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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CÍRCULO DE CHAMÃS / Olga Kharitidi
CÍRCULO DE CHAMÃS / Olga Kharitidi

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

A chuva finalmente parou e as nuvens rapidamente abandonaram o céu, levadas por fortes ventos do leste. Havia um silêncio e uma escuridão quase total do lado de fora da minha janela. Através da porta aberta da sacada, a fresca brisa noturna trazia da rua um aroma agradável de folhas molhadas e asfalto úmido ao meu apartamento.

Apaguei a luz e caminhei até a sacada para uma última olhada no céu noturno. A cidade inteira estava diante de mim, lembrando um gigantesco navio de passageiros com luzes fortes brilhando das escotilhas. Porém, na realidade esta cidade aparentemente vasta e luminosa era só um pequeno fragmento terrestre, suas luzes insignificantes sob milhares de estrelas resplandecentes que piscavam sobre a noite límpida e pacífica.

Subitamente, enquanto eu estava no parapeito da minha estreita sacada, respirando o ar suave e fragrante, uma das estrelas pareceu crescer e brilhar mais do que as outras. Então foi como se o céu fosse rasgado, girando violentamente como se o cone de um gigantesco tornado estivesse se aproximando cada vez mais, preenchendo meu campo de visão.

Sinto um enorme poder desconhecido se aproximando, e sei que estou sendo chamada mais uma vez para outro lugar, para outra época. É tarde demais para escapar ou até mesmo para sentir medo, muito embora a essa altura eu esteja tão acostumada ao "extraordinário" que talvez não ficasse assustada mesmo se houvesse tempo para isso.

Num piscar de olhos, toda a cena muda. No lugar onde um momento antes havia apenas o límpido céu noturno, agora a brilhante luz diurna enche meus olhos. Estou flutuando muito acima do chão, num lugar que nunca vi antes. Minha mente está funcionando de uma maneira diferente agora, como se eu fosse uma nova pessoa, sem lembrança alguma do passado. Não estou com medo algum, apenas consciente e receptiva. Sei que fui trazida a este lugar com uma finalidade. Confio neste conhecimento e espero.

Enquanto me aproximo flutuando do chão, posso ver uma planície verdejante abaixo de mim. A grama tem o verde da primavera, é alta e cheia de vida recém-nascida, ondulando na brisa. Posso sentir a sua fragrância, e esta sensação puramente física me ajuda a deixar de lado outros pensamentos e me deixa centrada aqui.

Subitamente, barulhentas batidas de tambor vindas da minha direita chamam a minha atenção. Meu olfato já me enraizou neste novo lugar, e agora minha audição aprofunda minha conexão com ele. Meu corpo se move facilmente no ar, e me volto para a direita, na direção das batidas de tambor. Nunca poderia imaginar aquela cena diante de mim.

Dez homens, entre vinte e cinco e quarenta anos, cabelos presos em longos rabos-de-cavalo, estão dançando abaixo de mim num círculo. Suas roupas me parecem estranhas, com suaves tons castanhos decorados com padrões geométricos diferentes de qualquer coisa que eu já houvesse visto. O som do tambor é constante, e muito embora os movimentos dos homens sejam graciosos, existe uma inconfundível urgência na sua dança. À medida que me aproximo para olhá-los mais de perto, percebo que há uma mulher deitada no meio do círculo. Os homens se movem e giram dançando ao redor dela, com um ar de grande intensidade nos seus rostos. Não escuto som algum, a não ser as insistentes batidas do tambor.

De início não compreendo por que os homens pareciam tão estranhos para mim, mas à medida que noto mais e mais detalhes, percebo que seus rostos mostram uma consciência e ligação com sua cerimônia que as pessoas do nosso mundo moderno perderam. Compreendo que eles são seres antigos, e que estou experimentando algo que aconteceu há muitos milhares de anos.

Ainda estou flutuando acima do círculo de dança, descendo gradualmente rumo à finalidade da minha vinda. A mulher que é o ponto focal da dança e do batuque torna-se mais visível à medida que eu desço. Sua figura sem vida é incrivelmente bela. A simplicidade do seu vestido cinza-amarelado faz um forte contraste com as jóias elaboradas que enfeitam seu pescoço e corpete. Embora os colares sejam toscamente confeccionados, as jóias que brilham neles são belíssimas. Sei que ela acabou de morrer.

Olho ao meu redor numa tentativa de decifrar o que está acontecendo e o que estou fazendo aqui. Meus olhos são atraídos para uma velha. Ela está sentada numa pequena caixa de madeira próxima a uma estrutura semelhante a um yurt, uma tenda mongol, com um teto pontudo feito de grama trançada. Ela está fumando um cachimbo, movendo os olhos constantemente do círculo de dança para o céu, com sua presença em toda parte ao mesmo tempo. A sua idade física parece próxima a cem anos, mas a sua aparência não tem idade. Sua pele é escura e enrugada, como pergaminho pintado exposto ao sol constante durante muitas vidas. Seus olhos são estreitos, como os de muitos mongóis da atualidade. Eles se estreitam mais ainda enquanto ela traga a fumaça de seu cachimbo.

A sua participação na cerimônia não inclui a movimentação física dos outros. O ritmo de seu corpo é muito mais lento do que o dos dançarinos. Ela respira calmamente, e às vezes levanta a cabeça lentamente para o céu, como se estivesse esperando alguma coisa. No momento em que penso nisso, ela olha diretamente para mim e fico sabendo que me viu. Há um poder no fato de ser reconhecida por essa mulher; e ele cria uma estranha mistura de alegria e medo dentro de mim.

Continuo a flutuar levemente acima do chão. Uma questão se forma em minha mente enquanto sinto a mulher me focalizar e se concentrar em mim. "Quem sou eu, e o que estou fazendo aqui?" Então o ritmo do tambor pára abruptamente, e os homens param de dançar como se fossem um único corpo, eles olham para mim e começam a cantar. A linguagem deles me é desconhecida, mas de algum modo, entre as coisas que gritam reconheço as palavras, "Deusa Branca! A Deusa Branca está aqui!" Não é através de uma compreensão da linguagem deles que reconheço essas palavras. Elas são de algum modo embebidas no meu ser, junto com o olhar penetrante da mulher idosa, que me dá a sensação de ondas me atravessando sem parar.

Minha atenção é subitamente redirecionada para os homens, que se moveram num círculo maior ao redor da bela garota, abrindo espaço para eu descer com facilidade ao lado dela. As suas cabeças estão inclinadas para cima, olhando para mim, e sinto a expectativa deles diante do que está por vir. Nada me surpreende. Se a surpresa estiver por vir, será mais tarde, quando eu me encontrar de pé novamente na minha sacada.

O corpo em que estou flutuando é um enorme corpo feminino, dez vezes o tamanho normal. Branca e sem peso, sou como uma nuvem. Sei do fundo do meu ser que fui trazida aqui para trazer esta mulher morta de volta à vida.

Pouso no chão. Enquanto estendo o braço na direção do corpo dela, toco as espessas tranças negras que emolduram os dois lados do seu rosto moreno e de feições suaves. Posso sentir que, dentro do seu corpo, ela está flutuando em algum tipo de fronteira entre a vida e a morte, e sei que está em meu poder pender a balança para a vida. Tomo o seu tronco exânime nos meus braços e a levanto até que esteja sentada. De algum modo, sei que ela deve ser mantida nesta posição para que o fluxo da vida retorne ao seu corpo. Quando ela for capaz de sentar-se por conta própria, saberei que retornou totalmente.

Minhas mãos começam a se mover ao redor da sua cabeça e seios. Minhas mãos se movem por conta própria, na batida de um antigo ritual, e agora estou consciente de que esses mesmos movimentos e gestos foram feitos há milhares de anos por outros. Os movimentos estão restaurando e equilibrando a sua energia, e quando tudo parece completo, eu a solto. Agora ela retorna lentamente por conta própria, nadando temporariamente entre camadas de inconsciência e de consciência, o seu corpo se curando seguindo um caminho oferecido através de mim por alguma força desconhecida.

Com meu trabalho terminado, sou elevada por uma energia invisível e flutuo novamente acima da cena. Vôo cada vez mais alto. No momento em que tudo abaixo de mim se dissolve na distância, vejo novamente os olhos da anciã. Ela ainda está olhando para mim, ainda está fumando o seu cachimbo, totalmente consciente da minha presença e de quem eu sou. Vejo gratidão em seu rosto. No momento de mudança em que tudo se dissolve, reconheço a velha como Umai, minha velha amiga e mestra, em ainda outra manifestação.

Então estou novamente de pé na minha sacada, o céu noturno ainda brilhando diante de mim. A transição entre a minha jornada e o retorno à "realidade", se de fato uma é mais real que a outra, é rápida e completa. Muito embora eu seja uma mulher que vive no moderno século XX, agora aprendi a aceitar essas experiências que já foram tão desconhecidas para mim.

Subitamente, escuto dentro da minha cabeça as palavras, "Essas pessoas viveram em um passado muito distante. Nos seus rituais e cerimônias, executados há muitos milhares de anos, elas sabiam precisamente como ultrapassar as barreiras do espaço e do tempo. Elas podiam alcançar a energia de pessoas vivendo no futuro, e sabiam como integrar essa energia as suas cerimônias."

Lembro-me de como o cone no céu parecia no início da minha jornada e como a minha experiência mudara quando me vi flutuando sobre aquela terra antiga. Ouvi a mesma voz dizer, "Eles sabiam como viajar nas naves de Belovodia", e vislumbro um pequeno ponto de luz movendo-se rapidamente pelo céu escuro. Ele desaparece depois de alguns segundos. Depois do sumiço, continuo a olhar para a miríade de estrelas, entre as quais oculta-se mais um mistério.

Agora a jornada está totalmente acabada, e estou mais uma vez no meu pequeno apartamento no meio da Sibéria. Tudo começou há mais de um ano, quando despertei numa manhã aparentemente normal de inverno e saí para trabalhar, sem saber que toda a minha vida estava prestes a mudar. Lembro-me daquele dia tão claramente como se fosse ontem.

 

 

 

 

Nessa manhã específica, como em quase todas as outras manhãs, o meu despertador disparou exatamente às seis horas. O ônibus que me levaria ao hospital psiquiátrico onde eu trabalhava partia exatamente uma hora depois, de uma estação de metrô a alguns quarteirões de distância. Era o último ônibus que me faria chegar na hora, e eu não podia perdê-lo.

Hoje foi especialmente difícil conseguir sair da cama. O meu apartamento estava ainda mais frio do que o normal, e o céu lá fora ainda estava escuro, com sombrias nuvens de neve obscurecendo as estrelas que poderiam ter deixado a noite mais clara. O frio extremo no meu quarto era um sinal seguro de algum problema com o forno principal, e isso significava que eu poderia ficar sem aquecimento novamente durante dias. Pensando em tudo isso, me arrastei relutantemente para fora dos meus cobertores quentinhos e me preparei para um longo dia de trabalho. Depois de um rápido desjejum de torradas e café, mais para me aquecer do que para me alimentar, terminei minhas tarefas matinais.

Suspirei enquanto trancava a porta do meu apartamento, pensando na longa viagem que tinha que suportar toda manhã para chegar no trabalho que eu adorava. Entrei na rua gelada e escorregadia, meu hálito gelado formando um caminho diante de mim no ar parado. Nevara durante a noite inteira, e o zelador ainda não saíra naquela manhã fria para limpar com a pá os montes de neve dos caminhos ao redor do prédio. Foi difícil atravessar os montes de neve e os ventos gélidos. Senti um arrepio gelado atravessar meu corpo, tanto da sensação dessa manhã cinzenta e de algum modo ameaçadora quanto do vento e da neve. Os prédios altos que me cercavam pareciam grandes monstros sombrios e sem alma. Só umas poucas janelas estavam iluminadas entre centenas, cada janela um sinal de vida humana nessa selva de pedra siberiana.

A estação de metrô estava a uma caminhada de quinze minutos. Andei rapidamente e com minha cabeça abaixada, me protegendo o máximo possível do vento. A neve úmida parecia apenas suave e bela; enquanto cobria o meu rosto, mãos e roupas e chegava até a pele descoberta do meu pescoço, novamente senti um arrepio gelado atravessar meu corpo.

Meus passos apressados criaram um ritmo, ao qual adicionei meu cântico usual para as manhãs de inverno. As palavras eram ditas sob minha respiração, no ritmo cantado dos pregadores e feiticeiros: "Eu quero um lugar sentada hoje. Eu quero um lugar sentada hoje!" Nesta época do ano eu teria muita sorte em me sentar no ônibus, e desesperadamente precisava do cochilo que daria se tivesse chance.

Não deu certo. Cheguei na estação só para encontrar uma longa fila de pessoas já esperando, semelhantes a fantasmas dentro de suas silhuetas brancas como neve. A neve que caía lentamente brilhava na pálida luz branca dos postes e nos faróis vermelhos de aparições brancas com a forma de carros, seus motores silenciados pelo vento. Nesta manhã, enquanto me aproximava da multidão, ela se fundiu numa nuvem de hálitos comuns translúcidos, semelhante a um dragão de curvas sinuosas, arrotando fumaça de tabaco e amaldiçoando em alta voz o vento frio e o ônibus atrasado.

Eu deveria saber que não havia esperança de conseguir um assento ou de dar um cochilo nessa época do ano, por causa de todos os homens que viajavam para fora da cidade até o rio gelado para pescar. A cada dia o meu ônibus atravessava o rio Ob, um dos maiores rios da Sibéria. O seu leito largo e poderoso dividia minha cidade, Novosibirsk, em duas partes. Três longas pontes foram construídas para conectar os vários distritos da cidade. Foi depois da construção da primeira ponte, no final do último século, que a cidade começou a crescer. No inverno, o Ob é coberto com gelo espesso, e os homens que gostam de pescar podem caminhar até o meio do rio para cortar aberturas arredondadas. Então podem ficar sentados com seus camaradas, contando histórias e fofocando no gelo durante horas, esperando pela primeira mordida de um peixe faminto. A rota de ônibus segue a costa do Ob até imediatamente antes de chegar ao meu hospital, e hoje, como praticamente todo dia de inverno, os pescadores madrugadores enchiam o ônibus inteiro com seu equipamento volumoso, sentando nos melhores lugares, vestindo longos e escuros casacos invernais e falando em vozes altas e rascantes pontuadas por blasfêmias.

Eu trabalhava num grande hospital psiquiátrico com milhares de pacientes. O hospital ficava fora da cidade, porque sempre foi considerado mais seguro localizar essas instituições longe das áreas populosas. Depois do que parecia muito mais de duas horas de pé, balançando para frente e para trás, mas de outro modo imobilizada pela multidão opressiva no ônibus congelante e sem aquecimento, finalmente alcancei minha parada no hospital. Saí e caminhei rapidamente, tentando restaurar a sensação aos meus pés entorpecidos.

A cada dia, o mesmo quadro desanimador me saudava: treze prédios de um andar construídos no estilo de velhos quartéis de madeira, pintados de uma cor verde-amarelada, com barras de ferro pesadas e cheias de ferrugem cobrindo suas pequenas janelas. Este lugar oferecia a parte mais importante da minha vida; este era o meu hospital.

Caminhando pelo pátio do hospital, vi cerca de vinte pessoas deixando o edifício que servia como cozinha. Elas carregavam pesados baldes de metal cheios de desjejum, e se apressavam de volta para suas enfermarias numa inútil tentativa de manter o chá e seu grude aquecidos. Eu mal podia vê-las porque ainda estava muito escuro, mas podia escutar seus passos claramente na neve gelada, acompanhados pelos sons metálicos de suas bandejas enquanto tomavam caminhos distintos para seus diferentes prédios. O mesmo grude era servido todos os dias. Era a única comida disponível para nós. As grandes bandejas de metal, com suas duas alças de metal e tampas chatas, me lembravam do que poderia ser usado para alimentar prisioneiros.

Havia alguns pacientes cujo estado mental permitia que fizessem trabalhos braçais no terreno do hospital. Esses poucos privilegiados usavam agasalhos cinzentos de mangas longas com seus números impressos nas costas. As cabeças das mulheres estavam cobertas por lenços; os homens tinham cabeças raspadas. Alguns deles eram meus pacientes há muito tempo. Apesar da escuridão, muitos deles me reconheciam e gritavam saudações amigáveis. Outros, novos e desconhecidos para mim, ficavam em silêncio.

Cheguei na minha enfermaria e me preparei para a conferência matinal diária. Eu sempre ia a essas conferências sentindo-me tensa. Os enfermeiros me informavam sobre os eventos da noite, e eu tinha que estar pronta para qualquer coisa. Hoje não foi diferente, e fiquei antecipando os muitos problemas possíveis que poderiam ter surgido.

Em primeiro lugar, escutei pelo relato noturno que um servente que eu contratara há pouco mais que um mês se embebedara e surrara impiedosamente um paciente inofensivo e senil que tinha apenas se recusado a executar um pedido insignificante. O servente chutara repetidas vezes o pobre velho com suas pesadas botas militares, mandando-o para a clínica cirúrgica de emergência com uma ruptura no baço.

Eu esperava que o pobre coitado sobrevivesse. De algum modo sentia que o que acontecera era minha culpa, mas eu sabia que isso não era verdade. A maioria das pessoas que estavam dispostas a trabalhar como serventes eram homens que tinham passado algum tempo na prisão, e muitas vezes traziam com eles o vício do álcool ou das drogas. Eles substituíam uns aos outros com freqüência. Um deles era suspenso do trabalho depois de algum incidente criminal, e outro tomava seu lugar, com o mesmo rosto embotado pelo álcool e a mesma mente cínica - uma péssima combinação para os pacientes de quem eles cuidavam. Eu tinha pouca escolha sobre as pessoas que podia contratar, e pelo menos isso tornou mais fácil saber que eu não tinha realmente como proteger meu paciente. Ele estava sendo operado naquele exato momento, e eu fiz uma oração rápida e silenciosa por ele.

O enfermeiro contou em seguida sobre um novo paciente que fora trazido ao hospital pela policia às três da manhã. Li o relatório do policial sobre o jovem:

 

O paciente foi encontrado na floresta, a vinte e cinco quilômetros da cidade. Ele estava correndo pelos trilhos na direção de um trem em movimento. Ele não conseguiu explicar nada depois da sua detenção. Ele não respondeu a nenhuma pergunta e foi incapaz de se integrar com o que estava acontecendo à sua volta. Ele nem mesmo percebeu que o pegamos.

Roupas: Uniforme do exército, sujo e rasgado.

Documentos: Certificado, soldado da União Soviética.

Ele fala sozinho. Ficou claro, a partir de algumas das suas palavras, que ele vê alienígenas de um OVNI ao seu redor.

 

Eu estava curiosa para vê-lo, mas estava na hora da minha visita matinal pela enfermaria masculina. Eu teria de vê-lo mais tarde.

Oitenta homens com problemas mentais viviam em quartos de enfermaria mal-iluminados por lâmpadas azuis. Todos eles usavam pijamas semelhantes, uniformes idênticos, sujos, cinzentos e com listras negras verticais. Havia de cinco a dez pacientes em cada quarto. Eles não tinham privacidade, já que os seus quartos não tinham portas. Um grande quarto para pacientes crônicos abrigava mais de vinte homens. As serventes tentavam lavar e limpar a enfermaria, mas era impossível se livrar do forte cheiro de suor humano misturado com urina, remédios e uma desagradável sensação de abafamento. Este era o odor regular do meu trabalho, e eu tinha me acostumado a ele há muito tempo.

Os meus pacientes eram todos tão familiares para mim que quase pareciam uma família. Eu sabia a história da vida de cada pessoa desde a infância mais tenra até o ponto em que a doença mental havia cortado suas expectativas, cuidados e família - toda a sua vida até aquele momento - e a isolara no que era chamado de "casa dos loucos".

Cada paciente era diferente. Enquanto eu fazia meus turnos, um deles me pediu para reduzir sua dose de remédio porque ele já se sentia muito melhor. Um outro nem mesmo me ouviu chegar, porque a sua mente só tinha espaço para suas vozes interiores. Um outro simplesmente ria silenciosamente no canto. A única coisa comum em todos eles era a qualidade pálida, quase fantasmagórica dos seus rostos, com profundas olheiras por baixo dos olhos. Essa gente nunca via o céu ou respirava o ar fresco.

Eu passava de um paciente para o outro, notando mudanças nas suas condições médicas, dando as recomendações de tratamento usuais para os enfermeiros, respondendo a perguntas. Pensei brevemente sobre o novo paciente mais uma vez. "Um soldado", pensei comigo mesma. "Isso é muito interessante. Será que os horrores da vida no exército levaram esse homem a fingir uma doença mental?"

Fingir-se de louco era um truque familiar que muitos homens usavam para sair do exército. Os homens geralmente eram recrutados para o exército logo após o ginásio, como rapazes de dezoito anos. Saindo do ambiente de um lar seguro, eles estavam completamente despreparados para o comportamento chocante que encontravam. Eles experimentavam zombarias, humilhações, e até mesmo surras dos soldados veteranos. Esta era a lei tácita do exército. Se você não fazia aos outros, eles fariam com você. Muitos eram incapazes de aceitar estes fatos. Alguns que não conseguiam lidar com isso chegavam a realmente desenvolver sérias doenças mentais e precisavam ser internados. Outros, vendo isso, preferiam a relativa segurança de serem trancados no hospício, e portanto fingiam estar doentes.

Entrei na sala dos pacientes recém-chegados. Eu pude perceber desde o primeiro olhar que aquele soldado estava inquestionavelmente doente. Ele estava sentado num canto, hirto de medo, parecendo mais um animal assustado do que um ser humano. Todo o seu corpo indicava uma incrível tensão. Eu nunca deixei de me perguntar de onde vinha a impossível energia das pessoas com problemas mentais. Como os seus corpos a criavam?

A mesma energia que estava imobilizando o soldado naquele momento também podia fornecer uma força física incrivelmente violenta que muitas vezes levava os pacientes a ferir a si mesmos ou aos outros. Eu já tinha visto variações deste quadro repetidas em muitas ocasiões, paciente após paciente. As roupas deste pobre sujeito eram exatamente como o policial as descrevera, sujas e rasgadas. A equipe noturna tinha sido incapaz de trocá-las sem causar mais danos do que benefícios, e portanto isso seria uma tarefa para a equipe diurna. Mesmo agora, sentado nervosamente no chão, ele ainda estava rasgando suas vestes. As roupas eram feitas de um resistente tecido projetado para sobreviver às duras condições da vida militar, e não teria sido possível para ele rasgá-las no seu estado de espírito normal.

Ele continuou a destruir suas poucas posses enquanto eu assistia. Os seus olhos azul-claros e vazios miravam fixamente o nada. A nossa enfermaria podia conter o seu corpo, mas o resto do seu ser estava em algum lugar muito além dela.

Os seus lábios sussurraram algumas palavras indecifráveis. Fiz a ele algumas perguntas necessárias sem esperar pelas respostas. Eu não tinha acesso ao que quer que fosse a sua "realidade" naquele momento, de modo que pensei sobre a dosagem da injeção que lhe daria. Eu sabia que mais tarde, quando estivesse lúcido, ele descreveria para mim as imagens e experiências que estava tendo naquele momento.

O seu nome era Andrey, e parecia ter cerca de dezessete ou dezoito anos de idade. Seu corpo era muito magro. Talvez ele houvesse perdido peso devido à má nutrição que era comum no exército. O seu cabelo castanho-claro fora raspado rente pelos barbeiros do exército, e agora só tinha cerca de dois centímetros e meio na sua cabeça inteira. Isso fazia com que seu rosto parecesse vulnerável e aberto. Ele tinha um rosto ainda bastante infantil, com uma expressão de grande medo. Ele era só um garoto cuja mente fora totalmente sobrepujada pelas experiências traumáticas que agora provavelmente o afetariam pelo resto da vida. Por enquanto, uma dose média intravenosa de Haloperidol deveria ser o bastante para acalmá-lo e iniciar o seu retorno à realidade.

O meu próximo paciente era Sergey, um sujeito bonito, jovem e de compleição robusta que, externamente, parecia pronto para ir para casa brevemente. Ele parecia alegre, falava comigo abertamente, e conversava de maneira crítica sobre suas experiências enquanto estivera doente. Ele fora muito útil no trabalho da enfermaria. Mas talvez tudo estivesse um pouco bem demais, um pouco alegre demais, um pouco aberto demais. Ele desejava apaixonadamente ir para casa para ficar com sua adorável jovem esposa, mas eu sabia que uma grande parte da sua psicose estava conectada a um ciúme patológico.

Como sempre ocorre no caso de pacientes potencialmente perigosos, o médico-chefe do hospital fora chamado para uma consulta. Ele receitara uma combinação de drogas para suprimir a vontade consciente de Sergey, o que por sua vez o forçaria a falar a verdade. Eu ainda não dera esses medicamentos a ele, muito embora eles certamente pudessem me dizer sobre o seu verdadeiro estado de espírito quanto à sua esposa.

Este tipo de decisão sempre criava um dilema moral para mim. Se eu fosse Sergey, como me sentiria se alguém, sem minha permissão, entrasse na minha psique através de drogas para conseguir as respostas para qualquer pergunta que desejasse fazer? A minha opinião negativa desse processo nunca se alterou, e ela me perturbava sempre que essas drogas eram receitadas.

Com sorte, eu conseguiria encontrar uma maneira diferente de lidar com o caso de Sergey. De qualquer modo, eu já sabia que precisava me encontrar com sua esposa e insistir para que eles se divorciassem. Eu precisava fazer com que ela compreendesse que necessitava ficar o mais longe possível dele. A sua doença sempre seria perigosa, e havia uma possibilidade grande demais de que ele a matasse, ou que matasse alguma outra pessoa num ataque irracional de raiva enciumada. Infelizmente, eu já vira o final trágico de muitas histórias similares.

Quando cheguei a uma conclusão temporária nos meus pensamentos sobre Sergey, escutei o enfermeiro me chamando de volta a minha sala. A mãe do meu novo paciente, o jovem soldado chamado Andrey, acabara de chegar. Alguém no escritório administrativo do exército a contatara, e ela viajara para cá imediatamente. A maioria dos parentes, mesmo as mães, não costumava ir para a casa dos loucos tão rápido.

Ela tinha um típico jeito russo. Era muito parecida com seu filho, com o mesmo rosto simples e aberto e traços comuns. Os movimentos nervosos de suas mãos também me lembravam o seu filho, enquanto de pé ela amassava o seu escuro vestido interiorano, com medo de sentar-se sem minha permissão. Eu sabia pelos papéis de Andrey que ela vivia numa vila próxima com seu marido e dois filhos, um dos quais estava agora neste hospital.

Era óbvio que ela nunca estivera numa clinica psiquiátrica. Ela ainda não compreendera o que tinha acontecido com seu filho mais velho. Estava na verdade feliz com o fato dele ter voltado tão rápido do exército, e estava agradecida pelo seu retorno em segurança. Ela não teria mais que se preocupar com ele durante os dois anos que esperava que ele estivesse longe; ainda não compreendera a diferença entre a esquizofrenia e a pneumonia.

A sua primeira pergunta foi a de qualquer mãe preocupada:

- Diga-me, doutora, quando é que ele vai melhorar?

Se eu tivesse dito a verdade total imediatamente, provavelmente teria respondido, "Nunca". Em vez disso, respondi:

- Provavelmente serão necessárias duas semanas para trazê-lo de volta.

O seu rosto transformou-se numa expressão de felicidade. Mais tarde eu teria de tentar explicar que eu queria dizer que ele se recuperaria da sua atual psicose aguda em duas semanas, mas que quando ele voltasse para ela, seria diferente do que era antes. Talvez só um pouco diferente de início, mas haveria mais mudanças na sua personalidade e comportamento com o passar do tempo. Ele nunca seria novamente o rapaz normal de que ela se recordava. Como eu poderia contar para ela que um mal que destrói mentes e almas sem discriminação já fizera o seu lar dentro dele? Eu sabia, a partir da minha experiência médica, que a esquizofrenia era uma garra que ninguém podia arrancar.

A experiência também me dizia que ela não acreditaria em mim de início. Ela esperaria, cheia de expectativas, que seu filho voltasse do hospital e se recuperasse completamente com o apoio da sua família amorosa. Ela e o pai esperariam que o rapaz ajudasse novamente nas tarefas do seu pequeno lar no interior. Durante algum tempo as coisas pareceriam quase normais, até que certo dia a garra atacasse o seu corpo novamente, fazendo com que ele corresse por trilhos diferentes na direção de outro trem em movimento. Algo assim certamente ocorreria, e depois disso, sua mãe morreria de medo da época em que seu outro filho, o seu bebê, também fosse mandado para servir no exército. Mas por enquanto a mãe já tinha o bastante com que se preocupar, e ela saiu para contar ao marido e filho as boas-novas de que Andrey voltaria para eles em duas semanas.

Esta impotente sensação de fraqueza profissional, a minha falta de onipotência enquanto médica, era um dos aspectos mais difíceis do meu trabalho. Eu nunca me acostumei com o fato de que muitas vezes precisava admitir derrota parcial ou total para as doenças que estava combatendo. Eu não sabia se médicos de outras especialidades sentiam a mesma coisa tão regularmente, mas é um mal ocupacional bem conhecido para psiquiatras. Não existem drogas, medicamentos ou técnicas cirúrgicas para trazer de volta a mente de um paciente. Enquanto eu abria novamente meus olhos, ouvi uma batida na porta da minha sala.

Agradecida pela interrupção, disse "Entre". O meu amigo Anatoli entrou, e fiquei feliz por ver alguém com quem eu gostava de conversar.

- Oi! - disse ele. - Vamos almoçar e tomar uma xícara de chá?

A manhã passara rapidamente, e eu nem percebera que já era meio-dia. Esta era a hora favorita da equipe do hospital, já que nos dava uma chance de visitar as outras enfermarias, conversando e comendo os almoços que tínhamos trazido de casa. Geralmente eram sanduíches ou saladas simples com uma forte xícara de chá ou café. Era só nos dias especiais, tais como aniversários ou feriados nacionais, que podíamos trazer nossos pratos favoritos como sobremesas ou caviar, já que eles eram caros demais para ser comprados regularmente.

Eu gostava de Anatoli. Ele era jovem e fisicamente capaz, com cabelos castanhos e olhos azuis. Sua criatividade, inteligência e sensibilidade faziam dele um dos nossos melhores médicos. Nós muitas vezes falávamos sobre ele. Seus professores e colegas esperavam que ele tivesse uma carreira muito boa na psiquiatria, mas isso não acontecera ainda. Muitas vezes pensei em puxar o assunto com ele, mas a hora nunca parecia adequada. Hoje finalmente decidi falar com ele sobre isso.

Ele estava sentado no sofá diante de mim, com a tradicional xícara de chá, usando o jaleco branco obrigatório do hospital. Seus olhos estavam escondidos, como de costume, por trás de óculos escuros.

- Sabe, Anatoli, muitas pessoas acreditam que você é um gênio psiquiátrico. Posso perguntar por que a sua carreira ainda não reflete isso?

Ele levou meus comentários como um cumprimento, com visível prazer.

- Mas eu tenho uma carreira muito boa - replicou. Então, com um sorriso irônico ele disse: - Mas acho que você sabe que isto aqui não é um hospital psiquiátrico?

A minha expressão facial não mostrou qualquer surpresa, porque a essa altura eu já estava acostumada com o seu truque de brincar com significados.

- Este não é um hospital de jeito nenhum - continuou. - É um gigantesco navio de malucos, e nós que somos a tripulação realmente acreditamos que trabalhamos aqui como médicos. Nós até mesmo acreditamos que podemos tratar as pessoas e curá-las. Mas eu não acho que seja uma grande idéia fazer carreira numa nave de loucos. Tudo que podemos fazer é navegar cegamente no oceano da realidade ao nosso redor, acreditando que sabemos o que estamos fazendo. Continuaremos navegando em direções desconhecidas para nós, porque não podemos parar. Cada uma das pessoas que trabalha aqui fez a escolha de flutuar através da realidade dentro deste navio, e agora não podemos mais deixá-lo. Porque este é o lugar mais seguro para nós, no caso de realmente acreditarmos que somos médicos, realmente capazes de tratar as pessoas que supostamente estão loucas.

- Você não acredita que exista alguma maneira de escaparmos dessa situação? - perguntei, compreendendo o artifício que estava usando para evitar uma resposta séria à minha pergunta.

- Bem, acho que talvez possa existir um veículo que possamos pegar para escapar rumo à realidade. Você pode vê-lo agora mesmo. Olhe aqui!

Com um sorriso sardônico, ele gesticulou na direção da janela. Através dela eu podia ver a forma familiar do grande, velho e quebrado bonde que estava no pátio do lado de fora do nosso prédio. Ele já não tinha roda alguma, e o seu corpo corroído pela ferrugem estava repleto de galhadas de metal apontando inutilmente na direção do céu, buscando fios que já não estavam mais presentes. Ninguém sabia o motivo por que este bonde fora abandonado no meio do terreno do nosso hospital.

Anatoli estava rindo agora. Ele ainda não me dera uma resposta direta para minha pergunta sobre sua carreira, e seus olhos tinham um brilho mefistofélico.

- Muitíssimo obrigado pelo chá e pela conversa. E agora eu preciso voltar para o trabalho e completar as histórias de mais algum passageiro - desculpe, quero dizer, paciente.

 

Mais tarde, enquanto eu estava completando o trabalho burocrático e antecipando desanimadamente a longa viagem de volta para meu pequeno apartamento, o telefone tocou na minha sala. Atendi e escutei "Olá, Olga!" numa voz que imediatamente reconheci como sendo a de Anna. Anna era uma médica, e éramos amigas íntimas há muitos anos. Eu me tornara uma mestra em sentir os muitos humores diferentes na sua personalidade complexa através dos sons e ritmos da sua voz. Hoje ela parecia cansada e preocupada.

Como de costume, durante algum tempo nós conversamos sobre nada e tudo ao mesmo tempo. Qualquer um que nos escutasse teria considerado a conversa trivial, mas toda vez que conversávamos mesmo sobre coisas simples, eu redescobria a importância da nossa amizade. Havia sempre uma frase, uma emoção, ou simplesmente uma energia entre nós que me deixava feliz e viva. Eu sabia que o mesmo ocorria com ela.

O principal motivo para a sua chamada de hoje tornou-se claro quando ela me perguntou se eu não poderia dar uma olhada no seu vizinho, que temia ter um sério problema mental. Eu não podia ignorar o seu pedido, de modo que pedi a ela que o mandasse à minha sala no dia seguinte às três horas. Anna nunca me visitara no hospital, portanto dei as direções a ela e marquei o compromisso no meu calendário. Marcamos uma data para nos encontrarmos logo e então nos despedimos.

No dia seguinte, exatamente às três horas, a enfermeira diurna trouxe um jovem até a minha sala. Ele ficou de pé hesitantemente na minha porta.

- Como está a senhora, doutora? Eu sou Nicolai. A sua amiga, Anna Anatolievna, me indicou à senhora.

Nicolai era um jovem siberiano com um belo rosto mongólico. Com a idade, rostos como o dele são muitas vezes dominados por uma dura força masculina. Este homem ainda era jovem o bastante para mostrar traços de timidez e sensibilidade, que estavam particularmente aparentes naquele momento. Ele estava claramente embaraçado e intranqüilo por estar no consultório de uma psiquiatra.

Deixando de lado seu nervosismo, o jovem siberiano diante de mim certamente não parecia mentalmente doente. Ainda assim, tive o palpite de que ele devia estar em sérios apuros para se confidenciar com Anna e então vir até aqui por livre e espontânea vontade. Na minha experiência profissional, descobri que muito poucas pessoas estavam dispostas a buscar o auxílio psiquiátrico por conta própria. Havia um enorme estigma associado com qualquer indício de anormalidade mental. Isso não só desmotivava as pessoas a procurar ajuda, como também levava aquelas que o faziam a tentar manter isso em segredo através de todos os meios possíveis. Se a situação se tornasse conhecida por seus amigos e colegas, ela inevitavelmente criaria discriminação social.

Nicolai avançou e ficou no meio do meu pequeno consultório, ainda parecendo desconfortável e inseguro de si. Mandei que ficasse à vontade, mostrando a cadeira na frente da minha mesa. Olhei para ele enquanto se sentava. Parecia um operário. Estava vestindo um terno cinza-escuro, camisa branca e gravata preta. Eu podia dizer que ele percebia nosso encontro como um evento bastante oficial. Ele sentou-se nervosamente na beirada da cadeira. Não o apressei, mas simplesmente esperei que ele me contasse sua história. Depois de um breve silêncio para direcionar seus pensamentos, ele começou.

- Obrigado por me ver. O motivo por que estou aqui começou há um mês.

Ele falava russo com um leve sotaque das montanhas que eu achei agradável. Anna me dissera que ele vinha de Altai, uma região isolada e tecnicamente diferente, com sua própria linguagem. Eu não estava surpresa de ouvi-lo dar um nome tipicamente russo, porque todas as pessoas nativas recebiam nomes russos quando pediam passaportes internos ao Estado soviético. Era um mal premeditado, que pretendia acelerar a destruição de suas culturas apagando deliberadamente a herança que vivia em seus nomes.

Nicolai não olhava para mim enquanto falava. Estava claro que ele ainda sentia-se embaraçado, mas que jurara a si mesmo falar comigo, e estava determinado a cumprir sua promessa. Sem dúvida era difícil para ele abrir-se com uma estranha, e ele temia a minha reação quanto ao que pretendia dizer.

- Essa coisa começou para mim quando minha mãe me pediu que voltasse para casa na minha vila em Altai. - A expressão no seu rosto mostrava que ele estava relutante em falar sobre sua vila. Isso era comum. Muitos jovens que vinham trabalhar na cidade preferiam esconder suas origens interioranas com medo do ridículo. Ele continuou lentamente.

"O meu tio, Mamoush, adoecera gravemente, e minha mãe precisava de mim para ajudá-la a cuidar dele. Nós éramos seus únicos parentes, e ele vivia sozinho, separado das outras pessoas da vila. Eu nunca me interessara em passar algum tempo com ele, mas eu não podia recusar o pedido de minha mãe. Não tive escolha a não ser tirar licença sem remuneração e ir para casa.

"Passei dez dias lá. O meu tio morreu no quinto dia. Ele tinha oitenta e quatro anos, e como a maioria das pessoas do nosso povo com sua idade, ele sabia que sua hora tinha chegado. Ele não estava mais interessado em tentar continuar vivendo. Na nossa vila, nós acreditamos que qualquer pessoa da sua idade já viveu uma vida completa e deveria desejar morrer. Eu nunca tive muito amor pelo meu tio, de modo que não desejava mudar nada a menos que fosse para ajudá-lo a seguir em frente mais rapidamente, de modo que eu pudesse voltar à minha vida na cidade."

À medida que Nicolai prosseguia, sua voz tremia, e ele fazia pausas mais longas entre as sentenças. Durante todo o tempo, ele continuou a enfatizar que nunca fora muito íntimo do seu tio. Eu não pude deixar de me perguntar por que ele estava ainda tão nervoso. Sua personalidade sensível não era motivo suficiente para explicar por que fora tão afetado pela morte de um parente idoso que mal conhecera. Eu sabia que a sua história ainda não fazia sentido, mas não fiz perguntas nem o interrompi. Por enquanto, o meu trabalho era simplesmente escutá-lo e deixar que ele continuasse sua história ao seu próprio modo.

Nicolai continuou a falar, contando como fora difícil para sua mãe cuidar do seu tio moribundo e o que ele, Nicolai, fizera para apoiá-la. Então ele compartilhou comigo algumas opiniões sobre a natureza da doença do seu tio, passando de uma possível moléstia para outra. Eu podia ver que os seus medos estavam no caminho do seu desejo de curar-se e que ele estava tentando encontrar a coragem para me contar a verdadeira essência de sua história.

Finalmente decidi interrompê-lo, numa tentativa de trazê-lo de volta ao motivo por que me procurara.

- Nicolai, você está sugerindo que o que quer que seja que você queira me contar começou há cerca de um mês?

Ele concordou sem falar ou olhar para mim, simplesmente assentindo com a cabeça.

- O que aconteceu depois da morte do seu tio?

- Bem, é uma história estranha...

- Eu já escutei muitas histórias estranhas. O que há de tão estranho na sua?

- A senhora acredita em xamãs? - tentou ele.

Subitamente percebi que talvez eu, e não ele, estivesse em apuros. Eu não sabia quase nada sobre xamanismo. A palavra xamã tinha um significado muito negativo na nossa sociedade, como um símbolo doentio de crenças culturais e espirituais primitivas. Tive de ser muito cuidadosa com minha resposta.

- Infelizmente, só sei que o xamanismo está relacionado com a antiga religião dos povos siberianos, muito antes do cristianismo. Isso é tudo que sei. Mas acredito na existência de pessoas que são chamadas de xamãs.

Gradualmente, ainda sem olhar para mim, ele pareceu compreender que eu estava aceitando suas palavras sem julgá-las. O seu corpo relaxou numa postura mais suave, e sua voz pareceu menos nervosa.

- O meu tio era um xamã - ele continuou. - Por causa disso, eu não gostava de passar o tempo com ele. Ele vivia sozinho nos limites da vila. Muitos dos que moravam na vila acreditavam que ele tinha poderes xamânicos muito fortes, mas ninguém tinha certeza de que ele só usasse esses poderes para as coisas apropriadas. E talvez eles estivessem certos. As pessoas tinham medo dele, e o evitavam, exceto quando precisavam da sua ajuda para seus problemas e doenças.

"Eu nunca estive interessado nessas coisas. Desde que era muito jovem, meu único desejo era deixá-lo, e mesmo também a minha vila, assim que pudesse. Você sabe, não há nada para fazer no interior, especialmente durante o inverno. É frio e tedioso. Eu nunca duvidei de que iria para a cidade assim que me formasse no ginásio. Eu queria servir no exército, mas não passei no exame médico. A minha visão é terrível. Assim, a senhora pode compreender como fiquei feliz em encontrar o meu trabalho atual. Estou trabalhando nele há quase um ano, e já me prometeram um apartamento para o ano que vem. É raro que isso aconteça tão rápido. Por enquanto, naturalmente, ainda vivo num dormitório."

Eu sabia que assim que os rapazes e moças conseguiam um emprego numa fábrica, os seus nomes ficavam numa lista de espera para conseguir seus próprios apartamentos. Às vezes eram necessários vinte anos para que um nome chegasse ao topo da lista. Ocasionalmente um nome podia até mesmo se perder, e a feliz recompensa de um lugar próprio para se viver podia jamais acontecer. Essas pessoas infelizes teriam que viver suas vidas úteis em dormitórios onde três ou quatro pessoas compartilhavam um quarto pequeno. Às vezes quinze ou vinte quartos compartilhavam uma pequena cozinha, um chuveiro e um toalete. Compreendi o quanto significava para Nicolai ter a promessa de um apartamento tão cedo.

Nicolai continuou:

- Eu tenho uma namorada, e pretendemos nos casar. Assim, você poderia dizer que os sonhos da minha vida começaram a se realizar. Agora tenho medo de que tudo esteja perdido. Eu realmente preciso da sua ajuda, doutora. Estou pronto a fazer qualquer coisa, tomar quaisquer remédios para restaurar a minha saúde; para restaurar a minha sanidade.

Ele olhou para mim com uma esperança desesperada que raramente via nos meus pacientes. Ainda era difícil para mim juntar os pedaços da sua história. O seu tio xamã morrera, e agora ele estava com medo de estar sofrendo de alguma doença mental. O seu problema ainda não estava claro para mim. Tentei retardar uma conclusão de algum tipo de psicose, muito embora, pela história que escutara até então, estivesse tentada a fazê-lo.

Hesitante, ele continuou a falar.

- Eu fiquei doente um dia depois da morte do meu tio. Enquanto ele estava morrendo, me pediu para passar algum tempo com ele a sós. Eu não estava nada satisfeito com a idéia, mas concordei porque era o seu último pedido. Ele vivia numa pequena casa escura sem eletricidade. Ele tinha uma coleção de algumas coisas bastante estranhas ali: plantas meio mortas, pedras (algumas com figuras nelas), seu tambor, roupas esfarrapadas. Tudo na sua pequena casa era incomum. Eu estava assustado, no entanto sentia que não tinha escolha a não ser passar seus últimos dias sozinho com ele.

"Então meu tio começou a falar comigo sobre poder - poder xamânico. Na primeira vez, falou mais de duas horas sobre ele. Não prestei atenção. Me parecia que estava tendo algum tipo de fantasia agonizante, portanto simplesmente tentei ser polido com ele. Nós tivemos muitas outras conversas. Eu não me lembro de muito, a não ser da última delas.

"Ela aconteceu certa madrugada. A sua doença piorara muito, mas ele não me deixou convidar mais ninguém para ficar conosco. A sua respiração tornou-se rápida e pesada. A sua fala tornou-se interrompida, e ele parecia confuso. Eu sabia que o seu fim estava próximo. Finalmente, ele me pediu para chegar perto da sua cama. O quarto estava escuro. Só o canto onde sua cama alta e estreita de madeira estava mal iluminado por uma única vela, queimando numa pequena mesa entre estranhos amuletos e ervas secas.

"O meu tio estava coberto por um cobertor quente feito de remendos multicoloridos de diferentes tecidos. Quando me aproximei, ele agarrou minha mão rudemente com suas próprias mãos secas e quentes. De algum lugar, a sua voz subitamente encontrou grande força e claridade. Ele me fitou com intensidade. Todo o seu ser se alterara tão dramaticamente que, por um momento, realmente pensei que ele houvesse se livrado da doença.

"Lentamente e com grande concentração, como se ele estivesse tentando me hipnotizar, disse, 'Os poderes xamânicos vivem conosco neste mundo, e devem ser deixados neste mundo. Eu estou morrendo, e meu poder não me seguirá no lugar para onde estou indo. Eu o dou para você, porque foi essa a decisão dos espíritos.'

"Enquanto ele falava, experimentei uma dolorosa câimbra na mão que ele estava segurando de maneira tão desesperada. Era como se um fogo atravessasse o meu corpo. Eu estava aturdido demais para perceber que naquele mesmo instante o meu tio morrera. O meu estado de espírito me era completamente estranho. Eu não podia, e ainda não posso, descrever totalmente o que aconteceu. Compreendo que isso pode ser necessário para o seu diagnóstico do que está errado comigo, mas eu não sei o que mais dizer. Eu tentei esclarecer o meu problema lendo alguns livros sobre psiquiatria, mas tive de desistir deles. Era difícil demais para mim compreender as palavras."

Ele parecia estar revivendo a sua experiência enquanto a descrevia. A mão esquerda pareceu ter uma câimbra enquanto falava sobre o assunto. O seu rosto agora estava suando, como se houvesse escutado a voz do seu tio morto novamente enquanto falava comigo.

- Vamos parar de falar no seu tio por algum tempo. Talvez você possa me dizer mais sobre a sua vida na cidade?

Ele aceitou minha sugestão com alivio evidente.

- O que a senhora gostaria de saber? - Ele deu de ombros de maneira indecisa.

- Fale-me sobre o seu trabalho, sobre os trabalhadores na sua fábrica. Como eles se relacionam com você?

- Bem. Muito bem.

Olhei para ele silenciosamente. Ele estava imóvel, sentado muito ereto na beirada da cadeira. A sua postura evidenciava uma grande quantidade de tensão.

- Eles são boas pessoas, mas muito diferentes das pessoas da minha vila natal.

- Quais são as diferenças?

- Bem, é difícil dizer. Eu nunca pensei realmente sobre o assunto. Eu simplesmente sinto isso. Eles bebem um bocado, mesmo no trabalho. O meu povo também gosta de vodca, mas eles nunca são tão grosseiros depois de algumas bebidas, ou mesmo depois de muitas bebidas.

Eu imaginei este jovem sensível entre seus colegas de fábrica mais rudes. Bem, pelo menos parte do seu sonho de mudar-se para a cidade não fora tão agradável quanto ele esperava.

- Você está tentando ser como eles?

- Não, acho que não. Mas percebi que teria de me acostumar a estar aqui. Foi desejo meu viver numa cidade grande, mas esperava muito mais. Acho que ainda acredito que pode ser muito mais. Só preciso me acostumar a estar aqui. E preciso ser saudável.

Depois de uma breve pausa, que pareceu ajudá-lo a juntar sua força, Nicolai continuou.

- Depois da morte do meu tio, tive uma febre muito alta durante cinco dias. Eu não comia, não falava. E nem mesmo me lembrava de quem eu era. No meu delírio, eu via o meu tio o tempo todo. Graças a um médico de distrito local, que veio me ver e me deu algumas injeções, me recuperei da febre. Me esqueci de tudo que me veio durante minha doença, e muito embora ainda estivesse me sentindo muito fraco, voltei ao trabalho.

"Então fui ficando cada vez melhor fisicamente, mas ao mesmo tempo algo começou a acontecer à minha mente. Comecei a ouvir a voz do meu tio exigindo que eu recordasse os meus sonhos. Agora a sua voz vem até mim sem aviso, a qualquer hora, em qualquer lugar. Ela vem quando estou conversando com pessoas, e quando estou no ônibus entre estranhos. Fico profundamente assustado quando isso acontece, e sei que devo parecer louco. Eu sinto pânico e quero fugir. Está ficando tão ruim que tenho medo de ser demitido do meu emprego".Depois de um longo e profundo suspiro, ele perguntou se podia fumar.

Normalmente não permito que um paciente fume em meu consultório; no caso de Nicolai, decidi quebrar essa regra. Achei que isso o ajudaria a sentir-se confortável e a se abrir. Ele pegou um maço de cigarros sem filtro do bolso do terno e freneticamente procurou pelos seus fósforos, suas mãos se movendo rapidamente de bolso para bolso sem encontrá-los.

Eu me levantei e fui até o canto da sala oposto à minha mesa. Tirei de cima da geladeira os fósforos e o pires que ocasionalmente substituía um cinzeiro e dei-os a ele.

A pequena abertura com uma dobradiça na parte de cima da minha janela era alta demais para que eu pudesse alcançá-la, por isso, antes de voltar à minha mesa, usei um longo bastão de madeira para abri-la um pouco. O bastão tinha uma cabeça humana esculpida em uma das extremidades. Ele fora feito para mim alguns anos antes por um paciente idoso que, durante vinte anos, acreditara que era Deus, e que tentara incessantemente criar pessoas com a madeira. O homem morrera no ano anterior, velho e sozinho como tantos dos nossos pacientes. Ele não tinha parentes para enterrá-lo, portanto nosso hospital mandou o seu corpo para a escola médica, onde seria usado para o estudo de anatomia.

Lembro-me de que quando comecei a escola de medicina, uma das coisas mais difíceis para mim emocionalmente era dissecar os cadáveres idosos, magros e muitas vezes decrépitos. Conseqüentemente, não tive escolha a não ser me relacionar com eles como ferramentas para a ciência, tentando esquecer que eles já tinham sido sujeitos que viveram os finais de suas vidas sozinhos, sem ninguém para tomar conta deles ou para dar-lhes conforto no momento em que morreram. Até mesmo na escola médica, onde eles se tornaram objetos em nome da ciência, os seus corpos sem vida eram tratados sem respeito.

O ar gelado entrou através da abertura estreita da janela e voluteou pelo meu consultório. Nicolai afastou sua cadeira da minha mesa e fumou com tragadas profundas.

"O que vou fazer com este homem?" pensei. Eu sabia que tinha todos os recursos necessários para iniciar uma estratégia psiquiátrica eficaz para diagnosticá-lo e tratá-lo. Se Nicolai fosse um paciente oficial, admitido legalmente, eu estaria mais ou menos obrigada a pedir uma série de testes de laboratório que me diriam se ele sofria dos efeitos posteriores de alguma febre desconhecida, manifestada através de uma psicose orgânica residual, com possíveis episódios de ataques. Mas neste caso eu podia ser mais flexível, de modo que decidi tentar primeiro algo diferente. Eu faria o que achava correto para Nicolai. Dependendo do resultado, eu sempre poderia utilizar uma terapia psiquiátrica mais tradicional posteriormente.

Perguntei se ele estava disposto a tentar uma experiência. Ele concordou com a cabeça, e perguntei:

- Você acha que poderia ouvir a voz do seu tio novamente, na minha presença?

Ele tragou profundamente mais uma vez, e era óbvio que o cigarro fazia com que ele se sentisse mais confortável.

- Acho que posso, mas não sei como fazer que isso aconteça. Ela sempre vem sozinha, sem que eu a chame.

- Talvez possamos fazê-lo juntos.

- Eu concordo em tentar.

Apertei o botão oculto no chão perto da minha mesa, chamando a enfermeira para o meu consultório. O botão fora instalado originalmente para emergências com pacientes violentos, mas nós geralmente o utilizávamos como uma forma de comunicação entre estações diferentes do hospital.

Quando a enfermeira chegou, pedi a ela que levasse Nicolai até a sala onde realizávamos a hipnose, e que me esperasse lá. Ele apagou seu cigarro, levantou-se, e pegou seu casaco curto de pele de ovelha com a enfermeira.

Fiquei olhando para eles enquanto caminhavam para neve até a sala de hipnoterapia. A enfermeira era uma profissional. Ela se aposentara há alguns meses mas decidiu voltar a trabalhar para ajudar a sustentar suas três filhas. Era comum que os pais ajudassem a sustentar seus filhos mesmo depois que estes começassem a trabalhar nos seus próprios empregos. Esta enfermeira, que era conscienciosa e frugal, conseguia comprar roupas novas para suas filhas quase a cada dois meses. Às vezes fazer isso custava mais da metade do seu salário, mas ela o fazia de boa vontade. Eu estava feliz em tê-la de volta.

Eu acabara de preencher e assinar papéis da enfermaria e estava prestes a ir para a sala de hipnoterapia quando o médico de plantão me chamou da recepção.

- Olga - disse ele. - Estou admitindo uma paciente em condição muito séria na sua enfermaria feminina. Ela tem vindo aqui periodicamente já há vinte anos. O diagnóstico é esquizofrenia. Ela foi admitida à nossa clínica há dois anos. Agora está nos últimos graus de caquexia [exaustão física]. Parece que ela não comeu realmente nada durante mais de um mês devido às vozes que preenchem sua mente. Eu vou preparar todas as receitas para as enfermeiras esta noite, mas realmente gostaria de ver você e o marido dela antes que você fosse embora.

- Quando ela estará na enfermaria? - perguntei.

- Em uma hora e meia - replicou.

Concordei em vê-la, e fiquei aliviada ao saber que ainda teria tempo para trabalhar primeiro com Nicolai.

Nossos médicos tinham se esforçado muito para criar a sala de hipnoterapia. Ela já tinha sido construída quando comecei a trabalhar no hospital, e era um milagre que existisse. Repetidas vezes, escutei as histórias dos médicos dedicados que se transformaram em lendas ao fornecer o equipamento, suprimentos, móveis e carpete para criar essa importante instalação. Isso nunca poderia ter sido feito através dos canais governamentais. A sala de hipnoterapia era crucial para o meu trabalho, e sempre me sentia confortável lá.

Entrei na sala escura silenciosamente, o carpete denso permitindo que me movesse com passos silenciosos. Havia uma pequena lâmpada vermelha em cada canto da sala. O silêncio e o suave brilho vermelho das lâmpadas me permitiram fazer a viagem mental e emocional necessária além dos sons e imagens do mundo externo.

A enfermeira já tinha preparado Nicolai. Ele estava reclinado numa poltrona ampla e confortável no meio da sala, vestindo só sua camisa branca e calças. O seu terno, gravata e botas tinham sido levados para outra sala pela enfermeira, que os devolveria no final da sessão. Ele parecia relaxado e nem mesmo notou a minha chegada. Caminhei em silêncio até ele e lentamente abaixei o encosto da poltrona.

- Agora podemos começar, Nicolai. Eu preciso que você responda às minhas perguntas com o máximo de honestidade e precisão possível. Caso você não tenha uma resposta, não tente inventar uma. O nosso sucesso não depende do número de perguntas a que você consiga responder; depende de uma qualidade diferente. E não precisamos discutir o que é isso mas só confiar, sabendo que já está presente e é verdadeira para nós, e que podemos ser guiados por ela. - Minhas palavras eram necessariamente obscuras, porque eu precisava confundir sua mente para criar uma abertura e permitir que minhas palavras entrassem no seu inconsciente.

Nicolai fechou seus olhos, e seus músculos faciais se tornaram mais relaxados enquanto eu falava conscientemente com ele numa voz cada vez mais profunda, falando mais lenta e tranqüilamente cada palavra.

- Agora eu vou fazer ao seu corpo uma pergunta que você não precisa ouvir, Nicolai. Você não precisa nem mesmo prestar atenção. Eu preciso de um acordo do seu corpo que me ajudará a protegê-lo do estresse durante o nosso trabalho. Agora estou falando diretamente com o seu corpo, pedindo que ele coopere conosco para protegê-lo. E estou esperando pela resposta. - A sua mão esquerda tremeu ligeiramente, e eu sabia pela minha experiência que esse era um sinal de acordo.

- Obrigada - respondi em reconhecimento.

Continuei:

- Nicolai, no passado houve muitas ocasiões em que tentei recordar uma lembrança importante mas achei impossível fazê-lo. Quanto mais eu me concentrava, menos disponível a memória se tornava. Eu tentava repetidas vezes, até ficar absolutamente exausta. Então eu desistia e relaxava. Pouco depois, a imagem que eu procurava vinha até mim do meu inconsciente. Este fenômeno foi que me levou a compreender o poder da mente inconsciente, e a perceber que ela pode nos ajudar imensamente caso aprendamos a nos comunicar com ela.

"À medida que eu falo com você agora, você pode não compreender algumas das coisas que estou dizendo. Não se preocupe. Não é necessário que a sua mente consciente saiba o significado das minhas palavras, portanto não interrompa o estado de calma e relaxamento que está se expandindo dentro da sua mente e corpo tentando compreendê-lo. O seu inconsciente vai saber. Eu quero alistar o apoio desse poder que esteve falando com você para ensinar-lhe algo importante. Isso pode não fazer sentido para você ainda, mas a minha intenção é ajudá-lo a compreender.

"Você se lembra da última vez em que escutou a voz do seu tio? Por favor responda sim movendo a sua mão esquerda, ou não movendo a mão direita. Foi na segunda-feira?

A mão direita de Nicolai se moveu levemente.

- Terça-feira? Não. Quarta-feira?...

Quando cheguei à sexta-feira, a mão esquerda moveu-se.

- Situe-se no local onde isso aconteceu. Está escuro nesse lugar?

- Não.

- Você está num lugar bem iluminado. Acho que é o seu local de trabalho. Você está falando com um colega.

Observando cuidadosamente a resposta da sua mão e vendo os pequenos movimentos de assentimento, continuei.

- O momento agora é pouco antes do seu tio falar. Você pode permanecer calmo e relaxado, porque estamos no controle dessa experiência e nada pode acontecer.

"Você está num ponto na sua memória onde pode escutar a voz do seu tio. Ninguém do seu trabalho está notando coisa alguma. Os colegas com quem você estava conversando vão embora, se dissolvem. A sua atenção passa para a voz do seu tio."

O rosto de Nicolai ficou tenso. Ele respirou de maneira mais profunda e acelerada. Coloquei minha mão sobre o meio do seu peito, dizendo:

- Agora a minha mão respira junto com seus pulmões, e podemos desacelerar esse ritmo, lenta e calmamente - gradualmente, juntos.

Ele se acalmou, e disse suavemente, quase num sussurro:

- Eu posso ouvi-lo...

- Escute tudo que a voz dele está dizendo para você. Fique calmo e seguro. A minha mão está aqui com a sua respiração, e você pode conseguir ajuda de mim no momento que desejar. Mas você não precisa parar, porque você está protegido e seguro.

Nicolai falou suavemente:

- Ele não me assusta mais; está diferente do que era antes.

- Pare de falar comigo, Nicolai. Você não veio aqui para falar. Você veio para escutar. Faça isso agora. Aprecio que você compartilhe o que ouve comigo, mas não neste momento. Faremos isso mais tarde. Por enquanto, tente apenas lembrar-se de tudo o que seu tio diz, e estar aberto para isso.

Fiquei sobre ele na poltrona reclinada por meia hora, a minha mão no seu peito. Estava bastante escuro na sala, mas eu podia ver o seu rosto. Estava relaxado, e de início parecia que ele estava dormindo. Gradualmente, à medida que ele começava a reviver sua memória, sua expressão tornou-se mais ativa. Os seus olhos passaram a se mover rapidamente sob suas pálpebras fechadas. Obviamente ele estava vendo imagens intensas. Todas as emoções que ele estava experimentando se refletiam no seu rosto. Eu o vi se perguntando, expressando curiosidade de início, então uma profunda tristeza, e pensei que ele poderia começar a chorar. Eu sentia que ele estava muito longe, experimentando algo importante na sua memória. Eu guiei sua respiração com minha mão, tornando-o mais lento, preparada para acordá-lo se o seu estado emocional parecesse perigoso. Senão, eu o deixaria retornar por conta própria quando estivesse pronto.

Finalmente, ele respirou profundamente e anunciou:

- Completei a minha jornada. Agora estou pronto para voltar.

A sua voz me pareceu mais forte e segura de si. Falei com ele novamente.

- Agora eu peço que você preste atenção nas minhas palavras, Nicolai. Gradualmente você irá recordar-se de como nos encontramos pela primeira vez nessa tarde, quando você chegou ao hospital. Você provavelmente está sentindo-se muito diferente agora, porque possui uma nova memória dentro de si. Quando você retornar da sua jornada e voltar à minha sala, irá perceber essas mudanças. Quando eu retirar a mão do seu peito, você abrirá os olhos e estará presente aqui novamente.

Notei que a sua mão esquerda estava apertando com força o braço da poltrona, e o toquei suavemente para ajudá-lo a relaxar. Caminhei até a parede, acendi a luz do teto, e apertei o botão para chamar a enfermeira. As luzes vermelhas se desligaram automaticamente.

Agora eu podia ver as pinturas que foram doadas ao hospital pela Galeria Siberiana de Belas-Artes. Era sempre um pequeno milagre para mim que pinturas tão belas houvessem chegado até esse lugar tão incomum. Havia algumas lindas paisagens nas paredes, mas a pintura mais especial para mim era um retrato a óleo de uma jovem com o cabelo partido no meio que estava vestindo ricas roupas rendadas de algum século passado. Ela tinha um rosto generoso e tranqüilizador, e quando trabalhava ali, eu sentia como se ela me apoiasse.

A enfermeira ajudou Nicolai a se levantar e a recolocar o seu terno. Joguei meu casaco de pele sobre meus ombros e comecei a caminhar de volta para minha sala. Eu estava bastante satisfeita com a sessão. Ela tinha ido muito bem, e me parecia certo ter tentado resolver o conflito interior de Nicolai sem farmacologia. Eu esperava que esta experiência provasse ser o que ele precisava para resolver este relacionamento familiar que lhe aparecera numa forma tão mitológico-religiosa.

Nicolai entrou no meu consultório parecendo sério e de algum modo diferente. Parte da sua transformação era que ele parecia agora completamente relaxado, sem se importar com sua aparência. Ele segurava sua gravata na mão e sentou-se tranqüilamente na mesma cadeira que ocupara com tanto nervosismo anteriormente.

- Quero agradecer a você pela sua assistência. Eu recebi uma mensagem muito importante. Ela mudou muitos sentimentos dentro de mim.

- Fico feliz em poder ajudá-lo. Espero que isso permita que você viva sua vida de maneira mais tranqüila e bem-sucedida.

- Mas agora tudo mudou, doutora. Acho que preciso me tornar um xamã.

Fiquei espantada. Sentei imóvel na minha cadeira, tentando manter a mesma expressão impassível enquanto o escutava. Mas o meu sentimento de auto-estima afundou cada vez mais, transformando-se em vergonha. Como pude deixar aquilo acontecer? Aquele homem me procurara pedindo ajuda, e em vez disso eu agira de maneira pouco profissional e só reforçara seus delírios. Eu falhara com ele, e subitamente senti pena de nós dois.

Nicolai começou a explicar.

- Eu realmente me comuniquei com meu tio. Ele não morreu em nenhum aspecto. Ele parecia totalmente vivo, e falava comigo como se fosse uma pessoa real. Ele discutiu comigo, e descobri que não podia discordar de tudo que ele estava me dizendo. No final, ele me persuadiu.

"De algum modo, ele me mostrou uma história completa do nosso povo de uma maneira que eu nunca vira antes. Ficou claro para mim como era difícil para o meu povo viver na Sibéria. Eu vi como eles tinham perdido sua religião e poder devido às tremendas pressões dos estrangeiros e aos maus espíritos entre nós. Eu vi alguns dos nossos amigos que tinham aceitado trabalhos que exigiam que eles se tornassem comunistas. Eu vi como suas almas os haviam abandonado, e como eles se tornaram ferramentas do mal.

"Eu viajei repetidas vezes com o meu povo de inverno a inverno, sem esperança, sem alegria, assustado todo o tempo. Eles tinham medo até mesmo de rezar silenciosamente aos seus ancestrais e protetores, porque podiam ser mandados para a prisão se alguém adivinhasse o que eles estavam fazendo. Doutora, esta visão que a senhora permitiu que eu visse me abriu para algo dentro de mim que sempre esteve fechado. Agora essa coisa está acessível.

"O meu tio não me deixou nenhuma escolha. Ele me disse que realmente preciso me tornar um xamã. Caso eu não faça isso, a minha doença vai piorar terrivelmente. Ele diz que sou o único que pode fazer isso, e que o tempo da perda de fé do meu povo acabará. E para alcançar esta meta, devo trabalhar para eles. Ainda não sei o que pensar sobre isso. Eu não sei nada sobre ser um xamã! Mas ao mesmo tempo eu sinto que é meu verdadeiro modo de vida. Vou precisar de tempo para compreender exatamente o que fazer."

Foi estranho que eu não temesse as suas palavras, porque elas eram muito perigosas. Num passado bastante recente, nós dois poderíamos ter sido mandados para a prisão por causa delas. Mesmo agora, com a declaração da perestroika e o novo pensamento, se a pessoa errada ouvisse as suas palavras, isso ainda poderia causar muitos problemas para nós.

Mas eu não estava com medo. Descobri que me identificava com muitas das coisas que ele estava dizendo. Eu não sabia muito sobre extinção dos povos nativos, mas eu sabia o que significava ter de ocultar as próprias crenças religiosas. Eu fora secretamente batizada na Igreja Ortodoxa Russa pela minha avó em Kursk, e muitas vezes me confrontara com minha incapacidade de expressar minha forte atração pelos ensinamentos de Jesus Cristo. Minha vida diária não oferecia a possibilidade de ir à igreja ou me comunicar com pessoas envolvidas no sagrado. Possuir literatura religiosa ou esotérica de qualquer tipo, incluindo a Bíblia, era proibido. Se descobertos, esses livros ameaçariam a segurança do lar da pessoa no mesmo instante.

Enquanto eu sentia as fortes emoções de Nicolai, elas mudaram as minhas. Eu não me importava mais em avaliar minhas habilidades terapêuticas no contexto do tratamento de Nicolai. Eu sentia que algo importante tinha acontecido, e o que eu mais queria era compreender essa coisa.

Nicolai interrompeu meus pensamentos, dizendo:

- Meu tio pediu que eu desse uma mensagem à senhora.

A idéia me pareceu tão maluca que eu não respondi.

- Mamoush me disse: "Diga à mulher que muito em breve ela vai encontrar o Espírito da Morte. Diga a ela para não se assustar."

Eu não gostei nem um pouco dessas palavras. Nunca apreciei previsões do futuro, especialmente quando eram terríveis como essa. Olhei para as roupas de Nicolai. A sua camisa estava desabotoada na parte de cima, e ele estava sem gravata. Isso me ajudou a me lembrar que ele não era um oráculo, mas só um operário que era amigo de uma amiga.

A minha experiência me dizia que a nossa sessão já estava essencialmente terminada, e também me lembrei da mulher recém-admitida que ainda precisava da minha atenção. Decidi concluir o meu encontro com Nicolai rapidamente.

- Eu não sei coisa alguma sobre uma mensagem do seu tio, Nicolai, mas quero manifestar meu desejo de que você tenha sucesso no caminho de sua escolha. Acredito que você possui a habilidade de fazer todas as escolhas corretas, mas caso você precise de alguma ajuda adicional, por favor, sinta-se à vontade para me procurar. Neste exato momento, contudo, eu preciso ver uma paciente da emergência que acabou de ser admitida.

Nicolai também pareceu pronto para terminar nosso encontro.

- Está tudo bem, doutora - ele replicou. - Agradeço pela sua atenção e ajuda. Talvez nos encontremos novamente. Adeus, por enquanto.

Assim que ele deixou o meu consultório, eu rapidamente cruzei a pequena sala para impedir que o ar gélido continuasse a entrar pela janela aberta. Durante alguns momentos silenciosos, fiquei em pé e olhei para o terreno abaixo. A minha sessão com Nicolai fora bastante incomum, e eu iria precisar de tempo para compreender e integrar a minha experiência. Contemplei Nicolai enquanto ele caminhava pelo pátio do hospital até a estação de ônibus. Os seus passos rápidos e decididos eram os de um homem que tinha certeza de qual era a sua finalidade na vida. Fechei a janela usando o mesmo bastão, aquele com a cabeça humana esculpida por "Deus".

 

Eu era responsável pelo tratamento de dez pacientes na enfermaria feminina, e meus deveres incluíam encontros com cada uma delas dia sim, dia não. Nunca consegui decidir se preferia trabalhar com mulheres ou com homens. As diferenças eram tremendas.

Embora os meus pacientes homens fossem muitas vezes interessantes e alguns houvessem até mesmo se tornado amigos dentro dos limites do relacionamento médico-paciente, muitos eram criminosos cujos estados mentais precisavam ser detalhadamente avaliados e resumidos em longos relatórios para a corte. Eu nunca apreciei o trabalho burocrático desproporcional que isso exigia. Muito embora compreendesse a necessidade disso, me ressentia do fato dessa atividade me roubar o tempo que eu preferia passar com meus pacientes.

As mulheres eram mais simples em termos de procedimento, mas a minha inclinação natural para me relacionar e ter empatia por elas enquanto esposas e mães muitas vezes tornava difícil uma dissociação suficiente para manter o distanciamento profissional necessário. Descobri que trabalhar com mulheres era algo muito mais ameaçador para minha harmonia interior, e exigia um equilíbrio emocional muito maior.

Quando entrei na enfermaria feminina, uma das mulheres me chamou. Ela acabara de receber um retrato da sua filha do orfanato onde esta vivia, e ela queria que eu visse como a sua garotinha era linda. Ela provavelmente fora linda também, antes que a doença iniciasse seu caminho de destruição. Agradeci a ela e lhe disse que eu teria de olhar com maior atenção para a sua foto depois, porque estava muito ocupada agora.

As mulheres estavam fazendo fila no corredor da enfermaria para receber os seus medicamentos, vestindo os vestidos de algodão desbotado que eram passados de paciente para paciente, ano após ano. A enfermeira deu as pílulas receitadas para cada mulher, prestando atenção para ter certeza de que todas tinham engolido. Muitos pacientes recusavam-se a acreditar que estavam doentes, e tentavam esconder seus medicamentos em vez de tomá-los. A enfermeira não podia se distrair nem por um instante. Ocasionalmente ela gritava para que as mulheres se apressassem e abrissem bem suas bocas para sua inspeção, de modo que ela pudesse passar para a próxima paciente.

Algumas pacientes crônicas estavam deitadas em suas camas no corredor. Era comum que o hospital ficasse lotado desse jeito. Enquanto eu caminhava pelo corredor, quase todo mundo queria me dizer alguma coisa. Fui atenciosa com todas, mas não parei para conversar, pois não tinha tempo. O meu dia estava quase terminado, e ainda não sabia quanto tempo levaria para lidar com a nova paciente.

Enquanto eu me aproximava da sala de emergência, ouvi um grito de uma enfermaria onde as pacientes violentas eram mantidas. "Eu sei o que você é! Ninguém sabe além de mim! Eu sei quem está se escondendo dentro da doutora!"

A garota que gritava ainda era jovem, mas era uma das nossas pacientes mais antigas. Ela era doente desde a infância, e fora admitida no hospital quase duas vezes por ano desde então. Ela retornara novamente poucos dias atrás. Eu não a vira ainda porque um médico diferente estava cuidando dela. Me contaram que ela estava grávida novamente, provavelmente devido ao seu hábito lamentável de vadiar em estações ferroviárias. O médico responsável por ela decidiu abortar a sua gravidez sem o consentimento dela. Não foi a primeira vez que isso aconteceu na vida patologicamente perturbada da jovem. Não havia chance dela ser algum dia capaz de criar um filho.

Em outros casos envolvendo mulheres com doenças mentais que já eram mães, a custódia dos seus filhos costumava ser transferida para uma das organizações que cuidavam de órfãos. Eu tentara treinar a minha natureza emocional para que ela se distanciasse sempre que isso precisasse ser feito, mas nem sempre tinha sucesso. Muitas vezes me lembrava de uma antiga paciente minha chamada Olga, como eu. Quando ela estava num estado mental normal, era uma mãe cuidadosa e carinhosa. Ela tinha um rosto suave e gentil, e era sempre difícil imaginá-la como a entidade terrível e destrutiva em que ela se transformava durante um dos seus episódios psicóticos. A sua psicose poderia muito bem tê-la levado a matar de fome seus filhos ou surrá-los até a morte, enquanto ela escutava as vozes que se apresentavam na sua mente enlouquecida.

Seus dois filhos, um menino de quatro anos e uma menina de nove, foram tirados dela pela corte, decisão baseada na conclusão de uma comissão psiquiátrica. Depois disso, Olga ficava sentada num canto do corredor da enfermaria, chorando silenciosamente consigo mesma. Eu fora uma das psiquiatras da comissão, e embora estivesse totalmente satisfeita com a necessidade da nossa decisão, não podia evitar o sentimento de culpa que experimentava toda vez que via Olga chorando de maneira tão desesperada no seu canto.

Aproximei-me da ala dos pacientes violentos, e olhei para a garota gritando através da parte superior aberta da porta de duas folhas que guardava a entrada. Ela estava de pé do outro lado da porta, agarrando a borda superior com suas mãos. O seu cabelo negro e curto estava despenteado; seus grandes olhos escuros brilhavam com uma luz doentia. Ela pintara seus lábios e faces com um batom brilhante e parecia excitada e fora de controle. Eu já fora sua médica algumas vezes no passado, e portanto sabia que ela não era perigosa.

- Katia! Quero que você se acalme. Você não precisa gritar aqui.

Ela imediatamente ficou passiva, sorrindo marotamente para mim enquanto passava para o canto do seu quarto perto da sala. Quando o alcançou, ela se virou e teve a última palavra.

- Tudo bem, doutora. Vamos brincar de esconde-esconde. Mas eu sei quem você é.

A nova paciente que eu viera ver estava na sala de emergência. Três enfermeiras cercavam a sua cama, impossibilitando-me de vê-la quando entrei na sala. Tubos de alimentação intravenosa pendurados acima dela já estavam conectados com o seu corpo.

- Como está, doutora? - me perguntou uma enfermeira enquanto se afastava, me dando acesso à minha paciente.

- Olá. Como está ela?

- Doutora, ela está morrendo - disse uma voz desconhecida. Voltei-me para ver um homem se levantando do canto da sala onde estivera agachado. Ele era alto e magro, e obviamente não dormia há alguns dias. O seu rosto estava pálido, com manchas amarelo-escuras ao redor dos olhos. Estava barbeado e usava um terno, mas a sua superfície bem-vestida não escondia o medo e a angústia que estava sentindo.

Uma das enfermeiras apressou-se a explicar a situação em sussurros.

- Desculpe-nos, doutora, por permitir que ele estivesse aqui. - Havia uma regra que não permitia que parentes entrassem na sala de emergência, que raramente era quebrada. - Ele nos implorou para ficar, e estava tão perturbado que fomos incapazes de recusar.

- O senhor poderia esperar em minha sala, por favor? - pedi a ele. Via-se a sua relutância em sair em seu rosto perturbado. Ele estava sofrendo intensamente e parecia estar à beira das lágrimas.

- Por favor, doutora - ele implorou. - Deixe-me ficar. Ela está morrendo...

- Acho que não. Eu preciso examinar a sua... ela é sua esposa?

- É, sim.

- Eu preciso examinar a sua esposa, e então vou me encontrar com o senhor. Por favor, espere em minha sala.

Fiquei aliviada quando ele concordou sem nenhuma discussão, e pedi a uma das enfermeiras que o levasse.

Agora podia voltar minha atenção para a mulher. Minha primeira impressão dela foi perturbadora; ela era um mero esqueleto coberto por uma pele amarelada solta sobre os ossos. Seus olhos vazios estavam fechados; sua respiração era rápida e superficial. Uma grande agulha entrava na sua pele perto da clavícula, e um nutriente liquido caía em gotas lentas de uma garrafa acima da sua cabeça. Isto restauraria alguma vitalidade ao seu corpo durante os próximos três ou quatro dias. Ela estava imóvel, mas eu sentia que estava consciente e que percebia o que se passava à sua volta.

Aproximei-me e tomei sua mão. Ela estava quente e seca. O seu pulso estava um pouco mais rápido que o normal, mas estava forte e em ritmo constante. Examinei-a fisicamente. Não parecia haver nada de errado com ela, a não ser pela exaustão física devido à desnutrição. Os seus órgãos pareciam fortes o bastante para devolvê-la à saúde completa com tratamento cuidadoso.

- Eu sei que você pode me ouvir - disse a ela, tocando sua mão. - E tenho certeza de que você vai estar se sentindo melhor muito em breve. Nós faremos o máximo para ajudá-la.

Ela respondeu abrindo os olhos e me fitando com uma chocante hostilidade. Seus olhos eram de um lindo tom azul, mas estavam cheios de um ódio que distorcia todo o seu rosto. Ela não disse uma palavra, só me fitou durante um longo tempo, transmitindo através dos seus olhos um olhar que parecia vir de outro mundo. Não era um olhar humano, mas ainda outro vislumbre da doença que voltava meus pacientes da luz para as trevas, da vida para a não-existência. Eu não queria mais tocá-la, e retirei minha mão rapidamente quando ela fechou os olhos.

Os medicamentos receitados pelo médico de plantão pareciam apropriados, portanto mandei as enfermeiras continuarem com o que estavam fazendo.

Eu dividia uma sala nessa ala com outro psiquiatra que já fora embora naquele dia. A sua sala era maior e menos acolhedora que a minha na enfermaria masculina. O marido da minha nova paciente estava sentado lá quando cheguei, parecendo estar num transe profundo. Ele estava olhando com intensidade para uma foto numa pequena moldura escura de madeira, que segurava nas mãos de tal modo que eu não conseguia vê-la.

Percebendo a sua angústia, comecei a conversa reconhecendo a sua necessidade desesperada de ficar ao lado da esposa. Fizemos alguns arranjos para que ele ficasse com ela durante o resto da noite na sala de emergência.

Ele me agradeceu e então pediu que eu olhasse para a foto. Ele explicou:

- Gostaria que a senhora visse uma foto dela anterior à doença. Acho que pode ajudar se eu puder falar sobre o meu casamento com esta mulher, que amo mais do que qualquer coisa na vida.

Eu tirei a foto das suas mãos enquanto ele continuava a falar rapidamente. Falava sem parar num único fôlego aparentemente interminável. Ele me contou sobre coisas que provavelmente nunca dissera antes e talvez não houvesse percebido inteiramente até então. Ele continuou a tagarelar, movido por um desses estados emocionais extremos em que as inibições da auto-reflexão e do orgulho ficam totalmente submersas. Foi como se ele estivesse sendo levado por um fluxo emocional em que os humanos podem cair apenas algumas vezes nas suas vidas.

- Sabe, a maioria dos meus colegas ri de mim. Esposa maluca. Claro. Eles nunca me perguntam sobre ela nem dizem nada ofensivo, mas sempre percebo a atitude deles. A minha sorte é que sou um excelente matemático, e portanto tenho status. Sou chefe de um grande laboratório, e adoro o meu trabalho. As únicas duas coisas com que já me importei na minha vida foram minha esposa e meu trabalho.

"Quando éramos jovens e ela ainda estava saudável, passamos um período maravilhoso juntos. Nós o chamávamos de amor, mas não me lembro dele assim. Acho que o amor é muito diferente da atração da juventude. Essa última desaparece rapidamente, mas o amor é algo que podemos manter para sempre. Durante todos esses anos em que ela esteve doente eu nunca falei com ela sobre isso, mas sei que ela não me amava. Na verdade, acho que ela passou a me detestar. Ela tentou se suicidar repetidas vezes, de todas as maneiras em que pôde pensar.

"Os médicos me dizem que essas tentativas de suicídio foram o resultado de vozes dentro da sua cabeça que a impeliram a fazer isso, mas acho que foi a própria vontade dela. Eu não consigo compreender. A senhora é a profissional; a senhora pode ter algumas explicações científicas para mim. Eu só acredito que numa determinada altura ela fez a escolha contra a vida e tentou seguir essa escolha com uma força invencível."

Uma linda garota loira me olhava da velha fotografia. Ela tinha um penteado alto, antiquado, e vestia um vestido revelador com um corpete aberto mostrando seu belo pescoço. Parecia uma das estrelas de cinema dos anos 1960. A única similaridade remota entre essa mulher e o esqueleto na sala de emergência era a brilhante energia azul vindo dos seus olhos, muito embora no retrato a fúria gélida que eu tinha visto estivesse ausente.

- Ivan Sergeyevich! - Não pude deixar de exclamar. - Por que não veio ao hospital antes? A sua esposa não comeu nada durante mais de um mês, no entanto você não procurou ajuda. Por que não?

- Era o desejo dela. - Ele estava falando muito baixo agora. - Ela não me permitiu conseguir ajuda. Ela queria morrer.

- Então por que você finalmente a trouxe para cá? Por que não a deixou morrer em casa?

- Sinto muito, doutora. Sinto muito mesmo. Eu não devia ter esperado muito tempo, e compreendo que a condição dela é culpa minha. Foi sempre tão difícil para mim ir contra a vontade dela. Eu sinto muito. - Ivan mostrava sinais de colapso enquanto falava essas últimas palavras.

Eu me senti mal por fazê-lo sentir-se tão culpado, especialmente porque não achava que a sua procrastinação teria conseqüências fatais. Eu tinha certeza de que o estado físico da sua mulher, se não o seu estado mental, retornaria à normalidade rapidamente.

- Não se preocupe, Ivan Sergeyevich. Tenho certeza de que sua esposa irá recuperar a saúde. Felizmente, temos todos os remédios necessários na enfermaria.

Ele nem mesmo tentou ocultar o fato de que não acreditava em mim. Ficou de pé, apressado para voltar ao lado dela, e deixei-o ir.

Escrevi todos os dados pertinentes da doença dela e a sua história de tratamento nos registros do hospital. Foi um dia longo e difícil, e antecipava a volta para casa. Quando deixei a enfermaria, vi Ivan através da porta aberta da sala de emergência. Ele estava tão concentrado na esposa que nem me notou. Eu o vi virar o corpo de sua esposa e limpar as suas costas com um chumaço de algodão embebido em álcool para evitar escaras. Ele sabia como cuidar dela, o que seria uma grande ajuda para nossas enfermeiras enquanto ela estivesse internada.

Como sempre, o meu retorno para casa ofereceu um contraste agradável com a ida matinal. O hospital era praticamente a primeira parada, por isso o ônibus quase vazio me deu uma ampla escolha de lugares. Como costumava fazer, a tranqüila viagem de volta pelo campo no final do meu longo dia de trabalho me levou rapidamente a dormir.

Pouco depois, estava retraçando meus passos matinais até o meu pequeno estúdio, e então cozinhei e comi um jantar simples de batatas fritas e um filé de peixe do rio Ob, vendido na feira por alguns dos mesmos pescadores que me acompanhavam todos os dias no ônibus. Eu teria apreciado algumas verduras com meu peixe e batatas, mas elas não estavam disponíveis no inverno.

Depois do meu humilde repasto, fui para cama e caí rapidamente no sono. No meio da noite, subitamente despertei em pânico devido a um pesadelo tão intenso que ele me pareceu mais real do que meus momentos de vigília. O sonho era tão persistente que me perseguiu mesmo depois de ter me sentado na cama e acendido a luz. Eu ainda podia ouvir a voz fria e remota do desconhecido homem de aparência mongólica que surgira para mim.

 

Várias vezes ele repete: "Eu quero que você veja a jornada dela!" A frase não faz nenhum sentido para mim, mas isso não o impede. Então a energia muda. Eu vejo uma mulher, minha nova paciente da emergência, a esposa de Ivan. A sua bela silhueta branca forma um contraste extremo com o espaço vazio, assustador e tenebroso em que ela flutua. Ela se move lenta e graciosamente, voando cada vez mais alto. Gradualmente ela se volta na minha direção. O seu rosto está lindo novamente. O seu corpo está normal e saudável, com uma forma vital e feminina que não mostra sinais da sua doença.

Eu tento escapar desta visão, mas o rolo de filme onírico continua. O misterioso homem de aparência mongólica controla a cena, que se torna cada vez mais assustadora. Agora a mulher olha diretamente para mim, os seus olhos vitoriosos e irônicos. O seu olhar me hipnotiza. Sinto-me como se ela estivesse roubando a minha vontade.

"Ela é uma mulher rara e poderosa", diz o homem numa voz rouca. "Ela fez tudo que devia fazer de maneira rápida e simples. Ela fez o que todo mundo aqui faz, mas ela é mais honesta e brava do que a maioria."

Eu assisto enquanto a mulher se ajoelha, diante de uma grande figura branca que subitamente apareceu acima dela. O seu rosto torna-se extático e parece estar num transe. Ela está muito parecida com a foto da sua juventude. A figura branca lentamente se derrama sobre ela, cobrindo inteiramente o seu corpo agora prostrado.

 

O sentimento criado ao reexperimentar esta visão foi tão intenso que começou a quebrar o controle do sonho sobre mim. Tão rapidamente quanto pude, tentei me colocar totalmente além dele. Para me despertar totalmente e recuperar a posse sobre o meu ser, disse a mim mesma que era apenas um sonho, e que a mulher que eu vira estava na verdade dormindo profundamente na sua cama de hospital, onde eu a deixara. Disse a mim mesma que estava simplesmente cansada demais nesses dias e que precisava fazer algo sobre isso.

Essas tentativas artificiais de me tranqüilizar não apagaram totalmente os meus medos. Eu não podia deixar de lado os sentimentos mistos de atração e medo que me invadiram ao ver a poderosa imagem da imensa e fluida figura que cobrira e engolfara minha paciente.

Era inútil tentar dormir depois do sonho. Mal podia esperar pela chegada da aurora, e peguei o primeiro ônibus para o trabalho de manhã. Eu estava ansiosa para estar ocupada novamente, esperando soltar os fortes ganchos que o sonho fincara em minha consciência. Tentei não pensar sobre ele no caminho para o hospital, me concentrando em vez disso em seguir os passos para a enfermaria repetidas vezes na minha mente. A enfermaria seria um porto seguro onde meu pesadelo finalmente se dissolveria e eu poderia voltar novamente a normalidade, livre da ansiedade.

Finalmente meus passos reais chegaram até a porta da enfermaria. Eu fiz a curva no topo das escadas, abri a porta, e entrei. As primeiras golfadas de ar com o seu odor familiar de urina misturada com suor e medicamentos eram quase bem-vindas hoje, como recordações da minha realidade normal. Agora eu podia estar com outras pessoas. Eu seria forçada a utilizar a minha mente. Eu seria a médica, a psiquiatra, aquela que estava no controle e fora do alcance de vozes e imagens estranhas na noite.

Era tão cedo quando eu cheguei que meus pacientes ainda estavam dormindo nos seus quartos, e a luz noturna azul do corredor ainda estava acesa. Tudo estava tranqüilo e pacífico, quase surreal depois do meu estado de agitação. Eu vi que a porta da sala de emergência estava fechada. Talvez o pobre Ivan tivesse sido capaz de tirar um cochilo durante a noite.

Caminhando entre meus pacientes adormecidos, rostos distorcidos pelas suas doenças mesmo nos seus sonhos, senti um grande alívio. Eu estava de volta à minha ala familiar. Tudo estava normal e sob controle.

A enfermeira de plantão estava sentada em sua sala, escrevendo no seu diário. Fiquei pensando como poderia explicar a ela a minha chegada tão cedo. Então ela olhou para cima, e vi imediatamente que estava assustada e irritada.

- Oh, doutora! Por que elas perturbaram a senhora? Ela se foi de maneira tão inesperada e rápida! O seu corpo já está no necrotério do hospital. Eu disse a elas que só a chamassem pela manhã. Não há nada que a senhora possa fazer agora que não pudesse fazer mais tarde. Oh, doutora, sinto muito que tenha sido incomodada.

Corri para a sala de emergência e abri bruscamente a porta. Diante de mim estava uma cama vazia com lençóis em desalinho. A sala ainda estava desarrumada devido às tentativas frenéticas da equipe noturna de prender uma alma que só queria seguir em frente. O equipamento de ressuscitação, seringas usadas, conta-gotas vazios estavam espalhados pela sala. Máquinas e a medicina moderna não conseguiram enfrentar os mistérios da morte, e tinham perdido o interesse.

Agarrei a borda da cama de metal angustiadamente enquanto a enfermeira entrava atrás de mim.

- Foi absolutamente inesperado. Arritmia no início; então subitamente o seu coração parou. Nós tentamos tudo, mas foi inútil. Para mim não faz sentido algum, doutora.

O meu corpo estava drenado de energia, e simplesmente assenti com a cabeça distraidamente para responder às palavras da enfermeira. O que eu realmente queria era ficar sozinha durante algum tempo, para organizar meus pensamentos. Deixei a sala de emergência e caminhei lentamente para a minha sala, vendo e escutando pouco do que estava ao meu redor. Os meus passos eram automáticos, os passos de alguém que traçara o mesmo caminho milhares de vezes.

Assim que entrei no consultório, uma enfermeira perguntou na sua voz mais amigável:

- Doutora, gostaria de um pouco de café?

- Sim, por favor. - Um vaso com sete rosas brancas estava sobre a minha mesa. Elas pareciam perdidas no ambiente austero do meu consultório.

- Pus um pouco de açúcar na água para manter as flores frescas por mais tempo - disse a enfermeira enquanto me trazia o café. - Elas são de Ivan Sergeyevich. Ele foi a uma funerária e voltou com essas flores. Ele me pediu especificamente para entregá-las à senhora. Pode imaginar como ele as descobriu no meio do inverno?

Compreendi que as rosas eram a maneira de Ivan me dizer que ele não me culpava pela morte de sua esposa, no entanto, eu me sentia profundamente chocada pelo que acontecera. Só havia se passado um dia desde o meu estranho encontro com Nicolai. Agora eu me via diante não só da morte completamente inesperada da esposa de Ivan Sergeyevich, como também da dimensão adicional do meu sonho misterioso e assustador sobre o acontecido. O relatório de autópsia da mulher chegou alguns dias depois, mas não concluiu nada. Ele não mostrava nenhum motivo para a sua morte, me deixando tanto aliviada quanto aflita.

Esses eventos levaram várias semanas para começar a se apagar da minha memória. Enquanto isso, preenchi a minha vida com as rotinas usuais que podem nos ajudar de maneira tão conveniente a esquecer nossas dúvidas e traumas. Eu sentia que as minhas experiências passadas no mundo físico - o meu treinamento, minha mente racional - poderiam não ser tudo que existia na vida. Alguma coisa nova estava presente, mas eu não sabia que nome deveria dar a ela. Ela me intrigava, e eu gostava disso. Não podia contemplá-la racionalmente, então simplesmente permiti que ela existisse e tentei seguir com a vida da maneira mais normal possível.

 

Certo dia, algumas semanas depois, Anna me ligou e me convidou para visitá-la à noite. Muito embora costumássemos nos encontrar pelo menos duas vezes por semana, eu nunca mencionava Nicolai. Ela comentou uma vez que ele parecia estar indo bem, e que estava muito agradecido pela minha ajuda.

Anna e eu nos encontramos depois do trabalho e nos sentamos, como de costume, no velho sola estreito no seu apartamento de uni quarto. Eu estava folheando o último número de uma revista de cinema, lendo sobre novos filmes e me perguntando se deveríamos sair esta noite em vez de simplesmente ficarmos em casa e conversarmos. Anna estava fumando demais e parecia estar nervosa. Eu sentia que algo a incomodava. Sabia que durante os últimos meses ela sofrera de problemas físicos. O seu ciclo menstrual fora doloroso e irregular, vindo várias vezes por mês, e isso a estava deixando exausta. De início não parecia uma doença séria, e eu tinha certeza de que ela se trataria rapidamente. Nós duas éramos de famílias de médicos, e eu sabia que seus pais tinham marcado consultas com os melhores médicos da cidade para ela.

Finalmente, ela olhou direto para o meu rosto e me contou que os médicos ainda não tinham sido capazes de diagnosticar o que havia de errado com ela. Eles disseram que precisariam fazer mais testes, e que eles não podiam começar nenhum tratamento até que soubessem exatamente qual era o problema.

Enquanto isso, a sua condição piorava a olhos vistos. Ela parecia pálida e às vezes quase desleixada, porque não estava prestando atenção na sua aparência. Seu cabelo curto estava despenteado, seus olhos azul-claros não estavam destacados com sua maquiagem geralmente tão cuidadosa, e a sua pele não estava limpa nem com uma aparência saudável. Mesmo após os poucos dias desde que eu a vira pela última vez, sua aparência tinha deteriorado. Ela comentava como estava cansada, e como era difícil se levantar pela manhã para trabalhar.

Eu não podia imaginar Anna esperando muito mais tempo por um tratamento definitivo, de modo que sugeri que ela fizesse alguma coisa rapidamente. O meu conselho era ir para um hospital onde, além de uma observação profissional, ela pudesse descansar bastante.

Anna concordou que precisava fazer alguma coisa imediatamente, mas ela não queria ir para o hospital. Em vez disso, ela perguntou:

- Você se lembra de Nicolai, o homem que você viu como um favor para mim?

Fiz que sim com a cabeça. Naturalmente que eu me lembrava dele.

Ela continuou:

- Você provavelmente se lembra que ele é meu vizinho. Bem, eu o encontrei ontem nas escadas. Ele me perguntou como eu estava me sentindo, e eu lhe contei tudo. Estava muito deprimida com a minha doença, e acho que ele sentiu isso. Ele está indo embora em breve para voltar à sua vila em Altai, e me convidou para ir com ele. Ele sugeriu que eu buscasse a cura com um dos anciãos. Provavelmente será em abril, daqui a algumas semanas, quando o pior do inverno já houver passado.

"Alguém de Altai contou a ele sobre uma curandeira. As pessoas dizem que ela pode curar qualquer um. Estou perdendo a fé nos meus médicos, e não posso deixar de me perguntar se essa mulher não seria capaz de me ajudar. Nicolai me disse que ela também já curou pacientes mentais, por isso achei que você poderia estar interessada. Você vem comigo? Me daria um imenso apoio."

Olhei surpresa para ela enquanto falava, ficando mais espantada a cada frase. Ir a Altai me parecia uma loucura. De qualquer modo, eu estava planejando aproveitar minhas férias no verão, no calor do sol do mar Negro, não em abril numa remota vila siberiana que provavelmente ainda estaria enterrada na neve e no gelo. Disse a Anna que provavelmente não poderia ir, mas que talvez ela devesse fazê-lo. Na melhor das hipóteses, a mulher poderia ajudá-la. Na pior, ela se afastaria da cidade numa viagem com um amigo.

Mas assim que a nossa conversa se voltou para outros assuntos, percebi que a idéia não me abandonava. Senti um anseio sutil na parte mais profunda do meu ser de encontrar essa mulher que curava pessoas. Quanto mais eu tentava não pensar sobre o assunto, mais a idéia me dominava. Uma voz silenciosa no fundo do meu ser me dizia que este convite para o Altai seria uma porta para uma compreensão de fatos estranhos e inexplicados que eu experimentara recentemente. Alguma coisa desconhecida parecia estar vindo até a superfície da minha vida, e eu sentia cada vez mais que devia deixar essa coisa acontecer.

Parecia mais do que uma coincidência o fato de que, algumas semanas depois, durante o tradicional chá matinal da equipe do hospital, vários dos meus colegas comentaram que eu estivera trabalhando demais, que eu parecia pálida demais, e que provavelmente seria bom que eu descansasse um pouco tirando parte das minhas férias imediatamente. Com alívio e sentindo-me excitada, descobri que minha decisão de visitar Altai já estava tomada. Liguei para Anna imediatamente para que ela soubesse que eu iria com ela.

Ela ficou deliciada e ficou tagarelando sobre os detalhes da viagem.

- Mas, sabe, nós estamos indo amanhã. Eu não sei se você será capaz de conseguir bilhetes para o mesmo trem. Por que não pega qualquer trem para Biisk, e me diz o número do trem? Nós encontraremos você na estação e viajaremos juntos pelo resto do caminho.

"Estou tão feliz que você tenha decidido ir, Olga", continuou. "Hoje eu estava começando a pensar que estava errada em fazer isso, mas agora sinto que é a única coisa para mim. Eu não sei que tipo de cura vou ter, e me sentirei muito mais tranqüila com você ao meu lado. Muito obrigada. Nos veremos em Biisk."

Consegui um bilhete no trem número oito, e telefonei para Anna para informá4a. O meu trem chegaria duas horas depois do dela e de Nicolai, mas ela disse que esperariam com prazer. Nicolai combinara com um vizinho da sua vila para que ele nos pegasse de carro na estação. Já que não havia transporte público ou comercial até Shuranak, a vila de Nicolai, a única maneira de chegar até lá era através de um carro particular.

Arrumei uma pequena mala com uma quantidade mínima de roupas, e fui para a estação ferroviária de táxi. O trem número oito deixou Novosibirsk às 10 da noite, e chegou em Biisk na manhã seguinte. Enquanto caminhava para a estação e para o trem, não pude deixar de perceber que, mesmo de noite, a sensação da primavera estava ao meu redor. A primavera estava nos passos das pessoas nas ruas e no som dos pássaros cantando misturado com o tinir da neve derretida caindo como água. O ar escuro estava mais fresco, e a gélida faca do inverno que corta através de todas as roupas, exceto as mais quentes, desaparecera.

Como de costume, a estação estava cheia além da sua capacidade. Não havia cadeiras o bastante nem mesmo para um terço dos passageiros e visitantes. Pais e filhos estavam dormindo sobre jornais no chão e nos largos parapeitos internos das janelas fechadas. Crianças pequenas no colo das mães estavam chorando, mas menos desesperadamente do que de costume, como se soubessem que as estações estavam mudando e que o calor do verão logo retornaria. Mesmo dentro da sala abafada da estação, com pessoas sentadas e dormindo por toda parte, havia uma agradável atmosfera de antecipação.

O meu trem chegou no horário previsto, o que era um alívio. Era tão sujo e abafado quanto eu esperava, e me senti afortunada de só precisar passar uma noite nele. Pelas conversas com meus vizinhos no pequeno compartimento, deduzi que eram uma família de mineiros de carvão. O marido era taciturno, a esposa cansada mas generosa, me oferecendo um pedaço da sua galinha frita quando eles mal tinham o bastante para si mesmos. O filho deles de dois anos de idade já estava dormindo quando eles entraram no trem, e surpreendentemente, não acordou nem mesmo com a agitação de todos os outros passageiros subindo a bordo.

Polidamente recusei a galinha e ofereci o beliche inferior para que eles pudessem dormir. Subi no beliche superior, satisfeita por estar onde não precisaria responder a quaisquer perguntas sobre onde estava indo, quem eu ia encontrar, ou quanto tempo ficaria lá. A mulher estava obviamente ansiosa para conversar, mas eu não estava. Com os primeiros sons e movimentos rítmicos do trem, adormeci imediatamente. Eu sabia que no dia seguinte encontraria um novo mundo.

Os sons das colheres de metal batendo contra o vidro me despertaram na manhã seguinte. Os membros da família estavam tomando chá depois de terminarem a galinha de ontem. O trem já estava quase chegando em Biisk, o que me deliciou. Tive tempo só de limpar rapidamente o rosto em um pequeno banheiro no vagão, depois de ter ficado primeiro de pé numa longa fila com muitos outros que queriam fazer o mesmo.

O trem já tinha chegado nos limites da cidade quando pude me sentar e olhar pela janela, de modo que eu não tinha ainda visto em que tipo de terreno nós estávamos. Sabendo que Biisk ficava numa grande altitude, eu esperara ver montanhas na paisagem. Em vez disso, vi apenas blocos cinzentos de apartamentos que pareciam todos iguais, cercados por algumas árvores mirradas. A cena parecia tanto com Novosibirsk que não era nada inspiradora.

O trem deu um último solavanco e então parou completamente na estação. Os passageiros estavam olhando pelas janelas, esticando seus pescoços, procurando aqueles que os esperavam. Eu me pilhei fazendo a mesma coisa. Para o meu desapontamento, ninguém na plataforma parecia familiar.

Peguei a minha mala e me despedi dos meus vizinhos noturnos. Quando desci, um forte vento das montanhas rapidamente confirmou a minha expectativa de que a primavera não tinha chegado ainda em Biisk. Algumas das árvores menores ainda estavam completamente cobertas com uma neve profunda, e a atmosfera matinal estava absolutamente frígida. Antes mesmo de ter tempo para concluir meu pensamento, minha pele já estava adquirindo um colorido desagradável devido ao frio extremo.

Um carregador sonolento apareceu por trás de um grande carrinho de mão que fazia muito barulho enquanto ele o empurrava. Estava vestindo um avental que provavelmente tinha sido branco algum dia, mas que com o tempo ficara tão sujo que desafiava qualquer descrição, e já não se podia dizer que ele tinha alguma cor específica. O carregador me perguntou se ele podia carregar minha pequena mala até o ponto dos táxis.

Mal tive tempo de dizer não antes de escutar Anna chamando o meu nome. Ela estava rindo excitada enquanto corria na minha direção do lado oposto da plataforma.

- Você nos deu o número errado do vagão, e estávamos esperando do outro lado do trem. Estou tão contente que você tenha vindo! - disse ela, me abraçando.

Voltando-me para a saída, notei Nicolai de pé ali perto em silêncio. Ele me cumprimentou informalmente dessa vez, como um amigo em vez de um doutor, e parecia muito diferente - mais alegre, mais relaxado, e mais seguro de si. Ele até mesmo parecia mais velho. O seu cabelo crescera desde a última vez que o vira; ele o prendera num rabo-de-cavalo, e estava usando roupas quentes de trabalho.

Cumprimentei-o enquanto ele pegava minha mala, e caminhamos na direção da rua. Os únicos veículos estacionados do lado de fora eram dois velhos táxis, alguns carros particulares, e um jipe cáqui. O motorista do jipe saiu e andou na nossa direção. Ele era um homem alto e forte, vestindo botas de borracha sujas que iam até seu joelho, um capote e um boné de pele de coelho negro com abas para as orelhas.

Nicolai o apresentou para nós como seu vizinho, Sergey. Sergey deixou bem claro que não estava feliz em estar ali, e que só viera devido a um senso de obrigação. Sua impaciência para voltar à sua vila era evidente nas suas ordens mal-humoradas para que entrássemos no jipe.

Anna e eu obedientemente nos sentamos onde ele mandou, no banco de trás. Anna segredou no meu ouvido que, pela sua maneira autoritária, Sergey provavelmente acabara de ter baixa do exército.

- Ele é velho demais para o exército - repliquei, e nós duas rimos. O motor do jipe tinha um som horrível, mas parecia correr bem, de modo que seguimos na última fase da nossa viagem até Shuranak. Ninguém estava caminhando a essa hora da manhã, mas muitos carros já estavam nas ruas da cidade. A maioria era de automóveis velhos e amassados cujos motores eram ainda mais barulhentos do que os nossos. Ocasionalmente um grande caminhão passava perigosamente perto de nós, deixando para trás uma nuvem marrom e suja de carburador que pairava por um longo tempo sem se desvanecer no ar gelado matinal.

Finalmente deixamos a cidade sem ver nada de diferente dos pequenos vislumbres que eu já tivera no trem. Se havia alguma coisa especial em Biisk, eu não tinha visto. Logo chegamos na estrada principal, acompanhados apenas por alguns caminhões de transporte. Quanto menos freqüentes os edifícios se tornavam, maior era o número de árvores que podíamos ver. Logo as árvores estavam abraçando a estrada, ficando maiores e mais ousadas, e parecendo se aproximar da rodovia estreita à medida que passávamos por ela.

Sergey era tão bom em evitar os horríveis buracos na estrada que rapidamente perdoei suas ríspidas maneiras militares. Ele e Nicolai sentaram-se nos bancos da frente, contando fofocas da vila. Anna e eu passamos o tempo conversando sobre alguns dos nossos amigos comuns. Gradualmente o ritmo hipnótico da estrada aquietou-nos, e caímos num silêncio natural.

Levamos mais de três horas para chegar em Shuranak. Não pareceu levar tanto tempo, porque a minha atenção estava absorvida pelo cenário fora do jipe. Subitamente estava num tipo de transe. A neve congelada nas bordas da estrada ia ficando cada vez mais branca à medida que avançávamos, e as gigantescas árvores perenes pareciam fundir-se umas nas outras quando vistas da janela do jipe em movimento.

Tendo vivido tanto tempo numa cidade relativamente industrial, eu tinha esquecido o que significava estar em contato com a natureza. Até mesmo minhas poucas visitas ocasionais a casas do campo tinham sido devotadas ao contato social, e não havia espaço nessas curtas visitas para experimentar a beleza de um ambiente natural. Agora, a floresta por onde estávamos passando exigia completamente a minha atenção. Eu sentia um tremendo poder nas suas poderosas árvores com seus troncos velhos e nodosos, no profundo verde-escuro das árvores perenes, e nos movimentos rítmicos das árvores, que sugeria a sua unidade com o vento.

Passamos uma curva na estrada e subitamente a primeira visão panorâmica das montanhas Altai nos alcançou. A gentil silhueta daquelas montanhas antigas, com os raios do sol iluminando seus picos arredondados lá em cima, criava padrões belíssimos de luzes e sombras. Esta suave beleza contida de maneira tão gentil dentro da aspereza das montanhas era algo que eu nunca presenciara anteriormente, e que literalmente me tirou o fôlego.

A estrada foi ficando cada vez mais estreita e sinuosa. A paisagem parecia tão original que era difícil imaginar a vida humana conseguindo algum sustento aqui. Mas quando as primeiras pequenas casas da vila finalmente apareceram, elas pareciam totalmente naturais no seu ambiente. Passamos por algumas casas de madeira dispostas longe o bastante umas das outras para parecerem de algum modo remotas e isoladas, mas ainda assim próximas o bastante para permanecerem conectadas à energia comum da vila. Uma mulher idosa perto de uma dessas casas saíra para fazer algo no seu jardim ainda coberto de neve. Ela endireitou-se atentamente enquanto passávamos e olhou com um ar sério para nosso jipe. Finalmente, paramos perto de uma pequena estufa instalada atrás de uma cerca de madeira.

 

- Aqui estamos nós - disse Nicolai, abrindo a porta de passageiros do jipe. O latido do que parecia ser um cachorro muito grande veio de algum lugar lá de dentro da cerca alta. A parte superior de uma porta era visível acima da cerca. Ela abriu, e ouvimos a voz de uma mulher dizendo: "Estou indo! Estou indo!"

Enquanto saíamos do jipe continuamos a ouvir sua voz, agora gritando com o cachorro para que se aquietasse e saísse do seu caminho.

Pegamos a nossa bagagem e esperamos pacientemente perto da cerca.

- É tão bonito aqui - disse Anna, respirando fundo. Concordei silenciosamente. Enquanto o fazia, meus olhos e outros sentidos me recordavam que em algum lugar do meu passado eu experimentara outro lugar estranho e selvagem como este, muito embora não me lembrasse de onde ou quando.

Finalmente o portão da cerca se abriu ousadamente, revelando uma mulher pequena e de meia-idade com um casaco de pele jogado sobre os ombros. O seu belo rosto altaico, parecido com uma lua cheia, estava iluminado pela simpatia e carinho. Era a mãe de Nicolai, Maria, e ela rapidamente nos guiou para fora do frio e dentro de casa.

Bebemos chá ao redor de uma velha mesa de madeira escura e nos instalamos. Depois de algumas horas, já nos sentíamos bem à vontade em nosso novo ambiente. Anna e eu estávamos ao mesmo tempo cansadas e excitadas, nossas mentes naturalmente pensando nos próximos dias. Nicolai estava obviamente relaxado na casa da sua mãe. Ele compreendia o importante compromisso que mudaria sua vida ao voltar à sua vila, e estava claramente contente com ele.

Finalmente, a escuridão começou a cercar a pequena vila. Maria esperou até o crepúsculo para acender as luzes da casa. A mensagem que Nicolai mandara por um vizinho dizia apenas que ele estava voltando para casa com dois amigos, ambos médicos. Maria esperava duas pessoas que correspondessem à sua experiência com médicos - homens de meia-idade vestindo ternos e de óculos. Ela se preocupara durante todo o dia sobre como encontraria esses amigos sérios e intelectuais do seu filho, e tinha até mesmo preparado algumas perguntas. Agora, em vez disso, duas mulheres jovens estavam sentadas à sua mesa, e elas apresentavam um dilema totalmente diferente.

Se ficássemos na casa com ela e Nicolai, forneceríamos um suprimento de fofocas para toda a vila durante meses. Ela já estava imaginando o que diriam. "Por que Nicolai trouxe não uma, mas duas garotas para a sua vila natal? E como pôde Maria, sua mãe, permitir que todos ficassem juntos?"

Mesmo se os comentários dos vizinhos não fossem uma dificuldade, a casa de dois quartos era tão pequena que até mesmo acomodar quatro pessoas nela era um verdadeiro problema. Ela bebeu lentamente o seu chá, tentando parecer calma, enquanto por dentro a sua mente fervia. Como poderia lidar com essa surpresa que seu filho lhe aprontara? Ela rezou com fervor para si mesma: "Ó grande filha de Ulgen! Você que é sábia e cheia de generosidade, me ajude! Me dê um sinal dizendo o que eu devo fazer." Ela esperou por uma resposta, mas não obteve nenhuma.

Sem saber do dilema de Maria, Anna e eu estávamos ficando cada vez mais intranqüilas na nossa necessidade de descanso. Maria estava igualmente ansiosa, e estava irritada com Nicolai, que parecia completamente alheio ao mal-estar que criara.

Enquanto Maria sentava pensando, a sua atenção subitamente caiu sobre o tamborim pendurado à direita da sua porta da frente. Ela fizera esse pequeno tamborim depois da morte do seu irmão Mamoush, seguindo o conselho de alguns anciãos da vila. Eles tinham dito que ela devia fazer isso porque o seu irmão era um kam - um xamã - e o tamborim o ajudaria a permanecer aqui na terra. Ele era muito bem-feito, e ela sentia orgulho dele, mesmo sem compreender totalmente a sua função. Agora o tamborim recordou-a de seu irmão e deu-lhe a solução que ela estava procurando de maneira tão desesperada. As garotas podiam ficar na casa de Mamoush. "Naturalmente!", disse consigo mesma. "Como não pensei nisso antes?"

Ela fez essa sugestão para Nicolai enquanto tomava lentamente o seu chá. A minha mente estava viajando, e só ouvi metade das suas palavras.

- Está tudo bem - disse eu, percebendo que alguma decisão estava sendo tomada sobre nosso abrigo e que eu poderia fechar os olhos em breve. - Nós podemos ficar onde for mais conveniente para vocês.

- Contanto que não seja no lado de fora - brincou Anna, cansada.

Nicolai sentou-se, pensando profundamente durante alguns minutos antes de responder. Então concordou e pediu alguns lençóis à sua mãe. Nós agradecemos a ela e nos aventuramos na noite, tendo como destino a casa de um xamã morto.

O céu estava claro, com milhares de estrelas e uma meia-lua sobre nossas cabeças. Os gritos dos pássaros noturnos vindos da floresta poderiam ter parecido assustadores em qualquer outro lugar, mas aqui pareciam naturais. Os medos encontrados na noite só podem viver perto das suas fontes. As cidades gigantescas, com todas as tensões e agressões de pessoas por demais obrigadas a se amontoarem, eram muito mais assustadoras do que os sons noturnos da cidade ao redor dessa pequena vila.

Um homem e duas mulheres cansadas caminhavam lentamente sobre o caminho cercado de neve, alternando conversa e risadas, seguindo o seu caminho até uma das casas mais longínquas da vila. Mamoush deliberadamente colocara a sua casa no extremo norte da vila, no topo de uma colina.

Nicolai acendeu uma vela quando entramos na casa, porque não havia eletricidade. Tudo estava coberto por uma grossa camada de pó, mas o ar estava fresco. A casa não era mais do que uma sala alongada com uma única janela no canto esquerdo, perto de uma cama estreita feita de madeira escura. Do outro lado da sala estava a pequena área da cozinha com uma lareira. Uma grande pele de urso cobria o meio do chão. Um velho par de botas de homem feitas de pele de rena estava colocado quase que diretamente sobre a cabeça do urso. De início, surpreendidas pela estranheza da pequena casa, nós gradualmente passamos a apreciá-la.

- Olga, olhe para mim! - exclamou Anna. Ela descobrira um estranho trabalho com plumas que fora transformado num chapéu e que ela colocara sobre sua cabeça num momento de humor nascido do cansaço e de um ligeiro nervosismo. Agora ela olhava comicamente sob ele.

- Combina comigo? É do meu tamanho? - perguntou ela. O chapéu fora feito de uma coruja. A parte superior era a cabeça e o corpo inteiro do pássaro, com olhos abertos, bico e orelhas. As suas asas foram puxadas para baixo e transformadas em abas que agora emolduravam o rosto de Anna.

- Não combina nada com você - respondeu Nicolai. Ele tirou o chapéu da cabeça de Anna e o colocou no lado oposto da sala.

Anna, que fizera uma rápida vistoria na sala, pediu para dormir na cama estreita, deixando a pele de urso no chão como a única outra cama possível para mim. Nicolai arrumou a cama e a pele de urso com lençóis e cobertores, e então desapareceu no caminho solitário de volta à casa de sua mãe. Anna e eu não perdemos tempo para apagar a vela e desabarmos nas nossas camas. Tinha sido um dia longo e interessante.

Quase desmaiei na pele de urso, apreciando imensamente o fato de ter qualquer lugar para me deitar. Só levei alguns minutos para perceber que o cobertor de penas de ganso não ia ser quente o bastante, de modo que coloquei meu próprio casaco de pele sobre o cobertor e me agasalhei na minha cama exótica.

Pela respiração profunda de Anna, pude perceber que ela já estava dormindo, mas eu estava achando difícil relaxar. A transição do meu mundo confortável comum para essa cama de pele de urso na casa de um xamã morto tinha sido tão rápida que eu não percebera como estava mexida até me deitar. Agora, o leve cheiro da pele de urso, que não tinha chamado minha atenção até aquele momento, tornou-se cada vez mais perturbador, criando um sentimento intranqüilo na minha mente. Não havia nenhum dos sons familiares do meu lar para me acalmar e aquietar. Não havia o tique-taque familiar do relógio, quase imperceptível ao lado da minha cama; nenhuma voz de vizinhos atravessando as paredes finas do meu apartamento; nenhum som de tráfego do lado de fora. Eu não tinha percebido antes que algumas das coisas que me perturbavam no meu pequeno apartamento urbano também me confortavam e tinham se tornado uma parte do meu condicionamento para dormir.

A luz forte da lua atravessava a única janela, iluminando os poucos objetos ao meu redor na sala quase vazia. Uma pilha vertical de lenha para a lareira jazia como uma sentinela perto da porta. A minha direita havia uma velha cadeira branca, onde Nicolai jogara o chapéu de coruja. O chapéu pareceu ganhar vida enquanto eu olhava para ele na penumbra. Acima de mim, perto da janela, estava uma pequena mesa. De onde eu me deitara no chão, não podia ver o que estava sobre ela.

À minha esquerda, um velho tambor oval feito de couro permanecia encostado contra a parede branca. A sua face estava voltada para a parede, e eu só podia ver o fundo aberto. O seu cabo era feito de dois pedaços de madeira esculpida, cruzados em ângulos retos e unidos no meio. As peças cruzadas tinham sido esculpidas na figura simbólica de um homem. O pedaço mais comprido formava o seu corpo, com a cabeça sustentando a borda superior do tambor e os seus pés pressionando a borda inferior. A outra pessoa tinha sido formada como os braços e mãos do homem, com nove anéis de metal atravessando os dedos de cada mão. O tambor era grande, quase noventa centímetros de diâmetro. No meio da sua superfície de pele, visível mesmo do lado de fora, estava o que parecia ser um corte proposital. Eu imaginei como aquele tambor devia tocar alto antes de ter sido quebrado. Enquanto imaginava o seu ritmo, o tambor pareceu se aproximar de mim, cada vez mais perto, até que a sua forma escura parecia preencher todo meu campo de visão, e eu já não tinha certeza se estava acordada ou sonhando.

Eu devo ter adormecido imediatamente e caído num sono profundo. Mais tarde, me lembrei de um sonho estranho. Neste sonho eu estava próxima de uma grande porta de madeira que chegava a brilhar de tão polida. A porta estava fechada. Me aproximei para tocá-la, e quando senti minha mão sobre ela, a mão foi se tornando cada vez mais real para mim. Quanto mais eu me movia, mais consciente eu me tornava de mim mesma e de todos os meus outros sentidos.

Percebi que ainda estava dormindo e dentro de um sonho, mas ao mesmo tempo eu tinha consciência plena e total liberdade de vontade. Eu sabia que tinha o poder de usar minha mão para abrir a porta e entrar no espaço por trás dela. Havia um doce senso de alegria no meu coração, e eu queria que o sonho continuasse. Então percebi subitamente que mais alguém estava no meu sonho, esperando no espaço por trás da porta fechada, e que essa pessoa podia me ver com um nível de consciência igual ao meu. Isso me assustou. Parei de mover minha mão e tudo se dissolveu.

Nós acordamos na aurora, com o silêncio total da pacífica vila. O sol matinal brilhava pela nossa pequena janela. Mesmo na luz, a estranha casa do xamã morto não perdia a sua atmosfera assustadora. Ela me fez recordar a história que Nicolai contara no hospital sobre o seu tio moribundo, nesta mesma casa. Obviamente, um lugar como esse podia induzir uma profunda perturbação psíquica em pessoas que possuíam uma inclinação natural para essas coisas. Nicolai fazia parte desse grupo. De pé na casa do xamã, esperando que Nicolai viesse nos tirar dali o mais rápido possível, compreendi a sua história com muito mais clareza.

Felizmente, Nicolai chegou logo depois de termos nos levantado e nos convidou para o desjejum na casa de sua mãe. Antes de sairmos, perguntei a ele sobre o tambor. Ele me impressionava ainda mais na luz da manhã do que no escuro. Mesmo estando quebrado, ele parecia forte, poderoso e cheio de vida.

- Era o tambor do meu tio. Eu só o vi usá-lo uma vez. Depois da sua morte, alguns dos nossos velhos vieram e disseram a minha mãe as coisas que devem ser feitas quando um xamã morre. Uma dessas coisas é quebrar o seu tambor. É uma lei não-escrita. Eles disseram que o tambor só deve servir a um xamã. O espírito do tambor deve ser mandado embora depois da morte do xamã através de uma abertura feita por um parente. Então a minha mãe o fez.

"Hoje iremos ver Umai, a xamã de Kubia, uma vila próxima. Ela sabe muito mais sobre esse rito de passagem, caso você queira perguntar a ela.

Estávamos contentes em deixar a casa de Mamoush, que ainda parecia ameaçadora mesmo à luz do dia. A amigável casinha de Maria, ocupada com as preparações do desjejum, fazia um contraste tranqüilizador. Maria estava cozinhando ovos, esquentando pão preto, e vertendo leite de verdade com uma camada de creme, fazendo uma calorosa refeição matinal para nos preparar para nossa jornada do dia.

Não tínhamos idéia do que estava planejado para aquele dia.

Quando nós perguntamos a Nicolai como chegaríamos a Kubia ou quanto tempo levaríamos para chegar lá, ele ignorou silenciosamente as nossas questões. Ele só nos disse para nos vestirmos com as roupas mais quentes que tivéssemos trazido e para segui-lo. Maria nos deu um pacote de pão e queijo para que levássemos conosco.

 

Se eu soubesse como seria fria e difícil a jornada para a vila de Umai, não teria ido. Caminhamos incessantemente pela neve profunda numa pequena estrada da montanha, na verdade nada mais do que um caminho estreito que às vezes quase desaparecia na neve.

Depois de uma hora, Nicolai ainda não tinha nos dito nada, e começamos a nos perguntar se seríamos capazes de completar a jornada. De inicio tentamos rir, mas logo o frio e a altitude nos afetaram e ficamos exaustos. A beleza da paisagem deixara de nos alegrar. Começamos a especular, brincando mas não muito, sobre morrer naquele rude caminho das montanhas, nos perguntando se nossos corpos seriam recuperados algum dia. O fato de que nossas mortes poderiam nem mesmo ser notadas em meio à tranqüilidade dessa estrada coberta de neve cercada por grandes árvores perenes era uma idéia muito sóbria, que nos manteve caminhando, por mais dolorosos que fossem os passos.

Foi Anna quem primeiro notou a fumaça se elevando acima de uma casa pequena. Ela saltou alegremente o mais alto que podia, e então me abraçou e beijou na sua animação.

Nicolai confirmou que era Kubia, e ficamos felizes por seu silêncio irritante ter finalmente terminado. Enquanto nos aproximávamos da vila, Anna e eu ficamos felizes em pensar que logo estaríamos numa casa novamente, sentados diante de um fogo quente, sem que precisássemos caminhar por intermináveis camadas de neve gelada. No entanto, notei que Nicolai parecia estar nervoso.

- Preciso contar uma coisa para vocês - disse ele finalmente. - Preciso preveni-las que não sei exatamente como as pessoas daqui vão reagir a vocês.

Olhamos para ele, sem saber o que dizer.

- Nós estamos aqui para ver Umai, que é uma kam. Nós não usamos a palavra xamã; não é nossa palavra. Xamã é uma palavra criada pelos russos. Nós chamamos essas pessoas de kams. O problema é que vocês são russas. Nosso povo tem um bom relacionamento com pessoas brancas, mas superficial. Talvez ninguém em Kubia explique alguma coisa para vocês sobre os kams ou sobre seus ritos e rituais. E é ainda mais provável que ninguém permita que vocês vejam o que realmente acontece nas curas deles. Eu não sabia disso antes da viagem. Minha mãe só me contou agora de manhã. Ela disse que poderia haver um problema para que você encontrasse Umai.

Parecia estúpido e absurdo que, depois de todo o esforço que fizemos para chegarmos neste lugar remoto, Anna pudesse não ter permissão de ser curada. Comecei a rir, mas Anna ficou furiosa.

- Não é engraçado, é loucura - disse ela. - Estou seriamente doente, e vim com Olga até este lugar esquecido e fora do mundo na esperança de conseguir ajuda. Foi você, Nicolai, que nos convidou para vir até aqui. Foi você que nos trouxe nesta jornada longa, fria e perigosa hoje. E agora você me diz que podemos ser expulsos da vila? Para quê? Para morrermos na neve?

- Por que você fez isso? - perguntei, incrédula. - Todo o seu povo é tão irresponsável quanto você?

Sem hesitar, Nicolai replicou:

- Meu tio, Mamoush, me disse para trazê-las comigo. - Enquanto dizia estas palavras, o seu nervosismo desapareceu e ele parecia mais calmo e seguro de si.

- Excelente! - zombou Anna. - Aqui estou eu no meio de um deserto gelado com um paciente mental e uma amiga que supostamente é uma psiquiatra. Olga, você não examinou Nicolai no hospital? - Ela olhou para mim acusadoramente. - Até eu, que não sou uma psiquiatra, posso dizer que ele apresenta os sintomas óbvios de uma doença mental.

Eu me senti mal por Anna ter dito isso, e muito pior quando percebi que as palavras dela tinham alguma verdade. Nicolai ficou perto de nós em silêncio, e senti pena do seu embaraço. Finalmente eu falei.

- Anna, nós já estamos aqui. Já nos comprometemos. Não há qualquer oportunidade de voltarmos agora, já que precisamos descansar primeiro. Não temos escolha a não ser entrar na vila. - Eu me senti um pouco mais calma, e esperava que minhas palavras ajudassem Anna a relaxar.

- Deixem-me contar uma coisa - disse Nicolai. - Aconteceram certas coisas aqui há quase cem anos que afetaram muito a atitude do nosso povo para com estranhos. Pessoas estrangeiras para nós e nossa terra decidiram trazer para cá sua própria religião. Certo dia, eles chamaram os kams de perto e de longe para um ritual. Eles disseram que queriam a paz entre suas religiões. Cerca de trinta kams apareceram, trazendo apenas os seus tambores. Os estranhos pegaram todos os kams e os colocaram numa pequena casa de madeira. Então eles cobriram a casa com querosene e acenderam um fósforo.

"A casa com os kams queimou durante uma hora. Nenhuma das pessoas da vila pôde fazer nada. Quando ela tinha queimado totalmente, três dos kams se levantaram e andaram para fora das cinzas, vivos. Os estranhos ficaram apavorados quando viram isso. Eles não tentaram deter os três kams, mas correram para longe da casa queimada e contemplaram chocados enquanto os kams iam embora. Os três kams seguiram direções diferentes e continuaram a "kamlanie". Mas a partir de então, os kams executam seus rituais em segredo. Umai é uma descendente de um dos três kams que saíram andando do fogo.

- Os estranhos eram cristãos?

- Não - replicou Nicolai. - Nós tivemos cristãos depois, e então vieram os comunistas.

Sem dizer mais nada, fomos na direção da vila.

Vi Anna tocar gentilmente a mão de Nicolai e a ouvi perguntar:

"Você me perdoa?" Eu sabia que ela estava falando sobre as palavras que dissera com raiva alguns minutos antes. Ele assentiu e soltou rapidamente a mão dela.

A vila era semelhante à de Nicolai, mas as casas eram menores e as pessoas pareciam ainda mais pobres. Aproximamo-nos de uma casa antiga com fumaça subindo pela velha chaminé. Não havia gente nas ruas, nenhum cão latindo para anunciar a nossa presença.

- Acredito que ela esteja aqui - disse Nicolai, quando paramos perto da porta. - É melhor que vocês me esperem - acrescentou enquanto empurrava a porta destravada e desaparecia no pequeno interior da casa.

Meus pés molhados estavam ficando congelados. Anna pegou um cigarro no seu bolso e fumou. Nós esperamos nervosamente durante o que pareceu um tempo muito longo. Finalmente Nicolai emergiu da casa e caminhou diretamente para Anna.

- Umai vai curá-la esta noite. - As suas palavras pareceram pairar no ar durante um momento até que nossos ouvidos preocupados as compreendessem plenamente. - Ela me disse para levar vocês para outra casa, onde vocês esperarão por ela. Ela disse que sentiu o seu desejo de curar o seu corpo e voltar a uma vida normal. - Ele pegou Anna pela mão e a levou para uma casa no outro lado da rua.

- Espere ai, Nicolai. E eu? - gritei.

- Umai me disse para perguntar a você por que você tinha vindo. Espere por mim aqui. Volto já.

Fiquei surpresa e confusa. Esta pergunta simples certamente não deveria ter me preocupado, mas foi o que aconteceu. Por que eu estava aqui? Devia ser algum tipo de sonho estranho. Viajando ali, me senti vagamente como se estivesse me movendo rumo a algum tipo estranho de experiência mística, mas em nenhum momento da viagem eu tentara considerar uma explicação racional. Eu podia dizer que viera como turista, simplesmente acompanhando minha amiga para ver as montanhas. Mas isso não era verdade, e eu sabia que não seria uma resposta aceitável para a mulher daquela casa. Mais uma vez estava encarando as conseqüências de não tomar decisões conscientes com minha vida, e senti pena de mim mesma.

Quando Nicolai retornou e tocou minha mão, ele me surpreendeu. Disse a ele a primeira coisa que veio à minha cabeça.

- Eu vim aqui para aprender com ela.

Ele entrou novamente na casa. Quase imediatamente ele reemergiu e fez um gesto para que eu entrasse. Vindo de um dia tão claro, de início pensei que a casa estivesse totalmente escura. À medida que os meus olhos se ajustaram, percebi que uma pequena quantidade de luz entrava por duas pequenas janelas. Eu vi que a casa só tinha uma grande sala e que ela parecia absolutamente vazia, exceto por duas mulheres. Disse "Olá" antes que Nicolai rapidamente fizesse um gesto pedindo que eu ficasse em silêncio e me sentasse no chão em um dos cantos da casa.

Uma das mulheres estava deitada de bruços no chão, no meio da sala. As suas costas estavam nuas, com traços de terra e ervas sobre ela. A outra mulher parecia mais velha. Ela era baixa, com um rosto forte e saudável. As suas roupas eram estranhas para mim: uma longa saia feita de tecidos de inverno pesados de diferentes cores, com algumas pequenas bonecas de pano costuradas nas suas costas. Ela tinha cabelo escuro, na maior parte coberto por um xale azul, e um rosto mongol envelhecido com muitas rugas. Eu diria que tinha cerca de setenta anos.

Ela não pareceu me notar. Parecia muito ocupada e estava concentrada em colocar cuidadosamente um estranho objeto perto da mulher deitada. Era um triângulo tosco feito de três pedaços de madeira, cada um com cerca de noventa centímetros de comprimento. A madeira recém-cortada ainda tinha uma cor fresca, e até mesmo o aroma perfumado do pinheiro de sua origem. Imagens de peixes estavam esculpidas nas superfícies planas dos seus lados.

Percebi que devia ser Umai de pé sobre a outra mulher, e que estava ocorrendo uma cura. Umai colocou o triângulo com os peixes no lado direito da mulher, de modo que ele separou as duas de uma grande pele de rena que estava do outro lado do triângulo.

Nicolai estava sentado em um dos cantos da casa, de modo que todo o espaço ao redor das duas mulheres no centro da casa estava aberto. Umai pegou um pequeno tambor do chão e começou a bater suavemente. De início o seu ritmo era quebrado e fraco, parecendo incerto. Então ela começou a cantar na sua língua nativa. As palavras da sua canção tinham uma entonação de súplica enquanto ela se movia graciosamente ao redor do corpo imóvel abaixo dela.

A mulher no chão não fazia som algum e parecia estar dormindo. As suas costas estavam nuas, exceto pela terra e as ervas. Embora a temperatura dentro da casa fosse apenas alguns graus mais alta do que do lado de fora, seu corpo parecia relaxado e aquecido. Umai caminhou ao redor dela, às vezes se curvando e batendo no seu tambor bem acima das costas da mulher. O ritmo da sua canção ficou mais claro, as palavras mais altas. Ela se movia cada vez mais rápido.

Assistindo à rápida energia da sua dança, eu agora pensava que ela devia ser mais nova do que achara de início. O poder do tambor aumentou tanto que parecia impossível que um instrumento tão pequeno soasse tão alto. A voz de Umai assumiu um tom incrivelmente profundo e vigoroso. Eu mal a reconheci como a mesma pessoa que vira no início da dança. Ela parecia mais alta, mais forte, mais agressiva e masculina, quase como um guerreiro prestes a duelar até a morte com um poderoso inimigo. Ela saltou e girou o seu corpo com uma inacreditável rapidez e força. A sua canção transformou-se num grito de batalha. Ela respirou profunda e rapidamente, seus olhos se incendiaram com um brilho vitorioso. Então ela agarrou a mulher rudemente pelos ombros e gritou com ela na linguagem de Altai.

A mulher se ajoelhou. O seu cabelo caía num emaranhado. Os seus olhos ainda estavam fechados, e ela parecia estar num transe profundo. Ela se arrastou de joelhos até o triângulo de madeira. A abertura no triângulo era do exato tamanho para que um humano se arrastasse, e ela entrou dentro dele.

Umai gritou ainda mais alto com ela. Jogou longe o tambor e empurrou a mulher cada vez mais fundo no triângulo com suas mãos nuas. Os seus gritos se transformaram num cântico queixoso. Era difícil para a mulher passar pelo triângulo. O seu corpo nu entrava em convulsão e se contorcia contra as extremidades ásperas da madeira recém-cortada. Umai tentou tornar a situação ainda mais dolorosa para ela movendo o triângulo para frente e para trás, arranhando o corpo da mulher continuamente à medida que a empurrava.

Eu ficara totalmente absorvida pelo que estava acontecendo. Subitamente os peixes esculpidos adquiriram vida para mim, nadando da esquerda para a direita pelos lados do triângulo. Umai continuava a cantar enquanto a mulher se aproximava do final da sua luta para passar pelo triângulo. Quando ela estava quase completamente sozinha do outro lado, Umai saltou até ela e levantou a pele de rena. A mulher se arrastou para baixo da pele e logo estava totalmente coberta.

Umai então tornou-se ainda mais furiosamente agressiva. Gritando, ameaçadora nos seus gestos, ela agarrou o triângulo de madeira e o destruiu. Ela fez isso como se estivesse sentindo um intenso ódio, como se legiões de inimigos se escondessem dentro dele. Ela o pisoteou, e então bateu nele com suas mãos. Parecia que ela o estava amaldiçoando rudemente na sua própria linguagem. Quando só os restos da forma jaziam sobre o chão, ela fez o mesmo com o tambor. Logo havia apenas pedaços de madeira espalhados ao redor da mulher, que ainda estava coberta pela pele de rena.

Umai voltou-se para Nicolai e disse uma frase curta na sua linguagem. De algum modo, compreendi que isso significava que ele deveria ajudar a mulher sob a pele. Umai novamente pareceu ser uma pequena mulher nativa, mas eu sabia agora que ela tinha um tremendo poder dentro de si. Ela sentou-se no chão, tirou um cachimbo de um bolso oculto do seu vestido, e começou a fumar. Ela assistiu Nicolai calmamente enquanto ele ajudava a mulher a se levantar e a colocar o resto das suas roupas.

A mulher parecia cansada e sonolenta. Ela não parecia notar Umai, e se movia lentamente na direção da porta com passos pesados. Ela a abriu e saiu sem uma única palavra ou gesto. Isto me surpreendeu e impressionou. Eu tinha esperado que ela mostrasse gratidão, que dissesse a Umai como estava se sentindo - tudo menos mostrar uma completa indiferença a sua curandeira.

Voltei-me para Umai, tentando ler no seu rosto qualquer reação a maneira como a mulher fora embora. Inesperadamente, descobri que ela estava me olhando com intensidade e um ar matreiro. Ela disse algumas palavras a Nicolai e continuou a me fitar, ainda fumando seu cachimbo. Eu não podia tirar os meus olhos dela, e me pilhei sorrindo estupidamente.

Nicolai traduziu suas palavras para mim.

- Ela disse que você fez bem em ajudar os peixes a levarem o espírito da doença da mulher e a carregá-lo ao mundo inferior.

Umai se levantou e rearranjou os restos da sua sessão curativa no chão. Então ela caminhou para onde Nicolai estava sentado e teve uma curta conversa com ele na sua língua nativa. Eu sabia que, mesmo que ela falasse russo, eu não ouviria dela nenhuma palavra na minha língua.

Nicolai voltou-se para mim.

- Ela quer que você a siga para outra casa na vila, onde ela está ficando. Ela não vive nessa vila, sabe? Ninguém sabe onde ela mora. Esta casa onde estamos agora foi abandonada quando a família que vivia aqui se mudou para a cidade há alguns anos. É um lugar onde Umai só vem para curar pessoas.

Eu perguntei se íamos para onde Anna estava à nossa espera, desejando que eu pudesse assistir e talvez até mesmo ajudar na cura da minha amiga. Nicolai respondeu que não tinha idéia para onde Umai ia me levar.

Enquanto conversávamos, Umai se movera até a porta e a abrira. Descobri que não tinha notado a passagem do tempo, pois a luz do dia quase acabara e a rua já estava numa escuridão muda. Umai me chamou até a porta, e saí no crepúsculo atrás dela. Ela ainda estava vestindo apenas o seu vestido, sem nenhum capote para protegê-la do frio terrível. Ela caminhava rapidamente pela rua congelada, virando-se na direção oposta à casa onde Anna estava esperando.

Escutei Nicolai dizer: "Vou até Anna."

Segui a figura de Umai pelo caminho estreito de neve compacta entre altos muros de neve dos dois lados. A luz de lâmpadas brilhava de algumas das janelas enquanto passávamos, parecendo confortável e quente para nós que caminhávamos no frio ar noturno.

Tudo o que eu experimentei durante o dia esticou tanto a minha consciência que minha mente estava bastante sacudida. Eu não estava cansada, tampouco assustada. Embora eu não soubesse o que esperar em seguida ou o que Umai poderia querer de mim, decidi deixar de pensar sobre o assunto. Pela segunda vez em dois dias vagamente reconheci meus sentimentos como eco de uma outra época, mas ainda não podia me lembrar de quando ou onde.

 

Finalmente, chegamos a uma casa grande com duas portas, uma de cada lado. A metade esquerda da casa estava iluminada, e pude ver pessoas entrando nela. Umai caminhou para a outra porta, à direita, abrindo-a facilmente.

A sala por trás da porta era quase perfeitamente redonda, sem móveis exceto por um único catre coberto com um velho cobertor. Estava escuro, e alguma coisa despertara uma forte premonição de perigo. Eu teria me sentido ainda mais intranqüila se não fosse pelo ar tranqüilizador do rosto calmo de Umai. De algum modo, sem compreender por quê, eu já sentia como se conhecesse bem Umai. Talvez porque o seu rosto me lembrasse um pouco a minha avó, que tinha traços que lembravam a herança mongol de muitos russos. Eu seguia o rosto de Umai constantemente, tentando manter o contato visual com ele a cada segundo. Sem isso, eu sentia que meu medo aumentaria e que eu estaria perdida.

Ela apagou a luz e mandou que me deitasse no catre. Levantei o velho cobertor feito de vários tecidos coloridos e comecei a tirar o meu casaco. Ela fez sinais para que eu parasse, de modo que me deitei debaixo do lençol com minhas roupas de inverno. O chão era de terra, não muito mais quente do que o do lado de fora, e imediatamente senti o frio vindo de baixo. Fiquei pensando quanto tempo ficaria deitada ali.

De onde estava deitada, vi Umai enquanto ela acendia uma fogueira no meio da sala e depois apagava a luz. Não havia lareira ou buraco para o fogo, só uma fogueira no chão de terra no meio de uma sala vazia. As chamas subindo pareciam bastante misteriosas. Muito embora eu não tivesse visto nada como isso antes, havia alguma estranha familiaridade que me fazia sentir saudade de algum período antigo e desconhecido. Umai cantava suavemente com palavras que eu não conseguia entender, mas que pareciam estar endereçadas ao fogo com amor e devoção.

Muito embora eu só estivesse entre o povo de Altai há pouco tempo, tive uma sensação intuitiva de que eles estavam completamente centrados no presente. Eles não viviam no passado; não sonhavam com o futuro. Umai estava totalmente focalizada no "agora", e nesse momento "agora" significava acender uma fogueira.

À medida que a chama iluminou a sala, minha frágil calma desapareceu e o perigo novamente parecia espreitar ao meu redor. Eu não podia mais ver os olhos de Umai, porque ela se recusava a olhar para mim. Ela tirou alguma coisa do seu bolso e colocou no fogo. A chama engoliu seu novo alimento como um animal faminto, cresceu durante alguns segundos, e então voltou ao normal.

A canção de Umai se alterou, e comecei a sentir como se eu estivesse de algum modo dentro dela. Algo estava acontecendo dentro de mim. A minha atenção estava presa pela fumaça subindo com o fogo. Eu não podia desviar os olhos, nem conseguia pensar em qualquer outra coisa.

 

Pensamentos fragmentados corriam pela minha mente com uma velocidade incrível. Só tive tempo de registrar dois na minha mente: "estou com muito frio" e "isto é psicose". O segundo me fez entrar em pânico. A sensação de estar perdendo o meu mundo me invade. Usando toda a minha força, tento encontrar um lugar dentro de mim de onde possa falar. Eu não sei falar. Eu perdi minha voz. O que significa dizer "minha"?

Subitamente uma voz emerge, parecendo muito distante. Ela está gritando alguma coisa. Perdendo meu senso de individualidade, eu me rendo, sem ter idéia do que ou de quem permanece aqui. Eu me torno a voz, a voz gritada alto que se levanta com a fumaça de uma fogueira no meio de uma sala numa vila esquecida da Sibéria. Os meus últimos esforços de costurar meu mundo se tornam uma transformação, uma integração da fumaça e da voz numa coisa só. E agora a voz e o fogo são eu, e sou uma serpente subindo por uma água profunda e resistente.

Simultaneamente, outro medo me abraça. Estou debaixo d,água, nadando o mais rápido e com mais força do que posso para chegar à superfície. Nada me cerca a não ser água, água profunda. Nado cada vez mais rápido, tentando desesperadamente alcançar a superfície.

Finalmente, chega o momento em que saio da água e flutuo na superfície do oceano. Instantaneamente ele se torna um lugar de paz e calma. Adoro este oceano e poderia flutuar nele desse modo para sempre. Nada me perturba. Não existem pensamentos que não sejam uma apreciação por esta água que agora me sustenta. Começo a nadar. Eu nado e nado ate ver a costa. Percebo que a terra se encontra com este misterioso corpo de água de todos os lados, e que estou nadando ao redor de um grande lago redondo. Agora noto o que está na costa. Parece uma cidade. Posso ver prédios, carros e pessoas. O pânico me possui novamente. Esta é a minha cidade, os meus parentes e amigos. Não quero voltar para eles. Não quero perceber nada a não ser a água suave fluindo.

Uma doce voz feminina chega a mim através do pânico. "Fique calma. Vou falar com você agora." É a voz de Umai. Eu não sei em qual linguagem ela está falando, mas sei que é Umai e de alguma maneira compreendo as suas palavras.

"Agora você está no seu espaço interior o lugar do Lago do Espírito. Esta é a sua primeira vinda consciente neste lugar. Cada um de nós possui este espaço interno, mas durante as vidas da maioria das pessoas, ele fica cada vez menor. A medida que atravessamos a vida, o mundo ao nosso redor tenta ocupar e matar esse espaço interior o seu Lago do Espírito. Muitas pessoas o perdem inteiramente. O seu espaço é ocupado por legiões de soldados estrangeiros, e eles morrem.

"Agora você experimentou esse espaço dentro de si. Agora você o conhece. Você não precisa mais ter medo do mundo ao seu redor O seu espaço nunca será preenchido com nada a não ser você mesma, porque agora que você o experimentou, reconhece o seu sentimento e pulso. Você irá continuar a explorá-lo. Mais tarde também aprenderá que existe um importante Ser Interior que vive nele. Você precisará encontrar e compreender esse Ser Espiritual. Eu a ajudarei a fazê-lo quando estiver pronta."

A voz de Umai é tranqüilizadora, e me agarro a cada palavra à medida que ela prossegue. "Agora vou contar-lhe o maior segredo que conheço. Nós temos a tarefa de construir duas coisas enquanto estamos nas nossas vidas físicas. Nossa primeira tarefa é construir a realidade física em que vivemos. A segunda tarefa é a construção de nós mesmos - dessa mesma personalidade que vive dentro da realidade externa.

"As duas tarefas exigem igual atenção. Manter o equilíbrio entre elas é uma arte muito sagrada e exigente. Assim que esquecemos uma tarefa, a outra pode nos capturar e nos fazer de escravos para sempre. É por isso que o lugar do Lago do Espírito, o lar do Ser Interior, se torna morto e vazio para tantas pessoas. Eles passam a realmente acreditar que o mundo exterior é o único digno da sua atenção. Mais cedo ou mais tarde eles percebem o seu erro.

"Para você, o perigo principal não é este, mas apenas explorar a sua personalidade interior. É por isso que você já estava tão interessada nas mentes das outras pessoas. Você estava usando essa informação para tentar compreender a sua própria psique. Você, precisa aprender a aceitar a importância de criar a sua própria realidade. Acredite em mim, o seu trabalho no mundo exterior possui um poder absoluto e igual para a capacidade de satisfazer. Não tenha medo da costa ao seu redor agora. Tudo que você vê ali é a sua própria manifestação, e é ridículo ter medo da sua própria criação. Eu vou ajudá-la."

O ambiente ao meu redor começa a desaparecer. A visão e a consciência começam a retornar ao meu corpo físico, e lembro-me que estou neste corpo deitada no solo. Eu quero dormir, e já estou quase dormindo quando as velhas mãos de Umai me dão uma quente xícara de chá de ervas com leite. Bebo lentamente o líquido quente antes de sucumbir ao calor do chá e cair adormecida.

 

A luz da manhã foi a próxima coisa a tocar minha consciência. Eu despertei, percebi que ainda estava no chão coberta com meu casaco de inverno e o velho cobertor, sozinha numa sala estranha. Precisei de toda a minha força para me lembrar do que acontecera no dia anterior. Tudo tinha uma qualidade onírica, e eu sabia que estava pendurada precariamente entre dois mundos. Eu precisava ver outro ser humano para ajudar a provar para mim mesma que ainda estava viva e sã.

Eu podia ouvir a voz de dois homens por trás da parede fina separando meu quarto do outro lado da casa, mas as vozes estavam abafadas demais para que eu pudesse distinguir o que eles estavam dizendo. Foi complicado me levantar, e fiquei de pé com as pernas bambas durante alguns segundos, enquanto minhas pernas se acostumavam novamente à idéia de sustentar o meu corpo. Não havia água para limpar o meu rosto, nem espelho, nem maquiagem.

Eu imaginei como devia estar a minha aparência, e como Anna e eu estávamos mal preparadas para iniciar tal viagem. Lembrei-me do pão e queijo que Maria tivera o cuidado de deixar para nós no dia anterior, e a fome me envolveu. Decidi encontrar Anna e tomar o desjejum com ela e Nicolai assim que fosse possível.

O meu xale de lã estava terrivelmente amassado depois de passar a noite dormindo em cima dele, mas estava contente em ter o calor extra que ele me oferecia. As minhas botas estavam perto do capacho, e alguém tivera o cuidado de colocar meias de lã quentes nos meus pés.

 

Depois de arrumar minha cama improvisada e calçar minhas botas, saí para um lindo dia. O ar estava tão incrivelmente fresco que a primeira inspiração me fez sentir calma e alegre novamente. O céu azul exibia nuvens brancas e fofas, os pássaros estavam cantando das altas árvores perenes que me cercavam, e as montanhas distantes pareciam uma bela foto de cartão-postal. Tudo parecia trazer a mensagem de que a vida ainda podia ser harmônica em alguns lugares desta terra. Eu estava contente pelo destino ter me dado a oportunidade de visitar um deles.

- Oi! - disse a voz de um homem vinda da outra porta da casa.

- Olá! - respondi, prestando atenção para ver se a minha voz tinha sido alterada por todas as experiências de ontem e da última noite.

- O meu nome é Victor. - Ele falou russo sem sotaque, marcando-o como outro visitante na vila, como eu. - O proprietário da casa nos disse que uma velha ficaria aqui na noite passada, e nos pediu para não ficarmos surpresos com nada que acontecesse. Mas você é essa mulher que supostamente é tão velha e assustadora? Não sabia que teríamos uma companhia tão atraente na casa ao lado!

- Quase - respondi. - O meu nome é Olga.

Alguma coisa nas suas palavras, na sua expressão facial e no seu tom de voz me deixaram cautelosa. Mesmo com toda a sua beleza, a Sibéria ainda era um local muito isolado. Estranhos eram uma raridade, e mulheres estranhas independentes eram ainda mais raras. Uma mulher sozinha sem um marido ou família poderia estar vulnerável, e era preciso às vezes tomar cuidado para evitar criar situações embaraçosas ou até mesmo perigosas.

Felizmente, a minha experiência psiquiátrica tinha muitos aspectos úteis. Sendo jovem e trabalhando principalmente na enfermaria masculina, precisei aprender rapidamente como transformar o interesse masculino em amizade sem conotações românticas ou sexuais. Instintivamente, eu sentia que este rude de aparência ativa, com seu corpo grande e musculoso e risada máscula e profunda, acharia o tópico de funções corporais íntimas embaraçoso o bastante para fazer submergir quaisquer outras idéias que pudesse ter.

- Acho que realmente preciso encontrar um banheiro imediatamente - disse eu. - Onde há um toalete que eu possa usar?

Ele fez um gesto na direção de uma pequena cabine estreita na parte de trás da casa principal, e corri para lá. Victor estava esperando pelo meu retorno com um ar amigável e protetor no seu rosto. Ele me apresentou seu amigo, Igor, que estava de pé ao seu lado. Igor era o oposto completo de Victor, baixo e magro, com traços angulares. Eles me convidaram para o desjejum e uma xícara de chá, e a idéia de comida era boa demais para recusar.

Quando entrei, não pude deixar de ficar surpresa com o ambiente totalmente diferente que me saudou. Aquela parte da casa parecia um lar normal. Era calorosa e de bom gosto, cheia de belos objetos feitos a mão. A mesa estava coberta por uma toalha branca bordada a mão com flores. Um grande bule de cobre estava sobre ela. Cortinas de algodão translúcido permitiam que a luz passasse pelas pequenas janelas, e havia taças de porcelana de verdade, com antigos desenhos russos. Tudo aqui fazia com que eu me sentisse em casa, e descobri que estava relaxando um pouco.

- Vocês dois são os criadores de toda essa beleza? É difícil imaginar como dois alpinistas como vocês pudessem arrumar tudo isso de modo tão belo - brinquei com eles.

- Você é a bruxa de quem nos falaram ontem? - eles riram de volta. - Falando sério, só essas coisas são nossas - acrescentou Igor, apontando para um canto onde eu já vira o seu grande monte de equipamento de alpinismo. - Nós só alugamos este lugar como uma base para nossas viagens nas montanhas.

O chá que eles fizeram era muito quente, e provavelmente tão forte quanto qualquer um poderia ter feito. E eles tinham uma das minhas geléias favoritas, oblepiha, que serviram em pequenos biscoitos duros como bolachas quebradiças. Depois das experiências surpreendentes do dia anterior, era bom simplesmente relaxar e ter uma conversa despreocupada. Eu sabia que recebera coisas demais para integrar em tão pouco tempo, e que pensar sobre o assunto não me ajudaria neste exato momento.

Oblepihas crescem em árvores só encontradas na Sibéria, e são a fonte de muitas lendas que eu escutara repetidas vezes na infância. A oblepiha era usada para tudo, desde tratar uma pequena ferida na mão de uma criança até uma cura miraculosa para o câncer, e possuía incontáveis vitaminas. Eu a adorava especialmente devido à sua notável cor laranja brilhante. A cada outono a nossa família ia para nossa casa de campo para colher essas frutinhas.

Nós precisávamos ser muito gentis para colhê-las, tomando cuidado para não destruir a pele fina e delicada que quebraria facilmente nas nossas mãos, permitindo que o doce e grudento suco alaranjado explorasse todos os sulcos dos nossos dedos. Elas não eram fáceis de colher, porque as folhas eram bastante espinhosas. Os meus dedos sempre acabavam decorados com pontos de sangue, com pequenos pedaços de espinhos quebrados embebidos na minha carne. Tentar sair da colheita com meus dedos sem espinhos e relativamente livres do suco alaranjado grudento era um exercício que nunca esqueci.

Percebi que meus novos conhecidos estiveram falando, brincando e conversando um com o outro enquanto eu sonhava acordada, e voltei ao presente. Eles pareceram não ter notado minha breve distração e continuaram a me contar suas histórias de alpinismo. Enquanto eu escutava, me ocorreu que estavam tão dedicados ao seu esporte que provavelmente tinham poucas conversas que não se voltavam rapidamente para suas experiências nas montanhas. Em pouco tempo, me contaram em detalhes todas as diferenças grandes e pequenas entre as montanhas do Cáucaso e da Ásia Central, e revivi com eles todos os seus momentos mais difíceis. Com um entusiasmo igual aos detalhes, me falaram de seus amigos que morreram nas montanhas. E naturalmente falaram um bocado sobre suas amadas montanhas altaicas.

No entanto, mesmo neste abrigo confortável com dois animados conversadores, ainda me sentia emocionalmente distante. Em alguma outra ocasião eu poderia ter me entretido mais com suas narrativas, mas agora a minha mente estava constantemente retornando às minhas experiências do dia anterior. A única ocasião em que seus volteios verbais pelas montanhas capturaram minha atenção plena foi quando mencionaram Belovodia. Eu tinha escutado muitas lendas sobre este lugar. Belovodia, que significa a terra da água branca, seria um pais místico e escondido que teria sido encontrado e adentrado apenas por uns poucos escolhidos. Muitos acreditavam que ele ficava em algum lugar das montanhas altaicas. Algumas pessoas afirmavam que Belovodia era um outro nome para Shambhala, um pais sagrado citado em muitos mitos indianos e tibetanos, de onde pessoas sagradas governavam o mundo.

- Você sabia que até mesmo o Dalai Lama disse recentemente que acreditava que Shambhala estava em algum lugar nas Altai? - perguntou Victor.

- Eu não sei nada sobre a localização de Shambhala - disse Igor -, mas tenho certeza de que Belovodia está nas montanhas altaicas. Eu subi muitos picos nesta terra, mas em nenhum outro lugar vi rios tão brancos. Os cientistas provavelmente explicariam a cor como sendo devida à alguma estranha mistura do solo aqui, mas apesar disso, acredito que seja por causa de Belovodia. Além disso, se eu fosse um espírito governando o mundo, escolheria fazê-lo de Altai. É o único lugar de onde o resto da terra poderia ser governado, se quer saber.

Victor acrescentou seus próprios pensamentos.

- Sabe, tremendas fissuras se abriram no chão por todo o Altai, descobrindo camadas de milhões de anos de idade. Alguns dizem que a radiação da terra chega até a superfície e se dissipa através dessas fissuras, cobrindo todo o Altai com um guarda-chuva. Provavelmente é por isso que o Altai é tão diferente de qualquer outro lugar, e por que até mesmo velhos leninistas materialistas como nós sentem que milagres são possíveis aqui.

- Você poderia falar mais sobre esse pais misterioso? - perguntei. As palavras de Victor sobre Belovodia tinham me tocado profundamente.

Igor falou novamente.

- Ninguém de fora sabe muito sobre ele. Os povos nativos têm antigas histórias sobre encontros com espíritos e sacerdotes misteriosos desse pais escondido. Nunca o encontramos, mas acreditamos que seja possível.

- O povo de Altai os chama de xamãs? - perguntei, pensando em Nicolai e na minha recente conversa com ele.

- Nunca nos contaram nada sobre essas coisas do povo de Altai. Você mesma deveria perguntar a eles. Eu não acho que ainda existam xamãs. Mas quem sabe? - O tema dos xamãs obviamente não interessava Victor, e ele abandonou o assunto rapidamente.

- Se você está interessada em saber mais sobre esse assunto misterioso, aqui está alguma coisa que você pode ler. O proprietário da casa me deu isso - disse Igor me oferecendo uma brochura de cerca de quinze páginas com Belovodia impresso em grandes letras na capa.

Enquanto eles continuavam a conversar, abri a brochura e comecei a ler.

 

Em 987, o grão-duque Vladimir Sol Vermelho em Kiev estava procurando uma nova religião para Rus, o seu país. Ele mandou seis embaixadores separados, cada um levando grandes riquezas, para terras distantes. As suas instruções eram aprender e trazer de volta as crenças dessas terras, para que Sol Vermelho pudesse escolher a melhor delas.

Logo depois, um homem santo errante o visitou. O grão-duque compartilhou com ele um sonho que vem tendo todas as noites há meses. Nele, um velho falava que uma sétima expedição deveria ser enviada, mas o homem no sonho não sabia para onde mandá4a. Assim, o duque pediu ao peregrino que saísse pelo mundo e descobrisse em sete dias para onde o sétimo embaixador deveria ir.

O homem santo entrou numa meditação profunda e jejuou. No sétimo dia, o sacerdote do último monastério que visitara na Grécia veio até ele num sonho. Ele lembrou o viajante da antiga história de Belovodia, um país notável de beleza e sabedoria eternas no Oriente. Só aqueles que eram chamados - uns poucos indivíduos selecionados - tinham a permissão de descobri-lo e visitá-lo.

O viajante contou essa história ao grão-duque, que ficou entusiasmado. Ele decidiu enviar uma expedição para o Oriente, liderada pelo peregrino, Sergey, para descobrir esse país misterioso. Seis homens de famílias nobres, assim como muitos servos e carregadores, iriam com Sergey para ajudá-lo. O número de pessoas que seguiriam nesta peregrinação era de trezentos e trinta e três. Eles foram instruídos a retornar com novidades em três anos.

No primeiro ano, muitas mensagens chegaram no palácio do grão-duque entre grande alegria e esperança. No segundo ano não houve notícia alguma. No terceiro ano, também, nada. Sete, dez, doze anos se passaram sem nenhuma outra notícia da expedição. De início, as pessoas procuravam no horizonte por eles, ansiosos pelas boas novas que certamente os acompanhariam. Então as pessoas temeram que o pior houvesse acontecido, e deixaram de procurá-los. Muitos rezaram e lamentaram a busca por Belovodia.

Quarenta e nove anos se passaram, e finalmente um velho monge chegou em Kiev de Konstantinopol. Mais tarde, sentindo que sua vida estava se aproximando do fim, o velho decidiu contar seu segredo. Ele só podia ser passado verbalmente de monge para monge, já que era conhecimento sagrado. Ele disse que este segredo eventualmente se tornaria posse de todos os povos da terra, mas só no momento certo. Então, uma nova era se iniciaria.

Ele disse o seguinte: "Eu sou o mesmo padre Sergey que, há cinqüenta e cinco anos, foi enviado pelo grão-duque Vladimir Sol Vermelho para procurar Belovodia. O primeiro ano foi calmo e seguro. Nós passamos por muitas terras e por dois mares. O segundo ano nos levou pelo deserto e ficou mais difícil continuar. Muitas pessoas e animais morreram. As estradas se tornaram intransitáveis. Não conseguimos achar respostas para nossas perguntas, e nosso povo foi ficando cada vez mais insatisfeito.

"Quanto mais viajávamos, mais encontrávamos os ossos de pessoas e de animais. Finalmente, alcançamos um lugar completamente coberto de ossos, e as pessoas se recusaram a continuar. Tomamos uma decisão conjunta de que só dois homens continuariam comigo. Todos os outros voltariam para casa. No final do terceiro ano, meus dois companheiros ficaram doentes e precisaram ser deixados numa vila pelo caminho.

"Enquanto eu viajava sozinho, descobri guias em outras vilas que me contaram que, de vez em quando, passavam peregrinos através da sua terra procurando um país místico. Alguns o chamavam de País Fechado. Outros o chamavam de País da Água Branca e Altas Montanhas ou País dos Espíritos da Luz ou País do Fogo Vivo ou País dos Deuses Vivos. As lendas de Belovodia tinham, de fato, viajado muito.

"Finalmente, um dos meus guias me disse que o pais misterioso poderia ser alcançado do lugar onde estávamos em três dias. Meu guia poderia me levar só até a fronteira. Depois disso eu deveria viajar sozinho, porque o guia morreria se entrasse no país misterioso. Então prosseguimos.

"A estrada que subia a montanha era tão estreita que tínhamos que andar em fila única. Montanhas altas com picos cobertos pela neve estavam ao nosso redor. Depois da terceira noite, o guia disse que eu teria que continuar sozinho. Depois de caminhar de três a sete dias para o ponto mais alto das montanhas, se eu fosse um dos poucos escolhidos, uma vila apareceria para mim. Se não, eu não desejaria saber do meu destino. O guia me deixou. Eu fiquei olhando enquanto seus passos se dissolviam no nada.

"O sol nascente iluminou os picos brancos até que eles pare-cessem chamas ardentes. Eu era a única criatura à vista. Estava sozinho com meu Deus, que me trouxera até ali depois de uma viagem tão longa. Um sentimento de exultação celestial indescritível tomou o meu ser. Eu sabia que estava abraçado por um espírito. Me deitei no caminho e beijei o chão rochoso, o meu coração e minha mente silenciosamente agradecendo a Deus pela sua graça. Então segui adiante.

"Logo cheguei a uma encruzilhada. Os dois caminhos pareciam me levar à parte mais alta das montanhas. Escolhi o caminho da direita, que levava ao sol nascente. Continuei meu caminho com orações e canções. Havia mais duas encruzilhadas naquele primeiro dia. Na primeira delas, um dos caminhos estava bloqueado por uma serpente em movimento, como se estivesse fechado para mim, portanto segui o outro caminho. Na segunda, três pedras bloqueavam um dos caminhos. Escolhi o caminho livre.

"No segundo dia, havia uma encruzilhada. Desta vez, o meu caminho se dividia em três partes. Acima de um deles voava uma borboleta, e foi esse que escolhi. Depois do meio-dia o caminho me levou para perto de um lago na montanha.

"No terceiro dia, os raios do sol nascente iluminaram o pico branco e coberto de neve da montanha mais alta e a cercaram com chamas de fogo. Minha alma se elevou em reverência diante dessa visão. Olhei durante muito tempo; ela se tornou parte de num. A minha alma se uniu com as chamas ao redor da montanha, e o fogo tornou-se vivo. Havia figuras brancas se virando, voando na direção do topo em rios de fogo numa bela dança circular. Então o sol se elevou por detrás da montanha, e esta visão hipnótica desapareceu.

"Havia três encruzilhadas no terceiro dia. A primeira tinha ao seu lado um arroio belo e espumante da cor da esmeralda, com espuma branca dançando sobre milhares de pedrinhas e musgos. Rapidamente escolhi o caminho do arroio.

"Por volta de meio-dia cheguei à encruzilhada seguinte. Três caminhos se dividiam nela. Sem pensar, escolhi um rochedo na forma de um ídolo gigantesco protegendo o caminho. Na encruzilhada seguinte, que também tinha três caminhos levando a três direções diferentes, escolhi o caminho mais iluminado pelos raios do sol.

"Quando a escuridão caiu nesse terceiro dia, escutei sons estranhos. Logo, ao lado de uma colina, vi uma casa iluminada pelos últimos raios do sol. Cheguei nesse casebre antes de anoitecer, entrei no humilde refúgio e dormi, agradecido.

"No dia seguinte fui despertado por vozes. Dois homens estavam diante de mim, falando numa língua desconhecida. Estranhamente, minha personalidade interior os compreendeu de algum modo, e eles também me compreenderam. Perguntaram se eu precisava de comida.

"Repliquei: 'Sim, preciso, mas só para o meu espírito.'

"Eu os segui até uma vila onde fiquei durante algum tempo. Ali fiquei sabendo de muitas coisas, e recebi alguns deveres e trabalho para fazer. Sentia-me tremendamente contente. Então, certo dia, me disseram que estava na hora de seguir adiante na minha jornada.

"Fui tratado como um parente amado quando alcancei o lugar seguinte, e então novamente fui levado mais longe quando chegou a hora certa.

"Perdi a noção do tempo, porque não havia como pensar nisso. Cada dia trazia algo novo, algo surpreendentemente sábio e maravilhoso para mim. O tempo se passou como se eu estivesse num miraculoso sonho de todas as coisas boas. Finalmente, me disseram que estava na hora de voltar para casa, e foi o que eu fiz.

"Agora que estou prestes a deixar esse mundo, estou contando o que é possível para mim contar. Calei-me sobre muitas coisas, porque a sua mente humana não poderia aceitar tudo o que eu vi e escutei

"O país de Belovodia não é uma fantasia. É uma realidade. Ele recebeu muitos nomes diferentes nas lendas populares. Os Grandes Seres Sagrados, os orientadores do Mundo Elevado, vivem lá. Eles trabalham constantemente junto com todos os Poderes Luminosos celestes para ajudar e guiar todos os povos da terra. O seu é um reino de Puro Espírito, com chamas maravilhosas, cheio de mistérios encantadores, alegria, luz, amor, inspiração, calma, e uma inimaginável grandeza.

"A cada cem anos, só sete pessoas de todo o mundo têm permissão de penetrar neste país. Seis delas retornam com o conhecimento sagrado, e a outra permanece.

"Em Belovodia, as pessoas vivem tanto quanto querem. O tempo pára para qualquer um que entre no reino. Eles vêem e escutam tudo que acontece no mundo externo. Nada está oculto de quem está em Belovodia.

"À medida que o meu espírito ficou mais forte, recebi a oportunidade de ver além do meu corpo, de visitar cidades diferentes e conhecer e escutar tudo que eu desejava. Contaram-me sobre o destino do nosso povo e do nosso país. Há um grande futuro à nossa espera."

 

Lentamente fui virando as páginas da brochura, curiosa sobre essa bizarra mas estranhamente verossímil história. No final da brochura, uma nota dizia que o texto fora escrito em 1893, copiando exatamente as palavras da boca de um monge moribundo num monastério. Fiquei surpresa quando percebi que essa história fora passada oralmente desde 987, quando o grão-duque mandou seu embaixador para o mundo, até 1893, quando finalmente fora escrita.

Senti uma estranha excitação, percebendo que tinha aquele pequeno livro nas mãos quase cem anos depois de ele ter sido escrito. Não consegui achar na sua capa nenhum sinal de um autor ou editor. Perguntei aos meus novos amigos sobre ele, mas eles não podiam me dizer mais nada.

- A única coisa que posso acrescentar - disse Victor - é que um dos meus amigos, um fotógrafo profissional, costumava vir até aqui de vez em quando para tirar fotos. Ele ficou tão impressionado com Altai que decidiu viver aqui. Ele está convencido de que Belovodia está aqui, e possui suas próprias teorias detalhadas sobre o assunto. Ele viu algumas ravinas rochosas nas montanhas com apenas gelo por baixo delas. Ele me disse que quando o sol ilumina esses lugares, um fogo torna-se visível. Essa visão é tão diferente de tudo que alguém possa ter visto que ele tem certeza de que é a localização de Belovodia.

Victor olhou para o seu relógio, e vi que já era quase meio-dia. Fiquei surpresa em ver quanto tempo tinha se passado e comecei a me preocupar com Anna e Nicolai. Rapidamente agradeci e me despedi e voltei à luz do dia para encontrar a casa onde Anna desaparecera no dia anterior.

 

A única rua da vila parecia mais real e normal de manha do que pare-cera na noite anterior. Enquanto eu caminhava, recordava minhas experiências da noite e a sensação da presença de Umai. Era mais fácil para mim agora pensar em tudo aquilo como um sonho. Eu não tinha contexto para Umai no meu estado de espírito matinal. Eu nem mesmo conseguia imaginar que ela estivesse na vila.

Uma coisa sobre a experiência de ontem tinha me incomodado mais do que qualquer outro detalhe. O fato de ter uma visão poderia ser explicado usando diferentes ferramentas psiquiátricas, mas eu não sabia como racionalizar o fato de que vira peixes esculpidos nadando sobre pedaços de madeira e Umai agradecendo por tê-la ajudado a dar-lhes vida e fazer com que nadassem com a doença para longe. Como ela sabia que eu os vira se movendo? Era só uma coincidência? Não ter uma resposta para isso destruía as explicações racionais que eu tinha para todas as outras coisas que aconteceram.

Esta pergunta era perturbadora demais para qualquer outro pensamento. Para aquietar minha mente, simplesmente me concentrei nos meus passos e segui para a casa em que tinha deixado Anna. Eu esperava que estar com Anna e Nicolai me ajudasse a trazer alguma ordem aos meus pensamentos e emoções, e me permitisse encaixar as peças misteriosas desse estranho quebra-cabeça.

Cautelosamente, me aproximei da porta da casa e bati algumas vezes, cada batida mais ousada e mais alta do que a anterior. Nenhuma voz respondeu, nem havia som algum de passos se movendo para a porta. Finalmente, empurrei a porta e ela abriu. As janelas estavam bem fechadas, e a casa estava escura. De início não consegui ver nada, e pensei que a casa estivesse vazia. Quando meus olhos se acostumaram à escuridão e pude ver a vaga silhueta de alguns móveis na sala, entrei. Procurando Anna, passei lentamente da primeira sala para a segunda. Ainda assim não vi ninguém. Pensei que talvez Anna e Nicolai houvessem saído para me procurar e que tivéssemos nos desencontrado. O meu pensamento estava tão confuso que momentaneamente esqueci que teria sido impossível para nós nos perdermos, já que só havia uma estrada atravessando essa pequena vila da montanha.

Um som leve a minha direita me fez me voltar para a parede. Procurei desesperada pelo interruptor, e quando finalmente o encontrei, me vi diante de uma imagem de Anna que nunca esquecerei. A sua figura estava caída desajeitadamente contra a parede. Ela estava imóvel e não dava nenhuma indicação de perceber a minha presença. As suas mãos tinham sido amarradas com uma grossa corda escura que passava por dois grandes anéis de metal presos na parede. Ela estava meio sentada, vestindo só sua roupa de baixo, sua cabeça caída contra o peito. Suas mãos estavam abertas, e podia ver que estavam cobertas com pequenos cortes e sangue seco. Pensei que minha amiga tinha morrido.

- Anna! - gritei, aterrorizada. Ela fez um ligeiro movimento, e um gemido escapou dos seus lábios. Sentei ao seu lado, segurando os seus ombros, tentando não me entregar às emoções. Ela lentamente abriu seus olhos e olhou para mim. Feias manchas escuras sob seus olhos deixavam seu rosto velho e enfraquecido.

- Me ajude, Olga - ela pediu numa voz cansada e fraca.

Saindo do meu choque inicial, comecei a trabalhar com a corda grossa, libertando suas mãos o mais rápido que pude. Tive medo de perguntar a Anna o que tinha acontecido, e em vez disso me concentrei em desamarrar as cordas para soltá-la. Então a ajudei a atravessar a sala e a coloquei confortável numa grande cama que estava no lado oposto. O medo e a confusão tomaram conta de mim, e me vi chorando, sentindo que algo irreversível tinha acontecido com ela.

Ouvindo meus soluços, Anna falou.

- Pare de chorar, por favor. Nada de perigoso aconteceu comigo, Olga. Eu só não dormi o bastante.

Ela fez um gesto na direção do seu vestido, que estava disposto sobre uma cadeira. Eu a ajudei a vesti-lo, a sua mente ainda não totalmente presente e seu corpo ainda se recuperando.

- É claro, Anna - repliquei. - E como você não conseguia dormir, amarrou suas mãos nos elos de metal na parede. Então, quando ainda assim não conseguiu dormir, cortou-as com uma faca. Olhe só para você!

Minha explosão emocional ajudou a me sentir melhor. Anna parecia estar ganhando força, o seu corpo se movendo com mais facilidade agora, e ela parecia pelo menos um pouco com sua velha personalidade. Olhei cuidadosamente para ela e fiquei aliviada ao concluir que nada de sério tinha acontecido.

- Mas, Olga, foi minha própria decisão fazer isso. Eu não sabia exatamente o que esperar, mas Umai me disse que poderia ser difícil. Ela me perguntou se eu estava pronta a sofrer um pouco para acabar com a minha doença, e eu concordei prontamente. Então, foi minha decisão. Eu vou ficar bem. Só me dê mais algum tempo. - A sua voz enfraqueceu novamente, mas não mostrava outros sinais de abuso.

Finalmente, com um suspiro profundo, ela começou a descrever os eventos da noite anterior. Depois de termos partido ontem, Nicolai a trouxe para sua casa e a deixou sozinha para esperar por Umai. Ela esperara durante um bom tempo, mas felizmente encontrara um livro interessante e passara o tempo lendo. Finalmente, Umai chegou e não perdeu um minuto para começar o processo de cura.

- A primeira coisa que Umai fez foi perguntar, como já disse um minuto atrás, se eu estava pronta para sofrer. Eu disse que sim.

- Espere um minuto, Anna. Como você conseguiu compreendê-la? - perguntei, confusa.

- A pergunta dela era simples o bastante, Olga, e eu a compreendi literalmente. Ela perguntou se eu concordava em sofrer e respondi que sim. Eu não tinha vindo todo esse caminho para ser curada, trazendo você junto, só para recusar por causa de um pouco de desconforto.

Percebi que ela não compreendera a minha pergunta.

- Não foi isso que eu quis dizer, Anna. Como você compreendeu a linguagem dela?

- Como assim, Olga? - Ela franziu o cenho e sacudiu a cabeça como se a pergunta não fizesse sentido. - Umai pode falar com sotaque, mas o russo dela é fluente.

Imaginei se Anna estava de algum modo confusa ou se Umai realmente falava russo. Se ela falava, me perguntei, por que não falou comigo?

- O que ela fez em seguida - continuou Anna -, foi pegar duas garrafas de vidro na mesa. Acredito que estavam cheias de vodca, ou pelo menos era isso que estava escrito nos rótulos. Ela bebeu-as facilmente, como se fosse água. Não posso imaginar que fosse realmente vodca, porque não acho que alguém pudesse ter bebido as garrafas tão rápido nesse caso.

"De qualquer maneira - seja lá o que houvesse nas garrafas - logo depois ela pareceu estar bêbada. Ela pegou essas cordas que você viu de algum lugar do outro lado da sala. Então ela me pediu para tirar minhas roupas e ficar perto da parede. Nunca me ocorreu que ela pudesse me amarrar com elas. Fui até a parede, e quando me voltei para olhar para ela, já estava amarrando minhas mãos. Não tive nem tempo de pensar sobre o que estava acontecendo comigo.

"Acho que aceitei tudo como um tipo de jogo etnográfico no início. Quando percebi que ela parecia muito bêbada e que não podia ou não queria responder a nenhuma das minhas perguntas, então comecei a sentir medo. Eu gritei com ela, exigindo que ela respondesse. Perguntei a ela o que estava fazendo. Ainda não havia nenhuma reação da sua parte, não importa o que eu fizesse. Ela só queria dançar pela sala, dando passinhos rápidos e cantando uma canção monótona enquanto se movia. Ela estava bêbada, louca e assustadora, e eu estava totalmente em seu poder.

"Ficar totalmente indefesa dessa maneira foi a coisa mais horrível que eu já experimentei. A perda da minha liberdade foi apavorante. Acho que o inferno deve ser algo assim.

"Então Umai começou a cantar muito alto. Ela parecia estar completamente fora de controle, sem responsabilidade nenhuma pelas suas ações. Finalmente cansei de gritar com ela, e já que nada de horroroso realmente acontecera, o meu medo passou um pouco. Decidi simplesmente esperar pelo final da sua atuação. Então ela deixou a sala e voltou com uma grande faca afiada. Ela veio na minha direção com um ar ameaçador, gritando alguma coisa na sua própria língua, e começou a enfiar a faca na parede ao redor do meu corpo.

"Você pode imaginar como eu fiquei horrorizada, Olga? Eu pensei que fosse morrer naquele exato momento. Eu não acho que alguém possa imaginar como eu me senti naquele instante. Eu chorei; rezei. Lutei para me soltar; mas era impossível. Então ela ficou ainda mais louca e começou a cortar minhas mãos com sua faca.

"Quando vi o primeiro sangue fluindo do meu corpo, o meu medo de alguma maneira se transformou em raiva. Fiquei furiosa com Umai e gritei que ia matá-la! Ela olhou para mim, e então subitamente passou por uma transformação completa. Com um ar totalmente sóbrio, ela disse em russo que não pararia até ter mandado a minha doença embora. Então voltou ao seu porre e começou a me espetar novamente com sua faca.

"Experimentei um incrível sentimento de ódio, não só na minha mente mas também no meu corpo inteiro. Mas dessa vez não era ódio por Umai, mas por mim mesma, pela situação em que tinha me metido, e por permitir que eu ficasse à mercê de Umai dessa maneira tão indefesa. Este ódio me invadiu dos pés até o topo da minha cabeça. Eu não sabia o que fazer com essa sensação; pensei que fosse enlouquecer. Então, subitamente um grito animal veio da minha garganta. Eu me sentia como o animal. Cheguei a ver uma figura gigantesca sair da minha boca junto com o grito. E então tudo mudou. Acho que foi o grito que mudou as coisas. O meu ódio dissolveu-se imediatamente.

"Ao mesmo tempo, Umai ficou bastante calma novamente e pareceu cansada. Ela sentou-se na cadeira na minha frente e começou a fumar o seu cachimbo. Não sentia mais raiva dela; estava exausta demais. Pedi-lhe para dar uma tragada, e ela levou o cachimbo aos meus lábios durante alguns momentos. O tabaco era forte e tinha um cheiro diferente de qualquer outro que eu já tivesse provado. Eu ainda estava amarrada, e estava cansada demais.

"'Eu não vou desamarrá-la', disse ela. 'Se o fizer, você vai achar que tudo foi apenas um sonho. Você vai precisar de uma testemunha. Os seus laços servirão para essa finalidade. E não sinta pena de si mesma. Sentir pena não vai realizar nada. A sua amiga vai chegar logo. Ela vai ajudar você, e vai ser muito boa sentindo pena de você.'

"Com essas últimas palavras, ela riu e deixou a casa. Caí no sono, exatamente onde eu estava amarrada na parede. Então você veio e me acordou. E você sabe, ela estava certa. Você realmente foi muito boa em chorar por mim. - Anna terminou sua história, rindo suavemente de mim.

Enquanto Anna falava, eu me sentia cada vez mais como se tivesse passado pela terrível provação que ela descrevera. Tudo que ela disse parecia tão real. Eu queria fazer mais perguntas, mas vi que ela simplesmente não tinha forças para dizer mais nada. Eu também estava cansada, e por isso só fiz uma última pergunta simples antes de deixá-la dormir.

- Onde está Nicolai?

- Eu não sei. A última vez que o vi foi ontem, quando ele caminhou comigo até esta casa. Pensei que você e ele estivessem juntos em algum lugar.

- Não, também nos separamos ontem, e ele disse que ia voltar para cá para esperar com você. Ele não veio?

- Não, Olga. Eu não me lembro de tê-lo visto. - Ela dormiu quando a última palavra deixou sua boca.

Sentei-me e fechei os olhos por um instante. Pensamentos vinham rápidos à minha mente. Obviamente, a situação excedera a minha capacidade de lidar com ela. O mesmo tipo de coisa acontecera algumas vezes no passado, quando estivera em situações extremas. Minha mente consciente sentia-se sobrepujada e embotada, enquanto meu inconsciente tentava escolher o melhor caminho a tomar. Mas dessa vez não veio nenhuma idéia do meu estupor. Estava incapaz de reagir racionalmente, e não sabia se chorava, corria, gritava ou simplesmente dormia como Anna. Tudo estava acontecendo rápido demais.

Eu não sei quanto tempo fiquei ao lado de Anna enquanto ela dormia, mas finalmente decidi voltar para ver Victor e Igor novamente. Esses homens pareciam ser a minha única conexão com a normalidade. Eles agora eram símbolos de estabilidade e ordem para mim. Assim que pensei em vê-los, não perdi tempo. Coloquei meu casaco ao redor dos ombros, deixei a casa, e caminhei rapidamente para a estrada familiar até a casa deles.

Bati na porta e abri sem esperar por uma resposta. A tradição de portas abertas da vila rapidamente desapareceu para mim, assim que uma mulher de ar severo me olhou obviamente irritada com minha intrusão.

- O que você quer? - perguntou ela em russo, numa voz alta vazia do mais remoto traço de hospitalidade.

- Vim fazer algumas perguntas a Victor e Igor - falei sem pensar, surpresa de ter encontrado essa mulher rabugenta.

- Não há ninguém com esses nomes aqui - respondeu rispidamente.

- Mas eu os encontrei aqui hoje de manhã - insisti. - Fiquei aqui na noite passada, na outra metade da casa. Umai me trouxe aqui.

Eu estava cada vez mais confusa, e precisava confirmar algum tipo de realidade para mim mesma. Era importante que essa mulher confirmasse que eu estivera lá com Victor e Igor, e que minha experiência com eles tinha sido real.

Ela repetiu suas palavras de maneira ainda mais ríspida.

- Nunca houve ninguém aqui com esses nomes. Eu não tenho idéia do que você está dizendo, mocinha.

- Por favor, me escute. Dois amigos e eu viemos para cá de Novosibirsk. Estou procurando o homem de Altai que nos trouxe ontem para cá da sua vila. O seu nome é Nicolai, e nós chegamos aqui ontem. Não podemos encontrar nosso caminho de volta para a sua vila sem ele. Pode me ajudar a encontrá-lo, por favor?

Em vez de suavizar, como tinha esperado, o seu rosto tornou-se ainda mais severo. Se possível, sua voz ficou ainda mais dura.

- Quando eu era uma jovem, nunca teria me metido numa situação assim com um homem. Isso é problema seu. Não sei de nada que possa ajudá-la. Agora por favor deixe a minha casa.

Eu tinha certeza de que ela sabia sobre Victor e Igor e provavelmente sobre Umai e Nicolai também. Era impossível viver numa vila tão pequena e não saber de tudo que acontecia, especialmente sobre pessoas que tinham pernoitado na sua própria casa. Mas a sua hostilidade para comigo, uma mulher jovem e solteira do mundo exterior, viajando com um homem solteiro, era clara demais. Eu sabia que ela falara suas palavras finais comigo.

Irada, voltei para a rua, que estava completamente vazia. O medo e a solidão estavam tomando conta de mim, e para piorar as coisas, eu podia sentir pelo formigamento da minha pele que as pessoas estavam sentadas nas suas casas ao meu redor, sabendo de tudo que acontecera mas sem nenhuma disposição de me ajudar.

"LOJA". O sinal simples no teto de uma casa chamou minha atenção. Imaginei como poderia ter caminhado por essa rua e deixado de notá-lo antes. Muito embora estivesse com medo de que minha extrema intranqüilidade piorasse dentro da loja, como a porta estava aberta entrei sem pensar.

Um velho altaiano estava sentado por trás do balcão. Ele estava quase dormindo, sua cabeça oscilando enquanto respirava alto. Ele vestia o tradicional traje quente de Altai com o cinto ao redor do seu grande estômago. Ele estava usando um típico chapéu russo, feito de pele de coelho tingida, que obviamente o ajudava a sentir-se confortável na sua loja sem aquecimento. Ele só pareceu me notar quando perguntei, bastante nervosa, o que eu poderia comprar para comer. Não havia comida ou bebida em nenhum lugar que eu pudesse ver, só alguns itens para crianças e coisas como sabão e pasta de dente.

Voltando a atenção lentamente, o velho olhou para mim e disse:

- Bem, você pode comprar pão e doces. Todo o resto da comida que tenho já foi vendido. Eu não sei quando vão trazer mais coisas para eu vender. - Ele olhou para mim com indiferença, mas tive a sensação de que já sabia de tudo sobre mim. Uma intensa sensação de tensão se espalhou pelo meu abdômen e peito.

Forcei-me a recordar os casos de paranóia ferroviária, descritos por um famoso psiquiatra russo do século XIX como um tipo de desordem situacional que atacava pessoas que viajavam de trem pela primeira vez. Esta síndrome estava relacionada com muitos tipos de paranóia causados por situações desconhecidas. Eu não tinha nenhum desejo de experimentar a psicose em primeira mão, de modo que me concentrei em decidir o que comprar.

Isso me acalmou, e fui capaz de comprar algum pão e um pacote de doces secos sem qualquer outro alarme. Deixara minha bolsa e todos os meus documentos na minha mala na casa de Maria, mas felizmente encontrei dinheiro bastante no bolso do meu casaco para pagar pela comida. Isso fez com que me sentisse estúpida e irresponsável ao pensar na maneira descuidada com que planejara e levara adiante essa viagem.

Quando voltei para casa, Anna ainda estava dormindo. Ainda não havia sinal algum de Nicolai. Perturbava-me não saber onde ele estava e quando iria aparecer.

Percebi, também, que algo incomum acontecera ao meu senso de passagem de tempo. Parecia que só algumas horas tinham se passado desde que eu acordara naquela manhã, mas quando olhei para fora vi que a luz do dia já estava diminuindo e que a noite estava caindo sobre nós. Eu não conseguia encontrar meu relógio, e não me lembrava se estava com ele ontem ou não. Nunca sentira essa estranha compressão cronológica antes, e ela me deixava ainda mais confusa.

Eu achava que talvez pudesse me centrar mais e voltar a me sentir mais inteira me concentrando no meu corpo físico. Olhei para a bolsa de Anna e encontrei o pão e queijo que Maria nos dera ontem. Havia sido realmente apenas ontem?

Enquanto fazia uma pequena refeição, escutei a voz de Anna. De início me senti mal por ter feito tanto barulho e a despertado cedo demais. Mas quando ela entrou na cozinha, mal pude acreditar nos meus próprios olhos. Ela parecia anos mais nova, e a expressão de felicidade no seu rosto era como a de uma criança recém-nascida. Estava gargalhando de algum lugar centrado dentro de si, e obviamente tinha uma enorme energia em todo seu corpo.

- Olá! Estou de volta - disse ela finalmente, com um sorriso jovial no seu rosto.

- Estou vendo. - Analisei o seu rosto, primeiro com espanto, então com um grande alívio ao ver que minha amiga de fato parecia estar totalmente de volta. E no processo, ela parecia melhor do que nos últimos tempos.

- Olga! Não consigo acreditar como estou me sentindo bem. Não me lembro de ter me sentido tão saudável e forte. Obviamente precisamos experimentar, em certas ocasiões, a doença para perceber o que é a saúde, e foi isso que eu fiz. A sua Umai é uma velha maluca, mas acho que ela pode realmente fazer milagres.

- Estou feliz em ouvir isso, Anna, mas ela não é a "minha" Umai. Ela é pelo menos tão sua quanto minha. Especialmente porque eu não compreendo de modo algum a experiência que tive com ela. Se foi uma cura, certamente tinha muito de loucura nela. Senti-me quase louca depois que ela trabalhou comigo!

- Anna, você tem alguma idéia do que devemos fazer em seguida? Não sabemos onde está Nicolai, quando ele vai aparecer, ou até mesmo se ele vai aparecer. Está na hora de voltarmos para casa, não acha? Mas não sabemos como sair daqui sozinhas. Você tem alguma sugestão?

- Eu não me importo com nada disso. Neste exato momento, quero alguma coisa para comer, e depois provavelmente me faria bem dormir mais algumas horas. Está quase de noite novamente, não é?

Olhando pelas janelas, fiquei chocada ao perceber que a luz do dia já se fora inteiramente e que uma escuridão total envolvera a pequena vila. Então fui abalada por outra descoberta quando percebi que alguém acendera a luz elétrica. Eu sabia que não tinha sido eu, e não achava que houvesse sido Anna, tampouco. Mas do que poderia ter certeza nesse lugar estranho?

Anna poderia achar que estava tudo bem em ficar aqui, mas eu estava achando isso cada vez mais difícil. A minha caminha no meu apartamento sem graça e desinteressante na cidade me parecia cada vez melhor. Recordei as palavras de Anna na minha mente e finalmente lembrei a ela que tínhamos o pão e queijo de Maria, assim como algumas coisas que eu comprara na loja. Decidimos fazer uma boquinha e então dormirmos o mais cedo possível para que pudéssemos acordar com a primeira luz do dia e começarmos a tentar sair daquele lugar. Quando fomos dormir, disse: "Boa noite, Anna. E espero não acordar amanhã de manhã para encontrar você amarrada na parede novamente!"

O segundo quarto tinha outra cama. Deitei-me imediatamente, sem nem mesmo tirar minhas roupas ou me meter sob um cobertor.

O meu último pensamento foi estranho, que a temperatura da casa parecia confortável, mas que ninguém acendera o fogo da lareira e não havia outra fonte de calor. Eu estava mental, física e emocionalmente tão esgotada que até mesmo este estranho fato, somado a dormir nessa casa misteriosa sem saber onde Nicolai, minha mala e todas as minhas outras posses estavam não me impediu de fechar meus olhos na ansiosa antecipação de um sono profundo e pacífico.

 

Subitamente, uma onda calorosa cobre o meu corpo vinda de cima, e posso sentir que estou sendo arrebatada através do tempo e do espaço por uma força desconhecida. Embora eu esteia indefesa, sinto-me segura, de modo que simplesmente me rendo a seja lá o que estiver acontecendo. Vejo-me deitada novamente no mesmo quarto onde estive com Umai ontem. De algum modo isso não me surpreende. Estou num novo estado de consciência em que posso sentir plenamente o meu corpo, mas não posso mover qualquer parte dele. Existem muitas vozes ao meu redor mas elas são indistintas e não posso compreendê-las. Eu não tenho voz própria.

Sinto novamente vibrações passando pelo meu corpo, do topo da minha cabeça até meus pés. É uma sensação agradável, de modo que tento não resistir a ela. Um som rítmico lentamente invade a minha percepção e chega cada vez mais perto. Não é importante para mim descobrir a origem deste som. Estou novamente me acostumando a não questionar o que está acontecendo comigo, simplesmente me permitindo estar dentro dos acontecimentos. Confio que é seguro para mim fazer isso.

O ritmo me agrada e começo a segui-lo. Ele começa a criar imagens para mim. De inicio elas não são claras, rapidamente substituindo umas às outras, até que finalmente uma delas torna-se forte e focalizada. É a visão de uma pirâmide de âmbar. De início ela está muito longe, mas ela se aproxima de mim com grande velocidade. Ela está muito longe de início, e não sei o que fazer

O espaço na minha frente torna-se amarelo. A pirâmide fica enorme, e subitamente me vejo penetrar a sua parede de âmbar. Não há tempo para compreender o que está acontecendo.

Estou dentro do âmbar flutuando lentamente para cima dentro dela. O meu corpo está se movendo em harmonia através de corredores amarelos. É um mundo sereno sem pessoa alguma, sem qualquer outra energia que não a experiência do âmbar. O tempo é comprimido neste lugar. Sinto uma espiral de algum tipo dentro do meu corpo, que lentamente se retesa e me empurra para cima, cada vez mais para cima. O tempo se espalha para cima comigo. A pirâmide se torna um vulcão e entra em erupção. Estou no meio da explosão, que me propele violentamente para longe.

Sou transportada em segurança para uma floresta escura. Em algum ponto profundo dentro de mim mesma estou calma e aceitando tudo que está acontecendo. Não tenho medo; sinto-me mudada. Embora algumas das minhas experiências recentes tenham sido aterradoras, elas também me ensinaram muito. Elas tornaram possível afastar-me de mim mesma e ser uma observadora de uma maneira que nunca fora anteriormente.

"Siga em frente!" É a voz de Umai, e me reconforta saber que ela está por perto. Há um pequeno caminho, e eu o sigo até as profundezas da floresta. As cores da floresta são o negro e o azul. Pelos tipos de árvore ao meu redor sei que estou em algum lugar da Sibéria. Percebo o inconfundível aroma de um rio, e sei que a água não está longe. Todos os meus sentidos são intensos, como se os prazeres e dores das eras houvessem se fundido no meu coração. Cada vez que meus pés invisíveis dão um passo, sinto esta mistura de dor e prazer. O efeito da gravitação no meu corpo mudou, e é um esforço manter meus pés sobre o chão.

"Siga em frente!" A voz de Umai está mais forte e mais urgente, e continuo no caminho. Ele parece ter se tornado ainda mais escuro. O pesado silêncio é agora meu único companheiro. Subitamente pareço ter me tornado uma mulher muito velha, no entanto sinto-me num estado muito poderoso. O caminho me leva para um ponto de fogo brilhando numa pequena clareira cercada por árvores.

"Por que estou tão velha?", pergunto a ninguém em particular. Não há resposta, só a voz de Umai me mandando novamente seguir em frente.

O meu corpo agora está vestido em longas roupas brancas. Caminho cada vez mais rápido, atraída pelo fogo que queima diante de mim. Muitas pessoas estão reunidas ao redor nas mesmas vestes brancas. Algumas estão sentadas, algumas de pé, e outras dançam em volta do fogo. Os seus rostos parecem estranhamente familiares, embora eu não chegue a reconhecer nenhuma pessoa conhecida. Os cavalos estão amarrados a muitas das árvores ao redor da clareira. Me aproximo do fogo, e os dançarinos se afastam, abrindo caminho para mim.

Três figuras estão sentadas ao redor do fogo, vestindo roupas brancas flutuantes como as minhas. Suas cabeças, cobertas por capuzes brancos, estão voltadas para o chão. Elas estão sentadas em três das quatro direções cardeais, e o caminho que estou seguindo me leva até a quarta direção. Elas não se movem enquanto eu me aproximo, mas sei que estão conscientes da minha presença. Sento silenciosamente com elas no quarto lado da fogueira.

Gradualmente, o ritmo da dança em torno fica cada vez mais forte. Sem uma palavra ou gesto entre nós, ficamos de pé simultaneamente. Alguma coisa importante está prestes a acontecer e eu me permito ser tomada por essa coisa.

Eu piso na fogueira, encarando as três figuras diante de mim. A chama abraça o meu corpo, mas eu não estou assustada e nem sinto dor alguma. Instantaneamente a figura do lado diretamente oposto da fogueira entra no fogo comigo. Ela remove seu capuz, e pela primeira vez posso ver o seu rosto. Então todo o seu ser se transforma num tremendo relâmpago que ilumina todo o espaço ao nosso redor, as suas extremidades conectando as duas figuras ainda de pé á minha direita e esquerda.

Volto-me para a figura à esquerda e fito diretamente o seu rosto. Quando o faço, sua carne desaparece e ela se transforma em nada a não ser ossos - ossos velhos e embranquecidos. Então o relâmpago lampeja novamente, e olho para a figura à minha direita. À medida que o relâmpago deixa o seu corpo, ela se transforma num buquê de lindas e vibrantes flores brancas que parece conter a energia de toda a vida. Posso sentir a sua essência na sua fragrância.

Agora todas as três figuras se fundem na fogueira, entrando no espaço onde estou de pé e se integrando comigo completamente. Agora sou ossos e flores unidos através do relâmpago, e o meu corpo de velha se transformou no corpo de uma jovem forte.

A voz vibrante de um homem vem de algum lugar no círculo ao redor da fogueira. "Estamos prontos para irmos embora. Guarde a memória do que você experimentou. Nos reuniremos novamente." As pessoas estão começando a ir embora, caminhando na direção dos cavalos amarrados à espera delas nas árvores.

"Siga em frente!" exige novamente a voz de Umai.

Estou novamente sozinha, retraçando meus passos pelo mesmo caminho que me levou até a fogueira. O relâmpago dentro de mim é uma fina linha entre a vida e a morte. Compreendo isso, e sinto que posso usar esse conhecimento como um dom para ajudar a mim mesma, assim como aos outros.

 

Quando despertei, estava completamente desorientada, sem saber por um momento quem eu era ou onde estava. Olhei assustada ao meu redor, e então, pela porta aberta, vi Anna dormindo pacificamente na sala ao lado. Percebi então que acabara de retornar a minha realidade cotidiana vinda de outra estranha experiência. Enquanto a minha sensação onírica de equilibrar um ponto entre a vida e a morte começava a se desvanecer, subitamente passei a recordar um encontro incomum que acontecera há mais de dez anos.

 

Eu tinha então dezoito anos de idade, e era uma estudante do primeiro ano na escola de medicina em Novosibirsk. Foi uma época maravilhosa na minha vida, em que eu estava finalmente livre das regras estritas e das restrições do segundo grau. Foi uma época cheia de festas, de novos amigos, teatro, todo tipo de novas experiências. Como os jovens estudantes no mundo todo, estávamos descobrindo os primeiros prazeres da vida adulta.

Como estudantes de medicina, estávamos continuamente indo de uma clínica a outra, geralmente de ônibus. Era frustrante ter que desperdiçar tanto tempo a cada dia viajando longas distâncias para chegar até nossas aulas. Certo dia no meio do inverno, eu tinha esperado durante um tempo longo demais pelo meu ônibus no vento gélido, de modo que não fiquei surpresa quando comecei a me sentir mal algumas horas depois.

À noite eu estava com febre alta. A gripe daquele período era muito forte, e estava mandando as pessoas para a cama durante pelo menos uma semana, de modo que soube que precisaria de mais um dia ou dois para me recuperar. O pensamento também era perturbador, porque as férias de inverno estavam prestes a começar, e eu pretendia ir para um hotel no campo com meus amigos. Se fosse realmente a gripe, eu certamente teria que interromper meus planos de divertimento merecido. Relutantemente, fui para a cama para esperar pela manifestação dos sintomas.

No dia seguinte eu estava deitada na minha cama sob um quente edredom, tentando ler um livro e ocasionalmente assistindo a um dos vários programas maçantes da televisão, quando o telefone tocou. Era Irena, uma das minhas amigas, me ligando para perguntar como eu estava me sentindo.

Depois de ter escutado as minhas reclamações e dito as coisas apropriadas sobre como sentia muito o fato de eu estar doente, fofocamos durante algum tempo sobre as novidades da universidade. Finalmente, no momento em que nossa conversa estava prestes a terminar, ela disse, hesitante, que não tinha certeza de como eu responderia ao que ela estava prestes a sugerir, mas ela achava que podia haver uma chance de eu ir para o hotel com todo mundo. Ela contou que sua mãe conhecia um curandeiro. Ele trabalhava com ela no conservatório, onde ele era um compositor. Diziam que ele era capaz de fazer milagres. A sua mãe certamente conseguiria que eu o visse sem hora marcada naquela mesma noite. Embora eu estivesse com dúvidas e desconfianças, a minha amiga insistiu em me dar o endereço dele, e disse que sua mãe ligaria para acertar tudo.

Escrevi o endereço dele, sem ter certeza do que faria com ele. Eu tinha crescido numa família de médicos e cientistas. Meus pais eram médicos, e a minha avó pelo lado paterno tinha um Ph.D. em química. Mesmo com setenta anos de idade, ela ainda dirigia um importante laboratório de pesquisas em Novosibirsk. A minha família pensava em mim como uma cientista médica apropriada, e, de certa forma, eu pensava o mesmo. A partir desse ponto de vista, a sugestão da minha amiga de que eu fosse ver esse curandeiro não-ortodoxo parecia completamente estranha.

Mas depois de desligar o telefone, comecei a ficar cada vez mais curiosa em ver o que esse curandeiro poderia fazer. A cientista era só um dos meus lados; eu também sempre me sentira profundamente conectada com minha outra avó. A mãe de minha mãe, Alexandra, não tivera muita educação, mas quando eu era uma criança ela me parecia a pessoa mais sábia do mundo.

Ela vivia em Kursk, uma pequena cidade no centro da Rússia. A sua pequena casa era um lugar cheio de amuletos e milagres, onde a palavra cura se tornara muito familiar para mim. Quase todas as mulheres que viviam na vizinhança da minha avó teriam, segundo diziam, algum tipo de poder mágico. Alguns desses poderes eram tidos como benevolentes e curativos, enquanto outros eram misteriosos e assustadores.

Uma das minhas memórias de infância mais vívidas foi testemunhar um ritual conhecido como Chamar a Bruxa. Algumas mulheres da nossa rua, suspeitando que outra mulher estava executando feitiços malignos, encenaram uma cerimônia para descobrir se ela era ou não culpada. Eu ainda era uma garotinha, o rosto vermelho e excitado, assistindo de um esconderijo por trás de uma cerca de madeira coberta por uma espessa camada de vinhas.

Esperando até o momento em que elas pensavam que a suspeita de feitiçaria estaria ocupada e não as veria, elas caminharam rapidamente pelo caminho que levava da sua porta até a rua, apressadamente derramando sal por toda a sua extensão. Muito embora o sal fosse completamente invisível no caminho de terra, a crença na vizinhança era que uma suspeita de magia negra faria qualquer coisa para evitar caminhar sobre ele se fosse realmente culpada.

O que eu vi em seguida foi impressionante. Algum tempo depois, a suposta bruxa deixou sua casa, mas em vez de caminhar até a rua pelo seu caminho regular, ela seguiu uma rota tão estranha que parecia insana. Ela fez um círculo parcial a partir de sua porta e então abriu caminho até a rua através das ervas altas com milhares de espinhos pontiagudos que cresciam pela borda da estrada.

As mulheres vizinhas estavam assistindo a tudo de um esconderijo do outro lado da rua. "Ahá!", exclamaram elas. Com expressões satisfeitas nos seus rostos, partiram para suas casas para preparar seus próprios encantos e feitiços para lidar com a culpada.

Eu tinha vivido entre essas mulheres, escutando-as e vendo-as fazer sua magia natural, desde as minhas primeiras recordações. Uma parte do meu ser ficara fascinada, permanentemente capturada pelo mundo sombrio em que elas viviam e praticavam suas artes misteriosas.

Assim, a minha infância fora definida por duas maneiras muito diferentes, quase que completamente opostas, de interpretar e responder aos vários incidentes da vida humana. Eu sempre considerara esses dois aspectos de minha personalidade como sendo opostos polares, como a Sibéria e a Rússia, o inverno e o verão, a ciência e a magia, e agora o telefonema da minha amiga os colocara mais uma vez em conflito.

O meu diálogo interno sobre seguir ou não a recomendação da minha amiga de ver o curandeiro continuava a arder. A cura heterodoxa era totalmente avessa ao modelo ateu que era um dos blocos fundamentais da cultura soviética oficial. Eu recordei a voz tediosa e monótona de um dos meus professores: "A nova consciência socialista nos permite ver as antigas crenças sobre rituais curadores como aquilo que realmente são - velhas bobagens religiosas."

Escutando novamente a voz inexpressiva da "consciência socialista" na minha mente, decidi ver o curandeiro. Seria, na pior das hipóteses, a minha vingança pela irritação que eu sentira com as palestras do meu antigo professor.

Do lado de fora, no ar frio, caminhei até a estação de ônibus e me vi no final de uma fila melancolicamente longa. Avaliei a minha situação. Eram cinco da tarde, a hora mais movimentada do dia. Quase ninguém na Rússia possui recursos para ter um carro, de modo que a maioria das pessoas usa ônibus para ir e voltar do trabalho. Pelo tamanho da fila, o máximo que eu podia prever era uma longa espera seguida por um lugar de pé no ônibus gelado, espremida enquanto o veículo balançava. Enquanto refletia sobre minhas escolhas, um ônibus chegou e passou direto pela estação sem nem mesmo parar, já cheio devido às pessoas que entraram nos pontos anteriores. Percebi que teria de caminhar, com febre e tudo, se quisesse chegar ao curandeiro na hora. Comecei lentamente, e cerca de quinze minutos depois cheguei no quarteirão apropriado.

O prédio de apartamentos onde ele morava, um típico edifício de cinco andares numa nova unidade de moradia, era fácil de encontrar. Ao vê-lo me lembrei de que na minha juventude eu me perguntara se as cores das casas das pessoas não influenciariam suas emoções, suas mentes, até mesmo sua saúde. Quase todos os edifícios de Novosibirsk eram estruturas feias e cinzentas semelhantes a caixas. Enquanto eu seguia em frente, pensava como seria difícil ir além de uma vida cinzenta.

O sol se punha cedo no inverno, e muito embora ainda não fosse tarde, já estava escuro quando cheguei. Eu sabia que era o edifício certo, mas muitas das lâmpadas iluminando as escadas estavam quebradas, fazendo com que fosse difícil ver os números dos apartamentos. No meu estado enfraquecido, eu ficava esperando que o próximo número que eu visse seria o dele. As formas dos números eram tão indistintas e difíceis de ler que elas poderiam parecer estar se movendo.

Depois de finalmente ter achado o número correto, eu subi lentamente as escadas até o seu apartamento. Uma mulher muito jovem, aparentemente na adolescência, abriu a porta. Ao ver a minha aparência exausta, ela rapidamente me convidou para entrar. Seu corpo era pequeno e bem proporcionado, e ela usava um vestido caseiro leve com pequenas flores estampadas. O seu longo cabelo escuro estava penteado e preso atrás, o que deixava livre seu rosto atraente.

- Você deve ser Olga - disse ela. - Ele está esperando por você.

Pendurei meu casaco no corredor e caminhei até o pequeno apartamento de um quarto. Era um típico apartamento para pessoas de profissões intelectuais - sem muitos móveis, só uma estante carregada de livros grossos e antigos, uma velha mesa com uma televisão, um velho piano perto da parede, e uma cama desarrumada no meio da sala. A jovem me conduziu pelo quarto e então foi para a cozinha, me deixando sozinha com um homem que estava sentado na beira da cama.

Ele saudou minha entrada ficando de pé. À medida que o seu rosto tornou-se mais visível na luz, notei que tinha cabelo curto e negro, olhos escuros, um olhar intenso e rugas profundas em volta da boca. O que mais me impressionou nele quando me saudou foi a sua voz, um monótono profundo freqüentemente interrompido por acentuações estranhas e aparentemente aleatórias.

Embora estivesse sem camisa, vestindo apenas um par de calções brancos, ele parecia bastante confortável no seu traje consideravelmente incomum. Ele me convidou a sentar na única cadeira do quarto, e então começou a falar sobre música. Ele explicou como os sons da música influenciavam nossas psiques e como a música podia fazer milagres quando era criada com as intenções corretas.

Não compreendi metade das suas palavras, e me senti cada vez mais desconfortável. A combinação dos seus estranhos maneirismos e o fato dele estar só meio vestido me deixava cada vez menos confiante de ter feito a coisa sensata em procurá-lo. Fiquei aliviada quando a jovem voltou da cozinha com uma xícara de chá preto forte. Ela me passou o chá e sentou-se na cama à minha frente.

- Gostaria de explicar os sintomas da minha doença - disse a ela, tentando construir um diálogo médico-paciente mais familiar.

- A doença é só uma maneira de trabalhar com uma linha da realidade - respondeu ela. - Prefiro outras maneiras. Olhe para mim: tenho quarenta e três anos, e a minha aparência reflete o meu modo de trabalhar com minha linha particular de realidade.

Meu queixo caiu e fiquei olhando como uma boba para ela, sentindo-me tonta. Ela não parecia ter mais que dezoito anos, e não podia ter quarenta e três.

- Você deve estar brincando - disse eu, tentando me concentrar nos meus pensamentos para ignorar a crescente sensação de inquietude no meu estômago. Lembrei-me de ter visto o retrato de um garoto adolescente na estante e de ter notado como ele se parecia com ela. Agora estava lutando com a idéia de que aquele devia ser de alguma maneira o filho dela. Eu não podia aceitar isso, e me senti ainda mais confusa e nervosa do que antes.

- Uma das coisas que eu faço para tornar mais vagaroso o fluxo do meu tempo pessoal é tirar fotos. - Ela pegou um álbum de fotografias grande e gasto pelo uso na estante. Então, sentando de volta na cama perto de mim, ela folheou o álbum página após página, mostrando as suas fotos. Aqui estava ela na praia ao lado do rio Ob, jovem e sorridente num dia quente e ensolarado. Depois ela estava num escritório, sentada numa escrivaninha, parecendo muito séria. Eu me perguntei qual era a sua profissão. Em seguida ela estava com o filho e outro jovem na frente de uma casa do campo, vestindo roupas de trabalho e segurando uma pá. As árvores estavam cobertas com folhas outonais amarelas e vermelhas, e havia montes de folhas na terra ao redor dela.

Ela me levou consigo enquanto folheava pelas páginas do álbum, viajando por lugares diferentes com pessoas diferentes. Os homens com quem ela estava foram substituídos por outros homens, um sorriso feliz depois do outro, à medida que as páginas viravam. O seu cabelo ficou mais longo e depois mais curto. Ela fazia diferentes poses; ela sorria e chorava. Pude reconhecê-la em muitos lugares diferentes. Alguns deles eu já visitara, mas a imagem dessa mulher implantada neles era de alguma maneira surreal e misteriosa.

Ela foi ficando cada vez mais jovem nas fotos à medida que as páginas viravam, e percebi que ela estava me mostrando a sua vida na ordem inversa, indo do presente para o passado. Agora ela estava deixando a maternidade com seu bebê e muitas flores, parecendo feliz e um pouco confusa, apenas começando a ver a si mesma como mãe.

Então ela era uma jovem na escola, perto do quadro-negro vestindo um uniforme escolar regular negro com gola branca, o seu cenho franzido enquanto olhava para a velha professora sentada tão séria na sua mesa. A última foto do álbum era a primeira já tirada dela. Era uma criança nua com um sorriso sem dentes, deitada numa mesa.

- Eu trabalho com elas todas as noites antes de dormir. Eu começo com uma fotografia do presente e volto para trás uma a uma, experimentando o estado de cada uma delas até chegar a essa primeira foto de mim mesma quando bebê. Então adormeço como um bebê.

- Por que está me contando tudo isso? - Eu estava fraca devido à febre, e era muito difícil para mim compreender o que estava acontecendo, tanto ao meu redor quanto nas estranhas emoções que eu estava sentindo.

- Para que você possa compreender e aceitar isso. - Foi a voz do homem que respondeu.

- Eu vim aqui me curar da minha gripe, e não me tornar mais jovem. - Fiquei surpresa de como a minha voz parecia nervosa e fraca.

- Isso é só o que você acredita agora. Mas, naturalmente, isso também faz parte. Mas não se preocupe. Você vai ter a sua recuperação, assim como tudo mais pelo que você veio - respondeu ele.

A minha tontura anterior tinha retornado, e o calor na minha testa me dizia que minha febre estava piorando. Teria sido difícil para mim ficar de pé. Mas lembrar-me da febre me acalmou um pouco, enquanto eu decidia que talvez as minhas estranhas percepções e sentimentos eram pelo menos parcialmente aberrações causadas pela febre. Talvez eu estivesse ainda mais doente do que pensara. Esperava que fosse possível que eu acordasse logo na minha própria cama e percebesse que isso tinha sido apenas um sonho febril. Era quase um pensamento agradável! Naquele momento as minhas férias no hotel já não pareciam mais importantes. No meu estado de desconforto, eu estava pronta a passar quase qualquer período deitada na cama, caso isso significasse escapar da situação onde estava.

- Sente-se aqui - disse o homem, me indicando a cama desfeita. Sentei-me nervosamente na beira e fechei os olhos. Ouvi um som alto de zumbido, e meu corpo sentiu-se simultaneamente quente e frio.

Então ouvi alguns acordes poderosos vindos do piano. Abri meus olhos e vi que ele levara a cadeira até o piano e estava tocando. A música era desconhecida para mim, mas tinha uma energia tão forte que minha mente foi capturada e passou a fluir com ela. Eu me sentia como se estivesse nadando num oceano tempestuoso, levantada e atirada pela sua força poderosa. Fiquei olhando para ele enquanto tocava; ele colocava uma tamanha expressão física na sua música que todo o seu corpo pulava para cima e para baixo na cadeira. Todo o seu mundo consistia nessa musica. Então ela alcançou um crescendo de energia além do que ele podia tolerar. O seu corpo foi lançado violentamente do piano, e ele caiu no chão. Eu estava convencida de que ele devia ser totalmente louco. Então percebi que o acorde final ainda estava continuando, enquanto o piano parecia tocar sozinho. Naquele momento passei a me perguntar se era eu que estava louca. Senti-me fora de mim.

Finalmente ele ficou de pé, pegou a minha mão, e me levou para um canto do seu quarto. Para minha surpresa, talvez porque eu estivesse além de toda resistência, me sentia mais calma. Havia uma pequena mesa ali, com uma vela e uma faca muito afiada cujo cabo estava entalhado com símbolos de aparência chinesa. Ele colocou sua mão sobre minha testa e disse alguma coisa numa linguagem que me era desconhecida. A sua voz ficou mais alta, e ele gritou algumas palavras que não compreendi. Então ele subitamente agarrou a faca e cortou algumas mechas dos meus longos cabelos.

- Olhe para isto - ordenou. - A sua doença está aqui na minha mão! - Ele colocou o cabelo que cortara na chama da vela. Eu não tinha notado que ele acendera a vela, e estava certa de que nem eu nem a mulher a tínhamos acendido, mas de alguma maneira uma chama saudável apareceu do nada. Não experimentei choque algum diante de tudo isso, porque ao mesmo tempo estava consciente de que já não estava mais com febre e que sentia-me completamente bem.

Querendo agradecer a ele mas ainda me sentindo desorientada demais para pensar claramente, eu só podia dizer:

   - Muitíssimo obrigada. Estou me sentindo muito bem agora. Quanto é que eu lhe devo? - Olhei para o seu rosto, agora impassivo, esperando pela sua resposta.

Ele sorriu e me fitou de perto.

- O seu pagamento será lembrar-se de uma coisa muito importante que vou lhe contar. - Ele pegou minha mão e olhou para ela cuidadosamente. Então disse simplesmente: - Eu vejo que algum dia você vai aprender a controlar a duração da sua vida.

Deixei a sua casa confusa mas completamente recuperada. A minha febre tinha desaparecido por completo. Caminhei rapidamente de volta ao meu apartamento, onde fiz alegremente as malas para a viagem do dia seguinte para o campo de estudantes.

A minha vida voltou ao normal depois disso, mas o dia tinha sido uma vitória permanente para o meu lado que estava fascinado com o lado misterioso da vida. Minha mente consciente fora obrigada a reconhecer essa experiência, e assim ela se tornou uma parte integrada do meu ser total.

Durante um longo período depois disso, eu pensei sobre as últimas palavras que aquele homem dissera para mim, e me perguntei sobre o seu significado. Agora, aqui na vila do Altai, eu me sentia prestes a compreendê-las pela primeira vez. Eu sabia que alguma coisa fugidia e importante acabara de acontecer comigo, algo que eu nem podia começar a explicar racionalmente.

Eu ainda estava enfeitiçada pelo meu sonho com Umai. O senso de existência real que viera até mim dentro da realidade do sonho não me era inteiramente desconhecido. Eu não conseguia me lembrar onde experimentara esse estado nos meus sonhos antes, mas a sensação docemente dolorosa no meu coração não era nova. Ela estava associada com o sentimento de "possuir" o meu livre-arbítrio, sabendo que mesmo num estado de sonho eu poderia controlar minha realidade através de um puro exercício da vontade.

Uma batida forte na janela me trouxe de volta, surpresa, da minha viagem mental para o momento presente. Saltei da cama com meu coração acelerado. Ainda era noite lá fora, e eu não conseguia ver ninguém na rua escura ou na janela. Perguntei quem era, só para perceber que a minha voz era tão baixa que eu mal podia me ouvir. A batida se repetiu.

- Quem está aí? - gritei, dessa vez alto demais.

- Sou eu, Olga. É Nicolai.

- Corri para a porta e a abri.

- Entre. Oh, meu Deus, Nicolai, onde você esteve? Não sabíamos o que pensar.

Anna cambaleou no corredor atrás de mim, ainda meio adormecida e olhando para o seu relógio. Ela parou quando viu Nicolai.

- Olá, Nicolai. Como está? - perguntou.

- Bem melhor agora, Anna. Será que alguém poderia me fazer um chá, por favor?

- Claro - respondi. Fomos todos para a cozinha. Liguei a luz forte do teto, e Anna colocou uma chaleira com água no fogão a gás. Nicolai parecia exausto e de alguma maneira diferente. A sua aparência despertou novamente velhas preocupações da minha avaliação psiquiátrica de que poderia estar de fato mentalmente doente.

- Nicolai, como você está se sentindo? - indaguei, repetindo a pergunta de Anna.

- Não se preocupe, Olga. Eu não enlouqueci. É só que eu estou me tornando um kam. - Ele relaxou um pouco e começou a nos contar sua história enquanto bebia seu chá.

- Você se lembra de que depois de nos separarmos no dia de anteontem - ele começou -, eu comecei a vir até aqui quando você foi com Umai para a outra casa. Ela não me explicara o que eu devia fazer. Ela disse que me encontraria depois, mas não falou onde nem quando. Subi e desci a rua, me sentindo tenso e zangado. De início fiquei irritado com Umai porque ela não me dissera nada desde que eu chegara. Eu tinha pensado que ela começaria imediatamente a me ensinar como me tornar um kam.

"Eu não compreendi por que ela pediu a você, Olga, para segui-la em vez de me ensinar. Mas quando você foi com ela, ela olhou para mim como se eu não tivesse relevância nenhuma. Eu estava realmente com medo de que ela se esquecesse de mim e me deixasse de pé do lado de fora da rua. Fiquei com raiva. O meu corpo começou a experimentar uma estranha sensação de ser atingido por inteiro. A minha cabeça se transformou numa chama que não me permitia pensar em mais nada.

"Então passei da raiva para um estranho estado emocional que não posso descrever, mas que reconheci de outra ocasião, quando estava escutando a voz de Mamoush em Novosibirsk e tentando me livrar dela. Mas agora era algo muito mais intenso. Eu estava caminhando para cima e para baixo na rua, sem saber o que fazer, quando escutei a voz dele novamente. 'Corra para as montanhas!', dizia.

"Parecia uma loucura, mas foi uma das ordens mais fortes que já ouvi. A noite estava escura como breu, e só algumas casas ainda tinham luzes acesas. As montanhas e a floresta eram escuras e assustadoras. Eu olhei para elas, e elas me pareceram cheias de perigo.

"Escutei na minha mente os sons de todos os animais que perambulam pela noite. Mas tudo foi apagado pela voz do meu tio, enquanto ele gritava novamente acima da chama na minha cabeça, 'Vá para as montanhas!'

"Mesmo tendo passado a maior parte da minha vida nesta região, eu ainda tinha medo de sair sozinho no escuro. Comecei a correr pela rua. Pensei que movimentos físicos me ajudariam a voltar a um equilíbrio normal. Mas a voz de Mamoush correu comigo, dirigindo o caminho. Mal percebi que, em vez de correr na direção das luzes das casas, tinha me voltado para as montanhas.

"Logo me vi numa floresta escura, muito acima da vila. O meu medo era tão intenso que não podia parar nem mesmo por um segundo. Pensei que se parasse por um momento sequer, animais ou espíritos me encontrariam e me matariam na mesma hora. Eu corria sem parar. Entrei tanto na floresta que, quando olhei de volta para a vila, as suas luzes não estavam mais visíveis. Finalmente esgotei minha energia física e tive que parar.

"Imediatamente, escutei o som de passos suaves de alguém a minha direita. Isso me apavorou. Reuni novas forças e corri novamente o mais rápido que pude. Pensei que podia morrer a qualquer momento. Eu não podia ver nenhum outro final que não a minha morte.

"Isso provavelmente parece estranho agora que estou contando, mas naquele momento eu tive certeza de que não havia saída que me levasse de volta ao mundo normal. Perdi a noção do tempo, e nem sei dizer quantas horas corri nas montanhas, virando, saltando, gritando, perdendo todo o controle das minhas ações. Nos meus breves momentos de lucidez, me parecia estranho que eu não tivesse caído ou me machucado. Finalmente me tornei completamente indiferente ao meu destino. Nada mais me assustava. Então escutei novamente a voz de Mamoush, desta vez me tranqüilizando.

"'Acalme-se e deite na terra', ele me ordenou gentilmente.

"Agora a luz da aurora me dava uma chance de ver os arredores. Fiquei impressionado ao perceber que toda uma noite tinha se passado. Notei que estava de pé em um lugar onde a neve do inverno tinha começado a derreter. Sem pensar em mais nada, me deitei com meu capote de pele de ovelha e imediatamente adormeci.

"'Não machuque a grama! É o cabelo da terra!', foram as últimas palavras que escutei.

"O som de palavras tranqüilas me despertou. Agora a manhã já tinha despontado, e o sol estava brilhando vigorosamente no céu límpido. Umai estava ali com um homem que eu nunca vira antes. Eles estavam muito perto, e começaram a rir de mim. No mesmo instante fiquei zangado com eles, e o meu rosto mostrou meus sentimentos. Então eles ficaram mais sérios, e Umai falou comigo.

"'Eu sabia que os espíritos iam pressionar você ontem', disse ela. 'Eu não queria interrompê-los antes de falar com você. Eles precisavam fazer o que fizeram antes que eu viesse até você.'

"O que você quer dizer com 'me pressionar'? - perguntei a ela.

"Essas são as palavras que usamos para descrever o momento em que os espíritos fazem um novo kam correr e dançar por aí.

"'Então isso acontece com todo mundo que se torna um kam?' perguntei, me sentindo aliviado.

"'Então você queria ser especial?', ela replicou num tom zombeteiro. 'Não há caminho para isso entre os kams. A partir deste dia você vai ser especial para outras pessoas, mas não para os kams a quem vai pertencer em breve.'

"Ainda sentia resistência a ela, mas compreendia que ela viera para me ajudar, e escutei cuidadosamente.

"'O seu tio me visitou antes da sua morte. Ele me disse que você viria algum dia à procura de ajuda. Ele me pediu para lhe ensinar algumas coisas. Estava certo de que você viria, mas eu pensei naquela época que ele estava errado. É tão raro que um homem se mude para a cidade e encontre um emprego lá e então retorne para sua vila. Bem, o seu tio estava certo. Mas ainda não tenho certeza das suas intenções. Você está certo do que vai fazer?'

"'Sim. Eu tomei uma decisão. Vou me tornar um kam.' Pensei que isso seria o bastante, mas ela continuou a fazer ainda mais perguntas.

"'Você compreende que terá que desistir de tudo que possui na cidade? O seu trabalho, seus amigos, sua namorada?', ela perguntou, tornando sua dúvida explícita.

"'Eu vim até aqui, não foi?'

"'Sim, mas você terá uma vida completamente diferente da que teve na cidade. Está entendendo bem isso? Pode aceitar esse fato?'

"'Por que você está me perguntando todas essas coisas? Mesmo que eu dissesse que me arrependeria de deixar a cidade e que queria voltar, você sabe que seria impossível para mim fazê-lo agora. Nunca mais poderei voltar à cidade. Você está certa em ter dúvidas, porque de muitas maneiras eu gostaria de manter o meu sonho da cidade. Seria bom viver lá, ter uma família e uma educação. Mas agora sei que a única coisa que espera por mim lá é o hospício. Eu não tenho realmente escolha, tenho? Estou apenas escolhendo entre dois males. Qual é o menor? No entanto é mais do que isso. Eu realmente desejo me tornar um kam para as pessoas que vivem aqui.'

"Umai me escutou atentamente e pareceu aceitar minhas palavras.

"Ela disse: 'Bem, não temos muito tempo. Eu lhe darei algumas coisas que você precisa saber para começar. As outras você vai ter de descobrir sozinho. Existem algumas coisas que eu, como uma mulher, não posso saber. Existem outras coisas que eu posso saber mas que não posso ensinar a você. Essas coisas virão até você de maneiras diferentes à medida que forem necessárias. O seu tio Mamoush foi um kam muito poderoso. Ele era um kam do céu. Nem todos conseguem viajar até o mundo celeste superior. Mas ele conseguia fazer isso, mesmo no inverno, quando o céu está congelado. Usando o martelo do seu tambor manual, ele era capaz de quebrar o gelo no céu e penetrar na terra de Ulgen. Eu o vi fazer essa viagem uma vez.

"'Você pode pensar que quando for um kam de verdade será diferente de Mamoush, assim como todas as pessoas são diferentes umas das outras. Mas isso é um erro. Um dos maiores segredos é que o kam é sempre um kam. Mamoush, você, quem quer que venha depois de você, todos são um kam que vive em formas diferentes. É uma linha de herança, e o kam verdadeiro é a linha da herança, e não o kam individual. Vocês podem ser pessoas especiais, mas no seu poder são um só. Assim, a sua tarefa agora é estar completamente aberto a esse poder de Mamoush e tornar-se único com ele. Você escutará a voz de Mamoush até que ela se acabe. Depois disso, terá a sua própria voz e seu próprio poder. Mas terá que trabalhar duro para consegui-los. E tem razão, você não tem escolha. Os espíritos apontaram você, e não está dentro da sua vontade discutir com eles'.

"'Venha cá!' Ela dirigiu o seu comando para seu companheiro de viagem, um homem de Altai com cerca de quarenta anos. Eu tinha notado que ele mantivera um ligeiro sorriso no rosto durante todo o tempo que Umai falara comigo. Ele parecia completamente desinteressado em mim, mas respondeu a ela instantaneamente, caminhando até ela e dando-lhe uma grande bolsa de onde tirou um grande tambor manual.

"'Mamoush deixou isso comigo, e me disse para dá-lo a você', ela falou enquanto dava o tambor para mim. O tambor oval era novo e bastante pesado, e o seu cabo fora esculpido na forma de um homem. A parte de madeira era feita de salgueiro. A parte de couro era feita da pele de alce e ainda estava tão fresca que possuía um inconfundível odor animal.

"'Esse alce será seu animal de viagem. Nós o ajudaremos a torná-lo vivo.

"Eu não tenho permissão para contar a vocês muita coisa sobre a cerimônia que eles me ajudaram a executar. Nem mesmo eu tenho ainda uma compreensão total do que aconteceu. Mas primeiro eles me colocaram num tipo de sonho. O ajudante de Umai ficou atrás de mim, segurando meus ombros e balançando meu corpo para a frente e para trás, enquanto Umai fazia uma fogueira na minha frente. A fumaça era espessa e machucava meus olhos, forçando-me a fechá-los. Logo senti o meu tio atrás de mim, segurando meu corpo, e então fomos caçar juntos. Estávamos rastreando um grande alce fêmea que estava grávida e que logo teria seu filhote. Precisávamos ser muito silenciosos.

"Segui o alce fêmea passo a passo até a taiga. Escondido no abrigo da floresta, vi o seu bebê nascer. Exatamente no momento do nascimento, senti meus ombros serem agarrados e sacudidos vigorosamente. Compreendi que devia apanhar esse filhote de alce e levá-lo. Essa era a finalidade da caçada. Eu fiz o que devia fazer o mais rápido possível. Tive medo do alce fêmea, que poderia ter facilmente me matado. Corri o máximo que pude, sem saber por quê. Então escutei novamente a voz de Umai.

"'Coloque-o aqui!' Ela estava segurando o tambor, com a figura do homem voltada para mim. Empurrei o filhote de alce para o tambor e senti como ele entrou no tambor. 'Abra seus olhos!', me ordenou Umai. Enquanto obedecia, ela disse numa voz muito mais suave e satisfeita, 'Você pegou o seu chula'. Ela segurou o tambor para mim, e pude ver e sentir a vida nele mesmo sem tocá-lo.

"Tive de perguntar a ela, 'O que quer dizer chula?' Eu nunca havia escutado antes essa palavra.

"'Chula é a força espiritual viva do alce que deu a sua pele para seu tambor', replicou ela. 'Agora ela será a sua força vital, também. Caso alguém roube esse tambor, você morrerá. Ele é precioso e deve ser sempre mantido perto de você.' Estiquei a mão para pegá-lo, e ao mesmo tempo ele me pareceu vibrar nas minhas mãos. Ele estava quente, e parecia vibrar fracamente. Senti-me instantaneamente ligado a ele, e soube que isso acontecia porque agora ele possuía a força vital do alce

Então notei algo que me confundiu. 'A pele é de um alce velho, mas eu peguei o bebê. Fiz algo errado?', perguntei.

"'Não, você fez tudo perfeito. Para pegar o chula de um alce velho, você teve que agarrá-lo quando era um bebê. Nós o ajudamos a voltar no tempo até o momento do nascimento dele. Agora o chula só servirá a você. Ele não possui nenhuma outra história. Agora você sabe como pegar chulas, e quando o fizer novamente não vai precisar da ajuda de outros.

"'Tudo no mundo possui seu próprio chula. Quando você está curando alguém que perdeu seu chula, viajará até encontrar o chula da pessoa doente e agarrá-lo pelo cabo do seu tambor. Então você trará o chula de volta até o presente e o martelará na orelha esquerda da pessoa doente. Isso devolverá a ela o chula perdido'.

"'O seu chula será o seu novo parceiro e ajudante. Ele irá ensinar-lhe várias coisas. A sua próxima tarefa é marcar o seu território xamânico fazendo um mapa dele na pele do alce. Mais tarde mostrarei como se faz isso.'

"Aliás, Olga, perguntei a ela por que o tambor na casa de Mamoush estava quebrado. Ela disse que o motivo era que o mundo para onde as pessoas vão depois da morte é um reflexo de espelho do nosso mundo. Todas as coisas que são boas para elas aqui são más para elas lá, e vice-versa. Assim, se eles não tivessem quebrado o tambor de Mamoush quando ele morreu, ele não poderia tê-lo usado no outro mundo.

"Passei o dia inteiro nas montanhas com Umai e seu ajudante. Eles me mostraram muitas coisas. Nós tivemos que esperar que a noite caísse novamente para que eu pudesse fazer outra viagem. Era necessário para eles me conduzir por esta segunda viagem para que eu herdasse o território mágico do meu tio. Umai me levou pelo mundo inferior e me mostrou muitas coisas lá. Eu aprendi um bocado, mas não devo dizer mais nada a vocês sobre isso. E agora é melhor eu relaxar."

Ele suspirou e ficou em silêncio.

A história de Nicolai me deixou sem palavras. Levantei-me e fui até a cozinha para limpar nossas xícaras e refletir sobre o que tinha escutado. O ritual de cura de Umai na casa vazia anteontem, a minha experiência com ela na noite passada, a cura de Anna, sua presença no meu segundo sonho, e agora a história de Nicolai - todas essas experiências estavam separadas, contudo, tudo isso estava conectado. O que ligava tudo era a imagem de Umai.

Pensando sobre todos esses eventos e quando tinham ocorrido, percebi que Umai podia não ter tido nenhum tempo para dormir. Ela parecia ter ido de um lugar a outro sem parar durante quase dois dias. Como isso podia ser possível para ela? Sacudi minha cabeça sem poder acreditar, como se isso pudesse me dar uma resposta. Não veio nenhuma, de modo que simplesmente continuei a arrumar a cozinha.

Ouvi Nicolai chamar pela porta aberta da cozinha, dizendo:

- Temos que nos apressar. São quase sete horas da manhã, e vai passar um ônibus aqui em quinze minutos que vai nos levar até a casa da minha mãe.

- O quê? Um ônibus! - Anna e eu gritamos em uníssono. - Tem um ônibus que vem até aqui? Por que você nos fez caminhar durante horas na neve?

- Porque ele só passa uma vez por semana - explicou ele. - O dia é hoje, então estamos com muita sorte. Depressa, garotas!

Quando vimos o pequeno ônibus, ele era tão velho e batido que parecia ter sido quebrado há muito tempo e estar enraizado permanentemente, uma escultura de metal imóvel plantada no meio da rua. Mas Nicolai insistiu que o ônibus não só era real como também nos levaria para sua vila se nos apressássemos e entrássemos nele.

Quando entramos no ônibus, subitamente senti uma surpreendente dor ao pensar em deixar Umai.

- Nicolai! - deixei escapar. - E Umai? Nós a veremos novamente? Ela deixou uma mensagem para nós? - Antes que ele pudesse replicar, o ônibus começou a sua jornada para fora da pequena vila até a floresta ainda mais antiga.

- Eu não sei onde ela está. Ela não disse nada para você?

Quando não respondi, ele perguntou:

- Você está esperando receber alguma coisa dela, Olga?

- Não - repliquei, sentindo-me desapontada. O impacto de Umai na minha vida tinha finalmente chegado à superfície da minha mente.

- Eu tenho algo para dar a ela - disse Anna. - Eu quero pagá-la pela minha cura. Você daria a ela este dinheiro por mim, Nicolai?

- Não, eu não posso. Ela não o aceitaria. Se ela precisasse, teria dito.

Enquanto o ônibus sacudia lentamente pelo caminho, nos acomodamos em nossos bancos, ficando o mais confortável possível. Quase não havia estrada para o ônibus seguir, então em vez de caminhar na neve durante horas, passamos quase o mesmo tempo sentados no ônibus gelado enquanto ele balançava desajeitadamente pelas montanhas. No silêncio que caiu sobre nós durante a maior parte da jornada, perguntei a mim mesma repetidas vezes o que significara para mim o encontro com Umai.

Eu estava fazendo o máximo para compreender e integrar minhas experiências no Altai com o resto do meu ser, mas era difícil. Umai não tinha explicado tudo para mim, nem mesmo tinha mostrado qualquer interesse em saber se Anna e eu iríamos ficar ou não. Isso fez com que eu me sentisse incompleta, e até mesmo criou dúvidas na minha mente sobre a importância do que tinha acontecido. Imaginei se o que parecia tão impressionante e significativo para mim tinha sido apenas um evento cotidiano para Umai. Mas se fosse esse o caso, porque ainda parecia tão importante para mim?

 

Nós chegamos na vila de Maria ouvindo o som familiar de latidos excitados. O grande cão castanho de Maria ficou bastante feliz em rever a mim e Anna, mas saltou de maneira ainda mais enérgica ao redor das pernas de Nicolai. Talvez ele tenha sentido que Anna e eu éramos apenas visitantes e que logo iríamos embora, mas que Nicolai ficaria para fazer-lhe companhia.

Maria nos convidou para entrar na sua casa com a mesma hospitalidade calorosa que mostrara antes. Ela estava ainda mais relaxada do que na nossa primeira visita, mas havia um ar inconfundível de tristeza sobre ela. A sua atenção estava concentrada em Nicolai. Ela olhou para ele como só uma mãe pode fazer, procurando os sinais das mudanças que temia já terem ocorrido. Pela primeira vez, percebi como Maria poderia se sentir quanto a seu filho deixar de lado a vida na cidade para se tornar um kam, e me entristeceu ver Maria, geralmente tão alegre, parecer tão preocupada. Numa tentativa de distraí-la, decidi perguntar a ela sobre Belovodia.

- Maria, você já ouviu falar alguma coisa sobre um lugar chamado Shambhala, ou talvez Belovodia?

Ela ficou em silêncio durante alguns minutos, como se estivesse tentando se lembrar. Finalmente ela replicou:

- Não ouvi falar muita coisa. Porém, alguém me contou que Belukha sempre foi considerada um lugar especial como Belovodia.

O meu coração bateu um pouco mais rápido diante da possibilidade de que ela poderia me dizer mais sobre esse lugar que me intrigava tanto.

- O que é Belukha? - perguntei.

- Belukha é a montanha mais alta em Altai. O topo está sempre coberto de neve, e é muito difícil escalá-la. Muitos morreram tentando conquistá-la.

Ela me fitou pensativamente durante um momento. Então continuou,

- Se quiser, contarei a você a única história que conheço.

Respondi rapidamente:

- Oh, sim, Maria. Eu adoraria escutar a sua história.

- Há uma lenda entre o meu povo que diz que, muito tempo atrás, a deusa Umai e seu marido, Altaiding Aezi, o governante de Altai, viviam no extremo norte. Certo dia, um monstro emforma de peixe chamado Ker-Dupa virou a terra pelo avesso. O clima em Altai sempre fora quente, mas depois de Ker-Dupa ter alterado a rotação da terra, ficou muito frio aqui. Altaiding Aezi viajou ate o ceu para perguntar aos Altos Burchans, os seres espirituais mais poderosos daquela época, se poderiam ajudar. Enquanto estava indo de um Burchan para o outro numa tentativa de encontrar Ulgen, o mais elevado de todos e o único capaz de virar a terra do lado certo novamente, estava ficando cada vez mais frio em Altai.

"Para salvar seus filhos do congelamento, Umai transformou suas almas em pedras e rochedos. Ela fez isso com seus dois únicos filhos e com quatro das suas seis filhas. Então ela pegou as outras duas filhas pelas mãos e foi com elas, em busca do calor, até a parte mais ao sul de Altai. Ela e suas filhas congelaram lá, se transformando numa montanha com três picos. O pico do meio é a cabeça de Umai, e os dois picos menores, um de cada lado, são as cabeças das suas filhas. Esta montanha é chamada de Belukha.

- É uma história interessante - disse Anna, provando a sua xícara de chá de ervas. - Ouvi dizer que Belukha também se chama Ak-Sumer, ou o Verão Branco. É um nome tirado da mitologia budista, e representa a montanha que está no centro do mundo.

Eu sentei calmamente escutando, excitada em saber que o nome Umai aparentemente fora o nome de uma das altas deusas do Antigo Altai.

Depois de terminar sua história, Maria começou a preparar nosso almoço. Ela acrescentou lenha ao fogão e juntou os ingredientes culinários dos armários da sua pequena cozinha. Depois de ter acabado de cozinhar, ela pegou pequenos pedaços de carneiro e batata que preparara e os colocou deliberadamente no fogo. Ao mesmo tempo, ela disse algumas palavras indistinguíveis bem baixo. Reconheci isso como uma cerimônia de Altai honrando e alimentando o espírito do fogo do lar antes de cada refeição. Depois do fogo ter abraçado os pedaços de madeira como um símbolo da nossa gratidão, tivemos a permissão de comer. Nos alimentamos em silêncio a maior parte do tempo. cada um de nós refletindo sobre nossos próprios pensamentos.

Depois do jantar, Nicolai caminhou novamente com Anna e comigo até a casa de Mamoush, onde iríamos passar nossa última noite no Altai. No dia seguinte começaríamos nossa viagem de volta para Novosibirsk. A sala não parecia mais tão assustadora para nenhuma de nós dessa vez. Tudo parecia estar como tínhamos deixado, de modo que talvez a nossa percepção do local houvesse mudado. Fiz a minha cama na pele de urso, mais uma vez dando a cama de verdade para Anna. Eu realmente preferia a pele firme de urso à cama mais macia onde Mamoush morrera, mas decidi não mencionar isso a Anna.

Quando me deitei, o tambor quebrado mais uma vez chamou minha atenção. Voltando-me para ele de novo, fiquei deitada olhando-o durante algum tempo. Gradualmente comecei a sentir uma vibração na escuridão ao meu redor e ao redor do tambor. No momento em que comecei a dormir, vi o pequeno homem de madeira que servia como o cabo do tambor saltar e começar a dançar no espaço diante dos meus olhos.

Logo entrei num estranho estado de realidade em que sabia que estava novamente mergulhando num sonho, mas também sabia que desta vez seria capaz de controlar o estado da minha consciência.

 

Estou entrando numa pequena sala escura. Sinto um prazer sensual em mover o meu corpo. Sinto a liberdade da minha vontade, mas ao mesmo tempo percebo que a vontade de outra pessoa está presente e possui influência sobre mim neste espaço. De alguma maneira sei que ele é um homem. Olho em volta. Quem quer que esteja com o sabe que estou procurando por ele. Ele não quer ser descoberto, portanto permanece além da minha visão. Ainda não estou com medo, mas estou irritada porque ele tem mais controle sobre as minhas ações do que eu. Posso sentir que ele está me vigiando, e agora começo a me perguntar se estou com medo. Talvez eu não esteja no controle do meu sonho, afinal de contas. Finalmente deixo de pensar sobre isso e me concentro em me mover pela sala, me acostumando a sua escuridão.

"Sou eu, Olga. Nicolai." É a voz rouca de um homem velho, mas a reconheço como sendo de Nicolai. Me volto para o som e o vejo numa cadeira no meio da sala. Sinto-me estranha por ver outra pessoa nesse estado de sonho consciente e de ser capaz de falar com ele como se estivéssemos ambos totalmente acordados. Fico de pé e começo a caminhar ao redor dele.

"Por que estamos aqui?", pergunto. A minha própria voz também parece diferente. Sinto-me como se estivéssemos nos comunicando um com o outro através de puros pensamentos, e no entanto existe ainda o sentimento de pronúncia e fala. Esperando pela sua resposta, continuo a me mover. De algum modo sei que, se parar essa realidade que ocupamos se dissolverá.

"Estou aqui para recordá-la de uma coisa."

"Estou escutando, Nicolai. O que é?"

"Ela é uma mulher rara e poderosa. Ela faz tudo o que devia fazer de maneira simples e rápida. Ela faz o que todo mundo aqui faz, mas ela e mais honesta e corajosa do que a maioria.

Essas palavras foram ditas na mesma voz rouca, e Nicolai ainda estava sentado na cadeira a minha frente, mas de algum modo as palavras entraram na minha percepção vindas de cima. Um sentimento intenso de náusea e aversão se acomodou no meu estômago, e estou vagamente consciente de que existe motivo para o medo nas palavras. Percebo que ouvi essas exatas palavras antes. Não tenho uma memória real delas ainda, mas a resposta apavorada do meu corpo me faz procurar períodos, datas e circunstâncias. Antes que possa alcançá-los, uma mudança inacreditável ocorre na minha percepção. Subitamente percebo que não só estou dentro do meu próprio sonho, como também que dentro do meu sonho uma segunda visão está forçando espaço até minha mente. Essas duas realidades conflitantes estão interagindo uma com a outra, lutando para dominar minha consciência.

Por um momento, a nova visão parece agradável. A figura graciosa de uma bela mulher dança no espaço diante de mim. Mas subitamente ela se volta para mim, e vejo o seu rosto. Eu conheço esse rosto. Instantaneamente me lembro do seu olhar cheio de ódio e a mirada triunfante do fundo dos seus olhos azuis hipnóticos na primeira vez que a vi.

"Ela é uma mulher rara e poderosa", diz a voz, e agora reconheço que é a mesma voz rouca do meu pesadelo em Novosibirsk. Indefesa, sucumbo mais uma vez aos sentimentos de medo, fraqueza e raiva que me tomaram diante da morte inexplicada desta mulher que fora minha paciente.

A sua morte, com a minha visão de pesadelo do seu ódio, tinha sido uma das experiências mais assustadoras da minha vida. Mas esses sentimentos não foram nada diante do terror que me atacava agora neste novo sonho. O meu sonho anterior com ela tinha sido posto de lado, mas nele havia um tipo de limite protetor entre mim e a realidade onírica. Neste novo sonho, esse limite de segurança desaparecera totalmente. Todo o meu ser estava paralisado pela imagem horrível desta mulher. Eu sei que ela possui poder ilimitado, e que ela pode me aterrorizar à vontade.

Repetidas vezes eu abro a boca para gritar, mas as palavras só ecoam na minha cabeça. Não sai nenhum som. Todo o controle que pensei ter sobre minha vontade, minha voz e minhas ações foi tirado de mim.

"Você pode aprender a ter o mesmo poder que ela."

"Não! Não! Não quero!", eu grito silenciosamente de um espaço interior sacudindo minha cabeça para frente e para trás, tentando rejeitar tudo no sonho. No momento seguinte estou de volta dentro do meu corpo no frio da casa de Mamoush, deitada na dura pele de urso. Uma sensação extremamente dolorosa entre meus olhos me apunhala, e acordo violentamente.

 

O sonho foi tão assustador e intenso que não me arrisco a fechar novamente meus sonhos na escuridão hostil. Fico deitada acordada nervosamente pelo resto da noite, ficando com câimbras e com o corpo duro porque tenho que me deitar sobre o lado direito para não ver a pequena figura de madeira no tambor.

Quando a primeira luz da manhã finalmente se filtrou através da pequena janela, o alivio tomou o meu ser. Eu estava mental, física e emocionalmente exausta, e não queria nada além de voltar para meu apartamento seguro e previsível na cidade. Eu precisava novamente do meu ambiente familiar; eu precisava de normalidade na minha vida. Só queria viajar de volta para casa.

Anna despertou cerca de uma hora depois. Logo nós ouvimos a batida de Nicolai na nossa porta, e fomos agradecidas com ele para a casa de Maria. O ônibus estava marcado para as duas horas, de modo que tínhamos bastante tempo para comer o desjejum e fazer visitas.

Depois do café, Nicolai veio falar comigo em particular e disse:

- Olga, tenho algo importante para lhe contar.

O meu primeiro pensamento foi que ele decidira que realmente precisava de ajuda psiquiátrica, afinal de contas.

- Vá em frente, Nicolai. Estou escutando - respondi.

- Podemos caminhar um pouco? - ele perguntou.

Assim que saímos para a rua, surpreendi-me em saber que estar sozinha com ele tinha despertado novamente todas as sensações desagradáveis do sonho da noite anterior.

- Isso pode parecer estranho para você, Olga, mas quero pedir que você fique aqui comigo durante mais alguns dias.

Quando ele viu o ar espantado no meu rosto interrompeu o que dizia, percebendo como eu interpretara o seu pedido.

- Oh, não, não é isso que quero dizer - deixou escapar -, não estou convidando você para ficar como minha namorada. Não. A minha intenção é muito diferente. Na verdade, nem mesmo é meu desejo que você fique. Até algumas horas atrás, eu esperava que você e Anna fossem embora hoje. Era o que eu esperava, e estava tudo bem para mim. Mas hoje, de manhã cedo, escutei novamente a voz de Mamoush. Ele disse que você deve ficar.

Apesar dos protestos de Nicolai, eu ainda estava incerta das suas intenções. Eu não tinha desejo algum de ficar, e o seu pequeno discurso me irritou.

- Sabe, Nicolai, estou tocada com essa comunicação invisível e improvável do seu tio. E não quero insultá-lo de nenhuma maneira, mas realmente prefiro quando as pessoas são honestas e assumem responsabilidade por elas mesmas. Se você quer me pedir alguma coisa, por favor faça-o por conta própria. Eu não acredito na capacidade dos mortos de se envolverem tanto com os negócios dos vivos.

- Isso porque você não acredita na morte.

- O que quer dizer, Nicolai?

- Quero dizer que os seus pés foram colocados num caminho que podem levá-la a um tremendo poder, mas está se afastando dele, ou porque não quer se esforçar ou porque está com medo.

Junto com uma mudança no seu modo de falar, notei que sua voz também tinha ficado mais profunda, e ele parecia estar quase em transe. Isso despertou a minha curiosidade profissional; para fazer com que continuasse, repliquei:

- Bem, que tipo de esforço você acha que eu devo fazer?

Pela primeira vez desde que o conhecera, Nicolai demonstrou verdadeira raiva. Os seus olhos brilharam friamente, e suas palavras para mim foram ásperas.

- Primeiro, você precisa parar de jogar seus joguinhos estúpidos comigo e aceitar minhas palavras diretamente. Você está usando de auto-engano para evitar acreditar que o que estou lhe dizendo é importante. Você poderá ver isso se parar de se esconder.

Esse modo de falar era tão diferente do geralmente tranqüilo Nicolai que eu não consegui responder. Só fiquei olhando para ele com uma expressão perplexa no meu rosto.

Ele continuou:

- Você ganhou uma chance de receber conhecimento e poder oferecidos só para alguns poucos escolhidos. Esse conhecimento permitiria a você aliviar qualquer problema que pudesse encontrar na vida. Nada poderia incomodá-la depois que aceitasse esse conhecimento.

Finalmente me recuperei o bastante para falar de novo. Eu o interrompi, dizendo:

- Muito bem, Nicolai, realmente soa de um modo atraente. Mas você poderia por favor me explicar por que eu sou a escolhida para este importante conhecimento? - Eu estava certa de que ele tinha ouvido o sarcasmo na minha voz, mas seu rosto continuou pensativo.

- Não há lugar para palavras vazias neste momento. Você tem uma escolha. Esta escolha não lhe será dada duas vezes, portanto, por favor, pense cuidadosamente antes de jogá-la fora. Para responder à sua pergunta de maneira mais séria do que perguntou, você recebeu essa oportunidade parcialmente porque na sua profissão já fez grandes progressos no aprendizado de como ajudar os outros aliviando suas doenças e problemas. Mas você descobriu uma única ferramenta confiável com que possa contar de maneira infalível para diminuir o sofrimento humano, muito menos para curá-lo? Por mais que você tente, muitos dos seus pacientes continuam a estar doentes, infelizes, e assustados. Você já teve sucesso na sua busca para deter o sofrimento? Seja honesta agora e me responda.

- Bem, suponho que tenha falhado, como você está tentando mostrar. Mas o que você sugere?

- Nada, exceto por uma coisa muito simples. Eu quero explicar para você que a fonte de toda a dor neste mundo está entre nosso conhecimento de que vamos todos morrer, e nosso desejo de viver para sempre.

- Nicolai, eu poderia fazer para você minha própria palestra sobre o assunto. Mas ainda não entendi onde quer chegar.

- Eu não quero dar nenhum sermão para você, mas tenho a habilidade de ensinar você a aceitar a morte. Você não está pronta para isso ainda. Por isso, não está pronta para ajudar as pessoas desta maneira. Mas se você ficar comigo mais alguns dias, posso dar-lhe um dom importante que você vai precisar se verdadeiramente deseja aliviar o sofrimento que vê ao seu redor.

Pela primeira vez desde que Nicolai começara a explicar a sua oferta, um sentimento de excitação tomara conta de mim. Aos poucos, ele apagara meu ceticismo. Eu não duvidava mais que o que acontecera comigo tinha sido importante e me influenciara profundamente. Abandonar isso voltando para a cidade sem a experiência final que Nicolai estava me oferecendo parecia uma loucura muito maior do que ficar.

Apesar disso, a minha mente racional ainda compreendia que o fato de ficar ali pareceria muito estranho para Anna e Maria. Eu não sabia como explicar isso para elas; me sentia muito confusa.

- Muito bem, Nicolai. Devo admitir que o seu argumento é bom. Talvez faça sentido para mim ficar um pouco mais, como você sugere. Mas preciso de tempo para pensar sobre isso. Pode esperar uma hora enquanto tomo minha decisão?

- A hora não é problema, Olga. Mas eu sei que você já tomou sua decisão. - Com essas palavras, ele caminhou rapidamente para a casa de Maria e desapareceu lá dentro.

Comecei a caminhar lentamente na direção oposta. Tudo ao meu redor parecia extraordinariamente calmo e pacífico. Os movimentos da minha caminhada, junto com a beleza natural das montanhas, começaram a me colocar num estado semelhante a um sonho. Eu não estava pensando em nada em particular, nem estava consciente de nenhum sentimento específico. Eu tinha a estranha sensação de que o mundo estava se dissolvendo ao meu redor. Continuei caminhando na direção das montanhas que começavam do lado de fora do limite ocidental da vila. Onde a rua acabava, uma trilha estreita continuava morro acima.

O sol estava na minha frente, iluminando o meu caminho. Subi mais alto; o meu esforço fazia com que eu me sentisse mais quente à medida que o caminho ia ficando mais íngreme e estreito. Tirei meu casaco e o carreguei sobre meus braços. Finalmente cheguei ao nível onde a neve ainda cobria totalmente a terra. As altas árvores verdes se erguiam entre o branco da neve e o azul do céu. As árvores começaram a fechar o caminho pequeno e escuro e eu parei, subitamente percebendo que estava num local selvagem e que já era hora de pensar para onde estava indo.

- Olga. - O silêncio foi quebrado por um profundo sussurro à minha direita. O medo surgiu dentro de mim, e quase gritei. Será que alguém tinha me seguido? Voltando-me rapidamente na direção do som, vi Umai perto de uma pequena fenda na neve. Ela estava de pé em meio aos brilhantes raios solares, e o reflexo deles na neve branca era tão ofuscante que era difícil para mim vê-la claramente. Mas era definitivamente Umai, e uma súbita felicidade me tomou, como se eu tivesse encontrado um ente querido depois de uma longa separação. Corri para ela através da neve.

- Estou tão feliz de vê-la novamente, Umai!

- Vim especialmente para encontrar você - respondeu ela em russo fluente.

- Estou muito honrada.

- Olga, não temos muito tempo. Eu vim para contar-lhe algumas coisas importantes que você precisa compreender. Estou consciente de tudo que está acontecendo com você neste momento. Eu sei que Nicolai fez uma sugestão que você está considerando. Foi por isso que vim vê-la.

"Me escute com cuidado. Você está no meio de uma imensa luta. A sua mente consciente não pode absorver nem uma milésima parte do que está em jogo, por isso não estou contando com a sua compreensão. Só peço a sua crença.

Eu sentia uma confiança total nela, e o meu olhar convenceu-a de que acreditaria no que quer que ela estivesse prestes a dizer.

- Preste atenção e escute - ela continuou. - Essa luta começou há tanto tempo que você não acreditaria em mim se eu desse uma data. O tempo não é tão simples quanto você pensa que é. Por enquanto, você precisa escutar apenas que o tempo possui espirais, e que quando duas espirais se encontrarem, a humanidade vai passar por uma grande mudança. É isso que está acontecendo agora.

Estendendo o braço na minha direção, ela tocou minha mão suavemente e fez um gesto para que eu a seguisse. Ela foi na direção da fenda, e fiz o mesmo. Nós passamos pela neve brilhante que gradualmente se transformou em gelo. O brilho dos raios do sol era tão forte que eu mal podia ver.

- Ouça-me com atenção. Eu quero mostrar uma coisa para você. - Ela parou num lugar quase dentro da fenda, onde não havia nada a não ser a neve e o gelo. - Eu quero que você se deite aqui.

- Onde? - Eu não conseguia imaginar que ela se referia ao ponto frio e inóspito onde estávamos.

- Bem aqui no gelo.

Olhei para ela sem acreditar.

- Coloque o seu casaco de pele aí e deite-se em cima dele. Você vai ficar bem.

Segui as suas instruções, mas ao mesmo tempo a minha mente científica estava tentando se reafirmar. Eu queria compreender mais sobre o que estava acontecendo antes de concordar em fazê-lo. O que teriam pensado meus colegas psiquiatras se pudessem ver o que eu estava fazendo? Fiquei confusa ao pensar nisso. Mas quando me deitei, a serenidade do sol e do céu azul cristalino apagou todas as minhas dúvidas. Respirei o ar puro e senti o calor da mão de Umai quando ela a colocou sobre minha testa.

- Feche os olhos agora, e siga a minha história. Não estamos presas à terra. A sua respiração é uma porta para lugares muito além desta terra, e mesmo além desse corpo que você habita neste momento. Não se permita ficar presa no seu medo de perder a si mesma. Deixe que a sua respiração seja a sua própria vida, e deixe-a livre. Confie em mim. Siga a minha história, e eu seguirei você. Você está protegida.

 

Talvez seja a luz forte do sol fazendo alguma coisa com a minha visão, mas o espaço interior diante dos meus olhos fechados está ficando mais escuro. Então ele se transforma num vazio que eu começo a atravessar numa velocidade incrível. Alguns clarões luminosos surgem da minha esquerda e direita, e então estão ao meu redor. Não escuto mais a voz de Umai. Percebo que estou me movendo entre as estrelas. Logo uma delas, de forma poligonal, se aproxima de mim. Eu seguro uma das suas pontas nas minhas mãos. A estrela está girando ao redor do seu eixo, e o espaço e o tempo giram com ela. Sinto que estou prestes a chegar numa nova dimensão do meu ser. Quando sinto que estou diretamente acima do lugar onde devo estar, minhas mãos soltam a estrela. Imediatamente caio em outra realidade, tão rápido que a transição é instantânea. Antes de saber o que está acontecendo, já estou de pé confortavelmente dentro dessa nova realidade, totalmente consciente dos arredores.

Estou numa pequena sala com alguns homens. Eles estão tirando algo de uma caixa parecida com um cofre. É uma múmia velha e ressecada de um homem, mantida inteira por faixas aos trapos e amareladas pelo tempo. Eles cuidadosamente o colocam no chão do meio da sala. Enquanto contemplo seus movimentos graciosos, começo a sentir um fluxo de energia dentro de mim. No momento seguinte, compreendo que ele me levará para o que vou fazer com esse corpo seco.

Experimento tudo em lampejos caleidoscópicos, como um filme mudando de uma cena para outra tão rapidamente que não há transição discernível entre elas. Agora estou ajoelhada perto da múmia, desenrolando suas faixas cuidadosamente para impedir que as formas originais dos seus músculos secos se separem uns dos outros.

À minha direita há uma taça contendo sal. Eu pego um pouco com minha mão esquerda e faço uma cruz branca com ele no rosto da múmia, da testa até o queixo e então através dos seus dois olhos fechados. Enquanto faço isso, posso sentir o toque de maneira tão sólida como se estivesse tocando a minha própria face.

À minha esquerda há uma taça com terra. Usando minha mão direita, pego essa terra e faço um circulo negro ao redor da cruz branca.

Eu sei que a múmia deve ser trazida de volta à vida, e que tenho o conhecimento para fazê-lo. Preciso começar dando a ele o desejo de viver. Respiro profundamente sobre o seu corpo, criando esse desejo para ele com cada uma das minhas respirações. Eu sinto sua resposta pela aparência de desejo na sua natureza masculina. Ele cria uma tempestade de energia que o lançará para sua nova vida.

Embora agora ele esteja ansioso para voltar a experimentar o prazer do seu corpo físico, ele ainda não está preparado totalmente para isso. O seu corpo de múmia precisa primeiro ser transformado de tal maneira que passe a ser uma ponte para sua nova existência. Um dos outros homens me passa uma tocha. A sua chama se contorce com tamanho calor e intensidade que me assusta.

Então lembro-me de algo importante sobre a tocha, e o medo que sinto dela desaparece; lembro que o meu corpo não está sob o controle do fogo. Calmamente, coloco minha mão diretamente na chama. As duas se fundem de maneira indolor numa só coisa, porque a natureza do meu corpo e a natureza do fogo são a mesma. Passo a tocha sobre a múmia até que nenhuma parte do seu corpo permaneça intocada pela chama. Então uma voz de cima de mim diz: "Agora ele está pronto para nascer."

No mesmo instante, a sala começa a ficar cheia de neblina. Eu sei que o meu tempo aqui está terminando, e que a neblina veio me separar dessa realidade. Imediatamente antes de tudo se dissolver, escuto a minha voz dizendo: "Espere! Espere! Mostre-me como cheguei no meu próprio nascimento."

A sala já está meio cheia de neblina. A neblina diminui durante alguns minutos, e através dela posso ver a minha própria forma imóvel esticada no chão. Três figuras estão se curvando sobre mim, guiando a minha força vital atual à medida que ela flui gradualmente para o meu corpo.

A imagem termina abruptamente, e uma voz masculina fala comigo. "Não pudemos deixar você ver mais do que isso. Teria feito o seu coração sofrer. Você fez tudo corretamente hoje. Volte."

Eu não me lembro onde estou, e o medo me toma novamente. Não lembro de nada sobre mim. Escuto a mim mesma gritando. Então uma mão suave e cálida toca minha fronte. Lentamente, começo a me lembrar das coisas. Eu estou com a mulher que toma conta de mim. Respiro suavemente, aliviada.

Umai começa a falar. "Eis uma coisa que você precisa saber. Os kams só deviam manter uma linha de imortalidade, mas em vez disso existem mais. Você e Mamoush pertencem a linhas diferentes. Caso você fique como Mamoush está pedindo, ele vai tentar destruir a sua linha. Ele mantém a própria linha usando a morte de outras pessoas. É isso que os kams tem feito sempre. A sua imortalidade existe por causa das outras pessoas que morrem. Você é uma conquista importante para ele. Ele planeja ensiná-la a aceitar a morte, e como conseqüência ele pretende que você recuse a imortalidade. Mas não é isso que você deve fazer. Você precisa aceitar a imortalidade."

Meu corpo torna-se incrivelmente pesado enquanto escuto suas palavras. Não posso abrir meus olhos. Não posso mover nem o menor músculo, no entanto sou ainda capaz de falar com ela.

"Espere. Você disse Mamoush. Mas Mamoush já está morto. Ele não fez nenhuma sugestão para mim, foi Nicolai."

"Não há diferença entre Mamoush: e Nicolai. Eles são o mesmo. O tempo não é tão simples quanto você pensa. Você não é só Olga que trabalha como uma psiquiatra numa clínica siberiana. Existe outra coisa em você, alguma coisa que você precisa decifrar."

Sinto um arrepio atravessando o meu corpo. Talvez eu tenha apanhado uma febre. lembro-me de ter ficado deitada no gelo por um tempo indefinido. A terra começa a balançar debaixo de mim.

Na distância, escuto o som de um cavalo galopando. Ele fica cada vez mais alto. Posso sentir a batida dos seus cascos sobre a terra. Então um cavalo branco aparece diante de mim. Todo o seu ser emana uma energia apaixonada.

Uma voz diz para mim: "Monte no dorso dele e galope!" e eu noto pela primeira vez a mulher pequena mas de corpo forte ao lado da cabeça do cavalo, segurando o seu freio. A minha atenção passa do cavalo para o braço nu da mulher, que está totalmente coberto com tatuagens. Nunca vi nada como elas. As tatuagens de animais desconhecidos circulando ao redor uma da outra do ombro até o pulso. À medida que eu olho para ela, os animais começam a parecer cada vez mais familiares, muito embora eu não os reconheça, nem me lembre onde os vi.

Por um momento tenho medo novamente. "Umai! O que isso significa? Por que você está fazendo isso comigo?"

Eu ouço a voz dela novamente, "Porque eu tenho ancestrais das duas linhagens. Eu preciso ajudá-la a fazer uma escolha. Ninguém, a não ser eu, pode fazer isso por você."

"Então é possível pertencer a duas direções? Se você pode fazê-lo, então deve ser possível?"

"Eu de fato pertenço a duas direções."

 

O cavalo e o sonho se dissolveram, e eu despertei. Sabia que um ruído distante tinha me despertado, mas eu não sabia o que era. Imaginei quanto tempo tinha ficado deitada no gelo. Então barulho voltou, e reconheci a voz preocupada de Anna. Ela estava perambulando pelo pé do morro, me chamando. Ela estava bem abaixo na montanha, mas eu podia ouvi-la claramente.

- Olga! Onde está você? Me responda! Nós vamos nos atrasar para o ônibus e nunca mais vamos sair daqui.

Levantei-me rapidamente do gelo, joguei meu casaco sobre meus ombros, e procurei Umai. Não havia nem sombra dela. Senti a necessidade urgente de ir embora e comecei a correr. O morro parecia mais longo do que eu me lembrava, e a minha respiração vinha em arquejos curtos e difíceis na altura que cheguei junto a Anna.

- Você está louca, Olga? Onde esteve todo esse tempo? Deus, você está com uma aparência horrível, totalmente fora de si. Vou ter que levar você de volta como uma paciente em vez de uma amiga. O ônibus já está carregado e prestes a partir. O motorista disse que só me esperaria por mais alguns minutos. Venha, vamos embora.

- Espere, tenho que pegar a minha bagagem - disse a ela.

- A sua bagagem está no ônibus e pode estar indo embora neste mesmo minuto sem nós. Venha, Olga. Precisamos nos apressar.

Pela expressão no rosto do motorista, alcançamos o ônibus na hora exata. Só havia uns poucos passageiros, mas eles nos olharam com raiva quando entramos. Me senti mal por tê-los feito esperar tanto tempo no frio.

No último minuto, notei Nicolai de pé perto da porta do ônibus. Ele parecia surpreso e perguntou:

- O que você está fazendo, Olga?

- Estou indo embora, Mamoush - desculpe, quis dizer Nicolai.

- Mas eu pensei que você houvesse decidido ficar. Tem certeza de que está indo embora?

- Sim.

- Umai procurou você? Foi ela? - O seu rosto estava pálido e sua voz parecia tensa. - Você sabia que se ela fizesse isso por você, ela morreria?

- Não! Isso não pode ser verdade!

- Então, foi mesmo Umai. Então ela não pode mais pertencer aos kams. Ela morreu por você.

As suas palavras me espantaram. Tudo que eu pude dizer foi:

- Adeus, Nicolai. Por favor, agradeça a Maria por mim. - Então a porta do ônibus fechou atrás de mim.

 

A viagem de volta no ônibus parecia interminável. Eu chorei durante toda a viagem, com Anna tentando me consolar em vão. Finalmente tive de pedir que ela me deixasse em paz. De início ela não compreendeu a minha necessidade de distância, mas finalmente adormeceu.

Quando conseguimos sair do ônibus dilapidado, foi só para esperar durante horas pelo nosso trem na estação gelada. Anna ficava olhando para mim o tempo inteiro, esperando uma explicação para o meu comportamento, mas eu não era capaz de lhe oferecer qualquer uma. Eu não costumo esconder coisas dela, mas até então eu não tinha encontrado as palavras para explicar o que acontecera nem para mim mesma. Era cedo demais para tentar esclarecer as coisas para Anna, e eu precisaria de tempo comigo mesma de volta em Novosibirsk para compreender tudo.

Soltei um suspiro de alívio quando finalmente abri a porta do meu pequeno apartamento. Eu tinha certeza de que voltar para minha casa me ajudaria a voltar ao que eu considerava minha realidade normal. Coloquei minhas malas no chão e fui para a cozinha fazer unia xícara de café forte e acender um cigarro. Os eventos confusos da viagem ainda me pareciam avassaladores, e eu tinha que me concentrar conscientemente em relaxar. Eu sabia que tinha voltado como uma pessoa diferente da que viajara para Altai apenas alguns dias atrás. No entanto aqui estava eu, procurando o meu mesmo rosto no espelho, esperando recuperar a segurança tranqüilizadora da minha personalidade familiar.

Olhei a minha correspondência, deixando os jornais para mais tarde. Depois me aconcheguei no meu sofá velho para lê-los. De início todas as notícias pareciam exatamente iguais às da semana passada.

Então, enquanto virava a página do jornal, uma manchete que dizia "Ciência na Sibéria" chamou minha atenção. Sob a manchete estava uma grande foto mostrando a abertura de uma antiga tumba nas montanhas Altai. A foto pareceu interessante, portanto continuei a ler.

O artigo descrevia a descoberta, feita no verão anterior, da tumba de uma jovem. Ela tinha cerca de vinte e cinco anos quando morreu. Foi enterrada no alto das montanhas, numa fenda rochosa que durante o breve verão se enchera de água gelada, que então congelava novamente a cada inverno. Os arqueólogos acreditavam que a mulher fora provavelmente uma sacerdotisa de uma religião esquecida que existira entre dois e três mil anos atrás. A sua tumba funcionara como um congelamento profundo durante milênios, mantendo seu conteúdo num notável estágio de preservação. Uma oferenda de carne tinha sido colocada ao seu lado para o sustento durante a sua longa viagem para o mundo espiritual, e quando foi descongelada, tinha ainda a textura e o cheiro inconfundível de carneiro.

A foto e a descrição da tumba me lembraram da cena onde meu último encontro com Umai tinha acontecido, e enquanto continuava a ler meu coração começou a bater mais rápido.

De acordo com o artigo, uma descoberta específica na tumba criara uma grande sensação arqueológica. Os braços da mulher estavam cobertos com tatuagens de estranhos animais simbólicos circulando os seus braços e se fundindo uns nos outros. As suas tatuagens eram do mesmo estilo que tinham sido encontradas em outra múmia, a de um homem cuja tumba também tinha sido encontrada no Altai cinqüenta anos antes. Como a mulher, ele também fora considerado um sacerdote de uma antiga religião.

Instintivamente, eu tive certeza de que aquela era a mesma mulher que me procurara no meu sonho. A tontura tomou conta do meu corpo. Coloquei minhas pernas sobre meu pequeno sofá e me deitei, derrubando jornais e a correspondência desleixadamente para o chão. Coloquei um travesseiro sob a cabeça e fechei meus olhos.

Numa voz que parecia calma apenas devido à minha feroz determinação de fazê-la assim, eu disse comigo mesma: "Eu não quero pensar mais. Preciso dormir. Por favor, deixe-me dormir como eu costumava fazer, sem mais nenhum sonho estranho." De nada adiantou dizer isso para me acalmar, mas eu continuei, insistindo em pelo menos manter a minha voz controlada. "Apenas relaxe e não pense em nada."

 

"Está certo. Essa não é a hora de pensar Você tem outras coisas a fazer." As palavras foram faladas numa voz forte e masculina, no entanto elas parecem ter vindo de dentro de mim.

"Oh, meu Deus! O que está acontecendo?", eu grito, terrivelmente assustada.

"Você está simplesmente sonhando. Acalme-se", ordena a voz. Surpreendentemente, sinto-me mais calma. Talvez eu tenha apenas caído no sono sem perceber e isso seja apenas um sonho.

"Você precisa aprender algumas coisas agora. O que você gostaria de saber primeiro?"

"Eu quero saber a coisa mais importante que eu possa compreender no meu estado atual."

"Ótimo. Siga-me." Eu aceito a sua voz como sendo a do meu professor de modo que quando vejo um homem vestido de branco, sigo-o sem qualquer da vida. Estou curiosa para descobrir o que ele tem reservado para mim. Ele se move de maneira decidida, e logo começa a descer uma escada que vai até o subterrâneo. Isso me surpreende, porque quando pedi uma revelação, esperei que fosse novamente algo como a se dissolver no céu.

Eu o sigo à medida que ele vai cada vez mais fundo. Enquanto descemos, fica cada vez mais quente, e quase totalmente escuro. Finalmente o vejo entrar numa sala por trás de uma pesada porta de ferro negra. Rapidamente entro atrás dele, sem querer ficar sozinha. Línguas rubras de fogo cercam a sala. Homens nus segurando martelos nas suas mãos estão próximos a enormes bigornas negras. Eu vejo a forma branca do meu professor deixar a sala por outra porta do lado oposto. Para segui-lo, preciso passar pelo círculo daqueles homens, e eles obviamente não pretendem me deixar passar. Eles sorriem e sussurram uns para os outros, me fitando com um desprezo indisfarçável.

As chamas quase tocam meu cabelo. Os homens se movem lentamente na minha direção. Eles estão em silêncio, mas sei que eles decidiram fazer alguma coisa terrível comigo. A porta de ferro fecha atrás de mim com um som pesado e abafado, impedindo qualquer fuga possível.

Percebendo que estou presa, começo a chorar. Como pude ser tão ingênua a ponto de aceitar esse diabo como um mestre e então permitir que ele me levasse até lá? Em vez da revelação que ele me prometera, eu sei que estou prestes a experimentar alguma coisa realmente terrível.

Os homens estão se aproximando, e posso ver que estão totalmente bêbados. O medo toma o meu ser e só pode ir para fora. Começo a gritar.

Então, vinda do nada, uma simples interpretação entra na minha mente. Esse lugar e os homens me cercando são criações dos meus próprios medos. Todas as imagens neste sonho são minhas. Eu estou no controle e posso fazer tudo que desejo com eles. Esse conhecimento faz com que eu me sinta muito poderosa, e ando confiante na direção dos homens bêbados. As chamas vermelhas se apagam, e os homens primeiro encolhem até se tornarem pequenas formas amorfas e então desaparecem inteiramente. Caminho pela sala vazia até sair pela outra porta.

O homem de branco está me esperando do outro lado. "Você se lembra da lição?", ele pergunta.

"Me lembro, sim." Compreendo agora que, de algum lugar no centro do meu ser posso controlar o que chamamos de realidade, alterando-a através da minha própria vontade. Lembro-me do que Umai me contou sobre as duas tarefas que as pessoas precisam realizar - criar suas realidades e criar a si mesmas. Eu sei que ela tem mais coisas para me explicar e estou ansiosa para falar com ela.

"Quero ver Umai", digo ao meu mestre, sentindo que ele a conhece e pode ser capaz de me conectar com ela.

"É impossível para você vê-la novamente. Ela fez o que precisávamos que ela fizesse. Agora acabou."

"Não! Eu quero vê-la!" Estou gritando com meu professor. Percebo agora como senti falta dela, e que faria quase qualquer coisa para vê-la novamente.

"É impossível", ele repete. A sua voz parece exasperada, como se ele estivesse falando com uma criança desobediente.

Mas não há como me deter. "Você está errado! É possível!", insisto, percebendo agora que eu sou capaz de administrar a realidade. Eu sei como concentrar todo o meu ser para trazer Umai aqui. Eu faço isso, e subitamente ela está diante de mim.

"Bem, bem. Você é uma boa estudante", diz o homem com um sorriso e desaparece.

Volto-me para Umai com alegre expectativa. Ela tem um sorriso maravilhoso e gentil no seu rosto, e percebo novamente que confiaria minha vida a ela.

"Por que você pediu que eu viesse aqui?", indaga Umai.

"Quero saber mais sobre o modo como criamos a nós mesmos. Estou começando a compreender o modo de criar minha própria realidade. Agora quero aprender o que você quer dizer com criar o ser que vive nessa realidade."

"Olhe para si mesma e para as outras pessoas ao seu redor. A única coisa que todo mundo está jazendo o tempo todo é tentar realizar suas Personalidades. Todo mundo fala a esse ser mutável e crescente o tempo todo, tentando formá-lo.

"As pessoas têm três maneiras principais de fazer isso. Elas falam dentro das suas cabeças sobre o passado, reconstruindo-o, alterando e apagando as coisas que não se encaixam com o ser que estão tentando criar e expandindo as coisas que as ajudam. Elas também pensam no futuro, imaginando o que vão fazer, como vão parecer, quais serão suas posses, e como serão aceitas pelos outros.

"A terceira coisa que as pessoas fazem é o que as conecta com o presente. Inconscientemente, elas estão sempre conscientes das percepções de outras pessoas de quem são e o que estão fazendo, e continuamente reagem a isso. Algumas dessas reações sustentam seu senso de Individualidade, enquanto outras o destroem. Elas vêem que algumas pessoas são atraídas para elas e que outras não são. Na maior parte do tempo, quando estão perto de pessoas que não sustentam seu senso de Individualidade, elas experimentam o que poderia ser chamado de antipatia por essas pessoas. Por outro lado, quando experimentam o apoio para si mesmas das pessoas ao seu redor elas criam o sentimento de gostar daquelas pessoas específicas. Desse modo, as pessoas combinam o passado, presente e futuro para criar a si mesmas. Se prestar atenção, vai perceber isso tudo acontecendo em qualquer pessoa e qualquer situação. Olhe ao seu redor. Você vai notar muitos exemplos interessantes disso.

"Mas quando você compreende tudo que pode sobre esse processo, então chega a existência da outra Personalidade, que está consciente de tudo isso e é independente desses atos. Essa é a sua Personalidade do Coração, e é nela que começa a verdadeira liberdade e magia. Ela é a fonte da grande arte de fazer uma escolha. Mas isso é o bastante para você agora."

 

Eu estava exausta, e uma onda pesada de sonhos logo cobriu a minha consciência. Quando finalmente abri meus olhos novamente, meu corpo parecia pesado e duro por ter ficado sem se mover por muito tempo. Lentamente massageei minhas pernas para renovar a circulação e então me levantei para fazer café. Quando ele ficou pronto, sentei à minha pequena mesa de cozinha e o provei lentamente numa velha xícara de porcelana, apreciando não tanto o café em si quanto o seu aroma amigável e tranqüilizador. Já era dia, e através da minha janela eu podia ver as crianças correndo umas atrás das outras no pátio, gritando e rindo com deleite.

As crianças pareciam distantes da minha janela do terceiro andar, assim como a própria realidade parecia distante e longínqua naquele momento. A minha cabeça ainda estava pesada, e o meu corpo permanecia naquele espaço intermediário entre o sono e o despertar. Eu sabia que precisava pensar em tudo que acontecera para poder compreender, mas ainda não estava pronta para fazê-lo. A minha consciência ainda estava demasiadamente desordenada para trazer minha vida de volta ao normal. Por enquanto, eu teria que deixar esse trabalho para o meu inconsciente.

A minha tarefa imediata era me preparar para voltar ao trabalho. Havia muitas coisas a fazer, e fui dormir bem tarde. Isso me fez bem, porque rapidamente caí num sono profundo que finalmente não teve sonhos.

Na manhã seguinte, a minha velha rotina parecia ao mesmo tempo familiar e estranha, e percebi que a estava experimentando através do filtro das minhas experiências recentes.

Até mesmo férias normais criavam sentimentos conflitantes. De início sempre parecia uma bênção deixar para trás o meu trabalho, com seus rostos doentes, os odores desagradáveis, os gritos fortuitos, as grandes quantidades de trabalho burocrático, na maior parte desnecessário. Então, depois de algum tempo, eu ficaria impressionada ao perceber que estava começando a sentir falta dessas mesmas coisas. Eventualmente, eu ficaria esperando que o tempo passasse rápido para que eu pudesse voltar ao meu hospital. Hoje não era diferente, e eu me sentia tanto excitada quanto aliviada por voltar à rotina confortável do hospital.

Caminhando pelos familiares corredores escuros, falando com as enfermeiras e meus pacientes, revi as alterações que tinham ocorrido nos poucos dias em que estivera longe. A porta branca fechada da sala de emergência me assustou no momento em que olhei para ela. Tudo que me lembrasse da mulher morta fazia com que a ansiedade voltas-se a me atacar. Mas eu estava no trabalho e precisava realizar meus trabalhos, de modo que lutei para não sucumbir ao medo. Comecei a examinar meus pacientes.

Não fiquei surpresa ao descobrir que poucos tinham feito algum progresso. A maioria deles continuava uma presença viva da vulnerabilidade da frágil psique humana.

Felizmente, Andrey, meu jovem soldado, me trouxe um sentimento agradável. Quando entrei no meu consultório ele já estava sentado na cadeira de couro diante da minha mesa. Ele estava completamente recuperado do seu estado de psicose aguda e mostrava todos os sinais de já estar quase pronto para ir para casa. Estava sentado casualmente com suas pernas cruzadas, e notei que mal se via algum tremor nas suas mãos. Ele fazia um divertido contraste com o enorme enfermeiro novo de aparência rude que estava ao seu lado, que devia me proteger dos pacientes violentos. O enfermeiro parecia muito mais perigoso e violento do que o garoto de ar amigável sentado diante de mim.

- Olá. Como esta hoje, Andrey?

Ele pareceu ficar confuso, obviamente sem se lembrar de mim.

- Como vai, doutora?

- Bem, acho que não me reconhece, não é? Quando nos encontramos, você estava ocupado demais com outra coisa, não é mesmo?

- Oh, meu Deus! Estive num inferno. Eu não sei como explicar o que houve para ninguém aqui. Aquelas criaturas do OVNI que me seguiam a toda parte eram absolutamente reais para mim. Elas eram terríveis; me ameaçavam e não me deixavam sozinho. Não havia ninguém que pudesse me ajudar a me afastar delas.

- Não é bem assim, Andrey. Nós o ajudamos a se livrar delas com nossos cuidados e remédios. Sem essa ajuda, você provavelmente ainda estaria consumido pelas suas visões. Você compreende agora que todas essas imagens não era nada além de alucinações?

Ele pareceu pesar minhas palavras. Então assentiu com a cabeça.

- Bem, realmente não faz nenhuma grande diferença a maneira como as chamo. Mas entendo o que quer dizer; elas não pertencem a este mundo. Sei que isso é verdade. Quando penso nelas agora, elas são como personagens de um pesadelo vívido. Mas quando ainda estava dentro do sonho, era como se seres numa espaçonave de verdade estivessem me seguindo, me obrigando a fazer o que quer que eles desejassem.

- Como, por exemplo?

- Como, por exemplo, correr rumo ao trem em movimento e tentar me matar; como, por exemplo, rasgar minhas roupas e tentar ferir o meu corpo. Foi como se quisessem que esquecesse tudo que eu sabia sobre mim e a minha vida. Eles queriam que eu me tornasse seu servo totalmente obediente.

- E você não tinha força para resistir a eles?

- Eu não tinha poder nenhum. Eles tomaram completamente a minha cabeça. Eu não conseguia mais ouvir meus próprios pensamentos; só podia ouvir as suas vozes.

- Como você se sente quanto a eles agora?

- Acho que sinto-me indiferente. Não tenho mais medo deles, e eles não falam comigo há mais de uma semana. Além disso, sinto-me meio sonolento e emocionalmente passivo a maior parte do tempo.

- Isso é um resultado do remédio que você está tomando. Agora podemos começar a diminuir a dosagem e prepará-lo para ir para casa.

Pela primeira vez seus olhos se iluminaram, e seu rosto aberto e redondo pareceu estar feliz como uma criança. Obviamente ele ficou contente em saber que logo seria capaz de escapar desse lugar.

Disse a ele que gostaria que ele começasse a trabalhar na área do hospital, ajudando a equipe. Isso eliminaria uma restrição importante na sua vida diária, e ele agora estaria desimpedido para sair ao ar livre. Ele limparia os caminhos e talvez fizesse alguns outros trabalhos menores no terreno. Depois de algumas semanas passadas em isolamento, a perspectiva de ter até mesmo essa pequena quantidade de liberdade o excitava visivelmente. Ele sabia que estava finalmente no seu caminho de volta para casa. Saiu feliz do meu consultório.

Enquanto eu passava pelo processo normal de avaliar Andrey, percebi novamente o quanto tinha mudado. As minhas percepções tinham se alterado tão dramaticamente que foi como se, nos poucos dias de viagem, eu tivesse passado por anos de estudos psicológicos combinados com intensas experiências pessoais. Não era mais uma coisa simples para mim julgar alguém insano ou considerar as suas fantasias irreais. As sensações inesquecíveis dos meus sonhos vívidos no Altai tinham abalado a minha compreensão da realidade. Tendo uma consciência intensa da minha própria participação consciente nessas visões, não era mais tão simples assim marcar os limites entre sonho e realidade. O que era verdadeiro e o que era falso? Eu não sabia mais.

Muitos anos de experiências inexplicáveis tinham sido comprimidos numa pequena fração de tempo, e elas tinham me dado uma compreensão totalmente nova do potencial humano. Ou, para ser mais exata, elas tinham me dado um conjunto totalmente novo de perguntas e dúvidas sobre minhas antigas percepções. Alguma coisa estava se transformando dentro de mim. Eu podia senti-lo, mas era algo que não estava pronto ainda para tomar forma completamente na minha mente. Isso levaria tempo, se é que realmente aconteceria.

Enquanto isso, eu não estava mais confiante na minha compreensão da doença de Andrey. Mesmo enquanto tentava reassegurá-lo de que suas visões assustadoras tinham sido apenas as alucinações de sua consciência doente, as dúvidas surgiram na minha mente. Agora eu brincava com a possibilidade - até mesmo probabilidade - de que a realidade poderia realmente se manifestar de maneiras mais complicadas do que aquelas que conhecíamos. Minhas velhas crenças e regras não teriam coberto nem mesmo a milésima parte do que eu tinha experimentado em Altai. Eu sentia que estava nadando num enorme oceano inexplorado.

Olhando pela janela, fiquei tranqüilizada ao ver o velho bonde ainda parado no meio do terreno. A tinta azul descascada que cobria a sua carcaça fazia um perfeito contraponto com o azul brilhante do céu da primavera. Refleti que talvez esse ferro-velho inescrutável pudesse ser a única constante segura na minha realidade.

Abri o meu diário e escrevi o relato obrigatório sobre o progresso de Andrey. Ainda tinha muito trabalho por fazer, e me censurei por perder tempo sonhando acordada.

 

Algumas semanas se passaram, e gradualmente fui me sentindo mais confortável com a rotina do hospital. O meu trabalho, que sempre fora muito satisfatório para mim, agora parecia quase novo.

Certa manhã, um rosto alegre e vivo subitamente se apresentou na minha porta.

- Olá! - disse ele. - Você é a médica que devo ver? - Sem esperar por uma resposta ou por um convite, o homem bastante baixo e de meia-idade, vestindo um terno azul-escuro, entrou e ficou diante da minha mesa.

- Meu nome é sr. Dmitriev. Sou um físico da cidade acadêmica. Aqui está o meu pedido de hospitalização.

Assim que ele mencionou a cidade acadêmica, percebi que ele fazia parte da elite intelectual. "Academgorodok", como essa cidade era conhecida, tinha sido construída como um experimento pelo governo soviético no início dos anos 1960. Eles construíram casas confortáveis num belo ambiente siberiano e convidaram as mentes mais brilhantes de toda a União Soviética a se instalarem lá. A finalidade era desenvolver uma nova ciência soviética. As pessoas que foram para lá trabalhavam sob as melhores condições do país. O equipamento científico e a tecnologia mais avançados estavam disponíveis para eles. Até mesmo as pessoas que não estavam diretamente envolvidas na pesquisa, que só trabalhavam em posições subalternas, podiam comprar a melhor comida com facilidade e tinham camas confortáveis para dormir à noite.

O centro realizou sua promessa, tornando-se a fonte de algumas das maiores teorias e avanços tecnológicos da época. As pessoas que viviam lá eram altamente inteligentes e viviam numa atmosfera de democracia e liberdade de pensamento que os capacitava a expressar sua individualidade. Isso lhes dava uma presença inconfundível, uma mistura de confiança e abertura.

Pude sentir essa presença no homem que estava diante da minha mesa. Agora ele estava puxando o seu pedido de hospitalização, uma folha de papel que dobrara e enfiara no bolso, e agora o apresentava atirando-o casualmente na minha mesa. Então, sem esperar mais nenhuma palavra de mim, ele se sentou. Tive a sensação de que estava fazendo um jogo comigo no qual se equilibrava delicadamente no limite entre o brincalhão inofensivo e o grosseirão.

Olhei para a folha de papel que ele atirara tão descuidadamente diante de mim. Era do seu médico local, declarando que o sr. Dmitriev tinha uma síndrome neurótica de gênese somática, e que tínhamos ordem de cuidar dele no hospital.

- A senhora vai me tratar usando hipnose, doutora? - ele perguntou zombeteiro. Os seus olhos estavam rindo, mas o resto do seu rosto tinha uma aparência generosa que mostrava que ele não queria ofender com seu humor.

Percebi que estava me comunicando com alguém que tinha a habilidade de pular de uma face para outra da sua personalidade, mas não experimentei a sensação dolorosa e familiar de descobrir um esquizofrênico.

- Detesto desapontá-lo, sr. Dmitriev mas não vou tratá-lo com hipnose; na verdade, não vou tratá-lo. O seu pedido de hospitalização é para a enfermaria de neuroses. Esta é uma ala psiquiátrica regular. O senhor precisa levar seu pedido de volta para o lado de fora e então ir para o segundo prédio à sua esquerda. O médico que vai tratá-lo estará lá.

- Não! Não posso acreditar nisso. Que injustiça! Posso dizer imediatamente que a senhora é a médica que poderia me ajudar. Por que não estamos vivendo durante a época do czar, quando poderia ter contratado qualquer médico que desejasse, sem quaisquer malditas regras territoriais ou outras que fossem? - gritou dramaticamente. Então, abaixando a voz, ele acrescentou: - Mas é melhor assim. O salário que recebo como um físico proeminente não seria o bastante para contratar um médico. Eu mal consigo me sustentar. Boa tarde, doutora. Vejo a senhora mais tarde.

Quando ele saiu, seu rosto estava totalmente sério novamente, sem mesmo uma sombra da sua ironia brincalhona de alguns momentos atrás. "Que pessoas estranhas os psiquiatras encontram", pensei, e então o esqueci até o meu turno da noite na semana seguinte.

Era sempre necessário ficar um médico disponível durante a noite, para ser responsável pelos pacientes existentes assim como por aqueles admitidos depois das horas regulares. O dever era alternado entre a equipe, e o meu turno acontecia a cada duas semanas. Algumas noites acabavam sendo tão ocupadas que não havia chance de dormir, mas elas tinham a vantagem de me oferecer a oportunidade de trabalhar com outros pacientes que não os meus. Alguns deles eram interessantes, e eu gostava da experiência. Também era útil financeiramente, porque recebíamos quase o dobro do pagamento das horas regulares pelas nossas horas noturnas.

Naquela noite, as minhas voltas pelas enfermarias do hospital começaram sem problemas, exigindo apenas algumas mudanças simples de medicação para pacientes cujas condições tinham mudado. Finalmente, cheguei à entrada da enfermaria de neuroses. O sr. Dmitriev estava de pé ao lado da porta aberta, parecendo não estar nem um pouco surpreso, como se soubesse que eu iria entrar a qualquer momento.

- Como vai, doutora? - ele perguntou. Estava mais calmo e muito mais polido do que na última vez que o vira.

- Estou bem, obrigada. E parece que o senhor está se sentindo muito melhor?

- Eu estou muito melhor. A senhora tem um minuto para falar comigo? - ele perguntou.

- Bem, se você realmente precisa de algo, é claro que tenho - repliquei.

Era uma regra estrita que os médicos precisavam se encontrar com todos os pacientes que pediam para falar com eles durante o turno da noite, e me perguntei que desafio especial a mente brilhante do sr. Dmitriev tinha planejado para mim.

- Então digamos, doutora, que eu precise da sua ajuda.

Pedi à enfermeira de plantão que abrisse o consultório do médico regular da enfermaria para mim. Ela parou o que estava fazendo e caminhou pelo corredor até uma porta de madeira negra com uma plaqueta escrita "Dr. Fedorov" nela. Ela descobriu a chave no seu molho e abriu a porta.

Entrei no consultório primeiro. Os consultórios dos outros médicos sempre pareciam mais impressionantes e menos confortáveis que o meu. Neste caso, a reputação do dr. Fedorov também podia estar me influenciando. Ele era conhecido por seguir rotineiramente procedimentos misteriosos e arriscados com pacientes neuróticos que outros haviam abandonado como incuráveis. Ninguém negava seus resultados, que eram incríveis, mas devido à sua discrição ninguém realmente compreendia como ele os conseguia.

- Entre, sr. Dmitriev, e sente-se.

Como antes, o meu convite veio tarde demais. O sr. Dmitriev já tinha entrado na sala, se abancado confortavelmente, e estava esperando pacientemente que eu sentasse antes de falar. Terminei minhas meditações e olhei para ele, esperando.

- Temo que o motivo por que pedi para falar com a senhora possa parecer estranho de início. Mas peço que tente ouvir minhas palavras de maneira compreensiva.

"Eu pesquiso no campo da física quântica. O meu laboratório está envolvido no estudo do fenômeno da realidade. Eu até mesmo diria que, pela minha profissão, fui colocado num relacionamento mais direto com a realidade do que qualquer outra pessoa. Tenho muita liberdade no que faço. A maior parte da minha exploração da realidade envolve experimentos na ciência física, mas também começamos a usar técnicas baseadas na percepção humana e na mente subconsciente. Eu gostaria de contar mais sobre nosso trabalho para a senhora e talvez convidá-la a visitar nosso laboratório.

O seu convite inesperado me surpreendeu, mas continuei ouvindo com atenção profissional treinada.

- Tenho uma coisa muito importante para lhe contar. Os meus estudos a longo prazo da realidade transformaram a minha visão de mundo desde que comecei o trabalho. Muito da minha certeza original sobre a natureza da realidade gradualmente se transformou numa incerteza que abriu novas portas fascinantes para o meu trabalho. A maioria das pessoas na minha vida espera que eu aja dentro do seu contexto "normal" de existência, e isso não me incomoda. É uma das leis a que eu, como ser humano, preciso obedecer. Mas nesta situação atual com você, estou me permitindo exceder o limite do nosso contexto como médica e paciente para dizer-lhe diretamente por que pedi por esta conversa.

Ele parecia bastante sério, e gostei mais desse humor do que a sua encenação anterior. Parecia estar esperando pela minha reação, de modo que o estimulei.

- Por favor, vá em frente.

- Em primeiro lugar, eu não acredito que ter entrado na sua enfermaria tenha sido coincidência. Eu não costumo cometer erros como aquele que me levou até sua porta. Aprendi a me comunicar bem com minha intuição, e ela me diz que havia uma finalidade para o seu encontro comigo.

Eu me perguntei se tinha ouvido direito.

- O meu encontro com você? - indaguei.

- Sim, exatamente. Estou bastante satisfeito onde estou, fazendo o que faço. Eu não preciso de nada mesmo. Mas sinto que você está passando por algum tipo de situação muito intensa, e que talvez esteja perto de compreender alguma coisa muito importante. Há uma peculiaridade incomum na sua energia, e eu a senti na primeira vez que nos encontramos. Acho que talvez possa ajudá-la. No nosso laboratório, projetamos novas maneiras de abrir canais para estados alterados de consciência quando sistemas de ferramentas físicas, tais como espelhos redondos. Você experimentou alguns estados estranhos ultimamente para os quais não encontrou explicação, não é?

Eu estava chocada. A minha voz respondeu num sussurro.

- Experimentei, sim.

- Está vendo? E acredito que você gostaria de continuar no caminho que iniciou e talvez chegar a uma compreensão das suas experiências. Não é mesmo?

- Sim, gostaria. - A sua óbvia sinceridade me fez confiar nele, e me senti segura em concordar com ele.

- Aqui está o meu cartão. Ligue-me no momento que for conveniente. Eu ficarei feliz em mostrar-lhe o meu laboratório.

Ele me deu o cartão de visitas mais enfeitado que já vira. O seu nome estava sublinhado e abaixo estava impresso, "Chefe do Laboratório de Física". Embora eu tivesse certeza de que nunca usaria o cartão, peguei-o e me levantei para sair. Então uma última pergunta veio à minha cabeça.

- Sr. Dmitriev qual foi o motivo da sua hospitalização? Que tipo de problema o trouxe aqui?

- Não consegue adivinhar, doutora? - replicou, o ar brincalhão novamente brilhando nos seus olhos. Nos separamos sem outra palavra, e deixei a ala de neurose pensando que seria uma boa idéia passar algumas semanas nela, para ajustar a minha própria mente desequilibrada.

Mais tarde, com o meu turno completo, voltei à minha sala. A enfermaria estava quieta, para variar; todos os seus habitantes dormiam. Em vez de jogar fora o cartão dele, como pretendia, coloquei-o cuidadosamente no arquivo da minha mesa. Então fiz uma cama no meu sofá e fui dormir, esperando não ter que atender a nenhuma emergência antes da manhã. Enquanto caía no sono, refleti que foi provavelmente o respeito inconsciente que eu sempre tivera pela física, desde as minhas modestas tentativas no científico de compreender a teoria da relatividade, que me impediu de jogar fora o cartão de Dmitriev. Ainda não tinha intenção de aceitar a oferta dele.

 

A noite continuava calma, e eu dormi num sono profundo e sem sonhos. Normalmente eu teria despertado sozinha pela manhã, mas o meu corpo devia estar precisando de descanso extra, porque eu quase dormi durante a hora do desjejum. Depois de comer apressadamente, arrumei meu sofá, coloquei meu travesseiro e lençol no armário, e me preparei para o trabalho matinal. Então o telefone tocou, e respondi, agradecida por ele ter ficado em silêncio a noite toda.

Uma voz desconhecida disse:

- Dra. Kharitidi? O meu nome é Svetlana Pavlovna Zaitseva. Sou psiquiatra distrital de uma das clínicas da reglao.

- Como posso ajudá-la, Svetlana Pavlovna? - perguntei.

- Preciso obter alguns documentos do seu hospital sobre um dos meus pacientes. O nome dele é Victor Isotov, e ele foi hospitalizado na sua clínica até seis meses atrás. Eu o tratei aqui desde então. Você pode não se lembrar dele. Será que poderia pedir seu histórico como paciente dos seus arquivos e mandá-lo para mim?

- Lembro-me bem de Victor. Muitas vezes pensei nele e fiquei feliz por ele não ter precisado ser readmitido no hospital. Ele está bem? Você precisa dos documentos dele para seu programa de reabilitação?

- Na verdade, Victor cometeu suicídio na noite passada. Agora preciso escrever um relatório. Como sabe, ele sofria de esquizofrenia. Ele nunca progrediu muito com sua doença.

Eu não estava acostumada a chorar no trabalho; aprendera, muito tempo atrás, a me distanciar emocionalmente dos destinos de meus pacientes. Mas Victor tinha sido especial. A minha primeira resposta foi culpar essa mulher pela sua morte, mas eu sabia que não tinha o direito de fazer isso. Talvez ela tivesse sido mais competente no tratamento dele do que as suas palavras me permitiam perceber. De qualquer maneira, eu não podia mais falar com ela e precisava sair do telefone o mais rápido possível. Acabei dizendo:

- Me desculpe, estou muito ocupada agora. Por favor, deixe seu telefone e eu ligarei de volta daqui a uma hora.

- Não se preocupe - ela respondeu. - Não há necessidade de você gastar o seu próprio tempo fazendo isso. Vou ligar para a sua enfermeira-chefe e pedirei a ela que cuide do assunto. Obrigada. - Ela desligou, e eu sabia que tinha sentido a minha angústia.

Victor Isotov só tinha vinte anos de idade quando foi mandado para nosso hospital vindo de um tipo especial de clínica. Essas clínicas existiam em toda a União Soviética há muitas décadas; elas tinham como função o tratamento de pacientes criminosos, especialmente aqueles que eram considerados perigosos. Nós não sabíamos muito sobre essas clínicas porque elas eram administradas pelo Ministério de Assuntos Internos em vez do Ministério de Saúde.

Entre os principais crimes na União Soviética, um dos piores foi definido pelo Artigo 70 da legislação soviética. Ele tratava da agitação e propaganda anti-soviéticas. Quase todos os criminosos condenados sob este artigo se tornavam os equivalentes funcionais de mortos. A única diferença consistia em que eles não eram executados, mas em vez disso passavam pelos horrores do "tratamento especial". Muitos foram perdidos para o mundo para sempre, e a maioria daqueles que voltaram se tornaram inválidos psicológicos permanentes.

Victor Isotov foi uma das raras exceções que recebeu a chance de voltar para a sociedade. Depois de dois anos nos horrores mentais da clínica especial do Casaquistão, ele fora mandado para Novosibirsk e enviado para nosso hospital para tratamento. Ele chegou na minha enfermaria carregando consigo o rótulo de "esquizofrenia lerda", um diagnóstico tapa-buraco que era aplicado a praticamente qualquer um que não correspondesse aos critérios sociais de normalidade do governo.

Aqueles que recebiam este diagnóstico, mesmo que fossem completamente sãos, sofriam as mesmas conseqüências terríveis que qualquer outra pessoa com diagnóstico de esquizofrenia. Eles perdiam praticamente tudo que fosse valioso nas suas vidas; perdiam seus empregos e seus amigos. Não tinham permissão de ir para a escola ou de participar de quaisquer organizações sociais.

A síndrome principal na história de Victor, de acordo com as notas feitas por seu último médico, era "intoxicação metafísica". A sua ficha dizia: "O paciente expressa um interesse anormal pela literatura particular de um caráter filosófico, religioso e metafísico. Ele declara que poderia passar o dia inteiro lendo livros sem ter nenhum outro interesse. Ele não tem muitos amigos porque seus critérios para amizade são muito altos. A sua fala é elaborada e intricada. Ele expressa idéias anti-soviéticas; acredita que a sociedade soviética é imperfeita e que pode ser melhorada de muitas maneiras."

O crime de Victor - sua insanidade - foi ter decidido, aos dezessete anos, que a vida na União Soviética poderia ser melhor e que as pessoas deveriam ter mais liberdade. Ele fez pequenos panfletos escritos à mão, tentando explicar como essas mudanças poderiam ser realizadas. Ele colocou os panfletos nas paredes de alguns lugares públicos da sua cidadezinha.

A cadeia de eventos que veio a seguir foi típica. O departamento local da KGB o prendeu, foi arranjada uma consulta psiquiátrica, o diagnóstico resultante de esquizofrenia foi levado à corte, e a corte consignou Victor ao tratamento especial.

Desejava saber por que ele recebera permissão de voltar para casa. Talvez eles tenham finalmente percebido como tinha sido ridículo, em primeiro lugar, rotulá-lo como uma perigosa ameaça à sociedade, ou talvez tenham decidido que ele estava curado. Quando ele veio até mim, certamente não parecia nem um pouco perigoso. Ele tinha um pescoço magro e branco, e seus olhos estavam sempre humildemente voltados para o chão. A sua voz era suave, e ele mostrava todos os sinais de uma profunda depressão.

Victor tinha sido meu primeiro paciente de uma clínica especial. Descobri que ele tinha medo de tudo. Cooperava completamente, e respondia obediente a todas as minhas perguntas. O problema era que todas as suas respostas tinham sido cuidadosamente memorizadas e ensaiadas. Elas sempre eram dadas em frases curtas e formais que eram repetidas sem alterações. "Eu estava doente. Compreendo isso agora. Eu quero continuar a tomar meus remédios para prevenir a recaída da doença."

Só houve uma vez em que vi um traço de animação relembrada no seu rosto. Ele tinha notado um livro samizdat que fora reproduzido secretamente para mim numa máquina copiadora por um amigo. Tinha sido escrito por Sri Aurobindo, um filósofo e místico indiano, e normalmente eu o mantinha escondido na minha mesa. Depois de Victor tê-lo visto, nosso relacionamento lentamente começou a mudar. Foi o início da sua confiança em mim. Foi a porta para um longo e complicado processo para ajudá-lo a recuperar o máximo de fragmentos possível da pessoa que existia antes do seu "tratamento especial". Me apoiei um bocado em drogas antidepressivas e desintoxicantes, construindo ao mesmo tempo uma ponte sutil para que ele voltasse à sociedade e a si mesmo.

Victor não pensava mais que a sociedade precisava de mudanças, provavelmente porque ele simplesmente desistira da idéia de que as mudanças ocorreriam algum dia. Eu nunca o escutei dizer alguma coisa que poderia ser interpretada como uma idéia anti-soviética. Ele tinha sido biologicamente treinado para evitar esses temas. Mas gradualmente ele começou a ter uma visão nebulosa de um futuro para si.

Calou fundo o fato dele ter tido uma sorte impressionante de ter sido liberado da clínica especial e de ter pelo menos uma chance de ganhar a vida em algum trabalho simples na sua cidade e de voltar aos seus amados livros. Ele percebeu que suas antigas esperanças de ter uma educação estavam enterradas para sempre, e nunca tentei persuadi-lo de que isso não era verdade. As universidades estavam fechadas permanentemente para ele. Compreender isso foi traumático para ele, com sua mente brilhante e vontade de aprender. Mesmo depois dos dois anos de tratamento destrutivo que atravessara, ele ainda tinha uma sede apaixonada de conhecimento. Isso tornou-se a ferramenta que tentei usar para ligá-lo novamente à realidade. Apontei para ele os vários livros clássicos que ainda não lera, e quantas descobertas científicas ainda podia conhecer, mesmo na sua biblioteca local.

Tive medo do que poderia acontecer com ele uma vez que fosse liberado, de modo que o mantive hospitalizado o máximo que pude. Mas a internação não podia durar para sempre. Certo dia a sua mãe, uma mulher solteira que vivia como contadora para uma fábrica local, veio levá-lo para casa. Embora já estivesse na meia-idade, vestia-se de maneira provocante, no estilo de uma mulher muito mais jovem. A sua tentativa de recapturar sua juventude era tão óbvia quanto sem sucesso. As minhas tentativas anteriores de envolvê-la na reabilitação de seu filho tinham todas falhado. Ela tinha me deixado claro que não tinha tempo para nada além da sua vida particular, e que ela tinha problemas de reconciliar sua imagem de tentadora com ser a protetora do filho doente. Até mesmo a palavra esquizofrenia trazia uma expressão de repulsa ao seu rosto cuidadosamente maquiado.

Depois da sua liberação, Victor me escrevera uma carta curta me contando suas tentativas de encontrar um trabalho. Ele fora rejeitado em alguns lugares que tentara, mas ainda esperava encontrar alguma coisa. Também mencionou que a sua mãe vendera todos os seus livros enquanto estivera fora.

Não tive mais notícias depois disso, mas pensava nele com freqüência. Algumas vezes estivera prestes a entrar em contato com seu médico distrital, mas então alguma coisa mais urgente sempre parecia me impedir, e eu deixava a idéia de lado. Depois veio a minha preocupação com a viagem ao Altai e sua seqüência, e eu o havia esquecido até hoje.

Agora Victor tinha tomado a sua própria vida, e eu sentia que ele tinha levado uma parte da minha vida com ele. De fato, depois do primeiro choque ter passado, descobri que a notícia tinha me deixado não só triste, mas com um senso de perda mais profundo do que poderia ter sido explicado pelo meu apego por Victor. Tentei várias vezes analisar o meu estado peculiar de mente, e decifrar o que eu estava perdendo. Finalmente compreendi. Depois de ter voltado de Altai, eu tinha tentado continuar a minha vida profissional exatamente como antes, pondo de lado tudo que acontecera em Altai como se não tivesse importância alguma para o resto. A tragédia patética da vida desperdiçada de Victor tinha feito com que eu percebesse que não podia fingir que minha vida estava dividida em partes distintas.

Ficou claro para mim que, sem que eu admitisse conscientemente, tinha me transformado numa pessoa diferente. A minha viagem até Altai transformara muitas das minhas crenças e percepções mais importantes, e não fazia nenhum sentido para mim continuar a minha vida e meu trabalho como se nada houvesse acontecido. Eu já não tinha mais como justificar unia vida dita normal como uma psiquiatra de sucesso na clínica estatal. Não havia absolutamente escolha nenhuma se, como sempre me orgulhara de fazer; desejasse viver a minha vida com minha honestidade interior intacta.

A morte de Victor foi o catalisador que me fez compreender isso, e prometi a mim mesma lembrar-me dela sempre que pudesse ficar tentada a fazer acordos - e cair de volta na minha vida de mentalidade tacanha. Esta seria minha última homenagem ao meu antigo paciente. Minha decisão me deu uma grande sensação de alívio.

 

Alguns dias depois, tirei o cartão do sr. Dmitriev da minha mesa. Eu sabia que ele já tinha sido liberado do hospital, portanto liguei o número de seis dígitos do seu telefone de trabalho. Ele mesmo respondeu, e reconheceu minha voz imediatamente. Disse a ele que gostaria de aceitar o seu convite, e marcamos um horário para que eu o encontrasse em seu laboratório dois dias depois. Era necessária uma permissão especial para visitar o instituto, portanto ele estaria esperando na porta principal para me deixar entrar.

Quando cheguei, ele estava de pé junto à porta principal do edifício branco de nove andares em que trabalhava. Ele parecia completamente diferente da última vez que o vira na enfermaria de neuróticos. Ele usava um longo casaco preto, carregava uma pasta preta na mão, e parecia muito mais alto do que antes. Enquanto caminhávamos pela sala de espera, ficou claro, pela maneira como seus colegas o tratavam, que ele era respeitado. Mais uma vez, fiquei impressionada com a sua capacidade camaleônica de transformar sua persona tão facilmente.

Nós subimos pelo elevador até o sétimo andar, e caminhamos até o seu laboratório através de uma série de corredores longos e vazios, com fileiras de portas idênticas de cada lado. Ele parou quando finalmente chegamos na última porta à esquerda. A modesta placa dizia simplesmente: "Laboratório". Enquanto ele firmemente abria a porta, por algum motivo eu subitamente percebi que não conhecia o seu primeiro nome.

- Olá, todo mundo - disse ele numa voz alegre. O seu tom de voz deixou claro para mim que os três homens vindos na nossa direção não eram só seus colegas, mas também bons amigos. - Esta é Olga - escutei-o dizer a eles. - Nós vamos fazer algumas experiências hoje. Vamos precisar da sua ajuda, Sergey, para ativar os espelhos.

Sergey olhou para mim com interesse afável.

- Estou pronto - disse ele.

O laboratório consistia em duas salas grandes. Uma estava cheia de sofisticados equipamentos de informática; a outra era dominada por um longo aparelho tubular feito de um metal brilhante similar ao alumínio, com vários tipos de tubos e conexões ligados a ele. A coisa toda parecia um tipo de pequena espaçonave.

- Aliás - sorriu o sr. Dmitriev -, você pode me chamar de Ivan Petrovich. E espero que não se importe que eu a chame de Olga, já que provavelmente tenho o dobro da sua idade. Você já ouviu falar, Olga, do astrofísico Kosirev?

- Não, sinto muito, mas nunca ouvi.

- Bem, isto não é surpreendente. Em primeiro lugar, eu teria que deduzir que a física não está incluída na sua esfera principal de interesses. É verdade?

Assenti com a cabeça.

- E em segundo lugar, era proibido dizer o seu nome até pouco tempo atrás. Ele esteve no Gulag durante muitos anos. Era muito inteligente e talentoso; alguém no seu campo teve ciúmes o bastante para escrever uma carta denunciando-o, de modo que naturalmente foi levado pela KGB.

Eu o interrompi.

- Sei como isso pode acontecer. O meu bisavô serviu como médico no exército do czar durante a Primeira Guerra Mundial. Ele escreveu um relatório para o czar sobre as terríveis condições médicas que os soldados tinham que suportar. Por conta disso, foi mandado para a Sibéria e punido lá durante muitos anos. O seu filho, meu avô, também foi médico em uma grande usina na Sibéria. Ele escreveu um relatório para o governo de Stalin sobre as condições inumanas suportadas pelos trabalhadores da usina. Ele foi considerado culpado sob os artigos políticos e também foi mandado para o Gulag. Ele só foi libertado depois da morte de Stalin, quase vinte anos depois, e só viveu um ano depois disso. Nunca o conheci.

- É a mesma história de Kosirev, pelo que parece. Então você sabe que as mentes mais brilhantes muitas vezes foram mantidas no Gulag junto com os sacerdotes, xamãs e criminosos empedernidos. Kosirev passou muitos anos lá. Ele teve alguns contatos especiais com xamãs siberianos no Gulag, mas nunca falou muito sobre isso.

"Conseqüentemente, depois de retornar do campo de concentração, o seu interesse científico principal passou a ser a teoria do tempo. Ele criou experimentos brilhantes que o capacitaram a desenvolver uma teoria complexa do tempo, provando que o tempo possui uma natureza substancial. Ele tem a sua própria solidez, que muda de acordo com a configuração do globo. Conseqüentemente, o tempo é mais sólido ou menos sólido em pontos diferentes da Terra. Naturalmente, é completamente impossível detectar isso com nossas habilidades perceptivas humanas normais, mas o seu aparato sofisticado foi realmente capaz de medir as diferenças. Isso provou suas teorias matemáticas sobre como a substância do tempo poderia ser de fato alterada.

"Sem dúvida você notou esse equipamento grande e, suponho, de aparência bastante peculiar no centro da sala. É um tubo feito de uma combinação especial de metais polidos que funciona como um espelho. Nós descobrimos que essa é uma das maneiras como podemos alterar a percepção temporal de um indivíduo. De maneiras que ainda não compreendemos totalmente, os espelhos funcionam para transformar o tempo e o espaço para a pessoa dentro deles. Isso faz algum sentido para você?"

- Acho que sim. - Eu realmente compreendi pouco do que ele estava me dizendo, mas eu confiava nele e estava pronta para explorar a sua teoria. - Vou precisar das suas instruções para saber o que fazer.

- Sim, naturalmente. Não se preocupe - replicou Dmitriev. - Vamos dizer tudo para você, passo a passo, à medida que seguirmos adiante.

"Em primeiro lugar, tire as botas e sente-se dentro do tubo em qualquer posição que seja confortável. Sergey lhe dará fones de ouvido, através dos quais ouvirá sons gravados que devem ajudá-la a relaxar e a abrir o canal para sua experiência subconsciente.

"A forma cilíndrica dos espelhos, junto com os sons que vai escutar, influenciarão suas percepções. Você precisa tentar definir claramente na sua mente o tipo de experiência que deseja evocar. Então espere que ela aconteça, totalmente consciente das nuances do seu estado de ser. Não vamos falar com você ou interferir de modo algum, a menos que achemos que você precisa de ajuda.

Tirei minhas botas, sentindo-me feliz por ter escolhido jeans confortáveis em vez de um vestido. Então, à medida que subia no tubo, imediatamente comecei a sentir sensações estranhas. Compreendi por que o chamavam de espelho; só via paredes metálicas arredondadas, polidas de modo que suas superfícies refletissem imagens vagas e gerais. Nunca tinha estado num espaço parecido com aquele, e era difícil achar uma maneira de encaixar meu corpo confortavelmente dentro dele. Experimentei com posições diferentes, finalmente escolhendo uma posição embrionária, na qual ficava meio sentada, meio deitada no tubo.

Sergey me trouxe os fones de ouvido. Eu não consegui ver seu rosto da minha perspectiva, e parecia que a mão desencorporada de alguma estranha criatura estava tentando me alcançar. Coloquei os fones e tentei relaxar como fora instruída. Uma melodia remota, agradável e harmônica, fluiu gentilmente para minha mente. Os meus olhos ainda estavam abertos, mas um ritmo particular na melodia me dava a sensação de já estar dormindo.

Eu tentei me concentrar numa das minhas técnicas regulares de relaxamento, mas as paredes espelhadas pareciam influenciar o meu diálogo interno, suprimindo-o quase que inteiramente. A sensação me lembrava dos meus estados anteriores de estar desperta e totalmente alerta dentro do que eu sabia ser um sonho. No meu coração, sentia a mesma sensação familiar de prazer intenso misturado com dor.

 

"Olga! Escute." É a voz de um homem - nem a de Sergey nem a de Dmitriev, mas uma voz nova e desconhecida. A melodia se funde harmonicamente com sua voz. "Eu sei que você aprecia metáforas. Experimente esta aqui. Nós aprendemos na física que as partículas elementares possuem uma natureza dual que depende puramente da posição do observador. Elas podem existir como partículas distintas ou podem simultaneamente ser uma onda. Você já deve saber isso. Mas o que provavelmente não sabe é que os seres humanos possuem a mesma dualidade. Nós somos partículas separadas e ondas ao mesmo tempo; só depende da posição do observador dentro de nós. Como acreditamos que somos indivíduos independentes, percebemos a nós mesmos como partículas que são realmente separadas. Mas ao mesmo tempo, somos sempre ondas, sem limite algum."

O ritmo está saltando na minha mente. A melodia desapareceu, transformada em estranhos sons artificiais que não posso identificar. A voz fala comigo no ritmo de um coração batendo, e percebo que ela está mantendo o mesmo ritmo do meu coração, como se meu coração estivesse sendo analisado e ecoado de volta para mim.

"Você agora deve ser capaz de alterar sua percepção de si mesma para experimentar a natureza de onda do seu ser. Esta onda faz parte de tudo mais que existe. Ela pode viajar para qualquer parte, e parar em qualquer parte. Deixe o seu corpo descobrir o ritmo da sua onda, e se tomar único com ela.

Posso sentir os limites que formam meu corpo físico se tornando mais finos e fracos. Então eles se dissolvem, e a minha consciência instantaneamente explode além dos seus limites para trazer para si todo o espaço ao meu redor. Agora sou um ser infinito, conectado com o universo e indistinguível dele. O tempo linear desaparece. Todas as minhas experiências em Altai lampejam na minha memória simultaneamente.

Então estou de pé no meio de um jardim de flores brancas cercadas por árvores. As pessoas vestem longas túnicas brancas e caminham silenciosamente pelo jardim.

Um homem se aproxima de mim, e o reconheço como o mesmo homem que segui até o quarto com os ferreiros bêbados, onde comecei a compreender como a realidade pode ser alterada. Eu o reconheci como meu professor. O seu rosto calmo e de meia-idade é caloroso e amigável, mas ao mesmo tempo ele transmite um senso de energia incomum e vontade decisiva. Ele me leva pela mão até um banco de madeira sob uma das árvores. Nós nos sentamos mas nenhum de nós fala.

O homem parece estar esperando que eu fale primeiro, mas não tenho idéia do que dizer Nós continuamos a nos sentar em silêncio até que finalmente pergunto: "O que devo fazer aqui?"

"Você veio aqui de livre vontade, portanto deve precisar de alguma coisa que espera encontrar aqui", respondeu.

Lembro-me vagamente que a minha intenção era buscar respostas para a longa lista de perguntas problemáticas deixadas pelas minhas experiências em Altai. Na minha confusão, elas todas se juntam numa indagação simples: "O que quer dizer tudo isso?"

A sua resposta não esclarece nem um pouco as coisas. "Depende dos significados que você aplica às suas experiências. Como você deseja considerá-las? Você é que deve decidir."

"Eu quero saber o que o nosso encontro significa para você. O que sou para você? Como você compreende a minha aparição aqui? Que finalidade ela possui do seu ponto de vista?"

"Bem, o que você acha?", ele pergunta calmamente.

Mais uma vez eu não sei como responder. "Estou confusa", é o máximo que consigo dizer.

"Se você estivesse livre das fontes da sua confusão, o que pensaria sobre estar aqui?"

"Eu pensaria que estou encontrando alguma parte da minha realidade de que não estava consciente antes e que possui uma grande importância, não só para mim como para muitos outros."

"Está certa. O fato de você estar aqui e importante não só para você, mas para os outros também. E também é verdade que você sabe muito pouco sobre os muitos diferentes aspectos da realidade em que você vive. Os humanos do seu tempo são o resultado de um caminho particular de evolução que uma parte da humanidade precisava experimentar. O seu povo desenvolveu qualidades especiais da natureza humana que estavam principalmente conectadas com o pensamento intelectual. Esse caminho evolucionário exigiu que vocês criassem uma mitologia estrita na qual a realidade e suas leis eram muito rígidas. Essas restrições de percepção capacitaram vocês a realizar as tarefas que receberam, mas elas limitaram vocês em outras."

"Quando você fala do meu povo como sendo humanos, isso significa que você não é humano?"

"Não. Eu sou um ser humano, mas pertenço a um ramo diferente da evolução. O seu povo não é o único representante da raça humana. Existem correntes de diversidade dentro da raça humana. Cada uma delas possui uma missão particular: cada corrente deveria explorar uma dimensão diferente do potencial humano. Suas percepções foram separadas de modo que cada corrente não soubesse nada sobre as outras. Naturalmente, sempre houve algumas interconexões. Às vezes civilizações inteiras mudaram sua direção evolucionária, e como resultado descobriram outras e se uniram a elas. Isso deixou vazios misteriosos na história do seu povo segundo suas lembranças.

"A sua presença aqui é um sinal da crescente interação entre a realidade da sua civilização e a de outras. As nossas espirais de tempo estão se aproximando, e a integração final de todas as correntes distintas ocorrerá logo. A humanidade como um todo está terminando o seu estágio de crisálida. Ela ainda não está consciente disso, assim como a lagarta não possui consciência do corpo da borboleta se formando dentro dela nem conhecimento das suas asas futuras. Até mesmo as próprias asas não compreendem o seu significado até seu primeiro vôo. As pessoas na sua corrente de realidade estiveram formando o corpo sólido de um novo organismo, e agora chegou a hora para que ele venha à tona e integre o seu estado de desenvolvimento com outras correntes da humanidade.

"O seu povo vai passar por tremendas mudanças pessoais. Pode parecer o fim do mundo. De muitos modos vai ser isso mesmo, pois a maior parte do mundo antigo será substituída por uma nova maneira de existência. A estrutura psicológica de cada pessoa será transformada, porque o antigo modelo da realidade das pessoas já não será suficiente. O seu povo irá experimentar e aprender outra parte do seu ser. Isso acontecerá de maneira diferente para cada pessoa. Para alguns será fácil e quase instantâneo; outros precisarão lutar através do estresse e da dor. Haverá algumas pessoas tão enraizadas nas suas velhas leis da realidade que nem notarão mudança alguma.

"Direi mais: é importante que você preste atenção agora sem me interromper. Eu sei quanto esforço pode custar para compreender e aceitar o que estou dizendo, mas você precisa fazê-lo. Você realmente não tem outra escolha senão reconhecer a verdade."

Assim que ele me instruiu para não o interromper, um lado contrário na minha natureza me força a fazer uma pergunta. Ela é importante, e sinto que não posso esperar para perguntar.

"Me perdoe, mas você disse que as correntes diferentes de pessoas foram separadas, sem que tivessem nenhum conhecimento umas das outras. Como é que você está obviamente tão consciente não só de mim e da minha gente, como aparentemente de muitas outras também?"

"Bem", ele sorri, "você não conseguiu esperar, não foi?"

Muito embora eu tenha ignorado o seu pedido ao interrompê-lo, a sua voz e expressão ainda são calorosas.

"Assim como as personalidades individuais, cada um de nós possui aspectos bastante diferentes do nosso ser, que se desenvolvem nas suas direções únicas. Mas lembre-se da nossa Personalidade-Coração, aquela que integra todas as intenções da nossa vida na totalidade do significado. O mesmo ocorre com a humanidade como um todo. Caso você considere a humanidade como uma entidade, ela ainda possui muitos rostos. Mas ao mesmo tempo, ela também possui uma Personalidade-Coração que conhece todas as direções e as integra. Esse lugar é aqui, onde estamos sentados."

Uma onda de excitação atravessa o meu corpo. "Este é o lugar chamado de Belovodia?"

"Ele possui nomes diferentes, assim como as suas próprias hierarquias."

Belovodia cresceu cada vez mais na minha mente desde a primeira vez em que ouvi falar nela, e agora todo o mistério e excitação das minhas experiências em Altai retornam quando ele a menciona. Espero que ele continue, ansiosa para saber mais coisas que me ajudem a esclarecer minha persistente confusão mental. Concentro-me intensamente em cada palavra, tentando memorizar cada detalhe a medida que ele continua.

"Em algumas ocasiões no passado, civilizações de diferentes correntes de realidade cruzaram a barreira e se encontraram com a sua. Cada vez que isso acontecia, era um estímulo para uma maior evolução. Se você olhasse para trás e examinasse a história do seu mundo segundo essa perspectiva, você veria esses pontos de interconexão com bastante clareza.

"Agora está quase na época da maior mudança de todas. Em breve vocês irão cruzar as fronteiras e experimentar muitas das diferentes facetas da natureza humana que foram desenvolvidas dentro de outras estruturas de realidade. Essas pessoas saberão tão pouco sobre as suas crenças e modos de vida quanto vocês sabem das delas. Por isso, essas diferenças serão descobertas gradualmente. No passado o seu povo costumava se proteger desses contatos dando a eles nomes místicos e tratando-os como mitos. Mas o misticismo é muito diferente e muito mais real do que os seus pressupostos sobre ele.

"Uma das lições importantes a ser lembrada é que as entidades que vocês vão encontrar de outras correntes da realidade - mundos - são seres humanos como vocês, que simplesmente experimentaram uma forma diferente de crescimento evolucionário. Isso significa que as suas perspectivas e experiências poderão ser compreendidas por vocês, e que cada um de vocês também poderá integrar na sua civilização as vantagens desenvolvidas na civilização do outro. Será uma época de interações conscientes.

"No seu próprio caso particular existem sempre algumas pessoas dentro de cada corrente de realidade evolucionária que são capazes de penetrar em dimensões diferentes das suas. Você é uma daquelas que foi capaz de cruzar esses limites. Você vai experimentar outros desses cruzamentos. Do mesmo modo, existem outros que viveram em evoluções paralelas à sua e que aprenderam a se incorporar no espaço da sua realidade.

"E, como eu disse, quando o seu povo interagir com o povo de outros mundos isso não mudará apenas as suas crenças, transformará a própria estrutura do seu ser. De início o seu povo acreditava quase universalmente que vivia em uma realidade que existia de maneira totalmente independente das suas percepções. Acreditar nisso deu-lhes conhecimento e muitas ferramentas importantes. Mas gradualmente, à medida que a sua espiral de tempo começou a convergir com as de outros mundos em trilhas evolutivas diferentes, primeiro os chamados místicos e depois até mesmo os seus cientistas começaram a ficar conscientes dos mecanismos através dos quais a realidade e até mesmo os eventos futuros da própria vida do indivíduo poderiam ser influenciados. Vocês criaram muitas novas teorias e ferramentas para tentar explorar esse fenômeno e reconciliá-lo com o resto das suas crenças.

"O próximo passo será aquele que vocês já estão tomando, que é perceber que existe outra personalidade que cria a realidade pessoal do indivíduo. A sua Personalidade-Coração, a sua personalidade genuína, aquela que é responsável por essa criação. Cada pessoa precisa experimentá-la para compreender."

Embora num certo nível eu percebesse que o que ele está me contando é extremamente difícil de absorver usando o entendimento racional, de algum modo me parece claro, e assimilo tudo sem muito esforço. Questiono por um instante se a presença dele está criando um canal de compreensão além da explicação verbal.

"O seu 'ego' não é tão ruim quanto você aprendeu a pensar. Na verdade", ele sorri, "podem existir egos melhores ou piores. As pessoas são diferentes. Mas o fenômeno do ego foi em si mesmo o principal fundamento para realizar as suas tarefas evolucionárias. A sua civilização não poderia ter tomado a forma que tomou sem o ego. O motivo por que tantos agora sentem que ele possui efeitos danosos e deve ser diminuído é porque eles conscientemente prevêem o próximo passo da evolução. A sua sociedade será capaz de reconhecer e de se integrar com as outras só quando descobrir e adentrar a sua Personalidade-Coração. O ego não é mais um ajudante."

"Como posso acelerar esse processo?", é a minha pergunta seguinte.

"Trabalhando nele e o praticando. Muitas escolas esotéricas no seu mundo criaram maneiras diferentes de preparar as pessoas para fazer isso. Os seus praticantes atravessaram essas transformações. No passado, a instrução desse tipo era um privilégio obtido só por alguns escolhidos. Uma das importantes mudanças nos tempos futuros é que a transformação será experimentada por muitas pessoas no mundo todo e ao mesmo tempo. Já existem sinais que apontam para essas mudanças, e a sua cultura deve estar preparada para elas.

"Você, Olga, está particularmente conectada com uma das mudanças. O evento teve lugar em Altai, mas está geograficamente relacionado com Belovodia. Você já é parte dessa história, sem ter ainda muita memória dela. Mas isso virá no seu devido tempo."

O meu coração começa a bater mais rápido. Tenho a sensação de que ele está perto de me dizer algo muito importante para mim pessoalmente. Ao mesmo tempo, noto que o sol tornou-se tão brilhante que é muito difícil para mim olhar para ele sem semicerrar meus olhos até que eles estejam quase fechados. Me vem a idéia ridícula de que deveria ter trazido meus óculos escuros.

Se ele está consciente do meu pensamento irreverente, não o demonstra. Ele continua: "Algumas das antigas tumbas abertas pelos seus cientistas na verdade foram tumbas que pertenciam a outras dimensões, outras correntes evolutivas. Essas não são apenas manifestações materiais, físicas. Os habitantes aparentemente mortos na verdade possuem intenções vivas. Eles servem como canais de comunicação com outras dimensões humanas. Esses canais foram criados com a finalidade específica de fazer contato com o seu povo. Existem alguns lugares na terra onde isso foi feito; Altai é um deles. A sua jornada até lá não foi uma cadeia de acidentes. Cada passo que você deu foi planejado para despertar uma memória. E você está se movendo por esse caminho.

"A tumba descoberta em Altai foi planejada para ser aberta apenas quando a transformação vindoura estivesse pronta para ser visível em grande escala. O fato de já ter sido aberta significa que as mudanças serão aceleradas naturalmente. Isso significa que mais e mais pessoas experimentarão a necessidade de uma nova existência. Muitos mestres e escolas diferentes emergirão, mas todos eles apontarão na mesma direção.

"Para acelerar o seu progresso individual, você precisa seguir o caminho correto. Algumas das orientações para esse caminho foram integradas nas morais e religiões estruturadas da sua sociedade, mas quando isso foi feito elas sempre foram combinadas com necessidades sociais puras para controlar o comportamento das pessoas. Agora você precisa extraí-las numa forma pura; você precisa aprender essas regras para que possa ensiná-las a outros que também procuram a transformação.

As brilhantes folhas verdes da árvore por trás do nosso banco estão lentamente balançando no campo da minha visão periférica. Os pássaros estão cantando tão harmoniosamente que não consigo deixar de notar como meus sentidos estão ampliados.

"Agora vou contar para você a Primeira Regra. Ela é extremamente importante, e você precisa recordá-la. A Primeira Regra é que toda escolha que você faz na sua vida, das mais importantes até as menores decisões cotidianas deve ser testada pelo questionamento consciente. Para cada decisão que você toma, você precisa perguntar a si mesma se a escolha que vai fazer satisfará cinco atributos necessários. Se mesmo um deles estiver ausente, você precisa procurar outra decisão. Deste modo, sempre encontrará o caminho correto. Os cinco atributos são: verdade, beleza, saúde, felicidade e luz.

"Quando você toma uma decisão desta maneira, pode estar certa de que é a correta. Você estará em contato com a sua personalidade genuína, a sua Personalidade-Coração, e criará para si mesma uma invencível força de vontade. Esta é a primeira lição. Viva por ela, e muito rapidamente a sua vida será mudada. Então, quando estiver pronta, aprenderá a Segunda Regra. Agora você deve voltar."

Primeiro eu preciso perguntar a ele outra coisa, que é muito importante para mim.

"O que pode me dizer sobre Umai? Ela me falou sobre a escolha entre a morte e a imortalidade. Eu quero vê-la novamente para saber mais sobre isso."

"O passado de Umai vem da linha xamânica de realidade, mas ela também faz parte da própria Belovodia. Os xamãs sempre foram mensageiros entre as dimensões humanas. Eles são pessoas de ação. Nem todos eles compreenderam exatamente o que estavam fazendo, mas Umai sempre compreendeu. Ela ajudou você principalmente trabalhando através da sua natureza emocional. Foi por isso que você sentiu uma atração tão forte por ela. Ela lhe contou sobre a imortalidade porque esta se conecta com a Segunda Regra da evolução. A morte é uma das características da sua civilização, e ela será transformada junto com muitas outras coisas. Umai ensinará a você essa lição quando estiver pronta, depois de ter aprendido a praticar a Primeira Regra.

"Não se preocupe com ela. Aquele que disse a você que ela tinha morrido estava tentando enganar você. Ela não pode morrer. Ela faz parte de Belovodia, e a morte, não.

"Se você quiser poderá vê-la agora. Mas devido ao seu apego a ela, ela pode se manifestar para você de uma maneira muito diferente do que antes, para ensiná-la. Isso pode ferir os sentimentos que você tem por ela. Você já está pronta para se separar da sua afeição por Umai?"

Eu não me sinto pronta para perder minha profunda e intensa atração por ela, de modo que respondo: "Não. Acho que não estou preparada para isso."

"É bom que você possa perceber isso de maneira tão clara. Agora está na hora de você ir embora."

Ele coloca sua mão na minha testa, e uma forte energia me toca. Lampejos brilhantes de luz me surpreendem, e abro meus olhos durante alguns segundos. Estou num lugar diferente, mas não consigo me lembrar exatamente onde. A mão de um homem diferente segura meus pulsos e gentilmente me ajuda a sair do tubo.

 

Quando fico mais desperta, vejo Dmitriev e dois dos seus colegas de pé ao meu redor parecendo sérios e cansados. Dmitriev tirou de mim um caderno, que eu notei estar escrito com a minha letra.

- Posso olhar isso, Olga?

- O que é isso?

- Suas anotações. Nós lhe demos uma caneta e papel depois que você iniciou a sua jornada. Você esteve escrevendo o tempo todo, muito embora possa não ter notado.

Eu deixei com ele o caderno e caminhei lentamente até o banheiro no final do corredor. Quando me vi no espelho, meu rosto me assustou. Um triângulo vermelho-escuro o cobria do meio da minha testa até o meu nariz. Quando instintivamente o toquei com meus dedos, ele estava quente. Era a minha marca de nascença, que os médicos tinham dito a minha mãe ser uma forma de tumor vascular. Felizmente, ele desaparecera quando eu tinha apenas um ano de idade exceto por um breve sinal rosado que ocasionalmente se tornava visível quando eu estava sob uma grande dose de estresse ou trauma emocional. Ele era tão leve que mais ninguém o tinha notado. Agora eu vi que ele estava intensamente escuro, como minha mãe o tinha descrito quando nasci.

Sentindo-me ainda confusa, voltei-me para a pia e lavei o rosto com água fria. Eu sempre detestei o cheiro de cloro, mas agora seu ligeiro traço na água me ajudou a completar a transição de volta para o meu corpo. Concentrei-me no pensamento de que estava de pé num pequeno banheiro no Instituto de Física Nuclear. Logo tomaria um ônibus de volta para o meu apartamento e para o que eu esperava que fosse uma noite de sono repousante e sem sonhos.

Quando voltei para o laboratório, o triângulo no meu rosto tinha quase desaparecido. Ninguém o mencionou, e na verdade mal pareceram perceber o meu retorno. Eles estavam todos juntos de pé ao redor de uma mesa que tinha o mapa de Altai aberto sobre ela. Eles tinham marcado um ponto na parte sul de Altai, e o reconheci como o local da tumba de onde a múmia da sacerdotisa tinha sido descoberta recentemente. Eles estavam conversando sobre isso.

- Olhe, é perto de Belukha. Eles têm alguma coisa publicada sobre a múmia que encontraram lá?

- Parece que não. Eu não acho que nada tenha sido publicado, a não ser por alguns artigos de jornal. Acredito que uma equipe da revista National Geographic tenha visitado o local e entrevistado as pessoas que o escavaram. Talvez publiquem alguma coisa em breve.

Todos eles se voltaram e me olharam ao mesmo tempo. Dmitriev me devolveu o caderno.

- Isso é fascinante, Olga. Eu estava esperando que algo assim acontecesse. A sua experiência hoje me ajudou a amarrar as coisas de novas maneiras. A partir do meu trabalho na física da realidade, eu já tinha sentido que o tempo e a matéria estavam perto de algo importante; um tempo de mudanças. Mas o meu conhecimento sobre isso veio da matemática e do estudo de flutuações energéticas - vibrações, se você preferir. Mas eu nunca abordei isso da perspectiva da psicologia e consciência humanas. Você me abriu uma nova janela.

"As suas notas sobre a tumba em Altai também foram muito interessantes. Você sabe, há um bocado de mistério sobre a sua abertura. Algumas das pessoas locais eram radicalmente contra, prevendo grandes perturbações caso ela fosse aberta. Foi a mesma coisa muitos anos atrás, quando a abertura de outra tumba revelou a múmia de um homem do mesmo período, com o mesmo tipo de tatuagens. O fato de o homem e a mulher serem sacerdotes mongóis de alguma religião desconhecida tornou sua presença aqui realmente espantosa, já que todos os outros restos que encontramos na área de Altai eram de indo-europeus pertencentes à cultura Pazyryk.

"Assim, como suas notas registraram, a descoberta deles pode ser o início de algo muito importante. Vamos ver o que acontece em seguida. Mas você parece muito cansada, Olga. Precisa ir para casa e descansar um pouco. Quer que eu a leve de carro para casa?

Por mais que apreciasse a oferta dele, recusei. Estava realmente cansada, mas mais do que isso, queria ficar sozinha para poder pensar. Os eventos do dia ainda pareciam avassaladores para mim. A única certeza na minha mente era que eu tinha feito a coisa certa ao vir para cá. Eu sentia que poderia não ser a última vez, porque já não havia nenhuma possibilidade de voltar atrás; de negar a nova direção que tinha tão subitamente tomado conta da minha vida e a expandido de uma maneira que poderia levar anos, se não décadas, para que eu começasse a absorvê-la.

 

A longa viagem de volta para Novosibirsk passou tranqüilamente, enquanto eu continuava a refletir sobre minha estranha visão nos espelhos de Dmitriev. Eu ainda não tinha compreendido totalmente o que acontecera, mas uma percepção importante foi que, embora os xamãs possuíssem uma chave para a porta do conhecimento levando a Belovodia, o conhecimento em si era universal e poderia ser alcançado de maneiras diferentes. Isso me excitou, e eu sabia que tinha dado outro passo na direção do meu sonho.

Era muito tarde quando o ônibus finalmente chegou na cidade, e caminhei rapidamente para o meu apartamento através das ruas escuras e desertas. Apesar da hora, eu ainda estava cheia de uma estranha excitação. Dormir era impossível, de modo que preparei para mim um rápido lanche de pão, queijo e chá. Então sentei à minha mesa, acendi minha pequena luminária com seu tom verde-esmeralda, e peguei as notas que tinha escrito no laboratório.

Li novamente as poucas folhas de papel dobradas, cobertas com palavras escritas às pressas. As páginas me fascinavam enquanto eu as olhava na minha mesa. A letra era minha, mas eu não tinha nenhuma lembrança de tê-las escrito. As páginas eram urna manifestação material de um mistério muito maior que estava me dominando. Pensamentos sobre Altai e Umai tomavam conta da minha mente. Tudo que eu tinha experimentado, começando com o primeiro telefonema de Anna sobre Nicolai, tinha voltado para mim tão claramente como se houvesse acontecido ontem. Peguei minha caneta e comecei a escrever.

Minhas palavras fluíram quase sem pensamento durante horas, como se eu estivesse num transe. Só parei quando percebi que o céu estava começando a ficar claro. Eu estivera totalmente alheia ao fato de que minhas venezianas ainda estavam abertas, e a janela ao lado da minha mesa coberta apenas por uma cortina de renda transparente. Fechei as venezianas e finalmente fui dormir.

No dia seguinte, no dia posterior, e durante muitos dias que se seguiram, escrever as minhas experiências em Altai se tornaram a parte mais importante e agradável da minha agenda cheia. Isso também abriu uma perspectiva totalmente nova para minha jornada. De início fiquei consumida apenas pela necessidade de criar um registro dos detalhes externos dos estranhos eventos que experimentara, mas gradualmente comecei a perceber que a frustração, confusão, e tensão que sentira durante e depois da viagem estavam diretamente conectadas com a minha insistência de ver tudo superficialmente.

A minha primeira experiência direta com Umai, quando ela me levara à descoberta do espaço do Lago do Espírito, fora o verdadeiro passo inicial para minha jornada. Percebi que ainda não tinha aprendido a arte sagrada e exigente de manter o equilíbrio entre as tarefas externas e internas. Quanto mais eu me forçava a interpretar minhas experiências em termos do seu significado subjacente para minha personalidade interior, mais evidentes se tornavam os níveis ocultos da minha jornada. Tudo que Umai tinha feito havia sido outra lição para me ajudar a explorar uma dimensão diferente deste espaço interior.

Umai me ensinara bem e continuamente, exatamente como prometera. Página após página do meu novo diário me esclareciam quanto a isso. As muitas linhas do seu primeiro ensinamento integravam logicamente todas as experiências que se seguiram, assim que as separei do meu olhar externo e olhei para dentro. Fui capaz de ver a poderosa sabedoria e o profundo conhecimento por trás das imagens e símbolos às vezes assustadores e às vezes agradáveis das minhas viagens.

Compreendi o conceito do Lago do Espírito e vi como para a maioria das pessoas esse espaço tinha sido invadido e consumido pela sua preocupação com o mundo material. Compreendi a importância de aceitar que temos tanto a habilidade quanto a responsabilidade de criar não só a nossa própria realidade, como também a personalidade que vive dentro dessa realidade. Compreendi o processo de diálogo interno através do qual formamos a personalidade. Vi que a Primeira Regra era uma ferramenta poderosa para a criação de uma metaposição dentro de qualquer situação, uma posição independente das influências ambientais do indivíduo, refletindo apenas a essência pura do observador interno.

Cada um desses conceitos se transformou em acréscimos fascinantes ao meu treinamento psiquiátrico. Vi a facilidade com que os conceitos incorporavam e até mesmo desenvolviam algumas das teorias mais modernas lidando com a estrutura da psique humana. A idéia mais intrigante de todas para mim era a existência de outra personalidade, que eu chamava no meu diário de personalidade ontológica ou nuclear, que estava conectada com a grande arte de fazer uma escolha. Eu sentia que esse conceito trazia dentro de si um grande potencial para uma nova compreensão das questões intrigantes que cercavam a natureza, a evolução e a finalidade humanas.

À medida que a minha escrita se movia passo a passo com minhas experiências, finalmente cheguei ao meu trabalho com Dmitriev. Senti que ele possuía a chave final para tudo mais, muito embora não possuísse uma compreensão total do que acontecera ainda. Eu ainda me perguntava se essa região misteriosa, Belovodia, era um lugar real ou se só existia em alguma dimensão oculta das nossas mentes. Tampouco eu podia resolver intelectualmente a conexão aparente entre as tumbas descobertas em Altai, as espirais de tempo, e a diversidade das correntes evolutivas da humanidade. E o que significava que "os habitantes aparentemente mortos dessas tumbas na verdade tinham intenções vivas?"

Essas questões continuavam sem resposta com a falta de um conhecimento adicional, de modo que se tornaram o final temporário do meu diário. Com um sentimento de gratidão para com Umai, coloquei meu caderno na estante. Mas ainda sentia uma certa energia me conectando a ele, me dizendo claramente que ainda estava longe de estar terminado, e talvez só estivesse no começo.

Algumas noites depois, tive um sonho estranho.

 

Eu me vejo entrando numa pequena sala. Uma mesa feita de madeira escura e polida está no meio da sala, e várias estantes de livros estão num semicírculo perto das paredes. Olho ao redor, tentando entender onde estou.

Uma mulher alta e esguia entra na sala e sorri para mim sem dizer uma palavra. Ela tem a pele negra com um estranho tom amarelado, diferente de qualquer pele humana que eu já tenha visto. O seu rosto possui uma forma oblonga com traços regulares e atraentes. O seu cabelo espesso e liso foi armado num penteado alto e intrincado que enfatiza a graça do seu corpo. Ela se move na minha direção com um sorriso misterioso.

Eu sei que a sua linguagem é totalmente estranha para mim, mas temos a habilidade de falar uma com a outra através da energia dos nossos pensamentos, sem usar palavras.

A minha mente forma questões. "O que estou fazendo aqui? E quem é você?"

A sua resposta soa na minha mente. "Você está aqui para passar por uma importante operação. Eu sou sua auxiliar."

A palavra operação faz com que eu me sinta desconfortável. Lampejos de uma remota memória infantil surgem na minha tela interior. Lembro-me de uma grande sala branca com uma janela enorme no teto; as vozes abafadas das enfermeiras por trás das máscaras cirúrgicas que as transformaram de amigas minhas em assustadores seres alienígenas; o cheiro nauseante de éter que permeou minhas roupas e continuou comigo durante dias como uma recordação desagradável. Finalmente, lembro-me da figura da minha mãe operando o rosto do paciente, ou mais precisamente, fazendo algum tipo de mágica instrumental precisa no lugar que deveria ser o rosto, mas que para a minha percepção era um ponto pálido e deformado coberto com sangue escarlate que pulsava para fora vindo de algum lugar lá dentro.

Quando eu tinha cerca de nove anos, minha mãe me levara para o hospital onde praticava medicina. Ela executara uma cirurgia facial naquele dia, e as enfermeiras, que eram todas minhas amigas, tinham deixado que eu colocasse uma roupa cirúrgica e entrasse secretamente na sala de operação. Escondida por trás das enfermeiras, eu assisti a toda a cirurgia.

'Não tenha medo." Os pensamentos da mulher entraram na minha mente. "Esta operação é diferente."

Como em qualquer outro sonho, as conexões entre as partes diferentes da minha experiência possuem a sua própria lógica onírica peculiar, por isso não fico surpresa ao me ver em seguida, sem nenhuma transição, deitada numa mesa cercada por homens e mulheres. Todos eles possuem a mesma pele negra e traços faciais geometricamente regulares da primeira mulher que encontrei, que agora está de pé atrás de mim. Ela diz algo para as pessoas ao meu redor na sua própria linguagem. Então sinto os seus longos dedos negros tocando a minha testa, e relaxo.

Meu corpo inteiro parece ser feito de alguma substância plástica que pode facilmente mudar de forma. Os dedos dessa mulher dançam rapidamente no espaço entre os meus olhos, ocasionalmente tocando a minha pele. Uma energia está sendo criada dentro de mim. O meu corpo começa a se virar, como se eu estivesse rolando em algum tipo de bola. O movimento vai ficando cada vez mais rápido, e eu viro uma espiral giratória rodando para um ponto focal derradeiro. Então está acabado. Os bilhões de células que formam meu corpo se rearranjaram, unindo-se numa única célula redonda que contém todas as informações que existem sobre mim.

Estou vagamente consciente de que as pessoas estão fazendo alguma coisa comigo. Eu não resisto, porque compreendo que elas estão curando alguma coisa no fundo da minha estrutura. Isso dura algum tempo, e então sinto-me deitada numa superfície sólida. Está completamente escuro ao meu redor. Estou consciente de ainda estar sonhando e que a lógica onírica ainda se aplica, de modo que não fico surpresa ao escutar alguém rindo suavemente à minha direita.

"Quem está aí?" De algum modo o som da minha voz influencia a luminosidade do lugar onde estou, e ele fica mais claro a medida que faço minha pergunta.

Uma mulher está sentada com as pernas cruzadas no chão perto de um canto da sala, segurando um cachimbo. É Umai, e o seu cachimbo é o mesmo que a vi fumar em Altai. Embora ela esteja fumando, não sinto nenhum cheiro de tabaco. Por algum motivo, isso me surpreende mais do que a presença de Umai.

Em vez de me saudar ela faz uma pergunta. "Você se lembra por que veio até Altai para me ver?"

"Receio que não."

"Então tente lembrar-se."

De início só me lembro do meu motivo inicial para a jornada. "Acho que Anna me pediu para acompanhá-la", repliquei. Então me lembro de mais. "E é claro! Também queria aprender alguns métodos de cura com você."

Umai continua a rir suavemente enquanto conversamos, e balança o seu corpo ritmicamente de um lado para o outro. De alguma maneira, tenho a impressão de que ela pode se dissolver no ar no momento em que desejar.

"Você pode ficar comigo aqui por um momento e não ir embora?" Eu não quero que ela se vá, e estou pescando alguma garantia da sua presença.

"Você pode?" Umai pergunta como resposta. Ela aperta seus estreitos olhos mongólicos até quase fechá-los e solta uma baforada de fumaça na minha direção.

"Acho que posso."

"Então eu também posso."

Sorrio aliviada, enquanto ao mesmo tempo tento manter uma expressão apropriadamente solene no meu rosto para o momento de ensinamento que espero.

Umai ri alto, como se visse alguma coisa muito engraçada. Então ela parece lembrar-se de alguma coisa e fica séria novamente, falando um pouco mais rápido como se agora estivesse com pressa.

"Muito bem. Você disse que veio para Altai para aprender sobre cura. Isso está absolutamente correto. A cura é o seu destino.

"Você acha que tudo começou para você com a sua experiência no espaço do seu Lago do Espírito. Não foi bem assim; o ensinamento desse espaço na verdade foi a segunda coisa. O seu verdadeiro início foi quando permiti que você fizesse aqueles peixes na madeira nadarem. Isso permitiu que você experimentasse o poder da cura pela primeira vez. Mas eu tenho que admitir que você fez bem em integrar essas duas lições com aquelas que se seguiram.

"Agora eu quero responder uma pergunta que você ainda não perguntou, exceto na sua mente. Eu faço isso porque acho que pode ajudar você a pensar no seu trabalho como uma curandeira. É o seguinte:

"As doenças da mente só possuem duas causas e elas são totalmente opostas uma a outra. Uma maneira das pessoas ficarem loucas é se a sua alma, ou parte da sua alma, for roubada. Isso geralmente acontece porque a alma foi roubada delas mas às vezes elas podem até mesmo decidir inconscientemente entregá-la, talvez em troca de algo mais que elas queiram. A segunda maneira de uma pessoa ficar louca é se ela é subjugada e ocupada por uma força estranha.

"Só existem esses dois motivos; mais nada. Parece simples, mas você pode levar muito tempo para aprender a distinguir a fonte de uma doença corretamente e curá-la. Caso você se engane quanto à causa, então a sua tentativa de curá-la vai na verdade alimentar a doença e piorá-la. Você precisa estar preparada para aprender muito antes de poder tornar-se uma boa curandeira.

"É por isso que a lição do espaço do Lago do Espírito foi dada para você bem no início. O poder de cura está naquele espaço. É a casa do Curandeiro dentro de todos nós. Ao mesmo tempo, esse espaço é também a sua estrada para Belovodia. Quanto mais você explorar a sua água da vida interior mais perto estará de Belovodia. Estou certa em pensar que você está procurando isso?"

"Sim", respondi. Mais uma vez sinto uma excitação particular no meu corpo, na expectativa de que uma peça importante de conhecimento está prestes a vir para mim. Sinto-me como uma caçadora, prestes a pegá-la com todos os meus sentidos.

"Você está se perguntando se Belovodia é um país real ou não. Você vai aprender mais sobre isso mais tarde, mas não importa realmente agora. A coisa importante de se lembrar é que ninguém encontrará Belovodia, nesse mundo ou em qualquer outro, exceto pela exploração da personalidade interior. O único caminho para Belovodia é através do seu espaço interno, através da expansão do seu autoconhecimento.

"Com isso, não estou falando da teorização vazia com que tantas pessoas gostam de se alimentar. Isso é totalmente separado do lago do Espírito. Estou falando de trabalho sério e prático. Para você será o trabalho na cura.

"Escute o que vou dizer em seguida, porque é muito importante. Cada humano possui uma entidade particular que habita o lugar do seu Lago do Espírito. Essas entidades existem dentro desse espaço interior, esperando na entrada para Belovodia. Eu chamo essa entidade de Gêmeo Espiritual, mas o seu nome também pode ser Espírito Auxiliar, Vigia das Sombras, Guia Espiritual, ou Guardião Interior. Eles na verdade são muitas coisas.

"Para começar eles estão intimamente conectados com a finalidade suprema dada a cada pessoa no nascimento. Eles também são puros observadores, separados e invulneráveis às influências do mundo exterior. Eles assistem e silenciosamente consideram tudo que fazemos. Eles são os mantenedores da essência primordial do nosso ser natal. Se chamados da maneira correta e nas circunstâncias apropriadas, eles podem ser importantes auxiliares para que executemos ações que nos movem na direção da nossa finalidade correta. E finalmente, eles podem ser nossos guias para Belovodia.

"Existem sete tipos diferentes desses Gêmeos Espirituais. Só sete, e mais nenhum. Os setes tipos de Gêmeos Espirituais que existem para pessoas são estes: Curandeiro, Mago, Professor, Mensageiro, Protetor, Guerreiro e Executor. Compreenda que esse último não é uma pessoa que mata, mas alguém que faz as coisas acontecerem.

"Uma das tarefas mais importantes é aprender a identidade do nosso Gêmeo Espiritual e então nos integrarmos inteiramente com ele. Deste modo, nós nos unimos com a finalidade suprema do nosso ser. Quando nossas vidas finalmente são iluminadas pela luz pura do nosso observador interno, tudo que fazemos se torna muito mais fácil. Só descobrindo a natureza do Gêmeo Espiritual, e então entrando em total associação com ele, é possível realmente encontrar e abrir o caminho para Belovodia.

"Você, Olga, está destinada a ser uma Curandeira. A operação que você acabou de passar foi um primeiro passo, porque a menos que você seja curada, nunca conseguirá ajudar os outros. Esta foi uma iniciação para você."

"Estou muito grata por isso. Estou também agradecida, Umai, por esse novo conhecimento que você me deu...

Umai rapidamente me interrompe.

"Não se preocupe, Olga. De algum modo, somos colegas agora, não somos? Não sou a pior das curandeiras, como pode saber."

Ela ri e, ainda de pernas cruzadas, começa a balançar seu corpo de um lado para outro novamente. Desta vez ela está fazendo isso com mais força, e sei que está prestes a desaparecer.

Umai já está começando a sumir mas as suas últimas palavras para mim são: "Eu quero lhe dar um presente final antes de ir embora. Esse dom é dizer a você que você agora está pronta para se comunicar diretamente com o Curandeiro que é seu Gêmeo Espiritual. Caso você precise de ajuda na cura, peça ao seu Curandeiro que venha e faça o trabalho para você. Não fique surpresa com suas ações então, mesmo que elas pareçam estranhas ou mesmo tolas. Tente isso amanhã e veja por conta própria."

 

Então uma pequena nuvem de fumaça de tabaco era tudo que restava no canto onde Umai estava sentada um momento antes. A nuvem ainda flutuava na minha memória quando abri meus olhos na escuridão do meu quarto e tentei despertar.

Na minha imaginação, o meu diário quase parecia feliz quando o tirei da estante e comecei a escrever tudo que me lembrava do meu sonho. Fiquei particularmente intrigada com a última sugestão de Umai sobre meu Curandeiro Interior: "Experimente-o amanhã e veja por si mesma."

Eu já não visitava a enfermaria feminina há algum tempo, de modo que na manhã seguinte decidi começar meu dia de trabalho nela. Eu dividia um consultório ali com George, o médico encarregado da enfermaria. Ele já estava sentado atrás de sua mesa quando cheguei, e pelo seu sorriso particularmente benigno, suspeitei que devia ter alguma surpresa desagradável me esperando.

- Você parece ótima, Olga! Descansada e cheia de energia para trabalhar! - exclamou ele, dando mais provas da minha suspeita.

- Obrigada. Está bem, é o bastante. O que você tem para mim?

- Nada em particular. Só este caso que quero transferir para você. Acho que vai ficar contente, porque deve aprender um pouco com ele. Ela é uma paciente muito interessante; estou quase me sacrificando ao passá-la para você. Mas a minha opinião é que os jovens médicos devem ter todas as chances possíveis de aprender sobre essa nossa profissão tão exigente. E por favor, sem objeções. Aqui está uma "epícrise".

Ele passou a história da paciente para mim. Eu a peguei relutante, antecipando alguma coisa desagradável. Não fiquei desapontada.

 

Paciente Lubov Smechova admitida no nosso hospital pela primeira vez há cerca de um mês. O seu atual diagnóstico é uma progressão do tipo sch., schisocarn; síndrome depressiva-paranóica.

 

Sch., schisocarn significava que ela tinha uma forma particularmente rápida e malígna de esquizofrenia.

 

Histórico médico anterior: vinda de um fundo de depressão duradoura e crescente, a paciente começou a expressar sintomas paranóicos, incluindo ilusões de referência e perseguição. Hospitalizada devido a comportamento social peculiar e inadequado. Durante sua primeira semana na enfermaria, desenvolveu um episódio de curta duração de excitação psicomotora aguda. Motivacionalmente desimpedida, sem inibições ou controles, late como um cão, e se torna completamente isolada, sem consciência que poderia ser contatada. A excitação psicomotora foi reduzida por grandes doses intravenosas de neurolépticos. Amnésia total subseqüente do episódio.

Atualmente, sintomas negativos predominam. A paciente exibe vazio emocional-volitivo estável. Ela está deitada na cama, indiferente ao seu ambiente, família, trabalho ou futuro. Retardo na esfera cognitiva. Prognóstico: negativo. Recomendação: aplicação imediata para o segundo grupo de incapacidade mental.

 

A maioria dos pacientes com esquizofrenia levava de oito a dez anos antes de serem classificados no "segundo grupo de incapacidade mental", o que significava que eram totalmente incapazes de se recuperar ou de cuidar de si mesmos. O progresso incrivelmente rápido da doença de Lubov Smechova era uma prova da sua virulência. Classificá-la no segundo grupo também significava que seria necessário preencher infinitos formulários, fazer infinitas consultas com colegas e comitês de especialistas, e então uma audiência final diante de uma comissão.

- Oh, não! Isso não é justo! Você não pode fazer isso comigo. Eu já estou sobrecarregada com quatro criminosos na minha ala masculina que precisam de avaliação total, diagnósticos e recomendações a ser preenchidas na corte até o final do mês. Eu não posso pegar outro caso de incapacidade. Você quer que eu more no hospital?

Eu quase gritei, mas ao mesmo tempo sabia que George não mudaria de idéia. Ele era um doce velhinho, sábio e sempre pronto a ajudar, mas também conhecido em todo o hospital pela sua vontade inabalável de ter o mínimo possível de contato com documentos, cortes, ou diagnósticos complicados. Além disso, como chefe dessa enfermaria, George tinha todo o direito de me passar pacientes. Assim, eu não tinha realmente nenhuma escolha. Essa mulher, Lubov Smechova, ia realmente ser minha.

George olhou para mim silenciosamente, com infinita compaixão, enquanto eu pegava os documentos e ia embora, batendo a porta com mais barulho do que de costume para expressar minha irritação. Eu quase podia ver seu rosto paternal, ainda sorrindo gentilmente para mim, por trás da porta fechada.

Como de costume, descobri que não conseguia ficar zangada com ele mais do que alguns minutos. Quando cheguei no consultório que usávamos para avaliações de pacientes, eu estava calma novamente. A enfermeira de plantão era Marina, e pedi que ela me trouxesse Luba.

Enquanto esperava, li a sua ficha inteira. O seu caso era realmente terrível. A palavra schisocarn no seu diagnóstico significava que a sua psique inteira fora queimada completamente, centenas de vezes mais rápido que a maioria dos outros esquizofrênicos. Estudei cuidadosamente as avaliações psicológicas e psiquiátricas preliminares que tinham sido feitas, incluindo informações sobre sua história familiar indicando que alguns dos seus parentes próximos tinham sofrido do mesmo tipo de doença.

Tudo no seu diagnóstico parecia correto. Ela não tinha esperança de nem mesmo uma curta remissão, portanto deveria ser colocada no "segundo grupo" sob cuidados do governo, quase na sua estréia ria insanidade. Apesar da minha carga de casos já carregada, não havia motivo plausível para que eu atrasasse sua disposição.

A enfermeira bateu baixinho na porta.

- Aqui está Luba, doutora. Ela pode entrar? - perguntou.

- Sim, por favor, faça-a entrar - respondi. Vi como a enfermeira guiava cuidadosamente minha nova paciente para a sala. Os seus movimentos estavam cheios de compaixão enquanto ajudava Luba a sentar-se na cadeira diante da minha mesa.

- Muito bem, querida - disse ela. - Aqui está sua nova médica. Talvez ela possa ajudá-la a ficar bem.

As palavras de Marina eram tão obviamente impróprias que me irritaram. "Do que ela está falando?", perguntei a mim mesma. "Por que ela está dando falsas esperanças a essa mulher?" A minha irritação inicial de ter Luba como paciente retornou, mas agora estava direcionada para a enfermeira. Depois de trinta anos na psiquiatria, ela deveria saber o que dizer para pacientes nos estágios finais e incuráveis da esquizofrenia. "Ficar bem"? Ah!

Fiz uma cara feia para Marina quando a mandei embora.

- Obrigada, isso é tudo. Chamarei você para levar Luba de volta quando houver acabado.

Marina saiu em silêncio, deixando-me sozinha com uma mulher de quarenta anos congelada como uma estátua sentada diante da minha mesa. O seu cabelo negro, curto e grosso estava despenteado. Seus olhos grandes, com uma forma amendoada ligeiramente oriental, estavam tão vazios e inexpressivos que eram quase imperceptíveis no seu rosto. Um ligeiro tremor nas suas mãos era o único movimento que o seu corpo se permitia. Ela não caminhava, não falava, não fazia nada sem algum empurrão externo de algum tipo.

- Olá, Luba. Sou sua nova médica.

Ela não mostrou o menor sinal de interesse.

- Bem, Luba, quer você queira ou não, tenho que informar sobre o seu estado atual e como vamos ajudá-la. - Ela estava tão ausente que era como falar comigo mesma.

- Tudo bem. - A sua voz tinha um som mecânico totalmente vazio de qualquer traço de personalidade ou interesse.

Folheei novamente as páginas da sua história. Ela tinha sido uma professora, com um marido e dois filhos adolescentes. Nada incomum. Mas de algum modo, enquanto olhava para os seus registros, a minha mente retornava involuntariamente para a frase imprópria que Marina tinha usado: "Talvez ela possa ajudá-la a ficar bem."

Essa frase ficou ecoando na minha mente até que subitamente ela se encontrou com as últimas palavras de Umai para mim: "Simplesmente peça ao seu Curandeiro que venha e faça o trabalho. Não se surpreenda com as suas próprias ações, mesmo que elas pareçam estranhas ou até mesmo tolas. Tente amanhã e veja por si mesma."

As duas frases se fundiram de tal maneira que uma onda de tentação subiu dentro de mim, me levando a uma ação que não fazia sentido para a parte racional da minha mente. Alguma coisa, talvez o vazio total que parecia ocupar o ser de Luba, me dizia que a sua doença não vinha da ocupação de alguma entidade estranha, mas de ter perdido, de alguma forma, a sua alma. A única maneira de dar a ela algum tipo de estímulo seria dar-lhe a vontade de se estender para fora, na esperança de que ela pudesse encontrar e recuperar o que perdera. Imaginei se poderia talvez fazer isso.

"Não há risco envolvido", pensei. Ela está perdida de qualquer maneira. Faça o que Umai disse; apenas tente. Use a situação como uma experiência. Nada que eu possa fazer poderá piorá-la"

Luba estava sentada diante de mim com a mesma expressão vazia. Eu não sentia nenhum impulso de dizer a ela o que eu estava pensando, porque sabia que eu não estava sendo refletida na sua mente consciente.

Sentindo-me meio boba, só ousei pronunciar as palavras silenciosamente, dentro da minha cabeça: "Peço ao Curandeiro dentro de mim que saia e cure esta mulher:"

Durante um breve momento, houve uma estranha interrupção na minha percepção. Parecia que o meu rosto, minha identidade, desceu da sua posição comum na minha cabeça e parou no lugar do meu coração. Durante alguns segundos eu realmente pareci ver o mundo da parte central do meu corpo, como se meu coração tivesse ganhado olhos e tivesse a capacidade de ver. Isso foi acompanhado por uma forte onda de calor e excitação que passaram como um relâmpago pelo meu peito e então rapidamente desapareceram. Quando ela passou, minha maquinaria terapêutica usual começou a funcionar.

Fiquei de pé, dei a volta ao redor da minha mesa, peguei a segunda cadeira, e me sentei muito perto de Luba, bem na frente dela.

- Eu quero que você me escute com muita atenção. Não importa que você não reaja ao que eu estou dizendo, porque eu sei que há uma parte de você que vai me escutar, e que aceitará minhas palavras como verdade. Eu sei que você escolheu sua doença devido a algum motivo muito importante na sua vida, Luba. Eu não tenho idéia do motivo que faz com que você precise da sua doença para se salvar, mas tenho certeza de que foi uma decisão corajosa naquele momento. Me uno a você no agradecimento a sua doença por ter vindo a você no momento correto, e por ter feito algo muito importante para você. Certo?

"Agora, Luba, quero que me escute ainda mais atentamente."

Isso parecia realmente patético aos meus ouvidos, pois até agora Luba não mostrava nenhuma reação às minhas palavras ou até mesmo à minha presença. Apesar disso, eu continuei.

- Quero enfatizar uma coisa muito importante para você. Muito embora a doença que você criou tenha sido útil para você, o seu acordo com ela era temporário. O problema é que você esqueceu isso. Você ainda espera que sua doença realize algo para você, mas isso está errado. Está totalmente errado, porque a necessidade disso já passou. Ela não tem mais valor, e agora só é destrutiva.

Eu estava ficando muito emocionada enquanto falava com ela, como se fosse parte da família, expressando a mesma angústia, medo, amor, ódio e vergonha que seu marido e filhos tinham sem dúvida experimentado. Eu quase me senti como se fosse perder o controle de mim mesma.

- Você não precisa pagar um preço tão alto. A sua doença a enganou. Ela é um monstro que destruirá você, a sua família, e toda a sua vida. Você sabe o que vai acontecer com você? Não, não sabe. Vou dizer-lhe o que vai acontecer; tenho certeza. Eu já vi o seu futuro, e vou lhe dizer como você também pode vê-lo! - Eu estava quase gritando, e segurei sua mão com força.

"Olhe para mim, e eu vou lhe dizer o que você vai ser.

Sacudi a sua mão violentamente para frente e para trás, tentando chamar a sua atenção, mas tudo que consegui como reação foi um breve olhar indiferente. Então ela virou o rosto e olhou para a janela. Continuei a falar.

Você vai ficar exatamente como Larisa Chernenko. É tudo o que você vai ser. Se está disposta a continuar com isso, então vá em frente. Tudo que posso fazer por você agora é dar-lhe esse aviso.

Todo mundo na enfermaria feminina conhecia Larisa Chernenko. Ela vivia ali há vinte anos. Uma ex-cantora, ex-esposa de um general, ex-beleza, agora ela era um terror violento, imprecador e raivoso para todos, pacientes e equipe do hospital. A sua mente estava completamente destruída. Ela não cuidava de si, ria histericamente sem motivo, intimidava até as pacientes mais psicóticas ao seu redor, e passava a maior parte do seu tempo presa na cama, porque ela era perigosa na sua demência violenta. As correias que amarravam suas mãos e pés só eram removidas para trocar seus lençóis ou comadre ou para alimentá-la.

Luba não deu absolutamente qualquer resposta às minhas palavras, e ainda estava sentada como o mesmo monumento de pedra na sua cadeira. Fiquei de pé, me sentindo derrotada, e fui para o corredor, onde Marina esperava.

- Leve-a de volta para seu quarto, por favor - pedi, e então fiquei perto da porta assistindo como Marina ajudou Luba a se levantar e andar até o corredor. Marina fechou a porta atrás dela, me deixando sozinha no consultório, tentando não reconhecer a vergonha e insatisfação que sentira com meu desempenho. Mas os sentimentos eram fortes demais para ser evitados, e logo estava me censurando pelos meus atos estúpidos e antiprofissionais.

Questionei o que tinha esperado quando pedi ao meu Curandeiro Interior que saísse. Certamente não esperara o que realmente acontecera. A única "cura" que tentei foi a técnica trivial de dissociar o assunto introduzindo a idéia de que uma função positiva transitória para a doença já tinha passado. Teria sido impossível escolher uma paciente menos apropriada para esta técnica; a psique de Luba já tinha sido totalmente desintegrada pela sua doença, e ela obviamente não tinha a energia ou habilidade de aceitar novos significados ou símbolos.

Tentei me consolar e acalmar com o pensamento de que meu Curandeiro Interior talvez não tivesse desejado sair desta vez, ou talvez eu não o tivesse convocado de maneira apropriada.

Escrevi tudo no meu diário à noite, descobrindo que o processo de escrever sobre meus fracassos não era uma má idéia, já que me ajudava a aceitá-los e me dava pelo menos algum sentimento de alívio.

Eu não vi Luba novamente nos quatro dias seguintes, devido ao final de semana e a algumas situações de emergência na minha ala masculina. No quinto dia, finalmente fui ver meus pacientes femininos. Reservei três horas para passar na enfermaria, e decidi usar parte desse tempo para completar todos os formulários legais de Luba. Não havia por que atrasá-los, e quanto mais cedo o fizesse, menos prazos teria que cumprir no final do mês.

Marina estava novamente de plantão naquele dia. Ela obviamente estava feliz em me ver, e fiquei contente ao descobrir que não guardava nenhum embaraço ou sentimentos negativos em relação com o meu recente fiasco com Luba.

- Olá, doutora - disse ela. - Tive medo de não encontrá-la. Se a senhora não viesse aqui hoje, eu iria chamá-la.

- Por que a pressa? Aconteceu algo de novo?

- Oh, definitivamente aconteceu algo de novo. - Ela tinha um sorriso excitado no seu rosto enquanto caminhava comigo pelo corredor. Ela parou do lado de fora do quarto com Luba e três outras pacientes.

- O que está acontecendo? - perguntei, sentindo que havia algo incomum no comportamento de Marina.

- Luba quer vê-la, doutora. - Marina fez um gesto para o quarto, de modo que me virei e entrei.

Luba não me viu de inicio. Ela estava sentada na cama, lendo o jornal local. O seu belo rosto, totalmente vivo, mostrava interesse e concentração. O seu cabelo estava cuidadosamente penteado; até mesmo tinha um leve toque de batom nos lábios. Ela estava usando o seu próprio vestido bordado de casa, um privilégio permitido apenas às pacientes com licença para ir para casa durante alguns dias. Eu não acreditava nos meus olhos. Fiquei na porta totalmente surpresa, olhando para ela numa mistura de espanto e admiração.

Subitamente ela me viu. Largou imediatamente o jornal, saltou da cama, e correu para mim com um grande sorriso, como se estivesse saudando uma amiga há muito perdida.

- Oh, estou tão feliz em vê-la, doutora! Estive esperando ansiosa por você. Muito obrigada pelo que fez! Muito, muitíssimo obrigada! - Então ela parou, sem ter certeza se devia continuar até ver minha reação.

Eu estava tão atordoada que quase perdi a fala.

- Olá, Luba. Também estou feliz em vê-la. Vamos para o meu consultório, Luba. Agora mesmo, por favor - foram as únicas palavras que vieram à minha mente chocada.

Caminhamos até a mesma sala onde ela tinha ficado sentada na minha frente, passiva e inerte como uma pedra, apenas alguns dias atrás. Agora ela era uma pessoa totalmente diferente, viva, comunicativa, que mal conseguia controlar sua energia e entusiasmo.

- Você parece totalmente diferente, Luba. Incrivelmente diferente. Acho que agora você está se sentindo melhor, também? - Falei lentamente, tentando ajustar a nova percepção que tinha dela.

- Você me curou, doutora. Estou de volta, estou saudável. Não pode imaginar como estou feliz.

Eu a escutei, pensando nas suas palavras e tentando compreender o que eu estava vendo e ouvindo. Luba tinha definitivamente entrado numa remissão pronunciada e totalmente inesperada, quase impossível. Ao mesmo tempo, eu sabia que não havia como o trabalho trivial que fiz com ela ter causado esse resultado. Era completamente implausível. Algo diferente devia tê-la ajudado, e me inclinava para a idéia de que algum ciclo endógeno bioquímico tinha criado a sua remissão, depois de seguir suas próprias leis desconhecidas.

- Bem, Luba, aprecio que você ache que a ajudei. Mas eu realmente não acho que meu papel tenha sido tão importante. Acho que seu corpo curou a si mesmo, e que tive pouco ou nada a ver com isso. Gostaria de ter sido responsável, mas tenho de encarar a verdade.

- Você não teve nada a ver com isso? Por favor, não diga isso. Foi você que me tirou daquele pesadelo! - Ela estava bastante perturbada. - Deixe-me dizer o que aconteceu depois que me deixou aqui na semana passada. Marina me trouxe do seu consultório, e me deitei na cama como já tinha feito em todos os dias anteriores. O meu estado mental antes disso tinha sido bastante estranho, mas ao mesmo tempo ele não fazia nenhuma diferença para mim. Eu não era mais "eu". Eu tinha me tornado alguma coisa alienígena, vazia de todo pensamento, emoção, ou mesmo movimento. Eu era um pedaço seco e morto do inferno.

"Quando Marina me deixou no seu consultório, pude vê-la falando comigo. Compreendia o que dizia, mas estava totalmente indiferente às suas palavras. Naturalmente, naquela época eu estava totalmente indiferente a tudo, até mesmo aos meus próprios filhos. Mas você plantou uma pequena semente de interesse em mim quando me disse que eu ia ficar como Larisa Chernenko. De início o meu interesse era fraco demais para fazer com que eu me levantasse e a procurasse. Mas o pensamento ficou aparecendo no vazio quase total da minha cabeça, me dando uma pequena conexão com a realidade externa. Lentamente fiquei cismando quem poderia ser essa pessoa, e então perguntei à Marina quem era ela.

"Nós não temos uma paciente com esse nome na nossa enfermaria - ela respondeu. Esse foi o verdadeiro início da minha mudança. A sua resposta me surpreendeu, e esse sentimento de surpresa foi a primeira emoção que voltou para mim.

"Pensei sobre isso durante algum tempo. Então comecei a olhar para as outras pacientes no café da manhã, almoço, e jantar, tentando descobrir quem poderia ser Larisa Chernenko. Finalmente percebi que Marina tinha dito a verdade. Não havia uma paciente com esse nome na enfermaria. Esse mistério intensificou meus sentimentos, e o meu interesse cresceu como uma bola de neve ao seu redor.

"Era tão importante para mim descobrir o que você quis dizer que a minha atenção ficou totalmente obcecada com isso. Eu não conseguia pensar em mais nada, não podia fazer mais nada, exceto caminhar para cima e para baixo no corredor, entre as mulheres da enfermaria ao meu redor, procurando sem parar por Larisa Chernenko. Finalmente cheguei a um estado em que toda a minha existência dependia de reconhecer essa mulher. Mas ela não estava na enfermaria.

"Finalmente, o domingo é o dia em que nossos parentes têm permissão de nos visitar. A minha própria família tinha ficado tão desapontada e perturbada nas outras tentativas de falar comigo que nenhum deles veio. Eu caminhava entre os pacientes e seus parentes, ainda consumida pelo meu desejo ardente de encontrar Larisa Chernenko.

"Subitamente ouvi a voz de um enfermeiro anunciando outro parente que viera visitar. 'Larisa está aqui para ver sua mãe.' - Ouvir o nome foi como receber um choque elétrico. Fui ansiosa para a porta e esperei que ela entrasse.

"'Pobre garota, ainda vem ver a sua mãe" - ouvi um enfermeiro dizer.

"'Mãe é sempre mãe, apesar de tudo. Mas nada pode ser feito por ela' - replicou outra voz. Então vi o enfermeiro trazer uma jovem para o quarto onde os pacientes mais violentos ficavam presos.

"'Tamara Chernenko, a sua filha, Larisa, está aqui!' O enfermeiro gritou no quarto onde a mulher que todos chamavam de 'Tamara, a terrível', ficava presa. Ela foi solta temporariamente das suas presilhas, e quando viu sua filha começou a insultá-la violentamente, dizendo coisas terrivelmente baixas para ela.

"Larisa ficou na porta chorando em silêncio, sem ousar dar um passo na direção da sua mãe violenta. Tamara continuou a gritar e a ofendê-la. Subitamente, ela correu até a filha e socou-a com força no rosto. Larisa fugiu enquanto vários enfermeiros agarravam Tamara e a amarravam de volta na sua cama. Ela recebeu imediatamente uma injeção para acalmá-la, mas continuou a gritar, cuspir e vociferar durante quase trinta minutos, até que a droga finalmente fez efeito.

"Eu não vi quando Larisa deixou a enfermaria. Ainda estava de pé perto da parede, sentindo-me espantada. Finalmente compreendi de quem estava falando, e por que usara o nome da filha em vez do da mãe. Foi só um truque para me confundir, para me dar alguma coisa fora de mim em que pudesse me agarrar.

"Algo aconteceu no momento em que percebi isso. Senti-me como se alguém houvesse literalmente agarrado meu cabelo e me puxado para fora da minha doença. Fiquei tomada por pensamentos sobre meu marido e meus filhos, e como eles deviam estar se sentindo sobre minha doença. Foi como se uma represa houvesse subitamente arrebentado, e a grande energia que ela liberou entrou no meu corpo e o preencheu novamente. Me senti totalmente curada em apenas alguns segundos, enquanto ficava parada perto da parede.

"E eu sei que isso nunca teria acontecido sem você, doutora. É por isso que agradeço."

Eu a escutei, perplexa. O meu erro ao me referir a "Larisa" Chernenko tinha sido um ato falho totalmente inconsciente. A minha mente consciente nunca teria sido capaz de bolar uma estratégia de cura tão estranha. Mas de algum modo isso tinha acontecido, e deu certo. Luba era a prova. Ela estava sentada na minha frente, saudável e linda. O meu próximo passo seria o agradabilíssimo esquecimento dos seus papéis de incapacidade, e em vez disso, completar os procedimentos que lhe permitiriam ir para casa.

Eu senti uma tamanha e incrível excitação, alívio e felicidade que mal consegui deixar de chorar. O conselho de Umai realmente funcionara! O meu Curandeiro Interior realmente saíra e ajudara essa mulher. Eu estava pronta a beijar Luba, a dançar com ela e a correr pelo hospital contando a todo mundo o que tinha acontecido.

Ao mesmo tempo, a idéia de contar a verdadeira história para outros médicos me deixou sóbria. Era impossível até mesmo imaginar partilhar o conceito místico do Curandeiro Interno com meus colegas na comunidade psiquiátrica. Assim, em vez de sair correndo excitadamente para espalhar as novidades, eu falei com Luba durante algum tempo sobre ir para casa e sobre seu trabalho e futuro, e então a mandei preparar-se para ir embora.

Peguei a ficha de Luba e fui para o escritório de George. Enquanto andava pelo corredor, subitamente notei a porta branca da sala de emergência. Percebi que finalmente, depois de todas as semanas após a morte da minha paciente ali e todos os eventos misteriosos associados com ela, essa era a primeira vez que eu tinha a força de olhar para ela sem um sentimento de medo ou culpa. Até então, eu a havia simplesmente evitado, negando sua existência. Agora eu era capaz de olhar para ela novamente, com uma sensação de vitória. Eu sabia que Luba e essa mulher tinham sido invadidas pela mesma doença insaciável. Antes, ela tinha conseguido capturar e devorar sua presa. Mas desta vez eu a tinha derrotado.

George tinha acabado de voltar do almoço, e estava pendurando seu longo casaco de lã quando cheguei.

- Ah, Olenika! - ele me saudou pelo meu apelido. - Estou muito feliz em vê-la. Ouvi falar que você tem algumas notícias muito boas sobre Luba!

- Exatamente; ela vai para casa.

- Sim, sim. Eu a vi. É quase um milagre. Não, não é quase um milagre; é realmente um milagre completo. Não consigo encontrar nenhuma explicação para sua remissão. Não acho que estivesse errado no seu diagnóstico inicial. Tudo parecia perfeitamente claro, e agora isso. Bem, a única coisa que posso dizer é que, às vezes, mesmo para anciãos da psiquiatria como eu, não faz mal aprender mais um pouco sobre nossa profissão.

Luba voltou para casa e para sua família. Ela teve que deixar seu emprego de professora, porque o rótulo de ter estado na "casa dos loucos" não lhe deixava nenhuma outra escolha. Apesar disso, ela encontrou um emprego como bibliotecária na biblioteca local, e parecia estar razoavelmente contente com ele. Eu acompanhei o seu caso durante outros três anos, e no final desse período ela ainda estava num estado de remissão estável.

 

Apesar da recuperação dramática de Luba, algum tempo depois as minhas experiências em Altai ainda criavam uma considerável confusão profissional para mim Entre outras coisas, eu agora achava difícil não poder mais traçar uma linha distinta entre a teórica irrealidade da psicose e a normalidade supostamente firme da sanidade. Então, com a ajuda do ato de escrever e através da descoberta do meu poder de cura interior, a minha confusão foi substituída por uma compreensão mais profunda da natureza humana, que me ajudou a me tornar uma médica mais confiante e eficiente.

Comecei a estudar rituais nativos e cerimônias de cura, e a aplicá-los na minha prática junto com o tratamento convencional, criando novas formas de terapia. A crença nativa siberiana na animação total - que tudo que existe está vivo, possui seu próprio espírito, e pode ser contatado - se tornou uma das minhas ferramentas psiquiátricas mais úteis. Descobri o que os xamãs querem dizer quando afirmam que cada doença possui seu próprio espírito.

Como um exemplo entre centenas, o povo de Altai acredita que a cera possui a propriedade de absorver energias negativas. O curandeiro caminha ao redor do paciente várias vezes com um pote de cera quente derretida, cantando feitiços para chamar a doença, enquanto o paciente fica de pé num estado de transe, com os olhos fechados. Quando o curandeiro retira toda a energia negativa, o paciente é instruído a assistir enquanto a cera quente é derramada na água fria. A cera assume formas bizarras quando esfria e se solidifica, deixando o paciente ver e interpretar da sua própria maneira a natureza da doença que foi removida.

Para evitar a controvérsia, descrevi esse método específico de cura para os meus pacientes e para meus colegas como uma nova técnica experimental no método projetivo, e só o praticava na privacidade da sala de hipnoterapia. O mesmo truque geral foi usado com todas as práticas esotéricas que introduzi. Era incrível ver como tudo dependia da linguagem e perspectiva. Eu podia vestir quase qualquer técnica tradicional em roupagens modernas, e ela seria aceita automaticamente por aqueles ao meu redor.

Os métodos novos/antigos funcionavam, e eles fortaleciam a poderosa fonte nova de poder curativo dentro de mim. Com sua ajuda, fui capaz de arrancar pelo menos alguns dos meus pacientes das trevas da sua insanidade. Agora, a minha abordagem da esquizofrenia era completamente diferente; ela não era mais uma vaga idéia abstrata para mim, mas uma entidade inimiga distinta, uma entidade extremamente esperta com suas próprias intenções malígnas. À medida que me tornei capaz de reconhecer essas intenções e de prever como elas se manifestariam, comecei a combatê-las com mais sucesso. Agora sabia que até mesmo a esquizofrenia podia ser conquistada, e não experimentava mais o mesmo medo indefeso quando a via olhando para mim cruelmente dos olhos de meus pacientes.

Então, à medida que aprendia mais e mais sobre métodos alternativos de cura, a minha prática gradualmente se expandiu além do trabalho com pacientes mentais para a cura de sérias doenças físicas.

Eu tinha tomado uma decisão de tentar viver minha vida segundo a Primeira Regra. Comecei a testar cada decisão, tanto as grandes quanto as pequenas, segundo os critérios de verdade, beleza, saúde, felicidade e luz. Respeitar a Primeira Regra provou ser um eixo que me permitiu tomar decisões que não poderia ter esperado de mim mesma anteriormente. Às vezes essas decisões eram muito difíceis, mas sempre provaram ser acertadas.

Praticar a Primeira Regra imediatamente levou a mudanças importantes na minha vida política, que até então tinham sido mínimas. Mas a tragédia da morte de Victor fez com que eu percebesse que precisava fazer tudo que pudesse para proteger outros de repetir o seu destino. Apesar do risco de fazê-lo, me uni a um pequeno grupo de pessoas em Novosibirsk que haviam entrado para uma organização chamada de Associação Internacional de Psiquiatras Independentes.

Como especialistas psiquiátricos, aconselhávamos pessoas como Victor que tinham sido reprimidas politicamente através do mau uso da psiquiatria pelo estado. Nós tivemos sucesso em ajudar um grande número dessas pessoas vitimizadas a voltar a ser membros funcionais da sociedade, mesmo depois de terem sido falsamente rotuladas como esquizofrênicas.

Ainda era perigoso envolver-se politicamente de maneiras como essa, que se opunham ao sistema, e muitos dos meus amigos pagaram preços altos pelo seu ativismo. Não muito tempo depois, todos os membros da Associação Internacional de Psiquiatras Independentes em Novosibirsk, exceto eu, tinham sido questionados e então despedidos do hospital. Mas apesar dos riscos, eu nunca duvidei da minha decisão. Eu sabia que ao fazê-la tinha escolhido a verdade, beleza, saúde, felicidade e luz. Eu sabia que tinha tomado a decisão certa.

Eventualmente, chegou a minha vez de ser chamada diante do chefe da administração do hospital. Eu esperava exatamente o mesmo destino dos meus colegas, mas antes de entrar no seu escritório, pedi ao meu Gêmeo Espiritual que estivesse comigo e preservasse o trabalho no hospital que era a minha vida. Mais uma vez a onda familiar de calor atravessou o meu peito, e houve um curto lampejo em que me pareceu que eu experimentava o mundo a partir do meu coração. Então abri a porta e entrei.

O meu encontro com o diretor acabou sendo curto. Por algum motivo, embora eu estivesse calma por dentro, esqueci todas as respostas que preparara para me defender. Em vez disso, me vi falando bobagens compulsivamente como uma idiota sobre quase tudo que passava pela minha cabeça.

Depois de alguns minutos, o ar sério no rosto dele se desfez. Logo ele começou a ficar agitado; pouco depois a sua impaciência se transformou em irritação, e então numa necessidade de se livrar de mim que era quase um pânico. Finalmente ele me interrompeu no meio de uma frase, dizendo que eu era uma mulher jovem e politicamente ingênua, mas que ele não colocaria nenhuma pressão na minha vida fora do hospital, e que eu poderia voltar ao meu trabalho. Então ele acenou para a porta com um ar de alívio confuso.

O meu próprio ar também era de alívio diante do milagre que acabara de ocorrer. Mas o encontro me abalara tanto que todo o meu corpo estava tremendo. Sentia-me incapaz de me concentrar, de modo que deixei o hospital uma hora antes do que era meu costume e fui para casa.

Pouco depois, percebi que na minha ansiedade tinha esquecido de cancelar o medicamento neuroléptico de um dos meus pacientes. Esse era um esquecimento alarmante, porque este paciente estava correndo o risco de desenvolver uma síndrome neuroléptica malígna, uma complicação em potencial da sua terapia em que seu medicamento interagiria com seu sistema metabólico e o aceleraria tremendamente, causando uma febre muito alta. Se isso acontecesse, poderia exigir medidas de emergência na melhor das hipóteses, e na pior, poderia até mesmo lhe custar a vida.

Eu tentei ligar para minha enfermaria imediatamente, mas todas as linhas estavam ocupadas. Embora fosse contra as regras, as enfermeiras provavelmente estavam usando as calmas horas da noite para fazer chamadas pessoais. Finalmente desisti de tentar contatar minha própria enfermaria e consegui o escritório de admissões principal. Eu pedi o médico de plantão, mas nenhuma das enfermeiras parecia saber onde ele estava.

Depois de outra meia hora de tentativas cada vez mais desesperadas de contatar minha enfermaria, relutantemente coloquei meu casaco e fui de novo para o hospital. Eu estava de mau humor, contemplando a perspectiva da longa viagem de ônibus, mas não havia nenhuma outra escolha responsável a ser feita. E, naturalmente, eu tinha de admitir que a situação era pelo menos em parte culpa minha.

Tudo estava calmo e em ordem quando cheguei na enfermaria. O paciente com quem me preocupara estava dormindo tranqüilamente no seu quarto. Ele não estava com febre, o que era um bom sinal. Escrevi as mudanças necessárias na medicação na sua ficha, falei com a enfermeira noturna durante alguns minutos, e saí.

O ar parecia fresco e suave no meu rosto enquanto caminhava do lado de fora. Os edifícios pareciam misteriosos sob a luz de uma lua nova, brilhando sobre o horizonte ocidental. Tinha chovido há pouco, e o chão estava enlameado. Fiquei contente de estar com meu longo casaco de couro, que protegia minhas roupas das inevitáveis gotas de lama negra lançadas pelas minhas botas enquanto caminhava pelo pátio.

A forma surreal do velho bonde quebrado estava bem no meu caminho, e tive a estranha sensação de que ele estivera esperando por mim. Meu passo foi ficando mais lento à medida que me aproximava, notando que a sua carcaça enferrujada parecia maior à luz da lua e que estava pendendo para um lado. A sua porta antiga estava aberta, e tive a idéia louca de que ele me convidava a entrar.

Ele me atraía fortemente pelo seu vazio misterioso e sombrio, assim como pela sua existência simbólica que se tornara uma parte da minha vida cotidiana. Dirigi-me silenciosamente para dentro dele. Era difícil ver na escuridão, de modo que estendi as mãos cuidadosamente para tocar a beira da porta. Então, entrei.

A tênue luz da lua iluminava apenas a parte dianteira do carro, de modo que me sentei no assento do motorista. Ele era duro e desconfortável. Coloquei minhas mãos na fria roda de direção, e tentei imaginar a mim mesma dirigindo essa criatura azul quebrada. Então olhei pelo pára-brisa rachado para o céu. O fino crescente da lua nova estava cercado por milhares de estrelas brilhantes e remotas. Me senti viajando com o ônibus através do espaço para algum universo estranho, distante e ilimitado.

Percebi que essa metáfora se encaixava perfeitamente na situação que estava vivendo. Agora eu era a motorista encarregada de guiar na nova direção para minha própria vida. Eu podia escolher para onde ir e em que direções explorar, agora que Umai me libertara da pequena cela de realidade em que estivera trancada.

Subitamente, um leve som atrás de mim me deixou instantaneamente alerta. Então a voz baixa de um homem me disse: "Boa-noite" O meu corpo ficou rígido de medo. Alguém estava sentado na escuridão profunda da fila de trás. Eu estava totalmente desprotegida, e éramos constantemente prevenidos sobre fugitivos da prisão local, que era próxima ao hospital. Que melhor lugar para se esconder durante a noite do que o bonde? Fiquei paralisada, com medo até de voltar a cabeça.

- Então, está dirigindo o bonde para longe de todas as nossas ilusões? - A pergunta foi acompanhada de uma risada familiar.

- Anatoli? - gritei aliviada. - É você?

Virei para trás, e vi um pequeno ponto de luz de um cigarro. Ele brilhou brevemente enquanto meu amigo inspirava, refletindo um par familiar de óculos escuros e me dando um tênue vislumbre do rosto bem-vindo de Anatoli.

- Ele mesmo - Anatoli respondeu.

- O que está fazendo aqui? - Não pude conter a pergunta.

- Bem, acho que tenho mais direito do que você para fazer essa pergunta primeiro. Estou de plantão esta noite, e escapei para cá durante alguns minutos para fumar um cigarro. E agora, definitivamente é minha vez de perguntar, o que você está fazendo aqui?

- Naturalmente, é você que está de plantão. Eu devia ter adivinhado que era sua noite quando tentei várias vezes contatar o médico encarregado e me disseram que ninguém sabia onde estava o médico de plantão. Você é famoso por cuidar bem dos pacientes mas ser totalmente irresponsável na hora de seguir regras e regulamentos. Quem mais seria tão impossível de encontrar durante o plantão?

Anatoli riu novamente. Parecia que tudo que o diferenciasse dos outros médicos o deixava feliz.

- Eu vim aqui trocar a medicação de um dos meus pacientes, e agora vou para casa - respondi.

- Bom para você. Estou preso aqui até de manhã. Se você está contando com esse ferro-velho para levá-la em casa, acho que também vai ficar aqui até a manhã, se não um pouco mais. Posso fazer outra pergunta, aliás, já que parecemos estar num local de fazer e responder perguntas?

- Pode perguntar, mas não prometo responder - repliquei, deixando o assento do motorista e caminhando pelo bonde até a parte de trás. Talvez devido à escuridão, experimentei a ilusão de que o bonde realmente estava se movendo. Por um instante cheguei a procurar o corrimão para me apoiar, como se esperasse que fosse cair numa parada brusca.

- Bem, eu notei que há alguma coisa definitivamente diferente em você desde que voltou da sua viagem ao Altai. Eu não sei exatamente o que é, mas está mudada de alguma forma. É como se você possuísse algum tipo de segredo agora, algo muito poderoso. Vi você escrevendo os seus diagnósticos, injetando alguns remédios fatalmente exatos em algum sujeito maluco, ou até mesmo fazendo coisas simples como apenas falar com seus pacientes e enfermeiras. E falando seriamente, parece que você caminha dentro de algum poder que está dançando ao seu redor.

"Todo mundo está comentando sobre seus sucessos miraculosos com alguns dos nossos pacientes mais desesperados, às vezes com a ajuda de terapias incomuns que você descreveu como novas técnicas experimentais, mas que eu pessoalmente suspeito virem mais do mundo antigo do que do moderno.

"Você sabe como eu sou obsessivo em descobrir explicações para o comportamento humano, mas isso é uma coisa que não consigo explicar. Acho que não é da minha conta, mas a minha pergunta é esta: isso está conectado de alguma maneira com Altai? Isso faria uma diferença pessoal para mim. Se você quiser, eu explico por quê.

Com a ajuda do brilho do seu cigarro, meus olhos tinham finalmente se acostumado com a escuridão. Eu podia vê-lo diante de mim.

- Sim, está conectado com o Altai - respondi. - Mas não acho que possa contar-lhe o que aconteceu lá. Não porque eu não confie em você; você sabe que não é verdade. É só porque eu ainda não me sinto pronta para essas explicações.

- Compreendo isso perfeitamente. Então, em vez de perguntar mais sobre suas mudanças, vou contar um pouco sobre a minha própria experiência em Altai. Você tem algum tempo?

- Sim. Preciso pegar o último ônibus para Novosibirsk, mas ainda há tempo.

Anatoli nunca mencionara Altai antes, e fiquei intrigada para saber o que ele ia dizer.

- Bem, eu sou um caçador, como sabe. Bem, não quero dizer isso simbolicamente apenas, como um caçador de significados, mas literalmente. De vez em quando eu vou para a taiga caçar.

"A minha avó vive em Altai. Eu levo dois dias inteiros para dirigir até sua vila, de modo que raramente tenho tempo para visitá-la. Mas há pouco mais de um ano, decidi tirar férias curtas e caçar na floresta ao redor da vila da minha avó. Levei meu rifle favorito e fui para lá com grandes expectativas.

"Alguns dias depois de ter chegado à vila, finalmente saí para caçar. O inverno tinha terminado, e a maior parte da neve tinha derretido, deixando para trás um tapete marrom-dourado da grama morta do ano que passou. Logo os novos brotos verdes da primavera estariam abrindo caminho entre essa camada. A caminhada era fácil, e entrei cada vez mais fundo na floresta.

"Sabe, é impressionante o que uma pequena mudança na percepção pode fazer às nossas mentes. Enquanto eu caminhava pela floresta, percebi que estava deixando para trás todos os barulhos da cidade grande e entrando num silêncio primordial que parecia causar no meu estado de espírito uma alteração maior do que a dos meus pacientes nos estágios mais profundos da hipnose. Eu caminhei num total silêncio, relaxado e concentrado num tipo de meditação especial, mas ainda com os instintos mais agudos de um caçador. Era exatamente o que eu antecipara ao ir para lá, e estava apreciando muito.

"Então, um pequeno som à direita chamou minha atenção. Eu olhei, e lá estava ela. Uma bela e jovem corça, ao lado das árvores. Ela me pareceu estranha de algum modo, e eu soube instintivamente que precisaria de uma estratégia especial para caçá-la.

"Ela ficou olhando para mim num silêncio absoluto. Não fez nenhum movimento, mas não estava imobilizada pelo choque ou pelo medo. Era como uma escultura. Sua pose graciosa, sua bela forma, só podia ser comparada a uma obra de arte. Cada linha do seu corpo tinha sido traçada com uma graça incrível.

"Anteriormente, o meu relacionamento com os animais que caçava tinha sido sempre puramente utilitário. Eles eram simplesmente uma caça impessoal, e se eu pudesse ser mais esperto do que eles e atirar direito, eles seriam comida na mesa. Eu não sabia por que nunca tinha visto mais do que isso, mas até aquele momento nunca imaginara que um animal poderia ser tão bonito.

"No momento seguinte, meus olhos encontraram os dela. Seu olhar era claro e direto. Perdi toda a noção do tempo. Eu estava olhando nos suaves olhos negros da própria natureza. Então alguma coisa aconteceu dentro de mim, e percebi que eram os meus próprios olhos que me fitavam de volta. O limite entre mim como ser humano e a corça como animal tinha se dissolvido completamente, e nos tornamos um só. Passei a ser caçador e presa ao mesmo tempo. Era real, e não uma simples coisa imaginada. Era cem vezes mais forte do que a minha imaginação. Eu estava conectado àquele animal em todos os níveis do meu ser, da menor molécula até as profundezas da minha própria alma. Naquele momento eu perdi a maldição da minha racionalidade, a minha necessidade usual de explicar tudo racionalmente, de simbolizar tudo. Era um momento de existência pura e concentrada.

"No momento seguinte, a minha mão se moveu sem pensar e puxei para trás a trava do meu rifle. Tudo isso fazia parte do mesmo fluxo de energia que me conectava com a corça. Era tudo natural e correto, porque eu sentia os dois lados do que estava acontecendo. Era parte do mesmo contínuo, do mesmo equilíbrio.

"Eu fiz pontaria e puxei o gatilho num só movimento. De início não ouvi som algum. Vi apenas aquele maravilhoso animal selvagem, a corça, balançar delicadamente e então começar a cair. Cada pequena fração do seu movimento formava um padrão intricadamente coreografado, realizado em si mesmo, como se um conjunto de lindas fotografias estivesse se substituindo na minha mente. E ao mesmo tempo, me senti como se estivesse caindo, caindo dessa vida. Então os olhos dela finalmente se fecharam, e a conexão acabou.

"Foi só então que ouvi o som do tiro, um som primordial de vida e morte, um trovão preenchendo todo o espaço ao meu redor. Levantei minha cabeça e olhei para o topo dos velhos pinheiros nos cercando. E então olhei para o céu. Por incrível que pareça, havia um brilhante arco-íris quase diretamente acima de mim. Fiquei sacudido. Me sentei na grama morta e úmida e comecei a chorar.

"Eu sempre me considerara um homem forte, mas estava chorando como uma criança. Havia uma mistura de dor e êxtase nas minhas lágrimas, e toda a minha mente e corpo estavam em choque. Eu me sentia totalmente transformado. Esta foi provavelmente a única experiência da minha vida consciente que eu nunca tentei interpretar ou explicar.

"Voltei a Novosibirsk, mas era diferente. Aquele sentimento que veio até mim na morte da corça, do meu coração sendo despedaçado pela dor incrivelmente bela da minha conexão com o mundo ao meu redor, tornou-se uma parte da minha vida.

"Você me perguntou certa vez por que eu não tinha seguido adiante com minha carreira. Eu não respondi então, mas acho que hoje lhe disse por quê. Quando voltei de Altai, a idéia de uma carreira tinha perdido toda a importância para mim. Tudo que me importava era ajudar as pessoas através do meu trabalho. Desde então, toda vez que vejo um paciente, experimento novamente a sensação de ser tanto o caçador quanto a vítima. Essa perspectiva cobre meus relacionamentos pessoais. Acho que me torna um pouco diferente enquanto psiquiatra; espero que me faça um médico melhor."

Como colegas profissionais, Anatoli e eu não estávamos acostumados a mostrar nossos sentimentos um para o outro de maneira tão aberta. Fiquei feliz por ele não poder ver meu rosto com clareza no escuro. A sua história tivera um impacto emocional profundo sobre mim, de tal modo que eu não tinha nem mesmo palavras para responder-lhe.

- Obrigada por me contar sua história, Anatoli - foi tudo que consegui dizer. Então fiquei em silêncio durante algum tempo.

- Obrigado por me escutar - ele respondeu depois de uma pausa. - Eu contei isso só porque senti que Altai teve algum impacto importante em você, também.

- Tem razão. E, igual a você, ele ainda continua para mim.

O som da sua voz tinha mudado depois de ter terminado sua história. Eu sabia que ele estava de volta à sua personalidade normal quando continuou a falar.

- Sabe, eu li vários livros sobre aquele lugar posteriormente. Descobri alguns antigos livros numa livraria, livros muito antigos. Altai é uma das regiões mais misteriosas e incomuns do mundo na sua geografia, geologia, história, e multiculturalismo. Muitas tradições e culturas diferentes parecem ter nascido ali, e então se espalhado por toda a Ásia através de migrações. Lingüistas chegaram a conectar a linguagem altaica a muitas regiões distantes. Está relacionada com o mongólico, que é falado da Mongólia à China do Norte, Afeganistão, e Sibéria oriental, e à linguagem tungus falada em outras partes da Sibéria. As antigas línguas turcas que varreram numa longa faixa por todo o continente da Ásia, começando no oeste da Turquia, e então passando pela Ásia Central e oeste da China, e chegando ao nordeste da Sibéria, também pertencem à mesma família lingüística altaica.

"Você pode imaginar o incessante movimento para frente e para trás, as migrações sem fim, as inumeráveis ascensões e quedas de civilizações desconhecidas durante milênios incontáveis, que devem ter sido necessários para deixar esta vasta difusão lingüística como resíduo? Acredito que eventualmente descobriremos que há algo muito especial em Altai, e que o seu significado cultural para a história da humanidade ainda não foi compreendido totalmente.

"Fico muito zangado quando vejo quanta destruição foi feita nesse lugar. Muitos dos nativos são alcoólatras. As lojas não têm comida, de modo que além do seu trabalho regular, as pessoas precisam plantar e produzir suas próprias provisões. A poluição está piorando o tempo todo, e ouvi dizer que estão planejando construir uma nova usina nuclear no rio Katun. Não ficaria surpreso em ver o monstro sem cabeça da nossa sociedade destruir totalmente o tesouro que é Altai em mais algumas décadas, se não mais cedo.

Ele suspirou profundamente e então consultou de algum modo o seu relógio no escuro.

- Bem, nós poderíamos falar mais sobre isso, mas então infelizmente você teria que passar a noite aqui. O último ônibus sai em cinco minutos.

- Obrigada, Anatoli. Eu gostaria de ficar, mas a minha noite de plantão está marcada para amanhã. Não estou a fim de passar duas noites seguidas aqui, portanto vou me despedir. E obrigada novamente pela sua história.

Fui embora e caminhei até a estação de ônibus. Voltando-me uma vez para olhar para trás, vi o pequeno brilho do cigarro de Anatoli dentro da carcaça escura do bonde. De algum modo, essa pequena luz fazia com que tudo ao redor dela parecesse vivo e cheio de significado.

Ela me lembrou que as barracas identicamente escuras das enfermarias cercando e quase que abrigando o bonde estavam cheias de vidas. Centenas de pacientes estavam dormindo pacificamente sob essa mesma lua, e eu nunca duvidaria novamente que as suas vidas eram tão cheias de significado quanto a de qualquer outra pessoa. Estávamos todos conectados, mesmo que essa verdade importante estivesse oculta para muitas das pessoas consideradas sãs.

Então escutei o som de um veículo se aproximando, e corri rapidamente para o ponto de ônibus. Eu sabia que o motorista não estava esperando nenhum passageiro a essa hora, portanto fui para o meio da estrada para garantir que ele não passaria direto. O ônibus estava completamente vazio, e fui para casa num silêncio bem-vindo, pensando sobre o milagre inesperado que aquela noite acabara se revelando.

 

A história de Anatoli sugeria que a minha busca de significado e crescimento pessoal era um impulso implantado em todos os seres humanos, estivessem eles conscientes disso ou não. Aqueles que não estavam, ou que talvez só o sentissem de vez em quando, poderiam ficar chocados quando em contato com esse impulso através de algum evento incomum como o que Anatoli experimentara em Altai. Comecei a observar as pessoas ao meu redor, tentando imaginar os tipos de eventos que poderiam conectá-las com seus Gêmeos Espirituais e capacitá-las a experimentar o milagre da vida num sentido pleno.

Quanto mais eu observava, mais convencida me tornava de que todo mundo tinha uma estrada individual para Belovodia. Era simplesmente uma questão de despertar para ela. Infelizmente, para a grande maioria, ela continuava totalmente além da esfera em que sua atenção diária estava concentrada. O lugar do seu Lago do Espírito estava totalmente consumido por necessidades externas. Isso parecia queimar sua energia vital completamente, sem deixar espaço até mesmo para a menor quantidade de exploração interna.

Fiquei consciente de que isso causava grande sofrimento. Através dos olhos do meu próprio Gêmeo Espiritual, vi quantos problemas e doenças mentais resultavam das tentativas inconscientes, mas mesmo assim poderosas do corpo, de passar a atenção para suas necessidades internas. Infelizmente, a maioria das pessoas continuava a lutar contra essa importante transferência de energia, mesmo diante de um sério estresse, resistindo teimosamente para manter seus padrões de vida antigos e incompletos.

Às vezes era necessário um choque tremendo no sistema para mover as pessoas o bastante a ponto de perturbar o seu equilíbrio falho e conduzi-las de volta a um estado de saúde equilibrado. Percebi que foi assim que Umai tinha tratado Anna. Embora Anna nunca tenha mostrado muito interesse posteriormente em refletir sobre o que tinha acontecido com ela, a sua saúde física tinha sido completamente restaurada.

O meu próprio trabalho de cura diferia para cada pessoa, mas comecei a organizá-lo na direção de abrir as mentes dos meus pacientes para o espaço interior que existia dentro de cada um deles. Para muitos, isso eventualmente abriu uma porta para novos poderes que não só os curaram como também às vezes lhes davam a capacidade de ajudar outros.

Em todo esse processo, Belovodia continuou a me inspirar como um símbolo misterioso de grande significado. Eu tinha certeza de que ela representava mais do que uma simples lenda, algo maior do que um belo conto folclórico. Continuei pensando na conexão pessoal específica que eu sentia com a antiga cultura pré-histórica de Altai, revelada para mim primeiro através da minha visão da mulher tatuada, cuja verdadeira existência histórica foi depois confirmada pela realidade "normal" da sua descoberta independente por arqueólogos. Eu sabia que essa conexão estava viva dentro de mim, e que era importante.

Crescia dentro de mim a necessidade de dar outro passo no caminho da minha busca de conhecimento sobre Belovodia. Voltar tão cedo a Altai estava fora de questão devido ao meu horário de trabalho de modo que a minha mente voltava a Dmitriev. Eu não o tinha visto desde minha experiência com os espelhos, muito embora houvéssemos falado pelo telefone algumas vezes. Em cada ocasião nossa conversa tinha sido polida, mas eu sentia uma troca de energia desajeitada entre nós. Ela era como uma corrente sob a nossa conversa, como se num nível semiconsciente nós ainda estivéssemos procurando a forma e equilíbrio do nosso relacionamento recém-formado.

Nossos papéis eram complicados pelo fato de Dmitriev estar acostumado a ser um cientista importante, uma autoridade nacional no seu campo. No entanto, na época do nosso primeiro encontro, eu tinha sido a figura de autoridade, uma médica, e ele tinha sido um paciente num hospital psiquiátrico. Embora Dmitriev definitivamente possuísse limites mais amplos para expressar sua persona do que a maioria das pessoas, pude ver que ainda era importante para ele ser definido dentro da moldura da sua pesquisa e da sua posição acadêmica. Por causa disso, havia a necessidade de manter um certo respeito e distanciamento profissionais, apesar da nossa crescente amizade e da minha sensação de que estávamos nos movendo rumo a um tipo de parceria nas nossas explorações mútuas das realidades alternativas.

Dmitriev tinha sido cuidadoso nas nossas conversas para não me obrigar a nenhum envolvimento posterior com seu laboratório, mas ele sempre me dava a impressão de que eu seria bem-vinda se resolvesse voltar. Certo dia, simplesmente liguei para seu telefone de trabalho e disse que gostaria de repetir o meu trabalho com os espelhos, caso ele estivesse disposto. Ele concordou imediatamente, e decidimos nos encontrar no instituto no dia seguinte.

A primavera já estava quase no fim. As árvores mais uma vez estavam cobertas com folhas verdes, quiosques recém-surgidos estavam oferecendo casquinhas de sorvete para os passantes, e o ar estava mostrando os sinais do quente e pesado verão siberiano que estava por vir. Os sons da cidade pareciam mais altos do que no inverno sonolento, e as pessoas pareciam se mover com mais rapidez e energia.

Quando cheguei ao instituto, fiquei surpresa ao encontrar Dmitriev usando uma barba curta que o fazia parecer mais um poeta iniciante do que um eminente cientista.

O seu laboratório estava cheio da clara luz do sol vinda das janelas, e parecia um pouco menor dessa vez. Só um dos seus assistentes estava no laboratório, um homem que não tinha visto antes, que se sentara a sua mesa trabalhando. Descobri que me sentia mais confortável com menos pessoas presentes.

Enquanto ele caminhava comigo para a sala com os espelhos, Dmitriev parecia muito sério, quase tenso.

- Eu vou ser o único aqui com você hoje - disse ele. Então fez uma pausa por um segundo. - Antes de começarmos, posso mostrar um material para você?

Concordei com a cabeça.

- Olga, os resultados do seu experimento aqui me impressionaram e intrigaram. Pensei na sua experiência várias vezes depois que você foi embora. Havia muito nas suas notas que se relacionava com o trabalho que estive fazendo de acordo com meu próprio sistema de pesquisa científica racional, usando métodos convencionais e técnicas experimentais. Esse sistema nos ofereceu algumas compreensões muito interessantes sobre a natureza subjetiva do tempo e da realidade, mas a sua abordagem puramente intuitiva a levou imediatamente a um nível que nunca tínhamos penetrado antes. Ela me desafiou a continuar sua exploração subjetiva, desestruturada. Assim, alguns dias depois, decidi conduzir minha própria experiência com os espelhos, usando a sua maneira.

"Os resultados foram fascinantes e muito diferentes de qualquer coisa que eu tenha experimentado antes. Eu não tinha nenhum material de escrita comigo no tubo, como você, mas assim que tudo acabou eu me sentei e registrei tudo. Caso você não se importe, gostaria de ler para você minhas anotações antes que você faça qualquer coisa nos espelhos hoje. Acho que você vai ver que elas se relacionam diretamente com a pergunta que você veio explorar aqui.

- Como você sabe o que eu vim explorar?

- Bem, não posso ter certeza. Mas o meu palpite é que você foi cativada pelo mistério de Belovodia, assim como qualquer um que tenha sido tocado por ele.

- Naturalmente, você tem razão. É exatamente por isso que estou aqui, e estou muito interessada em dar uma olhada nas suas anotações.

- Aqui estão elas - volveu ele, me dando um caderno numa capa de couro marrom. - Acho que você poderia sentir-se mais confortável lendo-as dentro do espelho.

Ele apontou para o tubo de metal que se tornara familiar.

- Vou deixá-la aqui, mas estarei na sala ao lado. Quando terminar, deixe-me saber. - Ele saiu apressadamente, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, como se estivesse com medo que eu mudasse de idéia.

A porta se fechou, e fiquei sozinha na sala. Estava completamente protegida de todo barulho externo, em completo silêncio, cercada por mesas cheias de pilhas de livros, papéis de pesquisas e relatórios. A minha indecisão sobre o que fazer em seguida pairava como uma névoa no ar ao meu redor.

O tubo espelhado subitamente pareceu intimidador. Parecia uma pequena espaçonave, pronta para me transportar para algum lugar assustadoramente remoto, no tempo e no espaço, da minha existência presente. Ou seria algum tipo de estranho útero mecânico, esperando para readmitir meu corpo e devolvê-lo ao meu local de nascimento?

De qualquer modo, não me parecia um lugar confortável para ler as notas de Dmitriev. Fiquei parada silenciosamente diante dele, até que a parte racional da minha mente reconquistou minha imaginação. Dmitriev obviamente devia ter um motivo para sua sugestão, de modo que entrei no tubo, carregando seu caderno comigo.

Enrolei-me como um embrião na mesma posição que escolhi da primeira vez. Havia luz suficiente nas extremidades abertas do tubo para que eu pudesse ler as anotações de Dmitriev sem qualquer dificuldade.

Fui até a primeira página. Eu nunca tinha visto a escrita de Dmitriev antes. Ele escrevia em letras grandes e redondas que eram de fácil leitura.

 

São oito horas da noite, sexta-feira. Eu finalmente terminei minha experiência no tubo. Ela durou uma hora e quinze minutos. Os registros seguintes serão escritos no tempo presente para facilitar minha memória.

Entro no tubo sabendo que minha tarefa para hoje é encontrar e depois seguir o caminho de Olga e aprender o máximo que puder para estender a exploração dela. Fico sentado na minha posição normal, com minhas pernas cruzadas. Preciso usar as técnicas de medição de tempo que aprendi para voltar e encontrar o mesmo canal de percepção que ela atravessou.

Fecho meus olhos e imagino a figura do meu próprio duplo. Ele está na mesma posição de pernas cruzadas que eu, mas está sentado de cabeça para baixo acima da minha cabeça, olhando para o lado oposto. Os topos das nossas cabeças se tocam ligeiramente. Distribuo minha atenção igualmente entre as duas figuras, preenchendo o duplo com a mesma energia e consciência da minha personalidade usual. Logo as figuras unidas começam a girar ao redor do ponto de conexão entre nossas cabeças. Da posição da minha imagem comum, estamos girando na direção horária. Vistas de lado, nossas formas unidas parecem uma suástica giratória. Giro cada vez mais rápido.

O pedaço do tempo que ocupo está mudando, voltando para trás. Minha tarefa não é seguir Olga exatamente, mas só descobrir o mesmo nível de vibração que ela, e ver onde ele me leva. Meu relógio interno sabe intuitivamente onde parar para fazer isso, e confio nele para fazer seu trabalho. Concentro toda minha atenção em facilitar a totalidade da minha imagem em movimento.

Em algum ponto eu a sinto parar. Uma série de ondas de energia viaja através de diferentes partes do meu corpo até que uma delas passa diretamente através do meu coração. Sinto um choque, como se tivesse sido atingido por alguma coisa. Lembro-me da frase de um antigo evangelho copta: "Você precisa prestar atenção em mim para me ver", e sei que agora devo dirigir toda minha atenção para esse portal vibratório específico. Eu preciso me segurar a ele sem um único momento de distração.

Experimento a mesma sensação familiar de uma nova realidade emergindo na minha percepção. Da mesma maneira que uma fotografia gradualmente se transforma em formas visíveis quando é revelada, formas e imagens estão começando a se revelar na minha visão. De início, vejo apenas as formas de árvores, as suas folhas se movendo levemente no vento. Então um grande pátio se abre para mim, cercado por todos os quatro lados por edifícios baixos feitos de pedras marrom-avermelhadas. Estou de pé no meio do terreno, perto de um grande jardim em forma de estrela cheio de flores brancas e vermelhas.

De início, parece não haver mais ninguém no terreno. Sinto que as construções estão cheias de pessoas, e que elas estão trabalhando duro para criar algo muito significativo. Então, à minha direita, noto um homem sentado num banco. Ele está desenhando alguma coisa no chão, usando um longo bastão como ferramenta.

O homem parece bastante contemporâneo. O seu rosto me é familiar, mas não me lembro onde o vi antes. Eu sei, por experiência passada, que não devo me distrair com detalhes como tentar me lembrar de rostos. Preciso me concentrar apenas na experiência do momento.

Eu me aproximo do homem. Levantando sua mão, ele me saúda com um sorriso. Ele age como se soubesse quem eu sou, e gesticula para eu sentar ao seu lado no banco. Eu sei que preciso ser muito econômico com minha energia para me manter nesse lugar, de modo que evito falar, e em vez disso transfiro meus pensamentos para ele simplesmente olhando direto para o seu rosto.

Meu pensamento para ele é uma pergunta, e ele balança a cabeça afirmativamente. Então ele começa a falar. Escuto a sua linguagem como russo fluente. "Você quer ouvir a história de uma lenda", diz ele.

Confirmo isso mentalmente para ele.

"Bem, primeiro você deve considerar todo o conceito de lenda e tentar responder à pergunta do que separa a lenda da realidade. Existe uma diferença entre elas? Naturalmente, eu sei que no nível pessoal de considerar uma questão como essa você ganhou um bocado de liberdade da sua antiga maneira de ver as coisas, mas ainda é rígido demais para aceitar que a sua própria pesquisa cientifica seja um tipo de lenda sendo contada por outros."

Discordo intensamente disso, porque sinto-me livre de qualquer apego à minha posição de pesquisador. Ele não presta atenção no meu pensamento e continua.

"Agora vou lhe contar a lenda de Belovodia, só que vou contá-la não como uma fantasia arquetípica, mas como uma história real. Você pode decidir por conta própria como vai aceitá-la. Mas o que vou lhe contar é a verdade real."

Enquanto fala, o homem se curva e acrescenta um ou dois pequenos símbolos ao desenho que fez no chão.

"Há muito tempo, tanto tempo que não faria sentido algum especificar quando, uma grande catástrofe sacudiu o continente agora conhecido como Eurásia. Esta catástrofe tinha sido prevista como uma possibilidade pelo círculo interno da elite de uma civilização sofisticada que existia no norte da Sibéria. O clima nessa época era muito benigno, ao contrário de como é hoje em dia nessa região. A civilização que evoluíra ali era altamente desenvolvida. Alguns dos seus avanços foram depois duplicados pela sua própria cultura, mas em geral eles eram mais diferentes nas suas capacidades e realizações do que vocês poderiam imaginar.

"Uma das conseqüências imediatas da catástrofe foi uma tremenda alteração no clima. O seu clima quente e favorável foi instantaneamente substituído pela neve. Logo toda a terra estava coberta de gelo, e tornou-se impossível que sua civilização sobrevivesse. Mas mesmo depois do seu colapso, a elite dos líderes fez todos os esforços possíveis para preservar seu conhecimento.

"A cultura deles não era tecnológica, como a de vocês. As suas principais conquistas tinham sido no desenvolvimento das dimensões internas da mente. Antes da catástrofe, toda a sua sociedade possuía uma bela intensidade espiritual que na sua cultura materialista só fora experimentada por muito poucos. Eles possuíam uma incrível sabedoria psicológica. Eram capazes de controlar a sua própria experiência pessoal do tempo, e tinham aprendido a se comunicar telepaticamente através de grandes distâncias. Eles tinham grandes técnicas para se projetar no futuro, e a sua estrutura social foi a mais eficiente que já existiu.

"Depois da catástrofe, aqueles que eram fisicamente capazes foram organizados para uma migração para o extremo sul. A elite espiritual escolheu ficar para trás, e esses homens e mulheres experimentaram uma série de transformações intensivas. Do seu ponto de vista eles encontraram a morte. Mas ainda formavam um núcleo coletivo conectado com os remanescentes da sua gente que migrara para o sul.

"Aqueles que tinham se afastado não compreendiam isso totalmente, mas sabiam que seus anciãos e mestres continuavam a viver em algum lugar do norte, e que governavam suas vidas através de conexões com seus sacerdotes e rituais.

"Com o passar dos anos, as novas vidas dos migrantes foram consumidas pelas exigências puras da sobrevivência. Suas lembranças do passado gradualmente se apagaram. Com sua atenção coletiva voltada para as necessidades prementes da existência material, a direção da sua cultura eventualmente acabou totalmente alterada. Mas a linha que os conectava com o conhecimento e poder da sua elite espiritual nunca foi interrompida.

"Esse elo continua vivo, ainda hoje. Mas gradualmente, com a passagem de tantos milhares de anos, ele se tornou cada vez mais oculto. Mesmo para a maioria dos seus sacerdotes, a sua memória se manifesta principalmente na forma de lendas e mitos. Nomes diferentes estão sendo dados agora ao antigo lugar onde esse conhecimento sagrado está sendo mantido; Belovodia é um deles.

"A preservação do seu conhecimento espiritual foi a meta da elite espiritual desde o inicio da migração. Foi por isso que eles ficaram para trás. Mas naturalmente, para que o conhecimento espiritual seja verdadeiramente vivo, ele deve ser integrado continuamente nas vidas sociais de novas culturas emergentes. Foi assim que aconteceu durante muito tempo.

"A migração da civilização original, que eu lhe contei, foi só a primeira. Desde então, muitos grupos de pessoas perambularam para a Sibéria e foram influenciados pelos poderes místicos da civilização desaparecida. A região de Altai tornou-se um caldeirão fervente para a criação de novas culturas. Correntes da humanidade se separaram de lá e viajaram muito para várias direções diferentes.

"Uma delas chegou no território do moderno Irã, onde o conhecimento espiritual que carregavam se manifestou no nascimento do zoroastrismo. Mais tarde, essa mesma corrente transferiu muito do seu conhecimento para o cristianismo. Outra corrente migrou para o que agora é a Índia e o Paquistão, e o estabelecimento da sociedade lá trouxe vida para o tesouro da tradição védica. O budismo tântrico, que deu ao local do conhecimento inicial o nome de Shambhala, esteve em comunicação direta com ele durante séculos. Aqueles que foram para o oeste passaram a ser conhecidos como celtas e estiveram conectados com a fonte comum através das cerimônias dos druidas. Deste modo, a herança mística da antiga civilização fez com que a região do Altai se tornasse a fonte original de muitas das grandes religiões do mundo.

"Sempre existiram pessoas dentro de cada uma dessas diferentes tradições que estavam em contato direto com Belovodia. De tempos em tempos, o conhecimento de lá foi aberto para a sua própria civilização. Isso aconteceu em momentos de verdadeira ameaça para a humanidade, tais como as guerras mundiais. Ele está novamente se abrindo para vocês agora, porque o poder e a energia que vocês acumularam são capazes de causar muitas catástrofes diferentes. Belovodia está se tornando acessível para que a sua consciência os proteja mostrando outras maneiras de viver."

Então o homem ficou em silêncio e começou a desenhar figuras geométricas no chão perto dos seus pés. A minha percepção estava tão sobrecarregada com as muitas impressionantes implicações do seu discurso que mal posso me concentrar o bastante para manter minha presença aqui. Luto contra um desejo quase avassalador de entrar numa discussão com ele sobre tudo que ele disse e as centenas de argumentos que quero apresentar, e em vez disso me concentro em estar inteiramente onde estou.

Pela expressão do seu rosto, posso ver que ele compreende perfeitamente a luta dentro de mim.

Então ele começa novamente, dessa vez falando muito devagar.

"Você pode decidir se o que eu disse para você é uma lenda ou realidade. Mas na verdade, não há alternativa a não ser ver a verdade que existe. Essa verdade é uma flor que abriu suas pétalas uma a uma, facilitando e apoiando o belo tesouro da espiritualidade humana no mundo todo.

"Essa flor agora está pronta para se abrir plenamente, e para ser vista e compreendida como o florescimento de todo o conhecimento. Isso vai acontecer muito em breve. Você pode responder a ela da maneira que preferir. Você pode escolher lutar contra ela, ou pode em vez disso escolher dar boas-vindas à sua essência divina e beleza viva."

 

A escrita de Dmitriev acabava aqui, exceto por alguns desenhos geométricos de aparência estranha esboçados de modo incerto no final da página. As suas notas não diziam nada sobre seu retorno da experiência ou sobre suas reações a ela. Ela simplesmente parava, me deixando espantada e imóvel. Eu compreendia agora por que Dmitriev queria que me sentasse dentro do espelho enquanto lia suas anotações; isso fazia com que sua experiência parecesse tão vivida e poderosa que eu me sentia como se tivesse feito sua viagem com ele.

Caminhei lentamente para a sala onde Dmitriev esperava, sentado à sua mesa lendo um enorme livro de física. Ele ficou de pé e imediatamente me levou de volta para a privacidade da sala dos espelhos.

- Bem, o que você acha? - perguntou ele. Parecia excitado e nervoso.

- Estou abalada. Não sei realmente o que dizer, exceto que o seu material tirou completamente a necessidade de eu mesma fazer algo nos espelhos hoje. Ele respondeu perfeitamente às perguntas que eram a razão da minha visita. Você tinha razão quanto a isso.

Ele respirou fundo.

- Sabe - comentou -, estive realmente lutando vigorosamente contra a verdade dessa experiência. Eu nem mesmo escrevi minha reação a ela, porque fiquei simplesmente confuso e abalado demais para tentar. De início tentei lidar com ela fazendo-a parecer trivial. Disse a mim mesmo que não era nada mais do que uma criação puramente psicológica do meu próprio inconsciente. Mas isso não me convenceu. Então tentei construir um argumento intelectual contra todo o conceito, usando as informações disponíveis a partir das pesquisas modernas.

"Naturalmente, não sou historiador ou antropólogo, mas tenho muitos amigos nesses campos. Eu pensei saber o bastante sobre eles para rejeitar a possibilidade da Sibéria ter sido o lar de alguma civilização esotérica avançada há muito tempo esquecida. Eu até mesmo fiz algumas pesquisas novas por conta própria, lendo muitos livros e artigos.

"E sabe qual foi o resultado? Não encontrei nenhuma prova real de que isso tenha de fato acontecido, mas também não havia prova de que não houvesse acontecido. No final, o único argumento que podia ser feito contra a idéia era o círculo que dizia que, já que não era verdade, não podia ser verdade. Isso é tudo.

"Ao mesmo tempo, havia muitas pistas que apoiavam a existência de Belovodia, e do que escutei na minha visão. Existe o fato provado da caverna de Denisova, um dos sítios arqueológicos mais conhecidos de Altai, onde os traços da vida humana foram documentados como pertencendo a um período de trezentos mil anos a.C. Então me lembrei do impressionante trabalho comparativo que fora feito entre a tradição védica e o paganismo da antiga cultura eslava. Entre outras coisas, seus respectivos deuses tinham os mesmos nomes e possuíam funções similares.

"Eu até mesmo notei que o penteado típico dos antigos cossacos ucranianos era idêntico ao dos modernos seguidores da religião de Krishna, vinda da Índia. Os dois raspam suas cabeças, só deixando um longo rabo-de-cavalo crescendo do topo da coroa. Os seguidores de Krishna acreditam que ele vai retira-los do pecado por esse rabinho no topo das suas cabeças. Eu acabei de saber por um dos meus amigos, um antropólogo, que algumas expedições estavam sendo organizadas para explorar o território ao redor de Altai, para testar a idéia de que a origem da sua nação poderia ser traçada até lá.

"Foi particularmente fascinante traçar a conexão entre o nome da principal deusa da região de Altai, Umai, e outras divindades, como a Kali indiana e a Tara budista. Cheguei à conclusão de que eram todas a mesma. Umai foi incorporada em Uma, o antigo espírito feminino indiano, que como uma Shakti, encarnação feminina do poder do deus Shiva, é o poder da luz que torna a percepção possível. Uma se manifesta como Kali no sistema Kalavada e no Tantra Kalachacra.

"Os dois sistemas estavam conectados com uma crença numa roda do tempo. A maioria dos aspectos sagrados dos seus rituais eram as portas cerimoniais abrindo nas raízes do tempo, através dos quais os iniciados eram capazes de alcançar Shambhala, ou Belovodia, e de tocar o mistério da imortalidade. Existem também impressionantes similaridades com a tradição Zervanit da antiga Pérsia, onde a habilidade de compreender e manipular o tempo era a essência da sua prática espiritual.

"Também existem os mesmos paralelos fascinantes no sufismo. Durante muitos anos o meu bom amigo, o sr. Vasiliev, lidera um grupo de estudiosos pesquisando a obra de Gurdjieff e seus predecessores. Ele me contou há pouco tempo que na parte da obra de Gurdjieff mais essencialmente ligada aos mestres sufis, ele descobriu a mesma idéia de uma roda do tempo que poderia ser adentrada e usada como uma passagem para o portal místico guardando a terra sagrada de Hurqalya. O nome Hurqalya pode ser considerado o equivalente sufi de Belovodia.

"Vasiliev aprendeu que Gurdjieff também encontrou entre os mestres sufis o conhecimento de que a roda do tempo representava uma lei primordial estável, que podia ser captada e compreendida através de muitas modalidades diferentes de percepção. Por exemplo, o praticante que toca essa lei através da meditação sobre mandalas abre os olhos do coração com o auxílio do sentido da visão. Aqueles que escutam a música de círculos, especialmente no modo como Gurdjieff ensinou, alcançam a mesma experiência mística ajudados pelos sentidos auditivos. O mesmo estado também pode ser alcançado pela dança, em que todo o corpo se torna o instrumento que leva aos portais sagrados.

"O grupo de estudantes de Gurdjieff que continuou na Rússia levou esse conceito mais longe. Eles confirmaram que qualquer que fosse o mecanismo utilizado, caso fosse usado corretamente, a roda do tempo começaria a girar. E inevitavelmente nos levaria ao ponto final do nosso destino, o país místico de Belovodia. Tudo isso é bastante interessante, não é?

"No entanto, se realmente houve urna antiga e avançada civilização em alguma parte do norte da Sibéria, por que nós ainda não descobrimos seus restos físicos? Não importa há quanto tempo ela possa ter existido, por que ainda está tão misteriosamente fora da nossa visão? Bem, talvez a resposta possa ser encontrada nas teorias do eminente historiador e etnólogo russo Lev Gumilev, cuja mãe, Anna Akhmatova, considero a maior poetisa que a Rússia já produziu.

"Enquanto era um prisioneiro político no Gulag, Gumilev estudou o efeito das leis cósmicas da transformação da energia na evolução das culturas. Um dos muitos conceitos que ele introduziu foi que toda civilização é caracterizada pelos diferentes materiais que ela usa como fundamento da sua existência - madeira, couro, tecidos, metal, osso, pedra, e assim por diante. Devido às grandes variações de materiais que utilizaram, assim como dos climas que habitaram, ele percebeu que diferentes civilizações produziriam restos que obviamente seriam preservados de maneiras muito desiguais.

"Civilizações que se apoiassem pesadamente em pedra e metais e existissem em locais com climas quentes e secos deixariam várias ruínas e artefatos para os futuros arqueólogos. Poderia até ser comum encontrar restos humanos mumificados, naturalmente bem preservados, como aconteceu em partes da África, América do Sul, e no sudoeste dos Estados Unidos.

"No entanto, as culturas que usavam principalmente materiais perecíveis como a madeira, couro e tecidos, e que foram sujeitas a um clima frio e úmido como o da Sibéria durante muitos milhares de anos, deixariam muito poucos traços para trás. Se essa civilização também fosse excepcionalmente antiga, existindo talvez não há dezenas, mas há centenas de milhares de anos, não poderíamos esperar encontrar muitas evidências físicas da sua existência.

"Assim, embora eu não possa ainda apontar nada conclusivamente, existem muitas pistas fortes de que a terra mãe inicial para a cultura proto-indo-européia não se restringiu à área ao redor do mar Negro, como muitos cientistas acreditam, mas poderia ser expandida para incluir a região do Altai também.

"Sabe, Olga, tudo isso conseguiu, de alguma forma, dissolver muito do meu ceticismo de cientista para com novas teorias que contradizem crenças aceitas e que podem de início parecer anticonvencionais. Eu não acho mais que seja historicamente impossível que Belovodia tenha existido algum dia, e que de alguma maneira desconhecida, continue a existir e a informar a cultura humana.

"Talvez algum dia apareçam evidências materiais para provar isso além de qualquer dúvida para nossas mentes práticas, lógicas e científicas. Para mim, a minha intuição já é o bastante. Meu coração está tão feliz e satisfeito com a informação que recebi que já estou pronto a aceita-la como uma crença. É aqui que estou até agora. Quando você me perguntou se poderia vir aqui novamente, concordei em parte na esperança de que minha experiência pudesse ajudá-la na sua própria pesquisa.

Felizmente, nunca fui tão condicionada para acreditar apenas nas evidências científicas empíricas quanto Dmitriev parece ter sido, e muitos dos meus estereótipos do suposto mundo real já tinham sido quebrados pelas minhas próprias experiências em Altai. Assim, para mim, era imediatamente fácil e plausível ver Belovodia da perspectiva sugerida pela experiência de Dmitriev. Na verdade, a idéia me fascinava. A minha reação a ela foi como se finalmente houvesse recebido uma promessa há muito esperada de proteção e apoio.

Agradeci a Dmitriev emocionada, e fui embora sentindo-me excitada e contente. Tinha recebido tudo que poderia ter esperado da minha visita. Além disso, durante minha viagem para casa não devotei muitos pensamentos conscientes às informações que ele tinha me dado. Elas não pareciam realmente facilitar a análise racional; simplesmente se "encaixavam" como um conceito intuitivo que imediatamente resolveu muitos dos meus conflitos anteriores e me deixou cheia de uma calma espiritual.

Mais uma vez cheguei em casa tarde, mas decidi ficar acordada pelo menos pelo tempo suficiente para escrever tudo que aprendera no Instituto de Física Nuclear enquanto ainda estava com a memória fresca. Depois de ter acabado de escrever, fiquei mais consciente do que nunca do fato de que minhas experiências estavam criando uma nova identidade. Eu sabia que essa identidade estava conectada com meu Gêmeo Espiritual, e que eu estava no processo de me transformar na minha verdadeira personalidade.

Eu me sentia como se finalmente houvesse conectado as extremidades de um círculo muito importante na minha vida. Mais tarde, eu aprenderia que a busca pela compreensão realmente segue uma série de círculos unidos para formar uma espiral ascendente. Assim que completamos cada volta, ela se torna mais completa dentro de nós, formando uma parte integral da nossa experiência, e somos imediatamente expostos à fronteira externa do próximo círculo. Então estamos prontos para seguir o caminho em espiral até o próximo nível.

Sem saber disso ainda, eu estava totalmente despreparada quando o telefone tocou e meus pensamentos foram interrompidos por uma profunda e rouca voz masculina dizendo num tom ríspido:

- Quero falar com Olga. É você?

- Sim - respondi. - Quem é? - Tentava reconhecer a voz ríspida telefonando numa hora tão adiantada, mas ela era definitivamente desconhecida.

Ele continuou no mesmo tom rude e condescendente, como se nem houvesse me escutado.

- Me disseram que você é uma garota bastante interessante, fazendo coisas muito interessantes. É mesmo?

Então ele me disse seu nome, Mikhail Smirnov, de tal maneira que sugeria que eu deveria instantaneamente saber quem era ele. O nome não significava absolutamente nada para mim, mas em pouco tempo eu ficaria sabendo que ele era um homem muito culto e controvertido que passara algum tempo na prisão como dissidente, e que agora era considerado o padrinho de todas as atividades esotéricas e espirituais subterrâneas que aconteciam em Novosibirsk. Ele até mesmo criara uma rede internacional de correspondentes que enviavam para ele as últimas pesquisas sobre a consciência humana de todos os cantos do mundo.

O seu chamado provou ser o início do meu próximo círculo. Ele me levaria de volta a Altai, e então para o Usbequistão e o Casaquistão, formando uma longa curva na espiral que me traria muitos novos testes, tentações e dons. Ela privaria certas pessoas da sua sanidade, e até mesmo custaria a vida de algumas delas. Mas também traria grande amor e paz para outras. Para mim, iluminaria mais os fascinantes mistérios das espirais do tempo e das trilhas evolutivas da humanidade, o significado das antigas tumbas com seus "habitantes aparente-mente mortos com intenções vivas", e a posição central de Altai na antiga teia que criara tantas das religiões do mundo. Tudo isso seria conhecimento que completaria outro círculo na minha busca de Belovodia.

 

O céu noturno tinha voltado ao normal, mas o vento e o ar úmido ainda eram tão refrescantes que continuei na minha sacada durante muito tempo, relembrando o círculo de dançarinos e os olhos de Umai no final da visão, olhando para as estrelas e refletindo sobre os eventos em Altai que tinham mudado minha vida de tantas maneiras.

Mais de um ano tinha se passado desde que eu encontrara pela primeira vez Umai na vila de Kubia, e passara muito do meu tempo viajando pela Ásia Central em busca de conhecimento, encontrando novos mestres no processo. Apesar disso, minhas memórias de Umai ainda estavam vivas, e sempre me traziam alegria e excitação. Talvez isso acontecesse porque elas eram mais do que simplesmente os retratos mentais indistintos e distantes que geralmente carregamos pela vida como registro de nossas experiências. Essas memórias tinham formado o fundamento da transformação que ocorrera dentro de mim.

Embora eu ainda estivesse absorvendo e integrando na minha vida tudo que acontecera em Altai e nas minhas experiências subseqüentes no laboratório de Dmitriev; eu já tinha começado a fazer outras jornadas para a Ásia Central em busca de conhecimentos adicionais.

Quando estava começando a escrever o manuscrito deste livro, decidi visitar Altai para pedir a permissão e o conselho de Umai. No final do encontro, Umai me abraçou pela primeira vez. Então ela me deu um pouco de tabaco de presente e observou que o nome altaico para o Grande Espírito era Ulgen, que derivava de Ulkar, a palavra de Altai para a constelação conhecida por nós como as Plêiades. Quando perguntei a ela por que tinha me dito isso, ela me respondeu que não me daria uma explicação. "Pense sobre isso você mesma", foi tudo que ela disse.

O próximo passo necessário antes de publicar o livro foi visitar meus novos mestres no Usbequistão e no Casaquistão. Um deles, que era conhecido como o Mestre dos Sonhos Lúcidos, estava me esperando na pequena casa onde já tínhamos nos encontrado.

O chão da sala em que sentamos era coberto com macios tapetes de lã com desenhos usbeques vermelhos e brancos. Sentia-me confortável nessa sala, portanto quando ele mandou me preparar para uma viagem, sentei calmamente perto da parede na pose especial que ele me ensinara e fechei os olhos.

 

Esta viagem é curta, começando com sua voz profunda e hipnótica dizendo: "Vou lhe ensinar uma coisa importante sobre seu livro."

Imediatamente senti que ele tinha colocado um objeto desagradavelmente frio, liso e fino se contorcendo na minha mão direita. Começo a abrir minha mão para atirá-lo longe, mas ele me impede.

"Segure-a!", diz ele. "Não abra os seus olhos! É uma serpente que está segurando na sua mão."

Seja lá o que for que está em minha mão, está se contorcendo furiosamente. Estou quase paralisada de medo e mal consigo me impedir de gritar. Ainda quero soltá-la, mas tenho medo que seja venenosa e que me morda se o fizer.

"Sinta a serpente na sua mão", diz ele. "Ela é um poder. Sinta-a e lembre-se da sensação de segurá-la. Você precisa encontrar o equilíbrio entre você e o poder que segura. Se apertar demais, você vai ferir a cobra e ela pode mordê-la. Se você não segurá-la apertado o bastante, ela vai escapar e você vai perdê-la. Você precisa encontrar o equilíbrio correto e mantê-lo."

 

Tentei me lembrar dessa lição e usá-la ao escrever este livro. Muitas pessoas estão procurando poder, buscando novas qualidades para desenvolver em si mesmas, procurando se abrir para sua mágica interior. Algumas vão aprender a contatar esse poder interior, às vezes de maneira muito bem-sucedida. Mas, sem o fundamento para administrá-lo e controlá-lo, elas segurarão com força demais e ele as morderá. A sua força vai vencê-las, e em vez de usá-lo elas se tornarão seus servos.

As pessoas que estão desequilibradas da maneira oposta podem ser capazes de usar seu poder durante algum tempo, mas não serão capazes de controlá-lo e ele irá embora. Se eu for capaz de transferir uma compreensão do entendimento apropriado para aqueles que lerem este livro, então uma das minhas tarefas terá sido cumprida.

Em breve, irei embarcar na minha nova jornada. Ela irá de Altai até a Ásia Central, e então para a América do Norte. Ela irá pelo mesmo caminho que foi trilhado por seres humanos que levaram o fogo da verdade e da luz para onde quer que tenham ido. É a mesma verdade e luz que está voltando agora às mentes e memórias das pessoas do nosso tempo.

 

 

                                                                                Olga Kharitidi 

 

 

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