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Cinco Dias em Paris / Danielle Stel
Cinco Dias em Paris / Danielle Stel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Cinco Dias em Paris

 

          

 

O tempo em Paris estava invulgarmente quente quando o avião de Peter Haskell aterrou no Aeroporto Charles de Gaulle. O aparelho estacou mesmo junto à porta de saída e, poucos minutos depois, Peter, de pasta na mão, atravessava o aeroporto a passos largos. Quase sorria ao aproximar‑se da alfândega, apesar do calor e da quantidade de pessoas à sua frente na fila. Peter Haskell adorava Paris.

Vinha à Europa geralmente quatro ou cinco vezes por ano. O império farmacêutico que dirigia tinha centros de pesquisa na Alemanha, na Suíça e em França e enormes laboratórios e fabricas em Inglaterra. Era sempre interessante visitá‑lo, trocar idéias com as equipas de pesquisa e explorar novas vias de mercado, o seu verdadeiro ponto forte. Porém, desta vez tratava‑se de mais do que disso, muito mais do que uma mera viagem de prospecção ou o lançamento de um novo produto. Viera para assistir ao nascimento do «seu bebê». Vicotec. O sonho da sua vida. Vicotec ia modificar a existência de todos os doentes de cancro. Ia alterar significativamente os programas de manutenção e a natureza da quimioterapia em todo o mundo. Seria uma enorme contribuição de Peter a favor da raça humana. Durante os últimos quatro anos, excetuando a família, fora a sua razão de viver. E sem dúvida iria render milhões à Wilson­‑Donovan. Muito mais, obviamente: os seus estudos apontavam já lucros para os primeiros cinco anos bem acima do bilhão de dólares. Mas não era isso o principal para Peter. O principal era a vida, e a qualidade das obscuras existências severamente atingidas, quais velas a apagar‑se na negra noite do cancro. Vicotec ia ajudá‑las. De início, parecia um sonho utópico, mas agora estavam a pouca distância da vitória final; um arrepio per­corria Peter sempre que pensava no que estava prestes a acontecer.

Até hoje, os resultados mais recentes eram perfeitos. Os encontros que tivera na Alemanha e na Suíça ha­viam sido excelentes. Os testes nos laboratórios da sua empresa eram ainda. mais rigorosos do que os efetuados na América. Agora, não restavam dúvidas. O medica­mento era seguro. Podiam passar à fase das experiências em seres humanos, mal a FDA1 o aprovasse, o que significava administrar doses baixas a um número selecionado de voluntários, devidamente esclarecidos, e ver como reagiam.

 

1 Food and Drug Administration, órgão dos EUA que tem por missão, entre outras coisas, zelar pela segurança dos medicamentos a introduzir no mercado. (N. do E.)

 

A Wilson‑Donovan já apresentara o seu requeri­mento à FDA em Janeiro, alguns meses antes. Baseados nas informações obtidas desde então, iam pedir que o Vicotec fosse incluído nas «Prioridades», sendo autoriza­das as experiências nos seres humanos, e rapidamente aprovado, logo que a FDA verificasse o seu grau de segurança e a Wilson‑Donovan lho provasse. Usava‑se o processo de «Prioridades» para apressar os vários passos até à aprovação, no caso de medicamentos destinados a doenças mortais. Logo que obtivessem a aprovação da FDA, iriam começar com um grupo de cem pessoas que assinariam contratos de consentimento, em que estariam especificados os perigos potenciais do tratamento. Todos esses doentes se encontravam em fases tão desesperadas que essa seria a sua única esperança, e eles sabiam‑no. Pessoas que concordassem com experiências deste tipo ficariam gratas por qualquer esperança que se lhes desse.

A Wilson‑Donovan pretendia prosseguir o mais rapidamente possível com os testes clínicos, razão por que era tão importante testar a segurança do Vicotec agora, antes dos interrogatórios da FDA em Setembro, o que certamente o levaria a ser incluído nas «Prioridades». Peter tinha a certeza absoluta de que o teste em fase de conclusão levado a cabo por Paul‑Louis Suchard, diretor do laboratório de Paris, confirmaria as boas notícias que acabava de receber em Genebra.

‑ Férias ou negócios, monsieur? ‑ O funcionário aduaneiro carimbava, distraído, o passaporte de Peter e mal o olhou depois de ver a fotografia. Peter tinha olhos azuis e cabelo escuro, aparentando menos do que os seus quarenta e quatro anos. De feições corretas e alto, a maioria das pessoas admitiria ser um homem muito bem‑parecido.

‑ Negócios ‑ respondeu, quase orgulhosamente. Vicotec. Vitória. Salvação para todas as vítimas dos horríveis sofrimentos causados pela quimioterapia e pelo cancro.

O funcionário entregou o passaporte a Peter, que pegou na mala e saiu para apanhar um táxi. Brilhava um glorioso Sol de junho e, sem nada para fazer em Genebra, Peter viera para Paris um dia mais cedo. Adorava estar naquela cidade e seria fácil arranjar com que se entreter, nem que fosse um grande passeio ao longo do Sena. Ou talvez Suchard concordasse em encontrar‑se com ele mais cedo do que o planeado, apesar de ser domingo. Ainda era cedo e não tivera sequer tempo para telefonar a Suchard. Suchard era muito francês, muito sério, um pouco rigoroso de mais. Peter ia telefonar‑lhe do hotel e ver se ele estava livre e disposto a alterar a data do encontro.

No decorrer dos anos, Peter aprendera a falar um pouco de francês, embora todos os seus assuntos com Suchard fossem tratados em inglês. Peter Haskell adquirira amplos conhecimentos desde que deixara o Midwest. Era óbvio, até para os homens da alfândega do Charles de Gaulle, que Peter Haskell era um homem importante, de considerável inteligência e sofisticação. Frio, calmo e forte, irradiava autoconfiança. Aos quarenta e quatro anos, era o presidente de uma das maiores sociedades farmacêuticas do mundo. Não era um cientista, era um homem de negócios, tal como Frank Donovan, o administrador‑geral. E por coincidência, dezoito anos antes Peter Haskell casara com a filha de Frank. Não fora um golpe oportunista da sua parte, nem sequer um ato calculista. Aos olhos de Peter, fora um acaso, uma ironia do destino, contra a qual combatera durante os primeiros seis anos desde que conhecera Katie.

Peter não queria casar com Katie Donovan. Nem se­quer lhe interessava saber quem ela era quando se conheceram, tinha a jovem dezenove anos e ele vinte, na Universidade de Michigan. De início, não passara de uma bonita universitária loura que encontrara num convívio, mas, após duas saídas, estava louco por ela. Andavam juntos há cinco meses quando alguém insinuara, por piada, que ele era um espertalhão por andar com a linda Katie. E explicara‑lhe porquê. A rapariga era a única herdeira da fortuna da Wilson‑Donovan, a maior firma farmacêutica do país. Peter ficara estupefato, e furioso por esta não lho ter revelado, cheio daquele furor e ingenuidade próprios de um rapaz de vinte anos.

‑ Como pudeste fazer isso? Porque é que não me contaste? ‑ berrara‑lhe ele.

‑ Contar‑te o quê? Quem é o meu pai? Não pensei que isso te preocupasse.

Desesperara‑a o ataque dele, o qual, bastante mais do que ligeiramente assustado, não se desculpara. Kate compreendera então até que ponto Peter era orgulhoso e as dificuldades por que passavam os seus pais. O jovem contara‑lhe que apenas nesse ano haviam finalmente conseguido comprar a exploração leiteira onde o pai trabalhara toda a vida. Estava hipotecada até ao telhado e Peter permanentemente preocupado com a possibilidade de o negócio falir; nesse caso teria de desistir dos estudos e regressar ao Wisconsin, para os ajudar.

‑ Percebes perfeitamente a razão por que tenho de me «preocupar». O que hei‑de fazer agora?

Sabia melhor do que ninguém que não poderia competir com o mundo dela, que não era e nunca seria o seu; também era óbvio para ele que Katie nunca conseguiria viver numa quinta no Wisconsin. A jovem conhecia já parte do mundo e era muito mais sofisticada do que aparentava. O verdadeiro problema residia no fato de também ele não se sentir bem enquadrado no seu próprio mundo. Não importava o quanto se esforçava por ser «um deles», dos de casa; sempre houvera em si algo de diferente, de muito mais citadino. Peter detestara viver numa quinta, em criança, e já então sonhava ir para Chicago ou para Nova Iorque, a fim de se integrar no mundo dos negócios. Detestava mungir vacas, atar fardos de palha e limpar continuamente o esterco dos estábulos. Durante anos, depois da escola, ajudara o pai na quinta que este dirigira, e de que agora era o dono. E Peter sabia o que isso significava. Acabaria por ter de voltar para casa, quando terminasse os estudos, e ajudá­‑los. Tal fato aterrorizava‑o, mas não via uma saída fácil. Acreditava que devia fazer o que era suposto que fizesse, vivendo de acordo com as suas responsabilidades, num percurso sem atalhos. Sempre fora um bom rapaz, dizia a mãe, mesmo que para isso tivesse de trabalhar arduamente. Estava preparado para lutar por aquilo que queria.

Assim, quando soube quem era Katie, achou errado envolver-se com ela. Não importava que fosse sincero; daria sempre a impressão de um expediente fácil, um rápido salto para o topo. Também não importava que ela fosse linda ou que ele estivesse, segundo julgava, apaixonado; sabia que não havia nada a fazer. Mostrou­‑se tão inflexível, que acabaram o namoro cerca de duas semanas depois de saber a verdade, e nenhum dos argumentos da jovem o demovera. Katie ficou perturbadíssima e ele muito mais triste por a perder do que alguma vez lhe confessara. Decorria o ano do seu alistamento e em junho fora para casa, para o Wisconsin, dar apoio ao pai. No final do Verão, decidira ficar mais um ano para o ajudar a desenvolver o negócio. O Inverno anterior fora duro, e Peter achava que poderia melhorar as coisas com algumas idéias e técnicas novas que aprendera na Faculdade.

Talvez o tivesse conseguido, mas ficara apurado e fora enviado para o Vietnam. Passou um ano perto de Da Nang e, quando o selecionaram para uma segunda comissão, puseram‑no a trabalhar nos Serviços Secretos, em Saigon. Fora um tempo confuso para Peter. Tinha vinte e dois anos ao deixar o Vietnam e não encontrara nenhuma das respostas que procurava. Não sabia o que fazer com o resto da vida e não queria voltar a trabalhar na quinta do pai, mas achava que deveria fazê‑lo. A mãe morrera durante a sua permanência no Vietnam; sabia quanto isso fora penoso para o pai.

Faltava‑lhe um ano da faculdade, mas não queria voltar para a Universidade de Michigan; de certa forma sentia que ultrapassara a idade de o fazer. E também se sentia confuso acerca do Vietnam. Acabara por gostar do país que quisera odiar, que tanto o atormentara, e a verdade é que tivera pena de o deixar. Vivera por lá meia dúzia de casos amorosos sem significado, a maior parte deles com pessoal militar americano, e um com uma linda vietnamita; no entanto, tudo era demasiado complicado, as relações inevitavelmente afetadas pelo fato de ninguém ter grandes esperanças de estar vivo no dia seguinte. Não voltara a contatar Katie Donovan, apesar de ter recebido um cartão de Natal seu, que lhe fora reenviado do Wisconsin. Pensara bastante nela nos primeiros tempos em Da Nang, mas parecera‑lhe sempre mais simples não lhe escrever. O que poderia dizer‑lhe? «Lamento que sejas tão rica e eu tão pobre... Boa sorte para ti no Connecticut, eu vou passar o resto da vida a limpar estrume numa vacaria... é assim ... »

Mal regressara, porém, tornara-se óbvio para todos no Wisconsin que uma vez mais ele não se adaptava, chegando o pai a pressioná‑lo para que procurasse emprego em Chicago. Encontrara um com facilidade nu­ma firma comercial, fora estudar à noite, obtivera o seu diploma e estava há muito pouco no seu primeiro emprego quando, numa festa dada por um velho amigo do Michigan, deparara com Katie. A rapariga mudara‑se e nessa altura vivia em Chicago, prestes a diplomar‑se em Northwestern. Quando a reencontrara, ficara sem fala. Estava mais bonita do que nunca. Há já quase três anos que a vira pela última vez. E sentira‑se aturdido ao verificar que, apesar de se ter mantido afastado dela, o fato de vê‑la o perturbava ainda interiormente.

‑ O que estás a fazer aqui? ‑ perguntara, nervoso, como se fosse normal a rapariga existir apenas na memória dos seus tempos escolares. Ela fora uma obsessão durante meses depois de abandonar a faculdade, e especialmente quando do seu primeiro alistamento. Mas há muito que a relegara para o passado, esperançado em que aí se manteria. Vê‑la catapultava‑a subitamente para o Presente.

‑ Estou a acabar o curso ‑ respondera ela, sustendo a respiração enquanto o olhava. Parecia mais alto e mais magro, os seus olhos mais azuis e o cabelo ainda mais escuro do que se lembrava. O jovem mostrava‑se mais forte e mais entusiasta do que nas últimas recordações que dele guardava. Nunca o esquecera. Fora o único homem que a deixara por ela ser quem era, pelo que pensava nunca poder dar‑lhe. ‑ Ouvi dizer que estiveste no Vietnam ‑ comentara, docemente, e ele confirmara com um aceno de cabeça. ‑ Deve ter sido horrível...

Tinha tanto medo de o assustar de novo, de dar qualquer passo terrivelmente errado! Sabia até que ponto era orgulhoso e, só de olhá‑lo, percebera que nunca seria ele a aproximar‑se. Também Peter a observava. Interrogava‑se sobre como ela seria agora e o que pretenderia dele. No entanto, parecera‑lhe tão inocente, apesar do meio aparentemente sinistro em que se movia e da ameaça que se convencera que ela representava! Por­que aos seus olhos, Katie fora uma ameaça à sua integridade e um elo insustentável entre um passado que ele já não podia viver e um futuro que ambicionava, mas que não tinha a mínima idéia de como alcançar. Tendo aprendido tanto do mundo desde que se haviam encontrado pela última vez, ao olhar para ela nada lhe ocorre­ra daquilo que em tempos tanto temera. Não lhe pare­cia agora tão assustadora, via‑a muito jovem, muito pura, e irresistivelmente atraente.

Nessa noite, conversaram horas a fio; por fim, acompanhara‑a até casa. E então, embora soubesse que não devia fazê‑lo, telefonara‑lhe. Ao princípio tudo parecera tão simples, até dissera para consigo que pode­riam ser apenas amigos, no que nenhum deles acreditava. Tudo o que sentia era o desejo forte de estar junto dela. Era alegre e divertida, entendia as suas loucuras, o fato de não se adaptar a lugar nenhum e não saber o que fazer da vida. Talvez longe, longe do caminho traçado, ele quisesse mudar o mundo, ou pelo menos alterá‑lo um pouco. A rapariga era a única pessoa que percebia a sua idéia. Deixara morrer tantos sonhos, tão nobres intenções! E agora, vinte anos mais tarde, com o Vicotec, todos esses sonhos renasciam.

Peter Haskell chamou um táxi; o motorista meteu na bagageira a mala e aquiesceu com um gesto de cabeça quando o cliente lhe disse para onde ia. Tudo em Peter Haskell sugeria um homem de pulso, um homem de grande estatura. E todavia, nos seus olhos podia ler­‑se gentileza, força, integridade, um coração generoso e sentido de humor. Em Peter Haskell havia mais do que os fatos de bom corte, as camisas brancas engomadas, as gravatas Hermés que usava e a pasta cara e requintada.

‑ Está quente, não está? ‑ comentou Peter a caminho da cidade; uma vez mais o motorista acenou com a cabeça, concordando. Percebia pelo seu sotaque ao falar francês que se tratava de um americano, mas falara corretamente, e o motorista respondeu‑lhe em francês, pausadamente para que Peter o compreendesse.

‑ Há uma semana que o tempo está bom. O senhor vem da América? ‑ perguntou, com interesse. Era assim que as pessoas respondiam a Peter, ele atraía­‑as, mesmo sem motivo aparente. O fato de se lhe ter dirigido em francês impressionara bem o motorista.

‑ Venho de Genebra ‑ explicou Peter, e um novo silêncio se instalou. Peter sorriu intimamente, lembrando‑se de Katie. Sempre desejara que ela viajasse consigo, mas a mulher nunca o fazia. Ao princípio, as crianças eram pequenas, mais tarde o seu próprio mundo e as suas infinitas obrigações retinham‑na. Não o acompanhara em mais do que uma ou duas viagens de negócios, ao longo dos anos. Uma vez a Londres e outra à Suíça, nunca a Paris.

Paris era especial para ele, era o culminar de tudo aquilo com que sempre sonhara sem sequer saber que o desejava. Trabalhara tanto para obter o que tinha, durante anos, mesmo que uma parte parecesse ter‑lhe caí­do do céu! Sabia melhor do que ninguém que não caí­ra. Não existe maná na vida. Trabalha‑se para se ganhar o que se tem, ou então não se tem nada.

Andara com Katie dois anos, depois do reencontro. Acabado o curso, a rapariga ficara em Chicago e arranjara trabalho numa galeria de arte, só para estar perto de Peter. Era louca por ele, mas Peter repetia intransigentemente que nunca se casariam. E continuara a insistir em que acabariam por ter de se separar, acabando ela por regressar a Nova Iorque e conhecer outros homens. Nunca, porém, conseguira afastar‑se nem, verdade seja dita, induzi-la a ser ela a fazê‑lo. Por essa altura estavam já demasiadamente presos um ao outro e Katie sabia que ele a amava de verdade. Por fim, o pai dela interviera. Era um homem inteligente. Não dissera uma palavra a Peter sobre a relação de ambos, apenas falara do seu negócio. Instintivamente, sabia ser esse o único meio de arrancar Peter à sua posição defensiva. Frank Donovan queria Peter e a filha de volta a Nova Iorque e fizera o que estava ao seu alcance para ajudar Katie a convencê‑lo.

Tal com Peter, Frank Donovan era um homem de negócios. Abordara Peter sobre a sua carreira, os seus planos, o seu futuro e, gostando do que ouvira, oferecera‑lhe emprego na Wilson‑Donovan. Não mencionara Katie; ou melhor, insistira em que o emprego não tinha nada a ver com ela. Assegurara a Peter que trabalhar pa­ra a Wilson‑Donovan faria maravilhas pela sua carreira e garantira‑lhe que ninguém pensaria nunca que esse em­prego estava de qualquer modo relacionado com Katie. A ligação de ambos, segundo Frank, era um assunto totalmente à parte. Mas era um emprego em que valia a pena pensar, e Peter sabia‑o. A despeito de todos os seus temores nessa época, um emprego numa importantíssima firma de Nova Iorque era exatamente o que ele desejava ‑ e o mesmo desejava Katie.

Torturara‑se com o problema, debatera‑o mental­mente sem cessar, e até o seu pai achara que era uma oportunidade única, quando Peter lhe telefonara para abordar o assunto. Peter fora a casa, ao Wisconsin, pa­ra conversar com ele durante um longo fim‑de‑semana. O pai pretendia a lua para o filho e encorajara‑o a aceitar a oferta de Donovan. Via em Peter algo que nem este compreendera ainda: qualidades de liderança que poucos homens possuem uma força controlada e uma coragem rara. O pai sabia que, fizesse Peter o que fizesse, o faria bem. E sentia que o emprego na Wilson‑Donavan era apenas o começo. Costumava brincar com a mãe de Peter, não passava este de um garoto, dizendo‑lhe que um dia o pequeno seria presidente, ou pelo menos governador do Wisconsin. E, às vezes, ela acreditava. Era fácil acreditar em grandes feitos quando se tratava de Peter.

A irmã, Muriel, dizia o mesmo. Para ela, o seu ir­mão Peter fora sempre um herói, muito antes de Chicago ou do Vietnam, até antes de ele ir para a faculdade. Havia no rapaz algo de especial. Toda a gente o sabia. E repetira‑lhe as palavras do pai: «Vai para Nova Iorque, ganhar o teu lugar ao sol.» Chegara mesmo a perguntar se ele tencionava casar com Katie, mas ele afirmara que não, o que a entristecera. Pelas fotografias com que Pe­ter andava, Muriel achava Katie encantadora e excitante, além de bonita.

Há muito que o pai o convidara a trazê‑la consigo, mas Peter sempre insistira em que não queria dar‑lhe falsas esperanças quanto ao futuro de ambos. Provavelmente, a rapariga sentir‑se-ia em casa e aprenderia com Muriel a mungir vacas, e depois? Era tudo o que ele tinha para oferecer‑lhe e por nada deste mundo arrastaria Katie para a dura vida em que ele próprio crescera. Na sua opinião, fora essa vida que lhe matara a mãe. A mãe morrera de cancro, sem cuidados médicos adequados, sem dinheiro para os pagar. O pai nem um seguro tinha. Sempre achara que a mãe morrera de pobreza, de fadiga e de demasiado sofrimento durante toda a vida. E mesmo com o dinheiro de Katie a apoiá‑la, amava‑a de mais para a condenar a uma tal existência, até mesmo a conhecê‑la de perto. Aos vinte e dois anos, a sua irmã já parecia exausta. Casara logo que acabara o liceu, estava ele no Vietnam, e tivera três filhos em três anos do rapaz que começara a namorar no liceu. Aos vinte e um anos, era uma mulher gasta, triste. Ansiava por muito mais para ela, mas bastara‑lhe observá‑la para perceber que ela nunca o alcançaria. Nunca saíra dali. Não fora sequer para a faculdade. E agora caíra numa armadilha.

Peter sabia, e a irmã também, que ela e o marido trabalhariam toda a vida na quinta do pai, a menos que este a perdesse, ou que morressem. Não havia alternativa. Exceto para Peter. E, em Muriel, nem ressentimento existia. Sentia‑se feliz por ele. Para o irmão, o mar abrira‑se e tudo o que este tinha a fazer era seguir a rota que Frank Donovan lhe traçara.

‑ Faz isso, Peter ‑ segredara‑lhe Muriel quando ele fora a casa falar com eles. ‑ Vai para Nova Iorque. O pai quer que vás ‑ acrescentara, generosa. ‑ Todos queremos.

Era como se todos o aconselhassem a salvar‑se, a evadir‑se, a libertar‑se da vida que o iria submergir, se ele o permitisse. Instavam‑no a ir para Nova Iorque, a tentar o caminho do sucesso.

Apertava‑lhe a garganta um nó do tamanho de uma rocha quando partira da fazenda nesse fim‑de‑semana. O pai e Muriel ficaram a vê‑lo afastar‑se, sempre a acenar até o carro desaparecer por completo. Era como se os três soubessem quanto era importante esse momento da sua vida. Mais do que a faculdade. Mais do que o Vietnam. No fundo do coração, e da alma, cortava as suas amarras à quinta onde nascera.

De regresso a Chicago, passara a noite sozinho. Não telefonara a Katie. Mas telefonara ao pai dela na manhã seguinte. E, com as mãos a tremer ao segurar o telefone, aceitara a sua oferta.

Começara a trabalhar na Wilson‑Donovan duas se­manas mais tarde, exatamente, e uma vez instalado em Nova Iorque não havia manhã em que não acordasse com a sensação de ter ganho o derby do Kentucky.

Katie trabalhara numa galeria de arte em Chicago, como recepcionista, e deixara o emprego no dia em que ele partira, regressando para junto do pai, em Nova Iorque. Frank Donovan estava encantado. O seu plano resultara. Tinha em casa a sua menina. E ainda ganhara um novo e brilhante colaborador. O negócio fora bom sob todos os aspectos.

Durante vários meses, Peter concentrara‑se mais nos negócios do que no seu caso amoroso. Ao princípio, isso aborrecera Katie, mas, quando se queixara ao pai, es­te aconselhara‑a a ser paciente. Por vezes, Peter descontraía‑se, ficava menos ansioso em relação aos projetos inacabados que tinha no escritório. Todavia, a sua regra era fazer tudo com perfeição, para justificar a confiança que Frank sempre nele depositara a mostrar‑lhe quanto lhe estava grato por isso.

Nem sequer voltara ao Wisconsin, nunca tinha oportunidade. Mas com o decorrer do tempo começara, para grande alívio de Katie, a arranjar mais espaço na sua vida para um pouco de diversão. Foram a festas, a jogos, ela apresentara‑o a todos os seus amigos. E Peter surpreendera‑se ao verificar quanto estes lhe agradavam e com que facilidade se adaptava ao mundo deles.

Pouco a pouco, ao longo dos meses seguintes, todas as coisas que anteriormente o aterrorizavam, relaciona­das com Katie, iam parecendo a Peter menos preocupantes. De fato, todos pareciam gostar dele e aceitá‑lo. E, embalados por uma onda de boas sensações, ele e Katie ficaram noivos nesse mesmo ano, o que não surpreendera ninguém, exceto talvez o próprio Peter. Mas conhecia‑a há tempo suficiente e acabara por sentir‑se tão bem no seu meio que era como se dele fizesse parte. Frank Donovan comentara que era inevitável, e Katie sorrira. Nem por um instante duvidara de que Pe­ter era o homem certo para si. Sempre o soubera e sempre tivera a certeza absoluta de desejar ser sua mulher.

A irmã de Peter, Muriel, ficara radiante quando ele lhe telefonara a dar a novidade e, afinal, fora o pai o único a pôr objeções à união, para grande desaponta­mento de Peter. Apesar de ter achado o emprego na Wilson‑Donovan uma ótima oportunidade, o pai era contra o casamento. E estava absolutamente convencido da possibilidade de Peter vir a lamentá‑lo a vida inteira.

‑ Serás sempre um marido alugado se casares com ela, meu filho. Está errado, é injusto, mas é assim. Sempre que olharem para ti, ver‑te‑ão como eras antes, não como és no momento.

Peter não acreditava nisso. Tornara‑se homem no mundo dela. Agora, era um deles. E ao seu próprio mundo, começava a senti‑lo como parte de uma outra vida; não se reconhecia em nada, era um estranho. Co­mo se tivesse crescido no Wisconsin por acaso, ou co­mo se tivesse sido outra pessoa qualquer e não ele quem na realidade aí vivera. Até o Vietnam se lhe afigurava mais real do que os seus primeiros anos na quinta do Wisconsin. Chegava a ser‑lhe difícil acreditar que passara lá mais de vinte anos. Em pouco mais de um ano, Peter transformara‑se num homem de negócios, um homem mundano, um nova-iorquino. A família continuava a ser‑lhe querida, e sê‑lo-ia sempre. Porém, imaginar a sua vida como lavrador ainda lhe causava pesadelos. Tentara por todos os meios convencer o pai de que estava a dar o passo certo, mas em vão. O velho Haskell mantivera‑se intransigente nas suas objeções, embora por fim acedesse em ir ao casamento, provavelmente só por estar farto de ouvir Peter argumentar e tentar rendê‑lo às suas razões.

Fora para Peter um profundo desgosto o pai não ter afinal comparecido ao casamento. Sofrera um acidente com o trator na semana anterior, ficara com as costas bastante maltratadas e um braço partido, e Muriel estava quase a ter o quarto filho. Não pudera deslocar‑se e o marido não quisera deixá‑la para ir a Nova Iorque. De início, Peter sentira‑se desolado mas depois, como com tudo o que ocorria na sua nova vida, fora tragado pelo turbilhão de atividade que o cercava.

Viajaram para a Europa em lua‑de‑mel; meses passa­ram sem nunca arranjarem tempo para ir ao Wisconsin. Katie tinha sempre planos para ele e, se não era Katie, era Frank. E a despeito de todas as suas promessas e boas intenções, por isto ou por aquilo, Peter e Katie nunca se deslocaram ao Wisconsin, nunca visitaram a família dele na quinta. Contudo, Peter prometera ao pai que iriam no Natal e desta vez nada o impediria. Nem se­quer contara a Katie os seus planos. Iria surpreendê‑la. Começava a suspeitar de ser essa a única maneira de lá ir.

Quando o pai morrera de ataque cardíaco precisa­mente na véspera do Dia de Ação de Graças, a emoção arrasara Peter. Sobrevieram a culpa, a dor, o remorso, por todas aquelas coisas que nunca fizera e sempre tencionara fazer.

Peter levara‑a ao funeral. Fora uma cerimônia lúgubre debaixo de chuva, com ela e Peter de pé a olhar a madeira do caixão. Peter estava manifestamente destroçado; Muriel, bastante longe dele, soluçava junto do marido e dos filhos. Um contraste singular entre a expansão provinciana e a contenção citadina. Peter começara a aperceber‑se de tudo o que o separava deles, do caminho que percorrera desde que partira, do pouco que agora tinham em comum. Katie não se sentira à vontade e repetira‑o a Peter com insistência. Muriel mostrara‑se estranhamente fria com ela, coisa que não era aliás do seu feitio. Quando Peter lhe fizera um comentário a esse respeito, a irmã resmungara, acanhada, que Katie não pertencia àquele meio. Embora fosse a mulher de Peter, nem sequer conhecera o pai deles. Viera com um casaco preto e um chapéu de pele, caríssimos, e parecia irritá‑la o fato de estar ali. Muriel no­tara‑o, para grande desgosto ide Peter. Os dois irmãos discutiram acaloradamente por causa de certas palavras mais azedas de Muriel, acabando os dois lavados em lágrimas. A leitura do testamento ainda mais acentuou o mal‑estar entre ambos. O pai deixara a quinta a Muriel e a Jack, e Katie mostrara‑se ultrajada no momento em que o ouvira da boca do notário.

‑ Como pôde ele fazer‑te isto? ‑ censurara ela, na privacidade do velho quarto de Peter. O chão estava coberto com linóleo e a velha pintura acastanhada das Paredes tinha manchas e falhas. Que diferença da casa que Frank lhes comprara em Greenwich! ‑ Deserdar­‑te! ‑ Katie exasperava‑se e Peter tentara explicar‑lhe. Entendia muito melhor o fato do que a mulher.

‑ É tudo o que eles têm, Kate. Este miserável lugar perdido. Toda a vida deles se concentra aqui. Eu tenho uma carreira, um bom emprego, uma boa vida contigo.

Não preciso disto. Nunca o quis, e o meu pai sabia­‑o. ‑ Peter não se considerava vítima de uma ofensa ou de uma injustiça. Queria que Muriel ficasse com a quinta, que para eles era tudo.

‑ Podias tê‑la vendido e dividido o dinheiro com eles e eles poderiam mudar‑se para um lugar melhor ‑ retorquira ela, mas tal resposta apenas demonstrara a Pe­ter a sua incompreensão.

‑ Eles não querem, Kate, e provavelmente foi o que o pai receou. Não queria que vendêssemos a quinta. Trabalhou toda a vida para poder comprá-la.

Kate não lhe dissera o quanto a achava insignificante, mas o marido lera‑lhe o pensamento na forma como o olhara e no silêncio que se instalara entre ambos. Quanto a Kate, a quinta era ainda pior do que Peter lha descrevera quando andavam na faculdade. O fato de não terem de voltar lá aliviava‑a. Ela, pelo menos, não voltaria. E, se tivesse uma palavra a dizer sobre o assunto, tendo‑o o pai deserdado, Peter também não o faria. Para Katie, o Wisconsin fora relegado para o passado re­moto. Tudo o que queria era ir-se embora com Peter.

Muriel continuava aborrecida quando partiram, e Peter tivera a desagradável sensação de estar a despedir­‑se dela, não apenas do pai. Era como se acedesse ao que Katie pretendia, embora esta nunca lho tivesse comunicado diretamente. Dir‑se‑ia que a mulher pretendia apropriar‑se de todos os seus afetos, todas as suas raízes e laços, a sua fidelidade e o seu amor. Quase co­mo se Kate tivesse ciúmes de Muriel, do pedaço da sua vida e da sua história que esta representava. O fato de ele não possuir um palmo da terra da quinta era uma boa desculpa para pôr um ponto final em tudo aquilo.

‑ Tiveste razão em sair daqui há anos – dissera Kate calmamente enquanto se afastavam, parecendo não se aperceber de que Peter chorava. Tudo o que queria era ver‑se em Nova Iorque tão depressa quanto possível. ‑ Peter, este não é o teu meio ‑ acrescentara com firmeza. Ele desejara replicar, dizer‑lhe que estava errada, defendê‑los, por lealdade. Sabia, no entanto, que Kate estava certa e isso fazia‑o sentir‑se culpado. Não era o meio dele. E nunca o fora.

Com que alívio entrara para o avião em Chicago! Escapara uma vez mais. De certa forma, aterrorizara‑o a idéia de que o pai lhe deixasse a quinta e esperasse que ele a gerisse. Mas o pai fora esperto de mais para o fazer, conhecia muito bem Peter. Agora, Peter nada tinha a ver com aquela terra. Nada lhe pertencia, nada poderia devorá‑lo, como chegara a temer que acontecesse. Era finalmente livre. A quinta passara a ser um problema apenas de Jack e Muriel.

E enquanto o avião descolava rumo ao Aeroporto Kennedy, convenceu‑se finalmente que deixava para trás a quinta e tudo o que ela representava. Só esperava não ter perdido ao mesmo tempo a irmã.

Mantivera‑se calado durante o vôo de regresso e durante as semanas que se seguiram, chorando o pai em silêncio. Pouco abordara o assunto com Kate, sobretudo por sentir que tal não lhe interessaria. Telefonara a Muriel uma ou duas vezes, mas encontrara-a sempre ocupada com as crianças, ou com pressa para ir ajudar Jack na vacaria. Praticamente, nunca tinha tempo para conversar e, quando o fazia, os seus comentários acerca de Katie desagradavam a Peter. A crítica aberta que lhe fazia criara um abismo definitivo entre eles e, pouco tempo depois, Peter deixara de telefonar. Embrenhara­‑se no seu trabalho, encontrara consolação na azáfama do escritório. Aí, sentia‑se verdadeiramente em casa. Na realidade, toda a sua vida em Nova Iorque lhe parecia uma existência perfeita. Adaptara‑se totalmente a esta, na Wilson‑Donovan, entre os amigos, na vida social que Katie criara para eles. Era quase como se tivesse nascido ali, nunca tendo vivido de outro modo anteriormente.

Para os amigos de Nova Iorque, Peter era um dos deles. Afável e sofisticado, todos se riam quando contava que crescera numa quinta. Na maior parte das vezes, ninguém acreditava nele. Dir‑se-ia oriundo de Boston, ou de Nova Iorque. E acedia de bom grado aos ajusta­mentos que os Donovan esperavam dele. Frank insistira em que vivessem em Greenwich, no Connecticut, e ele vivia. Queria ter perto de si «a sua menina», além de que esta gostava do sítio e estava habituada a ele. A Wilson‑Donovan tinha a sede em Nova Iorque e os Donovan mantinham lá um apartamento, mas sempre lhes agradara viver em Greenwich, no Connecticut, a uma hora de distância de Nova Iorque. Era uma simples viagem de comboio, que Peter fazia diariamente com Frank. Peter gostava de viver em Greenwich, adorava a sua casa e adorava estar casado com Katie. O relaciona­mento de ambos era quase sempre esplêndido, o único desacordo de monta ocorrera a propósito de a mulher pensar que ele herdaria a fazenda e a venderia. Mas há muito que haviam deixado de discutir tal assunto, por respeito pelas respectivas opiniões.

A única coisa que o contrariava era ter sido Frank a comprar a primeira casa do casal. Peter tentara opor‑se, mas não quisera aborrecer Katie. E ela pedira‑lhe que deixasse o pai fazê‑lo. Peter protestara, mas por fim Katie vencera. A mulher queria uma casa grande para poderem começar rapidamente a constituir família e é claro que Peter não podia proporcionar‑lhe o gênero de casas a que estava habituada e em que o pai achava que ela devia viver. Eram problemas desse tipo que Peter tanto receara. Mas os Donovan agiram com toda a delicadeza. O pai chamou à encantadora casa estilo Tudor um «presente de casamento». Para Peter, era uma mansão. Suficientemente grande para acomodar três ou quatro crianças, muito bem decorada, com um lindo salão, uma sala de jantar, uma sala de estar, cinco quartos de cama, um escritório enorme para ele, uma sala para reuniões de família e uma fabulosa cozinha. Que incomensurável distância a separava da velha e decadente casa da quinta que o pai deixara à irmã no Wisconsin! E Peter tivera que admitir, envergonhado, que adorava a sua casa.

O pai da mulher também quisera contratar quem fizesse as limpezas e cozinhasse para eles, mas aí Peter impusera‑se e declarara que cozinharia ele próprio se fosse preciso, mas não permitiria que Frank lhes fornecesse o pessoal. Por acaso, Katie aprendera a cozinhar, pelo me­nos o trivial. No entanto, perto do Natal, acordara um dia tão violentamente nauseada que não conseguira fazer nada e fora Peter quem tivera de tratar da maior parte da comida e da limpeza da casa. Não se importara nada, entusiasmava‑o ao máximo a idéia da chegada do bebê. Era quase uma troca mística, uma forma especial de consolação pela perda do pai, que continuava a doer­‑lhe mais do que alguma vez confessara.

E assim fora o início de dezoito anos de vida em comum, anos frutuosos para ambos. Tinham tido três filhos nos primeiros quatro anos e, a partir de então, a vi­da de Katie fora preenchida com comissões de caridade, associações de pais e corridas de carros ‑ uma vida que ela adorava. Os rapazes foram inscritos em milhentas coisas, futebol, basebol, natação e, nos últimos tempos, Katie decidira participar no conselho escolar de Greenwich. Estava totalmente inserida na sua comunidade, e muito interessada pelo mundo da ecologia e por uma quantidade de acontecimentos que Peter sabia que também deveriam interessá‑lo, mas não interessavam. Gostava de saber que Katie se envolvia pelos dois em causas globais. Ele apenas tentava manter a cabeça fria no trabalho.

Também sobre isso Katie sabia bastante. A mãe morrera‑lhe tinha ela três anos e a pequena passara a ser a companhia constante do pai. À medida que crescia, ia ficando a par de tudo sobre os negócios, não se modificando mesmo depois de casada com Peter. Algumas vezes, sabia coisas acerca da firma ainda antes de chegarem ao conhecimento de Peter. E, se este decidia compartilhar com ela quaisquer novidades, ficava sempre estupefato ao verificar que, para a mulher, não eram novidades. Daí advieram alguns desentendimentos, no decurso dos anos. Peter, porém, dispusera‑se a aceitar o lugar de Frank na vida deles. A ligação de Katie ao pai era muito mais forte do que ele esperara, e não havia nisso mal algum. Frank era um homem correto, soubera sempre avaliar bem o limite das suas opiniões. Pelo menos Peter assim pensava, até Frank ter tentado impor‑lhe o jardim‑de‑infância para onde deveriam mandar o filho. Dessa vez, fizera finca‑pé e mantivera‑o até chegar a altura do liceu, ou pelo menos tentara. Porém, em certas ocasiões, o pai de Katie mostrava‑se absolutamente irredutível, e Peter mais aborrecido ficava quando Katie tomava o partido dele, embora a mulher se esforçasse, habitualmente, por agir com a maior diplomacia quando apoiava o pai.

Apesar dessa diplomacia, porém, os laços que a uniam ao pai mantiveram‑se firmes ao longo dos anos; concordava com ele mais vezes do que Peter teria desejado. Era a única queixa de Peter relativamente a um casamento que, sem isso, seria perfeito. E havia tantas feridas na sua vida, que não se achava no direito de se lastimar por causa dos ocasionais braços-de‑ferro com Frank. Para Peter, quando avaliava a sua vida, as bênçãos ultrapassavam de longe as dores ou o peso dos fardos.

O único verdadeiro desgosto da sua vida fora a morte da irmã, aos trinta e dois anos, de cancro tal co­mo a mãe, embora muito mais nova. E tal como a mãe, a irmã não tivera posses para se tratar convenientemente. Fora tão grande o orgulho dela e do marido, que nem sequer lhe telefonaram a contar o que se passava. Estava às portas da morte quando Jack por fim telefona­ra; Peter sentira o coração despedaçado ao voar para o Wisconsin e ao ver a irmã, que viria a morrer poucos dias depois. E em menos de um ano, Jack vendera a quinta, voltara a casar e mudara‑se para Montana. Durante anos, Peter ignorara para onde fora e o que acontecera aos filhos da irmã. Quando finalmente, longo tempo depois da morte de Muriel, soube de Jack, Kate comentara que muita água correra por baixo das pontes e que aquilo que ele devia fazer era deixar andar e esquecê‑los. Peter mandara a Jack o dinheiro que este pedira ao telefonar‑lhe, mas nunca fora a Montana visitar os filhos de Muriel. E sabia que quando, e se, o fizesse, estes já nem o reconheceriam. Tinham uma nova mãe, uma nova, família, e Peter não ignorava que Jack só lhe telefonara porque precisava de dinheiro. A verdade é que não sentia nada pelo irmão da falecida mulher, nem Peter por ele, embora este tivesse gostado de rever os sobrinhos e sobrinhas. Porém, as suas ocupações não lhe permitiam deslocar‑se a Montana e, de certa forma, os jovens faziam parte de uma outra vida que tivera. Era mais fácil fazer como Kate dizia, deixar correr, embora se culpasse sempre que o assunto lhe vinha à lembrança.

Peter tinha a sua própria vida para conduzir, a sua própria família em que pensar, os seus próprios filhos para proteger, por quem lutar. E travara na verdade uma dura luta, quatro anos antes, quando o filho mais velho, Milce, entrara para o liceu. Aparentemente, todos os Donovan de que havia memória tinham ido para Andover, e Frank achava que Mike também deveria ir, com o que Katie concordava. Mas não Peter. Peter não que­ria o filho num liceu longe, queria‑o em casa até entrar na faculdade. Dessa fez, Frank baixara os braços. Seria de Mike a decisão final. A mãe e o avô tinham‑no convencido de que, se não fosse para Andover, nunca seria admitido numa faculdade decente, ficaria entregue a si próprio nas questões escolares e perderia toda e qual­quer possibilidade de mais tarde arranjar um bom em­prego e, entretanto, travar boas relações. Para Peter, tudo argumentos ridículos; recordara que ele próprio freqüentara a Universidade de Michigan, estudara à noite em Chicago para completar o último ano do curso, nunca estivera numa escola comercial e nunca ouvira falar de Andover durante a sua juventude no Wisconsin.

‑ E saí‑me muito bem ‑ acrescentara com um sorriso. Dirigia uma das mais importantes firmas do país.

O que não estava era preparado para a resposta de Mike:

‑ Pois é, mas casaste com a firma. É muito diferente.

Foi o pior golpe que o rapaz pudera desferir‑lhe; algo no olhar de Peter lhe disse decerto quanto o magoa­ra, pois o jovem apressou‑se a explicar que não quisera dizer o que parecia, que duas décadas atrás as coisas eram «bem diferentes». Ambos, porém, sabiam que não eram. Por fim, Milce foi para Andover e, tal como o avô, iria para Princeton no Outono. Também Paul estava agora em Andover e só Patrick, o mais novo, falava em não deixar a casa durante o tempo de liceu, ou tal­vez ir para Exeter, só para fazer algo de diferente do que os irmãos haviam feito. Tinha ainda um ano para pensar no assunto, mas admitia a idéia de ir para um internato na Califórnia. Um estado de coisas que Peter gostaria de alterar, sabendo, no entanto, que não o conseguiria. Afastar‑se de casa durante os anos de liceu era uma indiscutível tradição dos Donovan. Até Katie, apesar de tão agarrada ao pai, fora para o colégio de Miss Porter. Peter teria preferido ter os filhos em casa, mas faria a pequena concessão ‑ dissera ‑ de se privar da companhia deles durante uns meses por ano para que tivessem a melhor das educações. Tudo se passara sem discussões, e Frank insistira sempre no fato de os rapazes irem criar amizades para toda a vida. Era difícil contradizê‑lo, e Peter não o fizera. Que grande solidão sentia, todavia, quando ano após ano, os rapazes partiam para o liceu! Katie e os filhos eram a sua única família. Até de Muriel e dos pais ainda sentia saudades, embora nunca o confessasse a Katie.

A vida de Peter melhorara de modo impressionante no decurso dos anos. Tornara‑se um homem importante, A sua carreira progredira a passos largos. E conseqüentemente, haviam‑se mudado para uma casa maior, em Greenwich, quando tivera posses para a adquirir. Dessa vez, nem pensar em aceitar que Frank a ofereces­se. A casa que Peter escolhera era uma bela mansão num terreno de dois hectares e meio, em Greenwich, e, embora por vezes a cidade o atraísse, Peter sabia quanto era importante para Katie continuar a morar no mesmo local. Toda a vida vivera em Greenwich. Era aí que tinha os seus amigos, as escolas primárias corretas para os filhos, as comissões de que se encarregava, e o pai. Adorava viver perto dele. Continuava a vigiar‑lhe a manutenção da casa e, nos fins‑de‑semana, era freqüente ela e Peter visitarem‑no, para discutir assuntos de família, ou negócios, ou simplesmente para uma amigável partida de tênis. Katie ia vê‑lo muitas vezes.

Passavam o Verão em Martha's Vineyard, também para estar junto dele. A herdade que Frank lá possuía, comprada há muitos anos, era fabulosa; os Haskell tinham uma mais modesta, mas Peter fora obrigado a concordar com Katie: tratava‑se de um ótimo sítio pá­ra as crianças e, verdade seja dita, Peter adorava‑o. Vineyard era um lugar especial para ele e, logo que pudera comprar uma casa que fosse mesmo deles, forçara Katie a desistir da vivenda que o pai lhes emprestara e comprara‑lhe uma outra, encantadora, a poucos metros da estrada. Para os rapazes foi uma alegria quando Peter mandou construir para eles uma casinha própria, que lhes permitia convidar os amigos, o que faziam constantemente. Há anos que Peter e Katie viviam rodeados por um bando de crianças, sobretudo em Vineyard. Parecia‑lhes haver sempre em casa meia dúzia de miúdos além dos seus. Levavam uma vida agradável e, apesar das concessões familiares que Peter tivera por vezes de fazer, tais como onde e como viverem, ou os garotos irem pa­ra internatos, o fato é que nunca se vira constrangido a abdicar dos seus princípios ou integridade; no que dizia respeito aos negócios, Frank dera‑lhe carta branca. Peter chegara com idéias brilhantes que rapidamente haviam afetado a firma pela positiva, trazendo‑lhe um tipo de desenvolvimento bem acima dos sonhos de Frank. o valor das sugestões de Peter era inestimável, as suas decisões arrojadas mas seguras. Frank avaliara muito bem o que fazia ao trazê‑lo para a firma, e ainda melhor quando lhe confiara a presidência da Wilson‑Donovan, aos trinta e sete anos. Desde logo, gerira a sociedade com mão de mestre. Sete anos tinham decorrido entre­tanto, quatro dos quais dedicados aos planos do Vicotec, cujo custo fora incomensurável, mas de resultado mais do que absolutamente compensador. A partir do primeiro momento do «bebê de Peter», fora sua a decisão de prosseguir com o plano até uma conclusão científica, tendo convencido Frank a levá‑lo por diante. O investi­mento era enorme, mas a longo prazo, ambos concordaram, largamente compensatório. E para Peter havia um bônus extra. Era a realização do sonho da sua vida, ajudar a humanidade, continuando, em simultâneo, a progredir no mundo ganancioso, egocêntrico, dos negócios. Se outros motivos não houvesse, em memória da mãe e de Muriel, Peter ansiava por que o Vicotec chegasse ao mercado o mais rapidamente possível. Se tivesse existido um produto semelhante para elas, as suas vi­das teriam sido salvas, ou no mínimo prolongadas. Ora, o que queria era salvar outras vidas idênticas às de ambas. De pessoas a viver em quintas nas áreas rurais, ou mesmo em cidades, mas isoladas devido à pobreza Ou a circunstâncias que as matariam, por falta de um medicamento como aquele.

Deu por si absorto nas suas recordações, e também nas reuniões que tivera na Europa durante a semana que findava. Só o fato de saber que o Vicotec chegara tão longe era uma recompensa incomensurável. E enquanto o carro rolava rapidamente para Paris, lamentava que, como de costume, Katie não o tivesse acompanhado.

Para Peter, Paris era a cidade perfeita. Deixava‑o sempre sem fala. Paris possuía algo que lhe aquecia o co­ração. Visitara‑a pela primeira vez, em negócios, quinze anos antes; nessa altura, fora como se tivesse chegado ao mundo no preciso momento em que a vira. Sozinho, num dia de feriado nacional, ainda se recordava de ter descido os Campos Elísios, com o Arco do Triunfo mesmo em frente e a bandeira francesa a oscilar nobre­mente com a brisa, no interior da abóbada. Parara o carro, saíra e, enquanto se deixava ficar parado a olhá‑la, apercebera‑se, envergonhado, de que chorava.

Katie costumava brincar com ele, dizer‑lhe que de­certo fora francês numa vida anterior, tal era o seu amor por Paris. O lugar tinha grande significado para si e nunca percebera bem porquê. Pairava na cidade qual­quer coisa incrivelmente bela e intensa. Nunca nela passara um mau bocado. E sabia que desta vez não seria diferente. A despeito do feitio bastante taciturno de Paul‑Louis Suchard, sabia que o encontro com ele no dia seguinte só poderia ser uma comemoração.

O táxi ziguezagueava por entre o tráfego do meio do dia. Peter ia vendo passar os locais familiares, os In­valides, a ópera... Um instante depois, entravam na Place Vendôme e Peter sentia‑se quase como se chegas­se a casa. A estátua de Napoleão erguia‑se no topo da coluna central da praça, e alguém que semicerrasse os olhos e deixasse voar a imaginação poderia facilmente idealizar os solavancos de carruagens brasonadas, cheias de nobres franceses com as suas perucas brancas e calções de cetim. Tão pitoresco absurdo fê‑lo sorrir, enquanto o táxi parava diante do Ritz e o porteiro se precipitava para lhe abrir a porta. Reconheceu Peter, como parecia reconhecer todos os hóspedes que chegavam, e fez de imediato sinal a um paquete para que viesse bus­car a única mala de Peter, que, entretanto, pagava ao motorista.

Surpreendentemente, a fachada do Ritz passava despercebida, apenas um pequeno toldo a sublinhava, não sendo mais notória do que o grande número de lojas deslumbrantes que a rodeavam. A seu lado, Chaumet e Boucheron exibiam os seus cristais cintilantes, Chanel ficava na esquina da praça e JAR, o muito requintado joalheiro cujas iniciais provinham do seu fundador, Joel A. Rosenthal, aninhava‑se mesmo atrás. Todavia, entre os mais importantes elementos da Place Vendôme figurava o Hotel Ritz, e Peter mantinha que não havia em todo o mundo outro como ele. Era o último bastião do luxo, oferecendo aos seus clientes um conforto sem limites dentro do mais requintado estilo. Assaltava‑o sempre um ligeiro sentimento de culpa por se alojar lá numa viagem de negócios, mas ao longo dos anos acabara por gostar tanto dele que não poderia ficar noutro sítio. Uma fantasia rara numa vida em tudo o resto absolutamente sensata e comandada pela razão. Peter apreciava o primor, a elegância, a elaborada decoração dos quartos, a beleza suntuosa dos brocados das paredes, as lindíssimas lareiras antigas. E mal atravessou a porta giratória, percorreu‑o instantaneamente um arrepio de ex­citação.

O Ritz nunca o desapontara e nunca lhe falhara. Como uma bonita mulher que só se visita ocasional­mente, esperava‑o sempre de braços abertos, com o cabelo arranjado, a maquiagem perfeita, ainda mais encantadora do que da última vez que a vira.

Peter gostava quase tanto do Ritz como de Paris. O hotel integrava‑se na magia e no charme daquela cidade. Mal entrava, era saudado por um porteiro de libré e apressava‑se a subir os dois degraus até ao balcão da recepção, para o registro. Até a espera ao balcão, para assinar, o divertia. Gostava de observar as pessoas que o rodeavam. À sua esquerda, um elegante sul-americano mais velho do que ele, com uma jovem espampanante vestida de vermelho a seu lado. Falavam depressa entre si, em espanhol. O cabelo e as unhas da mulher estavam impecáveis e Peter reparou no enorme diamante que ostentava na mão esquerda. Olhou‑o de relance e sorriu‑lhe, quando ele a observava. Era um homem extremamente atraente, e nada na sua postura atual sugeriria à mulher perto de si que fora em tempos um rapaz do campo. Parecia exatamente aquilo que era, um homem rico, poderoso, que se movimentava nos círculos da elite, um daqueles que dirigem os impérios do mundo. Tudo em Peter denotava importância e, todavia, havia também nele qualquer coisa intrigante, qualquer coisa doce e jovem, além de ser, inegavelmente, muito bem­‑parecido. E se alguém se detivesse a fitá‑lo, encontraria ainda algo mais, mais do que a maioria das pessoas compreendia, ou se interessava por compreender. Uma gentileza, uma bondade, uma espécie de compaixão, raras nos homens poderosos. Porém, a mulher de vermelho não viu isso. Viu a gravata Hermés, as mãos fortes bem tratadas, a pasta, os sapatos ingleses, o fato de bom cor­te, e foi com esforço que voltou a olhar para o seu companheiro.

Do outro lado de Peter, três japoneses idosos bem vestidos, de fatos escuros, todos eles a fumar e a conferir discretamente a conta. Havia também um homem mais novo que os esperava e, ao balcão, um recepcionista a falar‑lhes em japonês. Quando Peter lhes virou as costas, ainda à espera da sua vez, reparou numa agitação à entrada, enquanto quatro negros de. grande estatura atravessavam a porta giratória e pareciam controlá‑la; dois outros, muito parecidos com os primeiros, se­guiam‑nos; depois, como uma máquina de pastilhas elásticas a cuspir a sua mercadoria, a porta giratória expeliu três mulheres muito atraentes, com vestidos Dior de fortes coloridos. Os vestidos eram iguais, em cores diferentes, mas as mulheres propriamente ditas diferiam muito entre si. Tal como a espanhola em que Peter re­parara, também estas se apresentavam irrepreensíveis, com os cabelos muito bem arranjados. Todas usavam diamantes ao pescoço e nas orelhas e, em grupo, chamavam a atenção. Num instante, os seis seguranças que as precediam rodearam‑nas, enquanto um árabe muito mais velho e muito distinto emergia da porta giratória, mesmo por detrás dos outros.

‑ O rei Yhaled... ‑ ouviu Peter alguém próximo sussurrar. ‑ Ou talvez seja o irmão... As três esposas... ficam aqui um mês ... alugaram todo o quarto andar que dá para os jardins ...

Era o chefe de uma pequena nação árabe e, enquanto atravessavam a recepção, Peter contou oito guarda­‑costas e uma diversidade de pessoas que pareciam segui‑los. Foram de imediato acompanhados por um dos recepcionistas e seguiram o seu caminho devagar, com todos os olhares postos neles. A tal ponto, que ninguém deu por Catherine Denetive que se esgueirou apressadamente para o restaurante onde iria almoçar, e todos se esqueceram de que Clint Eastwood estava hospedado no hotel, enquanto filmava nos arredores de Paris. Rostos e nomes como os deles eram lugares‑comuns no Ritz, e Peter perguntava a si próprio se algum dia seria blasé o suficiente para muito simplesmente não ligar, os ignorar. A verdade é que achava tão engraçado estar ali, e observá‑los a todos, que não conseguia desviar o olhar e simular aborrecimento, como faziam alguns habitués, e era incapaz de não fixar o rei árabe e o seu grupo de lindas consortes. As mulheres conversavam e riam com moderação e os guarda‑costas não as perdiam de vista, não permitindo que alguém se aproximasse delas. Cercavam‑nas como uma parede de estátuas rígidas, enquanto o rei seguia em frente calmamente, a falar com outro homem. De repente, Peter ouviu, mesmo nas suas costas, uma voz que o sobressaltou.

‑ Boa tarde, mister Haskel1. Temos muito prazer em recebê‑lo de novo.

‑ Também eu estou contente por estar de volta. ‑ Peter virara‑se e sorria ao jovem recepcionista. Davam­‑lhe um quarto no terceiro andar. Porém, na sua opinião, não podia haver maus quartos no Ritz. Ficaria contente, pusessem‑no onde o pusessem.

‑ Tão atarefados como sempre, ao que parece. ‑ Referia‑se ao rei e ao pequeno exército de guarda­‑costas, mas o hotel estava sempre cheio de gente desse gênero.

‑ Como sempre... comme d'habitude... ‑ O jovem recepcionista sorriu e afastou para o lado o formulário que Peter preenchera. ‑ Agora, vou mostrar‑lhe o seu quarto. ‑ Verificara o passaporte, dera o número do quarto a um dos paquetes, fazia sinal a Peter para o seguir.

Passaram pelo bar e pelo restaurante, cheios de clientes bem vestidos e de pessoas que se encontravam para uma bebida ou para almoçar, para discutir negócios, talvez traçar planos mais intrigantes. E, na passagem, Peter viu de relance Catherine Denetive, ainda muito bonita, a rir e a conversar com um amigo numa mesa de canto. Tudo lhe agradava naquele hotel, os rostos, as pessoas cujo aspecto requintado era fascinante. Enquanto percorriam o longo corredor até ao segundo elevador, iam atravessando o extenso bloco de montras cheias de artigos caros de todas as lojas de modas e joalharias de Paris. A meio caminho, viu uma pulseira de ouro que achou que agradaria a Katie e fixou‑a mental­mente para voltar à loja e adquiri-la. Comprava‑lhe sempre qualquer coisa quando viajava. Era o seu prêmio de compensação por não ter ido, ou fora‑o muitos anos atrás, quando ela estava grávida, ou a amamentar, ou presa pelos filhos, então muito pequenos. Atualmente, a verdade é que a mulher não queria viajar com ele, e ele sabia isso. Gostava das reuniões das suas comissões e dos seus amigos. Com os dois rapazes mais velhos fora, no internato, e s um em casa, poderia acompanhá‑lo, mas arranjava sempre uma desculpa, e Peter já não insistia. Ela, pura e simplesmente, não queria ir. Toda­via, ainda lhe comprava presentes, e aos rapazes também, se estavam em casa. Um último resquício dos seus tempos de crianças.

Chegaram finalmente ao elevador; do rei árabe nem sombras, tinham acabado de subir uns minutos antes rumo à sua dúzia, ou coisa semelhante, de quartos. Eram clientes regulares, as esposas costumavam passar Maio e junho em Paris, por vezes ficavam até saírem as coleções de julho. E voltavam no Inverno, pela mesma razão.

‑ Quente, este ano ‑ comentou Peter, cavaqueando com o recepcionista enquanto esperavam pelo elevador. Lá fora o tempo estava esplêndido, corria uma aragem cálida que dava às pessoas vontade de se estenderem debaixo de uma árvore num qualquer recanto e ficarem a olhar as nuvens que deslizavam pelo céu. Não era realmente um dia para tratar de negócios. Mesmo assim, Peter ia telefonar a Paul‑Louis Suchard e ver se este arranjava algum tempo para se encontrarem antes da reunião marcada para a manhã seguinte.

‑ Tem sido assim a semana inteira ‑ retorquiu o recepcionista para manter a conversa. Toda a gente andava bem‑humorada e, como os quartos tinham ar condicionado, nunca havia queixas da temperatura. Ambos sorriram quando uma americana com três terriers passou por eles. Os cães eram tão felpudos e pavoneavam‑se tão cheios de laçarotes que os dois homens se entreolha­ram enquanto a observavam.

E então, quase como se a área onde se encontravam tivesse sido atingida por uma descarga elétrica, Peter teve a inesperada sensação de uma onda de atividade atrás de si. Olhava ainda a mulher com os cães, e até es­sa ergueu o olhar, surpreendida. Peter pensou que seria outra vez o árabe com os seus guarda‑costas, ou alguma estrela de cinema, mas a excitação crescia. Voltou‑se pa­ra ver o que se passava e deparou com um batalhão de homens vestidos de escuro e com auscultadores nos ouvidos, que pareciam vir ao encontro deles. Eram quatro, e impossível ver quem se lhes seguia. Facilmente se percebia que eram guarda‑costas, por causa dos auscultadores e dos walkie‑talkies que seguravam nas mãos. Se estivesse frio, decerto usariam gabardinas.

Continuaram em frente, na direção de Peter e do recepcionista, quase em consonância, e de repente avistaram‑se, apenas o suficiente para pôr a descoberto um punhado de homens que quase se lhes colavam. Estes usavam fatos leves, pareciam americanos, um deles mais alto do que todos os outros e incrivelmente louro. Dir­‑se-ia uma estrela do cinema, irradiava algo de magnetizante. Todos se mostravam suspensos de cada palavra sua, e os três homens que o acompanhavam, de aspecto bastante severo e profundamente absorvido, desataram de repente a rir de qualquer coisa que ele dissera.

O homem intrigou Peter, que o olhou de soslaio longa e atentamente, com a súbita certeza de que já o vira algures. Mas onde? Ocorreu‑lhe de imediato: era o controverso e muito dinâmico senador da Virgínia, Anderson Thatcher. Tinha quarenta e oito anos, fora uma ou duas vezes tocado ao de leve por escândalos, mas em todos os casos se haviam dissipado rapidamente as tímidas indignações; de bem maior importância era ter sido, também por mais de uma vez, atingido pela tragédia. O irmão, Tom, na corrida para a presidência, fora mor­to seis anos antes, já perto das eleições. Não restavam dúvidas de que teria saído vencedor, e toda a espécie de teorias fora tecida quanto a quem o matara; até dois filmes de má qualidade haviam sido feitos. Todas as especulações, porém, esbarravam num atirador solitário. Nos anos subseqüentes, Anderson Thatcher, «Andy», como Parecia ser conhecido entre os amigos, fora seriamente treinado e sobressaíra das fileiras dos seus aliados e adversários políticos, pensando‑se agora nele como um candidato, capaz às próximas presidenciais. Ainda não anunciara a sua candidatura, mas as gentes do meio acreditavam que não tardaria a fazê‑lo. E ao longo dos últimos anos, Peter seguira com interesse a sua carreira. Apesar de algumas coisas menos atraentes que ouvira sobre a sua vida pessoal, achava‑o um bom candidato. Bastava olhá‑lo agora, rodeado por camaradas de campanha e guarda‑costas, para se notar o seu carisma; Peter observava‑o, fascinado.

A tragédia batera‑lhe pela segunda vez à porta ao matar‑lhe de cancro o filho, de dois anos. A esse respeito Peter estava menos informado, mas recordava‑se de algumas fotografias muito chocantes na Time, quando a criança morrera. Uma em especial, da mulher, arrasada, a sair do cemitério, surpreendentemente sozinha, enquanto Thatcher dava o braço à sua mãe e a afastava do serviço fúnebre. A dor estampada no rosto da jovem mãe arrepiara‑o. Tudo isso contribuíra para que o coração do povo se lhes afeiçoasse, e era curioso vê‑lo ago­ra, profundamente embrenhado na conversa com o seu grupo.

No momento seguinte, com o elevador a teimar em não aparecer, os homens deslocaram‑se ligeiramente, e só quando o fizeram Peter viu de relance uma pessoa mais, atrás deles. Foi apenas uma sugestão, uma impressão rapidíssima: de súbito, ela ali estava, a mulher da fotografia. De olhos baixos, a sensação que transmitia era a de uma incrível fragilidade, parecia muito pequena e muito tênue, quase como se a qualquer momento pudesse evaporar‑se. Um mero esboço de mulher, com os maiores olhos que ele jamais vira e da qual emanava um fascínio que prenderia o olhar de qualquer um. Vestia um Chanel de linho azul‑celeste, aparentava uma grande gentileza e muito autodomínio, enquanto seguia os homens do seu grupo. Nenhum destes dava mostras de se aperceber dela, nem sequer os guarda‑costas; a mulher esperava em silêncio o elevador. Peter examinava‑a quando de repente ela levantou os olhos e o encarou. ocorreu a Peter que os olhos dela eram os mais tristes que já vira, e no entanto nada na mulher era patético. Estava, apenas, muito longe dali. Quando remexia na carteira, de onde tirou uns óculos escuros, Peter reparou na delicadeza e graciosidade das suas mãos. Nenhum dos homens se lhe dirigiu, ou pareceu sequer aperceber­‑se da sua presença, quando o elevador por fim chegou. Todos se apressaram a entrar à frente dela, que os seguiu calmamente. Demonstrava uma espantosa dignidade, como se vivesse num mundo muito seu, e era uma verdadeira senhora. Que eles dessem ou não pela sua existência, parecia ser‑lhe indiferente.

Enquanto a observava, fascinado, Peter sabia exata­mente de quem se tratava. Vira numerosas fotografias suas ao longo dos anos, em épocas mais felizes, quando do seu casamento, e mesmo anteriores, com o pai. Era a mulher de Andy Thatcher, Olivia Douglas Thatcher. Tal como Thatcher, pertencia a uma importante família de políticos. O pai era o muito respeitado governador do Massachusetts, e o irmão, um jovem congressista de Boston. Peter julgava recordar‑se de que andaria pelos trinta e quatro anos, e era uma daquelas pessoas que fascinam a imprensa, que a mídia era incapaz de deixar em paz, embora ela pouco ensejo lhes desse para perseverar. Peter vira entrevistas dele, claro, mas não se lembrava de nenhuma de OlivIa Thatcher. Mantinha‑se totalmente em segundo plano e, ao entrar no elevador mesmo atrás dela, o rapaz ia como que hipnotizado. Olivia virava‑lhe as costas mas estava tão próxima que, sem o mínimo esforço, Peter poderia rodeá‑la com os braços. Estremeceu, só de pensar nisso, enquanto o seu olhar pousava no encantador cabelo negro. Como se lesse o que lhe ia na mente, a mulher voltou‑se e de novo os seus olhares se cruzaram. Por um instante, o tempo parou para Peter. Uma vez mais o chocou a tristeza nos olhos dela; foi como se, sem pronunciar uma palavra, lhe estivesse a dizer qualquer coisa. Os seus olhos eram os mais expressivos que ele algum dia vira e de súbito interrogou‑se se o imaginara, ou se não haveria de fato nos olhos de Olivia algo mais do que nos das outras pessoas. A mulher virou‑se, quase tão inesperadamente quanto o fitara, não voltando a olhar para ele quando saiu do elevador, bastante agitado.

O paquete já levara a mala para o quarto e a gouvernante já o inspecionara, tendo achado tudo perfeita­mente em ordem. Ao entrar e olhar em redor, Peter sentiu mais uma vez que fora parar ao paraíso. Os brocados das paredes eram de uma quente cor de pêssego, todos os móveis antigos, a lareira de mármore alaranjado e os cortinados e colchas em sedas e cetins condizentes. Havia uma casa de banho de mármore e todos os encantos e comodidades imagináveis. Como num sonho tornado realidade. Sentou‑se num confortável cadeirão de cetim e contemplou o exterior, o jardim imaculada­mente cuidado. A perfeição!

Dada a gorjeta ao recepcionista, passeou lentamente pelo quarto, saiu e encostou‑se à varanda, a admirar as flores lá em baixo, enquanto pensava em Olivia Thatcher. Havia algo de obsidiante no seu rosto, nos seus olhos, já o pensara ao vê-la em fotografia, mas nunca imaginara nada tão intenso como o que lera naquele olhar. Era qualquer coisa de muito doloroso e, apesar de tudo, também muito forte. Como se quisesse comunicar, com ele ou com alguém que a olhasse. A seu modo era muito mais poderosa e mais constrangedora do que o marido. E Peter não podia abster‑se de pensar que aquela mulher não tinha o aspecto de pessoa disposta a entrar no jogo político. De fato, tanto quanto sabia, nunca o fizera, e continuava a não o fazer agora, mesmo sendo o marido um concorrente tão próximo da nomeação.

Que segredos esconderia por trás da sua fachada? ou tudo não passaria de pura imaginação sua? Talvez ela não fosse nada triste, apenas muito calma. Afinal, ninguém falara com ela. Mas porque o olhara daquela maneira? O que lhe iria na mente?

Continuava distraído com os seus pensamentos, após ter lavado a cara e as mãos e telefonado a Suchard cinco minutos depois. Não podia esperar nem mais um instante para o ver. Mas era domingo. E Suchard parecera­-lhe pouco entusiasmado com uma entrevista inoportuna. No entanto, concordou em encontrar‑se com Peter uma hora depois. Peter andou as voltas no quarto, impaciente, decidiu telefonar a Katie que, como de costume, não respondeu. Para ela, eram apenas nove horas da manhã; Peter calculou que tivesse saído, às compras ou a casa de alguma amiga. Raramente Katie se encontrava em casa depois das nove horas e nunca antes das cinco e meia. Estava sempre ocupada. Atualmente, ainda com mais atividades, o seu envolvimento no conselho da escola e só um filho em casa, era até freqüente chegar mais tarde.

Quando por fim abandonou o quarto, Peter ia terrivelmente excitado com a idéia do encontro com Suchard. Chegara o momento por que esperava. A luz verde final para poderem ir em frente com o Vicotec, Apenas uma formalidade, sabia‑o, mas uma formalidade importante, tendo em vista a intenção de serem admiti­dos nas «Prioridades» da FDA. Suchard era o chefe mais conhecido e mais respeitado das várias equipas e departamentos de pesquisa que possuíam. O seu acordo em relação ao Vicotec significaria muito mais do que o de qualquer outro.

Desta vez, o elevador levou menos tempo a chegar e Peter entrou de imediato. Vestia o mesmo fato es­curo, mas mudara para uma camisa azul com punhos e colarinho brancos engomados; era vigoroso e aprumado o seu aspecto. Pousou o olhar numa figura a um canto uma mulher com calças pretas de linho e uma T‑shirt preta, e óculos escuros. Tinha o cabelo puxado para trás, os sapatos eram de salto raso e, quando se voltou e o fixou, Peter reconheceu Olivia Thatcher, apesar dos óculos escuros.

Depois de tanto ler a seu respeito durante anos, via­‑a inopinadamente por duas vezes no espaço de uma hora e, desta segunda vez, sob uma aparência totalmente diferente. Parecia ainda mais magra e mais jovem do que com o fato Chanel; retirou os óculos por um mo­mento e foi breve o olhar que lhe lançou. Peter teve a certeza de também ter sido reconhecido, mas nenhum deles falou, e ele esforçou‑se por não a observar. Havia porém na mulher qualquer coisa que o subjugava. Não conseguia entender o que o intrigava tanto. Os olhos, claro, mas muito mais do que isso. Qualquer coisa relacionada com a maneira como se movia e olhava, com tudo o que de lendário ouvira a seu respeito. Parecia muito orgulhosa, segura de si e extremamente calma, num estado de perfeito autocontrole. Só de idealizá‑la assim, apetecia‑lhe fazer‑lhe mil perguntas idiotas. Precisamente como todos os repórteres. Porque se mostrava tão segura de si? Tão distante?... Mas também parecia tão triste! «É uma pessoa triste, Mistress Thatcher? Como se sentiu quando o seu filho morreu? E agora, está deprimida?» O gênero de perguntas que todos lhe repetiam e a que ela nunca respondia. Todavia, ao olhá‑la, também ele queria conhecer as respostas, aproximar‑se dela, puxá‑la para si, saber o que sentia e porque pregava os olhos nos seus como se lhe estendesse as duas mãos; queria saber se era loucura ler tão intimamente os seus sentimentos. Sim, queria saber quem era ela e, contudo, tinha a certeza de que nunca o conseguiria. Estavam destinados a ser dois estranhos, a nunca trocar uma só palavra.

Bastava estar perto dela para se sentir sufocar. Podia cheirar de perto o seu perfume, ver a luz brilhar no seu cabelo, imaginar a suavidade da sua pele, sentindo‑se in­capaz de desviar os olhos dela. Felizmente, haviam chegado ao andar principal, a porta do elevador abriu‑se. Um guarda‑costas esperava‑a; sem dizer nada, a mulher encaminhou‑se simplesmente para o átrio e Peter seguiu‑a. «Que vida esquisita», pensou, enquanto a via afastar‑se, sentindo‑se atraído como um imã e tendo de recordar a si próprio que havia negócios a tratar e falta de tempo para fantasias de criança. Mas era óbvio para si haver nela algo de mágico; percebia‑se bem a razão por que era considerada mais ou menos uma lenda. Acima de tudo, era um mistério. O gênero de pessoa que nunca se conhece, mas que se gostaria de conhecer. Enquanto saia para o sol esplendoroso e o porteiro lhe chamava um táxi, interrogava‑se sobre se alguém a conheceria de fato. E quando o carro arrancou, viu‑a contornar a esquina e sair da Place Vendôme. Seguia apressada pela Rue de la Paix, a cabeça erguida, os óculos de sol postos, o guarda‑costas atrás e, sem querer Peter questionou‑se sobre o sítio para onde se dirigiria Depois, forçando‑se a arredar da mulher os olhos e o espírito, foi contemplando as ruas de Paris que ia deixando para trás, à medida que o táxi avançava.

 

O encontro com Suchard foi rápido e decisivo, como Peter esperava que fosse; no entanto, não estava minimamente preparado para aquilo que ouviu Paul‑Louis Suchard dizer acerca do produto. Nem por um só momento previra o veredicto de Suchard. Segundo este, e em conformidade com todos os testes já efetuados, o Vicotec apresentava grande potencial de perigo, seria talvez mesmo letal, se usado de modo errado ou se fosse inadvertidamente mal manipulado. De acordo com as deficiências que evidenciava, não era de forma alguma utilizável, estava ainda a anos de distância de poder ser produzido e, mesmo, comercializado. Nem sequer apresentava condições para ser experimentado em seres humanos, como Peter tanto desejava.

Peter sentou‑se, com os olhos presos em Suchard enquanto este falava. Não podia acreditar no que os seus ouvidos ouviam; nem por sombras lhe passara pela cabeça uma tal interpretação do produto. Informara‑se o suficiente sobre as matérias químicas utilizadas, para poder fazer‑lhe certas perguntas muito específicas e tecnicamente pertinentes. Suchard só tinha respostas para algumas delas, mas no conjunto achava o Vicotec perigoso e, sendo um conservador, aconselhava a que o pro­duto fosse posto de parte. Ou, se quisessem correr o ris­co de o aperfeiçoar durante mais uns anos, talvez os problemas encontrados pudessem ser resolvidos, mas isto sem qualquer garantia de alguma vez o melhorarem ao ponto de o tornar útil e seguro. E, se não o conseguissem, o mais certo seria criarem um medicamento assassino. Para Peter, foi como se o mundo desabasse sobre a sua cabeça.

‑ Tem a certeza de que não há erro nos seus testes, Paul‑Louis? ‑ perguntou, desalentado, na esperança de encontrar falhas no sistema, fosse onde fosse, mas não no seu adorado «bebê».

‑ É praticamente certo não haver erro nenhum respondeu Paul‑Louis num inglês carregado de sotaque, mas que deixava bem claro o que afirmava, para pro­fundo horror de Peter.

Como de costume, Paul‑Louis mostrava‑se taciturno, mas ele era mesmo assim. E também como de costume, a descoberta das falhas nos produtos vinha quase sempre dele. Era a sua vocação, ser o portador das más notícias.

‑ Há um teste ainda em curso, poderá amenizar alguns dos resultados, mas não vai alterá‑los muito. ‑ E explicou que esse teste poderia trazer um pouco mais de otimismo em termos do tempo necessário para experiências adicionais, mas continuavam a falar de anos, não de meses, nem das escassas semanas que faltavam até às averiguações da FDA, de acordo com o pretendido.

‑ Quando acabará esse teste? ‑ interrogou Peter, quase doente. Nem queria crer no que ouvia. Era o pior dia da sua vida. Incluindo o que de pior passara no Vietnam e, sem dúvida, depois do Vietnam. Significava um período de quatro anos por água abaixo, se não total, pelo menos em parte.

‑ Precisamos de mais uns dias, mas penso que o teste é uma mera formalidade. Em minha opinião, já sabemos o que o Vicotec tem de bom e de mau. Estamos perfeitamente conscientes das suas deficiências e dos seus problemas.

‑ Acha que é recuperável? ‑ insistiu Peter, aterrado.

‑ Pessoalmente, acho que sim... mas na minha equipa há quem não concorde comigo. Pensam que será sempre perigoso de mais, delicado de mais, arriscado de mais, nas mãos de pessoas inexperientes. Quase de certeza, não utilizável como você desejaria. Por enquanto. E talvez nunca.

Tinham pretendido uma forma de quimioterapia de mais fácil administração, mesmo por pessoas acamadas, em áreas rurais, longínquas, onde não chegavam os bons cuidados médicos. Porém, não iriam dispor de cuidado nenhum, segundo Paul-Louis. Até este lamentou Peter, quando viu a sua cara. Era como se tivesse perdido a família e todos os amigos, e só agora se consciencializasse das conseqüências da catástrofe. Seriam incontáveis. Fora um desapontamento imenso, um verdadeiro choque, ouvir as palavras de Paul‑Louis.

‑ Lamento muito ‑ acrescentara este, com serenidade. ‑ Penso que, com o tempo, ganhará a batalha. Mas tem de ser paciente ‑ aconselhou, com gentileza. Peter sentiu as lágrimas chegarem‑lhe aos olhos, ao ver quão perto tinham chegado, e quão longe estavam ainda dos seus objetivos. As respostas não eram as que esperara. Esperara que o encontro de ambos fosse uma mera formalidade e, em vez disso, era um pesadelo.

‑ Quando poderá dar‑nos os resultados do teste, Paul‑Louis? ‑ Apavorava‑o a idéia de regressar a Nova Iorque e contar tudo a Frank, especialmente com informações incompletas.

‑ Mais dois ou três dias, talvez quatro. Ainda não é certo. Lá para o fim da semana, terá sem dúvida uma resposta às suas interrogações.

‑ E se os resultados forem positivos, acha que poderá alterar a sua posição atual? ‑ Era um pedido, uma súplica de obtenção de todas as boas notícias possíveis. Sabia a que ponto Suchard era conservador; talvez desta vez estivesse a ser demasiado cauteloso. Não se compreendia muito bem como podiam os seus resultados revelar‑se tão diametralmente opostos a tudo quanto os outros haviam dito. O fato é que nunca até então se enganara e não lhe dar ouvidos seria assumir um mal terrível. Não podiam, é evidente, ignorar o seu parecer.

‑ Alteraria um pouco a minha posição, mas não totalmente. Se, porventura, os próximos resultados forem ótimos, talvez você precise apenas de mais um ano de novas pesquisas.

‑ O que diz de seis meses? Se trabalharmos no produto em todos os nossos laboratórios e concentrarmos todas as nossas capacidades de pesquisa neste projeto? ‑ Considerando o lucro que calculavam obter, valeria a pena. E lucro era uma coisa de que Frank Donovan gostava de ouvir falar, não de testes.

‑ Talvez. É um investimento enorme, se o fizerem.

‑ Isso é com Mister Donovan, claro. Tenho de discutir o assunto com ele. ‑ Tinha montes de coisas a discutir com ele, e não queria fazê‑lo pelo telefone. Sabia que estava a arriscar‑se, mas a verdade é que tencionava aguardar os últimos resultados dos ensaios e só conversar com Frank depois de saber com exatidão o que Suchard descobrira. ‑ Gostava de esperar até o senhor terminar o último teste, Paul‑Louis. Se não se importar de, até lá, considerar confidencial tudo o que me disse.

‑ Não me importo nada. ‑ Combinaram voltar a reunir‑se logo que o teste final estivesse concluído, e Paul‑Louis prometeu telefonar‑lhe para o hotel.

O encontro acabou com uma nota de melancolia. Peter sentia‑se exausto ao apanhar um táxi para regressar ao Ritz e decidiu fazer a pé os últimos quarteirões até a place Vendôme. Estava desesperadamente infeliz. Tinham trabalhado tanto, fora tal a sua fé; como podia o resultado ser tão amargo? Como podia o Vicotec surgir agora como um assassino? Porque não o haviam descoberto antes? Porque havia de ser assim? A sua única grande oportunidade de ajudar a humanidade, e em vez disso, apoiara um assassino. Tal ironia era demasiado cruel e decepcionante. Chegado ao hotel, até o burburinho da hora dos cocktails e dos hóspedes de um lado para o outro, numa confusão bem vestida, lhe desagradou. As habituais estrelas de cinema, árabes, japoneses e franceses, modelos de todo o mundo... Em nada reparou enquanto atravessava o corredor e subia pelas escadas para o seu quarto, a pensar no primeiro passo a dar. Sabia que tinha de telefonar ao sogro, não obstante só tencionar fazê‑lo depois de ter recebido o resto das informações. Gostaria de trocar impressões com Katie, mas não ignorava que o que quer que lhe dissesse chegaria aos ouvidos do sogro antes de o Sol nascer. Era essa uma das grandes fraquezas do relacionamento do casal. Katie era incapaz, e não queria mudar, de guardar qualquer coisa só para si; o que quer que fosse dito entre marido e mulher era sempre partilhado com o pai. Um resquício que ficara da velha relação de ambos, quando crescera tendo‑o só a ele, e, apesar das suas tentativas no decurso dos anos, Peter não conseguira modificá‑la. Resignara‑se, contrafeito, e tinha o cuidado de não lhe contar nada a menos que também ele quisesse compartilhá‑lo com Frank. Desta vez, não queria, de forma alguma! Pelo menos para já. Aguardaria até voltar a ter notícias de Paul‑Louis, depois enfrentaria o que tivesse de enfrentar.

À noite, Peter sentou‑se no seu quarto, a olhar pela janela, deixando‑se envolver pelo ar quente, incapaz de acreditar no que acontecera. E às dez horas,estava à varanda, tentando afastar o espectro de um eventual insucesso. Mas tudo o que lhe restava eram os seus sonhos, a proximidade a que tinham chegado, as esperanças desfeitas e as vidas alteradas pelo que Paul‑Louis lhe dissera e poderia vir a confirmar dentro em breve. Ainda havia esperanças mas, agora, sem dúvida muito poucas probabilidades de uma aprovação rápida. E aceder aos questionários da FDA em Setembro seria inútil. Não iriam permitir‑lhes iniciar experiências em seres humanos ha­vendo ainda tanto a aperfeiçoar. De um momento para o outro, quantas coisas em que pensar! Era difícil. lembrar‑se de todas elas... Às onze horas, decidiu telefonar a Katie. Teria sido bom contar‑lhe as suas preocupações, mas pelo menos ouvir‑lhe a voz animá-lo-ia.

Obteve a ligação facilmente, mas ninguém atendeu. Eram cinco horas da tarde e nem sequer Patrick estava em casa. Talvez Katie tivesse ido jantar fora com amigos. E, ao pousar o auscultador, abateu‑se sobre si um forte sentimento de depressão. Quatro anos de trabalho árduo e tudo deitado por terra num só dia, ainda por cima levando consigo praticamente todos os seus sonhos sobre esse trabalho. Era triste.

Depois de mais um momento na varanda, passou­‑lhe pela cabeça sair, dar uma volta, mas estranhamente nem deambular por Paris o atraiu; em vez disso, decidiu‑se por algum exercício físico que o libertasse dos seus demônios. Passou os olhos pelo pequeno prospecto sobre a secretária; desceu então a escada rapidamente, até à piscina interior, dois andares abaixo. Por sorte, ainda estava aberta e Peter trouxera consigo um fato de banho azul‑escuro, para o caso de ter oportunidade de o usar. Habitualmente, gostava de ir à piscina do Ritz, mas desta vez não viera seguro de ter tempo para o fazer. Dadas as circunstâncias, enquanto esperava que Suchard completasse os seus ensaios teria tempo para fazer imensas coisas. No entanto, nada lhe apetecia.

O empregado de serviço mostrou‑se um pouco surpreendido ao vê‑lo entrar. Era quase meia‑noite e não havia lá ninguém. Na piscina vazia, o silêncio era total. O único empregado presente, que estivera a ler calma­mente um livro, indicou a Peter um compartimento pa­ra mudar de roupa e deu‑lhe a chave; um momento de­pois, Peter atravessava a água de desinfecção, a caminho da piscina principal. Era grande e acolhedora, e ele sentiu‑se satisfeito por ter decidido lá ir. Exatamente aquilo de que precisava. Um banho aclarar‑lhe-la as idéias, depois de tudo o que acontecera.

Mergulhou na ponta mais funda, e o seu corpo, comprido e esguio, cortou a água. Nadou uma distância considerável debaixo de água, veio por fim à superfície e percorreu a piscina no sentido do comprimento, com braçadas largas e regulares; foi ao atingir a outra extremidade que a viu. Nadava calmamente, sobretudo submersa, de vez em quando emergia, voltava a submergir. Era tão pequena, tão minúscula, que quase desaparecia no meio da grande piscina. Trazia um fato de banho preto, simples, e quando deitava a cabeça de fora o seu cabelo castanho‑escuro, colado à cabeça, parecia preto; ao reparar nele, os seus enormes olhos negros sobressaltaram‑se. Reconheceu‑o de imediato, mas não lho demonstrou. Limitou‑se a mergulhar de novo e continuou a nadar, enquanto ele a observava. E era tão estranho observá‑la, sempre tão perto e todavia tão distante, no elevador, por duas vezes, e agora ali. Sempre desesperadamente perto, porém tão longe como se habitasse outro planeta.

Nadaram em silêncio durante um certo tempo em extremos opostos da piscina, depois passaram um pelo outro diversas vezes, ambos embrenhados na luta contra os seus próprios tormentos; e então, como se o tivessem planeado, ambos se detiveram na mesma extremidade. Estavam estafados. Sem saber o que fazer, Peter, que não conseguia deixar de fixá‑la, sorriu-lhe e ela retribuiu‑lhe o sorriso. E de imediato se afastou nadando, sem lhe dar tempo a pronunciar uma só palavra, fazer uma só pergunta. Ele não tinha nada em mente, mas suspeitou que a mulher estava habituada a esse gênero de situações, a que a perseguissem, quisessem saber coisas que não tinham o mínimo direito de lhe perguntar. Surpreendeu‑o que não a acompanhasse nenhum guarda‑costas; alguém saberia que se encontrava ali? Era co­mo se não lhe prestassem a mínima atenção. Quando a vira com o senador, ninguém a olhara, ou lhe falara, e ela parecera‑lhe manifestamente contente por a deixarem no seu mundo, tal como agora, enquanto continuava a nadar.

Chegava nesse preciso momento ao extremo oposto àquele onde se encontrava Peter; sem na realidade o fazer intencionalmente, começou a nadar devagarinho ao seu encontro. Não fazia a mínima idéia de como reagi­ria se ela se lhe tivesse dirigido, demonstrando um certo interesse. Porém, não era capaz de imaginar que o fizesse. A mulher era alguém para quem podemos olhar, que nos fascina, uma espécie de ícone, um mistério. Não tinia pessoa de carne e osso. E como que a comprovar tais pensamentos, precisamente no momento em que ele se aproximava, saiu ela da piscina, graciosa, enrolando‑se com um gesto rápido na toalha. Quando Peter ergueu uma vez mais o olhar, desaparecera. Estivera mesmo atrás dela. Não era uma mulher, era uma lenda.

Pouco depois voltou para o quarto e pensou em voltar a ligar para Katie. Eram quase sete horas no Connecticut, provavelmente estaria em casa, a jantar com Patrick, a menos que tivessem saído com amigos.

O estranho, porém, é que no fundo não lhe apetecia falar com a mulher. Não queria mostrar‑se presunçoso, ou dizer‑lhe que tudo corria bem, não podendo relatar‑lhe o que se passara com Suchard. Impossível confiar em que não fosse contar tudo ao pai; não podendo desabafar com ela, foi com uma opressiva sensação de isolamento que se deitou na sua cama, no Ritz, em Paris. Quase como se entrasse no purgatório, num local habitualmente destinado a ser o paraíso. E para ali ficou, sob o ar tépido da noite, sentindo‑se melhor do que antes, pelo menos fisicamente. Nadar ajudara. E tornar a ver Olivia Thatcher deslumbrara‑o. Era. tão bela, tão etérea! E parecia tão desesperadamente só! Não sabia bem o que o levava a pensar tal coisa, se apenas o que lera a seu respeito ou se também algo real, talvez o que lhe comunicara com aqueles seus olhos castanhos aveludados, tão cheios de segredos. Se era impossível ter certezas apenas por olhá‑la, o que não deixava dúvidas era que, quando a via, quereria estender a mão e to­cá-la, como a uma borboleta exótica, só para saber se conseguiria fazê‑lo e se ela sobreviveria a esse toque.

Todavia, como a maior parte das borboletas exóticas, pressentia que, se lhe tocasse, as suas asas se desfariam em pó.

Nessa noite sonhou com borboletas e com uma mulher que, escondida atrás de árvores, o espreitava constantemente, numa luxuriante floresta tropical. Sentira‑se perdido e, ao entrar em pânico e começar a gritar, continuava a vê-la; e foi ela quem, em silêncio, o guiou pa­ra um lugar seguro. Não tinha bem a certeza da identidade da mulher, mas achou que se tratava de Olivia Thatcher.

E quando de manhã acordou, pensava ainda nela, Um sentimento estranho, de quem viveu uma ilusão e não um sonho. A verdade é que vê-la tão perto de si toda a noite, no seu sonho, lhe dava a sensação de a conhecer.

Então, o telefone tocou. Era Frank. Para ele, eram quatro da manhã, em Paris dez, e queria saber como correra o encontro com Suchard.

‑ Como sabe que o vi ontem? ‑ perguntou Peter, num esforço para despertar e ordenar as idéias. O sogro levantava‑se todos os dias às quatro da madrugada. E às seis e meia, sete, estava no escritório. Mesmo agora, após meses daquilo a que chamava reforma, não alterara nem um milímetro a sua rotina.

‑ Sei que saíste de Genebra ao meio‑dia. Calculei que não irias perder tempo. Que boas notícias tens? ‑ Era jovial o tom da sua voz e Peter lembrava‑se bem de mais do choque que sofrera a cada palavra de Paul­‑Louis.

‑ De fato, ainda não terminaram os testes ‑ respondeu, intencionalmente vago, e desejando que Frank não lhe tivesse telefonado. ‑ Vou ficar aqui à espera uns dias, até eles acabarem.

Frank riu‑se ao ouvi‑lo, e por uma vez o som do seu riso enervou Peter. Santo Deus, o que iria ele dizer­‑lhe?

‑ Não podes deixar o teu «bebê» um só instante, pois não, rapaz? ‑ Mas compreendia‑o. Todos tinham investido imenso no Vicotec, em dinheiro e em tempo e, no caso de Peter, havia ainda os sonhos., que sempre acalentara. Pelo menos, Suchard não dera o caso por arrumado, comentou Peter com os seus botões, enquanto se sentava na cama. Tudo o que dissera fora que tinham deparado com problemas. Sérios, sem dúvida, mas ainda restavam esperanças para a sua aspiração de criança. ‑ Bem, diverte‑te em Paris uns dias. Nós aguentamos‑te o barco. Não há nada de especial no escritório. E hoje, levo a Katie a jantar ao Vinte e Um. Desde que ela não pense que andas por aí a dar umas curvas, acho que consigo arranjar‑me sem ti.

‑ Obrigado, Frank. Gostava de estar aqui para discutir os resultados com o Suchard, quando ele os tiver. ‑ Não lhe pareceu correto não transmitir a Frank pelo menos um ligeiro aviso. ‑ Aparentemente, encontra­ram umas pequenas imperfeições.

‑ Nada de grave, com certeza. ‑ Frank continuou a conversa sem prestar maior atenção ao caso. Os resultados na Alemanha e na Suíça tinham sido excelentes, não havia razão para preocupações. Também Peter o Pensara, até Paul‑Louis chamar ao Vicotec um assassino em Potência. Só lhe restava a esperança de que todos estivessem errados e os problemas detectados lá para o fim da semana fossem insignificantes. ‑ O que é que vais fazer enquanto andas por aí às voltas, à espera?

Frank mostrava‑se divertido. Gostava do genro, sempre haviam sido bons amigos. Peter era sensato e um homem perspicaz, e provara ser um ótimo marido para Katie. Deixava‑a fazer o que lhe apetecia, não tentando interferir na sua forma de agir. Permitia‑lhe viver onde queria, mandar os rapazes para as escolas certas entendendo‑se por «certas» Andover e Princeton. ia passar um mês por ano a Martha's Vineyard e respeitava o relacionamento que Frank e Katie partilhavam desde a infância desta. Era, além disso, um brilhante presidente da Wilson‑Donovan. E também um bom pai para os ra­pazes. De fato, muito poucas coisas nele desagradavam a Frank, por exemplo, a sua obstinação em certos pontos, tais como jardins‑escolas ou assuntos familiares que Frank ainda achava não lhe dizerem realmente respeito.

As suas idéias sobre o mercado haviam feito história e, graças a ele, a Wilson‑Donovan era a sociedade farmacêutica de maior sucesso no mundo da indústria. Fora o próprio Frank o responsável pelo incremento da firma, passando de um sólido negócio familiar a um gigante incontestável; no entanto, Peter ajudara a que se transformasse num império internacional. O New York Times referia‑se‑lhe constantemente e o Wall Streetjournal apelidava‑o de campeão do ramo farmacêutico. Ainda há bem pouco tempo, tinham querido uma entrevista acerca do Vicotec, mas Peter insistira em que não estavam preparados para tal. E o Congresso pedira‑lhe, recentemente, que comparecesse perante uma importante subcomissão a fim de discutirem as conseqüências econômicas e éticas decorrentes da fixação dos preços dos produtos farmacêuticos. Peter ainda não lhes dissera quando poderia ir.

‑ Trouxe algum trabalho comigo ‑ respondeu Peter, em resposta à pergunta do sogro e olhando de soslaio a varanda banhada pelo sol, sem o mínimo desejo de trabalhar. ‑ Achei que poderia entreter‑me e ir adiantando os trabalhos para o escritório. Isso e uns passeios chegam‑me ‑ acrescentou, pensando no dia inteiro que tinha pela frente.

‑ Não te esqueças de arranjar champanhe ‑ brincou Frank. ‑ Tu e o Suchard vão ter a que brindar. E nós ainda mais, logo que voltes. Queres que telefone ao Times hoje? ‑ perguntou, a propósito, enquanto Peter abanava nervosamente a cabeça e se levantava, muito alto, muito esbelto e completamente nu.

‑ Se eu fosse a si, esperava. Acho que é importante aguardarmos os últimos resultados, quanto mais não seja para afirmação da nossa credibilidade ‑ declarou, solene, imaginando se alguém poderia vê‑lo através da janela aberta. O seu cabelo escuro estava todo emaranhado; enrolou o lençol à cintura. O roupão de veludo do hotel não estava ao alcance, deixara‑o numa cadeira de brocado cor de pêssego, a meio do quarto.

‑ Não armes em menina histérica ‑ animou‑o Frank. ‑ Os resultados vão ser formidáveis. Telefona­‑me logo que os conheças. ‑ Agora, era Frank quem dava mostras de pressa em desligar e ir para o escritório.

‑ Claro. Obrigado por ter telefonado, Frank. Um beijo à Katie, no caso de eu não a encontrar antes de o Frank a ver. Ontem, esteve fora o dia inteiro e de momento é muito cedo para lhe falar ‑ acrescentou, à laia de explicação.

‑ É uma garota ocupada ‑ retorquiu o pai, orgulhoso. Para ele, continuava a ser uma garota; e, em certas coisas, não mudara desde a faculdade. O seu aspecto era quase o mesmo de há trinta e quatro anos, quando Peter a conhecera. Flexível, loura, «gira», como os amigos continuavam a dizer, e muito ginasticada. Usava o cabelo curto e, como ele, tinha olhos azuis; assemelhava‑se a uma fada, exceto quando não conseguia o que queria. Uma boa mãe, uma boa esposa para Peter e uma filha excepcional para Frank. Ambos o sabiam. ‑ Eu dou‑lhe o teu beijo.

Frank desligou. Peter, sentado no quarto e coberto com um lençol, não despregava os olhos da janela. O que iria dizer‑lhe, se a bomba lhes rebentasse debaixo dos pés? Como iam justificar os milhões gastos, os bilhões que não ganhariam, pelo menos por algum tempo e não sem gastarem ainda mais para solucionar os problemas? Estaria Frank disposto a fazê‑lo? A prosseguir com o Vicotec até onde fosse preciso para o tornar per­feito, ou insistiria no abandono do projeto? Como ad­ministrador‑geral, cabia‑lhe a decisão, mas Peter lutaria quanto pudesse pelo prosseguimento das pesquisas. Estava sempre pronto a remar contra ventos e marés, até a vitória. Frank gostava das vitórias rápidas, aparatosas. já ter de o convencer durante os últimos quatro anos fora bastante duro, mais um ano ou dois era capaz de ser demasiado, especialmente tendo em conta o montante a investir.

Pediu que lhe trouxessem café e croissants e depois pegou no telefone. Sim, deveria esperar pelo telefonema de Suchard, só que não foi capaz. Perguntou por Paul­‑Louis e foi‑lhe dito que o Dr. Suchard se encontrava no laboratório e não podia ser interrompido. Tratava‑se de uma reunião muito importante. E tudo o que restou a Peter foi pedir desculpa e mergulhar de novo na agonia da espera. Era como se aguardasse há uma eternidade. Nem vinte e quatro horas tinham decorrido desde o encontro da véspera, e já Peter se sentia estourar de tensão.

Vestiu o roupão antes de chegar o pequeno‑almoço e pensou em ir nadar outra vez; afigurou‑se‑lhe, toda­via, impróprio fazê‑lo durante as horas de trabalho. Agarrou‑se ao computador enquanto mastigava um croissant e sorvia o café, mas era‑lhe impossível concentrar‑se; pelo meio‑dia, tomou uma ducha, vestiu‑se e desistiu da idéia de trabalhar.

Levou um bom bocado a decidir o que fazer. Apetecia‑lhe qualquer coisa frívola, genuinamente parisiense. Um passeio ao longo do Sena, ou no Septièrne, pela Rue du Bac abaixo, ou apenas sentar‑se no Quartier Latin, a tomar uma bebida enquanto via passar os transeuntes. Fosse o que fosse, mas não trabalhar, nem pensar no Vicotec. Apenas sair do quarto e integrar‑se na cidade.

Vestiu um fato escuro e uma das suas camisas brancas, de corte perfeito. Não ia encontrar‑se com ninguém, mas não trouxera mais nada e, ao atravessar a Place Vendôme sob o resplandecente sol de junho, acenou a um táxi e pediu ao motorista que o levasse ao Bois de Boulogne. Esquecera‑se do quanto gostava de lá estar, deixou‑se ficar ao sol, durante horas, sentado num banco, a comer gelado e a observar as crianças. Era grande a distância das lutas dos laboratórios com o Vicotec, ainda maior de Greenwich, no Connecticut. Na sua mente, tudo isso perdeu importância em prol do sol de Paris; até a misteriosa jovem esposa do senador Thatcher se encontrava bem longe.

 

Quando nessa tarde Peter saiu do Bois de Boulogne, apanhou um táxi para o Louvre e deambulou por lá um pouco. Muitíssimo bem organizado, desprendia‑se um tal vigor das estátuas do pátio que ele se deixou ficar parado, longo tempo, a contemplá‑las, hipnotizado, em perfeita comunhão com elas. Nem prestou atenção à pirâmide de vidro que fora colocada mesmo diante do Louvre e que tamanha controvérsia provocara, tanto por parte dos estrangeiros como dos Parisienses. Caminhou depois um bocado e finalmente apanhou outro táxi, para regressar ao hotel. Estivera horas ausente, sentia‑se de novo humano e, sem saber porquê, mais esperançoso. Mesmo que os ensaios não corressem bem, haveria qualquer maneira de salvaguardar o caminho já percorrido e ir em frente. Não deixaria morrer um projeto daqueles por causa de meia dúzia de problemas. Os questionários da FDA não eram nada do outro mundo, fora‑lhes submetido ao longo dos anos, e se tivessem de passar cinco anos em vez de quatro, ou até mesmo seis, que passassem.

Foi descontraído e filosófico que regressou ao Ritz. Era tarde, e não havia mensagens para ele. Parou, comprou um jornal, decidiu procurar a encarregada das montras e adquiriu a pulseira de ouro para Katie. Era uma corrente sólida, com um único e grande coração de ouro pendurado. A mulher gostava imenso de corações, Peter sabia que ela iria usar aquele. O pai comprava‑lhe coisas caríssimas, tais como colares e anéis de diamantes e, sabendo que não podia competir com ele, Peter limitava geralmente os seus presentes ao gênero de coisas que sabia que ela usaria, ou então com um significado especial.

Ao entrar no quarto, relanceou o olhar pelo espaço vazio e de novo o assaltou a ansiedade. A tentação de telefonar a Suchard foi enorme, mas desta vez resistiu‑lhe. Em compensação, ligou para Katie; uma vez mais, só o atendedor de chamadas lhe respondeu. Era meio­‑dia no Connecticut, decerto teria ido almoçar fora e, quanto aos rapazes, só Deus sabia por onde andariam Mike e Paul já deviam ter voltado do liceu, Patrick nunca se fora embora, e, dentro de mais ou menos uma semana, Katie arrastaria todos para Vineyard. Peter ficava na cidade a trabalhar, juntava‑se‑lhes nos fins‑de­‑semana, como sempre fazia, e depois passava com eles as quatro semanas de ferias, em Agosto. Nesse ano, Frank tiraria julho e Agosto e Katie planeava para o 4 de julho um grande churrasco de inauguração da temporada.

‑ Tenho pena de não te encontrar ‑ disse à máquina, sentindo‑se idiota. Detestava falar para aparelhos eletrônicos. ‑ A diferença horária dificulta as coisas. Telefono‑te mais tarde... adeus... Ah... fala o Peter.

Esboçou um sorriso, desejoso de que a voz não lhe tivesse saído demasiado estúpida. O atendedor embaraçava‑o sempre. «Líder de indústria incapaz de falar para um atendedor de chamadas», murmurou, troçando de si próprio, enquanto se espreguiçava no sofá do quarto de cetim cor de pêssego e olhava em redor, tentando decidir o que fazer à hora de jantar. Poderia escolher entre ir a um café próximo, comer na sala de jantar do hotel, ou pedir que lhe levassem a refeição ao quarto, ver a CNN e trabalhar no computador. Acabou por optar pela última hipótese. Era a mais simples.

Tirou o casaco e a gravata, arregaçou as mangas da camisa imaculada. Era uma daquelas pessoas que ao fim do dia mantêm o aspecto impecável que têm de manhã. os filhos metiam‑se com ele, ao que Peter respondia que nascera de gravata ao pescoço, o que lhe dava vontade de rir ao lembrar‑se da sua juventude no Wisconsin. Gostaria que os pequenos tivessem.um pouco mais de Wisconsin e um pouco menos de Greenwich, Connecticut e Martha's Vineyard. Mas o Wisconsin ficara para trás, bem para trás. Com os pais e a irmã há muito desaparecidos, não tinha qualquer razão para lá voltar. Às vezes ainda pensava nos filhos de Muriel, em Montana, mas de certa maneira era tarde de mais para tentar estabelecer contato. Quase adultos, nem sequer o reconheceriam. Katie tinha razão. Era tarde de mais, agora.

Nessa noite, o noticiário não trouxe nada de interesse e Peter foi‑se embrenhando no trabalho à medida que a noite se instalava. Surpreendeu‑o a boa qualidade do jantar mas, para grande desgosto dos criados, não lhe prestou muita atenção. Estes apresentaram‑no de uma forma extremamente requintada, mas ele colocou‑o sobre a impressora a seu lado e não interrompeu o trabalho.

‑ Vous devríez sortir, monsíeur ‑ alvitrou o criado. «O senhor devia sair.» A noite estava ótima e a cidade maravilhosa, banhada pela luz da lua cheia; Peter forçou‑se a não se deixar influenciar.

Prometeu a si próprio outro exercício de natação, mais tarde, a título de recompensa quando acabasse o seu trabalho; dispunha‑se precisamente a fazê‑lo, cerca das onze horas, quando ouviu um bip persistente. Pensou que proviria de um rádio ou de um televisor, ou talvez alguém tivesse manipulado mal o computador no quarto ao lado. Era uma campainha importuna que aumentava com uma espécie de latido alto e prolongado, sem perceber do que se tratava, acabou por abrir a porta e descobriu instantaneamente que, com ela aberta, o som aumentava de intensidade. Outros hóspedes espreitavam para o corredor, alguns deles parecendo preocupados e atemorizados.

‑ Fogo? Fogo? ‑ perguntou a um paquete que passava, apressado, e se virou, inseguro, mal parando para lhe responder:

‑ Cest peut‑étre un íncendie, monsieur ‑ respondeu o rapaz, confirmando a Peter que talvez fosse isso. Ninguém parecia saber ao certo, mas não restavam dúvidas de que se tratava de um alarme e cada vez, mais gente enchia os corredores. E, subitamente, foi como se todo o pessoal do hotel entrasse em ação. Seguranças, chefes, criados, criadas e a gouvernante do andar, empregados de todos os gêneros percorriam serena mas rapidamente os andares, batendo às portas, tocando campainhas e instruindo cada hóspede para que saísse o mais depressa possível e “non, non, madame, por favor não mude de roupa, essa está bem”. A gouvernante tirava vestidos dos quartos, os paquetes carregavam malas pequenas e ajudavam as senhoras a trazer os cães. Não fora ainda dada qualquer explicação, mas a todos havia sido dito que evacuassem imediatamente o local, sem perder um só minuto.

Peter hesitou em levar consigo a impressora, mas logo decidiu deixá‑la. Não continha segredos da companhia, só umas notas, informações e correspondência de que teria de encarregar‑se. Por um lado, era um alívio abandoná‑la. Nem se preocupou em vestir o casaco, limitou‑se a meter a carteira e o passaporte na algibeira das calças, pegou na chave do quarto e apressou‑se a descer as escadas, no meio de senhoras japonesas vesti­das à pressa com fatos Gucci e Dior, uma enorme família americana «fugida» do segundo andar, várias árabes com jóias extraordinárias, uma mão‑cheia de alemães bem­‑parecidos que se empurravam degraus abaixo e tufos de miniaturas de terriers‑de‑yorkshire e poodles‑franceses.

Havia algo de deliciosamente cômico na cena; Peter não pôde deixar de sorrir para consigo enquanto descia tranqüilamente a escada, tentando não estabelecer comparações com o Titanic. O Ritz era muito sólido.

E durante todo o percurso iam sendo abordados por pessoal do hotel, que ajudava, acalmava, estendia uma mão quando necessário, cumprimentava as pessoas uma a uma e se desculpava pelo incômodo. Porém, ninguém mencionara ainda a razão exata da ocorrência, se se tratava de um fogo, de um falso alarme ou de qualquer outra ameaça grave aos hóspedes do hotel. Uma vez atravessado o corredor repleto de montras e a recepção, e já na rua, Peter deparou com as tropas do CRS, farda­das, armadas e protegidas. Correspondiam mais ou me­nos a uma equipa americana dos SWAT, e ver o rei Khaled e o seu grupo serem rapidamente afastados em carros do Estado, sugeriu‑lhe que talvez temessem uma bomba. Havia também duas atrizes francesas muito conhecidas, com «amigos», um número espantoso de velhotes com raparigas novas, e Clint Eastwood, acabado de chegar das filmagens, de calças de ganga e T‑shirt. Por essa altura já todo o hotel abandonara os quartos; era quase meia-noite. Impressionava a rapidez com que tudo fora feito, a sensatez, a segurança. O pessoal dera uma lição de mestre na forma por que guiara os seus hóspedes na Place Vendôme e agora, a uma distância segura, estavam a colocar mesas rolantes sobre as quais havia biscoitos e café e, para os que davam mostras de precisar delas, também bebidas mais fortes. Quase seria divertido, se não fosse tão tarde, tão inconveniente não pairasse no ar a vaga ameaça de perigo.

‑ Lá se vai o meu banho noturno na piscina, comentou Peter para Clint Eastwood, mesmo a seu lado, ambos a olhar para o hotel tentando ver se saía fumo, mas não vendo nenhum. O CRS entrara há dez minutos, à procura de bombas.

‑ Lá se vai o meu sono ‑ replicou, resmungando, o ator. ‑ Tenho uma chamada às quatro da madruga­da. Pode levar imenso tempo, se andam à procura de uma bomba. ‑ Estava a pensar em dormir no atrelado, mas os outros hóspedes não tinham essa opção. Restava‑lhes ficar ali, de pé, na rua, ainda de certo modo estupefatos, agarrados aos cães, aos amigos e às suas pequenas caixas de pele cheias de jóias.

Enquanto via entrar outra onda de tropas do CRS, e acatava a ordem de se afastar mais do hotel, virou‑se e, subitamente, viu‑a. Descortinou Andy Thatcher, rodeado como de costume por lambe‑botas e guarda­‑costas, e aparentando total indiferença pelo tumulto, Continuava uma conversa animada com os do seu bando, todo ele constituído, com uma só exceção, por homens; a única mulher lembrava um buldogue político. Fumava com intensidade e Thatcher mostrava‑se profundamente interessado no que ela dizia. Peter reparou que com Olivia, mesmo atrás do grupo, ninguém falava. Não lhe prestavam a mínima atenção, enquanto ele a olhava, fascinado como sempre. Olivia, a beber uma chávena do café do hotel, deu alguns passos para o lado, ignorada até pelos guarda‑costas. Vestia uma T‑shirt branca e calças de ganga, trazia calçados uns sapatos de casa; os olhos que tanto o haviam hipnotizado abarcavam toda a cena, enquanto o marido e o seu sé­quito avançavam lentamente. Thatcher e um dos seus homens abordaram vários elementos do CRS, mas estes limitavam‑se a abanar as cabeças. Ainda não tinham encontrado aquilo que procuravam. Alguém trouxe para o exterior cadeiras desdobráveis, que os criados distribuí­ram pelos hóspedes; também veio vinho do hotel e toda a gente dava mostras de uma surpreendente boa disposição face ao incômodo. Pouco a pouco, criava‑se na Place Vendôme um ambiente de festa noturna ao ar livre. E, contra sua vontade, Peter continuava a observar Olivia com interesse.

Momentos depois, ainda mais se afastara do grupo e mesmo os guarda‑costas pareciam ter‑lhe perdido o rasto, sem que tal os incomodasse. O senador estivera sempre de costas para ela, desde que saíram do hotel, nem uma só vez lhe dirigindo a palavra; ele e o seu bando instalaram‑se em cadeiras e Olivia, ao ir buscar outra chávena de café, aproximou‑se mais da retaguarda das várias centenas de hóspedes que ocupavam a Place Vendôme. Aí, de pé, demonstrava a maior tranqüilidade, sem que lhe importasse minimamente o fato de todo o grupo do marido a ignorar. Ao contemplá‑la, o fascínio de Peter aumentava, não sendo capaz de arredar dela o olhar.

A mulher ofereceu uma cadeira a uma americana idosa, fez festas a um cãozinho, colocou a chávena vazia sobre uma mesa. Um criado ofereceu‑lhe outra, mas ela sorriu e abanou graciosamente a cabeça, recusando. Irradiava uma gentileza encantadora e luminosa, como se tivesse acabado de pousar na Terra e fosse na realidade um anjo. Só dificilmente Peter aceitava tratar-se de uma mulher. Era demasiado calma, demasiado gentil, demasiado perfeita, demasiado misteriosa e, quando alguém se aproximava, demasiado assustada. Fazia-lhe obviamente mal sentir‑se examinada de perto. Mostrava‑se muito mais feliz quando ninguém lhe ligava importância, o que era o caso nessa noite. Muito despretensiosamente vestida, nada presunçosa, nem os americanos integrados na multidão a reconheciam, apesar de a terem visto centenas de vezes nos jornais e revistas do país. Há anos que estava na mira de todos os paparazzi, perseguiam‑na, apanhavam-na desprevenida, em especial durante os anos que passara com o filho doente e a morrer. Mesmo agora, ela intrigava-os, como se fosse uma lenda, uma espécie de mártir.

E, dado que a observava ininterruptamente, Peter não pôde deixar de notar que, aos poucos, ela ia recuando, deixando para trás os outros hóspedes; já só com esforço a descortinava. Agiria assim por uma razão determinada, ou recuara inadvertidamente? Encontrava­‑se bem longe do marido e da sua gente, e nenhum deles poderia vê-la, a menos que também eles recuassem à sua procura. Mais hóspedes haviam regressado ao hotel, vindos de restaurantes ou de clubes noturnos, como o Chez Castel, ou simplesmente de um jantar com amigos, ou de um espetáculo. Também os mirones apareciam, curiosos em relação ao acontecimento. Todos os cochichos entre a multidão culpavam o rei Khaled. Encontrava‑se também no hotel um eminente ministro britânico, correra o boato de que poderia ser obra do IRA, mas supostamente alguém colocara uma bomba, ou dissera que a colocara, e por ordem da Polícia ninguém voltaria para o hotel até o CRS a encontrar.

Passava bastante da meia‑noite; há muito que Eastwood se afastara, indo dormir para o seu atrelado no cenário. Não ia perder as suas poucas horas próximas de sono, ali, de pé na Place Vendôme, à espera até de manhã. E ao relancear o olhar pelo ajuntamento, Peter reparou que Olivia Thatcher se desviava devagarinho dos hóspedes e se encaminhava de forma despreocupada para o outro lado da praça. De costas para os que lá ficavam, seguia, mansamente mas com rapidez, para a esquina. Aonde iria? Procurou um guarda‑costas, talvez seguindo‑a; tinha a certeza de que, se alguém se apercebera dos seus passos, teriam mandado um. Mas Olivia estava claramente por sua conta quando prosseguiu, apressada, sem nunca olhar para trás. Peter não a perdia de vista e, sem pensar, afastou‑se por seu turno da multidão e começou a segui-la, a caminho da esquina da Place Vendôme. Era tal a atividade no exterior do hotel, e tão espalhada por toda a parte, que ninguém daria pelo desaparecimento de qualquer deles. Do que Peter não se deu conta foi de que, pelo menos durante alguns passos, um homem o seguia; mas ao som de um alvoroço na praça, desinteressou‑se e regressou ao âmago da ação, onde duas modelos de renome tinham colocado um leitor de CDs e começado a dançar uma com a outra, diante de um CRS denotando nervosismo. Chegara entretanto a CNN, estavam a entrevistar o senador Thatcher sobre a sua opinião a respeito dos terroristas no estrangeiro e no seu país, e este respondia‑lhes em termos precisos o que pensava. Dado o que acontecera ao seu irmão cerca de seis anos antes, era‑lhe particularmente antipático esse gênero de disparate. Fez um pequeno discurso sensacional, e os que à sua volta o ouviram aplaudiram‑no no final, após o que a equipa da CNN seguiu em frente para entrevistar mais gente. Coisa interessante, nunca perguntaram pela sua esposa, era óbvio que o senador falava por ambos; a equipe, apressou‑se a chegar junto das modelos que dançavam e entrevistou‑as logo depois de Andy. Declararam achar que a noite estava a ser divertidíssima e talvez o Ritz, repetisse mais vezes. Iam ficar três dias no hotel, para um anúncio do Harper's Bazaar, e ambas afirmaram que adoravam Paris. Cantaram uma curta canção e sapatearam, bastante mal, na Place Vendôme. Reinava a vivacidade e, a despeito do perigo que representava a bomba não encontrada, a noite foi de festa.

Já então Peter estava longe de tudo isso, a seguir a mulher do senador, primeiro até à esquina e depois para além da Place Vendôme. Olivia parecia saber para onde ia, nem por um segundo hesitando. Limitava‑se a caminhar. Andava depressa, e Peter só a passos largos conseguia acompanhá‑la deixando‑a seguir à frente e sem a menor idéia do que lhe diria se ela parasse, olhasse em redor e lhe perguntasse o que fazia ali. Aliás, não tinha a menor idéia, nem do que fazia, nem do porquê de o fazer. Sabia apenas que tivera de fazê‑lo. Fora compelido a segui-la, disse para consigo que pretendia protegê‑la, àquela hora da noite, mas sem a menor idéia do porquê de ser ele a protegê‑la.

Surpreendeu‑o Olivia ter feito todo o percurso até Place de la Concorde e depois parado, com um sorriso nos lábios, a contemplar os repuxos e, lá longe, o brilho da Torre Eiffel. Havia na praça um velho sentado, um jovem a passear, e dois casais aos beijos, mas ninguém lhe prestava atenção, e ela parecia tão feliz, ali parada. Que vontade teve de avançar, passar‑lhe um braço pelas costas e, junto dela, contemplar também a água! Em vez disso, manteve‑se a uma distância curta, sorrindo‑lhe. Foi então que, para sua estupefação, a mulher o fitou, com mil perguntas no olhar. Foi como se o soubesse ali porque, mas continuasse a sentir que ele lhe devia uma explicação. Seguira‑a, era indiscutível, e ela não se mostrava nem zangada nem amedrontada e, o que verdadeiramente o espantou, voltou‑se e caminhou lenta­mente ao seu encontro. Sabia quem ele era, reconhece­ra o homem da piscina da noite anterior, mas Peter corou, na noite escura, ao vê-la avançar.

‑ O senhor é fotógrafo? ‑ perguntou, olhos nos olhos, muito calmamente. Parecia bastante vulnerável e, de um momento para o outro, muito triste. Já lhe acontecera antes, mil, um milhão de vezes, ad nauseam et infinitum. Fotógrafos perseguiam‑na por toda a parte, vitoriosos se lhe roubavam um instante de privacidade. Estava habituada, não lhe agradava mas aceitava‑o como parte da sua vida.

Ele, porém, abanou a cabeça; captara o seu senti­mento e lamentava ter‑se intrometido.

‑ Não, não sou... Desculpe‑me... eu... eu só queria ter a certeza de que a senhora... É muito tarde. ‑ Pousou então os olhos nela e sentiu‑se menos embaraçado e mais protetor. Tão incrível, tão delicada! Nunca conhecera ninguém igual. ‑ Não devia andar a passear sozinha à noite, tão tarde, é perigoso. ‑ Olivia olhou o jovem e o velho clochard e encolheu os ombros, fitando Peter com interesse.

‑ Porque é que me seguiu? ‑ A pergunta foi muito direta, e os seus olhos de veludo castanho eram tão doces ao olhá‑lo que tudo o que desejaria seria tocar­‑lhe a face com a mão.

‑ Eu... não sei ‑ respondeu, honestamente. ‑ Curiosidade... cavalheirismo... fascínio... loucura... estupidez... ‑ Queria dizer‑lhe que o subjugava à sua beleza, mas não foi capaz. ‑ Quis ter a certeza de que estava tudo bem consigo. ‑ E, então, decidiu ser também direto. As circunstâncias eram invulgares e Olivia parecia o gênero de pessoa com a qual se pode cortar a direito. ‑ Afastou‑se, simplesmente, não foi? Não sabem que se veio embora, pois não? ‑ Ou talvez agora soubessem e a procurassem por toda a parte, mas era visível que isso a deixava indiferente. Dir‑se-ia uma criança travessa, quando levantou os olhos para ele. Peter viu o que ela ia dizer, e sabia que era assim.

‑ Provavelmente, nunca dão pela diferença ‑ proferiu, sincera, mas sem demonstrar arrependimento, antes surpreendentemente maliciosa. Pelo que ele vira, era na verdade uma mulher ignorada. No grupo, nunca ninguém lhe prestava atenção, ou lhe dirigia a palavra nem o marido. ‑ Tinha de me vir embora. Por vezes é muito opressivo estar na minha pele. ‑ Fitou‑o, sem ter a certeza de que ele a reconhecera e, na negativa sem querer deitar tudo a perder.

- Todas as peles são por vezes opressivas ‑ replicou Peter, filosofando. A dele era‑o com demasiada freqüência, mas sabia que a dela o era muito mais. E voltou a olhá‑la com complacência. Já fora tão longe e não via mal em avançar um pouco. ‑ Posso oferecer‑lhe um café? ‑ O truque era velho e ambos riram. Olivia hesitou um longo momento, enquanto tentava decidir se era mesmo aquilo que ele queria dizer ou se estava apenas a brincar e, notando a sua hesitação, Peter sorriu. ‑ Foi um convite sincero. Sou relativamente bem‑comportado, pelo menos de confiança suficiente para se tomar um café comigo. Sugeria o meu hotel mas parece que eles estão com um problema qualquer.

A mulher riu‑se e mostrou‑se mais descontraída. Conhecia‑o do hotel, no elevador e na piscina. Usava uma camisa cara, estava apresentável, trazia as calças de um fato e sapatos de boa qualidade. E algo nos seus olhos lhe dizia que era respeitável e gentil; concordou, com um aceno de cabeça.

‑ Aceito um café, mas não no seu hotel. ‑ Fingiu afetação. ‑ Está um bocado agitado de mais para o meu gosto, esta noite. O que acha de Montmartre? ‑ sugeriu, cautelosa, e ele sorriu. Agradara‑lhe a sugestão.

‑ É uma ótima idéia. Posso propor um táxi? ‑Encaminharam‑se para a praça de táxis mais próxima, ajudou‑a a entrar e ela deu o endereço de um café que sabia que estava aberto até tarde e que tinha mesas no exterior.

A noite continuava quente e a nenhum deles apetecia voltar para o hotel, embora ambos se mostrassem um pouco envergonhados. Foi ela quem primeiro quebrou o gelo, enquanto o olhava com uma expressão provo­cante.

‑ Faz isto muitas vezes? Seguir mulheres, quero eu dizer...

A observação divertiu‑o e, dentro do táxi, Peter corou; negou, abanando a cabeça.

‑ O fato é que nunca o tinha feito. É a primeira vez, em absoluto, e ainda não sei bem porquê. ‑ Exceto o fato de ela parecer tão vulnerável e tão frágil e, por qualquer insensata razão, querer protegê‑la; isso, porém, não disse.

- Para falar com franqueza, agrada‑me que o tenha feito. ‑ Mostrava‑se genuinamente bem‑disposta e com um surpreendente à vontade com ele quando chegaram ao restaurante. Um instante depois, estavam sentados a uma mesa ao ar livre, diante de duas chávenas de café a ferver. ‑ Que ótima idéia. ‑ Sorriu‑lhe.

Agora, fale‑me de si. ‑ Apoiou o queixo na mão e Peter achou‑lhe parecenças com Audrey Hepburn.

‑ Não há muito que dizer ‑ respondeu, ainda com algum embaraço, mas também excitado por estar onde estava.

‑ Tenho a certeza de que há. De onde é? Nova Iorque? ‑ tentou adivinhar, com bastante perspicácia, Pelo menos, era aí que trabalhava.

‑ Mais ou menos. Trabalho em Nova Iorque. Mo­ro em Greenwich.

‑ E é casado e tem dois filhos. ‑ Preenchia os vazios por ele, sorrindo‑lhe, pensativa, quando o fazia. A vida dele era provavelmente tão feliz e tão banal, tão diferente da sua, com tantas tragédias e desapontamentos,

‑ Três filhos ‑ corrigiu‑a. ‑ E sim, sou casado. ‑ E ao pensar na sua abundância de filhos, sentiu‑se culpa­do perante ela e a memória do rapazinho que o cancro lhe levara. Como todo o mundo, estava a par de que só tivera esse filho, não havendo mais nenhum depois.

‑ Eu vivo em Washington ‑ continuou ela, serena ‑, a maior parte do tempo. ‑ Não se referiu a ter ou não filhos e, sabendo o que sabia a seu respeito, também ele se absteve de qualquer comentário.

‑ Gosta de Washington? ‑ Ela encolheu os ombros, enquanto ia bebendo o café.

Nem por isso. Detestava, quando era criança. Suponho que, se meditasse no caso, ‑ ainda a detestava mais agora. Não é da cidade que não gosto, é das pessoas e daquilo que fazem das suas vidas. Das suas, e das de todos os outros. Odeio a política e, lá, tudo é política.

Era notório o fervor com que o afirmava. Mas com um irmão, um pai e um marido profundamente embrenhados na política, poucas esperanças lhe restavam de escapar às suas garras. E, ao olhá‑lo, sem ainda se ter apresentado, gostaria de acreditar que ele não sabia quem ela era, apenas uma mulher de sapatos simples, calças de ganga e T‑shirt. Leu‑lhe porém nos olhos que ele conhecia o seu segredo. Não devia ser essa a razão de estar ali, a tomar café com ela às duas da manhã, mas saber, sabia. ‑ julgo ser irrealista pensar que ignora o meu nome... Ou ignora? ‑ perguntou, com os olhos muito abertos; e foi uma vez mais com pena dela que Peter abanou a cabeça. O anonimato ter‑lhe-ia sido agradável, mas não era o seu destino, nunca, enquanto fosse viva.

‑ Não ignoro e, sim, seria irrealista pensar que as pessoas não sabem quem é. Mas isso não altera nada. Tem todo o direito de detestar a política, ou seja o que for, ou dar um passeio até à Place de la Concorde, ou conversar com um amigo. Toda a gente tem direitos desses. ‑ Compreendia perfeitamente até que ponto ela se sentia desconfortável.

‑ Obrigada. ‑ E era doce o som da sua voz. ‑ Disse há bocado que todas as peles são por vezes incômodas. A sua também?

‑ Agora e aqui ‑ respondeu ele com honestidade. ‑Todos nós atravessamos momentos difíceis. Sou diretor de uma sociedade e acontece‑me desejar que ninguém o soubesse... poder fazer tudo o que me apetecesse. ‑Como nesse preciso instante. Por um breve lapso de tempo com ela, gostaria de voltar a ser livre, esquecer o casamento. Mas sabia que nunca faria semelhante coisa a Katie. Nunca lhe mentira na vida e não tencionava confessar agora, nem sequer com Olivia Thatcher. Um ato desses era também a última coisa que passaria pela cabeça desta. ‑ Acho que há ocasiões em que todos nos sentimos cansados das nossas vidas e das responsabilidades que enfrentamos. Provavelmente, não tão cansado como você ‑ acrescentou, com simpatia. ‑ Creio que, cada um à sua maneira, já houve para todos nós momentos em que desejamos sair da Place Vendôme desaparecer por algum tempo. Como a Agatha Christie Sempre me intrigou essa história. ‑ Olivia sorriu com timidez. ‑ E sempre me apeteceu fazer o mesmo. ‑ Impressionava‑a o que sabia sobre o assunto Fascinava‑a a razão que levara Agatha Christie a desaparecer, um dia, sem mais aquelas. Tinham encontrado seu carro enfeixado contra um árvore. E a famosa escritora evaporara‑se. Só vários dias depois reaparecera Não deu, porém, a mínima explicação sobre a sua ausência. Na altura, o caso provocara um enorme tumulto; em toda a Inglaterra surgiram títulos de primeira página sobre o seu desaparecimento. Na verdade, em todo o mundo.

‑ Bem, você agora fez o mesmo, pelo menos por umas horas. Saiu da sua vida, tal como ela. ‑ Sorria‑lhe e ela olhou‑o com um olhar cheio de malícia, retribuindo‑lhe o sorriso. Depois, a idéia fê‑la rir e, por momentos, atraiu‑a.

‑ Mas ela desapareceu por uns dias. Comigo, é só por umas horas ‑ retorquiu, um pouco desapontada.

‑ Provavelmente, agora andam loucos à sua pro­cura por toda a parte. Talvez pensem que foi raptada pelo rei Khaled. ‑ A estas palavras, Olivia riu‑se ainda mais, como uma criança; pouco depois, Peter encomendou um sanduíche para cada um e, quando elas chegaram, devoraram‑nas. Estavam esfomeados.

- Não creio que andem sequer à minha procura, sabe? Não tenho a certeza de que, se desaparecesse mesmo, alguém daria por isso, a menos que nesse dia houvesse uma reunião a que deveria assistir, ou um discurso de campanha num clube feminino. Quando há coisas dessas, sou utilíssima. Não havendo, pouca importância tenho. Mais ou menos como aquelas árvores artificiais com que se decora o palco. Não é preciso adubá‑las ou regá‑las, apenas se retiram e guardam para quando for necessário ornamentar uma pequena janela para o espetáculo principal.

‑ Que coisa horrível de dizer ‑ repreendeu‑a ele, apesar de, pelo que vira, não estar certo de discordar.

É mesmo isso o que pensa da sua vida?

‑ Mais ou menos. ‑ Sabia que se arriscava imenso. Se afinal o homem fosse um repórter ou, ainda pior, alguém dos tablóides, de manhã estaria feita em fanicos. De certa forma, pouco lhe importava. De quando em vez precisava de confiar em alguém; sentia desprender­‑se de Peter um não sei quê de incrivelmente afetuoso e atraente. Nunca conversara com ninguém como o fazia agora, e não queria calar‑se, nem voltar para a sua vida ou sequer regressar ao Hotel Ritz. Apetecia‑lhe ficar ali, com ele, em Montmartre, para sempre.

‑ Porque casou com ele? ‑ atreveu‑se Peter a perguntar, quando ela pousou a sanduíche; o olhar de Olivia perdeu‑se na noite, pensativo, por um bom bocado, antes de voltar a fixar‑se em Peter.

‑ Nessa altura, era diferente. Mas a vida muda muito depressa. Aconteceu‑nos uma quantidade de coisas. No Início, tudo parecia certo. Amávamo‑nos, Preocupávamo‑nos um com o outro, ele jurou‑me que nunca se meteria em política. Eu via o que a carreira do meu pai nos fazia, em especial à minha mãe, e o Andy acabara o curso de Direito. Íamos ter filhos, cavalos, cães, viver numa quinta na Virgínia. Foi o que fizemos cerca de seis meses, e então acabou‑se. O irmão era o político da família, não o Andy. Talvez o Tom tivesse sido presidente e para mim teria sido uma felicidade nunca ver a Casa Branca senão quando acendem a árvore, no Natal. Mas o Tom foi assassinado seis meses de, pois de nos termos casado, e os tipos da campanha agarraram‑se ao Andy. Não sei o que lhe aconteceu, se se sentiu obrigado por o irmão ter sido morto, obrigado a seguir‑lhe as pisadas e fazer «qualquer coisa útil pelo país». Ouvi esta frase até à exaustão. E penso que o meu marido se apaixonou por ela. Sobe à cabeça, essa coisa chamada ambição política. Acabei por perceber que exige mais de nós do que qualquer criança, e parece oferecer mais excitação e paixão do que qualquer mulher. Devora quem se lhe chegar perto. Não se pode amar a política e sobreviver. Não se pode, é assim mesmo. Eu sei. Acaba por devorar o que quer que se tenha dentro de nós, todo o amor, bondade e decência, devorar o que se era antes e pôr em seu lugar um animal político. Como que uma troca. Foi o que se passou. O Andy entrou na política e então, por mim, e porque achava que ambos o desejávamos, tive um filho. Mas ele não o desejava verdadeiramente. O Alex nasceu durante uma das suas viagens de campanha. O Andy nem sequer estava presente. Nem quando ele morreu. ‑ Às últimas palavras, contraiu‑se‑lhe o rosto. ‑ Coisas destas modificam qualquer um... o Tom... o Alex... a política. A maioria das pessoas não as ultrapassa. Nós não ultrapassamos. Não sei porque pensei que o conseguiríamos. Era pedir muito. Acho que, ao morrer, o Tom levou consigo a maior parte do Andy. Aconteceu‑me o mesmo­ com o Alex. O jogo da vida é por vezes muito duro. Invencível, por mais que se tente, por mais dinheiro que se ponha na mesa. Um jogo em que investi muitíssimo e que pratico há imenso tempo. Estamos casados há seis anos e nem um só foi fácil.

‑ Porque continua? ‑ Espantosa, uma conversa deste teor entre estranhos, ao ponto de a ambos surpreender o atrevimento das perguntas dele e a candura das respostas dela.

‑ Como fazer? O que dizer? «Lamento que o teu irmão tenha morrido e toda a tua vida tenha ficado em frangalhos... Lamento que o nosso único filho... ‑ De súbito, embargou‑se‑lhe a voz. Peter pegou‑lhe na mão, apertou‑a na sua e ela não a retirou. Na noite anterior, eram de fato dois estranhos numa piscina e de repente, num café em Montmartre, passado um dia, quase dois amigos.

‑ Pode ter mais filhos? ‑ interrogou‑a Peter, prudentemente. Nunca se sabe o que acontece às pessoas, o que podem ou não podem... No entanto, quis perguntar‑lho, ouvir a resposta.

Olivia abanou afirmativa a cabeça, mas com uma expressão triste.

‑ Poderia, mas não quero. Agora, não. Nunca mais. Nem sequer quero voltar a preocupar‑me tanto com outro ser humano. E também não quero trazer outra criança para o mundo em que hoje vivo. É uma existência que quase deu cabo da minha vida e da do meu irmão, em jovens... e, mais importante do que isso, da minha mãe. Aceitou tudo sem um queixume durante quarenta anos, e odiou cada minuto desses quarenta anos. Nunca o confessou, nunca o admitiu perante ninguém, mas a política arrumou‑lhe a vida. Vive o terror constante da interpretação que as pessoas darão a cada um dos seus gestos, tem medo de ser, ou de pensar, ou de dizer seja o que for. Era assim que o Andy quereria que eu fosse, e que eu não sou capaz de ser. Enquanto falava, era evidente o seu genuíno terror e Peter leu‑lhe o pensamento.

‑ Eu não vou magoá‑la, Olivia. Nunca, nunca repetirei nada do que me disse a ninguém. Fica entre nós... e a Agatha Christie. ‑ Sorria‑lhe e ela olhava cautelosa, sem saber se deveria ou não confiar nele O curioso é que confiava. Só de olhá‑lo, sabia que Peter não a trairia. ‑ Esta noite nunca existiu ‑ continuou este, atento. ‑ Vamos voltar para o hotel separados e ninguém saberá nunca onde estivemos, nem sequer que estivemos juntos. Eu nunca a encontrei.

- Isso é reconfortante. ‑ Eram óbvios o seu alivio e a sua gratidão, e acreditava nele.

‑ Costumava escrever, não costumava? ‑ Peter lera qualquer coisa a esse respeito uns anos atrás e interessava‑lhe saber se ainda o faria.

‑ Costumava. Como a minha mãe. Aliás, muito talentosa, escreveu um romance sobre o Washington que deu brado, no princípio da carreira do meu pai. Foi publicado, mas ele não a deixou publicar mais nada, e a verdade é que ela não o teria feito. Eu não tenho o mesmo talento, nunca publiquei coisa nenhuma, mas durante muito tempo apeteceu‑me escrever um livro sobre pessoas e compromissos, e o que acontece quando alguém se compromete de mais ou demasiadas vezes.

‑ Porque não o escreve? ‑ Era sincero, mas Olivia limitou‑se a rir e a abanar a cabeça.

- O que acha que aconteceria se o fizesse? A imprensa ficava furiosa. O Andy diria que eu lhe punha a carreira em jogo. - O livro nunca veria a luz do dia. Seria queimado num armazém qualquer, pelos seus seguidores. ‑ O Proverbial pássaro numa gaiola dourada, sem poder fazer nada do que queria, por medo de ferir o marido. Todavia, afastara‑se dele e desaparecera para ir sentar‑se num café em Montmartre e abrir o coração a um desconhecido. Estranha, a sua vida; e, ao olhá‑la, Peter via quanto ela estava perto de lhe pôr um ponto final. O seu ódio à política e os desgostos que esta lhe trouxera eram evidentes e abundantes.

‑ E você? ‑ Fixou no homem, atenta, os seus profundos olhos castanhos. Tudo o que sabia era que era casado, tinha três filhos, tratava de negócios e vivia em Greenwich. Também sabia, porém, que era um bom ouvinte e que, quando lhe segurara a mão, sentira bem fundo dentro de si uma espécie de agitação, como se a parte que julgava morta tivesse voltado a palpitar. ‑ Porque está em Paris, Peter?

Hesitou por muito tempo, ainda com a mão dela entre as suas e olhando‑a nos olhos. Não dissera nada a ninguém, mas Olivia confiara nele, e ele precisava de lho contar. Tinha de contar a alguém o que se passara.

‑ Estou aqui por causa da companhia farmacêutica que dirijo. Há quatro anos que estamos a trabalhar num produto muito complicado, o que neste campo nem é um período muito longo, embora a nós nos tenha parecido. Além disso, gastamos uma enorme soma de dinheiro. É um produto que poderia revolucionar a quimioterapia, o que julgo importantíssimo. Seria a minha contribuição para o mundo, de certo modo uma compensação por todas as coisas frívolas e egocêntricas que tenho feito. De grande significado para mim. Passou todos os testes com êxito, em todos os países onde trabalhamos. Os últimos ensaios estão a ser feitos aqui, e eu vim para os acompanhar de perto. Temos de pedir a FDA autorização para iniciar experiências em pessoas, baseados nos nossos testes. Os nossos laboratórios chegaram à reta final e, até agora, o produto revelava‑se impecável. Mas os ensaios daqui mostram uma coisa bem diferente. Ainda não estão prontos, mas, quando cá cheguei ontem, o diretor dos nossos laboratórios disse‑me que poderia haver sérios entraves ao medicamento. Numa palavra, em vez de uma dádiva de Deus para ajudar a salvar a raça humana, poderá ser um medicamento assassino. Não saberei a história completa antes do fim da semana, mas pode ser a morte de um sonho, ou o início de longos anos de ensaios. E se for esse o caso, tenho de voltar para casa e dizer ao administrador‑geral da minha companhia, que por coincidência é o meu sogro, que o nosso produto vai para a prateleira ou pela janela fora. Não vai ser uma notícia bem‑vinda.

Impressionada, Olivia abanou a cabeça.

‑ Penso bem que não. Contou‑lhe o que lhe disse­ram ontem? ‑ Estava certa de que contara, a pergunta era quase retórica; ficou pois estupefata quando o viu negar, com um gesto e uma expressão culpada.

‑ Não quero dizer nada até ter dados concretos respondeu, rodeando a questão. Era profundo o olhar com que ela o observava.

‑ Que semana vai ter, à espera da sentença! ‑ comentou com simpatia, só então começando a perceber, pela expressão de Peter, até que ponto o caso era relevante para ele. ‑ O que diz a sua mulher? ‑ perguntou, partindo do princípio de que o relacionamento dos outros casais era diferente do seu. Não podia conhecer o problema particular dele, o fato de não poder contar nada a Katie sem que esta o transmitisse ao pai.

De novo Peter a surpreendeu, desta vez ainda mais.

‑ Não lhe contei ‑ respondeu ele, em voz baixa, e Olivia olhou‑o, estupefata.

‑ Não contou? Porquê? ‑ Não conseguia imaginar a razão.

‑ É uma longa história. ‑ Sorriu‑lhe timidamente, o que a deixou perplexa. Algo no seu olhar lhe segredava a sua solidão e desencanto. Mas algo tão subtil, que talvez nem ele próprio tivesse consciência da sua existência. ‑ Ela é muito ligada ao pai ‑ continuou, em voz pausada, medindo as palavras. ‑ A mãe morreu‑lhe quando era criança, cresceu sozinha com ele. Não há absolutamente nada que não lhe conte. ‑ Pôde ver que Olivia o compreendera.

‑ Mesmo confidências que você lhe faça. ‑ Tamanha indiscrição ultrajava‑a.

‑ Mesmo essas. ‑ Esboçou um sorriso. ‑ A Katie não tem segredos para o pai. ‑ Apertou‑se‑lhe o coração ao dizê‑lo. Não sabia bem porquê, mas o fato aborrecia‑o mais ao mencioná‑lo do que o aborrecera durante anos.

‑ Deve ser desagradável para si. ‑ E Olivia pro­curou ler‑lhe nos olhos se ele era infeliz, ou se estava consciente de o ser. Dava a entender que a lealdade de Katie para com o pai, e a tal ponto, era não só aceitável, nem normal. E, no entanto, era diferente o que os seus olhos diziam. Talvez fosse essa a causa de ter aludido a que Para todos havia momentos em que se sentiam mal na sua pele. Olivia, que considerava da maior importância a privacidade, a discrição e a lealdade, apercebeu‑se do constrangimento de Peter.

‑ As coisas são como são ‑ foi a sua simples réplica. ‑ Aceitei‑as há muito tempo. Não julgo que venha daí grande dano. Mas tem como resultado que às vezes não posso contar‑lhe tudo. São tremendamente agarrados um ao outro. ‑ Olivia decidiu, para bem dele mudar de assunto. Não tinha a mínima intenção, nem o direito, de lhe fazer discursos protetores, nem de o magoar sublinhando o inadequado comportamento da esposa. Afinal de contas, mal o conhecia.

‑ Deve ter‑se sentido muito só, hoje, preocupado com o resultado dos testes e sem ter com quem desabafar. ‑ Olhou‑o com simpatia. Fora direita ao alvo, com as suas palavras. Trocaram um quente sorriso de compreensão. Ambos carregavam aos ombros pesados fardos.

‑ Tentei manter‑me ocupado, uma vez que não podia falar com ninguém. Fui ao Bois de Boulogne, fiquei a ver as brincadeiras dos miúdos. Depois passeei ao longo do Sena, fui ao Louvre, voltei para o hotel e trabalhei até soar o alarme. ‑ Sorriu. ‑ Foi um dia bastante bom, mesmo a partir daí. ‑ E depressa seria um novo dia. Eram quase cinco da madrugada; ambos sabiam que em breve deveriam regressar ao hotel. Conversaram ainda outra meia hora e, finalmente, às cinco e meia, deixaram com relutância o café e partiram à procura de um táxi. Caminharam devagar pelas ruas de Montmartre, ela de T‑shirt e ele em mangas de camisa de mãos dadas, como dois garotos no seu primeiro encontro, sentindo‑se incrivelmente bem.

‑ A vida às vezes é curiosa, não é? ‑ Olhava‑o, feliz, a pensar em Agatha Christie e perguntando aos seus botões se a escritora fizera algo semelhante, ou até mais ousado, durante o seu desaparecimento. Ao regressar, a famosa autora nunca o revelara. ‑ Pensamos que estamos sós e então alguém surge do nevoeiro, o mais inesperadamente possível, e já não estamos sós. ‑ Nunca sonhara conhecer alguém como ele, tão ao encontro das suas necessidades. Porque estava sedenta de afeto.

- Uma coisa boa para recordar, quando tudo corre mal, não é? Nunca se sabe o que se vai encontrar ao dobrar da esquina.

‑ No meu caso, receio que o que está mesmo ao dobrar da esquina possa ser uma eleição presidencial. ou ainda pior, outra bala de um louco. ‑ Um pensa­mento horrível, que trouxe de volta as péssimas recordações do assassínio do cunhado. Era evidente que em tempos amara profundamente Andy Thatcher e ainda a entristecia que a vida tivesse sido tão madrasta para eles, lhes tivesse lançado tantas pedras. Em certos pontos, Pe­ter lamentava ambos, mas, no conjunto, era de Olivia que mais pena tinha. Nunca vira ninguém ignorar outro ser humano da forma como Andy Thatcher ignorara a mulher, de todas as vezes que os vira juntos. Era uma indiferença total, como se ela não existisse de todo, ou ele nem sequer a visse. E a sua falta de interesse era claramente extensiva aos seus acompanhantes. Talvez Olivia tivesse razão, talvez para eles não passasse de um mero objeto decorativo. ‑ E você? ‑ interrogou‑o, com renovada preocupação a seu respeito. ‑ Vai ser muito mau para si se o vosso produto se revelar um desastre nos testes finais? O que lhe farão, em Nova Iorque?

‑ Penduram‑me pelos pés e esfolam‑me vivo ‑ brincou ele, mas com um sorriso doloroso; e, de novo sério: ‑ Não vai ser fácil. O meu sogro ia reformar‑se este ano, acho que em parte como um voto de confiança em mim, mas não acredito que o faça se perdermos este produto. Penso que ficará furioso, mas eu continuarei a apoiar o medicamento. ‑ Para ele, não era só mais um medicamento. Pôr o Vicotec no mercado, era um meio de salvar pessoas que iriam morrer como, há anos, a sua mãe e a sua irmã. E isso era o principal para Peter. Ainda mais do que o lucro ou a reação de Frank Donovan. E agora, corriam o risco de perder totalmente o produto. Quase desfaleceu ao antever tal possibilidade.

‑ Quem me dera ter a sua coragem ‑ suspirou ela, triste, e com aquele olhar que Peter conhecia de quando a encontrara pela primeira vez, um olhar de in­finita mágoa.

‑ Não se pode fugir aos fatos, Olivia. ‑ Ela já o sabia. O seu filho de dois anos morrera‑lhe nos braços. Que maior coragem haveria na vida? Não precisava que lhe ensinassem a ser corajosa.

‑ E se a sobrevivência depender de uma fuga? ‑ interrogou‑o, séria, e ele rodeou‑lhe os ombros com o braço.

‑ Tem de ter a certeza antes de o fazer. ‑ Foi também muito sério que a fitou, ansioso por poder ajudá-la. Era uma mulher que precisava desesperadamente de uma pessoa amiga, e ele teria adorado ser essa pessoa, para além de uma meia dúzia de horas. Mas não ignorava que, logo que a deixasse no hotel, nunca seria capaz de lhe telefonar, de conversar com ela, para já não falar em vê-la.

‑ Acho que estou a adquirir essa certeza. Só que ainda não cheguei lá. ‑ Uma verificação dolorosamente honesta. Tão infeliz, e ainda precisava de se decidir em definitivo!

‑ E para onde fugirá? ‑ Estavam já no táxi que por fim haviam encontrado e mandado seguir para a Rue Castiglione. Ele não queria levá‑la até ao hotel e ainda não sabiam se todos já teriam podido voltar a entrar, ou se continuariam agrupados na praça, à espera.

Para Olivia, a última pergunta de Peter era de resposta fácil. Já lá estivera e ficara‑lhe a certeza de que se­ria sempre o seu porto de abrigo.

‑ Há um sítio para onde eu costumava ir, há muito tempo, quando estive cá a estudar durante um ano, no liceu. É uma pequena aldeia de pescadores, no Sul da França. Descobri‑a quando cheguei e às vezes ia para lá nos fins‑de‑semana. Não é chique, nem moderna, é muito simples, mas era o lugar que eu preferia quando precisava pensar, de me reencontrar comigo própria. Passei lá uma semana depois da morte do Alex, mas tive medo de que a imprensa me descobrisse e por isso vim­‑me embora, antes que eles chegassem. Detestaria per­der aquele refúgio. Adorava voltar lá um dia, ficar algum tempo, talvez mesmo escrever finalmente o livro que continua na minha cabeça, para ver se sou capaz. É um lugar mágico, Peter. Bem gostava de lho mostrar.

‑ Talvez um dia mostre ‑ replicou, numa quase lisonja, puxando‑a para si, mas num gesto de conforto e apoio. Não fez qualquer tentativa ousada, não tentou beijá‑la. Nada no mundo lhe daria maior prazer, mas além do respeito por Olivia, e pela sua mulher, não o faria de forma alguma. De certa maneira, Olivia era para uma fantasia, e só o ter conversado com ela toda a noite, uma dádiva que guardaria para sempre no coração. Como uma cena de filme. ‑ Como se chama afinal esse sítio? ‑ E, ao responder‑lhe, ela sorriu e disse­‑lho como se lhe desse um presente. Uma senha só dos dois.

‑ La Favière. Fica no Sul de França, perto de um lugar chamado Cap Benat. Vá lá, se um dia precisar. É o que de melhor tenho para oferecer a alguém ‑ murmurou, encostando a cabeça ao ombro dele; e durante o trajeto de regresso, Peter deixou‑a ficar assim, sentindo, sem necessidade de palavras, que era disso que ela tinha necessidade. Gostaria de afirmar‑lhe que seria sempre seu amigo, que estaria ao seu dispor se precisasse dele, que nunca deveria hesitar em chamá‑lo, mas não sabia bem como dizer‑lho e, em vez de o fazer, apenas a aconchegou. Num breve instante de loucura, até lhe apeteceu dizer‑lhe que a amava. Quanto tempo decorrera desde que alguém lho dissera, quanto tempo desde que alguém conversara com ela prestando‑lhe atenção, e se interessara pelos seus sentimentos? ‑ Você é um homem de sorte ‑ sussurrou Olivia com doçura, quando o táxi parou na Rue Castiglione, a rua que conduzia à Place Vendôme.

‑ Sou um homem de sorte, porquê? ‑ Havia curiosidade na pergunta de Peter. A única coisa que de momento lhe parecia favorável era ter estado junto dela a noite inteira, ambos pondo a nu as almas e partilhando os segredos.

‑ Porque está contente com a sua vida, acredita no que fez e ainda crê na decência da raça humana. Quem me dera sentir assim, mas há muito que não sinto.

Olivia, porém, não tivera tanta sorte. A vida fora amável para ele a maior parte do tempo, e extremamente dura para Olivia Thatcher. Peter também lhe confessou suspeitar que o seu casamento era muito menos satisfatório do que lho descrevera por pensar que nem ele próprio o sabia. Sob certos aspectos, era um homem de sorte por estar ainda tão cego; mas era sincero e carinhoso e trabalhava arduamente, aceitando fechar os olhos à indiferença da mulher para consigo, ao envolvimento desta na sua própria vida e à ultrajante invasão do sogro no que deveria ser a vida privada deles. Aos olhos de Olivia, era um afortunado, porque não via o vazio que o rodeava. Talvez o pressentisse, mas não o via na realidade. E, basicamente, era uma pessoa tão encantadora, decente, amorosa! Sentira tanto calor humano da sua parte nessa noite que mesmo agora, prestes a amanhecer, não quereria deixá‑lo.

‑ Detesto regressar ‑ murmurou, sonolenta, meti­da na T‑shirt branca e aninhada contra o seu ombro no banco de trás do táxi. Depois de tanto falarem, estavam ambos cansados e ela começava a dar mostras de fadiga.

‑ Detesto separar‑me de si ‑ replicou ele, honesto, tentando obrigar‑se a recordar Katie; mas era com aquela mulher que queria estar, não com Katie. Nunca conversara com ninguém como o fizera com Olivia, e ela era tão generosa, tão compreensiva! E tão só, tão ferida, tão faminta de afeto! Como poderia deixá‑la? Era duro evocar as razões por que teria de o fazer.

‑ Sei que é suposto eu voltar, mas não consigo recordar‑me porquê. ‑ Olivia sorriu, a cair de sono, pensando no dia de festa para os paparazzi se tivessem podido vê‑los nas últimas seis horas. Custava a crer que houvessem estado ausentes tanto tempo. Depois de horas a fio de conversa em Montmartre, era uma agonia regressar para os lugares a que pertenciam, mas sabiam que assim tinha de ser. Ocorreu de súbito a Peter que nunca falara com Katie de maneira semelhante à que usara com Olivia. Pior ainda, estava a apaixonar‑se por ela e nem sequer a beijara.

- Ambos temos de voltar ‑ afirmou, pesaroso. ‑ A esta hora, devem andar malucos, preocupados consigo. E eu tenho de aguardar notícias do Vicotec. ‑ Se não fosse esse o caso, teria adorado fugir com ela.

‑ E depois? ‑ Referia‑se ao Vicotec. ‑ Os nossos mundos diferentes desmoronam‑se, cada um para seu lado, e nós continuamos em frente. Porque teremos de ser corajosos? ‑ Falava como uma criança petulante, ele sorriu ao ver a sua expressão.

‑ Acho que porque fomos selecionados para esse fim. Algures, não sei quando, alguém disse: «Eh, tu aí, segue por este caminho, és um dos corajosos.» Mas na verdade, Olivia, você é muito mais corajosa do que eu, Sentira‑o nessa noite e, pelo fato, respeitara‑a imenso,

‑ Não sou, não. Nunca o fui de modo voluntário Não se tratou de uma escolha entre várias opções Aconteceu, simplesmente. Não é coragem, é apenas destino. ‑ Olhou‑o em silêncio, desejando que ele fosse seu e sabendo que nunca o seria. ‑ Obrigada por me ter seguido... e pelo café. ‑ Sorriu, ele selou‑lhe os lábios com a ponta dos dedos.

‑ Em qualquer altura, Olivia... não se esqueça. Em qualquer altura que lhe apeteça um café, eu estarei lá. Nova Iorque... Washington... Paris... ‑ Era a sua maneira de lhe oferecer amizade e ela percebeu‑o. Infeliz­mente para ambos, nada mais podia oferecer‑lhe.

‑ Boa sorte com o Vicotec ‑ disse ao sair do carro. Se estiver escrito que será você a ajudar toda essa gente, Peter, ajudará mesmo. Acredito nisso.

- Também eu. ‑ Era pungente, sentia‑lhe já a falta. ‑ Cuide de si, Olivia. ‑ Quereria dizer tantas coisas, desejar‑lhe o melhor, apertá‑la nos braços, fugir com ela para a sua aldeia de pescadores perto de Benat. Porque seria a vida por vezes tão  injusta? Porque não era mais generosa? Porque não podiam eles desaparecer, muito simplesmente, como Agatha Christie?

Deixaram‑se ficar parados no passeio durante um longo instante; depois, Peter apertou‑lhe a mão pela última vez, ela dobrou a esquina, atravessou rapidamente a praça, um vulto pequeno, flexível, de T‑shirt branca e calças de ganga azuis. E enquanto a via afastar‑se, Peter perguntava a si próprio se alguma vez voltaria a encontrá-la, mesmo no hotel. Seguia‑a já, quando Olivia se deteve à porta do Ritz e lhe acenou um prolongado adeus; e Peter odiou‑se por não a ter beijado.

 

Para grande surpresa sua, Peter dormiu até ao meio­‑dia. Regressara às seis horas da manhã, exausto. E, mal acordou, pensou em Olivia; sem ela, sentia‑se inerte e triste; olhou pela janela, chovia. Sentou‑se e por muito tempo, no meio dos croissants e do café, continuou a pensar nela, no que se teria passado quando entrara no quarto ao princípio da manhã. Estaria o marido furioso, ou assustadíssimo, louco de preocupação, ou apenas vagamente incomodado? Não conseguia imaginar Katie a fazer uma coisa semelhante. Mas, dois dias antes, também não poderia imaginar‑se a si próprio a fazer o que fizera.

Teria desejado continuar a conversar com Olivia, a noite inteira. Era tão honesta e franca com ele! Terminado o pequeno‑almoço, ficou a recordar algumas das coisas que ela lhe dissera, sobre a sua vida e sobre a dele. Através dos olhos de Olivia, o seu casamento surgia‑lhe sob uma perspectiva diferente; agora, desagradava‑lhe o relacionamento de Katie com o pai. Eram tão chegados que na verdade se sentia excluído; e aborrecia‑o não poder contar a Katie o ocorrido com Suchard e a razão da sua demora em Paris. Mesmo que não o explicasse a Frank, gostaria de ter podido dizê‑lo à sua mulher... e tinha a certeza absoluta de não poder.

Curioso o fato de lhe ter sido fácil, na noite anterior, contá‑lo a uma perfeita estranha... Olivia fora tão simpática, tão amável com ele, compreendera tão facilmente quanto lhe era penosa a espera. Quem lhe dera poder voltar a conversar com ela! E enquanto tomava a ducha e se vestia, descobria que só pensava... nos seus olhos... no seu rosto... naquele olhar melancólico, afastar‑se, e na dor que sentira ao vê-la separar‑se dele. Tudo tão irreal! Foi quase um alívio ouvir tocar o telefone, uma hora mais tarde; era Katie. Apeteceu‑lhe correr para ela, apertá‑la nos braços, reafirmar a si próprio que realmente a amava.

‑ Olá! ‑ Eram sete da manhã para ela e a sua voz soava viva, desperta e já apressada. ‑ Como vai Paris?

Por um instante, Peter hesitou, inseguro quanto à resposta a dar‑lhe.

‑ Otimamente. Tenho saudades tuas ‑ afirmou. E de súbito pesou‑lhe nos ombros a espera pela chama­da de Suchard e a noite da véspera transformou‑se nu­ma mera ilusão. Ou seria Olivia a realidade, e Katie a ilusão? Ainda cansado da noite em branco, era grande a confusão nas suas idéias.

‑ Quando voltas para casa? ‑ Bebia uma chávena de café, terminava o seu pequeno‑almoço em Greenwich. Ia apanhar um comboio para Nova Iorque às oito horas, tinha pressa.

‑ Daqui a poucos dias, espero ‑ respondeu, pensativo. ‑ No fim da semana, de certeza. o Suchad atrasou‑se com os testes e eu achei que assim o apressaria um pouco.

‑ Foi alguma coisa importante que causou o atraso, ou só questões técnicas? ‑ Peter quase podia ver Frank a seu lado, atento à resposta. Não duvidava de que já contara à filha tudo o que Peter lhe dissera na véspera. E, como sempre, teria de medir as palavras; iriam todas parar, em linha reta, aos ouvidos do pai.

‑ Só uns pormenores insignificantes. Sabes como o Suchard é meticuloso ‑ replicou, com despreocupação.

- É um picuinhas, se queres a minha opinião. Há-de sempre encontrar problemas, quer existam quer não. O pai diz que em Genebra correu tudo lindamente. ‑ Parecia orgulhosa do marido, mas um pouco fria. Com o decorrer dos anos, o relacionamento entre ambos sofrera transformações curiosas. Era menos afetuosa do que costumava ser, e menos expansiva, exceto se estivesse de muito bom humor e a sós com ele. Nessa manhã, não se mostrava muito calorosa.

‑ Claro que correu lindamente, em Genebra. ‑sorriu, tentando visualizá‑la, mas tudo o que lhe ocorreu à mente foi o rosto de Olivia, sentada na cozinha de Greenwich. Uma espécie de alucinação esquisita, que o preocupou. A sua vida era com Katie, não com Olivia Thatcher. Escancarou os olhos e fixou‑os na chuva que fustigava a janela, tentando concentrar‑se no que dizia. ‑ Que tal foi o jantar com o teu pai, ontem? ‑ Esforçava‑se por mudar de assunto, não queria discutir o Vicotec com ela. Teria muito tempo para isso, no fim‑de­‑semana.

‑ Estupendo. Fizemos montes de planos para Vineyard. O pai vai tentar ficar lá os dois meses, este ano. ‑ Estava radiante e Peter obrigou‑se a esquecer o que ouvira de Olivia sobre compromissos a tomar. Era esta a sua vida há quase vinte anos, tinha de continuar a vivê-la.

‑ Eu sei que ele passa lá os dois meses inteiros, todos vocês me abandonam na cidade. ‑ Sorriu a esse pensamento e então lembrou‑se dos filhos. ‑ Como estão os rapazes? ‑ O seu tom de voz revelava bem quanto os amava.

- Ocupados. Nunca os vejo. O Patrick acabou a escola, o Paul e o Mike chegaram a casa no dia em que tu partiste, e isto aqui voltou a parecer um jardim zoológico. Passo o tempo a apanhar do chão peúgas e calças de ganga e a tentar constituir pares com treze sapatos de tênis. ‑ Ambos sabiam que tinham sido abençoados e todos os garotos eram bons. E Peter gostava de estar com eles, sempre gostara. Ao ouvir Katie, sentiu‑lhes a falta,

‑ O que vão fazer hoje? ‑ perguntou, tristonho Para ele, seria mais um dia a aguardar o telefonema de Suchard, com pouco para fazer além de se sentar no quarto e trabalhar no computador.

‑ Eu tenho uma reunião na cidade. Pensei em almoçar com o pai e quero trazer umas coisas para Vineyard. Os rapazes deram‑nos cabo dos lençóis, o ano passado, além disso preciso de toalhas novas e outras bugigangas. ‑ Notava‑se que estava com pressa e distraí­da, e a informação de que ia encontrar‑se outra vez com Frank não caiu em orelhas moucas.

‑ Julguei que tinhas jantado com o Frank a noite passada ‑ comentou Peter, de sobrolho franzido. A sua perspectiva alterava‑se ligeiramente.

‑ E jantei. Mas disse‑lhe que ia à cidade hoje e ele convidou‑me para um almoço rápido no seu gabinete. ‑ O que mais poderia ter para lhe dizer? Enquanto a escutava, era nisso que Peter pensava. ‑ E tu? ‑ Katie passava‑lhe a bola e ele olhou uma vez mais a chuva que se abatia sobre os telhados de Paris. Adorava Paris, mesmo com chuva. Adorava tudo o que com Paris se relacionava.

‑ Acho que vou ficar no quarto, a trabalhar. Tenho umas tantas coisas a resolver, no computador.

‑ Não parece grande divertimento. Porque é que não vais, ao menos, jantar com o Suchard? ‑ Quero muito mais dele do que companhia para o jantar e, além disso, não pretendia distraí‑lo do que era suposto estar a fazer.

- Acho que anda muito ocupado ‑ retorquiu, vagamente.

‑ Também eu. Tenho de me despachar, senão per­co o comboio. Tens algum recado para o pai? ‑ Peter abanou a cabeça, achando que, se tivesse algum, lhe telefonaria, ou lhe enviaria um fax. Não mandava recados a Frank via Katie.

‑ Divirtam‑se. Daqui a uns dias estou aí ‑ respondeu‑lhe; e nada na sua voz denunciava que passara a noite pondo a alma a nu perante outra mulher.

‑ Não trabalhes muito ‑ terminou Katie, calma­mente, e desligou; quanto a Peter, ficou largo tempo sentado, a pensar nela. A conversa fora insípida, mas típica da sua mulher. Interessava‑se pelo que ele fazia, e imenso por tudo o que se relacionasse com os negócios. Mas havia ocasiões em que não tinha tempo nenhum para lhe dedicar, e já nunca falavam dos seus pensamentos íntimos, nem compartilhavam sentimentos. Peter gostaria de saber se a assustava não estar efetivamente ligada a ninguém senão ao pai. Perder a mãe em peque­na provocara‑lhe o medo de perdas e abandonos, receava agarrar‑se demasiado a alguém, para além de Frank. Para Katie, o pai há muito que prestara as suas provas e estivera sempre presente. Também Peter estava a seu lado, mas o pai era a sua prioridade. E exigia‑lhe imenso. Exigia o seu tempo, o seu interesse, a sua afeição. Por seu turno, dava imenso, e contava que a generosidade dos seus presentes fosse inteiramente recompensada em disponibilidade e amor. Mas também Katie necessitava de mais na sua vida, necessitava do marido e dos filhos. E, todavia, Peter suspeitava de que nunca ela amara ninguém quanto amava Frank, nem a ele, nem aos filhos embora nunca o admitisse. E se desconfiava que alguém andava a trair Frank, lutava como uma leoa para o proteger. A reação que seria natural para com a sua própria família, não para com o pai. Essa característica normal de relacionamento sempre contrariara Peter. Era irracional, tamanho apego ao pai.

Trabalhou toda a tarde no computador e por fim pelas quatro horas, decidiu telefonar a Suchard, o que achou idiota mal acabara de o fazer. Desta vez, Paul‑Louis atendeu no laboratório, mas foi breve, limitou‑se a informá‑lo de que não havia nada de novo. já lhe prometera telefonar quando os testes finais estivessem terminados.

‑ Eu sei, desculpe... É que pensei... ‑ Sentia‑se, estúpido pela sua impaciência, mas o Vicotec significava tanto para ele, muito mais do que para qualquer outra pessoa; era um pensamento sempre presente. O Vicotec... e Olivia Thatcher. Por fim, tornou‑se‑lhe impossível trabalhar e às cinco horas decidiu ir até à piscina, numa tentativa de se libertar de tanta tensão acumulada.

Procurou Olivia no elevador e na piscina. Pro­curou‑a aliás por toda a parte, mas não a viu. Onde estaria ela? O que pensaria da noite anterior? fora um interlúdio raro para ela, ou uma espécie de ponto de viragem? Obcecava‑o tudo o que haviam dito, o aspecto dela, o significado profundo de tudo quanto lhe contara. Guardava na retina aqueles enormes olhos castanhos, a inocência estampada no seu rosto, a intensidade da sua expressão e o vulto esbelto de T‑shirt branca, a afastar‑se. Nem nadar o libertou dos seus pensamentos não se sentindo muito melhor quando subiu e ligou o televisor. Precisava de alguma coisa, qualquer coisa que o distraísse das vozes que ecoavam na sua cabeça, da visão da mulher que mal conhecia, da preocupação de ver o Vicotec ir por água abaixo, após os testes de Suchar.

O mundo continuava como sempre, informou‑o a CNN: agitação no Médio Oriente, um pequeno sismo no Japão; pânico com uma bomba no Empire State Building em Nova Iorque, que atirara para a rua milhares de pessoas aterrorizadas ‑ o que só serviu para lhe recordar a noite anterior, quando Olivia abandonara a Place Vendôme e ele a seguira. Ainda pensava nisso quando, inesperadamente, achou que estava a enlouquecer o locutor da CNN acabava de pronunciar o nome de Olivia, mostrava uma fotografia, desfocada, e atrás da T‑shirt branca da mulher que fugia apressada, descortinava‑se um homem, indistinto, a uma larga distância dela. Mas tudo o que se via com clareza era a parte de trás da cabeça de Olívia, nada mais.

«A esposa do senador Anderson Thatcher desapareceu a noite passada, durante uma ameaça de bomba no Hotel Ritz, em Paris. Foi vista a afastar‑se da Place Vendôme a passos largos, e este homem, que a seguia, foi fotografado. Mas não há qualquer outra informação a seu respeito, não se sabe se a seguia com más intenções, cumprindo um plano, ou por simples coincidência. Não era nenhum dos seus guarda‑costas, e ninguém parece saber nada a seu respeito.» Peter apercebeu‑se imediatamente de que a fotografia era a sua, quando começara a segui-la, mas felizmente ninguém o reconhecera e era impossível identificá‑lo por aquela imagem. “Mistress Thatcher não é vista desde cerca da meia‑noite de Ontem e não há quaisquer notícias a seu respeito. Um segurança noturno julga tê‑la visto regressar de manhã, mas outras fontes declaram que não voltou ao hotel depois de esta fotografia ter sido tirada. De momento, é impossível dizer se houve crime ou se, eventualmente, sujeita a tanta pressão política. Mistress Thatcher foi simplesmente para qualquer lugar, talvez para usufruir de uma curta pausa junto de amigos, em Paris ou perto de Paris. Todavia, à medida que o tempo se escoa, a hipótese afigura‑se cada vez menos provável. A única coisa certa é que Olivia Thatcher desapareceu. A CNN, em Paris...”

Peter, de olhos presos ao ecrã, nem queria acreditar nos seus sentidos. Acabavam de mostrar uma montagem de fotografias dela; depois, apareceu o marido e um repórter local entrevistou‑o para o canal de língua inglesa que Peter estava a ver. O repórter insinuou que Olivia andava deprimida nos últimos dois anos, sobretudo desde a morte do pequeno filho de ambos, Alex. Andy Thatcher negou‑o. Acrescentou ter a certeza de que a sua mulher estava viva e bem, algures, e que, se fora raptada, não tardariam a ter notícias dos raptores. Pare­cia muito sincero e espantosamente calmo. Tinha os olhos secos e não dava sinais de medo. O repórter in­formou então que a Polícia estivera toda a tarde no hotel com ele e os seus assistentes, a equipar telefones e à espera de um contato. Mas nada no aspecto de Andy Thatcher induzia Peter a pensar que estivesse a desperdiçar as horas de trabalho da sua campanha, e tão preocupado com o paradeiro da mulher como qualquer outro no seu lugar estaria. Quanto a Peter, apavorou‑o de imediato o que poderia ter‑se passado com ela depois de se separarem.

Deixara‑a pouco passava das seis da madrugada e vira‑a entrar no hotel. O que poderia ter‑lhe acontecido? Sentia‑se responsável. Tratar‑se-ia de um crime? Ter sido apanhada quando se dirigia para o quarto? Enquanto pensava e voltava a pensar, não arredava pé. A hipótese de um rapto inquietava‑o tanto, parecia‑lhe despropositada. E o nome de Agatha Christie não lhe saía da cabeça. Não conseguia afastar a idéia da possibilidade de algo terrível lhe ter acontecido, mas, quanto mais pensava, . mais suspeitava de que não acontecera. Na noite anterior, ela afastara‑se voluntariamente. Podia muito bem tê‑lo feito outra vez. Talvez lhe fosse real­mente impossível voltar a enfrentar a sua vida, embora Peter não ignorasse quanto se achava obrigada a fazê‑lo. Ainda na noite passada lhe confidenciara que decerto não agüentaria por muito mais tempo.

Às voltas no quarto, Peter pensava nela e não de­morou a decidir o que tinha a fazer. Era desagradável, sem dúvida, mas, se a segurança de Olivia dependia disso, valia a pena. Tinha de contar ao senador que estive­ra com ela, onde tinham ido, e que a trouxera de volta ao hotel de manhã cedo. Pretendia também falar‑lhe de La Favière pois, quanto mais pensava no caso, mais se convencia de que ela fora para lá. Seria o lugar, soube‑o no mesmo instante, onde se refugiaria. Por pouco que a conhecesse, para ele era óbvio. E apesar de Andy Thatcher não ignorar de certeza o quanto La Favière significava para a esposa, talvez não lhe tivesse ocorrido. Peter queria recordar‑lho e sugerir que mandassem a Polícia procurá‑la imediatamente. Se não a encontrassem, então não lhe restariam dúvidas de que Olivia estava de fato em apuros.

Não perdeu tempo a esperar pelo elevador. Encaminhou‑se diretamente para as escadas e subiu os dois lanços até ao andar onde eles estavam hospedados. Olivia mencionara o número do quarto na noite anterior e ele viu logo Polícia e serviços secretos nos corredores a conversar. Pareciam vencidos, mas não acabrunhados. Até no exterior da sua suíte, ninguém se mostrava deveras preocupado. Observaram‑no, enquanto ele se aproximava. Tinha um ar respeitável, vestira o casaco ao sair do quarto. Trazia a gravata na mão; de repente, interrogou‑se: Anderson Thatcher recebê‑lo-ia? Não queria discutir o assunto com outra pessoa e ia ser embaraçoso contar‑lhe que passara seis horas com a mulher, num café de Montmartre; mas achava‑se na obrigação de ser sincero com ele.

Ao chegar à porta, Peter pediu para falar com o senador e o guarda‑costas perguntou‑lhe se o conhecia pessoalmente; Peter teve de admitir que não o conhecia. Identificou‑se e sentiu‑se parvo por não ter telefonado antes, mas fora tanta a sua pressa ao saber do desaparecimento de Olivia que quisera comunicar com a máxima rapidez o sítio onde pensava que ela se teria escondido.

Enquanto o guarda‑costas entrava na suíte, Peter ouviu risos e barulho lá dentro, viu fumo de cigarros e chegou‑lhe aos ouvidos o som de uma conversa anima­da. Quase como se houvesse uma festa. Teria a ver com os esforços de pesquisas para localizar Olivia ou, como de início suspeitara, o que de fato discutiam era a campanha, ou outros assuntos políticos?

O guarda‑costas regressou num instante, apresentou delicadamente as desculpas do senador Thatcher. Para todos os efeitos, estava em reunião; talvez se Mr. Haskell quisesse ter a amabilidade de ligar e pudessem discutir os seus problemas por telefone? Tinha a certeza de que o Mr. Haskell compreenderia, tendo em conta o que acabara de suceder. E enquanto o homem falava Mr. Haskell compreendeu. O que não compreendeu foi a razão de risadas na sala, de não notar correrias, de ninguém demonstrar pânico perante a hipótese de a perderem.

Procederia ela assim com freqüência? Ou, muito simplesmente, pouco lhes importava? Ou suspeitariam, tal como ele, que Olivia apenas não agüentara mais, por agora e fora dar um passeio de um dia ou dois para pôr as idéias em ordem?

Esteve tentado a dizer que a sua mensagem tinha a ver com o paradeiro da esposa do senador, mas percebeu que também poderia estar errado e agora, pensando melhor, via com maior clareza até que ponto ia ser constrangedor explicar o encontro de ambos, na Place de la Concorde. Qual a razão exata por que a seguira? Numa interpretação maldosa, a coisa poderia degenerar num enorme escândalo, tanto para ela como para ele. Só agora tomava consciência do erro que cometera. Devia ter telefonado, e regressou ao seu quarto no intuito de o fazer. Mas, mal entrou, viu de novo na CNN a fotografia dela. O repórter inclinava‑se mais para um suicídio do que para um rapto. Exibiam velhas fotografias do filho que lhe morrera e depois instantâneos dela no funeral, a chorar. E os olhos acossados que o olhavam rogavam‑lhe que não a traísse. Entrevistaram a seguir um perito em depressões, dissertaram sobre as loucuras que as pessoas fazem quando perdem a esperança, sobre o que se passara com Olívia Thatcher quando da morte do filho. E Peter bem gostaria de lhes atirar qual­quer coisa à cabeça. O que sabiam eles da sua dor, da sua vida, das suas mágoas? Que direito tinham de esquadrinhar os seus problemas? E mais fotografias, do seu casamento, seis meses mais tarde, no funeral do cunhado.

Peter ia a pegar no telefone quando começaram a enumerar as tragédias da família Thatcher, começando pelo assassínio de Tom seis anos antes, depois a morte do filho e, agora, o trágico desaparecimento de Olivia Thatcher. Já o apelidavam de trágico, quando o telefonista perguntou a Peter em que podia ajudá‑lo. Ia dar o número da suíte dos Thatcher; inesperadamente, sentiu que não podia fazê‑lo. Ainda não. Primeiro, tinha de ser ele a ver, pelos seus próprios olhos. E se ela não estivesse lá, então, certo de que alguma coisa lhe acontecera, telefonaria a Andy o mais depressa que pudesse. Na verdade, nada o ligava a Olivia mas, depois da noite anterior, devia‑lhe o seu silêncio. Só esperava não estar a pôr‑lhe a vida em risco, ao deixar passar o tempo.

Ao pousar o auscultador, a CNN informava de que quanto aos pais dela, o governador Douglas e a esposa, não se tinham mostrado disponíveis para comentar o desaparecimento da filha em Paris. A voz tornara‑se monótona; Peter foi buscar uma camisola ao armário. Só gostaria de ter trazido consigo um par de calças de ganga, mas não tivera maneira alguma de prever que surgiria uma oportunidade de os usar. Dificilmente se imaginaria de calças de ganga numa reunião de negócios.

Telefonou para a recepção e, tendo‑lhe sido dito que não havia aviões para Nice àquela hora da noite e o último comboio partira há cinco minutos, pediu um automóvel e um mapa que o guiasse de Paris até ao sul de França. Propuseram‑lhe um motorista, mas ele explicou que preferia guiar, embora com um motorista chegasse sem dúvida mais depressa e mais facilmente. Mas também com menor privacidade. Responderam‑lhe que tudo estaria a postos dentro de uma hora, que fosse buscar o carro à porta principal e que dentro dele encontraria os mapas. Eram sete horas, e às oito, quando desceu um Renault novo esperava‑o, com uma coleção de mapas no banco da frente. O porteiro explicou‑lhe, com toda a amabilidade, como sair de Paris. Não levava malas, não levava bagagem nenhuma. Só uma maçã, uma garrafa de água de Evian e, na algibeira, a escova de dentes. Ao sentar‑se ao volante, chegou‑lhe às narinas um vago odor a ganso selvagem recém‑caçado. já trata­ra de tudo na recepção; se fosse necessário poderia deixar o carro em Nice ou em Marselha e regressar a Paris de avião. Mas só se não a encontrasse. Se encontrasse, quereria regressar com ele? Pelo menos, poderiam conversar pelo caminho. Muitos problemas ocupavam, obviamente, a mente de Olivia; talvez ele pudesse ajudar a solucioná‑los durante o regresso a Paris.

A Autoroute du Soleil tinha ainda bastante trânsito àquela hora da noite; só depois de Orly começou a diminuir, permitindo a Peter rodar a uma certa velocidade durante duas horas, até Pouilly. Por essa altura, recuperara a calma. Não sabia porquê, mas não duvidava de que o seu procedimento fora o certo para com ela. E, pela primeira vez em muitos dias, sentiu‑se liberto de todas as suas cargas, de todas as suas preocupações. Pegar num carro e atravessar a noite ao volante atirara‑lhe pa­ra trás das costas as ralações. Fora maravilhoso conversar com ela, fora como um encontro inesperado com um amigo. E enquanto conduzia, recordava o seu rosto, o seu olhar a persegui‑lo, como da primeira vez em que a vira; e a noite em que a encontrara na piscina, e ela lhe escapara, a nado, qual pequeno peixe negro e maleável; e depois, a fugir pela Place Vendôme, na noite anterior, a caminho da liberdade.... a desesperança nos seus olhos ao voltar... o sentimento de paz que irradiava ao falar da pequena aldeia de pescadores! Era uma loucura atravessar a França atrás dela, bem o sabia. Mal a conhecia.

Contudo, tal como compreendera que tinha de a seguir na noite da véspera, percebia que tinha de fazê‑lo agora. Por razões ainda de si próprio desconhecidas, ou de quem quer que fosse naquele momento, tinha de encontrá‑la.

 

A estrada para La Favière era maçadora e comprida; porém, graças à velocidade que pudera atingir, Peter chegou mais depressa do que esperara, levando exatamente dez horas. Entrou, devagar, na povoação às seis da manhã, nascia o sol. Há muito que a maçã se fora e, no banco a seu lado, a garrafa de água de Evian estava meio vazia. Parara para tomar café uma ou duas vezes e não desligara o rádio, para não adormecer. Levara sempre as janelas abertas mas agora, atingido o seu destino, sentia-se absolutamente exausto. Passara a noite acorda­do, pela segunda vez em dois dias, e até a sua excitação por estar ali e a adrenalina que o estimulara esmoreciam; tinha de dormir uma hora antes de iniciar a sua pesquisa. Exceto os pescadores que começavam a chegar ao cais, toda a gente em La Favière dormia ainda. Peter estacionou na berma da estrada, inclinou para trás o banco. Era apertado, mas precisava descansar.

Acordou às nove horas; crianças brincavam à roda do carro; ouvia‑lhes as vozes altas quando corriam perto dele, e do ar chegava‑lhe o grito das gaivotas. Ao endireitar‑se, envolveu‑o toda uma variedade de sons. Estava meio morto. Fora uma longa noite e uma longa condução. Mas, se a encontrasse, teria valido a pena. Enquanto se sentava e espreguiçava, viu‑se no retrovisor e riu‑se. Que aspecto horrível, definitivamente o bastante para assustar crianças pequenas. Penteou o cabelo, lavou os dentes com o que lhe restava de Evian, e foi com o ar mais respeitável que conseguiu arranjar que saiu do carro e iniciou a sua busca. Não fazia a mínima idéia por onde começar; seguiu devagar as crianças que ouvira, foi dar a uma padaria, comprou um pão com chocolate e, de novo na rua, contemplou a água. os barcos de pesca já tinham partido, rebocadores e veleiros pequenos continuavam no porto, na calçada soavam passadas confusas de grupos de velhotes que iam discutindo isto e aquilo, enquanto os homens mais novos prosseguiam nas suas pescarias. Já o Sol ia alto no céu e, ao olhar em redor, Peter deu razão a Olivia. Era o lugar perfeito para uma fuga, pacato, belo, com um não sei quê de acolhedor, de caloroso, como o abraço de um velho amigo. Perto do porto estendia‑se uma grande praia arenosa. Acabou o seu pão com chocolate, pôs‑se a caminhar lentamente ao longo da praia, com vontade de beber um café. O sol e o mar entorpeciam‑no. Co­mo encontrá‑la? interrogava‑se. Perto da areia, sentou­‑se numa rocha; e pensava nela, se se zangaria se a encontrasse, se estaria de fato ali, quando reparou numa rapariga que surgira da ponta de outra praia, mesmo atrás de si. Descalça, de T‑shirt e calções, era pequena e magra e a brisa agitava‑lhe o cabelo escuro; quando olhou para ele e lhe sorriu, sentiu‑se petrificado. O que tinha de acontecer... acontecera. Tão facilmente, tão simplesmente! Aí estava ela, sorrindo‑lhe da praia, como se o esperasse. E foi com esse sorriso, só a ele dirigido, que Olivia Thatcher veio ao seu encontro.

‑ Não creio que se trate de uma coincidência disse docemente, enquanto se sentava a seu lado na rocha. Peter ainda não caíra em si, não fizera um só movimento desde que a avistara, demasiado perplexo.

‑ Você disse‑me que ia voltar para o hotel ‑ foram as suas primeiras palavras, com os olhos mergulhados nos dela, nem zangado, nem já surpreendido, apenas ali, e totalmente à vontade.

E ia. Tencionava fazê‑lo, Mas, quando lá cheguei, vi que não podia. ‑ Desprendia‑se uma certa tristeza das suas palavras. ‑ Como soube que eu estava aqui?

‑ Vi na CNN. ‑ Sorriu, e ela ficou horrorizada.

‑ Que eu estou aqui? ‑ A pergunta fê‑lo rir.

‑ Não, minha amiga. Disseram apenas que desaparecera. Passei o dia inteiro a imaginá‑la de novo na pele de esposa de um senador, embora a contragosto; às seis, vi outra vez o noticiário e você apareceu de novo. Raptada, ao que parecia; e numa fotografia, você comigo a segui-la, à saída da Place Vendôme, na qualidade de possível raptor; uma fotografia por sorte muito pouco nítida. ‑ Sorria. Era tudo tão absurdo, mesmo um tanto louco! Não falou das referências à sua depressão.

- Santo Deus, não fazia a menor idéia! ‑ Pensativa, digeria as novidades que ele acabava de dar‑lhe. - Ia deixar umas palavras ao Andy, a dizer que voltaria dentro de dias. A verdade é que acabei por não o fazer. Virei as costas e pronto. Vim para cá. De comboio ‑acrescentou, em jeito de explicação; ele abanou a cabeça, ainda a tentar perceber o que o trouxera, a ele, até junto dela. Era a segunda vez que a seguia, impelido por uma força que não conseguia explicar mas a que também não conseguia resistir. Olivia olhava‑o bem fundo nos olhos; continuavam ambos imóveis. O olhar dele era uma carícia, mas nenhum dos dois esboçou o mínimo gesto para tocar no outro. ‑ Estou contente por você ter vindo. ‑ Era meiga a voz de Olivia.

‑ Também eu.... ‑ E então, como se fosse outra vez criança, afastou dos olhos os cabelos que o vento revolvera. Uns olhos da cor do céu de Verão. ‑ Não sabia e ficaria zangada comigo, se a encontrasse. ‑ Preocupara‑se com isso durante todo o trajeto desde Paris. Segui-la poderia ser considerado por ela uma intrusão imperdoável.

‑ Zangar‑me? Você foi tão bom para mim... viu‑me... lembrou‑se... ‑ Desorientava‑a O fato de ele a ter achado, ter‑se preocupado o bastante para pelo menos tentar encontrá‑la. Era longa a viagem desde Paris. E, inesperadamente, pôs‑se em pé de um salto mais do que nunca semelhante a uma rapariguinha, estendeu‑lhe a mão. ‑ Anda, deixa‑me levar‑te o pequeno‑almoço. Deves estar esfomeado, depois de uma noite inteira a guiar.

Deu‑lhe o braço e encaminharam‑se devagarzinho para o porto. Estava descalça, tinha uns pés pequenos, graciosos, e a areia queimava, mas isso não parecia incomodá‑la.

‑ Estás cansado?

Peter riu‑se, ao recordar como chegara estafado,

‑ Estou ótimo. Dormi cerca de três horas, quando cheguei. A verdade é que não durmo muito, quando tu estás perto de mim. ‑ Mas a vida a seu lado também não dava sono, disso tinha a certeza.

‑ Lamento sinceramente ‑ desculpou‑se ela; e um momento depois entravam num restaurante minúsculo; ambos encomendaram omeletes, croissants e café. A refeição chegou, cheirava bem, era abundante e Peter devorou‑a; Olivia apenas petiscou a sua dose. Observava-o, enquanto bebia o forte café.

‑ Ainda não acredito que estejas aqui ‑ comentou com ternura. Mostrava‑se feliz, mas simultaneamente melancólica. Andy nunca teria feito uma coisa semelhante. Nem sequer outrora, no princípio.

‑ Tentei falar ao teu marido sobre este local confessou ele, com honestidade, e logo ela denotou preocupação.

‑ O quê? Disseste‑lhe para onde pensavas que eu tinha ido? ‑ Não queria Andy junto dela. Agora, nem o fato de ver Peter compensava; agradava‑lhe de fato que tivesse vindo, mas a verdade é que ainda não estava preparada para enfrentar Andy. Era ele a causa principal da sua fuga.

‑ Acabei por não lhe dizer nada ‑ sossegou‑a Pe­ter de imediato. ‑ Tencionava fazê‑lo, mas fui posto a andar da vossa suíte. Deparei com polícias, serviços secretos, guarda‑costas, e o som do que me pareceu ser uma reunião.

- A qual, sem dúvida, não tinha nada a ver comi­go. Ele tem um sentido fantástico de quando há razão para preocupações, e quando não há. Foi por isso que não lhe deixei o bilhete. Foi errado, mas ele conhece­‑me o suficiente para saber que fiz bem. Não creio que acredite realmente que fui raptada.

‑ Também fiquei com essa impressão, quando fui à suíte. ‑ Não observara aquela aura intensa de pânico que seria de esperar se ele a julgasse efetivamente em perigo. Não, não achava Anderson Thatcher preocupa­do, o que o ajudara a sentir‑se livre para ser ele a vir, e telefonar‑lhe mais tarde. ‑ Vais telefonar‑lhe, Olivia? ‑ Perguntou, interessado. Pensava que, ao menos isso, ela faria.

‑ Eventualmente. Ainda não sei o que quero dizer‑lhe. Não estou segura de ser capaz de regressar, embora ache que tenho de o fazer, pelo menos por um período curto. Devo‑lhe uma explicação. Mas o que havia para explicar? Que não queria voltar a viver com ele? que o amara em tempos mas tudo acabara, que ele traíra todas as esperanças, todas as partículas de decência, tudo aquilo que nele a atraíra, que dele quisera? No seu espírito, nada restara que a motivasse a regressar. Descobrira‑o nessa noite da véspera, quando metera a chave na fechadura da suíte e verificara que não lhe apetecia entrar. Voltar para aquilo, nunca. Teria feito o que quer que fosse, para fugir dele. E também para Andy já não significava nada, bem o sabia. Há anos que não significava. Na maior parte do tempo, o marido abstraía‑se por completo da sua existência.

‑ Olivia, vais deixá‑lo? ‑ perguntou Peter com delicadeza, quando acabavam o pequeno‑almoço. Não era da sua conta, mas conduzira dez horas para se assegurar de que ela estava a salvo, de que não corria perigo. Isso dava‑lhe um certo direito a um mínimo de informações, e ela não o ignorava.

‑ Acho que sim.

‑ Tens a certeza? No vosso mundo, vai provavelmente originar um tremendo escândalo.

- Não tanto como descobrirem que estás aqui comigo. ‑ Riram‑se, ela abertamente, ele à socapa. Nisso, não podia discordar de Olivia, que prosseguiu, de novo séria: ‑ O escândalo não me assusta. Não passa de barulheira, como as brincadeiras das crianças na Noite das Bruxas. O fato é que eu não posso viver mais com as mentiras, as simulações, a falsidade de uma vida na política. Tive‑o de sobra para no mínimo dez vidas. E sei que não sobreviveria a outras eleições.

‑ Achas que ele vai concorrer ao grande lugar, o próximo ano?

‑ Possivelmente. É mais do que provável - respondeu, após pensar bem. ‑ Mas, se for, eu não posso acompanhá‑lo. Devo‑lhe alguma coisa, mas isso, não.

Seria pedir demais. Começamos cheios de boas intenções, eu sei que o Alex também significava muito para ele, embora nunca estivesse presente quando devia estar. Mas, na maior parte do tempo, compreendi‑o. Acho que mudou quando o irmão morreu. Que com ele morreu uma parte do Andy. Esqueceu tudo o que sempre pensara, ou o preocupara, com relação à política. Eu não sou capaz. E não descortino qualquer razão que justifique a modificação dele. Não quero acabar como a minha mãe. Bebe de mais, tem enxaquecas, tem pesadelos, vive no terror constante da imprensa, tremem‑lhe sempre as mãos. Constantemente apavorada com a idéia de criar situações embaraçosas para o meu pai. Ninguém pode viver debaixo de tamanha pressão. Está desfeita, e isto há anos. Mas sob um aspecto excelente. Fez uma plástica aos olhos e ao rosto, e esconde bem o seu terror. E o meu pai arrasta‑a para toda a espécie de encontros, conferências, discursos de campanha, reuniões. Se fosse sincera, há muito teria admitido que o detesta por isso, mas nunca o fez. Ele arruinou‑lhe a vida. Há anos que o devia ter deixado, e talvez se o tivesse feito ainda fosse uma pessoa na verdadeira acepção da palavra. Acho que a única razão por que ficou, foi para ele não perder uma só eleição. ‑ Peter escutava‑a muito sério, profundamente tocado pelas suas palavras. ‑ Se eu soubesse que o Andy ia meter‑se na política, nunca me te­ria casado com ele. Acho que devia ter calculado ‑ Concluiu, triste.

‑ Não podias adivinhar que o irmão ia ser morto, que ele se deixasse arrastar...

‑ Talvez seja uma desculpa, talvez de uma maneira ou de outra tudo tivesse acabado. Sabe‑se lá! ‑ Encolheu os ombros e olhou pela janela. Os barcos de pesca que salpicavam o horizonte pareciam brinquedos. ‑ isto é tão bonito... Quem me dera poder ficar para sempre. ‑ Parecia segura do que afirmava.

‑ Ficarias? Se o deixares, voltas para cá? ‑ Queria saber em que cenário a imaginar, a ver com os olhos da mente, quando pensasse nela nas longas noites frias de Inverno, em Greenwich.

‑ Talvez. ‑ Em muitos aspectos, continuava insegura. Sabia que ainda tinha de voltar a Paris e falar com Andy, embora o admitisse com relutância. Tendo deixado avolumar‑se por dois dias o mito do rapto, não lhe era difícil idealizar a barafunda que ele criaria quando do seu regresso.

‑ Falei ontem com a minha mulher ‑ contou Peter, sereno, enquanto Olivia, silenciosa, pensava no ma­rido. ‑ Foi esquisito falar com ela, depois de tudo o que nós conversamos a noite passada. Sempre defendi tudo o que ela fazia... e o seu relacionamento com o pai, embora na realidade não me agradasse. Mas, depois da conversa contigo, passou a irritar‑me. ‑ Era tão espontâneo com Olivia, tão capaz de lhe dizer tudo o que sentia. Ela era tão aberta, tão profunda, e contudo tão cautelosa em não o ferir! E ele sentia‑o. ‑ Jantou com ele na noite anterior. Almoçaram juntos ontem. Vão passar dois meses juntos este Verão, dia e noite. Às vezes, é como se tivesse casado com ele e não comigo. ­Penso que no fundo sempre achei isso. A minha única consolação é que temos uma boa vida, os nossos filhos são estupendos e o pai dela deixa‑me fazer o que eu quero, nos negócios. ‑ Estranhamente, parecera‑lhe tanto durante tanto tempo e, num ápice, deixara de parecer!

‑ Deixa‑te fazer o que queres? ‑ Agora, insistia; em Paris, não ousara. Mas desta vez fora ele a trazer o assunto à baila. E já se conheciam melhor; a vinda a La Favière tornara‑os mais íntimos.

‑ O Frank deixa‑me fazer praticamente tudo aquilo que quero. A maior parte das vezes. ‑ Não adiantou mais. Entravam por terrenos escorregadios. Ela estava pronta para deixar Andy, por razões muito suas, mas Peter não tinha o mínimo desejo de fazer naufragar o barco em que navegava com Katie. Até aí, iam as suas certezas .

‑ E se derem para o torto os testes que estão a fazer com o Vicotec? Como reagirá ele?

‑ Continuará a apoiá‑lo, espero. Teremos apenas de prosseguir as pesquisas, embora de certeza com custos muito elevados. ‑ Fora sempre o combinado, não imaginava que Frank recuasse agora. Achava fantástico o Vicotec. Teriam apenas de informar a FDA de que ainda não estavam preparados.

‑ Todos nós assumimos compromissos ‑ retorquiu Olivia calmamente. ‑ O único problema é quando achamos que assumimos demasiados. Talvez seja o teu caso, ou talvez não tenha importância, desde que sejas feliz. És? ‑ perguntou, de olhos muito abertos. Não era como mulher que o perguntava, apenas como amiga.

‑ Acho que sim. ‑ De repente, instalava‑se a dúvida no seu espírito. ‑ Sempre achei que sim mas, para ser sincero, Olivia, ao ouvir‑te, fico confuso. Capitulei em muitos pontos. Onde vivemos, as escolas dos rapazes, o Sítio onde passamos o Verão. E então penso: e daí, que interessa? O problema é que talvez interesse. E talvez não tivesse qualquer valor, se a Katie estivesse do meu lado, mas de repente observo‑a e apercebo‑me de que não está. Ou saiu para uma reunião algures, o, está entretida com os miúdos ou consigo própria, ou do lado do pai. Há bastante tempo que é assim, desde que os rapazes foram para o internato, talvez até antes. Mas eu sempre ocupado, nunca parei para pensar nisso. E o fato é que, depois de dezoito anos em comum, não tenho com quem conversar. Estou aqui, a falar contigo numa aldeia de pescadores em França, e estou a contar‑te coisas que a ela nunca contei... porque não posso confiar nela. É uma evidência dos diabos ‑ comentou, triste. ‑ E, todavia... ‑ Deitou‑lhe um olhar penetrante e, por cima da mesa, pegou‑lhe na mão. ‑ Não quero deixá‑la. Nunca tal me passou pela cabeça. Não me imagino a abandoná‑la, a viver uma vida que não seja a que partilho com ela e com os nossos filhos... Mas estou a perceber uma coisa que até hoje nunca percebera, ou não quisera perceber. Estou absolutamente só. ‑ Com um simples aceno de cabeça, Olivia concordou. Essa solidão era‑lhe mais do que familiar, e soubera, desde a primeira conversa entre ambos, em Paris, que também Peter a sofria. Todavia, estava certa de que ele não tinha consciência desse fato. As coisas haviam‑se encaminha­do de forma a colocá‑lo numa situação que nunca imaginara. Olhou então Olivia, com uma sinceridade suprema, pois descobrira outra coisa sobre si próprio nos últimos dois dias. ‑ Não importa o que sinto, ou como ela me põe de parte, tenho é a certeza de não ter nunca garra suficiente para a deixar. Seria um tal desmoronamento! ‑ Só pensar em recomeçar toda a sua vida causava‑lhe calafrios.

‑ Não seria fácil. ‑ Olivia falava com tranqüilidade, pensando no seu caso e ainda com a mão presa na dele. Não o depreciou pelo que lhe ouvira. Pelo contrário, subiu no seu apreço por ser capaz de o dizer. – Também a mim me aterroriza. Mas tu tens, pelo menos uma vida em comum com ela, por muito imperfeita que possa ser. Ela está lá, fala contigo, preocupa‑se contigo à sua maneira, mesmo se de uma maneira limitada, ou demasiado dependente do pai. Mas decerto também é leal contigo e com os vossos filhos. Têm uma vida em conjunto, Peter, apesar de não ser perfeita. O Andy e eu não temos nada. Há anos que não temos. Acabou, quase quando principiava. ‑ Peter suspeitava de que ela não exagerava, e não tentou defendê‑lo.

‑ Então, talvez devas separar‑te. ‑ Preocupava‑se, porém com ela; parecia tão vulnerável, tão frágil. Não lhe agradava imaginá‑la sozinha, mesmo ali, na sua singular aldeia de pescadores. Continuava a pensar no quanto seria doloroso não voltar a vê-la. Em dois únicos dias, tornara-se‑lhe valiosa, não se imaginava a perdê‑la, a não conversar com ela. A lenda que vira de relance no elevador transformara‑se numa mulher.

‑ Poderias ir para junto dos teus pais por uns tempos, até os ânimos acalmarem, e só depois vir para cá? ‑Tentava ajudá‑la a organizar‑se, e ela sorriu‑lhe. Eram amigos autênticos, agora cúmplices no crime.

‑ Talvez. Não sei bem se a minha mãe terá força para agüentar, especialmente se o meu pai for contra e tomar o partido do Andy.

‑ Estás a brincar. Achas que ele faria isso?

‑ Pode fazer. Os políticos habitualmente unem‑se.

- O meu irmão concorda com tudo o que o Andy faz, por uma questão de princípios. E o meu pai apóia‑o sempre. Ótimo para eles, um descalabro para nós, as mulheres. E o meu pai acha que o Andy deve candidatar‑se à presidência. Não me parece que a minha deserção fosse vista com bons olhos. Diminui imenso as suas probabilidades, talvez mesmo o afaste por completo da corrida. É impensável, um presidente divorciado. Pessoalmente, penso que lhe faria um favor. Para mim o cargo é um pesadelo. Uma vida de inferno. Não tenho a mínima dúvida a esse respeito. Daria cabo de mim, ‑ Peter acenou, concordante, estupefato pelo rumo da conversa. Por complicada que fosse a sua vida, especialmente com o Vicotec a evaporar‑se nos ares, era decerto bastante mais simples do que a dela. Pelo menos, a sua vida privada. Na dela, cada movimento era esmiuçado. E ninguém da sua família tinha a mais remota intenção de se imiscuir na política, exceto Katie, com o conselho diretivo do liceu. Olivia, por seu turno, estava ligada a um governador, um senador, um congressista e possivelmente, num futuro não muito distante, um presidente, desde que não se separasse dele. Era espantoso.

‑ Achas teu dever ficar, se ele decidir candidatar­‑se, não é assim?

‑ Não vejo como poderia. Seria o cúmulo da aldrabice. Mas tudo é possível. Se eu enlouquecer, ou se ele me amarrar, me amordaçar e me enfiar num armário. Podia dizer às pessoas que eu estava a dormir. ‑ A estas palavras, Peter sorriu. Pagou o pequeno‑almoço e, de braço dado, saíram lentamente do restaurante. ­Surpreendeu‑o a comida ser tão barata.

‑ Se ele o fizer, tenho de correr a salvar‑te outra vez ‑ brincou, enquanto se sentavam na doca, balançando os pés acima da água. Peter continuava de camisa branca e com as calças do fato; ela, descalça. Um contraste curioso.

‑ Foi o que fizeste, desta vez? ‑ Sorria, maliciosa e encostou‑se‑lhe despreocupadamente. ‑ Salvar‑me?

A palavra agradava‑lhe.

Há anos que ninguém acorria a salvá‑la; o gesto era bem‑vindo.

‑ Pensei que sim... Estás a ver, de raptores, de terroristas, eventualmente do tipo de camisa branca que te seguia quando saías da Place Vendôme. Deu‑me a impressão de ser um sujeito perigoso... Decidi, em definitivo pela premência de um salvamento. ‑ Sorria‑lhe, e o sol que os banhava era quente, e balançavam os pés como duas crianças.

‑ Agrada‑me a idéia. Sugeriu então uma ida até à praia. ‑ Podemos dar um salto ao meu hotel e de lá, para o mar, nadar! ‑ Mas ele riu‑se. Tomar banho de calças não era o mais adequado. ‑ Podemos comprar­‑te uns calções, ou um fato de banho. É uma pena desperdiçar um tempo destes.

Peter fitou‑a, melancólico. Era uma pena desperdiçar um segundo que fosse, mas havia limites para o que tinham o direito de fazer.

‑ Tenho de regressar a Paris. levei quase dez horas a chegar aqui.

‑ Não sejas ridículo! Não fizeste uma viagem destas só para tomar o pequeno‑almoço. Além disso, não tens lá nada a fazer exceto esperar notícias do Suchard, e ele até talvez nem te telefone. Podes perguntar para o hotel se tens mensagens e telefonar‑lhe daqui, se for preciso.

‑ E ficam solucionados todos os problemas ‑ retorquiu ele, rindo a propósito da forma rápida por que ela ordenara todos os seus deveres.

‑ Podes alugar um quarto no meu hotel, e amanhã voltamos os dois ‑ acrescentou Olivia, prosaica, adiando por um dia a partida. Mas Peter não estava de modo algum certo de dever aceder, embora o convite fosse mais do que tentador.

‑ Não achas que devias telefonar‑lhe ? – sugeriu, com prudência, enquanto passeavam pela praia de mãos dadas, sob o sol abrasador. E olhou‑a, radiosa, a seu lado; nunca na vida descortinara tamanha liberdade, pensou.

‑ Não necessariamente. ‑ Olivia parecia tudo, menos contrita. ‑ Pensa na publicidade que ele vai conseguir com esta história, a simpatia, a atenção que desperta. Seria muito lamentável, para ele, deitar tudo a perder.

‑ Estás há demasiado tempo na política. ‑ Contra sua vontade, Peter riu‑se e, puxado por ela, acabou por sentar‑se na areia a seu lado. Já então descalçara os sapa­tos e as peúgas, que levava na mão. Sentia‑se um vagabundo da beira‑mar. ‑ Começas a raciocinar como eles.

- Nunca. Nem sequer a minha pior faceta está corrompida a esse ponto. Não pretendo nada de real­mente mau. A única coisa que quis na vida... perdi‑a, Não tenho mais nada a perder. ‑ Nunca Peter ouvira uma afirmação tão triste; sabia que se referia ao filho.

- Podes vir a ter mais filhos, Olívia. ‑ Falava‑lhe docemente, enquanto ela se estendia a seu lado na areia, de olhos fechados, como se, recusando‑se a ver a dor, pudesse afastá‑la. Mas não passaram despercebidas a Peter as lágrimas ao canto dos olhos, lágrimas que limpou com ternura. ‑ Deve ter sido um horror... Tenho tanta pena... ‑ Gostaria de chorar com ela, apertá-la nos braços, apagar todo o seu sofrimento dos últimos seis anos. Olhava‑a e sentia‑se impotente para a ajudar; nada mais podia fazer para além de a consolar.

‑ Foi horroroso ‑ murmurou Olívia, ainda de olhos fechados. ‑ Obrigada, Peter, por seres meu amigo ...e por estares aqui. ‑ Abriu por fim os olhos e por muito tempo os seus olhares cruzaram‑se. Peter fizera um longo percurso por causa dela; e então, naquela pequena povoação francesa, escondidos de todos os que os conheciam, ambos compreenderam que tinham vindo até ali um por causa do outro, para ficarem juntos o máximo de tempo possível, o máximo de tempo que ousassem. Apoiando‑se num cotovelo, fixando‑a, teve a certeza absoluta de que nunca sentira o  mesmo por pessoa nenhuma, nem conhecera alguém que se lhe igualasse. Naquele momento, nada nem ninguém mais lhe interessava.

‑ É por ti que cá estou... ‑ Meigamente, contornava‑lhe o rosto e os lábios com a ponta dos dedos. ‑ E sem o mínimo direito de estar. Nunca fiz nada de semelhante. ‑ Atormentava‑se por ela e, todavia, ela era o bálsamo que sarava todas as suas outras feridas. Achar­‑se a seu lado era a melhor coisa que alguma vez lhe acontecera, e ao mesmo tempo a mais confusa.

‑ Eu sei... ‑ Bem no seu íntimo, com a alma, com o coração, sabia tudo a seu respeito. ‑ Não espero nada de ti ‑ apressou‑se a acrescentar. ‑ Já me deste o que nenhuma outra pessoa me deu nos últimos dez anos. Não posso pedir mais... e não quero tornar‑te infeliz. - Ergueu para ele um olhar triste. De certa maneira, conhecia muito melhor a vida do que Peter. A mágoa, a perda, a dor, mas acima de tudo, a traição.

‑ Schhhh... ‑ Selou‑lhe os lábios com um dedo e, sem uma palavra, deitou‑se junto a ela, tomou‑a nos braços e beijou‑a. Não havia por ali ninguém que pudesse vê-los, que se preocupasse com o que faziam, que os fotografasse, ou interrompesse. Estavam a sós com as suas consciências e os obstáculos que transportavam consigo, quais fragmentos arrastados pelo mar e espalhados pela areia. Os filhos, os cônjuges, as recordações... as suas vidas. Nada disso, porém, parecia contar quando a beijou com a paixão contida ao longo dos anos e há muito reprimida. Por longo tempo ficaram enlaçados. Os beijos de Olivia eram tão sôfregos quanto os dele, seu coração ainda mais faminto. Só muito depois recordaram onde estavam, se obrigaram a separar‑se; de novo deitados na areia, sorriam um para o outro.

‑ Amo‑te, Olivia. ‑ Foi ele o primeiro a falar ofegante, enquanto a puxava para mais perto de si e o sol os inundava. ‑ Pode parecer‑te loucura, só passa­ram dois dias, mas é como se toda a vida te tivesse conhecido. Nem sequer de to dizer tenho o direito...­ mas amo‑te. ‑ Viu nos seus olhos um brilho novo; e sorriu.

‑ Também eu te amo. Só Deus sabe o que isto nos trará, provavelmente muito pouco, mas nunca na vida me senti tão feliz. Para o diabo o Vicotec e o Andy! ‑ Ambos se riram da veemência da frase; que extraordinário, naquele preciso momento nem uma só alma a sabia onde se encontravam. Dela, pensava‑se que fora rapta­da, ou coisa pior; ele, simplesmente desaparecera num carro alugado, com uma garrafa de Evian e uma maçã. Era um alívio... a certeza de que não haveria no mundo quem os encontrasse.

Foi então que um pensamento atravessou o espírito de Peter. Talvez, nesse preciso momento, a Interpol viesse a caminho.

‑ Porque é que o teu marido não imaginará que possas ter vindo para aqui? ‑ Para ele fora tão óbvio, certamente também o seria para Andy.

‑ Nunca lhe falei deste recanto. Foi sempre um segredo meu.

‑ O quê?! ‑ Olivia mencionara‑o no primeiro encontro de ambos. E não dissera nada a Andy? O fato lisonjeou‑o. A confiança em si depositada afigurava‑se extraordinária, mas era mútua. Não havia nada de nada que não lhe contasse, ou não tivesse contado. ‑ Acho que estamos em segurança, aqui. Por umas horas, pelo menos. ‑ Continuava decidido a partir nessa tarde; porém, depois de terem comprado um calção de banho e nadado no mar, lado a lado, a sua resolução começou a enfraquecer. Era muito mais excitante do que nadar na piscina do Ritz. Nessa altura nem a conhecia, fora um tormento nadar perto dela. Ali, nadavam juntos, e o tormento de Peter era reprimir‑se.

Olivia confessou‑lhe que nadar no oceano a assustava, essa a razão de nunca ter gostado de navegar. Tinha medo das correntes e das marés, e daqueles peixes que nadavam em seu redor. Mas a presença dele protegia‑a; nadaram até junto de um barquito preso a uma bóia. Treparam para lá e deixaram‑se ficar um bom bocado; e Peter teve de fazer apelo a toda a sua força de vontade para não fazer amor com ela dentro do pequeno bote. Já tinham, porém, estabelecido um acordo. Peter não duvidava de que, se alguma coisa acontecesse entre eles, estragariam tudo. Ambos se deixavam abater pela culpa, ambos sabiam que o que entre eles nascera naquela noite tinha como futuro único a amizade. Não podiam correr o risco de a desperdiçar, por uma loucura. E embora o casamento de Olivia fosse de longe mais precário do que o dele, e menos completo, esta concordava com ele. Uma ligação entre ambos apenas complicaria as coisas, quando voltasse a Paris para conversar com Andy. Claro que era difícil manter mais ou menos platônico um relacionamento tão próximo, não ir além de uns beijos. Recomeçaram quando voltaram à praia e tentaram não avançar, mas estava muito longe de ser fácil. Com os corpos, molhados e macios, deitados bem juntos, falavam de tudo o que para eles era importante. Da infância, a dela em Washington, a dele no Wisconsin. Ele confessou‑lhe até que ponto se sentira sempre deslocado no ambiente familiar, por quanto mais ansiara, na felicidade que tivera ao conhecer Katie.

Ela falou‑lhe da sua família, ele dos seus pais e irmã. Contou‑lhe que a mãe e a irmã tinham morrido de cancro ‑ o porquê do muito que para si significava o Vicotec.

‑ Se tivessem um produto semelhante à disposição, teria sido diferente ‑ comentou, dolorido.

‑ Talvez retorquiu Olivia, filosoficamente. ‑Mas nem sempre se pode vencer, sejam quais forem os medicamentos milagrosos de que se dispõe. ‑ Ela e o marido . tinham tentado tudo, e mesmo assim não ha­viam salvo Alex. E voltou ao caso dele, a respeito da irmã.

‑ Ela tinha filhos? ‑ Peter abanou afirmativamente a cabeça, enquanto se lhe enchiam de lágrimas os olhos, perdidos na distância. ‑ Vêm visitar‑te?

Foi envergonhado que respondeu. Ao olhá‑la nos olhos, entendeu o seu erro. Estar com ela induzia‑o a querer alterar as coisas. Alterar muitas coisas, umas mais fáceis do que outras.

‑ O meu cunhado mudou‑se e voltou a casar nesse mesmo ano. Não soube dele durante muito tempo. Não sei porquê, talvez quisesse cortar totalmente com o passado. Nunca me telefonou, nem me disse onde estavam, até ele e a sua nova mulher precisarem de dinheiro. Acho que nessa altura já tinham mais dois filhos. E eu aceitei a opinião de Katie, de que passara demasia­do tempo, que eles provavelmente se estavam nas tintas para mim, e que as crianças nem me conheceriam. Deixei andar e há séculos que não ouço falar neles. Da última vez, viviam numa quinta em Montana. Chego a pensar se não agradará à Katie o fato de eu não ter família, exceto ela, os rapazes e o, Frank. Ela e minha irmã nunca se deram bem, e a Katie ficou furiosa por ser a Muriel a herdar a quinta, e não eu. Mas o meu pai teve razão em deixá‑la a eles. Eu não a queria nem precisava dela e o meu pai sabia‑o. ‑ Pousou o olhar em Olivia, consciente do que soubera durante anos mas se recusara a admitir, por consideração para com Katie. ‑Fiz mal em deixar as crianças fora da minha vida. Devia ter ido vê-las a Montana. ‑ Devia‑o à irmã. Mas teria sido doloroso; fora bem mais fácil dar ouvidos a Katie.

‑ Ainda podes ir ‑ argumentou Olivia, meiga­mente.

- Bem gostava. Se ainda conseguir encontrá‑los.

- Aposto que consegues, se tentares.

Peter concordou; agora sabia o que tinha a fazer. A pergunta seguinte de Olivia foi um autêntico soco no estômago.

‑ E se nunca te tivesses casado com ela? ‑ Mos­trava‑se curiosa. Divertia‑a imenso meter‑se com ele, fazer‑lhe perguntas de resposta difícil.

‑ Não teria feito a carreira que fiz ‑ foi a sua simples resposta. Mas Olivia discordou de imediato.

‑ Estás totalmente enganado. E aí é que reside o problema. ‑ Não hesitara um só instante. ‑ Estás convencido de que lhes deves tudo o que tens, O teu emprego, o teu sucesso, a tua carreira, até a tua casa em Greenvich. Que, disparate! A tua carreira teria sido brilhante de qualquer forma. Não foi ela que a fez, foste tu. Terias construído uma carreira fabulosa onde quer que estivesses, talvez até no Wisconsin. É essa a tua maneira de ser, acho que uma espécie de habilidade para detectar a oportunidade certa e aproveitá‑la. Vê o que conseguiste com o Vicotec. Tu próprio disseste que era um «bebê» inteiramente teu.

‑ Mas ainda não o tenho ‑ interrompeu ele, modesto.

‑ Hás‑de ter. Diga o Suchard o que disser, Um ano, dois, dez, não interessa. Hás‑de lá chegar. ‑ Falava com uma convicção absoluta. ‑ E se não resultar, resultará qualquer outra coisa. Sem ter nada a ver coma pessoa com quem estejas casado. ‑ Não estava errada, só que ele não o sabia. ‑ Não nego que os Donovan te tenham dado uma oportunidade, mas outros o teriam feito. E repara no que tu lhes dás. Peter, tu pensas que eles fizeram tudo por ti, e continuas aperreado. Foste tu próprio quem fez tudo e nem sequer dás por isso. ‑ Uma perspectiva que nunca lhe ocorrera; ouvir aquelas palavras insuflava‑lhe confiança. Era uma mulher notável. Dava‑lhe o que ninguém antes lhe dera, sobretudo Katie. Mas também ele lhe dava alguma coisa, uma espécie de calor humano e proteção e ternura que muito lhe faltavam. Constituíam uma combinação rara e Olivia estava‑lhe grata.

Foi ao fim da tarde que entraram no hotel dela; encomendaram uma salada, pão e queijo, servidos na varanda. Às seis horas, Peter olhou para o relógio; tinha de regressar a Paris. Mas após um dia de banhos de mar e sol, e domínio da paixão que ela lhe despertava, era quase excessivo o seu cansaço para se pôr a caminho, com dez horas de condução pela frente, sozinho.

‑ Acho que não devias ‑ opinou Olivia, em toda a sua beleza, muito jovem e bronzeada, e um tanto preocupada. o que lhe apetecia era ficar com ela para sempre. ‑ Há dois dias que não tens uma noite decente de sono e não chegas lá antes das quatro da madrugada mesmo se partires daqui a dez minutos.

‑ Tenho de admitir que não é muito convidativo. ‑ A sua fadiga era agradável, mas era fadiga. E no entanto, precisava voltar. Telefonara para o Ritz, pelo menos não havia mensagens para si, mas na realidade tinha de regressar a Paris, talvez Suchard lhe telefonasse. Foi um alívio o fato de nem Katie nem Frank terem tentado comunicar com ele nessa manhã.

‑ Porque não passas a noite e segues amanhã de manhã? ‑ A sugestão era sensata, Peter hesitou.

‑ Vais comigo, se eu for amanhã?

‑ Talvez. ‑ E, de olhos postos no mar, parecia agora muito infeliz.

‑ É isso que admiro em ti, a tua verdadeira paixão pelos compromissos. ‑ Mas a paixão de Olivia era por outras coisas e o pouco que dela saboreara já quase o levara a perder a cabeça. ‑ Bom, está bem ‑ concordou, enfim. Estava na verdade demasiado cansado para passar a noite ao volante, preferia fazê‑lo depois de umas horas bem dormidas, na manhã seguinte.

Quando quiseram alugar o outro quarto de pessoa só do hotel já estava ocupado. O hotel tinha apenas quatro quartos, e o dela era o melhor. Um pequeno quarto de casal com vista para o mar; entreolharam‑se longamente.

‑ Podes dormir no chão ‑ alvitrou ela finalmente com um sorriso malicioso, numa alusão a que o compromisso assumido entre ambos seria honrado e não fariam nada de que mais tarde se arrependessem. O que por vezes era difícil.

‑ É deprimente admiti‑lo, mas é a melhor oferta que me foi apresentada ultimamente. Aceito‑a.

‑ Então, tudo certo. E eu prometo portar‑me bem. Palavra de escuteiro. ‑ Ergueu dois dedos, Peter fingiu‑se desapontado.

‑ Isso ainda é mais deprimente. ‑ Riam ambos ao sair, de braço dado, à procura de uma T‑shirt, um colete e um par de calças de ganga. Encontraram tudo no armazém local. A T‑shirt era de propaganda à Fanta, as calças de ganga serviam‑lhe na perfeição; e ele insistiu em barbear‑se na pequena casa de banho dela, o que lhe melhorou sensivelmente o aspecto. Ela apareceu com uma saia de algodão branca, um top de gola alta e um par de sandálias que comprara no armazém. Com o cabelo curto muito brilhante, bronzeada, estava encantadora. Peter mal acreditava tratar‑se da mulher sobre a qual tanto lera e que por tanto tempo o fascinara. já não parecia a mesma pessoa. Era a sua amiga, e a mulher por quem estava a apaixonar‑se. Como era doce o que sentiam um pelo outro, física e emocionalmente, e a que, a despeito da oportunidade, se recusavam a ceder! Deliciosamente romântico... e antiquado.

Deram as mãos, beijaram‑se, e à meia‑noite passeavam pela praia quando, ao longe, ouviram música; dançaram na areia, bem apertados, e então ele beijou‑a.

‑ O que vamos nós fazer quando regressarmos? - Estavam sentados lado a lado, ainda com a música ao fundo, quando ele falou. ‑ O que vou eu fazer sem ti? Uma pergunta que a si próprio fazia e refazia. - ­O mesmo de sempre ‑ respondeu ela, serena. ­Não tencionava arruinar‑lhe o casamento, ou sequer induzi‑lo a pensar nisso. Não tinha o mínimo direito, acontecesse o que acontecesse entre ela e Andy. E além de tudo o mais, apesar da atração recíproca, de certa forma mal o conhecia.

‑ O mesmo de sempre? ‑ A sua voz soava infeliz. ‑ Já nem me lembro. Tudo o que ficou para trás me parece agora tão irreal. Nem sei se fui feliz. ‑ Mas o pior é que começava a desconfiar de que não fora. O que era um conceito novo para si.

‑ Talvez não interesse. Talvez não devas analisar‑te tanto. Neste momento, temos tudo isto... e teremos a recordação do dia de hoje. Vai ajudar‑me por muito tempo ‑ disse ela, com sensatez mas melancólica; ergueu depois o olhar para ele. Ambos sabiam a verdade sobre a sua vida, ele expusera‑a sem nunca a ter aprofundado, mas isso nunca ela lhe diria. Arranjara desculpas para si próprio, deixara a Katie e a Frank todas as decisões, tanto relativas ao seu lar como ao seu negócio. Acontecera gradualmente. E a única coisa que o espantava, ao ver agora o seu caso pelo prisma de Olivia, era não perceber como nunca dera por isso. Mas fora tão más simples aquela solução!

‑ O que vou eu fazer sem ti? ‑ repetia, perdido, apertando‑a contra o peito. Não podia imaginar não a ter, para conversarem. Sobrevivera quarenta e quatro anos sem ela e, de repente, nem um momento de separação admitia.

‑ Não penses nisso. ‑ Dessa vez, beijou‑o ela.

E foi‑lhes precisa toda a força de vontade de que dispunham para se apartarem e regressarem devagar ao hotel, enlaçados pela cintura. Enquanto subiam para o pequeno­ quarto, Peter sorriu‑lhe e, tristonho, murmurou:

- Tens de ficar acordada a noite inteira, a atirar‑me água fria para cima. ‑ Daria tudo por uma varinha mágica que alterasse as circunstâncias, mas sabiam que o que desejavam estava errado, e não ceder seria um autêntico teste à integridade de ambos.

‑ Fico ‑ prometeu Olivia, sorrindo. Ainda telefonara a Andy e não parecia nada tentada a fazê‑lo, naquele momento. Peter não expressou qualquer reparo. Achou que a decisão era dela, mas a sua rebeldia neste ponto intrigava‑o; estaria a castigá‑lo, ou apenas com medo de lhe falar?

Olivia manteve a sua palavra. Entregou‑lhe todas as almofadas e um cobertor, ajudou‑o a fazer uma precária cama no tapete, do lado da cama em que dormia. Ele deitou‑se de calças de ganga e T‑shirt, descalço, ela vestiu a camisa de noite na casa de banho. E finalmente deitados, às escuras, ela na cama, ele no chão a seu lado, deram‑se as mãos e conversaram horas seguidas; mas não houve da parte dele um só movimento para a beijar. Foi pelas quatro horas que ela se calou, vencida pelo sono. Peter levantou‑se de mansinho, aconchegou‑lhe a roupa, contemplou‑a, adormecida como uma rapariguinha, curvou‑se e aflorou‑lhe o rosto com os lábios. Voltou então a deitar‑se no chão, na sua cama provisória, e pensou nela até romper a manhã.

 

Eram quase dez e meia quando acordaram, no dia seguinte. O sol brilhava através da janela. Foi Olivia a primeira a despertar e olhava‑o da cama, sorridente, quando ele se espreguiçou.

‑ Bom dia ‑ murmurou, com carinho; Peter resmungou ao virar‑se e ficar deitado de costas. Apesar do fino tapete e do cobertor, o chão era duro e ele, que adormecera às sete horas, estava deveras cansado. ‑ Estás perro? ‑ Lia-lho na cara e ofereceu‑se para lhe massagear as costas. Sentiam‑se ambos muito orgulhosos de si próprios por terem passado a noite sem fazer nada de errado.

‑ Gostava imenso. ‑ Aceitou a oferta da massagem com um sorriso aberto e foi com novo resmungo que se deitou de barriga para baixo, o que a divertiu. Ainda deitada na cama, também sobre a barriga, inclinou‑se e massageou‑lhe suavemente o pescoço enquanto ele, de olhos fechados, ao comprido na sua cama improvisada, se sentia feliz.

- Dormiste bem? ‑ perguntou‑lhe, agora a massa­gear‑lhe os ombros e a tentar não pensar em como era macia a sua pele. Uma pele de bebê.

‑ Fiquei aqui deitado, a pensar em ti, quase toda a noite ‑ respondeu‑lhe, sincero. ‑ Definitivamente, é um tributo à minha qualidade de gentleman ter‑me portado bem, ou talvez seja apenas um sinal de estupidez e velhice, ‑ Rolou sobre si próprio, fitou‑a, pegou-lhe nas mãos e então, sem aviso prévio, sentou‑se com a maior das facilidades e beijou‑a.

- Sonhei contigo esta noite ‑ disse Olivia, enquanto, de caras encostadas, ele a beijava uma e outra vez, brincando‑lhe com o cabelo. Sabia que não tardaria a ter de deixá‑la.

‑ O que aconteceu no sonho? ‑ sussurrou, beijando‑lhe o pescoço e esquecendo aos poucos as suas boas intenções.

‑ Eu estava a nadar no mar e começava a afogar‑me... e então, tu salvaste‑me. Creio que é bem representativo do que aconteceu ao conhecer‑te. Estava a afogar‑me, quando te conheci. ‑ E dessa vez, para a beijar, enlaçou‑a. Estava agora de joelhos, na cama, e, sem saber como, as suas mãos começavam a acariciar‑lhe os seios por baixo da camisa de noite. A esse contato, Olivia gemeu baixinho, quis recordar‑lhe o compromisso mútuo, mas, no mesmo instante, esqueceu‑o e encostou‑se‑lhe mais.

Os beijos que trocavam eram cada vez mais apaixonados, enquanto ela o ia puxando, devagar, para junto de si; um momento depois, os seus corpos entrelaçavam‑se, emaranhavam‑se nos lençóis, ela ainda de camisa de noite, ele de calças de ganga. Deitados, beijaram-se, esquecendo tudo e descobrindo coisas um do outro que haviam jurado não explorar. Peter beijava‑a como se quisesse devorá‑la, engoli‑la inteira até que ela fosse parte de si e assim pudesse guardá‑la para sempre.

‑ Peter... ‑ suspirou, e ele manteve‑a colada a e de novo a beijou, ela procurou‑o, sedenta.

‑ Olivia... não... não quero que mais tarde te arrependas... ‑ Tentava ser responsável, mais por ela do que por si, ou por Kate, mas também já não conseguia conter‑se. Sem uma palavra, despiu as calças de ganga, a T‑shirt já estava longe, a fina camisa de noite, atirada pelos ares, foi cair algures no chão, enquanto começavam a fazer amor. Era perto do meio‑dia quando recupera­ram a razão e se deixaram cair, enlaçados, completa­mente, exaustos e saciados. Mas nunca nenhum deles se mostrara mais feliz e, do aconchego dos seus braços, Olívia sorriu ‑lhe, os seus membros admiráveis entrelaçados nos dele.

‑ Peter... eu amo‑te.

‑ Ainda bem... ‑ E apertava‑a tanto contra si que se diria constituírem uma só pessoa. ‑ Nunca amei tanto ninguém em toda a minha vida. Acho que, afinal, não sou nada gentleman ‑ acrescentou, só com um tênue arrependimento e profundamente satisfeito; Olívia sorriu‑lhe, ensonada.

‑ Estou contente por não seres... Suspirou e aninhou‑se melhor contra ele.

Ficaram em silêncio por muito tempo, ali deitados nos braços um do outro, gratos por cada momento que haviam partilhado. Depois, cientes de que tinham de se separar em breve, fizeram amor outra vez, uma última vez. E quando finalmente se levantaram, Olivia encostou‑se a ele e chorou. Por nada quereria deixá‑lo, mas ambos sabiam que tinha de ser. Decidira regressar a Pa­ris com ele. Deixaram o hotel às quatro da tarde, com o ar de duas crianças expulsas do jardim do Paraíso.

Pararam para comprar qualquer coisa para comer e repartiram entre si um copo de vinho e sanduíches, sentados na praia, a contemplar o mar.

- Vou ser capaz de te imaginar aqui, se voltares pa­ra cá, ‑ Olhava‑a com tristeza, desejando, tal como ela, que lhes fosse possível ficar para sempre, juntos.

 ‑ Virás ver‑me? ‑ Olívia sorria‑lhe, melancólica, ao fazer a pergunta. O cabelo caía‑lhe para os olhos, grãos de areia colavam‑se‑lhe ao lado do rosto sobre que estivera deitada.

Peter levou muito tempo a responder. Não sabia bem o que dizer‑lhe. Não podia fazer promessas. Ainda tinha uma vida com Kate e, há não mais de uma hora, Olívia afirmara compreender isso. Não pretendia privá‑lo de nada. Tudo o que pretendia era recordar com amor o que tinham partilhado nos dois últimos dias...e que era mais do que algumas pessoas têm numa vida inteira.

‑ Tentarei ‑ proferiu finalmente, sem querer quebrar uma promessa antes ainda de a ter feito. Tinham os dois consciência de quanto iria ser difícil, e os dois ha­viam já dito que não podiam continuar a sua ligação. Ficaria como uma recordação, nada mais. As suas vidas eram por de mais complicadas, ambos estavam demasia­do envolvidos com outras pessoas. E, uma vez Olívia regressada ao seu próprio mundo, os paparazzi que habitualmente a perseguiam não iriam permitir nunca que uma coisa semelhante se repetisse. O que ali tinham vivido fora um milagre que não se produziria segunda vez.

- Gostava de voltar para cá e alugar uma casa - declarou, solene, Olívia. ‑ Acho que, então, poderia escrever.

‑ Devias tentar. ‑ E beijou‑a.

Deitaram fora o que restava do almoço e, de mãos dadas, ficaram um momento de pé, a admirar o oceano.

‑ Quem me dera que voltássemos um dia. Juntos, claro. ‑ Prometia‑lhe algo que ainda não ousara prometer, algo vago, mais do que uma promessa, uma esperança num futuro remoto. Ou talvez apenas num outro dia. Noutra recordação a guardar. Olívia não esperava nada dele.

‑ Talvez voltemos ‑ retorquiu ela, muito calmamente. ­Se tiver de ser, talvez voltemos.

‑ Mas, primeiro, havia obstáculos a vencer, barreiras a saltar, arcos em chamas a atravessar. Ele tinha que acompanhar o Vicotec até ao fim, a luta com o sogro, Katie, que o esperava em Connecticut; e ela, enfrentar o regresso e chegar a um acordo com Andy.

Dirigiram‑se lentamente para o carro; ela trouxera comida para o caminho. Colocou‑a no banco de trás e desejou que ele não lhe visse as lágrimas nos olhos; porém, mesmo sem a olhar, Peter sentia‑as. Como as sentia no seu próprio coração. Chorava por razões idênticas às dela. Ansiava por mais do que aquilo a que qualquer deles tinha direito.

Puxou‑a para junto de si ao olharem pela última vez o mar e disse‑lhe quanto a amava. Ela disse‑lhe o mesmo, tornaram a beijar‑se e entraram por fim no carro alugado, para dar início à longa viagem de retorno a Paris.

Durante um bocado quase não falaram; já mais descontraídos, começaram a conversar. Cada um lidava à sua maneira com o que se passara, tentando absorvê‑lo, capturá‑lo e aceitar as limitações inevitáveis.

‑ Vai ser tão duro... ‑ comentou Olívia quando passavam por La Vierrerie, sorrindo através das lágrimas que, contra sua vontade, lhe corriam cara abaixo. ‑ Saber que andas por aí, e não poder estar contigo.

‑ Eu sei. ‑ Também ele tinha um nó na garganta ‑ Vinha a pensar nisso ao sair do hotel. Vai enlouquecer‑me. Com quem vou eu conversar? ‑ E, agora que tinham feito amor, de certa forma sentia‑a pertença sua.

‑ Podes telefonar de vez em quando ‑ sugeriu ela, esperançosa. ‑ Eu faço‑te saber onde estou.

No entanto, não ignoravam que, onde quer que ele se encontrasse, continuaria a estar casado.

‑ Não me parece justo para ti. ‑ Nada o era. Um perigo que haviam corrido ao fazer o que tinham feito, mas ambos o sabiam antecipadamente. E, na realidade, não terem feito amor não teria alterado coisa nenhuma. De certa forma, até teria tornado tudo mais difícil. Assim, tinham‑se ao menos possuído profundamente e podiam guardar essa lembrança.

‑ Talvez possamos encontrar‑nos em qualquer sítio, daqui a seis meses, só para ver como vão as nossas vidas. ‑ Por instantes, ficou embaraçada: viera‑lhe á memória um dos seus filmes preferidos, com Gary Grant e Deborah Kerr. Era um clássico e fizera‑a chorar milhentas vezes, quando era mais nova. ‑ Talvez possamos encontrar‑nos no Empire State Building ‑ acrescentou, meio a brincar, e ele apressou‑se a discordar, com um aceno de cabeça.

‑ Não é boa idéia. Nunca mais subias. Eu ficava meio maluco e tu aparecias numa cadeira de rodas. Tenta outro filme. ‑ Sorriu; ela riu‑se.

‑ O que vamos nós fazer ? ‑ Melancólica, olhava pela janela.

‑ Voltar para trás. Ser fortes. Voltar para o que fazíamos antes. Acho que será mais fácil para mim do que para ti. Eu era tão estúpido e tão cego, que nem percebia quanto era infeliz. Em minha opinião, tu tens ainda muito a resolver. O meu problema vai ser fazer de conta que nada aconteceu, como se não tivesse encarado a realidade durante a minha semana em Paris. Como poderia explicar‑me?

‑ Talvez não tenhas de o fazer. – Pensava em quanto o Vicotec abanaria o seu barco, se os testes não fossem satisfatórios. Era o que se veria, e Peter cada vez mais se preocupava com o caso.

‑ Porque é que não me escreves, Olivia? ‑ pediu ‑ Ao menos, para eu saber onde estás. Dou em maluco se não souber. Prometes‑me escrever ?

‑ Claro.

Conversavam, enquanto ele conduzia, e eram quase quatro horas da madrugada quando entraram em Paris. Peter parou a uns quarteirões do hotel, encostou o carro ao passeio, e, embora já ambos estivessem cansadíssimos, fez‑lhe uma proposta.

‑ Posso oferecer‑lhe um café ? ‑ Fora assim o início do seu relacionamento, na Place de la Concorde; ela sorriu tristemente.

‑ Pode oferecer‑me o que quiser, Peter Haskell.

‑ O que eu queria dar‑te não pode comprar‑se a preço nenhum. ‑ Referia‑se ao que sentia por ela, o que sentira desde o primeiro momento em que a vi­ra ‑ Eu amo‑te. Provavelmente, amar‑te‑ei até ao fim da minha vida. Nunca haverá ninguém senão tu. Nunca houve, nunca haverá. Lembra‑te disso, onde quer que estejas. Eu amo‑te.

 ‑ Beijou‑a então, longa e ardentemente; e agarraram‑se um ao outro como dois náufragos.

‑ Também te amo, Peter. Quem me dera que pudesses ficar comigo.

‑ Quem me dera... também a mim. ‑ Tinha per­feita consciência de que nenhum deles esqueceria alguma vez o que haviam partilhado nos dois últimos dias e o que entre ambos acontecera nessa manhã.

Conduziu‑a de regresso ao hotel, deixou‑a sair no extremo  oposto da Place Vendôme. Olívia não trazia malas consigo, só a saia de algodão que vestia. Enrolara as calças de ganga e a T‑shirt e levava‑os na mão.  Não deixava nada com ele, exceto o seu coração; olhou‑o uma última vez, ele voltou a beijá‑la; depois, atravessou a correr a praça, banhada em lágrimas.

Peter ficou por longo tempo sentado, a pensar nela, de olhos fixos na entrada do hotel, onde pela última vez a avistara. Nesse momento, já teria chegado ao quarto, e desta vez prometera‑lhe não recuar, não desaparecer. E se o fizesse, que fosse ter com ele, ou pelo menos lhe dissesse onde estava. Não a queria a deambular por França. Ao contrário do marido, Peter preocupava‑se verdadeiramente com a segurança dela. Tudo aliás o preocupava, o que tinham feito, o que iria acontecer­‑lhe agora que estava de volta, se iria ou não ser de novo usada e explorada, ou se desta vez deixaria o marido. Preocupava‑o encarar Katie, no Connecticut; pressenti­ria ela que alguma coisa mudara entre eles? E teria mu­dado? Olivia demonstrara‑lhe que o seu sucesso fora ele quem o construíra mas, apesar das palavras desta, ainda sentia que devia muito a Kate. Não podia pô‑la de lado agora. Tinha de continuar como se nada tivesse sucedido. O seu relacionamento com Olivia não possuía passado, nem presente, nem futuro. Fora um simples momento, um sonho, um instante, um diamante encontrado na areia e guardado por ambos. E ambos tinham obrigações anteriores. Era Kate o seu passado, o seu presente e o seu futuro. A única dificuldade residia na ferida do seu coração. E, enquanto se encaminhava para o Ritz, pensava que esse coração não agüentaria se continuasse a pensar em Olívia. Tornaria a vê-la? Onde estaria ela nesse preciso momento? A vida sem ela era  inimaginável, mas era tudo o que lhe restava.

Quando abriu a porta do quarto, reparou no pequeno envelope que o esperava. O Dr. Paul‑Louis Suchard, telefonara e pedia que Mr. Haskell o contatasse o mais depressa possível.

Estava de regresso à sua vida real, às coisas que lhe diziam respeito, a sua mulher, os seus filhos, os seus negócios. E algures, lá longe, desvanecendo‑se no nevoei­ro, a mulher que achara que nunca teria, a mulher por quem ficara tão desesperadamente apaixonado.

Permaneceu na varanda a ver nascer o Sol, e a pensar nela. Tudo aquilo lhe parecia um sonho, e talvez tivesse sido. A Place de la Concorde... o café em Montmartre... a praia em La Favière... tudo. Sabia que, por muito forte que fosse o que sentia por ela, por muito maravilhoso que tivesse sido, era necessário esquecer.

 

Quando o despertaram às oito horas, Peter estava morto para o mundo e, ao pegar no telefone, estranhou sentir‑se tão mal. Era como se tivesse chumbo na cabeça; então, lembrou‑se. Ela saíra da sua vida. Tudo acabara. Tinha de telefonar a Suchard, voar para Nova Iorque, enfrentar Frank e Katie. E Olivia voltara para o marido.

Debaixo da ducha, pensava nela, sentia‑se inacreditavelmente desgraçado e era tremendo o seu esforço pa­ra se concentrar no assunto de que tinha de tratar nessa manhã.

Ligou a Suchard às nove horas em ponto. E Paul­‑Louis recusou‑se a comunicar‑lhe os resultados obtidos. Insistiu com Peter para que fosse ter diretamente ao laboratório. Informou‑o apenas de que todos os testes estavam concluídos. Pedia uma hora do tempo de Peter, dizendo‑lhe que facilmente apanharia um avião às duas horas. Peter, aborrecido por ele nem ao menos lhe resumir os resultados pelo telefone, concordou em ir ao seu escritório às dez e meia.

Encomendou café e croissants, mas não conseguiu comer nada. Saiu do hotel às dez horas, chegou com dez minutos de antecedência. Suchard esperava‑o, carrancudo. Afinal, os resultados não eram tão maus quanto Peter receara ou Paul‑Louis previra. Uma das substâncias essenciais do Vicotec era claramente perigosa, teria de se encontrar maneira de a substituir, mas o pro­duto no seu conjunto não deveria ser posto de parte. Teria, sim, de ser «retrabalhado», como Suchard dizia, o que talvez viesse a revelar‑se um processo lento. Pressionado, admitiu que as alterações poderiam ser levadas a cabo no espaço de seis meses a um ano, eventualmente menos se acontecesse um milagre, no que não acreditava. Mais racionalmente, o processo levaria cerca de dois anos, o que era bem melhor do que o que Peter depreendera da primeira conversa que haviam tido. Talvez, com equipas extras, pudessem pôr o Vicotec de pé em menos de um ano, e isso não era o fim do mundo, embora não deixasse de ser um desapontamento. No entanto, com a presença da tal substância, como se apresentava agora e como haviam pensado comercializá­‑lo, era potencialmente um medicamento assassino. Poderia deixar de ser, e Suchard sugeriu várias formas de proceder às alterações necessárias. Peter, porém, sabia que Frank não consideraria nada disto boas notícias. Odiava atrasos, e as intensas pesquisas ainda a fazer custariam dinheiro. Não havia, para já, a mínima hipótese de pedir à FDA autorização para ensaios em seres humanos, muito menos de comparecerem às averiguações de Setembro com o objetivo de o produto ser incluído nas «prioridades». O que Frank quereria seria, evidentemente, a aprovação do medicamento o mais depressa possível, dando origem a lucros maciços ‑ o que não coincidia com o que Peter desejava. Quaisquer que fossem as razões ou os objetivos, por agora não havia nada a fazer.

Peter agradeceu a Paul‑Louis o seu empenho e meticulosidade das suas pesquisas e, ao regressar ao hotel, ia absorto nos seus pensamentos, tentando encontrar as palavras a dizer a Frank. A frase exata de Paul‑Louis ressoava ainda, desagradavelmente, nos seus ouvidos: «O Vicotec, tal como se apresenta agora, é um assassino».

Não fora de certeza essa a intenção deles, ou o que ele teria desejado para a sua mãe e para a sua irmã. Todavia, por qualquer razão, Peter não via Frank a aceitar a notícia racionalmente, e nem Katie, que odiava coisas que aborrecessem o pai. Desta vez, porém, até ela teria de compreender. Ninguém desejava uma série de tragédias, nem uma só que fosse, nem podia arriscar‑se a deixar que tal acontecesse.

No hotel, Peter fez as malas e, enquanto esperava dez minutos pelo carro, ligou para o noticiário. E lá es­tava ela. Quase exatamente aquilo que esperara. A grande notícia do momento era que Olivia Thatcher fora encontrada. E a novela romanesca que impingiram era demasiado estranha para ser verdadeira, e claro que não o era. Fora encontrar‑se com uma amiga, tiveram um pequeno acidente de viação, sofrera de leve amnésia durante três dias. Ninguém no hospital onde estivera parecia tê‑la reconhecido ou ter visto os noticiários; co­mo por milagre, na noite anterior recuperara a memória e reunira‑se, felizmente, ao marido.

‑ É de mais para uma reportagem séria ‑ comentou Peter, abanando a cabeça, enfastiado. Passaram as mesmas fotografias dela, antigas, já muito vistas, e depois uma entrevista com um neurologista, especulando sobre as conseqüências cerebrais de uma concussão ligeira. Remataram desejando a Mrs. Thatcher um total e rápido restabelecimento. ‑ Amém ‑ disse ele entre dentes e desligou. Passeou o olhar pelo quarto uma última vez, pegou na pasta. A mala fora levada, nada mais restava a Peter do que abandonar o hotel.

Naquele momento, deixar o quarto causou‑lhe uma enorme sensação de nostalgia. Tanta coisa acontecera durante a sua estada! Apeteceu‑lhe de repente correr escada acima, só para a ver. Bateria à porta da sua suíte, diria que era um velho amigo... e provavelmente Andy Thatcher iria considerá‑lo um louco. Peter questionava‑se sobre se ele teria qualquer suspeita em relação aos últimos três dias, ou se não lhe interessava. Era difícil tirar uma conclusão e a história contada à imprensa não passava, e com boa vontade, de um romance de cordel, Peter achara‑a ridícula e gostaria de saber quem a inventara.

Ao descer, encontrou o habitual matiz de personagens, os árabes, os japoneses... O rei Khaled fora para Londres, depois da ameaça de bomba. Parecia haver uma nova enxurrada de recém‑chegados a registrar‑se, enquanto Peter, passada a recepção, seguia o seu caminho. Ao entrar na porta giratória, deparou com um numeroso grupo de homens de fato completo, walkie-talkies e auscultadores; e foi então que, à distância, a viu. Encaminhava‑se precisamente para a limusine, onde já se encontravam Andy e dois dos seus colaboradores. Afastara‑se dela, a conversar com os seus homens, e, co­mo que pressentindo a presença de Peter, Olivia olhou por cima do ombro. Parou, hipnotizada, e fitou‑o. Os olhares de ambos cruzaram‑se, ficaram presos por um longo momento, e Peter preocupou‑se com a hipótese de alguém dar por isso. Baixou‑lhe muito discretamente a cabeça e então, como que a arrancar‑se dele pela segunda vez, Olivia entrou na limusine, a porta fechou‑se, e Peter ficou no passeio, de olhos fixos no carro, à sua procura e incapaz de ver através dos vidros fumados.

‑ O seu carro espera‑o, senhor ‑ informou‑o cortesmente o porteiro, ansioso por evitar um engarrafamento de trânsito defronte do Ritz. Duas modelos queriam sair para uma sessão e a limusine de Peter bloqueava‑as. Começavam a ficar histéricas, gritavam, agitavam os braços.

‑ Desculpem. ‑ Gratificou o porteiro, entrou no carro e, sem uma palavra, fixou os olhos na rua em sua frente, sem sequer a olhar de relance, enquanto o motorista rumava rapidamente ao aeroporto.

E na limusine deles, Andy levava Olivia ao encontro de dois congressistas e do embaixador, na Embaixada americana. Tratava‑se de uma reunião que planeara durante toda a semana, e insistira com a mulher para o acompanhar. De início, enfurecera‑se com ela pela barafunda que provocara, mas, uma hora após vê-la de regresso sã e salva, concluiu que o seu desaparecimento fora um bônus para si. Ele e os seus assistentes tinham arquitetado uma série de possibilidades, todas elas destinadas a atrair as simpatias, especialmente tendo em conta os seus planos do momento. Queria fazer dela uma outra Jackie Kenedy. O seu aspecto prestava‑se a isso, e o seu ar acriançado, aliado ao seu estilo e inteligência naturais, e a sua coragem perante a adversidade. Todos os conselheiros de Andy a declaravam perfeita. Tinham de lhe prestar maior atenção do que no passado e prepará‑la um pouco mais para as suas funções, de forma alguma duvidando de que as desempenharia bem.

Precisava de pôr ponto final nas suas curtas ausências, Fizera‑o com freqüência após a morte de Alex, afastar‑se por umas horas, passar uma noite algures, geralmente com o irmão ou com os pais. Desta vez, desaparecera por mais tempo, mas ele nunca realmente sentira que a mulher corria perigo. Sabia que ela voltaria, e esperava que entretanto não fizesse qualquer coisa estúpida. E, antes de saírem para a embaixada, dissera‑lhe precisamente o que pensava do assunto e também o que agora se esperava dela. Olivia começara por declarar que não iria com ele. E objetara com veemência contra a fantochada que estavam a impingir aos media a seu respeito.

‑ Pareço uma mentecapta total ‑ dissera, horrorizada. ‑ Uma doente mental. ‑ Queixara‑se amargamente da história.

‑ Não nos deixaste muito por onde escolher. O que querias que disséssemos? Que estiveras a cair de bêbeda durante três dias, num hotel da margem esquerda? Ou a verdade? A propósito, qual é a verdade, se queres que eu a conheça?

‑ Não é nem de perto tão interessante como o que quer que seja que tenhas imaginado. Precisei de algum tempo para mim, é tudo.

‑ Foi o que eu pensei. ‑ mostrava‑se mais aborrecido do que ofendido. Também ele desaparecia imenso, mas fazia‑o com mais subtileza do que a mulher. ‑ Da próxima vez, farás o favor de me deixar umas linhas ou de informar alguém.

‑ Ia fazê‑lo. Depois, hesitei, duvidosa de que desses sequer pela minha ausência. ‑ Parecia atrapalhada.

‑ Deves pensar que eu estou completamente a leste do que se passa à minha volta ‑ retorquiu ele, desta vez ofendido.

‑ E não estás? No que se me refere, pelo menos.

Apelou então a toda a coragem e disse‑lhe o que planeara dizer‑lhe desde o seu retorno. ‑ Gostava de falar contigo esta tarde. Talvez quando voltarmos da embaixada.

‑ Tenho um almoço ‑ respondeu ele, desinteressado. Regressara. Não o pusera em xeque. A imprensa fora satisfeita. Precisava dela na embaixada, quanto ao resto, tinha mais em que pensar.

‑ Convinha‑me esta tarde ‑ insistiu Olivia, impassível. Conhecia bem aquele brilho do seu olhar, significava que não tinha tempo para ela. Um olhar que lhe era familiar, nem por sombras um olhar de boas­‑vindas.

‑ Algum problema? ‑ indagou, surpreendido. Era raro a mulher roubar‑lhe tempo, mas não suspeitava minimamente do que estava para vir.

‑ Nada de nada. Apenas me evaporei durante três dias de uma só vez. Que problema poderia haver? ‑ Andy não gostou nem do olhar, nem da voz de Olivia.

‑ Tiveste uma sorte dos diabos por eu ter sido capaz de corrigir o teu erro, Olivia. Se eu fosse a ti, não me mostraria tão insolente. Não podes esperar continuar a cirandar quando te apetece, e encontrar todos bem‑dispostos quando voltas. Se a imprensa quisesse, poderia ter‑te feito em fanicos. Portanto, porque não te limitas a pôr uma pedra sobre o assunto? ‑ Não tinha a menor dúvida de que golpes do gênero poderiam diminuir seriamente as suas hipóteses.

‑ Desculpa. ‑ Mantinha‑se inflexível. ‑ Não era meu intuito causar‑te tantos trabalhos. ‑ Não ouvira do marido uma única palavra que sugerisse preocupação com ela, receio de que tivesse caído nalguma armadilha. É verdade, nunca tal passara pela cabeça de Andy. Conhecendo‑a tão bem como conhecia, sempre se convencera de que ela estava escondida. ‑ Porque não conversamos depois dos teus encontros, esta tarde? Até lá, pode esperar. ‑ Tentava manter‑se calma. Mas está furiosa com ele. Nunca lhe dava nenhuma importância. Há anos que tal acontecia. E agora ainda era mais difícil, ao compará‑lo com Peter.

Era em Peter que pensava e, ao seguirem para a embaixada uns minutos mais tarde, partira‑se‑lhe o coração ao vê‑lo. Não ousara sequer acenar‑lhe. Sabia que, por uns tempos, a imprensa não a perderia de vista nem por um segundo. Provavelmente, também eles desconfiariam da historieta fiada, cada «Pitéu» que conseguissem desencantar lhes saberia a pouco.

Levou todo o caminho até à embaixada absorta nos seus pensamentos; e Andy não lhe pediu que o acompanhasse ao tal almoço. Teve um demorado encontro com um político francês. Porém, quando às quatro horas regressou, não vinha minimamente preparado para o que ia ouvir. Olivia esperava‑o, serena, na sala da suíte, sentada numa cadeira, de olhos fixos na janela. Por essa altura, Peter estaria num avião rumo a Nova Iorque, era só nisso que pensava. Voltaria para «eles», os outros da sua vida, os que não se preocupavam com ele. E também ela voltara para as mãos dos exploradores, mas não por muito tempo.

‑ O que é essa coisa tão importante? ‑ disparou Andy ao entrar. Acompanhavam‑no dois dos seus homens mas, perante a cara da mulher, o seu ar sério, apressou‑se a dispensá‑los. Só lhe vira aquele aspecto uma ou duas vezes, quando da morte do irmão e da de Alex. No resto do tempo, mostrava‑se sempre alheada dele, do mundo em que vivia.

‑ Tenho uma coisa a dizer‑te. ‑ Falava calmamente, sem saber bem por onde começar. o que sabia é que tinha que lho dizer. - Isso... eu calculo. ‑ Era mais bem‑parecido que qualquer outro homem que ela conhecesse. Os seus olhos azuis, enormes, e o cabelo alourado emprestavam‑lhe um ar agarotado. Tinha ombros largos e cintura fina, umas pernas altas, bem lançadas, que cruzou ao sentar‑se numa das cadeiras de brocado. Mas já não fascinava olivia, nem sequer a atraía. Sabia a que ponto era egoísta, e obcecado... e também que não tinha qualquer interesse nela. - Vou‑me embora ‑ foram as suas únicas palavras. Só isso. já o dissera. Acabara‑se.

‑ Embora, para onde? ‑ perguntou o marido, confuso. Não percebera o significado da frase, e Olivia não pôde evitar um sorriso. Ultrapassava a sua com­preensão e a sua imaginação.

‑ Vou deixar‑te ‑ traduziu ela. ‑ Logo que voltarmos para Washington. Não posso continuar. Foi por isso que me afastei estes dias. Tinha de pensar no assunto. Agora, tenho a certeza. ‑ Queria lamentar o que estava a comunicar‑lhe, mas ambos sabiam que não lamentava. Nem ele dava mostras de o lamentar; estava era boquiaberto.

‑ A ocasião que escolheste não é a ideal ‑ replicou, meditativo, mas não lhe perguntou para onde ia.

‑ Nunca o são, as ocasiões para dizer coisas deste gênero. É como adoecer. Nunca é conveniente. ‑Pensava em Alex, e ele abanou a cabeça, concordando. Sabia quanto fora duro para ela. Mas acontecera há dois anos. Achava que, de certa maneira, a mulher não recuperara. Nem ela, nem o casamento deles.

- Há algum fato específico que tenha desencadeado isto. Alguma coisa que te incomode? ‑ Não se deu ao trabalho de lhe perguntar se havia alguém. Conhecendo‑a como conhecia, deduziu facilmente que não havia, Estava convencido de saber tudo a seu respeito.

‑ Há imensas coisas que me incomodam, Andy. Tu sabes. ‑ Trocaram um longo olhar e nenhum deles se atreveria a negar que se haviam tornado dois estranhos. Ela nem sabia quem ele era agora. ‑ Nunca quis ser a mulher de um político. Disse‑to quando casamos,

‑ Não posso fazer nada, Olivia. As circunstâncias alteram‑se. Nunca esperei que o Tom fosse assassinado. Há muitas coisas que nunca esperei. Nem tu. As coisas acontecem, e pronto. Faz‑se o melhor que se pode para as enfrentar.

‑ E eu fiz. Estive a teu lado. Fiz campanha contigo. Fiz tudo o que esperavas de mim, mas já não somos um casal, Andy, e tu sabe‑lo bem. Há anos que não me prestas atenção. Nem sei quem tu és agora.

‑ Lamento ‑ retorquiu ele, calmo e parecendo sincero; mas não propôs qualquer modificação. ‑ É uma má altura para me fazeres isto. ‑ Olhou‑a com um olhar penetrante, que a teria aterrorizado se pudesse ler‑lhe o pensamento. Precisava desesperadamente dela, não estava de todo preparado para a deixar ir‑se embora naquele momento. ‑ Há uma coisa que tenho estado a pensar em discutir contigo. Só tomei uma decisão definitiva na semana passada. ‑ E fosse a decisão o que fosse, era claro para Olivia que não fora ouvida nem acha­da. ‑ Gostava que fosses uma das primeiras pessoas a saber. ‑ «Uma das primeiras», não a primeira, era esse o resumo dos últimos anos do casamento deles. ‑ Vou candidatar‑me à presidência no próximo ano. Para mim significa tudo. E vou precisar da tua ajuda para vencer. ‑ Sentada, olhou‑o fixamente; não teria sido maior o impacto se a tivesse atingido com uma bola de basebol. Daquilo, não estava à espera. Sabia que havia uma possibilidade, mas agora tornara‑se real, e a maneira como lho lançara era uma bomba prestes a rebentar‑lhe nas mãos; não fazia a menor idéia do caminho a seguir. ‑ ­Pensei muito, sabendo o que sentes em relação a campanhas políticas. Mas acho que constituirá uma pequena atração vir a ser primeira dama. ‑ Esboçava um sorriso, pretensamente encorajante, mas ela não lho retribuiu. Pelo contrário, mostrou‑se horrorizada. A última coisa que queria neste mundo era ser primeira dama.

- Não constitui atração de espécie alguma ‑ retorquiu, trêmula.

‑ Mas para mim constitui ‑ declarou Andy, bruscamente. Era pelo que ele ansiava, mais do que por ela, ou pelo casamento de ambos. ‑ E sem ti, não consigo. É impensável, um presidente separado, e divorciado pior ainda. Isso não é novidade para ti. ‑ Olivia era uma profissional da política, tendo crescido, como crescera, ao lado do pai. Ao olhá‑la, ocorreu‑lhe uma idéia. Se mais não fosse possível, tinha de tentar salvar o máxi­mo, embora sem fazer o menor esforço para a convencer de que ainda a amava. Era demasiado esperta para um tal jogo e ele já metera vezes de sobra o pé na argola. Fora longe de mais, ambos o sabiam. ‑ Deixa-me fazer‑te uma sugestão ‑ continuou, medindo as palavras. ‑ Não é exatamente uma idéia romântica mas talvez seja útil às necessidades dos dois. Eu preciso de ti. Falando com franqueza, pelo menos durante os próximos cinco anos. Um para a campanha e quatro para o meu primeiro mandato. Depois, poderemos renegociar, ou o país terá de se adaptar à nossa situação. Talvez tenha chegado o momento de o povo compreender que até o seu presidente é humano. No fim de contas, olha o Príncipe Carlos e a princesa Diana. A Inglaterra sobreviveu, nós também sobreviveremos. ‑ No seu espírito era já presidente e o povo teria de ceder, tal como ela fazia.

‑ Não tenho bem a certeza de que a nossa federação seja igual ‑ comentou com uma ironia de que Andy nem se apercebeu.

‑ Seja como for ‑ prosseguiu, ignorando‑a, a pensar e a concentrar‑se no que deveria propor‑lhe co­mo atrativo ‑, estamos a falar de cerca de cinco anos. Tu és muito nova, Olivia. Podes agüentar, e ganhar um cunho que nunca tiveste. As pessoas não só te lamentarão, ou terão curiosidade a teu respeito, elas vão acabar por te adorar. Os meus rapazes e eu podemos fazer com que isso aconteça. ‑ Ao ouvi‑lo, apetecia‑lhe vomitar; deixou‑o prosseguir. ‑ Eu porei quinhentos mil dólares numa conta em teu nome no final de cada ano, isentos de impostos. E, no fim dos cinco anos, terás dois milhões e meio de dólares. ‑ Levantou uma mão, antecipando‑se a qualquer comentário. ‑ Eu sei que não te deixas comprar, mas, se te vais embora por tua livre vontade, é um bom pé‑de‑meia para ponto de partida. E, se tivermos outro filho... ‑ Sorriu‑lhe, a adoçar o contrato. ‑ Bom, dou‑te mais um milhão. Falamos nisso há pouco tempo, seria um argumento de peso. Não vais querer que as pessoas pensem que há qualquer coisa errada conosco, ou digam que somos ambos homossexuais, ou que tu ficaste obcecada pela tragédia. Já falam de mais a esse respeito. Acho que é tempo de agirmos e termos outro filho. ‑ Olivia não queria acreditar no que os seus ouvidos ouviam. Falamos há pouco tempo significava ele e a gente da sua campanha. Ultrapassava o nojento.

‑ Porque não alugamos um bebê? Ninguém precisava saber. Bastava‑nos arrastá‑lo para a caravana da campanha e devolvê‑lo ao chegar a casa. Seria muito mais simples. As crianças geram tanta balbúrdia, dão tanta maçada. ‑ Andy não gostou do olhar com que ela acompanhou as suas palavras.

- Comentários desses não vêm a propósito ‑ replicou, calmo, parecendo exatamente aquilo que era, um rapaz rico que freqüentara as melhores escolas preparatórias, seguindo‑se‑lhes a licenciatura em Harvard na Faculdade de Direito. Tivera montes de dinheiro da família a apoiá‑lo e sempre partira do princípio de que não havia coisa alguma que não pudesse ter, ou comprando‑a ou lutando ferozmente. Queria aproveitar as duas possibilidades, mas não por ela. E nada no mundo a levaria a ter outro filho seu. Nunca estivera junto dela e de Alex, nem mesmo quando este ficara canceroso. Era em parte por isso que a morte do filho lhe doera tanto. Fora bastante mais fácil para Andy. Não estava, nem pouco mais ou menos, tão agarrado ao filho como ela.

‑ A tua proposta é revoltante. A coisa mais repugnante que jamais ouvi ‑ respondeu‑lhe, ultrajada. ‑ Queres comprar cinco anos da minha vida, a um preço sensato, e queres que eu tenha outro filho porque isso te ajudaria a ser eleito. Recuso‑me a continuar aqui sentada a ouvir‑te por mais tempo. ‑ A expressão de Olivia disse‑lhe o que pensara da sua proposta.

‑ Sempre gostaste de crianças. Não vejo qual é o problema.

‑ Eu já não gosto de ti, Andy, é esse o problema, ou parte dele. Como podes ser tão grosseiro e insensível? O que te aconteceu? ‑ Lágrimas queimavam‑lhe os olhos, mas não choraria. Ele não o merecia. ‑ Adoro crianças. Ainda hoje. Mas não vou ter um bebê para apoiar uma campanha eleitoral, de um homem que não me ama. O que estavas a sugerir? Que o fizéssemos por inseminação artificial? ‑ Não durmo com ele há meses, O que de fato a deixava indiferente. Não tivera tempo, além de ter outros recursos que explorava com regularidade, e ela não mostrava interesse.

‑ Acho que estás a exagerar ‑ contrapôs um bocado embaraçado pelas palavras da mulher. Havia nelas verdade, até ele o sentia. Mas agora não podia voltar atrás. Era demasiado importante para si levar a melhor, Dissera ao diretor da sua campanha que ela levantaria obstáculos a ter um filho. Apegara‑se imenso ao primeiro, ficara destroçada com a sua morte, suspeitava de que nunca se disporia a ter outro. Via‑a muito amedrontada; era de aproveitar a ocasião. ‑ Está bem, mas gostaria que pensasses no assunto. Digamos, um milhão por ano, São cinco milhões por cinco anos, e mais dois se tiveres um filho. ‑ Falava a sério; nada restava a Olivia senão rir‑se. ‑ E riu‑se.

‑ Achas que devo agüentar tudo por dois milhões, três se tiver um bebê? Isso faz... ‑ Fingiu concentrar­‑se. ‑ Deixa‑me ver... São seis se tiver gêmeos... nove se tiver trigêmeos. Podia levar injeções de Pergonal talvez até quadrigêmeos... ‑ Virou‑se e olhou‑o, magoada. Quem era aquele homem, em quem em tempo, acreditara? Como pudera enganar‑se tanto a seu respeito? Ao ouvi‑lo, perguntava‑se se ele fora alguma vez humano, embora bem fundo no coração soubesse que o fora, muito, muito no princípio. Por causa da pessoa que em tempos fora, e não da que era agora, decidiu ficar e prestar‑lhe atenção. ‑ Se eu fizer qualquer coisa por ti, e duvido que faça, não será por qualquer distorcido sentido de lealdade para contigo, nem por ganância, ou para tentar enriquecer à tua custa. Mas sei a que ponto anseias por vencer. ‑ Seria a última dádiva que lhe faria, e então nunca mais teria de sentir‑se culpada por deixá‑lo.

- É tudo o que eu quero, Olivia. ‑ Havia tal ansiedade na sua voz e estava tão pálido que ela percebeu que, por uma vez, era sincero.

- Vou pensar - disse, serenamente. Não sabia que fazer. Nessa manhã, convencera‑se de que regressaria a La Favière pelo fim da semana e agora estava prestes a tornar‑se primeira dama. Um pesadelo! Mas sentira que lhe devia qualquer coisa. Era ainda seu marido, fora o pai do seu filho, e ela poderia ajudá‑lo a concretizar o único sonho da sua vida. Um presente incrível a dar a alguém. E, sem ela, sabia que não o conseguiria.

‑ Quero fazer o anúncio dentro de dois dias. Voltamos amanhã para Washington.

‑ É gentil da tua parte informar‑me.

‑ Se continuas confusa, talvez acates os nossos planos de viagem ‑ replicou rudemente, observando‑a, inseguro quanto à decisão que ela tomaria. Mas conhecia‑a o suficiente para saber que não valia a pena forçá­-la. Talvez conversar com o pai dela ajudasse; temia, no entanto, que o tiro acabasse por lhe sair pela culatra.

A noite no hotel foi uma agonia para Olivia; quanto desejaria dar outro longo passeio sozinha! Precisava de tempo para pensar, mas não ignorava que, compreensivelmente, todo o pessoal da segurança se colaria a si. E que mais a satisfaria seria poder conversar com Pe­ter. Qual seria a opinião dele, dir‑lhe-ia que devia a Andy esse último favor, ou que estava mal? Cinco anos pareciam‑lhe uma eternidade, não duvidava de que seriam cinco longos anos que odiaria, sobretudo se ele vencesse as eleições.

De manhã, porém, tomara uma decisão e foi encontrar‑se com Andy ao pequeno‑almoço. Achou‑o nervoso e pálido, não pela perspectiva de a perder, mas pelo terror de que ela não o ajudasse a ganhar a eleição.

‑ Suponho que deveria dizer qualquer coisa filosófica ‑ começou, por entre café e croissants. Andy pedira a todos os outros que saíssem, o que nele era raro. Não estavam sozinhos há anos, exceto à noite na cama, agora acontecia pela segunda vez em dois dias. olhou-a de modo estranho, convencido da sua recusa. ‑ Mas acho que a filosofia já não é conosco, pois não? só me pergunto como chegamos a este ponto. Continuo a lembrar‑me do princípio. Creio que nessa altura estavas apaixonado por mim, e não consigo entender bem o que aconteceu. Recordo os acontecimentos como dos comentários que revejo em espírito, mas não sou capaz de determinar o momento exato em que tudo se deteriorou. Tu és capaz? ‑ perguntou‑lhe, tristemente.

‑ Não tenho a certeza de que isso interesse ‑ respondeu Andy, abatido. já sabia o que ela ia dizer‑lhe. Nunca a julgara tão vingativa. Fizera a sua dose de garotices, cometera uma série de erros, mas nunca pensara que a mulher realmente se importasse. Via agora a que ponto fora parvo. ‑ Acho que as coisas foram acontecendo, com o andar do tempo. E o meu irmão morreu. Não imaginas o que isso foi para mim. Estavas a meu lado, mas para mim foi diferente. De repente, tudo o que se esperava dele passou a esperar‑se de mim. Tive de deixar de ser quem sou e transformar‑me nele. Acho que tu e eu nos perdemos no meio desta mudança total.

‑ Se calhar, devias ter‑mo comunicado então ‑ Talvez nunca devessem ter tido Alex. Talvez devesse tê‑lo deixado logo no princípio. Não teria trocado por nada os dois anos da vida de Alex. Mas nem isso a incitava a ter outro filho agora. Sentiu, enquanto o olhava que tinha de arrancá‑lo à sua angústia. Decidiu fazê‑lo sem mais delongas. ‑ Aceito ficar contigo durante os próximos cinco anos, a um milhão por ano. Não tenho a menor idéia do que vou fazer com o dinheiro, dá‑lo a uma obra de caridade, comprar um castelo na Suíça, criar um fundo para pesquisas em nome do Alex, seja o que for. Decido mais tarde. Ofereceste‑me um milhão por ano, e eu aceito. Mas também tenho condições a impor. Quero uma garantia da tua parte de que se acabaram as minhas obrigações no fim dos cinco anos, sejas ou não reeleito. E se perderes para o ano, quebra‑se o compromisso e eu vou‑me embora no dia seguinte às eleições. Sem nenhumas pretensões posteriores. Posarei para todas as fotografias que quiseres, farei a campanha contigo, mas entre nós acabou‑se o casamento. Ninguém mais tem de o saber, mas quero que fique bem claro entre nós. Quero um quarto só para mim onde quer que vamos, e não haverá mais filhos. ‑ Rude, rápido, direto e final. Exceto que acabava de se condenar por cinco anos, e ele estava tão chocado que nem contentamento demonstrava.

‑ Como é que eu vou explicar os quartos separa­dos? ‑ articulou, simultaneamente preocupado e agradado. Tinha obtido quase tudo o que queria, exceto um filho... Aliás, essa fora uma idéia do seu diretor de campanha.

‑ Diz‑lhes que tenho insônias ‑ respondeu por ele à sua própria pergunta ‑ ou pesadelos, ‑ A idéia era boa, arranjariam uma fantasia qualquer... Ele tinha tanto trabalho a fazer... O stress da presidência... qual­quer coisa do gênero.

‑ E uma adoção? ‑ Negociava os mínimos pormenores do acordo, mas nesse ponto ela não cedeu. - Esquece. Não entro no negócio de compra de crianças para a política. Não o faria a ninguém, com certeza nunca a uma criança inocente. Mereceria uma vida melhor e melhores pais. ‑ Talvez um dia desejasse outro filho, ou mesmo adotar um, mas não com ele e não como parte de um acordo tão isento de amor corno aquele. ‑ E quero tudo estabelecido num contrato. Tu és advogado, podes redigi‑lo tu próprio, só entre nós, ninguém terá nunca de o ver.

- São precisas testemunhas ‑ esclareceu ele, ainda estupefato. A proposta da mulher subjugara‑o em absoluto. Depois de tudo o que lhe dissera na véspera, ficara com a certeza de que ela se negaria.

‑ Então, arranja alguém em quem confies ‑ foi a resposta calma de Olivia; isso, porém, era um enorme problema no seu mundo. Poderiam traí‑lo na primeira oportunidade.

‑ Não sei o que dizer‑te. ‑ Continuava boquiaberto.

‑ Não há mais nada a dizer, pois não, Andy? ‑ Dum só golpe, começava a corrida dele à presidência e terminava o casamento de ambos. O fato entristeceu‑a mas entre os dois não ficara ternura, nem sequer amizade. Para ela, os cinco anos iam ser uns cinco anos muito compridos; tinha esperança, para seu próprio bem, de que ele não ganhasse.

‑ O que te levou a fazê‑lo? ‑ interrogou‑a Andy suavemente, mais grato do que jamais estivera a alguém em toda a sua vida.

‑ Não sei. Achei que to devia. Não me pareceu certo ter a possibilidade de te dar uma coisa que tanto queres, e negar‑ta. E não me arrancas a nada que queira ter de verdade, exceto liberdade. Talvez queira escrever, mas isso pode esperar. ‑ Olhou‑o com interesse e pela primeira vez em anos, Andy apercebeu‑se de que nunca a conhecera.

- Obrigado, Olivia. ‑ Levantou‑se, sereno. ‑ Boa sorte ‑ desejou‑lhe ela em tom suave. Ele agradeceu com um aceno de cabeça e saiu da sala, sem se voltar, sem a olhar. E foi depois da sua saída que Olivia se lembrou de que nem uma só vez o marido a beijara.

 

Quando o avião de Peter aterrou no Aeroporto Kennedy, aguardava‑o uma limusine. Tratara de tudo a bordo, e Frank estava à sua espera no escritório. De certo modo, as notícias não eram tão más quanto Suchard o fizera recear, mas continuavam a não ser boas. E tudo seria, para Frank, uma novidade muitíssimo difícil de explicar. Parecia ir tudo tão bem há apenas cinco dias, quando partira de Genebra!

O trânsito de sexta‑feira à noite para entrar na cidade era caótico. À hora de ponta, e em junho, surgiam carros de toda a parte e passava das seis horas quando Pe­ter chegou finalmente à Wilson‑Donovan, com um aspecto crispado e exausto. Passara horas, no avião, às voltas com os relatórios e notas de Suchard. Caso excepcional, nem pensara em Olivia. Só em Frank, no Vicotec e no futuro deles. A notícia mais desagradável era terem de cancelar a apresentação à FDA e o pedido de liberação rápida; tal procedimento não implicava complicações; o pior ‑ e Peter não o ignorava ‑ ia ser o desapontamento de Frank.

O sogro esperava‑o lá em cima, no quadragésimo quinto andar da Wilson‑Donovan, na enorme suíte de canto que ocupava há trinta anos, desde que a Wilson­‑Donovan se mudara para aquele edifício. E a sua secretária ainda não saíra. Quando viu chegar Peter, ofereceu‑lhe uma bebida, mas ele só aceitou um copo de água.

‑ Então, lá conseguiste! ‑ acolheu‑o Frank, distinto e jovial no seu fato escuro com uma risca fina, e a sua farta cabeleira branca; Peter viu pelo canto do olho uma garrafa de champanhe francês a arrefecer num frappé de prata. ‑ Para quê tanto segredo? Parece um romance de capa e espada! ‑ Os dois homens trocaram um aperto de mão e Peter perguntou‑lhe como passava.

Frank, porém, aparentava melhor saúde do que ele. Com setenta anos, mantinha uma enorme vitalidade, uma ótima saúde, sempre atento a tudo, como nesse preciso momento. Quase ordenou a Peter que lhe contasse o que acontecera em Paris.

‑ Encontrei‑me com o Suchard ‑ começou Peter enquanto se sentava, no seu íntimo lamentando não o ter posto de sobreaviso pelo telefone. A garrafa fechada de champanhe fixava‑o, acusadora. ‑ Levou imenso tempo com os testes, mas acho que valeu a pena. ‑ Os joelhos tremiam‑lhe como os de uma criança; apetecia­‑lhe sumir‑se pelo chão.

‑ O que é que isso quer dizer? Um atestado de saúde perfeita, presumo. ‑ Piscou o olho ao genro que abanou a cabeça e o encarou frontalmente.

‑ Infelizmente, não. Um dos componentes secundários quase deu com ele em doido na primeira série de ensaios, o Suchard recusou‑se a autorizar o produto até os refazer todos e descobriu um grave problema, a menos que o sistema estivesse errado.

‑ E o que era? ‑ Ambos estavam agora sérios.

‑ O nosso medicamento. Há um elemento, só um que temos de mudar. Quando o fizermos, tudo ficará em ordem. Neste momento, segundo as palavras do Suchard, tal como as coisas se apresentam, o Vicotec é um medicamento assassino. ‑ Para Peter, tratava-se de um problema a enfrentar, mas Frank limitou‑se a abanar a cabeça, descrente, e voltou a sentar‑se na sua cadeira, a meditar no que Peter acabara de dizer‑lhe.

‑ Isso é ridículo. E nós sabemos que é. Olha Berlim! Olha Genebra! Fizeram ensaios durante meses, e todos com resultados satisfatórios.

‑ Mas em Paris, não. Não podemos ignorá‑lo. Felizmente, surgiu num só componente e ele acha que pode ser alterado com bastante facilidade. ‑ Eram as palavras de Suchard.

‑ «Com bastante facilidade»... O que quer dizer... ? ‑ Frank fitava‑o de sobrolho franzido. Só uma resposta lhe interessava.

‑ Acha que, se tivermos sorte, a pesquisa pode levar seis meses a um ano. Se não tivermos, talvez dois anos. Mas, se pusermos duas equipas a trabalhar, penso que o teremos pronto durante o próximo ano. Antes, não acredito.

‑ Isso é um disparate. Vamos pedir à FDA autorização para testes em seres humanos daqui a três meses. Foi o que planejamos, e é o que faremos. Fica a teu car­go. Se for preciso, traz para cá esse francês maluco, para ajudar.

‑ Em três meses, é impossível. ‑ As palavras de Frank horrorizavam Peter. ‑ É impossível. Temos de adiar o pedido à FDA, e a nosso comparecimento aos questionários e averiguações.

‑ Não! ‑ berrou‑lhe Frank. ‑ Pareceríamos uns idiotas. Temos tempo de sobra para limar as arestas antes de nos apresentarmos perante eles.

‑ E, se não tivermos, e eles nos concederem a autorização que quer, vamos matar alguém. Ouviu o que disse o Suchard, é perigoso. Frank, ninguém mais do que eu anseia por ver o produto no mercado. Mas, para o conseguir, não vamos sacrificar seres humanos.

‑ Já to disse! ‑ O sogro falava‑lhe de dentes cerrados. ‑ Tens três meses para o aperfeiçoar, até à apresentação à FDA.

‑ Não irei à FDA com um produto perigoso, Frank. Entende bem o que estou a dizer‑lhe? ‑ Peter levantou‑lhe a voz pela primeira vez na sua vida. Mas estava cansado, o vôo fora longo, há dias que não tinha uma verdadeira noite de sono. E Frank reagia como um louco, ao insistir na questão da apresentação, no pedido de autorização do início de experiências em seres humanos e da inclusão do Vicotec nas «Prioridades», quando Suchard acabara de avisá‑lo de que se tratava de um medicamento potencialmente assassino. ‑ Entendeu­‑me bem? ‑ repetiu; Frank abanou a cabeça, numa fúria silenciosa.

‑ Não, não entendi. Sabes o que quero de ti neste caso. Fá‑lo. Não vou deitar mais dinheiro pela janela fora com novos estudos. Ou levanta vôo, ou não levanta. Fui claro?

‑ Muito ‑ respondeu Peter, de novo controla­do. ‑ Então, acho que não levanta. Investir ou não mais fundos é uma decisão sua ‑ acrescentou, mas Frank limitou‑se a olhá‑lo de esguelha, irado.

‑ Dou‑te três meses.

‑ Preciso de mais, Frank. E você sabe que sim,

‑ Não me interessa aquilo de que precisas. Limita­‑te a assegurar uma maneira de estar pronto para a apresentação de Setembro. Apeteceu a Peter chamar‑lhe doido, mas não se atreveu. Nunca o vira tomar decisões perigosas. Desta vez, mostrava‑se totalmente irresponsável, ao pretender uma coisa que deitaria por terra a companhia. Era ridículo, só restava a Peter esperar que na manhã seguinte tivesse caído em si. Tal como Peter, ficara desapontado.

‑ Lamento as más notícias ‑ disse Peter, sereno; e pensou se Frank lhe ofereceria boleia para Greenwich na limusine. Se oferecesse, a viagem iria ser longa e desagradável, mas Peter estava morto por chegar a casa.

‑ O Suchard está maluco ‑ comentou Frank, furioso, atravessando o gabinete e abrindo a porta, uma espécie de sinal de despedida a Peter.

‑ Também eu fiquei contrariado ‑ retorquiu o genro com sinceridade; mas pelo menos fora muito mais racional do que Frank, que parecia não medir as conseqüências do que propunha. Não se pediam testes clínicos imediatos, nem a liberação prematura de um produto que se mostrava ainda nitidamente perigoso, que não fora aperfeiçoado, ou então, caminhava‑se deliberadamente ao encontro de problemas. E Peter não via como Frank se recusava a compreendê‑lo.

‑ Foi para isto que ficaste toda a semana em Pa­ris? ‑ Frank continuava encolerizado. A culpa não era de Peter, mas era ele o portador das más notícias.

‑ Foi. Achei que se despacharia mais depressa se eu lá estivesse à espera.

‑ Talvez não devêssemos ter‑nos dado ao incômodo de mandar testar o medicamento. ‑ Peter caiu das nuvens.

‑ Tenho a certeza de que vai mudar de idéias quando pensar melhor no assunto e ler o relatório. ‑ Estendeu‑lhe um monte de papéis que tirou da pasta.

‑ Entrega isso ao gabinete de pesquisas. ‑ Afastou a papelada com impaciência. ‑ Não vou ler essa porcaria. Só serve para nos atrasar desnecessariamente. Eu conheço o estilo do trabalho do Suchard. É uma velha histérica!

‑ É um cientista premiado ‑ replicou Peter com firmeza, determinado a apoiá‑lo; mas o encontro com Frank fora um pesadelo do princípio ao fim e sentia‑se ansioso por partir, por se ver em Greenwich. ‑ Acho que devemos voltar a discutir o assunto na segunda-feira, depois de o senhor ter tido tempo para o digerir,

‑ Não há nada a digerir. Nem sequer a discutir. Tenho a certeza de que o relatório do Suchard é mera histeria e recuso‑me a considerá‑lo. Se tu o tens em conta, isso é contigo. ‑ Semicerrou os olhos e espetou um dedo na direção de Peter: ‑ E não quero isto discutido com ninguém. Diz às nossas duas equipas daqui que mantenham o bico calado. Basta que se espalhe o boato, e a FDA recusa‑nos o pedido.

Peter sentia‑se ator de um filme surrealista. Chega­ra realmente a hora de Frank se retirar, se ia pôr‑se a to­mar decisões daquelas. Não tinham escolha: não podiam apresentar‑se à FDA com o Vicotec ainda não aperfeiçoado. E não fazia a menor idéia da razão que levava Frank àquela atitude. Mas este continuava incrivelmente aborrecido quando passou ao assunto seguinte.

‑ Recebemos uma notificação do Congresso, enquanto estiveste fora ‑ informou‑o, ríspido. ‑ Querem que nos apresentemos à sua subcomissão no Outono, para a discussão do impacto dos preços elevados dos produtos farmacêuticos no mercado atual. Mais choradeira do governo; o que eles queriam era que andássemos a oferecer medicamentos pelas esquinas. já contribuímos muito para os hospitais e para os países do terceiro mundo. Isto é uma indústria, que diabo, não é uma fundação! E não pensem que vamos dar ao Vicotec um preço de miséria. Não o permitirei! ‑ Peter arre­piou‑se ao ouvir o sogro. O único objetivo do medicamento era ser acessível às massas, às pessoas das áreas remotas ou rurais, ou com situações familiares em que fosse difícil, ou mesmo impossível, recorrer a quem a tratasse, tal como acontecera com a mãe e a irmã. Se a Wilson-Donovan ia aplicar‑lhe um preço de medica­mento de luxo, falseava esse objetivo; Peter teve de lutar contra a onda de pânico que o avassalava.

‑ Acho que a questão dos preços vai ter conseqüências importantes ‑ comentou, plácido.

‑ O Congresso também acha ‑ rosnou‑lhe Frank. ‑ Não nos chamaram só por causa disso, a importância das conseqüências, mas temos de lutar por preços altos, se não, vão atirar‑nos à cara as nossas próprias palavras quando o Vicotec chegar ao mercado.

‑ Penso que não devemos exagerar ‑ contrapôs Peter, com o coração aos saltos. Não gostava de nada do que ouvira. Tudo se resumia a lucros. Estavam a desenvolver um medicamento miraculoso e o fito único de Frank Donovan era tirar do fato o maior proveito que pudesse.

‑ Já aceitei. Vamos. Achei que poderás ir em Setembro, no dia da apresentação à FDA. Assim como as­sim, tens de ir a Washington.

‑ Talvez não ‑ foi a resposta seca de Peter, decidido a adiar a luta; estava exausto. ‑ Vai para Greenwich? ‑ perguntou delicadamente, para mudar de assunto, e ainda obcecado pela obstinação de Frank, que ultrapassava toda a racionalidade.

‑ Janto na cidade ‑ foi a resposta sucinta que ob­teve. ‑ Vejo‑te no fim‑de‑semana. ‑ Peter estava certo de que ele e Kate tinham combinado qualquer coisa que a mulher lhe contaria à sua chegada a casa. Porém, depois de sair, o que absorvia os seus pensamentos era a insensatez da posição de Frank. Talvez estivesse senil. Ninguém em seu perfeito juízo pretenderia apresentar‑se à FDA a pedir a liberação imediata de um pro­duto perigoso, sobretudo depois do que Suchard dissera e enquanto existisse o mínimo risco. A Peter não interessavam legalidades, ou obrigações, mas sim responsabilidade moral. Imagine‑se que o Vicotec era aprovado e Ia matar alguém! Não havia a menor dúvida no seu espírito de que ele e Frank seriam os responsáveis, e não o medicamento. Estava fora de questão, a FDA.

Levou‑lhe a hora inteira da viagem para recuperar do encontro com Frank; ao chegar a casa, Katie e os três rapazes andavam às voltas com a cozinha. Ela tentava organizar um churrasco e Mike prometera ajudar, mas estava agarrado ao telefone a marcar um encontro para essa noite e Paul decidira que tinha outras coisas a fazer. Peter olhou para a mulher e, com pena dela, despiu o casaco e pôs o avental. Para ele, eram duas horas da manhã, estivera ausente toda a semana e sentia‑se um bocado culpado.

Tentou saudar Katie com um beijo, depois de posto o avental, mas surpreendeu‑o a sua frieza; passou‑lhe pela cabeça que suspeitara de alguma coisa relacionada com Paris. A telepatia feminina assombrava‑o. Em dezoito anos, nunca a traíra e, da única vez em que o fizera, desconfiava de que ela tinha conhecimento. Os rapazes desapareceram quase de imediato, embrenhados nos seus próprios planos, e ela mostrou‑se fria durante todo o jantar. Foi só depois de os filhos terem saído que lhe falou, e Peter ficou estupefato ao ouvi-la.

‑ O meu pai disse‑me que foste muito rude com ele, hoje. ‑ Calma, fitava o marido com animosidade. ‑ Não acho justo. Estiveste fora toda a semana, ele andava excitadíssimo com o lançamento do Vicotec, e tu deitaste tudo a perder. ‑ Não era por causa de outra mulher que se mostrava aborrecida, era por causa do pai. Como de costume, apressava‑se a defendê‑lo mesmo sem saber o que se passara.

‑ Não deitei tudo a perder, Katie, foi o Suchard quem deitou. ‑ Esgotado, nem forças sentia para com­bater ambos. Mal dormira durante a semana inteira e, além disso, ter de discutir com a mulher as suas decisões de negócios aborrecia‑o profundamente. ‑ O laboratório de França detectou um problema sério, uma falha na fabricação do Vicotec que poderá, potencialmente, matar alguém. Temos de corrigir o erro. ‑ A sua resposta fora serena e explícita, mas ela continuava duvidosa.

‑ O pai diz que te recusas a ir à FDA. ‑ A voz dela soava melancolicamente na cozinha.

‑ Claro que me recuso. Achas que quero apresentar à FDA um produto com uma falha e pedir a sua liberação imediata, para depois o vender a um público confiante? Não sejas ridícula. Não faço a mínima idéia do porquê da reação do teu pai. Mas estou convencido de que, quando ler os relatórios, cairá em si.

‑ O pai diz que estás a agir como uma criança, que os relatórios são histéricos, e que não há motivo para pânico. ‑ Katie mantinha‑se implacável e Peter cerrou os dentes. Não ia continuar a conversa.

‑ Não me parece que seja o momento certo para falar disso. Não duvido que o teu pai tenha ficado contrariado. Também eu fiquei. E, tal como ele, também eu não desejaria que os resultados fossem o que foram. Mas ignorá‑los não é a solução.

‑ Falas como se ele fosse estúpido. ‑ Estava furiosa e Peter perdeu as estribeiras.

‑ Reagiu como tal, e tu reages como se fosses a mãe dele, Katie. Isto não nos diz respeito. É um assunto sério da companhia, uma decisão capital, de vida ou de morte. Não é um problema teu, nem sequer para o comentares, e não me parece que devas envolver‑te. - Enfurecia‑o o fato óbvio de Frank lhe ter telefonado a queixar‑se, mal ele saíra do escritório. De repente, ocorreu‑lhe tudo o que Olivia lhe dissera. Ela tinha razão. Katie governava a vida dele, ela e o pai. E o que o agastava era nunca se ter permitido dar por isso.

‑ O pai diz que nem sequer queres ir ao Congresso, por causa dos preços. ‑ Mostrava‑se magoada. Pe­ter suspirou, desalentado.

‑ Eu não disse isso. Disse que achava que não de­vemos exagerar, neste momento, mas não decidi nada quanto ao Congresso. Ignoro o que se passa. ‑ Mas não ela. Frank contara‑lhe tudo. Como de costume, sabia mais do que o marido.

‑ Porque estás tu a mostrar‑te tão difícil? ‑ insistiu Katie, enquanto ele metia a louça na máquina, num esforço para a ajudar. Sentia‑se tão exausto e tão desorientado com a diferença horária que mal via o que fazia.

‑ Isto não é da tua conta, Katie. Deixa o teu pai dirigir a Wilson‑Donovan. Ele sabe o que está a fazer. ‑ E não devia ter ido chorar no ombro da filha. Peter estava lívido.

‑ É exatamente o que eu te disse! ‑ retorquiu, vitoriosa. Nem sequer se mostrava contente por o ver. Obcecava‑a a defesa do pai. Pouco lhe interessava o seu cansaço, ou o seu desapontamento pela falha no Vicotec, ou a sua indisponibilidade para o apresentar à FDA, ou iniciar a sua produção. No espírito dela, só o pai existia. Nunca para ele fora tão evidente como agora; o olhar da mulher feriu‑o profundamente. ‑ Deixa o meu pai tomar as decisões. Se ele diz que podes ir à FDA, não há razão para não o fazeres. E se o faz feliz que compareças ao Congresso por causa dos preços, porque não hás‑de comparecer? ‑ Ao ouvi-la, Peter teve vontade de desatar aos gritos.

‑ Comparecer ao Congresso não é a solução, Katie, e apresentar cedo de mais à FDA um produto potencial­mente perigoso é suicídio, para todos os da companhia, e para os doentes que decidam usá‑lo, inconscientes das suas complicações letais em potência. Tu tomarias talidomida, sabendo o que agora sabes? Claro que não. Pedirias à FDA uma liberação rápida? Claro que não. Não podem ignorar‑se as falhas potenciais dos medicamentos, uma vez que se tem conhecimento delas, Katie. É irracional, e também o é ir à FDA prematuramente. Pode pôr‑se o país inteiro contra um medicamento pelo fato de o comercializar cedo de mais, ou com insensatez.

‑ Acho que o pai tem razão. Tu és um cobarde.

‑ Não posso acreditar! ‑ Fitava‑a, incrédulo. ‑ Foi o que ele disse? ‑ Como resposta, Katie abanou a cabeça em assentimento. ‑ O teu pai está extenuado; gostaria que tu ficasses fora de tudo isto. Estive ausente quase duas semanas, não quero discutir contigo por causa dele.

‑ Então, não o atormentes. Ele ficou incomodadíssimo com o teu comportamento desta tarde. Acho desonesto da tua parte, Peter, e desagradável... e desrespeitoso.

‑ Quando eu quiser que me ensines normas de conduta, Katie, peço‑to. Mas, até lá, convence‑te de que o teu pai e eu podemos entender‑nos entre nós. É um adulto, não precisa da tua defesa.

‑ Talvez precise. Tem quase o dobro da tua idade e, se não o respeitas, se o tratas desabridamente, leva‑lo depressa à cova. ‑ Repreendia o marido quase em lágrimas; este sentou‑se, tirou a gravata. Nem queria acreditar nos seus ouvidos!

‑ Por amor de Deus, queres parar? Que ridículo É um adulto. Pode tomar conta de si, não há razão para brigarmos por sua causa. A mim é que tu levas depressa para a cova, se não me deixas em paz. Mal dormi toda a semana, preocupado com os testes do laboratório...

E também, claro, Olivia, e três noites passadas a conversar com ela e uma viagem de ida e volta a La Favière. Todavia, nada disso fora mencionado e parecia agora tão irreal que já nem ele próprio acreditava que acontecera. Katie catapultara‑o para o seu próprio mundo com a subtileza de uma explosão nuclear.

‑ Não sei porque foste tão cruel com ele ‑ insistiu, assoando o nariz; Peter começava a perguntar‑se se não seriam ambos loucos, ela e o pai. Havia um produto de que estavam a ocupar‑se. Surgiram alguns problemas a resolver. Não era nada de pessoal. Recusar‑se a levá‑lo à FDA não era uma rebelião contra Frank, nem a sua franqueza com ele significava uma afronta a Katie. Teriam perdido o juízo? Fora sempre assim? Ou, de re­pente, era pior do que antes? Cansado como estava, dificilmente poderia decidir em «cara ou coroa», e o choro de Katie foi a última gota; levantou‑se e enlaçou‑a.

‑ Eu não fui cruel com ele, Katie, acredita‑me. Talvez ele tenha tido um dia mau. Eu também tive. Vamos para a cama, por favor... Estou morto de fadiga. ‑ Ou seria por perder Olivia que se sentia assim? De mo­mento, não conseguia destrinçar a questão.

Katie dirigiu‑se com ele para o quarto com relutância, e sempre a queixar‑se das suas injustiças para com o pai. Era tão grotesco que deixou de lhe responder e, passados cinco minutos, adormecera e sonhava com uma jovem numa praia. Ria‑se e acenava‑lhe e ele corria para ela convencido de que era Olivia, mas ao alcançá‑la era Katie, e estava furiosa com ele. Gritava‑lhe e, enquanto a ouvia, via Olivia desaparecer ao longe.

No dia seguinte, acordou inerte, subjugado por um desespero que lhe pesava como pedras. Não se lembrava da razão por que se sentia assim; olhou então em seu re­dor, viu o quarto familiar e recordou‑se. Recordou‑se de um outro quarto, de um outro dia, de uma outra mulher. Custava a acreditar que só haviam passado dois dias. Poderia ter decorrido uma vida inteira. Deitado na cama, pensava nela quando Katie entrou e lhe disse que à tarde iam jogar golfe com o pai.

Acabara Olivia, acabara o sonho. Fora para esta realidade que voltara para casa. Para a mesma vida que sempre vivera, embora agora tudo fosse tão diferente!

 

A poeira assentou, de certa forma por acaso. O humor de Katie melhorou, deixando de defender o pai como se ele fosse um bebê de colo. Viam‑no muito, no plano social, e, passados os primeiros dias do regresso de Peter a casa, tanto este como Frank andavam mais bem‑dispostos. Quanto a Peter, sempre gostara de ter os filhos perto dele, embora nesse ano eles passassem cada vez menos tempo com os pais. Mike já tirara a carta e conduzia Paul a toda a parte, o que lhes aliviava a carga mas também significava que os viam muito mais rara­mente. Até Patrick pouco tempo estava com eles. Tinha uma paixoneta pela vizinha do lado e passava em casa dela a maior parte dos seus tempos livres.

‑ O que é que se passa conosco? Teremos lepra? ‑ queixou‑se Peter a Katie uma manhã, ao pequeno‑almoço. ‑ Nunca vemos os miúdos. Andam sempre por fora. Estava convencido de que passariam o tempo conosco quando vêm do internato, em vez de andarem permanentemente por aí, com os amigos. ‑ Desolava‑o de verdade a ausência deles. Gostava de estar com os filhos, entristecia quando não os tinha consigo. Eram uma espécie de compensação para a camaradagem e bem‑estar que há muito deixara de partilhar com Katie.

‑ Vais vê‑los em Vineyard, no Verão ‑ respondeu ela, calmamente, mais habituada às suas idas e vindas e às suas vidas atribuladas. E na verdade, não apreciava tanto a sua presença como Peter. Fora sempre um pai formidável, mesmo quando os rapazes eram pequenos.

‑ Será que agora tenho de marcar entrevistas com eles? Que inferno, faltam cinco semanas para Agosto.. Detestaria não os encontrar, só lá passo um mês. ‑ Brincava, mas só em parte; Katie riu‑se.

‑ Todos eles cresceram ‑ argumentou, e com razão.

‑ Isso significa que eu fui despedido? ‑ Estava de­veras alarmado. Com catorze, dezesseis e dezoito anos, os rapazes pouco tinham a ver com os pais.

‑ Mais ou menos. Podes jogar golfe com o meu pai nos fins‑de‑semana. ‑ O fato irônico é que ela ainda passava mais tempo com o pai do que os seus filhos com os pais deles. Mas não lhe chamou a atenção para o fato, isto é, não lhe disse que a reação dos filhos era muito mais normal do que a dela.

E as coisas continuavam ainda levemente tensas entre Peter e Frank. Só nessa semana Frank aprovara um orçamento enorme de pesquisa para o Vicotec, levada a cabo por equipas duplas, a trabalhar de noite e de dia; mas ainda não concordara em cancelar a apresentação à FDA, embora Peter tivesse cedido, de má vontade, em ir ao Congresso por causa da questão dos preços, tendo feito tal só para agradar ao pai de Katie.

Não ia por prazer, mas não valia a pena lutar e era prestigioso para a firma ser visto lá. Só não lhe aprazia ter de defender os altos preços que eles, e outros da indústria, propunham desnecessariamente para os produtos. Porém, como Frank acentuava, estavam nos negócios para obter lucros. Preocupavam‑se com as doenças da humanidade, mas isso não os impedia de querer fazer dinheiro. Peter, contudo, desejava que com o Vicotec fosse diferente, esperava convencer o sogro a lucrar mais com o volume de vendas do que com um preço astronômico. E, pelo menos de início, não haveria concorrência para o medicamento. De momento, Frank não estava disposto a discutir o assunto. Tudo o que queria era a promessa de Peter de que ainda poderiam aprontá‑lo para a FDA, em Setembro. Tornara‑se uma obsessão. Queria o Vicotec no mercado o mais depressa possível, custasse o que custasse. Queria fazer história... e vários milhões de dólares.

Continuava a insistir em que dispunham de imenso tempo, que lhes bastava um tudo‑nada de sorte para «limarem as arestas» antes de Setembro. Peter acabara por desistir de discutir com ele e sabia que, se necessário, adiariam para mais tarde a apresentação à FDA. Havia uma possibilidade ínfima de estar tudo pronto na data, mas, segundo Suchard, era muito duvidoso. Peter considerava irrealistas os intuitos de Frank.

‑ O que acha de trazer para cá o Suchard? Poderia apressar um pouco as coisas ‑ sugeriu Peter, mas Frank não achou boa idéia; e quando Peter telefonou a Suchard para a discutir com ele, foi‑lhe respondido que o Dr. Suchard se ausentara. Surpreendeu‑o e contrariou‑o a ocasião escolhida. Todavia, ninguém em Paris sabia para onde ele fora passar as férias. Peter nada podia fazer para o localizar.

Em fins de junho, as coisas pareciam ter acalmado e chegara o momento de Frank, Katie e os rapazes partirem para Vineyard. Peter passaria com eles o fim‑de‑semana do 4 de julho, depois regressaria e começaria as suas viagens de comboio. Usaria o estúdio que a firma tinha na cidade durante a semana, trabalhando horas a fio no escritório. E nos fins‑de‑semana, rumaria a Vineyard. De segunda a sexta‑feira, queria estar disponível para as equipas de pesquisa, pronto a ajudá‑las no que quer que quisessem. E gostava de ficar na cidade. Aliás, Greenwich era solitário, sem Katie ou os filhos. Aproveitava a oportunidade para liquidar imensos assuntos de trabalho.

Todavia, não só o trabalho tinha em mente, no fim de junho. Vira duas semanas antes o anúncio de que Andy Thatcher se candidatava à presidência. Começava pelas primárias e, se as vencesse, concorreria às eleições nacionais de Novembro do ano seguinte. Reparara, interessado, que durante a primeira conferência de imprensa de Thatcher, e mesmo nas subseqüentes, Olivia estava a seu lado. Haviam prometido um ao outro não se telefonarem; ser‑lhe-ia pois difícil fazê‑lo para lhe perguntar o que se passava. O súbito e notório apareci­mento junto a Andy Thatcher desconcertava‑o; gostaria de saber o que significava dada a sua intenção anterior de o deixar. Mas, combinado como fora entre ambos não telefonarem, embora contrariado, Peter ficou‑se pelo que via. E decidiu que a regularidade da presença de Olivia ao lado de Andy na arena política era um sinal óbvio de que decidira não se separar dele. Como se sentiria ela? Teria Andy encontrado maneira de a manipular? Sabendo o que sabia a seu respeito, e sobre o relacionamento dos dois, parecia‑lhe improvável que o fizesse por afeto. Se estava com ele, era por um senti­mento de dever. Na verdade, não acreditava que fosse por amor.

Era estranho terem tido de seguir as suas vidas, de­pois do breve tempo que haviam passado juntos em França. Não conseguia deixar de se perguntar se para ela, como para si próprio, tudo se modificara inesperadamente. Atribuía agora maior importância a coisas que nunca o tinham incomodado. O trabalho parecia‑lhe mais difícil. Os ensaios do Vicotec continuavam a não re­solver nada, e Frank jamais fora tão pouco razoável co­mo atualmente. já nem os filhos precisavam dele. Mas, pior do que tudo, Peter perdera a sua alegria, a sua vida carecia de excitação, de mistério, de romance. Não encontrava nela nada do que havia partilhado com Olivia, em França. E o mais penoso era não ter com quem conversar. Nunca se apercebera, no decurso dos anos, até que ponto ele e Katie se tinham afastado, quanto outras coisas a ocupavam, a preocupavam... as suas atividades, os seus amigos, na sua maior parte comissões ou amigas. Como se já não existisse lugar para ele, pois o único homem por quem de fato se interessava era o pai.

Estaria a ser demasiado susceptível, ou pouco racional, ou ainda demasiado cansado, ou abatido pelo desapontamento com o Vicotec? Achava que não. E até em Vineyard, no 4 de julho, tudo o irritou. Sentiu‑se deslocado entre os amigos, dessincronizado com ela, e mesmo ali pouco via os filhos. Era como se, sem sequer se aperceber, tudo tivesse mudado e a sua ligação a Katie se tivesse quebrado. Incrível... fazer o balanço da sua vida. Teria ele, de uma qualquer maneira, forçado um arrefecimento com a mulher, de forma inconsciente, como que para justificar o que fizera com Olivia no Sul de França? Fazê‑lo, com um casamento à beira da ruptura, seria mais facilmente perdoável; com um casamento bem sucedido o remorso era mais pesado.

Deu por si à procura de fotografias de Olivia nos jornais, e no 4 de julho, viu Andy na TV. Estava numa reunião em Cap Cod, mostraram‑no junto ao seu enorme veleiro, ancorado na doca mesmo atrás dele. Suspeitou de que Olivia andaria por ali, mas, por mais que se esforçasse, não a viu.

‑ O que é isso, tu a veres TV a meio do dia? ‑Katie encontrou‑o na sala e, ao olhá‑la de relance, não pôde abster‑se de reparar na sua ainda esbelta figura. Vestia um fato de banho azul‑forte e usava a pulseira com o coração pendente que lhe trouxera de Paris. Apesar do cabelo louro e da cara atrevida, não tinha nele o efeito poderoso que Olivia exercia de cada vez que a via. Sentiu‑se culpado e Katie ficou surpreendida pelo seu ar abatido. ‑ Passa‑se alguma coisa? ‑ perguntou, Há já uns tempos que as coisas andavam difíceis entre eles. Peter mostrava‑se mais crítico do que habitual­mente e mais irritável, o que não era nada do seu feitio, Andava assim desde a última viagem à Europa.

‑ Não, está tudo bem. Só quis ver as notícias. ‑ Desviou dela o olhar, apontou o comando da TV com uma expressão vaga.

‑ Porque não vais lá para fora nadar? ‑ sugeriu Katie, sorrindo‑lhe. Ali, sentia‑se sempre feliz. O lugar era agradável, a casa de fácil manutenção. E gostava de se sentir rodeada pelos filhos e pelos amigos. Fora sempre um sítio apetecível, para ela e para Peter. Embora este ano tudo parecesse ligeiramente diferente. Era enorme a pressão sobre ele, com os ensaios em curso do Vicotec; Katie esperava que tudo corresse bem e obtivessem os resultados que Peter e o pai queriam. Mas, de momento, o marido parecia infeliz e distante.

Faltavam duas semanas para o laboratório se pronunciar. Depois de desligar o telefone, Peter sentou‑se, de olhar perdido no espaço. Não podia acreditar no que ouvira; meteu‑se no carro e seguiu para Martha's Vineyard para discutir o caso pessoalmente com o pai de Katie.

Despediu‑o? Porquê? Como pôde fazer uma coisa dessas? ‑ Frank Donovan abatera o mensageiro que lhes trouxera as más notícias. Ainda não compreendera que, a longo prazo, Paul‑Louis os salvara.

‑ É um idiota. Uma velha histérica, que vê fantasmas no escuro. Não havia razão nenhuma para o conservar. ‑ Pela primeira vez em dezoito anos, Peter começava a convencer‑se de que o sogro estava demente.

‑ É um dos mais conceituados cientistas de França, Frank, e tem quarenta e nove anos. O que está você a fazer? Podíamos tê‑lo usado aqui, para nos ajudar a apressar a nossa pesquisa.

‑ A nossa pesquisa está a correr lindamente. Ainda ontem a discuti com eles. Dizem‑me que tudo estará a postos no Dia do Trabalho. Por essa altura, já não haverá niquices com o Vicotec... Nem «falhas», nem fantasmas, nem perigo. ‑ Mas Peter não o acreditava.

‑ Pode prová‑lo? Tem a certeza? O Paul‑Louis disse que podia levar um ano.

‑ A decisão é minha. Ele não sabia o que estava a dizer. ‑ Peter, aterrado pelo ato de Frank, serviu‑se dos registros da firma para localizar Paul‑Louis. Na primeira noite do seu regresso a Nova Iorque telefonou­‑lhe, para lhe expressar quanto lamentava o sucedido e para trocar impressões com ele sobre o Vicotec e os seus progressos.

‑ Vocês vão matar alguém ‑ afirmou Paul‑Louis, no seu inglês carregado de sotaque. Mas sensibilizara‑o o telefonema, sempre tivera a maior consideração por Peter. De início, disseram‑lhe que a sua demissão fora idéia de Peter, mas mais tarde veio a saber que a ordem viera de fato diretamente do administrador. ‑ Ainda não podem arriscar‑se ‑ insistiu. ‑ Tem de passar por todos os testes, e isso leva meses, mesmo com equipas duplas a trabalhar dia e noite. Não os deixe fazer isso.

- Não deixo. Prometo‑lhe. Não houve nada no seu trabalho que eu não apreciasse. Nem sabe quanto lamento o rumo dos acontecimentos. ‑ E as suas palavras eram o puro reflexo dos seus sentimentos.

‑ Não faz mal. ‑ O francês encolheu os ombros, com um sorriso filosófico. já recebera uma oferta de uma importante firma farmacêutica alemã que possuía uma enorme fábrica em França, mas precisava de algum tempo para ponderar a sua decisão. ‑ Eu compreendo. Desejo‑lhe boa sorte nesta história. Poderia vir a ser um produto maravilhoso.

Os dois homens conversaram mais um bocado, Paul‑Louis prometeu manter contato e na semana que se seguiu Peter vigiou com ainda maior cuidado os resultados que iam obtendo. Se Paul‑Louis estava certo, havia muito trabalho pela frente até poderem dar «luz verde» ao produto com a consciência tranqüila.

Em fins de julho, os progressos pareciam animadores. E Peter partiu encorajado para as suas férias em Vineyard. O departamento de pesquisas prometera enviar­‑lhe todos os dias, por fax, os relatórios do escritório. Do que resultou ser‑lhe mais difícil descontrair‑se do que era hábito. Dir‑se-ia ligado ao fax pelo cordão umbilical, tanto por causa do Vicotec como por questões burocráticas.

‑ Este ano não estás a aproveitar nada ‑ lamentou‑o a mulher, mas, para além dessa verificação, pouca atenção lhe prestou. Tinha montes de amigos a ver, jardinagem a fazer e perdia imenso tempo com a casa do pai, ajudando‑o a renová‑la, a decidir se a sua cozinha de Verão deveria ou não ser substituída. Secundou‑o a entreter os amigos e organizou vários jantares para as visitas dele, jantares a que ela e Peter compareciam. Mas Peter também se queixava disso. Dizia‑lhe que nunca estavam sozinhos e que, cada vez que a via, estava apressadíssima para ir encontrar‑se com o pai.

- O que é que se passa contigo? Sinto‑me uma bola de pingue‑pongue, entre vocês dois ‑ protestou, contrariada. Peter sempre aceitara tão bem as coisas que fazia com o pai, e agora não parava de se queixar. E com o pai nada ia melhor, continuava furioso com Peter por causa da posição que este assumira relativa­mente ao Vicotec.

Era nítida a tensão ente os dois homens e, em meados de Agosto, Peter decidiu voltar para a cidade, alegando como desculpa o trabalho. Tinha de o fazer. Não percebia o que se passava, talvez a culpa fosse sua, mas tivera várias pegas com os rapazes, achava anormalmente difícil lidar com Katie e não suportava mais idas a jantares em casa de Frank. Ainda por cima, o tempo estava péssimo, a semana fora de trovoadas e havia a ameaça de um ciclone proveniente das Bermudas. No terceiro dia, mandou todos para o cinema, fixou firmemente as persianas e amarrou a mobília da varanda. Mais tarde, almoçou em frente do televisor a ver um jogo de futebol e, no intervalo, mudou para o noticiário, para ouvir o que diziam sobre o ciclone Angus. Ficou instantaneamente assustado ao ver a foto de um enorme veleiro e logo a seguir uma outra do senador Andy Thatcher, em pose. A notícia ia já a meio e o comentador falava da «tragédia ocorrida na noite anterior, já tarde. Até agora, os corpos não foram recuperados. O senador escusou‑se a fazer comentários».

‑ Oh, meu Deus! ‑ exclamou em voz alta, e no mesmo momento estava de pé, a largar a sanduíche sobre a mesa atrás de si. Tinha de saber o que se passava com ela. Estava morta ou viva, era o seu um dos corpos que procuravam? À beira das lágrimas, saltava de canal em canal.

‑ Olá, pai. Quem está a ganhar? ‑ perguntou Mike ao entrar de rompante na sala, de regresso do cine­ma. Peter não o ouvira chegar, olhou‑o como se visse um fantasma.

‑ Ninguém ganhou... não houve golos... não sei deixa... ‑ Voltou a concentrar‑se na TV, enquanto Mike saía; mas não encontrava o que queria. Até que, no Canal Dois, pôde ouvir a notícia quase desde o princípio. Tinham sido apanhados por uma tempestade em águas traiçoeiras, mesmo ao largo de Gloucester, no veleiro de cento e dez pés de Andy. E a despeito do tamanho e da alegada estabilidade do barco, este embateu numas rochas e afundou‑se em pouco mais de dez minutos. Havia cerca de uma dúzia de pessoas a bordo. O barco era computorizado e fora o próprio Thatcher quem o manobrara, apenas com a ajuda de uni único homem de convés e de alguns amigos. Por enquanto, faltavam vários passageiros, mas o senador sobrevivera. Estavam a bordo a sua mulher e o irmão desta, o Jovem. congressista de Boston, Edwin Douglas. Tragicamente, a esposa do congressista e os seus dois filhos pequenos haviam sido projetados borda fora. O corpo dela fora encontrado ao romper da manhã, mas os das crianças ainda não. E então, numa simples frase, o comentador acrescentou que a esposa do senador, Olívia Douglas Thatcher, quase se afogara. Continuava em estado crítico no Hospital Adison Gilbert e fora salva na noite anterior pela Guarda Costeira. Haviam‑na encontrado inconsciente, mas mantivera‑se a flutuar no meio da tempestade graças ao seu colete salva‑vidas.

‑ Oh, meu Deus... oh, meu Deus... ‑ Olivia. E com o medo que tinha do mar! Mal podia imaginar o que lhe sucedera, enquanto pensava freneticamente em correr de imediato para junto dela. Mas como o explicaria? O que iriam dizer nos noticiários? Um homem de negócios anônimo apareceu no hospital, desesperado por ver Mrs. Thatcher, e foi posto a andar. Meteram‑no num colete‑de‑forças e devolveram‑no à esposa, para recuperar a razão.

Não fazia a mínima idéia de como chegar até ela, ou de como vê-la sem causar problemas a nenhum dos dois. Voltou a sentar‑se, de olhos fixos no televisor, e concluiu que de momento, enquanto Olivia estivesse em estado grave, não havia provavelmente maneira alguma de o conseguir. Outro canal informou que Olivia Thatcher ainda não recuperara os sentidos e constava que se encontrava em coma profundo; passaram todas as imagens dela que possuíam e enumeraram tragédia por tragédia, tal como tinham feito em Paris. Havia também repórteres agrupados no exterior da casa dos seus pais, em Boston, e passaram uns minutos de filmagem do ir­mão, atingido pela tragédia, ao sair do hospital logo após ter perdido a mulher e os filhos. Era indescritível a dor que revelava, e ao olhá‑lo Peter sentiu lágrimas rolarem‑lhe pela face.

‑ Tens alguma coisa, pai? ‑ Mike voltara e ficou preocupado ao ver o pai.

‑ Não, eu... eu estou bem... foi uma coisa que aconteceu a uns amigos meus, terrível. Uma tempestade ao largo de Cape Cod, a noite passada, e o barco do senador Thatcher afundou‑se. Parece que morreram várias pessoas e outras ficaram feridas... ‑ E ela continuava em coma. Porque fora acontecer‑lhe semelhante coisa? E se morresse? Nem queria pensar nisso!

‑ Conhece‑los? ‑ Ao atravessar a sala a caminho da cozinha, Katie mostrou‑se surpreendida. ‑ O jornal da manhã traz qualquer coisa sobre o acidente.

‑ Conheci‑os em Paris ‑ respondeu, temendo acrescentar mais, não fosse ela perceber tudo pelo tom da sua voz ou, pior ainda, se o visse chorar.

‑ Dizem que ela é muito estranha. Segundo cons­ta, ele vai concorrer à presidência ‑ comentou Katie de passagem, e Peter não respondeu. Precipitara-se escada acima o mais rapidamente que pudera, indo ao quarto telefonar para o hospital.

Contudo, não ficou a saber nada de novo pelas enfermeiras do Addison Gilbert. Identificou‑se como um amigo íntimo da família e elas confirmaram‑lhe exatamente o que ouvira na TV. Estava na UCI e não recuperara os sentidos desde que fora salva. E quanto tempo poderia continuar assim? O seu cérebro seria afetado, morreria, tornaria a vê-la? Quanto mais pensava, mais vontade tinha de estar ao pé dela. Mas tudo o que pôde fazer foi estender-se na cama e recordar.

‑ Estás bem? ‑ Katie viera ao andar de cima bus­car qualquer coisa e estranhara vê‑lo deitado. Há uns dias que o seu comportamento era esquisito, no que lhe dizia respeito, a ela, fora na verdade esquisito o Verão inteiro. Mas o do pai também. Pelo que via, o Vicotec era desastroso para ambos, chegava a lamentar que tivessem decidido fabricá‑lo. Não valia o preço que cada um deles estava a pagar. Baixou então os olhos para Peter e pareceu‑lhe que os dele estavam molhados. Não fazia a menor idéia do que sucedera. ‑ Sentes‑te bem? ‑ insistiu, preocupada. Pôs‑lhe a mão na testa. Febre não tinha.

‑ Estou bem ‑ respondeu Peter, uma vez mais vergado ao sentimento de culpa, mas tão desesperada­mente preocupado com Olivia que mal raciocinava. Mesmo que nunca mais a visse, sentia que o mundo seria um lugar diferente sem o seu rosto delicado, os seus olhos que sempre lhe lembravam veludo castanho. Quereria ir ter com ela e abri‑los, e beijá‑la. Quereria ficar a seu lado. E, quando voltou a ver Andy na TV, apeteceu-lhe estrangulá‑lo por não estar com ela. Andy pormenorizava o que se passara, a rapidez com que a tempestade se aproximara, a tragédia de não terem podido salvar as crianças. E de certo modo, sem que o explicitasse, manobrou as palavras para que se deduzisse que, a despeito da perda de vidas, e do perigo que a sua mulher corria, ele era um herói.

Nessa noite, Peter manteve‑se ainda mais calado do que habitualmente. O ciclone prometido passara ao la­do; voltou a ligar para o hospital. Nada se alterara. Para ele, e para a família Douglas que aguardava no hospital, foi um fim‑de‑semana de pesadelo. No domingo à noite, já tarde, depois de Katie ter ido para a cama, telefonou uma vez mais. Era a quarta nesse dia, e quase se lhe dobraram os joelhos ao ouvir da enfermeira as palavras pelas quais tanto rezara.

‑ Voltou a si ‑ dizia ela, enquanto a voz de Peter se embargava de lágrimas. ‑ Vai ficar boa ‑ acrescentou, gentilmente. Quando desligou, Peter encostou a cara às mãos e chorou. Estava sozinho, podia finalmente desabafar. Fora incapaz de pensar noutra coisa nos dois dias anteriores, até mesmo de lhe deixar uma mensagem; mas consagrara‑lhe todos os seus pensamentos e preces. A própria Katie surpreendera‑se ao vê‑lo ir à igreja, no domingo de manhã.

‑ Não sei o que lhe deu ‑ disse ao pai nessa noite, ao telefone. ‑ Juro. E todo este disparate é por causa do Vicotec. Odeio essa porcaria. Está a pô‑lo doente, e a mim, maluca.

‑ Ele há‑de ultrapassar isso ‑ sossegou‑a o pai. ‑ Todos ficaremos mais aliviados quando estiver no mercado. ‑ Mas Katie não estava assim tão certa. As lutas deles por causa do medicamento eram‑lhe demasiado dolorosas.

Na manhã seguinte, Peter telefonou para o hospital, mas não o deixaram falar com Olivia. Continuava a dar nomes falsos, desta vez disse que era um primo de Boston. Nem sequer poderia enviar‑lhe uma mensagem codificada, porque não tinha maneira de saber quem iria interceptá‑la. Mas ela estava viva, e a melhorar. O marido salientou numa conferência de imprensa a sorte que tinham tido, e que ela voltaria para casa dentro de poucos dias. E partiu para a costa oeste nessa mesma manhã, mais tarde. Estava em campanha e, agora, com a mulher livre de perigo.

Voltou a tempo de assistir aos funerais da mulher e dos filhos de Edwin. Peter ficou pasmado pela enorme cobertura da TV e satisfeito por ver que, felizmente, Olivia não estava presente. Conhecia‑a o suficiente para saber que não agüentaria. Ter‑lhe-ia recordado de mais o seu próprio filho. Mas estavam lá os pais dela e Edwin, manifestamente acabrunhado, e, claro, Andy, com um braço sobre os ombros do irmão de Olivia. A família política completa, e todos os jornais e canais de tele­visão possíveis e imaginários cobrindo o acontecimento a uma distância discreta.

Olivia seguia tudo no televisor da UCI e chorava convulsivamente. As enfermeiras não queriam que ela assistisse, mas ela insistira. Eram a sua família, não podia estar com eles; quando a seguir viu uma entrevista de Andy, em que este sublinhava a coragem demonstrada por todos e a sua heroicidade, apeteceu‑lhe matá‑lo.

Depois de tudo acabado, o marido nem se deu ao trabalho de lhe telefonar para lhe dizer como estava Edwin! Quando ligara para casa, a voz do pai parecera‑lhe entaramelada, dizendo que a mãe tivera de tomar um sedativo. O momento era terrível para todos, e Olivia lamentava não ter podido dar a sua vida em troca da deles. As crianças eram tão pequenas, a cunhada estava outra vez grávida, embora ninguém o soubesse. E ela não tinha, na sua opinião, qualquer razão para viver. A sua vida era um vazio, a vida de uma marionete manobrada por um egocêntrico. Não teria tido importância para nenhum deles se morresse, exceto talvez para os pais. Pensou então em Peter e nas horas que haviam partilha­do. Ansiava tanto por vê‑lo! Mas, tal como outras pessoas que amara, fazia agora parte do seu passado, não podia incluí‑lo no seu presente ou no seu futuro.

Deixou‑se ficar estendida na cama, depois de desligado o televisor, e chorou, a pensar na futilidade da vi­da. O seu sobrinho e a sua sobrinha tinham morrido, a mãe deles, o filho dela... Tom, o irmão de Andy. Tantas pessoas boas. Era incompreensível a razão de uns serem poupados e outros não.

‑ Como se sente, Mistress Thatcher? ‑ perguntou‑lhe amavelmente uma das enfermeiras, ao vê-la chorar. Era óbvia a sua infelicidade e, com toda a família em Boston para os funerais, ninguém viera vê-la. A enfermeira estava preocupada com ela. Então, lembrou‑se: ‑ Tem telefonado uma pessoa a saber de si, vezes sem conta por dia, desde que cá chegou. Um homem. Diz que é um velho amigo. ‑ Sorriu. ‑ E esta manhã disse que era seu primo. Mas tenho a certeza de que era a mesma voz. Nunca deixa o nome, e parece preocupadíssimo consigo. ‑ Sem um momento de hesitação, Olivia soube que só podia ser Peter. Quem mais telefonaria e porque não diria o nome? Tinha de ser ele; levantou os olhos repletos de tristeza para a enfermeira, de pé a seu lado.

‑ Da próxima vez, posso falar com ele? ‑ Dir‑se-ia uma criança maltratada. Cobriam‑na contusões horríveis, nos sítios onde fora apanhada pelos destroços que se haviam desprendido do veleiro. Fora uma horrenda tragédia; não duvidava de que nunca mais se aproxima­ria do oceano.

‑ Tentarei ligar‑lhe, se ele voltar a telefonar ‑ tranquilizou‑a a enfermeira, e saiu. Quando na manhã seguinte Peter telefonou, ela estava a dormir. E mais tarde, era outra a enfermeira de serviço.

A partir daí, Olivia, estendida na sua cama, pensava nele incessantemente: como estaria, o que teria acontecido com o Vicotec, e com a apresentação à FDA. Não tinha maneira alguma de obter notícias, haviam combinado não contatar um com o outro depois de partirem de Paris. Mas, agora, que difícil se tornava! Especial­mente ali, no hospital. Tinha tanto em que pensar, ha­via na sua vida tantas coisas que abominava. Prometera a Andy apoiá‑lo, mas cada passo dado no cumprimento dessa promessa lhe custava os olhos da cara. Ocorreu­‑lhe então, subitamente, quanto a vida era breve e imprevisível, e como era preciosa. Vendera a alma pelos próximos cinco anos, que agora se lhe afiguravam uma eternidade. A sua única esperança residia em que ele não vencesse as eleições. Sentia‑se incapaz de sobreviver ao que a esperava. E a esposa de um presidente não podia simplesmente desaparecer. Durante os próximos cinco anos, tinha de agüentar.

Passou mais quatro dias na UCI, até ter os pulmões limpos e poderem mudá‑la para um quarto; nessa altura, Andy deslocou‑se da Virgínia para a visitar. Tinha lá uns trabalhos em curso, mas mal chegou ao hospital surgiram repórteres por todos os cantos, e uma equipa fotográfica; um deles até se infiltrou, para a ver. De imediato, Olivia escondeu‑se debaixo dos lençóis e uma enfermeira escoltou‑os para fora do andar, mas Andy atraía a imprensa como o sangue atrai os crocodilos, e Olivia era o pequeno peixe de que queriam alimentar‑se.

Andy teve uma grande idéia. Convocou uma conferência de imprensa para ela no hospital, no dia seguinte, mesmo à saída do quarto. Viria um cabeleireiro penteá­-la e um esteticista. Tudo estava combinado, ela falaria aos media numa cadeira de rodas. Quando, porém, lho comunicou, o coração de Olivia acelerou‑se, o seu estômago revolveu‑se.

‑ Por enquanto, não quero fazer nada disso.

Recordava‑lhe a morte de Alex, a perseguição incessante de que fora alvo por parte da imprensa. Agora, queriam saber se vira morrer a sobrinha e o sobrinho, ou a cunhada, como se sentia por eles terem morrido e ela escapado, como o explicava... só de pensar nisso, apertava‑se‑lhe a garganta; abanou a cabeça, em pânico. ‑ Não posso, Andy... desculpa... ‑ Virou‑lhe as costas, pensou se Peter teria voltado a telefonar. Não vira a tal enfermeira desde que saíra da UCI; aliás, ninguém falara com ela. E não podia perguntar por ele, um homem sem nome que passara dias a telefonar. Não podia fazer que quer que fosse que chamasse a atenção.

- Ouve, Olivia, tu tens de falar à imprensa, senão eles vão pensar que escondemos alguma coisa. Estiveste em coma quatro dias. Com certeza não queres que o país pense que sofreste qualquer lesão cerebral, ou coisa semelhante. ‑ Falava‑lhe como se ela estivesse bem, e Olivia só tinha na cabeça a dolorosíssima conversa que tivera com o irmão nessa manhã. Ele metia dó e, depois de tudo o que passara com Alex, era‑lhe fácil imaginar como se sentia. O irmão perdera toda a sua família, e agora Andy queria que ela falasse à imprensa numa cadeira de rodas.

‑ Não me interessa o que pensam. Não faço isso ‑ repetiu, com firmeza.

‑ Tens de o fazer ‑ rosnou‑lhe ele. ‑ Assinamos um contrato.

‑ Metes‑me nojo.

Virou‑lhe as costas e, no dia seguinte, quando eles chegaram, recusou‑se a recebê‑los. Não recebeu o cabeleireiro, nem o esteticista e nunca saiu do quarto na cadeira de rodas. Os media sentiram‑se alvo de um embuste e Andy convocou uma conferência de imprensa no corredor, sem ela. Explicou o trauma por que a mulher passara, o seu sentimento de culpa por ser um dos poucos sobreviventes. Disse que também ele o sofria, mas era difícil acreditar que alguma coisa fizesse sofrer Andy Thatcher, exceto um desejo avassalador pela Casa Branca, a qualquer preço. Não ia, porém, deixar escapar a oportunidade e, no dia seguinte, acompanhou ele próprio três repórteres ao quarto da mulher. Ao vê‑los, Olivia mostrou‑se pateticamente frágil e desespera­da. Desatou a chorar, e uma enfermeira e dois ajudantes obrigaram‑nos a deixá‑la em paz. Mesmo assim, arranja­ram maneira de lhe tirar meia dúzia de fotografias antes de abandonarem o quarto, juntando‑se todos no corre­dor, onde conversaram com Andy. Quando este voltou, depois de os repórteres terem saído do hospital, Olivia saltou da cama, decidida a aniquilá‑lo com a sua vingança.

‑ Como pudeste fazer‑me isto? Toda a família do Edwin acabou de morrer e eu ainda nem sequer saí do hospital. ‑ Soluçava, enquanto lhe socava o peito com os punhos cerrados, dominada por um sentimento de violação. Mas ele precisara de lhes provar que ela es­tava viva e bem viva, que não cedera à tensão, como começavam a suspeitar, por lhes parecer que se escondia deles. O que ela tentava era preservar a sua dignidade, que a Andy deixava totalmente indiferente. O que ele protegia era a sua sobrevivência política.

Nessa noite, Peter viu as fotografias no noticiário e o seu coração sangrou por ela. Era patente o seu medo, a sua fragilidade, ali, deitada na cama; e chorava. O seu olhar de abandono atingiu-o em cheio. Vestia uma camisa de noite do hospital, saíam‑lhe tubos intravenosos de ambos os braços e um dos repórteres dizia que continuava a sofrer de pneumonia. O pouco que dela se vislumbrava era dramático, originaria sem dúvida uma onda de simpatia, tal como o marido pretendia. Desligado o aparelho, Peter só pensava nela.

Olivia, porém, surpreendeu Andy quando no hospital a informaram de que teria alta no fim da semana: participou‑lhe que não ia para casa com ele. já conversara com a mãe sobre o assunto. Ia para casa dos pais. Precisavam dela. E ela ia para casa dos Douglas, em Boston.

‑ Isso é ridículo, Olivia ‑ queixou‑se Andy quando ela lho comunicou pelo telefone. ‑ Não és uma criança, o teu lugar é na Virgínia, a meu lado.

‑ Porquê? ‑ perguntou, brusca. ‑ Para poderes levar‑me repórteres ao quarto todas as manhãs? A minha família passou por uma provação horrível e eu quero estar com eles. ‑ Não o culpou pelo acidente. De fato, não fora culpa sua o ciclone, mas sim a forma por que tudo fora manipulado, sem qualquer pingo de dignidade ou compaixão, ou até mesmo de decência; isso nunca lhe perdoaria. Usara‑os a todos. E voltou a fazê‑lo, pois deparou com uma horda de jornalistas à sua espera nos corredores, quando deixou o Addison Gilbert. Só Andy conhecia o dia da sua saída, só ele poderia tê‑los advertido. E também apareceram em casa dos pais dela, o que levou o pai ao ataque de fúria.

‑ Queremos privacidade, aqui ‑ explicou e, sendo ele o governador, deram‑lhe ouvidos. Concedeu algumas entrevistas, poucas, mas declarou que nem a esposa, nem a filha, nem evidentemente o filho, se encontravam de momento em condições de conversar com a imprensa. ‑ Tenho a certeza de que compreendem ‑ rematou com delicadeza, posando para uma única fotografia. E acrescentou que não havia outras razões para a presença da Mrs. Thatcher em sua casa para além do seu desejo de estar junto da mãe, e do irmão, que também estava com eles. Edwin Douglas não se sentia ainda com coragem para ficar na sua casa, sozinho com o seu drama.

‑ Houve um distanciamento entre os Thatcher de­pois do acidente? ‑ A pergunta, lançada por um dos jornalistas, surpreendeu‑o. Nem tal coisa lhe ocorrera e, à noite, repetiu‑a à mulher, que talvez soubesse algo que ele ignorava.

‑ Acho que não. ‑ Janet Douglas franziu o sobro­lho. ‑ A Olivia não disse nada. ‑ Todavia, nenhum deles ignorava que a filha calava muitas coisas. Atravessara grandes crises nos últimos anos e gostava de tomar ela própria as suas decisões.

Andy apressou‑se a queixar‑se; começavam a ouvir­‑se uns zunzuns. Disse‑lhe que, se não voltasse depressa para casa, os boatos não tardariam.

‑ Volto para casa quando me sentir suficientemente bem para sair daqui ‑ foi a fria resposta que obteve.

‑ E quando será isso? ‑ Regressava para a Califórnia dentro de duas semanas e queria que ela o acompanhasse.

Na verdade, Olivia planeava voltar para a Virgínia daí a poucos dias, mas o fato de ele a pressionar levou­‑a a ficar mais tempo; passada uma semana de permanência, a mãe questionou‑a finalmente sobre o assunto.

‑ O que se passa? ‑ perguntou‑lhe, com gentileza, enquanto Olivia se sentava no quarto dela. A mãe tinha enxaquecas com regularidade e estava precisamente a recompor‑se de uma, com um saco de gelo na cabeça. ‑ Corre tudo bem entre ti e o Andy?

‑ Isso depende da sua definição de «tudo, bem» ‑respondeu Olivia, impassível. ‑ Nada de pior do que o costume. Ele está danado por eu não permitir que a imprensa dê cabo de mim, nem reconstituir para ela todo o drama, na TV. Mas dê‑lhe um dia ou dois, mãe. Pode crer quê ele vai dar a volta por cima.

‑ A política tem efeitos estranhos nos homens ‑comentou a mãe, sensatamente. Sabia melhor do que ninguém como era, e quanto lhe custava. Até a sua recente mastectomia fora anunciada na TV, com diagramas e uma entrevista com o médico. Ela era a esposa do governador, conhecia aquilo com que devia contar. Vivera exposta ao público a maior parte da sua vida de adulta, e quanto isso a deprimira! Via agora que estavam também a deprimir a sua filha. Um preço caro pelo sucesso, ou quem sabe insucesso, em eleições.

Olivia encarou‑a então, perguntando a si própria o que diria a mãe se lhe contasse a verdade. Há uns dias que pensava no caso.

‑ Vou separar‑me dele, mãe. Não posso continuar. Tentei deixá‑lo em junho, mas ele ansiava tão intensa­mente pela presidência que concordei em fazer campanha a seu lado e ficar durante os primeiros quatro anos, se ele ganhar. ‑ Infeliz, olhou para a mãe. A grosseria do que fizera soava pessimamente, ao ser contada. ‑ Ele paga‑me um milhão de dólares por ano por este favor. E o mais engraçado é que isso nem me interessa. Soou‑me a jogo a dinheiro, quando mo propôs. Fi‑lo, porque em tempos o amei. Mas acho que não o amei o bastante, mesmo no princípio. Agora, tenho a certeza de que não vou cumprir o que prometi. ‑ Não devia tanto a ninguém, nem sequer a Andy.

‑ Então não cumpras ‑ aconselhou‑a Janet Douglas abruptamente. ‑ Mesmo um milhão de dólares não compensa. Nem dez milhões. Nenhuma quantia vale a ruína da tua vida. Foge enquanto podes, Olivia. Eu devia tê‑lo feito há anos. Agora, é tarde de mais. levou‑me a beber, arrumou a minha saúde, destruiu o nosso casamento, impediu‑me de fazer tudo aquilo que queria fazer, magoou a nossa família e tornou difícil a vida de todos nós. Olivia, se não é o que queres, se por ti não o desejas ardentemente, foge já, enquanto ainda te é possível. Por favor, querida. ‑ Tinha os olhos cheios de lágrimas ao apertar a mão da filha. ‑ Sou eu quem to pede. E não importa o que o teu pai disser, estou cem por cento contigo. ‑ Fitou‑a então com maior seriedade. Uma coisa era abandonar a política, outra abandonar um casamento que talvez valesse a pe­na salvar. ‑ E ele? E o Andy?

‑ Há muito que tudo acabou, mãe.

Janet abanou a cabeça. Não era, na verdade, surpresa para ela.

‑ Já me parecera. Mas não tinha a certeza. ‑ Então sorriu de mansinho. ‑ O teu pai vai pensar que lhe menti, no outro dia. Perguntou se estava tudo bem contigo, eu respondi‑lhe que sim. Mas, nessa altura, eu ainda não tinha a certeza.

‑ Obrigada, mãe. ‑ Olivia abraçou‑a. ‑ Adoro­‑a. ‑ A mãe acabara de oferecer‑lhe a maior de todas as prendas, a sua bênção.

‑ Também eu te adoro, querida ‑ retribuiu, apertando‑a contra si. ‑ Faz o que tiveres a fazer e não te preocupes com o que o teu pai disser. Há‑de passar‑lhe. Ele e o Andy protestarão durante algum tempo, mas vão safar‑se bem. E o Andy ainda é novo. Pode voltar a casar‑se e candidatar‑se à eleição seguinte. Não é o fim dele em Washington. Não deixes que te amedronte, não voltes atrás, Olivia, a menos que o queiras. ‑ O que na realidade desejava para a filha era vê-la longe dali. Queria a liberdade dela.

‑ Eu não quero voltar atrás, mãe. Nunca. Devia tê‑lo deixado há anos... antes de o Alex nascer, ou pelo menos a seguir à sua morte.

‑ Tu és jovem, construirás o teu próprio futuro ‑ comentou, melancólica. Ela nunca o fizera. Desistira da sua vida, da sua carreira, dos seus amigos, dos seus sonhos. Aplicara cada grama de energia na carreira política do marido, e queria que fosse diferente com a filha ‑O que vais fazer agora?

- Quero escrever ‑ sorriu, envergonhada, e a mãe riu‑se.

‑ Fecha‑se um círculo, não é? Então, escreve, e não deixes que ninguém te impeça.

Sentaram‑se e conversaram a tarde inteira, depois lancharam juntas na cozinha. Olivia esteve quase a falar­‑lhe de Peter, mas acabou por não o fazer. Disse‑lhe que provavelmente voltaria para França, para a aldeia de pescadores de que tanto gostava. Era um ótimo lugar para escrever, para se esconder.

‑ Não podes esconder‑te para sempre ‑ advertiu a mãe.

‑ Porque não? ‑ Sorriu tristemente. Nada mais lhe restava agora senão desaparecer, desta vez legitima­mente. Não queria mais contatos com a imprensa ou com o público.

À noite, o irmão juntou‑se‑lhes para o jantar. Estava dorido, abatido, mas Olivia fê‑lo rir uma ou duas vezes; e ele mantinha‑se diariamente a par do que se passava em Washington, por telefone ou por fax. Para Olivia, era incrível Edwin poder pensar em semelhantes coisas nesse momento; porém, mesmo perante tão imensa per­da, parecia‑se muitíssimo com o pai. Era óbvia a sua obsessão pela política, muito semelhante à do pai e do marido. Mais tarde, nessa mesma noite, telefonou a Andy e comunicou‑lhe que tomara uma decisão importante.

‑ Não vou voltar ‑ declarou, pura e simplesmente.

‑ Não recomeces. ‑ E desta vez parecia aborreci­do. Esqueceste o nosso contrato?

Não há nele nada que me diga que tenho de ficar contigo ou seguir‑te para a presidência. Diz apenas que, se o fizer, me pagarás um milhão de dólares por ano. Pois bem, estou a poupar‑te uma mão‑cheia de dinheiro.

‑ Não podes fazer uma coisa dessas! ‑ Nunca o vira tão zangado. Olivia estava a interferir na única coisa que queria.

‑ Posso, sim. E vou fazê‑lo. Parto para a Europa amanhã de manhã.

Na verdade, ficaria ainda uns dias, mas quis que ele não duvidasse de que se acabara tudo. Mesmo assim, Andy apareceu em Boston no dia seguinte e, tal como a mãe previra, o pai interveio na briga deles. Olivia, porém, tinha trinta e quatro anos, pensava por si própria, era uma mulher adulta. E consciente de que nada a abalaria.

‑ Sabes ao que estás a renunciar? ‑ gritou‑lhe o pai do outro lado da sala, enquanto Andy o olhava, grato. A Olivia, pareciam uma ralé de linchamento.

‑ Sei ‑ respondeu calmamente, olhando‑o nos olhos. ‑ Estou a renunciar a mágoas e a mentiras. Convivi com ambas bastante tempo, penso que me vou arranjar lindamente sem elas. Ah, esqueci‑me, e exploração.

‑ Não sejas tão presumida ‑ replicou o pai, desgostoso. Era um político da velha escola e não tão arrogante como Andy. ‑ É uma vida grandiosa, uma grande oportunidade, e tu sabe‑lo.

‑ Para vocês, talvez ‑ respondeu Olivia, olhando o pai com lástima. ‑ Para o resto da família, uma vida de solidão e desencanto, de promessas de campanha não cumpridas. Eu desejo uma vida autêntica, com um homem autêntico, ou sozinha se tiver de ser assim. já nem me interessa. Só quero ver‑me o mais longe possível da política, nunca mais ouvir tal palavra. ‑ Lançou à mãe um olhar de soslaio; viu que sorria.

‑ És maluca ‑ vociferou‑lhe o pai.

Quando nessa noite se foi embora, Andy ameaçou­‑a, jurando‑lhe que ela iria pagar pelo que lhe fizera. E não estava a mentir. No dia em que partiu para França, três dias mais tarde, apareceu nos jornais de Boston uma história que ela compreendeu de imediato que só ele a podia ter divulgado. Lia‑se que após o seu recente e trágico acidente, no qual lhe tinham morrido três membros da família, Olivia, sofrera um grave choque traumático e acabava de dar entrada num hospital com um esgotamento nervoso. O marido estava preocupadíssimo com ela e, embora sem o mencionar abertamente, dava‑se a entender uma desavença motivada pelo seu estado mental. Toda a peça predispunha os leitores a manifestarem simpatia por Andy, a braços com o problema psíquico da mulher. Apagava‑se‑lhe o rasto na perfeição. Se estava maluca, compreendia‑se que se desfizesse dela. Primeiro round para Andy... ou seria o segundo... ou o décimo ... ? Fora ele que a pusera KO, ou ela que muito simplesmente, apanhando‑o distraído, fugira e salvara a vida? já não sabia muito bem.

Peter também leu a história e suspeitou que fosse arquitetada por Andy. Não lhe parecia de Olivia, apesar do pouco tempo que a conhecera. Mas desta vez não podia certificar‑se, visto que não mencionavam em que hospital se encontrava. Não havia maneira de saber a verdade, o que o deixou louco de preocupação.

A mãe acompanhou‑a ao aeroporto numa sexta­‑feira à tarde, poucos dias depois de ela ter dito a Andy que o deixava. Estava‑se nos fins de Agosto; Peter e a família em Vineyard. Janet Douglas meteu a filha no avião e deixou‑se ficar até o aparelho descolar. Quis ter a certeza de que ela estava a salvo, que partira mesmo. Olivia escapara a um destino pior do que a morte, na opinião da mãe, que ficou aliviada ao ver o avião sobrevoá-la lentamente, na sua rota para Paris.

‑ Coragem, Olivia ‑ murmurou, esperançada em não a ver nos Estados Unidos por muito tempo. Ali, esperava‑a muita dor, muitas recordações, demasiada corrupção, homens egoístas prontos a feri-la. Foi uma felicidade para a mãe saber que regressava a França. E quando o avião deixou de ser visível, Janet acenou aos seus guarda‑costas e, com um suspiro, saiu lenta­mente do aeroporto. Agora, Olivia estava salva.

 

Conforme ia decorrendo o mês de Agosto e as informações continuavam a surgir sobre as pesquisas do Vicotec, a tensão entre Peter e o sogro aumentava. No fim‑de‑semana do Dia do Trabalho era quase palpável; até os rapazes começavam a senti-la.

‑ O que se passa entre o avô e o pai? ‑ perguntou Paul no sábado à tarde, e Katie franziu‑lhe o sobro­lho ao responder.

‑ O teu pai está a criar dificuldades. ‑ A sua voz era calma, mas até para o filho era nítido que ela acusava Peter do clima existente.

‑ Tiveram uma zanga, ou coisa do gênero? ‑ Tinha idade suficiente para compreender, e a mãe era habitualmente bastante franca com ele, embora «zangas» não abundassem na família. Mas sabia que o pai e o avô às vezes discordavam nalguns pontos.

‑ Estão a trabalhar num novo produto ‑ foi tudo o que a mãe lhe explicou, mas era muito mais do que isso e ela não o ignorava. Pedira repetidamente a Peter que não complicasse a vida. O pai ocupara‑se do caso o Verão inteiro e, na sua idade, não era bom para ele. Embora tivesse de admitir que Frank tinha melhor aspecto do que nunca. Aos setenta, ainda jogava tênis uma hora por dia e nadava dois mil metros todas as manhãs.

‑ Ah! ‑ A explicação dada satisfez Paul. ‑ Então, aposto que não é muito grave. ‑ Varreu o multimilionário problema do Vicotec com a determinação fácil dos seus dezesseis anos.

Nessa noite foram todos a uma grande festa de celebração do fim do Verão. Estaria lá o grupo inteiro de amigos e, daí a dois dias, cada um teria partido. Patrick e Paul regressavam ao liceu, Milce ia para Princeton. E, na segunda‑feira, toda a família regressava para Greenwich.

Katie andava atarefadíssima, tinha de fechar a sua casa e a do pai, em Vineyard. Separava alguns dos seus vesti­dos quando Peter passou. Parou, a observá‑la. O Verão não fora grande coisa para ele. O duplo golpe de quase perder o Vicotec e de ter que desistir de Olivia pouco depois de a ter conhecido era uma agonia que arrastara durante todo o mês de Agosto. As preocupações com o Vicotec abalavam as suas convicções, e a pressão constante de Frank não ajudara, nem o constante envolvimento clandestino de Katie, numa coisa em que em caso algum deveria ter‑se metido. Envolvia‑se demasiado no que se passava entre eles, defendia demasiado o pai. E era inegável que a estada de Peter em França modificara o ambiente. Não quisera que isso acontecesse. Regressara absolutamente decidido a retroceder e a recomeçar do ponto de onde partira, mas o fato é que tal não acontecera. Era como que rasgar uma janela sobre uma bela paisagem e voltar a tapá‑la. Continuava imóvel, de olhar fixo numa parede nua, a recordar o que lá possuíra, ainda que por pouco tempo. A paisagem que contemplara com Olivia era inesquecível, e, embora não fosse essa a sua intenção, agora via que alterara para sempre a sua vida, apesar de não ir mudar nada, e não levar a lado nenhum. Nunca mais entrara em contato com ela, exceto para telefonar ao hospital depois do acidente e obter notícias através da enfermeira da UCI. Mas não a esquecia. E o seu acidente aterrorizara‑o: só o saber que quase morrera o aterrava. Porquê ela e não ele? Porque haveria Olivia de ser castigada?

‑ Lamento que tenha sido um Verão tão desagradável ‑ disse tristemente, sentando‑se na cama, enquanto Katie metia uma quantidade de camisolas numa caixa com bolas de naftalina.

‑ Não foi assim tão mau ‑ respondeu ela amavelmente, olhando‑o por cima de um ombro do alto de um pequeno escadote.

‑ Para mim, foi ‑ retorquiu ele, sincero. Sentira­‑se pessimamente o Verão inteiro. ‑ Tenho imensas coisas metidas na cabeça ‑ acrescentou, à laia de explicação simplificada, e Katie sorriu‑lhe; mas, de súbito, ficou séria. Pensava no pai.

‑ Também o meu pai tem. Também não tem sido fácil para ele. ‑ Pensava apenas no Vicotec, Peter, na mulher extraordinária que encontrara em Paris. Olivia tornara quase impossível o convívio familiar com Katie. Katie era tão independente e tão fria, tão apta a desembaraçar‑se sem ele! Quase já não faziam nada em conjunto, exceto de vez em quando sair à noite com amigos, e jogar tênis com o pai dela. Ele queria mais do que isso. Tinha quarenta e quatro anos e, inesperada­mente, queria ternura e romance. Queria contato com ela, queria conforto e amizade, e até alguma excitação. Queria aconchegar‑se à mulher, sentir o seu corpo jun­to ao dele. Queria que ela o desejasse. Mas conhecia Katie há trinta e quatro anos e pouco lhes restava de romance. Havia inteligência, e respeito, e uma quantidade de interesses partilhados, mas não o excitava vê-la deita­da a seu lado, e, quando excitava, ela tinha normalmente uns telefonemas a fazer, ou uma reunião algures, ou um encontro com o pai. Deixava escapar todas as oportunidades de fazerem amor, de estarem sozinhos, só para se rirem em conjunto, ou para se sentarem a conversar, e isso fazia‑lhe falta. Na verdade, o que tivera com Olivia nunca tivera com Katie. Houvera uma espécie de excitação inebriante em tudo o que fizera com ela. A vida com Katie fora sempre mais como ir a um baile de pessoas adultas; com Olivia, como ir ao baile com uma princesa encantada. A comparação era idiota, deu­‑lhe vontade de rir, e foi então que reparou que Katie o olhava fixamente.

‑ Estás a sorrir de quê? Eu só comentei como tudo isto tem sido duro para o meu pai. ‑ Não ouvira uma palavra do que ela dissera. Estivera a sonhar com Olivia Thatcher.

‑ É o preço a pagar pela gestão de um negócio co­mo o nosso. ‑ Era óbvio. ‑ É um fardo pesado, e uma tremenda responsabilidade. Ninguém disse que ia ser fácil. ‑ Estava cansado de a ouvir falar no pai. ‑ Mas neste momento não estava a pensar nisso. Porque não vamos os dois dar uma volta, tu e eu? Precisamos de sair daqui. ‑ Em Martha's Vineyard, não haviam existido as férias repousantes dos anos anteriores.

Porque não vamos até Itália, ou outro sítio qualquer? Talvez às Caraíbas, ou ao Havaí? ‑ Seria diferente e excitante estar com ela, talvez uma viagem trouxesse um pouco de vitalidade ao casamento.

‑ Agora? Porquê? Estamos em Setembro, tenho milhares de coisas a fazer, e tu também. Tenho de levar os rapazes para o liceu, e temos de pôr o Mike em Princeton no próximo fim‑de‑semana. ‑ Olhou‑o co­mo se ele tivesse enlouquecido, mas ele insistiu. Depois de todos aqueles anos, tinha pelo menos de tentar que se mantivessem juntos.

‑ Então, depois de os rapazes estarem nas escolas. Não quis dizer hoje, mas dentro das próximas semanas. Que achas? ‑ Olhou‑a, esperançado, enquanto ela descia do escadote; gostaria de sentir pela sua mulher mais do que sentia. A situação era angustiante. Talvez uma viagem às Caraíbas modificasse as coisas.

‑ Há a apresentação à FDA, em Setembro. Não tens de te preparar?

Não lhe contara que, dissesse o pai o que dissesse, não tencionava ir, nem deixar que o pai dela fosse. Não podiam cometer perjúrio baseados na hipótese remota de todos os problemas estarem solucionados antes de o Vicotec ser lançado no mercado. ‑ Deixa esse problema comigo ‑ foi tudo o que lhe respondeu. ‑ Diz‑me só quando podes ausentar‑te, e eu faço os planos. ‑A única coisa na sua agenda era a reunião no Congresso sobre a fixação dos preços, a que acabara por aceder. Mas sabia que, se necessário, podia adiar o seu comparecimento. Era mais uma questão de cortesia e prestígio do que um caso de vida ou de morte. Para ele, o casamento de ambos contava muito mais.

‑ Tenho imensas reuniões do conselho diretivo este mês ‑ comentou Katie, vagamente; e abriu outra gaveta cheia de camisolas. Sempre a observá‑la, Peter interrogou‑se de repente sobre o sentido exato das pa­lavras dela.

‑ Talvez prefiras não te afastar de cá? ‑ Se era esse o caso, queria sabê‑lo. Ou talvez também qualquer coisa a aborrecesse; ocorreu‑lhe então um pensamento que o atingiu como um raio de luz. Também ela tivera uma aventura? Estava apaixonada por outra pessoa? Evitava­‑o? Afinal de contas, também podia ter‑lhe acontecido a ela, embora tal nunca lhe tivesse passado pela cabeça; de repente, ao aperceber‑se de que Katie era tão vulnerável quanto ele, achou‑se parvo. Ainda atraente, bastante nova, haveria imensos homens a quem agradaria. Mas Peter não fazia a menor idéia de como perguntar‑lho. A mulher era sempre bastante fria, e algo afetada, e perguntar‑lhe se tinha tido uma aventura estava fora de questão. Em vez disso, fixou‑a com os olhos semicerrados, punha ela bolas de naftalina noutra caixa de camisolas. ‑ Há alguma razão para não quereres fazer uma viagem comigo? ‑ Deu à voz a entoação mais áspera que pôde e Katie ergueu por fim o olhar para ele; a sua resposta irritou‑o grandemente.

‑ Só acho que não seria justo para o meu pai, logo agora. Anda ralado com o Vicotec. Tem montes de preocupações. Em minha opinião, seria na verdade egoísta da nossa parte irmos esticar‑nos ao sol numa praia e deixá‑lo sentado no seu gabinete, apoquentadíssimo. ‑ Com dificuldade, Peter tentou esconder o seu agravo, Estava farto de se preocupar com Frank. Fazia‑o há dezoito anos.

‑ Talvez precisamente agora devamos ser egoístas. ‑ Sentia‑se a pressioná‑la. ‑ Nunca te incomoda o fato de estarmos casados há dezoito anos e pouca atenção prestarmos a nós próprios, ou às nossas necessidades, ou ao nosso casamento? ‑ Tentava transmitir­‑lhe algo, mas não viu qualquer sinal de alarme da sua parte.

O que estás tu a dizer‑me? Que estás cansado de mim . e que precisas de me ver estendida numa praia longínqua para apimentar um pouco a nossa relação? ‑ Virou‑se, olhou‑o e por um momento não soube o que dizer‑lhe. Aproximava‑se muito mais da verdade do que ele ousara insinuar.

‑ Só penso que seria bom afastarmo‑nos do teu pai, e dos miúdos, e do atendedor de chamadas, e das tuas reuniões do conselho diretivo e até do Vicotec. Mesmo aqui, somos constantemente perseguidos pelo fax, eu pelo menos sou, é como estar no escritório, só tem a mais a areia. Tudo o que me apetecia era ir para fora contigo, para qualquer sítio onde nada nos distraísse e pudéssemos conversar, recordar como éramos loucos quando nos conhecemos, ou quando nos casamos.

Então, ela sorriu‑lhe. Começava a compreender.

‑ Acho que estás a atravessar uma crise da meia­‑idade. E o que na realidade penso é que estás nervoso por causa da apresentação à FDA; queres fugir e estás a usar‑me com esse fim. Pois bem, esquece, meu menino. Vais sair-te lindamente. É só um dia, e todos vamos orgulhar‑nos de ti. ‑ Sorria e ele sentiu cair‑lhe o coração aos pés. Não percebera nada, sobretudo que ele precisava de qualquer coisa dela que não estava a obter, que não tinha a mínima intenção de pôr os pés na FDA. A única coisa que faria seria ir ao Congresso, por causa dos preços.

‑ Isto não tem nada a ver com a FDA ‑ afirmou com firmeza, tentando manter‑se calmo e recusando‑se a discutir com ela a questão da apresentação. já lhe bastava o pai! ‑ Estou a falar de nós, Katie. Não da FDA. ‑ Nesse momento, um dos rapazes interrompeu‑o. Mike queria as chaves do carro, Patrick esperava‑o ao início das escadas com dois amigos, e precisavam de saber se haveria mais pizzas congeladas escondidas em qualquer sítio; estavam esfomeados.

- Ia agora mesmo ao armazém! ‑ gritou‑lhes a mãe, e a oportunidade perdeu‑se. Ao sair do quarto, voltou‑se e olhou‑o por cima do ombro. ‑ Não te preocupes, vai correr tudo bem. ‑ Já desaparecera e ele sentou‑se na cama, deixou-se ficar por muito tempo completamente oco. Pelo menos tentara. Mas não chegara a parte nenhuma, o que era uma pequena compensação. Katie não interpretara minimamente as suas palavras, a única coisa que lhe prendia a atenção era o pai e a apresentação à FDA.

Frank voltou a falar do assunto na festa. Era como ouvir um disco falhado, e Peter fez tudo o que estava ao seu alcance para mudar de tema de conversa. Frank aconselhara‑o a «ser um bom rapaz» e a «ir em frente com as coisas» por um tempo. Não duvidava de que as suas equipas de pesquisa encontrariam os defeitos muito antes de o Vicotec chegar ao mercado, e que ficariam mal vistos, e sem uma soma importante, se desistissem agora de pedir uma liberação imediata à FDA. No espírito de Frank, seria uma bandeira vermelha a assinalar à indústria que o produto deles continha problemas sérios.

‑ Poderia levar‑nos anos a fazer esquecer isto. Sabes como é quando esta espécie de boatos se espalha. Poderiam manchar o Vicotec para todo o sempre.

‑ Temos de correr esse risco, Frank ‑ replicou Peter, com uma bebida na mão. já conhecia de cor a ladainha e nenhum deles cedia um milímetro nas suas posições opostas.

Logo que foi possível, Peter afastou‑se dele e pouco depois viu‑o de conversa com Katie. Adivinhava o assunto, e deprimia‑o observá‑los. Era óbvio que ela não lhe contara a sua proposta de umas férias para os dois. Sabia, sem sombra de dúvida, que o seu pequeno plano nunca daria frutos. Nessa noite, não lhe falou mais nele. E, nos dois dias que se seguiram, estiveram ocupados a fechar a casa. Nunca era aberta no Inverno, só lá volta­riam no próximo Verão.

No carro, de volta à cidade, os rapazes discutiam o regresso ao liceu. Paul estava morto por reencontrar os seus amigos de Andover, Patrick queria visitar Choate e Groton nesse Outono. E Mike só falava em Princeton. Fora ai que o avô estudara, toda a vida ouvira mencionar clubes e reuniões.

‑ É pena que não tenhas andado lá, pai. Diz que é bestial.

Um diploma obtido com aulas noturnas na Universidade de Chicago dificilmente poderia comparar‑se a Princeton.

‑ Tenho a certeza de que é bestial, filho, mas, se eu tivesse ido para lá, não teria conhecido a vossa mãe. ‑ Recordava o primeiro encontro de ambos na Universidade de Michigan.

‑ Um ponto a teu favor ‑ comentou Mike, com um sorriso. Tencionava entrar para o clube do avô logo que lhe fosse permitido. Tinha de esperar um ano, mas entretanto procuraria outras associações de estudantes. Planeara e já organizara tudo. Tagarelou a esse respeito durante todo o caminho até Nova Iorque, o que deixou Peter fora da conversa e algo solitário. Estranhamente, era «um dos deles» há dezoito anos e mesmo assim ainda lhe acontecia sentir‑se um outsider, agora até com os próprios filhos.

Como seguiam para sul, e os outros não se lhe dirigiam, o seu pensamento desviou‑se para Olivia. A conversa em Montmartre na primeira noite, o passeio com ela na praia, em Lá Favière... Tinham tido tanto que dizer, tanto em que pensar. Quase bateu com o carro, perdido nos seus sonhos, e toda a família gritou quando se desviou bruscamente para evitar a colisão.

‑ Santo Deus, pai, o que estás a fazer? – Mike nem queria acreditar no que quase acontecera.

‑ Desculpem! ‑ E passou a guiar com mais cuida­do. Ela dera-lhe qualquer coisa que ninguém lhe dera. Também pensava no que lhe dissera, que o que alcança­ra na vida fora graças a si, e não aos Donovan, mas isso era difícil de acreditar, sobretudo para uma pessoa como Peter. Era tão óbvio para ele que Kate e o pai tinham sido a origem de tudo!

E de novo o seu espírito voou para Olivia. Onde estaria ela agora, se é que a história do hospital era verdadeira? O que lera a esse respeito soava a impostura. Como uma dessas desculpas para uma separação, ou uma aventura, ou uma cirurgia plástica, e ele sabia que, no caso dela, pelo menos duas dessas hipóteses eram improváveis. De súbito ocorreu‑lhe que, a despeito da entrada de Andy na corrida para a presidência, ela o deixara. E era mesmo de Andy desculpar‑se com o enlouquecimento da mulher.

Dois dias depois, viu que tinha razão, ao receber no escritório um postal dela. Encontrou‑o na secretária ao voltar do almoço. Ilustrava‑o um pequeno barco de pesca e o carimbo dos correios era de Lá Favière.

Escrito com a sua letra miúda, bem desenhada, era algo enigmático. «Voltei para aqui. Escrevo. Finalmente. Estou fora da corrida para sempre. Não pude. É tudo obra tua. Tu fizeste tudo. Precisaste de mais coragem do que para fugir, como eu fugi. Mas estou feliz. Cuida de ti. Amor, sempre.» E assinado simplesmente «O». Para além das palavras, leu nas entrelinhas. Ainda não esquecera a profundidade da voz dela quando lhe dissera que o amava. Amá‑la-ia sempre. Viveria no seu coração, nas suas recordações, eternamente.

Voltou a ler o postal, pensativo. Olivia era tão mais forte do que julgava ser! Fora o fato de partir que exigira uma coragem real, não ficar como ele. Admirava­‑a. E alegrava‑se por ela, por ter escapado à vida que levava. Esperava que fosse feliz ali e que vivesse em paz. Não tinha a menor dúvida de que o que quer que escrevesse seria brilhante. Era tão corajosa perante os seus sentimentos, queria tanto ser ela própria, dizer o que pensava! Surgiria do nevoeiro como uma farpa, como fizera com ele. Com Olivia não havia mentiras, nada era falso. Era uma mulher que vivia para a verdade, custasse o que custasse. Assumira compromissos e admirava‑o. Mas não agora. Agora, Olivia era livre, e ele invejou‑a; guardou o postal, esperançado em que mais ninguém o tivesse visto.

Os resultados dos testes finais do Vicotec chegaram no dia seguinte, e melhores do que ele previa; porém, em termos de uma liberação imediata do medicamento eram desastrosos, e Peter compreendeu‑o logo. Estava a tornar‑se perito na interpretação dos testes; percebeu­‑lhes o significado, tal como o pai de Katie percebeu. Os dois homens tinham uma reunião marcada para os discutir em profundidade na sexta‑feira e, às duas horas, encontraram‑se na sala de conferências anexa ao gabinete de Frank. Frank esperava‑o com um ar austero, já a prever a posição de Peter. E não perderam tempo com conversas, exceto para falar de Mike. Peter e Katie iam levá‑lo a Princeton na manhã seguinte, e era visível o orgulho de Frank. Mas uma vez liquidado esse assunto, passou ao outro, o sério.

‑ Ambos sabemos por que estamos aqui, não sabe­mos? ‑ Olhava bem fundo nos olhos de Peter. ‑ E eu sei que não concordas comigo ‑ acrescentou, com precaução. Tinha todo o corpo tenso, como o de uma cobra prestes a saltar. E Peter era a presa, a preparar‑se para se defender e defender a integridade da companhia, mas Frank antecipou‑se‑lhe, preparado para saltar se tivesse de ser. ‑ Acho que agora vais ter de acreditar no meu bom senso. já passei por situações destas. Há quase cinqüenta anos que me ocupo do negócio. Decerto não duvidas quando digo que sei o que ando a fazer. Não é um erro irmos ter com eles já. Na altura em que puser­mos o produto à venda, ele estará em condições. Não corria um risco destes se não pensasse que podemos comercializá‑lo.

‑ E se estiver errado? Se matarmos alguém? Mesmo uma só pessoa... um homem... uma mulher ou uma criança... E depois? O que dizemos? Como vivemos conosco próprios? Como podemos arriscar‑nos, pedir uma liberação imediata? ‑ Peter era a voz da sua cons­ciência, mas Frank preferiu achar que ele era a voz da ruína, e acusou‑o de reagir como uma velha, igual a «esse idiota de Paris». ‑ O Suchard sabe destas coisas, Frank. Foi para isso que o contratamos, para ele nos dizer a verdade. Mesmo que seja desfavorável. Eu sei que ele já não tem nada a ver com o caso, mas abrimos uma caixa de Pandora que não podemos limitar‑nos a ignorar. E o senhor sabe‑o.

‑ Ser‑me-ia difícil conceber um valor de dez milhões de dólares de pesquisa adicional durante dois meses, «ignorando‑o», Peter. E não chegamos a lado nenhum. Enfrenta os fatos, ele meteu‑se numa caça às bruxas... pior do que isso, numa caça aos gambozinos. Não se encontra nada. Estamos a falar de um elemento que «poderia reagir» ou «talvez desencadeasse» uma série extraordinariamente rara de circunstâncias, numa probabilidade de um para um milhão; no caso incerto de alguma coisa correr mal... e nós acabarmos por ter um problema. Por amor de Deus, sê franco, achas isto razoável? Que diabo, podes tomar duas aspirinas com uma bebida e ficar mal-disposto. E daí?

‑ Duas aspirinas com uma bebida não matam. O Vicotec mata, se não se for cuidadoso.

‑ Mas nós somos cuidadosos. É aí que bate o ponto. Todos os medicamentos têm os seus riscos, os seus efeitos colaterais, o seu lado negativo. Se não queremos conviver com isso, o melhor que temos a fazer é fechar a porta e ir vender algodão doce para as feiras. Por amor de Deus, Peter, deixa de me atazanar os ouvidos, sê sensato. Quero que entendas que eu vou passar por cima de ti, neste caso. Se tiver de ser, vou eu próprio à FDA, mas quero que saibas porquê. Quero que saibas que acredito sinceramente que o Vicotec é seguro, aposto a minha vida nele! ‑ E as últimas palavras foram já pronunciadas aos gritos. Estava vermelho e agitado, a voz tornava‑se‑lhe cada vez mais rouca; e trêmula. Frank estava completamente fora de si, transpirava, perdia a cor, e fez uma pausa para beber um gole de água.

‑ Sente‑se bem? ‑ perguntou‑lhe Peter, calmo, observando‑o. ‑ Isto não merece que aposte a sua vida. É esse o fulcro da questão. Temos de avaliar o assunto clinicamente e conduzi‑lo sem exaltações. É um produto, Frank, não passa disso. Desejo‑o mais do que qualquer outra pessoa, mas, no fim de contas, ou servirá, ou não servirá, ou poderá vir a servir mas leva mais tempo do que o que quereríamos para ficar pronto. Ninguém anseia mais do que eu por vê‑lo no mercado. Mas não «a qualquer preço», não enquanto existir um só fator de que não estejamos seguros. Há um fio solto em qualquer sítio. Nós sabemo‑lo. Vimos os seus sinais. Até o detectarmos, não podemos permitir que alguém o use. É tão simples como isto. ‑ Falara com concisão e clareza e, quanto mais agitado Frank ficava, mais ele pare­cia calmo.

‑ Não, Peter, não... não é assim tão simples! ‑Frank rugia, a sua fúria aumentava perante a exasperante frieza do genro. ‑ Quarenta e sete milhões de dólares em quatro anos, não é de maneira nenhuma «simples»! Quanto dinheiro achas que vamos investir no total, por amor de Deus? Quanto dinheiro pensas que é? ‑ Estava a tornar‑se sórdido, e Peter recusou‑se a morder o isco.

‑ O suficiente para fazer tudo como deve ser, es­pero, ou então põe‑se de parte o produto. Foi sempre essa a nossa opção.

‑ Ao diabo, a opção! ‑ Frank, de pé, berrava­‑lhe. ‑ Achas que eu vou deitar perto de cinqüenta milhões de dólares pela janela fora? Estás louco! De quem achas que é esse dinheiro? Teu? Pois pensa bem, tu és meu, e da companhia, e da Katie, e que um raio me parta se vais dizer‑me o que tenho a fazer. Nem se­quer aqui estarias hoje se eu não te tivesse comprado, fechado a cadeado, guardado e aprisionado para a minha filha. ‑ As suas palavras foram para Peter uma macha­dada, cortaram‑lhe a respiração e tudo o que lhe ocorreu à memória foram as do seu pai, há dezoito anos, quando lhe participara que ele e Katie iam casar-se: «Serás sempre um marido alugado se casares com ela, meu filho. Está errado, é injusto, mas é assim. Sempre que olharem para ti, ver‑te‑ão como eras antes, não como és no momento.» Mas casara, e o resultado estava à vista. Era isto o que pensavam dele, dezoito anos depois.

Já então Peter se levantara também e, se Frank Donovan tivesse alguns anos a menos, alguma demência a menos, Peter ter‑lhe-ia dado um bom murro.

‑ Não fico a ouvir mais ‑ exclamou, a tremer dos pés à cabeça por não poder assentar‑lhe o tal murro, mas Frank não ia desistir. Agarrou‑o por um braço e continuou aos berros.

‑ Vais ouvir tudo o que eu te disser, raios, e fazer tudo o que eu quero. E não me olhes com esses olhos de carneiro mal morto, meu filho da mãe. Ela podia ter tido qualquer um, quis‑te a ti, por isso eu fiz de ti o que és hoje, para não lhe causar embaraços. Mas tu não és nada, não és nada! Começas este maldito projeto, custa‑nos milhões, fazes promessas, vês tudo cor‑de‑rosa, e depois, quando surge um problemazeco que um francês qualquer presumido julga ver num quarto es­curo, apunhalas‑nos pelas costas e queres ir grunhir co­mo um porco para a FDA. Pois bem, deixa‑me dizer‑te uma coisa: prefiro que morras do que faças semelhante coisa. Ditas estas palavras, apertou o peito, a tossir freneticamente. A cara estava vermelha como um tomate e era óbvio que não conseguia respirar. Agarrou‑se então aos dois braços de Peter, e este suportou todo o peso do velho enquanto ele começava a descair, quase o arrastando consigo. Por um instante, nem acreditou no que estava a passar‑se; depois percebeu. Estendeu‑o rapidamente no chão, discou o número das emergências o mais depressa que pôde e deu todos os pormenores. Nesse momento, Frank vomitava, e continuava a tossir; Peter, mal desligou o telefone, ajoelhou‑se, virou‑o de lado e tentou suportar o seu peso e manter‑lhe a cara afastada do vômito. Ainda respirava, embora com extrema dificuldade; quase perdera os sentidos, mas Peter continuava a rebobinar tudo o que o homem lhe disse­ra. Nunca o imaginara capaz de tanto veneno, tanto que quase o matara. E enquanto, inclinado, o amparava, Pe­ter só pensava que Katie diria que ele fora o culpado. Acusá‑lo-ia pelo fato de teimar e o contrariar por causa do Vicotec. Mas nunca saberia o que Peter acabava de ouvir, o que o pai lhe dissera, as coisas inesquecíveis que lhe vociferara. E quando os para-médicos chegaram, não lhe restavam dúvidas de que, acontecesse o que viesse a acontecer, ser‑lhe-ia impossível esquecer ou perdoar‑lhe. Não se tratava de injúrias gritadas num momento de raiva, mas de armas letais, horrendas, que durante anos escondera, apontadas contra si e prontas a ser disparadas um dia. Punhais afiados que o haviam trespassado e que Peter sabia que jamais esqueceria.

Os para-médicos ocupavam‑se de Frank; Peter ergueu‑se e recuou. Tinha o fato sujo do vômito e a secretária de Frank, à porta, estava histérica. No corredor, várias pessoas observavam a cena e um dos para-médicos ergueu o olhar para Peter e abanou a cabeça. O sogro deixara de respirar. Os dois outros para-médicos pegaram no desfibrilhador e abriram a camisa de Frank, precisa­mente quando meia dúzia de bombeiros entravam no gabinete. Parecia uma convenção; todos se ajoelharam e não o largaram durante uma hora, enquanto Peter os observava, sempre a pensar no que iria dizer a Katie. Começava a convencer‑se que não restava a menor esperança, quando os para-médicos mandaram os bombeiros buscar a maca. O coração batia de novo, irregular mas já não em fibrilação, o homem voltara a respirar. Então, com uma máscara de oxigênio posta, levantou os olhos turvos para Peter, sem dizer uma palavra, e Peter tocou‑lhe na mão quando ele passou por si. Levavam­‑no para a ambulância e Peter pediu à secretária que ligasse para o médico particular do sogro. Esperavam‑no no Hospital de Nova Iorque, com uma equipa de cardiologistas. Parecia ter escapado à morte por muito pouco.

‑ Vou lá ter ‑ disse Peter aos para-médicos e correu ao lavabo dos homens para tentar dar um jeito nas calças e no casaco. Tinha uma camisa limpa num armário, mas todo o resto metia nojo. Até os sapatos estavam cobertos do vômito de Frank. Mas o que se sobrepunha, o que verdadeiramente o cobria, era a imundície do que Frank lhe dissera. A infâmia do que lhe atirara à cara era tão virulenta que quase o matara.

Cinco minutos depois, Peter saía do lavabo com outra camisa, as calças tão limpas quanto fora capaz, uma camisola e sapatos limpos. Dirigiu‑se ao seu gabinete para telefonar a Katie. Felizmente, encontrou‑a em casa, ia mesmo a sair para umas voltas que tinha a dar. Quando atendeu, Peter quase chocou com as suas próprias palavras. Não sabia como lhe contar.

‑ Katie... eu... Ainda bem que estás em casa. ‑ A mulher gostaria de lhe perguntar porquê, tinha anda­do tão estranho com ela ultimamente, alheio de um modo esquisito e deprimido. Vira imensa televisão umas semanas antes, de repente não via nenhuma. Durante uns dias, obcecara‑o a CNN, e fora uma idéia tão peregrina aquela de querer fazer férias com ela.

‑ Passa‑se alguma coisa? ‑ Deitou uma olhadela ao relógio de pulso. Tinha ainda montes de coisas de Mike a tratar, antes da partida dele para Princeton, na manhã seguinte. Precisava de lhe comprar um tapete para o quarto e uma colcha nova. Mas o tom de voz do marido, ao responder‑lhe, apanhou‑a desprevenida.

‑ Passa, sim... É que... Katie, ele agora está bem, mas foi o teu pai. ‑ Ficou quase sem respiração ao ou­vi‑lo. ‑ Teve um ataque cardíaco no escritório. ‑ Não lhe disse que estivera às portas da morte, que o seu coração parara por uns segundos. Os médicos dir‑lho-iam, mais tarde. ‑ Levaram‑no para o Hospital de Nova Iorque e eu vou agora para lá. Acho que deves vir logo que possas. Ele é bastante forte.

‑ Ele está bem? ‑ A sua voz soava como se o mundo tivesse desabado, e para ela desabara; pelo espaço de um horrível segundo, Peter não pôde impedir‑se de imaginar se soaria de igual forma se tivesse sido ele e não o pai. Teria Frank razão? Ele não passava de um brinquedo que haviam comprado e pago?

‑ Penso que sim. Durante uns minutos, aqui, teve mau aspecto, mas os homens das emergências foram formidáveis. Vieram cá para-médicos e bombeiros. ‑ E também um polícia que, no exterior, acalmava toda a gente e anotava o relato da secretária de Frank, embora esta nem soubesse ao certo o que se passara. Estavam à espera de falar com Peter, e todos pareciam bastante corretos. Peter ouviu a mulher chorar. ‑ Não te aflijas, querida. Ele está bem. Só achei que querias vir vê­‑lo. ‑ De repente, veio‑lhe à cabeça que talvez ela não se achasse em condições de guiar. Não queria que tivesse um acidente. ‑ O Mike está aí? ‑ Katie soluçou ao telefone, dizendo que o filho não estava. Se estivesse poderia trazer a mãe. Paul só tinha licença de aluno de condução e não guiava ainda suficientemente bem para fazer todo o trajeto desde Greenwich. ‑ Podes pedir a um dos vizinhos que te traga no carro?

‑ Eu posso guiar ‑ respondeu ela, ainda a chorar. ‑ O que aconteceu? Ele ontem estava ótimo. Foi sempre tão saudável. ‑ E era, mas havia fatores incontornáveis.

‑ É um homem de setenta anos, Katie, e tem andado numa grande tensão.

A mulher parou de chorar, e foi com voz dura que lhe perguntou:

‑ Estiveram outra vez a discutir por causa da apresentação à FDA? ‑ Sabia que tinham planeado reunir­‑se para tratar desse assunto.

‑ Discutimo‑la, sim. ‑ Mas havia mais do que isso. Frank berrara‑lhe ofensas, que não era sua intenção contar a Katie. O que o pai dela lhe dissera era doloroso de mais para ser repetido, especialmente tendo em conta o que sobreviera. Se ele morresse, Peter não queria que Katie soubesse até que ponto tinham chegado as coisas entre eles.

‑ Devem ter feito mais do que «discutir», se ele teve um ataque cardíaco ‑ retorquiu ela, acusadora, mas Peter não quis perder tempo ao telefone.

‑ Penso que deves vir. Podes falar nisso depois. Ele está na UCI de cardiologia ‑ informou com brusquidão, e Katie recomeçou a chorar. Peter detestava pensar que ela viria a conduzir. ‑ Eu vou lá agora ver o que se passa. Telefono‑te do carro se houver alterações. Vê se colocas bem o telefone.

‑ É óbvio! ‑ A sua voz era cortante e, ao falar, as­soava‑se. ‑ Vê tu se não lhe dizes nada que o incomode.

Frank, porém, estava longe de poder ouvir alguém quando Peter chegou ao Hospital de Nova Iorque, vinte minutos mais tarde. Primeiro, teve que falar com a Polícia, assinar uns formulários deixados pelos para-médicos, e o trânsito era imenso na direção de East River. Quando lá chegou, Frank estava já sob o efeito de sedativos e atentamente vigiado. O rosto passara de rosado a cinzento. Todo despenteado, tinha ainda restos secos de vômito no queixo e o peito nu coberto de fios e sensores. Encontrava‑se ligado a qualquer coisa como meia dúzia de máquinas e parecia extremamente doente e muito mais velho do que uma hora antes.

Com total franqueza, o médico disse a Peter que Frank não estava de modo algum livre de perigo. O ata­que cardíaco fora forte e ainda havia o risco de o seu coração recair em fibrilação. As próximas vinte e quatro horas eram cruciais. Ao olhá‑lo, era fácil acreditar no diagnóstico. Impossível era acreditar que, duas horas antes, quando Peter entrara no seu gabinete, parecesse jovem e cheio de saúde.

Peter esperou por Katie no corredor da entrada e tentou avisá‑la antes de ela subir. De calças de ganga e T‑shirt, com o cabelo desalinhado e um olhar esgazeado pelo pânico, subia no elevador com o marido quando, perturbadíssima e anormalmente distraída, lhe perguntou pela quinta vez:

‑ Como está ele?

‑ Vais ver. Tem calma. Acho que parece um pouco pior do que está.

As máquinas a que estava ligado assustavam, mais parecia um corpo para estudo do que um doente. Mas Katie não estava minimamente preparada para o que se lhe deparou quando entrou na UCI e viu o pai. Desatou a soluçar e foi enorme o seu esforço para não gritar quando chegou junto dele e lhe pegou na mão. Frank abriu os olhos e reconheceu‑a; voltou depois ao seu sono provocado pelos medicamentos. Queriam‑no em re­pouso absoluto nos próximos dias, se não morresse entretanto.

‑ Oh, meu Deus! ‑ exclamou ela, quase a desmaiar nos braços de Peter quando saíam do quarto. Pe­ter teve de a sentar numa cadeira o mais depressa que pôde e uma enfermeira trouxe‑lhe um copo de água. ‑Não posso crer. ‑ Na meia hora seguinte não parou de chorar e Peter ficou sentado a seu lado. E quando final­mente o médico voltou, para falar com eles, disse‑lhes que Frank tinha cinqüenta por cento de probabilidades de sobreviver.

As suas palavras deixaram Katie de novo histérica; passou o resto da tarde em lágrimas, numa cadeira no exterior da UCI, e a ir vê‑lo de meia em meia hora, quando lho permitiam. Mas a maior parte das vezes que lá foi, encontrou‑o inconsciente. Ao fim do dia, Peter tentou levá‑la a comer qualquer coisa, mas ela recusou terminantemente. Disse‑lhe que dormiria na sala de espera o tempo que fosse preciso, mas que não saía dali, nem por um instante.

‑ Katie, tens de sair ‑ insistiu Peter, com ternura. ‑ Não vai ajudar nada, se tu também adoeceres. Ele fica bem, por uma hora ou mais. Podemos ir para o apartamento e deitar‑nos, e se for necessário eles telefonam.

‑ Não gastes saliva ‑ foi a sua resposta obstinada, com o olhar de uma criança que não quer ser levada de onde está. ‑ Eu fico com ele. Durmo aqui esta noite, e todo o tempo até ele estar livre de perigo. ‑ Na verdade, era mais ou menos o que Peter esperara.

‑ Tenho de ir a casa informar os rapazes, mas só até certo ponto ‑ disse, pensativo; com um aceno de cabeça, Katie concordou. Os filhos eram a última coisa que a preocupava, ali sentada no corredor deserto. ‑ Eu vou lá, ocupo‑me deles e depois volto, à noite. ‑ Uma vez mais, ela concordou sem palavras com o seu plano. ‑ Ficas bem, enquanto eu vou? ‑ perguntou­‑lhe com delicadeza, mas ela mal o olhou. Dava a impressão de já ter perdido o pai, enquanto olhava fixa­mente a janela. Não conseguia imaginar o mundo sem o pai. Nos seus primeiros vinte anos, fora tudo o que tinha na vida. E nos vinte seguintes, uma das pessoas mais importantes para si. Na opinião de Peter, Frank era para ela um ídolo, uma paixão, quase uma obsessão e, embora sem nunca o ter dito, parecia amar mais o pai do que os próprios filhos. ‑ Ele vai ficar bom ‑ repetiu, docemente, mas a mulher apenas chorou e abanou a cabeça quando ele saiu; não podia fazer mais nada por ela. A Kate só lhe interessava o pai.

Peter conduziu o mais depressa que pôde, na confusão de carros de sexta‑feira à noite, e por sorte apanhou os três rapazes em casa; falou‑lhes do ataque cardíaco de Frank, tentando não os alarmar, e todos três ficaram preocupadíssimos. Tranquilizou‑os o melhor que pôde e, a uma pergunta de Mike, respondeu que acontecera durante uma reunião de negócios entre os dois. Mike queria ir à cidade para ver o avô, mas Peter achou melhor aguardarem. Quando Frank se sentisse capaz de o receber, o seu neto mais velho podia vir de Princeton para o visitar.

‑ E amanhã, pai? ‑ quis saber Mike. Estava combinado levarem-no a Princeton. no dia seguinte e, tanto quanto Peter sabia, quase tudo estava pronto, exceto o tapete e a colcha que Kate não pudera comprar nessa tarde; mas Mike arranjar‑se-ia sem eles.

‑ Eu acompanho‑te, de manhã. Penso que a tua mãe vai querer ficar com o teu avô.

Peter levou‑os a jantar fora; um jantar rápido; pelas nove da noite meteu‑se ao caminho de regresso à cidade. Do carro, telefonou a Katie, que lhe disse não haver alterações, embora ela o achasse com pior aspecto do que umas horas antes; mas a enfermeira dissera que era mesmo assim.

Peter estava de volta ao hospital às dez horas e ficou com ela até depois da meia‑noite, hora a que voltou pa­ra Greenwich, para junto dos filhos. E na manhã seguinte, às oito horas, levou Mike à faculdade, com to­das as suas malas, sacos e equipamentos de desporto. Foi colocado num quarto com dois outros estudantes, e cerca do meio‑dia Peter fizera tudo o que tinha a fazer. Abraçou Mike, desejou‑lhe boa sorte e regressou a Nova Iorque, para ver Katie e o pai. Chegou pouco antes das duas e ficou atônito com o que se lhe deparou: Frank sentado na cama, com um aspecto fraco e cansa­do. Ainda estava pálido, mas penteado, com um pijama limpo e Katie a dar‑lhe a sopa, como a um bebê. Umas melhoras sensacionais.

‑ Ora bem, ora bem! ‑ comentou, enquanto entrava. ‑ Parece que dobrou o cabo! ‑ Frank sorriu. Mas Peter ainda não confiava muito nele. Não esquece­ra as coisas que lhe ouvira, nem o tom em que lhas dissera. Apesar disso, não lhe queria mal por ter sobrevivi­do. ‑ Onde arranjou esse pijama tão giro? ‑ Não parecia, na verdade, o mesmo homem que vira na véspera, deitado no chão do gabinete e coberto com o seu próprio vômito; Katie sorriu, radiante. Ela não tinha de lutar com essa recordação, nem com a do ataque torpe contra Peter, acusado de ter sido comprado e devida­mente pago.

‑ Consegui passar‑lhes por cima, com um recado do Bergdorf ‑ informou‑o Katie, toda contente. ‑A enfermeira disse que eles devem pôr o pai num quarto particular amanhã, se ele continuar a melhorar. ‑ A própria Katie parecia exausta, mas nem por um só momento fraquejou. Daria todas as suas forças, todo o seu sangue, se isso o ajudasse.

‑ Ótimo, boas notícias. ‑ Em seguida, contou­‑lhes a chegada de Mike a Princeton. Frank mostrou‑se extremamente agradado; pouco depois Katie ajudou‑o, com todo o cuidado, a deitar‑se para dormir um bocadinho, e ela e Peter saíram para o corredor. Mas não se mostrava nem de longe tão animada como quando estava a dar a sopa ao pai. Peter percebeu instantaneamente que algo acontecera.

‑ O pai contou‑me o que se passou ontem ‑ disse ela, com um olhar penetrante, enquanto passeavam de cá para lá no corredor.

‑E o que é que isso quer dizer? ‑ Também ele estava cansado e pouco disposto a entrar em jogos de palavras. Achou difícil acreditar que o sogro tivesse confessado até que ponto fora incorreto, ou repetido o que lhe dissera e o que dissera a seu respeito.

‑ Tu sabes o que quer dizer. ‑ Parou para o encarar, perguntando a si própria se acaso o conhecia. ‑Explicou‑me que o traíste em relação à apresentação à FDA, que chegaste quase a ser violento.

‑ Ele disse o quê? ‑ Peter estava atônito.

‑ Disse que nunca te ouviu falar com ninguém daquela maneira e que te recusaste a dar ouvidos à razão. Disse que foi de mais para ele e... e então... ‑ Começou a chorar e por um momento teve de interromper­‑se, sempre a olhá‑lo com um olhar repleto de acusações. ‑ Quase mataste o meu pai. Se tivesses morto, se ele não fosse tão forte... e tão bondoso... ‑ Desviou dele o olhar, incapaz de continuar a fitá‑lo, mas Peter ouviu‑a muito nitidamente: ‑ Acho que nunca pode­rei perdoar‑te!

‑ Então, somos dois! ‑ exclamou ele, com uma fúria sem limites. ‑ Sugiro que lhe perguntes o que me disse antes de desmaiar. Acho que foi qualquer coisa sobre ter‑me comprado há anos, e fechado a cadeado, e guardado, e aprisionado, e ver‑me morto se eu não for à maldita apresentação. ‑ Baixou para a mulher os seus olhos azul‑claros e Katie viu neles algo que nunca vira antes; depois, afastou‑se o mais depressa que pôde e entrou no elevador; ela observava‑o, mas não fez qualquer movimento para o seguir. Isso, porém, já não lhe interessava. Não havia no seu espírito mais interrogações quanto à dedicação da mulher.

 

Frank recuperou surpreendentemente bem do seu ataque cardíaco e duas semanas depois tinha alta; Kate quis ficar em casa dele. Peter achou justo, ambos precisavam de algum tempo para pensar e decidir o que sentiam um pelo outro. Ela nunca se desculpou pelo que lhe dissera no hospital e ele nunca tocou no assunto. Mas também não o esqueceu. E, claro, Frank não fez mais qualquer menção a Peter ter sido «comprado e devidamente pago». Peter nem sabia se ele se lembrava.

Era cordial com o sogro quando o visitava, o que fazia com regularidade, tanto por cortesia como para ver Katie, mas as suas relações com Frank eram notoriamente frias. E Katie mantinha as distâncias em relação a Peter. Andava, aliás, demasiado ocupada com o pai para prestar muita atenção ao marido. Peter cuidava de si, fazia o seu jantar todas as noites, o que na realidade não o incomodava nada. Os rapazes mais velhos estavam fora, nos colégios, e já tinham recebido notícias de Mike várias vezes. Estava louco com Princeton.

Foi duas semanas depois de ter sofrido o ataque, que Frank voltou a referir‑se à apresentação do medicamento. Os dois homens sabiam que continuavam na agenda da FDA. E os interrogatórios teriam lugar daí a poucos dias. Se não iam pedir a aprovação à FDA, tinham de cancelar a sua presença.

‑ Então? ‑ interrogou Frank, recostado nas almofadas que Katie acabara de ajeitar. Estava impecavelmente barbeado e limpo; o seu barbeiro acabara de chegar para lhe cortar o cabelo. Parecia um anúncio para pijamas e lençóis de luxo, não um homem que estivera às portas da morte, mas apesar de tudo Peter não pretendia molestá‑lo. ‑ O que se passou nestes dias? Que tal vai a pesquisa? ‑ Ambos sabiam ao que ele se referia.

‑ Acho que não devíamos discutir isso. ‑ Katie, no andar de baixo, fazia‑lhe o almoço, e Peter não tinha a menor intenção de iniciar uma discussão com ele, e depois ter de se haver com os dois Donovan. Pelo que lhe dizia respeito, até os médicos lhe darem instruções em contrário o Vicotec era um assunto tabu.

‑ Temos de o discutir ‑ replicou Frank com firmeza. ‑ A apresentação é daqui a poucos dias. Não me esqueci ‑ acrescentou, calmo. Nem Peter esquecera o que ele lhe dissera no seu gabinete. Mas Frank não aludiu ao incidente, limitava‑se a olhar o genro. Era um homem com uma missão. Com facilidade se percebia de onde provinham a teimosia e a perseverança de Katie. ‑ Falei ontem para o escritório e, segundo o departamento de pesquisa, tudo está agora em ordem.

‑ Com uma exceção ‑ corrigiu Peter.

‑ Um teste insignificante, feito num laboratório de ratos em condições excepcionais. Estou a par de tudo. Mas, ao que parece, é irrelevante, porque as condições tipificadas nesses testes não poderão nunca reproduzir‑se em humanos.

‑ Isso é verdade ‑ admitiu Peter, pedindo aos seus santinhos que Katie não entrasse e os apanhasse naquela conversa. ‑ Porém, tecnicamente, nos termos da FDA, desclassifica‑nos. Continuo a dizer que não devíamos ir aos interrogatórios. ‑ E ainda por cima, não tinham sido capazes de refazer na totalidade os testes franceses, os quais eram cruciais. ‑ Também temos de analisar outra vez o material do Suchard. É aí que reside a falha real. O resto, tem sido mera rotina. Temos de percorrer o caminho que ele percorreu.

‑ Podemos fazê‑lo antes de o Vicotec ser usado clinicamente e a FDA não precisa de saber nada, para já. Sob o aspecto técnico passamos todos os requisitos com bandeira verde. Não queremos nada mais do que aquilo a que temos direito. Isso deveria satisfazer‑te ‑ acrescentou em tom severo.

‑ Deveria. Se o Suchard não tivesse descoberto um problema, e nós estaríamos a mentir se escondêssemos o fato à FDA.

‑ Dou‑te a minha palavra ‑ declarou Frank, ignorando a interrupção ‑ que se qualquer coisa... seja o que for... o mínimo esboço de um problema surgir nos testes subseqüentes, eu paro tudo. Não sou louco. Não quero uma ação judicial de cem milhões de dólares. Não tenho a intenção de dar cabo de ninguém. Mas também não quero que dêem cabo de nós. Consegui­mos aquilo de que precisamos. Contentemo‑nos com isso. Se eu te der a minha palavra de que prosseguiremos até à enésima potência mesmo que obtenhamos aprovação para testes imediatos em seres humanos de­pois de todos os nossos testes laboratoriais, vais aos interrogatórios? Peter, que mal pode isso fazer?... Por favor...

Frank estava errado, e Peter sabia‑o. Era prematuro e... perigoso. Com uma aprovação para testes clínicos a curto prazo, podiam administrá‑lo a seres humanos imediatamente e ele não confiava em que o sogro o não fizesse. Não importava a Peter o fato de os testes clínicos envolverem doses muito reduzidas de Vicotec, usadas num reduzidíssimo número de pessoas. Para ele, o cerne da questão residia em não correrem riscos indevidos e irresponsáveis, nem com uma só pessoa. Tinham sido alertados contra perigos potenciais do uso do Vicotec, tal como ele era agora, e Peter não conseguia ignorar esse alerta. Outras companhias tinham passado por casos horrorosos por o terem feito, corriam ainda histórias lendárias de produtos totalmente embalados e metidos em vagões, à espera da aprovação da FDA para, mal ob­tida esta, os expedirem de imediato. Peter receava que o sogro tivesse em mente algo semelhante para o Vicotec, a despeito dos seus problemas potenciais. Se Frank não estava preparado para ser razoável, as possibilidades de uso indevido eram infinitas. E uso indevido poderia traduzir-se em perdas de vida desnecessárias. Algo que Pe­ter temia e de modo nenhum podia aprovar.

‑ Não posso apresentar‑me à FDA ‑ respondeu, com tristeza. ‑ O senhor sabe que não posso.

‑ Estás a fazer isto por vingança... pelo que eu disse... Por amor de Deus, tu sabes que eu não penso nada do que disse. ‑ Então, lembrava‑se. Dissera‑o apenas para ferir, ou por convicção? Peter nunca o saberia, mas seria incapaz de o esquecer. Contudo, não era vingativo.

‑ Uma coisa não tem nada a ver com a outra. É uma questão de ética.

‑ Isso são tretas. Então, o que queres? Um suborno? Uma garantia? Tens a minha palavra de que não avanço com o produto se ainda subsistir qualquer problema quando completados todos os testes. De que mais precisas?

- De tempo. É só uma questão de tempo ‑ respondeu Peter, fatigado. Os Donovan tinham‑no esgota­do nas duas últimas semanas; e na verdade, se pensasse bem, esgotavam‑no há já muito tempo.

‑ É uma questão de dinheiro. E orgulho. E reputação. Imaginas o nosso prejuízo se desistirmos agora da apresentação? Poderia mesmo repercutir-se nos nossos outros produtos. ‑ Era um círculo vicioso e nenhum deles concordava com a posição do outro. Quando Katie chegou com o almoço de Frank, viu ambos carrancudos e suspeitou logo de que houvera discussões proibidas.

‑ Não estão a falar de negócios, pois não? ‑ perguntou aos dois, e ambos abanaram a cabeça, mas Peter com um ar culpado; e um pouco mais tarde, ela pô‑lo entre a espada e a parede. ‑ Achei que não quererias recordar‑lho ‑ disse, enigmática. Estavam os dois na cozinha do pai.

‑ Recordar‑lhe o quê?

‑ O que fizeste. ‑ Ainda achava que Peter quase o matara, causara o seu ataque cardíaco porque o contrariara, e nenhum argumento seu a faria mudar de idéias. ‑ De certa forma, deves‑lhe isso, ir a essa apresentação e a esses interrogatórios. Não vem daí nenhum dano real. É uma questão de salvar a face, no que lhe diz respeito. Ele antecipou‑se ao pedir experiências prematuras, e agora não quer admitir que não estava pronto. Não vai usar o Vicotec em pessoas se isso for perigoso. Tu conhece‑lo. Não é estúpido, nem maluco. Mas está doente, e velho, e tem o direito de não querer ficar malvisto perante o país inteiro. Podias fazer‑lhe isso, se te importasses um bocadinho com ele. ‑ Mostrava‑se de novo acusadora. ‑ Não me parece que ele peça muito. A menos que ele não tenha importância para ti. Contou‑me que te disse coisas bastante desagradáveis no outro dia, porque estava zangado. Mas tenho a certeza de que não as pensava. A questão é a seguinte ‑ pros­seguiu, fixando‑o: ‑ És superior o suficiente para lhe perdoar? Ou vais fazê‑lo pagar, negando‑lhe a única coisa que quer de ti? De qualquer forma, o Congresso é na mesma data, ainda podes apresentar‑te à FDA. Deves‑lhe isso, depois do que fizeste. E agora, ele não pode ir. És a única pessoa com quem pode contar. ‑ Levava‑o a sentir‑se um autêntico filho da mãe por recusar, e estava também decidida a responsabilizá‑lo pelo ataque cardíaco do pai. E, tal como Frank, parecia agarrada à idéia de que ele procurava vingar‑se daquilo que ouvira. Uma teia mesquinha e retorcida.

‑ Não tem nada a ver com isso, Katie. É muito mais complicado. Tem a ver com integridade e com ética. O teu pai tem de ver mais longe do que «salvar a face». O que pensariam as pessoas, o governo por exemplo, se viessem a descobrir que nos apresentamos aos interrogatórios prematuramente? Nunca mais confiariam em nós. Poderia destruir a nossa firma. ‑ Pior ainda, ele também seria destruído. Violava tudo aquilo em que acreditava, sabia‑se incapaz de o fazer.

‑ Ele disse‑me que o poria de parte, se tivesse de ser. Tudo o que lhe darás é um período de graça e uma apresentação à FDA. ‑ Na sua boca, era tão pouco, e ela era muito mais convincente do que o pai. Tal como lhe apresentava a questão, ele tinha de o fazer; o pedido era tão insignificante que Katie não compreendia como poderia o marido recusá‑lo. E conseguiu manobrar de forma a integrar‑se a si própria no caso, como se ele lho devesse, a ela, como prova de que ainda a amava. ‑Tudo o que ele pede é um compromisso. Nada mais. Es tão mesquinho que não vais assumi‑lo? Concede‑lhe isto... só desta vez. E pronto. O homem quase morreu. Merece‑o. ‑ Dir‑se-ia Joana d'Arc a oscilar a bandeira diante dos seus olhos, e Peter, sem nunca ter percebido porquê, cedeu à pressão. Era como se a sua vida inteira estivesse em jogo. Fora ela quem dera as cartas. É o monte era agora alto de mais para ele lhe resistir. ‑ Pe­ter? ‑ Olhou‑o, inesperadamente sedutora, a mulher tentadora que nunca havia sido, dotada de habilidade e esperteza sobre‑humanas; ele nem forças teve para lhe responder, para lhe opor resistência. Sem sequer saber o que fazia, anuiu, com um aceno de cabeça. E ela compreendeu. Conseguira. Vencera. Ele iria à apresentação e aos interrogatórios.

 

A noite anterior à partida para Washington foi um pesadelo para Peter. Ainda não acreditava no que fizera por eles. Mas Katie ficara‑lhe obviamente grata desde que ele acedera, e o pai melhorava a olhos vistos e desfazia‑se em amabilidades e louvores ao genro. Quanto a este, sentia‑se catapultado para outro planeta onde nada era real, onde o seu coração se transformara numa pedra e o seu cérebro não tinha peso. Nem aprofundava o que estava a fazer.

Intelectualmente, ainda raciocinava, na linha de Frank. O Vicotec estava quase perfeito e, se surgissem novos problemas, suspendê‑lo-iam antes de chegar ao mercado. Porém, numa perspectiva moral e legal, laboravam num erro, e nenhum deles o ignorava. Mesmo assim, Peter já não tinha escolha. Prometera a Katie e ao pai. A única questão para ele era: como conviveria consigo depois? Iria, pura e simplesmente, abandonar aos poucos a sua ética? Uma vez dado esse passo, seguir‑se-ia outra escorregadela, outras violações de princípios a que antes aderisse? Um interessante tema filosófico que, se não sentisse que estava a apostar a sua vida, o interessaria imenso. Mas, tal como as coisas estavam, não conseguia comer, não conseguia dormir. Perdera três quilos em meia dúzia de dias, tinha um aspecto horrível. Na véspera da ida a Washington, a sua secretária perguntou‑lhe se estava doente e ele limitou‑se a abanar a cabeça e a responder que andava muito ocupa­do. Com Frank ausente e planeando ficar em casa mais um mês, a carga sobre os seus ombros era ainda mais pesada do que de costume. E tinha de comparecer ao Congresso para a fixação de preços, na manhã do mesmo dia dos interrogatórios da FDA.

Ficara à secretária até tarde nesse dia, a estudar o resultado da última pesquisa. Parecia de fato bom, exceto num pequeno pormenor que se coadunava na perfeição com algumas das coisas que Suchard lhe dissera em junho, razão pela qual estava tão seguro do significado do pormenor em causa. Segundo os analistas, era uma coisa relativamente insignificante, e nem sequer valia a pena Peter telefonar a Frank por causa disso. Aliás, sabia a resposta que obteria: «Não te preocupes. Vai aos interrogatórios e nós tratamos do caso mais tarde.» Mas de qualquer modo, levou os relatórios consigo para casa e releu‑os todos nessa noite; às duas da madrugada, ainda o perturbavam. Katie dormia a seu lado, na cama. já não estava em casa do pai, até ia a Washington com ele e comprara um fato novo para esse fim. Ela e o pai, radiantes por Peter ter capitulado, andavam muito bem­‑dispostos. Para ele, era uma missão demoníaca e Katie ralhara‑lhe por exagerar. Tentou convencê‑lo de que apenas andava nervoso por ir defrontar o Congresso.

Quando, às quatro da manhã, se sentou no seu escritório em Greenwich, de olhar perdido no vazio da noite para lá da janela, continuava a pensar nos últimos relatórios. Quanto desejava ter alguém com quem pudesse discuti‑los! Não conhecia pessoalmente os homens das equipas de pesquisa alemã e Suíça, e não estava em boas relações com o novo homem de Paris. Claro que Frank o contratara por ser maleável, um yes‑man, mas era também difícil de entender e tão científico em tudo que escutá‑lo era para Peter como ouvir falar Japonês. Ocorreu‑lhe então uma idéia e percorreu o Rolodex da sua secretária. Será que tinha o número em casa? Tinha.

Eram dez horas da manhã em Paris, com alguma sorte encontrá‑lo‑ia. Chamou‑o pelo seu nome quando o atendedor respondeu. O telefone tocou duas vezes, com um som de robô amigável, e logo ouviu a voz familiar.

‑ Allô? ‑ Era Paul‑Louis. Peter ligara para a nova companhia onde trabalhava.

‑ Olá, Paul‑Louis ‑ saudou‑o, com voz cansada. Para si, eram quatro horas da madrugada e a noite fora infindável. Iria Paul‑Louis ajudá‑lo a tomar uma decisão com que finalmente se sentisse em paz? Era essa a única razão do seu telefonema. ‑ Fala Benedict Arnold.

‑ Qui? Allô? Quem é? ‑ perguntou, confuso, e Peter sorria ao elucidá‑lo.,

‑ Um traidor que foi fuzilado há muito tempo. Salut, Paul‑Louis ‑ disse, em francês. ‑ É o Peter Haskell.

‑ Ali... d'accord. ‑ Percebeu de imediato. ‑ Então, vai fazê‑lo? Obrigaram‑no? ‑ Adivinhara, mal o ouvira. A voz de Peter era a de um moribundo.

‑ Gostaria de dizer que me obrigaram ‑ retorquiu, cavalheiresco, embora tivessem obrigado; mas era demasiado gentleman para o divulgar. ‑ Ofereci‑me, mais ou menos, por uma série de razões. O Frank teve um ataque cardíaco quase fatal, há perto de três semanas. As coisas modificaram‑se um bocado de então para cá.

‑ Estou a ver. Em que posso ajudá‑lo? ‑ Trabalhava para uma firma rival, mas era realmente amigo de Peter. ‑ Quer alguma coisa de mim? ‑ perguntou, de rompante.

‑ Absolvição, acho eu, embora não a mereça. Acabei de receber uns novos relatórios, parecem‑me bastante bons, se é que os interpretei corretamente. Substituímos dois dos componentes e toda a gente pensa que resolvemos o problema. Mas há uns tantos resultados esquisitos que não tenho a certeza de compreender e pensei que talvez você pudesse esclarecer‑me. Não há ninguém aqui com quem possa discutir com imparcialidade. O que eu quero saber é se vamos matar alguém com o Vicotec. Basicamente, é isto. Quero saber se você ainda o acha perigoso, ou se estamos agora no caminho certo. Tem tempo para me dar uma ajuda? ‑ Não tinha, mas para Peter estava disposto a arranjá‑lo. Pediu à sua secretária que suspendesse todos os seus telefonemas e um instante depois estava de novo em linha.

‑ Mande‑me já um fax. ‑ Peter fê‑lo e seguiu‑se um longo silêncio, enquanto Paul‑Louis o lia. Durante a hora que se sucedeu, andaram às voltas com o resulta­do da pesquisa, Peter a responder a todas as perguntas que lhe era possível. Por fim, houve outro longo silêncio; Paul‑Louis ordenava as suas idéias. ‑ É muito subjetivo, sabe? No ponto a que chegaram, não há necessariamente uma interpretação bem definida. É um bom produto, não há dúvida. Um produto maravilhoso que modificará as nossas capacidades de luta contra o cancro. Mas há elementos adicionais que têm de ser avaliados. É essa avaliação que é muito difícil dar‑lhe. Nada na vi­da é seguro. Não há nada sem riscos, ou custos. A questão é saber se estão preparados para os enfrentar. ‑A sua filosofia era muito francesa, mas Peter compreendeu‑o.

‑ Para nós, a questão é a amplitude do risco.

‑ Percebo. ‑ Compreendia perfeitamente. Fora para isso que alertara Peter em Junho, quando da sua estada em Paris. ‑ A nova pesquisa é boa, sem a mínima dúvida. Estão no bom caminho, agora... ‑ O tom da sua voz baixou enquanto, de sobrolho franzido, acendia um cigarro. Todos os cientistas que Peter conhecera na Europa eram fumadores.

‑ Mas já lá chegamos? ‑ insistiu Peter, hesitante quase temendo a resposta.

‑ Não... ainda não ‑ respondeu‑lhe Suchard, com pena. ‑ Talvez não tarde, se prosseguirem nessa direção. Mas ainda lá não chegaram. Na minha opinião, o Vicotec continua a ser perigoso, sobretudo em mãos inexperientes. ‑ Que eram precisamente as mãos a que se pretendia que fosse destinado. Estava a ser fabricado para uso por leigos, em casa se necessário. Ou seja, para fazer quimioterapia em casa, sem necessidade do recurso a hospitais, ou mesmo a médicos.

‑ Ainda é um assassino, Paul‑Louis? ‑ Fora esse o nome que lhe dera em junho. Poderia voltar a dá‑lo.

‑ Acho que sim. ‑ Na outra ponta do fio, a voz soava pesarosa, mas nítida. ‑ Ainda lá não chegaram, Peter. Dêem‑lhe tempo. Vão conseguir.

‑ E a apresentação?

‑ Quando é?

Peter consultou o relógio. Eram cinco da manhã

‑ Daqui a nove horas. Às duas da tarde. Saio de casa daqui a duas horas. ‑ Ia apanhar o avião das oito, tencionava comparecer no Congresso às onze.

‑ Não o invejo, meu amigo. Pouco mais posso acrescentar. Se quiser ser sincero, tem de lhes dizer que será um medicamento maravilhoso, mas que ainda não está pronto. Que continuam a trabalhá‑lo.

‑ Não se vai à FDA para dizer isso. Vai‑se para pe­dir autorização para testes clínicos imediatos, baseado nos nossos testes laboratoriais. O Frank quer o produto no mercado logo que tenhamos passado por todas as fases das experiências em seres humanos, uma vez obtida a autorização da FDA.

Na outra extremidade, Suchard assobiou.

‑ Isso é assustador. Porque é que ele está a pressionar tanto?

‑ Quer reformar‑se em janeiro. E ter a certeza de que deixa tudo bem encaminhado. O Vicotec devia ser o seu presente de despedida à humanidade. E o meu. Em vez disso, parece‑me uma bomba‑relógio.

‑ É isso, Peter. Você tem de o saber.

‑ Sei. Mas ninguém me dá ouvidos. Ele diz que abandona o produto antes do fim do ano se não estiver­mos prontos para o usar nos seres humanos. Mas continua a insistir na nossa ida a Washington. Para lhe falar com franqueza, é uma longa história. ‑ Tinha a ver com o ego do velho, e um risco de negócio estimado num bilhão de dólares. Só que neste caso, os cálculos de Frank não eram válidos, baseavam‑se apenas no seu ego. Um ato perigoso que podia destruir por completo a companhia, mas ele insistia em recusar‑se a admiti‑lo. E o estranho era ser tão claro para Peter. A teimosia de Frank raiava a insanidade. Talvez estivesse a ficar senil, ou apenas ébrio de poder, quem sabe!

Agradeceu a Paul‑Louis a sua ajuda, o francês desejou‑lhe sorte; depois desligou e foi fazer café. Restava­‑lhe a opção de recuar, mas não via como. Também podia ir aos interrogatórios e depois demitir‑se da Wilson‑Donovan, mas isso não protegeria as pessoas que tentara ajudar e era agora forçado a pôr em perigo. O problema residia em não acreditar que Frank cancelasse as experiências em seres humanos se os testes laboratoriais não melhorassem radicalmente no futuro próximo. Algo dizia a Peter que ele estava disposto a jogar. Havia muito dinheiro em perspectiva, qualquer que fosse o risco para a vida humana. A tentação era agora demasiado forte.

Um pouco mais tarde, Katie ouviu mexer‑se e apareceu na cozinha antes de o despertador tocar. Encontrou Peter sentado à mesa, com a cabeça apoiada numa mão, a beber a sua segunda chávena de café. Nunca antes o vira naquele estado: tinha um aspecto pior do que o do pai logo a seguir ao ataque cardíaco.

‑ Porque estás tão preocupado? ‑ Pôs‑lhe a mão no ombro. Mas era muito difícil explicar‑lhe; obvia­mente ela não compreenderia nada, nem se esforçaria por compreender. ‑ Vai estar tudo passado num abrir e fechar de olhos. ‑ Falava como se se tratasse de um cano roto, e não da violação de tudo aquilo em que consistiam os seus valores. A sua ética, a sua integridade, os seus princípios, tudo estava em causa, e a mulher não conseguia entendê‑lo. Quando ela se sentou do lado oposto da mesa, olhou‑a, infeliz; na sua camisa de noite cor‑de‑rosa, aparentava a disposição e a calma de sempre

‑ Estou a agir por razões absolutamente erradas Katie. Não por estar bem, ou porque estejamos prontos para o fazer. Estou a fazê‑lo por ti, e pelo teu pai. Sinto‑me na pele de um tipo da Máfia.

‑ Que frase odiosa! ‑ Aborrecera‑a. ‑ Como podes fazer uma comparação dessas? Estás a agir como estás, porque sabes que é o correto e porque o deve ao meu pai.

Voltou a sentar‑se na cadeira da cozinha e fitou‑a Que futuro seria o deles, à velocidade a que iam? Não brilhante, pelo que via ultimamente. Percebia agora como Olivia se sentia ao dizer que se vendera a Andy. Era uma vida construída sobre mentiras e fingimentos. E, neste caso, chantagem.

‑ O que é que vocês dois parecem pensar que vos devo? ‑ interrogou, calmo. ‑ O teu pai dá a entender que eu lhe devo imenso. Tanto quanto pude verificar ao longo destes anos, houve uma troca correta: eu trabalho arduamente para a companhia e sou pago por isso. E nós dois temos um casamento real, pelo menos era o que eu pensava. Mas nos últimos tempos, esse conceito de «dívida» parece interferir nas coisas. O que acha exatamente cada um de vocês que eu «devo», para ter de ir a esta apresentação?

‑ Tens de ir porque... ‑ Avançava com muito cuidado, o terreno era perigoso, um campo de minas potencial. ‑ Porque a companhia é boa para ti há vinte anos e esta é a tua forma de o retribuir, apoiando um produto que pode dar‑nos bilhões.

‑ É então esse o fulcro da questão? Dinheiro? ‑Sentia‑se doente ao fazer‑lhe a pergunta. Fora por isso que se vendera? Bilhões. Ao menos, não se vendera ba­rato, pensou, estremecendo.

‑ Em parte. Não podes ser ingênuo a esse ponto, Peter. Tu tens participação nos nossos lucros. Afinal, é o que todos nós queremos. E pensa nos filhos. O que lhes aconteceria? Irias arruinar‑lhes também as vidas. ‑Muito fria, muito calculista, e muito dura. E apesar de toda a conversa a respeito do pai, ainda se preocupava com o dinheiro.

‑ É curioso. Passou‑me pela cabeça a idéia louca de que se tratava do bem da humanidade, ou no mínimo de salvar vidas. Acho que foi por isso que trabalhei, que lutei pelo produto nos últimos quatro anos. Mas não estava disposto a mentir por ele, nem estou. E agora ainda é menor a minha inclinação, «por dinheiro».

‑ Estás a recuar? ‑ Parecia aterrorizada. Ela própria iria à apresentação e aos interrogatórios se pudesse. Mas não era empregada da companhia, o pai continuava demasiado doente para ir; tudo dependia de Peter. ‑Sabes, eu pensei muito a sério antes de me meter nisto. ‑ De pé, olhava‑o fixamente. ‑ Acho justo dizer‑te que, se nos desapontares, o teu brilhante futuro na Wilson‑Donovan está praticamente liquidado.

‑ E o nosso casamento? ‑ Peter brincava com o fogo, e não o ignorava.

‑ Logo se verá ‑ respondeu ela, imperturbável.

Mas, para mim, seria o máximo da traição. ‑ Percebeu o significado das suas palavras; e de súbito, só de olhá-la, sentiu‑se melhor. Fora tão rude e tão clara, tão aquilo que sempre tinha sido, embora ele nem sempre o tivesse visto.

‑ É bom saber em que pé estamos, Katie ‑ replicou, sereno, olhando‑a através da mesa da cozinha, cada um do seu lado. E antes que ela tivesse tempo para qualquer réplica, apareceu Patrick para o pequeno­‑almoço.

‑ O que é que vocês estão a fazer a pé, tão cedo? ‑ perguntou, ensonado.

‑ A tua mãe e eu vamos a Washington.

‑ Ah, esqueci‑me. O avô também vai? ‑ Patrick bocejou e encheu um copo de leite, enquanto ia falando.

‑ Não, o médico acha que é cedo de mais ‑ explicou Peter.

Frank telefonou uns minutos mais tarde. Queria apanhar Peter antes de este sair, e lembrar‑lhe o que desejava que ele dissesse ao Congresso sobre a fixação de preços. já tinham discutido o assunto uma dúzia de vezes nos últimos dias, mas Frank pretendia assegurar‑se de que o genro apoiaria a posição certa.

‑ Não vamos ceder em nada e, claro, isto refere‑se também ao Vicotec, quando aparecer. Não te esqueças ‑sublinhou, obstinado. Até as suas idéias quanto ao preço a atribuir ao Vicotec iam contra tudo aquilo em que Pe­ter acreditava. Katie observava‑o quando voltou para a mesa.

‑ Tudo bem? ‑ Sorriu‑lhe, enquanto ele abanava a cabeça, em assentimento. E ambos foram vestir‑se e partiram para o aeroporto meia hora depois.

Peter mostrou‑se estranhamente calmo durante todo o caminho e pouco falou com Kate. Aterrara‑a por uns segundos, mas ela compreendia que estivesse nervoso. Receava que voltasse com a palavra atrás, mas agora tinha a certeza de que não o faria. Peter acabava sempre aquilo que começava.

O vôo de La Guardia até ao Aeroporto Nacional era curto, e Peter passou a sua maior parte enfronhado nos papéis. Tinha vários registros de fixação de preços na sua frente e todos os novos relatórios de pesquisa do Vicotec. Debruçou‑se em especial sobre as partes que Suchard lhe apontara de madrugada, quando lhe telefona­ra. O problema do Vicotec preocupava‑o muito mais do que o comparecimento no Congresso.

Do avião, Katie telefonou ao pai e assegurou‑lhe que tudo corria como previsto. Em Washington, esperava‑o uma limusine, que os levou ao Congresso. Mal lá chegaram, Peter sentiu‑se muito mais tranqüilo. Sabia mais ou menos o que ia dizer‑lhes, e na verdade não estava apreensivo. Dois adjuntos esperavam‑no na sala dos funcionários; foi conduzido a uma sala de conferências, onde lhe ofereceram um café; Kate estava ainda consigo, mas pouco depois veio um contínuo buscá‑la para a escoltar até um lugar na galeria, de onde poderia observar Peter. Desejou‑lhe boa sorte, tocou‑lhe na mão ao sair, mas não parou para o beijar. Passado um momento foi a vez de ele ser conduzido para a sala e, por um mo mento, sentiu‑se amedrontado. Não importava a sua boa preparação; continuava a ser uma experiência extraordinária enfrentar os homens e as mulheres que dirigiam o país, e dar‑lhes opiniões. Era apenas a segunda vez que ali se encontrava e, da primeira, fora Frank quem falara. Hoje, era completamente diferente.

Peter foi conduzido a uma tribuna de testemunhas prestou juramento. Os membros da subcomissão estavam sentados à sua frente, com microfones; depois de ele ter dito o seu nome e o nome da sua companhia começou sem mais delongas o interrogatório, com o membros do Congresso muito atentos.

Fizeram‑lhe perguntas específicas sobre certos medicamentos e sobre o seu ponto de vista em relação aos elevadíssimos preços. Tentou apontar razões facilmente compreensíveis mas, de fato, até aos seus próprios ouvidos soavam irreais e algo fúteis. A verdade era que companhias que os produziam estavam a fazer fortuna sobrecarregando o público, e os membros do Congresso sabiam‑no. A Wilson‑Donovan também tinha a sua quota‑parte de culpa, embora as suas práticas e os seus lucros não fossem tão gritantes como os de algumas outras.

Discutiram depois alguns problemas com os seguros e, mesmo no fim, uma congressista de Idaho disse ter conhecimento de que ele ia apresentar‑se à FDA nesse mesmo dia, para pedir testes humanos imediatos para um novo produto. E só para os manter informados dos novos avanços do ramo, agradecia que ele lhes desse uma idéia do que se tratava.

Peter explicou‑lhes com a maior simplicidade de que foi capaz, sem entrar em tecnicismos, nem pôr em causa quaisquer segredos; e informou os membros do Congresso de que o produto iria alterar a natureza da quimioterapia e torná‑la acessível a acamados, sem necessidade de assistência profissional. As mães poderiam administrá-lo aos filhos, os maridos às mulheres ou, com cuidado, qualquer um poderia administrá‑lo a si próprio. Uma revolução no tratamento de todos os doentes de cancro. Dar ao homem comum a capacidade de se tratar, e tratar a sua família, em áreas rurais ou urbanas, onde quer que fosse preciso.

‑ E o «homem, comum», usando a sua expressão, poderá suportar o seu custo? Acho que é esse o ponto principal. ‑ Falara outro congressista, e Peter abanava a cabeça, numa afirmação.

‑ Esperamos bem que sim. É um dos nossos objetivos para o Vicotec atribuir‑lhe um preço tão baixo quanto possível, fazer com que esteja ao alcance de to­dos quantos dele precisem. ‑ Desprendia‑se serenidade e firmeza das suas palavras, e várias cabeças abanavam, em aprovação, ao escutá‑lo. Fizera um testemunho sabedor e decisivo, provocando uma boa impressão. Pouco depois agradeceram‑lhe e dispensaram‑no; todos os da subcomissão lhe apertaram a mão e desejaram boa sorte com a FDA nessa tarde, para o seu notável produto. Peter saiu contente e voltou para a sala de conferências atrás de um adjunto. Passado pouco, Katie juntava­‑se‑lhe.

‑ Porque é que disseste aquilo? ‑ foi a sua pergunta infeliz, em voz baixa, enquanto ele ordenava o seus papéis. Deveria felicitá‑lo, ou dizer‑lhe como se saíra bem. Até os estranhos o haviam feito. Mas a sua mulher fitava‑o com uma reprovação que mal escondia. Ao olhá‑la, era como se tivesse Frank à sua frente. ‑ Falaste como se o Vicotec fosse para ser oferecido. Sabes que não era essa a impressão que o pai queria que transmitisses aqui. Vai ser um medicamento caro. Tem de ser, se queremos recuperar o nosso dinheiro e obter o lucro que merecemos. – No seu olhar transparecia o calculismo e a dureza.

‑ Não vamos falar nisso ‑ interrompeu‑a Peter. Pegou na pasta, agradeceu aos adjuntos e abandonou edifício, com Katie mesmo atrás de si. Não tinha nada a dizer‑lhe, porque ela nada perceberia. Compreendia lucro nos medicamentos que vendiam, mas não o se âmago, percebia as palavras, mas não o que significavam. Agora, porém, também ela não se atrevia a espicaçá‑lo. Peter ultrapassara com êxito um obstáculo, mas tinha pela frente o maior, a apresentação e os interrogatórios da FDA. Restava‑lhes pouco mais de uma hora quando entraram na limusine.

Katie sugeriu que fossem almoçar a qualquer sítio, mas Peter limitou‑se a abanar a cabeça. Pensava no que ela acabara de dizer, após o interrogatório do Congresso. Na opinião da mulher, deitara tudo a perder. Falharam, não apoiara a posição certa que consistiria em manter o Vicotec e todos os seus outros medicamentos tão caro quanto possível, para assim obterem com eles um lucro colossal, e para agradar ao pai. Peter estava contente por ter dito o que dissera, e ia lutar como um leão nos próximos meses para conseguir um preço baixo para o Vicotec. Frank não fazia a menor idéia de quanto ele poderia ser inflexível nesse ponto.

Acabaram por comer sanduíches de rosbife na limusine, com café em copos de papel. E quando o carro parou na FDA, no número 5600 de Fischers Lane, em Rockville, Maryland, Katie achou Peter nervoso. Tinham levado meia hora de Capitol Hill até lá e, ao chegarem, Peter reparou que o edifício não era bonito; mas passavam‑se lá dentro coisas importantes, e só isso lhe ocupava o espírito. Continuava a matutar no que iria passar‑se. No que lá fora fazer. No que prometera a Frank e a Katie. A promessa que lhes fizera não fora espontânea, mas estar ali era muito pior, ciente de que ia esconder da FDA uma falha perigosa, ao garantir‑lhes que o medicamento estava pronto a ser disponibilizado para um público confiante. Rezava para que Frank honrasse a sua parte do acordo e, se necessário, pusesse de lado o produto.

Foi com as palmas das mãos a suar que Peter entrou na sala de interrogatórios; estava demasiado enervado para reparar nas pessoas presentes. Não dirigiu uma pa­lavra a Katie quando esta o deixou e foi para o seu lugar. De fato, esquecera‑a por completo. Tinha uma tarefa importante a executar, ideais a sacrificar, princípios a renegar. E todavia, se o produto resultasse, salvariam vidas, ou pelo menos poderiam prolongá‑las. Mesmo assim, o dilema era terrível para ele, sabendo o que sabia e, simultaneamente, até que ponto o medicamento era necessário.

Peter não prestou juramento; porém, ali, na FDA, verdade era ainda mais crucial. Ao olhar em redor, sentiu‑se tonto. Mas ao menos agora sabia o que o esperava. E não demoraria muito. Tinha esperança de que a sua traição ao povo que desejaria ajudar levasse apenas uns minutos, embora receasse que fosse bastante mais longa.

Tremiam‑lhe as mãos enquanto esperava que a comissão consultiva iniciasse as suas perguntas. Era a mais aterradora experiência da sua vida, em nada comparável ao comparecimento perante o Congresso nessa mesma manhã. Fora tão inofensivo e tão simples, comparado com isto! A sua presença na FDA afigurava‑se‑lhe ominosa, estava tanto em jogo, um peso tão grande sobre os seus ombros! Não parava de dizer para com os seus botões que tudo o que tinha a fazer era suportar aquela tensão. Não podia permitir‑se pensar em ninguém, nem em Katie, nem em Frank, nem em Suchard, nem sequer nos relatórios que lera. Devia levantar‑se e apresentar Vicotec, e sabia tudo sobre ele; sentado à mesa comprida e estreita, aguardava, ansioso.

Então, inesperadamente, pensou em Katie e em tudo o que sacrificara por ela, e pelo pai dela. Fizera‑lhes a dádiva da sua integridade e da sua coragem. Era mais do que «devia» a qualquer um deles, a ela ou ao pai.

Forçou‑se, uma vez mais, a afastá‑la do pensamento e tentou assentar as idéias. O presidente da comissão começara entretanto a falar. O coração de Peter quase explodia, enquanto eles lhe faziam uma série de perguntas muito específicas e técnicas relacionadas com a razão da sua presença ali. Explicou clara e sucintamente, e num tom de voz forte, que viera pedir‑lhes a aprovação para testes em seres humanos de um produto que acreditavam que iria modificar a vida dos cidadãos americanos atingidos pelo cancro. Houve uma ligeira agitação por parte dos membros da comissão, um roçagar de papéis um olhar de interesse, quando ele começou a descrever o Vicotec e como este poderia ser usado por doentes com cancro onde quer que estivessem. Disse‑lhes, no essencial, o mesmo que dissera ao Congresso, de manhã .

A diferença residia em que estas pessoas não iam deixar­‑se impressionar por uma amostra superficial de medicina. Queriam, e estavam habilitados a compreendê‑los, todos os mais complicados pormenores. E, passado um pouco, Peter reparou com espanto, ao olhar o relógio na parede quando lhe fizeram a última pergunta, que falara durante uma hora.

‑ E acredita de fato, Mister Haskell, que o Vicotec está pronto para ser testado em seres humanos, mesmo em pequenas doses e num número reduzido de pessoas, informadas do risco que correm? Acha na verdade que avaliaram a fundo a natureza de todas as suas propriedades e que não há risco algum? Dá‑nos a sua palavra de honra, Mister Haskell, de que julga, sem a menor hesitação, o produto realmente pronto para testes em seres humanos, neste momento?

Peter ouviu a pergunta com clareza e viu o rosto do homem que lha fizera, sabia qual a resposta a dar. Fora para isso que viera. Tratava‑se de uma simples palavra, de lhes assegurar que o Vicotec era de fato tudo aquilo que dissera e tudo o que haviam desejado que fosse. Bastava‑lhe Jurar‑lhes, a eles, guardiões da segurança do povo americano, que o Vicotec não lhes causaria danos. Relanceou o olhar pela sala, a pensar nos que nela se encontravam, e nos seus maridos e mulheres, nas suas mães e nos seus filhos, e no número infinito de pessoas a cujas mãos o Vicotec chegaria; e percebeu que não podia fazê‑lo. Nem por Frank, ou por Katie, ou por quem quer que fosse. Acima de tudo, por si próprio. Varreu­‑se‑lhe do espírito qualquer dúvida: nunca deveria ter vindo. Custasse‑lhe o que custasse, dissessem o que dissessem, tirassem-lhe ou fizessem‑lhe os Donovan fosse o que fosse, não podia. Não podia mentir àquelas pessoas acerca do Vicotec, ou acerca de qualquer outra coisa. Ele não era assim. E estava perfeitamente seguro do que ia fazer, quando o fez. Tinha a certeza absoluta de que, nesse preciso momento, a sua vida inteira ia por água abaixo, o seu emprego, a sua mulher, talvez até os seus filhos, ou esses não, se tivesse sorte. Eram quase adultos, tinham de compreender as razões do seu pai. E se não pudessem, ou não entendessem que a integridade não tem preço, então é porque errara com eles. Em qualquer caso, estava disposto a pagar o preço exigido pela sua franqueza para com o povo americano.

‑ Não, senhor, não posso ‑ respondeu com de­terminação. ‑ Não posso dar‑lhes ainda a minha palavra. Espero poder um dia, muito em breve. Penso que criamos um dos melhores produtos farmacêuticos jamais vistos no mundo, e desesperadamente necessário aos doentes de cancro de todo o planeta. Mas não creio que estejamos ainda isentos de riscos.

‑ Então, não pode esperar que lhe concedamos, desta vez, a autorização para a chamada Fase Um das Experiências em Seres Humanos, pois não, Mister Haskell? ‑ O membro mais velho da comissão consultiva parecia confuso, um leve furor espalhava‑se pelo resto da comissão, interrogavam‑se entre si sobre a razão da vinda de Peter. Não era costume usarem‑se os interrogatórios da FDA como fórum para publicitar produtos inacabados. Por fim, admiraram a sua honestidade, sem nenhum deles suspeitar de que chegara a estar em questão. Na sala, apenas havia um rosto contraído de fúria. E haveria outro em casa, quando ela lhe contasse que Peter os traíra.

‑ Quer que lhes marquemos outra data, Mister Haskell? Talvez seja mais apropriado do que perdermos mais tempo agora. ‑ Tinham uma agenda cheia a cumprir. Peter fora o primeiro da tarde, seguiam‑se muitos outros.

‑ Gostaria muito, senhor. Penso que seis meses é um prazo realista. ‑ Mesmo assim seria apertado, mas, de acordo com o que Paul‑Louis dissera, Peter achou que conseguiriam.

‑ Obrigado por ter vindo. ‑ E com estas palavras despediu‑o e acabou‑se tudo. Saiu da sala com os joelhos a tremer, mas de costas direitas e cabeça erguida, sentindo‑se um ser humano decente. Essa sensação era a única que lhe restava, não o ignorava. À distância, viu Katie à sua espera e encaminhou‑se para ela. Não lhe passava pela cabeça que a mulher lhe perdoasse. Corriam‑lhe lágrimas pela cara e Peter não teve a certeza se eram lágrimas de raiva ou de desapontamento, provavelmente de ambas as coisas, mas não tentou reconfortá‑la.

‑ Desculpa, Katie. Não planejei nada. Senti‑me mal, e só então tomei consciência: estar ali, de pé, em frente deles, e a mentir‑lhes. Era um grupo impressionante. Não pude fazê‑lo.

‑ Nunca te pedi ‑ mentiu ela. ‑ Só queria que não traísses o meu pai. ‑ Depois, olhou‑o com tristeza.

Fora o ponto final. Para ambos. O marido não estava disposto a assumir mais compromissos por ela, a renunciar àquilo em que acreditava. Nunca, até àquele momento, se apercebera de quanto fora longe. – Tens consciência do que fizeste ali? ‑ perguntou, com delicadeza, pronta a defender até à morte o pai, mas não o marido.

‑ Posso imaginar. ‑ Ela já o esclarecera nessa manhã, do outro lado da cozinha, em Greenwich. E Peter não vacilou. De certa maneira, era o que pretendia. Liberdade.

‑ És um homem honesto ‑ concedeu‑lhe Katie, olhando‑o nos olhos. Mas, vinda da sua boca, a frase soava a acusação. ‑ Mas não um homem esperto.

Abanando a cabeça, Peter concordou; ela virou‑lhe as costas e, sem se voltar uma única vez, afastou‑se. Não a seguiu. Há muito que terminara e nenhum dos dois dera por isso. Quase nem sabia se ela chegara a estar casada com ele, talvez só com o pai.

Tinha muito em que pensar quando saiu do edifício da FDA, em Rockville. Katie desaparecera na limusine, deixando‑o sozinho em Maryland, a meia hora de Washington. Mas não se importou. Nada. Era um dos dias mais marcantes da sua vida, sentia‑se com asas. Fora testado e, no seu espírito, passara com distinção... Dá‑nos a sua palavra de honra... Não, não dou. Ainda lhe pare­cia um sonho tê‑lo feito e não sabia porque não se sentia pior em relação a Katie, mas o fato é que tal não acontecia. Acabara de perder o emprego, a mulher, a casa. Comparecera ao Congresso nessa manhã e à FDA nessa tarde, na qualidade de presidente de uma companhia internacional, saíra de mãos a abanar, desemprega­do e só. De seu, apenas tinha a sua integridade e a sua certeza de que não se vendera. Ganhara!

Parado, contemplando sorridente o céu de Setembro, sobressaltou‑o uma voz mesmo atrás de si. Uma voz familiar mas estranha, com uma certa rouquidão que vinha de um outro tempo, de um outro lugar. Virou‑se... e viu Olivia.

‑ O que estás tu a fazer aqui? ‑ perguntou, desesperado por abraçá‑la, mas com medo de o fazer. ‑ Julgava‑te em França, a escrever. ‑ Bebia‑a com os olhos como se ela fosse vinho, e ela olhava‑o esboçando um sorriso. Vestia calças e camisola pretas e, pelos ombros, um casaco encarnado. Parecia o anúncio de qualquer coisa muito francesa e Peter só pensava na noite em que a seguira desde a Place Vendôme e em tudo o que acontecera nos cinco dias que passara em Paris, cinco dias que haviam alterado para sempre as suas vidas. Estava ainda mais bonita agora e, ao olhá‑la, Peter tomou consciência do quanto sentira a sua falta.

‑ Correu tudo muito bem, aqui ‑ disse, sorrindo­‑lhe mais abertamente. Era óbvio que se orgulhava dele, mas não respondera à sua pergunta. Viera apoiá‑lo, ainda que anonimamente, nos interrogatórios. Lera a notícia da sua apresentação no Herald Tribune, na Europa. E não encontrava explicação para o que a impelira a estar presente. Sabia quanto o Vicotec significava para ele, e o problema que lhe causara na época em que se conheceram. Quisera estar presente. O irmão dissera‑lhe onde teriam lugar os interrogatórios e arranjara maneira de ela assistir. Agora, dava graças por ter seguido o seu instinto. Edwin também lhe falara do Congresso; vira‑o lá, nessa manhã. Ficara sentada muito perto do irmão. E embora sem perceber o seu interesse súbito pela indústria farmacêutica, Edwin não lhe fizera qualquer pergunta.

‑ És mais corajoso do que pensas ‑ recordou‑lhe Olivia erguendo para ele o olhar. Peter puxou‑a devagar para si, perguntando a si próprio como sobrevivera sem ela nos últimos três meses e meio. Não podia imaginar voltar a deixá‑la, nem por um segundo.

‑ Não, corajosa és tu ‑ replicou, terno, cheio de admiração por ela. Desistira de tudo, virara as costas, não assumira compromisso algum. Foi então que se apercebeu de que acabava de fazer o mesmo. Desistira da mulher, do emprego, de tudo, por aquilo em que acreditava. Eram ambos livres. A um preço alto, admita‑se, mas para ambos valera a pena. ‑ O que fazes es ta tarde? ‑ Sorria maliciosamente ao perguntar‑lhe Ocorriam‑lhe milhares de coisas, o Washington Monument... o Lincoln Memorial... um passeio ao longo do Potomac... um quarto de hotel em qualquer sítio, o ficar ali, a olhá‑la para sempre... ou um avião de regresso a Paris...

‑ Não faço nada. Vim para te ver ‑ respondeu ‑lhe com doçura. Não esperara sequer falar com ele apenas vê‑lo à distância. ‑ Vou‑me embora amanhã. ‑Nem os pais informara da sua vinda, só Edwin; e ele prometera não lhes dizer. Viera só para ver Peter de relance, voltar a vê‑lo por um minuto ou dois, mesmo que ele nunca viesse a sabê‑lo.

‑ Posso oferecer‑lhe um café?

Recordando a Place de la Concorde e aquela primeira noite em Montmartre, sorriam os dois quando Peter lhe pegou na mão e começaram a descer os degraus, a caminho da liberdade.

 

                                                                                            Danielle Stel

 

 

                      

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