com uma lufada de alívio. Nada de verdes por aqui. Nem de cães. Mas afinal... Onde estamos?
— Como? — pergunto com a voz áspera. — Não me diga que foi pelos dutos.
A máscara bem treinada de Shade Barrow cai um pouco. Ele recua uns passos e senta numa pedra sobre as águas, empoleirado como uma gárgula.
— Não tenho uma explicação — ele diz, como se admitisse um crime. — O melhor... o melhor que posso fazer é demonstrar para você. E, de novo, você precisa me prometer não gritar.
Confirmo com a cabeça. Minha mente flutua, ainda desequilibrada. Mal consigo sentar em meio à correnteza, quanto mais gritar.
Ele respira fundo. Aperta os dedos contra a pedra até as pontas ficarem brancas.
— Muito bem.
E então ele desaparece. Não... Ele não saiu correndo, não se escondeu nem mesmo caiu da pedra. Ele simplesmente não está mais aqui. Pisco várias vezes. Não acredito no que vejo.
— Aqui.
Viro a cabeça tão rápido que quase fico zonza de novo.
Lá está ele, de pé na margem oposta. Logo ele faz de novo, voltando à pedra e sentando devagar novamente. Ele se esforça para abrir um sorriso sem qualquer alegria. Seus olhos estão muito arregalados. Se eu tive medo alguns minutos atrás, ele está completamente petrificado. E com razão.
Porque Shade Barrow é prateado.
Instintivamente, saco a arma e engatilho sem nem piscar.
— Posso não ser capaz de gritar, mas sou capaz de te dar um tiro.
Ele cora, e de alguma maneira seu rosto e pescoço ficam vermelhos. É uma ilusão, um truque. O sangue dele não é dessa cor.
— Há alguns motivos para isso não dar certo — ele diz, ousando desviar o olhar da pistola. — Um: o cano está cheio de água. Dois: caso você não tenha notado...
De repente, ele está ao meu lado, agachado comigo no meio da correnteza. O choque da aparição me faz soltar um grito agudo, ou quase, se ele não tivesse tapado minha boca com a mão.
— ... sou bem rápido — ele sussurra no meu ouvido.
Estou sonhando. Não é real.
— E três: os cães talvez não consigam mais nos farejar, mas com certeza conseguem ouvir um disparo — ele diz, sem tirar as mãos dos meus ombros, apertando-os com força. — Então... vai repensar sua estratégia, capitã?
— Você é prateado? — murmuro, me soltando dele. Dessa vez, retomo o equilíbrio antes de cair. Como em Corvium, o enjoo passa logo. Um efeito colateral do poder dele. O poder prateado. Ele fez isso comigo antes e eu nem percebi. A lembrança queima na minha mente. — Durante todo esse tempo?
— Não, não. Sou vermelho como a aurora de que você vive falando.
— Não minta — rebato, ainda com a pistola na mão. — Isso tudo foi um truque para nos pegar. Aposto que você levou aqueles caçadores direto até a minha equipe!
— Eu disse sem gritar.
A boca dele permanece aberta. Shade arqueja nervoso. Está tão próximo que consigo ver os vasos de sangue ramificando no branco dos olhos. São vermelhos. Uma ilusão, um truque, é o que me vem à cabeça de novo. Mas então lembro das vezes em que o encontrei. Em quantas delas não estivemos sozinhos? Há quantas semanas ele não está trabalhando conosco, passando informações em conjunto com a cabo Eastree? Quantas vezes não teve oportunidade de bolar uma armadilha?
Não dá. Não consigo entender nada.
— E ninguém me seguiu. É óbvio que ninguém é capaz de me seguir. Descobriram vocês por conta própria. Coisa de espiões em Rocasta, não consegui entender tudo.
— Então você ainda está seguro em Corvium, ainda trabalha para eles? Como um deles?
A paciência dele se desfaz como uma folha seca.
— Já disse que não sou prateado! — ele urra como um animal.
Tenho vontade de dar um passo para trás, mas me forço a permanecer firme, imóvel, sem medo. Apesar de ter todos os motivos para temê-lo.
Num gesto brusco, ele estende o braço e levanta a manga do casaco com os dedos trêmulos.
— Corta — ele diz, assentindo para responder à minha pergunta antes mesmo de eu fazê-la. — Corta.
Para a minha surpresa, meus dedos tremem tanto quanto os dele quando saco a faca da bota. Ele estremece quando a aperto contra sua pele. Pelo menos sente dor.
Meu coração para por uns instantes quando o sangue brota debaixo da lâmina. Vermelho como a aurora.
— Como isso é possível?
Ergo a cabeça e me deparo com Shade me encarando à procura de algo. Pela maneira como seus olhos brilham, acho que ele encontra.
— Para ser sincero, não sei. Não sei o que é isso, o que sou. Só sei que não sou um deles. Sou um de vocês.
Por um momento excruciante, esqueço minha equipe, a floresta, minha missão e até mesmo Shade diante de mim. De novo o mundo parece balançar, mas não por causa de algum poder. É mais. Uma transição. Uma mudança. Uma arma a ser usada. Não, uma arma que eu mesma já usei diversas vezes. Para obter informações, para infiltrar Corvium. Com Shade Barrow, a Guarda Escarlate pode ir a qualquer lugar. A todo lugar.
Seria de imaginar que depois de tantas violações das normas eu tentasse evitar quebrar mais uma. Mas, ao mesmo tempo, o que mais poderia fazer?
Devagar, fecho os dedos ao redor do punho dele. Ele ainda sangra, mas não ligo. Convém agora.
— Você jura fidelidade à Guarda Escarlate?
Fico na expectativa de um sorriso. Em vez disso, a expressão dele endurece.
— Sob uma condição.
Ergo tanto as sobrancelhas que elas devem ter sumido debaixo da minha franja.
— A Guarda não faz barganhas.
— Não é um pedido à Guarda, mas a você — ele responde. Apesar de ser um homem capaz de se mover mais rápido do que um piscar de olhos, consegue dar o mais lento dos passos à frente. Nossos olhares se encontram, o azul com o dourado.
A curiosidade me vence.
— E o que é?
— Quero saber seu nome.
Meu nome. Dentro da Guarda Escarlate, isso não existe. Nomes não têm importância. Só patentes e codinomes importam de verdade. Como a minha mãe me chamava não vale nada para ninguém, muito menos para mim. É um fardo antes de mais nada, um lembrete doloroso da voz dela e da vida que tínhamos antes. De quando eu chamava o coronel de pai; de quando a Guarda Escarlate não passava de um sonho maluco de caçadores, fazendeiros e soldados ociosos. Meu nome é minha mãe, minha irmã Madeline e os túmulos delas cavados num vilarejo congelado onde ninguém mais mora.
Shade continua a me encarar, esperançoso. Percebo que está segurando a minha mão, sem se importar com o sangue coagulando sob meus dedos.
— Meu nome é Diana.
Pela primeira vez, o sorriso dele é sincero. Sem piadas nem máscaras.
— Você está conosco, Shade Barrow?
— Estou com vocês, Diana.
— Então vamos nos levantar.
A voz dele se une à minha:
— Vermelhos como a aurora.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Dia 34 da OPERAÇÃO TEIA VERMELHA, fase 1
Responsável: Capitã CENSURADO
Designação: OVELHA
Origem: Em trânsito
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO, COMANDO em CENSURADO
Saindo de CORVIUM, rumo a DELPHIE. Paradas em postos dos ASSOBIADORES pelo caminho.
Planos de iniciar a fase 2 dentro de 1 semana.
Avisar agentes de CORVIUM que a segurança acredita que existem “bandidos e desertores” na floresta.
Anexo: informação detalhada da esquadra aérea estacionada em DELPHIE. Dados trazidos pelo recém-jurado Ajudante B (codinome: SOMBRA) ainda em CORVIUM.
Sugiro que Cabo E também faça o juramento.
Sou e continuarei a ser o contato de SOMBRA na GE.
SOMBRA será retirado de CORVIUM quando eu decidir.
Resumo de CORVIUM:
Mortos em ação: G. TYE, W. TARRY, R. SHORE, C. ELSON, H. “GRANDE” COOPER (5).
Desaparecidos: T. BOREEVE, R. BINLI (2).
Número de baixas prateadas: Zero (0).
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Responsável: General CENSURADO
Designação: BATEDOR
Origem: COMANDO em CENSURADO
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO
Informações da Aeronáutica boas. Operação em DELPHIE iniciada.
Transporte de trem funcional entre ARCHEON e Cidade #1.
Iniciar contagem regressiva de três semanas para OPERAÇÃO ALVA.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
— Sua menina tem culhões. BATEDOR.
— A menina fez nossa gente morrer. CARNEIRO.
— O resultado valeu o sacrifício. Mas o comportamento dela deixa a desejar. BATEDOR.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Dia 54 da OPERAÇÃO TEIA VERMELHA, fase 2
Responsável: Capitã CENSURADO
Designação: OVELHA
Origem: Albanus, NRT
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO
ASSOBIADORES de CAPITAL VALLEY operando. Em ALBANUS para iniciar a remoção com ASSOBIADOR da GE, WILL.
30 ativos removidos em 2 semanas.
SOMBRA ainda opera em CORVIUM. Informação: há troca de legiões nas trincheiras, o que deixa brechas.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
Odeio este trailer fedorento.
O contrabandista, o velho Will, acende uma vela, como se isso pudesse melhorar o cheiro. Só deixa o lugar ainda mais quente, mais abafado do que é possível. Mas apesar do fedor, me sinto relaxada.
Palafitas é um vilarejo sonolento, sem muitos motivos para se preocupar. Por acaso, foi aqui onde Shade nasceu. Não que ele fale muito de casa; só comenta da irmã. Mas sei que escreve para a família. Eu mesma “postei” a última carta, deixando-a no correio hoje de manhã. Ele disse que era mais rápido do que confiar no exército para entregar, e tinha razão. Assim a família vai receber a carta em mais ou menos duas semanas, e não após um mês, como qualquer correspondência vermelha.
— Então isso tem a ver com o novo carregamento que meus compatriotas estão levando pelos rios e pelas estradas para Harbor Bay, não é? — Will pergunta me encarando com olhos muito vivos para alguém de sua idade. Mas sua barba está mais rala do que no mês passado, e o corpo, mais magro. Ainda assim, ele se serve de uma xícara de chá com as mãos firmes como as de um cirurgião.
Educadamente, recuso o chá quente num trailer ainda mais quente. Como ele consegue usar manga comprida?
— O que você ouviu? — pergunto.
— Uma coisinha aqui, outra ali.
Esses Assobiadores são matreiros até o fim.
— É verdade. Começamos a transportar pessoas, e a rede dos Assobiadores tem sido fundamental para a operação. Espero que você concorde em entrar no esquema.
— Mas por que eu seria burro o suficiente para fazer isso?
— Bom, você foi burro o suficiente para jurar fidelidade à Guarda Escarlate. Mas se precisar de mais argumentos...
Com um sorriso, tiro cinco tetrarcas de prata do bolso, que mal tocam a mesinha antes de Will agarrá-las. As moedas desaparecem entre os dedos dele.
— Mais para cada item — completo.
Ainda assim, ele não concorda. Faz um drama antes de concordar, como os outros Assobiadores.
— Você seria o primeiro a negar — falo com um sorriso provocador. — E seria o fim da nossa parceria.
Ele agita a mão, desdenhando.
— Sempre me virei bem sem vocês mesmo.
— Tem certeza? — insisto, alargando o sorriso. Will não é bom de blefe. — Muito bem, vou embora e jamais vou sujar o seu... trailer de novo.
Antes mesmo de eu conseguir levantar, ele se põe de pé para me deter.
— Quem vocês planejam transportar?
Consegui.
— Ativos. Pessoas que serão valiosas para nossa causa.
Enquanto o observo, o brilho de seus olhos diminui. Um truque de luz.
— E quem decide isso?
Apesar do calor, um fio gelado corre pelas minhas costas. Lá vem a complicação de sempre...
— Operações no país inteiro estão à procura dessas pessoas. A minha também. Avaliamos, sugerimos os candidatos e esperamos a aprovação.
— Suponho que os velhos, os doentes e os jovens prestes a serem recrutados não são sugeridos. Não adianta salvar os que realmente precisam.
— Se tiverem habilidades valiosas...
— Pfff ! — Will dispara, e suas bochechas ficam vermelhas. Ele bebe o chá em goles nervosos e seca o copo. O líquido, porém, parece acalmá-lo. Depois de baixar a xícara vazia, apoia a cabeça na mão, pensativo. — Imagino que seja nossa melhor esperança.
Outro canal aberto.
— Por enquanto.
— Muito bem.
— Ah, provavelmente vocês não terão problemas aqui, mas eu ficaria longe de qualquer prateado amanhã. Eles não vão estar muito contentes.
Amanhã. Só de pensar sinto meu sangue pulsar mais rápido. Não sei o que o coronel e o Comando planejaram. Só sei que inclui a minha gravação e algo que merece o hasteamento da nossa bandeira.
— Será que quero saber? — Will se pergunta com um sorriso sarcástico. — Será que você sabe?
Não consigo evitar rir alto.
— Você tem alguma coisa mais forte do que chá?
Ele nem tem a chance de responder já que alguém começa a esmurrar a porta do trailer. Will dá um pulo na cadeira e quase joga a xícara no chão. Eu a seguro com destreza, mas não tiro os olhos dele. Um velho tremor de medo percorre meu corpo e ambos permanecemos imóveis, à espera. Então me lembro: soldados não batem antes de entrar.
— Will Whistle! — diz uma voz de garota. Will é tomado por alívio, e sinto a corda de tensão que me prendia relaxar. Ele gesticula para eu ir para trás da cortina que divide seu trailer.
Faço o que Will pede e me escondo segundos antes de ela abrir a porta.
— Srta. Barrow! — ouço-o dizer.
Mil coroas. Resmungo palavrões enquanto caminho de volta à taverna na beira da estrada. Cada um. Por que escolhi uma quantia tão ultrajante? Não sei... A razão de eu concordar em ver a menina — a irmã de Shade, só podia ser ela — era menos obscura. Mas dizer que ia ajudar? Salvar o amigo, salvar ela própria do recrutamento? Dois adolescentes que nem conheço, ladrões que iam acabar fazendo seus atravessadores morrer? Mas lá no fundo, eu sei o motivo. Lembro do garoto em Rocasta, arrancado da mãe. O mesmo aconteceu com Shade e seus dois irmãos mais velhos diante daquela garota que veio até mim implorando hoje à noite. Mare, o nome dela é Mare. Implorou por si e por outro, o namorado provavelmente. Na voz dela, ouvi e vi tanta gente... A mãe de Rocasta. Rasha, parando para ver. Tye, morrendo tão perto do lugar de onde queria fugir. Cara, Tarry, Shore, Grande Coop. Todos se foram, arriscando a vida e pagando o preço que a Guarda Escarlate sempre cobra.
Não que Mare vá aparecer com o dinheiro. É uma missão impossível. Ainda assim, devo isso e muito mais a Shade pelos seus serviços. Imagino que livrar a irmã do recrutamento seja um preço pequeno a pagar pelas informações dele. E o que quer que ela traga vai direto para a causa.
Tristan se junta a mim no meio do caminho entre Palafitas e a taverna. Eu tinha certa expectativa de encontrá-lo lá, com Rasha, Pequeno Coop e Cristobel, os únicos remanescentes da nossa malfadada equipe.
— Sucesso? — ele pergunta enquanto ajeita cuidadosamente o casaco para esconder a pistola na cintura.
— Sim — respondo. Custou um esforço surpreendente pronunciar a palavra.
Tristan me conhece o suficiente para saber que é melhor não ser enxerido. Por isso, muda de assunto e entrega o rádio de Corvium.
— Faz uma hora que Barrow está enviando cliques.
Entediado de novo. Não sei quantas vezes já disse a Shade que o rádio é apenas para assuntos oficiais e emergências, não para me irritar. Ainda assim, não consigo evitar o sorriso. Faço o máximo para manter os lábios imóveis, pelo menos na frente de Tristan, e começo a fuçar no rádio.
Começo a clicar no receptor e envio um pulso que parece formado por pontos aleatórios. Mas na verdade dizem “Estou aqui”.
A resposta dele vem tão rápida que quase derrubo o aparelho.
— Farley, preciso sair — a voz dele chia baixo no alto-falante minúsculo. — Farley? Preciso sair de Corvium.
Um arrepio de pânico percorre minhas costas.
— O.k. — respondo com a mente girando em velocidade máxima. — Você... você não consegue sair sozinho? — Se não fosse por Tristan, eu seria mais direta. Por que ele não consegue fugir daquela fortaleza tenebrosa?
— Me encontra em Rocasta.
— Combinado.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Dia 56 da OPERAÇÃO TEIA VERMELHA, fase 2
Responsável: Capitã CENSURADO
Designação: OVELHA
Origem: Rocasta, NRT
Destinatário: CARNEIRO em CENSURADO
Parabéns pela explosão em ARCHEON.
Em ROCASTA para remover SOMBRA.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
A MENSAGEM DECODIFICADA A SEGUIR
É CONFIDENCIAL
ACESSO RESTRITO A OFICIAIS
Dia 60 da OPERAÇÃO MURALHA, fase 2
Responsável: Coronel CENSURADO
Designação: CARNEIRO
Origem: CENSURADO
Destinatário: OVELHA em Rocasta
Prossiga. Mande-o para TRIAL. Volte para a TEIA VERMELHA o mais rápido possível.
VAMOS NOS LEVANTAR, VERMELHOS COMO A AURORA.
Demoro mais tempo para chegar aqui do que o esperado. Isso sem mencionar o fato de eu ter vindo sozinha.
Depois da explosão em Archeon, está difícil viajar, mesmo pelos nossos canais de costume. Os barcos cargueiros e os veículos dos Assobiadores não circulam mais com tanta facilidade. E entrar nas cidades, mesmo em Rocasta, não é uma tarefa fácil. Os vermelhos precisam apresentar a identidade ou até o sangue em diferentes pontos de checagem ao entrar na cidade. E eu preciso evitar esses pontos a qualquer custo. Embora meu rosto estivesse coberto no vídeo em que anunciei a presença da Guarda Escarlate no país inteiro, não podia arriscar.
Até raspei a cabeça, despedindo-me da longa trança loira bem nítida na transmissão.
Crance, o Marinheiro que trabalha no comboio de suprimentos, teve que me levar escondida, e precisei usar muitos argumentos para convencê-lo. Ainda assim, consegui chegar na cidade sã e salva, com o rádio firme no cinto.
Setor vermelho. Mercado.
É lá que Shade quer me encontrar, e é para lá que preciso ir. Não me preocupo em cobrir o rosto ou usar capuz, o que daria às pessoas uma pista ainda melhor sobre a minha identidade. Em vez disso, uso óculos escuros para esconder a única parte do meu rosto que apareceu no vídeo. Ainda assim, sinto o perigo a cada passo. O risco faz parte do jogo. Mas, de certa forma, não temo por mim. Fiz minha parte, mais do que a minha parte, pela Guarda Escarlate. Poderia morrer agora e ser considerada uma agente bem-sucedida. Meu nome apareceria na correspondência de alguém, provavelmente na de Tristan, em tópicos para o coronel ler.
Me pergunto se ele lamentaria.
O dia está nublado, e o humor da cidade reflete o clima. A explosão está na boca de todos, nos olhos de todos. Os vermelhos demonstram um estranho estado de esperança e abatimento, e alguns cochicham sobre a suposta Guarda Escarlate. Mas muitos, os mais velhos principalmente, caçoam dos filhos, criticando-os por acreditar em besteiras, dizendo que só vamos trazer mais problemas para o povo. Não sou burra a ponto de parar para discutir.
O mercado fica bem no centro do setor vermelho, mas está lotado de agentes de segurança prateados. Hoje eles parecem lobos à caça, com as armas na mão, não no coldre. Ouvi notícias de rebeliões nas cidades maiores, de cidadãos prateados perseguindo qualquer vermelho que encontrassem, culpando qualquer um pelos atos da Guarda Escarlate. Mas algo me diz que esses agentes não estão aqui para proteger meu povo. Só querem incutir medo e nos manter calados.
Mas nem eles são capazes de parar os cochichos.
— Quem são eles?
— A Guarda Escarlate.
— Nunca ouvi falar.
— Você viu? Archeon Oeste em chamas...
— ... mas ninguém morreu...
— ... vão causar mais problemas...
— ... tempos cada vez piores...
— ... vão nos culpar...
— Quero encontrá-los.
— Farley.
A última fala vem em um sussurro morno contra o meu ouvido, num timbre tão familiar quanto meu próprio rosto. Viro por instinto e envolvo Shade num abraço, o que surpreende a nós dois.
— Também é bom te ver — ele sussurra.
— Vamos tirar você daqui — cochicho ao me afastar. Ao observá-lo melhor, descubro que as últimas semanas não foram fáceis. Seu rosto está pálido, com uma expressão abatida e círculos escuros ao redor dos olhos. — O que aconteceu?
Ele engancha o braço no meu e me conduz pela multidão que circula pelo mercado. Parecemos duas pessoas comuns.
— Uma transferência para a frente de batalha — ele responde.
— Punição?
Shade balança a cabeça.
— Não por passar informações. Eles não sabem que sou eu que vazo, que levo tudo para a Guarda. Não, a ordem é estranha.
— Estranha como?
— Pedido de um general. Alto escalão. Por minha causa. Não faz sentido. Assim como outra coisa não faz sentido. — Ele estreita o olhar, e faço que sim com cabeça. — Acho que eles sabem, e acho que vão se livrar de mim.
Engulo em seco e espero que ele não note. Meu medo por ele não pode ser interpretado como nada além do profissional.
— Então vamos executar você primeiro, dizer que você fugiu e foi executado por deserção. Eastree pode falsificar os documentos como faz com os outros ativos. Além disso, já passou da hora de transferir você mesmo.
— Você faz ideia de para onde vai ser?
— Você vai para Trial, do outro lado da fronteira. Não vai ser muito difícil para alguém com suas habilidades.
— Não sou invencível. Não consigo saltar centenas de quilômetros, nem mesmo, bem, me localizar tão longe. Você consegue? — ele balbucia.
Sou obrigada a sorrir. Crance deve resolver.
— Acho que posso arranjar um mapa e um guia.
— Você não vai? — Shade pergunta. Digo a mim mesma que estou imaginando a frustração na voz dele.
— Tenho que tratar de outros assuntos primeiro. Cuidado — acrescento ao notar um grupo de policiais à frente. O braço de Shade aperta forte o meu e nos aproxima mais. Ele vai saltar se necessário, e vou vomitar nas minhas botas de novo.
— Tente não me deixar enjoada dessa vez — resmungo ao notar o sorriso torto dele.
Mas ele não precisa usar seu poder. Os policiais estão concentrados em outra coisa, numa tela de vídeo rachada, provavelmente a única no mercado vermelho. É usada para transmissões oficiais, mas não há nada de oficial no que estão assistindo.
— Esqueci que a Prova Real era hoje — diz um deles ao se inclinar para a frente apertando os olhos para enxergar melhor. A imagem fica turva às vezes. — Não conseguiu um aparelho melhor pra nós, hein, Marcos?
As bochechas de Marcos ficam cinza de raiva.
— Aqui é o setor vermelho, o que você esperava? Mas está convidado a voltar à patrulha se não está satisfeito!
A Prova Real. Lembro de alguma coisa sobre a expressão. Vi no resumo que recebemos sobre Norta, a maçaroca de informações que o coronel me fez ler antes de me mandar pra cá. Talvez seja alguma coisa sobre os príncipes... escolherem suas princesas. Torço o nariz à ideia, mas não consigo desgrudar os olhos da tela à medida que nos aproximamos.
Nela, uma garota vestida de couro preto demonstra seu estoque de poderes. Magnetron, percebo ao vê-la manipular o metal da arena onde está.
Então, um ponto vermelho cai e bate com tudo contra o escudo eletrificado que separa a magnetron do resto da elite prateada que assiste à demonstração.
Os policiais arquejam ao mesmo tempo. Um deles chega a desviar o rosto.
— Não quero ver isso — ele geme, como se estivesse prestes a vomitar.
Shade está cravado no chão, com os olhos fixos na tela para observar a mancha vermelha. Ele me segura mais forte e me obriga a ver. A mancha tem um nome. É a irmã dele.
Mare Barrow.
Sinto o corpo dele gelar assim que os raios a engolem.
— Era pra ela ter morrido.
As mãos de Shade tremem e ele precisa sentar no beco para evitar que o resto do corpo siga o exemplo delas. Caio de joelhos ao lado dele, com uma mão em seu braço trêmulo.
— Era pra ela ter morrido — ele repete com um olhar assustado e vazio.
Não preciso perguntar para saber que ele está repassando a cena na cabeça sem parar. A irmã mais nova caindo na arena da Prova Real. Sob todos os aspectos, caindo para a própria morte. Mas Mare não morreu. Foi eletrocutada ao vivo, mas não morreu.
— Ela está viva, Shade — digo, virando o rosto dele para me encarar. — Você viu com os próprios olhos. Ela levantou e correu.
— Como isso é possível?
Agora não é o momento de apreciar a ironia da situação.
— Já te perguntei a mesma coisa uma vez.
— Então ela também é diferente. — O olhar dele escurece e desvia do meu rosto. — E está com eles. Preciso ajudá-la.
Ele tenta levantar, mas o choque ainda não passou. Eu o ajudo a sentar de novo com a maior delicadeza possível, deixando que se apoie em mim.
— Eles vão matar minha irmã, Diana — ele sussurra num tom que me parte o coração. — Podem estar matando neste exato momento.
— Não sei, mas acho que não vão. Não podem. Não depois de todos terem visto uma vermelha que sobreviveu aos raios.
Vão precisar explicar primeiro. Inventar uma história. Igual às histórias que contavam para encobrir nossa existência até garantirmos que não podíamos ser ignorados.
— Ela marcou a própria posição — acrescento.
De repente, o beco parece pequeno demais. O rosto de Shade assume uma expressão que só um soldado é capaz de ter.
— Não vou deixar minha irmã sozinha.
— Ela não vai ficar só. Vou garantir isso.
Seu olhar endurece, refletindo minha decisão.
— Eu também.
Victoria Aveyard
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