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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CIDADE DOS OSSOS / Michael Connelly
CIDADE DOS OSSOS / Michael Connelly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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No dia de Ano-Novo, um cachorro desenterra, nas colinas de Hollywood, o esqueleto de um menino morto há muitos anos. Bosch, que estava de plantão, assume o caso.
Uma investigação estranha na qual precisa voltar no tempo, identificar a vítima, e, só então, tentar encontrar o assassino que desapareceu por completo. O mistério atrai a atenção da imprensa, que arma um verdadeiro circo. Quando um morador da área, que anos antes tinha sido acusado de pedofilia, comete suicídio, o departamento de polícia imediatamente vê naquilo uma confissão de culpa que agradaria à mídia e colocaria os detetives trabalhando em casos mais recentes. Mas Bosch percebe que tudo aquilo é um grande jogo. E, mesmo contra a vontade de seus superiores, resolve ir até o fim. Uma nova aventura brilhante de um dos grandes detetives de todos os tempos.

 

 

 


 

 

 


Ao atender um telefonema em seu plantão no Ano-Novo, o detetive Harry Bosch é informado de que um cachorro encontrou um osso. E o dono do animal, um médico, garante que é de um humano.
Bosch parte para a investigação dessa descoberta casual, que o leva a uma cova rasa nas colinas de Hollywood - prova de
um assassinato cometido há mais de vinte
anos. Um caso antigo e esquecido, mas que atrai as lembranças da infância de Bosch como órfão. E ele não pode deixar que seja arquivado novamente. Ao rastrear os
registros da polícia e dos hospitais à procura de crianças de rua e fugitivos dos anos 70, Bosch encontra uma família
despedaçada por uma ausência - e uma trilha, ainda mais tênue, para um mundo
violento e aterrorizante.
À medida que a investigação leva Bosch ao passado, Julia Brasher, uma policial novata, faz com que ele se sinta vivo de um
modo como não acontecia havia anos.
Apesar de Bosch ter sido alertado dos problemas causados por namorar uma recruta, nada pode conter a atração entre os dois - nem prepará-los para algumas surpresas.
Um suspeito foge, um membro da polícia é baleado, e de repente o caso de
Bosch coloca Los Angeles em tumulto. Um
circo de horrores armado pela imprensa.
com reviravoltas precisamente engendradas e uma fonte inesgotável de
detalhes sinistros que o tornaram um dos autores mais vendidos da atualidade,
Michael Connelly escreveu uma história policial empolgante, afiada e inesquecível.
Michael Connelly apaixonou-se pela literatura policial ao ler, na adolescência, os romances de Raymond Chandler. Antes de tornar-se um autor conhecido,
trabalhou como repórter policial do Los Angeles Times, onde adquiriu conhecimento sobre tiras e seus métodos
de investigação. No início dos anos 90, publicou seu primeiro romance, Black Echo, que lhe rendeu o prestigiado prêmio Edgar Allan Põe na categoria estreante. Incentivado
pelo prêmio, deixou o jornalismo e passou a dedicar-se com exclusividade à literatura, o que lhe valeu, em 1997, o Anthony Award por Melhor Romance de Mistério.
Em 2003 foi eleito presidente da associação Mystery Writers of America, cargo que já foi ocupado por nomes ilustres como Chandler.
Para mais informações sobre Michael Connelly, visite www.michaelconnelly.com.
Capa de Glenda Rubinstein sobre ilustração
de Cruz
OUTROS TÍTULOS DA COLEÇÃO NEGRA:
Noir americano - Uma antologia do crime de Chandler a Tarantino, editado por Peter Haining • Los Angeles - cidade proibida, de James Ellroy • Negro e amargo blues,
de James Lee Burke • Sob o sol da Califórnia, de Robert Grais • Bandidos, de Elmore Leonard • Tablóide americano, de James Ellroy
• Procura-se uma vítima, de Ross Macdonald • Perversão na cidade do jazz, de James Lee Burke • Marcos de nascença, de Sarah Dunant • Crime no colégio, de James Hilton
• Noturnos de Hollywood, de James Ellroy • Viúvas, de Ed McBain • Modelo para morrer, de Flávio Moreira da Costa • Violetas de março, de Philip Kerr • O homem sob
a terra, de Ross Macdonald
• Essa maldita farinha, de Rubens Figueiredo • A forma da água, de Andréa Camilleri • O colecionador de ossos, de Jeffery Deaver • A região submersa, de Tabajara
Ruas • O cão de terracota, de Andréa Camilleri • Dália Negra, de James Ellroy • Rios vermelhos, de Jean-Christophe Grangé
• Beijo, de Ed McBain • O executante, de Rubem Mauro Machado • Sob minha pele, de Sarah Dunant • Jazz branco, de James Ellroy • A maneira negra, de Rafael Cardoso
• O ladrão de merendas, de Andréa Camilleri • Cidade corrompida, de Ross Macdonald • Tiros na noite, de Dashiell Hammett • Assassino branco, de Philip Kerr • A sombra
materna, de Melodie Johnson Howe • A voz do violino, de Andréa Camilleri • As pérolas peregrinas, de Manuel de Lope • A cadeira vazia, de Jeffery Deaver
• Os vinhedos de Salomão, de Jonathan Latimer • Uma morte em vermelho, de Walter Mosley • O grande deserto, de James Ellroy • Réquiem alemão, de Philip Kerr • Cadillac
K.K.K., de James Lee Burke • Metrópole do medo, de Ed McBain • Um mês com Montalbano, de Andréa Camilleri • A lágrima do diabo, de Jeffery Deaver • Sempre em desvantagem,
de Walter Mosley • O coração da floresta, de James Lee Burke • Dois assassinatos em minha vida dupla, de Josef Skvorecky • O vôo das cegonhas, de Jean-Christophe
Grangé
• 6 mil em espécie, de James Ellroy • O vôo dos anjos, de Michael Connelly
• Uma pequena morte em Lisboa, de Robert Wilson • Caos total, de JeanClaude Izzo • Excursão a Tíndari, de Andréa Camilleri • Mistério à americana, organização e
prefácio de Donald E. Westlake • Nossa Senhora da Solidão, de Marcela Serrano • Ferrovia do crepúsculo, de James Lee Burke • Sangue na lua, de James Ellroy • A última
dança, de Ed McBain • Mistério à americana 2, organização de Lawrence Block • Mais escuro que a noite, de Michael Connelly • Uma volta com o cachorro, de Walter
Mosley • O cheiro da noite, de Andréa Camilleri • Tela escura, de Davide Ferrario • Por causa da noite, de James Ellroy • Grana, grana, grana, de Ed McBain • Na
companhia de estranhos, de Robert Wilson • Réquiem em Los Angeles, de Robert Crais • O macaco de pedra, de Jeffery Deaver • Alvo virtual, de Denise Danks • O morro
do suicídio, James Ellroy • Sempre caro, de Marcelo Fois • Refém, de Robert Crais • O outro mundo, de Marcello Fois.

Michael Connelly
Cidade dos Ossos

TRADUÇÃO DE
Alves Calado
EDITORA R E C O R D
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO
2004
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Conelly, Michael, 1956-
C754c Cidade dos Ossos / Michael Conelly; tradução de
Ivanir Alves Calado. - Rio de Janeiro: Record, 2004.
368p. :
Tradução de: City of bonés ISBN 85-01-06761-X
1. Ficção americana. I. Alves-Calado, Ivanir, 1953-, II. Título.
04-2017
CDD-813 CDU-821.111.(73)-3
Título original norte-americano: CITY OF BONÉS
Este é para John Houghton,
pela ajuda, pela amizade e pelas histórias -
Publicado mediante acordo com Little, Brown and Company, (Inc.), New York, USA
Copyright (c) 2003 by Hieronymus, Inc.
Projeto gráfico e composição de miolo: GlendaRubinstein Ilustrações: Cruz
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 -Rio de Janeiro, RJ-20921-380-Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil

ISBN 85-01-06761-X / ^^

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL
Caixa Postal 23.052
Rio de Janeiro, RJ - 20922-970

Capítulo 1
A velha senhora tinha mudado de idéia quanto a morrer, mas aí já era tarde demais. Cravara os dedos na tinta e no reboco da parede até que a maior parte das unhas
havia se quebrado. Depois partiu para o pescoço, tentando empurrar as pontas dos dedos ensangüentadas para cima, por baixo do fio. Quebrou quatro dedos dos pés chutando
as paredes. Tentara tanto, mostrado uma vontade tão desesperada de viver, que fez Harry Bosch se perguntar o que havia acontecido antes. Onde estava aquela determinação
e a força de vontade, e por que a haviam abandonado até depois de ter posto o nó corrediço da extensão elétrica em volta do pescoço e chutado a cadeira? Por que
isso havia se escondido dela?
Essas não eram questões oficiais que seriam levantadas em seu relatório de morte. Mas eram coisas que Bosch não podia evitar de pensar, sentado no carro do lado
de fora do Lar de Repouso Idade Esplêndida, no Sunset Boulevard, a leste da Hollywood Freeway. Eram 16h20 do primeiro dia do ano. Bosch tinha ganhado no sorteio
o turno de plantão durante o feriado.
O dia já havia passado da metade e o turno consistira em duas chamadas de suicídio - uma com tiro e a outra era o enforcamento. Ambas as vítimas eram mulheres.
Nos dois casos havia indícios de depressão e desespero. Isolamento. O dia do Ano-Novo sempre tinha suicídios. Enquanto a maioria das pessoas o recebia com um
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sentimento de esperança e renovação, havia quem o considerasse um dia bom para morrer, algumas pessoas - como a velha senhora
- sem perceber o erro até ser tarde demais.
Bosch olhou pelo pára-brisa enquanto o corpo da última vítima, na maca com rodinhas e coberto por um lençol verde, era posto no furgão azul da perícia médica. Viu
que havia outra maca ocupada no furgão, e soube que era do primeiro suicídio - uma atriz de 34 anos que tinha dado um tiro em si mesma estacionada num mirante da
Mulholland Drive. Bosch e a equipe dos cadáveres tinham ido de um caso ao outro.
O celular de Bosch tilintou e ele gostou da intromissão em seus pensamentos sobre mortes pequenas. Era Mankiewicz, o sargento de plantão na Divisão de Hollywood
do Departamento de Polícia de Los Angeles.
- Já terminou aí? -Estou para sair.
- O que foi?
- Um suicídio tipo "mudei de idéia". Tem mais alguma coisa?
- Tenho. E não acho que isso deveria ser passado pelo rádio. Deve estar sendo um dia fraco para a mídia, estou recebendo mais telefonemas de repórteres perguntando
o que está acontecendo que ligações de serviço dos cidadãos. Todos querem fazer alguma coisa sobre o primeiro, a atriz da Mulholland. Sabe, uma matéria tipo "fim
de um sonho de Hollywood".
E provavelmente vão todos pular em cima deste último caso também.
- Certo, o que é?
- Um cidadão em Laurel Canyon. Na Wonderland. Acabou de ligar e disse que seu cachorro voltou de uma corrida pelo mato com um osso na boca. O cara disse que é humano,
um osso do braço de uma criança.
Bosch quase gemeu. Houvera quatro ou cinco ligações como aquela nesse ano. Histeria sempre acompanhada pela explicação simples: ossos de animais. Através do pára-brisa
cumprimentou os dois transportadores de cadáveres da perícia médica enquanto eles iam para as portas da frente do furgão.
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- Sei o que está pensando, Harry. Outra chamada para ver osso, não. Você já fez isso uma centena de vezes e é sempre a mesma coisa. Coiote, cervo, sei lá. Mas escuta,
esse cara do cachorro é médico. E diz que não tem dúvida. E um úmero. O osso da parte de cima do braço. Disse que é de uma criança, Harry. E tem mais, saca só. Ele
disse...
Houve silêncio enquanto Mankiewicz aparentemente procurava suas anotações. Bosch viu o furgão da perícia sair para o tráfego. Quando Mankiewicz voltou, estava obviamente
lendo.
- O osso tem uma fratura claramente visível logo acima do epicôndilo
medial, seja lá o que for isso.
O queixo de Bosch ficou tenso. Sentiu uma ligeira comichão de eletricidade descendo pela nuca.
- E o que está anotado, não sei se estou falando direito. O ponto é que o médico disse que era uma criança, Harry. Então, você poderia fazer o número de verificar
esse úmero?
Bosch não respondeu.
- Desculpe, não pude deixar passar.
- É, foi engraçado, Mank. Qual é o endereço? Mankiewicz deu o endereço e disse que já havia despachado
uma patrulha.
- Você estava certo em não falar pelo rádio. Vamos tentar manter a coisa desse jeito.
Mankiewicz disse que manteria. Bosch fechou o celular e ligou o carro. Olhou para a entrada da casa de repouso antes de se afastar do meio-fio. Não havia nada que
lhe parecesse esplêndido ali. A mulher que tinha se pendurado no armário do quarto minúsculo não tinha parentes, segundo os administradores do retiro. Na morte,
seria tratada como vivera: esquecida e sozinha.
Bosch se afastou do meio-fio e foi para Laurel Canyon.
Capítulo 2
Bosch ouvia o jogo dos Lakers no rádio enquanto entrava no cânion e depois subia a montanha Lookout até a Wonderland Avenue. Não era fanático por basquete profissional,
mas queria ter uma idéia da situação para o caso de precisar de seu parceiro, Jerry Edgar. Estava trabalhando sozinho porque Edgar teve sorte e ganhou dois lugares
para assistir ao jogo. Bosch concordou em cuidar dos chamados e não incomodar Edgar a não ser que surgisse um homicídio ou algo de que ele não pudesse cuidar sozinho.
Além disso, estava sozinho porque o terceiro membro de sua equipe, Kizmin Rider, fora promovida há quase um ano para a Divisão de Roubos e Homicídios e ainda não
fora substituída.
O jogo com os Trail Blazers estava no início do terceiro quarto e empatado. Ainda que não fosse um fã empedernido, Bosch sabia o suficiente por causa da conversa
constante de Edgar sobre o esporte, implorando para ser liberado do plantão porque havia um jogo importante com um dos principais rivais do time de Los Angeles.
Decidiu não chamar Edgar pelo bip até chegar ao local e avaliar a situação. Desligou o rádio quando começou a perder a estação AM no cânion.
A pista era íngreme. O Laurel Canyon era um corte nas montanhas de Santa Mônica. As estradas secundárias iam para a crista dos morros. A Wonderland terminava sem
saída num lugar remoto,
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nde as casas de meio milhão de dólares eram rodeadas por um terreno coberto de mato e íngreme. Bosch sabia instintivamente que a procura de ossos na área seria
um pesadelo logístico. Parou atrás de uma radiopatrulha que já estava no endereço dado por Mankiewicz e olhou o relógio. Eram 16h38, e ele anotou a hora numa página
nova de seu bloco. Achou que restava menos de uma hora de luz do dia.
Uma patrulheira que ele não conhecia atendeu à sua batida na porta. No crachá estava escrito Brasher. Ela o guiou pela casa até um escritório onde seu parceiro,
um policial que Bosch reconheceu e que sabia se chamar Edgewood, estava falando com um homem de cabelos brancos sentado atrás de uma mesa atulhada. Havia uma caixa
de sapatos em cima da mesa.
Bosch se adiantou e se apresentou. O homem de cabelos brancos disse que era o dr. Paul Guyot, clínico geral. Inclinando-se à frente, Bosch pôde ver que a caixa de
sapatos continha o osso que havia reunido todos eles. Era marrom-escuro e parecia um pedaço de madeira velha meio mordida.
Também podia ver um cachorro deitado no chão perto da cadeira do médico. Era um cachorro grande, de pêlo amarelo.
- Então é isso - disse Bosch, olhando para a caixa.
- Sim, detetive, este é o seu osso - respondeu Guyot. - E como pode ver...
Ele estendeu a mão para uma prateleira atrás da mesa e pegou um exemplar pesado do Gray's Anatomy. Abriu num lugar marcado anteriormente. Bosch notou que ele estava
usando luvas de látex.
A página mostrava uma ilustração de um osso, em visão anterior e posterior. No canto da página havia um pequeno desenho de um esqueleto com os dois úmeros em destaque.
- O úmero - disse Guyot, batendo na página. - E aqui temos o espécime recuperado.
Ele enfiou a mão na caixa de sapatos e levantou o osso gentilmente. Segurando-o acima da ilustração do livro, fez uma comparação ponto por ponto.
- Epicôndilo medial, tróclea, grande e pequeno tubérculos. Está tudo aí. E eu estava acabando de dizer a esses dois policiais que sei
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identificar ossos mesmo sem o livro. Este osso é humano, detetive. Sem dúvida.
Bosch olhou o rosto de Guyot. Houve um ligeiro estremecimento, talvez a primeira demonstração dos tremores do mal de Parkinson.
- O senhor está aposentado?
- Sim, mas isso não significa que não conheça um osso quando vejo...
- Não estou questionando-o, dr. Guyot. - Bosch tentou sorrir.
- Se o senhor diz que é humano, eu acredito. Só estou tentando ter uma idéia geral da situação. O senhor pode colocá-lo de volta na caixa, se quiser.
Guyot recolocou o osso na caixa de sapatos.
- Qual é o nome do seu cachorro? -Calamidade.
Bosch olhou para a cadela. Parecia estar dormindo.
- Quando era filhote ela vivia arranjando encrenca. Bosch assentiu.
- Então, se não se incomoda de contar de novo, diga o que aconteceu hoje.
Guyot coçou o pescoço da cadela. O animal olhou-o por um momento. Depois baixou a cabeça de novo e fechou os olhos.
- Levei Calamidade para o passeio da tarde. Em geral, quando vou até o círculo no fim da rua, solto a guia e a deixo correr no mato. Ela gosta.
- Qual a raça dela?
- Labrador amarelo - respondeu Brasher rapidamente, de trás dele...
Bosch se virou e olhou-a. A policial percebeu que tinha cometido um erro ao se intrometer. Assentiu e deu um passo atrás, na direção da porta da sala, onde estava
seu parceiro.
- Vocês podem ir, se tiverem outro chamado - disse Bosch. Eu cuido disso daqui em diante.
Êdgewood assentiu e sinalizou para a parceira sair. -' Obrigado, doutor - disse ele enquanto se retirava. -' Não foi nada. Bosch pensou numa coisa. -
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- Ei, pessoal?
Edgewood e Brasher se viraram.
- Vamos manter isso fora das comunicações de rádio, certo?
- Pode crer - disse Brasher, com os olhos fixos nos de Bosch até ele virar a cabeça.
Depois que os policiais saíram, Bosch olhou de novo para o médico e notou que o tremor facial estava ligeiramente mais pronunciado.
- Eles também não acreditaram em mim, a princípio - disse ele.
- E só que a gente recebe um monte de chamados como esse. Mas acredito no senhor, então por que não continuamos com a história?
Guyot assentiu.
- Bem, eu estava lá em cima no círculo e soltei a guia. Ela foi para o mato, como gosta de fazer. Calamidade é bem treinada. Quando eu assobio, ela volta. O problema
é que eu não consigo mais assobiar muito alto. E se ela for até onde não possa me ouvir, eu tenho de esperar, veja bem.
- O que aconteceu hoje, quando ela achou o osso?
- Assobiei e ela não voltou.
- Então ela estava bem longe.
- E, exato. Esperei. Assobiei mais algumas vezes e finalmente ela saiu do mato perto da casa do sr. Ulrich. Estava com o osso. Na boca. A princípio achei que era
um pedaço de pau, veja bem, e que ela queria brincar de pegar. Mas quando chegou perto reconheci a forma. Peguei o osso com ela, e tive de brigar por ele, e então
liguei para o seu pessoal depois de examinar aqui e ter certeza.
O seu pessoal, pensou Bosch. Era sempre dito assim, como se a polícia fosse outra espécie. A espécie azul com armaduras que os horrores do mundo não podiam romper.
- Quando ligou, o senhor disse ao sargento que o osso tinha uma fratura.
- Isso mesmo.
Guyot pegou o osso de novo, segurando-o com cuidado. Virou-o e passou o dedo por uma estria vertical ao longo da superfície.
- É uma linha de fratura, detetive. Curada.
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- Certo.
Bosch apontou para a caixa e o médico recolocou o osso.
- Doutor, o senhor se incomodaria em colocar uma guia na sua cachorra e dar uma volta até o círculo comigo?
- De jeito nenhum. Só preciso trocar os sapatos.
- Preciso trocar os meus também. Que tal se nos encontrarmos na frente da casa?
- Sem dúvida.
- vou levar isto.
Bosch recolocou a tampa na caixa e carregou-a com as duas mãos, certificando-se de não virá-la nem sacudir o conteúdo.
Lá fora notou que a radiopatrulha ainda estava na frente da casa. Os dois policiais estavam dentro, aparentemente escrevendo os relatórios. Foi até seu carro e pôs
a caixa de sapatos no banco
do carona.
Como estava num plantão informal, não tinha vestido terno. Estava com um paletó esporte, jeans e camisa branca. Tirou o paletó, dobrou-o pelo avesso e pôs no banco
de trás. Notou que o gatilho da arma, que mantinha na cintura, abrira um buraco no forro, e o paletó nem tinha um ano. Logo ele abriria caminho para dentro do bolso
e depois se enfiaria totalmente. com freqüência Bosch gastava os paletós de dentro para fora.
Em seguida tirou a camisa, revelando uma camiseta branca por baixo. Então abriu o porta-malas para tirar o par de botas de trabalho de dentro de sua caixa de equipamento
de investigação da cena do crime. Enquanto se encostava no pára-choque traseiro e trocava o sapato, viu Brasher sair da radiopatrulha e vir em sua direção.
- E aí, parece legítimo, não é?
- Acho que sim. Mas algum legista terá de confirmar.
- Você vai dar uma olhada lá em cima?
- vou tentar. Mas não resta muita luz. Provavelmente vou voltar amanhã.
- A propósito, sou Julia Brasher. Sou nova na divisão.
- Harry Bosch.
- Eu sei. Ouvi falar de você.
- Nego tudo.
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Ela achou graça e estendeu a mão, mas Bosch estava amarrando uma das botas. Ele parou e apertou a mão dela.
- Desculpe - disse Julia. - Minha noção de tempo está péssima hoje.
- Não se preocupe.
Ele terminou de amarrar a bota e se levantou.
- Quando soltei a resposta lá dentro, sobre a cachorra, percebi imediatamente que você estava tentando estabelecer um contato com o médico. Foi errado. Desculpe.
Bosch examinou-a por um momento. Devia ter trinta e poucos anos, com o cabelo escuro preso numa trança apertada que deixava um rabo curto passando sobre a nuca.
Os olhos eram castanhoescuros. Achou que ela gostava de viver ao ar livre. A pele tinha um bronzeado uniforme.
- Como eu disse, não se preocupe.
- Você está sozinho? Bosch hesitou.
- Meu parceiro está trabalhando em outra coisa enquanto verifico isso.
Viu o médico saindo pela porta de casa com a cachorra numa guia. Decidiu não pegar o macacão de investigação da cena do crime. Olhou para Julia Brasher, que agora
estava observando a cachorra que se aproximava.
- Vocês não receberam nenhum chamado?
- Não, a coisa está tranqüila.
Bosch olhou para a lanterna na sua caixa de equipamento. Olhou para Brasher, enfiou a mão no porta-malas e pegou um trapo que jogou em cima da lanterna. Pegou um
rolo de fita amarela, de isolamento de local de investigação, e a câmera Polaroid. Depois fechou o porta-malas e se virou para Brasher.
- Então você se importa se eu pegar sua lanterna emprestada? Eu... ha... esqueci a minha.
- Sem problema.
Ela tirou a lanterna do anel no cinto de equipamentos e entregou.
O médico e a cadela chegaram.
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- Pronto.
- Certo, doutor, quero que o senhor nos leve até o ponto onde soltou a cachorra, e veremos aonde ela vai.
- Não sei se o senhor vai poder acompanhá-la.
- Deixe isso por minha conta, doutor.
- Então é por aqui.
Subiram o morro até o pequeno círculo onde a Wonderland terminava. Brasher fez um sinal para o parceiro no carro e foi com eles.
- Sabe, tivemos uma certa agitação aqui há alguns anos - disse Guyot. - Um homem foi seguido do Hollywood Bowl até em casa e morto durante um assalto.
- Eu lembro - disse Bosch.
Ele sabia que a investigação continuava aberta, mas não falou. O caso não era seu.
O dr. Guyot andava com um passo forte que negava sua idade e o evidente estado de saúde. Deixou a cadela determinar o ritmo e logo se adiantou vários passos adiante
de Bosch e Brasher.
- Então, onde você estava antes? - perguntou Bosch a Brasher.
- O quê?
- Você disse que era nova na Divisão de Hollywood. E antes?
- Ah. Na academia.
Ele ficou surpreso. Olhou-a, pensando que talvez devesse refazer sua avaliação de idade. Ela assentiu e disse:
- Eu sei, sou velha. Bosch ficou sem graça.
- Não, não quis dizer isso. Só pensei que você tinha trabalhado em outro lugar. Não parece uma novata.
- Só entrei aos trinta e quatro anos.
- Verdade? Uau.
- É. Eu fui picada meio tarde.
- O que fazia antes?
- Ah, um bocado de coisas. Principalmente viagens. Demorei um tempo para deduzir o que queria fazer. E quer saber o que mais desejo?
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Bosch olhou-a. - O quê?
- O que você faz, homicídios.
Ele não sabia o que dizer, se deveria encorajá-la ou dissuadi-la.
- Bem, boa sorte.
- Quero dizer, você não acha que é o trabalho mais gratificante que existe? Olha o que você faz, você tira as pessoas mais malignas do meio.
- Do meio?
- A sociedade.
- Ah, acho que sim. Quando a gente tem sorte. Alcançaram o dr. Guyot, que tinha parado com a cadela no círculo do fim da rua.
- É aqui?
- E. Eu a soltei aqui. Ela entrou por ali.
Ele apontou para um terreno vazio e com mato crescido, que começava no nível da rua mas subia rapidamente, íngreme, em direção à crista dos morros. Havia uma grande
galeria de escoamento, o que explicava por que não havia construção no terreno. Era propriedade municipal, usada para canalizar as águas das tempestades para longe
das casas da rua. Muitas ruas no cânion tinham sido leitos de riachos e rios. Quando chovia eles voltariam à função inicial se não houvesse o sistema de drenagem.
- O senhor vai subir lá? - perguntou o médico.
- vou tentar.
- vou com você - disse Brasher.
Bosch olhou-a e depois se virou ao ouvir o som de um carro. Era a radiopatrulha. Ela parou e Edgewood baixou a janela.
- Temos um chamado quente, parceira. Duplo D.
Ele assentiu para o banco do carona, vazio. Brasher franziu a testa e olhou para Bosch.
- Odeio disputas domésticas.
Bosch sorriu. Também odiava, especialmente quando se transformavam em homicídio.
- Desculpe.
- Bem, quem sabe na próxima?
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Ela contornou a frente do carro.
- Aqui - disse Bosch, estendendo a lanterna.
- Tenho outra no carro - disse ela. - Depois você me devolve.
- Tem certeza?
Ele se sentiu tentado a pedir o número do telefone, mas não o fez.
- Tenho. Boa sorte.
- Para você também. Cuide-se.
Ela sorriu e depois correu contornando a frente do carro. Entrou e o veículo se afastou. Bosch voltou a atenção para Guyot e a cadela.
- Mulher atraente - disse Guyot.
Bosch ignorou isso, imaginando se o médico tinha feito a observação por ter visto sua reação a Brasher. Esperava não ter sido tão óbvio.
- Certo, doutor, vamos soltar a cadela e eu tento acompanhar. Guyot soltou a guia e bateu no peito do animal.
- Vá pegar o osso, garota. Pegue um osso! Anda!
A cachorra partiu para o terreno baldio e sumiu antes que Bosch tivesse dado um passo. Ele quase riu.
- Bem, acho que o senhor estava certo, doutor.
Ele se virou para se certificar de que a radiopatrulha tinha sumido e que Brasher não havia visto a cadela desaparecer.
- Quer que eu assobie?
- Não. Só vou dar uma olhada, ver se posso achá-la. Ele acendeu a lanterna.
Capítulo 3
A floresta estava escura muito antes de o sol desaparecer. O dossel criado por altos pinheiros de Monterey bloqueava a maior parte da luz antes de chegar ao chão.
Bosch usou a lanterna e subiu o morro na direção em que tinha ouvido a cachorra se movendo pelo mato. Era um processo lento e difícil. O terreno tinha uma camada
de trinta centímetros de agulhas de pinheiro que ficava cedendo sob as botas enquanto Bosch tentava se firmar no barranco. Logo suas mãos estavam pegajosas da seiva,
de tanto agarrar os galhos para se manter de pé.
Demorou quase dez minutos para subir trinta metros na colina. Então o chão começou a ficar plano e a luz melhorou à medida que as árvores altas rareavam. Olhou em
volta procurando a cadela, mas não viu. Gritou para a rua, apesar de não conseguir mais vê-la nem ao dr. Guyot:
- Dr. Guyot? Está me ouvindo?
- Sim, estou.
- Assobie para a cachorra. Então ouviu um assobio em três partes. Era claro, mas muito
baixo, tendo a mesma dificuldade da luz do sol para atravessar as árvores e o mato rasteiro. Bosch tentou repeti-lo e, depois de algumas tentativas, achou que havia
acertado. Mas a cachorra
não veio.
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Continuou, permanecendo no terreno plano porque acreditava que, se alguém fosse enterrar ou abandonar um corpo, isso seria feito em terreno plano, e não num local
íngreme. Seguindo um caminho de menor resistência, chegou a um agrupamento de acácias. E ali encontrou imediatamente um local onde a terra fora mexida há pouco tempo.
Tinha sido revirada, como se uma ferramenta ou um animal tivessem chafurdado aleatoriamente. Usou o pé para empurrar um pouco da terra e dos gravetos, e então percebeu
que não eram gravetos.
Ajoelhou-se e usou a luz para estudar os ossos curtos e marrons espalhados sobre trinta centímetros quadrados de terra. Achou que estava olhando os dedos desconjuntados
de uma mão. Uma mão pequena. Uma mão de criança.
Levantou-se. Percebeu que seu interesse em Julia Brasher o havia distraído. Não tinha trazido algo para recolher os ossos. Pegá-los e carregá-los morro abaixo violaria
todas as regras da coleta de provas.
A máquina Polaroid estava pendurada ao pescoço por um cordão de sapato. Levantou-a e tirou uma foto em dose. dos ossos. Depois recuou e tirou uma foto mais ampla
do lugar abaixo das acácias.
A distância ouviu o assobio baixo do dr. Guyot. Passou a trabalhar com a fita amarela de isolamento. Amarrou um pedaço em volta do tronco de uma acácia e depois
estabeleceu um perímetro ao redor das árvores. Pensando em como trabalharia na manhã seguinte, saiu da cobertura das acácias e procurou alguma coisa para usar como
marco aéreo. Achou um arbusto de artemísia ali perto. Enrolou várias vezes a fita de isolamento ao redor e em cima do arbusto.
Quando terminou, estava quase escuro. Deu outra olhada superficial na área mas soube que uma busca com a lanterna era inútil, e que o terreno teria de ser exaustivamente
examinado de manhã. Usando um pequeno estilete preso ao chaveiro, começou a cortar pedaços de fita de isolamento com cerca de
1,20m de comprimento.
Marcando o caminho morro abaixo, amarrou os pedaços de fita a intervalos, em galhos de árvores e arbustos. Escutou vozes quando chegou mais perto da rua e usou-as
para manter a direção. Num determinado ponto do barranco o terreno macio cedeu subitamente
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e ele caiu, chocando-se contra a base de um pinheiro. A árvore bateu no meio de seu corpo, rasgando a camisa e arranhando bastante o lado do corpo.
Não se mexeu durante vários segundos. Pensou que poderia ter quebrado as costelas do lado direito. A respiração estava difícil e dolorosa. Gemeu alto e lentamente
ficou de pé firmando-se no tronco, para continuar acompanhando as vozes.
Logo voltou à rua onde o dr. Guyot estava esperando com a cadela e outro homem. Os dois olharam chocados ao ver o sangue na camisa de Bosch.
- Minha nossa, o que aconteceu? - exclamou Guyot. -Nada. Eu caí.
- Sua camisa está... com sangue!
- Faz parte do trabalho.
- Deixe-me olhar seu peito.
O médico se aproximou para olhar, mas Bosch levantou as mãos.
- Estou bem. Quem é esse? O outro homem respondeu.
- Sou Victor Ulrich. Moro aqui.
Ele apontou para a casa perto do terreno baldio. Bosch assentiu.
- Vim ver o que estava acontecendo.
- Bem, no momento, nada. Mas há um local de investigação criminal lá em cima. Ou haverá. Provavelmente só voltaremos para trabalhar amanhã de manhã. Mas preciso
de que os senhores fiquem longe e não contem a ninguém sobre isso. Certo?
Os dois vizinhos assentiram.
- E, doutor, não deixe sua cadela solta durante alguns dias. Preciso voltar ao carro para dar um telefonema. Sr. Ulrich, tenho certeza de que vamos querer falar
com o senhor amanhã. Vai estar por aqui?
- Claro. A qualquer hora. Trabalho em casa. -Fazendo o quê?
- Escrevendo.
- Certo. Veremos o senhor amanhã. Bosch voltou à rua com Guyot e a cadela.
- O senhor precisa me deixar dar uma olhada nesse machucado - insistiu Guyot.
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- vou ficar bem.
Bosch olhou para a esquerda e pensou ter visto uma cortina se fechar rapidamente na casa pela qual estavam passando.
- Pelo modo como o senhor está andando... houve alguma coisa nas costelas - disse Guyot. - Talvez tenha quebrado uma. Talvez mais de uma.
Bosch pensou nos ossos pequenos e finos que tinha acabado de ver embaixo das acácias.
- Não há nada que o senhor possa fazer por uma costela, quebrada ou não.
- Posso imobilizar. O senhor vai respirar muito mais fácil. Também posso cuidar desse ferimento.
Bosch cedeu.
- Certo, doutor, pegue sua maleta. vou pegar minha outra camisa.
Dentro da casa de Guyot, alguns minutos depois, o médico limpou o arranhão fundo no lado do peito e imobilizou as costelas. A sensação realmente foi melhor, mas
ainda doía. Guyot disse que não podia mais dar receitas, mas sugeriu que, de qualquer modo, Bosch não tomasse nada mais forte do que uma aspirina.
Bosch se lembrou de que tinha um frasco com alguns comprimidos de Vicodin, que sobraram de quando teve um siso extraído alguns meses antes. Aliviariam a dor se
ele quisesse continuar assim.
- vou ficar bem - disse ele. - Obrigado por ter dado um jeito.
- Não precisa agradecer.
Bosch vestiu a camisa boa e olhou enquanto Guyot fechava o kit de primeiros socorros. Imaginou quanto tempo fazia desde que o médico tinha usado suas habilidades
num paciente.
- Há quanto tempo o senhor se aposentou?
- Faz doze anos no mês que vem.
- Sente falta?
Guyot se virou de costas para o kit de primeiros socorros e olhou para ele. O tremor tinha sumido.
- Todo dia. Não sinto falta do trabalho em si, você sabe, dos casos. Mas era um trabalho que tinha significado. Sinto falta disso.
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Bosch pensou em como Julia Brasher havia descrito o trabalho com homicídios. Assentiu entendendo o que Guyot disse.
- O senhor falou que havia um local de investigação criminal lá em cima? - perguntou o doutor.
- Sim. Achei mais ossos. Tenho de dar um telefonema, ver o que vamos fazer. Posso usar seu telefone? Acho que meu celular não vai funcionar aqui.
- Não, eles nunca funcionam no cânion. Use o telefone ali na mesa. Eu lhe darei um pouco de privacidade.
Ele saiu levando o kit de primeiros socorros. Bosch foi para trás da mesa e se sentou. A cadela estava no chão perto da cadeira. O animal ergueu os olhos e pareceu
espantado ao ver Bosch no lugar de seu dono.
- Calamidade - disse ele. - Acho que hoje você esteve à altura de seu nome.
Baixou a mão e coçou a nuca da cachorra. Ela rosnou e ele afastou a mão rapidamente, imaginando se seria o treinamento ou alguma coisa nele que havia causado a reação
hostil.
Pegou o telefone e ligou para a casa de sua supervisora, a tenente Grace Billets. Explicou o que tinha acontecido na Wonderland e sua descoberta no morro.
- Harry, quanto tempo esses ossos parecem ter? - perguntou Billets.
- Não sei, parecem velhos. Eu diria que estamos falando de anos.
- Certo, de modo que qualquer coisa que haja no local não é recente.
- Talvez tenha sido revirada recentemente, mas não, já estava lá há um tempo.
Ela ficou quieta um momento antes de falar.
- Esses tipos de caso, Harry...
- O quê?
- Eles drenam o orçamento, drenam serviço... e são os mais difíceis de fechar, se puderem ser fechados.
- Certo, eu limpo tudo lá em cima e cubro os ossos. Digo ao doutor para manter a cachorra presa.
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- Qual é, Harry? Você sabe o que estou dizendo. - Ela soltou o ar com ruído. - O primeiro dia do ano e a gente vai começar no
buraco.
Bosch ficou quieto, deixando-a liberar as frustrações administrativas. Não demorou muito. Era uma das coisas das quais ele gostava na tenente Billets.
- Certo, aconteceu mais alguma coisa hoje?
- Não muito. Dois suicídios, até agora.
- Certo, quando você vai começar amanhã?
- Gostaria de chegar cedo. vou dar uns telefonemas e ver o que consigo. E confirmar a procedência do osso que a cachorra encontrou antes de começarmos qualquer coisa.
- Certo, me deixe a par.
Bosch concordou e desligou o telefone. Em seguida ligou para
a casa de Teresa Corazon, a chefe do Departamento de Medicina
Legal. Ainda que o relacionamento dos dois fora do trabalho tivesse
terminado há anos e desde então ela tivesse se mudado pelo menos
duas vezes, Teresa sempre mantivera o mesmo número, e Bosch o
sabia de cor. Agora isso veio a calhar. Explicou o que tinha e que
precisava de uma confirmação oficial de que o osso era humano
antes de colocar outras coisas em movimento. Também disse que,
se isso fosse confirmado, precisaria de uma equipe arqueológica para
trabalhar no local o mais rápido possível.
Corazon o fez esperar durante quase cinco minutos.
- Certo - disse quando voltou à linha. - Não consegui falar com Kathy Kohl. Ela não está em casa.
Bosch sabia que Kohl era a arqueóloga da equipe. Sua verdadeira especialidade e o motivo para sua inclusão como funcionária em tempo integral era recuperar ossos
dos locais de desova de corpos no deserto no norte do condado, o que era um acontecimento semanal. Mas Bosch sabia que Kohl seria chamada para cuidar da busca dos
ossos perto da Wonderland Avenue.
- O que você quer que eu faça? Quero que isso seja confirmado esta noite.
- Pega leve, Harry. Você é impaciente demais. Parece um cachorro quando acha um osso. Sem trocadilho.
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- É uma criança, Teresa. Não dá para sermos sérios?
- Venha aqui. Eu olho esse osso.
- E quanto a amanhã?
- vou agitar as coisas. Deixei um recado para Kathy, e assim que a gente desligar aqui vou telefonar para o escritório e mandar passar um bip para ela. Ela vai comandar
a escavação assim que o sol nascer e nós pudermos chegar. Quando os ossos forem recuperados, há um antropólogo forense da UCLA que trabalha para nós, e posso chamá-lo
se ele estiver na cidade. E eu estarei lá. Está satisfeito?
Essa última parte fez Bosch parar.
- Teresa - disse por fim. - Quero fazer isso na maior discrição possível durante o máximo de tempo possível.
- O que está sugerindo?
- Que não sei se a chefe do Departamento de Medicina Legal de Los Angeles precisa estar lá. E que há muito tempo não vejo você num local de crime sem um cinegrafista
a reboque.
- Ele é um operador de vídeo particular, certo? O que ele está gravando é para uso futuro meu, e controlado somente por mim. Não vai passar no noticiário das seis.
- Tanto faz. Só acho que a gente precisa evitar qualquer complicação. E um caso com uma criança. Você sabe como isso acaba ficando.
- Apenas traga esse osso para cá. vou sair dentro de uma hora. Ela desligou abruptamente.
Bosch desejou ter sido um pouco mais político com Corazon, mas ficou satisfeito por ter exposto seu argumento. Corazon era uma personalidade, aparecendo regularmente
no Court TV e em programas de TV aberta, como especialista forense. Também tinha arranjado um cameraman para acompanhá-la, de modo que seus casos pudessem se transformar
em documentários para transmissão em qualquer dos programas sobre polícia e justiça no vasto espectro da TV por assinatura. Ele não podia e não deixaria que os objetivos
dela como celebridade legista interferissem com os objetivos dele como investigador do que poderia ser o homicídio de uma criança.
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Decidiu que daria os telefonemas para as unidades de Serviços Especiais e de cães policiais depois da confirmação sobre o osso. Levantou-se e saiu da sala, procurando
Guyot.
O médico estava na cozinha, sentado a uma mesinha e escrevendo num caderno espiral. Ele olhou para Bosch.
- Só estou tomando umas notas sobre seu tratamento. Tenho anotações sobre cada paciente de que já tratei.
Bosch apenas assentiu, mesmo achando estranho Guyot estar
escrevendo sobre ele.
- Tenho de ir, doutor. Voltaremos amanhã. com força total, espero. Talvez queiramos usar sua cadela de novo. O senhor vai estar aqui?
- Estarei, e feliz em ajudar. Como estão as costelas?
- Doem.
- Só quando você respira, não é? Isso vai durar cerca de uma
semana.
- Obrigado por cuidar de mim. O senhor não precisa daquela
caixa de sapatos de volta, não é?
- Não, agora eu não iria querê-la de volta.
Bosch se virou para a porta da frente, e então girou de novo
para Guyot.
- O senhor mora sozinho aqui, doutor?
- Agora sim. Minha mulher morreu há dois anos. Um mês antes de fazermos cinqüenta anos de casamento.
- Sinto muito. Guyot assentiu e disse:
- Minha filha é casada e mora em Seattle. Eu a vejo em ocasiões
especiais.
Bosch sentiu vontade de perguntar por que somente em ocasiões
especiais, mas não o fez. Agradeceu de novo e saiu.
Enquanto saía do cânion e ia para a casa de Teresa Corazon em Hancock Park, manteve a mão na caixa de sapatos para que ela não fosse derrubada do banco. Sentia um
medo profundo por dentro. Sabia que era porque o destino certamente não lhe sorrira nesse dia. Tinha apanhado o pior tipo de caso. Um caso com criança.
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Os casos com crianças assombram. Deixam a gente oca e com cicatrizes. Não havia colete à prova de balas suficientemente grosso para impedir a gente de ser ferida.
Os casos com crianças deixam a gente sabendo que o mundo é cheio de luz perdida.
Capítulo 4
Teresa Corazon morava numa mansão em estilo mediterrâneo, tendo na frente uma entrada de veículos circular, de pedra, e até mesmo um laguinho japonês. Oito anos
antes, quando Bosch tivera um relacionamento breve com ela, Teresa morava num apartamento de um quarto. Os ganhos obtidos com a televisão e a celebridade tinham
pagado pela casa e pelo estilo de vida que a acompanhava. Nem de longe se parecia com a mulher que costumava aparecer na casa dele à meia-noite sem se anunciar,
com uma garrafa de vinho tinto barato da Trade Joe's e uma fita de seu filme predileto para assistir; a mulher que era descaradamente ambiciosa mas ainda não tinha
habilidade para usar seu cargo para ficar rica.
Bosch tinha consciência de que agora servia como lembrança do que ela fora, e do que tinha perdido para ganhar tudo que possuía. Não era de espantar que as interações
entre os dois fossem poucas e espaçadas, mas tão tensas quanto uma ida ao dentista quando era inevitável.
Parou na entrada circular e saiu com a caixa de sapato e as Polaroids. Olhou o laguinho enquanto contornava o carro e pôde ver as formas escuras dos peixes se movendo
abaixo da superfície. Sorriu, pensando no filme Chinatoum e em quantas vezes eles o haviam assistido no ano que passaram juntos. Lembrou-se de como ela gostava do
personagem do legista. Ele usava um avental preto de açougueiro
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e comia um sanduíche enquanto examinava um cadáver. Bosch duvidava que Teresa continuasse tendo o mesmo senso de humor com relação às coisas.
A luminária pendurada sobre a pesada porta de madeira se acendeu e Corazon a abriu antes de ele chegar. Estava usando calça preta e uma blusa creme. Provavelmente
ia a uma festa de Ano-Novo. Olhou para além dele, para o carro simples que Bosch estava dirigindo.
- Vamos ser rápidos antes que esse carro pingue óleo nas minhas pedras.
- Olá para você também, Teresa.
-É isso?
Ela apontou para a caixa de sapatos.
- É isso.
Ele lhe entregou as Polaroids e começou a tirar a tampa da caixa. Estava claro que ela não iria convidá-lo para tomar uma taça de champanha de Ano-Novo.
- Você quer fazer isso aqui fora?
- Não tenho muito tempo. Achei que você chegaria antes. Que imbecil tirou essas fotos?
-Eu.
- Não posso dizer nada a partir delas. Você tem uma luva? Bosch tirou uma luva de látex do bolso do paletó e entregou.
Pegou as fotos de volta e colocou num bolso de dentro do paletó. Ela calçou habilmente a luva e enfiou a mão na caixa aberta. Levantou o osso e virou-o para a luz.
Bosch ficou quieto. Podia sentir o perfume de Corazon. Era forte como sempre, algo que ficara da época em que passava a maior parte do tempo em salas de autópsia.
Depois de um exame de cinco segundos, ela recolocou o osso na caixa.
- E humano.
- Tem certeza?
Ela o olhou irritada enquanto tirava a luva com um estalo.
- É o úmero. A parte de cima do braço. Eu diria que de uma criança de uns dez anos. Você pode não respeitar mais minha capacidade, Harry, mas eu ainda tenho.
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Corazon largou a luva na caixa, em cima do osso. Bosch podia agüentar toda a disputa verbal, mas incomodava-o ela ter feito aquilo com a luva, largando-a em cima
do osso de criança, assim.
Enfiou a mão na caixa e tirou a luva. Lembrou-se de alguma coisa e estendeu a luva de volta para ela.
- O homem cuja cadela encontrou isso disse que havia uma fratura no osso. Uma fratura curada. Quer dar uma olhada e ver se...
- Não. Estou atrasada para um compromisso. O que você precisa saber é se ele é humano. Agora tem a confirmação. Os outros exames virão mais tarde, num lugar adequado
no Departamento de Medicina Legal. Agora realmente tenho de ir. Estarei lá amanhã
de manhã.
Bosch sustentou o olhar dela por um longo tempo. - Claro, Teresa, divirta-se esta noite.
Corazon interrompeu o olhar e cruzou os braços no peito. Bosch tampou a caixa cuidadosamente, assentiu para ela e voltou ao carro. Ouviu a porta pesada se fechando.
Pensando de novo no filme enquanto passava pelo laguinho japonês, disse baixinho a última fala do filme:
- Esqueça, Jake, isso aqui é Chinatown.
Entrou no carro e foi para casa, com a mão segurando a caixa no banco ao lado.
Capítulo 5
Às nove horas da manhã seguinte o final da Wonderland Avenue era um acampamento policial. E no centro estava Harry Bosch. Organizava equipes das unidades de patrulha,
dos cães, da Divisão de Investigação Científica, de Medicina Legal e de Serviços Especiais. Um helicóptero do departamento circulava acima, e uma dúzia de cadetes
da academia estava ali perto, esperando ordens.
Antes, a unidade aérea tinha identificado o arbusto de artemísia em que Bosch havia enrolado a fita amarela de isolamento, usando-o como ponto básico para determinar
que a Wonderland oferecia o acesso mais próximo para o local onde Bosch tinha achado os ossos. Então a unidade de Serviços Especiais entrou em ação. Seguindo a trilha
de pedaços de fita morro acima, a equipe de seis homens martelou e amarrou uma série de rampas e escadas de madeira com guias de cordas, que levavam morro acima
até os ossos. Agora seria muito mais fácil chegar e sair do local do que havia sido para Bosch na tarde anterior.
Era impossível manter discreto aquele ninho de atividade policial. Também por volta das nove da manhã, a vizinhança tinha se transformado num acampamento da mídia.
Os furgões de emissoras de TV estavam amontoados atrás das barreiras colocadas a meio quarteirão do círculo no fim da rua. Os repórteres estavam se reunindo em grupos
do tamanho de entrevistas coletivas. E nada menos
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do que cinco helicópteros circulavam no alto, acima do helicóptero do departamento. Tudo isso criava uma cacofonia que já
resultara em numerosas reclamações de moradores da rua para os administradores da polícia no Parker Center, no centro da cidade.
Bosch estava se preparando para levar o primeiro grupo até a cena do crime. Primeiro conferenciou com Jerry Edgar, que fora posto a par do caso na noite anterior.
- Certo, vamos levar os legistas e a DIC primeiro - disse ele. Depois vamos levar os cadetes e os cães. Quero que você supervisione essa parte.
- Sem problema. Viu que a sua coleguinha legista está com a porcaria do cameraman junto?
- No momento não podemos fazer nada a respeito. Só vamos esperar que ela fique chateada e volte para a cidade, que é o lugar dela.
- Sabe, afinal de contas esses podem ser ossos antigos de índios, ou sei lá o quê.
Bosch balançou a cabeça.
- Não acho. Estavam rasos demais.
Bosch foi até o primeiro grupo: Teresa Corazon, seu cinegrafista e sua equipe de escavação, que consistia na arqueóloga Kathy Kohl e três investigadores que fariam
o trabalho braçal. Os membros da equipe de escavação vestiam macacões brancos. Corazon usava uma roupa parecida com a da noite anterior, inclusive sapatos com
saltos de cinco centímetros. No grupo também havia dois criminalistas da DIC.
Bosch sinalizou para o grupo fazer um círculo mais apertado, de modo a falar com eles em particular e não ser ouvido por todos os outros em volta.
- Certo, vamos subir e começar a documentação e recuperação. Assim que todos vocês estiverem no lugar vamos levar os cães e os cadetes para fazer busca nas áreas
adjacentes e possivelmente expandir o local de investigação. Vocês... - Ele parou para estender a mão para o cameraman de Corazon. - Desligue isso. Você pode filmá-la,
mas não a mim.
O sujeito baixou a câmera. Bosch lançou um olhar para Corazon e continuou:
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- Vocês todos sabem o que estão fazendo, por isso não preciso falar muito. Só quero dizer que é difícil chegar lá em cima. Mesmo com as rampas e as escadas. Portanto,
tenham cuidado. Segurem-se nas cordas, prestem atenção onde pisam. Não queremos que ninguém se machuque. Se tiverem equipamento pesado, dividam e levem em duas viagens.
Se ainda precisarem de ajuda, mandarei os cadetes levarem. Não se preocupem com o tempo. Preocupem-se com a segurança. Certo, todo mundo numa boa?
Ele recebeu confirmações simultâneas de todo mundo. Em seguida, chamou Corazon de lado, para uma conversa particular.
- Você não está vestida de acordo.
- Olha, não comece a dizer...
- Você quer que eu tire a camisa para ver minhas costelas? O lado do meu peito parece torta de amora porque caí lá em cima ontem. Esses sapatos que está usando não
vão dar certo. Pode parecer bom para a câmera, mas não...
- Estou bem. vou me arriscar. Mais alguma coisa? Bosch balançou a cabeça.
- Eu avisei. Vamos.
Foi para a rampa, e os outros o seguiram. O pessoal dos Serviços Especiais tinha construído um portão de madeira para ser usado como cancela. Um patrulheiro estava
ali com uma prancheta. Ele anotou o nome e a unidade de trabalho de cada pessoa antes de terem permissão de passar.
Bosch foi na frente. A subida era mais fácil do que na véspera, mas seu peito queimava de dor enquanto se firmava nas cordas e tomava cuidado com as rampas e escadas.
Não disse nada e tentou não demonstrar o que estava sentindo.
Quando chegou às acácias sinalizou aos outros para ficar atrás enquanto passava por baixo da fita de isolamento para verificar primeiro. Achou a área de terra revirada
e os pequenos ossos marrons que tinha visto na véspera. Pareciam intocados.
- Certo, venham aqui e dêem uma olhada.
Os membros do grupo passaram por baixo da fita e ficaram em semicírculo perto dos ossos. A câmera começou a rodar e agora Corazon assumiu o controle.
Sgü
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- Certo, a primeira coisa que vamos fazer é recuar e tirar fotos. Depois vamos estabelecer uma grade e a dra. Kohl vai supervisionar a escavação e a recuperação.
Se encontrarem alguma coisa, fotografem de todos os ângulos possíveis antes de recolher.
Ela se virou para um dos investigadores.
- Finch, quero que você cuide dos desenhos. Grade padrão. Documente tudo. Não tome por certo que nós poderemos contar com as fotos.
Finch assentiu. Corazon se virou para Bosch.
- Detetive, acho que está resolvido. Quanto menos gente aqui, melhor.
Bosch assentiu e lhe entregou um rádio de comunicação.
- vou estar por perto. Se precisar de mim, use o rádio. Os celulares não funcionam aqui em cima. Mas tenha cuidado com o que disser.
Ele apontou para o céu, onde os helicópteros da mídia circulavam.
- Por falar nisso - disse Kohl -, acho que teremos de amarrar uma lona nestas árvores para ter alguma privacidade, além de diminuir a claridade do sol. Tudo bem
para você?
- Agora a cena de investigação é de vocês - disse Bosch. - Vão em frente.
Ele voltou a descer a rampa, com Edgar atrás.
- Harry, isso pode demorar dias - disse Edgar.
- E talvez ainda mais alguns.
- bom, eles não vão dar dias à gente. Você sabe, certo?
- Certo.
- Quero dizer, esse tipo de caso... vamos ter sorte se ao menos conseguirmos uma identificação.
- Certo.
Bosch continuou andando. Quando chegou à rua viu que a tenente Billets estava no local com sua supervisora, a capitã LeValley.
- Jerry, por que não vai preparar os cadetes? - disse Bosch. - Faça o discurso básico para local de investigação. Já vou num minuto.
Bosch se juntou a Billets e LeValley e as colocou a par do que estava acontecendo, detalhando as atividades da manhã, até as
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reclamações da vizinhança sobre o barulho dos martelos, serras e helicópteros.
- Temos de dar alguma coisa à mídia - disse LeValley. - O Departamento de Assessoria de Imprensa deseja saber se você quer que eles cuidem disso lá do centro, ou
se quer cuidar daqui.
- Não quero cuidar disso. O que o pessoal da Assessoria de Imprensa sabe?
- Quase nada. Você tem de ligar para eles, e eles fazem o rekase.
- Capitão, estou meio ocupado aqui. Será que posso...
- Não demore, detetive. Tire-os das nossas costas. Quando Bosch desviou o olhar da capitã para os repórteres
reunidos a meio quarteirão de distância junto à barreira, notou Julia Brasher mostrando o distintivo a um patrulheiro e recebendo permissão para entrar. Estava com
roupas civis.
- Certo. Eu telefono.
Começou a andar para a casa do dr. Guyot. Ia em direção a Brasher, que sorriu para ele enquanto se aproximava.
- Estou com sua lanterna. Está no meu carro lá embaixo. Preciso ir à casa do dr. Guyot, de qualquer modo.
- Ah, não se preocupe. Não é por isso que vim.
Ela mudou de direção e continuou andando com Bosch. Ele olhou a roupa da policial: jeans desbotados e uma camiseta anunciando uma coleta de caridade da 5K.
- Você não está em cima da hora para o trabalho, está?
- Não, meu turno é das três às onze. Achei que você poderia precisar de um voluntário. Ouvi falar do chamado para o pessoal da academia.
- Você quer ir lá em cima e procurar os ossos, é?
- Quero aprender.
Bosch assentiu. Os dois foram até a porta de Guyot. Ela se abriu antes que chegassem, e o doutor os convidou a entrar. Bosch perguntou se poderia usar o telefone
de novo e Guyot mostrou o caminho até o escritório, mesmo não sendo necessário. Bosch sentou-se atrás da mesa.
- Como vão as costelas? - perguntou o médico.
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-Bem.
Brasher levantou as sobrancelhas e Bosch percebeu.
- Tive um pequeno acidente quando subi lá ontem à noite.
- O que aconteceu?
- Ah, eu só estava cuidando da minha vida quando de repente um tronco de árvore me atacou sem motivo.
Ela fez uma careta e, de algum modo, conseguiu sorrir ao mesmo tempo.
Bosch digitou de memória o número da Assessoria de Imprensa e falou com um policial sobre o caso, em termos bastante genéricos. Num determinado ponto colocou a
mão sobre o fone e perguntou se Guyot queria que seu nome fosse posto no release. O médico recusou. Alguns minutos depois, Bosch terminou e desligou. Olhou
para Guyot.
- Assim que limparmos a área, daqui a alguns dias, os repórteres provavelmente vão continuar por perto. Vão procurar a cadela que encontrou o osso, é o que eu acho.
De modo que, se quiser ficar fora disso, mantenha Calamidade longe da rua, caso contrário eles vão somar dois e dois.
- bom conselho - disse Guyot.
- E talvez o senhor queira ligar para o seu vizinho, o sr. Ulrich, e dizer para não mencionar isso a nenhum repórter.
Na saída da casa de Guyot ele perguntou se Brasher queria a lanterna, e ela disse que não queria ficar carregando-a enquanto ajudava na busca na colina.
- Me entregue qualquer hora dessas - disse ela.
Bosch gostou da resposta. Significava que teria pelo menos mais uma chance de vê-la.
De volta ao círculo no fim da rua, Bosch encontrou Edgar discursando aos cadetes da academia.
- A regra de ouro do local de investigação, pessoal, é não tocar em nada até que tenha sido estudado, fotografado e mapeado.
Bosch entrou no círculo.
- Certo, estamos prontos?
- Eles estão - disse Edgar. E fez um aceno de cabeça na direção de dois cadetes, que estavam segurando detectores de metal. - Peguei
emprestado da DIC.
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Bosch assentiu e fez para Brasher e os cadetes o mesmo discurso sobre segurança que tinha feito à equipe de perícia. Em seguida foram para o local da investigação.
Bosch apresentou Brasher a Edgar e depois deixou o parceiro passar primeiro pela cancela. Ficou na retaguarda, andando atrás de Brasher.
- No fim do dia veremos se você ainda quer ser detetive de homicídios - disse ele.
- Qualquer coisa é melhor do que perseguir o rádio e lavar vômito do banco de trás no fim de cada turno.
- Eu me lembro dessa época.
Bosch e Edgar espalharam os doze cadetes e Brasher nas áreas adjacentes ao agrupamento de acácias e mandaram que começassem buscas lado a lado. Então Bosch desceu
e pegou as duas equipes de cães para suplementar a busca.
Assim que as coisas estavam encaminhadas, deixou Edgar com os cadetes e voltou até as acácias para ver o progresso que fora feito. Achou Kohl sentada num caixote
de equipamento supervisionando a colocação de estacas de madeira no chão para prender barbantes destinados a estabelecer a grade de escavação.
Bosch havia trabalhado em outro caso com Kohl e sabia que ela era muito meticulosa e boa no que fazia. Tinha trinta e muitos anos, com corpo e bronzeado de jogadora
de tênis. Uma vez Bosch a encontrou num parque municipal, onde ela estava jogando tênis com uma irmã gêmea. As duas tinham atraído uma multidão. Parecia alguém
jogando bola contra uma parede espelhada.
O cabelo louro e liso de Kohl tombou para a frente e escondeu os olhos enquanto ela examinava a grande prancheta no colo. Estava tomando notas num pedaço de papel
que tinha uma grade impressa. Bosch olhou para o gráfico, por cima do ombro dela. Kohl estava rotulando os quadrados individuais com letras do alfabeto, enquanto
as estacas correspondentes eram postas no chão. No topo da página estava escrito "Cidade dos Ossos".
Bosch baixou a mão e bateu no gráfico, onde ela escrevera a legenda.
- Por que pôs esse nome?
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- Porque estamos estabelecendo as ruas e os quarteirões do que vai se tornar uma cidade para nós - disse ela, passando os dedos sobre algumas linhas do gráfico.
- Pelo menos enquanto estivermos trabalhando aqui, vai parecer isso. Nossa cidadezinha.
Bosch assentiu.
- Em cada assassinato há a história de uma cidade - disse ele. Kohl olhou-o.
- Quem disse isso?
- Não sei. Alguém.
Voltou a atenção para Corazon, que estava agachada sobre os ossos pequenos na superfície do solo, examinando-os enquanto a lente da câmera de vídeo a examinava.
Bosch estava pensando em algo para dizer a respeito, quando seu rádio fez barulho e ele o tirou do cinto.
- Aqui é o Bosch.
- É o Edgar. Melhor dar um pulo aqui, Harry. A gente já achou uma coisa.
- Certo.
Edgar estava parado num ponto quase plano em meio aos arbustos, a uns quarenta metros das acácias. Meia dúzia dos cadetes e Brasher haviam formado um círculo e estavam
olhando alguma coisa junto a um arbusto de sessenta centímetros de altura. O helicóptero da polícia estava fazendo um círculo mais fechado acima.
Bosch chegou ao círculo de policiais e olhou para baixo. Era um crânio de criança parcialmente enfiado no solo, com os olhos vazios espiando-o.
- Ninguém tocou - disse Edgar. - Foi a Brasher aqui que encontrou.
Bosch olhou para ela, e o humor que a policial parecia ter nos olhos e na boca havia desaparecido. Olhou de novo para o crânio e tirou o rádio do cinto.
- Dra. Corazon? - disse ele.
Passou-se um longo tempo antes que a voz dela retornasse.
- Sim, estou aqui. O que é?
- Vamos ter de ampliar a área de investigação.
Capítulo 6
com Bosch no papel de um general supervisionando um pequeno exército que trabalhava na área expandida, o dia prosseguiu bem. Os ossos saíam facilmente do chão e
dos arbustos na colina, como se estivessem esperando com impaciência há muito tempo. Ao meiodia três quadrados da grade estavam sendo ativamente escavados pela
equipe de Kathy Kohl, e dúzias de ossos saíram do solo escuro. Como outros arqueólogos que desenterram artefatos antigos, a equipe de escavação usava pequenas ferramentas
e pincéis para trazer esses ossos delicadamente à luz. Também usava detectores de metal e sondas a vapor. O processo era lentíssimo, mas mesmo assim prosseguia num
ritmo mais acelerado do que Bosch havia esperado.
A descoberta do crânio tinha estabelecido esse ritmo e trazido um sentimento de urgência a toda a operação. Primeiro ele foi removido do local, e o exame de campo
realizado diante da câmera por Teresa Corazon encontrou linhas de fratura e cicatrizes cirúrgicas. O registro de cirurgia garantiu que estavam lidando com ossos
relativamente contemporâneos. As fraturas não eram indicação definitiva de homicídio, mas quando acrescentadas aos indícios de que o corpo fora enterrado, davam
um claro sentimento de que a história de um assassinato ia se desdobrando.
Às duas horas, quando as equipes no morro pararam para o almoço, quase metade do esqueleto já fora retirada da grade. Alguns
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outros ossos tinham sido encontrados pelos cadetes no mato ao redor. Além disso, a equipe de Kohl havia desenterrado fragmentos de roupas deterioradas e uma mochila
de lona do tamanho normalmente usado por uma criança.
Os ossos desceram o morro em caixas de madeira com alças de corda nas laterais. Na hora do almoço um antropólogo forense estava examinando três caixas de ossos
no Departamento de Medicina Legal. As roupas, na maioria podres e irreconhecíveis, e a mochila encontrada fechada foram levadas para o laboratório da Divisão de
Investigação Científica do DPLA para ser examinadas.
Uma análise por detector de metal na grade de busca revelou uma única moeda - de 25 cents, cunhada em 1975 - encontrada na mesma profundidade dos ossos e aproximadamente
a cinco centímetros da extremidade esquerda da pelve. Presumiu-se que a moeda estivesse no bolso esquerdo da frente da calça que tinha apodrecido junto com os tecidos
do corpo. Para Bosch, a moeda revelava um dos parâmetros fundamentais da época da morte: se a suposição de que ela fora enterrada junto com o corpo estivesse correta,
a morte não poderia ter acontecido antes de 1975.
A patrulha tinha arranjado para que dois furgões de refeições fossem ao círculo no fim da rua, para alimentar o pequeno exército que trabalhava na área de investigação.
O almoço estava atrasado, e o pessoal faminto. Um furgão servia comida quente, e o outro sanduíches. Bosch esperou com Julia Brasher no fim da fila do furgão de
sanduíches. A fila andava devagar, mas ele não se importou. Os dois conversavam principalmente sobre a investigação no morro e fofocavam sobre os chefes dos departamentos.
Era papo de conhecimento mútuo. Bosch se sentia atraído por ela, e quanto mais a ouvia falar sobre suas experiências como policial novata e mulher no departamento,
mais se sentia intrigado. Ela possuía uma mistura de empolgação, espanto reverente e cinismo com relação ao serviço, coisa que Bosch lembrava claramente de seus
primeiros tempos na profissão.
Quando faltavam umas seis pessoas para chegar ao balcão de pedidos, Bosch ouviu alguém no veículo fazer uma pergunta sobre a investigação a um dos cadetes.
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- São ossos de pessoas diferentes?
- Não sei, cara. A gente só está procurando, só isso. Bosch examinou o sujeito que fizera a pergunta.
- Eles foram todos cortados?
- É difícil dizer.
Bosch saiu de seu lugar perto de Brasher e foi até a traseira do furgão. Olhou pela porta aberta nos fundos e viu três homens trabalhando com aventais. Ou parecendo
trabalhar. Não notaram Bosch olhando. Dois estavam fazendo sanduíches e entregando os pedidos. O homem do meio, que fizera as perguntas ao cadete, estava mexendo
os braços na bancada de serviço, abaixo da janela. Não fazia nada, mas de fora do furgão pareceria que estava fazendo um sanduíche. Enquanto Bosch olhava, viu o
sujeito à direita partir um sanduíche ao meio, colocar num prato de papel e passar para o do meio. Então o do meio passou o sanduíche pela janela e entregou ao cadete
que havia pedido.
Bosch notou que, enquanto os dois verdadeiros preparadores de sanduíches usavam jeans por baixo do avental, o do meio estava com calças de terno e camisa com colarinho
abo toado. Projetando-se do bolso de trás da calça havia um bloco de anotações. Do tipo comprido e fino que Bosch sabia ser usado pelos repórteres.
Enfiou a cabeça pela porta e olhou em volta. Numa prateleira ao lado da porta viu um paletó esporte embolado. Pegou-o e se afastou da porta. Revistou os bolsos e
encontrou um crachá de imprensa dado pelo DPLA, preso numa corrente. Tinha uma foto do homem do meio. Seu nome era Victor Frizbe e trabalhava no New Times.
Segurando o paletó na lateral da porta, Bosch bateu na lataria do furgão, e quando os três homens se viraram para olhar ele sinalizou para Frizbe. O repórter apontou
para o peito com um ar de Quem, eu?, e Bosch assentiu. Frizbe veio até a porta e se curvou.
-Sim?
Bosch agarrou a alça de cima do avental do sujeito e o arrancou do furgão. Frizbe caiu de pé, mas teve de correr vários passos para não se esborrachar. Quando se
virou para protestar, Bosch o acertou no peito com o paletó embolado.
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Dois patrulheiros - eles sempre comiam antes - estavam jogando pratos de papel numa lixeira ali perto. Bosch sinalizou:
- Levem esse cara de volta para o perímetro. Se o virem atravessando de novo, podem prender.
Cada policial segurou Frizbe por um braço e os dois foram marchando com ele pela rua até a barricada. Frizbe começou a protestar, o rosto ficando vermelho como
uma lata de Coca, mas os patrulheiros ignoraram tudo que não fosse seus braços, e o fizeram marchar para a humilhação diante dos outros repórteres. Bosch olhou por
um momento, depois pegou o crachá de imprensa no bolso de trás e jogou na lata de lixo.
Juntou-se de novo a Brasher na fila. Agora restavam apenas dois cadetes antes de serem servidos.
- O que foi aquilo? - perguntou Brasher.
- Violação do código sanitário. Ele não lavou as mãos. Ela começou a rir.
- Sério. Para mim, lei é lei.
- Meu Deus, espero pegar meu sanduíche antes que você veja uma barata ou alguma coisa e feche esse negócio aí.
- Não se preocupe, acho que me livrei da barata.
Dez minutos mais tarde, depois de Bosch ter dado uma bronca no dono do furgão por ter contrabandeado gente da mídia para a área de investigação, eles levaram seus
sanduíches e as bebidas até uma das mesas de piquenique que o pessoal dos serviços especiais tinha posto no círculo. Era uma mesa que fora reservada para a equipe
de investigação, mas Bosch não se incomodou em deixar Brasher se sentar. Edgar estava lá, junto com Kohl e um dos escavadores da equipe. Bosch apresentou Brasher
aos que não a conheciam e mencionou que ela havia recebido o primeiro chamado para o caso, e que o ajudara na véspera.
- Então, onde está a chefe? - perguntou Bosch a Kohl.
- Ah, ela já comeu. Acho que foi gravar uma entrevista consigo mesma ou algo do tipo.
Bosch sorriu e confirmou com a cabeça.
- Acho que vou pegar mais um - disse Edgar enquanto passava por cima do banco e saía com seu prato.
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Bosch mordeu o sanduíche de bacon, alface e tomate e saboreou. Estava morrendo de fome. Não planejava fazer nada além de comer e descansar durante a pausa, mas Kohl
perguntou se poderia lhe dar algumas das conclusões iniciais sobre a escavação.
Bosch estava de boca cheia. Depois de engolir, pediu que ela esperasse até seu parceiro voltar. Os dois falaram de coisas genéricas sobre o estado dos ossos e de
como Kohl achava que o fato de as covas serem rasas permitira que animais desenterrassem e espalhassem os ossos - possivelmente durante anos.
- Não vamos achar todos - disse ela. - Nem de longe. Vamos chegar rapidamente a um ponto em que as despesas e o esforço não valerão o resultado.
Edgar voltou com outro prato de frango frito. Bosch assentiu para Kohl, que olhou para um bloco na mesa à sua esquerda. Ela verificou algumas anotações e começou
a falar:
- As coisas que eu quero que você observe são a profundidade da cova e a localização. Acho que são as coisas fundamentais. Elas dirão algo sobre quem é essa criança
e o que aconteceu com ele.
- Ele? - perguntou Bosch.
- O espaçamento do quadril e o cós da cueca.
Ela explicou que no meio das roupas podres e decompostas havia um cós de elástico, tudo que restara da cueca que estava no corpo quando foi enterrado. Os líquidos
da decomposição tinham levado à deterioração da roupa. Mas o cós de elástico estava quase intacto, e parecia ser de uma cueca.
- Certo - disse Bosch. - Você estava falando da profundidade da cova, não é?
- Sim, bem, nós achamos que os ossos do quadril e a base da coluna estavam na posição original quando os descobrimos. A partir daí, estamos falando de uma cova que
não tinha mais de quinze a trinta centímetros de profundidade. Uma cova tão rasa reflete pressa, pânico, um bocado de coisas que indicam mal planejamento. Mas -
ela levantou um dedo - do mesmo modo, a localização, muito remota, muito difícil, reflete o oposto. Mostra planejamento cuidadoso. De modo que você tem algum tipo
de contradição. O local parece ter sido escolhido porque era tremendamente
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difícil de alcançar, mas o enterro parece ter sido rápido e furioso. Essa pessoa, literalmente, foi apenas coberta com terra solta e agulhas de pinheiro. Sei que
apontar
para tudo isso não vai ajudá-lo necessariamente a pegar o bandido, mas quero que veja o que estou vendo. Essa contradição. Bosch assentiu.
- É bom saber. Vamos manter isso em mente.
- Certo. bom. A outra contradição, a menor, é a mochila. Enterrá-la com o corpo foi um erro. O corpo se decompõe num ritmo muito mais rápido do que a lona. De
modo que, se você conseguir elementos de identificação na mochila ou no conteúdo, isso se torna um erro cometido pelo bandido. De novo um mau planejamento no meio
de um bom planejamento. Vocês são detetives inteligentes, tenho certeza de que vão deduzir tudo isso.
Ela sorriu para Bosch e depois examinou o bloco de novo, levantando a página de cima para olhar sob ela.
- Acho que é isso. Todo o resto nós conversamos lá no local. Acho que as coisas vão muito bem lá em cima. No fim do dia teremos a cova principal terminada. Amanhã
faremos uma amostragem nas outras grades. Mas o negócio provavelmente deve terminar amanhã. Como eu disse, não vamos achar tudo, mas deveremos conseguir o bastante
para fazer o que precisamos.
Bosch pensou de repente na pergunta de Victor Frizbe ao cadete no furgão dos sanduíches, e percebeu que o repórter poderia estar pensando mais longe do que ele.
- Amostragem? Você acha que há mais de um corpo enterrado lá em cima?
Kohl balançou a cabeça.
- Não tenho qualquer indicação disso. Mas devemos ter certeza. A probabilidade, especialmente pensando na cova rasa, é de que este seja um caso único, mas precisamos
ter certeza. O máximo possível.
Bosch assentiu. Estava satisfeito por ter comido a maior parte do sanduíche, porque de repente não sentia mais fome. A perspectiva de montar uma investigação com
vítimas múltiplas era assombrosa. Olhou para os outros.
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- Isso não sai desta mesa. Já peguei um repórter farejando em busca de um assassino em série. Não queremos histeria aqui. Mesmo se vocês disserem que o que estamos
fazendo é rotina e só para garantir, esse tipo de coisa vai parar nas manchetes. Certo?
Todo mundo confirmou com a cabeça, inclusive Brasher. Bosch ia dizer alguma coisa quando soou uma batida num dos banheiros químicos enfileirados no trailer dos
Serviços Especiais, do outro lado do círculo. Alguém estava dentro de um dos banheiros do tamanho de uma cabine telefônica, batendo na fina parede de alumínio. Depois
de um momento, Bosch ouviu uma voz de mulher acima das pancadas fortes. Ele a reconheceu e pulou da mesa.
Correu atravessando o círculo e subiu a escada até a plataforma do caminhão. Decidiu rapidamente de qual banheiro vinham as pancadas e foi até a porta. O ferrolho
externo, usado para firmar o toalete durante o transporte, tinha sido fechado sobre a maçaneta, e um osso de galinha fora posto, prendendo-o.
- Espere aí, espere aí - gritou Bosch.
Tentou puxar o osso, mas estava gorduroso demais e escorregava de sua mão. As batidas e os gritos continuaram. Bosch olhou em volta procurando algum tipo de ferramenta,
mas não achou nada. Por fim tirou o revólver do coldre, verificou a trava de segurança e o usou para dar coronhadas no osso, através do ferrolho. Tendo cuidado para
apontar o cano para baixo.
Quando o osso finalmente saltou, ele guardou a arma e abriu o ferrolho. A porta se abriu violentamente e Teresa Corazon saiu furiosa, quase derrubando-o. Ele segurou-a
para ajudar no equilíbrio, mas ela o empurrou para o lado.
- Você fez isso!
- O quê? Não, não fiz! Eu estava do outro lado o tempo...
- Quero saber quem fez isso! - Bosch baixou a voz. Sabia que todo mundo no acampamento estava provavelmente olhando-os. A mídia lá adiante na rua também.
- Olha, Teresa, calma, foi uma brincadeira, certo? Quem fez isso, fez de brincadeira. Sei que você não gosta de ficar em espaços confinados, mas quem fez não sabia.
Alguém só quis aliviar a tensão aqui um pouquinho, e por acaso foi você que...
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- E porque eles têm ciúme, é por isso. -O quê?
- De quem sou, do que fiz.
Bosch ficou perplexo.
- Deixa para lá.
Ela foi para a escada, mas se virou abruptamente e foi até ele, - vou embora daqui, está feliz agora? Bosch balançou a cabeça.
- Feliz? Isso não tem a ver com nada aqui. Estou tentando fazer uma investigação e, se quiser saber a verdade, não ter a distração causada por você e seu cameraman
por perto pode ser uma ajuda.
- Então está bem. E sabe aquele número de telefone para o qual você ligou na outra noite?
Bosch assentiu.
- Sei. O que é que...
- Queime.
Ela desceu a escada, puxou furiosamente o cameraman com um dedo e foi para seu carro oficial. Bosch ficou olhando.
Quando voltou à mesa de piquenique, somente Brasher e Edgar continuavam. Seu parceiro tinha reduzido a segunda porção de frango frito a ossos. Ele ficou sentado
com um risinho satisfeito no rosto.
Bosch largou no prato de Edgar o osso que tinha arrancado do ferrolho.
- Isso passou do ponto.
Olhou para Edgar, indicando que sabia que ele tinha feito aquilo. Mas Edgar não revelou nada.
- Quanto maior o ego, maior a queda - disse Edgar. - Será que o cameraman gravou aquela ação?
- Sabe, teria sido bom mantê-la como aliada - disse Bosch. Agüentar um pouco, para que ela fique do nosso lado quando for preciso.
Edgar pegou seu prato e lutou para tirar o corpanzil da mesa de piquenique.
- Vejo você em cima do morro - disse ele.
Bosch olhou para Brasher. Ela ergueu as sobrancelhas.
- Quer dizer que foi ele? Bosch não respondeu.
Capítulo 7
O trabalho na cidade dos ossos durou apenas dois dias. Como Kohl tinha previsto, a maioria das peças do esqueleto foram localizadas e retiradas de sob as acácias
no fim do primeiro dia. Outros ossos foram achados perto, nos arbustos, num padrão espalhado que indicava terem sido desenterrados com o tempo, por animais. Na
sexta-feira o pessoal que fazia buscas e os escavadores retornaram, mas uma busca feita durante o dia inteiro por cadetes descansados e outras escavações nos quadrados
principais da grade não revelaram mais ossos. Sondas de vapor e escavações por amostragem em todos os quadrados restantes da grade não revelaram ossos ou indicações
de que houvesse outros corpos enterrados sob as acácias.
Kohl avaliou que sessenta por cento do esqueleto fora coletado. Por sua recomendação, e com a aprovação de Teresa Corazon, a escavação e as buscas foram suspensas
no crepúsculo da sexta-feira, até segunda ordem.
Bosch não havia objetado a isso. Sabia que tinham recursos limitados para um esforço muito grande, e cedeu aos especialistas. Também estava ansioso para continuar
com a investigação e identificação dos ossos - elementos que estavam praticamente parados enquanto ele e Edgar trabalhavam exclusivamente na Wonderland Avenue durante
os dois dias, supervisionando a coleta de provas, entrevistando os vizinhos e montando os relatórios
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iniciais do caso. Tudo isso era trabalho necessário, mas Bosch queria ir em frente.
Na manhã de sábado ele e Edgar se encontraram no saguão do departamento de medicina legal e disseram à recepcionista que tinham hora marcada com o dr. William Golliher,
o antropólogo forense emprestado pela UCLA.
- Ele está esperando os senhores na suíte A - disse a recepcionista depois de ligar confirmando. - Sabem onde fica?
Bosch assentiu e ela destrancou a passagem. Os dois pegaram um elevador até o porão e foram imediatamente recebidos pelo cheiro do andar das autópsias. Era uma mistura
de produtos químicos e podridão que não tinha igual no mundo. Edgar pegou imediatamente uma máscara de papel numa caixa na parede e colocou sobre o nariz. Bosch
não se incomodou em fazer isso.
- Você realmente devia, Harry - disse Edgar enquanto seguiam pelo corredor. - Sabe que todos os cheiros são compostos de partículas?
Bosch olhou-o.
- Obrigado pelo aviso, Jerry.
Tiveram de parar no corredor quando uma maca foi empurrada para fora de uma sala de autópsias. Havia um corpo nela, enrolado em plástico.
- Harry, você já notou que eles enrolam os corpos igualzinho aos burricos na Taco Bell?
Bosch assentiu para o homem que empurrava a maca.
-Verdade?
Bosch seguiu pelo corredor sem responder.
A Suíte A era uma sala de autópsias reservada por Teresa Corazon para as ocasiões esporádicas em que deixava seus serviços administrativos como chefe da medicina
legal e fazia uma autópsia. Como o caso tinha atraído sua atenção pessoal, ela aparentemente havia autorizado Golliher a usar a suíte. Corazon não tinha voltado
ao local da investigação na Wonderland Avenue depois do incidente com o toalete químico.
Eles passaram pela porta dupla da suíte e foram recebidos por um homem de jeans e camisa havaiana.
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- Por favor, me chamem de Bill - disse Golliher. - Acho que foram dois dias longos.
- Nem fala - respondeu Edgar.
Golliher assentiu amigável. Tinha uns cinqüenta anos, cabelos e olhos escuros e modos tranqüilos. Sinalizou para a mesa de autópsias que ficava no centro da sala.
Os ossos que tinham sido coletados debaixo das acácias estavam espalhados na superfície de aço inoxidável.
- Bem, deixe-me dizer o que está acontecendo aqui - começou Golliher. - Enquanto a equipe de campo coletava as provas, estive aqui examinando as peças, fazendo o
trabalho de radiografia e tentando montar o quebra-cabeça.
Bosch foi até a mesa de aço inoxidável. Os ossos estavam arrumados de modo a formar um esqueleto parcial. As peças mais óbvias que faltavam eram os ossos do braço
esquerdo e da perna esquerda e o maxilar. Presumia-se que tivessem sido tirados há muito tempo e espalhados longe por animais que haviam escavado a cova rasa.
Cada osso estava marcado, as peças maiores com adesivos e as menores com etiquetas presas por barbantes. Bosch sabia que as anotações eram códigos pelos quais
a localização de cada osso fora mapeada na grade desenhada por Kohl no primeiro dia da escavação.
- Os ossos podem nos dizer muita coisa sobre como a pessoa viveu e morreu - declarou Golliher, sério. - Em casos de abuso infantil, os ossos não mentem. Os ossos
se tornam a prova final.
Bosch olhou-o e percebeu que os olhos dele não eram escuros. Na verdade eram azuis, mas fundos, e pareciam assombrados de alguma forma. Ele olhava para além de Bosch,
para os ossos na mesa. Depois de um momento, rompeu o devaneio e encarou Bosch.
- Deixe-me começar falando que estamos descobrindo um bocado de coisas com os artefatos recuperados - disse o antropólogo. - Mas devo dizer: fui consultor em muitos
casos, entretanto este está me deixando pasmo. Eu estava examinando esses ossos e tomando notas, e quando olhei, meu caderno estava manchado. Eu estava chorando,
cara. Estava chorando, e a princípio nem notei.
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Ele olhou de volta para os ossos estendidos, com um ar de ternura e piedade. Bosch sabia que o antropólogo via a pessoa que estivera ali.
- Esse caso é ruim, pessoal. Ruim de verdade.
- Então diga o que sabe, para que a gente possa ir lá fora e fazer nosso trabalho - disse Bosch numa voz que parecia um
sussurro reverente.
Golliher assentiu e estendeu a mão para uma bancada, e pegou um caderno espiral.
- Certo - disse ele. - Vamos começar com o básico. Parte disso vocês já devem saber, mas vou repassar tudo que descobri, se não se importam.
- A gente não se importa - disse Bosch.
- bom. Então é o seguinte. O que vocês têm aqui são os restos de um jovem caucasóide do sexo masculino. As comparações com os índices de padrões de crescimento
de Maresh colocam a idade em aproximadamente dez anos. No entanto, como logo discutiremos, esta criança foi vítima de abusos físicos severos e prolongados. Histologicamente,
as vítimas de abuso crônico costumam sofrer do que é chamado de ruptura do crescimento. Essa situação relacionada ao abuso costuma atrapalhar a avaliação da idade.
O que a gente costuma ter é um esqueleto que parece mais jovem do que é. Então o que quero dizer é que esse garoto parece ter dez anos, mas provavelmente tem doze
ou treze.
Bosch olhou para Edgar. Ele estava parado com os braços cruzados com força no peito, como se num preparativo para o que vinha adiante. Bosch pegou um bloco de
anotações no bolso do paletó e começou a escrever em taquigrafia.
- Época da morte - disse Golliher. - Isso é difícil. Os testes radiológicos estão longe de ser exatos nesse aspecto. Temos a moeda que dá o marco mais antigo, mil
novecentos e setenta e cinco. Isso ajuda. O que estou avaliando é que o garoto está enterrado por um período entre vinte e vinte e cinco anos. Sinto-me confortável
com isso, e há algumas evidências cirúrgicas de que podemos falar daqui a uns minutos, e que dão apoio a essa suposição.
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- Então temos um garoto entre dez e treze anos que foi morto entre vinte e vinte e cinco anos atrás - resumiu Edgar, com um
tom de frustração na voz.
- Sei que estou dando um conjunto de parâmetros amplo, detetive - disse Golliher. - Mas no momento é o melhor que a ciência pode fazer por vocês.
- Não é sua culpa, doutor.
Bosch anotou tudo. Apesar da amplitude da avaliação, ainda era tremendamente importante estabelecer uma janela de tempo para a investigação. A estimativa de Golliher
colocava a época da morte no final dos anos setenta e início dos oitenta. Bosch pensou momentaneamente em Laurel Canyon naquela época. Era um enclave rústico, pouco
convencional, parte boêmio e parte classe alta, tendo em quase todas as ruas traficantes e usuários de cocaína, fornecedores de pornografia e curtidores de
rock-and-roíl
chapados. Será que o assassinato de uma criança poderia fazer parte dessa mistura?
- Causa da morte - disse Golliher. - vou dizer uma coisa: vamos deixar a causa da morte para o fim. Quero começar com as extremidades e o tronco, dar uma idéia
do que esse garoto suportou em sua vida curta.
O olhar dele se cravou no de Bosch por um momento, antes de voltar aos ossos. Bosch inspirou fundo, provocando uma dor aguda nas costelas machucadas. Sabia que o
medo sentido no momento em que vira os pequenos ossos no morro ia se materializar agora. Instintivamente sabia o tempo todo que a coisa chegaria ali. Que uma história
de horror emergiria do solo revirado.
Começou a rabiscar no bloco, cravando a esferográfica no papel, enquanto Golliher continuava:
- Em primeiro lugar, só temos uns sessenta por cento dos ossos. Mas mesmo assim temos provas irrefutáveis de um tremendo trauma no esqueleto e abusos crônicos. Não
sei qual é o seu nível de conhecimento antropológico, mas vou presumir que boa parte disso seja novidade para vocês. vou dar o básico. Os ossos se curam, senhores.
E é através do estudo da regeneração óssea que podemos estabelecer uma história de abuso. Nesses ossos há múltiplas lesões
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em diferentes estágios de trauma. Resumindo, esse menino passou boa parte da vida curando-se ou sendo ferido.
Bosch olhou para o bloco e a caneta apertados com força nas mãos. Elas estavam ficando brancas.
- Vocês vão receber um relatório escrito por mim lá pela segunda-feira, mas por enquanto, se quiserem um número, vou dizer que encontrei quarenta e quatro locais
distintos indicando traumas separados em vários estágios de cura. E isso foi apenas nos ossos, detetives. Não revela os danos que podem ter sido infligidos nos órgãos
vitais e nos tecidos. Mas não há dúvida de que esse menino viveu provavelmente dia sim, dia não, com muita dor.
Bosch anotou o número no bloco. Parecia um gesto sem sentido.
- Primariamente, os ferimentos que cataloguei podem ser notados através de lesões subperiósteas. Essas lesões são finas camadas de osso novo que crescem por baixo
da superfície na área de trauma ou sangramento.
- Subperi... como se escreve isso? - perguntou Bosch.
- O que importa? Vai estar no relatório. Bosch assentiu.
- Dêem uma olhada nisto - disse Golliher.
Golliher foi até a caixa de raios X na parede e acendeu a luz. Já havia um filme na caixa. Mostrava o raio X de um osso comprido e fino. Ele passou o dedo pela haste
do osso, apontando para uma ligeira demarcação de cor.
- Este é o fêmur que foi coletado - disse ele. - O osso superior da coxa. Esta linha aqui, onde a cor muda, é uma das lesões. Significa que esta área, a coxa do
menino, sofreu um golpe muito forte nas semanas anteriores à morte. Um golpe esmagador. Não quebrou o osso, mas danificou. Esse tipo de lesão sem dúvida deve ter
causado hematoma na superfície e acho que afetou o andar do menino. O que estou dizendo é que não poderia ter passado despercebido.
Bosch se adiantou para examinar o raio X. Edgar ficou atrás. Quando ele terminou, Golliher tirou o raio X e colocou outros três, cobrindo toda a caixa de luz.
- Também temos raspagem perióstea nos dois membros presentes. É a retirada da superfície do osso, vista principalmente nos
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abusos contra crianças quando o membro é golpeado com violência pela mão do adulto ou outro instrumento. Os padrões de recuperação desses ossos mostram que esse
tipo particular de trauma aconteceu repetidamente em anos e anos de infância.
Golliher parou para examinar suas anotações, depois olhou os ossos sobre a mesa. Pegou o osso da parte superior do braço e o levantou enquanto procurava nas anotações
e falava.
Bosch notou que ele não usava luvas.
- O úmero - disse Goll iher. - O úmero direito mostra duas fraturas curadas. As quebras são longitudinais. Isso nos diz que são resultado de torcer o braço com
muita força. Aconteceu uma vez, e depois aconteceu de novo.
Ele pousou o úmero e pegou um dos ossos do antebraço.
- A ulna mostra uma fratura longitudinal curada. A quebra causou um ligeiro desvio na atitude do osso. Isso porque o osso pôde se curar no lugar depois do ferimento.
- Quer dizer que não foi tratada? - perguntou Edgar. - Ele não foi levado ao médico ou à emergência de um hospital?
- Exato. Esse tipo de ferimento, ainda que seja comumente acidental e tratado todos os dias em todas as emergências, também pode ser um ferimento de defesa. Você
levanta o braço para aparar um ataque e leva o golpe no antebraço. A fratura ocorre. Pela falta de indicação de cuidados médicos para esse ferimento, suponho que
não foi acidental, e sim parte do padrão de abusos.
Golliher colocou o osso gentilmente de volta no lugar, depois se inclinou sobre a mesa de exames para olhar as costelas. Muitos ossos estavam soltos sobre a mesa.
- As costelas - disse Golliher. - Quase duas dúzias de fraturas em vários estágios de cura. Acredito que esta fratura curada na décima segunda costela date de quando
o menino tinha apenas dois ou três anos. A nona costela tem um calo indicativo de trauma datando de apenas algumas semanas antes da morte. As fraturas são principalmente
consolidadas perto dos ângulos. Em bebês isso indica sacudidas violentas. Em crianças mais velhas geralmente indica
socos nas costas.
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Bosch pensou na dor que estava sentindo, em como não pudera dormir direito por causa do machucado nas costelas. Pensou num menino vivendo com esse tipo de dor ano
após ano.
- Tenho de lavar o rosto - falou subitamente. - O senhor pode continuar.
Foi até a porta, enfiando o bloco e a caneta nas mãos de Edgar. No corredor, virou à direita. Conhecia bem o andar das autópsias, e sabia que os banheiros ficavam
depois da próxima virada do corredor.
Entrou no banheiro e foi direto a um cubículo aberto. Sentiu náuseas e esperou, mas nada aconteceu. Depois de um longo momento, o enjôo passou.
Saiu do cubículo no momento em que a porta do corredor se abriu e o cameraman de Teresa Corazon entrou. Os dois se entreolharam cautelosos por um momento.
- Saia daqui - disse Bosch. - Volte mais tarde. O sujeito se virou em silêncio e saiu.
Bosch foi até a pia e se olhou no espelho. Seu rosto estava rubro. Curvou-se e usou as mãos para jogar água fria no rosto e nos olhos. Pensou em batismos e segundas
chances. Em renovação. Levantou a cabeça até estar se olhando de novo.
vou pegar esse cara.
Quase falou alto.
Quando voltou à suíte A, todos os olhos estavam fixos nele. Edgar devolveu o caderno e a caneta, e Golliher perguntou se ele estava bem.
- É, estou bem - disse Bosch.
- Se for de alguma ajuda, eu servi como consultor em casos em todo o mundo. Chile, Kosovo, até no World Trade Center. E este caso...
Ele balançou a cabeça.
- É difícil de entender - acrescentou. - E um daqueles em que a gente precisa pensar que talvez o garoto estivesse melhor saindo deste mundo. Isto é, se a gente
acreditar num Deus e num lugar melhor do que este.
Bosch foi até um balcão e pegou uma toalha de papel numa caixa. Começou a enxugar o rosto de novo.
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- E se não acreditar? Golliher foi até ele.
- Bem, veja só, é por isso que a gente deve acreditar. Se o menino não foi deste mundo para um plano mais elevado, para uma coisa melhor, então... então acho que
todos nós estamos perdidos.
- Isso funcionou para você quando estava remexendo os ossos do World Trade Center?
Bosch lamentou imediatamente ter dito uma coisa tão dura. Mas Golliher não pareceu abalado. Falou antes que Bosch pudesse se desculpar:
- Funcionou sim. Minha fé não se abalou pelo horror ou pela injustiça de tanta morte. Em muitos sentidos, ficou mais forte. Fez com que eu superasse aquilo.
Bosch assentiu e jogou a toalha numa lata de lixo que tinha um pedal para abrir. A lata se fechou com um estalo que ecoou, quando ele tirou o pé do pedal.
- E a causa da morte? - perguntou, voltando ao caso.
- Podemos pular em frente, detetive - disse Golliher. - Todos os ferimentos, discutidos aqui ou não, serão
delineados no meu relatório.
O perito voltou à mesa e pegou o crânio. Levou-o até Bosch, segurando-o com a mão perto do peito dele.
- No crânio temos a parte ruim. E possivelmente a boa. O crânio exibe três fraturas distintas mostrando estágios diversos de cura. Aqui está a primeira.
Ele apontou para uma área na parte inferior da nuca.
- Esta fratura é pequena e está curada. Dá para ver que as lesões foram completamente consolidadas. Depois temos este ferimento mais traumático no parietal direito
estendendo-se até o frontal. Esse ferimento exigiu cirurgia, provavelmente para um hematoma subdural.
Ele delineou com um dedo a área do trauma, circulando a parte superior dianteira do crânio. Em seguida apontou para cinco pequenos buracos pequenos e lisos, ligados
ao crânio por um padrão circular.
- Este é um padrão de trépano. Um trépano é uma serra médica usada para abrir o crânio para cirurgias ou para aliviar a pressão
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do inchaço cerebral. Neste caso foi provavelmente inchaço devido a um hematoma. bom, a fratura em si, e a cicatriz cirúrgica, mostram o início da criação de uma
ponte por cima das lesões. Osso novo. Eu diria que esse ferimento e a cirurgia subseqüente ocorreram aproximadamente seis meses antes da morte do menino.
- Não foi o ferimento que causou a morte? - perguntou Bosch.
- Não. Foi este.
Golliher virou o crânio mais uma vez e mostrou outra fratura. Esta na parte inferior esquerda da área posterior do crânio.
- Uma fratura em forma de teia de aranha, sem ponte, sem consolidação. Este ferimento aconteceu na ocasião da morte. A proximidade das rachaduras indica um golpe
com força tremenda dado com um objeto muito duro. Um bastão de beisebol, talvez. Alguma coisa assim.
Bosch assentiu e olhou para o crânio. Golliher tinha-o virado, de modo que agora os olhos vazios estavam focalizados em Bosch.
- Há outros ferimentos na cabeça, mas não são de natureza fatal. Estes ossos do nariz e o processo zigomático mostram nova formação óssea posterior a um trauma.
Golliher voltou à mesa de autópsias e pousou o crânio gentilmente.
- Não creio que eu precise fazer um sumário para vocês, mas, resumindo, alguém espancava regularmente esse garoto. E acabou indo longe demais. Estará tudo no relatório.
Ele se virou da mesa de autópsias e olhou para os detetives.
- Há um vislumbre de luz em tudo isso, sabem? Alguma coisa que pode ajudá-los.
- A cirurgia - disse Bosch.
- Exato. Abrir um crânio é uma operação muito séria. Deve haver registros em algum lugar. Teve de haver um pós-operatório. O rondei é preso no lugar com grampos
de metal depois da cirurgia. Não foi encontrado nenhum no crânio. Presumo que foram retirados num segundo procedimento. De novo, deve haver registros. A cicatriz
cirúrgica também ajuda a datar os ossos. Os buracos de trépano são muito grandes pelos padrões atuais. Em meados dos anos oitenta os instrumentos eram mais avançados
do
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que este. Mais finos. As perfurações eram menores. Espero que isso ajude.
Bosch assentiu e disse:
- E os dentes? Alguma coisa neles?
- Nós não temos o maxilar inferior. Nos dentes superiores presentes não há qualquer indicação de trabalho dentário, apesar de sinais de podridão pré-morte. Isso
em si é uma pista. Acho que coloca o menino nos níveis inferiores da classificação social. Ele não ia ao dentista.
Edgar tinha baixado a máscara até o pescoço. Sua expressão era dolorida.
- Quando esse garoto foi ao hospital com o hematoma, por que não contou aos médicos o que estava acontecendo? E quanto aos professores, os amigos?
- Você sabe as respostas tanto quanto eu, detetive. As crianças dependem dos pais. Têm medo deles e os amam, não querem perdêlos. Algumas vezes não existe explicação
para o motivo de não gritarem pedindo ajuda.
- E quanto a todas essas fraturas? Por que os médicos não viram e não fizeram alguma coisa?
- Esta é a ironia daquilo que faço. Vejo a história e a tragédia com muita clareza. Mas com um paciente vivo a coisa pode não ser evidente. Se os pais chegaram
com uma explicação plausível para o sofrimento do menino, que motivo o médico teria para fazer raios X do braço, da perna ou do peito? Nenhum. E assim o pesadelo
prossegue sem ser descoberto.
Insatisfeito, Edgar balançou a cabeça e foi até o canto mais distante da sala.
- Mais alguma coisa, doutor? - perguntou Bosch. Golliher verificou as anotações e cruzou os braços.
- Isto é num nível científico; vocês vão receber o relatório. Num nível puramente emocional, espero que encontrem a pessoa que fez isso. Ela vai merecer o que receber,
e mais ainda.
Bosch assentiu.
- Nós vamos pegá-lo - disse Edgar. - Não se preocupe com isso.
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Eles saíram do prédio e entraram no carro de Bosch, que ficou sentado um momento, antes de ligar o motor. Finalmente bateu no volante com força, com a palma da
mão, lançando um choque no lado machucado do peito.
- Sabe, isso não me faz acreditar em Deus, como ele - disse Edgar.
- Faz com que eu acredite em alienígenas, homenzinhos verdes do espaço.
Bosch olhou para ele. Edgar estava encostando a cabeça na janela, olhando o piso do carro.
- Como assim?
- Um ser humano não poderia ter feito isso com o próprio filho. Uma espaçonave deve ter vindo, seqüestrado o garoto e feito isso com ele. É a única explicação
possível.
- E, eu gostaria de que isso estivesse na lista de investigação, Jerry. Aí todos nós poderíamos ir para casa.
Bosch engrenou o carro.
- Preciso de uma bebida. Começaram a sair do estacionamento.
- Eu não, cara - disse Edgar. - Só quero ver meu filho, dar um abraço apertado nele, até isso passar.
Não falaram de novo até chegarem ao Parker Center.
Capítulo 8
Bosch e Edgar subiram pelo elevador até o quinto andar e entraram no laboratório da DIC, onde tinham uma reunião marcada com Antoine Jesper, principal criminalista
designado para o caso dos ossos. Jesper recebeu-os na barreira de segurança e os levou para os fundos. Era um jovem negro de olhos cinzentos e pele lisa. Usava um
jaleco branco que adejava com seus passos compridos e os braços sempre em movimento.
- Por aqui, pessoal - disse ele. - Não tenho muita coisa, mas o que tenho é de vocês.
Levou-os pelo laboratório principal, onde apenas um punhado de criminalistas estavam trabalhando, e entrou na sala de secagem, um grande espaço climatizado onde
as roupas e outras provas materiais de casos eram espalhadas em mesas de aço inoxidável para secagem e exame. Era o único lugar que podia se rivalizar com o andar
de autópsias do Departamento de Medicina Legal, em termos de fedor de podridão.
Jesper levou-os até duas mesas onde Bosch viu a mochila aberta e vários pedaços de roupa enegrecidos com terra e fungos. Também havia um saco plástico, de sanduíche,
com um pedaço de algo preto e irreconhecível.
- A água e a lama entraram na mochila - disse Jesper. - Ficou permeável com o tempo, acho.
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Jesper tirou uma caneta do bolso do jaleco e a esticou até virar um ponteiro. Usou-o para ilustrar os comentários.
- Temos uma mochila básica contendo três mudas de roupas e o que provavelmente era um sanduíche ou algum outro tipo de comida. Mais especificamente, três camisetas,
três cuecas, três pares de meias. E a comida. Também havia um envelope, ou o que resta de um envelope. Vocês não estão vendo isso aqui porque o pessoal dos documentos
pegou. Mas não tenham muita esperança. Ele estava em pior estado do que o sanduíche.
Bosch assentiu. Fez uma lista do conteúdo no caderno.
- Alguma identificação? - perguntou. Jesper balançou a cabeça.
- Nenhuma identificação pessoal na roupa ou na mochila. Mas duas coisas são dignas de nota. Primeiro, esta camisa aqui tem a marca. "Solid Surf'. Estampada no peito.
Não dá para ver agora, mas captei com a luz negra. Talvez ajude, talvez não. Se vocês não são familiarizados com a expressão "Solid Surf', posso dizer que é uma
referência a skate.
- Saquei - disse Bosch.
- Em seguida há a aba externa da mochila. - Ele usou o ponteiro para virar a aba. - Limpei um pouquinho e descobri isso.
Bosch se inclinou sobre a mesa para olhar. A mochila era feita de lona azul. Na aba havia uma clara demarcação de cor formando uma grande letra B no centro.
- Parece que havia algum tipo de adesivo aplicado na mochila
- disse Jesper. - Ele sumiu, e não sei realmente se aconteceu antes ou depois de essa coisa ter sido enterrada. Acho que antes. Parece que foi arrancada.
Bosch recuou da mesa e anotou algumas linhas no caderno. Em seguida, olhou para Jesper.
- Certo, Antoine, bom material. Mais alguma coisa?
- Não nisso aqui.
- Então vamos ao laboratório de documentos.
Jesper foi na frente de novo, passando pelo laboratório central e depois entrando num sublaboratório onde teve de digitar uma combinação de números na tranca.
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O laboratório de documentos continha duas fileiras de mesas, todas vazias. Cada mesa tinha uma caixa de luz horizontal e uma lente montada num pivô. Jesper foi até
a mesa do meio na segunda fila. Na placa de nome estava escrito Bernadette Fornier. Bosch a conhecia. Os dois tinham trabalhado num caso em que um bilhete de suicídio
fora forjado. Ele sabia que ela era boa.
Jesper pegou um saco plástico para provas, que estava no meio da mesa. Abriu o zíper e tirou duas pastas de plástico. Uma continha um envelope desdobrado, marrom
e manchado de fungo preto. O outro continha um pedaço de papel retangular, partido em três pedaços ao longo das dobras, e também tremendamente manchado pela podridão
e o fungo.
- E isso que acontece quando as coisas se molham, cara - disse Jesper. - Bernie levou o dia inteiro só para desdobrar o envelope e separar a carta. Como dá para
ver, ela se rasgou nas dobras. Quanto a saber se poderemos ler o que estava na carta, a perspectiva não parece boa.
Bosch acendeu a mesa de luz e pôs as pastas de plástico sobre ela. Aproximou a lente e examinou o envelope e a carta que ele contivera. Não havia nada sequer remotamente
legível em qualquer dos documentos. Uma coisa que ele notou foi que não parecia haver selo no envelope.
- Droga.
Virou as pastas e continuou olhando. Edgar se aproximou como se quisesse confirmar o óbvio.
- Teria sido legal - disse ele.
- O que ela vai fazer agora? - perguntou Bosch a Jesper.
- Bem, provavelmente vai experimentar algumas tinturas, algumas luzes diferentes. Tentar conseguir alguma coisa que reaja com a tinta, fazendo com que apareça.
Mas ontem ela não estava muito otimista. De modo que, como falei, eu não teria muitas esperanças com isso.
Bosch assentiu e desligou a luz.
Capítulo 9
Perto da entrada dos fundos da delegacia da Divisão de Hollywood havia um banco com grandes cinzeiros cheios de areia de cada lado. Era chamado de Código 7, por
causa do chamado pelo rádio para serviço noturno ou em dia de folga. Às 11:15 da noite de sábado Bosch era o único ocupante do banco Código 7. Não estava fumando,
mas desejou que estivesse. Estava esperando. O banco era mal iluminado pelas lâmpadas sobre a porta dos fundos da delegacia, e dava para ver o estacionamento compartilhado
pela delegacia e pelo corpo de bombeiros nos fundos do complexo da prefeitura.
Bosch observava enquanto as radiopatrulhas vinham do turno das três às onze, e os policiais iam para a delegacia, tirar o uniforme, tomar um banho e encerrar o expediente,
se pudessem. Baixou os olhos para a lanterna nas mãos. Passou o polegar sobre a extremidade e sentiu os arranhões onde Julia Brasher havia gravado o número do distintivo.
Sopesou a lanterna. Pensou subitamente no que Golliher dissera sobre a arma que havia matado o garoto. Podia acrescentar lanterna à lista.
Viu uma radiopatrulha entrar no estacionamento e parar perto da oficina. Um policial que ele reconheceu como o parceiro de Julia Brasher, Edgewood, saiu do banco
do carona e entrou na delegacia trazendo a espingarda do carro. Bosch esperou e olhou, subitamente
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inseguro de seu plano e imaginando se poderia abandoná-lo e entrar na delegacia sem ser visto.
Antes de ele tomar uma decisão, Brasher saiu do lado do motorista e veio para a porta da delegacia. Andava de cabeça baixa, postura de alguém que estava cansada
de um longo dia. Bosch conhecia a sensação. Além disso, achou que havia alguma coisa errada. Era algo sutil, mas o modo como Edgewood tinha entrado e a deixado para
trás revelava que havia algo estranho. Como Brasher era uma novata, Edgewood era seu treinador, mesmo sendo pelo menos cinco anos mais novo. Talvez fosse apenas
uma situação incômoda por causa da idade e do sexo. Ou talvez fosse outra coisa.
Brasher não notou Bosch no banco. Estava quase na porta da delegacia quando ele falou:
- Ei, você esqueceu de lavar o vômito do banco de trás.
Ela olhou para trás, continuando a andar, até ver que era ele. Então parou e foi até o banco.
- Eu trouxe uma coisa - disse Bosch.
Ele estendeu a lanterna. Brasher deu um sorriso cansado enquanto a pegava.
- Obrigada, Harry. Você não precisava esperar aí para...
- Eu quis.
Houve um silêncio incômodo por um momento.
- Estava trabalhando no caso esta noite? - perguntou ela.
- Mais ou menos. Comecei com a papelada. E meio que tivemos a autópsia mais cedo. Se é que a gente pode chamar de autópsia.
- Pela sua cara dá para ver que foi ruim.
Bosch assentiu. Sentia-se estranho. Ainda estava sentado, e ela continuava de pé.
- Dá para ver, pela sua cara, que você também teve um dia duro.
- Não são todos assim?
Antes que Bosch pudesse dizer alguma coisa, dois policiais, recém-saídos do chuveiro e à paisana, saíram da delegacia e foram
para seus carros.
- Anime-se, Julia - disse um deles. - A gente se vê lá.
- Certo, Kiko - respondeu ela.
Julia se virou de novo para Bosch. Sorriu.
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- Um pessoal do turno vai se encontrar no Boardner's. Quer ir?
- Hmm...
- Tudo bem. Só achei que talvez você quisesse tomar uma bebida, sei lá.
- Quero. Preciso. Na verdade era por isso que eu estava esperando você. Só não sei se quero uma coisa
grupal num bar.
- Bem, em que você estava pensando? Bosch olhou o relógio. Eram onze e meia.
- Dependendo de quanto tempo você demorar no vestiário, a gente poderia pegar o último martíni no Mosso's.
Agora ela deu um sorriso largo.
- Adoro aquele lugar. Me dê quinze minutos.
Ela foi para a porta da delegacia sem esperar uma resposta.
- vou esperar aqui - gritou ele.
Capítulo 10
O Musso and Frank's era uma instituição que servia martínis aos cidadãos - famosos e infames - de Hollywood há um século. O salão da frente era todo com reservados
de couro e conversas baixas, garçons idosos de paletós curtos vermelhos movendo-se devagar. O salão dos fundos continha o balcão comprido, onde na maioria das noites
só havia lugares em pé, com os fregueses tentando atrair a atenção dos barmen que poderiam ser pais dos garçons. Quando Bosch e Brasher entraram na área do bar,
dois clientes se levantaram dos bancos para sair. Bosch e Brasher aproveitaram rapidamente, vencendo dois caras vestidos de preto, tipo pessoal de estúdio, na disputa
pelos lugares privilegiados. Um barman que reconheceu Bosch se aproximou e os dois pediram martíni de vodca.
Bosch já estava se sentindo à vontade com ela. Os dois tinham almoçado juntos na mesa de piquenique da área de investigação nos últimos dois dias, e ela nunca estivera
longe de sua vista durante as buscas no morro. Foram ao Musso's juntos no carro dele, e aquilo já parecia um terceiro ou quarto encontro. Falaram amenidades sobre
a Divisão e os detalhes que Bosch estava disposto a revelar sobre o caso. Quando o barman pôs as taças de martíni junto com as garrafas extras, ele estava pronto
para esquecer durante um tempo tudo sobre ossos e bastões de beisebol.
Brindaram e Brasher disse:
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- À vida.
- E. A sobrevivência a mais um dia.
- Por pouco.
Bosch sabia que agora era hora de conversar sobre o que a estava perturbando. Se ela não quisesse falar, ele não pressionaria.
- Aquele cara que você chamou de Kiko, no estacionamento. Por que ele disse para você se animar?
Ela se curvou um pouco e a princípio não respondeu.
- Se você não quiser falar...
- Não, não é isso. E mais que eu não quero pensar nisso.
- Sei como é. Esqueça que perguntei.
- Não, tudo bem. Meu parceiro vai fazer um relatório me dedurando, e como eu estou em teste, isso pode ferrar comigo.
- Dedurando por quê?
- Atravessei o tubo.
Era uma expressão tática, que significava passar na frente do cano de uma arma apontada por um colega policial.
- O que aconteceu? Quero dizer, se quiser falar sobre isso. Ela deu de ombros e os dois tomaram goles compridos.
- Ah, foi um caso de violência doméstica, eu odeio domésticos, e o cara se trancou no quarto com uma arma. A gente não sabia se ele ia usá-la contra si mesmo, contra
a mulher ou nós. Esperamos o apoio, e então íamos entrar.
Júlia tomou outro gole. Bosch ficou olhando. O tumulto interno dela aparecia claramente nos olhos.
- Edgewood estava com a espingarda. Kiko ia dar o chute. Fennel, o parceiro de Kiko, e eu ficamos com a porta. E foi assim. Kiko é grande. Abriu a porta com um
chute. Fennel e eu entramos. O cara estava apagado na cama. Parecia não ter problema, mas Edgewood armou um problemão comigo. Disse que atravessei o tubo.
- E atravessou?
- Acho que não. Mas se atravessei, Fennel também atravessou, e Edgewood não disse chongas a ele.
- Você é a novata. Você é que está em teste.
- E, e estou ficando cheia, com certeza. Puxa, como foi que conseguiu passar por isso, Harry? Agora você tem um serviço que faz
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diferença. O que eu faço, só perseguindo o rádio o dia inteiro, indo de uma merda a outra, é como cuspir num incêndio. Nós não estamos avançando nada, e ainda por
cima tenho um babaca machão metido a besta dizendo de cinco em cinco minutos que eu fiz merda. Bosch sabia como ela estava se sentindo. Cada policial uniformizado
havia passado por isso. Você andava todo dia pelo poço de esgoto e logo parecia não haver nada além disso. Um abismo. Por isso ele nunca poderia voltar a trabalhar
fazendo patrulha. A patrulha era um Band-Aid num buraco de bala.
- Você achava que seria diferente? Quero dizer, quando estava na academia?
- Não sei o que eu achava. Só não sei se posso chegar a um ponto em que vou me sentir fazendo alguma diferença.
- Acho que pode. Os dois primeiros anos são difíceis. Mas você cava e começa a enxergar mais longe. Trava suas batalhas e acha o caminho. Você vai se dar bem.
Ele não se sentia confiante fazendo aquele discurso entusiasmado. Tinha passado por grandes períodos de indecisão sobre si mesmo e suas escolhas. Aconselhá-la a
ficar firme fazia com que se sentisse meio falso.
- Vamos falar de outra coisa - disse ela.
- Por mim, tudo bem.
Bosch tomou um gole comprido, pensando em como levar a conversa em outra direção. Pousou a taça, virou-se e sorriu para ela.
- Então lá estava você, fazendo caminhadas nos Andes, e disse a si mesma: "Cara, quero ser policial."
Ela riu, aparentemente afastando a tristeza dos comentários anteriores.
- Não foi exatamente assim. E nunca estive nos Andes.
- Bem, e quanto à vida rica e satisfatória que levava antes de colocar o distintivo? Você disse que viajava pelo mundo.
- Nunca fui à América do Sul.
- É lá que os Andes ficam? Esse tempo todo eu achava que ficavam na Flórida.
Ela riu de novo e Bosch se sentiu bem por ter conseguido mudar de assunto. Gostava de olhar os dentes de Julia, quando ria.
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Eram só um pouquinho tortos, de um modo que os tornava perfeitos.
- Então, sério, o que você fazia?
Ela se virou no banco, de modo que os dois ficaram ombro a ombro, olhando-se pelo espelho atrás das garrafas coloridas ao longo da parede dos fundos do bar.
- Ah, durante um tempo fui advogada. Não de defesa, portanto não fique empolgado. Lei cível. Então percebi que aquilo era besteira, abandonei e comecei a viajar.
Trabalhava viajando. Fiz cerâmica em Veneza, na Itália. Fui guia com cavalos nos Alpes suíços durante um tempo. Fui cozinheira num barco de turismo no Havaí. Fiz
outras coisas e simplesmente vi um bocado do mundo, menos os Andes. Depois vim para casa.
-L. A.?
- Nasci e cresci aqui. E você?
- Mesma coisa. No Queen of Angels.
- No Cedars.
Ela ergueu a taça e os dois brindaram.
- Aos poucos, aos orgulhosos, aos corajosos - disse ela. Bosch terminou a taça e pôs o conteúdo de sua garrafa extra.
Estava bem mais adiantado do que Julia, mas não se importava. Sentia-se relaxado. Era bom esquecer das coisas durante um tempo. Era bom estar com alguém que não
era relacionada direta-
mente ao caso.
-Nasceu no Cedars, hein?-perguntou ele. -Onde você cresceu?
- Não ria. Bel Air.
- Bel Air? Acho que o papai de alguém não está muito feliz por ela ter entrado para a polícia.
- Especialmente porque foi da firma de advocacia dele que ela saiu um dia e não deu notícias durante dois anos.
Bosch sorriu e levantou sua taça. Ela bateu com a outra.
- Garota corajosa.
Depois de pousarem as taças, ela disse:
- Vamos parar com as perguntas.
- Certo. E fazer o quê?
- Só me leve embora, Harry. Para a sua casa.
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Ele parou um momento, olhando os olhos azuis brilhantes de Julia. As coisas estavam indo rápido como um raio, lubrificadas pelo álcool facilitador. Mas freqüentemente
era assim com os policiais, entre gente que se sentia parte de uma sociedade fechada, que vivia segundo os instintos e ia trabalhar todo dia sabendo que seu meio
de vida poderia matá-los.
- E - disse ele finalmente. - Eu estava pensando a mesma coisa.
Em seguida inclinou-se e deu-lhe um beijo na boca.
Capítulo 11
Julia Brasher parou na sala de estar da casa de Bosch e olhou os discos no porta-CDs perto do aparelho de som.
- Adoro jazz.
Bosch estava na cozinha. Sorriu ao ouvi-la dizer isso. Terminou de servir os dois martínis da coqueteleira, veio para a sala e lhe entregou uma taça.
- De que você gosta?
- Hmmm, ultimamente Bill Evans.
Bosch assentiu, foi até o porta-CDs e pegou Kind ofBlue. Colocou no aparelho de som.
- Bill e Miles - disse ele. - Para não falar de Coltrane e alguns outros caras. Não há coisa melhor.
Quando a música começou ele pegou seu martíni. Ela se aproximou e brindou com ele. Em vez de beber, beijaram-se. Ela começou a rir no meio do beijo.
- O que foi? - perguntou Bosch.
- Nada. Só estou me sentindo meio ousada. E feliz.
- É. Eu também.
- Acho que foi você me dando a lanterna. Bosch ficou perplexo.
- O quê?
- Você sabe, é fálico demais.
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O olhar de Bosch fez com que ela risse de novo, e Julia derramou um pouco da bebida no chão.
Mais tarde, quando Julia estava deitada de rosto para baixo na cama, Bosch traçou com o dedo o desenho do sol flamejante tatuado na cintura dela, pensando em como
ela parecia à vontade e ao mesmo tempo estranha. Não sabia quase nada sobre ela, parecia haver uma surpresa em cada ângulo pelo qual a olhava.
- Em que está pensando? - perguntou Julia.
- Nada. Só estava imaginando o cara que desenhou isso nas suas costas. Queria que tivesse sido eu, acho.
- Como assim?
- E que sempre vai haver um pedaço dele em você;
Ela se virou de lado, revelando os seios e o sorriso. A trança estava desfeita e o cabelo caído em volta dos ombros. Ele gostou disso também. Julia estendeu a mão
e puxou-o para um beijo longo. Depois disse:
- É a melhor coisa que me dizem há muito tempo.
Ele baixou a cabeça no travesseiro dela. Dava para sentir o cheiro doce de perfume, sexo e suor.
- Você não tem nenhum quadro na parede - disse ela. - Quero dizer, fotos.
Ele deu de ombros.
Julia se virou de costas. Bosch passou a mão por baixo do braço dela, segurou um seio e puxou-a ao seu encontro.
- Você pode ficar até de manhã? - perguntou.
- Bem... meu marido provavelmente vai se perguntar onde estou, mas acho que posso ligar para ele.
Bosch se imobilizou. Depois começou a rir.
- Não me dê um susto desses.
- Bem, você não perguntou em nenhum momento se eu estou envolvida com alguém.
- Você não me perguntou.
- Você era óbvio. O típico detetive solitário. - E então, numa voz profunda e masculina: - Só os fatos, senhora. Não tenho tempo para mulheres. Meu negócio é assassinato.
Tenho um trabalho a fazer e vou...
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Ele passou o polegar pela lateral do tronco dela, por cima das reentrâncias das costelas. Ela cortou as palavras com gargalhadas.
- Você me emprestou sua lanterna - disse ele. - Não acho que uma "mulher comprometida" teria feito isso.
- E tenho uma novidade, valentão. Vi a lanterna no seu portamalas. Na caixa, antes de você cobrir. Você não enganou ninguém.
Bosch rolou para trás, para o outro travesseiro, sem graça. Pôde sentir o rosto ficando vermelho. Levantou as mãos para esconder.
- Ah, meu Deus... O sr. Óbvio.
Ela rolou até ele e puxou suas mãos. Beijou-o no queixo.
- Achei legal. Rendeu o meu dia e me deu alguma coisa para, talvez, esperar.
Julia virou as mãos dele e olhou as cicatrizes atravessando os nós dos dedos. Eram marcas antigas, e não muito perceptíveis.
- Ei, o que é isso?
- Só cicatrizes.
- Eu sei. De quê?
- Eu tinha tatuagens. Tirei. Foi há muito tempo. -
- Por quê?
- Mandei tirar quando entrei para o exército.
Ela começou a rir.
- Ora, o que estava escrito? Foda-se o exército ou algo assim?
- Não, nada do tipo.
- Então o quê? Anda, quero saber.
- Dizia F-I-Q-U-E numa das mãos e F-I-R-M-E na outra.
- Fique firme? O que significa "fique firme"?
- Bem, é uma história meio longa...
- Eu tenho tempo. Meu marido não se importa. - Ela sorriu. Anda, quero saber.
- Não é grande coisa. Quando eu era garoto, numa das vezes em que fugi fui parar em San Pedro. Perto do cais de pesca. E vi que um bocado dos caras de lá, os pescadores
de atum, tinham isso nas mãos. Fique firme. E perguntei a um deles sobre isso, e ele disse que era uma espécie de lema, a filosofia deles. Quando estavam nos barcos,
no mar durante semanas, e as ondas ficavam enormes de dar medo, era preciso se segurar e ficar firme.
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Bosch fechou os dois punhos e os levantou.
- Segurar firme a vida... tudo que você tem.
- E aí você mandou fazer. Quantos anos tinha?
- Não sei, dezesseis, por aí.
Ele assentiu e depois deu um sorriso.
- O que eu não sabia é que os pescadores de atum tinham pegado isso de uns caras da marinha. E aí, um ano depois, entrei para o exército com "Fique firme" nas mãos,
e a primeira coisa que o sargento disse foi para me livrar daquilo. Não ia deixar uma tatuagem de marinheiro na mão de um subordinado.
Ela segurou as mãos dele e olhou bem de perto.
- Não parece trabalho a laser. Bosch balançou a cabeça.
- Na época não existia laser.
- Então o que você fez?
- O meu sargento, o nome dele era Rosser, me levou para fora do alojamento até a parte de trás dos prédios de administração. Ali havia uma parede de tijolos. Ele
me fez dar socos na parede. Até que todos os dedos ficaram cortados. Então, depois de criar casca durante cerca de uma semana, ele me obrigou a fazer de novo.
- Jesus Cristo, porra, isso é desumano.
- Não, é o exército.
Bosch sorriu da lembrança. Não era tão ruim quanto parecia. Olhou para as mãos. A música parou e ele atravessou a casa nu para trocar o CD. Quando voltou ao quarto,
Julia reconheceu a música.
- Clifford Brown?
Ele assentiu e veio para a cama. Achou que nunca havia conhecido uma mulher que pudesse identificar jazz assim.
- Fique aí parado. -O quê?
- Deixe-me olhar você. Fale de todas essas outras cicatrizes. O quarto estava mal iluminado pela lâmpada do banheiro, mas
Bosch ficou consciente da própria nudez. Estava em boa forma, mas tinha cerca de quinze anos a mais do que ela. Imaginou se já estivera com um homem tão velho.
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- Harry, você está fantástico. Você me deixa totalmente excitada, certo? E quanto às outras cicatrizes?
Ele tocou a grossa corda de pele acima do quadril esquerdo.
- Isso? Foi uma faca.
- Onde aconteceu?
- Num túnel.
- E no ombro? -Bala. -Onde?
Ele sorriu. -Num túnel.
- Argh, fique longe dos túneis.
- Eu tento.
Ele entrou na cama e puxou o lençol. Julia tocou seu ombro, passando o polegar pela pele grossa da cicatriz.
- Bem no osso - disse ela.
- É, tive sorte. Não houve dano permanente. Dói no inverno e quando chove, mas só isso.
- Como foi a sensação? Quero dizer, de levar um tiro. Bosch deu de ombros.
- Doeu à beça, e depois tudo meio que ficou entorpecido.
- Quanto tempo ficou parado?
- Uns três meses.
- Você não recebeu aposentadoria por incapacidade?
- Ofereceram. Mas recusei.
- Por quê?
- Não sei. Acho que gosto do trabalho. E pensei que, se ficasse firme, algum dia conheceria uma jovem policial linda que ficaria impressionada com todas as minhas
cicatrizes.
Ela lhe deu um soco nas costelas e a dor o obrigou a fazer uma careta.
- Ah, nenenzinho coitadinho - disse ela numa voz zombeteira.
- Isso doeu.
Julia tocou a tatuagem no ombro dele.
- O que isso aí era para ser, Mickey Mouse viajando de ácido?
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- Mais ou menos. E um rato de túnel.
O rosto dela perdeu todo o traço de humor.
- Qual é o problema?
- Você esteve no Vietnã - disse Julia, somando dois e dois. Estive naqueles túneis.
- O que quer dizer?
-Quando eu estava viajando. Passei seis meses no Vietnã. Agora os túneis são como um negócio de turismo. Você paga e pode entrar neles. Deve ter sido... o que vocês
tiveram de fazer deve ter sido apavorante.
- Foi mais apavorante depois. Pensar naquilo.
- Eles isolaram com cordas, para controlar onde a gente vai. Mas ninguém fica vigiando. Por isso passei embaixo da corda e fui mais longe. Era escuro demais lá
dentro, Harry.
Bosch examinou os olhos dela.
- E você viu? - perguntou ele em voz baixa. - A luz perdida? Ela sustentou seu olhar um momento e assentiu.
- Vi. Meus olhos se ajustaram e houve luz. Quase como um sussurro. Mas era o bastante para eu achar o caminho.
- Luz perdida. A gente chamava isso de luz perdida. Nunca soubemos de onde vinha. Mas estava lá embaixo. Como fumaça pairando no escuro. Algumas pessoas diziam que
não era luz, que eram os fantasmas de todo inundo que morreu naquelas coisas. Dos dois lados.
Depois disso não falaram mais. Abraçaram-se e logo ela estava dormindo.
Bosch percebeu que não havia pensado no caso durante mais de três horas. A princípio isso o fez se sentir culpado, mas então deixou para lá, e logo também estava
dormindo. Sonhou que estava andando por um túnel. Mas não estava se arrastando. Era como se estivesse debaixo d'água e movendo-se como uma enguia através do labirinto.
Chegou a um beco sem saída e ali estava um menino sentado na curva da parede do túnel. Tinha os joelhos levantados e a cabeça baixa, enterrada nos braços cruzados.
"Venha comigo", disse Bosch.
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O garoto ergueu os olhos um pouquinho por cima do braço e olhou para ele. Uma única bolha de ar subiu de sua boca. Então olhou para além de Bosch como se alguma
coisa viesse por trás dele. Bosch se virou, mas atrás havia apenas a escuridão do túnel.
Quando olhou de novo para o garoto, ele havia sumido.
Capítulo 12
No final da manhã de domingo, Bosch levou Julia Brasher até a delegacia de Hollywood, para ela pegar o carro e ele poder retomar o trabalho no caso. Julia estava
de folga nos domingos e nas segundas. Os dois marcaram de se encontrar na casa dela naquela noite, para jantar. Havia outros policiais no estacionamento quando Bosch
a deixou perto do carro. Bosch sabia que num instante ia correr a notícia de que aparentemente os dois tinham passado a noite juntos.
- Desculpe - disse ele. - Eu deveria ter pensado melhor ontem à noite.
- Não me importo, Harry. Vejo você esta noite.
- Olha, você deveria se importar. Os policiais podem ser brutais.
Ela fez uma careta.
- Ah, brutalidade policial. E, já ouvi falar disso.
- Estou falando sério. Além do mais, é contra o regulamento. De minha parte. Eu sou D-três. Nível de supervisor.
Ela o olhou por um momento.
- Bem, então o problema é seu. Vejo você esta noite. Espero. Ela saiu e fechou a porta. Bosch pôs o carro em sua vaga e entrou
no escritório dos detetives, tentando não pensar nas complicações que poderia ter acabado de atrair para a vida.
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A sala do esquadrão estava deserta, coisa que ele esperava. Queria ter um tempo sozinho trabalhando no caso. Ainda havia muito serviço burocrático a fazer, mas ele
também queria recuar e pensar em todas as provas e informações que tinham sido acumuladas desde a descoberta dos ossos.
A primeira coisa era montar uma lista do que precisava ser feito. O caderno do assassinato - o fichário azul contendo todos os relatórios escritos do caso - tinha
de ser feito. Precisava redigir mandados de busca para registros médicos de cirurgias cerebrais nos hospitais locais. Tinha de fazer verificações de rotina por computador
sobre todos os moradores das vizinhanças do local de investigação na Wonderland. Também tinha de ler todos os recados telefônicos gerados pela cobertura da mídia
sobre os ossos na colina e começar a juntar informes sobre pessoas desaparecidas que poderiam combinar com a vítima.
Sabia que era mais de um dia de trabalho se fizesse sozinho, mas decidiu manter a decisão de dar o dia de folga a Edgar. Seu parceiro, pai de um garoto de treze
anos, ficara muito perturbado com o relato de Golliher na véspera, e Bosch queria que ele desse um tempo. Os dias seguintes provavelmente seriam longos e igualmente
perturbadores no nível emocional.
Assim que montou a lista, Bosch pegou sua xícara numa gaveta e voltou à sala do plantão para pegar café. A menor nota que tinha era de cinco dólares, mas colocou
na caixinha do café sem pegar troco. Achou que iria beber mais do que o normal durante o dia.
- Sabe o que dizem? - falou alguém atrás, enquanto ele enchia a xícara.
Bosch se virou. Era Mankievicz, o sargento de plantão.
- Sobre o quê?
- Pescar no cais da companhia.
- Não sei. O que dizem?
- Também não sei. Por isso perguntei.
Mankiewicz sorriu e foi para a máquina, esquentar sua xícara.
Então a coisa já estava começando a circular, pensou Bosch. As
fofocas e insinuações - especialmente qualquer coisa com tom sexual
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- circulavam pelas delegacias como incêndio subindo um morro no verão.
- bom, avise quando descobrir - disse Bosch enquanto ia para a porta da sala do plantão. - Pode ser útil saber.
- Farei isso. Ah, uma coisa, Harry. Bosch se virou, pronto para outro ataque.
- O que é?
- Apenas pare de bobagem e resolva esse caso. Estou cansado dos meus rapazes tendo de atender aos telefonemas.
Havia um tom de farsa na voz dele. Em seu humor e no sarcasmo havia uma reclamação legítima sobre seus policiais de serviço ficarem atolados com os telefonemas
de denúncias.
- E, eu sei. Alguma dica boa hoje?
- Não que eu saiba, mas você vai receber os relatórios e usar seus artifícios para decidir isso.
- Artifícios?
- E, artifícios, como fogos de artifício. Ah, e a CNN deve ter tido uma manhã monótona e pegou a história. bom material de vídeo, todos vocês, bravos policiais,
no morro com suas escadas improvisadas e caixinhas de ossos. De modo que agora estamos recebendo telefonemas interurbanos. Até agora, de Topeka e Providence. A
coisa não vai acabar até que resolva o caso, Harry. Estamos todos contando com você.
De novo havia um sorriso - e um recado - por trás do que ele estava dizendo.
- Certo, vou usar todos os meus artifícios. Prometo, Mank.
- E com isso que estamos contando.
De volta à mesa, Bosch tomou um gole de café e deixou os detalhes do caso circularem pela mente. Havia anomalias, contradições. Havia os conflitos entre escolha
de local e método de enterro notados por Kathy Kohl. Mas as conclusões tiradas por Golliher traziam mais perguntas. Golliher via o caso como sendo de abuso infantil.
Mas a mochila cheia de roupas era uma indicação de que a vítima, um menino, era possivelmente um fugitivo.
Bosch tinha falado com Edgar sobre isso na véspera, quando voltaram do laboratório da DIC para a delegacia. Seu parceiro não
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tinha tanta certeza do conflito quanto Bosch, mas ofereceu uma teoria de que talvez o menino fosse vítima de abuso infantil tanto nas mãos dos pais quanto de um
assassino não-aparentado. Observou que muitas vítimas de abuso fogem e são atraídas para outra forma de relacionamento abusivo. Bosch sabia que a teoria era legítima,
mas tentou não se deixar ser levado, porque sabia que era um caminho ainda mais deprimente do que o cenário tecido por Oolliher.
Sua linha direta tocou e Bosch atendeu, esperando que fosse Edgar ou a tenente Billets querendo informações. Era um repórter do L.A. Times chamado Josh Meyer. Bosch
mal o conhecia e tinha certeza de que nunca havia lhe dado o número da linha direta. Mas não deu a entender que estava chateado. Mesmo sentindo a tentação de dizer
ao repórter que a polícia estava seguindo pistas que iam até Topeka e Providence, simplesmente falou que não havia novidades sobre a investigação desde os informes
dados na sexta-feira pela Assessoria de Imprensa.
Havia umas três dúzias de folhas a mais desde que examinara a pilha na sexta. Nenhuma continha informações úteis ou que valessem ser verificadas no momento. Cada
uma era de um pai, irmão ou amigo de alguém que desaparecera. Todos sentindo-se permanentemente abandonados e procurando algum tipo de encerramento para o mistério
mais premente de sua vida.
Pensou em alguma coisa e deslizou com a cadeira até uma das velhas IBM Selectrics. Enfiou uma folha e datilografou quatro perguntas.
Você sabe se a pessoa desaparecida passou por algum tipo de procedimento cirúrgico nos meses anteriores ao desaparecimento? Se a resposta for sim, em que hospital
ela foi tratada? Que tipo de ferimento era? Qual era o nome do médico?
Tirou a página e levou-a até a sala do plantão. Entregou a Mankiewicz para ser usada como guia de perguntas a ser feitas a todos os que ligassem para falar dos ossos.
- Isso é artifício suficiente para você? - perguntou Bosch.
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- Não, mas dá para começar.
Enquanto estava ali, Bosch pegou um copo de plástico e encheu de café, depois voltou ao escritório e o derramou em sua xícara. Fez um lembrete para pedir à tenente
Billets na segunda-feira para tentar conseguir alguma ajuda com o objetivo de contatar todas as pessoas que haviam ligado nos últimos dias, para fazer as mesmas
perguntas. Então pensou em Julia Brasher. Sabia que ela estava de folga nas segundas, e se ofereceria como voluntária, se necessário. Mas descartou isso rapidamente,
sabendo que na segunda toda a delegacia saberia sobre eles, e trazê-la para o caso iria piorar as coisas.
Em seguida começou a redigir os mandados de busca. No serviço de homicídios era rotina precisar de registros médicos durante uma investigação. com freqüência esses
registros eram dados pelos próprios médicos ou dentistas. Mas não era incomum que viessem também de hospitais. Bosch tinha um arquivo com modelos de mandados de
busca para hospitais, além de uma lista de todos os 29 hospitais na área de Los Angeles e dos advogados que cuidavam dos encaminhamentos jurídicos em cada local.
Ter tudo isso à mão permitiu que redigisse 29 mandados de busca em pouco mais de uma hora. Os mandados pediam registros de todos os pacientes do sexo masculino com
menos de dezesseis anos que tivessem passado por uma cirurgia cerebral com uso de trépano entre 1975 e 1985.
Depois de imprimir os pedidos, colocou-os em sua pasta. Ainda que normalmente fosse certo mandar por fax um mandado de busca à casa de um juiz pedindo aprovação
e assinatura, certamente não seria aceitável passar por fax 29 pedidos a um juiz numa tarde de domingo. O plano de Bosch era levar os mandados a um juiz na segunda
de manhã cedo, depois dividi-los com Edgar e entregar em mãos nos hospitais, podendo assim enfatizar pessoalmente a urgência do assunto com os advogados. Mesmo
que as coisas seguissem de acordo com os planos, só esperava começar a receber as respostas dos hospitais na metade da semana, ou mais tarde.
Em seguida digitou um resumo diário do caso, além de uma recapitulação das informações antropológicas dadas por Golliher. Colocou isso no caderno do assassinato
e depois digitou um relatório de provas detalhando as descobertas preliminares da DIC com a mochila.
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Quando terminou, recostou-se e pensou na carta ilegível que fora encontrada na mochila. Não previa que a seção de documentos teria algum sucesso com ela. Seria
para sempre o mistério amortalhado no mistério mais amplo do caso. Engoliu o resto da segunda xícara de café e abriu o caderno do assassinato na página que continha
uma cópia do desenho e do mapa da área de investigação criminal. Examinou o mapa e notou que a mochila fora encontrada junto do local que Kohl havia marcado como
a provável localização original do corpo.
Não tinha certeza do que isso significava, mas instintivamente sabia que as perguntas que tinha agora sobre o caso deveriam ficar na frente de todas, em sua mente,
enquanto novas provas e detalhes continuassem a ser recolhidos. Elas seriam a tela através da qual tudo seria peneirado.
Colocou o relatório no caderno do assassinato e depois terminou de colocar em dia a papelada atualizando o diário da investigação - um gráfico temporal com pequenos
blocos de anotações. Depois colocou o caderno do assassinato em sua pasta.
Levou a xícara até a pia no banheiro e lavou-a. Depois voltou à mesa, pegou a pasta e foi pela porta dos fundos até o carro.
Capítulo 13
O porão do Parker Center, a sede do Departamento de Polícia de Los Angeles, funciona como arquivo de registros de todos os casos dos quais o departamento fez algum
relatório na era moderna. Até meados dos anos noventa os registros eram mantidos em papel durante um período de oito anos e depois transferidos para microfichas
para armazenamento permanente. Agora o departamento usava computadores para o armazenamento permanente e também estava recuando no tempo, colocando arquivos antigos
nos bancos de dados digitais. Mas o processo era lento, e não tinha chegado até o final dos anos oitenta.
Bosch chegou ao balcão do arquivo à uma hora. Tinha dois copos de café e dois sanduíches de rosbife do Philippe's num saco de papel. Olhou para o funcionário e sorriu.
- Acredite ou não, preciso ver as microfichas de pessoas desaparecidas entre mil novecentos e setenta e cinco e oitenta e cinco.
O funcionário, um sujeito velho com palidez de porão, assobiou e disse:
- Cuidado, Christine, aí vêm eles.
Bosch sorriu e assentiu, sem saber do que o sujeito estava falando. Parecia não haver ninguém atrás do balcão.
- A boa notícia é que eles são divididos - disse o funcionário.
- Quero dizer, acho que é boa notícia. O senhor está procurando registros de adultos ou jovens?
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-Jovens.
- Então isso reduz um pouco.
- Obrigado.
- Nem precisa dizer. O funcionário desapareceu do balcão e Bosch esperou. Dentro
de quatro minutos o sujeito voltou com dez pequenos envelopes contendo folhas de microfichas dos anos que Bosch tinha requisitado. No total a pilha tinha pelo menos
quinze centímetros de grossura.
Bosch foi até um leitor e copiador de microfichas, separou um sanduíche e os dois copos de café e levou o segundo sanduíche de volta ao balcão. O funcionário recusou
na primeira oferta, mas depois pegou o sanduíche quando soube que era do Philippe's.
Bosch voltou à máquina e começou a examinar as fichas, abrindo caminho pelo ano de 1985. Procurava registros de desaparecidos e fugitivos jovens do sexo masculino
com idade próxima à da vítima. Assim que ficou hábil com a máquina, pôde se mover rapidamente entre os relatórios. Examinava primeiro o carimbo de "fechado", indicativo
de que o indivíduo desaparecido tinha voltado para casa ou sido localizado. Se não houvesse carimbo seus olhos imediatamente iam para as linhas de idade e sexo no
formulário. Caso se encaixassem no perfil da vítima, lia o resumo e depois apertava o botão de fotocópia na máquina para ter uma cópia que pudesse levar.
A microficha também continha registros de pessoas desaparecidas mandados de outras agências para o DPLA, procurando pessoas que poderiam ter ido para Los Angeles.
Apesar de ser rápido na tarefa, Bosch levou mais de três horas para examinar todos os relatórios dos dez anos que tinha pedido. Quando terminou tinha cópias de mais
de trezentos relatórios na bandeja ao lado da máquina. E não fazia idéia se o esforço valera o tempo gasto ou não.
Esfregou os olhos e apertou a parte de cima do nariz. Estava com dor de cabeça de tanto ficar olhando a tela da máquina e lendo história após história de angústia
paterna e ansiedade juvenil. Olhou para o lado e percebeu que não tinha comido o sanduíche.
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Devolveu a pilha de envelopes de microfichas ao funcionário e decidiu fazer o trabalho de computador no Parker Center, em vez de voltar a Hollywood. Do Parker Center
poderia pegar a via expressa 10 e disparar até Venice para jantar na casa de Julia Brasher. Seria mais fácil.
A sala do esquadrão na Divisão de Roubos e Homicídios estava vazia, a não ser pelos dois detetives de plantão sentados diante de uma TV assistindo a um jogo de futebol.
Um deles era a ex-parceira de Bosch, Kizmin Rider. O outro, Bosch não reconheceu. Rider se levantou sorrindo ao ver que era ele.
- Harry, o que está fazendo aqui?
- Trabalhando num caso. Quero usar um computador, posso?
- Aquele negócio dos ossos? Ele assentiu.
- Ouvi falar no noticiário. Harry, este é Rick Thomton, meu parceiro.
Bosch apertou a mão dele e se apresentou.
- Espero que ela faça você parecer tão bom quanto fez comigo. Thornton apenas sorriu e Rider ficou sem graça.
- Venha até minha mesa - disse ela. - Você pode usar o meu computador.
Ela mostrou o caminho e deixou que ele ocupasse a cadeira.
- A gente só está matando tempo. Não acontece nada. Eu nem gosto de futebol.
- Não reclame dos dias calmos. Ninguém nunca lhe disse isso?
- Sim, o meu antigo parceiro. A única coisa que ele já disse e que fazia sentido.
- Aposto que sim.
- Posso ajudar em alguma coisa?
- Só vou fazer uma busca com os nomes, o de sempre.
Ele abriu a pasta e pegou o caderno do assassinato. Abriu-o numa página onde tinha listado os nomes, endereços e datas de nascimento dos moradores da Wonderland
Avenue que tinham sido entrevistados. Era uma questão de rotina e diligência obrigatória fazer uma busca com os nomes de cada pessoa que os investigadores encontravam
numa investigação.
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- Quer um café ou alguma coisa? - perguntou Rider.
- Não, tudo bem. Obrigado, Kiz.
Ele assentiu na direção de Thornton, que estava de costas para os dois, do outro lado da sala.
- Como vão as coisas? Ela deu de ombros.
- De vez em quando ele me deixa fazer algum trabalho verdadeiro de detetive - disse num sussurro.
- Bem, você sempre pode voltar para Hollywood - sussurrou ele de volta, com um sorriso.
Começou a digitar os comandos para entrar no Banco de Dados Nacional de Crimes. Imediatamente Rider fez um som de desprezo.
- Harry, você ainda digita com dois dedos?
- Eu só sei assim, Kiz. Faço isso há quase trinta anos. Você espera que de repente eu saiba digitar com dez dedos? Ainda não sou fluente em espanhol e também não
sei dançar. Você só foi embora há um ano.
- Levante-se, dinossauro. Deixe que eu faço. Você vai ficar aí a noite inteira.
Bosch levantou as mãos, rendendo-se, e ficou de pé. Ela se sentou e começou a trabalhar. Às costas dela, Bosch sorriu secretamente.
- Como nos velhos tempos - disse.
- Nem me lembre. Eu sempre fico com o trabalho de merda. E pare de rir.
Ela não tinha erguido a cabeça. Seus dedos eram um borrão acima do teclado. Bosch olhava pasmo.
- Ei, eu não planejei isso. Não sabia que você estaria aqui.
- É, como tom Sawyer não sabia que tinha de pintar uma cerca.
-O quê?
- Não importa. Fale da recruta. Bosch ficou perplexo.
-O quê?
- É só isso que você sabe dizer? Você me ouviu. A novata que você está, é... vendo.
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- Como diabos você já sabe disso?
- Sou uma coletora de informações altamente capaz. E ainda tenho fontes em Hollywood.
Bosch se afastou do cubículo e balançou a cabeça.
- E aí, ela é legal? Eu só queria saber isso. Não quero ficar bisbilhotando.
Bosch voltou.
- Sim, ela é legal. Eu mal a conheço. Parece que você sabe mais do que eu.
- Vai jantar com ela hoje?
- vou, vou jantar com ela.
- Ei, Harry?
A voz de Rider tinha perdido qualquer tom de humor.
- O quê?
- Você conseguiu uma coisa aqui.
Bosch se inclinou e olhou para a tela. Depois de digerir a informação, disse:
- Acho que não vou conseguir chegar para o jantar de hoje.
Capítulo 14
Bosch parou na frente da casa e examinou as janelas escuras e a varanda.
- E isso aí - disse Edgar. - O cara nem vai estar em casa. Provavelmente já se mandou.
Edgar estava chateado com Bosch, que o havia chamado em casa. Pelo modo como ele via, os ossos estavam no chão há vinte anos. Que mal havia em esperar até segunda-feira
de manhã para conversar com o sujeito? Mas Bosch disse que ia sozinho, se Edgar não fosse,
Edgar veio.
- Não, ele está em casa - disse Bosch. -Como sabe?
- Eu sei.
Olhou o relógio e anotou a hora e o endereço numa página de seu caderninho. Ocorreu-lhe então que a casa em que estavam era aquela onde ele vira a cortina sendo
puxada atrás de uma janela na noite do chamado.
- Vamos - falou. - Você conversou com ele na primeira vez, então vá na frente. Eu me meto quando parecer certo.
Saíram e subiram pela entrada de veículos. O homem que iam visitar se chamava Nicholas Trent. Morava sozinho na casa, que ficava do outro lado da rua, duas casas
abaixo do morro onde os ossos
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foram encontrados. Trent tinha 57 anos. Na entrevista inicial tinha dito a Edgar que era decorador de cenários num estúdio em Burbank. Não era casado e não tinha
filhos. Não sabia nada sobre os ossos no morro e não podia dar qualquer pista ou sugestão útil. Edgar bateu com força na porta da frente e eles esperaram.
- Sr. Trent, é a polícia - disse ele em voz alta. - O detetive Edgar. Atenda, por favor.
Tinha levantado o punho para bater de novo quando a luz da varanda se acendeu. A porta foi aberta e um homem branco, de cabeça raspada, estava parado na escuridão
do lado de dentro. A luz da varanda cortava seu rosto.
- Sr. Trent? É o detetive Edgar. Este é o meu parceiro, o detetive Bosch. Temos mais algumas perguntas para o senhor, se não se importa.
Bosch assentiu mas não estendeu a mão. Trent ficou quieto e Edgar forçou a barra, encostando a mão na porta e empurrando-a.
- Tudo bem se a gente entrar? - perguntou, já passando.
- Tudo bem nada - disse Trent rapidamente. Edgar parou e fez uma expressão perplexa.
- Senhor, só temos mais umas perguntas.
- Sei, e é babaquice!
- Perdão?
- Todos nós sabemos por que vocês estão aqui. Já conversei com meu advogado. O show de vocês não passa disso, um show. E ruim.
Bosch podia ver que não chegariam a lugar algum com a estratégia de jogar verde. Adiantou-se e puxou Edgar pelo braço. Assim que seu parceiro tinha liberado a passagem,
ele olhou para Trent.
- Sr. Trent, se sabia que iríamos voltar, sabia que iríamos descobrir sobre o seu passado. Por que não contou antes ao detetive Edgar? Isso poderia ter nos economizado
tempo. Em vez disso, fez com que suspeitássemos. Tenho certeza de que o senhor pode entender.
- Porque o passado é o passado. Eu não o trouxe de volta. Enterrei o passado. Deixem assim.
- Não quando há ossos enterrados nele - disse Edgar em tom acusatório.
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Bosch olhou para Edgar e fez uma expressão que dizia: use um pouco de finesse.
- Está vendo? - disse Trent. - É por isso que estou dizendo: vão embora. Não tenho nada para dizer a vocês. Nada. Não sei nada sobre isso.
- Sr. Trent, o senhor molestou um menino de nove anos - disse Bosch.
- O ano foi em mil novecentos e sessenta e seis e fui punido por isso. Severamente. E o passado. Desde então, sou um cidadão perfeito. Não tive nada a ver com os
ossos lá de cima.
Bosch esperou um momento e depois falou num tom calmo e mais baixo:
- Se é verdade, deixe-nos entrar e fazer nossas perguntas. Quanto mais cedo nós o liberarmos, mais cedo passaremos para outras
possibilidades. Mas o senhor precisa entender uma coisa. Os ossos de um menino foram achados a cerca de cem metros da casa de um homem que molestou um garoto em
sessenta e seis. Não me importa que tipo
de cidadão ele tem sido a partir de então, precisamos fazer algumas perguntas. E vamos fazer as perguntas. Não temos escolha. O senhor escolhe se fazemos isso em
sua casa agora ou com seu advogado na delegacia, com todas as câmeras dos noticiários esperando do lado de fora.
Ele fez uma pausa. Trent o olhou apavorado.
- De modo que pode entender nossa situação, sr. Trent, e certamente nós entendemos a sua. Estamos dispostos a prosseguir rápida e discretamente, mas não podemos
fazer isso sem sua cooperação.
Trent balançou a cabeça como se soubesse que, não importando o que fizesse agora, sua vida corria risco, e talvez estivesse permanentemente alterada. Por fim, recuou
e sinalizou para Bosch e Edgar entrarem.
Trent estava descalço e usava bermuda preta e larga que mostrava as pernas finas e brancas sem qualquer pêlo. Usava uma camisa florida sobre o tronco magro. Tinha
a compleição de uma escada de pintor, todo feito de ângulos duros. Levou-os a uma sala atulhada de antigüidades. Sentou-se no centro de um sofá. Bosch e Edgar ocuparam
as duas poltronas de couro diante dele. Bosch decidiu assumir
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a dianteira. Não gostava do modo como Edgar tinha agido à porta.
- Para ser cauteloso e cuidadoso, vou ler seus direitos constitucionais - disse ele. - Depois vou pedir que assine um formulário de renúncia de direitos. Isso protege
tanto o senhor quanto nós. Além disso vou gravar nossa conversa, de modo que ninguém ponha palavras na boca de ninguém. Se quiser uma cópia da fita, eu disponibilizo.
Trent deu de ombros e Bosch aceitou isso como uma concordância relutante. Quando o formulário estava assinado Bosch o enfiou na pasta e pegou um pequeno gravador.
Assim que o ligou e identificou os presentes, além de dizer a data e a hora, assentiu para Edgar assumir a dianteira de novo. Isso porque Bosch achava que observar
Trent e o ambiente ao redor seria mais importante do que as respostas dele.
- Sr. Trent, há quanto tempo mora nesta casa?
- - Desde mil novecentos e oitenta e quatro.
Então ele riu.
- O que há de engraçado nisso? - perguntou Edgar.
- Mil novecentos e oitenta e quatro. Não entendeu? George Orwell? O Grande Irmão?
Ele sinalizou para Bosch e Edgar como se fossem os representantes do Grande Irmão. Aparentemente Edgar não entendeu e continuou com a entrevista.
- Alugada ou própria?
- Própria. Ah, a princípio eu alugava, mas comprei a casa em oitenta e sete.
- Certo, e o senhor é cenógrafo na indústria do entretenimento?
- Decorador de cenários. É diferente.
- Qual é a diferença?
- O cenógrafo planeja a construção do cenário. Então o decorador entra e coloca os detalhes. Os pequenos toques característicos. Os pertences ou ferramentas do personagem.
Coisas assim.
- Há quanto tempo faz isso?
- Vinte e cinco anos.
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- O senhor enterrou aquele menino lá no morro? Trent se levantou, indignado.
-Absolutamente não. Nunca sequer coloquei o pé naquele morro. E vocês estão cometendo um grande erro perdendo o tempo comigo quando o verdadeiro assassino do pobre
coitado está solto por aí.
Bosch se inclinou à frente na poltrona.
- Sente-se, sr. Trent - disse ele.
O modo intenso com que Trent negou fez Bosch pensar instintivamente que ele era inocente ou um dos melhores atores que já tinha visto. Trent se sentou devagar no
sofá, de novo.
- Você é um sujeito inteligente - disse Bosch, decidindo intervir. - Sabe exatamente o que estamos fazendo. Nós temos de pegálo ou liberá-lo. É simples. Então por
que não nos ajuda? Em vez de dançar conosco, por que não diz como podemos liberá-lo?
Trent levantou as mãos.
- Não sei como! Não sei nada sobre o caso! Como posso ajudar quando não sei absolutamente nada a respeito?
- Bem, de cara, o senhor pode deixar que a gente dê uma olhada por aqui. Se eu puder começar a ficar confortável com o senhor, sr. Trent, talvez possa começar a
ver o seu lado das coisas. Mas neste momento... como eu disse, eu o tenho com a sua ficha, e tenho ossos do outro lado da rua.
Bosch levantou as duas mãos como se estivesse segurando essas duas coisas.
- Não parece muito bom, pelo meu ponto de vista.
Trent se levantou e ergueu uma das mãos num gesto para o interior da casa.
- Ótimo! Estejam à vontade. Olhem até se fartar. Não vão achar nada porque não tive nada a ver com isso. Nada!
Bosch olhou para Edgar e assentiu, o sinal era para manter Trent ocupado enquanto ele dava uma olhada na casa.
- Obrigado, sr. Trent - disse Bosch levantando-se. Enquanto entrava num corredor que dava para os fundos da casa,
ouviu Edgar perguntando se Trent vira alguma atividade incomum no morro onde os ossos tinham sido encontrados.
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- Só lembro que as crianças costumavam brincar...
Ele parou, aparentemente ao perceber que qualquer menção que fizesse a crianças só aumentaria as suspeitas a seu respeito. Bosch olhou para trás, certificando-se
de que a luz vermelha no gravador continuava acesa.
- O senhor gostava de olhar as crianças brincando no mato, sr. Trent? - perguntou Edgar.
Bosch ficou no corredor, fora das vistas mas escutando a resposta.
- Não, não dava para ver, se elas estivessem no mato. Ocasionalmente eu vinha subindo de carro ou estava passeando com meu cachorro, quando ele era vivo, e via
as crianças subindo para lá. A menina do outro lado da rua. Os Fosters, da casa ao lado. Todas as crianças daqui. É uma área pública, a única parte sem construções
na vizinhança. Alguns vizinhos achavam que os mais velhos subiam lá para fumar, e a preocupação era de que incendiassem todo
o morro.
- Isso teria acontecido há quanto tempo?
- Mais ou menos quando me mudei para cá. Eu não me envolvia. Os vizinhos que moravam aqui cuidavam disso.
Bosch seguiu pelo corredor. Era uma casa pequena, não muito maior do que a sua. O corredor terminava numa conjunção de três portas. Quartos à direita e à esquerda
e um armário de roupas de cama no meio. Verificou o armário primeiro, não encontrou nada incomum, e depois entrou no cômodo da direita. Era o quarto de Trent. Era
bem arrumado, mas o tampo das duas cômodas e as mesinhas-de-cabeceira estavam atulhadas de badulaques que supostamente Trent usava para ajudar a transformar os cenários
em lugares reais para as câmeras.
Olhou o armário. Havia várias caixas de sapatos na prateleira de cima. Bosch começou a abri-las e descobriu que continham sapatos velhos, gastos. Aparentemente,
Trent tinha o hábito de comprar sapatos novos, colocar os velhos na caixa e guardar. Bosch achou que eles também se tornavam parte de seu material de trabalho. Abriu
uma caixa e encontrou um par de botas de trabalho. Notou que a terra havia endurecido em algumas reentrâncias da sola. Pensou na
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terra escura onde os ossos tinham sido achados. Amostras dela tinham sido coletadas.
Guardou as botas de volta e fez uma anotação mental para o mandado de busca. Seu exame agora era apenas uma olhada superficial. Se dessem o próximo passo com Trent
e ele se tornasse um suspeito de verdade, voltariam com um mandado e literalmente rasgariam o lugar procurando provas que o ligassem aos ossos. As botas de trabalho
poderiam ser um bom lugar para começar. Já havia a gravação dele dizendo que nunca tinha subido no morro. Se a terra nas solas fosse igual às amostras da escavação,
Trent seria apanhado numa mentira. A maior parte dos entreveros com os suspeitos implicava montar uma história. Era então que o investigador procurava as mentiras.
Não havia mais nada no armário que atraísse a atenção de Bosch. O mesmo no quarto e no banheiro anexo. Bosch, claro, sabia que se Trent fosse o assassino teria tido
muitos anos para cobrir as pistas. Também teria tido os últimos três dias - desde que Edgar o entrevistara pela primeira vez - para verificar os rastros e se preparar.
O outro quarto era usado como escritório e depósito para o trabalho. Nas paredes havia cartazes de filmes em que Bosch supôs que Trent tivesse trabalhado. Bosch
tinha visto alguns deles pela televisão, mas raramente ia ao cinema. Notou que uma das molduras tinha o cartaz de um filme chamado The art ofthe Cape. Anos antes
Bosch tinha investigado o assassinato do produtor desse filme. Ouviu dizer que depois disso os cartazes do filme tinham se tornado itens de colecionador na Hollywood
underground.
Quando terminou de olhar os fundos da casa, passou pela porta da cozinha e foi à garagem. Havia duas vagas, uma contendo o minifurgão de Trent. A outra estava cheia
de caixas com legendas correspondendo aos cômodos de uma casa. A princípio Bosch ficou chocado ao pensar que Trent ainda não tinha desfeito totalmente a mudança
depois de vinte anos. Depois percebeu que as caixas tinham a ver com o trabalho e eram usadas na decoração de cenários.
Quando girou estava olhando toda uma parede coberta de cabeças de animais caçados, com os olhos de vidro preto espiando-o.
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Sentiu um nervosismo arrepiar a coluna. Durante toda a vida tinha odiado ver coisas assim. Não sabia direito por quê.
Passou mais alguns minutos na garagem, principalmente examinando uma caixa onde estava escrito "quarto de menino 9-12". Continha brinquedos, aeromodelos, um skate
e uma bola de futebol. Pegou o skate por alguns instantes e o observou, o tempo todo pensando na camisa da mochila onde estava impresso "Solid Surf'. Depois de um
tempo recolocou o skate na caixa e fechou-a.
Havia uma porta lateral levando a um caminho que dava no quintal dos fundos. Uma piscina ocupava a maior parte do nível mais baixo, antes de o quintal subir até
o morro íngreme e coberto de mato. Estava escuro demais para ver grande coisa, e Bosch decidiu que teria de olhar o exterior durante o dia.
Vinte minutos depois de ter saído para começar a busca, voltou à sala com as mãos vazias. Trent olhou-o cheio de expectativa.
- Satisfeito?
- Por enquanto estou, sr. Trent. Agradeço o seu...
- Está vendo? A coisa nunca termina. "Por enquanto estou." Vocês nunca vão deixar isso para trás, vão? Quero dizer, se eu fosse traficante de drogas ou assaltante
de banco, minha dívida estaria limpa e vocês me deixariam em paz. Mas como toquei num menino há quase quarenta anos sou culpado por toda a vida.
- Acho que o senhor fez mais do que tocar nele - disse Edgar.
- Mas veremos os registros. Não se preocupe.
Trent enfiou o rosto nas mãos e murmurou algo sobre ter sido um erro cooperar. Bosch olhou para Edgar, que assentiu dizendo que havia terminado e estava pronto para
ir embora. Bosch se adiantou e pegou o gravador. Enfiou no bolso do peito do paletó, mas não desligou. Tinha aprendido uma lição valiosa num caso no ano anterior:
algumas vezes as coisas mais importantes e reveladoras são ditas depois que uma entrevista supostamente acaba.
- Sr. Trent, obrigado pela colaboração. Nós vamos indo. Mas talvez tenhamos de falar com o senhor amanhã. O senhor trabalha amanhã?
- Meu Deus, não, não liguem para mim no trabalho! Preciso desse emprego e vocês vão arruinar com ele. Vão arruinar tudo.
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Ele deu a Bosch o número de seu bip. Bosch anotou e foi para a porta da frente. Olhou de volta para Edgar.
- Você perguntou a ele sobre viagens? Ele não está planejando ir a lugar nenhum, está?
Edgar olhou para Trent.
- Sr. Trent, o senhor trabalha no cinema, então conhece o diálogo. Ligue para nós se estiver planejando sair da cidade. Se não ligar e nós descobrirmos... o senhor
não vai gostar muito.
Trent falou em tom chapado, com os olhos focalizados em frente, num lugar muito distante:
- Não vou a lugar nenhum. Agora, por favor, vão embora. Só me deixem em paz.
Eles saíram e Trent fechou a porta com força. Na parte de baixo da entrada de veículos havia uma grande buganvília florida. Ela bloqueou a visão de Bosch do lado
esquerdo da rua até ele chegar lá.
Uma luz forte e súbita se acendeu na cara de Bosch. Uma repórter com um câmera a reboque se aproximou dos dois detetives. Bosch ficou ofuscado por alguns instantes
até que seus olhos começaram a se acostumar.
- Oi, detetives. Sou Judy Surtain, do noticiário do Canal Quatro. Há alguma novidade no caso dos ossos?
- Sem comentários - rosnou Edgar. - Sem comentários e apague a porcaria desta luz.
Bosch finalmente viu a mulher, na claridade da lâmpada. Reconheceu-a da TV e do agrupamento na barreira da rua no início da semana. Também reconheceu que dizer "sem
comentários" não era o modo certo de cuidar da situação. Precisava apagar o fogo e manter a mídia longe de Trent.
- Não - disse ele. - Nenhuma novidade. Só estamos fazendo procedimentos de rotina.
Surtain enfiou o microfone na cara de Bosch.
- Por que estão aqui na vizinhança de novo?
- Só estamos terminando as entrevistas de rotina com os moradores. Não tive chance de conversar com o morador daqui antes. Acabamos de terminar. Só isso.
Ele estava falando com um tom de voz entediado. Esperava que ela engolisse.
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- Desculpe - acrescentou. - Esta noite não há uma grande história.
- E esse vizinho, ou algum outro, foi útil para a investigação?
- Bem, todo mundo aqui cooperou muito, mas em termos de pistas para a investigação a coisa está complicada. A maioria das pessoas nem morava aqui quando os ossos
foram enterrados, isso dificulta tudo.
Bosch sinalizou para a casa de Trent.
- Esse senhor, por exemplo. Descobrimos que ele só comprou a casa em mil novecentos e oitenta e sete, e temos quase certeza de que antes disso os ossos já estavam
aqui.
- Então estão de volta à estaca zero?
- Mais ou menos. E realmente é só isso que posso dizer. Boa noite.
Bosch passou por ela, indo para o carro. Alguns instantes depois, a repórter estava com ele junto à porta do carro. Sem o cameraman.
- Detetive, precisamos do seu nome.
Bosch abriu a carteira e pegou um cartão de visita. O que tinha o número central da delegacia. Entregou e disse boa-noite
outra vez.
- Olha, se houver alguma coisa que o senhor possa contar... sabe, extra-oficialmente, eu protejo a fonte - disse Surtain. - Sabe como é, longe das câmeras como agora,
o que o senhor quiser.
- Não, não há nada - disse Bosch enquanto abria a porta. - Boa noite.
Edgar xingou no momento em que as portas se fecharam.
- Como diabos ela sabia que a gente estava aqui?
- Provavelmente algum vizinho. Ela ficou aqui durante os dois dias da escavação. E uma celebridade. Bancou a boazinha com os moradores. Fez amigos. Além disso a
gente está sentado em cima de uma baleia. Era o mesmo que convocar uma coletiva.
Bosch pensou na futilidade de tentar fazer um trabalho de detetive num carro pintado de branco e preto. com um programa destinado a tornar os policiais mais visíveis
na rua, o departamento havia designado para os detetives das delegacias carros pretos-e-
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brancos que não tinham as luzes de emergência em cima, mas que eram igualmente perceptíveis.
Olharam enquanto a repórter e o cinegrafista iam até a porta de Trent.
- Ela vai tentar falar com ele - disse Edgar.
Bosch enfiou a mão rapidamente na pasta e pegou o celular. Ia ligar para Trent e dizer para ele não atender, quando percebeu que o aparelho não dava sinal.
- Droga - falou.
- Tarde demais, de qualquer modo - disse Edgar. - Vamos esperar que ele seja esperto.
Bosch pôde ver Trent à porta de casa, totalmente banhado na luz branca da câmera. Ele disse algumas palavras, depois fez um gesto dispensando a repórter e fechou
a porta.
- bom - disse Edgar.
Bosch ligou o carro, deu a volta e foi pelo cânion em direção à delegacia.
-E agora? - perguntou Edgar.
- Temos de pegar as fichas da condenação, ver o que foi.
- E a primeira coisa que vou fazer.
- Não. A primeira coisa é que quero enviar mandados de busca para os hospitais. Quer Trent se ajuste ao quadro ou não, precisamos identificar o garoto para ligá-lo
a Trent. Vamos nos encontrar no tribunal de Van Nuys às oito. Vamos conseguir as assinaturas nos mandados e dividimos o
lote. Bosch tinha escolhido o tribunal de Van Nuys porque Edgar morava perto e eles poderiam se separar e partir de lá de manhã, depois de os mandados serem aprovados
por um juiz.
- Que tal um mandado para a casa de Trent? - perguntou Edgar.
- Você viu alguma coisa enquanto estava olhando?
- Não muito. Ele tem um skate numa caixa na garagem. Sabe, com o material de trabalho. Para colocar num cenário. Eu estava pensando na camisa da vítima quando vi.
E havia umas botas de trabalho com terra nas ranhuras. Pode ser igual às amostras do morro. Mas não estou contando com uma busca detalhada. O cara teve vinte anos
para se certificar de que estava limpo. Se ele for o cara.
- Você não acha? Bosch balançou a cabeça.
- O tempo está errado. Oitenta e quatro é tarde demais. Na extremidade de nossa janela temporal.
- Pensei que a gente estava procurando entre setenta e cinco e oitenta e cinco.
- Estamos. Genericamente. Mas você ouviu o Golliher: de vinte a vinte e cinco anos atrás. No máximo início dos anos oitenta. Não sei se oitenta e quatro é início
dos oitenta.
- Bem, talvez ele tenha se mudado para essa casa por causa do corpo. Ele enterrou o garoto ali antes e queria estar perto, por isso se mudou para a vizinhança. Quero
dizer, Harry, esses caras são umas porras doentes.
Bosch assentiu.
- São mesmo. Mas não senti a vibração. Acreditei nele.
- Harry, a sua intuição já errou antes. -Ah, é...
- Eu acho que é ele. Ele é o cara. Ouviu como ele disse: "só porque toquei num garoto". Provavelmente, para ele, comer um menino de nove anos é tocar alguém.
Edgar estava sendo reacionário, mas Bosch não o censurou. Ele era pai; Bosch não era.
- Pegaremos os registros e veremos. Também temos de ir ao Salão verificar os reversos, ver quem morava na rua na época.
Os reversos eram catálogos telefônicos que listavam os moradores por endereço, em vez de por nome. Uma coleção dos catálogos, para cada ano, era mantida no Salão
dos Registros. Eles permitiriam aos detetives determinar quem morava na rua entre 1975 e
1985, período que consideravam o da morte do garoto.
- Vai ser bem divertido - disse Edgar.
- Ah, vai. Mal posso esperar.
Fizeram o resto do caminho em silêncio. Bosch ficou deprimido. Estava desapontado consigo mesmo pelo modo como tinha feito a investigação até agora. Os ossos foram
descobertos na quarta-feira, e a investigação decolara na quinta. Sabia que deveria ter examinado os nomes - uma parte básica da investigação - antes do
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domingo. Ao adiar tinha dado vantagem a Trent. Ele tivera três dias para esperar e se preparar para as perguntas. Até tivera a orientação de um advogado. Podia ter
ensaiado
as reações e olhares no espelho. Bosch sabia o que seu detector interno de mentiras dizia. Mas também sabia que um bom ator era capaz de enganá-lo.
Capítulo 15
Tomou uma cerveja na varanda dos fundos, com a porta deslizante aberta, para ouvir Clifford Brown no aparelho de som. Quase quinze anos antes o trompetista tinha
feito um punhado de discos e depois se mandou num acidente de carro. Bosch pensou em toda a música que se perdera. E então pensou em si mesmo e no que havia perdido.
De algum modo ojazz, a cerveja e as incertezas que ele estava sentindo no caso tinham se misturado no pensamento. Sentia-se tenso, como se deixasse de notar alguma
coisa bem na frente. Para um detetive é praticamente o pior sentimento do mundo.
Às onze da noite entrou e baixou a música para assistir ao noticiário do Canal Quatro. O informe de Judy Surtain era a terceira matéria depois do primeiro intervalo.
O âncora disse: "Novas descobertas no caso dos ossos de Laurel Canyon. Vamos até Judy Surtain, no local."
- Ah, merda - disse Bosch, não gostando da introdução.
O programa cortou para uma imagem ao vivo de Surtain na Wonderland Avenue, parada na rua diante de uma casa que Bosch reconheceu como sendo a de Trent.
- Estou aqui na Wonderland Avenue, em Laurel Canyon, onde alguns dias atrás um cachorro trouxe um osso que, segundo as autoridades, era humano. A descoberta do cachorro
levou ao encontro de mais ossos pertencentes a um menino que, pelo que os
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investigadores acreditam, foi assassinado e enterrado há mais de vinte anos.
O telefone de Bosch começou a tocar. Ele o pegou no braço da poltrona da TV e atendeu.
- Um momento - disse ele e segurou o telefone ao lado do corpo enquanto assistia à reportagem.
Sustain falava:
- Esta noite os principais investigadores do caso voltaram à vizinhança para falar com um morador que vive a menos de cem metros do local onde o menino foi enterrado.
O morador é Nicholas Trent, um decorador de cenários de Hollywood, de cinqüenta e
sete anos.
O programa cortou para uma gravação de Bosch sendo entrevistado por Surtain naquela noite. Mas a imagem foi usada como preenchimento visual enquanto Surtain continuava
falando.
- Os investigadores se recusaram a comentar o interrogatório feito com Trent, mas o Canal Quatro ficou sabendo...
Bosch se empertigou na cadeira e se preparou.
- ... que Trent já foi condenado por molestar um menino. Então o som foi cortado para a entrevista na rua, quando Bosch
dizia:
- E realmente é só isso que posso dizer.
A próxima imagem do vídeo era de Trent parado, sinalizando para a câmera se afastar e fechando a porta.
- Trent se recusou a comentar sua situação no caso. Mas os vizinhos da área normalmente tranqüila exprimiram choque ao saber do passado de Trent.
Enquanto o repórter passava para a entrevista gravada de um morador que Bosch reconheceu como Victor Ulrich, Bosch apertou o botão de mudo no controle remoto e levantou
o telefone. Era Edgar.
- Você está assistindo a essa merda? - perguntou ele.
- Ah, estou.
- A gente ficou parecendo uns babacas. Parece que a gente contou a ela. Eles usaram sua fala fora de contexto, Harry. A gente vai se foder por causa disso.
- Bem, você não contou a ela, contou?
- Harry, você acha que eu contaria a uma...
- Não, não acho. Só estava confirmando. Você não contou a ela, certo?
- Certo.
- Nem eu. De modo que, claro, vamos receber alguma merda, mas estamos limpos.
- Bem, quem mais sabia? Duvido que tenha sido Trent quem contou a ela. Agora mais ou menos um milhão de pessoas sabem que ele molestou uma criança.
Bosch percebeu que as únicas pessoas que sabiam eram Kiz, que tinha descoberto o registro enquanto fazia o trabalho no computador, e Julia Brasher, a quem ele havia
contado enquanto se desculpava por perder o jantar. De repente uma visão de Surtain parada na barreira da Wonderland veio a ele. Brasher tinha se oferecido para
ajudar nos dois dias da busca e da escavação no morro. Era totalmente possível que ela tivesse se ligado a Surtain de algum modo. Seria ela a fonte da repórter,
o vazamento?
- Não precisa ter tido um vazamento - disse Bosch a Edgar. Ela só precisava do nome de Trent. Poderia ter pedido a qualquer policial conhecido para procurar no computador.
Ou poderia ter olhado no arquivo de criminosos sexuais. É de domínio público. Espere aí.
Ele tinha recebido um sinal de chamada em espera. Mudou de linha e soube que era a tenente Billets. Disse para ela esperar enquanto desligava a outra linha.
- Jerry, é Bullets. Ligo para você depois.
- Ainda sou eu - disse Billets.
- Ah, desculpe. Espere um pouco.
Ele tentou de novo e dessa vez conseguiu transferir. Disse a Edgar que ligaria de novo se Billets dissesse alguma coisa que ele precisasse saber imediatamente.
- Caso contrário prossiga com o plano - acrescentou. - Vejo você em Van Nuys às oito.
Transferiu de novo para Billets.
- Bullets? - disse ela. - E assim que vocês me chamam?
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- O quê?
-Você disse Bullets. Quando pensou que eu era Edgar, você me chamou de "Bullets".
- Quer dizer, agora?
- É, agora.
- Não sei. Não sei do que está falando. Quer dizer, quando eu estava transferindo a linha para...
- Não faz mal, isso não importa. Presumo que você tenha assistido ao Canal Quatro.
- E, eu vi. E só posso dizer que não fui eu nem o Edgar. Aquela mulher recebeu uma dica de que a gente estava lá. E a gente saiu "sem comentários". Não sei como
ela arranjou isso...
- Harry, você não saiu "sem comentários". Eles gravaram, sua boca se mexendo, e depois ouvi você dizendo "é só isso que posso dizer". Se você disse "é só isso",
significa que falou alguma coisa com ela.
Bosch balançou a cabeça, mesmo estando ao telefone.
- Eu não disse merda nenhuma. Só falei bobagem para me livrar. Disse que a gente estava terminando as entrevistas de rotina na vizinhança e que não tinha conseguido
falar com Trent antes.
- Isso era verdade?
- De fato, não, mas eu não ia dizer que estávamos lá porque o cara molestava crianças. Olha, ela não sabia sobre Trent quando estávamos lá. Se soubesse, teria me
perguntado. Descobriu mais tarde, e não sei como. Era disso que Jerry e eu estávamos falando.
Houve silêncio por um momento, antes de Billets continuar.
- Bem, é melhor você estar com suas merdas organizadas direitinho de manhã, porque quero uma explicação sua, por escrito, que eu possa passar adiante. Antes que
a matéria do Canal Quatro terminasse recebi um telefonema da capitã LeValley e ela disse que já havia recebido um telefonema do subchefe Irving.
- É, é, bem típico. Seguindo a cadeia alimentar.
- Olha, você sabe que vazar a ficha criminal de um cidadão vai contra a política do departamento, quer esse cidadão seja alvo de uma investigação ou não. Só espero
que você tenha uma boa história para explicar. Não preciso lhe dizer que há pessoas no departamento
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só esperando para você cometer um erro em que eles possam cravar os dentes.
- Olha, eu não quero diminuir a importância do vazamento. Foi errado e foi ruim. Mas estou tentando resolver um assassinato, tenente, e agora tenho todo um novo
obstáculo para superar. E é isso que é típico. Sempre há alguma coisa jogada no caminho.
- Então você deve ser mais cuidadoso da próxima vez.
- Cuidadoso com o quê? O que fiz de errado? Estou seguindo as pistas.
Bosch se arrependeu imediatamente da explosão de frustração e fúria. Dentre todas as pessoas do departamento que esperavam sua autodestruição, Billets certamente
não fazia parte da lista. Nesse caso ela era apenas a mensageira. No mesmo momento percebeu que a raiva também era direcionada contra si mesmo, porque sabia que
Billets estava certa. Deveria ter lidado de modo diferente com Surtain.
- Olhe, desculpe - falou num tom mais baixo, mais calmo. - E esse caso. Ele tem umas coisas pesadas, sabe?
- Acho que sei - respondeu Billets, igualmente baixo. - E por falar no caso, o que, exatamente, está acontecendo? Todo esse negócio do Trent veio sem eu esperar.
Eu achava que você ia me manter atualizada.
- Isso apareceu hoje. Tarde. Eu ia informar de manhã. Não sabia que o Canal Quatro faria isso para mim. E também para LeValley e Irving.
- Por enquanto não se incomode com eles. Fale do Trent. "
Capítulo 16
Já passava bastante da meia-noite quando Bosch chegou a Venice. As vagas nas ruazinhas perto dos canais eram inexistentes. Ficou procurando por dez minutos e terminou
parando no estacionamento da biblioteca no Venice Boulevard, e depois voltando a pé.
Nem todos os sonhadores atraídos a Los Angeles vieram fazer filmes. Venice era o sonho de um século de um homem chamado Abbot Kinney. Antes de Hollywood e a indústria
cinematográfica mal começarem a ter uma pulsação, Kinney chegou aos pântanos ao longo do Pacífico. Visualizou um lugar construído a partir de uma rede de canais
com pontes em arco e um centro de cidade com arquitetura italiana. Seria um lugar para enfatizar a cultura e o aprendizado artístico. E ele iria chamá-lo de Veneza
da América.
Mas, como a maioria dos sonhadores que vinham a Los Angeles, sua visão não foi compartilhada ou realizada de modo uniforme. A maioria dos financiadores e investidores
eram cínicos e deixaram passar a oportunidade de construir Venice, colocando o dinheiro em projetos de objetivo menos grandioso. A Veneza da América foi chamada
de "Tolice de Kinney".
Mas, um século depois, muitos canais e as pontes em arco refletidas nas águas permaneciam, ao passo que os financistas e arautos do mau agouro e seus projetos tinham
sido há muito varridos pelo
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tempo. Bosch gostava da idéia da Tolice de Kinney sobrevivendo a todos eles.
Bosch não ia até os canais há muito tempo, mas por um curto período da vida, depois de voltar do Vietnã, tinha morado ali, num bangalô com três outros sujeitos
que ele conhecia do estrangeiro. Desde então muitos dos bangalôs tinham sido derrubados, substituídos por casas de dois e três andares custando um milhão de dólares
ou mais.
Julia Brasher morava numa casa na esquina dos canais Howland e Eastern. Bosch esperava que fosse uma das estruturas novas. Achou que provavelmente ela havia usado
o dinheiro da firma de advocacia para comprar, ou mesmo construir. Mas ao chegar viu que estava errado. A casa era um pequeno bangalô de tábuas brancas com uma
varanda na frente dando para a junção dos dois canais.
Viu luzes acesas atrás das janelas da casa. Era tarde, mas não tanto assim. Se ela trabalhava no turno das três às onze, não era provável que fosse para a cama antes
das duas.
Subiu à varanda mas hesitou antes de bater. Até que as dúvidas da última hora tivessem se esgueirado em sua cabeça, ele tinha apenas bons sentimentos com relação
a Brasher e ao relacionamento recente dos dois. Sabia que precisava ser cuidadoso. Poderia não haver nada de errado, e mesmo assim ele poderia estragar tudo se desse
um passo em falso.
Por fim levantou o braço e bateu. Brasher atendeu imediatamente.
- Eu estava imaginando se você ia bater ou ficar parado aí a noite inteira.
- Você sabia que eu estava aqui?
- A varanda é velha. Estala. Eu ouvi.
- Bem, eu cheguei e achei que era tarde demais. Deveria ter ligado antes.
- Entre logo. Alguma coisa errada?
Bosch entrou e olhou em volta. Não respondeu.
A sala de estar tinha um ar inequívoco de praia, inclusive com mobília de bambu e rata e a prancha de surfe encostada num canto. O único desvio era o cinto de equipamentos
e o coldre pendurados
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num suporte de parede perto da porta. Era um erro de novato deixá-los ali assim, mas Bosch presumiu que ela tivesse orgulho de sua nova opção de carreira
e quisesse lembrar isso aos amigos de fora do mundo policial.
- Sente-se - disse ela. - Tenho vinho aberto. Quer uma taça?
Bosch pensou um momento se a mistura de vinho com a cerveja que tinha tomado há uma hora renderia uma dor de cabeça no dia seguinte, quando sabia que tinha de estar
em foco.
- É tinto.
- Ah, vou tomar só um pouquinho.
- Tem de estar esperto amanhã, não é?
- Acho que sim.
Ela foi à cozinha enquanto ele ficou sentado no sofá. Olhou ao redor e viu um peixe empalhado com um bico comprido e afiado, sobre a lareira de tijolos brancos.
O peixe tinha um tom azul brilhante que ia em degradê até o preto, com a barriga branca e amarela. Peixe empalhado não o incomodava como as cabeças de animais
de caça, mas mesmo assim não gostava do olho do peixe sempre espiando.
- Você pegou esse bicho? - perguntou ele.
- É. Perto do Cabo. Levei três horas e meia para puxar. Então ela apareceu com duas taças de vinho.
- com linha de teste de cinqüenta libras - disse ela. - Foi uma tremenda briga.
- Ele é o quê?
- Marlim preto.
Ela brindou ao peixe com a taça e depois brindou a Bosch.
- Fique firme. Bosch olhou-a.
- É meu novo brinde - disse ela. - Fique firme. Parece caber em tudo.
Julia se sentou na poltrona mais perto de Bosch. Atrás dela estava a prancha de surfe. Era uma prancha curta.
- Então você também surfa as ondas selvagens.
Ela olhou para a prancha, depois para Bosch, e sorriu.
- Tento. Comecei no Havaí.
- Conhece John Burrows?
Ela balançou a cabeça.
- Tem surfista demais no Havaí. Em que praia ele surfa? -Não, quero dizer, aqui. Ele é policial. Trabalha na Homicídios
da Divisão Pacific. Mora numa rua de pedestres perto da praia. Não fica muito longe daqui. Ele surfa. Na prancha dele está escrito "Proteger e Surfar". Ela riu.
- Legal. Eu gosto disso. vou mandar colocar na minha prancha. Bosch assentiu.
- John Burrows, hein? vou ter de dar uma olhada nele. Ela falou isso com uma leve provocação na voz.
Bosch sorriu e disse:
- Talvez não.
Gostava do modo como ela brincava com ele. Tudo parecia bom, o que o fazia se sentir ainda mais sem jeito por causa do motivo de estar ali. Olhou para a taça de
vinho.
- Estive pescando o dia inteiro e não peguei nada - falou. Principalmente microfichas.
- Vi você no noticiário esta noite. Está tentando pressionar aquele cara, o molestador de crianças?
Bosch tomou um gole de vinho para se dar tempo de pensar. Ela havia aberto a porta. Agora só precisava passar com muito cuidado.
- O que quer dizer? - perguntou.
- Bem, dar o passado criminal dele àquela repórter. Achei que você devia estar fazendo algum tipo de jogada. Sabe, colocando pressão. Para fazer com que ele fale,
ou alguma coisa assim. Parece meio arriscado.
- Por quê?
- Bem, em primeiro lugar, confiar num repórter é sempre arriscado. Sei disso por causa da época em que era advogada e andei me queimando. E em segundo... em segundo
a gente nunca sabe como as pessoas vão reagir quando seus segredos não são mais segredos.
Bosch examinou-a um momento e depois balançou a cabeça.
- Eu não entreguei a ela. Outra pessoa fez isso.
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Observou os olhos dela em busca de algum tipo de revelação. Não viu nada.
- Vai haver problema por causa disso - acrescentou.
Ela levantou as sobrancelhas, surpresa. Ainda não havia qualquer revelação.
- Por quê? Se você não deu a informação a ela, por que teria... Julia parou e agora Bosch pôde ver que ela havia somado dois
e dois. Viu o desapontamento encher seus olhos.
- Ah, Harry...
Ele tentou sair pela mesma porta.
- O quê? Não se preocupe. vou ficar bem.
- Não fui eu, Harry. É por isso que veio aqui? Para ver se eu sou o vazamento, a fonte, ou sei lá como vocês chamam?
Julia pousou abruptamente a taça na mesinha de centro. O vinho tinto pulou sobre a borda e caiu na mesa. Ela não fez nada a respeito. Bosch sabia que não adiantava
tentar evitar a colisão. Tinha ferrado tudo.
- Olha, só quatro pessoas sabiam...
- E eu era uma delas. Então você pensou em vir aqui disfarçado para descobrir se fui eu.
Ela esperou uma resposta. Por fim, tudo que Bosch pôde fazer foi assentir.
- Bem, não fui eu. E acho que você deveria ir embora. Bosch assentiu e pousou a taça. Levantou-se.
- Olha, sinto muito. Eu ferrei tudo. Achei que o melhor modo de não estragar nada, você sabe, entre você e eu, era...
Ele fez um gesto desamparado enquanto ia para a porta.
- ...era fazer a coisa disfarçado - continuou. - Eu só não queria estragar, só isso. Mas precisava saber. Acho que, se você fosse eu, iria se sentir do mesmo modo.
Bosch abriu a porta e olhou para ela.
- Desculpe, Julia. Obrigado pelo vinho. Ele se virou para ir embora.
- Harry.
Ele se virou de novo. Ela se aproximou e segurou as lapelas de seu paletó com as duas mãos. Lentamente puxou-o para a frente e
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depois para trás, como se desse um arrocho num suspeito em câmera lenta. Seus olhos baixaram para o peito dele enquanto a mente trabalhava, e ela chegou a uma decisão.
Parou de sacudi-lo, mas continuou segurando o paletó.
- Eu posso superar isso. Acho.
Fitou-o nos olhos e o puxou para a frente. Beijou-o com força na boca durante longo tempo, e depois o empurrou para trás. Soltou-o.
- Espero. Me ligue amanhã.
Ele assentiu e passou pela porta. Ela fechou-a.
Bosch desceu pela varanda até a calçada perto do canal. Olhou o reflexo das luzes de todas as casas na água. Uma ponte em arco para pedestres, iluminada pela lua
e nada mais, atravessava o canal a vinte metros de distância, com o reflexo perfeito na água. Ele se virou e voltou a subir os degraus até a varanda. Hesitou de
novo junto à porta e logo Julia abriu.
-A varanda range, lembra?
Ele assentiu e ela esperou. Bosch não tinha certeza de como dizer o que queria. Por fim, simplesmente começou:
- Uma vez, quando eu estava num daqueles túneis de que falamos ontem à noite, eu fiquei cara a cara com outro sujeito. Era vietcong. Pijama preto, rosto sujo de
graxa. Nós meio que nos olhamos por uma fração de segundo e acho que os instintos tomaram conta. Os dois nos levantamos e disparamos ao mesmo tempo. Foi simultâneo.
E então saímos correndo em direções opostas. Os dois se cagando de medo, gritando no escuro.
Ele parou como se pensasse na história, mais vendo do que lembrando.
- De qualquer modo, eu pensei que ele devia ter me acertado. Foi quase à queima-roupa, perto demais para errar. Achei que meu tiro tinha saído pela culatra, que
a arma tinha emperrado ou alguma coisa. O coice pareceu errado. Quando cheguei em cima, a primeira coisa que fiz foi me examinar. Não sentia dor, não havia sangue.
Nada. Ele tinha errado. À queima-roupa, e de algum modo o cara tinha errado.
Julia passou pela porta e se encostou na parede da frente, embaixo da luz da varanda. Não disse nada e ele continuou:
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- De qualquer modo, então verifiquei minha quarenta e cinco procurando o emperrado, e descobri por que ele não me acertou. A bala do cara estava no cano da minha
arma. Junto com a minha. Cada um tinha apontado para o outro, e o tiro dele entrou direto no cano da minha arma. Quais eram as chances de isso acontecer? Uma em
um milhão? Em um bilhão?
Enquanto falava, Bosch estendeu a mão vazia como uma arma apontando para ela. A mão estava esticada direto na frente do peito. A bala naquele túnel se destinava
ao seu coração.
- Acho que só quero que saiba que sei como tive sorte com você esta noite.
Ele assentiu, depois se virou e desceu a escada.
Capítulo 17
A investigação de uma morte é uma busca com incontáveis becos sem saída, obstáculos e quantidades colossais de tempo e esforços perdidos. Bosch sabia disso em todos
os dias de sua vida como policial, mas foi lembrado de novo quando chegou à mesa do esquadrão de homicídios pouco antes do meio-dia da segunda-feira e descobriu
que o tempo e os esforços da manhã provavelmente tinham sido desperdiçados, ao ver que um obstáculo novo em folha o esperava.
O esquadrão de homicídios ocupava a área no canto de trás do escritório de detetives. Consistia em três equipes de três homens. Cada equipe tinha uma mesa formada
por três escrivaninhas dos detetives colocadas juntas, duas encostadas frente a frente e a terceira na lateral. Sentada à mesa de Bosch, na escrivaninha da esquerda
deixada vaga pela saída de Kiz Rider, havia uma jovem de terninho. Tinha cabelo escuro e olhos ainda mais escuros. Eram olhos suficientemente afiados para descascar
uma noz, e se grudaram em Bosch durante toda a sua caminhada pela sala do esquadrão.
- Em que posso ajudá-la? - perguntou ele ao chegar à mesa.
- Harry Bosch?
- Sou eu.
- Detetive Carol Bradley. Departamento de Assuntos Internos. Preciso de uma declaração sua.
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Bosch olhou em volta. Havia várias pessoas na sala do esquadrão, tentando parecer ocupadas enquanto observavam sub-repticiamente.
- Declaração sobre o quê?
- O subchefe Irving pediu que nossa divisão determinasse se a ficha criminal de Nicholas Trent foi impropriamente divulgada à mídia.
Bosch ainda não tinha se sentado. Pôs as mãos no encosto da cadeira e ficou parado. Balançou a cabeça.
- Acho que é bastante seguro presumir que foi impropriamente divulgada.
- Então preciso descobrir quem fez isso. Bosch assentiu.
- Estou tentando fazer uma investigação, e todo mundo só se importa...
- Olhe, sei que você acha besteira. E posso achar que é besteira. Mas recebi a ordem. Então vamos a uma das salas gravar sua história. Não vai demorar. E depois
você pode voltar à investigação.
Bosch pôs a pasta na mesa e abriu. Tirou seu gravador. Tinha se lembrado dele enquanto dirigia durante toda a manhã entregando mandados de busca nos hospitais locais.
- Por falar em fita, por que você não leva esta a uma das salas e escuta? Eu estava com o gravador ligado ontem à noite. Ela deve encerrar meu envolvimento com
isso bem depressa.
- Eu ainda vou precisar...
- Ótimo. Ouça a fita, depois nós falamos.
- Seu parceiro também.
- Ele deve chegar a qualquer momento.
Bradley foi pelo corredor levando o gravador. Bosch finalmente sentou-se e não se incomodou em olhar para nenhum dos detetives.
Nem era meio-dia e ele estava exausto. Tinha passado a manhã esperando que um juiz em Van Nuys assinasse os mandados de busca para os registros médicos, e depois
dirigindo pela cidade para entregá-los nos departamentos jurídicos de dezenove hospitais. Edgar tinha pegado dez mandados e partido sozinho. Tendo menos para entregar,
em seguida ele iria ao centro da cidade fazer buscas nas
fichas criminais de Nicholas Trent e verificar os catálogos reversos com os endereços da Wonderland Avenue.
Notou que havia uma pilha de recados telefônicos esperando por ele, e o último
lote de ligações com dicas. Pegou primeiro os recados. Nove dos doze eram de repórteres,
todos sem dúvida querendo mais informações sobre a matéria do Canal Quatro sobre Trent, transmitida na véspera e repassada no noticiário da manhã. Os outros três
eram do advogado de Trent, Edward Morton. Ele havia ligado três vezes entre 8 e 9h30.
Bosch não conhecia Morton, mas achava que o sujeito estaria ligando para reclamar do registro de Trent ter sido dado à mídia. Normalmente ele não era rápido em responder
a ligações de advogados, mas decidiu que seria melhor resolver o confronto e garantir a Morton que o vazamento não viera dos investigadores do caso. Mesmo duvidando
de que Morton acreditaria no que falasse, pegou o telefone e ligou. Uma secretária disse que Morton tinha ido a uma audiência no tribunal, mas que chegaria a qualquer
momento. Bosch disse que estaria esperando a ligação dele.
Depois de desligar, jogou os papelotes cor-de-rosa com os números dos repórteres na lata de lixo perto de seu lugar na mesa. Começou a examinar as ligações com
dicas e rapidamente notou que agora os policiais de plantão vinham fazendo as perguntas que ele havia datilografado na manhã anterior e dado a Mankiewicz.
Na décima primeira ficha da pilha encontrou algo interessante. Uma mulher chamada Sheila Delacroix tinha ligado às 8h41 e dito que vira a matéria do Canal Quatro
pela manhã.
Contou que seu irmão mais novo, Arthur Delacroix, havia desaparecido em 1980 em Los Angeles. Tinha doze anos na época, e desde então não houve notícias dele.
Em resposta às perguntas médicas, ela respondeu que o irmão tinha se ferido numa queda de skate alguns meses antes do desaparecimento. Sofreu um ferimento no cérebro
que exigiu hospitalizaÇão e neurocirurgia. Não se lembrava dos detalhes médicos exatos,
mas tinha certeza de que o hospital era o Queen of Angels. Não lembrava
o nome de nenhum dos médicos que tinham tratado do irmão. Além do endereço e do número de telefone de Sheila Delacroix, estas eram todas as informações da ficha.
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Bosch circulou a palavra "skate" no papel. Abriu a pasta e pegou um cartão de visita que Bill Golliher tinha lhe dado. Ligou para o primeiro número e foi atendido
por uma secretária eletrônica na sala do antropólogo na UCLA. Ligou para o segundo e pegou Golliher almoçando em Westwood Village.
- Tenho uma pergunta rápida. Sobre o ferimento que exigiu cirurgia no crânio.
- O hematoma.
- Certo. Poderia ter sido causado por uma queda de scate? Houve silêncio e Bosch deixou Golliher pensar. O funcionário
que recebia os telefonemas na linha geral da sala do esquadrão veio até a mesa de homicídios e fez um sinal de paz para Bosch. Este cobriu o fone.
- Quem é? -KizRider.
- Peça para esperar. Ele descobriu o fone.
- Está aí, doutor?
- Sim, só estou pensando. Talvez seja possível, dependendo de em quê ele bateu. Mas uma simples queda no chão, eu diria que não é provável. Há um padrão de fratura
com grande densidade, o que indica uma pequena área de contato de superfície com superfície. Além disso, a localização é no alto do crânio. Não é na nuca, o que
normalmente seria associado a ferimentos por queda.
Bosch sentiu que um pouco do vento abandonava suas velas. Tinha pensado que talvez houvesse identificado a vítima.
- Você está falando de uma pessoa específica? - perguntou Golliher.
- E. Recebemos uma dica.
- Há raios X, registros cirúrgicos?
- Estou trabalhando nisso.
- Bem, eu gostaria de vê-los para fazer uma comparação.
- Assim que eu conseguir. E quanto aos outros ferimentos? Poderiam ter sido causados por quedas de
skate?.
- Claro que alguns poderiam. Mas eu não diria que todos. As costelas, as fraturas por torção. Além disso, alguns ferimentos
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datavam do início da infância, detetive. Acho que não existem muitas crianças de três anos andando de skate.
Bosch assentiu e tentou pensar se havia mais algo a perguntar.
- Detetive, o senhor sabe que, nos casos de abuso, a causa informada para o ferimento e a causa verdadeira não costumam ser as mesmas?
- Entendo. Quem levou a criança à emergência não diria que bateu nela com uma lanterna ou sei lá o quê.
- Certo. Haveria uma história. A criança iria confirmá-la.
- Acidente com skate.
- E possível.
- Certo, doutor. Tenho de ir. Levo os raios X para o senhor assim que conseguir. Obrigado.
Ele apertou a linha dois do telefone. -Kiz?
- Harry, oi, como vai?
- Ocupado. O que há?
- Estou péssima, Harry. Acho que fiz merda.
Bosch se recostou na cadeira. Nunca adivinharia que tivesse sido ela.
- O Canal Quatro?
- E. Eu, bem... ontem, depois de você sair do Parker Center e meu parceiro parar de assistir ao jogo de futebol, ele perguntou o que você tinha ido fazer lá. Então
contei. Ainda estou tentando estabelecer o relacionamento, Harry, sabe? Eu disse que fiz uma busca com os nomes para você e que um deles chamou a atenção. Que um
dos vizinhos tinha ficha como molestador. Foi só isso que eu disse, Harry. Juro.
- Kiz, estou com o Assuntos Internos aqui, esperando para falar comigo sobre isso. Como sabe que Thornton entregou ao Canal Quatro?
- Vi a matéria hoje cedo quando estava me preparando. Sei que Tornton conhece aquela repórter. Surtain. Thornton e eu trabalhados num caso há alguns meses, um assassinato
para receber seguro, no Westside. O negócio recebeu alguma atenção da mídia e ele passava informações para ela extra-oficialmente. E ontem, depois de
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eu ter falado com ele, Thornton disse que tinha de ir ao banheiro. Pegou o caderno de esportes e saiu pelo corredor. Mas não foi ao banheiro. Recebemos um chamado
e fui bater na porta para dizer a ele que íamos sair. Ele não respondeu. Não pensei em nada, até que vi a matéria hoje. Acho que ele não foi ao banheiro porque foi
a outra sala, ou ao saguão, telefonar para ela.
- Bem, isso explica muita coisa.
- Sinto muito, mesmo, Harry. Aquela matéria não fez bem a você. vou conversar com o DAI.
- Segure um pouco, Kiz. Por enquanto. Eu lhe digo se precisar de que você converse com o DAI. Mas o que você vai fazer?
- Arranjar um novo parceiro. Não posso trabalhar com esse cara.
- Tenha cuidado. Se começar a pular de um parceiro para outro vai acabar sozinha.
- Prefiro trabalhar sozinha do que com um escroto em quem não posso confiar.
- E isso aí.
- E você? A oferta ainda está de pé?
- O quê? Se sou um escroto em quem você pode confiar?
- Você sabe o que eu quis dizer.
- A oferta está de pé. Você só precisa...
- Ei, Harry, tenho de ir. Aí vem ele.
- Certo, tchau.
Bosch desligou e coçou a boca enquanto pensava no que faria com relação a Thornton. Podia contar a história de Kiz a Carol Bradley. Mas ainda havia muito espaço
para erro. Não se sentiria confortável em denunciar ao DAI se não tivesse certeza. A idéia de contar alguma coisa ao DAI lhe causava repulsa, mas nesse caso alguém
estava prejudicando sua investigação.
E essa era uma coisa que ele não podia permitir.
Depois de alguns minutos tinha um plano, e olhou o relógio. Faltavam dez para o meio-dia. Ligou de volta para Kiz Rider.
- E o Harry. Ele está aí?
- Está. Por quê?
- Repita o que eu disser, com uma voz meio empolgada. "Você conseguiu, Harry? Fantástico! Quem foi?"
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- Você conseguiu, Harry? Fantástico! Quem foi?
- Certo. Agora você está ouvindo, ouvindo, ou vindo. Agora diga: "Como é que um menino de dez anos veio de Nova Orleans
até aqui?"
- Como é que um menino de dez anos veio de Nova Orleans até aqui?
- Perfeito. Agora desligue e não diga nada. Se Thornton perguntar, diga que identificamos o garoto através da ficha dentária. Era um fugitivo de dez anos de Nova
Orleans, visto pela última vez em mil novecentos e setenta e sete. Os pais estão
vindo para cá de avião agora. E o chefe vai dar uma coletiva hoje às quatro.
- Certo, Harry, boa sorte.
- Para você também.
Bosch desligou e levantou os olhos. Edgar estava parado diante dele, do outro lado da mesa. Tinha ouvido a última parte da conversa e estava com as sobrancelhas
erguidas.
- Não, é tudo besteira - disse Bosch. - Estou armando uma arapuca para quem fez o vazamento. E para aquela repórter.
- Quem fez o vazamento?
- O novo parceiro de Kiz. Pelo menos é o que achamos. Edgar sentou-se e confirmou com a cabeça.
- Mas temos uma possível identificação dos ossos - disse Bosch. Contou a Edgar sobre a informação telefônica sobre Arthur
Delacroix e suas conversas posteriores com Bill Golliher.
- Mil novecentos e oitenta? Isso não vai funcionar com o Trent. Verifiquei os reversos e os registros de propriedade. Ele só foi para a rua em oitenta e quatro.
Como falou ontem à noite.
- Alguma coisa me diz que ele não é o sujeito.
Bosch pensou de novo no skate. Isso não bastava para alterar sua intuição.
- Diga isso ao Canal Quatro.
O telefone de Bosch ligou. Era Rider.
- Ele acaba de ir ao banheiro.
- Você contou sobre a entrevista coletiva?
- Contei tudo. Ele ficou fazendo perguntas, o babaca.
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- Bem, se ele contar que todo mundo vai ter a notícia as quatro, ela vai fazer uma exclusiva no noticiário do meio-dia. vou assistir.
- Me avise.
Ele desligou e olhou o relógio. Ainda tinha alguns minutos. Olhou para Edgar.
- A propósito, o DAI está numa das salas lá atrás. Estamos sob investigação.
O queixo de Edgar caiu. Como a maioria dos policiais, ele se ressentia do Departamento de Assuntos Internos porque, mesmo quando se fazia um trabalho bom e honesto,
o DAI podia pegar no seu pé por várias coisas. Era como o Imposto de Renda, simplesmente ver uma carta mandada pelo Imposto de Renda bastava para dar um nó nas tripas.
- Relaxe. E sobre o negócio do Canal Quatro. Devemos estar livres dentro de alguns minutos. Venha comigo.
Entraram na sala da tenente Billets, onde havia um pequeno aparelho de TV num suporte. Ela estava cuidando da papelada na mesa.
- Você se importa se a gente assistir ao noticiário do Canal Quatro? - perguntou Bosch.
- À vontade. Tenho certeza de que a capitã LeValley e o chefe Irvin vão estar assistindo também.
O noticiário abriu com a matéria de um engavetamento com dezesseis carros na neblina da manhã na via expressa de Santa Monica. Não era uma matéria muito significativa
- ninguém foi morto - mas eles tinham boas imagens, por isso abriu o programa. Mas o caso do "osso de cachorro" tinha subido para o segundo lugar. O âncora disse
que iam passar para Judy Surtain com outra reportagem exclusiva.
O programa cortou para Surtain sentada à sua mesa na redação do Canal Quatro.
- "O Canal Quatro ficou sabendo que os ossos encontrados no Laurel Canyon foram identificados como os de um menino de dez anos, fugitivo de Nova Orleans."
Bosch olhou para Edgar e depois para Billets, que estava se levantando da cadeira com uma expressão de surpresa. Bosch estendeu a mão sinalizando para ela esperar.
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- "Os pais do menino, que denunciaram seu desaparecimento há mais de vinte e cinco anos, estão vindo para Los Angeles se encontrar com a polícia. Os restos foram
identificados através da ficha dentária. Hoje à tarde o chefe de polícia deverá dar uma entrevista coletiva em que vai identificar o menino e falar da investigação.
Como foi informado ontem à noite pelo Canal Quatro, a polícia está se concentrando em..."
Bosch desligou a TV.
- Ei, Harry, o que está acontecendo? - perguntou Billets imediatamente.
- E tudo cascata. Eu estava jogando verde para quem fez o vazamento.
- Quem é?
- O novo parceiro de Kiz. Um cara chamado Rick Thornton. Bosch explicou o que Rider tinha lhe contado antes. Então delineou a trama que tinha armado.
- Onde está a detetive do DAI? - perguntou Billets.
- Numa das salas de entrevista. Ouvindo uma fita que gravei, da conversa com a repórter ontem à noite.
- Uma fita. Por que não me contou isso ontem?
- Eu tinha esquecido.
- Certo, daqui para a frente deixe comigo. Você acha que Kiz está limpa nisso?
Bosch assentiu.
- Ela tem de confiar no parceiro o bastante para lhe contar tudo. Ele aproveitou essa confiança e entregou ao Canal Quatro. Não sei o que ele recebe em troca, mas
não importa. Ele está fodendo com o meu caso.
- Certo, Harry, eu disse que cuidava disso. Volte ao caso. Mais alguma coisa que eu deveria saber?
- Temos uma possível identificação, que vamos examinar hoje.
- E o Trent?
- Vamos deixar isso de lado até descobrirmos se o garoto é esse. Se for, o ano está errado. O garoto desapareceu em mil novecentos e oitenta. Trent só se mudou para
a rua quatro anos depois.
- Fantástico. Enquanto isso, nós pegamos o segredo enterrado dele e colocamos na TV. Pelo que eu soube com a patrulha, a mídia estava acampada na frente da casa
do sujeito.
Bosch assentiu.
- Fale com Thornton sobre isso - disse ele.
- Ah, nós vamos falar.
Ela se sentou atrás da mesa e pegou o telefone. Era a dica para eles saírem. No caminho de volta à mesa Bosch perguntou se Edgar tinha apanhado a ficha sobre a condenação
de Trent.
- Apanhei. Foi um caso fraco. Hoje em dia a promotoria nem teria aberto o processo.
Foram para seus lugares respectivos na mesa e Bosch viu que tinha perdido o telefonema de volta do advogado de Trent. Pegou o telefone, mas esperou enquanto Edgar
terminava o relatório.
- O cara trabalhava como professor numa escola primária em Santa Monica. Foi apanhado por outro professor num cubículo do banheiro segurando o pênis de um garoto
de oito anos que urinava. Disse que estava ensinando o garoto a apontar, que o garoto ficava mijando no chão. O que aconteceu foi que a história do garoto estava
na boca de todo mundo, mas não corroborava a dele. E os pais disseram que o garoto sabia apontar desde os quatro anos. Trent foi condenado e recebeu pena de dois
anos. Cumpriu quinze meses em Wayside.
Bosch pensou naquilo. Sua mão ainda estava sobre o telefone.
- É uma longa distância até matar um garoto com um bastão de beisebol.
- E, Harry, estou começando a gostar cada vez mais da sua intuição.
- Eu gostaria de ter gostado.
Pegou o telefone e digitou o número do advogado de Thornton, Edward Morton. Foi transferido para o celular. Ele estava indo para o almoço.
- Alô?
- Detetive Bosch.
- Bosch, sim. Quero saber onde ele está.
- Quem?
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- Não venha com esse jogo, detetive. Liguei para todas as cadeias do condado. Quero falar com meu cliente. Agora mesmo.
- Estou presumindo que o senhor esteja falando de Nicholas Trent. O senhor tentou no trabalho dele?
- Em casa e no trabalho, ninguém atende. O bip também. Se vocês estão com ele, ele tem direito a advogado. E tenho o direito de saber. Estou dizendo agora: se me
sacanear neste caso, vou direto a um juiz. E à mídia.
- Não estamos com seu cliente, sr. Morton. Eu não o vejo desde ontem à noite.
- Sim, ele telefonou depois de você sair. E de novo depois de assistir ao noticiário. Vocês
foderam com ele, deviam ter vergonha.
O rosto de Bosch queimou com a bronca, mas não reagiu. Se não merecia pessoalmente, o departamento merecia. Por enquanto receberia a bala.
- O senhor acha que ele fugiu, sr. Morton?
- Por que ele fugiria, se é inocente?
- Não sei. Pergunte ao O.J. Simpson.
Um pensamento horrível penetrou subitamente nas entranhas de Bosch. Levantou-se, com o telefone ainda grudado no ouvido.
- Onde está agora, sr. Morton?
- No Sunset, indo para o oeste. Perto da Book Soup.
- Dê a volta e retorne. Encontre-se comigo na casa de Trent.
- Tenho um almoço. Não vou...
- Encontre-se comigo na casa de Trent. Estou saindo agora. Pôs o telefone no gancho e disse a Edgar que estava na hora de
ir. Explicaria no caminho.
Capítulo 18
Havia um pequeno ajuntamento de repórteres de TV na rua diante da casa de Nicholas Trent. Bosch parou atrás do furgão do Canal Dois e saiu junto com Edgar. Não
sabia como Edward Morton era, mas não viu ninguém que parecesse advogado. Depois de mais de 25 anos no serviço, tinha instintos inabaláveis que lhe permitiam identificar
advogados e repórteres. Por cima do carro, falou com Edgar antes que os repórteres pudessem ouvi-los.
- Se tivermos de entrar, vamos pelos fundos, sem platéia.
- Entendi.
Subiram pela entrada de veículos e foram imediatamente encurralados pelas equipes de mídia, que ligaram câmeras e jogaram perguntas que não foram respondidas. Bosch
notou que Judy Surtain, do Canal Quatro, não estava entre os repórteres.
- Vocês vieram prender Trent?
- Podem falar sobre o menino de Nova Orleans?
- E a entrevista coletiva? O Departamento de Assessoria de Imprensa não sabe nada sobre uma coletiva.
- Trent é suspeito ou não?
Assim que Bosch atravessou a turba e estava na entrada de veículos de Trent, virou-se de súbito e encarou as câmeras. Hesitou um momento como se juntasse os pensamentos.
O que realmente estava fazendo era dar tempo para focalizarem e se prepararem. Não queria que ninguém perdesse aquilo.
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- Não há entrevista coletiva marcada. Ainda não houve identificação dos ossos. O homem que mora nesta casa foi entrevistado ontem à noite, assim como todo mundo
desta rua. Em nenhum momento ele foi chamado de suspeito pelos investigadores deste caso. As informações vazadas pela mídia para alguém de fora da investigação e
depois transmitidas sem ser verificadas antes com os investigadores eram completamente erradas e prejudicaram a investigação. Só isso. E só isso que vou dizer.
Quando houver alguma informação verdadeira e exata a relatar, faremos isso através da Assessoria de Imprensa.
Bosch se virou de novo e foi com Edgar pela entrada de veículos até a casa. Os repórteres fizeram mais perguntas, mas ele não deu qualquer indicação de ter ouvido.
Na porta da frente bateu com força e gritou chamando Trent, dizendo que era a polícia. Depois de alguns instantes bateu de novo e fez o mesmo anúncio. Esperaram
outra vez e nada aconteceu.
- Os fundos? - perguntou Edgar.
- É, ou pela porta lateral da garagem.
Atravessaram a entrada de veículos e começaram a ir pela lateral da casa. Os repórteres gritaram mais perguntas. Bosch achou que eles estavam tão acostumados a jogar
perguntas que isso simplesmente se tornava natural, e se tornava natural saberem que não receberiam resposta. Como um cachorro latindo no quintal dos fundos muito
tempo depois de o dono ter saído para trabalhar.
Passaram pela porta lateral da garagem e Bosch notou que estava correto ao lembrar que havia apenas uma fechadura. Continuaram para os fundos. Havia uma porta da
cozinha com trinco e buraco de fechadura. Também havia uma porta deslizante, que seria fácil de abrir. Edgar foi até lá, mas olhou pelo vidro, para o trilho, e
viu que havia uma trava de madeira impedindo que a porta fosse aberta por fora.
- Não vai dar certo, Harry - disse ele.
Bosch tinha no bolso uma pequena sacola com um jogo de gazuas. Não queria ter de trabalhar no trinco da porta da cozinha.
- Vamos tentar a garagem, a não ser...
Foi até a porta da cozinha e experimentou. Estava destrancada e ele a abriu. Nesse momento soube que encontrariam Trent
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morto. Trent seria o suicida ideal. O que deixa a porta aberta para que
as pessoas não tenham de arrombar.
- Merda.
Edgar se aproximou, tirando a arma do coldre.
- Você não vai precisar disso - disse Bosch. Entrou na casa e os dois passaram pela cozinha.
- Sr. Trent? - gritou Edgar. - É a polícia! Polícia na casa! O senhor está aí, sr. Trent?
- Vá para a frente - disse Bosch.
Eles se separaram e Bosch foi pelo pequeno corredor até os quartos dos fundos. Achou Trent no boxe da suíte principal. Tinha pegado dois cabides de arame e feito
uma forca que prendeu ao tubo do chuveiro. Depois se encostou na parede de ladrilhos, largou o peso do corpo e se asfixiou. Ainda vestia as roupas da véspera. Os
pés descalços estavam nos ladrilhos do piso. Não havia indicações de que Trent tivera qualquer dúvida quanto a se matar. Como não era um enforcamento por suspensão,
ele poderia ter impedido a morte a qualquer momento. Não impediu.
Bosch teria deixado isso para os peritos legistas, mas avaliou pelo escurecimento da língua do cadáver, que estava estendida fora da boca, que Trent estava morto
há pelo menos doze horas. O que colocaria sua morte na madrugada, pouco depois de o Canal Quatro ter anunciado seu passado oculto ao mundo e o rotulado como suspeito
do caso dos ossos.
- Harry?
Bosch quase pulou. Virou-se e olhou para Edgar.
- Não faça isso comigo, cara. O que é?
Edgar estava olhando o cadáver enquanto falava.
- Ele deixou uma carta de três páginas na mesinha de centro.
Bosch saiu do boxe e passou por Edgar. Foi para a sala, pegando um par de luvas de látex no bolso e soprando-as para expandir a borracha antes de calçá-las.
- Você leu tudo?
- Li, ele diz que não matou o garoto. Diz que está se matando porque a polícia e os repórteres o destruíram e que não pode continuar assim. E há uma coisa esquisita
também.
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Bosch entrou na sala. Edgar estava alguns passos atrás. Bosch
três folhas escritas a mão, lado a lado na mesinha de centro. Sentou-se no sofá diante delas.
- Elas estavam assim?
- É. Eu não toquei.
Bosch começou a ler. O que presumia que fossem as últimas palavras de Trent eram uma arenga negando o assassinato do menino no morro e expurgando a raiva contra
o que fora feito com ele.
Agora TODO MUNDO vai saber! Vocês me arruinaram, me MATARAM. O sangue está nas mãos de vocês, e não nas minhas! Eu não fiz isso, não fiz, não, não, NÃO! Nunca fiz
mal a ninguém. Nunca, nunca, nunca. A nenhuma alma desta terra. Eu amo as crianças. AMO! Não. Foram vocês que me machucaram. Vocês. Mas sou eu que não posso
viver com a dor do que vocês causaram implacavelmente. Não posso.
Era repetitiva e quase como se alguém tivesse escrito um discurso de acusação improvisado, em vez de se sentar com uma caneta e papel para anotar os pensamentos.
O meio da segunda página tinha um boxe, e dentro havia nomes sob o título "Esses são os responsáveis". A lista começava com Judy Surtain, incluía o âncora do noticiário
noturno do Canal Quatro e citava Bosh, Edgar e três nomes que Bosch não reconheceu. Calvin Stumbo, Max Rebner e Alicia Felzer.
- Stumbo foi o policial, e Rebner o promotor do primeiro caso
- disse Edgar. - Nos anos sessenta.
Bosch assentiu.
- E Felzer?
- Não sei.
A caneta com que as folhas foram aparentemente escritas esava na mesa perto da última página. Bosch não tocou nela porque Panejava que fosse examinada em busca
das digitais de Trent. Enquanto continuava a ler, notou que cada página estava
assinada embaixo. No fim da última, Trent fazia um último pedido que Bosch não entendeu imediatamente.
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Só lamento por minhas crianças. Quem vai cuidar das minhas crianças? Eles precisam de comida e roupas. Eu tenho algum dinheiro. O dinheiro vai para elas. Tudo que
tenho. Este é o meu testamento, assinado por mim. Dêem o dinheiro às crianças. Que Mentem dê o dinheiro e não me cobre nada. Faça isso pelas crianças.
- As crianças dele? - perguntou Bosch.
- É, eu sei - disse Edgar. - Estranho.
- O que vocês estão fazendo aqui? Onde está Nicholas?
Eles olharam para a porta da cozinha. Um homem baixo, de terno, que Bosch achou que era advogado e tinha de ser Morton, estava ali. Bosch se levantou.
- Está morto. Parece suicídio. -Onde?
- No banheiro da suíte, mas eu não iria... Morton já havia ido para o banheiro. Bosch gritou:
- Não toque em nada.
Bosch assentiu para Edgar ir atrás e se certificar. Depois sentou-se e olhou de novo para as folhas. Imaginou quanto tempo Trent havia demorado até decidir que se
matar era tudo que lhe restava, depois trabalhar na carta de três páginas. Era o maior bilhete de suicídio que ele já vira.
Morton voltou à sala, com Edgar logo atrás. Seu rosto estava cinza, e os olhos fixos no chão.
- Tentei dizer para o senhor não ir lá - disse Bosch.
Os olhos do advogado subiram e se fixaram em Bosch. Encheram-se de raiva, o que pareceu restaurar alguma cor ao seu rosto.
- Estão felizes agora? Vocês o destruíram completamente. Dêem o segredo de um homem aos abutres, eles o colocam no ar e é isso que vocês recebem.
Morton sinalizou na direção do banheiro.
- Sr. Morton, o senhor não conhece os fatos, mas essencialmente parece que é isso que aconteceu. Na verdade o senhor ficaria surpreso em saber o quanto concordo
com o que disse.
- Agora que ele está morto, deve ser muito fácil falar. Isso é um bilhete? Ele deixou um bilhete?
Bosch se levantou e sinalizou pára ele ocupar o lugar diante das três páginas.
- Só não toque nas folhas.
Morton sentou-se, desdobrou os óculos de leitura e começou a examinar as páginas.
Bosch foi até Edgar e disse em voz baixa:
- Melhor colocar a Assessoria de Imprensa nisso. A merda vai bater no ventilador.
-É.
Bosch pegou o telefone na parede da cozinha e viu que tinha um botão de rediscar. Apertou-o e esperou. Reconheceu a voz que atendeu como sendo de Morton. Era uma
secretária eletrônica. Morton disse que não estava em casa e pediu para deixar recado.
Bosch ligou para a linha direta da tenente Billets. A chefe atendeu imediatamente e ele percebeu que ela estava comendo.
- bom, odeio dar essa notícia enquanto você está comendo, mas estamos na casa do Trent. Parece que ele se matou.
Houve silêncio por um longo tempo, e então ela perguntou se Bosch tinha certeza.
- Tenho certeza de que ele está morto e tenho quase certeza de que foi ele mesmo que fez isso. Enforcou-se com dois cabides de arame no chuveiro. Há um bilhete
de três páginas. Ele nega que tenha alguma coisa a ver com os ossos. Culpa principalmente o Canal Quatro e a polícia, eu e Edgar em particular. Você é a primeira
para quem ligo.
- Bem, todos nós sabemos que não foi você que...
- Tudo bem, tenente, não preciso de absolvição. O que quer que eu faça aqui?
- Cuide dos telefonemas de rotina. vou ligar para o chefe Irving e dizer o que houve. Isso vai esquentar.
- É. E a Assessoria de Imprensa? Já há um bando de repórteres aqui na rua.
- Eu ligo para lá.
- Vocês já fizeram alguma coisa com Thornton?
-Já está sendo providenciado. A mulher do DAI, Bradley, está cuidando disso. com essa última coisa, aposto que Thornton não
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somente vazou a si mesmo para fora do emprego como eles podem pegá-lo com algum tipo de acusação.
Bosch assentiu. Thornton merecia. Ainda não tinha qualquer dúvida com relação à armadilha que havia criado.
- Certo, bem, estaremos aqui. Pelo menos durante um tempo.
- Informe se descobrir alguma coisa que o ligue aos ossos. Bosch pensou nas botas com terra na sola e no skate.
- Tudo bem - falou.
Desligou o telefone e imediatamente ligou para o departamento de medicina legal e a DIC.
Na sala, Morton tinha acabado de ler a carta.
- Sr. Morton, quando foi a última vez que falou com o sr. Trent?
- perguntou Bosch.
- Ontem à noite. Ele ligou para minha casa depois do noticiário no Canal Quatro. A chefe dele tinha assistido e telefonado.
Bosch assentiu. Isso explicava o último telefonema.
- O senhor sabe o nome da chefe?
Morton apontou para a página do meio na mesa.
- Está bem aqui na lista. Alicia Felzer. Ela disse que ia cuidar da demissão dele. O estúdio faz filmes para crianças. Ela não podia deixá-lo no set com uma criança.
Está vendo? O vazamento da ficha para a imprensa destruiu esse homem. O senhor pegou de modo imprudente a vida de um homem e...
- Deixe-me fazer as perguntas, sr. Morton. Pode guardar o ultraje para quando sair e falar aos repórteres, coisa que sei que vai fazer. E quanto à última página?
Trent fala das crianças. As crianças dele. O que ele quis dizer?
- Não faço idéia. Obviamente estava perturbado emocionalmente quando escreveu isso. Pode não significar nada.
Bosch continuou de pé, examinando o advogado.
- Por que ele ligou para o senhor ontem à noite?
- O que acha? Para dizer que vocês estiveram aqui, que tudo tinha saído no noticiário, que a chefe dele tinha assistido e que queria demiti-lo.
- Ele disse se enterrou o menino lá em cima no morro? Morton fez o melhor olhar indignado que conseguiu.
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- Ele certamente disse que não teve nada a ver com isso. Acreditava que estava sendo perseguido por causa de um erro do passaj um erro muito distante, e eu diria
que ele estava correto.
Bosch assentiu.
- Certo, sr. Morton, pode ir agora.
- De que o senhor está falando? Eu não vou...
- Agora esta casa é um local de investigação criminal. Estamos investigando a morte de seu cliente para confirmar ou negar se foi suicídio. O senhor não é mais bem-vindo.
Jerry?
Edgar foi até o sofá e sinalizou para Morton ficar de pé.
- Venha. Está na hora de ir lá fora e colocar a cara na TV. Vai ser bom para os negócios, não é?
Morton se levantou e saiu indignado. Bosch foi até a janela da frente e abriu a cortina alguns centímetros. Quando Morton desceu pela lateral da casa até a entrada
de veículos, andou imediatamente até o centro do ajuntamento de repórteres e começou a falar com fúria. Bosch não conseguia ouvir. Não precisava.
Quando Edgar voltou à sala, Bosch pediu que ele telefonasse para a sala do plantão e pedisse uma radiopatrulha para controle do tumulto na Wonderland Avenue. Tinha
a sensação de que a turba da mídia, como um vírus que se multiplicasse, começaria a crescer e ficar mais faminta a cada minuto.
Capítulo 19
Acharam as crianças de Nicholas Trent quando revistaram a casa depois da remoção do corpo. Enchendo as duas gavetas de uma pequena mesa na sala de estar, uma mesa
que Bosch não tinha revistado na véspera, havia pastas de papel, fotografias e registros financeiros, inclusive vários envelopes bancários muito grossos contendo
cheques debitados. Trent mandava pequenas quantias de dinheiro, mensalmente, para várias organizações de caridade que alimentavam e vestiam crianças. Desde os Apalaches
até a floresta tropical brasileira e o Kosovo, Trent enviou cheques por anos. Bosch não achou qualquer cheque com uma quantia superior a doze dólares. Encontrou
dezenas e dezenas de fotografias das crianças que ele estava supostamente ajudando, além de pequenos bilhetes escritos por elas.
Bosch tinha visto incontáveis anúncios de instituições de caridade nos programas de televisão de madrugada. Sempre tivera suspeitas. Não sobre se alguns dólares
poderiam impedir que uma criança passasse fome ou ficasse sem roupas, mas sobre se os poucos dólares chegariam a elas. Imaginou se as fotos que Trent guardava nas
gavetas da mesa eram as mesmas mandadas a todo mundo que colaborava. Imaginou se os bilhetes de agradecimento escritos em letras infantis seriam falsos.
- Cara - disse Edgar enquanto examinava o conteúdo da gaveta. - Esse sujeito... acho que ele estava pagando penitência
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Alguma coisa do tipo, mandando toda essa grana para esses
lugares.
- E penitência porque?
- Talvez a gente nunca saiba.
Edgar voltou para revistar o segundo quarto. Bosch examinou algumas fotos que tinha espalhado no tampo <da mesa. Havia meninos e meninas, nenhum parecendo ter mais
de dez anos, se bem que fosse difícil avaliar por que todos tinham os olhos fundos e idosos de crianças que passaram por guerra, fome e indiferença. Pegou a foto
de um menino branco e virou-a. A informação dizia que ficara órfão durante a guerra no Kosovo. Feriu-se com o tiro de morteiro que matou os pais. Seu nome era Milos
Fidor e tinha dez anos.
Bosch ficara órfão aos onze. Olhou para os olhos do menino e viu os seus.
Às quatro da tarde trancaram a casa de Trent e levaram para o carro três caixas de material recolhido. Um pequeno grupo de repórteres esperou do lado de fora durante
toda a tarde, apesar do anúncio da Assessoria de Imprensa, de que todas as informações sobre os acontecimentos do dia seriam distribuídas através do Park Center.
Os repórteres se aproximaram com perguntas, mas Bosch disse rapidamente que não tinha permissão de comentar a investigação. Os dois detetives puseram as caixas
no porta-malas e partiram para o centro da cidade, onde o subchefe Irvin Irving tinha convocado uma reunião.
Bosch se sentia desconfortável consigo mesmo enquanto dirigia. Estava incomodado porque o suicídio de Trent - e agora não tinha dúvida - havia servido para desviar
o ímpeto da investigação da morte do menino. Bosch tinha passado metade do dia examinando os pertences de Trent quando queria estar investigando a identidade do
menino, seguindo a pista recebida pelo telefone.
- Qual é o problema, Harry? - perguntou Edgar num determinado momento.
- O quê?
- Não sei. Você está todo rabugento. Sei que provavelmente é o seu jeito natural, mas em geral não demonstra tanto.
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Edgar sorriu, mas não conseguiu um sorriso de volta.
- Só estou pensando nas coisas. Esse cara poderia estar vivo se a gente tivesse agido de outro modo.
- Qual é, Harry? Quer dizer, se a gente não o investigasse? Não havia como. Fizemos nosso serviço e as coisas fugiram do rumo. Não podíamos fazer nada. Se há um
responsável, é o Thornton, e ele vai receber o que merece. Mas, se você me perguntar, o mundo está melhor sem alguém como Trent. Minha consciência está limpa, cara.
Limpíssima.
- Melhor para você.
Bosch pensou em sua decisão de dar o domingo de folga a Edgar. Se não tivesse feito isso, Edgar é que poderia ter feito a busca pelo computador com os nomes. Kiz
Rider estaria fora do círculo e a informação jamais chegaria a Thornton.
Suspirou. Tudo sempre parecia funcionar numa teoria de dominó. Se, então, se, então, se, então.
- O que sua intuição diz sobre esse cara? - perguntou a Edgar.
- Quer dizer, se ele apagou o garoto do morro? Bosch assentiu.
- Não sei. Tenho de ver o que o laboratório diz sobre a terra e o que a irmã diz sobre o skate. Se ela for a irmã e tivermos uma identificação...
Bosch não disse nada. Mas sempre se sentia desconfortável em ter de contar com resultados de laboratório para determinar o rumo de uma investigação.
- E você, Edgar?
Bosch pensou nas fotos de todas aquelas crianças. Trent achava que estava cuidando delas. Seu ato de contrição. Sua chance de redenção.
- Acho que estamos andando em círculos. Ele não é o cara.
Capítulo 20
O subchefe Irvin Irving estava sentado atrás da mesa em sua espaçosa sala no sexto andar do Parker Center. Também estavam sentados na sala a tenente Grace Billets,
Bosch, Edgar e um policial da Assessoria de Imprensa chamado Sérgio Medina. A auxiliar de Irving, uma tenente chamada Simonton, estava junto à porta aberta da sala,
para o caso de ser requisitada.
Irving tinha uma mesa com tampo de vidro. Não havia nada sobre ela além de dois pedaços de papel com texto impresso, que Bosch não podia ler de onde estava, em
frente e um pouco à esquerda da mesa de Irving.
- bom - começou Irving -, o que sabemos de fato sobre o Sr. Trent? Sabemos que ele era um pedófilo com ficha criminal de abuso infantil. Sabemos que morava perto
do local de sepultamento de uma criança assassinada. E sabemos que cometeu suicídio na noite em que foi interrogado por investigadores sobre os dois primeiros pontos
que acabei de declarar.
Irving pegou as duas folhas sobre sua mesa e as examinou sem revelar o conteúdo aos outros. Por fim, disse:
-Tenho aqui um comunicado à imprensa que declara esses mesmos três fatos e diz ainda: "O sr. Trent é motivo de uma investigação que prossegue. A determinação se
ele foi responsável pela morte da vítima enterrada perto de sua casa depende de trabalho laboratorial e de outras investigações.
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Ele olhou para a página em silêncio, de novo, e finalmente pousou-a.
- Limpo e sucinto. Mas pouco servirá para aplacar a sede da imprensa por essa história. Ou para nos ajudar a evitar outra situação problemática para este departamento.
Bosch pigarreou. Irving pareceu ignorar a princípio, mas então falou, olhando o detetive:
- Sim, detetive Bosch?
- bom, parece que o senhor não está satisfeito com isso. O problema é que o que está escrito no comunicado é exatamente o que estamos fazendo. Eu adoraria lhe
dizer que acho que o sujeito matou o menino do morro. Adoraria dizer que sei que ele fez isso. Mas estamos muito distantes disso e, no mínimo, acho que vamos terminar
concluindo o oposto.
- Baseado em quê? - perguntou Irving rispidamente. Estava ficando claro para Bosch qual era o objetivo da reunião.
Achou que a segunda folha sobre a mesa de Irving era o comunicado que o subchefe queria divulgar. Provavelmente acusava Trent de tudo e dizia que o suicídio era
resultado de ele saber que seria descoberto. Isso permitiria que o departamento cuidasse discretamente de Thornton, responsável pelo vazamento, fora das lentes de
aumento da imprensa. Pouparia ao departamento a humilhação de reconhecer que o vazamento de informação confidencial por parte de um de seus policiais fez com que
um homem possivelmente inocente se matasse. Também permitiria que encerrassem o caso do menino no morro.
Bosch estava ciente de que todo mundo na sala sabia que o fechamento de um caso dessa natureza era a mais remota das possibilidades. Ele havia atraído a atenção
da imprensa. E Trent, com seu suicídio, tinha apresentado uma saída. As suspeitas podiam ser lançadas sobre o pedófilo morto, e o departamento poderia considerar
o trabalho encerrado e ir para o próximo caso - com toda esperança, um que tivesse melhor chance de ser resolvido.
Bosch podia entender, mas não podia aceitar. Tinha visto os ossos. Ouvira Golliher fazer a litania dos ferimentos. Naquela sala de autópsia Bosch decidira achar
o assassino e fechar o caso. A política
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do departamento e a administração de imagem ficariam em segundo plano.
Enfiou a mão no bolso do paletó e pegou seu caderno. Abriu numa página com o canto dobrado e olhou, como se estivesse examinando uma folha cheia de anotações. Mas
havia apenas uma anotação, escrita no sábado, na sala de autópsia.
44 indicações individuais de trauma.
Seus olhos se fixaram no número que tinha escrito, até que Irving falou de novo:
- Detetive Bosch? Eu perguntei: baseado em quê? Bosch ergueu os olhos e fechou o caderno.
- Baseado no tempo. Achamos que Trent só se mudou para a rua depois de o menino estar enterrado. E na análise dos ossos. O garoto sofreu abusos físicos por um longo
período, desde que era muito pequeno. Isso não parece coisa do Trent.
- A análise do tempo e dos ossos não deve ser conclusiva - replicou Irving. - Não importando o que nos disserem, ainda há uma possibilidade, ainda que muito remota,
de que Nicholas Trent tenha sido o criminoso.
- Uma possibilidade muito remota.
- E quanto à busca na casa de Trent hoje?
- Nós pegamos umas velhas botas de trabalho com lama seca na sola. Ela será comparada com as amostras de solo tiradas de onde os ossos foram achados. Mas isso
será igualmente inconclusivo. Mesmo que combinem, Trent poderia ter pegado a terra caminhando atrás de sua casa. Tudo faz parte do mesmo sedimento, em termos geológicos.
-Oque mais?
- Não muita coisa. Pegamos um skate.
- Um skcate?
Bosch explicou sobre a informação que tinha sido dada pelo telefone, e que ele não tivera tempo de investigar por causa do suicídio. Enquanto contava, podia ver
Irving gostando da possibilidade de que um skcate em posse de Trent pudesse ser ligado aos ossos no morro.
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- Quero que esta seja a sua prioridade - disse ele. - Quero isso identificado, e quero saber no instante em que você conseguir.
Bosch apenas assentiu.
- Sim, senhor - interveio Billets.
Irving ficou quieto e examinou as duas folhas sobre a mesa. Por fim pegou aquela que não tinha sido lida - a que Bosch supôs que seria o comunicado fajuto - e se
virou de costas para a mesa. Enfiou-a num picotador de papel, que zumbiu alto enquanto destruía o documento. Depois se virou de novo e pegou o documento que restava.
- Policial Medina, pode repassar isso à imprensa.
Ele entregou o documento a Medina, que se levantou para recebê-lo. Irving consultou o relógio.
- Bem na hora para o noticiário das seis - disse.
- Senhor? - interveio Medina. -Sim?
- Ah... tem havido muitas indagações sobre os informes errôneos do Canal Quatro. Será que nós...
- Diga que é contra a nossa política comentar qualquer investigação interna. Também pode acrescentar que o departamento não vai tolerar ou aceitar o vazamento
de informações confidenciais para a imprensa. Só isso, policial Medina.
Medina parecia ter outra pergunta, mas pensou melhor. Assentiu e saiu da sala.
Irving assentiu para a auxiliar e ela fechou a porta, permanecendo na ante-sala do lado de fora. Então o subchefe virou a cabeça, olhando de Billets para Edgar e
para Bosch.
- Temos uma situação delicada aqui - disse ele. - Estamos claros em relação ao modo como procederemos?
- Sim - disseram Billets e Edgar em uníssono. Bosch ficou quieto. Irving olhou-o.
- Detetive, o senhor tem algo a dizer?
Bosch pensou um momento antes de responder.
- Só quero dizer que vou encontrar quem matou aquele menino e o colocou naquele buraco. Se for Trent, ótimo. bom. Mas se não for ele, vou continuar.
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Irving viu alguma coisa em sua mesa. Uma coisa pequena como um fio de cabelo ou outra partícula quase microscópica. Uma coisa
que BOSch não pôde ver. Irving pegou-a com dois dedos e jogou na lata de lixo atrás. Enquanto o chefe esfregava os dedos no picotador de papel, Bosch olhou e imaginou
se a demonstração seria algum tipo
de ameaça dirigida a ele.
- Nem todo caso é solucionado, detetive, nem todo caso é passível de solução. Num determinado ponto, nosso dever pode exigir que passemos para questões mais prementes.
- O senhor está me dando um prazo?
- Não, detetive. Estou dizendo que o entendo. E só espero que você me entenda.
- O que vai acontecer com Thornton?
- Está sob investigação interna. Não posso discutir com você neste momento.
Bosch balançou a cabeça, frustrado.
- Cuidado, detetive Bosch - disse Irving peremptoriamente. Já demonstrei muita paciência com você. Neste caso e em outros anteriores.
- O que Thornton fez atrapalhou o caso. Ele deveria...
- Se ele for responsável, será tratado de acordo. Mas tenha em mente que ele não estava atuando no vácuo. Ele precisou receber a informação para fazer o vazamento.
A investigação está prosseguindo.
Bosch olhou para Irving. A mensagem era clara. Kiz Rider poderia cair junto com Thornton se Bosch não entrasse no passo de Irving.
- Entendeu, detetive?
- Entendi. Alto e claro.
Capítulo 21
Antes de levar Edgar de volta à Divisão de Hollywood e depois ir para Venice, Bosch pegou no porta-malas a caixa de provas que continha o skate e a levou de volta
para o laboratório da DIC no Parker Center. No balcão perguntou por Antoine Jesper. Enquanto esperava, examinou o skate. Parecia feito de compensado laminado. Tinha
acabamento laqueado com vários adesivos, o mais destacado, um crânio com ossos cruzados, no meio da superfície superior da prancha.
Quando Jesper chegou ao balcão, Bosch apresentou a caixa de provas.
- Quero saber quem fabricou isso, quando foi fabricado e onde foi vendido - disse ele. - Prioridade máxima. Estou com o sexto andar pegando no meu pé.
- Sem problema. Posso lhe dizer a marca agora mesmo. É uma skate Boney. Eles não fabricam mais. O dono vendeu a firma e se mudou, acho que para o Havaí.
- Como sabe tudo isso?
- Porque quando eu era criança andava de skate. E era isso que eu queria, mas nunca tive grana para comprar. Bem irônico, não é?
- O quê?
- Um skate Boney e o caso. Você sabe, "bones", ossos. Bosch assentiu.
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- Sei lá. Quero tudo que você possa conseguir, até amanhã.
- Hmm, posso tentar. Não posso prom...
- Amanhã, Antoine. O sexto andar, lembra? Falo com você amanhã.
Jesper assentiu.
- Então pelo menos me dê a manhã inteira.
- Tudo bem. Está acontecendo alguma coisa com o pessoal dos documentos?
Jesper balançou a cabeça.
- Nada ainda. Ela tentou as tinturas e não apareceu nada. Acho que você não deve contar com coisa alguma aí, Harry.
- Certo, Antoine.
Bosch o deixou segurando a caixa.
Na volta para Hollywood deixou Edgar dirigir enquanto pegava a ficha de informação telefônica na pasta e ligava para Sheila Delacroix pelo celular. Ela atendeu imediatamente
e Bosch se apresentou, dizendo que o telefonema tinha sido repassado para ele.
- Era o Arthur? - perguntou ela, ansiosa.
- Não sabemos, senhora. Por isso estou ligando. -Ah.
- Seria possível que eu e meu parceiro fôssemos vê-la amanhã para falar sobre Arthur e pedir algumas informações? Isso vai ajudar a decidir se os restos são de seu
irmão.
- Entendo. Hmm... sim. Os senhores podem vir aqui, se for conveniente.
- Onde, senhora?
- Ah. Na minha casa. Perto do Wilshire, na Miracle Mile. Bosch olhou o endereço na ficha de informação.
- Em Orange Grove.
- Sim, isso mesmo.
- Oito e meia é cedo demais para a senhora?
- Estaria ótimo, senhor. Eu gostaria de ajudar, se puder. Fico incomodada em pensar que aquele homem morou lá durante todos esses anos, depois de fazer uma coisa
assim. Mesmo que a vítima não fosse o meu irmão.
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Bosch decidiu que não valia a pena falar que provavelmente Trent era inocente no caso dos ossos. Havia muitas pessoas no mundo que acreditavam em tudo que viam na
televisão.
Em vez disso Bosch deu o número de seu celular e disse para ligar se houvesse alguma novidade ou se o horário de oito e meia da manhã seguinte seria uma hora ruim
para ela.
- Não será uma hora ruim. Quero ajudar. Se for Arthur, quero saber. Parte de mim quer que seja ele, para saber que tudo acabou. Mas a outra parte quer que seja outra
pessoa. Assim posso seguir pensando que ele continua por aí. Talvez com mulher e filhos.
- Entendo - disse Bosch. - Veremos a senhora de manhã.
Capítulo 22
Era uma viagem brutal até Venice, e Bosch chegou mais de meia hora atrasado. E o atraso aumentou com a busca infrutífera por uma vaga para estacionar, antes de
voltar derrotado à biblioteca. Seu atraso não incomodou Julia Brasher, que estava no estágio crítico de montar as coisas na cozinha. Orientou-o a ir ao aparelho
de som e colocar uma música, depois se servir de um copo de vinho da garrafa que já estava aberta na mesinha de centro. Não fez menção de tocá-lo ou beijá-lo, mas
seus modos eram totalmente calorosos. Ele pensou que as coisas pareciam boas, que talvez tivesse superado a gafe da véspera.
Escolheu um CD de gravações ao vivo do Bill Evans Trio no Village Vanguard em Nova York. Tinha o CD em casa e sabia que serviria como música calma para o jantar.
Serviu-se de um copo de vinho tinto e andou casualmente pela sala, olhando as coisas que ela possuía à mostra.
As vigas da lareira de tijolos brancos estavam cheias de pequenas fotos emolduradas que ele não tivera chance de olhar na noite anterior. Algumas se apoiavam em
suportes e eram apresentadas com mais destaque do que outras. Nem todas eram de pessoas. Algumas eram de lugares que ele presumiu terem sido visitados nas viagens.
Havia uma foto de um vulcão ativo soltando fumaça e cuspindo rochas derretidas no ar. Havia uma foto subaquática da boca
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escancarada de um tubarão, com dentes serrilhados. O peixe assassino parecia estar se lançando para a máquina fotográfica. Na borda da foto Bosch pôde ver uma das
barras de ferro da jaula onde o fotógrafo - que ele presumiu que fosse Julia - estava protegido.
Havia uma foto de Julia, um aborígine de cada lado, em algum lugar do outback australiano, supôs Bosch. E havia várias outras fotos em que ela estava com o que
pareciam ser colegas mochileiros em outros locais de terreno irregular e exótico que Bosch não pôde identificar imediatamente. Em nenhuma das fotos em que Julia
aparecia ela estava olhando para a máquina. Seus olhos sempre se fixavam na distância ou em um dos outros indivíduos que posavam com ela.
Na última posição sobre a lareira, como se escondida atrás das outras fotos, havia uma pequena imagem com moldura dourada, mostrando uma Julia Brasher muito mais
nova com um homem ligeiramente mais velho. Bosch levou a mão atrás das outras fotos e levantou-a, para ver melhor. Os dois estavam sentados num restaurante ou talvez
numa recepção de casamento. Julia usava um vestido bege com decote cavado. O homem estava de smoking.
- Sabe, este sujeito é um deus no Japão - gritou ela da cozinha.
Bosch recolocou a moldura no lugar e foi até a cozinha. O cabelo dela estava solto, e ele não conseguia decidir de que modo gostava mais.
- Bill Evans?
- É. Parece que eles têm canais inteiros no rádio dedicados à música dele.
- Não diga: você passou algum tempo no Japão também.
- Uns dois meses. É um lugar fascinante.
Bosch achou que ela estava fazendo um risoto com frango e aspargos.
- O cheiro é bom.
- Obrigado. Espero que esteja.
- Então, do que você acha que estava fugindo?
Ela olhou-o de perto do fogão. Uma das mãos segurava uma colher para mexer, a postos. .
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-O quê?
- Você sabe, toda a viagem. Deixar a firma de advocacia do pá' pai para nadar com tubarões e mergulhar em vulcões. Foi do velho ou da firma que o velho dirigia?
- Algumas pessoas veriam isso como se eu estivesse apenas correndo para alguma coisa.
- O cara de smoking?
- Harry, tire a sua arma. Deixe o distintivo na porta. Eu sempre faço isso.
- Desculpe.
Ela voltou ao trabalho e Bosch veio por trás. Colocou as mãos em seus ombros e empurrou os polegares nas reentrâncias da parte superior da coluna. Ela não ofereceu
resistência. Logo ele sentiu os músculos começando a relaxar. Notou o copo de vinho vazio na bancada.
- vou pegar o vinho.
Ele voltou com seu copo e a garrafa. Encheu o copo de Julia, ela pegou-o e bateu de leve no dele.
- Seja para alguma coisa ou de alguma coisa: à corrida - disse ela. - Simplesmente correr.
- O que aconteceu com o "Fique firme"?
- A isso também.
- Ao perdão e à reconciliação.
Eles brindaram de novo. Bosch foi para trás dela e recomeçou a trabalhar em seu pescoço.
- Sabe, pensei na sua história durante a noite inteira, depois de você ter saído - disse ela.
- Minha história?
- Sobre a bala e o túnel.
-E?
Ela deu de ombros.
- Nada. Só que é incrível, só isso.
- Sabe, depois daquele dia não tive mais medo quando estava lá embaixo no escuro. Simplesmente sabia que ia conseguir. Não posso explicar por quê, só sabia. O que
era estúpido, claro, porque não há garantias, nem lá, naquela época, nem em lugar nenhum. Isso me deixou meio imprudente.
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Ele imobilizou as mãos por um momento.
- Não é bom ser imprudente - falou. - A gente atravessa o tubo com muita freqüência, e acaba se queimando.
- Hmm. Você está fazendo sermão para mim, Harry? Quer ser meu treinador agora?
- Não. Deixei a arma e o distintivo na porta, lembra?
- Então certo.
Ela se virou, com as mãos dele ainda no pescoço, e beijou-o. Depois se afastou.
- Sabe, a grande coisa desse risoto é que ele pode ficar no forno por quanto tempo a gente precisar.
Bosch sorriu.
Mais tarde, depois de terem feito amor, Bosch se levantou da cama e foi até a sala.
- Aonde você vai? - gritou ela.
Quando Bosch não respondeu, Julia gritou para ele desligar o forno. Ele voltou do quarto trazendo a foto com moldura dourada. Subiu na cama e acendeu a luz da mesinha-de-cabeceira
Era uma lâmpada fraca embaixo de um abajur denso. O quarto continuava em sombras.
- Harry, o que você está fazendo? - perguntou Julia num tom que alertava que ele estava pisando perto de seu coração. - Você desligou o forno?
- Sim, três e cinqüenta. Fale desse cara.
- Por quê?
- Só quero saber.
- É uma história particular.
- Eu sei. Mas você pode me contar.
Ela tentou tirar a foto, mas ele segurou-a fora de seu alcance.
- E ele? Ele partiu seu coração e fez você sair correndo?
- Harry, eu achava que você tinha tirado o distintivo.
- Tirei. E as roupas. Tudo. Ela sorriu.
- Bem, não vou contar nada.
Ela estava deitada de costas, a cabeça no travesseiro. Bosch pôs a foto na mesinha-de-cabeceira e depois se virou e chegou
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perto dela. Por baixo do lençol, estendeu o braço e puxou-a para perto.
- Olha, quer trocar cicatrizes de novo? Tive o coração partido duas vezes pela mesma mulher. E sabe de uma coisa? Mantive a foto dela numa prateleira da sala de
estar durante longo tempo. Então, num dia de Ano-Novo, decidi que já era tempo suficiente. Guardei a foto. Depois fui chamado para trabalhar e conheci você.
Ela o fitou, os olhos movendo-se ligeiramente para um lado e outro enquanto parecia estar examinando o rosto dele em busca de alguma coisa, talvez a mais leve sugestão
de insinceridade.
- Sim - disse finalmente. - Ele partiu meu coração. Certo?
- Não, nada certo. Quem é o escroto? Ela começou a rir.
- Harry, você é o meu cavaleiro com armadura enferrujada, não é? Ela se sentou, com o lençol caindo dos seios. Cruzou os braços diante deles.
- Ele era da firma. Realmente caí por ele, direto pelo poço do velho elevador. E então... então decidi que tinha acabado. E ele decidiu me trair e contar coisas
secretas ao meu pai.
- Que coisas?
Ela balançou a cabeça.
- Coisas que nunca mais vou contar a um homem.
- Onde aquela foto foi tirada?
- Ah, numa festa da firma, provavelmente o banquete de AnoNovo, não lembro. Eles fazem um monte de festas.
Bosch tinha se inclinado para trás dela. Inclinou-se e beijou suas costas logo acima da tatuagem.
- Eu não poderia ficar lá enquanto ele estava. Por isso fui embora. Falei que queria viajar. Meu pai achou que era uma crise de meia-idade porque eu tinha feito
trinta anos. Deixei que ele pensasse isso. Mas então tive de fazer o que eu disse que queria fazer, viajar. Fui primeiro à Austrália. Era o lugar mais distante em
que pude pensar.
Bosch se levantou um pouco e pôs dois travesseiros para se apoiar. Depois puxou as costas de Julia de encontro ao peito. Beijou o topo de sua cabeça e ficou com
o nariz encostado nos cabelos.
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- Eu tinha ganhado um monte de dinheiro na firma - disse ela.
- Não precisava me preocupar. Continuei viajando, indo para onde quisesse, fazendo biscates quando sentia vontade. Fiquei quase quatro anos sem voltar em casa. E
quando voltei entrei para a academia. Estava andando pela calçada e vi o pequeno escritório de serviço comunitário de Venice. Entrei e peguei um panfleto. Depois
disso, tudo aconteceu muito rápido.
- Sua história mostra processos de decisão impulsivos e possivelmente imprudentes. Como isso passou pelo pessoal da triagem?
Ela deu-lhe uma cotovelada de leve, lançando um clarão de dor nas costelas. Ele se retesou.
- Ah, Harry, desculpe. Esqueci.
-E, claro.
Ela riu.
- Acho que todos vocês, mais velhos, sabem que o departamento vem forçando a barra para conseguir o que chamam de cadetes "maduras" nos últimos anos. Para aplacar
toda a testosterona do departamento.
Ela esfregou os quadris contra os genitais de Bosch para enfatizar o argumento.
- E por falar em testosterona - disse ela -, você não contou como foi o negócio hoje com o velho cabeça dura.
Bosch gemeu mas não respondeu.
- Sabe - disse ela -, um dia Irving foi falar com a nossa turma sobre as responsabilidades morais que acompanham o uso do distintivo. E todo mundo ali sentado sabia
que o sujeito provavelmente faz mais acordos por baixo dos panos, lá em cima no sexto andar, do que o número de dias no ano. O cara é o clássico armador. Praticamente
dava para cortar a ironia no auditório com uma faca.
O uso que ela fez da palavra "ironia" fez Bosch voltar ao que Antoine Jesper dissera, comparando os ossos encontrados no morro com os ossos no
skcate. Sentiu o corpo se retesar enquanto pensamentos sobre o caso começavam a se entranhar no que tinha sido um oásis de afastamento da investigação criminal.
Ela sentiu sua tensão.
-O que é?
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-Nada.
- Você ficou tenso de repente.
- E o caso, acho.
Ela ficou quieta um momento, depois falou:
- Acho espantoso. Aqueles ossos ficando lá em cima todos esses anos e depois saindo do chão. Como um fantasma ou algo assim.
- É uma cidade de ossos. E todos estão esperando para aparecer.
Ele fez uma pausa.
- Não quero falar sobre Irving, nem os ossos, nem o caso nem nada agora.
- Então o que você quer?
Ele não respondeu. Ela se virou para encará-lo e começou a puxá-lo para fora dos travesseiros até Bosch estar deitado de costas.
- Que tal uma mulher madura para aplacar a testosterona de novo?
Para Bosch foi impossível não sorrir.
Capítulo 23
Antes do amanhecer Bosch estava na estrada. Deixou Julia Brasher dormindo e foi para casa, depois de parar primeiro no Abbot's Habit para um café. Venice parecia
uma cidade fantasma, com os fiapos encaracolados da névoa matinal movendo-se pelas ruas. Mas à medida que chegava mais perto de Hollywood as luzes dos carros se
multiplicaram e Bosch se lembrou de que a cidade dos ossos vivia 24 horas por dia.
Em casa tomou banho e vestiu roupas limpas. Depois entrou de novo no carro e desceu o morro até a Divisão de Hollywood. Eram
7h30 quando chegou. Surpreendentemente, vários detetives já estavam lá, trabalhando com papeladas e casos. Edgar não estava entre eles. Bosch pousou a pasta e foi
até a sala do plantão para pegar café e ver se algum cidadão tinha trazido doughnuts. Quase todo dia algum fulano de tal que ainda mantinha a fé trazia doughnuts
para a Divisão. Era um modo de dizer que ainda havia quem reconhecesse ou pelo menos entendesse as dificuldades do serviço. Todo dia, em todas as delegacias, os
policiais punham os distintivos e tentavam fazer o melhor possível num lugar onde o povo não os entendia, não gostava particularmente deles e, em muitos casos, os
desprezava por completo. Bosch sempre achou espantoso o quanto uma caixa de doughnuts servia para desfazer isso.
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Encheu uma xícara e largou um dólar no cesto. Pegou um doughnut com cobertura de açúcar numa caixa que já fora dizimada pelos patrulheiros. Não era de espantar.
Eram do Bob's Donuts, no mercado dos fazendeiros. Notou Mankiewicz sentado à mesa, as sobrancelhas escuras formando um V profundo enquanto examinava o que parecia
um gráfico de distribuição de trabalho.
- Ei, Mank, acho que a gente conseguiu uma pista nível A nas dicas por telefone. Achei que você gostaria de saber.
Mankiewicz respondeu sem levantar a cabeça.
- bom. Diga quando meu pessoal puder dar uma folga nisso. Vamos ter pouca gente no plantão telefônico nos próximos dias.
Bosch sabia que isso significava que ele estava fazendo malabarismo com o pessoal. Quando não havia policiais uniformizados em número suficiente para pôr nos carros
- devido a férias, apresentações em tribunais ou doença - o sargento do plantão sempre tirava gente da burocracia e colocava nos veículos.
- Pode deixar.
Edgar ainda não estava à mesa quando Bosch voltou à sala do esquadrão de detetives. Bosch colocou o café e o doughnut ao lado de uma das Selectrics e foi pegar um
formulário de mandado de busca num arquivo comunitário. Nos quinze minutos seguintes datilografou um adendo ao mandado de busca que já enviara ao encarregado dos
registros do Queen of Angels. Pedia todos os registros do tratamento de Arthur Delacroix entre 1975 e 1985.
Quando terminou, levou ao aparelho de fax e enviou à sala do juiz John A. Houghton, que tinha assinado todos os mandados de busca para os hospitais na véspera. Acrescentou
um bilhete requisitando que o juiz examinasse o pedido de adendo o mais cedo possível, porque isso poderia levar a uma identificação positiva dos ossos, e portanto
colocar a investigação em foco.
Bosch voltou à mesa e tirou de uma gaveta a pilha de relatórios de pessoas desaparecidas que tinha juntado no arquivo. Começou examinando-os rapidamente, olhando
apenas para a caixa reservada ao nome do indivíduo desaparecido. Em dez minutos tinha terminado. Não havia na pilha um relatório sobre Arthur Delacroix. Não sabia
o que isso significava, mas planejava perguntar à irmã do garoto.
152
Eram oito horas e Bosch estava pronto para ir visitar a irmã. Mas Edgar ainda não havia chegado. Bosch comeu o resto do doughnut e decidiu dar dez minutos para o
parceiro aparecer, antes de sair sozinho. Trabalhava com Edgar há mais de dez anos e ainda se incomodava com a falta de pontualidade do parceiro. Uma coisa era
chegar tarde para o jantar. Outra era chegar tarde para trabalhar num caso. Ele sempre havia considerado os atrasos de Edgar como falta de comprometimento com a
missão deles como investigadores de homicídios.
Sua linha direta soou e Bosch atendeu com a voz rouca e irritada, esperando que fosse Edgar anunciando que ia se atrasar. Mas não era. Era Julia Brasher.
- Então você acaba de abandonar uma mulher cheia de tesão na cama, hein?
Bosch sorriu, e sua frustração com Edgar sumiu rapidamente.
- Tenho um dia ocupado aqui. Eu precisava andar.
- Sei, mas você poderia ter dito tchau.
Bosch viu Edgar vindo pela sala do esquadrão. Queria sair antes que Edgar começasse seu ritual de café, doughnut e caderno de esportes.
- Bem, estou dizendo tchau agora, certo? Estou no meio de uma coisa e tenho de ir correndo.
- Harry...
- O quê?
- Achei que você ia desligar na minha cara, ou alguma coisa assim.
- Não vou, mas tenho de sair. Olhe, dê uma passada aqui antes de ir para o trabalho, certo? Até lá provavelmente já estarei de volta.
- Certo. Vejo você.
Bosch desligou e se levantou no momento em que Edgar chegou à mesa de homicídios e largou em seu lugar o caderno de esportes dobrado.
- Está pronto?
- Estou, eu só ia pegar...
- Vamos. Não quero deixar a dona esperando. E ela provavelmente vai ter café lá.
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Na saída Bosch verificou a bandeja de entrada na máquina de fax. Seu adendo ao mandado de busca tinha sido assinado e devolvido pelo juiz Houghton.
- Estamos no meio de um trabalho - disse Bosch a Edgar, mostrando o mandado enquanto iam para o carro. - Está vendo? Quando a gente chega mais cedo, consegue fazer
as coisas.
- O que isso quer dizer? E uma bronca?
- Quer dizer o que quer dizer, acho.
- Eu só quero um café.
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Capítulo 24
Sheila Delacroix morava numa parte da cidade chamada de Miracle Mile. Era uma área ao sul do Wilshire que não estava exatamente no padrão de Hancock Park, que ficava
perto, mas era ladeada por casas muito bem cuidadas e sobrados com modestas alterações de estilo para promover a individualidade.
A casa de Delacroix era o segundo andar de um sobrado com pseudo-estilo Beaux Arts. Ela recebeu os detetives com amabilidade, mas quando a primeira pergunta que
Edgar fez foi sobre café, disse que isso era contra sua religião. Ofereceu chá e Edgar aceitou com relutância. Bosch recusou. Imaginou qual religião seria contra
o café.
Os dois se sentaram na sala enquanto a mulher fazia o chá para Edgar na cozinha. Ela gritou para eles, dizendo que tinha apenas uma hora antes de sair para o trabalho.
- O que a senhora faz? - perguntou Bosch quando ela saiu com uma xícara de chá quente, com a etiqueta do saquinho pendurada do lado. Ela a colocou num descanso
de copos numa mesinha lateral perto de Edgar. Era uma mulher alta. Estava ligeiramente acima do peso e tinha cabelos louros e curtos. Bosch achou que ela usava maquiagem
demais.
- Sou agente de elenco - falou enquanto se sentava no sofá. Principalmente para filmes independentes e um pouco de televisão. Esta semana estou montando elenco para
um seriado policial.
Bosch olhou Edgar tomando um gole do chá e fazendo uma careta. Em seguida, ele segurou a xícara de modo a ler a etiqueta do saquinho.
- E uma mistura-disse Delacroix. - Morango e darjeeling. Gosta? Edgar colocou a xícara sobre o descanso.
- É bom.
- Sra. Delacroix? Se trabalha no ramo do entretenimento, por acaso conhece Nicholas Trent?
- Por favor, me chamem de Sheila. bom... esse nome, Nicholas Trent. Parece conhecido, mas não consigo situar. Ele é ator ou trabalha com elenco?
- Nenhum dos dois. É o homem que morava na Wonderland Avenue. Era cenógrafo, quero dizer, decorador de cenários.
- Ah, o que apareceu na TV, o que se matou. Bem, não é de imaginar que parecesse conhecido.
- Então você não o conhecia do trabalho?
- Não, de jeito nenhum.
- Certo, bem, eu não deveria ter perguntado isso. Estamos fora da ordem. Vamos começar com seu irmão. Fale de Arthur. Você tem uma foto que a gente possa ver?
- Tenho - disse ela enquanto se levantava e passava por trás da poltrona dele. - Aqui está.
Ela foi até um armário baixo que Bosch não tinha notado, atrás dele. Havia fotos emolduradas, arrumadas praticamente do mesmo modo que ele vira sobre a lareira de
Julia Brasher. Delacroix escolheu uma, virou-se e entregou a Bosch.
A moldura continha uma foto de um menino e uma menina sentados numa escada que Bosch reconheceu como as mesmas que eles haviam subido antes de bater à porta. O garoto
era muito menor do que a garota. Os dois sorriam para a máquina e tinham a expressão de crianças que receberam ordem de sorrir - um monte de dentes mas não uma boca
virada legitimamente para cima.
Bosch entregou a foto a Edgar e olhou para Delacroix, que tinha voltado à poltrona.
- Aquela escada... a foto foi tirada aqui?

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- Foi, esta é a casa onde nós crescemos.
- Quando ele desapareceu, foi daqui?
-Foi.
- E algum pertence dele ainda está na casa? Delacroix sorriu e balançou a cabeça.
- Não, foi tudo embora. Doei as coisas dele para o bazar de caridade da igreja. Isso foi há muito tempo.
-Que igreja é?
- A Igreja da Natureza de Wilshire. Bosch apenas assentiu.
- E a que não deixa tomar café? - perguntou Edgar.
- Nada que tenha cafeína.
Edgar colocou a foto emoldurada perto do chá.
- Você tem alguma outra foto dele? - perguntou.
- Claro, tenho uma caixa de fotos antigas.
- Podemos dar uma olhada? Sabe, enquanto a gente conversa. As sobrancelhas de Delacroix se juntaram, em confusão.
- Sheila - disse Bosch. - Encontramos algumas roupas com os restos. Gostaríamos de olhar as fotos para ver se alguma é igual. Isso vai ajudar na investigação.
Ela assentiu.
- Sei. Bem, já volto. Só preciso ir até o armário do corredor.
- Precisa de ajuda? -Não, eu me viro.
Depois de ela ter saído, Edgar se inclinou para Bosch e sussurrou:
- Esse chá da Igreja da Natureza tem gosto de mijo. Bosch sussurrou de volta:
- Como você sabe qual é o gosto de mijo?
A pele em volta dos olhos de Edgar se franziu de embaraço ao ver que ele tinha perdido aquela. Antes que pudesse pensar numa resposta, Sheila Delacroix voltou trazendo
uma velha caixa de sapatos. Colocou-a sobre a mesinha de centro e tirou a tampa. A caixa estava cheia de fotos soltas.
- Elas não estão em nenhum tipo de ordem. Mas ele deve aparecer em várias.
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Bosch assentiu para Edgar, que enfiou a mão na caixa pegando a primeira pilha de fotos.
- Enquanto meu parceiro dá uma olhada, por que não me conta sobre seu irmão e quando ele desapareceu?
Sheila assentiu e juntou os pensamentos antes de começar.
- Quatro de maio de mil novecentos e oitenta. Ele não voltou da escola para casa. E isso. Só. Achamos que ele tinha fugido. O senhor disse que achou roupas junto
com os restos. Bem, meu pai olhou na gaveta dele e disse que Arthur tinha levado roupas. Foi isso que nos fez pensar que ele tinha fugido.
Bosch anotou algumas coisas num caderno que havia tirado do bolso do paletó.
- Você mencionou que ele tinha se machucado alguns meses antes, com um skate.
- Foi, ele bateu com a cabeça e teve de operar.
- Quando desapareceu, ele levou o skcate? Ela pensou nisso por um longo momento.
- Foi há tanto tempo... só sei que ele adorava aquele skate. Por isso acho que provavelmente levou. Mas só lembro das roupas. Meu pai disse que algumas roupas tinham
sumido.
- Vocês denunciaram o desaparecimento dele?
- Na época eu tinha dezesseis anos, por isso não fiz nada. Mas meu pai falou com a polícia. Tenho certeza.
- Não consegui nenhum registro de desaparecimento de Arthur Delacroix. Tem certeza de que eles denunciaram o desaparecimento?
- Fui com ele até a delegacia.
-A delegacia de Wilshire?
- Imagino que sim, mas não lembro de verdade.
- Sheila, onde está seu pai? Ainda está vivo?
- Está. Mora no Vale. Mas ultimamente não anda bem.
- Onde, no Vale?
- Van Nuys. No Parque de Trailers Manchester.
Houve silêncio enquanto Bosch anotava a informação. Ele já estivera no Parque de Trailers Manchester, em outras investigações. Não era um lugar agradável para morar.
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- Ele bebe...
Bosch olhou-a.
- ... desde que Arthur...
Bosch assentiu, entendendo. Edgar se inclinou à frente e lhe entregou uma foto. Era uma sete por doze, amarelada. Mostrava um menino com os braços levantados num
esforço para manter o equilíbrio, deslizando na calçada sobre um skate. O ângulo da foto mostrava pouco do skate, além do perfil. Bosch não poderia dizer se tinha
ou não um desenho de ossos.
- Não dá para ver muito aqui - disse enquanto começava a devolver a foto.
- Não. As roupas. A camisa.
Bosch olhou a foto de novo. Edgar estava certo. O garoto da foto usava uma camiseta cinza com SOLID SURF impresso no peito. Bosch mostrou a foto a Sheila.
- Este é o seu irmão, certo? Ela se inclinou para olhar.
- Sim, sem dúvida.
- Esta camisa que ele está usando... você se lembra se é uma das peças de roupa que seu pai disse que sumiu?
Delacroix balançou a cabeça.
- Não lembro. Faz... só lembro que ele gostava um bocado dela.
Bosch assentiu e devolveu a foto a Edgar. Não era o tipo de confirmação sólida que eles conseguiriam com raios X e comparação de ossos, mas era mais um ponto. Estava
tendo cada vez mais certeza de que iam identificar os ossos. Viu Edgar colocando a foto numa pequena pilha que ele pretendia pegar emprestada da coleção de Sheila.
Bosch consultou o relógio e se virou para Sheila.
- E sua mãe?
Sheila balançou a cabeça imediatamente.
- Não, ela se foi muito antes de tudo isso acontecer.
- Quer dizer que ela morreu?
- Quero dizer que ela pegou um ônibus no momento em que a coisa ficou difícil. Veja bem, Arthur era um menino difícil. Desde o início. Ele precisava de muita atenção,
e tudo recaía em cima de
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minha mãe. Depois de um tempo ela não agüentou mais. Uma noite ela foi comprar remédio na farmácia e nunca mais voltou. Achamos bilhetes dela debaixo dos travesseiros.
Bosch baixou os olhos para o caderno. Era difícil ouvir essa história e continuar olhando para Sheila Delacroix.
- Quantos anos você tinha? Quantos anos seu irmão tinha?
- Eu tinha seis, de modo que Arthur teria dois. Bosch assentiu.
- Você guardou o bilhete?
- Não. Não havia necessidade. Não preciso de uma lembrança de como ela nos amava, mas não o bastante para ficar conosco.
- E o Arthur? Ele guardou?
- Bem, Arthur tinha apenas dois anos, por isso meu pai guardou para ele. Entregou quando ele ficou mais velho. Talvez ele tenha guardado, não sei. Como ele nunca
a conheceu de verdade, sempre se interessava muito em saber como ela era. Ele me fazia muitas perguntas sobre ela. Não havia fotos dela. Meu pai tinha se livrado
de todas, por isso ele não tinha nenhuma lembrança.
- Você sabe o que aconteceu com ela? Sabe se ainda está viva?
- Não faço a mínima idéia. E, para dizer a verdade, não me importa se ela está viva ou não.
- Como se chama?
- Christine Dorsett Delacroix. Dorsett era o nome de solteira.
- Sabe a data de nascimento dela ou o número do seguro social?
Sheila balançou a cabeça.
- Você tem sua certidão de nascimento à mão, aqui?
- Está guardada por aí. Eu poderia procurar. Ela começou a ficar de pé.
- Não, espere, podemos ver isso no final. Eu gostaria de continuar conversando.
- Certo.
- Hmm, depois que sua mãe se foi, seu pai se casou de novo?
- Não, nunca. Atualmente ele mora sozinho.
- Ele tinha namorada, alguém que poderia ter ficado na casa? Sheila olhou para ele com olhos que pareciam quase sem vida.
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- Não. Nunca.
Bosch decidiu passar para uma área de discussão que fosse menos difícil para a mulher.
- Em que escola seu irmão estudava?
- No fim ele estudava na The Brethren.
Bosch não disse nada. Anotou o nome da escola no bloco, e uma grande letra B embaixo. Circulou a letra, pensando na mochila. Sheila continuou:
- Era uma escola particular para meninos problemáticos. Meu pai pagava para ele freqüentar. Fica em Crescent Heights, perto de Pico. Ainda existe.
- Por que ele freqüentava essa escola? Quero dizer, por que ele era considerado problemático?
- Porque foi expulso das outras escolas, principalmente por causa de brigas.
- Brigas? - perguntou Edgar.
- Isso mesmo.
Edgar pegou a foto de cima de sua pilha e examinou-a um momento.
- Esse garoto parecia leve que nem fumaça. Era ele quem começava as brigas?
- Na maioria das vezes. Ele tinha dificuldade para se relacionar com os outros. Só queria andar de skate. Acho que, pelos padrões de hoje, Arthur teria diagnóstico
de síndrome de déficit de atenção, ou alguma coisa do tipo. Ele só queria ficar sozinho o tempo todo.
- Ele se machucava nas brigas? - perguntou Bosch.
- Algumas vezes. Na maioria das vezes ficava com hematomas roxos.
- Quebrou ossos?
- Não que eu lembre. Eram só brigas de pátio.
Bosch sentiu-se agitado. As informações que estavam recebendo podiam levá-los em muitas direções diferentes. Tinha esperado que um caminho claro pudesse emergir
da entrevista.
- Você disse que seu pai revistou as gavetas do quarto do seu irmão e descobriu que algumas roupas tinham desaparecido.
- Isso mesmo. Não muitas. Só algumas coisas.
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- Alguma idéia do que tinha sumido, especificamente? Ela balançou a cabeça.
- Não lembro.
- Em que ele levou as roupas? Uma mala ou algo assim?
- Acho que foi a mochila da escola. Tirou os livros e pôs algu-
mas roupas.
- Você se lembra de como era a mochila?
- Não. Era só uma mochila comum. Todo mundo tinha de usar a mesma coisa na The Brethren. Eu ainda vejo crianças andando por Pico com elas, as mochilas com um B
na parte de trás.
Bosch olhou para Edgar e depois de novo para Sheila Delacroix.
- Vamos voltar ao skate. Tem certeza de que ele o levou? Ela parou para pensar, depois assentiu lentamente.
- Sim, tenho quase certeza de que levou.
Bosch decidiu interromper a entrevista e se concentrar em completar a identificação. Assim que confirmassem que os ossos eram de Arthur Delacroix, poderiam voltar
à irmã dele.
Pensou nas observações de Golliher sobre os ferimentos nos ossos. Abusos crônicos. Poderiam ter sido ferimentos de brigas na escola e de quedas do skate? Sabia que
precisava abordar a questão do abuso na infância, mas não achava que fosse a hora adequada. Também não queria passar do ponto com Sheila, de modo que ela se arrependesse
e possivelmente contasse ao pai. O que Bosch queria era recuar e voltar mais tarde quando achasse que tinha um controle maior do caso e um sólido plano investigativo
para ir em frente.
- Certo, vamos terminar as coisas aqui bem depressa, Sheila. Só mais umas perguntas. Arthur tinha algum amigo? Talvez um melhor amigo, alguém a quem contasse coisas?
Ela balançou a cabeça.
- Na verdade não. Ele quase sempre ficava sozinho.
Bosch assentiu, e já ia fechar o caderno quando ela continuou:
- Havia um garoto com quem ele andava de skate. O nome dele era Johnny Stokes. Era de algum lugar perto de Pico. Era maior e um pouco mais velho do que Arthur,
mas os dois estavam na mesma turma na The Brethren. Meu pai tinha quase certeza de que ele
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fumava maconha. Por isso não gostávamos de que Arthur fosse amigo dele.
- Quando diz "nós", você está falando de seu pai e você?
- E, o meu pai. Ele ficava chateado com isso.
- Algum de vocês dois falou com Johnny Stokes depois do desaparecimento de Arthur?
- Sim, na noite em que ele não voltou para casa, meu pai ligou para Johnny Stokes, mas ele disse que não tinha visto Artie. No dia seguinte, quando papai foi até
a escola perguntar por ele, disse que tinha falado de novo com Johnny sobre Artie.
- E o que ele falou?
- Que não o tinha visto.
Bosch anotou o nome do amigo no caderno e sublinhou.
- Mais algum amigo em quem você possa pensar?
- Não, na verdade, não.
- Qual é o nome do seu pai?
- Samuel. Vocês vão falar com ele?
- É provável.
Os olhos dela baixaram para as mãos apertadas no colo.
- Há algum problema em falarmos com ele?
- Na verdade, não. Ele só não está bem. Se aqueles ossos forem de Arthur... eu estava achando que seria melhor se ele nunca soubesse.
- Teremos isso em mente quando falarmos com ele. Mas só o faremos se tivermos uma identificação positiva.
- Mas se vocês falarem com ele, ele vai saber.
- Talvez seja inevitável, Sheila.
Edgar entregou outra foto a Bosch. Mostrava Arthur parado perto de um homem alto e louro que parecia ligeiramente familiar a Bosch. Ele mostrou a foto a Sheila.
- E o seu pai?
- E sim.
- Parece familiar. Ele já...
- Ele é ator. Na verdade, era. Fez alguns seriados de televisão nos anos sessenta e algumas coisas depois, uns papéis no cinema.
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- Não o suficiente para ganhar a vida?
- Não, ele sempre tinha de fazer outros serviços. Para a gente sobreviver.
Bosch assentiu e devolveu a foto a Edgar, mas Sheila estendeu a mão por sobre a mesinha de centro e a interceptou.
- Não quero que levem essa, por favor. Não tenho muitas fotos do meu pai.
- Ótimo - disse Bosch. - Será que a gente poderia procurar a certidão de nascimento agora?
- vou procurar. Vocês podem ficar aqui.
Ela se levantou e saiu da sala outra vez. Edgar aproveitou a oportunidade para mostrar a Bosch algumas das outras fotos que tinha separado durante a investigação.
- E ele, Harry - sussurrou Edgar. - Não tenho dúvida. Mostrou uma foto de Arthur Delacroix, aparentemente tirada
para a escola. O cabelo estava bem penteado e ele usava blazer azul e gravata. Bosch examinou os olhos do menino. Lembraram-no da foto do garoto de Kosovo, que tinha
encontrado na casa de Nicholas. O garoto com o olhar de mil anos.
- Encontrei.
Sheila Delacroix entrou na sala trazendo um envelope e desdobrando um documento amarelado. Bosch olhou-o um momento e depois copiou os nomes, as datas de nascimento
e os números do seguro social dos pais.
- Obrigado - disse ele. - Você e Arthur tinham os mesmos pais, certo?
- Claro.
- Certo, Sheila, obrigado. Temos de ir. Vamos ligar para você assim que soubermos alguma coisa com certeza.
Ele se levantou, Edgar também.
- Tudo bem se pegarmos estas fotos emprestadas? - perguntou Edgar. - vou me certificar pessoalmente de que sejam devolvidas.
- Certo, se vocês precisarem.
Os detetives foram até a porta e ela abriu. Enquanto ainda estava na soleira, Bosch fez uma última pergunta:
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- Sheila, você sempre morou aqui? Ela assentiu.
- Minha vida inteira. Fiquei aqui para o caso de ele voltar, sabe? Para o caso de ele não saber por onde começar e vir até aqui.
Ela sorriu, mas não de algum modo que revelasse humor. Bosch Confirmou com a cabeça e saiu, atrás de Edgar.
Capítulo 25
Bosch foi até a bilheteria do museu, deu seu nome à mulher que estava sentada atrás do vidro e disse que ele tinha hora marcada com o dr. William Golliher, no laboratório
de antropologia. Ela pegou o telefone e ligou. Alguns minutos depois, bateu no vidro com a aliança de casamento, até atrair a atenção de um segurança ali perto.
Ele se aproximou, e a mulher o instruiu a acompanhar Bosch ao laboratório.
O guarda não disse nada enquanto eles andavam pelo museu mal iluminado, passando pelo mamute e pela parede de crânios de lobos. Bosch nunca estivera dentro do museu,
apesar de ter ido freqüentemente aos Poços de Piche de La Brea em passeios escolares, na infância. O museu fora construído depois disso, para abrigar e expor todas
as descobertas que borbulhavam para fora da terra nos poços de piche.
Quando Bosch ligou para o celular de Golliher depois de receber a ficha médica de Arthur Delacroix, o antropólogo disse que já estava trabalhando em outro caso e
só podia ir ao Departamento de Medicina Legal no centro da cidade no dia seguinte. Bosch alegou que não podia esperar. Golliher disse que tinha com ele cópias dos
raios X e das fotografias do caso da Wonderland. Se Bosch pudesse vir, ele faria a comparação e daria uma resposta não-oficial.
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Bosch aceitou e foi para os Poços de Piche enquanto Edgar permanecia na Divisão de Hollywood trabalhando no computador, para ver se localizava a mãe de Arthur e
Sheila Delacroix, além do amigo de Arthur, Johnny Stokes.
Agora Bosch estava curioso para saber em que novo caso Golliher estava trabalhando. Os poços de piche eram um antigo buraco negro onde os animais haviam encontrado
a morte durante séculos. Numa sombria reação em cadeia, animais apanhados no miasma se tornavam presas de outros animais, que por sua vez ficavam grudados e eram
lentamente puxados para baixo. Numa espécie de equilíbrio natural, agora os ossos voltavam do negrume e eram coletados para estudo pelos homens modernos. Tudo isso
acontecia bem ao lado de uma das ruas mais movimentadas de Los Angeles, uma lembrança constante da esmagadora passagem do tempo.
Bosch foi guiado por duas portas e entrou no laboratório atulhado onde os ossos eram identificados, classificados, datados e limpos. Parecia haver caixas de ossos
em toda parte, em cada superfície plana. Meia dúzia de pessoas com jalecos brancos trabalhava nos postos, limpando e examinando os ossos.
Golliher era o único sem jaleco. Usava outra camisa havaiana, esta com papagaios, e trabalhava numa mesa no canto mais distante. Quando Bosch se aproximou, viu
que havia duas caixas de madeira, com ossos, na bancada diante dele. Numa das caixas havia um crânio.
- Detetive Bosch, como vai?
- Bem. O que é isso?
- Isso, tenho certeza que dá para ver, é um crânio humano. O crânio, e alguns outros ossos, foram recolhidos há dois dias do asfalto que foi escavado há trinta anos
para abrir espaço para este museu. Eles pediram que eu desse uma olhada antes de fazer o anúncio.
- Não entendi. Este material é... antigo ou... tem trinta anos?
- Ah, é bem antigo. Foi datado com carbono como sendo de nove mil anos atrás.
Bosch assentiu. O crânio e os ossos nas outras caixas pareciam de mogno.
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- Dê uma olhada - disse Golliher e tirou o crânio da caixa. Ele virou-o de modo que o crânio encarava Bosch. Em seguida,
passou o dedo num círculo em volta de uma fratura perto do topo do crânio.
- Parece familiar?
- Fratura causada por força bruta?
- Exato. Bem parecido com o seu caso. Serve para mostrar. Ele recolocou gentilmente o crânio na caixa.
- Mostrar o quê?
-Que as coisas não mudam tanto assim. Esta mulher, pelo menos nós pensamos que é uma mulher, foi assassinada há nove mil anos, o corpo provavelmente foi jogado no
poço de piche para encobrir o crime. A natureza humana não muda.
Bosch olhou o crânio.
- Ela não é a primeira. Bosch olhou para Golliher.
- Em mil novecentos e quatorze os ossos de outra mulher, na verdade um esqueleto mais completo, foram encontrados no piche. Tinha a mesma fratura em forma de estrela
no mesmo lugar do crânio. Os ossos foram datados pelo carbono como tendo nove mil anos. O mesmo período desta.
Ele assentiu para o crânio na caixa.
- O que está dizendo, doutor? Que houve um assassino em série aqui há nove mil anos?
- É impossível saber, detetive Bosch. Só temos os ossos. Bosch olhou de novo para o crânio. Pensou no que Julia Brasher
tinha dito sobre seu trabalho, sobre ele tirar a maldade do mundo. O que ela não sabia era uma verdade que ele conhecia há muito tempo. A verdadeira maldade nunca
seria tirada do mundo. Na melhor das hipóteses ele chafurdava nas águas escuras do abismo segurando dois baldes furados.
- Mas você tem outras coisas na cabeça, não é? - perguntou Golliher, interrompendo os pensamentos de Bosch. - Está com os registros do hospital?
Bosch colocou sua pasta na bancada e abriu. Entregou uma pasta de papel a Golliher. Em seguida tirou do bolso a pilha de fotos que ele e Edgar tinham apanhado com
Sheila Delacroix.
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- Não sei se isso ajuda - falou. - Mas é o garoto.
Golliher pegou as fotos. Examinou-as rapidamente, parando no close de Arthur Delacroix de paletó e gravata. Foi até uma cadeira onde havia uma mochila pendurada
no braço. Tirou de dentro sua pasta de papel e voltou à bancada. Abriu a pasta e pegou uma foto de vinte por vinte e cinco do crânio da Wonderland Avenue. Por um
longo momento segurou lado a lado as fotos de Arthur Delacroix e do crânio, examinando-as.
Por fim, disse:
- O malar e a projeção superciliar parecem semelhantes.
- Não sou antropólogo, doutor.
Golliher colocou as fotos na mesa. Então explicou passando o dedo sobre a sobrancelha esquerda do menino e depois pela lateral externa do olho.
- A elevação da sobrancelha e a órbita exterior - disse ele. No espécime recuperado é mais larga do que o usual. Olhando esta foto do garoto, vemos que sua estrutura
facial combina com o que temos aqui.
Bosch assentiu.
- Vamos olhar os raios X - disse Golliher. - Há uma caixa de luz aqui.
Golliher pegou as pastas de papel e levou Bosch até outra bancada, onde havia uma caixa de luz montada na superfície. Abriu a pasta do hospital, pegou os raios X
e começou a ler o relatório sobre o paciente.
Bosch já havia lido o documento. O hospital informava que o menino foi levado à emergência, pelo pai, às 17h40 de 11 de fevereiro de 1980.
O pai disse que ele foi encontrado num estado de atordoamento e sem reação, depois de cair de um skate no qual bateu a cabeça. Foi realizada uma neurocirurgia para
aliviar a pressão dentro
do crânio causada por inchaço do cérebro. O menino permaneceu no hospital, sob observação, durante dez dias, e então foi entregue ao pai. Duas semanas depois foi
readmitido para uma cirurgia complementar, para tirar os grampos usados para prender o crânio depois da neurocirurgia.
Não havia qualquer informe de o garoto ter reclamado de maustratos por parte do pai ou de qualquer pessoa. Enquanto se
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recuperava da primeira cirurgia ele foi entrevistado rotineiramente por uma assistente social. O relatório tinha menos de meia página. Afirmava que o garoto revelara
ter
se machucado andando de skate. Não havia outros interrogatórios nem foram repassadas informações às autoridades encarregadas de jovens ou à polícia.
Golliher balançou a cabeça enquanto terminava o exame do documento.
- O que é? - perguntou Bosch.
-Não é nada. E esse é o problema. Nenhuma investigação. Eles aceitaram a palavra do garoto. O pai provavelmente estava sentado na sala quando ele foi entrevistado.
Você sabe como seria difícil para ele dizer a verdade. Por isso simplesmente o remendaram e o mandaram de volta para a pessoa que o estava machucando.
- Ei, doutor, o senhor está indo um pouco à nossa frente. Vamos conseguir a identificação, se houver, e depois deduziremos quem estava machucando o garoto.
- Ótimo. O caso é seu. Só que já vi isso uma centena de vezes. Golliher largou os relatórios e pegou os raios X. Bosch ficou
olhando com um sorriso curioso. Parecia que Golliher estava chateado por Bosch não ter saltado às mesmas conclusões com a mesma velocidade.
Golliher colocou dois raios X na caixa de luz. Então pegou sua pasta de papel e tirou os raios X que tinha feito do crânio da Wonderland. Acendeu a caixa de luz
e três raios X luziram diante dele. Golliher apontou para o raio X que havia tirado de sua pasta.
- Este é um raio X que tirei para olhar dentro do osso do crânio. Mas podemos usá-los para comparação. Amanhã, quando eu voltar ao Departamento de Medicina Legal,
vou usar o crânio em si.
Golliher se inclinou sobre a caixa de luz e pegou uma pequena lente guardada numa prateleira próxima. Encostou uma das extremidades no olho e apertou outra contra
os raios X. Depois de alguns instantes, passou para os raios X do hospital e encostou a lente no mesmo lugar do crânio. Foi e voltou numerosas vezes, fazendo comparação
após comparação.
Ao terminar, esticou as costas, encostou-se na bancada ao lado e cruzou os braços.
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- O Queen of Angels era um hospital mantido pelo governo. O dinheiro era sempre curto. Eles deveriam ter tirado mais de duas chapas da cabeça do garoto. Se tivessem,
talvez vissem outros ferimentos.
- Certo. Mas não tiraram.
- E, não tiraram. Mas, baseado no que fizeram e no que temos aqui, pude fazer várias comparações de pontos no rondei, no padrão de fraturas e ao longo da estrutura
escamosa. Não tenho qualquer dúvida.
Ele sinalizou para os raios X ainda iluminados na caixa.
- Conheça Arthur Delacroix. Bosch assentiu.
- Certo.
Golliher foi até a caixa de luz e começou a coletar os raios X.
- Até que ponto o senhor tem certeza?
- Como eu disse, não há dúvida. vou olhar o crânio amanhã quando for ao centro da cidade, mas posso dizer agora. É ele.
- Então, se pegarmos alguém e levarmos ao tribunal, não vão surgir surpresas, não é?
Golliher olhou para Bosch.
- Nenhuma surpresa. Essas descobertas não podem ser questionadas. Como o senhor sabe, o questionamento está na interpretação dos ferimentos. Fico olhando para este
menino e vejo uma coisa horrivelmente errada. E vou testemunhar isso. De bom grado. Mas o senhor tem esses registros oficiais.
Ele sinalizou, não dando importância para a pasta de registros hospitalares.
- Eles dizem que foi um skate. Aí estará a briga.
Bosch assentiu. Golliher recolocou os dois raios X na pasta de papel e fechou-a. Bosch guardou-a de volta em sua pasta.
- Bem, doutor, obrigado por ter tido tempo de me receber aqui. Acho...
- Detetive Bosch?
- Sim?
- No outro dia o senhor pareceu muito desconfortável quando mencionei a necessidade de fé no que fazemos. Basicamente, o senhor mudou de assunto.
- Não é de fato um assunto com o qual eu me sinta confortável.
- Eu imaginaria que na sua linha de trabalho seria fundamental ter uma espiritualidade saudável.
- Não sei. Meu parceiro gosta de culpar os extraterrestres por tudo que há de errado. Acho que isso também é saudável.
- O senhor está evitando a pergunta.
Bosch ficou chateado, e a sensação escorregou rapidamente na direção da raiva.
- Qual é o problema, doutor? Por que se importa tanto comigo e com aquilo em que acredito ou não?
- Porque é importante para mim. Eu estudo ossos. A estrutura da vida. E passei a acreditar que há algo mais do que sangue, carne e ossos. Há outra coisa que nos
mantém inteiros. Tenho uma coisa por dentro, que o senhor nunca verá, e nenhum raio X mostrará, uma coisa que me mantém inteiro e faz com que eu prossiga. E assim,
quando encontro uma pessoa que carrega um vazio no lugar onde eu levo a fé, fico com medo por ela.
Bosch olhou-o por longo momento.
- O senhor está errado em relação a mim. Tenho uma fé e tenho uma missão. Pode chamar de religião do uniforme azul, pode chamar do que quiser. É a crença de que
isso simplesmente não vai passar em branco. Que esses ossos saíram do chão por um motivo. Que saíram do chão para eu encontrá-los, e para eu fazer alguma coisa a
respeito. E é isso que me mantém inteiro e faz com que prossiga. E também não vai aparecer em nenhum raio X. Certo?
Ele encarou Golliher, esperando uma resposta. Mas o antropólogo ficou quieto.
- Tenho de ir, doutor - disse Bosch finalmente. - Obrigado pela ajuda. O senhor tornou as coisas muito claras para mim.
Deixou-o ali, rodeado pelos ossos escuros sobre os quais a cidade fora construída.
Capítulo 26
Edgar não estava em seu posto na mesa de homicídios quando Bosch voltou à sala do esquadrão.
- Harry?
Bosch levantou a cabeça e viu a tenente Billets parada na porta de sua sala. Através da janela de vidro viu Edgar lá dentro, sentado na frente da mesa. Bosch pousou
a pasta e foi para lá.
- O que há? - perguntou ao entrar na sala.
- Não, esta é a minha pergunta - disse Billets enquanto fechava a porta. - Temos uma identificação?
Ela foi para trás da mesa e se sentou, enquanto Bosch ocupava o lugar perto de Edgar.
- Sim, temos uma identificação. Arthur Delacroix, desaparecido em quatro de maio de mil novecentos e oitenta.
- A Medicina Legal diz isso?
- O cara dos ossos disse que não há dúvida.
- Até que ponto temos idéia do momento da morte?
- Uma boa idéia. O cara dos ossos disse, antes de sabermos alguma coisa, que o impacto fatal no crânio aconteceu uns três meses depois de o garoto ter tido uma fratura
anterior no crânio, que passou por cirurgia. Temos os registros dessa cirurgia. Onze de fevereiro de mil novecentos e oitenta, no Queen of Angels. Acrescente três
meses e nós estamos quase em cima da data: Arthur Delacroix
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desapareceu em quatro de maio, segundo a irmã. O ponto é que Arthur Delacroix estava morto quatro anos antes de Nicholas Trent se mudar para aquela rua. Acho que
isso o inocenta. Billets assentiu com relutância.
- Estou com o pessoal do Irving e da Assessoria de Imprensa no meu pé o dia inteiro por causa disso. Eles não vão gostar quando eu ligar de volta com a notícia.
- Que pena - disse Bosch. - É assim que a coisa está andando.
- Certo, então Trent não estava na rua em mil novecentos e oitenta. Já temos alguma coisa sobre onde ele estava?
Bosch soltou o fôlego e balançou a cabeça.
- Vocês não vão deixar isso de lado, vão? Precisamos nos con-
centrar no garoto.
- Não vou deixar porque eles não vão. O próprio Irving me ligou hoje cedo. Foi muito óbvio, sem ter de dizer as palavras. Se ficar claro que um inocente se matou
porque um policial vazou informações para a mídia que o fizeram cair no ridículo público, é mais um olho preto para o departamento. Já não tivemos humilhação suficiente
nos últimos dez anos?
Bosch sorriu sem qualquer sugestão de humor.
- Você está falando igualzinho a ele, tenente. Isso é realmente bom.
Foi a coisa errada para dizer. Deu para ver que a deixou magoada.
- É, bem, talvez eu esteja falando como ele porque concordo, pela primeira vez. O departamento só tem tido um escândalo depois do outro. Como a maioria dos policiais
decentes daqui, estou de saco cheio disso.
- bom. Eu também. Mas a solução não é torcer as coisas para se ajustarem às nossas necessidades. Este é um caso de homicídio.
- Eu sei, Harry. Não estou dizendo para torcer nada. Só estou dizendo que temos de ter certeza.
- Nós temos certeza. Eu tenho certeza.
Ficaram em silêncio por longo momento, os olhos de cada um evitando os dos outros.
- E a Kiz? - perguntou Edgar finalmente.
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Bosch deu um riso de desprezo.
- Irving não fará nada com Kiz. Ele sabe que vai ficar parecendo ainda pior, se tocar nela. Além disso, ela provavelmente é a melhor policial que eles têm lá no
terceiro andar.
- Você tem sempre tanta certeza, Harry - disse Billets. - Deve ser bom.
- bom, eu tenho certeza disso. Ele se levantou.
- E gostaria de voltar ao trabalho. Tem coisa acontecendo.
- Sei de tudo. Jerry estava me contando agora mesmo. Mas sente-se e vamos voltar a isso aqui por um minuto, certo?
Bosch sentou-se.
- Não posso simplesmente falar com Irving do modo como você falou comigo - disse Billiets. - vou fazer o seguinte: vou colocá-lo a par da identificação e de tudo
o mais. vou dizer como você está trabalhando no caso. Depois vou sugerir que ele designe a Divisão de Assuntos Internos para a investigação do passado de Trent.
Em outras palavras, se ele continuar sem se convencer das circunstâncias da identificação, pode mandar a DAI, ou quem ele quiser, investigar o passado de Trent para
ver onde ele estava em mil novecentos e oitenta.
Bosch apenas olhou para ela, sem dar indicação de que aprovava ou desaprovava o plano.
- Podemos ir agora?
- Sim, podem.
Quando voltaram à mesa de homicídios e se sentaram, Edgar perguntou a Bosch por que não tinha mencionado a teoria de que talvez Trent tivesse se mudado para a rua
porque sabia que os ossos
estavam no morro.
- Porque sua teoria do "escroto doentio" é remota demais para ir além desta mesa por enquanto. Se isso chegar a Irving, num instante vai aparecer num comunicado
à imprensa e vai se transformar no papo oficial. Bem, você conseguiu alguma coisa no computador ou não?
- Sim, consegui coisas. -O quê?
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- Em primeiro lugar, confirmei o endereço de Samuel Delacroix no Parque de Trailers Manchester. De modo que ele estará lá quando quisermos vê-lo. Nos últimos anos
ele cometeu duas infrações por direção imprudente. No momento tem uma carteira de motorista com restrições. Também fiz busca com o número do seguro social e descobri
uma coisa: ele trabalha para a prefeitura.
O rosto de Bosch demonstrou surpresa. -Faz o quê?
- Trabalha em meio expediente na área de treino de golfe municipal, perto do parque de Trailers. Liguei para o Departamento de Parques e Recreação, discretamente.
Delacroix dirige o carrinho que recolhe as bolas. Você sabe, no campo. O cara que todo mundo tenta acertar quando ele está lá. Acho que ele vem do Parque de Trailers
e faz isso duas vezes por dia.
- Certo.
- Depois, Christine Dorsett Delacroix, o nome que está na certidão de nascimento de Sheila. Botei o número do seguro social dela e descobri que agora está registrada
como Christine Dorsett Waters. O endereço é em Palm Springs. Deve ter ido para lá para se reinventar. Nome novo, vida nova, sei lá.
Bosch assentiu.
- Pegou o divórcio?
- Peguei. Ela pediu divórcio de Samuel Delacroix em setenta e três. O garoto devia ter uns cinco anos na época. Citou abuso mental e físico. Não foram incluídos
detalhes do que seriam os abusos. O processo nunca foi a julgamento, de modo que os detalhes não vieram à tona.
- Ele não contestou?
- Parece que fizeram um acordo. Ele ficou com a custódia dos dois filhos e não contestou. Numa boa. O processo tem umas doze páginas. Já vi alguns que têm vinte
centímetros de grossura. O meu, por exemplo.
- Se Arthur tinha cinco anos... alguns desses ferimentos são anteriores, segundo o antropólogo.
Edgar balançou a cabeça.
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- O resumo dizia que o casamento terminou três anos antes, e que eles estavam vivendo separados. De modo que parece que ela se mandou quando o garoto tinha uns dois
anos, como Sheila disse. Harry, você geralmente não fala da vítima usando o nome.
- É, e daí?
- Só estou notando.
- Obrigado. Mais alguma coisa no processo?
- É praticamente isso. Tenho cópias, se você quiser.
- Certo, e o amigo skatista?
- Achei também. Ainda está vivo, ainda mora na cidade. Mas há um problema. Procurei nos bancos de dados usuais e achei três John Stokes em L.A., que têm a idade
aproximada certa. Dois moram no Vale, os dois estão limpos. O terceiro é trambiqueiro. Múltiplas prisões por pequenos roubos, roubo de automóvel, invasão de domicílio
e posse de drogas, tudo remontando à prisão juvenil. Há cinco anos finalmente se esgotaram as segundas chances e ele foi mandado para cumprir pena em Corcoran. Ficou
dois anos e meio e saiu sob condicional.
- Você falou com o agente dele? Stokes ainda está pendurado?
- Falei com o agente, sim. Não, Stokes não está pendurado. Acabou a condicional há dois meses. O agente não sabe onde ele está.
- Droga.
- É, mas pedi que ele desse uma olhada na biografia do cliente. Diz que Stokes cresceu principalmente em Mid-Wilshire. Entrando e saindo de lares adotivos. Entrando
e saindo de encrenca. Tem de
ser o cara certo.
- O agente acha que ele ainda está em L.A.?
- Acha. A gente só precisa encontrar. Já pedi que a patrulha passasse no último endereço conhecido dele. Mudou-se de lá assim que terminou a condicional.
- Então ele está voando por aí. Lindo. Edgar assentiu.
- Temos de colocá-lo no computador - disse Bosch. - Comece com...
- Já fiz. Também redigi um boletim de busca e entreguei a Mankiewicz há um tempo. Ele prometeu ler em todas as reuniões. Também vou mandar copiar umas fotos para
botar nos pára-brisas.
- bom.
Bosch ficou impressionado. Conseguir fotos de Stokes para colocar no pára-brisa de cada radiopatrulha era o tipo de passo extra que em geral Edgar não se incomodava
em dar.
- Nós vamos pegar o cara, Harry. Não sei se vai servir para a gente, mas vamos pegar.
- Ele poderia ser uma testemunha-chave. Se Arthur... quero dizer, se a vítima contou a ele que o pai o espancava, temos alguma coisa.
Bosch olhou o relógio. Eram quase duas horas. Queria manter as coisas em movimento, manter a investigação focalizada e urgente. Para ele o mais difícil era esperar.
Fosse por resultados de laboratório ou que outros policiais agissem, era sempre nesses momentos que ficava mais agitado.
- O que vai fazer hoje à noite? - perguntou a Edgar.
- Esta noite? Não muita coisa.
- Vai ver seu filho?
- Não, só nas quintas. Por quê?
- Estou pensando em ir a Springs.
- Agora?
- É. Falar com a ex-mulher.
- Tudo bem. Posso ir sozinho. Só me dê o endereço.
- Não, vou junto.
- Tem certeza? Não precisa. Só não quero ficar aqui esperando que alguma coisa aconteça, sabe?
- É, Harry, eu sei.
Edgar se levantou e pegou o paletó no encosto da cadeira.
- Então vou informar à Bullets - disse Bosch.
Capítulo 27
Tinham percorrido mais de metade do deserto em direção a Palm Springs antes que qualquer um deles falasse.
- Harry - disse Edgar -, você não está falando.
- Eu sei.
A única coisa que eles sempre tiveram como parceiros era a capacidade de compartilhar longos silêncios. Sempre que Edgar sentia necessidade de romper o silêncio,
Bosch sabia que havia alguma coisa na mente dele, que ele queria falar.
- O que é, J. Edgar?
- Nada.
- O caso?
- Não, cara, nada. Estou numa boa.
- Então está certo.
Iam passando por uma fazenda de moinhos de vento. O ar estava morto. Nenhuma das lâminas se movia.
- Seus pais ficaram juntos? - perguntou Bosch.
- Sim, o tempo todo. - Edgar riu. - Acho que eles quiseram se separar algumas vezes, mas não fizeram isso. É, eles ficaram firmes. Acho que é assim que a coisa acontece.
O mais forte sobrevive.
Bosch assentiu. Os dois detetives eram divorciados, mas raramente falavam dos casamentos fracassados.
- Harry, ouvi falar de você com a "bota". O papo está correndo.
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Bosch assentiu. Era esse o assunto que Edgar queria puxar. Os recrutas do departamento costumavam ser chamados de "botas". A origem do termo era obscura. Uma escola
de pensamento dizia que era por causa dos campos de treinamento, chamados de "boot camps", outra dizia que era uma referência sarcástica aos recrutas serem as novas
botas do império fascista.
- Só estou dizendo para ter cuidado, cara. Você tem posto superior ao dela, certo?
- E, eu sei. vou pensar em alguma coisa.
- Pelo que ouvi dizer e vi, ela vale o risco. Mas mesmo assim você tem de ter cuidado.
Bosch não falou nada. Depois de alguns minutos passaram por uma placa dizendo que Palm Springs ficava a 22 quilômetros. Estava entardecendo. Bosch esperava bater
à porta da casa de Christine Waters antes de escurecer.
- Harry, você vai assumir a frente, quando a gente chegar?
- É, vou. Você pode ser o indignado.
- Vai ser fácil.
Assim que atravessaram a divisa da cidade entrando em Palm Springs, pegaram um mapa num posto de gasolina e atravessaram a cidade até encontrar o Frank Sinatra Boulevard
e pegá-lo em direção às montanhas. Bosch parou o carro perto da guarita de um lugar chamado Condomínio Mountaingate.
Um segurança uniformizado saiu da guarita, olhando o carro em que estavam e sorrindo.
- Vocês estão meio fora de sua área - disse ele.
Bosch assentiu e tentou dar um sorriso agradável. Mas isso só o fez parecer que tinha alguma coisa azeda na boca.
- Mais ou menos - respondeu.
- O que há?
- Viemos falar com Christine Waters, Deep Waters Drive, trezentos e doze.
- A sra. Waters sabe que vocês estão vindo?
- Não, a não ser que seja paranormal ou que você tenha dito a ela.
- Esse é o meu serviço. Espere um segundo.
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Ele voltou à guarita e Bosch o viu pegar um telefone.
- Parece que Christine Delacroix subiu mesmo de vida - comentou Edgar.
Ele estava olhando pelo pára-brisa para algumas das casas visíveis de onde se encontravam. Eram todas enormes, com gramados bem cuidados, de tamanho suficiente
para jogar futebol.
O guarda saiu, pôs as duas mãos no apoio da janela do carro e se inclinou para olhar Bosch.
- Ela quer saber do que se trata.
- Diga que falaremos na casa. Em particular. Diga que temos ordem judicial.
O guarda deu de ombros com um gesto do tipo "vocês é que sabem" e voltou para dentro. Bosch viu-o falar ao telefone por mais alguns instantes. Depois de ele desligar,
o portão se abriu lentamente. O guarda ficou parado junto à porta aberta e sinalizou para entrarem. Mas não sem uma última palavra.
- Sabem, esse papo de macho provavelmente funciona bem em L.A. Aqui no deserto simplesmente não...
Bosch não ouviu o resto. Passou pelo portão enquanto levantava a janela.
Encontraram a Deep Waters Drive na extremidade do condomínio. As casas pareciam ser uns dois milhões de dólares mais opulentas do que as construídas perto da entrada
do Mountaingate.
- Quem daria o nome de Deep Waters Drive a uma rua no deserto? - perguntou Edgar.
- Talvez alguém chamado Waters. Então Edgard percebeu.
- Droga. Você acha? Então ela realmente subiu de vida.
O endereço de Christine Waters correspondia a uma mansão de desenho espanhol contemporâneo no fim de uma rua sem saída na extremidade do condomínio Mountaingate.
Era definitivamente o terreno principal. A casa ficava num promontório que lhe dava a visão de todas as outras casas do condomínio, além de uma visão ampla do campo
de golfe que o rodeava.
A propriedade tinha sua própria entrada com portão, mas ele estava aberto. Bosch imaginou se sempre ficaria aberto ou se fora aberto para eles.
- Isso vai ser interessante - disse Edgar enquanto paravam num círculo de estacionamento feito de pedras encaixadas.
- Só se lembre que as pessoas podem mudar de endereço, mas não podem mudar quem são.
- Certo. Curso de homicídios, primeira aula.
Saíram e passaram sob o pórtico que levava à ampla porta dupla na frente. Antes que chegassem, ela foi aberta por uma mulher de uniforme de empregada, preto-e-branco.
Num forte sotaque hispânico disse que a sra. Waters estava esperando na sala de estar.
A sala tinha o tamanho e o ar de uma pequena catedral, com o teto a sete metros de altura e as traves do telhado expostas. No alto da parede virada para o leste
havia três grandes vitrais, um tríptico mostrando um pôr-do-sol, um jardim e uma lua nascendo. Na parede oposta havia seis portas deslizantes, lado a lado, dando
para um campo de golfe. A sala tinha dois grupos distintos de móveis, como se para acomodar duas reuniões diferentes ao mesmo tempo.
Sentada no meio de um sofá creme, no primeiro conjunto, havia uma mulher loura com rosto tenso. Seus olhos azul-claros seguiram os homens enquanto entravam e captavam
o tamanho da sala.
- Sra. Waters? - disse Bosch. - Sou o detetive Bosch, e este é o detetive Edgar. Somos do Departamento de Polícia de Los Angeles.
Ele estendeu a mão e ela a segurou, mas não apertou. Tomou-a por um momento e em seguida foi para a mão estendida de Edgar. Pela certidão de nascimento, Bosch sabia
que a mulher tinha 56 anos. Mas parecia quase uma década mais jovem, com o rosto liso e bronzeado como um testamento às maravilhas da moderna ciência médica.
- Por favor, sentem-se - disse ela. - Nem posso dizer como estou embaraçada por ter aquele carro diante da minha casa. Acho que a discrição não é a coisa de maior
valor quando se trata do DPLA.
Bosch sorriu.
- Bem, sra. Waters, também estamos meio embaraçados com ele, mas é o que nosso chefe nos dá para dirigir. Então é isso que usamos.
- De que se trata esta visita? O guarda do portão disse que os senhores têm uma ordem judicial. Posso vê-la?
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- Ah, ele deve ter entendido mal. Eu lhe disse que poderíamos conseguir uma ordem judicial, se a senhora se recusasse a nos receber.
- Tenho certeza de que foi isso - respondeu ela, com o tom de voz deixando claro que não acreditava. - Qual o motivo para desejarem me ver?
- Precisamos falar de seu marido.
- Meu marido está morto há cinco anos. Além disso, ele raramente ia a Los Angeles. O que ele poderia...
- Seu primeiro marido, sra. Waters. Samuel Delacroix. Precisamos falar sobre seus filhos também.
Bosch viu uma cautela surgir imediatamente nos olhos da mulher.
- Eu... eu não os vejo nem falo com eles há anos. Quase trinta.
- Quer dizer, desde que foi comprar remédio para o menino e se esqueceu de voltar para casa? - perguntou Edgar.
A mulher olhou-o como se ele tivesse lhe dado um tapa. Bosch tinha esperado que Edgar usasse um pouco mais de finesse ao bancar o indignado com ela.
- Quem contou isso aos senhores?
- Sra. Waters - disse Bosch. - Quero fazer algumas perguntas primeiro, e então poderemos ouvir as suas.
- Não entendo. Como me acharam? O que estão fazendo? Por que estão aqui?
Sua voz subiu em emoção a cada pergunta. Uma existência que tinha posto de lado há trinta anos estava subitamente se intrometendo na vida cuidadosamente organizada
que levava agora.
- Somos investigadores de homicídios, senhora. Estamos trabalhando num caso que pode envolver seu marido. Nós...
- Ele não é meu marido. Eu me divorciei há vinte e cinco anos, pelo menos. Isso é loucura, vocês virem aqui perguntar sobre um homem que nem conheço mais, que nem
sabia que estava vivo. Acho que devem ir embora. Quero que saiam.
Ela se levantou e estendeu a mão na direção da qual tinham vindo.
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Bosch olhou para Edgar e de novo depois para a mulher. A raiva dela tinha tornado irregular o bronzeado do rosto esculpido. Havia manchas começando a se formar,
revelação de cirurgia plástica.
- Sra. Waters, sente-se - disse Bosch, sério. - Por favor, tente relaxar.
- Relaxar? Vocês sabem quem sou? Meu marido construiu este lugar. As casas, o campo de golfe, tudo. Vocês não podem simplesmente vir aqui assim. Eu poderia pegar
o telefone e ter o chefe de polícia na linha em dois...
- Seu filho está morto, dona - disse Edgar rispidamente. - O filho que a senhora deixou para trás há trinta anos. Sente-se e deixe que façamos as perguntas.
Ela tombou no sofá como se seus pés tivessem sido chutados. Sua boca se abriu e depois se fechou. Os olhos não estavam mais fixos nele, estavam em alguma lembrança
distante.
- Arthur...
- Isso mesmo - disse Edgar. - Arthur. Ainda bem que a senhora pelo menos lembra o nome.
Olharam-na em silêncio durante alguns instantes. Todos os anos e toda a distância não haviam bastado. Ela ficou ferida com a notícia. Muito. Bosch tinha visto isso
antes. O passado possuía um modo de se desenterrar. Sempre debaixo dos pés da gente.
Bosch pegou o caderno no bolso e o abriu numa página em branco. Escreveu "Pega leve" e entregou o caderno a Edgar.
- Jerry, por que você não toma algumas notas? Acho que a sra. Waters quer cooperar conosco.
Sua fala retirou Christine Waters do devaneio. Ela olhou para Bosch.
- O que aconteceu? Foi o Sam?
- Não sabemos. É por isso que estamos aqui. Arthur está morto há muito tempo. Seus restos só foram encontrados na semana passada.
Ela levou lentamente o punho fechado à boca. Começou a bater com ele de leve nos lábios.
- Há quanto tempo?
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- Ele estava enterrado há vinte anos. Foi um telefonema de sua filha que nos ajudou a identificar.
-Sheila.
Era como se ela não falasse o nome há tanto tempo que tinha de experimentar, para ver se ainda funcionava.
- Sra. Waters, Arthur desapareceu em mil novecentos e oitenta. A senhora sabia disso?
Ela balançou a cabeça.
- Eu fui embora. Fui embora quase dez anos antes.
- E não teve nenhum contato com sua família?
- Pensei...
Ela não terminou. Bosch ficou esperando.
- Sra. Waters?
- Eu não podia levá-los. Era jovem e não podia assumir... a responsabilidade. Fugi. Admito. Fugi. Achei que seria melhor para eles não ter notícias minhas, nem saber
nada sobre mim.
Bosch assentiu de um modo que, ele esperava, sugeriria a concordância com o pensamento dela na época. Não importava que não concordasse. Não importava que sua mãe
tivesse enfrentado a mesma dureza de ter um filho cedo demais e em circunstâncias difíceis, mas ela se agarrou e o protegeu com uma ferocidade que inspirou sua
vida.
- A senhora escreveu cartas para eles depois de ir embora? Para seus filhos?
- Como o senhor sabia disso?
- Sheila contou. O que a senhora dizia na carta para Arthur?
- Eu só... só dizia que o amava e que sempre pensaria nele, mas que não podia ficar com ele. Não posso lembrar de tudo que disse. É importante?
Bosch deu de ombros.
- Não sei. Seu filho estava com uma carta. Pode ter sido a sua. Ela está deteriorada. Provavelmente nunca saberemos. Na petição de divórcio que a senhora fez alguns
anos depois de sair de casa, citou abuso físico como causa da ação. Preciso de que nos fale disso. O que era o abuso físico?
Ela balançou a cabeça de novo, desta vez como se a pergunta fosse incômoda ou estúpida.
- O que o senhor acha? Sam gostava de me espancar. Ficava bêbado e era como andar pisando em ovos. Qualquer coisa podia tirá-lo do sério, o bebê chorando, Sheila
falando alto demais. E eu era sempre o alvo.
- Ele batia na senhora?
- É, batia. Virou um monstro. Foi um dos motivos para eu ir embora.
- Mas a senhora deixou as crianças com o monstro - disse Edgar. Dessa vez ela não reagiu como se tivesse sido golpeada. Fixou
os olhos claros em Edgar com uma expressão mortal que o fez afastar os olhos indignados. Falou muito calmamente com ele.
- Quem é o senhor para julgar alguém? Eu tinha de sobreviver e não podia levá-los. Se eu tentasse, nenhum de nós sobreviveria.
- Tenho certeza de que eles entenderam isso - disse Edgar. A mulher se levantou de novo.
- Acho que não vou falar mais com os senhores. Tenho certeza de que podem achar a saída.
Ela foi para a porta em arco na extremidade da sala.
- Sra. Waters - disse Bosch. - Se não falar conosco agora, nós pegaremos aquele mandado judicial.
- Ótimo - disse ela sem olhar para trás. - Façam isso. Farei com que um dos meus advogados cuide
do assunto.
- E isso vai se tornar um registro público no tribunal da cidade. Era um jogo, mas Bosch achou que poderia fazer com que ela
parasse. Achava que a vida dela em Palm Springs era construída totalmente em cima dos segredos. E que não desejaria ninguém entrando em seu porão. Como Edgar, os
fofoqueiros sociais poderiam achar muito difícil enxergar suas ações e motivações do mesmo modo que ela. Bem no fundo, ela própria achava difícil, mesmo depois de
tantos anos.
Ela parou sob o arco, recompôs-se e voltou ao sofá. Olhando para Bosch, falou:
- Falarei apenas com o senhor. Quero que ele saia. Bosch balançou a cabeça.
- Ele é meu parceiro. O caso é nosso. Ele fica, sra. Waters.
- Mesmo assim só responderei às perguntas do senhor.
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- Ótimo. Por favor, sente-se.
Ela se sentou, desta vez na ponta do sofá mais distante de Edgar e mais perto de Bosch.
- Sei que a senhora quer ajudar a encontrar o assassino do seu filho. Tentaremos falar o mais rápido possível.
Ela assentiu uma vez.
- Fale de seu ex-marido.
- Toda a história sórdida? - perguntou bombasticamente. - vou lhe dar a versão curta. Eu o conheci numa aula de interpretação. Tinha dezoito anos. Ele era sete anos
mais velho, já havia feito alguns filmes, e além do mais era muito, muito bonito. Pode-se dizer que caí rapidamente sob seu feitiço. E fiquei grávida antes dos dezenove
anos.
Bosch verificou Edgar, para ver se ele estava anotando alguma coisa. Edgar captou o olhar e começou a escrever.
- Nos casamos e Sheila nasceu. Não segui carreira. Tenho de admitir que não era tão dedicada assim. Interpretar simplesmente pareceu uma coisa a se fazer, na época.
Eu tinha boa aparência, mas logo descobri que toda garota em Hollywood tinha boa aparência. Eu me sentia feliz em ficar em casa.
- Como seu marido aceitou isso?
- A princípio, muito bem. Ele tinha um papel fixo em First Infantry. O senhor chegou a assistir?
Bosch assentiu. Era um seriado de televisão sobre a Segunda Guerra Mundial que havia passado no final dos anos sessenta, até que o sentimento público com relação
à Guerra do Vietnã e à guerra em geral levou à diminuição da audiência e a série foi cancelada. A história acompanhava um pelotão do exército que se movia por trás
das linhas alemãs a cada semana. Bosch gostava do seriado quando era garoto, e sempre tentava assistir, quer estivesse num lar adotivo ou no abrigo para crianças.
- Sam era um dos alemães. Por causa do cabelo louro e da aparência ariana. Participou nos últimos dois anos. Até eu ficar grávida de Arthur.
Ela deixou um silêncio pontuar isso.
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- Então a série foi cancelada por causa daquela estúpida guerra no Vietnã. Foi cancelada e Sam teve dificuldade de arranjar trabalho. Ficou marcado como aquele alemão.
E começou a beber de verdade. E a bater em mim. Passava o dia indo a testes de elenco e não conseguindo nada. Então passava a noite bebendo e ficando com raiva
de mim.
- Por que da senhora?
- Porque eu é que tinha ficado grávida. Primeiro de Sheila, e depois de Arthur. Nenhum dos dois foi planejado, e aquilo tudo era pressão demais para ele. Ele descontava
em quem estivesse perto.
- Agredia a senhora?
- Agredia? Isso parece clínico demais. Mas sim, ele me agredia. Muitas vezes.
- A senhora o viu bater nas crianças alguma vez?
Era a pergunta-chave que tinham vindo fazer. Todo o resto era arrumação de vitrine.
- Não especificamente. Quando eu estava grávida de Arthur ele me bateu uma vez. Na barriga. Isso arrebentou a bolsa-d'água. Entrei em trabalho de parto umas seis
semanas antes da época certa. Arthur pesava pouco mais de dois quilos quando nasceu.
Bosch esperou. O modo como ela estava falando dava a entender que iria dizer mais, desde que ele lhe desse espaço. Olhou pela porta deslizante atrás dela, para o
campo de golfe. Havia uma profunda armadilha de areia guardando um putting green. Um homem de camisa vermelha e calças xadrez estava na armadilha, batendo numa bola
invisível. Jorros de areia voavam da armadilha para o gramado. Mas nada da bola.
À distância, três outros jogadores saíram de dois carrinhos parados do outro lado do green. A borda da armadilha de areia os escondia do homem de camisa vermelha.
Enquanto Bosch observava, o homem olhou de um lado para o outro procurando testemunhas, depois se abaixou e pegou a bola. Jogou-a no gramado, dando-lhe o belo arco
de uma tacada perfeita. Depois saiu da armadilha, segurando o taco com as duas mãos ainda no cabo, com uma postura sugerindo que tinha acabado de acertar a bola.
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Por fim, Christine Waters começou a falar de novo e Bosch olhou-a.
- Arthur só pesava dois quilos e duzentos quando nasceu. Durante todo aquele primeiro ano ele era muito pequeno e muito doente. Nunca falávamos disso, mas acho que
ambos sabíamos que o que Sam fez tinha prejudicado o menino. Ele simplesmente não era saudável.
- Afora o incidente em que ele bateu na senhora, a senhora nunca o viu bater em Arthur ou Sheila?
- Ele pode ter espancado Sheila. Não lembro. Sam nunca batia nas crianças. Quero dizer, ele tinha a mim para bater.
Bosch assentiu. A conclusão não-verbalizada era de que, assim que ela foi embora, quem sabe quem viraria o alvo? Bosch pensou nos ossos espalhados sobre a mesa de
autópsia e em todos os ferimentos que o dr. Golliher tinha catalogado.
- Meu mari... Sam está preso? Bosch olhou-a.
- Não. Na verdade estamos no estágio de levantar fatos. A indicação dos restos de seu filho é de que houve uma história de abusos físicos crônicos. Só estamos tentando
deduzir as coisas.
- E Sheila? Ela foi...
- Não perguntamos especificamente. Vamos perguntar. Sra. Waters, quando a senhora apanhava de seu marido, era sempre com a mão?
- Algumas vezes ele me batia com coisas. Uma vez com um sapato, lembro. Ele me segurou no chão e me bateu com ele. E uma vez jogou a pasta em cima de mim. Me
acertou no lado do corpo.
Ela balançou a cabeça.
- O que foi?
- Nada. Só aquela pasta. Sam a levava para todos os testes. Como se ele fosse muito importante e tivesse muita coisa acontecendo. E dentro dela só havia algumas
fotos e uma garrafinha.
A amargura queimava em sua voz, mesmo depois de tantos anos.
- Alguma vez a senhora foi a um hospital ou a uma emergência? Existe algum registro físico dos abusos?
Ela balançou a cabeça.
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- Ele nunca me machucou a ponto de eu precisar. A não ser quando tive Arthur, e aí eu menti. Falei que caí e que a bolsa-d'água estourou. Veja bem, detetive, essa
não era uma coisa que eu queria que o mundo soubesse.
Bosch assentiu.
- Quando a senhora partiu, isso foi planejado? Ou simplesmente foi embora?
Ela não respondeu por um longo instante, enquanto olhava primeiro a lembrança em sua tela interna.
- Escrevi as cartas para as crianças muito antes de ir embora. Andava com elas na bolsa e esperava a hora certa. Na noite em que fui embora, coloquei-as debaixo
dos travesseiros deles e saí com a bolsa de mão e a roupa do corpo. E com meu carro, que meu pai tinha me dado quando nos casamos. Só isso. Eu já estava farta.
Falei que precisávamos de remédio para Arthur. Ele tinha bebido. Disse para eu ir comprar.
- E a senhora nunca voltou.
- Nunca. Depois de cerca de um ano, antes de vir para Palm Springs, passei diante da casa à noite. Vi as luzes acesas. Não parei.
Bosch assentiu. Não pensava em mais nada para perguntar. Ainda que as lembranças da mulher sobre aquela época de sua vida fossem boas, o que ela estava lembrando
não ajudaria a montar um processo contra o ex-marido por um assassinato cometido dez anos depois de ela tê-lo visto pela última vez. Talvez Bosch soubesse disso
o tempo todo, que ela não seria uma parte vital do caso. Talvez só quisesse avaliar uma mulher que tinha abandonado os filhos, deixando-os com um homem que ela
considerava
um monstro.
-Como ela é?
Bosch ficou momentaneamente perplexo com a pergunta.
- Minha filha.
- Hmm, é loura como a senhora. Um pouco mais alta, mais pesada. Não tem filhos, não se casou.
- Quando Arthur vai ser enterrado?
- Não sei. A senhora teria de ligar para o Departamento de Medicina Legal. Ou poderia verificar com Sheila se...
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Ele parou. Não podia se envolver no remendo dos buracos de trinta anos na vida das pessoas.
- Acho que terminamos aqui, sra. Waters. Agradecemos a cooperação.
- Sem dúvida - disse Edgar, com o sarcasmo marcando presença.
- Os senhores vieram até aqui para fazer tão poucas perguntas.
- Acho que é porque a senhora deu tão poucas respostas - disse Edgar.
Foram até a porta e ela seguiu alguns passos atrás. Do lado de fora, sob o pórtico, Bosch olhou para a mulher parada junto à porta aberta. Os dois sustentaram o
olhar durante um momento. Ele pensou em alguma coisa para dizer. Mas não tinha nada. Ela fechou a porta.
Capítulo 28
Entraram no estacionamento da delegacia pouco antes das onze. Fora um dia de dezesseis horas de trabalho que havia rendido muito pouco em termos de provas que pudessem
levar o caso até um processo. Mesmo assim, Bosch estava satisfeito. Tinham a identificação, e isso era o centro da roda. Todas as coisas resultariam disso.
Edgar se despediu e foi direto para seu carro sem entrar na delegacia. Bosch queria verificar com o sargento de plantão se fora descoberta alguma coisa sobre Johnny
Stokes. Também queria verificar recados, e sabia que se ficasse por ali até as onze talvez visse Julia Brasher saindo do turno. Queria falar com ela.
A delegacia estava silenciosa. Os policiais do turno da meianoite estavam na sala de reuniões. Os sargentos de plantão que entravam e saíam também estariam lá. Bosch
foi pelo corredor até o birô de detetives. As luzes estavam apagadas, o que violava uma ordem do escritório do chefe de polícia. O chefe havia determinado que as
luzes no Parker Center e em cada delegacia jamais deveriam ser apagadas. Seu objetivo era dizer ao público que a luta contra o crime nunca dormia. O resultado era
que as luzes brilhavam a noite toda em salas vazias da polícia por toda a cidade.
Bosch acendeu a fileira de luzes sobre a mesa de homicídios e foi até o seu lugar. Havia vários papéis cor-de-rosa de recados telefônicos, e ele os examinou, mas
todos eram de repórteres ou relacionados
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a outros casos que ele tinha pendentes. Jogou os recados dos repórteres na lata de lixo e colocou os outros na gaveta de cima, para examinar no dia seguinte.
Havia dois envelopes de despachos do departamento esperando por ele. O primeiro continha o relatório de Golliher, e Bosch o colocou de lado para ler mais tarde.
Pegou o segundo e viu que era da DIC. Percebeu que tinha se esquecido de ligar para Antoine Jesper para falar do skate.
Ia abrir o envelope quando percebeu que ele fora jogado sobre um pedaço de papel dobrado em cima de seu borrador. Desdobrou e leu
o recado curto. Sabia que era de Julia, mesmo estando sem assinatura.
Onde você está, valentão?
Tinha se esquecido de que dissera para ela passar pela sala do esquadrão antes de começar o turno de serviço. Sorriu para o bilhete, mas sentiu-se mal por ter esquecido.
Também pensou no alerta de Edgar para ter cuidado com o relacionamento.
Dobrou o papel de novo e pôs na gaveta. Imaginou como Julia reagiria ao assunto do qual ele desejava falar. Estava morto de cansado das longas horas de trabalho,
mas não queria esperar até o dia seguinte.
O envelope de despacho da DIC continha uma página de análise feita por Jesper. Bosch leu rapidamente. Jesper confirmava que o skate era feito pela Boneyard Boards,
Inc., uma fábrica de Huntington Beach. O modelo era chamado de "Boney Board". O modelo específico foi fabricado de fevereiro de 1978 até junho de 1986, quando variações
de projeto criaram uma ligeira mudança no nariz da prancha.
Antes que Bosch pudesse ficar empolgado pelas implicações de uma combinação entre o skate e a época do caso, leu o último parágrafo, que colocou qualquer combinação
em dúvida.
As bases (os conjuntos de rodas) são de um desenho implementado pela Boneyard em maio de 1984. As rodas de grafite também indicam
uma fabricação posterior. As rodas de grafite só ficaram comuns na indústria em meados dos anos oitenta. Mas como as rodas e as bases são intercambiáveis e freqüentemente
trocadas pelos usuários, é impossível determinar a data exata de fabricação do skate
examinado. A melhor estimativa, na falta de provas mais concretas, é entre
fevereiro de 1978 e junho de 1986.
Bosch enfiou o relatório de volta no envelope de despachos e o deixou na mesa. O relatório não era conclusivo, mas para Bosch os fatores que Jesper tinha delineado
tendiam para que o skate não tivesse sido de Arthur Delacroix. Em sua mente o relatório tendia mais para inocentar do que para implicar Nicholas Trent na morte do
garoto. De manhã ele redigiria um relatório com suas conclusões e o daria à tenente Billets para mandar à sala do subchefe Irving.
Como se para pontuar o fim dessa linha de investigação, o som da porta dos fundos da delegacia se abrindo ecoou pelo corredor. Várias vozes masculinas soaram, todas
saindo para a noite. A reunião tinha acabado, e novas tropas assumiam o campo, com as vozes cheias de bravatas do tipo "nós contra eles".
Apesar dos desejos do chefe de polícia, Bosch apagou a luz e voltou pelo corredor até a sala do plantão. Havia dois sargentos no pequeno escritório. Lenkov estava
saindo do serviço e Renshaw ia começar o turno. Os dois demonstraram surpresa pelo aparecimento de Bosch tão tarde, mas não perguntaram o que ele estava fazendo
na delegacia.
- Então - disse Bosch -, alguma coisa sobre o cara que pedi, Johnny Stokes?
- Nada ainda - respondeu Lenkov. - Mas estamos olhando. Estamos falando nas reuniões e mandei colocar as fotos nos carros. De modo que...
- Vocês me avisam.
- Nós avisaremos.
Renshaw assentiu, concordando.
Bosch pensou em perguntar se Julia Brasher tinha vindo terminar o turno, mas refletiu melhor. Agradeceu e voltou ao corredor.
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A conversa tinha parecido estranha, como se os dois mal esperassem que ele saísse dali. Bosch sentiu que era por causa do boato que corria sobre ele e Julia. Talvez
soubessem que ela estava encerrando o turno e não quisessem vê-los juntos. Como supervisores, seriam testemunhas de uma infração na política do departamento. Por
menos importante que a regra fosse, e por mais raramente que fosse imposta, as coisas seriam melhores se eles não vissem a infração e não tivessem de desviar o olhar.
Bosch saiu pelos fundos e foi para o estacionamento. Não tinha idéia se Julia estava no vestiário, ainda em patrulha ou se já teria vindo e ido embora. Cada policial
só voltava quando o sargento do plantão mandasse um substituto.
Achou o carro dela no estacionamento e soube que não tinham se desencontrado. Voltou para a delegacia para se sentar no banco Código 7, mas quando chegou, Julia
já estava ali, seu cabelo ligeiramente úmido do chuveiro do vestiário. Ela usava jeans desbotados e um pulôver de mangas compridas e gola alta.
- Ouvi dizer que você estava na casa - disse ela. - Vi a luz apagada e achei que talvez tivesse me desencontrado de você.
- Só não conte ao chefe sobre a luz.
Ela sorriu e Bosch sentou-se ao lado. Queria tocá-la, mas não o fez.
- Ou sobre nós - acrescentou ele.
- E. Um monte de gente sabe, não é?
- E. Eu queria falar disso. Você pode tomar uma bebida?
- Claro.
- Vamos andar até o Cat and Fiddle. Estou cansado de dirigir. Em vez de atravessarem a delegacia juntos e saírem pela porta
da frente, fizeram o caminho mais longo pelo estacionamento e dando a volta. Caminharam dois quarteirões até o Sunset e mais dois até o pub. No caminho Bosch se
desculpou por não tê-la encontrado na sala do esquadrão antes do turno, e explicou que tinha ido a Palm Springs. Ela ficou muito quieta enquanto andavam, principalmente
confirmando com a cabeça ao ouvir as explicações. Só falaram do assunto principal quando chegaram ao bar e ocuparam um dos reservados perto da lareira.
Os dois pediram canecas de Guinness. Então Julia cruzou os braços sobre a mesa e fixou Bosch com um olhar duro.
- Certo, Harry, minha bebida está vindo. Pode começar. Mas devo avisar, se vai dizer que só quer ser meu amigo, bem, já tenho amigos suficientes.
Bosch não conseguiu evitar um sorriso largo. Adorava a ousadia dela, o modo direto. Começou a balançar a cabeça.
- Não, não quero ser seu amigo, Julia. De jeito nenhum.
Ele estendeu a mão sobre a mesa e apertou o braço dela. Instintivamente, olhou em volta para se certificar de que nenhum outro policial tinha entrado para uma bebida
depois do turno. Não reconheceu ninguém e olhou de volta para Julia.
- O que quero é ficar com você. Como estamos.
- bom. Eu também.
- Mas precisamos ter cuidado. Você não está no departamento por tempo suficiente. Eu estou e sei como são as coisas, de modo que a culpa é minha. Nunca deveríamos
ter deixado seu carro na delegacia na primeira noite.
- Ora, fodam-se, se eles não entendem uma piada. -Não, é...
Ele esperou enquanto a garçonete colocava as cervejas em pequenos descansos de papel com o logotipo da Guinness.
- Não é assim, Julia - disse, quando estavam a sós de novo. Se vamos continuar, precisamos ter mais cuidado. Temos de passar para a clandestinidade. Chega de encontros
no banco, chega de bilhetes, chega dessas coisas. Nem podemos mais vir aqui, porque os policiais também vêm. Precisamos ficar totalmente clandestinos. Vamos nos
encontrar fora da delegacia, conversar fora da delegacia.
- Pelo modo como você fala, parece que somos dois espiões ou algo assim.
Bosch pegou sua caneca, bateu na dela e tomou um gole comprido. O gosto era ótimo depois de um dia tão longo. Imediatamente teve de conter um bocejo, que Julia
pegou e repetiu.
- Espiões? Não está muito longe. Você se esquece de que estou no departamento há mais de vinte e cinco anos. Você é apenas uma
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recruta, neném. Tenho mais inimigos aqui do que o número de prisões que você fez. Algumas dessas pessoas aproveitariam qualquer oportunidade para me derrubar, se
pudessem. Parece que só estou me preocupando comigo, mas o negócio é que, se eles precisarem derrubar uma recruta para me ferrar, vão fazer isso sem vacilar. Estou
falando sério. Sem vacilar.
Ela baixou a cabeça e olhou para os dois lados.
- Certo, Harry. Quero dizer, agente secreto zero-zero-quarenta-e-cinco.
Bosch sorriu e balançou a cabeça.
- E, você acha que é tudo piada. Espere até ser investigada pela primeira vez pelo DAI. Aí você verá a luz.
- Qual é? Não acho que seja piada. Só estou me divertindo. Os dois beberam. Bosch se recostou e tentou relaxar. O calor
da lareira era bom. A caminhada tinha sido rápida. Olhou para Julia e ela estava sorrindo como se soubesse um segredo sobre ele. -O que é?
- Nada. Você fica todo abalado.
- Só estou tentando protegê-la. Só isso. Tenho mais de vinte e cinco anos de serviço, de modo que para mim não importa tanto.
- O que isso quer dizer? Ouço as pessoas dizendo isso há mais de vinte e cinco anos, como se fossem intocáveis ou algo assim.
Bosch balançou a cabeça.
- Ninguém é intocável. Mas depois de completar vinte e cinco anos de serviço você chega ao topo da escala de aposentadoria. De modo que não importa se você sai com
vinte e cinco ou trinta e cinco anos, a aposentadoria é a mesma. De modo que "mais de vinte e cinco" significa que você tem algum espaço para o "foda-se". Se não
gostar do que eles estão fazendo, pode simplesmente puxar o freio e dizer bom dia. Porque não vai se preocupar mais com o pagamento e os benefícios.
A garçonete voltou à mesa e colocou uma cesta de pipocas. Julia deixou passar algum tempo e depois se inclinou sobre a mesa, com o queixo quase em cima da borda
da caneca.
- Então, por que você continua?
Bosch deu de ombros e olhou para seu copo.
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- Pelo serviço, acho... Nada grande, nada heróico. Só pela chance de talvez fazer a coisa certa de vez em quando nesse mundo fodido.
Ele usou o polegar para fazer desenhos no vidro embaçado da caneca.
- Este caso, por exemplo...
- O que é que tem?
- Se a gente conseguir deduzir e resolver... talvez possa compensar um pouquinho o que aconteceu com o garoto. Não sei, acho que pode significar alguma coisa,
uma coisa bem pequenina, para o mundo.
Pensou no crânio que Golliher tinha lhe mostrado naquela manhã. Uma vítima de assassinato enterrada em piche por nove mil anos. Uma cidade de ossos, e todos esperando
para sair do chão. Para quê? Talvez ninguém se importasse mais.
- Não sei - disse ele. - Talvez não signifique nada a longo prazo. Terroristas suicidas atacam Nova York e três mil pessoas estão mortas antes de terminar a primeira
xícara de café. O que uns poucos ossos enterrados no passado importam?
Ela deu um sorriso doce e balançou a cabeça.
- Não dê uma de existencialista para cima de mim, Harry. O importante é que isso significa alguma coisa para você. E se significa alguma coisa, é importante fazer
o que você puder. Não importa o que aconteça no mundo, sempre haverá necessidade de heróis. Espero que um dia eu tenha chance de ser.
- Talvez.
Ele assentiu e manteve o olhar longe dela. Brincou mais um pouco com a caneca.
- Você se lembra daquele comercial que passava na TV, onde uma velha está caída no chão e diz: "eu caí e não consigo me levantar", e todo mundo ria?
- Lembro. Em Venice Beach vendem camiseta onde isso está escrito.
- E, bem... algumas vezes me sinto assim. Quero dizer, com mais de vinte e cinco. Você não pode percorrer essa distância sem fazer algumas merdas. Você cai, Julia,
e algumas vezes sente que não consegue se levantar.
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Ele assentiu para si mesmo.
- Mas aí você tem sorte e aparece um caso, e você diz: é este. Eu posso ficar de pé de novo com este.
- Isso se chama redenção, Harry. Como é que diz aquela música?, "Todo mundo quer uma oportunidade".
- Mais ou menos. E.
- E talvez esse caso seja a sua oportunidade?
- E, acho que é. Espero que sim.
- Então bebamos à redenção.
Ela pegou sua caneca para um brinde.
- Fique firme - disse Bosch.
Julia bateu na caneca dele. Parte da cerveja caiu na caneca de Bosch, que estava quase vazia.
- Desculpe. Preciso treinar.
- Tudo bem. Eu estava precisando de mais um pouco.
Ele levantou a caneca e bebeu o resto. Colocou-a de novo na mesa e enxugou a boca com as costas da mão.
- Então, você vem comigo para minha casa esta noite? - perguntou ele.
Julia balançou a cabeça.
- Não, não vou com você.
Ele franziu a testa e começou a imaginar se o tom direto a havia ofendido.
- vou acompanhar você até sua casa - disse ela. - Lembra? Não posso deixar o carro na delegacia. Daqui em diante, tudo tem de ser altamente secreto, discreto, somente
para os nossos olhos.
Ele sorriu. A cerveja e o sorriso dela eram como magia.
- Você me pegou.
- Espero que em mais de um sentido.
Capítulo 29
Bosch chegou tarde para a reunião na sala da tenente Billets. Edgar já estava lá, o que era uma raridade, bem como Medina, da Assessoria de Imprensa. Billets apontou
uma cadeira com uma caneta que estava segurando, depois pegou o telefone e digitou um número.
- Aqui é a tenente Billets - disse quando foi atendida. - Pode dizer ao chefe Irving que estamos todos aqui, e prontos para começar.
Bosch olhou para Edgar e levantou as sobrancelhas. O subchefe continuava com as mãos diretamente no caso. Billets desligou e disse:
- Ele vai ligar de volta, e vou colocá-lo no viva-voz.
- Para ouvir ou falar? - perguntou Bosch.
- Quem sabe?
- Enquanto estamos esperando - disse Medina -, comecei a receber alguns telefonemas com relação a um boletim de busca que vocês emitiram. Um sujeito chamado John
Stokes. Como querem que eu cuide disso? Ele é suspeito?
Bosch ficou chateado. Sabia que o boletim distribuído nas reuniões acabaria vazando para a mídia. Não previa que isso fosse acontecer tão depressa.
- Não, ele não é suspeito. E se os repórteres ferrarem com isso, como fizeram com Trent, jamais vamos encontrá-lo. E só uma
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pessoa com quem queremos falar. Ele conhecia a vítima. Há muitos anos.
- Então vocês têm a identificação da vítima?
Antes que Bosch pudesse responder, o telefone tocou. Billets atendeu e colocou o subchefe Irving no viva-voz.
- Chefe, estamos com os detetives Bosch e Edgar aqui, além do policial Medina, da Assessoria de Imprensa.
- Muito bem - a voz de Irving estrondeou pelo alto-falante. Em que pé estamos?
Billets começou a pressionar um botão no telefone para baixar o volume.
- Ah, Harry por que não assume isso? - disse ela.
Bosch enfiou a mão no bolso de dentro do paletó e pegou seu caderno. Demorou algum tempo fazendo isso. Gostava da idéia de Irving sentado atrás de sua imaculada
mesa de vidro na sala do Parker Center, esperando as vozes pelo telefone. Abriu o caderno numa página cheia de anotações que tinha feito naquela manhã, enquanto
tomava o café com Julia.
- Detetive, você está aí? - disse Irving.
- Ah, sim, senhor. Estou aqui mesmo. Só estava examinando algumas anotações. Hmm, o principal é que temos a identificação positiva da vítima. O nome é Arthur Delacroix.
Desapareceu de casa na área da Miracle Mile em quatro de maio de mil novecentos e oitenta. Tinha doze anos.
Ele parou, prevendo perguntas. Notou que Medina estava anotando o nome.
- Não sei se queremos divulgar isso já - disse Bosch.
- Por quê? - perguntou Irving. - Quer dizer que a identificação não é positiva?
- Não, ela é positiva, chefe. Só acho que, se divulgarmos o nome, estaremos telegrafando a direção em que iremos.
- E qual é ela?
- Bem, temos bastante confiança em que Nicholas Trent estava limpo nesse caso. Por isso estamos procurando em outro lugar. A autópsia, os ferimentos nos ossos, indicam
abuso infantil crônico, desde a mais tenra idade. A mãe estava fora de quadro, de modo
que agora estamos examinando o pai. Ainda não o abordamos. Estamos juntando corda. Se anunciarmos que temos a identidade e o pai souber, iremos avisar a ele antes
de haver necessidade.
- Se o sujeito enterrou o garoto, ele já foi alertado.
- Até certo ponto. Mas ele sabe que se não tivermos uma identificação legítima nunca iremos ligá-lo ao crime. A falta de identificação é o que o mantém em segurança.
E nos dá tempo para investigar.
- Entendido - disse Irving.
Ficaram em silêncio por alguns instantes, Bosch esperando que Irving dissesse alguma coisa. Mas não disse. Bosch olhou para Billets e abriu as mãos num gesto de
"e aí?". Ela deu de ombros.
Silêncio. Depois:
- Acho que é o rumo de ação mais prudente - disse Irving. Medina arrancou a página que tinha anotado no caderno, amassou e jogou numa lata de lixo no canto.
- Há alguma coisa que a gente possa divulgar? - perguntou ele.
- Sim - disse Bosch rapidamente. - Podemos inocentar Trent.
-Negativo - retrucou Irving de modo igualmente rápido. - Faremos isso no final. Quando, e se, vocês conseguirem um processo, limparemos o resto.
Bosch olhou para Edgar, e depois para Billets.
- Chefe - disse ele. - Se fizermos isso podemos estar prejudicando nosso caso.
- Como assim?
- É um caso antigo. Quanto mais antigo, mais remota a possibilidade de solução. Não podemos nos arriscar. Se não formos a público dizer que Trent é inocente, daremos
uma defesa ao cara que eventualmente pegarmos. Ele poderá apontar para Trent e dizer que ele era um molestador de crianças, que ele cometeu o crime.
- Mas ele poderá fazer isso, quer inocentemos Trent agora ou mais tarde.
Bosch assentiu.
- Certo. Mas estou olhando segundo o ponto de vista de testemunhar num julgamento. Quero poder dizer que nós verificamos Trent e o inocentamos rapidamente. Não quero
um advogado me perguntando por que, se o inocentamos tão rapidamente, esperamos
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uma ou duas semanas para anunciar. Chefe, vai parecer que estávamos escondendo alguma coisa. Vai ser sutil, mas terá impacto. As pessoas nos júris procuram qualquer
motivo para não confiar nos policiais em geral e no DPLA em par...
- Certo, detetive, você defendeu seu argumento. Minha decisão permanece. Não haverá anúncio sobre Trent. Não agora, enquanto não tivermos um suspeito sólido que
possamos divulgar.
Bosch balançou a cabeça e se afrouxou um pouco na cadeira.
- O que mais? - disse Irving. - Tenho uma reunião com o chefe dentro de alguns minutos.
Bosch olhou para Billets e balançou a cabeça de novo. Não tinha mais nada que quisesse compartilhar. Billets falou:
- Chefe, neste momento acho que é só isso.
- Quando vocês planejam abordar o pai, detetives? Bosch apontou o queixo para Edgar.
- Ha, chefe, este é o detetive Edgar. Ainda estamos procurando uma testemunha com quem talvez seja importante falar antes de abordar o pai. É um amigo de infância
da vítima. Achamos que ele pode saber sobre os abusos que o garoto sofria. Estamos planejando dedicar o dia a isso. Achamos que ele está aqui em Hollywood e temos
várias pessoas de olho no...
- Sim, ótimo, detetive. Retomaremos esta conversa amanhã de manhã.
- Sim, chefe - disse Billets. - Às nove e meia de novo? Não houve resposta. Irving já havia desligado.
Capítulo 30
Bosch e Edgar passaram o resto da manhã atualizando os relatórios e o caderno do assassinato, e ligando para hospitais de toda a cidade para cancelar os mandados
de busca que tinham pedido na manhã de segunda-feira. Mas ao meio-dia Bosch já estava cheio de trabalhar na sala e disse que tinha de sair da delegacia.
- Aonde você quer ir? - perguntou Edgar.
- Estou cansado de ficar esperando. Vamos dar uma olhada nele.
Usaram o carro particular de Edgar, porque não tinha identificações da polícia e não restava nenhum veículo não-oficial na garagem. Pegaram a 101 entrando no Vale
e depois a 405 para o norte, antes de sair em Van Nuys. O Parque de Trailers Manchester ficava na Sepulveda, perto da Victory. Passaram por ele uma vez antes de
voltar e entrar.
Não havia guarita, só um quebra-molas listrado de amarelo. A estrada do parque cercava a propriedade, e o traikr de Sam Delacroix ficava na parte de trás, encostado
num muro de isolamento acústico de seis metros de altura perto da via expressa. Tudo que ele fazia era alterar e redirecionar o som, que continuava presente.
O traikr era pequeno, com manchas de ferrugem escorrendo da maioria dos rebites de aço pela pele de alumínio. Havia um toldo com uma mesa de piquenique e uma churrasqueira
embaixo. Um varal de roupas ia de um dos mastros de suporte do toldo até o
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outro traikr na fila. Perto dos fundos do pequeno quintal, um barracão de alumínio mais ou menos do tamanho de um banheiro externo ficava encostado no muro de isolamento
acústico.
As janelas e a porta do trailer estavam fechadas. Não havia veículo na vaga solitária. Edgar manteve o carro andando a dez quilômetros por hora.
- Parece que não tem ninguém em casa.
- Vamos tentar a área de treino de golfe - sugeriu Bosch. - Se ele estiver lá, talvez você possa dar tacadas num balde de bolas ou algo assim.
- Eu sempre gosto de treinar.
A área de treino tinha poucos clientes quando eles chegaram, mas parecia que a manhã fora movimentada. Havia bolas de golfe por todo o campo, que tinha trezentos
metros de comprimento, estendendo-se até o mesmo muro de isolamento acústico que ficava nos fundos do parque. No fim da propriedade havia uma rede presa em postes
altos para proteger os motoristas da via expressa das bolas longas. Um pequeno trator com coletores de bolas na traseira atravessava lentamente a parte mais distante
do campo, com o motorista seguro numa gaiola de proteção.
Bosch ficou olhando por alguns instantes enquanto Edgar vinha com meio balde de
bolas e sua sacola de golfe, que estivera no porta-malas do carro.
- Acho que é ele - disse Edgar. -É.
Bosch foi até um banco e se sentou para olhar o parceiro dar algumas tacadas a partir de um pequeno quadrado de grama de borracha. Edgar havia tirado a gravata e
o paletó. Não parecia muito deslocado. Dando tacadas em alguns quadrados verdes mais adiante havia dois homens usando calças de terno e camisas sociais, obviamente
aproveitando a pausa do almoço para afinar o jogo.
Edgar encostou a sacola num suporte de madeira e escolheu um dos tacos de metal. Calçou uma luva, que havia tirado da sacola, deu alguns giros com o taco para se
aquecer e então começou a acertar as bolas. As primeiras foram baixas demais, e o fizeram xingar.
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Então começou a colocar um pouco de ar embaixo delas e pareceu satisfeito consigo mesmo.
Bosch achou divertido. Nunca tinha jogado golfe na vida, e não podia entender a atração que aquilo exercia sobre alguns homens -de fato, a maioria dos detetives
do esquadrão jogava religiosamente, e havia toda uma rede de torneios policiais no estado. Gostou de ver Edgar ficando todo empolgado, mesmo que acertar bolas em
áreas de treino não contasse.
- Acerte uma nele - instruiu depois de achar que Edgar estava aquecido e pronto.
- Harry, sei que você não joga, mas tenho novidades. No golfe você acerta as bolas no buraco, debaixo da bandeira. Não há alvos em movimento no golfe.
- Então por que os ex-presidentes vivem acertando nas pessoas?
- Porque eles podem.
- Ora, você disse que todo mundo tenta acertar o cara do trator. Tente.
- Todo mundo menos os jogadores sérios.
Mas Edgar virou o corpo e Bosch viu que ele tentaria acertar quando o trator chegasse ao fim de uma passada e estivesse fazendo o retorno para o outro lado. A julgar
pelos marcos, o trator estava a uns quarenta metros de distância.
Edgar deu uma tacada, mas a bola saiu baixa.
- Droga! Está vendo, Harry? Isso pode prejudicar o meu jogo. Bosch começou a rir.
- Do que está rindo?
- É só um jogo, cara. Tente de novo.
- Esquece. Isso é infantil.
- Dê a tacada.
Edgar não falou. Virou o corpo de novo, mirando o trator, que agora estava no meio da área. Girou e deu a tacada, mandando a bola pelo meio, mas a uns bons seis
metros acima do trator.
- Bela jogada - disse Bosch. - A não ser que você estivesse mirando o trator.
Edgar deu-lhe um olhar furioso, mas ficou quieto. Nos cinco minutos seguintes, deu uma tacada depois da outra mirando o
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trator, mas nunca chegou a menos de dez metros de distância. Bosch não dizia nada, mas as frustrações de Edgar cresceram até que ele se virou com raiva e falou:
- Quer tentar?
Bosch fingiu estar confuso.
- Ah, você ainda está tentando acertar o trator? Eu não sabia.
- Anda, vamos embora.
- Você ainda tem metade das bolas aí.
- Não importa. Isso vai fazer meu jogo recuar um mês.
- Só isso?
com raiva, Edgar enfiou na sacola o taco que estivera usando e lançou um olhar mortal para Bosch. Este teve de se conter para não explodir numa gargalhada.
- Vamos, Jerry, eu quero olhar o cara. Você não pode dar mais umas tacadas? Parece que ele vai acabar logo.
Edgar olhou para o campo. Agora o trator estava perto dos marcos de cinqüenta metros. Presumindo que ele tivesse começado junto ao muro de isolamento acústico, logo
estaria acabando. Não havia muitas bolas novas lá longe - só as de Edgar e dos dois sujeitos com cara de empresários - para fazer com que ele voltasse por toda
a área.
Edgar cedeu em silêncio. Pegou um taco de madeira e voltou ao quadrado verde de grama falsa. Acertou uma tacada linda que quase chegou ao muro acústico.
- Lambe o meu pé, Tiger Woods - disse ele.
Na tacada seguinte pôs a bola na grama de verdade, a três metros de distância.
- Merda.
- Quando vocês jogam de verdade, é com essa grama falsa?
- Não, Harry. Isso aqui é treino.
- Ah, então no treino vocês não recriam a situação real de jogo.
- Mais ou menos isso.
O trator saiu do campo e foi até um barracão atrás do quiosque onde Edgar tinha pagado por seu balde de bolas. A porta da gaiola se abriu e um homem de sessenta
e poucos anos desceu. Começou a tirar de dentro do coletor cestos de aramado cheios de bola e a
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levá-los para o barracão. Bosch disse a Edgar para continuar dando tacadas, para não ficar óbvio o motivo de estarem ali. Bosch caminhou despreocupadàmente até o
quiosque e comprou mais meio balde de bolas. com isso ficou no máximo a seis metros do sujeito que estivera dirigindo o trator.
Era Samuel Delacroix. Bosch o reconheceu de uma foto da carteira de motorista, que Edgar tinha conseguido. O homem que fizera o papel de um soldado ariano louro
e de olhos azuis, e que tinha enfeitiçado uma garota de dezoito anos, era agora tão notável quanto um sanduíche de presunto. Ainda era louro, mas obviamente a cor
vinha do uso de tinta, e era careca no topo. Estava com costeletas de um dia, que brilhavam brancas ao sol. O nariz era inchado pelo tempo e pelo álcool, beliscado
por um par de óculos que se ajustavam mal. Tinha uma pança de cerveja que seria bilhete para dispensa em qualquer exército.
- Dois e cinqüenta.
Bosch olhou a mulher atrás do caixa.
- Pelas bolas.
- Certo.
Ele pagou e pegou o balde pela alça. Deu um olhar em Delacroix, que de repente o fitou ao mesmo tempo. Os olhos dos dois se fixaram por um momento e Bosch virou
a cabeça casualmente. Voltou para onde Edgar estava. Foi então que seu celular começou a tocar.
Entregou o balde rapidamente e tirou o telefone do bolso. Era Mankiewicz, o sargento do plantão diurno.
- Ei, Bosch, o que está fazendo?
- Só batendo umas bolas.
- Olha só! Vocês ficam curtindo enquanto a gente faz o trabalho de verdade.
- Encontraram o cara?
- Nós achamos que sim. -Onde?
- Ele está trabalhando na Washateria. Você sabe, pegando umas gorjetas, uns trocados.
A Washateria era um lava-ajato na La Brea. Empregava biscateiros para passar aspirador de pó e enxugar os carros. Eles trabalhavam
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principalmente em troca de gorjetas e pelo que podiam roubar dos
carros sem ser flagrados.
- Quem encontrou?
- Dois caras da Costumes. Eles têm oitenta por cento de certeza. Querem saber se você quer que eles ajam ou se prefere estar na área.
- Diga para ficarem firmes que estamos indo. E sabe de uma coisa, Mank? Achamos que o cara é um coelho. Você tem uma unidade que a gente possa usar como apoio extra
no caso de ele tentar fugir?
- Hmm...
Houve silêncio e Bosch achou que Mankiewcz estava verificando a tabela de distribuição.
- bom, vocês estão com sorte. Tenho dois do três-às-onze que começaram mais cedo. Devem sair da sala de reuniões em quinze minutos. Serve para você?
- Perfeito. Diga para se encontrarem com a gente no estacionamento do Checkers, na esquina de La Brea com Sunset. Peça aos caras da Costumes para também se encontrarem
com a gente lá.
Bosch sinalizou para Edgar, dizendo que iam embora.
- Ah, uma coisa - disse Mankiewcz. -O que é?
- No apoio, um dos policiais é a Brasher. Isso vai ser problema? Bosch ficou quieto um momento. Queria dizer a Mankiewcz
para colocar outra pessoa, mas sabia que não era ele quem devia decidir isso. Se tentasse influenciar a distribuição ou alguma outra coisa baseado no relacionamento
com Julia, podia ficar aberto às críticas e à possibilidade de uma investigação por parte da DAI.
- Não, sem problema.
- Olha, eu não faria isso, mas ela é verde. Ela cometeu alguns erros e precisa desse tipo de experiência.
- Eu disse que não tem problema.
Capítulo 31
Planejaram a captura de Johnny Stokes sobre o capo do carro de Edgar. Os caras da costumes, Eyman e Leiby, desenharam o mapa da Washateria num bloco tamanho ofício
e circularam o lugar onde tinham visto Stokes trabalhando na área de enceramento. O lavajato era cercado em três lados por paredes de concreto e outras estruturas.
A parte que dava para a La Brea tinha quase cinqüenta metros, com um muro de um metro e meio indo de ponta a ponta, a não ser pela entrada e a saída em cada canto
do terreno. Se Stokes decidisse fugir, podia ir até o muro e pular, mas era mais provável que fosse para uma das aberturas.
O plano era simples. Eyman e Leiby cobririam a entrada do lava-ajato, e Brasher com seu parceiro, Edgewood, cobririam a saída. Bosch e Edgar entrariam com o carro
de Edgar, como clientes, e abordariam Stokes. Conectaram os rádios numa unidade tática e bolaram um código. Vermelho significava que Stokes tinha tentado fugir,
e verde significava que ele havia aceitado pacificamente.
- Lembrem-se de uma coisa - preveniu Bosch. - Quase todo enxugador, esfregador, ensaboador e passador de aspirador de pó deste lugar provavelmente está fugindo de
alguma coisa, nem que seja apenas da la migración. Então, mesmo que a gente pegue o Stokes sem problema, os outros podem estourar. Policiais aparecendo num
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lava-ajato é igual a gritar incêndio num cinema. Todo mundo se espalha até verem quem é o procurado.
Todo mundo assentiu e Bosch olhou para Brasher, a novata. Mantendo o plano da noite anterior, os dois não fizeram qualquer demonstração de que se conheciam de outro
modo que não como policiais. Mas agora ele queria se certificar de que ela entendia como uma batida daquelas podia fugir ao controle.
- Entendeu, recruta? - perguntou ele. Ela sorriu.
- É, entendi.
- Certo, então vamos nos concentrar. Vamos.
Bosch pensou ter visto o sorriso permanecer no rosto de Brasher enquanto ela e Edgewood iam até sua radiopatrulha.
Ele e Edgar foram para o Lexus de Edgar. Bosch parou ao chegar e ver que o carro parecia ter sido lavado e encerado há minutos.
- Merda.
- O que posso dizer, Harry? Eu cuido do meu carro.
Bosch olhou em volta. Atrás da lanchonete havia um contêiner de lixo, num abrigo de concreto, que fora lavado recentemente. Havia uma poça de água preta juntando-se
na calçada.
- Passe algumas vezes em cima daquela poça - disse ele. - Suje
o carro.
- Harry, eu não vou botar aquela merda no meu carro.
- Ora, o seu carro tem de parecer que precisa ser lavado, para não dar bandeira. Você mesmo disse: o cara é um coelho. Não vamos dar motivo a ele.
- Mas não vamos lavar o carro de verdade. Se eu jogar aquela merda, ela vai ficar.
- vou lhe dizer uma coisa, Jerry. Se a gente pegar o cara, vou mandar Eyman e Leiby levá-lo para a delegacia enquanto você lava o seu carro. Eu até pago por isso.
- Merda.
- Anda, é só passar pela poça. Estamos perdendo tempo.
Depois de sujar o carro de Edgar, foram em silêncio até a entrada do lava-ajato. Quando chegaram, Bosch pôde ver o carro da Costumes parado junto ao meio-fio, a
pouca distância da entrada. Mais
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adiante no quarteirão, depois do lava-ajato, a radiopatrulha estava parada numa fileira de carros estacionados. Bosch pegou seu rádio.
- Certo, todo mundo pronto?
Ele recebeu dois cliques de retorno no microfone dos caras da Costumes. Brasher respondeu falando:
- Tudo pronto.
- Certo. Estamos indo.
Edgar entrou no lava-ajato e foi até a pista de serviço, onde os clientes entregavam os carros no posto do aspirador de pó e pediam o tipo de lavagem ou cera que
queriam. O olhar de Bosch começou imediatamente a percorrer os trabalhadores, todos vestidos com macacões laranjas idênticos e bonés de beisebol. Isso tornou mais
lento o processo de identificação, mas logo viu a cobertura azul da área de enceramento e notou Johnny Stokes.
- Ele está ali - disse a Edgar. - No BMW preto.
Bosch sabia que, assim que os dois saíssem do carro, a maioria dos trambiqueiros do posto poderia identificá-los como policiais. Do mesmo modo como Bosch podia identificar
um trambiqueiro em noventa e oito por cento das vezes, eles por sua vez eram capazes de perceber um policial. Teria de abordar Stokes rapidamente.
Olhou para Edgar.
- Pronto.
-Vamos lá.
Abriram as portas ao mesmo tempo. Bosch saiu e se virou na direção de Stokes, que estava de costas a vinte metros de distância. Estava agachado e espirrando alguma
coisa nas rodas de um BMW preto. Bosch ouviu Edgar dizendo a alguém que não precisava de aspirador de pó e que já voltaria.
Bosch e Edgar tinham coberto metade da distância até o alvo quando foram identificados por outros trabalhadores do posto. De algum lugar atrás dele, Bosch ouviu
uma voz gritar:
- Cinco-zero, cinco-zero, cinco-zero.
Imediatamente alerta, Stokes se levantou e começou a correr. Bosch começou a correr.
Estava a três metros de Stokes quando o ex-prisioneiro percebeu que era o alvo. Sua fuga óbvia era pela esquerda, passando pela
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entrada do lava-ajato, mas o BMW estava bloqueando-o. Ele se virou para a direita, mas então parou, aparentemente ao ver que era um beco sem saída.
- Não, não - gritou Bosch. - Nós só queremos falar, só queremos falar.
Stokes afrouxou o corpo visivelmente. Bosch foi direto para ele enquanto Edgar ia para a direita, para o caso de o ex-presidiário optar pela fuga.
Bosch diminuiu a velocidade e abriu as mãos enquanto chegava perto. Uma das mãos segurava o rádio.
- DPLA. Só queremos fazer umas perguntas, só isso.
- Cara, sobre o quê? -Sobre...
De repente, Stokes levantou o braço e espirrou o líquido de limpar pneus no rosto de Bosch. Em seguida disparou para a direita, aparentemente em direção ao beco
sem saída, onde o muro alto do lava-ajato se juntava à parede lateral de um prédio de apartamentos de três andares.
Bosch levou as mãos instintivamente aos olhos. Ouviu Edgar gritando para Stokes e depois o som dos passos dele no concreto, perseguindo-o. Bosch não podia abrir
os olhos. Encostou a mão no rádio e gritou:
- Vermelho! Vermelho! Vermelho! Ele está indo para o canto dos fundos.
Em seguida largou o rádio no concreto, usando o pé para interromper a queda. Usou as mangas do paletó para enxugar os olhos que ardiam. Finalmente conseguiu abri-los
por breves instantes de cada vez. Viu uma mangueira enrolada numa torneira perto do porta-malas do BMW. Foi até lá, abriu-a e molhou o rosto e os olhos, sem se importar
se estava molhando as roupas. Os olhos pareciam ter sido jogados em água fervente.
Depois de alguns instantes a água aliviou a sensação de ardência e ele largou a mangueira sem fechá-la, voltando ao rádio. Sua visão estava turva nas bordas, mas
dava para ver o bastante para continuar em movimento. Quando se curvou para pegar o rádio, ouviu risos de alguns dos outros homens de macacão laranja.
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Ignorou. Ligou o rádio no canal da patrulha de Hollywood e disse:
- Unidades de Hollywood, policiais perseguindo suspeito de assalto, La Brea com Santa Monica. Suspeito é homem branco, trinta e cinco anos, cabelos escuros, macacão
laranja. Suspeito nas vizinhanças da Washateria Hollywood.
Não se lembrava exatamente do endereço do lava-ajato, mas não se preocupou. Todo policial de patrulha conhecia o lugar. Mudou o rádio para o canal de comunicação
principal do departamento e requisitou que uma unidade de paramédicos viesse tratar de um policial ferido. Não tinha idéia do que fora espirrado em seus olhos. Eles
estavam começando a melhorar, mas não queria se arriscar a um dano de longo prazo.
Por fim voltou ao canal tático e perguntou pela localização dos outros. Só Edgar respondeu:
- Havia um buraco no canto dos fundos. Ele passou para o beco. Está num daqueles conjuntos de apartamentos no lado norte do lava-ajato.
- Onde estão os outros?
A resposta de Edgar veio entrecortada:
- Eles voltaram... espalhados. Eu acho... garagem. Você... bem, Harry?
- Eu me viro. O apoio está a caminho.
Não sabia se Edgar tinha ouvido isso. Pôs o rádio no bolso e correu até o canto dos fundos do lava-ajato, onde achou o buraco pelo qual Stokes tinha passado. Atrás
de um estrado com tambores de 55 galões de sabão líquido empilhados, a parede de concreto estava quebrada. Parecia que um carro, no beco do outro lado, tinha batido
na parede, criando o buraco. Feito intencionalmente ou não, talvez fosse uma conhecida escotilha de fuga para cada homem procurado que trabalhava no lava-ajato.
Bosch se agachou e passou, prendendo momentaneamente o paletó num pedaço de vergalhão enferrujado que se projetava da parede quebrada. Do outro lado saiu num beco
que passava por trás de fileiras de prédios de apartamentos dos dois lados, por todo quarteirão.
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A radiopatrulha estava parada em ângulo, quarenta metros adiante. Estava vazia, com as duas portas abertas. Bosch pôde ouvir
o som do canal de comunicações principal no rádio do painel. Mais adiante, no fim do quarteirão, o carro da Costumes estava atravessado no beco.
Seguiu rapidamente pelo beco em direção à radiopatrulha, olhando e tentando ouvir qualquer coisa. Quando chegou ao carro, tirou o rádio de novo e tentou falar com
alguém pelo canal tático. Não teve resposta.
Viu que a radiopatrulha estava parada na frente de uma rampa que descia até uma garagem subterrânea embaixo do maior prédio do beco. Lembrando-se de que o roubo
de automóveis fazia parte da lista de crimes de Stokes, soube de repente que ele iria para a garagem. Sua única saída seria conseguir um carro.
Desceu correndo a rampa da garagem, indo para o escuro.
A garagem era enorme e parecia seguir a planta do prédio acima. Havia três fileiras de vagas e uma rampa levando a um nível ainda mais baixo. Bosch não viu ninguém.
O único som era o gotejamento dos canos no teto. Seguiu rapidamente pela fileira do meio, sacando a arma pela primeira vez. Stokes já havia transformado uma lata
de spray numa arma. Não havia como dizer o que ele poderia achar na garagem para também usar como arma.
Enquanto se movia, verificou os poucos carros na garagem todo mundo estava trabalhando, achou - em busca de sinais de arrombamento. Estava levantando o rádio para
a boca quando ouviu o som de passos em corrida ecoando pela rampa da garagem de baixo. Foi com rapidez até a rampa e desceu, tendo o cuidado de manter as solas
de borracha dos sapatos o mais silenciosas possível.
O nível inferior era mais escuro ainda, com menos luz natural achando caminho até embaixo. À medida que a rampa ficava plana, seus olhos se ajustaram. Não viu ninguém,
mas a estrutura da rampa bloqueava a visão de metade do espaço. Quando começou a rodeá-la, escutou subitamente uma voz aguda e tensa vindo da extremidade mais distante.
Era de Julia.
- Você aí! Você aí! Não se mexa!
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Bosch acompanhou o som, movendo-se para a lateral da rampa e levantando a arma. Seu treinamento mandava gritar, alertar a outra policial de sua presença. Mas sabia
que, se Brasher estivesse sozinha com Stoker, seu chamado poderia distraí-la e dar a Stokes outra chance de fugir ou agir contra ela.
Enquanto passava por baixo da rampa, viu os dois na parede mais distante, a menos de cinco metros dali. Brasher estava com Stokes encostado na parede, com as pernas
e os braços abertos. Mantinha-o ali com uma das mãos apertando suas costas. A lanterna estava no chão perto de seu pé direito, com o facho iluminando a parede
contra a qual Stokes se encostava.
Era perfeito. Bosch sentiu o alívio inundar o corpo e quase imediatamente percebeu que era porque ela não estava ferida.
Levantou-se e começou a ir para lá, baixando a arma.
Estava diretamente atrás dos dois. Depois de ter dado apenas alguns passos viu Brasher afastar a mão das costas de Stokes e recuar, olhando para os dois lados. Bosch
percebeu isso de imediato como a coisa errada a fazer. Era completamente contrário ao treinamento. Permitiria a Stokes tentar fugir de novo, se quisesse.
Então as coisas pareceram ficar lentas. Bosch começou a gritar para ela, mas de repente a garagem se encheu com o clarão e o estrondo de um tiro. Brasher caiu.
Stokes continuou de pé. O eco do tiro reverberou pela estrutura de concreto, o que obscurecia sua origem.
Bosch só conseguia pensar em: onde está a arma?
Levantou sua pistola enquanto baixava o corpo, agachando-se em posição de combate. Começou a virar a cabeça procurando a arma. Mas viu Stokes começar a correr para
longe da parede. Então viu o braço de Brasher se levantar do chão, a arma apontando para o corpo de Stokes que se virava.
Bosch apontou sua Glock para Stokes.
- Parado! - gritou. - Parado! Parado! Parado! Num segundo estava em cima deles.
- Não atire, cara - gritou Stokes. - Não atire!
Bosch manteve os olhos fixos em Stokes. Eles ainda queimavam e precisavam de alívio, mas sabia que uma piscada agora poderia ser um erro fatal.
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- Deitado! No chão. Agora!
Stokes caiu de barriga para baixo e abriu os braços em ângulos de noventa graus com relação ao corpo. Bosch passou por cima dele e, com um movimento realizado
mil vezes antes, algemou seus pulsos às costas.
Então guardou a arma no coldre e se virou para Brasher. Os olhos dela estavam arregalados e movendo-se para um lado e para o outro. Havia sangue no pescoço e já
encharcava a frente da camisa do uniforme. Ele se ajoelhou perto dela e rasgou a camisa. Mesmo assim, havia tanto sangue que Bosch demorou um momento para achar
o ferimento. A bala tinha entrado no ombro esquerdo, a apenas uns dois centímetros da alça de Velcro do colete à prova de balas.
O sangue corria livremente do ferimento, e Bosch pôde ver que o rosto de Julia estava perdendo cor depressa. Seus lábios se moviam, mas não emitiam qualquer som.
Olhou em volta procurando alguma coisa e viu um trapo para lavar carro se projetando do bolso de trás de Stokes. Puxou-o e apertou contra o ferimento. Julia gemeu
de dor.
- Julia, isso vai doer, mas tenho de parar o sangramento.
com uma das mãos tirou a gravata e apertou por baixo do ombro dela e depois por cima. Deu um nó suficientemente apertado para manter a compressa do trapo no lugar.
- Certo, fique aí, Julia.
Bosch pegou o rádio no chão e rapidamente virou o botão de freqüência para o canal principal.
- CDC, policial ferido, garagem inferior do prédio La Brea Park, La Brea com Santa Monica. Confirme, CDC.
Esperou o que pareceu um tempo interminável até que um despachante do CDC respondeu dizendo que estava recebendo mal e que ele precisava repetir a mensagem. Bosch
apertou o botão de chamada e gritou:
- Onde estão os meus paramédicos? Policial FERIDO! Mudou para o canal tático.
- Edgar, Edgewood, estamos no andar de baixo da garagem. Brasher está ferida. Estou com Stokes sob controle. Repito. Brasher está ferida.
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Largou o rádio e gritou o nome de Edgar o mais alto possível. Tirou o paletó e fez uma bola com ele.
- Cara, não fui eu - gritou Stokes. - Não sei o que...
- Cala a boca! Cala essa porra dessa boca!
Bosch enfiou o paletó debaixo da cabeça de Brasher. Os dentes dela estavam trincados de dor, o queixo se projetando para cima. Os lábios estavam quase brancos.
- Os paramédicos estão vindo, Julia. Liguei para eles antes disso. Devo ser paranormal, ou sei lá o quê. Você só precisa se segurar, Julia. Fique firme.
-Não fui eu que fiz isso, cara. Não deixe eles me matarem, cara. Eu não FIZ isso.
Bosch se inclinou, colocando o peso nas costas de Stokes. Curvou-se e falou alto diretamente no ouvido dele.
- Cala essa porra, se não eu mesmo mato você!
Em seguida voltou a atenção para Julia. Os olhos dela ainda estavam abertos. Lágrimas desciam pelas bochechas.
- Julia, só mais uns minutos. Você tem de ficar firme.
Tirou a arma da mão direita dela e pôs no chão, longe de Stokes. Em seguida segurou a mão dela com as suas duas.
- O que aconteceu? Que diabo aconteceu?
Ela abriu e fechou a boca de novo. Bosch pôde ouvir pés correndo na rampa. Escutou Edgar gritando seu nome.
- Aqui!
Num instante Edgar e Edgewood estavam lá. -Julia! - gritou Edgewood. - Ah, merda! Sem hesitar um instante, Edgewood se adiantou e deu um chute violento na cintura
de Stokes.
- Seu escroto!
Preparou-se para fazer isso de novo quando Bosch gritou:
- Não! Para trás! Para longe dele!
Edgar agarrou Edgewood e puxou-o para longe de Stokes, que tinha soltado um grito de animal ferido com o impacto do chute e agora estava murmurando e gemendo de
medo.
- Leve Edgewood para cima e traga os paramédicos aqui - disse Bosch a Edgar. - Os rádios não funcionam aqui embaixo.
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Os dois pareciam congelados.
- Vão! Agora!
Como se recebesse a dica, o som de sirenes pôde ser ouvido à distância.
- Quer ajudá-la? Vá pegá-los!
Edgar virou Edgewood e os dois correram de volta para a rampa.
Bosch se virou de volta para Brasher. O rosto dela tinha a cor da morte. Ela estava entrando em choque. Bosch não entendia. Era um ferimento no ombro. De repente
se perguntou se teria ouvido dois tiros. Será que o som e o eco tinham obscurecido o segundo tiro? Verificou o corpo de novo, mas não achou nada. Não queria virá-la
para verificar as costas, com medo de causar mais dano. Mas não havia sangue saindo por baixo de Julia.
- Vamos, agüente firme, Julia. Você consegue. Ouviu aquilo? Os paramédicos já estão chegando. Só fique firme.
Ela abriu a boca de novo, projetou o queixo e começou a falar.
- Ele... ele pegou... ele foi pegar...
Julia trincou os dentes e balançou a cabeça para trás e para a frente sobre o paletó. Tentou falar de novo.
- Eu não estava... não estou...
Bosch trouxe o rosto perto do dela e baixou a voz num sussurro urgente:
- Shhh, shhh. Não fale. Só fique viva. Concentre-se, Julia. Fique firme. Fique viva. Por favor, fique viva.
Pôde sentir a garagem rugir com barulho e vibrações. Num instante luzes vermelhas ricocheteavam nas paredes, e então uma ambulância dos paramédicos chegou perto
deles. Havia uma radiopatrulha atrás, e outros policiais uniformizados, além de Eyman e Leiby, desceram correndo a rampa e inundaram a garagem.
- Ah, meu Deus, por favor - murmurou Stokes. - Não deixe isso acontecer...
O primeiro paramédico chegou a eles, e a primeira coisa que fez foi pôr a mão no ombro de Bosch e empurrá-lo gentilmente para trás. Bosch se afastou de boa vontade,
percebendo que agora só estava
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complicando as coisas. Enquanto se afastava de Julia, a mão direita dela subitamente agarrou seu antebraço e puxou-o de volta. Agora sua voz era fina como papel.
- Harry, não deixe eles...
O paramédico pôs uma máscara de oxigênio sobre o rosto dela e as palavras se perderam.
- Policial, por favor, recue - disse o paramédico com firmeza. Enquanto Bosch engatinhava para trás, estendeu a mão e apertou o tornozelo de Julia por um momento.
- Julia, você vai ficar bem.
- Julia? - disse o segundo paramédico, agachando-se ao lado dela com uma grande caixa de equipamento.
- Julia.
- Certo, Julia - disse o paramédico. - Eu sou Eddie, e aquele ali é o Charlie. Nós vamos dar um jeito em você. Como seu amigo disse, você vai ficar bem. Mas tem
de ser forte para nós. Você tem de querer, Julia. Você tem de lutar.
Ela disse alguma coisa que gorgolejou pela máscara. Só uma palavra, mas Bosch achou ter reconhecido. Entorpecida.
Os paramédicos começaram os procedimentos de estabilização, e Eddie falava com ela o tempo todo. Bosch se levantou e foi até Stokes. Puxou-o de pé e o empurrou
para longe do trabalho de resgate.
- Minhas costelas estão quebradas - reclamou Stokes. - Preciso dos paramédicos.
- Confie em mim, Stokes, eles não podem fazer nada com relação a isso. Então cale a boca.
Dois policiais uniformizados chegaram até eles. Bosch os reconheceu da outra noite, quando tinham dito a Julia que iriam se encontrar com ela no Boardners. Eram
amigos dela.
- Nós o levamos à delegacia para você.
Bosch empurrou Stokes, passando por eles sem hesitar.
- Não. Eu levo.
- Você precisa ficar aqui para a TEP, detetive Bosch.
Eles estavam certos. Logo a equipe de Tiroteio Envolvendo Policial baixaria na área e Bosch seria interrogado como testemunha
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primária. Mas não colocaria Stokes em nenhuma mão na qual não confiasse explicitamente.
Subiu com Stokes a rampa em direção à luz.
- Escute, Stokes, você quer viver?
O rapaz não respondeu. Estava andando com o tronco curvado por causa do ferimento na costela. Bosch deu-lhe um tapa de leve no lugar onde Edgewood tinha chutado.
Stokes gemeu alto.
- Está ouvindo? - perguntou Bosch. - Quer ficar vivo?
- Quero! Eu quero ficar vivo.
- Então me escute. vou colocar você numa sala, e não fale com ninguém além de mim. Entendeu?
- Entendi. Só não deixe que eles me machuquem. Eu não fiz nada. Não sei o que aconteceu, cara. Ela disse para encostar na parede e obedeci. Juro por Deus que eu
só...
- Cala a boca! - ordenou Bosch.
Mais policiais vinham descendo a rampa, e ele só queria tirar Stokes dali.
Quando chegaram à luz do dia, Bosch viu Edgar parado na calçada, falando ao celular e usando a outra mão para sinalizar para uma ambulância no estacionamento. Bosch
empurrou Stokes na direção dele. Quando os dois se aproximaram, Edgar fechou o telefone.
- Acabei de falar com a tenente. Ela está vindo.
- Ótimo. Onde está o seu carro?
- Ainda no lava-aj ato.
- Vá pegar. Nós vamos levar Stokes à delegacia.
- Harry, não podemos deixar o lugar de um...
- Você viu o que Edgewood fez. Precisamos levar esse escroto a um lugar seguro. Vá pegar seu carro. Se acontecer alguma merda por causa disso, eu me responsabilizo.
- Certo.
Edgar começou a correr na direção do lava-ajato. Bosch viu um poste perto do prédio. Andou com Stokes até lá e o algemou com os braços em volta do poste.
- Espere aqui - falou.
Então se afastou e passou a mão pelo cabelo.
- Que diabo aconteceu lá embaixo?
Não notou que tinha falado alto até que Stokes começou a responder, dizendo que não tinha feito nada errado.
- Cale a boca - disse Bosch. - Eu não estava falando com você.
Capítulo 32
Bosch e Edgar passaram com Stokes pela sala do esquadrão e foram pelo curto corredor até as salas de entrevista. Colocaram-no na sala 3 e o algemaram ao elo de
aço aparafusado no meio da mesa.
- Nós já voltamos - disse Bosch.
- Ei, cara, não me deixe aqui - começou Stokes. - Eles vão entrar aqui, cara.
- Ninguém vai entrar além de mim. Fique frio.
Saíram da sala e trancaram. Bosch foi até a mesa de homicídios. A sala do esquadrão estava completamente despovoada. Quando um policial era ferido na divisão, todo
mundo reagia. Isso fazia parte de manter a fé na religião azul. Se você é que era ferido, ia querer que todo mundo comparecesse. Por isso reagia do mesmo modo.
Bosch precisava fumar, precisava de tempo para pensar e precisava de algumas respostas. Sua mente estava atulhada de pensamentos sobre Julia e as condições dela.
Mas sabia que a coisa estava fora de suas mãos, e o melhor modo de controlar os pensamentos era se concentrar em algo que estivesse no seu controle.
Sabia que tinha pouco tempo antes que o pessoal da TEP pegasse a pista e viesse atrás dele e Stokes. Pegou o telefone e ligou para o oficial de plantão. Mankiewicz
atendeu. Provavelmente era o último policial na delegacia.
223
- Qual é a última? - perguntou Bosch. - Como ela está?
- Não sei. Ouvi dizer que mal. Onde você está?
- No esquadrão. Estou com o cara aqui.
- Harry, o que você está fazendo? A TEP está indo com tudo em cima disso. Você deveria estar no lugar. Vocês dois.
- Só digamos que tive medo de que a situação deteriorasse. Escute, me informe no momento em que souber alguma coisa sobre a Julia, certo?
- Pode deixar.
Bosch já ia desligar quando se lembrou de uma coisa.
- E escute, Mank. O seu cara, Edgewood, tentou arrebentar o suspeito a chutes. Ele estava algemado e no chão. Provavelmente está com quatro ou cinco costelas quebradas.
Bosch esperou. Mankiewicz não disse nada.
- A escolha é sua. Posso agir no formal com isso ou posso deixar que você cuide do seu modo.
- Eu cuido.
- Certo. Lembre-se, avise o que você ficar sabendo.
Ele desligou e olhou para Edgar, que assentiu aprovando o modo como Bosch estava cuidando do assunto Edgewood.
- E o Stokes? - perguntou Edgar. - Harry, que porra aconteceu na garagem?
- Não sei direito. Escute, vou entrar lá e falar com ele sobre Arthur Delacroix, ver o que consigo antes que a TEP venha com tudo e o leve embora. Quando eles
chegarem aqui, veja se pode embromá-los.
- É, e neste sábado estou planejando acabar com a banca do Tiger Woods no Riviera.
- É, eu sei.
Bosch foi para o corredor dos fundos e já ia entrar na sala 3 quando notou que não tinha pegado o gravador de volta com a detetive Bradley, da DAI. Queria gravar
a entrevista com Stokes. Passou pela porta da sala 3 e entrou na sala de vídeo anexa. Ligou a câmera e o gravador auxiliar e depois voltou à sala 3.
Sentou-se diante de Stokes. A vida parecia ter se esvaído dos olhos do rapaz. Há menos de uma hora ele estivera encerando um
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BMW, ganhando uns trocados. Agora estava encarando uma volta à prisão - se tivesse sorte. Sabia que sangue de policial na água atraía tubarões azuis. Muitos suspeitos
levavam um tiro tentando fugir ou se enforcavam inexplicavelmente em salas como aquela. Ou pelo menos isso era dito aos repórteres.
- Faça um grande favor a você mesmo - disse Bosch. - Acalme-se e não faça nenhuma estupidez. Não faça nada com essas pessoas que possa levar você a ser morto.
Entendeu?
Stokes assentiu.
Bosch viu o maço de Marlboro no bolso do peito do macacão de Stokes. Estendeu a mão por cima da mesa, fazendo Stokes se encolher.
- Relaxe.
Pegou o maço de cigarros e acendeu um com um fósforo de uma cartela enfiada dentro do celofane. No canto da sala pegou uma pequena lata de lixo, colocou perto da
cadeira e jogou o fósforo dentro.
- Se eu quisesse machucar você, teria feito isso na garagem. Obrigado pelo cigarro.
Bosch saboreou a fumaça. Fazia pelo menos dois meses que não tragava um cigarro.
- Posso fumar um? - perguntou Stokes.
- Não, você não merece. Você não merece merda nenhuma. Mas vou fazer um pequeno trato.
Stokes ergueu os olhos para os de Bosch.
- Sabe aquele chutezinho nas costelas? Eu troco com você. Você esquece dele e aceita isso como homem e eu esqueço que você espirrou aquela merda na minha cara.
- Minhas costelas estão quebradas, cara.
- Meus olhos continuam queimando, cara. Aquilo era um produto químico de limpeza comercial. A promotoria pode considerar isso uma agressão contra policial mais rápido
do que você pode dizer cinco a dez anos em Corcoran. Você se lembra de que ficou preso em Corcoran, não lembra?
Bosch deixou isso penetrar durante um longo momento.
- Então, temos um trato? Stokes assentiu, mas disse:
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- Que diferença vai fazer? Eles vão dizer que eu atirei nela. Eu...
- Mas eu sei que não atirou.
Bosch viu um brilho de esperança voltando aos olhos de Stokes. - E vou dizer a eles exatamente o que vi.
- Certo.
A voz de Stokes era apenas um sussurro.
- Então vamos começar do início. Por que você fugiu? Stokes balançou a cabeça.
- Porque é isso que faço, cara. Eu fujo. Sou ex-presidiário e você é o Homem. Eu fujo.
Bosch notou que, em toda a confusão e a pressa, ninguém tinha revistado Stokes. Mandou que ele se levantasse, o que só podia ser feito com Stokes se inclinando
sobre a mesa, por causa dos pulsos algemados. Bosch passou para trás dele e começou a revistar os bolsos.
- Tem alguma agulha?
- Não, cara, nada de agulha.
- bom, não quero me espetar. Se eu for espetado, todos os tratos estão desfeitos.
Enquanto revistava, mantinha o cigarro nos lábios. A fumaça ardia em seus olhos que já queimavam. Bosch pegou uma carteira, um jogo de chaves e um rolo de dinheiro
totalizando 27 dólares em notas de um. As gorjetas de Stokes no dia. Não havia mais nada. Se Stokes estivesse com drogas para vender ou para uso pessoal, tinha
jogado fora enquanto tentava fugir.
- Eles vão levar cachorros para lá - disse Bosch. - Se você jogou algum bagulho fora, eles vão achar e não vou poder fazer nada
a respeito.
- Não joguei nada. Se acharem alguma coisa, foram eles que plantaram.
- E. Igualzinho ao O.J. Simpson. Bosch se sentou de novo.
- Qual foi a primeira coisa que eu disse a você? Eu disse: só quero conversar. Era verdade. Tudo isso...
Bosch fez um gesto amplo com as mãos.
- Tudo poderia ter sido evitado se você simplesmente ouvisse.
- A polícia nunca quer conversar. Sempre quer mais alguma coisa.
Bosch assentiu. Nunca ficara surpreso ao ver como o conhecimento dos ex-presidiários era acurado. .
- Fale de Arthur Delacroix.
A confusão apertou os olhos de Stokes.
- O quê? Quem?
- Arthur Delacroix. Seu colega de skate. Da época da Miracle Mile. Lembra?
- Meu Deus, cara, isso foi...
- Há muito tempo. Eu sei. É por isso que estou perguntando.
- O que é que tem ele? Ele sumiu faz muito tempo, cara.
- Fale dele. Fale sobre a época em que ele desapareceu. Stokes olhou para as mãos algemadas e balançou a cabeça devagar.
- Isso foi há muito tempo. Não lembro.
- Tente. Por que ele sumiu?
- Não sei. Ele só não agüentava mais a merda e foi embora.
- Ele falou por que ia embora?
- Não, cara, ele só foi embora. Um dia ele tinha sumido. E nunca mais vi ele de novo.
-Que merda? -Como assim?
- Você disse que ele não agüentava mais a merda e fugiu. Essa merda. Do que está falando?
- Ah, você sabe, a merda toda da vida dele.
- Ele tinha problemas em casa?
- Se ele tinha problemas em casa? Quem não tem, cara?
- Ele sofria abusos, abusos físicos, em casa? É isso que quero dizer.
De novo, risos.
- Quem não sofria? O meu velho preferiria me dar um tiro do que falar alguma coisa comigo. Quando eu tinha doze anos ele me acertou do outro lado da sala com uma
lata de cerveja cheia. Só porque eu comi um taco que ele queria. Por causa disso me levaram para longe dele.
227
- Sabe, isso é uma pena, mas a gente está falando do Arthur Delacroix. Ele contou se o pai batia nele?
- Não precisava, cara. Eu via os hematomas. O que eu lembro é que o cara estava sempre de olho roxo.
- Isso era por causa do skate. Ele caía muito. Stokes balançou a cabeça.
- Porra nenhuma, cara. Artie era o melhor. Ele só fazia isso. Era bom demais para se machucar.
Os pés de Bosch estavam chapados no chão. Pelas vibrações súbitas nas solas soube que agora havia gente na sala do esquadrão. Estendeu a mão e apertou o botão da
tranca na maçaneta.
-Você se lembra de quando ele esteve no hospital? Tinha machucado a cabeça. Ele disse se foi de um acidente com o skate?
Stokes franziu a testa e olhou para baixo. Bosch tinha liberado uma lembrança direta. Dava para ver.
- Lembro que ele ficou com a cabeça raspada e tinha pontos que pareciam uma porra de um zíper. Não lembro o que ele...
Alguém tentou abrir a porta por fora e houve uma batida forte. Uma voz abafada atravessou.
- Detetive Bosch, aqui é o tenente Gilmore, da TER Abra a porta.
De repente Stokes recuou, o pânico enchendo seus olhos.
- Não! Não deixa eles...
- Cale a boca!
Bosch se inclinou sobre a mesa, agarrou Stokes pela gola e o puxou para a frente.
- Escute, isso é importante. Houve outra batida na porta.
- Você está dizendo que Arthur nunca contou que o pai o machucava?
- Olhe, cara, cuide de mim aqui e eu digo qualquer porra que você quiser. Certo? O pai dele era um escroto. Se quiser que eu diga que Arthur me contava que o pai
dele batia nele com uma vassoura, eu digo. Quer que seja um bastão de beisebol? Ótimo, eu digo...
- Não quero que você diga nada além da verdade, que droga. Ele contava isso ou não?
228
A porta se abriu. Eles tinham apanhado uma chave na recepção. Dois homens de terno entraram. Gilmore, que Bosch reconheceu, e outro detetive da TEP que Bosch não
reconheceu.
- Muito bem, isso acabou - anunciou Gilmore. - Bosch, que porra você está fazendo?
- Ele contou? - perguntou Bosch a Stokes.
O outro detetive da TEP pegou chaves no bolso e começou a tirar as algemas dos pulsos de Stokes.
- Eu não fiz nada - protestou Stokes. - Eu não...
- Ele contou alguma vez? - gritou Bosch.
- Tire-o daqui - rosnou Gilmore ao outro detetive. - Coloque-o em outra sala.
O detetive levantou Stokes da cadeira e meio o carregou, meio empurrou para fora da sala. As algemas de Bosch continuaram na mesa. Bosch olhou-os com ar inexpressivo,
pensando nas respostas que Stokes tinha dado e sentindo um terrível peso no peito ao saber que tudo aquilo fora um beco sem saída. Stokes não acrescentara nada ao
caso. Julia tinha levado um tiro a troco de nada.
Finalmente olhou para Gilmore, que fechou a porta e se virou para encará-lo.
- Agora, como eu disse, que porra você estava fazendo, Bosch?
Capítulo 33
Gilmore balançava um lápis nos dedos, tamborilando na borracha sobre a mesa. Bosch jamais confiava num investigador que tomasse notas com lápis. Mas era isso que
fazia a equipe de Tiroteio Envolvendo Policial, inventar histórias e fatos para se ajustarem à imagem que o departamento queria apresentar ao público. Era um lápis
do esquadrão. Conseguir a coisa certa freqüentemente significava usar o lápis e a borracha, jamais tinta, jamais um gravador.
- Então vamos repassar de novo - disse ele. - Fale outra vez: o que a policial Brasher fez?
Bosch olhou para além dele. Tinha sido posto na cadeira do suspeito na sala de entrevistas. Estava virado para o espelho, o vidro unidirecional atrás do qual tinha
certeza de que haveria meia dúzia de pessoas, talvez até o subchefe Irving. Imaginou se alguém teria notado que o vídeo estava ligado. Se tivesse, teria sido desligado
imediatamente.
- De algum modo ela atirou em si mesma.
- E você viu.
- Não exatamente. Vi por trás. Ela estava de costas para mim.
- Então como sabe que ela atirou em si mesma?
- Porque não havia mais ninguém além dela, de mim e Stokes. Eu não atirei nela, e Stokes também não. Ela atirou em si mesma.
- Durante a luta com Stokes.
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Bosch balançou a cabeça.
-Não, não houve luta no momento do tiro. Não sei o que aconteceu antes de eu chegar lá, mas no momento do tiro Stokes estava com as duas mãos na parede, de costas
para ela, quando a arma disparou. A policial Brasher tinha estado com a mão nas costas dele, firmando-o no lugar. Vi quando ela deu um passo atrás e baixou a mão.
Não vi a arma, mas então ouvi o tiro e vi o clarão se originando na frente dela. E ela caiu.
Gilmore bateu com o lápis ruidosamente na mesa.
- Isso aí na certa vai atrapalhar a gravação - disse Bosch. - Ah, é mesmo, vocês nunca gravam nada.
- Não importa. O que aconteceu depois?
- Comecei a ir na direção deles, perto da parede. Stokes começou a se virar para ver o que tinha acontecido. Do chão, a policial Brasher levantou o braço direito
e apontou a arma para Stokes.
- Mas não atirou, não é?
- Não. Gritei "Parado!" para Stokes e ela não disparou, ele não se mexeu. Então cheguei e coloquei Stokes no chão. Algemei-o. A seguir usei o rádio para pedir ajuda
e tentei cuidar do ferimento da policial Brasher do melhor modo possível.
Gilmore também estava mascando chiclete de um jeito ruidoso que irritou Bosch. Mastigou várias vezes antes de falar.
- Veja bem, o que estou pensando é: por que ela atirou em si mesma?
- Você terá de perguntar isso a ela. Só estou contando o que vi.
- É, mas estou perguntando a você. Você estava lá. O que acha?
Bosch esperou um longo momento. As coisas tinham acontecido depressa demais. Ele havia parado de pensar na garagem e se concentrado em Stokes. Agora as imagens do
que tinha visto ficavam repassando. Finalmente deu de ombros.
- Não sei.
- vou lhe dizer uma coisa: vamos concordar com você um minuto. Vamos presumir que ela estivesse guardando a arma no coldre, o que seria contra os procedimentos.
Mas vamos presumir, só para argumentar. Ela estava guardando a arma no coldre para algemar o cara. O coldre dela fica no quadril direito, e o ferimento de entrada
é no ombro esquerdo. Como isso acontece?
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Bosch pensou na pergunta de Julia algumas noites atrás, sobre a cicatriz em seu ombro esquerdo. Sobre levar um tiro e como era a sensação. Sentiu a sala se apertando
em volta, comprimindo-o. Começou a suar.
- Não sei - disse ele.
- Você não sabe muita coisa, não é, Bosch?
- Só sei o que vi. E disse o que vi.
Bosch desejou que eles não tivessem levado o maço de cigarros de Stokes.
- Qual era o seu relacionamento com a policial Brasher? Bosch olhou para a mesa.
- O que quer dizer?
- Pelo que soube, você estava comendo ela. É isso que quero dizer.
- O que isso tem a ver?
- Não sei. Talvez você me diga.
Bosch não respondeu. Esforçou-se muito para não demonstrar a fúria que crescia por dentro.
- Bem, em primeiro lugar, esse seu relacionamento é uma violação da política do departamento - disse Gilmore. - Você sabe disso, não sabe?
- Ela é da patrulha. Eu sou detetive.
- Você acha que isso importa? Não importa. Você é um D-três. Nível de supervisor. Ela é uma recruta, só isso. Se fosse o serviço militar você receberia baixa com
desonra, de cara. Talvez até algum tempo de prisão.
- Mas aqui é o DPLA. Então o que rende para mim, uma promoção?
Foi o primeiro movimento ofensivo feito por Bosch. Era um alerta para Gilmore mudar o caminho. Era uma referência velada a vários casos conhecidos e não tão conhecidos
entre oficiais de alta patente e subalternos. Era sabido que o sindicato dos policiais, que representava os subalternos, estava com o material pronto para questionar
qualquer ação disciplinar realizada sob a suposta política de assédio sexual do departamento.
- Não preciso de nenhuma frase espertinha sua - disse Gilmore.
- Estou tentando fazer uma investigação.
232
233
Ele acompanhou isso com um longo rufo com o lápis enquanto olhava as poucas anotações que fizera no bloco. O que ele estava fazendo, Bosch sabia, era uma investigação
reversa. Comece com uma conclusão e depois só reúna os fatos que a apoiem.
- Como estão seus olhos? - perguntou Gilmore finalmente, sem olhar para cima.
- Um deles ainda arde como um filho da puta. Parecem ovos cozidos.
- bom, você disse que Stokes o acertou no rosto com um borrifo da lata de limpador.
-Correto.
- E você ficou momentaneamente sem enxergar.
- Correto.
Agora Gilmore se levantou e começou a andar de um lado para o outro no pequeno espaço atrás da cadeira dele.
- Quanto tempo se passou desde que você ficou cego e a hora em que chegou àquela garagem escura e supostamente viu quando ela atirou em si mesma?
Bosch pensou um momento.
- bom, usei uma mangueira para lavar os olhos, depois parti para a perseguição. Eu diria que não mais de cinco minutos. Mas não muito menos.
- Então você passou de cego a águia-caçadora, capaz de ver tudo, em menos de cinco minutos.
- Eu não caracterizaria isso assim, mas o tempo está certo.
- Bem, pelo menos tenho alguma coisa correta. Obrigado.
- Sem problema, tenente.
- Então você está dizendo que não viu a luta pelo controle da arma da policial Brasher antes de o tiro acontecer. Correto?
Ele estava com as mãos cruzadas às costas, o lápis entre os dois dedos como um cigarro. Bosch se inclinou sobre a mesa. Entendia o jogo de semântica que Gilmore
estava fazendo.
- Não jogue com as palavras, tenente. Não houve luta. Não vi luta porque não houve luta. Se tivesse havido eu teria visto. Está suficientemente claro para você?
Gilmore não respondeu. Continuou andando.
- Olhe - disse Bosch -, por que você não faz um exame em busca de pólvora em Stokes? Nas mãos, no macacão. Vocês não vão achar nada. Isso terminaria bem depressa.
Gilmore voltou à cadeira e se apoiou nela. Olhou para Bosch e balançou a cabeça.
- Sabe, detetive, eu adoraria fazer isso. Normalmente, numa situação assim, a primeira coisa que fazemos é procurar resíduos de tiro. O problema é que você violou
a regra. Decidiu tirar Stokes da cena do crime e trazer para cá. A cadeia de provas foi rompida, entende? Ele poderia ter se lavado, trocado de roupa, não sei o
que mais, porque você decidiu tirá-lo da cena do crime.
Bosch estava preparado para isso.
- Senti que havia uma questão de segurança. Meu parceiro vai confirmar isso. Stokes também. E ele jamais se afastou da minha custódia até você entrar aqui com tudo.
- Isso não muda o fato de que você achou que seu caso era mais importante do que nós juntarmos os fatos sobre um tiro dado numa policial deste departamento, muda?
Bosch não tinha resposta para isso. Mas agora chegava a uma compreensão total do que Gilmore estava fazendo. Era importante para ele e para o departamento concluir
e poder anunciar que Brasher levou um tiro durante uma luta pelo controle de sua arma. Assim, era heróico. E era uma coisa que a máquina de relações públicas do
departamento podia aproveitar e aceitar. Não havia nada como um bom policial levar um tiro no cumprimento do dever - ainda mais uma recruta - para ajudar a lembrar
ao público de tudo que era bom e nobre no departamento de polícia e de tudo que havia de perigoso no serviço policial.
A alternativa, anunciar que Brasher tinha atirado em si mesma acidentalmente - ou até mesmo algo pior - seria um embaraço para o departamento. Mais um, numa longa
lista de fiascos de relações públicas.
Atravancando o caminho da conclusão que Gilmore - e portanto Irving e os chefões do departamento - queria, estava Stokes e, claro, Bosch. Stokes não era problema.
Um bandido condenado enfrentando a possibilidade de cadeia por atirar numa policial. O
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que quer que ele dissesse seria em benefício próprio e sem importância. Mas Bosch era uma testemunha ocular com um distintivo Gilmore tinha de mudar o relato dele
ou, não conseguindo isso manchá-lo. O primeiro ponto fraco a atacar era a condição física de Bosch - considerando o que fora jogado em seus olhos, será que ele poderia
ter visto o que afirmava? O segundo passo era ir atrás de Bosch como detetive. Para preservar Stokes como testemunha em seu caso de assassinato, será que Bosch chegaria
ao ponto de mentir sobre ter visto Stokes atirar numa policial?
Para Bosch era uma coisa tão remota a ponto de ser bizarra. Mas no correr dos anos tinha visto coisas ainda piores acontecendo com policiais que tinham entrado
na frente da máquina que produzia a imagem que o departamento apresentava ao público.
- Espere um minuto, seu... - disse Bosch, conseguindo se conter para não xingar um superior. - Se está tentando dizer que eu mentiria sobre Stokes atirar em Julia...
na policial Brasher, para ele ficar liberado para o meu caso, então, com o devido respeito, você pirou de vez, porra.
- Detetive Bosch, estou explorando todas as possibilidades. Esse é o meu serviço.
- Bem, então pode explorá-las sem mim. Bosch se levantou e foi até a porta.
- Aonde vai?
- Já estou de saco cheio.
Ele olhou para o espelho e abriu a porta, depois olhou de novo para Gilmore.
- Tenho novidades para você, tenente. Sua teoria é uma merda. Stokes não adianta nada para o meu caso. É um zero. Julia levou um tiro por nada.
- Mas você não sabia disso antes de trazê-lo para cá, sabia? Bosch olhou-o e lentamente balançou a cabeça.
- Tenha um bom dia, tenente.
Ele se virou para passar pela porta e quase tropeçou em Irving. O subchefe estava totalmente ereto no corredor do lado de fora da sala.
- Volte para dentro um momento, detetive - disse ele calmamente. - Por favor.
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Bosch recuou para a sala. Irving seguiu-o.
- Tenente, nos dê um pouco de espaço aqui - disse o subchefe.
- E quero todo mundo fora da sala de observação também.
Ele apontou para o espelho enquanto dizia isso.
- Sim, senhor - disse Gilmore e saiu da sala, fechando a porta.
- Sente-se de novo - disse Irving.
Bosch voltou para a cadeira virada para o espelho. Irving continuou de pé. Depois de um momento, ele também começou a andar de um lado para o outro, andando na frente
do espelho, uma imagem dupla para Bosch acompanhar.
- Vamos dizer que o tiro foi acidental - disse Irving sem olhar para Bosch. - A policial Brasher prendeu o suspeito, e enquanto guardava a arma no coldre ela disparou
inadvertidamente.
- Foi isso que ela disse?
Irving pareceu momentaneamente confuso, depois balançou a
cabeça.
- Pelo que sei, ela só falou com você, e você disse que ela não disse nada específico em relação ao tiro.
Bosch assentiu.
- Então isso é o fim?
- Não vejo por que deveria ir mais longe.
Bosch pensou na foto do tubarão sobre a lareira de Julia. No que sabia sobre ela no pouco tempo em que estavam juntos. De novo as imagens do que tinha visto na garagem
repassaram em câmera lenta. E as coisas não batiam.
- Se não pudermos ser honestos com nós mesmos, como poderemos contar a verdade às pessoas lá fora?
Irving pigarreou.
- Não vou debater as coisas com você, detetive. A decisão foi
tomada.
- Pelo senhor.
- É, por mim.
- E quanto ao Stokes?
- Isso fica por conta da promotoria. Ele pode ser acusado segundo a lei de assassinato. Sua fuga, em última instância, levou ao tiro. A coisa será técnica. Se for
determinado que ele já estava sob custódia quando o tiro fatal aconteceu, talvez ele possa...
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- Espere um minuto, espere um minuto - disse Bosch, levantando-se. - Lei de assassinato? O senhor disse tiro
fatal?
Irving se virou para encará-lo.
- O tenente Gilmore não lhe disse?
Bosch tombou de volta na cadeira e pôs os cotovelos na mesa. Cobriu o rosto com as mãos.
- A bala acertou um osso no ombro e aparentemente ricocheteou dentro do corpo. Atravessou o peito. Rasgou o coração. E ela já estava morta quando chegou ao hospital.
Bosch baixou o rosto, de modo que agora as mãos estavam em cima da cabeça. Sentiu-se tonto e pensou que poderia cair da cadeira. Tentou respirar fundo, até que isso
passou. Depois de alguns instantes, Irving falou na escuridão de sua mente:
- Detetive, há alguns policiais neste departamento que são chamados de "ímãs de merda". Tenho certeza de que já ouviu a expressão. Pessoalmente, acho de mau gosto.
Mas o significado é que as coisas sempre parecem acontecer com esses policiais. Coisas ruins. Repetidamente. Sempre.
Bosch esperou no escuro pelo que sabia que estava vindo.
- Infelizmente, detetive Bosch, você é um desses policiais.
Bosch assentiu inconscientemente. Estava pensando no momento em que o paramédico colocou a máscara de oxigênio sobre a boca de Julia enquanto ela estava falando.
Não deixe eles...
O que ela queria dizer? Não deixe eles o quê? Estava começando a juntar as coisas e a saber o que ela queria dizer.
- Detetive - disse Irving, com a voz forte atravessando os pensamentos de Bosch. - Demonstrei uma paciência tremenda com você, no correr dos casos e no correr
dos anos. Mas me cansei. Este departamento também. Quero que comece a pensar na aposentadoria. Logo, detetive. Logo.
Bosch continuou de cabeça baixa e não respondeu. Depois de um momento ouviu a porta se abrir e fechar.
Capítulo 34
Segundo os desejos da família de Julia Brasher, de que ela fosse enterrada segundo sua fé, o funeral aconteceu no fim da manhã seguinte no Holywood Memorial Park.
Como fora morta acidentalmente no cumprimento do dever, recebeu toda a cerimônia fúnebre da polícia, com procissão de motocicletas, guarda de honra, salva de 21
tiros e um generoso comparecimento dos chefões do departamento ao lado da sepultura. O esquadrão aéreo do departamento também voou sobre o cemitério, cinco helicópteros
em formação de "homem desaparecido".
Mas como o enterro aconteceu menos de 24 horas depois da morte, o comparecimento não foi muito grande. As mortes no cumprimento do dever costumavam trazer pelo menos
alguns representantes de policiais de departamentos de todo o estado e do sudoeste. Isso não aconteceria com Julia Brasher. A rapidez da cerimônia e as circunstâncias
da morte se conjugaram para fazer com que fosse uma coisa relativamente pequena - segundo os padrões dos enterros de policiais. Uma morte numa batalha com armas
teria apinhado o pequeno cemitério, de lápide em lápide, com os ornamentos da religião azul. Uma policial se matando enquanto guardava a arma no coldre não engendrava
muito da mitologia e do perigo do trabalho policial. O enterro simplesmente não atraía muito.
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Bosch olhava das bordas do grupo fúnebre. Sua cabeça latejava da bebedeira da noite anterior e tentava aplacar a culpa e a dor. Ossos tinham saído do chão, e agora
duas pessoas estavam mortas por motivos que faziam pouco sentido para ele. Seus olhos estavam muito injetados e inchados, mas ele sabia que, se precisasse, poderia
dizer que era por causa do limpador de pneus que Stoker havia borrifado na véspera.
Viu Teresa Corazon, pela primeira vez sem o cinegrafista, sentada na primeira fila de chefões e dignitários, os poucos que haviam comparecido. Usava óculos escuros,
mas Bosch percebeu quando ela o notou. Sua boca pareceu se firmar numa linha fina e dura. Um perfeito sorriso fúnebre.
Bosch foi o primeiro a desviar o olhar.
Era um dia lindo para um enterro. Ventos rápidos vindos do Pacífico à noite tinham limpado temporariamente a névoa de poluição. Até a paisagem do Vale, vista da
casa de Bosch, estivera clara naquela manhã. Cirros corriam nas alturas junto com faixas deixadas pelos jatos voando alto. O ar no cemitério tinha um cheiro doce,
de todas as flores arrumadas perto da sepultura. De onde estava, Bosch podia ver as letras tortas do letreiro de Hollywood, lá em cima do monte Lee, presidindo o
serviço fúnebre.
O chefe de polícia não fez o discurso, como era seu costume nas mortes no cumprimento do dever. Em vez disso, o comandante da academia falou, usando o momento para
dizer como o perigo do trabalho policial sempre vem de um lugar inesperado, e como a morte da policial Brasher poderia salvar outros policiais ao lembrar que nunca
se deveria deixar a cautela de lado. Jamais chamou-a de outra coisa que não policial Brasher no discurso de dez minutos, dando a isso um toque embaraçosamente impessoal.
Durante a coisa toda Bosch ficava pensando nas fotos de tubarões de boca aberta e vulcões vomitando seus fluxos derretidos. Imaginou se Julia finalmente tinha se
provado à pessoa que ela achava que precisava provar.
Em meio aos uniformes azuis rodeando o caixão prateado havia uma mancha de cinza. Os advogados. Seu pai e um grande contingente da firma. Na segunda fila, atrás
do pai de Brasher, Bosch podia
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ver o homem da foto que estava sobre a lareira no bangalô em Venice. Por um tempo fantasiou que iria até lá e lhe daria um tapa Ou uma joelhada nos bagos. Fazer
isso no meio do serviço fúnebre, para que todos vissem, depois apontar para o caixão e dizer ao homem que ele a havia mandado para aquilo.
Mas deixou para lá. Sabia que a explicação e a designação da culpa eram simples demais e erradas. Em última instância, ele sabia, as pessoas escolhiam o próprio
caminho. Podiam ser orientadas e empurradas, mas sempre tinham a escolha final. Todo mundo tem uma jaula que mantém os tubarões longe. Os que abrem a porta e se
aventuram do lado de fora fazem isso por sua conta e risco.
Sete membros da turma de recrutas de Julia foram escolhidos para a saudação. Eles apontaram os fuzis para o céu azul e dispararam três balas de festim cada um, com
os cartuchos de latão ejetados fazendo um arco através da luz e caindo na grama como lágrimas. Enquanto os tiros ainda ecoavam nas pedras, os helicópteros passaram
no alto, e o funeral terminou.
Bosch foi lentamente até a sepultura, passando por pessoas que se afastavam. Uma mão segurou seu cotovelo por trás e ele se virou. Era Edgewood, o parceiro de Brasher.
- Eu... é... queria pedir desculpas por ontem, pelo que fiz - disse ele. - Não vai acontecer de novo.
Bosch esperou que ele fizesse contato ocular e então apenas assentiu. Não tinha nada para dizer a Edgewood.
- Acho que você não mencionou à TEP e eu... é... queria dizer
que agradeço.
Bosch olhou-o. Edgewood ficou desconfortável, assentm uma vez e se afastou. Quando ele tinha ido embora, Bosch se pegou olhando para uma mulher que estivera parada
logo atrás do policial. Uma latina, de cabelos prateados. Demorou um instante para reconhecê-la.
- Dra. Hinojos.
- Detetive Bosch, como vai?
Era o cabelo. Quase sete anos antes, quando Bosch era um visitante regular à sala de Hinojo, o cabelo dela era de um castanho profundo sem qualquer sugestão de grisalho.
Ainda era uma mulher
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bonita, quer estivesse grisalha ou de cabelos castanhos. Mas a mudança era espantosa.
- Estou bem. Como vão as coisas na oficina de malucos? Ela sorriu.
- Bem.
- Ouvi dizer que agora a senhora está comandando o show inteiro.
Ela confirmou com a cabeça. Bosch sentiu que estava ficando nervoso. Ele a havia conhecido numa involuntária licença por estresse. Em duas sessões por semana contou
coisas que nunca tinha contado a ninguém, e nem contou depois. E assim que voltou ao serviço nunca mais falou com ela.
Até agora.
- A senhora conhecia Julia Brasher?
Não era incomum que um psiquiatra do departamento comparecesse a um enterro de policial morto no cumprimento do dever; para oferecer aconselhamento local aos que
eram próximos ao falecido.
- Não, na verdade, não. Não pessoalmente. Como chefe do departamento examinei a matrícula dela e a entrevista de triagem para a academia. Assinei embaixo.
Ela esperou um momento, examinando Bosch em busca de uma reação.
- Eu soube que você era próximo dela. E que estava lá na hora. Você foi a testemunha.
Bosch assentiu. As pessoas que saíam do enterro estavam passando pelos dois lados deles. Hinojos chegou mais perto, para que os outros não ouvissem.
- Este não é o lugar nem a hora, mas, Harry, quero falar com você sobre ela.
- O que há para falar?
- Quero saber o que aconteceu. E por quê.
- Foi um acidente. Fale com o chefe Irving.
- Já falei e não estou satisfeita. Duvido de que você também esteja.
- Escute, doutora, ela está morta, certo? Eu não vou...
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- Assinei a autorização. Minha assinatura colocou o distintivo nela. Se deixamos escapar alguma coisa, se deixei escapar alguma coisa, quero saber. Se houve sinais,
deveríamos ter visto.
Bosch assentiu e olhou para a grama entre eles.
- Não se preocupe, houve sinais que eu deveria ter visto. Mas também não somei dois e dois.
Ela deu mais um passo para perto. Agora Bosch só podia olhar diretamente para a doutora.
- Então estou certa. Há mais alguma coisa. Ele assentiu.
- Nada explícito. Só que ela vivia no limite. Corria riscos, atravessava o tubo. Estava tentando provar alguma coisa. Nem sei se ela tinha certeza de que queria
ser policial.
- Provar alguma coisa a quem?
- Não sei. Talvez a ela mesma, talvez a outra pessoa.
- Harry, sei que você é um cara com um grande instinto. O que mais?
Bosch deu de ombros.
- São só coisas que ela fazia ou dizia... tenho uma cicatriz de bala no ombro. Ela perguntou a respeito. Uma noite dessas. Perguntou como levei o tiro e contei que
tive sorte de ter sido acertado ali porque era só osso. Então... o lugar onde ela atirou, é o mesmo. Só que, nela... ricocheteou. Ela não esperava isso.
Hinojos assentiu e esperou.
- Não suporto pensar no que estive pensando, sabe o que quero dizer?
- Diga, Harry.
- Fico repassando na mente. O que eu vi e o que eu sei. Ela apontou a arma para ele. E acho que, se eu não estivesse lá e gritado, talvez ela tivesse atirado nele.
Assim que ele estivesse caído ela iria colocar a arma nas mãos dele e dar um tiro para o teto, ou talvez num carro. Ou talvez nele. Não importaria, desde que ele
terminasse morto com parafina nas mãos e ela pudesse dizer que ele tentou
pegar a arma.
- O que está sugerindo é que ela atirou em si mesma para matá-lo e ficar parecendo uma heroína?
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- Não sei. Ela falava que o mundo precisava de heróis. Especialmente agora. Dizia que esperava ter chance de ser heroína um dia. Mas acho que havia mais alguma coisa
nisso tudo. Era como se ela quisesse a cicatriz, a experiência da cicatriz.
- E estava disposta a matar para isso?
- Não sei. Não sei nem se estou certo. Só sei que ela podia ser uma novata, mas tinha chegado a um ponto em que havia uma linha entre nós e eles, onde todo mundo
sem um distintivo é um merda. Ela viu isso acontecendo consigo mesma. Talvez só estivesse procurando um modo de sair...
Bosch balançou a cabeça e olhou para o lado. Agora o cemitério estava quase deserto.
- Não sei. Dizer isso em voz alta faz com que pareça... não sei. É um mundo maluco.
Ele se afastou um passo de Hinojos.
- Acho que a gente nunca conhece ninguém, não é? - perguntou ela. - A gente pode achar que conhece. Pode estar suficientemente perto para dormir com alguém, mas
nunca sabe o que está realmente acontecendo por dentro.
- Não, não sabe. Todo mundo tem segredos. Bosch assentiu e estava para se afastar.
- Espere, Harry.
Ela levantou a bolsa e abriu. Começou a remexer dentro.
- Ainda quero falar sobre isso - disse enquanto pegava um cartão de visitas e entregava a ele. - Quero que ligue para mim. Completamente extra-oficial, confidencial.
Pelo bem do departamento.
Bosch quase riu.
- O departamento não se importa com isso. O departamento se importa com a imagem, não com a verdade. E quando a verdade prejudica a imagem, foda-se a verdade.
- Bem, eu me importo, Harry. E você também. Bosch olhou o cartão, assentiu e colocou-o no bolso.
- Certo, eu ligo.
- O número do celular está aí. Ando com ele o tempo todo. Bosch assentiu. Ela se adiantou e estendeu a mão. Segurou seu
braço e apertou-o.
243
- E você, Harry? Você está bem?
- bom, além de perdê-la e de Irving ter falado que devo pensar em me aposentar, estou bem.
Hinojos franziu a testa.
- Agüente firme, Harry.
Bosch assentiu, pensando em como tinha usado as mesmas palavras com Julia no final.
Hinojos foi embora e Bosch continuou andando para a sepultura. Achava que agora estava sozinho. Pegou um punhado de terra, foi até a cova e olhou para baixo. Um
buquê inteiro e várias flores avulsas tinham sido jogados em cima do caixão. Bosch pensou que tinha levado Julia para sua cama há apenas duas noites. Desejou ter
sabido o que aconteceria. Desejou ter sido capaz de captar as dicas e colocá-las numa imagem clara do que ela estava fazendo e de para onde estava indo.
Lentamente, ergueu a mão e deixou a terra escorrer pelos dedos.
- - sussurrou.
Olhou a terra cair na sepultura como sonhos desaparecendo.
- Presumo que o senhor a conhecesse.
Bosch se virou rapidamente. Era o pai dela. Dando um sorriso triste. Eram os únicos que restavam no cemitério. Bosch assentiu.
- Só recentemente. Eu a conheci. Lamento muito sua perda.
- Frederick Brasher.
Ele estendeu a mão. Bosch começou a pegá-la, mas parou.
- Minha mão está suja.
- Não se preocupe. A minha também. Eles se apertaram as mãos.
- Harry Bosch.
A mão de Brasher parou de sacudir a dele um momento, quando o nome se registrou.
- O detetive - disse ele. - O senhor estava lá ontem.
- Sim. Eu tentei... fiz o que pude para ajudá-la. Eu... Parou. Não sabia o que dizer.
- Tenho certeza de que sim. Deve ter sido uma coisa horrível estar lá.
244
Bosch assentiu. Uma onda de culpa o atravessou como raios X iluminando seus ossos. Ele a deixara lá, pensando que ela ficaria bem. De algum modo isso doía quase
tanto quanto o fato de ela ter morrido.
- O que não entendo é como isso aconteceu - disse Brasher. Um erro assim, como pode tê-la matado? E a promotoria dizendo hoje que esse tal de Stokes não será acusado
de nada com relação ao tiroteio. Sou advogado, mas simplesmente não entendo. Eles vão deixá-lo sair livre.
Bosch examinou o velho, viu o sofrimento nos olhos dele.
- Sinto muito, senhor. Gostaria de ser capaz de dizer. Eu me faço as mesmas perguntas.
Brasher assentiu e olhou para a sepultura.
- Estou indo - disse após um longo momento. - Obrigado por ter vindo, detetive Bosch.
Bosch assentiu, eles se apertaram as mãos de novo e Brasher começou a se afastar.
- Senhor? - perguntou Bosch. Brasher se virou.
- O senhor sabe quando alguém da família irá à casa dela?
- Na verdade, me deram as chaves hoje. Eu ia agora. Dar uma olhada nas coisas. Tentar sentir como ela estava, acho. Nos últimos anos nós...
Ele não terminou. Bosch chegou mais perto.
- Há uma coisa que ela possuía. Uma foto emoldurada. Se não for... se não for problema para o senhor, eu gostaria de ficar com ela.
Brasher assentiu.
- Por que não vai agora? Encontre-se comigo lá. Mostre a foto. Bosch olhou para o relógio. A tenente Billets havia marcado
uma reunião à uma e meia para falar do caso. Ele provavelmente tinha o tempo exato para ir a Venice e voltar à delegacia. Não haveria tempo para almoçar, mas Bosch
não conseguia se ver comendo, mesmo.
- Certo, eu vou.
Os dois se separaram em direção aos carros. No caminho Bosch parou onde a salva de tiros fora dada. Examinando a grama com o
245
pé, procurou até ver o brilho de latão e se curvou para pegar um dos cartuchos ejetados pelos fuzis. Segurou-o na palma da mão e o olhou por alguns instantes, depois
fechou a mão e largou o cartucho no bolso do paletó. Tinha pegado um cartucho em cada enterro de policial a que havia comparecido. Tinha uma jarra cheia. Virou-se
e saiu do cemitério.
32
Jerry Edgar tinha um jeito de bater na porta para entregar mandado que soava diferente de tudo que Bosch já ouvira. Como um atleta bem-dotado que pode concentrar
a força de todo o corpo no movimento de um bastão ou encestando uma bola de basquete, Edgar podia colocar todo o peso e seu
1,92m de altura na batida. Era como se
pudesse invocar e concentrar todo o poder e a fúria dos justos no punho de sua grande mão esquerda. Plantava os pés com firmeza e ficava meio de lado para a porta.
Levantava o braço esquerdo, dobrava o cotovelo não menos de trinta graus e batia na porta com o lado carnudo do punho. Era uma batida com a mão se movendo para
trás, mas ele conseguia disparar os pistões dos mus' culos tão rapidamente que parecia o latido em staccato de uma metralhadora. Soava como o Juízo Final.
O trailer de alumínio de Samuel Delacroix pareceu estremecer de uma ponta à outra quando Edgar bateu na porta com o punho às 15h30 da quinta-feira. Edgar esperou
alguns segundos e bateu de novo, desta vez anunciando "POLICIA!" e depois recuando da soleira, que era uma pilha de blocos de concreto soltos.
Esperaram. Nenhum dos dois tinha sacado a arma, mas Bosch estava com a mão por baixo do paletó, segurando a pistola dentro do coldre. Era seu procedimento padrão
quando entregava um mandado a uma pessoa que supostamente não fosse perigosa.
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Bosch prestou atenção para ver se escutava movimentos dentro, mas o chiado da via expressa ali perto era alto demais. Verificou as janelas; nenhuma das cortinas
fechadas estava se movendo.
- Sabe - sussurrou Bosch -, estou começando a pensar que é um alívio quando é só a polícia, depois dessa batida. Pelo menos eles sabem que não é um terremoto.
Edgar não respondeu. Provavelmente sabia que era só um papo nervoso de Bosch. Não era ansiedade com a batida na porta - Bosch esperava totalmente que Delacroix
fosse fácil de lidar. Estava ansioso porque sabia que todo o caso dependeria das próximas horas com Delacroix. Eles revistariam o trailer e teriam de tomar uma
decisão, comunicada principalmente no código dos parceiros, se prenderiam Delacroix pelo assassinato do filho. Em algum ponto desse processo precisariam encontrar
a prova ou extrair uma confissão que transformaria um caso montado principalmente numa teoria num processo resistente a advogados.
Assim, na mente de Bosch, eles estavam se aproximando rapidamente do momento da verdade, e isso sempre o deixava nervoso. Mais cedo, na reunião com a tenente Billets,
fora decidido que estava na hora de falar com Sam Delacroix. Ele era o pai da vítima, era o principal suspeito. As poucas provas que tinham ainda apontavam para
ele. Passaram a hora seguinte digitando um mandado de busca para o
trailer de Delacroix e levando-o ao prédio da justiça criminal, no centro da cidade, para um juiz
que normalmente era fácil de convencer.
Mas até mesmo esse juiz precisou de argumentações. O problema era que o caso era velho, as provas ligando diretamente o suspeito eram débeis, e o lugar que Bosch
e Edgar queriam revistar não era onde o homicídio poderia ter acontecido, e nem mesmo era ocupado pelo suspeito na época da morte.
O que os detetives tinham a favor era o impacto emocional que vinha da lista, incluída no mandado: todos os ferimentos nos ossos do menino indicavam o que ele havia
sofrido em sua curta vida. No fim, foram todas aquelas fraturas que convenceram o juiz a assinar o mandado. ,
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Primeiro tinham ido à área de treinamento de golfe, mas foram informados de que Delacroix tinha terminado de dirigir o trator naquele dia.
- Dê outra chance a ele - disse Bosch a Edgar do lado de fora do trailer.
- Acho que estou escutando ele vir.
- Não importa. Quero que ele fique chacoalhado.
Edgar subiu de novo na soleira e bateu. Os blocos de concreto balançaram e ele não plantou os pés com firmeza. A batida resultante não tinha a força e o terror
dos dois primeiros ataques contra a porta.
Edgar desceu de novo.
- Isso aí não era-a polícia - sussurrou Bosch. - Era um vizinho reclamando do cachorro ou alguma coisa assim.
- Desculpe, eu...
A porta foi aberta e Edgar apareceu. Bosch entrou em alerta máximo. Os trailers eram coisas complicadas. Diferentemente da maioria das estruturas, as portas abriam
para fora, de modo que o espaço interior não precisasse acomodar o movimento. Bosch estava posicionado do lado cego, de modo que a pessoa que abrisse estaria vendo
Edgar, mas não podia vê-lo. O problema era que Bosch também não podia ver quem tinha aberto a porta. Se houvesse problema, a função de Edgar era gritar um alerta
para Bosch e sair do caminho. Sem hesitar, Bosch esvaziaria a arma na porta do trailer, rasgando o alumínio e quem estivesse do outro lado, como se fossem de papel.
- O que é? - perguntou uma voz de homem.
Edgar levantou o distintivo. Bosch examinou o parceiro em busca de qualquer sinal de alerta.
- Sr. Delacroix, polícia.
Não vendo qualquer sinal de alarme, Bosch se adiantou, segurou a maçaneta e abriu a porta até o final. Manteve o paletó aberto e a mão no cabo da arma.
O homem que ele tinha visto na área de golfe na véspera estava ali parado. Usava uma velha bermuda xadrez e uma camiseta marrom desbotada, com manchas permanentes
debaixo dos braços.
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- Temos um mandado para revistar este trailer - disse Bosch. Podemos entrar?
- Vocês - disse Delacroix. - Vocês estavam na área de golfe ontem.
- Senhor - respondeu Bosch com ênfase. - Eu disse que tenho um mandado de busca para esse trailer. Podemos entrar e fazer a busca?
Bosch tirou do bolso o mandado dobrado e estendeu, mas fora do alcance de Delacroix. Esse era o truque. Para conseguir o mandado eles tiveram de mostrar todas as
cartas ao juiz. Mas não queriam mostrar as mesmas cartas a Delacroix. Pelo menos não por enquanto. De modo que, ainda que Delacroix tivesse o direito de ler e examinar
o mandado antes de permitir que os detetives entrassem, Bosch esperava entrar sem que isso acontecesse. Logo Delacroix saberia dos fatos do caso, mas Bosch queria
controlar a entrega de informações, de modo a fazer leituras e julgamentos baseado nas reações do suspeito.
Começou a enfiar de novo o mandado no bolso do paletó.
- Por que isso? - perguntou Delacroix num protesto mudo. Eu posso ao menos ver esse negócio?
- O senhor é Samuel Delacroix? - respondeu Bosch rapidamente.
- Sou.
- Este é o seu trailer, correto, senhor?
- É o meu trailer. Eu alugo. Quero ler o...
- Sr. Delacroix - disse Edgar. - Preferiríamos não ficar aqui parados à vista dos seus vizinhos, discutindo isso. Tenho certeza de que o senhor também não quer.
Vai deixar que executemos a busca legal ou não?
Delacroix olhou de Bosch para Edgar, e depois de novo para Bosch. Assentiu.
- Acho que sim.
Bosch subiu primeiro. Entrou, espremendo-se ao passar por Delacroix e captando o odor de bourbon, mau hálito e urina de gato.
- Começando cedo, Sr. Delacroix?
- É, tomei uma dose - disse Delacroix, com uma mistura de "e daf' e desprezo por si mesmo na voz. - Fiz o meu trabalho. Tenho o direito.
Então Edgar entrou, espremendo-se muito mais ao passar por Delacroix, e ele e Bosch examinaram o que podiam ver no trailer mal iluminado. À direita da porta ficava
a sala. Era forrada de madeira e tinha um sofá de curvim verde e uma mesinha de centro com parte do verniz descascado, expondo o aglomerado por baixo. Havia uma
mesinha de abajur combinando, sem o abajur, e um rack de televisão com uma TV mal acomodada em cima de um aparelho de videocassete. Havia várias fitas de vídeo
empilhadas em cima da televisão. Do outro lado da mesinha de centro havia uma velha poltrona com o encosto rasgado - possivelmente por um gato - e o estofo saindo.
Embaixo da mesinha havia uma pilha de jornais, a maioria tablóides de fofocas com manchetes espalhafatosas.
À esquerda havia uma quitinete com pia, armários, fogão, forno e geladeira de um lado e um cubículo de jantar para quatro pessoas do outro. Havia uma garrafa de
bourbon Ancient Age na mesa. No chão embaixo da mesa havia algumas migalhas de comida para gato num prato e um velho pote de margarina com água pela metade. Não
havia sinal do gato, além do cheiro da urina.
Depois da cozinha ficava um corredor estreito levando a um ou dois quartos e um banheiro.
- Vamos deixar a porta aberta e abrir algumas janelas - disse Bosch. - Sr. Delacroix, por que não se senta no sofá?
Delacroix foi até o sofá e disse:
- Olha, vocês não precisam revistar esse lugar. Já sei por que estão aqui.
Bosch olhou para Edgar e depois para Delacroix.
- É? - perguntou Edgar. - Por que estamos aqui?
Delacroix se deixou cair pesadamente no meio do sofá. As molas estavam arrebentadas. Ele afundou no meio, e as extremidades da almofada de cada lado subiram como
as proas de dois Titanics afundando.
- A gasolina - disse Delacroix. - E praticamente não usei nem um pouco. Não vou a lugar nenhum, só à área de treino de golfe. Tenho uma licença restrita por causa
das violações de trânsito.
- A gasolina? - perguntou Edgar. - O que...
- Sr. Delacroix, não estamos aqui porque o senhor roubou gasolina - disse Bosch.
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Ele pegou uma das fitas de vídeo na pilha sobre o televisor. Havia uma etiqueta na lombada, com algo escrito. First Infantry, epísódio 46. Colocou-a de volta
e olhou para o que estava escrito em outras fitas. Eram todos episódios do seriado de TV em que Delacroix tinha trabalhado há mais de trinta anos.
- Esse não é o nosso serviço - acrescentou ele, sem olhar para Delacroix.
- Então o que é? O que vocês querem? Agora Bosch o encarou.
- Estamos aqui por causa do seu filho.
Delacroix o fitou por um longo momento, a boca se abrindo lentamente e expondo os dentes amarelados.
- Arthur - disse ele por fim.
- E. Nós o encontramos.
Os olhos de Delacroix baixaram, afastando-se dos de Bosch e pareceram sair do trailer enquanto examinavam uma lembrança distante. Em seu olhar havia conhecimento.
Bosch viu. Seus irxstintos lhe diziam que Delacroix já sabia o que falariam em
seguida. Olhou para Edgar, para ver se ele tinha visto também. Edgar assentiu rapidamente.
Bosch olhou de novo para o homem no sofá.
- O senhor não parece muito empolgado, para um pai que não vê o filho há mais de vinte anos - disse ele.
Delacroix olhou-o.
- Acho que é porque sei que ele está morto.
Bosch examinou-o por um longo momento, a respiração presa nos pulmões.
- Por que diz isso? O que o faz pensar nisso?
- Porque sei. Eu sabia o tempo todo.
- O que o senhor sabia?
- Que ele não ia voltar.
Isso não estava acontecendo de nenhum dos modos que Bosch tinha imaginado. Parecia que Delacroix estivera esperando por eles, ansiando por eles, talvez há anos.
Decidiu que talvez tivessem de mudar a estratégia, prender Delacroix e alertá-lo sobre seus direitos.
252
- Estou sendo preso? - perguntou Delacroix, como se tivesse lido os pensamentos de Bosch.
Bosch olhou para Edgar de novo, imaginando se o parceiro tinha sentido como o plano dos dois escorria para longe.
- Nós achamos que talvez seja melhor conversar antes. O senhor sabe, informalmente.
- Podem me prender - disse Delacroix em voz baixa.
- O senhor acha? Isso significa que não quer conversar conosco? Delacroix balançou a cabeça lentamente e voltou ao olhar
distante.
- Não, eu falo com vocês. Conto tudo.
- Conta o quê?
- Como aconteceu.
- Como aconteceu o quê?
- Meu filho.
- O senhor sabe como aconteceu?
- Claro que sei. Fui eu que fiz.
Bosch quase xingou alto. O suspeito havia literalmente confessado antes que eles dissessem quais eram os seus direitos, inclusive o de não fazer declarações que
o incriminassem.
- Sr. Delacroix, vamos interromper isso agora mesmo. vou alertá-lo sobre seus direitos agora.
- Eu só quero...
- Não, por favor, senhor, não diga mais nada. Por enquanto, não. Vamos cuidar desse negócio dos direitos e depois ficaremos mais do que felizes em ouvir tudo que
o senhor quiser dizer.
Delacroix balançou a mão como se isso não importasse para ele, como se nada importasse.
- Jerry, onde está o seu gravador? Eu não peguei o meu de volta na DAI.
- Ah, no carro, mas não sei se as pilhas estão boas.
- Vá verificar.
Edgar saiu do trailer e Bosch esperou em silêncio. Delacroix apoiou os cotovelos nos joelhos e o rosto nas mãos. Bosch examinou a postura. Isso não acontecia com
freqüência, mas seria a primeira vez em que ele conseguia uma confissão no primeiro encontro com um suspeito.
253
Edgar voltou com um gravador, mas balançou a cabeça.
- As pilhas estão gastas. Achei que você estava com o seu.
- Merda. Então tome nota.
Bosch pegou a carteira do distintivo e tirou um cartão de visita. Tinha mandado fazê-los com os direitos da lei Miranda impressos atrás, junto com uma linha para
assinatura. Leu a declaração e perguntou a Delacroix se ele entendia seus direitos. Delacroix assentiu.
- Isso é um sim?
- É, é um sim.
- Então assine na linha embaixo do que acabei de ler.
Ele deu o cartão e uma caneta a Delacroix. Assim que estava assinado, Bosch pôs o cartão de volta na carteira do distintivo. Em seguida, sentou-se na beira da poltrona
com encosto rasgado.
- bom, sr. Delacroix, quer repetir o que acabou de dizer há alguns minutos?
Delacroix deu de ombros como se isso não fosse grande coisa.
- Matei meu filho. Arthur. Matei. Sabia que algum dia vocês iam aparecer. Demorou muito.
Bosch olhou para Edgar. Ele estava anotando num caderno. Teriam algum registro da confissão de Delacroix. Olhou de volta para o suspeito e aguardou, esperando que
o silêncio fosse um convite para Delacroix falar mais. Mas não falou. Em vez disso, o suspeito enterrou o rosto nas mãos de novo. Logo seus ombros começaram a se
sacudir com o choro.
- Que Deus me ajude... fui eu que fiz.
Bosch olhou para Edgar e levantou as sobrancelhas. Seu parceiro fez um rápido sinal de polegar para cima. Tinham mais do que o suficiente para ir ao próximo estágio;
o cenário controlado de uma sala de entrevistas na delegacia, com material de gravação.
- Sr. Delacroix, o senhor tem um gato? - perguntou Bosch. Onde está o seu gato?
Delacroix espiou por entre os dedos.
- Por aí. Provavelmente dormindo na cama. Por quê?
- Bem, nós vamos chamar o Controle de Animais para pegá-lo e cuidar dele. Vamos prender o senhor agora. E falaremos mais na delegacia.
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Delacroix baixou as mãos e pareceu perturbado.
- Não. O Controle de Animais não vai cuidar dele. Vão matálo com gás no minuto em que descobrirem que não vou voltar.
- Bem, não podemos deixá-lo aqui.
- A sra. Kresky vai cuidar dele. E a vizinha. Ela pode vir e dar comida para ele.
Bosch balançou a cabeça. O negócio todo estava afundando por causa de um gato.
- Não podemos fazer isso. Temos de lacrar este local até podermos fazer uma busca.
- O que vocês vão querer achar aqui? - perguntou Delacroix, agora com raiva verdadeira na voz. - Estou dizendo o que vocês precisam saber. Matei meu filho. Foi
um acidente. Acho que bati com força demais. Eu...
Delacroix pôs o rosto de novo nas mãos e murmurou lacrimoso:
- Meu Deus... o que eu fiz?
Bosch olhou para Edgar; ele estava escrevendo. Bosch se levantou. Queria levar Delacroix à delegacia, para uma das salas de entrevista. Agora sua ansiedade havia
sumido, substituída por um sentimento de urgência. Ataques de consciência e culpa eram coisas efêmeras. Queria Delacroix gravado - em vídeo e áudio - antes que ele
decidisse falar com um advogado e antes que percebesse que estava se colocando pelo resto da vida numa cela medindo três por dois.
- Certo, pensaremos no gato mais tarde. Por enquanto vamos deixar comida suficiente. Levante-se, sr. Delacroix, nós vamos indo.
Delacroix ficou de pé.
- Posso colocar uma roupa melhor? Isso é só uma coisa velha que uso em casa.
- Não, não se preocupe com isso - disse Bosch. - Mais tarde levaremos roupas para o senhor usar.
Não se incomodou em dizer que as roupas não seriam dele. O que aconteceria é que ele iria receber um macacão de presidiário com um número nas costas. Seu macacão
seria amarelo, a cor dada aos presos no andar dos barra-pesada - os assassinos.
- Vocês vão me algemar?
- E a política do departamento - disse Bosch. - Temos de fazer isso.
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Ele rodeou a mesinha de centro e virou Delacroix para algemar
as mãos às costas.
- Eu era ator, você sabem. Uma vez representei um prisioneiro um episódio de O fugitivo. Na primeira série, com David Janssen.
Era um papel pequeno. Fiquei sentado num banco perto de Janssen. Só isso. Supostamente eu estava drogado, acho.
'Bosch não disse nada. Empurrou Delacroix gentilmente para a porta estreita do
trailer.
- Não sei por que acabei de lembrar isso - disse Delacroix.
- Tudo bem - respondeu Edgar. - As pessoas se lembram das coisas mais estranhas nessas horas.
- Tenha cuidado com os degraus - avisou Bosch. Levaram-no para fora, Edgar na frente e Bosch atrás.
- Há uma chave? - perguntou Bosch.
- Na bancada da cozinha - disse Delacroix.
Bosch voltou para dentro e achou as chaves. Então começou a abrir armários na quitinete até achar a caixa de comida para gato. Abriu e jogou no prato de papel embaixo
da mesa. Não havia muita comida. Soube que mais tarde teria de fazer alguma coisa pelo
animal.
Quando saiu do trailer, Edgar já havia posto Delacroix no banco de trás do carro da polícia. Viu um vizinho olhando da porta da frente de um traier próximo. Virou-se
e trancou a porta de Delacroix.
Capítulo 36
Bosch enfiou a cabeça na sala da tenente Billets. Ela estava de lado, atrás da mesa, trabalhando num computador na mesinha lateral. A escrivaninha tinha sido limpa.
Ela já ia para casa.
- Sim? - disse ela sem erguer a cabeça para ver quem era.
- Parece que tivemos sorte.
Billets se virou de costas para o computador e viu que era Bosch.
- Deixe-me adivinhar. Delacroix convidou vocês a entrar, sentou-se e confessou.
Bosch assentiu.
- E isso aí.
Os olhos dela se arregalaram de surpresa.
- Você está me sacaneando, porra.
- Ele disse que foi ele. Tivemos de fazer com que ele calasse a boca para trazer para cá e gravar tudo. Era como se estivesse esperando que a gente aparecesse.
Billets fez mais algumas perguntas e Bosch terminou repassando toda a visita ao
trailer, inclusive o problema de não ter um gravador funcionando para gravar a confissão
de Delacroix. Billets ficou preocupada e chateada, tanto com Bosch quanto com Edgar por não estarem preparados, e com Bradley, da DAI, por não ter devolvido o
gravador de Bosch.
257
- Só posso dizer que é melhor que isso não estrague o bolo, Harry - disse ela, referindo-se à possibilidade jurídica de um questionamento legal a qualquer confissão
porque as palavras iniciais de Delacroix não estavam gravadas. - Se perdermos isso por causa de uma merda da sua parte...
Ela não terminou, mas não precisava.
- Olha, acho que vai ficar tudo bem. Edgar anotou literalmente tudo que ele disse. Nós paramos assim que tivemos o suficiente para prendê-lo, e agora vamos gravar
com áudio e vídeo.
Billets não pareceu totalmente convencida.
- E quanto à lei Miranda? Você tem confiança de que não teremos uma situação relativa à Miranda - disse ela e a última parte não era uma pergunta, mas sim uma ordem.
- Não vejo como. Ele começou a falar antes de termos a chance de avisar. E continuou falando depois. Algumas vezes é assim. Você se prepara para ir com o aríete
e eles simplesmente abrem a porta. O advogado que ele conseguir pode ter um ataque cardíaco e começar a gritar, mas não vai dar em nada. Estamos limpos, tenente.
Billets assentiu, sinal de que Bosch a estava convencendo.
- Gostaria de que todos fossem fáceis assim - disse ela. - E a promotoria?
- vou ligar para lá em seguida.
- Certo, em que sala, se eu quiser dar uma olhada?
- Três.
- Certo, Harry, vá lá e acabe com isso.
Ela se virou de volta para o computador. Bosch fez continência e já ia passar pela porta quando parou. Billets sentiu que ele não tinha saído e se virou de novo.
- O que é?
Bosch deu de ombros.
- Não sei. O tempo todo em que vim para cá estive pensando no que poderia ser evitado se a gente simplesmente fosse até ele, em vez de dançar em volta, juntando
os fios.
- Harry, sei o que você está pensando, e não havia como saber que esse cara, depois de vinte e tantos anos, estivesse esperando que vocês batessem na porta dele.
Você agiu do modo certo, e se tivesse
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de fazer de novo, faria do mesmo jeito. A gente circula a presa. O que aconteceu com a policial Brasher não teve nada a ver com o modo como você cuidou deste caso.
Bosch olhou-a por um momento e depois assentiu. O que ela dissera ajudaria a aliviar sua consciência.
Billets se virou de novo para o computador.
- Como eu disse, vá lá e acabe com isso.
Bosch voltou à mesa de homicídios para ligar para a promotoria, dizendo que fora feita uma prisão num caso de assassinato e que estava sendo tomada a confissão.
Falou com uma supervisora chamada O'Brien e disse que ele ou o parceiro iriam preencher as fichas de acusação no fim do dia. O'Brien, que só estava familiarizada
com o caso através da mídia, disse que queria mandar um promotor à delegacia, para supervisionar a confissão e o avanço do caso nesse estágio.
Bosch sabia que, com o tráfego da hora do rush no centro da cidade, ainda demoraria um mínimo de 45 minutos antes que o promotor chegasse à delegacia. Disse a O'Brien
que o promotor era bem-vindo, mas que não iria esperar ninguém antes de tomar a confissão do suspeito. O'Brien sugeriu que ele deveria fazer isso.
- Olha, o cara quer falar - disse Bosch. - Dentro de quarenta e cinco minutos ou uma hora a coisa pode ser diferente. Não podemos esperar. Diga ao seu cara para
bater na porta da sala três quando chegar aqui. Nós o colocamos no caso assim que pudermos.
Num mundo perfeito o promotor estaria lá para uma entrevista, mas Bosch sabia, devido aos anos trabalhando, que uma consciência culpada nem sempre permanece culpada.
Quando alguém diz que quer confessar um assassinato, você não espera. Liga o gravador e diz: Conte tudo.
O'Brien concordou com relutância, citando suas próprias experiências, e depois desligou. Imediatamente Bosch pegou o telefone de novo e ligou para a Divisão de
Assuntos Internos e perguntou por Carol Bradley. Foi transferido.
- Aqui é o Bosch, da Divisão de Hollywood, onde está a porcaria do meu gravador?
Houve silêncio, como resposta.
259
- Bradley? Alô? Você está...
- Estou aqui. Estou com o seu gravador.
- Por que ficou com ele? Eu disse para ouvir a fita. Não disse para levar meu gravador porque não precisava mais dele.
- Eu queria revisá-lo e mandar verificar a fita, para garantir que
era contínua.
- Então abra o aparelho e tire a fita. Não leve o aparelho.
- Detetive, algumas vezes eles precisam do gravador original para autenticar a fita.
Bosch balançou a cabeça, frustrado.
- Meu Deus, por que você está fazendo isso? Você sabe quem fez o vazamento, por que está perdendo tempo?
De novo houve uma pausa, antes de ela responder:
- Preciso cobrir todas as possibilidades, detetive, preciso fazer minha investigação do jeito que achar melhor.
Agora Bosch parou um momento, imaginando se estava deixando de perceber alguma coisa, se havia alguma outra coisa acontecendo. Finalmente decidiu que não podia se
preocupar com isso. Tinha de manter os olhos fixos no prêmio: seu caso.
- Cobrir as possibilidades, fantástico - disse ele. - Bem, eu quase perdi uma confissão hoje porque não estava com meu gravador. Agradeceria se você o mandasse
de volta.
- Terminei com ele, e estou colocando num malote agora
mesmo.
- Obrigado. Tchau.
Desligou no momento em que Edgar apareceu junto à mesa com três copos de café. Isso fez Bosch pensar numa coisa que eles deveriam fazer.
- Quem está no plantão lá embaixo? - perguntou.
- Mankiewicz estava lá. E Young também.
Bosch colocou o café do copo de isopor na caneca que tirou da gaveta. Então pegou o telefone e ligou para a sala do plantão. Mankiewicz atendeu.
- Você tem alguém na caverna do morcego?
- Bosch? Achei que você ia tirar uma licença.
- Achou errado. E a caverna?
260
- Não, ninguém até as oito de hoje. Do que você precisa?
- Estou para tomar uma confissão e não quero que nenhum advogado abra a caixa antes de eu embrulhar. O suspeito cheira a birita, mas acho que ele está bem. Mesmo
assim gostaria de registrar isso.
- E o caso dos ossos? -É.
- Traga ele para cá que eu faço. Tenho autorização pericial.
- Obrigado, Mank.
Ele desligou e olhou para Edgar.
- Vamos levar o sujeito para a caverna e ver o que ele sopra. Só para garantir.
- Boa idéia.
Levaram os cafés para a sala de entrevista número três, onde tinham algemado Delacroix ao elo no centro da mesa. Soltaram-no das algemas e o deixaram tomar alguns
goles de café antes de leválo pelo corredor dos fundos até a pequena carceragem da delegacia. A carceragem consistia essencialmente em duas grandes celas para bêbados
e prostitutas. Em geral os prisioneiros mais importantes eram transportados para a cadeia principal da cidade ou do condado. Além disso havia uma pequena cela conhecida
como caverna do morcego, usada para testes de álcool no sangue.
Encontraram Mankiewicz no corredor e o seguiram até a caverna, onde ele ligou o bafômetro e instruiu Delacroix a soprar num tubo de plástico transparente preso à
máquina. Bosch notou que Mankiewicz estava com uma fita preta, de luto, atravessando o distintivo, em homenagem a Julia Brasher.
Dentro de alguns minutos tinham o resultado. Delacroix soprou 0,003, nem mesmo perto do limite legal para dirigir. Não havia padrão definido para fazer uma confissão
de assassinato.
Enquanto tiravam Delacroix da cadeia, Bosch sentiu Mankiewicz bater no seu braço por trás. Ele se virou para encará-lo enquanto Edgar voltava pelo corredor com
Delacroix.
Mankiewicz assentiu.
- Harry, só queria dizer que sinto muito. Você sabe, pelo que aconteceu lá.
261
Bosch sabia que ele estava falando de Julia. Assentiu de volta.
- E, obrigado. E difícil.
- Eu tive de mandá-la, você sabe. Sei que ela era verde, mas...
- Ei, Mank, você fez a coisa certa. Não fique em dúvida. Mankiewicz assentiu.
- Tenho de ir - disse Bosch.
Enquanto Edgar levava Delacroix de volta ao lugar na sala de entrevistas, Bosch entrou na sala de observação, focalizou a câmera de vídeo pelo vidro unidirecional
e colocou uma nova fita que pegou no armário de suprimentos. Em seguida ligou a câmera, além do gravador de som. Tudo estava pronto. Voltou à sala de entrevistas
para terminar de embrulhar o pacote.
Capítulo 37
Bosch identificou os três ocupantes da sala de entrevistas e anunciou a data e a hora, ainda que essas duas coisas fossem aparecer na imagem do vídeo gravado durante
a sessão. Colocou um formulário de renúncia de direitos na mesa e disse a Delacroix que queria alertálo mais uma vez sobre seus direitos. Quando terminou, pediu
que Delacroix assinasse o formulário e depois empurrou o papel para o lado da mesa. Tomou um gole de café e começou:
- Sr. Delacroix, mais cedo o senhor expressou o desejo de falar do que aconteceu com seu filho, Arthur, em mil novecentos e oitenta. Ainda quer falar sobre isso?
- Quero.
- Vamos começar com as perguntas básicas, depois podemos voltar e cobrir todo o resto. O senhor causou a morte de seu filho, Arthur Delacroix?
- Sim, causei.
Ele falou isso sem qualquer hesitação ou emoção.
- O senhor o matou?
- Sim, matei. Não pretendia, mas matei. Sim.
- Quando isso aconteceu?
- Foi em maio, acho, de mil novecentos e oitenta. Acho que foi. Vocês provavelmente sabem mais sobre isso do que eu.
- Por favor, não presuma. Por favor responda a cada pergunta do melhor modo que puder e segundo suas lembranças.
263
- vou tentar.
- Onde o seu filho foi morto?
- Na casa onde morávamos. No quarto dele.
- Como ele foi morto? O senhor bateu nele?
- Ah, sim. Eu...
A abordagem distanciada de Delacroix desmoronou subitamente e seu rosto pareceu se fechar em si mesmo. Ele usou as palmas das mãos para enxugar lágrimas dos cantos
dos olhos.
- O senhor bateu nele?
- Sim.
- Onde?
- Nele todo, acho.
- Inclusive na cabeça?
- Sim.
- E o senhor disse que foi no quarto dele?
- É, no quarto dele.
- com o que o senhor bateu?
- O que quer dizer?
- Usou os punhos ou algum tipo de objeto?
- Sim, as duas coisas. Minhas mãos e um objeto.
- Qual foi o objeto com que bateu em seu filho?
- Não lembro direito. vou ter de... foi só alguma coisa que ele tinha ali. No quarto. Eu preciso pensar.
- Podemos voltar a isso depois, sr. Delacroix. Por que naquele dia o senhor... em primeiro lugar, quando isso aconteceu? A que hora do dia?
- Foi de manhã. Depois de Sheila, a minha filha, ter saído para a escola. Na verdade é só isso que lembro, Sheila tinha saído.
- E a sua esposa, a mãe do menino?
- Ah, ela tinha ido embora há muito tempo. Ela foi o motivo para eu ter começado...
Delacroix parou. Bosch presumiu que ele colocaria a culpa da bebida na mulher, o que iria convenientemente culpá-la por tudo que resultou da bebida, inclusive o
assassinato.
- Quando foi a última vez que falou com sua esposa?
- Ex-esposa. Não falo com ela desde o dia em que foi embora. Isso foi...
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Não terminou. Não conseguia lembrar há quanto tempo.
- E a sua filha? Quando falou com ela pela última vez? Delacroix afastou o olhar de Bosch, baixando-o para as mãos
sobre a mesa.
- Faz muito tempo.
- Quanto?
- Não lembro. A gente não se fala. Ela me ajudou a comprar o trailer. Isso foi há cinco ou seis anos.
- O senhor não conversou com ela esta semana? Delacroix observou-o com um olhar curioso.
- Esta semana? Não. Por que eu iria...
- Deixe-me fazer as perguntas. E o noticiário? O senhor leu algum jornal nas últimas duas semanas ou assistiu ao noticiário pela TV?
Delacroix balançou a cabeça.
- Não gosto do que passa na televisão agora. Gosto de assistir a fitas.
Bosch percebeu que tinha saído dos trilhos. Decidiu voltar à história básica. O importante era conseguir uma confissão clara e simples da morte de Arthur Delacroix.
Ela precisava ser sólida e suficientemente detalhada para se sustentar. Sem dúvida Bosch sabia que, em algum momento depois de Delacroix conseguir um advogado, a
confissão seria retirada. Sempre era. Seria questionada por todos os lados - desde os procedimentos seguidos até a condição mental do suspeito - e o dever de Bosch
não era somente tomar a confissão, mas se certificar de que ela sobrevivesse e pudesse ser finalmente entregue a doze jurados.
- Voltemos ao seu filho Arthur. O senhor se lembra do objeto com o qual bateu nele no dia da morte?
- Estou achando que era um pequeno bastão que ele tinha. Um bastão de beisebol miniatura, um suvenir de um jogo dos Dodgers.
Bosch assentiu. Sabia do que ele estava falando. Os bastões eram vendidos nas barracas de suvenires, pareciam os antigos cassetetes que os policiais usavam, até
mudarem para os bastões de metal. Podiam ler letais.
- Por que o senhor bateu nele?
265
Delacroix olhou para as mãos. Bosch notou que ele não tinha mais unhas. Parecia doloroso.
- Ha, não lembro. Eu provavelmente estava bêbado. Eu...
De novo as lágrimas vieram num jorro e Delacroix escondeu o rosto nas mãos torturadas. Bosch esperou até ele baixar as mãos e continuar.
- Ele... ele deveria estar na escola. E não estava. Entrei no quarto e ali estava ele. Fiquei furioso. Eu pagava um bom dinheiro, dinheiro que eu não tinha, por
aquela escola. Comecei a gritar. Comecei a bater e então... peguei o bastãozinho e acertei nele. Acho que bati com força demais. Não queria.
Bosch esperou de novo, mas Delacroix não prosseguiu.
- Então ele morreu? Delacroix assentiu.
- Isso significa um sim?
- Sim. Sim.
Houve uma batida fraca na porta. Bosch acenou para Edgar, que se levantou e saiu. Bosch presumiu que fosse o promotor, mas não iria interromper as coisas agora para
fazer as apresentações. Foi em frente.
- O que o senhor fez em seguida? Depois de Arthur estar morto.
- Levei para os fundos e desci a escada até a garagem. Ninguém me viu. Coloquei o garoto no porta-malas do carro. Depois voltei ao quarto dele, limpei tudo e coloquei
umas roupas dele numa bolsa.
- Que tipo de bolsa?
- A mochila dele, da escola.
- Que roupas colocou na mochila?
- Não lembro. Umas coisas que peguei na gaveta, sabe?
- Certo. O senhor pode descrever a mochila? Delacroix deu de ombros.
- Não lembro. Era uma mochila normal.
- Certo, depois de colocar as roupas dentro, o que o senhor fez?
- Coloquei ela no porta-malas. E fechei.
- Que carro era?
- O meu Impala setenta e dois.
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- O senhor ainda o tem?
- Gostaria; seria um clássico. Mas acabei com ele. Foi minha primeira infração de trânsito.
- O que o senhor quer dizer com "acabei"?
- Bati com perda total. Enrolei o carro numa palmeira em Beverly Hills. Ele foi levado para um ferro-velho qualquer.
Bosch sabia que rastrear um carro de trinta anos seria difícil, mas a notícia de que o carro
sofrera perda total encerrava todas as esperanças de achá-lo e procurar provas físicas no porta-malas.
- Então voltemos à história. O senhor estava com o corpo no porta-malas. Quando se livrou dele?
-Naquela noite. Tarde. Quando ele não voltou da escola naquele dia começamos a procurar. -Nós?
- Sheila e eu. Circulamos por aí e procuramos. Fomos a todos os locais de skatistas.
- E o tempo todo o corpo de Arthur estava no porta-malas do carro que vocês usaram?
- Isso mesmo. Veja bem, eu não queria que ela soubesse o que eu tinha feito. Eu estava protegendo Sheila.
- Entendo. O senhor registrou o desaparecimento na polícia? Delacroix balançou a cabeça.
- Não. Fui à delegacia de Wilshire e falei com um policial. Ele estava bem ali na entrada. Na mesa. Falou que Arthur provavelmente tinha fugido e que ia voltar.
Mandou dar uns dias. Por isso não fiz o registro.
Bosch estava tentando cobrir o máximo de opções possíveis, revendo fatos da história que pudessem ser verificados e portanto usados para sustentar a confissão quando
Delacroix e seu advogado voltassem atrás e negassem. O melhor modo de fazer isso era com provas eficazes ou fatos científicos. Mas as histórias que combinassem
também eram importantes. Sheila Delacroix já havia contado a Bosch e Edgar que ela e o pai tinham ido à delegacia na noite em que Arthur não voltou para casa. O
pai tinha entrado e ela ficou esperando no carro. Mas Bosch não achou qualquer registro de desaparecimento. Agora tudo parecia se encaixar. Tinha um ponto que ajudaria
a validar a confissão.
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- Sr. Delacroix, o senhor se sente à vontade falando comigo?
- É, claro.
-Não está se sentindo coagido ou ameaçado de qualquer modo?
- Não, estou bem.
- Está falando por livre vontade, não é?
- Isso mesmo.
- Certo, quando foi que o senhor tirou o corpo de seu filho do porta-malas?
- Mais tarde. Depois de Sheila ter ido dormir eu voltei ao carro e levei a um lugar onde poderia esconder o corpo.
- E onde foi isso?
- No morro. Em Laurel Canyon.
- Pode se lembrar mais especificamente de onde?
- Não muito. Subi a montanha Lookout, depois da escola. Por lá. Estava escuro e eu... veja bem, eu estava bebendo porque me sentia péssimo com o acidente, o senhor
sabe.
- Acidente?
- Ter batido no Arthur com força, daquele jeito.
- Ah. Então o lugar era depois da escola, o senhor se lembra da rua em que estava?
- Wonderland.
- Wonderland? Tem certeza?
- Não, mas acho que era lá. Passei todos esses anos... tentei ao máximo esquecer.
- Então o senhor está dizendo que estava embriagado quando escondeu o corpo?
- Estava bêbado. Não acha que devia estar?
- Não importa o que acho.
Bosch sentiu o primeiro tremor de perigo atravessando-o. Ainda que Delacroix estivesse oferecendo uma confissão completa, Bosch tinha levantado informações que também
poderiam ser prejudiciais ao caso. O fato de Delacroix estar bêbado poderia explicar por que o corpo aparentemente fora largado às pressas no mato e coberto rapidamente
com terra solta e agulhas de pinheiro. Mas Bosch se lembrou de como era difícil subir o morro, e não podia imaginar um homem bêbado fazendo isso ao mesmo tempo
em que carregava ou arrastava o corpo do próprio filho.
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Para não mencionar a mochila. Será que ela fora carregada junto com o corpo ou será que Delacroix subiu o morro uma segunda vez com a mochila, de algum modo achando
o mesmo local no escuro, onde tinha deixado o corpo?
Examinou Delacroix, tentando deduzir um caminho. Precisava ter muito cuidado. Seria suicídio para o caso receber uma resposta que mais tarde um advogado de defesa
poderia explorar durante dias no tribunal.
- Só me lembro - disse Delacroix de repente, sem que lhe fosse pedido - de que demorei muito tempo. Foi quase a noite inteira. E lembro de ter abraçado Arthur com
o máximo de força possível antes de colocar no buraco. Era como se eu tivesse feito um enterro para ele.
Delacroix assentiu e examinou os olhos de Bosch, como se procurasse um reconhecimento de que fizera a coisa certa. Bosch não devolveu nada no olhar.
- Vamos começar com isso. O buraco em que o senhor colocou o garoto, qual era a profundidade?
- Não era muito fundo. Talvez uns sessenta centímetros, no máximo.
- Como o senhor cavou? Tinha alguma ferramenta?
- Não, não pensei nisso. Por isso tive de cavar com as mãos. Não cheguei muito longe.
- E a mochila?
- Ah, coloquei ali também. No buraco. Mas não tenho certeza. Bosch assentiu.
- Certo. O senhor lembra mais alguma coisa sobre o lugar? Era íngreme, plano ou lamacento?
Delacroix balançou a cabeça.
-Não lembro. - "
- Havia casas lá?
- Havia algumas perto, sim, mas ninguém viu, se é o que o senhor quer dizer.
Bosch finalmente concluiu que estava indo muito longe num caminho de perigo jurídico. Precisava parar e voltar para limpar alguns detalhes.
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- E o skcate do seu filho?
- O que é que tem?
- O que fez com ele?
Delacroix se inclinou à frente, pensando.
- Sabe, não lembro.
- O senhor enterrou junto?
- Não consigo... não lembro.
Bosch esperou um longo momento, para ver se algo viria. Delacroix não disse nada.
- Certo, sr. Delacroix, vamos dar uma parada aqui enquanto converso com meu parceiro. Quero que o senhor pense no que falamos. Sobre o lugar aonde levou seu filho.
Preciso de que o senhor se lembre de mais coisas. E do skcate também.
- Certo, vou tentar.
- Eu lhe trago mais um pouco de café.
- Isso seria bom.
Bosch se levantou e pegou os copos vazios. Imediatamente foi à sala de observação e abriu a porta. Edgar e outro homem estavam lá. O homem, que Bosch não conhecia,
estava olhando Delacroix pelo vidro unidirecional. Edgar estava estendendo a mão para desligar a câmera de vídeo.
- Não desligue - disse Bosch rapidamente. Edgar parou.
- Deixe rodando. Se ele começar a se lembrar de mais coisas, não quero ninguém tentando dizer que a gente entregou a ele.
Edgar assentiu. O outro homem se virou de costas para o vidro e estendeu a mão. Parecia não ter mais de trinta anos. Tinha cabelos escuros penteados para trás e
pele muito branca. Havia um largo sorriso em seu rosto.
- Oi, sou George Portugal, subpromotor.
Bosch colocou os copos vazios na mesa e apertou a mão dele.
- Parece que vocês têm um caso interessante - disse Portugal.
- E vai ficando cada vez mais - respondeu Bosch.
- Bem, pelo que vi nos últimos dez minutos, vocês não precisam se preocupar nem um pouco. É gol certo.
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Bosch assentiu, mas não devolveu o sorriso. O que queria fazer era rir da bobagem que era a declaração de Portugal. Sabia que não deveria confiar nos instintos dos
jovens promotores. Pensou em tudo que tinha acontecido antes de colocar Delacroix na sala do outro lado do vidro. E tinha certeza de que não existia isso de gol
certo.
Capítulo 38
Às 19h Bosch e Edgar levaram Samuel Delacroix ao centro da cidade para ser fichado no Parker Center, sob a acusação de assassinar o filho. com Portugal na sala
de entrevistas, participando, tinham interrogado Delacroix por quase uma hora, conseguindo apenas alguns poucos detalhes novos sobre a morte. A lembrança da morte
do filho e de sua participação nela fora erodida por vinte anos de culpa e uísque.
Portugal saiu da sala ainda acreditando que o caso era um gol certo. Bosch, por outro lado, não tinha tanta certeza. Nunca recebia bem as confissões voluntárias,
como outros detetives e promotores. Acreditava que o verdadeiro remorso era raro no mundo. Tratou a confissão imprevista com extrema cautela, sempre procurando
o jogo por trás das palavras. Para ele, cada investigação era como uma casa sendo construída. Quando surgia uma confissão, ela se tornava a laje de concreto sobre
a qual a casa era montada. Se a mistura fosse errada, ou se fosse colocada de modo errado, a casa talvez não suportasse o choque do primeiro terremoto. Enquanto
levava Delacroix para o Park Center, não conseguia deixar de pensar que havia rachaduras invisíveis no alicerce daquela casa. E que o terremoto estava chegando.
Os pensamentos de Bosch foram interrompidos por seu celular tocando. Era a tenente Billets.
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- Vocês saíram daqui antes de termos a chance de falar.
- Estamos levando-o para o fichamento.
- Você parece feliz com isso.
- Bem... não posso falar agora.
- Estão com ele no carro? -É.
- É sério ou você só está bancando a mãezona?
- Ainda não sei.
- Irving e a Assessoria de Imprensa estão me ligando. Acho que a promotoria preparou a divulgação de que as acusações estão vindo. Como você quer que eu cuide disso?
Bosch olhou o relógio. Achou que depois de fichar Delacroix eles poderiam chegar à casa de Sheila Delacroix às oito. O problema era que um anúncio para a mídia poderia
significar que os repórteres chegariam antes disso.
- vou lhe dizer uma coisa. Queremos falar com a filha antes. Você pode falar com a promotoria e ver se eles podem segurar até as nove? A Assessoria de Imprensa
também.
- Sem problema. E olha, depois de deixarem o cara, ligue quando puder falar. Para minha casa. Se houver problema, quero saber.
-Tudo bem.
Ele fechou o telefone e olhou para Edgar.
- A primeira coisa que Portugal deve ter feito foi ligar para a sala de imprensa.
- Dá para acreditar. Provavelmente é o primeiro caso grande dele. Ele vai ordenhar até a última gota.
-É.
Seguiram em silêncio por alguns minutos. Bosch pensou no que havia insinuado a Billets. Não conseguia situar o motivo para o desconforto. Agora o caso estava passando
do âmbito da investigação policial para o do sistema jurídico. Ainda havia um monte de trabalho investigativo a ser feito, mas todos os casos mudavam assim que o
suspeito era acusado, posto sob custódia e o processo começava. Na maioria das vezes Bosch sentia alívio e realização no momento em que levava um assassino para
ser fichado. Sentia-se como
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se fosse um príncipe da cidade, que fazia diferença de algum modo. Mas não desta vez, e não tinha certeza do motivo.
Finalmente atribuiu os sentimentos aos seus passos errados e aos movimentos incontroláveis do caso. Decidiu que não podia comemorar nem se sentir muito um príncipe
da cidade quando o caso custara tanto. É, eles tinham no carro o assassino confesso de uma criança e estavam levando-o para a cadeia. Mas Nicholas Trent e Julia
Brasher estavam mortos. A casa que ele havia construído para o caso sempre teria cômodos contendo os fantasmas dos dois. Eles sempre iriam assombrá-lo.
- Era da minha filha que você estava falando? Vocês vão falar com ela?
Bosch olhou pelo retrovisor. Delacroix estava curvado à frente por causa das mãos algemadas às costas. Bosch teve de ajeitar o espelho e ligar a luz do teto para
ver os olhos dele.
- E. Nós vamos dar a notícia a ela.
- É preciso? Vocês precisam colocá-la nisso?
Bosch observou-o pelo espelho por um momento. Os olhos de Delacroix estavam saltando de um lado para o outro.
- Não temos opção. É o irmão dela, o pai dela.
Bosch levou o carro para a saída da Los Angeles Street. Em cinco minutos estariam na entrada do fichamento do Parker Center.
- O que vocês vão dizer a ela?
- O que o senhor nos contou. Que matou Arthur. Queremos dizer a ela antes que os repórteres a encontrem, ou que ela assista no noticiário.
Ele olhou o retrovisor. Viu Delacroix assentir, aprovando. Então os olhos do sujeito subiram e ele olhou Bosch no espelho.
- O senhor diz uma coisa a ela, por mim?
- O quê?
Bosch enfiou a mão no bolso do paletó para pegar o gravador, mas percebeu que não estava com ele. Xingou Bradley em silêncio e sua decisão de cooperar com a DAI.
Delacroix ficou quieto um momento. Mexeu a cabeça enquanto olhava de um lado para o outro, como se procurasse a coisa que queria dizer à filha. Então olhou de novo
para o espelho e falou:
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- Só peça desculpa. Só isso. Peça desculpa.
- O senhor pede desculpa. Entendi. Mais alguma coisa?
- Não, só isso.
Edgar se remexeu no banco para olhar para Delacroix.
- Pede desculpa, não é? - disse ele. - Parece meio tarde depois de vinte anos, não acha?
Bosch entrou na Los Angeles Street. Não pôde ver a reação de Delacroix pelo espelho.
- Você não sabe de nada - retrucou Delacroix, raivoso. - Venho chorando há vinte anos.
- É - devolveu Edgar. - Chorando no uísque. Mas não o bastante para fazer alguma coisa até nós aparecermos. Não o bastante para se arrastar para fora da garrafa,
se entregar e tirar seu filho da terra enquanto ainda restava o suficiente dele para um enterro decente. Nós só temos ossos, o senhor sabe. Ossos.
Agora Bosch olhou o espelho. Delacroix balançou a cabeça e se inclinou ainda mais à frente, até ficar com a cabeça encostada no encosto do banco da frente.
- Eu não podia - disse ele. - Eu nem...
Ele parou e Bosch olhou o espelho enquanto os ombros de Delacroix começavam a se sacudir. Ele estava chorando.
- Nem o quê? - perguntou Bosch. Delacroix não respondeu.
- Nem o quê? - perguntou Bosch mais alto.
Então ele ouviu Delacroix vomitar no chão do carro.
- Ah, merda! - gritou Edgar. - Eu sabia que isso ia acontecer. O carro se encheu com o cheiro ácido de uma cela de bêbados.
Vômito de álcool. Bosch baixou a janela até o fim, apesar do ar frio de janeiro. Edgar fez o mesmo. Bosch virou o carro para o Parker Center.
- É a sua vez, acho - disse Bosch. - Já limpei o último. Aquela testemunha que a gente pegou no Bar Marmount.
- Eu sei, eu sei - respondeu Edgar. - Exatamente o que eu queria fazer antes da janta.
Bosch parou numa das vagas perto das portas de recepção, reservadas para veículos que traziam prisioneiros. Um policial
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encarregado do fichamento, parado junto à porta, começou a vir para o
carro.
Bosch se lembrou da reclamação de Julia Brasher sobre ter de limpar vômito no banco de trás das radiopatrulhas. Era quase como se ela estivesse lhe dando um soco
nas costelas doloridas outra vez, fazendo-o sorrir apesar da dor.
Capítulo 39
Sheila Delacroix atendeu à porta da casa onde ela e o irmão tinham morado, mas onde apenas um dos dois crescera. Estava usando calça de malha preta e justa e uma
camiseta comprida que ia quase até os joelhos. O rosto estava lavado, sem maquiagem, e Bosch notou pela primeira vez que ela possuía um rosto bonito quando não estava
escondido por pintura e pó. Seus olhos se arregalaram ao reconhecer Bosch e Edgar.
- Detetives? Eu não estava esperando os senhores.
Ela não fez menção de convidá-los a entrar. Bosch anunciou:
- Sheila, pudemos identificar os restos do Laurel Canyon como sendo do seu irmão, Arthur. Lamentamos ter de dizer isso. Podemos entrar por alguns minutos?
Ela assentiu enquanto recebia a informação e se encostou apenas por um momento no portal. Bosch imaginou se agora ela se mudaria da casa, já que não havia chance
de Arthur voltar.
Sheila ficou de lado e fez um gesto para entrarem.
- Por favor - disse ela, sinalizando para se sentarem enquanto entravam na sala.
Todos ocuparam os mesmos lugares da outra vez. Bosch notou que a caixa de fotos que ela havia apanhado no outro dia ainda estava na mesinha de centro. As fotos estavam
muito bem empilhadas dentro da caixa. Sheila notou o olhar dele.
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- Eu meio que organizei. Vinha pensando em fazer isso há muito tempo.
Bosch assentiu. Esperou até ela se acomodar, antes de se sentar e ir em frente. Ele e Edgar tinham discutido no caminho como seria a visita. Sheila Delacroix seria
um componente importante do caso. Eles tinham a confissão do pai e as provas dos ossos. Mas o que juntaria tudo seria a história dela. Precisavam de que ela contasse
como era crescer na casa dos Delacroix.
- Ah, e tem mais, Sheila. Queríamos falar com você antes que visse no noticiário. Esta tarde seu pai foi acusado pelo assassinato de Arthur.
- Ah, meu Deus.
Ela se inclinou à frente e apoiou os cotovelos nos joelhos. Fechou as mãos com força e apertou contra a boca. Em seguida cerrou os olhos, e o cabelo caiu para a
frente, ajudando a esconder o rosto.
- Ele está sendo mantido no Parker Center à espera do indiciamento e de uma audiência para fiança, amanhã. Eu diria que, pela aparência das coisas... quero dizer,
pelo estilo de vida dele, não creio que ele possa pagar a fiança que será cobrada.
Ela abriu os olhos.
- Deve haver algum erro. E o homem, o homem do outro lado da rua? Ele se matou, ele deve ser o culpado.
- Achamos que não, Sheila.
- Meu pai não poderia ter feito isso.
- Na verdade - disse Edgar em voz baixa -, ele confessou.
Ela se empertigou, e Bosch viu a verdadeira surpresa em seu rosto. E isso o surpreendeu. Pensou que Sheila sempre teria abrigado essa idéia, a suspeita com relação
ao pai.
- Seu pai disse que bateu em Arthur com um bastão de beisebol porque ele matou aula - continuou Bosch. - Disse que na época estava bebendo, e que perdeu a cabeça
e bateu com força demais. Segundo ele, foi um acidente.
Sheila o encarou enquanto tentava processar a informação.
- Depois colocou o corpo de seu irmão no porta-malas do carro. Disse que vocês dois circularam procurando por ele naquela noite, e o tempo todo ele estava no porta-malas.
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Ela fechou os olhos de novo.
- Depois, mais tarde naquela noite - continuou Edgar - enquanto você estava dormindo, ele se esgueirou e foi até as montanhas e se livrou do corpo.
Sheila começou a balançar a cabeça como se estivesse tentando se desviar das palavras.
- Não, não, ele...
- Alguma vez você viu seu pai bater em Arthur? - perguntou Bosch.
- Não, nunca.
- Tem certeza?
Ela balançou a cabeça.
- Nada além de um tapa no traseiro quando ele era pequeno e fazia bagunça. Só isso.
Bosch olhou para Edgar e depois de volta para a mulher, que estava inclinada para a frente de novo, olhando o chão junto aos pés.
- Sheila, sei que estamos falando do seu pai. Mas também estamos falando do seu irmão. Ele não teve muita chance na vida, teve?
Bosch esperou e, depois de um longo momento, ela balançou a cabeça, sem levantar os olhos.
- Nós temos a confissão do seu pai e temos provas. Os ossos de Arthur contam uma história, Sheila. Há ferimentos. Muitos. Durante toda a vida dele.
Ela assentiu.
- O que precisamos é de outra voz. Alguém que possa contar como foi crescer nesta casa, para Arthur.
- Tentar crescer - acrescentou Edgar.
- Só posso dizer que nunca o vi bater no meu irmão. Nenhuma vez.
Ela enxugou mais lágrimas. Seu rosto estava ficando brilhante e retorcido.
- Isso é inacreditável - disse ela. - Eu só queria... eu só queria saber se era o Arthur que estava lá em cima. E agora... eu nunca deveria ter ligado para vocês.
Eu deveria...
Não terminou. Apertou o osso do nariz num esforço para impedir as lágrimas.
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- Sheila - disse Edgar. - Se não foi o seu pai, por que ele diria
que foi?
Ela balançou a cabeça com força e pareceu ficar agitada.
- Não sei. Ele é doente. Ele bebe. Talvez queira atenção, não sei. Ele era ator, vocês sabem.
Bosch pegou a caixa de fotos na mesinha de centro e usou o dedo para mexer numa das pilhas. Viu uma foto de Arthur com cerca de cinco anos. Pegou-a e examinou.
Na foto não havia qualquer sugestão de que o garoto estivesse condenado, de que os ossos sob a carne já estivessem danificados.
Recolocou a foto no lugar e olhou para a mulher. Os olhares
dos dois se sustentaram.
- Sheila, você vai nos ajudar? Ela desviou os olhos. -Não posso.
Capítulo 40
Bosch parou o carro diante da vala de drenagem e desligou rapidamente o motor. Não queria atrair atenção dos moradores da Wonderland Avenue. Estar num carro da polícia
o expunha. Mas esperava que fosse suficientemente tarde para que as cortinas estivessem fechadas em todas as janelas.
Estava sozinho no carro, já que seu parceiro tinha ido para casa. Abaixou-se e apertou o botão que abria o porta-malas.
Encostou-se na janela e olhou para a escuridão
do morro. Dava para ver que o pessoal dos Serviços Especiais já havia retirado as rampas e escadas que levavam ao local de investigação. Era isso que Bosch queria.
Queria estar o mais próximo possível de como era quando Samuel Delacroix arrastou o corpo do filho morro acima, alta noite.
A lanterna se acendeu e espantou Bosch momentaneamente. Não tinha percebido que estava com o polegar no botão. Desligou-a e olhou para as casas silenciosas no círculo.
Estava seguindo seus instintos, voltando ao lugar onde tudo havia começado. Tinha posto um cara na cadeia por um assassinato de vinte anos atrás, mas a sensação
não era boa. Alguma coisa não estava certa, e ele começaria por aqui.
Levantou a mão e apagou a luz do teto. Abriu silenciosamente a porta e saiu com a lanterna.
Atrás do veículo, olhou em volta mais uma vez e levantou a tampa do porta-malas. Dentro havia um manequim que ele tinha
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apanhado emprestado com Jesper, no laboratório da DIC. Às vezes eram usados manequins nareconstituição de crimes, particularmente em suicídios suspeitos em que
a pessoa caiu de um lugar alto e em acidentes de carro. A DIC tinha uma variedade de manequins, desde crianças até adultos. O peso de cada manequim podia ser manipulado
colocando-se ou tirando-se sacos de areia, de meio quilo, de bolsas com zíper no tronco e nos membros.
O manequim no porta-malas de Bosch tinha DIC escrito no tronco, em letras de fôrma. Não tinha rosto. No laboratório, Bosch e Jesper haviam usado sacos de areia para
fazer com que ele pesasse 32 quilos, o peso aproximado que Golliher tinha dado a Arthur Delacroix, baseado no tamanho dos ossos e nas fotos do garoto. O boneco
usava uma mochila semelhante à que fora recuperada na escavação. Estava cheia de trapos velhos tirados do porta-malas do carro, tentando uma aproximação com as
roupas encontradas junto com os ossos.
Bosch pousou a lanterna, pegou o manequim pelas axilas e o tirou do porta-malas. Levantou-o e colocou sobre o ombro esquerdo. Recuou para se equilibrar e depois
enfiou a mão de novo no porta-malas para pegar a lanterna. Era uma lanterna barata, do tipo que Samuel Delacroix disse que tinha usado na noite em que enterrou o
filho. Bosch acendeu-a, passou por cima do meio-fio e foi
para o morro.
Começou a subir, mas imediatamente percebeu que precisava das duas mãos para segurar os galhos das árvores e subir a encosta íngreme. Enfiou a lanterna num dos bolsos
da frente, mas o facho iluminava principalmente a copa das árvores e era inútil para ele. Caiu duas vezes nos primeiros cinco minutos, e rapidamente ficou exausto
antes de subir dez metros da encosta. Sem a lanterna para iluminar o caminho, não viu um pequeno galho sem folhas pelo qual estava passando e que raspou sua bochecha,
cortando-a. Xingou, mas continuou em frente.
Depois de subir quinze metros parou pela primeira vez, largando o manequim perto do tronco de um pinheiro de Monterey e depois sentando-se no peito dele. Tirou a
camiseta de dentro da calça e usou o pano para ajudar a estancar o sangue que descia pela bochecha. O ferimento ardia do suor escorrendo pelo rosto.
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- Certo, garoto, vamos lá - disse quando recuperou o fôlego. Nos seis metros seguintes puxou o manequim encosta acima. O
progresso era mais lento, porém era mais fácil do que carregar o peso inteiro, e também era como Delacroix tinha dito que se lembrava de ter feito.
Depois de mais uma parada, Bosch percorreu os últimos dez metros até a área plana e arrastou o boneco para a clareira embaixo das acácias. Tombou de joelhos e se
sentou nos calcanhares.
- Cascata - disse enquanto respirava ofegante. - Isso é cascata. Não conseguia ver Delacroix fazendo aquilo. Bosch tinha uns
dez anos a mais do que Delacroix na época em que ele supostamente realizara o mesmo feito, mas Bosch estava em boa forma para um homem de sua idade. Além disso estava
sóbrio, coisa que Delacroix dissera que não estava.
Mesmo tendo conseguido levar o corpo até o local de sepultamento, seu instinto lhe dizia que Delacroix mentira. Ele não fizera a coisa como havia contado. Ou não
levou o corpo morro acima ou tivera ajuda. E havia uma terceira possibilidade: a de que Arthur Delacroix estivesse vivo e tivesse subido o morro sozinho.
Finalmente a respiração voltou ao normal. Bosch inclinou a cabeça para trás e olhou pela abertura na copa das árvores. Podia ver o céu noturno e um pedaço da lua
atrás de uma nuvem. Percebeu que sentia cheiro de lenha queimando numa lareira em uma das casas no círculo abaixo.
Tirou a lanterna do bolso e se abaixou perto de uma tira costurada nas costas do manequim. Como levar o manequim morro abaixo não fazia parte do teste, pretendia
puxá-lo pela tira de carregar. Já ia se levantar quando ouviu movimento no chão, uns dez metros à esquerda.
Imediatamente apontou a lanterna na direção do barulho e captou o vislumbre de um coiote nos arbustos. O animal saiu rapidamente do facho de luz e desapareceu. Bosch
balançou a luz de um lado para o outro mas não pôde achá-lo. Levantou-se e começou a arrastar o manequim para a encosta.
A lei da gravidade tornou a descida mais fácil, porém igualmente traiçoeira. Enquanto escolhia com cuidado e lentamente onde
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pisar, Bosch pensou no coiote. Imaginou quanto tempo os coiotes viviam, se o que ele tinha visto esta noite poderia ter visto outro homem, vinte anos atrás, enterrando
um corpo no mesmo local.
Desceu todo o morro sem cair. Quando levou o manequim até o meio-fio viu o dr. Guyot e a cadela parados perto do carro. A cadela estava presa com uma guia. Bosch
foi rapidamente até o porta-malas, jogou o manequim dentro e fechou-o. Guyot se aproximou da traseira do carro.
- Detetive Bosch.
Ele parecia saber que era melhor não perguntar o que Bosch estava fazendo.
- Dr. Guyot. Como vai?
- Acho que melhor do que você. Vejo que se machucou de novo.
Parece uma laceração feia.
Bosch encostou a mão na bochecha. Ainda ardia.
- Tudo bem. É só um arranhão. É melhor manter Calamidade na guia. Acabei de ver um coiote lá em cima.
- É, nunca tiro a guia à noite. Os morros são cheios de coiotes. Nós os ouvimos à noite. É melhor vir comigo até minha casa. Posso cuidar disso. Se não for feito
direito, vai ficar com uma cicatriz.
Uma lembrança de Julia Brasher perguntando sobre suas cicatrizes veio de súbito à mente de Bosch. Ele olhou para Guyot.
- Certo.
Deixaram o carro no círculo e foram até a casa de Guyot. No escritório dos fundos Bosch sentou-se à mesa enquanto o médico limpava o corte no rosto e usava dois
Band-aids para fechá-lo.
- Acho que vai se recuperar - disse Guyot enquanto fechava o Icit de primeiros socorros. - Mas não sei se a camisa também vai.
Bosch olhou para a camiseta. Estava manchada com seu sangue
na parte de baixo.
-Obrigado pelo curativo, doutor. Quanto tempo tenho de deixar
essas coisas aí?
- Uns dias. Se você agüentar.
Bosch tocou de leve a bochecha. Estava inchando ligeiramente, mas o ferimento não ardia mais. Guyot se virou de costas para o kit de primeiros socorros e olhou-o,
e Bosch soube que ele queria
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dizer alguma coisa. Achou que ele ia perguntar sobre o manequim.
-O que é, doutor?
- A policial que esteve aqui na primeira noite. Ela é que foi
morta?
Bosch assentiu.
- E, foi ela.
Guyot balançou a cabeça com tristeza genuína. Rodeou lentamente a mesa e se deixou afundar na poltrona.
- É engraçado como as coisas são. Reação em cadeia. O sr. Trent, do outro lado da rua. Aquela policial. Tudo porque uma cadela achou um osso. Uma coisa tremendamente
natural.
Bosch só podia assentir. Começou a enfiar a camisa na calça, para ver se esconderia parte do sangue.
Guyot olhou para a cachorra, que estava deitada em seu lugar perto da mesa.
- Eu gostaria de nunca tê-la tirado da guia. Realmente. Bosch empurrou a cadeira para trás e se levantou. Olhou para
a cintura. A mancha de sangue não podia ser vista, mas não importava, porque a camisa estava manchada de suor.
- Não sei, dr. Guyot. Acho que se o senhor começar a pensar assim, nunca mais vai poder sair pela porta.
Os dois se entreolharam e assentiram. Bosch apontou para a bochecha.
- Obrigado. Posso achar a saída. Virou-se para a porta. Guyot o fez parar.
- Na televisão houve uma chamada para o noticiário. Disseram que a polícia anunciou uma prisão nesse caso. Eu ia assistir às onze horas.
Bosch olhou para ele, da porta.
- Não acredite em tudo que vê na TV.
Capítulo 41
O telefone tocou no momento em que Bosch tinha assistido à primeira sessão da confissão de Samuel Delacroix. Pegou o controle remoto e tirou o som da TV antes de
atender ao telefonema. Era a tenente Billets.
- Achei que você ia me ligar.
Bosch deu um gole na garrafa de cerveja que estava segurando e colocou-a na mesa ao lado da poltrona da televisão.
- Desculpe, esqueci.
- Continua se sentindo do mesmo modo?
- Mais ainda.
- Bem, o que é, Harry? Acho que nunca vi um detetive mais perturbado com uma confissão.
- É um monte de coisas. Tem alguma coisa acontecendo.
- O que você quer dizer?
- Quero dizer que estou começando a achar que talvez não tenha sido ele. Que talvez ele tenha armado alguma coisa que não
sei o que é.
Billets ficou quieta por um longo momento, provavelmente sem
ter certeza do que responder. - O que o Jerry acha? - perguntou por fim.
- Não sei o que ele acha. Ele está feliz em encerrar o caso.
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- Todos nós estamos, Harry. Mas não se o sujeito não for o culpado. Você tem alguma coisa concreta? Alguma coisa para apoiar essas dúvidas?
Bosch tocou de leve a bochecha. O inchaço havia diminuído, mas o ferimento em si estava sensível ao toque. Não conseguia se impedir de tocá-lo.
- Fui ao local da investigação esta noite. com um manequim da DIC. Trinta quilos. Consegui subir, mas foi uma tremenda dificuldade.
- Certo, então você provou que pode ser feito. Qual é o problema?
- Puxei um manequim lá para cima. O cara estava arrastando o corpo do filho morto. Eu estava sóbrio; Delacroix disse que estava bêbado. Eu já havia estado lá em
cima; ele não. Não acho que ele poderia ter feito. Pelo menos não sozinho.
- Você acha que ele teve ajuda? Da filha, talvez?
- Talvez ele tenha tido ajuda e talvez nunca tenha estado lá. Não sei. Conversamos com a filha esta noite e ela não vai falar mal do pai. Não quer dizer uma palavra.
Então a gente começa a pensar: talvez tenham sido os dois. Mas não. Se ela estava envolvida, por que iria ligar para nós e dar a identificação dos ossos? Não faz
sentido.
Billets não respondeu. Bosch consultou o relógio e viu que eram onze horas. Queria assistir ao noticiário. Usou o controle remoto para desligar o videocassete e
colocou a TV no Canal Quatro.
- Você está assistindo ao noticiário?
- Estou. O Quatro.
Era a matéria principal - pai mata filho e depois enterra o corpo, é preso vinte e poucos anos depois por causa de um cachorro. Perfeita história de Los Angeles.
Bosch assistiu em silêncio e Billets também, do outro lado. A matéria de Judy Surtain não tinha imprecisões que Bosch pudesse captar. Ficou surpreso.
- Nada mal - disse quando terminou. - Eles finalmente fizeram direito.
Tirou de novo o som da TV no momento em que o apresentador passava para a próxima matéria. Ficou quieto um momento
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enquanto assistia. A matéria era sobre os ossos humanos achados no Poço de Piche de La Brea. Golliher foi mostrado numa entrevista coletiva, parado diante de um cacho
de microfones.
- Harry, qual é? - disse Billets. - O que mais está incomodando? Tem de haver algo mais do que o seu sentimento de que o sujeito não pode ter feito isso. com relação
à filha, não me incomoda que ela tenha ligado dando a identificação. Ela viu no noticiário, não foi? A história do Trent. Talvez tenha pensado que poderia colocar
a culpa no Trent. Depois de vinte anos de preocupação, havia um modo de culpar outra pessoa.
Bosch balançou a cabeça, mesmo sabendo que ela não podia ver. Só não achava que Sheila telefonaria dando a dica se estivesse envolvida na morte do irmão.
- Não sei - disse ele. - Isso realmente não me convence.
- Então o que você vai fazer?
- vou repassar tudo agora. vou recomeçar.
- Quando é o indiciamento, amanhã?
-É.
- Você não tem tempo suficiente, Harry.
- Sei disso. Mas vou fazer. Já peguei uma contradição que não tinha visto antes.
- O que é?
- Delacroix disse que matou Arthur de manhã, depois de ter descoberto que o garoto não foi à aula. Quando entrevistamos a filha na primeira vez, ela disse que Arthur
não tinha vindo da escola para casa. Há uma diferença aí.
Billets fungou ao telefone.
- Harry, isso é insignificante. Já faz mais de vinte anos, e ele é um bêbado. Presumo que você vá examinar os registros da escola,
não é?
- Amanhã.
- Então você vai descobrir isso. Mas como a irmã saberia com certeza se ele foi à escola ou não? Ela só sabe que ele não veio para casa depois. Você não está me
convencendo de nada.
- Eu sei. Não estou tentando. Só estou falando das coisas que estou examinando.
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- Vocês acharam alguma coisa quando revistaram o trailer dele?
- Ainda não revistamos. Começamos a falar praticamente assim que entramos. Vamos amanhã, depois do indiciamento.
- Qual é o prazo do mandado?
- Quarenta e oito horas. Está tudo bem.
Ao falar do trailer Bosch se lembrou subitamente do gato de Delacroix. Eles tinham se envolvido tanto com a confissão do suspeito que Bosch se esqueceu de fazer
os arranjos para o animal.
- Merda.
- O que é?
- Nada. Esqueci do gato do cara. Delacroix tem um gato. Eu disse que pediria a uma vizinha para cuidar dele.
- Deveria ter ligado para o Controle de Animais.
- Ele pediu que a gente não fizesse isso. Ei, você tem gatos, não é?
- E, mas não vou pegar o desse cara.
- Não, eu não quis dizer isso. Só quero saber... bem, quanto tempo eles conseguem ficar sem comida e água?
- Quer dizer que vocês não deixaram comida para o gato?
- Deixamos sim, mas provavelmente já acabou.
- Bem, se você deu comida hoje, ele provavelmente agüenta até amanhã. Mas não vai ficar muito feliz com isso. Talvez rasgue o lugar um pouquinho.
- Parece que ele já tinha feito isso. Escute, tenho de desligar. Quero assistir ao resto da fita e ver em que pé estamos.
- Certo, vou liberá-lo. Mas, Harry, de cavalo dado não se olha os dentes. Sabe o que quero dizer?
- Acho que sim.
Desligaram e então Bosch começou a assistir de novo à fita da confissão. Mas quase imediatamente voltou a desligar. O gato estava incomodando-o. Deveria ter feito
arranjos para cuidarem dele. Decidiu sair outra vez.
Capítulo 42
Quando se aproximou do trailer de Delacroix, Bosch viu luz por trás das cortinas de todas as janelas. As luzes tinham estado apagadas quando eles saíram com Delacroix,
doze horas antes. Passou pela frente e parou na vaga de um terreno a vários trailers de distância. Deixou a caixa de comida para gato no carro, andou de volta até
o trailer e o observou da mesma posição em que estivera quando Edgar acertou a porta com sua batida de entregar mandado. Apesar da hora tardia, o sibilo da via
expressa era onipresente e atrapalhava sua capacidade de ouvir sons ou movimentos dentro
do trailer.
Tirou a arma do coldre e foi até a porta. Subiu com cuidado e em silêncio na pilha de blocos de concreto e experimentou a maçaneta. Ela girou. Bosch se encostou
na porta e prestou atenção, mas não escutou nada do lado de dentro. Esperou mais um pouco. Lenta e silenciosamente, virou a maçaneta e abriu a porta enquanto
levantava a arma.
A sala estava vazia. Bosch entrou e examinou o trailer com os
olhos. Ninguém. Fechou a porta sem nenhum som.
Olhou pela cozinha e pelo corredor, na direção do quarto. A porta estava parcialmente fechada e ele não podia ver ninguém, mas ouviu batidas, como se alguém estivesse
fechando gavetas. Começou a passar pela cozinha. O cheiro de urina de gato era
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horrível. Notou que o prato embaixo da mesa estava limpo, a tigela de água quase vazia. Foi para o corredor e estava a dois metros da porta do quarto quando ela se
abriu e uma figura de cabeça baixa veio para ele.
Sheila Delacroix gritou ao erguer a cabeça e ver Bosch. Bosch levantou a arma e baixou imediatamente ao reconhecer quem era. Sheila ergueu a mão para o peito, com
os olhos se arregalando.
- O que está fazendo aqui? - perguntou. Bosch guardou a arma.
- Eu ia fazer a mesma pergunta.
- É a casa do meu pai. Tenho uma chave. -E?
Ela balançou a cabeça e deu de ombros.
- Eu estava... preocupada com o gato. Estava procurando o gato. O que aconteceu com o seu rosto?
Bosch passou por ela, no espaço apertado, e entrou no quarto.
- Tive um acidente.
Olhou em volta e não viu o gato nem qualquer outra coisa que atraísse sua atenção.
- Acho que ele está debaixo da cama. Bosch olhou de volta para ela.
- O gato. Não consegui tirá-lo.
Bosch voltou à porta e tocou o ombro de Sheila, levando-a para a sala. ;
- Vamos nos sentar.
Na sala ela se sentou na poltrona enquanto Bosch permanecia de pé.
- O que estava procurando?
- Já disse, o gato.
- Ouvi você abrindo e fechando gavetas. O gato gosta de se esconder nas gavetas?
Sheila balançou a cabeça como se dissesse que ele estava se preocupando sem motivo.
- Só estava curiosa com relação ao meu pai. Já que estava aqui, dei uma olhada, só isso.
- E onde está seu carro?
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- Perto do escritório na entrada. Não sabia se teria vaga aqui, por isso parei lá e vim andando.
- E você ia levar o gato de volta numa guia, ou alguma coisa assim?
- Não. Ia carregar. Por que está fazendo todas essas perguntas? Bosch examinou-a. Dava para dizer que ela estava mentindo,
mas não sabia o que deveria ou poderia fazer a respeito. Decidiu jogar verde.
- Sheila, escute. Se de algum modo esteve envolvida com o que aconteceu com seu irmão, agora é a hora de contar e tentar fazer um acordo.
- Do que o senhor está falando?
- Você ajudou o seu pai naquela noite? Ajudou a carregar seu irmão morro acima e a enterrá-lo?
Ela levou as mãos ao rosto tão rapidamente que foi como se Bosch tivesse jogado ácido em seus olhos. Através das mãos ela gritou:
- Ah, meu Deus, ah, meu Deus, não posso acreditar que isso esteja acontecendo! O que o senhor...
Ela baixou as mãos de modo igualmente abrupto e o encarou com os olhos pasmos.
- O senhor acha que eu tive alguma coisa a ver com isso? Como pôde pensar?
Bosch esperou um momento para que ela se acalmasse, antes de responder:
- Acho que você não está me contando a verdade sobre o que está acontecendo aqui. De modo que fico com suspeitas e tenho de considerar todas as possibilidades.
Ela se levantou abruptamente.
- Estou presa?
Bosch balançou a cabeça.
-Não, Sheila, não está. Mas eu agradeceria se você me dissesse a...
- Então vou embora.
Ela rodeou a mesinha de centro e foi para a porta, com passo firme.
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-E o gato? - perguntou Bosch.
Ela não parou. Passou pela porta e foi para a noite. Bosch ouviu-a responder de fora:
- Cuide dele o senhor.
Bosch foi até a porta e a viu andar pela estradinha do parque de trailers, em direção ao prédio da administração, onde o carro estava parado.
- É - disse ele consigo mesmo.
Encostou-se no portal e respirou um pouco do ar puro do lado de fora. Pensou em Sheila e no que ela poderia estar fazendo. Depois de um tempo, olhou o relógio e
espiou de novo por cima do ombro, para o interior do trailer. Já passava da meia-noite e ele estava cansado. Mas decidiu que ficaria e procuraria o que quer que
ela estivesse procurando.
Sentiu uma coisa roçar em sua perna e olhou, vendo um gato preto se esfregando nele. Empurrou-o gentilmente com a perna. Não gostava muito de gatos.
O animal voltou e insistiu em esfregar a cabeça na perna de Bosch de novo. Bosch entrou no trailer, fazendo com que o gato recuasse, cauteloso.
- Espere aí - disse Bosch. - Eu tenho comida no carro.
Capítulo 43
O tribunal de indiciamentos no centro da cidade era sempre um zoológico. Quando Bosch entrou, às dez para as nove da manhã de sexta-feira, não viu nenhum juiz na
bancada, mas havia uma agitação de advogados conferenciando entre si e movendo-se diante da sala do tribunal como formigas num formigueiro arrebentado a chutes.
Era preciso ser um veterano experimentado para entender o que estava acontecendo em qualquer instante num tribunal de indiciamentos.
Primeiro Bosch examinou as cadeiras dos espectadores, procurando Sheila Delacroix, mas não a viu. Em seguida procurou seu parceiro e Portugal, o promotor, mas eles
também não estavam na sala. Notou que havia dois cinegrafistas montando equipamento perto da mesa do oficial de justiça. A posição lhes daria uma visão clara do
cubículo de vidro dos prisioneiros assim que o tribunal estivesse funcionando.
Bosch se adiantou e passou pelo portão. Pegou seu distintivo e mostrou ao oficial de justiça que estava examinando um impresso de computador com a programação de
indiciamentos do dia.
- Há um tal de Samuel Delacroix aí? - perguntou.
- Preso na quarta ou na quinta?
- Quinta. Ontem.
O oficial de justiça virou a folha de cima e passou o dedo pela lista. Parou no nome de Delacroix.
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- Está.
- Quando ele virá?
- Ainda temos uns da quarta-feira para terminar. Quando chegarmos aos de quinta vai depender de quem é o advogado dele. Particular ou público?
- Acho que vai ser público.
- Eles entram de acordo com a ordem. Vai demorar uma hora, pelo menos. Isso se o juiz começar às nove. Pelo que ouvi dizer, ele ainda não chegou.
- Obrigado.
Bosch foi em direção à mesa da promotoria, tendo de se desviar de dois grupos de advogados de defesa contando histórias de guerra enquanto esperavam o juiz ocupar
o assento. Na primeira posição na mesa estava uma mulher que Bosch não reconheceu. Devia ser a encarregada de indiciamentos indicada pelo tribunal. Rotineiramente
ela cuidaria de oitenta por cento dos indiciamentos, já que a maioria dos casos era de pouca importância e ainda não havia promotores designados. Diante de sua mesa
estava uma pilha de pastas de papel com trinta centímetros de altura - os casos da manhã. Bosch mostrou o distintivo para ela também.
- Sabe se George Portugal está vindo para o indiciamento de Delacroix? É de quinta-feira.
- Está sim - disse ela sem levantar os olhos. - Acabei de falar com ele.
Agora ela ergueu a cabeça e Bosch viu os olhos irem para o corte em sua bochecha. Ele havia tirado os adesivos antes de tomar banho de manhã, e o ferimento ainda
era bem perceptível.
- Só vai acontecer daqui a uma hora, mais ou menos. Delacroix tem um defensor público. Isso aí parece que dói.
- Só quando eu rio. Posso usar o seu telefone?
- Até o juiz chegar.
Bosch pegou o telefone e ligou para a promotoria, que ficava três andares acima. Perguntou por Portugal e a ligação foi transferida.
- É, é o Bosch. Tudo bem se eu subir? A gente precisa falar.
- Estou aqui até ser chamado para o indiciamento.
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- Vejo você daqui a cinco minutos.
Na saída Bosch disse ao oficial de justiça que, se um detetive chamado Edgar aparecesse, ele deveria ser mandado para a promotoria. O oficial de justiça disse que
não tinha problema.
O corredor do lado de fora do tribunal estava apinhado de advogados e cidadãos, todos com algum negócio a resolver nos tribunais. Todo mundo parecia estar falando
em celulares. O piso de mármore e o teto alto pegavam todas as vozes e multiplicavam numa feroz cacofonia de ruído branco. Bosch entrou no pequeno bar e teve de
esperar mais de cinco minutos na fila só para comprar um café. Depois de sair, subiu pela escada de incêndio porque não queria perder mais cinco minutos esperando
um dos elevadores horrivelmente lentos. Quando entrou no pequeno escritório de Portugal, Edgar já estava lá.
- A gente estava se perguntando onde você tinha se metido -
disse Portugal.
- Que diabo aconteceu com você? - acrescentou Edgar depois
de ver o rosto de Bosch.
- É uma longa história. E vou contar.
Ele ocupou a outra cadeira na frente da mesa de Portugal e colocou o café no chão ao lado. Percebeu que deveria ter trazido copos de café para Portugal e Edgar,
por isso decidiu não beber na frente
deles.
Abriu sua pasta no colo e pegou uma seção dobrada do Los Angeles
Times. Fechou a pasta e colocou no chão.
- Então, o que está acontecendo? - perguntou Portugal, claramente ansioso pelo motivo para Bosch ter pedido a reunião.
Bosch começou a desdobrar o jornal.
- O que está acontecendo é que a gente acusou o cara errado, e é melhor consertar isso antes do indiciamento.
- Ah, merda. Eu sabia que você ia dizer alguma coisa assim exclamou Portugal. -Não sei se quero escutar. Você está bagunçando uma coisa boa, Bosch.
- Não me importa o que estou fazendo. Se o cara não é o culpado, não é.
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- Mas ele disse que era. Várias vezes.
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- Olhe - disse Edgar a Portugal. - Deixe o Harry falar. Não queremos foder com isso.
- Pode ser tarde demais para o Sr. Não-posso-deixar-uma-coisaboa-em-paz, aqui.
- Harry, vá em frente. O que há de errado?
Bosch contou sobre o manequim que tinha levado à Wonderland Avenue e a reconstituição da suposta subida de Delacroix.
- Eu consegui, mas por pouco - disse ele, tocando gentilmente o rosto. - Mas o ponto é que Del...
- É, você conseguiu - disse Portugal. - Você conseguiu, portanto Delacroix poderia ter conseguido. Qual é o problema?
- O problema é que eu estava sóbrio, e ele diz que não estava. Além disso, eu sabia onde estava indo. Sabia que o terreno fica plano lá em cima. Ele não sabia.
- Isso tudo é besteira sem importância.
- Não, besteira é a história de Delacroix. Ninguém arrastou o corpo daquele garoto lá para cima. Ele estava vivo quando subiu. Alguém o matou lá.
Portugal balançou a cabeça, frustrado.
- Isso tudo é conjectura absurda, detetive Bosch. Não vou parar todo esse processo porque...
- É conjectura. Não conjectura absurda.
Bosch olhou para Edgar, mas o parceiro não olhou de volta. Estava com uma aparência sombria. Bosch se virou de novo para Portugal.
- Olhe, eu não terminei. Há mais. Depois de ir para casa ontem à noite me lembrei do gato de Delacroix. Nós deixamos o gato no
trailer e dissemos que íamos cuidar dele, mas esquecemos. Por isso voltei.
Bosch podia ouvir Edgar respirando fundo e soube qual era o problema. Edgar tinha sido deixado de fora pelo próprio parceiro. Era embaraçoso estar recebendo a informação
ao mesmo tempo que Portugal. Num mundo perfeito Bosch teria contado a ele o que sabia, antes de ir ao promotor. Mas não houvera tempo.
- Eu só ia alimentar o gato. Mas quando cheguei, já havia alguém no
trailer. A filha dele.
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- Sheila? - perguntou Edgar. - O que ela estava fazendo lá? Aparentemente a notícia era surpreendente o bastante para Edgar
não se importar mais se Portugal sabia que ele estava por fora dos últimos passos da investigação.
- Ela estava revistando o trailer. Disse que também tinha ido ver o gato, mas estava revistando o lugar quando entrei.
- Procurando o quê? - perguntou Edgar.
- Ela não quis dizer. Falou que não estava procurando nada. Mas depois que ela foi embora eu fiquei. Achei umas coisas.
Bosch levantou o jornal,
- Esta é a seção Cidade do domingo. Tem uma matéria bem grande sobre o caso, em termos gerais falando da perícia em investigações assim. Mas há muitos detalhes,
dados por uma fonte não revelada. Principalmente sobre o local do crime.
Depois de ter lido a matéria pela primeira vez no trailer de Delacroix na noite anterior, Bosch pensou que a fonte era provavelmente Teresa Corazon, já que o nome
dela era citado na matéria, numa informação genérica sobre casos com ossos. Ele sabia das trocas que havia entre repórteres e fontes; atribuição direta por alguma
informação, não atribuição por outras informações. Mas a identidade da fonte não era importante na discussão atual, e ele não entrou no
assunto.
- De modo que houve uma matéria - disse Portugal. - O que
isso significa?
- Bem, a matéria revela que os ossos estavam numa cova rasa e que parecia que o corpo não fora enterrado com o uso de qualquer ferramenta. Também diz que havia
uma mochila enterrada junto com o corpo. Um monte de outros detalhes. E ficaram de fora alguns detalhes, como a ausência de menção ao skate do garoto.
- E onde você quer chegar? - perguntou Portugal em voz ente-
diada.
- Que se você estivesse tentando fazer uma confissão falsa, muita coisa de que precisaria está bem aqui.
- Ora, vamos, detetive. Delacroix falou muito mais do que o que havia no local do crime. Ele falou do assassinato em si, disse que andou de carro com o corpo.
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- Tudo isso foi fácil. Não pode ser provado ou negado. Não houve testemunhas. Nunca acharemos o carro porque ele foi esmagado até o tamanho de uma caixa de fósforos
em algum ferro-velho do Vale. Só temos a história dele. E o único lugar em que a história bate com as provas físicas é o local do crime. E cada marco que ele deu
pode ter sido apanhado aqui.
Ele jogou o jornal na mesa de Portugal, mas o promotor nem olhou. Apoiou os cotovelos na mesa, encostou as mãos uma na outra e abriu os dedos. Bosch podia ver seus
músculos se flexionando embaixo das mangas da camisa, e percebeu que ele estava fazendo algo do tipo "exercite-se em sua própria mesa". Portugal falou com as mãos
pressionadas uma contra a outra:
- Eu alivio a tensão assim.
Parou finalmente, soltando a respiração com ruído e se recostando na cadeira.
- Certo, ele tinha a capacidade de montar uma confissão se quisesse. Mas por que iria querer? Estamos falando do filho dele. Por que ele diria que matou o próprio
filho, se não tivesse matado?
- Por causa disso - disse Bosch.
Ele enfiou a mão no bolso de dentro do paletó e pegou um envelope dobrado ao meio. Inclinou-se à frente e colocou-o com cuidado em cima do jornal sobre a mesa de
Portugal.
Quando Portugal pegou o envelope e começou a abrir, Bosch falou:
- Acho que era isso que Sheila estava procurando no trailer ontem à noite. Achei na mesinha-de-cabeceira ao lado da cama do pai. Estava sob a gaveta de baixo. Tem
um esconderijo ali. É preciso tirar a gaveta para achar. Ela não tirou.
Portugal tirou do envelope uma pilha de fotos Polaroid. Começou a examiná-las.
- Ah, meu Deus - disse quase imediatamente. - É ela? A filha? Não quero olhar isso.
Ele folheou rapidamente as fotos que restavam e recolocou na mesa. Edgar se levantou e se apoiou na mesa. com um dos dedos espalhou as fotos para olhá-las. Seu
maxilar ficou tenso, mas ele não disse nada.
As fotos eram antigas. As bordas brancas estavam amareladas, as cores das imagens quase apagadas pelo tempo. Bosch usava Polaroids no serviço o tempo todo. Sabia,
pela degradação das cores, que as fotos na mesa tinham muito mais de uma década, e algumas eram mais velhas do que as outras. Havia quatorze fotos no total. A constante
em todas era uma garota nua. Baseado em mudanças físicas no corpo e no comprimento do cabelo da garota, achava que as fotos cobriam um período de pelo menos cinco
anos. Ela sorria inocente em algumas fotos. Em outras havia uma tristeza e talvez até raiva evidente nos olhos. Desde o momento em que olhou pela primeira vez ficou
claro para Bosch que a garota nas fotos era Sheila Delacroix.
Edgar sentou-se pesadamente. Bosch não podia mais dizer se ele estava perturbado por estar tão por fora da investigação ou pelo conteúdo das fotos.
- Ontem isso era um gol certo - disse Portugal. - Hoje é uma lata de vermes. Presumo que você vai me dizer qual é sua teoria sobre isso, detetive Bosch.
Bosch assentiu.
- A gente começa com uma família - disse ele.
Enquanto falava, inclinou-se à frente e pegou as fotos, arrumou-as e colocou de novo no envelope. Não gostava de tê-las à mostra. Segurou o envelope.
- Por algum motivo, a mãe é fraca. Jovem demais para se casar, jovem demais para ter filhos. O garoto que ela tem é difícil demais. Ela vê para onde sua vida está
indo e decide que não quer ir. Toma a decisão, vai embora e isso deixa Sheila... para cuidar do menino e se defender do pai.
Bosch olhou de Portugal para Edgar, para ver como estava indo até então. Os dois pareciam presos pela história. Bosch levantou o envelope com as fotos.
- Obviamente uma vida infernal. E o que ela podia fazer? Podia culpar a mãe, o pai, o irmão. Mas contra quem podia agir? A mãe tinha ido embora. O pai era grande
e poderoso. Tinha o controle. Isso só deixava... Arthur.
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Ele notou Edgar balançando sutilmente a cabeça.
- O que está dizendo, que ela o matou? Não faz sentido. Foi ela quem ligou para a gente e fez a identificação.
- Eu sei. Mas o pai não sabe que ela ligou para nós.
Edgar franziu a testa. Portugal se inclinou à frente e começou a fazer de novo o exercício com as mãos.
- Acho que não estou acompanhando, detetive. O que isso tem a ver com ele ter matado ou não o filho?
Bosch também se inclinou à frente e ficou mais animado. Levantou o envelope de novo, como se ele fosse a resposta para tudo.
- Não está vendo? Os ossos. Todos os ferimentos. Nós entendemos errado. Não era o pai que batia nele. Era ela. Sheila. Ela sofria abusos, e se transformou e passou
a abusar também. De Arthur.
Portugal baixou as mãos sobre a mesa e balançou a cabeça.
- Então você está dizendo que ela matou o garoto, e vinte anos depois ligou para dar a pista principal da investigação. Não vai dizer que ela sofreu amnésia com
relação à morte, certo?
Bosch deixou o sarcasmo passar.
- Não. Estou dizendo que ela não o matou. Mas o passado de abusos fez com que o pai suspeitasse dela. Durante todos esses anos em que Arthur havia sumido, o pai
pensava que tinha sido ela. E sabia por quê.
Mais uma vez Bosch indicou o envelope com as fotos.
- Por isso ele carregava a culpa de saber que seus atos com Sheila tinham provocado tudo isso. Então os ossos apareceram, ele leu no jornal e somou dois e dois.
Nós aparecemos e ele começou a confessar antes de colocarmos os pés na porta.
Portugal levantou as mãos. -Porquê?
Bosch estivera revirando isso na mente desde que tinha adiado as fotos. -Redenção.
- Ah, por favor.
- Sério. O cara está ficando velho, abalado. Quando você tem mais coisas para trás do que pela frente, começa a pensar no que
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fez. Tenta compensar as coisas. Ele acha que a filha matou o filho por causa de suas ações. Por isso agora está disposto a assumir a culpa no lugar dela. Afinal
de contas, o que ele tem a perder? O sujeito mora num trailer perto da via expressa e trabalha recolhendo bolas de golfe. E um cara que já teve uma chance de fama
e fortuna. Agora olhe para ele. Ele pode estar vendo isso como a última chance de compensar tudo.
- E está errado com relação a ela, mas não sabe.
- Isso mesmo.
Portugal deslizou para trás, com um chute na mesa. A cadeira tinha rodinhas e ele deixou-a bater na parede.
- Tenho um cara esperando lá embaixo, um cara que eu poderia colocar na cadeia com o pé nas costas, e você vem aqui e quer que eu o solte.
Bosch assentiu.
- Se eu estiver errado, você sempre pode acusá-lo de novo. Mas se eu estiver certo... ele vai tentar assumir a culpa lá embaixo. Sem advogado, sem julgamento, sem
nada. Ele quer assumir, e se o juiz deixar, estamos feitos. Quem matou realmente Arthur
estará livre.
Bosch olhou para Edgar.
- O que você acha?
- Acho que sua intuição voltou a funcionar.
Portugal sorriu, mas não porque achasse algum humor na situação.
- São dois contra um. Não é justo.
- Há duas coisas que podemos fazer - disse Bosch. - Para ajudar a ter certeza. Ele provavelmente está lá embaixo agora, na cela de espera. Nós podemos descer lá,
dizer que foi Sheila quem deu a identificação dos ossos e perguntar na bucha se ele está encobrindo-a.
-E?
- E pedir para ele fazer um teste no detector de mentiras.
- Isso não vale nada. Não podemos admitir o detector num...
- Não estou falando do tribunal. Estou falando de blefar com ele. Se estiver mentindo, ele não vai topar.
302
Portugal empurrou a cadeira de volta para a mesa. Pegou o jornal e olhou para a matéria por um momento. Então seus olhos pareceram fazer um inventário do tampo da
mesa enquanto ele pensava e tomava uma decisão.
- Certo - disse finalmente. - Vão fazer isso. vou retirar a acusação. Por enquanto.
Capítulo 44
Bosch e Edgar foram até os elevadores e ficaram parados em silêncio depois de Edgar ter apertado o botão de descida.
Bosch olhou para sua imagem turva refletida nas portas de aço inoxidável do elevador. Olhou o reflexo de Edgar e depois diretamente para o parceiro.
- Então. Está puto demais?
- Em algum ponto entre muito puto e nem tanto. Bosch assentiu.
- Você realmente me deixou de pau na mão, Harry. - Eu sei. Desculpe. Não quer descer de escada?
- Paciência, Harry. O que aconteceu com o seu celular ontem à noite? Quebrou ou alguma coisa?
Bosch balançou a cabeça.
- Não, eu só queria... não tinha certeza do que estava pensando, e queria primeiro verificar as coisas sozinho. Além disso, eu sabia que você fica com o garoto
nas noites de quinta. Depois, ter encontrado Sheila no trailer foi uma coisa inesperada.
- E quando você começou a revistar o lugar? Poderia ter ligado. Nessa hora meu filho já estava de volta em casa, dormindo.
- É, eu sei. Deveria ter ligado, Jerry. Edgar assentiu, e isso foi o fim.
- Sabe, essa sua teoria coloca a gente na estaca zero de novo -
disse ele.
304
- É, na estaca zero. Vamos ter de recomeçar, olhar tudo de
novo.
- Você vai trabalhar neste fim de semana?
- vou, provavelmente.
- Então me ligue.
- vou ligar.
Por fim, a impaciência de Bosch o dominou.
- Foda-se. vou pegar a escada. Vejo você lá embaixo.
Saiu da frente do elevador e foi para a escada de emergência.
Capítulo 45
Através de uma secretária, Bosch e Edgar ficaram sabendo que Sheila Delacroix estava trabalhando num escritório de produção temporário no Westside, montando elenco
para um piloto de televisão chamado Os solucionadores.
Bosch e Edgar pararam num estacionamento reservado, cheio de Jaguares e BMWs, e foram até um armazém de tijolos que fora dividido em dois andares de escritórios.
Havia cartazes de papel grudados na parede, dizendo ELENCO e com setas apontando o caminho. Seguiram por um corredor comprido e depois subiram uma escada dos fundos.
Quando chegaram ao segundo andar, entraram em outro corredor comprido cheio de homens de terno escuro, amarrotados e fora de moda. Alguns usavam capas de chuva e
chapéus de feltro. Alguns andavam de um lado para o outro, gesticulando e falando baixo sozinhos.
Bosch e Edgar seguiram as setas e entraram numa sala grande e cheia de cadeiras, com mais homens vestindo
ternos ruins. Todos olharam enquanto os parceiros iam até
uma mesa na extremidade mais distante da sala, onde havia uma jovem sentada, examinando os nomes numa prancheta. Havia pilhas de fotos vinte por vinte e cinco e
páginas de roteiro na mesa. Vindos de trás de uma porta fechada atrás da mulher, Bosch podia ouvir sons abafados de vozes tensas.
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Esperaram até que a mulher ergueu o olhar da prancheta.
- Precisamos ver Sheila Delacroix - disse Bosch.
- E seus nomes?
- Detetives Bosch e Edgar.
Ela começou a sorrir e Bosch pegou o distintivo e deixou que ela visse.
- Vocês são bons - disse ela. - Já pegaram o texto?
- Perdão?
- O texto. E onde estão suas fotos? Bosch entendeu.
- Nós não somos atores. Somos policiais de verdade. Por favor, poderia dizer que temos de vê-la agora mesmo?
A mulher continuou a sorrir.
- Esse corte na sua bochecha é de verdade? Parece de verdade. Bosch olhou Edgar e assentiu para a porta. Simultaneamente
eles rodearam os dois lados da mesa e se aproximaram da porta.
- Ei! Ela está fazendo um teste de leitura! Vocês não podem... Bosch abriu a porta e entrou na pequena sala onde Sheila
Delacroix estava atrás de uma mesa olhando um homem sentado numa cadeira dobrável no meio do espaço. Ele estava lendo uma página de roteiro. Havia uma jovem no canto,
atrás de uma câmera de vídeo num tripé. Em outro canto, dois homens estavam sentados em cadeiras dobráveis, assistindo à leitura.
O homem que estava lendo o roteiro não parou quando Bosch e Edgar entraram.
- A prova está nas suas fuças, seu vira-lata! - disse ele. - Você deixou seu DNA em todo canto. Agora fique de pé e se encoste...
- Certo, certo - disse Sheila Delacroix. - Pare aí, Frank. Ela olhou para Bosch e Edgar.
- O que é isso?
A mulher da ante-sala empurrou Bosch e entrou na sala.
- Desculpe, Sheila, esses caras foram abrindo caminho como se fossem policiais de verdade ou sei lá o quê.
- Precisamos falar com você, Sheila - disse Bosch. - Agora mesmo.
- Estou no meio de uma leitura. Vocês não vêem que eu...
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- Estamos no meio de uma investigação de assassinato. Lembra? Ela jogou uma caneta na mesa e passou as mãos pelos cabelos.
Virou-se para a mulher na câmera de vídeo, que agora estava focalizada em Bosch e Edgar.
- Certo, Jennifer, desligue isso - disse ela. - Todo mundo, preciso de alguns minutos. Frank, sinto muito. Você estava ótimo. Pode ficar e esperar alguns minutos?
Prometo ver você primeiro, assim que terminar.
Frank se levantou e deu um sorriso brilhante.
- Sem problema, Sheila. Estarei lá fora.
Todos saíram da sala, deixando Bosch e Edgar sozinhos com Sheila.
- Bem - disse ela assim que a porta se fechou. - com uma entrada como essa, vocês realmente deveriam ser atores.
Ela tentou sorrir, mas não deu certo. Bosch foi até a mesa. Continuou de pé. Edgar se encostou na porta. No caminho tinham decidido que Bosch cuidaria dela.
- O seriado cujo elenco estou montando é sobre dois detetives chamados de "Os solucionadores" porque eles têm uma ficha perfeita de solucionar casos que ninguém
mais parece conseguir. Acho que não existe uma coisa assim na vida real, há?
- Ninguém é perfeito - disse Bosch. - Nem de longe.
- O que é tão importante a ponto de vocês terem de invadir isso aqui, me deixando sem graça desse jeito?
- Duas coisinhas. Achei que você gostaria de saber que encontrei o que você estava procurando ontem à noite e...
- Eu disse que não estava...
- ...seu pai foi liberado da custódia há cerca de uma hora.
- O que quer dizer com liberado. Ontem à noite o senhor disse que ele não conseguiria pagar a fiança.
- Não conseguiria. Mas não está mais sendo acusado do crime.
- Mas ele confessou. O senhor disse que...
- Bem, ele desconfessou hoje. Depois que eu disse que ia colocálo num polígrafo e mencionei que foi você quem ligou para nós e deu a dica que levou à identidade
do seu irmão.
Ela balançou a cabeça ligeiramente.
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-Não entendo.
- Acho que entende sim, Sheila. Seu pai achava que você tinha matado Arthur. Era você quem batia nele o tempo todo, que o machucava, que o colocava no hospital repetidamente,
depois de bater nele com o bastão. Quando ele desapareceu, seu pai achou que talvez você tivesse ido até o fim e matado o garoto e escondido o corpo. Até entrou
no quarto de Arthur e se livrou do bastãozinho, para o caso de você tê-lo usado de novo.
Sheila pôs os cotovelos na mesa e escondeu o rosto nas mãos.
- Então, quando nós aparecemos, ele começou a confessar. Estava disposto a assumir a culpa, para compensar o que fazia com você. Compensar isso.
Bosch enfiou a mão no bolso e pegou o envelope com as fotos. Jogou-o na mesa entre os cotovelos dela. Ela baixou as mãos lentamente e o pegou. Não abriu o envelope.
Não precisava.
- O que acha desta leitura, Sheila?
- Vocês... é isso que vocês fazem? Invadem a vida das pessoas assim? Quero dizer, os segredos delas, tudo?
- Nós somos os solucionadores, Sheila. Algumas vezes temos de fazer isso.
Bosch viu uma caixa de garrafas d'água no chão perto da mesa de Sheila. Abaixou-se e abriu uma garrafa para ela. Olhou para Edgar, que balançou a cabeça. Bosch pegou
outra garrafa para si mesmo, puxou para perto da mesa a cadeira que Frank tinha usado
e se sentou.
- Escute, Sheila. Você era uma vítima. Era uma criança. Ele era o seu pai, era forte e tinha o controle. Não é vergonha ser vítima.
Ela não respondeu.
- Está na hora de abandonar qualquer fardo que você carregue. Diga o que aconteceu. Tudo. Acho que há mais do que você contou antes. Voltamos à estaca zero e precisamos
de sua ajuda. E do seu irmão que estamos falando.
Ele abriu a garrafa e tomou um gole comprido. Pela primeira vez notou como fazia calor na sala. Sheila falou enquanto ele tomava o segundo gole:
- Agora entendo uma coisa...
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- O que é?
Ela estava olhando para as mãos. Quando falou, fpi como se estivesse se dirigindo a si mesma. Ou a ninguém.
- Depois de Arthur ter sumido, meu pai nunca mais tocou em mim. Eu nunca... eu achei que foi porque tinha ficado indesejável, de algum modo. Estava gorda, feia.
Agora acho que talvez fosse porque... ele tivesse medo do que achava que eu tinha feito, ou do que poderia fazer.
Ela pôs o envelope na mesa. Bosch inclinou-se à frente outra vez.
- Sheila, há mais alguma coisa sobre essa época, sobre aquele último dia, que você não contou antes? Alguma coisa que possa nos ajudar?
Ela assentiu ligeiramente e depois baixou a cabeça, escondendo o rosto por trás dos punhos erguidos.
- Eu sabia que ele ia embora - disse lentamente. - E não fiz nada para impedir.
Bosch se chegou para a ponta da cadeira. Falou suavemente:
- Como assim, Sheila?
Houve uma longa pausa antes de ela responder.
- Quando voltei da escola naquele dia. Ele estava lá. No quarto dele.
- Então ele voltou para casa?
-Voltou. Por pouco tempo. A porta estava com umafresta aberta, e olhei. Ele não me viu. Estava colocando coisas na mochila. Roupas, coisas assim. Eu sabia o que
ele estava fazendo. Estava pegando coisas para fugir. Eu simplesmente... entrei no meu quarto e fechei a porta. Queria que ele fosse embora. Acho que eu o odiava,
não sei. Mas queria que ele fosse. Para mim, ele era a causa de tudo. Só queria que ele fosse embora. Fiquei no quarto até que ouvi a porta da frente se fechar.
Ela ergueu o rosto e olhou para Bosch. Seus olhos estavam molhados, mas freqüentemente Bosch tinha visto que, junto com uma purgação de culpa e verdade, vinha uma
força. Viu isso nos
olhos dela.
- Eu poderia ter impedido, mas não impedi. E tive de viver com isso. Agora que sei o que aconteceu com ele...
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Seu olhar foi para além de Bosch, para algum lugar por cima do ombro dele, onde podia ver a onda de culpa vindo em sua direção.
- Obrigado, Sheila - disse Bosch em voz baixa. - Há mais alguma coisa que possa fazer para nos ajudar?
Ela balançou a cabeça.
- Bem, vamos deixar você sozinha.
Ele se levantou e levou a cadeira de volta ao lugar no meio da sala. Depois voltou à mesa e pegou o envelope com as Polaroids. Foi para a porta e Edgar abriu-a.
- O que vai acontecer com ele? - perguntou ela.
Eles se viraram e olharam de volta. Edgar fechou a porta. Bosch sabia que ela estava falando do pai.
- Nada. O que ele fez com você já prescreveu há muito, segundo qualquer estatuto. Ele vai voltar para o trailer.
Ela assentiu sem olhar para Bosch.
- Sheila, ele já pode ter sido um destruidor. Mas o tempo tem a capacidade de mudar as coisas. É um círculo. Tira o poder e dá aos que antes não tinham nenhum. Neste
momento seu pai é que está destruído. Acredite. Ele não pode lhe fazer mal. Ele não é nada.
- O que vocês vão fazer com as fotos?
Bosch olhou para o envelope e depois de novo para ela.
- Eles têm de entrar no dossiê. Ninguém vai vê-las.
- Eu quero queimá-las.
- Queime as lembranças.
Ela assentiu. Bosch estava se virando para sair quando a ouviu rir, e se virou para ela.
- O que é?
- Nada. Só que tenho de ficar aqui sentada ouvindo as pessoas tentando falar como vocês o dia inteiro. E agora sei que ninguém vai sequer chegar perto. Ninguém vai
pegar o jeito.
- É o show business - disse Bosch.
Enquanto voltavam pelo corredor até a escada, Bosch e Edgar passaram de novo pelos atores. No poço da escada, o que se chamava Frank estava falando as frases em
voz alta. Sorriu para os detetives de verdade que passavam.
- Ei, caras, vocês são de verdade, não é? Como acham que eu estava me saindo?
Bosch não respondeu.
- Você estava ótimo, Frank - disse Edgar. - Você é um solucionador, cara. A prova está nas fuças.
Capítulo 46
Às duas da tarde de sexta-feira Bosch e Edgar atravessaram a sala do esquadrão até a mesa de homicídios. Tinham vindo do Westside para Hollywood praticamente em
silêncio. Era o décimo dia do caso. Não se encontravam mais perto do assassino de Arthur Delacroix do que tinham estado durante todos os anos em que os ossos do
garoto ficaram em silêncio no morro acima da Wonderland Avenue. Tudo que tinham para mostrar pelos dez dias era uma policial morta e o suicídio de um pedófilo aparentemente
recuperado.
Como sempre, havia uma pilha de papeizinhos cor-de-rosa com recados telefônicos deixados para Bosch. Também havia um envelope de despacho interdepartamental. Ele
pegou o envelope primeiro, achando que sabia o que estava dentro.
- Já era hora - falou.
Abriu o envelope e tirou seu gravador de dentro. Apertou o botão de play para verificar a bateria. Imediatamente ouviu sua própria voz. Baixou o volume e desligou
o aparelho. Enfiou-o no bolso do paletó e jogou o envelope na lata de lixo.
Folheou os recados telefônicos. Quase todos eram de repórteres. Viver pela mídia, morrer pela mídia, pensou. Deixaria o Departamento de Assessoria de Imprensa explicar
como um homem que tinha confessado e fora acusado de assassinato num dia era inocentado e liberado no outro.
313
- Sabe - disse Bosch a Edgar -, no Canadá os policiais não têm de dizer chongas à mídia sobre uma investigação, até ela terminar. Há uma espécie de blecaute da mídia
em cada caso.
- Além disso eles têm aquele bacon redondo. O que estamos fazendo, Harry?
Havia um recado do conselheiro de família do Departamento de Medicina Legal para Bosch, dizendo que os restos de Arthur Delacroix tinham sido liberados para a família,
para o enterro no domingo. Bosch o deixou de lado, para ligar de volta e ficar sabendo sobre os arranjos do enterro e que membro da família tinha reivindicado os
restos.
Voltou aos recados e viu um papel cor-de-rosa que imediatamente o fez parar. Recostou-se na cadeira e o examinou, com uma tensão surgindo no couro cabeludo e descendo
pela nuca. A mensagem tinha chegado às 10:35 e era de um tal de tenente Bollenbach, do Departamento de Operações - o O-3, como era mais conhecido pelos policiais.
Era do O-3 que saíam todas as designações pessoais e transferências. Uma década antes, ao ser mandado para a Divisão de Hollywood, Bosch tinha recebido imediatamente
a notícia do O-3. O mesmo aconteceu quando Kiz Rider tinha ido para a DRH no ano anterior.
Pensou no que Irving tinha dito na sala de entrevista há três dias. Achou que agora o O-3 estava para iniciar um esforço para realizar o desejo do subchefe: a aposentadoria
de Bosch. Recebeu o recado como sinal de que seria transferido para fora de Hollywood. Sua nova designação provavelmente envolveria alguma terapia de via expressa
- um posto longe de casa e exigindo longas viagens diárias para ir e vir do trabalho. Era um instrumento administrativo usado com freqüência para convencer aos
policiais de que eles podiam ficar melhor entregando o distintivo e fazendo outra coisa.
Bosch olhou para Edgar. O parceiro estava examinando sua própria coleção de recados, e nenhum dos quais o fez parar como o que estava na mão de Bosch. Decidiu não
ligar de volta por enquanto, nem contar a Edgar. Dobrou o recado e colocou no bolso. Deu uma olhada na sala do esquadrão, observando a atividade dos detetives. Sentiria
falta disso, se o novo posto não tivesse o mesmo fluxo de
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adrenalina. Não se importava com a terapia de via expressa. O que importava era o trabalho, a missão. Sabia que, sem isso, estaria perdido.
Voltou aos recados. O último da pilha - o que significava que fora o primeiro a ser recebido - era de Antoine Jesper, da DIC. Ele havia telefonado às dez da manhã.
- Merda - disse Bosch.
-O que é? - perguntou Edgar.
- vou ter de ir ao centro da cidade. Ainda estou com o boneco que peguei emprestado ontem à noite. Acho que Jesper precisa dele.
Pegou o telefone e já ia ligar para a DIC quando ouviu seu nome e o de Edgar sendo chamados da extremidade mais distante da sala do esquadrão. Era a tenente Billets.
Ela sinalizou chamando-os à sua sala.
- Lá vamos nós - disse Edgar enquanto se levantava. - Harry, pode ter as honras. Diga a ela em que pé estamos. Ou em que pé não estamos.
Bosch fez isso. Em cinco minutos colocou Billets completamente a par do caso, da última reviravolta e da falta de progresso.
- Então para onde vamos? - perguntou ela quando Bosch terminou.
- Vamos recomeçar, examinar tudo que temos, ver o que deixamos de lado. Vamos à escola do garoto, ver que outros registros eles têm, olhar os anuários, tentar contatar
colegas de turma. Coisas assim.
Billets assentiu. Se sabia alguma coisa sobre o telefonema do O-3, não deu a entender.
- Acho que o mais importante é aquele lugar lá em cima do morro - acrescentou Bosch.
- Como assim?
- Acho que o garoto estava vivo quando chegou lá. Ele foi morto lá. Temos de deduzir o quê ou quem o levou até lá em cima. Teremos de voltar no tempo com todo esse
segredo. Fazer um perfil de toda a vizinhança. Vai demorar.
Ela balançou a cabeça.
- Bem, a gente não tem tempo para trabalhar isso em horário integral. Vocês ficaram fora da rotatividade por dez dias. Isso aqui
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não é a DRH. Esse é o maior tempo que eu pude deixar uma equipe de fora desde que vim para cá.
- Então estamos de volta? Ela assentiu.
- E está na vez de vocês, o próximo caso é dos dois.
Bosch assentiu. Tinha presumido que isso estava para vir. Nos dez dias em que vinham trabalhando no caso, as outras duas equipes de homicídios tinham apanhado casos.
Agora era a vez deles. Era raro ter um tempo tão longo num caso dentro da divisão. Fora um luxo. Uma pena eles não terem solucionado, pensou.
Bosch também sabia que, ao colocá-los de volta na rotatividade, Billets estava fazendo um reconhecimento tácito de que não esperava uma solução para o caso. A cada
dia em que uma investigação permanecia aberta, as chances de resolvê-la diminuíam nitidamente. Era ponto pacífico na divisão de homicídios, e acontecia com todo
mundo. Não havia solucionadores.
- Certo - disse Billets. - Mais alguma coisa que alguém queira
falar?
Ela olhou para Bosch com uma sobrancelha erguida. De repente, ele pensou que Billets sabia alguma coisa sobre o telefonema da O-3. Hesitou, depois balançou a cabeça
junto com Edgar.
- Certo, pessoal. Obrigada.
Voltaram à mesa e Bosch ligou para Jesper.
- O manequim está em segurança - disse quando o criminologista atendeu. - Levo mais tarde, hoje.
- Fica frio, cara. Mas não foi por isso que liguei. Só queria dizer que posso fazer um pequeno aprimoramento no relatório que mandei sobre o skate. Isto é, se ainda
importar.
Bosch hesitou um momento.
- Na verdade, não, mas o que você quer aprimorar, Antoine? Bosch abriu o caderno do assassinato e folheou até achar o relatório da DIC. Olhou para ele enquanto Jesper
falava.
- Bem, eu disse que podíamos situar a fabricação do skate entre fevereiro de setenta e oito e junho de oitenta e seis, certo?
- Certo. Estou olhando para o relatório.
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- Certo, bom, agora posso cortar mais de metade deste período. Esse skate em particular foi feito entre setenta e oito e oitenta. Dois anos. Não sei se significa
alguma coisa para o caso ou não.
Bosch examinou o relatório. A emenda de Jesper ao relatório não importava de fato, já que tinham abandonado Trent como suspeito e o skate nunca fora ligado a Arthur
Delacroix. Mas mesmo assim Bosch estava curioso.
- Como você reduziu esse tempo? Aqui diz que o mesmo projeto foi fabricado até oitenta e seis.
- Foi. Mas esse skate específico tinha uma data. Mil novecentos e oitenta.
Bosch ficou perplexo.
- Espere um minuto. Onde? Não vi nenhuma...
- Tirei o conjunto das rodas. Tive algum tempo aqui, entre os trabalhos, e queria ver se havia alguma marca de fabricação. Você sabe, patente ou código de marca
registrada. Não havia. Mas então vi que alguém tinha gravado a data na madeira. Na parte de baixo da prancha, e depois isso foi coberto pelo conjunto das rodas.
- Quer dizer, quando a prancha foi feita?
-Não, não acho. Não é um serviço profissional. Na verdade foi difícil de ler. Tive de colocar debaixo de uma lente e usar luz em ângulo. Acho que foi a maneira que
o dono original teve para marcar o skate de um modo secreto, para o caso de haver alguma disputa com relação à propriedade. Tipo se alguém roubasse. Como eu disse
no relatório, os skates Boney foram os mais procurados durante um bom tempo. Eram difíceis de conseguir... podia ser mais fácil roubar um do que achar numa loja.
Assim, o garoto que era dono desse tirou o conjunto das rodas traseiras... deve ter sido o conjunto original, e não o atual... e gravou a data. Mil novecentos e
oitenta, A.D.
Bosch olhou para Edgar. Ele estava ao telefone, com a mão em concha sobre o fone. Uma ligação pessoal.
- Você disse A.D.?
- E, você sabe, Armo Domini ou sei lá como se diz. É latim. Significa ano do Senhor. Já verifiquei.
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- Não. Significa Arthur Delacroix.
- O quê? Quem é esse?
- A vítima, Antoine. Arthur Delacroix. A.D.
- Droga! Eu não tinha o nome da vítima aqui, Bosch. Você preencheu as fichas das provas enquanto ele ainda era desconhecido, e nunca emendou, cara. Eu nem sabia
que você tinha uma identificação.
Bosch não estava escutando. Um jorro de adrenalina percorria seu corpo. Ele sabia que sua pulsação estava acelerando.
- Antoine, não se mexa. Estou indo.
- vou ficar aqui.
Capítulo 47
A via expressa estava apinhada de pessoas começando antecipadamente o fim de semana. Bosch não conseguia manter a velocidade indo para o centro. Tinha a sensação
de uma urgência pulsante. Sabia que era por causa da descoberta de Jesper e da mensagem da O-3.
Virou o pulso no volante para olhar o relógio e verificar a data. Sabia que as transferências em geral aconteciam no fim de um período de pagamento. Havia dois períodos
de pagamento no mês começando no dia primeiro e no dia quinze. Se sua transferência fosse imediata, sabia que só lhe dariam três ou quatro dias para encerrar o caso.
Não queria ser afastado, deixá-lo nas mãos de Edgar ou de qualquer outro. Queria chegar ao fim.
Bosch enfiou a mão no bolso e pegou o papel do recado. Desdobrou-o, dirigindo com os pulsos no volante. Examinou-o um momento e depois pegou o celular. Digitou
o número que estava no recado e esperou.
- Escritório de Operações, tenente Bollenbach falando.
Desligou o telefone. Sentiu o rosto ficando quente. Imaginou se Bollenbach tinha identificador de chamadas. Sabia que adiar o telefonema era ridículo, porque o que
estava feito estava feito, quer ele telefonasse para receber a notícia ou não.
Colocou o telefone e a mensagem de lado e tentou se concentrar no caso, particularmente na última informação que Antoine
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Jesper tinha dado, sobre o skate encontrado na casa de Nicholas Trent. Percebeu que, depois de dez dias, o caso estava totalmente fora do seu controle. Um homem
pelo qual ele havia lutado contra outras pessoas no departamento era agora o único suspeito com uma aparente prova física ligando-o à vítima. O pensamento que surgia
imediatamente de tudo isso era que talvez Irving estivesse certo. Estava na hora de Bosch se aposentar.
Seu telefone tocou e ele pensou imediatamente que era Bollenbach. Não iria atender, mas então decidiu que o destino era inevitável. Abriu o telefone. Era Edgar.
- Harry, o que você está fazendo?
- Eu disse. Tenho de ir à DIC.
Não queria falar com ele sobre a última descoberta de Jesper até ter visto por si mesmo.
- Eu poderia ter ido junto.
- Seria perda de tempo.
- É, bem, escute, Harry, Bullets está procurando você e... bem... está correndo um boato de que você ganhou uma transferência.
- Não sei de nada sobre isso.
- Bem, você vai me dizer se estiver alguma coisa acontecendo, não vai? Estamos juntos há muito tempo.
- Você vai ser o primeiro, Jerry.
Quando chegou ao Parker Center, Bosch pediu que um dos patrulheiros parados no saguão o ajudasse a levar o manequim até a DIC, onde o devolveu a Jesper, que o pegou
e levou com facilidade até o armário onde ficava guardado.
Jasper guiou Bosch até um laboratório onde o skate estava sobre uma mesa de exame. Acendeu uma luz num suporte ao lado do skate, depois apagou a luz do teto. Puxou
uma lente montada acima e convidou Bosch a olhar. A luz em ângulo criava pequenas sombras nos riscos na madeira, permitindo que as letras fossem vistas com clareza.
1980A.D.
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Bosch podia ver claramente por que Jesper havia tirado aquela conclusão sobre as letras, especialmente porque não sabia o nome da vítima.
- Parece que alguém lixou - disse Jesper enquanto Bosch continuava a olhar. - Aposto que o que aconteceu foi que todo o skate foi recauchutado num certo momento.
Novos conjuntos de rodas e verniz novo.
Bosch assentiu.
- Certo - disse ele depois de se empertigar, afastando-se da lente.
- vou ter de levar isso comigo, talvez mostrar a algumas pessoas.
- Já acabei com ele. É todo seu. Jesper acendeu de novo a luz do teto.
- Você verificou debaixo das outras rodas?
- Claro. Mas não tem nada. Por isso recoloquei de volta.
- Você tem uma caixa?
- Ah, achei que você ia sair andando nele, Harry. Bosch não sorriu.
-É uma piada.
- É, eu sei.
Jesper saiu da sala e voltou com uma caixa de papelão, de arquivo, com tamanho suficiente para conter o
skcate. Colocou-o junto com o conjunto de rodas retirado
e os parafusos, que estavam num saquinho plástico. Bosch agradeceu.
- Fiz bem, Harry?
Bosch hesitou e disse:
- É, acho que sim, Antoine.
Jesper apontou para o rosto de Bosch.
- Fazendo a barba?
- Mais ou menos.
A volta para Hollywood pela via expressa foi ainda mais lenta. Bosch finalmente pegou a saída para Alvarado e abriu caminho até o Sunset Boulevard. Seguiu por ele
pelo resto do caminho, sem fazer um tempo melhor e sabendo disso.
Enquanto dirigia, ficava pensando no skcate e em Nicholas Trent, tentando encaixar explicações na estrutura de tempo e de provas que possuíam. Não conseguia. Havia
uma peça faltando na equação.
Sabia que, em algum nível e em algum lugar, tudo fazia sentido. Tinha confiança em que chegaria lá, se tivesse tempo suficiente.
Às quatro e meia passou pela porta dos fundos da delegacia levando a caixa de papelão com o skate. Estava indo rapidamente pelo corredor para a sala do esquadrão,
quando Mankiewicz enfiou a cabeça pela porta da sala do plantão.
- Ei, Harry?
Bosch olhou de volta para ele, mas continuou andando.
- O que há?
- Eu soube da novidade. Vamos sentir sua falta.
A notícia viajava rápido. Bosch segurou a caixa com o braço direito e levantou o esquerdo, com a palma da mão para baixo, e fez um gesto amplo sobre a superfície
de um oceano imaginário. Era um gesto geralmente reservado para motoristas de radiopatrulhas passando pela rua. Dizia: boa navegação para você, irmão. Bosch continuou
andando.
Edgar estava com uma grande prancha branca sobre a mesa, cobrindo também boa parte da de Bosch. Tinha desenhado nela algo que parecia um termômetro. Era a Wonderland
Avenue, com o círculo no final sendo o bulbo na ponta do termômetro. Da rua se projetavam linhas que significavam as várias casas. Estendendo-se dessas linhas havia
nomes pintados com caneta hidrográfica verde, azul e preta. Havia um X vermelho marcando o local onde os ossos foram achados.
Bosch parou e olhou o diagrama da rua sem fazer nenhuma pergunta.
- Deveríamos ter feito isso desde o início - disse Edgar.
- Como funciona?
- Os nomes em verde são de pessoas que moravam em mil novecentos e oitenta e se mudaram depois. Os em azul são de qualquer pessoa que chegou depois de oitenta, mas
já foi embora. Os nomes em preto são de moradores atuais. Em qualquer lugar onde você veja apenas um nome em preto - como o Guyot aqui - significa que a pessoa esteve
lá o tempo todo.
Bosch assentiu. Havia apenas dois nomes em preto. O dr. Guyot e alguém chamado Al Hutter, que morava na extremidade da rua oposta ao local do crime.
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- bom - disse Bosch, mas não sabia de que o gráfico adiantava agora.
- O que há na caixa? - perguntou Edgar.
- O skate. Jesper achou uma coisa.
Bosch colocou a caixa na mesa e tirou a tampa. Mostrou a Edgar a data e as iniciais gravadas.
- Temos de começar a examinar o Trent outra vez. Talvez olhar aquela teoria que você tinha sobre ele ter se mudado para a rua porque tinha enterrado o garoto lá
em cima.
- Meu Deus, Harry, eu estava quase brincando quando falei isso.
- É, bem, agora não é brincadeira. Temos de voltar, montar todo um perfil de Trent, recuando pelo menos até mil novecentos e oitenta.
- E enquanto isso pegamos o próximo caso aqui. É uma verdadeira doçura.
- Ouvi pelo rádio que deve chover neste fim de semana. Se tivermos sorte, isso vai manter todo mundo quieto dentro de casa.
- Harry, dentro de casa é que acontece a maioria das mortes. Bosch olhou a sala do esquadrão e viu a tenente Billets de pé
em sua sala. Estava chamando-o com um aceno. Tinha se esquecido de que Edgar dissera que ela o estava procurando. Apontou um dedo para Edgar e depois para ele próprio,
perguntando se ela queria ver os dois. Billets balançou a cabeça e apontou de novo apenas para Bosch. Ele sabia do que se tratava.
- Tenho de ir falar com a Bullets.
Edgar olhou-o. Também sabia do que se tratava.
- Boa sorte, parceiro.
- É, parceiro. Se a gente continuar sendo isso. Atravessou a sala do esquadrão até o escritório da tenente. Agora
ela estava sentada atrás da mesa. Não olhou para ele quando falou:
- Harry, você recebeu um aviso do O-Três. Ligue para o tenente Bollenbach antes de fazer qualquer outra coisa. E uma ordem.
Bosch assentiu.
- Você perguntou a ele para onde vou?
- Não, Harry, estou puta demais com isso. Fiquei com medo de que, se perguntasse, ia acabar pegando pesado com ele, e ele não tem nada a ver com isso. Bollenbach
é apenas o mensageiro.
323
Bosch sorriu.
- Você está puta?
- Isso mesmo. Não quero perder você. Ainda mais por causa de um ressentimento idiota que alguém lá em cima tem contra você.
Ele assentiu e deu de ombros.
- Obrigado, tenente. Por que não liga para ele pelo viva-voz? A gente resolve isso de uma vez.
Agora ela o encarou.
- Tem certeza? Eu poderia ir pegar um café, para você ficar sozinho na sala, se quiser.
- Tudo bem. Vá em frente e ligue.
Ela colocou o telefone no viva-voz e ligou para Bollenbach. Ele atendeu imediatamente.
-Tenente, aqui é a tenente Billets. Estou com o detetive Bosch na minha sala.
- Muito bem, tenente. Só deixe eu achar a ordem aqui. Houve o som de papéis sendo folheados, então Bollenbach pi-
garreou.
- Detetive High... Heronyim... é ass...
- Hieronymus - disse Bosch. - Rima com anônimo.
- Hieronymus, então. Detetive Hieronymus Bosch, suas ordens são de se apresentar para o serviço na Divisão de Roubos e Homicídios às oito horas do dia quinze de
janeiro. Só isso. Essas ordens são claras?
Bosch ficou pasmo. A DRH era uma promoção. Ele fora rebaixado da DRH para Hollywood há mais de dez anos. Olhou para Billets, que também estava com um ar de surpresa
e suspeita no rosto.
-Você disse DRH?
- Sim, detetive, Divisão de Roubos e Homicídios. Esta ordem está clara?
- Qual é minha função?
- Eu já disse. Apresente-se na...
- Não, quero dizer, o que vou fazer na DRH? Qual é minha função lá?
- Isso o senhor terá de perguntar ao seu novo comandante na manhã do dia quinze. E só o que tenho para o senhor, detetive Bosch. Estas são as ordens. Tenha um bom
fim de semana.
324
Ele desligou e o som de linha veio pelo alto-falante. Bosch olhou para Billets.
- O que você acha? Isso é alguma piada?
- Se for, é boa. Parabéns.
- Mas há três dias Irving falou para eu me aposentar. Depois se vira e me manda para o centro da cidade?
- Bem, talvez seja porque ele quer vigiá-lo mais de perto. Não é à toa que chamam o Parker Center de casa de vidro, Harry. E melhor ter cuidado.
Bosch assentiu.
- Por outro lado - disse ela -, nós dois sabemos que você deveria estar lá. Você nunca deveria ter sido tirado de lá. Talvez seja apenas o círculo se fechando. O
que quer que seja, vamos sentir sua falta. vou sentir sua falta, Harry. Você trabalha bem.
Bosch agradeceu, assentindo. Fez menção de sair, mas depois olhou de novo para ela e sorriu.
- Você não vai acreditar, especialmente à luz do que aconteceu, mas estamos investigando o Trent de novo. O skate. A DIC achou uma ligação com o garoto.
Billets virou a cabeça para trás e riu alto, suficientemente alto para atrair a atenção de todo mundo na sala do esquadrão.
- Bem - disse ela -, quando Irving souber disso, definitivamente vai mudar da DRH para a Divisão Sudeste, com certeza.
Sua referência era ao distrito infestado de gangues na outra extremidade da cidade. Um posto que seria o exemplo rematado da terapia de via expressa.
- Não duvido - respondeu Bosch.
Billets abandonou o sorriso e ficou séria. Perguntou a Bosch sobre a última reviravolta do caso e ouviu com atenção enquanto ele delineava o plano de montar o que
basicamente seria um perfil de toda a vida do decorador de cenários morto.
- vou dizer uma coisa - disse ela quando ele terminou. - vou tirar vocês da rotatividade. Não há sentido em você pegar um caso novo se vai embora para a DRH. Também
estou autorizando hora extra no fim de semana. Então trabalhe no Trent, vá com tudo e me informe. Você tem quatro dias, Harry. Não deixe esse caso na mesa quando
for embora.
325
Bosch assentiu e saiu da sala. Na volta para seu lugar soube que todos os olhos do esquadrão estavam fixos nele. Não revelou nada. Sentou-se em seu lugar e ficou
com os olhos baixos.
- E então? - sussurrou Edgar por fim. - O que você ganhou? -A DRH.
-DRH?
Ele tinha praticamente gritado. Agora todos na sala do esquadrão saberiam. Bosch sentiu o rosto enrubescer. Sabia que todo mundo estaria olhando para ele.
- Meu Deus - disse Edgar. - Primeiro Kiz e agora você. O que eu sou, porra, um picadinho de fígado?
Capítulo 48
Kind ofBlue tocava no aparelho de som. Bosch pegou uma garrafa de cerveja e se recostou na poltrona com os olhos fechados. Tinha sido um dia confuso no fim de uma
semana confusa. Agora só queria deixar que a música passasse por dentro dele e limpasse as entranhas. Tinha certeza de que o que estava procurando já estava em sua
posse. Era uma questão de ordenar tudo e se livrar das coisas sem importância que atulhavam a visão.
Ele e Edgar tinham trabalhado até as sete, antes de decidir irem para casa cedo. Edgar não conseguia ficar concentrado. A notícia da transferência de Bosch o afetara
mais profundamente do que a Bosch. Edgar percebeu aquilo como desconsideração, porque não foi escolhido para a DRH. Bosch tentou acalmá-lo dizendo que ia entrar
para um covil de serpentes, mas não adiantou. Desligou a tomada e disse ao parceiro para ir para casa, tomar uma bebida e tirar uma boa noite de sono. Eles trabalhariam
durante o fim de semana juntando informações sobre Trent.
Agora era Bosch quem estava tomando a bebida e caindo no sono na poltrona. Sentia que estava em algum tipo de portal. Começaria um período novo e claramente definido
na vida. Um tempo de maior perigo, maiores riscos e maiores recompensas. Isso o fez sorrir, agora que sabia que ninguém estava olhando.
327
O telefone tocou e Bosch saltou empertigado. Desligou o aparelho de som e foi à cozinha. Quando atendeu, uma voz de mulher lhe disse para aguardar porque o subchefe
Irving falaria com ele. Depois de um longo momento a voz de Irving chegou.
- Detetive Bosch? -Sim?
- Recebeu sua ordem de transferência hoje?
- Sim, recebi.
- born. Eu queria que você soubesse que tomei a decisão de trazê-lo de volta para a Divisão de Roubos e Homicídios.
- Por que isso, chefe?
- Porque, depois de nossa última conversa, decidi lhe dar uma última chance. Esta designação é a chance. Será um cargo em que poderei observar seus movimentos muito
de perto.
- Que cargo é?
- Não lhe disseram?
- Só disseram para eu me apresentar à DRH no próximo período de pagamento. Só isso.
Houve silêncio no telefone, e Bosch pensou que agora descobriria a areia no óleo do motor. Voltaria à DRH, mas fazendo o quê? Tentou pensar: qual seria o pior cargo
no melhor lugar de trabalho?
Irving falou por fim:
- Você vai ter seu velho serviço de volta. Na Especial de Homicídios. Surgiu uma vaga hoje quando o detetive Thornton entregou o distintivo.
- Thornton?
- Isso mesmo.
- Vou trabalhar com Kiz Rider?
- Isso fica por conta do tenente Henriques. Mas atualmente a detetive Rider está sem parceiro, e você tem um relacionamento profissional estabelecido com ela.
Bosch assentiu. A cozinha estava escura. Sentia-se empolgado, mas não queria transmitir os sentimentos a Irving pelo telefone. Como se soubesse desses pensamentos,
Irving disse:
- Detetive, você pode sentir que caiu no esgoto e saiu cheirando a rosas. Não pense isso. Não suponha nada. Não cometa nenhum erro. Se cometer, estarei lá. Estou
sendo claro?

328
- Claríssimo.
Irving desligou sem dizer mais uma palavra. Bosch ficou parado no escuro segurando o telefone junto do ouvido até que ele começou a fazer um som alto, irritante.
Desligou e voltou para a sala. Pensou em ligar para Kiz e ver o que ela sabia, mas decidiu esperar. Quando se sentou de novo na poltrona sentiu uma coisa dura contra
o quadril. Sabia que não era sua arma porque já a havia tirado. Enfiou a mão no bolso e pegou o minigravador.
Ligou-o e ouviu sua conversa com Surtain, a repórter de TV, diante da casa de Trent, na noite em que ele se matou. Filtrando-se através da história do que aconteceria,
Bosch sentiu culpa e pensou que talvez devesse ter feito ou dito mais, num esforço para impedir a repórter.
Depois de ouvir a porta do carro batendo, na fita, parou e apertou o botão de rebobinar. Percebeu que ainda não tinha escutado toda a entrevista com Trent, porque
estivera fora do alcance da audição enquanto revistava partes da casa. Decidiu que ouviria agora. Seria um ponto de partida para a investigação do fim de semana.
Enquanto escutava, tentou analisar as palavras e frases em busca de novos significados, de coisas que revelassem um assassino. Ao mesmo tempo guerreava com os instintos.
Enquanto ouvia Trent falar numa voz quase desesperada, ainda se sentia convencido de que o sujeito não era o assassino, de que seus protestos de inocência eram verdadeiros.
E isso, claro, contradizia com o que sabia agora. O skate - encontrado na casa de Trent - tinha as iniciais do garoto morto e o ano em que ele comprou o skate e
foi morto. Agora o skate servia como uma espécie de lápide. Um marco para Bosch.
Terminou de ouvir a entrevista de Trent. Mas nada, inclusive nas partes que não tinha ouvido antes, provocou qualquer idéia. E foi no início da segunda passagem
que captou uma coisa que fez seu rosto ficar subitamente quente, quase como uma sensação de febre. Voltou a fita depressa e repassou a parte da conversa entre Edgar
e Trent que atraíra sua atenção. Lembrou-se de estar no corredor da casa de Trent e ouvir esse trecho da entrevista. Mas até agora não havia percebido o significado.
329
- O senhor gostava de olhar as crianças brincando no mato, sr. Trent?
- Não, não dava para ver, se elas estivessem no mato. Ocasionalmente eu vinha subindo de carro ou estava passeando com meu cachorro, quando ele era vivo, e via
as crianças subindo para lá. A menina do outro lado da rua. Os Fosters, da casa ao lado. Todas as crianças daqui. É uma área pública, a única parte sem construções
na vizinhança. Alguns vizinhos achavam que os mais velhos subiam lá para fumar cigarro, e a preocupação era de que incendiassem todo o morro.
Desligou o gravador e voltou à cozinha e ao telefone. Edgar atendeu depois do primeiro toque. Bosch percebeu que ele não havia dormido. Eram apenas nove da noite.
- Você não trouxe nada para casa com você, trouxe? -Tipo o quê?
- Os catálogos telefônicos por endereço?
- Não, Harry, eles estão no escritório. O que é?
- Não sei. Você se lembra, de quando estava fazendo aquele gráfico hoje, se havia alguém chamado Foster, na Wonderland?
- Foster. Quer dizer, o sobrenome Foster?
- E, o sobrenome.
Ele esperou. Edgar não disse nada.
- Jerry, você se lembra?
- Vá com calma, Harry. Estou pensando. Mais silêncio.
- Hmm - disse Edgar finalmente. - Nenhum Foster. Não que eu lembre.
- Até que ponto tem certeza?
- Bem, Harry, qual é! Não estou com a prancha nem com os catálogos aqui. Mas acho que lembraria do nome. Por que é tão importante? O que está acontecendo?
- Ligo para você depois.
Bosch levou o telefone à mesa da sala de jantar, onde tinha deixado sua pasta. Abriu e pegou o caderno do assassinato. Foi rapidamente até a página que listava os
moradores atuais da Wonderland Avenue, com endereços e números de telefone. Não havia nenhum
330
Foster. Pegou o telefone e digitou um número. Depois de quatro toques foi atendido por uma voz que reconheceu.
- Dr. Guyot, aqui é o detetive Bosch. Estou ligando tarde demais?
- Alô, detetive. Não, não é tarde demais para mim. Passei quarenta anos recebendo telefonemas a toda hora da noite. Nove horas? Nove é para amadores. Como vão seus
vários ferimentos?
- Vão bem, doutor. Estou com um pouco de pressa e preciso fazer umas perguntas sobre a rua.
- Bem, vá em frente.
- Por volta de mil novecentos e oitenta, mais ou menos, havia uma família ou um casal na rua com o sobrenome Foster?
Houve silêncio enquanto Guyot pensava na pergunta.
- Não, não creio - disse finalmente. - Não me lembro de ninguém chamado Foster.
- Certo. Então pode me dizer se havia alguém na rua que abrigasse crianças adotadas?
Dessa vez Guyot respondeu sem hesitar:
-Ah, sim, havia. Os Blaylock. Gente muito boa. Eles abrigaram muitas crianças no correr dos anos. Eu os admirava muito.
Bosch anotou o nome num pedaço de papel em branco na frente do caderno do assassinato. Depois passou para o relatório das entrevistas na vizinhança e viu que não
havia ninguém chamado Blaylock morando atualmente no quarteirão.
- O senhor se lembra do primeiro nome deles?
- Don e Audrey.
- E quando se mudaram da rua? O senhor se lembra de quando foi?
- Ah, deve ter sido há pelo menos dez anos. Depois que a última criança cresceu eles não precisavam mais de uma casa grande. Venderam e se mudaram.
- Tem alguma idéia de para onde foram? Se ainda estão na cidade?
* Foster kids significa crianças adotadas. (N. do E.)
331
Guyot ficou quieto. Bosch esperou.
- Estou tentando lembrar. Estou certo de que sei disso.
- Pode demorar o quanto quiser, doutor - disse Bosch, mesmo sendo a última coisa que ele desejasse da parte de Guyot.
- Ah, sabe de uma coisa, detetive? O Natal. Eu guardava todos os cartões que recebia numa caixa. Para saber a quem deveria mandar no ano seguinte. Minha mulher sempre
fazia isso. Deixe-me procurar a caixa. Audrey ainda me manda cartões todos os anos.
- Vá pegar a caixa, doutor. Eu espero.
Bosch ouviu o telefone sendo posto na mesa. Assentiu sozinho. Ia conseguir. Tentou pensar em qual poderia ser o significado dessa nova informação, mas decidiu esperar.
Pegaria a informação e depois iria examiná-la.
Guyot demorou vários minutos para voltar ao telefone. O tempo todo Bosch esperou com a caneta a postos para anotar o endereço.
- Certo, detetive Bosch, está aqui.
Guyot deu o endereço e Bosch quase suspirou alto. Don e Audrey Blaylock não tinham se mudado para o Alasca ou algum outro lugar longínquo no mundo. Ainda estavam
a uma distância alcançável de carro. Agradeceu a Guyot e desligou.
Capítulo 49
Às oito horas da manhã de sábado Bosch estava sentado no carro da polícia observando uma pequena casa de madeira a um quarteirão da rua principal da cidade de Lone
Pine, três horas ao norte de Los Angeles, ao pé da Sierra Nevada. Estava tomando café frio num copo plástico e tinha outro igual, pronto para assumir o posto quando
o primeiro terminasse. Seus ossos doíam do frio e da noite passada dirigindo e depois tentando dormir no carro. Tinha chegado à cidadezinha de montanha tarde demais
para achar um motel aberto. Também sabia, por experiência, que não era aconselhável chegar a Lone Pine sem reserva num fim de semana.
Quando a luz do amanhecer apareceu, viu a montanha cinzaazulada se erguendo da névoa atrás da cidade e reduzindo-a ao que ela era: insignificante diante do tempo
e do ritmo natural das coisas. Bosch ergueu os olhos para o monte Whitney, o ponto culminante da Califórnia, e soube que ele estava ali desde muito antes de qualquer
olho humano tê-lo visto, e continuaria ali muito depois de que os últimos tivessem ido embora. De algum modo, isso tornava fácil saber tudo que ele sabia.
Estava com fome e queria ir a uma lanchonete da cidade comer um bife com ovos. Mas não abandonaria o posto. Se alguém se mudava de L.A. para Lone Pine não era
somente porque odiava a multidão, a poluição e o ritmo da cidade grande. Também era porque
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amava as montanhas. E Bosch não se arriscaria a perder Don e Audrey Blaylock para um passeio matinal nas montanhas enquanto estava comendo um desjejum. Decidiu ligar
o carro e o aquecedor durante uns minutos. Estivera economizando o calor e a gasolina ligando e desligando-o durante toda a noite.
Olhou a casa e esperou que uma luz se acendesse ou que alguém pegasse o jornal que fora jogado na entrada de veículos por uma picape, duas horas antes. Era um rolo
fino de jornal. Bosch sabia que não era o L. A. Times. As pessoas em Lone Pine não se importavam com Los Angeles, seus assassinos ou seus detetives.
Às nove horas viu uma fumaça sair encaracolada da chaminé da casa. Alguns minutos depois, um homem com cerca de sessenta anos, usando roupão, saiu e pegou o jornal.
Depois de pegá-lo, olhou o carro de Bosch, meio quarteirão adiante. Depois voltou para dentro.
Bosch sabia que seu carro se destacava na rua. Não estivera tentando se esconder. Só estava esperando. Ligou o carro, dirigiu até a casa dos Blaylock e parou na
entrada de veículos.
Quando chegou à porta, o homem que ele tinha visto antes abriu-a antes de ser necessário bater.
- Sr. Blaylock?
- Sim, sou eu.
Bosch mostrou seu distintivo.
- Eu estava imaginando se poderia conversar com o senhor e sua esposa durante alguns minutos. E sobre um caso em que estou trabalhando.
- O senhor está sozinho? -Estou.
- Há quanto tempo estava aí fora? Bosch sorriu.
- Desde umas quatro horas. Cheguei tarde demais para conseguir um quarto..
- Entre. Nós temos café.
- Se estiver quente, aceito.
O sr. Blaylock guiou Bosch para dentro e indicou um jogo de poltronas e um sofá perto da lareira.
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- vou chamar minha mulher e pegar o café.
Bosch foi até a poltrona mais próxima da lareira. Já ia se sentar quando notou uma quantidade de fotos emolduradas na parede atrás do sofá. Foi examiná-las. Eram
todas de crianças ou jovens adultos. De todas as raças. Duas tinham óbvios problemas físicos ou mentais. As crianças abrigadas. Virou-se e ocupou o lugar mais perto
da lareira e esperou.
Logo Blaylock voltou com uma grande caneca de café fumegante. Uma mulher entrou na sala atrás dele. Parecia um pouquinho mais velha do que o marido. Estava com
os olhos ainda franzidos do sono, mas o rosto era gentil.
- Esta é minha mulher, Audrey - disse Blaylock. - O senhor toma café puro? Todo policial que conheci tomava puro.
O marido e a mulher sentaram-se lado a lado no sofá.
- Puro está ótimo. O senhor conhecia muitos policiais?
- Quando estava em L.A., sim. Trabalhei trinta anos no corpo de bombeiros municipal. Me aposentei como comandante do quartel depois dos tumultos de noventa e dois.
Aquilo foi o basta para mim. Entrei logo antes de Watts e saí depois de noventa e dois.
- O que o senhor deseja conversar conosco? - perguntou Audrey, parecendo impaciente com a conversa fiada do marido.
Bosch assentiu. Estava com seu café e as apresentações haviam terminado.
- Trabalho com homicídios. Na Divisão de Hollywood. Estou num...
- Trabalhei seis anos no cinqüenta e oito - disse Blaylock, referindo-se ao quartel dos bombeiros que ficava atrás da Divisão de Hollywood.
Bosch assentiu de novo.
- Don, deixe o moço contar por que veio de tão longe - disse Audrey.
- Desculpe, vá em frente.
- Estou trabalhando num caso. Um homicídio em Laurel Canyon, onde vocês moravam antigamente, e estamos contatando pessoas que viviam na rua em mil novecentos e oitenta.
- Por que em mil novecentos e oitenta?
335
- Porque foi quando o homicídio aconteceu. Eles o olharam com o rosto perplexo.
- E um daqueles casos frios? - perguntou Blaylock. - Porque não me lembro de nada assim ter acontecido na nossa vizinhança na época.
- De certa forma é um caso frio. Só que o corpo foi descoberto há apenas duas semanas. Tinha sido enterrado no mato. No morro.
Bosch examinou o rosto deles. Nenhuma revelação, apenas choque.
- Ah, meu Deus - disse Audrey. - Quer dizer que, o tempo todo em que nós morávamos lá, havia alguém morto lá em cima? Nossas crianças costumavam brincar lá. Quem
foi morto?
- Uma criança. Um menino de doze anos. O nome dele era Arthur Delacroix. Esse nome significa alguma coisa para vocês?
O marido e a mulher reviraram os bancos de memória, depois se entreolharam e confirmaram os resultados, cada um balançando a cabeça.
- Não, não esse nome - disse Don Blaylock.
- Onde ele morava? - perguntou Audrey Blaylock. - Imagino que não fosse na vizinhança.
- Não, ele morava na área da Miracle Mile.
- Parece medonho - disse Audrey. - Como ele foi morto?
- Espancado até a morte. Se vocês não se importam, quero dizer, eu sei que vocês estão curiosos, mas preciso fazer as perguntas antes.
- Ah, desculpe - respondeu Audrey. - Por favor, continue. O que mais podemos dizer?
- Bem, estamos tentando montar um perfil da rua, a Wonderland, na época. Vocês sabem, para que saibamos quem era quem e quem estava lá. E pura rotina.
Bosch sorriu e soube imediatamente que não foi um sorriso sincero.
- E até agora a coisa está bastante difícil. A vizinhança mudou bastante desde então. Na verdade, o dr. Guyot e um homem mais adiante na rua, chamado Hutter, são
os únicos moradores que continuam desde mil novecentos e oitenta.
336
Audrey deu um sorriso caloroso.
- Ah, Paul. Ele é um homem muito bom. Ainda recebemos cartões de Natal dele, mesmo depois de a esposa ter falecido.
Bosch assentiu.
- Claro, seu preço era caro demais para nós. Costumávamos levar as crianças às clínicas. Mas se houvesse uma emergência num fim de semana, ou quando Paul estava
em casa, ele nunca hesitava. Hoje em dia alguns médicos têm medo de fazer qualquer coisa porque podem ser... desculpe, estou parecendo o meu marido, e não foi isso
que o senhor veio aqui ouvir.
- Tudo bem, sra. Blaylock. Hmm, a senhora mencionou suas crianças. Ouvi, da parte de alguns vizinhos, que vocês tinham um abrigo, não é?
- Ah, sim - disse ela. - Don e eu pegamos crianças durante vinte e cinco anos.
-É uma... coisa tremenda que vocês faziam. Admiro isso. Quantas crianças foram?
- Era difícil contar. Algumas ficavam durante anos, outras apenas por semanas. Boa parte dependia da veneta dos juizados de menores. Eu costumava ficar de coração
partido quando estávamos apenas começando com uma criança, o senhor sabe, fazendo com que ela se sentisse confortável e em casa, e aí ela recebia ordem
de voltar para casa ou para outro familiar ou sei lá para quem. Eu sempre dizia que, para abrigar crianças, a gente precisa ter um coração grande e com um grande
calo.
Ela olhou para o marido e assentiu. Ele assentiu de volta e segurou sua mão. O sr. Blaylock olhou de volta para Bosch.
- Nós contamos uma vez - disse ele. - Tivemos um total de trinta e oito crianças. Mas, realisticamente, dizemos que criamos dezessete. Foram crianças que ficaram
conosco por tempo suficiente para que isso causasse impacto. O senhor sabe, entre dois anos e... uma criança ficou conosco durante quatorze anos.
Ele se virou para olhar a parede atrás do sofá e apontou para a foto de um menino numa cadeira de rodas. Ele era magro e usava óculos grossos. Os pulsos eram dobrados
em ângulos agudos. O sorriso era torto.
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- Aquele é o Benny - disse ele.
- Incrível - respondeu Bosch.
Ele tirou um caderno do bolso e abriu numa página em branco. Pegou uma caneta. Nesse momento seu celular começou a tocar.
- É o meu - disse ele. - Não se preocupem.
- O senhor não quer atender? - perguntou Blaylock
- Eles podem deixar recado. E nem acho que vou conseguir um sinal bom, tão perto da montanha.
- Vai sim, a gente até pega TV.
Bosch olhou para ele e notou que, de algum modo, tinha sido insultuoso.
- Desculpe, eu não quis dizer nada. Só estava imaginando se poderiam me dizer que crianças moravam com vocês em mil novecentos e oitenta.
Houve um momento em que todos olharam para todos e não disseram nada.
- Uma das nossas crianças está envolvida nisso? - perguntou Audrey.
- Não sei, senhora. Não sei quem morava com vocês. Como disse, estamos tentando montar um perfil da rua. Precisamos saber exatamente quem morava lá. E partiremos
daí.
- Bem, tenho certeza de que a Divisão de Serviços para Menores pode ajudá-lo.
Bosch assentiu.
- Na verdade eles mudaram o nome. Agora se chama Departamento de Serviços para a Infância. E só vão poder nos ajudar no mínimo na segunda-feira, sra. Blaylock. Isto
é um homicídio. Precisamos da informação agora.
De novo, houve uma pausa em que todos se entreolharam.
- Bem - disse Don Blaylock por fim. - Vai ser meio difícil lembrar exatamente quem estava conosco numa determinada época. Há alguns nomes óbvios. Como Benny, Jodi
e Francês. Mas todo ano tínhamos algumas crianças que, como Audrey disse, eram deixadas e depois levadas embora. Essas são as difíceis. Vejamos, em oitenta...
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Ele se levantou e se virou para ver todas as fotos da parede. Apontou para uma, um menino negro de cerca de oito anos.
- O William, ali. Estava em mil novecentos e oitenta. Ele...
- Não, não estava - disse Audrey. - Ele chegou em oitenta e quatro. Não lembra? A Olimpíada. Você fez para ele aquela tocha de papel-alumínio.
- Ah, é, oitenta e quatro.
Bosch se inclinou para a frente na poltrona. O lugar perto da lareira estava ficando quente demais.
- Vamos começar com os três que vocês mencionaram. Benny e os outros dois. Qual é o nome inteiro deles?
Ele anotou os nomes e, quando perguntou como poderiam ser contatados, recebeu o número de telefone de dois, mas não o de Benny.
- Benny faleceu há seis anos - disse Audrey. - Esclerose múltipla.
- Sinto muito.
- Ele era muito querido.
Bosch assentiu e esperou que o silêncio apropriado passasse.
- Hmm, quem mais? Vocês não mantinham registros de quem chegava e saía?
- Sim, mas não estão aqui - disse Blaylock. - Estão guardados em L.A.
De repente, ele estalou os dedos.
- Sabe, temos uma lista de todas as crianças que tentamos ajudar ou que ajudamos. Só que não é organizada por ano. Provavelmente a gente poderia reduzir um pouco,
mas será que isso o ajudaria?
Bosch notou que Audrey deu ao marido um olhar momentâneo de raiva. O marido não viu, mas Bosch sim. Sabia que os instintos da mulher seriam de proteger as crianças
da ameaça, verdadeira ou não, representada por ele.
- Sim, ajudaria muito.
Blaylock saiu da sala e Bosch olhou para Audrey.
- A senhora não quer que ele me dê a lista. Por que, sra. Blaylock?
- Porque não acho que o senhor esteja sendo honesto conosco. Está procurando alguma coisa. Ninguém viaja três horas no meio
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da noite, de Los Angeles, para uma entrevista "de rotina", como diz. O senhor sabe que essas crianças tinham origens difíceis. Não eram todas anjos quando chegavam
a nós. E não quero que nenhuma delas seja culpada por alguma coisa só porque estava lá, por causa de quem era ou de onde veio.
Bosch esperou para ter certeza de que ela havia terminado.
- Sra. Blaylock, já esteve no Lar McClaren para Jovens?
- Claro. Várias das nossas crianças vieram de lá.
- Vim de lá também. E de vários lares adotivos em que nunca demorei muito tempo. Por isso sei como eram essas crianças, porque fui uma delas, certo? E sei que alguns
lares adotivos podem ser cheios de amor, e alguns podem ser tão ruins ou piores do que o lugar de onde a gente foi tirada. Sei que alguns pais adotivos têm um compromisso
com as crianças, e que alguns têm um compromisso com os cheques de subsistência dos Serviços para a Infância.
Ela ficou quieta por longo tempo antes de responder:
- Não importa. O senhor ainda está querendo completar o quebra-cabeça com qualquer peça que se encaixe.
- A senhora está errada. Está errada com relação a isso, e está errada com relação a mim.
Blaylock entrou de novo na sala com o que parecia uma pasta escolar verde. Colocou-a na mesinha de centro e abriu. Os bolsos da pasta estavam cheios de fotos e
cartas. Audrey continuou, apesar da volta dele:
- Meu marido trabalhava para o município, como o senhor, de modo que não vai querer que eu diga isso. Mas, detetive, não confio no senhor nem nos motivos que apresenta
para estar aqui. Não está sendo honesto conosco.
- Audrey! - ganiu Blaylock. - O sujeito só está tentando fazer
o trabalho dele.
- E vai dizer qualquer coisa para fazer. E vai fazer mal a qualquer criança, para fazer.
- Audrey, por favor.
Ele voltou a atenção para Bosch e ofereceu uma folha de papel. Havia uma lista de nomes escritos a mão. Antes que Bosch pudesse lê-la, Blaylock pegou a página de
volta e colocou na mesa.
340
Começou a trabalhar com um lápis, colocando marcas ao lado de alguns nomes. Enquanto trabalhava, falou:
- Fizemos esta lista para termos um meio de rastrear todo mundo. O senhor ficaria surpreso, é possível morrer de amor por alguém, mas quando se trata de lembrar
vinte, trinta aniversários, a gente sempre esquece um ou outro. Os que estou marcando aqui são crianças que chegaram depois de mil novecentos e oitenta. Audrey vai
verificar também, quando eu terminar.
- Não vou não.
Os homens a ignoraram. Os olhos de Bosch se moviam adiante do lápis de Blaylock, descendo pela lista. Antes de ter percorrido dois terços, baixou a mão e pôs o dedo
num nome.
- Fale dele.
Blaylock olhou para Bosch e depois para a mulher.
- Quem é? - perguntou ela.
- Johnny Stokes - disse Bosh. - Ele estava na sua casa em mil novecentos e oitenta, não estava?
Audrey o encarou um momento.
- Aí, está vendo?- perguntou ela ao marido, enquanto olhava apenas para Bosch. - Ela já sabia sobre Johnny quando veio aqui. Eu estava certa. Ele não é um homem
honesto.
Capítulo 50
Quando Don Blaylock foi à cozinha fazer um segundo bule de café, Bosch estava com duas páginas de anotações sobre Johnny Stokes. Ele tinha ido para a casa dos-Blaylock
através de uma referência da DSM em janeiro de 1980 e foi embora no mês de julho seguinte, quando foi preso por roubar um carro e sair farreando por Hollywood. Era
sua segunda prisão por roubo de carros. Ficou preso no Reformatório de Sylmar durante seis meses. Quando o período de sua reabilitação terminou ele foi devolvido
por um juiz aos pais. Ainda que os Blaylock tivessem notícias ocasionais dele, e até mesmo o vissem em suas visitas freqüentes à vizinhança, eles tinham outras crianças
sob seus cuidados e logo perderam o contato
com o garoto.
Quando Blaylock saiu para fazer café, Bosch se acomodou no que achava que seria um silêncio desconfortável com Audrey. Mas
então ela falou:
- Doze de nossas crianças se formaram na faculdade. Duas têm carreiras militares. Uma seguiu Don e entrou para o corpo de bombeiros. Trabalha no Vale.
Ela assentiu e Bosch assentiu de volta.
- Nunca nos consideramos cem por cento bem-sucedidos com as crianças - continuou. - Fazíamos o melhor possível com cada uma. Algumas vezes as circunstâncias, os
tribunais ou as autoridades nos
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impediam de ajudar uma criança. John foi um desses casos. Ele cometeu um erro, e foi como se a culpa fosse nossa. Ele foi tirado de nós... antes que pudéssemos ajudá-lo.
Bosch só pôde assentir.
- O senhor parecia já saber sobre ele. Já falou com ele?
- Sim. Brevemente.
- Ele está preso?
- Não, não está.
- Como tem sido a vida dele desde... que nós o conhecíamos? Bosch abriu as mãos.
- Não tem se saído bem. Drogas, muitas prisões, uma condenação.
Ela assentiu com tristeza.
- O senhor acha que ele matou esse menino na nossa vizinhança? Enquanto estava conosco?
Pelo rosto dela, dava para ver que, se respondesse com sinceridade, Bosch destruiria tudo que ela havia construído a partir do que era bom no que os dois tinham
feito. Toda a parede de fotos, as becas de formatura e os bons serviços não significariam nada diante disso.
- Na verdade, não sei. Mas sabemos que ele era amigo do garoto que foi morto.
Ela fechou os olhos. Não com força, apenas como se estivesse descansando-os. Não falou mais nada até Blaylock voltar para a sala. Ele passou por Bosch e pôs outro
pedaço de lenha na lareira.
- O café vai estar pronto num minuto.
- Obrigado - disse Bosch.
Depois de Blaylock voltar à poltrona, Bosch se levantou.
- Tenho umas coisas que gostaria que vocês olhassem, se não se importassem. Elas estão no carro.
Ele pediu licença e foi até o veículo. Pegou a pasta no banco da frente, depois foi até o porta-malas e pegou a caixa com o skate. Pensou que valeria a pena tentar
mostrá-lo aos Blaylock.
Seu celular tocou no momento em que fechou o porta-malas, e dessa vez ele atendeu. Era Edgar.
- Harry, onde você está?
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- Em Lone Pine.
- Lone Pine! Que porra você está fazendo aí?
- Não tenho tempo para falar. Onde você está?
- Na mesa. Como combinamos. Achei que você iria...
- Escute, ligo de volta dentro de uma hora. Enquanto isso, emita um outro boletim de busca e apreensão para Stokes.
- O quê?
Bosch verificou a casa para ter certeza de que os Blaylock não
podiam escutar.
- Falei para emitir outro boletim para Stokes. Precisamos pegá-lo.
- Por quê?
- Porque foi ele. Ele matou o garoto.
- Que porra é essa, Harry?
- Ligo para você daqui a uma hora. Emita o boletim. Ele fechou o aparelho, e desta vez o desligou.
Dentro da casa, Bosch colocou a caixa no chão e depois abriu a pasta no colo. Achou o envelope contendo as fotos de família apanhadas com Sheila Delacroix. Abriu-o
e pegou-as. Dividiu a pilha em duas e deu metade a cada um dos Blaylock.
- Olhem o menino nestas fotos e digam se o reconhecem, se ele algum dia foi à casa de vocês. com Johnny ou com mais alguém.
Ficou olhando enquanto o casal examinava as fotos e depois trocava olhares. Quando terminaram, os dois balançaram a cabeça e devolveram as fotos.
- Não reconheço - disse Don Blaylock.
- Certo - respondeu Bosch enquanto guardava as fotos de volta no envelope.
Fechou a pasta e colocou-a no chão. Depois abriu a caixa de
papelão e levantou o skate.
- Algum de vocês já...
- Isso era do John - disse Audrey.
- Tem certeza?
-Tenho, eu reconheço. Quando ele foi... levado embora, deixou isso. Eu disse que estávamos com o skate. Liguei para a casa dele, mas ele nunca foi pegar.
- Como sabem que era dele?
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- Eu lembro. Não gostava do crânio e dos ossos. Lembro disso. Bosch recolocou o skate na caixa.
- O que aconteceu com o skate, se ele nunca foi pegar?
- Nós vendemos - disse Audrey. - Quando Don se aposentou depois de trinta anos e decidimos nos mudar para cá, vendemos todas as nossas tralhas. Fizemos um gigantesco
bazar de garagem.
- Mais parecia um bazar de casa - acrescentou o marido. - -Nós nos livramos de tudo.
- Nem tudo. Você não quis vender aquele ridículo sino de bombeiro que está no quintal dos fundos. De qualquer modo, foi quando vendemos o skate.
- Vocês se lembram de quem comprou?
- Lembro, o vizinho, o sr. Trent.
- Quando foi isso?
- No verão de noventa e dois. Logo depois de vendermos a casa. Ainda não tínhamos a escritura definitiva, lembro.
- Como é que a senhora se lembra de ter vendido o skate ao sr. Trent? Noventa e dois foi há muito tempo.
- Eu me lembro porque ele comprou metade do que a gente estava vendendo. A metade que mais parecia lixo. Ele pegou o bolo todo e ofereceu um preço por tudo. Precisava
para seu trabalho. Ele era cenógrafo.
- Decorador de cenários - corrigiu o marido. - Há uma diferença.
- De qualquer modo, ele usava tudo que comprou da gente em cenários de filme. Sempre esperei ver num filme alguma coisa que soubesse ser procedente da nossa casa.
Mas nunca vi.
Bosch fez algumas anotações em seu bloco. Tinha praticamente tudo de que precisava dos Blaylock. Era quase hora de voltar para o sul, de volta à cidade para fechar
o caso.
- Como o senhor conseguiu o skate?. - perguntou Audrey. Bosch ergueu os olhos.
- Ah, estava nas posses do sr. Trent.
- Ele ainda mora na rua? - perguntou Don Blaylock. - Era um vizinho fantástico. Nunca tivemos problema com ele.
- Morava até recentemente - disse Bosch. - Mas faleceu.
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- Ah, minha nossa - exclamou Audrey. - Que pena. E ele não era tão velho assim.
- Tenho mais umas perguntas - disse Bosch. - Alguma vez John Stokes contou como conseguiu o
skate?
- Ele contou que tinha ganhado numa disputa com outros garotos na escola - respondeu Audrey.
- A Escola Brethren?
- É, é onde ele estudava. Estudava lá quando foi morar conosco, e continuou estudando.
Bosch assentiu e olhou para suas anotações. Tinha tudo. Fechou o caderno, colocou no bolso do paletó e se levantou para sair.
Capítulo 51
Bosch parou o carro numa vaga diante da lanchonete Lone Pine. Os reservados perto das janelas estavam cheios, e quase todas as pessoas olharam para o carro do DPLA,
a mais de trezentos quilômetros de casa.
Estava morrendo de fome, mas sabia que precisava falar com Edgar sem mais delongas. Pegou o celular e ligou. Edgar atendeu depois de meio toque.
- Sou eu. Você emitiu o boletim?
- Sim, emiti. Mas foi meio difícil sem saber que porra está acontecendo, parceiro.
Ele falou a última palavra como se fosse sinônimo de escroto. Era o último caso dos dois juntos, e Bosch se sentia mal por terminarem assim. Sabia que era culpa
sua. Tinha cortado Edgar do caso por motivos dos quais nem tinha certeza.
- Jerry, você está certo. Eu fiz merda. Só queria manter as coisas em movimento, e isso significou viajar à noite.
- Eu teria ido com você.
- Sei disso - mentiu Bosch. - Só não pensei. Simplesmente vim. Estou voltando agora.
- Bem, comece do começo para eu saber que porra está acontecendo no nosso caso. Estou me sentindo um idiota aqui, emitindo um boletim sem sequer saber o motivo.
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- Eu disse: Stokes é o culpado.
- E, você disse, e nada mais.
Bosch passou os minutos seguintes observando as pessoas comer enquanto contava suas ações a Edgar e o atualizava.
- Meu Deus, e ele estava com a gente, aqui - disse Edgar quando Bosch terminou.
- É, bem, é tarde demais para se preocupar. Temos de pegá-lo
de volta.
- Então você está dizendo que quando o garoto fez as malas e se mandou, foi procurar Stokes. E aí Stokes o levou lá para o mato e simplesmente o matou.
- Mais ou menos.
- Por quê?
- É o que preciso perguntar. Mas tenho uma teoria. -Qual é, o skate?
- É, ele queria o skate.
- Ele matou um garoto por causa de um skate?.
- Já vimos gente fazer isso por menos ainda, e não sabemos se ele pretendia matar ou não. Era uma cova rasa, cavada com a mão. Não há nada de premeditado nisso.
Talvez ele só o tenha empurrado e nocauteado. Talvez tenha acertado com uma pedra. Talvez houvesse mais alguma coisa acontecendo entre eles, e que a gente nem saiba.
Edgar não disse nada por um longo momento, e Bosch pensou que talvez a conversa
terminasse aí e ele pudesse comer.
- O que os pais adotivos acharam de sua teoria? Bosch suspirou.
- Realmente nem falei disso com eles. Mas veja do seguinte modo: eles não ficaram muito surpresos quando comecei a fazer perguntas sobre Stokes.
- Sabe de uma coisa, Harry? A gente andou patinando as rodas, é isso que a gente esteve fazendo.
- O que quer dizer?
- Esse caso todo. Acaba sendo o quê? Um garoto de treze anos matando um garoto de doze por causa de uma porra de um brinquedo. Stokes era adolescente quando isso
aconteceu. Ninguém vai processá-lo agora.
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Bosch pensou por um momento.
- Talvez processem. Depende do que a gente arrancar dele depois de o pegarmos.
- Você mesmo disse que não houve sinal de premeditação. Eles não vão fazer indiciamento, parceiro. Estou dizendo. A gente ficou caçando o próprio rabo. Vamos fechar
o caso, mas ninguém vai dançar por causa disso.
Bosch sabia que Edgar estava provavelmente certo. Segundo a lei, era raro adultos serem processados por crimes cometidos enquanto eram adolescentes de treze anos.
Mesmo que arrancassem uma confissão completa de Stokes, ele provavelmente ficaria livre.
- Eu deveria ter deixado que ela atirasse nele - sussurrou.
- O que é isso, Harry?
- Nada. vou comer alguma coisa e colocar o pé na estrada. Você vai ficar aí?
- vou. E aviso se alguma coisa acontecer.
- Certo.
Ele desligou e saiu do carro, pensando na probabilidade de Stokes se livrar do crime. Quando entrou na lanchonete aquecida e foi acometido pelo cheiro de gordura
e do café da manhã, subitamente percebeu que tinha perdido o apetite.
Capítulo 52
Bosch tinha acabado de sair do trecho da traiçoeira via expressa conhecido como The Grapevine quando seu telefone tocou. Era
Edgar.
- Harry, estive tentando ligar para você. Onde está?
- Estava nas montanhas. Chego em menos de uma hora. O que
está acontecendo?
- Acharam Stokes. Ele está enfurnado no Usher.
Bosch pensou nisso. O Usher era um hotel dos anos trinta, a um quarteirão do Hollywood Boulevard. Durante décadas foi uma casa de cômodos e um centro de prostituição
até que as melhorias no bulevar chegaram perto e de repente o transformaram de novo numa propriedade valiosa. Foi vendido, fechado e preparado para passar por uma
enorme reforma e restauração que lhe permitiriam se juntar à nova Hollywood como uma dama elegante. Mas o projeto foi adiado pelos urbanistas que dariam a aprovação
final. E nesse atraso houve uma oportunidade para os habitantes
da noite.
Enquanto o Hotel Usher esperava o renascimento, os quartos dos treze andares se tornaram lar de invasores que se esgueiravam pelas cercas e barreiras de compensado
para achar abrigo. Nos dois meses anteriores Bosch tinha entrado duas vezes no Usher, procurando suspeitos. Não havia eletricidade. Não havia água, mas
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mesmo assim os invasores usavam os banheiros, e o lugar cheirava como um esgoto a céu aberto. Não havia portas em nenhum dos quartos, nem mobília. As pessoas usavam
tapetes enrolados como camas. Era um pesadelo tentar fazer uma busca em segurança. Você andava pelo corredor e cada porta estava aberta e era um possível esconderijo
para um atirador. Se você ficasse de olho nas aberturas podia pisar numa agulha.
Bosch acendeu as luzes de emergência do carro e pisou fundo o acelerador.
- Como sabemos que ele está lá?
- Por causa da semana passada, quando estávamos procurando por ele. Uns caras da Narcóticos trabalhavam numa coisa lá e souberam que ele estava no décimo terceiro
andar. Você precisa estar com medo de alguma coisa para ir até o topo num lugar onde os elevadores não funcionam.
- Certo, qual é o plano?
- Vamos com tudo. Quatro equipes da patrulha, eu e os caras da Narcóticos. Começamos embaixo e vamos abrindo caminho até em cima.
- Quando vocês vão?
-Já estamos para entrar na sala de reuniões e conversar, depois vamos. Não podemos esperar por você, Harry. Temos de pegar o cara antes que ele se mande.
Bosch imaginou por um momento se a pressa de Edgar seria legítima ou simplesmente um esforço para se vingar de Bosch por tê-lo deixado de fora de vários passos da
investigação.
- Sei - disse finalmente. - Vocês vão levar rádios portáteis?
- Sim, vamos usar o canal dois.
- Certo, vejo você lá. Ponha o colete.
Falou a última coisa não porque estivesse preocupado com a hipótese de Stokes estar armado, mas porque sabia que uma equipe de policiais com armamento pesado dentro
de um corredor escuro de hotel era perigo na certa.
Fechou o telefone e pisou o acelerador ainda mais fundo. Logo atravessou o perímetro norte da cidade e estava no vale San Fernando. O tráfego de sábado era tranqüilo.
Trocou duas vezes de via
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expressa, e meia hora depois de ter falado com Edgar estava atravessando Cahuenga Pass para entrar em Holywood. Quando saiu na Highland pôde ver o Hotel Usher erguendo-se
alguns quarteirões ao sul. As janelas estavam uniformemente escuras, com as cortinas retiradas durante os preparativos para as obras futuras.
Bosch não estava com um rádio, e tinha esquecido de perguntar a Edgar onde ficaria o posto de comando da busca. Não queria simplesmente chegar ao hotel em seu carro
policial, com o risco de expor a operação. Pegou o celular e ligou para a sala do plantão. Mankiewicz atendeu.
- Mank, você nunca tira folga?
- Não em janeiro. Meus filhos comemoram o Natal e o Chanukah. Preciso das horas extras. O que há?
- Pode me dizer qual é o posto de comando para o negócio do
Usher?
- No estacionamento da Igreja Presbiteriana de Hollywood.
- Saquei. Obrigado.
Dois minutos depois, Bosch chegou ao estacionamento da igreja. Havia cinco radiopatrulhas paradas junto de um carro não-oficial e um da Narcóticos. Os veículos estavam
parados perto da igreja, de modo a ficar escondidos das janelas do Usher, que se erguia até o céu do outro lado da igreja.
Havia dois policiais numa das radiopatrulhas. Bosch parou e foi até a janela do motorista. O carro estava ligado. Bosch sabia que era o carro de transporte. Quando
os outros pegassem Stokes no Usher, um chamado por rádio pediria o transporte. Eles iriam até lá e pegariam o prisioneiro.
- Onde eles estão?
- Décimo segundo andar - disse o motorista. - Nada por enquanto.
- Me empresta seu rádio.
O policial entregou o rádio pela janela. Bosch ligou para Edgar
pelo canal dois.
- Harry, é você?
- Sim, estou subindo.
- A gente já quase terminou.
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- Mesmo assim vou subir.
Ele devolveu o rádio ao motorista e começou a sair do estacionamento. Quando chegou à cerca de construção que rodeava o terreno do Usher, foi até a extremidade norte,
onde sabia que encontraria a abertura usada pelos invasores. Ficava parcialmente escondida atrás de uma placa de construção anunciando em breve a inauguração de
históricos apartamentos de luxo. Puxou a cerca solta, abaixou-se e passou.
Havia duas escadas principais de cada lado do prédio. Bosch presumiu que haveria uma equipe de policiais uniformizados embaixo de cada uma, para o caso de Stokes
passar pela turma de busca e tentar fugir. Bosch tirou o distintivo e mostrou enquanto abria a porta da escada externa no lado leste do prédio.
Quando entrou no poço da escada, foi recebido por dois policiais com as armas na mão, ao lado do corpo. Bosch assentiu e os policiais assentiram de volta. Começou
a subir a escada.
Tentou estabelecer um ritmo. Cada andar tinha dois lances de degraus e um patamar para a virada. Teria de subir 24 lances. O cheiro dos sanitários transbordados
era sufocante, e ele só conseguia pensar no que Edgar tinha dito, que todos os odores eram feitos de partículas. Algumas vezes o conhecimento é uma coisa medonha.
As portas dos corredores tinham sido retiradas, e com elas as indicações dos andares. Ainda que alguém tivesse se dado ao trabalho de pintar números nas paredes
dos patamares de baixo, à medida que Bosch subia os números desapareceram e ele perdeu a contagem, e não sabia em que andar estava.
No nono ou décimo andar, parou para respirar. Sentou-se num degrau razoavelmente limpo e esperou que a respiração ficasse mais normal. O ar era mais limpo aqui em
cima. Poucos invasores usavam os andares superiores do prédio, por causa da subida.
Prestou atenção, mas não ouviu qualquer som humano. Sabia que as equipes de busca já deviam estar no andar de cima. Imaginou se a dica sobre Stokes era errada, ou
se o suspeito tinha ido embora.
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Por fim, levantou-se e começou a subir de novo. Um minuto depois, percebeu que tinha contado errado, mas a seu favor. Saiu no último patamar e chegou à porta aberta
da cobertura, no décimo terceiro andar.
-Ali! Logo ali!
- Stokes, não! Polícia! Solta...
Dois tiros rápidos e brutalmente altos soaram e ecoaram pelo corredor, obliterando as vozes. Bosch sacou a arma e foi rapidamente para a porta do corredor. Quando
começou a espiar em volta do portal, ouviu mais dois tiros e recuou.
O eco o impediu de identificar a origem dos tiros. Encostou-se no portal de novo e olhou para o corredor. Estava escuro, com luz atravessando-o vindo das portas
dos quartos no lado oeste. Viu Edgar agachado em posição de combate atrás de dois policiais uniformizados. Estavam de costas para Bosch, com as armas apontadas
para uma das portas, a cinco metros de distância.
- Está limpo! - gritou uma voz. - Está limpo aqui!
Os homens no corredor levantaram as armas ao mesmo tempo e foram para a porta aberta.
- DPLA atrás! - gritou Bosch e entrou no corredor.
Edgar olhou para ele enquanto acompanhava os dois policiais uniformizados para dentro do quarto.
Bosch seguiu rapidamente pelo corredor e já ia entrar no quarto quando teve de recuar para que um policial uniformizado saísse. Ele estava falando ao rádio.
- Central, precisamos de paramédicos na Highland quarenta e um, décimo terceiro andar. Suspeito ferido a tiros.
Quando entrou no quarto, Bosch olhou para trás. O policial com o rádio era Edgewood. Os olhos deles se cruzaram apenas por um instante, e então Edgewood desapareceu
nas sombras do corredor. Bosch se virou para olhar o quarto.
Stokes estava sentado num armário sem portas, encostado na parede dos fundos. Suas mãos estavam no colo, uma segurando um pequeno revólver de bolso, calibre 25.
Usava jeans pretos e uma camiseta sem mangas coberta de sangue. Tinha um ferimento de bala
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no peito e outro logo abaixo do olho esquerdo. Os olhos continuavam abertos, mas ele estava claramente morto.
Edgar estava agachado na frente do corpo. Não o tocou. Não havia sentido em procurar a pulsação, e todo mundo sabia disso. O cheiro de pólvora queimada invadiu o
nariz de Bosch e foi um alívio bem-vindo, comparado ao fedor fora do quarto.
Bosch se virou para observar o quarto inteiro. Havia pessoas demais naquele lugar pequeno. Três policiais uniformizados, Edgar e um à paisana que Bosch presumiu
que fosse da Narcóticos. Dois dos uniformizados estavam juntos na parede mais distante, examinando duas balas no reboco. Um deles levantou um dedo e ia sondar um
dos buracos.
- Não toque nisso - rosnou Bosch. - Não toquem em nada. Quero todo mundo fora daqui e esperando a equipe da TER Quem atirou?
- Foi o Edge - disse o policial da Narcóticos. - O cara estava esperando a gente no armário e nós...
- Desculpe, qual é o seu nome?
- Phillips.
- Certo, Phillips, não quero ouvir sua história. Guarde para a TEP. Vá pegar Edgewood, desçam de novo e esperem. Quando os paramédicos chegarem, diga que não é necessário.
Não precisam subir tudo isso.
Os policiais saíram relutantes do quarto, deixando apenas Bosch e Edgar. Edgar se levantou e foi até a janela. Bosch seguiu para o canto mais distante do armário
e olhou de volta para o corpo. Depois se aproximou do corpo e se agachou no mesmo lugar onde Edgar estivera.
Examinou a arma na mão de Stokes. Presumiu que, quando fosse tirada da mão, os investigadores do TEP descobririam que o número de série fora queimado com ácido.
Pensou nos tiros que tinha ouvido enquanto estava no patamar da escada. Dois e dois. Era difícil avaliar pela lembrança, especialmente considerando sua posição na
hora. Mas achava que os dois primeiros tinham sido mais altos e mais pesados do que os dois segundos. Se fosse assim, significava que Stokes tinha atirado com
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seu revolverzinho depois de Edgewood ter disparado com a arma de serviço. Significava que Stokes tinha levado dois tiros depois de ser acertado no rosto e no peito
- ferimentos que pareceram instantaneamente fatais a Bosch. Edgar veio atrás dele.
- O que você acha?
- Não importa o que acho. Ele está morto. Agora é um caso
para a TEP.
- É um caso fechado, parceiro. Acho que não temos de nos preocupar se a promotoria fizer um indiciamento.
Bosch assentiu. Sabia que haveria uma investigação de encerramento e papelada para preencher, mas o caso estava encerrado. Seria classificado como "fechado por outros
meios", o que significava que não haveria julgamento nem condenação, mas mesmo assim estaria na coluna dos solucionados.
- Acho que não - disse ele. Edgar lhe deu um tapa no ombro.
- É o nosso último caso juntos, Harry. A gente terminou por
cima.
- É. Diga uma coisa, durante a reunião hoje de manhã, antes de sair, você falou da promotoria e disse que era um caso juvenil?
Depois de um longo momento, Edgar respondeu:
- É, eu posso ter mencionado alguma coisa a respeito.
- Você disse a eles que a gente estava patinando as rodas, como falou comigo? Que a promotoria provavelmente nem faria um indiciamento do Stokes?
- É, posso ter dito. Por quê?
Bosch não respondeu. Levantou-se e foi até a janela. Podia ver o prédio da Capitol Records, e mais além o letreiro de Hollywood na encosta do morro. Pintado na lateral
de um prédio a alguns quarteirões havia um cartaz contra o fumo, mostrando um caubói com um cigarro na boca acompanhado pelo alerta de que fumar causa impotência.
Virou-se de novo para Edgar.
- Vai segurar a área até a TEP chegar aqui?
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- vou, claro. Eles vão ficar putos por ter de subir os treze andares.
Bosch foi para a porta.
- Aonde você vai, Harry?
Bosch saiu do quarto sem responder. Usou a escada no outro extremo do corredor, para não encontrar os outros enquanto descia.
Capítulo 53
Os membros vivos do que um dia tinha sido uma família estavam parados nas pontas de um triângulo rígido com a sepultura no meio. Estavam numa encosta do Forest
Lawn, Samuel Delacroix num dos lados do caixão e do outro a ex-mulher. O lugar de Sheila Delacroix era na extremidade do caixão oposta ao pastor. A mãe e a filha
estavam com guarda-chuvas pretos abertos por causa da garoa que caía desde o amanhecer. O pai não se abrigava. Ficou parado, molhando-se, e nenhuma das duas se
moveu para compartilhar a proteção com ele.
O som da chuva e da via expressa sibilando ali perto abafava a maior parte do que o pastor contratado dizia, antes de chegar a Bosch. Ele também não estava com
guarda-chuva e assistia a distância, sob a proteção de um carvalho. Pensou que, de algum modo, era apropriado que o garoto fosse enterrado formalmente num morro
e debaixo de chuva.
Tinha ligado para o Departamento de Medicina Legal para descobrir qual funerária estava cuidando do enterro, e ficou sabendo do Forest Lawn. Também soube que fora
a mãe do menino quem reivindicou os restos e planejou o serviço fúnebre. Bosch foi ao enterro por causa do garoto, e porque queria ver a mãe de novo.
O caixão de Arthur Delacroix parecia ter sido feito para um adulto. Era cinza e polido, com alças de cromo escovado. Em
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termos de caixão, era lindo, como um carro recém-encerado. A chuva se juntava em gotas na superfície e depois escorria para o buraco embaixo. Mas era grande demais
para os ossos, e de algum modo isso incomodava Bosch. Era como ver uma criança vestindo roupas grandes demais, obviamente herdadas. Isso sempre parecia dizer alguma
coisa sobre a criança. Que era carente. Que estava em segundo lugar.
Quando a chuva começou a cair com mais força o pastor levantou um guarda-chuva que estava ao seu lado e segurou o livro de orações com uma das mãos. Algumas de
suas frases conseguiam chegar intactas a Bosch. Ele estava falando sobre o reino maior que havia recebido Arthur. Isso fez Bosch pensar em Golliher e em sua fé inabalável
naquele reino, apesar das atrocidades que estudava e documentava todo dia. Mas, para Bosch, o júri ainda não havia chegado a uma conclusão sobre isso. Ele ainda
morava no reino inferior.
Notou que nenhum dos três membros da família olhava para os outros. Depois de o caixão ser baixado e o pastor fazer o último sinalda-cruz, Sheila se virou e começou
a descer a encosta até o estacionamento. Em nenhum instante reconheceu a presença dos pais.
Samuel foi imediatamente atrás e, quando Sheila olhou e o viu se aproximando, aumentou a velocidade. Chegou ao carro e foi embora antes que o pai pudesse alcançá-la.
Samuel viu o carro da filha atravessando o vasto cemitério até desaparecer pelo portão. Depois voltou e pegou o guarda-chuva abandonado. Colocou-o em seu carro e
partiu também.
Bosch olhou de volta para a sepultura. O pastor tinha sumido. Olhou em volta e viu o topo de um guarda-chuva preto desaparecendo na crista do morro. Não sabia para
onde o sujeito estava indo, a não ser que ele tivesse outro enterro para oficiar do outro lado do morro.
com isso, restava apenas Christine Waters, perto da sepultura. Viu-a fazendo uma oração silenciosa e depois seguir em direção aos dois carros que restavam na estrada
abaixo. Escolheu um ângulo de interseção e foi para lá. Ao chegar perto, ela o fitou calmamente.
- Detetive Bosch, estou surpresa em vê-lo aqui.
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- Por quê?
- Os detetives não devem ser distanciados, não se envolver emocionalmente? Aparecer num enterro demonstra envolvimento emocional, não acha? Especialmente nos enterros
em dias de chuva.
Ele acompanhou o passo da mulher e ela lhe deu metade da proteção do guarda-chuva.
- Por que a senhora reivindicou os restos? Por que fez isto? Ele sinalizou para a sepultura no morro.
- Porque achei que ninguém o faria.
Chegaram à estrada. O carro de Bosch estava parado na frente do dela.
- Adeus, detetive - disse a mulher enquanto se afastava, passando entre os carros e indo para o dela.
- Tenho uma coisa para a senhora. Ela abriu a porta do carro e olhou-o. -O que é?
Bosch abriu a porta do carro policial e destrancou o porta-malas. Voltou por entre os veículos. Ela fechou o guarda-chuva, jogou dentro do carro e se aproximou.
- Uma vez alguém me disse que a vida era a busca de uma coisa. Redenção. A busca de redenção.
- De quê?
- De tudo. Qualquer coisa. Todos nós queremos ser perdoados. Ele levantou a tampa do porta-malas e pegou uma caixa de papelão. Estendeu para ela.
- Cuide destas crianças.
Ela não pegou a caixa. Em vez disso, levantou a tampa e olhou dentro. Havia pilhas de envelopes presos com elástico. E fotos soltas. Em cima estava a foto do garoto
de Kosovo, com o olhar de mil anos. Ela enfiou a mão na caixa.
- De onde elas são? - perguntou enquanto levantava um envelope de uma instituição de caridade.
- Não importa. Alguém precisa cuidar delas.
A mulher assentiu e, cuidadosamente, recolocou a tampa. Pegou a caixa com Bosch e levou-a ao carro. Colocou no banco de trás e
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depois foi para a porta da frente, que estava aberta. Olhou para Bosch antes de entrar. Parecia a ponto de dizer alguma coisa, mas parou. Entrou no carro e foi embora.
Bosch fechou o porta-malas de seu carro e observou-a se afastar.
Capítulo 54
As ordens do chefe de polícia estavam sendo ignoradas de novo. Bosch acendeu as luzes da sala do esquadrão e foi até seu lugar na mesa de homicídios. Colocou em
cima duas caixas de papelão vazias.
Era domingo, quase meia-noite. Tinha decidido vir e limpar sua mesa e seus arquivos quando não houvesse ninguém perto para olhar. Ainda tinha mais um dia na Divisão
de Hollywood, mas não queria passá-lo enchendo caixas e trocando despedidas falsas com ninguém. Seu plano era ter uma mesa limpa no início do dia e um almoço de
três horas no Musso & Frank's para encerrá-lo. Iria se despedir de quem importava e depois sair pela porta dos fundos antes que alguém soubesse que estava indo.
Era o único modo de fazer isso.
Começou com o arquivo, pegando os cadernos de assassinato dos casos abertos que ainda o mantinham acordado algumas noites. Ainda não iria desistir deles. Seu plano
era trabalhar nos casos durante os períodos tranqüilos na DRH. Ou em casa, sozinho.
com uma caixa cheia, virou-se para a mesa e começou a esvaziar as gavetas do arquivo. Quando pegou a jarra cheia de cartuchos de balas, parou. Ainda não tinha colocado
a bala recolhida no enterro de Julia Brasher. Em vez disso, a havia colocado numa prateleira, em casa. Ao lado da foto do tubarão, que sempre estaria ali como lembrança
dos perigos de sair da jaula de segurança. O pai dela tinha deixado que ele levasse.
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Colocou com cuidado a jarra no canto da segunda caixa e se certificou de que fosse firmada pelo resto do conteúdo. Depois abriu a gaveta do meio e começou a pegar
todas as canetas, blocos e outros materiais de escritório.
Antigos recados telefônicos e cartões de visita de pessoas que ele havia encontrado em investigações estavam espalhados na gaveta. Bosch verificou cada um, antes
de decidir se guardaria ou jogaria na lata de lixo. Depois de fazer uma pilha dos que guardaria, prendeu com um elástico e jogou na caixa.
Quando a gaveta estava quase vazia, pegou um papel dobrado e abriu. Havia um recado nele.
Onde você está, valentão?
Bosch examinou-o durante longo tempo. Isso o fez pensar em tudo que tinha acontecido desde que parou o carro na Wonderland Avenue, há apenas treze dias. Fez com
que pensasse no que estava fazendo e em para onde estava indo. Fez com que pensasse em Trent, Stokes e acima de tudo em Arthur Delacroix e Julia Brasher. Fez com
que pensasse no que Golliher tinha dito enquanto examinava os ossos da vítima de assassinato de milênios atrás. E fez com que soubesse a resposta para a pergunta
no pedaço de papel.
- Em lugar nenhum - disse em voz alta. Dobrou o papel e recolocou na caixa. Olhou para as mãos, para as cicatrizes nos dedos. Passou os dedos de uma das mãos pelas
marcas na outra. Pensou nas cicatrizes interiores deixadas pelos socos em todas as paredes de tijolos que não podia ver.
Sempre soubera que ficaria perdido sem o trabalho, sem o distintivo e a missão. Naquele momento percebeu que podia estar igualmente perdido com tudo isso. Na verdade
podia estar perdido por causa disso. A coisa da qual achava mais precisar era a coisa que o envolvia na mortalha da futilidade. Tomou uma decisão.
Enfiou a mão no bolso de trás e pegou a carteira do distintivo. Tirou a carteira de identidade de trás do plástico e depois soltou o distintivo. Passou o polegar
pelas protuberâncias onde estava escrito Detetive. Pareciam as cicatrizes nos dedos.
363
Colocou o distintivo e a carteira de identidade na gaveta da mesa. Depois tirou o revólver do coldre, olhou para ele por um longo momento e colocou na gaveta também.
Fechou a gaveta e trancou com uma chave.
Levantou-se e passou pela sala do esquadrão, indo até a sala de Billets. A porta estava destrancada. Colocou a chave de sua
gaveta e a do carro da polícia em cima do mata-borrão. Quando não aparecesse na manhã seguinte, tinha certeza de que ela ficaria curiosa e verificaria a mesa dele. Então entenderia que ele não ia voltar.
Nem para a Divisão de Hollywood nem para a DRH. Estava entregando o distintivo, entrando em Código 7. Estava acabado.
Na caminhada de volta pela sala do esquadrão, olhou ao redor e sentiu algo irrevogável atravessando-o. Mas não hesitou. Na mesa, pôs uma caixa em cima da outra e
levou pelo corredor da frente. Deixou as luzes acesas. Depois de passar pela recepção, usou as costas para empurrar a porta pesada da delegacia. Gritou para o policial
que estava atrás do balcão:
- Ei, me faça um favor. Chame um táxi.
- Tudo bem. Mas com esse tempo pode demorar um pouco. Talvez o senhor queira esperar dentro...
A porta se fechou, cortando a voz do policial. Bosch foi até o meio-fio. Era uma noite fria e úmida. Não havia sinal da lua atrás da cobertura de nuvens. Segurou
as caixas de encontro ao peito e esperou na chuva.

 

 

                                                   Michael Connelly         

 

 

 

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